Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ÚLTIMO LOBO DOS CÁRPATOS
Estavam deitados à sombra de um pinheiro isolado e olhavam para baixo, para a aldeia, com os seus telhados de adobe.
Com a barriga para baixo, sobre a erva alta, tinham as armas à sua frente, prontas a disparar; as faces encovadas, a barba por fazer, bronzeados do sol, sujos e esfomeados como lobos em Dezembro. Os seus uniformes cinzentos estavam imundos e rasgados, e os cantis e as caixas das máscaras de gás ameigados e cheios de ferrugem. Apenas brilhavam as armas, bem cuidadas e oleadas.
- Ali deve haver alguma coisa para comer! - disse Hans Bornemann.
Farejou, e era como se um aroma de carne assada estivesse, de facto, a sair dos telhados e das chaminés de barro, que fumegavam suavemente, e a chegar até eles naquela floresta de um monte escarpado.
- Mas como é que entramos?
Willi Kleinhans virou-se de costas e olhou para aquele céu azul de Agosto. Pequenas nuvens brancas avançavam para oeste. Se não se olhasse para o camarada magro e para as armas prontas a disparar, se se fechassem os olhos e apenas se apreciasse o odor do Verão, o aroma da erva, dos pinheiros, das flores dos prados da montanha, se, acima de tudo, não se pensasse que havia catorze dias se andava a fugir das tropas russas como animais selvagens, era como se se estivesse num prado de pastoreio junto a Garmisch.
Willi Kleinhans mordeu o lábio inferior. ”Alemanha”, pensou ele. Maria! Havia meio ano que ela não tinha notícias dele e as crianças deveriam estar sempre a perguntar: ”Onde é que está o papá?”
Quando em Yasi os russos avançaram e bateram em retirada, com as suas brigadas de tanques, as linhas alemãs; quando estas, resumidas a uma mão-cheia de homens, receberam a ordem ”Retirem! Salvem-se! Procurem sozinhos o acesso às linhas mais recuadas!”, Kleinhans escrevera mais uma vez uma carta: ”Meus queridos. Na Roménia a guerra acabou. Em breve estarei em casa...” Uma carta que nunca fora enviada, pois duas horas mais tarde estavam em fuga para os Cárpatos, perseguidos como lobos.
Havia russos em todas as estradas. Nas florestas, patrulhas soviéticas. Nas aldeias, tanques soviéticos que disparavam para tudo aquilo que se mexesse. Nas passagens dos Cárpatos, postos militares russos.
O mundo era composto apenas por russos!
E, no meio desta inundação, quatro soldados alemães solitários arrastavam-se, havia catorze dias, noite após noite, através dos bosques e dos rochedos. Dormiam em grutas batidas pela chuva e pelo vento e juntavam todo o tipo de bagas, raízes e ervas a partir das quais pudessem fazer uma sopa sobre uma pequena fogueira que, porventura, conseguissem acender na gruta.
Michael Peters, o mais novo dos quatro soldados alemães, de dezoito anos, com um rosto pálido e grandes olhos azuis, nos quais se reflectia a incompreensão de todo aquele mundo assustador e em mudança, estava deitado atrás do tronco arqueado do pinheiro e colocava panos molhados sobre o pé direito. Naqueles catorze dias de agitação, ferira-o de tanto caminhar. Tinham-se formado pústulas que supuravam e que faziam inchar bastante o pé. Nos locais onde descansavam, ele utilizava a paragem para o arrefecer com compressas.
- Preciso de um médico - disse ele. O seu rosto jovem, com os louros vestígios de barba que eram tão isolados que pareciam sardas, enrugou-se. A dor penetrante no pé tornava-se quase insuportável. - Se eu ficar com gangrena, perco a perna!
- E se fores à aldeia, és morto - disse Willi Kleinhans.
Virou-se de novo de barriga para baixo. Anton Haindl, o camponês dos montes bávaros, estava deitado debaixo do pinheiro atrás da mochila e mastigava um caule de milho. Conseguiu retirar tanto sumo que apaziguou a terrível sede que sentia.
- Sem médico, morro! - disse Michael Peters.
- De qualquer maneira, é isso que nos vai acontecer. É apenas uma questão de tempo, caso não tenhamos sorte de alcançar as nossas tropas.
.- Na Hungria - referiu Haindl.
Hans Bornemann fez um gesto rápido para trás. Enterrara a cabeça profundamente na erva alta. Os outros calaram-se de imediato.
- Está uma rapariga a subir a vertente - murmurou ele. Chiu! Traz cabras com ela... três, cinco, seis, sete cabeças!
- Uma rapariga! Cruzes! Tenho de ver isso! - Anton Haindl arrastou-se como uma cobra gigante para o lado de Bornemann e recuou desiludido. - Mas aquilo é uma criança!
Kleinhans voltou a colocar a arma, que já pusera ao ombro, sobre a erva.
- Em breve morreremos à fome... e o tipo a pensar em mulheres!
- É esse o nosso alimento! Dá forças para cem anos.
Anton Haindl fez um largo sorriso, mas ninguém entrou na sua brincadeira. A fome perfurava-lhes o estômago, provocava-lhes zumbidos na cabeça e martelava-lhes as têmporas. O pé de Michael ardia como fogo. Voltou a molhar o pano com água do cantil, se bem que soubesse que de nada serviria. No entanto, queria fazer alguma coisa. Não queria parecer indefeso e inactivo à medida que o seu pé inchava cada vez mais, que as úlceras abriam e se produzia cada vez mais pus em novas pústulas.
Tal como há catorze dias nas grutas junto a Yasi, estavam deitados ao lado uns dos outros, formando uma linha, e olhavam para cima, para a rapariga de catorze anos que conduzia as suas cabras pelos pastos. Tinha cabelos longos e negros, uma fina saia de lã bordada com flores coloridas e uma blusa que deixava os ombros à vista e sobre os quais ondulavam os cabelos. Caminhava descalça pela erva com as longas pernas queimadas pelo sol. Eram esbeltas como pernas de veado.
Anton Haindl suspirou levemente.
- Se aquela rapariga tivesse mais três anos...
- Cala a boca, meu cavalo! - ralhou Bornemann.
Olhavam para a rapariga em silêncio. Esta sentou-se numa saliência rochosa arredondada da vertente e abriu uma bolsa de palha de milho que trazia a tiracolo. Numa mão tinha pão de trigo e na7
outra um pedaço de queijo de cabra branco, e dava alternadamente dentadas num e noutro. Toni Haindl voltou a suspirar.
- E ela a comer debaixo dos nossos narizes! Tenho os intestinos às voltas...
- Pergunta se mora ali algum médico - gemeu Peters.
Willi Kleinhans assentiu várias vezes com a cabeça.
- Devíamos simplesmente arriscar. Quando ela nos denunciar, já há muito que estaremos nas ravinas. Além disso, se sair da aldeia em direcção ao monte, nós conseguimos ver.
Levantou-se antes de Bornemann e Haindl o poderem agarrar. A rapariga, que estava sentada de costas para eles, não o viu. Só quando algumas pedras se soltaram por baixo das botas de Kleinhans e rolaram pela vertente à sua frente, saltitando sobre o prado, é que ela se virou.
Levantou-se de um salto, meteu o queijo e o pão apressadamente na sua bolsa de ráfia e puxou uma cabra, colocando-a entre si e o homem estranho, como se o animal a pudesse proteger, como uma parede. Com os seus olhos grandes e negros, olhou fixamente para o uniforme roto e para o rosto de Kleinhans, apertou a sacola contra o peito e baixou a cabeça, como um animal que espera um golpe.
- Não tenhas medo! - disse Kleinhans.
Ele levantou as mãos, mostrou que estavam vazias, abanou a cabeça e apontou para si próprio. Fez o movimento que significava comer, premiu as mãos contra o ventre e voltou a acenar com a cabeça, na esperança de que a rapariga confiasse nele.
- Eu alemão! - disse ele. - Soldado! Compreendes? Fugir dos russos... para casa... para a mamã...
A rapariga meneou simplesmente a cabeça. Olhou para o alto da vertente de onde viera aquele homem estranho. Por cima da erva reparou, pelo movimento do ar quente, nas três sombras pouco nítidas e num pedaço de pano cinzento. Apontou para cima com uns olhos inteligentes e inquiridores. Kleinhans acenou com a cabeça e levantou três dedos. Depois, apontou para si próprio e levantou mais um dedo.
- Fome... - disse. - E um médico. Médico... doutor...
A rapariga assentiu com a cabeça. Passou a alça da bolsa de ráfia sobre os longos cabelos negros e entregou-a a Kleinhans. Depois, empurrou a cabra que servira de protecção e correu, com a saia a ondular, pela vertente em direcção à aldeia. Os seus longos cabelos flutuavam atrás dela como um estandarte.
Anton Haindl foi o primeiro que se atirou à bolsa, mas Kleinhans arrancou-lha dos dedos.
- Quem sabe se a rapariga regressa? E, se assim for, virá sozinha? Pratos para fora!
Seguidamente, começou a distribuir meticulosamente o queijo de cabra, o pão de trigo, um pedaço de chouriço, que estava tão duro que ele mal o conseguia cortar em rodelas com a baioneta. Depois, retirou uma pequena garrafa de barro da sacola. Quando tirou a rolha de couro, Anton Haindl passou-lhe o nariz com a atitude de um escanção.
- Isto é vinho!
- Vinho tinto... - disse Kleinhans.
- Aqui as crianças são amamentadas a vinho... - Haindl deu uma dentada no chouriço rijo e tossiu. Estava altamente condimentado. - Isto é que é uma terra! Devíamos ficar aqui...
- Mas não nos querem, e isso é muito mais importante. Bornemann mordiscou no seu pedaço de pão com o queijo desfeito, para os poder saborear bastante e durante muito tempo.
Voltaram a deitar-se na erva com as armas à sua frente e apontadas para a aldeia. Um exército de quatro homens que perseguiam a guerra.
Passou-se mais de uma hora até a rapariga regressar.
Ao seu lado, pela vertente acima, vinha um homem mais velho. Usava um grande chapéu tecido a palha de trigo e na mão trazia uma mala. A rapariga arrastava com uma corda quatro grandes cântaros de barro, cujas aberturas estavam tapadas com panos de lã.
Ficaram parados a meio da caminhada e olharam para cima, para o início do bosque que ficava por baixo do rochedo. À luz do Sol, viram o brilho das armas. O velho levantou a mala e abanou o chapéu de abas largas.
- Doutor! - gritou ele lá para cima.
Michael Peters apertou os lábios. Ele não queria, obrigou-se a não fazer nada, mas não conseguiu conter-se. Chorou. Lágrimas grossas rolavam-lhe sobre as faces esmorecidas e inundaram o seu rosto jovem.
- Um médico - gaguejou ele. - Um médico... Vou manter a minha perna!
Willi Kleinhans levantou-se e acenou com ambos os braços. O médico aproximou-se lentamente. Ficou com o chapéu na mão e fez um gesto de deferência aos quatro soldados alemães.
- Georghe Brinse - apresentou-se ele.
Olhou à sua volta e reparou na perna de Michael coberta com panos. Fez um aceno com a mão, ajoelhou-se na erva ao lado de Peters e examinou-lhe o pé.
A rapariga tinha trazido também, além dos cântaros com vinho tinto, três grandes chouriços e dois pães redondos. Willi Kleinhans empilhou tudo sobre a erva e sentou-se de pernas abertas.
Frequentemente, a camaradagem acaba naquilo que diz respeito à vida nua e crua. Ele não queria depender disso.
O médico abrira a mala. Retirara pinças, uma longa tesoura curva, alguns frascos de salva e outros frasquitos e começou a examinar as úlceras de Michael e a lavá-las com um líquido. Depois, colocou uma pomada verde-brilhante sobre a ferida. Ardeu intensamente. Peters fez uma careta e rangeu os dentes.
Georghe Brinse levantou rapidamente os olhos do seu trabalho e olhou para o rosto do rapaz.
- Germanskij... tichij... (Alemão... quieto!) - disse ele num russo deficiente. Peters compreendeu-o e fez que sim com a cabeça.
- Skoro wisdorowstj... (Em breve ficará bom...)
Colocou o frasco com a pomada verde, algumas ligaduras e a tesoura ao lado do pé de Peters e levantou-se. Pôs o chapéu e deu a mão à rapariguinha.
-Já (eu) Prijatel Germanskij... (amigo dos alemães...) Georghe Brinse estendeu a mão. Anton Haindl foi o primeiro a apertá-la energicamente.
- Não vamos esquecer isto, doutor - disse ele com um sorriso aberto. - Quando quiser, venha à minha quinta em Allgáu...
Willi Kleinhans olhou para a rapariga com gratidão.
- Agradeço-te - disse lentamente. Sabia que ela não o compreendia, mas que conseguiria perceber pelo tom da sua voz. Quando fores grande e quiseres ter filhos, vais perceber o que fizeste hoje por nós. Muito obrigado, minha menina...
Inclinou-se e deu um beijo rápido na testa da criança. Ela olhou fixamente para ele com os seus olhos grandes, negros e brilhantes. Depois, arrancou a mão da de Georghe Brinse e desceu a vertente a correr. Corria depressa e, durante o percurso, chamava as cabras aos gritos com a sua voz clara, levando-as à sua frente de regresso à aldeia como se estivesse a fugir de uma matilha de lobos.
O médico sorria. Procurava palavras russas e sufocava nelas.
- Ana (Ela...) Sônia Patrascu...
- Sônia... - Kleinhans olhou para ela, para o modo como saltava no meio da erva alta com os seus pés nus e rodopiantes, parecendo uma gazela a fugir pela estepe.
Anton Haindl afastou Bornemann para o lado e fez um largo sorriso.
- Agora ele pode viajar!
Michael Peters estava deitado no chão. Mantinha os olhos fechados. A pomada parecia inflamar-lhe o pé. Tinha na testa um suor frio, que lhe escorria pela boca contorcida e pálida.
Quando o ardor desapareceu e conseguiu levantar-se, já Georghe Brinse e a rapariga tinha desaparecido há muito. Kleinhans estava sentado debaixo do pinheiro e dividia novamente as rações com exactidão.
- Ficamos aqui! - disse Anton Haindl. - Ficamos com a rapariga para nós...
- Aqui não! Esta noite continuamos! - determinou Bornemann. - Queremos ir para casa, não é verdade?
Para casa, para a Alemanha. Anton Haindl baixou tristonhamente a cabeça. ”Onde fica a Alemanha”, pensou ele. ”A quantas centenas ou milhares de quilómetros de distância?! E temos de os percorrer?...”
Continuaram pelas montanhas.
As estradas estavam ocupadas pelos russos. O caminho para oeste estava cortado. A nova frente soviética era agora mesmo atrás dos campos de petróleo de Ploesti e junto da fronteira húngara. Entre a frente alemã e os quatro homens isolados nos Cárpatos distavam duzentos quilómetros.
No entanto, o norte, o leste e o sul estavam-lhes vedados.
O caminho naquela direcção só conhecia um fim: a Sibéria!
- Parece que, para podermos ficar aqui, temos de nos transformar em pastores romenos - disse um dia Willi Kleinhans. - Ou algum de vocês quer ir para além dos Urales?
- Esta merda tem de acabar um dia. - Hans Bornemann tinha tirado as botas e banhava os pés num estreito ribeiro. E, quando a guerra acabar poderemos ir para onde quisermos. Ou não?
Uma semana depois do encontro com Sônia Patrascu e o velho médico, Georghe Brinse, estavam novamente na orla de uma floresta e olhavam para a estrada que ia da cidade de Bacau até Tasca.
Estava-se naquela fase do pôr do Sol em que o dia ainda não tinha morrido e a noite também ainda não tinha chegado. Uma longa coluna passava pela estrada: tanques soviéticos, caterpílares, camiões, artilharia ligeira, lança-foguetes autotransportados. Tinham passado novos camiões construídos segundo o modelo americano e neles ia a infantaria russa a cantar. Em cada veículo ondulava uma bandeira vermelha. As carroçarias estavam enfeitadas com flores. Num delírio de vitória, avançavam pela terra conquistada.
Com os olhos a arder, os quatro soldados alemães tinham ficado a observar. Agora a estrada estava vazia e apenas se viam, a murchar no pó, as flores que tinham caído dos camiões.
- Eu vou ser preso - disse Anton Haindl. - Ou vocês crêem realmente que?...
- Temos de sobreviver à guerra. É tudo! Como e onde é neste momento indiferente!
- Mas num campo de prisioneiros temos pelo menos refeições normais! Temos uma cama, um telhado sobre a cabeça; se for necessário, há um médico... - Bornemann mordiscava uma raíz. As fibras estalavam-lhe entre os dentes. - Há paz... Não é preciso olhar para todos os lados a cada minuto como um animal. Tem-se...
- Roupa de cama branca, um criado que nos traz o café à cama e um outro criado que despeja o penico! - Wílli Kleinhans bateu com o punho no chão. - Será que vocês são todos idiotas? O que é que pensam que os Ivans nos vão fazer quando nos apanharem?
- Enforcam-nos - afirmou Michael Peters em voz baixa. Bornemann deu uma volta.
- O nosso benjamim! O nosso passarinho de bico amarelo! Que sabes tu disso? Teremos finalmente paz. E, se me meterem numa cova, sei pelo menos que então a caça acabou!
Na estrada via-se uma figura. Corria curvada, aos saltos, atirando-se para baixo e voltando a saltar, praguejando através de um campo que dava para a floresta onde estavam os quatro alemães.
Kleinhans e Peters agarraram nas metralhadoras e Haindl empunhou a pistola.
- Só um! Mas porque é que ele corre daquela maneira? Esperaram até que a figura que corria se aproximasse deles para
se misturarem com o fundo negro da floresta. Depois, saltaram e apontaram as armas à pessoa que corria.
- Stoj! - berrou Kleinhans em russo.
A figura parou imediatamente. Não conseguia perceber de onde viera a ordem... Não via nada, mas levantou os braços obedientemente e a tremer. Depois, caiu de joelhos, ainda de braços levantados, uma imagem de perfeita vulnerabilidade e de uma súplica silenciosa pela vida.
- Também anda a fugir - murmurou Bornemann. - Germanskifi - gritou Kleinhans.
- Njetl Rumuniskija... - foi a resposta. Uma voz clara, assustada e perto das lágrimas.
- Outra vez uma mulher! - disse Haindl em voz alta. Uma romena!
Kleinhans baixou a arma. A figura também deixou cair os braços, que tinham estado levantados, e ergueu-se da sua posição. Aproximou-se lentamente.
- Podem falar alemão comigo! - disse ela. - Sou Vera Mocanu, de Bacau.
- Se você nos denunciar, nós...
- Denunciar?
Vera Mocanu aproximara-se tanto que já era possível reconhecer os seus traços. Usava uma espécie de uniforme, castanho cor de terra, botas de montar e uma espécie de boné sob o cabelo castanho curto. Tinha até uma pistola. Ao longe poderia ser tomada por um homem. No entanto, de perto, essa impressão tornava-se enganadora. Era bonita, jovem e, apesar do medo que ainda se via nos seus olhos, possuía um encanto que deixou novamente Anton Haindl a suspirar.
- Era secretária em Bacau. Nos serviços secretos romenos. Na Guarda de Ferro de Codreanu. Nos Camisas Verdes. Percebem?
Bornemann assentiu com a cabeça. Já estava havia um ano na Roménia e conhecia razoavelmente as circunstâncias.
- É um derivado dos Camisas Castanhas, rapazes. Se os Ivans prendessem esta pequena, desfaziam-na - explicou ele. - E agora?
- perguntou a Vera.
- Queria ir para Ploesti. Para casa da minha tia. Ou para as montanhas. Ainda lá estão camaradas da Guarda de Ferro como membros da Resistência! Lutar contra os russos! Gostamos mais dos alemães do que dos russos...
- Pode começar por mim - alvitrou Haindl.
Kleinhans empurrou-o para o lado. Olhou para a estrada tranquila e para o campo, sobre o qual caía agora a noite. Luar, muita paz e calor. Ao longe brilhavam luzes. Era possível que ali existissem casas, uma aldeia, pessoas, alimentos... e russos.
- Conheces o caminho para Ploesti? - perguntou Vera. Vou fugir através dos Cárpatos. Tenho um tio em Apata... Aí obterei roupas novas. Roupas normais. Como as raparigas dos Cárpatos. Assim, ninguém me reconhecerá!
- E nós arranjaremos outras coisas! - Kleinhans agarrou o pulso de Vera Mocanu e puxou-a para si. - Tu conduzes-nos a Apata! Trataremos de ti. Matamos para comer, organizamos tudo, mas tens de nos mostrar o caminho. Compreendes? Temos de voltar para a Alemanha!
- Alemanha? - Vera olhou de alto para Kleinhans. Depois, o seu olhar deslizou para Michael Peters. O seu rosto jovem emocionou-a. - A Alemanha está desfeita - disse ela em voz baixa. Completamente desfeita! Tudo... Soldados, cidades, país... tudo! Onde passam os russos, tudo fica desfeito...
- Se isso for verdade... - Hans Bornemann encostou-se ao tronco de um abeto gigantesco. A sua voz falhou subitamente. A minha mulher... o meu filho... Chama-se Monika. - Cerrou os punhos. - Como sabes tudo isso?
- Somos dos serviços secretos - disse Vera, hesitante. - Sabemos tudo! Como a Alemanha está desfeita, o rei Miguel também vai fazer um pacto com os russos!
- Não devíamos continuar - afirmou Bornemann suavemente. - Devíamos esperar...
- Não desanimes agora, jovem. - Kleinhans deu um soco no peito de Bornemann. - Andámos às voltas durante três semanas para agora desistir? Vera leva-nos para Apata para casa do tio. Lá receberemos trajes regionais. Com eles passaremos a fronteira húngara.
- A Hungria também está nas mãos dos comunistas - declarou Vera tristemente.
- Isso é que é uma grande porcaria! - gritou Haindl.
- Cala a boca, idiota!
Agarrou Vera pelo cinto, arrancou o coldre e quis ficar com a arma, mas, em vez de uma pistola, lá dentro estava um pequeno saco. Retirou-o e fez saltar o fecho.
Um espelho, uma caixa de pó-de-arroz, dois batons, uma tesoura e lima de unhas...
Fechou novamente o saco e devolveu-o a Vera.
- Pode ficar com isto - disse ele a sorrir. - Nós deixamo-nos derrotar de bom grado com tais armas.
- Parvo! - rosnou Haindl, irado.
- À nossa frente estão colunas russas. - Vera Mocanu endireitou o boné que tinha sobre o cabelo curto. - Temos de ir pelas montanhas. Dois dias... A partir de Moinesti, poderemos voltar à estrada de Comanesti.
- Deixo o caminho contigo. - Kleinhans colocou a arma ao ombro. - Para isso, protegemos-te e alimentamos-te. Serei eu a proteger-te mais de perto - disse ele enfaticamente, olhando para Anton Haindl.
Ao princípio da manhã, quando ainda estavam a dormir numa gruta, Haindl veio a gatinhar até Kleinhans e deu-lhe um pequeno encontrão. Kleinhans estava de guarda e virou-se aborrecido.
- Tens de dormir - disse ele rudemente. - Amanhã temos uma caminhada de dezoito horas...
- Estive a pensar numa coisa.
Haindl sentou-se à entrada da gruta. Atrás deles, ouvia-se a respiração dos que dormiam. O respirar claro da rapariga parecia um som flutuante por cima dos sopros masculinos.
- O que foi?
Kleinhans olhou criticamente para o bávaro.
- Temos sempre partilhado tudo, não temos? A comida, o vinho, as guardas, tudo. Sempre com camaradagem! Partilhemos agora a...
- O quê?
- A rapariga... entre todos...
Kleinhans levantou rapidamente da mão e atingiu Haindl no rosto. O bávaro caiu para trás sobre as pedras, mas não se levantou nem devolveu o soco. Ficou deitado com os olhos frios e subitamente cheios de ódio.
- Se tocas na Vera, mato-te - declarou Kleinhans friamente.
- Todos te mataremos, com toda a camaradagem.
Em silêncio, Haindl gatinhou novamente para dentro da gruta e deitou-se no cobertor, ao lado de Michael Peters, respirando pesadamente.
De novo se arrastaram durante mais duas semanas através dos, Cárpatos. Abateram um gamo, apanharam bagas ou mandaram Vera a quintas isoladas, onde ela pedia leite, ovos, manteiga, obtendo até, uma vez, um grande queijo de cabra redondo do qual se alimentaram durante quase uma semana.
Michael tinha dado a Vera a sua camisa das Forças Armadas e ele próprio vestira a camisa verde da Guarda de Ferro. Sabia, que com aquela camisa, não teria qualquer possibilidade de salvar a vida se caísse nas mãos dos russos. Todavia, como Vera era a única que podia ir às casas dos camponeses mendigar, facto que era apenas possível se ela não fosse reconhecida como membro de uma organização odiada, ele trocara de camisa com ela.
Durante uns instantes, foi assolado por uma sensação estranha quando vestiu a camisa de Vera e sentiu na pele o calor do corpo da rapariga que ainda estava impregnado no tecido. Depois, a continuação da marcha e o seu pé dorido esconderam todos os outros pensamentos.
Afectuosamente, Vera tratava dos soldados. Todos os dias ligava o pé de Michael, passava a pomada verde sobre as pústulas sem sentir nojo nem vergonha, como se tudo devesse decorrer daquele modo. Cozinhava os alimentos nas grutas e descobriu que a água da montanha era tão salgada que, se acrescentasse muita água a um assado, aquela rapidamente evaporava, produzindo uma quantidade de sal que o tornava saboroso e estaladiço, tal como era confeccionado nos hotéis mais elegantes.
Ela até sabia cantar. Certas noites, encostava-se às paredes rochosas e trauteava, baixinho, uma canção popular romena, uma dança ou uma forma nostálgica do tumultuoso Prut, o rio que os exércitos russos tinham atravessado para entrar na Roménia.
Nessas alturas, os quatro soldados sentavam-se à sua frente a olhar para ela.
- Parece um anjo - murmurara Bornemann uma vez em que ela cantara uma canção, oscilando ligeiramente as ancas.
- É como se o inferno não estivesse à nossa volta - retorquira Michael.
Bornemann ficara subitamente com lágrimas nos olhos e virara-se.
No décimo sétimo dia daquela viagem colectiva para Apata, chegaram finalmente à estrada para Ciceu.
Ainda se encontravam no meio dos rochedos. Olharam para cima, para a estreita tira do sol da manhã, e depois repararam nas marcas de lagartas profundamente enterradas no pó.
- Tanques! - disse logo Haindl. - Raios nos partam!
- Temos de caminhar ao longo da estrada! - disse Vera Mocanu. - Entre nós e Apata há montanhas que nem um lobo escala.
- Então vamos! - Kleinhans colocou a arma em posição de tiro. - Vamos...
Uma semana... Um mês... Dois meses... Três meses... Eram conceitos temporais que pouco interessavam na vida quotidiana.
Alegramo-nos muito com o desabrochar das flores, pois o milho também amadurece nessa altura; e antes de se admirar os primeiros espantalhos amarelos e se começar lentamente a recordar esse amadurecimento, as primeiras neves começam a cair...
No entanto, três meses entre os rochedos onde ninguém jamais entrara, sempre a caminhar, em fuga, a esconder-se, sempre com a morte atrás de si, não passam a voar, mais parecendo três séculos.
Até Novembro, os cinco caminharam através das gargantas primitivas dos Cárpatos. Não tinham alcançado Apata. As estradas que conduziam aos pequenos povoados das montanhas estavam sob um apertado controlo dos soldados russos e das milícias romenas.
Vera Mocanu ficou desesperada durante um dia inteiro. A doze quilómetros de distância estava Apata e de permeio apenas se encontravam duas montanhas, três rios e uma estrada. Todavia, o destino era tão inatingível como as estrelas que brilham no céu e que se pensa serem alcançáveis com um mero esticar de braço.
- Vamos ter com os meus amigos - disse Vera depois de ter chorado um dia inteiro. - Nos montes Vrancei.
- Com os guerrilheiros? - Kleinhans abanou a cabeça. - Temos de conseguir abrir caminho até à Hungria, até Siebenbiirgen, e daí continuamos.
Tudo aquilo não passavam de hipóteses, palavras para acalmar, palavras para abafar o medo e a falta de confiança que assaltava cada um deles quando fechavam os olhos e viam à sua frente o mapa da Roménia e da Europa. Algures, à distância, estava a Alemanha. Entre essa Alemanha e os Cárpatos colocara-se todo o exército russo. Um ferrolho de centenas de milhares de soldados que aquelas cinco pobres almas esfomeadas queriam abrir.
Em Outubro, vieram as primeiras noites frias. A geada caía tilintante dos cumes dos montes para dentro das grutas, nas quais se encolhiam os cinco companheiros. De manhã, as árvores estavam brancas, e à noite ouviram, pela primeira vez em todos aqueles meses, o uivar dos lobos. Assim à distância, não pareciam uivos de fome, mas sim uivos de triunfo sobre a vítima abatida.
Anton Haindl encolheu-se quando ouviu, pela primeira vez, aqueles uivos.
- Lobos! - murmurou ele, como se a sua voz os pudesse atrair.
- Vêm agora da solidão até às aldeias. - Vera Mocanu escutou os uivos distantes. - Apenas precisamos de os seguir para saber onde há alguma coisa para comer. Enquanto os lobos uivarem à nossa frente, não morreremos de fome.
- E se nós os perseguirmos, eles também nos perseguirão! disse Kleinhans amargamente.
Quando caíram as primeiras neves, deparou-se-lhes, devido a uma feliz coincidência do destino, um posto alemão abandonado. Era um posto que devia ter sido evacuado poucas semanas antes. O acampamento de um grupo alemão disperso que ali se acolhera e talvez tivesse caído nas mãos de alguma patrulha.
Já não viram mortos, mas havia duas motocicletas destruídas numa depressão de terreno, armas partidas, munições nas caixas, sete granadas de mão, dez carregadores para metralhadoras e um casaco comprido de motorista, o famoso ”casaco de cocheiro” com a grande gola de pele.
Michael encontrou-o nos rochedos, metido numa fenda, como se o portador ainda o quisesse esconder à chegada da patrulha. Puxou-o para fora, alisou-o sobre a terra e meteu as mãos nos bolsos à procura de pistas. Encontrou uma folha com um número do serviço postal do exército e um pedaço de um mapa rasgado onde se via o rio Prut. Nada mais. Depois, vestiu o comprido casaco e sentiu-se, de súbito, magnificamente quente.
Com as coisas que ainda encontraram naquele acampamento deserto, todos se conseguiram vestir e alimentar-se-iam durante dois meses se dividissem austeramente a comida. Haindl até encontrou um postal dos Alpes. Era precisamente de Berchtesgaden, mas a vista da cadeia montanhosa ao fundo emocionou-o de tal maneira que começou a chorar como uma criança.
Naquelas semanas e meses, Vera Mocanu era a única ligação com o mundo exterior, com os camponeses das montanhas dos Cárpatos e com as pequenas aldeias pelas quais a guerra passara sem deixar vestígios para além da foice e do martelo pintados na porta dos anciãos da aldeia ou uma estrela vermelha num boné de um polícia, que subitamente se tornara todo-poderoso, que estava sobre as ordens directas de Bucareste ou de Moscovo e tinha sido apressadamente ajuramentado pelo comissário político dos soviéticos.
”És responsável pela paz e pela ordem da aldeia e por tudo aquilo que faz um bom comunista! Até chegarem os funcionários políticos!”, fora-lhe gritado.
Agora, esperava-se pelos funcionários, mas eles não vinham. Assim, a vida continuava como até então... Nada mudara, se bem que existisse um rei Carol, um Miguel, um Antonescu que governara durante algum tempo, e agora, em última instância, o papá Estaline, o homem com a cabeça grande e o bigode farfalhudo, que devia viver no Kremlin e que ninguém sabia ao certo o que era nem onde ficava.
Mas também a quem é que isso interessava? As ovelhas davam leite do qual se fazia queijo, a lã tinha de ser tecida, pois o pequeno Neculae precisava de uma nova camisa coloridamente debruada. Que interessava a política?
Nestas aldeias, à noite, entrava Vera Mocanu.
Quando ao amanhecer ela regressava à gruta, na qual esperavam os quatro soldados alemães, tinha quase sempre conseguido arranjar alguma coisa: queijo de cabra, vinho, pão de milho, fruta seca, carne e chouriço rijo.
Os primeiros nevões, que obstruíam todas as passagens, transformavam os campos em desertos de neve, nos quais as pessoas se afundavam até à altura do peito, ficando lá enterradas. A continuação da viagem já não era possível.
Seria preciso deixar passar o Inverno. Tal como os lobos, os cinco também procuraram um lugar nos rochedos onde pudessem viver até à próxima Primavera. Depois de longas buscas, encontraram uma grande caverna. Ficava a meio da vertente de um monte, não era visível da garganta que servia de caminho, estava a salvo da queda de neve e das avalanchas através de uma saliência rochosa superior que protegia a entrada como se fosse um toldo espesso.
- Ficamos aqui - disse Bornemann. Observou a caverna por todos os lados, bateu nas paredes, arrastou-se até ao fundo escuro e depois voltou bastante contente. - Vou fazer disto uma moradia que vos vai espantar. Construímos um forno, um quarto, uma cozinha, um quarto para a senhora, um...
- Estúpido! - disse Toni Haindl, rudemente. - Tens muita garganta! O que é que tu vais construir aqui, meu idiota?
- Sou arquitecto. - Hans Bornemann riu-se quando viu o rosto estupefacto de Haindl. - E como tens experiência como madeireiro, nomeio-te carpinteiro! Vais fazer os quartos exactamente de acordo com a planta! Entendido?
- Nem penses nisso!
Anton Haindl atirou para a neve o saco em que transportava os alimentos do grupo.
- Sabemos que temos aqui um arquitecto! Mas isso dos quartos é um disparate!
E começaram a construir.
Estavam a seis quilómetros de Tanescu, onde viviam a pequena Sônia Patrascu e o velho médico Georghe Brinse.
Durante um mês o velho Mihai Patrascu tivera um medo infernal.
Quando a sua Sônia regressou do prado e gritou: ”Estão soldados alemães nas montanhas! Tenho de lhes levar de comer e um médico!”, Patrascu puxara-a pelo cabelo e segurara-a pela saia.
- Tu ficas aqui! - gritara ele. - O que é que isso nos interessa? Não viste nada. Percebes? Queres que sejamos perseguidos pelos funcionários? Queres trazer-nos problemas?
- Mas eles têm fome, pai!
- Não me preocupo com isso!
- Mas é preciso ajudá-los, pai! Talvez alguém tenha também ajudado Jon quando ele teve fome e precisou de um médico.
O velho Mihai Patrascu calou-se subitamente. A recordação de Jon era o seu ponto fraco. Jon era o seu único filho. Fora levado com as tropas alemãs para Estalinegrado. Nunca mais se ouvira falar dele... Jon Patrascu permanecera desaparecido, como se a grande Rússia o tivesse simplesmente engolido.
Sem dizer uma palavra, entregou a Sônia vinho, pão, carne e chouriço e levou-a até ao velho Georghe Brinse.
- Temos de ajudar, amigo - disse ele em voz baixa. - São pessoas como nós...
A partir daquele dia, a paz de Patrascu desaparecera. Quando seis soldados da milícia foram destacados, sob o comando de um sargento para Tanescu, para controlar o alargamento da visão comunista do mundo, ele tremia quando qualquer patrulha passava pela sua quinta, só de pensar que os soldados pudessem não passar apenas à sua porta, mas sim entrar e dar ordens.
”Vem cá, meu cão vadio! Ajudaste os alemães! Agora ajudamos-te a fazer uma viagem de borla até Bucareste... Para a prisão do forte Jilawa...”
Porém, passaram sempre a cantar à sua porta durante um mês inteiro. Nessa altura, tranquilizou-se e até cumprimentava os soldados das milícias quando estes regressavam da patrulha.
- Nada de novo, camaradas? - gritava-lhes ele.
Os homens da milícia abanavam a cabeça e o sargento retorquia:
- Nada, camarada Patrascu! Mas há alemães nas montanhas. Nós sabemos! E um dia apanhá-los-emos!
”Por favor, Nossa Senhora, faz com que eles nunca encontrem os jovens”, rezava Patrascu. ”O meu Jon também era um jovem... e desapareceu, já cá não está! Nossa Senhora, faz com que eles continuem a viver... mesmo sendo alemães...”
Sônia Patrascu já não pensava nos alemães. Pastoreava as cabras e as ovelhas, mugia-as, fazia queijo e manteiga e tecia lã num tear manual para fazer um casaco sem mangas para a mãe. Queria dar-lho pelo Natal.
O único que não conseguiu esquecer aquela curta experiência nos montes foi Georghe Brinse, o médico. Estava sempre a ver os olhos tristes do rapaz que se arrastava por aquela selva com os seus pés ulcerados na esperança louca de sair do círculo diabólico da cordilheira dos Cárpatos e chegar à Alemanha. Alguém que fugia de uma verdade pungente que o seu cérebro jovem e sem experiência de vida jamais conseguiria assimilar. A verdade que se chamava morrer.
Durante duas semanas, Georghe Brinse fora todos os dias à montanha na esperança de voltar a encontrar o pequeno grupo. No entanto, encontrou apenas um jarro de vinho vazio que colocara entre as pedras para não trair Sônia. No quarto dia, debaixo de uma pedra, viu uma ligadura cheia de pus. Era uma ligadura que ele dera ao jovem.
- Ele não irá longe - disse Georghe Brinse quando viu a ligadura.
E não teria acreditado se lhe contassem que, àquela hora, o rapaz com os pés ulcerados estava deitado na erva a oitenta quilómetros de distância e mordiscava os restos do chouriço que Sônia lhe levara.
Uma vez, conversou com o velho Patrascu sobre o assunto.
- Soldados alemães? - perguntou o velho desconfiado. Não sei de que está a falar, camarada Brinse. É possível que tenham passado por aqui alemães. O mundo está em guerra. Vêem-se muitas coisas na estrada...
Em Novembro, a milícia foi retirada de Tanescu. De Bacau, a cidade seguinte, vinte jovens vieram rendê-los. Foram para uma casa nova que tinham construído de propósito para eles. Um posto da milícia com um salão onde se iriam realizar reuniões do partido, aulas, eleições da aldeia e da comunidade, pequenas festas e coisas semelhantes.
Com os seus vinte homens, que ainda estavam em formação, Stepan Mormeth veio também para Tanescu. Havia entre eles um cigano fogoso de cabelo negro e com olhos brilhantes que dava estalos com a língua quando encontrava uma rapariga bonita.
Também o fez quando viu Sônia.
A ”Vivenda Felicidade da Montanha”, nome que Hans Bornemann dera à gruta, cresceu mais depressa do que se pensara.
Anton Haindl revelou capacidades inesperadas. Colocou troncos de madeira descascados ao longo das paredes da caverna, construiu camas com madeira e cascas espessas, que cobriu com grandes fetos secos. Perto da entrada, devido à corrente de ar, Kleinhans construiu um forno rebocado com pedras e barro. Como chapa de aquecimento, usou a tampa de uma caixa de granadas de mão, que Haindl trazia consigo havia quatro semanas, suportando sozinho todos os tormentos para salvar aquela valiosa peça de equipamento de cozinha.
Nas longas horas nocturnas, quando todos se sentavam, muito juntos, à volta do fogo, porque o calor do forno se espalhava por toda a grande caverna, Vera Mocanu dava aulas de língua romena.
- Têm de falar a língua do país - dizia ela. - A vossa chegada à Alemanha pode demorar anos.
- Eu já temia isso.
Kleinhans olhou lá para fora, para a neve, que caía silenciosamente do céu escuro em enormes flocos e que envolvia as montanhas, os vales, os campos, as aldeias e as pessoas num algodão espesso e húmido.
- Talvez a guerra já tenha acabado há muito e, como não sabemos, não podemos ir livremente para casa.
- Fazia-o a correr descalço! - disse Anton Haindl.
- A guerra ainda continua. - Vera Mocanu pegou no saco vazio que estava a um canto e colocou-o sobre o braço esquerdo. Há três dias, ainda havia guerra. Por que motivo seria hoje diferente? Vou até ao vale.
Os quatro homens anuíram com a cabeça. Era natural que Vera fosse. Podia falar com os camponeses e era uma mulher a quem não se negava um pedido de alimentos ou algo semelhante.
Michael Peters acompanhou-a durante algum tempo pela floresta. O seu longo casaco de motociclista arrastava-se pela neve. Quando os rochedos se tornaram mais baixos e as passagens mais largas, ela parou.
- Agora volta para trás - disse Vera, apertando-lhe o braço.
- Não te posso acompanhar? Se aparece uma patrulha... ou tu cais... ou...
Ele hesitou e ficou grato por estar tão escuro. Assim Vera não o veria corar.
- Volta para trás, Micha - disse Vera Mocanu. Na sua voz havia um tom maternal que perturbou Peters. - Estarei de regresso às primeiras horas da manhã.
- Virei ao teu encontro, Vera...
Ela meneou a cabeça, apertou-lhe mais uma vez o braço e depois correu através da floresta em direcção ao vale. Ele não ouvia os seus passos, pois a neve abafava-os. Não ouviu nem um pequeno rangido. A rapariga parecia deslizar.
Durante toda a noite Vera reuniu alimentos e vinho de todas as quintas das imediações do Tanescu. Até conseguiu um casaco de pêlo comprido, que ela vestiu imediatamente e que, em poucos minutos, aqueceu os seus membros hirtos. O casaco militar alemão, que usara até então, fora queimado no forno da camponesa que lhe dera aquele casaco de peles.
- Tu tens de saber - disse a camponesa, colocando queijo no saco de Vera - que o meu filho está na Alemanha. Alistou-se como voluntário. Um oficial levou-o consigo. Ficou muito feliz! Quando regressar da Alemanha já será, decerto, um cavalheiro muito distinto. Tu também acreditas que ele se transformará num bom homem, não é verdade?
- Com certeza que sim. Que Deus te dê uma longa vida. Vera Mocanu atirou o saco por cima do ombro. A pele era maravilhosamente quente e macia. - Posso voltar depois de amanhã?
- As vezes que quiseres. Mas toma atenção... Há milicianos na aldeia e eles atiram sobre quem quer que esteja fora de casa à noite.
- Vou imediatamente para as montanhas.
- Que Deus te acompanhe.
A meio do caminho para a orla da floresta, Vera Mocanu encontrou Stepan Mormeth, o cigano. Estava encostado a uma árvore e decerto já a vira ao longe. Deu três passos rápidos, afastando-se da sombra da árvore, e colocou-se no caminho de Vera.
Vera Mocanu encolheu-se um pouco. Meteu a mão no bolso do casaco. Tinha aí um pequeno revólver, apenas um brinquedo, mas letal se a bala entrasse pelo meio dos olhos ou ao lado das costelas e atingisse o coração.
- Quem vem lá? - perguntou Stepan Mormeth com um sorriso largo. - Uma galinha brava, tal como pensava! Uma galinhita brava, selvagem, bela e morena... Para onde vais?
- O meu pai é pastor. Vou levar-lhe a comida para a próxima semana - disse Vera em voz baixa.
O cigano riu-se. A sua dentadura brilhava à luz fraca da neve.
- Ainda há rebanhos nos montes a esta hora? Pensas que sou parvo, minha patinha?
- Não, penso que és um homem muito bonito - disse Vera Mocanu subitamente.
Stepan Mormeth estremeceu. Empurrou o boné de Inverno para a nuca e passou a mão pelos caracóis negros.
- Como te chamas? - perguntou ele brandamente. Olhou à sua volta. Os seus camaradas estavam algures no bosque... em patrulha. Chegara uma informação de Bacau que referia que um grupo de antigos partidários de Codreanu, chamados Camisas Verdes, andava pelos Cárpatos, formando uma companhia de guerrilheiros fortemente armada e que se aproximava da zona de Tanescu. Todo o distrito estava em estado de alerta e a tentar aniquilar aquele grupo.
- Chamo-me Russanda...
- Um bonito nome...
- E tu?
- Stepan Mormeth...
- Isso parece um nome de uma velha canção heróica. Mormeth... Como nos palácios turcos. - Vera Mocanu aproximou-se de Stepan. Os seus grandes olhos escuros brilhavam na sua direcção. Fez rodar as ancas e exibiu o peito. - E não é só o teu nome que é bonito? - perguntou ela sedutoramente.
Stepan Mormeth tornou a olhar em volta.
- Vem - murmurou ele com voz quente. - Podemos continuar a conversar lá em cima junto aos pinheiros. Vai à frente, devagar, e espera na orla do bosque...
Num gesto rápido, agarrou a cabeça de Vera, puxou-a para si e beijou-a selvaticamente. Ela permitiu-o. ”No bosque, mato-te”, pensou ela. Depois, soltou-se e avançou pela neve, para as montanhas.
Alguns passos depois, ouviu um grito.
- Alto! - O som vinha de lado. - Alto! Ou disparamos! Levanta os braços! Pára!
Vera sentiu aquelas palavras como um golpe. ”Afinal são mais, não é só este Mormeth. Querem ir para os rochedos. E se Kleinhans estiver agora sentado junto ao fogo a fazer chá, eles verão a luz, invadirão a caverna e não conhecem a misericórdia, tal como aqueles soldados em Comanesti, que dispararam sobre pessoas de braços no ar até aniquilar tudo o que era vida.”
Começou a correr. Primeiro devagar, depois mais depressa e finalmente tão depressa quanto permitiam as suas pernas com aquela altura de neve. Agarrava com ambas as mãos o valioso saco que trazia às costas e subiu ofegante a vertente em direcção à floresta escura e protectora.
Atrás de si, soaram novos gritos.
- Alto! - ouviu ela. - Alto!
Nessa altura, ouviu-se o primeiro tiro, que passou mesmo a seu lado.
- Pára, Russanda! - berrou Stepan Mormeth. - Ninguém te vai fazer nada! Ninguém! Pára, Russanda!
Ele corria atrás dela, caía, levantava-se e voltava a cair, correndo como um louco atrás da rapariga, que perseguia pela neve.
- Parem! - gritou Mormeth aos seus camaradas da milícia.
- Parem, seus idiotas! E Russanda! A minha rapariga! Parem com isso, seus cães! Seus cães raivosos!
Ficou parado, sem fôlego e a suar com os olhos fixos na pequena figura que alcançara a orla da floresta e que com dois grandes saltos desaparecera na escuridão da noite e dos rochedos.
Os outros soldados da milícia continuavam a correr pela neve, disparando e praguejando. Formavam uma linha e assaltaram a orla do bosque como se fossem invadir uma trincheira.
