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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO EVANGELHO / David Gibbins
O ÚLTIMO EVANGELHO / David Gibbins

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

... Ele faleceu em uma catástrofe que destruiu a mais bela das regiões da Terra, um destino partilhado por todas as regiões e seu povo, e é tão memorável que é provável que o seu nome viva para sempre; e ele próprio escreveu uma série de livros de valor duradouro: mas você escreve incessantemente e ainda pode fazer muito para perpetuar sua memória. O homem de sorte, em minha opinião, é aquele a quem os deuses concederam o poder de fazer algo merecedor de ser registrado ou que valha a pena ser lido, e o mais afortunado de todos é o homem que pode fazer ambos...

 

 

 

 

                   24 de agosto do ano 79 d.C.

O velho avançou com dificuldade para a beira da brecha, o aperto firme de seu ex-escravo, que havia sido libertado e que o segurava, era tudo que o impedia de arremessar-se adiante. Aquela era uma noite de lua cheia, uma lua vermelha, e os redemoinhos de vapor que enchiam a cratera pareciam brilhar, como se os fogos do vulcão estivessem queimando através da estreita projeção do chão que dividia o mundo dos vivos do mundo dos mortos. O velho observou atentamente por cima da beirada, sentiu a corrente de ar quente em seu rosto e experimentou o gosto forte de enxofre em seus lábios. Ele sempre se sentia tentado, mas sempre se detinha. Lembrou as palavras de Virgílio, o poeta por cuja tumba haviam passado ao vir para este lugar. Facilis descendus Avernus. É fácil descer para os mundos infernais. Sair não era tão fácil.

Ele voltou-se e ergueu seu capuz para esconder o rosto. Atrás deles vislumbrou rapidamente o cone escuro do Vesúvio sobre a enseada, as cidades de Herculano e Pompéia luzindo fracamente como sentinelas de cada fado. A grande dimensão do Vesúvio era tranqüilizadora em noites como esta, quando a terra tremia e o cheiro desagradável do enxofre era quase opressivo, quando o chão estava coberto com corpos de pássaros que tinham voado muito perto dos vapores. E sempre havia os arautos da destruição, loucos e charlatães que espreitavam nas sombras dispostos a furtar os crédulos, aqueles que vinham a este belvedere para admirar e contemplar durante muito tempo, mas que nunca se aventuram além. Um deles encontrava-se ali naquele momento, um grego com bastos cabelos rebeldes que saltara de um altar ao lado deles, as mãos com as palmas para cima como que em súplica, agitando os braços e espumando, balbuciando a respeito de uma grande calamidade, que Roma iria queimar, que do céu cairia uma chuva de sangue, que a terra debaixo do Vesúvio seria consumida pelos fogos dentro dele. O ex-escravo empurrou bruscamente o mendigo para um lado, e o velho resmungou aborrecido. Este não era um lugar onde alguém necessitava de um adivinho para interpretar a vontade dos deuses.

Instantes depois, eles deslizaram por uma fenda na rocha conhecida apenas pelos aleijados e pelos malditos, onde o velho tinha sido trazido pela primeira vez quando menino, fazia mais de oitenta anos. Ele ainda se lembrava do terror que sentira, parado ali chorando e tremendo, a cabeça sacudindo descontroladamente por causa da paralisia. Não havia cura para a sua doença, mas os que o fizeram entrar ali lhe proporcionaram consolo, lhe deram força para desafiar aqueles que queriam que ele nunca mais fosse visto em Roma. Mesmo agora, não tinha se libertado do medo, e sussurrou seu nome, fortalecendo-se. Tibério Cláudio Druso Nero Germânico. Lembre-se de quem você é. Lembre por que você está aqui.

Eles desceram lentamente, o velho arrastando a perna doente atrás de si, as mãos apoiadas pesadamente em seu ex-escravo que andava na frente. Em muitas noites, o céu ficava visível através da abertura no topo da fenda, mas nesta noite as escadas esculpidas na rocha estavam envoltas nos redemoinhos de vapor que pareciam tragá-las. Os cantos escuros estavam iluminados por tochas acesas, e em outros lugares tremulava uma luz alaranjada vinda de fora. Eles alcançaram uma saliência no rochedo acima do chão da cratera, e o velho esforçou-se para ver o que ele não conseguia distinguir de cima. Vapores em redemoinho pareciam flutuar numa camada de vazio acima do chão rochoso, um veneno invisível que apagava as chamas e sufocava a todos que caíam dentro deles. Em algum lugar mais além se situava a entrada para o próprio Hades, o Mundo Inferior, uma ferida ardente que rompia a rocha, rodeada pelos esqueletos carbonizados daqueles que tinham deixado seus corpos para trás no caminho para o Elísio, uma seção do Mundo Inferior. Por um instante, ele percebeu pequenas fendas vermelhas como olhos incandescentes na rocha, e depois observou uma massa derretida vazar e solidificar-se, depositando formas como membros gigantes e torsos aprisionados em uma massa incandescente no chão da cratera.

O velho estremeceu e pensou novamente em Virgílio. Era como se aqueles que haviam escolhido abandonar sua vida mortal naquele lugar estivessem se esforçando por renovação, como gigantes e titãs e deuses, embora ainda condenados por toda a eternidade como formas incompletas, formas proteiformes, formas que a natureza iniciara, mas nunca terminaria, formas como ele próprio.

A cena desapareceu dentro dos vapores como um sonho, e eles se apressaram, o velho cambaleando e ofegando atrás do ex-escravo. Sua visão obscureceu e ficou indistinta, como lhe acontecia com freqüência nestes dias, e ele parou para esfregar os olhos e desviou o olhar. Alcançaram um passadiço, um caminho elevado envolto em fumaça amarela que saía dos orifícios no chão e era cercado de cada lado por poças de lama ferventes que se erguiam e sacudiam violentamente. Disseram-lhe que estas eram as almas atormentadas do purgatório pressionando para cima, desesperadas para escapar e que o assobio do gás eram suas exalações, como humores malignos que se erguiam de uma sepultura no cemitério. O velho já vira isso antes, quando o comandante de sua legião o levara para ver as covas onde haviam arremessado os bretões mortos, corpos que ainda se mexiam debaixo do solo várias semanas depois da matança. Ele fez uma careta ao se lembrar de sua náusea, e se apressaram, passando diante das fumarolas de gases e vapores e para dentro da escuridão mais além.

Como que saindo do nada, algumas mãos se estenderam em sua direção, e ele podia ter a sensação de formas espectrais alinhadas de cada lado do passadiço, algumas se arrastando para cima, da beirada da cratera, sobre membros enfraquecidos. Seu ex-escravo andava na frente com os braços estendidos, suas palmas viradas para fora e tocando as deles, abrindo um espaço atrás para o velho poder seguir. Escutou um canto em voz baixa, um solista e em seguida muitas vozes respondendo, um barulho embotado como o de folhas do final do outono levantadas por uma rajada de vento. Eles cantavam as mesmas palavras, repetidas vezes. Domine Ivimus. Senhor, nós viremos. Houve um tempo em que Cláudio teria andado no meio deles, teria sido um deles. Mas agora eles faziam o sinal com as mãos quando as estendiam em sua direção, os dedos cruzados, e eles sussurravam seu nome, depois o nome daquele que sabiam que ele havia tocado. Seu amigo Plínio também havia visto isto, ele andara disfarçado misturado com os marinheiros na base naval no topo da enseada, vira grupos de homens e mulheres ouvindo com atenção nas passagens estreitas e sombrias e nos quartos dos fundos das tavernas, ouvira falar de um novo sacerdote, um daqueles chamados apóstolos. Virgílio profetizara isto, Virgílio, que havia trilhado este mesmo caminho uma centena de anos antes, que sussurrara sua revelação também na mensagem das folhas. O nascimento de um menino. Um mundo de paz, libertado de um medo incessante. No entanto, um mundo no qual a tentação espreitava, em que novamente surgiriam homens para se colocar entre o povo e a palavra de Deus, cm que o terror e a discórdia poderiam imperar mais uma vez.

O velho mantinha seu olhar fixo constantemente abaixado, e prosseguia com dificuldade. Já fazia vinte e cinco anos que ele morava em sua habitação elegante abaixo da montanha, um historiador humilde com o trabalho de sua existência para completar. Vinte e cinco anos desde que supostamente morrera envenenado em seu palácio em Roma, removido naquela noite para nunca mais voltar. Um Imperador que vivia não como um deus, mas como um homem. Um imperador com um segredo, com um tesouro tão precioso que este o manteve vivo durante todos aqueles anos, observando, esperando. Poucas pessoas sabiam disso. Seu amigo Plínio. Seu confiável ex-escravo Narciso, que se encontrava com ele naquela noite. No entanto, agora, estes o tratavam com uma estranha reverência, muito atentos à cada palavra sua como se ele fosse um adivinho, como se ele fosse o próprio oráculo. O velho resmungou consigo mesmo. Naquela noite ele iria cumprir uma promessa que fizera havia muito tempo à beira de um lago para alguém que lhe confiara sua palavra, sua palavra escrita. Esta era a última chance que o velho tinha para dar forma à história, para conseguir mais do que jamais poderia como imperador, para deixar um legado que iria, como ele sabia, sobreviver até mesmo à própria Roma.

Repentinamente, ficou sozinho. A sua frente o passadiço desaparecera dentro de uma cavernosa escuridão, um lugar onde o calor que subia das profundezas encontrava a fria exalação de dentro das cavernas, para formar uma miragem um pouco tremeluzente. Ele procurou o dado que sempre levava em seu bolso, girando-o várias vezes, tentando acalmar o seu tremor. Dizia-se que a caverna tinha cem entradas, cada uma delas com uma voz. Atrás dele havia uma bacia rasa, e ele mergulhou seus dedos nas águas purificadoras, molhando o rosto. À frente encontrava-se uma baixa mesa de pedra, pequenas colunas de fumaça marrom erguiam-se de uma massa em combustão espalhada pela superfície. Ansiosamente, cambaleou até ela, agarrando as beiradas lisas da mesa, os olhos bem fechados, aspirando profundamente a fumaça, tossindo e fazendo força para vomitar, mantendo-se ali. Plínio chamava esta fumaça de opium bactrium, o extrato de papoula trazido do distante reino da Báctria situado no leste, nos vales montanhosos açoitados pelos ventos, conquistado por Alexandre, o Grande. Mas ali a fumaça era chamada de presente de Morfeu, o deus dos sonhos. Ele a aspirou novamente, sentindo a investida violenta que atingia seus pulmões, trazendo sentimentos que quase haviam desaparecido, amainando a dor. Ele precisava mais disto agora, necessitava quase todas as noites. Inclinou-se para trás, e sentiu como se estivesse flutuando, o rosto erguido e os braços estendidos. Por um instante fugaz, voltou para um outro lugar onde ele buscara sarar, muito tempo atrás, junto ao lago da Galiléia, rindo e bebendo com seus amigos Herodes e Cipros e sua amada Calpúrnia, com o Nazareno e sua mulher, onde ele havia sido tocado por alguém que conhecia o seu destino, que tinha previsto este exato dia.

O velho abriu os olhos. Alguma coisa estava vindo da caverna, uma forma retorcida e ondulante que parecia se pressionar contra a miragem como uma fênix se erguendo. Ela abriu caminho através da miragem, e ele viu uma enorme serpente, em pé, ereta, tão alta quanto ele, sua cabeça achatada abaixou e sua língua se agitava entrando e saindo, se movendo de um lado para outro. Plínio lhe dissera que estas eram alucinações provocadas por morfina, mas, quando a serpente se abaixou ao solo e deslizou ao redor de suas pernas, o velho experimentou o macio sedoso de sua pele e sentiu o seu cheiro bolorento, um odor acre. Depois a serpente se deslocou, deslizando para dentro de uma fenda na lateral da caverna, e apareceu um outro cheiro, sobrepujando o do enxofre e da morfina e o cheiro da serpente, um odor como o de um vento frio soprando através de uma sepultura fétida, um cheiro de decomposição antiga. Alguma coisa se movimentou repentinamente, uma forma mal e mal visível na escuridão. Ela estava ali.

- Cláudio.

Ele ouviu um gemido baixo, depois um som como um riso zombeteiro, em seguida um suspiro que ecoou através de centenas de passadiços diferentes na rocha, antes de desaparecer. Cláudio observou atentamente a escuridão, esperando, girando a cabeça. Dizia-se que ela havia vivido por setecentos períodos de vida dos homens, que Apolo lhe concedera tantos anos quantos os grãos de areia que ela podia segurar em suas mãos, mas que o deus lhe recusara a eterna juventude depois que ela recusara seus avanços. Tudo o que Apolo lhe permitira manter era a voz de uma mulher jovem, para lembrá-la da imortalidade que ela rejeitara e para que se atormentasse. E agora ela era a última delas, a última das profetisas de Gaia, a deusa da terra, a última dentre treze.

- S-Sibila. - Cláudio quebrou o silêncio, a voz trêmula e áspera por causa do enxofre, olhando com cuidado dentro da escuridão. - Eu fiz como você me instruiu, fiz o que você me ordenou fazer para as vestais, em Roma. E agora estive com a décima terceira, com a deusa Andraste, fui até sua sepultura, levei-o para ela. A profecia foi cumprida.

Ele deixou cair uma bolsa de moedas que carregava, e elas tiniram, moedas pesadas de ouro e prata, o último lote de moedas que ele havia guardado para esta noite, moedas que tinham seu retrato. Um raio de luz iluminou a frente da mesa, revelando a superfície gasta da pedra do passadiço debaixo dos redemoinhos de vapor. No chão jaziam folhas, folhas de carvalho arranjadas como palavras, a letra grega escrita com tinta em cada folha era muito pouco visível. Cláudio balançou para frente, caindo sobre as mãos e os joelhos e olhando cuidadosamente para as folhas, desesperado para ler a mensagem. Repentinamente, uma rajada de vento levou-as embora. Ele gritou, depois lentamente curvou a cabeça, suas palavras laceradas pelo desespero. - Você levou meu ancestral Enéias para ver seu pai Anquises. Tudo que pedi foi ver meu pai Druso. Meu caro irmão Germânico. Meu filho Britannicus. Queria olhá-los por um instante no Elísio, antes que Caronte me leve para onde deseja.

Houve outro gemido, mais fraco desta vez, em seguida um som agudo que parecia vir de toda parte ao mesmo tempo, como se todas as centenas de bocas da caverna estivessem se torcendo na parte interna de seu corpo.

 

Cláudio balançou sobre os pés, seu corpo tremendo e se contraindo convulsionado pelo medo. Olhou novamente para a poça de luz. Havia agora um montão de areia onde antes tinham estado as folhas, os grãos escorrendo pelos lados. Ele observou quando uma pequena quantidade desceu de algum lugar muito acima, uma luz fraca caiu como uma cortina translúcida. Depois tudo se aquietou. O velho olhou ao seu redor e percebeu que a serpente tinha ido embora, havia abandonado sua pele e a deixara vazia diante dele, deslizara para dentro do veneno acima do chão da cratera. Ele relembrou as palavras de Virgílio novamente, a vinda da Idade do Ouro. E as serpentes também morrerão.

Cláudio sentiu a cabeça clarear e viu a miragem na frente da caverna desaparecer. Subitamente, sentiu-se desesperado para ir embora, deixar de lado o desejo ardente que o prendera a este lugar e à Sibila durante tanto tempo, de voltar para sua vila debaixo do Vesúvio para terminar o trabalho que ele e Plínio haviam planejado para aquela noite, para cumprir a promessa que tinha feito à beira do lago muito tempo antes. Ele se voltou para ir embora, então sentiu algo na parte de trás de seu pescoço, um toque de frio que fez os seus cabelos se arrepiarem. Pensou ouvir seu nome de novo, sussurrado suavemente, mas desta vez elas eram as palavras de uma mulher velha, inacreditavelmente velha, e foram seguidas por um sussurrar como o guizo de uma cascavel morta. Ele não ousou virar-se para trás. Começou a se apressar para diante, claudicando e escorregando na rocha, olhando em volta e procurando Narciso freneticamente. Acima da borda da cratera ele podia distinguir a forma sombria da montanha, seu cume envolto em raios bruxuleantes como uma coroa ardente de espinhos. Acima, as nuvens avançavam rápidas, mudando de forma e escurecendo, com um intenso brilho laranja e vermelho como se estivessem em fogo. Experimentou um medo terrível, em seguida uma súbita lucidez, como se todas as suas memórias e sonhos tivessem sido sugados pelo redemoinho que via adiante. Era como se a própria história se acelerasse, história que ele tinha mantido oculta desde que desaparecera de Roma, por metade de uma existência, história que havia esperado por ele como uma mola que não pudesse mais ser contida sem se distender.

Ele continuou cambaleando. Atrás de si sentia uma presença maligna empurrando-o para a frente através de uma neblina sulfurosa em direção ao solo da cratera. O velho agarrou o dado novamente, tirou-o do bolso e deixou-o cair, ouviu-o pular fazendo barulho sobre a rocha e parar. Olhou desesperadamente, mas não viu nada. De cada lado, formas espectrais emergiam da cova, não mais suplicantes, mas juntando-se a ele como um exército silencioso, envoltas em partículas quentes de cinza que começaram a cair do céu como neve. O velho sentiu a boca ficar seca, uma sede desesperante. No cume da montanha ele viu um ardente anel de fogo que descia pelas colinas em direção às cidades e grandes superfícies em chamas em sua esteira. Depois a cena foi eliminada pela escuridão, uma fumaceira em redemoinho que descia para dentro da cratera e obscurecia tudo menos o vazio que diminuía acima. Ouviu gritos, um rugido amortecido, viu corpos se incendiarem como tochas na escuridão, um após outro. Ele estava se aproximando. Agora ele sabia, com certeza horrorizada. A Sibila havia mantido sua promessa. Ele iria seguir as pegadas de Enéias. Mas desta vez não haveria retorno.

Jack Howard acomodou-se no chão do barco inflável, as costas apoiadas em um contêiner de metal com as pernas contra o motor externo do barco. Fazia calor, quase demasiado calor para se mexer, e o suor começou a escorrer pelo seu rosto. O sol tinha queimado através do mormaço matinal e o oprimia implacavelmente, refletindo de maneira ofuscante a face do despenhadeiro diante dele, a pedra calcária manchada e gasta como as tumbas e os templos no promontório do outro lado. John sentia como se estivesse em uma pintura de Seurat, como se o ar tivesse se fragmentado em uma miríade de pequenos elementos que imobilizavam qualquer pensamento e ação, que o prendiam naquele momento. Fechou os olhos e respirou profundamente, deixou-se penetrar pelo silêncio absoluto, o odor do macacão de mergulho, do motor externo, o gosto de sal. Isto era tudo o que ele amava, havia penetrado em sua essência. O gosto era bom.

Jack abriu os olhos e olhou atentamente por sobre a borda do barco, verificando a bóia laranja que havia soltado alguns minutos antes. O mar estava liso e espelhado, com apenas uma suave onda se quebrando contra a face do rochedo. Ele estendeu o braço e colocou a mão sobre a superfície, deixando-a flutuar por um momento até a onda envolvê-la. A água estava límpida, tão clara como a de uma piscina, e ele podia ver, bem embaixo, a linha da âncora nas profundezas, até a luz fraca das bolhas de escape que subia dos mergulhadores. Era difícil acreditar que este tinha sido um lugar de fúria inimaginável, da natureza na sua forma mais cruel, de uma tragédia humana inenarrável. O naufrágio de embarcação mais famoso da história. Jack mal ousava pensar nisso. Durante trinta anos ele desejara voltar para este lugar, uma ânsia que o havia importunado e se tornara uma obsessão corrosiva, desde sua primeira hesitação, desde que começara a reunir as peças pela primeira vez. Era uma intuição que raramente o desapontara, experimentada e testada durante anos de exploração e descoberta ao redor do mundo. Uma intuição baseada em sólida ciência, em uma acumulação de fatos que havia começado a apontar de maneira invariável em uma direção.

Ele havia sentado ali, em Capo Murro di Porco no coração do Mediterrâneo, quando pensou pela primeira vez em entrar na Universidade Marítima Internacional. Vinte anos atrás ele ganhava muito pouco dinheiro, como guia de um grupo de estudantes, apaixonados por mergulho e arqueologia, com equipamento grosseiro e construído depressa e com pouco dinheiro naquele mesmo lugar. Agora ele tinha uma verba de muitos milhões, um campus espaçoso em sua ancestral propriedade rural no sul da Inglaterra, museus ao redor do mundo, e usava os mais modernos navios de pesquisa, com uma equipe extraordinária na IMU (Universidade Marítima Internacional) que passara a usar sua logística. Mas, de certa maneira, pouco havia mudado. Nenhuma quantia de dinheiro podia conseguir os indícios que levavam às maiores descobertas, aos extraordinários tesouros que faziam tudo valer a pena. Vinte anos atrás, eles tinham estado seguindo um relato provocativo deixado pelos marinheiros do capitão Cousteau, exploradores intrépidos no início da arqueologia de naufrágios, e de novo ele estava no mesmo lugar, flutuando acima da mesma posição, com o mesmo velho diário danificado pelo uso em suas mãos. Os elementos-chave ainda eram os mesmos, as intuições, a sensação nas entranhas, a excitação da descoberta, aquele momento em que subitamente todos os elementos se ajustam e a adrenalina se acelera como nunca.

Jack se deslocou, empurrando seu macacão de mergulho mais para baixo ao redor de sua cintura, e olhou o relógio. Estava ansioso para se molhar. Deu uma olhada para o mar. Houve uma pequena agitação quando os mergulhadores puxaram a bóia submersa, e ele podia vê-la produzir refração cinco metros abaixo, estava bastante profunda para evitar as hélices dos barcos que passavam, mas numa profundidade suficientemente rasa para um mergulhador independente recuperar uma linha pesada que pendia dela como um ponto de ancoragem. Jack já havia ousado olhar para diante, tinha começado a observar a posição como um comandante de campo planejando um assalto. O Seaquest podia ancorar em uma enseada perto do promontório do lado oeste. Nesse promontório, bom para um acampamento, a costa rochosa descia em uma série de saliências boas para pôr os pés. Ele rememorou detalhadamente todos os elementos de uma escavação de sucesso debaixo da água, sabendo que cada posição produzia um novo conjunto de desafios. Quaisquer achados teriam que ir para o museu arqueológico em Siracusa, mas tinha a certeza de que as autoridades sicilianas fariam uma bela exposição com as peças. A IMU estabeleceria uma ligação permanente com o seu próprio museu em Cartago, talvez até mesmo oferecesse um pacote de viagens aéreas para turistas. Dificilmente eles poderiam errar.

Jack perscrutou o mar, olhou novamente para o relógio, depois anotou a hora no diário de bordo. Os dois mergulhadores estavam na parada de descompressão. Faltavam vinte minutos para ir. Ele se recostou, relaxou e concentrou-se na perfeita tranqüilidade do cenário por um momento mais. Apenas três semanas antes ele estivera no limiar de uma caverna submersa na península de Yucatán, exausto, mas alegre no final de outra extraordinária trilha de descoberta. Haviam tido perdas, perdas penosas, e Jack tinha passado a maior parte da viagem de volta para casa pensando sobre aqueles que tinham pago o preço máximo pela descoberta. Seu amigo de infância Peter Howe desaparecera no mar Negro. E naquelas circunstâncias também perderam o padre O'Connor, um aliado por um período de tempo muito curto, cuja morte pavorosa o fez pensar na realidade daquilo contra o qual se posicionavam publicamente. Sempre era o risco maior que proporcionava consolo, as inúmeras vidas que poderiam ter sido perdidas se eles não perseguissem sua meta sem descanso. Jack tinha se acostumado com o fato de que os maiores prêmios arqueológicos custavam um preço, dádivas do passado que desencadeavam forças no presente que poucas pessoas poderiam imaginar que existissem. Mas aqui ele se sentia seguro, aqui era diferente. Aqui se tratava de pura e simples arqueologia, uma revelação que apenas podia emocionar e encantar quem viesse a conhecê-la.

Ele olhou para a transparente quietude do mar, viu a face submersa do despenhadeiro desaparecer dentro do azul tremeluzente. Sua mente estava acelerada, seu coração batendo rápido com a excitação. Será que é este? Será que este é o naufrágio mais famoso da antiguidade? O naufrágio do navio de são Paulo?

- Você está aí?

Jack ergueu seus pés e gentilmente cutucou a outra figura no barco. Ela cambaleou, depois resmungou. Costas Kazantzakis era cerca de trinta centímetros mais baixo que Jack, mas tinha a constituição física de um boi, uma herança de gerações de marinheiros gregos e de pescadores de esponja. Como Jack, estava despido até a cintura, e seu peito em forma de barril estava brilhando de suor. Ele parecia ter se tornado uma parte do barco, as pernas estendidas sobre o contêiner na frente de Jack e a cabeça aninhada numa confusão de toalhas na proa. Sua boca estava ligeiramente aberta e ele usava um par de óculos de sol curvos e fluorescentes, um hilário acessório da moda numa figura tão desleixada. Uma mão estava pendente na água, segurando as mangueiras que iam até os reguladores na parada de descompressão, e a outra recobria a válvula do cilindro de oxigênio que estava deitado no centro do barco. Jack sorriu afetuosamente para seu amigo. Costas estava sempre presente para dar uma mão, mesmo quando ele não estava trabalhando para a humanidade. Jack lhe deu um outro chute.

- Temos quinze minutos. Posso vê-los na parada de segurança.

Costas resmungou novamente, e Jack lhe passou uma garrafa de água. - Beba tudo que puder. Não queremos que você tenha embolia gasosa.

- Relaxa e goza, companheiro. - Costas aprendera uma série de palavras de efeito comicamente mal empregadas nos anos em que ficou baseado no quartel-general da IMU na Inglaterra, mas o modo de falar ainda era tipicamente nova-iorquino. Ele estendeu a mão e pegou a garrafa de água, e começou a beber metade da garrafa ruidosamente.

- Belas viseiras, a propósito - disse Jack.

- Foi Jeremy quem me deu - ofegou Costas. - Um presente de despedida quando voltamos de Yucatán. Fiquei deveras emocionado.

- Você não está falando sério.

- Também não sei se ele estava. De qualquer maneira, os óculos funcionam. - Costas os puxou para baixo novamente, devolveu a garrafa e depois caiu para trás. - Está se lembrando comovido do seu passado?

- Só dos bons momentos.

- Alguns engenheiros decentes? Quero dizer na sua equipe de então?

- Estamos falando da Universidade de Cambridge, lembre-se. Um cara carregava um quadro-negro com ele em todo lugar que ia, e explicava pacientemente o motor rotativo Wankel para qualquer siciliano que passasse. Era um verdadeiro excêntrico. Mas isto foi antes de você aparecer.

- Com uma boa dose do velho know-how americano. Pelo menos no MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts) eles nos ensinavam a respeito do mundo real. - Costas inclinou-se de novo e tomou outro grande gole de água. - De qualquer forma, este seu naufrágio... Aquele que você desenterrou aqui vinte anos atrás. Encontrou algo de bom?

- Um típico navio mercante romano - replicou Jack. - Cerca de duzentas ânforas cilíndricas de cerâmica, cheias de azeite de oliva e de um molho fermentado de anchovas carregado no deserto africano, que deve se encontrar ao sul de onde estamos. Uma seleção fascinante de cerâmicas no navio a remo, que fomos capazes de datar por volta de 200 d.C. E fizemos um achado incrível.

Houve um silêncio quebrado por um ronco muito alto. Jack chutou de novo, e Costas estirou-se para parar de rolar em direção ao mar. Ele empurrou os óculos para a testa e olhou lacrimejando para Jack. - Hein?

- Sei que você precisa do seu sono de beleza. Mas está quase na hora. Costas resmungou novamente, depois se ergueu com dificuldade sobre um cotovelo e esfregou a mão pela barba. - Não acho que a beleza seja uma opção. - Ele se ergueu, depois tirou os óculos e esfregou os olhos. Jack olhou preocupado para seu amigo.

- Você parece esgotado. Precisa de algum tempo para descansar. Você tem trabalhado em tempo integral desde que voltamos de Yucatán, e isso faz quase um mês.

- Você deveria parar de me comprar brinquedos.

- O que eu comprei para você - Jack repreendeu-o gentilmente -, foi uma autorização do Conselho de Diretores para um aumento no pessoal de engenharia. Contrate mais funcionários. Delegue.

- Olha quem fala - resmungou Costas. - Nomeie um projeto arqueológico dirigido pela IMU durante a última década em que você não esteve a bordo.

- Eu estou falando sério.

- Sim, sim. - Costas se estirou, e deu um sorriso cansado. - O.k., uma semana na piscina do meu tio na Grécia seria bem-vinda. A propósito, eu estava sonhando? Você mencionou um achado fantástico?

- Enterrado num vale pequeno, formado por erosão, bem abaixo de onde estamos agora, onde Ben e Andy devem ter ancorado o shot-line. Os restos de um engradado de madeira, cheio de caixas de estanho seladas. Dentro das caixas encontramos mais de cem pequenos frascos de madeira, repletos com ungüentos e pós, inclusive canela, cominho e baunilha. Isto foi bastante surpreendente, mas depois descobrimos uma grande placa de material resinoso preto, com cerca de dois quilos. De início, pensamos que elas fossem provisões do navio, resina de reserva para madeiras impermeáveis. Mas a análise de laboratório mostrou um resultado assombroso.

- Continue.

- O que os antigos chamam de lacrymae papaveris, lágrimas de papoula, papaver somniferum. O material leitoso e pegajoso que sai do conjunto de sépalas da papoula negra. O que chamamos ópio.

- Não acredito.

- Plínio, o Velho, escreve sobre isso, em sua História natural.

- O cara que morreu na erupção do Vesúvio?

- Ele mesmo. Quando Plínio não estava escrevendo era o encarregado da esquadra romana em Misenum, a grande base naval na baía de Nápoles. Ele conhecia tudo sobre os produtos do Leste por intermédio de seus marinheiros e pelos mercadores egípcios e sírios que falavam disso na base. Eles sabiam que o melhor ópio vinha da distante terra da Báctria, situada nas altas montanhas além da fronteira oriental do império, além da Pérsia. Onde atualmente é o Afeganistão.

- Você está me gozando. - Costas estava completamente alerta agora, e parecia incrédulo. - Ópio. Do Afeganistão. Eu o escutei direito? Estamos falando do primeiro século d.C., não do século XXI, está correto?

- Você acertou.

- Um antigo tráfico de drogas?

Jack riu. - O ópio não era ilegal naquele tempo. Algumas antigas autoridades o condenavam por tornar os usuários cegos, mas eles ainda não o tinham refinado para fazer heroína. Provavelmente ele era misturado com álcool para fazer uma bebida semelhante ao láudano, a droga da moda na Europa dos séculos XVIII e XIX. A semente também era processada em tabletes. Plínio nos conta que a droga podia induzir o sono, curar dores de cabeça, de modo que eles conheciam tudo sobre as propriedades analgésicas da morfina. Ela também era usada para eutanásia. Plínio nos conta o que pode ser o primeiro relato de uma deliberada overdose de drogas Classe A, um cara chamado Públio Licínio Cecina que estava insuportavelmente doente e morreu de um envenenamento com ópio.

- Então, o que você descobriu foi realmente um contêiner de medicamentos - disse Costas.

- Foi o que pensamos na época. Mas o achado muito estranho que encontramos no contêiner foi uma pequena estátua de Apolo. Quando se encontra equipamento médico ele está mais comumente acompanhado por uma estátua de Asclepius, o deus grego da cura. Alguns anos depois, eu visitei a gruta da Sibila em Cumas, na borda da antiga zona vulcânica, algumas milhas ao norte de Misenum, ao alcance da vista do Vesúvio. Apolo era o deus dos oráculos. O enxofre e as ervas eram usados para precaver-se contra os maus espíritos e talvez o ópio fosse acrescentado à mistura. Começo a me perguntar se todos esses ritos místicos eram auxiliados quimicamente.

- As drogas podiam ser fumadas - murmurou Costas. - Queimadas como incenso. A fumaça teria um efeito mais rápido do que se ela fosse bebida.

- As pessoas iam àqueles lugares buscando curar-se - disse Jack. - Tudo o que ouvimos a respeito é a mensagem dos oráculos, versos obscuros escritos em folhas ou emitidos como pronunciamentos proféticos, tudo barulho e agitação que significavam Deus sabe o quê. Mas talvez houvesse algo além disso. Talvez algumas pessoas realmente encontrassem algum tipo de cura, um paliativo.

- E um paliativo que viciava terrivelmente. Ele teria mantido a Sibila ocupada. As oferendas em dinheiro de clientes agradecidos teriam mantido o estoque girando.

- Então, eu comecei a pensar que o nosso pequeno navio não estava levando um farmacêutico ou médico, mas sim um revendedor levando o seu precioso estoque de ópio para um dos oráculos na Itália, talvez ele até fosse atrás da própria Sibila em Cumas.

- Um traficante de drogas romano. - Costas esfregou a barba. - O chefão de todos os chefões. A máfia de Nápoles adoraria saber disso.

- Talvez isso lhe ensine a respeitar um pouco a arqueologia disse Jack.

- O ópio. Obtido onde?

- Isso é o que me preocupa. - Jack desenrolou um mapa do Mediterrâneo, laminado e em pequena escala que trouxera do Almirantado, sobre o equipamento no chão do barco, prendendo os cantos debaixo de pesos de mergulho que estavam soltos. Ele apontou o dedo para o centro do mapa. - Nós estamos aqui. A ilha da Sicília. Bem no meio do Mediterrâneo, o apogeu do antigo comércio. Concorda?

- Continue.

-O nosso pequeno navio mercante romano naufragou contra este penhasco com sua carga de azeite de oliva e de molho de anchovas do norte da África. Ele faz esta viagem para Roma três, talvez quatro vezes por ano, durante a estação de navegação, no verão. Indo e voltando. Quase sempre com terra à vista, Tunísia, Malta, Sicília, Itália.

- Uma distância não muito grande para navegar.

- Concordo. - Jack apontou o dedo para um canto distante no mapa. - E aqui está o Egito, o porto de Alexandria. Cento e cinqüenta milhas distante atravessando mar aberto. Tudo indica que o contêiner de drogas vinha daqui. A madeira é acácia egípcia. Alguns dos frascos eram marcados com letras coptas. E quase certamente o ópio era embarcado para o Mediterrâneo através dos portos do Egito no mar Vermelho, um comércio de condimentos orientais exóticos e de drogas que alcançou o auge no primeiro século d.C.

- Na época de São Paulo - murmurou Costas. - O motivo pelo qual estamos aqui.

- Correto. - Jack seguiu com o dedo ao longo do contorno da costa do norte da África, entre o Egito e a Tunísia. - Agora é possível, apenas possível, que o contêiner de ópio alcançasse Cartago ou algum outro porto da África vindo diretamente do Egito, e depois era embarcado no nosso pequeno navio mercante.

Costas sacudiu a cabeça. - Eu me lembro do Mediterranean Pilot do período em que trabalhava na Marinha. Com prevalência de ventos na direção do litoral. Aquela costa deserta sempre foi uma armadilha mortal para marinheiros, ela era evitada a qualquer custo.

- Exatamente. Os navios que saíam de Alexandria para Roma eram geralmente grandes transportadores de cereais, e navegavam para o norte, para a Turquia ou Creta, e em seguida iam para o ocidente atravessando o mar Jônico para a Sicília e o estreito de Messina. A hipótese mais provável para um carregamento de Alexandria naufragar neste ponto onde estamos agora seria em um desses navios, impelidos pelo vento sudoeste que sopra do mar Jônico em direção ao leste da Sicília e o estreito de Messina.

Costas parecia perplexo, depois seus olhos brilharam subitamente. - Entendi o que você está dizendo! Estamos procurando dois naufrágios justapostos!

- Não seria a primeira vez. Eu mergulhei em cemitérios de navios com dúzias de naufrágios misturados de maneira desordenada, despedaçados contra o mesmo recife ou promontório. Logo que esta idéia surgiu de repente, eu comecei a ver outros indícios. Dê uma olhada nisto. - Jack pegou um engradado atrás dele e tirou um objeto pesado enrolado numa toalha. Ele o entregou para Costas, que se sentou no pontão e o colocou sobre o colo, depois cuidadosamente começou a levantar as dobras da toalha. - Vou adivinhar. - Ele parou e deu uma olhada esperançosa para Jack. - Um disco de ouro coberto com símbolos antigos, que vai nos conduzir para uma outra cidade perdida antiga e fabulosa?

Jack sorriu amplamente. - Não exatamente, mas é igualmente precioso à sua própria maneira.

Costas levantou a última dobra e ergueu o objeto, que tinha cerca de vinte e cinco centímetros de altura, forma de um cone truncado e pesava bastante em suas mãos. A superfície estava mosqueada de branco com remendos metálicos de brilho embotado e no topo havia uma pequena extensão com um buraco, como um laço amarrado. Ele olhou para Jack. - Uma sonda sonora?

- Você acertou. Verifique a base.

Costas virou cuidadosamente a sonda de cabeça para baixo. Na base havia uma depressão de cerca de dois centímetros e meio, como se a sonda tivesse sido parcialmente escavada em forma côncava como um sino, e abaixo daquela se encontrava mais uma depressão com uma forma diferente. Costas ergueu os olhos para Jack. - Uma cruz?

- Não fique demasiado excitado. Esta depressão estava preenchida com piche ou resina, e era usada para pegar uma mostra do sedimento do solo oceânico. Se estiver seguindo por um estuário de um grande rio, o primeiro aparecimento de areia funcionará como uma ajuda para a navegação.

- Isto veio do navio naufragado que está abaixo de nós?

Jack estendeu o braço e pegou de volta a sonda sonora e segurou-a com uma certa reverência. - Minha primeira descoberta, com significado real, de um antigo naufrágio. Ela vem de uma das extremidades desta posição em que nos encontramos, aninhada no mesmo pequeno vale formado por erosão onde depois encontramos o contêiner com droga. Na época eu estava de mau humor, embora este fosse um achado bastante surpreendente, mas supus que as sondas sonoras fossem, provavelmente, um equipamento padrão num antigo navio mercante.

- E agora?

- Agora eu sei que o achado foi verdadeiramente excepcional. Algumas centenas de naufrágios de navios romanos foram encontrados desde então, mas apenas poucas sondas sonoras foram descobertas. A verdade é que elas devem ter sido artigos dispendiosos e, na verdade, de muito uso somente para navios que se aproximavam regularmente de um grande estuário, com um solo oceânico raso encontrado milhas distante da praia onde areia aluvial podia ser recolhida antes que a terra fosse vista.

- Você quer dizer como no caso do Nilo?

Jack assentiu entusiasticamente. - O que estamos procurando aqui é o equipamento de um grande barco alexandrino de cereais, não uma modesta ânfora transportada. - Ele colocou cuidadosamente a sonda de volta no engradado, depois retirou um velho livro encadernado de preto de uma mochila de plástico. - Agora, ouça isto. - Ele abriu o livro em uma página marcada, examinou-a cuidadosamente de alto a baixo por um momento e depois começou a ler.

 

Mas quando chegou a décima quarta noite, quando éramos jogados para cá e para lá no mar Adriático, por volta de meia-noite os marinheiros supuseram que estavam se deslocando perto de algum país; e mediram a profundidade e encontraram trinta e seis metros até o fundo; pouco depois lançaram a sonda de novo e deu vinte e sete metros. Com medo de que o navio batesse em rochas, eles baixaram da popa quatro âncoras e rezaram para que o dia surgisse.

 

Costas assobiou. - Os Evangelhos!

- Os Atos de São Paulo, capítulo 27 - os olhos de Jack estavam brilhando. - E adivinhe o quê? Diretamente, a pouca distância de onde estamos agora, o fundo do mar está em águas profundas, mas, em diagonal para o sul, há um platô arenoso que se estende por trezentos metros, com cerca de quarenta metros de profundidade.

- Isto dá cento e vinte pés, cerca de trinta e seis metros - murmurou Costas.

- No nosso último dia de mergulho, vinte anos atrás, fizemos um reconhecimento dessa região, só para ver se tínhamos omitido alguma coisa - disse Jack. - A última coisa que vi foram duas vergas de chumbo da âncora, inequivocamente antigos tipos romanos usados para aumentar o peso de âncoras de madeira. Na época do naufrágio do nosso navio carregado com ânforas no norte da África, as âncoras eram feitas de ferro, de modo que sabemos que estas devem ter sido perdidas por um navio mais antigo, que tentara manter distância desta costa.

- Continue.

- Isso fica melhor.

- Pensei que ficaria.

Jack leu novamente:

 

E soltando as âncoras, eles as deixaram no mar, ao mesmo tempo em que desamarravam as cordas do leme: e içando a vela do estai do traquete, dirigiram o navio para a praia. Mas, ao deixar com pressa um lugar onde dois mares se encontravam, eles foram de encontro a um banco de areia e o navio encalhou; e a proa, atolada, ficou sem poder ser movida, mas a popa começou a arrebentar com a violência das ondas.

 

- Bom Deus - disse Costas. - O contêiner com drogas, a sonda sonora. Armazenadas no compartimento dianteiro. E o que aconteceu com a popa?

- Espere. - Jack sorriu e retirou uma pasta de papéis da mochila. - Avançamos rapidamente dois milênios. Agosto de 1953, para ser exato. Capitão Cousteau e o Calypso.

- Eu estava me perguntando quando é que eles iam aparecer nisto aí.

- Foi o indício que nos trouxe até aqui, em primeiro lugar - disse Jack. - Eles mergulharam por toda esta costa. Eis o que o mergulhador chefe escreveu sobre este promontório. "Vi ânforas quebradas, concretadas numa curva do despenhadeiro, em seguida uma âncora de ferro, concretada numa parte mais baixa e aparentemente em estado de corrosão, com pedaços quebrados de ânforas no topo." Isto é exatamente o que encontramos aqui, o naufrágio do navio com ânforas romanas. Porém, há mais ainda. Em seu segundo mergulho, eles viram "ânforas gregas, em águas profundas".

- Ânforas gregas, em águas profundas - murmurou Costa. - Você faz idéia de onde?

- Na fenda do rochedo, em linha reta atrás de nós - disse Jack. - Calculamos que eles atingiram setenta, talvez oitenta metros de profundidade.

- Parecem os rapazes de Cousteau - disse Costas. - Deixe-me adivinhar. Ar comprimido, reguladores com mangueiras duplas, sem aferidor de pressão, sem sistema de flutuação.

- Voltamos para o tempo em que mergulho era esporte aquático - disse Jack com saudades. - Antes que o gás misturado tirasse toda a diversão do mergulho.

- O perigo ainda permanece lá, só que ele começa mais no fundo.

- Vinte anos atrás eu me candidatei, como voluntário, para fazer um mergulho para encontrar aquelas ânforas, mas a equipe médica vetou-o. Somente tínhamos ar comprimido e estávamos seguindo estritamente as regras da Marinha dos Estados Unidos, que estabeleciam uma profundidade limite de cinqüenta metros. Não tínhamos helicóptero, nem navio de apoio, e o lugar de encontro mais próximo distava a um par de horas lá na base naval americana subindo a costa.

Costas fez um gesto apontando para os rebreathers com dois gases misturados, no chão do barco, e depois para a pequena mancha branca de um navio visível no horizonte, soltando vapor em direção a eles. - O navio utiliza os métodos mais modernos e mais recentemente desenvolvidos de equipamentos para mergulho em águas profundas, e as facilidades de uma completa câmara de "recompressão" a bordo do Seaquest. Tecnologia moderna. Eu encerro minha descrição do navio. - Fez um gesto em direção ao antigo e danificado diário que Jack estava segurando. - De todo jeito, tratava-se de ânforas gregas. Isto não foi antes do nosso período?

- Foi o que supus na época. Mas algo estava me incomodando, algo de que não podia ter certeza até ver estas ânforas com os meus próprios olhos. - Jack pegou uma prancheta do engradado e passou-a para Costas. - Esta é a tipologia de ânforas projetadas por Heinrich Dressel, um estudioso alemão que estudou os achados de Roma e Pompéia no século XIX. Verifique os desenhos na parte superior esquerda, números de dois a quatro.

- As ânforas com as asas com a ponta para cima?

- Essas mesmas. Na época de Cousteau, os mergulhadores identificavam quaisquer ânforas com essas asas como gregas, porque essa era a forma de ânforas de vinho conhecidas como tendo sido feitas na Grécia clássica. Mas, desde então, aprendemos que ânforas com essa forma também eram feitas nas áreas ao oeste do Mediterrâneo, colonizadas pelos gregos, e que, depois, ficaram sob os romanos quando estes conquistaram aquelas áreas. Estamos falando do sul da Itália, Sicília, noroeste da Espanha, todas as maiores regiões produtoras de vinho desenvolvidas em primeiro lugar pelos gregos. - Ele passou uma grande fotografia em preto-e-branco que mostrava ânforas com asas altas encostadas contra uma parede, e Costas olhou pensativo e com atenção para a foto.

- Um depósito de vinho? Uma taverna? Pompéia?

Jack confirmou entusiasticamente. - Não Pompéia, mas Herculano, a outra cidade enterrada pela erupção do Vesúvio. Uma taverna à margem da estrada, preservada exatamente como era em 24 de agosto de 79 d.C.

Costas ficou silencioso por um instante, depois olhou de soslaio para Jack. - Ajude-me a lembrar. Qual foi a data do naufrágio do navio de São Paulo?

- A melhor suposição é de que tenha sido na primavera de 58 d.C., talvez um ou dois anos mais tarde.

- Descreva-me o que ocorreu.

- Poucos anos depois da morte do imperador Cláudio, no reinado de Nero. Cerca de dez anos antes de os romanos conquistarem a Judéia para roubar a menorá dos judeus.

- Ah. Estou me lembrando. - Costas deu um sorriso triste para Jack, depois estreitou os olhos novamente. - Nero. Grande devassidão, atirava os cristãos aos leões, tudo isso, não é?

Jack assentiu. – Este é um registro da história daquele período. Mas ela era também a época mais próspera na história antiga, o apogeu do Império Romano. O vinho dos magníficos vinhedos de Campânia, perto do Vesúvio, estava sendo exportado naquelas ânforas de estilo grego para toda parte do mundo conhecido. Elas têm sido encontradas nos postos romanos mais avançados no sul da Índia, negociadas em troca de condimentos e medicamentos como o ópio naquele engradado. E na Grã-Bretanha. E as ânforas são exatamente o que você espera encontrar num grande navio alexandrino de transporte de cereais daquele período. De acordo com o relato nos Atos dos Apóstolos, havia mais de duzentas e setenta pessoas a bordo naquele navio com São Paulo, e vinho diluído deve ter sido sua principal bebida.

- Última pergunta - disse Costas. - A mais importante. Do que eu consigo lembrar, supõe-se que o naufrágio do navio de São Paulo tenha sido em Malta. Como entra a Sicília?

- É por isso que eu não chegava a compreender vinte anos atrás. Então eu me dediquei a um bocado de pensamento lateral. Geograficamente, quero dizer.

- Você quer dizer que teve uma intuição fora do comum.

Jack sorriu. - É isso. Tudo que temos de seguir está nos Evangelhos, nos Atos dos Apóstolos. Não existe outro relato do naufrágio do navio de São Paulo, não há jeito de verificar a história. Certo?

- Trata-se de fé.

- De certa maneira, este é o ponto essencial. Os Evangelhos, o Novo Testamento, eram uma coleção de documentos escolhidos pela Igreja antiga para representar o ministério de Jesus, ou melhor, a visão que tinham do ministério de Jesus, Alguns dos Evangelhos foram escritos logo depois de sua morte, por testemunhas oculares ou por contemporâneos, outros foram escritos várias gerações mais tarde. Nenhum deles foi escrito como um documento histórico como entendemos essa expressão, menos ainda como documentos geográficos. Para aqueles que reuniam os textos, provavelmente tinha pouca conseqüência o fato de Paulo ter naufragado nesta ou naquela ilha.

- Tenho tudo isto inculcado em mim pela minha família grega ortodoxa. Como eu me recordo, Atos foi escrito por um sobrevivente do naufrágio, por Lucas, companheiro de Paulo.

Jack concordou com um gesto. - Era isso que costumavam ensinar para todos. Atos nos conta que Paulo navegava com dois companheiros, Lucas da Ásia Menor e Aristarco, um macedônio de Tessalônica. Depois que Paulo foi preso na Judéia, juntaram-se a ele na viagem para o norte de Cesaréia, para Myra (moderna Kale ou Demre), ao sul da Turquia, onde se transferiram para um navio alexandrino que ia para Roma. Mas alguns estudiosos agora pensam que Atos foi composto várias décadas mais tarde por outra pessoa, baseado talvez num relato de uma testemunha ocular. E, acrescentado a essa incerteza, lembre-se do enorme problema colocado por uma transmissão textual. Os Evangelhos passaram pelo mesmo processo assim como todos os outros textos clássicos, todos aqueles com exceção dos fragmentos que verdadeiramente encontramos em sítios antigos. Selecionados, purificados, traduzidos, embelezados com interpretações e anotações que se tornaram parte do texto, censurados por autoridades religiosas, alterados pela fantasia ou negligência de copistas individuais. O primeiro fragmento que temos dos Atos data de mais ou menos 200 d.C., quase 150 anos depois de Paulo, e ele só contém a primeira parte. A primeira versão que sobreviveu com a história do naufrágio data de várias centenas de anos mais tarde. Ela foi traduzida do grego para o latim e para as línguas medievais, para o inglês do século XVII, e assim passou por numerosos escribas e copistas. Isto me torna muito prudente a respeito de um pequeno detalhe como a palavra Melita, se ela significa mesmo Malta. Algumas autoridades antigas falam até em Mitilene, uma ilha no mar Egeu que era mais familiar para eles.

- Caça ao tesouro 101 - disse Costas solenemente. - Sempre autentique seu mapa.

- No caso do naufrágio do navio de São Paulo é praticamente a primeira vez na história que podemos procurar os restos de um navio naufragado conhecido, mas, como tantos relatos de naufrágios, ele está repleto de perigos imprevistos. Você precisa fazer um recuo, abrir a mente para todas as possibilidades e deixá-las se ordenar, não forçá-las a uma conclusão prévia. Acho que é isso que venho fazendo todos esses anos desde que mergulhei aqui pela última vez, desde que a idéia começou a despertar em mim.

- É por isso que você é um arqueólogo e eu sou um engenheiro - disse Costas. - Não sei como você faz isso.

- E eu deixo a robótica e os submersíveis para você. - Jack sorriu para Costas, depois olhou para o horizonte ao leste. - Não há mais nada nos Atos para corroborar Malta, e tudo o que acontece na ilha é que Paulo cura alguns homens locais. A Sicília faz muito mais sentido. Ela está no estreito correto de onde se entrevêem as florestas, uma primeira terra avistada, em uma viagem marítima pelo mar Jônico, um lugar muito mais provável para um navio de cereais ser impelido por um vento que sopra do nordeste. Os Atos até mencionam Siracusa, quase junto ao promontório nas proximidades de onde estamos, onde Paulo e seus companheiros passaram vários dias em sua viagem para Roma depois do naufrágio. De acordo com os Atos, eles pegaram carona em um outro navio de cereais que conseguiu passar pelo vento em Malta, mas creio que é mais provável que fosse um navio em Porto Grande na própria Siracusa.

- Então dois mil anos de erudição bíblica estão errados, e Jack Howard tem uma intuição e está certo?

- Um raciocínio cuidadoso baseado em um acúmulo de evidências, apontando...

- Apontando firmemente para uma conclusão - completou Costas. - Sim, sim. Uma intuição. - Ele sorriu para Jack, depois falou com uma resignação zombeteira. - Muito bem. Você me convenceu. E agora que olho para ela, aquela fenda no despenhadeiro a nossa frente, o ponto que você assinalou para a posição do naufrágio. Você percebeu como ele também parece a letra grega Qui? - Costas sorriu. - Enquanto estamos tratando de atos de fé ou crenças religiosas, esperando que o resultado seja bom, não me diga que você está acima de um pequeno sinal do alto.

Jack deu uma olhadela para o rochedo, depois sorriu. - Muito bem. Vou aceitar isso. Vinte anos decorreram, você vê as coisas com olhos diferentes. -Apoiou-se sobre os cotovelos e sacudiu a cabeça. - Não posso acreditar que estou levando tanto tempo para reunir estes fragmentos.

- Você tinha alguns outros projetos ocupando sua mente.

- Sim, mas este poderia ser o maior de todos. - Jack sentou-se e inclinou-se para Costas, o rosto empolgado pela excitação. - Qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, que identificar este naufrágio com o naufrágio do navio de são Paulo, fará dele um tesouro como nunca foi descoberto outro antes. Você não precisa ser cristão para se dar conta disto. Nunca ninguém encontrou nada tão intimamente ligado com as vidas dos evangelistas, com a realidade oculta dos Evangelhos. Estamos examinando uma época em que algumas pessoas realmente acreditavam em um Reino do Céu sobre a Terra, um sonho que a religião pagã não oferece para a pessoa comum. De uma época antes das igrejas, antes dos padres, antes da culpa e da confissão e das inquisições e guerras santas. Retire tudo isso e você voltará para a essência do que Jesus tinha para dizer, para aquilo que atraiu tantas pessoas para ele. Um naufrágio seria como um contêiner repleto de objetos do período de Pompéia e de Herculano e que tinha uma conexão direta com as figuras mais poderosas na história ocidental. Isso capturaria a imaginação do mundo.

Costas mudou de posição e se estirou. - Ainda vamos ter que encontrar o navio naufragado. E, falando de empolgação, vamos ter companhia. - Ele movimentou a cabeça na direção da cascata de bolhas estourando na superfície, e ficaram observando enquanto os dois mergulhadores apareciam nitidamente a poucos metros abaixo deles. Eles chegaram à superfície simultaneamente e ambos fizeram o sinal de o.k. Jack anotou a hora no diário de bordo e depois olhou para Costas. - Este lugar era um sustentáculo da história - ele continuou. - O que quer que encontremos, estaremos acrescentando algo a uma história que já é bastante fantástica. Em 415 a.C., os atenienses desembarcaram neste lugar para atacar Siracusa, um evento-chave na guerra contra Esparta que quase destruiu a civilização grega. Desloco-me rapidamente para uma outra guerra mundial, em julho de 1943, Operação Husky. Meu próprio avô esteve aqui, como oficial comandante do navio da marinha mercante Empire Elaine, exatamente perto da costa a partir de onde o navio foguete HMS da classe Erebus bombardeou as posições inimigas acima de nós com bombas de quinze polegadas.

- Este lugar deve estar em seu sangue - disse Costas. - É como se um Howard estivesse presente quase em cada batalha naval na história britânica.

- Se muitas famílias inglesas conhecessem o seu background, elas seriam capazes de dizer a mesma coisa.

- Sobrou alguma coisa para ver?

- O Esquadrão Especial Raiding, uma ramificação do SAS (Special Air Service), saltou de pára-quedas no penhasco acima de nós e forçou a bateria de defesa costeira italiana a se entregar, jogando suas armas dentro do mar. Quando mergulhamos aqui pela primeira vez, havia munição espalhada por todo o local.

Costas esfregou as mãos. - É disto que eu gosto. Verdadeira arqueologia.Descobrir pedaços de ruínas antigas a cada dia.

- Vamos manter nossa atenção na recompensa. Você pode brincar de desativação de bombas mais tarde.

Costas sorriu, e ergueu a mangueira de alimentação do seu rebreather. Fechada e carregada. - Ele a recolocou no lugar, depois observou Jack fazer o mesmo.

- Pronto. - Jack abaixou a cabeça para verificar o seu equipamento, depois olhou para Costas. - Você está pronto para isso? - ele perguntou. - Quero dizer, um mergulho profundo?

Costas ergueu os olhos, depois soltou um suspiro exagerado. - Vamos ver. Nosso último mergulho foi numa galeria subterrânea debaixo das selvas do Yucatán, quando fomos arrastados em direção a algum tipo de inferno maia. E antes disso foi dentro de um iceberg giratório. Oh, e antes ainda, num vulcão em erupção.

- Você está dizendo que chega, ou que agüenta mais um?

Costas deu sua versão do olhar de quem sofre de TEPT, depois deu um sorriso fatigado e começou a puxar para cima o seu macacão de mergulho. – Você acaba de dizer as palavras.

- Está na hora de pegar o equipamento necessário.

 

Maurice Hiebermeyer recostou-se contra a parede da galeria ofegando pesadamente algumas vezes e olhou para o buraco grosseiro a sua frente. Ele não seria derrotado. Se o rei Carlos de Nápoles conseguira, com toda aquela barriga, supondo-se que houvesse tal rei, então ele também conseguiria. Novamente ele se ergueu sobre as mãos e os joelhos, dirigiu sua headlamp (lanterna de cabeça) para o buraco e impulsionou o corpo à frente, seu capacete batia contra o teto e as saliências entalhadas o feriam por toda parte.

Mais uma vez ele se deitou no chão para descansar, preso como uma rolha numa garrafa. As coisas não estavam boas. Olhou pelo vidro sujo de seus óculos para a nuvem de poeira que ele havia criado no túnel além do lugar onde se encontrava. Teriam de conseguir uma britadeira, alargar o buraco. Isto significaria mais demoras, mais frustração. Já estavam atrasados duas semanas com a programação, dias que passaram andando e transpirando na sala de espera da superintendência enquanto a burocracia avançava lentamente para liberar sua permissão. Um tempo precioso que ele quase não podia permitir-se perder, com a sua escavação em pleno ritmo no deserto oriental.

Então ele o viu.

Arfou e sussurrou em seu alemão nativo. - Mein Gott. Não, não pode ser. - Estendeu a mão e sentiu a superfície lisa. Um focinho. - Sim, era. - Deixou cair a mão, e olhou assombrado.

O deus guardião da morte.

Poucos passos adiante, a parede cinzenta e mosqueada do túnel do século XVIII havia caído para formar uma cavidade rasa, não mais do que trinta centímetros de profundidade. No centro havia uma cabeça aparecendo, preta e envolta em poeira, mas inequívoca, as orelhas apontando para cima e o focinho projetando-se desafiadoramente. Era aquele que andava através das sombras e espreitava nos lugares sombrios, o guardião do véu da morte.

Hiebermeyer olhou fixamente para os olhos cegos rodeados pela linha grossa desenhada com kohl, depois fechou os olhos bem apertados e silenciosamente movimentou os lábios falando o nome. Aqui, no limiar do desconhecido, num lugar de terror inimaginável e de morte, onde aqueles que viveram por último verdadeiramente viram os fogos do inferno. Anúbis. Abriu os olhos novamente, e viu três linhas verticais de hieróglifos estendendo-se abaixo do peito da estátua, o texto reconhecível instantaneamente. Um homem permanece do outro lado depois da morte, e seus feitos são colocados empilhados ao lado dele. A existência no além, dura por toda a eternidade, e aquele que a alcança sem más ações existirá no além como um deus. Hiebermeyer olhou fixamente atrás da estátua para o negrume vazio do túnel à frente. Por um instante breve e bizarro, teve pena de todos eles, os antigos que depositaram tais esperanças no mundo do além, cujos sonhos desintegrados sobre a vida depois da morte se tornaram seu próprio reino da morte. Hiebermeyer sentiu, não pela primeira vez, que estava em uma missão, que a sua verdadeira vocação como arqueólogo era trazer para aqueles que estavam no limbo algo semelhante com a imortalidade que haviam desejado tão intensamente.

- Maurice - uma voz amortecida veio de detrás dele.

- Maria.

- Relaxe por um momento.

Houve um grande solavanco e ele foi lançado à frente, caindo desajeitado ao longo da cascata de fragmentos de rocha que enchiam a entrada do túnel. Começou a tossir violentamente e pulou rapidamente para trás da marca de poeira onde tinha estado contorcido. Fez uma careta, puxou completamente as pernas, depois se inclinou com as costas retas no túnel estreito.

- Sinto muito. - O rosto de uma mulher apareceu no buraco, com um capacete amarelo e usando óculos e uma máscara contra poeira, seu longo cabelo preto preso atrás. A voz era forte e suave, falava inglês com um leve acento de espanhol. - É sempre melhor abordar as pessoas inesperadamente, eu acho. Se Você ficar tenso, a reação é pior.

- Você fez isso com freqüência?

- Eu estive em alguns buracos em algumas ocasiões. - Ela deslizou sem esforço pelo túnel e deitou-se ao lado dele, seus corpos preenchiam exatamente a largura do túnel com muito pouco espaço para ficarem eretos. - Espero que você ainda esteja intacto. Algumas contusões pareciam melhores do que um outro parecer para o gabinete da superintendência.

- É precisamente o que eu acho. - Hiebermeyer esfregou a perna esquerda com cuidado. - A autorização só nos permite seguir este velho túnel, não escavar novos. Mesmo alargar aquele buraco criado pelo terremoto seria uma transgressão criminosa. É uma loucura. - Ele olhou atentamente para trás através da poeira. - Não que eles tenham percebido o que estamos fazendo agora.

- Eles logo se darão conta.

Hiebermeyer resmungou, depois ergueu seus óculos de segurança e olhou para Maria com os olhos cheios de muco enquanto limpava as lentes. - De todo modo, eu desfrutei do nosso tempo juntos no gabinete. Um curso impactante, dado por uma especialista mundial, sobre manuscritos medievais. Fascinante. E eu estava prestes a ler para você minha tese de doutorado sobre as disputas romanas iniciadas pelo imperador Cláudio no Egito.

Maria suspirou. - Supõe-se que você esteja em seu elemento aqui, Maurice. No subterrâneo, quero dizer. Lembra-se? Eu estava a bordo do Seaquest quando Jack recebeu a chamada, depois que houve o terremoto aqui. Arrume um egiptólogo, ele disse. Alguém acostumado com catacumbas, a fazer covas no chão, o Vale dos Reis e tudo mais.

- Ah, o Vale dos Reis - Hiebermeyer suspirou. Ele observou quando Maria se moveu para trás até sua cabeça ficar a centímetros do focinho do chacal. - Mas você está certa. Estou em meu elemento agora. É fabuloso. Nós temos um novo amigo.

- Hein?

- Vire-se. Lentamente.

Maria fez como lhe foi indicado, depois soltou um grito curto e jogou-se para trás. - Díos mio. Oh, meu Deus.

- Não se preocupe. É apenas uma estátua.

Maria estava esticada contra a entrada do túnel, mas bastante distante para poder perceber tudo o que tinha sido revelado. - É um cachorro - ela sussurrou. - Um lobo. Com um torso de homem. - Ela inclinou-se para a frente e olhou cuidadosamente de perto. - Não é possível - ela murmurou. - Hieróglifos? Esta coisa é egípcia?

- Anúbis - Hiebermeyer disse de maneira casual. - Uma estátua em tamanho natural do deus egípcio da morte, em esteatita preta. Os hieróglifos são uma cópia das Instruções de Merikare, rei da décima dinastia, um texto do terceiro milênio a.C. Mas aquele motivo ornamental na superfície inferior é uma inscrição real da vigésima sexta dinastia, do século VI a.C. Não ficaria surpreso se isto viesse da capital real em Sais, no delta do Nilo.

- Isto me faz lembrar de algo - disse Maria. - O ateniense Sólon visitando o Sumo Sacerdote. O local onde ele registrou a história da Atlântida.

- Você tem passado algum tempo com Jack.

- Eu sou professora assistente da Universidade Marítima Internacional agora, lembra? Exatamente como você. É como se nós todos tivéssemos voltado à escola novamente. Jack me contou a história toda à bordo do Seaquest na nossa viagem de volta do Yucatán. Fantástico. Eles têm planos para voltar e encontrar um naufrágio grego que viram perto do local, um trirreme, eu acho.

Hiebermeyer resmungou. - Quero que Jack me dedique algum tempo. Consegui algo muito melhor para ele. Supõe-se que seja nossa função, fornecer-lhe quaisquer indícios novos. Estou tentando dizer-lhe isto há meses. - Ele suspirou exasperado, depois olhou para a estátua. - Mas voltemos para o que temos aqui. O historiador grego Heródoto visitou Sais e descreveu um lago do lado de fora do Templo de Neith, um santuário rodeado por estátuas como esta, faraós e deuses trazidos de lugares antigos de todo o Egito. Por volta do período romano, a cidade de Sais estava cheia de lodo e abandonada, mas ela teria sido acessível aos navios romanos e foi despojada de toda sua estatuária e pedras preciosas.

- Você está dizendo que esta estátua foi pilhada?

- Eu prefiro a palavra transferida. Os romanos que construíram esta vila tiveram acesso a grandes obras de arte de todo os lugares do Mediterrâneo e além, de muitas culturas diferentes de um período bem anterior na história. Eles eram exatamente como os colecionadores particulares ou curadores de museus de hoje. Algumas das melhores estátuas gregas de bronze que foram encontradas vieram desta vila, encontradas a apenas alguns metros de nós quando bons mergulhadores abriram caminho para entrar no século XVIII. Alguns romanos compararam Anúbis com Cérbero," guardião do rio Estige, mas para muitos romanos ele era uma figura de escárnio, que late, um cachorro. Esta estátua deve ter sido uma antiguidade, uma curiosidade, vista como um trabalho de arte divertido e nada mais.

- Eu não sei - disse Maria baixinho. - Ela parece estar olhando para nós, metade dentro e metade fora da história, exatamente como um guardião. - Ela olhou atentamente para Hiebermeyer. - Alguma vez você foi supersticioso, Maurice? Estou pensando na tumba do faraó Tutankamon, a maldição da múmia, coisas assim?

- Não. - Hiebermeyer falou asperamente. - Eu sou um mero arqueólogo.

- Ora, Maurice. Você deve pelo menos ter ficado impressionado com isto. Lembre-se de quando éramos estudantes universitários, e você falava o tempo lodo sobre isto. Admita.

Hiebermeyer olhou para a cabeça do chacal, e permitiu-se um raro sorriso estou impressionado. É claro que estou. Isto é maravilhoso. Mal posso esperar para ver o restante da inscrição. - Ele pressionou a palma da mão contra a esteatita polida, depois olhou para o túnel. - Mas eu realmente penso que este é o fim do caminho. Esta estátua deve ter sido revelada no abalo sísmico da noite passada, e devemos ser os primeiros a vê-la. Mas outros chegaram até aqui no túnel antes de nós, antes que ele fosse vedado para aprontá-lo para a nossa chegada. O pessoal da segurança local teria estado aqui quando o primeiro terremoto abriu o túnel. Se eles encontraram algo é provável que já esteja no mercado negro agora. Duvido que vamos encontrar mais alguma coisa.

- Não posso acreditar que você seja tão cínico. - Maria parecia genuinamente ofendida. - Eles nunca teriam permitido isto. Você se esqueceu de onde nós estamos? Na Vila do Papyri em Herculano, o maior tesouro não escavado na Itália. Enterrado pela erupção do Vesúvio em 79 d.C., redescoberta pelos reis Bourbon de Nápoles no século XVIII, e depois quase nunca mais foi feita alguma escavação. Esta é a única biblioteca de manuscritos em rolos de papiro que sobreviveu da Antiguidade, no entanto todos sabem que a maior parte dela deve permanecer aqui para ser encontrada, selada por estas paredes. Você não deixa simplesmente qualquer um entrar aqui e surrupiá-la.

- Também é um dos maiores desapontamentos em arqueologia - disse Hiebermeyer. - Quase todos os manuscritos desenterrados são de Filodemo, um filósofo de terceira classe sem significado duradouro. Nenhuma grande obra de literatura, quase nada em latim. - Recolocou os óculos. - Você não se pergunta por que a vila nunca foi completamente desenterrada?

- Por uma série de razões. Questões estruturais. A escavação pode arruinar gradativamente as construções modernas que se situam acima do local. Recursos necessários para a manutenção da escavação existente, a principal parte de Herculano já foi revelada. Burocracia. Falta de fundos. Você pode escolher.

- Tente de novo.

- Bem, existem grandes problemas no que se refere à melhor maneira de conservar e ler os papiros carbonizados. Você se lembra de nossa visita à oficina do papiro em Nápoles. Eles ainda estão trabalhando no material encontrado no século XVIII. E precisam encontrar a melhor maneira de desenterrar um novo material e de recuperar o maior número de manuscritos que possa existir. Isto requer o melhor. É um local sagrado.

- Precisamente. - Hiebermeyer estalou os dedos. - A última coisa que você disse. Um local sagrado. E como outros locais sagrados, como as cavernas dos Manuscritos do Mar Morto, em Israel, as pessoas anseiam por encontrar o que há lá dentro, no entanto elas também receiam. E, acredite-me, há um grupo de pessoas muito poderosas na Itália que preferiria não encontrar mais nenhum registro escrito do primeiro século d.C.

Naquele momento, a poeira no ar pareceu toldar a visão e eles sentiram alguns tremores palpáveis, seguidos por um som como que provocado por algo feito de alvenaria caindo em algum lugar à frente. Maria apoiou as mãos no chão do túnel e olhou alarmada para Hiebermeyer. Ele rapidamente puxou um aparelho do tamanho de uma palma com um pino e apertou-o contra a parede do túnel, observando a leitura atentamente enquanto o tremor cedia. - Um choque secundário, um pouco maior do que aquele na noite passada, mas provavelmente nada com que precisamos nos preocupar - ele disse. - Avisaram-nos para esperar por isso. Lembre-se de que as paredes ao nosso redor são de lama piroclástica solidificada, não como a cinza e as pedras-pomes que caíram em Pompéia. A maior parte delas é mais dura que concreto. Provavelmente estaremos salvos.

- Posso ouvir os outros, se aproximando atrás de nós - disse Maria baixinho.

- Ah, sim. A misteriosa senhora da superintendência. Você sabe que ela é uma velha amiga de Jack? Depois de Cambridge. Por alguma razão, eles não conversam. Posso ver a luz agora. Bom comportamento.

- Não, eu não sabia - Maria retrucou calmamente, depois olhou para o focinho. - Certamente, Anúbis vai deixá-los boquiabertos.

- Provavelmente Anúbis irá parar o projeto todo - disse Hiebermeyer. - Ele será aclamado como uma grande descoberta, uma justificação para sua decisão de explorar o túnel. Será o suficiente para eles retirarem a permissão para a escavação e selar o túnel. A única razão pela qual estamos aqui é que alguém vazou a descoberta do túnel para a imprensa depois do terremoto, e as autoridades não tiveram escolha senão montar um show para a imprensa.

- Você está sendo cínico outra vez.

- Acredite-me. Tenho participado deste jogo há muito tempo. Existem forças muito maiores em jogo aqui.

- Então, vamos aproveitar a chance enquanto ela está ao nosso alcance - disse Maria. - Você encontrou o seu tesouro, agora preciso achar o meu.

Hiebermeyer guardou o oscilador no bolso da frente do seu macacão, espirrou fazendo muito barulho e depois olhou atentamente para Maria. - Posso ver o que Jack viu em você. Ele sempre disse que você poderia se tornar alguém especial, se você saísse de Oxford e viesse trabalhar com ele.

Maria lhe lançou um olhar destruidor, depois rastejou adiante até ficar bem atrás da estátua. A poeira estava se depositando, e adiante deles podiam apenas distinguir um remendo branco onde um outro fragmento da parede do túnel tinha sido arrancado pelo tremor. Quando os feixes de suas headlamps se concentraram na parede quebrada, eles puderam ver algo no centro. Hiebermeyer se arrastou para frente e voltou-se para Maria, o rosto brilhando de excitação. - Ok, passamos por Anúbis, e ainda estamos só com uma peça.

- Superstição, Maurice?

- Vamos adiante.

 

                           23 de agosto de 79 d.C.

O velho bebeu um gole de vinho, segurando a taça com mãos trêmulas, depois cerrou os olhos e agarrou o pilar até que o pior do espasmo passasse. Nesta noite ele iria aos Campi Flegrei, ficar diante da gruta da Sibila pela última vez. Mas havia trabalho a fazer antes disso. Ele balançou para um lado por cima do banco de mármore, agarrando violentamente sua toga para impedi-la de escorregar, depois deu um passo em falso e caiu pesadamente sobre os cotovelos. Seu rosto se contorceu de dor e de frustração, desejoso de lágrimas que não vinham mais, fazendo esforços para vomitar sem ter nada para isso. Na verdade, estava fingindo. Ele não sentia quase mais nada.

Levantou-se e olhou com seus olhos cobertos de muco para a lua que agora estava tremeluzente no outro lado da grande extensão da enseada, depois para as estátuas dos deuses egípcios e gregos que se alinhavam no pórtico da vila. A estátua mais próxima dele, aquela com cabeça de cachorro, parecia emoldurar a montanha, o nariz e o focinho brilhando ao luar. De sua localização vantajosa no belvedere da vila, podia ver os telhados das casas na cidade que ele conhecia profundamente, mas que nunca tinha visitado, Herculano. Ele podia escutar o tinido e os sons baixos da atividade do final da tarde, a elevação e a diminuição da conversa, o soar de risos e de música ligeira, as ondas batendo na praia.

Ele tinha tudo de que necessitava. Vinho das rampas do Vesúvio, um magnífico vinho vermelho que descia como xarope, sempre o seu favorito. E moças, trazidas para ele das escuras ruelas abaixo, moças que ainda lhe proporcionavam um prazer fugaz, anos depois que parou de ponderar sobre o que isso causava a elas. E ele tinha a papoula.

Inalou e enrugou o nariz, e depois olhou para cima. Os adivinhos estavam certos. Havia algo no céu naquela noite.

Olhou para o outro lado da enseada, para o oeste, passando pela antiga colônia grega de Neapolis em direção à base naval em Misenum, no distante promontório ao lado do mar aberto. A sombra da montanha escurecia a enseada, e tudo o que ele podia distinguir eram alguns navios mercantes ancorados perto da costa. Estava habituado a procurar a fosforescência deixada na esteira das galeras rápidas, mas nesta noite não podia ver nada. Onde estava Plínio? Será que recebera a sua mensagem? Ele sabia exatamente o que o comandante da frota romana em Misenum fazia. A esquadra não tinha saído para uma ação desde que o avô do velho, Marco Antônio, havia sido derrotado na batalha de Actium, mais de um século antes. Pax Romana. O velho assentiu para si mesmo. Ele, Cláudio, havia ajudado a manter aquela paz. Olhou para trás, para o cântaro meio vazio sobre a mesa. Era melhor Plínio chegar logo. O que ele tinha para dizer nesta noite requeria uma cabeça clara. Estava ficando tarde.

Estendeu a mão para verter mais vinho em sua taça, deixando o vinho transbordar e gotejar sobre a mesa para se juntar com a grande mancha vermelha que tinha permeado o mármore com o passar dos anos. Podia rever seu pequeno quarto e a fileira de imagens de cera arrumadas ao longo da parede, iluminadas pelo luar. Imagens ancestrais, as únicas coisas que salvara de seu passado. Seu pai Druso, lembrado com prazer. Seu amado irmão Germânico. Com sua pele cor de cera, Cláudio sentia que já era idêntico a eles. Estava velho, Velho bastante para ter vivido do começo ao fim a Era de Augusto, a Idade de Ouro maculada para sempre pela devassidão de Tibério, Calígula e Nero. Algumas vezes, em seus momentos mais tristes, geralmente depois de beber vinho, ele sentia que o tempo o transformara em um monstro, assim como arruinara Roma, não por causa de alguma deformidade horrenda, mas por uma devastação lenta e inexorável, como se os deuses que lhe tinham imposto a doença, a paralisia, estivessem fazendo com que ele suportasse o tormento até o último limite nesta vida, antes de o atirar dentro dos fogos do inferno.

Ele sacudiu-se para sair deste transe, tossindo dolorosamente e olhou por cima do balcão da vila novamente, para os telhados das casas de Herculano. Quando fingira o seu envenenamento e escapado de Roma, seu velho amigo Calpúrnio Piso tinha bloqueado completamente um anexo para sua vila e feito uma casa para ele aqui, seu refúgio por quase um quarto de século, de onde podia contemplar do alto o mar e a montanha. Ele sabia que devia ser mais agradecido, mas sempre experimentava irritações. O avô de Calpúrnio havia sido um protetor do filósofo grego Filodemo, cuja biblioteca repleta de absurdos que não mereciam ser lidos estava sempre atrapalhando. E depois o pobre Calpúrnio fora forçado a cometer suicídio, aqui, diante de seus próprios olhos, depois de sua fracassada conspiração contra Nero, deixando a vila a um sobrinho rancoroso que nem mesmo sabia quem Cláudio era, que achava que ele era apenas mais outro grego charlatão que parecia suplicar sua entrada em cada casa aristocrática por ali. Era o anonimato, ele pensou, mas era também a humilhação máxima.

Mas ele tinha memórias, uma se impondo sobre todas as outras. A memória de um pescador que encontrara dentro de uma embarcação, numa parte do mar afastada da orla, durante urna tarde, e que permanecera todos aqueles anos desde então. A promessa que Cláudio fizera a ele. Tudo que o pescador predissera havia acontecido. Agora, forças além do controle de Cláudio estavam se fechando sobre ele. Cláudio não se deixaria ser abatido.

- Ave, Princeps.

Cláudio ergueu-se com ímpeto. - Plínio? Meu caro amigo. Eu lhe disse para parar de me chamar desse jeito.

O outro homem entrou rapidamente e ajudou Cláudio a voltar para sua cadeira, pegando sua taça e enchendo-a. Ele a passou para Cláudio e encheu uma para si, segurando-a formalmente. - Que os deuses o saúdem no seu nonagésimo aniversário.

- Isto foi há três semanas. - Cláudio fez um gesto com a mão recusando-se a levado a sério, depois olhou para o outro homem com afeto. Plínio era alto, o que não era habitual para um romano, mas ele viera de Verona, no norte, terra dos celtas. Em lugar de uma toga, usava uma túnica vermelha ornada e botas amarradas com correia de um oficial naval, e aparentava obstinação. Ele era tudo o que Cláudio mais admirava, um veterano de guerra condecorado, um líder natural, um erudito prodigioso. Cláudio agarrou seu punho para parar sua gagueira. - Você me trouxe seu livro?

- Os primeiros vinte volumes. - Plínio apontou orgulhosamente para um baú de couro ao lado da porta, colocado cuidadosamente longe do vinho, cheio até a borda com manuscritos. - Alguns detalhes sobre a flora e a fauna da Grã-Bretanha eu quero verificar com você, e também o espaço em branco que você me pediu para manter na seção sobre a Judéia. Fora isso está completo. A primeira história natural do mundo não escrita por um grego.

Cláudio fez um gesto em direção às estantes quase vazias na sala, depois para os manuscritos que jaziam em pacotes no chão. - Pelo menos agora consegui espaço para guardá-los. Narciso tem me ajudado a encaixotar estes outros livros. Eu nunca consegui jogar fora livro algum, e nunca tive coragem de contar para o velho Calpúrnio, mas estes livros escritos por Filodemo não valem o papel em que foram escritos.

- Onde você quer que eu os ponha? Os meus livros, quero dizer. Posso colocá-los na estante para você.

- Deixe-os onde estão, perto da porta. Narciso vai abrir espaço na minha biblioteca amanhã. Os seus terão um espaço de honra. Todo este contra-senso grego será removido.

- Narciso ainda faz toda a sua escrita para você?

- Ele se castrou, pobre companheiro, para poder me servir, você sabe. Foi quando ele era menino, um jovem escravo. Eu ia libertá-lo de todo modo.

- Eu nunca confiei completamente em Narciso, você sabe - disse Plínio com bastante cuidado.

- Você sempre pode confiar em um eunuco.

- Isto sempre foi o seu calcanhar de Aquiles, se posso me expressar assim. Esposas e servos libertos.

- Aquiles é uma coisa que eu definitivamente não sou. Eu posso ser um deus, mas não sou Aquiles. - Cláudio abafou uma risadinha, depois se tornou sério. - Sim, Narciso é um tanto misterioso. Eu às vezes penso que sua desistência em ser comandante da Guarda em Roma para se tornar pouco mais que um escravo de um velho eremita deve ter sido duro de suportar, participar do meu próprio ato de desaparecimento. Mas Nero o teria executado se ele também não fingisse a lua morte. Narciso tem sido sempre um companheiro perspicaz, e ele tem seus próprios interesses em negócios, você sabe, principalmente na Grã-Bretanha. E sua religião, aquela tolice estranha que ele adquiriu quando era escravo. Ele é um sujeito muito devoto. E sempre foi muito leal a mim. - Cláudio sorriu de repente, moveu-se de maneira não muito firme, e pegou no braço de Plínio. - Obrigado pelos seus livros, meu amigo - ele disse calmamente. - Ler sempre foi minha maior alegria. E haverá neles muita coisa para me ajudar com a minha própria história da Grã-Bretanha. - Apontou para um manuscrito aberto sobre a mesa e preso com alfinetes, uma das extremidades manchada com vinho. - É melhor começarmos a trabalhar enquanto eu ainda tenho um pouco de senso comum. Foi um dia longo.

- Eu posso perceber.

Os dois homens se debruçaram ao mesmo tempo sobre a mesa, o matiz do luar naquela noite dava ao mármore uma coloração vermelha. O calor que fazia não era típico de um final de agosto, e a brisa que soprava sobre o balcão era quente e seca como o siroco que algumas vezes chegava com força da África. Cláudio às vezes se perguntava se Plínio, o grande enciclopedista, não estava apenas lisonjeando-o ao solicitar seu conhecimento especializado sobre a Grã-Bretanha, um triunfo sem valor, se se podia considerá-lo como tal. Cláudio havia estado lá, é claro, tinha se livrado das ondas geladas, transportado por um elefante treinado para combate, pálido e trêmulo, não por medo do inimigo, mas aterrorizado de que pudesse ter uma tontura e cair, provocando desonra para o nome de sua família. No entanto, a Grã-Bretanha era a sua única façanha imperial heróica, consistia no seu único triunfo e ele tinha se dedicado a escrever uma história da província dos primeiros tempos. Tinha lido tudo o que havia para ler sobre o assunto, desde o diário do antigo explorador Píteas, o primeiro a dar a volta na ilha, até os horríveis relatos sangrentos de algumas tribos selvagens, que tiravam a cabeça de seus inimigos como troféu, história que seus legionários extraíram dos druidas antes que estes fossem executados. E ele a tinha encontrado, a princesa de uma família nobre, a moça que Sibila lhe havia dito para procurar, aquela que seria a rainha guerreira.

- Diga-me - Cláudio falou repentinamente. - Você viu meu pai em um sonho?  

- Foi por isso que escrevi minha Histórias das Guerras Germânicas - replicou Plínio, repetindo a história que contara para Cláudio várias vezes antes. - Foi quando eu estava estacionado no Reno, comandando um regimento de cavalaria. Acordei uma noite e um fantasma estava parado perto de mim, um general romano. Era Druso, eu juro. O seu venerado pai. Ele estava me obrigando por compromisso a defender sua memória.

- Ele morreu antes mesmo de eu conhecê-lo. - Cláudio olhou de soslaio para o busto de seu pai na sala, depois apertou as mãos com angústia. – E envenenado, como meu querido irmão Germânico. Se pelo menos eu tivesse sido capaz de viver à altura de seu legado, de conduzir as legiões como Germânico, de ganhar a confiança dos homens.

- Mas você o fez - disse Plínio, olhando ansioso para Cláudio. - Lembre-se da Grã-Bretanha.

- Eu lembro. - Cláudio curvou os ombros e sorriu abatido. - Este é o problema. - Começou a mexer numa moeda na mesa, uma antiga moeda romana de prata com seu retrato nela, virando-a repetidas vezes. Era um hábito nervoso que Plínio o havia visto repetir com muita freqüência, mas ele a deixou escapar de seus dedos e ela rolou em direção aos manuscritos perto da porta. Cláudio suspirou irritado e pareceu querer levantar, mas depois afundou-se na cadeira e olhou melancolicamente para suas mãos. - Eles construíram um templo para mim na Grã-Bretanha, você sabe. E estão construindo um anfiteatro agora, você sabia? Em Londinium. Eu o vi quando viajei incógnito neste verão, quando fui até a tumba dela.

- Não me conte sobre isto novamente, Princeps, por favor - disse Plínio. - Isto me provoca pesadelos. E Roma? Sua realização em Roma? Você construiu muitas coisas maravilhosas, Cláudio. O povo se sente agradecido.

- Não que alguém vá vê-las - disse Cláudio. - Elas são todas subterrâneas, debaixo da água. Eu lhe contei sobre o meu túnel secreto debaixo do monte Palatino? Bem debaixo de minha casa. Apolo ordenou-me construí-lo. Eu resolvi o enigma com as folhas, na gruta da Sibila. Deixe-me ver se consigo lembrá-lo.

- E Judéia - disse Plínio rapidamente. - Você proporcionou uma tolerância universal para os judeus, através do império. Você deu para Herodes Agripa o reino da Judéia.

- E depois ele morreu - murmurou Cláudio. - Meu caro amigo Herodes Agripa. Mesmo ele foi corrompido por Roma, por meu desprezível sobrinho Calígula.

- Você não teve escolha - continuou Plínio. - Não tendo ninguém para substituir Herodes, você precisou fazer de Judéia uma província.

- E deixá-la ser governada por oficiais venais e vorazes. Afinal, Cícero chamou a atenção, um século atrás, acautelando sobre a administração na província. As lições da história - Cláudio acrescentou amargamente. - Veja como eu as aprendi.

- A revolta judaica era inevitável.

- Irônico, não é? Quinze anos depois que Roma concede tolerância universal para os judeus, ela mesma faz tudo o que pode para erradicá-los da face da Terra.

- Os deuses assim o desejaram.

- Não eles não quiseram. - Cláudio tomou um longo gole segurando o copo com mãos trêmulas. - Lembra-se do templo sobre o qual me falou em sua última visita? Aquele que Vespasiano erigiu em Roma? Para o Cláudio deificado. Eu também sou um deus agora, lembra? Eu sou um deus, mas este deus não quer a destruição dos judeus. Você está escutando isto dito por uma autoridade divina.

Plínio enrolou rapidamente o manuscrito e deslizou-o dentro de uma bolsa de couro ao lado da mesa, longe dos respingos de vinho, depois, de maneira hesitante, puxou um outro. - Você vai me contar alguma coisa sobre a Judéia. Num outro dia?

- Não, agora.

Plínio sentou-se bem equilibrado com um indicador pontudo de metal sobre o pergaminho, ávido e determinado. Cláudio olhando atentamente para a escrita no pergaminho, o espaço vazio no meio. - Diga-me, então. Esta nova seita judaica. O que você pensa dela?

- Foi por isso que eu o chamei aqui. - Cláudio respirou profundamente. - Os seguidores daquele ungido. O messias, o christos. E sei deles por causa da minha visita aos Campi Flegrei. As pessoas que moram ali são exatamente o tipo de pessoa que ele quer que o sigam. O aleijado, o enfermo, os proscritos. Pessoas que almejam a felicidade tão desesperadamente que seu anseio se torna contagiante, levando outros a encontrar seu próprio alívio dos fardos da vida, sua própria salvação.

- Como você sabe de tudo isto?

- Porque eu sou um deles.

- Você é um deles? - Plínio pareceu incrédulo. - Você é um judeu?

- Não! - Cláudio zombou, a cabeça movendo-se para um lado com um estalido. - Um aleijado. Um proscrito. Alguém que foi até ele em busca de cura.

- Você foi ver esse homem? Mas eu pensei que você nunca tinha viajado para o leste.

- Foi tudo obra de Herodes. Meu querido amigo Herodes Agripa. Ele tentou me ajudar, me levar embora de Roma. Havia ouvido falar de um fazedor de milagres na Judéia, um nazareno, um homem que diziam ser descendente do rei David dos judeus. Esta foi a minha única viagem para o leste. O calor tornou tudo pior.

- Então a viagem foi em vão.

- Com exceção de algumas horas num lago. - Cláudio subitamente exibiu um olhar distante em seus olhos. - A cidade de Nazaré fica ao lado de uma grande massa de água no interior do país, o mar de Kineret como a chamam, ou mar da Galiléia. Não é composto de água salgada, sabe, mas é realmente um vasto lago, e se situa a vários estádios abaixo do nível do mar.

- Fascinante. - Plínio estava anotando rapidamente. - Conte-me mais.

- Ele era um carpinteiro, um condutor de barco. Herodes e eu, juntamente com nossas mulheres, saímos com ele em seu barco, pescando, bebendo vinho. Eu estava com a minha amada Calpúrnia, longe das garras de minha mulher. Éramos todos mais ou menos da mesma idade, homens e mulheres jovens, e eu até constatei uma exuberância que pensava que nunca poderia experimentar. Derramei vinho no lago e ele brincou sobre transformar água em vinho e pescar o peixe daquele jeito.

- Mas não houve milagre.

- Depois de pescar nos sentamos na praia até o sol se pôr. Herodes se tornou impaciente, e foi para a cidade em busca de prazer. O nazareno e eu ficamos sozinhos.

- O que ele disse?

Ele disse que eu devia suportar minha desgraça, que ela me protegeria e me impulsionaria para uma grandeza que eu mal poderia imaginar. Eu não tinha idéia do que ele estava falando, para mim, Cláudio o aleijado, o embaraçoso sobrinho do imperador Tibério, quase não tolerado em Roma, escondido e ao qual era negado um cargo público enquanto todos os outros jovens encontravam glória com o comando das legiões.

- Ele viu um erudito e um futuro imperador - murmurou Plínio. - Ele conhecia o seu destino, Princeps. Ele era um homem sagaz.

- Não acredito em destino. E lá vem você novamente. Princeps.

Plínio rapidamente dirigiu-se a ele novamente. - E o que aconteceria com o próprio futuro do homem? O nazareno?

- Ele falou do seu futuro. Disse que um dia desapareceria no deserto, então o mundo todo chegaria a conhecê-lo. Eu o adverti para não ser subjugado pela trama pegajosa daqueles que desejariam explorá-lo e enganá-lo. Este foi o meu conselho para ele. Nazaré era um lindo lugar fora do caminho, e eu não sei se ele percebia então o que os homens são capazes de fazer. Duvido que ele jamais tenha visto uma crucificação.

- E Herodes Agripa?

Herodes ainda estava conosco quando o nazareno disse que não queria ter nem intermediários nem intérpretes. Herodes usava uma palavra grega para eles, apóstolos. Herodes era um homem impassível e objetivo, um companheiro querido. Ele não tinha interesse nas visões do nazareno, mas podia ver que eu tinha ficado abalado, e estava orgulhoso de mim. Herodes resolveu que, se chegasse ao poder, toleraria o nazareno.

- Mas esse homem foi executado, não é? - disse Plínio.

- Crucificado em Jerusalém. No último ano do reinado do meu tio Tibério. O nazareno havia me dito que iria oferecer a si mesmo como um sacrifício. Se ele realmente previu sua própria execução, sua crucificação, é um outro assunto. O homem que eu encontrei não desejava morrer. Estava cheio de alegria de viver. Mas nós falamos sobre as antigas lendas de sacrifício humano entre os semitas, os judeus. Ele conhecia sua história, como atingir seu povo. Acho que o sacrifício que ele tinha em mente era simbólico.

- Fascinante. - murmurou Plínio distraidamente. - O mar de Kineret, você disse? Não o mar Morto? Este mar é notavelmente salgado, eu creio. - Ele estava escrevendo no último espaço estreito que havia deixado em seu manuscrito, mergulhando sua pena num pote de tinta que tinha colocado ao seu lado. - Isto vai constituir um esplêndido acréscimo ao meu capítulo sobre a Judéia. Obrigado, Cláudio.

- Espere. Há mais coisas. - Cláudio levantou-se e mancou oscilando até a estante onde a biblioteca de Filodemo estivera, empurrando para o lado os poucos manuscritos que restavam no meio da estante e alcançando um esconderijo escuro atrás. Ele voltou cambaleando até a mesa, sentou-se pesadamente e passou para Plínio um pequeno tubo de madeira, para guardar manuscritos.

- Aqui está - Cláudio arquejou. - Isto é o que quero que fique com você.

- Acácia, eu não deveria me surpreender. - Plínio aspirou o odor da madeira. - O que os judeus chamam sittim, a árvore mirrada que cresce ao longo das costas do leste. - Ele tirou a rolha do tubo e procurou cuidadoso dentro dele, tirando um pequeno manuscrito de cerca quadrado de trinta centímetros de lado. Ele amarelecera com o tempo, embora não tanto como os manuscritos em papiro de Filodemo, e um pouco da tinta havia cristalizado e manchado a superfície. Plínio segurou a folha perto do nariz e aspirou a tinta. - Provavelmente não é sulfato - ele murmurou. - Embora seja difícil dizer, há muito enxofre no ar hoje em dia.

- Você também o sente? - perguntou Cláudio. - Pensei que fosse só eu, trazendo-o de volta de minhas visitas aos Campi Flegrei.

- Betume. - Plínio cheirou a tinta de novo. - Betume, sem dúvida alguma.

- Isto faz sentido - disse Cláudio. - Um alcatrão oleoso se ergue para a superfície ao redor de todo o lago de Kineret. Eu o vi.

- Realmente? - Plínio escreveu uma nota na margem do texto. - Fascinante. Você sabe que eu venho fazendo experiências com tinta? Meu administrador alexandrino enviou-me alguns galhos excelentes, cortados de uma espécie de árvore na Arábia. Você sabia que elas são formadas artificialmente por insetos minúsculos que exalam o fel? É muito extraordinário. Eu os esmago e misturo com água e resina, depois adiciono ferro e sais de enxofre que encontro nas praias de Misenum. Isto dá uma tinta maravilhosa, uma cor preto-azeviche e que não borra. Eu estou escrevendo com ela agora. Dê uma olhada. Muito melhor do que este material inferior, fuligem oleosa e cola de pele animal. Não deveria me admirar. Eu gostaria que as pessoas não a usassem. Seja o que for este escrito, temo que ele não dure tanto tempo como os escritos bombásticos de Filodemo.

- Este manuscrito foi tudo que encontrei. - Cláudio tomou um gole de vinho e limpou a boca com as costas da mão. - Usei quase toda a minha tinta que levei na viagem para o leste.

- Você escreveu isto?

- Eu forneci o papel, e aquela preparação que é aceita como tinta.

Plínio desenrolou o papiro e o alisou sobre um tecido que havia colocado sobre a desordem pegajosa da mesa. O papiro estava coberto com uma bela escrita, nem grego nem latim, linhas fluentes com singular talento artístico, compostas com mais cuidado do que seria o caso para alguém acostumado a escrever com freqüência. - O nazareno?

Cláudio contraiu-se. - No final do nosso encontro, à margem do lago naquela noite. Ele queria que eu levasse embora o manuscrito para mantê-lo a salvo até uma época adequada. Você lê aramaico?

- É claro. Você me ensinou com habilidade a linguagem fenícia, e creio que elas são similares. - Plínio examinou cuidadosamente o escrito. No final havia um nome. Ele leu rapidamente as linhas imediatamente acima. - Ah, eu percebo.

- Deixe-o de lado - disse Cláudio, estendendo o braço e agarrando o pulso de Plínio. - Mantenha-o em segurança, o lugar mais seguro que puder encontrar. Mas transcreva aquelas linhas finais em sua História natural. Agora é chegado o tempo.

- Você fez cópias?

Cláudio olhou para Plínio, depois para o manuscrito, e subitamente sua mão começou a tremer. - Olhe para mim. O paralítico. Nem posso escrever meu próprio nome. E para fazer uma cópia disto eu não confio em copista, nem mesmo Narciso. - Ele levantou-se, pegou o manuscrito e foi até um nicho escuro repleto com folhas de papiro e antigas tabuletas de cera ao lado da estante de livros, depois com dificuldade ajoelhou-se dando as costas para Plínio. Tateou de maneira desajeitada durante alguns minutos, levantou-se e voltou-se, com um recipiente cilíndrico de pedra em suas mãos. - Estes vasos vêm de Sais no Egito, você sabe disse ele. - Calpúrnio Piso os roubou do Templo de Neith quando saqueou o local. Aparentemente, eles estavam repletos com antigos manuscritos egípcios antigos, escritos com hieróglifos, mas ele os queimou todos. O velho tolo. - Colocou o jarro de lado, depois pegou uma travessa de bronze com alças que continha uma substância preta e segurou-a sobre uma vela, com as mãos sem vacilar. O ar se encheu com uma incrível fragrância aromática, que por um breve instante disfarçou o enxofre. Colocou a travessa de lado novamente, pegou uma espátula de madeira e espalhou a resina ao redor da tampa do recipiente, deixou-a esfriar por um momento, e depois entregou o cilindro para Plínio. - Aí está. Ele está selado, como eu fui instruído nas folhas, de acordo com o augúrio divino.

- Este documento - persistiu Plínio. - Por que é tão urgente?

- É porque o que ele predisse aconteceu. - Cláudio estremeceu novamente, agarrando de maneira ostensiva a mão para fazê-la parar de tremer. - O nazareno conhecia o poder da palavra escrita. Mas ele disse que nunca mais escreveria novamente. Disse que um dia sua palavra viria a ser considerada como uma espécie de expressão sagrada. Disse que seus seguidores pregariam sua palavra como um mantra divino, mas o tempo iria distorcê-la e algumas pessoas procurariam usar sua versão das palavras para seus próprios fins, para se promover no mundo dos homens. Ele estava rodeado por iletrados em Nazaré. Queria que um homem erudito ficasse com sua palavra escrita.

- As palavras escritas de um profeta - murmurou Plínio. - Usualmente, esta é a última coisa que um clero deseja. Ela os priva de trabalho.

- É por isso que a absurda Sibila fala por enigmas. - Cláudio disse, excitado. - Apenas os adivinhos podem interpretar sua palavra. Que absurdo.

- Mas por que eu? - insistiu Plínio

- Porque eu não posso publicar isto. Supõe-se que eu morri um quarto de século antes, lembra-se? Mas, agora que a sua História natural está quase terminada, a publicação é perfeita. Você tem autoridade. As pessoas irão ler seu livro por toda parte. O seu trabalho é um dos maiores jamais escritos, e irá sobreviver Roma em muito. Uma fama imortal aguardará aqueles cujos feitos são registrados por você.

- Você me lisonjeia, Princeps. - Plínio inclinou-se visivelmente satisfeito. - Mas eu ainda não entendo completamente.

- O nazareno disse que primeiro suas palavras necessitariam de outros para pregá-las. Mas chegaria um tempo em que as pessoas estariam prontas para receber sua palavra diretamente, quando haveria suficientes convertidos pela palavra para espalhá-la de um para outro, quando poderiam dispensar os professores. Ele disse que esse tempo chegaria enquanto eu estivesse vivo. Ele disse que eu saberia quando.

- Um concilium - murmurou Plínio. - Eles estão formando um concilium, um clero. Era sobre isto que ele estava advertindo.

- Nos Campi Flegrei. Eles usam esta exata palavra. Concilium. Como você sabe?

- Porque eu a ouvi falada entre os meus marinheiros em Misenum.

- Eu lhe contei sobre aqueles nos Campi Flegrei, os seguidores de christos - continuou Cláudio. - Cada vez mais gente está indo para a congregação de fiéis, o concilium. As pessoas já estão falando sobre um kyriakum boma, uma Casa do Senhor. Já há discordância, já existem facções. Alguns dizem que Jesus disse isto, outros, aquilo. Eles já estão falando por enigmas. Está se tornando sofisma, como em Filodemo, como com a Sibila. E há homens que chamam a si mesmos de padres, patres.

- Padres - Plínio murmurou. - Mais propriamente, homens entre os quais nenhum sabia do que sabemos agora.

- Enquanto eu ainda era imperador de Roma, um deles veio aqui, um apóstolo judeu da cidade de Tarso chamado Paulo. Eu estava disfarçado, indo fazer uma de minhas visitas a Sibila, e ouvi-o falar. Ele encontrou seguidores nos Campi Flegrei, muitos que ainda permanecem lá hoje em dia. No entanto, nenhuma dessas pessoas conhecia o nazareno, nem mesmo Paulo, nenhuma delas o tocou como eu fiz. Para elas, o homem que eu conheci já era uma espécie de deus. - Cláudio fez uma pausa, depois olhou atentamente para Plínio. - Este manuscrito deve ser preservado. Ele será sua derradeira influência, pelo que você escreve na História natural.

- Eu o manterei a salvo.

- E o pior. - Subitamente Cláudio abaixou o olhar desesperado. - A papoula me faz falar, faz minha mente divagar, me faz dizer coisas das quais nunca me lembro em seguida. Eles sabem quem eu sou. Cada vez que eu saio agora, eles parecem aparecer saindo da névoa, procurando me alcançar.

- Você deve ser mais cuidadoso, Princeps - murmurou Plínio.

Eles virão aqui. Todo o trabalho de minha vida, todos os meus manuscritos. Eles destruirão tudo. É por isso que preciso dá-lo a você. Não confio em mim.

Plínio pensou durante um instante, depois pegou o manuscrito da História Natural que tinha estado escrevendo e colocou-o na prateleira de livros. - Eu voltarei para buscar este manuscrito amanhã. Estará seguro aqui por uma noite, e eu vou acrescentar mais coisas sobre a Judéia, qualquer coisa a mais que você puder me contar. Eu voltarei. Há mais alguém que eu preciso visitar aqui ao entardecer. Talvez até mesmo esta noite. Tenho estado desejando por ela há muito tempo. Quer se juntar a mim?

- Algumas vezes eu me utilizo delas. Mas, nestes dias, penso cada vez mais em minha querida Calpúrnia. Tais prazeres fazem parte do passado para mim, Plínio.

