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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ULTIMO MAGNATA - P.2 / F. Scott Fitzgerald
O ULTIMO MAGNATA - P.2 / F. Scott Fitzgerald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Reparei na moça muito antes de Stahr aparecer no baile. Não era bonita, pois não há moças assim em Los Angeles — uma sozinha até chama atenção, mas pegue uma dúzia delas e já não se diferenciam. Tampouco era uma beldade profissional — do tipo que torna o ar rarefeito a ponto de até os homens saírem do recinto para respirar. Uma moça apenas, com a pele de um dos anjos coadjuvantes de Rafael e um estilo que obrigava a uma segunda inspeção para ver se o que chamou atenção é alguma coisa que ela está usando.

Reparei nela e a esqueci. Estava sentada nos fundos, atrás de umas colunas, numa mesa cujo atrativo era uma estrela de segunda e esquecida, a qual, na esperança de ser notada e conseguir uma ponta, se levantava para dançar com uns sujeitos desalinhados de quando em quando. Eu me lembrei, com vergonha, da minha primeira festa, em que a mamãe me fez dançar vezes sem conta com o mesmo rapaz para me manter sob os holofotes. A atriz de segunda falou com várias das pessoas da nossa mesa, mas, como tínhamos mais o que fazer com nossa encenação de membros da alta sociedade, não conseguiu nada.

Do nosso ponto de vista, parecia que todos ali queriam alguma coisa.

 


 


“Espera-se que a gente circule animadamente”, disse Wylie White, “como nos velhos tempos. Quando percebem o propósito, perdem o interesse. Daí toda essa melancolia — a única maneira de esse pessoal manter a autoestima é se portando como personagens de Hemingway. Mas, lá no fundo, sentem pela gente um ódio funesto, e a gente sabe disso.”

Ele tinha razão — eu sabia que desde 1933 os ricos só conseguiam ser felizes sozinhos quando reunidos.

Vi o momento em que, à meia-luz no alto da ampla escada, Stahr entrou e, parado com as mãos nos bolsos, olhou em volta. Era tarde, e as luzes pareciam brilhar menos, embora fossem as mesmas. O espetáculo no tablado tinha terminado, exceto por um sujeito que, com um letreiro, anunciava que à meia-noite, no Hollywood Bowl, Sonja Henie ia patinar em sopa quente. O homem seguia sua dança, e o letreiro às suas costas ia perdendo a graça. Alguns anos antes, haveria por ali uns bêbados. A estrela esquecida parecia estar procurando por eles, esperançosa, por cima do ombro de seu parceiro de pista. Eu a segui com os olhos enquanto retornava à mesa...

... e lá estava Stahr, para minha surpresa, conversando com a outra moça. Sorriam um para o outro como se o mundo estivesse começando ali.

*

Stahr não estava esperando nada daquilo quando parou no alto da escada, minutos antes. A pré-estreia o decepcionara e, depois dela, e ainda bem em frente ao cinema, ele havia se envolvido numa cena com Jacques La Borwitz que agora lamentava. Já se dirigia para onde estava reunido o pessoal de Brady, na festa, quando viu Kathleen sentada sozinha no centro de uma mesa comprida e branca.

A coisa mudou imediatamente. À sua passagem, a caminho de onde estava a moça, as pessoas se encolhiam junto às paredes até parecerem figuras pintadas num mural; a mesa branca se tornou ainda mais comprida, um altar onde a sacerdotisa permanecia só. A vitalidade nele cresceu, e Stahr poderia ter ficado um longo tempo parado, de frente para ela, do outro lado daquela mesa, a olhar e sorrir.

Os donos da mesa iam retornando, rastejantes — Stahr e Kathleen dançavam.

Quando a moça chegou mais perto, as várias visões que eu tivera dela se embaralharam; por um momento, tornou-se irreal. Em geral, o crânio de uma garota a fazia palpável, mas não daquela vez — Stahr seguiu embevecido enquanto cruzavam a pista de dança até a última fronteira, onde, atravessando um espelho, adentraram um outro baile, com outros dançarinos, cujos rostos eram familiares, porém nada mais do que isso. Nesse novo território, ele começou a falar, veloz e urgente.

“Como você se chama?”

“Kathleen Moore.”

“Kathleen Moore”, ele repetiu.

“Não tenho telefone, se é nisso que você está pensando.”

“Quando você vai aparecer lá no estúdio?”

“Isso não vai ser possível. De verdade.”

“Por que não? Você é casada?”

“Não.”

“Não é casada?”

“Não, nem nunca fui. Mas um dia serei, quem sabe.”

“Alguém daquela mesa?”

“Não.” Ela riu. “Quanta curiosidade!”

Mas ela estava profundamente envolvida com ele, dissessem o que dissessem um ao outro. Seus olhos o convidavam a uma comunhão romântica de intensidade inacreditável. Como se tivesse se dado conta disso, ela disse, assustada: “Preciso voltar pra lá agora. Minha próxima dança já está prometida.”

“Não quero perder você de vista. Será que podemos almoçar ou jantar juntos?”

“Impossível.” Mas sua expressão, sem que ela pudesse evitar, corrigia a frase: “É possível, quem sabe. A fresta da porta continua aberta, se você for capaz de se esgueirar por ela. Mas rápido — temos pouco tempo”.

“Preciso voltar”, ela disse outra vez, mais alto. Então deixou cair os braços, parou de dançar e olhou para ele com um riso travesso.

“Quando estou com você, não respiro direito”, falou.

Segurando a barra do vestido, virou as costas e atravessou de volta o espelho. Stahr a seguiu até perto da mesa, onde ela parou.

“Obrigada pela dança”, ela disse, “e agora, sério, boa noite.”

E então quase saiu correndo.

Stahr foi até a mesa em que o esperavam e se juntou ao grupo da alta-roda — de Wall Street, Grand Street, Loundon County, Virginia e Odessa, Rússia. Falavam todos, entusiasmados, sobre um cavalo que fizera uma carreira muito veloz, o sr. Marcus o maior entusiasta do tema entre eles. Stahr aventou que os judeus teriam se apoderado do culto a cavalos como algo simbólico — durante anos os cossacos é que andavam montados, e os judeus, a pé. Agora os judeus tinham seus cavalos, o que lhes dava um senso de extraordinário bem-estar e poder. Stahr se sentou e fingiu prestar atenção, chegando a aquiescer quando algo era dito a seu respeito, mas o tempo todo espiando a mesa atrás das colunas. Se tudo não tivesse sido como foi, até mesmo o fato de ele ter ligado o cinto prateado à moça errada, Stahr talvez pensasse que se tratava de alguma elaborada armação. Mas a obscuridade daquilo estava além de qualquer suspeição. E no momento seguinte ele viu que ela lhe escapava novamente — a gesticulação na outra mesa indicava que se despediam. Ela estava indo embora, ele a perdia.

“Lá vai a Cinderela”, disse Wylie White, malicioso. “Favor devolver o sapatinho na Sapataria Regal, 812, South Broadway.”

Stahr a alcançou no comprido saguão do piso de cima, onde mulheres de meia-idade, acomodadas num espaço reservado, isolado por cordas, observavam a entrada do salão de baile.

“Está indo embora por minha causa?”, ele perguntou.

“Já estava indo mesmo.” Mas acrescentou, quase com ressentimento: “Ficaram falando como se eu tivesse dançado com o príncipe de Gales. Todos me olhando. Um dos homens queria desenhar um retrato meu, outro queria me ver amanhã”.

“Isso é tudo o que eu quero”, falou Stahr, suave, “mas quero muito mais do que ele.”

“Como você é insistente”, disse ela, fatigada. “Uma das razões por que vim embora da Inglaterra é que lá os homens sempre queriam impor a vontade deles. Pensei que aqui fosse diferente. Não basta eu dizer que não quero te encontrar?”

“Normalmente, sim”, concordou Stahr. “Por favor, acredite em mim, já estou muito fora do meu normal. Eu me sinto um idiota. Mas preciso que a gente volte a se ver e conversar.”

Ela hesitou.

“Não há razão pra se sentir um idiota”, falou. “Você é um homem bom demais pra se sentir assim. Mas devia enxergar esta situação como ela é.”

“E como ela é?”

“Você se apaixonou por mim — completamente. Você sonha comigo.”

“Tinha te esquecido”, declarou ele, “até o momento em que entrei por aquela porta.”

“Me esqueceu em pensamento, talvez. Mas soube de cara, ao te conhecer, que você é o tipo de homem que gosta de mim...”

Ela se interrompeu. Perto deles, um homem e uma mulher, também convidados da festa, se despediam: “Diga que mandei um oi pra ela — diga que a amo muito”, falou a mulher, “... vocês dois — vocês todos — as crianças”. Stahr não era capaz de dizer coisas assim, coisas que todo mundo dizia. Não conseguiu pensar em nada mais para falar a ela, enquanto caminhavam até o elevador, além de: “Acho que você tem toda razão.”