Stepan Mormeth inclinou-se, agarrou num bocado de neve e esfregou-a no rosto quente. Com a língua, lambeu a água que lhe escorria pelos lábios. Estava feliz por ela não ter sido atingida e, na manhã seguinte, iria às montanhas procurar Russanda.
Entretanto, Vera Mocanu tropeçava e arquejava pelas falésias cheias de neve. Corria na direcção errada, corria para o lado oposto. Fazia-o conscientemente, pois era preciso afastar os seus perseguidores da caverna. Fazendo um enorme desvio, tencionava chegar ao refúgio ao amanhecer ou só no dia seguinte, quando outro nevão cobrisse todos os vestígios.
Uma hora depois, parou e atirou o saco para a neve. Só nesse momento começou a sentir um ardor e umas picadas no braço esquerdo. Apalpou-o com a mão direita e sentiu algo quente, húmido e pegajoso.
”Fui atingida”, pensou ela, admirada. ”Eles atingiram-me no braço...”
Despiu o casaco, rasgou a camisa de lã e premiu a ferida com um dedo. Sangrava abundantemente, mas era apenas um arranhão. A bala atravessara o saco e perdera a força de impacte.
Esfarrapou a camisa com os dentes e com as tiras do tecido ligou o braço. Depois, voltou a vestir o casaco, inclinou-se, içou o pesado saco para os ombros e começou a caminhar através daquela solidão rochosa, continuando a afastar-se da gruta, colando os perseguidores a um rasto de nada...
Quando ao amanhecer surgiu um sol muito pálido e fraco, Michael Peters regressou à gruta. Tinha o rosto pálido e enrugado. Parecia ter estado a chorar. Kleinhans e Haindl estavam à entrada com as metralhadoras nas mãos. Há três horas que Michael fora ao encontro de Vera.
- Nada - afirmou Peters com uma voz fraca. Subitamente soluçou e encostou a cabeça aos rochedos frios. - Vocês ouviram os tiros? Nunca mais veremos Vera.
Chorava copiosamente e não sentia a menor vergonha de o fazer. Haindl baixou a cabeça. Também sentia um aperto na garganta.
- Foi a primeira! - disse ele brandamente. - Quem será o segundo?
Todos olhavam para a neve. Ninguém ousava olhar para o companheiro que estava a seu lado, com medo daquilo que poderia ler nos seus olhos.
Vera Mocanu vagueou durante sete horas pelos rochedos. Cobrira tão bem o rasto para a gruta que nem um lobo o descobriria. Vera cumprimentou os primeiros flocos de neve com um suspiro tão profundo que se assustou com o som da sua própria voz. Esperou durante uma hora numa pequena depressão de terreno até a neve fazer desaparecer todos os passos.
Depois, fez uma longa curva até regressar à zona onde supunha estar a gruta. Confiou apenas no sentido de orientação e nos poucos sinais marcantes que todos tinham memorizado durante a construção do seu quartel de Inverno: a forma das pontas dos rochedos, que pareciam dois dedos esticados, um pinheiro destruído pelo vento na vertente que ficava em frente e que tinha a forma de um triângulo enorme e três pináculos de rocha que estavam à entrada do vale, como guardas.
Com o pesado saco cheio de alimentos e peças de vestuário às costas, segurando-o com a mão direita, continuava a caminhar muito curvada através da neve, que lhe chegava aos joelhos, e procurava, orientando-se pela posição do sol matinal, a direcção certa.
O braço esquerdo ferido começara a doer. Um tremor percorreu-lhe todo o braço até à mão e à ponta dos dedos. Era como se os arrepios atingissem apenas aquele braço, que abanava, pois não tinha forças nele.
Quando o sol da manhã abriu e a neve começou a reflectir um brilho azul-esbranquiçado, Vera sentou-se no tronco de uma árvore e desenrolou a ligadura.
A ferida era pequena, já tinha crosta e estava aureolada de vermelho-claro. Vera apalpou-a. Não havia qualquer lesão no osso, mas a bala ainda estava enterrada na carne. Não se via buraco de saída. Cerrou os dentes e apertou a ferida com força. Sentiu sob os dedos um objecto duro. A dor tornou-se muito violenta, corria até ao cérebro e parecia sair pelos olhos e pelos ouvidos.
Mesmo sentada, Vera oscilou e pressionou a cabeça contra o tronco gigantesco de uma árvore. ”Não desmaiar”, gritou ela para si própria. ”Não cair... Se caíres na neve, nunca mais te levantas...”
Para se libertar da iminência do desmaio, esfregou as faces na casca da árvore até sangrar. A nova dor no rosto fê-la aguentar-se. Procurou no bolso do casaco a última tira de tecido da blusa e voltou a ligar o braço. Depois, tornou a arrastar-se sob o peso do saco, atirou-o para cima do ombro, abraçou-o com a mão direita e deslocou-se pesadamente através dos barrancos e da neve, em direcção ao sol e a cada rochedo cujos picos se assemelhassem a dois dedos apontados na direcção do céu...
Não se tinha chegado a um acordo.
Kleinhans e Bornemann eram de opinião que seria melhor mudar de gruta e continuar a viagem durante o tempo que pudessem, antes de as milícias apanharem o seu rasto. Haindl e Michael Peters queriam ficar na gruta. Não acreditavam que pudessem ser descobertos.
- Suponhamos que a Vera não está morta, mas sim ferida e nas mãos da milícia! - dizia Kleinhans. Como sempre, fazia um discurso objectivo, apesar de todos sentirem um aperto na garganta quando pensavam no destino de Vera. - Acham que ela nos vai trair?
- Nunca o fará! - gritou Haindl.
- Será que não conhecem os métodos utilizados nos interrogatórios? Nunca ouviram dizer que conseguem fazer falar até os mais duros? Homens com corações de ferro já cantaram como cotovias e a Vera não deixa de ser uma mulher fraca! Se realmente está apenas ferida, teremos a milícia aqui na gruta dentro de, no mais tardar, dois dias. Talvez consiga aguentar até lá. Daqui a dois dias, já teremos de estar na outra ponta dos Cárpatos! Ainda neva e o nosso rasto desaparecerá em meia hora... Temos de sair daqui imediatamente, camaradas!
- E para onde? - perguntou Michael Peters.
- Para norte!
- Estão lá os russos!
- Também estão os guerrilheiros!
- Mas são guerrilheiros anticomunistas! - gritou Bornemann.
- Quando nos apanharem, saberemos logo! - declarou Haindl num tom abafado. - É tudo merda, gente! Não interessa como vamos fazer! Prefiro ficar na gruta! E fico sozinho... - Abraçou-se à arma. - Fico aqui!
Kleinhans colocou um pouco de carne na placa quente do forno. Previamente, untara-a com óleo. Tinha um cheio horrível, mas o aroma da carne a grelhar fazia esquecer aquele sabor a óleo de cozinha rançoso.
- Bom. Ficamos aqui! Como queiram! Mas se eu ouvir um único som das milícias, não mexo nem um dedo. Fujo!
Hans Bornemann estivera de pé do lado de fora da gruta. Continuava a olhar para baixo, para o caminho por onde seguira Vera Mocanu e pelo qual ela nunca mais voltaria. Para desentorpecer um pouco as pernas, virara-se. No mesmo momento, depois de ter olhado para os penhascos que ficavam atrás da gruta, deitou-se sobre a neve e engatilhou a metralhadora.
Haindl, que estava a seu lado, viu Bornemann desaparecer subitamente na neve. Não se interrogou durante muito tempo. Ajoelhou-se no chão de pedra.
- Atenção! - berrou ele. - Agora levanta-te, meu idiota! Kleinhans atirou para a neve o pedaço de carne que tinha sobre
a placa do forno e, com dois passos, colocou-se ao lado de Bornemann. Michael Peters seguiu-o e pegou na metralhadora que encontrara intacta no acampamento abandonado juntamente com uma caixa de munições.
- Onde? - perguntou Kleinhans.
Bornemann apontou para a passagem traseira. Descia escarpadamente a montanha e não poderia ser utilizada para caminhar. Naquela vertente só se poderia subir.
- Ali? Seriam idiotas se descessem por ali. Para nós, seria tiro ao alvo... - Kleinhans olhou para o rochedo branco e escarpado.
- Então quem era?
- Lá em cima, no acesso! Ali! Ali!
Bornemann apontava muito excitado para os rochedos. Os outros também viram. Uma figura escura descia a inclinada vertente com um enorme esforço. Ora ficava visível, ora era ocultada por profundas reentrâncias ou saliências rochosas. Kleinhans empunhou a sua arma.
- Não é a milícia - afirmou ele. - O tipo traz um casaco de pele. É o que usam os camponeses ou os guerrilheiros.
- Ou é uma patrulha de reconhecimento... disfarçada com roupas civis... - Anton Haindl visou a figura que agora se discernia claramente contra a vertente branca. - Eu mato-o e ficamos descansados!
Kleinhans baixou para a neve o cano da arma de Haindl.
- Espera! Talvez não esteja sozinho... Queres lançar sobre nós uma companhia inteira? Deixa-o aproximar-se... Será fácil e sem dar nas vistas...
Parou e olhou fixamente para a figura. Haindl e os outros também a miravam.
- Aquilo é uma corcunda! - tornou Haindl.
- É um saco - disse Michael em voz baixa. Depois, deu subitamente um salto. Bornemann ainda o quis agarrar pelos pés e puxá-lo para trás, mas, em vez disso, agarrou neve. - Vera! - gritou Michael. - Vera!
Depois, correu pela neve em direcção ao vulto que descia a escarpa. Durante uns instantes, os outros ficaram estarrecidos até perceberem o que Michael já entendera. Nessa altura, também deram um salto, atiraram as armas para dentro da gruta e correram atrás do jovem. Também eles gritavam, esquecendo todos os cuidados, impulsionados apenas pela alegria e o desaparecimento da sensação de culpa.
- Vera! - gritaram em coro. - Vera! Fica aí. Vamos buscar-te!
Haindl, o carpinteiro, foi o primeiro a alcançar Vera Mocanu. Trepara a escarpa como uma camurça gigante, com a intuição exacta de onde deveria colocar os pés e onde se devia segurar com as mãos.
Alcançou Vera quando ela estava sentada numa saliência rochosa a ofegar. Com o saco às costas, o braço esquerdo, insensível, colocado sobre o joelho, com os olhos enevoados e uma visão dos rochedos, do vale, dos quatro homens que vinham a correr, da neve e do céu com o Sol a brilhar que se diluía em círculos coloridos que giravam e que depois, finalmente, se tornaram cinzentos, escurecidos e invisíveis.
Apoiado por Michael e Bornemann, Haindl desceu a vertente íngreme com Vera desmaiada nos braços. Foi uma descida cansativa, sem cabo nem segurança, conduzida apenas pelo tacto dos seus pés. Tinham atirado o saco a Kleinhans para o fundo da vertente. Não podia ajudar no rochedo. Tinha vertigens e cairia pela certa.
- Está ferida! - bradou Haindl cá para baixo. Kleinhans mordeu o lábio inferior.
- É grave? - perguntou ele.
- No braço!
- Desfeito?
- Isso não vejo!
Durante a descida, Michael segurara o ombro de Vera. Trepara com as pernas a tremer. Aquele rapaz camponês de Miinster nunca estivera pendurado num rochedo. Não tinha vertigens, pois, na sua juventude, já ajudara os telhadores na aldeia e subira a árvores muito altas. No entanto, evitava olhar para baixo, virando os olhos apenas para cima, para o corpo de Vera e para as grossas pernas de Haindl, que estava colado à montanha como se fizesse parte dela.
O pé de Michael recomeçou a arder. A pomada do velho médico estava quase a acabar. As ligaduras não passavam agora de farrapos. Estavam sempre a ser lavadas, secas e reutilizadas. Finalmente, tinham-se desfeito como cinza no ribeiro da montanha e Michael voltara a embrulhar o pé ulcerado em panos.
Precisaram de meia hora para transportar Vera até à gruta. Kleinhans, que, uma vez, a leste do Prut, durante os combates de retirada, trabalhara como socorrista, examinou a ferida de bala. Estava bastante aflito quando voltou a colocar o casaco de Vera sobre o ombro nu.
- É grave? - perguntou Haindl. Estava a comer a grande peça de carne assada. Afinal fora ele que realizara o trabalho principal durante a descida do rochedo. - Tem de ser amputado?
- A bala ainda está dentro do braço. Tem de sair. Caso contrário, a ferida infecta e gangrena. E depois... depois...
Não continuou a falar, mas todos sabiam no que pensava. O medo da morte voltava a estar no meio deles. Deixara de ser uma hipótese. Estavam a vê-la à sua frente, conseguiam tocar-lhe e era ridiculamente pequena. Uma mancha redonda cheia de sangue, um círculo vermelho num braço branco. Como a morte pode parecer tão inofensiva! Tão assustadoramente banal!
Kleinhans olhava para o fogo que brilhava com a placa em brasa sobre ele. Olhou para o tacho onde fervia a água do chá. O seu olhar deslizou para as armas e para os respectivos estojos de limpeza. Também via arames, dois rolos com linha e algumas facas.
Engoliu em seco como se alguém o estivesse a estrangular. Quando voltou a olhar para os camaradas, que se tinham mantido em silêncio, tinha o rosto pálido e estava com um aspecto doentio. Apenas os olhos brilhavam.
- Põe lenha no lume - disse ele com voz rouca. Michael cerrou as mãos.
- O que... o que queres fazer? - murmurou.
- Põe lenha!
- Não podes fazer isso, Willi - gaguejou Michael. - Tu não és médico!
- Achas que ela deve morrer de gangrena?
Bornemann levantou-se em silêncio e meteu alguns galhos secos debaixo da placa do forno. Soprou para o carvão em brasa e esperou até que as primeiras chamas surgissem. Depois virou-se.
Kleinhans voltara a descobrir o ombro e o braço esquerdo de Vera. Apalpou a ferida com os dedos. Depois, retirou do bolso um canivete curto mas bem afiado e entregou-o a Bornemann.
- Esteriliza-o, Hans.
- E depois? - inquiriu Haindl.
- Corto e extraio a bala...
- Depois ela esvai-se em sangue... - disse Michael quase aos gritos.
- Vou cauterizar a ferida com um arame em brasa!
- És louco! - gritou Bornemann.
Quis retirar da placa em brasa o tacho com a água a ferver, para dentro do qual atirara o canivete e despejá-lo na neve, mas Kleinhans segurou-lhe o braço.
- É a única possibilidade. Sejam razoáveis. Se a bala estiver mais um dia no braço, será demasiado tarde. O tiro atravessou o saco e a pele do casaco. Levou atrás de si pedaços de tecido e pêlos. Sabem o que isso significa? Sujidade na ferida! Pode sobrevir um tétano se não se tiver uma vacina antitetânica. E temo-la?
Os outros calaram-se. Olhavam para o rosto pálido e afilado de Vera Mocanu. Bornemann voltou a colocar o tacho no fogo.
Do saco que continha os utensílios, Kleinhans retirou alguns arames finos e ambos os rolos de linha. Também descobriu uma agulha, uma agulha grossa com a qual cosiam as meias.
- Ela está a acordar - disse Haindl bruscamente.
Tinha a garganta seca. Kleinhans voltou para junto dela. Vera despertara demasiado cedo do seu profundo desmaio. Aquilo significava que teriam de a anestesiar para a intervenção.
Todos pensaram no mesmo e olharam para Kleinhans, que retirava linha do rolo, colocando-a também dentro da água a ferver.
- Haindl tem de a anestesiar - disse ele cruamente. O carpinteiro insurgiu-se.
- Eu? - gritou ele, repugnado.
- Dá-lhe uma pancada na cabeça, Anton.
- Eu? Não! Não! - Haindl levantou-se de um salto. Todo o seu corpo tremia. Mirava os olhos ainda ausentes de Vera. - Eu devo... - Parecia estar com vontade de chorar. - Porquê eu?
- Despacha-te!
Kleinhans retirou a faca da água a ferver com um alicate. Bornemann e Michael Peters seguravam Vera Mocanu... Premiam-lhe e seguravam-lhe os ombros contra o chão. Bornemann sentou-se sobre as pernas dela para que ela não se pudesse virar. Haindl passou-lhe as mãos pelo cabelo.
- Não consigo! - gritou ele, desesperado.
- Rápido! - berrou-lhe então Kleinhans.
Ele inclinou-se, olhou para o lado e deu um murro na cabeça de Vera. Ela gemeu como uma árvore serrada antes de cair para o lado. Depois o seu corpo descontraiu-se. Já não sentia dores. Todavia, Haindl saiu a correr da gruta e encostou-se a tremer ao rochedo coberto de neve.
Quando sentiu o cheiro a carne queimada, fugiu para a floresta.
Vinham aí momentos maus para Stepan Mormeth. O seu desaire pessoal fora agravado pelo fracasso da sua patrulha.
- Tu és um cão tinhoso! - gritara-lhe o sargento quando, após quatro horas de uma perseguição e de uma busca inúteis, a patrulha regressou à caserna de Tanescu. Estavam cansados, abatidos e completamente encharcados. - O que é que eu vou dizer agora ao camarada capitão em Bacau? Que um maldito cigano se perdeu de amores por uma espiã guerrilheira e que com isso esqueceu tudo o que aprendeu? Onde está a firmeza comunista? Será que te tirámos do lixo para que tu, meu estúpido, te ajoelhes logo perante as saias de uma mulher? Devíamos enforcar-te, meu aborto!
Chamar-lhe nomes não ajudava nada. O patrulhamento fora um fracasso, tal era inegável. Haviam tido finalmente um sucesso na mão. Poderiam ter capturado um importante membro de ligação das tropas que estavam nas montanhas, mas apareceu um maldito cigano que sonhou com uma horazita de prazer debaixo dos pinheiros cobertos de neve.
- Teríamos sabido tudo! - gritou o sargento, arrepelando os cabelos. - O nível de força, o armamento, os colaboradores secretos nas aldeias que os alimentam, teríamos levado o passarinho a pairar! Teria cantado como um rouxinol. No entanto, aí vem o camarada Mormeth e namora. É de vomitar, camaradas. Vamos todos ser castigados!
O estado de espírito na caserna de Tanescu estava de cortar à faca, mas o mais sorumbático era Mormeth. Como cigano, não tinha sido muito bem aceite. Só a vitória do Exército Vermelho lhe permitira usar um uniforme, do qual se devia orgulhar tanto quanto os outros. Fora homenageado como o ”libertador”. Apenas a sua fraqueza pelo sexo feminino parecia não encaixar na disciplina da vida de soldado. Neste aspecto, permanecia civil e um cigano de sangue quente. A factura pelo malogro do grupo de Tanescu chegou exactamente dois dias depois. Um mensageiro de motocicleta trouxe uma ordem de Bacau, a cidade onde se fixara o comando: no dia quinze irão novas milícias para Tanescu. O presente grupo será transferido para Baile Slanic, no sopé do Namira.
- Ah! - bradou o sargento depois de ler a ordem em voz alta.
- Junto do Namira! Onde os lobos dançam e as raposas morrem de solidão e saudades de casa... Devíamos matar o camarada Mormeth!
A partir desse dia, Stepan Mormeth foi tratado como um marginal. Os seus camaradas da milícia nunca mais lhe dirigiram a palavra. Nem sequer recebia comida. As rações eram divididas pelo sargento e este distribuía a ração de Mormeth pelos outros.
- Come neve ou musgo! - gritou a Mormeth quando este pediu a sua parte. - E dá-te por feliz por não te enforcarmos, camarada!
Assim, Stepan Mormeth foi à procura de algo para comer em casa do velho Mihai Patrascu. Quando entrou na grande cozinha, viu Sônia junto ao fogão. Estava a coalhar leite de ovelha para fazer queijo. Parou, admirado. Depois, a sua surpresa transformou-se em alegria e entusiasmo.
- Ena! Um falcão jovem! - disse ele com o largo sorriso.
Os seus dentes brancos brilhavam, pois as labaredas do fogo aberto iluminavam o seu rosto moreno.
- O que queres?
Do canto, onde estava a mesa de madeira com o banco redondo e as velhas cadeiras esculpidas, surgiu Anna Patrascu, a mãe. Coxeava apoiada numa bengala, pois, anos antes, uma vaca prenhe dera-lhe um coice, devido às dores de parto, e desfizera-lhe a rótula. O doutor Georghe Brinse levara-a imediatamente para um médico de Bacau, que a conduzira até ao grande hospital de Ploesti, mas também aqui os cirurgiões não tinham conseguido recuperar a rótula. A perna ficara dois centímetros mais curta e não conseguia dobrá-la. Anna Patrascu coxearia apoiada numa bengala o resto da vida e conformava-se dizendo:
- Não se pode fazer nada. Talvez na América, na Alemanha ou na Rússia...
Mas a América, a Alemanha e a Rússia eram longe, demasiado longe para uma Anna Patrascu a quem a quinta mal dava o suficiente para viver. E isso seria feito mesmo com uma perna defeituosa.
Stepan Mormern olhou criticamente para Anna Patrascu. A mulher não parecia estar a divertir-se. Naquele momento, quando os olhos se habituaram à semiescuridão, também viu o velho Patrascu sentado à mesa. Olhou para Mormeth, continuou a fumar o cachimbo que ele próprio esculpira e tinha uma grande faca à sua frente.
Mormeth acautelou-se. Cumprimentou cortesmente e com a exuberância típica dos ciganos.
- Têm uma fatia de pão, camaradas? - perguntou ele. - E um pouco de queijo?
- Para ti? - retorquiu rudemente Anna.
- Sim, mãezinha.
- Eu não sou tua mãezinha! Teria vergonha!
Mormeth mordeu os lábios. Engoliu o comentário, pois já estava habituado. Um cigano não vale nada. Nem aqui na Roménia nem em qualquer parte do mundo. Provavelmente, nem no céu. Quem sabe se não seria por isso que as canções que os ciganos cantavam sobre o céu eram tão tristes...
- Eu deixei fugir uma espia - disse Mormeth lentamente. Esteve aqui na aldeia e recolheu alimentos num saco grande para soldados alemães ou guerrilheiros dos Camisas Verdes. Deixei-a fugir e agora desprezam-me! Vocês também deram de comer à guerrilheira, não é verdade?
- Não! - O velho Patrascu pensou subitamente nos soldados que Sônia vira. - Não esteve aqui ninguém. Somos bons comunistas. Todos o sabem.
- Está bem, está bem, todos o sabem, camarada. Com certeza.
- Mormeth olhou para Sônia. Esta enchera uma gamela de leite e partira um naco de pão e vinha agora ter com ele. - É procurada por toda a parte. Não é verdade, camarada?
Pegou na gamela de leite, olhou agradecido para Sônia com os seus olhos negros brilhantes e deu uma dentada no pão. Tinha fome. Uma fome tremenda.
- Agora tenho de me reabilitar - disse Mormeth a mastigar.
- Tenho de voltar a encontrar-lhe o rasto. Caso contrário, as coisas vão correr muito mal em Bacau.
- O que te vão fazer? - perguntou Sônia.
- Vão prender-me numa cela escura ou meter-me numa pedreira.
- Pelo menos aprenderás a trabalhar! - O velho Patrascu levantou-se com alguma dificuldade. - Já bebeste o leite e comeste um pedaço de pão. O que mais queres daqui?
Mormeth bebeu rapidamente o resto do leite coalhado. Olhou mais uma vez para Sônia e fez uma profunda vénia.
- Obrigado, pequeno falcão - disse num tom cantante.
Era bonito, mas Anna Patrascu não engraçou com ele, pois resmungava depreciativamente.
Seguidamente, Mormeth saiu. Lá fora já anoitecera. O frio vinha das montanhas para o vale e para a aldeia. A neve rangia sob as botas. O céu estava cinzento e pesado, ameaçando um novo nevão. Parecia um saco pendurado por cima das altas florestas.
Mormeth desceu lentamente a rua. Tinha medo do capitão em Bacau. Sabia que ele não conhecia a compaixão. Vinha de Moscovo, da escola do partido. Ser cigano e comunista era um destino pesado.
Na cabana dos Patrascu, Anna voltou a coxear até à mesa.
- Porque é que deste de comer e de beber ao cigano? - perguntou ela. - Ele não pertence à nossa raça.
- Tinha uns olhos muito tristes - disse Sônia em voz baixa.
- Tão tristes como os do soldado alemão.
- Ainda te vais arrepender da tua bondade - resmungou Anna Patrascu, sentando-se junto de Mihai. - Os tempos estão difíceis e é perigoso ser sensível.
Stepan Mormeth fora bafejado pela sorte nessa noite.
Estava fora da aldeia de Tanescu e procurava as palavras com as quais se pretendia defender perante o oficial de Bacau. Subitamente, viu uma sombra a sair da aldeia. Uma sombra que deslizava pela neve em direcção às florestas montanhosas.
Mormeth foi trespassado por uma onda quente que lhe fez disparar o ritmo cardíaco. Puxou do revólver, mas depois não disparou e decidiu seguir a sombra. Seguiu as marcas dos pés, a uma distância razoável, mas que lhe permitia ver os contornos da figura a oscilar à sua frente. Um vulto com um saco às costas!
Mormeth perseguiu o vulto durante duas horas. Depois, parou em frente da ravina que dava para a gruta dos soldados alemães. Viu um brilho leve de fogo, escondeu-se atrás de um tronco e observou a figura a subir a vertente e desaparecer subitamente no local onde a leve luz de uma fogueira avermelhava a neve.
Stepan Mormeth já sabia o suficiente. Deu uni salto e correu de regresso a Tanescu. Quase caiu dentro da casa da guarda, onde o sargento e os outros soldados da milícia jogavam às cartas.
- Apanhei-os! - gritou Mormeth sem fôlego, deixando-se cair numa cadeira. - Descobri-os! Muito perto de nós! Numa gruta. Estive perto dela!
- Camarada! - O sargento atirou com as cartas, que saltaram por todos os lados e se espalharam no chão. - É verdade? Ou queres vender-nos, meu cão?
- Pela honra da minha mãe! - bradou Mormeth. - Descobri-os!
- Camarada! - O sargento colocou a mão sobre o ombro de Mormeth, que ainda tremia devido à longa corrida. - Se isso for verdade, voltarás a ser nosso camarada! Se não for, amanhã os lobos terão uma lauta refeição! Isso é tão verdade como eu me chamar Wassili Stanciu! Muito bem! Agora vou telefonar para Bacau para que nos enviem reforços. Amanhã eliminamo-los mesmo que seja um exército! - afirmou ele com arrogância.
Na gruta, Bornemann deixou cair o saco. Haindl e Kleinhans estavam sentados junto do fogão e Michael estava agachado junto a Vera Mocanu. Tivera febre após a remoção da bala e da cauterização da ferida, mas desaparecera o perigo de morrer de gangrena.
- Ninguém te viu? - perguntou Kleinhans.
Abriu o saco e retirou o pão e os pedaços de chouriço. Também trazia duas garrafas com vinho.
- Ninguém! - atestou Bornemann. Transpirava apesar do frio e tirou o casaco do uniforme. - A aldeia parecia morta. Não havia guardas nem patrulhas. Fui e vim sem quaisquer dificuldades. Bebeu um gole de vinho da garrafa que Kleinhans lhe entregara. Os camponeses pareciam estar à nossa espera. Vera preparou tudo muito bem e as descrições estavam perfeitamente correctas.
- Então amanhã será a vez de Haindl.
Kleinhans distribuiu os alimentos que tinham reunido. Deu a garrafa a Michael. Peters inclinou-se sobre Vera e conseguiu introduzir-lhe uma pequena quantidade de vinho por entre os lábios.
Ela engoliu com dificuldade e sorriu-lhe com os olhos.
- Obrigada, Mihai - disse ela em romeno.
À mesma hora, formava-se no vale uma fila de soldados que separava a aldeia das montanhas.
O sol da tarde estava quente, mas a neve não derretia. Só ficara mais mole e tornara-se mais branda sob os pés.
Michael Peters e Vera Mocanu tinham dado o seu primeiro passeio. Enquanto isso, tinham verificado as armadilhas, pois Bornemann, o arquitecto, esboçara e montara tudo o que eram ideias aproveitáveis. Armadilhas para raposas, lebres e veados.
Vera quisera assim.
- Fiquem aqui - dissera aos outros. - Mihai e eu precisamos de apanhar ar. Talvez lhes possamos trazer uma lebre.
O que Vera ordenava era sempre cumprido sem oposição. Michael levou um pequeno saco para poder transportar os animais que tivessem caído nas armadilhas. Depois, saíram. Ainda ouviram Bornemann a explicar aos outros como se fazia um novo fogão com a mesma tiragem de ar.
- Até se pode cozer pão! - disse ele entusiasmado. - Rapazes, vai ser a nossa primeira cozinha!
Vera e Michael estavam no caminho de regresso. Tinham tomado outro caminho. Do outro lado da gruta, subiram pela zona onde estava o tronco de pinheiro triangular.
Mesmo antes de entrarem no campo de visão da gruta, ouviram vozes. Vozes altas que soavam no vale e eram reflectidas nas estreitas paredes do rochedo, num eco que desaparecia lentamente.
- Eles enlouqueceram! - exclamou Michael. - Se soubessem como se consegue ouvir deste lado! Se estivessem aqui outras pessoas que não nós...
Calou-se. Vera parara e fizera-o recuar. O seu rosto estava rígido e branco como a neve.
- O que tens? - perguntou Michael. Colocou-lhe o braço em volta dos ombros. - Estás outra vez com dores?
Ela abanou a cabeça e encostou a cabeça ao seu peito.
- Vamos ter de ser muito fortes, Mihai - murmurou ela. Muito, muito fortes na solidão...
- Solidão?
Ela assentiu com a cabeça. As vozes soavam cada vez mais alto. Subitamente, um tiro ecoou na ravina. Michael encolheu-se como se tivesse sido atingido. Olhou estupefacto para Vera. Nos seus olhos conseguiu ler a verdade e percebeu, de repente, a palavra ”solidão”.
- Tenho de ir ter com eles! - gaguejou. - Tenho de estar com...
Vera segurou-o. Enterrou-lhe os dedos na mão e puxou-o para trás.
- Fica! - disse ela suavemente. - O que pretendes salvar, meu pobre rapazinho?
Deixaram-se cair na neve e arrastaram-se até à curva de onde conseguiam ver a gruta.
Lá em baixo, na passagem, estavam trinta soldados da milícia. Tinham montado uma metralhadora. À frente da gruta, num pequeno planalto, estavam dez soldados que berravam lá para dentro.
Michael enterrou a boca na neve para não gritar de aflição ao ver aquilo.
Lentamente, foram saindo. As mãos na nuca, sem armas, de cabeça descoberta. Primeiro, Kleinhans, depois Bornemann e finalmente Haindl.
Os dez soldados da milícia colocaram-nos no meio do pelotão. Não dispararam. Conduziram os três soldados alemães pela ravina abaixo. Encontraram-se, depois, com os trinta soldados romenos. Um oficial aproximou-se deles, meteu a mão no bolso, retirou um maço de Papyrossi e ofereceu-lhes um cigarro. Os três tiraram um cigarro. Um sargento, que era o de Tanescu, acendeu-lhos. Como amigos, desceram todos pela ravina até desaparecerem na floresta.
Só ficou para trás a neve pisada e os vestígios de muitas botas. A solidão era novamente total e as próximas neves, que já escondiam o sol, fariam desaparecer aqueles vestígios como se quatro soldados alemães e uma rapariga romena nunca tivessem existido e sonhado com a liberdade.
- E agora? - perguntou Michael Peters.
Estava deitado na neve e desejava estar junto dos seus camaradas.
- Vamos continuar a viagem, Mihai. - Vera Mocanu ajoelhou-se. - Para os montes Vrancei. Não nos resta outra saída.
No vale ouviam-se vários risos. Soava a um riso de escárnio. Uma guerra nunca era divertida...
Michael Peters começou, de súbito, a chorar como uma criança e enterrou a cabeça no peito de Vera.
Em Tanescu, os camponeses estavam nas ruas da aldeia e em frente às casas enquanto os soldados da milícia regressavam das montanhas com os prisioneiros alemães.
Sônia estava junto à fonte. Com uma pesada esfera de ferro que substituía o balde no final da corrente, conseguira desfazer a fina camada de gelo do fundo do poço. Retirava a água coberta com pequeninos pedaços de gelo num espesso balde de madeira, para fazer uma papa de milho para os porcos.
Stepan Mormeth marchava orgulhoso à frente do grupo. Era o herói do dia. Reabilitara-se a si e ao grupo. Sabia que iriam chegar relatórios de louvor a Bacau e Ploesti.
Apenas uma coisa o afligia: não tinham encontrado a rapariga! E se existisse um outro grupo nas montanhas? Um grupo maior e mais perigoso? Não seriam soldados alemães mortos de fome, que ainda eram vistos, secretamente, como companheiros de armas traídos, mas sim ”legionários”, que era o nome dado pelo povo aos Camisas Verdes, a famigerada Guarda de Ferro de Codreanu, em cujos estandartes estava a guerra sem tréguas contra o bolchevismo e contra o ”libertador” soviético, que começava a ver a Roménia como propriedade sua. Iam buscar o petróleo, enviavam os alimentos para a Rússia e tomavam para si as mulheres e as raparigas romenas.
De vez em quando, os legionários atacavam. Saíam da escuridão das florestas e das ravinas, incendiavam as casas e as barracas onde se alojavam os postos de controlo soviéticos, disparavam contra a milícia, por serem ”a extensão da mão de Moscovo”, e voltavam a desaparecer na escuridão. Um fantasma assustador que aterrorizava o país e cuja aniquilação era mais importante para os soviéticos do que aprisionar centenas de soldados alemães perdidos que já não queriam lutar, mas sim continuar com a sua vida e com a sua liberdade.
Mormeth evitava pensar nisso. Também o sargento observara em silêncio o modo ridículo como os três soldados saíam da gruta, na qual ele supunha estar pelo menos um pelotão.
- É só isto, camarada? - murmurara ele ao ouvido de Mormeth. O cigano encolhera os ombros. De mau humor, olhara lá para dentro.
- Não posso fazer mais, meu sargento.
- E onde está a mulher?
- Como posso saber?
- Tu viste uma mulher. Foi o que disseste. Nós apenas vimos uma sombra a correr! No entanto, tu falaste com ela. Até berraste: ”Pára, Russanda! O que se passa?” - O sargento olhou criticamente para Mormeth. - Ou não era mulher nenhuma? Será que nos enganaste, meu cão negro?
- Posso não saber nada, mas de mulheres percebo eu. - Stepan Mormeth atirou, zangado, com a arma para as costas e aproximou-se dos três soldados alemães. - Onde está a mulher? - gritou-lhes ele.
Kleinhans, Bornemann e Haindl entreolharam-se espantados. O seu jogo conjunto estava a funcionar tal como tinham ensaiado durante muito tempo. Haindl até abriu muito os olhos à maneira dos velhos heróis.
- Mulher? Que mulher? - disse ele melancolicamente. - Eu ficaria muito feliz se tivesse uma!
- Havia uma mulher! - gritou Mormeth.
Ele procurava palavras alemãs. No tempo da ocupação alemã, fizera muitos negócios com as cantinas alemãs, com os responsáveis pelos pagamentos e com os oficiais. Negociara tudo o que era preciso: cigarros, café, presunto, metralhadoras, botas e camisolas de lã, peles, ouro martelado e prata e, a sua especialidade, raparigas. Era sobretudo isso que lhe permitia a entrada em muitos casinos de oficiais e em casas de tesoureiros. Nesses locais aprendeu também algumas expressões alemãs que agora procurava desesperadamente recordar.
Pensou no gordo tesoureiro de Ploesti. Que dissera ele? Nessa altura chegava a pequena e robusta Katinka com os seus cabelos negros e o tesoureiro colocava uma nota em cima da mesa.
- Vem cá, boneca - dissera ele a Katinka enquanto esta bamboleava as ancas.
Mormeth contornou Kleinhans.
- Onde está a boneca? - bradou ele.
- No carro das bonecas! - disse Kleinhans.
- Onde?
Haindl fez o movimento de empurrar um carro de bonecas.
- Uma boneca! - disse ele. Mormeth e o sargento viraram-se.
- É melhor calarmo-nos - murmurou o sargento. - Se nada mais acontecer, ninguém vai reparar. Talvez tenham fugido e estarão então noutro distrito. Graças a Deus serão outros a preocupar-se com isso. Para nós bastam-nos estes três. Vamo-nos embora!
Então marcharam até à aldeia de Tanescu.
À frente seguia Mormeth, o vencedor. Atrás dele, dez milicianos com ar marcial e com as metralhadoras penduradas ao pescoço. A seguir vinham os três alemães flanqueados pelo sargento. Fumavam e estavam de bom humor. Toda a força militar da patrulha formava o final. Como há muito não acontecia em Tanescu, ouviu-se o ruído das botas na neve.
O médico, Georghe Brinse, também estava à porta de sua casa e olhava para o pelotão. Reconheceu imediatamente os três soldados. ”São eles”, pensou Brinse. ”Terminou a sua viagem sem objectivo. No fim da guerra, serão libertados. Por que motivo é que eles se espalharam como os lobos? Que espécie de força estranha é este impulso para a liberdade e para a pátria? Pode-se viver em qualquer lado! Em toda a parte há ar para respirar. Por toda a parte existe o sol que bronzeia e revitaliza.”
Era este o pensamento do velho, cuja ânsia sempre fora a distância e que nunca passara de Bacau e dos campos de petróleo de Ploesti. Passara, sim! Uma única vez! Fora às terras altas de Siebenbúrgen. Todavia, isso não era o suficiente para dizer: ”Eu conheço o mundo!” E ele queria dizer isso um dia.
”Mas onde está o rapaz com o pé ulcerado”, pensou ele, e procurou Michael Peters no meio do pelotão da milícia. ”Ele parecia tão jovem, tão pouco preparado, tão terrivelmente infantil que o uniforme não condizia nada com os seus olhos tristes de criança. Terá morrido? De septicemia? De tétano? De gangrena? Ou será que o abandonaram por ele não conseguir caminhar ao mesmo ritmo? A guerra não só aniquila a vida como transforma em pedra o coração dos sobreviventes.”
Sônia também se recordava do jovem soldado alemão. Naquela altura, ele estava deitado na erva e o médico ligava-lhe o pé. Apenas o vira de relance. Sabia que tinha um rosto pálido. Tão pálido que dava vontade de lhe fazer festas, a pele dele parecia veludo.
Colocara o balde na beira do poço e metera as mãos húmidas nos bolsos do casaco de pele. Durante a marcha, Mormeth cumprimentara-a. Ela atirara os seus longos cabelos negros para a nuca como um jovem potro que abana a crina, e afastou os olhos do cigano, fixando o olhar nos três soldados alemães. Aquele que a agarrara pelas ancas, e o outro que a beijara na testa! Que fome, que sede e que angústia tinham eles sofrido nessa altura...
O velho Mihai Patrascu estava também à janela. Anna, sua mulher, estava atrás dele e retorcia o avental.
- Espero que não digam que Sônia lhes levou de comer e de beber - sussurrou ela a Mihai.
O velho afastou aquela voz como se fossem gotas de água fria.
- Não é verdade! - disse Patrascu duramente. - Nessa altura, Sônia não estava sequer na aldeia.
- E Georghe Brinse...
- Preocupa-te com a sopa! - gritou Mihai rudemente. Não te metas nas coisas que dizem respeito aos homens! Se ao menos estivesses calada...
Com a passagem da milícia, o medo instalou-se em Tanescu durante algumas horas. Os camponeses que enchiam o saco de Vera Mocanu de duas em duas noites estavam à frente das casas, tinham as mãos cruzadas sobre a barriga e rezavam para dentro. ”Maria, mãe de Deus! Que eles não digam nada. Que tudo corra bem... estamos num tempo em que a humanidade é castigada com a desumanidade.”
Quando viram que Vera Mocanu não fazia parte do grupo, respiraram de alívio. ”Se ela fugiu, é bom! Se morreu, melhor ainda”, pensavam eles. ”Quando não há testemunhas também não pode haver acusação.” Mas ficou uma sensação opressiva. Será que se sabia o que acontecia aos soldados alemães no campo de prisioneiros de Focsani? Diziam-se muitas coisas: que os guardas do campo eram soldados russos, mongóis e quirguizes... Pessoas que antigamente só se viam no circo que, de ano a ano, visitava as grandes cidades.
À noite, os três soldados alemães foram levados para Bacau num jipe e os camponeses descobriram a verdade.
Vera Mocanu voltou a arrastar-se de casa em casa e a recolher novos alimentos e um cachecol grosso para Michael; também pediu ligaduras e pomada a Georghe Brinse.
- Para onde querem ir? - perguntou o velho médico, empacotando gaze, boiões de pomada e duas ligaduras elásticas e enrolando tudo em papel impermeável. - Porque é que vocês andam pelo meio dos Cárpatos? Não faz sentido! A guerra acabará em breve. Olha para os teus três camaradas! Para eles, a guerra acabou. O que vocês estão aqui a fazer é uma loucura! Nunca passarão para o ocidente. Se conheces o mapa da Europa...
- Conheço-o. Queremos ir para os montes Vrancei.
- E então? Viver com os ”legionários” ou quê? Se os apanharem, serão, com certeza, fuzilados.
- Que outra saída temos? Quando houver paz, sairemos das montanhas! Deixar-nos aprisionar? Sabe em que mãos cairemos?
- Na vida, ninguém sabe nada antecipadamente.
- Não vou correr esse risco.
Foi deste mesmo modo que Vera Mocanu falou com todos os camponeses. Nessa noite, reuniu tudo o que pôde em Tanescu. Não obteve apenas pão, carne, chouriço e queijo, mas também roupa interior quente, meias de lã de ovelha tricotadas à mão, dois bonés de pele, luvas de pele e até botas de feltro para Michael, dois números acima, para que ele pudesse usá-las com as ligaduras.
Quando regressou à montanha, cujo caminho passava pela casa de Patrascu, encontrou Sônia. Esta não conseguia perceber porque não conseguira dormir em condições. Não sonhara com nada, mas durante o sono parecia sentir alguém a tocar-lhe no ombro. Nessa altura, erguera-se e agarrara no casaco que tinha ao lado da sua cama de madeira. Saiu para a rua naquela noite fria de Inverno e viu à sua frente a sombra fugitiva de Vera.
- Tu! - gritou ela. - Tu...
A sombra parou repentinamente. Depois, aproximou-se quando se encontraram frente a frente. Olharam-se com ar crítico, em silêncio, examinando-se como dois inimigos.
- Tu estás com ele? - perguntou Sônia suavemente. Estava enregelada e aconchegou mais ao corpo o casaco.
Vera Mocanu anuiu com a cabeça. ;,
- Sim.
- Mando-lhe cumprimentos!
- Conhece-lo?
- Vi-o apenas durante alguns minutos. Estava deitado na erva e tinha os pés feridos. Parecia muito triste. Nunca o esqueci. ;,
- Dir-lhe-ei. Como te chamas?
- Sônia. - Olhou para Vera com os seus olhos grandes e inquiridores. - E como é que ele se chama?
- Michael - disse Vera, contrariada.
Ela própria não sabia de onde vinha aquela rejeição interior.
- Mihai... - disse Sônia em voz baixa.
- Não! Michael! - contrapôs Vera mais alto do que queria.
- Ele é alemão. Nota bem isso!
Deixou Sônia parada no meio da neve e correu para o meio da noite e dos montes escuros que ali estavam, parecendo um muro que chegava até ao céu à frente de Tanescu.
- Ela ama-o. - Sônia passou as mãos pelo rosto. Sentiu que transpirara e que o suor se transformara em pequenos cristais. Ela realmente ama-o!
Havia tristeza na sua voz, mas ela não reparou.
Durante três semanas voltaram a caminhar pela neve, como raposas que se escondem entre arbustos e ravinas.
Os pés de Michael estavam novamente ulcerados. Vera lavava-os, passava a pomada verde do doutor Brinse sobre a carne purulenta e, em certos locais, já em necrose e ligava-os. Depois, calçava-Ihe as grandes botas de feltro e a fuga continuava, dia após dia, desta vez para sul, para os montes Vrancei. Vinte e dois dias sobre cumes e através de florestas destruídas pelas tempestades, passando por postos de controlo russos, postos de milícia romenos ou patrulhas mistas que, por vezes, apareciam em zonas adjacentes às aldeias como reforço das companhias.
Uma vez, na décima oitava noite, quando estavam deitados numa gruta lisa para dentro da qual tiveram de rastejar, ouviram à distância o som de tiros misturado com o crepitar das metralhadoras. No entanto, não era o lento taque-taque-taque das MG russas, mas sim o Rrrrrrr frenético das MG 42 alemãs.
Alemães! - disse Michael. Levantara a cabeça e apoiara-se
no ombro de Vera, que estava deitada a seu lado. - Estás a ouvir! São as nossas metralhadoras...
- Também podem ser os legionários. Todos têm armas alemãs!
- E porque estão a combater? O que querem?
- Querem libertar a Roménia da opressão russa.
- Devem ser visionários. Como conseguem acreditar que vão derrotar os russos se nós fomos arrasados por eles?
- Só porque acreditam que o conseguem fazer! - disse Vera Mocanu.
Subitamente o seu rosto iluminou-se e os olhos brilharam.
- E tu também acreditas - disse Michael Peters, horrorizado.
- É por isso que vamos ter com eles! O futuro da Roménia está nos legionários!
- Vocês não aprenderam nada com esta guerra? Nada? - Calaram-se durante uns instantes. O ruído das metralhadoras aumentou. Parecia aproximar-se. - O vosso rei meteu os russos no país e eles vão cá ficar.
- Nunca! Não conhecem os romenos. Vivemos e morremos pela nossa pátria! - Vera sentou-se. Foi obrigada a baixar a cabeça porque a gruta era muito baixa. - Nós vamos expulsá-los juntamente com o rei. Só existe uma Roménia, a livre!
Michael ficou em silêncio. Sabia pouco do que acontecia no mundo. Quando abandonara a sua aldeia para ir para a guerra, não conhecia mais nada a não ser o trabalho do campo: arrancar beterrabas, semear e tratar dos cavalos. Não lhe interessava o que acontecia fora da aldeia. E a guerra? O que é que ele sabia da guerra? Na escola, o professor falara de muitas guerras, de alemães corajosos, os melhores do mundo, era assim que ele se referia a eles, e tinham entoado canções numa postura vigorosa de pé entre os estreitos bancos. Canções sobre o heroísmo e a morte de heróis, sobre a bandeira que tinha mais valor do que a morte, sobre gente sem coragem que começava a tremer assim que pensava na guerra, pois o verdadeiro homem alemão, o herdeiro dos Germanos, não treme. Para ele, a guerra era um propósito de vida. Era assim que falava, nessa altura, o professor. E os bravos rapazes camponeses acreditavam que era verdade o que o senhor professor dizia. Por isso era professor.
