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Várias vezes me falaram do homem que, numa casa do bair¬ro de Flores, esconde a réplica de uma cidade em que trabalha há anos. Construiu-a com materiais mínimos e numa escala tão re¬duzida que podemos vê-la de uma só vez, próxima e múltipla e como que à distância na suave claridade do amanhecer.
A cidade sempre está longe, e essa sensação de afastamento, tão de perto, é inesquecível. Vêem-se os edifícios e as praças e as avenidas e se vê o subúrbio que declina para oeste até perder-se no campo.
Não é um mapa nem uma maquete, é uma máquina sinóp-tica; toda a cidade está ali, concentrada em si mesma, reduzida a sua essência. A cidade é Buenos Aires, porém modificada e alte¬rada pela loucura e pela visão microscópica do construtor.
O homem diz que se chama Russell e é fotógrafo, ou ganha a vida como fotógrafo, e seu laboratório fica na rua Bacaray, e ele passa meses sem sair de casa reconstruindo periodicamente os bairros do sul, que o transbordamento do rio arrasa e inunda sempre que chega o outono.
Russell acredita que a cidade real depende de sua réplica, e por isso está louco. Ou melhor, por isso não é um simples fotó¬grafo. Alterou as relações de representação, de modo que a cida¬de real é a que esconde em sua casa, enquanto a outra é apenas uma miragem ou uma lembrança.
A planta acompanha o traçado da cidade geométrica imagi¬nada por Juan de Garay quando fundou Buenos Aires, com as ampliações e modificações que a história impôs à remota estru¬tura retangular. Entre os barrancos que se avistam do rio e os al¬tos edifícios que formam sua muralha na fronteira norte perma¬necem os rastros da velha Buenos Aires, com seus tranqüilos bairros arborizados e seus campinhos de grama seca.
O homem imaginou uma cidade perdida na memória e a repetiu tal como a lembra. O real não é o objeto da representa¬ção, mas o espaço em que se dá um mundo fantástico.
A construção só pode ser visitada por um espectador de ca¬da vez. Essa atitude incompreensível para todos é, no entanto, clara para mim: o fotógrafo reproduz na contemplação da cida¬de o ato de ler. Aquele que a contempla é um leitor, e portanto precisa estar sozinho. Essa aspiração à intimidade e ao isolamento explica o sigilo que cercou seu projeto até hoje.
A leitura, dizia Ezra Pound, é uma arte da réplica. Às vezes os leitores vivem num mundo paralelo e às vezes imaginam que esse mundo entra na realidade. É fácil imaginar o fotógrafo ilu¬minado pela luz vermelha de seu laboratório que, no silêncio da noite, pensa que sua máquina sinóptica é uma chave secreta do destino e que o que se altera em sua cidade se reproduz em seguida nos bairros e nas ruas de Buenos Aires, só que ampliado e sinistro. As modificações e os desgastes por que passa a réplica - os pequenos desmoronamentos e as chuvas que alagam os bairros baixos - tornam-se reais em Buenos Aires sob a forma de breves catástrofes e acidentes inexplicáveis.
A cidade se refere, portanto, a réplicas e representações, à leitura e à percepção solitária, à presença do que se perdeu. Sem sombra de dúvida se refere ao modo de tornar visível o invisível e de fixar as imagens nítidas que já não vemos, mas que conti¬nuam insistindo como fantasmas e que vivem entre nós.
Essa obra privada e clandestina, construída pacientemente no sótão de uma casa de Buenos Aires, vincula-se secretamente a certas tradições da literatura do rio da Prata; para o fotógrafo do bairro de Flores, assim como para Onetti ou para Felisberto Hernández, a tensão entre objeto real e objeto imaginário não existe, tudo é real, tudo está aqui, e nos movemos entre os par¬ques e as ruas deslumbrados por uma presença sempre distante.
A diminuta cidade é como uma moeda grega submersa a brilhar sobre o leito de um rio à última luz da tarde. Não repre¬senta nada, somente o que se perdeu. Está ali, fechada mas fora do tempo, e possui a condição da arte; desgasta-se, não envelhe¬ce, foi feita como um objeto precioso que comanda o intercâm¬bio e a riqueza.
Lembrei-me um dia destes das páginas que Claude Lévi-Strauss escreveu em La Pensée sauvage sobre a obra de arte como modelo reduzido. A realidade trabalha em escala real, tandis que 1'art travaille à Véchelle réduite. A arte é uma forma sintética do universo, um microcosmo que reproduz a especificidade do mun¬do. A moeda grega é um modelo em escala de toda uma econo¬mia e de toda uma civilização, e ao mesmo tempo é apenas um objeto extraviado que brilha ao entardecer na transparência da água.
Há alguns dias resolvi finalmente visitar o estúdio do fotó¬grafo do bairro de Flores. Era uma tarde clara de primavera e as magnólias começavam a florir. Parei na frente das altas portas duplas e toquei a campainha, que soou à distância, no fundo do corredor que se adivinhava do outro lado.
Pouco depois um homem esguio e tranqüilo, de olhos cin¬zentos e barba cinzenta, vestindo um avental de couro, abriu a porta. Com extrema amabilidade e em voz baixa, quase num sus¬surro em que se percebia o tom áspero de uma língua estrangei¬ra, cumprimentou-me e me disse que entrasse.
A casa tinha um saguão que dava para um pátio e no fundo do pátio ficava o estúdio. Era um galpão espaçoso com telhado de duas águas e em seu interior se amontoavam mesas, mapas, má¬quinas e estranhas ferramentas de metal e de vidro. Nas paredes havia muitas fotografias da cidade e desenhos de formas incer¬tas. Russell acendeu as luzes e me convidou a sentar. Em seus olhos de sobrancelhas cerradas ardia uma centelha maliciosa. Sorriu, e então lhe entreguei a velha moeda que trouxera para ele.
Olhou-a de perto com atenção, depois afastou-a e balançou a mão para sentir o peso leve do metal.
- Um dracma - disse. - Para os gregos era um objeto ao mesmo tempo trivial e mágico... A ousia, palavra que designava o ser, a substância, significava igualmente riqueza, dinheiro. - Fez uma pausa. - Uma moeda era um minúsculo oráculo privado, e nas encruzilhadas da vida era jogada para o alto para que se soubesse o que decidir. O destino está na esfinge de uma moeda. - Lançou-a para o alto e aparou-a, cobrindo-a com a palma da mão. Olhou. - Tudo vai dar certo.
Ergueu-se e apontou para um lado. A planta de uma cidade se destacava entre os desenhos e as máquinas.
- Um mapa - disse - é uma síntese da realidade, um es¬pelho que nos guia na confusão da vida. É preciso saber ler entre as linhas para encontrar o caminho. Veja bem. Se a pessoa estu¬da o mapa do lugar onde mora, primeiro tem de encontrar o lu¬gar em que está ao olhar o mapa. Aqui, por exemplo, é a minha casa. Esta é a rua Puan, esta a avenida Rivadavia. O senhor, agora, está aqui. - Fez uma cruz. - É este. - Sorriu.
Houve um silêncio. Ao longe, ouviu-se o pio repetido de um pássaro.
Russell pareceu acordar e lembrou-se de que eu lhe trouxera a moeda grega; segurou-a novamente na palma da mão aberta.
- Foi o senhor que fez? - Olhou-me, com um gesto de cumplicidade. - Se for falsa, é perfeita - disse, e em seguida estudou com a lupa as linhas sutis e as nervuras do metal. - Não é falsa, está vendo? - Percebiam-se marcas tênues, feitas com uma faca ou uma pedra. - E aqui - disse-me - alguém mor¬deu a moeda para provar que era legítima. Um camponês, possi¬velmente, ou um soldado.
Depositou a moeda sobre uma placa de vidro e a observou sob a luz intensa de uma lâmpada azul, depois instalou uma câmera antiga sobre um tripé e começou a fotografá-la. Trocou vá¬rias vezes a lente e o tempo de exposição para reproduzir com maior nitidez as imagens gravadas na moeda.
Enquanto trabalhava, esqueceu-se de mim.
Andei pela sala observando os desenhos e as máquinas e as galerias que se abriam em um dos lados até que, ao fundo, vi a escada que dava para o sótão. Era circular e era de ferro e subia até perder-se lá no alto. Subi tateando na penumbra, sem olhar para baixo. Apoiado no corrimão escuro, senti que os degraus eram irregulares e incertos.
Quando cheguei em cima, a luz me ofuscou. O sótão era circular e o teto era de vidro. Uma claridade nítida inundava o lugar.
Vi uma porta e um catre, vi um Cristo na parede do fundo e, no centro da peça, distante e próxima, vi a cidade, e o que vi era mais real do que a realidade, mais indefinido e mais puro.
A construção estava ali, como que fora do tempo. Tinha um centro, mas não tinha fim. Em certas regiões dos subúrbios, quase no limite externo, começavam as ruínas. Nos contornos, do outro lado, corria o rio que levava ao delta e às ilhas. Numa dessas ilhas, certa tarde, alguém imaginara uma ilhota infestada por la¬maçais na qual as marés punham em marcha periodicamente o mecanismo da lembrança. A leste, perto das avenidas centrais, erguia-se o hospital de paredes de azulejos brancos onde uma mulher ia morrer. A oeste, perto do parque Rivadavia, estendia se, calmo, o bairro de Flores, com seus jardins e suas paredes envidraçadas e, ao fundo de uma rua de paralelepípedos desiguais, nítida na quietude do subúrbio, via-se a casa da rua Bacacay com, no alto, visível apenas na visibilidade extrema do mundo, a luz vermelha do laboratório do fotógrafo oscilando na noite.
Fiquei ali durante um período de tempo que não sei deter¬minar. Observei, como se estivesse alucinado ou adormecido, o movimento imperceptível que pulsava na diminuta cidade. Por fim, olhei-a pela última vez. Era uma imagem remota e única que reproduzia a forma real de uma obsessão. Lembro-me de descer tateando pela escada circular até a semi-escuridão da sala.
Russell, da mesa onde manipulava seus instrumentos, viu-me entrar como se esperasse por mim e, depois de uma breve in¬decisão, aproximou-se e pousou a mão em meu ombro.
- Viu? - perguntou. Fiz que sim, sem falar. E nada mais.
- Agora, então - disse ele -, pode ir embora e contar o que viu.
Na penumbra do entardecer, Russell me acompanhou até o saguão que dava para a rua.
Quando abriu a porta, recebeu-nos o ar suave da primave¬ra vindo das cercas imóveis e dos jasmins das casas vizinhas.
- Tome - disse, e me entregou a moeda grega. E nada mais.
Caminhei pelas calçadas arborizadas até chegar à avenida Rivadavia, depois entrei no metrô e viajei atordoado pelo rumor surdo do trem. A imagem imprecisa de meu rosto se refletia no vidro da janela. Pouco a pouco a microscópica cidade circular se perfilou na penumbra do túnel com a firmeza e a intensidade de uma lembrança inesquecível.
Naquele momento compreendi o que já sabia: o que pode¬mos imaginar sempre existe, em outra escala, em outro tempo, nítido e distante, como num sonho.
1. O que é um leitor?
PAPÉIS AMASSADOS
Existe uma fotografia em que se vê Borges tentando decifrar as letras de um livro que segura grudado ao rosto. Está numa das galerias elevadas da Biblioteca Nacional da rua México, de cóco¬ras, o olhar na página aberta.
Um dos leitores mais convincentes que conhecemos, a res¬peito de quem podemos imaginar que perdeu a visão lendo, ten¬ta, apesar de tudo, prosseguir. Essa poderia ser a primeira imagem do último leitor, aquele que passou a vida inteira lendo, aquele que queimou os olhos na luz da lâmpada. "Agora sou um leitor de páginas que meus olhos já não vêem."
Há outros casos, e Borges os evocou como se fossem seus antepassados (Mármol, Groussac, Milton). Um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente. Na clínica da arte de ler, nem sempre o que tem melhor visão lê melhor.
"O Aleph", o objeto mágico do míope, o ponto de luz em que todo o universo se desorganiza e se organiza conforme a po¬
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sição do corpo, é um exemplo dessa dinâmica do ver e do deci¬frar. Os signos na página, quase invisíveis, se abrem para univer¬sos múltiplos. Em Borges, a leitura é uma arte da distância e da escala.
Kafka via a literatura do mesmo modo. Numa carta para Felice Bauer, define assim a leitura de seu primeiro livro: "Real¬mente há nele uma incurável desordem, e é preciso aproximar-se muito para ver alguma coisa" (grifo meu).
Primeira questão: a leitura é uma arte da microscopia, da perspectiva e do espaço (não só os pintores se ocupam dessas coi¬sas). Segunda questão: a leitura é coisa de óptica, de luz, uma di¬mensão da física.
Finnegans Wake é um laboratório que submete a leitura a sua prova mais extrema. A medida que nos aproximamos, aquelas linhas nebulosas se transformam em letras e as letras se amontoam e se misturam, as palavras se transmutam, se alteram, o texto é um rio, uma torrente múltipla em contínua expansão. Lemos restos, pedaços soltos, fragmentos, a unidade do sentido é ilusória.
A primeira representação espacial desse tipo de leitura já es¬tá em Cervantes, sob a forma dos papéis que ele recolhia na rua. Essa é a situação inicial do romance, seu pressuposto, melhor di¬zendo. "Sou aficionado a ler até pedaços de papéis pelas ruas", afirma-se no D. Quixote (i, 9).
Poderíamos ver nesse trecho a condição material do leitor moderno: ele vive num mundo de signos; está rodeado de palavras impressas (que, no caso de Cervantes, a imprensa começou a difundir pouco antes); no tumulto da cidade, ele se detém para recolher papéis atirados na rua, deseja lê-los.
Só que agora, diz Joyce em Finnegans Wake - ou seja, na outra ponta do arco imaginário que se abre com D. Quixote esses papéis amassados estão perdidos numa lixeira, bicados
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por uma galinha que cavouca o chão. As palavras se misturam, se enlameiam, são letras corridas, mas continuam legíveis. Já sabemos que Finnegans é uma carta extraviada numa lixeira, um "tumulto de borrões e de manchas, de gritos e contorções e frag¬mentos justapostos". Shaum, aquele que lê e decifra no texto de Joyce, está condenado a "cavoucar para todo o sempre até fundir os miolos e perder a cabeça, o texto se destina a esse leitor ideal que sofre de uma insônia ideal" (by that ideal reader suffering from an ideal insomnia).
O leitor viciado, o que não consegue deixar de ler, e o leitor insone, o que está sempre desperto, são representações extremas do que significa ler um texto, personificações narrativas da com¬plexa presença do leitor na literatura. Eu os chamaria de leitores puros; para eles a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida.
Muitas vezes os textos transformaram o leitor num herói trágico (e a tragédia tem muito a ver com ler mal), num obstina¬do que perde a razão porque não quer capitular em sua tentati¬va de encontrar o sentido. Existe uma ampla relação entre droga e escrita, mas poucos rastros de uma possível relação entre droga e leitura, exceto em certos romances (de Proust, Arlt, Flaubert) em que a leitura se transforma numa dependência que distorce a rea¬lidade, numa doença e num mal.
Trata-se sempre do relato de uma exceção, de um caso-limite. Na literatura, aquele que lê está longe de ser uma figura nor¬malizada e pacífica (não fosse assim, não haveria narração); antes, aparece como um leitor extremo, sempre apaixonado e compul¬sivo. (Em "O Aleph" o universo inteiro é um pretexto para ler as cartas obscenas de Beatriz Viterbo.)
Rastrear o modo como a figura do leitor está representada na literatura supõe trabalhar com casos específicos, histórias par¬ticulares que cristalizam redes e mundos possíveis.
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Detenhamo-nos, por exemplo, na cena em que o Cônsul, no fim de Under the Volcano, o romance de Malcolm Lowry, lê car¬tas no El Farolito, a cantina de Parián, no México, à sombra de Popocatépetl e do Iztaccíhuatl. Estamos no último capítulo do livro, e em certo sentido o Cônsul foi até ali para encontrar o que perdeu. São as cartas que Yvonne, sua ex-mulher, lhe escreveu ao longo daqueles meses de ausência e que o Cônsul esqueceu no bar, meses antes, bêbado. Trata-se de um dos temas centrais do romance; a intriga oculta que sustenta a trama, as cartas extra viadas que, apesar de tudo, chegaram a seu destino. Quando ele as vê, compreende que só poderiam estar ali e em nenhum outro lugar, e no fim irá morrer por elas.
O Cônsul bebeu um pouco mais de mezcal.
"É esse silêncio que me apavora... esse silêncio..."
O Cônsul releu várias vezes essa frase, a mesma frase, a mesma carta, todas as letras, inúteis como as que chegam ao porto a bor¬do de um navio dirigidas a alguém que ficou sepultado no mar, e como estava com certa dificuldade de fixar a vista, as palavras se tornavam indistintas, desarticuladas, e seu próprio nome lhe cau¬sava estranhamento; mas o mezcal o pusera novamente em conta¬to com sua situação, a tal ponto que agora não precisava mais compreender significado algum nas palavras além da abjeta con¬firmação de sua própria perdição...
No universo do romance as velhas cartas são entendidas e decifradas pelo próprio texto; mais do que um sentido, produ¬zem uma experiência e, ao mesmo tempo, só a experiência permite decifrá-las. Não se trata de interpretar (porque já se sabe tudo), mas de reviver. O romance - ou seja, a experiência do Cônsul - é o contexto e o comentário daquilo que se lê. As palavras lhe dizem respeito pessoalmente, como uma espécie de pro¬fecia realizada.
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No excesso é possível entrever um pouco da verdade da prá¬tica da leitura; seu avesso, sua zona secreta: os usos desviados, a leitura fora do lugar. Talvez o exemplo mais nítido desse modo de ler esteja no sonho (nos livros que se lêem nos sonhos).
Em determinado ponto de sua biografia, Richard Ellman mostra Joyce muito interessado nessas questões. '"Me diga, Bird', disse ele a William Bird, um companheiro freqüente naqueles dias, 'alguma vez você já sonhou que estava lendo?' 'Muitas vezes', res¬pondeu Bird. 'Então me diga: com que velocidade você lê em seus sonhos?'"
Há uma relação entre a leitura e o real porque também há uma relação entre a leitura e os sonhos, e nesse duplo vínculo o romance tramou sua história.
Melhor dizendo, o romance - com Joyce e Cervantes em primeiro lugar - procura seus temas na realidade, mas encon¬tra nos sonhos um modo de ler. Essa leitura noturna define um tipo particular de leitor, o visionário, o que lê para saber como vi¬ver. Sem dúvida, o Astrólogo de Arlt é uma figura extrema desse tipo de leitor. Assim como Erdosain, seu duplo melancólico e suicida, que lê num jornal a notícia de um crime e depois a repe¬te quando mata la Bizca.
Nesse registro imaginário e quase onírico dos modos de ler, com suas táticas e seus desvios, com suas modulações e suas mu¬danças de ritmo, produz-se também um outro deslocamento, que é uma amostra da forma específica com que a literatura nar¬ra as relações sociais. A experiência está sempre localizada e si¬tuada, concentra-se numa cena específica, nunca é abstrata.
Haveria, nesse sentido, dois caminhos. Por um lado, acom¬panhar o leitor, visto sempre de viés, quase como um detalhe à margem, em certas cenas que condensam e fixam uma história muito fluida. Por outro lado, acompanhar o registro imaginário da prática em si e seus efeitos, uma espécie de história invisível
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dos modos de ler, com suas ruínas e suas pegadas, sua economia e suas condições materiais.
Efetivamente, ao fixar as cenas de leitura, a literatura indivi¬dualiza e designa aquele que lê, faz com que ele seja visto num contexto preciso, nomeia-o. E o nome próprio é um acontecimen¬to, porque o leitor tende a ser anônimo e invisível. De repente o nome associado à leitura remete à citação, à tradução, à cópia, às diferentes maneiras de escrever uma leitura, de tornar visível que se leu (o crítico seria, nesse sentido, a figuração oficial desse tipo de leitor, mas evidentemente não o único nem o mais interessan¬te). Trata-se de um tráfico paralelo ao das citações: uma figura é nomeada, ou melhor, é citada. Faz-se ver uma situação de leitura, com suas relações de propriedade e seus modos de apropriação.
Procuramos, então, as figurações do leitor na literatura; ou seja, as representações imaginárias da arte de ler na ficção. Ten¬tamos fazer uma história imaginária dos leitores, e não uma his¬tória da leitura. Não nos perguntaremos tanto o que é ler, como quem é aquele que lê (onde está lendo, para quê, em que condi¬ções, qual é a sua história).
Eu denominaria esse tipo de representação de uma lição de leitura, se me for permitido alterar o título do texto clássico de Lévi-Strauss e imaginar a posição do antropólogo que recebe a des¬crição de um informante sobre uma cultura que desconhece. Essas cenas funcionariam, então, como uma espécie de pequenos infor¬mes sobre o estado de uma sociedade imaginária a sociedade dos leitores - que sempre parece a ponto de entrar em extinção ou, em todo caso, cuja extinção está anunciada desde sempre.
Entre nós, o primeiro que pensou esses problemas foi, como sabemos, Macedonio Fernández, Macedonio tinha a pretensão de que seu Museo deIa novela de la eterna fosse a obra em que
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o leitor será finalmente lido". E se propôs estabelecer uma classi¬ficação: séries, tipologias, categorias e casos de leitores. Uma es¬pécie de zoologia ou de botânica irreal que identifica gêneros e espécies de leitores na selva da literatura.
Para poder definir o leitor, diria Macedonio, primeiro é pre¬ciso saber encontrá-lo. Ou seja, nomeá-lo, individualizá-lo, con¬tar sua história. A literatura faz isso: dá ao leitor um nome e uma história, retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que passe a ser parte integrante de uma narração específica.
A pergunta "o que é um leitor?" é, sem sombra de dúvida, a pergunta da literatura. Essa pergunta a constitui, não é externa a si mesma, é sua condição de existência. E a resposta a essa pergun¬ta - para benefício de todos nós, leitores imperfeitos porém reais - é um texto: inquietante, singular e sempre diverso.
OS RASTROS DE TLÕN
Sempre existe algo de inquietante, ao mesmo tempo estra¬nho e familiar, na imagem concentrada de alguém que lê, uma misteriosa intensidade que a literatura fixou inúmeras vezes. O sujeito se isolou, parece separado do real.
Hamlet entra lendo um livro imediatamente depois da apa¬rição do fantasma do pai, e o fato é imediatamente percebido como um sinal de melancolia, um sintoma de perturbação.
Em seu Diário, Kafka se referiu à própria estranheza peran¬te a excisão que acompanha o ato de ler. "Enquanto eu lia Beethoven e os apaixonados, passavam-me pela cabeça diversos pen¬samentos que não tinham a menor relação com a história que eu estava lendo (pensei no jantar, pensei em Lowy, que esperava por mim), mas esses pensamentos não me entorpeciam a leitura, que justamente hoje foi muito pura."
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A vida não se detém, diria Kafka, somente se separa daque¬le que lê, segue seu curso. Há um certo desajuste que, paradoxal¬mente, a leitura viria exprimir.
O leitor inventado por Borges se instala nesse espaço. O que estou dizendo é que Borges inventa o leitor como herói a partir do espaço que se abre entre a letra e a vida. E esse leitor (que fre¬qüentemente afirma chamar-se Borges, mas que também pode chamar-se Pierre Menard ou Hermann Soergel ou ser o anônimo bibliotecário aposentado de "O livro de areia") é um dos perso¬nagens mais memoráveis da literatura contemporânea. O leitor mais criativo, mais arbitrário, mais imaginativo que já existiu des¬de D. Quixote. E o mais trágico.
Em Borges já não se trata de alguém que - como Kafka, digamos -, no dormitório da casa familiar, noite alta, lê um li¬vro sentado diante de uma janela voltada para as pontes de Pra¬ga. Trata-se, em vez disso, de alguém perdido numa biblioteca, alguém que passa de um livro para outro, que lê uma série de livros e não um livro isolado. Um leitor disperso na fluidez e no rastreamento e que tem todos os volumes a sua disposição. Vai atrás de nomes, fontes, alusões; passa de uma citação para outra, de uma referência para outra.
O exame microscópico das leituras também se expande: o leitor vai da citação para o texto como série de citações, do texto para o volume como série de textos, do volume para a enciclopé¬dia, da enciclopédia para a biblioteca. Esse espaço fantástico não tem fim porque supõe a impossibilidade de encerrar a leitura, a sensação acachapante de tudo o que ainda falta ler.
Não obstante, alguma coisa falha, sempre, nessa série: uma citação que se extraviou, uma página que se espera encontrar e que está em algum outro lugar.
"Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius" - o conto de Borges que defi¬ne sua obra - começa com um texto perdido, um artigo da en¬
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ciclopédia; alguém o leu, mas não consegue mais encontrá-lo. O que irrompe não é o real, mas a ausência, um texto que não se tem e cuja busca leva, como num sonho, ao encontro de outra realidade.
A falta é imediatamente assimilada ao que foi substraído. Há nisso um quê político que remete ao complô, a uma lógica cruel e sigilosa que altera a ordem do mundo. Alguém está de posse do que falta, alguém o apagou. Não é um enigma nem um mistério; é um segredo, no sentido etimológico (scernere significa "pôr à parte", "esconder"). Uma página - um livro - sumiu, a carta foi roubada, o sentido vacila e, nessa vacilação, emerge o fantástico.
A versão contemporânea da pergunta "o que é um leitor?" se instala nesse lugar. O leitor perante o infinito e a proliferação. Não o leitor que lê um livro, mas o leitor perdido numa rede de signos.
O imaginário se aloja entre o livro e a lâmpada, dizia Foucault, falando de Flaubert. No caso de Borges, o imaginário se instala entre os livros, surge em meio à sucessão simétrica de vo¬lumes alinhados nas estantes silenciosas de uma biblioteca.
"A certeza de que tudo está escrito nos anula e nos transfor¬ma em fantasmas", escreve Borges. A metáfora do incêndio da bi¬blioteca é, muitas vezes, em seus textos, uma ilusão noturna e um alívio impossível. Os livros permanecem, perdidos nos profundos corredores circulares. Todos nós, diz Borges, ali nos extraviamos.
Nesse universo saturado de livros, em que tudo está escrito, só é possível reler, ler de outro modo. Por isso, uma das chaves desse leitor inventado por Borges é a liberdade no uso dos textos, a disposição para ler segundo o interesse e a necessidade. Uma certa arbitrariedade, uma certa inclinação deliberada para ler mal, para ler fora do lugar, para relacionar séries impossíveis. A marca dessa autonomia absoluta do leitor em Borges é o efeito de ficção produzido pela leitura.
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Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (Borges não é Derrida, não é Paul de Man), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura.
Podemos ler filosofia como literatura fantástica, diz Borges, ou seja, podemos transformar a filosofia em ficção mediante um deslocamento e um erro deliberado, um efeito produzido no ato mesmo de ler.
Podemos ler a Enciclopédia britânica como ficção, e estare¬mos no mundo de Tlõn. A Enciclopédia britânica apócrifa de Tlõn é a descrição de um universo alternativo surgido da própria leitura.
Sem dúvida, o mundo de Tlõn é um hrõnirde Borges: a ilu¬são de um universo criado pela leitura e que dela depende. Há uma certa inversão do bovarismo, sempre implícita em seus tex¬tos; não se lê a ficção como mais real do que o real, mas o real perturbado e contaminado pela ficção.
Por isso, no fim o mundo é invadido por Tlõn, a realidade se dissolve e se altera. O narrador se refugia novamente na leitu¬ra; desta vez em outro tipo de leitura, uma leitura controlada, minuciosa, a leitura como tradução. O tradutor é, aqui, o leitor perfeito, um copista que escreve o que lê em outra língua, que copia, fiel, um texto, e na minuciosidade dessa leitura esquece o real: "O contato e o hábito de Tlõn desintegraram esse mundo [...] Não me incomodo, continuo revisando, nos quietos dias do hotel da Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que não pretendo publicar) do Urn Burial, de Browne".
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"Tlõn, Uqbar, Orbis Tertius" apresenta os dois movimentos do leitor em Borges: a leitura é ao mesmo tempo a construção de um universo e um refúgio diante da hostilidade do mundo.
O que me interessa destacar no belíssimo final de "Tlõn" é uma coisa que encontraremos em muitos outros textos de Borges: a loucura como defesa. A quietude a que se refere a hipálage está no ato de ler; tudo fica em suspenso; a vida, por fim, se deteve.
Encontramos de novo a fissura, a excisão que a leitura viria exprimir. Um contraste entre as exigências práticas, digamos, e aquele momento de quietude, de solidão, aquela forma de reco¬lhimento, de isolamento, em que o sujeito se perde, indeciso, na rede dos signos.
Do outro lado dos livros, transposta a superfície preta e bran¬ca das palavras impressas, do outro lado de um jardim e de uma grade de ferro, o mundo parece irreal, ou, melhor dizendo, o mundo é exatamente essa irrealidade.
Ao mesmo tempo, em Borges o ato de ler articula o imagi¬nário e o real. Melhor seria dizer: a leitura constrói um espaço entre o imaginário e o real, desmonta a clássica oposição binária entre ilusão e realidade. Não existe nada simultaneamente mais real e mais ilusório do que o ato de ler.
Muitas vezes o ponto em que se cruzam o sonho e a vigília, a vida e a morte, o real e a ilusão, é representado pelo ato de ler.
Basta pensar na dupla viagem narrada em "O Sul". Lá está Dhalman, para quem a sofreguidão de ler o exemplar já muito gasto de As mil e uma noites provoca um acidente que o leva à morte. (E muitas vezes, em Borges, a leitura leva à morte.) Mais adiante encontramos Dahlman convalescente, lendo As mil e uma noites no trem para esquecer a doença até ser distraído pela planície, ser distraído pela realidade e, aliviado, deixar-se, sim¬
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plesmente, viver. E, por fim, Dhalman naquele lugarejo perdido ao sul da província de Buenos Aires recorrendo à leitura para isolar-se e proteger-se e refugiando-se mais uma vez no volume de As mil e uma noites até ser arrancado de seu isolamento pelos fregueses do armazém, que o atazanam e desafiam.
Sabemos que se trata de um sonho. No momento de mor¬rer de septicemia no leito do hospital, Dhalman imagina - esco¬lhe, afirma Borges - uma morte heróica num combate a céu aberto. Essa morte é real, é contada como se fosse real - portan¬to é real. Uma vez mais, na planície argentina, nos fundos de um armazém, ocorre um duelo a faca.
O volume de As mil e uma noites está nas duas mortes; seria o caso de dizer que ele é a causa das duas mortes. Num dos casos, é a sofreguidão de ler que desemboca no acidente; no outro, é o risco de ler que desemboca no desafio.
Porém há outra coisa que desejo destacar aqui. No arma¬zém, Dhalman é provocado porque está lendo, porque o vêem ler, distraído, um livro. Quero dizer que, freqüentemente, o outro do leitor também está representado. Não apenas o que lê, como também quem enfrenta aquele que lê, com quem ele dialoga e negocia essa forma de construir o sentido que é a leitura.
Bastaria pensar em D. Quixote e em Sancho, na decisão mi¬lagrosa de Cervantes que, logo depois da primeira investida, põe em cena aquele que não lê. "Pois lhe asseguro que não sei ler", respondeu Sancho (i, 31). Esse encontro, esse diálogo, funda o gênero. Seria o caso de dizer-se que nessa decisão, que confronta leitura e oralidade, está o romance inteiro.
LEITORES NO DESERTO ARGENTINO
Não há dúvida de que a pergunta "o que é um leitor?" tam¬bém é a pergunta do outro. A pergunta - às vezes irônica, às ve¬
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zes agressiva, às vezes piedosa, mas sempre política - daquele que olha ler aquele que lê.
A literatura argentina é percorrida por essa tensão. Muitas vezes a oposição entre civilização e barbárie foi representada des¬sa maneira. Como se essa fosse sua encarnação básica, como se nisso se jogassem a política e as relações de poder.
Evoquemos a cena em que Mansilla (um dos grandes escri¬tores argentinos do século xx, autor de Una excursión a los índios Ranqueles) lê Le Contrat social, de Rousseau - em francês, evi¬dentemente -, sentado debaixo de uma árvore, no campo, perto de um abatedouro onde o gado é sacrificado, até o momento em que seu pai (o general Lúcio N. Mansilla, herói da batalha de Vuelta Obligado) se aproxima dele e lhe diz: "Meu amigo, um sobrinho de dom Juan Manuel de Rosas não lê O contrato social caso pretenda ficar neste país. Que parta, se quiser lê-lo com pro¬veito". E finalmente o despacha para o exílio.
Nessa cena narrada por Mansilla em suas Causeries e que transcorre em 1846, cristalizam-se redes de toda a cultura argen¬tina do século xix. A civilização e a barbárie, como decretou Sar-miento.
Rousseau e o abatedouro. De um lado, a tradição dos letra¬dos (é preciso dizer que Mariano Moreno, o ideólogo da inde¬pendência, o líder da revolução contra o absolutismo espanhol, foi o primeiro tradutor de O contrato social). De outro, logo em frente, o abatedouro, uma sinédoque clássica da barbárie vista da própria origem da literatura argentina, o lugar sangrento onde as classes perigosas se adestram na arte de matar.
A civilização e a barbárie estão em jogo no controle do sen¬tido, nas diferentes maneiras de aceder ao sentido. Mas nada nun¬ca é tão esquemático.
O complemento dessa cena está na história extraordinária do coronel Baigorria, que cruza a fronteira e vai viver com os ín¬
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dios (como Martin Fierro e o sargento Cruz no final de Martin Fierro), e para quem os Ranqueles (os mesmos Ranqueles que Mansilla visitará vinte anos depois) levam, depois de um ataque às povoações do norte, um exemplar do Facundo, de Sarmiento. Estamos em 1850.
Baigorria escreve suas memórias depois de voltar para a ci¬vilização, por assim dizer, e nelas conta sua vida na terceira pes¬soa (e vários cronistas da região fronteiriça com os territórios indígenas, como Estanislao Zeballos, também narraram sua experiência com o famoso "Cacique blanco").
Tinha um exemplar de Facundo, de Sarmiento, com páginas fal¬tando, que era sua leitura predileta e que o apaixonava [...] Aque¬le livro fora um presente de um cacique que saqueara uma carre¬ta na vila de Achiras, [...] Baigorria mandara construir um rancho de palha e barro num local afastado do acampamento de Paine; ali cultivava solitariamente seus instintos civilizados.
Um rancho para ler no meio da planície. Solitariamente. Parece mais drástico do que a biblioteca de Borges.
No deserto, do outro lado da fronteira, entre os índios, um leitor - uma versão extremada de Dhalman - lê Facundo e re¬vive nesse livro, talvez, a experiência e o sentido do mundo que deixou para trás.
Antes de mais nada, seria o caso de descobrir o que faz aí esse exemplar de Facundo, livro publicado no Chile três anos an¬tes: em que mãos esteve, onde perdeu as páginas que lhe faltam, quem o levava na tal canela em pleno período de Rosas, e tam¬bém o que significava o livro para os Ranqueles, para que resol¬vessem recolhê-lo junto com os despojos da matança e levá-lo para Baigorria.
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A pergunta "o que é um leitor?" é também a pergunta sobre como os livros vão parar nas mãos daquele que os lê, como é nar¬rada a entrada nos textos.
Livros encontrados, emprestados, roubados, herdados, sa¬queados pelos índios, salvos do naufrágio (como o exemplar da Bíblia e os livros em português que Robinson Crusoé - já sabe¬mos que ele passou alguns anos no Brasil - recolhe entre os despojos do navio naufragado e leva para a ilha deserta), livros que se distanciam e se perdem na planície.
W. H. Hudson, um dos melhores escritores em língua ingle¬sa do século xix, guardava a seguinte lembrança de sua juventu¬de no campo argentino: "Não tínhamos romances. Quando um romance chegava a nossa casa, era lido e depois emprestado ao vizinho mais próximo, a umas duas léguas de casa, e esse vizi¬nho, por sua vez, emprestava a outro vizinho, sete léguas adian¬te, e assim sucessivamente até que o livro desaparecia no espaço".
Livros reais, livros imaginários, livros que circulam na tra¬ma, que dependem dela e que muitas vezes a definem. Os livros, na literatura, não funcionam apenas como metáforas - como as que Curtius analisou admiravelmente em Literatura européia e Idade Média latina -, mas também como articulações da forma, nós que põem em relação os níveis do texto e desempenham uma complexa função construtiva na narração.
Pensemos, por exemplo, no livro sobre a mística judaica que, incrivelmente, é lido por Scharlach, o gângster, em "A morte e a bússola". Toda a supresa e a invenção do texto de Borges estão ali. "Li a História da seita dos Hassidirn', diz Scharlach; "fiquei saben¬do que o medo reverente de pronunciar o Nome de Deus dera origem à doutrina de que esse Nome é todo-poderoso e recôndi¬to." Sem esse livro imaginário - sem essa cena decisiva e sarcás¬
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tica em que um assassino usa um livro para capturar um homem que acredita apenas no que lê -, não haveria história.
Temos que imaginar, portanto, Scharlach, um dândi sangui¬nário e sinistro, como leitor.