“Ah, então admite?”

“Não, não é isso”, ele recuou. “É que você tem esse jeito: as coisas que diz, o jeito de andar, sua aparência neste exato minuto...” Notou que ela cedia um pouco, e sua esperança aumentou. “Amanhã é domingo, e em geral trabalho aos domingos, mas, se você tiver curiosidade sobre qualquer coisa em Hollywood, qualquer pessoa que queira conhecer ou encontrar, deixe que eu marque pra você, por favor.”

Estavam parados perto do elevador. A porta se abriu, mas ela não entrou.

“Como você é modesto”, disse. “Só fica falando sobre me mostrar o estúdio, me levar pra lá e pra cá. Você nunca fica sozinho?”

“Amanhã vou estar me sentindo muito sozinho.”

“Ah, pobre rapaz — estou quase chorando por você. Ele tem todas as estrelas do cinema dando em cima e escolhe a mim.”

Stahr sorriu — tinha deixado a guarda aberta àquele ataque.

O elevador chegou novamente. Ela fez sinal ao ascensorista para esperar.

“Sou uma mulher fraca”, falou. “Se aceitar que nos encontremos amanhã, você vai me deixar em paz? Não, não vai. Você vai se comportar ainda pior. Não pode dar boa coisa, só me prejudicar, por isso digo que não, obrigada.”

Ela entrou no elevador. Stahr entrou junto, e os dois sorriram enquanto desciam os dois andares até o saguão, ocupado por lojinhas. Do outro lado, a multidão era contida pela polícia, cabeças e ombros inclinados para a frente, tentando enxergar a passarela. Kathleen estremeceu.

“Eles me pareceram tão estranhos quando cheguei”, disse, “como se estivessem furiosos comigo por não ser famosa.”

“Conheço outra saída.”

Atravessaram um armazém, desceram por uma alameda e saíram na noite clara e fresca da Califórnia, ao lado do estacionamento. Ele se sentia distante do baile agora, ela também.

“Muita gente do cinema costumava morar por aqui”, ele disse. “John Barrymore e Pola Negri, naqueles bangalôs ali. E Connie Talmadge vivia naquele prédio de apartamentos estreito e alto, lá adiante.”

“Alguém ainda mora aqui hoje?”

“Os estúdios se mudaram para a área rural”, ele falou, “para onde antigamente era a área rural. Mas passei uns bons momentos aqui.”

Não mencionou que, dez anos antes, Minna e a mãe dela haviam morado em outro dos apartamentos lá adiante.

“Quantos anos você tem?”, ela quis saber, de repente.

“Perdi as contas — quase trinta e cinco, acho.”

“Na mesa, falaram de você como um menino prodígio.”

“Isso é o que eu vou ser aos sessenta”, ele respondeu, taciturno. “Você vai me encontrar amanhã, não vai?”

“Vou”, ela disse. “Onde?”

De repente não havia um lugar para se encontrarem. Ela não iria a uma festa na casa de alguém, nem para o campo, tampouco nadar, embora tenha hesitado aqui, e a um restaurante conhecido também não. Parecia difícil de agradar, mas ele sabia que era por alguma razão. A seu tempo descobriria qual. Ocorreu-lhe que talvez ela fosse irmã ou filha de alguém famoso, comprometida a manter-se discreta. Sugeriu que ele a fosse buscar e eles poderiam, então, decidir.

“Não vai dar certo”, ela falou. “Que tal aqui? — mesmo lugar.”

Ele concordou com a cabeça — apontando para o arco debaixo do qual se encontravam.

Levou-a até o carro dela, pelo qual não obteria mais do que oitenta dólares no mercado de usados, e isso se encontrasse um comprador generoso, e a observou se afastar num ronco barulhento. Na entrada da festa, um alarido acompanhou a saída de outro favorito do público, e Stahr pensou se voltava até lá para se despedir.

*

Aqui é Celia, retomando em pessoa a narrativa. Stahr finalmente voltou — eram mais ou menos três e meia — e me convidou para dançar.

“Como você está?”, ele quis saber, como se não tivesse me visto de manhã. “Acabei precisando conversar longamente com um cara.”

Ele queria manter segredo também — a coisa era séria.

“Levei-o para dar uma volta de carro”, continuou ele, inocentemente. “Não tinha me dado conta de quanto esta parte de Hollywood está mudada.”

“Mudada?”

“Ah, sim”, ele falou, “completamente. Irreconhecível. Não saberia te dizer muito bem o quê, mas mudou totalmente — tudo. Como se fosse uma cidade nova.” Passado um momento, ele reforçou: “Não tinha ideia de quanto estava mudada”.

“E quem era o cara?”, sondei.

“Um velho amigo”, ele respondeu, vago, “alguém que conheci há muito tempo.”

Eu havia pedido ao Wylie que tentasse discretamente descobrir quem ela era. Ele fora até a mesa e a ex-estrela, animada, o fizera se sentar. Não: ela não sabia quem era a moça — a amiga de uma amiga de alguém — nem o homem que a trouxera sabia bem.

De modo que Stahr e eu dançamos ao som da linda música de Glen Miller — tocava “I’m on a See-Saw”. Estava bom de dançar agora, com bastante espaço na pista. Mas a solidão era maior — maior do que antes de a garota ir embora. Para mim, assim como para Stahr, ela havia levado a noite consigo, carregado com ela a dor da punhalada que eu sentira — deixado o grande salão de baile vazio e sem emoção. Agora já não havia nada, e eu dançava com um homem distraído, que me falava sobre como Los Angeles estava mudada.

*

Na tarde seguinte, eles se encontraram como se fossem estranhos num país estrangeiro. A noite anterior era passado, a garota com quem ele havia dançado não existia mais. Um chapéu de cor indistinta entre o rosa e o azul, com um véu quase imperceptível, atravessou o terraço na direção dele, então parou, sondando-lhe o rosto. Stahr também parecia um estranho para ela, terno marrom e gravata preta que o tornavam um homem mais tangível do que o smoking da festa, ou do que o rosto e a voz na escuridão da noite em que se conheceram.

Ele foi o primeiro dos dois a ter certeza de que estava diante da mesma pessoa: na parte superior, o rosto era o de Minna, luminoso, têmporas delicadas de um castanho cujos reflexos cambiantes compunham o tom suave do cabelo cacheado. Stahr até poderia tê-la envolvido com um braço e puxado para junto dele quase com a intimidade com que se abraça alguém da família — já conhecia, nela, a curva do pescoço, a própria compleição da coluna vertebral, os cantos dos olhos e o jeito de respirar — mesmo a textura das roupas que usava.

“Você ficou a noite toda aqui esperando?”, perguntou ela, a voz sussurrante.

“Nem me mexi do lugar.”

O problema persistia, ainda o mesmo — não tinham aonde ir.

“Queria tomar um chá”, ela sugeriu, “se houver um lugar onde você não seja conhecido.”

“Você falando assim, parece que um de nós tem má reputação.”

“E não é verdade?”, ela riu.

“Vamos até a praia”, convidou Stahr. “Tem um lugar lá onde, certa vez, fui perseguido por uma foca amestrada.”

“Você acha que essa foca poderia nos preparar um chá?”

“Bem — ela é amestrada. Mas não acho que seja capaz de falar — não acho que seja amestrada a esse ponto. Que coisa é essa que você está tentando esconder?”

Passado um momento, ela falou, suave: “Talvez o futuro”, e de um jeito que poderia significar qualquer coisa, ou mesmo coisa nenhuma.

Quando iam saindo, no carro dele, ela apontou para o dela, um calhambeque no estacionamento.

“O que você acha, é seguro?”

“Sei não. Notei uns forasteiros barbudos rondando por aí.”

Kathleen olhou para ele, alarmada.

“Sério?” Viu que ele sorria. “Acredito em tudo o que você diz”, falou. “É esse seu jeito meigo. Não entendo por que as pessoas têm tanto medo de você.” Ela o perscrutou, em aprovação — um pouco apreensiva com a palidez dele, acentuada pela tarde iluminada. “Você trabalha tanto assim? Trabalha mesmo todo domingo?”

Ele satisfez o interesse dela — de forma impessoal, mas não indiferente.

“Nem sempre. Antigamente tínhamos uma casa — tínhamos uma casa com piscina e tal — e o pessoal aparecia aos domingos. Eu costumava jogar tênis e nadar. Não nado mais.”

“Por que não? Faz bem pra você. Pensei que todos os americanos nadassem.”

“Minhas pernas ficaram finas demais — já faz alguns anos, e passei a ter vergonha. Tem outras coisas que eu costumava fazer — um monte de coisas: jogava handebol quando garoto, e às vezes aqui mesmo — tínhamos uma quadra, que foi destruída por uma tempestade.”

“Você tem um bom físico”, ela disse, um elogio formal, querendo dizer apenas que ele era um magro elegante.