Alguns anos mais tarde, veio a guerra. O professor foi dado como inapto para o serviço militar, pois tinha alguma coisa nos pulmões, mas os jovens entraram na ”grande hora da nação” e caíram... na Polónia, na França, em Creta, em África, em Estalinegrado e no lago Peipsi e junto ao Prut, na fronteira romena.
Enquanto caíam, enquanto as balas e granadas os desfaziam, já não pensavam no professor e naquilo que tinham aprendido sobre guerras magníficas. Gritavam, sangravam até à morte e rezavam...
O fogo das MG voltara a afastar-se. Finalmente parou. Vera Mocanu deitou-se sobre o casaco.
- Amanhã iremos ao encontro dos camaradas - disse ela, encostando-se a Michael para se aquecer. - Verás que são fantásticos.
- Não me agrada que andem a assassinar - disse Michael duramente.
- Assassinar! - Vera esticou-se e colocou o braço à volta do corpo de Michael. - Não conheço nenhum povo que tenha sido libertado a comer chantili.
Neculae Tripadus não estava tão feliz como Vera Mocanu quando um guarda trouxe os dois errantes para o acampamento dos ”legionários”.
Não faltara muito para Michael e Vera serem fuzilados. Ainda tinham o som das MG nos ouvidos quando, de madrugada, ainda na escuridão, treparam pelas ravinas intransitáveis. Apenas o facto de uma mulher vir à frente impediu que os guardas tivessem disparado sem aviso, tal como lhes fora ordenado. Como tal, abriram uma excepção e gritaram.
- Alto! Parem! Braços no ar!
- Somos amigos! - gritou Vera na direcção das vozes de comando.
Não via nada, mas sabia que as armas estavam apontadas para si e que os dedos estavam nos gatilhos.
- Não há amigos! - gritou a voz. - O que querem?
- Ir ter convosco! Sou Vera Mocanu. Da Segunda Secção dos Serviços Secretos!
- Mentira! Já não há nenhum vivo! Turiatce foi fuzilado!
- Turiatce era o meu chefe! Eu consegui fugir. Queria vir ter convosco! Quem é o vosso chefe?
- Fique onde está! Se se mexerem, disparamos!
Ficaram durante meia hora na neve com as mãos atrás da cabeça. Amanhecia lentamente! Aquele céu pesado e cinzento prometia muita neve.
Neculae Tripadus aconselhava-se, entretanto, com os seus oficiais. Tinha o posto de major, mas aquele boné de pêlo e o casaco de peles davam-lhe o aspecto de um rude camponês. À sua volta, os outros legionários estavam deitados ou sentados em torno de uma grande fogueira. Para não deixar que a luz das chamas se visse ao longe, de modo a atrair as patrulhas soviéticas, tinham acumulado grandes pedras à volta e por cima do fogo e estendido uma grande lona que estava a três metros de altura. Assim, impedia-se que o brilho subisse. As pedras quentes que estavam sob a lona emanavam tanto calor que a transpiração lhes escorria sobre a testa e as costas.
- Uma rapariga dos serviços secretos e um soldado alemão...
- disse Tripadus, pensativo. - Nenhum deles nos é útil. Devíamos matá-los. É a melhor e mais rápida solução.
- Também poderíamos ficar com eles, major - referiu um jovem tenente. - Que tal se os utilizássemos como engodo? Com eles atraímos os soviéticos e enquanto estes perseguem os alemães nós tomamos o acampamento.
- É um aspecto a considerar. - Neculae Tripadus levantou-se. Era um homem alto e possante, um autêntico urso, que conseguiria partir as costelas a alguém que abraçasse. - Deixa-os vir - comandou ele. - Mas trá-los pelo outro lado. Não precisam de ver o nosso depósito de armas.
Assim, Vera e Michael entraram no acampamento. No grande acampamento dos Camisas Verdes, facto tão ansiado por Vera, e do qual deveria sair a libertação da Roménia, com uma tempestade de fogo que limparia o país da ocupação vermelha.
O encontro entre Tripadus e Vera foi curto mas fatal. Ficaram em frente um do outro, olharam-se em silêncio com grande admiração. Depois apertaram as mãos, e cada um sentiu que aquele cumprimento fora o início de alguma coisa que ainda não podiam nem queriam descrever e cujo fim não era previsível.
- Podem ficar aqui - disse Tripadus.
Tinha uma voz profunda e retirou, enquanto falava, o boné de pele da cabeça de Vera. Não prestara a menor atenção ao jovern soldado alemão. Os cabelos curtos de Vera tinham crescido com o passar do tempo e contornavam, desgrenhados, o seu rosto belo e vermelho do frio. Estavam agora à altura da nuca, ligeiramente encaracolados, cheios de cristais de gelo que mais pareciam lascas de brilhantes.
- Trabalhaste com Turiatce? - disse Tripadus. - Nunca te vi lá.
- Estava numa sala das traseiras e escrevia o que os visitantes diziam. Ouvia tudo. Tínhamos colocado um microfone por baixo das cadeiras...
Neculae Tripadus acenou com a cabeça.
- És demasiado bonita e inteligente para ser uma vítima da guerra. Connosco estás em boas mãos...
- Connosco ou contigo? - perguntou Vera.
A voz tremeu-lhe subitamente. Tripadus semicerrou os olhos. Riu-se larga e vigorosamente.
- ”Connosco” é ”comigo”! - disse ele, orgulhoso. E Vera sabia que era assim.
- Quem é o soldado? - inquiriu Neculae.
Olhou para Michael, que estava junto à fogueira a aquecer-se. Parecia esguio apesar do casaco de peles e do boné de pastor. Os joelhos tremiam-lhe. Sentia as dores dos pés até à raíz dos cabelos e teve saudades de uma água fria onde pudesse meter os pés, que ardiam.
- E o último soldado que acredita que consegue chegar à pátria.
- E idiota, ou quê?
- Não. Um grande rapaz...
- Ah! Ama-lo?
Tripadus ergueu as espessas sobrancelhas. Vera olhou para ele, assustada. Ainda não perguntara a ninguém, nem a si própria, o que sentira durante aquele curto encontro com Sônia e por que razão se sentia desconfortável por saber que havia outra rapariga a pensar em Michael. Não lhe transmitira os cumprimentos de Sônia. porque não? Era possível presumir que, naquela altura, Michael não prestara qualquer atenção a Sônia. Caso contrário, seria melhor deixá-lo esquecer essa coisa.
.- Não! - afirmou Vera com dureza. - Não o amo, mas ele
salvou-me a vida.
- E o que fará ele aqui connosco? A gratidão acaba aqui. Ele
constitui um perigo!
- Deixa-o passar o Inverno connosco. Na próxima Primavera, continuará o seu caminho. Talvez a guerra já tenha acabado e poderá voltar para a Alemanha.
- E se a guerra continuar? Para nós continua!
- Deixa-o esperar pela Primavera... Peço-te!
Sem proferir uma palavra, Tripadus virou-se e foi para junto dos seus oficiais. Ficou subitamente dividido entre o dever e o facto de ser obrigado a recusar um pedido de Vera.
- Dá-lhes de comer e arranja-lhes um lugar quente - disse ele a um jovem oficial. - Seguidamente iremos decidir o que podemos fazer com eles. Afinal também lutamos pela humanidade.
Os oficiais anuíram com a cabeça e calaram-se, mas olharam para o major Neculae Tripadus como se tivessem deixado de o entender.
Quatro dias depois de terem sido recebidos no acampamento dos ”legionários”, os oficiais decidiram fazer de Michael Peters um chamariz para os soviéticos.
Conversaram sobre isso numa noite em que Michael estava afastado da fogueira e olhava à sua volta. Aqueles homens rudes pareciam-lhe muito estranhos. Para onde olhasse ou onde aparecesse, respiravam-se sentimentos negativos. Estavam todos sempre prontos a ajudar, eram simpáticos, mas era uma ajuda e uma simpatia que se faziam acompanhar de uma certa frieza. Era uma estima forçada.
Vera Mocanu estava sentada junto à fogueira do acampamento. Um jovem oficial colocara-lhe o braço em torno dos ombros e contava-lhe anedotas da sua pátria romena. Eram rudes e pesadas e os outros legionários riam-se, até Tripadus sair da sua gruta revestida a madeira e mandar embora o oficial.
Através da ravina traseira, alguns camisas-verdes regressavam da caça. Tinham abatido um urso jovem e transportaram-no até ao acampamento. O urso estava sobre varões, preso com correntes e era transportado por dois homens altos e muito fortes. A sua pesada cabeça oscilava a cada passo. Parecia ainda estar vivo. O olhar de Michael saltava de Vera para o urso morto e vice-versa.
”Que homens”, pensava ele. ”Tais cérebros assombram a liberdade da Roménia. Caçam ursos e sonham com um novo grande império. Lá fora, apenas a alguns metros de distância, o mundo muda.”
E eles não viam isso. Sentavam-se à volta da fogueira e acreditavam que, em breve, se poderiam mudar para o branco Palácio do Governo em Bucareste.
Michael olhou para o urso. Os homens tinham-no colocado de lado junto ao fogo. Os soldados cozinheiros inspeccionaram-no. Ouvia as suas vozes. Estavam, com certeza, a discutir aquilo que se poderia assar. Michael não gostava de carne de urso. Comera-a uma vez e sempre lhe soubera a ácido.
Estremeceu quando alguém lhe tocou no ombro. Vera Mocanu estava atrás dele. Os seus olhos tinham uma expressão simultaneamente triste e receosa.
- Vem comigo! - disse ela brandamente. - Vem depressa!
- Para onde?
- Não perguntes. Vem! Eu vou à frente. Segue-me! Virou-se e saiu do círculo de luz da fogueira, dirigindo-se para
os rochedos. Michael seguia-a. Só quando deixou de ver o fogo é que avançou mais depressa. Viu Vera de pé numa saliência do rochedo. Ela agarrou-lhe a mão e puxou-o para si. Muito agarrados um ao outro, ficaram ali naquela pedra gelada.
- Consegues correr? - perguntou ela com a respiração entrecortada.
- Correr? O enfermeiro ligou-me os pés. Agora estou melhor.
- Então esta noite vais-te embora, Michael...
- Embora? Para onde?
Ele adivinhou o perigo que pairava sobre si próprio e percebeu a intenção de Vera.
- Para qualquer lado. Sai apenas do acampamento! Mais tarde conto-te. Ouvi uma ordem que Tripadus deu. Não podes ficar aqui mais tempo. Uma vez salvaste-me a vida... agora... - ela engoliu em seco e depois continuou num tom mais duro -... agora salvo eu a tua. Assim ficamos de contas saldadas.
- E tu?
- Eu fico.
- Por causa de Tripadus? É realmente por causa dele?
Vera Mocanu calou-se. Aquele silêncio era uma resposta clara.
A noite foi mais longa do que as outras. Alongava-se infinitamente e os minutos passavam tão devagar como um xarope espesso.
No lado de fora das grutas, Michael Peters estava deitado em cima de uma grossa coberta. Os troncos grossos e ainda incandescentes da fogueira irradiavam um calor intenso, pelo que ali não havia neve.
Neculae Tripadus dormia na sua grande gruta. Os oficiais estavam de guarda ou dormiam junto do seu grupo. À volta da ravina e sobre os rochedos que a circundavam, havia uma linha de guardas que isolava do mundo exterior o profundo vale onde o acampamento fora construído. Postos de guarda avançada controlavam todos os caminhos que iam das aldeias até às montanhas. Estavam ligados via rádio ao oficial de dia e ao próprio major Tripadus. Não havia raposa que se aproximasse do acampamento que não fosse detectada.
Mais tarde, deveriam ser três horas da manhã, Vera Mocanu veio ter com Michael.
- Tens de voltar para norte - murmurou ela quando chegou ao pé dele. - Daqui, segues primeiro para leste. Nunca te procurarão aí, pois ninguém foge de encontro aos russos. Todos vão pensar que fugiste para ocidente, para seguires para a Alemanha...
- E o que eu quero...
- Os soviéticos estão na fronteira com a Hungria. Como é que queres chegar aos teus camaradas? Espera cá até a guerra acabar. Esconde-te em qualquer parte, vai ter com um pastor, trabalha secretamente junto dos camponeses... Eles nunca te trairão! E espera. Ainda és tão novo... O tempo corre a teu favor. Tens de arranjar forças para esperar. Podem passar anos...
- Anos? - questionou Michael, estremecendo. - Porque é que tenho de fugir esta noite? Pensava que os teus legionários eram nossos amigos!
Vera Mocanu calou-se. Observava os guardas, que à distância vigiavam o acampamento, e as grutas onde os guerrilheiros estavam a dormir, enrolados como ursos.
- Eles são amigos, mas acima de qualquer amizade está a luta contra os soviéticos por uma Roménia livre. Para tal, sacrificam tudo: a liberdade, a própria vida... e a ti.
- A mim?
- Querem enviar-te amanhã para o vale. Lá, deverás atrair os guardas soviéticos que estão na aldeia. Enquanto tu foges e os russos te perseguem, tencionam invadir-lhes o acampamento. Existem munições, armas modernas e um grande depósito de mantimentos. Entendes, Mihai? Para que eles possam continuar a viver e a lutar, tu deves ser sacrificado. Para Tripadus isso está implícito. A sua moral é diferente da burguesa. Morrer ou ser morto por uma grande causa! Aos seus olhos, isso é justo.
Michael Peters esfregou os olhos. Estavam a arder. O fumo da fogueira apagada passava acidamente por baixo da lona e arrastava-se pelas paredes do rochedo, antes de, a determinada altura, se misturar com o ar livre do vale e subir para o céu da noite.
- Não percebo nada disto - disse Michael em voz baixa.
- Também não tens de perceber. Só deves fugir. Tens de fugir! Acompanho-te até te encontrares fora de perigo.
- E se Tripadus sabe que tu...
- Vai ficar calado.
- Porque gosta de ti e porque tu... - Michael não continuou. Reparou subitamente que o que pudesse acontecer a Vera não lhe era indiferente. Apesar do perigo que sentia e que sabia existir, tornando-se cada vez mais perceptível com o amanhecer, era-lhe difícil, quase impossível, deixar Vera para trás e fugir sozinho para o deserto dos Cárpatos Orientais. - Vem comigo! - pediu ele, agarrando a mão de Vera. - O que queres fazer aqui com estes homens? São visionários!
- A crença numa Roménia livre é a única coisa que nos resta.
- Vivem como lobos...
- Tu também viverás assim, Mihai. E tal como eles, também matarás com frieza e sem compaixão cada pessoa que te tentar impedir de alcançar o teu objectivo, para te salvares a ti próprio. Sei que é tenebroso, e Deus deve ter de esconder a cabeça para não ver nem ouvir todas estas atrocidades. A guerra transforma as pessoas em seres para os quais ainda não existe nome. Isto porque não há animal, seja ele lobo, tigre ou ave de rapina, que seja tão cruel e implacável como um homem quando lhe é dito que tem o dever de matar e que a sua mestria no assassínio será recompensada com honras e títulos brilhantes.
Vera levantou-se. Os homens que iam render os guardas exteriores já marchavam para fora do acampamento. Era o momento por que ela esperara. Entre o render dos guardas havia alguns minutos em que a atenção diminuía porque eles se cumprimentavam.
- Vem! - disse ela. - Até agora...
Michael ficou deitado. Fincou os dedos no braço de Vera.
- Vem comigo! - suplicou ele.
- Não posso, Mihai...
- Eu... eu amo-te... - gemeu ele.
Era a primeira vez na vida que dizia uma coisa daquelas. Nunca tinha estado perante uma rapariga a quem pudesse dizer que significava mais para ele do que uma companheira de brincadeiras, a filha do vizinho, uma petiza que, como ele, brincava na areia, banhava os pés sujos no ribeiro e que, a mascar azedas, guardava cabras. Quando ele começara a reparar na rapariga e notara que havia diferenças, pernas esbeltas, coxas roliças, olhos brilhantes e lábios desejáveis, fora chamado para o serviço militar, aprendera a disparar e a correr, a limpar metralhadoras e a utilizar lançadores de granadas.
Na Rússia viu raparigas. Não eram o seu género. Junto ao Prut, conheceu uma rapariga. Estava na berma da estrada e pediu-lhe meio pão. Repugnado, deixou-a ali e continuou a correr, mas viu que outro soldado correspondia ao comércio de troca.
Vera Mocanu ficou em silêncio. Tinha os olhos fechados e abanava a cabeça. Michael ainda estava agarrado ao seu braço.
- Eu nunca disse isto. Acredita em mim, Vera...
- Eu acredito em ti, Mihai. - Vera virou a cabeça, ficando de costas para ele. - Agora vem! Senão será demasiado tarde. A cada minuto que passa, o espaço fecha-se cada vez mais.
- Não vou sem ti! - determinou Michael.
- E o que pretendes fazer comigo? Devo ir para a Alemanha contigo?
- Sim!
- Não saio da Roménia.
- Então também fico.
- E o que será dos teus pais? Da quinta de que me falaste e que um dia vais herdar? Queres desistir de tudo por causa de uma mulher? - Vera ajoelhou-se. - Se tu soubesses o pouco que nós valemos! Daqui a uns anos, vais rir-te de ti próprio por teres dito uma coisa assim. Nós vamo-nos amar, sim, mas, tal como este fogo, o ardor vai extinguir-se e passaremos a ser um peso um para o outro. E vai acontecer aquilo que antecipamos hoje. Separar-nos-emos. Acabamos por perder anos preciosos. É por isso que tens de partir agora...
Conseguiu fugir aos dedos que a agarravam e colocou-se na sombra do rochedo. A guarda saíra do acampamento. Passaria uma hora até ao regresso dos guardas rendidos. Uma hora tranquila, durante a qual se poderia pensar que aquele local era como uma cidade morta.
- Tens tudo? - perguntou ela.
- Quero ter-te a ti! - afirmou Michael com uma teimosia infantil.
- Tens o material para as ligaduras? A bússola? Trouxeste munições suficientes?
- Vens comigo? - perguntou Michael em voz alta.
Ambos se encolheram com o som da voz dele. Encostaram-se aos rochedos, mas nada se moveu no acampamento. Talvez não tivesse falado assim tão alto e apenas a tensão dos seus sentidos tivesse feito com que a voz parecesse um trovão.
- Bom! Eu vou contigo - respondeu Vera Mocanu. - Fico contigo!
Michael abraçou-a. Beijou Vera e foi o primeiro beijo em que teve a sensação que poderia ser eterno ou que a vida tinha de parar devido àquele beijo e àquela sensação.
- E agora vem - disse Vera Mocanu.
Pegou na mão frouxa de Michael e levou-o consigo para a ravina.
Durante três horas, deslizaram e rastejaram pela neve. Passaram pelas sentinelas de Tripadus. Estes soldados conversavam com a guarda que iam render, tal como Vera previra. Sem impedimentos, rastejaram através de arbustos, por cima de pedregulhos arrastados por violentas torrentes no início do ano.
Surgiu uma manhã empalidecida antes de eles terem ultrapassado o último posto de sentinelas. Vera Mocanu via esses postos nas formas dos montes. Sabia por Tripadus até onde iam as sentinelas avançadas. Tripadus não falara de distâncias, mas de pontos fixos: a fila de sentinelas termina no monte com a cúpula redonda. Ou: o posto MG III está junto da floresta que começa a subir, a duzentos metros do lado sul dos rochedos brancos. Assim, ela sabia que Michael estava livre, mas não lhe disse nada.
- Espera aqui - sussurrou ela como se ainda estivessem patrulhas a caminho. - Quero ver se podemos atravessar a estrada. Se não nos perdemos, à nossa frente deve estar uma estrada.
- Tem cuidado, Vera - disse Michael brandamente. Fez-lhe uma festa no rosto. - É tão bonito ficarmos juntos...
Vera Mocanu concordou com a cabeça. Deixou cair tudo o que trazia consigo e beijou Michael nos lábios. Depois, deslizou pela madrugada pálida, como uma doninha, rápida, flexível e silenciosa.
Michael esperou por Vera Mocanu até ao meio-dia.
Estava sentado numa pedra com as coisas de Vera à sua frente e olhava fixamente na direcção em que ela desaparecera.
Esperou o dia inteiro... Esperou durante toda a noite seguinte.
Quando o dia amanheceu e o céu ficou com réstias azuladas, percebeu que Vera Mocanu não regressaria.
Tinha-o deixado. Voltara para o acampamento. Depois de ele estar a salvo, regressou para junto daqueles lobos humanos porque acreditava que fazia parte deles.
Michael chorou e desejou morrer durante aquele choro, tal como quis morrer com o seu primeiro beijo.
No entanto, a vida continuava e sentiu que não a devia desperdiçar.
Quando o Sol apareceu por entre as nuvens pesadas, rastejou no meio dos arbustos densos.
Pela estrada do vale ouvia-se o barulho de uma coluna de tanques soviéticos.
Para Stepan Mormeth, o cigano da milícia, as semanas tinham passado de uma maneira excitante e estranha.
Em Bacau, para onde as tropas da milícia de Tanescu se tinham deslocado por ordens superiores, esperava-o uma enorme reprimenda do capitão e, como castigo, fora ordenada a transferência de todo o grupo para os rochedos dos montes Petricia. Aí, foram instruídos, de acordo com o modelo prussiano, durante quatro semanas. Estiveram mais tempo deitados na terra do que em pé ou a caminhar, e a habitual maneira era rastejarem sem contornar as poças de água ou as valas de lama, que eram para ser ultrapassadas a direito.
Entretanto, ajudavam na construção de estradas, transportavam pesadas pedras até os ombros ficarem em sangue. Foram-lhes colocados grandes emplastros nas costas e nos ombros e depois foram enviados para Galati, a sul, para uma formação política com duas semanas de duração. Durante a formação, três comissários russos contavam-lhes como a Roménia estava bela desde que os soviéticos a tinham libertado do jugo do rei e dos ministros burgueses. Finalmente aprenderam a letra e a música da Internacional e uma canção de exaltação a Estaline.
Depois voltaram a fazer exercícios, mas à maneira dos comandos russos e sob a orientação de um tenente soviético que chamava ”sabotadores” a todos os que faziam movimentos e capturas erradas, ameaçando-os com o fuzilamento.
Depois de dezasseis semanas, seguiu-se uma prova realizada sob a supervisão de um coronel russo. Stepan Mormeth passou-a com distinção. Foi promovido a cabo, obteve o certificado de bom comunista e regressou - ninguém ficou admirado com isso -, juntamente com a sua antiga equipa, a Tanescu. Chegara a Primavera. A Páscoa não estava longe e os prados começavam a florescer, se bem que nos locais mais altos a neve cobrisse os montes e os pastos alpinos e as ravinas mantivessem o frio do Inverno como se este fosse conservado pelas estreitas paredes rochosas.
Os lobos rosnavam ainda com fome pelos Cárpatos, atacavam os cordeiros que tinham sido postos a pastar nos primeiros vales sem neve e rasgavam a noite nas proximidades das aldeias, uivando com fome, caçados impiedosamente e caçando.
Na igreja era preparada a festa da Páscoa. O velho sacerdote e três rapazes limpavam o pó às cruzes de ouro e às molduras dos ícones. Na praça da aldeia e ao longo das ruas eram montadas barracas. Da cidade vinham comerciantes e ciganos com carrosséis girados à mão, eram construídas bancas para venda de vinho e gelo, limonada e pastelaria, formando um grande círculo à volta da praça, onde se realizariam as danças populares dos jovens. Apareceu em Tanescu um cigano com uma longa barba negra. Trazia consigo um grande urso bailarino castanho-escuro. O animal estava preso por uma corrente ligada a um anel que lhe atravessava o nariz. O dono puxava-o impiedosamente atrás de si.
Nas casas, procuravam-se os velhos trajes de festa, que eram depois examinados: a longa camisa de festa até aos joelhos dos homens, que tinham mangas de balão e cujos ombros, sovacos e rebordos eram enfeitados com bordados; as calças brancas, estreitas e tubulares da melhor lã de ovelha eram lavadas e coradas ao sol.
No meio de todos estes preparativos, o grupo da milícia entrou a marchar na aldeia. Tinham recebido novos uniformes. De um castanho-terroso, com corte soviético e com bonés de faixas azuis. Orgulhosamente, entraram em Tanescu a marchar, esperando ser calorosamente cumprimentados.
Todavia, ninguém lhes acenou. Inicialmente, ninguém os reconheceu, e pensou-se que um esquadrão russo viera à aldeia para perturbar a festa da Páscoa e para impedir o sacerdote de fazer a sua pregação e de dar o seu beijo de Páscoa. Quando viram quem era o grupo, acenaram-lhes indiferentemente com a cabeça e continuaram a limpar os vestuários de festa, a construir as bancas e a enfeitar a praça da festa com fitas coloridas em longos postes de madeira.
Stepan Mormeth, o recém-formado comunista, olhou contrafeito pela janela da casa da guarda. O sargento, que fora promovido a primeiro-sargento, fumava apressadamente um cigarro escuro com cheiro repugnante.
- Não gostam de nos ter aqui - disse Mormeth aborrecido. - A ideia do domínio do proletariado ainda não chegou até aqui. Devia-se...
- Devias calar essa boca, camarada! - disse rudemente o primeiro-sargento. - Explica a um camponês que vive há uma data de anos na sua quinta que os seus cem carneiros já não são só dele, pertencendo metade ao Estado, e ele dar-te-á um pontapé no traseiro e atirar-te-á para dentro do poço. É sempre difícil aderir à novidade quando se vive há muitos anos com aquilo que já existia.
- Será que frequentámos a escola do partido para ver tudo isso sem oferecer resistência?
Mormeth estava junto da janela. Lá fora, na praça da festa, calcava-se a terra para que os dançarinos não levantassem muita poeira. À frente da igreja estava o sacerdote com a sua longa túnica negra abotoada, com o cilindro alto, negro e sem orla sobre os cabelos brancos, e estava a polir um santo dourado. Algumas raparigas enfeitavam o portão da igreja com grinaldas feitas das primeiras flores do campo e com ramos verde-claros entre os quais eram passadas fitas coloridas.
- A grande táctica é manter a boca fechada e fazer as coisas como se nada tivesse mudado! - O primeiro-sargento deitou fora o seu cigarro malcheiroso. - Devemos manter a ordem. Mais nada! O camarada comissário é que lhes deve dar a volta ao cérebro! Ele é pago para acreditar em tudo aquilo que diz. Nós vamos ficar quietos, camarada.
- Podemos, pelo menos, dançar?
- Se as mulheres da aldeia deixarem! Porque não? Mas não podem despir o uniforme. Esse vão manter até estarem deitados num caixão.
À tarde, Stepan Mormeth embelezou-se. Escovou os seus cabelos negros e passou-lhes brilhantina com aroma a rosas que comprara em Bacau na primeira ”loja do povo” que fora aberta. No pulso direito colocou uma fina corrente de ouro com um talismã. Um coração com uma chama. Era uma moda cigana e até o uniforme castanho não impedia que Mormeth fizesse brilhar o orgulho do seu povo quando se tratava de fazer alguma coisa de especial por si próprio.
- Muito bem - disse o primeiro-sargento, abanando a cabeça. - Vais casar, Stepan?
- Se ela quiser, porque não?
- Já tens alguma na aldeia?
- Talvez...
- Gostaria de a ver! - O primeiro-sargento riu-se sordidamente. - Qual será a mulher que quer um cigano...
Com os lábios apertados, Stepan Mormeth saiu da casa da guarda. ”Porco”, pensou ele furioso. ”Sou suficientemente bom para usar o vosso uniforme... Para absorver a vossa ideologia como uma esponja sem vontade própria, chamam-me ”querido camarada”, mas, noutros aspectos, dão-me pontapés no traseiro e tratam-me mal porque tenho a pele morena e porque nas minhas veias circula outro sangue. Que cães!” fvíormeth ficou de pé à porta da casa da guarda. Um vento frio rrazia o pó das montanhas. Estava até misturado com flocos de neve ”Que terra”, pensou Mormeth estranhamente feliz. ”Aqui as flores florescem e quinhentos metros à frente há gelo nas pedras. TuJo é assim neste país. Até as raparigas. Sob o gelo da sua virtude florescem as flores do seu amor.”
Estava a ficar um poeta. Com passos apressados dirigiu-se para as ruas da aldeia.
Nem sequer reparou que ninguém o cumprimentava.
Também em casa de Patrascu as roupas de festa foram retiradas das arcas e colocadas em ordem para a festa da Páscoa.
Sônia cosia novos bordados no largo pedaço redondo da sua camisa de lã branca; Anna, a mãe, enfiava pérolas de vidro coloridas e cintilantes. Deveriam tilintar à volta da larga saia de lã quando Sônia dançasse na praça com os rapazes. O pai, Mihai Patrascu, cortava tabaco na mesa de madeira com uma grande faca afiada. Era um dos poucos camponeses que plantavam tabaco e percebiam alguma coisa das boas condições de armazenamento. Pela Páscoa, oferecia aos mais velhos, que ficavam em torno do espaço de dança, pequenos sacos com a sua colheita. Era um costume de há muitos anos em Tanescu e pertencia tanto à festa da Páscoa como as palavras do sacerdote: ”Cristo ressuscitou!” E os camponeses respondiam alto: ”Ele ressuscitou verdadeiramente!”
Stepan Mormeth surgiu no meio destes preparativos.
O aparecimento de um uniforme russo nunca significara nada de bom para Patrascu. Tal como os outros camponeses, ele não simpatizava muito com Estaline. Frequentara, contrafeito, duas aulas nocturnas que um funcionário de Bacau dera durante o Inverno. Ouvira falar da reforma agrária, da propriedade comum, da expropriação dos grandes proprietários e da mão do Estado, que a partir de agora dirigiria tudo.
- Até o transporte do estrume? - perguntara alguém em voz alta na sala.
Nunca se soubera quem proferira aquelas palavras. O funcionário regressou novamente a Bacau, mas colocou um grande ponto de interrogação atrás do nome de Tanescu. Aquela história do transporte de estrume era ideologicamente muito perigosa.
- O que procuras, camarada? - perguntou Patrascu. Manteve a faca na mão com que estava a cortar o tabaco. No entanto, reconheceu Stepan Mormeth e falou com algum alívio.
- Ah, o cigano! De onde vens? Pensava que te tinham enforcado em Bacau!
Mormeth resolveu não dar ouvidos àquele desejo piedoso. Lançou um largo sorriso a Sônia, que cosia um bordado com pérolas de vidro na bainha da saia. Tinha agora pouco mais de quinze anos, bem constituídos, mas esbeltos, com pernas longas, uma cintura estreita e ancas e peito roliços. O seu longo cabelo negro caía-lhe solto sobre os ombros. Um véu que o vento enrolava em torno da cabeça e do tronco quando ela corria pela rua ou para o poço.
- Queria perguntar uma coisa - disse Mormeth, não desviando o olhar de Sônia.
- Então pergunta, camarada.
- Depois de amanhã é Páscoa e decerto que a Sônia vai ao baile. Não é verdade?
- Sim - disse Sônia antes de o velho Mihai poder responder.
- Queria perguntar-te se queres dançar comigo. - Mormeth olhava para Sônia com os seus olhos negros brilhantes. O aroma a rosas do cabelo invadia a sala. - Queria convidar-te, Sônia...
- Sônia vai connosco! - gritou o velho Patrascu. - Não tenhas esperanças, cigano...
- Sou um soldado do grande Estaline! - gritou Mormeth, ficando muito corado.
”Isso é ainda pior que seres cigano”, pensou Mihai Patrascu. Levantou o punho com a faca, deixou-a cair sobre a mesa e enterrou a lâmina até metade na madeira. Ah, sim! Ainda tinha força, o velho madeireiro e camponês Patrascu. Mormeth olhou para a faca que estava espetada na mesa.
- Sônia dançará com aqueles que nós escolhermos! - disse ele rudemente. - E agora põe-te daqui para fora, cigano...
Em silêncio, Mormeth saiu da sala. Tremia de raiva e vergonha, mas controlou-se, regressou à caserna e conseguiu até rir-se quando entrou na sala. O primeiro-sargento estava sentado num sofá já em muito mau estado e lia o novo jornal estatal, Scienteia, que aparecera em Bucareste com uma tiragem de milhões. Era o órgão oficial do partido.
- E então? - perguntou o primeiro-sargento. - A miúda está pronta?
- Sim! - riu-se Mormeth, se bem que quase lhe tivesse saltado em cima. - Sim. Vocês vão ficar admirados! A mais bela de Tanescu.
A festa da Páscoa não foi tão alegre como era costume. O final da guerra estava primeiro. Ouviam-se muitas coisas. Os alemães lutavam à volta de Berlim, os americanos avançavam através da Alemanha e os russos ganhavam por toda a parte. Era horrível para os romenos nacionalistas. Se a Rússia ganhasse a guerra - era assim que argumentavam -, os soviéticos nunca mais sairiam da Roménia. Depois engoliriam simplesmente o país e não haveria ninguém no mundo que se preocupasse ou que achasse injusto, pois o mundo e a sua moral estariam mortos.
O sacerdote tinha pregado, os beijos de Páscoa tinham sido trocados, as bênçãos tinham sido concedidas e a refeição da festa fora consumida. As pessoas estavam sentadas ou de pé à volta da praça da aldeia, um grupo de músicos com violinos, trompetes, clarinetes, flautas e tambores tocava música de dança. Os instrumentos mais recentes eram uma harmónica e duas violas que os soldados alemães tinham deixado para trás. Eram tocados por três músicos da aldeia vizinha que tinham frequentado uma escola de música em Bacau.
Os jovens de Tanescu dançavam em grupos. As saias coloridas rodopiavam e os chapéus enfeitados com penas dos rapazes voavam. Batia-se com os pés e saltava-se. De mãos dadas, dançavam em círculo, que se desfazia depois numa valsa rápida. Stepan Mormeth também estava entre os dançarinos. Conseguira que Sônia dançasse uma valsa com ele. Ao som dos violinos e dos tambores, rodopiavam em círculo. Os pares que dançavam à sua volta tinham parado e batiam palmas. Dançaram a valsa sozinhos sob as fitas coloridas como se fossem um par de noivos.
Mormeth estava radiante. Estava mais feliz do que nunca. Quando passava a dançar pelos seus camaradas, que estavam a beber vinho, olhava e piscava-lhes alegremente o olho. ”Olhem para ela”, pensava ele. ”Este é Mormeth, o cigano! A rapariga mais bela é minha! Rebentem de inveja, seus romenos de raça pura! No meu sangue corre o fogo dos vulcões! Nos meus olhos vê-se o amor de séculos! Nos meus beijos saboreia-se a paisagem de todas as terras!”
- Devíamos arrancá-la dali! - rosnou Mihai Patrascu. Reparara que os outros camponeses olhavam para ele de lado.
Anna colocou uma mão apaziguadora no seu braço.
- Daqui a uma hora acaba tudo - disse tranquilamente. Ela é jovem. Não sabe o que é um cigano.
- Mas ele sabe o que vale aqui! E uma insolência da parte dele escolher precisamente Sônia para dançar! Devia ser expulso da aldeia.
- E um soldado da milícia! Vais ter apenas problemas com os oficiais do município. Bebe um copo de vinho, Mihai... É a festa da Páscoa.
A valsa acabara. Mormeth levou Sônia consigo até uma banca de vinho. Comprou-lhe um grande pedaço de bolo e um jarro de vinho tinto, levantou o copo e gritou para que todos ouvissem e participassem do seu triunfo.
- Noroc ti Sanatate! (Felicidade e saúde!)
Os rapazes romenos não devolveram o brinde. Quebraram os costumes e afastaram os olhos. Stepan Mormeth colocou um braço em torno dos ombros de Sônia. Os seus cabelos longos roçavam-lhe a pele. Aquilo percorreu-o como fogo.
- Vem - disse ele suavemente. - Vamos sair daqui. Todos têm inveja porque não usam uniforme. Quero-te contar lá fora o que vivi no serviço militar. Sobretudo na grande cidade de Galati! Já estiveste numa grande cidade?
- Não, Stepan.
- Então vem comigo. Posso contar-te tanta coisa...
Afastado da praça da festa, junto a um poço que estava escondido por trás das casas, Mormeth não lhe contou nada sobre Galati. Agarrou subitamente na cabeça de Sônia, inclinou-a para trás e beijou os seus lábios firmemente cerrados. Além disso, a mão apalpava-lhe o tronco com os dedos trémulos.
Sônia defendeu-se após o susto inicial. Deu um soco na testa de Mormeth, recuou de um salto e agarrou numa pedra que estava ao lado do poço. Uma grande pedra.
- Parto-te a cabeça se voltares a aproximar-te! - gritou ela furiosa. - Seu negro estúpido... Seu...
Recuou mais ainda, até ele não a poder alcançar, deixou cair a pedra e correu para a praça onde decorria a festa.
Stepan Mormeth ficou sentado à beira do poço. Tinha a testa a arder por causa do soco. A pele entre os olhos devia estar vermelha.
Seu negro estúpido... - repetiu ele em voz baixa. - Não
disseste isso em vão, minha pombinha!
Levava a vida de um lobo. Ou de uma raposa. Ou de um rato. Era a mesma coisa... Era tudo menos a vida de uma pessoa.
Alimentava-se de raízes, de javalis que abatia, de lebres que apanhava com armadilhas e de bagas ou musgo, com o qual fazia sopa. Vivia... Nada mais. Não morria porque comia e bebia, mas era tudo aquilo a que a sua vida ascendia. Comer, beber, dormir e viver os dias e as noites numa solidão sombria.
Um mês depois, pouco antes do Natal, Michael Peters pensara estar perto da loucura.
Vivia numa gruta, bastante a norte do local onde Vera Mocanu o deixara. Depois de ver a coluna russa na estrada, tinha continuado o seu caminho, para dentro das montanhas de rochedos, trepando cada vez mais alto, para as zonas mais avançadas, as quais nunca tinham sido penetradas pelo homem, pois não ofereciam nada que lhe pudesse ser útil. Aí, Michael viveu durante três semanas, alimentando-se de um javali que abatera, cuja carne congelara num buraco de neve, tirando todos os dias, com um pequeno machado, a quantidade de que necessitava. Descongelava a carne ao lume. Era maravilhosamente fresca e suculenta.
A total solidão rapidamente o esmagou. Nunca acreditara que o silêncio pudesse ser tão assustador e tão enervante.
Para não enlouquecer, começou a cantar. Falava consigo próprio, tinha longas conversas com dois tons de voz, para ter a sensação de não estar sozinho. Narrava lendas e contos de fadas, tal como lhe tinham tantas vezes contado, mas até isso começou a enlouquecê-lo. Assim, começou a desenhar imagens nas paredes da gruta com pedras bicudas. Desenhava na pedra animais, figuras, paisagens, casas, e dava-lhes nomes e destinos.
Natal! Mantinha um diário num calendário de bolso, onde riscava os dias e a partir do qual decorou tudo (as taxas dos correios, Pesos e medidas, símbolos dos automóveis e indicações geográficas). Encontrou um abeto deformado, abateu-o e meteu-o na gruta. Enfeitou-o com esferas de papel, com cartuchos vazios e cintos de munições MG, acendeu duas preciosas velas e entoou canções de Natal da sua pátria.
Era uma cena fantasmagórica. Um homem isolado, rodeado pelo silêncio da noite, estava sentado frente a uma árvore de Natal enfeitada com cartuchos e cintos MG. O rosto, pálido e de aspecto famélico, era iluminado por duas pequenas velas. Cantava com uma voz fina e quase infantil.
Depois orava, completamente afundado nas palavras.
Na manhã do primeiro dia de Natal, matara uma lebre que caíra numa armadilha. A fome venceu a festa do amor.
Enquanto a lebre assava na pequena fogueira, ele pensava na sua casa.
Na árvore de Natal numa sala decente, nos bolos, nos biscoitos de gengibre, de maçãs, nos presentes, que eram todos os anos os mesmos, mas simultaneamente sempre novos e fantásticos, porque era Natal: uma camisa, um par de calças, sapatos novos, um cachecol... e o pai recebia um cachimbo novo e a mãe um avental novo... Noite feliz... Noite feliz...
No segundo dia de Natal, começou a nevar. Nevou durante uma semana ininterruptamente. O mundo parecia afundar-se num dilúvio branco.
Durante uma semana, Michael esteve deitado no canto mais profundo da sua gruta, enrolado em cobertores. Falava constantemente sozinho e desenhava animais na rocha.
Ele lutava novamente contra a loucura e receava perder a lucidez.
Quando não conseguiu aguentar mais aquele grande silêncio e as conversas consigo próprio se transformaram em gritos histéricos, ultrapassou a sua timidez em relação aos camponeses estranhos e o medo de ser preso pelos russos. Desceu do seu rochedo primitivo até às pequenas aldeias, que na maior parte dos casos consistiam em apenas algumas cabanas e grupos de pastores que convencionaram tomar conta dos rebanhos de ovelhas da comunidade e introduzir uma nova ordem de ordenha, segundo a qual cada camponês deveria ordenhar todo o rebanho durante os dias correspondentes ao número de cabeças que possuía e vigiá-las com toda a atenção.
O romeno que ele aprendera com Vera Mocanu viria agora a ser útil. Poderia repetir as expressões mais importantes, como pedir alimentos, poderia fazer-se entender e poderia, se bem que muito dificilmente, entender o que lhe diziam os camponeses.
”Os russos estiveram aqui ontem. Vai para sul, alemão”; ”Na aldeia seguinte está um grupo da milícia”; ”Os soviéticos instalaram um novo posto de controlo a trinta quilómetros”; ”Os russos passaram a fronteira alemã! Marcham em direcção a Berlim. Conheces Berlim?”
Mostravam os jornais a Michael. Ele acreditava. Tanto quanto podia perceber, a Alemanha perdera a guerra.
- Para onde queres ir? - perguntou-lhe uma vez uma velha camponesa que lhe dera queijo de cabra e batatas. - Porque é que continuas a vaguear?
- Não sei - disse Michael honestamente. Depois o seu rosto empalideceu e acrescentou: - Tenho medo.
- Aqui ninguém te faz mal, soldado.
- Mas os russos...
- Estão por toda a parte. Durante quanto tempo tencionas viver como um lobo?
- Até a guerra acabar!
- E se continuar por mais um ano ou dois?
Michael encolheu os ombros. A ideia fê-lo enregelar. Mais dois anos sozinho nas montanhas. Sozinho com as raposas e as lebres, com falcões e outras aves de rapina. Sozinho com o calor abafado do Verão e com o frio penetrante do Inverno. Sozinho, apenas com a sua voz e os seus rabiscos, quando fazia imagens nas paredes rochosas, tentava sobrepor-se àquele silêncio que transformava o pulsar do sangue em trovões que abalavam todo o seu corpo.
- Devias esconder-te numa aldeia... - disse a velha camponesa.
- Ninguém ousará dar-me abrigo.
- Nesta aldeia não - disse rapidamente a camponesa. - Fica demasiado perto da estrada principal e os russos entram cá sempre para vir buscar porcos e vitelos. Mas mais para norte... existem aldeias!
Michael regressou às montanhas. Sozinho, atravessando a neve que lhe chegava às nádegas e assobiando para ultrapassar o medo.
Continuou a caminhar. Continuou para norte.
No dia seguinte, pegou no ”saco de mendigo”, meteu uma pistola 08 no bolso, levou dois carregadores de reserva e pôs-se a caminho à procura de uma aldeia. Sabia que a leste das cabanas nas quais ele mendigara até então deveria estar uma aldeia. Os seus antigos benfeitores estavam-lhe vedados. Havia catorze dias que uma patrulha da milícia estava numa das cabanas. Andavam em busca de um grupo de guerrilheiros que fora avistado.
Durante três horas, Michael subiu os rochedos. Já não eram tão agrestes. Na vertente descendente havia florestas de abetos, de pinheiros e até de bétulas. Os prados começaram a aparecer e, três horas depois, viu os primeiros rebanhos de carneiros. Deleitou-se na erva ainda escassa de uma pastagem de montanha. Uma pequena casa feita de troncos grossos estava inclinada contra a vertente da montanha. O fumo esvoaçava em ondas finas sobre o pasto. A chaminé, murada com pedras, fumegava.
”Uma pessoa”, pensou Michael muito feliz. ”Um pastor... Tem leite, queijo e carne de cordeiro. E terá um coração, que é a coisa mais importante do mundo.”
Meteu o saco vazio debaixo do braço, olhou mais uma vez para o fumo que saía da chaminé e saiu do bosque protector para o prado.
Admirado, reparou que os carneiros se tinham encostado uns aos outros. Formavam um rebanho muito fechado. Os animais mais fortes estavam do lado de fora, de cabeça baixa berrando e com as pernas fincadas no solo.
Michael ficou parado. ”Ena”, pensou ele. ”Como é que podem ter tanto medo de uma pessoa? Será que estou com um aspecto tão selvagem que até os animais se assustam com a minha presença?”
Quis colocar as mãos em torno da boca para gritar para a cabana, quando atrás de si ouviu arquejar e uns passos incertos. Era como o raspar de um grande cão que tivesse corrido durante muito tempo e agora, cansado e com a língua pendurada, desse os últimos passos.
Michael nunca vivera aquela situação, mas sabia o que estava atrás de si. O seu rosto ficou muito pálido e tenso. Apalpou o bolso, retirou a pistola 08 e, no mesmo instante, atirou-se para o lado.
À sua frente estava um grande lobo com pêlo longo e emaranhado. Os seus grandes olhos olhavam-no fixa e friamente. Na orla do bosque estavam sentados mais cinco lobos, um pouco mais pequenos do que o lobo líder, também desgrenhados e esfomeados, marcados pelo Inverno e sedentos de sangue a olhar para o rebanho de ovelhas. Estavam sentados com as orelhas de pé e olhavam para o seu líder, que estava em frente do homem. Arquejante, com a língua pendurada entre os dentes pontiagudos, com os flancos a tremer, pronto a saltar sem piedade.
Michael levantou a pistola. Apontou para a cabeça do lobo. Atrás de si, o rebanho balia e juntava-se ainda mais.
O grande lobo pareceu adivinhar o que o homem queria dele. Baixou-se subitamente, a língua desapareceu, só a dentadura pontiaguda brilhava e a cabeça estreita ficou com um aspecto ainda mais estreito, qual ponta de lança que se vai espetar no corpo do opositor. Depois, correu voando e uivando. Um uivo que soava mais a um grito de triunfo.