O que lê, onde, por quê, quando, em que situação? Lê para vingar-se de Lõnnrot, portanto lê para Lônnrot e contra Lõnn-rot, mas também lê com ele. Lê a partir de Lõnnrot (como Bor¬ges nos recomenda ler alguns textos a partir de Kafka), para se¬duzi-lo e capturá-lo em suas redes. Infere, deduz, imagina sua leitura e a duplica, confirma-a. Trata-se de uma espécie de bovarismo forçado, porque Scharlach na verdade obriga Lõnnrot a atuar o que lê. A fé está em jogo. Lõnnrot acredita no que lê (não acredita em outra coisa); poder-se-ia dizer que lê ao pé da letra. Ao passo que Scharlach, por sua vez, é um leitor displicente, que usa o que lê para seus própios fins, tergiversa e transporta o que lê para o real (como crime).
Evidentemente, Scharlach e Lõnnrot (ou seja, o criminoso e o detetive) são duas maneiras de ler. Dois tipos de leitor con¬frontados.
O leitor como criminoso, que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. Lê mal, mas apenas no sentido moral; faz uma leitura cruel, rancorosa, faz um uso pérfido da letra. Poderíamos pensar na crítica literária como um exercício desse tipo de leitu¬ra criminosa. Lê-se um livro contra outro leitor. Lê-se a leitura inimiga. O livro é um objeto transacional, uma superfície sobre a qual se deslocam as interpretações.
Scharlach usa o que lê como armadilha, como maquinação sombria, como superfície em branco sobre a qual os corpos des¬lizam. Em certo sentido, é o leitor perfeito; difícil encontrar uso mais eficaz para um livro. Provisoriamente, é o oposto do leitor inocente. Scharlach realiza a ilusão de D. Quixote, só que delibe¬
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radamente. Realiza na realidade o que lê (e o faz para outro). Vê no real o efeito daquilo que leu.
Mas como ele lê, como constrói o sentido? Ferido, como numa vertigem, lê a repetição, para vingar-se. (Seria preciso fazer uma história da leitura como vingança.) Ele mesmo decifra as condições de sua leitura, o contexto que determina o sentido, as questões materiais que trata de resolver a partir daquilo que lê.
"Nove dias e nove noites eu agonizei naquela desolada gran¬ja simétrica; a febre me arrasava, o odioso Janus bifronte que olha os ocasos e as auroras horrorizava meus sonhos e minha vigília."
Scharlach, um leitor doente.
O CASO HAMLET
Agora eu gostaria de voltar a Hamlet, o dândi epigramático e enlutado que, como Scharlach, também deseja vingar-se (seria melhor dizer que é obrigado a vingar-se).
Depois do encontro crucial com o fantasma do pai, Hamlet, como dissemos, entra com um livro na mão. Era muito raro que Shakespeare fizesse marcações de cena, mas desde as primeiras edições consta a especificação: "Hamlet entra lendo um livro".
É claro que nos perguntamos se ele está mesmo lendo ou se finge que lê. O fato é que ele se apresenta com um livro. O que significa ler naquele contexto, na corte? Que tipo de situação está implícita no fato de alguém se apresentar lendo um livro no qua¬dro das lutas de poder?
Não sabemos que livro ele lê, e não vem ao caso. Mais adian¬te, Hamlet descarta a importância do conteúdo. Polônio lhe per¬gunta o que está lendo. "Palavras, palavras, palavras", responde Hamlet. O livro está vazio; o que importa é o próprio ato de ler, sua função na tragédia.
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Essa ação une os dois mundos em jogo na obra. De um la¬do, o vínculo com a tradição da tragédia, a transformação da fi¬gura clássica do oráculo, a relação com o espectro, com a voz dos mortos, a obrigação de vingança que lhe vem dessa espécie de ordem transcendente. De outro lado, o momento antitrágico do homem que lê, ou finge que lê. A leitura, como dissemos, é vista como isolamento e solidão, como outro tipo de subjetividade. Nesse sentido, Hamlet é um herói da consciência moderna por¬que é um leitor. O que está em jogo é a interioridade.
A cena em que Hamlet entra lendo é um momento de tran¬sição entre duas tradições e dois modos de entender o sentido. Bertolt Brecht - que era, evidentemente, um grande leitor, um dos maiores -, em O pequeno organon para o teatro, escrito em 1948, observa que Hamlet é "um homem jovem, embora já um pouco entrado em carnes, que faz um uso extremamente inefi¬caz da nova razão, de que teve notícia durante sua passagem pela Universidade de Witenberg". Hamlet vem da Alemanha, vem da universidade, e Brecht vê nesse fato a primeira marca da diferen¬ça. "No seio dos interesses feudais, em que se encontra ao regres¬sar, aquele novo tipo de razão não funciona. Diante de uma prá¬tica irracional, sua razão se mostra absolutamente não prática, e Hamlet cai, vítima trágica da contradição entre aquela forma de raciocinar e a situação imperante." Brecht vê na tragédia a tensão entre o universitário que chega da Alemanha com idéias novas e o mundo arcaico e feudal. Essa tensão e essas idéias novas estão encarnadas no livro que ele lê, simplesmente um signo de um novo modo de pensar, oposto à tradição da vingança. A legendá¬ria indecisão de Hamlet poderia ser vista como um efeito da in¬certeza da interpretação, das múltiplas possibilidades de sentido implícitas no ato de ler.
Existe uma tensão entre o livro e o oráculo, entre o livro e a vingança. A leitura se opõe a outro universo de sentido. A outra
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maneira de construir o sentido, melhor dizendo. Habitualmente, o que o sujeito está deixando de lado é um aspecto do mundo, um mundo paralelo. E o ato de ler, de ter um livro, costuma arti¬cular essa passagem. A letra tem algo de mágico, como se convo¬casse um mundo ou o anulasse.
Seria possível afirmar que Hamlet vacila porque se perde na vacilação dos signos. Se afasta, tenta afastar-se, de um mundo para entrar em outro. De um lado parece estar o sentido pleno, embora enigmático, da palavra que vem do Além; do outro está o livro. No meio, está o palco.
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2. Uma narrativa sobre Kafka
A LAMPARINA
Podemos pensar agora em outra cena de leitura e numa si¬tuação que é ao mesmo tempo singular, cotidiana, quase imper¬ceptível.
Trata-se de uma manobra mínima numa estratégia ampla e complexa, uma espécie de guerra de posições bastante típica na obra de Kafka. Uma sutil mudança indireta de rumo no fluxo in¬terminável da correspondência entre Kafka e Felice Bauer, que - como disse Canetti em O outro processo de Kafka - é um dos grandes acontecimentos da história da literatura. Essa correspon¬dência é um exemplo extraordinário da paixão pela leitura do ou¬tro, da confiança na ação que a leitura produz no outro, da sedu¬ção pela letra. "Será verdade que é possível cativar uma moça por intermédio da escrita?", perguntava-se Kafka numa carta a Max Brod, seis meses antes de conhecer Felice. É disso que se trata.
A escrita daquelas cartas permite que se analisem os proce¬dimentos da escrita de Kafka em todo o seu registro, mas tam¬
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bém está em jogo uma estratégia de leitura. Kafka transforma Felice Bauer na leitora em sentido puro. A leitora presa aos tex¬tos, que muda de vida a partir do que lê (essa é a ilusão de Kaf¬ka). Trata-se ao mesmo tempo de um aprendizado e de uma ini¬ciação. Felice é quase uma desconhecida, em muitos sentidos um personagem inventado pelas próprias cartas. Ao mesmo tempo ela é a construção de uma das figuras de leitor mais persistentes e extraordinárias que se possam imaginar, presente, como todo leitor, em sua ausência. Como as respostas de Felice se extravia¬ram, a correspondência vai numa só direção. Felice é a leitora que é preciso construir e imaginar, como fez Kafka.
Em 1912, primeiro ano daquela relação epistolar, Kafka escre¬ve quase trezentas cartas. Duas, três e até quatro cartas por dia. Só palavras escritas. As cartas são iguais a sua escrita, por momentos a acompanham e por momentos a substituem, mas têm um destina¬tário concreto: alguém (que no início é quase um desconhecido) espera as cartas, alguém sofre as conseqüências. Os dois quase nunca se vêem, apenas se escrevem. A sedução e a leitura. As rela¬ções já foram sinalizadas. Os amantes se encontram no texto que lêem. Dar a ler a experiência. A leitura tem um lugar central; a figu¬ra da leitora, de uma mulher que espera, é a chave da história.
Para tornar visível essa relação, depois de três meses de in¬tensa correspondência Kafka envia uma citação a Felice (nesse vínculo em que quase não há citações, em que os amantes quase nunca se encontram). Trata-se de um poema chinês do século xviii, que Kafka copia para Felice Bauer em sua carta de 24 de novembro de 1912. O poema, de Yan Tsen-tsai, é este:
NA NOITE PROFUNDA
Na noite fria, absorto na leitura
de meu livro, esqueci-me da hora de ir deitar.
Os perfumes de minha colcha bordada em ouro
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se dissiparam e o fogo se apagou
Minha bela amiga> que até então a duras penas
dominara sua ira, toma de mim a lamparina
e me pergunta: Sabe que horas são?
Kafka envia o poema a Felice, imagina-se que para preveni-la. Ou seria para atraí-la? Em todo caso, para anunciar-lhe o que está por vir. Um movimento firme na rede de seus deslocamentos e vacilações. O que Kafka faz aqui e (como Scharlach) utilizar aquilo que lê para seus próprios fins.
A correspondência é a grande intriga da relação sentimen¬tal, mas no caso de Kafka assistimos a uma variante. Ele se dá a ler não apenas para seduzir, mas também para guardar distância. E é possível ver com nitidez o estilo de Kafka, feito de parábolas, chinês, digamos, e também jurídico (a prova, o caso, o exemplo hipotético que se utiliza num julgamento).
Em sua correspondência com Felice, Kafka se refere diversas vezes a esse poema porque o poema condensa toda a relação dos dois e alude a um mundo de que Kafka se sente próximo. Em certo sentido, seria possível dizer que o contexto do poema é toda a obra de Kafka (ou toda a experiência de Kafka). Seja como for, para ler o poema é preciso recorrer a toda a sua obra.
Eu gostaria, em primeiro lugar, de chamar a atenção para o objeto da disputa: a lamparina; ela reaparecerá várias vezes neste trajeto. Em seguida daria destaque à interrupção, à leitura inter¬rompida (já nos referimos a isso com respeito a Borges). E tam¬bém ao trabalho noturno: o isolamento e o silêncio. E por fim ao mais importante, a presença de uma mulher, a convivência com uma mulher. Ou melhor, a tentação, o chamado da mulher. Mui¬to tempo depois, Kafka explicitará essa questão num de seus afo¬rismos de 1918: "O bem que nos atrai para o mal como o olhar da mulher nos atrai para a cama"
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Isso tudo ainda não foi dito, é claro, nem sequer sabido, se¬ria o caso de dizer. E ficará claro alguns meses mais tarde, quan¬do as regras do jogo tiverem mudado (por culpa de Felice, dirá Kafka). Se lemos as cartas como se supõe que Felice devia lê-las (uma atrás da outra, numa temporalidade contínua que vai completando o sentido, como num folhetim sentimental e úni¬co), podemos ver que em determinado momento ocorre uma vi¬rada que se tornará evidente dois meses mais tarde.
A essa altura, como veremos, tudo terá mudado. Kafka já não desejará casar-se com a noiva e lhe dirá por quê à sua maneira, elusiva e direta ao mesmo tempo, com um comentário do poema.
Na carta de 23 de janeiro de 1913, Kafka se refere ao poema da seguinte maneira:
A amiga do poema não é uma pessoa má, daquela vez a lampari¬na se apaga de verdade, a calamidade não era tão grande, ela ainda guarda muita alegria. Mas... e se ela tivesse sido a esposa e aquela não fosse uma noite qualquer, mas um exemplo de todas as noi¬tes e, naturalmente, nesse caso não apenas das noites, mas de toda a vida em comum, essa vida que seria uma luta pela lamparina? Que leitor seria capaz de continuar sorrindo?
A cena da leitura é uma parábola sobre os perigos da vida conjugal (ou seria o oposto?). Ali se concentra, deslocada, a ra¬zão da ameaça. A defesa da solidão.
O contexto do poema (o primeiro contexto, seria o caso de dizer) é uma fantasia de isolamento que os versos concentram e invertem. Kafka tocou no tema alguns dias antes.
"Fiquei até tarde escrevendo e uma vez mais me vem à me¬mória, aí pelas 2 da madrugada, o sábio chinês", escreve ele a Feli¬ce no dia 14 de janeiro de 1913. "Uma vez você me disse que gostaria de ficar sentada ao meu lado enquanto escrevo; mas, en¬
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tenda, nesse caso eu não seria capaz de escrever [...] nunca se está suficientemente só quando se escreve, [...] nunca se está suficien¬temente cercado de silêncio [...] mesmo a noite se mostra pouco noturna." E em seguida vem a descrição mais extraordinária que se possa imaginar das condições para uma escrita perfeita:
Freqüentemente pensei que a melhor forma de vida para mim consistiria em encerrar-me na parte mais profunda de uma imen¬sa caverna com uma lamparina e tudo o que é necessário para es¬crever. Alguém me levaria comida e sempre a deixaria longe de onde eu estivesse instalado, atrás da porta mais exterior da caver¬na. Ir buscá-la, de camisolão, atravessando todas as abóbadas, se¬ria meu único passeio. Logo em seguida eu voltaria para minha mesa, comeria lenta e conscienciosamente, e depois recomeçaria a escrever. O que eu não seria capaz de escrever, nessas condições! De que profundidades extrairia o que escrevesse! Sem esforço! Pois a concentração extrema não sabe o que é o esforço. O único problema é que eu talvez não perseverasse, e, ao primeiro fracas¬so, quem sabe inevitável, inclusive, em tais condições, forçosamen¬te submergiria na maior das loucuras: o que você acha disso, meu amor? Não recue diante do habitante da caverna!
Difícil encontrar algo mais radical. A torre de marfim pare¬ce frívola diante desse porão, e a ilha de Robinson se povoa de¬pressa demais. Essa forma de vida é a garantia de um uso da lin¬guagem absolutamente único.
Sua metáfora é a guerra, a vida militar, o mundo masculino do exército. A experiência pura e a ameaça, o risco e o heroísmo. "O que a guerra em si faz as pessoas sentirem é algo que, essen¬cialmente, não se pode saber", dirá ele a Felice em 5 de abril de 1915. Essas palavras têm um quê de inefável. Kafka utiliza a guer¬ra para descrever sua relação com a literatura. Melhor seria dizer, a guerra é a metáfora ou a ilusão de um modo de vida que seria
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a condição para uma linguagem nova, para um uso novo da lin¬guagem. Kafka pensa na guerra, no assédio, na situação de peri¬go, em cavar trincheiras, em ataques iminentes. Defende posi¬ções, liberta áreas.
Em todo caso, a escrita está ligada à disciplina estrita, às ações noturnas, ao isolamento, a um tipo de organização rigoro¬sa que Kafka associa com o mundo militar. Em 1920, ao retomar a escrita depois de uma longa interrupção, anota em seu Diário: "Há alguns dias retomei minha vida 'de campanha', ou, melhor dizendo, 'de manobras', a mesma que há alguns anos descobri ser a melhor para mim temporalmente".
A atração pela representação militar da vida, essa analogia entre guerra e literatura, pode ser percebida no surpreendente interesse de Kafka por Napoleão e sua estratégia militar: no Diá¬rio aparecem notas de leitura sobre diversos momentos da vida de Bonaparte e há uma longa análise das causas de sua derrota na Rússia (Diário, 1º de outubro de 1915). Kafka como analista militar. É um pouco isso. Na realidade, Kafka escreve sobre Na¬poleão quando quer pensar em sua experiência com a literatura.
À primeira vista, nada parece menos kafkiano do que Napo¬leão. Mas não se trata do fascínio de Stendhal pela ambição do imperador, nem tampouco da de Raskolnikov pelo Napoleão da ação privada; Kafka descobre, em vez disso, o general vacilante e perplexo em pleno combate. Intriga-o sua inatividade durante a batalha de Borodin. "Passou o dia inteiro numa parte mais baixa do terreno caminhando de um lado para o outro e só duas vezes subiu para a colina." Napoleão como personagem de Kafka.
A retirada dramática do exército francês vencido na Rússia é objeto de seu especial interesse, reaparecendo várias vezes no Diário. Poderíamos imaginar um texto de Kafka sobre a expe¬riência das massas militares em fuga pelas planícies geladas. De fato, quando, em 1924, Kafka busca um paralelo para explicar a
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catástrofe pessoal que está vivendo, recorre novamente a Bona-parte. Naquele ano Kafka resolvera finalmente sair de Praga para instalar-se em Berlim, em plena espiral inflacionária. Sua decisão lhe parece uma loucura completa, comparável apenas "à campa¬nha de Napoleão na Rússia".
A guerra é uma metáfora da experiência pura e é ao mesmo tempo um tema. Em todo caso, devemos lembrar que quando Kafka começou a escrever sua primeira narrativa (aquela que considera sua primeira narrativa, ou seja, "O veredicto"), tinha como objetivo descrever uma batalha.
Isolamento, vida militar. Não ser interrompido. Como in¬cluir uma mulher num mundo assim? A chave do poema chinês, como dissemos, é a cena da interrupção.
COMO SE...
A interrupção, grande tema de Kafka, a interferência que impede que se chegue ao destino. A suspensão, o desvio, a pos¬tergação: isso é clássico nele, que sempre o narra, mas define também o registro de sua escrita. Seu estilo é uma arte da inter¬rupção, a arte de narrar a interferência.
É freqüente que a própria escrita fique suspensa no ar. A nota escrita por Kafka no dia 20 de agosto de 1912, no Diário, sobre seu primeiro encontro com Felice, interrompe-se no meio de uma frase: "Enquanto eu me sentava, pela primeira vez olhei-a mais detidamente; sentado, já formara um juízo inquebrantável. Como se... [ Wie sich -.]".
"Como se..." Parece o título de um texto de Beckett. Na rea¬lidade, toda a história com Felice parece um texto de Beckett.
A anotação se interrompe no meio de uma frase enquanto ele está falando de Felice. Não chega a dizer o que ia dizer. O que estava por ser dito não se conclui, fica em suspenso.
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O que interrompeu a anotação é coisa que nunca saberemos. Não obstante, essa frase interrompida diz tudo. E não porque fos¬se dizer mais do que o que diz (embora não saibamos o que seria, o início é muito promissor), mas porque na realidade diz que há mais, que poderia haver mais, talvez uma explicação, quem sabe. A conjetura é possível, o sentido não se fecha; melhor, fica visivel¬mente aberto. Mais que aberto, interrompido, suspenso no ar.
Há muitos outros exemplos em sua obra desse modo de sus¬pender a escrita. Tampouco sabemos por que certas narrativas são interrompidas de chofre. Um de seus grandes textos finais, "A construção" (1923), um relato sobre o confinamento, sobre a construção de uma caverna, sobre a necessidade de isolar-se e defender-se para não ser invadido (a narrativa que em certo sen¬tido comenta e narra o mundo do porão), termina assim: "Minha forma de cavar produz muito pouco ruído; mas se [o animal] tivesse me ouvido, eu também deveria ter percebido sua presen¬ça; pelo menos o animal teria interrompido com alguma fre¬qüência o seu trabalho e teria aguçado o ouvido, mas tudo conti¬nuou sem alteração, o...".
Mais que terminar, seria o caso de dizer que a narrativa se fratura, se interrompe. O mesmo sucede em O castelo: "Era a mãe de Gerstácker. Estendeu para K. a mão trêmula e fê-lo sen¬tar-se a seu lado; falava com dificuldade, era difícil compreender, mas o que ela disse...".
O que ela disse? O que ia dizer? Kafka tem uma maneira muito particular de interromper-se: torna visível que fez uma in¬terrupção. Não completa a frase, tampouco a apaga. Deixa-a ali. Começa de novo.
Talvez a causa da interrupção da nota no Diário tivesse sido o cansaço. Podemos imaginar que não foi uma decisão de Kaf¬ka. Talvez tenha sido o acaso, a contingência. (Sempre, claro, po¬demos imaginar que alguém chega de improviso, como o vizi¬
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nho anônimo que interrompeu Coleridge quando ele redigia o Kubla Kan.)
No poema chinês, a mulher confisca a lamparina. A inter¬rupção, o acontecimento da interrupção, melhor dizendo, o que vem de fora e opera um corte, é, para Kafka, a ameaça máxima.
No dia seguinte ao do comentário sobre seu encontro com Felice, em 21 de agosto de 1912, ele escreve no Diário: "Li inces¬santemente Lenz, e graças a ele - é como me encontro - voltei a mim" (grifo meu).
Primeira questão: voltou de onde? Segunda questão: uma leitura que não se interrompe, incessante, permite-lhe que vol¬te a si.
A escrita que não é interrompida também lhe permite voltar a si; em todo caso, permite-lhe encontrar o que procurava (em que caminhos, graças a que manobras). Em 8 de março de 1912 ele escreve em seu Diário: "Revisei alguns papéis velhos. Para su¬portar uma coisa dessas, é necessário recorrer a todas as nossas energias. A infelicidade que a pessoa tem de suportar quando, co¬mo sempre aconteceu comigo até agora, interrompe um trabalho que só pode sair bom se for escrito sem interrupções".
A correspondência enquanto gênero se caracteriza pela in¬terrupção, pela exigência de continuidade, pela pausa entre uma e outra carta, pela obsessão pelas cartas extraviadas e pela angús¬tia do corte.
As interrupções. Quando Kafka resolve essa questão - toda vez que a resolve - e insiste, sem se interromper, transforma-se num escritor.
A cena inaugural de sua escrita está ligada à escrita sem cor¬tes e somente a isso. Numa noite de 1912 ele escreve "O veredic¬to" de uma tirada só, diretamente em seu diário. Kafka se lem¬brará a vida toda daquela noite como do instante em que seus sonhos de escritor se realizaram.
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"O veredicto" só foi possível, segundo ele, porque não so¬freu nenhuma interrupção. A chave é o fato de tê-lo escrito de uma vez só, sem duvidar, em silêncio, isolado de tudo.
O relato de como "O veredicto" foi escrito explica, para Kaf¬ka, a qualidade da história. Toda a sua vida será uma tentativa de repetir essa experiência. Kafka a narra com extrema precisão.
Diário, 23 de setembro de 1912.
Esta história, "O veredicto", foi escrita de uma tirada só, na noite do dia 22 para o dia 23 entre as dez da noite e as seis da manhã. Quase não consigo tirar as pernas de debaixo da escrivaninha, elas haviam ficado dormentes por eu passar tanto tempo sentado. A terrível tensão e a alegria à medida que a história ia tomando for¬ma diante de mim, à medida que eu ia abrindo caminho em suas águas. Várias vezes no correr da noite carreguei meu próprio peso sobre as costas. É incrível como podemos ousar tudo, como esta¬mos preparados para todos os acontecimentos, mesmo os mais es¬tranhos, uma grande fogueira em que as coisas morrem e ressus¬citam. Como, diante da janela, começou a azular. Passou um carro. Dois homens cruzaram a ponte. A última vez que olhei para o re¬lógio eram duas horas. No momento em que a empregada cruzou a entrada pela primeira vez, escrevi a última frase. Apagar a lam¬parina, claridade do dia. Ligeiras dores cardíacas. O cansaço que aparece no meio da noite. Eu, trêmulo, entrando no quarto de mi¬nhas irmãs. Leitura. Antes, espreguiçar-me diante da empregada e dizer: "Fiquei até agora escrevendo". O aspecto de minha cama, in¬tacta, como se a tivessem trazido naquele instante mesmo.
O dia nasce, a história acabou. Ficou a noite inteira escre¬vendo, sem a tentação de interromper-se numa frase semi-aca¬bada. Por isso, talvez, goste especialmente da perfeição do último parágrafo de "O veredicto": "Nesse momento o trânsito sobre a
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ponte era praticamente interminável". ("Uma frase perfeita", dirá ele anos mais tarde a Milena.) A forma se define nessa frase, a história, por fim, encontra seu final.
Ser um escritor, para Kafka, significa escrever nessas condi¬ções. A escrita existe caso tenham sido criadas as condições que a possibilitam. Difícil encontrar escritor mais materialista.
É assim que ele concebe sua relação com a escrita; ou me¬lhor, é assim que ele concebe a relação entre a escrita e a vida. Não há resistência, a vida tem de se submeter a essa continuidade por¬que, definitivamente, a experiência, para Kafka, é essa.
Agora é possível entender melhor. O relato da noite em que ele escreve "O veredicto" é a réplica - a inversão - perfeita da noite que aparece no poema chinês. Recordemos novamente o final de sua anotação no Diário em 25 de setembro de 1912. Kaf¬ka passou a noite em claro, escrevendo "O veredicto". A empre¬gada aparece quando ele escreve a última frase. O dia nasceu e Kafka apaga a lamparina. Ninguém veio confiscá-la. A cama está intacta.
Claro, parece um comentário do poema chinês que enviará a Felice dois meses depois. Uma cena se liga à outra, uma situa¬ção define o sentido da outra. O que estou querendo dizer é que o poema chinês está vinculado ao relato da noite em que escreve "O veredicto". As cenas se unem e se desdobram e Felice está entre o poema e o relato (está no poema e no relato).
CAMINHOS TORTUOSOS
Naquela noite, nas condições de isolamento e solidão que tornaram possível a escrita, há uma coisa que ainda não foi dita. E o próprio Kafka se encarregará de estabelecer a conexão.
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O relato está ligado a Felice. A mulher a quem viu uma úni¬ca vez lhe aparece como a outra condição da escrita. "Conclusões de 'O veredicto' para meu caso. Devo a história a ela, por cami¬nhos tortuosos", anota em seu Diário no dia 14 de agosto de 1913. Já sabe, a sua maneira, que ela esteve desde sempre ligada àque¬la história. O texto foi escrito por ela e também para ela, e por isso o dedica a ela.
Não é fácil entender a relação entre as duas coisas. Kafka viu Felice uma única vez, durante uma reunião na casa de Max Brod. Na realidade, ela é uma desconhecida. Melhor seria dizer: ele é um desconhecido para ela. No dia 20 de setembro, dois dias an¬tes da redação de "O veredicto", ele remeteu para Berlim sua pri¬meira carta para Felice.
"Senhorita. No caso muito provável de que não consiga re¬cordar-se minimamente de mim, apresento-me outra vez: meu nome é Franz Kafka, sou aquele a quem cumprimentou pela pri¬meira vez certa tarde na casa do senhor diretor Brod, em Pra¬ga..." É o que se chama começar.
Viu-a apenas uma vez (entreviu-a, digamos), mas a trama já está construída. Kafka não necessita de muita realidade; para ele, um fragmento mínimo é suficiente. "Invisível era o mundo dos fatos que contavam para ele", escreveu Max Brod. Dessa forma se define um certo nexo entre a escrita e a vida que não pertence à categoria do autobiográfico.
O relato está ligado a Felice, mas o próprio Kafka desconhe¬ce a razão disso. A estranha conexão somente ficará clara meses depois. O procedimento é revelador: Kafka primeiro estabelece uma conexão enigmática, depois encontra o sentido.
No dia 11 de fevereiro de 1913, escreve no Diário: "Quando eu estiver corrigindo as provas de 'O veredicto', anotarei todas as correlações que se tornaram claras para mim na história, à me¬dida que as tenha presentes". Nesse momento começa a trazer do
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real fragmentos estilhaçados, que surgem deslocados e cifrados na narrativa. Começa a compreender a relação: "Frieda tem o mesmo número de letras que Felice, e a mesma inicial. Braden-feld tem a mesma inicial que Bauer e, mediante a palavra Feld, também tem certa relação quanto a seu significado". Frieda e Fe¬lice derivam da mesma raiz alemã da palavra felicidade.
Esse procedimento de relacionar "por caminhos tortuosos" o vivido com o escrito, de perceber fragmentos cifrados de reali¬dade nos textos, é uma das chaves do efeito Kafka.
Escrita no dia 23 de setembro de 1912, um mês depois de tê-la visto pela primeira vez, a narrativa transforma o encontro com Felice num compromisso matrimonial: "Mas Georg preferia es¬crever coisas desse tipo a confessar que ele próprio se compro¬metera um mês antes com a senhorita Frieda Brandenfeld". Por isso Kafka conclui sua análise de "O veredicto" no Diário com uma frase que repete a forma adversativa da frase do relato e fun¬ciona quase como um aviso: "Mas Georg", avisa Kafka, "sucumbe por causa da noiva".
Nessa narrativa sobre enviar uma carta e sobre um compro¬misso matrimonial, sobre o celibato e o casamento, Kafka ante¬cipa o que virá, lê ali o que ainda não viveu. Em mais de um sen¬tido, o texto cifra sua situação futura com Felice. "Preparava-se para viver um celibato definitivo."
A intriga se define (à sua maneira) de uma vez só. A chave é a forma como Kafka lê sua própria narrativa, as coisas que lê no que escreveu. Porque Kafka descobre uma nova maneira de ler: a literatura dá forma à experiência vivida, constrói-a como tal e a antecipa.
São correlações e vínculos. Kafka conclui assim a anotação sobre a noite em que escreve "O veredicto": "Muitos sentimentos
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suscitados enquanto escrevia: por exemplo, a alegria de ter uma coisa bonita para a Arcadia de Max; naturalmente, pensei em Freud" (Diário, 25 de setembro de 1913). São deslocamentos e movimentos do sentido. Trata-se de relacionar os acontecimentos (representados e externos) da narração, de suscitar o que está do outro lado, de estabelecer a conexão entre as coisas invisíveis. Kafka vai em busca da realidade que pode ter se depositado - ci¬frada - no texto, e a suscita.
Em vez de uma interpretação, temos o relato do que está por vir; ou melhor, a interpretação se transforma em relato (das múl¬tiplas conexões inesperadas). A escrita é um resumo da vida, condensa a experiência e a torna possível.
Por isso Kafka escreve um diário: para ler novamente as co¬nexões que não viu ao viver. Poder-se-ia dizer que escreve seu Diário para ler, deslocado, o sentido em outro lugar. Só entende o que viveu, ou o que está por viver, quando está escrito. Narrar não serve para recordar, mas para tornar visível. Para tornar visí¬veis as conexões, os gestos, os lugares, a disposição dos corpos.
Por isso Kafka é um grande escritor de cartas. Escreve ao outro aquilo que viveu. Escreve para que o outro leia o sentido novo que a narração produziu no que já foi vivido. O outro deve ler a realidade tal como ele a experimenta. Sem dúvida, essa é a lição que devemos extrair para ler a literatura de Kafka.
A chave é que, para entender e estabelecer a conexão, é pre¬ciso narrar outra história, estar fora.
Um exemplo é a maneira como Kafka conta à própria Feli¬ce, em sua incrível carta de 27 de outubro de 1912, o encontro que os dois tiveram algum tempo antes. É a quinta carta que lhe escreve e é uma operação de captura. "Estendi-lhe a mão por ci¬ma da grande mesa antes de ser apresentado, embora a senhora acabasse de levantar-se e, provavelmente, não estivesse com a menor vontade de estender-me a sua."
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Descreve para ela os lugares do encontro, a casa, a disposi¬ção dos aposentos, o que cada um dos dois estava fazendo em di¬ferentes momentos, que palavras trocaram, como se ela não ti¬vesse estado lá ou não tivesse podido ver. "Quando a senhora se levantou, foi possível perceber que calçava sapatilhas da senhora Brod, já que suas botas precisavam secar. O dia inteiro, o tempo estivera horrível. A senhora estranhava um pouco as sapatilhas e, quando acabou de cruzar o escuro salão central, me disse que es¬tava acostumada a usar sapatos de salto. Para mim, esse tipo de sapato era uma novidade."
Narrar é isso. Em todo caso, para Kafka narrar é isso. O fluir do indireto livre. O olhar puro, a atenção extrema. Os gestos, as posições do corpo. A educação sentimental. Quem lê o relato é o protagonista da narração.
Claro, além de contar a Felice o que viveu, conta-o a si mes¬mo: "Depois, não, foi antes, pois naquele momento eu estava sentado perto da porta, ou seja, em posição oblíqua relativamen¬te à senhora".
Trata-se sempre de estabelecer um nexo (entre conhecer-se e trocar um aperto de mão, entre os sapatos e as chinelas); Kafka está sempre atento à disposição espacial. A correlação que per¬mite entender é necessariamente um relato que narra um nexo invisível entre os fatos.
É o que se percebe claramente na "Carta ao pai".
Poderíamos dizer que a carta é mais uma vez uma tentativa de tornar a narrar o que os dois viveram. Não interessa o tema batido da relação com o pai (que, por outro lado, é o mesmo as¬sunto que aparece em "O veredicto"), mas a forma como Kafka conta o que viveu para que o pai o leia:
De imediato eu só me recordo de um incidente dos primeiros anos. Uma noite eu choramingava sem parar pedindo água, com
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certeza não de sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois que algumas ameaças severas não tinham adiantado, você me tirou da cama, me levou para a pawlatsche e me deixou ali sozinho, por um momento, de camisola de dormir, diante da porta fechada.*
Depois de fixar os fatos, Kafka se detém nos nexos incom¬preensíveis para aquele que vive a experiência: "Segundo a mi¬nha índole, nunca pude relacionar direito a naturalidade daquele ato inconseqüente de pedir água com o terror extraordinário de ser arrastado para fora".
A experiência é enigmática. O relato estabelece um sentido incerto. O menino que vive a situação não a compreende. A mes¬ma coisa acontece em O processo e em O castelo. K nunca enten¬de o que acontece com ele. E em "O veredicto" não há relação lógica entre a frase do pai e o suicídio. "Eu o condeno à morte por afogamento!" diz-lhe o pai, e o filho sai de casa e se joga no rio. Georg interpreta a frase do pai literalmente, e a vive (ou morre por ela). Em todo caso, a frase implica uma ação narrada. Georg não atina com a relação, mas a atua.
Poderíamos afirmar que alguns textos de Kafka são narrados do ponto de vista daquele que não entende a conexão e simples¬mente a vive, enquanto outros textos de Kafka são narrados a partir do ponto de vista daquele que vê as conexões que ninguém vê. E, habitualmente, aquele que vê a conexão enquanto os fatos se passam é um animal (ou seja, está fora). "Investigações de um cão", "Um relatório para uma Academia" e "Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos" poderiam ser exemplos claros desse modo de ver. Claro, "A metamorfose" narra a passagem de um estado para outro.
* As citações em português das obras de Kafka foram extraídas das traduções de Modesto Carone (Companhia das Letras).
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Essa é a maneira como Kafka lê a literatura: primeiro con¬centra a história num ponto, em seguida inverte a motivação e estabelece novas correlações; logo depois narra sua versão da his¬tória (narra o que o narrador original não viu). Seria suficiente lembrar sua maneira de ler uma das cenas básicas da Odisséia. As sereias dispõem de uma arma mais terrível que seu canto: seu si¬lêncio, diz Kafka. Uma grande rede é condensada ao máximo numa imagem que estabelece relações novas.
Faz o mesmo com D. Quixote em "A verdade sobre Sancho Pança": "Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, com o correr dos anos conseguiu, escrevendo inúmeros roman¬ces de cavalaria e de salteadores ao entardecer e à noite, afastar de si o seu demônio - a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote [...]".
Kafka inverte as relações, altera os nexos. Não há mediações. Uma condensação assim radical leva a leitura a seu limite. Ler desvenda novas conexões.
Vejamos sua leitura de Robinson Crusoé, que irrompe brus¬camente numa nota do Diário de 18 de fevereiro de 1920:
Se por teimosia ou por humildade ou por medo ou por ignorân¬cia ou por nostalgia Robinson nunca tivesse abandonado o ponto mais alto, ou, melhor dizendo, o ponto mais visível de sua ilha, em pouco tempo teria perecido, mas como, sem ligar para os navios e com sua luneta de pouco alcance, começou a investigar a ilha in¬teira e a deliciar-se com ela, permaneceu vivo e acabou sendo en¬contrado.
Para Kafka, o romance de Defoe está centrado em sua dis¬posição espacial. Como sempre em Kafka, é preciso estabelecer
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uma topografia. A literatura produz lugares, e é neles que se as¬senta o significado.
A rede extremamente ampla do sentido é lida num contras¬te nítido (entre a atenção de Ulisses e o silêncio das sereias, entre Sancho que escreve e D. Quixote que lê, entre estar vigilante na ilha ou avançar rumo a seu interior), que permite que se veja uma ordem nova e inverte o sentido original. Essa maneira de fi¬xar a correlação central define uma lógica que de toda maneira não é necessária para o entendimento. É uma maneira de ligar dois elementos, uma nova maneira de ler e de perceber a realidade.
Esse é o modo de ser da experiência, para Kafka. Somente é visível o que é impossível. Toda luneta é de pouco alcance.
É possível perceber o que Kafka exigia de seus textos. Muito mais que a perfeição da forma. Eles deviam estabelecer, tornar visível, a lógica impossível do real (que, evidentemente, era a per¬feição da forma).