Stahr fez que não com a cabeça, rejeitando o comentário.

“O que mais gosto é de trabalhar”, ele disse. “Meu trabalho é muito agradável.”

“Você sempre quis trabalhar com cinema?”

“Não. Quando era mais jovem, queria ser um gerente de escritório — do tipo que sabe onde é o lugar de cada coisa.”

Ela sorriu.

“Engraçado. E hoje você é muito mais do que isso.”

“Não, acabei sendo mesmo um gerente de escritório”, falou Stahr. “É meu dom, se é que tenho algum. Só que, assim que assumi meu posto, descobri que ninguém sabia o lugar de nada. E descobri que era preciso saber por que cada coisa estava onde estava, e se devia ou não ser deixada ali. Começaram a jogar tudo pra mim, e era um ofício dos mais complexos. Logo passei a ter todas as chaves. E eles não se lembrariam mais qual delas abria cada uma das fechaduras, caso eu as devolvesse.”

Pararam num sinal vermelho, e um vendedor de jornais avançou até ele, aos berros: “Mickey Mouse Assassinado! Randolph Hearst declara guerra à China!”.

“Vamos ter de comprar esse jornal”, ela disse.

Quando seguiram adiante, ela endireitou o chapéu e se recompôs. Vendo que ele a observava, sorriu.

Ela estava alerta e calma — virtudes que, naquele momento, eram valiosas. Por toda parte dominava a lassidão — a Califórnia estava cheia de gente fatigada e sem nada a perder. E havia jovens, rapazes e moças, que viviam tensos porque, em espírito, ainda estavam na Costa Leste, enquanto ali travavam, e perdiam, uma batalha contra o clima. Mas o segredo que todos tinham em comum era a dificuldade de manter algum esforço continuado — um segredo que Stahr não conseguia admitir de fato nem para si mesmo. Ele sabia, porém, que pessoas de outros lugares traziam um fluxo de energia nova durante algum tempo.

Os dois agora se tratavam amavelmente. Ela não havia feito um movimento sequer, nem tomado atitude alguma que destoasse de sua beleza, que de algum modo saísse do esquadro. Estava tudo em seu lugar. Ele a avaliava como o faria com a tomada de um filme. E ela não era como uma daquelas filmagens ruins, não era confusa, era clara — segundo o sentido especial que ele dava à palavra, o que implicava equilíbrio, sutileza e proporção, era “agradável”.

Chegaram a Santa Monica, onde se localizavam as mansões de uma dúzia de astros e estrelas, encurraladas em meio a uma superlotação que em breve seria equivalente à de Coney Island. Desceram o morro na direção da vastidão do céu e do mar azuis, contornando a costa até que a praia tivesse novamente se transformado numa faixa amarela que se estreitava e alargava, os banhistas sumindo e reaparecendo em igual proporção.

“Estou construindo uma casa nesta área”, contou Stahr, “bem mais adiante. Nem sei por que estou fazendo isso.”

“Talvez pra mim.”

“Talvez.”

“Acho esplêndido que você esteja construindo uma mansão pra mim sem nem saber como eu era.”

“Não é bem uma mansão. E não tem telhado. Eu não sabia que tipo você ia querer.”

“Não precisamos de telhado. Me disseram que aqui nunca chovia. É como...”

Pela forma repentina como ela se interrompeu, ele soube que se lembrara de alguma coisa.

“É só uma coisa que já passou”, disse ela.

“Que coisa?”, ele quis saber, “outra casa sem telhado?”

“É. Outra casa sem telhado.”

“Você era feliz lá?”

“Eu vivia com um cara”, ela falou, “há muito, muito tempo — tempo demais. Um desses erros terríveis que a gente comete. Continuei a morar com ele por um longo tempo após ter resolvido que não queria mais, mas ele não me deixava ir embora. Até tentava, mas não conseguia deixar. Até que, finalmente, fugi.”

Ele escutava, pesando as palavras dela, mas sem julgá-la. Nenhuma alteração sob o chapéu azul e rosa. Ela tinha uns vinte e cinco anos. Teria sido um desperdício se não amasse e fosse amada.

“Éramos próximos demais”, ela contou. “Talvez devêssemos ter tido filhos — seriam um contrapeso à relação. Mas não dá pra ter filhos quando a casa nem um teto tem.”

Certo, agora ele sabia alguma coisa dela. Não seria mais como na noite anterior, quando, como se estivesse numa reunião de roteiro, ele não parava de se dizer: “Não sabemos nada da moça. Não precisamos saber muito — mas precisamos saber alguma coisa”. Um vago passado se desenhava atrás dela, algo mais tangível do que a cabeça de Shiva ao luar.

Chegaram ao restaurante, lotado de carros em passeio de domingo. Ao desembarcarem, o grito da foca amestrada disparou reminiscências em Stahr. O dono contou que o animal jamais andava no banco de trás do carro, sempre passava para o da frente. O homem, era evidente, criara laços com o animal, embora ainda não admitisse isso para si mesmo.

“Queria ir ver a casa que você está construindo”, disse Kathleen. “Não quero chá — chá é passado.”

Bebeu uma coca em vez disso, e eles então seguiram em frente por mais uns quinze quilômetros sob um sol tão forte que ele precisou apanhar dois pares de óculos escuros num compartimento. Mais uns seis ou sete quilômetros e desceram uma pequena colina, chegando à estrutura da casa de Stahr.

Uma rajada vinda das bandas do sol lançou um borrifo por sobre as pedras e para cima do carro. Uma betoneira, toras de madeira e detritos de construção, uma ferida aberta na paisagem marinha, jaziam à espera de que o domingo acabasse. Eles circularam perto da fachada, onde se erguiam enormes pilastras para sustentar o que viria a ser o terraço.

Ela olhou para as frágeis montanhas atrás, sobressaltando-se de leve diante de seu árido esplendor, e Stahr percebeu...

“Não adianta procurar pelo que não está aí”, falou, animado. “Imagine que você está em cima de um daqueles globos com o mapa da Terra — sempre quis ter um quando era menino.”

“Entendi”, disse ela, depois de um momento. “Fazendo isso, você consegue sentir a Terra girar, não é?”

Ele aquiesceu.

“É. Senão seria sempre mañana — à espera da manhã ou da lua.”

Adentraram a estrutura de andaimes. Uma das peças, projetada para ser o salão principal, já tinha até as estantes de livros embutidas, os suportes das cortinas e o alçapão no chão, onde se acomodaria o projetor de filmes. E, para surpresa de Kathleen, o cômodo dava para uma varanda com cadeiras estofadas e uma mesa de pingue-pongue a postos. Uma segunda mesa de pingue-pongue ficava no recém-plantado gramado, logo adiante.

“Na semana passada, trouxe convidados para um almoço pré-inauguração”, ele confessou. “Tinha plantado umas mudas — grama e outras coisinhas. Queria ver como ficaria a atmosfera do lugar.”

Ela riu de repente.

“Isso é grama de verdade?”

“É, sim — é de verdade.”

Adiante da faixa que prenunciava o gramado, a escavação do que seria a piscina, naquele momento tomada por um bando de gaivotas que, ao percebê-los, alçou voo.

“Você vai morar aqui totalmente sozinho?”, ela quis saber. “Não vai trazer nem umas dançarinas?”

“Provavelmente. Costumava fazer planos, mas agora não mais. Pensei que aqui seria um bom lugar pra ler meus roteiros. O estúdio é minha casa de verdade.”

“Foi o que me contaram sobre os homens de negócios americanos.”

Ele notou um toque de crítica no comentário.

“A gente faz aquilo que nasceu pra fazer”, falou, suave. “Mais ou menos uma vez por mês alguém tenta me reformar, me diz que vou ter uma velhice vazia quando não puder mais trabalhar. Mas a coisa não é tão simples.”

O vento engrossava. Era hora de ir, e ele já havia tirado as chaves do carro do bolso e as chacoalhava na mão, absorto. O toque metálico de um telefone gritou de algum lugar, atravessando a tarde ensolarada.

Não tinha vindo de dentro da casa, e os dois agora corriam de lá para cá no jardim, feito crianças brincando de esconde-esconde — até que, finalmente, acorreram ao depósito de ferramentas junto à quadra de tênis. O telefone, aborrecido pela demora, latia ameaçadoramente da parede. Stahr hesitou.

“Deixo essa porcaria tocar?”

“Eu não conseguiria. A menos que tivesse certeza de quem é.”

“Ou é engano, ou alguém tentando me achar.”

Atendeu.

“Alô... Interurbano de onde? Sim, é o sr. Stahr quem está falando.”

Sua atitude mudou perceptivelmente. Ela presenciava o que poucos antes dela haviam visto em uma década: Stahr estava impressionado. Não chegava a ser inédito, porque ele com frequência fingia se impressionar, mas aquilo o fez parecer mais jovem por um momento.

“É o presidente”, ele disse a ela, num tom quase severo.