- Hoje vou pegar minha galera rápida e ir direto para Roma - disse Plínio. - Estarei de volta pela manhã. Depois que encontrá-lo novamente, farei o mesmo acréscimo sobre a Judéia em minha versão principal, depois vou enviá-la para os escribas de Roma copiarem - ele murmurou, metade para si mesmo. - A História Natural ficará pronta por fim. A edição final. A menos que você possa me contar mais coisas sobre a Grã-Bretanha. - Pensou durante um momento, tamborilando os dedos sobre a mesa, depois bateu de leve no cilindro que Cláudio lhe dera e colocou-o numa bolsa sob sua toga. - E acho que conheço o lugar exato para guardar isto. - Pensou por mais um momento, tirou o manuscrito da prateleira, colocou-o sobre a mesa, pegou o indicador pontudo de metal que usava para escrever e escreveu algumas linhas, novamente pensou por um momento, borrou as linhas com o dedo, depois fez uma nota na margem. Cláudio observava, e resmungou sua aprovação. Plínio deixou as duas extremidades do manuscrito se enrolarem até se encontrarem e o recolocou rapidamente na prateleira, experimentando uma necessidade súbita de ir embora. Naquele momento, ouviu-se um som de pés se arrastando na via de acesso, algo que poderia ser uma pancada, e apareceu um velho inclinado, vestido com uma simples túnica e carregando dois mantos de lã.

- Ah, Narciso - disse Cláudio. - Eu estou pronto.

- Você vai até a Sibila? - perguntou Plínio.

- A última vez. Eu prometi.

- Então uma última coisa, Princeps.

- Sim?

- Eu faço isso por você como amigo, e como companheiro historiador. É o meu trabalho apresentar os fatos como eu os conheço, e não esconder nada.

- E...?

- Você? Por que é tão importante para você? Esse nazareno?

- Eu sou muito leal aos meus amigos. Você sabe disso. E ele era um deles.

- Meus marinheiros falam de um reino do céu na terra, que pessoas com bondade e compaixão podem encontrá-lo. Você acredita nisto?

Cláudio começou a falar, hesitou, depois olhou diretamente para o rosto de Plínio, os olhos úmidos e subitamente marcados com sulcos pelos anos. Ele estendeu o braço e tocou o de seu amigo, depois deu um pequeno sorriso. - Meu caro Plínio. Você se esquece de que eu sou um deus? Os deuses não necessitam de céu.

Plínio sorriu de volta, e inclinou-se. - Princeps.

 

Jack e Costas ficaram suspensos sem peso na água oito metros abaixo do barco Zodiac ao sudeste da Sicília. Seu equipamento refletia a luz do sol que brilhava até a base do despenhadeiro trinta metros abaixo. Jack estava flutuando a alguns metros do posicionamento, mantendo flutuabilidade com a sua respiração e observando a cena extraordinária em cima. O Lynx, helicóptero do Seaquest tinha chegado alguns minutos antes, e o fluxo de ar da hélice inclinada criava um halo perfeito ao redor da silhueta do bote. Através do túnel de calmaria no meio, Jack podia ver as formas oscilantes dos dois mergulhadores substitutos que tinham sido baixados para proporcionar um back-up de segurança se algo desse errado. Jack podia sentir a vibração, o tamborilar da hélice na água, mas o ruído ensurdecedor do motor era abafado pelo seu capacete e os fones de ouvido para comunicação. Ele tinha ouvido Costas dando instruções para os mergulhadores que iam mergulhar, uma verificação complexa que parecia passar por todo o estoque de equipamentos da IMU.

- Ok, Jack - disse Costas. - Andy disse que estamos prontos para partir. Só quero conseguir que o pessoal da logística vá para o Seaquest na hora em que a atividade começar.

Sua voz soava curiosamente metálica, através do intercomunicador, um resultado do modulador escolhido para calcular os efeitos do hélio na mistura de gases sobre a voz. Jack moveu-se ereto e bateu as nadadeiras em direção ao posicionamento. O par de mangueiras onduladas do seu regulador o fez sentir-se como um mergulhador dos dias de Cousteau, mas a semelhança terminava aí. Quando se aproximou de Costas, lançou um olhar crítico para o console amarelo em suas costas, sua parte externa de forma curva continha o rebreather de circuito fechado com os cilindros de oxigênio e trimix (uma mistura de nitrogênio, oxigênio e hélio) necessários para o mergulho. As mangueiras ondulantes conduziam para um capacete e uma máscara que cobria o rosto todo, o que permitia que eles respirassem e falassem sem o estorvo de um bocal.

- Lembre-se de minha instrução específica - disse Costas. - Luzes apagadas, a menos que encontremos algo. Assim que os nossos olhos se acostumarem com a escuridão, teremos um maior alcance de visão para localizar uma elevação indicativa de naufrágio do que temos com o cone de luz de uma headlamp. Profundidade máxima, oitenta metros; tempo máximo até o fundo, vinte e cinco minutos. Podemos ir mais fundo, mas não quero arriscar até que o Seaquest esteja na posição e a câmara de recompressão ligada. E lembrem-se de seu equipamento de emergência. - Ele apontou para o regulador octópode que podia ser mantido dentro do capacete se o rebreather funcionasse mal, estabelecendo uma passagem secundária para o "counterlung" e injetando gás diretamente do cano para os cilindros.

- Recebido e entendido. Você é o mergulhador chefe.

- Eu quero que você lembre disso na próxima vez que você vir o tesouro brilhando no fundo do abismo. Ou dentro de um iceberg. - Costas pressionou um controle em seu computador de mergulho e depois olhou atentamente para Jack através do visor. - Só uma coisa antes de partirmos.

- O que é?

- Você disse que qualquer coisa que diga respeito à vida de Jesus é como poeira de ouro. As pessoas devem ter estado procurando pelo navio naufragado de São Paulo desde que existe o mergulho, mesmo antes de Cousteau. Por que nós?

- Isso foi o que você disse sobre a Atlântida. Algumas chances auspiciosas e um pouco de pensamento lateral. Isso é tudo que nós sempre necessitamos.

- E um pouco de ajuda de seus amigos.

- E um pouco de ajuda de meus amigos. - Jack pegou a válvula de descarga em sua jaqueta de flutuação. - Pronto para partir?

- Pronto para ir.

 

Segundos depois, Costas estava colidindo no fundo, abordando o mergulho da sua maneira costumeira, como se estivesse atravessando as cataratas do Niágara em uma barrica. Jack o seguiu de maneira mais graciosa, seus braços e pernas estendidos como alguém que salta de pára-quedas, um pouco embriagado pela falta de peso e o panorama que se abria debaixo deles. Era exatamente como ele se lembrava, cada erosão e cume da base do despenhadeiro estavam gravados em sua mente desde vinte anos atrás, desde as horas passadas medindo e registrando, passando rapidamente pela planta do naufrágio e examinando onde escavar em seguida. Costas tinha razão sobre a tecnologia. A arqueologia debaixo d’água tinha avançado rapidamente nas últimas duas décadas, como se a física tivesse avançado desde Marie Curie até os aceleradores de partículas em uma única geração. Antes, as medições eram feitas meticulosamente à mão; agora havia telêmetros a laser e fotogrametria digital, que usava veículos operados por controle remoto no lugar de mergulhadores. Aquilo que levava meses podia agora ser conseguido em questão de dias. Com a nova tecnologia de mergulho, profundidades maiores se tornaram acessíveis, profundidades que trouxeram novos limites, novos limiares de perigo. Os custos permaneciam os mesmo, os riscos eram ainda maiores. Jack estava sempre esticando, empurrando adiante os limites de exploração, mas, antes de comprometer outros para seguir atrás de si, ele precisava ter certeza de que o preço valia a pena.

Diretamente abaixo ele viu onde Ben e Andy tinham ancorado a linha de posicionamento no pequeno vale formado por erosão onde havia encontrado a sonda sonora, e dali ele viu uma corda oscilante coberta com alga estendendo-se e descendo pelo declive para dentro das profundezas. Era a linha que ele deixara no seu último mergulho e que ficara ali durante todos aqueles anos, que ainda estava exatamente onde a deixara, como se o local estivesse esperando por ele, inacabado. Costas também a vira, e de alguma forma fez uma parada antes de se mover usando um escavador dentro do leito do mar. Esperou Jack juntar-se a ele, depois, juntos, moveram lentamente as nadadeiras lado a lado seguindo a linha até alcançarem o platô, na profundidade de cinqüenta metros, o ponto mais distante onde ânforas tinham caído do naufrágio da embarcação romana. Enquanto lidavam pelo platô, uma forma como um vergalhão apareceu abaixo deles no lodo, com cerca de dois metros de comprimento e um orifício apenas visível no centro.

- Meus velhos amigos. - Jack puxou o controle na lateral do seu capacete para fazer sua voz soar normal. - Esta é a haste da âncora de chumbo romana que eu vi em meu último mergulho, e deveria haver uma outra idêntica cerca de cinqüenta metros adiante, na extremidade do platô. Isto é exatamente o que se deve esperar ver de um navio que utiliza duas âncoras para se manter a pouca distância da praia, uma lançada em seguida à outra. Podemos usá-las para obter uma posição da bússola em relação a um ponto determinado.

- Recebido e entendido.

Nadaram ao longo da corda e logo encontraram uma segunda haste, exatamente como Jack a lembrava, entalada numa fenda acima de um declive. De lá Jack podia ver a corda decrescendo gradualmente, sua extremidade pendurada sobre um cimo, o lugar mais profundo onde ousara chegar em seu mergulho de vinte anos atrás. Era como o final das cordas de segurança dos mergulhadores que ele tinha seguido nas cavernas, relíquias perturbadoras que testemunham um extraordinário esforço humano e que incita outros a ultrapassá-los. Sem parar, eles seguiram adiante, e desceram para a base do despenhadeiro rochoso onde o leito do mar se tornava um deserto de areia sem traços característicos. Na extremidade, Jack viu um cinturão com cartuchos corroídos usados para uma metralhadora e disposto sobre um pente de balas maiores para um canhão antiaéreo. Ele se lembrava de ter visto isso antes, relíquias da Segunda Guerra Mundial. Costas reduziu a velocidade, e estendeu a mão para a válvula de descarga em seu compensador de flutuação.

- Nem pense nisto - disse Jack.

- Só estava olhando - disse Costas, esperançoso e nadou afastando-se. Atrás deles, a areia parecia se estender até o infinito, um deserto azul-cinzento sem nenhum horizonte visível. Cerca de cinqüenta metros adiante, nadaram acima de um afloramento de rocha, depois viram uma ondulação onde a areia se erguia formando uma duna baixa. À medida que se aproximavam a ondulação parecia cada vez menos natural, como uma criatura do mar espreitando debaixo do sedimento, e estendia-se por dez metros ou mais em qualquer direção a partir de uma corcova central com outra cumeeira seguindo a noventa graus através dela. Costas inspirou de maneira audível. - Meu Deus, Jack. É uma aeronave!

- Eu estava me perguntando se tínhamos visto uma destas - murmurou Jack. - É um planador de ataque, um Horsa Britânico. Veja, você pode perceber onde as asas altas desmoronaram sobre a fuselagem. Naquela noite em 1943, quando a SAS (Special Air Service) apareceu de repente sobre os italianos, os britânicos também enviaram uma brigada aerotransportada. Esse foi o único grande erro em toda a invasão da Sicília, e foi bem horrível. Os planadores foram soltos muito afastados da praia contra um vento contrário, e dúzias deles nunca conseguiram chegar até a praia. Centenas de rapazes se afogaram. Vai haver corpos lá dentro.

- Então, este é um lugar em que definitivamente não quero ir - Costas disse baixinho.

- Acima da linha d’água, algumas vezes acreditamos que as antigas guerras nunca aconteceram, tudo está limpo e sanitizado, mas, debaixo d’água, continua tudo aqui, logo abaixo da superfície. Isto é bem assustador.

- Profundidade, setenta e cinco metros - Costas estava bem concentrado em seu computador, e eles nadaram por cima da última forma fantasmagórica na areia. - O tempo na frente não está parecendo muito bom. Dez minutos no máximo, a menos que queiramos realmente fazer mais do que parece sensato.

- Recebido e entendido.

- Suponho que não estamos procurando uma cruz gigante saindo do leito do mar.

Jack sorriu através do seu visor. - Eu gostaria que fosse tão fácil, Nos nem sabemos se naquela época a cruz já era um sinal cristão. Estamos falando de vinte, talvez vinte e cinco anos depois da crucificação. Muitos dos símbolos cristãos familiares, a cruz, o peixe, a âncora, a pomba, as letras gregas Qui-Rô, só começaram a aparecer no século seguinte, e mesmo então eram apenas usados secretamente. A arqueologia do cristianismo inicial é incrivelmente enganosa. E lembre-se, supunha-se que Paulo fosse um prisioneiro, sob a guarda romana. Dificilmente ele estaria andando com relíquias.

Jack olhou para o seu aferidor de profundidade. Setenta e sete metros. Ele podia sentir o compensador introduzindo continuamente ar dentro do seu macacão de mergulho enquanto ele descia, neutralizando a pressão da água. Ele se sentia alegre, extraordinariamente consciente de uma profundidade onde ele estivera a um passo da morte vinte anos antes. Ele conhecia muito bem o efeito entorpecedor da narcose por nitrogênio, o gosto denso e xaroposo do ar comprimido abaixo de cinqüenta metros, dentro da zona de perigo. Respirar a mistura de gás era como beber vinho sem álcool, o máximo de expectativas, mas sem excitação. Ele percebeu a ausência da narcose e que a sua mente estava super-compensando. Provocava uma euforia de um tipo diferente descer até esta profundeza com a cabeça clara. Ele se sentia intensamente vivo, concentrado, sua lucidez aguçada pelo perigo logo adiante, aproveitando o momento como se fosse um mergulhador novato.

- Eles devem ter ficado sem poder pensar por causa da narcose - disse Costas.

- Os rapazes de Cousteau?

- Não posso acreditar que tenham chegado até esta profundidade.

- Eu posso - replicou Jack. - Mergulhei com os últimos daquela geração, os sobreviventes. Franceses valentões, ex-integrantes da Marinha. Tomavam um trago de vinho antes de mergulhar para dilatar os vasos sanguíneos, e a última inspiração antes de colocar o regulador era aquela que enchia o pulmão com Gauloise. Descer profundamente era como uma competição para ver quem bebia mais. O homem de verdade poderia competir.

- Competir e morrer.

E então Jack as viu. Primeiro uma, depois outra. As formas inequívocas das ânforas de cerâmica, meio enterradas e escondidas no sedimento. A trilha conduzia de volta para a face do despenhadeiro, ao caminho por onde tinham vindo, em direção reta, mas as formas estavam muito incrustadas para ser identificadas. Podiam ser gregas, podiam ser romanas. Jack precisava de mais. Olhou para o aferidor de profundidade. Oitenta metros. Nadou por cima da última forma. Costas atrás dele. Repentinamente estavam em outro despenhadeiro, só que desta vez não havia banco de areia debaixo deles, só uma escuridão preta como tinta. Tinham alcançado o limiar do desconhecido, um lugar tão proibido quanto o espaço cósmico, o início de um declive que descia através de vastas gargantas profundas e cadeias de montanhas, ao mais profundo abismo do Mediterrâneo, mais de cinco mil metros abaixo. Era o fim do caminho. Jack deixou a força cinética carregá-lo alguns metros por sobre a extremidade do abismo, sua mente vazia diante da imensidão diante deles.

- Não faça isto, Jack. - Costas falou calmamente, sua voz soava distorcida, agora que o nível de hélio havia aumentado. - Nós podemos voltar com o Anthropod Avançado para Mar Profundo e examinar as próximas centenas de metros. Fazer isto de modo seguro.

- Não há indícios suficientes para justificar isso. - A voz de Jack soava distante, sem emoção, carregada demais para registrar seus sentimentos. - Os mergulhadores de Cousteau devem ter tido alguma intenção ao espalhar as ânforas sobre o banco de areia. Não há maneira de eles terem podido descer mais fundo, acompanhando o declive. Estamos situados dentro da zona de morte por ar comprimido. - Voltou-se lentamente, depois por capricho ligou a headlamp de seu capacete. Não havia nada a perder agora. O clarão era ofuscante, e mostrava como estava escuro ao redor deles. Ele dirigiu o feixe de luz para a face do rochedo, revelando trechos ocasionais em vermelho e laranja que ficavam invisíveis na luz natural. Dificilmente alguma coisa poderia viver nesta profundidade. Dirigiu o feixe de luz para além do limite de visibilidade abaixo, depois recuou de novo.

Bingo.

Uma saliência estreita, oculta, quando vista de cima, pela cornija do despenhadeiro. Formas em montículos, vinte, talvez trinta delas, idênticas àquelas que tinham acabado de ver. Ânforas.

- Achei - disse Jack excitado. - Cerca de dez metros abaixo de nós.

Costas nadou para perto de Jack, ligou sua headlamp e olhou atentamente para baixo. - Tenho a impressão de que é um montículo formado por um naufrágio - murmurou. - Um pequeno vale arenoso. Seria bom para a preservação.

- Ali deve ser a popa - disse Jack fervorosamente. - A proa se chocou com o despenhadeiro, a popa flutuou para trás, deixando cair ânforas por onde ela passa, depois afunda aqui. É onde devem estar os melhores artefatos, os suprimentos do navio, os pertences pessoais, as coisas para identificá-lo.

- Você consegue ver qual é o tipo de ânfora?

- De modo algum. Necessito descer até lá.

- Jack, podemos fazê-lo, mas preciso configurar de novo o perfil do mergulho. É exatamente o que não quero fazer. Isso nos colocará dentro de um programa de descompressão muito extenso, antes da chegada do Seaquest e sem nenhum apoio de retaguarda. Mesmo os mergulhadores com uma margem de segurança não fazem isto. E só nos restam dez minutos.

- Qualquer mergulho é um risco - murmurou Jack. - Mas, se você consegue calcular o risco, pode fazê-lo de maneira segura. Você acabou de calculá-lo. Isso é o que você sempre me diz.

- Lembra-se do que você disse sobre toda essa nova tecnologia de mergulho, sobre ultrapassar o limite? Bem, é nessa situação que você se encontra agora.

- Eu confio no seu equipamento, mas confie na minha intuição. Este pode ser o melhor naufrágio de navio que já descobrimos.

- Poderíamos esperar. Certamente já encontramos suficientes indícios agora para voltar para cá.

- Poderíamos.

- Eu vou cobrir a sua retaguarda, você cobre a minha.

- O acordo é sempre este.

- Vamos lá.

Desceram juntos pelo declive com Costas reprogramando seu computador de pulso enquanto Jack movimentava sua luz sobre os montinhos de ânforas abaixo. Logo antes de alcançarem a saliência do rochedo ele soltou um grito de excitação. "Greco-itálico - ele exclamou. - Ânforas Dressel 2 a 4. Olhe, daqui você pode distinguir as altas asas e a parte angulada em forma de ombro. É do primeiro século d.C., ânfora do tipo italiano. Aposto que é de Campânia, perto do monte Vesúvio. É isto. Encontrei o que precisava. Temos um naufrágio da primeira metade do século d.C.

- Temos mais nove minutos - disse Costas. - Eu reprogramei o computador para estes minutos, e podemos usar o tempo adequadamente. - Ambos desceram e se ajoelharam no leito do rio ao lado das ânforas, e começaram a fazer uma varredura no local com suas headlamps. Jack viu outras formas salientando-se do sedimento debaixo das ânforas, formas de vergalhões de cerca de um metro de comprimento. Mergulhou mais profundamente e tirou o sedimento com a mão, depois desembainhou sua faca e raspou cuidadosamente. - Exatamente o que pensei - ele murmurou excitado. - Lingotes de chumbo.

- Este aqui tem letras escritas.

Jack colocou a faca na bainha e nadou até onde Costas estava, depois limpou o sedimento para ter uma visão mais clara.

 

                           TI.CL.NARC.BR.LVT.EX.ARG.

 

Durante um momento ficaram em silêncio. - Ah, serei condenado ao inferno - ele murmurou. - Tibério Cláudio Narciso.

- Você conhece este sujeito?

- Um escravo do imperador Cláudio. Quando ele foi libertado, adotou os dois primeiros nomes do imperador, Tibério Cláudio. Era secretário de Cláudio e tornou-se um dos seus principais ministros, mas foi supostamente assassinado por Agripina, a esposa de Cláudio, depois que ela envenenou seu marido.

- Como isso nos ajuda?

- Os escravos libertos eram os novos-ricos da época. Não restringidos pelo esnobismo aristocrático podiam investir no comércio e na indústria. Era exatamente como no século XIX. Nós já sabemos que Narciso tinha interesse em um certo número de negócios em Roma, alguns deles bem confusos. Este lingote mostra o seu caráter astucioso.

- BR significa Grã-Bretanha?

- Sim. LVT era a mina de chumbo de Lutudarum, em Derbyshire, um dos principais centros de mineração de chumbo na Grã-Bretanha. EX ARG significa ex argentariis, relativo aos trabalhos com chumbo prata. Eu o percebi quando raspei aquele outro lingote.

- Chumbo de alta qualidade - disse Costas. - Produzido com galena, sulfeto de chumbo, um subproduto da produção da prata. Poucas impurezas, menos material para oxidar, mais brilhante. Estou certo?

- Correto. Pela análise dos canos de chumbo em Pompéia, sabemos que o chumbo da Grã-Bretanha era exportado para o Mediterrâneo. Isto era exatamente o que se esperava que um rico proprietário de navio devesse ter a bordo de seu navio de melhor qualidade, para reparar o revestimento externo de chumbo no casco do navio. Nossa sonda sonora estava bastante razoável, não escurecida pela corrosão, e meu palpite é que ela foi fundida com essa liga metálica em algum lugar ao longo do caminho.

- Fascinante, mas eu ainda não vejo aonde isso nos conduz.

- A Grã-Bretanha foi invadida pelos romanos em 43 d.C., as minas de chumbo entraram em operação em torno de 50 d.C. O velho e esperto Narciso deita a mão nelas no momento mesmo em que foram produzidas e consegue um contrato lucrativo do mesmo modo que faz hoje um especulador em mineração. Estes lingotes devem datar do início dos anos 50. Isso nos aproxima, nos aproxima bastante, da data mágica para o naufrágio do navio de são Paulo.

- Entendi.

Houve um estalo no intercomunicador, e depois o som de um bip em staccato indicando uma mensagem de revezamento do Seaquest. - Você a pega - disse Jack. - Preciso me concentrar. - Ele harmonizou o receptor externo em seu capacete e subiu alguns metros acima do local do naufrágio, enquanto Costas mergulhava para perto da ânfora ao mesmo tempo que ouvia a mensagem. Jack direcionou sua lanterna para a série de ânforas caídas, sabendo que eles tinham somente mais alguns minutos. Eles tinham encontrado mais do que esperavam, muito mais, e com uma grande sensação de alegria ele se deu conta de que a escavação agora iria adiante. Subitamente, tudo aqui era sacrossanto, não mais uma região fronteiriça de descoberta, mas um lugar a ser cuidadosamente analisado, um manancial inter-relacionado de evidências onde cada aspecto, cada relacionamento, podia conter vestígios preciosos. Ele começou a descer novamente para tirar Costas daquela posição, exatamente quando os três minutos de aviso começaram a brilhar dentro do seu capacete.

- Oh, oh - disse Costas. - É o seu velho amigo Maurice Hiebermeyer. Logo quando você achava que ele estava metido até o pescoço em meio a múmias no Egito, ele sai repentinamente de um buraco no solo na Itália.

- Ele tem trabalhado com Maria nas ruínas romanas de Herculano - disse Jack. - Houve um terremoto, e ele está fazendo uma espécie de escavação de resgate. Eles têm tido problemas com as autoridades que controlam a parte do terreno onde estão, então talvez tenha conseguido algum tipo de acalmada. Ele tem estado me atormentando persistentemente há meses acerca de um papiro, algo que tem a ver com Alexandre, o Grande. A última vez em que ele tentou me pegar foi quando estávamos erguendo aquele canhão do grande cerco de Constantinopla. Ele realmente escolhe seus momentos.

- Ele diz que é urgente. Não quer desligar.

- Diga ao oficial do rádio que falarei com Maurice enquanto fazemos a descompressão.

Houve um som de bipe insistente, e Costas olhou para o seu computador. - Estamos no amarelo, Jack. Mais dois minutos no máximo.

- Recebido e entendido. Estou pronto para partir.

- Jack.

- O que é?

- Esta ânfora na minha frente. Ela tem algum tipo de inscrição sobre ela. Jack estava diretamente acima de Costas agora, e podia ver claramente as letras pintadas na parte de trás da ânfora. EGTERRE. - É um infinitivo em latim, significa "ir". Uma marcação que traduz um padrão de exportação.

- Não. Não isso. Abaixo disso. Marcações riscadas. - Costas limpou cuidadosamente o lado da ânfora enquanto Jack mergulhava para junto dele. - Parece um grande asterisco, ou talvez uma estrela.

- Também é muito comum - murmurou Jack. - Marinheiros aborrecidos, passageiros passando o tempo e rabiscando na cerâmica, jogando jogos. Se aquela foi uma viagem longa e arrastada vamos encontrar um monte de rabiscos. Mas vou pedir para os rapazes dos veículos operados por controle remoto para fotografar isto em sua primeira visita ao terreno.

- Aristarchos - disse Costas lentamente. - Letras gregas. Posso lê-las.

- Provavelmente um marinheiro - disse Jack, agora com um tom urgente enquanto olhava para o seu computador. - Havia muitos marinheiros gregos na época. Provavelmente um ancestral seu. - De repente ele prendeu a respiração. - O que é que você disse?

- Aristarchos. Olhe você mesmo.

Jack desceu mais para baixo e olhou atentamente para a cerâmica. As letras eram seguras, arrojadas, não os rabiscos grosseiros de um marinheiro. Poderia ser? Ele quase não ousava pensar. Aristarco de Tessalônica?

- Há uma outra - disse Costas. - Escrita pela mesma mão, pela aparência. Loukas, eu acho.

A mente de Jack vacilou. Loukas. Lucas. Olhou novamente para o símbolo rabiscado acima dos nomes, a forma de estrela. - Eu estava errado - ele disse com a voz rouca. - Estávamos todos errados.

- O que quer dizer?

- Aquele símbolo. Não é uma estrela. Olhe, a linha vertical tem um pequeno laço no topo. Trata-se da letra grega R, e o X é a letra grega Ch. É o símbolo Qui-Rô. Do modo que eles o usavam no primeiro século. - Jack mal podia acreditar no que estava dizendo. - As duas primeiras letras da palavra christos, a palavra grega para Messias - ele sussurrou.

- Eu acho que isso vai melhorar. Melhorar muito - Costas tinha limpado o sedimento da ânfora debaixo da palavra Loukas, e um terceiro rabisco apareceu. As letras eram tão claras como o dia. Ambos ficaram atônitos.

Paulos.

Paulo de Tarso, São Paulo, o Evangelista, o homem que tinha rabiscado seu nome e os dos seus companheiros neste cântaro quase dois mil anos antes, debaixo do símbolo daquele que eles já veneravam como o Ungido, o Filho de Deus.

Jack e Costas começaram a subir ao mesmo tempo, em direção ao vislumbre opaco de luz onde o sol brilhava na superfície, quase cem metros acima. Jack parecia estar em transe, olhando para Costas sem vê-lo, visualizando um grande navio de cereais navegando no Mediterrâneo dois mil anos antes, na época dos césares, levando inexoravelmente seus passageiros para dentro dos anais da história.

- Pelo que vejo - Costas disse perturbado, - estamos trabalhando.

 

Jack levantou o capacete brevemente para aliviar a dor no pescoço, os seus sentidos atormentados pelo ruído ensurdecedor da turbina do Rolls Royce bem atrás dele, e depois puxou o capacete de novo para o lugar certo, pressionou os protetores de ouvido até que o barulho amortecesse e o microfone ficasse em posição. Ele estava fisicamente exausto, mas muito excitado para descansar, cheio de alegria pela descoberta do naufrágio no dia anterior, ansiando por retornar para lá, mas agora cheio de expectativas por um novo prêmio que poderia conseguir mais adiante. Hiebermeyer só fora capaz de dizer pouca coisa, mas tinha sido suficiente para Jack saber que era real. Ele verificou o relógio novamente. Tinham voado em direção ao norte, no helicóptero Lynx, por mais de uma hora desde que deixaram a posição do Seaquest antes do amanhecer, no estreito de Messina ao largo da Sicília, e Jack tinha posto o piloto automático para mantê-los voando baixo. O altímetro mostrava uma situação crítica, o que mantinha Jack acordado. Fazia doze horas desde que tinham subido à superfície depois do mergulho, e suas correntes sanguíneas ainda estavam saturadas com excesso de nitrogênio que poderia se expandir perigosamente se eles ganhassem maior altitude.

Jack verificou o altímetro novamente, depois desligou o piloto automático e ocupou-se com os controles manuais e pedais do helicóptero, girando o Lynx para uma posição de trinta graus para o nordeste para assumir uma posição angular em direção à linha da costa. Reativou o piloto automático e olhou de novo para a imagem que tinha estado contemplando na tela do computador entre os assentos. Era uma aquarela em miniatura pintada por Goethe, uma que o avô de Jack tinha adquirido para a Howard Gallery por volta de 1920, pintada durante a erupção do monte Vesúvio em 1787. No segundo plano, Goethe pintara um céu cinzento e sem relevo, e no primeiro plano um luminoso mar amarelo. No centro havia a massa escura do vulcão, o contorno da costa abaixo dele fronteado por construções de teto plano similares aos das antigas cidades romanas soterradas debaixo do Vesúvio então desenterradas pela primeira vez. A imagem parecia excêntrica, quase abstrata, no entanto as listas de vermelho e de amarelo acima do vulcão revelavam a violenta realidade do evento que Goethe havia testemunhado. Jack desviou o olhar do painel de vidro de proteção contra o vento para a enseada à frente deles. Era como se estivesse vendo uma outra versão da aquarela, sombras pastel acumulando-se além do horizonte no nascer do sol, os detalhes misturados e obscurecidos pela camada de mistura de neblina e fumaça na atmosfera logo abaixo.

No assento do co-piloto Costas tinha estado dormitando e acordando de vez em quando, mas mudou de posição, ficando virado para frente quando Jack ajustou o curso. Ele despertou com um susto quando seus óculos escuros deslizaram do seu capacete e entalaram no seu nariz.

- Desfrutando da evaporação dos gases? - Jack perguntou pelo intercomunicador.

- Apenas mantenha-nos abaixo de cento e cinqüenta pés - Costas replicou com os olhos lacrimejando. - Quero manter aquelas bolhas de nitrogênio apropriadas e pequenas.

- Não se preocupe. Logo estaremos no solo.

Costas se estirou, depois suspirou. - Ar fresco, espaços abertos e vazios. É disto que eu gosto.

- Então, você deveria escolher os seus amigos mais cuidadosamente. - Jack sorriu, depois moveu lentamente o helicóptero, inclinando o seu nariz, para baixar algumas centenas de pés. Atravessaram a camada de neblina, e a miragem se tornou uma realidade. Abaixo deles, o dramático contorno das ilhas e do continente estavam nitidamente delineados, vastos espaços de rochas queimadas pelo sol rodeadas por um mar azul-celeste. Ao leste estava a grande expansão da cidade e, além dela, um borrão no horizonte, onde terminava a enseada, a neblina quase escondia uma presença indistinta debaixo de uma eclosão de laranja onde o sol estava surgindo acima da montanha do outro lado.

- A baía de Nápoles - disse Jack. - Cadinho da civilização.

- Civilização. - Costas bocejou de modo extravagante, depois parou. - Deixe-me ver. Aquilo seria corrupção em escala sísmica, delitos de entorpecentes, a Máfia?

- Esqueça tudo isto e olhe para o passado - disse Jack. - Nós estamos aqui por causa da arqueologia, não para ser envolvidos no presente.

Costas bufou. - Esta seria a primeira vez.

- Este lugar era uma das grandes escalas para a difusão de idéias para a Europa - disse Jack. - A baía de Nápoles foi onde os gregos se estabeleceram primeiro nos séculos VIII e IX a.C. quando vieram para o oeste comerciar ferro com os etruscos, em uma época em que Roma era formada por apenas algumas cabanas acima de um brejo. Cumas, para onde o alfabeto foi trazido pela primeira vez para o oeste, Neápolis, Pompéia, todos esses lugares se tornaram centros da nova

Grécia, Magna Graecia, expandida pelo comércio e pelo interior da Campânia com seus ricos solos vulcânicos. Lembra-se daquelas ânforas de vinho no navio naufragado? Elas eram daqui. Mesmo depois do domínio romano nos século III e IV a.C, que tornou este lugar uma espécie de Costa do Sol para os abastados, a cultura grega permaneceu forte. As pessoas pensam Pompéia como a quinta-essência da cidade romana, mas na verdade ela existiu durante séculos antes da chegada dos romanos e ainda era altamente cosmopolita em 79 d.C., com as pessoas falando grego e outros dialetos locais, bem como o latim. E a baía de Nápoles continuou a ser o primeiro porto a mandar vir todas as coisas do leste, não apenas as gregas, mas também as do Oriente Próximo e as do Egito, além de artigos de comércio exóticos, novos estilos de arte, emissários estrangeiros, novas idéias em filosofia e religião.

- Muito bem, vou acreditar no que diz - disse Costas. - Um lugar cheio de acontecimentos. Agora me dê informação sobre o vulcão.

Jack digitou no teclado do computador e a aquarela de Goethe foi substituída por uma fotografia em preto e branco mostrando uma vista distante de um vulcão em erupção. - Março de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial - disse Jack. - Nove meses depois que os Aliados desembarcaram na Sicília, bem lá onde estávamos mergulhando. Alguns meses depois da libertação de Nápoles, enquanto os aliados ainda estavam fazendo uma viagem longa e árdua para Roma. Entre as recentes, a maior erupção do Vesúvio.

Costas assobiou. - É como se os deuses da guerra abrissem as portas do inferno.

- Foi isso que as pessoas pensaram na época, mas felizmente ele foi apenas um imenso escapamento de gás e de cinzas e depois a fenda se fechou. Desde então, não houve nada tão dramático, embora houvesse um grande terremoto em 1980 que matou milhares de pessoas e deixou outras centenas de milhares desabrigadas. Há muita preocupação em relação aos recentes distúrbios sísmicos.

- Três semanas atrás.

- É por isso que estamos aqui.

- E nos tempos antigos? - perguntou Costas. - Quero dizer, antes da erupção de 79 d.C.?

Jack digitou novamente, e uma outra tela apareceu. - Esta é a única imagem romana conhecida do Vesúvio, encontrada em uma parede pintada em Pompéia. Ela é imaginativa, com o deus do vinho carregado com uvas à esquerda, mas podem-se ver as montanhas com vegetação fértil e vinhedos florescendo nos declives. O Vesúvio esteve completamente adormecido desde a Idade do Bronze, e os romanos só o conheciam como um local incrivelmente abundante, com solos ricos que produziam vinhos melhores do que em qualquer outro lugar. Os indícios estavam ali, para onde nos dirigimos agora, mas eles não tinham motivo para relacioná-los com a montanha.

Jack fez o helicóptero realizar um grande arco em direção ao norte, e Costas olhou atentamente para uma paisagem deserta. - Que lugar é este?

- Era o que eu queria, que você visse isso antes que chegássemos a nosso destino. Estamos sobre a costa nordeste da baía de Nápoles, a cerca de vinte e cinco quilômetros do Vesúvio. Esta era a única área de extensa atividade vulcânica no período romano, embora nem mesmo Plínio tenha feito a conexão com o Vesúvio. Os Campi Flegrei, os campos de fogo. Ouça isto. É da Eneida, de Virgílio, o poeta nacional de Roma. Tenho o texto na tela. Existe uma caverna profunda, acidentada, estupenda e imensamente ampla, protegida por um lago de água negra e a floresta escura. Acima deste lago nenhum pássaro pode passar voando sem dano, tão envenenado é o ar que sai daquelas mandíbulas e se ergue para a abóbada celeste. Agora olhe para fora. Aquele é o lago d’Averno, que significa sem pássaros. Lá adiante você pode ver a cratera mais ativa em nossos dias, Sulfaterra. Era a isso que Virgílio se referia. E pela costa você mal pode distinguir a acrópole coberta de vegetação da antiga Cumas, um dos primeiros locais onde os gregos se estabeleceram.

- Onde a Sibila foi enforcada.

- Literalmente. De acordo com alguns relatos, ela foi suspensa em uma gaiola no fundo de sua caverna, nunca completamente visível e sempre envolta em fumaça.

- A mais alta de todas.

Jack sorriu. - No período romano, os Campi Flegrei eram uma grande atração turística, muito maior do que agora. A entrada para o mundo subterrâneo, um lugar que cheirava fortemente a fogo e enxofre. As pessoas vinham aqui para ver o túmulo de Virgílio, sepultado ao lado da estrada proveniente de Nápoles. E a Sibila também ainda estava aqui. Pelo menos antes da erupção. Augusto a consultava, e outros imperadores também. Cláudio vinha ver a Sibila - ele acrescentou.

- Então, os primeiros colonizadores gregos trouxeram a Sibila com eles?

- Sim e não.

Costas resmungou. - Fatos, Jack. Fatos.

- Supostamente existiam treze sibilas através do mundo grego, embora as primeiras referências sugiram que elas se originaram da idéia de uma única profetisa, positivamente vidente. A localização de Cumas é um dos poucos lugares em que a arqueologia acrescenta à cena. Nos anos de 1930, foi descoberta uma extraordinária gruta subterrânea, que era como os romanos descreviam a Gruta da Sibila. Ela é um corredor em forma de trapézio de quase cinqüenta metros de comprimento, iluminado por galerias laterais, terminando em uma sala retangular, tudo desbastado na rocha. Na Eneida, de Virgílio, foi nessa caverna que o herói troiano Enéias consultou a Sibila para perguntar se a colônia troiana na Itália se tornaria algum dia o Império Romano. E foi lá que ela o levou para o mundo subterrâneo, para ver seu pai Anquises.

Costas apontou para a cratera cheia de vapor abaixo deles. - Você quer dizer os campos de fogo, os Campi Flegrei?

- Provavelmente existiam respiradouros vulcânicos abertos aqui, na Antiguidade. Se houve algum, ele deve ter sido uma visão do inferno de Dante - disse Jack. - Esta era a localização perfeita para a Sibila. Os suplicantes, provavelmente, eram conduzidos por entre as emissões de gases produzidas pelos vulcões e a lama fervente, de modo que deveriam estar tremendo de medo mesmo antes de chegar diante da caverna.

- Se minha memória não me engana, Enéias era um príncipe troiano que escapou da Guerra de Tróia, no final da Idade do Bronze - disse Costas de maneira pensativa. - O que significa que Virgílio pensava que a Sibila já estava aqui um tempo antes que os gregos ou os romanos chegassem.

- Toda a mitologia que conhecemos hoje associada com a Sibila de Cumas era grega, especialmente seu relacionamento com o deus Apolo. Mas isto pode ter sido o que os gregos trouxeram com eles, e projetaram sobre uma deusa ou profetisa que já existia na Itália pré-histórica. Os gregos e romanos, com freqüência, misturavam seus deuses com deuses nativos similares, mesmo em locais tão distantes como a Grã-Bretanha.

- Então, pode ter existido uma divindade feminina muito mais velha aqui.

- A Katya tem uma teoria acerca disto. Você se lembra da deusa mãe neolítica da Atlântida?

- Dificilmente poderia esquecê-la. Eu ainda tenho as marcas das feridas.

- Bem, nós já sabíamos que estátuas de terracota femininas, corpulentas, estavam sendo idolatradas através da Europa no final da Idade do Gelo, pelo menos na época dos primeiros agricultores. Durante anos, os arqueólogos especularam sobre o culto pré-histórico da deusa mãe, um culto que transpôs as fronteiras entre tribos e povos. Bem, Katya acha que a sobrevivência daqueles cultos se deve, sobretudo, a um sacerdócio poderoso, o homem e a mulher que conduziram os primeiros agricultores ao oeste, cujos descendentes preservaram o culto através da Idade do Bronze até o período clássico. Ela até pensa que os druidas no nordeste da Europa estavam conectados a eles.

- Eu me lembro - murmurou Costas. - Da Atlântida. Os feiticeiros com chapéus cônicos. O Senhor dos Anéis.

- A idéia do Gandalf de Tolkien, como o Merlin nas histórias do rei Arthur, pode em última análise se originar da mesma tradição - disse Jack. - Homens com poderes supostamente sobrenaturais que podiam passar de um reino para o seguinte, que não conheciam fronteiras. Curandeiros, mediadores, profetas.

Costas olhou novamente para Campi Flegrei. - Parece que todas as culturas necessitam deles - ele murmurou.

- E a deusa mãe também sobreviveu sob diferentes disfarces. A deusa grega Ceres, a romana Demeter, Magna Mater, a Grande Mãe.

- Cada nova cultura adiciona a sua própria camada de pintura, mas a mesma velha estátua permanece debaixo dela.

- Algo assim.

- Onde ela está agora? Katya, eu quero dizer.

- Quirguistão, nas montanhas Tian Shan, ao lado do lago de Issyk-Kul.

- Isto soa como algum lugar em Senhor dos Anéis.

- Também se parece com o local, a julgar pelas fotos que ela me enviou por e-mail.

- Ela está fazendo o quê?

- Estudando petróglifos, inscrições nas rochas. Na maior parte citas, com cerca de dois mil e quinhentos anos, mas o terreno fica no antigo Caminho da Seda e também há outras culturas ali. Ela até conseguiu uma inscrição que parece latim. É realmente excitante. Mal posso esperar para ir até lá e dar uma olhada.

- Uma coisa por vez, Jack. Como você sempre me disse. Há este pequeno assunto do naufrágio do navio de são Paulo, depois precisamos voltar para o mar Negro.

- Tudo que fazemos parece ser uma corrida contra o tempo - disse Jack. - A ironia é que toda esta nova tecnologia nos permite explorar e escavar muito mais rapidamente, de modo que podemos pensar no futuro como nunca foi possível antes. Mas é como eu disse no local do naufrágio. Algumas vezes anseio pelos velhos tempos, as lentas semanas que eram gastas para procurar retirar qualquer possível fragmento de informação de uma escavação de um metro quadrado. - Ele soltou um suspiro exagerado. - Talvez este seja um projeto para a minha aposentadoria.

- Aposentadoria. Que nunca vai acontecer. - Costas lançou um olhar esquisito para Jack. - De todo modo, supõe-se que você esteja pensando em Maria, não em Katya.

- Maria é ótima. - Jack replicou rapidamente. - Depois do México, ela quis continuar direto com o trabalho. Uma mulher durona.

- Não era disso que eu estava falando.

Jack o ignorou e continuou. - Trabalhar com Hiebermeyer era uma escolha óbvia quando chegou o telefonema da Superintendência de Nápoles depois do terremoto. Tinha um velho amigo lá que pensou na IMU quando precisaram urgentemente de uma equipe para prosseguir com algo que havia sido iniciado três semanas antes. Maria estava parada ao meu lado e eu repentinamente pensei em sua habilidade com manuscritos. Nenhum deles é especialista no período romano, mas isto é com freqüência uma vantagem. Olhos não viciados, novas maneiras de ver as coisas, livres de obstáculos impostos por cinismo. E acredite-me, o terreno que estamos indo ver está atolado em obstáculos, depois de duzentos e cinqüenta anos de fita adesiva vermelha impedindo a entrada, incompetência, obstrução e corrupção. Conseguir autorização para qualquer novo trabalho de escavação aqui é como uma batalha da Primeira Guerra Mundial, um dispêndio monumental de esforço e de vidas para movimentar a frente de guerra para dezoito centímetros mais perto de Berlim.

Costas desviou o olhar e sorriu consigo mesmo, e depois olhou através de seu visor para o contorno recortado da costa que estava agora diretamente abaixo deles. - Qual é o lugar?

- Pozzuoli. O nome romano é Puteoli.

- Então, é para lá que São Paulo estava se dirigindo? Depois da Sicília, depois de ter sobrevivido ao naufrágio?

- De acordo com os Atos dos Apóstolos, ele e seus companheiros saíram de Siracusa em um navio de Alexandria, depois pararam em Puteoli. Aquele é o antigo porto romano de cereais, que você pode ver ao lado do porto atual, que complementava o porto naval, somando-se a ele, localizado em Misenum. - Jack digitou na tela. - As palavras são: Nós encontramos irmãos ali, e fomos solicitados a permanecer com eles durante sete dias.

- Irmãos? Companheiros cristãos? E a perseguição?

Jack virou a cabeça para o norte. - Os Campi Flegrei. Refúgio perfeito. Provavelmente sempre foi um lugar para proscritos, mendigos, desajustados.

- E depois Paulo vai para Roma. Onde Nero lhe corta a cabeça.

- O Novo Testamento, na verdade, não diz isso, mas é a tradição.

- Podia ter sido melhor para ele se tivesse morrido no naufrágio daquele navio, afinal.

- Se isso tivesse acontecido, então a história ocidental poderia ter sido completamente diferente. - Jack inclinou lateralmente o helicóptero para estibordo, depois o direcionou para o borrão na costa oriental da enseada. - Nós poderíamos terminar idolatrando Ísis, Mitra, ou até mesmo a grande Deusa Mãe.

- Hein?

Jack ajustou a borboleta que controla a gasolina, verificou a tela de tráfego aéreo e acionou o piloto automático. - Aquele naufrágio realmente foi um dos acontecimentos fundamentais da história, não por causa daquilo que foi perdido, mas por causa de quem sobreviveu. Lembre-se, o ministério de Jesus durante sua vida estava confinado à Judéia, principalmente sua província natal da Galiléia. A idéia de que a sua palavra deveria se espalhar para as comunidades judaicas no estrangeiro, e depois para não judeus, parece ter germinado somente depois de sua morte. Paulo foi um da primeira geração de missionários, de convertidos. Sem ele, muitos daqueles que se provaram receptivos ao cristianismo poderiam ter sido seduzidos por um ou outro dos cultos oferecidos. Na época de que estamos falando, a difusão do Império Romano e a pax romana significavam que o mundo mediterrâneo estava sendo influenciado pelo afluxo de novos cultos, de novas idéias religiosas trazidas por soldados de terras recém-conquistadas e outras trazidas por marinheiros para portos como Misenum e Puteoli. A deusa egípcia Ísis, o deus persa Mitra, a antiga deusa mãe, qualquer um desses deuses poderia ter proporcionado a semente de uma religião monoteísta, dando ao povo algo pelo qual ansiavam diante de todos os deuses e rituais da Grécia e de Roma. Se uma daquelas religiões realmente se enraizasse, isto teria sido suficiente para repelir o cristianismo, que só começou a se espalhar da Judéia uma geração ou duas mais tarde.

- Puxa! - disse Costas. - E eu pensei que, com a crucificação, tudo fosse um negócio fechado.

- Aquele foi realmente apenas o começo - continuou Jack. - E a coisa surpreendente é que não há indicação de que Paulo tenha encontrado Jesus em vida. Paulo era um judeu da Ásia Menor que teve uma visão de Cristo na estrada para Damasco, mas somente depois da crucificação. No entanto, Paulo pode ter sido responsável, mais do que qualquer outro, pela fundação da Igreja tal como a conhecemos. A difusão do conceito de Jesus como o filho de Deus, como o Messias, o significado da palavra grega Christos, tudo isso parece que se deve em grande parte ao seu ensinamento. A palavra cristão apareceu pela primeira vez provavelmente nessa época, e a ênfase na cruz. É como se, uma geração após a morte de Jesus, de acordo com a experiência individual que as pessoas tiveram dele, o foco mudou de Jesus o homem para o Jesus ascendido, quase como se ele passasse a ser visto como um deus, tivesse sido posto em um pedestal.

- É isto que as pessoas devem ter entendido - comentou Costas. - Ninguém idolatra um homem.

- Exatamente - disse Jack. - Era um mundo em que os imperadores eram endeusados após a sua morte, onde o culto imperial era um grande fator de unificação no Império Romano. E, como todos os bons missionários, Paulo era um executante astuto que sabia o que tinha que fazer para conquistar o mundo de lado a lado, os acordos e a incorporação de antigas maneiras de pensar e de ver o mundo que ele achava que seriam necessários para que a luz brilhasse de um extremo a outro.

- Então, você está dizendo que este é o lugar onde tudo aconteceu, a baía de Nápoles?

- Os Atos dos Apóstolos sugerem que já havia seguidores de Jesus na baía de Nápoles, quando Paulo chegou aqui no final dos anos 50 d.C., apenas vinte e tantos anos depois da crucificação. Mas Paulo pode ter sido responsável por torná-los verdadeiramente cristãos, por voltar seus pensamentos da mensagem de Jesus, o Reino dos Céus que em breve virá, para o próprio Cristo, o Messias. Este é o lugar onde Paulo pode ter criado a primeira igreja ocidental, o primeiro culto organizado, talvez escondido em algum lugar ali entre as crateras e o enxofre dos Campi Flegrei. Ele lhes ensinava o que eles deveriam acreditar, como deveriam viver. Ensinou-lhes o Evangelho.

- Eu me pergunto o quanto desse Evangelho era o original.

- O que você quer dizer?

- Bem, se Paulo não conheceu Jesus em vida, nunca o encontrou. E Jesus nunca escreveu nada, certo? Isto faz pensar.

- Paulo alega ter tido uma visão, ter visto o Cristo ascendido.

- Eu cresci com todas essas coisas, lembra-se? Fui educado dentro da tradição grega ortodoxa. Gosto da beleza disso, dos rituais. Mas sou apenas um homem interessado em aspectos práticos, Jack. Se pudermos seguir uma pista com fatos sólidos, então eu sou bom nisso. Essa coisa de cristianismo primitivo é como olhar através de um daqueles caleidoscópios de criança, que muda continuamente as lentes e os prismas. Quero fatos, dados sólidos, material escrito por aqueles que estiveram lá naquele tempo, textos que nunca foram adulterados. Até onde posso reconhecer, os únicos fatos sólidos que temos são aqueles nomes rabiscados naquela ânfora que encontramos ontem no fundo do Mediterrâneo.

- Estou ouvindo-o. - Jack sorriu e desligou o piloto automático. - Especulação está fora, entram os fatos.

- Eu me pergunto o que a antiga Sibila teria pensado disso tudo.

- O que você quer dizer?

- Do cristianismo. Seguidores de uma nova religião reunindo-se aqui debaixo de seu próprio nariz.

- Muito bem. Ponto final com a especulação - disse Jack. - Vamos nos ater primeiramente aos fatos sólidos. No final do período romano, Cumas tinha se tornado um centro para o culto cristão. Os templos eram convertidos em igrejas, a gruta da Sibila passou a ser usada para sepultamentos. O lugar está crivado de tumbas cristãs, quase como uma catacumba.

- E a especulação? Você pode considerá-la.

- Há uma tradição cristã, que dura já faz muito tempo, de que a Sibila predisse a vinda de Cristo. Na Écloga, de Virgílio, poemas escritos cerca de cem anos antes da erupção do Vesúvio, disseram-nos que estávamos no final da última era predita pela Sibila de Cumas, e o nascimento de um menino que precedia uma idade de ouro. Mais tarde, os cristãos interpretaram isso como uma profecia messiânica. E depois há o Dies Irae, o Dia da Ira, um hino medieval usado no réquiem da missa católica até 1970. Eu estava dando uma olhada nela há pouco tempo. As primeiras linhas são Dies irae! Dies illa Solvet saeclum in favilla teste David cum Sibylla! Dia da ira e do terror surgindo! Céu e terra em cinzas se consumindo. A palavra de David e a destruição prevista pela Sibila se realizando! Comumente se admite que esses versos são medievais, século XIII, mas pode haver uma fonte antiga por detrás deles, uma que agora está perdida para nós.

- A Sibila certamente estava muito atenta aos acontecimentos naquela caverna - disse Costas.

- Continue.

- Bem, nestes versos tudo soa bastante apocalíptico - disse Costas. - Quero dizer, céu e terra em cinzas se consumindo. Isto me parece ser uma erupção vulcânica.

- Pura especulação. - Jack sorriu para Costas, depois colocou as mãos sobre os controles do helicóptero. - É possível, apenas possível, que a Sibila e suas sacerdotisas soubessem que algo grande estava para acontecer. Havia acontecido uma catástrofe, um terremoto alguns anos antes, em 62 d.C., bastante grande para derrubar boa parte de Pompéia. Talvez a criação das profecias da Sibila envolvesse manter a atenção nos Campi Flegrei, na adivinhação e no augúrio baseados em todas as mudanças de disposição do mundo subterrâneo. E a Sibila pode ter sabido que os seus dias estavam contados. Ela já estava se tornando uma curiosidade, uma atração turística. Apenas poucos suplicantes vinham agora em busca de seus pronunciamentos orais, portanto eram poucos agora os presentes e pagamentos que tinham sustentado o oráculo no passado.

- E que maneira melhor de desaparecer do que com estrépito - acrescentou Costas.

- Precisamente. Talvez a Sibila tenha inculcado essa idéia nos cristãos que viviam aqui, residindo nos Campi Flegrei. Não há uma indicação clara de que no ensinamento de Jesus o Reino dos Céus tenha sido precedido por um apocalipse, muito embora esta idéia tenha dominado os cristãos durante séculos. Talvez ela tenha sua origem aqui, nos cristãos que podem ter morrido no inferno de 79 d.C. Odeio pensar sobre o que estava passando por suas cabeças naqueles momentos finais. Quando Paulo trouxe o Evangelho para eles vinte anos antes, duvido que tenham visualizado o seu fim dentro de um fluxo piroclástico seguido por incineração.

- Especulação construída sobre especulação, Jack.

- Você tem razão. - Jack sorriu, desligou o piloto automático e fez o Lynx sair do seu padrão circular e entrar em uma trajetória adequada para o leste, ao Longo da costa em direção ao sol levante. - É hora de encontrar alguns fatos sólidos. Estamos chegando em casa.

- Entendido e recebido. - Costas abaixou seus elegantes óculos de sol e olhou fixamente para o leste. - E, falando em fogo e enxofre, estou vendo um vulcão extinto adiante.

 

Jack inclinou-se sobre o parapeito, deixando-se penetrar pela cena extraordinária a sua frente quando a luz matinal começou a abrir brechas nas passagens entre árvores e arbustos e os espaços escuros abaixo. Ele se sentia cansado, tão cansado quanto jamais esteve, com a sensação de peso que sempre surgia depois de um mergulho em águas profundas. Sabia que o seu sistema ainda estava trabalhando muito ativado para pôr para fora o excesso de nitrogênio, no entanto o sentimento também provinha de uma profunda sensação de contentamento. No espaço de doze horas, ele tinha se deslocado de uma das descobertas, debaixo d’água, mais notáveis de sua carreira para um dos terrenos arqueológicos mais famosos no mundo, um local que havia deixado uma impressão indelével nele quando o visitara pela primeira vez, ainda como um aluno. Herculano. A cidade parecia mais decadente agora, negligenciada em alguns lugares, mas tinha mudado pouco com o passar dos anos, e ainda o deixava sem respiração. Quase não podia acreditar que eles eram praticamente os primeiros arqueólogos, em mais de duzentos anos, a escavar o lugar para onde estavam indo.

- Uma mensagem de texto para você, Jack. - Costas passou o celular sem olhar. Ele estava sentado de cócoras com as costas contra o parapeito, completamente concentrado em um sistema de diagramas em seu laptop. - É de Maria.

Jack leu a mensagem e resmungou. - Mais meia hora, talvez menos. São boas novas, a transação foi feita. - Ele e Costas já tinham esperado por mais de uma hora desde a aterrissagem do helicóptero, tempo bem gasto em mostrar a Costas o local ao redor, mas eles não estavam acostumados a ficar à disposição dos procedimentos burocráticos e a demora se transformava em irritação.

Costas pegou o celular de volta, e deu uma olhadela para Jack. - Eu ainda não posso acreditar que estamos fazendo isso. Pagando gorjeta. É como um procedimento de Operação França.

- É como Nápoles para você - disse Jack. - País de bandidos.

- Então onde fica a idéia de que nosso dinheiro vai para a manutenção do local, o trabalho de conservação? - Costas girou e fez um gesto em direção a um telhado coberto de pó, uma parede antiga caindo aos pedaços. - Como todo o outro dinheiro estrangeiro que foi conseguido para ser aplicado aqui no passado.

- Fui franco com o conselho de diretores da IMU - disse Jack. - Não há outra maneira de conseguir alguma coisa aqui. Se quiser trabalhar neste local, tem que soltar o dinheiro.

- Basicamente, estamos pagando um suborno.

- Não exatamente como eu expliquei ao conselho, mas trata-se do tamanho disso - replicou Jack, olhando para o relógio. - Agora, precisamos apenas esperar enquanto eles confirmam a transferência eletrônica. Você também pode manter-se no seu trabalho por um espaço de tempo maior. Eu estou retornando para o primeiro século d.C. - Jack voltou-se novamente em direção ao terreno, inspirou profundamente e soltou o ar lentamente. Como uma criança viajando ao redor do mundo ele tinha desenvolvido uma imaginação incomum, uma habilidade em usar poucas imagens para transportar-se de volta para um passado distante, quase como em um estado de transe. Mas aqui ele dificilmente precisava disso quando o passado estava diante dele com extraordinária clareza, completo em quase todos os detalhes.

Herculano era o mais raro dos locais, sem as limitações e as distorções do tempo, com poucas das complexas camadas de história vistas na maioria dos locais arqueológicos. Aqui, a cidade de 79 d.C. estava tão bem preservada que era se habitável debaixo dos edifícios do moderno subúrbio, as estruturas de tetos com superfície plana quase idêntica. Os olhos de Jack moveram-se para além dos cimos dos telhados ao cone enegrecido do Vesúvio que se elevava no fundo. Ele parecia resumir a continuidade subjacente da condição humana, e o poder indomável da natureza. Jack olhou para baixo, em direção aos estabelecimentos comerciais de frente para o mar, onde massas retorcidas de esqueletos tinham sido encontradas amontoadas em sua agonia mortal. Depois ergueu o olhar para as vilas acima, onde aquelas mesmas pessoas tinham estado comendo e conversando, vivendo sua vida diária poucos momentos antes. Tudo permanecia ali como eles tinham abandonado naqueles momentos finais de horror. Havia uma claridade ali, refletiu Jack, uma claridade extraordinária, mas também opacidade. Esmiuçar a história deste local era como observar uma animação reconstruída, em que as primeiras cenas eram lancinantes e claras, depois a seguinte era vaga, tornando-se de modo crescente fora de foco, os pequenos elementos separados se tornavam maiores, enquanto a resolução diminuía, até que as imagens que tinham sido dominadas por pessoas se tornavam submersas em sombras, com apenas os artefatos sobressaindo-se e as pessoas reduzidas a formas variáveis quase não discerníveis no fundo.

Este era o desafio para os arqueólogos neste local, refletia Jack, o de dar profundidade, de contar histórias que ocupassem o espaço de horas, dias, anos. E ainda aquela cena final apocalíptica era um chamariz contínuo, a fascinação humana com a morte, o macabro, os momentos finais da normalidade, como eles seriam. Um pouco antes, andando por entre as casas romanas com Costas, ele experimentara um desconforto curioso, como se estivesse violando os lugares íntimos de pessoas que nunca realmente os abandonaram, lugares em que ele podia ainda sentir os atos mundanos dos vivos, os odores particulares e sons da família. O que acontecera ali havia ocorrido muito rapidamente, mais depressa ainda do que em Pompéia. O local parecia ainda em estado de choque, imobilizado naquele momento logo antes que o inferno se desencadeasse. Herculano ainda parecia balançar de maneira instável, como se os terremotos das últimas semanas fossem um tremor nervoso que começara na noite do inferno quase dois mil anos antes.

- Esta é uma visão infernal. - Costas estava parado ao seu lado, e Jack foi arrancado de seu devaneio. - O passado, o presente e a explosão cósmica. Isso diz tudo.

Jack deu um sorriso cansado. - Estou contente que você também veja isto.

- Então, tudo isso é lama solidificada - disse Costas.

- Lama, cinza, pedras-pomes, lava, tudo misturado enquanto rolava como bola de neve ao descer do vulcão.

- Um fluxo piroclático?

- Você lembra de Plínio, que escreveu sobre o ópio? - disse Jack.

- Pode apostar que lembro. O comandante workaholic de uma esquadra. De alguma maneira ele encontrou tempo para escrever uma enciclopédia.

- Bem, o seu sobrinho adolescente, também chamado Plínio, estava aqui naquele dia, passando uma temporada na vila de seu tio perto da base naval em Misenum. O Plínio moço sobreviveu à erupção, o seu tio não. Anos mais tarde, ele escreveu uma carta sobre isso para o historiador Tácito, que queria saber como o Plínio velho morrera. Do ponto de vista da história natural, esse é um dos documentos mais importantes que subsistiu da Antiguidade, talvez mais importante do que a enciclopédia de seu tio. Não é somente um relato único de uma testemunha ocular sobre a erupção do Vesúvio, ele constitui também uma das melhores observações científicas jamais feitas de uma erupção vulcânica até os tempos modernos.

- Isto soa como um fragmento solto da antiga grande massa de pedra. Seu tio ficaria orgulhoso dele. - Costas observou Jack puxar um pequeno livro vermelho de sua mochila, sua capa era gasta e quebradiça. - Você parece ter um suprimento infindável dessas coisas, eu não tenho idéia de quanta literatura subsistiu daquele período.

- É o que não perdurou que me mantém acordado durante a noite - disse Jack, e virou rapidamente a cabeça em direção das ruínas diante deles. - É isso que é tão provocador a respeito deste lugar. Mas, antes de irmos até lá, ouça isto. É crucial compreender por que Herculano e Pompéia têm a aparência que tem. - Ele segurou o livro levantado de modo que o local e o vulcão ficassem como pano de fundo, e depois começou a ler passagens marcadas. - Sua aparência geral pode ser mais bem expressa como parecendo uma copa de um pinheiro em forma de guarda-sol, porque se ergue a uma grande altura em uma espécie de tronco de árvore e depois se espalha em ramos. "Imagino que parece assim porque foi empurrado para cima pela primeira explosão e depois deixado sem suporte quando a pressão diminuiu, ou então ele foi empurrado para baixo pelo seu próprio peso de maneira que ele se expandiu e gradualmente se dispersou." - Jack desceu com os dedos pela página. - Depois ele descreve cinzas caindo, "seguidas por fragmentos de pedra-pomes e pedras escurecidas, chamuscadas e rachadas pelas chamas". - Em seguida ele diz que a escuridão era mais negra e densa do que qualquer noite comum, e, no Vesúvio "enormes lençóis de fogo e chamas que saltavam no ar resplandeciam em vários pontos".

- Isto soa como uma clássica liberação de partículas de cinza e de pedras-pomes - disse Costas. Mas aquele primeiro pedaço, sobre a coluna de fumaça desmoronando por si mesma, isto é um fluxo piroclástico.

- É esta exatamente a diferença entre os dois locais. Pompéia foi enterrada por uma descida de partículas vindas do céu, misturadas com gases venenosos. Posteriormente, alguns cimos dos tetos ainda persistiam, e é por isso que eles não estão tão bem preservados hoje. Herculano foi enterrada por deslizamento de terra, toneladas de lama fervente e material vulcânico, subindo e descendo como ondas cada vez que a coluna de fumaça desmoronava até que as construções ficaram completamente enterradas, cerca de dez metros acima do topo dos telhados.

- É isto que aqueles primeiros cristãos devem ter visto - disse Costas. - Nos Campi Flegrei, quero dizer. Era o que estávamos falando durante o vôo para cá. Anéis de fogo descendo pela montanha, provavelmente a uma velocidade aterradora, na ponta de cada fluxo piroclástico.

- O Plínio moço estava observando tudo isso da vila em Misenum, apenas uma milha mais ou menos ao sul de Cumas, a Gruta da Sibila. Um ponto de observação vantajoso.

- Síndrome de estresse pós-traumático.

- Pode repetir?

- Síndrome de estresse pós-traumático - Costas repetiu. - A obsessão com o fogo do inferno, a danação. Eu tenho pensado sobre isto. Se este é o principal lugar para onde o cristianismo se espalhou em direção ao Ocidente, então eles foram obrigados a ser afetados pela experiência, certo? Uma vez que você viu o inferno, não se esquece dele rapidamente. Eles já estavam na metade do caminho em direção aos Campi Flegrei, vivendo no meio das fumarolas na entrada do mundo subterrâneo pagão. Acrescente a isso uma erupção vulcânica, e você obtém uma visão bem apocalíptica. Estou certo?

- Para um homem interessado em aspectos práticos, esta é uma idéia bastante fantástica. Nunca pensou em reescrever a história da teologia cristã?

- Não. - Por um momento, ambos ficaram silenciosos, olhando dentro das janelas dos estabelecimentos comerciais romanos desenterrados, escuros e ameaçadores como as portinholas de um navio afundado - Não há sobreviventes aqui - murmurou Costas. - Ninguém que tenha permanecido.

- É difícil saber o que teria sido pior - disse Jack pensativo. - Ser sufocado pelo gás superaquecido em Pompéia ou incinerado vivo em Herculano.

- Venha morar na ensolarada baía de Nápoles - murmurou Costas. - Hoje em dia, tudo o que acontece é que você ou fica satisfeito ou sai correndo.

- Não subestime o Vesúvio - disse Jack. - Lembra-se daquele quadro da erupção de 1944? Os especialistas em sismologia têm estado falando sem chegar à conclusão alguma durante décadas, e os terremotos são bastante agourentos.

Costas protegeu os olhos da luz e deu uma olhada para o cume do vulcão, onde a luz do sol estava começando a irradiar ao lado da terra estéril acima do declive. - Plínio esteve aqui? Em Herculano? Estou pensando no velho.

- De acordo com seu sobrinho, ele deu uma olhada na erupção e foi com um navio de guerra em direção ao vulcão, deste lado da enseada, debaixo da montanha. Supostamente foi uma missão heróica para salvar uma mulher.

- A destruição de muitos grandes homens - suspirou Costas.

- Foi sem esperança. Quando ele chegou aqui, a praia estava bloqueada com detritos, pedras-pomes flutuando como um mar de gelo. Mas em lugar de voltar, ele fez sua galera remar em direção ao sul para Stabiae, uma outra cidade mais longe que Pompéia diretamente sob a queda de cinzas. Ele permaneceu ali durante muito tempo e foi intoxicado pela fumaça.

- Isto parece uma tragédia de amor de Shakespeare. Talvez ele tenha sido realmente subjugado pela dor.

- Eu não acho - disse Jack. - Não o Plínio. Tendo visto que sua namorada estava condenada, ele teria continuado a fazer outra coisa. O que ele realmente queria era aproximar-se da erupção. Posso vê-lo, com o caderno de notas na mão, aspirando o ar e identificando o enxofre, coletando amostras de pedras-pomes ao longo da costa. Uma espécie de Charles Darwin romano. Mas a curiosidade levou a melhor sobre ele. Ele era como Ícaro, voando muito próximo do Sol. Pelo menos ele tinha terminado sua História natural.

- Por causa de toda aquela variedade de tarefas que ele tinha, estava provavelmente se dirigindo para um local que sofrera uma devastação total pelo fogo.

Jack desviou o olhar, depois percebeu duas figuras descendo a rampa de entrada para a posição em que eles estavam, uma mulher e um homem. - Bom - ele disse. - Parece que por fim estamos nos mexendo. - Afastou-se do parapeito e passou a mão pelos cabelos. Maria usava botas de deserto, calças caqui de combate e uma camiseta cinza, e seu longo cabelo negro estava atado atrás. Maurice Hiebermeyer estava alguns passos atrás dela, um celular apertado contra a orelha, e era uma figura um tanto menos esbelta. Ele era ligeiramente mais baixo que Maria, e consideravelmente acima do seu peso, e vestia uma curiosa seleção de roupas de safári e ainda um par de sapatos de couro gastos, adequados para uma ocasião mais formal. Estava com o rosto vermelho e agitado e empurrava constantemente para a parte alta do nariz seus óculos pequenos e redondos enquanto falava ao telefone. Seus shorts iam bem abaixo dos joelhos e se pareciam perigosamente com um meio mastro, flutuando livremente quase por milagre.

- Não diga nada - Jack murmurou a Costas. - Absolutamente nada. - Ele se esforçou para manter um rosto sério, e olhou para Costas. - De todo jeito, você pode sorrir afetuosamente. Quando foi a última vez que se olhou no espelho? Você tem o aspecto de quem ficou seis meses fora num submarino.

Hiebermeyer ficou um pouco afastado antes de alcançá-los, gesticulando ao telefone e virando-se de costas, enquanto Maria aproximava-se e beijava a ambos. Jack fechou os olhos quando ela se pressionou contra ele. Ele tinha sentido falta dela, de ouvir sua voz sonora, seu sotaque. Tinham passado um tempo intenso juntos, durante a busca pela menorá, e Jack passara pelos momentos usuais de vazio quando a expedição terminara. Maria lhe lançou um olhar com seus olhos escuros. - Faz três semanas desde que eu estive no Seaquest, mas parece que passou um tempo muito mais longo.

- Você sentiu falta da companhia - Costas sorriu, olhando para Jack.

- Para ser honesta, o período tem sido tão extraordinário aqui que eu realmente não me lembrei muito de antes - ela disse, afastando-se deles e olhando demoradamente para o terreno. - Recebi uma mensagem de texto de Jeremy, nesta manhã, e esta foi realmente a primeira vez que me lembrei repentinamente do tempo que passamos no Yucatán, daquelas cenas horríveis. Foi bom para mim ter este novo projeto para me concentrar, foi melhor do que voltar diretamente para o Instituto, em Oxford. E Jeremy está cuidando de tudo por lá. Esta foi exatamente a brecha que ele queria, e está se saindo brilhantemente.

- Como vai o meu companheiro mais novo e favorito de mergulho? - perguntou Costas.

- Enterrado até o pescoço na biblioteca perdida na Catedral de Hereford. Ele conseguiu um novo material fantástico, Jack. Um outro mapa primitivo, com referências aos fenícios, eu acho. Está louco de vontade de mostrá-lo a você. E tem uma idéia para um novo dispositivo de mergulho, Costas. Eu não entendo nadinha disso.

- De verdade? - Costas falou com excitação silenciosa. - Se a idéia é de Jeremias, ela tem que ser boa. - Procurou o celular no bolso de trás das calças, mas Jack segurou seu braço.

- Não agora, não é um bom momento.

Costas cedeu pesaroso. - Só estava querendo me informar.

- Nada de tarefas múltiplas, lembra? Vamos perseverar com a atual por enquanto.

- Sim, chefe.

- Estou agradecida por você ter me indicado, Jack - Maria continuou. - Considero realmente um privilégio estar aqui. E, de muitas maneiras, constitui uma ampliação de visão. Mas eu deveria ter estado aqui desde o início.

- Então, você nunca teria tido o prazer de passar algum tempo com o velho amigo Maurice - disse Jack com um sorriso. - Sei que você não o tinha visto desde Cambridge.

Maria aproximou-se deles silenciosamente. - Ele é um homem estimado - ela sussurrou, olhando para Jack de maneira inquisitiva.

- Ele é um homem estimado - repetiu Jack baixinho. - Lembre-se de que nós estivemos juntos na escola, mesmo antes de nos encontrarmos todos em Cambridge. Eu vivi a minha primeira verdadeira aventura com ele, quando éramos garotos. Você sabe, ele é tratado como um deus no Egito, com alguma justificativa. É de longe o arqueólogo de campo mais admirável que conheço. E, apesar da aparência, não é um daqueles egiptólogos que pensam que tudo o mais está abaixo deles. Ele é tremendamente instruído, desejoso de ver e de conhecer todos os períodos e lugares. Ele não seria visto nem morto dentro de um macacão de mergulho, mas é um professor adjunto excelente para a IMU.

- Então, o que significam estes shorts - ela sussurrou.

- Ah. - Jack olhou para o traseiro de Hiebermeyer, e se esforçou para manter sua expressão. - Um uniforme genuíno do Afrika Corps Alemão, do ano 1940 aproximadamente. Parecia apropriado quando ele foi para o Egito pela primeira vez. Eu lhe dei como presente de formatura. Ele me deu uma mochila caqui da Oitava Armada Britânica. - Jack deu uma batidinha na mochila bastante usada ao seu lado. - É minha culpa. Sinto muito.

- Um par de suspensórios ajudaria - sussurrou Maria. - Você sabe, liederhosen, aquela espécie de macacão com calças curtas e suspensórios usado na Bavária.

- O que Jack está dizendo - disse Costas com uma piscadela -, é que ele está crescendo na sua estima.

- Somente enquanto ele não esperar que eu o trate como um deus - Maria disse baixinho, depois recuou e falou normalmente. - De todo modo, agora vejo como é estar no lugar de Jack. Só espero não ter tirado o entusiasmo de vocês pelas viagens marítimas.

- Nós não ficamos exatamente tomando banho de sol na coberta da proa - disse Costas. - Espere até ouvir o que encontramos ontem.

Hiebermeyer parecia estar cada vez mais exasperado, erguendo os olhos e levantando o punho no ar, depois ouviu atentamente ao telefone e deu um olhar de alívio. Acenou com a cabeça em direção a Maria, fechou o celular e aproximou-se, apertando as mãos de Jack e de Costas. - Achei que ia fazer vocês perder seu tempo. - Sua voz estava ligeiramente rouca por causa do estresse, seu sotaque alemão mais pronunciado. - Eu não podia acreditar. Tudo o que fiz foi sair por um curto período ontem para telefonar para vocês. Eles não estavam querendo nos deixar entrar de novo.

- Todos estão prontos? - perguntou Maria, levantando sua mochila e prendendo-a na tira em sua cintura, e voltando-se para subir a rampa. - Maurice e eu aprendemos da maneira mais difícil que, quando temos que ir em frente neste local, vamos em frente rapidamente. O lugar fica a cerca de mil e oitocentos metros em direção ao oeste partindo daqui, mas temos que sair do terreno e andar em descida por algumas passagens escuras. Nos encontraremos na entrada. - Ela olhou para a mochila que continha a máquina fotográfica de Costas. - E cuidem de seus objetos de valor, certo? Lembrem-se de onde estamos.

 

Vinte minutos mais tarde, pararam do lado de fora de uma porta baixa no final de uma ruela escura na moderna cidade de Ercolano. Estava fazendo calor sob o sol do meio-dia, e eles se abrigaram na sombra, encostando-se numa parede. A cena era surpreendentemente parecida com a de uma rua desenterrada na antiga Herculano, algumas centenas de metros distante dali, e por uma fração de segundo Jack se sentiu completamente deslocado, sem saber se estava no passado ou no presente. Ele foi trazido de volta para a realidade pelo eco muito pequeno de uma motoneta Vespa quando ela passava por uma ruela próxima, e pelos inconfundíveis aromas modernos que se erguiam ao redor deles. Havia lixo espalhado nas laterais da ruela e um caramanchão ao lado da entrada mostrava seringas hipodérmicas usadas jogadas no chão.

- Cuidado com o pé - disse Maria. - Este é o local favorito para o uso de drogas ilegais.

- Ópio - disse Costas. - Quanto mais muda...

Maria olhou para ele interrogativamente. - Mais tarde - disse Jack. - Conseguimos algumas notícias fabulosas. Uma descoberta incrível. Mas vamos executar primeiro o que viemos fazer aqui.

A porta se abriu, e um guarda de segurança armado apareceu. Hiebermeyer disse algumas poucas palavras vacilantes em italiano e o homem olhou de maneira dúbia para Jack e Costas. Ele sacudiu a cabeça, com má vontade pegou os papéis de autorização que Hiebermeyer lhe ofereceu e empurrou-o para fora, para a ruela, fechando a porta de novo na cara do arqueólogo.

- Toda vez acontece isso - disse Hiebermeyer, em voz baixa. - Sempre há um guarda novo e eles sempre precisam ver a papelada. Depois insistem em ficar com os papéis, e eu tenho que conseguir outros fornecidos pela superintendência em Nápoles. Levou duas semanas para eles deixarem Maria entrar.

- Não sei como você suporta isto - disse Costas.

- Paciência 101, 101 citações sobre a paciência - disse Jack. - Um curso obrigatório de introdução à arqueologia.

- Não posso imaginar como você conseguiu passar nesse curso, Jack.

- Paguei a Maurice para fazer o exame por mim.

A porta reabriu, e o guarda fez um gesto com a cabeça para entrarem. Hiebermeyer inclinou-se para passar pela porta e os outros entraram em fila atrás dele. Eles se encontraram em um pequeno pátio cinza, e o guarda fez um gesto com a sua submetralhadora em direção a uma outra entrada. Costas manteve o seu olhar de desprezo por bastante tempo, e o homem gelou.

- Não faça isto - falou Jack em voz baixa. Pegou Costas pelo braço e conduziu-o rapidamente atrás de Maria e Hiebermeyer em direção à outra entrada. O guarda permaneceu enraizado no chão, depois o ouviram afastar-se lentamente para um lado. Eles passaram pela entrada e encontraram outra pequena passagem estreita.

- Eu acho que você é a estrela, a atração do momento, por aqui - resmungou Costas para Hiebermeyer. - Um arqueólogo estrangeiro famoso, que veio do Egito para ajudar na escavação de um dos locais mais importantes jamais encontrados.

- Esta é a face pública da história - disse Hiebermeyer, mantendo a voz baixa. - Atravesse aquela entrada, e a história é diferente. Eles não deixam nem mesmo um filme entrar aqui. Este lugar esteve fechado durante duzentos anos, e alguém quer que permaneça assim.

- Nada da vila está aberta ao público?

- Depois de um enorme lobby internacional, uma pequena seção foi aberta com uma grande cerimônia poucos anos atrás. Passamos pela entrada no caminho para cá. Pela primeira vez, as pessoas podem visitar um pouco da escavação feita no século XVIII. Fizeram um grande espetáculo com essa abertura, até conseguiram que o príncipe Charles viesse de Londres para cá cortar a fita. Vocês não fazem idéia de quantos eruditos e filantropos têm tentado apressar o início do trabalho neste lugar. Mas, do nosso ponto de vista, todo esse suposto progresso tem sido um benefício confuso. Permitiu que as autoridades descrevessem isso como uma grande realização, desviando a atenção da necessidade de retomar as escavações.

- Então, sem aquele terremoto no mês passado que abriu este novo túnel, nós não estaríamos aqui - disse Costas.

- Não teríamos chance alguma.

- Agradecemos a Deus pela catástrofe natural.

- Você pode se manifestar assim sobre este local.

- Isto é estranho - disse Maria calmamente quando alcançaram o final da ruela. - É como se eles nos odiassem por estarmos aqui, e fizessem tudo que está em seu poder para impedir-nos. Demorou uma era geológica para Maurice conseguir um ventilador centrífugo aqui dentro para limpar o túnel. Mas, na informação à imprensa, Maurice é uma grande estrela. Ele tem toda a documentação necessária aqui. Então, quando entramos, é como se eles realmente quisessem que encontrássemos algo, mas apenas o suficiente para eles poderem fechar todo o espaço novamente durante um bom tempo.

- E agora estamos quase chegando nesse estágio - disse Hiebermeyer. - Eu estou convencido de que esta é a última vez que nos deixarão entrar. Vocês verão a razão disso dentro de poucos minutos. Muito bem. Aqui vai. Comportem-se adequadamente. - Ele os conduziu ao redor de uma esquina para dentro de uma valeta profunda, ao ar livre, como o buraco para a fundação de uma grande casa. As paredes eram de lama vulcânica cinza, idêntica à dos terrenos de Herculano, e eles podiam ver antigas paredes incompletas de alvenaria e uma curiosa coluna romana se salientando. Meia dúzia de operários e uma mulher, com uma prancheta para anotações, estavam agrupados em torno de algumas ferramentas e colocando tábuas na parede mais distante do buraco, e mais dois guardas de segurança estavam andando, parando com freqüência, e fumando em um outro canto. Os guardas agarraram os canos de suas submetralhadoras e olharam com suspeita para eles. Hiebermeyer deu-lhes um aceno amigável e prosseguiu levando seus companheiros para atravessar rapidamente o chão do buraco. - Os guardas estão aqui para impedir que o local seja saqueado durante a noite.

- Isto é uma piada - disse Costas. - Aqueles macacos parecem que foram recrutados na máfia local.

- Fale baixo - disse Maria insistentemente. - Há alguma autoridade por trás disso tudo que mantém até os guardas sob controle, e eu não acho que seja a máfia. - Ela tomou a dianteira, seguindo seu caminho ao redor dos pilares formados por antiga arte de alvenaria em direção a uma estrutura de madeira diante do outro lado do buraco, que evidentemente escondia uma espécie de via de acesso. Todos os operários olharam rapidamente para eles enquanto passavam, mas a mulher os ignorou deliberadamente.

- Ela é o nosso anjo protetor junto à superintendência - murmurou Hiebermeyer.

- Sem conhecê-la nem cumprimentar? - perguntou Costas.

- Sem chance. Ela tem ordens estritas para não confraternizar com o inimigo.

- Doutora Elizabeth D’Agostino - murmurou Jack. - Ela estava em Roma quando tivemos que pedir ao Vaticano para nos deixar entrar na câmara secreta do Arco de Tito.

- É ela mesma - sussurrou Hiebermeyer. - Trabalha para a agência nacional de arqueologia, não apenas para a superintendência local. Conhece o seu assunto, mas alguém definitivamente lhe deu ordem de não falar.

- Sua amiga, Jack? - perguntou Costas.

- Tivemos um caso. - Ele deu uma olhadela para Maria, depois se voltou rapidamente para Hiebermeyer. - Ela se junta a vocês dentro do túnel?

- Oficialmente não. Eles têm medo de que o túnel desmorone. Esta é a razão oficial que utilizam para se recusar a autorizar uma escavação completa. A abertura de qualquer outro túnel aumenta o risco de desmoronamento, ameaçando a moderna cidade que está acima. É melhor selar o túnel novamente por mais duzentos anos.

- E extra-oficialmente?

- Ontem, assim que achamos o que eles queriam, ela e aqueles operários entraram dentro do túnel com a rapidez de um tiro. Imagino que eles tentaram retirar o que encontramos enquanto estivemos ausentes. Mas ela não estava conosco quando prosseguimos adiante no túnel, e vocês logo verão por que eles não tentaram sozinhos. - Hiebermeyer puxou a fechadura da estrutura de madeira, depois fez um gesto com a mão para um dos guardas. - Temos que esperar que o guarda a abra - ele resmungou. - Outro pequeno ritual. - O guarda o viu, mas propositalmente continuou conversando com o outro guarda, sem fazer nada. Um operário deu partida numa rede elétrica, colocando-os fora do alcance de voz. - Os guardas sabem perfeitamente bem o que eu quero. E tudo acontece em seu devido tempo.

- Bem-vindos à Vila dos Papyri - disse Costas tristemente.

- Não pensei que isto iria ser tão ruim - murmurou Jack.

- Há alguns arqueólogos excelentes aqui, e tenho alguns amigos na superintendência - disse Hiebermeyer. - Eles fazem o que podem. Mas têm de combater o sistema. Alguns acabam progredindo dentro do próprio sistema, sendo sugados por ele. Outros caem e ficam à margem, são eliminados.

- Você quer dizer são afastados? - perguntou Costas com voz rouca. - Eles realmente fazem isso aqui?

- Usualmente não é tão dramático, outras vezes sim, como uma colisão de carros ou um acidente de barco. Comumente é algo mais mundano. Ameaças, suborno, intimidação, falsificação de registros financeiros pessoais. As pessoas podem ser facilmente derrubadas neste lugar, quando são honestas.

- Quando são honestas - repetiu Costas, sacudindo a cabeça.

- Mas há algumas pessoas boas que alcançam o topo e que se recusam a ser intimidadas - disse Hiebermeyer. - A atual superintendente é uma delas. Nós não estaríamos aqui se ela não tivesse nos dado a autorização, apesar de todo tipo de pressão. Não é preciso dizer que ela tem guarda-costas permanentes, mas isto não é incomum para os altos oficiais em Nápoles.

- Ainda não compreendo o que a Máfia poderia querer deste lugar - disse Costas.

- Nunca fica claro. Eu nem tenho certeza ainda de que a Máfia está envolvida. Você nunca sabe ao certo. Ninguém parece saber. Só precisamos assumir que é assim. Não se trata apenas do comércio de antiguidades roubadas, e podemos ter certeza de que isto acontece aqui. Há também uma grande quantidade de dinheiro ligado ao turismo arqueológico.

- Falando de arqueologia, do que se trata aqui? - perguntou Costas.

- Tudo começou em 1750 - disse Hiebermeyer, subitamente animado. - Um engenheiro do exército suíço chamado Karl Weber assumiu o comando das escavações em Herculano. Algumas semanas mais tarde fizeram uma descoberta enterrada profundamente, um chão de mármore, provavelmente bem no lugar em que nós estamos agora. Possivelmente eles abriram túneis por todo este lugar, e Weber percebeu que tinham descoberto uma enorme vila, muito maior do que tudo que haviam visto. Ela estava arrebentada e saqueada, estátuas, mosaicos, qualquer coisa. Depois começaram a encontrar manuscritos carbonizados. Não perceberam o que eram, e alguns escavadores até os levaram embora e os usaram para acender o fogo. Depois se deram conta de que eram papiros. Por fim, a maioria dos que estavam legíveis foram interpretados como fazendo parte de uma biblioteca grega de um obscuro filósofo chamado Filodemo.

- Provavelmente ele era protegido pelo rico proprietário desta casa - disse Jack. - Uma espécie de mascote filósofo. Se também havia ou não uma biblioteca em latim, essa sempre foi a grande questão.

- E o túnel, este onde vamos entrar, revelado pelo terremoto?

- Este é um dos primeiros túneis, que leva para uma área da vila onde a biblioteca foi encontrada. Ela foi selada quando Weber ainda estava no comando.

- Você tem alguma idéia do motivo?

- É para descobrir isto que estamos aqui.

- Tem alguma idéia de quem era o proprietário deste lugar? - perguntou Costas.

- Esta é a beleza do período que precedeu a erupção - replicou Jack. - Conhecemos uma grande quantidade de nomes dos aristocratas pelos historiadores romanos como Tácito, Suetônio, Plínio e meia dúzia de outros. Achamos que esta vila era propriedade de um homem chamado Calpúrnio Piso, de uma proeminente família romana. Um busto dele de bronze foi encontrado em Herculano, e tudo dentro da vila é consistente com o que conhecemos sobre seus interesses e gostos.

- Um sinal para seu primeiro divertimento - disse Hiebermeyer, sorrindo.

- Foi isto o que alertou a superintendência sobre a conseqüência do terremoto neste lugar. Parte da parede de lama solidificada desmoronou, naquele lado. Podemos ainda ir olhá-la agora enquanto o nosso guarda termina seu cigarro.

Caminharam passando pelo grupo de operários que agora estavam retirando pedaços grossos de conglomerado de rocha, e chegaram a uma abertura onde uma parte da parede escavada havia caído. A mulher que usava uma carteira de identificação da superintendência e com um capacete protetor como o usado por operários de construção estava apenas alguns metros adiante com uma prancheta para anotações, falando rapidamente ao celular. Jack tentou atrair o seu olhar, mas falhou. - Levará meses até que eles limpem tudo isso - Hiebermeyer resmungou para Jack, enquanto escolhiam cuidadosamente seu caminho por entre o entulho.

- Encontrarão alguma razão para um retardamento. Alguém importante, realmente importante, quer que este local seja fechado, e eu acho que eles vão conseguir.

- Não se pudermos impedir - murmurou Jack.

- Existem três forças poderosas nesta região - continuou Hiebermeyer calmamente, secando o suor da testa. - A primeira é o vulcão. A segunda é a Máfia, o crime organizado.

- E a terceira é a Igreja - disse Jack.

- Correto.

- É uma mistura bastante volátil - disse Costas pesadamente, depois tossiu quando viu a mulher com a prancheta olhar para eles.

- Isto faz com que a arqueologia no Egito seja algo muito fácil - murmurou Hiebermeyer. - Algumas vezes eu penso que eles estão desejando uma outra erupção para selar este lugar para sempre. A enorme perda de vidas que resultaria disso, a destruição desses locais e toda a arqueologia e a perda do dinheiro de turistas não seria nada quando comparado ao perigo representado pelo que pode ser encontrado aqui. Eu não sei o que poderia ser, mas alguém tem medo de alguma coisa. Acho que alguém poderoso dentro da Igreja está preocupado com alguma grande revelação, algum antigo documento que poderia arruinar gradativamente sua autoridade. Lembrem-se de quanta obstrução houve quando os Manuscritos do Mar Morto foram revelados em Israel. Um outro fluxo piroclástico do Vesúvio eliminaria a ameaça aqui para sempre.

- Vamos esperar que o que você encontrou seja o suficiente para manter a porta aberta antes que isto aconteça.

- Você vai ficar surpreso - sussurrou Hiebermeyer, olhando intensamente para ele. - Com o que eu encontrei. Creia-me. - Chegaram perto de uma mesa coberta com equipamentos de segurança, e ele se virou e disse em voz alta. - Vestir capacetes protetores. Regras de segurança e de saúde.

- Eles têm estas coisas em Nápoles? - disse Costas propositalmente. A mulher que segurava a prancheta deu mais uma olhada ao redor, e Jack lançou para Costas um olhar de advertência. Ele colocou um capacete laranja, seguido pelos outros. Pararam juntos debaixo de uma saliência dentro de uma cavidade com cerca de cinco metros de profundidade, diminuindo na altura até que, no ponto onde Maria se encontrava, do outro lado, ela era forçada a se agachar. Costas se arrastou para dentro ao lado de Jack e pressionou a mão na superfície cinzenta irregular acima deles.

- Você percebe o que quero dizer? - perguntou Jack. - É duro como rocha.

- Deve ter sido um pesadelo escavar aqui.

- Chegamos. - O capacete de Hiebermeyer era muito grande, e fazia suas orelhas se projetar quando ele pressionava a cabeça contra o teto. Costas tentou não olhar para ele e concentrou-se na geologia, voltando a estar ao lado de Jack de modo que ficaram de frente para o mesmo caminho. Emergindo da lama solidificada na frente deles havia uma placa polida de pedra não lavrada, com veios azuis e verdes visíveis na superfície branca polida.

- Cipollino - murmurou Jack, batendo de maneira apreciativa na superfície. - Mármore de Euboia, da Grécia, Muito bonito. Não pouparam gastos nesta vila.

Hiebermeyer ligou a headlamp em seu capacete, e imediatamente eles puderam ver que a placa estava coberta com uma inscrição. Era formada por três linhas, letras maiúsculas brilhantes profundamente esculpidas dentro do mármore.

 

           HBOYAHKAIOAHMO∑AEYKIONKAAIIOPNION

           AEYKIOY YION IIEI∑ΩNA

           YONAYTOKPATOPAKAIIIATPΩNATH∑TIOAEΩ∑

 

- É uma inscrição grega! - exclamou Costas.

- Estes tipos de inscrições eram altamente utilizados na época - disse Hiebermeyer. - Também eram encontradas no Egito, desde a época anterior aos romanos, quando os gregos governavam. O conselho e o povo reverenciam Leukios Kalpornios Peison, o filho de Leukios, o governador e patrono da cidade.

- Governador e patrono - Costas assobiou. - Será que era o chefe da máfia local?

Jack sorriu. - Eu lembro disso. Há uma inscrição idêntica na Grécia. Calpúrnio Piso era o governador romano na ilha de Samotrácia no mar Egeu. Ele deve ter trazido isto de volta como uma lembrança.

- Juntamente com um navio carregado de estátuas e outras obras de arte - murmurou Maria. - Maurice me mostrou o material que encontraram aqui no século XVIII, e que está no museu de Nápoles. É inacreditável.

- Este Calpúrnio Piso, em particular, era provavelmente o pai ou o avô daquele sobre quem mais sabemos, que viveu na época dos imperadores Cláudio e Nero - disse Hiebermeyer. - Esse Calpúrnio parece ter sido especialmente leal a Cláudio, mas armou uma conspiração contra Nero que fracassou. Piso se retirou para sua casa, talvez esta mesma onde estamos, onde cortou suas veias e sangrou até a morte. Isto aconteceu no ano 65 d.C., quatorze anos depois da morte de Cláudio e quatorze anos antes de o Vesúvio entrar em erupção. Não sabemos quem era o proprietário da vila na época da erupção, mas provavelmente era um outro membro da família ou esta inscrição não estaria ainda aqui. Talvez um sobrinho, um primo, alguém que escapou ao expurgo efetuado por Nero que a família sofreu, em seguida à tentativa de assassinato.

- Então, isto encerra o assunto - disse Jack olhando para Hiebermeyer. - Esta foi realmente a casa de Calpúrnio Piso. Outro pequeno avanço para a arqueologia. Parabéns, Maurice.

Saíram ao ar livre de novo. Hiebermeyer tirou o capacete protetor e virou subitamente a cabeça para a presença que apareceu atrás dos cimos dos telhados. - Não me congratule, Jack. Foi o vulcão que fez isso, não eu. Esta inscrição foi revelada depois do terremoto. Foi o que alertou as autoridades para o que mais poderia ter sido denunciado. Então, eles viram a entrada do túnel.

- Para mim, isto aqui em volta parece ser mais grego que romano - disse Costas, limpando a poeira das mãos. - Eu não fazia idéia.

- Há camadas aqui - disse Jack. - Primeiro a dos gregos que colonizaram a baía de Nápoles, depois a dos romanos que redescobriram a Grécia quando eles a reconquistaram. Os generais romanos na Grécia saquearam todas as grandes obras de lugares como Delfos e Olímpia, e uma grande quantidade de arte grega começa a aparecer em Roma, com freqüência colocadas em monumentos romanos. Depois, opulentos colecionadores particulares como Calpúrnio Piso trazem de volta o que acumularam, algumas obras-primas, mas sobretudo obras menores, o que foi deixado. Depois, na época de que estamos falando, o primeiro período imperial, os artesãos gregos estão produzindo artigos especificamente para o mercado romano, assim como os oleiros chineses ou os que produziam móveis indianos os faziam para o gosto ocidental no século XIX. É por isso que em Pompéia e Herculano você vê, principalmente, objetos de arte à moda grega, mais estilo do que substância.

- Eu olho para uma escultura - disse Costas com determinação. - Eu gosto dela ou não, e não ligo para a etiqueta.

- Muito razoável - sorriu Jack. - O tipo mais confiável de especialista. Mas você realmente tem que conhecer o contexto aqui, e nisto consiste a beleza desses lugares. Você pode ver como os romanos usam sua arte, como eles a apreciam.

Para eles não importa se possuem um antigo mestre grego ou uma excelente reprodução, porque na verdade trata-se apenas de decoração. O que de fato importava para eles eram os retratos de seus ancestrais, imagens que personificavam as virtudes que eles tanto admiravam, que enfatizavam a continuidade da família. Os quadros eram mantidos separados, em uma sala privada, e eram com freqüência de cera e madeira, de modo que não subsistiram ao tempo. Os romanos tiveram muitas publicações desfavoráveis porque os historiadores de arte do período vitoriano, que glorificaram a Grécia clássica, viram principalmente coleções de esculturas antigas tiradas de seu contexto e alinhadas em galerias e museus. E parecem revelar um julgamento indiscriminado, mau gosto e vulgaridade. Quando chegamos aqui, podemos ver que nada está mais afastado da verdade. Ao contrário, foram os gregos deste período que se sobressaíram.

- O que nos aproxima muito nitidamente dos motivos pelos quais estamos aqui - sorriu Hiebermeyer, colocando novamente o seu capacete muito grande.

- Somos todos ouvidos - disse Costas, com o rosto inexpressivo, olhando para Jack sem conseguir atrair o olhar deste.

Eles observaram quando o guarda finalmente se ergueu, andando a passo lento até a entrada de madeira e fazendo uma grande exibição para destrancá-la. - A maior biblioteca perdida da Antiguidade - disse Hiebermeyer baixinho. - E um dos maiores buracos negros na arqueologia. Até agora.

 

Jack agachou-se atrás de Hiebermeyer na entrada do túnel dentro da antiga vila. A temperatura já estava mais fria, um alívio para o sol que queimava do lado de fora. Imediatamente na frente deles havia uma centrífuga com a largura de um metro com um motor elétrico, e atrás dela um tubo flexível e ondulado prosseguia desde a temporária estrutura de madeira na frente da entrada até uma serpentina de tubos e uma passagem elevada situada numa parede acima do local.

- Depois que saí daqui ontem, eu falei exageradamente sobre o elemento perigoso, só para me assegurar de que não tentariam entrar aqui - disse Hiebermeyer, mas realmente há gases tóxicos armazenados aqui, metano, carbono, monóxido. A maior parte deles é resultante de material orgânico que está começando a se decompor, devido à introdução de maior quantidade de oxigênio depois que o túnel foi aberto.

- Não há corpos - disse Costas esperançoso.

- Neste local, ou há apenas esqueletos ou eles estão incinerados - replicou Hiebermeyer. - Usualmente - acrescentou.

- Quanto tempo temos que esperar? - perguntou Maria.

- Vamos aguardar alguns minutos mais, depois traga o ventilador para dentro e reative-o quando alcançarmos a grade.

Jack fez uma pausa. - Acho que esta é a primeira vez que escavamos juntos desde Cartago. - Voltou-se para Costas. - Nós três estudávamos juntos, e nossa primeira experiência foi partilhada com uma equipe da UNESCO em Cartago. Mergulhei num antigo ancoradouro, Maurice desapareceu dentro de um buraco no chão e Maria registrou inscrições.

- Eu me sinto o estranho aqui - disse Costas.

- Acho que você pode juntar-se ao nosso clube. - Jack cutucou Hiebermeyer, que olhou impassível para Costas através de seus óculos com lentes de cristal, o cabelo emaranhado e o rosto sujo com fuligem. Jack escondeu um sorriso. - Maurice encontrou os restos de um grande forno de bronze exatamente como ele foi descrito pelos romanos, essa é uma primeira evidência definitiva de sacrifício de crianças em Cartago. Foi fantástico.

- Foi fantástico - repetiu Costas debilmente. - Sacrifício de crianças. Eu achei que havíamos deixado tudo isto para trás com os toltecas no México.

- O passado, por vezes, é um lugar habitado por coisas bastante repugnantes - disse Jack de maneira seca. - Você só tem que pegar o que consegue, ir com o fluxo.

- Ir com o fluxo - repetiu Costas. - Sim, está certo. - Ele olhou para o local escurecido atrás do porão da entrada na frente deles, depois de novo para Jack. - Então, quais prazeres este local guarda para nós?

- Você já esteve na Vila Getty?

- A Vila Getty. Em Malibu, Califórnia. Sim - disse Costas vagamente. - Eu me lembro de ter ido com a escola. Desenho clássico, grande quantidade de estátuas. Um grande tanque central, excelente para remover impurezas das superfícies de moedas.

Hiebermeyer ergueu os olhos, e Jack sorriu novamente. - Bem, este local foi a base para o projeto da Vila Getty.

Costas olhou de modo ambíguo para o buraco negro na frente deles. - Não brinque.

- Muito bem, vamos entrar - disse Hiebermeyer. Ele ergueu o ventilador centrífugo e segurou-o à frente, puxando a mangueira de exaustão atrás de si. Jack e os outros o seguiram e, depois de alguns metros estavam completamente cercados pelo túnel. Esse tinha a largura de cerca de um braço e era suficientemente alto para permitir que Jack ficasse ereto. A superfície era parecida com a de uma antiga mina para a extração de minérios, coberta com marcas de talhadeiras e de picaretas. Jack sentiu como se estivessem voltando para o século XVIII, olhando para o local através dos olhos dos primeiros que abriram o túnel, que tinham talhado seu caminho na lama dura como rocha, sob o olhar do engenheiro Karl Weber quando ele tentou descobrir o sentido do labirinto que seus homens escavavam buscando pilhagem. Jack seguiu Hiebermeyer que virou uma esquina, e o túnel ficou mais escuro. - Ainda não tem luz elétrica - disse Hiebermeyer pesaroso. - Mas mantenha sua headlamp desligada por um instante. Muito bem, você pode ligá-la agora.

Jack ativou seu feixe de luz e focalizou adiante. Ele sufocou um suspiro e tropeçou levemente quando se adiantou. A cabeça de Anúbis estava olhando fixamente para fora da lateral do túnel bem na frente dele, as orelhas negras eretas e o focinho desafiador exatamente como Hiebermeyer e Maria o tinham visto pela primeira vez no dia anterior.

- Veja seu segundo divertimento. - Hiebermeyer virou-se para trás, depois de colocar o ventilador centrífugo a sua frente. - Esta é a descoberta-chave, eu acho, o argumento decisivo para a superintendência. É exatamente o que eles querem. Algo espetacular. Você pode ver que eles até já esvaziaram o nicho ao redor da estátua, tudo está pronto para retirá-la mais tarde. Amanhã de manhã, ela estará em todas as primeiras páginas dos jornais. Um pretexto para fechar este túnel. Permanentemente.

- Assombroso. - Jack ainda estava intimidado pela imagem, e colocou cuidadosamente a sua mão no focinho. - Eles encontraram uma destas estátuas na tumba do faraó Tutankamon - ele disse para Costas, que estava atrás.

- Pelo menos aquele estava no lugar ao qual pertence, no Egito - murmurou Hiebermeyer.

- É o acolhedor das almas no inferno, e protetor delas em sua jornada - Maria disse atrás dele. - Maurice me contou algo assim.

- Eu não gosto do que estou ouvindo - resmungou Costas. - Pensei que você disse que não havia corpos mais adiante.