Michael baixou-se. O tiro ecoou pelo ar da manhã. Passando-lhe ao lado da orelha, arranhando-a ainda, a bala enterrou-se na erva ao lado do lobo. Simultaneamente, Michael saltou para o lado. Durante o salto, o lobo passou a centímetros de Michael.
Mal tocou no solo, virou-se e voltou a saltar. Na orla do bosque, os outros cinco lobos uivavam. Era como se dessem ânimo ao seu líder para desfazer aquele pobre homem que lhes cortava o caminho até às ovelhas. Michael voltou a premir o gatilho, mas não aconteceu nada. A pistola apenas estalou. Os cartuchos deviam estar húmidos. O tiro falhara.
Mais uma vez, Michael conseguiu desviar-se do salto, mas sabia que seria impossível fazê-lo uma terceira vez. Os lobos que estavam na orla do bosque tinham-se levantado e aproximavam-se lentamente e à espreita.
- Socorro! - gritou Michael. - Socorro! Socorro!
Não vira que um pastor já saíra da cabana a correr mal ouvira o tiro. Olhara rapidamente para a encosta, regressara a correr para a cabana e voltava agora com um cacete revestido a ferro e uma longa espada de batalha. Avançou para o prado, com o cacete e a espada esticados à sua frente.
- Quieto! - gritou ele em alemão. - Fica quieto, parceiro!
Michael já não ouviu. Fugira. Ao terceiro salto, o lobo caíra sobre ele. Subitamente, um peso arranhou-lhe o ombro, sentiu aqueles dentes que pareciam facas a penetrar na sua carne, o casaco a ranger e a rasgar-se, sentiu sangue a correr pelo pescoço, pelo braço e pelo peito, a respiração quente do animal estava ao lado da sua face e foi trespassado por uma dor tremenda que começou na omoplata e lhe percorreu todo o corpo. Depois caiu na erva, com o lobo ainda agarrado ao seu pescoço, e começou a rodopiar aos gritos e meio louco de pavor.
Não sentiu, no seu desespero cego, que estava sozinho e deitado na erva. O lobo estava em pé a seu lado e olhava a rosnar para o outro homem que atravessava o prado aos gritos.
Na orla do bosque os outros lobos corriam de um lado para o outro, inquietos, e não ousavam aproximar-se. O líder voltou a baixar-se para saltar. Os seus grandes olhos tinham agora uma auréola vermelha. Reclamavam sangue. Denunciavam desejo de morte. Alegria no combate. Fome. Ódio e medo...
O pastor ficou parado. Atirou o cacete contra o lobo. No mesmo instante, o animal avançou com um salto formidável.
O pastor brandia a espada. Deu uma estocada em frente contra o peito e o focinho do lobo. O pastor fincara as duas pernas no chão. ”Não quero cair”, pensou ele. ”Quem cai são os vencidos.”
Com um grito feroz, o lobo saltou sobre a longa espada. Esta abriu-lhe o peito até ao esterno. Cambaleando, caiu no chão, lambeu rapidamente a terrível ferida e voltou a saltar. No entanto, aquele salto já não foi vigoroso. Foi o impulso de um ser que, gemendo, persiste.
O pastor voltou a espetá-lo. Naqueles momentos, ele também não sentia compaixão. Enterrou várias vezes a lâmina da espada coberta de sangue no corpo que se contraía até ficar estendido e os olhos ficarem vítreos.
O grande lobo uivara mais uma vez. Fora um uivo horrível e longo, afogado em sangue, e os lobos que estavam perto do bosque correram de novo para os rochedos.
O pastor deixou ficar o corpo do animal morto. Inclinou-se sobre Michael, que, entretanto, desmaiara, colocou-o sobre o ombro e subiu o prado até à cabana.
”Um alemão”, pensou ele. ”Será que ele ouviu o que eu gritei?”
Poisou Michael sobre a cama de madeira, provida de um colchão de feno coberto com feltro, e abriu um armário donde retirou ligaduras, álcool e até uma garrafa de iodo, começando a desinfectar e a ligar a grande ferida que Michael tinha no ombro.
A primeira coisa que Michael viu quando abriu os olhos foi uma lamparina que estava pendurada na viga do tecto.
Atrás dessa lamparina vagueava um rosto barbudo, moreno, que saía de um casaco de peles e tão alto que parecia um cepo fustigado pelo clima.
- Que Deus esteja contigo - disse a boca que estava escondida algures debaixo daqueles cabelos. Falava romeno e Michael compreendeu-o com algum esforço. - Tens dores?
Michael abanou a cabeça. Bateu com ela no ombro, mas nem sequer era dor em relação à que sentira alguns minutos antes. Ou seriam horas. Na cabana, ardia a lamparina... e quando o lobo o atacara pouco passava da madrugada.
- Onde está o lobo? - perguntou ele, tentando levantar-se. Contudo, a ferida recomeçou a arder. Deixou-se cair sobre a cama com dores.
- Morto - afirmou o pastor.
Meteu um casaco enrolado por baixo da cabeça de Michael.
Ao fundo, fumegava e brilhava uma fogueira dentro de um forno construído de barro e pedra. Numa corrente de ferro, presa num grande gancho forjado, estava pendurada sobre as chamas uma grande chaleira com água a ferver.
- Estou a fazer-te chá - disse o pastor - e depois vou deixar-te sozinho.
- Sozinho?
Os olhos de Michael ficaram muito abertos e cheios de medo.
- Vou à aldeia buscar um médico.
Michael acenou com a cabeça. Observou como o pastor retirava a água a ferver com uma concha de madeira e a verteu num recipiente colorido. Pouco depois, já cheirava a chá na cabana baixa.
”Um homem estranho”, pensou Michael. Começou a recordar-se. O lobo apanhara-o à terceira vez, e enquanto o animal lhe mordia o ombro e ele fora atirado ao chão, ouvira um grito... Um grito em alemão... O que fora? ”Parado!” Isso mesmo! Alguém gritara ”Parado!”. Alguém o dissera em alemão...
Michael levantou a cabeça do casaco enrolado. O pastor tirara o seu boné de pele e empacotara alguns pedaços de queijo do tamanho de punhos numa bolsa que pendurara ao pescoço.
- De onde vens, companheiro? - perguntou Michael em alemão.
O pastor não se virou. Apenas por um instante, a sua mão hesitou quando colocava um novo pedaço de queijo na bolsa. Michael reparara bem, mas poderia ser uma coincidência. Uma reacção à voz que quebrava o silêncio da sala.
- Como é que sabes alemão? - continuou Michael a inquirir.
- Ouvi muito bem! Sabes falar alemão!
O pastor virou-se e observou Michael Peters durante algum tempo em silêncio, avaliando e pensando. O seu rosto, que a barba tornava excessivamente grande, não mostrava qualquer emoção. Era uma mancha cabeluda e escura atrás de uma lamparina que brilhava.
- Alguém te viu? - perguntou ele em alemão.
Michael ergueu-se, mas a dor penetrante no ombro atirou-o de novo para a cama.
- Tu... tu... tu és alemão? - gaguejou ele. - De onde vens? E és pastor? Estás aqui como romeno...
O pastor sentou-se na cama junto a Michael. Agora ria-se.
- Chamo-me Paul Herberg. Primeiro-sargento da vigésima terceira divisão de caçadores. Quando aconteceu aquele confronto junto ao Prut, fugi. É preferível viver nas florestas a ficar deitado numa vala comum como o cadáver de um herói. Caminhei durante quatro semanas sempre a fugir dos russos ou da polícia militar alemã. Se me tivessem apanhado, o resultado seria o mesmo. Mas tive sorte. Consegui passar e escondi-me em grutas até tudo acabar. Depois, fui à aldeia e fiz-me passar por pastor.
- E a milícia? Os russos?
- Os tipos estiveram aqui seis vezes. - Paul Herberg sorriu e bateu com o dedo na testa. - É preciso ter cabecinha! Sou surdo. Percebeste? E também sou um bocado estúpido! Quando os russos se aproximam eu faço ”lá-lá” e ”ué-ué”... Eles riem-se e vão-se embora. Entretanto, sabe-se em todos os postos que neste pasto vive um atrasado mental, um pastor idiota e surdo. E agora se voltarem, querem apenas queijo fresco. Dou-lhes o queijo e não aceito dinheiro porque sou demasiado idiota para saber o que é dinheiro!
- Fabuloso - disse Michael. - E durante quanto tempo é que queres continuar este jogo?
- Até poder ir para casa. Para Berlim. Está agora ocupada pelos russos, mas eles não vão ficar lá para sempre.
- E se for esse o caso?
- Queres dizer, se tudo for por água abaixo? Tudo? - Paul Herberg olhou para o chão de tábuas da cabana. Encolheu os ombros. - Então permanecerei o pastor idiota até ao fim. Talvez a idiotice seja a melhor coisa neste mundo de loucos. Vive-se em paz e tudo nos passa ao lado.
Levantou-se da cama, reduziu a chama da lamparina e atirou o saco com os queijos para trás das costas.
- Agora vou buscar um médico. Como é que te chamas, companheiro?
- Michael Peters. Sou da Vestefália. O meu pai tem uma bela quinta.
- Eu sou barbeiro. - Riu-se e passou a mão pelo seu rosto desgrenhado. - Se os meus clientes me vissem assim! Nessa altura, eu era o homem mais bem barbeado de Berlim! - Voltou a rir-se e abanou a cabeça. - Quando fiz a prova final, passei a tudo com vinte valores! Teoria e prática... e agora ando a brincar aos atrasados mentais! Estás a ver o que a guerra faz a uma pessoa?
Colocou uma chapa de ferro sobre o fogo. O quarto ficou escuro. Michael fechou os olhos. Subitamente ficara cansado e maravilhosamente feliz. Sentia-se seguro, salvo e redimido. Tinha uma pessoa junto de si. Após meses, novamente uma pessoa. Um camarada.
Paul Herberg abriu a porta.
- Podes ficar aqui até te curares. Mas depois... Ninguém vai acreditar em dois pastores idiotas. Agora vou buscar um médico e vou saber se o ar está limpo. Dorme um pouco, Michael. Volto daqui a duas horas.
- Agradeço-te, Paul - disse Michael com voz fraca.
Ouviu Herberg fechar a cabana por fora. Deveria ser um grande cadeado, pois ouviu-o várias vezes bater contra a porta depois de o pastor ter partido.
Michael esteve acordado durante uma hora na sua cama de pele. Estava tão cansado que não conseguia adormecer. Os braços e as pernas pareciam de chumbo e até a cabeça estava pesada, como que cheia de pedras.
Depois, não quis continuar deitado. Apoiou-se no braço são e levantou-se. Tropeçando, caminhou pela cabana, voltou a aumentar a chama da lamparina e olhou pela janela.
Lá fora era de noite. Os carneiros estavam encostados uns aos outros num estábulo ao ar livre com uma cerca de madeira. As florestas e as montanhas no final do prado eram negras. Uma parede hostil que se elevava. ”Vivi ali durante meses”, pensou Michael. ”Como é que uma pessoa pode aguentar uma coisa dessas? Meses como um animal perseguido em grutas e debaixo de árvores, em saliências rochosas e entre pedras acamadas. Dias sem fim com fome e sede, frio e um sol brilhante, medo e esperança, e sempre a consciência do desamparo.”
Michael deixou cair a cortina de lã da janela. Cambaleante, continuou a caminhar pela sala, foi até ao forno, ao armário e a uma prateleira de madeira pendurada na parede. Aí, encontrou meio pão e um jarro com leite. Esfomeado, agarrou no pão e mordeu-o. Mal conseguia mastigar devido à excitação. Enrolava o pão dentro da boca e engolia aquele pedaço de papa.
Depois, viu um espelho.
Hesitante, Michael dirigiu-se para ele. Um espelho depois de um ano e meio reflectiria a sua imagem, a de uma pessoa que vivera muitos meses como os lobos.
Ultrapassou o seu receio e colocou-se em frente ao espelho. Em silêncio, olhou fixamente para o rosto que estava à sua frente.
Grandes olhos vazios...
O ombro ligado...
A barba loura emaranhada...
O rosto de um rapaz que fora obrigado a envelhecer.
- Este sou eu? - gaguejou Michael.
Apoiou-se contra a parede da cabana e procurou na imagem espelhada um traço do antigo Michael Peters. Não encontrou uma única linha nem uma única mancha.
Nessa altura, o horror assolou-o. A guerra retirara-lhe o rosto. Não se reconhecia. Olhava para um estranho que, no entanto, era ele.
Michael fechou os olhos. Levantou o punho e deu um soco no espelho. O vidro partiu-se com ruído e cortou-lhe o dedo. O que significava um pouco de sangue, o que era aquela dor em relação à sobrecarga do reconhecimento? ”Eu já não sou eu! Sou um estranho!”
A chorar, sentou-se junto do fogão. Não conseguia aceitar.
A festa da Páscoa continuou durante a noite.
Grandes fogueiras ardiam à frente da igreja e na praça da aldeia. Dois cordeiros assavam no espeto. O cheiro da carne assada entranhava-se em todos os cantos. Os músicos continuavam a tocar as suas valsas e polcas, nas barracas eram vendidos vinho e bolos de milho recheados com mel. Do lado de fora do círculo de fogo estavam sentados os velhos camponeses em mesas compridas. Fumavam, bebiam e olhavam para os jovens que dançavam à luz das chamas altas.
Stepan Mormeth já não estava no meio deles. O primeiro-sargento destacara-o para a guarda nocturna. Mormeth considerou aquilo uma vingança reles, mas não podia fazer nada. As ordens eram para obedecer ou então iam de castigo para uma companhia onde eram destacados para partir as pedras dos rochedos para construir estradas.
Furioso, estava sentado na casa da guarda e escutava os sons da música que chegavam entrecortados até ele. Quando o vento estava a favor, até ouvia as raparigas a rir. Aquilo fazia-o enlouquecer de saudades, ”Sônia”, pensava ele. ”Se pudesse estar agora junto das fogueiras. Ninguém me poderia impedir de te beijar, de te levar para as sombras negras dos estábulos, deitar-te na palha quente e sentir aquele cheiro sublime.”
Stepan Mormeth mordeu o lábio inferior e amaldiçoou o primeiro-sargento, a milícia, todos os camponeses, os sacerdotes e, sobretudo, os russos. Foi até à janela, olhou lá para fora e viu as manchas claras que tremeluziam. Ali ardiam as grandes fogueiras, estavam sentados os músicos, bebia-se vinho e beijava-se. Ali... ali... Interrompeu os seus pensamentos.
- Seus filhos-da-mãe! - disse Mormeth em voz alta. - Só porque sou cigano!
Mas a sua raiva de pouco lhe valia. Nela oscilava a tristeza secular da sua raça.
Atrás das fogueiras, junto a Mihai Patrascu e a Anna, que estavam sentados à mesa a observar, estava Sônia. Dançara durante horas. Agora doíam-lhe os pés, o coração batia acelerado, doía-lhe a cabeça e as fontes palpitavam-lhe como se estivessem a ser atingidas por pequenos martelinhos.
Não contara a ninguém o incidente ocorrido com Stepan Mormeth. Tinha medo que Mihai fosse logo à casa da guarda para bater em Stepan. Haveria então uma longa investigação. O comissário viria de Bacau, falaria de uma ”contra-revolução dos camponeses” e imporia novas limitações. Nada de bom adviria disso. Quem usa um uniforme tem sempre razão. Nisso a Roménia não se distinguia dos outros países.
Pouco antes de o velho Patrascu querer ir para casa e beber o último gole de vinho, surgiu junto à fogueira uma enorme figura peluda. Acenou com a cabeça para todos os lados, sorriu em silêncio e estalou os dedos. Os camponeses mais jovens riram-se e acenaram.
- Olhem! Lá vem o parvo do Grigori! - gritaram eles. - Raparigas, agarrem-no e façam-no rodopiar.
- Ele não ouve a música! :.
- Mas sabe onde os corpos são roliços!
- Dai um beijo a este irmãozinho idiota. Sonhará com ele até à próxima festa da Páscoa!
- Vejam só, meninas, como ele é forte. Parece um urso. Aqueles músculos, o peito, as pernas! Aquela cabeça! Só que é um pouco burro... De resto, está tudo lá!
Os rapazes riam-se e as raparigas guinchavam. O velho sacerdote fez uma expressão de censura.
Paul Herberg passou, a sorrir, pelos dançarinos. Era surdo. Cumprimentou o sacerdote com uma grande vénia e um beijo na mão, riu-se quando uma rapariga mais brincalhona lhe puxou a barba emaranhada e lhe bateu no traseiro. Deu um pequeno guincho, pois o que deveria ser uma carícia tornava-se doloroso naquele homem gigantesco.
Na sombra estava o velho médico, Georghe Brinse. Fumava um charuto dos que ia buscar a Bacau uma vez por mês, quando era necessário comprar medicamentos para os serviços sanitários e entregar o seu relatório de saúde ao camarada médico distrital.
O estúpido Grigori chocou com Georghe Brinse. Assim que saiu do círculo de fogo, ninguém lhe prestou mais atenção. O baile continuou, mais vigoroso do que anteriormente, pois o vinho subia à cabeça e fazia entrar nos membros o ardor da paixão.
Brinse olhou para Grigori desconfiado e inquiridoramente.
Recuou ainda mais para a sombra da igreja e acenou ao pastor com a cabeça.
- O que se passa? - murmurou ele. - Novamente russos nas montanhas?
- Um camarada alemão!
- Em tua casa? Na cabana?
- Sim.
- Enlouqueceste de vez?
- Está gravemente ferido. Um lobo mordeu-o. Tens de vir, doutor. Vir imediatamente!
- Ele sabe quem tu és?
- Sim.
Georghe Brinse assentiu com a cabeça. Olhou para as mesas, para as fogueiras, para os bailarinos e para os músicos.
- Vou. Vai à frente e espera no início da subida. Levo alguém comigo.
Paul Herberg abanou a cabeça.
- Não! Ninguém mais deve saber! Só tu sabes que o idiota e surdo Grigori...
Não continuou. O sacerdote passou por eles. Mais uma vez, Herberg fez uma vénia. Fazia perfeitamente de deficiente. Quase parecia que realmente se transformara. Quem desempenha o papel de um pobre de espírito durante mais de um ano habitua-se a esse papel.
- Vou levar Sônia comigo...
- Que Sônia?
- A Patrascu. Ensinei-a a cuidar de doentes. Pode ajudar-me bastante. Podes continuar a fazer de surdo. Nunca saberá a verdade.
Grigori assentiu com a cabeça.
- Tem o ombro desfeito. Talvez seja preciso coser.
- Levo tudo comigo... E agora, vai! Volta pelo mesmo caminho, passando pela fogueira, dança uma vez. É divertido e ninguém desconfiará.
Georghe Brinse saiu lentamente da sombra da igreja junto à praça da festa. Paul Herberg passou pelos dançarinos. Apontou o dedo aos músicos como se conseguisse ouvir os sons. Para tal, meneou o seu tronco maciço. Estava sempre a falhar o compasso e, entre os berros dos jovens camponeses, dançou à volta da fogueira ao som de todas as melodias. Um arlequim que ficaria com a cabeça a prémio se a máscara caísse.
Acenando para todos os lados e atirando beijos às raparigas, Grigori, o idiota, saiu do local da festa. Quando saiu do alcance do brilho das fogueiras, começou a correr com passos largos, quase inaudível apesar da sua grandeza.
Junto ao início da subida para o prado da montanha, o velho médico, Georghe Brinse, já o esperava. Tinha a maleta consigo. Ao seu lado, sentada numa grande pedra, estava uma rapariga, com os longos cabelos cobertos com um lenço. Tinha um grande saco à sua frente.
Paul Herberg observou rapidamente a rapariga. ”É Sônia Patrascu”, pensou ele. ”Uma rapariga jovem e bonita. E as raparigas jovens e bonitas são faladoras.”
Esqueceu o seu papel durante uns instantes e quis dizer algo. Brinse levantou o braço com a rapidez suficiente. Herberg respirou fundo e sorriu a Sônia.
- Ué-ué-ué! - gritou ele, dando um estalo com a língua.
- Vem! - disse Georghe Brinse a Sônia. - E não tenhas medo. Conheces o pobre Grigori. É uma sorte ele ser surdo e não nos poder trair.
Subiram lentamente o monte, em direcção ao prado que ficava na orla da floresta.
Michael estava à janela e olhava para a noite. Viu-os chegar. Apenas três sombras que deslizavam pela escuridão.
”Também não posso ficar aqui”, pensou ele. Pensara nisso durante o tempo que estivera só. Ninguém acredita em dois pastores idiotas...
Paul Herberg tinha razão. Mas para onde poderia ir? De volta para os rochedos, viver em grutas, falar sozinho, caçar lebres e alimentar-se de raízes e bagas? Não! Não! Não!
Estava no fim das suas forças. Olhou para as três sombras como um indefeso perante o destino.
Deitou-se na cama, tal como Paul Herberg ordenara. Fechou os olhos e fingiu dormir. O ombro doía-lhe infernalmente. Enquanto estava deitado, lembrou-se que os pedaços do espelho ainda estavam no chão, mas era demasiado tarde para saltar da cama e metê-los debaixo da mesa ou afastá-los para um canto. Ouviu uma voz indistinta e depois a voz clara de uma rapariga.
”Uma rapariga”, pensou ele. ”Porque trazem uma rapariga? Para que quero uma rapariga? Ou será uma médica?”
Olhou para a porta.
O cadeado tilintou, as pranchas de madeira rangeram nos gonzos e a lamparina começou a oscilar com a súbita entrada de ar. Três figuras entraram na cabana. Dois homens e, de facto, uma rapariga.
Michael semicerrou as pálpebras. Ouviu-os entrar e aproximar-se. Uma luz clara atingiu-lhe os olhos através das pálpebras. Paul Herberg devia ter subido a chama da lamparina e iluminava-lhe o rosto.
- É ele... - disse a rapariga. - E está a dormir... Não o reconheces, tio Georghe...
- O nosso pé ulcerado. De facto! - Georghe Brinse inclinou-se sobre Michael. Observou aquele rosto envelhecido, abatido e pálido que pertencia a um adolescente. - Como ele está... - Olhou para Grigori, o idiota. - Esteve todo este tempo nas montanhas?
Herberg olhou em silêncio para Brinse. Afinal era surdo. Brinse acenou com a cabeça. Esquecera-se durante uns instantes.
- De facto, viveu todo este tempo como um lobo - disse ele a Sônia Patrascu.
Retirara o que trazia dentro do saco e espalhara tudo em cima da mesa. Sabão, uma toalha de mãos, uma navalha de barbear, um espelho pequeno e pão, vinho e chouriço. Aproximou-se, sentou-se na cama de Michael e olhou pálida e amedrontada para o ombro ligado. A ligadura estava embebida em sangue. Manchas vermelhas penetravam a gaze.
- Temos de o acordar, tio Georghe.
O velho médico acenou com a cabeça. Passou a mão pelo rosto hirsuto de Michael. Foi um afago: ”Por favor, acorda, meu rapaz...”
Michael abriu os olhos. Viu o rosto de Sônia iluminado pela luz da lamparina. Sorriu-lhe. Os longos cabelos negros caíam-lhe junto às fontes, quase até ao peito de Michael. Como um cachecol de seda que o aqueceria.
Michael teve a sensação de estar numa situação irreal. Estendeu o braço são e agarrou cuidadosamente, como se os pudesse desfazer, os longos cabelos. Enrolou um caracol no dedo e respirou fundo.
- És um anjo... - murmurou ele.
- Voltaste - respondeu Sônia. - Estiveste tanto tempo fora... - Pegou no dedo onde estava enrolado o caracol e colocou-o nos lábios. Era um gesto de pura ternura. Durara apenas segundos, mas era sincero e cheio de pureza de sentimentos.
Georghe Brinse pôs-lhe a mão no ombro.
- Temos de observar a ferida.
Paul Herberg estava ao lado, em silêncio, condenado à idiotice. Só os seus olhos falavam e perguntavam. ”Ela conhece-o? De onde o conhece? Quem é este rapaz?” Inclinou-se para a frente e olhou o rosto de Michael. Brinse afastou-o e também Sônia o empurrou para longe da cama. Depois, retirou a ligadura ensanguentada, arrancou rapidamente a camada que ficara sobre a ferida e acenou a Herberg para que aproximasse a lamparina.
Sônia ficou a examinar a grande ferida provocada pela dentada do lobo. Subitamente, estremeceu. Com um movimento de dor, colocou ambas as mãos sobre os olhos para não ver o sangue que voltara a escorrer.
- Vou ter de coser - afirmou Brinse. Pressionou um grande pedaço de celulose na ferida e procurou a agulha e o catgut que tinha dentro da maleta. - Limpa a ferida, Sônia - pediu ele. Apressa-te! Não te trouxe aqui para chorares! - Apressou-se para junto de Michael, que ainda olhava para Sônia como se não entendesse que sentada à sua frente estava uma pessoa e não uma aparição. - Tens dores fortes?
Michael confirmou:
- Sim.
- E como está o teu coração? Tenho de ouvir o teu coração.
O médico abriu a camisa de Michael e colocou o ouvido na zona do coração. Escutou durante algum tempo.
- Está tudo bem! - exclamou ele, contente. - Ainda és novo. Porque é que o teu coração deveria estar mal? - Pegou na maleta, retirou um tubo com pequenos comprimidos brancos e deitou quatro para a mão. - Toma! Os quatro! Sônia, vai buscar água.
Michael engoliu os quatro comprimidos. Bebeu água da mão de Sônia. Ela apoiava-lhe a cabeça com a mão e segurou o copo junto aos lábios quentes do doente.
- Tem febre - afirmou ela hesitante. - Está muito quente.
- Com este medicamento, vai dormir. Dormir profundamente. Não vai sentir nada.
Michael ficou agarrado à mão de Sônia quando ela quis colocar o copo em cima da mesa.
- Fica comigo! - disse ele em voz baixa. - Por favor!
E assim adormeceu. Segurando-lhe a mão, a sorrir e feliz. Parecia estar a ser levado, como se estivesse a pairar na sala, uma pena que se prendia nos cabelos de Sônia...
- Já não sente nada - disse Georghe Brinse. - Podemos começar. Onde tens o frasco do álcool e o iodo, Sônia?
Cuidadosamente, Brinse coseu a grande ferida. Sônia entregava-lhe o que ele pedia. A agulha já enfiada, como ele lhe ensinara, as ligaduras e o adesivo. Depois de coser a ferida e enquanto lavava as mãos em água quente, que Herberg deitara numa bacia, Brinse esteve sempre a olhar para o rosto abatido do alemão.
- Ele tem de sair daqui - disse. Sônia assentiu com a cabeça. Pensava que ele estava a falar com ela. Não sabia que as palavras eram dirigidas a Grigori. - Tem de ser tratado convenientemente. Nesta cabana é impossível vigiar a ferida. Nós levamo-lo para Tanescu.
- Para a aldeia? - Os olhos de Sônia mostravam medo. Mas a milícia está lá. Stepan Mormeth vai persegui-lo. Também perseguiu e encontrou os camaradas dele!
- Temos de o esconder. Numa quinta, num pequeno quarto.
- Georghe Brinse secou as mãos. - Vamos levá-lo para vossa casa...
- Para nossa casa? Isso é impossível, tio Georghe.
- Porque é impossível...?
- O paizinho nunca o permitirá!
- Eu vou falar com o teu pai! Amanhã à noite levamo-lo para a aldeia. Tu ficas com ele. Vou imediatamente falar com Mihai Patrascu! É um cristão como nós.
- Mas ele tem medo...
- Vamos ver. - Georghe Brinse voltou para junto de Michael e levantou-lhe as pálpebras. Dormia profundamente. A febre começara a avermelhar o seu rosto, que parecia de couro. Gotas de transpiração formavam-se-lhe na testa, escorriam pelos sulcos da pele até à boca e, depois, até ao pescoço. - Temos que lhe dar alguma coisa para a febre... Ele tem um coração forte.
Brinse deu-lhe uma injecção. Encheu a seringa a partir de uma ampola com selo russo, espetou a agulha na veia e injectou lentamente o líquido na corrente sanguínea.
- Isto ajudará - disse ele quando retirou a agulha da veia do braço. - Amanhã parecerá outro. Parecerá novamente uma pessoa.
Grigori, o idiota, saiu da cabana com o médico e desceu a vertente. Sônia sentou-se na cama junto a Michael, colocou um lenço ensopado com água fria sobre a testa quente do doente e baixou a chama da lamparina.
- Mihai... - disse ela com ternura. - Eu não te vou expulsar como aquela Vera Mocanu! - Acreditava firmemente que Michael fora traído por Vera. - Quando a vir, arranho-lhe o rosto todo! Sim! É o que vou fazer!
O seu tom de voz demonstrava uma determinação tremenda.
Lentamente, Brinse e Paul Herberg desceram a longa pradaria até Tanescu. A luz das fogueiras mantinha-se sob o céu da noite como sinos de luz. O som dos violinos, das flautas e de um tambor chegava, quase sem força, até eles. Ainda se dançava... Os músicos tocariam até ao amanhecer. Para que é que se era jovem? E a guerra acabara! Tinham sobrevivido. Será que não era o melhor motivo para festejar?
Quando estavam a meio do prado e o perigo de alguém poder ouvir já não existia, Paul Herberg recomeçou a falar.
- Ele vai sobreviver, doutor?
Brinse encolheu os ombros. O som que surgira subitamente a seu lado assustara-o.
- Sim! Claro que sim! Porque é que ele deveria morrer?
- A febre! Se ele ficar com gangrena... Entre os dentes dos lobos há sempre carne podre. Foi o que ouvi dizer.
- Deus ajudará.
Paul Herberg ficou parado. O seu rosto largo estava na escuridão da noite. Não estava visível, mas a sua voz denunciava aquilo que pensava.
- Será que podemos confiar nele?
- Não deves falar assim, Grigori! - Brinse bateu no peito de Paul Herberg. - Agora volta e não te esqueças de que és surdo.
- De onde conheces essa Sônia?
- Quando o exército alemão sucumbiu, ele já tinha estado aqui. Com três outros soldados alemães. Foram presos numa gruta e levados para o campo de prisioneiros de Focsani. Só ele conseguiu fugir à milícia. Deve ter andado todos estes meses sozinho pelos Cárpatos, mas isso deve ter, finalmente, chegado ao fim. Irá para Tanescu.
- Ninguém o receberá! Se os russos o descobrirem queimarão toda a aldeia!
- A guerra acabou. Por que motivo o deveriam perseguir?
- Por ser alemão.
Brinse não respondeu. Não deu qualquer resposta.
As patrulhas russas, que ainda passavam o país a pente fino, eram uma resposta clara.
A manhã seguinte surgiu como um fresco dia de Primavera. Sônia dormia na cadeira ao lado da cama. A cabeça estava ao lado do ombro de Michael. Os seus cabelos longos cobriam-lhe o peito como um manto fino.
Grigori voltara para junto do rebanho. Fizera-o sair da cerca e levara-o para a orla da floresta, como se os lobos esfomeados não voltassem a atacar a partir dos rochedos. O corpo do lobo morto ainda estava no prado. Talvez isso assustasse os outros e fizesse com que não saíssem da floresta protectora.
Quase ao mesmo tempo, Sônia e Michael acordaram.
Enquanto ela se levantava e atirava os cabelos para as costas, Michael, ao acordar, agarrou-lhe a mão e segurou-a com força.
- Ainda estás aqui? - perguntou ele. - Não foi um sonho?
A febre baixara. Sentia-se muito melhor depois do longo período de sono e com força suficiente para se levantar. Com a outra mão, segurou o braço de Sônia e levantou a cabeça do casaco enrolado que lhe servia de almofada.
- Devias ficar deitado, Mihai - disse Sônia com uma expressão zangada. - Não te deves levantar.
- Sabes o meu nome?
Michael levantou-se. Sentia a fraqueza das suas pernas e evitou dar um passo sequer.
- Vera Mocanu disse-me!
- Vera!
A recordação irrompeu em Michael como um vulcão. Vera Mocanu... Fora a primeira mulher que o beijara e despertara nele uma nova vida que fora atraiçoada pela sua fuga. No entanto, tinha-lhe salvado a vida. Mas que tipo de vida fora aquela? Se a tivesse nos braços, até poderia morrer. Continuar a viver sem ela parecera-lhe, na altura, impossível até ver os russos na estrada. Aí, o sonhador transformou-se no apátrida, perseguido, esquecido, no procurado, no louco, naquele que sucumbia ao medo.
- Vera... - repetiu ele em voz baixa. - Onde está ela?
- Não sei. - Os olhos de Sônia estavam escuros de raiva. Mas quando a vir, arranho-a toda! Ela deixou-te sozinho. Não foi?
- Sim.
- Deveria ser amaldiçoada! Quando uma pessoa profere um desejo no dia de Páscoa, Deus deve ouvi-la!
- Ela salvou-me a vida.
- Ainda a amas?
- Eu... nunca a amei.
Sônia olhou para ele com tristeza.
- Porque mentes? - perguntou brandamente. - Não me magoas com isso. Tu nunca me tinhas visto... Nessa altura, estavas deitado na erva e tinhas muitas dores. No entanto, eu vi-te e nunca te esqueci. Não é verdade! Durante algum tempo esqueci-te, mas depois veio essa Vera Mocanu, e eu, quando ela falava de ti, voltei a ver-te. Desde então, nunca mais te esqueci! - Olhava para Michael criticamente com os seus grandes olhos negros. - Não achas isso estranho, Mihai? Não me conheces e eu nunca te esqueci. Já nem sabia como é que tu eras. No entanto, reconheci-te. Ontem, quando estavas aí deitado e o tio Georghe te cosia a ferida.
Michael agarrou-se ao ombro. Debaixo das espessas ligaduras, ainda sentia um ligeiro ardor e uma ligeira resistência. ”Coseram-me? Sim! Um homem mais velho também estava aqui e deu-me quatro comprimidos. Foram maravilhosos. Proporcionaram-me um sonho que era tão leve como um monte de penas.”
- Como te chamas? - perguntou ele.
- Sônia. Sônia Patrascu.
- Que nome tão bonito! Como uma música melancólica.
- O meu pai também se chama Mihai.
Michael passou a mão pelo rosto. A sua barba emaranhada arranhava-lhe a palma da mão. Admirado, olhou para os cacos do espelho que estavam debaixo da prateleira. Tinham sido varridos.
- Eu retirei-os. - Sônia fez-lhe uma festa no braço, timidamente, mas com ternura. - Não deves ter gostado de ver...
- Foi horroroso, Sônia. Não me reconheci. Olhei para mim e não percebi que era eu.
- Em breve parecerás outro. Irás connosco para a aldeia.
- Para a aldeia? Mas isso é impossível!
- Irás viver no sótão. Quando estiver escuro, podes ir passear para o jardim que está atrás da casa ou para o milheiral. Ninguém te verá. Nem Mormeth.
- Quem é Mormeth?
- Um cigano. Um soldado da milícia.
- O teu namorado?
- Não tenho namorado! - gritou Sônia. - Foi Mormeth que capturou os teus camaradas. Naquela altura.
- Sabes onde estão agora?
- Talvez no campo de prisioneiros de Focsani.
- Talvez...
Sônia desviou o olhar de Michael e fixou-o nas mãos.
- A milícia entregou-os aos russos. Nunca se sabe o que lhes pode acontecer.
”Naquela altura, na gruta”, pensou Michael. ”Há quanto tempo foi isso? O arquitecto Bornemann, que transformou a gruta numa habitação. O temerário Kleinhans, para quem nada era impossível. Anton Haindl, que parecia um touro, mas que tinha a mentalidade de uma criança... Há quanto tempo foi isso? Agora estão algures na Rússia num campo de prisioneiros, provavelmente para lá dos Urales ou no mar Árctico ou na fronteira com a Ásia, na Sibéria ou até na Mongólia. Podiam estar em qualquer lado. Até debaixo da terra, numa mina ou numa vala comum.” Apenas ele estava vivo... Michael Peters, o rapaz da Vestefália, a criança a quem tinham vestido um uniforme cinzento, dizendo:
- Vai. Estás a salvar a Alemanha!
E ele acreditara. Acreditara em tudo. Até no amor de Vera Mocanu. Mas com ela morrera a sua fé.
A voz de Sônia arrancou-o das suas recordações, trazendo-o de novo para a realidade, para aquele dia de Primavera em que estava à porta da cabana com os seus raios de sol.
- Vem! Vou fazer-te a barba - disse Sônia. - Trouxe tudo. Sempre barbeei o paizinho. Sei fazê-lo. Não te vou cortar. Senta-te nesta cadeira junto da janela. Quero transformar-te novamente no jovem Mihai.
- Barbear? - perguntou Michael. - Tu queres-me... Passou novamente a mão pelo rosto, pela barba, pelo pescoço,
pelo qual desciam os restos de barba por fazer.
- Senta-te!
Obedientemente, sentou-se no banco que Sônia colocara junto à janela. Enquanto ele tirava a camisa do seu ombro são e ficou sentado em tronco nu, Sônia misturava numa chávena espuma de barbear. Depois, meteu dois dedos na espuma, colocou-a no rosto de Michael e espalhou-a pelo rosto e pelos pêlos da barba.
- Fazes isto sempre assim? - perguntou ele, cuspindo espuma da boca.
- Sempre...
- Sem pincel?
- Com os dedos é melhor.
Agarrou na navalha de barbear, esfregou-a na manga do casaco enquanto a segurava com os dedos, esticando-a, e passou com o dedo indicador sobre a lâmina.
Michael olhava. ”É tão bonita”, pensou. ”Decerto não existe rapariga mais bela do que ela. Será que me dá uma bofetada se eu a beijar? Será que foge...?”
Inclinou a cabeça para trás enquanto Sônia se curvava sobre ele por trás. Os olhos estavam agora muito perto, grandes e brilhantes. Os lábios estavam vermelhos e húmidos. Ele respirava fundo e aceleradamente. Foi assolado pelo estranho sentimento que tivera quando beijara Vera Mocanu. Um sentimento que ele não conseguia classificar na sua vida. No entanto, era fantástico e quase mágico.
- Beija-me - disse ele em voz baixa.
Sônia abanou a cabeça. Ele não viu. Apenas lhe via os olhos e o modo como passeavam de um lado para o outro.
- Primeiro, a barba...
Ele fechou os olhos. A primeira passagem com a lâmina rangeu e cortou os longos cabelos. Depois, tudo decorreu sem dor. Era como se aquelas passagens da lâmina eliminassem o seu passado, o seu horrível envelhecimento, a sua estranheza, como se regressasse a uma juventude que se escondera por baixo dos pêlos, como se procurasse protecção do horror que caíra sobre si.
Não soube quanto tempo durou. Quando ela disse ”Pronto!”, ficou sentado com a cabeça inclinada para trás e manteve os olhos fechados.
- És tão bonito - disse Sônia. - Tão suave e jovem...
- Jovem? Realmente jovem? - gaguejou ele. - É verdade?
- Olha para ti...
Abriu os olhos, empurrou a cabeça para a frente e simultaneamente apalpou as faces e o queixo. Tudo estava uniforme, macio, tão macio como se não tivesse rosto, mas sim um rinque de patinagem.
Sônia estava à sua frente e segurava o espelho que trouxera consigo. Olhou para si. Estava pálido, esfomeado e encovado, mas reconheceu-se. Aquele era ele. Já não era um estranho.
- Este, sou eu... - arquejou. - Sônia! Voltei. Eu... eu... Levantou-se de um salto, cerrou os dentes para não gritar de
dor, puxou Sônia para si com o seu braço são e beijou-a. Beijou-a descontroladamente, puxando-a para si de tal modo que lhe cortava a respiração.
- Mihai! - arfou ela. - Oh, Mihai! Estou a sufocar! Tu matas-me! Não... não! Oh, Mihai... Mihai...
Mais tarde, sentaram-se na relva ao sol junto à orla da floresta. Sônia encostara a cabeça ao seu ombro. Olhavam para o vale, para o rebanho de ovelhas, para Grigori, o idiota, que estava ajoelhado junto de uma ovelha prenhe e a ajudava a trazer ao mundo um cordeiro.
Michael brincava com os cabelos de Sônia. Estava tão feliz que tudo lhe era indiferente: a milícia na aldeia, os russos na aldeia seguinte, o ousado Stepan Mormeth, a Alemanha para onde queria voltar e os meses que passara em grutas e debaixo de pedras e árvores como um animal.
Não queria pensar em nada a não ser no amor. Que havia no mundo para ele além desse amor? Teria mais alguma coisa por que esperar, de mais maravilhoso para perder ou de mais belo para sonhar?
- Os teus pais vão-me esconder? - perguntou ele.
- O tio Georghe já deve ter falado com eles.
- E nunca mais nos vamos separar? Não vou ter de fugir para as montanhas?
- Nunca mais, meu Mihai.
Colocou-lhe a mão sobre a face. Ele virou a cabeça e beijou-lhe a palma da mão.
- Um dia, também vão perdoar aos alemães - disse, ficando novamente inseguro.
- Com certeza que sim. Não se pode odiar para sempre...
- Não. Não se pode.
Do meio do prado, Paul Herberg acenou-lhes. Ele colocava o cordeiro recém-nascido em pé com ambas as mãos sob o quente sol da manhã. Sônia e Michael acenaram também. Riram-se de felicidade.
- O bom Grigori - disse Sônia. - Se ele pudesse falar, teria sido um herói. - Hesitou. O conceito de herói dirigia os pensamentos para a guerra. - Olha! - disse ela muito séria. - Porque temos de vos entregar aos russos?
- Não sei... não sei...
- E porque estás na Roménia?
- Não sei.
- Por que motivo houve esta guerra?
- Não sei. Tu sabes?
- Não. - Ela olhou para vale onde estava a aldeia, a casa dos pais, a milícia, Stepan Mormeth e o quotidiano impiedoso. - Sabemos muito pouco... E se todas as pessoas soubessem tão pouco como nós, por que motivo haveria guerra?
Uma pergunta que nasceu com a humanidade e que só se esbateria quando o homem se eliminasse a si próprio.
Nos montes Vrancei havia muito que se festejava o casamento. Fora um casamento que apenas era possível naqueles tempos: um sacerdote, raptado de uma aldeia, celebrara o casamento e abençoara os noivos com os braços a tremer. As testemunhas estavam de metralhadora em punho ao lado do sacerdote. Sobre umas pedras enormes, onde tinham sido colocadas várias mantas, estava ajoelhado o casal de noivos. O major Neculae Tripadus e Vera Mocanu.
Após a cerimónia, o sacerdote foi novamente conduzido para fora do acampamento rochoso. No meio do crepitar das chamas das fogueiras do acampamento, sobre as quais assava um javali, e das palavras de agradecimento de Tripadus, que estava a discursar para os seus soldados, uma fina brasa caiu pelos rochedos abaixo.
Enquanto o javali ainda assava, regressou a escolta que levara o sacerdote de volta à aldeia. O jovem tenente que a liderava acenou com a cabeça como resposta ao olhar inquiridor de Tripadus.
- Para nós começa agora a guerra! - disse o major Neculae Tripadus. Puxou a sua esposa, Vera, mais para si e beijou-a à frente dos soldados. - Na Europa os canhões calam-se, mas na Roménia não nos podemos esquecer. O rei traiu-nos e entregou-nos aos soviéticos. Vamos retomar a Roménia aos vermelhos! Existe apenas uma Roménia livre! A Pátria ou a morte, rapazes!
- A Pátria ou a morte! - foi o que ecoou na ravina, sendo o som devolvido pelos rochedos.
Foi uma noite de núpcias estranha.
Em vez de estar nos braços de Neculae, Vera encontrava-se deitada numa saliência rochosa e disparava uma metralhadora alemã. À sua volta explodiam granadas e os tiros com balas explosivas dos russos batiam entre as pedras.
Uma companhia russa viera do vale. Tinha derrubado as primeiras sentinelas. Não fora difícil, pois os homens tinham bebido vinho e estavam sentados num círculo a festejar alegremente o casamento do seu major.
Apenas um regressara, seguido pelos soldados soviéticos, dando o alarme no acampamento.
Durante seis horas, os russos estiveram sob o fogo cerrado dos legionários. Depois, ouviu-se ribombar no vale. Fora chamada a artilharia. Um batalhão trepara por rochedos quase inultrapassáveis para contornar o cume montanhoso dos Camisas Verdes e atacá-los pela retaguarda.
Neculae Tripadus ignorou o acampamento quando as primeiras granadas atingiram o cume e as pedras em lascas se misturavam com uma chuva mortal. Na retaguarda ouviu os primeiros disparos de metralhadora dos russos. Os altos rochedos ainda estavam no meio, mas o que são rochedos quando o ódio e o impulso de aniquilamento se transformam em asas?
Rastejou através daquele fogo disperso dos soldados soviéticos até Vera Mocanu, que continuava atrás da sua MG e disparava contra tudo aquilo que se movia do outro lado da ravina. Estava bem escondida por detrás de grandes pedras, inatingíveis até pelos franco-atiradores que tinham subido aos altos pinheiros para disparar sobre os legionários como se fossem lebres assim que estas aparecessem na sua mira.
- Não me trouxeste sorte nenhuma. - disse Tripadus a Vera. Estava deitado a seu lado no rochedo, sangrando de uma ferida na testa e com os olhos a brilhar de fanatismo. - Pensei que eras uma excepção, mas não foi assim. Não se deve ter mulheres por perto quando se trata de coisas grandiosas.
Baixou-se. Na orla da ravina ouviam-se os morteiros. Os seus disparos batiam entre as entradas das grutas. Algures alguém gritou. Estridente e longamente. Depois, viram-no. Um jovem legionário. Com as mãos pressionadas contra o corpo, corria a gritar para a floresta. Correu para a frente de uma rajada de MG que o ceifou como se fosse milho maduro. Antes de cair, o seu corpo transformara-se num passador.
Neculae Tripadus olhou para a sua jovem esposa. Estava deitada atrás da sua MG e disparava. O recuo da arma, que ela tinha bem encaixada na curva do ombro, fazia-lhe tremer o corpo todo.
”Vera Tripadus”, pensou Neculae. ”Durante apenas sete horas e apenas de nome. Como teria sido bonito numa Roménia livre...”
Na retaguarda dos legionários, o fogo das MG intensificava-se. O batalhão russo aproximava-se.
Neculae Tripadus arrastou-se para mais perto de Vera. Protegeu-a com o corpo enquanto ela disparava. O peso esmagou-a e o cano da MG ficou colocado na direcção do céu e disparou contra as nuvens.
- O que estás a fazer, Neculae? - gritou Vera.