“Da sua companhia?”

“Não, dos Estados Unidos.”

Tentava agir naturalmente por causa dela, mas sua voz denotava ansiedade.

“Certo, eu aguardo”, respondeu ao telefone, e virando-se para Kathleen: “Já falei com ele outras vezes”.

Ela ficou observando. Ele sorriu de volta e piscou, como prova de que, embora devesse dar toda a atenção àquilo, não a havia esquecido.

“Alô”, disse logo em seguida. Ficou escutando. Então falou novamente: “Alô”. Franziu o cenho.

“Você poderia falar mais alto”, pediu, educado, e então: “Quem?... O que significa isso?”

Ela viu que a expressão do rosto dele era de contrariedade agora.

“Não quero falar com ele”, disse Stahr. “Não!”

Voltou-se para Kathleen: “Acredite se quiser, mas é um orangotango.”

Esperou até que uma longa explicação tivesse terminado; então repetiu: “Não quero falar com ele, Lew. Não tenho nada a dizer que possa interessar a um orangotango.”

Acenou para Kathleen se aproximar e, quando ela chegou ao telefone, ele segurou o aparelho de modo que pudesse escutar uma estranha respiração e um grunhido roufenho do outro lado da linha. Em seguida, uma voz: “Não é armação, Monroe. Ele é capaz de falar e é a cara do McKinley. O senhor Horace Wickersham está aqui comigo, com uma foto do McKinley na mão...”

Stahr ouvia pacientemente.

“Já temos um chimpanzé”, falou, depois de um momento. “Arrancou um pedaço do John Gilbert no ano passado... Tá certo, coloque o bicho na linha de novo.”

Adotou um tom formal, como se falasse a uma criança.

“Alô, orangotango.”

Sua expressão mudou, e ele se virou para Kathleen.

“Ele disse ‘Alô’.”

“Pergunte o nome dele”, sugeriu a moça.

“Alô, orangotango — meu Deus, era só o que me faltava! —, você sabe o seu nome?... Parece que não sabe... Escute, Lew. Não estamos filmando nada parecido com Kink Kong, e O macaco peludo não tem nenhum macaco... Claro que tenho certeza. Sinto muito, Lew, tchau.”

Ficou aborrecido com Lew, pois pensou mesmo que fosse o presidente e por isso tinha mudado sua atitude, agindo de acordo com a suposta ocasião. Sentiu-se um pouco ridículo, mas Kathleen se sensibilizou e passou a gostar mais dele porque, do outro lado da linha, era um orangotango.

*

Tomaram o caminho de volta, ao longo da costa, com o sol atrás deles agora. A casa parecia mais acolhedora quando partiram, como se isso tivesse sido consequência da visita — o brilho áspero do lugar era mais suportável quando não se estava ali só de passagem, como visitantes na superfície resplandecente da Lua. Olhando para trás a partir de uma curva na costa, viram o céu ganhando um tom rosado por detrás da estrutura incompleta, e aquele ponto lá no alto pareceu uma simpática ilha, ao mesmo tempo que prometia horas agradáveis num dia futuro.

Depois de passarem por Malibu, com seus bangalôs vistosos e barcaças de pesca, estavam de volta à seara humana de carros empilhados congestionando a extensão da rodovia, de praias feito formigueiros sem nenhum padrão, exceto pelas cabeças que, no mar, eram pontos pretos salpicados.

Confortos de cidade eram cada vez mais visíveis — cobertores, esteiras, guarda-sóis, fogareiros, sacolas cheias de roupas —; os prisioneiros haviam posto de lado suas algemas naquela areia. Era seu aquele mar, se Stahr assim o quisesse, ou se soubesse o que fazer com ele — apenas com seu consentimento é que outros molhavam os pés e os dedos nas frias e turbulentas águas do mundo do homem.

Stahr pegou um desvio a partir da estrada do mar, subindo um cânion e contornando uma montanha por outra via, deserta de gente. O morro foi virando a periferia da cidade. Parou para abastecer e estava de pé junto ao carro.

“A gente podia ir jantar”, falou, em tom quase ansioso.

“Você talvez estivesse trabalhando a esta hora.”

“Não — não tinha planejado nada. Não podíamos sair pra jantar?”

Ele sabia que ela tampouco tinha planos — nenhum compromisso à espera ou lugar especial aonde ir.

Ela regateou.

“Que tal se a gente fosse comer alguma coisa naquela lanchonete ali do outro lado da rua?”

Ele deu uma olhada no lugar, avaliando.

“É isso mesmo que você quer?”

“Gosto de comer nessas lanchonetes americanas. Me parecem uma coisa tão esquisita, tão estranha.”

Sentaram-se em banquetas altas para tomar sopa de tomate e comer sanduíches quentes. Era a coisa mais íntima que haviam feito juntos, e ambos sentiram uma espécie perigosa de solidão, e a perceberam um no outro. Compartilharam os cheiros variados do lugar, o amargor, a doçura e o azedume, o mistério da garçonete, que tinha o cabelo tingido apenas na superfície e preto por baixo, e, refeição terminada, a natureza morta de seus pratos vazios — uma casca de batata, um pedaço de picles e um caroço de azeitona.

*

Na rua, sob o crepúsculo, já não parecia esforço nenhum sorrir para ele quando entraram no carro.

“Muito obrigada. Foi uma tarde agradável.”

Não estavam longe da casa dela. Sentiram que o início do trecho mais íngreme e o carro roncando mais alto, em segunda marcha, eram o começo do fim. Os bangalôs na subida do morro tinham as luzes acesas — ele ligou também os faróis. Stahr sentia um peso na boca do estômago.

“Vamos sair outras vezes.”

“Não”, ela respondeu de pronto, como se estivesse esperando por aquilo. “Vou te escrever uma carta. Me desculpe por esse mistério todo — na verdade, faço isso como consideração a você, pois te quero muito bem. Você devia tentar não trabalhar tanto. Precisa se casar de novo.”

“Ah, não é isso que você devia dizer”, ele desabafou em protesto. “Fomos só nós dois hoje. Pode não ter significado nada pra você — pra mim significou muito. Queria ter mais tempo pra te falar sobre isso.”

Mas, se ele ganharia o tempo que queria, teria de ser na casa dela, pois já tinham chegado e, enquanto o carro encostava à entrada, ela fazia que não com a cabeça.

“Preciso ir agora. Na verdade, sou comprometida. Não contei a você.”

“Não é verdade. Mas tudo bem.”

Acompanhou-a até a porta, parando nos degraus que eram seus desde a outra noite, à espera de que ela encontrasse as chaves dentro da bolsa.

“Achou?”

“Achei”, ela disse.

Era a deixa para que ela entrasse, mas queria olhar para ele uma vez mais e, deitando a cabeça para a esquerda, depois para a direita, tentava divisar seu rosto na última claridade do crepúsculo. Inclinou-se demais para a frente, e foi natural que a mão dele terminasse por lhe tocar a parte de trás do braço e o ombro, e que ele a trouxesse para junto da sombra do peito. Ela fechou os olhos, sentindo o serrilhado da chave no punho apertado. Soltou um “ah” num suspiro, e então outro “ah”, enquanto ele a puxava ainda mais para perto e, com o queixo, girava o rosto dela de leve. Ambos sorriam quase imperceptivelmente, e ela tinha o cenho franzido também, quando a minúscula distância entre eles se dissolveu na escuridão.

Quando voltaram a se afastar, ela balançava a cabeça ainda, embora mais de espanto do que tentando negar o que acontecia ali. E era assim que acontecia, então, de repente, culpa sua, mas desde muito antes, em que momento? Acontecia assim, de repente, e a cada instante o fardo de arrancar a si mesma da união dos dois, daquilo, se tornava mais pesado e inimaginável. Ele estava exultante; ela se ressentia e não podia culpá-lo, mas não compartilharia daquele júbilo, pois era uma derrota. Até então era uma derrota. E então ela pensou que, se interrompesse a situação de derrota, abandonando-o ali e entrando em casa, ainda assim não seria uma vitória. Simplesmente não seria nada.

“Isso não foi ideia minha”, disse, “não foi ideia minha mesmo.”

“Posso entrar?”

“Ah, não — não.”

“Então vamos nos enfiar nesse carro e partir pra algum lugar.”

Aliviada, ela se ateve à exata expressão — partir dali imediatamente era uma vitória, ou assim parecia — como se escapasse da cena de um crime. E logo estavam no carro, morro abaixo com a brisa fresca contra o rosto, e aos poucos ela voltou a si. Agora tudo ficava claro, preto no branco.

“Vamos voltar pra sua casa na praia”, ela falou.

“Pra lá?”

“É — voltar pra sua casa. Não vamos falar mais nada. Só quero ir.”

*

De volta à costa, o céu estava cinzento, e em Santa Monica uma súbita pancada de chuva se abateu sobre eles. Stahr parou no acostamento, colocou uma capa de chuva e puxou a capota de lona. “Temos um teto”, disse.