Jack colocou o capacete de viés e olhou além do focinho de Anúbis, para dentro da escuridão. Ele sentiu como se o século XVIII tivesse dado lugar agora para um passado muito mais antigo, saindo com ímpeto através das paredes, como a cabeça de Anúbis. Também teve uma sensação de perigo. Poucos metros além da estátua havia uma grade de metal temporária no outro lado do túnel que trazia a palavra PERICOLO e o símbolo da morte, um crânio atravessado por ossos longos. Hiebermeyer destrancou uma pequena porta através da grade e puxou o ventilador centrífugo para dentro. Pressionou um botão, e uma luz vermelha começou a lampejar, acompanhada por um zumbido eletrônico baixo.

- Este é um bom começo - ele disse. - Acredite ou não, o cabo condutor da extensão verdadeiramente funciona. Conseguimos eletricidade. - Ele examinou ama informação proporcionada por um computador na parte de trás do ventilador. - Em cerca de dez minutos, isto deverá ter limpado o túnel à frente até onde nós fomos ontem, até o ponto em que o túnel termina em uma outra parede. Quando a luz se tornar verde, nós o levaremos adiante até que o sensor solte lampejos vermelhos novamente. - Olhou para Jack e falou baixinho. - Eu poderia ler posto isto para funcionar antes da sua chegada, mas não quis que ninguém e a tentação de vir aqui dentro sorrateiramente para roubar. Nossa amiga superintendente parece perfeitamente feliz com Anúbis. De fato, ela está obcecada por ele.

- Isto faz sentido - replicou Jack também baixinho. - Elizabeth era uma egiptóloga apaixonada quando eu a conheci. Ela nunca se interessou realmente este lugar, arqueologia romana, mas alguma coisa a trouxe de volta para cá. Relacionamentos familiares.

- Você parece conhecê-la bem - murmurou Maria.

- Fomos amigos durante algum tempo. Mas não somos mais, parece.

Hiebermeyer empurrou os óculos para cima. - O final da linha. No que concerne a eles, a investigação alcançou seu resultado, e o que estamos fazendo agora é um assunto puramente secundário, um reconhecimento, antes que a coisa toda seja considerada arriscada e selada para sempre. No momento, estou feliz em concordar com isso.

- Quão arriscado isto é exatamente? - perguntou Costas.

- Bem, o túnel não está escorado, e há o risco de um outro tremor de terra. O local está repleto de gás tóxico. O Vesúvio pode entrar em erupção novamente. Nós podemos ser esmagados, asfixiados, incinerados.

- Arqueologia - suspirou Costas. - Imaginem, eu rejeitei uma posição na Cal Tech em troca disso tudo. Uma casa na praia, surfe, martinis tirados do barril.

- Também podemos ser metralhados pela máfia - acrescentou Maria.

- Formidável. Isto é mais do que é realmente necessário. - Costas suspirou, depois olhou de novo para Anúbis. - De todo jeito, eu acho que no período romano este material egípcio estava todo ultrapassado - ele disse. - Eu explico, o que vocês estavam dizendo sobre aquele sujeito Calpúrnio Piso. Os acessórios de estilo. Tudo tinha que ser grego.

- Um colecionador que aprecia as obras de Andy Warhol não joga fora necessariamente sua coleção de família de velhos mestres - disse Maria.

- De fato, ter obras do Egito antigo foi a grande última moda - disse Jack. - O Egito foi o último dos grandes e antigos lugares a ser anexado por Roma, depois da derrota de Cleópatra em 31 a.C. Muitos dos obeliscos encontrados em Roma hoje em dia, aquele na Praça de São Pedro, vieram de navios enviados pelos primeiros imperadores. Foi exatamente como uma repetição da pilhagem da Grécia. Cada um queria ter uma peça da batalha.

- Bárbaros - Hiebermeyer resmungou. Naquele momento, o ventilador centrífugo mostrou lampejos verdes e o ventilador se deteve. Hiebermeyer fez um gesto para que avançassem, e rastejou para passar pela grade. Jack e Costas pegaram o tubo ondulado e o seguiram, com Maria logo atrás deles. À frente, o caminho estreito não estava iluminado, a não ser pelos feixes de luz oscilantes de suas headlamps. Jack havia se perguntado quando iria ter aquela mesma impressão de novo, e foi naquele momento, dentro de um túnel, que ele repentinamente se sentiu removido do mundo exterior, quando o avanço à frente parecia estar além de sua vontade, quando o próprio túnel parecia puxá-lo adiante. Era como se o ar tóxico tivesse se derramado ao redor deles e preenchido o túnel atrás, encerrando-os em uma cápsula que poderia implodir a qualquer momento, sugando-os para dentro do redemoinho do passado. Continuaram se empurrando à frente, puxando com barulho o tubo atrás deles. O túnel era mais comprido do que esperara, penetrando profundamente nos recônditos do terreno da vila, bem além dos túneis que ele tinha visto no plano de Weber. Aproximadamente trinta metros adiante, chegaram ao fim do túnel, na fenda escura na parede onde Maria e Hiebermeyer tinham parado no dia anterior. Jack podia ver nitidamente as marcas de picareta feitas no século XVIII, e olhou-as atentamente. Algumas das marcas foram feitas em pedra e não em lama solidificada. O túnel claramente terminava em uma espécie de estrutura, uma via de acesso feita de pedra. Hiebermeyer ergueu o ventilador e o colocou dentro da fenda ativando-o novamente. - Ele ainda está mostrando luz verde, mas de todo modo vou esperar mais cinco minutos. É melhor estar seguro do que lamentar depois. - Ele olhou para Jack. - Foi até aqui que avançamos antes de eu sair e telefonar para você. Depois de eu dar uma olhada dentro.

- Mal posso esperar para ver. - Jack voltou-se e olhou atentamente para o corredor atrás, onde podiam distinguir uma luz elétrica oscilante e ouvir vozes, depois o som de um poderoso equipamento sendo testado. - Alguém vai se juntar a nós?

- Eu duvido - disse Hiebermeyer. - Eles estão alargando o corredor para retirar Anúbis. Até mesmo a nossa dama guardiã não passaria por aquela grade.

- Quem sabe eles acham que o lugar é amaldiçoado - murmurou Costas. -Talvez Anúbis represente isso para eles.

- Se houvesse uma maldição, eles nos contariam acerca dela - disse Hiebermeyer. - Colocaram diante de nós todos os outros obstáculos para impedir a escavação deste local. Nós fazemos parte do jogo deles. Um gesto simbólico, de maneira que possam dizer que fizeram tudo o que podiam, mas podem dizer também que o lugar é simplesmente demasiado perigoso.

Como se acontecesse exatamente no momento certo, houve um tremor e o ar encheu-se de poeira. O tremor desapareceu tão rapidamente como veio, mas não havia dúvida sobre a causa. Hiebermeyer tirou seu oscilador cósmico e pressionou-o contra a parede lateral. Fez-se silêncio por um momento, depois ouviu-se uma tosse baixa de Maria, e todos eles colocaram suas máscaras contra poeira.

- Talvez eles tenham razão - disse Costas. - Há alguma coisa mais para ver, Maurice? Quero dizer, algo realmente importante? Eu estou pronto para ir embora.

- É muito tarde para voltar para trás agora - disse Hiebermeyer, olhando para Jack. - Odeio ter que admitir, mas estou começando a entender aqueles que abriam túneis no século XVIII. Sei de que lugar eles vinham. Você não quer demorar-se muito tempo aqui embaixo. Não acho que estamos aqui para uma escavação meticulosa. Não exatamente para roubo e pilhagem, mas para algo parecido com uma incursão arqueológica.

- Eu o estou ouvindo - disse Jack.

- Enquanto esperamos, qual é a questão sobre o ópio, a propósito?

- Você não vai acreditar no que encontramos no navio naufragado.

Naquele momento, ocorreu um resmungo e uma maldição. - Acho que conseguimos algo aqui. - Costas tinha se introduzido na frente dos outros e agora emoldurava um buraco imperfeito no fim do túnel. - Acho que pode ser uma outra estátua. - Os outros rapidamente se aproximaram atrás dele, seus feixes de luz convergindo para o lugar onde o choque sísmico provocara o desmoronamento de uma parte da parede ao lado da fenda. Dentro da cavidade havia uma forma humana em tamanho natural, deitada sobre a barriga, um braço estendido e o outro dobrado debaixo do peito, as pernas estendidas para trás, em direção à entrada. Ela parecia estar despida, mas a superfície estava obscurecida por uma camada carbonizada, o que tornava difícil determinar o material debaixo dela.

- Isto deve ter acabado de ser revelado - disse Hiebermeyer baixinho. - Por aquele tremor que ocorreu há pouco. Esta forma não estava visível ontem.

Jack se ajoelhou e examinou a cabeça, depois tentou enxergar através de um pequeno buraco logo abaixo de uma orelha. Pôde discernir que a forma era oca, como a de uma estátua de bronze, mas não havia metal visível, nem mesmo uma camada de corrosão. Pensou durante um momento, depois olhou de novo. - Bem, eu vou ser condenado - ele murmurou.

- O que é? - perguntou Costas.

- Você lembra que lhe contei sobre os corpos em Pompéia, formas preservadas como moldes ocos na cinza solidificada?

Costas pareceu consternado. - Você não está dizendo que este é um corpo como aqueles. - Ele empurrou-se para trás.

- Só que não está preservado em cinzas - disse Hiebermeyer. Ele tinha vindo para perto de Jack e tirado sua própria espátula velha e gasta, usando-a para pegar uma pequena amostra do material escurecido do lado do corpo. - Isto é estranho. Parece estar preservado em uma espécie de material carbonizado, alguma coisa fibrosa.

- Meu Deus - disse Jack. - Você tem razão. Eu posso ver as fibras cruzadas. Talvez alguma roupa. - Olhou atentamente para Hiebermeyer, que olhou de volta para ele de maneira sugestiva. Jack pensou novamente, e sentiu seu queixo cair. - Não é roupa - ele sussurrou. - É papiro.

- Espere até ver o que tem dentro - sussurrou Hiebermeyer em retorno, dirigindo sua espátula para a fenda na parede diante deles.

- Estes eram manuscritos? - murmurou Maria. - Este homem estava coberto com manuscritos escritos em papiro?

- Eles estavam caindo de um lugar que fica atrás de nós - replicou Hiebermeyer. - É como se este homem tivesse caído dentro de um local coberto de manuscritos, e eles caíram deste outro lugar por cima dele quando a explosão ocorreu. Quando encontraram a biblioteca de Filodemo no século XVIII, uma grande quantidade de manuscritos estava espalhada ao redor, como se alguém estivesse tentando escapar com eles.

- Ou estava procurando no meio deles, buscando freneticamente por algo precioso para recuperar antes de escapar - disse Maria.

- Vamos esperar que estes livros sejam apenas mais alguns dos manuscritos gregos de Filodemo - murmurou Jack - e não a biblioteca latina perdida.

Costas estendeu a mão e cuidadosamente tocou no ombro do corpo. Instantaneamente, a forma inteira bruxuleou e desapareceu numa lufada de carvão. Seu dedo foi deixado suspenso no ar, e por um momento fez-se silêncio.

- Uau! - ele disse.

Hiebermeyer gemeu.

- Não se preocupe - suspirou Jack. - Um momento Agamenon.

- Hein?

- Quando Heinrich Schliemann escavou o terreno arqueológico da Idade do Bronze em Micenas, ele levantou uma máscara mortuária de ouro de uma sepultura real e pretendeu ter visto o rosto do rei Agamenon. Talvez tenha realmente visto algo, tenha tido uma impressão fugaz do que estava debaixo da máscara. Você lembra da Atlântida, a forma espectral do touro no altar? Algumas vezes você verdadeiramente chega a ver fantasmas.

- E veja o que está debaixo - disse Hiebermeyer, repentinamente excitado. - É muito mais interessante, de um ponto de vista judicial. - Ele se curvou aproximando-se do lugar onde a cabeça havia estado e pegou um removedor para limpar as lentes da máquina fotográfica, retirando cuidadosamente a poeira. Uma outra forma estava emergindo por baixo, cinzenta e escurecida. - Este é o crânio - ele anunciou. - Ele também está parcialmente carbonizado, mas parece que se conservou. E posso ver as vértebras, as costelas. - Hiebermeyer colocou o dedo dentro de uma massa escura e pegajosa dentro do crânio, depois a cheirou, primeiro com cautela, depois profundamente. De repente se esforçou para vomitar, depois engoliu com dificuldade. - Assombroso - ele disse com voz rouca, esfregando o dedo contra a parede. - Nunca descobri algo assim dentro de uma múmia, e enfiei meu dedo em uma porção delas.

- O que é isto? - perguntou Costas. - Algum tipo de resina, de piche?

- Não exatamente. - Os óculos de Hiebermeyer tinham escorregado pelo nariz, e ele os empurrou para cima com o mesmo dedo, deixando uma faixa escura entre os olhos. Olhou para Costas, sorridente e excitado. - Quando o inferno atingiu este lugar, os manuscritos devem ter sido carbonizados instantaneamente, mas eles deviam conter alguma coisa, um material resinoso preservativo, o que fez com que a massa carbonizada formasse uma cobertura ao redor do corpo. Esta vedou a carne e impediu a entrada do oxigênio, de modo que ela não pôde incinerar-se. Em lugar disso, ela cozinhou.

- Foi cozinhado vivo - disse Maria.

- Ele quer dizer, que este sujeito derreteu - acrescentou Jack, olhando para Costas.

- Oh, não. - Costas encostou-se à parede oposta do túnel. - E você meteu o dedo na massa.

Hiebermeyer levantou o dedo novamente, e olhou atentamente para ele com um pouco de reverência. - Isto é fantástico. Provavelmente há um pouco de cérebro aí. Seria perfeito para uma análise de DNA.

Maria tinha pouco a pouco voltado para o lugar onde estiveram os pés do homem, olhando cuidadosamente, e depois se aproximou silenciosamente de Hiebermeyer e olhou dentro da caixa torácica. - Olhe! Ele estava usando um anel de ouro! - ela exclamou. Hiebermeyer seguiu o olhar dela, reconhecendo os ossos dos dedos que estavam contorcidos debaixo da caixa torácica como se o homem tivesse estado apertando o peito nos espasmos da morte. Ele pegou um mini-lanterna Maglite, e colocou o rosto bem em cima dos ossos. - Este é um anel sinete, para pressionar sobre a cera que sela documentos. Ele está parcialmente derretido dentro do osso, mas eu posso ver o desenho. É uma gravação de uma águia.

- É um anel de sinete imperial - disse Jack. - Este sujeito deve ter estado a serviço do imperador.

- Eu não tenho certeza se este corpo pertencia a um sujeito, precisamente - Hiebermeyer murmurou, pondo-se de joelhos com a mão no quadril. - Há algo estranho a respeito desse esqueleto. Decididamente estranho. O arredondado do rosto, áreas de estrutura óssea que se espera que sejam mais desenvolvidas em um homem e um alargamento extraordinário da região pélvica. Não é exatamente uma mulher, mas não está muito longe de ser. Estranho.

- Eles não tinham eunucos? - perguntou Costas.

- É um pensamento interessante - murmurou Jack. - No início do século IV d.C., o imperador Constantino, o Grande, cercou-se de eunucos, e os últimos imperadores bizantinos fizeram a mesma coisa. Eles achavam que os eunucos eram uma escolha melhor como secretários e funcionários de Estado, provavelmente menos competitivos e ambiciosos. Alguns estudiosos pensam que o ex-escravo de Cláudio, Narciso, era um eunuco. - Fez uma pausa por um momento, depois falou novamente, quase para si mesmo. - Mas não poder ser. Narciso foi morto quando Cláudio foi envenenado, em 54 d.C. Isto ocorreu quase um quarto de século antes da erupção do Vesúvio. Deve ter havido outros eunucos em volta. Toda esta região atraiu pessoas esquisitas, aberrações que vinham aqui para divertimento dos ricos, bem como aleijados e outros desafortunados que procuravam curar-se junto aos respiradouros de onde saíam gases de enxofre nos Campi Flegrei. Este é o outro lado da vida aqui durante o período romano, não é exatamente a imagem para turistas.

- Seja quem for e o que quer que tenha sido, ele pode ter terminado como um homem liberto imperial, mas certamente começou a vida como escravo. - Hiebermeyer deslocou-se até onde terminavam os pés do esqueleto, e depois voltou para perto do ventilador centrífugo exatamente no meio da via de acesso adiante deles. - Seus tornozelos mostram as contusões características causadas por correntes, curadas anos antes. Acho que era um homem idoso quando morreu, muito velho para este período, talvez com cerca de oitenta anos ou até mesmo noventa. Mas passou por um período bastante duro muito tempo antes, talvez quando criança.

- Ele foi acorrentado, depois castrado e chegou a isto - disse Costas, com os olhos cuidadosamente afastados da massa ensebada e negra debaixo do esqueleto. - Vamos esperar que os anos durante o intervalo entre os dois eventos não tenham sido muito ruins.

- O seu fim foi provavelmente muito rápido - disse Hiebermeyer, quebrando um pouco daquele material escuro em sua espátula e colocando-o dentro de um frasco pequeno de amostra. - Ao suportar o terrível choque da rajada forte e repentina de calor e em seguida ficar com o pulmão cheio, a pessoa morre. Ele deve ter tido apenas alguns poucos segundos de consciência.

- Deve ter sabido que algo ruim estava acontecendo - disse Costas, forçando-se a olhar de novo. - Acho que o vulcão já estava em erupção há horas.

- Sim, mas o fluxo piroclástico que varreu Herculano do mapa apareceu de lugar nenhum, precipitando-se repentinamente por aquela montanha em anéis de fogo mais rápidos do que qualquer coisa que Roma jamais vira. Antes dessa investida, a erupção deve ter parecido uma catástrofe aterradora, mas não necessariamente uma sentença de morte. Depois disso foi realmente o apocalipse. Ninguém teria escapado de Herculano com vida.

Jack começou a sentir o odor do lugar, não apenas o odor familiar de poeira e velhas tumbas, mas o cheiro de morte recente, o cheiro rançoso de sangue, o odor de medo animal. Por um instante, o túnel perdeu sua solidez e se tornou um redemoinho giratório de morte que havia enclausurado este homem, um lugar claustrofóbico, aterrorizante, que momentos antes tinha sido um santuário de beleza, uma expressão suntuosa de liberdade e confiança. O lugar inteiro parecia traumatizado, ainda tremendo no pós-choque quase dois mil anos atrás. Jack fechou os olhos brevemente, depois se aproximou silenciosamente atrás de Hiebermeyer dirigindo-se para a via de acesso adiante deles. Ele olhou para trás, para o lugar onde ainda podia ver o focinho de Anúbis, que se salientava da parede lateral e que perscrutava sem ver, olhando para a luz fraca atrás, quase invisível. Podia ouvir o barulho da perfuratriz trabalhando onde a entrada do túnel estava sendo alargada, mas ainda não havia ninguém para ver. Voltou-se para a fenda escura na parede adiante.

- Você está pronto para isto? - perguntou Hiebermeyer, desligando o ventilador. Agora não se escutava barulho à frente deles, apenas o silêncio da tumba, e até mesmo o barulho distante da perfuratriz havia parado. Jack olhou para o rosto encardido a poucos centímetros dele, o rosto de um homem que num piscar de olhos podia ter sido um menino. - Você se lembra de quando estávamos na escola, quando enchemos aquele celeiro com artefatos feitos em casa e depois o lacramos, fingindo que era a tumba do faraó Tutankamon? Eu era Howard Cárter, você era Lord Caernarvon.

- Não. - Hibermeyer sacudiu sua cabeça decididamente. - Foi ao contrário. Você era Caernarvon, eu era Cárter.

Jack sorriu, depois olhou à frente, o rosto coberto de excitação. - Certo. Vamos entrar.

 

Jack olhou cuidadosamente dentro da câmara oculta no final do túnel. De início, tudo que podia ver eram sombras, formas empoeiradas cinzentas, escuridão. Depois viu uma mesa, possivelmente uma mesa de pedra, e um certo tipo de estrutura de prateleiras na parede. Alguma coisa não estava certa. Depois, para seu espanto, percebeu o que era. Não havia cinza, nem lama solidificada.

- A câmara está perfeitamente preservada - ele sussurrou. Hiebermeyer ergueu o ventilador centrífugo alguns centímetros para frente dentro da câmara, e ele começou a lampejar vermelho de novo. Hiebermeyer cautelosamente lhes disse para permanecer atrás. - Esta sala é um milagre - ele replicou. - Existem outras salas em Herculano que escaparam da lama, do fluxo piroclástico. Ninguém entende realmente o que aconteceu, mas deve haver algum perito em computador da IMU que pode explicar isto. O fato extraordinário sobre esta câmara é que ela escapou também ao efeito fornalha. Isso pode ter tido algo a ver com a elevação, a câmara estava empoleirada no último andar da vila acima do nível do topo dos telhados da cidade, assumindo ares de superioridade em relação a ela. A rajada quente certamente se introduziu rapidamente e com força violenta em todas as outras partes da casa passando direto até a câmara superior, por cima daquele corpo na entrada. Mas ela deixou escapar esta câmara. Nós sempre soubemos que algo assim era possível em Herculano.

- Maurice, eu consigo ver manuscritos - disse Jack, com a voz tensa pela excitação. - Manuscritos danificados. Sem nenhuma dúvida. Em jarras, debaixo daquelas prateleiras.

- Foi isso que vi ontem - replicou Hiebermeyer, quase sussurrando. - Foi por isso que o chamei para cá. Agora você pode entender o que quero dizer. Isto realmente poderia ter se passado assim.

- Você pode imaginar o que pode estar contido nas jarras? - A voz de Jack estava rouca.

O ventilador parou de repente, e Hiebermeyer soltou uma imprecação em alemão. - Não agora. Por favor, Deus, não agora. - Ele inclinou-se sobre a máquina, e parecia estar rezando. - Eu peço profusamente perdão por tudo o que sempre disse ou pensei sobre Nápoles. Apenas mais cinco minutos. Por favor.

- Isto já aconteceu antes - murmurou Maria. - Havia uma rede elétrica manhosa em Ercolano. Os guardas não podiam ser incomodados para ligar o gerador de emergência, e nós tínhamos que sair apressados. Mas, agora, a superintendência está planejando usar perfuratriz elétrica ao redor da estátua de Anúbis, então há um pouco mais de incentivo para os guardas tomarem providências. Nós só precisamos parar de forçar o ventilador e esperar.

Jack olhou para o esconderijo escurecido com os manuscritos, quase incapaz de se conter. Fechou os olhos e respirou profundamente. Eles rastejaram para trás através da entrada até o ponto inicial. Costas estendeu a mão nas trevas perto da parede e pegou algo. - Examine isto - ele disse de maneira excitada. Segurou para cima o que tinha apanhado, e retirou a poeira. Era um disco de metal com cerca de dois centímetros e meio de diâmetro, verde-escuro e com uma figura gravada. - Parece um medalhão.

- Não é um medalhão - murmurou Hiebermeyer, olhando bem de perto. - É um sestércio de bronze, a maior base de metal indicativa do primeiro século d.C. Um pouco como uma moeda de um quarto de dólar americano.

- Ela também é o maior tipo de moeda romana, a melhor para gravar retratos. - Jack se aproximou mais de Costas. - Há algo visível?

- Nero! - exclamou Costas. - Eu consigo ler. O imperador Nero! - Passou a moeda para Jack, que olhou para ela com muita atenção, virando-a de um lado para outro sob a luz de sua lanterna. - Você está certo quanto ao nome, errado acerca do imperador - ele murmurou. - Eu estou olhando para o reverso, o lado de trás. Ele mostra NERO Cláudio DRUSO GERMÂNICO. Este é Druso, irmão do imperador Tibério. Nero era o nome de família. Druso era um dos generais romanos mais capazes, um homem decente e um herói do povo. Um verdadeiro guia no início do império, uma época de grandes promessas, mas também de grande perigo, um pouco como a América dos anos 1960, mas na época indivíduos como aqueles eram típicos daqueles períodos. Sua morte por envenenamento e depois o assassinato de seu filho Germânico foram como o assassinato de Keneddy, lançaram uma mortalha sobre toda a dinastia imperial inicial.

- Isso foi muito anterior ao nosso período - murmurou Hiebermeyer. - Druso foi assassinado em 10 a.C., durante o reino de Augusto, quase oitenta anos antes da erupção do Vesúvio.

Jack assentiu concordando, e continuou, olhando atentamente para a moeda. - A imagem no meio é a do arco triunfal em Roma, que tem em cima uma estátua de Druso montado a cavalo galopando entre troféus. Mas esta não é uma moeda de Druso. Ele nunca foi imperador. - Jack virou a moeda novamente. - Esta é uma moeda de seu outro filho, irmão de Germânico, aquele que sobreviveu à loucura de seu tio Tibério e seu sobrinho Calígula. Ela data de mais de cinqüenta anos depois da morte de Druso. A inscrição mostra TI CLAUDIUS CAESAR AVG PM TR P. Isto significa Tibério Cláudio César Augusto, Pontifex Maximus, Tribuna Potestas. O imperador Cláudio.

- Pobre Cláudio - murmurou Maria. - Cláudio, o aleijado.

- Esta é a caricatura - disse Jack. - Mas é um pouco parecida com o sentido que Shakespeare dá ao rei inglês Ricardo III, o corcunda. Cláudio era consideravelmente muito mais do que este apelido.

- Ele foi imperador de 41 a 54 d.C. - disse Hiebermeyer, olhando novamente para o ventilador centrífugo e verificando que ele ainda mostrava a luz vermelha. - Morreu em Roma um quarto de século antes da erupção do Vesúvio, provavelmente envenenado por sua esposa Messalina.

- Ele tinha má sorte com suas esposas - disse Jack. Seu único verdadeiro amor foi a prostituta Calpúrnia, mas ela também foi assassinada por volta da mesma época. - Jack fez uma pausa admirando a imagem novamente. - A cunhagem desta moeda de Cláudio sempre foi a minha favorita, uma das minhas moedas preferidas entre todas as de Roma. Ela é uma moeda rara, um retrato muito atraente. Olhe para este rosto, a sua expressão. Ele não está aleijado aqui, é um rosto bonitão, mas não há glorificação, nenhuma idealização. Podemos distinguir as feições características da dinastia Julius-Cláudio, a testa, as orelhas, aspectos herdados de seu tio-avô Augusto, e de Júlio César antes disso. Cláudio deve ter conhecido os retratos de seus ancestrais intimamente, e deve ter ficado orgulhoso ao olhar para este retrato de si mesmo, ao ver a dignidade que há nele. A fim de ver além de suas deformidades, de saber que ele compartilhava as feições de seus ancestrais venerados. Há inteligência também neste rosto, um anseio, mas também tristeza e dor. Um jovem homem com o rosto coberto de desapontamento, olhos mais velhos do que a sua idade.

- Provavelmente, ele teve paralisia - murmurou Hiebermeyer. - Paralisia cerebral, com alguns elementos espasmódicos. Não há cura, dificilmente existe qualquer tratamento paliativo a não ser copiosas quantidades de vinho.

- E o ópio? - Costas interrompeu subitamente. - A morfina? Hiebermeyer voltou-se e lançou a Costas um olhar cheio de piedade. – Nós estamos falando acerca do primeiro século d.C. Deixe a Nápoles moderna fora disso.

- Eu não estou brincando. Você escutou falar do que nós encontramos no navio naufragado?

- Mais tarde. - Jack olhou para Costas, e naquele momento o ventilador centrífugo recomeçou a funcionar.

- Falando da moderna Nápoles - murmurou Hiebermeyer. - Parece que alguém subornou o operador da rede elétrica para nos fornecer um pouco de eletricidade. Ou os guardas levantaram seus traseiros. Seja como for, nós podemos prosseguir. Como você diria. - As palavras soavam levemente absurdas no seu sotaque alemão, e Jack abafou um sorriso. Hiebermeyer empurrou os óculos para cima e lançou um outro olhar para Costas, dessa vez mais zombeteiro do que piedoso.

- Ei. Ele é um de nós afinal. - Costas devolveu o olhar com o rosto inexpressivo, depois olhou para Jack, em seguida de novo para Hiebermeyer. - Recebido e entendido.

Jack pressionou as costas contra a lateral recortada do túnel para deixar Maria passar. - Acho que está na hora da nossa especialista em manuscritos tomar a dianteira.

- Concordo com isso. - Hiebermeyer olhou de modo interrogador para Costas, que levantou o polegar com entusiasmo, depois falou seriamente. - De agora em diante, vamos tocar apenas no que for necessário. Os manuscritos em papiro que se encontram aí dentro podem estar extraordinariamente bem conservados, mas também podem estar frágeis. Mesmo nas tumbas mais secas no Egito, os papiros que não têm resina preservativa podem se desintegrar em pó com um toque. - Olhou intencionalmente para Costas. - Depois de todos os esforços que tivemos de fazer para obter das autoridades a permissão para entrar aqui, eu não quero ser o último em uma longa fila de investigadores que destroem mais do que recuperam deste local. Muito bem. O ventilador mostra a luz verde. Vamos em frente.

Alguns momentos mais tarde, Jack, cuidadosamente, ficou em pé no meio da câmara. Tinha a certeza de que era o primeiro a fazer isso em quase dois mil anos. Retirou sua máscara contra poeira e respirou com cuidado. O ar tinha um cheiro levemente penetrante e doentio, mas continha pouca poeira. Pela primeira vez ele olhou adequadamente para a sala, focalizando sua headlamp em todas as paredes ao redor, em seguida trabalhando metodicamente e voltando a ver tudo o que havia visto.

- É possível desligar o ventilador agora, Maurice? - ele murmurou. - Estou preocupado de que nossas vozes possam viajar e ser ouvidas na saída do sistema de ventilação.

- Feito. - Hiebermeyer virou o comutador, e tudo ficou sinistramente silencioso. Em seguida, ouviram o som de tinidos e de vozes distantes mais abaixo no túnel, e os queixumes da perfuratriz elétrica. - Bom. Este barulho deverá nos dar cobertura.

- Esta sala é bastante austera - disse Costas, ficando em pé atrás de Jack e olhando em volta. - Não há muita coisa aqui.

- Era este o costume romano - disse Jack. - Eles gostavam de ter o chão e as paredes cobertos com cores e ornamentação, mas muito poucos móveis.

- A sala é toda de pedra, mármore branco pela sua aparência - disse Maria. Jack olhou atentamente ao redor de novo, absorvendo o que podia, tentando encontrar um sentido para tudo aquilo. À direita, no lado sul, a parede estava perfurada por duas entradas, ambas bloqueadas com material vulcânico sólido. Ele supunha que elas davam para um balcão, que contemplava do alto a cidade de Herculano. Devia ter sido uma vista espetacular, com o Vesúvio erguendo-se a esquerda e a ampla extensão da baía de Nápoles à direita, o contorno da costa sendo visível até Misenum e Cumas. Jack mudou de posição e o feixe de luz da sua headlamp iluminou uma longa mesa de mármore, talvez com três metros de comprimento e um metro de largura, com duas cadeiras de pedra dispostas em sentido contrário ao da sacada. Sobre a mesa encontravam-se duas jarras de cerâmica, três copos de cerâmica e o que pareciam ser potes de tinta. Apenas visível e apoiada em uma perna da mesa havia uma pequena ânfora de vinho. Jack olhou de novo para o topo da mesa. Potes de tinta. Seu coração se acelerou com a excitação. Viu formas empoeiradas que poderiam ter sido papel, papiro. Estreitou os olhos. Tinha certeza disso. Forçou-se a permanecer no lugar, e virou seu feixe de luz para a esquerda. Viu as prateleiras que tinham visto da entrada, que Hiebermeyer havia visto no dia anterior. Prateleiras de livros cheias de manuscritos empilhados. Mais manuscritos se espalhavam pelo chão, da mesma maneira como Weber havia encontrado em outro local no século XVIII. Jack virou mais para a esquerda, em direção ao buraco por onde tinham entrado. Ao lado da entrada havia manuscritos em uma espécie de cesto de vime, diferentes dos manuscritos espalhados no chão, com diferentes remates arredondados aparecendo na parte final de cada um. Não havia dúvida sobre o que deveriam ser. Livros terminados.

Dirigiu seu feixe de luz novamente para a parede esquerda da sala, entre o cesto e as prateleiras, em direção a duas cabeças obscuras, bustos de pessoas colocados em uma pequena prateleira olhando em direção à mesa. Deu alguns passos cuidadosos em direção a eles. Precisava descobrir quem havia estado ali, quem tinha sido a última pessoa a se sentar naquela mesa de leitura, quase dois mil anos antes. Ficou parado na frente dos bustos, e viu que eram em tamanho natural. Por um momento pareceram ser uma aparição, como se os ocupantes da vila, naquele dia fatídico, tivessem saído da parede e estivessem olhando fixamente para ele. Jack se obrigou a olhar imparcialmente. Eram típicos bustos de pessoas do início do período imperial, extraordinariamente naturais, como se tivessem sido feitos a partir de máscaras mortuárias de cera. Cabeças bonitas, bem proporcionadas, orelhas ligeiramente protuberantes, eram nitidamente membros da família imperial. Eram tão parecidos que poderiam ter sido irmãos. Jack olhou atentamente para os pequenos pedestais debaixo de cada busto e leu os nomes.

 

  1. CLÁUDIO DRUSO NERO
  2. NERO DRUSO SEMPRÔNIO GERMÂNICO

 

- Druso e Germânico - sussurrou Jack.

- Os dois sujeitos que você acabou de mencionar um pouco antes? O sujeito da moeda? - perguntou Costas. - O pai e o irmão de Cláudio?

- Parece ser uma incrível coincidência - disse Maria.

A mente de Jack estava acelerada. Ele ainda tinha a moeda na mão, e segurou-a levantada de modo que a cabeça gravada ficasse emoldurada pelas cabeças dos dois bustos. A semelhança era notável. Seria possível? - Há alguma coisa a respeito desta moeda - ele murmurou. - Algo está nos encarando de frente.

- Esta moeda não é necessariamente muito significativa - disse Maria. - Esta vila era como uma galeria de arte, um museu. Os grandes proprietários de vilas na Itália, durante a Renascença, colecionavam medalhões, moedas antigas. Por que não os romanos?

- Possivelmente. - Jack olhou pensativo ao redor da câmara. - Mas acho que estamos no quarto de uma pessoa idosa, ele é despojado e possui apenas o essencial. Não se trata do minimalismo romano, e sim de uma verdadeira austeridade. Livros, uma mesa de leitura, alguns poucos retratos venerados, vinho. Sem pinturas nas paredes, nem mosaicos, nada do hedonismo que associamos com a baía de Nápoles. O quarto de alguém preparado para o próximo passo, para a vida após a morte, já tendo feito uma limpeza geral do passado. O crepúsculo de uma vida.

- Isso parece muito estranho para uma vila pródiga - disse Costas. - Quero dizer, este quarto é como um cubículo de monge.

Hiebermeyer se agachou, e ficou olhando atentamente para um dos manuscritos que estavam no chão. - Este papiro está fantasticamente bem preservado - ele murmurou, erguendo-o cuidadosamente com os dedos. - Ele é até mesmo dobrável. Eu posso ler o grego.

- Ah. Está em grego - repetiu Jack.

- O que há de errado com isto? - perguntou Costas.

- Nada. Nada de errado. Nós queremos apenas manuscritos em latim.

- Más notícias, Jack - disse Hiebermeyer, olhando atentamente para o manuscrito, depois empurrando os óculos para cima e olhando para ele. - Eu posso tê-los trazido para cá para uma busca sem esperança.

- Filodemo.

- Receio que sim.

- Pensei que os filósofos gregos fossem muito apreciados - disse Costas.

- Nem todos eles - disse Jack. - Uma série de romanos, homens educados como Cláudio, Plínio, o Velho, pensavam que muitos desses gregos eram impostores e charlatães, aproveitadores nas vilas dos mais abastados. Mas há uma grande quantidade deste material por aqui, e provavelmente era muito mais verossímil encontrar um livro de alguém como Filodemo do que de um dos grandes nomes que reverenciamos hoje. Lembrem-se, os textos clássicos que sobreviveram, que foram salvos e transcritos no período medieval, representam somente o apogeu da realização antiga, e apenas uma pequena parte dela. Eles nos dão uma falsa impressão e nos levam a pensar que todos os pensadores antigos eram mentes notáveis. Olhem para o mundo acadêmico de hoje. Para cada grande erudito, há dúzias de medíocres, os charlatães ocasionais. Mas todos eles são ainda chamados professores. Foi apenas um azar para nós que Calpúrnio Piso tenha protegido um dos menos dotados.

- Confio em Deus que nós não tenhamos nos deparado apenas com o trabalho de Filodemo - disse Hiebermeyer. - Isto sempre foi um risco, mas eu ficaria embaraçado.

- Que pena! - disse Maria, encurvando-se ligeiramente. - Um filósofo de segunda classe. É difícil acreditar que alguém estivesse tentando salvar tudo isso - ela continuou, mostrando com a mão os manuscritos espalhados pelo chão.

- Talvez eles não estivessem - disse Costas. - Quem sabe eles estavam tentando desembaraçar-se deles.

- Ou procurando por alguma coisa, como você disse antes. - Jack deu uma nova olhada para a forma macabra do esqueleto na entrada, com a mão parecendo se dirigir em direção aos manuscritos para agarrá-los. - Mas há alguma coisa a respeito desta sala. Não acho que seja a sala de estudo de um filósofo grego. Não no final, pelo menos. Ela é demasiado romana. É uma sala particular, a expressão de um indivíduo, não é para exibição pública. Não posso imaginar um grego escolhendo ter em sua sala dois bustos imperiais romanos como sua única decoração, a única coisa para ser vista desta mesa de leitura.

Hiebermeyer deu uma sacudidela no ventilador centrífugo, e a luz lampejou vermelha. - Vamos esperar mais alguns minutos - ele disse. - Acho que está tudo bem quanto ao barulho. Não acho que eles podem nos ouvir lá embaixo com aquela perfuratriz funcionando.

Voltaram outra vez para a entrada, agrupando-se em torno dela, e Jack ergueu a moeda. Olhou novamente para as estátuas, depois de volta para a moeda. Percebeu que a moeda havia sido bastante manuseada, no mesmo lugar, dos dois lados. - Talvez ela fosse a lembrança de um velho soldado - ele murmurou. - Talvez a lembrança de alguém que serviu sob o comando de Cláudio na invasão da Grã-Bretanha, ou até mesmo sob Germânico, sessenta anos antes. Um velho que venerava seu general, o irmão e o pai de seu general. - Fez uma pausa, perturbado. - Mas isto ainda é estranho.

- Por quê? - perguntou Costas. - Ela é um grande achado, mas, como disse Maria, é apenas uma moeda.

- Bem, ainda assim teria sido arriscado - disse Jack. - Você não se apega a velhas moedas, a menos que as colecione. Antigamente não era como hoje em dia, quando a razão principal por que não vemos antigas cunhagens de moedas em circulação são mudanças em denominação, ou em modificações nos tamanhos das moedas. No período romano, a pessoa simplesmente não queria ser vista com moedas de um imperador anterior. As moedas eram instrumentos importantes de propaganda, um meio vital de transmitir a imagem de um novo imperador, confirmando assim o seu poder. E o reverso da moeda era um pouco como selos de correio, imagens comemorativas que com freqüência continha propaganda ostensiva, que celebrava uma realização nacional. No caso das moedas romanas, elas ilustravam as realizações do imperador e de sua família.

- O triunfo sobre os judeus de Vespasiano - disse Costas. - Judaea Capta. A menorá.

Jack sorriu. - Como podíamos esquecer. A cunhagem daquela moeda foi feita dois anos depois da erupção do Vesúvio. Um outro famoso exemplo são as cunhagens de moedas que Cláudio mandou fazer sobre a Grã-Bretanha, celebrando sua conquista da Grã-Bretanha em 43 d.C.

- Mas esta moeda comemora seu pai. - Costas olhou para a moeda que Jack segurava, e olhou atentamente de perto com sua headlamp. - Isto parece uma coisa altruísta para um imperador fazer, até mesmo um pouco tocante. Acho que gosto deste sujeito.

- Não é bem o que parece - disse Jack. - Esta moeda data do primeiro ano do reinado de Cláudio, antes que ele tivesse qualquer coisa para se vangloriar. Referir-se a um ancestral glorioso era uma maneira de dar autoridade para sua reivindicação, lembrando para as pessoas as virtudes de seus ancestrais. Em 41 d.C., Roma havia acabado de passar quatro anos de sofrimento sob o reinado insano de Calígula, sobrinho de Cláudio. O que as pessoas desejavam desesperadamente era um retorno para os velhos costumes consagrados. Honra pessoal, integridade, continuidade da família, viver à altura de seus ancestrais, isso era muito mais o modo de vida romano. Pelo menos em teoria.

- Na Itália - murmurou Costas. - A importância da família. Soa familiar.

- Cláudio foi o imperador mais obstinado de Roma - continuou Jack. - Arrastado de detrás de uma proteção pela guarda pretoriana quando já estava na meia-idade, antegozando os anos que lhe restavam como erudito e historiador. Mas ele reverenciava a memória de seu pai, e durante toda a sua vida desejou ser bastante apto para se juntar ao exército como seu irmão Germânico, que ele adorava. Ser imperador, finalmente, lhe deu uma chance. E a aclamação de cada novo imperador, mesmo a de Calígula e de Nero, sucessor de Cláudio, era sempre acompanhada por uma declaração que prometia solenemente uma volta aos costumes do passado, o fim da devassidão e da corrupção e um retorno às virtudes de seus ancestrais.

- Será que Cláudio viveu à altura disso? - perguntou Costas.

- Ele poderia ter vivido, se não fosse dominado por suas esposas - disse Hiebermeyer.

- A Grã-Bretanha foi um grande triunfo - continuou Jack. - Cláudio estava condenado a nunca se cobrir com glória pessoal, afastando-se das ondas do Canal Inglês de modo um tanto absurdo, montado em um elefante treinado para combate, chegando a tempo de ver os cadáveres dos britânicos vencidos, mas não a tempo de conduzir suas legiões na batalha. Mas era um bom estrategista, um visionário do tipo que tinha passado sua vida estudando o império e a conquista e podia enxergar além da campanha individual, do triunfo. O mundo seria um lugar diferente hoje se Cláudio não tivesse conquistado a Grã-Bretanha. E lembrem-se, para os homens que formavam as legiões, nada poderia ser pior do que Calígula forçando-os a se dispor no lado francês do Canal Inglês e atacar o Deus do mar Netuno. Eles não se importavam de ter um aleijado como imperador, desde que ele fosse sensato. Cláudio escolheu comandantes muito capazes e fiéis, generais como Vespasiano, oficiais de médio escalão como Plínio, o Velho, e eles eram leais a Cláudio. - E os legionários veneravam a memória de seu pai e de seu irmão. - Jack fez uma pausa, e olhou novamente para os bustos. - Assim como o ocupante desta sala.

- A lealdade deles não impediu que Cláudio fosse envenenado - disse Hiebermeyer.

- Não - murmurou Jack. - Mas, para um imperador do primeiro século, este também era o costume romano.

- Falando em veneno, que história é essa de ópio? - perguntou Hiebermeyer. - Eu continuo tentando extraí-la de vocês.

- Você não vai acreditar no que encontramos naquele navio naufragado.

- Apenas diga-me. - Hiebermeyer olhou para Jack, empurrou o capacete para baixo, depois olhou para Costas. - Como vocês podem ver, sou todo ouvidos. - Naquele momento, a luz lampejou verde, e Hiebermeyer estendeu a mão e desativou o ventilador. - Vou ter que esperar.

Jack agachou-se de novo para entrar no quarto e foi direto para a mesa, perto do lado mais distante da entrada, entre as cadeiras. Examinou a superfície. Ele estava certo. Elas estavam cobertas com matéria cinzenta, mas não havia engano. Havia folhas de papel, folhas em branco, papiros. Uma folha de papiro presa com alfinetes, preparada para ser escrita. Potes de tinta, um estilo (haste pontiaguda) colocado em equilíbrio pronto para ser mergulhado na tinta, deixado onde tinha sido abandonado quando o lugar se tornou um inferno na terra. Jack desviou o olhar perturbado, depois ergueu-o de novo para os dois bustos. Druso e Germânico. Havia romanos vivos em 79 d.C. que ainda se refeririam àqueles dias gloriosos. As mortes prematuras de dois heróis significavam que sua memória continuaria viva durante gerações. Jack lembrou-se de algo que pensara antes. Um romano devia conhecer as figuras de seus ancestrais intimamente. E esta era uma sala particular, uma sala onde um homem mantinha a sua herança tradicional mais preciosa, as figuras de seus ancestrais.

Jack estava começando a pensar o impensável.

A figura de seu pai. De seu irmão.

As peças subitamente estavam começando a se encaixar. Jack experimentou um movimento impetuoso de excitação. Mais alguma coisa irrompeu em sua mente, da conversa com Costas sobre Plínio, o Velho, no dia anterior. Ele procurou dentro de sua mochila, o coração martelando, tirou o pequeno livro vermelho e colocou-o sobre a mesa, debaixo do feixe de luz de sua headlamp. Ele se apoiou no lugar em que o livro deixou sua marca na poeira, pegou cuidadosamente uma folha antiga de papiro, sacudiu-a ligeiramente, e iluminou-a com sua lanterna Maglite.

Ele riu silenciosamente para si mesmo. - Bem, eu serei condenado ao inferno.

- O que foi? - perguntou Costas.

Jack ergueu cuidadosamente o papel até a luz de maneira que os outros pudessem ver. - Olhem, vocês podem ver uma segunda camada de papiro debaixo desta, mais grossa que a camada de cima. Isto significa que a superfície é de ótima qualidade, mas o papel é reforçado, menos transparente. E a menos que eu esteja enganado, a folha mede exatamente um pé romano de lado a lado (58,9 centímetros de comprimento e 29,45 centímetros de largura).

- E daí?

Jack recolocou a folha na mesa e pegou o livro, a sua cópia da História natural. Ouçam o que Plínio tem a dizer sobre o papel. Livro 12, capítulo 79, quando fala em árvores:

 

O imperador Cláudio impôs uma modificação para melhorar a qualidade porque a finura do papel na época de Augusto não era capaz de resistir à pressão da pena de escrever. Além disso, permitia que a escrita fosse percebida do outro lado, e isto causava receio por causa dos borrões provocados pela escrita nas costas do papel. Além disso, a excessiva transparência do papel parecia invisível em outras circunstâncias. Assim, a camada inferior do papel foi feita com folhas de segunda qualidade, e as faixas em cruz do papiro de primeira qualidade. Cláudio também aumentou a largura da folha para 30,6 centímetros.

 

Hiebermeyer inclinou-se sobre a mesa e olhou de perto e com muita atenção com uma pequena lente. - E, a não ser que eu esteja errado, esta é a tinta de melhor qualidade disponível naquela época - ele disse muito excitado. - Tinta natural, com toda a probabilidade, feita a partir do pequeno besouro do deserto. Sei um pouco sobre isto, porque estudei tipos de tintas quando encontramos documentos em papiro reutilizados como envoltórios de múmia no Egito. Plínio também escreve sobre ela.

- Então vou apresentar meu argumento - disse Jack, recolocando cuidadosamente a folha sobre a mesa e olhando atentamente para os outros. - Parece incrível, mas tenho absoluta certeza de que estamos dentro do estúdio de Tibério Cláudio Druso Germânico César. - Ele ergueu a moeda, permitindo que a luz ressaltasse a figura. - Não o imperador Cláudio, não o deus Cláudio, mas Cláudio, o erudito. O Cláudio que agora acredito deve ter fingido o seu próprio envenenamento e sobrevivido durante um quarto de século depois de seu desaparecimento de Roma, escondido em um lugar retirado como esta vila. Cláudio, que deve ter morrido, assim como Plínio, no cataclismo de 79 d.C.

Fez-se um silêncio ensurdecedor, e Costas olhou de modo penetrante para Jack. - Bem - ele disse baixinho. - Esta é uma outra pequena parte da história que você vai ter que reescrever.

- E não a única parte. - Maria estava de costas para eles, e estava inclinada sobre a prateleira mais baixa no canto da sala. - Há mais manuscritos aqui, Jack. Muito mais. Muitos e muitos livros.

Jack deu a volta na mesa e todos eles se agacharam à volta dela. Ouviu-se um suspiro coletivo de perplexidade. À frente deles encontravam-se duas prateleiras atulhadas com várias dezenas de caixas cilíndricas, cada uma com cerca de quarenta e cinco centímetros de altura. - Elas estão tampadas, seladas com algum tipo de argamassa - murmurou Hiebermeyer. - Foram escavadas na rocha e tornadas côncavas, pelo aspecto parece um mármore egípcio. Elas são semelhantes aos canópicos. Nenhum gasto foi poupado aqui.

- Este aqui está aberto. - Maria pegou sua lanterna Maglite, acendeu-a e iluminou o topo do cilindro que estava do lado direito na prateleira inferior. O interior oco tinha quase 30 centímetros de largura e dentro dele puderam ver outras formas cilíndricas mais estreitas, com um espaço onde uma delas parecia ter sido removida.

- Heureca - disse Hiebermeyer baixinho.

- O que é isso? - perguntou Costas.

- Manuscritos em papiros - disse Hiebermeyer. - Manuscritos em papiro enrolados e introduzidos firmemente.

- Jack, eles não estão carbonizados - disse Maria. - Isto é um milagre.

- Vocês têm alguma idéia do que eles são? - perguntou Costas.

- Deve haver sillyboi, etiquetas descrevendo cada livro - disse Jack. - Os manuscritos não possuem lombada como os livros, por isso eram identificados com etiquetas coladas, que usualmente ficavam penduradas para fora da prateleira. Eu não vejo nenhuma aqui.

- Espere um segundo. - Maria olhou atentamente para o topo do cilindro selado próximo àquele com a tampa deslocada. - Há marcações. Gravações na pedra. Palavras em latim. Eu consigo lê-las. Carthaginia Historiae.

- A História de Cartago - sussurrou Jack. - A perdida História de Cartago, de Cláudio. Fantástico. Quem mais além do próprio Cláudio teria isso, em uma biblioteca particular?

- Espere aí, Jack. - Hiebermeyer tinha se aproximado silenciosamente do cesto de manuscritos perto da porta, e estava segurando uma ponta de um papiro preso a uma das alças decorativas do cesto. - Historiae Naturalis, G. Julius Plinius Secundus. Parece que nós conseguimos uma edição completa da História natural, de Plínio.

- Afinal, parece que você encontrou a biblioteca em latim - disse Costas.

Jack experimentou uma sensação irresistível de certeza. Olhou para o manuscrito, lembrou da sensação que tivera quando viu da sala pela primeira vez, daqueles dois bustos. - Havia alguém mais aqui, uma outra presença. Há algo mais me incomodando a respeito deste lugar - disse Jack. - Acerca de quem estava aqui.

- O que é?

- Bem, nós conseguimos o que parece ser uma cópia completa da História natural de Plínio, recém-saída do scriptorium. Como Cláudio entrou em posse disso?

Costas virou a cabeça em direção ao esqueleto perto da porta. - Talvez ele tenha mandado o eunuco comprar os livros para ele.

- Vamos simplesmente pensar a respeito - disse Jack. - Vamos dizer que eu estou certo em dizer que Cláudio estava vivendo aqui em segredo na época da erupção, em 79 d.C. E um dos fatos mais famosos da história antiga é que Plínio, o Velho, também estava aqui, na baía de Nápoles, morando em Misenum distante apenas algumas milhas, almirante da esquadra romana, e que ele morreu na erupção.

- Você está dizendo que eles se conheciam? - disse Costas.

Jack abriu nas páginas do índice de sua cópia da História natural. - Foi isso que me despertou a atenção. Plínio menciona Cláudio um certo número de vezes, sempre atenciosamente, enaltecendo suas realizações. Ele deve sua carreira a Cláudio, quando este foi imperador, mas as passagens na História natural são quase demasiado laudatórias, para um imperador que supostamente estava morto havia um quarto de século. Ouçam isto. Ele fala da realização de Cláudio ao mandar escavar um túnel para drenar o lago Fucine perto de Roma, que empregou 30 mil homens e levou onze anos, uma operação imensa "que as palavras não tinham o poder de descrever". Esta última frase é estranha, por si só. Para Plínio, absolutamente nada estava além do poder das palavras. E uma outra coisa. Ele deveria ter se referido a Cláudio como Divus Cláudio, o divino Cláudio, mantendo assim o seu status como imperador deificado, anos depois de sua divinização. Mas, em vez disso, Plínio se refere a ele como Cláudio César. E essa maneira de falar é quase demasiado familiar, quase como se Cláudio ainda estivesse vivo quando ele estava escrevendo sua obra. Os indícios estão todos aí.

- Isso faz sentido - murmurou Hiebermeyer.

- Cláudio parece ter sido um homem gregário, como Plínio era - disse Jack. - Cláudio pode ter sido forçado a viver como um recluso, mas sempre apreciou ter companhia. E Plínio teria sempre estado em busca de informantes, pessoas que pudessem ajudá-lo em seu livro História natural. Ele era um romano prático, simples e direto, e Cláudio deve ter parecido um sopro de ar fresco para ele, neste lugar que dava a impressão de estar infestado com gregos amantes do hedonismo, romanos sob o feitiço de filósofos fracos de espírito como Filodemo.

- E vice-versa - disse Maria. - Provavelmente Cláudio sentia o mesmo a respeito de Plínio.

- Cláudio devia ter admirado Plínio - continuou Jack. - Soldado, erudito, fantasticamente laborioso, um homem decente. Uma vez, Plínio teve uma visão do pai de Cláudio, Druso, dizendo-lhe para escrever a história das guerras germânicas. Com o busto de seu amado pai diante dele aqui, Cláudio teria gostado de ouvir aquela história do próprio Plínio, junto com alguns cântaros de vinho.

- Cláudio também teria sido fantasticamente instruído - acrescentou Hiebermeyer, apontando para as prateleiras. - Teria sido um verdadeiro encontro de mentes. Ele devia ter sido uma grande fonte para Plínio em relação à Grã-Bretanha, embora eu não lembre de muita coisa sobre a Grã-Bretanha na História natural.

- Possivelmente porque Plínio morreu antes de poder incorporá-la - murmurou Jack. - Ele tinha morado em Nápoles apenas por um ano antes da erupção, e provavelmente não encontrou tempo. Também era bastante sociável para o seu próprio benefício, e estava constantemente indo à casa dos amigos, das damas também. Mas Cláudio deve ter sido uma extraordinária descoberta para ele, um tremendo segredo. Acredito que Plínio esteve presente nesta sala. Posso sentir que esteve. Acho que Plínio veio visitar Cláudio, e eles começaram a trabalhar juntos. Plínio deve ter dado para Cláudio a cópia mais recente de sua História natural, mas estava provavelmente pronto para fazer acréscimos, assim que percebeu a mina de ouro que havia encontrado.

- Talvez fosse para cá que Plínio estava realmente vindo quando saiu de barco em direção ao Vesúvio durante a erupção - disse Costas. - Aquela carta que você leu para mim, de seu sobrinho. Talvez ele tenha apenas dito a seu sobrinho que vinha para cá por causa de uma mulher. Quem sabe, na verdade, ele estivesse vindo para salvar Cláudio, esta fabulosa biblioteca.

- Mas ele estava muito atrasado - murmurou Maria.

- Eu estou curioso para saber o que de fato aconteceu com o velho Cláudio, e se ele realmente estava aqui - disse Costas.

- Ele estava aqui - disse Jack veementemente. - Eu posso quase sentir o seu odor. Vinho envelhecido e derramado por uma mão trêmula. Um cheiro de enxofre, talvez trazido até aqui depois de uma visita a Cumas para ver a Sibila, que nós sabemos que ele consultava quando era imperador. O cheiro de tinta natural velha. Ele estava aqui, isto é bem certo. Reconheço isso em meus ossos.

Jack caminhou de volta até a mesa de leitura enquanto falava. Havia palavras visíveis, onde elas não estavam antes. De repente, ele percebeu que a folha de papiro debaixo daquela que ele tinha pegado estava coberta com escrita, protegida e perfeitamente conservada por quase dois mil anos. Ele olhou-a atentamente e leu em seu topo:

 

         HISTORIA BRITANNORUM CLAUDIUS CAESAR

 

- Meu Deus - ele murmurou. - Uma História da Grã-Bretanha por Cláudio Caesar. Você pode imaginar o que isso contém? - Examinou com cuidado as linhas de uma escrita admirável e precisa e depois olhou novamente para o título. Embaixo havia duas palavras, escritas pela mesma mão, mas menores:

 

         NARCISO FECIT

 

- É evidente - exclamou Jack, com a voz rouca por causa da excitação. - Narciso fez isto. Narciso escreveu isto. - Ele olhou novamente em direção à entrada, onde a mão estendida do esqueleto era visível em seu feixe de luz. - Então, é você afinal de contas - ele murmurou consigo mesmo, depois olhou para os outros. - Vocês lembram que eu disse que Narciso era o ex-escravo de Cláudio? Bem, o seu título oficial era praepositus as epistulis, escritor de cartas. Isto encerra o assunto. Sabemos, afinal, quem era aquele esqueleto. Ele era o copista de Cláudio, o seu escriba. Sabemos que Plínio sempre teve um, e Cláudio deve ter tido um também, especialmente por causa da sua paralisia. - Jack olhou de novo para a página, depois para algumas outras páginas espalhadas por perto, sem escrita, mas cobertas por manchas de um tom vermelho-escuro como manchas de vinho. - Isto tudo é fantástico. Só espero que possamos encontrar algo escrito de próprio punho por Cláudio.

O som da perfuratriz na entrada do túnel havia parado, e uma voz de mulher estava gritando, com um pesado sotaque inglês. - Doutor Hiebermeyer? Doutor Hiebermeyer? Estamos fechando o túnel agora. Venha imediatamente para fora.

Hiebermeyer gritou de volta dizendo sim em italiano várias vezes. Maria pegou imediatamente uma câmera digital e começou a tirar fotos, calma e rapidamente, movendo-se sem interrupção e passando por tudo o que tinham visto, terminando com uma seqüência de fotos, tiradas de perto, da página escrita que estava sobre a mesa. Em seguida, recolocou a folha de papiro em branco sobre ela.

- Jack, precisamos decidir o que fazer - disse Hiebermeyer em voz baixa. - Imediatamente.

- Tão logo estivermos fora do alcance dos ouvidos desse pessoal, vou telefonar para o meu amigo da agência de notícias Reuters - disse Jack. - Maria tem agora um disco cheio de imagens, e elas podem ser enviadas diretamente por e-mail. Mas ficamos em silêncio até lá. Se vazar a mínima coisa disso agora, nós nunca veremos esta sala de novo. Você precisa jogar com a carta pericolo, Maurice, para ganharmos tempo. Dizer que nós não encontramos nada de interesse, gastamos o nosso tempo examinando alguns fragmentos de alvenaria que se salientavam da parede. É extremamente perigoso para qualquer um aventurar-se além daquela grade novamente. Diga-lhes que a perfuratriz desestabilizou ainda mais o túnel, e que houve um desmoronamento. Mas, amanhã de manhã, quando as imagens saírem, divulgadas pelas manchetes dos jornais e pelos noticiários de TV por toda parte, eles não terão escolha a não ser abrir este local. Este será um dos achados mais sensacionais jamais feitos em arqueologia. E, a propósito, Maurice e Maria. Muitas felicitações.

- Ainda não, Jack - murmurou Hiebermeyer, andando em meio aos manuscritos no chão em direção ao ventilador centrífugo. - Já passei muito tempo lidando com estas pessoas para ser otimista. Vamos adiar a festa com champanhe até este lugar se tornar mais do que simplesmente uma invenção de nossa imaginação.

- Jack, há um manuscrito aberto aqui. - Costas estava parado ao lado das prateleiras. Olhando atentamente para o nicho atrás das jarras de mármore.

- Há manuscritos por toda parte - disse Jack. - Este lugar é uma caverna de Aladim.

- Você disse que queria ver a escrita de Cláudio. Eu não tenho certeza, mas este manuscrito parece ter sido escrito com duas mãos diferentes, uma delas mostrando letras um pouco finas e desiguais. Parece que alguém acrescentou anotações nas margens.

- Provavelmente o velho louco Filodemo - comentou Hiebermeyer.

- Acho que Cláudio estava colocando fora os livros de Filodemo - disse Jack.

- Acho que ele estava abrindo espaço nas prateleiras para o seu próprio material.

- Caminhou até onde se encontrava Costas, que se deslocou para o lado, e olhou atentamente para o lugar que o outro apontava. O manuscrito estava aberto, as duas extremidades parcialmente enroladas, com alguns centímetros de escrita visível entre elas. O manuscrito parecia ser idêntico àqueles que se encontravam no cesto perto da porta, os volumes da História natural de Plínio, com os distintivos remates redondos nas alças. Alguém devia ter estado consultando o manuscrito, depois o colocou de lado aberto em uma página. A voz da mulher surgiu no túnel outra vez, áspera, aguda. Maria e Hiebermeyer já estavam de novo perto da entrada, tirando o ventilador centrífugo para fora da sala.

Jack petrificou-se.

Ele olhou novamente. Duas palavras. Duas palavras que podiam mudar a história. Sua mente estava acelerada, seu coração martelando.

Em seguida, pela primeira vez em sua vida, Jack fez o impensável. Ergueu o manuscrito, enrolou cuidadosamente as duas extremidades até que se juntassem, e enfiou-o dentro de sua mochila caqui. Ele fechou a mochila e prendeu as correias. Costas o observava em silêncio e estupefato.

- Você sabe por que estou fazendo isso - disse Jack calmamente.

- Sou bom nisso - replicou Costas.

Jack se voltou para os outros dois. - Muito bem. Está na hora de encarar a inquisição.

 

O homem vestido com a sotaina preta passou pelo baldaquino em direção ao molhe de Santo André, fazendo o sinal da cruz em direção ao elevado altar quando passou em sua frente. Ele era alto, já no final da meia-idade, com feições finas e aquilinas e óculos de pessoa estudiosa, mas com a energia sem dureza de um jesuíta que passou anos no campo. Fez um breve gesto de cabeça para a guarda suíça que estava parada perto da baixa via de acesso dentro do molhe, depois olhou para trás, para o baldaquino. Os grandes pilares pretos que haviam sido moldados por Bernini com o bronze tirado do Panteão, o templo pagão para todos os deuses, fora aqui transformado em um esplendor barroco e atraía a atenção sob a cúpula da maior igreja da cristandade. Para aquele homem, este lugar sempre fez com que a sensação de domínio romano sobre a natureza parecesse insignificante, fraca, assim como o lugar fazia parecer insignificantes as pessoas que ficavam hoje numa posição mais baixa que ela. Era um lugar onde tudo podia mostrar a ascendência da Santa Sé, sobre uma congregação muito maior do que poderia ter sido imaginada pelos imperadores na época de Cristo.

Ele aspirou o ar, e enrugou levemente o nariz. O ar parecia pesado com a exalação de milhares de peregrinos e turistas que haviam passado por lá naquele dia, como em todos os outros. As pessoas eram o poder da Igreja, entretanto o homem achava a realidade da humanidade desagradável e era sempre aprazível passar distante, dentro dos santuários dos que receberam as ordens sacras. Lembrou-se por que estava ali naquela noite. O homem recomeçou a andar a passos largos e retomou propositadamente seu caminho descendo as escadas que davam para a gruta debaixo da nave da Igreja, descendo até o nível do declive romano onde antigamente havia existido um hipódromo de Calígula e de Nero e uma cidade dos mortos, escavada dentro da rocha. Agora era o cemitério dos papas, e o venerado lugar de repouso de são Pedro. O homem fez novamente o sinal da cruz enquanto passava por aquele lugar sagrado, depois foi desviando por entre os alicerces da basílica de Constantino, o Grande, até uma outra porta e um outro lance de degraus, que levavam para as profundezas da antiga necrópole. A porta tinha sido aberta para ele, mas, enquanto passava por ela, retirou uma chave de debaixo de sua sotaina e com a outra mão movimentou uma pequena tocha. No final dos degraus, o feixe de luz iluminou paredes de pedra bruta alinhadas com nichos e reentrâncias sombrias. Agachou-se para entrar numa galeria à direita, descendo alguns degraus entalhados na rocha que davam para uma tumba vazia e inclinou-se ao longo da parede, achando rapidamente o que tinha vindo procurar. Enfiou a chave no buraco e uma porta escondida que se abria para dentro apareceu. Entrou rapidamente, depois se voltou e trancou a porta novamente. Estava dentro.

Ele ainda se lembrava de sua impressão na primeira vez em que se agachou neste lugar. Foi durante a escavação da necrópole, quando toda a atenção estava focalizada na tumba de são Pedro. Ele e outro noviço tinham descoberto esta galeria, uma primeira catacumba cristã fechada desde a Antiguidade. Ela estava mais conservada do que o restante da necrópole, com os nichos ainda rebocados e os sepulcros intactos. Tinham ido juntos, apenas os dois. Então, tinham feito sua extraordinária descoberta. Somente alguns poucos ficaram sabendo dela, o pontífice, o chefe do conselho de cardeais, o homem que detinha a posição que agora era dele, os outros membros do concilium. Este era um dos grandes segredos da Santa Sé, uma munição para o dia em que as forças da escuridão alcançassem os portões sagrados, quando a Igreja necessitasse reagrupar todas as suas reservas para lutar por sua própria existência.

Continuou a caminhar em direção a um bruxuleante reservatório de luz no final da galeria. Ao longo do caminho revisou as imagens que tinham visto naquele primeiro dia, expressões simples e rústicas daquela antiga fé que ainda o comovia poderosamente, mais visceral do que qualquer um dos ornamentos que enfeitavam a igreja acima. Cristo em um barco, atirando uma rede, uma mulher sentada ao lado dele. Cristo em fogo, ascendendo com os seus dois companheiros crucificados acima das chamas, uma montanha em chamas como pano de fundo. E nomes por toda parte, nos nichos das tumbas, nomes formados com simples mosaicos pressionados no reboco. Priscilla in Pace. Zakariah in Pace. Símbolos Qui-Rô, imagens gravadas nos cestos de pão, uma pomba segurando no bico um ramo de oliveira. Imagens que se tornavam mais freqüentes à medida que ele se aproximava da fonte de luz, como se as pessoas desejassem vivamente ser enterradas próximas daquele local, aglomerando-se ali. E então ele chegou. A galeria alargava-se ligeiramente, e ele podia ver que a luz que havia à frente vinha de velas em cada canto de um pedestal colocado no chão, uma tumba. Era uma estrutura simples, erguida alguns centímetros sobre o reboco, e coberta com grandes telhas romanas. Ele podia ler o nome rabiscado na superfície. Fez novamente o sinal da cruz, e sussurrou as palavras que outros tinham suspeitado, mas que só ele e poucos outros sabiam ser verdade. A Basílica de São Pedro e São Paulo.

Duas outras pessoas já se encontravam ali, figuras vestidas com sotainas e sentadas em nichos baixos talhados na rocha de cada lado da tumba, os rostos obscurecidos pelas sombras. O homem de novo fez o sinal da cruz. - In nomine patre, filii et spiritu sancti - ele disse. Curvou-se ligeiramente para cada um deles. - Eminências.

- Monsenhor. Por favor, fiquem sentados. - As palavras eram ditas em inglês, com um ligeiro sotaque europeu do leste. - O concilium está completo.

A catacumba estava úmida, o que mantinha a poeira no chão, mas a fumaça espiralada das velas fazia seus olhos arderem, e ele piscou fortemente. - Vim assim que recebi sua convocação, Eminência.

- Você sabe por que estamos aqui.

- O concilium só se reúne quando a santidade da Santa Sé está ameaçada.

- Durante quase dois mil anos tem sido assim - disse o outro. - Desde a vinda de são Paulo para a irmandade, quando o concilium se reuniu pela primeira vez nos Campos de Fogo. Somos soldados de Nosso Senhor, e seguimos seu comando. Dies irae, dies illa solvet saeclum infavilla.

- Amém.

- Nós aceitamos somente a verdadeira palavra do Messias, nenhuma outra.

- Amém.

- Nós já nos encontramos uma vez este ano. Já nos opusemos à busca dos perdidos tesouros judaicos do Templo. Mas agora uma escuridão muito maior nos ameaça, uma heresia que vai destruir a própria Igreja. Durante séculos soubemos disso, usamos todo o nosso poder e até a fraude para lutar contra ela. Mas agora um novo perigo surge. Aquele que pensávamos estar destruído, perdido para sempre, foi encontrado. Uma blasfêmia, uma mentira, meios de ataque do Demônio.

- O que o concilium quer que façamos?

A voz, quando respondeu, estava dura como o aço, gelada, uma voz que impedia qualquer argumentação, que não admitia réplica.

- Procurem-no.

 

O céu apresentava faixas douradas enquanto Jack dirigia o helicóptero Lynx em direção às luzes de aterrissagem na popa do Seaquest. Ele levou menos de uma hora para voar para o sul da baía de Nápoles, seguindo o contorno da massa escura das montanhas da Calábria e depois dando uma guinada em direção à posição do navio, cerca de dez milhas ao norte do estreito de Messina. O anoitecer estava claro, quase translúcido, o ar limpo e o mar ondulado pela leve brisa expirante que vinha do oeste, mas quando o rotor bateu fortemente no propwash de ambos os lados do navio, foi como se estivessem descendo através de um redemoinho de água, as luzes de aterrissagem iluminando o borrifo da água como um ciclone rodopiando na popa. O Lynx parou com um barulho alto e Jack esperou os rotores pararem antes de soltar a fivela da correia e abrir a porta, soltando uma exclamação de satisfação para o chefe da equipe que estava amarrando os pontões ao convés. Jack retirou o capacete, esperou que Costas e Maria fizessem o mesmo e depois saiu e conduziu-os direto para uma escotilha no final dianteiro do heliporto. Momentos depois encontraram-se no laboratório de conservação em alto-mar e a porta fechou-se atrás deles. Jack escolheu uma estação de trabalho com um computador no console em um dos lados e uma mesa com luz do outro lado, ativou um bulbo fluorescente em um braço de metal retrátil acima da mesa e sentou-se. Retirou de seu jaleco de vôo um rádio transmissor e receptor e pressionou o canal de segurança da IMU. Ouviu-se um estalido e ele falou no receptor. - Maurice, aqui é Jack. Estamos no Seaquest, sãos e salvos. Eu o manterei informado. Câmbio. - Esperou uma confirmação, depois colocou o rádio ao lado do monitor e pôs a correia da mochila caqui, que tirou do pescoço, em seu colo e enfiou um par de luvas de borracha que pegou em uma caixa debaixo da mesa.

- Você acha que ele pode agüentar firme? - perguntou Costas.

- Maurice? Ele é um profissional. Ele sabe exatamente como fechar uma escavação. Tudo que precisa fazer é dizer que o túnel não é seguro, está em perigo de desmoronar, e eles vão fechá-lo com tábuas. De qualquer modo, eles não querem que se faça esta escavação. E ele conseguiu Anúbis para abastecer a imprensa, o que é mais do que o suficiente para lhes mostrar que a arqueologia foi encerrada. Estamos prosseguindo com o plano revisado. A Reuters foi avisada, mas não sobre a biblioteca. Logo que soubermos para onde isto está nos levando, eu darei um telefonema para expor o assunto todo. Maria tirou centenas de fotografias digitais, e elas estão todas aqui. Parecem-se com aquelas primeiras vistas da tumba do faraó Tutankamon. É absolutamente sensacional, um material de primeira página. As autoridades não terão escolha a não ser abrir o local, para que o mundo possa ver o que nós vimos.

- Eu vou voltar para ficar com Maurice assim que tivermos acabado aqui - disse Maria.

- Isto é crucial, Maria. Você pode manter a pressão sanguínea dele baixa. Vocês dois formam obviamente uma ótima equipe. - Ele sorriu para ela, depois abriu sua grande mochila. - Agora, vamos ver o que conseguimos.

Segundos mais tarde, o achado extraordinário que Jack havia tirado da câmara da vila estava diante deles na mesa iluminada. Ele dava a mesma impressão que Costas e Jack tiveram quando o viram pela primeira vez, com cada lado do manuscrito enrolado ao redor de uma vara de madeira, um umbilicus, e linhas visíveis com a antiga escrita onde o manuscrito ficava aberto entre as partes enroladas. Jack colocou dois pequenos protetores com fios retrateis nas extremidades de cada umbilicus e cuidadosamente puxou o rolo estendendo-o em toda a sua extensão, cada fio preso na extremidade da mesa iluminada e atado a um dispositivo mecânico que controlava o movimento rotacional. Agora podiam ver a coluna inteira do texto, semelhante a uma página de um livro moderno. - É assim que os gregos e os romanos lêem estes manuscritos de lado a lado, desenrolando-o para revelar a página dessa maneira a cada vez - disse Maria. - As pessoas pensam com freqüência que os manuscritos eram difíceis de manejar porque assumem que eles foram escritos como um texto contínuo de uma extremidade à outra, e desenrolado aos poucos a cada vez. De fato, eles eram tão convenientes quanto um códice, um livro moderno.

- Temos uma sorte incrível por poder ver uma coisa como esta - murmurou Jack. - Os manuscritos carbonizados encontrados na vila no século XVIII levaram anos para ser desenrolados, milímetro por milímetro. Mas tudo o que vimos naquela sala está incrivelmente bem preservado, e parece haver algum tipo de resina ou de cera no papiro, o que significa que ele ainda está flexível.

- Parece que dois parágrafos foram escritos por uma mão, com uma seção no meio escrita por uma mão completamente diferente - disse Costas.

- Você tem razão - disse Maria. - O texto principal é como uma página impressa, escrita pela mão exercitada de um copista, um escriba. A outra escrita é um pouco espalhada, se parece mais com uma escrita à mão pessoal, legível, mas certamente não é a escrita de um copista.

- O que são estas manchas grandes?

- De início pensei que elas pudessem ser sangue, mas depois as cheirei - disse Jack. - Elas são as mesmas que vi espalhadas sobre a mesa na câmara. São manchas de vinho.

- Vamos confiar que o vinho era de uma boa safra naquela última noite - murmurou Maria.

Costas apontou para uma papeleta colada no topo do manuscrito, como uma etiqueta. - Então, este é o título?

- Eram chamados sillybos - disse Jack, concordando. - Plinius, Historia naturalis. Eu estava certo. Este manuscrito foi tirado de entre aqueles que estavam no cesto perto da porta, indubitavelmente é um texto completo. Eu ainda mal posso acreditar nisso. Nada como isto sobreviveu em nenhum outro local da Antiguidade, a primeira edição de um texto escrito por um dos escritores mais famosos do período clássico.

- Posso perceber isso - disse Costas. - Mas por que estamos sendo tão reservados a respeito disso?

- Certo. - Jack apontou para a linha superior do manuscrito. - O primeiro indício foi a palavra Iudaea. Plínio, o Velho, menciona a Judéia em vários lugares. Ele nos relata a origem e o cultivo da árvore balsâmica, e fala a respeito de um rio que seca em cada Sabá. Isso é típico de Plínio, uma mistura de história natural competente e de fábula. Mas a discussão principal se encontra em seu capítulo geográfico, onde ele nos relata tudo o que ele pensa que vale a pena acerca do lugar. É isto que conseguimos aqui. - Jack abriu a moderna edição da História natural de Plínio numa página marcada do livro, e apontou-a com um dedo. Eles podiam ver o original em latim do lado esquerdo, e a tradução em inglês do lado direito. Leu em voz alta a primeira linha:

 

Supra Idumaeam et Samariam Iudaea longe lateque funditur. Pars eius Syriae iuncta Galilaea vocatur.

 

Jack olhou atentamente para a primeira linha do manuscrito, depois de novo para o texto impresso, lendo-o novamente em voz baixa. - Elas são idênticas. Aqueles monges medievais que transcreveram isso fizeram-no de forma correta, afinal. - Ele leu a tradução. - Além de Edom e de Samaria estende-se a ampla vastidão da Judéia. A parte da Judéia que se junta com a Síria é chamada Galiléia.

- Então começou a percorrer o texto, seus olhos movendo-se rapidamente da tradução para o manuscrito e de volta à tradução, fazendo uma pausa ocasionalmente quando a falta de pontuação no manuscrito tornava difícil prosseguir.

- Plínio estava fascinado pelo mar Morto - murmurou. - Aqui, ele nos conta que absolutamente nada podia afundar nesse mar, e como mesmo os corpos de touros e de camelos flutuavam ao longo dele. Ele gostava desse tipo de coisa. Esta é a dificuldade. Ele estava certo a respeito do mar Morto, mas havia outras maravilhas sobre as quais ele escreveu que são inteiramente fabulares, e Plínio não era muito bom em distinguir fato de ficção. Se ele tinha algum tipo de princípio diretor, era o de incluir tudo que escutava. Ele confiava quase inteiramente em fontes de segunda mão.

- Pelo menos em Cláudio ele encontrara um informante confiável - disse Maria. - Um erudito bastante sólido, de acordo com a opinião geral.

- Aqui vamos nós - disse Jack. - Isto é logo antes da disparidade no texto do manuscrito, antes que mudem os estilos da escrita. Iordanes aminis oritur e fonte Paniade. A fonte do rio Jordão é a nascente do Panias. - Depois há uma descrição mais longa:

 

In lacum se fundit quem plures Genesaram vocant, xvi p. lomgitudinis, vi latitudinis, amoenis circumsaeptum oppidis, ab oriente Iuliade et Hippo, a meridie Tarichea, qui nomine aliqui et lacum appellant, ab occidente Tiberiade aquis calidis salubri.

Ele se expande em um lago comumente chamado mar de Genesaré, dezesseis milhas de comprimento e seis de largura, limitado pelas agradáveis cidades de Iulias e Hippo ao leste. Tarichae ao sul, sendo que algumas pessoas também dão ao lago o nome de cada um desses lugares, e Tiberíades, que possui fontes quentes saudáveis no oeste.

 

Jack apontou para um mapa que tinha colocado no outro lado da mesa iluminada. - Dessa vez ele não fala sobre o mar Morto, mas sobre o mar da Galiléia, cerca de oitenta milhas ao norte na parte superior do vale do Jordão. Genesaré era o nome romano para ele, assim como o moderno nome hebraico Kineret. Tiberíades é hoje a principal cidade no mar da Galiléia, um recanto popular. Ele se enganou quanto a Tarichae, ela não fica ao sul, mas a oeste, algumas milhas ao norte de Tiberíades. Tarichae era o nome romano para Migdal, o lar de Maria Madalena.

- O lugar onde Jesus começou seu ministério - disse Maria.

Jack assentiu com um gesto de cabeça. - Ao longo da margem ocidental do mar da Galiléia. - Fez uma pausa e sentou-se novamente. - Agora estamos chegando à disparidade no texto do pergaminho. Não há nenhuma disparidade no texto moderno impresso, baseado na transcrição medieval, que continua direto falando sobre betume e o mar Morto.

- Então, o nosso manuscrito deve ser uma versão posterior - murmurou Costas. - Talvez fosse um em que ele estivesse trabalhando quando morreu, com atualizações e alterações.

- Ele pode ter pedido ao seu escriba para fazer uma cópia deixando lacunas, onde achava que era provável que fizesse acréscimos - disse Maria. - E essa podia ser a cópia que trouxera consigo para Cláudio.

- A História natural era um processo orgânico, e é difícil acreditar que uma mente que estava sempre à procura de novos dados como a de Plínio fosse capaz de deixá-la isolada, completamente terminada - disse Jack. - E lembrem-se, mais lugares estavam sendo conquistados e explorados pelos romanos a cada ano, de modo que havia muita coisa para acrescentar. Cláudio devia ter sido capaz de contar muito mais coisas que eram novas para Plínio sobre a Grã-Bretanha, especialmente pelo fato de que, como sabemos, ela estava em primeiro lugar na mente de Cláudio na época da erupção, com a sua própria história da Grã-Bretanha em andamento. E se Plínio sobreviveu à erupção do Vesúvio, minha impressão é que ele tinha um capítulo completamente novo sobre vulcanologia para acrescentar.

- Você pode ler o que está escrito no espaço com outra letra? - perguntou Costas.

- Eu meramente posso lê-lo - disse Jack. - Ele está escrito por uma mão completamente diferente daquela que escreveu o texto principal no pergaminho, com linhas finas e desiguais, meticulosas. Não tenho dúvidas de que esta é a verdadeira mão de Plínio, o Velho. - Jack teve uma visão momentânea, de repente, sentiu-se transportado, de volta, para aquela sala escondida na vila, quase dois mil anos atrás, ao pé do vulcão ameaçador, a tinta ainda acabando de secar e as manchas de vinho ainda cheirando a uvas e álcool, como se os personagens em cada lado dele não fossem Maria e Costas, mas Plínio, o Velho, e Cláudio, incitando-o a juntar-se a eles na exploração da última revelação de seu mundo.

- Bem, fale logo - disse Costas, olhando para ele de maneira interrogativa. Jack saiu de seu devaneio e debruçou-se sobre o texto. - Certo. Aqui vai.

Aqui é onde aparecem os nomes, as palavras que vi quando descobrimos o manuscrito. O motivo para o segredo. - Deu uma olhada para Costas, depois fez uma pausa, examinando cuidadosamente o texto para localizar o início e o fim das sentenças e para pôr o latim em inglês e numa ordem coerente. - Eis a primeira sentença:

 

Cláudio César visitou este lugar com Herodes Agripa, quando eles encontraram o pescador Josué de Nazaré, aquele que os gregos chamavam Jesus, que meus marinheiros em Misenum chamam agora de Cristos.

 

Jack sentiu como se ele tivesse soltado um raio junto com trovão. Fez-se um silêncio ensurdecedor que foi quebrado por Costas. - Cláudio César? Cláudio, o imperador? Você quer dizer o nosso Cláudio? Ele encontrou Jesus Cristo?

- Com Herodes Agripa - sussurrou Maria. - Herodes Agripa, rei dos judeus?

- Assim parece - replicou Jack com voz rouca, tentando manter a voz sob controle. - E ainda há mais. - Ele leu lentamente: - O nazareno deu para Cláudio sua palavra escrita.

- Sua palavra escrita - repetiu Costas lentamente. - Um compromisso, uma espécie de promessa?

- Eu traduzi literalmente - disse Jack. - Tenho certeza de que isto significa algo escrito.

- Sua palavra - murmurou Maria. - Seu evangelho.

- O Evangelho de Jesus? A palavra escrita do Cristo? - Costas sentou-se subitamente, com o queixo caindo de assombro. - Santa Mãe de Deus. Percebo o que você quer dizer. O segredo. Herculano, a Igreja, tudo. Isto é exatamente o que eles mais temeram.

- E, no entanto, isto é algo que muitos esperaram sem esperança que algum dia pudesse ser encontrado - disse Maria, quase num sussurro. - A palavra escrita de Jesus de Nazaré, com sua própria mão.

- Será que Plínio sabe o que aconteceu com isto? - perguntou Costas. Jack terminou de acertar as sentenças seguintes em sua mente e leu a tradução em voz alta:

 

Genesaré, que é Kineret na linguagem local, é dito derivar da palavra para o instrumento de corda ou lira, kinnor, ou de kinnara, a fruta doce e comestível produzida por uma árvore cheia de espinhos que cresce na vizinhança. E, em Tiberíades, existem fontes que restauram a saúde de maneira notável. Cláudio César diz que beber daquela água clareia e acalma a mente, que soa para mim como ingerir morfina.

 

- Ah - exclamou Costas. - Morfina. Eu queria que Hiebermeyer visse isso.

Jack fez uma pausa, e murmurou em voz baixa. - Vamos, Plínio. Continue com isso. - Ele leu o que vinha depois para si mesmo, resmungou impacientemente e depois repetiu em voz alta. - E o mar de Genesaré, na verdade um lago, fica muito abaixo do nível do mar do Meio ou Mediterrâneo. E, enquanto o mar de Genesaré é de água fresca, meu amigo Cláudio me lembra que o mar Morto é notavelmente salgado, e parte dele não é água, mas betume.

- Meu amigo Cláudio - repetiu Costas, pesando as palavras. - Este é um belo deslize, não é? Quero dizer, acho que a sobrevivência de Cláudio devia ser mantida em segredo.

- Isto prova que ele estava vivo - disse Jack. - Acho que este manuscrito em particular era uma versão anotada pelo próprio Plínio, uma que ele tencionava levar embora consigo. Ela foi deixada na sala de estudo de Cláudio, provavelmente de maneira deliberada. E acho que era para o próprio benefício de Cláudio também. Vocês devem imaginar Cláudio sentado ao lado de Plínio enquanto ele escreve isto, tomando goles e derramando seu vinho, lendo sutilmente por cima do ombro do outro homem. Certamente, como sabemos pelo texto conhecido, Plínio já estava perfeitamente ciente de que o mar Morto era salgado e produzia betume.

- Ele estava lisonjeando Cláudio - disse Maria.

- Uma clássica técnica de interrogação - replicou Costas. - Nunca pare no que você já conhece, então as pessoas lhe dirão mais coisas.

- Há algo mais? - perguntou Maria. - Quero dizer, sobre Jesus? Plínio parece ter se perdido em uma digressão.

- Talvez haja - disse Jack. - Mas há um problema.

- Qual?

- Olhe para isto. - Jack apontou para o final da disparidade de letras no texto do manuscrito, depois para a margem do lado direito. - Li tudo o que podia no texto díspar. Mas você pode ver no final que algumas poucas linhas foram manchadas, apagadas. Depois ele escreveu alguma coisa na margem ao lado delas, muito menor. Ele não tinha reabastecido sua tinta, talvez até mesmo deliberadamente, de modo que é quase ilegível. Dá a impressão de que ele tinha escrito no fim da seção com sua letra algo que desejava ter na edição publicada, depois pensou melhor naquilo e apagou o que tinha escrito, depois pensou mais um pouco e colocou uma nota na margem, talvez uma nota para si mesmo que não queria que ninguém mais lesse.

- Mas você pode lê-la - disse Costas.

- Não exatamente. - Jack girou a plataforma giratória até que o manuscrito ficasse a noventa graus, depois puxou uma lente de aumento presa a um braço retrátil e a colocou sobre as linhas minúsculas da escrita, muito pouco visíveis na margem. Ele empurrou sua cadeira para trás para que Maria e Costas pudessem dar uma olhada. - Digam-me o que pensam.

Ambos abaixaram a cabeça, e Costas falou imediatamente. - Isto não é latim, é? Algumas destas letras me parecem familiares. Há um lambda, um delta. Será que é grego?

- São letras gregas, mas não é a linguagem grega - murmurou Maria. - Parece ser o precursor do alfabeto grego, aquele que os gregos adotaram do Oriente Próximo. - Ela olhou para Jack. - Você se lembra do curso do professor Dillon em Cambridge sobre a história antiga da linguagem grega? Já faz um bocado de tempo agora, mas tenho certeza de reconhecer algumas daquelas letras. Será semítico?

- Você é a estrela da lingüística, Maria, não eu. O professor orgulhava-se de você. De fato. Ele ainda ele ainda se orgulha, como demonstrou quando eu falei com ele do Lynx. Quando peguei este manuscrito da prateleira em Herculano, dei uma olhada na escrita e tive um súbito pressentimento. Pedi a Dillon para nos enviar sua última versão do Projeto Hanno para baixarmos aqui. Ele deve estar em operação agora.

- Jack! - exclamou Costas. - Computadores? Você fez tudo sozinho?

Jack fez um gesto em direção ao teclado ao lado dele. - Não se preocupe. Ele é todo seu.

- O Projeto Hanno? - perguntou Maria.

- Dois anos atrás, nós escavamos um antigo naufrágio de navio na altura da Cornualha, não longe do campus da IMU. Costas, você se lembra do Mounts Bay?

- Hein? Sim. Fazia frio. Mas havia grandes peixes em Newlyn, onde se localiza uma das maiores frotas de pesca do Reino Unido. - Costas estava sentado na frente do computador, e digitava ativamente. Ele se voltou e olhou para Jack. - Eu peguei o que o professor Dillon mandou. Você quer ver?

Jack assentiu com a cabeça, e Costas empurrou a lente de aumento e posicionou um braço móvel com um escâner sobre a margem do manuscrito. Jack voltou-se para Maria. - Era um naufrágio de um navio fenício, o primeiro encontrado em águas da Grã-Bretanha, datava de quase mil anos antes da chegada dos romanos. Encontramos lingotes gravados com letras fenícias, e uma misteriosa placa de metal coberta com escrita fenícia. Dillon tem trabalhado sobre ela desde então. Nós chamamos a tradução de Projeto Hanno por causa de um famoso explorador cartaginês. Apenas um nome tirado de um chapéu.

- Então, você acha que a escrita no manuscrito é fenícia?

- Eu sei que é.

- Plínio conhecia o fenício?

- O fenício era semelhante ao aramaico falado ao redor do mar da Galiléia na época de Jesus, mas isto pode ser uma coincidência. Não, eu acho que isso tem a ver com Cláudio. Você se lembra dos manuscritos na prateleira inferior em sua sala? Era sua história de Cartago, seu maior trabalho histórico, um que se pensava estar completamente perdido, mas que agora foi milagrosamente descoberto. Bem, Cláudio teria aprendido esta língua para poder ler nas fontes originais a linguagem falada pelos mercadores fenícios que fundaram Cartago. Ela era virtualmente uma língua morta na época da Roma Imperial, e acho apenas que este é o tipo de coisa que posso imaginar Cláudio ensinando para Plínio no tempo livre que passavam juntos depois de terminar de escrever, além de tomar vinho e jogar dados. Então, quando Plínio resolve colocar esta nota, ele escolhe esta linguagem, que era virtualmente um código. Cláudio está observando e teria ficado contente e lisonjeado por isto também.

- Eles devem ter sido as únicas pessoas por lá que podiam ler esta língua.

- É isso mesmo.

- Está pronto - disse Costas. - Há quatro palavras que a concordância identificou como transliteração, que são nomes próprios, e foram traduzidas primeiro em latim e depois em inglês para nós. Uma palavra é Cláudio. A outra, Roma. E as outras palavras estão todas no léxico fenício de Dillon. Há uma aqui que até eu sei. Bos, touro. Eu lembro dela do Bósforo.

O coração de Jack acelerou com a excitação. Podia ser isso.

- Está aparecendo na tela agora.

Maria e Jack ficaram atrás de Costas. Na parte superior do escâner podiam ver que o manuscrito tinha sido aumentado, com as letras em estilo grego muito mais claramente visíveis agora. Abaixo delas havia a tradução:

Haec Implacivit Claudius Caesar in urbem sub sacra bos iacet.

O que Cláudio César me confiou está em Roma debaixo dos touros gêmeos.

 

Jack olhou fixamente de novo. Sua mente estava acelerada. Apenas um dia depois de encontrar o navio naufragado de são Paulo eles tinham se deparado com algo extraordinário, o maior prêmio entre todos. Ele sabia agora que tinha estado certo em pegar o manuscrito, de mantê-lo escondido até que seguissem a pista até o fim.

A palavra de Jesus. A palavra final, a palavra que iria ofuscar todas as demais. O último evangelho.

- Bem? - Maria disse, erguendo o olhar para ele. - Touros gêmeos?

- Eu acho que sei onde fica isso.

- O divertimento continua - disse Costas.

 

Na manhã seguinte, Jack e Costas pararam ao lado da Via Del Fori Imperiali no coração da antiga Roma. Eles voaram no helicóptero Lynx do Seaquest para o aeroporto Fiumicino em Roma, situado no terreno do grande porto construído pelo imperador Cláudio, e tinham pegado o trem que seguia o curso do rio Tibre para entrar na cidade. Jack ficou falando ao telefone muito concentrado, depois o desligou. Um furgão transportando seus equipamentos iria encontrá-los dentro de duas horas ao pé do monte Palatino. Deu um aceno de cabeça para Costas, e eles se juntaram a um pequeno grupo de turistas que se encontrava atrás da mesa de venda de entradas, do lado de fora do antigo fórum.

- Não me parece certo - resmungou Costas. - Quero dizer, um célebre arqueólogo e seu assistente. Eles deveriam pagar para você.

Jack colocou o celular dentro de sua mochila caqui e retirou uma câmera Nikon 90, pendurando-a ao redor do pescoço. - Eu sempre acho que é melhor permanecer anônimo perto de sítios arqueológicos. É menos provável que o observem. De todo jeito, eu jamais os convenceria com essa sua aparência. - Jack usava botas de deserto, e vestia uma calça caqui de algodão e uma camiseta solta, mas Costas estava usando um extravagante conjunto havaiano, completado com um chapéu da palha e seus óculos escuros de grife.

- Eles devem estar acostumados com isso - disse Costas. - É assim que os arqueólogos se vestem, quero dizer. Veja Hiebermeyer.

Jack sorriu, pagou as entradas e guiou Costas para o sítio arqueológico, descendo uma rampa e dirigindo-se em direção à ruína de uma pequena construção circular, com restos de colunas ainda em pé. - Este é o Templo de Vesta - disse Jack. - Um santuário, na verdade, porque, por alguma razão, ele nunca foi consagrado formalmente como um templo. Neste local, o fogo sagrado era cuidado pelas vestais virgens, ou sacerdotisas vestais. Elas moravam na construção ao Lado, naquela grande estrutura aninhada ao pé do Palatino, que era semelhante a um convento de freiras.

- Um convento de freiras bem extravagante - murmurou Costas. - Então, todo esse assunto é realmente verdade? O que contam sobre as vestais virgens?

- É claro. Mesmo o que dizem sobre elas serem queimadas vivas. Não há testemunho mais sensato do que o do nosso amigo Plínio, o Moço, que escreveu as famosas cartas sobre a erupção do Vesúvio. Em outra carta, ele escreveu como o imperador Domiciano ordenou que a principal Vestal Virgem fosse queimada viva, por ter violado seus votos de castidade. Domiciano foi uma figura sórdida no melhor dos tempos, e a acusação foi forjada. Mas ser emparedada num subterrâneo era a punição tradicional para as vestais que se desviavam, e ela foi levada para o local designado e murada viva.

- Isto soa como um domínio do macho quando as coisas dão muitíssimo errado.

- Você provavelmente está certo. Depois que o primeiro imperador Augusto se tornou pontifex maximus, o imperador e a Virgem principal entraram em conflito frontal. A deusa Vesta era muito poderosa, a guardiã do círculo familiar. O fogo eterno, o ignis inextinctus, simbolizava a eternidade do Estado, e o futuro de Roma se encontrava, portanto, nas mãos das Virgens. Eles a chamavam de Vesta Mater, Vesta, a Mãe. Ela era como a Sibila, uma fusão de uma antiga deidade local da Itália com uma outra importada dos gregos, supostamente trazida por Enéias de Tróia.

- Mas qual era sua conexão com a Sibila?

- Existem mais semelhanças, algumas delas bastante notáveis. As vestais eram escolhidas quando meninas entre as aristocratas de Roma, exatamente como tinha sido feito, conforme eu acredito, com a Sibila de Cumas. Podemos descobrir mais coisas aqui. Venha.

Jack levou Costas para subir a Via Sacra passando pelo Arco de Tito, onde pararam e olharam silenciosamente para a escultura de soldados romanos em procissão triunfal, carregando a menorá dos judeus. Depois continuaram até o monte Palatino e entraram nos Jardins Farnese e em seguida se dirigiram para as grandes ruínas do Palácio Imperial, no lado oeste do monte Palatino, que contemplava do alto o Circo Máximo. Eles foram tocados por uma brisa refrescante quando chegaram ao topo, mas mesmo assim o calor estava queimando e Jack levou Costas para um lugar sombreado ao lado de uma parede.

- Então esta era a região por onde Cláudio andava - disse Costas, tirando os óculos de sol e enxugando o suor de seu rosto. - Antes de ele encenar o seu ato de desaparecimento ao estilo de Bilbo Baggins. Isto parece um grito longínquo daquela cela de monge em Herculano.

- Foi aqui que ele cresceu e onde passou a maior parte de seu tempo como imperador afora sua visita à Grã-Bretanha - replicou Jack. - Mas com a imagem que temos desse lugar naquele tempo, a imagem de Hollywood, podemos nos esquecer em grande parte de como de fato era. Nossa visão do passado é com muita freqüência condicionada por acréscimos posteriores, anacronismos. O Coliseu ainda não tinha sido construído, somente foi inaugurado em 80 d.C., o ano seguinte à erupção do Vesúvio. O Palácio Imperial, a enorme construção diante de nós, foi começada apenas por Domiciano, o imperador que teve a luta final com as vestais. Isto aconteceu quando a megalomania realmente virou moda, quando os imperadores realmente começaram a viver como deuses. Mas para Cláudio, como para seu avô Augusto, era crucial manter a ambição da República, a idéia de que eles eram simplesmente zeladores. Eles viviam em uma casa modesta, de fato menor do que a Vila dos Papiros em Herculano.

- Onde ela era?

- Você está recostado nela agora.

- Ah. - Costas colocou a mão contra o revestimento de tijolo gasto. - Então Cláudio esteve aqui - ele murmurou.

- E Plínio, o Velho, em 79 d.C. - disse Jack.

- Eu estava me perguntando quando você chegaria a isto.

- A construção na nossa frente, entre a Casa de Augusto e o Palácio de Domiciano, é o Templo de Apolo - disse Jack. - É pouco provável que tenha sobrado alguma coisa agora, mas você tem que imaginar uma estrutura impressionante em mármore branco, ornamentada com algumas das mais famosas esculturas da Grécia clássica, tomadas pelos romanos quando eles conquistaram o leste. Bem aqui onde estamos sentados era o pórtico, uma estrutura com colunatas que rodeava o templo. Augusto tinha um encrave construído dentro do pórtico perto de sua casa, onde estamos agora. Ele incluía uma biblioteca, aparentemente bastante ampla para abrigar assembléias do Senado. O encrave pode ter tido funções administrativas particulares, que incluíam talvez um escritório em Roma para os almirantes de esquadra.

- Ah - disse Costas. - Plínio, o Velho. Almirante em Misenun.

Jack fez com a cabeça um aceno de assentimento. - Ele deve ter conhecido muito bem este lugar. Augusto também construiu um novo santuário para Vesta, provavelmente para suplantar o do fórum.

- Bem debaixo da janela de seu quarto de dormir - disse Costas. - Isso sim e que é controle.

- Parece que as vestais virgens resistiram à idéia de mudar seu santuário sagrado, e continuaram a favorecer o antigo. E eis a coisa realmente fascinante, 2 razão pela qual nós estamos aqui. O santuário para Vesta no fórum continha um adytum, um santuário interior, um local oculto onde vários artigos sagrados eram guardados. O fascinum, os falos eretos que afastavam o diabo, o pignora imperii, os misteriosos penhores pela duração de Roma, o palladium, a estátua da deusa Palas Atena supostamente trazida de Tróia por Enéias. Somente as vestais e o pontifex maximus podiam entrar neste local, e estes artigos sagrados nunca eram mostrados.

- Uma câmara secreta - Costas refletiu. - Se Augusto estava planejando este novo santuário como uma réplica do antigo, ele também construiria uma câmara dentro do novo?

- É exatamente o que eu estava pensando.

- Mas se os artigos sagrados permaneciam no santuário do fórum, este novo teria ficado vazio.

- Ou não completamente vazio.

- Você está dizendo aquilo que eu acho que está?

Jack abriu sua mochila e retirou uma prancheta com uma fotografia aumentada de uma moeda romana na parte dianteira. - Esta é a única representação conhecida do novo santuário, o Santuário de Vesta no monte Palatino. É de uma moeda do imperador Tibério, de 22 ou 23 d.C. Você pode perceber uma construção circular com colunatas muito semelhante ao velho santuário no fórum, rivalizando nitidamente com ele. A forma circular pretendia copiar a forma de cabana da primeira residência romana, a assim-chamada casa de Rômulo, que foi cuidadosamente preservada como uma antiguidade sagrada do outro lado da casa de Augusto. Você ainda pode ver os buracos para colunas na rocha. O que mais você pode ver nesta moeda?

Costas pegou a prancheta. - Bem, as letras S e C acima do santuário. Senatus Consultum. Até eu sei isso. E o santuário tem uma coluna de cada lado, um pedestal com uma estátua. Há animais, possivelmente cavalos ou touros.

- É isto que decide o assunto - disse Jack muito excitado. - Nós sabemos que duas estátuas se encontram diante do Santuário de Vesta em Palatino. Estátuas de animais sagrados que são oferecidos em sacrifício para os ritos das vestais. As duas estátuas eram originariamente gregas, esculpidas pelo famoso escultor Miron do século V a.C. Estátuas de vacas.

- É claro.

- Lembre-se de nosso indício - disse Jack entusiasmado. - Sub sacra bos. Debaixo das sagradas vacas. Estas duas estátuas formavam um par único, não há nada semelhante a elas em Roma. Só pode ser isso que Plínio queria dizer. Ele escondeu o manuscrito aqui, na câmara vazia debaixo do Santuário de Vesta no Palatino.

- Exatamente onde? - Costas havia pegado um GPS receptor e estava examinando ao redor, olhando para o chão sem traços característicos e as paredes empoeiradas de maneira vaga.

- Meu melhor palpite é aqui onde nos encontramos agora, com mais ou menos dez metros de cada lado - disse Jack. - Desapareceu qualquer sinal do santuário, mas parece claro que ele devia ter estado deste lado do pórtico do templo, bem ao lado da casa de Augusto.

- E não podemos usar o GPR, o radar que analisa o solo?