Agora podemos entender melhor o uso feito por Kafka do poema chinês. Ver como ele lê o poema chinês, como torna a lê-lo, é ver como utiliza uma situação narrativa para entender aqui¬lo que está por viver ou aquilo que já viveu. A cena de leitura do poema funciona de diferentes maneiras. Kafka lê o poema a seu modo, várias vezes, em função do contexto. ("Sou um leitor tole¬rável, mas muito lento", dirá a Milena.) Dá o poema a Milena para que o leia e o utiliza relacionado a uma experiência. Cada lei¬tura produz uma narrativa. A leitura suspende a experiência e a recompõe em outro contexto.
O laboratório Kafka. O chinês e a mulher. A interrupção. A lamparina. A cama. Manter o trabalho noturno. Mas, nesse caso, qual é a relação com a moça? Que fazer com ela?
Para entender a conexão é preciso narrar outra história. Ou então narrar novamente uma história, só que a partir de outro
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lugar, e em outro tempo. Esse é o segredo do que é preciso ler. E é isso que, segundo Kafka, a literatura faz sem explicar.
"O veredicto" articula dois momentos.
De um lado, seu isolamento pessoal, que não parou de au¬mentar naqueles meses de 1912. De outro, o surgimento de Feli¬ce Bauer, que se mostra e em seguida se mantém à distância (mo¬ra em Berlim). Aquela mulher fugaz é uma conexão, uma ponte, está ligada a sua literatura, àquilo que Kafka entende por litera¬tura. Klaus Wagenbach, o biógrafo de Kafka, realçou esse ponto: "Em uma de suas primeiras cartas, Kafka já explica a Felice que inclusive o fato de pensar nela está relacionado a sua atividade de escritor".
Portanto ele precisa estar sozinho, isolado, na caverna, mas também precisa de uma mulher que espere (e possibilite) aquilo que ele escreve. Como permanecer ali e jamais sair? Ou, em ou¬tras palavras, como levar uma mulher para a caverna? Ou, em todo caso, que tipo de mulher?
"O veredicto" duplica a relação entre experiência e sentido. Entre o enigma da experiência e o sentido incerto estabelecido pelo relato.
A história da noite em que escreveu "O veredicto" se con¬centra num vínculo múltiplo. Em "O veredicto" Kafka mostra a conexão secreta entre o relato e Felice Bauer. Não entende do que se trata, nem interpreta, simplesmente registra e mostra os nexos.
Uma particularidade de Felice Bauer permite a associação. Um dado específico, digamos, possibilita a conexão.
LUNETA DE POUCO ALCANCE
Há uma coisa estranha, uma coisa que não está clara, na ma¬neira como Kafka se fixa em Felice desde o primeiro encontro.
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Dispomos de dados muito precisos sobre a noite em que os dois se conheceram. Quase todos os que escreveram sobre aque¬les anos de Kafka (Canetti, Deleuze, Citati, Wagenbach, Josipovi-ci, Marthe Robert, Unseld, Stach) falaram daquela noite e se refe¬riram àquela situação. Porém se sabemos tudo quanto àquele primeiro encontro é simplesmente devido à maneira como Kaf¬ka o narrou. Vejamos o que aconteceu.
Na noite de 13 de agosto de 1912, Kafka vai à casa de Max Brod com o manuscrito de seu primeiro livro para preparar a pu¬blicação. Trata-se das prosas breves de "Contemplação", um acon¬tecimento, evidentemente, na história da literatura. Mas ao che¬gar depara com uma surpresa. ("Nenhuma surpresa é agradável", escreve Kafka à irmã de Brod algum tempo depois.) Lá está Feli¬ce Bauer, uma parente distante de Brod que mora em Berlim; de passagem por Praga, no dia seguinte viaja para Budapeste.
Para Kafka, o encontro se conecta ao lançamento de seu li¬vro. No dia seguinte escreve a Brod: "Ontem, organizando os textos breves, eu estava sob a influência da senhorita; é muito possível que, devido a ela, uma ou outra estupidez tenha se in¬troduzido". Está perturbado por Felice. Viu-a uma vez. Que aconteceu?
Kafka pôs os olhos naquela mulher. A seu modo, claro, se nos guiamos pela anotação que faz no Diário uma semana de¬pois, no dia 20 de agosto de 1912. Uma descrição fria e impiedo¬sa, típica de Kafka. Tudo é ao mesmo tempo extremamente níti¬do e um pouco sinistro.
A senhorita Felice Bauer. Quando cheguei à casa de Brod no dia 13 de agosto ela estava sentada à mesa e, mesmo assim, pareceu-me uma empregada [Dienstmâdchen]. Não tive a menor curio¬sidade de saber quem era, mas logo depois me entendi com ela.
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Rosto grande, ossudo, que mostrava abertamente seu vazio. Pesco¬ço nu. Blusa vestida com desalinho. Parecia estar com roupa de an¬dar em casa, embora não fosse assim, como mais tarde ficou de¬monstrado. (Invadindo sua intimidade desta maneira ela se torna ainda mais estranha para mim.) Nariz quase quebrado, cabelo louro, um tanto murcho, nada atraente, queixo robusto. Enquanto eu me sentava, olhei-a pela primeira vez mais detidamente; depois de sentar-me, já possuía um juízo inquebrantável. Como se...
Como vimos, a anotação do diário se interrompe nesse ponto.
Vejamos agora a observação de Kafka: "Pareceu-me uma em¬pregada". Paradoxalmente, devemos ver nesse comentário um si¬nal de interesse. As mulheres que aparecem em seus romances costumam ser assim. Poderíamos dizer que a empregada é quase a única figura de mulher (com suas transformações) que aparece nas narrativas de Kafka com uma função muito concreta na tra¬ma. Essas criadas vulgares rondam as cenas masculinas e têm algo em comum com as prostitutas, como assinalou Wagenbach. Basi¬camente, uma mulher a quem se paga para que nos atenda. (A empregada, figura social clássica na família de classe média, é tam¬bém figura de iniciação nesse âmbito.)
Na realidade "O foguista" (primeiro capítulo de seu primei¬ro romance, América, escrito naqueles dias) começa com a men¬ção a "Karl Rossmann, de dezessete anos - a quem os pobres pais tinham mandado para a América porque uma empregada [Dienstmãdchen] o havia seduzido e tido um filho dele...".
Felice: uma empregada.
Digamos que esse modo de descrevê-la, de defini-la, é um sinal de que se deteve nela, ou, melhor, de que a levou para seu mundo. Assim vê Kafka, e assim narra: captura alguma coisa do mundo real e a leva para a caverna. Deleuze já falou do vam¬
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pirismo de Kafka. Sem dúvida, trata-se de uma maneira de nar¬rar e de uma maneira de ver; sempre há uma transformação, sempre há uma metamorfose.
Convém dedicar nossa atenção a duas outras questões da mesma ordem. Naquela noite outro pequeno detalhe reforça a impressão de Kafka. (Falamos de impressão no sentido fotográ¬fico, já que na noite do primeiro encontro as fotos que Kafka mostra a Felice ocupam um espaço importante no serão. E as fo¬tos, o pedido de que ela lhe mande fotos, a remessa de fotos, a descrição do que ele vê nas fotos, estarão presentes ao longo de toda a correspondência dos dois.)
Felice precisava partir muito cedo na manhã seguinte, mas resolveu passar a noite lendo. "O fato de que ainda não tivesse fei¬to a mala e quisesse continuar lendo na cama" preocupa Kafka. "Na noite anterior a senhora havia lido até as quatro da manhã."
A namorada de Franz, como a chamou Reiner Stach em seu excelente livro Kafka: los anos de las decisiones, tinha que ser uma leitora apaixonada, que se desvela e passa a noite lendo (insone, com tudo o que isso supõe para Kafka).
Para Kafka, Felice se transformará basicamente numa leito¬ra, e ocupará diversas posições de espera. Tem de ler as cartas, os manuscritos. É possível prender uma mulher por intermédio da escrita? Para fazê-la fazer o quê? Ler... Antes de mais nada é pre¬ciso pô-la à prova com as cartas: depois submete-a a uma leitu¬ra interminável, uma exigência contínua. Ela é a leitora obedien¬te, uma empregada; tem de ler e permanecer presa à escrita.
Podemos imaginar que Kafka construiu imaginariamente a figura da leitora que se desvela com seus manuscritos. As cartas são uma prova desse mecanismo de controle e sedução (e de es¬cravidão). Obrigar o outro a ler. Uma mulher é a figura senti¬mental que permite realizar uma união entre a escrita e a vida.
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Isso explica por que, no fim da noite, quando os dois se sepa¬raram, Kafka cometeu um pequeno deslize. "Quando ela lhe per¬guntou onde ele morava - por pura cortesia, para saber se ele não teria de fazer um trajeto muito longo -, Kafka pensou que ela es¬tava pedindo seu endereço postal para escrever-lhe uma carta", observa Reiner Stach.
Ele pensou na hora em dar início a uma correspondência. Ali se inaugura uma série: o equívoco, a impressão, a atração, as cartas; tudo a partir do primeiro momento. A mulher que passa a noite lendo.
UM SOCO NA MESA
Há uma coisa, nesse primeiro encontro com Felice, que ao mesmo tempo está dita e não está dita - e isso é clássico em Kafka. Uma correlação secreta que precisamos reconstruir. Um pequeno indício, uma série de pequenos indícios, um sinal que, lido à maneira de Kafka, podemos imaginar como sendo o nexo que permite narrar - dar a entender, mais que explicar - a his¬tória de Franz e Felice. Em todo caso, uma rede de correlações para imaginar o que ele teria visto naquela mulher.
A correlação tem para Kafka um sentido pessoal e pleno nun¬ca inteiramente formulado. O ponto que lhe permite estabelecer o nexo se torna visível num momento da conversa daquela noite na casa de Brod. Uma pequena situação imperceptível para todo aquele que não fosse Kafka, e penso que ela não foi analisada.
Sua marca é um gesto. Um soco na mesa. Trata-se de uma forma clássica de chamar a atenção, sobretudo se consideramos o que provocou sua reação.
"Por outro lado", escreve Kafka a Felice no dia 2 de outubro de 1912, "guardo ainda na memória uma coisa que aconteceu no
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outro aposento e que me encheu de tal assombro que dei um so¬co na mesa [dass ich auf den Tisch schlug}"
Um gesto. Walter Benjamin já escreveu coisas definitivas so¬bre o gesto em Kafka, sobre o sentido do gesto em Kafka.
[...] toda a obra de Kafka representa um código de gestos cuja sig¬nificação simbólica não é de modo algum evidente, desde o iní¬cio, para o próprio autor; eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. [...] os gestos dos personagens kafkianos são excessivamente enfá¬ticos para o mundo habitual e extravasam para um mundo mais vasto. [...] Cada um [gesto] é um acontecimento em si e por assim dizer um drama em si. [...] [Kafka] priva os gestos humanos dos seus esteios tradicionais e os transforma em temas de reflexões intermináveis.*
Alguma coisa acontecida "no outro aposento", portanto, fez com que Kafka desse um soco na mesa. O que teria acontecido? Tratemos de reconstruir a cena.
Naquela noite, na casa de Brod, eles passam o serão em dois aposentos separados por uma sala central escura. Num dos apo¬sentos, a sala do piano, Felice senta-se ao lado dele; pouco antes, no "outro aposento", estiveram sentados em torno da mesa, olhando fotografias que Kafka trouxera da casa de Goethe. Feli¬ce demonstra certo interesse, todos conversam. Mas alguma coi¬sa, num momento imperceptível e ao mesmo tempo intenso, define tudo.
* Extraído da tradução de Sérgio Paulo Rouanet, em "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte" (Walter Benjamin, Obras escolhidas - Ma¬gia e técnica, arte e política, São Paulo, Brasiliense, 7" ed., 1994).
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"Felice declarou que adorava copiar manuscritos e pediu a Brod que lhe enviasse alguns para Berlim. Ouvindo isso, Kafka ficou tão assombrado que deu um soco na mesa", conta Canetti.
"Ela era datilógrafa por profissão, e gostava muito, disse, de copiar manuscritos, e pediu a Brod que mandasse seus trabalhos para Berlim. Kafka deu um tapa na mesa, de puro assombro", ob¬serva Stach.
Em seguida passam para a sala do piano e o serão prosse¬gue. Kafka contou-o a seu modo na carta de 27 de outubro de 1912:
Na sala do piano a senhora sentou-se diante de mim, e comecei a comentar meu manuscrito. Todo mundo começou a me dar con¬selhos estranhos com respeito à remessa [é assim que ele se refere ao original que precisa preparar para publicação], mas já não consigo recordar quais foram os seus. Em compensação, ainda conservo na memória uma coisa acontecida no outro aposento e que me encheu de um assombro tão grande que dei um soco na mesa. A senhora disse, efetivamente, que gostava de copiar ma¬nuscritos, que, na realidade, em Berlim a senhora copia manuscri¬tos para não sei que senhor (maldito o som dessa palavra quando não está atrelado a nenhum nome nem a nenhuma explicação!).
No relato que Kafka faz da situação há uma simultaneidade (uma espécie de confusão) entre o espaço e o tempo que - como em todos os seus textos narrativos - coloca problemas de sentido. Tudo sempre acontece ao mesmo tempo em vários espa¬ços; tudo acontece em outro aposento (basta pensar em "A meta¬morfose"). Assim, nesse fragmento de disposição estranha, com dois espaços e dois momentos simultâneos, Kafka aproxima seus próprios manuscritos do gosto de Felice pela cópia.
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Felice Bauer, a datilógrafa, a mulher-copista: Kafka fica aten¬to a ela para sempre. Poderíamos dizer que a mulher perfeita pa¬ra um escritor como Kafka (que concebe a escrita como um mo¬do de vida) é uma copista. Uma leitora que viva para copiar seus textos como se fossem próprios.
Felice, a mulher-leitora ligada à escrita sem fim; alguém ca¬paz de tirá-lo das profundezas da massa de manuscritos. Kafka, o escritor mais necessitado de um corte entre os manuscritos e a cópia que se possa imaginar (nesse ponto era como Macedonio Fernández).
Se levamos em conta o sentido da escrita contínua e ininter¬rupta de Kafka, a fantasia parece muito direta. Na edição atual das Obras completas há 3500 páginas escritas nos cadernos, com três romances inacabados com inúmeras anotações, relatos e frag¬mentos, ao passo que há apenas 350 páginas passadas a limpo e enviadas ao editor. Na realidade, a maior parte de seus textos está em cadernos, e os textos costumam passar confusamente de um para outro. Com freqüência encontram-se folhas soltas interca¬ladas. Nisso, também, Kafka era como Macedonio Fernández; pas¬sava de um texto para outro, de uma anotação para outra, sem distinção entre as garatujas e o original.
Kafka escreve à mão, à caneta ou a lápis. Seriam dois mo¬mentos do manuscrito? Duas versões? Uma é mais definitiva que a outra? Difícil saber. Por exemplo, as duas cartas encontradas em sua escrivaninha por ocasião de sua morte, com a instrução de que seus manuscritos fossem queimados - talvez os dois tex¬tos decisivos de Kafka como autor -, foram escritas, a primeira, em 1921, à caneta, e a segunda, em 1922, a lápis.
Pequenos detalhes e pequenas distinções. Sem maior im¬portância, exceto no laboratório de Kafka. Digamos que Kafka era muito consciente dos diferentes passos e transformações da es¬crita: o manuscrito, os cadernos, o original, a cópia, as provas de
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prelo. Passos na leitura de seus próprios textos. A dificuldade é, evidentemente, sair da versão solitária e noturna para a versão fi¬nal, ir do manuscrito para o original e a cópia. (Joachim Unseld trabalhou muito bem esses problemas em seu livro Franz Kafka: una vida de escritor.)
No dia 7 de agosto de 1912 estava começando a primeira re¬visão de Contemplação e ele escreve a Brod que está se sentindo "incapaz de passar a limpo esses breves fragmentos" que ainda faltava passar. "Portanto não vou publicar esse livro", conclui.
A experiência é a escrita sem fim: alguém precisa resgatá-lo para que saia da indecisão e tenha alguma coisa para passar a lim¬po. "O senhor poderia enviar-me, para minha mais alta satisfa¬ção, seus novos trabalhos numa cópia datilografada?", escreve-lhe Kurt Wulff, seu editor. Alguém precisa ajudá-lo a passar de escri¬tor a autor, a passar de K. a Kafka, da letra pessoal à palavra pú¬blica. É necessário um passo intermediário, um desdobramento.
A figura da datilógrafa é, imaginariamente, a intermediária: copia um texto para torná-lo legível, para enviá-lo (como na pri¬meira noite) ao editor.
Um pouco da história da técnica entra nessa história. Felice está no limite da transformação da figura da mulher que lê. Tra¬balha copiando textos. Escreve à máquina. ("Ifeel thatlhave do-ne somethingfor the women who have always had to work so hard. This will enable them more easily to earn a living " [Sinto que fiz alguma coisa pelas mulheres que sempre tiveram de trabalhar duro. Agora elas poderão capacitar-se mais facilmente para ga¬nhar a vida], dizia Christopher Latham Sholes, inventor da má¬quina de escrever.) É a nova profissão das mulheres, como tam¬bém sublinhou Margery Davies em seu livro Womans Place is at the Typewriter: Office Work and Office Workers, 1870 a 1930 [O lugar da mulher é na máquina de escrever: Trabalho de escritó¬rio e trabalhadores de escritório, 1870 a 1930].
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A máquina de escrever separa historicamente a escrita arte-sanal e a edição. Altera o modo de ler o original, ordena-o. Na realidade, foi inventada para copiar manuscritos e facilitar o di¬tado, mas num instante transformou-se em instrumento de pro¬dução. Com todas as suas particularidades. (E o poeta norte-americano Charles Olson fez uma análise muito sutil da escrita à máquina e de seus efeitos sobre o estilo poético. Evidentemente, poderíamos dizer o mesmo, hoje, sobre os programas de edição de texto.)
Kafka está no momento da passagem da escrita à mão, em cadernos, para a escrita à máquina, que começou a difundir-se naqueles anos, ligada basicamente ao comércio e ao mundo mili¬tar. Nesse sentido, percebe claramente a distância entre escrever de uma ou de outra maneira.
"A inconveniência de escrever à máquina é que se perde o fio", diz Kafka a Felice em sua primeira carta de 20 de setembro. A máquina de escrever não é para escrever, produz uma deriva, perde-se a linha, a continuidade, a mão se distancia do corpo, se mecaniza ("a mão que nesses momentos está acionando as te¬clas", observa Kafka na terceira pessoa nessa carta a Felice).
Mais que a clareza da grafia, interessa o ritmo corporal da escrita, muito ligado, para Kafka, à respiração, aos órgãos inter¬nos, aos ritmos do coração. Inclusive a uma estranha relação com a velocidade. "Desculpe-me se não escrevo à máquina, mas é que tenho uma enorme quantidade de coisas a dizer-lhe, a má¬quina está mais adiante no corredor [...] além disso a máquina, para mim, não é suficientemente veloz", diz a ela uma semana mais tarde.
Para Kafka, a máquina de escrever não serve para a escrita pessoal. Ele a associa com a burocracia, com os textos legais (re¬gulamentos, informes, editais), com uma escrita despersonalizada e anônima. "Por isso me sinto tão atraído pela máquina de es¬
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crever em todos os assuntos relacionados com o escritório, pois seu trabalho - realizado, além disso, pela mão do datilógrafo - é tão anônimo" (carta de 20 de dezembro de 1912).
Kafka também está ligado a uma nova prática que surge na¬quela época e que utiliza no escritório: o ditado (já sabemos o que Roa Bastos foi capaz de fazer com essa figura em Eu, o supre¬mo: o ditador, o que dita). Ditar é "minha principal ocupação", diz Kafka ao referir-se a seu trabalho, "quando, em casos excep¬cionais, não escrevo pessoalmente à máquina" (carta de 2 de no¬vembro de 1912).
Poderíamos dizer que - diferentemente de Henry James - a idéia de ditar seus próprios textos escapa por completo à órbita de Kafka. Muitos já viram no estilo do último Henry James a marca dos textos ditados a uma mulher. Mas para Kafka a máqui¬na de escrever e o ditado estão ligados ao mundo do escritório.
Em sua caverna, na toca, a idéia de cópia que circula é outra, outro tipo de máquina. A mulher sozinha, que trabalha e ganha a própria vida, Felice Bauer, a datilografa profissional. A leitora-copista, a mulher-máquina copiadora: é isso que Kafka vê nela.
Podemos pensar que nesse processo surge a ilusão de uma mediação. Uma figura interna, diríamos, uma mulher amada - uma mulher a quem se ama por isso - que faz o que Kafka não pode fazer. Felice Bauer, a garota-datilógrafa, como a chama Kafka.
A COPISTA
Na noite do primeiro encontro, Kafka construiu, imaginariamente a figura de uma leitora atada a seus manuscritos. Uma figura sentimental, que une a escrita e a vida. A mulher perfeita, na perspectiva de Kafka (mas não apenas na dele), seria, assim, a
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leitora fiel, que vive sua vida para ler e copiar os manuscritos do homem que escreve.
Trata-se de uma grande tradição: basta pensar em Sofia Tolstói, que copia sete versões completas de Guerra epaz (no fim, achava que o romance era dela e começaram os conflitos brutais com o marido). É preciso ler seu diário e o diário de Tolstói. A guerra conjugal.
E, se prosseguirmos com as leitoras-copistas russas, podemos evocar a história de Dostoiévski, que Kafka conhecia muito bem. Aquele momento único (sobre o qual Butor escreveu um belíssi¬mo texto) em que, assediado pelas dívidas, precisa escrever ao mesmo tempo Crime e castigo e O jogador (um pela manhã e o outro à tarde) e resolve contratar uma taquígrafa, Anna Giriego-rievna Snitkine. Entre 4 e 29 de outubro de 1866 ele lhe dita O jo¬gador, e no dia 15 de fevereiro de 1867 casa-se com ela, depois de pedir sua mão no dia 8 de novembro: uma semana depois de ter¬minar o livro e um mês depois de tê-la conhecido. Uma velocida¬de dostoievskiana (e uma situação kafkiana). A mulher seduzida pelo simples fato de ver a capacidade de produção de um homem. A mulher seduzida enquanto escreve o que lhe ditam.
E temos Vera Nabokov. A sombra russa, a mulher que anda com um revólver para proteger o marido, sua "ajudante" nas au¬las em Cornell (essa é a palavra utilizada por Nabokov ao apre¬sentá-la) e, principalmente, sua copista, aquela que copia inter-minavelmente os manuscritos, copia uma e outra vez as fichas em que o marido escreve a primeira versão de seus romances. E, além disso, aquela que escreve as cartas em nome dele. Na bio¬grafia de Stacy Schiff, Vera, podemos ver como se constrói essa figura simbiótica de mulher-de-escritor, de mulher-dedicada-à-vida-do-gênio. Vera escreve como se fosse o marido. Ocupa, in¬visível, o lugar dele. Escreve no lugar dele, por ele, e se dissolve.
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O inverso, evidentemente, é Nora Joyce, que se recusa a ler uma só página escrita pelo marido, que nem sequer abre o Ulis¬ses, que nem sequer entende que o romance transcorre no dia 16 de junho de 1904 como recordação do dia em que os dois se conheceram. Nora se sustenta em outro lugar, muito sexualizado, ao menos para Joyce. Isso é visível nas cartas que ele lhe es¬creve. (As cartas de Kafka para Felice são iguais às de Joyce num aspecto: ordenam por escrito à mulher o que ela deve fazer, e in¬clusive, às vezes, o que deve dizer e pensar. A escrita como poder e disposição do corpo de outrem. Outra forma de bovarismo: a mulher deve fazer o que lê.)
Contudo, Nora é a musa, é Molly Bloom. Outra idéia de mulher. Outro tipo de vampirismo funciona ali. Em todo caso, para Joyce o copista era... Beckett, que foi seu secretário em Paris durante vários meses.
A mulher-copista e a mulher-musa: mulheres de escritores. A mulher fatal, que inspira a mulher dócil que copia. Ou dois tipos diferentes de inspiração: a que se recusa a ler e a que so¬mente quer ler. Duas formas da escravidão. Na realidade, Nora é a empregada de Joyce (e havia trabalhado como criada num hotel de Dublin). Em todo caso, as duas são empregadas. Como a que passa no final de "O veredicto". Ou antes como a criada que chama sua atenção para o fato de que passou a noite escre¬vendo.
Em Borges também há muito disso. Em sua relação com as mulheres como leitoras, vem em primeiro lugar o vínculo com a mãe. Em seguida vem a série de mulheres-secretárias que copiam os textos para ele (lembremos que Borges era cego).
Todos os escritores são cegos - em sentido alegórico a la Kafka --, não conseguem ver seus manuscritos. Têm necessidade do olhar de um outro. Uma mulher amada que leia a partir de outro lugar, mas com seus próprios olhos. Não é possível ler os próprios textos se não for sob os olhos de outroem.
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Kafka mais que ninguém. Sensível ao olhar do outro, lê seus próprios textos com os olhos do inimigo. Em diferentes momen¬tos, todos eles decisivos, submete seus escritos ao olhar do outro puro, especialmente de sua família, e sofre as conseqüências des¬sa leitura hostil. Seria suficiente relembrar sua iniciação como escritor.
O jovem Kafka começou a escrever o que será uma primei¬ra versão de América. Sentado à mesa familiar, cercado de paren¬tes, faz-se ver escrevendo. Um de seus tios lhe arranca o texto das mãos. Por curiosidade? "Limitou-se a dizer, dirigindo-se às ou¬tras pessoas presentes, que o fitavam: 'O de sempre'; a mim, não disse nada. Eu continuava sentado, inclinado, como antes, sobre meu escrito, cujo escasso mérito acabava de tornar-se patente." A leitura inimiga, o olhar hostil (e familiar). Há muitas cenas pare¬cidas no Diário. O que ele escreve sempre sai errado porque o lê a partir dos olhos do outro-hostil.
Em compensação, a mulher o acompanha. Ele escreve a Fe¬lice sobre América: "É necessário, portanto, que eu o termine, sem dúvida a senhora também é dessa opinião, de modo que, com sua bênção, o pouco tempo que puder dedicar [...] transferirei para esse trabalho. [...] A senhora está de acordo? E a senhora não irá abandonar-me a minha, apesar de tudo, terrível solidão?" (carta de 11 de novembro de 1912).
Aí estão os dois movimentos: a solidão da escrita e a neces¬sidade de um contato ligado à leitura de seus textos. Pensa numa mulher que olhe compassivamente, compreensivamente para ele, uma mulher diante da qual adota uma atitude infantil, subordi¬nada e menor, que evoca o Ferâydurke de Gombrowicz. "Hoje lhe enviarei O foguista, vamos ver se você o acolhe com carinho, se o senta a seu lado e o elogia, como ele deseja", diz a ela na carta de 10 de junho de 1913. E quando lhe envia seu primeiro livro, escreve: "Suplico-lhe que tenha consideração para com meu po¬
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bre livrinho. São aquelas poucas folhas que você me viu organi¬zar na noite em que nos conhecemos".
E aí estão os dois movimentos da mulher-leitora-ajudante. Por um lado, a cópia dos manuscritos que é necessário escrever à máquina. O momento da socialização, tão necessário para Kaf¬ka: imaginar uma mulher amada, a mulher-máquina-de-copiar, que se ocupa desse passo decisivo.
E, por outro lado, a leitura e a escuta atentas. A mulher dis¬posta a acompanhar o que se escreve. Ler para alguém em voz alta o que se acaba de escrever é um exemplo clássico desse mo¬vimento. Há muitos testemunhos assinalando que Kafka gosta¬va de ler seus textos em voz alta. É o que faz, de fato, com suas irmãs logo depois de terminar "O veredicto", como se a leitura fosse uma continuidade do que escreveu durante a noite. Levan¬ta-se, vai até o outro quarto e lê em voz alta o que acaba de es¬crever.
Quando Kafka já está desiludido quanto a Felice, perto do final, quando ela o decepcionou, no dia 24 de janeiro de 1915 ele escreve em seu Diário: "Solicitação tíbia de que eu lhe permitis¬se levar um manuscrito para copiá-lo". Agora ela é a copista indi¬ferente.
E no mesmo parágrafo ela aparece como uma estranha que se desconecta: "Também li para ela uma coisa minha, as frases se enredavam de maneira repulsiva, sem a menor conexão com a ouvinte, que estava jogada no sofá, de olhos fechados, e acolhia minha leitura sem dizer palavra".
Já não há vínculo entre eles, a essa altura tudo está termina¬do. Mas Kafka registra os dois movimentos que estão na origem da relação e que Felice não realiza. Nem a leitora-copista, que copia o que lê; nem a leitora-ouvinte, para quem se lêem textos em voz alta, estendida no sofá.
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A SENHORITA BARTLEBY
O copista, o amanuense, o escrevente, o transcritor que es¬creve fielmente aquilo que lê: uma representação extrema do lei¬tor. Bartleby, de Melville, é a figura literária mais radical desse tipo de leitor-copista, leitor-ajudante. O copista como herói lite¬rário. Um mundo enclausurado, feito apenas de cópias e leituras. Daí sua estranheza.
Em seu ensaio "Bartleby e a contingência", Agamben se refe¬riu às figuras que cercam o escrevente. Gostaria de citar um tre¬cho longo:
Como escrevente, Bartleby pertence a uma constelação literária cuja estrela polar é Akakaij Akakievic ("Para ele ali, naquela cópia, de certo modo estava contido o mundo inteiro [...] tinha prefe¬rência por certas letras, e quando chegava a elas perdia por com¬pleto a cabeça"); em seu centro se encontram esses dois astros gê¬meos que são Bouvard e Pécuchet ("essa grande idéia que ambos alimentavam em segredo... copiar"), e em seu outro extremo bri¬lham as luzes brancas de Simon Tanner ("'Sou escrevente', essa é a única identidade que reivindica") e do príncipe Mishkin, capaz de reproduzir sem esforço qualquer caligrafia. Mais adiante, co¬mo um breve séquito de asteróides, os Secretários dos tribunais kafkianos.
Metáforas extremas do leitor. Poderíamos incluir Pierre Menard nessa série? Talvez. O leitor que escreve literalmente o que lê, ou o que se lembra de ter lido. Copistas, assexuados mas sexualizados, cheios de desejo.
A posição-Kafka é, então, mais extrema; a mulher-copista-tradutora não copia processos judiciais, copia os textos do se-nhor-fraco.
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Nesse sentido, eu gostaria de construir outra rede com que cercar Kafka. Seria o caso de dizer, melhor, que aquilo que cerca Kafka (e também em certo sentido Bartleby) é outra correlação.
Trata-se da série real de mulheres-copistas capturadas pelos escritores, que já mencionamos. Sofia Tolstói poderia ser o caso extremo mais interessante. Antes de mais nada porque ela escreve um diário (e também porque se rebela: acho melhor não). "Hoje me perguntei por que estou tão cansada do trabalho de transcri¬ção que faço para Lev N, que sem dúvida é uma coisa necessária [...] Por outro lado, na transcrição do mesmo texto feito pela dé¬cima vez não sobra nada. Nesse trabalho não há nada que possa ser bem-feito, nunca se pode prever o fim, e sempre se continua retomando uma e outra vez a mesma coisa", anota no dia 17 de agosto de 1897.
Uma mulher na posição-Bartleby. A mulher obrigada a co¬piar sempre a mesma coisa. Também ela se rebela.
E aparece algo mais secreto: o leitor como figura feminina. Em seu livro sobre as origens da leitura, Phrasikleia. Anthropologie de la lecture en Grèce ancienne, Jesper Svenbro chamou a atenção para a assimilação do leitor a uma posição feminina na tradição grega. A passividade estaria ligada à impossibilidade do leitor de discutir e interrogar um texto escrito, diferentemente do que acontece na oralidade. (Cortázar, claro, caiu na armadilha com sua idéia do leitor fêmea oposto ao leitor macho, em Rayuela.) Uma passividade que - adotando um estereótipo que vem de Freud - poderíamos assimilar a uma posição feminina. Passivi¬dade? Não é o caso de Sofia Tolstói. E, em certo sentido, tampou¬co o de Felice.
Bartleby ou a posição feminina. Posição feminina? Bartleby e o rechaço tranqüilo, a passividade ligada a uma firmeza e a uma negação cerrada.
"Acho melhor não." Um chiste freudiano.
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Bartleby como objeto de desejo (nisso estaria o lado cômi¬co da história de Melville). A atração exercida por essa figura na literatura tem muito a ver com a ambigüidade. Bartleby: fantasia masculina do leitor que se nega. A leitora perfeita. A figura mas¬culina, neutra e assexuada, mas cheia de desejo (sexualizada e ambígua) do copista fantasmagórico.
Kafka não leu - que se saiba - o texto de Melville, mas nós, porque lemos Kafka, porque percebemos como Kafka lê, lemos esse texto de outro modo.
A escrava, há certa escravidão na atitude desse estranho co¬pista. É nisso que Bartleby é um precursor de Kafka, ou melhor, um precursor da figura imaginária de Felice Bauer.
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3. Leitores imaginários
UMA LIVRARIA DE PARIS
Uma das maiores representações modernas da figura do lei¬tor é a do detetive privado (private eye) do gênero policial. E não me refiro à leitura no sentido alegórico (Sherlock Holmes lê pe¬gadas no assoalho), mas ao ato de ler palavras impressas e deci¬frar signos escritos num papel.
Com efeito, a cena inicial do gênero (no primeiro relato po¬licial, "Os assassinatos na rua Morgue", de Poe, escrito em 1841) se passa numa livraria da rua Montmartre, onde o narrador conhe¬ce por acaso Auguste Dupin. Os dois estão na livraria "ambos pro¬curando um volume raro e notável".* Não sabemos que livro é es¬se (assim como não sabemos qual é o livro que Hamlet está lendo), mas sabemos o papel que desempenha: "Ele nos pôs em estreita comunhão", diz. O gênero policial nasce nesse encontro.
* Os trechos de "Os assassinatos na rua Morgue" foram extraídos da tradução de Ana Maria M. Tatsumi (Paz e Terra, 1996).
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O perfil de Dupin se delineia imediatamente como o de um homem de letras, um bibliófilo. "Estava assombrado", confessa o narrador, "com a vasta extensão de suas leituras" [at the vast extent of his reading]. Essa imagem de Dupin como um grande leitor é o que vai definir sua figura e sua função. Por outro lado, o encontro configura e antecipa a dupla clássica de homens sozi¬nhos unidos pela paixão de investigar. Dupin poderia ser consi¬derado a pré-história ou o embrião da série de celibatários fasci¬nados pelo desejo de saber: o solteiro, solitário, extravagante, une-se aqui - à maneira de Bouvard e Pécuchet, mas também de Holmes e Watson - a um amigo, com quem convive.
Ficou afinal arranjado que viveríamos juntos durante minha esta¬da na cidade; e, como minhas condições eram um tanto melhores que as dele, coube-me a despesa de aluguel e mobília que combi¬nassem com a melancolia fantástica de nosso temperamento, uma mansão antiga e grotesca, havia muito abandonada devido a su¬perstições que não nos detivemos a averiguar.
Dupin, o associal, está fora da economia. É seu amigo, o nar¬rador, que financia a vida dele e funciona quase como a figura do mecenas com o artista. Existe um pacto econômico (um pacto pré-capitalista, eu diria) na origem do gênero, que preserva Du¬pin da contaminação do dinheiro e garante sua autonomia.
Ao mesmo tempo, se insinua uma vez mais a tensão com o que está além do mundo da leitura e dos livros, nesse caso a man¬são abandonada e lúgubre, com suas superstições e possíveis fan¬tasmas; a tensão com o mundo gótico, com os espectros e as vo¬zes que chegam do além. Essa espécie de novo Hamlet que aparece aqui encontra no espaço da leitura e do deciframento uma manei¬ra de sair do mundo arcaico.
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Quando a história da rua Morgue está por começar, parece que vamos encontrar uma narrativa de fantasmas. Mas o que aparece é uma coisa totalmente diferente. Um novo gênero. Uma história da luz, uma história da reflexão, da investigação, do triun¬fo da razão. Uma passagem do universo sombrio do terror góti¬co para o universo da pura compreensão intelectual do gênero policial. Continuamos discutindo sobre os mortos e a morte, mas o criminoso substitui os fantasmas.
A passagem desse universo arcaico e sombrio para o univer¬so da pura razão tem muito a ver, uma vez mais, com o ato de ler e interpretar palavras escritas. Transformando o mundo dos es¬pectros e dos terrores noturnos num mundo de ameaças sociais e crimes, o gênero põe em dimensão interpretativa e racional a série de fatos extraordinários e assombrosos que são a matéria do gótico.
A chave é que Poe inventou uma nova figura e assim inven¬tou um gênero. A invenção do detetive é a chave do gênero.
Borges observou várias vezes (especialmente em seu debate com Caillois na revista Sur, em 1942) que o detetive é a chave formal do relato policial. Em princípio, essa é uma diferença es¬sencial em relação àqueles (como Roger Caillois, mas também como o historiador Haycraft, a quem Borges dedica uma resenha na revista, em setembro de 1943) que vêem as origens do gênero em antigos relatos investigativos que remontam à Bíblia e à tra¬dição grega, com suas histórias de deciframento de enigmas, so¬nhos e oráculos (Rodolfo Walsh seria um representante dessa li¬nha, visível no título de seu ensaio "Dois mil e quinhentos anos de literatura policial").