O limpador de para-brisa tiquetaqueava, um som caseiro, como o do relógio do vovô. Taciturnos, carros deixavam as praias úmidas em direção à cidade. Mais adiante, neblina — os acostamentos da estrada, de ambos os lados, desapareceram, e as luzes dos carros na outra pista pareciam estáticas até pouco antes de, num clarão, cruzarem em sentido contrário.

Os dois haviam deixado para trás uma parte de si mesmos, e se sentiam leves e livres naquele carro. A neblina se infiltrava por uma fresta, e Kathleen tirou o chapéu rosa e azul de um jeito calmo e lento que o levou a observá-la, tenso, e então ela guardou o acessório sob um pedaço de lona no banco de trás. Depois balançou o cabelo e, ao ver que Stahr ainda olhava, sorriu.

O restaurante da foca amestrada não passava de um ponto de luz na direção do oceano. Stahr baixou o vidro com um rangido e procurava por pontos de referência, mas uns poucos quilômetros adiante a neblina cedeu, e logo à frente deles uma curva da estrada levou à casa. Ali, a lua aparecia por trás das nuvens. Sobre o mar, havia ainda uma luz cambiante.

A casa tinha se recolhido um pouco a seus aspectos mais concretos. A caminho do único cômodo já pronto, cheirando a serragem e madeira molhada, passaram pelas vigas gotejantes de um batente de porta e venceram misteriosos obstáculos que lhes alcançavam a altura da cintura. Quando ele a tomou nos braços, os dois por pouco não conseguiam divisar os olhos um do outro naquela meia escuridão. Ele logo tirou a capa de chuva.

“Espere”, ela disse.

Precisava de um momento. Não via o que aquela relação poderia trazer de positivo e, embora isso não a impedisse de estar feliz e sentir desejo, precisava de um momento para pensar no que era aquilo, para voltar uma hora atrás no tempo e entender como acontecera. Ela esperou em seus braços, movendo a cabeça de um lado para outro levemente, como antes, só que mais lenta, e sem jamais tirar os olhos dos dele. Foi quando descobriu que ele tremia.

Ele se apercebeu no mesmo momento, e seus braços relaxaram. Imediatamente, com voz rouca e provocante, ela lhe falou, ao mesmo tempo que puxava o rosto dele para si. Em seguida, ainda de pé, usando os joelhos e com algum esforço, segurando-o com um dos braços, despiu-se de alguma coisa, que chutou para longe. Ele não tremia mais e a abraçou de novo, enquanto se ajoelhavam juntos e deslizavam para o chão, sobre a capa de chuva.

*

Mais tarde, permaneceram deitados sem dizer nada, e então ele sentiu por ela um amor tão cheio de ternura que a abraçou apertado a ponto de fazer rebentar uma costura do vestido. O pequeno estalo os trouxe de volta à realidade.

“Te ajudo”, ele disse, tomando das mãos dela.

“Espera um pouco. Eu estava pensando numa coisa.”

Ela ficou ali, deitada no escuro, pensando irracionalmente no bebê inteligente e infatigável que teria, mas em seguida deixou que ele a ajudasse a se levantar... Quando voltou ao cômodo, estava iluminado pelo único ponto de luz instalado.

“Um sistema de luz de uma só lâmpada”, ele disse. “Apago?”

“Não. Está bem agradável assim. Quero ver você.”

Sentaram na moldura de madeira da janela, as solas dos sapatos se tocando.

“Você parece distante”, ela disse.

“Você também.”

“Está surpreso?”

“Com o quê?”

“Com o fato de sermos duas pessoas outra vez. Você não pensa — espera — sempre virar uma pessoa só, e aí descobre que ainda são duas?”

“Eu me sinto muito próximo de você.”

“Eu também de você”, ela disse.

“Obrigado.”

“Eu é que agradeço.”

Riram.

“Era o que você queria?”, ela perguntou. “Ontem à noite, quero dizer.”

“Não conscientemente.”

“Fico pensando quando foi que tudo se arranjou”, ela meditou. “Tem um momento em que a gente não precisa, e aí, no momento seguinte, sabe que nada neste mundo será capaz de evitar que aconteça.”

Aquilo denotava alguma experiência e, para sua surpresa, gostou dela ainda mais por isso. Para o temperamento dele, afeito à repetição apaixonada, mas não a recapitular o passado, era certo que as coisas devessem ser assim.

“Sou mesmo uma mulher rodada”, ela disse, seguindo os pensamentos dele. “Acho que é por isso que não me dei bem com a Edna.”

“Quem é Edna?”

“A garota que você pensou que fosse eu. Aquela pra quem você ligou — que mora em frente à minha casa. Ela se mudou pra Santa Barbara.”

“Quer dizer que era uma prostituta?”

“Parece que sim. Foi morar numa dessas, como dizem vocês, casas de tolerância.”

“Engraçado.”

“Se ela fosse inglesa, eu teria descoberto de cara. Mas parecia igual às outras. Só me contou quando estava indo embora.”

Ele a viu ter um calafrio e se levantou para envolvê-la com a capa de chuva. Abriu um armário e uma pilha de travesseiros e esteiras de praia veio ao chão. Havia uma caixa de velas, as quais ele acendeu por todo o cômodo, ligando também o aquecedor elétrico à tomada que antes era usada para a lâmpada.

“Por que Edna teve medo de mim?”, ele quis saber, de repente.

“Por você ser um produtor. Tinha tido uma experiência terrível, ou foi uma amiga dela que teve. E acho, também, que ela era tremendamente idiota.”

“Como foi que a conheceu?”

“Ela apareceu lá em casa. Talvez achasse que eu era da mesma laia. Dava pinta de ser uma pessoa muito agradável. Me falou pra chamá-la de Edna, o tempo todo dizia: ‘Por favor, me chame de Edna’; aí finalmente comecei a chamá-la de Edna e ficamos amigas.”

Ela desceu da moldura da janela, de modo que ele pudesse colocar uns travesseiros para se sentarem e como encosto para ela.

“Que é que eu posso fazer?”, ela disse. “Sou uma parasita.”

“Não, não é.” Ele a envolveu nos braços. “Fique paradinha pra se esquentar.”

Ficaram ali, em silêncio, por um tempo.

“Sei por que você gostou de mim no começo”, ela disse. “Edna me contou.”

“O que foi que ela disse?”

“Que me pareço com... Minna Davis. Várias pessoas já me disseram isso.”

Ele se reclinou, afastando-se, e aquiesceu.

“Aqui”, ela disse, levando as mãos às maçãs do rosto e deformando as bochechas de leve. “Aqui e aqui.”

“Sim”, concordou Stahr. “Foi muito esquisito. Você se parece mais com o que ela era realmente do que com a Minna das telas.”

Ela se levantou, mudando de assunto com essa atitude, como se tivesse receio de falar daquilo.

“Já me aqueci”, disse. Foi até o armário, deu uma espiada dentro e voltou vestindo um aventalzinho cuja estampa de pequenos cristais lembrava neve. Olhou em volta com ar crítico.

“Claro, a gente acabou de se mudar”, disse, “e há essa espécie de eco aqui.”

Abriu a porta que dava para a varanda e trouxe para dentro duas cadeiras de vime, secando-as. Ele observava seus movimentos, atento, ainda que meio temeroso de que o corpo dela revelasse algum defeito e quebrasse o encanto. Ele havia assistido aos testes de filmagem de mulheres cuja beleza vira desaparecer segundo a segundo, como se uma bela estátua saísse a caminhar sobre as frágeis articulações de uma boneca de papel, mas Kathleen tinha firmeza nos pés — e sua fragilidade não passava de uma ilusão.

“Parou de chover”, ela disse. “Estava chovendo no dia em que cheguei. Uma chuva tenebrosa — um barulhão igual ao de cavalos relinchando.”

Ele riu.

“Você vai acabar gostando. Especialmente se for ficar por aqui. Está pensando em ficar? Não pode me contar agora? Qual é o mistério?”

Ela balançou a cabeça.

“Ainda não — não vale a pena contar.”

“Vem cá, então.”

Ela se aproximou e permaneceu de pé junto de Stahr, que recostou o rosto ao tecido frio do avental.

“Você é um homem cansado”, ela falou, pondo a mão nos cabelos dele.

“Não nesse sentido.”

“Não foi a isso que me referi”, ela se apressou em corrigir. “Quis dizer que você vai acabar ficando doente de tanto trabalhar.”

“Não queira ser minha mãe”, ele disse.

Seja minha amante, pensou. Queria romper com o padrão de sua vida. Se ia morrer em breve, como haviam dito os dois médicos, queria deixar de ser Stahr por um tempo e sair à caça do amor como os homens que nada têm a oferecer, como esses rapazes anônimos que espreitam na escuridão das ruas.

“Você tirou meu avental”, disse ela, suave.

“É.”