- Há muito mais coisas que acontecem aqui. O local é como um favo de mel, construção feita em cima de construção. Até mesmo o leito de rocha está cheio de brechas e fissuras.

- Então, o que fazemos agora? Conseguimos uma escavadeira?

- Nós nunca encontraremos o local do santuário dessa maneira. Pelo menos não sem uma quantia enorme de dinheiro, uma quantidade imensa de procedimentos burocráticos, e cerca de um ano para conseguir a permissão. Não, não vamos escavar aqui embaixo.

- Então, o que podemos fazer?

- Podemos ser capazes de subir.

- Hein?

Jack pegou de volta a prancheta, fechou a mochila e levantou-se com um salto. Deu uma olhada no relógio. - Vou explicar no caminho. Venha.

 

Vinte minutos mais tarde, estavam parados em um terraço ao norte dos arredores arqueológicos do Fórum Romano, com uma vista magnífica do centro da antiga Roma estendendo-se diante deles e com a vasta magnitude do Coliseu ao fundo. - Este é o melhor lugar para se ter uma noção da topografia - disse Jack. - Retire todas as construções e você pode ver como o fórum foi construído em um vale, com o monte Palatino no lado oeste. Agora, olhe direto em frente e veja como o vale se estende em direção ao rio Tibre, além dos declives do Palatino. Onde estamos agora é a colina do Capitólio, o ápice da antiga Roma, o local onde a procissão triunfal alcançou seu clímax. Logo à nossa direita está a Rocha Farpeia, onde os criminosos condenados à morte eram atirados dentro de um precipício.

- As vestais depravadas?

- Tradicionalmente acredita-se que seu lugar de execução se situava fora das paredes da cidade, mas Plínio, o Moço, só menciona uma câmara subterrânea. Ela pode ter estado bem perto.

- Então fale-me sobre o subterrâneo de Roma - disse Costas. - Não que eu queira ir até lá. Três mil anos de lama acumulada.

Jack sorriu, abriu sua mochila e retirou a prancheta novamente. Guardando de volta a folha com a imagem da moeda para revelar uma cópia de uma antiga gravura, a palavra ROMA em grandes letras na parte superior. - Este é o meu mapa favorito de Roma - ele disse. - Desenhado por Giovanni Battista Piranesi no século XVIII, mais ou menos na mesma época em que a Vila dos Papiros, em Herculano, estava sendo explorada pela primeira vez. Os planos fragmentários das construções ao redor das extremidades são, na verdade, partes do famoso Plano Mármore, um imenso mural originalmente exibido no Templo da Paz de Vespasiano. Somente dez por cento do Plano Mármore sobrevive. O mapa de Piranesi reflete exatamente nosso conhecimento da Roma antiga, como um jogo de quebra-cabeça de um quadro recortado com algumas áreas conhecidas com grandes detalhes, outras, muito poucos.

- Ele mostra a topografia com muita clareza - disse Costas.

- É por isso que eu gosto dele - replicou Jack. - Piranesi manteve as peças do quebra-cabeça até as extremidades, deixou de lado as construções, e concentrou-se nas colinas e vales. É isso que eu quero que você veja. - Jack dispôs o mapa em ângulo de modo que ele ficasse com a mesma orientação da vista na frente deles, e colocou o dedo no centro. - Nas épocas pré-históricas, quando Enéias supostamente chegou aqui, a área do fórum era um vale pantanoso na extremidade de uma planície inundada. Quando os primeiros assentamentos se espalharam, descendo os declives das colinas e dirigindo-se em direção à terra alagada, o curso de água foi canalizado e finalmente coberto. Isto se tornou a Cloaca Máxima, o Grande Dreno, estendendo-se além de onde você pode ver o Coliseu agora bem debaixo do fórum, depois passando impetuoso ao redor e bem na nossa frente e derramando-se no Tibre. Havia afluentes, rios correndo para dentro dele, bem como construções subterrâneas artificiais, canais de aquedutos. Tudo isso ainda se encontra ali, um vasto labirinto subterrâneo, e somente uma fração dele foi explorada.

- Onde se encontra o ponto de acesso mais próximo?

- Estamos nos dirigindo para ele agora. Siga-me. - Jack conduziu Costas para fora do terraço e entraram na Via di San Teodoro, as ruínas do Palatino erguiam-se à esquerda e as construções da cidade medieval à direita. Viraram à direita e entraram em uma rua estreita que se abria em um pátio em forma de V, com o tráfego fazendo barulho atrás dele. Em primeiro plano havia uma grande quantidade de volumosa ruína, um arco com quatro faces construído sobre enormes pilares de concreto em cada esquina. - O Arco de Janus - disse Jack. - Não é a ruína mais gloriosa de Roma, ele é bastante desprovido de qualquer coisa interessante. Mas situa-se com cada um dos pilares sobre a Cloaca Máxima. O local onde o dreno desemboca dentro do rio está somente cerca de duzentos metros distante, além da via principal. - Eles passaram por uma abertura na grade de ferro que rodeava o arco e andaram sob a pedra esbranquiçada. No átrio do outro lado, o furgão estava parado e dois grupos de equipamentos de mergulho estavam apoiados sobre as pedras arredondadas da pavimentação, com dois técnicos da IMU fazendo verificações em um dos circuitos fechados do rebreather.

- Isto parece um projeto - resmungou Costas.

- Pensei em lhe apresentar este projeto como uma surpresa depois de lhe proporcionar uma compreensão do propósito. Isto é fantasticamente excitante, a chance de explorar locais completamente desconhecidos no coração da antiga Roma.

- Jack, não me diga que vamos mergulhar em um cano de esgoto.

Um homem dirigiu-se a eles de onde tinha estado agachado junto ao arco. Tinha um físico magro e agradáveis feições italianas, embora parecesse singularmente pálido para um romano. - Massimo! - disse Jack. - Va bene?

- Va bene. - A voz soava trêmula e o homem era ligeiramente grisalho. -Você se lembra de Costas? - perguntou Jack. Os dois homens assentiram com a cabeça e trocaram um aperto de mãos. - Parece que foi apenas ontem que nos encontramos na conferência em Londres.

- Foi meu imenso prazer - disse Massimo em um inglês perfeito, com um sotaque muito leve. - Trabalhamos aqui sob os auspícios da superintendência arqueológica, mas somos todos amadores. Foi um privilégio passar algum tempo com profissionais.

- Desta vez as coisas estão trocadas - disse Jack, sorrindo. - Esta será a minha primeira aventura em arqueologia urbana debaixo d’água.

- É a arqueologia do futuro, Jack - disse Massimo, com paixão. - Nós entramos em antigos lugares partindo de uma posição mais baixa, e deixamos a superfície intacta. Isto é perfeito em lugares como Roma. Isto supera ficar dependurado, como garotos, na barra da camisa de incorporadoras, esperando por uma chance fugaz de encontrar alguma coisa antes que uma terraplanagem a destrua.

- Você está começando a falar como um profissional, Massimo.

- É um prazer ajudar. Estamos desesperados para ir onde você está pretendendo. Estávamos esperando o equipamento adequado para isto.

- Como vocês se chamam? - perguntou Costas.

- Arqueólogos urbanos.

- Ratos de túneis - Jack sorriu.

- Tenha cuidado com esta palavra, Jack - disse Massimo. - O local onde você está prestes a ir pode voltar para assombrá-lo.

- Ah, aviso anotado. - Jack pareceu sério. - Você tem um mapa?

- Ele está debaixo do arco. Seu pessoal vai trazer o equipamento. Siga-me. - Jack e Costas acenaram para os dois técnicos, e se dirigiram para uma porta em um dos pilares de pedra. - Isto sobe para um complexo de pequenas câmaras e corredores dentro do arco. Que eram usados quando o arco foi convertido em uma fortaleza medieval - disse Massimo. - O que ninguém sabia é que a escada se estende também para baixo, para dentro da Cloaca Máxima. Pressupomos que lá deva existir um ponto de acesso em algum lugar debaixo do arco, e viemos procurá-lo alguns meses atrás. A superintendência nos permitiu remover as pedras. - Ele apontou para uma boca de lobo coberta, com cerca de um metro e meio de diâmetro, logo depois de passar a porta. - Mas, primeiro, alguma orientação. O mapa. - Ele procurou atrás da porta e pegou um longo tubo de papelão, depois retirou um papel enrolado e o manteve aberto apoiado na lateral do pilar.

- Este é um plano de tudo o que sabemos acerca deste subterrâneo nesta parte de Roma, entre a entrada dentro da Cloaca Máxima debaixo do Coliseu até o rio Tibre, exatamente do outro lado de onde estamos.

- É nisto que eu estou verdadeiramente interessado - disse Jack, usando as duas mãos para apontar para os braços de rio que davam início ao curso principal da Cloaca Máxima, depois reunindo as mãos no espaço vazio entre eles.

- Este é um dos nossos achados mais excitantes - disse Massimo. - Isto se parece com um túnel artificial que se estende direto sob o Palatino. Pensamos que era do tempo do imperador Cláudio.

- Cláudio? - disse Jack, surpreso.

- Ele teria amado este tipo de coisa. Ele é o nosso herói. Um rato de túnel póstumo e honorário. Os maiores projetos dele eram subterrâneos, debaixo d’água. Escavando o túnel para drenar o lago Fucine. Construindo o grande ancoradouro em Óstia. Seu aqueduto dentro de Roma, o Aqua Claudia. Achamos que um túnel de drenagem debaixo do Palatino teria sido genuinamente uma especialidade dele. E ele era um historiador, teria ficado fascinado por qualquer coisa que encontrassem, ele próprio pode ter descido. Era um de nós.

- Que mundo pequeno - murmurou Costas.

- O que você quer dizer?

- Bem - Costas começou, então Jack lhe lançou um olhar de advertência.

- Bem, Jack estava exatamente me contando sobre Cláudio, o ancoradouro, enquanto voávamos para Fiumicino. Um sujeito fascinante.

- Eu acho que podemos deixar Cláudio de lado até que realmente encontremos alguma coisa - disse Jack severamente. - Lembrem-se que estamos em busca de períodos que datam de centenas de anos antes da época de Cláudio. Aquilo que falamos ao telefone. A gruta de Lupercal.

- A gruta de Lupercal - repetiu Massimo com reverência, depois olhou furtivamente ao redor. - A gruta sagrada dos ancestrais de Roma, onde Rômulo e Remo foram alimentados por uma loba. Se você puder encontrar um caminho para ela no subterrâneo, então nós fizemos história.

Costas olhou de maneira atenta e interrogativa para Jack, que se voltou para ele com um rosto sem expressão. - Minhas desculpas, eu estava esperando até agora para lhe contar atrás do que nós estamos realmente, eu não quis que ninguém ouvisse por acaso, que nenhuma palavra transpirasse - ele disse com um jeito impetuoso, olhando para Massimo. - Este é um achado assombroso. Arqueólogos perfurando o chão na Casa de Augusto, no Palatino, abriram caminho dentro de uma câmara subterrânea, uma cavidade a uma profundidade de pelo menos quinze metros. Eles enviaram uma sonda para dentro dela e viram paredes incrustadas com mosaicos e conchas, como uma gruta. Podia ser um lugar reverenciado na Antiguidade, mas perdido para a história, um dos mais sensacionais achados da arqueologia romana. Estamos aqui para ver se descobrimos uma entrada subterrânea. Massimo até manteve a superintendência no escuro. Sua equipe está preocupada com saqueadores que podem se infiltrar, e querem explorar completamente o local antes que o achado venha a público.

- O misterioso Palatino com grutas e fissuras - disse Massimo com entusiasmo. - Só Deus sabe o que mais se encontra aqui embaixo. A gruta de Lupercal podia ser apenas a ponta.

- Você tem certeza de que esta é a melhor entrada, aqui debaixo do arco? -perguntou Jack.

- Do outro lado do Palatino, o túnel se estende da Cloaca Máxima em algum lugar perto do Atrium Vestae, a Casa das Vestais Virgens - ele replicou. - Nós não fomos além disso. Este lado aqui definitivamente é o melhor palpite. O braço do rio que vai para o Palatino encontra-se no curso do Velabrum, uma antiga corrente que fazia parte anteriormente de uma outra área pantanosa, canalizada e formada em arcos por volta de 200 a.C. Fomos até a extremidade do Palatino, mas depois o túnel desce e se torna completamente submerso. Ainda não somos mergulhadores de cavernas. Daquele ponto em diante achamos que são apenas mais ou menos duzentos metros até onde se situa o Lupercal e cerca de trinta metros acima.

- O que diz a geologia? - perguntou Costas.

- Tufo calcário, pedra vulcânica. Facilmente trabalhada por um transportador de lama forte e bom. E algumas vezes também encontramos formações de calcita, até mesmo estalactites e estalagmites, onde um lençol de água rico em cálcio gotejou dentro dos condutos romanos.

- Vamos dar uma espiada naquele buraco - disse Jack, lançando a cabeça em direção à porta aberta. - Quero ter uma idéia de com que estamos lidando.

Massimo entrou e parou, depois engoliu fortemente, como se estivesse a ponto de vomitar. Ele olhou para aqueles que estavam atrás. - Vocês podem querer respirar profundamente algumas vezes. Está cheirando um pouco forte aqui.

- Ergueu a cobertura da boca de lobo, e eles vislumbraram o início escuro de uma escada em espiral. Um cheiro indescritível os atingiu. Massimo fechou a tampa rapidamente, e recuou para fora, apertando a boca.

- Muito bem. Percebo o que você quer dizer. Vamos colocar o equipamento necessário aqui, fora - disse Jack.

Massimo engoliu fortemente, e sua voz estava rouca. - Vocês verão uma corda fluorescente cor de laranja se estendendo ao longo da extremidade da Cloaca Máxima, depois dentro do Velabrum até onde nós conseguimos ir - disse Massimo. - Depois disso, vocês estão por sua conta.

- Você não vem conosco? - perguntou Jack.

- Gostaria de ir, mas sofri uma limitação. Tive uma má experiência ontem, logo abaixo do Fórum de Nerva. Um cano repentinamente expeliu um bocado de líquido amarelo dentro da Cloaca e ele se dispersou em uma névoa. Não tenho idéia alguma do que era, nem quero saber. Eu não havia colocado o respirador. Estupidez. Tenho vomitado a cada meia hora mais ou menos desde então. Isto já aconteceu antes. Só preciso de um pouco de tempo. Um risco profissional.

- Vocês, caras, se arriscam - murmurou Jack - Então, o que há aí embaixo? Líquido, suponho?

- Você quer o cardápio completo?

- À la carte - disse Jack.

- Bem, é uma mistura de escoamento das ruas, as coisas que vivem aí embaixo e vazamentos.

- Vazamentos - murmurou Costas. - Ótimo.

- Lama, diesel, urina. Carcaças de ratos em decomposição. E uma matéria viscosa cinzenta, bem, ela não deveria estar aí, mas as saídas da água de esgoto não são exatamente o que deveriam ser. - Massimo lhes deu um sorriso ligeiramente macabro, e tossiu. - Mas esta é uma cidade antiga. Sempre haverá um pouco de permuta.

- Permuta? - perguntou Costas.

- Bem, um conduto fornece água limpa, água para viver, o outro leva embora o efluente pútrido. Ou, colocando de outra forma, os canos de água de esgoto levam aos drenos, os drenos levam esta água embora, o rio flui para o mar. Esta é a ordem natural das coisas.

- Pura poesia - resmungou Costas. - Não é de admirar que o rio Tibre pareça verde. É como eu estou começando a me sentir.

- Nós ficaremos bem, dentro dos macacões de mergulho da IMU - disse Jack. - Completamente vedados dentro deles, nenhuma exposição de pele. Eles foram experimentados e testados nas condições mais extremas, certo, Costas? Se isto der certo, Massimo, vamos lhe doar todo o nosso equipamento.

- Isto seria excelente, Jack. Perfetto. - Inclinou-se para um lado e parecia estar prestes a vomitar. - É melhor começar a andar. Acreditem ou não, os meteorologistas estão prevendo uma chuva forte nesta tarde, e a Cloaca pode se tornar uma torrente. Vocês não querem ser arrastados com ímpeto para dentro do rio.

- Não gosto da palavra arrastado - resmungou Costas.

- A notícia boa é que, assim que virarem no canto do dreno principal em direção ao Velabrum, a água se torna clara - ele disse. - A água debaixo do Palatino vem de fontes naturais e, como ninguém mais mora por lá, dificilmente há alguma poluição. Bem embaixo do monte ela deve ser clara como cristal.

Jack retirou a sua velha mochila caqui, e arremessou-a na cabeça de Massimo. - Defenda isso com a sua vida, Massimo, e me esforçarei para que nosso conselho de diretores premie Costas com uma transferência especial para cá como seu consultor técnico.

- O quê? - Costas pareceu consternado.

- Um outro rato de túnel honorário. - Massimo lançou para Costas um sorriso exaltado, e deu-lhe um tapa nas costas. - Negócio fechado. E agora é minha vez de doar algum equipamento. - Ele voltou para a câmara dentro do pilar de pedra e saiu com dois equipamentos profissionais compactos para escaladas, com dois carabiners de metal, um martelo e pregos grandes e fortes para serem encravados nas rochas a fim de sustentar as cordas e um rolo de corda. - Não é exatamente o que vocês imaginam que iriam necessitar debaixo de Roma, mas confiem em mim, isto pode salvar-lhes a vida.

Jack assentiu. - Muito obrigado. - Ele colocou os dois equipamentos ao lado do restante de seu equipamento e acenou de maneira amigável para os dois técnicos da IMU que haviam voltado para perto do furgão para esperar. Olhou de novo para a tampa da boca de lobo em cima do buraco da Cloaca Máxima, o lugar para onde logo eles iriam, e respirou profundamente algumas vezes. Seus gracejos tinham mantido sua ansiedade de molho, mas agora ele não tinha outra escolha a não ser se confrontar com o seu pior medo, a única coisa que realmente podia perturbá-lo. Costas sabia o que era, e Jack sentiu que ele estava sendo observado muito de perto. Puxou o macacão de mergulho para si, e agachou-se para retirar as botas. Ele permaneceria concentrado. Um prêmio extraordinário poderia estar à espera deles. E túneis subterrâneos sempre tinham saídas.

Costas olhou atentamente para ele. - Pronto para ir?

- Pronto para ir.

 

A tampa da boca de lobo, acima de Jack deslizou para o seu lugar com um tinido ressoante, e ele e Costas ficaram completamente separados do forte barulho de tráfego que havia em Roma do lado de fora. Tinham dado o sinal de aprovação final para Massimo e para os dois integrantes da equipe de trabalho da IMU alguns momentos antes, e Jack se sentiu tranqüilizado porque os outros ficariam do lado de fora da boca de lobo, esperando o retorno deles. Mas ele havia assumido um risco calculado, e agora que estavam enterrados na Cloaca Máxima ele se viu mais uma vez ponderando as probabilidades. Não havia assistência de segurança, nenhum mergulhador completamente em alerta pronto para auxiliar em um resgate. Era novamente um outro risco calculado, como o do mergulho deles no navio naufragado de são Paulo. Mas Jack sabia, pelas experiências difíceis por que havia passado, que a assistência de segurança era mais psicológica do que prática, que os problemas eram solucionados com maior freqüência no local ou então não eram, e sua habilidade para se sair bem de um mergulho perigoso dependia dele mesmo somente e de seu companheiro. E se eles utilizassem mais equipamento e pessoal isto tornaria sua operação mais visível, e gastaria um tempo precioso que quase não podiam se permitir. Olhou para Costas agachado atrás dele, depois dirigiu sua luz para a escuridão da escada em espiral. Era assim. Eles estavam sozinhos novamente.

- Irei primeiro - disse Costas pelo intercomunicador.

- Eu achei que esta não era exatamente a sua especialidade.

- Decisão tomada. Estou sempre pronto para experimentar uma nova bebida. Você está de acordo?

- Conduza.

Costas ergueu-se e desceu fazendo barulho pelas escadas na frente de Jack, o feixe halogênio de sua headlamp oscilando ao longo das antigas paredes de alvenaria. Estavam usando os mesmos macacões da IMU que usaram para mergulhar até o naufrágio, todo feito de Kevlar reforçado e impermeável que lhes serviram bem tanto no Ártico como no mar Morto, com poder de flutuação e sistemas de ar condicionado. Os capacetes amarelos com máscaras que cobriam completamente o rosto continham um mostrador digital de telefone que mostra os dados de apoio à vida, inclusive a composição da mistura de gás computadorizada alimentada pelos rebreathers compactos de circuito fechado em suas costas. A única concessão que se permitiram para estas circunstâncias fora do comum foram os equipamentos profissionais para escalada que Massimo insistiu a que eles levassem. Ajustados e testados antes que colocassem seus rebreathers alguns minutos antes.

- Isto me lembra de quando nós entramos naquele submarino afundado no mar Morto - disse Costas, ao andar com passos pesados ao redor das escadas. - Sinto como se pudesse cortar o ar com a faca.

Jack engoliu com força. Imediatamente antes de fechar seu capacete tinha aspirado uma lufada de ar fétido que vinha de baixo e ainda sentia o gosto nauseante na boca. A última coisa de que necessitava agora era que este ar entrasse dentro de seu capacete. Esta era uma realidade humana que os engenheiros da IMU falharam em considerar. Ele engoliu novamente. - Bem que os sujeitos que desenham o equipamento podiam ter feito uma sacola para vômito.

- Eu estava pensando na mesma coisa.

Depois de cerca de trinta degraus, a escada em espiral terminava em uma pequena plataforma diante de uma porta em forma de arco, escurecida e encharcada com uma substância viscosa. Jack aproximou-se e ficou atrás de Costas e ambos orientaram suas headlamps para a porta. - Aqui está - disse Jack, tentando soar animado. - O Grande Dreno. - Adiante deles, o lance direto de escadas conduzia para baixo, para dentro de um largo túnel, com pelo menos oito metros de diâmetro e cinco metros de altura, construído de pedra e tijolo, completamente coberto com alga. Enchendo o túnel pela metade havia uma massa de líquido negro que se movia, investindo na direção deles, vindo da escuridão à frente e fora de vista abaixo. Jack ligou o seu sensor auditivo externo, e sua cabeça encheu-se com o som quase ensurdecedor da torrente. Ele o desligou novamente e apontou para a corda fluorescente cor de laranja que começava onde as escadas desapareciam debaixo da água. - Esta deve ser a corda de que Massimo falou - ele disse. - Ela ficou amarrada, e nós podemos nos arrastar ao longo dela. Há uma saliência na rocha a cerca de um metro e meio abaixo dela que comumente fica acima da água, mas tenho a impressão de que iremos andar a vau. A entrada para o Velabrum fica a apenas vinte metros adiante de nós.

- Vai ser um inferno de um passeio por um parque aquático se cairmos dentro.

- O túnel desemboca no Tibre, mas Massimo diz que há uma grande grade de metal no caminho. Pode não ser um final feliz.

Costas andou com cuidado, dando o primeiro passo no túnel. Algo largo e escuro passou a grande velocidade ao longo de uma saliência estreita e comprida na frente dele. - Parece que Massimo deixou um de seus amigos aqui embaixo - disse Costas com desgosto.

- Pelo menos não deveremos ver nenhum destes lá onde estamos indo - disse Jack, que estava atrás. - De acordo com Massimo, o conduto que conduz por baixo do Palatino é puro, não contém matéria suficiente para sustentar formas de vida mais superiores.

- Isto é tranqüilizador - disse Costas. Continuaram a descer lentamente, depois alcançaram a corda fluorescente. Costas movimentou sua headlamp sobre a torrente impetuosa logo abaixo deles. Ela se parece com o café expresso - ele murmurou. - Aquela espuma em cima.

- Schiuma, você quer dizer - disse Jack. - É exatamente como Massimo a chama.

Costas colocou um pé dentro da torrente, segurando fortemente a corda com as duas mãos. O seu pé criou um amplo rastro, com uma corrente de espuma passando dos dois lados. Ele o levantou, e o que parecia ser espuma marrom, saiu com ele, mas era uma massa viscosa de cor marrom. Ele empurrou o pé para trás e balançou-o violentamente. - Jack, esta foi quase a pior coisa que já me aconteceu - ele disse, ofegante. - Para que passar por isto? Na Sicília há águas claras e cristalinas. Eu poderia ter ficado deitado à beira de uma piscina, tirando longas férias e muito bem merecidas. Mas não, nós viemos mergulhar em um esgoto.

- É fascinante. - Jack estava se agachando no degrau atrás de Costas, olhando atentamente para uma pilha de detritos lavados logo acima da torrente. Costas deu uma virada, com o pé ainda na água. - Você já encontrou o que queria? Podemos ir embora agora?

Jack puxou para o lado alguns ossos de roedores, e segurou no alto um pedaço grosso e enlameado de cerâmica. - Um pedaço quebrado de uma ânfora romana. Tipo Dressel 2-4, a menos que eu esteja enganado. O mesmo tipo que encontramos no navio naufragado, e em Herculano. O vinho que Cláudio teria bebido. Este material está em toda parte. - Ele colocou a outra mão dentro da lama e resmungou. - Há mais aí dentro.

- Deixe aí, Jack.

Jack fez uma pausa, depois retirou a mão e se ergueu. - De acordo. Só estou sendo um arqueólogo.

- Guarde a sua força para a câmara secreta. Se chegarmos lá. - Costas pegou o rolo de corda de seu ombro e prendeu uma extremidade ao prego grande e forte que segurava a corda fluorescente, e a outra extremidade na correia do seu equipamento para escalada. - Acho que podemos sacrificar uma corda aqui por segurança - ele disse. - Eu me recuso a terminar os meus dias em uma torrente de merda. Fique firme atrás de mim. - Virou-se de novo e foi descendo até que o líquido ficasse quase na altura do peito, salpicando seu visor com espuma. - Eu estou no último degrau - ele disse. - Vamos em frente agora. - Jack o seguiu, sentindo a pressão da água empurrar com força suas pernas e seu peito. Começaram se movimentar para diante com muita dificuldade e lentamente, poucos centímetros de cada vez. A sensação era de que a água era pesada, estava saturada, e Jack podia ver correntes iridescentes de matéria oleosa na superfície, depois mudando para manchas grandes de marrom e cinza, uma cor camuflagem. Tentou concentrar nas paredes, no teto, no trabalho em pedra que tinha sido feito ali bem antes do Império Romano quando o Velabrum foi tampado pela primeira vez. Virou a cabeça para trás e percebeu que o túnel fizera uma ligeira curva para a direita. Os degraus que tinham descido, da escada em espiral, estavam agora fora do alcance da vista. Ele virou-se novamente para frente e retomou a caminhada difícil, começando a ofegar muito com o esforço. Olhou para baixo para verificar seu carabiner na corda e depois ergueu o olhar. Costas tinha desaparecido. Jack pestanejou muito e limpou sua máscara. Costas ainda permanecia desaparecido. Durante um instante horrível, Jack pensou que Costas devia ter caído dentro da torrente, e segurou-se com mais força na corda grossa e estriada enquanto estava se movendo. Depois, viu uma luz embaçada saindo da parede cerca de cinco metros a sua frente, e um capacete amarelo apareceu,

- Este é o túnel lateral - disse Costas. - Amarrei a outra extremidade da corda a um prego forte lá dentro. - Jack ergueu-se contra a corrente para dar os poucos passos finais, então Costas o segurou e o puxou para dentro. Os dois homens se sentaram por um momento apoiados contra a parede lateral do túnel, ofegando. Jack sugou a bebida energética hidratante armazenada dentro de seu macacão, lavando a boca e soltando-a em seguida para se livrar do gosto desagradável. Ele olhou em volta. Estavam em um túnel menor, mas assim mesmo com três metros de altura e três metros de diâmetro, com um teto arqueado em forma de abóbada semi-cilíndrica e a superfície inferior plana, um canal cheio de água fluindo para o centro. O fluxo estava saindo de dentro da Cloaca Máxima, e a água era clara.

- Está na hora de uma verificação final e real - disse Costas, olhando para o seu aferidor de pulso. - Aqui deve ser ele. O Velabrum. Ele está orientado direto na direção do monte Palatino, e posso ver a corda de Massimo passando adiante ao longo do lado direito até onde minha vista alcança, seja onde for que ela se detenha.

Jack colocou a mão na lateral do túnel. - Esta é uma peça de engenharia impressionante - ele disse. - A Cloaca Máxima, o Grande Dreno, mostra uma alvenaria e um trabalho em pedra de vários períodos diferentes desde que foi tampado no século VI a.C. Mas este túnel é diferente, é uma construção de um só período. Blocos de pedra retilíneos e regulares na entrada. Não conheço construção melhor do que esta. Eu tinha dito que estávamos andando na direção de um dos maiores canais aquedutos feitos pelos imperadores.

Costas olhou para Jack através de seu visor. - A respeito deste lugar, Lupercal, Jack. A caverna de Rômulo e Remo. Não tenho nenhum indício sobre o que você pretende.

- Perdão por apresentar isso de repente para você. Massimo e eu falamos sobre esse assunto na conferência em Londres, logo depois que a descoberta da Casa de Augusto foi anunciada. Eu lhe disse que gostaria de vir e dar uma olhada, de me juntar ao seu grupo de espeleologia urbana. Quando percebi ontem que estávamos vindo para Roma, foi o pretexto perfeito. Assim que me dei conta de que Plínio havia escondido o manuscrito debaixo do Santuário de Vesta em Palatino, vizinho à Casa de Augusto e do local onde o Lupercal foi encontrado. Odeio manter Massimo no escuro, mas talvez ele nos perdoe assim que lhe contarmos o papel que ele desempenhou.

Costas resmungou, ergueu-se e começou a ir novamente para frente, o regato de águas claras que saía da escuridão adiante se erguia sobre seus tornozelos.

- Odeio dizer isto, Costas, mas você está arrastando alguma coisa.

Costas se virou, olhou fixamente, e fez um barulho estrangulado. Uma mistura de filamentos pegajosos de gavinhas marrons se estendia de seu pé esquerdo até a Cloaca, e aprisionada no meio delas havia uma forma com um longo rabo preto se retorcendo. Costas sacudiu o pé freneticamente, e a massa toda escorregou dentro do dreno e para fora da vista. - Nunca mais, Jack - ele disse. - Juro por Deus que você nunca mais vai fazer isso comigo novamente.

- Prometo que vou recompensá-lo. O próximo mergulho será puro deleite.

- Primeiro temos que sair da versão do inferno. - Costas retomou sua difícil caminhada subindo o túnel, e Jack o seguiu de perto. Ele ainda se sentia conectado com o mundo de fora, que estava a somente uma rápida volta para a base da escada em espiral, mas, agora, a cada passo que dava, o subterrâneo parecia estar se fechando sobre ele, havia escuridão adiante e atrás e apenas as paredes imediatas do túnel ficavam visíveis sob a luz de sua headlamp. Ele se obrigou a se concentrar, contando os passos, estimando quão próximos estavam da base do monte Palatino. Depois de trinta passos, sentiu que o ângulo havia mudado e que estavam descendo. As paredes se tornaram repentinamente salientes, rachadas. A corda fluorescente terminava abruptamente em um prego forte diante de uma piscina escura, e ele podia ver onde o teto se inclinava dentro da água cerca de cinco metros adiante.

- Isto não é natural - murmurou Costas. - Quero dizer que o túnel não foi desenhado desta maneira. Parece que houve um abalo sísmico, como algumas daquelas linhas de fratura em Herculano.

- Eles também tiveram terremotos aqui - disse Jack.

- Um bastante grande, mas há algum tempo atrás. E aqui pode ser um beco sem saída para nós, embora ainda haja bastante fluxo passando.

- É hora de nadar - disse Jack.

Costas entrou na poça e espirrou água para os lados, depois desapareceu em uma grande quantidade de bolhas. Jack o seguiu de perto, caindo sobre os joelhos e movendo-se pesadamente adiante, ouvindo o ar em seu macacão sair quando o seu sistema computadorizado automaticamente se ajustou para uma flutuabilidade neutra. A água estava extraordinariamente clara, como no cenote em que tinham mergulhado no Yucatán, e mesmo aqui Jack se sentiu alegre como sempre que estava debaixo d’água, a excitação do desconhecido. Pegou as nadadeiras que estavam enroladas atrás da barriga das pernas e enfiou-as, e saiu com velocidade atrás de Costas. Seu aferidor de profundidade mostrava três metros, depois seis. O terremoto havia criado uma fossa no túnel e eles estavam voltando para cima novamente. Viu a sua frente que Costas tinha voltado à superfície, e que o chão do túnel se elevara para menos de um metro de profundidade. Nadou para cima tão distante quanto podia, tirou suas nadadeiras de novo e saiu da água ao lado de Costas, que estava olhando adiante no túnel.

- Eu tive aquele sentimento outra vez - disse Costas.

- Qual sentimento?

- O sentimento de andar para o passado. Eu o experimentei em Herculano, mesmo no navio naufragado. Ele é estranho, como um déjà vu.

- Então, você também teve - murmurou Jack.

- Talvez ele seja a força do impulso.

- Uma vez me explicaram isso - disse Jack. - Não se trata do fato de que de alguma maneira você já esteve aqui antes, trata-se de que você já teve este sentimento emocional antes, em circunstâncias muito similares. Seu cérebro está lhe pregando peças. É um curto-circuito.

- Não, Jack. Já vi isto em você. É a força do impulso.

- De acordo. É esta força. Você tem razão. Talvez você possa usar um pouco dela para nos fazer passar pelo obstáculo seguinte. - Jack apontou para outra depressão no túnel, mais rachada e com a alvenaria fragmentada, uma outra piscina. Jack sabia que agora eles deveriam estar na verdadeira extremidade do monte Palatino, debaixo de pelo menos oitenta metros de tufo calcário quebrado. Costas entrou novamente na piscina esparramando líquido e Jack o seguiu. Desta vez, o túnel recuperou sua forma original e continuou debaixo da água, mas cerca de dez metros adiante ele ficou mais apertado. Quando Jack se aproximou nadando, percebeu que o ponto de constrição era provocado por duas colunas de cada lado. Além delas, o túnel se estreitava em uma galeria de escoamento, como um canal de aqueduto, mais alta do que larga, com um teto em forma de abóbada semi-cilíndrica. As dimensões permitiam que ficassem em pé eretos e andassem pelo túnel, em fila simples. Ele estendeu a mão e tocou a coluna com a mão direita. Ela era de granito cinzento, com manchas pretas e brancas, uma pedra vista em todas as ruínas de Roma, nas colunas do Panteão, na basílica de Trajano perto do antigo fórum. Jack sabia que o granito vinha do Mons Claudianus no Egito, a grande pedreira aberta pela primeira vez sob o imperador Cláudio, um outro de seus feitos inconfundíveis na cidade eterna.

- Maurice teria amado isso - murmurou Jack. - Seu projeto de doutoramento era sobre as pedreiras de Cláudio no Egito, e é de lá que vem esta pedra.

- Jack, dê uma olhada nisto. - Jack girou e olhou para cima, e percebeu que Costas tinha ido para a superfície cerca de três metros acima dele, movendo-se para cima e para baixo num oscilante reflexo de água, sua lanterna de cabeça formando padrões mutáveis cor de prata. Jack subiu lentamente, pressionando o seu controle de flutuabilidade para injetar ar, lembrando de exalar à medida que a pressão ambiente diminuía. Sua cabeça emergiu fora da água, e ele respirou com dificuldade, atônito. O feixe de luz de Costas estava iluminando a face de um rochedo que se erguia diretamente acima das colunas e da entrada do conduto. Ela se estendia bem alto acima deles, com pelo menos quatro metros de altura e cinco metros de largura, escavada na rocha viva. Acima deles, Jack podia ver o ornamento triangular de um frontão triangular, projetando-se meio metro para fora da rocha. Olhou para a água outra vez e viu as colunas. Era uma via de acesso monumental. Jack olhava para ela, atemorizado. Era como as fachadas desbastadas na rocha em Petra no Jordão, no entanto escondida debaixo do Palatino, uma curiosa mistura de ostentação e sigilo, a criação de alguém que se preocupava com sua própria realização, mas não com o que outras pessoas pensavam delas.

- Examine isto - disse Costas. - Dê uma olhada na face da pedra debaixo daquele ornamento triangular. - Jack ergueu a cabeça novamente acima da superfície. Um efeito de redemoinho provocado pela corrente abaixo os tinha empurrado para mais perto da face da rocha, e ela estava agora ao alcance da mão. Ele estendeu a mão e a colocou sobre a rocha. O que parecia ser bolor e muco era rocha dura, e ele percebeu que era um crescimento por justaposição de calcita, um vazamento do lençol de água sobre o qual Massimo falara. Viu regatos de água muito pequenos correndo pela rocha, evidentemente vindos da água da chuva muito acima. Depois, notou incisões regulares na rocha. Jack deu um impulso e orientou sua headlamp para cima. É claro. Devia haver uma inscrição monumental. A calcita estava sobre a inscrição como uma cobertura de açúcar, mas, em vez de manchá-la, parecia clarificá-la, cristalizá-la. Havia quatro registros, com letras de apenas sete centímetros e meio de altura, apenas suficientemente grandes para serem vistas do chão da câmara. Ele tinha estado certo. Quem quer que fizera esta dedicatória, a fizera para sua própria satisfação particular e para santificar o lugar, não para impressionar as massas. Jack a leu:

 

TI.CLAVDIVS.DRVSI.F.CAISAR.AVGVSTVS.GERMANICS

PONTIF.MAXIM.TRIBVNICIA.POTESTATE.XII.COS.V IMPERATOR.XXVII.PATER.PATRIAE.AQVAS.VESTIAM. SACRA.SUA.IMPENSA.IN.URBEM.PERDVCENDAS.CVRAVIT

 

- Isto é autêntico, não há dúvida a respeito - murmurou Jack. - Apresenta a ortografia caracteristicamente arcaica da palavra César, que se refere aos dias de glória de Julius, aos dias da República. A parede também mostra isso, ela é esculpida em forma de blocos, em estilo rústico, as superfícies são deixadas toscas, quase uma falta exagerada de acabamento. Absolutamente característico de Cláudio, de construções em que ele tinha um envolvimento pessoal. E é típico de Cláudio fazer os detalhes das epígrafes retos.

- Você está falando do nosso Cláudio? Isto foi algo que ele fez? Jack traduziu a inscrição:

 

Tibério Cláudio, filho de Druso, César, Augusto, Germânico, Sacerdote Chefe, com Poder Tribunício pela décima segunda vez, Cônsul por cinco vezes, Imperador vinte e sete vezes, Pai de seu País, acompanhou a construção à sua custa das Águas Sagradas das Vestais.

 

- Isto vai deixar Massimo contente - disse Costas. - É tudo que precisamos contar para ele. Os seus ratos de túnel podem organizar uma festa aqui embaixo. Seu herói.

- A fórmula é similar à inscrição de Cláudio no Aqua Claudia, na Porta Maggiore, onde o aqueduto entrava em Roma - disse Jack. - Mas a coisa fascinante aqui, a coisa única, encontra-se naquelas três palavras. Aqua Vestiam Sacra. As águas sagradas das vestais. O que significa que Massimo também pode estar certo acerca disso. Uma conexão com a Casa das Vestais do outro lado do Palatino, o canal que se junta ao outro que sai da Cloaca Máxima que ele explorou sob o antigo fórum.

- A coisa que parece estranha é que este não é um dreno da Cloaca - murmurou Costas. - Ele é exatamente o oposto. O fato de que a água é clara, como cristal deste lado sugere que ela deve ser assim também do outro lado, fluindo de volta em direção ao fórum. Deve haver um indício de uma grande fonte no meio disso tudo, bem debaixo do Palatino.

- Uma espécie de fonte sagrada - murmurou Jack. - Talvez as vestais fossem as guardiãs.

Costas olhou de novo para o seu computador de navegação. - Considerando a direção deste túnel e a angulação provável do outro túnel debaixo do fórum, o ponto de confluência deve ser quase exatamente debaixo de onde estávamos sentados ao lado da Casa de Augusto hoje de manhã. Talvez aquela gruta, o Lupercal, fosse de fato uma via de acesso em declive para a fonte, uma passagem secreta que saía do palácio. Talvez toda aquela tolice daquele mito, de Rômulo e Remo pudesse ser o que você diz dele.

- Acréscimo por justaposição - murmurou Jack. - Acréscimo histórico.

- Correto. Acréscimo por justaposição - disse Costas. - O acréscimo, o mito, podiam até ter realçado a importância da fonte. O primeiro assentamento de Roma ocorreu no monte Palatino, correto? Bem, o controle de uma fonte podia ter sido crucial para o seu sucesso. Talvez estejamos a ponto de descobrir a razão pela qual Roma se tornou grande.

- Você nunca cessa de me surpreender - disse Jack. - E faz sentido o fato de que as vestais estivessem envolvidas, um antigo sacerdócio que data da fundação de Roma, provavelmente de um costume anterior. Ao santificar este lugar, ao mantê-lo secreto e puro, eles também estavam salvaguardando Roma, que era o seu principal propósito.

- Está na hora de descobrir. - Costas saiu de perto da rocha e soltou ar de seu sistema de flutuabilidade, dirigindo-se para debaixo da face da rocha entre as duas colunas. Jack tardou por um instante, olhando para a inscrição, sentindo-se em estado de limbo, sua excitação repelindo uma apreensão que ainda não o invadira completamente, mas que estava ali. Ele mergulhou e seguiu Costas dentro do túnel, que agora estava completamente submerso de novo, com a abóbada de tufo calcário acima dele.

- Concreto à prova de água - disse Costas. Jack podia ver o cone de luz de sua headlamp alguns metros à frente, direcionado para uma seção da parede do canal que tinha rachado parcialmente e desmoronado.

- Uma outra especialidade de Cláudio - disse Jack, se aproximando por trás de Costas. - Foi como ele construiu os diques debaixo d’água do seu grande ancoradouro em Óstia, e o concreto é o que eles costumavam usar para alinhar os aquedutos. Aqui dentro, era provavelmente usado para impedir o lençol de água de se despejar dentro do canal, contaminando a água da fonte. O ingrediente indispensável do concreto hidráulico era um pó chamado pozolana, da antiga Pozzuoli. Que se chama Puteoli na baía de Nápoles, ao lado dos Campi Flegrei.

- Um mundo pequeno - murmurou Costas, enquanto se impulsionava à frente. Jack passou pela seção danificada e depois chegou debaixo das pernas de Costas, onde este havia parado, cerca de quinze metros além das colunas que tinham marcado a entrada para o conduto.

- Está tudo atravancado aqui - disse Costas. - Parece que houve um desmoronamento.

- Um beco sem saída? - perguntou Jack.

Costas curvou-se e procurou dentro do bolso de ferramentas em seu macacão. Retirou um dispositivo do tamanho aproximado de uma colher, ativou-o e o manteve ao seu lado. Jack observou a luz vermelha cintilante tornar-se verde. - O medidor de corrente mostra que ainda recebemos fluxo. Qualquer que seja a localização da fonte, ela ainda está a nossa frente. - Costas colocou o medidor no bolso e olhou para o aferidor em seu pulso. - E ainda estamos subindo com uma ligeira angulação, cerca de dez graus. Com esta velocidade chegaremos à superfície vinte metros à frente, se o túnel continuar com a mesma angulação depois deste entulho.

Jack moveu-se debaixo de Costas, e olhou atentamente para a mixórdia de fragmentos de tufo calcário no chão do túnel. Estendeu a mão e deslocou um fragmento, depois deslocou mais alguns. - Dê uma olhada nisto - ele disse. - Há uma fenda abaixo de nós, uma fissura na base do túnel. Ela deve ter se aberto quando o tremor trouxe abaixo o teto. Nós podemos ser capazes de passar por ela.

Costas desceu até onde Jack estava, e olhou dentro do buraco, posicionando a cabeça de maneira que o feixe de luz iluminasse dentro da fenda. - Você pode ter razão - ele disse. - Ela se alarga a nossa frente, talvez tenha a largura de um corpo, e continua até onde consigo ver. O entulho parece ter ficado compactado no topo da fissura, e não caiu dentro dela. Se pudermos remover mais ou menos dois metros, poderemos alcançar o ponto em que a fissura se alarga o suficiente para passar por ela nadando.

- É a minha vez de ir na frente - disse Jack. Costas moveu-se de costas e olhou atentamente para ele, seu visor quase tocando o de Jack e fez o sinal de aprovação. Os dois homens se conheciam muito bem e as palavras não eram necessárias. Era sempre a segunda etapa que cabia para Jack, a realização de que a evasão não era simples e fácil, que ele necessitaria voltar através de vários espaços submersos antes de alcançar a passagem final para a liberdade. Sua experiência de quase-morte quando menino num poço de mina submerso nunca o abandonara, e surgia novamente todas as vezes em que era confrontado com circunstâncias similares, todas as vezes em que sua mente começava a travar dentro da sensação de déjà vu. Ele já tinha experimentado o aperto gelado da claustrofobia antes que visse a inscrição, e agora necessitava de todas as suas reservas de energia para lutar contra ela, sua própria batalha secreta que apenas Costas conhecia. Tomar a dianteira ajudava-o a focalizar-se, a concentrar-se, a encarar o objetivo adiante como sua própria busca pessoal, a sentir responsabilidade por aquele que agora vinha atrás dele.

- Nós ainda estamos a cerca de seis metros de profundidade - disse Costas.

- Pelos meus cálculos, estamos a cerca de trinta metros do ponto diretamente abaixo da Casa de Augusto e daquele templo onde estávamos sentados no topo do Palatino.

- Muito bem. Lá vamos nós - murmurou Jack. Inclinou-se para baixo e deu um impulso para passar pela abertura. Moveu as nadadeiras com empenho, mas não foi a lugar algum. Ele estava começando a hiper-ventilar. Jack fechou os olhos, depois sentiu Costas colidir com ele por detrás. - O seu rolo de corda ficou preso numa rocha. - Ele sentiu um empurrão forte, e depois estava flutuando livremente dentro da fissura, que rapidamente se alargou para cerca de dois metros. Percebeu que estava descendo, e descendo rapidamente. Olhou para seu aferidor. Já descera quinze metros. Devia ter desativado o controle automatizado de flutuabilidade ao se comprimir para passar pela fissura, e se atrapalhou com os controles na lateral de seu capacete. Houve um assobio de gás dentro do macacão e ele reduziu a velocidade, alcançando uma flutuabilidade neutra aos dezoito metros. Pela primeira vez olhou ao longo da extensão da fissura a sua frente. A água ainda estava clara, e horizontalmente ele podia ver pelo menos até trinta metros, até um ponto em que as paredes toscas de tufo calcário pareciam juntar-se novamente. Olhou para baixo, uma escuridão absorvedora, um abismo como ele nunca tinha visto antes, profundamente abaixo do coração de uma das cidades mais antigas do mundo.

Ouviu resmungos e imprecações através do seu intercomunicador, e ergueu o olhar para ver Costas entalado na fissura. Começou a nadar de volta para ajudá-lo, e depois Costas passou, descendo até que ambos ficaram no mesmo nível a doze metros de profundidade. - Este lugar é fenomenal. - Costas ainda ofegava por causa do esforço, mas estava olhando com atenção para baixo. - A fenda da destruição.

- Eu não consigo ver o fundo - disse Jack. - Ele deve estar pelo menos cinqüenta metros abaixo de nós, até mesmo um bocado mais.

- Não me preparei com o necessário para um mergulho de descompressão debaixo de Roma - disse Costas. - Não temos gás para isso. - Ambos verificaram o registro de informação do computador dentro de seus capacetes, que mostrou que a mistura para os seus rebreathers estava se adaptando para a profundidade.

- Eu diria meia hora, não mais que isso, com vinte e cinco metros de profundidade no máximo. Qualquer outra profundidade além desta é um mergulho fanfarrão, então estamos fora disso.

- Podemos ter sorte - disse Jack. - Olhe ao longo do topo da fissura. - Ele movimentou o feixe de sua headlamp ao longo dela, e Costas o seguiu. Podiam ver o reflexo brilhante da superfície da água no seu ponto de entrada, depois nada além de rocha por cerca de dez metros, depois uma outra mancha oscilante de prateado, esta com cerca de três metros de comprimento. - É como se encontrasse a superfície novamente - disse Jack. - Vamos subir.

Começaram a subir na direção apontada pelo feixe de luz de Jack. Costas girou de costas olhando para cima e para baixo da fissura, depois olhando com atenção para a rocha diretamente acima deles. - Geologicamente, isto é muito interessante - ele murmurou, um pouco para si mesmo. - A fissura é claramente uma fenda sísmica, com dezenas, talvez centenas de milhares de anos de idade. Parece que ela sempre esteve cheia de água, suprida pela fonte. Depois, direto acima dela, há aquele túnel construído por Cláudio, desmoronado por um terremoto mais recente. Você pode perceber partes do teto cortado na rocha do túnel acima de nós. Meu palpite é que nunca se pretendeu que o túnel fosse dar dentro da fissura, mas que ele se estendesse acima dela em direção àquela piscina para a qual estamos nos dirigindo. Isto é exatamente o que eu acho. O túnel deve ser uma espécie de saída, um conduto para prevenir alagamento quando a água aqui fica muito alta.

- Olhe para aquilo - exclamou Jack, apontando para a lateral da fissura. - Há um lance de quatro, cinco degraus talhados na rocha, conduzindo para a piscina.

- Parece ser uma nascente - disse Costas. - Talvez tenha sido aqui que eles tiveram acesso à fonte. Estamos chegando quase diretamente debaixo do lugar onde aquelas cabanas pré-históricas foram erguidas, a casa de Rômulo, cerca de sessenta metros acima de nós.

Jack chegou à superfície, primeiro, depois cautelosamente subiu as escadas, estendendo o pescoço ao redor para ter certeza de que havia bastante espaço para a cabeça. Olhou para trás para se certificar de que Costas estava atrás dele, depois prendeu as nadadeiras atrás das barrigas das pernas antes de sair da água e ir para uma superfície de rocha plana. Estava dentro de outro túnel, mas espetacularmente diferente daquele pelo qual tinham vindo. Jack se virou ao redor, olhando. Na extremidade norte, cerca de dez metros a sua frente, o túnel chegava ao fim e se tornava uma pequena câmara, ligeiramente mais larga que as dimensões do túnel. Na outra extremidade, a mais ou menos a mesma distância, o túnel se abria em uma caverna rochosa, obscurecida em sombras. O próprio túnel era escavado na rocha viva, com cerca de três metros de largura e cinco de altura, com um corte transversal trapezoidal como uma pirâmide truncada. Jack girou ao redor e examinou cuidadosamente toda a extensão novamente, depois olhou de perto para uma parede, inspecionando as antigas marcas de picareta. A parede era antiga, muito mais antiga do que qualquer outra coisa que eles tinham visto. Olhou de novo. E subitamente ele compreendeu. - Meu Deus - ele sussurrou.

- Um outro túnel? - perguntou Costas, com seu físico gotejante aparecendo ao lado de Jack.

- Não somente um outro túnel - murmurou Jack. - Um dromos.

- Um quê?

- Onde você viu esta forma antes?

Costas lançou um olhar ao longo do túnel, o perfil retilíneo das paredes emoldurado por seu feixe de luz. - Na Idade do Bronze - disse ele, soando triunfante. - Na Idade do Bronze grega. Aquelas tumbas que você me mostrou em Micenas, na Grécia. Um dromos era um corredor sagrado. Do tempo da Guerra de Tróia, Enéias, tudo aquilo.

- E isto pode finalmente fixar a origem de Roma, uma vez por todas - disse Jack, com a voz baixa. - Nós nos encontramos na idade do mito novamente, Costas, exatamente como na Atlântida, o mito tornado real. Mas estou pensando em algo mais perto de casa. Isto é quase idêntico ao dromos na Gruta da Sibila em Cumas.

- A Sibila - murmurou Costas. - Então ela também tinha um apartamento em Roma.

- Tudo isto está começando a fazer sentido - murmurou Jack. - O Lupercal, a gruta sagrada da origem de Roma. Aposto que é o que está a nossa frente, aquela caverna. E acabamos de emergir da fonte, vital para a sobrevivência de Roma. Um lugar sagrado, santificado e protegido. Sabemos que o ritual de Cumas envolvia águas lustrais, ritos de purificação. E depois, há o lado negro.

- O da dissolução de todas as coisas no dia do juízo final - disse Costas.

- A entrada para o mundo subterrâneo.

- Exatamente como em Cumas, os Campi Flegrei - disse Costas.

- E no topo de tudo isto fica sentada a Sibila.

- Gostaria de saber se ela já estava aqui quando eles chegaram, os primeiros romanos, ou se eles a trouxeram consigo - refletiu Costas. - E também estou curioso em saber como as vestais virgens participam de tudo isto.

- Talvez existam respostas aqui. Precisamos chegar à caverna. Venha.

- Antes de fazer isso, você pode querer dar uma olhada na outra extremidade deste túnel. Há algo no meio daquela câmara. - Jack se virou para seguir o olhar de Costas. Com os seus dois feixes de luz concentrados, a câmara ficou mais iluminada. Caminharam ao longo da via de acesso em direção a ela. As antigas paredes estavam listradas com os depósitos de calcita que cobriam o tufo calcário como uma fina camada de gelo. Alcançaram a entrada da câmara. Ela era um domo perfeito. Com cerca de oito metros de circunferência, com pequenas aberturas retangulares no teto que antigamente poderiam ter sido respiradouros de ar, evidentemente entupidos agora. No lado mais distante havia o que pareciam ser os restos deteriorados de uma estátua, sobre um pedestal. Na frente dela havia uma depressão circular no solo com cerca de três metros de largura, rodeada por borda recortada na rocha, e preenchida com uma massa preta que se parecia com um material resinoso preto selado debaixo de um depósito de calcita. Jack olhou para aquilo, e depois para a figura deteriorada atrás dele. - É claro - ele sussurrou.

- O que é?

- Aquela estátua, parece que ela pode ter sido antigamente de uma mulher - ele disse. - Uma mulher sentada. Uma estátua de culto. E isto é um piso, um piso sagrado. - De repente, Jack ficou muito alegre e excitado. - É por isso que os santuários de Vesta no fórum e no Palatino nunca foram inaugurados, nunca se tornaram templos. É porque eles não eram os locais onde se exerciam as atividades principais, eles eram apenas a face pública do culto. Esta câmara era o verdadeiro Templo de Vesta.

- Jack, a estátua. Ela tem uma inscrição.

Jack deu a volta ao redor do piso e seguiu o feixe de luz de Costas. Na base da estátua havia uma fina placa de mármore embutido, com cerca de trinta centímetros de lado a lado. Jack agachou-se e olhou atentamente para ela. – Estranho - ele disse. - Esta não é uma inscrição dedicatória, nem uma parte do pedestal. Ela estava desprendida e colocada aqui como uma escora, ou ao menos estava até que a calcita colou-a no lugar. - Ele se curvou o mais possível, depois se encostou ao chão. O latim tornou-se claro sob seu feixe de luz, e ele leu em voz alta:

 

                 COELIA CONCÓRDIA

                 VESTALIS MÁXIMA

                 ANNO DOMINI CCCXCIV

 

- Bem, eu serei condenado ao inferno - ele disse. - Coelia Concórdia, Principal Vestal, 394 d. C. Ela foi a última vestal, e naquele ano o culto foi abandonado. Quem sabe ela fez esta placa e a trouxe para cá ela mesma, no final. É estranho, no entanto que tenham usado Anno Domini. Ano de Nosso Senhor. O império já era cristão por quase um século naquela data, mas se pensava que as vestais tinham resistido ao cristianismo até o final. Elas não participavam dele.

Costas estava silencioso, e Jack olhou para ele. - Você ainda está me ouvindo?

- Jack, isto não é uma estátua.

- O que você quer dizer? - Jack fez um esforço para ficar em pé, depois escorregou e caiu por cima da estátua, segurando-a perto de si. Ele estremeceu e recuou, inclinando-se por um momento enquanto flexionava o joelho que tinha batido no chão, olhando com cuidado para a forma deteriorada que estava a alguns centímetros de seu rosto. Repentinamente, ele gelou. Ela não era absolutamente de pedra calcária. Era um crescimento por justaposição de calcita, uma estalagmite estranha e sem forma que se erguia mais de um metro acima do solo, envolvendo um assento de pedra. Ele olhou outra vez para o que o assustou. Era uma serpente esculpida em pedra, verde, subindo contorcida pela parte de trás da cadeira, olhando para ele através de uma máscara translúcida de crescimento por justaposição.

- Não ali, Jack. Por aqui. Dentro.

Jack se movimentou dando um passo à esquerda e seguiu o feixe de luz de Costas. Então ele o viu, preso dentro do cálcio, encostado indolentemente de um lado.

Um crânio humano.

Ele respirou com dificuldade, deu um passo atrás, depois olhou novamente. Havia mais coisas. Um esterno, costelas, omoplatas. A estátua não era de jeito nenhum uma estátua. Costas tinha razão. Era um esqueleto, um esqueleto humano. Pequeno, quase como o de uma criança, mas com a maxila de alguém velho, muito velho, todos os dentes estavam faltando. Então, Jack viu algo mais. O esqueleto ostentava um colar, um colar de ouro antigo como os usados pelos gauleses, ouro maciço, uma visão extraordinária no coração de Roma, alguma antiga pilhagem, talvez do mundo celta. E acima do crânio, presos no acréscimo por justaposição havia fragmentos cintilantes de folhas de ouro e de jóias de um penteado elaborado, o penteado de uma mulher romana rica, uma matrona.

Então Jack percebeu. Ela tinha vindo aqui para morrer. Coelia Concórdia, a última das vestais. Mas uma vestal envolta em serpentes. Não apenas uma vestal. Uma Sibila.

A mente de Jack estava tumultuada. Então a Sibila não morrera com a erupção do Vesúvio. Ela tinha voltado para cá, voltado para sua gruta debaixo de Roma, para um outro lugar na entrada para o Hades. E o oráculo tinha sobrevivido, vivera por mais de três séculos depois que Cláudio encontrara a morte, depois que o antigo mundo da Sibila de Cumas havia sido consumido pelo fogo. Esta Sibila tinha visto Roma até o fim, visto Roma elevar-se e cair no final, visto além do mundo pagão e a introdução em uma nova ordem, uma cujos inícios ela tinha observado todos aqueles anos antes, entre os proscritos que ficavam perto de sua gruta ao lado dos Campos de Fogo.

- Jack, dê uma olhada na mão dela.

Jack olhou para baixo, quase incapaz de respirar. Ele olhou de novo. Então foi isso o que aconteceu com as sibilas. Elas se tornaram o que tinham previsto. Elas realizaram sua própria profecia. Ela estava segurando uma cruz.

Repentinamente ele viu um clarão de luz, uma oscilação momentânea. Por um segundo, Jack pensou que podia estar alucinando. Depois, foi violentamente arrastado para um lado, para um canto da câmara, empurrado para o chão. Uma mão bateu com força na lateral do seu capacete e sua luz se apagou. Ele ficou totalmente no escuro. A pressão sobre ele relaxou, e a voz de Costas chegou pelo intercomunicador, ela estava tensa. - Sinto muito por isso, Jack. Mas há mais alguém aqui embaixo.

 

Durante alguns momentos, permaneceram no chão da câmara, em completa escuridão. Seus intercomunicadores eram praticamente inaudíveis com o alto-falante externo desativado, embora instintivamente falassem em voz baixa. - Jack, eu achei que você tinha dito que nada mais estaria vivo aqui dentro. - Costas se deslocou até a extremidade da câmara e olhou atentamente ao longo da linha do dromos, que era um corredor sagrado, em direção à gruta na outra extremidade. Jack arrastou-se atrás dele. Suas headlamps ainda estavam apagadas, mas tinham ativado os óculos para visão noturna dentro dos capacetes. Havia luz natural apenas suficiente para os sensores trabalharem, não suficiente para ser percebida a olho nu, mas bastava para que Jack percebesse a forma de Costas a sua frente, como uma mancha verde. Fazia sentido que houvesse luz vinda das fendas e fissuras que conduziam para fora, onde a sonda dos arqueólogos tinha penetrado dentro da gruta em algum lugar à frente deles.

- Você tem certeza de que era uma tocha?

- Positivo. Eu estava olhando na direção oposta enquanto você estava comungando com a morta. Uma olhadela para aquela coisa bastou para mim. Então eu vi o feixe de luz. Ele brilhou saindo de algum lugar do lado esquerdo da gruta.

- Ali é onde o outro túnel, aquele da casa das vestais, deveria entrar - disse Jack. - Mas só Deus sabe como eles entraram ali.

- Se nós pudemos fazê-lo, outra pessoa também pode.

- O mapa de Massimo mostrava entradas dentro da Cloaca no Fórum de Nerva e debaixo do Coliseu - disse Jack. - Seus rapazes foram trazidos de volta por uma galeria de escoamento alagada, não tinham o equipamento adequado. Alguém com o equipamento correto poderia ter encontrado um caminho, mas não um de seus rapazes. Ele teria nos contado.

- Isto é uma coincidência?

- Você se lembra de Elizabeth em Herculano, a oficial superintendente? Minha antiga amiga?

- O que ela tem a ver com isso?

- Elizabeth tentou me agarrar logo antes de deixarmos Herculano, tentou falar comigo, eu acho que ela estava assumindo algum tipo de risco, ao fazer isso tão publicamente, fora da entrada da Vila, com todos os trabalhadores por perto, mas isso foi um aviso. Eu não pensei muito sobre o assunto naquele momento. Não era nada que não soubéssemos, mas um aviso.

- Você acha que estamos sendo seguidos?

- Se for quem eu acho que são, eles terão tentáculos por toda parte. E se sabem que estamos aqui dentro, devem supor que estamos atrás de alguma coisa. E se, de alguma maneira, têm alguma idéia de atrás do que estamos, é um prêmio pelo qual morreriam.

- E matar em nome disso.

Jack ergueu-se atrás de Costas e olhou por cima de seu capacete. Tudo o que pôde discernir estava manchado de verde, com manchas mais escuras na extremidade. - A única coisa que podemos fazer é agir com desembaraço. É provável que seja só um sujeito. As entradas do Fórum e do Coliseu são bastante públicas. Poderia ser muito arriscado entrar mais de um sujeito, sem serem vistos.

- Talvez as autoridades fechem os olhos diante disso.

- Roma não é Nápoles - disse Jack. - Mas você pode estar certo. No momento, todos os que estão naquela gruta vão acabar se aborrecendo consigo mesmos por manter a tocha acesa quando saírem do túnel. Imagino que eles fizeram um passeio bastante perigoso, a menos que tenham o tipo de equipamento que nós temos. E quanto mais tempo ficarmos com nossas luzes apagadas, provavelmente mais eles irão supor que nós os descobrimos.

- Você quer dizer que devemos continuar como se não tivéssemos visto nada?

- Eles podem pensar que entramos por uma passagem lateral, um beco sem saída, e voltamos novamente. Acendemos nossas luzes, vamos adiante, encontrar o que estamos buscando. Vamos ter que acender as luzes de todo jeito, para subir naquela gruta e encontrar o lugar debaixo do santuário. Eles não vão iniciar qualquer ação contra nós até que encontremos algo.

- De acordo. Acenda as luzes, vire-as para cima por detrás como se estivéssemos acabando de chegar de algum lugar.

- Eu não estou armado, Jack.

- Eu tenho o martelo de rocha em minha mão direita - murmurou Jack. -Lição aprendida. Se eu não tivesse forçado Ben a sair de férias, ele teria insistido para que trouxéssemos a Beretta. Há até um bolso para ela no macacão. Fica para a próxima vez.

- Próxima vez?

Acenderam suas headlamps - depois ficaram em pé no corredor e começaram a andar para frente, passando pela borda da piscina através da qual tinham subido. Depois de cerca de dez metros, alcançaram o final do túnel e a extremidade da gruta. Giraram seus feixes de luz ao redor, e puderam ver que se tratava de uma grande caverna natural, que se estendia pelo menos vinte metros para cima. À direita havia uma antiga escada talhada na rocha, alargando os contornos naturais da caverna, os degraus de tufo calcário tinham sofrido erosão de maneira tão violenta que estavam inclinados. À meio caminho, subindo a caverna, havia uma série de fendas muito grandes e deslocamentos na rocha, e podiam ver a continuação das escadas que prosseguiam muito acima dali, perto do teto, acima de um precipício recortado. Diretamente abaixo de uma ponta aguçada no chão da caverna, puderam ver uma abertura idêntica ao canal do aqueduto pelo qual tinham passado anteriormente, com pequenos regatos fluindo dentro dele. - Este é o outro canal - murmurou Jack, examinando cuidadosamente o que envolvia a rocha ao redor da entrada. - Você pode ver alguma coisa?

- Ainda não.

- Mas agradecemos Massimo e à corda que nos deu. Ele tinha razão. Parece que vamos ter que escalar a rocha.

- Você vai. Eu vou ficar escalando ao redor da base da caverna, explorando em busca do tesouro perdido, certo? Posso apagar minha luz, para ter um melhor contraste de luz, você sabe, para ver aquelas câmaras secretas. Algumas vezes, você pode me perder de vista.

- Tenha cuidado. É provável que este cara esteja armado.

- Ele não atirará até que encontremos o tesouro.

- Esta é a teoria.

- Então não o encontre.

- Eu lhe direi quando o encontrar - disse Jack. - Em voz bem alta.

Jack tirou o rolo de corda do ombro com presteza e começou a subir as escadas. Logo perdeu Costas de vista em meio às saliências do rochedo, e seu feixe de luz desapareceu. Jack odiava a sensação de vulnerabilidade, sabendo que havia olhos espreitando cada um de seus movimentos. Costas não era assassino, e não era uma figura das mais imperceptíveis. Jack parou e olhou para cima ostensivamente. Se jogassem as cartas direito, havia uma chance. Mas algum tipo de prova final era inevitável. Ele se enrijeceu e continuou a subir, concentrando-se apenas na subida. Depois de trinta passos, alcançou o final, o lugar onde o terremoto arrancara uma grande seção da rocha, criando uma face íngreme com pelo menos dez metros de altura. Ele inspecionou o rochedo, avaliando cuidadosamente os pontos onde podia apoiar-se. O rochedo podia ser escalado. Ele amarrou a corda na sua correia, depois soltou o equipamento do rebreather das costas, colocando-o no degrau atrás dele, soltou as mangueiras do seu capacete e ergueu o visor. Pela primeira vez desde que sentiu o bafo fétido do dreno uma hora antes, ele saboreou o ar. Estava úmido e quente, e Jack podia ouvir água gotejando ao seu redor. O temporal que Massimo havia predito devia ter começado. Ele se impulsionou para a face da rocha. O tufo calcário parecia que podia facilmente se reduzir a pó, mas ele sabia que era forte, pedra vulcânica boa, onde podia se agarrar. Ergueu-se, com as pernas e os braços abertos sobre a rocha, usando seus longos membros para encontrar apoios. Cerca de cinco metros acima, bateu o primeiro prego grande com o som reverberando através da caverna. Bateu um outro prego três metros acima. Depois de mais dois metros, ele se encontrou acima do precipício principal, com uma saliência à sua frente e depois havia escadas para cima, que continuavam dentro da face do rochedo. À direita, vislumbrou uma fissura larga com decoração de mosaicos, conchas incrustadas. Devia ser a fissura que os arqueólogos tinham encontrado debaixo da Casa de Augusto. Agora sabia com certeza absoluta que as escadas conduziam para debaixo do perdido Santuário de Vesta no Palatino, para a câmara secreta que eles estavam procurando, e que estava apenas a alguns metros à frente.

Ele se virou, martelou um último prego grande, logo acima da borda do rochedo íngreme, depois amarrou a corda em sua correia e por debaixo das costas, descendo pela corda os primeiros poucos metros. O regato abaixo do túnel que conduzia para o fórum havia aumentado muito, era agora uma torrente. A água da chuva devia ter feito com que a água do reservatório da fonte transbordasse, e o túnel estava agora cumprindo a tarefa que Cláudio havia designado para ele. Jack fez uma pausa, respirou profundamente. - Está aqui. - Gritou, tão alto quanto podia.

- Costas, eu o encontrei. Estou descendo.

Ele desceu pulando mais dois metros. De repente, alguém agarrou seu tornozelo esquerdo como se fosse um torno, e ele começou a girar descontroladamente. Ele olhou para baixo, ainda segurando a corda com a mão direita. Uma figura vestindo um macacão de mergulho estava olhando para ele, usando uma máscara de mergulho bem ajustada, as pernas em volta da corda logo acima da escada. Uma mão segurava o tornozelo de Jack, a outra uma pistola com silenciador, dirigida para a cabeça de Jack. - Dê o que encontrou para mim - disse o homem friamente, com um sotaque italiano pesado. Jack olhou para baixo e não disse nada. Uma bala passou perto de seu rosto, em seguida o som abafado do silenciador. Um tiro de advertência. Jack percebeu algo com o canto de seu olho, uma forma. Ele girou, como se tivesse perdido o equilíbrio, e mirou a cabeça do homem, uma pancada assassina. Mas o braço que segurava seu tornozelo estava mais próximo, e ele atingiu o pulso do homem, fazendo com que a pistola caísse girando dentro da caverna. Simultaneamente, Costas atirou-se sobre as pernas do homem, trazendo-o abaixo com um enorme estrondo. O homem tentou erguer-se, tropeçou, caiu e bateu no canal abaixo com um estalido repugnante, e desapareceu, e foi levado de roldão pela torrente. Jack se deixou cair para ajudar Costas, que também tinha retirado seu respirador e o visor. - Você está bem?

- Ótimo - arquejou Costas. - Eu só queria que você acertasse aquele martelo na testa do pequeno bastardo.

- Não acho que ele vai nos perturbar mais - disse Jack.

Costas limpou um pouco de sangue de sua boca e olhou para baixo. - Ele foi verdadeira e completamente expulso. - Ergueu o olhar novamente, para a face do rochedo íngreme. - Certo. Puxe-me. Isto você pode fazer por mim. Quanto antes pegarmos o que viemos procurar e sairmos daqui, melhor.

 

Vinte minutos mais tarde, estavam em um espaço estreito acima do lance final de degraus talhados na rocha. Jack se espremeu em direção à fenda até onde conseguiu ir, os braços erguidos acima dele dentro da cavidade da câmara. Ele não pôde perceber nada. Insinuou-se um pouco mais, mas não adiantou. Sua cabeça estava apertada na lateral contra o topo da fenda, e tudo que conseguiu ver foi a lateral da fissura entalhada a alguns centímetros de seu rosto. Tateou cegamente com as mãos, mas havia somente um espaço vazio. Arqueou as costas, empurrando fortemente, e sentiu que se movia insignificantemente à frente, um ou dois centímetros. Subitamente, seus dedos encontraram uma resistência. Rocha molhada, alisada, diferente da rocha irregular da fissura. Separou as mãos e tateou ao redor. Era uma câmara circular, com cerca de sessenta centímetros de largura, escavada na rocha viva. Ele a percorreu com os dedos até onde conseguiu alcançar, e tocou a base da câmara. Passou lentamente os dedos ao redor da borda. Nada.

Ela estava vazia.

Jack escorregou ligeiramente, e olhou atentamente para a face apenas visível debaixo de seus pés. - Posso tatear a câmara. - Sua voz soou peculiar, ressoando na câmara, mas depois morrendo na fissura. - É um buraco cilíndrico furado dentro da rocha. Posso tatear tudo ao redor da base. Não há nada dentro.

- Tente no meio. - A voz de Costas soava distante, abafada. - Talvez haja uma outra câmara menor escavada abaixo dela.

Jack virou até onde pôde para a direita, um ou dois centímetros novamente. Lentamente, estendeu a mão esquerda até o outro lado, o fundo da câmara. Ela estava molhada, com pequenas saliências estreitas e compridas e sulcos, como se tivesse sido terminada de maneira tosca. Ele alcançou o outro lado, Subitamente, puxou a mão para trás novamente. Havia uma regularidade nos sulcos.

Ele tateou ao redor, os olhos fechados, seguindo as marcas, tentando descobrir o que estava tateando. Não havia dúvida acerca daquilo. - Você tem razão - ele disse excitado. - Posso sentir o contorno de um outro círculo, um círculo interior no chão da câmara. Acho que é uma tampa, uma tampa de pedra. Posso sentir marcações nela.

- Uma alça? - perguntou Costas.

- Não. Ela é completamente plana em cima. Não faço idéia de como vamos abri-la.

- E aquelas marcações?

- Eu pude contar vinte por enquanto - disse Jack. - Espere. - Ele recuou com dor quando apertou o capacete contra a fenda, tentando sentir cada parte da superfície da tampa. Percorreu tudo ao redor com a mão. - Não, vinte e três. Elas estão em círculo, ao redor da tampa. São letras, letras salientes talhadas em pequenos blocos, colocados levemente dentro da superfície da pedra. É curioso. De fato, eu posso pressioná-los ligeiramente.

- Você consegue lê-las?

Jack passou os dedos ao redor das letras. Subitamente, ele percebeu. - É o alfabeto latino, o alfabeto do final da República Romana e do início do Império. Vinte e três letras. De alfa a zeta.

- Jack, eu acho que o que você conseguiu aí é uma combinação de fechadura. Estilo romano.

- Hein?

- Se não há uma alça, a tampa deve ter algum tipo de abertura por meio de mola, colocada por baixo para empurrar a tampa para cima. Eu acho que é uma mola de bronze, colocada ao redor da borda da câmara interior. As letras devem formar uma combinação para abrir a fechadura, provavelmente está ligada a pinos de pedra ou de metal que seguram a tampa dentro da rocha. A combinação pode ser ajustável, permitindo que a pessoa a use para modificá-la a cada vez com um novo código. Pressione a combinação correta, e pronto, a tampa salta fora.

- Vinte e três letras - Jack murmurou. - E não há jeito de saber quantas é necessário pressionar. Nem quero começar a calcular o número de possibilidades.

- Vamos começar com o óbvio - disse Costas. - Foi Plínio, o Velho, quem colocou o manuscrito aqui, certo? Qual era seu nome completo?

Jack pensou por um momento. - Caius Plinius Secundus.

- Muito bem. Pressione as iniciais.

Jack visualizou o alfabeto latino em sua mente, e passou o dedo ao redor do círculo até chegar em cada letra. C, P, S. Ele as pressionou na ordem correta, e elas abaixaram muito ligeiramente, mas não mais. Tentou de novo, depois em uma ordem diferente. Ainda nada.

- Não serve - disse Jack.

- Então, seu palpite é tão bom quanto o meu - disse Costas. - Você também pode tentar combinações ao acaso. Nós não devemos ficar aqui mais do que uma semana.

- Não. Espere. - A mente de Jack estava acelerando. - É possível ter o palpite certo. Vamos pensar sobre isto. Plínio recebeu o documento de Cláudio. Ele prometeu escondê-lo fora da casa de Cláudio. Plínio mantém a sua promessa, e nunca adia nada do que precisa fazer. Ele tinha muito mais coisas a fazer, dirigir a base naval, escrever seus livros. Ele leva sua veloz galera direto para Roma, subindo o Tibre direto, vem direto para cá, para o cofre de depósito de segurança do Almirantado, retorna no mesmo dia para Misenum na baía de Nápoles, justo a tempo de pegar a erupção. O nome de quem está fresco em sua memória?

- Você quer dizer o nazareno?

- Não. Não é o suficiente para um código, e ele pode ser muito óbvio. Eu penso no próprio Cláudio. Tibério Cláudio Nero Germânico. - Jack fechou os olhos novamente, movimentou sua mão sobre as letras e pressionou-as. T, C, N, G. Nada. Ele repetiu. Novamente nada. Ele exalou de maneira impetuosa. - Não serve.

- Talvez você tenha esquecido uma letra. Imperador?

- Imperador. - Jack encontrou a letra, depois a pressionou. Ainda nada. Ele pressionou de novo, depois de repente respirou rapidamente. - Não. Não Imperador. Cláudio não era mais imperador. Ele precisou se esforçar para dizer isto a Plínio. Não um imperador. Ele tinha se tornado uma outra coisa. Algo que devia ter divertido a ambos.

- Cláudio, o Deus - murmurou Costas.

- Divus. - Jack procurou de novo ao redor e encontrou a letra D. Pressionou-a tão fortemente quanto podia. Algo cedeu, e a letra abaixou pelo menos dois centímetros. De repente, a tampa pulou para cima, e Jack rapidamente retirou a mão para impedi-la de ficar presa. - Acertamos - ele disse excitado. Colocou a mão onde tinha estado a tampa. Pôde sentir a espiral de uma pesada mola de bronze, agora segurando a tampa por cerca de trinta centímetros ou mais acima da abertura que ela tinha fechado. Ele inseriu a mão. Sentiu uma forma cilíndrica, estava solta no buraco. Seu coração começou a bater fortemente. Retirou-a, desembaraçando-a das espirais de metal da mola. O cilindro era pesado para seu tamanho, feito de pedra, cerca de vinte e cinco centímetros de comprimento por quinze centímetros de largura. - Eu o peguei - ele disse, puxando o cilindro para fora da câmara e para dentro da fissura, depois o segurou sob sua headlamp. - Isto é egípcio, um vaso de pedra egípcio feito à mão. Nós fizemos uma descoberta valiosa, Costas. Este vaso é idêntico, em sua manufatura, àqueles jarros grandes na biblioteca de Cláudio onde se encontravam os manuscritos em papiro. A tampa ainda está selada com resina. Parece que Plínio não tocou nela depois. Nós podemos estar com sorte. - Passou o cilindro para baixo, para Costas, que se estirou do túnel embaixo para alcançá-lo. Jack desembaraçou-se da fissura, e os dois se agacharam, curvando-se sobre o cilindro no escuro, seus feixes de luz iluminavam a superfície de mármore mosqueado enquanto Costas virava o objeto nas mãos.

- O fazemos agora? - ele perguntou.

- Nós o abrimos.

- Estas não são condições laboratoriais controladas - disse Costas.

- Minha chamada à ordem. - Jack pegou o cilindro, pegou a tampa com uma mão e o corpo do jarro com a outra, e girou. Ele abriu facilmente, a antiga resina ao redor do lacre se rompeu e caiu no chão do túnel. Jack retirou a tampa e a depositou no chão, depois olhou atentamente dentro. - Não há papiro - ele disse, com a voz arrasada. Mas havia outra coisa, apertada lá dentro. Jack enfiou a outra mão, e retirou um objeto de pedra de superfície plana de cerca de quinze centímetros de comprimento e dez de largura, mais ou menos do tamanho de um pequeno espelho utilizado para passar cosméticos. Ele era constituído por duas folhas unidas, com uma dobradiça de um lado e um fecho de metal do outro. Jack o revirou em suas mãos e depois colocou o polegar contra o fecho. - É uma tabuleta de escrita - ele disse excitado. - Um díptico, duas folhas que se abrem como um livro. A superfície interior deve estar coberta com cera.

- Há alguma chance de que o que está aí dentro possa ter sobrevivido? - Perguntou Costas.

- Este pode ser um outro momento Agamenon - disse Jack. - O que está escrito pode ainda estar aí, mas a exposição ao oxigênio pode degradá-lo instantaneamente. Eu vou abrir. Não podemos nos arriscar a esperar.

- Estou de acordo com você. - Costas pegou um caderno de apontamentos à prova d’água e ajoelhou-se ao lado de Jack, pronto para escrever. Jack pressionou o fecho e sentiu as folhas de pedra se mexerem. - Aqui vai - sussurrou. Ele abriu a tabuleta. As superfícies internas eram sólidas, vítreas. Era de cera, lisa e perfeitamente preservada, mas ficando escura a cada segundo. Havia algo escrito nela. - Rápido - disse Jack. Passou a tabuleta para Costas, e agarrou o caderno de anotações, escrevendo febrilmente tudo o que via. - Feito - ele disse depois de menos de um minuto. A cera ainda estava lá, mas o que estava escrito na superfície tinha virtualmente desaparecido, tinha ido embora como um fantasma. Costas fechou a tabuleta e imediatamente envolveu-a em uma folha de papel bolha e um saquinho à prova d’água, depois a enfiou no bolso do peito. Ele olhou atento para Jack, que olhava fixamente para o caderno de apontamentos. - E então?

- Está em latim. - Jack fez uma pausa, pondo em ordem seus pensamentos. - Seja quem for que escreveu isto, não era um nazareno da Galiléia. O nazareno só poderia ter escrito em aramaico, grego talvez.

- Então, isto não é de Cláudio, o documento precioso.

- Ele pode ter sido escrito por Cláudio, ou pode ter sido escrito por Narciso - Jack murmurou. - É impossível dizer por esta escrita em uma tabuleta de cera se ela é a mesma encontrada no estúdio de Cláudio e escrita por Narciso. Especialmente quando ela desaparece diante de seus próprios olhos. - Deu uma olhadela para Costas. - Não, este não é o documento que estamos procurando. Também não é o fim de nossa pista. - Ele arrancou a página do caderno de apontamentos e transcreveu suas palavras rabiscadas de maneira legível numa nova folha, depois a segurou sob seu feixe de luz de modo que ambos pudessem ler:

 

                   Dies irae

                   Dies illa solvet saeclum infavilla

                   Teste David cum Sibylla

 

                     Inter monte duorum

                     Qua respiciatam Andraste regia

                     Uri vinciri verbari

                     Ferroque necari

 

- Poesia? - perguntou Costas. - Virgílio? Ele escreveu sobre a Sibila não foi?

- Seu velho demônio astuto - murmurou Jack.

- Quem?

- Eu acho que Cláudio estava mantendo a sua palavra, mas ele também estava disputando um jogo, e acho que a Sibila também disputava jogos com ele.

- Continue.

- Bem, o primeiro verso é bastante fácil. Trata-se da primeira estrofe do Dies Irae, o Dia da Ira, o hino que costumava ser fundamental na Missa de Réquiem da Igreja Católica Romana. Este é um achado incrível, porque a primeira versão dessas linhas data do século XIII. Muitas pessoas pensam que era uma criação medieval, especialmente com aquelas palavras em rima que não são encontradas em versos latinos antigos, em Virgílio por exemplo. - Jack escreveu às pressas um texto em inglês ao lado do que estava em latim. - Eis como ele é comumente traduzido, mantendo a métrica e a rima:

 

Dia da ira e do terror surgindo!

Céu e Terra em cinzas se consumindo.

A palavra de David e a destruição prevista pela Sibila se realizando!

 

Costas assobiou. - Isto soa como uma premonição da erupção do Vesúvio.

Jack fez um aceno de cabeça concordando. - Eu acho que o que temos aqui é uma profecia da Sibila, dada para Cláudio em Cumas. Ela deve ter dado estas primeiras linhas para outros, que se lembraram delas e as preservaram secretamente até elas ressurgirem na liturgia medieval católica.

- Quem é David? - perguntou Costas.

- O fato de descobrir que estes versos são tão antigos é que é a coisa fascinante, eles são do primeiro período cristão. Habitualmente, pensa-se em David como uma referência a Jesus, que se supunha ser um descendente do rei David dos judeus. Se isto é verdade, então confirma que a Sibila sabia sobre Jesus, que a associação da Sibila com o início do cristianismo, de repente, está baseada em um fato sólido.

- E a segunda estrofe?

- Esta é a nossa pista. Ela tem toda a qualidade típica de uma forma de expressão da Sibila, um enigma escrito em folhas diante da gruta em Cumas. Eis como eu a traduzo:

 

Entre duas colinas

Onde a rainha Andraste jaz,

Para ser queimada pelo fogo, para ser aprisionada por correntes,

Para ser açoitada, para morrer pela espada.

 

- O que significa? - perguntou Costas.

- A segunda parte é fácil. Extraordinária, mas fácil. Ela é o sacramentum gladiatorum, o juramento dos gladiadores. Uri, vinciri, verberari, ferroque necari. Juro ser queimado pelo fogo, ser aprisionado por correntes, ser açoitado para morrer pela espada.

- De acordo - disse Costas baixinho. - Você não pode soltar nada de novo em cima de mim. Gladiadores. Estou familiarizado com isto. E a primeira parte?

- Andraste era uma deusa britânica, de antes de Roma. Sabemos sobre ela por intermédio do historiador romano Dio Cássio, que diz que Andraste foi invocada por Boudica antes de uma batalha. Você já ouviu falar dela?

- Boadiceia, como era chamada antigamente? É claro. A temperamental rainha ruiva.

- Ela conduziu a revolta contra a ocupação romana em 60 d.C. A mais sangrenta batalha na história britânica. - Jack olhou novamente para a palavra, depois subitamente experimentou um momento de total clareza, como se estivesse acabando de acordar. - É claro - ele disse com voz rouca. - Isto é o que a Sibila quer dizer. A rainha sacerdotisa. Boudica era Andraste. - Rapidamente, examinou de novo as linhas finais. - O juramento dos gladiadores. Ad gladium, pela espada. Nós estamos sendo orientados para uma arena de gladiadores, um anfiteatro.

- O Coliseu? Aqui em Roma?

- Há muitos outros. - Jack olhou de novo. - Um lugar construído entre duas colinas, um lugar onde jaz uma grande rainha. - Subitamente, ele olhou atentamente para Costas, sorrindo amplamente.

- Conheço este olhar - disse Costas.

- E eu sei exatamente para onde estamos indo - disse Jack triunfante. -Venha. Provavelmente você não vai querer ouvir o que tenho a dizer antes de alcançarmos a luz do sol.

Costas estreitou os olhos e olhou desconfiado para Jack. - Recebido e entendido. - Ele tomou fôlego, e ambos se agacharam e ambos desceram novamente as escadas, degrau por degrau, em direção à face do rochedo íngreme, segurando na corda e colocando seus rebreathers na parte mais baixa da escada. Ambos vigiaram o túnel que havia ali, por onde seu assaltante desaparecera, mas o fluxo de água aumentara mais ainda e claramente não havia chance de alguém entrar novamente vindo daquela direção. Desceram pesadamente os degraus que restavam para atingir o chão da caverna e a beirada da água, e começaram a verificar os seus equipamentos de respiração antes de colocar e prender seus capacetes. Costas evitou cuidadosamente olhar no corredor para a macabra figura sentada na gruta sagrada, mas Jack ficou paralisado olhando para ela, subitamente consciente da monumental descoberta que haviam feito. A piscina de água escura que conduzia de volta para a Cloaca Máxima parecia menos medonha agora, um caminho para fora do subterrâneo em lugar de um portal para o desconhecido. Costas ergueu as duas mãos, pronto para prender seu visor, depois olhou para Jack. - Nós vamos acabar conhecendo o velho Cláudio bastante bem, não vamos?

- Ele se tornou um amigo - disse Jack, sorrindo. - Lá dentro eu realmente senti que ele estava conosco, incitando-nos a continuar.

- Então, ele não confiava em Plínio, afinal de contas.

- Eu acho que confiava nele como amigo, mas ele sabia que a curiosidade poderia tomar conta dele. Se Plínio tivesse sobrevivido à erupção do Vesúvio, eu desconfio um pouco de que teria voltado aqui algum dia e aberto o cilindro. Assim, ele lhe deu uma charada. Uma profecia da Sibila. O que nenhum deles sabia era que o Vesúvio acabaria com aquela história abruptamente. Aquela tabuleta de cera ficou sem ser lida desde o dia em que Plínio a depositou quase dois mil anos atrás.

- Para nós a descobrirmos.

- Acho que era o que Cláudio queria. Não que Plínio descobrisse a pista, não algum outro romano, mas alguém em um futuro distante, alguém que seguisse os indícios e revelasse seu tesouro quando o perigo tivesse passado e ele pudesse ser revelado com segurança.

- O que ele não tinha previsto era que a ameaça nunca terminaria - murmurou Costas. - Então, aonde vamos agora?

Jack não disse nada, mas olhou para Costas com uma expressão de pesar.

- Eu sei - disse Costas com resignação. - Eu sei. Um outro buraco no chão.

- Precisamos encontrar uma tumba perdida há muito tempo.

 

Vinte e quatro horas mais tarde, Jack levou Costas para perto da imponência da Catedral de São Paulo no centro de Londres, passando por um labirinto de ruas e ruelas que formavam o coração da velha cidade. Tinham passado a noite anterior a bordo do Seaquest no Mediterrâneo e voado para o aeroporto de Londres naquela manhã bem cedo. A primeira tarefa de Jack foi uma reunião com o chefe da segurança da IMU. Depois de sua experiência em Roma, o que havia começado como uma pesquisa arqueológica secreta tinha tomado uma dimensão extremamente nova. Enquanto eles ainda estivessem pesquisando, enquanto aqueles que os estavam seguindo pensassem que Roma tinha proporcionado apenas mais uma outra pista, não o objeto de sua busca, Jack sentia que eles estavam razoavelmente seguros. O destino do homem que tinha apontado uma pistola para a sua cabeça debaixo do monte Palatino era desconhecido, embora Massimo lhes tivesse assegurado que as chances de sobrevivência de um corpo que penetrou na Cloaca Máxima sem equipamento de respiração eram fracas. Parecia inconcebível que eles tivessem sido seguidos até Londres, mas Jack não queria correr riscos. Tentariam o máximo possível não chamar a atenção sobre si, e Ben e mais dois outros membros da equipe estariam espreitando em segundo plano, observando, esperando, prontos para agarrar a presa se houvesse qualquer repetição de seu encontro na antiga caverna debaixo de Roma.

- Bem-vindo à Londres ensolarada. - Costas deu um passo atrás muito atrasado quando uma série de táxis pretos passou fazendo barulho, espirrando água em seus tornozelos. Ambos vestiam jaquetas azuis Goretex, à prova d’água, com os capuzes levantados, e Costas estava procurando de maneira desajeitada lidar com um guarda-chuva. O que se iniciara como um dia fortemente coberto por nuvens, havia se estabilizado com uma constante garoa, entremeada com ocasionais aguaceiros bastante fortes. Costas inalou sonoramente, depois espirrou. - Então foi para cá que Cláudio trouxe seu precioso tesouro secreto. Parece que é uma caminhada bastante longa desde a Judéia.

- Você ficará surpreso - disse Jack, erguendo a voz acima do tráfego. - Os primeiros cristãos na Grã-Bretanha romana achavam que eles tinham uma relação direta com a Terra Santa, ainda não corrompida por Roma. Causou-lhes um sem-fim de complicações quando a Igreja Romana tentou afirmar-se aqui.

- Então nós nos encontramos na localização da Londres romana agora.

- Acabamos de entrar nela. A City de Londres hoje, o distrito financeiro, é a velha cidade medieval, e esta foi construída sobre as ruínas de Londinium. Você ainda pode perceber a linha das paredes romanas no desenho das ruas.

- Deve ter sido água estagnada - disse Costas, patinhando na água atrás de Jack. - Quem teria vontade de vir para cá?

- Olhe ao seu redor agora, para os rostos - disse Jack, enquanto passavam pelas calçadas em meio a pessoas apressadas. - Londres era quase tão cosmopolita como agora no período romano. Ela foi fundada para comerciar, era um ímã a comerciantes de todos os cantos do império. - Ele virou para a esquerda esquivou-se pelo movimento de pessoas que tinha se tornado tão grande que provocava paralisação, depois conduziu Costas por uma passagem estreita do lado oposto. - Não havia nenhuma água estagnada aqui, embora a tradição celta tenha dado para a Grã-Bretanha um caráter particular, algo que a faz parecer muito distante de alguns tipos romanos, um pouco ameaçadora.

- Então foi Cláudio que invadiu este lugar. - Costas pestanejou por causa da garoa que estava começando a envolvê-los, e depois puxou o capuz de sua jaqueta mais para frente. - Deixar a Itália por isto...

Jack enxugou a água que escorria por seu rosto, e depois foi pulando até uma outra rua. Eles estavam na Lawrence Lane, dirigindo-se em direção a Guildhall. - Cláudio estava numa missão. Quase cem anos antes, um tio-tataravô, Júlio César, tinha vindo para cá com suas legiões na parte final da conquista da Gália. Era mais uma exibição de força do que uma invasão, um pouco da antiga diplomacia de demonstração de força, para manter os bretões do seu lado do Canal.

Costas olhou tristemente para Jack por debaixo de seu capuz. - Você quer dizer que César deu uma olhada neste lugar, pensou melhor e foi embora.

- Ele tinha outras coisas em mente. Mas abriu o caminho para os comerciantes. Mesmo antes de Cláudio invadir o local, havia um assentamento de romanos na capital tribal em Camulodunum, cerca de cinqüenta milhas a nordeste da moderna Colchester. Eles traziam carregamentos de vinho dentro de ânforas por navio, exatamente do mesmo tipo daquelas que descobrimos no navio naufragado e vimos em Herculano. Perceberam que os britânicos amavam o álcool.

- Estou contente em ver que eles não mudaram. - A voz amortecida de Costas veio de vários passos atrás, e Jack se virou para ver sua figura encapuzada parada diante de um pub. Costas empurrou o capuz e apontou sugestivamente. Jack sacudiu a cabeça e o chamou com um gesto. - Estamos quase chegando. Depois haverá tempo para isto.

- É o que você sempre diz - resmungou Costas, patinhando atrás de Jack. - De volta para a Londres romana, então. Havia um bando de estrangeiros aqui, portanto um bando de idéias estrangeiras também.

- Exatamente. - Chegaram à esquina da Gresham Street, e Jack apontou para a igreja do lado oposto. - É por causa dela que viemos para cá. Não é tão grande quanto a Igreja de São Paulo, mas é do mesmo período, do mesmo arquiteto. Uma das igrejas da City de Londres reconstruída por Sir Christopher Wren em seguida ao Grande Incêndio de Londres em 1666.

- St. Lawrence Jewry. - Costas olhou para um mapa turístico encharcado que tinha retirado do bolso.

- O nome diz tudo. - Jack esperou um barulhento táxi passar. - Este era o bairro judeu de Londres até os judeus serem expulsos no século XIII. St. Lawence Jewry é da Igreja da Inglaterra, anglicana, mas no caminho há igrejas católicas, capelas protestantes, sinagogas, mesquitas, você pode escolher. E quem sabe que coisas mais as pessoas estão cultuando neste mesmo momento ao nosso redor, em lugares ocultos, atrás de telas de computadores. É o que penso. Teria sido a mesma coisa na Londres romana. Hoje as pessoas adoram, sobretudo, versões do mesmo Deus, mas de algum modo isto não se distancia muito do antiquado politeísmo que romanos como Cláudio teriam conhecido, com muitos templos diferentes e variadas formas de rituais.

- Não existia também um culto do imperador?

Jack assentiu, parando apoiado a uma parede por um instante, fora da garoa do caminho. - Os romanos construíram um templo para Cláudio em Colchester, talvez um aqui em Londres também. Particularmente, não acho que Cláudio tenha pago por isso, se ele realmente sobreviveu para se ver sendo adorado. Isto teria atingido excessivamente seu perturbado sobrinho Calígula, e seu sucessor Nero. Mas, aqui nas províncias, o culto imperial era um assunto prático, uma maneira de conseguir que os nativos pagassem tributos a Roma ao mesmo tempo em que se idolatrava a figura individual do imperador.

- Os romanos não tentavam esmagar as religiões rivais?

- Não habitualmente. Esta é a beleza do politeísmo, politicamente falando. Se você já tem mais de um deus, então é bastante fácil absorver mais alguns, é menos incômodo do que tentar erradicá-los. E a absorção de deuses estrangeiros confirma a autoridade dos seus deuses sobre os dos estrangeiros. Foi isso que aconteceu na Grã-Bretanha romana. O deus celta da guerra foi absorvido no culto de Marte, o deus romano da guerra, que tinha anteriormente absorvido o deus grego da guerra, Ares. Os deuses associados a Boudica, Andraste, eram ligados a Diana e Ártemis. Mesmo o cristianismo adaptou rituais pagãos para os seus cultos religiosos, a idéia do templo, sacerdotes. Quase tudo que você vê sobre aquela igreja lá adiante deve ter sido desconhecido para os primeiros cristãos, até mesmo a idéia de uma religião com atos de adoração. Para alguns deles, isso leria sido anátema.

- Talvez até para o próprio messias.

- Pensamento provocativo, Costas.

- Lembre que eu fui educado na Igreja Ortodoxa. Posso dizer estas coisas. Em Jerusalém, na Igreja do Santo Sepulcro, os gregos acham que eles são os mais próximos de Cristo, os zeladores da tumba. Mas todas as outras congregações religiosas que lá se encontram pensam o mesmo: os armênios, os católicos romanos, e as outras que você quiser, todas comprimidas e em oposição, competindo. É um pouco ridículo, de rato. Estão tão envolvidas com os detalhes que perderam de vista o todo.

Jack conduziu Costas animadamente pelo caminho, passando pela igreja e entrando em Guildhall Yard. Poucos metros atrás deles ficava a parede ocidental da igreja, e diante deles, colocado sobre placas de calçamento no pátio, encontrava-se um grande arco de pedra preta, como uma parte de um enorme relógio de sol que se estendia sob as construções circundantes. O celular de Jack tocou e ele respondeu rapidamente, e depois começou a andar em direção à entrada da Guildhall Art Gallery ao longo do arco. - Jeremy já chegou - ele disse. - E lembre-se deste alinhamento. Ele esclarece o que estamos prestes a ver.

 

Dez minutos depois, pararam quase exatamente no mesmo ponto em que estavam antes, mas oito metros abaixo do chão. Eles estavam num amplo espaço subterrâneo, iluminado por detrás ao redor das bordas em ruínas, de tijolo e alvenaria, diante deles. Tinham tirado os casacos, e Costas estava lendo uma placa descritiva. - O anfiteatro romano - murmurou. - Eu não tinha idéia.

- Nem ninguém mais tinha, até poucos anos atrás - disse Jack. - Muito da cidade acima da Londres romana foi destruída pelo bombardeio alemão durante a Segunda Guerra Mundial, e a desobstrução e a reconstrução permitiram que se fizessem muitas escavações arqueológicas. Mas a ocasião para uma grande escavação em Guildhall Yard só se concretizou no final dos anos 1980. Este foi o achado mais surpreendente.

- Aquele arco elíptico no calçamento acima de nós - murmurou Costas. - Agora entendi.

- Aquele é o contorno da arena, o espaço central do anfiteatro - disse Jack.

- Qual a data disto?

- Você se lembra da revolta de Boudica? Isso foi no ano 60 d.C., mais ou menos na mesma época do naufrágio do navio de São Paulo. A Londres romana tinha sido fundada quinze anos antes disso, logo em seguida à invasão de Cláudio em 43. Boudicca destruiu o local, mas ele logo foi reconstruído e houve grandes projetos de construção em andamento dentro de poucos anos. O anfiteatro foi feito de madeira, mas tinha a parede de pedra e tijolo que você vê ao redor da arena, e que provavelmente começou em algum período dos anos 70.

- Na época da segunda visita de Cláudio, aquela em que esteve incógnito. Jack pegou sua tradução do enigma extraordinário que tinham descoberto na tabuleta de cera em Roma. - Entre duas colinas - ele disse em voz baixa. - Era como Londres se mostrava, com o rio Walbrook correndo entre elas. Em seguida o juramento dos gladiadores. Para ser queimado pelo fogo, para ser aprisionado com correntes para ser açoitado, para morrer pela espada. Esta deve ser a localização.

- Onde jaz o corpo da rainha Andraste - murmurou Costas.

- Durante séculos, as pessoas procuraram pela tumba de Boudica - replicou Jack baixinho. - No entanto, ninguém suspeitou que ela estava bem debaixo dos narizes dos romanos, no coração de sua capital.

- Mas exatamente onde?

- Há um lugar aqui que não foi escavado, entre o anfiteatro e a Igreja de St. Lawrence Jewry - disse Jack. - Logo atrás da parede lá adiante. - Naquele instante, ouviu passos se aproximando atrás deles, e girou alarmado, depois relaxou. - Eis aqui alguém que pode ser capaz de nos contar mais a respeito. - Um jovem alto e magro, com desgrenhados cabelos loiros e usando óculos aproximou-se com longas passadas, sorrindo e acenando com a mão como cumprimento. Com sua jaqueta Barbour encharcada e calças de veludo, ele parecia a quinta-essência do cavalheiro inglês do campo, mas o seu sotaque era americano. - Olá, rapazes. Acabei de sair do trem que vinha de Oxford. Sorte que o seu chamado me pegou no instituto ontem, Jack. Eu estava saindo para passar uma semana em Hereford e estudar a biblioteca perdida na catedral. Maria me deu responsabilidade completa para isto, você sabe. Vir para cá é uma mudança muito repentina para mim, e eu estava um pouco preocupado por cancelar o meu compromisso anterior. Não consegui falar com ela pelo celular.

- Ela ainda deve estar em Nápoles - disse Jack. - Ela e Hiebermeyer estão lidando com as regras oficiais que impedem que as coisas sejam feitas rápida e facilmente. Não se preocupe, eu lhe enviarei uma mensagem.

- Tive tempo para passar um par de horas no Balliol College ontem no fim da tarde - disse Jeremy. - Descobri que eles foram proprietários da Igreja de St. Lawrence Jewry do século XIII ao século XIX, e ainda possuem o arquivo. Dei uma olhada no que você queria. Acho que encontrei o suficiente para você continuar, mas preciso voltar para lá depois de visitarmos a igreja. Há uma pista verdadeiramente intrigante que eu quero seguir.

- A propósito, é ótimo encontrá-lo, Jeremy - disse Costas. - Não esperava vê-lo tão cedo.

- A coisa toda ainda parece um sonho - disse Jeremy. - A caçada ao tesouro perdido dos judeus, Harald Hardrada e os vikings, as cavernas subterrâneas do Yucatán. Eu acho que poderia escrever sobre isso tudo, mas ninguém me acreditaria.