O detetive encarna a tradição da investigação que até aque¬le momento circulava por figuras e registros variados. A rede com¬plexa e a própria história dessa função investigativa agora se cris¬taliza nele.
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A lucidez do detetive depende de seu lugar social: é margi¬nal, está isolado, é um extravagante. "Para tornar esses persona¬gens ainda mais estranhos", diz Borges em sua conferência sobre "A história policial", "faz com que vivam num mundo diferente daquele em que os homens costumam viver. Quando amanhece, cerram as cortinas e acendem as velas, e ao anoitecer saem cami¬nhando pelas ruas desertas de Paris em busca daquele infinito azul, diz Poe, que só ocorre numa grande cidade adormecida."
Além disso, como dissemos, o detetive é solteiro, um celibatário. Não está incluído em nenhuma instituição social, nem se¬quer na mais microscópica, a célula básica da família, porque es¬sa qualidade antiinstitucional (ou não institucional) garante sua liberdade.
A figura do celibatário como espaço extremo da autonomia, que destacamos a respeito de Kafka, assume aqui características novas. Existe um elemento estranho nas condições de interpre¬tação encarnadas pelo detetive, e muitos dos traços pouco habi¬tuais que o caracterizam ao longo da história do gênero estão ali para estabelecer a diferença e a distância.
Porque é livre e não está determinado, porque está sozinho e excluído, o detetive pode ver a perturbação social, detectar o mar e entregar-se à ação. Certa extravagância, certa diferença, in¬siste sempre na definição desses indivíduos extraordinários que se associam, no caso de Dupin, com a figura do homem de letras, do artista esquisito e boêmio.
Dupin é antes de mais nada um grande leitor, um novo tipo de leitor, como dizíamos. Como em Hamlet, como em D. Quixo¬te, a melancolia é uma marca vinculada à leitura, em certo senti¬do, à doença da leitura, ao excesso dos mundos irreais, ao olhar ca¬racterizado pela contemplação e o excesso de sentido. Mas não se trata da loucura, do limite produzido pela leitura a partir do exem¬plo clássico do Quixote, mas da lucidez extrema. Dupin é a per¬
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sonificação do grande raciocinador. A leitura não é, aqui, a causa da doença, ou seu signo; antes, assume a forma de uma diferença, de um traço distintivo; parece mais um efeito da estranheza do que sua origem.
A CIDADE HOSTIL
Se Hamlet é o leitor em tensão com o cenário da corte e as disputas políticas determinadas pelas relações familiares no po¬der, Dupin é aquele que está, como leitor, em tensão com o cená¬rio da cidade, entendida como o espaço da sociedade de massas.
"O conteúdo social originário das histórias de detetive", diz Walter Benjamin, "é a perda das pegadas de cada um na multi¬dão da grande cidade." Em certo sentido, poderíamos dizer que a figura do detetive nasce como efeito da tensão entre a multidão e a cidade.
Poe localiza o gênero em Paris - a capital do século xx, co¬mo dizia Benjamin - e, evidentemente, a cidade é o lugar onde a identidade se perde. "É difícil manter a ordem numa popula¬ção tão maciça, onde, por assim dizer, cada um é um desconhe¬cido para todos os outros", observa um informe da polícia de Pa¬ris em 1840. Benjamin situa o gênero na série de procedimentos de identificação do indivíduo anônimo e na nova cartografia da cidade. A numeração das casas, as impressões digitais, as firmas reconhecidas, o desenvolvimento da fotografia, o retrato dos cri¬minosos, o arquivo policial, o fichamento. As histórias policiais, conclui Benjamin, surgem no momento em que se assegura essa conquista sobre o incógnito do homem.
Naquela mesma época, mais ou menos em 1840, Foucault situa o início da sociedade de vigilância. E o detetive funciona a sua maneira, imaginariamente, na série dos sistemas de vigilân¬cia e controle. É sua réplica e sua crítica.
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É no espaço da massa e da multidão anônima que surge Dupin, o sujeito único, o indivíduo excepcional, aquele que sabe ver (aquele que ninguém vê). Ou melhor, aquele que sabe ler o que é necessário interpretar, o grande leitor que decifra o que não é possível controlar.
Basta ver o modo como Dupin nega todos os mecanismos de controle utilizados pelo prefeito para revistar uma casa e vi¬giar um indivíduo em "A carta roubada" (esse grande texto sobre a leitura): não são os meios mecânicos que permitem que se con¬trole o delito, diria Poe, mas a inteligência, a capacidade de iden¬tificação com a mentalidade do criminoso, as sofisticadas técni¬cas de interpretação de Dupin.
Dupin, o homem isolado, vai enfrentar, a sua maneira, os mistérios da cidade, os mistérios de Paris, o mundo ameaçador da massa. A multidão é a experiência subjetiva da sociedade de massas nas redes da grande cidade.
"Sentir ao mesmo tempo o multitudinário e a solidão", diz Borges, quando relembra que Dupin e o narrador "vão caminhar pelas ruas desertas de Paris" enquanto a cidade dorme.
Essa tensão entre o indivíduo solitário e a massa é crucial, e se faz visível em "O homem da multidão", um relato de Poe ime¬diatamente anterior a "Os assassinatos na rua Morgue", que o prefigura e o torna possível. Só falta o detetive. Só falta, digamos, a transformação do flâneur, do observador, em investigador par¬ticular.
O texto de Poe se abre com uma referência à leitura e à so¬lidão. A epígrafe de La Bruyère ("Ce grana malhem, de ne pou-voir être seu?') alude à sociedade como constitutiva do sujeito. E o relato se inicia com a menção a certo livro alemão "que não se deixa ler". Mais uma vez, encontramos a leitura como refú¬gio e construção da subjetividade isolada e do olhar atento e adestrado.
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"Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo", escre¬ve Poe em "O homem da multidão". "Com um charuto na boca e um jornal nas mãos, eu tinha me divertido a maior parte da tarde [...] sondando a rua através dos vidros enfumaçados."*
A noção moderna de multidão aparece pela primeira vez nesse relato de Poe com a característica do anonimato e do ilegí¬vel. A multidão se opõe ao mundo do indivíduo privado que olha através da vidraça de um café o torvelinho da multidão ves¬pertina da cidade e resolve seguir um ancião ao acaso. Ao ama¬nhecer, depois de horas de caminhada, ele se rende à evidência de que não há nada a descobrir: "Vai ser inútil segui-lo; pois não vou aprender mais nada, nem com ele, nem com seus atos". Nes¬se momento o ancião é apresentado como o homem na multi¬dão, o exemplo do mal, precisamente na medida em que encar¬na alguma coisa que "não se deixa ler", como escreve Poe: "Foi muito bem dito, de um certo livro alemão, que es lasst sich nicht lesen - ele não se deixa ler. Há certos segredos que não se dei¬xam contar [...] E assim a essência de todo crime permanece irrevelada".
O que se deve ler, o ilegível, aquilo que se esconde na mul¬tidão, está associado com o crime. Leitura e crime já estão liga¬dos um ao outro. Em "O homem da multidão" surgem as condi¬ções sociais do gênero antes da construção da figura do detetive como resolução desse conflito.
O QUARTO FECHADO
O crime no quarto fechado é o outro movimento fundador do gênero. Os assassinatos da rua Morgue ocorrem num quarto
* Os trechos de "O homem da multidão" foram extraídos da tradução de Doro-thée de Bruchard (Editora Paraula, 1993).
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fechado a chave por dentro. Ali é situado o primeiro crime, assim começa o gênero.
O sujeito ameaçado não está seguro nem mesmo no lugar mais privado possível. Não apenas está ameaçado na cidade, no bairro, na casa, como está ameaçado em seu próprio quarto, no centro mesmo da intimidade. Até ali há de chegar o assassino. O detetive vai desentranhar esse crime, que põe em risco o espa¬ço da privacidade absoluta, e o mais extraordinário é que o deci¬fra lendo os jornais. A leitura é a capacidade de que se vale para decifrar os casos.
O detetive se interna no mundo da cultura de massas e age como um especialista. Os jornais são o cenário cotidiano do cri¬me. E o gênero é o seu duplo: nasce ali e nasce para ler de outro modo e assim interromper o fluxo do que não se deixa decifrar. O refinado leitor que é Dupin, formado nas livrarias de Paris, nos livros únicos e raros, na freqüentação da alta cultura, lerá os jornais como ninguém antes os leu. Lerá, de maneira microscó¬pica, a tensão que circula em todo o universo social.
Em "Os assassinatos na rua Morgue", o que Dupin lê nos jornais é o relato fragmentário do crime. Faz uma leitura muito sofisticada da informação: uma análise lingüística das declara¬ções das testemunhas, transcritas nos jornais, em relação com as vozes ouvidas no local dos fatos. Todos expressam sua perplexi¬dade diante de uma delas, uma voz áspera [gruffvoice], que arti¬cula mal. "A peculiaridade não está no fato de que estejam em desacordo, mas no fato de que um italiano, um inglês, um espa¬nhol, um holandês e um francês trataram de descrevê-la", diz Dupin, "e cada um deles se referiu a essa voz como sendo uma voz estrangeira. Cada um deles está seguro de que não se trata da voz de um compatriota, cada um a associa não à voz de uma pes¬soa pertencente à nação cujo idioma conhece, mas o oposto. O francês imagina que se trata da voz de um espanhol, e acrescen¬
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ta que poderia ter distinguido algumas palavras se fosse espa¬nhol."
A leitura termina por identificar de maneira pura o que po¬deríamos chamar de a voz do outro: a voz do imigrante, do não-francês (num relato escrito em inglês). O gênero parece identificar o suspeito com o outro que chega e fala uma língua que ninguém reconhece mas que, no entender de todos, é estrangeira.
A idéia de que a suspeita é construída sobre o preconceito é trabalhada com muita eficácia pelo gênero. O primeiro suspeito é o outro social, aquele que pertence à minoria que rodeia o mundo branco, no interior do qual estão se desenvolvendo as versões paranóicas daquilo que a ameaça supõe.
Poe encontra a representação mais pura dessa idéia do ou¬tro na figura do gorila. Como sabemos, a voz que todos reconhe¬cem como estrangeira é o som gutural de um gorila. Um mons¬tro, um gorila, é o autor do crime.
A tensão entre o enigma e o monstro é trabalhada conti¬nuamente pelo gênero. O enigma: aquilo que não se entende, o que está trancado; o puro dentro. O monstro: aquilo que vem de fora, do outro lado da fronteira, e cuja voz é estrangeira; o outro puro. No interior de uma cultura, diz o gênero, existe uma dupla fronteira assinalada pelo enigma e pelo monstro. O enigma se interroga a partir de dentro quanto ao sentido da cultura. O monstro assinala a fronteira e a ameaça externa.
Outro grande leitor, Sarmiento, um leitor voraz, único, que leu "as obras completas de Walter Scott à razão de um volume por dia" - como confessa em Recordações da província -, escre¬ve o Facundo com a mesma lógica que encontramos nos contos de Poe: a tensão entre o enigma e o monstro como base da inter-
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pretação dos males sociais. Um enigma abre o texto: "Sombra terrível de Facundo, vou evocar-te para que [...] te ergas e venhas explicar-nos a vida secreta e as convulsões internas que destro¬çam as entranhas de teu nobre povo! Tu possuis o segredo, reve¬la-o". E para decifrá-lo convoca a figura do monstro, a de Rosas, "metade tigre, metade mulher".
Facundo (1845) é um texto contemporâneo dos contos poli¬ciais de Poe. Poderíamos ver Sarmiento como uma espécie de Dupin. O erudito como o leitor que sabe decifrar os signos obs¬curos da sociedade; o ato de ler constitui o sujeito da verdade.
Em resumo, a chave do gênero é a construção de uma figu¬ra literária nova, que vimos nascer e que veremos transformar-se: Dupin, o detetive particular, o grande leitor, o homem culto que entra no mundo do crime. A pré-história da figura clássica do intelectual, seu antecessor, e ao mesmo tempo aquele que de¬fine sua história paralela, invisível. Em Dupin, na figura nova do detetive particular, surge, condensada e ficcionalizada, a história da passagem do homem de letras para a do intelectual compro¬metido.
Em muitos sentidos, o detetive permite que se proponha um debate sobre o erudito e se liga à discussão clássica entre autono¬mia e compromisso. Explicando melhor, o detetive propõe a ten¬são e a passagem entre o homem de letras e o homem de ação.
Na transformação norte-americana do gênero, o homem de ação parece ter apagado por completo a figura do leitor. Porém, como veremos agora, essa figura se mantém nas modificações sofridas pela ficção policial a partir de sua inserção nos Estados Unidos. E Chandler, no final do gênero, fará de Philip Marlowe um herdeiro, deslocado, de Auguste Dupin.
UM ENCONTRO
Quase no fim de The Long Goodbye, de Chandler, talvez o melhor romance policial que já se escreveu, tudo parece estar resolvido. Marlowe, como de hábito, resistiu às pressões e a inú¬meros perigos e se manteve fiel a sua amizade com Terry Lennox e a sua própria integridade. E então acontece uma virada estra¬nha. Marlowe tem um encontro com Linda Loring, filha do mag¬nata Harlan Potter, o personagem mais poderoso do romance, e passa a noite com ela. Esse encontro com Linda é o centro secre¬to da história secreta de Marlowe (a que está por trás de todos os seus casos e define a obra de Chandler).
No início da cena há uma situação aparentemente sem fun¬ção, mas que leva as regras do gênero policial a seu limite (ou pe¬lo menos as confirma, se seguimos a linha do que vimos no caso de Dupin).
Amos, "o motorista negro de meia-idade" que dirige o Ca¬dillac de Linda, levou a mulher - que viaja no dia seguinte para Paris - à casa de Marlowe. E nesse momento, enquanto ela de¬sembarca do carro, dá-se o seguinte diálogo:
- O senhor Marlowe me levará para o hotel, Amos. Obrigada por tudo. Ligo para você amanhã.
- Sim, senhora Loring. Poderia fazer uma pergunta ao se¬nhor Marlowe?
- Certamente, Amos.
Ele colocou a maleta no chão, no interior da porta, e ela pas¬sou por nós e deixou-nos.
- "Envelheci... envelheci.../ Andarei com os fundilhos das calças amarrotados." O que isto significa, senhor Marlowe?
- Coisa nenhuma. Apenas soa muito bonito.
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Ele sorriu.
- É da "Canção de amor de J. Alfred Prufrock", de Eliot. Eis outro trecho: "No saguão as mulheres vêm e vão/A falar de Mi¬guel Ângelo". Lhe sugere alguma coisa?
- Sim... me sugere que o cara não sabia muita coisa a respeito das mulheres.
- Exatamente o que eu penso, senhor. No entretanto, admiro muito T. S. Eliot.
- O senhor disse "no entretanto" ?
- Ué, sim, disse, senhor Marlowe. Por quê, é incorreto?
- Não, mas não diga isso na frente de um milionário. Ele po¬de pensar que você está querendo passar por esnobe.*
A cena recupera a relação com a literatura e a alta cultura implícita nas origens do gênero, só que de maneira deslocada, irônica e fora do lugar (como deve ser na arte de ler). A partir dessa cena, tudo se inverte e dissolve.
Por um lado, claro, os estereótipos se invertem. O motorista negro (estamos em 1952) é versado em poesia inglesa e cita Eliot de memória. Poderíamos contrapô-lo a Júpiter, o criado negro, ingênuo e infantilizado de "O escaravelho de ouro", de Poe, ou a tantos outros criados, camareiros, motoristas e jardineiros ne¬gros que circulam pela ficção norte-americana e pelo gênero po¬licial. E o detetive é aquele que reconhece o poema e o comenta, como uma espécie de crítico literário de baixa extração.
A citação tem alguma pertinência porque o romance re-constrói um ambiente literário: escritores, editores e autores de best-sellers, e sobretudo um típico escritor fracassado ao estilo norte-americano - ou seja, famoso, milionário, cínico -, Roger Wade (um bêbado que não escreve mais nem fala de literatura,
* Reproduzido da tradução brasileira de Flávio Moreira da Costa (L&PM, 2000).
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um escritor popular que evidentemente não tem a legitimidade de Eliot), e a essa altura do texto se insinua que os empregados (e os detetives particulares) se interessam mais pela boa literatu¬ra e sabem mais sobre ela que os escritores.
Ao mesmo tempo, ao longo de todo o romance há inúmeras alusões à tradição inglesa, por oposição à cultura norte-americana. Terry Lennox, o falso inglês (como Eliot, outro falso inglês, e em certo sentido como o próprio Chandler, educado na Inglaterra), e Philip Marlowe, com esse "e" tão britânico no sobrenome. Com efeito, o gimlet, drinque que é uma espécie de senha da amizade entre Terry e Marlowe e que este toma inúmeras vezes ao longo do livro como numa cerimônia solitária e romântica, é definido nessa linha. "Tão inglês quanto peixe cozido", diz Linda Loring a Marlowe quando os dois se conhecem no balcão de um bar.
Por outro lado, Marlowe é aquele que envelhece, aquele que entende e não entende as mulheres. E, sem dúvida, o que Chandler quer transmitir no romance é o desespero implícito no poema de Eliot. The Long Goodbye quer ser o grande poema da desesperan¬ça. Insinua-se ali um novo vínculo. Certo cansaço, certa decepção, que o final do texto (com a traição de Terry) irá reforçar.
Evidentemente, o contexto dessa cena, como o contexto de todas as cenas que examinamos, não tem fim e em certo sentido condensa o romance inteiro (e tem muito a ver com o tipo de es¬critor que era Chandler, tratando de transformar um gênero me¬nor). Mas não é preciso ir tão longe. Vejamos a citação tal como ela é. Em todo caso, não se trata apenas de completar a descrição realista e irônica do mundo social: a função da cena não é co¬mentar o conteúdo do romance (embora também o faça). Mais do que isso, ela reforça uma virada no universo do detetive e nas regras do gênero. O que nos interessa é o fato de que insinua, alude, mostra, sem dizer tudo.
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Para começar, se estabelece uma relação sarcástica entre a poesia e os milionários. Em certo sentido, os milionários e a poe¬sia (ou, em todo caso, a alta literatura) têm uma coisa em co¬mum: são tudo aquilo de que Marlowe se manteve afastado.
E Linda Loring condensa o duplo vínculo. A articulação é ela, claro. Uma mulher será o nexo e a passagem. O que podería¬mos chamar passagem para Linda.
Porque Marlowe também se manteve afastado das mulheres. Resistiu até agora a múltiplas tentativas de sedução de louras tão fascinantes e atraentes quanto Linda, pois seu código consiste em não se envolver com mulheres ligadas aos casos que investiga.
Mas desta vez Philip Marlowe, herdeiro e descendente dire¬to da série de celibatários a la Dupin, depois da estranha conver¬sa com Amos, vai cair na sedução de Linda Loring, a milionária. "Quanto dinheiro você tem?", pergunta Marlowe a Linda depois de tomar algumas taças de champanhe. "Ao todo? Como você quer que eu saiba? Uns oito milhões de dólares."
MISOGINIA
Digamos que no policial as mulheres vão e vêm, mas não exatamente falando de Michelangelo. Em todo caso, uma das chaves da transformação do gênero (a passagem de Dupin e Hol-mes a Marlowe e Spade, por assim dizer) se define pela mudan¬ça do lugar das mulheres na trama. No policial norte-americano o detetive continua sendo um celibatário, mas sua relação com as mulheres aparece em outro registro: elas não são vítimas, como em Poe, mas figuras de atração e risco. Nos relatos de Poe, todas as vítimas são mulheres: a mãe e a garota da rua Morgue, e tam¬bém Marie Rogêt; e evidentemente a dama que é a vítima em "A carta roubada". As mulheres têm poucas possibilidades de sobre¬
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viver no imaginário paranóico e masculino da cidade de massas. No thriller norte-americano, porém, as mulheres são a condição do crime e muitas vezes as criminosas propriamente ditas.
Com efeito, em todos os romances de Chandler as assassi¬nas são mulheres. Em The Big Sleep é Carmen Sternwood que mata Rusty Regan. Em Farewell, My Lovely, Velma Valente mata Moose Malloy (e também Lin Marriott e um detetive anônimo de Baltimore). Em The High Window é Elizabeth Bright Murdock que mata o marido e põe a culpa dessa morte em outra mu¬lher, oito anos antes do início da ação do romance (o que não a impede de matar também o segundo marido, Jasper Murdock, durante o desenvolvimento da trama). Em The Lady in the Lake, sob o nome de Muriel Ches, Mildred Haviland mata Crystal Kingsley (mulher do doutor Aimoré) e Chris Lavery. Em TheLit-tle Sister é Orfamay Quest que vende a vida do irmão por mil dólares e manda matar Steelgrave. Finalmente, em The Long Goodbye, Eileen Wade mata Sylvia Lennox e Roger Wade; e em Playback Betty Mayfield é a responsável de fato pela morte de Larry Mitchell. As mulheres são literalmente as assassinas. São o perigo, a ameaça máxima, e encarnam a destruição.
Digamos que o gênero, e em especial Raymond Chandler, agudiza a tendência do romance norte-americano, no qual - co¬mo apontou sarcasticamente Leslie Fiedler em Love and Death in American Novel- as mulheres destroem a coragem e a dignidade dos homens. Nesse sentido, o título do livro de contos de He-mingway é todo um programa: Men Without Women [Homens sem mulheres]. Estar sem mulher é a condição da independên¬cia masculina. O gênero policial leva esse imaginário ao limite.
Sobretudo porque as mulheres estão associadas com o di¬nheiro. Em Chandler isso acontece desde o início de sua obra. O primeiro diálogo de seu primeiro relato ("Blackmailers Don't
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Shoot", 1933) define essa conexão. "As cartas vão lhe custar dez notas das grandes, senhorita Farr. Não é muito."
A corrupção não está associada à prostituição no sentido clássico. Em todo caso, não se trata das prostitutas de Poe (ou de Baudelaire) à maneira de Marie Rogêt, a grisette assassinada por um marinheiro recém-desembarcado, mas da encarnação sexual do poder do dinheiro. Elas compram os homens e destroem sua coragem e sua integridade. São as mulheres que os prostituem. Essa é a história de Terry Lennox, casado com a irmã de Linda, um homem que vive do dinheiro da mulher. A prostituição está invertida - e a misoginia se transveste de crítica social. Se a mu¬lher corrompe, a mulher endinheirada corrompe duplamente.
Na realidade, as mulheres são as filhas do dinheiro. Habi¬tualmente, em Chandler, são filhas de homens poderosos e apa¬recem em duplas, são irmãs. Uma é sempre depravada e perver¬sa, e a outra é uma espécie de duplo atenuado.
Em seus dois principais romances (The Big Sleep e The Long Goodbye), Chandler faz um cruzamento dessa figura: a má é ir¬mã da boa, e uma delas é quem quer seduzi-lo. Em The Big Sleep elas são Carmen e Vivian, as filhas do general Sternwood, que so¬brevive entre orquídeas. Em The Long Goodbye são Sylvia e Lin¬da, as filhas de Harlan Potter, uma espécie de versão romântica do Citizen Kane.
A relação com as mulheres e com o dinheiro é a chave. Po¬deríamos dizer que a independência do detetive depende de que ele mantenha distância de ambos. A mulher ligada ao mundo do dinheiro é a perdição absoluta e está em tensão com o homem lúcido e decente.
Esse duplo rechaço é a condição básica do gênero. Marlowe se define assim: "Sou um investigador privado autorizado e es¬tou há algum tempo nessa profissão. Sou um lobo solitário, não sou casado, já não sou um justiceiro jovenzinho e careço de di¬
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nheiro". Não às mulheres dos ricos, não à sedução do dinheiro (e não à poesia inglesa, seria o caso de acrescentar). Vive nesse uni¬verso mas se mantém à parte. Volta sozinho para casa, toma um uísque e se senta para refletir sobre problemas de Xadrez.
Esse é o mundo de Marlowe. Ou, em todo caso, é o mundo que Chandler vai começar a desagregar em The Long Goodbye. Porque desse primeiro encontro com Linda sairá um pedido de casamento, mais insólito que o de Kafka a Felice, invertido, poderíamos dizer (é a mulher que pede ao homem que se case com ela). "Você consideraria a possibilidade de se casar comi¬go?" pergunta Linda. Primeiro Marlowe acha graça, resiste, po¬rém mais tarde irá ceder. Necessita de algum tempo e de mais de um romance. Em The Long Goodbye Linda está de partida para Paris, pede Marlowe em casamento e sugere que partam juntos, mas ele se recusa. Em Playback, Linda telefona para ele de Paris um ano e meio depois, para dizer-lhe que foi fiel a ele durante todo aquele tempo e propor novamente que se case com ela. "Es¬tou lhe pedindo que se case comigo", insiste. Quer mandar-lhe uma passagem, porém Marlowe se recusa de novo. Em todo caso, ele pagaria uma passagem para ela, para que voltasse. O roman¬ce termina assim.
Finalmente, nos quatro capítulos de The Poodle Springs Sto-ry, o romance que Chandler deixa inacabado ao morrer, em 1959, Linda e Marlowe já são casados. Esse é, justamente, o con¬flito inicial: agora Marlowe mora na mansão kitsch da mulher, numa vila de milionários, é conhecido como o marido de Linda e vai perder sua autonomia (no sentido literal), pelo menos é o que ele pensa. Tenta alugar um escritório para continuar traba¬lhando como detetive, mas ela ri. "Você não vai ter escritório ne¬nhum, seu bobo. Para que imagina que se casou comigo? Depo¬sitei um milhão de dólares em sua conta, para que você faça o que quiser com eles." Está tudo em jogo, nessa tensão.
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Marlowe se transformou numa espécie de Terry Lennox, aquele que vive do dinheiro da mulher e, apesar de sua elegância - ou graças a ela -, é um corrupto. E agora Marlowe parece o duplo do outro. Dois amigos, dois losers, casados com duas irmãs cheias do dinheiro.
MILIONÁRIOS
Muitas coisas, portanto, estão em jogo na cena em que Mar¬lowe se deixa seduzir por Linda, mas sobretudo está em jogo a relação com o mundo dos ricos. E não apenas a relação com o mundo dos ricos desse romance específico, mas também de toda a obra de Chandler. Já sabemos como começa The Big Sleep, seu primeiro romance: "Eram mais ou menos onze da manhã, em meados de outubro. [...] Ia visitar quatro milhões de dólares."
A relação com o dinheiro é a chave. As mulheres são apenas o lugar de passagem.
A partir de Hammett, a narrativa policial se estrutura sobre o mistério da riqueza; ou melhor, da corrupção, da relação entre dinheiro e poder. E muitas vezes são as mulheres que encarnam esse mundo de maneira visível. (Nesse sentido, Linda Loring é duplamente perigosa porque, além de ser mulher, é milionária, filha de milionário. A relação com o dinheiro se concentra nela.)
E a relação com o dinheiro é que marca a diferença essen¬cial entre o relato de mistério e o thriller. Todo o sistema formal da narrativa policial se define a partir disso.
Por um lado, os thrillers vêm narrar o que o romance po¬licial clássico exclui e censura. Já não há mistério na causalida¬de: assassinatos, roubos, fraudes, extorsões, a cadeia é sempre
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econômica. O dinheiro que legisla a moral e sustenta a lei é a úni¬ca razão desses relatos onde tudo se paga.
Assim se dá cabo do mito do enigma, ou melhor, ele é des¬locado. Nesses textos o detetive não decifra apenas os mistérios da trama, mas encontra e desvenda a cada passo a determinação das relações sociais. O crime é o espelho da sociedade, isto é, a sociedade é vista a partir do crime. Tudo está corrompido e a so¬ciedade (bem como seu âmbito privilegiado: a cidade) é uma sel¬va: "O autor realista de romances policiais", escreve Chandler em A simples arte de matar, "fala de um mundo em que os gângsteres podem dirigir países: um mundo em que um juiz que tem um bar clandestino repleto de bebidas alcoólicas pode mandar para a cadeia um homem flagrado com uma garrafa de uísque. É um mundo que não cheira bem, mas é o mundo em que você vi¬ve. Não é estranho que um homem seja assassinado, mas é estra¬nho que sua morte seja a marca do que chamamos civilização".
No fundo, como se vê, não há nada a descobrir, e nessa mol¬dura não só o enigma é deslocado como o regime da narrativa se modifica. De repente o detetive deixou de personificar a razão pura. Assim, enquanto no policial clássico tudo é resolvido a par¬tir de uma seqüência lógica de hipóteses e deduções com o dete¬tive imóvel, representação pura da inteligência analítica (um exemplo que é ao mesmo tempo limite e paródia poderia ser o de Isidro Parodi, de Borges e Bioy Casares, que resolve os enig¬mas sem mover-se de sua cela), no romance policial norte-ame¬ricano a prática parece ser o único critério de verdade: o investi¬gador se lança às cegas ao encontro dos fatos, deixa-se levar pelos acontecimentos e sua investigação produz, fatalmente, novos cri¬mes. O deciframento avança de um crime para o seguinte; a lin¬guagem da ação é falada pelo corpo, e o detetive, mais que des¬cobertas, produz provas.
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Por outro lado, esse homem que no relato articula a lei e a verdade é motivado unicamente pelo dinheiro: o detetive é um profissional, alguém que faz seu trabalho e recebe um paga¬mento (enquanto no romance clássico o detetive é um aficionado, um aristocrata decadente que vive dos outros e recebe di¬nheiro, numa lógica que se parece mais com a do jogo e das apostas, e que está sempre disposto a decifrar o enigma de forma desinteressada).
Curiosamente, é nessa relação explícita com o dinheiro (os vinte e cinco dólares diários de Marlowe) que se afirma a moral: restos de uma ética calvinista em Chandler, todos são corruptos menos Marlowe, um profissional honesto, que faz bem seu traba¬lho e não se contamina. "Se me oferecem 10 mil dólares e eu os recuso, não sou um ser humano", diz um personagem de James Hadley Chase. Mas no final de The Big Sleep, primeiro romance de Chandler, Marlowe recusa 15 mil. Nesse gesto assistimos ao nascimento de um mito. Seria o caso de dizer que a integridade substitui a razão como marca do herói?
Se o romance policial clássico se organiza a partir do fetiche da inteligência pura e valoriza acima de tudo a onipotência do pensamento e a lógica abstrata mas imbatível dos personagens encarregados de proteger a vida burguesa, nos hard-boiled norte-americanos essa função se transforma e o valor ideal passa a ser a honestidade, a "decência", a incorruptibilidade. Quanto ao res¬to, trata-se de uma honestidade ligada exclusivamente a questões de dinheiro. O detetive não vacila em ser impiedoso e brutal, mas seu código moral é invariável em um único aspecto: ninguém poderá corrompê-lo. O thriller encontra sua utopia nas virtudes do indivíduo que luta sozinho e por dinheiro contra o mal.
Por isso, então, o limite é dado pelo casamento de Marlowe com uma milionária. O que se manteve implícito se torna visível e o gênero se dissolve. O detetive tem de ser um loser. O perde¬
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dor, aquele que não entra no jogo, é o único que conserva a de¬cência e a lucidez. Ser um loser é a condição do olhar crítico. Aquele que perde tem a distância para ver o que os triunfadores não vêem. The winner takes nothing. O vencedor não ganha na¬da, como diz Hemingway em outro de seus grandes títulos.
A cena em que Marlowe dialoga sobre T. S. Eliot com o mo¬torista negro é, como dissemos, a cristalização e o marco da pas¬sagem e da entrada no mundo dos ricos. Essa cena é a ponte entre dois mundos, muda o regime do gênero. E é um livro (a menção a um livro e a lembrança dele) que serve de passagem. O maravi¬lhoso equilíbrio na construção do romance se concentra nesse diálogo.
Porque essa cena está ligada a outra, mais de cem páginas antes, no fim do capítulo 32. Marlowe teve uma entrevista com Potter, o pai de Linda Loring. Enfrentou diretamente aquele que encarna o mundo do poder e do dinheiro. Escutou a voz da ver¬dade social. "Vivemos no que se chama democracia, o governo da maioria, um ideal fantástico se fosse possível fazê-lo funcio¬nar", diz Potter.
O povo vota, mas o mecanismo do partido designa, e os mecanis¬mos do partido, para serem eficazes, precisam de muito dinheiro. Alguém tem que lhe dar esse dinheiro, e esse alguém, seja um in¬divíduo, um grupo financeiro, um sindicato ou seja lá o que for, espera receber em troca certa consideração [...] Tem alguma coisa de muito peculiar no que diz respeito ao dinheiro. Em grandes quantidades, ele tende a adquirir vida própria. Inclusive consciên¬cia própria. O poder do dinheiro fica muito difícil de controlar.
Depois desse diálogo, Marlowe se despede e parte.
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"Saí, e lá estava Amos, esperando-me com o Cadillac para levar-me de volta a Hollywood. Eu quis lhe dar uma gorjeta, mas ele não aceitou. Me ofereci para comprar-lhe os poemas de T. S. Eliot. Ele disse que já tinha."
As duas cenas - uma de saída e outra de entrada - são fundamentais na estrutura do romance. (E Eliot está nas duas.)
LITERATOS
Marlowe, o detetive, revela-se secretamente como um co¬nhecedor de literatura. Mais explícito do que Dupin, inclusive. E isso acontece no final, quando ele está a ponto de ceder (Chan¬dler revela assim sua ironia e seu ceticismo). Em todo caso, apa¬rece uma coisa que percorre a história do gênero: a tensão entre a cultura de massas e a alta cultura. O detetive é aquele que me¬dia esses dois registros. (Na realidade, poderíamos dizer que o gênero foi inventado como uma maneira de mediar a alta cultu¬ra e a cultura de massas.)
Em "Wrong Pidgeon" (também conhecido como "The Pen¬di"), o último conto escrito por Chandler em 1959, essa relação se torna explícita. Marlowe tomou um avião no aeroporto de Los Angeles para participar de um caso e mais uma vez encontramos uma cena-chave.
Cheguei a Phoenix à tarde e me hospedei num motel na periferia da cidade. Em Phoenix estava um calor infernal. O motel tinha um restaurante, de modo que fui comer alguma coisa. [...] Com¬prei um livro de bolso e li. Pus o despertador para as seis e meia da manhã. O livro me deixou tão assustado que escondi duas pis¬tolas debaixo do travesseiro. Era sobre um sujeito que havia se re¬belado contra o chefe dos pistoleiros de Milwaukee e levava uma
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surra a cada quinze minutos. Imaginei que a cabeça e o rosto dele deviam ter virado um pedaço de osso com um pouco de pele es¬farrapada por cima. Mas no capítulo seguinte ele estava mais fres¬co que uma rosa. Então me perguntei por que estava lendo aque¬le lixo quando podia estar memorizando Os irmãos Karamazov. Não encontrei nenhuma boa resposta, de modo que apaguei a luz e tratei de dormir.
O que Marlowe está lendo é o gênero propriamente dito, a versão mais comercial do gênero, que ele ironicamente contra¬põe à idéia do grande romance.
A mesma tensão está presente em The Long Goodbye. Mar¬lowe cita Flaubert diante do escritor comercial que lhe diz que só os livros escritos de maneira rápida e fácil têm valor:
- Depende do escritor, talvez - falei. - Para Flaubert a coisa não era assim tão fácil, e o que ele escrevia era bom.
- De acordo - disse Wade, endireitando o corpo. - Quer dizer que você leu Flaubert e que isso faz de você um intelectual, um crítico, um sábio do mundo literário [ So you have read Flau¬bert, so that makes you an intellectual, a critic, a savant of the lite-rary world].
Sub-repticiamente, o homem de letras que surge com Du¬pin reaparece em Marlowe, e essa é a linha oculta do gênero. Na longa duração do gênero poderíamos dizer que o leitor, o ho¬mem de letras que em Dupin está presente, só que dedicado à cultura de massas, aparece em estado puro no fim, falando de Flaubert, Eliot e Dostoiévski.
O gênero é um comentário implícito dessa tradição. Uma história da figura do intelectual como homem de ação, do inte¬lectual que se desconhece enquanto tal e que está na vida, na
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aventura. "Pensava que era um raciocinador puro [...], mas havia nele um pouco do aventureiro, um pouco até do jogador profis¬sional", diz Borges sobre Lõnrot, e o duplo movimento é funda¬mental na maneira de construir essa figura. No gênero, o homem de ação parece ter apagado por completo a figura do leitor, mas essa figura persiste, sossegada e pouco à vontade, em meio ao empirismo generalizado que caracteriza o relato policial a partir de sua inserção nos Estados Unidos, e aparece plenamente em Marlowe.
Dupin é uma versão do poeta maldito, um solitário homem de letras, um artista que vive na pura autonomia e que por essa razão poderá intervir no mundo social e ajudar a sociedade de que se distanciou. E Marlowe é sua reencarnação modernizada. Está submerso no mundo da pura ação, quase já não se vêem ne¬le os rastros do leitor e do homem de letras, mas alguns indícios transparecem. Daí sua melancolia; foi expulso voluntariamente.
Poderíamos dizer, então, que a série que se inaugura numa obscura livraria da rua Montmartre, em Paris, em 1841, onde Dupin vai procurar um livro e encontra o gênero (ou pelo me¬nos seu narrador), mantém-se oculta ao longo do desenvolvi¬mento da narrativa policial até sair para a luz e encerrar-se no quarto de um motel em Phoenix, onde Marlowe lê, escandaliza¬do, um romance policial barato.