“Será que ninguém vai nos ver da praia? Apago as velas?”

“Não, não apague.”

Mais tarde, recostada numa almofada branca, ela sorria para ele.

“Eu me sinto como Vênus em sua meia concha”, falou.

“Por que você pensou nisso agora?”

“Olhe pra mim — não pareço uma figura de Boticelli?”

“Não sei”, respondeu Stahr com um sorriso. “Se você diz.”

Ela bocejou.

“Foi tão bom. E estou gostando tanto de você.”

“Você sabe muito das coisas, não sabe?”

“Como assim?”

“Ah, umas pequenas coisas que você diz. Ou talvez seja o jeito como diz essas coisas.”

Ela ponderou.

“Não sei muito”, disse. “Não fui pra universidade, se é disso que está falando. Mas o cara sobre quem te contei sabia tudo e tinha paixão por me ensinar. Inventava programas de estudos e me fazia frequentar cursos na Sorbonne e ir a museus. Aproveitei alguma coisa.”

“Ele era o quê?”

“Era meio que pintor, um gênio terrível. E muito mais. Queria que eu lesse Spengler — tudo se resumia a isso. Toda a história e a filosofia e a harmonia, tudo pra que eu pudesse chegar a Spengler, e então eu o abandonei antes. No fim das contas, acho que era essa a principal razão por que ele não queria me deixar ir embora.”

“Quem foi Spengler?”

“Pois estou te dizendo que não chegamos lá”, ela riu, “e agora estou esquecendo tudo muito pacientemente, pois é improvável que eu vá conhecer outro como ele.”

“Ah, mas você não devia esquecer”, disse Stahr, chocado. Respeitava muito o aprendizado, tinha uma memória ancestral das Schules. “Você não devia esquecer.”

“Esse negócio era apenas o substituto dos bebês.”

“Você poderia ensinar seus bebês”, ele disse.

“Poderia?”

“Claro que poderia. Poderia proporcionar isso a eles enquanto ainda fossem pequenos. Quando preciso saber alguma coisa, tenho de perguntar a algum escritor bêbado. Não jogue fora o que aprendeu.”

“Certo”, ela disse, e se levantou. “Vou repassar aos meus filhos. Mas é um negócio que nunca acaba, esse — quanto mais a gente sabe, mais existe pra aprender, e não para nunca. Aquele cara podia ter sido qualquer coisa, se não fosse um covarde e um tolo.”

“Mas você era apaixonada por ele.”

“Ah, sim — de todo o coração.” Ela olhou pela janela, protegendo os olhos. “Tem umas luzes lá. Vamos até a praia?”

Ele ficou de pé de um pulo e exclamou: “Nossa, acho que são os cardumes!”

“O quê?”

“É hoje à noite. Está em todos os jornais.” Ele correu para fora e ela o ouviu abrindo a porta do carro. Logo voltava com um jornal.

“É às dez e dezesseis. Daqui a cinco minutos.”

“Um eclipse ou algo assim?”

“Peixes muito pontuais”, ele falou. “Tire os sapatos e as meias e venha comigo.”

Era uma bela noite azul. A maré estava mudando, e os peixinhos prateados se espalhavam à beira d’água à espera das dez e dezesseis. Alguns segundos após a hora marcada, os cardumes vieram dar à praia com a maré, e Stahr e Kathleen agora caminhavam de pés descalços por entre eles, saltitantes na areia. Um preto veio na direção dos dois, pela praia, recolhendo os peixes em dois baldes como se catasse gravetos. Surgiam em duplas e trios e em pelotões e companhias, incansáveis e eufóricos e zombeteiros em redor dos pés enormes dos invasores, assim como já faziam antes de Sir Francis Drake ter fincado sua insígnia num dos rochedos da costa.

“Queria ter outro balde”, disse o preto, parando para descansar um momento.

“Você veio de longe”, falou Stahr.

“Costumava ir a Malibu, mas não gostam que a gente faça isso lá — aquele pessoal do cinema.”

Uma onda quebrou, obrigando-os a recuar, e no rápido refluxo dela a areia voltou a ficar viva.

“Vale a pena vir até aqui?”, quis saber Stahr.

“Não vejo a coisa assim. Na verdade, faço esses passeios pra ler um pouco de Emerson. Já leu?”

“Eu já”, respondeu Kathleen. “Alguma coisa.”

“Tenho um dos livros dele aqui embaixo da camisa. Também trouxe uns autores rosa-cruzes, mas estou enjoado deles.”

O vento havia mudado um pouco — as ondas estavam mais fortes, e eles caminhavam ao longo da linha de espuma na areia.

“O senhor trabalha com quê?”, o preto perguntou a Stahr.

“Com filmes.”

“Ah.” Passado um momento, ele acrescentou: “Nunca vou ao cinema”.

“Por que não?”, devolveu Stahr, direto.

“Não serve pra nada. Nunca deixo meus filhos irem.”

Stahr ficou olhando para ele, e Kathleen para Stahr, numa atitude protetora.

“Alguns filmes são bons”, ela disse, uma onda a borrifá-los; mas o homem não a escutou. Ela acreditou que podia contra-argumentar e repetiu o comentário, e desta vez ele a encarou com indiferença.

“Os rosa-cruzes são contra o cinema?”, Stahr quis saber.

“Acho que não sabem do que são a favor. Numa semana é de uma coisa, na seguinte é de outra.”

Já os peixinhos não tinham dúvidas. Meia hora havia se passado e eles continuavam a aparecer. O preto enchera seus dois baldes e, por fim, seguiu praia acima na direção da estrada, sem saber que tinha feito balançar uma indústria.

Stahr e Kathleen voltaram à casa, e ela tentava pensar em como faria para afastar dele aquele baixo-astral momentâneo.

“Coitado desse zambo”, falou.

“Como é?”

“Não é assim que vocês chamam esses pobres coitados, de zambos?”

“Não usamos nenhum nome especial pra eles.” Depois de um momento, ele disse: “Eles têm seus próprios filmes”.

Já na casa, junto ao aquecedor, ela colocou novamente os sapatos e as meias.

“Estou gostando mais da Califórnia agora”, falou, em tom deliberado. “Acho que estava meio faminta de sexo.”

“Não vamos ficar só nisso, vamos?”

“Você sabe que não.”

“É bom estar perto de você.”

Ela soltou um pequeno suspiro ao se levantar, tão pequeno que ele não chegou a notar.

“Não quero mais te perder”, ele disse. “Não sei o que você pensa de mim, ou mesmo se pensa em mim. Como você provavelmente já deve ter adivinhado, meu coração é um túmulo”, ele hesitou, perguntando-se se aquilo era mesmo verdade, “mas você é a mulher mais atraente que conheço desde nem sei mais quando. Não consigo parar de olhar pra você. Não sei, neste momento, qual é exatamente a cor dos seus olhos, mas eles me fazem lamentar por todas as pessoas do mundo que...”

“Para, para!”, ela gritou, rindo. “Você vai me fazer ficar namorando o espelho por semanas. Meus olhos não são de cor nenhuma — são apenas olhos feitos pra ver, e sou tão normal quanto pra mim é possível ser. Tenho dentes bons pra uma garota inglesa...”

“Seus dentes são lindos.”

“... mas não chego aos pés dessas moças que vejo por aí.”

“Para com isso você”, ele falou. “O que eu disse é verdade, e sou um homem comedido.”

Ela permaneceu imóvel por um momento — pensando. Olhou para ele, depois de volta para si mesma, em seguida mais uma vez para ele — e então abandonou o que pensava.

“Precisamos ir”, ela disse.

*

Eram pessoas diferentes ao pegarem o caminho de volta. Tinham percorrido a estrada ao longo da costa quatro vezes naquele dia, a cada vez um casal mudado. Deixavam para trás curiosidade, tristeza e desejo; aquele era um verdadeiro retorno — a eles mesmos, a todo o seu passado e o seu futuro e à presença invasora do amanhã. Ele pediu a ela que se sentassem bem perto no carro, e ela atendeu, mas não pareciam próximos, porque para isso é preciso que se esteja ganhando intimidade. Nada é permanente. A língua dele coçava: queria convidá-la a irem dormir na casa alugada onde morava — mas sentiu que isso o faria parecer solitário. Quando o carro já subia o morro até a casa dela, Kathleen procurou por algo atrás do estofado do assento.

“Perdeu alguma coisa?”

“Talvez tenha caído aqui”, ela falou, tateando dentro da bolsa na escuridão.

“E o que era?”

“Um envelope.”

“Importante?”

“Não.”

Mas, ao chegarem à casa, com as luzes internas acesas, ela o ajudou a remover o encosto e procurou mais uma vez.

“Não importa”, disse, enquanto caminhavam até a entrada. “Qual é o endereço da sua casa de verdade?”

“É só Bel-air. Não tem número.”

“Onde fica Bel-air?”

“É uma espécie de condomínio, perto de Santa Monica. Mas é melhor você me ligar no estúdio.”