- Escreva uma história de ficção - disse Costas. - Apenas nos deixe fora dela. No momento, estamos tentando permanecer anônimos. Tivemos um encontro ligeiramente desagradável em Roma. Num subterrâneo.

- Jack me contou a respeito - disse Jeremy. - Vocês parecem fazer do risco um hábito. Acho que reconheci, na galeria acima, alguém do Seaquest.

- Ótimo - disse Jack. - Eles estão aqui.

- Temos meia hora antes de podermos entrar na cripta.

- Cripta? - perguntou Costas.

- Não tema - disse Jeremy. - Ela está vazia. A primeira pelo menos está.

Costas lhe lançou um olhar dúbio, depois se sentou em uma cadeira e recostou-se, esticando as pernas. - Ótimo. Então conseguimos um pouco de tempo. Tenho algumas questões. Atualizem-me. Vocês podem me contar sobre este lugar antes dos romanos. Sobre Boudica - ele disse.

Jack olhou para Costas, entusiástico. - A Londres pré-histórica era um lugar estranho. Não era um assentamento, até onde sei, mas um lugar onde algo estava acontecendo. Meu melhor palpite é de que era um lugar sagrado. O problema é que não sabemos grande coisa sobre a religião na Idade do Ferro, porque eles não construíram templos nem fizeram representações de seus deuses que sobreviveram. Quase tudo o que temos para nos basear são os historiadores romanos, muitos deles tendenciosos, e passam informações de segunda mão.

- Druidas - disse Jeremy, sentando-se na beirada da parede do anfiteatro, olhando de modo penetrante para Jack. - Druidas e sacrifício humano.

Jack fez um gesto de assentimento. - Quando o general romano Suetônio Paulino ouviu falar da revolta de Boudica, ele estava atacando a remota ilha de Mona, a moderna Anglesey ao norte do País de Gales. Essa era a última fortificação do povo britânico que havia se recusado a aceitar o domínio romano, e o baluarte sagrado dos druidas.

- Os sujeitos com mantos brancos - murmurou Costas.

- Esta é a imagem vitoriana, um tipo de figura como Gandalf de O Senhor dos Anéis, um Merlin, que juntava visco e viajava desarmado em meio a reinos que guerreavam entre si. A idéia de sacerdotes mediadores provavelmente seja exata, mas o resto é pura fantasia.

- Tácito descreve uma figura bastante assustadora - disse Jeremy.

Jack assentiu novamente, tirou um livro de sua mochila caqui e abriu-o. - Agrícola, o sogro de Tácito, tinha sido governador da Grã-Bretanha, de maneira que sabia sobre o que estava falando. Os romanos em Mona eram confrontados por um grupo relativamente grande de inimigos ao longo da costa. Entre eles se encontravam os druidas, que, como ele diz, estavam erguendo as mãos ao céu e gritando maldições mortais. Depois que os romanos se saíram vitoriosos, destruíram os bosques sagrados dos druidas, lugares onde estes encharcavam seus altares com o sangue de prisioneiros e consultavam seus deuses usando entranhas humanas.

- Isto soa como os feitos de alguns padres que conheci - disse Costas. - Poder por meio do terror.

- Existem muitos paralelos históricos, como você diz.

- A Igreja na Idade Média, por exemplo - murmurou Jeremy. - Submissão, obediência, confissão, vingança, retribuição.

- Todas as coisas que os primeiros cristãos teriam abominado - disse Jack.

- E não eram apenas os druidas machos que havia em Anglesey - disse Jeremy.

Jack abriu o livro novamente. - O que realmente aterrorizou os romanos, o que lhes causou pavor a ponto de paralisá-los foram as mulheres.

- Isto está ficando ainda melhor - murmurou Costas.

- Hordas de mulheres fanáticas, mulheres vestidas de preto com cabelos desgrenhados como Fúrias, brandindo tochas. - Jack deixou o livro de lado. - Esse foi o pior pesadelo dos romanos. A imagem da Amazona, a rainha guerreira, era a que realmente mantinha o romano macho acordado à noite. Tácito deve ter exagerado esse aspecto da Grã-Bretanha para brincar com as fantasias romanas a respeito do mundo bárbaro, um mundo além de controle, um mundo sem racionalidade ou método aparente. Mas toda a evidência sugere que ele era verdade, que os romanos realmente caminharam dentro de sua própria visão de inferno, um mundo de rainhas amazonas e de espíritos que gritam alto e são ouvidos quando alguém vai morrer.

- Boudica - Costas disse baixinho. - Vocês estão dizendo que ela era uma espécie de druida?

- Nós sabemos de uma outra rainha britânica, Cartimandua, rainha dos Bogantes - replicou Jack. - Mas talvez tenham existido outras, talvez as mulheres com freqüência ocupassem o poder. E uma rainha habitualmente significa uma sacerdotisa importante. Lembre-se que o imperador romano era pontifex maximus, os faraós egípcios eram reis-sacerdotes, as rainhas e as pessoas da mesma espécie da Inglaterra são defensoras da fé.

- Uma rainha ruiva guerreira arquidruida - disse Costas debilmente. - Deus ajude seus inimigos.

- E como Londres se ajusta nisso tudo? - perguntou Jeremy.

- Eis aqui o lugar onde podemos de fato devotar-nos seriamente à arqueologia. - Jack desenrolou um mapa no chão, e Jeremy ajoelhou-se e segurou os cantos. - Ou, antes, onde ele não está. Este mapa mostra a área de Londres durante a Idade do Ferro. Como vocês podem ver, não há uma indicação clara de um assentamento na localização de Londinium, onde estamos agora. Alguns poucos achados de cerâmica, algumas das moedas de prata que as tribos começaram a produzir nas décadas antes da conquista romana. Não muito mais que isso.

- O que é isso? - Costas apontava para um objeto marcado no rio Tâmisa a oeste da cidade romana. - Uma couraça?

- O Battersea Shield, um escudo de bronze. Uma das mais finas peças de trabalho em metal da Antiguidade já encontradas, que rivalizava com as melhores que os romanos produziram. Você pode encontrá-la no Museu Britânico. Provavelmente data do século anterior à chegada dos romanos, e pode realmente sugerir o que acontecia neste lugar.

- Continue.

Jack permaneceu agachado. Quase todas as outras maiores cidades da Grã-Bretanha romana foram construídas sobre as localizações das capitais tribais da Idade do Ferro, quase sempre muito próximas das antigas fortificações. Camulodunum, onde os romanos construíram o seu templo para Cláudio, era uma colônia para veteranos romanos instalada no topo da capital tribal dos Trinovantes, uma tribo celta. Verulamium ficava ao lado da capital da tribo dos Catuvellauni. Era um sistema engenhoso, projetado para incutir a autoridade romana no coração do velho mundo tribal, e também para manter o poder básico dos velhos líderes tribais que se tornaram novos magistrados. O poder era delegado, mantendo a ambição da autoridade nativa, exatamente como os britânicos fizeram na índia.

- Mas Londres era a exceção - disse Jeremy.

Jack concordou. - Depois de começar como um porto de rio, Londres se tornou a capital provinciana quando foi reconstruída em seguida à revolta de Boudica. Mas algo estava acontecendo aqui antes que os romanos chegassem, algo realmente fascinante. O Battersea Shield era quase com toda certeza uma manifestação ritual, um objeto valioso deliberadamente lançado no rio como uma oferenda em cumprimento de um voto. Há outros achados como este encontrados no rio Tâmisa e seus afluentes, em rios e piscinas, espadas, escudos, lanças. Esta é uma tradição que remonta pelo menos à Idade do Bronze, e dura até o período medieval.

- Excalibur e a Dama do Lago - murmurou Jeremy.

- Oferendas parecem ter sido feitas nas fronteiras tribais - continuou Jack. - Talvez para armar o deus de sua tribo, era uma maneira de afirmar reivindicações territoriais, um pouco como o ritual medieval de bater tambor, nos limites da paróquia no dia de prece pública. E Londres era o maior local com fronteiras entre todos os que existiam, com pelo menos cinco áreas tribais convergindo para o Tâmisa. Anglesey pode ter representado a extremidade do mundo britânico na Idade do Ferro, mas Londres pode ter sido o seu ápice ritual.

- Ainda assim não foram encontrados templos - disse Costas.

- Você se lembra do relato de Tácito, os bosques sagrados em Anglesey? Londres estava densamente reflorestada na época da invasão romana, logo acima da borda da água. Dentro da floresta, ao longo da margem do rio e seus afluentes, havia clareiras, bosques, lugares agora perdidos debaixo das ruas de Londres.

Costas olhou atentamente para o mapa. - E que tal isto? Em 60 d.C., quando Boudica se revoltou, o único lugar que realmente não puderam submeter foi Londres, o novo assentamento romano construído em seu local sagrado. Eles evitaram o pior para ela.

Jack concordou de maneira entusiástica. - Tácito revela sua importância sem compreendê-la. Depois que os rebeldes devastaram Camulodunum e compeliram os sobreviventes romanos para dentro do templo de Cláudio localizado ali, os guerreiros celtas ouviram um presságio. Na embocadura do Tâmisa, um assentamento fantasma tinha sido visto em ruínas. Um mar estava vermelho, cor de sangue, e formas como cadáveres humanos eram vistos na maré vazante. Para Boudica, isto era um sinal para onde ir em seguida.

- O que aconteceu quando Boudica atingiu Londres?

- Não havia sobreviventes. O que Tácito diz é que o general Suetonis e seu exército alcançaram Londres vindos de Anglesey, antes que Boudica chegasse, mas ele decidiu que sua força era muito fraca para defender o local. Havia lamentos e apelos, e os habitantes tiveram permissão de deixar o local com ele. Aqueles que ficaram, os velhos, as mulheres, crianças, foram todos massacrados pelos bretões.

- O historiador Cássio Dio relata mais fatos. - Jeremy pegou um outro livro que Jack tirara de sua mochila. - Segundo me lembro, ele é a única outra fonte sobre Boudica, e escreveu mais de cem anos após o evento, mas talvez baseado em relatos perdidos de primeira mão. - Ele encontrou a página. - Eis o que os bretões fizeram para os seus prisioneiros":

 

A pior e mais bestial atrocidade cometida por seus captores foi a seguinte. Penduraram nuas as mulheres mais nobres e mais eminentes, cortaram fora seus seios e os costuraram em suas bocas, de maneira que dava a impressão de que elas os estavam comendo; em seguida empolaram as mulheres em espetos afiados que atravessavam todo o comprimento de seus corpos. Tudo isso eles fizeram com o acompanhamento de sacrifícios, festas e comportamentos usuais. Isto eles fizeram em seus lugares sagrados, especialmente no bosque de Andraste, o nome que davam para a deusa da Vitória.

 

- Isto se parece com uma cena de Apocalyse Now - murmurou Costas.

- Pode não estar muito longe - disse Jack baixinho. - O nome Boudica significa Vitória, e pode ser que seu bosque sagrado fosse uma espécie de charco à altura do rio, o seu Santo dos Santos.

- O seu próprio inferno particular, você quer dizer - disse Costas.

- Geoffrey de Monmouth achava que houve decapitação em massa - disse Jeremy baixinho. - Ele estava escrevendo no século XII, quando crânios humanos começaram a ser descobertos ao longo de Walbrook. Eles têm sido encontrados desde então, quando o rio está sendo escavado de fora para dentro. Crânios, centenas deles, arrastados de algum lugar e enterrados no cascalho do rio, bem debaixo do coração da cidade de Londres, onde o Walbrook flui para o Tâmisa. Geoffrey de Monmouth foi o primeiro a ligar os crânios com Boudica.

- Eu não entendi. - Costas pegara o livro de Tácito de Jack e estava folheando as páginas, parando e lendo. - Aqui vamos nós de novo. Sacrifícios, orgias de carnificina, cidades inteiras completamente destruídas, todos assassinados. Homens, mulheres, crianças. Corrijam-me se estiver errado, mas não parecem ser atos de alguém que simpatiza com o cristianismo. Eu não entendo por que Cláudio teria trazido seu documento precioso para Boudica, para sua tumba.

- Nós não sabemos o que estava acontecendo - disse Jack. - Jesus pode ter sido visto como um camarada rebelde contra o governo romano, um iconoclasta. E se Tácito e Cássio Dio estão certos, Boudica agiu por vingança, por desforra realizada à maneira dos bárbaros, que ela devia saber que causaria grande temor nos corações dos romanos.

- Ela também devia saber que era um ato suicida e que ela entrara num caminho sem volta - murmurou Costas. - Talvez isto a enlouquecesse. Lembrem-se de Apocalyse Now, o coronel Kurtz. Uma causa nobre, métodos insanos. Talvez Boudica tenha sido consumida por seu próprio coração de trevas.

- Falando nisso, está na hora. - Jeremy ergueu-se. - O diretor está abrindo a cripta especialmente para nós durante o concerto do meio-dia na igreja. Venham.

 

Alguns minutos mais tarde, encontravam-se dentro do pórtico da Guildhall Art Gallery, olhando para o pátio com a linha elíptica do anfiteatro romano marcada ao longo dele. A direita deles ficava a fachada do próprio Guildhall, e à esquerda a forma funcional e sólida de St. Lawrence Jewry, reconstruída depois da Segunda Guerra Mundial para se parecer o mais possível com o desenho original de Sir Christopher Wren como era antes do Grande Incêndio de Londres em 1666.

- Este local parece imaculado agora, mas ele passou por três círculos do inferno - disse Jack baixinho, olhando para a garoa. - A revolta de Boudica em 60 d.C., o massacre, possivelmente sacrifícios humanos. Depois o Grande Incêndio de 1666. Dos edifícios por aqui apenas o Guildhall não foi completamente destruído, por causa dos velhos carvalhos que não queriam queimar. Alguém que estava aqui disse que ele parecia um pedaço de carvão claro e brilhante, como se fosse um Palácio de Ouro ou um grande edifício de latão queimado. Então, três séculos mais tarde, o inferno o visitou novamente. Dessa vez de cima.

- Em 29 de dezembro de 1940 - disse Jeremy. - A Blitz.

- Uma noite entre muitas - replicou Jack. - Mas, naquela noite, a Luftwaffe atacou uma milha quadrada da cidade, a City de Londres. Minha avó estava aqui, trabalhava como mensageira no Ministério da Aeronáutica. Ela contou que o som das bombas incendiárias que caíam era odiosamente gentil, como uma pancada de chuva, mas que as bombas altamente explosivas tinham sido aprontadas com tubos de modo que elas gritavam em lugar de assobiar. Centenas de pessoas foram mortas e mutiladas, homens, mulheres, crianças. Aquele quadro famoso da Catedral de São Paulo envolta em chamas, mas milagrosamente intacta, representa aquela noite. St. Lawrence Jewry não teve tanta sorte. Ela se queimou como uma vela romana, as chamas se lançando acima da cidade. Um dos homens parados perto de minha avó no telhado do Ministério da Aeronáutica, observando as igrejas queimarem, era o vice-marechal da Aeronáutica Arthur Harris, "Bombardeiro" Harris. Ele viu a guerra total naquela noite. Ele foi o arquiteto da ofensiva britânica de bombardeio contra a Alemanha.

- Um outro círculo do inferno - murmurou Jeremy.

- Tudo isto ainda está aqui, debaixo de nossos pés - disse Jack. - A camada de destruição provocada por Boudica, terra carbonizada e cerâmica quebrada, ossos humanos. Depois grande quantidade de entulho da antiga igreja medieval destruída em 1666, limpada e enterrada para dar lugar às novas estruturas de Sir Christopher Wren. Depois uma outra camada de detritos resultantes de destruição provocada pela Blitz, com o trabalho de reconstrução ainda sendo feito.

- Alguma artilharia inexplorada? - perguntou Costas, esperançoso. - Lembre-se que você me deve a informação. Por causa daquele material que não queria me deixar tocar na Sicília.

Jack lançou um olhar a Costas, e depois passeou animadamente ao longo do pátio de Guildhall Yard. - Lembre-se de onde estamos, a camada do anfiteatro - ele disse enquanto pisava na linha curva no pavimento. Apontou para a parede ocidental de St. Lawrence Jewry, distante cerca de oito metros. - E a proximidade da igreja. - Eles alcançaram a entrada da igreja e rapidamente entraram nela. O concerto do meio-dia estava prestes a começar, e Jeremy os conduziu apressadamente pela nave lotada de pessoas sentadas, em direção a uma pequena porta de madeira na ala ocidental. Ele a abriu, entrou e os chamou com um gesto de mão.

Costas o seguiu, depois Jack. Quando Jack fechou a porta, a música começou. O concerto incluía uma seleção dos concertos para violino de Bach recuperados, e Jack reconheceu o Concerto em dó menor para solo de violino, cordas e baixo profundo. A música era audaciosa, confiante, alegre, o som do barroco agudo dava ordem para a confusão, estrutura para o caos. Jack demorou-se, e por um momento pensou em voltar e se sentar anonimamente na audiência. Sempre amara os concertos recuperados, o resultado de uma espécie de arqueologia musical que parecia espelhar seus próprios processos de descoberta, pequenos fragmentos de certeza reunidos por erudição, por um trabalho de suposição e intuição, que subitamente se fundiam com uma explosão de clareza, de euforia. Naquele instante, sentia que precisava de confiança, sem saber se as peças que tinham encontrado se juntariam e se a pista que estavam seguindo iria levar a uma conclusão que fosse maior do que a soma das partes.

- Venha, Jack - disse Costas. Jack fechou a porta e o seguiu descendo a escada, entrando em uma abóbada subterrânea abaixo do nível da nave. A vibração da música ainda estava ali, mas agora apenas como pano de fundo. Ele viu outra porta aberta e seguiu-os entrando em uma outra câmara, menor e mais escura. A câmara era antiga, muito mais antiga que a estrutura de alvenaria da igreja de Wren, e parecia que fora limpa recentemente. Apenas uma lâmpada elétrica pendia da abóbada feita de tijolo. Jeremy fechou e trancou a porta que dava para as escadas, e passou a mão ao longo da alvenaria perto dele. - Esta é uma câmara de sepultamento medieval, basicamente é uma cripta particular. Foi encontrada durante o recente trabalho de escavação. Este é o ponto mais distante que alguém conseguiu alcançar em direção à extremidade do anfiteatro.

- Deve ser esta, então - disse Jack. - O que acha, Jeremy?

- Concordo plenamente.

Costas olhou para eles. - Muito bem, Jack. Eu quero uma explicação para lá de boa sobre o que estamos fazendo aqui.

Jack assentiu, agachou-se e apoiou-se contra uma parede, sua mochila caqui pendurada em seu ombro esquerdo. Ele estava excitado, e respirou profundamente. - Muito bem. Quando trabalhávamos em Roma tentando decifrar o enigma, a localização me apareceu de repente e imediatamente pensei em Sir Christopher Wren e esta igreja. Quando freqüentei a escola em Londres, eu costumava vir bastante aqui, visitar os locais atingidos pelas bombas e ajudar na escavação. Isto ocorreu quando minha avó me contou o que ela tinha vivido aqui naquela noite durante a guerra. Tendo visto por mim mesmo o que o bombardeio e a limpeza haviam revelado no centro de Roma, fiquei fascinado pelo inferno anterior, por aquilo que Wren podia ter encontrado depois do Grande Incêndio de 1666. Isto foi antes do início da arqueologia, quando muitos achados quase nunca eram reconhecidos, quanto mais registrados.

- Com poucas exceções - murmurou Jeremy.

Jack concordou. - O próprio Wren tinha um interesse por coisas antigas, e mencionou materiais encontrados sob a Igreja de São Paulo. Foi isto que realmente me estimulou. Depois, descobri que St. Lawrence Jewry era propriedade do Balliol College, de Oxford. Um dos meus tios era membro do conselho do colégio, e me conseguiu uma visita ao arquivo para ver se havia qualquer registro de achados feitos aqui depois de 1666. Isto ocorreu anos atrás, e eu não tomei notas detalhadas. Por isto pedi a Jeremy para verificar.

- E você se saiu melhor do que o esperado - disse Costas.

- Jack disse que o que encontrara era apenas um fragmento, parte do diário do mestre pedreiro, mas eu o encontrei - replicou Jeremy, tirando um caderno de apontamentos do bolso de seu casaco. - Isto é fantástico. Ocorreu quando eles estavam retirando o entulho e queimando a madeira da construção no fogo, tentando encontrar buracos subterrâneos para enterrar o material, buracos não usados, fossas, galerias subterrâneas. Um dos operários descobriu uma cripta que deve ser esta câmara. Ele descreveu que estava andando por uma outra cripta quando viu uma fileira de grandes pipas com alças, de cerâmica e em pé, apoiadas contra uma parede feita de barro, de um lado da cripta. Pensou que elas poderiam ser pipas de drenagem, provavelmente o revestimento de um poço, portanto as deixou intactas. Encheram de detritos, o mais que puderam, o espaço de um dos lados e revestiram com tijolos. Depois saíram e fecharam com tijolos também a entrada da primeira cripta. - Jeremy fez um gesto em direção à parede desmoronada no lado mais distante da câmara, situada em oposição às escadas. - Lá adiante. Deve ser aquela parede. O revestimento de tijolo parece ter sido feito apressadamente, e definitivamente é pós-medieval. Parece que a parede não foi mexida desde então.

Costas parecia perplexo. - Pipas de drenagem. Então para onde isso vai nos levar?

Jack tirou uma foto de sua mochila e entregou-a a Costas. - Isso nos leva - ele disse - de volta para a Idade do Ferro.

- Ah - disse Costas. - Entendi. Não são pipas de drenagem. São ânforas.

- Mais do que apenas ânforas - disse Jack muito excitado. - É muito mais. Ânforas intactas por si só seria um achado fantástico, mas é o contexto que conta.

- O anfiteatro? - perguntou Costas. - Um bar, uma taverna como aquela que vimos em Herculano?

- Bom chute - disse Jack. - Mas esta foto é de um lugar chamado Sheepen. Foi exatamente como os arqueólogos as encontraram. Ânforas de vinho intactas, cinco delas enfileiradas, taças para beber, outros artigos. Elas são de uma sepultura.

- Então nós conseguimos uma sepultura romana? - perguntou Costas.

- Não é romana. Você se lembra do que eu disse sobre a apreciação celta por vinho? Vinho importado tinha o poder de despertar respeito, era um sinal de riqueza e de status. Não, a sepultura é de um guerreiro celta. - Jack subitamente se sentiu exuberante. - Eu sabia. Todos aqueles anos atrás, quando era garoto, eu sabia que estava na pista de algo realmente grande. Seja onde for que esta trilha nos leve, esta pode ser a realização de um outro sonho que tenho.

Costas olhou para a foto, depois para a parede de tijolos na frente deles. Começou a falar, mas de repente se deteve, paralisado. Olhou novamente para a foto, depois para Jack. - Putz grila - ele disse debilmente.

Jack olhou para ele, e fez um gesto de cabeça. - Sim.

- Não apenas um guerreiro. Uma rainha guerreira - sussurrou Costas. Jack assentiu, sem dizer nada.

- O que nós sabemos? - perguntou Jeremy.

Jack olhou para seu relógio. - Se tudo estiver dentro dos planos, o furgão com o equipamento estará lá fora dentro de uma hora. Até lá o concerto terá terminado e poderemos introduzir todo o equipamento discretamente, se o pessoal da igreja concordar.

- Eu só tenho que falar com mais um sujeito, mas é bom irmos andando - disse Jeremy, olhando para Costas, que levantou o polegar.

- Não estamos assumindo nenhum risco - disse Jack. - Pedimos equipamento completo. Pode ser que tenhamos que descer abaixo do nível do lençol de água, e quem sabe o que mais pode haver lá embaixo. Eu nem mesmo vou mexer naquela parede até estarmos prontos. Entrementes, posso simplesmente subir e ir ouvir música.

- Não, você não pode - disse Costas. - Eu ainda preciso esclarecer certas coisas. Algumas poucas coisas grandes. Como, por exemplo, o cristianismo se insere em todo este assunto da rainha guerreira.

- De acordo - disse Jeremy, empurrando seus óculos para cima e olhando para Costas. - Quando se trata do início do cristianismo na Grã-Bretanha, esta pode ser minha área. Desembuche logo, Costas.

- Antes de encontrar com você esta manhã, fomos à Biblioteca Britânica - disse Costas. - Jack precisava verificar algumas informações materiais sobre a igreja, e enquanto ele estava ocupado eu visitei a exposição de antigos manuscritos. Eu vi uma das bíblias trazidas por santo Agostinho para a Grã-Bretanha em 597 d.C. O que ocorreu quase duzentos anos depois que os romanos foram embora. É nisto que reside a minha confusão. Eu achava que foi Agostinho quem trouxe o cristianismo para a Grã-Bretanha. E pensei, como pode haver cristãos na Grã-Bretanha romana?

Jeremy, que estava sentado encostado na parede, inclinou-se para frente. - Esta é uma concepção errônea muito comum. E é isto que os historiadores da Igreja anglo-saxônica gostariam que as pessoas acreditassem, mesmo grandes nomes como Beda.

- Eu não entendi.

- A Igreja da Inglaterra, a ecclesia Anglicana, era realmente a Igreja dos anglo-saxões. Ela estava intimamente ligada com a realeza e com Roma. Suas origens estão associadas à missão de Agostinho, que supostamente trouxe o cristianismo para uma população pagã. Mas mesmo os anglo-saxões sabiam que havia existido uma Igreja anterior, quando os romanos tinham governado.

- A Igreja dos bretões - murmurou Jack. - A Ecclesia Britannorum. A Igreja dos celtas.

- Para entender mais sobre isto, devemos nos reportar a Gildas - disse Jeremy. - Um monge inglês que viveu no início do século VI, cerca de uma centena de anos antes de os romanos saírem, um par de gerações antes da chegada de Agostinho. Gildas é praticamente o único bretão que sabemos que pode ter estado vivo na época do rei Arthur. Se Arthur existiu de verdade, ele era um rei guerreiro britânico que lutava contra os invasores anglo-saxões naquela época.

- Como Frei Tuck - disse Costas.

- O livro de Gildas se chama De Excidio Brittonum, a "Ruína da Grã-Bretanha". Ele foi escrito em latim, mas consegui uma tradução. - Jack procurou dentro de sua mochila e retirou um livro cinza e azul bastante usado com um símbolo Qui-Rô na capa. Trata-se de um discurso bombástico de como os reis que governaram a Grã-Bretanha depois que os romanos foram embora falharam com seu dever cristão. Eu me interessei por ele porque Gildas menciona Boudica.

- A leoa enganosa - disse Jeremy, sorrindo.

- Isto é tudo o que ele diz, mas sugere que a lembrança dela persistia, mesmo num padre que não sabia nada de história romana, e pouco da história cristã quanto àquele assunto.

- Você não pode responsabilizar o pobre velho Gildas - disse Jeremy. - Ele realmente viveu em épocas negras.

- Ele era um clássico reclamão britânico - disse Jack. - Nada nunca estava certo para ele, no entanto, tinha uma espécie de visão romântica, não muito precisa, da Grã-Bretanha. Ela era uma ponte para o céu, suspensa na divina balança que sustenta o mundo inteiro, mas repleta de pessoas mal-agradecidas que se recusavam a temer a Deus, a curvar-se diante de uma autoridade. Hoje em dia, Gildas teria dirigido incessantemente cartas ao editor, reclamando. Ele teria amado a Internet. Ouçam isto. O objeto de minha reclamação é a destruição geral de tudo o que é bom, e o crescimento geral da maldade através do país.

- Que esclarecedor - disse Costas.

- Mas ele nós dá o primeiro relato feito por alguém da descoberta da Igreja Britânica, a Igreja Celta - disse Jeremy.

Jack concordou com um gesto, e virou a página. - Aqui está. - Ele leu em voz alta:

 

Entretanto, para uma ilha entorpecida com um frio gelado e muito afastada, como num recanto remoto do mundo, do sol visível, Cristo deu um presente feito de seus raios, quer dizer, de seus preceitos, Cristo, o verdadeiro sol, que mostra seu brilho deslumbrante para a terra inteira, não do firmamento meramente temporal, mas da mais alta cidadela do céu, que se estende além de todo o tempo. Isto aconteceu pela primeira vez, como sabemos, nos últimos anos do imperador Tibério, numa época em que a religião de Cristo estava começando a ser propagada sem impedimento: porque, contra os desejos do Senado, o imperador ameaçou com pena de morte os informantes contra os soldados de Deus.

 

- Pelo menos ele descreveu bem o tempo que fazia na ilha - resmungou Costas. - Então, o que ele fez? O imperador Tibério?

- Ele era o imperador romano na época da crucificação - disse Jeremy. Jack fechou o livro. - O tio de Cláudio governou de 14 a 37 d.C. Gildas parece pensar que o próprio Tibério era cristão, em desacordo com um Senado pagão. Isto está bastante adulterado. Muitos eruditos acham que é um anacronismo, no que se refere aos problemas que os imperadores cristãos tinham com o Senado pagão no século IV d.C., depois que Constantino, o Grande, fez do cristianismo a religião do Estado. Em nenhum outro lugar existe a indicação de que Tibério era cristão. Mas o que encontramos nos últimos dias, em Herculano, em Roma, em Londres, me fez pensar.

- Não Tibério, mas um outro imperador - murmurou Jeremy.

- A Igreja Britânica, a Igreja Celta, não deixou registros escritos. Se houve alguns, eles teriam sido destruídos pelos anglo-saxões. Mas será que Gildas estava contando uma verdade distante, uma memória do povo talvez, ou até mesmo um segredo passado de boca em boca entre os seguidores da Igreja Britânica durante mais de cinco séculos? Será que ele estava contando que houve, de fato, um imperador cristão, ou um imperador bem disposto em relação a Jesus, não Tibério, mas um outro imperador que vivia na época de Cristo?

- Cláudio - exclamou Costas.

- Isto é apenas possível. - Jack estava vermelho por causa da excitação, e gesticulava enquanto falava. - Na época de Gildas, a verdadeira identidade do imperador pode ter sido confundida. Cláudio teria sido lembrado como o invasor da Grã-Bretanha, como o imperador deificado que era adorado no templo em Colchester. Um cristão bastante improvável. Mas Gildas teria ficado sabendo de Tibério pelos Evangelhos como o imperador que tinha presidido a morte de Jesus. Para Gildas, poderia parecer o triunfo máximo do cristianismo sugerir que o próprio Tibério era um convertido. Isto teria sido uma ficção extravagante, mas Gildas vivia numa época em que muitos acréscimos fantasiosos estavam sendo feitos à história dos eventos que envolveram a vida de Cristo.

- Eu ainda não entendi a conexão com a Grã-Bretanha - disse Costas.

- Gildas estava querendo sugerir que o cristianismo chegou à Grã-Bretanha mais ou menos naquela época, durante o primeiro século d.C. - replicou Jeremy. - Ele estava mesmo sugerindo que o próprio imperador o trouxe, em pessoa. A sua obra De Excidio Brittonum era um livro exclusivamente sobre a Grã-Bretanha, não sobre uma história mais ampla.

- Qual é outra evidência da existência do cristianismo aqui no primeiro século? - perguntou Costas. - Da arqueologia, eu quero dizer.

- Não há evidência definitiva até o século II, mas é apenas no século IV que se começam a ver igrejas, sepultamentos, símbolos visíveis do cristianismo depois que ele se torna a religião do Estado - disse Jack. - Mas o cristianismo primitivo era uma religião de palavras, não de ídolos e templos. Ele era reservado, freqüentemente perseguido. Se não fossem os Evangelhos e algumas poucas fontes romanas, não saberíamos absolutamente nada sobre o cristianismo do primeiro século d.C. Você se lembra do nosso navio naufragado? Aquele símbolo Qui-Rô rabiscado era a única evidência visível que percebemos ali de cristianismo, no entanto era o navio de são Paulo, um dos episódios importantes na história do cristianismo primitivo.

- Lembre-se também quem estava falando sobre isto no primeiro período na Grã-Bretanha - acrescentou Jeremy pensativo. - Ali viviam os imigrantes, comerciantes e soldados que podiam muito bem ter trazido a idéia de cristianismo com eles, e chegaram a venerar Cristo como outros adoravam Mitra ou Isis. Mas a grande maioria da população era constituída de nativos. Romanizados até certo ponto, mas conservando muito da forma de viver celta e seus costumes. Do que Jack me contou, sua religião quase não deixou nenhum traço arqueológico. Essas pessoas não tinham tendência para construir templos e altares ou para esculpir estátuas de seus deuses. A arqueologia nunca nos diria muita coisa sobre eles.

- Muito bem - Costas estava parecendo desassossegado. - Aceitamos que existia cristianismo no início da Grã-Bretanha romana. Mas, se era assim, por que a Igreja anglo-saxônica deseja negar o fato? Quero dizer, isto não seria algo a ser celebrado, que sua religião já existia no local havia centenas de anos antes?

- Mas esta não era a religião deles - disse Jeremy calmamente.

- Hein?

- A época de Gildas, a época do rei Arthur, não foi apenas um período formativo na história política da Grã-Bretanha - disse Jeremy. - Foi também uma época em que um conflito dentro das comunidades cristãs da Grã-Bretanha começou a aparecer pela primeira vez de forma ampla, um conflito que iria configurar a história britânica. Todos conhecem a história do rei Henrique VIII, sua ruptura com a Igreja Romana. Mas poucos sabem que as raízes da Reforma Inglesa no século XVI remontam a esse período, ao tempo em que a Igreja Britânica se rebelou contra Roma e proclamou sua conexão direta com a Terra Santa, com Jesus o homem.

- A heresia de Pelágio - murmurou Jack.

- Pelágio era um outro monge inglês, anterior a Gildas, possivelmente irlandês, nascido por volta de 360 d.C., quando os romanos ainda controlavam a Grã-Bretanha. Na época de Pelágio, o Império Romano tinha sido oficialmente cristão durante várias décadas, desde a conversão de Constantino, o Grande, e esforços tinham sido feitos para estabelecer a Igreja Romana na Grã-Bretanha. O próprio Pelágio havia ido estudar em Roma, mas ficou muito perturbado com o que viu por lá. Ele entrou em conflito direto com um dos poderosos da Igreja Romana.

- Santo Agostinho de Hipona - disse Jack.

- Correto. Autor das Confissões e A Cidade de Deus. O outro Agostinho, não aquele que trouxe a Igreja Romana para a Grã-Bretanha, mas aquele cuja Bíblia você viu na Biblioteca Britânica, Costas. Vou falar dele dentro de um minuto. O segundo, Agostinho de Hipona, chegou a acreditar no conceito de predestinação, que o cristianismo era completamente dependente da Graça divina, do favor de Deus. Do ponto de vista dele, o Reino dos Céus só podia ser procurado através da Igreja, não por livre-arbítrio. Isto era uma doutrina teológica, mas que proporcionava imensos benefícios práticos para a Igreja Romana, para o recente Estado cristão.

- Dominação, controle - murmurou Jack.

- Isto tornava os crentes subservientes à Igreja, que era o canal da graça divina. Tornava o Estado mais forte, mais capaz de controlar as massas. Igreja e Estado se fundiam como um poder inexpugnável, e o palco estava montado para o mundo medieval europeu.

- Mas Pelágio não estava gostando nada disso - disse Jack.

- Pelágio provavelmente se via como um membro da comunidade cristã original que existira na Grã-Bretanha antes que a Igreja Romana oficial chegasse, que remontava aos primeiros seguidores de Jesus no primeiro século - disse Jeremy. - A Igreja Celta provavelmente era formada por muitos bretões romanizados cujos ancestrais eram celtas. O pouco que sabemos sobre Pelágio é virtualmente a única evidência direta que temos de suas crenças. Parece provável que eles consideravam o conceito de céu na terra como verdade, a idéia de que o céu poderia ser encontrado ao redor deles, no decorrer de suas vidas terrestres. Para eles, a mensagem pode ter sido interpretada como encontrar e glorificar a beleza na natureza, como amor e compaixão graças a ela. Teria sido um conceito moralmente fortalecedor, completamente em desacordo com a lassidão que Pelágio encontrou em Roma. Quando esteve aqui, ele se pôs contra Agostinho de Hipona, negou a doutrina de predestinação e de pecado original, defendeu a bondade humana inata e o livre-arbítrio. Era uma batalha sem esperança, mas ele era um guia para a resistência e seu nome ecoou através dos séculos, em lugares ocultos e reuniões secretas, numa época em que qualquer indício dessas reuniões poderia significar prisão, tortura, e até mesmo algo pior.

- O que aconteceu a ele? - perguntou Costas.

- É uma história horrível, e montou o palco para muitas coisas que aconteceram depois. A doutrina de Pelágio foi condenada como herética pelo Sínodo de Cartago em 418 d.C. O próprio Pelágio foi excomungado e banido de Roma. Não fica claro se alguma vez ele voltou para a Grã-Bretanha. Alguns acreditam que ele foi para a Judéia, para Jerusalém, para o lugar da tumba de Cristo, e foi assassinado ali.

- Já havia forças sombrias dentro da Igreja, que não tinham escrúpulos em executar o que consideravam a justiça divina - disse Jeremy. - Mas elas não puderam controlar o que estava acontecendo na Grã-Bretanha. Depois da retirada dos romanos em 410 d.C., depois que as cidades se desagregaram e se deterioraram, a Igreja Romana, que tinha sido trazida pelos bispos de Constantino, parece ter virtualmente desaparecido. Era isto que Gildas lamentava. Provavelmente ele próprio era um dos últimos monges na Grã-Bretanha da Igreja Romana do século IV, embora ela fosse bastante confusa. Com o edifício do Estado removido, a Igreja Romana não detinha mais controle sobre as pessoas que não eram atraídas pela doutrina de Agostinho. Então, os anglo-saxões invadiram a Grã-Bretanha. Eles eram pagãos. E é assim que chegamos ao segundo Agostinho, Costas. Santo Agostinho de Canterbury. Ele foi enviado pelo papa Gregório em 597 d.C. com quarenta monges para converter o rei Aethelbert de Kent, e depois disso a Igreja Romana permaneceu na Grã-Bretanha.

- Mas o cristianismo celta continuou - disse Costas.

- Ele sobreviveu ao primeiro Agostinho, e sobreviveu ao segundo - disse Jeremy. - Havia algo em sua filosofia que atraía a linhagem celta descendente dos bretões, algo que eles acreditavam que estava em conformidade com os ensinamentos originais de Jesus, que também transmitia uma verdade universal sobre a necessidade de liberdade e de aspiração individual. Algo que havia sido ensinado a eles pelo primeiro seguidor de Jesus a alcançar estas praias, talvez pelo imperador vagamente lembrado por Gildas. Uma sabedoria que eles mantiveram e apreciavam, uma memória sagrada.

- As pessoas deviam ter controle e responsabilidade por suas próprias ações, seu próprio destino - disse Jack.

- Este é o cerne da doutrina de Pelágio. Suas objeções remontavam ao próprio início da Igreja, como se pode ver em seu Comentário sobre a Epístola de São Paulo. Quando Pelágio chegou a Roma, ele viu frouxidão moral, decadência, e considerou responsável por isso a idéia de graça divina. Se tudo está predestinado e dentro do capricho de Deus, por que se preocupar com boas ações ou tentar fazer do mundo um lugar melhor? Ele objetava a noção de subserviência de Agostinho, do "dê-me o que você ordena e ordene sua vontade", que transformava as pessoas em autômatos. Ele odiava toda a noção de pecado e de culpa. Segundo o seu ponto de vista, as pessoas podem evitar pecar, o pecado não é algo que já existe em todos nós, e podemos livremente escolher obedecer a Deus, viver uma vida santa. A doutrina de Pelágio dizia respeito ao individual, ao livre-arbítrio, à força moral. De acordo com ele, o exemplo de Jesus não era originalmente o de sacrifício, mas sim de instrução. Jesus mostrou como viver uma boa vida, e os cristãos podem escolher segui-lo. E o que é realmente fascinante é como essas idéias podem representar uma continuidade do paganismo celta, que parece ter defendido a habilidade do indivíduo de triunfar como pessoa, até mesmo sobre o sobrenatural.

- O que não entendo é como a Igreja Celta sobreviveu à Idade das Trevas - disse Costas. - Quero dizer, primeiro os anglo-saxões invadiram, depois os vikings, em seguida os normandos. Essa história de linhagem celta deve ter sido bastante enriquecida na época.

- Ela sobreviveu, mas não apenas naqueles com linhagem céltica - disse Jeremy. - Este fato tem a ver com o tipo de pessoa que escolheu vir para a Grã-Bretanha, e persistiu em ficar. Não foram apenas as pessoas que vieram com as famosas invasões, mas imigrantes tardios também, os judeus sefardis, os huguenotes. Eles tinham algum traço comum, os traços necessários para serem bem-sucedidos aqui. Independência, obstinação, teimosia, resistência diante da autoridade, força diante da privação. Tudo perto deste lugar onde estamos agora. O espírito da Blitz.

- Eu mesmo acho que é algo que tem a ver com o estado atmosférico - resmungou Costas. - É preciso ter alguma coisa a mais para sobreviver neste lugar.

- Ele fez uma pausa. - Então, vocês acham que esta igreja, St. Lawrence Jewry, contém toda esta história nela?

- Não há nada que prove que houve uma igreja aqui antes do século XI, quando os normandos chegaram - disse Jack. - Mas ninguém conhece a localização das igrejas perto do final da Londres romana. Antes disso, as reuniões dos cristãos eram fechadas, e, mesmo depois que o cristianismo se tornou a religião oficial, o culto religioso das congregações nunca se firmou na Grã-Bretanha romana. Mas este é um local muito provável. Bem perto do anfiteatro, um lugar que teria sido associado com o martírio de cristãos. E as igrejas com freqüência eram construídas em locais de rituais pagãos. Isto pode ter acontecido um grande número de vezes aqui, algo verdadeiramente sagrado. Este lugar pode ter ocultado um segredo extraordinário.

- O coração das trevas - murmurou Costas, olhando para a parede de tijolos no final da câmara.

Jack seguiu seu olhar, com pensamentos e emoções passando excitados por ele. Olhou para o relógio. A música tinha terminado no andar superior, e ouviram uma batida na porta. Ele se ergueu, respirou profundamente e pendurou a mochila no ombro. - Acho que estamos a ponto de descobrir.

Quatro horas mais tarde, Jack e Costas agacharam-se dentro da câmara mortuária atrás da luz forte e ofuscante de suas lâmpadas de tungstênio. Uma aeronave bimotor, turbo-hélice de médio porte, De Havilland Dash-8, da IMU, havia trazido todo o equipamento de que necessitavam do campus de Cornwall para o aeroporto de Londres, inclusive um novo par de macacões para substituir aqueles que tinham deixado com Massimo em Roma. Jeremy havia obtido uma permissão imediata das autoridades da igreja para um reconhecimento exploratório atrás da parede de tijolos na parte lateral da câmara. Em uma conversa reservada e intensa com o clérigo, na cripta, eles tinham concordado sobre a necessidade de segredo absoluto, e seu equipamento tinha sido trazido para dentro em um furgão de televisão emprestado por pessoas disfarçadas de equipe de filmagem. No andar superior, o concerto do meio-dia havia terminado e eles podiam ouvir um canto gregoriano chegando até eles, cantado pelo coro da igreja que estava praticando na nave, um som que Jack achou estranhamente tranqüilizador enquanto consideravam outro buraco negro para dentro do desconhecido.

- Muito bem. Está feito. Definitivamente há um espaço aí atrás, mas não posso ver muita coisa sem entrar lá dentro. - Jeremy tinha feito um buraco na parede de tijolo, que mostrou ter sido deficientemente construída com argamassa que não tinha assentado, o que permitiu que ele removesse os tijolos com facilidade.

- Obrigado - disse Jack. - O seu trabalho agora é proteger o forte. - Jeremy concordou com um gesto de cabeça, voltou para trás para verificar o ferrolho na porta que dava para a cripta e depois se sentou apoiado na parede, observando-os pegar o equipamento necessário.

- Poderíamos ir abaixo do nível do lençol de água. - Costas estava olhando para uma imagem num laptop, enquanto verificava a vedação do seu macacão na altura do pescoço. - Estamos três metros abaixo do atual nível do Guildhall Yard, cerca de dois metros acima das camadas romanas. Abaixo disso há um afluente do rio Walbrook em algum lugar bem na nossa frente. Com toda esta chuva é provável que esteja bastante molhado.

- De qualquer maneira vamos precisar dos macacões - disse Jack. - Pode estar bastante tóxico lá embaixo.

Costas resmungou. - Vazamentos de gás?

Jack fez um gesto ao redor da câmara mortuária. - Dois mil anos de ocupação humana, Costas. Eu não vou explicar isto nos mínimos detalhes para você.

- Não o faça. - Costas se inclinou e abaixou o visor de Jack, depois ajustou o regulador na lateral de seu capacete para verificar o fluxo de oxigênio. Ele rapidamente fez o mesmo em seu próprio capacete. Repentinamente, ficaram completamente fechados ao mundo exterior, e apenas capazes de falar um com o outro através do intercomunicador. - O oxigênio dos rebreathers deve nos dar um prazo de quatro, talvez quatro horas e meia - ele disse.

- Podemos estar de volta dentro de dez minutos - disse Jack. - Pode ser que nos encontremos em um beco sem saída.

- Se eu tivesse o equipamento de sensoriamento remoto do Seaquest, então poderíamos introduzir uma câmara lá dentro e ver o que há atrás daquela parede.

- Nada supera o olho humano - disse Jack. - Venha. - Ele acenou novamente para Jeremy, que tinha tirado um laptop de sua mochila e espalhado suas anotações. Jack se pôs de gatinhas e passou pelo buraco na parede de alvenaria, com sua headlamp iluminando a escuridão a sua frente. Assim que ele passou, Costas o seguiu e chegou ao seu lado. Estavam empoleirados em cima de uma pedra, e na frente deles cerca de doze degraus conduziam para uma outra via de acesso, uma entrada baixa e em forma de arco de mais ou menos um metro e meio de altura. Jack agachou-se e começou a descer as escadas silenciosamente, com sua lanterna de mão se deslocando de um lado a outro da escada de pedra diante dele.

- Vamos esperar que o teto não ceda - murmurou Costas.

Jack ergueu o olhar. - Ele é de pedra sustentada sobre modilhão, quase tão forte quanto você poderia almejar. A alvenaria parece idêntica àquela da parte antiga da câmara mortuária, século XIV, talvez de antes. Posso ver telhas romanas reutilizadas e de ardósia, provavelmente tiradas das ruínas do anfiteatro. - Continuou a descer os degraus, alcançou o último e ficou em pé com as costas inclinadas desajeitadamente. Na frente dele, a entrada de pedra em forma de arco estava parcialmente bloqueada pelos restos podres de uma porta de madeira, com uma janela de grade de cerca de vinte e cinco centímetros de largura diretamente na frente dele. Jack passou sua headlamp por ela enquanto Costas o alcançava.

- Isto se parece com uma cela de prisão - disse Costas.

- É uma cripta - murmurou Jack. - Uma outra câmara mortuária. Exatamente como o diário do pedreiro descreve. E ela parece intocada.

- O que você quer dizer com intocada? Pensei que os rapazes de Wren entraram aí dentro.

- Quero dizer que ela parece repleta. Não há lugar para entrar dentro dela.

- Oh, não.

Jack empurrou cautelosamente a porta, e ela cedeu ligeiramente. - Ela ainda está sólida - ele disse. - Estas condições úmidas são ideais para a sobrevivência orgânica. Podemos encontrar uma preservação assombrosa lá dentro.

- Oh, isso é bom - disse Costas debilmente.

Jack empurrou de novo com ambas as mãos, e a porta ficou completamente entreaberta. Olharam com cuidado dentro do espaço à frente deles. Era uma simples câmara abobadada, de extensão similar à da câmara mortuária que tinham acabado de deixar, mas cerca de três vezes mais larga. Dispostas ao longo de cada lado havia cavidades na pedra, algumas grosseiramente fechadas com tijolos, outras abertas e cheias até a borda com conteúdos. Eles podiam ver as extremidades de velhos caixões de madeira, alguns intactos e com tampa, outros desagregados e em decomposição, formas escuras disformes apenas visíveis dentro deles. Jack deu alguns passos adiante, enquanto Costas permanecia grudado no local, olhando direto à frente. - Este é o meu pior pesadelo, Jack.

- Venha - disse Jack. - Todas as partes da vida são como uma rica tapeçaria. Costas moveu-se à frente pouco a pouco, parou, depois adiantou-se com resolução e olhou muito de perto para um dos caixões estourados, tendo nitidamente decidido que a investigação científica era a melhor terapia. - Interessante - murmurou, pigarreando. - Há um cano de porcelana emergindo do alto deste caixão de defunto, escurecido de um lado. Nunca pensei que as pessoas fizessem libações em sepultamentos cristãos.

- Bela tentativa, mas errada - disse Jack. - Como você levantou o assunto, estou lhe contando. Aqueles canos eram para deixar passar vapores.

- O quê? Não.

- Você encontra estes canos nas catacumbas vitorianas - disse Jack. - O problema com um caixão de defunto forrado com chumbo é que ele pode explodir, especialmente se o corpo é fechado dentro dele muito rapidamente depois da morte. Trata-se do primeiro estágio da decomposição, você sabe. A saída de gases.

- Saída de gases. - Costas parecia oscilar ligeiramente, mas permanecia fixado no esquife.

- Os canos eram acesos para queimar os gases - disse Jack. - É por isso que eles ficam escurecidos.

Costas balançou para trás, depois escorregou para o chão, agarrando-se bem a tempo na extremidade de um nicho aberto na parede oposta. Ele se endireitou de novo, depois ergueu o pé de uma poça pegajosa que se estendia debaixo de um dos nichos perto da entrada. - Devemos estar mais próximos do nível da água do que eu pensava - ele disse. - Há muita água aqui para ser apenas condensação.

- Eu tenho mais algumas más notícias para você, receio.

Costas olhou para a poça, depois para a mancha escura que escorria do nicho mortuário localizado acima na construção de pedra, em seguida de novo para a poça. - Oh, não - ele sussurrou.

- Saponificação - disse Jack alegremente. - Existe sobre isso um maravilhoso relato de Sir Thomas Burns, uma espécie de Plínio do século XVII que gostava de escavar velhas sepulturas. Eu e Hiebermeyer fizemos uma vez um curso sobre mumificação com o pessoal forense do Ministério dos Negócios Interiores, e posso recordá-lo palavra por palavra. Nós nos deparamos com uma concreção gordurosa, quando o salitre da terra e a leve e lixiviada secreção orgânica do corpo coagularam grandes massas informes de gordura, com a consistência de uma vela de sabão extremamente dura; parte do que permaneceu conosco.

- Secreção do corpo - sussurrou Costas, esfregando freneticamente o pé num tijolo caído. - Tire-me fora daqui, Jack.

- Cera mortuária - replicou Jack. - A lenta hidrólise de gorduras em adipocera. Especialmente provável de ser encontrada em condições alcalinas, quando os corpos estão vedados ao ataque das bactérias, e quando há umidade. Como eu disse, vamos encontrar assombrosas condições de preservação aqui.

- Não poderia ser pior do que isto.

- Não conte com isso. - Jack se agachou para examinar a inscrição no bloco de pedra que, podia perceber agora, se encontrava diante de cada nicho intacto, construído no centro do revestimento de tijolos. Ele andou ao longo, de um para o próximo. - Fascinante - murmurou. - Em geral, nas igrejas de Londres, as criptas eram usadas extensivamente por algumas décadas, talvez um século ou mais, eram preenchidas completamente e depois seladas. Mas esta aqui é muito estranha. A fórmula de cada uma destas inscrições é quase idêntica, mas elas variam em um enorme espaço de tempo. Cada uma delas tem um símbolo Qui-Rô, seguido por um nome latino. Olhe aqui. Maria de Kirkpatrick. E ali, Bronwyn de Llewelfyn. A maior parte deles está em latim, mas são versões de nomes britânicos. E as datas estão em números romanos. Aquele perto de você, aquele na prateleira mais baixa perto da porta, é o último de 1664, apenas poucos anos antes do Grande Incêndio que destruiu a igreja medieval.

- Aquelas figuras. - Costas ainda estava olhando a meia distância, claramente tentando se concentrar em algo diferente do que aquele horror físico que via ao seu redor. Pigarreou. - O diário do pedreiro. Ele diz que a cripta foi selada pelos homens de Wren nos anos 1680. Isto faz pensar que não deveria haver mais nenhum sepultamento depois disso.

Jack alcançou o lado mais distante da câmara, dando a volta cuidadosamente ao redor do lugar pegajoso no chão. Ele se agachou de novo, examinando mais algumas inscrições na pedra, deslocando alguns tijolos quebrados com as mãos. - E a primeira destas inscrições é incrivelmente antiga - ele murmurou. - As mais velhas neste lugar se desagregaram, mas há duas aqui com nomes anglo-saxões. Aelfrida e Aethelreda. Não posso ler o nome nesta outra, mas posso ler a data. 535 d.C. Meu Deus - ele disse com a voz rouca. - É da Idade das Trevas, da época do rei Arthur, de Gildas. Isto é de antes de Agostinho trazer o cristianismo romano de volta para a Grã-Bretanha, no entanto, esse sepulcro mostra um símbolo cristão.

- Os nomes são todos de mulheres - disse Costas baixinho.

- Esta câmara é de uma época mais antiga que a da igreja medieval - Jack continuou a examinar ao redor. - Parece que ela foi mantida em reparo durante o período medieval até a época do Grande Incêndio, mas os modos de sepultar nas prateleiras mais baixas parecem romanos. - Ele ajoelhou-se, e passou a mão ao longo do canto da câmara debaixo do nicho mais distante. - Não há dúvida sobre isto. Estamos dentro de uma catacumba romana. A única encontrada na Grã-Bretanha.

- Verifique a inscrição acima da porta de entrada.

Jack examinou em cima da porta, e viu uma um único registro de letras esculpido na alvenaria, coberto com um acréscimo por justaposição, escurecido. Costas leu as palavras lentamente:

 

               URI VINCIRI VERBERARI FERROQUE NECARI

 

- Bom Deus - exclamou Jack, ficando em pé e olhando, sua mente girando. - Este é o juramento do gladiador. O sacramentum gladiatorum.

- A profecia da Sibila - disse Costas. - A tabuleta de cera de Roma. É a mesma, não?

- Idêntica. Ser queimado pelo fogo, ser acorrentado, ser açoitado para morrer pela espada. Bom e velho Cláudio - murmurou Jack. - Acho que estamos exatamente onde ele quer que estejamos.

- E onde a Sibila queria que ele estivesse.

- Originalmente, aqui deve ter sido a câmara mortuária dos gladiadores, onde os cadáveres mutilados eram deixados antes de serem levados para outro lugar e queimados - murmurou Jack. - E depois ela foi usada como cripta mortuária, durante mais de mil anos. Uma cripta mortuária para mulheres, para mulheres que de algum modo eram ligadas, durante todo aquele tempo.

- Talvez fizessem parte de uma sociedade secreta, uma corporação - disse Costas. - Talvez elas quisessem ser sepultadas perto do que quer que esteja deitado atrás daquela parede.

- De acordo com o diário, foi aqui que as ânforas romanas foram encontradas pelos homens de Wren - disse Jack. - E esta deve ser a parede, onde estamos agora.

Costas colocou as duas mãos na parede de tijolos diante dele, e empurrou cuidadosamente. Recuou enquanto vários dos tijolos se deslocavam. - Não estão assentados com argamassa - disse. - Parece que eles simplesmente empilharam os tijolos.

- Isto faz sentido - disse Jack. - O diário relata que eles decidiram selar a cripta inteira lá atrás na câmara mortuária, onde deixamos Jeremy, então devem ter desistido de selar esta câmara mais profunda, que estava na metade do caminho para a outra. Vamos ter que tirá-los desde o topo, tijolo por tijolo.

Costas empurrou, experimentalmente, um pouco mais, e um dos tijolos que tinha mudado de posição caiu para trás. Subitamente, a parede inteira desmoronou para dentro, e ambos se deslocaram para trás enquanto o ar se enchia com poeira vermelha. Costas, com muito cuidado, evitou a poça pegajosa no chão.

- Eu estava a ponto de dizer que nós não temos tempo para delicadezas - disse Jack, limpando a frente do seu visor.

- Examine - disse Costas, se recompondo e indo para frente novamente. Jack orientou sua lanterna de mão para o local onde Costas fazia gestos.

Onde tinha estado a parede de tijolos, agora havia um buraco, mas logo dentro à esquerda, encontrava-se uma fileira do que pareciam ser antigas pipas de cerâmica para drenagem, dispostas em uma fileira e apontando para cima. Jack introduziu-se através da pilha de tijolos caídos e acenou excitado. - Você reconhece aquelas?

- Ânforas. Ânforas romanas. Exatamente o que estávamos procurando.

- Certo. E elas são exatamente do mesmo tipo que as ânforas de vinho que encontramos no navio naufragado de são Paulo, aquelas fabricadas em Campânia, perto de Pompéia e Herculano. Você se lembra da data do naufrágio?

- 58 d.C., aceite o meu palpite ou diga o seu.

- Certo. Estas eram as típicas ânforas de vinho daquele período. E aqui nós estamos na Londres romana, exatamente onde estas ânforas estavam sendo negociadas. Qual era a data da rebelião de Boudica? 60, 61 d.C. Se ânforas de vinho estavam sendo deixadas em sua tumba por seus seguidores, estas são exatamente do tipo que se esperaria encontrar naquela época.

Costas comprimiu-se ao lado de Jack e olhou atentamente para a escuridão além. - Não tenho certeza de onde iremos dar saindo daqui. Parece ser uma espécie de escavação vertical.

Jack também olhou atentamente ao redor. À esquerda havia uma massa instável de entulho, feita de muitos tijolos quebrados, mas também um pouco de madeira de construção chamuscada, tudo misturado e comprimido formando uma massa compacta. Ela se projetava dentro de uma estrutura vertical formada por madeira de construção enfileirada de cerca de dois metros de largura e três de profundidade, com água no fundo. - Muito bem - disse Jack. - O que temos aqui são detritos da destruição causada pelo Grande Incêndio de 1666, provavelmente descarregados em massa durante a reconstrução da igreja feita por Wren. Se qualquer um de seus homens andou além da cripta, é por este caminho que deve ter passado. Nunca passaremos por ela sem uma grande escavação. Isto está fora de questão. A única esperança é descermos esta escavação vertical.

- O que ela é?

- Parece ser um poço. Havia fontes de água fresca nos pedregulhos ao lado do Tâmisa. A água de Londres era notavelmente saudável até se tornar um brejo por causa da água de esgoto. Em geral, os poços eram rodeados por madeira de construção enfileirada como este aqui. - Jack inclinou-se e examinou a madeira. - Fascinante. É madeira de navio reutilizada. Estas são pranchas sobrepostas e seguras com pregos revirados, viking. Você se lembra dos nossos barcos vikings, compridos, que estavam no gelo?

- Nunca pensei que diria isso, mas eu preferiria estar por lá agora.

- Eu vou entrar. - Jack se movimentou até a extremidade do buraco, e agarrou a mão de Costas enquanto se dependurava por cima da beirada, com os pés pendentes um metro ou mais por cima do poço escuro. - Vamos esperar que ele não seja um buraco sem fundo. - Ele se soltou e caiu com um grande barulho sobre uma superfície líquida, parando com seus joelhos na lama, a parte superior do seu corpo fora da água. - Agora é você. - Experimentou cuidadosamente ao redor com o pé. - Eu acho que é uma aterrissagem segura.

Costas resmungou, depois se abaixou muito cuidadosamente por cima da extremidade, seu visor pressionado contra a madeira úmida do revestimento do poço. Deslocou-se ligeiramente ao longo do poço para evitar cair sobre Jack. Alcançou uma pequena seção da madeira que havia apodrecido, e, de repente, gelou.

- O que é - perguntou Jack.

Houve um silêncio, e depois a voz de Costas soou distante e rouca. - Este poço, Jack. Ele não foi escavado através de cascalho.

- O quê?

- Ele foi cavado através de ossos, Jack - disse Costas, sua voz soando além dos limites da emoção. - Ossos humanos, milhares deles, amontoados ao nosso redor. É tudo o que posso ver.

- Provavelmente não é um poço contaminado - disse Jack pensativo. - Provavelmente é um ossuário, os ossos foram despejados aqui trazidos de algum outro local de sepultamento. Ainda assim, foi bom termos vindo com os macacões, a título de prevenção.

Costas se soltou, e caiu ao lado de Jack, espirrando muita água, desaparecendo completamente dentro da água antes de se erguer em meio a um tumulto de lama. A água se acalmou e ele ergueu as mãos, olhando para as listras de lama em suas luvas. - Uma boa sujeira à moda antiga - murmurou. - Acho que já tive o bastante de resíduo humano em cima de mim.

- O que você disse me faz pensar - comentou Jack. - Sobre um poço, escavado através de um antigo ossuário. Acho isso muito improvável. Acho que percebi errado. Acho que o que de fato temos aqui é uma cloaca.

Costas limpou o visor, deixando-o listrado de marrom, e olhou sem fala para Jack.

- Na verdade, é muito higiênico - disse Jack. - Cada habitação tinha uma. Somente quando elas ficavam inundadas é que se tornavam um problema, e foi quando as pessoas começaram a usar canos de esgoto que não eram adequados para o serviço.

- E você acha isso tranqüilizador? - Costas parecia estar à beira de lágrimas. - Venha mergulhar com Jack Howard. Nenhuma latrina é demasiado profunda. -         Ele tentou se esforçar para ir para cima, depois subitamente desapareceu de vista, em seguida sacudiu-se acima novamente. - Imaginei isto - ele disse. - Ha água fluindo abaixo de nós. Isto se precipita em uma corrente subterrânea.

- O afluente do Walbrook - disse Jack. - Acho que, no fim, tivemos sorte.. Se pudermos entrar no afluente e achar uma outra abertura, seremos capazes de ir para cima por detrás daquela obstrução de entulho.

- Ou podemos nos juntar à cidade dos mortos aqui embaixo. Permanentemente.

- Esta é sempre uma possibilidade.

- Muito bem. - Costas pegou o seu pequeno computador GPS à prova de água, e procurou um esboço topográfico em 3-D que tinha programado dentro dele enquanto esperavam que o equipamento chegasse à igreja. - O fluxo é em direção ao leste, para o Walbrook, que depois flui para o sul, para dentro do Tâmisa. A beirada exterior do anfiteatro está apenas a cinco metros ao norte de onde estamos. Se de alguma maneira formos além daquele ponto, depois também podemos voltar. Estaremos dentro da área que foi cavada nas recentes escavações.

- Vou ficar bem atrás de você - disse Jack.

- Eu o vejo do outro lado. - Costas ficou fora de vista. Durante alguns momentos houve uma comoção na água quando seus pés atingiram a superfície, depois ela se acalmou e o poço se tornou de um negro brilhante e reluzente. Jack se agachou com água até o peito, e ouviu Costas respirando através do intercomunicador. Durante um instante pensou no seu medo secreto novamente, a claustrofobia com a qual lutava tão fortemente para controlá-la, e percebeu que sua mente sentia que havia segurança neste lugar, uma saída fácil através da antiga cripta e da câmara mortuária para a igreja acima delas. O que havia além deste poço era outro assunto, e ele respirou profundamente algumas vezes enquanto olhava para a superfície límpida. Sentiu uma vibração, um tremor através de seu corpo, e observou a superfície da água iluminar-se fracamente. Sabia que se tratava de um trem subterrâneo passando por um túnel em algum lugar bem distante. Por um instante, a sensação o trouxe de volta para a realidade do século XXI, e em sua visualização todos os tumultuados eventos do passado, os sombrios rituais da pré-história, o sangue do anfiteatro, o Grande Incêndio, a Blitz dos alemães passaram por ele como um filme de movimentação rápida, deixando sua impressão maléfica e detestável dentro do sedimento nauseante ao seu redor. Fechou os olhos, depois os abriu novamente. Jack pressionou o mostrador de leitura digital dentro de seu visor, examinando cuidadosamente a numeração que mostrava a quantidade de oxigênio remanescente em seu rebreather - os níveis de toxicidade do dióxido de carbono. Era uma verificação da realidade, e nunca havia falhado para ele. Ele se ergueu e percebeu que quase tinha ficado firmemente preso em mais de um metro de lama no fundo da poça. Depois de se arrancar dali flutuou com o rosto para baixo na superfície, com o visor debaixo da água, olhando para um redemoinho escuro com a fraca quantidade de luz da headlamp de Costas diretamente abaixo dele. Ele se arqueou e mergulhou na escuridão. Cerca de dois metros mais abaixo, ele podia sentir o fluxo da corrente subterrânea, e ver o tumulto da água clara onde o lodo estava sendo levado de roldão. Ainda havia apenas poucos centímetros de visibilidade, mas era melhor do que o caldo escuro na superfície do poço.

- Há uma obstrução. - A voz de Costas chegou pelo intercomunicador. - Estou quase perto dela.

Jack podia sentir os pés de Costas quase diante dele, formando redemoinhos na água enquanto ele se içava ao redor de uma curva no túnel. Jack permaneceu atrás para evitar ser chutado, e depois, quando a turbulência se acalmou, ele se deixou apenas cair para diante, as mãos abertas à frente para sentir qualquer obstáculo. Depois de dois metros sentiu algo liso, metálico, e em seguida seu peito tocou nos pés de Costas. Houve um movimento em ziguezague, depois mais nenhum movimento, seguido por uma pancada metálica abafada, e finalmente apenas o som de sua respiração.

- É um detonador Série 17. Bom.

- O que é? - perguntou Jack. - O que é bom?

- Isto. - Ouviu-se um barulho ressoante, seguido de uma imprecação.

- O quê? Eu não consigo ver nada.

- Esta bomba.

O coração de Jack quase parou de bater. - Que bomba?

- Uma SC250 soltada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, com o propósito geral de bombardear. Bombardeiros e caças: Stuka, Junkers 88, Heinkel 111. Eles jogaram milhares delas por aqui. Simples rotina.

- O que você quer dizer com simples rotina?

- Quero dizer que elas não eram detonadores de ação retardada, então eram jogadas como simples rotina.

Jack teve outra sensação de que ia desmaiar. Pensou de novo no tremor, na vibração do trem. De repente, este lugar parecia menos confiável, menos estável, pronto para a história ter um outro prosseguimento. - Não me conte o que você está fazendo.

- Está tudo bem. Já fiz. Fiz tudo o que podia. - Os pés de Costas se deslocaram para frente, e Jack desceu mais um metro. - O pequeno detonador dianteiro estava bem na frente do meu nariz, e por acaso eu tinha a ferramenta correta. O detonador posterior é que é um problema. Posso senti-lo, mas ele está todo enferrujado. Não é do meu feitio, mas temos que deixá-lo como está.

- Sim, nós podemos - disse Jack baixinho. - Isso é muito perigoso?

- O suplemento usual era de apenas 127 quilos de Amatol e TNT, mistura de 60/40.

- Apenas? - exclamou Jack incrédulo.

- Bem, nós seríamos torrados, é claro, mas o círculo financeiro do mundo provavelmente permaneceria intacto.

- Acho que possivelmente já houve bastante sacrifício humano neste lugar - disse Jack. - Quão estável ele é?

- O problema está no detonador enferrujado - disse Costas. - Ele tem estado dormindo feliz por quase setenta anos, mas, com a nossa chegada, quem sabe o que pode ocorrer.

- Você quer dizer depois que mexeu indevidamente nele, quem sabe... - O lodo tinha se depositado levemente, e Jack podia ver o invólucro da bomba a cerca de sete centímetros de seu rosto. Estava corroído, profundamente enterrada sem marcas visíveis, e parecia tão ameaçador quanto Jack podia imaginar. Estava fazendo os cálculos mentais habituais, e desta vez as probabilidades vantajosas não pareciam boas. - Acho que está na hora de irmos.

- Oh, não.

- Como não? Esta coisa ainda está viva. Precisamos sair daqui.

- Não. Não foi isso que eu quis dizer. Estava falando disso que está à minha frente. É um outro pesadelo. É o mesmo pesadelo, apenas tornando-se pior.

- Certo. Estou chegando. - Jack tranqüilizou-se mais profundamente, o invólucro corroído bem diante de seu rosto, até que viu onde ele se curvava para o cone do nariz e o sistema de suspensão LUG. Ele se virou de costas e colocou a mão no LUG para impedir que seu corpo ficasse se sacudindo contra o envoltório, que parecia estar perigosamente suspenso no meio da água. Ele se ergueu lentamente até sentir o envoltório entre as pernas, e depois debaixo dele. No ponto em que imaginava onde estariam a placa de base e as nadadeiras da cauda, repentinamente chegou à superfície, seu rosto a alguns centímetros de uma parede de lama viscosa. Ele havia se sentido bem na lama debaixo da água, com o rosto pressionado muito perto do envoltório, mas subitamente se sentiu nervoso, como se estes poucos centímetros extras de visibilidade fossem apenas suficientes para lhe dar a sensação do quanto este espaço era confinado. Sabia que precisava lutar muito agora, para se concentrar inteiramente no que estava fazendo. Girou devagar o corpo, tomando cuidado para não mexer no envoltório da bomba, até ficar ao lado de Costas, olhando para a mesma direção. Podia sentir o pedregulho compactado do leito do rio debaixo dele, mostrando que tinham chegado abaixo das camadas arqueológicas. Jack dirigiu sua headlamp para cima. Encontravam-se dentro de uma espécie de estrutura, uma câmara, com troncos não lavrados de árvores revestindo o teto a cerca de dois metros acima dele. Viu vigas maciças de carvalho escurecido e amarração de tábuas de madeira ao redor das paredes. Olhou para baixo, e então ele a viu, diretamente na frente de Costas. Fechou os olhos, respirou profundamente, depois olhou de novo.

Era um crânio humano, escurecido pelo tempo, deitado sobre a parte de trás e olhando diretamente para cima, a mandíbula ainda em posição. Ele podia ver as vértebras do pescoço, as omoplatas, tudo assentado sobre um material fibroso vermelho. Depois ele se deu conta. Era cabelo. Cabelo vermelho.

Jack movimentou novamente seu feixe de luz para baixo, para algo que tinha visto sobre os ossos do pescoço. Colocou as mãos sobre uma tábua de madeira molhada e ergueu-se ligeiramente. Jack respirou com dificuldade sem acreditar no que via. Era ouro, resplandecente, um colar de ouro maciço. Exatamente como aquele que eles tinham visto no dia anterior, em outro corpo, em um local profundo debaixo de Roma. Um torque. Depois Jack percebeu. Esta não era uma cripta mortuária medieval. De repente não havia dúvida quanto a ela. Eles tinham encontrado algo que as pessoas tinham estado procurando havia centenas de anos, no coração da City de Londres, em um pequeno local do solo inalterado em um dos lugares mais revolvidos, escavados e bombardeados do mundo.

Jack olhou novamente para o crânio. Inclinou-se sobre ele, e olhou mais cuidadosamente, bem em cima das órbitas oculares vazias. O acréscimo por justa-posição preto que cobria o crânio não era bem preto. Era azul, azul-escuro. Ele suspirou e percebeu. Isatis tintoria, murmurou. - Bem, eu vou ser condenado ao inferno.

- Hein?

- Ísatis. Ísatis azul. Ela foi pintada com ísatis azul. - Ele se voltou para Costas, sua apreensão subitamente esquecida. - Acho que você pode ter acabado de descobrir para nós uma rainha da Idade do Ferro.

Costas parecia estarrecido, preso ao solo, esparramado na beirada da poça de água barrenta, olhando para o crânio através de seu visor.

- Este é um novo momento Agamenom? - perguntou Jack.

- Aquela coisa não é um fantasma. Ela é real - sussurrou Costas. - Depois da decomposição orgânica do corpo e tudo o mais. Eu nunca mais vou dormir.

- Ora - disse Jack. - Isto é inacreditável. Mas não vou ficar rodando por aqui mais do que o necessário, tendo por companhia uma bomba enferrujada aquecendo lentamente. - Rastejou para fora do buraco, e Costas se arrastou para fora com dificuldade. Ambos se puseram em pé, gotejando profusamente, com seus capacetes e equipamentos de respiração ainda colocados, a lama escorregava suavemente sobre seus macacões como tinta marrom. Jack aumentou a largura do feixe de luz da headlamp e pegou uma tocha de halogênio. Olharam para a cena diante deles cheios de admiração.

Era uma visão de tirar o fôlego. Jack instantaneamente viu imagens que lhe eram familiares, os tipos de artefatos, a exposição dos bens da sepultura, mas nada do que havia sido encontrado antes na Grã-Bretanha estava tão intacto como se encontrava ali. Ela se parecia com uma das tumbas que Jack tinha visitado de um antigo nobre da Cítia nas estepes russas, envolta por tábuas de madeira maciça e milagrosamente preservada no subsolo permanentemente congelado; no entanto, esta se encontrava no coração de Londres. De alguma maneira, a atmosfera saturada de água e a densa lama que circundava a tumba tinha impedido que as madeiras apodrecessem e que a tumba implodisse.

E essas condições não preservaram apenas o esqueleto. Jack percebeu que ela tinha sido deitada em um esquife, uma plataforma quadrada de madeira de cerca de três metros de lado a lado, a um metro mais ou menos das extremidades da câmara. Havia formas estranhas, formas curvas, na frente dele, de cada lado das pernas do esqueleto. Jack reteve a respiração quando percebeu o que era. - Isto é uma carruagem funerária - ele exclamou. - Estas são as duas rodas inclinadas em direção ao corpo. Podem-se perceber os raios da roda, o aro de ferro e os cubos da roda.

- Dê uma olhada nisso. - Costas estava olhando atentamente para a base do esquife, para as pernas do esqueleto, e depois entre as rodas. - Há antigas marcas de cortes nos ossos, marcas de golpes cortantes, um par de fraturas curadas. Parece que ela participou de guerras. Esta era uma dama forte. E ela está descansando em uma espécie de canoa.

Jack deslocou-se, escorregando na lama. Costas tinha razão. O esqueleto estava deitado em uma canoa de madeira de um tronco só. - Fantástico - ele disse. - Existem botes funerários do período anglo-saxão avançado, navios funerários vikings, mas eu nunca vi um como este da Idade do Ferro.

- Talvez esta seja a canoa com a qual eles costumavam levá-la para subir o rio até o santuário, até o seu núcleo de trevas - disse Costas. - Talvez eles a tenham colocado nisso e a arrastado corrente acima na sua jornada final.

Jack se ergueu o mais que podia, e olhou direito, pela primeira vez, para o torso do corpo. Era uma das coisas mais incríveis que ele jamais vira, como uma imagem gerada por computador de um perfeito sepultamento da Idade do Ferro. Começou a se mover pouco a pouco ao longo da lateral do esquife, depois escorregou e caiu sobre um joelho ao lado de uma das rodas da carruagem.

- Atenção - disse Costas, alarmado. - O cubo da roda tem um prego de metal saliente.

Jack olhou para a protrusão de ferro corroído, e sentiu seu peito se comprimir ao perceber quão perto estivera de ser espetado. Fechou os olhos, forçou-se a se concentrar. Olhou novamente. Era um prego comprido e forte, perigoso, um dos três que tinham se projetado do cubo da roda por cerca de um metro, curvados como as lâminas da hélice de uma aeronave. Esta não era uma carruagem comum. Jack ergueu-se com cuidado e movimentou-se indo ficar ao lado de Costas, que dera a volta ao redor de Jack e estava agachado perto do torso. - Parece que esta dama estava se preparando para lutar com os deuses - murmurou Costas. - E acho que ela ia ganhar. - Ambos olharam com admiração para as peças e ornamentos em cima do esqueleto. Ao redor deles havia lanças pontudas moldadas em chapas finas de ferro, suas hastes se romperam quando as lanças bateram nos degraus de pedra. Espalhados por cima havia numerosos cones de pinheiros, carbonizados nos locais em que foram queimados como incenso. Paralela ao corpo, desde o pescoço até o quadril esquerdo, havia uma grande espada de ferro, tendo ao lado uma bainha decorada em bronze. A decoração gravada na bainha combinava com a forma do fio incrustado no cabo da espada, linhas de ouro que descreviam movimento circular para cima em direção a uma grande pedra preciosa verde engastada no botão do punho da espada. Do outro lado encontrava-se um pedaço de madeira, como uma varinha de feiticeiro. Mas a visão mais extraordinária de todas estava colocada de lado a lado do torso do esqueleto, um grande escudo de bronze com a forma de um oito, com um ornamento central, em esmalte, rodeado por formas curvilíneas girando e uma decoração de ornamentos metálicos em relevo.

- O escudo de Battersea - disse Jack com voz rouca. - Ele é virtualmente idêntico ao escudo de Battersea, encontrado no rio Tâmisa no século XIX.

- Ele é feito com finas folhas de bronze - disse Costas, olhando com atenção para a borda. - Não é muito prático durante a batalha.

- Provavelmente ele era um escudo usado em cerimônias - disse Jack - Sempre se pensou no escudo de Battersea como sendo um objeto ritual, depositado no rio como uma oferenda aos deuses, como aqueles crânios encontrados apenas algumas centenas de metros daqui no rio Walbrook.

- A espada parece ser bem real. E também aquelas segadeiras sobre as rodas da carruagem.

- Você não encontrou apenas a sepultura de uma rainha - murmurou Jack - Você encontrou a sepultura de uma rainha guerreira. - Olhou novamente e, de repente, elas brotaram dele, imagens que não tinha registrado de início, mas que agora pareciam unir todos os artefatos deixados e que se encontravam à sua frente. Havia cavalos, cavalos por toda parte, girando de uma parte a outra através dos padrões curvilíneos no escudo. Correndo ao longo da bainha da espada, gravados nas madeiras do esquife. Sua mente estava acelerada, ousando acredita no inacreditável. Cavalos, o símbolo da tribo dos icenos, a tribo da grande rainha guerreira. Ele viu moedas espalhadas debaixo do escudo, e inclinou-se para pegar uma. Sua excitação aumentou. Era exatamente o que ele esperava encontrar. De um lado um cavalo, abstrato, com uma crina flutuante, símbolos misteriosos acima dele. Do outro lado uma cabeça, dificilmente reconhecível como humana, com um cabelo longo e desordenado. A imagem de uma pessoa que não deixou retratos, no entanto aqui ele estava parado na frente dela, uma rainha que tinha sido reverenciada como deusa, cuja imagem ninguém ousou capturar. Jack recolocou a moeda cuidadosamente, depois olhou de novo ao redor, avaliando catalogando em sua mente, permitindo-se ver o inesperado. - Os emalhetamentos nas tábuas mostra que esta tumba foi feita depois que os romanos chegaram, por carpinteiros que conheciam as técnicas romanas - murmurou. - Mas não bi artefatos aqui dentro. Ela não teria permitido. Aquelas ânforas devem ter estado fora da tumba, oferendas feitas depois do sepultamento.

- Jack, você está errado. Parece que ela tinha uma obsessão por gladiadores. - Costas tinha voltado para onde estavam os pés dentro do esquife, e fez um gesto chamando-o. Jack se aproximou escorregando e foi confrontado com outra visão impressionante. Havia uma fileira de capacetes, cinco elaborados capacetes dispostos em fileira logo abaixo do nível do esquife, de frente para o esqueleto.

- Inacreditável - ele disse. - Mas estes não são capacetes de gladiadores. São capacetes de legionários romanos, de nível bastante elevado por sua aparência. Centuriões, talvez comandantes de coortes. E eles estiveram em ação. - Estendeu o braço e virou com cuidado o que estava mais próximo, que tinha um amassado profundo de lado a lado do topo. Era mais pesado do que esperava, e estava fixado à madeira. Puxou com força e ele cedeu. Jack o deixou cair e recuou chocado. Eles ainda estavam ali.

Costas também os viu, e gemeu. - Beam me up, Scotty.

Jack se enrijeceu e olhou mais de perto, ao longo da fileira de capacetes. Cada um deles tinha um crânio humano, olhando de soslaio, alguns deles esmagados e fragmentados. Os crânios estavam brancos, haviam sido branqueados, claramente eram de cabeças que tinham sido expostas e se decompuseram antes de serem colocadas dentro da tumba. - São troféus de batalha - murmurou Jack. - Eles foram recolhidos no campo ou, mais provavelmente, são cabeças de prisioneiros executados. - Sua mente estava novamente acelerada. A última batalha da rainha guerreira. Ele se lembrava dos relatos de Tácito e Dio Cássio. Troféus de guerra vivos, trazidos com ela para sacrifício, no lugar mais sagrado, enviados a ela em eterna submissão.

Em seguida, Jack as viu. Enormes formas disformes emergindo da parede mais distante da tumba. Formas que pareciam lutar e levantar-se do chão nas patas traseiras, como os cavalos do Partenon de Atenas, só que estes não eram esculpidos, e sim reais, com a pele escurecida e as crinas ainda esticadas sobre os crânios, dentes expostos e ameaçadores, presos para sempre nos espasmos da morte. Era uma visão aterradora, muito mais que a fileira de crânios romanos, e Jack começou a se sentir nervoso novamente, com a sensação de que não pertencia a este local.

- Está na hora de partir - disse Costas baixinho.

Jack se desprendeu da imagem. - Nós não encontramos o que estávamos procurando. Há algo aqui, sei disso. Dê-me um momento. - Escorregou de volta em direção ao esquife, e olhou novamente com atenção para a rainha morta e suas armas. Costas pegou a sua bússola e apontou-a em direção ao esquife. - Ele está alinhado exatamente na posição norte-sul - disse. - Aponta diretamente para a arena do anfiteatro.

- Aquele anfiteatro foi construído mais tarde - murmurou Jack. - Se isto é o que penso que é, ela foi sepultada pelo menos uma década antes que começasse o trabalho de construção do anfiteatro.

- Você viu o eixo das rodas? - perguntou Costas. - Está colocado debaixo aos ombros dela. Com a vara da carruagem alinhada na posição norte-sul debaixo do seu corpo, isto forma uma cruz.

Jack resmungou, ouvindo apenas pela metade. - O eixo geralmente era colocado debaixo dos pés. - Subitamente ele ficou ofegante, e estendeu a mão para o escudo. - Eu sabia. Isto estava saliente e bem diretamente na nossa cara. Foi colocado direto sobre o ornamento do escudo.

- Quem fez isso?

- Alguém que esteve aqui antes de nós. - Jack começou a estender a mão para o objeto, um cilindro de metal. Em seguida parou e retirou a mão.

-        Você deve ser o único arqueólogo que tem problema para pegar artefatos dos sepulcros, Jack.

- Eu não poderia violar a sepultura de Boudica.

- Concordo com você nisso. Não gostaria que esta dama se erguesse de seu leito de morte. E, se ela vier atrás de nós, não teríamos nenhum lugar para fugir. - Costas fez uma pausa. - Mas, se você está certo, este cilindro não fazia parte dos artefatos originais da sepultura. Não acho que pegá-lo significa violá-la. Estou querendo assumir o risco. - Estendeu a mão e pegou o cilindro, depois o passou para Jack. - Tome. O feitiço está quebrado.

Jack segurou o objeto, girando-o lentamente em suas mãos, olhando para ele. Uma corrente dependurada de um rebite de um lado. Podia perceber que o cilindro era feito de lâminas de bronze, marteladas na junção para formar o tubo, e que uma extremidade tinha sido dobrada sobre um disco de bronze que formava a base. Sobre ela havia um disco de esmalte vermelho, e movendo-se para cima e em torno do cilindro havia ornamentos esculpidos de forma curvilínea. Jack virou o cilindro e viu que o ornamento tinha a forma de um lobo, um animal grande e abstrato que envolvia o cilindro de forma que seu focinho quase tocava seu rabo. - É um trabalho em metal feito na Grã-Bretanha, não há dúvida quanto a isto. Existe um cilindro de bronze exatamente como este na sepultura de um guerreiro em Yorkshire. E o lobo é também um símbolo dos icenos, a tribo de Boudica.

- E a tampa? - perguntou Costas.

- Há uma grande corrosão, doença do bronze - replicou Jack, olhando atentamente para a outra extremidade do cilindro. - Mas você está certo. Ela é definitivamente uma tampa, não foi dobrada como a base. Há algum tipo de material resinoso ao redor da junção, mas ele está bastante rachado. - Jack empurrou o dedo com muito cuidado contra a crosta bastante desenvolvida de corrosão no topo, depois retirou o dedo quando ela se rompeu. - Graças a Deus, os responsáveis pela manutenção dos museus não me viram fazer isto. - Ao redor da borda havia os restos de esmalte vermelho de um disco semelhante ao da base. Mas aqui o esmalte parecia ter sido grosseiramente quebrado e substituído por uma decoração entalhada. A incisão era angular, desconjuntada, não se assemelhava às linhas harmoniosas do lobo na lateral do cilindro, e se parecia mais com o grafite que viram rabiscado nas ânforas romanas encontradas no navio naufragado, Jack olhava para aquilo. De repente, ele gelou.

Era um nome.

- Bingo - disse Costas.

As letras eram largas, trêmulas, o nome se curvava na parte de cima, a outra palavra estava embaixo, como uma inscrição em uma moeda:

 

                  CLAVDIVS DEDIT

 

- Cláudio deu isto - disse Jack, subitamente em êxtase. - Nós estamos certos. Cláudio de fato veio até aqui. Ele veio aqui, onde estamos agora, e colocou e cilindro na tumba de Boudica. - Jack segurou o cilindro com súbita reverência, olhando para o nome e depois para a junção quebrada na tampa, quase sem ousar pensar no que podia estar lá dentro.

- Como Cláudio chegou a possuir um cilindro de bronze da Grã-Bretanha? - perguntou Costas.

- Talvez ele o tenha conseguido quando veio pela primeira vez para a Grã-Bretanha durante a conquista - disse Jack. - Talvez a própria Boudica o tenha dado a ele, e mais tarde ele o usou para esconder seu tesouro, aquele que estamos procurando. Este cilindro seria menos óbvio do que um daqueles jarros de pedra egípcios.

- Ele teria se encaixado exatamente dentro de um daqueles vasos, como o que encontramos em Roma - murmurou Costas. - Talvez também haja um daqueles por aqui.

- Não se este cilindro estava inalterado - disse Jack.

- Você vai abri-lo?

Jack respirou profundamente. - Estas não são exatamente condições controladas por laboratório.

- Já escutei isso antes.

Jack olhou de novo para a mistura de água e lama por que tinham passado para entrar na tumba, ainda se movimentando para frente e para trás e nitidamente marrom sob a luz de sua tocha. - Estou preocupado com o fato de que o lacre pode ter apodrecido. Se o levarmos de volta passando por esta lama, podemos destruir o que está dentro para sempre. E não quero arriscar voltar para conseguir um recipiente impermeável. Quem sabe nunca voltemos para cá. E o lugar inteiro pode ser pulverizado.

- A qualquer momento - disse Costas, olhando para a cauda da bomba erguendo-se acima da água. - Muito bem, vamos abri-lo.

Jack assentiu com a cabeça, e pôs a mão sobre a tampa. Fechou os olhos, e silenciosamente murmurou umas palavras para si mesmo. Tudo pelo qual eles estavam se esforçando parecia subitamente depender deste momento. Abriu os olhos, e girou a tampa. Ela saiu facilmente. Muito facilmente. Ele inclinou o cilindro em direção ao feixe de luz, e olhou dentro.

Estava vazio.

 

Na manhã seguinte bem cedo, Jack se sentou na nave da Catedral de São Paulo em Londres, debaixo da grande abóbada do altar superior dirigido para o leste. A catedral havia sido aberta ao público havia apenas alguns minutos antes e ainda estava quase vazia, mas Jack tinha escolhido uma fileira de assentos bem no meio da ala central da nave onde havia menor probabilidade de serem ouvidos. Olhou para o relógio. Havia combinado se encontrar com Costas às nove horas e faltavam apenas cinco minutos, e Jeremy voltaria de Oxford assim que pudesse. Jack e Costas tinham passado a noite no apartamento da IMU na City de Londres, um lugar onde Jack ficava com freqüência durante o intervalo entre dois projetos, quando necessitava fazer pesquisas em alguns museus ou bibliotecas de Londres. Tinha ficado muito cansado para conversar, e muito estarrecido para ficar desapontado. Somente agora estava começando a ser penetrado pelo que acontecera. Reclinou-se no assento, esticou-se e fechou os olhos. Ainda se sentia esgotado pela exploração extraordinária do dia anterior, e o seu café da manhã não tinha caído muito bem. Ele se sentia estranhamente desanimado, sem saber se sua busca tinha ido até o máximo que podia, se devia reavaliar o que tinham descoberto, começar a participar com prazer dos achados dos últimos dias pelo que eles eram e deixar de vê-los como indícios para algo maior. Jack abriu os olhos e olhou para a magnífica abóbada acima dele, muito parecida com a abóbada da Catedral de São Pedro no Vaticano, com a abóbada romana do Panteão, cerca de cento e cinqüenta anos mais nova que esta. No entanto, aqui Jack sentia que não estava olhando para uma continuidade, mas para um esplendor único realizado por Sir Christopher Wren. A abóbada semicircular acima dele havia sido colocada abaixo da abóbada ovóide do exterior, era uma maneira de elevar a catedral externamente, assegurando ao mesmo tempo que a visão interior da abóbada fosse agradável aos olhos. Isto se devia ao gênio de um homem, não a algum processo inevitável da história. Jack estreitou os olhos. E nada era exatamente aquilo que parecia.

- Bom dia, Jack. - Costas se aproximou ladeando os assentos da ala central, e Jack olhou para ele um pouco preocupado. Costas estava vestindo uma das roupas de pescadores da Guernsey que Jack deixara no apartamento, um pouco demasiado apertada para ele no corpo, mas dois tamanhos maior no comprimento, com as mangas dobradas para mostrar os músculos de seus braços. Ele parecia um pouco pálido e estava vermelho ao redor do nariz, e seus olhos estavam cheios de água. - Não pergunte - ele disse, largando-se repentinamente sobre o assento ao lado de Jack e parecendo infeliz, fungando e procurando por um lenço de papel em seu bolso. - Usei todos os descongestionantes que pude encontrar. Não sei como você consegue respirar quando o ar está tão úmido. E frio. - Espirrou, fungou e gemeu.

- Reuni todas as informações que obtivemos no local sobre a bomba - disse Jack.

- Eles estão removendo as barreiras agora. A equipe para retirar a bomba dirigiu-se direto para baixo do pavimento do Guildhall, para retirá-la e levá-la embora de helicóptero no meio da noite para provocar depois uma explosão controlada. Foi realmente uma comoção. Eu me assegurei de que eles escavassem partindo do ponto leste, de modo que não acho que houve algum dano para a bomba.

- Acabei de falar com os meus amigos do serviço arqueológico em Londres - disse Jack - Eles têm um verdadeiro desafio em suas mãos. Precisam fazer uma espécie de bolha protetora no local para manter as condições atmosféricas na tumba, para impedi-la de deteriorar. Puseram a melhor equipe de conservação em prontidão. Provavelmente isso vai levar meses, mas deverá ser fantástico, quando for revelado. Sugeri que deixassem a tumba in situ, fizessem um museu no local. Poderia ser completamente subterrâneo, com entrada pelo anfiteatro.

- Nós não queremos perturbar a rainha Boudica - fungou Costas. - De modo algum.

- Eles deixaram você entrar durante a ação? - perguntou Jack.

- Acontece que o oficial de comando da Unidade de Mergulho é um antigo companheiro meu, um oficial do Corpo Real de Engenheiros da Escola de Mergulho de Defesa. Nós nos conhecemos quando fizemos juntos o curso para Eliminação de Minas e de Engenhos Explosivos em Devonport, dois anos atrás. Você se lembra? Eu o avisei de que o segundo detonador estava muito corroído para perfurá-lo com broca, que eles deveriam preenchê-lo para neutralizá-lo. Mas ele não me permitiu ajudá-los. Regulamentações de segurança e saúde, você as conhece. - Costas fungou. - Este é o problema com este país. É super-regulamentado.

- Você gostaria mais que estivéssemos baseados na Itália, vamos dizer?

Os olhos de Costas se iluminaram. - Falando nisso, quando vamos voltar para o navio naufragado de são Paulo? Não sei você, mas eu estou saturado de andar no escuro e em túneis úmidos. Um par de semanas no Mediterrâneo me conviria muito bem. Pode até curar este resfriado.

- O Seaquest ainda está parado, e o avião a jato da Embraer está de prontidão - replicou Jack. - Acabei de falar com Hiebermeyer por telefone sobre o momento de soltar o press release sobre os achados em Herculano. A não ser que Jeremy encontre algo, eu não vejo para onde ir daqui seguindo a seqüência lógica de Cláudio. O que encontramos já constitui um fabuloso acréscimo para a história, as extraordinárias descobertas que fizemos em Roma e aqui em Londres, mas o paradeiro do manuscrito pode simplesmente ter de permanecer como um dos grandes mistérios insolúveis. - Jack ergueu a vista, depois olhou atentamente para a abóbada de novo. - Não faz o meu gênero largar as coisas, mas um beco sem saída é um beco sem saída. Podemos ir liberar a matéria para publicação hoje à tarde. Depois disso, todo o mecanismo de arqueologia pública assume, e nós podemos voltar ao que fazemos melhor.

- Você quer dizer descobrir coisas. Como o gim com tônica ao lado da piscina do meu tio na Grécia.

- Depois do trabalho no navio naufragado de são Paulo. E nosso retorno ao mar Negro.

Costas resmungou, depois olhou ao redor. - Vejo que você esteve estudando as imagens que Maria tirou da sala em Herculano. - Apontou para o tecido encharcado na página com pequenas imagens no laptop de Jack, que estava aberto em seu colo.

Jack assentiu, depois olhou novamente para Costas com uma expressão de expectativa.

- Conheço este olhar - disse Costas.

- Só estava procurando as fotos para o press release, depois subitamente me lembrei - disse Jack. - Aquela página de papiro que encontrei, colocada debaixo da mesa sob as folhas em branco. Historiae Britanniorum Narciso Fecit. - Jack clicou em uma pequena imagem, e uma página do antigo texto apareceu na tela. - Graças a Deus Maria tirou muitas fotos.

Costas assuou o nariz. - Eu sabia que você tinha encontrado algo.

- Retirei aquela página de minha mente porque desconfiava que ela fazia parte de um tratado sobre estratégia militar, o tipo de coisa que Cláudio, um general de poltrona teria apreciado, para mostrar que realmente conhecia seu assunto e era merecedor de seu pai e seu irmão. Talvez algo sobre a direção para a invasão, sobre seu planejamento com os comandantes das legiões, tudo meticulosamente perfeito. Mas então eu lembrei. Eu me vi novamente em Herculano, naquela sala. Nas semanas que culminaram com a erupção do Vesúvio, Plínio, o Velho, estava visitando Cláudio na vila. Plínio era um militar, um historiador também, ele próprio um velho veterano, mas tinha estado ali, concluído aquilo, e o que realmente o interessava nos seus últimos anos era a sua História natural, a coleta de quaisquer fatos e trivialidades que pudesse colocar nela.

- Como aquela página sobre a Judéia, você quer dizer, suas anotações adicionais - disse Costas.

- Precisamente. E o que realmente o estimulou acerca de Cláudio teria sido a conexão com a Britannia. Não a campanha militar, a invasão, mas qualquer coisa que Cláudio pudesse lhe contar sobre a história natural, a geografia, o povo, a história, qualquer coisa incomum, extravagante. Posso vê-lo sentado com Cláudio naquela sala, questionando constantemente, mantendo-o afastado do triunfo, extraindo qualquer trivialidade que Cláudio pudesse ter encontrado, com o velho Narciso sentado à mesa transcrevendo pacientemente o que Cláudio dizia. Afinal, Cláudio tinha visto o local com seus próprios olhos, tinha visitado a Grã-Bretanha não só uma vez, em razão de seu triunfo, mas duas, quando ele veio em segredo visitar a tumba já como um homem velho, pouco antes da erupção. A Grã-Bretanha foi a sua grande realização, e ele teria gostado de contar a Plínio tudo sobre ela, desempenhando o papel de um velho general falando sobre o seu passado, de sua conquista para a glória de Roma e a honra de sua família.

- Continue. - Costas espirrou violentamente.

- Eu agora li a página, e claramente ela faz parte de um preâmbulo, um capítulo introdutório, montando o cenário. - Jack apontou para a fina escrita a mão na tela. - O latim fácil e claramente escrito. Devemos agradecer a Narciso por isso. O texto é sobre religião e rituais, exatamente o tipo de coisa que Plínio teria gostado.

- E exatamente o que necessitamos - Costas fungou. - Toda aquela discussão ontem sobre a Idade do Ferro, sobre Boudica. Ainda permanecem alguns belos buracos negros.

Jack assentiu. - A primeira parte realmente me surpreendeu muito. Ela é o final da descrição de um grande círculo de pedra que Cláudio visitou. 'Eu vi estas coisas com os meus próprios olhos', ele diz.

- Será que ele estava pensando em Stonehenge?

- Ele nos conta que as pedras foram colocadas por pessoas da Grã-Bretanha para honrar a raça de gigantes que veio do leste, escapando de uma grande inundação - disse Jack. - As pedras representam os reis-sacerdotes e as rainhas-sacerdotisas, que mais tarde governaram esta ilha.

- O êxodo do mar Morto - murmurou Costas. - As sacerdotisas da Atlântida. Isto mostra que Cláudio não estava sendo informado com um monte de mentiras.

- "Estes gigantes trouxeram consigo uma Deusa Mãe, que mais tarde foi venerada na Grã-Bretanha" - traduziu Jack. - "Os descendentes desses reis-sacerdotes e rainhas-sacerdotisas foram os druidas." - Ele voltou para o original em latim: - "Praesidium posthac inpositum victis excisisque luci saevis superstitionibus sacri: nam cruore captive adolere aras et hominum fibris consulere deos faz haberant, que consideram como seu dever sagrado cobrir seus altares com o sangue de suas vítimas. Eu mesmo os observei dentro do círculo de pedra, o lugar que eles chamam Druidaeque Circum, o círculo dos druidas."

- Nas nossas últimas expedições, nós nos deparamos com toltecas, cartagineses e agora antigos bretões - disse Costas. - Sacrifícios humanos por toda parte.

- É fantástico - disse Jack. - Os primeiros que lidaram com objetos antigos e raros pensavam que Stonhenge tinha sido um círculo druida, e tinham razão, afinal. Mas este é o argumento decisivo. Ouça isto. "Escolheram as altas sacerdotisas entre as famílias nobres dos bretões. Eu mesmo conheci aquela que foi escolhida, a menina Andraste, que também chamava a si mesma de Boudica, que foi trazida até mim como uma escrava, mas que a Sibila ordenou-me que lhe concedesse a liberdade. Porque a Sibila de Cumas diz que a alta sacerdotisa destes druidas é a décima terceira dentre elas, o oráculo de todas as tribos de Britannia."

- Pare bem aqui - disse Costas.

- Final da página. É isto.

- Você está dizendo que Boudica, a rainha guerreira, aquela que acabamos de encontrar, era uma alta sacerdotisa? Que Boudica realmente era uma druidesa? A arquidruida?

- Eu não estou dizendo isso, é Cláudio quem diz.

- E a alta sacerdotisa dos druidas era uma das sibilas?

- É o que ele diz. E Cláudio devia saber. Segundo todos os relatos, ele era um freqüente visitante da gruta dela em Cumas.

- Isto porque a Sibila era sua fornecedora de drogas.

- Acho que há alguma coisa extraordinária acontecendo aqui, alguma coisa que as pessoas intuíram, mas que nunca foram capazes de provar - disse Jack, colocando o computador no assento ao seu lado e erguendo o olhar para o altar. - Vamos retroceder por um momento. Cláudio recebe um documento de um homem que morava na Galiléia, um nazareno.

- Nós sabemos de quem estamos falando, Jack.

- Sabemos? Havia grande quantidade de pretensos messias vagando ao redor do mar da Galiléia naquela época. João Batista, para começar. Não vamos saltar para conclusões.

- Ora, Jack Você está representado o advogado do Diabo.

- Vamos deixar o Diabo fora disso. Já tivemos que lutar bastante contra ele dentro da própria igreja. - Jack fez uma pausa. - Então, já um homem velho, Cláudio faz uma viagem secreta para a Grã-Bretanha, para Londres. Ele levava o manuscrito consigo, dentro de um cilindro de metal, um que lhe fora dado em uma visita anterior por uma princesa dos icenos. - Jack passou a mão de leve em uma protuberância em sua mochila. Costas olhou para a protuberância, depois para Jack.

- Jack, roubar cilindros está se tornando um hábito.

- É apenas uma precaução. Para o caso de a bomba estourar. Devemos ter alguma evidência de que realmente o vimos.

- Não precisa explicar para mim, Jack.

- E, como todos os bons escondedores, ele deixa um indício. Ou melhor, uma série de indícios, alguns deles por intermédio de seu amigo Plínio.

- Acho que Cláudio estava se divertindo conosco - disse Costas, fungando.

- Cláudio é viciado em ler as folhas, fez isto durante toda a sua vida, basta ver todas as visitas que fez para a Sibila. Ela o mantinha bem envolvido sob seus dedos enrugados, é claro. Ele se torna como um entusiasta por palavras cruzadas, um criptologista. E isto parece fazer parte da psicologia de esconder um tesouro - disse Jack. - Se tiver que esconder algo, deve escondê-lo tão secreta e seguramente quanto possível, mas você deve sentir que em algum lugar ao longo do caminho, se algo acontecer a você, alguém mais possa encontrá-lo. Uma espécie de maneira de assegurar sua imortalidade, até mesmo dois mil anos depois.