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4. Ernesto Guevara, rastros de leitura
MOVIMENTOS
O leitor, entendido como um decifrador, como intérprete, muitas vezes foi uma sinédoque ou uma alegoria do intelectual. A figura do sujeito que lê faz parte da construção da figura do in¬telectual no sentido moderno. Não só como letrado, mas como alguém que enfrenta o mundo numa relação que em princípio é mediada por um tipo específico de saber. A leitura funciona co¬mo um modelo geral de construção do sentido. A indecisão do intelectual é sempre a incerteza quanto à interpretação, quanto às múltiplas possibilidades da leitura.
Há uma tensão entre o ato de ler e a ação política. Certa oposição implícita entre leitura e decisão, entre leitura e vida prática. Essa tensão entre a leitura e a experiência, entre a leitura e a vida, está muito presente na história que estamos tentando construir. Muitas vezes o que se leu é o filtro que permite dar sentimento à experiência; a leitura é um espelho da experiência, define-a, dá-lhe forma.
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Há uma passagem na vida de Ernesto Guevara sobre a qual Cortázar também chamou a atenção: o pequeno grupo de desem¬barque do Granma foi surpreendido e Guevara, ferido, pensando que está à morte, lembra-se de um relato que leu. Guevara escre¬ve, em Passagens da guerra revolucionária: "Na mesma hora come¬cei a pensar na melhor maneira de morrer, naquele minuto em que tudo parecia perdido. Lembrei-me de um velho conto de Jack London, em que o protagonista, apoiado no tronco de uma árvo¬re, toma a decisão de acabar a vida com dignidade, ao saber-se condenado à morte, por congelamento, nas regiões geladas do Alasca. É a única imagem de que me lembro".
Pensa num conto de London, "To Build a Fire" (Fazer uma fogueira), do livro Farther North, os contos do Yukon. Nesse conto aparece o mundo da aventura, o mundo da exigência ex¬trema, os detalhes mínimos que produzem a tragédia, a solidão da morte. E parece que Guevara relembrou uma das frases finais de London. "Depois que recuperou o fôlego e o controle, sentou-se e recriou na mente a concepção de enfrentar a morte com dig¬nidade."
Guevara encontra no personagem de London o modelo de como se deve morrer. Trata-se de um momento de grande con¬densação. Não estamos longe de D. Quixote, que procura nas ficções que já leu o modelo da vida que deseja viver. Com efeito, Guevara cita Cervantes na carta de despedida a seus pais: "Uma vez mais sinto embaixo de meus calcanhares as costelas de Rocinante, retomo a estrada com o escudo no braço". Aqui não se tra¬taria apenas do quixotismo no sentido clássico, o idealista que enfrenta o real, mas do quixotismo como um modo de unir a lei¬tura e a vida. A vida se completa com um sentido que se retira do que se leu numa ficção.
Nessa imagem que Guevara convoca no momento em que imagina que vai morrer, condensa-se aquilo que procura um lei¬
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tor de ficção; é alguém que encontra numa cena lida um mode¬lo ético, um modelo de conduta, a forma pura da experiência.
Um tipo de construção do sentido que já não se transmite oralmente, como pensava Benjamin em seu texto "O narrador". Não foi um sujeito real que viveu uma experiência e que a conta a outra pessoa; a leitura é que modela e transmite a experiência, na solidão.
Se o narrador é aquele que transmite o sentido do vivido, o leitor é aquele que está em busca do sentido da experiência per¬dida.
Há uma tensão pré-política na busca do sentido, em Guevara. Ao mesmo tempo, porém, seria o caso de dizer que ele che¬gou até aquele ponto porque resolveu esse dilema. Na realidade, chegou até aquele ponto também porque viveu sua vida a partir de um certo modelo de experiência, que leu e que procura repe¬tir e realizar.
Num sentido mais geral, Lionel Gossman se referiu à mes¬ma questão em Between History and Literature, quando observa que a leitura literária substituiu o ensino religioso na construção de uma ética pessoal.
O fato de que Guevara tenha examinado os efeitos e a lem¬brança de uma leitura para fortalecer-se perante a iminência da morte nos remete a uma série de situações de leitura não apenas imaginadas nos textos, como presentes na história propriamente dita. As últimas pessoas a ver Ossip Mandelstam, o poeta russo que morre num campo de concentração na época de Stálin, lem¬bram-se dele diante de uma fogueira, na Sibéria, em meio à de¬solação, rodeado por um grupo de prisioneiros a quem fala de Virgílio. Evoca a leitura de Virgílio, e essa é a última imagem do poeta. A cena reforça a idéia de que há alguma coisa que deve ser preservada, alguma coisa que a leitura acumulou como expe¬riência social. Não se trataria de exibição de cultura, mas, ao
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contrário, de cultura como resto, como ruína, como exemplo ex¬tremo do desprovimento.
Poderíamos falar de uma leitura em situação de perigo. São sempre situações de leitura extrema, fora de lugar, em circuns¬tâncias de desorientação, de morte, ou sob o assédio da ameaça de uma destruição. A leitura se opõe a um mundo hostil, como os restos ou lembranças de outra vida.
Essas cenas de leitura seriam o vestígio de uma prática so¬cial. Trata-se de uma pegada - um tanto borrada -, de um uso do sentido que remete às relações entre os livros e a vida, entre as armas e as letras, entre a leitura e a realidade.
Guevara é o último leitor porque já estamos diante do ho¬mem prático em estado puro, diante do homem de ação. "Minha impaciência era a de um homem de ação", afirma a respeito de si mesmo no Congo. O homem de ação por excelência, eis Gueva¬ra (e às vezes ele fala assim). Ao mesmo tempo, Guevara faz parte da antiga tradição; a relação que ele mantém com a leitura irá acompanhá-lo ao longo de toda a vida.
UMA FOTO
Existe uma foto extraordinária, em que Guevara está na Bo¬lívia, em cima de uma árvore, lendo, em meio à desolação e à ex¬periência terrível da guerrilha perseguida. Sobe numa árvore para se isolar um pouco e ali está, lendo.
Em princípio, a leitura como refúgio é uma coisa que Gue¬vara vive contraditoriamente. No diário da guerrilha no Congo, ao analisar a derrota, escreve: "O fato de eu desaparecer para ler, fugindo assim dos problemas cotidianos, tendia a distanciar-me do contato com os companheiros, sem contar que há certos as¬pectos de meu caráter que não facilitam a aproximação".
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A leitura é assimilada com a persistência e a fragilidade. Guevara insiste em pensá-la como uma dependência. "Minhas duas fraquezas fundamentais: o fumo e a leitura."
A distância, o isolamento, o corte, aparecem metaforizados naquele que se abstrai para ler. E isso é visto como contraditório com a experiência política, uma espécie de lastro que vem do passado, ligado ao caráter, à maneira de ser. Em diversas oportu¬nidades Guevara se refere à capacidade que tinha Fidel Castro de se aproximar das pessoas e estabelecer imediatamente relações fluidas, em contraposição a sua própria tendência a isolar-se, se¬parar-se, construindo um espaço à parte para si mesmo. Existe uma tensão entre a vida social e uma coisa pessoal e privada, uma tensão entre a vida política e a vida pessoal. E a leitura é a metá¬fora dessa diferença.
Isso já é percebido na época da Sierra Maestra. Num dos testemunhos sobre a experiência da guerra de libertação em Cuba, alguém afirma, falando de Che Guevara: "Leitor incansá¬vel, abria um livro quando fazíamos uma parada, ao passo que nós, mortos de cansaço, fechávamos os olhos e tratávamos de dormir".
Para além da tendência a mitificá-lo, há nisso uma particu¬laridade. A leitura permanece como um resto do passado, em meio à experiência da ação pura, do desprovimento e da violên¬cia, na guerrilha, na montanha.
Guevara lê no interior da experiência, faz uma pausa. Pare¬ce um resto diurno de sua vida anterior. Inclusive é interrompi¬do pela ação, como quem desperta: na primeira vez que travam combate na Bolívia, Guevara está estendido em sua rede e lê. Tra¬ta-se do primeiro combate, uma emboscada que ele organizou para dar início às operações de maneira espetacular, porque o exército já está rondando o lugar e, enquanto espera, estendido na rede, lê.
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Essa oposição torna-se ainda mais visível se pensamos na fi¬gura sedentária do leitor contraposta à do guerrilheiro que avan¬ça. A mobilidade constante comparada à leitura como ponto fixo em Guevara.
"Característica fundamental de uma guerrilha é a mobilida¬de, o que lhe permite estar, em poucos minutos, longe do teatro específico da ação e em poucas horas longe da região em que ela se dá, se necessário; que lhe permite mudar constantemente de frente e evitar todo tipo de cerco", escreve Guevara em 1961 em A guerra de guerrilhas. A pulsão territorial, a idéia de um ponto fixo, está sempre à espreita. Porém, ao contrário da experiência política clássica, o fato de acumular e de possuir alguma coisa própria supõe o risco imediato. Régis Debray conta como foi a queda da primeira base na Bolívia, a microzona própria: "Tempos antes havíamos formado uma pequena biblioteca, escondida nu¬ma gruta, ao lado das reservas de víveres e do posto de rádio".
Além disso, a marcha supõe leveza, agilidade, rapidez. É preciso desprender-se por completo, estar leve e andar. Mas Gue¬vara mantém um certo peso. Na Bolívia, já sem forças, carregava livros. Ao ser detido em Nancahuazu, quando é capturado de¬pois da odisséia que conhecemos, uma odisséia que supõe a ne¬cessidade de movimento incessante e de fuga do cerco, a única coisa que ele conserva (porque perdeu tudo, não tem nem sapa¬tos) é uma pasta de couro, que leva amarrada ao cinturão, sobre a ilharga direita, onde guarda seu diário de campanha e seus li¬vros. Todos se desfazem daquilo que dificulta a marcha e a fuga, mas Guevara continua mantendo seus livros, que pesam e são o oposto da leveza exigida pela marcha.
O exemplo antagônico e simétrico é, evidentemente, Gramsci, um leitor incrível, o político separado da vida social pela pri¬são, que se transforma no maior leitor de seu tempo. Um leitor único. Na prisão Gramsci lê o tempo todo, lê o que pode, o que
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consegue se infiltrar nas prisões de Mussolini. Está sempre pe¬dindo livros, e dessa leitura contínua ("leio pelo menos um livro por dia", diz) desse homem só, imóvel, isolado, na cela, nos fica¬ram os Cadernos do cárcere, que são comentários extraordinários dessas leituras. Lê folhetins, revistas fascistas, publicações católi¬cas, lê os livros que encontra na biblioteca da prisão e os que a censura deixa passar, e de todos extrai conseqüências notáveis. A partir daquele lugar sedentário, imóvel, encerrado, Gramsci cons¬trói a noção de hegemonia, de consenso, de bloco histórico, de cultura nacional-popular.
E obviamente a teoria da tomada do poder em Guevara (se é que isso existe) se confronta com a de Gramsci. Puro movi¬mento na ação mas firmeza nas concepções políticas, nada de matizes. Só a marcha da guerrilha é fluida. Não há nada a trans¬mitir em Guevara, exceto seu exemplo, que é intransferível. Des¬sa impossibilidade surge, talvez, a tensão trágica que sustenta o mito.
A teoria do foco e a teoria da hegemonia: não deve haver nada mais antagônico. Assim como não deve haver nada mais antagônico que a imagem de Guevara lendo nos intervalos da marcha contínua da guerrilha e a de Gramsci lendo trancado em sua cela, na prisão fascista. Na verdade, para Guevara, mais que a construção de um sujeito revolucionário, de um sujeito coleti¬vo no sentido que isso tem para Gramsci, trata-se de construir uma nova subjetividade, um sujeito novo no sentido literal, e de apresentar-se ele mesmo como exemplo dessa construção.
Na história de Guevara há diferentes ritmos, metamorfoses, mudanças bruscas, transformações, mas também há persistên¬cia, continuidade. Uma série de longa duração percorre sua vida apesar das mutações: a série da leitura. A continuidade está nis¬
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so, tudo o mais é desprendimento e metamorfose. Mas esse nó, o de um homem que lê, persiste do início até o final.
Essa série de longa duração remonta à infância e está ligada ao outro dado da identidade de Che Guevara: a asma. A mãe é a pessoa que lhe ensina a ler, porque ele não pode ir à escola - e esse aprendizado privado se relaciona com a doença. A partir de então ele se transforma num leitor voraz. "Ele estava apaixonado pela leitura", diz seu irmão Roberto. "Se trancava no banheiro para ler."
A leitura como prática iniciática fundamental, nas palavras de Michel de Certeau, funciona como modelo de toda iniciação. Nesse caso, a asma e a leitura estão vinculadas à origem. Elas fa¬zem pensar em Proust, que justamente narrou muito bem o que é essa relação, um cruzamento, uma diferença que define certas leituras na infância, certo modo de ler. Basta recordar a primeira página do texto de Proust Sobre a leitura: "Talvez não haja dias de nossa infância tão plenamente vividos quanto aqueles que pensa¬mos ter deixado de viver, aqueles que passamos com nosso livro predileto". A vida lida e a vida vivida. A vida plena da leitura.
A leitura, então, acompanha-o desde a infância, tal como a asma. Signos de identidade, signos de diferença. Signos num sen¬tido forte, porque já se observou que os seios frontais aumenta¬dos decorrentes do esforço por respirar definem o rosto de Gue¬vara como uma marca impossível de disfarçar. Em suas fotos de revolucionário clandestino é fácil reconhecê-lo quando visto de frente.
E, ao mesmo tempo, denunciam certa dependência física, que se materializa num objeto que é preciso sempre levar consigo. "O inalador é mais importante para mim do que o fuzil", escreve ele à mãe, de Cuba, na primeira carta que lhe manda de Sierra Maestra. O inalador para respirar e os livros para ler. Dois ritmos cotidianos, a respiração entrecortada do asmático, a marcha inter¬
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rompida pela leitura, a escansão pausada daquele que lê. Isso é o que persiste: uma identidade da qual não pode (ou não quer) se desligar. A marcha e a respiração.
A leitura vinculada a certa solidão em meio à rede social é uma diferença que persiste. "Durante estas últimas horas no Con¬go me senti sozinho como nunca havia estado antes, nem em Cuba nem em nenhum outro lugar em minhas peregrinações pe¬lo mundo. Eu poderia dizer: até hoje eu não havia sentido a que ponto, quão solitário era o meu caminho." A leitura é a metáfora desse caminho solitário. É o conteúdo da solidão e seu efeito.
Evidentemente, assim como lê, Guevara também escreve. Ou, melhor, porque lê, escreve. Seus primeiros escritos são notas de leitura de 1945. Nesse ano ele inicia um caderno manuscrito de 165 páginas onde organiza suas leituras por ordem alfabética. Foram encontrados sete cadernos, escritos ao longo de dez anos. Há uma outra série longa, portanto, que acompanha toda a vida de Guevara - e é a escrita. Ele escreve sobre si mesmo e sobre o que lê, ou seja, escreve um diário. Um tipo de escrita muito defi¬nida, a escrita privada, o registro pessoal da experiência. Começa com um diário de leituras e prossegue com o diário que fixa a ex¬periência em si, que permite em seguida ler sua própria vida co¬mo se fosse a de outro, e reescrevê-la. Se ele se detém para ler, tam¬bém se detém para escrever, no final da jornada, à noite, cansado.
Entre 1945 e 1967 Guevara escreve um diário: o diário das viagens que faz quando jovem, percorrendo a América, o diário da campanha de Sierra Maestra, o diário da campanha do Congo e, evidentemente, o diário na Bolívia. Desde muito jovem, en¬contra um sistema de escrita que consiste em tomar notas para fixar a experiência na hora e depois escrever um relato a partir das anotações. A concomitância da experiência e do momento
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da elaboração. Guevara vê claramente a diferença: "O persona¬gem que escreveu estas notas morreu ao pisar novamente o ter¬ritório argentino, aquele que as ordena e burila (eu) não sou eu", escreve no início de Minha primeira grande viagem.
Nesse sentido, o Diário na Bolívia é excepcional por não ter sido reescrito, assim como não foram reescritas as notas que ele tomou durante sua primeira viagem pela Argentina, em 1950, e que seu pai publicou no livro Meu filho Che. "Em minha casa da rua Arenales descobri há pouco tempo, por acaso, num caixote com livros velhos, cadernetas escritas por Ernesto. O interesse desses escritos está no fato de que se pode dizer que foi com eles que Ernesto começou a deixar seus pensamentos e observações anotados num diário, hábito que sempre manteve".
Havia no jovem Guevara o projeto, a aspiração de ser um escritor. Na carta que escreve a Ernesto Sábato depois do triunfo da revolução, em que conta a Sábato que em 1948 lera, deslum¬brado, Uno y el universo, diz: "Naquele tempo eu achava que ser escritor era o título máximo a que se podia aspirar".
Poderíamos pensar que essa vontade de ser escritor, para dizer como Pasolini, essa atitude prévia à obra, esse modo de olhar o mundo para registrá-lo por escrito, persiste, mesclada a sua experiência de médico e a sua progressiva - e distante - politização, até o encontro com Fidel Castro, em maio de 1955.
Numa data tardia, em fevereiro de 1955, ele faz no diário um balancete de sua crítica situação econômica e conclui dizen¬do que está travado de um modo geral, "e mais ainda no que diz respeito a produção literária, pois quase nunca escrevo".
Com efeito, em certo sentido o político triunfa onde o escri¬tor fracassa, e Guevara vê essa tensão com clareza. "Surgiu uma gota do poeta frustrado que há em mim", escreve a León Felipe
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logo depois do triunfo da revolução. Por um lado, ele se define várias vezes como poeta fracassado, mas por outro se vê como alguém que constrói sua vida como um artista: "Uma determi¬nação que aprimorei com o deleite do artista há de sustentar es¬tas pernas flácidas e estes pulmões cansados", escreve na carta de despedida a seus pais. Há um antecedente dessa atitude na notável carta a sua mãe, de 15 de julho de 1956, em que fala de sua decisão de unir-se à guerrilha. Esteve preso com Castro e está resolvido a partir no Granma. "É um profundo erro seu acredi¬tar que é da moderação ou do 'egoísmo moderado' que saem as maiores invenções ou as obras-primas da arte. Para toda grande obra é necessário paixão, e para a Revolução é necessário paixão e audácia." E conclui: "Além disso, sem dúvida depois de endirei¬tar abusos em Cuba irei para outro lugar qualquer". A citação implícita do Quixote prenuncia o que está por vir; em todo caso, do sentido do que está por vir.
Philipp de Rieff trabalhou a figura do político que surge entre as ruínas do escritor. O escritor fracassado que renasce co¬mo político intransigente, quase como um não-político, ou pelo menos como o político que está sozinho e que faz política pri¬meiramente consigo mesmo e com a própria vida e se constitui como exemplo. E aqui a relação, mais que com Gramsci, é evi¬dentemente com Trótski, o herói trágico, "o profeta desarmado", como o chamou Isaac Deutscher. Há também em Trótski uma nostalgia pela literatura: "Desde minha juventude, mais exata¬mente desde minha meninice, eu sonhava ser escritor", diz Trótski no final de Minha vida, sua excelente autobiografia. E Hans Mayer, por sua vez, no livro que escreveu sobre a tradição do outsider, também viu Trótski como o escritor fracassado e, portanto, o político "irreal", por oposição a Stálin, o político prático.
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PEGAR A ESTRADA
Guevara, o jovem que deseja ser escritor, começa a viajar em 1950, toma a estrada, inicia a viagem que consiste em construir a experiência para em seguida escrevê-la. Nessa combinação de pe¬gar a estrada e registrar os fatos concomitantes, podemos ver o jovem Guevara como relacionado com a beat generation norte-americana. Escritores como Jack Kerouac, em On the Road, ma¬nifesto de uma nova vanguarda, são seus contemporâneos e estão fazendo o mesmo que ele. Trata-se de unir a arte e a vida, escre¬ver o que se vive. Experiência vivida e escrita imediata, quase escrita automática. Como ele, os jovens escritores norte-america¬nos, longe de pensar na Europa como modelo do lugar para onde é preciso viajar, lugar a que gerações de intelectuais quiseram ir, pegam a estrada na América em busca da experiência.
É preciso virar escritor fora do circuito da literatura. Só os livros e a vida. Ir até a vida (com livros na mochila) e voltar para escrever (caso se consiga voltar). Guevara está em busca da expe¬riência pura e vai atrás da literatura, mas encontra a política e a guerra.
Estamos na época do compromisso e do realismo social, mas aqui se define outra idéia do que seja ser um escritor ou for¬mar-se como escritor. É preciso partir de uma experiência alter¬nativa à sociedade, e em primeiro lugar à sociedade literária. Já sabemos, é o modelo norte-americano: "Lavei louça em restau¬rante, fui marinheiro, vagabundo, fotógrafo ambulante, jornalis¬ta eventual". Ser escritor é ter um fundo de experiência sobre o qual se apoiam e se definem a forma e o estilo. Escrever e viajar, e encontrar uma nova maneira de fazer literatura, um novo jeito de narrar a experiência.
Estamos diante de outro tipo de viajante. Refiro-me a um contexto que redefiniu a viagem e o lugar do viajante. É da ten¬
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são entre o turista e o aventureiro que fala Paul Bowles (outro escritor vinculado à beat generation).
Ernest Mandei, por sua vez, escreveu em seu livro sobre o romance policial:
Evelyn Waugh uma vez afirmou que os verdadeiros livros de viagem saíram de moda antes da Segunda Guerra Mundial. O verdadeiro significado desse pronunciamento esnobe foi que as costumeiras viagens internacionais da elite de administradores imperiais, de banqueiros, engenheiros de minas, diplomatas e ricos ociosos (mais, eventualmente, aventureiros militares, amantes da arte, estu¬dantes universitários ou vendedores internacionais à margem da sociedade) saíam de cena graças ao turismo das classes médias bai¬xas, de modo que os livros de viagem tinham de levar em conta esse novo mercado mais amplo. O guia de viagens Michelin ocupou o lugar do clássico Baedeker.
O Guevara que toma a estrada e escreve um diário não pode ser confundido com o turista nem com o viajante no sentido clás¬sico. Trata-se, em primeiro lugar, de uma tentativa de definição da identidade; o sujeito se constrói na viagem; viaja para trans¬formar-se em outro.
"Me dou conta de que amadureceu em mim uma coisa que há muito tempo crescia dentro do alarido da cidade: o ódio à ci¬vilização, a imagem grosseira de pessoas movimentando-se co¬mo loucas no compasso desse barulho monumental", escreve em suas notas, em 1952.
Guevara condensa certos traços comuns da cultura de sua época, o tipo de modificação que nos anos 50 está ocorrendo nas formas de vida e nos modelos sociais, que vem da beat generation e chega até os hippies e a cultura do rock. Paradoxalmente (ou quem sabe nem tanto), Guevara também se transformou num
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ícone dessa cultura rebelde e contestadora. Essa cultura supõe grupos alternativos que exibam uma qualidade anticapitalista na vida cotidiana e manifestem sua impugnação da sociedade. A fu¬ga, o corte, a recusa. Atuar por reação e, nesse movimento, cons¬truir um sujeito diferente.
No caso da beat generation, a idéia básica é despojar-se com¬pletamente de todo e qualquer atributo que possa ser identificado com as formas convencionais de sociabilidade. Algo antagônico à noção de classe, e que implica outra forma de pertencimento. Uma nova identidade social, que se manifesta na maneira de ves¬tir-se, na relação com o dinheiro e com o trabalho, na defesa da marginalidade, no deslocamento contínuo.
Guevara se vestia para ver-se sempre desarrumado, uma ma¬neira de exibir o repúdio às normas. Entre os companheiros do "Chancho" [porco], como era chamado, circula uma série de his¬tórias muito divertidas sobre seu desalinho deliberado: que pos¬suía uma camisa que trocava de quinze em quinze dias, que uma vez, no México, fez uma cueca "ficar em pé". "Seu desleixo com a roupa nos fazia rir, e ao mesmo tempo nos dava um pouco de vergonha. Ele andava sempre com uma camisa de náilon trans¬parente que estava ficando cinzenta de tanto que ele a usava", conta sua amiga de juventude Cristina Ferreira.
Seria possível ver nisso um novo dandismo. Basta observar as fotos de Guevara ao longo de sua vida. As botinas abertas, sem atar, em seus tempos de ministro, ou um grampo de pendurar roupa na calça são indícios, características mínimas de uma pes¬soa que rejeita as formas convencionais.
A construção da imagem de Guevara é um sinal dos tem¬pos. Está ligada ao momento em que a juventude se cristaliza como um modo horizontal de construção da identidade, que está entre as classes e entre as hierarquias sociais, uma nova cul¬tura que se difunde e se universaliza ao longo daqueles anos. Sar¬
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tre apontava essa diferença entre classe e juventude a respeito de Paul Nizan: "Os jovens operários não têm adolescência, não co¬nhecem a juventude, passam diretamente da infância para a ida¬de adulta".
A partir da beat generation a juventude se transforma em emblema e se associa ao sujeito que não foi capturado pela lógi¬ca da produção. E Che Guevara está, em certo sentido, preso a esse emblema.
A relação de Guevara com o dinheiro está na mesma linha. Por isso não surpreende que tenha chegado a diretor do Banco Nacional em Cuba. Sempre vive de uma economia pessoal pre¬cária, fora do social, nunca tem nada, nunca acumula nada, só li¬vros. "Meu salário é duzentos, mais casa, de modo que meus gas¬tos são com comer e comprar livros para me distrair", escreve ao pai no dia 21 de janeiro de 1947, numa das primeiras cartas co¬nhecidas. Não ter dinheiro, não ter bens, não possuir nada, ser "pato" [duro, sem dinheiro], como ele diz. Ganhar a vida sem empenho, à margem, nos interstícios, sem lugar fixo, sem empre¬go fixo. Desse modo se entende seu fascínio pelos marginais, re¬correntes nos diários de juventude, e sua identificação com essa figura: "Já não passávamos de dois marginais, de trouxa no om¬bro e imundos com o pó da estrada acumulado nos macacões, restos de nossa condição aristocrática", diz em Minha primeira viagem. O marginalizado essencial, aquele que está voluntaria¬mente fora da circulação social, fora do dinheiro e do mundo do trabalho, aquele que está na estrada. "El vago" [o desocupado], outra maneira como Guevara se definia na época. O vagabundo, o nômade, aquele que não aceita as normas de integração. Mas também o que divaga, aquele cuja única propriedade é o uso livre da linguagem, a capacidade de conversar e contar histórias, as histórias intrigantes de sua exclusão e de sua experiência na estrada. Na primeira de suas notas de viagem de 1950, reprodu¬
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zida em Meu filho Che, ele já escreve: "No [palavra ilegível] já narrado encontrei um marginal que estava fazendo a sesta dentro de uma manilha e que acordou com a zona que a gente fez. Começamos a conversar, e quando ele ficou sabendo que eu era estudante ficou todo enternecido. Puxou uma garrafa térmica suja e me preparou um chimarrão fervido com tanto açúcar que dava para derreter uma solteirona. Depois de muita conversa e de nos contar uma porção de peripécias...". A marginalidade é uma condição da linguagem, de um uso específico da linguagem. E é sempre com os marginais que Guevara estabelece um diálo¬go mais fluido e mais pessoal.
ENTRE NÓS
Na pré-história de Guevara, o outro elemento presente é justamente o tipo de uso da linguagem. Recordemos que o iden¬tifica um modismo lingüístico ligado à tradição popular. Ele é conhecido como "Che" porque sua maneira de utilizar a língua marca, de modo muito direto, uma identidade. Por um lado, o uso do "che" o diferencia dentro da América Latina e o identifi¬ca como argentino. Quando jovem, em suas viagens, às vezes o exagera para chamar a atenção e conseguir que o recebam e per¬mitam que se hospede: sabe o valor dessa diferença lingüística. Ao mesmo tempo, o "che" funciona como uma identidade de longa duração, talvez o único signo argentino, porque em tudo o mais Guevara funciona como uma identidade neonacional, é o estrangeiro perpétuo, sempre fora do lugar.
Percebe-se imediatamente o uso coloquial e argentino da língua em sua escrita, que é sempre muito direta e muito oral, tanto em suas cartas pessoais e em seus diários como em seus ma¬teriais políticos. Essa idéia de que ele escreve na língua em que
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fala, sem nada da retórica que costuma circular na palavra polí¬tica - e na esquerda, basicamente -, fica clara desde o início, e acaba sendo o elemento que lhe dá nome, o signo que o identi¬fica. O "Che" como sinédoque perfeita. Há uma coisa deliberada nisso, um marco de identidade construída, inventada, quase uma máscara. A carta final a Fidel Castro está assinada simplesmente "Che", e era assim que ele assinava as cédulas do banco que diri¬gia. A prova de autenticidade do dinheiro em Cuba era essa assi¬natura. (Dificilmente haverá outro exemplo como esse na histó¬ria da economia mundial, uma pessoa que autentica o valor do dinheiro com um pseudônimo.)
Ao mesmo tempo, esse uso livre e despreocupado da língua é a marca de uma tradição de classe. Nesse ponto, Guevara se pa¬rece com Mansilla e Victoria Ocampo, e quem chamou a atenção para essa relação foi Maria Rosa Oliver (outro exemplo magnífi¬co dessa prosa deliberadamente argentina e coloquial). Um uso da linguagem que não tem nada que ver com a hipercorreção típi¬ca da classe média nem com os restos múltiplos que constituem a língua escrita das classes populares (como é o caso de Arlt ou de Armando Discépolo ou das letras de tango). Certa liberdade e certa despreocupação no uso da linguagem são uma prova de confiança no lugar social que ocupa, assim como seu modo de ves¬tir-se ou sua relação com o dinheiro. Essa língua falada é uma língua de classe que funciona como modelo de língua literária. Escreve como fala, o que não é freqüente na literatura argentina da época. O túnel, de Sábato, de 1948, para falar de um livro que possivelmente Guevara leu e admirou, usa o pronome pessoal "tu", e não o "vos" argentino, numa língua que corresponde aos modelos estabilizados e escolares da língua literária. E esse é o tom dominante na literatura argentina da época (basta pensar em Mallea ou em Murena). Mas não é o caso de Guevara, que não faz literatura, ou melhor, que faz literatura de outra maneira,
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sem nenhuma afetação, ou com uma afetação diferente, diga¬mos. Seria preciso dizer-lhe que escreve como sua classe fala, e que nisso se parece com Lúcio Mansilla (e não apenas nisso).
Sua mãe está no centro desse uso da linguagem. Isso fica ex¬plícito em sua última carta, escrita depois que Che saiu de Cuba, quando ninguém sabia onde estava. Diante das versões oficiais, que diziam que ia passar um mês cortando cana, Célia de la Serna, gravemente enferma, às portas da morte, escreve ao filho e torna visível o contraste entre a linguagem familiar e a língua cristalizada. Confronta a escrita direta, uma ética implícita no uso da linguagem, ao conformismo e à hipocrisia da linguagem política, que encobre tudo o que diz. A mãe se refere a "esse tom levemente irônico que usamos nas margens do Prata" e se quei¬xa do estilo burocrático. "Não vou usar linguagem diplomática. Vou direto ao ponto." A mãe pede ao filho que use a linguagem que sempre usou para lhe contar o que está acontecendo.
Como político, Guevara usa a mesma linguagem direta, se¬ca, irônica, e, diferentemente de Fidel Castro, nem um pouco re¬tórica ou de efeito. Frases curtas, entrada pessoal no discurso, apelo à narração e à experiência vivida como forma de argumen¬tação, intimidade no uso público da língua. Por isso Guevara, que não era um grande orador no sentido clássico, está mais liga¬do à carta, à narrativa pessoal, à comunicação entre duas pessoas (ao "entre nós", como diria Mansilla), à conversa entre amigos, às formas privadas da linguagem. Como orador político, parece um escritor de diário. Basta analisar o início de seus discursos públi¬cos, seu jeito de estabelecer um clima de confiança.
O tipo de relação com a linguagem e com o dinheiro, o mo¬do como se veste, indícios ao mesmo tempo pessoais e de época, são, assim, o primeiro contexto para discutir Guevara e para pensar como Ernesto Guevara de la Serna se transforma em Che Guevara, ou melhor, que caminhos ele segue para chegar à polí¬
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tica e que tipo de política encontra. Guevara pratica um certo dandismo da experiência, e nessa viagem, como veremos em se¬guida, encontra a política.
A METAMORFOSE
Há várias metamorfoses na vida de Guevara, e essas muta¬ções bruscas são uma marca de sua personalidade. Ele tem várias vidas ("das sete, me restam cinco", diz) simultâneas: a do viajan¬te, a do escritor, a do médico, a do aventureiro, a da testemunha, a do crítico social. E todas se condensam e se cristalizam, por fim, em sua experiência de guerreiro, de guerrilheiro, de condot-tieri, como gosta de denominar-se. Essa história de suas transfor¬mações tem seu primeiro ponto de virada na viagem de 1952, quando vai para a Bolívia e a política latino-americana começa a se incorporar à experiência da viagem. O objetivo dessa viagem é a própria experiência, sair de um mundo livresco fechado para a vida para encontrar o fundamento que legitime o que se escre¬ve. Porém, no caso de Guevara, o caminho em direção à Améri¬ca Latina leva à política. Descobre o mundo político, ou certo olhar sobre o mundo político. Vai da Bolívia para a Guatemala e finalmente para o México, e no processo sua politização vai fi¬cando cada vez mais nítida. Em princípio, trata-se de uma poli¬tização externa, quase de observador que registra diferentes ma¬tizes e realidades.
Uma característica desse tipo de viagem, que não se confun¬de com dinheiro nem com turismo, é a convivência com a po¬breza. Bem dizia Sartre: a cor local, o que chamamos de cor local, é a pobreza, a vida das classes populares. De modo que a viagem também é um percurso que visita certas figuras sociais: o margi¬nal, o desclassificado, o sem-teto, os doentes e os leprosos, os mi¬
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neiros bolivianos, os camponeses guatemaltecos e os índios me¬xicanos são estações em seu caminho.
As anotações do diário acompanham essa descoberta da di¬ferença pura, do marginalizado como antecedente da vítima so¬cial. O outro, a figura pura dessa viagem, é, em princípio, o outro como paciente e como vítima. Essa é a primeira descoberta. Não se trata da figura do marginal deliberado, mas da vítima que foi encurralada e explorada e que em sua fraqueza expressa uma in¬justiça e um crime. A tensão entre o marginalizado e o doente aca¬ba construindo a figura da vítima social que precisa ser socorri¬da. O médico é aquele que decifra o sentido do que vê: "A grandeza da produção mineira se apoia sobre os 10 mil cadáve¬res sepultados no cemitério somados aos milhares de outros que morreram vítimas de pneumoconiose e dos males causados por ela", escreve em maio de 1952 a Tita Infante, sua colega na facul¬dade de medicina de Buenos Aires, que é militante do Partido Comunista argentino.
A viagem se transforma numa experiência médico-social que confirma o que se leu, ou, melhor ainda, que exige uma mudança no registro das leituras para decifrar o sentido dos sintomas.
Assim, temos a viagem errática, sem ponto fixo, daquele que pega a estrada em busca da experiência pura e encontra a reali¬dade social, mas temos também as leituras, que são uma trilha paralela que se trança com a primeira. O marxismo começa a ser um caminho. Uma das primeiras referências ao marxismo apa¬rece, nessa mesma carta a Tita Infante, como uma ironia diante da impossibilidade de explicar sua condição indecisa, suas idas e vindas. Depois de contar-lhe como fora parar em Miramar, no litoral argentino, tendo partido para a Bolívia, escreve: "Observe como fica claro o fato paradoxal de que eu vá para o norte pelo sul, à luz do materialismo histórico".
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Guevara leu textos marxistas, e em seus cadernos de 1945 já registra essas leituras (naquele ano surgem notas sobre O mani¬festo comunista). Mas a leitura do marxismo não transforma nin¬guém em guerrilheiro. Ainda falta um passo, um ponto de vira¬da que permita a esse jovem - cujo destino parece ser o Partido Comunista, quem sabe ser um médico do pc - transformar-se numa espécie de modelo mundial do revolucionário em estado puro. E esse passo, parece-me, é construído com a união dessas leituras e dessa experiência que poderíamos denominar "flu¬tuante". Ir para o sul quando se pretende ir para o norte. Basica¬mente, a pulsão do viajante, do aventureiro e, sobretudo, a situa¬ção daquele que deixou para trás as fronteiras e o pertencimento nacional. Guevara é um expatriado voluntário, um desterrado, um viajante sem destino que se politiza e não tem inserção. Ten¬de para uma forma não nacional da política, para uma forma sem território. Nisso também, ele é a antítese de Gramsci, o pensador do nacional-popular, das tradições locais, da localização das rela¬ções de força como condição da política.