“Certo... boa noite, sr. Stahr.”

“Sr. Stahr”, ele repetiu, espantado.

Ela se corrigiu, meiga.

“Bem, então boa noite, Stahr. Assim está melhor?”

Ele se sentiu um pouquinho rejeitado.

“Como você quiser”, falou. Recusava-se a deixar transparecer algum distanciamento. Ficou olhando para ela e balançou a cabeça de um lado para o outro, imitando o gesto dela, dizendo sem dizer: “Você sabe o que se passou comigo”. Ela suspirou. Então voltou aos braços dele e, por um momento, era sua de novo, completamente. Antes que pudesse haver alguma nova mudança, Stahr sussurrou um boa-noite e virou as costas para voltar ao carro.

Veloz morro abaixo, escutava o próprio interior como se um tema musical, poderoso, estranho e sólido, de autoria de um compositor desconhecido, estivesse prestes a ser tocado pela primeira vez. Logo soaria a música, mas, como o compositor era novo, ele não reconheceria o tema esperado de imediato. Viria talvez disfarçado no som das buzinas dos carros nos bulevares em tecnicolor lá embaixo, ou então mal se ouviria, um rufar no tambor abafado da lua. Esforçava-se para escutar, sabendo apenas que havia música prestes a começar, nova música, música da qual ele gostava mas não entendia. Era difícil reagir a algo que se poderia abarcar em toda a sua extensão — aquilo era novo, confuso, impossível de interromper ao meio e conduzir o resto com uma antiga partitura.

E havia ainda, persistente, e intimamente ligada à primeira, a questão do preto que encontrara na praia. Sua figura esperava por Stahr em casa, com os baldes cheios de peixinhos prateados, e estaria à sua espera no estúdio, na manhã seguinte. Tinha dito que não deixava que os filhos escutassem a história de Stahr. Era preconceituoso e estava errado, e alguém, de algum jeito, precisava lhe mostrar isso. Um filme, muitos filmes, uma década de filmes teriam de ser feitos para fazê-lo ver que estava equivocado. Desde o encontro com ele, Stahr já havia descartado quatro projetos — um dos quais programado para entrar em produção naquela semana. Eram filmes limítrofes em termos de interesse, mas, submetendo-os ao crivo do preto, ao menos se dera conta de que eram umas porcarias. E trouxe de volta um filme difícil que havia atirado aos lobos, Brady, Marcus e os demais, indo cuidar de outra coisa. Resgatou aquele em nome do preto.

Ao encostar diante de sua casa, as luzes da varanda se acenderam e o empregado filipino surgiu nos degraus da entrada para levar o carro. Na biblioteca, Stahr encontrou a seguinte lista de telefonemas: La Borwitz


Marcus


Harlow


Reinmund


Fairbanks


Brady


Colman


Skouras

Fleishacker etc.

O empregado filipino veio até a sala com uma carta.

“Caiu de dentro do carro”, informou.

“Obrigado”, disse Stahr. “Estava procurando.”

“Vai assistir a algum filme hoje à noite, sr. Stahr?”

“Não, obrigado — pode se recolher.”

A carta, para sua surpresa, estava endereçada ao Ilmo. sr. Monroe Stahr. Começou a abri-la — foi quando lhe ocorreu que ela a estivera procurando para, possivelmente, recolhê-la. Se Kathleen tivesse telefone, ele teria ligado para pedir permissão antes de abrir a correspondência. Manteve-a na mão por um momento. Havia sido escrita antes de se conhecerem — era estranho pensar que, o que quer que estivesse escrito ali, agora não valia mais; interessava apenas como suvenir, por representar um estado de espírito que já não existia.

Ainda assim, ele não gostava da ideia de lê-la sem pedir à moça. Largou a carta junto a uma pilha de roteiros e, pegando o de cima, sentou-se, pousando-o no colo. Estava orgulhoso por ter resistido ao primeiro impulso de abrir a carta. Parecia ser a prova de que não estava “perdendo a cabeça”. Com Minna, isso jamais acontecera, mesmo no início — tinham formado a combinação mais ajustada e régia que se possa imaginar. Ela o amara sempre e, pouco antes de sua morte, ainda que Stahr resistisse e se surpreendesse, foi a ternura dele que rebentou e emergiu, fazendo-o se apaixonar por ela. Apaixonado por Minna e pela morte ao mesmo tempo — pelo mundo no qual ela parecia tão sozinha que ele chegou a desejar ir junto.

Mas nunca fora uma obsessão sua “deixar-se encantar pelas damas” — seu irmão era capaz de se destruir por uma mulher, ou melhor, por uma, depois outra, depois outra. Mas Stahr, em seus anos de juventude, ficava com elas uma vez e só, nunca mais — como quem para no primeiro drinque. Reservava a mente para um tipo bem diverso de aventura — alguma coisa melhor do que uma série de farras emocionais. Como muitos outros homens brilhantes, amadurecera um sujeito totalmente frio. Começou ali pelos doze, provavelmente, com aquela recusa completa comum aos de extraordinária força mental, na base do “Olha isso: está tudo errado — uma desordem — tudo mentira — uma fraude...”, e ele então varreu a coisa toda do caminho, tudo, como fazem os homens da sua espécie; e depois, em vez de se tornar um filho da puta como a maioria deles, olhou em torno, vendo a paisagem infértil que restara, e disse para si mesmo: “Pra isto aqui, jamais vou servir”. De modo que tinha tomado a tolerância, a bondade, a indulgência e até mesmo a afeição como lições.

O rapaz filipino voltou com uma garrafa d’água e tigelas contendo nozes e frutas e desejou boa noite. Stahr abriu o primeiro roteiro e começou a ler.

Leu durante três horas — parava, aqui e ali, para fazer correções com um lápis. Às vezes mirava o teto, reconfortado por algum vago pensamento feliz que não estava no roteiro, e a cada vez demorava um minuto para conseguir lembrar o que era. Então compreendia que era Kathleen e olhava para a carta — era agradável receber uma carta.

Eram três horas da manhã quando uma veia começou a latejar no dorso de uma de suas mãos, sinalizando que era hora de parar. Kathleen estava bem distante agora na noite que se desvanecia — os diferentes aspectos dela projetados na memória de um único e arrebatado estranho, a ele direcionados como resultado de algumas escassas horas. Pareceu-lhe que não havia mais problema em abrir a carta.

Caro sr. Stahr, Dentro de meia hora, vou honrar meu compromisso com o senhor. Quando nos despedirmos, entrego-lhe esta carta. É para lhe dizer que em breve vou me casar e que não poderei mais vê-lo depois de hoje.
Devia ter lhe contado ontem à noite, mas não me pareceu que isso lhe dissesse respeito. E seria uma bobagem desperdiçar uma bela tarde falando disso e vendo seu interesse por mim desaparecer. Que desapareça por completo — agora. A esta altura, já terei dito o suficiente para convencê-lo de que sou digna de um Troféu Abacaxi. (Acabo de aprender esse termo — com minha convidada da noite passada, que ligou e ficou uma hora de visita. Ela parece acreditar que todo mundo merece um Troféu Abacaxi — menos você. Acho que era para eu lhe contar que ela pensa isso, então dê a ela um emprego, se puder.) Fico muito lisonjeada que alguém rodeado de tantas lindas mulheres — não consigo terminar a frase, mas você sabe o quero dizer. E vou me atrasar se não sair agora mesmo para encontrá-lo.
Com meus melhores votos, Kathleen Moore O primeiro sentimento de Stahr se assemelhou a um medo; a segunda coisa que pensou foi que a carta não valia mais — ela chegara mesmo a tentar recolhê-la. Mas então lembrou daquele “sr. Stahr”, nas despedidas, e de que ela havia pedido seu endereço — provavelmente já teria escrito outra carta dizendo, igualmente, adeus. Ficou chocado com a indiferença da carta em relação ao que acontecera depois, embora não houvesse lógica nisso. Leu-a novamente, reparando que não antecipava nada. E, no entanto, chegando em casa ela havia desistido de recuperá-la para si, diminuindo a importância dos acontecimentos todos, desviando a mente do fato de que nenhum outro homem ocupara sua consciência naquela tarde. Mas ele nem conseguia mais acreditar nisso agora, e a aventura toda começava a se desfazer no momento mesmo em que, investigando, a recapitulava. O carro, a montanha, o chapéu, a música, a própria carta se desintegravam como restos de papelão entre os detritos da casa em construção. E Kathleen partia, levando na bagagem a lembrança de seus gestos, a cabeça que se movia suave, o corpo rijo e ardente, os pés descalços na areia úmida e revolta. Os céus empalideceram e escureceram — o vento e a chuva, agora lúgubres, carregaram os peixinhos prateados de volta ao mar. Mais um dia, só isso, e tudo que restava sobre a mesa era a pilha de roteiros.