- Então ele encontra a sepultura de Boudica, e aqui estamos - disse Costas. - Sempre esconda as coisas nos lugares mais improváveis. - Espirrou. - A palavra do messias enfiada nas mãos mortas de uma rainha pagã.

- Este é um fio da nossa história - disse Jack. - Cláudio, com suas motivações, foi quem o desenrolou. Mas o segundo fio tem me fascinado. Diz respeito a uma mulher.

- Katya, Maria, essa Elizabeth? Cuidado, Jack. Esta é uma coisa que você não parece ser capaz de controlar.

- Estou me referindo a mulheres no passado.

- A deusa mãe? - perguntou Costas.

- Se o sacerdócio sobreviveu desde a época neolítica, então temos todo o direito de pensar que o culto da deusa mãe também sobreviveu - disse Jack. - Ela se encontra lá dentro do panteão greco-romano, Magna Mater, a Grande Mãe, Vesta, cujo templo encontramos em Roma, e entre os deuses celtas também. Mas não estou pensando apenas em deusas mulheres. Estou pensando nos praticantes terrestres de religião, os padres, os oráculos.

- As sibilas?

- Alguma coisa está começando a se encaixar, algo quase demasiado fantástico para acreditar - murmurou Jack. - Ela tem estado olhando para nós durante séculos, a profecia da Sibila em Virgílio, o Dies Irae. E agora encontramos o elemento suplementar que repentinamente torna tudo plausível, que inclina a balança para a realidade.

- Continue.

- Trata-se do início do cristianismo. - Jack subitamente experimentou um aumento de excitação quando percebeu para onde seus pensamentos o estavam levando. - Sobre as mulheres no cristianismo primitivo.

- A Virgem Maria?

- O culto da Virgem Maria provavelmente incorporava crenças pagãs em uma deusa mãe - disse Jack. - Mas estou pensando nos primeiros crentes, os primeiros seguidores de Jesus, quem eles eram. - Remexeu na mochila, e tirou um livro de capa dura vermelha. - Você lembra que lhe contei como era ilusória a evidência escrita para o cristianismo primitivo, como virtualmente nada sobrevive além dos Evangelhos? Bem, uma das raras exceções é o nosso velho amigo Plínio. Não Plínio, o Velho, mas seu sobrinho, Plínio, o Moço.

- Aquele que escreveu sobre a erupção do Vesúvio. E sobre as vestais virgens.

- O relato do Vesúvio se encontrava em uma carta para o historiador Tácito, escrita cerca de vinte e cinco anos depois do evento. Bem, aqui está ele de novo, em outra carta escrita pouco antes de morrer em 113 d.C. Naquela época, ele era o governador romano de Ponto e Bitínia, a área da Turquia ao lado do mar Negro, e está escrevendo para o imperador Trajano sobre as atividades dos cristãos em sua província. Plínio não era exatamente um aficionado do cristianismo, mas na época ele estava seguindo a linha oficial. O que havia começado na época de Cláudio como um culto obscuro, uma outra religião misteriosa do leste, cinqüenta anos mais tarde se tornara uma verdadeira preocupação para os imperadores. Diferente de outros cultos orientais, diferente da adoração de Isis ou de Mitra, os primeiros cristãos desenvolveram um lado político. Romanos de visão avançada podiam ver a Igreja se tornar um foco de discórdia, especialmente quando o cristianismo atraía escravos, a classe social mais baixa nas sociedades romanas. Os romanos estavam sempre aterrorizados com a possibilidade de uma insurreição de escravos, desde a época de Espártaco. Eles também ficavam desnorteados com o fanatismo dos cristãos, a disposição para morrer por suas crenças. Isto não era visto em nenhum dos outros cultos. E havia uma outra coisa que os assustava.

- Mulheres - disse Costas, depois espirrou. - Esses romanos eram todos homens.

Jack concordou com a cabeça, e abriu o livro. - Ouça isto. Uma carta de Plínio para o imperador Trajano. Plínio procurando conselho sobre como perseguir os cristãos, como ele nunca fez antes. Chama o cristianismo de culto degenerado, que atingia graus extravagantes. Ele executou cristãos que não se arrependiam, embora poupasse generosamente aqueles que faziam oferendas de vinho e incenso para a estátua de Trajano, o deus vivo. Mas eis a atitude predominante. A fim de extrair a verdade sobre suas atividades políticas, ele ordena a tortura de duabus ancillis, quae ministrae dicebantur, escravas, que eles chamam de diaconisas.

- Sacerdotisas - disse Costas.

- Era isso que realmente atemorizava os romanos - disse Jack. - Era isso que os amedrontava acerca dos bretões, igualmente, acerca de Boudica. Ela os fascinava, os excitava, mas também os aterrorizava. As mulheres eram o poder que havia por detrás das cenas em Roma, mulheres como Lívia, a mulher de Augusto, ou as intrigantes esposas de Cláudio, mas era um sistema dominado pelos homens. O cursus honorum, o rito de passagem através de cargos públicos e militares seguidos por romanos de classes superiores como Plínio e seu tio, jamais teria admitido uma mulher. Exatamente como a selvagem e bárbara rainha guerreira, a idéia desse novo culto com sacerdotisas teria sido horripilante, pior ainda se tivesse sacerdotisas escravas.

- Mas eu achava que a Igreja cristã era dominada por homens.

- Esta é a coisa fascinante que há na carta de Plínio. Aquele pequeno fragmento de informação sobre diaconisas. A Igreja não começou dominada por homens. Em algum lugar no meio do caminho, talvez na época de Plínio, seus líderes mais politicamente dispostos devem ter percebido que nunca derrotariam Roma frontalmente, que estavam em uma posição em que tinham boa chance de ser extintos completamente, da maneira como as coisas estavam andando. Em vez disso, o sistema poderia ser conquistado de dentro, caso se convertessem homens que pudessem perceber como a Igreja se ajustava às suas ambições pessoais, suas carreiras políticas. Em última análise, era preciso conquistar o próprio imperador, como aconteceu duzentos anos depois de Plínio com Constantino, o Grande. Trata-se sempre de homens. Mas, no início do cristianismo, antes que a Igreja se desenvolvesse como força política, o caso não era esse. A mensagem de Jesus arrebatava igualmente homens e mulheres.

- Fale-me sobre a Sibila novamente, Jack. Ainda não percebo a ligação.

- Certo. - Jack fechou o livro, ergueu os olhos para a abóbada, depois estreitou os olhos. - Eis uma teoria. Uma especulação, uns poucos fatos.

- Solte tudo. - Costas espirrou violentamente.

- No final do primeiro século d.C., no início do Império Romano, o poder da Sibila estava diminuindo - disse Jack. - Para a Sibila em Cumas, os romanos que chegaram a ocupar os antigos assentamentos gregos na baía de Nápoles eram uma moeda de duas faces. Por um lado eles a mantinham ocupada. Os romanos se dirigiam aos Campi Flegrei para procurar curas, profecias e ficavam boquiabertos com o fogo e o espetáculo da entrada do mundo subterrâneo. Por outro lado, para muitos romanos, a música da Sibila tinha se tornado artificial, um papel de parede, uma habilidade inventiva, um embelezamento grego como aquelas estátuas na Vila dos Papiros ou aqueles filósofos impostores que eram sustentados para entreter os convidados depois do jantar. E, como agora suspeitamos, a Sibila começou a depender mais de distribuição de narcóticos para se sustentar do que de emitir profecias divinas que as pessoas assumissem seriamente.

- Mas certamente o poeta Virgílio a levava a sério - disse Costas. - Veja a profecia em seu poema, o advento da Idade do Ouro.

- É difícil saber se ele a levava a sério ou se simplesmente usava o imaginário para enfeitar sua poesia, usando a forma de expressão da Sibila - disse Jack. - Mas acredito que a Sibila via nele um homem cujas palavras lhe sobreviveriam, um homem predestinado a uma realização suprema, assim como ela viu o mesmo em Cláudio uma geração mais tarde. Ela deu a Virgílio o que ela queria que sobrevivesse, o que ela queria ver imortalizado em sua escrita. As sibilas eram manipuladoras astutas. Como todos os místicos de sucesso, como aqueles que reivindicam possuir um sexto sentido ou algum insight especial, ela sempre teria tentado se manter um passo à frente de seu cliente, saber mais sobre eles do que poderia parecer plausível. Não tenho dúvida de que as sibilas mantinham uma extensa rede de espiões e informantes que as mantinham a par de tudo que estava acontecendo. Lembre-se da gruta que encontramos debaixo do Palatino, bem no centro das coisas. Se é verdadeira aquela extraordinária afirmação de Cláudio naquela página de seu livro sobre as sacerdotisas na Grã-Bretanha, então, talvez, as sibilas em Cumas também fossem escolhidas dentro das famílias mais abastadas, assim como as vestais, que podiam ser escolhidas até mesmo dentro da família imperial. Talvez a gruta em Roma fosse o lugar onde elas eram criadas. E a educação de uma sibila provavelmente se referia a todas as maneiras de pedir com insistência informações pessoais e particulares das pessoas, sem que elas percebessem.

- O que é especialmente fácil, se o seu cliente está drogado - disse Costas.

- Provavelmente foi assim que Cláudio revelou seu segredo para ela - disse Jack.

- Ainda não entendi a conexão com o cristianismo.

- É nisso que a coisa fica realmente engraçada - disse Jack. - No período em que Virgílio visitou Cumas, na época do primeiro imperador, Augusto, a Sibila já sabia que seus dias estavam contados. Roma tinha conseguido governar o mundo, e elas viam o panteão de deuses romanos e de crenças se estabilizando ao redor deles como os templos e palácios da própria Roma, construídos em pedra para durar mil anos. Mas também tinham em mira o leste, o leste além da Grécia, e percebiam novas forças prestes a tragar o mundo romano, forças mantidas latentes enquanto Roma lutava dentro de si mesma, e lutava para conquistar as antigas terras outrora governadas por Alexandre, o Grande. As sibilas previram o culto oriental do governante divino chegando a Roma, o imperador se tornando um deus vivo. E viram algo mais. Viram os escravos e proscritos que se escondiam nos Campi Flegrei, os nativos do leste que vinham em bandos para a baía de Nápoles atraídos pela paz estabelecida por Augusto, assim como Plínio, o Velho, devia ver o mesmo em meio a seus marinheiros no Misenum. Novos movimentos religiosos vindos do leste, novos profetas, um messias. Um mundo onde as sibilas não seriam mais capazes de manter sua influência, onde as pessoas não desejariam mais ser escravizadas por oráculos e sacerdotes para conhecer a palavra de Deus.

- A chegada da Idade do Ouro - murmurou Costas.

- Já na época de Virgílio, a Sibila percebera isto. Na época de Cláudio, ela já sabia. O culto de Jesus e seu ministério havia chegado.

- E ela ouviu o estrondo distante dentro do subterrâneo - disse Costas. -Literalmente.

- Aconteceu um enorme terremoto na baía de Nápoles em 62 d.C. - disse Jack. - Você ainda pode ver as construções sendo consertadas em Pompéia para voltar a ser como elas eram dezessete anos mais tarde, quando houve a erupção do Vesúvio. E, sentada em sua gruta nos Campi Flegrei, a Sibila deve ter ouvido o que se passava no subterrâneo mais do que uma vez, deve ter adivinhado que alguma coisa catastrófica estava para acontecer, talvez até tenha feito a conexão com o Vesúvio. Estamos falando de observação empírica aqui. E é perfeitamente concebível que a memória de catástrofes vulcânicas do passado fizessem parte do antigo saber transmitido para as sibilas, a erupção do Thera no Egeu durante a Idade do Bronze, erupções anteriores no nordeste no início da civilização. Mas, talvez ela acreditasse verdadeiramente na existência de algum poder divino por detrás de suas afirmações, via sinais, augúrios, de que sua era havia acabado. Com a erupção do Vesúvio, seu deus Apolo teria desaparecido, extinguido para sempre.

- Era o momento para uma rápida saída - murmurou Costas.

- Você pode imaginar isso - disse Jack - Um espetáculo flamejante nos Campi Flegrei, com o Vesúvio em erupção e as nuvens negras surgindo em grande quantidade. Como uma cena do inferno de Dante, dirigida pela Sibila.

- A festa no fim do mundo - disse Costas fungando. - Gostaria de saber se Cláudio foi convidado.

- Provavelmente ele era a estrela da festa - disse Jack. - Teria na época oitenta e nove anos e estava pronto para a sua viagem para o subterrâneo, embora talvez não contasse com o bilhete só de ida naquele dia. Evidentemente, ele ainda estava trabalhando muito na sua história sobre a Grã-Bretanha. Talvez esta fosse a última gargalhada da Sibila, seu ato final de domínio sobre ele, sobre um homem que era adorado como um deus. Mas a festa só começou depois que ela soube que ele tinha feito a vontade dela.

- Você quer dizer, depois que ele trouxe seu precioso segredo para ficar com Boudica.

- Este é o elemento final, a grande mudança repentina - disse Jack. - No tempo de Cláudio, o Imperador, a Sibila teria visto a profecia que fizera para Virgílio como verdadeira. O nascimento de um menino, a iminência da Idade do Ouro. Ela devia ter visto os cristãos nos Campi Flegrei. Devia ter ouvido falar de Jesus e de Maria Madalena. Devia ter sabido que os cristãos eram constituídos de homens e de mulheres. Devia ter visto que não havia sacerdotes.

- Estamos falando de mulheres aqui, não estamos, Jack? Era para isso que você estava se encaminhando. O poder das moças.

- O poder das moças. - Jack sorriu. - Eu sabia que você entendera. Nada de deusas mães, mas mulheres reais. Foi isso que a Sibila viu. Em Roma, o poder da mulher na religião estava diminuindo. As vestais virgens ficavam virtualmente aprisionadas dentro das paredes do palácio; era quase uma fantasia despótica de submissão feminina. O culto imperial, o culto do imperador, era dominado pelos homens, com um sacerdote masculino exclusivamente. Para as sibilas, seu próprio sacerdócio, sua própria vocação, não era realmente para Apolo ou para os primeiros deuses que elas podem ter servido. Era para o matriarcado, para a continuação da linhagem feminina que remontava à Idade da Pedra, para a época em que as mulheres governavam a família e o clã. No cristianismo, a Sibila viu uma esperança para o futuro, para a continuação do matriarcado.

- Por que uma atenção especial foi dada para a Grã-Bretanha? - perguntou Costas.

- Porque é sempre na periferia que acontecem as maiores mudanças - disse Jack. - Em Roma, no centro do império, a civilização tinha se tornado endurecida, corrupta, decadente. O cristianismo tinha vindo da periferia, do limite oriental do império, e ele se situava na periferia em direção ao noroeste, tão afastado que muitos perceberam que havia uma grande esperança para seu sucesso. A Grã-Bretanha devia ter parecido quase como o Novo Mundo. Os bretões eram ferozmente independentes, truculentos, com uma religião misteriosa que nunca podia ser completamente compreendida e manipulada pelos romanos, sobre os quais os deuses romanos nunca poderiam verdadeiramente ter influência. As tribos da Grã-Bretanha tinham sido governadas por grandes rainhas guerreiras, por Boudica e as que vieram antes dela. E como sabemos por intermédio de Cláudio, seus próprios sacerdotes, os druidas, eram controlados por uma alta sacerdotisa. Se os druidas eram dominados por mulheres, então eram mulheres que reuniam as tribos guerreiras do mundo celta, assim como vinham fazendo havia milhares de anos.

- Você está tentando me dizer que Boudica era cristã?

- Ela certamente sabia a respeito do cristianismo. O próprio Cláudio pode ter lhe falado a respeito, quando ela foi trazida diante dele ainda adolescente, em sua primeira visita à Grã-Bretanha durante a invasão. Algo acerca dela, sobre o que ele sentiu e viu na Grã-Bretanha, pode ter influenciado Cláudio e o impelido a lhe contar sua história, sua visita à Judéia e o encontro com o nazareno. A lembrança do próprio imperador romano trazendo o cristianismo para a Grã-Bretanha pode ter se estendido, se tornado parte do folclore dos primeiros cristão na Grã-Bretanha. E Cláudio pode ter sabido sobre a conexão da Sibila com os druidas, posto que ele já estava sob a influência da Sibila em Cumas. A Sibila pode ter manipulado, em primeiro lugar, sua decisão de invadir o local, talvez fosse uma maneira de reunir mais estreitamente a Grã-Bretanha dentro de seu mundo, numa época em que podia ainda ter existido alguma esperança de que o poder das sibilas continuasse. Ela podia ter lhe deixado uma mensagem nas folhas.

- É espantoso o que as pessoas são capazes de fazer por seus fornecedores de drogas - murmurou Costas.

- Nos anos que se seguiram àquela visita, Boudica deve ter conhecido mais a respeito do cristianismo - continuou Jack. - Como as filhas e os filhos de muitos príncipes vencidos, ela deve ter sido criada da maneira romana, aprendido latim e talvez viajado para Roma, quem sabe até mesmo para a baía de Nápoles e para a gruta em Cumas. Em Londres, como em Misenum, ela deve ter encontrado marinheiros e soldados que traziam idéias de leste, o culto à Mitra, a adoração de Isis, o cristianismo. Depois, quando ela foi introduzida no sacerdócio, preparada para o seu papel de alta sacerdotisa, como a Sibila da Grã-Bretanha, ela se tornou participante da rede secreta de conhecimento que ligava todas as outras sibilas de lado a lado do mundo romano, as treze. E, em seguida, ela pode ter começado a ver a mesma coisa que a Sibila em Cumas via no cristianismo, algo que a atraiu para mais perto ainda depois que ela se rebelou contra os romanos. A religião que também parecera estar em desacordo com os romanos, aqueles romanos que tinham abusado dela e violentado suas irmãs, era a religião de desafio. E as idéias que ouviu, do céu sobre a Terra, pode ter alcançado facilmente os bretões, pessoas cujas crenças estavam sintonizadas com o mundo ao redor deles, com o mundo natural, e não fossilizadas em templos e sacerdotes. Talvez não tenha mostrado nenhum sinal exterior disso, mas ela pode ter decidido que aquelas idéias podiam funcionar para ela, para a sobrevivência do matriarcado.

- Um cristianismo antes da Igreja Romana - murmurou Costas. - O que era mesmo que você e Jeremy estavam me contando no anfiteatro? Sobre os seguidores de Pelágio.

- Esta é a explicação - disse Jack. - E acredito que essa é a razão por que a Sibila de Cumas fez Cláudio trazer o seu precioso documento para cá. Para proporcionar um presente secreto para os primeiros cristãos na Grã-Bretanha, que pudesse fortalecê-los contra aquilo que ela via acontecer diante de seus olhos nos Campi Flegrei, nos anos que se seguiram à chegada de são Paulo.

- Você quer dizer os primórdios da Igreja, a Igreja organizada - disse Costas, assoprando o nariz.

- Havia alguma coisa no documento de Cláudio, algo que só podemos adivinhar, que deu esperança para a Sibila. Algo que ele deve ter dito quando estava letárgico diante de sua gruta. Alguma coisa que a fez perceber que aquilo que ele possuía era extraordinariamente precioso e que precisava ser escondido secretamente e sem demora em algum lugar onde pudesse sobreviver e favorecer sua causa. E algo que ela também sabia era que algumas pessoas que viviam ao redor de Cláudio fariam de tudo para colocar as mãos nesse documento, até mesmo destruí-lo.

- Homens. - Costas espirrou e assoprou o nariz novamente. - Você está falando sobre homens. Não sobre aquelas mulheres que Plínio viu, aquelas diaconisas, mas homens, sacerdotes homens. Os primeiros sacerdotes do culto de Jesus. E isto assustou-a. Ela viu o cristianismo seguir o mesmo caminho que todos os outros cultos em Roma.

- Você percebeu o que aconteceu.

- Então, ela ameaçou Cláudio de retirar-lhe as drogas a menos que ele obedecesse a sua ordem.

Jack sorriu. - Este podia ter sido o resultado final, mas duvido que ele tenha se entregado tão simplesmente. Ela sabia exatamente por que ele continuava voltando, por maior quantidade de droga, que era o que mitigava a sua dor, mas o próprio Cláudio podia não ter estado tão seguro. Tudo o que ele sabia era que precisava obedecer a sua ordem, e que cada vez que ele ficava parado na entrada daquela gruta enfumaçada ele se sentia bem de novo. Provavelmente ela lhe ofereceu uma retribuição, algo que ela sabia que faria com que ele retornasse para sua gruta, para o local da entrada para o mundo subterrâneo. Talvez como Enéias, na história de Virgílio, ela ofereceu levá-lo para baixo, para ver novamente seu pai e seu irmão. Isto era o que ele mais ansiava. Como qualquer bom adivinho, ela conhecia a psicologia do seu cliente. Tinha ouvido o que ele dissera durante anos quando ele aparecia diante de sua gruta, conhecia detalhes íntimos que ele próprio havia esquecido, o suficiente para convencê-lo de que ela tinha uma espécie de sexto sentido.

- E ela sabia que ele gostava de um bom mistério.

- Ela lhe deu uma profecia. Uma mensagem escrita nas folhas. Cláudio a pegou, apreciou o desafio. A mensagem foi aquela que ele encontrou em Roma, o Dies Irae. Uma profecia de destruição e de esperança. Sabia quem era Andraste, e também sabia onde encontrar a sua tumba. A Sibila sabia que ele sabia. Escreveu a profecia, lacrou-a naquele cilindro de pedra, aquele que deu para Plínio guardar em Roma. Tudo o que Cláudio tinha que fazer era cumprir a profecia, levar o manuscrito e colocá-lo na tumba junto com Andraste, e ele conseguiria aquilo que implorara para a Sibila, sua visita ao mundo subterrâneo.

- Bela diversão - murmurou Costas.

- Quando a profecia se realizou, naqueles momentos finais de inferno antes do instante da destruição, ela pode ter parecido correta. Ele pode ter fechado os olhos, e visto apenas aquelas estátuas que encontramos em sua sala, aquelas imagens de seu pai e de seu irmão que devem ter sido ficado marcadas em sua mente.

- Jack, eu acho que você encontrou uma outra alma gêmea - disse Costas. - Sai Harald Hardrada, rei dos vikings e entra Cláudio, o imperador de Roma.

- Eu me sinto exatamente como me senti naquela pequena ilha ao norte de Newfoundland - suspirou Jack, fechando o livro. - Harald nos levou a uma aventura extraordinária em busca de seu tesouro, mais distante do que jamais poderíamos ousar imaginar. Eu me sinto da mesma maneira agora, mas sinto que Cláudio nos deixou, ele nos levou até onde pôde. Sinto que devo a ele encontrar os indícios, ir ao local que ele quer que eu vá. Mas não consigo ver um passo adiante.

- Falando em almas gêmeas, aqui está uma das minhas - disse Costas, fungando e gesticulando, com os olhos lacrimejantes, para a figura andando ao longo dos assentos em direção a eles. - E talvez ele tenha conseguido o que precisamos.

 

A mulher tropeçou quando eles a arrastaram para fora do carro e a empurraram sobre a superfície rochosa irregular. Ela estava com os olhos vendados, mas sabia onde se encontravam. O cheiro a tinha atingido assim que eles abriram a porta do carro, a rajada acre do enxofre que fazia queimar a ponta de sua língua. Ela podia sentir a abertura do espaço à frente, a quente corrente ascendente da fornalha nas profundezas da terra. Ela conhecia o motivo. Eles ou fariam aqui ou a levariam para baixo. Ela estivera neste lugar muitas vezes antes, quando criança, quando eles haviam tentado fortalecê-la, fazendo com que descobrisse o terror, a súplica, a incontinência, algumas vezes a serena compostura, a aceitação das velhas maneiras como elas sempre tinham sido, a futilidade da resistência.

Uma mão guiou-a para a esquerda, e continuou a empurrá-la, para descer um caminho rochoso. Então seria embaixo. Eles não estavam se arriscando. Com um puxão fizeram-na parar, e brutalmente desataram sua venda. Ela pestanejou com força, e olhou dentro da escuridão. Sentia a magnitude do Vesúvio sobre a baía atrás dela, mas sabia que, se se voltasse para um último olhar ela seria espancada e a venda posta de novo. Sabia que a tinham removido somente para facilitar a descida deles pelo caminho rochoso até o chão da cratera, mas esperava que a deixassem sem a venda até o final. Este era o seu único medo, o de que fosse experimentar o momento final na escuridão, incapaz de distinguir entre cegueira e morte.

Ela mantinha os olhos à frente, só olhando para baixo quando tropeçava, suas mãos amarradas atrás. Alcançaram a parte mais baixa. Restava um lance de degraus atrás, como defesa. Esta era a maneira usual de fazer as coisas. Outrora isto tinha sido dela, quando eles haviam tentado assimilá-la mais profundamente dentro da família, antes que tivessem encontrado uma outra forma de fazê-la servi-los. Ela se lembrava da entrevista, do obscuro homem de Roma, o homem que ela nunca mais viu e com quem nunca mais falou novamente. Depois disso, houve algumas chamadas telefônicas ocasionais, solicitações, instruções, ameaças que ela sabia serem reais e depois a exigência para que aceitasse o trabalho em Nápoles. Nada ocorreu durante vários anos e em seguida veio o terremoto, logo depois os pesadelos retornaram, os telefonemas no meio da noite, solicitações urgentes, mais ameaças, o seu mundo de conhecimento desabando. Ela pensou nos primeiros tempos, quando parecia estar livre disto. Pensou em Jack. Depois os dois degraus que restavam ressoaram na cratera, empurraram-na para frente. As mãos a fizeram parar de novo, e a venda foi recolocada sobre seus olhos. - Não - ela disse furiosamente em italiano. - Isto não. Você se lembra do quanto isto me aterrorizava quando éramos crianças? Quando eu tomava conta de você. Meu irmãozinho.

Não houve resposta. As mãos se detiveram, depois afrouxaram. A venda se prendera no cordão da carteira de identidade da superintendência ao redor do seu pescoço, e foi violentamente arrancada. Parecia que seu pescoço tinha sido chicoteado. Ela manteve resolutamente os olhos à frente, mas percebeu o gesso que cobria o pulso dele. - O que lhe aconteceu, mia caro'? - ela perguntou. - Deixe-me cuidar de seu braço. - Não houve resposta, e ela foi empurrada à frente, desta vez violentamente, pelo coque de seus cabelos. Ela cambaleou para diante. Cinqüenta passos para frente. Uma mão agarrou seus cabelos de novo, e um pé a chutou atrás de seu joelho direito. Ela desabou no chão da cratera, os joelhos batendo com estrondo na lava. Manteve a compostura, permaneceu ereta. Suas pernas foram separadas com chutes. Alguma coisa fria foi fortemente empurrada contra sua nuca, enviando um formigamento ao longo de sua coluna. - Espere - ela disse, com voz forte, sem vacilar. - Solte as minhas mãos. Devo me reconciliar com Deus. In nomine patri, filii et spiritu sancti.

Durante alguns momentos, nada aconteceu. A boca da arma de fogo ainda estava pressionada contra seu pescoço. Ela se perguntou se era assim, se já havia acontecido, se isto era a morte, se a morte significava ficar gelada no momento da passagem. Depois a boca da arma foi retirada, ela ouviu bater no chão uma caneca de metal espalhando líquido e mãos apalpavam seus pulsos. Seu coração estava começando a bater mais rápido agora, parecia estar dando pancadas, e seus joelhos fraquejaram. Ela fechou os olhos e respirou profundamente, saboreando o ato, até mesmo o odor nauseabundo daquele local. Não queria cair. Ela não queria deixar a família cair. Queria manter a honra. Abriu os olhos, e olhou diante dela. A fenda estava ali, preta como carvão, com lava solidificada ao redor das beiradas. Ela sabia o que ia acontecer. O som curto e agudo da Beretta com silenciador, o jato de sangue misturado com miolos, estranhamente independente das coisas externas, como uma mangueira, vibrando com as últimas batidas do coração. O corpo empurrado para dentro da fenda, o combustível da caneca esvaziado sobre ele, o cigarro arremessado. Ela desejava que a própria fenda a levasse, se tornasse viva como havia ficado quando o vulcão tinha batido como um coração vivo debaixo deste lugar, o cerne ardente do mundo subterrâneo. Ela queria ser abraçada por ele. Queria que ele queimasse.

Houve um som de dilaceramento quando a fita adesiva que amarrava suas mãos foi arrancada, um último choque de dor. Deixou a mão esquerda cair livremente, sacudiu-a, sentindo a circulação retornar. Lentamente ergueu a mão direita diante de seu peito e fez o sinal da cruz e tocou sua testa. Sua mão estava firme, sem tremor. Ela ficou contente. Deixou-a cair. Seus olhos estavam bem abertos, olhando fixamente para a fenda. Juntou as mãos, sentiu o anel que ele lhe havia dado. A boca da arma pressionou sua nuca de novo, Ela inclinou a cabeça leve-mente. O ângulo seria melhor. Mais rápido. Ouviu o toque de um celular, e depois a voz atrás dela, uma voz que trouxe de volta a ternura da infância, que tinha gostado de escutar cada manhã quando ela afagava sua testa, vendo-o acordar.

- Eminência? Va bene. Está feito.

Depois nada.

 

Costas espirrou de novo, e abriu espaço para Jeremy, que tinha chegado à catedral alguns minutos antes, mas descobrira um oficial e fora direto falar com ele. Jeremy se aproximou vindo pela nave de novo, carregando um guarda-chuva gotejante e uma pasta de papéis e vestindo uma jaqueta vermelha Goretex. Costas e Jack tinham acabado de retornar ao seu lugar na Catedral de São Paulo alguns momentos antes, depois de terem ido rapidamente até a farmácia que havia do lado de fora na Strand, e Costas estava ruidosamente inalando um descongestionante e examinando a etiqueta de um frasco. Pegou um punhado de comprimidos, um trago de água e inclinou-se para trás para deixar Jeremy passar, deixando espaço no assento entre ele e Jack. Jeremy retirou a jaqueta, sentou-se, aspirou o ar pelo nariz de maneira audível, tirou os óculos para enxugar a água da chuva, depois aspirou o ar de novo. Inclinou-se para Costas, depois recuou ligeiramente. - Tem alguma coisa cheirando mal por aqui.

- Bom dia para você, também - disse Costas, falando com voz nasalada.

- É uma espécie de cheiro de doença - disse Jeremy. - Verdadeiramente repugnante.

- Ah - disse Jack. - Secreção do corpo. De alguma maneira, ela sempre permanece com você.

- Ah - replicou Jeremy forçosamente. - Esqueci-me do lugar onde vocês estiveram. Corpos mortos. É por isso que prefiro as bibliotecas.

- Não diga esta palavra. Preferir - disse Costas, parecendo infeliz.

- Venham. Por aqui - disse Jeremy, juntando suas coisas e levantando-se, mantendo distância de Costas ostensivamente. - Consegui uma sala privada.

- De onde você conhece todas estas pessoas? - perguntou Costas.

- Eu sou um perito em manuscritos medievais, você se lembra? - replicou Jeremy. - Uma grande quantidade dos melhores documentos ainda são mantidos pela igreja. Este é um mundo pequeno. - Jack rapidamente fechou o seu laptop, e seguiu Jeremy, caminhando pela nave em direção a uma capela lateral. Jeremy fez um gesto de cabeça para um homem vestindo sotaina que esperava discretamente próximo, segurando um aro com chaves pesadas, e ele se aproximou e destrancou uma porta de aço com grades para eles. Jack deslizou para dentro sem fazer barulho, depois dos outros dois. Eles estavam na Capela de Todas as Almas, dominada por um retrato de Lord Kitchener e o monumento para os britânicos mortos da Primeira Guerra Mundial, mas que continha também uma pietà, uma escultura da Virgem Maria segurando o corpo de Cristo. Jeremy os conduziu para detrás do memorial de guerra, fora do alcance de voz da ala exterior e agachou-se encostando as costas na estátua. Retirou um notebook de sua mochila e olhou para Jack, seu rosto ruborizado pela excitação. - Muito bem. Você me contou pelo telefone suas descobertas, sobre a tumba de Boudica. Isso é inacreditável. Agora é a minha vez.

- Fale logo.

- Passei a maior parte do dia de ontem em Oxford. Eu estava seguindo aquele indício de que lhe falei. Aqui vai. O arquivista do Balliot College é meu amigo. Nós procuramos em todos os documentos não publicados relativos à Igreja de St. Lawrence Jewry, e encontramos um livro de relatos da reconstrução de 1670. Ninguém se interessou muito por ele, e parecia que ele repetia, em sua maior parte, os livros de relatos de Wren que já haviam sido publicados. Mas algo chamou minha atenção, e o examinamos mais detalhadamente. Era um adendo, de 1685. Uma velha câmara mortuária debaixo da igreja tinha sido desobstruída, e a equipe de Wren voltou para lacrá-la e verificar as fundações. Eles encontraram uma cripta trancada. Conseguiram quebrar o ferrolho e abrir a porta, e um deles entrou lá dentro.

Jack assobiou. - Bingo. Esta é a nossa cripta, Costas. Você sabe quem entrou?

- Todos os mestres artífices estavam presentes na câmara mortuária. Isto ocorreu cinco anos depois de a igreja ter sido completada, e a visita de 1685 foi uma visita de inspeção. Edward Pierce, pedreiro, escultor e entalhador decorativo. Thomas Newman, pedreiro. John Longland, carpinteiro. Thomas Mead, modelador de gesso. O próprio Christopher Wren se encontrava entre eles, descansando do seu trabalho na Igreja de São Paulo, onde estamos agora. E havia um outro homem, um nome desconhecido para mim, Johannes Deverette.

- Francês? - perguntou Jack.

- Flamengo. Meu amigo bibliotecário já tinha visto o nome antes, e encontramos bastante coisa sobre ele para esboçar uma curta história. Era um refugiado huguenote, um protestante calvinista que escapara dos Países Baixos um pouco antes naquele ano. 1685 foi o ano em que o rei francês revogou o Édito de Nantes, que tinha dado proteção aos protestantes.

- Nada extraordinário que um huguenote se encontrasse no comércio de construção em Londres naquela época - murmurou Jack. - Alguns dos melhores e mais conhecidos carpinteiros ou marceneiros de Wren eram huguenotes, o escultor Grinling Gibbons por exemplo. O trabalho dele pode ser encontrado em toda parte ao redor de nós, aqui na Igreja de São Paulo.

- O que era incomum era a ocupação de Deverette. No caminho fui até a Biblioteca Bodleian e fiz a mesma pesquisa. Ele descreve a si mesmo como um Music Meister, um mestre de música. Aparentemente, Wren o empregou por recomendação de Grinling Gibbons para confortar o seu filho mais novo, Billy, que tinha deficiência mental. Deverette cantava cantos gregorianos.

- Música gregoriana - Costas espirrou. - É aquela música tradicional da liturgia católica romana?

- É ela mesma, e ela se relaciona estreitamente com o lugar para onde nós estamos nos dirigindo com isso - disse Jeremy. - Como os anglicanos, os huguenotes rejeitaram a Igreja Romana, mas havia muitos que se apegaram às antigas tradições apenas por razões estéticas. Descobri que Deverette vinha de uma longa linhagem de músicos gregorianos que clamava ser descendente do próprio são Gregório, o papa que formalizou o repertório dos cantos religiosos sem acompanhamento de instrumentos no século VI. A coisa realmente intrigante é que Sir Christopher Wren partilhava daquela estética. Simplesmente olhem para este lugar. - Jeremy fez um gesto que abrangia as paredes da catedral. - Dificilmente podemos dizer que é um lugar austero de encontro de protestantes, não é? Ela é uma construção que quase se parece exatamente com a grandeza de São Pedro no Vaticano, alguns diriam que é até superior. - Arrancou uma folha de um caderno de anotações. - Esta citação é quase tudo o que sabemos sobre os pontos de vista religiosos de Wren, mas ela é reveladora. Quando jovem, ele era muito apegado a uma casa de campo de um amigo. Dizia que era um lugar "onde a piedade e a devoção de uma outra época, afugentada por nossa impiedade e nossos crimes, havia encontrado um santuário, no qual todas as virtudes não são apenas observadas, mas também nutridas". Nunca ninguém desconfiou que Wren fosse um católico escondido, mas ele certamente lamentava os aspectos desmancha-prazeres da Reforma.

- O canto religioso sem acompanhamento de instrumentos não se origina muito antes dessa época, no ritual judaico? - perguntou Jack.

- O canto sem acompanhamento pode muito bem remontar a um período anterior ao da fundação da Igreja Romana, aos primeiros cristãos, à época dos apóstolos - disse Jeremy. - Ele era, provavelmente, um canto responsorial, versos cantados por um solista alternando com respostas de um coro. Esse tipo de canto pode ter sido, na verdade, um dos primeiros rituais de congregação, cantados nos lugares secretos onde os primeiros seguidores de Jesus se reuniam, até mesmo antes de se chamarem cristãos. Ele até é mencionado nos Evangelhos. - Olhou para o seu caderno de anotações. - Mateus, 26,30. Depois que cantaram o hino, eles saíram do monte das Oliveiras.

- Então, esse Deverette esteve aqui em Londres durante a reconstrução da Catedral de São Paulo feita por Wren - disse Costas.

- Desde 1685, quando chegou à Inglaterra. Os homens que trabalhavam com Wren tinham terminado a nova estrutura da Igreja de St. Lawrence Jewry alguns anos antes, mas 1685 foi o ano em que eles abriram caminho dentro da abóbada subterrânea, a antiga cripta. É aqui que as coisas se tornam realmente fascinantes. Deverette tinha uma outra paixão. Era um antiquário perspicaz, um colecionador de relíquias romanas e cristãs do primeiro período. Wren descobriu isso, e deu-lhe um novo serviço. Wren também estava interessado em todo o antigo material que encontrava. Deverette estava ali para resgatar quaisquer artefatos. Uma espécie de vigilante arqueológico, em suma.

- Eis o nosso homem - disse Jack muito excitado. - Alguém entrou dentro daquela tumba e encontrou aquele cilindro. Deve ter sido ele.

- Ele manteve algum registro? - perguntou Costas, tossindo.

- Verifiquei em toda parte. Examinei de novo todos os livros publicados sobre Wren, tudo que pude encontrar sobre as igrejas, todos os seus papéis particulares. Nada. Então, eu tive um monte de idéias. Fui até os Arquivos Nacionais em Kew, cheguei ali a tempo, ontem à tarde. Fiz uma busca em todos os registros do Tribunal de Prerrogativas de Canterbury.

- Você encontrou o seu testamento - exclamou Jack.

- Muitos dos testamentos eclesiásticos estão on-line, mas o dele estava em uma pilha recentemente descoberta que havia sido arquivada de maneira errada e estava começando a ser catalogada. Tive uma sorte incrível.

- Vamos ver o que conseguiu.

Jeremy retirou uma imagem escaneada de sua pilha de papéis. Era a cópia de uma página amarelada, com cerca de vinte linhas de uma escrita à mão nítida. Debaixo da escrita à mão havia um selo vermelho e uma assinatura, com mais assinaturas e uma anotação, de legitimação de um testamento, feita com letra ilegível na parte inferior da página. Jeremy começou a ler:

 

Em nome de Deus, Amém. Eu, Johannes Deverette, Mestre de Música de Sir Christopher Wren, Cavaleiro, Inspetor Geral de suas Obras Grandiosas, do sexo masculino e adulto, ordeno e faço desta a minha última Vontade e Testamento como se segue. Desejo que meu corpo possa ser decentemente sepultado sem pompa de acordo com o critério do dito Sir Christopher Wren, neste documento nomeado único Executor e Curador.

 

- Meu Deus - murmurou Jack. - Wren foi o seu executor. Deve ter tido conhecimento de quaisquer antiguidades que Deverette possuía, de qualquer coisa que ele descobrira em Londres e mantivera para passar adiante.

- Deverette morreu apenas alguns meses depois de fazer seu testamento, quando seu filho e herdeiro ainda era menor de idade, de modo que Wren deve ter tido a salvaguarda de qualquer legado em herança - replicou Jeremy. - Mas esperem para ver. Há o palavreado usual sobre bens móveis e propriedades rurais, mas as sentenças finais são as essenciais. - Continuou a ler:

 

Todos os meus livros, músicas e instrumentos musicais, eu dou e lego em herança para meu filho John Everett. Para o meu dito filho também lego em herança todas as minhas raridades antigas, meu Gabinete de Curiosidades e Relíquias das diversas escavações feitas em Londres pelo dito Sir Christopher Wren, inclusive o Godspelle que peguei das mãos da Antiga sacerdotisa. Este último mencionado para ser mantido em Segurança, em Custódia mais sagrada, e legado em herança por meu dito filho para o seu próprio filho e herdeiro, em perpetuidade, em Nome de Cristo, Jesus Domine. Assinado e Lacrado pelo acima mencionado Johannes Deverette como e em nome de sua última Vontade e Testamento na nossa presença, nós que subscrevemos nossos nomes como escritos em sua presença, neste sexto dia de agosto de 1711. Cris, Wren, Grinling Gibbons.

 

- Godspelle - disse Costas. - Que diabo é isso?

O coração de Jack tinha estado acelerado desde que Jeremy leu a palavra. Sua voz estava rouca. - Jeremy o disse alguns momentos antes. Trata-se de inglês arcaico e quer dizer "boa palavra". Ela significa Evangelho. Deverette encontrou o manuscrito naquele cilindro, e deve tê-lo lido.

- De acordo com o que posso perceber, esta é a única razão pela qual ele o chamou de Godspelle - disse Jeremy. - Caso contrário, por que não chamá-lo de manuscrito, ou de uma escrita antiga?

- Esta é uma nova descoberta fantástica - murmurou Jack. - Ela é a primeira indicação que nós tivemos do que aquele documento pode ter contido. - Olhou para Jeremy. - Mal ouso perguntar. Você foi mais além disso?

- Foi muito fácil seguir a pista de sua descendência - replicou Jeremy. - Os huguenotes mantêm registros familiares bastante bons. O próprio Deverette anglicizou seu nome, fez seu filho se chamar Everett. A tradição musical pode ter continuado, mas eles chegaram a ganhar para sua subsistência como construtores e arquitetos. Durante várias gerações eles foram membros respeitáveis da Carpenter’s Company, uma das corporações mais proeminentes de Londres. Eles estavam estabelecidos em Lawrence Lane, de onde se podia ver a igreja, apenas a alguns metros da cripta onde Deverette fizera sua descoberta.

- Guardiões da tumba - murmurou Costas.

- Isto está começando a fazer sentido - disse Jack baixinho. - A cripta secreta, os sepultamentos daquelas mulheres que descobrimos, a sucessão desde a época dos romanos até o Grande Incêndio. Acho que faziam parte de uma seita secreta que sabia sobre a tumba da rainha guerreira, foram os guardiões originais. Mas, depois, o Grande Incêndio de 1666 interrompeu a sucessão, queimou a igreja e soterrou a entrada para a cripta e a tumba.

- Talvez isto tenha sido como a erupção do Vesúvio para as sibilas - disse Costas. - Fogo e cinza previsto de antemão, tudo aquilo. O fim de sua época.

- E depois, por pura sorte, a tumba foi novamente encontrada, seu tesouro sagrado foi removido, mantido secreto, e o ciclo de proteção foi renovado - murmurou Jack.

- A forte tradição da família huguenote conta em nosso favor - disse Jeremy. - Não há outra referência às relíquias em nenhum dos testamentos, mas o poder daquele legado no Testamento de Deverette teria mantido sua influência através das gerações. E há algo mais, uma verdadeira prova contundente. No início do século XIX, Samuel, o bisneto de Deverette, era um subscritor do Movimento de Oxford, a renovação dos anglo-católicos. Seu filho John Everett era membro de uma sociedade vitoriana chamada os Novos Adeptos de Pelágio, que clamavam seguir o ensinamento de Pelágio, o monge britânico rebelde. Eles acreditavam ser os herdeiros da tradição cristã inicial na Grã-Bretanha, não aquela que foi trazida por Agostinho no século VI, mas da tradição dos primeiros tempos, daqueles que trouxeram a palavra de Jesus para este lugar no primeiro século d.C. Falávamos sobre isto ontem.

- Cláudio? - murmurou Jack - Será que podemos remontar tudo isto até ele?

- Até aquele que ele encontrou na Judéia - murmurou Costas.

- Os Everett continuaram a ser proeminentes na City de Londres no século XIX, sempre próximos à St. Lawrence Jewry e ao Ghildhall. John Everett, o adepto de Pelágio, era um membro do Conselho da Corporação de Londres, e um ex-escravo da City. Seu filho era Mestre da Carpenters Company. Mas então algo estranho aconteceu. Seu filho mais velho, Lawrence Everett, era arquiteto como seu pai. Mas, quase imediatamente após a morte do pai em 1912, ele fechou seu negócio, abandonou sua família e desapareceu. Foi quase um outro ciclo prognosticado, como Costas disse, como se o cataclismo das guerras mundiais que aconteceriam mais tarde fosse uma outra erupção de fogo e de enxofre. Foi como se o último dos guardiões interrompesse a sucessão e levasse o tesouro embora antes que o inferno desencadeasse a fúria da guerra durante a Blitz.

- Você tem alguma idéia de para onde ele foi? - perguntou Jack.

- É preciso verificar os registros de imigração, as declarações dos passageiros. Há uma grande quantidade de material a ser pesquisado. Tive um indício promissor.

- Você sempre consegue - disse Jack. - Você está se tornando indispensável, sabe?

- Posso precisar ter que retornar aos Arquivos Nacionais. Isso me tomaria mais um dia.

- Vamos, então, continuar com isso.

 

Cinco minutos mais tarde, eles se encontravam sob a entrada da Catedral de São Paulo, olhando para fora através de extensas cortinas de chuva, procurando uma brecha em meio ao dilúvio. Jack sentiu como se estivesse em uma ilha, como se a solidez da catedral e a velada sensação de mal-estar do lado de fora refletissem exatamente, como um espelho, o seu estado de espírito. As revelações assombrosas das últimas horas tinham dado um enorme impulso à sua busca, e fez com que ela parecesse tão real como a imensa estrutura acima deles; no entanto, a sua meta ainda se parecia com um farol despercebido em algum lugar do outro lado da chuva, na parte baixa de alguma aldeia escura que eles podiam nunca encontrar. Jack novamente teve uma súbita lembrança da biblioteca perdida de Herculano, porém a visão em sua mente parecia agora ondular passando por uma sucessão de câmaras, as portas abertas até onde sua vista podia alcançar, mas a meta longe da vista na distância. Sabia que sua única esperança agora dependia de Jeremy, que alguma revelação encontrada nos arquivos pudesse levá-los em direção àquela última porta, ao lugar que Cláudio queria que eles encontrassem.

- Não me diga que estamos indo para o túnel, Jack - disse Costas em voz baixa e áspera. - Eu não vou entrar no subterrâneo de novo.

- Por coincidência, eu sempre quis ver o Grande Canal - replicou Jack, piscando para Jeremy. - Um canal subterrâneo construído no século XIII para trazer água fresca da correnteza do Tyburn, cerca de três quilômetros a oeste daqui. As cisternas de pedra parecem impressionar, mas os aquedutos construídos pelos engenheiros romanos teriam sido assustadores. Eles vazavam, e a circulação por gravidade estava toda errada. Um grande exemplo da marcha do progresso para trás. Isto bem vale uma visita.

- Não - disse Costas com voz monótona. - De maneira alguma. Você vai. De agora em diante eu só ando de táxi.

Jack sorriu, depois percebeu uma folga na chuva e deu um passo para fora da entrada da catedral. Naquele momento, um homem vestido com um terno separou-se de um grupo de pessoas que se abrigavam debaixo da entrada e caminhou parando diante de Jack, bloqueando seu caminho. - Doutor Howard? - ele disse decididamente. Jack olhou para o rosto do homem e não o reconheceu, deu um passo atrás alarmado. O homem lhe entregou uma folha de papel. - Amanhã, às 11 da manhã. A vida de vocês pode depender disso. - Afastou-se e rapidamente desceu as escadas, desaparecendo dentro da multidão matinal que chegava para trabalhar na City. Rapidamente, Jack deu um passo atrás voltando a ficar na entrada da catedral e leu a nota, depois a passou para Jeremy. - Você o reconheceu? - Perguntou Jack.

- Não tenho certeza. - Jeremy dava a impressão de estar preocupado, e ansiosamente examinou as demais pessoas que se encontravam nas escadas. - Não é uma coisa boa você ter sido rastreado até aqui, Jack.

- Eu sei.

Jeremy olhou para o pedaço de papel, e franziu os lábios. - Puxa! Bem no centro das coisas. - Devolveu o papel para Jack. - Você vai?

- Não acho que tenhamos qualquer escolha.

- Eu iria, mas tenho que ficar e descobrir o que puder sobre Everett.

- Concordo - disse Jack em voz baixa.

- Leve Costas com você. Talvez precise de um guarda-costas.

Jack olhou para a forma de ombros caídos, em condição miserável, encostado na coluna de pedra atrás deles, gotejando e espirrando. Foi até onde Costas estava, pegou-o pelos ombros e dirigiu-o para as escadas. A chuva tinha começado a cair com força novamente, e Costas dava a impressão de que ia se dissolver.

- Venha - disse Jack, olhando para cima e deixando a água da chuva escorrer pelo rosto, apreciando isso. - Acho que podemos fazer alguma coisa acerca desse seu resfriado.

 

Quando faltavam cinco minutos para onze horas, na manhã seguinte, Jack conduziu Costas através da Praça de São Pedro no Vaticano, guiando-o em direção à Ufficina Scavi, o escritório de escavações arqueológicas, no lado sul da basílica. Tinham voado de Londres naquela manhã, no avião Embraer da IMU, chegando ao aeroporto Leonardo da Vinci bastante afastados do exame público, e Jack tinha certeza de que não estavam sendo seguidos. A vasta extensão da praça e a seqüência de colunas ao redor faziam com que a multidão de turistas e de peregrinos parecessem anões, e eles passaram de maneira tão imperceptível quanto podiam. Quando se aproximaram da Ufficina, Jack começou a examinar os rostos ao redor deles, procurando algum sinal, algum reconhecimento. Não tinha idéia do que deveria esperar. Depois, saindo do nada, um jovem se pôs a andar ao seu lado, vestido de modo casual com jeans e usando óculos de sol. - Doutor Howard? - o jovem perguntou em voz baixa. Jack olhou para ele, e assentiu com um gesto de cabeça. - Por favor, siga-me. - Jack olhou para Costas, e seguiram o homem quando ele avançou com passos largos. Depois de passar a Ufficina, ele se aproximou da Guarda Suíça na entrada do Arco delia Campane, e mostrou sua carteira de identidade. - Estes são os meus dois convidados - ele disse em italiano. - Um passeio particular. - O guarda fez um gesto de concordância e ergueu o seu rifle automático para deixá-los passar. Cruzaram a pequena praça, e depois entraram no anexo sul das Grutas debaixo da Basílica de São Pedro. Na terceira sala, o jovem lhes fez um sinal para esperar, e depois se encaminhou para uma porta trancada. - Nós não seremos perturbados - ele disse em inglês. - A Ufficina fechou esta parte das Grutas para mais um trabalho de escavação. Esperem aqui. - Pegou uma série de chaves e abriu a porta, entrando por ela e deixando sozinhos Jack e Costas, subitamente envoltos pelo silêncio e pelas antigas paredes.

- Você tem alguma idéia do que está acontecendo? - perguntou Costas baixinho, a voz nasalada por causa do resfriado. - Tem alguma idéia de onde estamos?

- Em primeiro lugar, o seu palpite é tão bom quanto o meu. Em segundo, estas paredes são virtualmente tudo o que foi deixado da basílica anterior, aquela construída pelo imperador Constantino, o Grande, depois que ele se converteu ao cristianismo no início do século IV d.C. Antes disso, aqui era um circo romano, uma pista de corridas. E por onde o nosso guia desapareceu é a entrada de uma necrópole, uma rua mausoléu desbastada na rocha, datada do primeiro século d.C., descoberta quando as escavações começaram aqui nos anos 1940. A grande descoberta da tumba de são Pedro, a nossa frente, debaixo do Alto Altar.

A porta se abriu e o jovem reapareceu. Deu para Jack e para Costas uma vela e as acendeu com um isqueiro. - Aonde você vir uma vela no chão, vá direto, mas apague-a e leve-a com você - ele sussurrou. - Há doze degraus para descer, depois você verá uma outra vela através de outra porta. Passe por ela, e feche a porta atrás de si. Estarei esperando lá por vocês. Vão.

Costas parecia atormentado. - Nós vamos descer ao subterrâneo de novo, Jack?

- Isto é bem o tipo de coisa de que você gosta. Uma cidade dos mortos.

- Ótimo.

Jack fez uma pausa, olhou para o jovem durante um momento, decidiu não falar, depois fez um gesto com a cabeça assentindo e dirigiu-se para a porta, com Costas atrás dele. Passaram pela porta, que foi imediatamente fechada atrás deles. Estava escuro como breu, a não ser pelas velas e um brilho apagado em algum lugar mais adiante. Do lado de fora estava quente e seco, mas ali o ar era frio e úmido enquanto eles desciam, um pouco bolorento. Jack mostrava o caminho, descendo cuidadosamente os degraus até que alcançaram um chão de pedra áspera. Podiam ver que o brilho adiante era de uma vela no chão. Depois de alcançá-la, Jack fez como lhe fora instruído, apagando-a com os dedos e pegando-a, depois virou à direita e desceu outro lance de escadas, entrando em uma câmara escavada na rocha, evidentemente um antigo mausoléu despojado de seus conteúdos havia muito tempo. No fundo da câmara, à esquerda, havia uma porta com superfície de pedra que se abria para dentro da rocha, e, através dela, puderam ver outro foco distante de luz. Passaram através dela, e Jack empurrou a porta para trás até que se fechasse, ajustando-se sem emenda na rocha, como se fosse uma via de acesso secreta.

- Incrível - murmurou Jack, olhando ao redor sob a luz tremeluzente da vela, percebendo os nichos e as decorações das paredes. - Esta é uma catacumba. O mausoléu pelo qual acabamos de passar originalmente ficava acima do chão durante o período romano, uma rua de tumbas. Mas esta parte interior deve ter sido sempre subterrânea, desbastada na rocha viva. O Vaticano nunca revelou isto antes.

- Isto me faz pensar nas outras coisas que eles nunca revelaram - murmurou Costas.

Jack deu um passo à frente, percebendo de cada lado dele imagens, inscrições, pinturas. Parou ao lado de uma, e segurou a vela à frente. - Assombroso - sussurrou. - Está intacta. As catacumbas estão intactas, os sepulcros ainda estão aqui.

- Era exatamente o que eu queria saber - disse Costas.

- Os túmulos ainda estão lacrados, cobertos com gesso calcinado. Olhe, esta inscrição é legível. In Pace. - Jack balbuciou. - Isto é do antigo cristianismo, do cristianismo muito antigo. Data de uma época bem anterior a Constantino, o Grande. Um lugar de sepultamento secreto, usado quando os cristãos em Roma eram proscritos, perseguidos. Este é um achado fantástico. Não posso entender por que não o tornaram público.

- Talvez tenha algo a ver com isto. - Costas estava de novo à frente agora, não distante da vela no chão, e cuidadosamente Jack foi até onde ele se encontrava. - Esta é uma área elevada, coberta com telhas de cerâmica - disse Costas. Caminhou ao longo do lado esquerdo da via de acesso e agachou-se ao lado da vela.

- É uma tumba - disse Jack baixinho. - Algumas vezes são encontradas no chão das catacumbas, bem como ao longo das laterais. Às vezes eram as mais importantes.

- Jack, acho que estou alucinando. Estou tendo um flashback. Aquele déjà vu que você teve em Roma. Talvez seja um efeito retardado do nitrogênio.

- O que é?

- Aquela telha. Debaixo da vela. Há uma inscrição rabiscada nela. Ou eu estou vendo coisas ou é uma palavra idêntica a uma que vimos antes.

Jack moveu-se pouco a pouco até chegar atrás de Costas. Podia distinguir os rabiscos ao redor da beirada da telha, como uma grinalda de gavinhas de videira. No centro, viu o que fizera Costas estremecer. Era um nome, inequívoco, um nome que eles tinham visto antes rabiscado em cerâmicas como esta, em um antigo navio naufragado e a centenas de milhas distante dali, perdido por quase dois mil anos, nas profundezas do mar Mediterrâneo. O nome de um homem, escrito em latim.

 

                             PAULUS

 

Seria possível? Jack olhou ao redor, viu a amplitude da passagem, as outras tumbas se amontoando neste lugar, mas não sobre ela, como se quisessem ficar muito perto de Paulo, em reverência. Viu símbolos cristãos por toda parte, uma pomba apenas visível na parede ao seu lado, um peixe, a fórmula cristã repetida várias vezes, in pace. E então, quando Costas movimentou sua vela sobre a telha, Jack viu levemente rabiscado ao lado do nome o símbolo Qui-Rô. O sinal de Cristo. Não havia dúvida a respeito.

- A tumba de são Paulo - ele disse em tom incrédulo, descansando a mão sobre uma telha. - São Pedro e são Paulo, enterrados no mesmo lugar, ad catacumbus, exatamente como diz a tradição.

- É isso mesmo.

Jack deu um passo atrás, amedrontado. Era uma outra voz, uma voz que vinha de um nicho sombrio oposto a eles, na parede ao lado da cabeceira da tumba. Podia distinguir apenas a sotaina sobre as pernas, mas não a parte superior do corpo. A voz era autoritária, e tinha uma certa aspereza, o inglês apresentava um leve sotaque, possivelmente do leste da Europa. - Não tente se aproximar de mim. Por favor, apaguem as velas. Sentem-se no banco de pedra atrás de vocês. - Jack parou por um segundo, depois fez um gesto a Costas, e fizeram como foi instruído. A única fonte de luz agora era a da vela na tumba, e todo o resto ficou reduzido a sombras bruxuleantes e escuridão. A outra figura se deslocou ligeiramente, e eles puderam discernir apenas uma cabeça coberta com capuz, mãos colocadas sobre os joelhos. - Eu os convoquei hoje aqui dentro do maior segredo. Queria que vissem o que acabaram de ver.

- Quem é você? - perguntou Costas.

- Você não saberá meu nome, nem quem eu sou - repetiu o homem. - Não pergunte outra vez.

- Esta é verdadeiramente a tumba de são Paulo? - perguntou Jack.

- Esta é - o homem repetiu.

- E a Igreja de San Paulo Fuori le Mura? - indagou Jack.

- A tradição diz que ele foi enterrado ali, em um vinhedo - replicou o homem. - Ele, de fato, foi levado para lá depois de sua morte, mas foi secretamente trazido de volta para cá para reunir-se a Pedro, no lugar de seu martírio.

- Isto é verdade, então - murmurou Jack.

- Eles foram martirizados juntos pelo imperador Nero, no circo construído neste lugar por Calígula. Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, e Paulo foi decapitado. Os romanos martirizaram os dois maiores pais da Igreja inicial, e ao fazer isso os imperadores pagãos ajudaram a trazer a Santa Sé para este lugar. In nomine patri, filii et spiritu sancti, amen.

- Você nos trouxe aqui para nos mostrar isso? - perguntou Jack.

Houve uma pausa, e o homem se deslocou de novo. A vela sobre a tumba vacilou, alongando a sombra de maneira que, durante alguns momentos, ele ficou completamente obscurecido, depois a chama queimou ereta outra vez. - Você já deve saber, a essas alturas, que o imperador romano Cláudio fingiu o seu próprio envenenamento, e sobreviveu em segredo durante muitos anos além do final de seu reinado em 43 d.C.

Jack olhou atentamente dentro da sombra, sem saber o quanto revelar. - Como você sabe disto?

- Ao lhe contar o que estou prestes a revelar, eu ponho à prova o meu vínculo com a santidade da Igreja. Mas assim será. - O homem fez uma pausa, e depois estendeu a mão e pegou das sombras ao seu lado, e ergueu, um antigo volume encadernado em couro que colocou sobre o colo. Podiam agora ver suas mãos, finas, mãos com dedos longos que tinham realizado muito trabalho físico pesado, mas não conseguiam ainda ver o rosto do homem. - Em 58 d.C., são Paulo veio do leste para a Itália, sobrevivendo ao famoso naufrágio do navio durante o caminho. Isso se passou como foi contado nos Atos dos Apóstolos, exceto que o naufrágio do navio foi na Sicília e não em Malta.

Costas olhou de maneira interrogativa para Jack, que lhe devolveu um olhar vivo. Nenhum deles falou.

- São Paulo veio em primeiro lugar para a baía de Nápoles, para Misenum, e se reuniu com irmãos cristãos que encontrou aqui, como foi contado nos Atos - disse o homem calmamente, quase sussurrando. - Depois da crucificação, este foi o evento mais importante na história inicial do cristianismo. Paulo foi o primeiro a tomar a palavra de Jesus além dos judeus, o primeiro verdadeiro missionário. Quando Paulo deixou Misenum e foi para Roma, aqueles que primeiro ele instruiu chamaram a si mesmos um concilium, o concilium ecclesasticum Sancta Paula.

- O concílio da Igreja de São Paulo - murmurou Jack.

- Eles eram em número de três, e permanecem sendo três hoje.

- Hoje? - perguntou Jack, grandemente surpreso. - Esse concilium ainda existe?

- Durante gerações, por quase três séculos, o concilium foi uma organização secreta, um pilar de força para a Igreja quando ela estava lutando por sua sobrevivência, enquanto o cristianismo ainda era uma religião subterrânea. No início houve um lugar de encontro secreto nos Campi Flegrei, perto de Misenum, e eles assumiram o controle da gruta da Sibila em Cumas, depois que a última das sibilas desapareceu. Mais tarde, quando o cristianismo se firmou, o concilium mudou para Roma, para estas catacumbas onde estamos sentados agora, para o lugar onde o corpo martirizado de são Paulo foi sepultado em segredo por seus seguidores depois de decapitado, próximo ao lugar do sepultamento santificado de São Pedro.

- E esse concilium tem se reunido aqui desde então? - perguntou Costas.

- Na época de Constantino, o Grande, o concilium havia aumentado em número, com a participação de membros de cidades de lado a lado do Império Romano. Mas, à medida que o número de participantes aumentava, a sua força e propósito enfraqueciam. Com a conversão do Império Romano sob Constantino, no século IV, os chefes do concilium viram seus propósitos decair e se dispersar, e lacraram a catacumba de são Paulo. Sua localização foi perdida, e só foi redescoberta durante a escavação da necrópole depois da Segunda Guerra Mundial. Somente a partir daí esta câmara se tornou de novo um local de reunião.

- O concilium foi recriado nos tempos modernos - perguntou Jack.

- Não. Ele foi reativado por Constantino, o Grande, perto do final de seu reinado. Ele reconstituiu o concilium no seu número original, com três participantes, e no maior dos segredos. Ele próprio era um, o fundador. Constantino tinha feito um grande investimento ao converter a nação para o cristianismo. Como estadista, como soldado, ele via a necessidade de defender a Igreja contra todos os que chegavam, de criar um conselho de guerra que enviaria soldados para lutar em nome de Cristo, que não mostrariam clemência diante do Diabo, que não seguiriam nenhum regulamento. Durante séculos, o concilium repeliu a mais perniciosa das heresias, aquelas que a Ufficina, a Inquisição da Santa Sé, foi incapaz de derrotar. Lutaram contra aqueles na Grã-Bretanha que procuravam arruinar gradativamente a autoridade da Igreja, os adeptos de Pelágio, perseguindo-os, destruindo-os, assim como suas obras, enviando o próprio Pelágio para o fogo do Inferno. Lutaram contra os protestantes depois da Reforma, uma guerra secreta de terror e assassinato que quase destruiu a Europa. Em sua raiva contra o demônio, ordenaram a destruição dos maias e dos astecas e dos incas, temendo uma profecia da antiga Sibila que profetizou uma escuridão vinda do oeste.

- E esses eram homens de Deus - disse Costas.

- Eles eram crentes, e acreditavam, sobretudo, na santidade e no poder da Igreja, na Igreja como o único caminho para a salvação e o Reino dos Céus - disse o homem. - Constantino, o Grande, era um estadista astuto. Sabia que a sobrevivência da Igreja dependia de lealdade completa e inabalável, de fé na igreja como o único caminho para Deus. No seu concilium recriado, ele encontrou seus perfeitos executores.

- Você pode provar tudo isso? - perguntou Costas.

O homem ergueu ligeiramente o livro para que pudessem vê-lo. - Está tudo aqui. Os registros do concilium ecclesiasticum Sancta Paula. Um dia o mundo ficará sabendo. A história será reescrita.

- O que isto tem a ver com Cláudio? - perguntou Jack.

O homem se inclinou ligeiramente adiante, e a luz da vela tremulou no contorno indistinto do seu rosto. - Esta é a maior ameaça que o concilium jamais enfrentou, e seu maior medo. Esta é a razão pela qual eu os trouxe aqui. Vocês e sua equipe estão sujeitos aos mais graves perigos, muito diferentes que aqueles que podem conceber.

- Sabemos como é olhar para a boca do cano de uma Beretta 93R com um silenciador - disse Costas. - Dentro de uma caverna debaixo do monte Palatino.

- Ele tinha instruções para não atirar - replicou o homem.

- Então, talvez o concilium deva empregar companheiros de crime mais obedientes - disse Costas em voz baixa.

- Como você soube? - perguntou Jack. - Como o concilium soube que estávamos em Roma? - O homem ficou silencioso e Jack persistiu. - Havia alguém escutando no túnel em Herculano? Era a inspetora, a doutora Elizabeth D'Agostino?

- Sabemos que ela falou com você fora da vila.

- Como você sabe?

- Há espiões por toda parte.

- Mesmo a bordo do Seaquest?

- Você precisa fazer todo o possível para encontrar o que está procurando e para revelar sua descoberta ao mundo antes que eles cheguem até você - disse o homem. - Assim que souberem onde está o que você busca, eles farão tudo que estiver em seu poder para destruí-lo. Fiz tudo o que pude, mas não posso detê-los por mais tempo.

- Por que você quer nos ajudar? - perguntou Jack.

O homem fez uma pausa. - Deixe-me primeiro contar-lhes sobre Cláudio. - Abriu o livro no início. Eles podiam ver com dificuldade a antiga escrita, com notas explicativas e nitidamente escrita com mãos diferentes, mas similar à página da História natural de Plínio que tinham encontrado em Herculano, porém em piores condições e mais manchada, como se tivesse sido manuseada repetidas vezes. - Esta página narra detalhadamente a criação do concilium, o original, no primeiro século d.C. - disse o homem, fechando o livro novamente e colocando as mãos em cima dele. - Um dos três primeiros membros era um homem chamado Narciso, um ex-escravo do imperador Cláudio.

- Meu Deus - murmurou Jack.

- O eunuco? Nós o encontramos - disse Costas. - Deitado de atravessado perto da porta de entrada para o estúdio de Cláudio. Parecia que estava entrando, procurando por alguma coisa. Ele ficou um pouco chamuscado.

- Ah. - O homem ficou quieto por um momento. - Vocês encontraram a sala dele. Durante quase dois mil anos tentamos descobri-la.

- Acho que agora eu adivinho o que Narciso estava fazendo ali - murmurou Jack.

- Como vocês sem dúvida sabem, Narciso era, havia muito tempo, o praepositus ab epistulis, o escriba, de Cláudio - disse o homem. - Quando Cláudio resolveu desaparecer de Roma, ele também planejou o falso envenenamento de Narciso para que este pudesse acompanhar seu mestre para o seu refúgio em Herculano, e ajudá-lo com seus livros. Mas, depois de 58 d.C., houve outro motivo para Narciso ficar. Ele sempre acompanhava Cláudio em suas visitas noturnas para a gruta da Sibila, onde Cláudio procurava uma cura para a sua paralisia. Narciso devia conhecer os cristãos que se escondiam nos Campi Flegrei e ele mesmo se converteu depois de encontrar São Paulo. Narciso já sabia que Cláudio tinha ido para a Judéia quando era jovem, que havia se encontrado com Jesus e retornado com o precioso documento. Paulo nunca tinha se encontrado com Jesus, e ficou espantado em saber que algo da mão do messias pudesse ter sobrevivido. Instruiu Narciso para que encontrasse e levasse o documento para ele em Roma, seu próximo destino. A história apossou-se de Paulo, é claro, e ele foi martirizado e Narciso nunca encontrou a oportunidade de ficar sozinho no estúdio do seu mestre por tempo suficiente para procurar o documento. Mas o clamor pelo documento cresceu entre os irmãos nos Campi Flegrei, e espalhou-se a palavra até Misenum de que Cláudio era um ungido, que ele tinha tocado em Cristo. Os outros dois membros do concilium viram a ameaça que isto colocava, uma ameaça contra a Igreja, e imploraram a Narciso para encontrar o documento, para destruí-lo. Eles acreditavam que o documento era falso, uma heresia, uma fábula sonhada por Cláudio. Finalmente, uma noite, Narciso deixou Cláudio na gruta da Sibila e voltou para Herculano, com a intenção de pôr fogo no estúdio e queimar todos os livros. Aquela noite foi a de 24 de agosto de 79 d.C.

- Quando todo o resto desapareceu em chamas, exceto aquela sala - murmurou Costas.

- O concilium não tinha jeito de saber se Narciso tinha tido sucesso ou não. Mas, com o desaparecimento de Herculano durante a erupção, a ameaça parecia ter-se extinguido para sempre - disse o homem. - O documento, o falso evangelho, foi recordado como herético, como a primeira de muitas falsificações que tinham a intenção de derrubar a Igreja, e como a primeira das muitas batalhas que foram ganhas pelo concilium. Então, mais de mil anos depois da queda de Roma, os reis Bourbon de Nápoles começaram a escavar o sítio de Herculano, e uma verdade agourenta foi revelada. A cidade de Herculano não tinha sido destruída na erupção. Ela tinha sido milagrosamente preservada. Pior ainda, um dos primeiros locais a ser explorado foi a Vila de Calpúrnio Piso, a Vila dos Papiros, que o concilium sabia que tinha sido o esconderijo de Cláudio. Em seguida, muito pior ainda, os livros começaram a ser encontrados, manuscritos carbonizados, mas alguns deles ainda legíveis. O concilium não teve escolha a não ser agir. Durante mais de dois séculos, o concilium tem feito tudo em seu poder para prevenir explorações posteriores em Herculano, na Vila dos Papiros. Tem usado quaisquer meios a sua disposição. Infiltrou-se no meio de autoridades arqueológicas, no serviço do museu, na polícia, na máfia. A corrupção em Nápoles não seria tão desenfreada se o concilium não quisesse que fosse assim, o poder do submundo não seria tão grande se ele não o apoiasse. O concilium tem toda a riqueza e os recursos da Igreja à sua disposição, mais do que o suficiente para escavar inteiramente a cidade de Herculano, ou impedir sua escavação para sempre. Ou é assim que eles pensam. Exatamente como em 79 d.C., uma catástrofe natural interveio de novo. O terremoto do mês passado revelou aquele túnel que tinha sido lacrado no século XVIII, aquele que podia abrigar mais manuscritos, que levava à sala de Cláudio. De repente, com toda a imprensa do mundo presente, não havia mais maneira de impedir uma investigação. O trabalho do Diabo podia ainda tornar-se público. Foi quando vocês foram chamados à cena.

- Puxa! - Costas tinha se sentado apoiado na tumba, depois subitamente percebeu o que tinha feito e deu um pulo, limpando o gesso. - Isto explica algumas coisas.

- Isto não explica quem é você, e como resolveu contar estas coisas - disse Jack. - Você é um membro do concilium?

Houve um silêncio, e em seguida o homem falou novamente. - Durante muitos anos fui missionário jesuíta. Uma vez, em uma canoa no lago Petén, no Yucatán, eu vivi uma manifestação divina, uma experiência reveladora. Quando se está na água, o movimento dela parece, ao mesmo tempo, concentrar e libertar a mente, até que se chega a não pensar em nada a não ser naquilo que se está experienciando, as sensações do momento. - O homem fez uma pausa, e Jack assentiu com a cabeça, sentindo que este podia ser um homem em quem podia confiar. - Comecei a pensar em Jesus no mar da Galiléia. Comecei a pensar que o mar era seu Reino dos Céus, que sua mensagem para os outros era que aquele Reino podia ser encontrado, do mesmo modo que ele havia encontrado. Que o Reino dos Céus se encontra na Terra.

- Como esta experiência o fez se desviar do concilium? - perguntou Jack.

- Ame o seu próximo, porque é mais fácil que odiá-lo. Ofereça a outra face, porque é mais fácil do que resistir. Liberte sua mente de tais preocupações, e concentre sua energia na descoberta do Reino dos Céus. Esta era a mensagem de Jesus. O concilium tinha uma causa sagrada, mas não prestava atenção a esse chamado. A procura por heresia, por blasfêmia, se tornou completamente desgastante, e o objetivo do cristianismo foi perdido. Os seus métodos se tornaram mórbidos. E agora há um entre os três membros que se dirigiu para uma região remota e escura, como já aconteceu com outros no passado. O Diabo atingiu sua meta e arrastou-o para dentro de seu rebanho.

- Quem é ele? E como você sabe sobre nós?

- Vocês já chamaram a atenção do concilium antes. Aquele de quem eu falo também era membro da fraternidade nórdica que preservava o segredo do tesouro perdido do Templo dos judeus, o félag, o companheiro.

- E foi quem assassinou o padre Patrick O'Connor - disse Jack severamente.

- Meu amigo e um notável erudito. Assassinado cruelmente e sem necessidade em nome da Igreja, parece.

- Os instrumentos usados pelo concilium sempre foram insensíveis. Mas agora eles recrutaram forças das trevas bem além do alcance de Deus. - O homem fez uma pausa e mergulhou no meio das sombras, sua voz agora era pouco mais que um sussurro. - O padre O'Connor era meu amigo. Era o outro iniciado, anos atrás, que encontrou este lugar comigo, a tumba de são Paulo. Investigou muito profundamente um passado que o concilium não queria que fosse revelado. Ele sabia acerca deste livro que eu seguro agora em minhas mãos. Acreditava que a vida de um cristão devia ser uma vida de verdade. E eu também acredito.

- Você pôs sua vida em risco - disse Jack.

- Tenho feito tudo que posso para proteger vocês. Você deve jurar manter segredo de tudo que eu disse até que eu possa me revelar. Tenho que continuar a trabalhar no interior, no lugar onde eu me encontro. E você deve compreender. Onde a verdadeira palavra de Jesus for encontrada, o concilium se regozijará. Onde a palavra provar ser falsa, como eles acreditam que possa ser, então os cães de guerra serão soltos para devorar aqueles que a transmitirão, aqueles que espalharão tal blasfêmia. Vocês devem ser cuidadosos. Não tentem me encontrar novamente. Agora vão.

 

Meia-hora mais tarde, Jack e Costas estavam sentados no alto sobre o topo do telhado ao lado da abóbada da São Pedro, espirrando água e deixando-se penetrar pelo sol da tarde enquanto olhavam para a grande Praça Bernini lá embaixo. Além das amplas colunas dispostas em semicírculo que rodeavam a praça, eles podiam distinguir o Castelo Santo Angelo, o antigo mausoléu dos imperadores romanos ao lado do rio Tibre, e, mais ao sul, podiam ver o coração da antiga cidade, o Capitólio e o monte Palatino. Costas reclinou-se sobre os cotovelos, o rosto inclinado e os olhos fechados atrás de seus óculos de sol de grife. - Considerando tudo, eu prefiro ficar no alto que no subterrâneo - ele murmurou.

- Acho que já tive o suficiente de lugares subterrâneos úmidos. - Olhou atentamente para Jack. - Você confia nesse sujeito?

- O que ele disse nós já tínhamos adivinhado, e o resto se ajusta perfeitamente.

- Não confio em ninguém que envia um outro para me apontar uma arma, desertor ou não.

- O momento crítico vai ser quando e se realmente encontrarmos algo.

- Ou se ficar claro que não vamos encontrar - disse Costas. - Eu não posso imaginar que queiram nos ver contar nem a metade desta história. A lista crítica se torna maior com cada nova pessoa que comprometemos nisto, Jack. Heibermeyer e Maria devem estar no topo da lista. Jeremy foi visto conosco, por aquele sujeito que nos deu a mensagem em Londres. Só Deus sabe o que mais foi ouvido sem que saibamos, quando conversávamos na catedral. Deveríamos ter sido mais cuidadosos.

- O sujeito que eu conheço na Reuters se encontra à distância de um telefonema apenas.

- Não há uma evidência sólida, Jack. Esse concilium pode ser uma completa invenção de nossa imaginação. E qualquer repórter investigativo vai pensar duas vezes antes de aceitar uma informação como esta. - Ele mostrou com o polegar a abóbada atrás deles.

- Nós simplesmente temos que confiar que o homem lá embaixo seja realmente quem diz que é - murmurou Jack. - E que Jeremy consiga algo em Londres.

Costas resmungou, e deitou-se. Jack ainda estava repetindo de memória o que tinham ouvido. Tinham mais uma hora para esperar antes que chegasse o táxi que os levaria para o aeroporto, e ele falara pelo celular com os Hiebermeyer e seu antigo mentor, o professor Dillen, informando-os sobre os últimos acontecimentos, passando cuidadosamente em torno das desmedidas revelações que lhes haviam sido feitas havia pouco. Muitas peças do quebra-cabeça tinham se ajustado, mas ele estava apenas começando a registrar a enormidade da dificuldade com a qual tinham de lidar. Concentrou-se na vista que se descortinava abaixo deles. Era alguma coisa para desviar o seu pensamento, sabendo que não havia nada que pudessem fazer, não havia indícios que pudessem seguir até que Jeremy esgotasse todos os possíveis caminhos de averiguação na Inglaterra. - Alguns dias atrás você me perguntou acerca do tamanho do navio de são Paulo - ele disse a Costas, guardando o celular no bolso. - Dê uma olhada no centro da praça.

Costas se ergueu, e olhou por cima do parapeito. - O obelisco?

- Trazido do Egito para cá pelo imperador Calígula, para decorar a parte central do circo que havia neste local, o lugar onde Pedro e Paulo foram executados - disse Jack. - Tem vinte e cinco metros de altura e pesa pelo menos duzentas toneladas. Esta é a melhor maneira de medir exatamente o tamanho dos maiores navios romanos, inclusive o navio com carregamento de grãos como aquele que Paulo trazia. O navio portador do obelisco foi afundado por Cláudio em seu novo ancoradouro em Óstia, enchendo-o com concreto hidráulico para fazer um dique. Plínio, o Velho, relata tudo isto em sua História natural.

- Bom velho Plínio - murmurou Costas, depois se deitou outra vez para curtir o sol. Jack olhou atentamente ao redor para várias outras pessoas que tinham vindo para o telhado da abóbada, com os olhos alertas em busca de qualquer coisa suspeita, sua vigilância aumentada depois da advertência que ouviu nas catacumbas. Não tinham motivo para acreditar que estavam sendo seguidos, e provavelmente estavam mais seguros ali do que na cidade lá fora. Jack relaxou ligeiramente, e olhou de novo sobre o parapeito. Tinha uma ampla visão da praça, cuja grandeza equivalia aos monumentos da Roma pagã, igualando-os, mas não os obscurecendo. Jack observou as pessoas que cruzavam a praça distante. Era como se estivesse vendo uma imagem gerada por computador de um épico de Roma produzido por Hollywood, da Roma da maneira que as pessoas pensavam sobre ela, não da maneira que era, como se, com uma inspeção mais atenta, as pessoas lá embaixo revelariam ser não de carne e sangue, mas figuras de madeira, meros ornamentos da arquitetura, transitórias e sem significado. Jack pegou sua carteira no bolso e tirou um papel que cobria a moeda de Cláudio que encontraram em Herculano, retirou-a do papel e segurou-a no alto de modo que ela tampava a sua visão da praça entre a seqüência de colunas do telhado.

- O meu achado! Você o roubou. Bom homem. Ninguém jamais a veria novamente se a tivéssemos deixado por lá. - Costas estava olhando com atenção para Jack e para a moeda.

- Eu a peguei emprestada.

- Certo.

- Estou pensando nas pessoas de novo - disse Jack. - Acho que história é dirigida por pessoas, não por processos. Aquelas pessoas lá embaixo são pessoas reais, e elas não estão subordinadas a toda esta coisa. Em algum lugar lá embaixo existe alguém que poderia criar algo mais grandioso que a Catedral de São Pedro ou destruí-la. Essas decisões são individuais, dependem de suas próprias fantasias, isto faz a história. E a beleza disso é que as pessoas também se divertem. Veja para onde Cláudio nos conduziu.

- Divertimento não é exatamente a palavra que me vem a mente, Jack. - Costas ficou de bruços. - Deixe-me ver. Ratos mortos, água de esgoto, secreções corporais, uma aterrorizante rainha que prediz a morte.

- Mas você conseguiu uma bomba não detonada.

- Nem consegui desativá-la.

O telefone de Jack produziu um som melodioso, e ele rapidamente embrulhou a moeda e colocou-a no bolso. Pegou o telefone, ouviu com atenção durante alguns minutos, falou brevemente e depois o recolocou no bolso. Ele mostrava um amplo sorriso no rosto.

- E então? - perguntou Costas. - Você está de novo com aquele olhar.

- Era Jeremy. Ele teve um pressentimento e fez uma busca nos registros de mortos disponíveis na web. Pesquisou todos os lugares óbvios onde Everett poderia ter desaparecido em 1912, Austrália, Canadá, Estados Unidos. Você vai adorar isto. O avião Embraer da IMU está sendo abastecido com combustível enquanto falamos.

- Ponha-me à prova.

- Quando foi a última vez que você esteve no sul da Califórnia?

 

Jack estava se esforçando para recuperar a consciência e percebeu a vibração do avião, onde estava encostado contra o vidro da janela. Imagens tinham circulado por sua mente, sensações e lembranças de suas extraordinárias descobertas dos últimos dias. O símbolo Qui-Rô no antigo navio naufragado, o nome rabiscado de são Paulo. A cabeça escura de Anúbis olhando de soslaio para o túnel como um demônio, convidando-os a entrar na câmara que se encontrava atrás dele. Outros lugares escuros, a gruta da Sibila, o labirinto subterrâneo em Roma, a cabeça escurecida da rainha britânica morta havia muito tempo, olhando para ele de sua tumba. Imagens ao mesmo tempo vívidas e opacas, desarticuladas, mas de algum modo mantidas juntas, imagens que retornavam repetidas vezes, como se ele estivesse preso em um movimento circular contínuo. Sentiu-se como Enéias no mundo subterrâneo, embora sem a Sibila para guiá-lo de volta, apenas com alguma força maligna que o empurrava para baixo enquanto ele lutava para encontrar a luz, prendendo-o em uma armadilha dentro de um labirinto escuro de seu próprio imaginário. Ele se sentiu perturbado, confuso, e foi um alívio abrir os olhos e ver a figura confortadora de Costas inclinada no assento oposto. Percebeu que a sensação de opressão em sua cabeça tinha sido aumentada pela pressão do ar durante a descida, e expirou pelo nariz para equalizá-la. O ruído que o avião da Embraer fazia com seus dois motores a jato varreu as imagens de sua mente. Jack inclinou-se para frente e olhou pela janela.

- Algum sonho ruim? - Jeremy estava na mesma ala, sentado ao seu lado, e fechou o velho notebook onde estivera estudando.

Jack resmungou. - É como se os ingredientes estivessem aqui, mas não estamos obtendo um resultado. Esta viagem é tudo ou nada. Se não chegarmos a nada hoje, eu fico sem opções. - Respirou profundamente, acalmou-se, depois olhou com curiosidade para o livro de Jeremy. - É sobre criptografia?

- Esta é uma das minhas paixões do tempo de criança. Eu examinava todos os códigos quebrados pelos aliados durante a Primeira Guerra Mundial. Estava apenas tentando recuperar minha rapidez. Estava olhando para alguns acrósticos cristãos iniciais que eram criptografias. Percebi que é difícil ser muito hábil neste jogo.

- Parece - disse Jack coçando a barba curta - que você tem as qualidades essenciais de um arqueólogo. Maria tinha razão. Talvez eu deva desistir agora e deixar tudo isto em suas mãos.

- Talvez dentro de vinte anos - replicou Jeremy pensativo, depois sorriu para Jack. - Isto me daria tempo de passar na seleção para as forças especiais, para aprender tudo que é necessário saber para mergulhar, sobre armas e helicópteros, saber o nome de alguns, vencer todo medo e, mais importante ainda, descobrir como lidar com o seu estimado colega sentado na nossa frente.

Costas gemeu e roncou em seu sono, e Jack riu. - Ninguém lida com ele. Ele é o chefão por aqui.

- O problema é que, num período de vinte anos, todos os mistérios do mundo estarão resolvidos.

- Nisso você está errado - disse Jack com fervor. - Se há alguma coisa que eu aprendi, é que o passado é como era o Novo Mundo para os colonizadores. Você acha que já encontrou tudo, depois vira uma esquina e um novo El Dorado aparece no horizonte. E olhe onde estamos hoje. Os maiores mistérios podem sempre estar aí, chamando-nos com um gesto, e nunca conseguirmos resolvê-los.

- Todas as coisas deixadas incompletas se reúnem, a virtude é recompensada - murmurou Jeremy. - Ninguém quer um final convencional.

- E você não encontrará um final comigo - sorriu Jack. - Outra coisa que eu aprendi é que o tesouro encontrado raramente é aquele que se estava procurando.

- Aqui está. - A aeronave inclinou-se e fez uma curva fechada a bombordo, e Jeremy apontou para o contorno da costa cerca de dez mil pés abaixo. - Pedi para o piloto nos conduzir para entrarmos em Los Angeles pelo norte, para termos uma visão de Malibu. É uma vista bastante espetacular.

- Praias - murmurou Costas. - Dá para surfar bem? - Ele dormira a viagem inteira desde o aeroporto John E Kennedy em Nova York, e antes disso, durante a maior parte da viagem transatlântica de Londres. Parecia ter acabado de sair de um estado de hibernação, e inclinou a testa contra o vidro da janela enquanto olhava com olhos lacrimejantes para baixo.

- Nada mal - replicou Jeremy. - Não que eu conheça as praias, é claro. Quando estive aqui, fiquei trabalhando em minha tese.

- Certo. - Costas ainda soava como se estivesse com o nariz obstruído, mas o pior de seu resfriado parecia ter passado. - Estou olhando para frente a fim de descobrir o que estamos fazendo aqui, Jeremy, mas não estou reclamando.

- Contei toda a história a Jack enquanto você estava morto para o mundo. Encontrei John Everett no registro de mortos do estado da Califórnia. Mesma data e local de nascimento, não há dúvida sobre a identidade. Ele vivia ao norte daqui, em Santa Paula, onde chegou aqui depois de deixar a Inglaterra. Por causa de um pressentimento, telefonei para um amigo em Vila Getty E acontece que ele pode nos contar mais, muito mais. Para começar, Everett era católico romano, um convertido.

- Hein? - Costas esfregou os olhos. - Pensei que tudo isto fosse sobre a Igreja da Grã-Bretanha, sobre algo tão distante de Roma quanto possível.

- É isto que espero que esta viagem esclareça para nós.

- Então, não estamos indo surfar?

- A pista está aquecida novamente, Costas - disse Jack.

- Vocês podem vê-la agora - disse Jeremy. - A Vila Getty. Ela está situada na fenda, lá nas colinas, contemplando o mar das alturas.

Jack examinou com cuidado o agrupamento de construções visíveis exatamente em frente à rodovia costeira. Subitamente, foi como se tivesse voltado para Herculano, olhando para o plano da Vila dos Papiros feito por Karl Weber mais de dois séculos antes. Podia ver o grande pátio rodeado por colunas, estendendo-se em direção ao mar, com a parte principal da estrutura da vila aninhada ao fundo, na parte de trás do vale.

- A única coisa que é bastante diferente é o alinhamento - disse Jeremy. - A vila em Herculano fica paralela à linha da costa, com o pátio e as construções muito próximas à frente do mar. Tirando isso, a Vila Getty segue fielmente o plano de Weber. É uma criação fantástica, o tipo de coisa que só se torna possível com a filantropia americana, com visão livre e uma riqueza ilimitada. Ele é também um dos museus de melhor qualidade em todo o mundo no que diz respeito a antiguidades, e é o local onde consegui escrever o melhor de meus trabalhos. O que quer que seja que nos aguarda lá embaixo, vocês estão aqui como convidados.

 

Três horas mais tarde, estavam parados ao lado de uma piscina retangular pouco luminosa no pátio principal da Vila Getty. Tinham entrado, sem serem parados, por uma porta pequena na extremidade oeste, e agora estavam parados imóveis como as estátuas que enfeitavam o jardim, transpirando muito sob a luz solar e a luminosidade da cena. Era como se tivessem entrado em um cenário para filmar um épico romano, além do mais com uma familiaridade e detalhes raramente vistos nos amplos panoramas da história. A piscina media aproximadamente cem metros de comprimento, estendendo-se do pórtico frontal da vila para o lado que dava para o mar onde eles tinham caminhado vindos da rodovia costeira. Em cada extremidade da piscina havia reproduções de antigos bronzes encontrados na vila em Herculano, um Sileno embriagado e um fauno adormecido, e oposto a eles havia um Hermes sentado, tão semelhante à realidade que parecia prestes a entrar na piscina a qualquer momento. Entre a piscina e as colunas do pórtico que rodeavam o pátio havia árvores e canteiros de plantas que faziam com que o mármore parecesse ser saliências naturais do leito rochoso, rodeado e protegido pela vegetação. O jardim inteiro era uma extensão ordenada do mundo exterior, isolado e protegido pelo engenho humano. A piscina refletia as colunas e as árvores, criando uma cena ilusória como as pinturas nas paredes que eles quase podiam distinguir no interior do pórtico, como se estivessem sendo puxados além do jardim para outras criações fantasiosas da mente humana, e não para a realidade desordenada do exterior. Jack se lembrou da parede pintada do Vesúvio que havia mostrado para Costas quando voaram em direção ao vulcão, uma imagem que resumia todos os sonhos idílicos da antiga Roma, um resplendor débil por cima da realidade que fez voar pelos ares e destruiu completamente o caminho naquele dia fatal quase dois mil anos antes.

- Tudo é autêntico - disse Jeremy. - O plano da vila está baseado no documento original de Weber da vila que ele viu nos túneis no século XVIII, e as estátuas são reproduções exatas dos originais que foram encontrados naquela época. Até a vegetação é autêntica, há romãzeiras, loureiros, palmeiras em forma de leque trazidas do Mediterrâneo.

Jack fechou os olhos, depois os abriu novamente. As colinas da Califórnia tinham o mesmo aspecto, uma beleza queimada pelo sol que ele amava no Mediterrâneo, e o aroma das ervas e do mar que chegavam até ele. A vila não era uma interpretação do passado, mas uma perfeita representação daquele passado, repleta de luz e sombra, animada por pessoas gesticulando e respirando. Poucas outras reconstruções históricas fizeram isso por ele, e aqui ele se sentia bem. Quando olhava para a vila, colorida e precisa, em sua mente ele via as construções escavadas de Herculano movendo-se repetidamente em segundo plano como um negativo fotográfico. Surpreendeu-se lembrando-se dos tempos em que tinha testemunhado a morte, o momento de transição quando o corpo subitamente se torna uma casca, quando a cor se torna cinza. Depois da visão daquela transição, Herculano ficou muito opressiva para confortá-lo, mais difícil de observar do que outros lugares que tinham deteriorado e se tornado encobertos pelo tempo como velhos esqueletos. Era o cadáver destruído de uma cidade, ainda cheirando desagradavelmente e cheia de lodo, como uma vítima queimada depois de um terrível acidente. No entanto, aqui na Vila Getty parecia que alguém havia injetado uma grande quantidade de adrenalina dentro do cadáver, como se o antigo lugar tivesse se recuperado milagrosamente, estivesse pulsando novamente e sobressaindo-se com uma clareza deslumbrante.

- Somente na América pode existir algo assim - disse Costas. - Acho que pelo fato de Hollywood estar distante apenas poucas milhas da costa, isto é o que se deve esperar.

- Quando a vila foi inaugurada em 1974, a reação foi de assombro - disse Jeremy. - Muitos a criticaram acerbamente. Os romanos algumas vezes recebem comentários muito ruins da imprensa por aqui. Na vila há influência da Bíblia e Hollywood, do universo de Pôncio Pilatos, imperadores devassos, que atiravam os cristãos aos leões. Quando a vila foi aberta, foi uma revelação. A cor, o brilho, o gosto. Alguns eruditos se recusaram a acreditar no que viam.

- Este lugar se refere totalmente à arte no seu conjunto - disse Jack. - Colocar a arte de volta onde ela deve estar para ser vista é com freqüência um choque para a sensibilidade moderna. Os aristocratas europeus que pilharam a Grécia e Roma achavam que estavam fazendo isso, conseguindo estátuas para pôr em pedestais em suas casas de campo de estilo neoclássico, mas a idéia que tinham de contexto clássico estava mais baseada nas ruínas embranquecidas da Grécia que na realidade de Pompéia e Herculano. Aqui se trata da coisa real, com obras como estes bronzes vistas como componentes de um todo mais amplo. Com a vila sendo em si mesma uma obra de arte. Os estudiosos clássicos durante muito tempo veneravam estas coisas como obras de arte no sentido moderno. O que os críticos não apreciaram é que a vila fazia com que eles parecessem frívolos, a coisa toda era mais excêntrica e divertida que aquilo que esperavam. Mas é com isto que ela realmente se parecia.

- E é isto que gosto nela. - Costas agachou-se com uma moeda presa na curvatura do dedo e avaliou o comprimento da piscina. - Se os romanos podiam se divertir, eu também posso. - Jack lhe lançou um olhar de advertência quando um homem apareceu pela entrada do pórtico e caminhou animadamente ao lado da piscina em direção a eles. Era de altura média, e usava uma barba curta. Ergueu a mão para cumprimentar Jeremy, que fez um gesto em direção a Jack e Costas.

- Permitam-me apresentar-lhes George Maclean - disse Jeremy. - É um velho amigo, meu mentor quando eu estive aqui. Está trabalhando temporariamente na Brigham Young University. Permanentemente, parece.

Costas e Jack trocaram apertos de mão com ele. - Obrigado por nos receber tão rapidamente - disse Jack calorosamente. - Sua permanência aqui tem algo a ver com o projeto dos papiros de Herculano desenvolvido pela universidade?

- Foi por isso que vim para cá - disse Maclean. - Sou um especialista em Filodemo, e a espectrometria de infravermelho nos antigos manuscritos estava me submergindo com o novo material. Preciso de um espaço para respirar, algum lugar onde possa colocar tudo em perspectiva.

- E nada melhor do que a própria Vila dos Papiros. - Jack sorriu e fez um gesto mostrando ao redor. - Sinto inveja. - qualquer momento em que desejar passar um ano sabático aqui, faça-me saber - Maclean sorriu. - A sua reputação o precede.

Jack sorriu. - Fico agradecido. - Olhou para Jeremy. - Talvez dentro de mais ou menos vinte anos.

- Eu sei que vocês também se beneficiam de uma fundação particular na IMU - disse Maclean.

- Você conhece Efram Jacobovich, nosso benfeitor?

- Ele também é membro do nosso conselho de curadores.

- Sei que ele se ofereceu para financiar inteiramente a escavação da Vila dos Papiros - disse Jack.

- Ele não é o único. Há uma fila de filantropos batendo à porta.

- Batendo suas cabeças contra uma parede de tijolos, você quer dizer - comentou Costas.

- Com um pouco de sorte - disse Jack para Maclean -, você pode nos ajudar a derrubar aquela parede.

Maclean olhou com atenção para Jack, os olhos se estreitando, depois assentiu com um gesto de cabeça. - Entendi, pelo que disse Jeremy, que vocês estão com um horário apertado. Sigam-me.

Ele os conduziu ao longo de uma lateral do pátio rodeado por colunas, em seguida em direção ao pórtico oeste da vila, passando pelas portas de bronze abertas que serviam de entrada para o museu. Subiram um lance de escadas de mármore para o andar superior, e chegaram a um segundo pátio interior, outro lugar perfumado e colorido, verdejante e ressoando com os esguichos e a espuma efervescente das fontes. Debaixo do telhado coberto com telhas, fileiras de colunas desciam para rodear um jardim distribuído proporcionalmente da maneira romana, com estátuas de bronze de cinco donzelas no centro parecendo extrair água de uma poça. Novamente Jack sentiu a proximidade extraordinária do passado. O que quer que ele ainda obtivesse neste dia, esta vila romana na Califórnia tinha sido um revelação inesperada, uma nova imagem vívida do mundo antigo.

Costas parou perto da balaustrada, e abaixou a cabeça. - A menos que eu esteja enganado, era para cá que o velho Anúbis deveria vir.

Maclean olhou para baixo. - Jeremy contou-me sobre isso. É um achado incrível. Talvez acrescente um aspecto ligeiramente mais negro a este local, embora ele possa simplesmente ter sido uma curiosidade recuperada por Calpúrnio Piso de um negociante na Grécia ou em Alexandria. Pessoalmente, o meu voto é para Sais, no delta do Nilo, onde Heródoto descreve a existência de uma galeria inteira com este tipo de coisas. Se vocês algum dia retornarem para a vila e puderem fazer um escaneamento a laser, isto seria uma magnífica retribuição. Fazemos questão de autenticidade aqui.

- Vou conseguir que o nosso colega Maurice Hiebermeyer venha para cá.

- Ah! Bom velho Maurice.

- Você o conhece? - Perguntou Jack

- Eu o encontrei cerca de três meses atrás, em uma conferência. Estava todo excitado com uma descoberta ao lado do mar Vermelho, mas não queria falar muito no assunto. Estava indo contar-lhe acerca disso. Você estava em Istambul, eu acho.

Jack lançou para Costas um olhar culpado. - Este é o nosso próximo projeto. Depois do papiro sobre a Atlântida, qualquer coisa que Maurice descubra, estamos dentro. Enquanto isso, ele está afundado até o pescoço dentro da burocracia italiana.

- Esse é outro dos prazeres de estar aqui - disse Maclean. - Você obtém todas as glórias do passado, mas nenhum dos impedimentos que a moderna arqueologia encontra.

- Espero intensamente que isto continue assim - disse Jack, olhando para o pátio. Estreitou os olhos, e falou de memória. - "Jardins encantadores e fileiras de colunas requintadas e tanques de lírios rodeando-as, espalhando-se tão distantes quanto os olhos em êxtase podiam alcançar" - ele murmurou. - A palavra de Herodes Agripa, rei da Judéia, em uma carta para sua esposa Cipros. Sempre vou me lembrar daquela descrição, pois eu a traduzi pela primeira vez das histórias de Tácito quando era estudante. Sempre se pensou que Herodes era um anticristão, o homem que ordenou a execução de Jesus, mas para mim aquelas palavras poderiam estar descrevendo uma antiga imagem do céu.

- Herodes Agripa, o amigo de Cláudio? - perguntou Costas.

- É ele mesmo.

Costas examinou o pátio cuidadosamente. - Então, se esta é a vila onde Cláudio terminou os seus dias, ele não abandonou completamente uma vida de prazeres - ele disse.

- Ele tinha esta vila para olhar, é claro, mas acho que Cláudio se importava muito pouco com ela - replicou Jack. - Contanto que tivesse seus livros e as estátuas de seus amados pai e irmão, provavelmente ficaria contente em levar uma vida miserável em uma caverna com cheiro forte e desagradável no monte Vesúvio.

- Cláudio? - perguntou Maclean, confuso. - Qual Cláudio?

- O imperador romano Cláudio.

- Jeremy não mencionou nenhum imperador. - Maclean fez uma pausa, e depois olhou para Jack de modo gozador. - Acho que vocês têm algumas explicações a dar.

- Nós temos - Jack sorriu. - Conduza-nos.

Maclean os dirigiu alguns passos adiante para uma sala nos fundos do pórtico. Abriu a porta, introduziu-os e fez um gesto em direção à mesa de mármore no centro. - Pedi café e mais algumas coisas. Estão com fome?

- Pode apostar. - Costas se lançou sobre um prato de croissants e Maclean verteu o café. Depois de alguns momentos, fez um gesto para três lugares ao redor da mesa, caminhou ao redor dela até o outro lado com a sua xícara de café e sentou-se.

- Muito bem. - Jack sentou-se na cadeira do meio, e inclinou-se adiante. -Você sabe por que estamos aqui.

- Como eu disse, Jeremy me pôs a par. Ou, pelo menos, acho que ele o fez. - Maclean girou em sua cadeira a fim de olhar para Jack, depois tomou um gole de café e colocou a xícara sobre a mesa. - Quando Jeremy conseguiu sua bolsa de estudos aqui, nós trabalhamos intimamente ligados, e quando me telefonou ontem, ele descobriu que tenho interesse em John Everett. Eu sempre mantive isto reservado, mas é claro que lhe contei quando ele perguntou. É incrível. Pensei que eu fosse o único, mas houve uma outra inquirição esta manhã.

Jack pareceu alarmado. - Quem?

- Um endereço anônimo de correio eletrônico.

- Você respondeu?

- Depois de minha conversa com Jeremy, achei mais prudente alegar ignorância. Mas percebi que era alguém que não queria ir embora. Verifiquei as reservas de entradas para o museu feitas on-line, e alguém, com o mesmo endereço anônimo, reservou uma entrada para amanhã.

- Poderia ser uma coincidência - murmurou Jeremy. - Não posso imaginar como eles ficaram sabendo.

- Quem ficou sabendo? Com quem você conversou sobre isto? - perguntou Maclean.