E essa inversão é uma característica que define a política de Guevara: sem fronteiras, sem enclave nacional, em Cuba, em An¬gola, na Bolívia. E também sua aspiração secreta, de longuíssima duração, quase um horizonte impossível, utópico: encontrar um lugar próprio, voltar para a Argentina como guerrilheiro vindo do norte, da Bolívia, com uma coluna de companheiros, repetir no país a invasão de Cuba por Castro, só que ampliada e sem levar em conta as condições políticas, fazendo com que a inter¬venção dependa exclusivamente de sua força própria, da forma¬ção de seu grupo, e não das relações concretas nem da análise da situação do inimigo. Esse sonho do guerreiro que regressa é sua forma particular de pensar na volta à pátria, para "morrer com um pé na Argentina", como diz a Ulises Estrella, um de seus ho¬mens de confiança. Todos falam nessa ilusão para explicar a deci¬
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são de Guevara de levar a guerrilha para a Bolívia, de instalar-se num país alheio para construir uma zona liberada, uma retaguarda a partir da qual entrar, finalmente, em seu próprio espaço.
Guevara define a política de modo absolutamente novo e pessoal (para além de suas conseqüências): nunca há lugar fixo, não existe território, somente a marcha, o movimento contínuo da guerrilha. Qualquer situação pode ser propícia; o que impor¬ta é a decisão, não as condições reais.
E isso parece estar ligado ao modo como encontra a políti¬ca, ou, melhor dizendo, sua inserção na política. E por isso são muito significativas as cartas dos dias anteriores ao momento em que conhece Fidel Castro e se une à expedição do Granma. São as cartas a sua mãe, a Tita Infante, a seu pai, que mostram que seus projetos do momento, pouco antes de encontrar Castro, em julho de 1955, continuam sendo abertos. Está disponível, come¬ça a pensar que finalmente deve ir para a Europa, conhecer a França, depois à índia (como diz ao pai numa carta de março de 1955). Às vezes imagina seguir do México para o norte, chegar aos Estados Unidos, ao Alasca. Como sempre em Guevara há uma certa imprevisibilidade, uma certa disponibilidade e um cer¬to acaso nas decisões.
"Me disseram que iam me pagar com dez dias de antecipação [re¬fere-se a um dinheiro que lhe deviam no México por seu trabalho de jornalista durante os Jogos Olímpicos] e na mesma hora fui atrás de um navio que partia para a Espanha [...] Já programei fi¬car por aqui até o dia 1º de setembro para tomar um navio para qualquer lugar", escreve à mãe em 17 de junho de 1955, um mês antes de conhecer Fidel Castro. E conclui dizendo: "Você precisa se mandar para Paris, que a gente se encontra lá".
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A política aparece como um efeito da busca de experiência, da tentativa de fugir de um mundo fechado. O que vem primei¬ro é a tentativa de romper com certo tipo de ritual social, com certa experiência estereotipada, fugir, como diz Guevara, de tudo o que o aborrece: "Além disso seria hipocrisia me apresentar como exemplo, pois a única coisa que fiz foi fugir de tudo o que me incomodava", escreve a Tita Infante em 29 de novembro de 1954. A política surge como resultado desse processo: existe uma tensão entre um mundo que se percebe como enclausurado e a política como corte taxativo e passagem para outra realidade.
Guevara vai descobrindo a política no processo de encerra¬mento de sua experiência. A política é o resultado da tentativa de encontrar uma experiência que o tire de seu lugar de origem, do mundo familiar, da vida de um estudante de esquerda em Bue¬nos Aires, inclusive da vida de um jovem médico que deseja ser escritor e vacila.
UM ENCONTRO
Sua viagem tem itinerários paralelos, redes múltiplas. São séries, mapas que se superpõem, e nada está muito definido. Te¬mos a viagem literária, a viagem política, a viagem médica. E é a política, e não a literatura, que no fim haverá de articular esses mundos paralelos. Mas para isso é preciso que encontre a retóri¬ca de Fidel Castro.
No trajeto de Guevara as relações entre literatura e política se reformulam. É a tentativa de escapar de certo lugar estereoti¬pado daquilo que se entende por um intelectual o que o empur¬ra para a política e para a ação. A política aparece como um pon¬to de fuga, como um lugar de corte e transformação.
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Tudo isso faz parte de uma tradição literária: como sair da biblioteca, como passar à vida, como entrar em ação, como che¬gar até a experiência, como sair do mundo livresco, como rom¬per com a leitura em tantos lugares de clausura. A política apa¬rece às vezes como o lugar que dispara essa possibilidade. O sintoma Dahlmann já não é a ação como encontro com o outro, o bárbaro, mas a ação como encontro com o companheiro, com a vítima social, com os miseráveis.
A pré-história dessa passagem, no caso de Guevara, está na experiência do médico. Essa é a figura que articula a relação com o social, a intenção de ajudar aquele que sofre, tomar conta dele, socorrê-lo. Com efeito, a viagem é pautada pela visita aos leprosários. Guevara registra imagens e cenas notáveis: "Na realidade este foi um dos espetáculos mais interessantes que vimos até ago¬ra: um acordeonista que não tinha dedos na mão direita e que no lugar dos dedos usava pauzinhos amarrados no punho, e o can¬tor era cego, e quase todos eram figuras monstruosas por causa da forma nervosa da doença, muito comum naquela área, e a isso se acrescentavam as luzes dos postes e lanternas sobre o rio". Nes¬sa carta à mãe, escrita de Bogotá em julho de 1952, está o reco¬nhecimento das figuras extremas, dos despojos da sociedade, da vítima social.
Evidentemente, não se trata do médico do positivismo, do modelo de cientista que revela os males da sociedade, uma gran¬de metáfora da visão das classes dominantes sobre os conflitos sociais pensados como doenças que devem ser erradicadas a par¬tir do diagnóstico neutro e apolítico do especialista que conhece os sintomas e sua cura. Trata-se, em compensação, do médico como figura do compromisso e da compreensão, daquele que socorre e salva.
Nesse sentido, uma anotação de Richard Sennet ao analisar Os conquistadores, romance de Malraux sobre a revolução chine¬
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sa, aponta para a relação entre o revolucionário profissional e os médicos: "Hong, o jovem revolucionário, bem como esses jo¬vens médicos, deram mostras de um tipo de força singular: o po¬der de isolar-se do mundo que os rodeia, mostrando-se distan¬tes e ao mesmo tempo solidários, definindo-se de maneira rígida. Essa autodefinição inimitável lhes proporciona uma arma pode¬rosíssima contra o mundo exterior. Anulam um intercâmbio fle¬xível de idéias entre eles próprios e os homens que os rodeiam, e com isso adquirem certa imunidade diante da dor e dos aconte¬cimentos conflitivos e confusos que, não fosse assim, haveriam de desconcertá-los e, talvez, esmagá-los". Sennet chama esse mo¬vimento de identidade purificada. Estar separado e ao mesmo tempo ir na direção dos outros. A distância aparece como uma forma de relação que permite estar sempre um pouco fora, emocionalmente, para ser eficaz.
Há uma foto inesquecível de Guevara jovem, quando estu¬dante de medicina. Vê-se um cadáver despido com o corpo aber¬to sobre a mesa de dissecção e um grupo de estudantes, de guarda-pó branco, sérios e um pouco impressionados. Guevara é o único que está rindo, um sorriso aberto, divertido. A relação dis¬tanciada com a morte está cristalizada ali, sua ironia de sempre.
Parece-me que Guevara encontra a política nesse processo. Um jovem médico que secretamente quer ser escritor, que pega a estrada como tantos de sua geração, um jovem anticonvencional que parte em busca de aventura e, no caminho, encontra os mar¬ginais, os doentes, e depois as vítimas sociais e por fim os exilados políticos. Uma travessia pelas figuras sociais da América Latina.
Também em sua relação com o marxismo e com o Partido Comunista, Guevara se move pelas bordas. Há um momento em que ele se afasta da experiência possível de um jovem marxista daqueles anos, se distancia da cultura operária dos partidos co¬munistas, e avança para a experiência extrema e a guerra quase
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sem passos preliminares. Uma prática de isolamento, ascetismo, sacrifício, salvação, que é o que a guerrilha será para ele, na qual, como sabemos, entra como médico para rapidamente transfor¬mar-se em combatente. E isso acontece no primeiro combate, quando tem de escolher entre uma caixa de remédios e uma caixa de balas e, claro, pega a caixa de balas. Guevara conta essa história microscópica, um detalhe ínfimo, com grande mestria, usando sua excepcional capacidade narrativa para fixar o senti¬do dessa pequena situação e transformá-la num mito de origem.
Entra como médico e sai como guerrilheiro. E imediata¬mente passa a ser o modelo mesmo do guerrilheiro, o guerrilhei¬ro essencial, digamos, aquele que vê a vida na guerrilha como o exemplo puro da construção de uma nova subjetividade.
O momento-chave e um pouco ao acaso, notável como me¬tamorfose, se dá - como dissemos - em julho de 1955, quan¬do Guevara encontra Fidel Castro no México e adere ao projeto de Castro de desembarcar clandestinamente em Cuba e lutar contra Batista. Àquela altura Guevara já estabeleceu relações com setores de exilados da América Latina na Guatemala e no Méxi¬co, basicamente por intermédio de Hilda Gadea, militante do Partido Comunista peruano, que o põe em contato com a políti¬ca prática.
Quem lê as cartas de Guevara daqueles dias, mais que de¬terminação, encontra incerteza. Em julho de 1955, Guevara está disponível, não sabe muito bem o que vai fazer, e é então que aparece Fidel Castro. É um dos grandes momentos da dramati¬zação histórica na América Latina. Castro o encontra às oito da noite e o deixa às cinco da manhã transformado em Che Gue¬vara. Essa conversa que dura a noite inteira é um ponto de vira¬da, uma conversão. Guevara foi capturado pelo carisma e pela convicção política de Castro. De fato, a figura de Castro se trans¬forma instantaneamente para Guevara num ponto de referência
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essencial. Podemos pensar em Guevara como um marxista, coisa que sem dúvida ele era, mas isso não basta para explicar sua de¬cisão de participar da expedição. Trata-se de um salto qualitati¬vo, para dizê-lo de alguma maneira.
Assim, Guevara se integra à expedição do Granma na qua¬lidade de médico, mas depressa se transforma em combatente, e pouco depois já é o comandante Guevara. Em setembro de 1957, Fidel Castro o nomeia comandante. As funções da tropa estão sendo definidas; quando chega a vez de Guevara, um pouco sur¬preendentemente, Castro o declara "Comandante". Transforma-o no comandante Guevara e lhe dá a estrela de cinco pontas. A partir desse momento, sua imagem está cristalizada. O guerri¬lheiro heróico.
A CONSEQÜÊNCIA
Pouco depois, entre agosto e outubro de 1958, Guevara vive - e narra enquanto vive - a primeira experiência do que pode¬ríamos chamar ascetismo guerrilheiro, a capacidade de sacrifício, a partir da qual chega a uma conclusão que haverá de marcá-lo em todas as suas experiências futuras. Ao longo daqueles meses, é o comandante da Oitava Coluna, de cento e quarenta homens, e percorre a metade do país: vai de Sierra Maestra até a província de Las Villas, numa caminhada cheia de dificuldades, com o sis¬tema clássico de esconder-se e fugir e andar incessantemente. Diante da dificuldade do avanço, Guevara anota um fato em seu diário que depois não consta das Passagens da guerra revolucio¬nária. Escreve o seguinte: "A tropa está moralmente abatida, famélica, os pés ensangüentados e tão inchados que já não entram no que nos resta de calçados. Estão a ponto de cair. Só nas pro¬fundezas de suas órbitas aparece uma fraca e minúscula luz que brilha em meio à desolação".
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Parece uma nota de Tolstói, e ao mesmo tempo se encontra na cena uma coisa que depois se repetirá: o sacrifício e o excesso, a ruptura do limite como condição da subjetividade política. A imagem antecipa a experiência na Bolívia mas tem outro desfe¬cho, e toda a diferença está nas condições políticas existentes em Cuba, na fraqueza de Batista, na crise da hegemonia que decide a política, como diria Gramsci. Mas Guevara parece apagar as condições políticas específicas para ficar com o momento da de¬cisão pura como condição da política.
Estão ali, famintos, os guerrilheiros na colina, tratando de avançar a qualquer preço, e Guevara diz: "Só recorrendo a insul¬tos, súplicas e reprimendas de todo tipo eu conseguia fazer aque¬les homens exaustos caminharem".
Ele está com eles, na mesma situação que eles, exausto, mas ao mesmo tempo está fora, atiça-os e os guia. "Os chefes devem oferecer constantemente o exemplo de uma vida cristalina e sa¬crificada", escreverá em 1961 em A guerra de guerrilhas.
Nesse trecho aparece pela primeira vez a idéia da construção de uma ética do sacrifício com o modelo da guerrilha, a constru¬ção de uma subjetividade nova. E é o que parece ter ficado como condição da vitória e da formação de um quadro político.
Não sei até que ponto podemos integrar essa idéia no mar¬co da tradição popular. Essa tradição está na ética de Brecht, Me¬ti, o livro das mutações. Trata-se de uma ética das classes subal¬ternas que implica negociar, romper a negociação, fazer alianças, abrir o jogo, encerrá-lo. Gramsci, obviamente, poderia ser outro exemplo dessa estratégia de acúmulo. Parte-se da distinção entre amigo e inimigo como condição da política, mas essa oposição é muito fluida e se modifica de acordo com a conjuntura. A noção de inimigo é a chave: quais são suas fissuras, como fragmentá-lo e com quem, como construir o consenso, quais são as relações de força e a consciência possível.
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Seria possível dizer-se que Guevara pensa ao contrário: pri¬meiro decide qual é a tática e depois adapta as condições a essa tática. Define quem é o amigo, com quem constrói o núcleo guer¬rilheiro, como se prepara (e essa é a base de seu livro A guerra de guerrühas). Guevara tende a pensar o próprio grupo, mais que em termos de classe, quase como uma seita, um círculo de inicia¬dos de que é preciso excluir toda ambigüidade. Nesse sentido, sua política tende a ver o inimigo como um grupo homogêneo e sem matizes, e os amigos como um grupo sempre em transfor¬mação, que corre o risco de abdicar ou de ser capturado ou infil¬trado. No grupo de amigos ele entrevê a figura encoberta do ini¬migo, o que vai gerar a tradição terrível do guevarismo, que se repetirá em quase todas as experiências posteriores: a vigilância incessante, a tendência a descobrir o traidor no fraco, no que vacila no interior de seu grupo. O próprio Guevara faz uma ano¬tação sobre o tema em A guerra de guerrilhas: "Em nosso dialeto, na guerra passada chamávamos o rosto de angústia dos ame¬drontados de "cara de porco".
A noção do amigo como aquele que potencialmente pode desertar e trair é o resultado extremo da própria teoria (cujas con¬seqüências já sabemos). Talvez o exemplo mais conhecido seja o fuzilamento do poeta Roque Dalton em El Salvador por seus pró¬prios companheiros de guerrilha, mas há inúmeros outros.
A política passa a ser uma prática voltada para o interior do próprio grupo, por meio da desconfiança, das acusações, das medidas disciplinares. Nunca se faz política de alianças. Em todo caso, a possibilidade de aliança se define pela desconfiança e a sombra da traição.
Nesse sentido, há dois momentos centrais na experiência de Guevara, um no começo e outro no fim de sua vida política. O primeiro foi em sua primeira experiência de luta em Cuba. Em
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Passagens da guerra revolucionária, quando Guevara descreve seu batismo de fogo em Alegria dei Pio, por ocasião do desembarque do Granma, atribui a culpa do ataque do exército, que quase lhe custa a vida, a um traidor: "Os guardas de Batista não precisaram recorrer a pesquisas indiretas, pois nosso guia, como ficamos sa¬bendo anos depois, foi o principal autor da traição, levando-os até nós". Essa é sua primeira experiência de luta em Cuba, e coisa semelhante acontece no final, na última anotação do Diário da Bolívia, quando menciona o encontro inesperado com a velha camponesa que está "pastoreando suas cabras" e são obrigados a suborná-la para que não os delate: "Às 17h30, Inti, Aníbal e Pablito foram até a casa da velha, que tem uma filha acamada e meio anã; deram-lhe cinqüenta pesos, com a recomendação de que não dissesse nem uma palavra, mas com poucas esperanças de que ela atenda, apesar das promessas".
A categoria básica da política para Carl Schmitt (e também para Mao Tsé-tung) - a distinção entre amigo e inimigo - se dissolve, para Guevara: o inimigo não varia e já está definido. A categoria do amigo é mais fluida, e sobre ela se aplica a política. A única garantia da permanência da categoria de amigo é o sa¬crifício absoluto e a morte. Porque, paradoxalmente, essa expe¬riência de isolamento, de rigor, de vigilância e sacrifício pessoal tem como resultado, segundo Guevara, a construção de uma consciência nova. O melhor é o mais fiel e mais sacrificado. Che formula uma relação, nunca comprovada, entre ascetismo e cons¬ciência política. O sacrifício e a intransigência não são garantia de eficácia, e a vigilância não deve ser confundida com a políti¬ca; quando as duas se confundem, passamos para uma prática de controle. A guerrilha funciona como um Estado microscópico perpetuamente em estado de exceção.
Basicamente, trata-se de um sistema destinado a formar su¬jeitos políticos capazes de reproduzir essa estrutura. Porque o
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oposto, a contra-resposta da traição - obviamente - é o he¬roísmo absoluto. A garantia de que não haverá traição é a fideli¬dade total e a morte. Pobres dos povos que precisam de heróis, dizia Brecht. E aqui, nessa microssociedade que é a guerrilha, trata-se de produzir automaticamente o sujeito como herói, nu¬ma construção direta, sem passos prévios.
A cada enfrentamento, Guevara forma um pelotão de van¬guarda, uma espécie de pelotão suicida que, nas primeiras escara¬muças, enfrenta o grupo que o está assediando. A respeito dessa prática, Guevara escreve em seu diário da época de Sierra Maestra:
É um exemplo de moral revolucionária, porque só entravam vo¬luntários escolhidos. Mesmo assim, toda vez que um homem morria, e isso acontecia em todos os combates, quando o substi¬tuto era designado, os que não eram escolhidos apresentavam ce¬nas de sofrimento que iam até o choro. É curioso ver os nobres e curtidos guerreiros mostrando sua juventude no despeito de uma lágrima, só que por não ter a honra de estar no primeiro lugar de combate e morte.
Seria possível afirmar que aqui há um excesso na represen¬tação da fidelidade, uma exibição oposta à "cara de porco" do combatente que amarela.
A experiência feita por Guevara em Cuba vai servir-lhe de modelo para definir a experiência da guerrilha, independente¬mente do lugar onde ela se realize. Em certo sentido, poderíamos dizer que o triunfo da revolução cubana é um acontecimento ab¬solutamente extraordinário, que ocorre em condições únicas. Dela, Guevara infere uma hipótese política geral, que aplica em todas as situações e sobre a qual irá forjar modelos de constru¬ção da subjetividade e de uma nova ética.
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Assim que conclui a experiência em Cuba, define as carac¬terísticas do guerrilheiro, a idéia do pequeno grupo que funcio¬na por fora da sociedade e que é capaz de enfrentar qualquer si¬tuação. Um grupo de elite que parece viver no futuro.
É notável a metafórica cristã do sacrifício que acompanha esse tipo de construção política. O próprio Guevara afirma, na primeira página de A guerra de guerrühas:
O guerrilheiro, como elemento consciente da vanguarda popular, deve ter uma conduta moral que o qualifique como verdadeiro sacerdote da reforma que pretende. À austeridade compulsória determinada pelas condições difíceis da guerra ele deve somar a austeridade decorrente de um autocontrole rígido, capaz de im¬pedir um só excesso, um só deslize, nas ocasiões em que as cir¬cunstâncias pudessem permiti-los.
O guerrilheiro "deve ser um asceta".
Definitivamente, o modelo da ética buscada é o do cristia¬nismo primitivo. Nele aparecem alguns elementos que talvez nos permitam pensar que tipo de concepção da política está implíci¬ta na idéia de um pequeno grupo capaz de produzir uma revo¬lução em condições absolutamente adversas.
Por exemplo, é impossível imaginar piores condições obje¬tivas do que as que ele encontra quando vai para o Congo: des¬conhece a língua, e as pessoas com quem trabalha têm crenças e idéias de como deva ser um guerreiro que Guevara simplesmen¬te não consegue entender.
E o mesmo acontece na Bolívia, embora ele conheça melhor a situação política do país. Contudo, assim que chega lá tudo se complica; está isolado, sem contatos, e começa a imaginar que irão transformar-se numa espécie de grupo que sobrevive até se fortalecer, uma espécie de escola de quadros destinada a criar
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sujeitos novos quase por descarte. "De mil, cem; de cem, dez; de dez, três", diz, numa frase impressionante, que mostra a matemá¬tica fatídica imperante no grupo.
Claro que Guevara não propõe nada que ele mesmo não faça. Não é um burocrata, não manda os outros fazerem o que ele defende. Essa é uma diferença essencial, a diferença que o transformou naquilo que é. Lembra a experiência dos anarquis¬tas do século xix, quando procuram reproduzir a sociedade futu¬ra em sua experiência pessoal. Vivem modestamente, repartem o que têm, sacrificam-se, definem uma nova relação com o corpo, uma nova moral sexual, um tipo de alimentação. Apresentam-se como exemplo de uma nova forma de vida.
Em todos os sentidos, trata-se de uma posição extrema. E se voltamos à noção de experiência de Benjamin em "O narrador", poderíamos dizer que Guevara é a própria experiência e ao mes¬mo tempo a solidão intransferível da experiência. Ê aquele que queima sua vida na chama da experiência e transforma a políti¬ca e a guerra em centro dessa construção. E aquilo que ele apre¬senta como exemplo, o que transmite como experiência, é sua própria vida.
Paralelamente, permanece em Guevara o que denominei fi¬gura do leitor. Aquele que está isolado, o sedentário em meio à marcha da história, contraposto ao político. O leitor como aque¬le que persevera, tranqüilo, no deciframento dos signos. Aquele que constrói o sentido no isolamento e na solidão. Fora de qual¬quer contexto, em meio a qualquer situação, por força da pró¬pria determinação. Intransigente, pedagogo de si mesmo e de to¬dos, nunca perde a convicção absoluta da verdade que decifrou. Uma figura extrema do intelectual como representante puro da construção do sentido (ou, em todo caso, de certa maneira de construir o sentido).
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E no fim de Guevara as duas figuras voltam a unir-se, por¬que estão juntas desde o início. Há uma cena que funciona quase como uma alegoria: antes de ser assassinado, Guevara passa a noite anterior na escolinha de La Higuera. A única que assume uma atitude caridosa para com ele é a professora do lugar, lulia Cortês, que lhe leva um prato do guisado que sua mãe está pre¬parando. Quando entra, encontra Che jogado no chão da sala de aula, ferido. Então - e isso é a última coisa dita por Guevara, suas últimas palavras - Guevara mostra à professora uma frase escrita na lousa e lhe diz que a frase não está correta, que tem um erro. Com sua ênfase na perfeição, ele lhe diz: "Falta o acento". Faz essa pequena recomendação à professora. A pedagogia sem¬pre, até o último momento.
A frase (escrita na lousa da escolinha de La Higuera) é: "Yo sé leer". Que a frase seja essa, que no fim de sua vida a última coi¬sa que ele anote seja uma frase que tem a ver com a leitura, é como um oráculo, uma cristalização quase perfeita.
Morreu com dignidade, como o personagem de Jack Lon¬don. Ou melhor, morreu com dignidade, como um personagem de um romance de educação perdido na história.
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5. O lampião de Anna Kariênina
UM ROMANCE INGLÊS
Eu gostaria agora de evocar outra cena de leitura, notável em muitos sentidos e perfeita em sua fugacidade, em que apare¬ce um tipo diferente de leitor. É uma cena de Anna Kariênina, de Tolstói, do capítulo 29 da primeira parte, em que Anna aparece lendo um romance inglês num trem. Parece-me que ali há outra trama: a relação dessa leitura com a constituição do sentido, com os afetos, com a tradição e com o desenvolvimento do romance. Estamos na linha histórica que quer as mulheres como protago¬nistas do consumo narrativo. A Eterna de Macedonio é a leitora perfeita do romance. Também Madame Bovary, evidentemente, inclusive Molly Bloom, que, como veremos, acorda com um livro na cama. Essas mulheres tornam mais complexa a figura do lei¬tor moderno (e o romance dá nome à figura anônima das mu¬lheres que lêem).
Num romance alguém lê um romance: Borges gostava des¬sas coisas. Melhor, porém, seria dizer: num romance uma mu-
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Iher lê um romance inglês. Seria possível dizer, inclusive, que uma mulher lê um romance escrito por uma mulher, quem sabe Jane Austen, embora várias pessoas tenham sugerido que se trata de um romance de Anthony Trollope.
E o lê num trem, o lugar da modernidade por excelência no século xix (o romance é de 1877). Tolstói sente pelos trens o mesmo fascínio que sentia Sarmiento e os homens daquele sécu¬lo (basta lembrar o começo de O idiota de Dostoiévski, basta lembrar o desenlace de En la sangre de Cambaceres).
O trem é um lugar mítico: é o progresso, a indústria, a má¬quina; ele abre caminho para a velocidade, as distâncias e a geo¬grafia (em certo sentido se contrapõe, em especial em Anna Ka¬riênina, ao mundo familiar, aos sentimentos, à intimidade). Já não se trata da leitura na corte ou na cidade, mas em viagem. Mas também não é a leitura numa carruagem, a cujos pulos e trancos Sterne se referia para explicar as mudanças de ritmo de seu ro¬mance.
Benjamin tem um texto muito atilado sobre a leitura nos trens, sobre o duplo movimento da viagem suposta pela leitura no interior de outra viagem. "O que a viagem proporciona ao lei¬tor?", pergunta-se. "Em que outra circunstância está tão compe¬netrado na leitura e consegue sentir sua existência misturar-se tão fortemente à do herói? Seu corpo não é a laçadeira do tecelão, que cruza o urdume incansavelmente ao compasso das ro¬das? Não se lia na carroça e não se lê no automóvel. A leitura de viagem está tão ligada a viajar de trem quanto à permanência nas estações."
Na cena a que nos referimos, Anna está voltando para casa, vai de Moscou para São Petersburgo. Já encontrou Vrónski, que será seu amante e a levará à desgraça, e aquela viagem será deci¬siva porque ele também está no trem (embora ela o ignore). Anna viu Vrónski pela primeira vez alguns dias antes, ao chegar à esta¬
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ção de Moscou, no momento em que alguém se suicidava jogan¬do-se sobre os trilhos. Meses depois e já no final do livro, ela porá fim à vida da mesma maneira.
Nessa moldura um pouco oracular, em que tudo está em suspenso e a intriga se concentra, Anna começa a ler um roman¬ce inglês. E ali encontramos uma descrição magnífica das condi¬ções de leitura em certa classe social no século xix.
Ainda no mesmo estado de preocupação em que se encontrara durante todo aquele dia, Anna instalou-se para a viagem, com prazer e capricho; abriu e fechou a bolsinha vermelha com suas pequenas mãos hábeis, tirou dali um travesseirinho, colocou so¬bre os joelhos e, depois de agasalhar as pernas com todo o cuida¬do, recostou-se tranqüilamente. [...] pediu a Ánuchka que pegas¬se a lanterna, prendeu-a no braço da poltrona e retirou de dentro da sua bolsinha uma espátula para separar as páginas de um ro¬mance inglês.*
Tudo está nessa descrição, nos detalhes que constróem a cena da leitura: a sensação de abrigo e de comodidade, a lanterna - um momento que me parece fantástico: ela tem sua própria luz -, a criada que a atende, as relações sociais que sustentam a cena de maneira implícita e, evidentemente, a prática anterior da leitura, que já se perdeu, de abrir os livros, de separar suas pági¬nas com um corta-papéis. Em "O Aleph", o personagem chama¬do Borges oferece periodicamente a Beatriz Viterbo livros que ela nunca abre. E Borges diz: "Tomei a precaução de oferecer-lhe os livros abertos", Beatriz Viterbo não é Anna, resiste à leitura (em todo caso, só lê cartas obscenas).
* Trecho extraído da tradução de Rubens Figueiredo (Cosac Naify, 2005).
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E o relato continua: "A princípio, Anna não conseguiu ler. O vozerio e o vaivém das pessoas a incomodavam". Mais de uma vez encontramos cenas em que a leitura é interrompida por aqui¬lo que vem de fora. É a idéia da distração e de como aquele que lê trata de evitá-la para concentrar-se na evasão essencial supos¬ta pelo romance e pelo romanesco, que exigem um corte, uma abstração do real. (O livro de Calvino Se um viajante numa noite de inverno, um romance sobre a leitora de romances, é na verdade um texto sobre a leitura interrompida.)
Já nos referimos à cena de "Sul", o conto de Borges, em que Dhalmann lê, ou tenta ler, num trem que atravessa a planície da província de Buenos Aires e, distraído pela realidade, pára de ler. É a tensão entre leitura e interrupção e, em especial, entre leitu¬ra de romances e interrupção. (Macedonio construiu seu perso¬nagem conceitual do leitor salteado a partir daí.)
A verdade é que no fim Anna consegue se concentrar:
Anna começou a ler e a entender o que lia. Ánuchka já cochilava [...] Anna Arcádievna lia e compreendia, mas não tinha gosto em ler, ou seja, em seguir o reflexo da vida de outras pessoas. Sentia uma desmedida vontade de viver por si mesma. Se lia como a he¬roína do romance cuidava de um doente, tinha vontade de entrar, com passos inaudíveis, no quarto do doente; [...] se lia como Lady Mary saía a cavalo atrás da matilha numa caçada, como procura¬va a cunhada e surpreendia a todos com a sua coragem, Anna sen¬tia vontade de fazer tudo isso ela mesma.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que em geral é nos ro¬mances que se contrapõem leitura e realidade, que a leitura, apaixonada e contínua, na realidade é criticada por seus excessos e seus perigos de irrealidade. Muito freqüentemente os romances crticam aquele que lê romances (e isso não deixa de ser um para¬
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doxo). Pensemos em D. Quixote, mas também em Emma Bo-vary: "Assim, tomou a decisão de impedir que Emma lesse ro¬mances", está escrito.
Em segundo lugar, aquele que lê ficou marcado, sente que sua vida não tem sentido quando a compara à vida dos heróis dos romances e quer chegar à intensidade que encontra na ficção. A leitura do romance é um espelho do que a vida deve ser; é o sin¬toma Madame Bovary. Anna Kariênina lê uma série de aconteci¬mentos e deseja vivê-los. Nessa leitura extrema está a passagem para o bovarismo: querer ser outro, querer ser o que são os heróis dos romances.
O romance de Tolstói constrói a imagem do que poderíamos chamar a leitora de romances que decifra a própria vida através dos fatos ficcionais da intriga, que vê no romance um modelo privilegiado de experiência real. Manifesta-se assim uma tensão entre a experiência propriamente dita e a grande experiência da leitura. É aí que aparece o bovarismo, a ilusão de realidade da fic¬ção como marca do que falta na vida. Vai-se da leitura à realida¬de, ou percebe-se a realidade sob a forma do romance, com essa espécie de filtro que a leitura oferece.
Sartre disse bem: "Por que se lêem romances? Falta alguma coisa na vida da pessoa que lê, e é isso que ela procura no livro. O sentido, evidentemente, é o sentido de sua vida, dessa vida que para todo mundo é torta, mal vivida, explorada, alienada, enga¬nada, mistificada, mas acerca da qual, ao mesmo tempo, aquele que a vive sabe muito bem que poderia ser outra coisa".
As mulheres encarnaram esse mal-estar (vistas da perspec¬tiva dos homens que escrevem as histórias). Na ficção, a saída dessa perturbação foi, tradicionalmente, o adultério. Diante do mal-estar de suas próprias vidas, as mulheres que lêem (Anna
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Kariênina, Madame Bovary, Molly Bloom) encontram outra vi¬da possível na infidelidade.
Se tivéssemos que cunhar uma fórmula - irônica -, diría¬mos talvez que o modelo perfeito do leitor masculino é o celibatário, o solteiro a la Dupin, enquanto o modelo da leitora perfei¬ta é a adúltera, a la Bovary.
De alguma maneira, a feminização do leitor de romances confirma os preconceitos dominantes sobre o papel da mulher e da inteligência feminina. Os romances eram considerados ade¬quados para as mulheres, vistas como criaturas de capacidade intelectual limitada, imaginativas, frívolas e emotivas. Os ro¬mances, circunscritos ao reino da imaginação, eram o oposto da leitura prática e instrutiva.
Nesse sentido, os jornais se opõem aos romances. Na medi¬da em que dão conta de acontecimentos públicos, estavam re¬servados para o leitor masculino - como vimos nos relatos de Poe -, enquanto os romances, com seu tratamento da vida ínti¬ma, eram parte da esfera privada a que as mulheres eram relegadas.
Em O idiota, de Dostoiévski, uma das figuras de mulher mais extremadas e independentes da literatura, a apaixonada e rebelde Nastácia Filíppovna, que vai de um homem para outro, acaba arrastada para o horror e a morte. Então o príncipe Mishkin, que não conseguiu salvá-la apesar de seu amor e de sua compaixão, pode entrar no quarto da moça.
Por fim ele se levantou para que lhe mostrassem os cômodos de Nastácia Filíppovna. Eram dois quartos grandes, claros, altos, muito bem mobiliados e arrumados com coisas caras. Depois todas essas senhoras contaram que o príncipe examinou nos quartos cada objeto, viu numa mesinha um livro aberto da Biblioteca para Lei¬tura, o romance francês Madame Bovary, observou, dobrou a pá¬gina em que o livro estava aberto, pediu permissão para levá-lo
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consigo e, no mesmo instante, sem ouvir objeções de que o livro era de uma biblioteca, colocou-o no bolso/
Essa cena sintetiza toda uma cultura. Poderíamos dizer que uma visão da cultura feminina está condensada nessa situação. O bovarismo também permite que se decifre o destino secreto de Nastácia Filíppovna.
No trem, Anna repete o velho rito de entrar no irreal e na ilusão por meio da leitura de um livro, para dali tornar a con¬frontar a realidade. Esse movimento é o romance propriamente dito, a forma do gênero, se adotamos a linha aberta por Lukács em Teoria do romance. A experiência pessoal é a corroboração da verdade do texto. Anna lê para decifrar uma verdade que está sepultada nela. Só consegue entender o sentido possível de sua vida verdadeira quando o lê no livro. A tensão entre ilusão e rea¬lidade, entre experiência e sentido, aparece ligada à leitura de romances.
Em Anna Kariênina tudo se romantiza; a própria vida é concebida como um romance. Quando Dolly visita a casa de campo de Anna, encontra "esse novo luxo europeu sobre o qual ela só havia lido em romances ingleses, mas nunca tinha visto na Rússia".
A intensidade da paixão de Anna tem a ver com a intensi¬dade implícita no mundo romanesco. E o livro é a metáfora des¬sa relação. Por isso a imagem da leitura aparece no fim de sua vida. Depois de tomar a decisão de abandonar o marido e o filho, depois de viver com Vrónski e ficar presa a ele, enfrentando as convenções de seu meio, Anna se suicida (castigada por Tolstói
* Trecho extraído da tradução de Paulo Bezerra (Editora 34, 2002).
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pela vida que levou, segundo a interpretação de Anna Akhmáto-va). E, no momento mesmo de morrer, o narrador recorre uma vez mais à imagem da leitura e da lâmpada. Quando Anna se jo¬ga debaixo do trem, arrepende-se por um instante do que acaba de fazer, mas já não adianta mais. "E a luz da vela, sob a qual ela havia lido um livro repleto de aflições, ilusões, desgraças e mal-dades, inflamou-se e ficou mais clara do que nunca, iluminou para ela tudo aquilo que, antes, eram trevas, começou a crepitar, empalideceu e extinguiu-se para sempre." Morreu a leitora (as¬sim como morre Madame Bovary).
Talvez pudéssemos deter-nos nessa relação entre luz e leitu¬ra. E sobretudo no objeto que já vimos aparecer várias vezes, e que em Anna Kariênina adquire uma relevância central: a lâm¬pada, a luz pessoal, a lanterna (fonarek), a vela. A história da lei¬tura é também a história da iluminação. (Uma amiga russa, Sara Hirschman, que me ajudou a decifrar os textos em sua língua original, escreveu-me em seu delicioso estilo nabokoviano: "Fo¬narek, em russo, significa pequena lanterna. Imagino que naque¬le tempo era uma lâmpada de vidro com uma vela dentro, ou uma mecha com querosene ou azeite".)
Toda uma série relacionada com a luz se liga ao leitor e à lei¬tura. Em Madame Bovary, "o quebra-luz da lamparina, pendura¬da na parede sobre a cabeça de Emma, iluminava todas essas ce¬nas do mundo que iam desfilando diante de seus olhos uma atrás da outra no silêncio do quarto". No romance de Tolstói, por sua vez, há luz natural, velas, lâmpadas, luz a gás: velas na casa de Levin; Kitty com um castiçal; luz a gás no teatro, "luz elétrica por toda parte". E em Moby Dick, de Melville, resplandece o óleo de baleia para as velas: a épica da luz para ler os romances.