Ela quis-se virar, mas Tripadus empurrava-lhe a cabeça contra as pedras. Depois, colocou-lhe a pistola na nuca e disparou. Vera morreu com uma pergunta nos lábios.
- O que?... - gritou ela ainda.
Neculae olhou para o fumo da pólvora que queimara com o disparo. Levantou o tronco, ergueu-se sobre o abrigo e olhou orgulhosamente para a entrada da ravina.
Uma torrente de uniformes castanhos surgia no vale. O grito de guerra dos soviéticos, o horrível ”Urra!”, repetiu-se milhares de vezes.
Neculae levantou-se do lado de Vera. Com um porte majestoso, ficou de pé na saliência do rochedo. Um alvo vivo.
Só depois de três rajadas de MG é que ele caiu. Era como se estivesse enraizado no rochedo.
Quando os soviéticos chegaram ao acampamento, encontraram mortos duzentos e setenta e um homens e uma mulher.
Ninguém sabia quem ela era. Foi enterrada ao lado de Neculae Tripadus, pois tinham-nos encontrado ao lado um do outro.
Apenas um sobreviveu ao ataque. Um jovem legionário. Chamava-se Wassile Popa. Enquanto os russos reuniam os mortos, conseguira rastejar através dos arbustos e esconder-se. Fugiu para uma aldeia e chorou quando se viu em segurança.
- A culpa é só dele! - gritava sem parar. - Ele traiu-nos. Aquele soldado alemão que conseguiu fugir! Foi ele! Só ele! Que Deus o amaldiçoe!
Para Wassile Popa esta ideia tornou-se o único objectivo da sua vida. Não pensava em mais nada.
À noite, Michael foi levado para Tanescu. O velho médico, Georghe Brinse, viera buscá-lo. Sônia e ele apoiaram-no enquanto desciam o prado. Grigori, o idiota, ficou para trás. Conseguira ainda falar secretamente com Michael.
- Fica na aldeia com a rapariga, companheiro - sussurrou ele no redil. - Ela está louca por ti. Eu ouvi falar numa espécie de amnistia. Se for aprovada, todos ficaremos livres. Entretanto, eu tenho de ser o idiota e tu o amante.
- Eu amo verdadeiramente a Sônia. Não estou a fingir - disse Michael Peters com determinação.
- Ainda melhor! De vez em quando, irei visitar-te. Fingir ser idiota faz com que, ao fim de algum tempo, o fiquemos realmente. Portanto, tudo de bom, amigo!
Deu uma palmada amigável no ombro são de Michael e foi-se embora. Sônia foi até ao curral para trazer Michael.
- Esta noite a milícia faz uma patrulha na aldeia vizinha disse ela. - Se formos depressa, chegaremos a Tanescu antes que alguém nos veja.
Durante quase duas horas desceram a pradaria até ao vale. No último trajecto, foi preciso quase levar Michael ao colo. As pernas fraquejavam-lhe, e não sabia se voava ou se caminhava. A noite que o circundava era um pião gigante que zumbia à sua volta. Estava entre Brinse, que arquejava devido à carga que transportava, e Sônia, que transpirava e parecia uma boneca com os membros desconjuntados.
Assim, arrastaram-no os dois para dentro da aldeia e colocaram-no sobre o banco de madeira na grande sala de Patrascu. Mal o deitaram na cama, adormeceu de cansaço. Ele já nem sabia onde estava. Reparou no brilho do fogo, em alguns rostos flutuantes na escuridão, os quais fluíam como leite que é deitado para dentro de um copo. Ele via imagens escuras, ouvia vozes abafadas que estavam tão longe que soavam como o ruído de água a correr de uma fonte. Depois nada mais existiu à sua volta a não ser um flutuar de todos os sons e imagens.
- O que devo fazer com ele? - resmungou o velho Mihai Patrascu. Observava o homem que dormia. - Apenas me vai trazer problemas com os soviéticos! Porque é que vocês não o deixaram com o idiota do Grigori?
- Precisa de tratamento. Não vês que está gravemente ferido? Brinse meteu uma almofada debaixo da cabeça de Michael.
Aquele gesto estava tão impregnado de uma protecção paternal que o velho Mihai acendeu o cachimbo a resmungar. Esmagou no chão o pedaço de madeira a arder com que o fez. Meu Deus! Ele fora sempre um bom companheiro.
- Se ele for descoberto aqui eles queimam-nos a casa. E nós vamos presos para Bacau! O amor pelo próximo também tem limites. Digo eu!
- Eu amo-o, paizinho.
Sônia estava de pé junto ao fogão de lenha aberto e colocara uma chaleira com água a aquecer para o chá. O velho Patrascu virou-se como se alguém lhe tivesse espetado uma faca nas costas.
- O que é que disseste? - gritou ele.
- Amo-o, paizinho!
- Um alemão?
- O que é que me importa onde ele nasceu?
- Que infelicidade! Que infelicidade!
Mihai Patrascu deixou-se cair sobre um banco e atirou o cachimbo para cima da mesa. Anna, a mãe, cortava toucinho para dentro de uma panela. Queria ainda assar batatas. Do almoço tinham sobrado beterrabas.
- Tudo correrá bem. Primeiro ele precisa de ficar bom. Ficará no sótão, pois aí ninguém o vê.
- Será que isto é um hospital militar? - gritou Patrascu.
- Tu és um cristão, paizinho. - Sônia verteu a água a ferver por cima do chá. - Ainda ontem recebeste o beijo de Páscoa e louvaste o amor entre todos os homens.
Mihai Patrascu calou-se relutantemente. Olhou para Michael, que dormia. O seu ombro ferido estremecia durante o sono. ”Que rapaz tão novo”, pensou ele. ”Um imberbe, que deveria ser um herói. Um filhinho de sua mãe que trocou o leite pelas armas. Na realidade, a guerra é algo de irracional. A guerra é contra toda a natureza.”
- Leva-o lá para cima - disse ele num tom abafado. - Mas se me queimarem a casa, eu torço-vos o pescoço! A todos!
Ruidosamente abandonou a casa e ficou cá fora, junto à sebe do jardim. Através da noite, olhou para as florestas e as montanhas. Aí, a milícia passava novamente a pente fino as ravinas e as gargantas. Faziam-no todas as semanas, há dois anos, e traziam sempre alguém com eles. Um homem de Codreanu de que se dizia ter sido levado para Bacau e fuzilado sem grandes interrogatórios e alguns alemães perdidos. Uma vez até trouxeram um desertor russo que nem sequer chegou a Bacau, pois fora abatido durante a fuga.
Mihai Patrascu ficou em frente à casa até Sônia sair.
- Está lá em cima, paizinho. Já comeu e voltou a adormecer.
- Onde é que o deitaram?
- Num colchão de palha com três cobertores.
- Então está bem.
O velho Patrascu abandonou o seu posto junto à cerca do jardim. Fizera com que parecesse que tinha ido apanhar o ar fresco da noite. A quem ocorreria que ele estava de guarda?
Não poderia saber-se que o intratável Mihai também poderia ser sensível.
A ferida sarou lentamente. Todos os dias, Georghe Brinse vinha a casa de Patrascu, ligava Michael, dava-lhe comprimidos para acalmar as dores e colocava ervas fresca sobre a ferida para facilitar a cicatrização e impedir uma inflamação.
- São as velhas mezinhas caseiras - disse ele. - Às vezes é preciso colocar estas receitas primitivas acima da medicina.
Sempre que podia, Sônia estava no sótão junto de Michael. Ficavam sentados numa pequena janela que mais parecia uma fenda e olhavam para os campos, para os prados com as manadas de vacas e para as juntas de bois que puxavam os arados e as alfaias.
Falavam pouco um com o outro. Beijavam-se em silêncio. Inicialmente com timidez e depois com paixão, à medida que o seu amor amadurecia. Na quarta semana, quando a ferida do ombro já estava sarada e o corpo e o rosto de Michael haviam perdido a dureza ossuda da fome, quando ele já se sentia bem e começava a achar o seu esconderijo demasiado isolado, Sônia passou a noite com ele no sótão. Na manhã seguinte, o velho Mihai Patrascu entrou no esconderijo e sentou-se no colchão de palha. Encheu o cachimbo, acendeu-o, soprou o fumo contra a madeira da trave mestra e olhou depois para o saudável alemão.
- Portanto, já aconteceu - disse ele vagamente. - A minha filhinha Sônia tornou-se alemã. Durante a noite, não foi?
- Nós amamo-nos, pai Mihai - replicou Michael. - E se estivéssemos em paz, casaríamos.
- Sem me perguntar?
- Eu pediria.
- Também não o fizeste na noite passada! A minha criança transformou-se numa mulher. Se tivesse sido alguém da aldeia, talvez aquele Mormeth, eu tê-lo-ia morto! Podes ter a certeza!
- E porque não o fazes comigo?
- Porquê? Sim, porquê! Também faço a mesma pergunta! Aceitei-te como hóspede e tu levas a minha filha!
- Ela ficou comigo. Voluntariamente e não obrigada. Michael estava curvado junto da janela naquele estreito quarto.
Estava novamente magro e muito jovem. Só em torno da boca é que tinha rugas que destoavam na sua juventude. O velho Mihai fez um gesto com o braço.
- Voluntariamente! Como se isso fosse importante! Aconteceu! Bom! Eu estive toda a noite sentado. Esperei por Sônia. Só ao amanhecer é que ela veio para baixo. Sabes o que significa para um pai estar sentado, esperar e saber o que está a acontecer sobre a sua velha cabeça? Fica dilacerado.
Olhou para Michael com os seus grandes olhos. ”Ela tem os olhos dele”, constatou Michael. ”É o mesmo olhar. O que está atrás destas pupilas são pensamentos profundos e muito enigmáticos, e até secretos, na entrega e na felicidade.”
- O que acontecerá agora? - inquiriu Mihai Patrascu.
- Temos de continuar a aguardar. O facto de Sônia e eu pertencermos um ao outro nunca mudará. Só o tempo tem de mudar.
- E se ela tiver um filho?
Michael estremeceu. Um filho? Sônia e ele...
- Nem sequer pensei nisso - gaguejou ele.
- É preciso pensar nisso. As nossas mulheres gostam de engravidar. São como um solo fértil. O que acontecerá se Sônia engravidar? De quem será o filho? Será que ela deve dizer que não sabe quem é o pai? Se ela disser que o pai é um soldado alemão, será levada para Bacau, rapar-lhe-ão os cabelos e será chicoteada no meio da rua. - O velho Mihai arfava de aflição. - Será que não pensaste nisso? Vocês comportaram-se como duas raposas com cio. Os jovens nunca pensam nas coisas que lhes podem acontecer!
Michael mordeu o lábio inferior. O que Mihai Patrascu dizia era tão verdadeiro que o esmagava.
- O sacerdote casar-nos-á - disse ele em voz baixa. - Pode fazê-lo e assim seremos um casal perante Deus!
- Casar! Será que ela vai casar com um fantasma? Ninguém te pode ver! Ninguém sabe que estás vivo. Ninguém falou contigo. Entretanto, a pequena Sônia engravida... do ar. Não é? Ela não o poderá esconder como te esconde a ti.
Michael acenou com a cabeça.
- Vou-me apresentar à milícia - disse ele com voz rouca. Talvez me libertem daqui a alguns meses. A guerra já acabou.
- Mas não acabou a caça às cabeças. Por cada soldado alemão, os soviéticos oferecem uma recompensa. Estão muito furiosos com os alemães que ainda vivem nos Cárpatos. - Mihai abanou a cabeça. - O que fará a Sônia com uma criança sem pai? Não, não. É melhor esperar, meu filho. Se ela engravidar, mudar-se-á para a divisão que fica sobre o celeiro. Direi na aldeia que a Sônia está em casa da tia em Damienesti. Que está doente dos pulmões. Não é uma boa ideia?
Michael concordou com a cabeça. Estava tão confuso que o velho Mihai continuou:
- Crianças geram crianças. Meu Deus! Que tempos tão promíscuos!
Levantou-se da cama de palha e deu um soco no peito magro de Michael.
- És filho de camponeses?
- Sim. Da Vestefália. Tratei de cavalos...
- Somos demasiado pobres para ter cavalos. Mas temos bois. Sabes lavrar?
- Sim. Também com uma junta de bois. Sei fazer tudo o que é necessário numa quinta.
- Com esses braços fracos? Qualquer carneiro te deita ao chão!
- Eu vou ficar mais forte, pai Mihai.
- Vamos ver. - Voltou a olhar Michael de alto a baixo, como se ele fosse uma vaca que Patrascu quisesse comprar. Até admirava não lhe ter aberto os maxilares para lhe ver os dentes. - Durante a noite vais cortar madeira. Isso fortalece.
- Eu faço tudo, pai Mihai.
- Muito bem! Muito bem!
Patrascu acenou com a cabeça, meteu o cachimbo no bolso do casaco e abandonou o pequeno quarto que ficava sob o telhado.
Michael ouviu descer dolorosamente o escadote. Depois, ouviu-se ruído debaixo do alçapão. O escadote foi retirado. Michael dirigiu-se à janela e olhou lá para fora. Os camponeses trabalhavam nos campos. As raparigas e as mulheres usavam lenços claros. Um grande tractor puxava um arado que abria a terra. Um jovem que usava uma espécie de uniforme estava sentado no lugar do condutor e dirigia o veículo.
Fora o primeiro esforço da recém-fundada Estação de Máquinas Outubro Vermelho, uma unidade colectiva que se formara a partir de três grandes latifúndios.
Atravessando a quinta por baixo da janela, Sônia dirigia-se ao estábulo. Não olhou para cima, para a pequena janela. Caminhava como um gato, descalça, flexível e em silêncio. O seu longo cabelo negro ondulava ao vento.
”Minha menina”, pensou Michael muito feliz. ”Apesar de tudo, a vida ainda é bela.”
No fim-de-semana, Jon Lupescu, o novo comissário municipal, e Boris Petrovich Sumiov vieram para Tanescu.
Sumiov era um major russo. Em Bacau, dirigia os serviços secretos e as missões dos destacamentos de buscas. Para além disso, era ainda responsável pela manutenção da ordem na zona e pelo espírito pró-soviético dos camponeses dos Cárpatos.
Uma tarefa difícil que ninguém invejava. O que é que os camponeses sabiam da Rússia a não ser que tinha derrotado a Alemanha, que ocupara amigavelmente a Roménia, que transformara tudo, que prendia os não-comunistas e que pendurava fotografias de Estaline por toda a parte? As fotografias podiam ser vistas na sede do município, na casa do líder da aldeia, no quartel da milícia e na sala de refeições.
Esta stolowaja, a sala de refeições, fora o que trouxera Lupescu e Sumiov a Tanescu. Aquela enorme sala de reuniões fora construída a partir do celeiro abandonado de um grande latifundiário, estava decorada com grandes bandeiras, com quadros de Estaline e Lenine, fora construído um enorme púlpito, nas paredes havia estandartes onde se podia ler ”Trabalhadores e camponeses de mãos dadas para a paz” ou ”Cada hora num tractor é uma vitória sobre o capitalismo”. Para resumir, os camponeses de Tanescu estavam boquiabertos junto dos trabalhadores especializados, não perguntavam nem percebiam nada e pensavam que iria haver um cinema ou um local de dança.
Este centro do comunismo (assim dissera o camarada Lupescu mais tarde) deveria ser inaugurado. Digna e festivamente, com um juramento ao comunismo. Reuniram os camponeses de toda a região. A milícia tratou do assunto. Levava os convites a casa. Mais pareciam ordens, mas dependia do tom. A stolowaja devia estar cheia de comunistas entusiasmados. Sumiov deveria informar Bucareste que, até aos Cárpatos, fora reconhecido o espírito dos novos tempos.
Até o sacerdote estava à porta da igreja quando o automóvel proveniente de Bacau entrou na aldeia. Era um novo carro russo que fora directamente importado de Moscovo. Os camponeses nunca tinham visto uma coisa assim e ficaram estupefactos.
A milícia tomara o seu lugar à frente da sala de reuniões. Apresentaram armas com todo o aprumo. Viera de Bacau uma banda de música com um novo tipo de flautas e tocava uma marcha militar. Na stolowaja, os camponeses estavam sentados na sala, onde mal cabiam, e permaneceram sentados quando o major Sumiov entrou.
Lupescu sorriu, como que pedindo desculpa.
- Isto tem de mudar, camarada comissário! - afirmou duramente Sumiov.
- É para isso que estamos aqui.
E mudou. Jon Lupescu falou durante uma hora. Pôs Estaline nos píncaros e insultou os grandes latifundiários, essas sanguessugas. Depois, falou o major Sumiov num romeno duro. Não disse muito. Era militarmente conciso.
- Camaradas! - rosnou ele. - A amizade da Rússia é uma oferta que ainda não conseguem avaliar. O grande irmão do Leste protege-os dos exploradores e dos capitalistas, dos revanchistas e dos fascistas. Somos todos irmãos, camaradas! A partir de amanhã, haverá uma companhia de soldados em Tanescu. Liberdade!
Levantou o punho em sinal de cumprimento.
Como ninguém na sala levantou o punho para retribuir o cumprimento, olhou, durante alguns instantes, à sua volta, desceu do púlpito, caminhou através das filas até à saída e amaldiçoou a sua tarefa de meter naquelas cabeças de pedra a ideia da vitória do comunismo.
Os camponeses regressaram às quintas e aos campos, o major Sumiov e o comissário Jon Lupescu comiam uma galinha, juntamente com os comandantes da milícia, e regressaram a Bacau. A banda de música ainda estava a tocar qualquer coisa na stolowaja, mas só velhas e velhos os ouviam, bem como crianças com os narizes vermelhos que faziam caretas e riam quando as flautas tocavam. ”O primeiro congresso comunista de aldeia foi um grande desastre”, fora o que o camarada Lupescu dissera eloquentemente sobre a reunião.
Mas os soldados vieram.
Uma companhia inteira de infantaria de uniformes castanhos, fortemente armada, sedentos como camelos depois de uma viagem no deserto e esfomeados de mulheres como vagabundos após o Inverno.
Entraram em Tanescu a marchar, cantando, de cabeça erguida, mas pelo canto dos olhos olhavam para as raparigas que estavam nos jardins ou que retiravam água dos poços.
Stepan Mormeth percebeu o que estava a chegar à aldeia. Com os lábios cerrados, olhou para os ”irmãos vermelhos”.
- Se tudo correr bem! - disse ele ao primeiro-sargento. Como eles olham para as raparigas!
- Fraternalmente! - disse com sarcasmo o primeiro-sargento.
- Vou estar atento à casa de Patrascu. - Mormeth pôs o cinto e retirou a metralhadora do gancho da parede. - Se algum russo tocar na Sônia, acabam-se logo os irmãos.
- Não faças disparates, Stepan! - O primeiro-sargento olhou para a companhia, para o modo como marchava perante a stolowaja e parou. O jovem tenente que a comandava trazia três condecorações no peito. Gritou as ordens com uma voz clara. - Um tipo rigoroso! - determinou o primeiro-sargento. - E tem um excelente aspecto!
- Também o mato se tocar na Sônia! - A respiração de Mormeth estava acelerada. - Camarada, destaca-me para a casa do Patrascu!
- Estás louco, cigano!
- Ficarei louco se ela não tiver protecção. Tenho de estar junto dela! Eu... eu... - O rosto de Mormeth estava muito vermelho. Os seus olhos negros tinham um brilho selvagem. O primeiro-sargento deu um passo atrás. - Dormirei à porta como um cão se não me deres acantonamento! Deserto. Sabes o que isso significa para ti como comandante?
- Ah, estas mulheres! - O primeiro-sargento deitou as mãos à cabeça. - Vai para junto de Patrascu, meu idiota! Vão expulsar-te! Porque não te enviaram para as pedreiras?!
A companhia russa retirara-se. Na stolowaja tinham sido colocadas camas de campanha. A ”caserna”, o antigo celeiro de Stefan Cerna, o grande latifundiário que fugira, ainda não estava pronta. Os operários estavam a pintar slôganes nas paredes.
Nessa noite tudo ficou em paz. O jovem tenente proibira as saídas. Em compensação, as canções dos soviéticos na stolowaja ecoavam nas ruas da aldeia. Ou eram melancólicas ou muito alegres. Um camponês, que fora espreitar, teve o que relatar.
- Estão a beber vodca, irmãozinhos. Garrafas inteiras de vodca! A sala está com um cheiro terrível a destilaria.
”Não há fuga possível”, pensou Michael.
Estava agachado junto à fenda que lhe servia de janela e olhava para os campos. Num local livre entre a aldeia e os campos, a companhia russa fazia exercícios. Era como no exército alemão. As figuras castanhas andavam aos saltos, rastejavam pelo chão, caminhavam numa posição hirta, exercitavam o controlo das armas, corriam de uma ponta da praça até à outra ou marchavam à volta da praça. Os líderes dos grupos gritavam a todos, com as vozes a sobreporem-se.
”Chama-se a isto treino básico”, pensou Michael. ”Fi-lo em Emmerich, junto ao belo Reno.” Abanou a cabeça para afastar os pensamentos sobre o passado.
Russos na aldeia! Sônia viera imediatamente, ofegante e desesperada. Depois, tinham-se beijado como se aquilo significasse uma despedida. Na primeira noite, ela voltara a dormir com ele, pois tinha medo que os russos pudessem revistar as casas à procura de mulheres. A tremer, escutando o que se passava na parte de baixo da casa, ela estava deitada a seu lado e fortemente agarrada a ele.
Ouviram um ruído de vozes que vinha da grande sala, mas ninguém revistou a casa. Ouviu os pais a irem para o quarto. Só nessa altura acalmou, beijou novamente Michael e adormeceu nos seus braços.
Stepan Mormeth também dormia. Levara a cabo o seu plano. Quando começara a escurecer, aparecera em casa de Patrascu. Trazia na mão uma mochila com todas as suas coisas.
- O que queres? - perguntou Mihai Patrascu quando Mormeth entrou na sala. Olhou para a mochila e não adivinhou nada de bom.
- Fui enviado para aqui como guarda.
- Para aqui? Quem te destacou?
- A milícia do rei da Roménia - retorquiu Mormeth orgulhosamente.
- Do rei? - Mihai Patrascu abanou a grande cabeça. - O rei ainda não me escreveu. Vai-te embora, cigano!
Stepan Mormeth engoliu aquilo. ”Sônia”, pensou ele. ”Pela Sônia suporto tudo. Não há ofensa que a Sônia não possa compensar. Não há nada que me possa prender senão ela.”
Colocou a mochila no meio da sala e olhou para Patrascu com uma expressão de desafio.
- Ordens são ordens, Mihai Patrascu. Queres opor-te a uma ordem de Bacau? Não te aconselho! Ainda estamos em guerra!
- Volta para onde estavas! - gritou Patrascu. - Não preciso de militares em minha casa!
- Temos de dar lugar aos irmãos russos, Mihai. Patrascu percebeu que tinha de desistir.
- Leva a tua trouxa lá para trás, para o quarto. Mas digo-te uma coisa: a primeira vez que incomodares a Sônia, abro-te esse crânio com o machado!
- Nada lhe vai acontecer. Palavra de honra, Mihai.
- E só te quero ver aqui para dormir! Durante o dia, desapareces!
- De acordo. Fico aqui só à noite.
Mihai Patrascu ergueu as sobrancelhas espessas.
- O que quer isso dizer?
- Eu quero protegê-los dos russos, Mihai. É esta a verdade, pela mãe de Deus! Quero proteger a Sônia.
- Está bem! Está bem! - bramou Patrascu. - Se conseguires, recebes todas as noites um bom jantar. Não deves depender de um franguito.
- E de uma dança com a Sônia?
- Isso seria uma coisa a negociar. - Patrascu riu-se de aflição. Stepan Mormeth ficou contente. Foi para o quarto indicado,
olhou ainda pela janela até a Lua romper as nuvens e depois meteu-se na cama e colocou a metralhadora no chão a seu lado. Pronta a usar e sem a patilha de segurança.
No que dissesse respeito a Sônia, não se compadeceria de ninguém.
No sexto dia da ocupação russa, aconteceu algo de imprevisto.
Assim que escureceu, os soldados começaram a revistar a aldeia. A milícia também tinha de ajudar. Por muito que Mormeth se esforçasse para não se aproximar da casa de Patrascu, não lhe foi possível. Eles andavam a revistar a outra ponta da aldeia.
A causa foi um simples anúncio de um desconhecido junto do comissário distrital e Jon Lupescu. ”Em Tanescu, há dois alemães escondidos a iludir o plano de retirada.” Mais nada. Não havia o nome do denunciante, nem o nome dos prevaricadores. No entanto, sempre era um anúncio.
- Sabotadores! - gritou Lupescu. - Sempre nessa Tanescu! Estão a sabotar a construção pacífica do Estado Popular. Vou mandar revistar toda a aldeia.
E assim aconteceu. Passaram tudo a pente fino, cada estábulo, barracão, cave, casa, cada buraco e até as últimas colheitas de batatas e de repolhos. Nada deveria fugir aos olhos dos soldados.
Naquele momento, o velho médico, Georghe Brinse, estava de visita à casa de Patrascu. Examinara Michael e dera-o como completamente restabelecido. Estavam todos sentados no quarto das traseiras a comer e a beber um vinho tinto leve.
Sônia, que estava a fazer um assado na cozinha, entrou de supetão no pequeno quarto. O seu rosto estava desfigurado de horror.
- Soldados! - gritou ela. - Russos! Na casa ao lado! Estão a revistar tudo! Ó meu Deus! Ó meu Deus!
Correu para Michael e abraçou-o.
Não restou tempo para pensar. Antes de Patrascu perceber o que se estava a passar na rua, as coronhas das armas bateram na porta fechada. Algumas vozes berravam.
- Abrir! Abrir depressa!
- Ele tem de sair daqui já! - disse Brinse tranquilamente. Abriu a janela. Dava para o pátio e para o celeiro. Logo atrás, começavam os campos. - Salta! Corre primeiro para o campo e depois faz um arco para chegar à pradaria. Vai ter com Grigori, o idiota! Amanhã irei buscar-te! Agora corre!
Sônia ainda estava agarrada a Michael. Tinha os dedos cravados como se ele estivesse a morrer afogado e ela o pudesse arrancar daquele redemoinho que o puxava para baixo.
- Mihai! - choramingava ela. - Meu Mihai...
- Salta! - gritou Georghe Brinse.
As coronhas das armas continuavam a martelar a porta da rua.
Michael soltou-se de Sônia. Ajoelhou-se junto da janela e voltou a olhar para Sônia. Ela estendia-lhe os braços. Nos seus olhos havia uma expressão de tristeza e desespero que uma pessoa só consegue suportar uma vez na vida. Depois saltou, voou pelo ar da noite, aterrou num monte de palha, levantou-se e correu com grandes saltos, oculto pela sombra do celeiro, para os campos. Corria para salvar a vida. Atrás de si ouvia as vozes dos soldados russos. ”Agora vão disparar”, pensou ele. ”Agora... agora...” Mas nada aconteceu.
No campo de pastagem do alto da montanha, os carneiros estavam novamente na cerca. A cabana estava escura, assemelhando-se a um grande ninho junto à parede rochosa. Nas montanhas, muito ao longe, ouviam-se os uivos dos lobos por entre os rochedos.
Michael subiu a encosta. Não fora seguido, pois estivera atento durante aquelas duas horas de fuga. No entanto, o medo de os russos poderem sair da aldeia e revistar uma zona mais alargada impulsionava-o para cima.
”O que farei se Paul Herberg não estiver junto do rebanho?”, pensou ele enquanto corria para a cabana escura. ”Voltar a fugir para as ravinas, viver durante meses ou até anos em grutas e alimentar-me de bagas, raízes e lebres apanhadas com armadilhas?”
- Ó meu Deus! Ó meu Deus! - gemeu ele e parou.
Olhou para a mancha escura junto à parede rochosa. ”Ele não está em casa”, pensou. ”Nem os cães ladram! Levou-os consigo.”
Não sentia força nas pernas. Agarrou-se a um poste da cerca e colocou a cabeça no antebraço. Com esforço procurou não chorar. O seu coração batia acelerado devido ao esforço.
Ficou ali durante alguns momentos. Atrás dele os carneiros empurravam-se uns aos outros e batiam com a cabeça dura contra as suas nádegas. Não sentiu.
”Por que motivo é tão difícil morrer”, pensou. ”Porque é que não há coragem para enfrentar os russos e deixarmo-nos matar? Porque é que estamos tão agarrados a esta vida? Porquê?! Que espécie de vida é esta? Já não compensa continuar a viver. Porém, somos demasiado cobardes para desistir dela. Fugimos do fim, agarramo-nos a esta pálida respiração, a este nascer e pôr do Sol, ao deambular pelas cavernas e debaixo de arbustos, mesmo que tudo tenha deixado de fazer sentido.”
Quando a sua respiração acalmou, continuou o caminho em direcção à cabana. Não havia cadeado na porta. Estava fechada por dentro. Paul Herberg estava em casa!
Com ambos os punhos, Michael bateu na espessa porta feita de tábuas. No interior da cabana, os cães começaram a uivar, a ladrar e a saltar contra a porta, arranhando-a, como se fosse um lobo que estivesse lá fora. Ao lado da porta ouviu-se abrir um postigo e o cano de uma arma apareceu através daquela espécie de seteira.
- Ué-ué-ué! - gritou Grigori, o idiota. - Vavavá... dududu...
- Sou eu! Michael Peters. Abre, Paul! - Agarrou de lado no cano da espingarda e abanou-o. - Estou sozinho! Eu... Eu... - Pára! - berrou lá de dentro Paul Herberg. - Pára, meu cabrão!
Ouviu-se uma tranca de madeira a ser afastada para o lado e a porta abriu-se. Alto, desgrenhado como sempre, com o rosto formado apenas por cabelos e barba, Paul Herberg estava na soleira com a arma na mão. Quando viu que Michael estava sozinho, puxou aquele homem esgotado para dentro da cabana, fechou a porta e voltou a colocar a tranca. Os cães tinham-se deitado debaixo da mesa e os seus olhos brilhavam na escuridão enquanto olhavam para Michael. O seu arquejar quente era o único ruído que se podia ouvir naquele silêncio negro.
Michael agarrou-se a Paul Herberg como se tivesse medo de cair se não tivesse um apoio.
- Eles vieram atrás de ti? - perguntou Herberg no meio do silêncio.
- Não. Os russos fizeram uma revista à aldeia. Eu tive de fugir, mas ninguém me viu.
- De certeza?
- De certeza.
- E agora?
Michael encolheu os ombros. Herberg não o conseguia ver mas sentia o tremor do corpo.
- Não sei... pensei...
- Ficar aqui? Estás louco?
Paul Herberg acendeu uma vela. A luz pálida mal iluminava a mesa. As sombras do forno e da cama colaram-se às paredes como gigantes.
- Vou dar-te peixe seco, queijo, algumas latas, uma pistola e cinquenta cartuchos, vinho e chá. Água encontras em toda a parte.
- Estás a mandar-me para os rochedos?
- Provisoriamente. Nunca se sabe o que é que os russos têm em mente. Estarão aqui mais depressa do que pensamos. Subitamente, aparecem em frente da porta. E o que fazes então?
- Levanto os braços! Finalmente! - disse Michael desesperado. - Não aguento mais viver em cavernas! Vou enlouquecer!
- Já devias saber! Não tenho vontade nenhuma de voltar a fugir de uma metralhadora. Vivo aqui em paz. Ninguém faz mal ao idiota do Grigori! Então? Em que ficamos? Para as montanhas ou de regresso a Tanescu e depois para o campo de prisioneiros de Focsani? Isso é se lá chegares!
Michael fechou os olhos. Pensou em Sônia, no seu olhar de desespero enquanto ele saltava pela janela. Havia uma pessoa no mundo que o amava. Uma única pessoa. E apenas devido a essa pessoa continuar vivo deveria ser uma recompensa.
- Guarda as coisas - disse ele com voz de trovão.
- Levo-te até ao início da subida, companheiro!
Michael meneou a cabeça, depois deixou-se cair no banco, colocou as mãos sobre os olhos e soluçou.
Esteve a chorar durante todo o tempo que Paul Herberg passou a meter-lhe num saco as coisas necessárias. Sentia-se abatido quando Herberg lhe abanou o ombro e olhou para ele.
- Agora já sou capaz - disse Michael brandamente. - É tão difícil uma pessoa não valer nada...
- Talvez demore apenas alguns dias. A Sônia sabe para onde fugiste?
- Não, mas irá adivinhar. O Brinse disse-me que eu deveria vir para a montanha.
- Então eles virão buscar-te. Fica por perto. Se os russos vierem, eu faço uma fogueira ao ar livre. Isso será um sinal para que fujas para os rochedos. Se vierem com cães, eu mantê-los-ei aqui durante um dia. Hei-de consegui-lo. Agora vem, amigo! Se algum dia voltarmos para casa, iremos contar aos que sonham com novos militares que a guerra é um crime e um sacrilégio divino.
Saíram da cabana depois de apagar a vela. Paul Herberg fechou a porta. Levou o pesado saco até à orla da floresta e para a ravina que conduzia, numa subida íngreme, aos rochedos frios.
Meia hora depois, Herberg parou e colocou o saco no chão.
- Quanto mais alto melhor - disse ele. - Procura uma caverna que fique bem no alto. O que está no saco chega para duas semanas.
Michael assentiu com a cabeça. Os uivos distantes dos lobos provocavam-lhe calafrios, qual água gelada.
- Até à vista - disse ele, pausadamente.
- Que tudo corra bem!
Paul Herberg deu-lhe uma palmada no ombro, virou-se e voltou para trás. Michael ficou a olhar para ele até a sua enorme figura ser absorvida pela escuridão. A última coisa que ouviu foram ramos a partir-se e o rolar de pedras que se tinham soltado à passagem de Herberg em direcção ao vale.
Depois, até isso desapareceu. Estava sozinho com os lobos.
E ele ficou sozinho com o medo, do qual já não conseguia defender-se.
O major Boris Petrovich Sumiov veio na manhã seguinte para Tanescu. Jon Lupescu telefonara-lhe. Tinham sido achados dois uniformes alemães em casa de dois camponeses.
Este incidente era menos estranho do que o facto de os homens a quem pertenciam os uniformes não serem identificáveis. Portanto, deviam ainda andar por perto, talvez em Tanescu ou nas zonas limítrofes. Talvez até nas montanhas... Lupescu achava que era uma vergonha para todo o distrito. Uma vergonha.
- Camaradas! - gritou o major Sumiov na stolowaja, para a qual tinham sido convocados todos os camponeses.
Tinham ido buscá-los aos campos e aos estábulos. Ainda tinham os sapatos sujos de esterco. Dentro da stolowaja não cheirava nada bem. Cheirava tão mal quanto a desonra que recaíra sobre Lupescu.
”Onde estão os dois alemães?”, diriam uns para os outros. Pela mãe de Deus, como poderiam saber onde estavam dois soldados alemães se nos últimos meses tinham passado por lá algumas centenas?
- Como é que os uniformes foram parar à sua cave? - gritou o major Sumiov ao camponês em casa de quem tinha sido encontrado o casaco cinzento. - E logo de um primeiro-sargento! E queres tu ser um camarada?
- O uniforme apareceu lá - disse o camponês teimosamente. - Foi o vento que o trouxe, não foi? - berrou Sumiov.
- Aqui há sempre ventos muito fortes, camarada major. Lupescu sorriu, mas a sua alegria desapareceu-lhe da expressão quando Sumiov interveio novamente.
- Que ambos os sabotadores sejam levados para Bacau! Vou provar que sabem de onde vieram os uniformes! Vou-lhes provar, amiguinhos! Ainda não nos conhecem!
Os soldados soviéticos prenderam os dois camponeses e conduziram-nos até à stolowaja. Estes acompanharam-nos tranquilamente.
Só nas filas mais densamente formadas é que os outros fizeram um ruído que se assemelhava a centenas de dentes a ranger.
O major Sumiov começou a transpirar. Olhou para Jon Lupescu, que continuava de pé atrás dele.
- Faça-lhes um apelo à consciência, camarada comissário - sussurrou ele. - São tão romenos como o senhor.
- Eles não têm consciência, camarada major. - Lupescu enrugou o rosto. - Sobretudo em grupo. Se lidarmos com eles individualmente, talvez seja possível. Por orgulho, são capazes de deitar abaixo montanhas em vez de nos dizerem o que não querem.
- Bom!
Sumiov abotoou o casaco do uniforme. Estava com um aspecto elegante. Os galões dourados brilhavam à luz das lâmpadas. A stolowaja era ao lado da quinta colectiva, a única casa que possuía a moderna luz eléctrica. Vinha directamente de Bacau através de um circuito suspenso. ”Cultura no canto mais obscuro!”, gritara Lupescu quando se acendera a primeira lâmpada. Fora bom o facto de o major Sumiov não ter ouvido aquela frase clássica.
- Interroguem-nos individualmente! E revistem as casas! Provocará alguma impressão se destruirmos os móveis dos mais obstinados.
- Assim será - disse Lupescu engolindo em seco.
Teria medo de regressar a Tanescu sozinho num futuro próximo se Sumiov realmente utilizasse métodos cruéis.
Os camponeses tiveram autorização para voltar para os campos, para os estábulos e para a floresta. Todavia, formou-se um anel de segurança em torno da aldeia. Os soldados soviéticos vigiavam todos os que entravam e saíam da aldeia. Entretanto, a milícia revistava novamente os bosques adjacentes e inspeccionava todos os que se tinham mudado para Tanescu no último ano. Respeitáveis trabalhadores dos lugares vizinhos, alguns comerciantes, dois jogadores e o proprietário de um carrossel... E Grigori, o idiota.
A inspecção de Grigori pareceu demasiado estúpida até ao primeiro-sargento. Juntamente com Stepan Mormeth, bebeu duas canecas de leite de cabra, comeu um queijo e olhou para Grigori enquanto este colocava manteiga numa velha malga de madeira.
- Se ele não fosse suportado por duas pernas, poder-se-ia pensar que era um macaco gigante! - riu-se o primeiro-sargento. Depois, bateu no ombro de Grigori, meteu o dedo na malga da manteiga e lambeu-o. - Se soubesses o que está a acontecer lá em baixo... - disse ele. Grigori não compreendeu nada. Era surdo. Estão novamente à procura de alemães. Ainda! Encontraram o casaco de um primeiro-sargento. O major ficou em fúria! Muito bem! Vamos embora! De alguma maneira temos de merecer o nosso pré, não é, irmãozinho idiota?
Riu-se novamente e saiu da cabana com Mormeth.
Paul Herberg ficou a vê-los da janela. Estavam a descer a encosta. Não revistaram os bosques que ficavam por cima da sua cabana.
”Encontraram o casaco de um primeiro-sargento”, pensou Paul Herberg. ”O meu casaco...”
Virou-se para a sua manteigueira. Nessa altura, ficou pálido e abriu violentamente a camisa que usava por cima do seu peito peludo. Ficara de repente com um calor insuportável.
Sobre a mesa estava uma pequena agenda em que ele anotava coisas especiais. Uma agenda alemã. Com a chegada dos guardas da milícia, esquecera-se de a esconder ou de a deitar fora.
Paul Herberg correu novamente para a janela. Estava decidido a tudo, mas os dois milicianos continuavam a descer a encosta com passos apressados. Não tinham visto nada.
Fora um erro do idiota Grigori. Stepan Mormeth vira, de facto, a agenda alemã. Com um olhar rápido e treinado nesse sentido, reconhecera de que se tratava.
”Como é que Grigori obteve aquilo?”, cogitou ele enquanto descia para a aldeia. ”Não sabe ler nem escrever! Como é que um livro alemão aparece na cabana de um pastor?”
Pensou ainda em voltar, à noite, a casa de Grigori. Sozinho... Poderia parecer ridículo, precisamente por suspeitar de Grigori, o idiota.
Mas havia alguma coisa por detrás disso. Se Stepan Mormeth tivesse sorte, até poderia chegar a sargento. E o velho Patrascu não poderia mandar embora um sargento. Divisas prateadas em cima da sua pele morena...
A noite já ia longa e Mihai Patrascu queria ir para a cama quando o major Sumiov parou em sua casa para a ronda de interrogatórios. Lupescu fez um gesto com o braço quando Sumiov mandou bater à porta com as coronhas das armas.
- Quem conhece Mihai, sabe... - determinou, mas o major soviético acenou energicamente.
- Hoje em dia, ninguém é assim tão puro quanto devia! rosnou ele. - Este ninho é uma pocilga! Ninguém sabe nada! E deixam destruir os móveis como se fossem cacos velhos. Obrigado, camarada, dizem eles quando saímos, como se nós lhe tivéssemos feito um favor! E este Mihai não é diferente, ou é? Abre, meu sapo velho!
Os soldados voltaram a bater à porta. Sônia e Anna encolheram-se dentro das camas. Stepan Mormeth saiu a correr do seu pequeno quarto das traseiras. Puxou as calças para cima, pois estava, naquele momento, a despir o uniforme.
No meio da sala encontrava-se Mihai Patrascu. Não estava aflito, admirado, nem irado. Estava simplesmente ali, como um poste que tivessem enterrado no solo.
- Abre! - gritou Mormeth. - São os russos!
- Já se ouviu! Quero ir para a cama!
- Como se pode querer alguma coisa quando os russos estão lá fora?
Mormeth correu para a porta e empurrou a tranca para o lado antes de Sumiov a mandar deitar abaixo. Depois, afastou-se com um salto, pois o major, Lupescu e sete soldados soviéticos entraram para a grande sala de rompante. Sumiov parou abruptamente à frente de Mihai. A chama que saía do fogão iluminou os rostos excitados. Era a única iluminação existente na sala.
- Ah! - gritou Sumiov. - Mais um sabotador! Porque não levantas o punho como cumprimento, meu porco?
- Se levantar o punho, vais ter com os teus pais, camarada disse Mihai friamente. - Ainda ninguém sobreviveu à queda do meu punho. Nem um boi, quanto mais um major.
Sumiov olhava fixamente para Mihai. O tipo parecia um urso. Temerário, apesar da sua idade, do tipo que consegue arrancar árvores. Sumiov engoliu a sua raiva. Não fazia sentido fazer qualquer revista com ameaças. Sumiov sabia-o. Na Rússia também existiam tais gigantes. Infelizmente.
- O que sabes tu dos dois soldados alemães? - perguntou ele em voz alta, mas com alguma cortesia.
- Nada!
- Naturalmente. Já o esperava. Aqui ninguém sabe nada. Os uniformes voam pelo ar. De repente, aparecem! E ficam na cave. Escondidos! Que uniformes mágicos!... - Sumiov inclinou-se para Patrascu. A sua respiração roçava o rosto escarpado do velho. Sabes o que fizemos com todos aqueles que nada sabiam?
- O que é que isso me interessa?
- Muito. Mesmo muito! Destruímos-lhes os móveis todos. Sim, foi isso que fizemos.
Mihai Patrascu recuou e afastou-se do caminho. Levantou o braço e apontou à sua volta.
- Façam favor - disse ele em voz alta. - Comecem! De qualquer modo, estes móveis velhos já não me agradam! Quando vocês perceberem que eu não tenho culpa, receberei de vós móveis novos e bonitos como compensação.
O major Sumiov calou-se admirado. Jon Lupescu abriu muito a boca. ”Ah”, pensaram ambos. ”Então é isso. É por isso que os camponeses não se importam que nós os destruamos. Eles fazem simplesmente uma reclamação por danos porque não têm culpa. E em Bucareste isso quererá dizer: quem é o idiota que destruiu os móveis de todos estes inocentes? Quem foi? O major Boris Petrovich Sumiov. Um idiota, tal como se pode verificar! Já com ele para Moscovo ou para trás dos Urales!”
Sumiov engoliu em seco. A ideia de ir para os Urales provocava-lhe dores no esófago.
- Onde está a tua mulher?
- Na cama.
- Ele também tem uma filha! - disse Lupescu prazenteiro.
Mormeth olhou para ele com uma expressão fulminante. ”Ainda te matarei por causa disso”, pensou ele. E isso lia-se nos seus olhos se se soubesse como interpretar um olhar. Sumiov ergueu as sobrancelhas.
- Nesta barraca? Que venha cá! A maior parte das vezes, os alemães viram para essas raposinhas. Ela que saia da cama! - berrou ele quando reparou que Patrascu não se mexia.
Nesse momento, Georghe Brinse entrou na casa. Sumiov voltou-se.
- O que é que esta múmia quer daqui? - gritou ele. Quem o deixou entrar?
- Eu sou Georghe Brinse - disse o velho médico.
Com um olhar rápido reconheceu a difícil situação de Patrascu.
- Em romeno, Brinse quer dizer queijo! - gritou o major Sui rniov. - Não quero queijo. Quero interrogar a mulher e a filha!
- Fica à sua responsabilidade, camarada major. - Brinse fez um sinal com a cabeça ao velho Mihai. Este saiu da sala, dirigindo-se para o quarto onde Anna e Sônia, encostadas uma à outra, estavam sentadas na cama. - Sou médico. Nomeado pelo médico distrital.
Olhou para Sônia e Anna Patrascu, que vinham do quarto atrás de Mihai, envoltas em grandes xailes grossos que cobriam todo o corpo. À luz do fogo os seus rostos pálidos pareciam máscaras. Brinse acenou com a cabeça.
- Não viu o símbolo que está na porta da casa, major? - Um símbolo? - Sumiov olhou à sua volta. - Que símbolo?
- O símbolo de epidemia. Nesta casa há cólera! Olhe bem para as duas mulheres. Amanhã já podem...
Brinse fez uma pausa estratégica. O major Sumiov percebeu. O medo ancestral de todos os russos perante a cólera apareceu e apossou-se totalmente do major. Recuou com os seus sete soldados perante as mulheres, como se a respiração delas pudesse ser fatal.
- Porque é que isso não foi dito logo? - gritou ele. - Vou enviar a informação de imediato! Vai ter de colocar um símbolo mais claro, doutor! - fez um gesto com o braço quando Patrascu passou por ele e abriu a porta. - Não vou destruir a tua casa, mas sim queimá-la! - afirmou ele a tremer de raiva. - Vou-te transformar numa tocha juntamente com a tua epidemia de cólera! Apontou para Georghe Brinse e para os soldados. - Venham comigo! Vamos para o próximo sabotador!
Quando chegou à porta da rua, ficou parado. Era verdade. Na viga da entrada estava colada uma cruz vermelha sobre um fundo branco. Agora via-se claramente. Sumiov abanou a cabeça. Como era possível não terem visto? Era bastante claro! Olhou para Brinse com uma expressão crítica. Encolheu os ombros penosamente.