Jeremy ficou silencioso por um momento, olhou para Jack e depois de novo para o outro lado da mesa. - Eu não lhe contei tudo. Disse que nós achamos que Everett tinha algo extraordinário para esconder, um manuscrito cristão dos primeiros tempos. Esta é a peça-chave. Vamos ouvir o que você tem a dizer, e depois direi o resto.

Maclean parecia perplexo. - Eu não tenho motivos para ser discreto. Meu conhecimento, as coisas aqui estão disponíveis para todos. Este é o caráter fundador distintivo do museu.

- Infelizmente, isto seguiu um caminho que ultrapassa a erudição - disse Jack. - Há muito mais coisas em jogo aqui. Vamos ouvir tudo o que você sabe, depois o poremos a par rapidamente antes de deixarmos esta sala.

Maclean pegou uma caixa de documentos. - Concordo. Não tenho certeza para que lugar vocês estão se dirigindo com isto, mas posso lhes dar uma biografia romanceada.

- Diga-nos.

- O motivo pelo qual sei acerca de Everett é que ele se correspondia com J. Paul Getty, o fundador do museu. As freiras que cuidavam de Everett no final de sua doença encontraram o papel timbrado de Getty entre seus pertences, e alguns desenhos de arquitetura. Elas pensaram que isso poderia nos interessar. Eu os encontrei por acaso quando estava pesquisando o início da história da Vila Getty, e achei que eles poderiam ter alguma relação com o interesse da família de Getty por antiguidades. - Abriu a caixa de documentos e espalhou um punhado de papéis, páginas amarelecidas cobertas com palavras e figuras feitas por uma mão cuidadosa e precisa, e uma página com um plano descartado de uma estrutura absidal. - Everett estava fascinado com os problemas matemáticos, o jogo de xadrez, as palavras cruzadas. Há uma grande quantidade deste tipo de material, muito dele em um estilo que desconheço. Mas, antes que viesse para a América, ele tinha sido arquiteto, e há um manuscrito inacabado no qual tenho estado colocando notas explicativas para publicá-lo. Estava interessado na arquitetura das primeiras igrejas, nas primeiras evidências arqueológicas para lugares de culto cristão.

- Fascinante - murmurou Jack. - Mas por que entrar em contato com Getty?

- Os dois homens tinham uma quantidade surpreendente de coisas em comum - disse Maclean. - Getty tinha estudado em Oxford, Everett em Cambridge. Getty era um anglofilo apaixonado, e ficara contente em descobrir um espírito afim na Califórnia. E os dois homens haviam desistido de suas carreiras profissionais, Getty para ser um playboy milionário em Los Angeles, Everett para ser um católico asceta. Parece que entre eles existe um mundo de diferenças, mas sua correspondência mostra que ambos se liberaram mais ou menos da mesma maneira. E há um motivo mais particular.

- Continue.

- Getty estivera em Pompéia e Herculano antes da Primeira Guerra Mundial, havia visitado o sítio da Vila dos Papiros, e ficara fascinado por ela. Então, no final dos anos 1930, Everett ouviu falar sobre uma nova descoberta extraordinária em Herculano, e quis a opinião de Getty sobre ela. Everett ficou realmente intrigado por ela, a ponto de ficar obcecado.

- A Casa do Bicentenário? - perguntou Jack.

- Você adivinhou.

Jack se voltou para Costas. - Eu a mostrei para você na nossa rápida viagem para Herculano, quando chegamos ao local na semana passada.

- Um outro buraco negro, receio - disse Costas pesaroso. - Acho que eu ainda estava adormecido.

- Bicentenário refere-se ao aniversário de duzentos anos da descoberta de Herculano, em 1738 - disse Maclean. - A escavação foi uma das poucas que ocorreram, em qualquer escala, desde o século XVIII. O ditador italiano Mussolini estava por trás disso, fazia parte da sua busca por todas as coisas romanas. No entanto, parece ter havido resistência da Igreja aos seus planos de escavação mais grandiosos e o projeto de Herculano foi quase natimorto.

- Por que isto não me surpreende? - murmurou Costas.

- Eles descobriram uma sala que chamaram de capela cristã - continuou Maclean. - Deram-lhe esse nome porque encontraram a inserção da forma de uma cruz no gesso acima de um gabinete de madeira, como um recinto de prece. Em uma casa próxima eles encontraram o nome David rabiscado em uma parede. Nomes hebraicos não são incomuns em Pompéia e Herculano, mas em geral eles são latinizados. Pensava-se que Jesus era descendente do rei David dos judeus, e alguns acham que esta era uma maneira secreta de se referir a ele, antes que se começasse a usar a palavra grega para designar o messias, Christos. - Maclean fez uma pausa e pareceu pensativo. - Esses achados eram muito controversos, e um número bastante grande de estudiosos ainda não aceita a interpretação, mas esta pode ser a evidência arqueológica mais antiga, em qualquer lugar, de um local para o culto cristão.

- Apenas poucas centenas de metros afastado da Vila dos Papiros - murmurou Jack. - Eu me pergunto se Everett teve algum pressentimento, se ele sabia quão próximo se encontrava da fonte daquilo que possuía?

- Do que vocês estão falando? - perguntou Maclean.

- Primeiro, vamos terminar a história de Everett - disse Jack. - Você sabe algo mais sobre ele?

Maclean empurrou uma folha que estava sobre a mesa. - O interesse de Everett pode ter sido um fator de apoio para a contínua fascinação de Getty com Herculano e pode até ter ajudado a estimular a criação desta vila. Mas, depois de sua breve correspondência, Everett deslizou de volta para a obscuridade. Esta é a única imagem que temos dele, uma antiga fotocópia de uma fotografia tirada por sua filha. Ela conseguiu descobrir o seu paradeiro e o visitou em 1955, um ano antes de sua morte. Eu a encontrei, e consegui esta fotocópia.

Jack olhou atentamente para a imagem granulada em preto e branco, quase esmaecida. No centro havia um homem idoso, bem-vestido, apoiado em bengalas, mas parado em pé com dignidade, seu rosto virtualmente indiscernível. Atrás dele havia uma cabana de metal ondulado, enfeitada com grinaldas de hera e rodeada por uma vegetação luxuriante.

- Esta foto foi tirada do lado de fora do convento de freiras, ao lado da cabana onde ele morava havia mais de trinta anos - continuou Maclean. - As freiras preocupavam-se com ele, cuidaram dele quando ele ficou muito doente para subsistir sozinho. Como retribuição ele cuidava de seus jardins, fazia trabalhos ocasionais. Tinha sido professor de coral em sua juventude, e cantava música gregoriana para elas. Ele abrigava mendigos, pessoas fisicamente debilitadas, alimentava-as e as vestia, sustentava-as em sua cabana, toda essa coisa de caridade cristã.

- Isto soa um pouco messiânico para mim - murmurou Jack.

- Não acho que ele tinha qualquer ilusão acerca disso - replicou Maclean. -Mas a Califórnia, em seus dias, era o mundo de Steinbeck, de Cannery Row e Tortilla Fiat, havia toda uma subcultura à margem da sociedade. E eram aqueles com os quais ele se sentia mais à vontade, exilados, andarilhos, pessoas que tinham abandonado seus próprios antecedentes e sua educação, como ele próprio. - Fez uma pausa, e depois falou em voz baixa. - O que vocês sabem sobre os adeptos de Pelágio?

- Sabemos que de alguma forma Everett estava envolvido com eles.

- Ótimo. Isto me poupa um bocado de explicações - replicou Maclean, relaxando visivelmente. - Há uma estranha conexão entre o pelagianismo e o catolicismo romano. Dois opostos exatos. Em uma de suas cartas, ele revela suas crenças em Pelágio, algo sobre o que ele claramente desejava falar, e isto explica bastante acerca de onde estamos indo nesta tarde. Era como se ele estivesse vivendo uma vida dupla, um católico asceta e devoto por um lado, e, por outro, quase o maior herético radical que vocês possam imaginar, do ponto de vista da Santa Sé.

- Quando aquela carta foi escrita? - perguntou Jack.

- Por volta da Segunda Guerra Mundial. Já estava bastante doente nessa época, divagando um pouco, e não houve mais correspondência.

- Isso explica a coisa - murmurou Jack. - Não acho que ele teria arriscado revelar isso antes dessa época. - Respirou profundamente. - Muito bem. O que você sabe sobre as suas origens?

- É uma história surpreendente. Ele nasceu em Londres, em Lawrence Lane, onde a família viveu durante gerações. Eles eram huguenotes, e o seu pai era um arquiteto proeminente. Ele cursou o Pembroke College, Cambridge, onde se graduou como wrangler, a mais alta distinção em matemática oferecida por Cambridge. Um dos seus tutores foi o filósofo Bertrand Russel. Ofereceram-lhe um cargo como membro da universidade, mas ele declinou, tendo prometido para seu pai que faria sociedade com ele. Viveu dez anos prósperos como arquiteto, irrepreensíveis, casou-se, teve três filhos, depois seu pai morreu e subitamente ele abandonou tudo, família, profissão e desapareceu na América.

- Ele deu alguma explicação? - perguntou Costas.

- Everett se converteu ao catolicismo romano e tornou-se um religioso devotado. O pai de sua mulher era violentamente anti-católico. O pai lhe deu um ultimato, depois livrou-se dele. Foi simples assim. A educação das crianças foi paga por seu avô, com a condição de que nunca mais tivessem contato com seu pai. Uma história triste, porém não única, dada a antipatia que existia entre protestantes e católicos mesmo na era vitoriana.

- Mas nós sabemos qual foi a razão pela qual ele abandonou tudo - murmurou Jeremy. - A morte de seu pai, o testamento, sua súbita responsabilidade pelo valioso objeto que era uma herança tradicional da família. A questão é por que ele veio para cá, e o que ele fez com aquele objeto.

- Eu não entendo a conexão católica - disse Costas. - Se ele tinha aquilo que estamos procurando, então certamente a grande atração pela América teria sido todos os movimentos não conformistas, pessoas que teriam escutado avidamente algo como aquilo que estava com ele, algo que parecia vir diretamente do Cristo.

- Foi precisamente por causa disso que ele se converteu - disse Jeremy. - Não haveria lugar melhor para desaparecer de que dentro dos meandros da Igreja Católica, o lugar menos provável. Precisava ser cuidadoso, escolher o lugar e o momento para revelar o que tinha, encontrar alguma maneira de passar adiante o segredo. E ele já era anglicano, anglo-católico, de modo que não tinha muito mais práticas religiosas para levar em conta. Aqui, no seu vale remoto perto de Santa Paula, ele estava bastante distante do papa e do Vaticano para ignorar tudo isso durante bastante tempo.

- Ele chegou primeiro a Nova York em 1912, assumiu a cidadania americana, depois foi para o oeste - disse Maclean. - De acordo com o que me contou Jeremy, eu agora acredito que o que ele fez precisou de enorme força de vontade, uma decisão de preservar um tesouro extraordinário, não para o seu próprio benefício, mas para o benefício da humanidade, para o futuro. Uma vez assegurado da educação de seus filhos, ele fez o maior sacrifício que um pai poderia fazer, e foi embora aceitando nunca os ver de novo.

- Só espero que tenha valido a pena - disse Costas.

- É para descobrir isto que estamos aqui - disse Jack, voltando-se para Maclean. - Você sabe mais alguma coisa sobre a sua vida, qualquer coisa que possa nos fornecer indícios?

Maclean fez uma pausa. - Agosto de 1914. Os países da Europa se separam, a Grã-Bretanha se mobiliza. A Primeira Guerra Mundial inicia.

- Ele vai lutar? - pergunta Costas.

Maclean faz que sim com a cabeça. - Dentro da loucura e do horror da Primeira Guerra Mundial, as pessoas com freqüência esquecem que existiam muitos, no início, que acreditavam que a guerra era justa, uma guerra contra a desgraça iminente. Em algum lugar na Alemanha, o imperialismo lança as sementes do nazismo. Everett se sentiu moralmente compelido a juntar-se aos combatentes. Winston Churchill escreveu sobre homens como ele. - Maclean inclinou-se para trás de modo a poder ler a inscrição debaixo de um retrato emoldurado em sua parede, mostrando um jovem em uniforme. - "Vindo por sua própria e livre vontade, sem uma convocação nacional ou obrigação, um estranho do outro lado do oceano vem para lutar e morrer em nossas fileiras, ele resolveu pagar um tributo de excepcional valor para a nossa causa. Compreendeu que não meramente causas nacionais, mas causas internacionais da mais alta importância estavam envolvidas e precisavam agora ser decididas pelas armas."

- Um parente seu? - perguntou Costas.

Maclean sacudiu a cabeça. - Um amigo de Churchill, o tenente Harvey Butters, da Real Artilharia de Campo (REA), um americano morto na ofensiva do Somme em 1916. Getty era um grande admirador desses homens.

- Juntar-se aos combatentes teria sido consistente com o senso de responsabilidade que levou Everett a sacrificar sua carreira e sua vida familiar por aquilo que ele estava escondendo - murmurou Jack.

- Ele foi para o norte, para o Canadá e se alistou. Em 1916, ele era oficial no regimento dos fuzileiros reais de Dublin, na linha de frente ocidental. Em junho daquele ano, foi atacado com gás tóxico e ferido na terrível batalha de Hulluch, perto de Loos, na França. Durante sua recuperação, suas habilidades matemáticas foram descobertas, e foi transferido para a inteligência militar britânica, o original MI-1. Ele trabalhou no Escritório de Guerra em Londres, e depois foi auxiliar a inteligência naval do Almirantado, viajando para o sul, indo trabalhar num complexo altamente secreto conhecido como Sala 40, e tornou-se decifrador de códigos.

- Aha! - Jeremy inclinou-se adiante, - Criptografia.

- Eles estavam desesperados para conseguir homens como ele - continuou Maclean. - E foi bem a tempo. O que aconteceu em seguida pode bem ter ajudado a ganhar a guerra.

- Continue.

- Vocês já ouviram falar do telegrama de Zimmerman?

- Sim - disse Jeremy imediatamente. - Fez a América participar da Primeira Guerra Mundial.

- Um telegrama em código enviado em janeiro de 1917 por Arthur Zimmerman, o secretário alemão de Assuntos Estrangeiros, para o embaixador alemão no México. Ele revelava a intenção alemã de iniciar uma guerra submarina irrestrita, e a ajudar o México a retomar os estados do Sul dos Estados Unidos. O plano parece ridículo agora, mas era mortalmente sério na época. Os britânicos interceptaram e decifraram o telegrama, depois o passaram para o embaixador dos Estados Unidos na Grã-Bretanha. O sentimento nos Estados Unidos já era bastante contra os alemães por causa dos submarinos U-boat que tinham matado muitos americanos. Pouco mais de um mês mais tarde, o presidente Woodrow Wilson pedia ao Congresso para declarar guerra contra a Alemanha.

- Deixe-me adivinhar - disse Costas. - O telegrama foi decifrado na Sala 40.

- Correto. Os decifradores de códigos na Sala 40 tinham um livro de códigos para uma versão anterior do criptograma, roubado de um agente alemão no Oriente Médio, mas, mesmo assim, a decifração executada pela equipe de Londres foi um trabalho de gênio.

- E o nosso homem estava envolvido.

- O seu nome nunca foi liberado. Depois da guerra, os britânicos se esforçaram extraordinariamente para manter as atividades de seus decifradores de códigos secretas, e só revelaram o suficiente para contar a história essencial. Alguns dos decifradores da Sala 40 foram trabalhar em Bletchley Park durante a Segunda Guerra Mundial, e os seus nomes nunca chegaram a ser conhecidos.

Costas assobiou. - Então, Everett de fato teve um lugar na história. Trazendo quase sozinho a América para a Primeira Guerra Mundial.

- Se você acha que ele ocupa um lugar na história, espere pelo que vou contar em seguida.

- Continue - disse Jack.

- Uma grande parte do material ainda permanece secreto. Mas eu sei que ele trabalhou ao lado de dois homens cujos nomes foram revelados e celebrados, o reverendo William Montgomery e Nigel de Grey. Desses dois, Montgomery é o mais intrigante. Ele era pastor presbiteriano, um civil recrutado pela inteligência militar britânica. Era uma autoridade reconhecida sobre santo Agostinho, e um tradutor talentoso do alemão de obras teológicas. Era mais conhecido por sua tradução da obra A busca do Jesus histórico, de Albert Schweitzer.

Jack repentinamente sentiu os cabelos se eriçarem na nuca. - Repita o que disse.

- Albert Schweitzer, A busca do Jesus histórico.

O Jesus histórico. Jack sentiu que ficava tenso com a excitação, e depois falou calmamente. - Então, tivemos dois homens, ambos brilhantes decifradores de códigos, Montgomery e Everett, ambos apaixonados pela vida de Cristo. Um deles é guardião de um extraordinário documento antigo, algo que está escondendo em outro lugar. Talvez o horror daquela guerra, sua experiência de quase morte, sua convicção de que não iria sobreviver, provocasse nele uma necessidade esmagadora de partilhar seu segredo, de assegurar que a tocha fosse mantida acesa em algum lugar. Ele conta tudo para Montgomery e inventam um código.

- Isto é pura especulação, mas, se isso de fato aconteceu, provavelmente foi aqui - disse Maclean.

Jack pareceu espantado. - Você quer dizer aqui? Na Califórnia?

- Em Santa Paula. Onde Everett passou o resto de sua vida. Um pequeno convento de freiras nas colinas, situado a pouca distância do mar, onde Everett encontrou o que estava procurando quando chegou à América antes de guerra. Paz, reclusão, uma comunidade em cuja congregação de fiéis ele podia entrar sem esforço, anonimamente, na qual podia permanecer pelo restante de seus dias, buscando o momento e o local adequado para passar adiante seu segredo.

- Do mesmo modo que o imperador Cláudio, dois mil anos antes - murmurou Jeremy. - E, exatamente como Cláudio, o curso da história parece ter tragado os seus planos, a Primeira Guerra Mundial estourou com ímpeto, assim como a erupção do Vesúvio no último dia.

- Não compreendo como ele voltou para a Califórnia, como ele e Montgomery estavam aqui durante a guerra - disse Costas.

- Isto foi em maio de 1917. A publicação do telegrama de Zimmerman havia acabado de fazer com que a América entrasse na guerra. Montgomery e Everett foram convidados a vir para cá para ajudar a estabelecer uma nova unidade de decifração de códigos nos Estados Unidos. Isso era altamente secreto. Mas havia bastante tempo para uma rápida visita à Califórnia.

- Será que o convento de freiras ainda existe? - perguntou Jack. Maclean empurrou a cadeira para trás, levantou e andou até a janela, a voz subitamente cheia de emoção. - Quase durante toda a minha vida profissional eu morei e vivi neste lugar. Eu estava aqui quando o museu foi inaugurado, e realizei o meu melhor trabalho nesta sala. Há uma atmosfera aqui, uma atmosfera do passado que tem inspirado o meu trabalho. Uma antiga vila romana nas colinas da Califórnia. Mas ela também me assombra. Esta sala, onde agora nos encontramos, é desconhecida, obscura. O museu está baseado no plano do século XVIII que Weber fez para a Vila dos Papiros como vemos nos túneis; no entanto, toda esta seção da vila é conjetural, corresponde a uma parte que nunca foi escavada. Com as novas descobertas de vocês na vila, é como se o passado estivesse finalmente vindo à tona, como se a verdade que criamos aqui estivesse prestes a ser desmascarada pelo que ela é, como se estivéssemos prestes a perder toda a solidez e certeza que havíamos criado. Isto é assustador, mas também excitante. - Ele voltou à mesa, e pegou um molho de chaves, depois voltou a sentar de maneira decidida. - Terminei. Mas, antes de irmos, acho que vocês me devem o resto da sua história. Quero ouvir o que têm a dizer sobre Cláudio.

 

Três horas mais tarde, Jack estava parado nos limites de um pequeno vale fora de Santa Paula, nas colinas da Califórnia, cerca de vinte milhas a nordeste da Vila Getty. Era uma tarde brilhante, o céu era de um azul profundo e uma brisa refrescante soprava sobre o vale vinda da costa do Pacífico ao oeste, fazendo as folhas sussurrarem. Estava parado em um bosque de nogueiras com nozes maduras e escuras, o bosque era interpenetrado por ocasionais árvores de choupo-do-canadá e carvalhos cujo desenvolvimento ainda estava retardado. As árvores tinham sido plantadas, deliberadamente, não em fileiras uniformes, mas habilmente dispostas ao longo de terraços que desciam pelos declives, dando para cada árvore o espaço para crescer até a maturidade e em conformidade com os aspectos naturais da paisagem. A casca das nogueiras era grossa, apresentando estrias profundas, e cada tronco bifurcado próximo ao solo dava a impressão de duas árvores que cresceram juntas, os troncos divergiam para criar espaços vazios que formavam abrigos de folhagens e que tentavam Jack a entrar mais profundamente no bosque. Era um lugar mágico e reservado, completamente separado do mundo exterior, e, no entanto, revelava toda a luz e a cor que a Califórnia tinha para oferecer.

Maclean, seguido por Costas e Jeremy, aproximou-se vindo do lugar onde deixara o carro. - A cabana de Everett era onde você está parado, e seu túmulo se encontra em algum lugar por perto - disse Maclean. - Os dois estão desaparecidos agora, mas, de certa maneira, ele está em todo lugar aqui. Ele plantou todas estas árvores, planejou toda a paisagem. Mas espere até ver o que há ali perto. - Continuou ao longo do caminho e depois mudou de direção ao longo da linha de um terraço, descendo por um corredor sussurrante de folhas de nogueiras. Jack deixou-se ficar mais um momento, depois os seguiu, rapidamente alcançando Costas e Jeremy. Passaram por um curso de água borbulhante e chegaram à entrada de um edifício, uma estrutura comprida e baixa que corria ao longo do declive por um lado e descia em direção ao vale por outro. As paredes tinham uma base formada por pedras cortadas irregularmente, e acima delas eram construídas com tijolos compridos e grossos. Uma camada de tijolos escuros tinha sido colocada no centro da parede, pondo em relevo a aparência da fachada. O telhado era inclinado e coberto com telhas largas e planas amarradas por outras sobrepostas de forma semicircular, ao estilo mediterrâneo. Jack parou mais atrás e apreciou a estrutura, quebrando a cabeça. Tudo parecia estranhamente familiar.

- Bem-vindos ao Convento de Santa Maria Madalena - disse Maclean.

- Você já esteve aqui antes? - perguntou Costas.

- Só me permitiram o acesso durante o último ano. Ainda é uma grande revelação para mim. Originalmente, este local era um retiro jesuíta, uma espécie de típica missão espanhola, toda feita de lodo seco e gesso caiado - disse Maclean. - Depois, foi completamente reconstruído no início do século XX. O que vocês vêem aqui é uma das jóias arquitetônicas da Califórnia. - Olhou para Jack. - Você provavelmente já adivinhou.

- Posso ver que Getty não foi o único a recriar a antiga Roma - murmurou Jack.

- Quando Everett veio para cá em 1912, a construção da antiga missão estava desmoronando, era quase não habitável - disse Maclean. - Além da guerra, esta foi a sua principal ocupação durante a década seguinte. Construiu isso tudo virtualmente sem auxílio, até que sua saúde o fez interromper o trabalho.

- Então, afinal de contas, ele não desistiu da arquitetura - comentou Costas.

- Longe disso - disse Maclean. - Aqui ele foi realmente capaz de abandonar-se a sua paixão, capaz de fazer algo que nunca conseguiria realizar na Inglaterra durante o período eduardiano. Nos anos 1890, quando ele era um estudante de arquitetura, as pessoas estavam apenas começando a perceber como eram bonitas as vilas na região rural da Grã-Bretanha romana, lugares que estavam sendo escavados adequadamente, pela primeira vez, naquela época.

- Demorou um pouco, mas eu reconheci a construção - disse Jack. - É um dos meus lugares favoritos. A vila romana de Chedworth em Gloucestershire. Até o ambiente é semelhante, um pouco mais úmido na Inglaterra, talvez.

- Você acertou - disse Maclean. - E a ambientação era crucial para ele. As grandes casas da Itália romana eram locais circundados, introspectivos, completamente separados do mundo natural. Pense na Vila Getty, na Vila dos Papiros. Há uma vista magnífica para ser apreciada do lado de fora, mas o pátio rodeado por colunas a exclui, encerra-a dentro de sua própria organização. E, em lugar de janelas para o mundo exterior, você tem todas aquelas paredes pintadas que mostram cenas de jardins e paisagens, deliberadamente irreais, artificiais, míticas. O lugar inteiro representa um controle completo sobre a natureza.

- Ou falta de controle - disse Jack.

- Ou negação - disse Costas. - É mais fácil pintar o Vesúvio na parede de sua vila como uma espécie de sonho dionisíaco do que olhar pela janela e ver uma realidade que nunca poderá ter a esperança de controlar.

- Na Grã-Bretanha romana, algo diferente estava acontecendo - disse Jack. - Vocês lembram de Boudica, dos druidas? Eles eram pessoas que faziam cultos religiosos em clareiras na floresta, que não tinham templos. Estavam muito mais em sintonia com a natureza, viam a si mesmos como parte dela. A natureza não era algo para eles controlarem. Então, quando a elite celta queria ter vilas ao estilo romano, eles as construíam como parte da paisagem, não excluídas dela. Foi isso que Everett fez aqui. Em lugar de um pátio rodeado por colunas, há uma única estrutura de área comprida que se estende ao longo do topo do vale para o sul, os dormitórios das freiras, exatamente como o espaço do lado oeste em Chedworth. A estrutura se ajusta admiravelmente dentro dos contornos e das cores da paisagem, se torna parte dela. Esta era a visão de Everett.

- Então, ela é realmente diferente da Vila Getty - disse Costas.

- Everett deve ter apreciado o desafio - disse Maclean. - Deve ter sido como a história da lebre e da tartaruga. Getty tinha milhões incontáveis, Everett tinha apenas caridade. Getty podia chamar arquitetos e construtores de todas as partes do mundo, Everett tinha apenas a si mesmo. E, ainda assim, Everett terminou este lugar primeiro, décadas antes que a Vila Getty fosse inaugurada. E a Vila Getty era um espetáculo público, uma extravagância de um bilionário, mas também uma obra beneficente para o mundo, ao passo que este lugar é quase tão secreto quanto possível. O estatuto da ordem das freiras proíbe os estranhos de entrarem além do vestíbulo, ou de ter qualquer contato direto com as freiras. É um grande privilégio para nós a permissão de estar aqui.

- Podemos olhar dentro do vestíbulo? - Perguntou Jack.

- Foi para isso que eu os trouxe aqui.

Maclean os conduziu através de um pátio de pedras irregulares e em direção a uma porta simples e despretensiosa, rodeada por placas verticais e coberta por um lintel feito com pedras locais que Jack tinha visto no terraço. A porta era feita de pranchas esculpidas de madeira dura que parecia ser de nogueira, e estava ligeiramente entreaberta. Maclean empurrou-a um pouco mais, e depois deu um passo atrás e apontou para o chão. - Primeiro olhem para a soleira da porta.

Abaixaram o olhar. Na frente deles havia um mosaico em preto e branco, feito de ladrilhos cortados grosseiramente, polidos e lustrosos. Media cerca de um metro de lado a lado e ocupava exatamente cada lado da entrada, metade dentro e metade fora. Jack tinha visto uma soleira como aquela antes, um mosaico em preto e branco em uma soleira em Pompéia ostentando as palavras latinas CAVE CANEM, "Atenção ao cachorro". Mas esta era diferente. As letras tinham sido dispostas em um retângulo, e a mensagem não tinha um significado óbvio. Cada linha formada por uma palavra:

 

                       ROTAS

                       OPERA

                       TENET

                       AREPO

                       SATOR

 

Jack olhou atentamente por um momento, e então ficou claro. - Está escrito em latim. "Arepo, o semeador, segura as rodas cuidadosamente."

- É alguma espécie de código? - perguntou Costas.

- Não exatamente. - Jeremy pegou de seu bolso um caderno de apontamentos e um lápis e rapidamente rabiscou algumas palavras, depois arrancou a folha e entregou-a para Costas. - Isto é uma palavra-quadrado (que pode ser lida tanto na horizontal como na vertical), é um caso especial do acróstico, um quebra-cabeça. Rearranje as letras e isto é o que se consegue. - Costas segurou o papel de modo que Jack também pudesse ver:

 

A

 

P

A

T

E

R

A PATER NOSTERO

O

S

T

E

R

 

O

 

Costas assobiou. - Inteligente.

- Inteligente, mas isto não foi uma criação de Everett - disse Jack. - Isto é romano antigo, e foi encontrado rabiscado em um fragmento de ânfora na Grã-Bretanha.

- Isto me soa familiar - disse Costas. - desde que encontramos o navio naufragado, eu estou começando a olhar para modestos potes antigos de uma forma inteiramente nova. - Deu um passo à frente e olhou com atenção para o vestíbulo. - E, falando nisso, isto aqui também me parece familiar. Penso ter visto um símbolo Qui-Rô.

- Dois deles, de fato - disse Maclean. - Um no chão e outro na parede. Entraram no vestíbulo. A sala era simples, austera, em conformidade com o exterior da vila. As paredes eram cobertas de gesso pintado em vermelho com acabamento fosco, no estilo romano. Não havia janelas, mas uma série de aberturas, logo abaixo do teto, ao redor de toda a sala; tinham sido habilmente projetadas para deixar feixes de luz cair no meio do chão e sobre a parede do lado oposto à entrada, sobre os objetos centrais que constituíam as duas decorações da sala. Um deles era um outro mosaico no chão, mas desta vez em várias cores, que cobria toda a largura da sala, talvez com três metros de um lado a outro. Os ladrilhos, o mosaico tesserae, tinham cerca 1,25 cm quadrado, e a gama de cores se limitava, talvez, a meia dúzia. O mosaico estava executado em estilo linear, arrojado, com imagens delineadas de maneira rígida e com pouca sutileza na graduação de cor. Das beiradas da sala, uma série de círculos concêntricos avançavam para o interior, formando padrões abstratos de gavinhas, linhas entrelaçadas e arabescos separados por faixas brancas. No centro, havia a imagem que Costas tinha visto, um monograma Qui-Rô, dentro de um medalhão com cerca de sessenta centímetros de lado a lado, elevando-se acima da cabeça e o torso de uma figura humana, colocada na frente como se o símbolo Qui-Rô fosse um halo.

- Extraordinário - murmurou Jack. - O mosaico de Hinton St. Mary, no condado de Dorset. É uma cópia exata do famoso mosaico de Cristo.

- Uma outra vila da Grã-Bretanha? - perguntou Costas.

Jack fez que sim de uma maneira ausente, depois se agachou, absorvido nos detalhes. - Ele até usou os mesmos materiais - murmurou. - Tijolo para o vermelho, pedra calcária para o branco, arenito para o amarelo, xisto para o cinza. Ele tinha acesso a uma grande quantidade de outras cores aqui, quartzos, verdes, azuis, as cores que vimos nos mosaicos da Vila Getty, mas ficou preso a uma gama de cores usada na Grã-Bretanha.

- Posso supor que esta seja uma representação de Cristo? - perguntou Costas.

- Esta é uma boa questão - respondeu Maclean.

Jack ficou de novo em pé. - Não achei que houvesse alguma dúvida. Esta é uma representação bastante padrão no século IV. Bem barbeado, o rosto quadrado, cabelos compridos, vestindo uma espécie de toga. Pura fantasia, é claro. Isto poderia facilmente ser uma imagem grosseira do primeiro imperador cristão, Constantino, o Grande, ou de seus sucessores, que podem não ter impedido a confusão de suas imagens com a de Cristo.

- Este é o problema - disse Maclean.

- Qual é?

- Bem, por tudo que sabemos, os primeiros cristãos na Grã-Bretanha parecem ter se distanciado da Igreja Romana, ter acreditado que faziam parte de uma tradição mais pura, alguma coisa relacionada com a sua própria ascendência pagã. A última coisa que o proprietário daquela vila em Hinton St. Mary poderia ter desejado era uma imagem de Jesus quase idêntica à imagem do imperador, na moeda que tinha em sua bolsa. E a elite cultivada da Grã-Bretanha perto do fim do período romano era bastante sofisticada. As pessoas sabiam perfeitamente bem qual era a aparência dos que vinham do levante, da Judéia. Provavelmente, havia até uma pequena quantidade de sangue oriental nas pessoas da Grã-Bretanha por causa do seu contato com os fenícios séculos antes. A idéia de que Jesus devia ser apresentado bem barbeado, com um aspecto quase angélico, é nitidamente irracional. Era um pescador do mar da Galiléia queimado pelo sol. Mas olhem novamente. Os cabelos longos, os olhos amendoados, este manto que podia ser uma toga, podia ser uma beca. Esta figura pode não ser Jesus. Pode nem ser a imagem de um homem.

- Ela é uma mulher! - exclamou Costas.

- Era nisto que Everett acreditava. E para Everett, para os adeptos de Pelágio, era conferido para Maria, a companheira de Jesus, um significado diferente do que o dado pela Igreja Romana, um significado muito maior. Para eles, as imagens andróginas de Cristo, imagens quase femininas, são vistas em algumas das obras de arte romanas tardias, de Cristo personificando tanto homem como mulher, Cristo deificado. Para os seguidores de Pelágio, Jesus era o homem, e Maria a mulher. Eles consideravam a iconografia de Cristo na tradição romana como um pouco popularesca, como se a imagem de Jesus tivesse sido transformado em algo diferente, não em uma imagem elevada e deificada, mas reduzida a um mero motivo decorativo, um pasticho dentro de uma conspiração de poder que pouco tinha a ver com ele ou com seus ensinamentos. Segundo eles, era vendo Jesus como o homem que ele era que conseguiam conhecer melhor sua palavra. Era assim que eles se conectavam com a palavra Deus, por meio do homem, e não do Cristo ascendido. E lembrem-se de onde estamos. Esta é uma imagem apropriada. Este é o convento de Santa Maria Madalena.

- Fascinante - murmurou Jack.

- E vocês irão reconhecer a pintura na parede.

Seguiram a linha do P no mosaico Qui-Rô até que alcançaram um outro símbolo Qui-Rô; este último fazia parte do segundo desenho decorativo na sala, pintado de preto sobre um fundo azul-claro com as letras gregas alfa e ômega de cada lado. O símbolo era rodeado por uma grinalda pintada em azul-escuro com hastes pintadas, e Jack conseguiu distinguir letras gregas menores no meio de gavinhas de videira, enroladas de maneira decorativa ao redor das flores e folhas da grinalda. Na parte inferior havia uma pequena cruz com remates adornados; tratava-se nitidamente de uma cruz armênia, com as palavras Domine Ivimus.

- "Senhor, nós viemos" - traduziu Jack. - Fora isso, esta é uma cópia do mosaico de Lullingstone em Kent - disse ele em tom decidido. - Este é outro símbolo famoso do início do cristianismo na Grã-Bretanha. Ele realmente tem uma atração por vilas romanas na Grã-Bretanha, não é?

- Este é o ponto importante - disse Maclean. - Olhe ao seu redor. Não é só para estas imagens que devemos olhar, é para a ambientação. Este é o brilhantismo deste lugar, e também o da Vila Getty. Everett queria que nós víssemos a arte no seu conjunto, como fez Getty. E enquanto Getty se inspirou em Herculano, Everett encontrou estímulo nas descobertas do século XIX na Inglaterra, uma redescoberta do mundo romano na Grã-Bretanha e sua adoção do cristianismo que realmente incentivou o movimento dos adeptos de Pelágio, mais ou menos na época em que Everett era um jovem. Perceberam que as práticas cristãs iniciais na Grã-Bretanha tinham sido realizadas em casas particulares, em salas dentro de vilas, provavelmente do mesmo modo como tinha sido feito em lugares como Pompéia e Herculano antes que a Igreja se firmasse. Everett chamava esta sala de scholarium, o lugar de aprendizagem. Nem uma igreja, nem uma capela, nem um lugar de culto religioso, nem mesmo um lugar de encontro, mas um lugar de aprendizagem. Um local onde as pessoas podiam se reunir e ler os Evangelhos, ou ler para aqueles que não podiam ler. Um lugar que não tinha espaço para púlpitos, ou pregadores, nem para padres.

- Um lugar onde ele podia ter vislumbrado revelar o último texto - comentou Costas.

Jeremy tinha estado pensativo, mas agora falou em voz baixa. - A ironia é que ele tinha se convertido ao catolicismo para se esconder, para evadir-se dentro do cerne da instituição que mais gostaria de ter conseguido o seu segredo. No entanto, aqui, neste convento católico nas colinas da Califórnia, ele encontrou um lugar onde podia expressar sua verdadeira convicção com total liberdade, criar um lugar onde podia aproximar-se de Jesus e de seus ensinamentos mais do que fizera em qualquer outro lugar anteriormente.

Jack olhou ao redor, e por um momento pareceu estar se olhando como se estivesse fora de si mesmo, avaliando seus sentimentos. Com o passar dos anos, ele aprendeu a aceitar seus instintos sobre arte, a conhecer e a apreciar sua própria sensibilidade e a não se forçar para achar beleza só por obrigação. A Vila Getty era magnífica, mas este lugar, de certa forma, lhe parecia mais familiar, tocava o seu próprio passado. Sua relação com a natureza, as cores, o uso da luz e da sombra, refletia um ajustamento particular com o mundo que parecia se amoldar ao próprio mundo de Jack, com o conjunto de componentes naturais de sua própria ascendência ilustre. Mas havia mais que isto. Durante os últimos dias, ele tinha começado a sentir que estava procurando duas versões diferentes de beleza, de verdade. Olhou para o rosto no mosaico, e pensou sobre o que Maclean acabara de dizer sobre os seguidores de Pelágio, sobre encontrar o homem Jesus. Muito da tradição cristã havia sido encoberta por arte de alta qualidade, criando imagens que eram impressionantes, remotas, inatingíveis. No entanto, havia outra verdade, uma mais grosseiramente moldada, talvez, mas não menos bela, com um poder elaborado através de sua intimidade com os próprios homens e mulheres, não com formas idealizadas. Estar ali neste dia, ver a Vila Getty e depois este lugar, havia ajudado Jack a cristalizar esses sentimentos, a avançar nesse mistério que parecia tornar-se mais complexo e fascinante à medida que eles o investigavam.

Jack saiu de seu devaneio, respirou profundamente, e olhou para o mosaico e a pintura novamente. - Venham - ele murmurou.

- O que é? - perguntou Costas.

- Deve estar aqui - disse Jack. - Se Everett deixou qualquer tipo de indício para nós, ele deve estar incrustado nestas imagens. Tenho certeza disso.

Jeremy caminhou para a parede pintada, e olhou para a imagem da grinalda que circundava o símbolo Qui-Rô. - Esta é uma cópia exata? - perguntou.

- Ele fez algumas mudanças - disse Maclean. - Aqueles folíolos são de nogueiras, as flores são orquídeas, de que ele gostava. Também acrescentou as letras gregas. Eu as comparei, depois que vim aqui pela primeira vez, com cada acróstico possível, mas não consegui nada. São puramente decorativas.

- Isso não parece ser algo que Everett faria - disse Jeremy

- Não, não parece, mas tentei de tudo.

Jeremy deu um passo atrás, e pareceu pensativo. - Qual é a cronologia deste lugar? - ele disse. - Quero dizer, você sabe quando ele fez esta decoração?

Maclean encolheu os ombros. - Pude conversar uma vez com a madre superiora, através de um intermediário. Ela era uma jovem iniciada quando Everett estava morrendo, cuidou dele em sua cabana durante seus meses finais. Aparentemente, ele já tinha completado esta parte do convento antes da Primeira Guerra Mundial, dois anos depois de chegar à América. Voltar para cá parece que lhe proporcionou um fervor adicional, redobrou sua convicção, como se ele tivesse que justificar a decisão que havia tomado de deixar sua família e sacrificar toda a sua vida anterior.

- Então ele fez a decoração mais tarde, depois da guerra?

- Já havia terminado os mosaicos, inclusive a palavra-quadrado na entrada. Mas a parede pintada ele a fez quando retornou da guerra. Quando a madre superiora era jovem, algumas das freiras mais velhas que estavam aqui desde jovens lembravam disso. Everett tinha voltado transformado, retraído e perturbado, com os pulmões permanentemente prejudicados. Ele virtualmente trancou-se nesta sala, durante meses a fio. Elas não faziam idéia do que ele tinha visto, o que havia experimentado. O sul da Califórnia ficava muito distante do inferno de Flandres. Para mim, a sua versão do Qui-Rô de Lullingstone é rígida, com uma superfície desigual e preta como carvão, como se o símbolo tivesse sido estragado pelo fogo. Ele me faz lembrar daquelas fotografias de cidades em preto e branco ao longo da frente de batalha ocidental, Ypres, Loos, Passchendaele, onde ele foi ferido; eram locais de total desolação, com apenas alguns fragmentos ainda em pé espalhados, como as imagens mais negras possíveis da colina do Gólgota, com as cruzes das crucificações vazias retorcidas e empenadas pelo fogo.

Jeremy foi novamente até a parede pintada, e passou o dedo pela grinalda.

- Contei cinqüenta e três letras no total, todas gregas - ele murmurou. - Sem ordem, sem racionalidade. Elas não parecem formar palavras, nem para frente nem de trás para diante.

- Eu lhe disse que já tentei esta forma - disse Maclean. - Não cheguei a coisa alguma. O único pedaço legível é formado por aquelas palavras Domine Ivimus no final, com a cruz em estilo armênio acima delas. Isto também não nos leva a lugar algum. Parece que é puramente decorativo.

- Era um matemático brilhante - murmurou Jeremy, parecendo absorto. -Ele também gostava de quebra-cabeças de palavras, de jogos de quebra-cabeça, como muitas pessoas com aquele tipo de mente. Você pode perceber isto naquela palavra-quadrado na porta. Depois ele vai para a guerra, retorna e faz esta pintura, acrescentando letras na sua versão da pintura romana original. O que lhe aconteceu? - Jeremy olhou atentamente para a parede, pressionando-a com uma mão e batendo de leve seus dedos, depois se voltou subitamente e olhou para Maclean. - Recorde-me. Em 1917. Ele volta para cá, para o convento, onde estamos agora?

Maclean assentiu, dando a impressão de que era impossível explicar. - Depois que a América entrou na guerra, depois que ele foi envolvido na decifração do telegrama de Zimmerman, ele e seu companheiro criptógrafo, William Montgomery vieram para a Califórnia, para este lugar.

- Como decifradores de códigos - disse Costas simplesmente.

- É isto mesmo. Eu entendi. - Jeremy correu até a mochila que tinha deixado perto da porta, e retirou um velho notebook. - Lembra-se disso, Jack? Estava lendo durante o vôo. Eu tinha um pressentimento de que poderia ser útil.

- Rapidamente fez o notebook funcionar, percorreu um arquivo e parou numa dada página. - Isto contém o código completo de Zimmerman - ele disse muito excitado. - Ouçam. Isto foi o que aconteceu para ele durante a guerra. O que Costas disse. Ele ficara com neurose de guerra, ferido, mas também se tornou um decifrador de códigos. Esta é a chave. Volta da guerra, e quer deixar um indício, assim como Cláudio fizera dois mil anos antes. Ele está imerso em códigos, ainda tinha o código de Zimmerman girando em sua cabeça. Talvez ele e Montgomery tenham planejado o indício nesta mesma sala quando a visitaram em 1917. Talvez o texto estivesse aqui, escondido em algum lugar da sala, e o levaram com eles quando voltaram para o estrangeiro. - Fez uma pausa, e olhou com atenção para a pintura. - Não acho que aquelas letras sejam simplesmente decorativas, ou um jogo de palavras. Acho que elas são um código.

- Continue falando - disse Jack.

- O código de Zimmerman era numérico, certo? - Jeremy buscou outra página no notebook. - Grupos de números que parecem palavras, dispostas no telegrama como sentenças. Isto era bastante óbvio. O problema era designar valores para os números. A descoberta importante estava naquele livro de códigos, comprado do agente do Oriente Médio.

- Você pode dar às letras gregas que estão aqui um equivalente numérico? -perguntou Costas.

- Isto seria um começo. - Jeremy revistou o bolso atrás de um lápis, procurou uma página nova no seu caderno de apontamentos e começou a copiar as letras da pintura à medida que elas apareciam no sentido do movimento dos ponteiros de um relógio, a partir de um intervalo no topo da grinalda, depois rascunhou embaixo os números de 1 a 22 ao longo deles. - Muito bem, eu consegui. - Os outros ficaram apinhados ao redor dele e ele segurou o notebook sob um feixe de luz. Puderam ver as letras gregas com sua transcrição numérica embaixo:

 

OP∑TYOXΩ0HZA0IKΩANAOIIBTY0ZHΩP∑TRBN

12 3 4 5 21 14 15 14 2 3 7 5 6 12 13 15 20 21 4 5 7 6 3 2 1 4 5 6 23 34 21 45 6 45 12 2

 

- Certo. Estamos em atividade! - Jeremy correu de novo até a mochila, e tirou um computador do tamanho de uma palma e ligou-o, agachando-se sobre um joelho enquanto os outros se aglomeravam em volta. - Quando eu me interessei pela primeira vez pelo código Zimmerman, ainda criança, eu resolvi pesquisar como a tecnologia moderna poderia ter ajudado a decifração - disse.

- Eu gosto cada vez mais de você, sabe, Jeremy - murmurou Costas.

- Everett teria amado isso. Mas ele teria visto que nenhum resultado mágico do computador pode substituir o cérebro humano. A decifração do código de Zimmereman depende de uma compreensão muito íntima do alemão que o criou, de sua percepção de mundo, de seu vocabulário.

Ele digitou um comando e apareceu uma página com seqüências numéricas, com palavras e sílabas ao lado delas. - O conceito é muito simples. Cada agrupamento de números é uma palavra, ou uma frase ou uma letra. O livro de código é usado quase como um índice. O problema é que os alemães não previram algumas das palavras de que iriam necessitar, de maneira que algumas palavras devem ser formadas a partir de componentes menores. Aqui vocês podem ver a palavra Arizona, formada com quatro diferentes agrupamentos de números, para AR, IZ, ON e A. Isto se refere à parte da carta em que os alemães iriam ajudar os mexicanos a reconquistar os estados do Sul, acreditem ou não. Eu acho que foi aqui que Everett entrou. Estava mais familiarizado do que qualquer outra pessoa na Sala 40 com a América, por ter vivido aqui durante vários anos antes da guerra. Ele pode ter sido quem sugeriu que deveriam procurar os nomes geográficos, nomes de lugares que poderiam não estar no livro de códigos. - Jeremy fez uma pausa, digitou de novo no teclado e sentou-se. - Muito bem. Vou fazer funcionar estes números. Isto pode levar um ou dois minutos.

- Ele estava se divertindo, não estava? - perguntou Costas.

- A que você se refere?

- Bem, todo este assunto era terrivelmente sério para ele, é claro, salvar o evangelho e deixar um indício, mas também estava se divertindo.

- Ele gostava de quebra-cabeças, jogos - replicou Jeremy. - Como você disse. Era um decifrador de códigos.

- Um pouco como Cláudio.

- As melhores caças ao tesouro são como um jogo de xadrez jogado com alguém no passado - disse Jack. - Eles estão do seu lado e também colocam pequenos sinais ou buracos contra você, para encorajá-lo a continuar, deixando indícios, mas também apreciando uma competição.

- Eu achava que você era um arqueólogo, não um caçador de tesouro, Jack - disse Costas, com um brilho no olhar. - Estou ficando preocupado com você.

- Bingo - disse Jeremy muito excitado. Seis palavras apareceram juntas na tela. - Funcionou. Seu velho patife. Fantástico.

- Bem eu vou ser condenado ao inferno - murmurou Jack.

- Está em alemão, é claro. -Ah.

- Jack, como está o seu alemão? - perguntou Jeremy, rabiscando as palavras no caderno de apontamentos.

- Enferrujado. - Jack fez uma pausa. - Ausgangwier. Acho que é igreja, embora o significado possa ser mais específico. Mas nós conhecemos um homem que pode ajudar. - Tirou o celular do bolso, abriu-o e digitou o número da linha de segurança da IMU. - Sandy, aqui é Jack. Por favor encontre Maurice Hiebermeyer e diga-lhe para me telefonar tão logo quanto possível. Obrigado. - Ficou segurando o telefone cheio de expectativa, e um momento depois ele soou. - Maurice! - Jack pegou a folha do caderno de apontamentos de Jeremy, e saiu para o exterior. Alguns momentos depois, ele voltou, ainda segurando o telefone aberto. - Li as palavras, e ele vai ponderar um pouco sobre elas e me chamar em seguida.

- Como está meu amigo? - perguntou Maclean.

- Ele está em uma pizzaria em Nápoles - replicou Jack. - Parece que houve uma mudança de opinião por lá. Ele realmente gosta daquele lugar. Quer dizer que quando de fato se deseja enganar a burocracia, é muito fácil. Tudo o que se deve fazer é aparecer na superintendência de manhã e atirar uma outra chave de fendas nas obras, depois é possível ir embora e relaxar pelo resto do dia. Só é necessário perder horas em salas de espera se quiser que as coisas sejam feitas. Ele disse que precisava de férias, e está em seu segundo circuito de pizzarias diante do ancoradouro. Maurice disse até que se for permitido entrar de novo no vestíbulo em Herculano, ele não vai mais se adaptar.

- Uma sugestão seria retornar para a sua última descoberta no deserto egípcio, aquela que ele ficou tentando nos contar durante muito tempo - disse Costas. - Espaços enormes e abertos, nada de corredores estreitos, mais espaço de manobra. Você se importaria de juntar-se a ele? Finalmente?

- Não. Ele nem sequer mencionou isto. Sua boca estava cheia. - O telefone soou, e Jack correu para fora novamente. Voltou um momento mais tarde, guardando o celular no bolso, olhando para o caderno de apontamentos. - Aqui está. - Pigarreou, e leu lentamente: - "A palavra de Jesus encontra-se na Sala Sagrada."

A palavra de Jesus encontra-se na Sala Sagrada. Fez-se silêncio durante um momento, e todos eles olharam para a pintura sobre a parede.

- A palavra de Jesus - disse Costas. - Certamente isso significa o evangelho, aquilo que estamos buscando.

- Pode ser - murmurou Jack.

- E a sala sagrada. Deve ser esta sala. Está nos dizendo que o evangelho está em algum lugar nesta sala!

- Ou ele está nos dizendo que esta é uma sala sagrada. Nada mais.

- Não há ninguém como você para ser pessimista, Jack.

- Isto não acrescenta nada. - Jack olhou ao redor para o interior austero, e de volta para a pintura. - Podia tê-lo escondido aqui. Mas isso é demasiado óbvio. Devia saber que qualquer um que ficasse parado aqui, qualquer um que conseguisse decifrar aquelas letras gregas, deveria conhecer sua vida, seus antecedentes. Há algo mais aqui, alguma coisa que nós não encontramos. Está faltando uma parte grande.

- 1917 - Jeremy murmurou. - Este é o ano chave.

- Eu não posso ver qual outra informação podemos tirar daqui - disse Jack.

- Everett permaneceu aqui depois que Montgomery foi embora? - perguntou Costas.

Maclean ergueu o olhar distraído. - Hein?

- 1917. Everett e Montgomery vieram para cá. A guerra ainda continuava. Então Everett permaneceu nos Estados Unidos?

- Ah, sim. Eu esqueci de dizer. - Maclean pigarreou. - Depois daquela conferência em Londres, onde encontrei Maurice, passei alguns dias nos Arquivos de Documentos Nacionais em Kew. Para meu espanto, encontrei um arquivo de sua correspondência pessoal, especialmente relativa aos seus ferimentos, relatórios médicos, informações de avaliações médicas, um material que o serviço secreto não conseguia classificar porque eram documentos oficiais de rotina, não relacionados com as atividades do serviço de inteligência. O que eles esqueceram é que os relatórios médicos avaliavam a aptidão para o cargo e especificavam para onde um soldado está sendo transferido. Confirmou-se que ele já tinha sido designado para a sua próxima transferência antes da viagem para a América. O exército britânico percebeu que eles precisavam de peritos em decifração para permanecer em terra; idealmente seriam oficiais com experiência de campo que pudessem operar no corpo do exército ou na divisão de pessoal. Everett se tornou um oficial criptógrafo nas forças britânicas do Oriente Médio, na outra linha de frente britânica da Primeira Guerra Mundial, no combate contra o Império Otomano. Acompanhou o general Allenby na libertação de Jerusalém.

Jack subitamente ficou silencioso. Deixou o lápis cair, e ergueu o olhar para Maclean. - Repita isso.

- Everett esteve em Jerusalém. Nós só temos o retrato esmaecido dele como um homem idoso, mas acredito que você possa distingui-lo naquela famosa fotografia de Allenby e sua equipe desarmada, caminhando através do Portão de Jaffa em 11 de dezembro de 1917. Ele é um dos oficiais atrás de T. E. Lawrence, Lawrence da Arábia. Sabemos que eles andaram pela Cidade Velha, para a Igreja do Santo Sepulcro, onde rezaram na praça. Os documentos mostram que Everett permaneceu em Jerusalém como oficial do serviço de inteligência com as forças britânicas de ocupação até o fim da guerra. Eles tinham muito tempo livre depois da derrota turca, e isso explica como ele esboçou um tratado sobre a arquitetura do Santo Sepulcro, aquele manuscrito sobre o qual lhe falei que encontrei em seus documentos no arquivo da Vila Getty e sobre o qual tenho trabalhado. Depois da desmobilização, ele voltou para a América e passou o resto de sua vida aqui neste convento. Seus pulmões ficaram tão danificados no ataque com gás em 1915 que no final da vida ele se tornou um inválido.

Jack ainda estava de costas para eles, e olhava para a pintura. - Bem eu serei condenado ao inferno - ele sussurrou.

- Esta frase comumente significa alguma coisa - disse Costas.

- Eu sei exatamente onde Everett enterrou seu tesouro. - Ele se ergueu rapidamente e se virou com um amplo sorriso no rosto. - Não em uma sala sagrada. Maurice nos deu uma tradução literal. Não havia motivo para ele fazer de outra maneira. Mas o meu alemão não está tão enferrujado. Eu sabia que aquela palavra era familiar, por causa da última vez que estive em Jerusalém. Ela é a palavra alemã para Santo Sepulcro.

Ouviu-se um suspiro coletivo. Jack sentiu uma enorme descarga de adrenalina, como se todos os becos sem saída parecessem juntar-se novamente e apontar em uma única direção. Pegou o celular de novo e digitou o número da linha direta da IMU. - Sandy? É Jack de novo. Quanto tempo leva para você nos conseguir, o mais rapidamente possível, três passagens aéreas para Tel Aviv?

Maclean gesticulou e apontou para si.

- Consiga quatro passagens - disse Jack, depois ficou escutando por um momento, respondeu rapidamente e desligou o telefone. - Podemos começar a nos dirigir para o aeroporto agora. - Ele se voltou para a parede, colocou sua mão sobre ela e sacudiu a cabeça. - A história simplesmente nunca para, não é? Nós temos seguido uma pista deixada para nós dois mil anos atrás, e agora estamos em outra pista. E esse sujeito era tão inteligente quanto o velho Cláudio.

 

Uma mulher se separou de um grupo de monges amontoados no topo do telhado da Igreja do Santo Sepulcro e caminhou, atravessando o pátio cheio de sol, com o manto branco flutuando ao seu redor.

- Jack? Jack Howard? - dizia, à medida que se aproximava.

Jack protegeu os olhos e olhou-a. Estava cansado mas alegre, e não conseguira dormir no vôo de Los Angeles. A viagem de carro por Tel Aviv tinha sido quente e poeirenta, mas, quando a Cidade Velha apareceu diante deles, ele experimentou uma grande descarga de adrenalina, uma sensação de que tinham vindo para o lugar certo, que o que quer que encontrassem no final da pista seria aqui e em nenhum outro lugar. Junto com o sentimento de certeza surgiu uma ansiedade crescente. Desde o encontro deles com a misteriosa figura na catacumba debaixo de Roma, ele se sentia apanhado por um processo inexorável, em funil, que ia se estreitando, sem saber quem os estava observando, sem controle. Por quase dois mil anos aqueles que os estavam seguindo haviam ganhado todas as batalhas, não tinham apresentado nenhuma falha. E com cada nova pessoa trazida para o grupo, Jack sabia que havia um outro nome acrescentado à lista. Olhou para a figura que se aproximava, depois lançou um olhar para Costas que estava atrás dele, lembrando. Se você puder calcular o risco, então o risco pode ser assumido. Mas ele odiava brincar com a vida de outras pessoas.

A mulher chegou até ele sorrindo. Tinha faixas de ornamento colorido na frente e nos pulsos de sua veste, e usava um colar de ouro e brincos. Seu longo cabelo negro estava amarrado atrás, e ela tinha os ossos malares altos e as feições bonitas de uma etíope, com surpreendentes olhos verdes. Estendeu a mão e Jack abraçou-a calorosamente. - Meu velho amigo de escola - ela disse para Costas. - Helena Selassie.

- Este sobrenome me traz algo à lembrança - disse Costas, apertando-lhe a mão e sorrindo.

- O rei era um parente distante - ela disse, com um inglês perfeito e um leve sotaque americano. - Como ele, todos éramos etíopes ortodoxos. Este é o nosso lugar mais sagrado.

- Virgínia? - murmurou Costas, estreitando os olhos. - Maryland?

A mulher sorriu. - Belo chute. Você é de Nova York? Meus pais eram exilados etíopes e eu cresci em uma comunidade de expatriados no sul de Washington D.C. Eu e Jack estudamos na mesma escola quando o meu pai tinha um posto em Londres, depois novamente no MIT. Engenharia aeroespacial.

- Realmente? Eu devo ter deixado você escapar. Cursei a mesma faculdade, fiz robótica submarina.

- Nós não nos misturávamos com o pior dos piores.

- A Cidade Velha de Jerusalém é um grito distante proveniente de foguetes lunares e espaço cósmico - disse Jack.

Ela lhe deu um sorriso sem entusiasmo. - Depois que a NASA eliminou o programa de ir e voltar, eu reconsiderei e procurei o caminho espiritual. Ele leva mais rápido até lá.

- Você sabia que iria acabar aparecendo por aqui.

- Isto está no sangue - ela replicou. - Meu pai veio para cá, minha avó, o pai dela antes. Um número regular de mulheres ao longo do caminho. Sempre há pelo menos vinte e oito de nós aqui no telhado, na maior parte monges, mas quase sempre há um par de freiras também. Tem sido assim por quase dois séculos agora. Nossa presença no Santo Sepulcro é a coisa mais importante, mantém o nosso sentido de identidade. Não quero dizer apenas a Igreja Etíope, quero dizer minha família estendida, a própria Etiópia.

- Parece que tem muita gente lá embaixo - disse Costas.

- É verdade. Aqui se concentram os gregos ortodoxos, os armênios apostólicos, os romanos católicos, os coptas ortodoxos e os sírios ortodoxos. Gastamos mais tempo negociando quando poderemos utilizar uma toalete do que rezando. Este lugar é como um microcosmo do mundo, contém o bom, o ruim e o horrendo. No século XIX, os turcos otomanos que governavam Jerusalém impuseram algo chamado o Status Quo dos Lugares Santos, numa tentativa de impedir as brigas. A idéia era de que qualquer novo trabalho de construção, qualquer mudança nos acordos de custódia no Santo Sepulcro, exigiria uma aprovação do governo. O problema é que isto deixou o governo convencido e foi usado para um aumento de rivalidades e de brigas. Nós nunca podemos limpar o gesso que cai em nossas capelas sem perder semanas em negociações, sem conseguir uma aprovação formal de outras congregações. Cada uma delas está sempre espionando as outras. Nunca estamos a mais de um passo de uma guerra declarada. Alguns anos atrás, um monge egípcio copta quis fazer valer seus direitos aqui e moveu sua cadeira do lugar combinado para dentro da sombra, e onze monges tiveram que ser hospitalizados.

- Mas pelo menos vocês estão na linha de frente no telhado - disse Jack.

- Metade do caminho para o céu - sorriu Helena. - Pelo menos é como os monges se consolam no meio do inverno, quando está abaixo de zero e os coptas acidentalmente de propósito cortam a eletricidade.

- Você vive aqui em cima? - perguntou Costas sem querer acreditar.

- Você sentiu o cheiro nas toaletes? - ela perguntou. - Você deve estar brincando. Instalações e medidas sanitárias são básicas, ora. Tenho um bonito apartamento no convento do monte do Paraíso, a cerca de vinte minutos de caminhada daqui. Aqui realizo apenas o meu trabalho diário.

- Que é?

- Oficialmente, eu trato de recuperar todos os antigos manuscritos, os que são mantidos aqui pelas outras congregações. Eles são fáceis de localizar, com inscrições Geez e encadernados em capas de pinturas coloridas, a assinatura da cultura cristã da Etiópia.

- Você os recupera? - perguntou Costas. Ela suspirou. - É uma longa história.

- Conte a parte importante dela.

- Certo. A Etiópia, a antiga monarquia de Aksum, foi uma das primeiras nações a adotar o cristianismo, no século IV d.C. Muitas pessoas não sabem que os africanos negros da Etiópia são uma das comunidades mais antigas associadas com o Santo Sepulcro. As chaves da igreja nos foram dadas pela mãe do imperador romano Constantino, o Grande, Helena, minha xará. Mas durante séculos nós mantivemos uma rivalidade pecaminosa com a Igreja Copta, os monges egípcios de Alexandria. Nosso maior erro foi nossa recusa de pagar taxas para os turcos otomanos quando eles conquistaram a Terra Santa. Depois, em 1838 uma doença misteriosa liquidou a maior parte dos monges etíopes no Santo Sepulcro. Em seguida, quase a totalidade de nossas propriedades foram confiscadas. Os monges sobreviventes foram banidos para o telhado, e mantivemos nossa posição estabelecida aqui, trazendo lama e água nas mãos desde o vale de Kibron para construir estas cabanas. Muitos de nossos livros foram tirados e queimados. Diziam que os manuscritos estavam infetados com a peste.

- Em outras palavras, havia alguma coisa neles que os outros não queriam que fosse revelada - disse Costas. - Isto me soa familiar.

- A mesquinhez disso é que, provavelmente, eles temiam, sobretudo, alguma evidência histórica de que estávamos aqui no Santo Sepulcro alguns anos antes deles, que pudéssemos reivindicar algum tipo de supremacia. A tragédia é que sabemos, por nossa tradição, que alguns desses documentos datam de uma época anterior à fundação da Igreja do Santo Sepulcro, no século IV. Eram manuscritos em pergaminho de cabra com quase dois mil anos de idade. Alguns deles podem ainda existir, trancados em algum lugar abaixo de nós agora, nas bibliotecas de nossos rivais. Meu sonho é encontrar um deles, encontrar um pergaminho que data da época em que Jesus vivia e de seus seguidores, daqueles que o viram e realmente escutaram sua palavra, e abrigá-lo em uma biblioteca construída especialmente. Algo que fale ao peregrino que vem em busca de Jesus, não das rivalidades e mesquinhez que existem aqui. Isto recolocaria a comunidade etíope solidamente no mapa de novo, faria dela alguma coisa mais do que um punhado de indivíduos excêntricos acampados no telhado.

Jack protegeu os olhos com a mão e olhou para as desbotadas estruturas cinzentas das celas dos monges e depois para a santa cruz no alto da abóbada sobre a tumba de Cristo erguendo-se atrás da fileira ocidental de pátios diante dele. -Concordo - ele murmurou. - Este seria o lugar perfeito. Adoraria ajudá-la.

- Nós não temos muito apoio lá embaixo, perto da tumba, mas aqui em cima sentimos que conseguimos uma vantagem. Logo acima do lugar onde Cristo ascendeu, tão alto quanto se pode obter.

- Você realmente acredita que foi neste lugar? - perguntou Costas.

Ela fez uma pausa. - É como tudo o mais que tem a ver com o cristianismo antigo. É preciso retirar muitas camadas de crostas para alcançar a verdade, e algumas vezes a verdade simplesmente não se encontra ali para ser descoberta.

- Incrustação - murmurou Costas. - É engraçado, Jack também usa esta palavra.

- Por causa da mesma escola, eu suponho - sorriu Helena. - A Igreja do Santo Sepulcro só foi consagrada trezentos anos depois da morte de Jesus, e já a busca por um passado fantasioso começara entre o clero cristão, um passado que preenchesse as expectativas da Igreja naquela data, e as necessidades políticas do imperador Constantino, o Grande. A história de sua mãe Helena encontrando um fragmento da Verdadeira Cruz em uma das antigas cisternas de água debaixo da igreja provavelmente é apenas isto, incrustação. Mas há verdades aqui, também. Este lugar era uma antiga colina, fora dos muros da cidade, havia sepulturas aqui na época de Jesus, e pode ter sido um lugar de execução. Sim, eu acredito que o lugar era este.

- Você está arriscadamente parecendo uma arqueóloga, Helena - disse Jack.

- É o que por baixo de tudo isto eu quero, os ossos nus.

- Eles nem sempre estão desnudos, em minha experiência - murmurou Costas.

- Não ligue para ele - disse Jack. - Está traumatizado. - Voltou-se para Helena. - Sei exatamente o que você quer dizer.

- Ocorre algo quando se passa o tempo neste topo de telhado - disse Helena entusiasmada. - Estar aqui, acima do Santo Sepulcro, dia e noite. Não se trata apenas de minha vocação. É como se tudo que está lá embaixo ficasse suavizado debaixo do grande peso do passado. Aqui em cima, com nada além do céu sobre nós, é como estar em cima de um grande pedaço da história, irradiando para cima, para algum distante ponto focal. E, ao olhar para baixo, é como ver a Terra de uma aeronave, todas as obsessões e estranhas influências repressoras das interações humanas se tornam subitamente triviais, nossas próprias preocupações se retiram, as formas das coisas se tornam visíveis naquilo que elas são realmente, as simples verdades. Isto me fez pensar que um dia eu encontrarei o Jesus real, o homem Jesus. Eu me sentei ao lado do mar da Galiléia poucos dias atrás, havia apenas água e colinas distantes e o céu, e parecia-me ver tudo muito claramente diante de mim.

Jack olhou para Helena. - Podemos solicitar para você participar de nossa busca, partilhar um pouco da nossa investigação. Mas antes precisamos de sua ajuda. Com muita urgência. Foi por isso que eu lhe telefonei. Há algum lugar onde possamos ir?

Naquele momento, Maclean subiu as escadas e entrou no pátio do telhado. Como Jack e Costas, ele estava usando calças de algodão caqui e camisa solta, mas carregava um chapéu de palha que colocou quando entrou no pátio ensolarado em busca deles.

- Bem-vindo ao Reino dos Céus - disse Costas.

- Está muito quente, parece mais ser o inferno - disse Maclean, depois olhou, desculpando-se, para Helena e estendeu a mão. - Você deve ser a irmã Selassie.

- Doutor Maclean.

- Encantado por conhecê-la pessoalmente. - Apertaram as mãos e olharam para os outros dois. - Eu e Helena falamos pelo telefone ontem à noite antes de deixarmos a Califórnia , depois que Jack nos apresentou. A chamada foi feita através da linha de segurança da IMU, mas mesmo assim falamos o mínimo possível. Há ainda muita coisa a ser dita. - Olhou para Jack. - Você já a colocou a par?

- Estávamos prestes a fazê-lo - replicou Jack. Eles já estavam a meio caminho de uma fileira de portas no outro lado do pátio, seguindo Helena. As paredes e a estrutura superior da igreja que rodeava o pátio mantinham o barulho exterior da cidade mais afastado, mas houve uma súbita algazarra em algum lugar perto dali seguida por uma série de ecos de percussão. - Barulho de arma de fogo - disse Jack. - Parece ser um .233, M16. Armada israelense.

- Há um toque de recolher - disse Maclean. - Houve algum tipo de distúrbio no Muro das Lamentações e ele se espalhou até o Bairro Cristão. Alguns turistas foram esfaqueados. Conseguimos entrar na Cidade Velha bem a tempo.

Todos os portões foram fechados. Eu apenas começara meu reconhecimento do Santo Sepulcro e ele também foi fechado.

- Esta é outra vantagem de ficarmos aqui em cima no telhado - disse Helena. - Estamos acima de tudo isso. Mas não é comum um turista ser atacado.

- Não é disso que precisamos - murmurou Jack, sentindo-se subitamente desconfortável. - Toque de recolher, ausência de turistas, a polícia e o exército distraídos em outro lugar. Isto nos deixa altamente vulneráveis. Espero que Ben consiga chegar até nós. - Olhou para Helena. - É o nosso chefe de segurança. Ele saiu de Londres cedo, hoje de manhã, e deve chegar de Tel Aviv mais ou menos agora.

- Se alguém puder conseguir que os portões sejam abertos para ele, este alguém é Ben - disse Costas.

- Ele já está em contato com o chefe da polícia daqui - disse Jack. - Eles se conhecem de quando estiveram juntos nas Forças Especiais, alguma operação combinada entre Israel e a Inglaterra da qual nem mesmo eu sei a respeito. As Forças Especiais formam um mundo bastante pequeno.

- Vocês certamente formam uma rede - disse Helena.

Jack lhe lançou um olhar estranho. - Qualquer pessoa pensa que ser Indiana Jones é um espetáculo feito por um único homem, esqueça.

Alcançaram uma porta, quase não distinguível das outras ao longo da lateral do pátio. Helena a destrancou, acendeu uma lâmpada elétrica que havia dentro e ajudou-os a entrar. - Bem-vindos ao meu escritório - ela disse. Todos se comprimiram lá dentro, ficando em pé e sentando onde podiam. Era uma cela de monge, com um banco duro e imagens de caráter devocional de um lado, mas do outro havia prateleiras abarrotadas com livros, desenhos arquitetônicos presos à parede e uma escrivaninha estreita com um laptop dos mais modernos. - Eu roubo eletricidade dos armênios, e entro na Internet sem fio do mosteiro grego que fica na porta seguinte. - Ela sorriu e sentou-se num banquinho baixo atrás da escrivaninha. - Como vocês podem ver, trata-se realmente de uma irmandade que compartilha as coisas.

Maclean estava pressionado contra a parede ao lado das prateleiras de livros, e olhou para um dos desenhos, que mostrava um croqui retilíneo formado por estruturas simples e dominado por lineamentos que pareciam naturais, os contornos de afloramentos rochosos e do terreno. - O Santo Sepulcro? - ele perguntou. - A igreja primitiva?

- Estou trabalhando em uma história arquitetônica do lugar em que a Igreja de Constantino foi estabelecida no século IV. Há ainda uma grande quantidade de coisas para ser encontrada e estudada, muito mais coisas ocorreram aqui durante o período romano antigo, depois da crucificação, do que as pessoas poderiam imaginar. Este é o meu projeto secreto, mas agora vocês o conhecem. Considero que, se vou ficar sentada no topo de um dos lugares mais complicados da história durante os próximos anos, posso muito bem fazer algo mais do que manter meus monges em ordem.

- Então você vai amar o que eu consegui - disse Maclean excitado, dando pequenas pancadas em sua mochila. - Alguém mais estava fazendo o mesmo que você, quase cem anos atrás. Seu trabalho ficou inacabado, e nunca foi publicado anteriormente. Ele trata principalmente das construções medievais, mas há algumas observações sobre o material romano debaixo delas que vão deixar você sem fôlego. Ele achava que, quando Herodes Agripa reconstruiu as paredes da cidade na metade do século I, também colocou um santuário neste lugar, um monumento ao próprio Cristo, apenas poucos anos depois da crucificação. Se você puder me ajudar a seguir os indícios dele, poderemos ter a revelação mais definitiva, nunca alcançada antes pela arqueologia, sobre a cristandade primitiva, que prova, se necessário, de que este realmente foi o lugar onde Cristo foi sepultado.

Helena parecia estar enraizada em seu assento, e ficara pálida. - Você está brincando comigo. Espere até ouvir o que eu encontrei. Quem era esse sujeito?

Jack tirou vários papéis da sua desbotada mochila caqui, e os colocou em seus joelhos. Costas se inclinou no banco onde estava sentado e fechou a porta atrás deles. - Isto foi o que eu não consegui lhe contar pelo telefone - disse Jack. -Durante os quarenta minutos seguintes, ele calmamente repassou todos os fatos, sobre o navio naufragado, Herculano, Roma, a tumba em Londres, os indícios que tinham encontrado no dia anterior no convento na Califórnia. Quando terminou, olhou para Helena, que o olhava estarrecida e sem fala, e depois colocou uma fotografia sobre a escrivaninha dela da pintura na parede do convento feita por Everett com o símbolo Qui-Rô e as letras gregas. - Isso lhe diz alguma coisa?

Helena olhou direto para a parte inferior da fotografia. Ela parecia atordoada e sem fala.

- E então?

Ela pigarreou, e deu a impressão de se apoiar na lateral da escrivaninha. Piscou fortemente, depois olhou atentamente de perto para a imagem. Pigarreou de novo. - Bem, esta é uma cruz armênia. A haste inferior é mais longa que os braços e a haste superior, e aqui estão os dois braços característicos.

- Isto nos ajuda?

- Bem, se você está procurando por algo armênio dentro do Santo Sepulcro, você deve ter pensado na Capela de Santa Helena, debaixo da igreja, na antiga pedreira. É uma parte da igreja pela qual os monges armênios são responsáveis. - Ela se deteve abruptamente, agarrou a mesa e depois sussurrou. - É claro.

- O que foi?

Helena falou em voz baixa. - Muito bem. O meu interesse particular tem sido o que jaz debaixo da igreja. Eis os meus achados. Tudo que está acima, entre a rocha e o telhado, é incrustação, a mesma palavra novamente, Costas. Um registro fascinante da história do cristianismo, mas uma incrustação de qualquer verdade que este lugar possa oferecer sobre a vida e a morte de Jesus de Nazaré, homem Jesus.

- Continue - disse Jack.

- Isto foi o que Maclean disse sobre Herodes Agripa, os muros. E, subitamente, o que ele disse atingiu-me como um clarão ofuscante. Desde a primeira vez que vim aqui, desde a primeira vez que entrei naquela capela subterrânea, fiquei convencida de que existem mais evidências aqui, do tempo de Jesus e dos apóstolos. Por tudo o que você acaba de me contar, por todas as peças que você tentou juntar sobre o que aconteceu aqui em 1918, decorre que nós temos seguido os mesmos indícios.

- Explique.

- Você disse que aquele homem, Everett, John Everett, esteve aqui durante a Primeira Guerra Mundial? Era um oficial da inteligência britânica? Um homem devoto que passava muito tempo dentro do Santo Sepulcro? Um arquiteto de profissão?

Maclean bateu em sua mochila. - Foi ele que escreveu aquele tratado de arquitetura de que lhe falei. Tenho uma cópia em CD para você.

- Nunca soube o seu nome, mas eu conheço esse homem - murmurou Helena. - Eu o conheço intimamente. Sinto a sua presença cada vez que entro naquela capela.

- Como? - perguntou Jack.

- Desde três anos atrás, quando cheguei aqui pela primeira vez. A chave para a porta principal da Igreja do Santo Sepulcro é guardada por duas famílias muçulmanas, uma tradição que remonta ao tempo de Saladino, o Grande, um curdo muçulmano que era o sultão do Egito e da Síria. Uma família cuida da chave, a outra abre a porta. Eles têm sido mais simpáticos com os etíopes do telhado que alguns dos nossos camaradas e irmãos cristãos e eu me tornei apegada ao velho patriarca de uma das famílias. Antes de morrer, ele me contou uma estória extraordinária de sua juventude. Foi no início de 1918, quando era um garoto de dez anos. Os turcos tinham sido expulsos, os britânicos controlavam Jerusalém. Os zeladores muçulmanos se lembravam de décadas anteriores nas quais os oficiais britânicos com freqüência demonstravam um grande interesse pela história e a arquitetura do lugar, engenheiros como o coronel Warren e o coronel Wilson, que mapearam e exploraram Jerusalém nos anos 1860. Por causa disso os zeladores estavam muito mais interessados nos britânicos que nos turcos, que eram camaradas muçulmanos, mas com interesse pelo Santo Sepulcro. O velho patriarca me contou que um oficial britânico que falava um pouco de árabe veio com dois inspetores do exército e passou muitos dias dentro da igreja, mapeando as capelas subterrâneas e explorando os entalhes da antiga pedreira e as cisternas de água. Depois disso, o oficial veio muitas vezes sozinho e tornou-se amigo do garoto. O oficial era triste, algumas vezes chorava, dizia que tinha filhos que não via há anos, nunca veria de novo. Ele tinha sido ferido seriamente por um ataque de gás na frente ocidental, e tinha dificuldade para respirar, tossia muito.

- Este é o nosso homem - murmurou Jack muito excitado.

- Aparentemente, na sua ultima visita, ele passou uma noite inteira dentro da igreja. As pessoas sabiam que ele era muito devoto e o deixaram sozinho. Quando ele saiu, estava desnorteado e encharcado, tremendo, como se tivesse estado debaixo de um cano de esgoto. O homem lhes disse que eles tinham agora o maior tesouro jamais conhecido sob sua proteção, e que deviam guardá-lo para sempre. As pessoas pensaram que talvez ele estivesse delirando, e se referindo ao Santo Sepulcro, a tumba de Cristo. Ele foi embora, e nunca mais o viram ou ouviram falar dele de novo. Por seus pulmões serem fracos, pensaram que sua última noite, na qual fizera grandes esforços, podia tê-lo matado.

- O seu amigo falou sobre algo que podiam ter encontrado? - perguntou Jack. - Alguma coisa na capela, na Capela de Santa Helena? Estamos procurando um esconderijo.

- Nada. Mas os curadores sempre souberam que há muitos lugares inexplorados debaixo do Santo Sepulcro, câmaras antigas que outrora poderiam ter sido sepulturas, cisternas escavadas dentro do solo de sepultamento. Entradas que foram lacradas durante o período romano e nunca foram abertas desde então.

- Só precisamos seguir nossos faros - disse Jack.

- Tenho passado muitas horas lá embaixo, dias - disse Helena. - Há muitas possibilidades. Cada pedra em cada parede pode ocultar uma câmara, um corredor. E quase todas elas estão cobertas com argamassa, rebocadas. Conheço pelo menos meia dúzia de blocos de pedra que têm espaços atrás delas, onde podemos perceber fendas através da argamassa. E fazer qualquer tipo de exploração invasiva está fora de questão. Em primeiro lugar, os armênios vão desaprovar o fato de eu levá-los lá embaixo, quanto mais o uso de britadeiras.

Jack pegou a fotografia que tinha colocado sobre a escrivaninha, e abriu a sua pasta de papéis. - Vamos apenas fazer uma experiência. Há alguém mais que sabe que nós estamos aqui. Estou convencido disso. Se nós não tentarmos, eles o farão. Você pode conseguir que a porta do Santo Sepulcro seja destrancada para nós?

- Eu posso abri-la. - Helena deu mais uma olhada para a fotografia na mão de Jack, depois agarrou subitamente o braço dele. - Espere! O que é isso? Debaixo da cruz?

- Uma inscrição latina - disse Jack. - Domine Ivimus.

Helena ficou quieta por um momento, depois suspirou. - É isto. Agora eu sei onde Everett foi. - Ela ergueu-se com os olhos brilhantes.

- Aonde?

- Você é um arqueólogo náutico, Jack. Qual é a descoberta mais recente e incrível no Santo Sepulcro? Sigam-me.

 

Meia hora mais tarde, Jack estava parado perto da entrada principal da Igreja do Santo Sepulcro, dentro do pátio fechado debaixo da fachada construída quase mil anos antes pelos cruzados. Ele ficara para trás com Maclean por alguns minutos enquanto desciam do mosteiro etíope, no teto do telhado, e, logo antes de alcançar o pátio, Jack tinha passado para Maclean o disco compacto que tirara de sua mochila. No final das escadas foram recebidos por um homem com trajes comuns que segurava uma pistola Glock fora do coldre. O homem olhou de maneira inquisitiva para Helena, que apontou para Maclean, e, depois de fazer um contato visual, o homem acompanhou Maclean atravessando o pátio em direção ao sul. À frente deles, dois policiais israelenses avançaram subitamente, com um equipamento completo para deter pessoas e carregando carabinas Colt M4 prontas para atirar. O som de arma de fogo ecoou nas ruas do lado de fora, seguida por gritos em árabe. Maclean e seu guarda-costas se agacharam contra uma parede no lado oposto do pátio. Maclean olhou para trás, e Jack bateu em seu relógio de maneira significativa. Maclean assentiu com a cabeça, e depois se ergueu e seguiu o outro homem ficando rapidamente fora de vista ao virar em uma esquina. Jack ergueu o olhar para o céu. O sol tinha desaparecido atrás de uma barreira cinzenta, e o ar estava opressivo, úmido e pesado. Ele murmurou uma prece silenciosa por Maclean, e depois seguiu Costas e Helena para as portas de entrada da igreja. Helena havia dito que queria que ambos ficassem com ela. Parecendo sair do nada, dois homens vestidos com roupas árabes apareceram de cada lado de Costas, que deu um passo atrás alarmado, mas Helena estendeu a mão de maneira tranqüilizadora. Um homem passou um aro com antigas chaves para o outro, que então começou a destrancar as portas. Eles as empurraram para abrir só um pouco. Helena olhou para os dois árabes inclinando a cabeça ligeiramente, e deixou Jack e Costas entrar na frente dela. As portas se fecharam atrás deles. Eles estavam dentro da igreja.

- Há um corte de eletricidade em todo o bairro cristão da Antiga Jerusalém - disse Helena com voz baixa. - As autoridades algumas vezes desligam o interruptor. Isto ajuda a fazer sair os maus sujeitos de seus buracos. – Eles ficaram parados por um momento, acostumando os olhos com a escuridão. À frente, uma luz natural entrava através das janelas que circundavam a abóbada acima da rotunda, e em todos os lugares ao redor as sombras estavam pontuadas com pequenos buracos, como os feitos por um alfinete, cor de laranja. - Joudeh e Nussebeh, os dois zeladores árabes que destrancaram as portas, vieram aqui e acenderam as velas para nós depois que eu lhes disse que viríamos.

- Mais alguém sabe que estamos aqui? - perguntou Jack.

- Somente minha amiga Yereva. Ela tem a chave dos próximos lugares para os quais estamos indo. Ela é uma freira armênia.

- Armênia? - espantou-se Costas. - Pensei que vocês não se davam.

- Os homens não se dão. Se este lugar fosse dirigido pelas freiras, poderíamos obter algum resultado melhor.

Ela os conduziu adiante e à esquerda, para a extremidade da rotunda. Jack ergueu o olhar para o círculo de janelas que deixavam entrar a luz nublada do dia, e olhou atentamente para o interior da abóbada, restaurada no lugar em que a abóbada da primeira igreja tinha sido construída por Constantino no século IV. Pensou nas outras grandes abóbadas debaixo das quais estivera nos últimos dias, na de São Paulo em Londres, na de São Pedro em Roma, muito mais grandiosas, no entanto lugares que agora pareciam distantes da realidade da vida de Jesus. Mesmo aqui, o significado expressivo do lugar e as verdades enterradas na rocha debaixo deles, pareciam obscurecidas pela construção ao redor, pela própria estrutura que pretendia glorificar e santificar os atos finais da vida daquele que milhões de pessoas vinham aqui para cultuar.

- Percebo o que você quer dizer com incrustação da história - murmurou Costas. Estava olhando para a estrutura enfeitada demais no centro da rotunda. - Esta é a tumba?

- Este é o próprio Santo Sepulcro, a Edícula (o túmulo de Cristo) - replicou Helena. - O que você vê aqui foi construído, em sua maior parte, no século XIX, no lugar da estrutura destruída em 1009 pelo califatímida al’Hakim, quando os muçulmanos governavam Jerusalém. Foi esse evento, acima de todos os outros, que acelerou as Cruzadas, mas, mesmo antes que os cruzados chegassem, o viking Harald Hardrada e sua guarda varegue de Constantinopla veio para cá por ordem do imperador bizantino, para supervisionar a reconstrução da igreja. Mas acho que vocês conhecem tudo isto.

- Bom velho Harald - disse Costas, sacudindo a cabeça. - Existe algum lugar para onde ele não foi?

- A antiga tumba dentro da Edícula foi identificada pelo bispo Macróbio em 326 como a tumba de Cristo - continuou Helena. - Vocês devem imaginar toda esta cena na nossa frente como uma ladeira feita de rocha, consideravelmente tão alta quanto a rotunda é agora. Logo atrás de nós havia uma pequena elevação conhecida como Gólgota, o lugar da caveira, onde Jesus foi crucificado. A colina à nossa frente tinha sido uma pedreira, que datava de um período tão anterior como o da cidade de David e de Salomão, mas na época de Jesus era um local de sepultamento, provavelmente perfurada com tumbas escavadas na rocha.

- Como sabemos que o bispo escolheu a tumba certa?

- Não sabemos. Tudo o que temos a fazer é consultar os Evangelhos, e eles são bastante escassos em detalhes. Eles nos relatam que a tumba foi desbastada na rocha viva, e que uma pedra rolou na frente dela. Vocês precisam se inclinar para olhar dentro dela. Havia uma sala para pelo menos cinco pessoas, sentadas ou agachadas. A plataforma para o corpo era uma pedra elevada um lugar de repouso para o sepultado, provavelmente um acrosolium, um sarcófago debaixo de um arco baixo.

- Tudo isto podia descrever uma tumba típica daquele período - acrescentou Jack. - Esta não era uma tumba de praxe construída para Jesus, mas uma tumba que foi doada por José de Arimatéia, um judeu rico e membro do conselho de Jerusalém. Era uma tumba nova, e não haveria sepultamentos posteriores, não havia pequenas cavidades ou nichos como são encontrados em muitas outras tumbas desbastadas nas rochas. Ela nunca foi usada como tumba familiar.

- A menos - Helena hesitou, depois falou em voz muito baixa, quase um sussurro, - A menos que uma outra pessoa tenha sido colocada ali.

- Quem? - perguntou Jack. - O que você quer dizer?

- Um companheiro - ela sussurrou. - Uma companheira.

- Você acredita nisso?

Ela levantou as mãos e pressionou as pontas dos dedos juntas, ligeiramente, sem dizer nada, depois olhou para a Edícula. - O problema é que os engenheiros de Constantino cortaram fora a maior parte da colina circundante para revelar a tumba, a câmara desbastada na rocha, deixando intacta apenas a superfície em forma de prateleira escavada na rocha para o sarcófago. Isto foi quase intencional, como se os bispos de Constantino quisessem eliminar qualquer razão plausível para dúvidas, qualquer motivo de disputa. A partir de então, o Santo Sepulcro seria uma questão de fé, não um fato arqueológico. Era isso que eles queriam. A Igreja naquela época estava sendo formalizada pela primeira vez, assumindo a forma familiar de hoje em dia. Uma grande quantidade de fatos inconvenientes foi escondida, destruída. Algumas coisas que eram necessárias, histórias, como mitos de origem, foram criadas, inspiradas não se sabe onde. Supostos artefatos foram descobertos e algumas relíquias sagradas. Constantino encontrava-se por trás de tudo isso, sempre atento à Igreja como um instrumento político. Tudo de que ele necessitava devia ser assentado em pedra, com alguns fatos e muita ficção, uma versão do que ocorreu aqui durante o século I d.C. e que convinha para a nova ordem, a fusão da Igreja com o Estado.

- E atrás de Constantino havia um corpo secreto de conselheiros, guardiões da Igreja inicial - disse Jack. - Há uma coisa que ainda não lhe contamos.

- Eu sei - replicou Helena com voz baixa.

- Você sabe?

- Assim que me contaram o que estavam procurando, eu soube que vocês iriam se deparar com um problema. O concilium.

Jack olhou para ela muito surpreso, depois concordou lentamente com a cabeça. - Tivemos uma audiência secreta com um deles, em Roma, dois dias atrás.

- No local da tumba? A outra tumba?

Jack olhou de novo fixamente para ela, surpreso, depois assentiu. - Você sabe a respeito disso?

- Eles são firmes, Jack. Nunca deixam brecha alguma. Vocês precisam ser incrivelmente cuidadosos. Quem quer que seja que você tenha visto, ele deve ter-lhe contado um pouco de verdade, mas ele pode não ser quem você pensa que era. O concilium tem sido paralisado, mas nunca derrotado. São como um sonho ruim, que volta incessantemente. Nós deveríamos saber disso.

- Nós?

- A memória daquela outra tumba, da tumba de são Paulo nas catacumbas secretas em Roma, não foi completamente perdida. Havia pessoas entre meus antepassados que se lembravam dela, que mantiveram o segredo. Nós, etíopes, acreditamos que somos da verdadeira Igreja inicial, derivada dos primeiros seguidores de Jesus. Existem outros como nós, outros da periferia do mundo cristão. A Igreja Britânica, que existe desde o século I d.C., desde que a palavra de Jesus alcançou pela primeira vez as costas da Grã-Bretanha, assim como alcançou a Etiópia, o reino de Aksum. E sempre fomos bons em manter segredo. Temos a Arca da Aliança, Jack. Mas somos uma inconveniência, aquelas pessoas provocadoras de desordem que os conselheiros de Constantino queriam manter afastadas. Sempre, desde o século IV, temos sido perseguidos pelo concilium, caçados, exatamente como foram os nossos irmãos na Grã-Bretanha. Nós sempre mantemos nossa ligação com nossas igrejas irmãs, nossa força. Nós, mulheres, seguidoras de Jesus e de Maria Madalena. Na Grã-Bretanha, eles a viam através da memória de sua própria alta sacerdotisa, sua rainha guerreira.

- Nós a encontramos - disse Costas.

- O quê?

- Nós encontramos sua tumba - acrescentou Jack.

- Então, tudo entra em seu lugar - sussurrou Helena. - Este realmente é o momento.

- A peste, o extermínio dos monges etíopes em 1838? - disse Jack. - A destruição das bibliotecas? O concilium esteve atrás de tudo isso?

Helena olhou para trás furtivamente, e sussurrou novamente. - Ele esteve atrás de toda a perseguição que sofremos. A razão de nosso mosteiro se localizar no terraço. Só agora estou começando a chegar na causa de tudo isso, o que me aterroriza. Trata-se de algo que esteve por trás de todas as rivalidades neste lugar, todos os absurdos. Algo que queria nos destruir, e queria manter este lugar em um estado de quase isolamento. Olhe para o Santo Sepulcro. Você quase não pode vê-lo por causa da incrustação. As pequenas capelas das congregações eclesiásticas rivais, aglomerando-se sobre a tumba, sufocando-a. É quase como se elas tivessem devorado o máximo que podem da tumba, logo acima da plataforma mortuária, e ficam ao mesmo tempo bloqueadas em um impasse permanente. É uma loucura.

- Teriam servido muito bem se não fosse a tumba verdadeira, não teriam? -perguntou Costas.

- No entanto, mantê-las ali, mantê-las em permanente isolamento, também pode servir aos propósitos do concilium - disse Jack. - Talvez haja algo mais aqui, algo que eles não querem que seja revelado. Alguma outra inconveniência.

- A tumba do Cristo está neste lugar, tenho certeza disso, e esta é a coisa mais importante - disse Helena, olhando para o relógio. - Venham. Minha amiga Yereva deve aparecer a qualquer momento.

Ela os guiou de volta pelo caminho por que tinham vindo, e em seguida para o lado oposto da igreja. Alguns momentos mais tarde, pararam no topo de um lance de escada que levava para baixo, para dentro da escuridão. Jack havia estado aqui uma vez, e sabia que os degraus conduziam para a Capela de Santa Helena, uma antiga gruta escavada na pedreira cinco metros abaixo do nível da igreja. Era um lugar misterioso e labiríntico, preenchido com espaços separados por paredes e antigas cisternas de água, cavadas profundamente na rocha. Por um momento ele ficou sozinho, quando Helena e Costas saíram para procurar velas. Tudo o que podia ouvir era um som como uma exalação distante, como se os ecos de dois milênios de preces estivessem presos dentro do leito de rocha, para ressoar para sempre. Por um instante, sentiu-se como um daqueles peregrinos, no final de um caminho desconhecido, carregado de perigos e de incertezas, que o conduziu por fim para o mais Santo dos Santos. Helena e Costas retornaram, e pararam de cada lado dele, cada um com meia dúzia de velas em uma mão, uma acendendo a outra. Começaram a descer. Nas paredes úmidas, além dos degraus, Jack viu centenas de antigas cruzes, talhadas nas rochas por peregrinos que passaram por ali antes dele. Sabia que cada centímetro do leito de rocha ao redor deles havia sido modelado e alisado por mãos humanas, mas, à medida que desciam em profundidade, Jack sentiu como se estivessem se afastando da história fabricada e indo em direção à verdade, se afastando da esperança e anseios e fantasias incorporadas nas paredes acima para se aproximar da verdade dura do passado, daquilo que realmente aconteceu nesta rocha desnuda quase dois mil anos atrás. Parou novamente, tentando escutar, mas não ouviu nada. Olhou para o relógio e pensou em Maclean. Tinham menos de duas horas para ir embora. Era um empreendimento arriscado, mas ele sabia que precisava assumi-lo, que esta era a linha final de defesa. A palavra escrita. Agora eles deviam fazer tudo que pudessem para alcançar sua meta. Estava a apenas alguns degraus do chão da capela, e Jack podia ver que à frente havia sombras profundas e luzes cor de laranja emitidas por velas colocadas em algum lugar nas paredes. Em seguida, eles se encontraram sobre o chão de pedra, andando em meio a colunas escurecidas em direção a uma porta de ferro gradeada do outro lado, perto do altar.

- Esta porta dá para a Capela de São Vartan - murmurou Helena. - O antigo desbaste da pedreira abaixo de nós só foi escavado nos anos 1970, e parte do espaço circundado foi feito dentro de uma pequena capela armênia. Ela nunca foi aberta para o público. Temos que esperar por minha amiga Yereva para trazer a chave. - Olhou para o relógio. - Ela esperava estar aqui neste horário, mas trabalha para o patriarca e muitas vezes tem dificuldade para se afastar.

Houve um ruído sussurrante nas escadas que tinham acabado de descer e uma figura saiu da escuridão em direção a eles, vestindo um manto marrom e o capuz triangular característico dos armênios. O capuz foi colocado para trás para revelar uma jovem, com a pele cor de oliva e cabelos encaracolados. Ela segurava uma vela em uma mão e um grande aro preto com uma única chave na outra. Dirigiu-se diretamente para a porta fechada, fazendo um gesto de cabeça para Helena. - Estes são seus amigos? - perguntou em voz baixa, num inglês com forte sotaque.

- São aqueles de quem lhe falei. Jack Howard e Costas Kazantzakis.

- Tive que contar ao patriarca que estava vindo para cá. - A mulher falou de novo em voz baixa.

- Durante o toque de recolher? - perguntou Jack.

- Temos nossos próprios corredores privados.

- Yereva é a curadora não oficial da capela - disse Helena. - Por ser uma freira modesta, não lhe permitem ficar com as chaves. Ela deve pedi-las a cada vez para o patriarca.

- Oficialmente, eu vim apenas para acender as velas e rezar uma prece - disse a mulher. - Mas vou retornar imediatamente, para o caso de haver alguma suspeita. Se eu voltar logo para o patriarca, ninguém terá motivo para vir me procurar. Vocês devem ficar sossegados até o final do toque de recolher, o que deve durar pelo menos um par de horas.

- Você não disse mais nada para ele? - perguntou Helena.

- Nada mais. Nada diferente de nossa rotina habitual.

- Vocês duas se encontraram antes aqui? - perguntou Jack.

- Helena lhe dirá - disse a mulher. - Adoraria entrar aí dentro com um arqueólogo tão famoso, mas espero que possamos nos encontrar de novo. - Ela virou a chave na fechadura, e a porta se abriu. - Deus esteja convosco.

- Que Deus também esteja com você, Yereva - murmurou Helena. - E seja cuidadosa. - Helena parecia ter perdido seu sangue-frio, e pela primeira vez pareceu ansiosa. Acenou com a cabeça para a outra mulher, que recolocou o capuz e saiu apressadamente, andando com passos miúdos e rápidos pelo chão de pedra e subindo as escadas. Helena se voltou para Jack e Costas. - Venham. Podemos não ter muito tempo. - Ela os conduziu por uma passagem escura, acendendo as velas na parede com a sua própria vela à medida que passava. Jack podia ver as paredes desbastadas grosseiramente do leito de rocha ao redor deles, as marcas de picaretas da antiga pedreira. A superfície parecia velha, muito mais velha que a pedra na Capela de Santa Helena, e estava esburacada como metal velho. Debaixo de uma grade havia um buraco escuro, o fundo era invisível. Helena os conduziu para uma câmara à direita e, acima de uma seção da antiga parede, três camadas de tijolos acima, os blocos estavam densamente cobertos com argamassa, um retoque que parecia ter sido feito recentemente. Helena acendeu mais velas, e eles puderam ver outra parede, em estilo diferente, com a face acidentada de rochas cortadas ao redor deles. Ajoelhou-se ao lado da parede e colocou sua vela na frente. Os blocos mais distantes à esquerda, na metade do espaço, estavam cobertos com uma manta pendurada, e Helena a levantou e enrolou-a, prendendo-a em cima. Abaixo se encontrava uma moldura com uma janela de vidro cobrindo o bloco, e atrás dela Jack conseguiu distinguir a superfície de uma rocha. Sabia para o que eles estavam olhando mesmo antes de ela erguer a manta. Era uma inscrição, feita de maneira irregular sobre a rocha, de uma embarcação na Capela de São Vartan, o achado mais extraordinário feito quando a pedreira foi escavada. Ele se ajoelhou, Costas a seu lado. Podia ver claramente agora as linhas do desenho, grosseiro, mas arrojado, os traçados confiantes de alguém que sabia o que estava descrevendo, que inscreveu os detalhes corretos mesmo neste local tão distante do mar. Um homem do mar experiente, um peregrino, um viajante cristão, um dos primeiros. Os olhos de Jack se desviaram do desenho da embarcação para as palavras escritas embaixo. Então ele se lembrou. Tinha esquecido completamente que o grafito tinha uma inscrição. Subitamente seu coração começou a acelerar. Leu vagarosamente:

 

                             DOMINE IVIMVS

 

- É claro - ele sussurrou.

- O que é? - perguntou Costas.

- Você se lembra? Esta é a mesma inscrição que encontramos na Califórnia, na pintura de Everett. - Olhou excitado para Helena. - Foi isto que você reconheceu na fotografia.

- Foi quando eu soube - ela disse.

- Everett deve ter estado aqui quando explorou o Santo Sepulcro, e encontrou esta câmara. Foi daqui que ele copiou a inscrição. - Jack apontou para as palavras grosseiramente pintadas. - Domine Ivimus. Isto certamente encerra o assunto. Everett esteve aqui, bem aqui onde estamos agora. Era isto o que ele estava tentando nos dizer, o indício. De alguma maneira, esta pedra é a chave para a coisa toda.

- Qual é a sua opinião sobre esse navio, Jack? - perguntou Helena.

- Ele é romano, com certeza - murmurou Jack tentando controlar sua excitação, estreitando os olhos. - A alta curva da proa, a amurada reforçada, uma proa característica. É um barco a vela, não uma galera. O mastro foi arriado, o que era feito em grandes barcos nos ancoradouros. Dois outros aspectos sugerem que era uma embarcação grande. Ela tinha remos duplos de direção, e o que se parece com um artemon, um mastro inclinado na proa. Meu palpite é que estamos olhando para o tipo de navio visto no ancoradouro da Cesaréia Marítima na costa da Judéia, um dos navios com carregamentos de grãos que paravam ali no seu caminho para o norte de Alexandria, no Egito, antes de se dirigir para o oeste, para Roma. O tipo de navio que um peregrino do oeste poderia tomar para retornar de sua viagem.

- Você pode datá-lo?

- São apenas conjeturas, mas parece ser mais do início do que do final do período romano. Se eu tivesse visto isto em algum outro lugar, teria dito século I d.C.

- A inscrição foi sem dúvida feita na mesma época, a mesma largura e estilo de traçado - disse Helena. - Mas você é o especialista.

- Bem, ela está em latim, o que naquela área significa não antes que o primeiro século d.C., quando os romanos chegaram à Judéia. Além disso, é difícil dizer. O formato das letras certamente parece antigo, e não medieval.

- A inscrição pode ser traduzida como "Senhor nós iremos", ou "Vamos à casa do Senhor" - disse Helena. - Ela tem sido associada com o primeiro verso do Salmo 122, um dos Cânticos das Subidas (também chamados de Cânticos da Ascensão ou Cânticos dos peregrinos) que é cantado pelos peregrinos que se aproximavam de Jerusalém. "Alegrei-me quando me disseram, vamos à casa do Senhor".

- Isto realmente não nos ajuda a estabelecer as datas - murmurou Jack. - Os Salmos eram originalmente hebraicos, e foram provavelmente cantados pelos primeiros cristãos, aqui na tumba e em outros lugares onde se reuniam nos primeiros anos depois da crucificação.

- Verifiquei isso, e estas duas palavras juntas não aparecem, de fato, no latim da Vulgata, a Bíblia romana do início do período medieval - disse Helena. - Se elas são uma tradução do Salmo 122, podiam ser do período inicial, antes que a tradução latina fosse formalizada. Elas podiam ser uma tradução feita por um dos primeiros peregrinos cristãos, talvez de Roma.