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Lewis Mumford nos fornece uma informação fundamental para uma história da iluminação das casas. Em seu livro A cida¬de na história, analisa a construção tardia das vidraças: "As casas mais primitivas tinham pequenas aberturas para as janelas, com postigos para proteger-se das inclemências do tempo; mais adian¬te contaram com janelas permanentes de tecido oleado, papel e, mais adiante, vidro. No século xv o vidro, até então tão oneroso que só era utilizado nos prédios públicos, tornou-se mais fre¬qüente, primeiro apenas na parte superior da janela".
A luz da lanterna de Ana é a metáfora da luz do leitor, do isolamento do leitor na sombra. A realidade está do lado da lâm¬pada (como vimos em Tolstói e também em Kafka): a lâmpada, a luz, a janela, o postigo. O irreal e o fantástico estão, em com¬pensação, do lado do livro: as letras minúsculas, os signos im¬pressos e seu efeito cegante.
UMA POLTRONA DE VELUDO VERDE
Um dos melhores contos de Cortázar começa assim: "Co¬meçara a ler o romance alguns dias antes, abandonou-o por as¬suntos urgentes [uma vez mais, a interrupção], tornou a abri-lo quando voltava para a estância de trem [uma vez mais, a leitura no trem]; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo de¬senho dos personagens".
Trata-se, evidentemente, do início de "Continuidade dos parques", um conto brevíssimo e extraordinário que se limita a narrar os efeitos de uma leitura.
Todos se lembram, certamente, da continuação da história: o homem está lendo, sentado comodamente numa poltrona de veludo verde, à luz da vidraça, e a trama do romance que está lendo começa a ser a trama de sua própria vida, porque o leitor
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sem nome lê no romance a história de um casal de amantes que resolve matar o marido da mulher (mais uma vez o adultério). O fim do relato é atingido quando começa a anoitecer. De acordo com o combinado, o amante entra na casa com um punhal na mão e encontra um homem sentado, lendo um romance numa poltrona de veludo verde.
O inesperado, a surpresa, irrompe e perturba o real. A inter¬rupção, que já vimos em Anna Kariênina, aparece invertida, iso¬lada e transformada no nó da ficção do conto de Cortázar.
Todo o relato insinua essa interrupção e trabalha a tensão entre ficção e realidade. Não esqueçamos que o homem está "sentado comodamente em sua poltrona predileta, de costas pa¬ra a porta que o teria perturbado como uma irritante possibili¬dade de intrusões". Aquele que lê está a salvo de toda perturba¬ção, isolado do real. A leitura constrói um mundo paralelo, mas esse mundo paralelo, essa experiência ficcional da leitura, irrom¬pe agora como o real propriamente dito e produz um efeito de surpresa e vacilação. A ficção entra no real de modo inesperado; já não é o real que entra na ficção. Mas a chave é que esse cruza¬mento se realiza como uma operação interna ao ato de ler.
O bovarismo se inverteu: não se trata de ler num livro uma vida possível que se pretende atingir, mas de ler num livro a pró¬pria história, a letra do destino. Poderíamos dizer que há uma pulsão oracular. Como em Cosmos, de Gombrowicz, o leitor lê tudo como se lhe fosse dirigido pessoalmente. Uma loucura ro¬manesca. A leitura constitui o universo. A leitura (de um roman¬ce) como postulação de uma realidade é o ponto extremo de sua autonomia.
"O deciframento específico do funcionamento ficcional es¬tá reservado para uma minoria", escreveu Luis Prieto em Perti¬
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nencia y práctca. E, freqüentemente, o romance narrou as des¬venturas daquele que não entende - ou entende bem demais - uma ficção. As condições da suspensão da incredulidade e da crença ficaram reservadas para as classes populares, como leito¬res privilegiados do romance. Já em D. Quixote esse caráter baixo e vulgar do gênero se insinua, um traço que foi a marca do leitor de romances. Sansón Carrasco informa a D. Quixote que "os que mais se entregaram a sua leitura são os pajens; não há antecâmara de senhor onde não se encontre o D. Quixote" (n, 3).
Passar do mundo fictício à realidade é uma peculiaridade da cultura que sempre esteve em questão. A distinção entre esses dois níveis foi teorizada com extrema sutileza. "No patrimônio tecno¬lógico que permitiu que os europeus conquistassem o mundo", observa Cario Ginzburg em Olhos de madeira, "constava a capa¬cidade acumulada com o passar dos séculos de controlar a rela¬ção entre ficção e realidade".
A distinção ou o cruzamento entre os dois termos é comple¬xa e densa, e o romance como gênero não faz mais que trabalhar a relação entre eles. Em todo caso, instalou-se desde a origem nessa indecisão. No imaginário que surge das próprias páginas dos romances, com a insistência no isolamento do leitor, está sempre presente a tensão entre ficção e realidade que é clássica no gênero.
E é no leitor de romances que Roger Chartier, um grande historiador dos hábitos de leitura, viu uma síntese das regras do¬minantes nas maneiras modernas de ler.
Em muitos sentidos, observa Chartier, o romance definiu nossa maneira de ler outros livros que não são romances. Defi¬niu, seria o caso de dizer, o que já está dito naquele que muitos acreditamos ser o primeiro de todos os romances, o D. Quixote: não só o modelo da prosa de ficção como o modelo do que sig¬nifica ler uma ficção e perder-se nela. Definiu, enfim, o grande
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modelo do leitor de ficções: não mais aquele que lê para decifrar, como Dupin, não mais aquele que desconfia do sentido dos sig¬nos, mas aquele que confia e aquele que lê para crer.
A cena de Anna Kariênina no trem é uma síntese múltipla dessas questões. A leitura de um romance (no romance) é um exercício de construção da passagem e do cruzamento entre fic¬ção e realidade, e o romance narra esse movimento. Também Ma¬dame Bovary, em seu retiro no interior e sem nada que fazer, constrói para si mesma, imaginariamente, uma vida fantástica na qual a leitura tem papel predominante. O que ela lê permite-lhe viver uma vida paralela. A manifestação desse outro lugar é o mapa de Paris. Emma se locomove com o mapa de Paris como Mami, em Buenos Aires, em A vida breve, de Onetti: "Com a ponta do dedo, passeava de um lado para o outro pela capital". O imaginário, a possibilidade de aceder a um outro mundo e de vi¬ver uma vida paralela, fazem parte do próprio romance. Existe uma dupla realidade e uma dupla vida.
Há quem tenha feito da crença na ficção a chave do funcio¬namento do real. Com isso se abre, evidentemente, um proble¬ma complexo que tem um peso decisivo na política: basta trans¬ferir a suspensão da incredulidade implícita no romance para o mundo social para que irrompam todas as fantasias ameaçado¬ras. As ficções da política atuam sobre a tensão nunca explicita¬da entre o verdadeiro e o ilusório.
O homem do castelo alto, romance de Philip Dick, instala-nos num futuro incerto, num mundo paralelo em que os nazistas ga¬nharam a guerra e os japoneses controlam o litoral oeste dos Estados Unidos. Ameaçados pela incerteza, todos lêem um livro para tomar decisões, mesmo as mais insignificantes: o / Ching. Lêem-no a la Bovary: suas vidas estão estruturadas sobre a leitu¬ra desse texto e o deciframento do oráculo.
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Porém, ao mesmo tempo que tudo isso acontece, começa-se a saber da existência de um livro que narra outra realidade: um romance {A lagosta pousou) em que se conta que os nazistas não venceram a guerra. Esse romance está proibido e circula de modo clandestino na área controlada pelos japoneses. Todos os personagens principais do romance de Dick estão lendo o livro em diferentes momentos. Para alguns leitores o romance não tem sentido, para outros formula certas questões. Apenas um dos pro¬tagonistas do livro de Dick (Juliana, uma jovem professora de judô, inteligente e decidida) acredita piamente nessa outra ver¬são dos fatos, está convencida de que o romance diz a verdade. Convencida de que o romancista falava de seu universo, daquele que a rodeia aqui e agora. Que ele quer que ela veja as coisas tal como elas são. De fato, ela parece ser a única a aceitá-lo, e sabe disso. Em certo sentido, é a única leitora. "O que Abendesen teria querido dizer? Nada a respeito do mundo imaginário que des¬crevia. E era ela, Juliana, a única pessoa que se havia dado conta? Sim, quase podia garanti-lo. Ninguém mais havia entendido real¬mente A lagosta; achavam que haviam entendido."
Juliana lê o romance com paixão e resolve conhecer o ro¬mancista que o escreveu. O homem está recluso num castelo, em¬paredado. É lá que a moça vai visitá-lo.
O contraste entre ficção e realidade se inverteu. A própria realidade é incerta, e o romance diz a verdade (não toda a verda¬de). A verdade está na ficção, ou, melhor dizendo, na leitura da ficção. O romance, os livros proibidos, dizem como é o real. Seria o caso, então, de perceber uma tensão entre Estado e romance, e inclusive entre leitura e verdade estatal.
É freqüente que a idéia de alguém que tem apenas um livro em que se cifra um mundo perdido se reproduza em escala am¬pliada. Orwell em 1984, Bradbury em Fahrenheit 451, Aldous Hux-ley em Admirável mundo novo, entre outros, narraram mundos fu¬
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turos em que o ato de ler foi proibido e a leitura considerada uma prática subversiva. É a condensação da ameaça pura: uma socie¬dade que liquida todo tipo de autonomia, ocupa todos os espaços e impede a privacidade. Não obstante, nesses relatos em que a lei¬tura está controlada e proibida sempre existe alguém que lê: um único leitor ou uma associação secreta de leitores em fuga.
Sempre existe uma ilha onde sobrevive algum leitor, como se a sociedade não existisse. Um território devastado no qual al¬guém reconstrói o mundo perdido a partir da leitura de um li¬vro. Melhor seria dizer: a crença no que está escrito num livro permite manter e reconstruir o real perdido. Essa relação fica evi¬dente em muitas cenas de Robinson Crusoé, o romance de Defoe.
OS RESTOS DO NAUFRÁGIO
O que salva Robinson do horror, o que permite que ele es¬cape da loucura e reconstrua o sentido do que está vivendo, são os livros que recolhe entre os restos do naufrágio (melhor seria dizer: o livro).
No início da história insinua-se a imagem de um Robinson assediado pela loucura e pelo terror: depois de sobreviver várias semanas na ilha, doente e com febre, ele tem pesadelos torturan¬tes. Então relembra sua experiência no Brasil: "Lembrei-me que o único remédio utilizado pelos brasileiros para a maioria das enfermidades é o tabaco", e parte em busca do que salvou do nau¬frágio. Mas junto com o remédio que procura encontra, milagro¬samente, o verdadeiro remédio salvador: "Abri o baú e encontrei o tabaco que procurava. Também estavam ali os poucos livros que conseguira resgatar. Peguei uma das Bíblias que mencionei antes, que até aquele momento não havia lido devido à falta de tempo ou à falta de vontade".
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E então vemos Robinson ler. Está sozinho na ilha, mal ves¬tido, doente, e com um livro na mão: "Comecei a ler a Bíblia, mas sentia muita náusea e não conseguia ler. No entanto quando abri o livro ao acaso as primeiras palavras que vi foram estas: 'Cha¬ma-me no dia da angústia e te libertarei e tu me honrarás'".
A leitura da Bíblia tem, para Robinson, o sentido de uma explicação da experiência; de forma deliberada, o sentido é colo¬cado no interior dessa leitura. O que lê se dirige a ele, pessoal¬mente; o contexto de sua vida decide o sentido. É claro que essa leitura o cura da doença. Nesse aspecto, Robinson é o oposto de D. Quixote, que adoece ao ler. Mas, como D. Quixote (e Hamlet), por ser um leitor ele é um dos grandes heróis da subjetividade moderna.
Com efeito, trata-se de uma conversão. Teríamos que falar de uma conversão pela leitura. Só depois de ler a Bíblia, Robin¬son poderá sobreviver e salvar-se. Só encontrará o sentido possí¬vel de sua vida verdadeira quando vier a lê-lo num livro. Robinson não lê para decifrar um sentido velado, lê para encontrar o que se perdeu, para decifrar a verdade oculta em sua existência. Ro¬binson crê em tudo o que começa a ler, e a leitura se realiza em sua vida. Há um certo quixotismo em Robinson: lê para viver.
Robinson recorre à Bíblia várias vezes ao longo do roman¬ce, para resolver seus problemas. As circunstâncias são sempre as mesmas: ele vincula imediatamente o que lê com sua experiên¬cia pessoal, vislumbra seu destino no que lê. Ecos muito arcaicos da leitura do oráculo estão cifrados nesta situação: "Uma manhã em que me sentia muito triste, abri a Bíblia e li o seguinte: Não te deixarei nem te abandonarei. No mesmo momento pensei que essas palavras se dirigiam a mim. [...] Desde aquele momento, cheguei à conclusão de que era possível ser mais feliz em estado de solidão do que provavelmente teria sido se minha situação fos¬se outra qualquer". A Bíblia é lida como resposta a uma pergun¬
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ta pessoal. Melhor, o livro responde a uma pergunta pessoal. O texto enigmático encontra seu sentido e sua realização no real.
Não se trata, por outro lado, de uma leitura linear, mas de uma leitura fragmentada, a livro aberto, que permite estabele¬cer uma relação inesperada, mística, eu diria, entre a letra e o acaso. A leitura casual, não intencional e não linear é uma prova de sua verdade. O sujeito sempre encontra o que busca. (Todo aquele que narra uma leitura dá com o livro preciso no momento justo.)
Robinson nunca lê relatos, só definições, sentenças explíci¬tas dirigidas a ele. Está sempre em busca da palavra revelada. A fé é um suplemento do sentido, ou seja, a fé garante o sentido (e supõe uma dupla leitura). Se o bovarismo é a tendência a ver-se na leitura como outro diferente daquele que se é, Robinson faz o oposto: descobre quem é ao ler a Bíblia e se despoja de todas as falsas identificações que o levaram à ruína.
Pensa que sua permanência na ilha é a vida verdadeira, uma experiência de individualização e de salvação que o afasta da per¬versão que agora reconhece em seu passado. A Bíblia o salva da loucura e da animalização porque restitui o sentido a sua própria experiência. )á não é um comerciante, já não é um traficante, nem sequer um náufrago: é um pecador que espera a salvação e confia nela. A única alegoria é a de sua própria vida: o extravio, o naufrágio, a leitura, a fé, a solidão, a austeridade, a salvação.
Sem dúvida, todo o protestantismo está aqui. Talvez devês¬semos dizer o calvinismo: a leitura pessoal da Bíblia, sem a me¬diação do intérprete ou do sacerdote, e a leitura igualitária, a Bí¬blia em língua vulgar e ao alcance de todos, graças à imprensa. (A primeira tradução da Bíblia para o inglês é de 1535 e o ro¬mance é publicado em 1719.) As diferentes Bíblias que Robinson leva consigo da Inglaterra são um exemplo da ampla circulação que implicou o impacto da imprensa. "Também encontrei três Bíblias em bom estado, que vinham com meu carregamento da
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Inglaterra e que eu havia incluído em minha equipagem. Um par de livros de oração utilizados pelos papistas. Além disso, pus a salvo alguns livros escritos em português."
A leitura da Bíblia ordena o mundo para ele, estabiliza-o. A experiência se organiza e se escande a partir do ato de ler: "Eu havia dividido meu tempo de modo regular, segundo as diferentes tarefas que precisava desempenhar, de acordo com o seguinte plano: primeiro a leitura das Sagradas Escrituras, para as quais eu reservava um certo tempo três vezes por dia".
A regra que se impõe é clara: antes de agir, é preciso ler.
O herói do ascetismo protestante, que reproduz a economia capitalista em um isolamento perfeito, é antes de mais nada um leitor solitário. O leitor solitário por excelência, seria o caso de dizer. A solidão de Robinson se assimila ao isolamento do leitor. Já se perderam os vestígios da leitura coletiva. A leitura é desfru¬tada na solidão: pode ser no boudoir, no escritório ou na biblio¬teca - tanto faz. Com efeito, há uma relação formal entre a lei¬tura e a ilha deserta. Robinson é o modelo perfeito do leitor isolado. Lê sozinho, e o que lê se dirige a ele pessoalmente. A sub¬jetividade plena se realiza no isolamento, e a leitura é sua metá¬fora. O leitor ideal é aquele que está fora da sociedade.
"Que livro você levaria para uma ilha deserta?" é uma das perguntas fundamentais da sociedade de massas. Sem dúvida ela tem Robinson Crusoé como ponto de partida e supõe que para sair da multiplicidade ou da proliferação do mercado é preciso estar numa ilha deserta. A pergunta é precavida e inclui várias outras: "Que livro você leria se não pudesse fazer outra coisa?" E ainda: "Que livro você imagina que seria de utilidade pessoal para você, caso tivesse que sobreviver em condições extremas?". É evidente que existe uma teoria da leitura implícita na pergunta.
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O sujeito que lê na solidão se isola porque está imerso na sociedade, do contrário não precisaria fazê-lo. Marx criticou a idéia de grau zero da sociedade no mito do robinsonismo, por¬que mesmo um sujeito completamente isolado leva com ele as formas sociais que o tornaram possível. O isolamento pressupõe a sociedade da qual o sujeito deseja fugir. "O homem no sentido mais literal é um zóom politikón, não apenas um animal social, mas um animal que só pode se isolar na sociedade", escreve Marx na Introdução à crítica da economia política, e adiciona uma idéia que antecipa a noção de linguagem privada de Wittgenstein: "A produção de um indivíduo isolado fora da sociedade é tão ab¬surda quanto o desenvolvimento de uma língua sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si".
O individualismo é um efeito da sociedade e não sua condi¬ção. Efetivamente, podemos pensar que Robinson é o delírio próprio de um inglês, a cristalização da insularidade mais extre¬ma: um homem ilhado, rodeado pelo mar e com a terra para ele, que lê a Bíblia e se dipõe a dominar seu reino, seu castelo, suas posses. Joyce disse isso muito bem e antes de todo mundo. Numa conferência em Trieste, em 1912, falou do romance de Defoe como "a profecia do império, o verdadeiro símbolo da conquis¬ta britânica", e de Robinson Crusoé como "o verdadeiro protóti¬po do colonizador britânico".
Sem dúvida, a verdade oculta da colonização não é tão idí¬lica. No ar limpo da ilha, sob o sol branco dos trópicos, esconde-se "o coração das trevas": ali está Kurtz, o personagem arrogante e despótico de Conrad. Esse outro náufrago da civilização, a rea¬lização pura do colonialismo (e seu segredo), é o duplo delirante de Robinson. Faltam-lhe a fé e o livro sagrado porque ele pró¬prio se colocou no lugar de Deus, capturado pelo demônio do comércio e da superstição. Esse é o horror de que Robinson se livra graças à Bíblia (e ao tabaco brasileiro).
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Com Robinson estamos em plena história da América. O Brasil, país onde viveu durante três anos como plantador, está muito presente no romance, assim como a crítica inglesa ao impé¬rio espanhol (e já sabemos o papel desempenhado pela Grã-Bre¬tanha na independência de muitas das províncias espanholas no século xix). Efetivamente, o último navio que naufraga no roman¬ce vem de Buenos Aires. Estamos em 1682, o vice-reinado do rio da Prata ainda não se constituiu, mas Defoe registra Buenos Aires e o rio da Prata como um porto que mantém contato com Hava¬na, informação muito precisa, já que se trata do tráfico de carne salgada para os mercados de escravos. E o que Robinson encontra nesse navio encalhado são bebidas alcoólicas e armas. Os america¬nos, por sua vez, estão encarnados em Sexta-feira, o caribe, o ca¬nibal. Sexta-feira é o colonizado americano em estado puro.
A colonização e a conquista supõem a dominação militar e a violência. O terror de Sexta-feira diante do fuzil repete o terror dos astecas diante dos canhões e dos cavalos de Cortês, modelo das novas relações sociais. Mas a conquista e a colonização tam¬bém supõem a Bíblia. Quero dizer, supõem o ato de ler como fundador do domínio territorial e espiritual. Na tradição espa¬nhola, o rei insiste no ato de mandar ler seus proclamas em voz alta como fundador do domínio. Os direitos sobre a terra e sobre as almas se estabilizam nessa ação. Os registros indígenas se refe¬rem a "lenços que falam" e mencionam que os conquistadores "falavam em lenços", aludindo ao tipo de papel, feito de tecido. Em Rulfo ainda se encontram ecos dessa prática legal e jurídi¬ca. Em "Nos deram a terra", os representantes do governo exibem, perante os camponeses analfabetos, os documentos de posse.
Muitas cenas de leitura desse tipo percorrem a história da conquista. No processo de domesticação de Sexta-feira, Robin¬
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son se instala nessa tradição. "Quando eu lia as Escrituras, sem¬pre explicava a Sexta-feira o melhor que sabia qual era o signifi¬cado dessas leituras."
Sua dominação e sua metamorfose se concentram na leitu¬ra e na explicação da Bíblia. "O selvagem era agora um bom cris¬tão", dirá Robinson mais tarde.
Como Sexta-feira recebe essas leituras é coisa que só sabe¬mos por intermédio de sua docilidade. A idéia da leitura em voz alta para analfabetos - ou, mais geralmente, a leitura em voz al¬ta como uma forma de sociabilidade - exemplifica a imagem das classes populares como sujeitos neutros que devem ser edu¬cados, cujas características básicas são a infantilização e a crença extrema.
A metáfora da recepção popular como crença supersticiosa e ingênua é claríssima em "O evangelho segundo Marcos", de Borges. Durante uma inundação em campos da província de Bue¬nos Aires, isolado pela água, um inglês abre a Bíblia para os peões analfabetos da estância. Eles acreditam ao pé da letra na história que escutam e acabam por crucificá-lo. Em Borges e em Defoe, o isolamento aparece como condição da leitura perfeita, mas ao mesmo tempo dá conta de uma fantasia paranóica.
O oposto dessas relações entre leitura e fé está presente em Roberto Arlt, e se condensa na frase de Ergueta em Os sete loucos (uma das mais irônicas e memoráveis da literatura argentina): "Te manda, malandro, te manda. Está pensando que só porque eu leio a Bíblia sou otário?".
Um leitor seria, assim, aquele que encontra o sentido num livro e preserva um resto da tradição num espaço onde impera outra série (o terror, a loucura, o canibalismo) e outro modo de ler os signos (de que a pegada de um pé na areia seria um exem¬
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plo). Em certo sentido, podemos pensar que sem a leitura o náu¬frago se animaliza.
A leitura é uma defesa mais eficaz do que o fosso. Nos obje¬tos salvos do naufrágio, precisos e úteis, encarnam-se a sociedade e as relações sociais. A utilidade é a chave da moral de Robinson: "Numa palavra, a natureza e a experiência me haviam levado a compreender, depois de refletir sobre o assunto, que todas as coi¬sas deste mundo carecem de valor, quando não podem ser utili¬zadas de alguma maneira", escreve.
Nesse sentido, a Bíblia é um instrumento tão útil quanto a faca, a pólvora e o tabaco. É o vínculo com a sociedade (junta¬mente com as ferramentas). Para Robinson, a possibilidade de leitura da Bíblia é uma prova de que a Providência existe: não fos¬se assim, como ele teria resgatado os livros no navio submerso?
No romance de Defoe, a Providência se vincula àquilo que ele conseguir salvar, e a Bíblia aparece para dar sentido à sorte. Porém, ao mesmo tempo, uma forte determinação está em jogo no achado: os objetos que Robinson resgata são a cristalização das relações sociais e da sociedade que ele perdeu. Robinson está sozinho (uma utopia), mas leva consigo o estágio da sociedade que deixou para trás; leva-o em seus saberes, mas também nos objetos recuperados: além das ferramentas, a Bíblia. "Eu nunca abria ou fechava a Bíblia", recorda ele, "sem agradecer a Deus por ter feito meu amigo incluir aquele livro entre meus pertences en¬quanto estava na Inglaterra, embora eu não lhe tivesse pedido que o fizesse. Eu também agradecia a Deus por ter me ajudado a salvar a Bíblia do naufrágio."
O que vemos na citação é, ao mesmo tempo, o ato de ler co¬mo resultado de uma catástrofe, de um naufrágio, de uma perda de realidade. Esse ato é narrado porque aconteceu uma coisa trá¬gica e o livro que sobrevive ajuda a reconstruir o mundo que des¬moronou (idéia que teve ampla circulação na ficção científica).
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São dois, portanto, os grandes mitos de leitor no romance moderno: aquele que lê na ilha deserta e aquele que sobrevive numa sociedade onde já não há livros.
UMA ATRIZ NO DESERTO
Eu gostaria de encerrar este capítulo com a imagem de uma mulher que leu e não quer dizer seu nome (como quase todos os leitores). Trata-se de uma atriz.
É preciso dizer que o teatro e a representação estiveram pre¬sentes nas cenas que acompanhamos. Em muitas delas é possível perceber uma relação entre representação e leitura. De modo evidente, em Hamlet. E poderíamos dizer que de modo secreto em Madame Bovary, no D. Quixote, em "A morte e a bússola": Emma, D. Quixote e Eric Lõnnrot atuam o que leram nos livros, representam um personagem imaginário, atuam os efeitos de uma leitura.
De alguma maneira, um ator é alguém que leu e em segui¬da diz os textos de outro como se fossem próprios. Na cena, a re¬lação entre leitura e teatro se apagou e é invisível, mas se recons¬truímos a maneira como a leitura põe em jogo a representação, é preciso dizer que os atores são leitores que atuam o que leram. Jesper Svenbro rastreou nos atores e no teatro grego as origens possíveis da leitura em silêncio. "A leitura silenciosa - rapidez, inteligibilidade - pode ter sido modelada a partir da experiên¬cia do teatro", escreveu em seu ensaio sobre a invenção da leitu¬ra silenciosa.
Pensei nessas relações porque existe uma mulher na histó¬ria de Baigorria, aquele coronel que se enfia terra adentro para viver com os índios e lê o Facundo no deserto. Uma mulher que não fala de si mesma e a respeito da qual sabemos apenas que era
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uma atriz. Uma prisioneira que não diz seu nome, bela e distan¬te na planície, ao lado do homem que lê o Facundo numa tapera no meio do pampa, junto das fogueiras. Baigorria, o leitor no de¬serto, não estava sozinho. Em todo caso, não era celibatário. Em Callvulcurá e a dinastia dos Piedra Estanislao Zeballos fala de Baigorria e conta uma história inesquecível, que nos permite abrir uma nova linha nas figurações do leitor:
Havia também [entre os índios] um núcleo de mulheres notáveis que por sua beleza e posição eram a nata daquela sociedade tran¬sitória e singular. Conheci três esposas sucessivas do coronel Bai¬gorria. A primeira foi uma mulher arrogante e fina, aprisionada numa diligência postal em 1835, perto da encruzilhada de Ballesteros, na posta da estrada de Rosário a Córdoba. Quando a conhe¬ci estava com trinta e quatro anos e era uma beleza não apenas notável entre os índios, como também nas cidades. Sua tez bran¬ca, já encardida, conservava mesmo assim um esplendor melan¬cólico, que as profundas amarguras da prisão selvagem não ha¬viam conseguido fazer murchar. Era uma artista dramática muito aplaudida no Prata e que estava a caminho do Chile quando o in¬fortúnio lhe despencou sobre a cabeça. O coronel Baigorria, que participara da invasão, salvara a vida e o pudor da artista. Teve dificuldade para consegui-lo porque os índios se sentiam atraídos e dominados por aquela mulher esplêndida [...] Depois de três me¬ses de cativeiro ela se tornou esposa do coronel Baigorria [...] O coronel vestia-a luxuosamente, com o melhor tecido vendido pe¬los índios aos comerciantes da faixa fronteiriça com o território dos brancos e enfeitada com as valiosas jóias de ouro e prata fabri¬cadas pelos artistas indígenas nas pratarias famosas das lagoas de Trapal e El Cuero. Ela parecia indiferente a tudo. Com o coração hirto, vegetava tristemente e morreu em 1845 sem ter querido revelar seu verdadeiro nome a ninguém.
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Temos aqui uma nova imagem do último leitor: aquela que não quer dizer seu nome, a artista dramática. Uma atriz prisio¬neira no deserto aí por meados do século xix, no rio da Prata. Uma figura enigmática. Ela tem, em seu silêncio, a lembrança dos livros que leu e que carrega na memória. Podemos imaginar sua história, os teatros em que atuou e os textos que leu e que ecoam, como uma música, no silêncio do deserto. A história de uma atriz prisioneira. A atriz como leitora.
Correm os tempos de Rosas. Naqueles anos, várias compa¬nhias atuam em Buenos Aires. Apresentam espetáculos no teatro Vitória e no teatro Argentino de Buenos Aires, fazem turnês pelo interior do país, se apresentam também em Montevidéu, Santia¬go do Chile e Rio de Janeiro. Pequenas companhias percorrem, na época, as províncias e os países vizinhos. Entre elas - como registra Raul Castagnino em O teatro na época de Rosas - se des¬taca a de Telémaco González, que viajava para o Chile freqüen¬temente e que era formada por Trinidad Guevara e Juan Casacu-berta, fundadores do teatro nacional.
Mas o que nos interessa é um pequeno incidente narrado por Beatriz Seibel em História do teatro argentino. Nesse livro ela relata uma das turnês da companhia de Telémaco González pelas províncias, possivelmente com o objetivo de voltar ao Chile, on¬de era muito conhecido:
No início do ano outro grupo de atores partiu para uma turnê em Córdoba. Telémaco González, sua mãe Josefa Funes, sua falsa ir¬mã Emilia (filha de Alberto González e Josefa Funes), seus sobri¬nhos Cristina e Juan Casacuberta. Contudo, não chegam a seu destino porque, segundo a narração de Telémaco, são atacados "por índios selvagens", de quem escaparam "do jeito que estavam"
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para voltar a Buenos Aires, deixando para trás, prisioneiras, a mãe e o resto da família.
Um grupo de atores, entre os quais diversas senhoras, viaja pelo deserto e é surpreendido pelos índios. Várias mulheres são aprisionadas. Podemos imaginar que uma delas é a bela e miste¬riosa mulher de Baigorria.
Não sabemos. Porém sabemos que o repertório daquela companhia inclui obras de Alfieri e tragédias de Shakespeare, como Otelo e Hamlet. São as primeiras peças de Shakespeare en¬cenadas naquela região (e é Sarmiento que escreve a crítica de Otelo). E também sabemos que era freqüente as mulheres repre¬sentarem papéis masculinos ("Maria Teresa Samaniego interpre¬tava o papel masculino 'forte e heróico' de Felipe n na tragédia de Alfieri, e Trinidad Guevara interpretava o jovem Pablo em Virgí¬nia, outra tragédia de Alfieri", conta Mariano G. Bosch em Histó¬ria das origens do Teatro Nacional Argentino).
Assim, podemos imaginar nossa prisioneira atuando em Hamlet ou quem sabe em Otelo. E as tragédias de Shakespeare ecoando na memória daquela mulher no deserto.
Ali, na fronteira do território indígena, ao lado de outras pri¬sioneiras brancas, gaúchos perseguidos, desertores, está a atriz-leitora. É uma sociedade sem livros, quase sem livros. Uma socieda¬de cartografada, imaginada, controlada por letrados. ("Não há de chover no rancho/ onde este livro se encontre", diz Martin Fierro falando de si mesmo.) Sempre há um livro no deserto; sempre aparece a idéia de um livro que sobrevive no deserto e que, como no Facundo lido por Baigorria, encerra a verdade deste mundo e prediz seu fim.
Quem sabe uma história secreta da leitura no rio da Prata devesse começar por essa bela prisioneira que não quer dizer quem é.
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6. De que é feito o Ulisses!
LEITORES RUSSOS
O título deste capítulo é uma homenagem ao escritor e crí¬tico russo Victor Sklovski e a um dos textos que escreveu, "De que é feito 'D. Quixote'", que poderíamos pensar como um duplo de outro ensaio, também fundador e ademais muito joyceano, "De que é feito 'O capote'", de Boris Eikhenbaum.
Esses leitores russos nos interessam especialmente porque definem a relação com um texto em função de como o texto foi construído, e apresentam os problemas da construção e não os problemas da interpretação.
Essa distinção remete a uma diferença no uso da literatura; são duas maneiras diferentes de ler e de usar um livro, dois mo¬dos de apropriação dos textos.
Como todos, esse dualismo é deliberado e não supõe uma hierarquia, mas a localização de duas estratégias. Embora as dife¬renças não sejam radicais e as posições sejam intercambiáveis, podemos considerá-las duas linguagens diferentes, duas manei¬ras diferentes de falar de literatura.
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Ler a partir do lugar em que se escreveu não define o leitor ideal como aquele que lê melhor, mas como aquele que lê a partir de uma posição próxima à composição em si. Nabokov aponta isso com clareza: "O bom leitor, o leitor admirável não se identifi¬ca com os personagens do livro, mas com o escritor que compôs o livro". Borges afirmou a mesma coisa em 1925, em "Profissão de fé literária":
O personagem que importa no romance pedagógico El criticón não é Critilo nem Adrenio, nem o acompanhamento alegórico que o cerca: é frei Gracián, com suas genialidades de anão [...] Mesmo assim, nossa cortesia finge credulidades a Shakespeare, quando este infunde em contos vetustos seu palavreado magnífi¬co, mas aquele em quem acreditamos verdadeiramente é no dramatizador, não nas filhas de Lear.
Quem lê a partir desse lugar segue um rastro no texto e, fiel a esse trajeto, considera as alternativas que a obra deixou de lado. ("Análise da obra de Herbert Quain", de Borges, é o relato dessa aventura.) Mais que ler como se o texto tivesse um sentido ocul¬to, tende-se a interpretar no sentido musical, a imaginar as pos¬síveis variantes e modulações.
Ler a partir daí significa ler como se o livro nunca estivesse acabado. Nenhum livro está, por mais bem-sucedido que pareça. O texto fechado e perfeito não existe: o acabamento, no sentido artesanal, faz com que se busquem os lugares de construção em seu avesso e se apresente o problema do sentido de outra manei¬ra. Manuel Puig contava que toda vez que começava a ler um ro¬mance começava a escrevê-lo.
Joyce sempre foi um exemplo de extraordinária pureza nes¬sa posição: sabemos o que ele fez, quando leu Flaubert pela pri¬meira vez (escritor a quem preferia, contudo, entre todos os ou¬
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tros): corrigiu dois defeitos no início e no fim de Três contos. Richard Ellman narra o fato com extrema precisão: "Pegou o exemplar de Jaloux e mostrou a eles o erro que havia descoberto na primeira frase de "Um coração simples": "Pendant un demi-siècle, les bourgeoises de Pont-VÉvêque envièrent à Mme. Aubain sa scrvante Felicite', leu. E em seguida disse: "Envièrent deveria ser cnviaient, pois a ação continua em vez de interromper-se". De¬pois folheou o livro, provavelmente lembrando-se de outros er¬ros de seu conhecimento, e se deteve na última página de "Hero-díades". Leu a última frase do conto: "Comme elle était três lourde, ils la portaient alternativement". "Alternativement está errado", disse Joyce, "pois havia três portadores."
A noção joyceana de work in progress, de obra em andamen¬to, de dispositivo que nunca está fixado, é básica aqui. Trata-se de um uso prático da literatura, uma leitura técnica que tende a desmontar os livros, a ver os detalhes, os rastros de sua feitura. E que, além disso, se interroga sobre a utilidade e o valor dos tex¬tos. "Como se faz um livro" e "quanto custa" são as perguntas fundamentais. "Qual é o valor de um livro?" é o correlato da per¬gunta sobre seu uso. A tensão entre o uso e o valor está sempre presente.
A economia é a metáfora básica desse dispositivo: define, antes de mais nada, uma relação entre a literatura e o dinheiro. Joyce, por exemplo, pensava que a explicação de seu talento esta¬va em sua tendência a esbanjar: gastava o que não tinha, dava gorjetas astronômicas, pedia emprestado e se endividava, e en¬tendia que essa prodigalidade com o dinheiro estava relacionada com sua capacidade literária.
O inverso poderia ser Kafka: o dinheiro como objeto estra¬nho e perigoso. Em uma carta a Milena de janeiro de 1922, ele
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conta uma história que pode ilustrar o que estamos dizendo. Em sua dilação, a cena concentra o mundo narrativo de Kafka:
Uma vez, quando eu era muito pequeno, havia conseguido uma moeda de dez centavos e estava com muita vontade de dá-la a uma mendiga que costumava posicionar-se entre as duas praças. Só que aquilo me parecia uma quantidade imensa de dinheiro, uma soma que provavelmente nenhum mendigo jamais havia recebi¬do, e portanto ficava com vergonha de fazer uma coisa tão extra¬vagante à vista da mendiga. Mas de todo modo precisava dar o dinheiro a ela: troquei a moeda, dei um centavo à velha, depois dei a volta em todo o quarteirão da Municipalidade e da arcada, tor¬nei a aparecer como um novo benfeitor pela esquerda, dei outro centavo à mendiga, saí correndo outra vez e repeti a manobra dez vezes. (Ou talvez menos, porque acho que em determinado mo¬mento a mendiga perdeu a paciência e desapareceu.)
Como sempre em Kafka, tudo se deslocou: a generosidade é uma exigência impossível de evitar, é preciso ocultá-la, mas não adianta.