Enraivecido, Sumiov correu para a casa seguinte. Jon Lupescu deixou-se ficar para trás alguns instantes. Agarrou na manga do casaco de Brinse quando ele já se afastava.
- Como conseguiste colar aquela placa tão depressa na porta?
- perguntou ele em voz baixa.
Brinse olhou para Lupescu espantado e quase ofendido.
- Será que sou um mágico? - perguntou ele muito hirto.•...
- Então eles têm mesmo cólera?
- Talvez seja também peste, camarada.
- Peste? - Lupescu engoliu em seco excitado. - A peste aqui?
Brinse olhou para os soldados soviéticos e acenou sabiamente com a cabeça.
- Hoje em dia a peste está por toda a parte - disse ele, e foi-se embora.
Pouco antes da subida para a pradaria descansou mais um pouco.
Meteu a mão no bolso das calças. O aço da pistola estava frio. Com um frio de morte. Stepan Mormeth passou a mão pelos cabelos húmidos de transpiração. Depois, continuou a subir na direcção do rebanho de carneiros e da pequena cabana junto à parede rochosa.
Despira o uniforme e usava o seu velho fato civil rasgado, com o qual fugira dos alemães, em Ploesti, e mais tarde dos russos, até perceber que poderia ser utilizado mesmo sendo cigano. Assim, transformou-se em camarada e trocou o seu fato civil andrajoso por um uniforme castanho.
Mormeth tinha-o ido buscar para enganar Grigori. Se o que Mormeth pensava fosse realmente verdade, Grigori, ou lá como se chamasse, iria disparar imediatamente se visse um uniforme. Todavia, seria possível enganá-lo com aquele fato cheio de buracos. Tal como agora com Mormeth, ainda andavam à solta alemães e legionários de Codreanu, que tinham a cabeça a prémio havia dois anos...
Desta vez os cães começaram a ladrar assim que ele passou a cerca das ovelhas. Estas baliam como loucas, mas na cabana nada se mexia. Não havia luz, nem sequer a luz tremeluzente de uma vela. Apenas a escuridão da noite. Perigosa e secreta.
Mormeth parou. Observou a cabana, a grande porta e as janelas fechadas com portadas. Entre ele e a porta havia vinte metros de terra lisa e sem qualquer tipo de cobertura. Não era um prado, mas sim puro chão rochoso sobre o qual se pode ver uma aranha a caminhar.
”Não é parvo”, pensou Mormeth. ”Um campo de tiro que causa baixas a quem o atravessar. Uma zona de morte. Mas ele não disparará sobre mim. Sou um vagabundo andrajoso. Pareço um soldado alemão em fuga.”
Atrás da pequena janela ao lado da porta, Paul Herberg estava agachado. Tinha na mira a cabeça de Stepan Mormeth. A alça e o fconto de mira estavam em linha. No seu prolongamento estava a Itesta de Mormeth. Uma mancha esbranquiçada na escuridão da noite.
”Mais dez metros”, pensou Herberg. ”É ele. O moreno soldado da milícia. Tem de ser ele. Eu já sabia que ele tinha visto alguma coisa. Meu Deus, eu já sabia. E agora afasta os olhos, Deus, e tapa los ouvidos com as mãos, pois o que vai acontecer na tua Terra é um homicídio. Um de muitos, de milhões, mas mesmo assim é um crime! Mas eu quero viver, meu Deus! Entendes isso? Quero voltar a ver os meus filhos, Rosei e Peter. Não quero ser estraçalhado aqui como uma cabeça de gado. Por isso mato, mato. É um pecado, [meu Deus, mas não posso fazer mais nada. Um dia, quando estiver à tua frente julgar-me-ás. Mas agora não ouças nem vejas nada.” Só mais sete metros... mais cinco... mais três... Era o miliciano moreno. Paul Herberg via-o distintamente. (Olhando através da alça e do ponto de mira, fixava o rosto de MorImeth.
”Meu Deus”, pensou ele mais uma vez. Depois, apertou o gatilho.
Quando voltou a olhar pela pequena janela depois do disparo, a [mancha esbranquiçada desaparecera. À frente da porta estava uma massa informe. Imóvel. Em silêncio.
Stepan Mormeth foi encontrado por volta do meio-dia. Estava sentado, encostado a uma árvore atrás da aldeia, na estrada para Opesti, portanto directamente voltado para as montanhas, a sul. Na testa via-se um buraco redondo e com o sangue já em crosta. No seu rosto havia ainda uma expressão de espanto como se morto ainda pensasse como fora possível...
O primeiro-sargento bramava. O comissário Lupescu gritava. O major Sumiov decretava o estado de emergência em Tanescu e em toda a província. Havia rusgas em todo o lado sul.! Com honras militares, Stepan Mormeth foi enterrado em Tanescu. Todos os camponeses foram obrigados a acompanhar o funeral, pois eram essas as ordens de Sumiov. Deveriam transportar grandes estandartes de manifestação: ”Morreu pela liberdade da classe trabalhadora!”, ”Abaixo todos os reaccionários!” Grigori, o idiota, também tivera de ir.
- Ué-ué-ué - gritava ele enquanto caminhava, e todos sorriam.
Só Georghe Brinse não sorria. Olhou fixamente para Grigori quando este passou por ele, e Grigori baixou a cabeça...
No dia do enterro de Stepan Mormeth um jovem romeno veio à aldeia e procurou trabalho nos tractores. Declarou que vinha de Comarino e que fugira de lá por causa dos alemães. Vagueando de aldeia em aldeia, fizera tudo o que tinham exigido dele. Agora queria assentar e colaborar na reconstrução.
O chefe da unidade de tractores ficou contente com aquilo que ouviu dele. ”Os homens mais jovens dão sempre exemplos e levam os outros atrás de si”, pensou ele. ”E os bons comunistas evoluem sempre para um lugar no partido e até para uma direcção distrital.”
- Óptimo, óptimo - disse o chefe dos tractores com satisfação. - Podes começar amanhã. Como te chamas?
- Wassile Popa.
- Muito bem, Wassile Popa. Tens onde dormir?
- Não. Acabei de chegar a Tanescu.
- Vamos já encontrar algo para ti. - O chefe dos tractores ponderou. - Espera! Há uma cama que ficou livre. Foi hoje enterrado, o pobre. Foi assassinado, imagina! Com um tiro na cabeça. Mesmo entre os olhos. Foi um bom tiro. Só que Mormeth não era o melhor alvo. Devíamos poupar cada tiro para os inimigos de bolchevismo. Não achas, Popa?
- Devíamos, camarada - disse Popa energicamente.
Ria-se para dentro. Se eles soubessem quem ele era! Wassile Popa, o jovem legionário, o camisa-verde, o guerrilheiro que fora o único sobrevivente do massacre nas montanhas no qual morrera o major Neculae Tripadus com todos os seus seguidores e ainda a sua jovem esposa, Vera Mocanu. E tudo porque um jovem soldado alemão o traíra. Um filho-da-mãe de um alemão.
Há meses que Popa trazia consigo este pesadelo. Não conseguia esquecer, mas tinha esperança no futuro.
- O quarto é em casa de Patrascu - continuou o chefe dos tractores. - O velho Mihai primeiro vai pôr-te na rua, mas tu tens ordens para morar lá. E também têm uma pombinha muito doce... chama-se Sônia! Tudo correrá bem. Vem ter comigo amanhã às seis
e conta-me como correu.
- Como queiras, camarada natchalnik.
O encarregado olhou para Wassile Popa com benevolência, pois sempre lhe agradou ser tratado por chefe. ”Natchalnik foi o que ele disse”, pensou. ”O homem tem formação, e um coração comunista vai dar-se bem na vida. A revolução precisa de jovens que assimilem o seu espírito.”
Apenas Sônia estava em casa.
Estava a fazer sopa quando Popa entrou na sala e fez uma vénia. ”A pombinha”, pensou ele. ”Claro que é ela. Mas não é uma pombinha. É uma águia jovem. Tão bela como os cumes das montanhas ao pôr do Sol.”
Sônia afastou o olhar da grande panela, dirigindo-o para o estranho, que colocara uma pequena mochila no chão.
- És o sucessor de Mormeth? - perguntou ela. - Porque não usas uniforme?
- Não sou soldado da milícia. Sou Wassile Popa. A partir de amanhã, vou trabalhar na secção de tractores. Disseram-me que viveria aqui.
- O pai não vai estar de acordo.
- Estamos a contar com isso. No entanto, é uma ordem.
- Então tu és comunista?
- Sim... - disse Popa vagarosamente.
Foi-lhe difícil mentir perante os olhos grandes, negros e perscrutadores de Sônia. Era como se aquele olhar lhe arrancasse a alma, lhe descobrisse o coração e ela pudesse ler tudo o que ele trazia
escondido no peito em relação a todas as pessoas: a raiva contra os
soviéticos, a raiva dos soldados alemães e o sonho de uma Roménia
livre.
- É assim que se chama. É moderno. É...
Sônia apontou para o banco que estava ao lado da porta.
- Senta-te ali e espera. Devem estar quase a chegar do enterro. Obedientemente, Popa sentou-se no banco. Com o coração subitamente aos saltos, observava Sônia enquanto ela cozinhava, cortava os legumes para a sopa e começava a descascar as batatas.
- Posso ajudar-te? - perguntou ele.
- Cozinhar é coisa de mulheres.
- Eu descasco-te as batatas. - Popa levantou-se do banco e dirigiu-se a Sônia. - Gosto de descascar batatas. A sério. Enquanto se faz isso pode-se pensar tranquilamente.
- Tu pensas? - perguntou Sônia espantada.
- Tu não?
- De vez em quando...
- Devíamos pensar muito mais - disse Popa. Retirou a faca dos dedos de Sônia, foi buscar uma batata ao cesto que estava em cima da mesa e começou a descascar. Descascava as batatas em redondo, com uma casca longa e ininterrupta. Era bonito de ver o modo como ele fazia uma obra de arte branco-amarelada a partir de uma batata. - Muita coisa mudaria no mundo se pudéssemos pensar melhor.
- Falas como um professor.
Sônia riu-se. Professores e sacerdotes eram para ela a personificação do conhecimento e da inteligência prática. Wassile Popa retribuiu-lhe o sorriso.
Foi assim que Mihai Patrascu os encontrou quando regressou do enterro com o cartaz enrolado e metido debaixo do braço. Estava furioso. O major Sumiov dissera-lhe: ”Camarada Patrascu. Você transportou tão bem o cartaz... Vou escolhê-lo sempre a si quando for preciso transportar cartazes.”
Aquilo fora mais do que Mihai conseguira suportar. Todavia, era suficientemente inteligente para não explodir. Engoliu a sua raiva e veio a correr para casa como um urso esfomeado.
A visão de Popa a descascar batatas ao lado da sua Sônia foi o raio que caiu no barril de pólvora. Atirou com o cartaz para o canto da sala e berrou:
- Quem é este? Quem está a descascar batatas na minha casa sem me pedir?
Popa atirou a batata que tinha na mão para cima da mesa e deu um salto. Antes de ele poder dizer alguma coisa, já Sônia estava a responder. E disse algo que Popa não podia contradizer por muita pena que tivesse.
- É um comunista dos tractores. Recebeu o quarto de Mormeth!
- Um camarada!
Mihai suspirou. Anna, que entrara atrás dele, não adivinhou nada de bom e agarrou-o pela manga do casaco. Mihai sacudiu-a como se fosse um piolho.
- E vem simplesmente para aqui, o rapaz! - gritou ele. - ”Durmo aqui!” E eu não tenho nada a opor? Eu sou uma cama em que cada vadio se pode deitar?
- Eu sou Wassile Popa e não sou um vadio!
- Não me interessa minimamente como te chamas! Fora da minha casa!
- Eu tenho uma ordem.
- Ah, também tens isso?
Mihai olhou para o jovem camponês. Quando pensava no cigano morto e nos serviços que prestara aos Patrascu contra os russos, não era mau ter um homem novo, jovem e forte em casa. Além disso, era mais um bom comunista. Os tempos corriam de tal maneira que ninguém passava bem sem um rótulo.
- Aqui quem dá ordens sou eu! - disse Mihai, não se deixando abater. - Vais procurar um outro local para dormir. E é já amanhã. Por hoje podes aqui ficar. Não ponho ninguém na rua. Afinal, sou um cristão. - Olhou desconfiado para Popa. - Ou também já não se pode dizer isso?
- Podes dizer-me tudo, Patrascu.
Popa virou-se para Sônia. Estava a deitar os legumes dentro da água a ferver e depois acrescentou as batatas. No mesmo instante, sentiu-se um odor forte a couve na sala. Pareceu tornar Mihai mais conciliador.
- Vou pensar no assunto - disse ele.
Depois, dirigiu-se para o banco que estava ao canto, sentou-se, encheu o cachimbo e não prestou mais atenção a Popa. Estava à espera de comida e vinho.
Wassile foi suficientemente esperto para não lhe dirigir mais a palavra. Ficou sentado no seu lugar, comeu em silêncio, fumou um cigarro e, continuando em silêncio, foi para o seu quarto, encaminhado por Anna.
O uniforme de Stepan Mormeth ainda estava pendurado no gancho atrás da porta. Quando Anna fechou a porta e Popa ficou sozinho, abriu a janela e atirou o uniforme para o pátio.
Fazer aquilo era uma necessidade. A sua fantasia ia tão longe que o fazia pensar que debaixo daquele uniforme castanho havia uma pessoa.
- Cão! - disse Popa iradamente. - É o que vai acontecer a todos os inimigos da Roménia!
Na segunda noite após o enterro de Mormeth, Sônia e Georghe Brinse subiram ao monte. Disseram que iam apanhar ervas. A partir de ervas e raízes, que apenas ele conhecia, Brinse produzia um extracto e uma pomada que era muito boa contra o reumático e as inflamações das articulações. Vendia-as directamente aos seus doentes, evitando a farmácia estatal de Bacau, e obtinha bons resultados. O facto de ele subir as florestas da montanha não atraiu, portanto, as atenções. Sônia, a quem ele estava a ensinar cuidados de saúde, tinha de o acompanhar. Em Tanescu isso era perfeitamente natural.
Grigori, o idiota, estava sentado à frente da cabana, quando Brinse e Sônia subiram o prado. Desde o enterro que ele ficara mais silencioso. Não fizera o brinde que era habitual depois de um enterro. Regressara imediatamente para junto do rebanho. No dia seguinte, não fizera caretas nem poses quando os camponeses foram fazer a ordenha de acordo com a ordem imposta. Ficou sentado com uma expressão séria, quase deprimida, ao lado dos rapazes que o arreliavam e, finalmente, regressou a resmungar para a cabana, onde se fechou.
- O tio Grigori está doente! - gritaram os rapazes. - Será da Primavera? Será que lhe está a fazer mal aos ossos? Procura uma mulher!
Rindo aos berros, ordenharam o rebanho e desceram à aldeia a cantar.
O assassínio de Mormeth afectou Paul Herberg mais do que ele previra. Em tempo de guerra, sim! No entanto, aquilo era outra coisa. Na guerra só valia o seguinte: tu ou eu! Sobrevive o que for mais rápido! A guerra acabara, mas mesmo assim continuava-se a disparar, a perseguir os soldados alemães, dando recompensas a quem os apanhasse. Paul Herberg disparara contra uma pessoa desarmada, contra um inocente a quem fizera uma emboscada. Para salvar a própria vida! Fora o acordo que fizera com Deus: que Ele
olhasse para o lado. Mas teria sido justo? Será que Mormeth queria
realmente receber a recompensa? Nesse caso, porque viera sozinho?
Talvez quisesse outra coisa qualquer. Existem tantas causas para um
homem subir a montanha durante a noite...
Herberg não esquecera o olhar do médico Brinse enquanto ransportava o cartaz durante o funeral. Brinse sabia como Morneth tinha morrido. Talvez até tivesse visto Grigori quando ele fez um vasto percurso em torno de Tanescu, com um saco às costas, arquejando e tropeçando, e colocou Mormeth naquela estrada rural.
Herberg nunca acreditara que uma morte o pudesse abalar. Em quatro anos, matara muitas pessoas, pois manejara uma metralhadora. Havia milhares que tinham disparado metralhadoras tanto do seu lado como no inimigo, e todos tinham matado centenas de pessoas que não conheciam, das quais nada sabiam a não ser uma coisa: são o inimigo e se tu não disparas dispara ele! E esse também não poderia dizer porque é que estava a disparar. A guerra era de facto uma loucura!
Contudo, ele conhecia Mormeth. Vira-o cair com um buraco redondo na testa. Ele não tinha matado Mormeth, mas sim assassinado. Era essa a diferença.
Naquele fim da tarde, através do qual a noite já mostrava as suas faixas negras, ele viu com sentimentos mistos os dois vultos que subiam a encosta através do prado. Viu que eram Georghe Brinse e Sônia. Também sabia o que eles queriam. No dia anterior, falara brevemente com Michael Peters. Michael estava a viver numa caverna que ficava a meio da montanha, protegido por uma escarpa que levava pelo menos uma hora a ultrapassar até se ver o planalto com a pequena caverna.
Georghe Brinse acenou com a cabeça a Grigori quando chegou perto dele. No seu olhar via-se novamente uma grande interrogação e uma acusação silenciosa. Paul Herberg retribuiu-lhe o cumprimento. ”Sim, sim... Fui eu! E se agora pudesse falar, dir-te-ia que me sinto completamente miserável. Bestialmente miserável.”
- Ele deve ter visto o Mihai - disse Brinse a Sônia. - Mas como lhe poderemos perguntar? Ele não percebe nada.
- Mas compreende gestos. Deixe-me tentar.
Sônia fez com as mãos o movimento da colocação de ligaduras e depois apontou para o ombro. Grigori acenou vivamente com a cabeça. Quando olhou para Brinse, a sua expressão era de súplica.
- Oh-oh-oh - gaguejou ele. - Dá-dá-dá...
Apontou para os rochedos e fez um gesto com o braço. Depois seguiu à frente de cabeça baixa. Em silêncio, avançaram durante meia hora através de gargantas e subiam cada vez mais alto. Quando chegaram à parede rochosa, Grigori apontou para cima.
Brinse levantou o olhar.
- Ali? Ele não consegue voar! Deves estar enganado!
Grigori abanou a cabeça. Sônia não o viu, pois olhava fixamente para a parede lisa. Foi atravessada por um calafrio.
- Michael! - gritou ela com uma voz clara. - Mihai... Venho-te buscar! Onde estás? Ouves-me?
Da parede rochosa caíram algumas pedras. Não se via de onde vinham. No local de onde elas se tinham desprendido já era noite escura.
- Sônia... - respondeu uma voz nítida mas distante.
- Mihai! - gritou Sônia muito feliz. - Desce! Consegues descer? Meu Deus, não caias! O tio Brinse está aqui e também Grigori. Foi ele que nos conduziu até cá. Volta para a aldeia. Já passou tudo.
Mais uma vez, algumas pedras caíram na ravina. Depois, caiu uma mochila. Inicialmente Sônia pensou que aquele objecto escuro que caíra das nuvens era Michael. Gritou de aflição, colocou as mãos em frente dos olhos e escondeu o rosto no ombro de Brinse.
- É apenas uma mochila, pombinha - disse Brinse em voz baixa, colocando o braço consolador em torno dos ombros de Sônia. No entanto, as palavras ficaram-lhe congeladas nos lábios.
Michael Peters descia aquela íngreme parede rochosa. Eram imperceptíveis as fissuras e as saliências que encontrava para se agarrar ou para apoiar a ponta dos pés. Porém, descia. Estava quase colado à parede. Era como se deslizasse, sustentado por uma corda invisível que ele desenrolava permanentemente.
Passou-se meia hora até Michael colocar os pés na terra, ofegante e completamente transpirado. Caíram nos braços um do outro e beijaram-se. Brinse puxou Grigori de lado.
- Será que ele descobriu? - perguntou. Paul Herberg olhou-o estupefacto. Brinse gesticulava a rir. - Quando os apaixonados estão assim tão ocupados um com o outro, não ouvem nem vêem nada.
Quis continuar a falar, mas Michael e Sônia vieram ter com eles. Estavam tão felizes como crianças que tivessem acabado de receber um presente. Michael agarrou as mãos de Brinse.
- Agradeço-lhe, doutor! Eu já tinha pensado que ia voltar a viver durante meses numa caverna. Teria sido terrível...
- Agora também vai ser terrível. - Brinse pegou na mochila e entregou a Grigori. - Vais ter de voltar a viver naquele pequeno espaço debaixo do telhado. Talvez um ano ou mais. O Mormeth está morto, mas há outra pessoa a viver em casa do Patrascu. Wassile Popa, um jovem comunista e condutor de tractores.
Michael baixou a cabeça.
- Eu farei tudo, ficarei durante anos debaixo do telhado, desde que a Sônia esteja lá.
- Durante anos? - O velho médico ficou baralhado. - Então não queres regressar à Alemanha?
- E posso?
- Um dia vão-te deixar sair da Roménia como um homem livre.
- Tens a certeza?
Georghe Brinse não tinha resposta para aquela pergunta.
- Vamos embora - disse ele. - Ao amanhecer, as sentinelas serão rendidas. Nessa altura, deverás estar mais tempo no sótão.
Durante três meses, Michael viveu como um rato entre um telhado de madeira e um tecto de barro. Durante três meses, só à noite ia passear aos prados e ficava deitado com Sônia nos campos de milho. Durante três meses, foi um sonho de amor e felicidade, apesar do medo nocturno de ser visto ou de se encontrar com Wassile Popa.
A instrução comunista dos camponeses de Tanescu continuou. Lupescu dava palestras e proibira todas as perguntas depois de lhe ter sido perguntado numa discussão aberta: ”Camarada comissário, existe a perspectiva de se criar vacas vermelhas?”
Um primo de Sônia que vivia na aldeia vizinha fora destacado para a polícia. Quando se apresentou ao tio Mihai pela primeira vez com o novo uniforme, veio a uma hora tão inesperada e pouco habitual que não houve tempo para empurrar Michael para o sótão.
Estava sentado a jantar, quando o primo Eítimie entrou na cabana. Mihai Patrascu não precisou de explicar quem era o hóspede. Eftimie reconheceu de imediato quem era o homem que se afastara da luminosidade para o canto mais recuado e que metera a mão no bolso onde trazia uma pistola.
- Isto é muito desagradável, gente - disse o polícia Eftimie, que se sentou pesadamente sobre um banco ao lado do fogão. -. Agora sou polícia e sinto-me orgulhoso disso, e encontro um alemão no seio da minha própria família! Tu és alemão, não és? gritou ele a Michael.
Sônia respondeu em vez dele. Colocou-se em frente a Eftimie e sacudiu o seu longo cabelo negro. Estava com um aspecto selvagem, decidida a tudo e completamente temerária.
- Sim. É alemão! E eu amo-o. Vou casar com ele! Se nos traíres, vou com ele para a prisão. É isso que tu queres?
- De facto, não é - disse Eftimie vagarosamente. - Mas existe o conflito espiritual!
- Quando se usa um uniforme, não se tem alma! - disse Mihai Patrascu. - Esquece que o usas.
- Estou a tentar ser um bom comunista. E agora acontece isto! Como posso vir a ser um bom comunista com uma mentira?
- Meu Deus! - Patrascu bateu com o cachimbo na placa do fogão. - Se no partido existissem apenas homens honrados, seria composto por muito poucos!
Eftimie coçou a cabeça. Alisou com as mãos o seu uniforme novo e respirou fundo.
- Bom! Esqueçamos isto!
Levantou-se e dirigiu-se a Michael, que continuava no canto. Michael levantou-se. Estavam frente a frente, ambos magros, muito jovens e felizes, mas de maneiras diferentes.
- Para mim não és alemão - disse Eftimie brandamente, e riu-se quando viu o rosto estupefacto de Michael. - Para mim és o marido da Sônia. Aperta-me a mão.
Michael estendeu-lha. Eftimie apertou-a vigorosamente. Era o início de uma amizade, mas a expressão de Eftimie voltou a escurecer.
- O que devo fazer se tiver de te procurar?
- Procuras noutra direcção.
- Isso é uma traição, amigos. Eu prestei um juramento.
Mihai fez um gesto com o braço. Agarrou Eftimie pelo ombro e virou-o para si.
- O marido da Sônia não vai ser procurado, meu pequeno (idiota! Deus do céu! Como é possível termos um idiota destes na família!
- Isto traz conflitos! - queixou-se Eftimie. - Mas, no fundo, tens razão, tio Mihai. Primeiro está a família e depois tudo o resto.
- Levaste tempo a acordar - disse Mihai contente. - Vem, meu rapaz! Senta-te e come! E se o uniforme te pressiona espiritualmente - disse ele com algum sarcasmo -, despe-o quando nos visitares. És sempre bem-vindo...
Uma hora mais tarde, Wassile Popa regressou da secção de tractores. Michael já estava novamente no seu esconderijo do sótão. Popa cumprimentou Eftimie de punho erguido.
- Amizade! - disse ele.
- Amizade! - correspondeu Eftimie. Pouco depois abandonou a casa. Em frente da porta, junto ao poço, fez um gesto com a cabeça na direcção da casa. - Quem é aquele, tio Mihai?
- O nosso arrendatário obrigatório. O meu cartaz comunista.
- Eu também não devia ter ouvido isto - queixou-se Eftimie.
- Estás a tornar-me a vida difícil, tiozinho. Muito difícil. - Endireitou o cinto e bateu no coldre da pistola, que era nova, e ainda cheirava a couro curtido. - Esse Popa não me agrada.
- Nem todos podem ser tão bonitos como tu, Eftimie.
- Deixa-te de brincadeiras, tio. O que é que ele faria se visse Michael?
- Nada. Desapareceria.
- Isso é que eu não deveria ter mesmo ouvido! - gritou Eftimie revoltado. - Serias capaz?
- Trata-se de Sônia...
- Sônia. - O polícia Eftimie apertou a mão de Mihai. Tens novamente razão. Devemos habituar-nos a pensar de duas maneiras se queremos avançar...
Dez anos são um período enorme quando se vive debaixo de um telhado num pequeno espaço, no qual nem nos conseguimos endireitar.
Dez anos nos quais os dias consistem apenas numa janelinha com uma estreita faixa de céu quando se olha para cima. Numa estreita faixa de terra quando se olha para baixo! Dez anos de faixas. Três mil seiscentos e cinquenta dias agachado debaixo de um telhado entre o frio e o calor sufocante.
É imaginável que uma pessoa o aguente e que até seja feliz! Verdadeiramente feliz, porque durante dez anos, durante três mil seiscentos e cinquenta dias e noites, uma rapariga está deitada a seu lado, tal como ele entre telhado e tecto, e lhe diz sucessivamente, do mais profundo da sua alma: ”Amo-te, Mihai, e se tivermos de ficar aqui agachados durante uma vida inteira, nunca te abandonarei, ficarei contigo. Pertenço-te como o vento pertence à chuva. Sem ti nada sou! És a minha vida! O meu respirar, o meu pensamento.”
Fizeram-se trinta e nove rusgas pelas aldeias. Estavam sempre a descobrir-se soldados alemães. As recompensas tinham acabado. Já não eram válidas para soldados, pois agora eram chamados ”espiões”.
Jon Lupescu fora destacado. O major Sumiov fora promovido a coronel e liderava a reconstrução conjunta do Sul e Leste dos Cárpatos de acordo com as ordens de Moscovo. O jovem rei Miguel fugira da Roménia. Tudo se transfigurara. Até em Tanescu! Cada camponês recebera uma bandeira vermelha que deveria colocar em frente da casa nos novos feriados nacionais.
Só uma vez tinha havido problemas por causa disso. O coronel Sumiov foi pessoalmente a Tanescu porque não queria acreditar em tal monstruosidade e queria ver com os seus próprios olhos. Os habitantes de Tanescu tinham içado a bandeira para a feira da paróquia. No local da festa dançavam-se valsas em frente das fotografias de Estaline e Lenine.
- Eles nunca mais aprendem! - gritou o coronel Sumiov, que quando regressou a Bacau, teve o cuidado de não fazer um relatório sobre o assunto.
Amava demasiado o seu uniforme para o trocar por um fato de trabalho na Katorga.
O primo Eftimie fora muito útil naqueles dez anos. Avisava os Patrascu antes de cada rusga. Nessa altura, Michael era rapidamente levado para a montanha, para a sua inatingível caverna no rochedo íngreme.
Popa também ainda vivia em casa de Patrascu. Era agora natchalnik adjunto e tentava há oito anos pedir a mão de Sônia ao velho Mihai.
- Como é que uma rapariga como Sônia pode não querer nada com o amor! - gritou ele uma vez. Fora no oitavo ano, quando Mihai lhe dissera aos gritos: ”A Sônia não se apaixona!”
Popa não o compreendia. Aquela rapariga rude transformara-se numa mulher vigorosa de vinte e seis anos. Mais bela do que antigamente, mais madura, com uns seios cheios, com os movimentos de um gato, que faziam Popa transpirar só de olhar para ela.
- Ela não pode ser de pedra! - disse ele desesperado. - Uma mulher daquelas! Devia gritar pelo amor! Está tão madura como uma maçã que o vento fará cair do ramo! Será que nas veias lhe corre vinagre em vez de sangue? Sinceramente, não compreendo!
Numa tarde de Verão, ele iria perceber.
Regressara mais cedo. Os tractores tinham sido distribuídos, os livros estavam em ordem, e assim Popa saíra cedo à noite para falar mais uma vez com Sônia e determinar o motivo da sua insensibilidade.
Encontrou Sônia no milheiral. Quando ele se aproximou silenciosamente, ela estava deitada ao lado de um homem louro, forte e alto. Usava umas calças de camponês, a camisa romena com as mangas em balão, um cinto bordado com uma faca numa bainha de prata e a seu lado, no milho, estava um boné de feltro debruado de lã negra.
Wassile Popa bufou. Um homem ao lado de Sônia. Há dez anos que tentava que ela olhasse para ele e ali estava ela deitada ao lado de um homem no milheiral, com a cabeça sobre o seu peito, feliz e a brincar com os dedos dele.
A sensatez abandonou Popa. Gritou e deu um pulo semelhante ao de um predador sob aquele pedaço de milheiral pisado. Depois, tirou a faca do bolso e agachou-se.
Michael e Sônia tinham-se levantado ao ouvir o grito. Enquanto Sônia, paralisada de medo e repulsa, colocara a mão na boca e mordia os dedos para não gritar, Michael afastara-se de Popa com dois passos e também puxara a faca do cinto. Fitaram-se com olhos frios e sem piedade.
- Quem és tu, cão? - gritou Popa com voz rouca. - De onde vens?
- Da Alemanha - disse Michael sem medo.
- Da... - Empurrou a cabeça para a frente. Os seus olhos brilhavam como se ele fosse um louco. A sua boca estava aberta como se não conseguisse respirar. - Estiveste com Tripadus. Estiveste. Com Vera Mocanu... - murmurou ele ofegantemente.
A cabeça de Michael estremeceu. ”Vera”, pensou ele. ”Já passaram onze anos. De onde é que ele me conhece? Quem é este Popa?”
- Sim! - disse com determinação. - Estive com Vera no acampamento de Tripadus.
- Oh, Deus! Oh, meu Deus! Agradeço-te! - disse Popa em voz alta. Levantou a faca como se fosse uma cruz cintilante ao sol quente de Verão. O seu rosto brilhava. Fanatismo, demência e fúria quase que refulgiam através da sua pele. - És tu! Finalmente! Finalmente! E encontro-te com Sônia! Será uma morte dupla. Às vezes amaldiçoo a natureza por só haver uma morte para morrer!
- Ouve-me, Popa - tentou Michael -, pela última vez, porque nos devemos matar? Sei que foste legionário. Nós somos ambos procurados! Devíamos ser amigos...
- Amigos! - gritou Popa. - O meu amigo é o teu último suspiro. O meu amigo é o teu crânio perfurado! O mundo não seria perfeito se tu continuasses a viver.
Ele avançou com a faca a oscilar, tentando cravá-la.
- Wassile! - gritou Sônia.
Michael saltou para o lado. A poderosa facada perdeu-se no vazio. Popa tropeçou à sua frente. Agora poderia atacá-lo. Era muito simples. Aquele dorso era largo e estava perto. Porém, Michael estava à espera... nunca apunhalaria ninguém pelas costas.
Popa rodopiou. Durante alguns segundos os seus olhos enlouquecidos exprimiram espanto. Depois, o seu rosto voltou a enrugar-se. Tudo nele emanava ódio. Um ódio sem limites. Estendeu novamente o braço que empunhava a faca e voltou a saltar. Como um tigre e com a rapidez de um raio, atirou-se a Michael. Os corpos colidiram. No mesmo instante, tentou golpear, mas voltou a atingir o vazio. Michael tinha baixado o ombro e atirado o braço de Popa para o lado. Lançava-o agora para o chão, como se o corpo daquele homem furioso tivesse sido projectado por uma alavanca.
Mais uma vez hesitou uns instantes. Olhou para Sônia, que pressionava os dois punhos contra a boca. Ele sabia que não haveria misericórdia e também já não havia escapatória possível: nem dos soviéticos, nem do tempo, nem da esperança que acalentara até então de um dia regressar à Alemanha com Sônia como um homem livre.
Só existia uma coisa: sobreviver!
Ser o mais forte! O mais rápido! O assassino...
Wassile Popa ficara um pouco abalado com aquela queda. Ainda estava deitado de lado no milheiral. Nos ínfimos segundos de hesitação, durante os quais Michael resumiu a sua vida, bastava um segundo para vingar aquilo que sofrera durante dez anos, vivendo como um rato sob um telhado e só à noite podendo ver o céu, respirar livremente e endireitar aquele corpo curvado. Aquele segundo entre o ontem e o amanhã decorreu quando gritou.
- Filho-da-mãe! Filho-da-mãe! Meu grande filho-da-mãe!
Michael caiu como uma pedra sobre Popa, que tentava levantar-se. De olhos fechados, espetou a faca no corpo que estremecia debaixo de si. Ouviu ainda os gemidos de Wassile e pensou: ”Nunca esquecerei isto. Isto, nunca! Isto, nunca! Com as minhas mãos... com as minhas próprias mãos.”
Sônia puxou-o para trás. Apenas sentiu que alguém o agarrava. Wassile Popa estava no meio do milho, esticado, quieto, com o rosto imóvel virado para o sol como se tivesse querido pedir-lhe ajuda.
- Temos de o tirar daqui - ouviu Michael a voz de Sônia ao lado da sua cabeça.
Anuiu, mas não se mexeu. Olhava para as montanhas.
- Ele está... - disse em voz baixa.
Não conseguia proferir a palavra. Sônia inclinou-se sobre Popa.
- Já não se mexe!
- Respira?
- Não sei. - Sônia ajoelhou-se ao lado de Popa e colocou receosamente o dedo indicador sobre os lábios abertos. Estavam frios! Retirou o dedo. - Não!
Michael virou-se. Um tremor estranho trespassou-o. Colocou as mãos no rosto e começou a soluçar.
- Matei uma pessoa... - gaguejava ele. - Sônia! Com as minhas mãos, matei um homem! Eu... eu... oh, Sônia!
- Ele queria matar-te! Tu apenas te defendeste.
- Mas ele tinha razão. O que é que eu tinha para procurar no vosso país? Porque estou aqui?
- Procuravas-me a mim, Mihai...
Ela abraçou-lhe o ombro e colocou a cabeça na sua nuca. Ficaram assim durante algum tempo, em silêncio, com a sensação de que se abraçavam um ao outro como consolação e não encontrariam qualquer conforto ou caminho que conduzisse ao futuro. Popa tornara-se uma pedra angular, que tudo impedia. Com Popa, o mundo de Michael e Sônia ficara destruído. Dez anos de esperança sangravam no milheiral atrás da casa de Patrascu.
Como mortos-vivos silenciosos, estavam ainda ao lado de Wassile Popa quando o velho Mihai Patrascu foi ao campo ver onde estava Sônia. Era preciso fazer o jantar. Anna, a mãe, não se estava a sentir bem. No último ano, ficara doente. ”É o coração”, dissera o velho doutor Brinse. O médico tinha agora uma idade avançada, cabelos brancos cor de neve, caminhava curvado e apoiado numa grossa bengala cuja pega ele próprio esculpira e era ainda solicitado por toda a comunidade porque dizia a verdade aos camponeses. O novo médico, que o distrito contratara, um ”rapazinho de Bucareste”, como era chamado pelos habitantes de Bacau, era um homem demasiado evasivo, para o qual nada tinha importância e que só quando as pessoas morriam dizia:
- Eu já sabia!
Nesse aspecto, o velho Georghe Brinse era diferente. Entrava nas cabanas, olhava para a velha Katinka, batia-lhe no ombro e dizia:
- Katinkaschka, prepara-te para a viagem! Reza mais uma vez.
Era disso que os camponeses gostavam. Era honesto e verdadeiro. Para eles a morte não era um susto. O nascimento e a morte eram actos da natureza aos quais toda a sua vida estava submetida. Viam-nos diariamente, viviam com eles. Era natural.
No caso de Anna Patrascu, Brinse hesitara com as suas profecias. Tinha-a auscultado, sangrado, medira-lhe a tensão arterial e a pulsação.
- O coração, Annaschka - dissera ele. - Trabalhaste de mais! Tens de te poupar! Deixa que Sônia e Michael tratem da quinta e deita-te ao sol! Já mereces alguns anos de tranquilidade. Repara! O coração é uma máquina como um tractor, como um arado, como uma alfaia agrícola. E agora essa máquina está a funcionar há mais de sessenta anos, sem lubrificação, sem cuidados, sem lhe tirarem a ferrugem. Sempre a trabalhar! E agora entrou-lhe areia, e a areia aniquila a máquina se ela continuar a trabalhar. Entendes isso? Anna e o velho Mihai percebiam bem. Quem não percebia o
doutor Brinse?
- Ela vai poupar-se - disse Mihai Patrascu a Georghe. - Os
jovens vão trabalhar no campo!
- E a Sônia irá cozinhar!
- Vamos ver.
Mas naquele dia Anna estava deitada na cama. O calor afectava-a bastante. Faltara-lhe o ar quando ela preparava o farelo para os
porcos. O comedouro dançara perante os seus olhos, como se saltasse à volta de uma fogueira de Páscoa e os grunhidos dos porcos
tinham-lhe soado como trombones. Ficara com medo e metera-se, de imediato, na cama.
- Sônia! - gritou Mihai Patrascu à distância quando descobriu o lenço de cabeça de sua filha ao lado do chapéu de Michael
no milheiral. - Será que isto é possível? Em casa a maezinha luta para respirar e os jovens, dez anos depois, ainda andam pelo campo a arrulhar como pombinhos! Vem cá e vai fazer o jantar! Rápido!
Quando se aproximou, viu Popa morto no milheiral. Ficou parado a olhar-lhe para o rosto deformado.
- Esta agora! - disse ele em voz baixa. A sua voz ainda estava ” debilitada e sem som. - Enterramo-lo no meio do milho, que é
onde dá menos nas vistas. Na Primavera lavro por cima...
Michael andava de um lado para o outro. O seu rosto estava
pálido.
- Sou um assassino! - gritou ele com uma voz estridente. O velho Patrascu acenou pesadamente com a cabeça.
- E vais continuar a sê-lo mesmo que grites! Por isso não grites! Pensa! Mais tarde continuamos a conversa. Sônia, vai para casa tratar do jantar! E nós enterramos o Popa!
- E... e depois?...
- Tudo acontecerá como deve acontecer. Podes mudar alguma coisa?
- Não. Mas os soviéticos vão-me fuzilar!
- Isso é certo...
- E dizes isso com tanta calma? - gritou Sônia. Sônia abraçou Michael como se alguém o quisesse afastar dela.
O velho Patrascu abanou a cabeça.
- Eles também o fuzilarão se eu não tiver calma. - Agarrou Sônia pelo ombro, afastou-a de Michael e deu-lhe um empurrão, fazendo-a saltar por cima do morto.
- Vai fazer o jantar! O resto são coisas de homens! Sônia baixou a cabeça e regressou lentamente a casa.
Ao anoitecer, o velho Mihai e Michael cavaram uma sepultura no meio do milheiral. Fizeram-na suficientemente profunda, transportaram depois Wassile Popa para a cova, rezaram pela sua alma e taparam o buraco. Colocaram as plantas do milho sobre o pequeno rectângulo, levaram a terra que sobrou numa lona para a orla da floresta e espalharam-na. Seguidamente, ficaram à beira do campo de milho e olharam para o local onde Popa ficava sepultado. Não era possível reconhecer o local.
- Devemos rezar? - perguntou o velho Mihai. Coçou a cabeça. - Devíamos, na realidade, ter dito ao sacerdote. O Popa também era cristão, apesar de ser comunista. Uma vez vi-o à frente da imagem da mãe de Jesus a fazer o sinal-da-cruz. - O velho Patrascu passou a mão pelos olhos. - Na realidade, quem era ele? Nunca consegui perceber nada dele! De onde vinha?
- Era um legionário - disse Michael. O velho Mihai virou-se.
- Conhece-lo? Um legionário? Nunca! Era o chefe de brigada da estação de tractores!
- Vivia no anonimato como eu! Esteve com Neculae Tripadus, nos montes Vrancei, um homem da Guarda de Ferro. Estive pouco tempo com eles. Queriam-me usar como isco para os soviéticos.
Patrascu virou-se.
- Vamos - disse ele duramente. - Não se deve ter compaixão. Os homens são uma espécie muito estranha. Com cada novo nascimento vem um novo mal à Terra. Tu e a Sônia querem ter filhos?
- Queremos.
- E os vossos filhos voltarão a querer ter filhos, e estes, por sua vez... e por aí adiante! Vem! Vamos comer.
Virou-se e regressou a casa.
Michael ficou sozinho à beira do campo de milho. Olhou para o local onde Wassile Popa estava sepultado. O vento das montanhas fazia movimentar as espigas de milho, dando-lhe o aspecto de um mar amarelo e ondulante.
Michael fechou os olhos. Os soluços voltaram a fazê-lo estremecer. Tinha medo da morte...
Na manhã seguinte, deram por falta de Wassile Popa na estacão de tractores.
- Deve ter apanhado uma bebedeira! - disse o natchalnik zangado. - É sempre a mesma coisa! Promove-se uma pessoa a determinado posto e, como agradecimento, ele dá à sola!
Naquele dia, as coisas ainda correram bem sem Popa. Porém, no segundo dia, o natchalnik começou a ficar inquieto e foi até Tanescu. Mihai Patrascu recebeu-o à porta de casa quando ele saltou do camião, que se assemelhava a um jipe.
- Que se passa com Wassile? - gritou o natchalnik. - Está doente?
- Wassile? Mas, filho... ele foi-se embora!
- O quê? - berrou o natchalnik. - Embora?
- Sim. Foi-se embora!
Patrascu acenou com a cabeça. A ingenuidade sempre foi a melhor protecção contra as perguntas difíceis. Até o natchalnik ficou admirado, aproximando-se de Patrascu com passadas largas.
- Ele não se pode simplesmente ter ido embora! - gritou furioso.
Pensou na informação que era obrigado a enviar para Bacau. ”O meu chefe de brigada foi-se embora”, deveria ele escrever. ”Desconhece-se para onde!” E uma coisa daquelas num Estado comunista! Debaixo do nariz do comissário! No décimo ano da democratização do povo. Simplesmente desapareceu! Como que por artes de uma varinha mágica! Popa desapareceu! Haveria a discussão com o partido, com o coronel Boris Petrovich Sumiov e com Bucareste. Seria uma enorme confusão! O medo fez com que, subitamente, os seus membros enfraquecessem.
- Para onde é que ele foi? - perguntou gaguejando. Patrascu encolheu os ombros largos.
- Será que sou o seu confessor, meu filho? Fez as malas, disse ”Agora vou-me embora” e desapareceu. Ao fim de dez anos! Acho que também não é um bom comportamento em relação ao seu senhorio! Durante dez anos dei-lhe de comer, durante dez anos...
- Mas não se pode ir assim embora! - gritou o natchalnik. Patrascu olhou para o homem gordo com um ar estúpido.
- E porque não? É um homem livre! Nós, os comunistas, somos os homens mais livres do mundo. Pelo menos, é o que nos estão sempre a dizer...
- Quando é que ele partiu? - berrou o natchalnik.
Era pouco digno falar de política com um idiota como Mihai Patrascu.
- Ontem. Logo de manhã! Pelo caminho até ia a assobiar uma valsa!
- Que filho-da-mãe! Que cão danado! - bradou o natchalnik muito abalado.
Patrascu acenou com a cabeça.
Sem uma palavra, o natchalnik virou-lhe as costas e dirigiu-se para o veículo.
- Nós descobri-lo-emos! - voltou a gritar por cima do ombro. - E depois irá trabalhar para a pedreira. Sabotador! Vamos partir-lhe os ossos! Um a um!
- Isso é bom, camarada - afirmou Patrascu com um rosto fiel. - Viva o partido e a liberdade!
O natchalnik hesitou um momento, subindo depois para o jipe e arrancando velozmente.
Patrascu ficou a olhar para ele a rir. E ficou muito contente.
Quem pensa que um comunista pode simplesmente desaparecer em Tanescu e resolver o problema apenas com uma comunicação, está completamente enganado. Três dias depois, chegou à aldeia uma comissão de Bacau e começou a interrogar os camponeses.
Revelou-se que os testemunhos eram contraditórios e extremamente estranhos. Três camponeses tinham ainda visto Wassile Popa por volta do meio-dia. Um outro até o teria visto num milheiral. Um homem idoso que via mal no escuro - tal como se veio a verificar mais tarde - vira Popa à noite junto ao poço.
Mihai Patrascu foi intimado para se deslocar à stolowaja onde estava reunida a comissão. De qualquer modo, não o fizeram de uma maneira cortês. Apareceram subitamente no pátio quatro soldados soviéticos, empurraram Patrascu com as carabinas e levaram-no através das ruas da aldeia até à stolowaja. Michael observava tudo através da sua estreita janela debaixo do telhado. Também viu que Sônia corria atrás do pai. Até Anna, a mãe, esqueceu a sua falta de ar e correu, tão depressa quanto permitiam as suas pernas gordas, atrás do grupo até à sala de reuniões.
”Agora é que vamos ver”, pensou Michael.
Encostou-se à madeira, pressionou a cabeça contra os troncos gigantescos e tentou raciocinar claramente e ser mais corajoso nas horas que se avizinhavam.
Na stolowaja estava sentado atrás da mesa um comissário de Bacau, a seu lado os comandantes locais soviéticos e o natchalnik da estação de tractores. Ao fundo da sala, perto da porta, estavam amontoados os camponeses que já tinham sido interrogados. Patrascu foi atirado para junto da mesa e ouviu duas vozes de mulher a gemer atrás de si, até a porta da sala ser fechada.