- As embarcações vêm e vão, não é? - perguntou Costas. - Quero dizer, isto não significa necessariamente um peregrino vindo para cá. Podia ser alguém indo embora, deixando Jerusalém. Aquela primeira tradução, "Senhor nós iremos". Talvez seja de um dos apóstolos, praticando um pouco de latim antes de se dirigir para o mundo amplo e enorme.

Helena permaneceu silenciosa, mas sua expressão estava transbordando de excitação. Jack olhou com atenção para ela. - O que você não está nos contando? - ele perguntou.

Helena procurou algo no interior de seu manto e retirou um pequeno plástico que abrigava uma moeda. Ela entregou-a para Jack. - Eu e Yereva encontramos isto alguns dias atrás. Nós praticamos um bocado de arqueologia não oficial. Havia um gesso caído debaixo do grafito. A moeda estava enterrada na base daquela pedra, em uma cavidade feita para ela. É como aquelas moedas das quais você me falou, que os romanos colocam na base dos mastros das embarcações, para se precaver contra o infortúnio. Uma moeda de boa sorte, um apotropaico.

- Nunca antes ouvi falar disso em uma construção - murmurou Jack. - Você se importa? - Ele abriu a embalagem e tirou a moeda. Segurou-a pela borda, e a luz da vela refletiu o bronze gasto. Ele viu a imagem de uma cabeça de homem, não refinada, com o pescoço grosso, com uma única palavra embaixo. - Bom Deus - ele exclamou.

- Você percebe o que quero dizer? - replicou Helena.

- Herodes Agripa - murmurou Costas. - O amigo de Cláudio?

- O rei da Judéia, de 40 a 43 d.C. - disse Helena, assentindo.

Jack tocou a parede. - Então esta alvenaria não foi construída pelo imperador Adriano, afinal de contas, como as pessoas pensavam. Ela tem quase um século a mais.

- Quando a parede foi revelada durante as escavações, não havia nada para fixar a data. Ela era nitidamente anterior à parede de embasamento datada do século IV da igreja de Constantino, que vocês podem ver ali adiante - disse Helena apontando para sua esquerda. - O único registro de qualquer construção neste local antes disso vem do livro de Eusébio de Cesaréia, A vida de Constantino. Eusébio era um contemporâneo do imperador, então provavelmente ele é confiável no que diz respeito ao que se passava aqui no início do século IV, quando o bispo Macróbio de Jerusalém identificou a câmara desbastada na rocha debaixo do Edícula como a tumba de Cristo, e Helena, a mãe de Constantino, fez construir a primeira igreja aqui. Eusébio era inflexível ao afirmar que o local tinha sido construído duzentos anos antes, quando o imperador Adriano fundou Jerusalém de novo com o nome de Colônia Aélia Capitolina.

- Ela era, aparentemente, um templo de Afrodite - disse Costas, olhando à luz de vela um velho guia de viagem que Jack lhe havia dado.

- Isto é o que Eusébio diz - replicou Helena. - Mas não podemos ter certeza. Ele tinha a visão de um revisionista cristão, que dizia que Adriano a construiu deliberadamente no local da tumba para destruí-la, para insultá-la. Afrodite, a Vênus romana, a deusa do amor, era considerada como uma particular abominação pelos padres da Igreja em seus dias, de modo que podia simplesmente ser alguma coisa que Eusébio ou seus informantes imaginaram para o seu público leitor cristão.

- Um bando de desmancha-prazeres - murmurou Costas. - Qual era o problema deles com as mulheres? Achei que Jesus era completamente a favor do amor.

Helena encolheu os ombros de maneira esquisita. - No entanto, provavelmente Eusébio tinha razão acerca da data da construção. Há outras seções aqui que são claramente da época de Adriano. Mas ele não era um historiador de arquitetura e nos seus dias pode não ter havido registro ou memória de qualquer estrutura anterior, de alguma que pudesse ter sido datada antes da destruição de Jerusalém pelos romanos logo depois da Revolta Judaica em 70 d.C.

Jack estava olhando fixamente para a parede, com a mente em tumulto. - Herodes Agripa - ele murmurou. - Isto começa a fazer sentido.

- O que é? - perguntou Costas.

- Trata-se de uma das maiores questões não respondidas neste local, no Santo Sepulcro. De um ponto de vista arqueológico, quero dizer. Nunca entendi por que razão ninguém a tratou apropriadamente. Talvez seja por causa da Ressurreição, medo de se aproximar muito de um evento tão sacrossanto, ou de revelar algo que ninguém queria que fosse revelado.

- Isto está começando a me soar familiar - murmurou Costas. - Continue.

- Helena tem razão. Além dos Evangelhos, não há evidência escrita confiável sobre este local antes de Eusébio. Mas ocorreu um evento logo depois da crucificação e do sepultamento que nos proporciona uma possibilidade arqueológica. O rei Herodes Agripa tinha planos grandiosos para a Judéia, para sua capital Jerusalém. Ele se imaginou como imperador do Leste, uma espécie de co-regente com seu amigo Cláudio. Esta foi a destruição de Agripa. Antes de sua morte em 43 d.C., provavelmente envenenado, um plano que ele completou foi o grande aumento do tamanho de Jerusalém, ao construir um circuito inteiramente novo de paredes em direção ao noroeste. Ele abarcou a colina do Gólgota e o lugar da antiga pedreira, onde nos encontramos agora.

- O antigo cemitério, a necrópole - murmurou Helena.

- Precisamente. Quando os muros da cidade eram aumentadas dessa maneira, freqüentemente as velhas tumbas era esvaziadas, limpadas, e até mesmo usadas novamente como habitações. Na tradição romana, nenhum cemitério podia existir dentro da linha sagrada do pomerium, dos muros da cidade. Herodes Agripa foi criado em Roma, e pode ter fantasiado consigo mesmo ser bastante romano para observar este costume.

- De qual data estamos falando? - perguntou Costas.

- De 41 a 43 d.C., provavelmente logo depois que Cláudio se tornou imperador.

- E Jesus morreu em 30 d.C., talvez em 33 - disse Helena.

- Então, cerca de uma década depois da crucificação, as tumbas devem ter sido limpadas - murmurou Costas. - Será que Herodes Agripa tinha conhecido Jesus, sabia da crucificação?

Jack respirou profundamente, e estendeu a mão para tocar a parede. - Helena, provavelmente, está um passo a minha frente neste assunto, mas realmente acredito que Herodes Agripa tenha tido conhecimento de Jesus. Houve um tempo anterior na vida de Herodes quando o contato foi possível. E, desde o momento da crucificação em diante, não tenho dúvidas de que o lugar de sua morte teria sido venerado pela família de Jesus e por seus seguidores, que ele tenha se tornado um lugar de peregrinação. E quando Herodes construiu seus muros, as autoridades religiosas em Jerusalém, e ele próprio no papel formal romano de pontifex maximus, principal sacerdote, teria ordenado que todas as tumbas dentro dos muros fossem esvaziadas. Mas, ao mesmo tempo, ele ordenou a construção de uma estrutura de alvenaria neste local. Por quê? Será que ele estava insultando Cristo, tentando erradicar a tumba?

- Ou tentando protegê-la - murmurou Helena.

- Eu não entendo - disse Costas. - Protegê-lo? Herodes Agripa?

- Pode ter havido todo tipo de fatores em jogo - disse Jack. - Um pressentimento, um encontro casual, alguma experiência anterior. Ou mesmo por uma razão política. Podia ter estado profundamente em desacordo com as autoridades judias, e ter mandado construir apesar deles. Talvez não saibamos nunca. Permanece o fato de que temos uma estrutura construída no provável lugar da tumba de Cristo apenas alguns anos depois da crucificação, em uma época em que esta colina já era o solo sagrado para os primeiros cristãos.

- Então, há uma outra coisa que eu não entendo - disse Costas. - A tumba de Cristo, o Santo Sepulcro, fica na rotunda atrás de nós, pelo menos a oitenta metros na direção oeste daqui, segundo meus cálculos. Se esta parede a nossa frente, esta que vocês acham que foi construída por Herodes, pertence a uma estrutura que de alguma maneira recobre a tumba, então o grafito da embarcação se encontra do lado de dentro. Dentro da estrutura que circunda a tumba, em um local escondido. Isto simplesmente não faz sentido para mim. Olhando para o lugar e considerando o desgaste da alvenaria, eu diria que é mais provável que se encontre do lado de fora de uma estrutura.

Jack agachou-se de novo. - Meu trabalho de adivinhação terminou. A bola está com você agora, Helena - ele disse, devolvendo-lhe a moeda.

- Fique com ela - murmurou Helena. - Há outras pessoas que podem suspeitar que eu detenho alguma coisa, e é mais seguro que ela fique com você até que tudo isto termine. - Ela apontou para a mochila caqui, e Jack assentiu, recolocando a moeda em seu invólucro e enfiando a moeda bem no fundo da mochila. Ela o observou, depois pegou de cada lado da peça de vidro que cobria o grafito, erguendo-a e retirando-a. Colocou cuidadosamente o vidro no chão, depois se ajoelhou e começou a remexer com os dedos dentro do pedaço de argamassa colocado debaixo do bloco. - Há algo que eu ainda não lhes mostrei - ela disse, retraindo-se quando a rocha arranhou sua mão. - Quero que vocês considerem isto primeiro independentemente, para obter uma avaliação objetiva.

- Acerca do grafito da embarcação? - perguntou Jack.

Helena retraiu-se novamente, e depois agarrou dois pontos debaixo da argamassa, e houve um ligeiro movimento. - Consegui - ela disse. Retirou um pedaço da argamassa e colocou-o ao lado do vidro. Metade da base do bloco estava revelada agora, com uma fenda escura debaixo. Ela se ajoelhou e soprou na face inferior do bloco, afastando-se rapidamente para evitar a pequena nuvem de poeira. - Ali - ela disse.

Jack e Costas se ajoelharam onde ela estivera. Havia mais marcações, inscrições. Viram um símbolo Qui-Rô, grosseiramente talhado na rocha. Ao lado havia outra inscrição, uma palavra pintada, claramente parte do mesmo grafito como o da embarcação e da inscrição em latim, o mesmo formato de letras e o mesmo movimento do pincel. Costas estava mais perto, e olhou atentamente tentando obter um ângulo melhor. Afastou-se novamente. Ambos se olharam com olhos arregalados.

- Jack, estou sentindo a estranha sensação de déjà vu novamente.

Jack quase se sentiu desmaiar. Ele se deu conta de onde tinha visto aquele estilo de letra antes. A forma do V, o elemento quadrado na composição do S. O antigo navio naufragado.

O navio naufragado de são Paulo.

- Meu Deus - ele sussurrou. - Paulus. - Engoliu com dificuldade, e sentou-se. - São Paulo, o apóstolo, esteve aqui. São Paulo, cujo nome vimos uma semana atrás, trezentos metros debaixo do mar, rabiscado em uma ânfora que estava em um navio naufragado. Não podia haver dúvida a respeito daquilo. Este grafito havia sido entalhado por são Paulo. Este é o seu navio. Domine Ivimvs. Senhor, nós iremos. Costas, você estava certo. O homem que traçou isto estava indo, não vindo. Ele veio para cá contar para seu Senhor que ele estava prestes a partir em sua grande missão, para espalhar a palavra fora da Judéia. Paulo esteve aqui, sentado na ladeira no mesmo lugar em que estamos agora, ao lado da parede construída por Herodes Agripa apenas poucos anos antes.

- No local da peregrinação - disse Helena. - Na tumba de Cristo.

- Na tumba de Cristo - repetiu Jack. Ele viu que Helena estava apontando para a fenda debaixo do bloco. - Jack, dê uma olhada lá dentro. Não foi colocada argamassa ali. Lembra que eu lhe contei que sabia da existência de alguns blocos com espaços atrás deles? A argamassa que você pode ver ao redor do bloco é moderna, depois há uma outra camada lacrada que também é relativamente recente, feita dentro dos últimos cem anos mais ou menos.

- 1918? - perguntou Jack.

- Estou convencida disso.

- Everett - murmurou Costas. - Você está dizendo que ele encontrou isto e removeu o bloco. Nós também podemos removê-lo?

- É por isso que eu precisava de vocês dois aqui - disse Helena. - Quando eu e Yereva encontramos pela primeira vez a inscrição de Paulo, percebemos que havia um espaço atrás. Vocês podem vê-lo através da fenda. Pode ser apenas um espaço não utilizado atrás da parede, ou uma outra cisterna de água. Há pelo menos onze cisternas debaixo do Santo Sepulcro para coletar água de chuva, muitas delas fora de uso ou lacradas. Ou pode ser alguma outra coisa. Não houve maneira de conseguirmos deslocar este bloco, e, se fôssemos encontradas tentando fazê-lo, haveria mais um par de crucificações neste local.

- Você contou para mais alguém sobre a inscrição de Paulo? - perguntou Jack

- Vocês são os primeiros. Mas outras pessoas sabem, e mantiveram o segredo. A argamassa em cima da inscrição é recente, do período da escavação nos anos 1970. Eles a encontraram, depois a esconderam.

- Não compreendo - disse Costas. - Certamente uma descoberta como esta daria para os armênios uma vantagem, realmente aumentaria sua importância, não é?

- Trata-se sobretudo da manutenção do status quo neste local - murmurou Helena. - Eles podem ter receado que a inveja das outras congregações rompesse o sistema de controle mútuo entre elas, reduzisse os direitos e privilégios que eles deram duro para manter no decorrer dos séculos. É melhor deixar uma descoberta como esta como seu segredo, fortalecer seu senso de superioridade, uma munição que poderia ser necessária para o futuro.

- E pode ter havido outros fatores em jogo - murmurou Jack.

- O concilium? - perguntou Costas.

- O medo de atrair forças sombrias sobre si, forças que fariam de tudo para erradicá-los simplesmente por causa do que eles sabiam, exatamente como quase aconteceu com os etíopes - murmurou Jack.

- Vamos - disse Helena. - Vamos continuar. - Ela começou a retirar mais pedaços de argamassa ao redor do bloco com seus dedos. Eles saíam de maneira surpreendentemente fácil, em pedaços grossos que pareciam ter sido removidos anteriormente e depois lacrados de novo. Depois de alguns minutos, o bloco inteiro tinha saído, formando uma fenda ao redor das extremidades de alguns centímetros de largura, o suficiente para fazer entrar pela abertura uma mão aberta. Jack remexeu em sua mochila e retirou uma headlamp de alpinista, acendendo-a e empurrando-a através da fenda até o ponto mais largo. - Percebo o que você quer dizer - ele murmurou, com o rosto próximo da fenda. - Com a retirada do bloco, nós estaríamos olhando para um espaço de cerca de um metro de comprimento por meio metro de largura, grande o suficiente para uma passagem estreita e baixa.

- Você acha que pode fazê-lo? - perguntou Helena. - Quero dizer mover o bloco?

- Só há uma maneira de descobrir. - Jack passou a lâmpada para ela, depois fez um gesto para Costas. Cada um deles colocou as mãos debaixo de um canto do bloco. - Temos que tentar balançá-lo para retirá-lo - ele disse. - Vamos fazer isto suavemente. Em direção a você primeiro. - Eles o ergueram e o bloco se moveu. Costas gritou de dor. - Você está bem? - perguntou Jack. Costas retirou uma mão, balançando-a e soprando sobre ela, e assentiu. Enfiou-a de novo debaixo da pedra, que agora estava alguns centímetros fora da parede. - De novo. - Eles a empurraram para frente e para trás mais meia dúzia de vezes, a cada vez puxando-a mais para fora. Ela saía de maneira inesperadamente fácil. Mudaram de posição de modo que ficaram de frente um para o outro, com ambas as mãos debaixo da pedra. - Erga - disse Jack. Cada um deles com uma das mãos por debaixo da extremidade exterior da pedra, movimentava a outra mão de volta cada vez que a pedra vinha para frente, mantendo as mãos perto da parede. Eles se aproximavam da possibilidade de erguer a pedra inteira cada vez que a puxavam um pouco para fora. Helena ergueu um par de pranchas de madeira que havia encontrado ao lado da grade exterior da capela, posicionando-as debaixo da pedra. - Muito bem. É isso - disse Jack. - Vamos tentar retirar a pedra por um metro. Cuidado com as costas. - Ambos se endireitaram o mais que puderam, olharam um para o outro, e se puseram de acordo com um gesto de cabeça. Com um movimento rápido, retiraram o bloco da parede, o arrastaram para fora e o colocaram nos lugares predeterminados. Os dois homens retiraram as mãos, balançando-as e respirando com força. - Muito bem - disse Jack, ofegante. - O que conseguimos?

Helena já estava olhando atentamente dentro do espaço, segurando a headlamp de Jack tão distante quanto podia. - O espaço adentra por cerca de cinco metros, depois há uma outra parede, uma parede desbastada na rocha, pela sua aparência - ela disse. - Depois a parede parece baixar para algum lugar. - Helena se ajoelhou voltando para trás, e passou a lâmpada para Jack. - Se é uma cisterna, ela podia ser submersa - ela disse. - Estamos no lugar mais profundo debaixo do Santo Sepulcro, e tem chovido muito durante os últimos dias. E agora?

Jack olhou para Costas, que lhe devolveu o olhar, seu rosto estava inexpressivo.

- Jack, nós temos um trato - disse Costas. - Nada de irmos a lugares subterrâneos.

- Você está fora da situação difícil desta vez. O lugar é muito estreito.

- Você concorda com isso? Quer dizer, em ir sozinho?

Jack olhou dentro do espaço. - Não acho que vou fugir deste aqui.

- Não, você não vai.

Jack ajeitou sua lâmpada sobre a cabeça, depois pegou a mochila caqui e empurrou-a para frente dentro do buraco, tanto quanto podia.

- Sua mochila da sorte - disse Costas para Helena. - Ele nunca vai a nenhum lugar sem ela.

Helena olhou nervosamente para a entrada da capela. - Seja rápido - ela disse. - Precisamos sair logo daqui. - Ela voltou o olhar para Jack, depois tocou em seu braço. - Domine Ivimus - ela murmurou. - Boa sorte.

 

Momentos mais tarde, Jack se encontrava dentro do espaço onde estivera o bloco de pedra, movendo-se lentamente à frente sobre seu estômago, todo esticado e achatado empurrando a mochila para frente. A entrada pela parede se encontrava apenas poucos metros atrás, mas ele já se sentia completamente isolado, separado da capela atrás dele, fazendo parte de um outro espaço que podia ver na frente de si dentro do feixe de luz de sua headlamp. Lembrou-se de Herculano, o extraordinário sentimento de retroceder no tempo quando entraram na biblioteca perdida. Ele sentia a mesma coisa aqui, como se fazendo parte do mesmo continuam, como se tivesse se introduzido despercebidamente mais além naquela descoberta e se encontrasse agora um passo mais recuado na história, tão distante quanto sentia que podia retroceder. Por uma vez, sua claustrofobia não o atacara, e ele se sentia estranhamente confortado pela antiga pedra, protegido por ela. As últimas palavras de Helena continuavam a girar em sua cabeça, as duas palavras em latim, e ele se surpreendeu murmurando-as, um canto profundo que parecia vir por instinto, que o mantinha concentrado. Ele se empurrou para frente até não haver mais nenhuma luz vindo da entrada atrás de seus pés. A rocha à direita era uma continuação da parede com o grafito, formando ângulos retos com ela. A sua esquerda e acima dele era um leito de rocha, entalhado e cortado de acordo com as marcações da pedreira, tão velhas que elas quase pareciam fazer parte da ordem natural das coisas, como se a antiga marca do homem tivesse perdido seu significado e se tornado apenas um outro processo de erosão e de transformação que havia dado forma a este lugar.

Adiante dele, o túnel terminava abruptamente no lugar onde Helena percebera a parede, mas ele podia ver onde ela se juntava a um outro espaço à direita. Empurrou a mochila para o canto esquerdo e posicionou o corpo ao redor, comprimindo-se dentro da abertura. Ela quase não era suficientemente larga, e as beiradas cortantes o arranhavam, rasgavam sua camisa e esfolavam-no. Avançou pela abertura, retraindo-se onde a rocha o prendia. Encontrava-se num espaço mais largo agora, o suficiente para rastejar sobre as mãos e os pés. A sua direita, formando um ângulo de noventa graus com o túnel, havia uma parede de alvenaria, com pelo menos cinco camadas de largos blocos talhados. Seu rosto encontrava-se a poucos centímetros dela, e ele viu que ela era formada pela mesma pedra que a da parede exterior com o grafito do navio, só que aqui a superfície da pedra não era gasta, não era estragada. Percebeu que o espaço que rastejara o levara ao longo da lateral de uma estrutura retilínea construída contra a face da pedreira, e que agora ele se encontrava atrás dela, dentro de uma cavidade e que a estrutura tinha sido construída para escondê-la. Virou a cabeça para a direita, em direção à face da pedreira. O resto da pedra era natural, um leito de pedra. Acima dele havia grandes talhos retilíneos, a extremidade de uma pedreira antiga. Abaixo dos talhos, viu uma estreita abertura que se abria para uma câmara desbastada na rocha, seu teto e as laterais superiores de alguns metros eram visíveis. Abaixo disso, a câmara estava cheia de água, uma piscina preta que brilhava quando a headlamp incidia sobre ela. Rastejou até a beirada e olhou-a atentamente. Pôde perceber que ela era profunda, pelo menos tão profunda como as cisternas de água que ele tinha visto no caminho dentro da Capela de São Vartan.

Havia pouco espaço para manobra, e ele se debateu sobre as costas, abriu o zíper e tirou as botas, retirou todas as suas roupas. Rastejou de volta para a beirada da piscina, ainda com sua headlamp e deslizou para dentro dela. A água estava fria, refrescante, instantaneamente purificadora. Por um momento, ele flutuou tranqüilo na superfície, o rosto para baixo, os olhos fechados. Depois, olhou para baixo. Sem uma máscara, a imagem ficava indistinta, pobremente definida, e seus olhos sofriam com o frio. Mas a água era clara e cristalina, e ele podia ver a dança do feixe de luz na rocha, nas paredes talhadas, nos cantos. Era formada por um corte profundo, de pelo menos cinco metros até o fundo, retilíneo. Girou a cabeça para um lado para obter mais ar, depois imergiu o rosto novamente, com os olhos abertos. Quando o feixe de luz passou embaixo, ele viu que havia uma ampla abertura na lateral da câmara, arqueada em cima, plana embaixo, uma saliência em forma de prateleira bastante larga para dois ficarem deitados lado a lado. Abaixou a cabeça e olhou, mas se deparou com um brilho de luz ofuscante, que refletia uma superfície polida. Ficou ali olhando para o resplendor cheio de partículas, sem registrar nada, com a mente paralisada de assombro. Aquela não era água de cisterna.

Subiu em busca de ar, depois rapidamente olhou de novo para baixo. Saindo do nada, ele teve uma imagem de Elizabeth, depois de Helena, e, por uma fração de segundo, talvez por um truque da luz, percebeu uma forma humana, um reflexo do seu próprio corpo flutuando na beirada da prateleira polida. Arremessou a cabeça para cima, respirando com dificuldade, em busca de ar, e sua headlamp escorregou para fora da cabeça, indo em espiral para baixo através da água e para fora de seu alcance. Piscou fortemente, depois olhou de novo. A prateleira não era mais visível no escuro, e tudo o que ele conseguiu ver foi o final da câmara, uma imagem borrada de sombras e de luz, do feixe de luz onde a lâmpada havia caído refletindo apenas cantos da rocha. Encheu os pulmões de ar, arqueou as costas e mergulhou, empurrando-se para baixo com fortes braçadas, sentindo a alegria da liberdade novamente, de estar debaixo d’água, de estar no lugar ao qual ele pertencia.

Então ele o viu.

Um cilindro de pedra pousado no fundo, branco, exatamente igual aos que vira antes, metade de uma vida atrás, em uma antiga biblioteca debaixo de um vulcão, uma biblioteca que era de propriedade de um imperador romano que tinha vindo aqui para a Terra Santa, procurar a salvação nas palavras daquele que morava ao lado do mar da Galiléia.

Então ele se deu conta.

Everett havia encontrado a tumba.

Ele atingiu o fundo.

 

Jack puxou-se de volta para a extremidade do espaço onde eles tinham retirado o bloco, sua mochila empurrada adiante dele. Colocou-a no chão da capela, depois esticou as mãos para baixo e usou-as para conduzir-se para fora. As velas ainda estavam acesas, mas não havia ninguém à vista. - Costas? - ele chamou, a voz ecoando de volta para ele. - Helena? - Não houve resposta. Puxou as pernas para fora e agachou-se, retirando a correia da mochila do seu pescoço. Sacudiu os cabelos e enxugou o rosto. Eles talvez tivessem voltado para a primeira câmara, para a Capela de Santa Helena. Verificou o relógio. Faltavam vinte minutos para meia-noite. Se Maclean tivera sucesso, Jack agarrou a mochila, aquele empreendimento também poderia ter sucesso. E o que quer que acontecesse agora para eles, o mundo ficaria sabendo.

Ergueu-se dolorido e caminhou em direção à entrada da capela, saiu dentro da gruta da pedreira. Jack enxugou o rosto novamente com as costas da mão, percebeu como estava encardido, ainda gotejante. A sua frente podia ver a porta gradeada, pela qual tinham entrado, ainda aberta. Atrás dela havia luz de vela na Capela de Santa Helena, as colunas centrais escurecidas, os degraus na escuridão mais atrás que conduziam para o andar principal do Santo Sepulcro, depois para o mundo exterior. Caminhou para frente. Ainda nada. Algo estava errado. Depois um som, um som que estava deslocado, metálico. O som de uma arma sendo engatilhada. Então era isso. Ele se manteve no lugar, o coração acelerado, e olhou ao redor. Lentamente, caminhou para dentro da capela.

- Doutor Howard. Nós nos encontramos novamente. - A voz instantaneamente se tornou familiar, com o vestígio de um sotaque do Leste europeu. Era a voz do homem que encontrara em outro subterrâneo dois dias atrás, um homem que ele e Costas nunca viram a não ser na sombra. Subitamente, Jack sentiu um aperto frio na boca do estômago. Helena tinha razão. Ele não disse nada, a mente paralisada, mas continuou a caminhar cautelosamente sobre o chão de pedra irregular, mantendo os olhos afastados das velas para se acostumar com a escuridão. Então a figura parou na frente dele, nas sombras novamente, ao lado do altar e de uma estátua de uma mulher segurando uma cruz, Santa Helena. Jack ficou parado e silencioso, os pés separados, olhando de um lado a outro, tentando distinguir outras pessoas na escuridão.

- Quero vê-los - gritou Jack rispidamente.

Fez-se uma pausa, um som de dedos estalando, depois, alguém com uma veste desgrenhada de monge, foi empurrado para frente, tropeçando na rocha e caindo pesadamente sobre um cotovelo. Era Yereva, com o rosto queimado e intumescido. - Eu não disse nada, Helena - ela deixou escapar, olhando para a escuridão atrás dela. - Alguém me seguiu. - Depois o silenciador de uma pistola foi colocado contra a sua cabeça, e ela foi puxada de volta para as sombras.

- Você vê, nós sabemos de tudo durante o tempo todo - disse o homem, seu rosto invisível. - Temos olhos e ouvidos por toda parte. Muitos irmãos de boa vontade. - Jack o viu estalar os dedos novamente. Uma outra figura apareceu, empurrada, um homem de barba vestindo um manto episcopal, apertando uma cruz ornada ao seu peito. Jack viu uma pistola movendo-se de um lado ao outro em direção ao bispo, que se voltou para Jack e olhou de modo suplicante, torcendo-se para um lado. Jack disse irado. - Este é um de seus irmãos de boa vontade? - ele perguntou.

O bispo falou rapidamente em sua própria língua, implorando. O homem que estava nas sombras se voltou para ele, com a voz baixa, malévola. Disse alguma coisa em latim. O bispo parou de falar, parou enraizado no local, depois começou a tremer, chorando.

- Você vê? - disse o homem, voltando para trás. - Todo aquele que serve à Igreja tem boa vontade.

- Quero ver Costas e Helena - disse Jack de novo rispidamente.

Dentro das sombras, o homem falou, em italiano, dirigindo-se para um lado. - Pronto - ele disse. Os dedos estalaram novamente. Houve uma briga, e uma exclamação com ruídos. Costas foi subitamente empurrado para debaixo da luz da vela, tropeçando e ficando ereto depois, com uma fita adesiva colocada sobre a boca e as mãos atadas atrás das costas. Estava respirando muito alto, absorvendo o ar através de suas narinas bloqueadas, o peito se levantando. Jack podia ver o tubo preto de um silenciador atrás de seu pescoço, e o contorno escuro de uma figura atrás dele. Uma figura com o braço dentro de uma atadura rígida. Agora a mente de Jack estava trabalhando ativamente. O assaltante deles em Roma. Costas prendeu o olhar de Jack, seus olhos estavam arregalados, desesperados.

- Tire a fita adesiva - gritou Jack, ríspido. - Ele não pode respirar.

- Ele não tem nada a dizer - replicou tranquilamente o homem perto da estátua. - E nem você.

Jack subitamente ficou sabendo, com uma certeza desapaixonada. Aquele local não era mais uma capela. Era uma câmara de execução. Olhou para o relógio. Precisava esticar aquele momento. Apenas mais dez minutos. Acrescentou sua prece àquelas que tinham sido ditas antes. - Presumo que aquele pequeno tumulto nas ruas não foi coincidência - ele disse. - As facadas, o toque de recolher, o corte de eletricidade.

- Isto sempre serve ao nosso propósito de manter o estado judeu em desordem - disse o homem. - E sempre tem sido fácil infiltrar grupos extremistas, em ambos os lados.

- Quando nos encontramos antes você disse que queria pôr um ponto final nisso.

- Eu precisava convencê-lo.

- Você nos contou a verdade sobre o concilium, sobre Cláudio e o último evangelho.

- Precisava lhe dar material suficiente para encontrar o que nós queremos. Para nos trazer a este lugar. Para resolver o assunto, como você diz. Por intermédio de Narciso, sabíamos que Plínio pegara o que Cláudio lhe dera para levar a Roma, e que Cláudio havia visitado a tumba em Londres. O resto era trabalho seu. E depois houve outras pistas. O Museu Getty, o convento em Santa Paula, aqui. O seu jovem colega americano confia demasiado em seus amigos. Não que isso deva lhe importar agora.

- Jeremy. - Jack sentiu novamente um frio na boca do estômago.

- Está vivo. Por enquanto. Assim como os seus colegas em Nápoles. Seguros no meio dos grupos de pessoas de nossa extensa família - O homem fez um gesto de assentimento para a figura escurecida pelas sombras atrás de Costas. - Quando chegar a hora, será rápido. Uma bala na cabeça, um outro corpo incinerado. Ninguém nunca saberá. Este tem sido sempre o nosso método.

- Como você sabe que eu não teria contado para outros? Sobre o concilium?

- Porque você precisava manter isto em segredo até que o que procuramos fosse encontrado. Eu o induzi a acreditar que outras pessoas também estavam procurando por isto, seguindo sua pista. E eu estava dizendo a verdade. Eu vi através de você, doutor Howard, eu vi através de você, quando estava sentado diante de mim em Roma, ao lado da tumba de são Paulo. Nós somos o seu pior pesadelo. Você nunca pode escapar de nós. Estamos sempre com o controle.

- Você realmente acha que são Paulo teria desejado tudo isto? - perguntou Jack.

- São Paulo foi o nosso iniciador. Nós protegemos a sua Igreja. Ele nunca podia ter previsto as guerras que temos que lutar, os sacrifícios que temos que fazer. In nomine patre, filii et spiritu sancti. A nossa guerra é a guerra de toda a humanidade. O Diabo é onipresente.

- Somente dentro da sua mente - disse Jack. - O concilium procurou dissidência, e criou furor a fim de justificar a si mesmo. Auto-satisfazendo a si mesmo e se autodestruindo.

- Eu não penso assim, doutor Howard - disse o homem friamente.

- Você não irá longe com esses assassinos como ajudantes.

- De onde eu venho há muito mais pessoas. - O homem retirou a cabeça para as sombras detrás dele. - Nossa extensa família, como eu disse.

- A família? Eles não parecem se importar com o que fizeram para seus parentes, seus pais, seus vizinhos. Elizabeth d’Augustino era minha amiga.

- Ah, Elizabeth. Depois, ela os traiu, a sua família. Sabemos que ela tentou avisá-lo, quando vocês estavam em Herculano. Mesmo então, ela conhecia seu destino. Este tem sido sempre o método.

- O que vocês fizeram para ela?

- O caminho ficará limpo.

- Se eu fosse você, teria muito cuidado ao escolher em quem confiar. Eles são traficantes de drogas agora, não servidores do Senhor. Um dia, virão atrás de você.

- Blasfêmia - sibilou o homem. - Eles têm sido nossos fieis servidores por centenas de anos. Nada mudou, e nada mudará.

- É nisso que você está errado. Há muitas dificuldades para ultrapassar em seus métodos. Outros procurarão por vocês. Por causa do que fizeram. O peso de sua própria história os destruirá.

- Ninguém ficará sabendo. Nunca deixamos um rastro. - O homem fez um gesto para alguém dentro da escuridão atrás dele. - Há onze cisternas de água escavadas profundamente na rocha debaixo deste lugar. Você já está dentro da sua própria tumba. - Fez um gesto com a cabeça para a figura nas sombras, depois retirou um celular de seu bolso e o ergueu. - Quando você desaparecer, eu vou sair e telefonar para Nápoles, depois Londres. No final do dia, todos vocês terão desaparecido. Nada disso jamais terá acontecido.

Jack olhou para o seu pulso. Só dois minutos. - O cheiro da morte - ele disse. - Você não pode esconder o cheiro da morte. - Ele olhou para Costas, que subitamente estava olhando fixamente para ele, e parecia ter parado de respirar. - Nós seremos encontrados.

- Tudo aqui cheira a morte - o homem riu com escárnio. - Você já esteve alguma vez no monte das Oliveiras? O cheiro repugnante e adocicado da morte se encontra por toda parte. E você não será o primeiro. De Pelágio em diante, outros trouxeram suas ilusões para cá, e não foram adiante. E aqui estamos no maior templo para a morte, a própria tumba de Cristo, Nosso Senhor.

- Você acredita nisso? Que ele foi enterrado aqui? - perguntou Jack.

- Eu só conheço a ascensão de Cristo. Sei pouco sobre Jesus o homem.

- Este é o seu problema.

- Você vai nos dar o que encontrou. Não faz diferença se os seus companheiros morrem agora ou dentro de dois minutos. Capisce? - ele disse de dentro das sombras, e Costas e Helena subitamente balançaram bruscamente, o homem com o silenciador atrás deles. - Dê agora para mim o que você encontrou e o fim será rápido.

Jack respirou profundamente, enfiou a mão dentro de sua mochila e tateou em volta, cobrindo o que estava procurando com sujeira molhada. Ele o puxou para fora, caminhou adiante e colocou o objeto ao lado de uma vela no altar, perto da estátua da mulher com a cruz. Deu um passo atrás. Costas e Helena olharam ambos para aquilo, mas não disseram nada. Era o cilindro de bronze encontrado na tumba de Boudica, o mesmo cilindro que Cláudio colocara ali, o cilindro que Jack levara secretamente consigo para Jerusalém. O homem estendeu a mão e agarrou-o. - Você nos conduziu até ele, e nós o encontramos. Isto se passou como deveria ser. A vontade do Senhor está feita.

- Você pode querer verificar dentro dele - disse Jack em voz baixa. Olhou novamente para o seu relógio. Zero hora.

- Isto é uma blasfêmia - o homem sibilou de novo. - Eu não vou abri-lo. Uma impostura criada por aquele Cláudio louco. Uma falsidade que iludiu todos aqueles que a procuraram. Isto será triturado e queimado e atirado em sua tumba. Você pode tratar com carinho seu tesouro por toda a eternidade. Chegou o momento. - Ele estalou os dedos, e Costas foi empurrado em direção a um buraco negro no chão ao lado dele, o cano da arma encostado em sua nuca. Jack avançou adiante e ergueu sua mão. - Espere - ele disse. - Há uma coisa que você deveria ver primeiro. Algo mais que eu consegui. Agora. - Estendeu a mão para o bolso de sua mochila. A pistola girou abruptamente em direção a sua cabeça. Deteve sua mão. - É um computador. - Ninguém se moveu e fez-se silêncio. Jack cautelosamente continuou, e retirou um laptop do tamanho de uma palma de sua mochila. Caminhou de volta e colocou-o no altar diante da estátua, abrindo-o. Ele já estava funcionando. A tela mostrava uma manchete da CNN. - Isto foi levado ao ar uma hora atrás, antes que entrássemos na igreja - ele disse. Jack bateu de leve em uma tecla. O artigo apareceu, a manchete do artigo chamando a atenção no topo da tela.

 

           O ÚLTIMO EVANGELHO?

           TUMBA PERDIDA É DESCOBERTA

 

Jack voltou-se para o homem. - Você vê? - ele disse. - Eu também tenho amigos. Irmãos de boa vontade, como você diria. Enquanto nós conversamos, esta história está sendo divulgada através de agência noticiosa ao redor do mundo. Planejei para que ela fosse publicada às dezenove horas, e já passamos desta hora. A história inteira foi publicada. Meu nome, o seu nome. Este lugar. Dois mil anos de terrorismo, de assassinatos. Tudo o que você nos contou de maneira tão proveitosa sobre o concilium.

- Você não sabe o meu nome - sibilou o homem.

- Aqui você se engana. Esta é a única coisa que Elizabeth conseguiu me dizer. Cardeal Ritter.

O homem soltou um grito de raiva, caiu para trás, arrastando-se em busca da parede. Naquele momento, houve um estrépito e uma luz ofuscante brilhou vinda da entrada da capela. Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Costas foi rapidamente adiante, depois girou para trás, batendo com o ombro na figura atrás dele, agarrando-a pelo estômago e jogando-a estatelada no chão. Eles ouviram gritos em hebraico, e duas figuras uniformizadas avançaram saindo do lugar iluminado. Carabinas M4 apontadas à frente. Um deles arrancou a fita adesiva da boca de Costas e cortou a corda que amarrava seus pulsos. Costas espirrou profusamente, depois se abandonou em cima de Jack, respirando com dificuldade. - Isto entrou em cena de maneira conveniente - ele disse ofegando e acenando com a cabeça para o cilindro de bronze. Helena se aproximou para ajudar Costas, e Jack podia ver Ben mantendo a guarda na entrada da sala, um inspetor de polícia israelense, e Maclean ao lado dele. Jack estendeu a mão e segurou Costas pelos ombros. - Graças a Cristo por isso. E agora você sabe. Eu não me tornei um caçador de tesouros, afinal de contas. Tudo tem um propósito mais elevado.

- Não tente me dizer que você planejou tudo isto muito antes - ofegou Costas.

- Foi simplesmente uma precaução. Mas enviar Maclean para montar um press release foi um empreendimento arriscado. Custou-me um bocado de tempo.

- Isso não se parece com você, Jack.

- Atirariam ovos em nossas caras se não encontrássemos nada, mas, ainda assim, seria melhor do que aquilo que o nosso amigo tinha em mente para nós - disse Jack, mostrando a cisterna com a cabeça. - Achei que algo assim poderia acontecer.

- Muito bem concebido, Jack - disse Helena, se aproximando e colocando as mãos em volta dele. - Não é o Jack Howard de que me lembro. Planejar o futuro nunca foi o seu forte. Você sempre seguia o seu faro.

- Isto me lembra de algo - disse Costas, espirrando novamente. - Obrigado por aquele momento em que falou sobre o cheiro da morte. Foi um belo toque. Quase vomitei dentro daquela mordaça. Exatamente o que eu queria.

- Achei que você precisava de um pouco de incentivo.

- Nunca, nunca mais faça isso, Jack. Jamais.

- Nunca - prometeu Jack solenemente.

O homem nas sombras permanecia fixado ao lado da estátua. Jack tinha mantido o olhar sobre ele, e subitamente percebeu que toda a atenção tinha sido concentrada no homem com a arma atrás de Costas, o homem que estava junto com o cardeal e que os policiais tinham visto quando irromperam dentro da capela. De repente, o cardeal arremeteu para frente e agarrou o cilindro de bronze, depois saiu correndo com ele em direção à entrada que dava para a antiga pedreira, a porta gradeada. - Agora eu o peguei. Vou destruí-lo. Vocês nunca saberão o que ele contém.

- Você está errado de novo. - Jack enfiou a mão dentro de sua mochila, e cuidadosamente retirou um outro cilindro, aquele que ele tinha pegado na câmara subterrânea alguns minutos atrás. - O que você tem em mãos é um cilindro de bronze que peguei na tumba de uma rainha britânica em Londres. Um artefato muito bonito, é notável realmente. E, casualmente, ele está vazio.

O homem gritou de modo ríspido e, com um movimento rápido, girou a tampa do cilindro, olhando dentro. Ele pendeu para um lado, depois pareceu imobilizar-se no lugar onde estava. Jack passou o cilindro de pedra para Costas, entendeu-se com ele pelo olhar, depois se atirou à frente. Em um instante, agarrou o homem com uma chave de cabeça, forçando seu braço esquerdo atrás das costas até que o homem gritasse de dor. Jack afrouxou o aperto ligeiramente, manteve-o preso, e tirou o cilindro de bronze do homem, colocando-o debaixo da estátua. Depois, empurrou o braço de volta até que o homem choramingasse. Jack o segurava como se o prendesse em um torno de bancada, bem apertado atrás de sua orelha esquerda. Podia sentir o cheiro de incenso, suor fresco, medo.

- Você vê? - sussurrou Jack, guiando a cabeça do homem em direção ao laptop, para que ele visse a manchete berrante, e depois para o precioso cilindro nas mãos de Costas. - Você entre todas as pessoas deveria conhecer, Eminência. O poder da palavra escrita.

 

Na manhã seguinte, eles se espremeram dentro de uma Toyota 4x4 e Jack os conduziu subindo a grande falha do vale do Jordão, desde Jerusalém até o mar da Galiléia. Costas e Helena estavam sentados ao lado de Jack, e Maclean ia atrás. A eles se juntaram Jeremy e Maria, que tinham vindo direto de Tel Aviv. Jack lhes havia enviado passagens na primeira classe imediatamente depois de sair do Santo Sepulcro, no dia anterior. Ele sabia que muita de sua ansiedade poderia agora se dissipar, mas, ainda assim, era um enorme alívio tê-los por perto. Hiebermeyer era um assunto completamente diferente. A equipe de jornalistas parecia ter se concentrado nele em Nápoles, e ele se recusou a sair do lugar. Jack sabia que ele iria participar com prazer a qualquer momento, mas isto também fazia parte do jogo, era uma maneira de desviar a atenção de Jerusalém. Ainda tinham um ato final para representar, uma incorporação final de algo encoberto na história, evento que os conduziu para a mais extraordinária caça ao tesouro da vida de Jack.

- Nenhuma palavra ainda? - perguntou Costas. Com a voz sacudida por causa do balanço do veículo, enquanto Jack o conduzia por cima de grandes buracos remendados.

- Nada ainda - replicou Jack, lutando com o volante. - Mas assim é Nápoles. E não nos falamos por mais de dez anos, então eu não poderia mesmo esperar uma resposta instantânea.

- Ela podia ser gentil.

- Eu tive uma visão estranha na tumba, sabe - disse Jack. - Tinha a impressão de vê-la, mas era uma espécie de combinação curiosa, como se realmente houvesse alguém deitado naquela laje.

- Um momento Agamenon?

- Acho que ela estava em minha mente.

- Pelo menos o cardeal e sua equipe de assassinos estão fora do caminho.

- Por enquanto. Mas isto não vai durar muito tempo. E, depois que o furor popular terminar, ele será tranquilamente absorvido de novo no rebanho. Este tipo de revelação já foi feito antes, e nunca parece balançar o barco.

- Ciente da existência do concilium, a lei pode ser capaz de manifestar um braço mais forte.

- A lei de quem? - perguntou Jeremy lá detrás.

- E isso depende de quanto o povo acredita em tudo isso - disse Maria por cima do ombro de Jack. - Quero dizer, como você disse, Jack, que grandes revelações sobre a Igreja rapidamente se tornam notícias passadas, a não ser que se possa imputar assassinato e corrupção a elas. E é improvável sermos os primeiros a reivindicar que encontramos um evangelho perdido.

- Não se trata de nenhum desses tópicos - disse Helena. - Vocês estão esquecendo do que Jack disse para o cardeal. O poder da palavra escrita. Se nós realmente temos o evangelho, se de fato temos a palavra de Jesus dentro daquele cilindro, então os crentes podem encontrar tudo de que necessitam para prosseguir firmemente seu próprio curso, para encontrar seu próprio caminho.

- Mas as pessoas gostam de ter uma mão que ajude, e gostam de fazer parte de uma congregação - disse Maria. - Para alguns, a Igreja é aquilo de que necessitam.

- A liberdade é a chave - disse Helena. - A liberdade para escolher o seu próprio caminho espiritual, sem medo, sem perseguição, sem culpa, sem a inquisição e o concilium. É disto que se trata. Se pudermos desgastar um pouco daquela incrustação, então teremos praticado algum bem.

- Ainda temos que descobrir o que há dentro daquele cilindro - disse Costas. - Se Jack nos deixar.

- Tenha paciência - disse Jack. - Apenas uma última parada.

- Estamos vindo para cá por causa daquela nota que encontramos no manuscrito de Plínio, certo? Aquele que conta que Cláudio e seu amigo Herodes visitaram Jesus no mar da Galiléia?

- Aquele mesmo.

- Não haverá buracos no chão desta vez?

- Sem buracos no chão.

Passaram por postes indicadores de caminhos com nomes que os faziam lembrar da rica e turbulenta história desta terra: Jericó, Nablus, Nazaré. Quando encontraram a indicação para o mar da Galiléia, viraram para a esquerda, passando por recantos e fontes termais de Tiberíades, depois continuaram mais algumas milhas adiante ao pé dos flancos imponentes do monte Arbot até chegarem à entrada do kibutz Ginosar. A terra ao redor deles era queimada, ressecada, e podiam ver que o contorno do lago havia recuado certa distância sobre os alagadiços para o leste. Jack entrou dentro do kibutz e todos eles desceram e se esticaram, cansados e famintos depois de quatro horas de viagem. Jack vestia calças caqui, camiseta cinza e botas de deserto e carregava sua confiável mochila caqui pendurada no ombro. Costas vestia sua extravagante seleção habitual de roupa havaiana e os óculos de sol de grife que Jeremy havia lhe dado, que agora parecia ser um acessório permanente. Jeremy, Maria e Maclean estavam todos vestidos como Jack. A única que parecia ignorar o calor era Helena, que vestia a sotaina branca de freira que estava usando quando a encontraram pela primeira vez no teto do Santo Sepulcro no dia anterior.

- Este é o local do antigo Migdal - disse Jack. - Casa de Maria de Migdal, Maria Madalena. Este litoral era onde Jesus vivia quando jovem, onde ele trabalhou como carpinteiro e pescador e andou no meio das pessoas da Galiléia, espalhando sua palavra.

Depois de um rápido lanche na cantina do kibutz, todos foram para o Museu Yigal Allon e ficaram dando voltas na sala central da exposição, recebendo silenciosamente as impressões causadas por um dos mais notáveis achados jamais feitos na Terra Santa. Era uma embarcação antiga, as madeiras da construção estavam escurecidas por causa da idade, mas maravilhosamente conservadas, tinham pouco mais de oito metros de comprimento e dois metros de largura. Costas tirou os seus óculos de sol e inclinou-se sobre o picadeiro de metal sobre o qual a embarcação se assentava, inspecionando atentamente uma das madeiras. - Polietilenoglicol? - ele perguntou.

Jack assentiu com a cabeça. - Não levava muito tempo para impregnar a madeira, quando a embarcação era encontrada em água doce e não tinha sal para lixiviar. Foi encontrada no verão de 1986, num ano de seca como este, quando o nível do mar tinha baixado. Dois habitantes locais, quando procuravam moedas antigas, encontraram estas madeiras salientando-se da lama, a proa virada para a água. Ela era nitidamente antiga, e de imediato causou sensação. Este era também um lugar perigoso, onde problemas políticos podiam surgir e espalhar-se para outras regiões. O Ministério de Turismo de Israel revelou a possível conexão da embarcação com Jesus, percebendo uma nova atração para o turismo diante da intifada. Mas os judeus ultra-ortodoxos se mostraram contra a escavação, achando que poderia ser como uma luz verde para a atividade missionária cristã naquela região. Havia até pessoas rezando para chover para que o local ficasse inundado e a escavação, frustrada.

- Isto me soa familiar - disse Costas.

- Esta é uma das razões pelas quais eu queria que vocês vissem isso - disse Jack. - Tudo aquilo está esquecido agora. Esta embarcação é uma das principais atrações arqueológicas de Israel, para os cristãos, para os judeus, para todo o povo da Galiléia, qualquer que seja a sua fé. Esta é sua herança comum.

- É melhor acomodar a verdade que negá-la, viver com medo dela - murmurou Jeremy. - Uma descoberta como esta só pode ser enriquecedora.

- É um achado único, a única embarcação do mar da Galiléia a sobreviver desde a Antiguidade - disse Jack, apontando os aspectos. - Ela provavelmente tinha um mastro com um único cabo para recolher as velas, embora tenha espaço para dois remadores de cada lado e um remo que servia como leme. Ele tinha a aresta externa da roda de proa recurvada e uma proa pontuda, com um talha-mar. As madeiras eram, sobretudo, de carvalho para a estrutura e de cedro para a carreira de tábuas, cedro do Líbano. Podemos ver pregos de ferro, mas também ver como foram colocados um ao lado do outro no antigo padrão de modelo "casco primeiro", as pranchas ligadas nas extremidades com encaixe macho-fêmea.

- Isto parece muito familiar - murmurou Maria -, e acabei de perceber por que. Maurice me mostrou retratos de uma embarcação como esta na praia de Herculano, encontrada em 1980, quando foram encontrados todos aqueles esqueletos amontoados nas câmaras debaixo do dique. O tufão formado por gás e cinzas provenientes da erupção virou a embarcação e a carbonizou, mas as madeiras do interior ficaram bem preservadas. Ela era construída de maneira impecável, talvez fosse uma embarcação de passeio de algum proprietário de uma rica vila.

Por um instante, Jack sentiu aquele frisson da percepção que tivera pela primeira vez dois dias atrás na Califórnia, de que estava vendo o passado sob duas aparências externas, uma majestosa e artificial e a outra ordinária e terrena, mas ambas igualmente belas. - Se a embarcação de Herculano correspondia a um Porsche, então esta que se encontra diante de nós correspondia a um velho trator - ele disse. - Há grande quantidade de madeira reciclada aqui, pedaços nitidamente reutilizados. Ela pode não ter a finura da embarcação de Herculano, mas tem o seu próprio estilo. Quem quer que seja que a tenha construído e mantido, tinha um sentimento profundo por esta região, por seus recursos e sabia como usá-los.

- Há alguma data obtida por carbono 14? - perguntou Costas.

- A embarcação da Galiléia? Ano 40 a.C. mais ou menos oitenta anos.

Costas assobiou. - É uma ampla margem, mas apresenta muito boas probabilidades. Jesus morreu em torno de 30 d.C, certo? Quase no final desse espectro. Mas, se as embarcações se conservam durante gerações no lago, reparadas e com novo aparelhamento, então mesmo uma embarcação produzida no início daquele período ainda poderia estar em uso durante a vida de Jesus.

- Os únicos artefatos encontrados associados com a embarcação foram uma simples panela para cozinhar e uma lâmpada a óleo, ambas mais ou menos do mesmo período.

- E sobre Cláudio e Herodes? - perguntou Costas. - Qual é a data que estamos supondo para a sua visita?

- Acredito que tenham vindo para cá por volta de 23 d.C. - disse Jack em voz baixa. - Jesus estaria na metade de seus vinte anos, talvez vinte e sete ou vinte e oito. Cláudio tinha trinta e dois ou trinta e três anos e Herodes tinha a mesma idade, ambos nasceram em 10 a.C. Poucos anos mais tarde, Jesus foi a uma região despovoada e renunciou à sua ocupação mundana, e o resto é história. Cláudio deve ter regressado a Roma logo depois de sua visita aqui, e nunca mais voltou. Nós sabemos o que aconteceu a ele. E Herodes Agripa se tornou o rei dos judeus.

- Como você conseguiu a data?

- Por causa de algo que eu subitamente lembrei em Jerusalém. Isto está me aborrecendo desde que vi pela primeira vez aquelas palavras no laboratório, a bordo do Seaquest, no manuscrito de Plínio. Em nenhum outro lugar há uma referência à viagem de Cláudio para o leste. Suponho que deve ter sido quando ele estava vivendo obscuramente como um estudioso em Roma, antes de ser arrastado à força para o trono em 41 d.C. Isso deve ter sido antes de Jesus ser sacrificado por volta de 30 d.C., no reinado de Tibério. Também deve ter sido antes de Jesus se cercar de discípulos que certamente se lembrariam de uma visita de Roma e teriam deixado algum registro sobre ela. Então pensei acerca do período inicial da vida de Jesus na Galiléia, antes do período principal do seu ministério. Depois me lembrei de Herodes Agripa.

- Se ele era o rei da Judéia, ele deve ter estado por lá durante aquele período - disse Costas.

Jack sacudiu a cabeça. - Foi Cláudio quem lhe deu a Judéia, como uma recompensa por sua lealdade em 41 d.C. Até então, Herodes Agripa havia vivido principalmente em Roma. Mas houve um outro período, anterior. Ele era o neto de Herodes, o Grande, rei da Judéia, mas foi criado em Roma, no Palácio Imperial, adotado por Antônia, mãe de Cláudio. Ele e Cláudio se tornaram os amigos mais diferentes, o erudito e o playboy. Um dos companheiros de bebida de Herodes Agripa foi Druso, o caprichoso filho do imperador Tibério, que costumava ficar embriagado e arrumava brigas com a guarda pretoriana. Aconteceu um incidente obscuro e Druso morreu. Herodes Agripa foi imediatamente enviado para a Judéia. Isto foi o que eu lembrei. Foi em 23 d.C.

- Bingo - disse Costas.

- Isto fica melhor. Seu tio, Herodes Antipas, era o governador da Galiléia naquela época, e conseguiu para o seu imprevisível sobrinho um emprego simbólico como inspetor de mercado, um agoranomos. Adivinhe onde? Em Tiberíades, no litoral do mar da Galiléia, algumas milhas ao sul daqui. Passamos por lá no caminho.

Costas assobiou. - Então ele realmente podia ter cruzado com Jesus.

- Herodes Agripa teria chegado a conhecer todo mundo que valia a pena ser conhecido, bastante rapidamente - replicou Jack. - Era um homem gregário e impetuoso, falava aramaico assim como latim e grego, e teria sentido uma afinidade com as pessoas deste local. Ele pode ter ouvido falar de Jesus como uma espécie de curandeiro, e é possível, apenas provável, que Herodes Agripa tenha enviado uma palavra para o seu amigo aleijado Cláudio, em Roma, que devia esperar que pudesse ser encontrada uma cura para a sua paralisia, talvez em algum lugar no leste.

- Herodes Agripa tem uma reputação bastante ruim na Bíblia - disse Helena.

Jack assentiu. - Sempre achei que Herodes Agripa era basicamente bem-intencionado, mas o seu hedonismo e o curso da história o conduziram a alguns lugares sombrios. Ficou por pouco tempo em Tiberíades, até ser transferido novamente, por algo suspeito que tinha a ver com um empréstimo de seu tio. Depois de visitar Antioquia na Síria, ele voltou para Roma, onde sua alma gêmea seguinte foi o futuro imperador Calígula. Realmente sabia escolher seus amigos. Foi Calígula quem lhe conseguiu o cargo de governador da Galiléia, seu primeiro passo no caminho para se tornar um dos maiores príncipes do leste. As coisas finalmente culminaram numa crise em 44 d.C., o ano do grande triunfo de Cláudio na Grã-Bretanha. Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João, o Apóstolo, foi detido e condenado à morte. Os Evangelhos nos contam que foi Herodes quem ordenou essa morte, embora não haja nenhuma outra evidência em parte alguma de que ele era anticristão. Provavelmente fosse apenas megalomaníaco, mas isso não durou muito. Há uma passagem famosa acerca desse final nos Atos dos Apóstolos.

- O relato do naufrágio do navio de São Paulo? - perguntou Costas.

- Alguns capítulos e quinze anos esquisitos antes, quando Herodes estava em Cesaréia na costa da Judéia. - Jack olhou para Helena. - Você sempre teve uma memória prodigiosa. Pode se lembrar da passagem?

Ela concordou. - Versão da Bíblia de King James. Faz parte do meu trabalho.

- Ela começou a narrar:

 

E, num dia combinado, Herodes vestiu-se com vestes reais, e sentou-se no trono, e fez uma oração para elas. E as pessoas gritaram, dizendo: A voz de um deus, e não a de um homem. E imediatamente um anjo do Senhor atingiu-o, porque ele não deu a glória a Deus; e ele foi comido por vermes e morreu.

 

- Vermes - disse Costas debilmente.

- Provavelmente foi uma doença que destruiu a carne, talvez uma gangrena - disse Jack. - Uma maneira razoavelmente padrão de morrer naqueles dias, por causa de uma ferida aberta.

- Eu sabia que iríamos voltar a falar em cadáveres - queixou-se Costas.

- Uma teoria diz que Cláudio o envenenou, precisamente porque Herodes estava se comportando como um deus, e apenas o imperador podia usar aquele manto. Mas não acredito em nem uma palavra disso. De tudo o que sabemos sobre Cláudio, ele devia ter sido supremamente leal aos seus amigos, em todas as dificuldades por que passavam.

- Então tivemos Herodes Agripa, Cláudio e Jesus juntos aqui, em 23 d.C. - disse Costas lentamente. - Um encontro que não foi registrado em lugar algum, a não ser na margem de um antigo manuscrito que encontramos em um buraco em Herculano.

- Correto.

- Jesus era carpinteiro - disse Costas pensativo e batendo de leve na madeira a sua frente. - Isto poderia significar construtor de embarcações, certo?

Jack assentiu. - Em grego, bem como nas línguas semíticas daquela época. Aramaico, fenício antigo, a palavra que traduzimos como "carpinteiro" podia ter toda uma gama de significados, inclusive o de arquiteto, construtor com pedra, trabalhador com madeira e até trabalhador com metal. Poderia ter havido uma grande quantidade de trabalho nesta região. Herodes Antipas fundou Tiberíades em 20 d.C., e havia um palácio para construir, a sinagoga, os muros da cidade. Deve ter sido um período de um grande aumento de atividade para um carpinteiro local diligente.

- Talvez tenha sido assim que mais tarde ele financiou tudo - disse Costas. - Quero dizer, mesmo um produtor de milagres precisa comer.

Jack assentiu. - Mas a mercadoria de demanda constante por aqui para um carpinteiro sempre seria a construção de uma embarcação. Meio século mais tarde, mais ou menos, o historiador Josefo sugere que havia 230 embarcações no lago, e que esse número provavelmente não incluía as menores. As embarcações aqui teriam durado muito mais tempo que no mar, sem os vermes de madeira que havia na água salgada. Mas, mesmo assim, teria havido necessidade constante de reparos, bem como a de construir novas naves. Os anos 20 podem ter sido também, no que se refere à construção de embarcações, anos de crescimento rápido, com uma grande quantidade de pedaços de madeira e de madeiras fora do tamanho padrão entrando em circulação vindas dos locais de construção de Tiberíades. Olhem para esta embarcação. Há uma grande quantidade de madeiras com formas singulares.

Costas olhou pensativo para ela. Pôs a mão na extremidade da madeira diante de si, depois olhou de novo para Jack. - Uma vida inteira antes, acho que foi na última terça-feira, quando estávamos mergulhando no navio naufragado de são Paulo, perto da Sicília, você me disse que a arqueologia do início do cristianismo era ilusória, que dificilmente alguma coisa era conhecida com certeza. - Ele fez uma pausa. - Agora diga-me. Estou tocando em uma embarcação feita por Jesus?

Jack colocou as mãos nos quadris, examinou cuidadosamente as pranchas antigas de madeira e depois olhou de volta para Costas. - No Novo Testamento, um enorme problema é descobrir como Jesus via a si mesmo, se se via ou não como o christos, o messias. Quando lhe perguntam, quando as pessoas querem saber quem ele é, ele algumas vezes responde de maneira particular. Esta é uma tradução, é claro, mas acho que dá a essência do que ele diz: "É como você diz".

- O que você está dizendo?

- É como você diz.

Costas permaneceu silencioso por um momento, olhou para Jack como que implorando, depois suspirou e tirou sua mão da embarcação. - Arqueólogos - ele resmungou. - Não se consegue obter uma resposta direta de nenhum deles.

Jack sorriu amplamente, depois deu um tapinha em sua mochila. - Vamos. Ainda não terminamos. Há um último lugar aonde temos que ir.

 

Uma hora mais tarde, eles pararam nos limites dos alagadiços na costa ocidental do mar da Galiléia. Era o início do final da tarde, e as sombras tinham começado a avançar de detrás deles para cima dos alagadiços. À distância, a água ainda cintilava, e Jack se lembrou da estranha sensação que havia tido ao olhar para o céu perto da Sicília na semana anterior, como se seus olhos estivessem sendo atraídos pelas partes em lugar de ver a coisa toda, uma visão muito ofuscante para que ele pudesse compreender. Agora, agarrando sua mochila, ele sentiu a mesma excitação de antecipação, o conhecimento de que estava na cúspide de outra revelação extraordinária, uma promessa que os trouxera para o lugar onde o tesouro que se encontrava nas suas mãos havia começado sua jornada quase dois mil anos antes. Jack sabia com total convicção que Cláudio estivera neste local, que ele também deve ter olhado para o contorno distante da costa das montanhas de Golan, sentido a fascinação do leste exatamente como Jack sentia. Ele se perguntou se Cláudio tinha sentido também a inquietação, o perigo à espreita nesta falha geológica entre o Ocidente e o Oriente, a tranqüilidade sobrenatural do mar e seu contorno como uma ilusão de calma semelhante ao olho de um furacão.

Enquanto Jack observava, o sol se pôs atrás deles e a cena se tornou coerente de novo em sua mente, mais parecida com uma pintura de Turner que de Seurat, os lampejos se transformando em manchas matizadas de azul e laranja. Respirou profundamente, foi até onde estavam os outros, e começaram a trilhar o caminho em direção aos alagadiços, através de um entrelaçado de galhos finos que haviam sido soprados sobre o contorno da costa como ervas daninhas em desordem.

- Ziziphus spina-crista, se eu não estou enganado - disse Jeremy. - Dá um fruto excelente. Você deveria experimentar um dia desses.

- Você soa exatamente como Plínio - disse Maria.

Depois de dez minutos margeando as poças de lama escurecida eles chegaram a um pedaço de terra elevado de cerca de noventa metros diante do contorno da costa. Era um solo duro onde ficavam os pescadores, uma área de desembarque temporário usada durante a estiagem, e estava impregnada com o odor de peixe e de velhas redes. No centro havia uma rocha grande profundamente enterrada, que tinha sido usada como pedra de amarração, com uma corda velha e esfiapada emergindo da lama em frente e jogada em direção à praia. Jack empurrou um pouco da velha rede e sentou-se, e os outros fizeram o mesmo sobre dois dormentes que haviam sido claramente puxados até lá para este propósito. Jack colocou a mochila no colo e todos olharam para o mar, atraídos pela total tranqüilidade da cena. Observaram como um homem e uma mulher andavam vagarosamente ao longo do contorno da praia, o resplendor da água sobre a lama dava a impressão de que estavam andando sobre a água, uma miragem. Em um ponto mais distante, podiam distinguir os barcos de pesca no lago, as luzes de seus mastros pontilhando a cena como um tapete de velas mais distante no mar.

- Neste contorno de costa foi onde Jesus passou os anos formativos de sua vida - disse Helena em voz baixa. - Nos Evangelhos, seus ditos abundam com metáforas de pescador e sobre o mar. Quando ele fala do céu da tarde vermelho que pressagia um dia bom, não estava sendo um profeta, mas sim um marinheiro e um pescador, alguém que sabia que poeira no ar significava que o dia seguinte seria seco.

- E as pessoas têm vindo ao mar da Galiléia, desde então, para procurá-lo - murmurou Jeremy. - Os primeiros cristãos depois da conversão do Império Romano sob Constantino, o Grande, aqueles que criaram o Santo Sepulcro. Em seguida os peregrinos do mundo medieval, do Império Romano, do Bizantino. Harald Hardrada esteve aqui, conduzindo os mercenários vikings do corpo de guarda dos imperadores bizantinos, banhando-se nas águas do rio Jordão. Depois disso, vieram os cruzados, cavalgando em uma maré de sangue, achando que tinham encontrado o Reino dos Céus, apenas para vê-lo desmoronar diante de seus olhos quando o exército árabe chegou em grande número vindo do leste.

- Aposto que este lugar também não mudou muito - disse Costas, atirando um seixo em uma poça escura, depois olhando para Jack. - Você vai nos mostrar o que conseguiu?

- Você sabia que o escritor Mark Twain esteve aqui? - disse Jeremy, de um modo ausente.

- Pode repetir? - perguntou Jack.

- Em 1867, ele foi um dos primeiros turistas americanos a visitar a Terra Santa.

- Acho que posso lembrar de suas palavras - disse Helena. - Eu as li da última vez em que estive aqui e elas me deixaram uma grande impressão. É algo assim:

 

O momento para ver a Galiléia é à noite, quando o dia se foi, mesmo o menos impressionável deve se render às influências plenas de sonhos deste lugar tranqüilo iluminado pelas estrelas. No colo das ondas sobre a praia, ele ouve o mergulho de remos fantasmas; nos ruídos secretos da noite ele ouve as vozes dos espíritos; no suave roçar da brisa, na investida de asas invisíveis.

 

- Houve outras pessoas como ele - disse Jack. - Aquelas que estavam preparadas para acreditar que as histórias na Bíblia não eram apenas mitos e lendas, assim como Heinrich Schliemann e Arthur Evans fizeram em relação às Guerras de Tróia e à Idade do Bronze grega. Dez anos depois de Mark Twain, foi o tenente Horatio Herbert Kitchener, do Corpo Real de Engenheiros, patrocinado pelo Fundo de Exploração Palestina, que teve sua primeira experiência na Galiléia com o Inquérito da Palestina antes de se tornar o maior líder de guerra da Grã-Bretanha - disse Jack. - E T. E. Lawrence, que veio para cá estudar as classes sociais, antes de retornar como Lawrence da Arábia, conduzindo suas legiões por aquelas colinas em direção a Damasco. Tivemos grandes movimentos da história passando por este lugar, e a linha de rompimento entre o leste e o oeste passando com ímpeto por aqui ao longo do vale do Jordão, mas a Galiléia tem sido com muita freqüência um redemoinho na história, um lugar onde o indivíduo ainda pode salientar-se.

- Pessoas que vêm para cá com o futuro à frente delas, na cúspide do destino - murmurou Maria.

Jack enfiou a mão no bolso de seus shorts, e tirou uma pequena caixa com tampa, daquelas que se abrem com estalido. Ele a colocou no colo, abriu-a e retirou duas moedas. Segurou-as no alto, deixando a luz do sol que esmaecia incidir nos retratos, suas feições acentuadas pela sombra quando ele as movia lentamente de lado a lado.

- Parece-me como se você estivesse se apropriando novamente, Jack - disse Costas, com um brilho travesso em seus olhos. - Esta é uma ladeira escorregadia para se tornar um caçador de tesouro. Sempre me perguntei quando você iria transpor o limite.

Jack sorriu, mas permaneceu quieto, olhando com muita atenção para os rostos nas moedas. Sentira a necessidade de olhá-las por uma última vez, de tirá-las e tocá-las antes de abrir sua mochila. O rosto na moeda da esquerda era de Herodes Agripa, era a moeda que tinham encontrado no Santo Sepulcro. O retrato estava gasto, mas mostrava um rosto atarracado, como de um touro, uma imagem que correspondia mais a um lutador do que a um pensador, mas com grandes e sensíveis olhos. Isto foi idealizado talvez na tradição oriental, parecia mais um Hércules ou um Alexandre do que Herodes Agripa. Ele usava uma coroa de louros, vista normalmente apenas em moedas de imperadores romanos. O homem na outra moeda também usava uma coroa, mas desta vez isto era correto. Jack viu Cláudio novamente como o imaginara pela primeira vez na Vila dos Papiros em Herculano, depois parado diante da tumba da rainha britânica debaixo de Londres. Viu a cabeça com cabelos abundantes, a testa alta, os olhos profundos e pensativos, a boca enrugada. Não Cláudio, o aleijado, não Cláudio, o tolo, mas Cláudio, o imperador, no auge de seus poderes, um imperador que construiu aquedutos e ancoradouros e recuperou o mundo romano da beira da catástrofe, pavimentando o caminho para os cristãos ocidentais nos séculos vindouros. Os dois retratos eram de homens que haviam alcançado o auge de suas vidas, um futuro que dificilmente poderiam ter previsto naquele dia em 23 d.C. quando se reuniram no mar da Galiléia. Herodes Agripa, príncipe do Leste. Cláudio, o Deus.

- Eu me pergunto se eles sentiram as trevas antecipadamente - murmurou Helena.

- O que você quer dizer? - perguntou Costas.

- A única época em que a história realmente alcançou este lugar. Jack me disse que vocês conhecem algo sobre a menorá, o tesouro perdido do Templo de Jerusalém.

- Nós sabemos um pouco a respeito - disse Maria em voz baixa, lançando um olhar para Jack.

- Foi em 67 d.C. - disse Helena. - Mais de duas décadas depois da morte de Herodes Agripa, mais de uma década depois do desaparecimento de Cláudio. Três anos antes de os romanos destruírem Jerusalém e declararem seu triunfo, eles vieram aqui para o mar da Galiléia. Os judeus rebeldes tinham escapado em barcos, mas o filho de Vespasiano, Tito, havia construído uma embarcação especial e foi atrás deles. A batalha de Migdal foi uma das batalhas navais mais extraordinárias na história, mas foi também um massacre. O historiador judeu Josefo nos conta que o contorno da costa ficou inundado de sangue. Um horrível mau cheiro espalhou-se sobre a região, a praias ficaram cobertas com destroços de naufrágio e corpos inchados.

- Os rebeldes usaram barcos pesqueiros locais? - perguntou Costas. Helena assentiu. - Eles requisitaram todos os barcos que havia no lago. O barco da Galiléia pode ter sido um deles, abandonado e afundado depois que seus ocupantes foram massacrados. Para algumas pessoas em Israel hoje em dia, o barco é um símbolo da história judaica, da resistência judaica.

- Mas ele podia ter sido construído mais cedo, usado durante a vida de Jesus.

- Alguma coisa para todos - disse Helena.

Jack pôs as moedas de lado, enfiou a caixa de novo em seu bolso e tirou um pacote todo embrulhado de sua mochila. - Não tenho dúvida de que eles viram algo do futuro - disse. - Herodes Agripa veio de uma das dinastias mais voláteis do leste, e cresceu em Roma. Conhecia tudo sobre a natureza caprichosa do poder. Cláudio também havia estado lá, e ele era um historiador, talvez um dos maiores historiadores da Antiguidade. Já devia ter visto as sementes da decadência no reino de Tibério. E o outro que eles encontraram aqui, o pescador de Nazaré, pode ter vivido sua vida protegido dos momentos significativos da história, mas deve ter sentido o que se preparava adiante, visto onde seu ministério podia conduzir.

- Nenhum deles poderia ter visto à frente de um período de dois mil anos - disse Costas.

- Na época em que estava perto do fim, quando fez a última viagem para a Grã-Bretanha, Cláudio deve ter visto como o ciclo da história romana estava se desenvolvendo, deve ter sentido que as amarras seriam sempre tênues - disse Jack. - Um bom imperador seguido por um mau, uma idade de ouro seguida por miséria e corrupção. Augusto, depois Tibério e Calígula. Cláudio, depois Nero. E agora Vespasiano e Tito, uma nova idade de ouro, a época em que o Vesúvio entrou em erupção e Cláudio finalmente desapareceu da história. E o ciclo continuou, com o nadir de Domiciano. Quando Cláudio visitou a Grã-Bretanha pela última vez para esconder o seu tesouro, ele a visitou durante um período consideravelmente longo. E quando Everett foi para Jerusalém, para o Santo Sepulcro, ele fez a mesma coisa. O seu mundo era aquele em que o futuro era negro, estava mais próximo do apocalipse do que Cláudio jamais poderia imaginar. E os dois homens sabiam como os ventos volúveis da história podiam arrebatar seu prêmio.

Jack removeu uma camada final de plástico-bolha revelando o pequeno cilindro de pedra. Ele o ofereceu para Helena. - Você quer quebrar o lacre?

Ela fez o sinal da cruz e pegou o cilindro. Lentamente, cuidadosamente, girou a tampa. Esta saiu facilmente, quebrando o material de resina escurecida que havia lacrado o encaixe. Ela o devolveu para Jack, que retirou a tampa. Os outros se apinharam em volta dele, Maria e Jeremy ajoelhando-se na frente e Costas olhando por sobre o ombro. Ouviu-se um suspiro coletivo quando viram o que havia dentro. Era um pergaminho, amarronzado pela idade, mas aparentemente bem preservado.

- Ele era impermeável ao ar - respirou Jack, aliviado. - Graças a Deus por isso. - Segurou a extremidade do manuscrito com dois dedos, experimentando-o suavemente. - Ainda está flexível. É espantoso. Há alguma espécie de conservante sobre ele, um material feito de cera.

- Sábio Cláudio - murmurou Maria.

- Sábio Plínio, você quer dizer - comentou Jeremy. - Aposto que foi de quem Cláudio aprendeu.

Jack puxou o manuscrito. Eles estavam silenciosos, e tudo o que podiam ouvir era um som distante de motor, e um ligeiro roçar de brisa que vinha do oeste. Jack prendeu a respiração. Não havia nada escrito para ser visto. Apenas a superfície amarronzada do papiro. Segurou o manuscrito no alto de modo que ele ficasse dentro da luz remanescente que brilhava nas colinas atrás deles, e desenrolou alguns centímetros no lugar que tinha experimentado como sendo a extremidade.

- Bem, eu serei condenado ao inferno - ele murmurou, depois sorriu largamente.

- Conseguiu algo? - perguntou Costas.

- Olhe para as camadas cruzadas. Você pode vê-las quando a luz incide através delas. Este é o primeiro nível, este papiro é exatamente igual àquela folha que encontramos na escrivaninha de Cláudio em Herculano. E aqui está. - Sua voz estava quase inaudível. - Posso vê-la.

- O quê?

- A escrita. Ali. Olhe. - Jack desenrolou o papiro lentamente. Primeiro uma linha foi revelada, depois outra, e mais outra. Desenrolou o manuscrito inteiro, e puderam ver cerca de vinte linhas. O coração de Jack estava acelerado. A tinta era preta, quase preto-azeviche, conservada intacta pelo conservante. A escrita era contínua, sem pausas entre as palavras ou pontuação, à maneira antiga. - É grego - Jack sussurrou. - Está escrito em grego.

- Há algo escrito na parte inferior, uma escrita mais antiga - disse Costas, olhando para o papel por detrás de Jack. - Apenas as poucas primeiras linhas, apagadas. Quase não se pode discerni-las, mas parecem escritas por uma outra mão, talvez uma letra diferente.

- Provavelmente a letra de Cláudio - murmurou Jack. - E, se for assim, talvez esteja em latim. Algo que ele começou a escrever e depois apagou, talvez sejam anotações que fez sobre a jornada. Isto seria bastante fascinante. Não temos nada com a própria escrita à mão de Cláudio.

- Espectrometria de massa - disse Costas. - Isto fará a escrita aparecer. Uma ciência difícil.

Jack não estava ouvindo. Ele tinha lido as primeiras Unhas do texto visível, as linhas que encobriam as palavras apagadas. Sentiu a cabeça girar, e o manuscrito parecia tremular em suas mãos, ou por causa de sua emoção extraordinária ou por uma lufada de vento, ele não conseguia dizer. Deixou as mãos caírem, e manteve o manuscrito aberto sobre os joelhos. Voltou-se para Helena. - Kyriam bonum - ele disse. - Estou certo ao usar a tradução literal, Casa do Senhor?

Helena concordou. - Estas palavras podem significar a congregação como um todo, a Igreja no sentido amplo.

- E naos? É a palavra grega para templo?

- Ela provavelmente significa igreja como entidade física, como uma estrutura.

- Você está pronta para isto?

- Se estas são suas palavras, Jack, eu não tenho nada a temer.

- Não, você não deve temer. - Jack fez uma pausa, e durante um momento extraordinário ele sentiu como se estivesse olhando para baixo de uma grande altura, não para eles no alagadiço, mas para um ponto de luz muito pequeno em um vasto mar, para duas formas indistintas inclinadas uma para a outra, em uma antiga embarcação, quase invisíveis na escuridão. Fechou os olhos, depois os abriu e começou a ler.

- "Jesus, filho de José de Nazaré, estas são as suas palavras."

 

O jovem ansioso vestido com uma túnica branca parou e aspirou a brisa. Nunca estivera no Oriente antes, e as vistas e os odores dos últimos dias tinham sido estranhos, surpreendentes. Mas agora a brisa que soprava sobre as colinas do oeste vinha do mar Mediterrâneo, trazendo consigo um odor familiar de sal e ervas e de leve deterioração, um odor que havia sido purificado no dia anterior pelo vento forte das alturas de Gaulanitis na margem oposta. Olhou novamente, protegendo os olhos contra a luz forte e ofuscante. Os alagadiços se estendiam bem adiante até a beira do lago, uma praia ampla e tremeluzente onde a água tinha evaporado durante o verão longo e seco. A superfície distante do lago estava vítrea e polida como um espelho. Na margem, ele observou furtivamente uma forma oscilante, uma embarcação pesqueira talvez, se movendo por lá. Prestou atenção, e escutou o grito distante e agudo de uma gaivota, depois um som feito por um funileiro, um ruído de pequenas batidas, como a da água de chuva caindo de um telhado. Estava ficando quente, subitamente demasiado quente para manter o passo que havia estabelecido para si mesmo. Voltou-se para a montanha que chamavam de Arbot, ergueu o rosto e desejou que a brisa o tocasse de novo, desejou que o ar frio do oeste soprasse e o envolvesse.

- Cláudio! - Era a voz de uma menina. - Ande mais devagar! Você precisa de água.

Ele se voltou de modo desajeitado, arrastando sua perna doente, e esperou que seus companheiros o alcançassem. Fazia apenas dez dias desde que haviam desembarcado em Cesaréia, e cinco dias desde que tinham saído para Jerusalém, subindo o vale do rio Jordão em direção ao mar interior que eles chamavam de Genesaré, na região da Galiléia. Tinham passado a noite na nova cidade de Tiberíades, construída por Antipas, tio de Herodes, cujo nome foi dado por causa de Tibério, tio de Cláudio, imperador de Roma havia quase dez anos. Cláudio ficara surpreso ao encontrar imagens de Tibério por toda parte, em templos e estátuas e em moedas, como se o imperador vivo já fosse adorado como um deus. Parecia que ele nunca poderia escapar deles, de sua família ignorante, mas naquela manhã, enquanto caminhavam para longe do alvoroço da construção, ele tinha sentido um contentamento extraordinário, uma sensação de liberação no vazio e na simplicidade das superfícies planas das costas e das margens tremeluzentes do lago com as colinas de Gaulanitis atrás.

Posteriormente, depois desse dia, eles passaram por aquelas colinas em direção a Antioquia para levar oferendas ao local onde o seu amado irmão Germânico tinha sido envenenado havia quatro anos. Cláudio ainda sentia a dor, a forte dor da angústia na boca do estômago. Tentou expulsar o pensamento, e se voltou para observar aqueles que lhe eram caros e que subiam a estrada empoeirada vindos do sul. Sua amada Calpúrnia, com seu cabelo vermelho flamejante e a pele coberta de sardas, apenas saída da adolescência, mas uma mulher tão sensual como ele nunca vira. Ela estava vestindo o vermelho que revelava sua profissão, a mais antiga, mas agora apenas por hábito, não por necessidade. Ao lado dela, Cipros, a mulher de Herodes, estava coberta com um véu e adornada com jóias como uma princesa da Arábia, deslizando ao longo da estrada como uma deusa ao lado de seu companheiro de cabelos revoltos. E avançando atrás deles encontrava-se o próprio Herodes, com barba negra, seu longo cabelo entrelaçado como o de um rei da Assíria, seu manto guarnecido com uma verdadeira púrpura real de Tiro, sua voz volumosa e estrondosa regalando-os com canções e piadas obscenas durante todo o caminho. Herodes sempre atraía muita atenção porque era mais atraente e excitante que a maioria das pessoas, um exemplo de homem; no entanto, ele era o mais velho e mais querido companheiro de Cláudio, o único entre todos os outros garotos do palácio que tinha agido como amigo, o único que havia enxergado além da gagueira e da inabilidade e da perna definhada.

Cláudio pegou o cantil de couro que Calpúrnia lhe oferecia, e o bebeu até esgotar a água. Herodes apontou para as pequenas manchas que se moviam na praia, e eles abandonaram o caminho e começaram a andar em meio aos alagadiços. Cláudio tinha visto a torre de Migdal, a próxima cidade ao longo da costa que ficava em uma depressão nas colinas, mas agora a torre estava escondida pela neblina que subia e obscurecia o contorno da costa, como um véu tremeluzente. Então o sol apareceu através da neblina e refletiu uma miríade de poças rasas nos alagadiços. Para Cláudio, a vista parecia se fragmentar, como uma janela de vidro estilhaçada, o sol se refletia ofuscante em cada poça, e depois ganhava novamente sua inteireza na neblina. Uma alusão a um arco-íris pairava no ar, uma suspensão de cor que não se materializou completamente, que permanecia apenas além da realidade. Logo, tudo o que ele podia ver era o movimento ao redor da embarcação que estava à frente deles, e mesmo aquilo parecia se mover para cá e para lá à medida que eles avançavam. Cláudio se perguntava se o que via era real ou um truque do olho, como um dos fantasmas que Herodes dizia que vira no deserto, um mero reflexo de alguma realidade distante e inatingível.

Herodes avançou para perto de Cláudio. Ele lhe perguntou, com a voz volumosa e estrondosa, seu hálito cheirando ao vinho da noite passada. - Você se lembra do aramaico que eu lhe ensinei em Roma, quando éramos garotos?

- Meu caro Herodes, como poderia esquecer? E nestes últimos anos, enquanto você estava representando o velhaco, eu aprendi sozinho o fenício. Estou planejando escrever uma história sobre Cartago, você sabe. E simplesmente não se pode ficar sem ler as fontes originais. Eu não confio em nada que um historiador romano diga sobre os bárbaros.

- Nós não somos bárbaros, Cláudio. Ao contrário. - Herodes empurrou Cláudio divertidamente, quase fazendo com que perdesse o equilíbrio. - De todo modo, eu não confio nos romanos, ponto final. Com uma nobre exceção, é claro. - Empurrou Cláudio com os ombros novamente, depois o abraçou brutalmente para impedi-lo de cair, e os dois riram.

- Será que ele fala grego, o seu homem? - perguntou Cláudio.

- Sim.

- Então vai ser em grego. Minha querida Calpúrnia é uma verdadeira bárbara, você sabe. Seus avós foram trazidos como escravos da Grã-Bretanha pelo meu tio-avô Júlio. Um lugar fascinante. Calpúrnia me conta essas coisas. Um dia eu irei para lá. Acredito que os fenícios alcançaram aquelas praias, mas eu não acredito que legaram sua língua.

- Muito bem então. Vai ser em grego.

Aproximam-se da costa. Cláudio estava novamente andando à frente, e agora podia ver que a embarcação era real, e estava içada a alguns metros da beirada da água. Era uma embarcação de bom tamanho, com uma proa curvada e um único mastro alto, um pouco semelhante àquela que ele havia navegado na baía de Nápoles quando garoto e ainda mantinha em seu barracão em Herculano. Olhou mais atentamente. Debaixo de um toldo atrás da popa estava sentada uma mulher, grávida, trabalhando em alguma coisa no seu colo. Ao lado do casco havia pedaços soltos de madeira, fragmentos de velhas embarcações, e uma prancha feita de alguns cepos com um cuidadoso arranjo de ferramentas, um serrote, uma furadeira de arco, talhadeiras, um cesto com pregos. Cláudio se deu conta de que esta era a fonte do som de funilaria que tinha escutado. Depois um homem se aproximou vindo do outro lado, segurando uma plaina de carpinteiro. Era forte, musculoso e vestia apenas uma tanga, sua pele era profundamente bronzeada, tinha cabelos cortados muito curtos e uma longa barba, exatamente como a aparência de Herodes quando ele voltava de uma difícil temporada de operações militares. Cláudio se dirigiu coxeando para a embarcação, mantendo os olhos sobre o homem. Ele podia ter sido um dos gladiadores em Roma, ou um dos escravos que escaparam das pedreiras de mármore e que Cláudio havia ajudado nos Campi Flegrei perto de Nápoles, onde sua mãe tinha tentado abandoná-lo, mas onde ele havia sido cuidado e auxiliado por proscritos e criminosos.

- Eu sou Cláudio - ele disse, pigarreando. - Meu amigo Herodes me trouxe de Roma para pedir sua ajuda Eu estou doente.

A mulher sorriu para ele, depois abaixou o olhar e continuou o seu trabalho, remendando os fios de corda de uma rede de pescar. O homem olhou para Cláudio direto no rosto. Seus olhos eram intensos, ferozes, como nada que Cláudio havia visto antes. O homem manteve o seu olhar em silêncio durante alguns momentos, depois abaixou o olhar e empurrou sua plaina para frente e para trás, continuando a trabalhar a madeira. - Você não está doente Cláudio. - Sua voz era profunda, masculina, e o grego tinha o mesmo sotaque que o de Herodes. Cláudio fez como se fosse responder, depois se deteve. Estava aturdido, não conseguiu pensar em nada para dizer. As palavras, quando vieram, eram impróprias, inconseqüentes, arrependeu-se instantaneamente. - Você é desta região?

- Maria é do Migdal - disse o homem. - Nasci em Nazaré, na parte baixa da Galiléia, mas vim para cá, para este lago quando era criança. As pessoas daqui são o meu povo, e esta é minha embarcação.

- Você é um construtor de embarcações? Um pescador?

- Este mar é o meu manancial, e as pessoas da Galiléia são meus passageiros. E somos todos pescadores aqui. Você pode se juntar a nós, se quiser.

Cláudio capturou novamente o olhar do homem, e se percebeu assentindo, depois olhou para trás e fez um gesto para os outros. Herodes pulou. A lama espalhando-se em suas canelas desnudas, e abraçou o nazareno da maneira oriental, murmurando saudações em aramaico antes de se voltar para Cláudio. - Quando Josué vem comigo para Tiberíades para passar uma noite nas tavernas, nós o chamamos Jesus, a versão grega de seu nome. Ele solta a língua mais prontamente, especialmente depois de alguns jarros do vinho da Galiléia. - Gargalhou, deu uma palmada nas costas do nazareno e depois se ajoelhou ao lado de Maria, colocando gentilmente a mão em sua barriga. - Está tudo bem? - ele perguntou em aramaico. Ela murmurou sorrindo. Ele saltou para trás, e o nazareno ergueu a mão saudando Calpúrnia e Cipros quando elas vieram caminhando na direção dele pela lama com os pés descalços. Ele passou ao lado delas sem dizer palavra e deslocou uma âncora de pedra grosseira a que a embarcação estivera amarrada, destacando uma corda grossa de cânhamo que estava presa com um laço através de um buraco no centro da pedra. Herodes e as duas mulheres colocaram os cestos que estavam carregando dentro da embarcação, e Maria fez um gesto como para levantar um cântaro ao lado dela, mas o nazareno rapidamente o tirou dela e colocou a mão em sua barriga, sorrindo. Enrolou a corda da âncora e arremessou-a por cima da popa, depois se apoiou contra a viga de madeira e fez um esforço para erguer o barco, cada músculo de seu corpo esticado e saliente. Enquanto Cláudio o observava trabalhar, ele parecia poderoso e sem gordura como a estátua de bronze de Hércules que vira uma vez na grande vila debaixo do Vesúvio. A quilha da embarcação deslizou ao longo da lama lisa até ficar metade dentro das ondas, e então o nazareno recuou, brilhando de suor, enquanto os outros passaram por ele e subiram na embarcação. Cláudio subiu por último, com dificuldade, puxando a perna para cima e sobre a beirada da embarcação. O nazareno deu algumas içadas mais e a embarcação ficou flutuando, e ele rapidamente pulou por sobre a amurada e soltou a vela redonda de onde estava presa, enquanto Maria se sentava perto do remo que servia de leme.

Cláudio e Herodes sentaram-se lado a lado, cada um com um remo, e começaram a remar em uníssono enquanto o vento levava a vela e empurrava a embarcação para além do lugar raso. O casco e o cordame rangiam, a água produzia barulho de gorgolejo e estalava debaixo da proa. Cláudio participava com prazer do exercício, o rosto afogueado e radiante. Se lhe tivesse sido permitido ir ao ginásio em Roma antes que a paralisia se apoderasse dele, então ele poderia agora estar conduzindo as legiões na Alemanha como o seu amado irmão fizera. Mas agora, nesta embarcação, enquanto deslizavam para longe, afastando-se da praia, até que a linha da costa se perdeu na neblina, toda a dor e infelicidade que havia começado a anuviar sua vida parecia ir embora, e pela primeira vez ele se sentiu completo, não mais se debatendo contra si e contra os outros, aqueles que prefeririam não o ver nunca retornar, quando ele foi empurrado em direção à boca do mundo subterrâneo ainda menino.

Andaram à deriva durante horas, impelidos por rajadas de vento, deitados e cochilando na sombra debaixo da vela. O nazareno atirou sua rede e pegou apenas poucos peixes, mas o suficiente para ele cozinhar em uma caçarola sobre um pequeno braseiro. - Oh, príncipe dos pescadores - brincou Herodes. - Você nos diz que o seu reino é como uma rede que é atirada dentro do mar e pega peixes de todos os tipos. Bem, parece que você tem um reino bem pequeno. - Gargalhou e o nazareno sorriu, e continuou a preparar a comida. Mais tarde, Maria tocou a lira, compondo uma música que parecia tremeluzir e ondular como a superfície do lago, e Calpúrnia cantou uma melodia bela e triste, uma canção mística de seu povo. Comeram o que tinham trazido, pão, azeitonas, nozes, figos, uma fruta que Cláudio nunca tinha comido antes, produzida por uma árvore de espinhos, tudo lavado com a água pura das fontes de Tiberíades. Depois disso, jogaram dados, luta de braços de lado a lado de uma prancha solta, e Calpúrnia fez coroas para eles com os galhos finos da árvore frutífera, coroando solenemente Herodes como rei e Cláudio como deus. Herodes os entreteve com uma série de histórias e piadas, até que seus pensamentos começaram a se voltar para o entardecer. - Dizem que você pode operar milagres, Jesus, filho de José - ele disse. - Mas você não pode transformar água em vinho, pode? - Gargalhou novamente, depois pegou com a mão em concha um punhado de água do lago e espirrou-a sobre a cabeça do outro homem. O nazareno riu junto com ele, e os dois homens se empurraram divertidamente, balançando a embarcação de um lado a outro. - De todo modo - disse Herodes, sentando-se de novo. - Nós não podemos ficar aqui muito mais tempo. Estou morrendo de sede. Alguém que ir para as tavernas?

O crepúsculo estava colorindo o céu de vermelho quando Cláudio começou a remar de novo, desta vez sentado ao lado do nazareno. Tinham aportado novamente, e Herodes pôs-se a caminho para voltar para Tiberíades, ansioso para procurar sangue novo entre soldados e marinheiros para passar uma noitada alegre. As três mulheres foram para Migdal, para a casa de Maria. Mas Cláudio quis ficar com o nazareno, para fazer este dia durar para sempre, para perguntar mais, e tinha se oferecido para ajudar o nazareno a lançar sua rede de arrasto no mar, num local distante centenas de metros do alagadiço onde eles tinham visto a embarcação pela primeira vez.

O nazareno remava em silêncio ao lado dele. Depois parou, e olhou para o céu de um vermelho profundo onde o sol tinha se posto, da cor de sangue derramado. - O tempo será bom amanhã - ele disse. - A rede ficará segura aqui da noite para o dia. Depois chegará o outono para a semeadura dos campos. O vento do outono soprará do oeste, trazendo aguaceiros pesados, caindo sobre as colinas da Judéia e purificando a terra. O mar da Galiléia ficará novamente cheio, e no lugar onde estávamos em pé haverá água.

- Herodes diz que você é um profeta - disse Cláudio.

- Faz-me bem ver Herodes - replicou o nazareno. - Tenho o mesmo fogo que ele dentro de mim.

- Herodes diz que você é um escriba, um sacerdote. Ele diz que você é um príncipe da Casa de David.

- Eu ministro para o haaretz, o povo deste lugar - ele disse. - Mas não sou um sacerdote.

- Você é um curandeiro.

- O aleijado e o cego irão andar, e verão além do que o olho de outrem alcança, porque anseiam muito andar e ver.

- Mas quem é você?

- É como você diz.

Cláudio suspirou. - Você fala por parábolas, mas, de onde venho, nossos profetas são oráculos dos deuses, e eles falam por charadas. Eu visito a Sibila, você sabe, em Cumas. Herodes acha que ela é uma velha feiticeira, mas ainda assim vou vê-la. Ele não entende como ela me faz sentir melhor - Cláudio fez uma pausa, consciente de si mesmo. - Virgílio também a visitava. Ele foi o nosso maior poeta. - Cláudio fechou os olhos, declamando de memória, traduzindo o verso em latim para o grego:

 

Agora se aproxima a última época da canção dos cumanos:

A importante direção dos séculos começa de uma maneira nova.

Agora a Virgem retorna, o reino de Saturno retorna,

Agora uma nova raça desce do Céu lá no alto.

Só você, pura Lucina, sorri com o nascimento da criança,

Sob influência da qual a severa descendência por fim cessará

E uma Idade do Ouro surgirá em toda parte do mundo!

 

O nazareno ouvia atentamente, depois colocou a mão no ombro de Cláudio. - Venha. Ajude-me com a rede.

- Você já viu Roma? - perguntou Cláudio. - Todas as maravilhas da Criação humana se encontram ah.

- Aquelas coisas impedem o caminho para o Reino dos Céus - replicou o nazareno.

Cláudio pensou durante um momento, depois pegou a talhadeira com uma mão, a extremidade da rede com a outra. - Você renunciaria a estas coisas?

O nazareno sorriu e tocou Cláudio de novo. - Deixe-me contar-lhe - ele disse - acerca do meu ministério.

Meia hora mais tarde, já tinha quase escurecido, e a embarcação tinha parado suavemente cerca de algumas milhas distante de onde eles tinham saído. As tochas ardentes de Migdal e Tiberíades brilhavam na praia, e outras luzes mais fracas pareciam se agitar ligeiramente a pouca distância da praia. O nazareno pegou um par de lâmpadas a óleo feitas de cerâmica, de uma caixa ao lado da base do mastro, encheu-as com azeite de oliva que havia sobrado do almoço e habilmente acendeu as mechas com uma pederneira e ferro. As lâmpadas se acenderam, depois começaram a queimar fortemente, com chamas douradas e sem fazer fumaça. Ele as colocou em uma pequena prateleira na base do mastro e depois se voltou para Cláudio.

- O seu poeta, Virgílio - ele disse. - Posso ler os seus livros?

- Vou pedir a Herodes para trazê-los a você. Espera-se que ele permaneça em Tiberíades pelo resto do ano, banido de Roma. Talvez ele mesmo lhe faça uma tradução. Isso poderia mantê-lo fora das confusões por um tempo.

Cláudio deixou cair os dados que estava carregando. Antes que eles atingissem o fundo do barco fechou os olhos bem apertados, como se não querendo ver os números, o augúrio. O nazareno os pegou, e os colocou sobre a palma da mão de Cláudio, fechou as mãos em torno deles. Por um momento, permaneceram daquela maneira, depois ele soltou a mão. Cláudio abriu os olhos. - Como retribuição, você deve fazer uma coisa - disse Cláudio. - Você deve escrever o que acaba de me dizer. Seu euangelion, seu evangelho.

- Mas o meu povo não lê. O meu ministério é o da palavra falada. A palavra escrita é um empecilho no caminho para o Reino dos Céus.

Cláudio sacudiu a cabeça. - Se o seu Reino dos Céus se encontra verdadeiramente nesta terra, então ele ficará sujeito à violência, e homens violentos irão maltratá-lo. Como agradecimento por este dia, eu farei todo o possível para que sua palavra escrita permaneça salva e segura, pronta para o tempo em que a memória de sua palavra falada se tornar a palavra dita por outros, palavras moldadas e transformadas pela história.

Houve um silêncio. - Você tem papel? - perguntou o nazareno.

- Sempre tenho - disse Cláudio, procurando sua mochila. - Eu escrevo tudo, como você sabe. Tenho uma ultima folha de primeira qualidade, e alguns pedaços de papel. Uso o papel de boa qualidade para dar minhas instruções especiais. Utilizei a tinta preto-arroxeada, feita de ferro e sais de tanino, ao longo da viagem, mas peguei um pouco da mistura que é considerada como tinta em Tiberíades.

O nazareno ergueu a tábua que tinha usado para fatiar o peixe, limpou-a na água por cima da amurada do barco depois a enxugou em uma beirada da tanga. Colocou a tábua em seus joelhos, depois pegou a folha de papiro e a pena vermelha que Cláudio lhe oferecera. Cláudio abriu um pequeno pote com tampa de madeira e o segurou perto do nazareno, e este mergulhou a pena no tinteiro. Segurou a pena com a mão direita por cima da extremidade superior esquerda do papiro, suspendeu-a por um momento, pensando.

- A Sibila escreve suas profecias em folhas de carvalho - Cláudio riu. - Quando se quer pegá-las, o vento sempre as assopra para longe.

O nazareno olhou para Cláudio direto no rosto, com os olhos penetrantes, depois começou a escrever, com a mão decisiva, arrojada, lenta e deliberadamente, uma mão de quem tinha sido bem ensinada, mas que não escrevia com freqüência. Ele mergulhava a pena na tinta a cada poucas palavras, e Cláudio se concentrava para manter o pote firme. Depois que o nazareno tinha começado a quarta linha, Cláudio olhou pra o que estava escrito, e então falou sem pensar, derramando a tinta em sua mão. - Você está escrevendo em aramaico!

O nazareno ergueu o olhar. - É claro. Esta é a minha língua.

- Não - Cláudio sacudiu a cabeça enfaticamente. - Ninguém em Roma lê o aramaico.

- Escrevo estas palavras para o meu povo, não para o povo de Roma.

- Não. - Cláudio sacudiu a cabeça novamente. - Sua palavra aqui, na Galiléia, é a palavra falada. Você mesmo disse. Os seus pescadores não lêem, e não têm necessidade disto. Sua palavra escrita deve ser lida e compreendida muito além daqui, em Roma. Você não quer ter intérpretes, lembra? Se você escrever em charadas, numa língua estrangeira, suas palavras não serão mais claras que as expressas pela Sibila. Você deve escrever em grego.

- Então, você deve escrevê-las em meu lugar. Eu falo grego, mas não o escrevo.

- Muito bem. - Cláudio pegou a tábua com o papel e a pena, e entregou o pote de tinta. - Devemos começar de novo. - Remexeu em sua mochila, pensou durante um momento, depois pegou um limão cortado da tigela de frutas. Espremeu o limão sobre a escrita, depois esfregou o papiro vigorosamente com um pano que tirou da mochila. Ergueu o papel para que pegasse os últimos raios do sol que estava se pondo, e viu o que o nazareno escrevera ir desaparecendo, enquanto esperava o suco do limão secar. Uma brisa soprou sobre eles, fazendo o papel flutuar, e Cláudio rapidamente o abaixou e pressionou-o contra a tábua em seus joelhos. Mergulhou a pena na tinta e testou o papel, inscrevendo um sinal de cruz como sempre fazia quando iniciava um documento, para ver se a tinta iria se espalhar. O papel era o seu próprio e de primeira qualidade, e a tinta não se espalhou. Resmungou, depois escreveu algumas palavras no topo da página, com a mão cuidadosa de um estudioso ciente de que sua escrita usualmente era legível apenas para ele mesmo.

- Estou falando em grego agora para você, mas falo meu evangelho para o meu povo em aramaico - disse o nazareno. - Você deve me ajudar a encontrar as palavras em grego para o que tenho a dizer.

- Estou pronto.

Uma hora mais tarde, os dois homens se sentavam imóveis, de frente um para o outro, na embarcação, uma silhueta que estava ficando cada vez mais escurecida sob o céu sem lua, e logo desapareceria. As lâmpadas chiaram entre elas, depois uma se apagou. O nazareno deslizou ao longo da prancha onde estava sentado em direção a um lado da embarcação, depois colocou a mão no espaço ao seu lado.

- Nós precisamos remar juntos.

Cláudio ergueu o olhar do papel, e sorriu. - Eu não desejaria nada melhor. - Olhou novamente para o papel, quase incapaz de vê-lo agora, e leu as palavras finais que o nazareno havia dito, que ele tinha traduzido:

O Reino dos Céus é na terra.

Os homens não se interporão no caminho para a palavra de Deus. E a Casa do Senhor será o Reino dos Céus. Não haverá sacerdotes. E não haverá templos...

 

 

                                                                                                    David Gibbins

 

 

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