O esbanjamento, a esmola, os empréstimos, o crédito, todos esses termos poderiam ser metáforas muito produtivas das ma¬neiras de ler. Um sistema de apropriação, mais que de interpre¬tação, define os usos. A propriedade está deslocada. E. M. Forster, em Aspect of the Novel, imaginou todos os romancistas de diferentes épocas escrevendo ao mesmo tempo à mesa de uma biblioteca com toda a literatura a sua disposição. Uma idéia que, evidentemente, se opõe à noção de história literária ou de pro¬gresso, à idéia de linearidade e de hierarquia; todo e qualquer elemento do passado pode ser utilizado como se fosse novo. A imagem de Forster é a representação de um espaço concreto, de
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um laboratório em que os instrumentos, as experiências e os preparados convivem. É Joyce trabalhando em seu quarto, com tiras de papéis e livros, sobre a cama, com uma lupa e toda a lite¬ratura diante de si. A tradição literária é um campo de associa¬ções tão visível quanto as ruas de Dublin. Ou melhor, um espa¬ço material tão visível quanto os trajetos pela cidade. Basta ver como Joyce atualiza todos os estilos da literatura em língua in¬glesa no capítulo da clínica em Ulisses: sem contexto de época, tudo está fora de contexto, ou melhor, no contexto de seu uso no presente.
O outro grande exemplo dessa leitura prática é o uso dos modelos homéricos feito por Joyce em Ulisses. Podemos retomar aqui a distinção inicial. No Ulisses, a Odisséia é uma referência importante para aquele que escreve o livro, mas não para aquele que o lê. As correspondências e reminiscências que ligam um tex¬to ao outro foram muito úteis para Joyce no momento da cons¬trução do livro porque permitiram que ele utilizasse uma espécie de grade ou de diagrama para pôr ordem num material muito abundante. A Odisséia funciona como um procedimento de uni¬ficação da trama, como um argumento secreto que faz a ação avançar. Esse é o ponto que nos interessa, e não as interpretações disparadas pela presença do mito grego, a proliferação das inter¬pretações que ele suscita ou as ressonâncias míticas encontradas pelos críticos junguianos em cada cena. Os exegetas e críticos do Ulisses se emaranharam num debate interminável acerca do lugar e da função das correspondências entre os capítulos do livro de Joyce e os acontecimentos da Odisséia que, do ponto de vista da leitura, têm uma função muito secundária.
Para Joyce, o sistema das referências homéricas foi uma eta¬pa necessária na construção da obra, tal como o molde de ferro
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de uma escultura que desaparece, retirado ou escondido pelo material. Quando lhe perguntaram por que havia chamado seu livro de Ulisses, Joyce respondeu: "É meu sistema de trabalho".
Produz-se então um fenômeno de inversão bastante clássi¬co na função das correspondências: modo utilizado pelo autor na origem para ordenar o material, transformam-se em símbolo a ser decifrado. Muitos elementos formais, úteis na construção, passam a fazer parte da interpretação como um mecanismo de lei¬tura, e reduzem o texto a um sistema de correspondências e de re¬lações secretas que não são fundamentais. As estratégias de cons¬trução de pistas falsas e rastros cegos são clássicas nesse sentido, e derivam na invenção do exegeta insone como modelo de leitor perfeito em Joyce.
A estrutura oculta (apagada, e por isso invisível) se trans¬forma num dos significados da mensagem joyceana. O texto per¬dido se exibe paralelamente a sua versão: na duplicidade se im¬põe a paródia. É preciso, claro, conhecer o segundo texto: esta é a lição de Joyce.
A Odisséia aparece então como um modelo ou um plano platônico na composição e como uma armadilha alegórica na interpretação. De um lado, permite que se discuta a matéria do livro (seu argumento, ou melhor, o que é um argumento); de outro, abre caminho para o debate sobre paródia, texto duplo, citação, alegoria.
Se o romance de Joyce define um novo uso da literatura e da tradição, é preciso imaginar que a Odisséia como máquina está na própria origem do texto, que remonta a 1906. Inicialmente, Joyce concebeu o Ulisses como um relato dos Dublinenses. "Estou com um novo relato para os Dublinenses na cabeça. É a respeito do sr. Hunter", escreve numa carta a Stanislaus Joyce em 30 de se¬tembro de 1906. E Richard Ellman esclarece numa nota: "O rela¬to se intitularia 'Ulisses'. Alfred Hunter era um dublinense que,
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ao que diziam, era judeu, e sua mulher o traía". Mas a escrita do relato tarda: "Eu estava pensando em começar a escrever meu re¬lato 'Ulisses': mas tenho tantas preocupações neste momento", torna a escrever a Stanislaus em 13 de novembro de 1906.
No romance, restaram vários vestígios desse esboço de com¬posição.
A METEMPSICOSE EM DUBLIN
Os rastros do projeto original estão cifrados na conversa inicial entre Bloom e Molly no começo da manhã de 16 de ju¬nho. Trata-se, ademais, de outra cena clássica de leitura, como as que vimos registrando.
Molly acorda e pede a Bloom que apanhe um livro caído que ela estava lendo. Assinalou no livro uma palavra que não en¬tende e que pronunciou mal (met him pike hoses). "Metempsico-se", disse ele, enrugando a fronte. "É grego: do grego. Significa transmigração das almas [...] Algumas pessoas acreditam que continuamos a viver noutro corpo depois da morte, que vivemos antes [...] Chamam a isso reencarnação [...] Dizem que nos es¬quecemos disso. Alguns dizem que se lembram de suas vidas anteriores."*
Metempsicose, transmigração, reencarnação: podemos ver nesse trecho o núcleo do relato. Ulisses reencarnado num judeu de Dublin que não se lembra de nada de sua vida anterior e Penélope reencarnada em Molly, a mulher infiel. Toda a cena está ligada à compreensão de uma palavra. Joyce costumava cifrar numa palavra a delicada construção dos Dublinenses e podemos
* Trechos extraídos da tradução de Antônio Houaiss (Civilização Brasileira, 1977,4a ed., revista).
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conjecturar que a metempsicose foi a primeira idéia de uma his¬tória que imaginou como um dos relatos do livro. É possível imaginar um relato dos Dublinenses escrito a partir do enigma dessa palavra. Molly não entende seu significado, e o significado se expressa no próprio relato: a alma de Odisseu transmigrou pa¬ra Bloom. A palavra condensa o sentido enigmático do relato.
Esse era o modo como Joyce trabalhava a narração e foi, in¬questionavelmente, sua grande contribuição para a história da forma breve. A epifania está nisso, no desconhecimento de um sentido imediato, no movimento de distância e atraso em rela¬ção com o sentido. Joyce transforma uma palavra mal lida no motor da trama. Vejamos o primeiro relato dos Dublinenses, "The Sisters": A palavra é, ali, paralisia.
"Toda noite, ao olhar a janela, murmurava comigo a pala¬vra paralisia. Ela sempre soara estranha aos meus ouvidos, como a palavra gnomón em Euclides e sintonia, no catecismo. Agora, porém, soava como o nome de um ente maléfico e pecamino¬so."* Quem diz isso é o narrador, um rapazinho amigo do padre Flynn, diante da morte iminente do sacerdote. Flynn é um ho¬mem estranho e enigmático para os personagens, sobre quem circulam incontáveis histórias.
O rapaz funciona como "leitor estrangeiro" visto que se lembra de palavras que "sounded strangely in [his] ears". O senti¬do é inescrutável, não emerge do contexto, como acontece habi¬tualmente com as palavras desconhecidas, é impossível de expli¬car e de interpretar. O fascínio deriva de sua opacidade original. E o sentido da palavra indecifrável é o relato propriamente dito. Evidentemente, este pode ser reconstruído: a paralisia circula por todo o texto, e o "estranho" padre Flynn, que está imobiliza¬do e sofreu sua terceira embolia, morre de uma paralisia.
* Trecho extraído da tradução de Hamilton Trevisan (Ediouro, 1992).
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O tipo de conto "inventado" por Joyce nos Dublinenses tra¬balha com a referência implícita, o segundo sentido que dá for¬ma e tensão mas que tem de estar assinalado no relato para não ser uma simples inferência da interpretação. Uma história "es¬quecida", secreta, circula sob a superfície e define os fatos (é o iceberg de que fala Hemingway). Uma palavra, que emerge como um objeto perdido, pode ser a chave do relato invisível: paralisia em "The Sisters"; metempsicose no projeto inicial de Ulisses. Uma palavra enigmática é a chave, e seu significado é um relato, e não uma interpretação.
No romance, contudo, os usos dessa história secreta se ex¬pandem e proliferam. A Odisséia mantém sua função de motor implícito da escrita e de segredo tácito entre os personagens. Ao crescer e desenvolver-se, o romance transformou esse traço te¬mático, que se manteve mesmo assim como seu embrião primi¬tivo, aprofundando o tipo de trabalho dos Dublinenses.
Seria possível dizer-se que em Ulisses se trabalha central¬mente com a idéia de palavras-chave não compreendidas, expan¬didas até o limite. Metempsicose, a palavra que Molly não enten¬de, é uma palavra lida; sua ressonância se estende por todo o livro e define um sistema de expansão que dará lugar a um novo modo de narrar. A distorção da palavra é o próprio núcleo da técnica narrativa de Joyce. O termo transformado, ligado à dicção de Molly, repete-se e volta como um tema ao longo do romance. São várias as cenas que o registram.
Numa delas, Bloom relembra o modo como sua mulher pronuncia o termo, e o incidente fica gravado em sua memória: "Mete em si coisas dizia ela até que lhe expliquei sobre a trans¬migração".
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A palavra aparece uma vez mais ao meio-dia, quando Bloom encontra um cego e o ajuda a atravessar a rua. "Pobre rapaz. Ter¬rível [...] Será que somos castigados nesta vida pelos pecados cometidos na outra? Karma se chama essa transmigração pelos pecados que a pessoa comete na vida anterior a reencarnação mete em si coisas. Nossa."
À noite é Molly quem retoma a palavra, meio adormecida pensando no marido: "Aquela palavra metem-se não sei o quê e ele aparece com palavrões arrevesados sobre a encarnação, nun¬ca sabe explicar nada de maneira simples".
A continuidade da palavra e sua distorção é o próprio nú¬cleo da técnica narrativa de Joyce. Como num sonho, o som de um termo lido se reitera, se expande, se transforma, distorce o sentido. É a linguagem de alguém que repete uma palavra que faz parte de sua memória verbal, sem compreender seu sentido, torcendo-o. Ao expandir essa técnica Joyce irá renovar a leitura da ficção.
O DESPERTAR DE MOLLY
No Ulisses, ler é associar, e a leitura se confunde com a expe¬riência, vai atrás de emoções, sentimentos, formas corporais. A forma dos Dublinenses racha. O sentido se fragmentou. A leitura se define pelo que não se entende, pelas associações que cercam as palavras, pelas viradas e os cortes. A percepção distraída de que fala Benjamin como chave da experiência na cidade se trans¬fere para a textura do relato. Se retomamos a cena entre Molly e Bloom, talvez encontremos a representação desse modo de ler, seu resto diurno.
Lembremos que Molly acaba de acordar e pede a Bloom que apanhe o livro que ela esteve lendo à noite. Ele procura o livro entre as cobertas:
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Acompanhando a indicação do dedo dela ele levantou da ca¬ma uma perna da calça usada dela. Não? Então, uma liga cinzen¬ta torcida enrascada numa meia: pregueada, brilhante a sola.
- Não: aquele livro.
A outra meia. A anágua.
Procura aqui e ali. [.,.] Não na cama. Deve ter escorregado pa¬ra baixo. Abaixou-se e levantou a sanefa. O livro, caído, escarrapa-chava-se contra o bojo do urinol laranjestriado.
- Mostre aqui - disse ela. - Pus uma marca nele. É uma palavra que eu queria perguntar a você.
Ela engoliu um gole de chá da xícara segura pelo lado sem asa e, tendo limpado vivamente a ponta dos dedos no lençol, começou a procurar no texto com um grampo até que encontrou a palavra.
- Metem-se o quê? - perguntou ele.
- Aqui está - disse ela. - Que é que isto significa? Ele inclinou-se e leu cerca da unha polida do polegar.
- Metempsicose?
No início da cena estão os restos dessa leitura apaixonada, íntima. O que nos interessa são os detalhes materiais que cercam a leitura e seus efeitos. Porque esses detalhes (a cama revolta, a roupa íntima, o livro sobre o urinol, o grampo, a unha polida) remetem ao tipo de mundo implícito em Ulisses e à novidade que Joyce traz para a ficção.
De repente Molly faz parte da série da mulher infiel que lê como lê Anna Kariênina, mas outro tipo de livros e em outro registro, porque Molly não é uma dama (ou em todo caso é ou¬tro tipo de dama). No ato de ler, acompanha-a tudo o que Anna Kariênina deslocou: lê nua na cama, lê literatura barata e semi-pornográfica. Sua leitura é baixa e passional (acaba de esconder debaixo do travesseiro a carta que recebeu do amante, com quem se encontrará naquela tarde).
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Trata-se de uma cena de leitura que poderíamos chamar de doméstico-corporal. Está vinculada ao erotismo, aos restos da noite, à paixão, ao sadismo, à infidelidade. A leitura está em linha de continuidade com os corpos, não os ignora, integra-os: basta pensar na cena imediatamente anterior, em que Leopoldo Bloom está lendo o jornal na privada ("permitiu que seus intestinos se aliviassem calmamente enquanto lia, ainda lendo pacientemen¬te, aquela leve constipação de ontem completamente desapareci¬da"). Como se vê, a obscenidade e a vulgaridade de que o livro foi acusado estão reproduzidas aí como num espelho.
Por outro lado, trata-se de uma leitura degradada, baixa, sexualizada, excluída da "literatura". "Acabou?", pergunta Bloom a Molly quando está com o livro na mão, tratando de explicar-lhe o sentido da palavra e virando "as páginas sujas". O livro é Ruby; o orgulho do circo. "Sim, não há nada de indecente nele. Ela fica amando o primeiro sujeito todo o tempo?" Bloom, que não leu o livro, não pode responder-lhe, mas se oferece para trazer outro livro. Molly se entusiasma: "Arranje outro de Paul de Kock. Boni¬to nome que ele tem [...] Preciso renovar o registro naquela bi¬blioteca da rua Capei ou reclamarão junto ao meu fiador".
São livros alugados, baratos. Com efeito, poderíamos acom¬panhar essa série ao longo do romance. Bloom, "o louco das li¬quidações", Bloom nos postos de venda de livros usados, fo¬lheando livros eróticos para Molly, examinando As doçuras do pecado, inclusive numa edição barata de Sader Masoch. Trata-se, como já dissemos, da leitura popular, da literatura de consumo barato, relacionada com os sebos e as bibliotecas circulantes.
Rastros de um modo de ler que não se expõe, mas que se es¬conde ou se mostra na intimidade, a leitura está sexualizada, li¬gada ao mesmo tempo aos corpos e à fantasia, misturada com a vida em seu sentido mais direto.
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Não é possível entender o monólogo de Molly que fecha o romance sem essa leitura noturna dos livros obscenos. Em certo sentido, poderíamos dizer que o romance é uma viagem pela lei¬tura noturna de Molly. (No que pensa aquele que lê? Já vimos isso em Kafka.) A leitura noturna de uma mulher na cama que se erotiza e entende mais ou menos, divaga e se deixa ir. Uma lei¬tura duplamente relacionada com o sonho, porque é um desper¬tar e devido à maneira de construir o significado. A má leitura, o entorpecimento, as interferências corporais. O equívoco, a dis¬torção. As ressonâncias quase musicais das palavras. O som que define o sentido. Os usos privados do sentido.
Há algo onírico, da ordem do sonho, não apenas porque Molly está semi-adormecida durante toda a cena, mas pela ma¬neira como se constrói o significado. A metempsicose funciona como um nó entre o sonho e a realidade, entre dois mundos pa¬ralelos, entre a leitura e a vida.
Encontramos o mesmo em Proust: basta pensar em outra cena fundadora, em outra leitura semi-adormecida, na cama, outro início, a primeira frase da Recherche. Mareei adormece, acorda, está com o livro a seu lado. E também aparece a metemp¬sicose.
Durante muito tempo, fui para a cama cedo. [...] queria largar o livro que acreditava ter entre as mãos e soprar a luz; dormindo, eu não cessara de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas refle¬xões haviam adquirido um tom um pouco especial; [...] como, se¬gundo a metempsicose., os pensamentos de uma existência ante¬rior; o tema do livro se desprendia de mim, eu ficava livre para dedicar-me ou não a ele. (itálicos meus)
Nos dois casos, a metempsicose é uma metáfora dos efeitos da leitura, das vidas possíveis, das vidas desejadas, das vidas li¬
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das. O tema do livro que se está lendo se autonomiza, como uma vida paralela. A leitura produz uma cisão, um desdobramento.
Nos dois casos, temos uma leitura baixa, passional, infantil, feminina, sexualizada, que se grava no corpo.
E também estão presentes o sono e a modorra, a leitura co¬mo um modo de sonhar acordado, como sonho diurno, como entrada em outra realidade. (Quanto tempo dura a leitura num sonho, a pergunta de Joyce, também poderia ser a de Proust.)
Por outro lado, não se trata mais da leitura isolada, liberada da contaminação; há um jeito novo de ler a ficção. E sobretudo uma nova relação entre a leitura e a vida. "Fechava o livro e sim¬plesmente se deixava viver", diz Borges sobre Dahlmann numa cena de que já falamos. Naquele caso, a leitura fazia frente à vida. Em Joyce, em compensação (mas também em Proust), trata-se de fazer com que a vida - a sintaxe desordenada da vida - en¬tre na própria leitura. Não ordenar, deixar o fluxo da experiên¬cia correr. O sentido avança, como num sonho, numa direção que não é linear. A leitura se fragmenta. Não se vai da ficção para a vida, mas da vida para a ficção. Leitura e vida se cruzam, mis¬turam-se. O sistema de causalidade definido pela leitura tradi¬cional, ordenada e linear, se rompe.
Essa maneira de ler é definida por uma técnica que, longe de ordenar, tende a reproduzir o caos e a produzir outra causali¬dade, uma corrente de experiências não diferenciadas. Os acon¬tecimentos são contados enquanto acontecem, o tempo é o pre¬sente do indicativo. A leitura se define pelo que não se entende, pelas associações que a rodeiam, pelas viradas e cortes. O que circunda a leitura e o modo como os núcleos se desenvolvem dão lugar a um novo estilo, a um novo modo de narrar e a outra sin¬taxe narrativa. Por isso a insônia define, para Joyce, o leitor, já
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que se trata do cruzamento entre a leitura e o sono. No Ulisses, ler é associar e narrar a vida a partir de partículas mínimas, de palavras que ecoam. São as próprias palavras que concentram esse efeito. Vejamos outro exemplo.
A BATATA IRLANDESA
O surgimento reiterado e enigmático de um tema verbal que percorre o livro inteiro pode ilustrar o trabalho de Joyce e sua concepção da leitura. Trata-se de uma batata - da palavra bata¬ta, naturalmente - que, diferentemente da metempsicose, des¬prende-se do Armamento grego para criar raízes em solo irlandês. O exemplo, breve e interessantíssimo, concentra o modo como Joyce reconstrói o relato e também postula sua maneira de ler.
Recordemos que Bloom, pouco antes da cena que analisa¬mos, está por sair de casa. Sua mulher ainda está dormindo. Na soleira da porta, tateia o bolso de trás da calça para ver se está levando a chave, mas esqueceu-a: no bolso de trás só encontra uma batata. "Potato I have", "Batata eu tenho", diz o texto. A cha¬ve ficou em outra calça, mas como o armário range e Bloom não quer acordar Molly, ele deixa a porta encostada e sai sem a chave.
"On the doorstep hefelt in his hip pocket for the latchkey. Not there. In the trousers I left off. Mustget it. Potato I have. Creaky war-drobe. No use disturbing her" (edição da Penguin, 1992, p. 67).*
A frase pronunciada por Bloom, "Potato I have", não parece ter nenhum sentido. Por isso é lógico que Salas Subirat, o primei¬ro tradutor de Ulisses [para o espanhol], o melhor e mais joycea-
* Na tradução de Antônio Houaiss: "Na soleira da porta tateou no bolso trasei¬ro pela chave da frente. Não ali. Nas calças que mudei. Preciso apanhá-la. Bata¬ta eu tenho. Roupeiro rangedor. Inútil perturbá-la". (N. T.)
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no, aquele que melhor transmite as nuances de sua prosa, não entenda essa primeira aparição da batata e a traduza de acordo com o contexto (dele, não de Bloom).
"En el umbral se palpó el bolsillo trasero del pantalón buscan¬do el llavín. No está. En los pantalones que dejé. Hay que buscarlo. Soy un zanahoria. El ropero cruje. No vale la pena que la moleste" (tradução de Salas Subirat, edição de Santiago Rueda, 1945, p. 59).
"Soy un zanahoria" [sou uma besta], traduz, como quem fa¬la do esquecimento da chave. O sentido surge por contigüidade, da coerência interna da frase: do esquecimento, uma tolice, surge "zanahoria". A tradução funciona, restitui um sentido, mas Salas Subirat lê mal (é obrigado a ler mal, poder-se-ia dizer, obrigado a associar em seu próprio contexto).
Porque o que está em jogo ali é o procedimento da palavra perdida. Alude-se a algo que não tem explicação e faz parte de uma cadeia que se entende depois de haver percorrido o texto. Joyce sempre trabalha com o subentendido: Bloom não necessi¬ta explicar para si mesmo o que já sabe, ou seja, por que ou para que tem uma batata no bolso. Quando Salas Subirat traduz za¬nahoria, revela a mesma surpresa sofrida pelo leitor que não leu o texto inteiro e não pode estabelecer a conexão, que só é possí¬vel na releitura: para entender, é preciso ler o livro inteiro.
Quero dizer que para entender essa expressão é preciso avan¬çar na leitura do romance e seguir um fio, fiapos perdidos no texto. E esse é, evidentemente, o modelo de leitura implícito no Ulisses. O sentido depende do relato e é sempre um ponto de fuga.
A batata aparece novamente ao meio-dia, quando Bloom sai para a rua depois de comer um sanduíche de queijo gorgonzola e tomar um copo de vinho no bar de Davy Byrne. "After two."
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"Depois das duas." Atravessa a rua Kildare para ir à biblioteca e vê Blazes Boylan, o amante de sua mulher, indo ao encontro de Molly, e se esquiva dele, faz um desvio para o museu. Quando es¬tá a ponto de entrar, procura o sabonete que comprou para to¬mar banho. Então revista o bolso outra vez e, junto com o jornal e outras coisas que comprou, encontra o sabonete. E, no bolso, a batata reaparece.
"I am looking for that. Yes, that. Tryallpockets. Handker. Free-man. Where did I? Ah, yes. Trousers. Purse. Potato. WhereT (Pen-guin, p. 234).
E Salas Subirat traduz assim: "Estoy buscando eso. Sí, eso. Probemos en todos los bolsülos. Panue. Fíombre libre. jDónde lo? ;Ah, sí! Pantalones. Zanahoria. Portamonedas. ^Donde lo?' (San¬tiago Rueda, p. 196).*
A batata não tem função alguma, parece o objeto de um so¬nho, sem sentido para o leitor (porém, claro, com sentido para Bloom). E de novo Salas Subirat traduz por zanahoria. Embora a palavra já não lhe sirva para caracterizar claramente a Bloom, é obrigado a manter o sentido que definiu antes. E portanto Bloom continua sendo um bobo, um zanahoria. (Em defesa de Salas Subirat, é preciso assinalar, contudo, que ele tende a não suprimir a palavra que não entende, lê-a sempre em outro con¬texto; aqui, apenas inverte a ordem das palavras do original, põe primeiro Potato e depois Purse.)
Para encontrar uma primeira pista para a enigmática apari¬ção da batata, é preciso chegar ao capítulo do hospital. Em meio a uma confusa circulação de vozes (a página inteira é uma suces¬são de fragmentos que não se sabe quem está dizendo), alguém
* "Estou procurando por isso. Sim, isso. Busque em todos os bolsos. Len. Free-man. Onde foi que eu? Ah, sim. Calças. Carteira. Batata. Onde foi que eu?"
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fala que batata é bom para reumatismo. "S/r? Spud against the rheumatiz?Alipoppycock,youllscusemesaying"(Penguin,p. 557).*
Na confusão, distinguimos a palavra spud, um dos tantos nomes da batata na gíria irlandesa. Batatas contra o reumatismo? Claro, Salas Subirat não tem como acompanhar esse sentido e al¬tera o texto: "{Senor? Vuelve a pinchar el reuma? Todo farsa, per-dóneme que se lo diga" (Santiago Rueda, p. 448).
Finalmente, já no final, no grande capítulo do prostíbulo, revela-se uma conexão entre a batata e a mãe de Bloom e o enig¬ma é decifrado. Primeiro aparece a Bloom o espírito de sua mãe, Ellen. Está desolada por ver o filho naquele estado e remexe em suas anáguas em busca de seu frasco de sais:
"She hauls up a reef of skirt and ransacks the pouch oh her striped blaypetticoat. A phial, an Agnus Dei, a shrivelledpotato and a celluloid dollfall out"** (Penguin, p. 570).
E agora Salas Subirat traduz bem. "Alza la pollera y hurga la bolsa de su enagua cruda a rayas. Una redoma, un Agnus Dey, una papa marchita y una muneca de celulóide caen afuera (Santiago Rueda, p. 464).
De modo que a mãe de Bloom também anda com uma ba¬tata contra o reumatismo. Mais tarde uma das garotas encontra a batata de Bloom e Salas Subirat, claro, também a encontra... Quando Zoe Higgins ("jovem puta") o acaricia, de repente toca uma coisa e diz:
zoe: I feel it.
(Her hand slides into his left trouser pocket and brings out a hard black shrivelled potato. She regards it and Bloom with dumb moist lips.)
* "Senhor? Comicha de novo o reuma? Tudo isso é lero-lero, desculpa dizer." ** "Ela ergue uma banda da saia e rebusca o bolso de sua anágua pálida listra¬da. Um frasco, um Agnus Dei, uma batata engelhada e uma boneca de celulói¬de caem fora."
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bloom: A Talisman. Heirloom.
zoe: For Zoe? For keep? For being so nice, eh?
(She puts the potato greedily into a pocket...)* (Penguin, p. 599)
E Salas Subirat traduz (Santiago Rueda, p. 503):
(Su mano se desliza en el bolsillo izquierdo de su pantalón y saca una papa negra dura arrugada. Con los lábios húmedos, contem¬pla a Bloom y a la papa.) bloom: Talisman. Una herencia.
zoe: ¿Es para Zoe? ¿Para que la guarde? ¿Por ser tan buenita, eh? (Se apresura a meterse la papa en un bolsillo...)
Mais tarde, Bloom suplica à garota que lhe devolva a batata (Penguin, p. 663):
bloom: (gently): Give me back that potato, will you? [...] (With feeling) It is nothing, but still a relic of poor mamma. [...] There is a memory attached to it. I should like to have it. U]
zoe: Here. (she hauls up a reef of her slip, revealing her bare thigh and unrolls the potato ffom the top of her stocking) **
* zoe: Eu senti. (A mão dela desliza dentro do bolso esquerdo da calça e retira uma batata negra dura enrugada. Mira a Bloom e à batata com bobos lábios úmidos.)
bloom: Um talismã. Uma lembrança.
zoe: Para Zoe? Para mim? Para eu ser boazinha, né? (Ela põe a batata rapida¬mente num bolso [...]).
** bloom (gentilmente): Quer me dar de volta aquela batata, quer? [...] (com sentimento) Não é nada, mas ainda assim é uma relíquia de minha pobre mãe [...] Há uma lembrança ligada a isso. Gostaria de retê-la comigo. [...]
zoe: Toma (levanta uma banda de sua veste, mostrando as coxas nuas, e desen¬rola a batata do alto do cano da meia).
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Na versão de Salas Subirat, lemos (Santiago Rueda, p. 586):
BLOOM (amablemente): Devuélveme esa patata, ¿quieres? [...] (Con sentimiento) No vale nada, pero es una relíquia de la pobre mamá [...] Es un recuerdo. Me gustaría tenerla.
ZOE: Tómala. (Levanta una orla de su vestido, mostrando el muslo desnudo, y desenvuelve la patata de la parte superior de la media.)
De modo que vem de sua mãe a fé na virtude curativa das batatas. Muito antes fomos informados que Bloom sofre de reu¬matismo. "Acabo de sentir neste momento uma fisgada de ciática em meu músculo glúteo esquerdo. É de família."
É preciso percorrer o livro inteiro, portanto, para saber que a batata, que constitui um tema no romance, está ligada a uma tradição irlandesa que Bloom herdou da mãe: serve para curar dores reumáticas, ele a utiliza tanto quanto ela a utilizava e sem¬pre carrega uma consigo. É capaz de esquecer as chaves de sua casa mas nunca da batata.
Eu gostaria de chamar a atenção para dois pontos, laterais mas significativos. Por um lado o próprio Joyce, em quem o reu¬matismo efetivamente provocou cegueira, andava sempre com uma batata no bolso. "Michael Healy, seu tio, quando ficou sa¬bendo que Joyce sofria de reumatismo aconselhou-o a carregar sempre uma batata consigo para se proteger da doença", conta Brenda Maddox em Nora, a biografia da mulher de Joyce. Por outro lado, a batata é fundamental na história social da Irlanda, a base da alimentação das classes populares. Como informa John Percival em seu livro Great Famine Ireland's Potato Famine, 1845-1851, o que provocou a gravíssima crise que levou os irlandeses católicos a emigrar para os Estados Unidos foi uma peste na la¬
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voura da batata. Os protestantes de classe média chamavam os católicos de porcos porque sempre comiam batata, e acusavam-nos de só comer trigo aos domingos, com a hóstia. Na tradição dos católicos irlandeses a que Joyce pertencia, a batata condensa¬va inúmeras qualidades.
O RIO JOYCE
As reiteradas alusões à batata rastreadas aqui formam uma série impossível de seguir sem voltar atrás, verificar e explorar as páginas. Para entender, a única coisa a fazer é reler, assinalar, pes¬quisar, ir atrás de uma pista no papel. Não se trata da memória (com exceção da de Joyce, que quando corrigia acrescentava es¬sas séries secretas); não é possível lembrar-se das associações. Trata-se da leitura, ou, melhor dizendo, de um tipo de leitura. Joyce não faz o que qualquer narrador faria (por exemplo, dizer que Bloom levava no bolso a batata contra o reumatismo), nun¬ca explica, antes expande e dissolve as relações, desagrega o sen¬tido. Tomou a decisão de não formalizar nem definir uma intri¬ga no Ulisses; a forma surge, agora, do material, e obedece a uma lógica que repete a desordem da experiência. O sistema único e linear de leitura implícito nos Dublinenses está ausente do ro¬mance.
A narrativa ficou submetida à lógica interna de uma leitura intensa (e extrema). Aquele que usa a linguagem se refere a acon¬tecimentos que apenas ele conhece, a sensações imediatas e pes¬soais, utiliza palavras com forte significado subjetivo, como se ninguém mais fosse capaz de compreendê-lo.
"Em poesia, como em qualquer outra forma de discurso, o destinatário tem tanta importância quanto aquele que fala", es¬creveu Joseph Brodsky. Em Ulisses, o estilo não parece ter um
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destinatário definido; é como se se tratasse da notação secreta de um diário íntimo: aquele que está registrando os acontecimen¬tos rompeu por completo com a possibilidade de explicitar o contexto em que acontece cada um dos fatos de que dá conta.
Poderíamos afirmar que a ilusão de uma linguagem priva¬da é a técnica básica da construção de Ulisses (para não falar de Finnegans Wake). Cada expressão verbal acarreta um passado, uma significação, uma tradição para os personagens, e o leitor assiste a um jogo de alusões e referências não explicitadas que podemos vincular às idéias de Wittgenstein sobre a linguagem privada. Na realidade, Wittgenstein, que considerava que a lin¬guagem privada era impossível (toda linguagem implica outro, mesmo que o outro não seja capaz de entendê-la), consignava-a à prática estética.
Joyce vai mais longe que todos os outros na ilusão de escrever com uma língua própria. Nessa linha, descreve um duplo movi¬mento: ao mesmo tempo que abole as conexões e cifra o sentido, tende a dissolver a figura do narrador, que é quem estabelece os nexos e a continuidade. Poderíamos afirmar que Joyce remete ao leitor a função ordenadora do narrador. Um leitor inspirado, que sabe mais que o narrador e que é capaz de decifrar todos os sen¬tidos - um leitor perfeito.
Paradoxalmente, a representação narrativa dessa maneira de ler pode ser encontrada num romance de Tolstói (que deve ser o romancista mais claro e atento à especificação de todos os con¬textos que já existiu), e talvez com essa cena possamos concluir esta viagem em busca do leitor.
Trata-se de uma passagem de Anna Kariênina, um pedido de casamento, um segundo pedido de casamento, seria o caso de dizer. Levin e Kitty, que se desencontram no longo início do ro¬
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mance e que finalmente se casarão e serão um exemplo - pelo menos para Tolstói e também para Nabokov, é preciso dizer - de paixão duradoura e casamento feliz, unem-se numa cena íntima de leitura.
Levin, a quem Kitty rejeitou em sua primeira proposta de casamento, agora torna a tentá-lo.
- Já faz algum tempo que quero lhe perguntar uma coisa - acrescentou [Levin], olhando diretamente os olhos acariciantes, embora assustados, da jovem.
- Pergunte, por favor.
- É o seguinte - disse ele, e escreveu as iniciais q. v. d. q. n. e. p. q. d. n. o. e. s. n. m. Essas letras significavam: "Quando você disse que não era possível, quis dizer nunca ou era só naquele momento?". Era improvável que ela conseguisse decifrar uma fra¬se tão complicada, mas ele olhou para ela como se sua vida depen¬desse de ela entender aquelas palavras. [Tolstói nunca deixa nada por explicar, como vemos aqui.]
Kitty olhou para ele muito séria, apoiou a mão na testa fran¬zida e começou a ler. Olhou para ele de soslaio uma e outra vez, como quem pergunta: "Será que é o que estou pensando?".
- Entendi - disse, corando.
- O que significa isto? - perguntou ele, mostrando o "n" que representava a palavra nunca.
- Significa nunca - retrucou ela -, mas não é verdade.
A cena revela um uso extraordinário da leitura como chave do deciframento do segredo. A intimidade de uma leitura re-constrói uma linguagem cifrada naquele parágrafo. O leitor avan¬ça às cegas para reconstruir um sentido perdido e lê no texto, sempre, os indícios de seu próprio destino.
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Nessa viagem, Joyce foi mais longe que todos os outros: in¬ventou a figura do leitor final, aquele que se perde nos múltiplos rios da linguagem. Era a isso que Beckett se referia, creio, quan¬do se alinhou com os críticos dos últimos textos de Joyce. "Nin¬guém pode se queixar de que não esteja escrito em inglês. Nem sequer está escrito. Nem sequer é para ser lido. É para olhar e para escutar." Poucos chegaram até esse ponto; todos empreen¬demos, sempre, uma navegação preliminar pelo delta do rio Joy¬ce e encontramos, em alguma das ilhas perdidas, um Robinson que cultiva seus ócios e combate sua solidão lendo um livro es¬crito em todas as línguas como se fosse o último.
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Epílogo
Desde o início, para mim este livro sempre esteve secreta¬mente ligado a The Last Reader, a canção de Charles Ivens basea¬da no poema de Oliver Wendell Holmes que utilizei na epígrafe. Toda vez que eu a escutava ao longo dos anos, tinha vontade de es¬crever uma história inspirada nesse tema. No fim, o resultado do projeto foi este livro feito de casos imaginários e leitores únicos.
No romance inteiro, nunca vemos D. Quixote ler livros de cavalaria (exceto na breve e maravilhosa cena em que ele folheia o falso Quixote de Avellaneda, contando as aventuras que ele nunca viveu, n, 59). Já leu tudo e vive o que leu, e a certa altura se transforma no último leitor do gênero. Há um anacronismo essencial em D. Quixote que define seu modo de ler. E ao mesmo tempo sua vida surge da distorção dessa leitura. É aquele que chega tarde, o último cavaleiro andante.
Na carreira da filosofia, ganha quem consegue correr mais de¬vagar. Ou aquele que chega por último ao destino, escreveu Witt¬genstein.
O último leitor cumpre implicitamente esse programa. Sua leitura é sempre inatual, está sempre no limite. Claro que o lei¬tor de literatura não é um filósofo, sua lentidão é de outro tipo, os signos levam-no em outra direção. O lampião de Anna Kariê¬nina não é o lampião de Diógenes. Há outra claridade, outra obscuridade, procura-se o sentido em outro lugar.
A figura do último leitor é múltipla e metafórica. Seus ras¬tros se perdem na memória.
Claro que este livro não pretende ser exaustivo. Não reconstrói todas as cenas possíveis de leitura; digamos que acompanha uma série privada; é um percurso arbitrário por algumas manei¬ras de ler que estão em minha lembrança. Minha própria vida de leitor está presente, e por isso este livro talvez seja o mais pessoal e mais íntimo dos que já escrevi.
Ricardo Piglia
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