- Onde está o camarada Popa? - berrou o comissário. Brincava com um carimbo pesado e Patrascu viu que à frente
dele estava uma folha de papel que era a transferência para um campo de trabalho e onde apenas faltavam os nomes e o carimbo. Patrascu suspirou e encolheu os ombros.
- Foi-se embora!
- Viveu em tua casa! Quase dez anos!
- Apesar disso, foi-se embora!
- Mas deve ter dito alguma coisa em qualquer ocasião. Em dez anos! Nunca disse que era um legionário?
”Ah, também já sabem isso”, pensou Mihai Patrascu. ”Quem esconde um legionário é castigado com a morte.”
- Não! - afirmou ele. - Então era um legionário?
- É o que se afirma!
- Então, aquilo que é afirmado também deve ser demonstrado. Eu não sabia. Só dormia em minha casa. E depois foi-se embora! Um mau camarada, camaradas!
O comissário observou o velho Patrascu como se fosse um doente incurável. ”Será assim tão idiota ou está apenas a brincar?”, pensou ele. ”Tendo em conta os outros camponeses, poder-se-ia lastimar o facto de existir tanta estupidez junta numa única aldeia!”
Os interrogatórios foram suspensos. A comissão abandonou Tanescu. O natchalnik, que era o que sabia menos, foi imediatamente levado. Um homem que emprega durante dez anos como funcionário um legionário foragido é um escândalo para o comunismo! Uma coisa dessas tinha de se notar! Isso sente-se e, além disso, era preciso apresentar um culpado a Bucareste e à direcção do partido! Num sistema ordenado é impossível não haver um culpado! Isso só acontece nas democracias ocidentais.
Três dias depois, um batalhão de tropas soviéticas regressou dos Cárpatos. Arrastavam consigo um morto envolto numa lona. Georghe Brinse foi o primeiro a perceber quem era. Correu para casa de Mihai Patrascu e atirou-se, esgotado e muito abalado, para o banco de madeira.
- Eles mataram Grigori, o idiota! - gemeu ele. - Acabaram de o trazer para baixo.
Patrascu exalou uma espessa nuvem de fumo do cachimbo. O seu rosto gasto pelo tempo mostrava uma expressão estupefacta.
- Matam realmente pelo prazer de matar! - disse ele num tom abafado. - O que é que o idiota lhes fez?
- O Grigori era alemão! - disse Brinse arquejante. Patrascu deixou cair o cachimbo sobre a mesa e o tabaco queimado espalhou-se na superfície.
- O quê?
- Era alemão! Chamava-se Paul Herberg. Durante onze anos fingiu-se de surdo para salvar a pele! - Brinse passou a mão pela testa. O suor frio ficou nas costas da mão. - Só eu sabia quem ele era. E o lá de cima, o Michael. Como é que eles souberam?
- Foi traído?
- Por quem? - Brinse abanou a cabeça. - Mataram-no pelas costas. Bem perto da nuca.
Ninguém soube. Os soldados soviéticos enterraram Grigori na orla da floresta. Mais tarde, ninguém viu onde estava enterrado. O chão fora completamente alisado. A cabana de Grigori fora incendiada pelos russos, as ovelhas foram levadas para outro pasto para serem cuidadas por dois rapazes que tinham sido destacados como pastores.
- Sempre esta Tanescu - afirmou Jon Lupescu, o comissário municipal em Bacau, ao coronel Sumiov, que, enervado com aquele novo incidente, atirara o documento para cima da mesa de Lupescu. - Devíamos queimar aquela aldeia inteira!
- Pense realisticamente, camarada! - rosnou Sumiov. - Primeiro, aquele Stepan Mormeth, o cigano, é morto. Depois, desaparece Popa sem deixar rasto! Agora, descobre-se um alemão que viveu durante onze anos a fingir-se de completo idiota debaixo dos nossos narizes e que criava ovelhas! É de vomitar, camarada! Se este lá vivia, estão é porque ainda existem mais alemães! Onze anos? Por amor de Deus! E de mais!
- Estou muito abalado, Boris Petrovich. Tem de ser fazer alguma coisa! - Lupescu bateu com o punho na mesa. Receava pela sua posição e ficou tão agitado como um tigre numa jaula. - De imediato! - berrou ele. - Eu próprio irei a Tanescu!
O primo Eftimie, o polícia, fora a um curso em Galati. Não podia, tal como fizera tantas vezes, avisar ninguém. De qualquer modo, seria demasiado tarde, pois nem a milícia nem os soldados soviéticos em Tanescu tinham sabido de nada até a coluna militar ter entrado na aldeia no meio da escuridão. Eram dez veículos que também traziam jovens soldados da milícia, jovens que tinham crescido e sido educados no espírito do comunismo, que não conheciam mais nada no mundo a não ser as ideias de Lenine e Estaline e cujo verdadeiro pai era o Estado que serviam.
Saíram, ocuparam em poucos minutos as casas e os celeiros, cercaram até a igreja e a casa do sacerdote e começaram a revistar a aldeia desde as caves até aos telhados.
Michael estava sentado com Sônia, Anna, Mihai Patrascu e o médico, Georghe Brinse, à mesa do jantar, quando a porta se abriu e Lupescu entrou na sala com quatro soldados.
- Fiquem sentados! - gritou Jon Lupescu. - Quem se mexer será abatido!
Sônia baixou a cabeça até ao peito. Por baixo da mesa, procurou a mão de Michael. Quando a encontrou, agarrou com força. Estava a tremer e forçou-se a não o mostrar. Anna continuava a comer. Tornou-se subitamente a mais calma de todos e procedeu como se nada se estivesse a passar. Patrascu bateu com o cachimbo no tacão da bota.
- Mais uma aula sobre a sordidez comunista, camarada Jon?
- perguntou ele com desenvoltura.
No entanto, quem o conhecia reparou no tremor da sua voz, que manifestava perigo.
Lupescu esbracejou em fúria.
- Serão todos interrogados! Todos! Quando e onde nasceram, há quanto tempo estão na aldeia...
- Há trezentos anos! - disse Patrascu em voz alta. - E nestes trezentos anos nunca ninguém nos fez perguntas tão parvas.
Lupescu baixou os braços. A mãe Anna levantou os olhos do prato.
- Queres comer uma tigela de sopa, Jon? - perguntou ela. Há feijões frescos com gordura de carneiro! E ainda há um pequeno copo de leite coalhado!
Lupescu avançou lentamente. Olhava para Michael. Georghe Brinse foi atravessado por um arrepio. Quis pôr-se de pé, mas as suas pernas velhas, fracas e, nos últimos tempos, quase sempre dormentes, fraquejaram por completo. Ficou sentado no banco e ofegava.
- Quem és tu? - perguntou Lupescu, apontando para Michael. - Conheço cada verme de Tanescu. Nunca te vi em todos estes anos! Quem és tu? Recém-chegado? De onde? Onde está o teu registo?
- É um trabalhador da quinta e o noivo da minha Sônia disse Patrascu.
- Ena, ena! O noivo! Desde quando? Ela não ia casar com o Popa?
- Nunca! - gritou Sônia. - Sempre foi Mihai!
- Chama-se Mihai! Sai aí do canto, ó parvónio!
Lupescu fez um gesto com o braço. Os soldados da milícia fecharam as portas - a que dava para a rua e a que comunicava com a sala ao lado -, colocando-se um deles em frente da janela.
Michael levantou-se devagar. Mantinha ainda a mão de Sônia na sua. ”É a despedida”, pensou ele. ”Agora já não há escapatória possível.” Foram dez anos belos e fantásticos, mesmo quando estava no sótão. Porém, foram anos com Sônia e houve noites que ele se cobrira apenas com os seus longos cabelos negros e adormecera na curva do seu braço branco. Dez anos de uma felicidade proibida e agitada. ”Pagamos tudo o que fazemos nesta vida.”
- Não te deixarei sozinho - murmurou Sônia quando Michael se levantou.
Lupescu deu alguns passos em frente.
- Calados! - berrou ele. - O que disseram? Patrascu quis intervir, mas Michael abanou a cabeça.
- Eu sou Michael Peters. Um soldado alemão - disse ele. Disse-o em alemão. Jon Lupescu estremeceu. Depois fez um
largo sorriso.
- Como se eu não soubesse! - Olhou para Patrascu, que, com uma expressão irritada, enchia novamente o cachimbo. Mormeth vivia aqui e foi assassinado! Popa vivia aqui e desapareceu! Notas alguma coisa, camarada Mihai? Sempre que alguém descobria um alemão, tinha de desaparecer. Na casa respeitável do Patrascu!
- Não foi ele! - gritou Sônia. - O Mormeth não foi...
- Iremos interrogá-lo! Em Bacau. Em Bucareste. Em Moscovo. - Lupescu esfregou as mãos. - Ah, se o vamos interrogar! Dirigiu-se a Michael. - Há quanto tempo estás aqui?
- Só há um ano! - disse Michael rapidamente. - Vivi mais tempo com Grigori e na floresta.
- Ele está aqui há doze anos! - gritou Sônia. Abraçou Michael e olhou para Lupescu com um ódio que deformava o seu lindo rosto redondo. - Sim, sim! Doze anos, meu idiota! Viveu lá em cima, no sótão. Perante Deus somos marido e mulher e sê-lo-íamos perante a lei se a vossa guerra louca não nos tivesse transformado em foragidos! O que é que o Mihai lhes fez? É pior do que aqueles ali - apontou para os quatro soldados da milícia que estavam em silêncio e frente às portas e à janela - só porque usou outro uniforme? Quando o despiu, era mais novo do que aquele ali! Era uma criança e vocês perseguiram-no, durante anos, pelos rochedos, pelas florestas, pelas montanhas acima, até às nuvens, só porque foi obrigado a vir para o nosso país usando um uniforme e falando uma língua que nós não percebíamos? É esse o seu crime? Foi ele que quis a guerra? Quiseste-a tu, Lupescu? E se fores sincero responderás que não. Mesmo assim tornaste-te um servidor da escravidão e és pisado, e quanto mais te pisam mais tu dizes ”Viva!”.
- A mulher está louca! - disse Lupescu espantado. - Patrascu, repreende-a!
- Porquê? - Patrascu acendeu o cachimbo. - Aprendemos nas aulas que cada um pode exprimir a sua opinião, se essa for útil ao Estado. Acho que a da Sônia te foi muito útil!
- Porque queres levar o Mihai? - perguntou Sônia furiosa.
- Onze anos depois do fim da guerra? Não terá ele sofrido o suficiente? E para que é que ele deve sofrer? Por ser alemão? Porque a guerra o empurrou para Tanescu? Será dele a culpa? Tu é que tens a culpa de servir a injustiça de olhos abertos. Nunca ninguém te perdoará! Porém, o Mihai não aprendeu a ver nada enquanto teve de fugir pelas montanhas como um lobo, porque algo de mais grave o esperava do que lobos famintos! Deixa-o aqui, Jon Lupescu! Deixa-o aqui!
- O que esta mulher pensa!
Lupescu limpou o suor que subitamente começara a brotar-lhe da testa. Aquilo que Sônia lhe dizia aos gritos era o que ele via reflectido nos olhares dos que a ouviam em silêncio. A culpa era sua! A sua traição à Roménia. Os seus serviços à escravidão ditada por Moscovo. O seu medo abjecto de Sumiov.
- Levem-no! - gritou ele subitamente. - Levem esse porco alemão!
Bateu com o punho na mesa e virou-se.
Os quatro soldados da milícia agarraram em Michael e tiraram-no de trás da mesa. Permitiu que aquilo acontecesse sem se defender. Não fazia sentido resistir.
- Eu não te deixo sozinho! - gritou Sônia. Estava agarrada firmemente ao casaco de Michael. Levantou o punho livre na direcção dos milicianos, contornou-os e bateu com a cabeça contra o estômago dos soldados. - Para o levar, têm de me matar! - gritou ela. - Primeiro têm de me matar!
- Levem-na! - disse Lupescu da porta. - De qualquer modo, temos de a prender como sabotadora! Alto! - berrou ele. Patrascu saltara da cadeira. Uma longa faca brilhava-lhe na mão e estava apontada aos soldados que queriam agarrar Sônia. - Não faças disparates, Mihai! Não te desgraces! Baixa a faca!
- A Sônia fica aqui! - disse Patrascu num tom abafado. Eu é que escondi o alemão durante dez anos!
- Tudo se irá esclarecer! E eu mando-te matar se não largares essa faca! E a Sônia também, compreendes? - Lupescu acenou aos soldados. - Levem-nos para o camião. Rápido!
Os soldados agarraram em Michael e Sônia. Saíram de casa ao lado um do outro, e de mão dada atravessaram as ruas da aldeia até à praça do mercado, até aos veículos que estavam iluminados por alguns archotes. Quando passaram pela casa do sacerdote, este estava à porta. Levantou a mão como que abençoando-os e Sônia baixou a cabeça como se tivesse recebido a bênção.
- Força! - gritou alguém em russo.
Era a voz de um rapazinho. Aparentemente, a rusga divertia-o. Em casa de Patrascu, Jon Lupescu estava ainda à porta. Olhava para Georghe Brinse, que até então se mantivera calado.
- Também sabia disto, doutor? - perguntou ele hesitante.
- Eu sei tudo. - Georghe Brinse apoiou-se no canto da mesa.
- Podes mandar-me prender, Jon. Há quarenta e cinco anos, retirei-te do ventre da tua mãe. Nessa altura, eras um pobre verme que eu tive de embrulhar em algodão para que ele te mantivesse vivo. Há erros que nunca se devem repetir.
Sem proferir uma palavra, Lupescu abandonou a casa. Estava grato à escuridão por não permitir que vissem a sua palidez.
Michael e Sônia foram interrogados ainda nessa noite.
Enquanto Michael foi para a prisão central de Bacau, partilhando uma cela dupla com um ladrão e assassino que asseverou durante toda a noite que a sua pistola disparara inadvertidamente porque nunca tivera uma arma na mão, Sônia Patrascu foi retida num quarto individual da prisão da polícia. Jon Lupescu, que viajara com eles de Tanescu, ainda não notificara o coronel Sumiov.
- Calem a boca - dissera a todos os que tinham efectuado a rusga. - Vamos investigar este caso sozinhos e apresentá-lo, já pronto, aos soviéticos. Isso trar-nos-á uma promoção. Pelo menos, um louvor de Bucareste. E isso é qualquer coisa neste canto esquecido do mundo. Não é verdade, camaradas?
Na realidade, aquele curto comentário do médico magoara-o até ao mais profundo da sua alma. O facto de Georghe Brinse o desprezar profundamente e achar execrável o seu nascimento era mais do que qualquer insulto que jamais fora proferido à sua frente ou mesmo nas suas costas. Durante toda a viagem de Tanescu para Bacau, estivera a pensar se, de facto, era um malandro tão grande. Era certo que, após a queda do regime de Antonescu, se virara de imediato para os comunistas, pois suspeitava que uma nova onda viria de leste. Quando expulsaram o rei Miguel do país e os senhores de Moscovo assumiram o poder, ultrapassara-se a si próprio e publicara no jornal do partido um artigo de louvor a Estaline e aos amigos e libertadores russos. Fizera-o por estar, em parte, convencido de que, a longo prazo, ninguém poderia retirar a Roménia da imundície para a qual a guerra a atirara. Era melhor juntar-se ao Diabo do que contar com um pássaro a voar.
De qualquer modo, Jon Lupescu pensara e agira em conformidade. Agora via que errara, mas era demasiado tarde.
No entanto, naquela noite, mal chegara a Bacau, agitou-se dentro de si a última centelha das boas recordações do passado. Pensou na amizade com Mihai Patrascu, na sua juventude na aldeia vizinha de Tanescu, nos bailes de Páscoa e na pequena rapariga de cabelos negros, Sônia, que ele - mal ela sabia andar - embalara nos joelhos e cantara canções dos Cárpatos.
Sônia, que esperava agora uma sentença de morte por sabotagem e por dar guarida a um soldado alemão!
Jon Lupescu levou a cabo algo que até então pensara ser impossível: agia por conta própria. Metendo a mão na consciência, tentava expiar um pouco a sua escandalosa posição perante os antigos amigos.
Mandou trazer Michael da prisão central a meio da noite e começou um interrogatório rígido em privado. Pelo menos, era assim que era chamado. Mandou vir holofotes muito fortes, fez um círculo em torno de uma cadeira e esfregou as mãos perante os outros funcionários.
- O passarinho vai cantar, camaradas! - gritou ele entusiasmado. - Vou começar imediatamente com o segundo grau! Quem vive escondido durante dez anos deve ser um osso duro de roer! E deixem-nos a sós, camaradas!
Michael foi conduzido à sala, acorrentado, sem sapatos e com as calças a arrastar, pois tinham-lhe retirado o cinto para evitar um suicídio. Dois polícias secretos sentaram-no na cadeira e ligaram o holofote.
Michael tinha os olhos fechados. Já ouvira falar das torturas. O facto de ser agora uma vítima desses métodos de interrogatório enchia-o de medo, mas também de uma teimosia que até agora lhe fora estranha. ”Não direi nada”, disse ele, vezes sem conta, a si próprio. Sugestionava-se com aquela fórmula: ”Não dizer nada! Não dizer nada! Não dizer nada...”
Mal a porta se fechou atrás dos membros da polícia secreta, Jon Lupescu desligou o holofote. Apenas o candeeiro da mesa ficou aceso. Uma luz fraca naquela sala enorme. Quando Michael abriu os olhos, tudo lhe pareceu estar às escuras.
- Vamos conversar racionalmente, amiguinho - disse Lupescu em voz baixa. - Apenas fiz o meu dever. O que estou a fazer agora reside somente no facto de conhecer a Sônia desde pequena e também o velho Mihai. Ouve-me! A Sônia é a tua mulher! Entendes? Ela manteve-te escondido porque és seu marido.
- Sou um soldado alemão - proferiu ele lentamente. mantive-me escondido. A Sônia Patrascu não tem nada a ver com isto. Eu obriguei-a a esconder-me. Eu...
- És um idiota, Mihai Peters! - Lupescu inclinou-se para a frente, ao lado do candeeiro. - Deves dizer que casaste com a Sônia! ”Mas como sou um fugitivo político, não tive possibilidade de legalizar a situação! Agora quero casar perante a lei se me perdoarem!” Compreendes?
- Não...
- Como é que um homem pode ser tão idiota! Com estas palavras, salvas-te! Amanhã de manhã, estarás perante o coronel Sumiov, que falará contigo de outra maneira! Nessa altura, deverás dizer a mesma coisa. Tu e a Sônia! São um casal, entendido? Até a política capitula perante o amor! Às vezes...
- Como está a Sônia? - perguntou Michael brandamente.
- Bem. Está a dormir num quarto elegante, numa cama verdadeira. É melhor do que em casa, no teu sótão! - Lupescu inclinou-se. - Só me tens de dizer uma coisa: quem matou o Stepan Mormeth?
- Grigori, o idiota, que, na realidade, se chamava Paul Herberg.
- Isso é verdade, amigo?
- Juro.
- E Wassile Popa? Quem foi?
- Popa desapareceu.
- Que disparate! Uma pessoa não pode simplesmente desaparecer. Qualquer patrulha soviética o apanharia.
- Vivi mais de dez anos sem ser visto.
- É verdade - admitiu Lupescu. - É uma chatice, meu rapaz. Em Bucareste não me verão com bons olhos. - Jon curvou-se novamente. - Diz sempre que foi o amor! E se te partirem os ossos, grita sempre: ”Foi o amor!” Não te esqueças... As ideologias e leis são sempre impotentes quando se trata de amor. É o que acontecerá se te mantiveres firme! Agora, deixa que te levem! Deves parecer meio morto...
Lupescu ligou novamente o forte holofote. Michael estava sentado na cadeira com a cabeça caída para trás, a boca aberta e os olhos semicerrados. O suor escorria-lhe pelo rosto e pelo peito e encharcava a camisa rasgada.
- Assim está bem - disse Lupescu contente.
Bateu no ombro de Michael, dirigiu-se para a porta e abriu-a. No corredor esperavam os dois membros da polícia secreta.
- Levem este porco daqui! - gritou Lupescu. - Está desmaiado! O coronel Sumiov já o vai apanhar quebrado! Tirem-no daqui! Não suporto olhar para tal percevejo!
Ambos os polícias agarraram em Michael, soltaram-no da cadeira e arrastaram-no para fora da sala. Lupescu desligou novamente o holofote. Esfregou as mãos. ”É preciso ser esperto”, pensou ele. ”Talvez cheguem novos tempos e é sempre bom estar seguro. Quando o vento muda, três actos bons e realizados com inteligência pesam mais do que mil segredos. É assim que, em política, o esquecimento forma o trampolim para uma nova ascensão. O que aconteceria aos políticos se não nos esquecêssemos de muita coisa?”
O coronel Boris Petrovich Sumiov ficou bem-humorado quando Lupescu lhe levou os dois prisioneiros. Recebera uma mensagem confidencial de Bucareste que dizia que Moscovo estava a ponderar retirá-lo de Bacau para o enviar para a Alemanha, para Berlim Oriental, para a grande central de espionagem do ocidente europeu. A vida na solidão e na ”parte de trás do mundo”, nome que Sumiov dava a Bacau, parecia ter chegado ao fim. Mantivera-se corajosamente todos aqueles anos no seu posto sem resmungar, libertando apenas sobre os prisioneiros a raiva que tinha àquele comando, o que lhe trouxera sempre um louvor especial. Agora, a espera parecia dar frutos fabulosos, pois o que se ouvia sobre o país dos gennanskijs era melhor do que todas as maravilhas da Mongólia. Os reaccionários fugitivos viviam como os voivodas e as mulheres alemãs eram como cobertura glacé. Junto ao ícone negro de Irkutsk... Isso é que seria uma vida em Berlim!
Àquele sentimento de felicidade Jon Lupescu juntara a seguinte informação: ”Capturámos um antigo soldado alemão!”
- Mais um? - gritou Sumiov. Saltou da cadeira, puxou do coldre a sua pesada pistola do exército e colocou-a ostensivamente sobre a mesa. - Façam entrar o tipo! Deve ser um espião dos reaccionários!
- Não! - disse Lupescu empalidecendo. Não ponderara aquela possibilidade de interpretação. - Está casado com uma romena e...
O coronel Sumiov fez um gesto com a mão.
- Tu não percebes, Jon!
Michael estava de pé à porta quando Lupescu a abriu. Com três passos entrou na sala e alcançou a secretária do coronel soviético. Sumiov olhou admirado para Michael e depois para Lupescu.
- Ainda consegue andar? - perguntou admirado.
- Sim - gaguejou Lupescu. - Eu...
- E ainda tem este ar orgulhoso? - Sumiov agarrou na pesada pistola e levantou-a. Apontou para o rosto de Michael e berrou. Ajoelha-te, cão! Para baixo.
Lupescu ficou pálido e a tremer junto à porta. Viu o dedo indicador de Sumiov a tremer. ”Agora vai disparar, pensou Jon.”
O coronel Sumiov não disparou. Manteve o cano da pistola encostado à nuca de Michael e bateu-lhe.
- Fala - disse em voz alta. - Qual a força do vosso contingente?
Michael olhava fixamente para o chão. Estava tão perto que brevemente bateria com o rosto no chão e o sangue espalhar-se-ia pelos seus cabelos louros.
- Que contingente? - inquiriu ele.
- Os guerrilheiros, meu malandro! - Os dedos de Sumiov empurraram o cano da pistola com mais força. - De onde vens!
- Vivi escondido durante doze anos. Sozinho. Casei com Sônia. Por amor, manteve-me escondido durante dez anos. Só à noite podia caminhar. Vivi como um animal só porque usava um uniforme que não queria usar e falo a língua do país em que nasci. É essa a minha única culpa!
- És um soldado de Hitler! Um assassino dos povos livres.
- Tinha dezoito anos quando a guerra terminou. Fiz o que todos fizeram. Até os seus soldados, senhor coronel: obedeci a uma ordem, às cegas.
- Até isso é um crime! - gritou Sumiov.
- O senhor contrariaria uma ordem que lhe viesse de Moscovo?
Lupescu ficou ainda mais pálido. ”O rapaz está a passar das marcas”, tremeu ele. ”Dizer uma coisa destas a um russo...”
O coronel Boris Petrovich Sumiov estendeu um pouco o lábio inferior. No seu rosto via-se espanto e reflexão. Retirou a pistola e deu um pontapé no traseiro de Michael.
- Levanta-te e olha para mim.
Quando se olharam nos olhos foi como se, de repente, tivessem deixado de ser inimigos, mas sim dois prisioneiros de campos diferentes. Entre eles houve um entendimento silencioso. Todavia, nenhum deles o ultrapassou porque a política e a razão são duas coisas que, naquele momento, seria absurdo comparar.
- Sônia manteve-te escondido, dizes tu? Por amor? Vou perguntar-lhe! - Sumiov voltou para trás da secretária e pousou a pistola à sua frente. - Por que motivo não confiam nos vossos amigos soviéticos? Ter-te-ias entregue...
- Seria fuzilado como centenas dos meus camaradas!
- Ninguém foi fuzilado! - berrou Sumiov. - Apenas liquidámos espiões.
- Vocês teriam dito que eu era espião!
Lupescu lutou para respirar. A inexistência do tiro na nuca já fora um milagre e agora aquele idiota estava a destruir as últimas emoções remotamente humanas de Sumiov devido ao seu atrevimento.
O coronel Boris Petrovich Sumiov observou Michael cheio de interesse. ”Será coragem ou estupidez”, perguntou a si próprio. ”Ou será mesmo um honroso amor à verdade que o faz falar assim? Uma pessoa que tem uma pistola na nuca não fala assim.”
- De onde vens? - perguntou.
- Da Vestefália. Era camponês e tratava de cavalos com o meu pai.
- E o que pretendes fazer agora?
- Quero regressar à Alemanha. Com a Sônia! Ela salvou-me a vida por amor, e esta vida deve ser dela. Deve ser feliz...
- Num país capitalista?
- É a minha pátria.
- Fica na Roménia! - Sumiov pegou na pistola e meteu-a no coldre. Jon Lupescu respirou fundo. O interrogatório parecia ter chegado ao fim. Aquele estranho interrogatório que ele revivera junto do coronel Sumiov. - Vais viver aqui e dizer que já não queres ser alemão!
- Não posso. - Michael olhou fixamente para Sumiov. O meu pai está velho. Eu herdo a quinta. Precisam de mim em casa.
O coronel soviético encolheu os ombros.
- Como queiras. Tudo seguirá o seu caminho... Levem-no! berrou ele.
A porta abriu-se. Três soldados soviéticos rodearam Michael e empurraram-no com as coronhas para fora da sala. Lupescu ficou para trás. Encostou-se à parede junto à porta e apertou as mãos até as articulações dos dedos estalarem.
- O que lhe vai acontecer, camarada coronel? - perguntou. Sumiov olhou para cima como se só agora tivesse reparado na
presença do comissário romeno.
- Vai para Focsani como todos os outros. Tens pena dele?
- Eu? Não! - disse Lupescu rapidamente. - Como se pode ter pena de um cão alemão...
Saiu subitamente da sala. O coronel Sumiov ficou a olhá-lo. Tinha um sorriso amargo nos cantos da boca.
- Ratazana... - disse em voz baixa.
Não conhecia outra palavra que fosse mais baixa.
Durante seis semanas, ninguém soube em Tanescu o que acontecera a Michael e Sônia. Georghe Brinse viajara até Bacau para tentar obter informações. Foi apanhado por Jon Lupescu, que apenas lhe pôde dizer:
- Foram levados separadamente. Cada um em seu jipe. Fortemente guardados. Também não sei mais.
Anna Patrascu já não se levantava da cama. Agarrava-se ao peito quando queria dar alguns passos e era obrigada a deitar-se.
- Devolvam-me a minha Sônia - dizia enquanto chorava. Porque a levaram? Será que o amor é um crime? Será que tudo no mundo é um crime? Será que a guerra destruiu todas as almas?
Mihai Patrascu exteriorizava a sua incerteza com um estoicismo amargo. Trabalhava nos campos, frequentava as noites de formação na stolowaja, bebia o seu vinho como até então, mas, às vezes, quando a noite ia muito alta e a aldeia estava a dormir, esgueirava-se como uma sombra até à igreja para ir ter com o sacerdote, e ficava sentado junto dele, com a cabeça apoiada nas mãos, queixando-se e procurando conselhos.
- Acha que mataram os dois? - perguntava sempre. - Ninguém sabe onde estão. Enterraram-nos à pressa, senhor padre. Decerto que os enterraram à pressa. Se assim foi, mato Lupescu. E, quando Deus me condenar à maldição eterna, suicido-me.
- Eles vão voltar, Mihai - dizia o sacerdote para o consolar.
- Tens de acreditar.
Porém, nem Mihai nem o próprio sacerdote conseguiam acreditar nisso.
Na estrada de Bacau para Tasca, ao longo do torrencial rio Bristita, havia uma grande pedreira. Os rochedos do monte Tarcaului eram partidos e transformados em gravilha e alvenarias, que depois enviavam para a construção de estradas.
No entanto, ao contrário das outras pedreiras, ali não existiam lavadores de minério, trituradores, tapetes transportadores e silos, mas sim uma multidão de prisioneiros que fendia os rochedos duros, erguia os grandes pedaços com cunhas de aço e martelos, metia as pedras nos vagões, e outros presos içavam o veículo até aos carris da vertente do monte e despejavam-nos para dentro de camiões. Durante dez horas por dia, aquelas centenas de prisioneiros trabalhavam debaixo de um sol abrasador, chuva torrencial e caminhos gelados. Naquele campo, que ficava a três quilómetros numa antiga pedreira, composta por cabanas pobres com camas de madeira, uma zona para doentes que estava sempre cheia, duas guaritas feitas de pedra e uma cerca de arame farpado electrificada, os prisioneiros arrastavam-se depois de comer para as suas camas de madeira e dormiam até às seis da manhã do dia seguinte.
O tenente Sergei Polkatin, comandante do Campo III/M, olhava para aqueles cadáveres ambulantes com uma mistura de sentimentos. Era um jovem oficial da escola de guerra de Moscovo.
Michael chegou juntamente com sessenta novos prisioneiros, na sua maior parte, presos políticos, ao Campo de prisioneiros III / M.
Sergei Polkatin foi inspeccionar os recém-chegados. Michael atraiu-lhe a atenção. Era jovem, possante e não ficara desgastado devido aos longos interrogatórios.
- De onde? - perguntou Polkatin sucintamente.
- Da Alemanha.
- Soldado?
- Sim.
Foi para uma construção de estradas entre Búhúsi e Piatra Neamt. Transportava as pesadas pedras de alvenaria sobre os ombros e acamava-as, ao lado umas das outras, para a plataforma da via.
Quatro dias mais tarde, Michael conheceu Russanda Katana. Trabalhava na cozinha do campo de prisioneiros principal e ia diariamente, ao meio-dia, ao local onde se construía a estrada para repartir a sopa de couve. Michael estava deitado, em estado de esgotamento, ao lado das suas pedras e levantou-se assustado quando uma mão lhe tocou.
Viu um rosto redondo com um lenço na cabeça, um corpo elegante dentro de uma saia cumprida e uma mão que segurava uma marmita de lata por cima da sua cabeça.
- Tu és o Mihai? - perguntou a rapariga em voz baixa. Ela reparou que ele estremecera e rapidamente colocou a marmita mais perto dele. - Calado! Toma e come. Sou Russanda Katana. Encontrei Sônia Patrascu. Há uma semana, no campo de Dobreni. ”Se vires Mihai algures, diz-lhe que estou viva”, foi o que ela me disse. ”Mihai é alto e louro. Um alemão. Irás reconhecê-lo de imediato quando o vires. Tem uma linda boca...” Quando te vi aí deitado percebi logo que eras tu.
- Como está Sônia? - A marmita tremia nas mãos de Michael. ”Está viva”, foi o que pensou, cheio de felicidade. ”Está viva.” Deixou de sentir dores no ombro, o estado de cansaço desapareceu, ficando a sentir-se tão leve quanto uma pena que ondula ao vento.
- Está na lavandaria do campo. Está bem.
- Está bem... - Proferiu estas palavras como o ámen de uma oração. - Óptimo...
Há dois dias que sentia umas saudades tremendas. Durante a noite, ficava de pé à porta da sua barraca de madeira, olhando para o arame farpado electrificado. Correr contra ele e tudo passará, pensara ele. Ou ir ter com Polkatin e levantar o punho. Tudo o resto era salvação. Quem chega ao ponto de amar a morte deixa de ter medo da vida.
No entanto, ele hesitava e deitava-se novamente na cama. Ainda conseguia pensar, e com o pensamento vem a cobardia. Só se não conseguisse pensar é que a coragem lhe abriria o coração para se sacrificar. Estava feliz por ter sido cobarde. Sônia estava viva e ele também tinha de permanecer vivo. Talvez existisse ainda um amanhã...
Com goles que quase o sufocavam, Michael comeu a sopa de couve que Russanda Katana lhe dera. Eram couves que tinham sido plantadas pelos trabalhadores do campo e que tinham sido colocadas à disposição da cozinha. O pedaço de pão que recebeu estava escorregadio, agarrava-se aos dentes e colava-se às gengivas.
Na segunda noite, teve febre. Deitou ao chão tudo o que estava à sua volta em delírio, sujou a cama e ficou deitado nos seus próprios dejectos, com contracções, no colchão de palha, quando o enfermeiro finalmente apareceu e o observou.
- Tifo ou talvez cólera - disse tranquilamente. Depois, encolheu os ombros e voltou a tapar Michael. Nem o intenso fedor que havia na caserna o incomodou. - Não tenho aqui medicamentos. Também, porque é que ele bebe água na estrada?
Tal como era seu dever, informou o tenente Sergei Polkatin do caso. Ficou muito admirado quando o jovem oficial se levantou como se tivesse levado uma picadela.
- Cólera? - gritou ele. - Aqui no campo? Onde está o doente?
- Ainda no campo!
- Isola-o imediatamente, meu idiota! - gritou Polkatin. Temos todos de morrer? Já alguma vez se viu uma coisa destas?! Há cólera no campo e o tipo fica ali como se estivesse a informar-me de que havia alguém constipado!
Um pouco mais tarde, Polkatin estava no seu jipe, seguindo velozmente para Bacau. Estava apavorado. ”Se apenas um morrer de cólera, será posto em prática um plano de saúde estatal cuja trituradora me retirará todo o comando do campo. Infecção é uma palavra assustadora para os russos.”
À noite, Sergei Polkatin regressou de Bacau. Atrás dele vinham três camiões que se dirigiam a toda a velocidade para o Campo III/M.
Quando já estavam dentro da cerca electrificada, os prisioneiros pensavam estar a sonhar.
Saíram médicos, duas enfermeiras, socorristas com caixas de medicamentos e sacos de cloreto de cal. Também foram descarregados macas, camas de ferro e cobertores.
Uma grande tenda que servia de hospital militar foi erguida na praça da parada.
Acontecera um milagre na pedreira de Tarcaului.
Durante três semanas, os médicos soviéticos de Bacau trataram do criticamente doente Michael Peters.
O Campo III/M permaneceu fechado durante três semanas. Foi isolado do mundo exterior com correntes. Até os camiões que traziam os alimentos eram descarregados fora da zona do campo. As couves, o pão, a carne e a banha rançosa eram levados para o campo em carrinhos de mão, empurrados por prisioneiros escolhidos, que não manifestavam qualquer suspeita de infecção.
O tenente Sergei Polkatin pedira aos superiores em Bacau para lidar sozinho com aquele incidente.
- Camaradas, mas isso é um monte de papelada - gemera ele. - E as investigações! Como é que... Porque é que vocês... Como foi possível... tudo irá parar a Moscovo, camaradas. Cairá sobre nós uma avalancha que vai cobrir muita gente.
Esta última frase foi decisiva para, em Bacau, se construir um muro de silêncio sobre a pedreira de Tarcaului. Cada funcionário sentia-se de algum modo culpado em relação a Moscovo - pois quando as mais altas instâncias eram activadas alguma coisa era sempre descoberta, havia sempre algo a objectar e que estava errado. Nessa altura, surgiam destacamentos punitivos, deportações para a Sibéria e despromoções. Talvez também se descobrisse que algumas contas dos soviéticos do distrito não estavam correctas, que havia recibos que mencionavam despesas que não tinham sido feitas, que algumas centenas de prisioneiros mortos há muito obtinham alimentos e roupas. Era para onde ia o dinheiro.
- Camaradas, na vida existem caminhos muito tortuosos.
O tenente Polkatin ia frequentemente para junto de Michael e amaldiçoava-o interiormente. Só não podia morrer de cólera! ”Quando este cão ficar bom, vamos metê-lo na pedreira no local mais difícil.” Era um caminho natural, para afirmar a resposta a uma situação desagradável em que o campo fora colocado. De momento, ainda seria necessário. Deveria ser um aviso de que o III/M estava livre do surto, se ele sobrevivesse!
Michael sobreviveu. Quando deu os primeiros passos à frente da barraca dos doentes mal reconheceu o campo. As acomodações tinham sido pintadas de branco e as cloacas abertas tinham sido tapadas com montes de pedra. Tudo parecia muito limpo. Apenas as colunas de vultos sinistros, que todas as manhãs saíam e à noite regressavam com lonas cheias de mortos, tinham permanecido na mesma.
Três dias após a sua primeira recuperação, Michael foi examinado exaustivamente por três médicos soviéticos. Pareceram ficar muito contentes, deram-lhe um cigarro e mandaram-no para fora do quarto. O tenente Polkatin estava radiante.
- Nada? - perguntou ele ansiosamente.
- Não há vestígios de cólera! Ultrapassámo-la, camaradas.
O cirurgião, que viera de Bacau, fechou a pasta de relatórios com ímpeto.
- Uma coisa destas não pode voltar a acontecer, camarada tenente!
- Não se conseguirá camuflar novamente. Como é possível este rapaz ter bebido água da estrada? Julgava que recebiam na pedreira chá preto três vezes por dia.
- Naturalmente. Mas os tipos bebem como búfalos!
- O trabalho é assim tão pesado?
- Parece ser, camarada capitão.
O tenente Polkatin abanou várias vezes a cabeça.
A comissão foi-se embora e tudo permaneceu como até então.
No quinto dia da ”convalescença”, Polkatin não conseguiu deixar de chamar pessoalmente Michael para o informar daquilo que o esperava.
- Amanhã recomeças a trabalhar - disse o tenente com um sorriso odioso. - Trabalhar a pedra enfraquece os músculos! As tuas forças ficaram restabelecidas nestas três semanas. Agora, vamos esmagá-las novamente, meu amigo.
- Porque é que o senhor é assim? - perguntou Michael. Estava deitado na cama, vestido, magro e com uma cor pálido-
-amarelada. O pescoço estava tão fino como um caule e era de admirar não se vergar com o peso da cabeça.
- És um inimigo do progresso! - disse Polkatin em voz alta.
- Chama progresso ao que acontece aqui?
Polkatin olhou muito admirado para Michael, abandonou o quarto e ficou durante algum tempo no corredor em contemplação. Os prisioneiros que queriam ir para o quarto passavam por ele encolhidos devido à timidez e ao medo.
Ao sargento que na manhã seguinte conduziu a coluna para fora do campo foi dada a seguinte ordem:
- O alemão com a cólera será colocado na estrada...
- Eu pensava, camarada tenente...
- Eu é que penso, meu boi! - gritou Polkatin. - Na estrada para vigiar as vasilhas do chá.
- O quê? - perguntou o sargento estupefacto.
- As vasilhas do chá!
- E onde é que elas estão?
- Serão levadas hoje! E é distribuído três vezes por dia. Entendido? Um copo cheio por homem!
- O camarada tenente está doente - disse o sargento aos outros militares soviéticos.
Outra coisa não seria possível. Quem dá ordens tão irracionais só pode ter um verme algures no cérebro.
A história das chaleiras passou pelas colunas de trabalhadores como um fogo empurrado por uma tempestade. Até as horas foram dadas a conhecer: distribuição número um, às dez horas da manhã. Número dois, às três horas da tarde; e número três, às seis horas da tarde, para que as tropas pudessem aparecer no campo refrescadas. Foram até distribuídos copos de alumínio quando a primeira coluna saiu ao amanhecer. Só Deus sabe de onde vieram aqueles copos. Apareceram ali subitamente, completamente novos e de um brilho muito bonito.
Com os copos a bater, a primeira coluna saiu do campo. Estavam de muito bom humor. Havia de facto chá. Os copos demonstravam-no!
Às dez horas reparou-se na redução do ritmo de trabalho e na marcha daqueles corpos transpirados e suspirantes para junto da estrada e na tremenda ânsia que existia entre todos. Essa ânsia notava-se tanto nos soldados soviéticos como nos prisioneiros.
Michael estava à beira da estrada ao lado do sargento. As suas mãos estavam laceradas, pois antes de assumir a guarda das chaleiras ainda tivera de trabalhar quatro horas na alvenaria. A camisa estava rasgada, as calças empapadas de pó de pedra e a transpiração escorria pelo seu rosto com a barba por fazer. Era como se os últimos líquidos corporais fluíssem dele.
O sargento russo olhou para o relógio de pulso. Dois minutos depois das dez. Sorriu para Michael e coçou a cabeça.
- É uma nova guerra de nervos do camarada Polkatin? Ao trabalho, seus percevejos! - gritou ele para as colunas que estavam à beira da estrada com os seus copos de alumínio na mão.
Ele queria fazer um sinal à sua gente, para voltar a distribuir as colunas, quando ao longe detectou uma nuvem de pó. Aproximava-se o ruído dos motores, ouviu-se bater palmas e rejubilar, depois um pequeno camião saiu da nuvem de poeira, com riscas verde-acinzentadas, pneus largos e o motor a roncar.
Os presos olharam para ele como se se tratasse de uma aparição extraterrestre. Lá trás, na cobertura de madeira, viam-se três figuras femininas que vinham contra o vento e o pó, envoltas em grandes lenços. Pareciam múmias, estavam imóveis e só oscilavam devido ao movimento do veículo. À sua frente brilhavam ao sol límpido do Outono as superfícies de grandes jarros.
O sargento soviético empurrou o seu boné de pala para a nuca; um espanto infinito estava-lhe reflectido no rosto largo. Empurrou Michael para o lado e com a mão fez sinal ao veículo que avançava lentamente.
- De facto, vieram. Será que se percebe uma coisa destas?
O camião parou pouco antes do pequeno grupo de soldados soviéticos. Um motorista, um soldado, saiu do camião e acenou.
- Campo III/M? - gritou ele. - Vá! Descarregar! Ainda tenho mais três viagens!
Michael cambaleou ao lado do sargento até ao veículo. Cerrou os dentes. A coxa e região poplítea do joelho ardiam como fogo. ”Ao primeiro jarro que me entregarem, caio. Muitos litros de chá ficarão então sobre a sujidade da estrada. Chá que não chegará a dezenas dos meus companheiros.”
Fez o possível para aguentar as dores. Convencia-se que estava forte. Extraordinariamente forte. Na esquina do camião ergueu os braços para receber o primeiro jarro que uma rapariga lhe entregou.
Ficou ali parado de braços levantados a olhar incredulamente para o rosto que via debaixo daquele grande lenço de cabeça. A rapariga largou então o jarro. Este inclinou-se para trás, atingindo a rapariga na tíbia. Ela não sentiu a dor. Ficou agarrada à pega do jarro e parecia estar a amparar-se nele.
- Sônia! - gaguejou Michael.
A sua voz deixou de existir. Era apenas um estertor que soara como ”Sônia”. Já não sabia o que fazia. Só mais tarde é que o sargento e os seus companheiros de prisão alemães lhe disseram que tinha subitamente gritado, de um modo animalesco, estridente, socando tudo à sua volta como um louco. ”Sônia!”, gritara ele. Sempre ”Sônia”. Depois, teria saltado para o camião com um pulo felino e puxara a rapariga para si, beijando-a apaixonadamente. A rapariga teria gritado ”Mihai! Mihai!” e depois desmaiara nos seus braços.
Ele não sabia nada daquilo. Não conseguia lembrar-se de nada. Quando saiu do estado de dormência, ou fosse o que fosse que tinha acontecido, estava deitado ao lado da estrada num pedaço de prado ao lado dos jarros de chá dispostos em semicírculo. Tinha a cabeça no colo de Sônia. Ela fazia-lhe festas no cabelo e no rosto rude e com a barba por fazer. O sargento soviético estava de lado e parecia interessar-se mais por aquela secção de estrada vazia e pronta do que pelo preso que, contra todas as regras, beijara uma rapariga-
- Eu estou num campo de prisioneiros que fica a uma hora
daqui - disse Sônia. - Trabalho na cozinha. As coisas não vão mal. Recebi duas vezes correio de Tanescu. Tudo continua. Só Jon Lupescu se foi embora para Bucareste. O coronel Sumiov deu a. ordem. Irá receber formação para assumir a administração de todo um distrito no Sul. Tentou defender-se com as mãos e com centenas de cartas e queixas. Finalmente, adoeceu e ficou de cama. ”Aqui estou seguro”, pensou ele. ”Um homem doente é deixado em paz.” E o que achas que os soviéticos fizeram? Trouxeram uma ambulância, meteram Jon dentro do carro, numa maca, e foram com ele para Bucareste. Agora é que ele se vai tornar um grande homem do partido...
- E não te fizeram nada? Não te bateram? Não passaste fome?
- Michael apalpava-lhe o rosto, os braços, afagava-lhe o corpo e estava infinitamente feliz. - Não te fizeram mesmo nada?
- Nada, Mihai.
- Sofreste tudo por minha causa, Sônia.
- Deus pagar-nos-á.
- Deus?... - levantou-se e olhou para aquelas figuras miseráveis que tinham voltado a retirar grandes blocos da pedreira com as costas em ferida e a sangrar. Esqueletos que respiravam, usando roupas andrajosas para poderem ser reconhecidos como pessoas. Ele deve ter-se esquecido de nós. Caso contrário não podia suportar isto!
- A três horas para norte existe um campo de prisioneiros. Lá, têm de escoar os pântanos. Os presos estão metidos em lama até à barriga durante dez horas. Quando caem para o lado afundam-se na lama. Ontem levei-lhes comida. Foi horrível.
- E ainda falas de Deus? - disse Michael amarguradamente.
- Ele também está connosco, Mihai.
Sônia colocou a cabeça sobre o cabelo de Michael e apertou-o.
- Quanto tempo ainda, Sônia... - Levantou as mãos feridas. Os braços estavam magros. - Tive cólera.
- E, mesmo assim, estás vivo! - disse ela com fé.
- Sentia-me tão feliz quando estava deitado na cama... E o mundo estava tão longe... Ouvia as vozes como um cantar fino e distante. Via as pessoas como se elas estivessem atrás de véus espessos, sentia-me tão leve que pensava que precisava apenas de mexer os braços para cima e para baixo para conseguir voar. O meu único desejo era morrer.
- E não pensaste em mim?
Ele abanou a cabeça e calou-se. Estava envergonhado. Não, não pensara em Sônia. Isso era estranho! Durante todas aquelas semanas só tivera a morte no pensamento, depois tudo saíra de dentro de si, mesmo o amor por Sônia, e ele ficou sozinho com o resíduo de felicidade à espera da paz eterna.
O sargento soviético regressara. Arrancou Michael e Sônia aos seus pensamentos. Com o pé deu um toque a Michael, que continuava deitado.
- Já chega! - bradou o sargento. Apontou com a cabeça para o camião. O condutor pusera o motor em marcha e com os dedos assobiou a Sônia. - Sobe, pombinha, e volta amanhã! O teu Mihai não foge. Foi designado vigilante do chá. Assim poderá cuidar-se, o rapaz. Depressa, depressa senão o amigo que temos no camião fica impaciente.
Com esforço, Michael pôs-se de pé. Mais uma vez lhe arderam o joelho e a coxa como se os estivessem a fritar em óleo de cozinha. Mas cerrou os dentes, apoiou-se no ombro de Sônia e coxeou até ao veículo. Beijaram-se novamente. Michael abraçou-lhe os ombros de tal modo que a pressão das unhas lhe chegou à carne, passando pelo tecido espesso do vestido e pelo xaile.
- Voltas amanhã? - murmurou ele.
A ideia de não a tornar a ver fez com que voltasse a ficar tonto de dor.
- Sim - disse ela suavemente.
- Vou contar as horas. Vou fazer tudo para te voltar a ver.
- Sim.
- Vais ser corajosa, Sônia! Ninguém, ninguém nos pode separar!
- Não.
- Tens a certeza que voltas?
- Sim.
- A minha vida é só amor por ti, Sônia.
- Sim.
Ela não conseguia dizer mais nada a não ser sim e não. Sabia que não estava assim tão segura de o poder voltar a ver dentro de pouco tempo. Todos os dias eram enviadas outras raparigas com as tinas. E sempre para outros campos. Podia acontecer que no dia seguinte ela estivesse a tirar os jarros do camião a vinte quilómetros dali, num campo de prisioneiros na floresta. Ele não podia saber isso, pois sucumbiria. Já não era uma pessoa. Era um monte de trapos e uma estreita armação de ossos, da qual saíam sons de uma boca distorcida, e dois grandes olhos fitavam como se fossem de vidro e só os reflexos do sol punham nele a magia da vida.
Muito direito, Michael ficou de pé na estrada nova até o veículo desaparecer à distância numa nuvem de pó. Depois, regressou para junto das vasilhas de chá, sentou-se numa pedra e colocou o rosto entre as mãos.
Chorava.
E todos se admiravam com o facto de aquele corpo ainda ter líquido para provocar lágrimas.
Durante duas semanas, Michael distribuiu o chá pelas colunas de desesperados. As suas mãos e os seus ombros voltaram a sarar. A tarefa de aquecer o chá para a última distribuição não fazia despender grandes forças físicas. Recolhia pedaços de madeira, construía um grande forno com pedras e acendia o lume. Colocava os recipientes nas pedras incandescentes. Assim, o chá estava sempre quente quando os homens, quase de gatas, passavam por ele e lhe estendiam os copos com as mãos a tremer.
Um dia, Polkatin mandou chamar Michael.
- Ou isto é tudo uma porcaria ou vais receber um posto ainda melhor - disse um dos camaradas de quarto a Michael. - De qualquer maneira, adeus, parceiro!
O tenente Polkatin recebeu Michael com um rosto mal-humorado. Isso não significava nada de bom. Até o escrivão do campo de prisioneiros, um soldado mais velho que fora gravemente ferido e não havia passado à reserva porque tinha batido num comissário que comandava as tropas durante o curso de instrução quando o descobrira junto da sua namorada, estava sentado com uma expressão fechada atrás dos seus despachos e pastas.
- Peters, Michael, nascido em 1926. Está correcto? - perguntou Polkatin.
Michael acenou com a cabeça.
- Sim.
- Tens bons conhecimentos em Bucareste?
- Não. Não conheço ninguém na Roménia para além da população de Tanescu. Sônia, Mihai Patrascu, Georghe Brinse...
- Sim, sim - disse o tenente Polkatin com um gesto largo. Olhou explorativamente para Michael, parecendo não acreditar nem estar satisfeito com a resposta. - Conhecidos em Moscovo?
- Não - disse Michael. - Nenhum.
- Não tens nenhum conhecido no Partido Comunista?
- Nunca tive nada a ver com esse partido. Era criança quando fui alistado. Agora tenho trinta anos e vocês transformaram-me novamente numa criança.
O escrivão ergueu as sobrancelhas e olhou para Polkatin. O facto de o tenente não ter sacado da pistola e não ter disparado sobre aquele alemão louco era muito estranho. Apesar do que escrevera no dia anterior nos registos.
- Tens um benfeitor no partido - disse Polkatin de mau humor. - Chegou uma carta. De Bucareste pelo coronel Sumiov. Conheces esse?
- Sim - disse Michael vagarosamente.
- E um tal Jon Lupescu?
- Foi quem me prendeu.
- É agora o chefe do serviço de segurança do Sul da Roménia. Conseguiu arranjar-te uma amnistia.
- Uma... uma... - gaguejou Michael.
Recuou dois passos e encostou-se à parede da barraca. Teria caído para o lado se estivesse no meio da sala.
- E também para uma... uma Sônia Patrascu. - Polkatin levantou os olhos da carta. - Quem é?
- A minha... mulher - disse Michael.
- A tua mulher? Uma romena?
Michael assentiu com a cabeça. Parecia ter a garganta apertada. ”Amnistia!”, pensou ele. Amnistia significa então... Liberdade! Liberdade! Liberdade! Sônia e ele, livres! ”Meu Deus! O que é a liberdade? Que aspecto tem? Como é que se agarra? Será que se pode cheirar, saborear e ouvir? Será que liberdade significa podermos ir para onde queremos? Pode-se fazer qualquer coisa sem se ser obrigado a isso? Pode-se comer e beber sem ter de andar a carregar pedras durante dez horas? Pode-se ir para uma floresta sem ter de andar a carregar com troncos? Pode-se... pode-se... isso é liberdade.”
- Amanhã serás libertado - disse o tenente Polkatin como se estivesse a dizer algo de nefasto. - Tornaste-te, de algum modo, uma figura política. Subitamente toda a gente se interessa por ti! Antes de seres liberto, terás de assinar um documento. É uma exigência de Bucareste. Para a propaganda.
- Eu... assino tudo - gaguejou Michael.
”Livre... livre...”, era o que lhe martelava a cabeça. ”Sônia e eu...”.
Michael inclinou-se sobre o papel. A declaração estava escrita em russo. Percebia russo, mas não conseguia ler. Aquilo que ele iria assinar poderia ser a sua sentença de morte.
Ajoelhado, Michael assinou. A mão tremia-lhe com a caneta sobre o papel.
À noite, Michael Peters foi libertado do campo de prisioneiros russo, do Campo III/M.
Um jipe veio buscar Michael ao fim da tarde. O tenente Polkatin acompanhou-o pessoalmente até ao portão do campo e deu-lhe uma palmada no ombro mesmo em frente ao capitão soviético que estava sentado na viatura.
- Foi muito bom estarmos aqui, camarada - disse Polkatin com um sorriso largo. - É pena que nos tenhamos de separar. Não é verdade?
- É pena - disse Michael com dificuldade.
- Aqui existe uma grande camaradagem, meu capitão - disse Polkatin ajudando Michael a subir para o jipe. - A maior parte não se quer ir embora.
Michael cerrou os dentes e calou-se. ”Daqui a poucas horas, estaremos novamente juntos, eu e Sônia. Depois queremos esquecer tudo. Temos de o esquecer! De outro modo, como poderíamos continuar a viver?”
Quando o jipe partiu, o tenente Polkatin, com os olhos semicerrados, acenava. Atrás dele, junto do arame farpado das barracas, os olhos mortos de muitas cabeças mortas-vivas ficaram a olhar para o carro que seguia pela estrada acidentada em direcção à liberdade.
Duas horas mais tarde, Michael estava em Bacau em frente do coronel Boris Petrovich Sumiov.
Sumiov foi simpático, ofereceu-lhe um cigarro, mandou vir um copo de vinho tinto romeno e conversou com ele a sós. No entanto, foi uma conversa perigosa. Por detrás daquela simpatia humana espreitava a tortura.
- Foi um cativeiro curto - disse Sumiov, soprando o fumo do cigarro contra o tecto. Ao fazê-lo, não olhara para Michael. Também não perguntou de onde vinha o grande penso que tinha na testa. As declarações assinadas tinham sido entregues ao oficial que o acompanhara e estavam agora em frente de Sumiov, sobre a secretária.
- Reconhecemos que tu não és um espião e que só ficaste na Roménia por amor! Sônia convenceu-nos e o velho Brinse confirmou-o. Nós, os russos, somos como os franceses: quando se trata de amor, somos mais brandos.
- Onde está a Sônia? - perguntou Michael. A sua voz hesitava. Sumiov olhou para ele.
- Já está em Tanescu. Jon Lupescu tornou-se um grande homem e a Roménia é soberana! O exército soviético só está cá por uma questão de protecção, para que os imperialistas não ocupem os Balcãs! Isso também lhes foi dito no campo nas horas de formação?
Michael acenou com a cabeça.
- Sim - disse com a voz fraca. - Foi-nos dito.
”As nossas horas de formação eram a morte na pedreira”, pensou ele. ”E quem conhecer Polkatin nunca esquecerá os soviéticos.”
- O que é que desejas quando estiveres novamente em Tanescu? - perguntou Sumiov.
Michael despertou dos seus pensamentos.
- Finalmente, poderei casar-me com Sônia.
- E depois?
- Depois quero regressar à Alemanha!
- Não te agrada estar na Roménia?
- Já me perguntaram isso quando me prenderam. - Michael apagou o cigarro. Arranhava-lhe a garganta e provocava-lhe enjoos e náuseas. Não estava habituado a fumar. - Vocês conseguiriam viver noutro local que não na Rússia?
Foi uma pergunta a que Sumiov não deu resposta. Pensou na quinta colectiva em que trabalhava antes de se alistar voluntariamente no exército. Pensou nas cabanas de Irkutsk, nos tapetes de lã quase desfeitos em que dormira até aos seus catorze anos. Em Dresda, em Leipzig, em Magdeburgo e mais tarde em Berlim verificara que até o trabalhador mais humilde tinha uma cama com penas macias, um rádio, um sofá, fogão e não um forno de barro feito à mão, um armário para as roupas em vez de pregos atrás da porta. As crianças eram transportadas em pequenos carrinhos e não colocadas à beira do bosque embrulhadas num xaile. Assimilara essa vida com espanto. Não conseguira perceber que um risco no mapa, ao qual se chamava fronteira, pudesse separar dois mundos de um modo tão abissal. Quando percebeu o que via, quando fazia comparações, tinha de se proteger numa perspectiva do mundo bolchevista para não desfazer o seu coração russo.
- Tu não vais regressar à Alemanha - disse Sumiov em vez de responder. - A Alemanha está desfeita! O que queres de lá? A tua quinta? Também essa deve estar desfeita. E o teu pai, morto. Tudo será diferente, camarada. A Alemanha perdeu a guerra como até hoje nenhum povo perdeu uma guerra.
- Mas já se passaram catorze anos.
- Catorze anos não são nada para um povo! Lê o Pravda que ali está! Com a ajuda da América, a Alemanha voltou a ter soldados. Sonha-se com uma vingança sobre a Rússia! Estão a trabalhar em planos de invasão. Não lhes chegaram doze milhões de mortos!
- Não acredito - disse Michael.
- Está no Pravda - gritou Sumiov. - O Pravda não mente!
- Quem fez esta guerra não pode ansiar por outra! Isso não existe! Quem já esteve no Campo III/M e conheceu o tenente Polkatin...
- Que se passa com Polkatin? - perguntou Sumiov desconfiado.
- Ele demonstra derrota - disse Michael cuidadosamente. Colocou a mão na ferida da testa. Sumiov estava novamente a
olhar para o tecto.
- Nos campos de concentração alemães foram mortos milhões de judeus.
Michael acenou com a cabeça.
- Contaram-me isso. Tinha dezassete anos quando fui alistado. Com dezassete anos apenas vemos o nosso pequeno mundo.
O coronel Sumiov premiu uma campainha. Dois enormes soldados soviéticos de baionetas nas armas entraram na sala.
- Levem-no! - ordenou. - Cela quatro.
Não olhou para Michael enquanto ele era levado com algumas coronhadas nas costas, pois hesitara e ainda queria dizer alguma coisa. Só quando ficou sozinho é que a rigidez de Sumiov se quebrou. Deixou-se cair na cadeira e apoiou a cabeça nas mãos. Atrás da sua cabeça, na parede, o grande retrato de Estaline fora trocado. O rosto de camponês redondo e sorridente de Kruchtchev sorria para os visitantes.
”Não se deve pensar”, disse Sumiov para si próprio. ”A vida é curta, camaradas, tão terrivelmente curta... e não se pode procurar antecipadamente a época em que se vive. Não faz sentido pensar sobre o que poderia ter sido. É preciso simplesmente aceitar a vida como ela é.”
Disse um sábio quirguiz: ”Até um camelo congelado é carne...” Sumiov suspirou e assinou os papéis de libertação de Peters.
O velho Mihai Patrascu passou um longo dia quando Sônia foi inesperadamente conduzida num jipe até Tanescu e entrou na velha cabana como se tivesse acabado de chegar das compras em Bacau.
Anna, a mãe, suspirou e caiu do banco. Mihai deixou-se ficar sentado. Puxara Sônia para si, deu-lhe beijos ruidosos e não sentiu que estava a chorar.
- Minha pombinha! - gritou ele entre beijos. - Luz dos meus olhos! Minha vida! - Apalpou-lhe o rosto, como se procurasse algo que se tivesse modificado. Todavia, era a mesma Sônia, talvez um pouco mais magra, um pouco mais séria, madura e introvertida, mas era ela! Nesse momento, ficou muito transtornado, saiu da casa a correr, correu pelas ruas, por toda a aldeia, e berrava para as casas: - A Sônia voltou! A minha Sônia!
Georghe Brinse deixou-se levar numa cadeira de rodas. Há um mês que não conseguia andar. Acontecera subitamente, quando um dia de manhã se quis levantar: as pernas não se movimentavam. Todavia, a sua cabeça continuava lúcida e quando ouviu Mihai Patrascu aos berros acenou ao jovem médico que viera de Bucareste para a pequena aldeia para trabalhar com ele.
- Leva-me depressa, amigo - disse Brinse, colocando a sua maleta na cadeira de rodas. Supôs imediatamente que o coração de Anna Patrascu não tivesse aguentado o choque e que ninguém estivesse a tratar dela. - Tu não sabes o que este dia significa para Tanescu...
O jovem médico não sabia, mas, obedientemente, empurrou Georghe Brinse pela rua até à casa de Patrascu.
- Mais depressa! - comandava Brinse. - Mais depressa, camarada!
Quase a correr, alcançaram a cabana e Brinse praguejou como nunca o fizera na vida pelo facto de não conseguir andar. Considerava isso uma traição da natureza a quem ele até então sempre ajudara.
Quando entraram na casa, Sônia levara a mãe para o quarto e deitara-a na cama. Despira-a e massajava-lhe o coração com uma forte aguardente de batata.
Brinse foi levado para junto da cama e tomou-lhe o pulso. Mal se sentia. A sua respiração estava muito fraca.
- Que bom é estares de novo aqui - disse Brinse a Sônia.
Foi tudo, mas naquelas poucas palavras estava a libertação interior da pressão que pesara sobre todos. Depois, retirou da sua velha maleta uma seringa, quebrou uma ampola, puxou o êmbolo e injectou um líquido transparente na grossa veia do braço de Anna. Era como se uma nova vida fluísse pelo corpo da mulher. Esticou-se, o peito elevou-se e a sua respiração tornou-se profunda e regular.
Georghe Brinse voltou a meter a maleta na sua cadeira de rodas.
- O que se passa com Michael? - perguntou ele.
Sônia encolheu os ombros. Uma sombra deslizou-lhe sobre o rosto.
- Não sei. Disseram-me que ele também iria ser solto.
- Então ele virá.
- Acreditas mesmo nisso? - Fora uma pergunta que mais parecia um queixume. A falta de esperança que a tinha esmagado nas semanas de prisão agitava-se dentro dela. - Se o tivesses visto... se tivesses visto os seus olhos, os seus braços magros, aquele rosto morto...
Começou a chorar e enterrou a cabeça no cobertor junto à mãe.
Brinse fazia-lhe festas nos ombros. Seguidamente, virou-se para o jovem médico, que apenas percebia metade do que estava a ver. Quando a guerra acabou, ele ainda andava na escola. Estudara à custa do Estado comunista e tinha por incumbência, como jovem intelectual comunista, levar a ideia de um Estado dos trabalhadores, através da sua função de médico, para as pequenas comunidades dos Cárpatos. Fora enviado de Bucareste para Bacau e de lá, por recomendação do agora poderoso Jon Lupescu, para Tanescu para trabalhar com Brinse. O que acontecia agora e que desfilava perante os seus olhos pouco lhe interessava. Nunca dera muita confiança àqueles camponeses.
- Para casa - ordenou Brinse ao jovem médico. - Temos de telefonar.
Em Tanescu havia quatro linhas telefónicas. Uma era para o médico, duas para a milícia e para os militares e outra para o dignitário da aldeia. Uma quinta linha, que deveria ser para o sacerdote, fora recusada por Bacau, que fundamentara a sua decisão com a frase ”Ninguém telefona para Deus”.
Quando ouviu a sua voz ao telefone, o coronel Sumiov soube imediatamente o que Georghe Brinse queria.
- Sim! Michael Peters saiu do campo. Está aqui na cela quatro, pois afirma que o Pravda mente! - disse ele rudemente.
- E ele deve mentir? - ripostou Brinse. Sumiov enrugou o rosto.
- Ele quer voltar para a Alemanha!
- E não tem esse direito? Você também não quer regressar à mãe Rússia?
Sumiov fez novamente uma careta como se tivesse bebido vinagre. Se ele não fosse um velho frágil, tê-lo-ia mandado prender. ”É perigoso porque fala a verdade.”
- Ele irá, o seu querido Mihai! - afirmou Sumiov. - Esperem, vão ficar felizes por ele regressar.
- Ainda ninguém foi castigado por amar.
- Usava o uniforme errado! - bradou Sumiov.
- Isso é uma pura questão de perspectiva.
O coronel Sumiov atirou com o auscultador para o gancho. ”Não deveria ser possível falar desta maneira com um oficial soviético”, disse ele a si próprio. ”Deveria fazer disso um exemplo. Mas será que se deve castigar um único homem, correndo o risco de centenas ou milhares de outros se sublevarem?”
À noite, Michael Peters foi finalmente libertado. Foi transportado num carro dos correios que três vezes por semana levava alguns jornais para Tanescu. Sem que nenhum dos ocupantes lhe desse atenção, era olhado com desconfiança pelo motorista porque o seu romeno soava muito mal.
Desceu na praça da igreja e ficou sozinho na escuridão enquanto o veículo continuou para o posto militar. Não estava ninguém na rua e a igreja estava às escuras. Por detrás dos cortinados da casa do sacerdote viu uma luz fraca. ”Está a trabalhar no sermão”, pensou Michael. ”Hoje é sexta-feira.”
Dirigiu-se lentamente para a casa de Patrascu. Gozou cada passo. ”Livre”, pensou ele. ”Posso ir livremente para onde quiser. Já não haverá coronhas que me empurrem numa outra direcção, nem vozes a gritar aos meus ouvidos. Já não há nenhum Polkatin para contar os alimentos diários. Tudo está como antigamente. As florestas rumorejam, os rebanhos de ovelhas estão dentro dos estábulos abertos, atrás das janelas das cabanas vê-se luz através dos vidros opacos e os cães vadios vagueiam pela aldeia. Apenas envelheci. Tão velho e cansado que gostaria de passar a dormir os últimos anos da minha liberdade.”
Ficou parado à porta da casa de Patrascu e admirou-a como se fosse um tesouro reencontrado. Vivera naquele local desde 1945, lá em cima, sob o telhado, num pequeno sótão que mal dava para estar de pé. Michael Peters esfregou os olhos. Tinha as mãos a tremer. Vivera como um animal durante um quarto da sua vida. Quem iria conseguir entender isso?
Aproximou-se da janela e olhou através do vidro. Sônia estava junto do fogão a cozinhar. O fogo iluminava o seu agora magro rosto. Era como se estivesse a arder. Pressionou o rosto firmemente contra o vidro. Deve ter-lhe batido, pois a cabeça de Sônia virou-se.
Olharam um para o outro. Firmes e sem fôlego. Durante uns instantes, ele fechou as pálpebras e acreditou que agora a morte viria. A morte da felicidade. Quando as abriu novamente, viu que Sônia avançava ao seu encontro. Estava tão fraco que tropeçou e caiu de joelhos. Ajoelhados, beijaram-se em frente da casa, no meio da rua.
Não havia mundo para eles.
Foram precisos seis meses até que as autoridades em Bucareste autorizassem o casamento entre o alemão Michael Peters e a romena Sônia Patrascu.
Entretanto, passou-se um Inverno duro, durante o qual os lobos tinham descido das montanhas até à aldeia e atacado as crianças. Nas encostas montanhosas, os ursos uivavam de fome. Pouco antes do Natal, o velho Brinse morreu. Do dia para a noite, as suas pernas deixaram de andar e ficaram dormentes para sempre, o seu coração também adormeceu durante a noite. De manhã, quando o jovem médico chegou para colocar Brinse na sua cadeira de rodas, este estava de costas, com as mãos cruzadas, e sorria. Já estava frio. Tal como foi encontrado assim foi enterrado e só colocaram um ramo de flores entre os seus dedos hirtos.
Quase mil pessoas assistiram ao enterro. Do sul, veio o comissário Jon Lupescu e fez um discurso; de Bacau, veio o coronel Boris Petrovich Sumiov que trouxe, contra toda a ideologia comunista, uma coroa de flores. Era o seu último acto oficial. Tinha sido nomeado para Moscovo como professor da escola de guerra. Um salto que apenas acontece a poucos. Um salto que até firmara de novo a visão do mundo comunista de Sumiov.
No princípio do ano de 1959, chegou finalmente o dia do casamento de Sônia e Michael. Foi um dia de festa para toda a aldeia.
Os velhos trajes foram novamente retirados das arcas. As camisas de festa brancas com as mangas de balão, bordadas e enfeitadas com pérolas e fitas coloridas. As faixas da cintura foram amarradas com borlas e os grandes chapéus de feltro limpos do pó. As mulheres bordavam as suas saias largas com novas pérolas de vidro coloridas, cinco raparigas trabalhavam na coroa de casamento para Sônia, uma tiara feita de fitas, pérolas, pedras de vidro e um tecido de lã do mais fino.
A mãe Anna fizera os preparativos na cozinha. Havia seis mulheres experientes a cozinhar. Do menu constaria sarmali, uma espécie de rolo de couve. Para isso era preciso carne de vaca e porco finamente cortada, que era enrolada em folhas de chucrute por todos os lados para que se transformasse num grande bolo recheado de carne. Este seria então colocado numa grande panela de barro e cozinhado lentamente em fogo aberto.
Todavia, também havia assados, em forma de espetadas, saladas, queijo, chouriço picante, uma sopa de legumes, ameixas cozidas e aguardente.
Mihai Patrascu tratava das bebidas. Vendeu duas vacas em Bacau e trouxe vinho. Vinho branco doce da Crimeia, vinho tinto de Fundeni, aguardente de ameixa forte e kúmmel, que supostamente teria vindo da Turquia. Não se poupara a nada. O sol brilhava magnífico sobre as vertentes do monte ainda cobertas de neve quando a família Patrascu, juntamente com nove outras famílias que pertenciam ao seu círculo de amigos mais próximos se dirigiu a Bacau, num carro aberto para efectuar o matrimónio civil perante o chefe do distrito. Finalmente, realizar-se-ia o casamento religioso. A pequena igreja foi festivamente enfeitada e a entrada coberta com as primeiras flores campestres. O sacerdote vestiu as suas belas vestes talares, que apenas retirava do armário na Páscoa. Foi uma viagem fantástica. No primeiro carro, ia Mihai Patrascu como um rei.
tinha colocado o seu braço ainda muito forte em torno de Anna. Ela chorava em silêncio e pela primeira vez Mihai percebeu porque é que as mulheres choram quando estão felizes. No segundo carro estavam Michael e Sônia. Ela usava a sua pesada coroa de noiva com o pescoço hirto. Nos seus lábios via-se um sorriso felicíssimo. Parecia tão frágil como uma porcelana chinesa. Michael vestira o traje típico dos noivos romenos. Olhava para a frente muito sério, de mão dada com Sônia, e pensava apenas: ”Porque é que a mãe não assiste a isto? Porque é que o meu pai não pode ver? Porque é que tudo teve de ser desta maneira? Será que Sônia um dia verá a Alemanha? Alemanha! Em nossa casa estão agora os açafrões coloridos nos prados...” Reclinou-se e olhou para o lado, para Sônia. Ela virava a cabeça para ele sempre com o pescoço muito hirto, para que a coroa de casamento não lhe caísse dos cabelos, e sorria-lhe.
- A vida não é bela? - perguntou em voz baixa. - Agora temos tudo aquilo que desejámos, Mihai!
- Sim, tudo - disse ele acenando com a cabeça.
”Tudo”, pensou ele. ”E lá à frente, infinitamente longe de mim, está a Alemanha. Nunca mais a voltarei a ver. Morrerei em Tanescu como um camponês romeno. Mas tenho a Sônia e por isso esta vida também é dela.”
À sua frente começava a surgir Bacau. As pessoas acenavam para o cortejo nupcial.
- Noroc ti Sanatat! - gritaram elas. - Felicidade e saúde! E o velho Mihai Patrascu retribuiu-lhes com o peito inchado.
- E eu desejo-lhes as bênçãos do céu, uma boa esposa, muitos filhos e uma vida longa!
Ao fim da tarde, estavam ajoelhados na igreja em frente do sacerdote. A mãe Anna ainda estava a chorar.
- As lágrimas que ela consegue produzir! - disse o velho Patrascu aos amigos e riu-se. - Depois do casamento tenho de pesar a minha pombinha. Já deve ter perdido uns dois quilos!
No regresso tinha experimentado o kummel, achara-o bom e, para se habituar ao gosto, bebera sozinho meia garrafa. Assim, ficara de muito bom humor, e quando o sacerdote começou com as primeiras bênçãos cantou tão alto que o sacerdote fez um gesto discreto com o braço e, mais tarde, incluiu no sermão que Deus não era surdo.
Entretanto, os bancos e as mesas estavam a ser postos em frente da casa de Patrascu. A carne estava a assar, as folhas de couve coziam, as taças com salada estavam prontas junto às janelas. Os músicos esperavam que o jovem casal aparecesse e todas as crianças da aldeia faziam um largo círculo em torno das mesas de jantar e esperavam receber o seu bolinho de banha.
Seis dos fotógrafos não tinham sido convidados. Tinham vindo de Bucareste, representando os grandes jornais e revistas, e tinham a missão de registar aquele casamento camponês com imagens tocantes. Ninguém sabia por que razão tinham de o fazer. Aceitaram a missão sem comentários. Tinham iniciado a viagem com expressões zangadas. Fotografar um casamento de campónios. Como fotógrafos profissionais! Era quase uma ofensa.
Estavam à frente da igreja com expressões muito sérias e dispararam os flashes quando Michael e Sônia saíram, passando de novo pelo tapete de flores, e dirigindo-se à casa de Patrascu.
- A pequena está com um ar muito doce - referiu um dos fotógrafos. - Mas o que é que o chefe quer dela? Talvez ilustrações para um artigo: ”A sã situação camponesa nos Cárpatos”?
Michael olhou para ele. De certo modo, sentiu o perigo que emanava deles. Não faziam parte daquele círculo e, por isso, alguém os enviara. Mas quem? E porquê? A quem interessava um casamento em Tanescu?
A música da orquestra de camponeses desviou-lhe a atenção. Tinham começado as danças nupciais. Sônia comandava. Pegou na mão de Michael e conduziu-o para os terrenos de Patrascu. Quando deram o primeiro passo fora das vistas, ela parou e ofereceu os lábios a Michael. Ele beijou-a.
O gesto significava que agora tudo lhe pertencia. Que colocava tudo nas suas mãos. ”A minha vida, os meus bens e o meu mundo. Só tu és agora o senhor...”
Michael entendeu e ficou magoado quando a beijou e tomou posse de tudo o que lhe pertencia.
Estava a pensar na Alemanha.
Três dias mais tarde, as fotografias tiradas em Tanescu surgiram nas maiores revistas romenas. Era uma reportagem de imagens sobre a vida feliz dos camponeses que, graças à ajuda soviética, tinham sido libertados do jugo dos grandes latifundiários. ”Até um camponês alemão ficou em Tanescu, pois afirmou-nos literalmente: ”A minha nova pátria é a Roménia. Nada me liga à Alemanha!” Teve autorização para ficar, casar com uma romena e é a prova do progresso que se vive no nosso Estado comunista.” O que estava escrito na revista tornou-se um bumerangue que rapidamente regressou à redacção e seguiu depois para o Ministério.
O serviço de investigação da Cruz Vermelha Internacional também viu aquela fotografia. Folhearam-se os anúncios de procura de soldados alemães dados como desaparecidos na Roménia e encontrara-se a fotografia de Michael Peters. Naquela altura, um rosto jovem, mas não havia dúvida que era ele que agora casara na Roménia e se tornara um bom comunista.
O pedido de informação provocou reacções desconfortáveis. Bucareste questionou Jon Lupescu. Lupescu confirmou, com pressentimentos pouco agradáveis, que o referido novo romeno era o procurado Michael Peters.
- Nunca fez segredo de que queria regressar à Alemanha. Se os camaradas em Bucareste são idiotas e escrevem artigos tão loucos, também devem assumir as consequências! - foi a resposta corajosa de Lupescu.
Catorze dias mais tarde, apareceu em Tanescu um comissário de Bucareste. O seu carro moderno deu nas vistas, o uniforme era feito por medida e tinha uma postura arrogante e desdenhosa. Via os camponeses como percevejos e entrou em casa de Patrascu como se pertencesse à comissão de controlo de epidemias.
- Quem é este Michael Peters? - perguntou em voz alta quando já estava dentro da sala e olhava à sua volta.
O velho Patrascu cuspiu um pedaço de tabaco de mascar e tossiu. Desde o casamento que estava com problemas de pulmões. Bebera até de manhã e depois desaparecera. Fora procurado por metade da aldeia. Finalmente, Sônia encontrou-o por volta do meio-dia. Estava deitado a dormir no meio do milheiral com uma garrafa de kummel sobre o peito. Desde esse dia tossia tanto que todo o corpo estremecia. ”Um dia sai-me o estômago pelos ouvidos”, dizia ele às vezes depois de ofegar durante um quarto de hora, tentando respirar. No entanto, não ia ao médico a Bacau e o jovem médico, que ficara com o consultório de Brinse, não o examinava exaustivamente.
- O velho Georghe... sim - dizia Patrascu. - Esse examinava as pessoas, colocava ervas no peito e três dias depois já se conseguia correr como um potro! Mas estes médicos novos! Falam latim, mandam-nos tomar comprimidos e quando a coisa não resulta dizem que ”o foco está noutro sítio; vamos tentar com isto”. E lá vêm novamente os comprimiditos!
O comissário de Bucareste olhava muito emproado para o camponês que cuspia.
- Quem é? - perguntou novamente e num tom muito alto.
- O que queres dele? - perguntou Patrascu entre duas tossidelas.
O comissário torceu o nariz. ”Está tratar-me por tu”, pensou ele francamente desagradado. ”Este monte de merda está tratar-me por tu! Se não fosse tão urgente e de uma importância governamental, teria enviado o meu secretário.”
- Trata-se de um assunto político. Sou o comissário estatal Ivan Solempu, de Bucareste.
- A nossa política são os campos, cavalheiro! - disse o velho Patrascu cautelosamente. - Nós desunhamo-nos a trabalhar para que todos tenham alguma coisa para comer!
- Não quero conversar convosco sobre os vossos campos. Quero falar com Michael Peters.
O comissário Solempu voltou a olhar à sua volta. Estava sozinho com Patrascu. O velho levantou-se e aproximou-se lentamente. ”Parece um urso”, pensou Solempu. Recuou um pouco e ficou feliz quando sentiu a porta bater nas suas costas.
- O que queres de Mihai? - perguntou o velho.
- Faço parte do Ministério do Interior. Tenho perguntas para lhe fazer. Estava no jornal...
- E que culpa tem ele disso?
- Veio um pedido de informação da Alemanha...
- Isso vai alegrá-lo - disse o velho Patrascu, hesitante. Disse-o por ser verdade, mas doía-lhe pensar no assunto. ”Vai
levar a minha Sônia, a minha pombinha Sônia. O que será de mim sem a minha pombinha? O que será da vida sem a Sônia?”
- Então ele quer ir mesmo para a Alemanha? É verdade o que escrevem os imperialistas ocidentais?
- Ele sempre quis ir para a Alemanha, camarada.
- Ah, sim? Queria? E porquê?
- Porque é alemão! Você não regressaria à Roménia, camarada?
Solempu não respondeu. Era melhor ficar calado do que responder a tais perguntas. Antes da revolução, as conversas valiam ouro pois as atenções eram dirigidas para quem falava. Agora o silêncio era ponderado porque afastava os olhares. É assim que os tempos mudam. É preciso recordar sempre que se tem rabos-de-palha.
- Onde está agora esse Mihai? - perguntou ele com impaciência. - Tem de preencher um questionário.
- Está no palheiro!
- Vá buscá-lo!
- Trata-se de um camponês livre!
Ivan Solempu encolheu os ombros. Saiu de casa, dirigiu-se ao palheiro e encontrou Michael e Sônia a acamar as folhas de tabaco secas da colheita anterior.
Michael olhou para ele com um ar crítico. ”Tem o mesmo olhar que o velho”, pensou Solempu. ”Parecem um bando de lobos.” Cumprimentou cortesmente e dirigiu-se a Michael.
- Camarada Peters, não é verdade?
- Sim.
- Venho de Bucareste para lhe fazer uma participação agradável. E trago um questionário.
- Segundo me recordo, os questionários não têm nada de agradável - afirmou Michael.
Colocou o braço em torno dos ombros de Sônia quando ela se agarrou a ele.
- Deixemos o passado. Está bem? - disse Solempu tolerantemente. ”Se agora disser que sim”, pensou ele, ”tenho uma declaração que o fará não pensar mais na Alemanha. E assim que se apanham mosquitos, camarada alemão! Mosquitos políticos que, depois, podem picar duramente a propaganda.”
- E essa a participação agradável? O passado enganou a minha juventude e roubou-me a pátria...
- A sua pátria deveria ser a Roménia.
- Agora, sim.!”
- Tornou-se a sua pátria?
- Porque pergunta? - Michael notou algo na voz de Solempu que o obrigou a tomar cautela. - Tenho a minha mulher, tenho a minha quinta e sou livre. De facto, posso agradecer tudo isso à Roménia. Porém, sou alemão... ainda hoje! Nunca o neguei. E se fosse possível, voltaria para a Alemanha.
- Porquê?
Mas antes de Michael poder dar uma resposta, Solempu continuou rapidamente a falar. Sabia que iria ouvir a mesma pergunta que o velho Patrascu já fizera. Era óbvio e, de resto, não se compreendia a razão por que Bucareste estava a fazer tanta confusão com a permanência ou a partida de um jovem camponês.
- Tenho a informar - disse Solempu rigidamente - que o governo romeno está pronto a deixá-lo partir para a Alemanha se houver um pedido formal.
- Mihai... - disse Sônia em voz baixa.
Agarrou-lhe a mão. A alegria e o medo percebiam-se na sua voz. Michael olhou estupefacto para o comissário. Parecia não compreender o que estava a ouvir.
- Eu posso... eu... Alemanha? Mas como é possível?
- São assuntos diplomáticos que não lhe dizem respeito. Se quiser...
- Se eu quiser?
- Preferíamos que declinasse, mas tem aqui tudo o que precisa! Estamos até prontos a instalar-lhe um parque de máquinas e transferir a sua quinta para o distrito de Kolchose. Precisamos de uma nova estação na zona sul.
Solempu retirou da pasta duas folhas de papel, cheias de texto escrito à máquina, e colocou-as em cima de um caixote. Depois, retirou uma caneta de tinta permanente do bolso do casaco.
- Este é o seu pedido para ficar na Roménia. Este é o pedido para regressar à Alemanha. Para a Alemanha Oriental.
- Os meus pais moram na Alemanha Ocidental!
- Para nós a Alemanha é a Alemanha! - Solempu riu-se afável e friamente. - Vamos deixá-lo ir para a Alemanha, mas nunca terá a possibilidade de ir para o ocidente imperialista! Na sua chamada ”pátria” será tão desconhecido como um pária. Irá sentir saudades da Roménia, dos campos de milho, das pradarias da montanha, das florestas dos Cárpatos, dos pomares e da paz.
Michael Peters estava junto do caixote e olhava para as duas folhas de papel. Apenas uma folha decidiria toda a sua vida. Um pedaço de papel, que se podia amachucar e deitar fora, tornou-se o seu destino.
- Tem de ser agora? - perguntou ele em voz baixa. - Agora e já?
- Sim, tem de ser - disse Solempu rigidamente. - Ofertas destas não aparecem para que se ande com elas debaixo do braço ou para as levar para casa. Tem a oportunidade de se tornar cidadão de um país comunista livre ou um soldado que regressa e que, se realmente voltar para o Ocidente, voltará a ser soldado para servir os revanchistas e dominar o mundo livre.
- Preciso de tempo para pensar. Tenho de falar com a minha mulher...
Solempu fez um gesto com a mão.
- Nos últimos dezasseis anos tiveram tempo suficiente para pensar!
Michael acenou com a cabeça.
- É bom que me faça recordar esses dezasseis anos, mas tem razão. Tive tempo suficiente para pensar e não gostaria de dizer a ninguém aquilo em que pensei, pois ninguém compreenderia o que significa viver um quarto da vida curvado debaixo de um telhado.
- Olhou para os papéis que estavam sobre o caixote. - Qual é o requerimento?
- Para a Roménia?
- Para a Alemanha! - gritou Michael.
- Aquele!
Solempu apontou com o dedo indicador para um papel. O seu rosto estava inexpressivo. O caso estava encerrado. Em resumo, aquele alemão era para deportar, mas antes de sair da Roménia tinha de aprender o que significava trair o comunismo.
Michael pegou na caneta de tinta permanente. Sônia estendeu o braço e agarrou-lhe a mão. Os seus olhos exprimiam medo puro.
- Michael... - disse ela. - Não te agrada estar connosco? Michael engoliu em seco. Parecia que lhe estavam a apertar o
pescoço. Acenou com a cabeça e hesitou na escolha das palavras.
- Tu não conheces a Alemanha.
- Tenho medo da Alemanha.
- Também tens medo de mim?
Ela abanou em silêncio a cabeça e, subitamente, começou a chorar. No entanto, não largou a mão que agarrava a caneta.
- Tu não és a Alemanha - disse ela.
- Pensa que sou um pequeno pedaço dela. Libertou a mão, inclinou-se sobre o caixote, leu o título da folha - ”Requerimento para o regresso de estrangeiros aos seus países de origem” - e assinou com grandes letras redondas.
Ivan Solempu pegou na folha, dobrou-a cuidadosamente, rasgou o outro documento e atirou-o para cima do feno. Sem um cumprimento nem uma palavra, abandonou o celeiro, deu a volta à casa de Patrascu, também não se despediu do velho, que estava à porta cheio de curiosidade e sem tossir, afastou os rapazes da aldeia que rodeavam o seu carro de luxo, entrou nele e afastou-se rapidamente de Tanescu.
O velho Patrascu olhou-o com a cabeça inclinada. ”Ele assinou”,
pensou ele, e não se enganara. ”Hoje, perco a minha filha, o meu novo filho, o meu futuro, a minha idade. Perco tudo. Apenas restará a solidão e talvez uma carta por mês: ”Está tudo bem, tivemos um filho. Ele também está bem. É tudo muito bonito aqui...” palavras, palavras, tudo palavras vãs. E depois morre-se sozinho ali atrás, no banco ou na cama de palha. O sacerdote virá, abençoará e dirá: ”Tiveste uma vida preenchida e bela. Será que foi realmente bela?”
Patrascu voltou a tossir. ”Acabei por perder tudo”, pensou ele. ”Tudo!”
E começou a odiar a Alemanha.
Quando Sônia e Michael regressaram do celeiro, ele virou-se e voltou para dentro de casa. Durante toda a noite não disse uma palavra e apenas fumava. Olhava fixamente para o fogo aberto do fogão, depois foi para a cama e ficou deitado de olhos abertos até Sônia ir ter com ele e se sentar na cama a seu lado.,
- Vamos viajar, paizinho - disse ela em tom pesaroso. - Mihai assim o quer...
- Então vai!
- Virei visitar-te todos os anos, paizinho. Todos os anos... Patrascu acenou com a cabeça. Sabia que era impossível. Nunca permitiriam que os rebeldes tornassem a entrar no país.
- E irás à Alemanha para o baptizado das crianças.
- Assim será - disse o velho. Pé ante pé, Sônia abandonou o quarto, mas o velho Patrascu ainda ficou muito tempo acordado a pensar na sua vida. Na realidade, não fora nada. E foi isso que o tranquilizou. A vida de Sônia seria mais bela do que a sua.
Depois, voltou a tossir, o seu corpo estremeceu e no meio da tosse e dos tremores finalmente adormeceu.
Não reparou que Sônia voltara e o tapara.
A autorização de viagem demorou nove semanas a vir de Bucareste para Bacau. O comissário distrital só a entregou duas semanas depois, dois dias antes de terminar o prazo para a viagem.
Quando Michael leu a autorização, ficou em pânico. Apenas dois dias! Como iria ele arranjar tudo em dois dias? Era preciso fazer as malas, despedirem-se... era o início de uma nova vida. Deveria estar feliz, e não em fuga para o desconhecido.
- Tempo? Tempo, para quê? - inquiriu o comissário distrital em Bacau quando Michael lhe pediu alguns dias de adiamento. Vão-se embora para sempre, camarada. Quem faz isso não precisa de levar nada. Não sabe isso desde que esteve no campo de trabalho? Quando se dizia ”partir sem bagagem”, todos sabiam o que significava. Nunca mais são vistos... - disse ele com ódio e um sorriso cínico. Se a Alemanha é assim tão boa para a trocar pela Roménia, não precisará mais dos seus trapos! Vai tornar-se um capitalista. Não é verdade?
Não fazia sentido continuar a conversar nem tentar chamá-lo à razão. Michael saiu do comissariado e abraçou Sônia na rua.
- Mais uma vez teremos de ser, muito, muito fortes. Restam-nos trinta e seis horas. Não vale a pena tentar convencer aquele ou pedir misericórdia. Já não sabem o que é a humanidade. Daqui a trinta e seis horas estaremos na fronteira húngara, e daí a três dias chegaremos a Berlim. Quatro dias depois estaremos na nossa quinta.
Sônia acenou com a cabeça.
- Acredito, porque és tu que o dizes, Mihai.
Quando regressaram a Tanescu, tiveram uma grande surpresa. Já não precisavam de fazer as malas. O velho Patrascu já embalara tudo. As malas, os sacos e dois colchões de penas. Tudo estava bem amarrado e envolto em tela impermeável.
- Ainda conheço essa gente de Bacau - disse ele quando Michael estava, em silêncio, em frente da bagagem. - Vocês não se deixem vergar! Por eles, não! A minha filha é uma Patrascu e os Patrascu nunca baixaram a cabeça quando foram atingidos.
Na manhã seguinte, o carro foi carregado. Apareceram alguns fotógrafos de Bacau. Estavam junto à estrada e dispararam as máquinas quando Michael colocou a sua esposa, Sônia, no carro, em cima da bagagem, quando o velho Patrascu trepou para o assento do cocheiro a agarrou as rédeas, tossindo e estremecendo, com a morte nos olhos, mas não denunciando nada sobre a sua última tarefa e que consistia em levar a filha para uma nova vida.
Toda a aldeia de Tanescu os seguiu, com estandartes coloridos e fitas amarradas a bastões; os músicos tocavam e os rapazes e as raparigas dançavam à frente dos companheiros. Foi como na festa da Páscoa ou num grande casamento. À saída da aldeia, estava o sacerdote. O carro parou e ele abençoou Sônia e Michael, oferecendo-lhes uma cruz de ouro com pedras semipreciosas.
- Para que não se esqueçam da pátria! - disse o sacerdote. Sônia beijou a cruz e colocou-a no colo. O velho Patrascu engoliu em seco e limpou os olhos.
- Eh! - gritou ele aos cavalos. - Ninguém espera por nós. Andem, seus vilões! Corram! Eh! Eh!
O carro avançou a uma velocidade louca pela rua principal. Os habitantes de Tanescu ainda acenaram, durante muito tempo, para o carro que desaparecia numa nuvem de pó. Acenaram até desaparecer a própria nuvem de pó.
Sônia olhou mais uma vez para a torre da igreja. Era a última coisa que ela conseguia ver de Tanescu. Por detrás erguiam-se as montanhas, as florestas, escuras e enigmáticas, as pastagens das montanhas, onde dezasseis anos antes conhecera um jovem soldado com os pés feridos que gritava por um médico. Dezasseis anos antes!
A vida de uma pessoa passa tão depressa! Quase como o ponteiro à volta do mostrador do relógio. Simplesmente não se dá por ela.
- Mihai - disse Sônia suavemente, procurando a sua mão.
- Sim, Sônia?
- Será que voltaremos a ver Tanescu?
- Com certeza. O mundo não vai ficar para sempre como está. Todos irão aprender com a guerra e com os milhões de seres humanos que nela sucumbiram.
- Será que vão?
Heinz Konsalik
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