Subiu para o outro piso. Minna voltou a morrer depois do primeiro lance de escadas, e ele então a esqueceu de novo, absorta e miseravelmente, passo a passo até o último degrau. O andar vazio se estendeu ao redor — portas detrás das quais não havia ninguém dormindo. No quarto, Stahr tirou a gravata, desamarrou os sapatos e se sentou na beirada da cama. A coisa toda tivera seu desfecho, exceto por algo que não conseguia lembrar o que era; por fim lembrou: o carro dela tinha ficado no estacionamento do hotel. Programou o despertador para ter seis horas de sono.

*

Aqui é Cecilia retomando a história. Acho que seria de grande interesse acompanhar o que eu mesma fazia a essa altura, uma vez que estamos falando de uma época da minha vida da qual me envergonho. As coisas de que as pessoas se envergonham geralmente rendem boas histórias.

Quando mandei que Wylie fosse dar uma sondada na mesa de Martha Dodd, ele não conseguiu descobrir quem era a moça, mas súbito aquilo havia se tornado meu principal interesse na vida. Também tinha o palpite — correto — de que era igualmente o de Martha Dodd. Ter à sua mesa uma garota que é admirada pela realeza, reconhecida pela coroa em nosso pequeno sistema feudal — e nem ao menos saber seu nome!

Apenas uma pessoa que eu conhecia costumava falar com Martha, e seria óbvio demais ir até ela, mas fui ao estúdio na segunda e dei uma passada no escritório de Jane Meloney.

Jane Meloney era bem amiga minha. Eu a via mais ou menos como uma criança vê um agregado da família. Sabia que ela era roteirista, mas cresci pensando que roteiristas e secretárias eram a mesma coisa, porém sem deixar de levar em conta que roteiristas geralmente cheiravam a bebida e apareciam para jantar com mais frequência. A maneira de se referir a ambas as categorias era a mesma quando não estavam por perto — a exceção era a espécie a que chamavam dramaturgos, os quais vinham da Costa Leste. Eram tratados com respeito mesmo na sua ausência — se estavam presentes, acabavam misturados com os demais na classe genérica de pessoal do escritório.

A sala da Jane ficava no “prédio dos roteiristas veteranos”. Havia um em cada equipe, uma turma de remanescentes dos tempos do cinema mudo emitindo lamúrias monocórdias de redatores e vadios enclausurados. Contava-se a história de um novo produtor que, vendo aquilo, acorreu excitado ao chefe: “Quem são aqueles sujeitos?”

“É pra serem roteiristas.”

“Foi o que pensei. Bem, fiquei observando uns dez minutos e dois deles não escreveram sequer uma linha.”

Jane estava a postos em sua máquina de escrever, preparando-se para a hora do almoço. Fui direta e disse a ela que tinha uma rival.

“É um mistério”, falei. “Não consegui nem descobrir o nome dela.”

“Ah”, disse Jane. “Bem, talvez eu esteja sabendo de algo a respeito. Ouvi alguém comentar alguma coisa.”

Alguém, claro, era seu sobrinho, Ned Sollinger, contínuo no escritório de Stahr. Um dia fora o orgulho e a esperança dela. Mandou-o estudar na Universidade de Nova York, onde ele chegou a jogar no time de futebol. Então, cursando o primeiro ano da faculdade de medicina, depois de levar um fora, dissecou aquela parte menos publicável do cadáver de uma senhora e a enviou para a garota que o preterira. Não me pergunte por quê. Tendo caído em desgraça com a sorte e aos olhos dos homens, recomeçou de baixo, e lá continuava.

“O que você sabe?”, perguntei.

“Foi na noite do terremoto. A moça caiu no lago do terreno dos fundos, e ele mergulhou para salvá-la. Outra pessoa me contou que ela havia se atirado da sacada dele e quebrado o braço.”

“Quem era ela?”

“Bem, isso também é curioso...”

O telefone tocou, e esperei impaciente enquanto ela mantinha uma longa conversa com Joe Reinmund. Ele parecia estar tentando, pelo telefone, descobrir se ela era mesmo boa com roteiros, ou se algum dia tinha de fato escrito algum. E isso porque circulava a história de que Jane teria estado presente no set no dia em que Griffith inventou o close! Reinmund falava e ela murmurava entre resmungos, contorcia-se, fazia caretas para o aparelho, depois o colocava sobre o colo, de modo que a voz apenas ressoasse ao longe — e ainda mantinha uma conversa paralela comigo.

“Por que ele faz isso — pra matar tempo entre dois compromissos?... Já me perguntou essas mesmas coisas umas dez vezes... respondi tudo num memorando que mandei pra ele...”

E para o telefone: “Se isso chegar ao Monroe, não me responsabilizo. Quero levar o negócio até o final.”

Fechou os olhos, agoniada de novo.

“Agora resolveu fazer seleção de elenco... e do elenco secundário... quer colocar o Bubby Ebson... Meu Deus, não tem mesmo o que fazer... agora está falando do Walter Davenport — ele quer dizer o Donald Crisp... está com uma enorme lista de atores aberta no colo, dá pra ouvi-lo virando as páginas... está se achando um cara muito importante hoje... um segundo Stahr, mas, pelo amor de Deus, tenho duas cenas pra escrever antes de ir almoçar.”

Reinmund finalmente desligou, ou acabou interrompido por alguém. Um garçom veio do refeitório com o almoço da Jane e uma coca-cola para mim — eu não estava almoçando durante aquele verão. Jane datilografou uma frase antes de começar a comer. Certo dia, eu estava por ali e ela, junto com um jovem roteirista, surrupiou uma história do Saturday Evening Post — mudando os personagens e tal. Aí passaram a escrever o enredo, cada linha de diálogo respondendo à linha anterior, e, claro, soava exatamente como gente da vida real empenhada em comunicar alguma coisa — graça ou delicadeza ou bravura. Sempre quis ver aquilo na tela, mas por alguma razão deixei passar.

Eu a achava tão adorável quanto um velho brinquedo barato. Faturava três mil por semana, e todos os seus maridos bebiam e a espancavam quase até matá-la. Mas naquele dia eu tinha um assunto importante para tratar ali.

“Você não sabe o nome dela?”, insisti.

“Ah...”, disse Jane, “é isso que você quer saber. Bem, ele ficou ligando pra ela depois, e disse à Kate Doolan que, no fim, era o nome errado.”

“Acho que ele a encontrou”, falei. “Você conhece Martha Dodd?”

“Não é que ela acabou mesmo muito mal, então!”, exclamou Jane, em pronta e afetada demonstração de solidariedade.

“Você poderia convidá-la pra almoçar amanhã?”

“Ah, mas acho que pelo menos pra comer ela ganha. Tem um mexicano que...”

Expliquei que minhas razões não eram exatamente filantrópicas. Jane concordou em ajudar. Ligou para Martha Dodd.

No dia seguinte, almoçamos juntas no Bev Brown Derby, um restaurante modorrento cuja cozinha era apreciada por clientes que pareciam sempre a fim de uma soneca. No almoço era mais animado, com algumas mulheres em polvorosa nos primeiros cinco minutos após terminarem a refeição, mas formávamos um trio morno. Devia ter exposto logo de cara minha curiosidade. Martha Dodd era uma moça do campo que nunca chegara a compreender totalmente o que lhe acontecera, o que não trouxera para ela vantagem alguma exceto uma expressão cansada nos olhos. Continuava a acreditar que a vida que havia experimentado é que era real, e o resto, apenas uma longa espera.

“Eu tinha uma casa linda em 1928”, ela nos contou, “mais de doze hectares de terreno, um campo de minigolfe e uma piscina, mais uma vista maravilhosa. Chegava a enjoar com tantas margaridas na primavera.”

Acabei por convidá-la a ir conhecer o papai. Puro remorso, porque tinha “segundas intenções” e me envergonhava disso. Não se deve agir com motivos escusos em Hollywood — causa confusão. Todo mundo percebe e a gente acaba desgastada. Uma segunda intenção, ali, é um claro desperdício.

Jane se separou de nós na entrada do estúdio, irritada com minha atitude covarde. Martha havia se preparado internamente para encarar as possibilidades de sua carreira — que não eram das maiores, por causa de sete anos de ostracismo, mas equilibravam-se numa espécie de tenso consentimento, e eu seria veemente ao falar com papai. Eles nunca faziam muito por gente como Martha, que tanto dinheiro havia ajudado a faturar em certa época. Deixavam que essas pessoas caíssem na penúria, relegadas a trabalhos temporários — fariam melhor se as deportassem da cidade. E papai andava orgulhosíssimo de mim naquele verão. Eu precisava o tempo todo controlá-lo para que não saísse dizendo a todo mundo quanto minha educação havia sido isso e aquilo para resultar numa joia tão perfeita. E Bennington — ah, uma escola para poucos —, meu Deus, que vergonha. Garanti ao papai que, entre as estudantes, havia uma proporção normal de nascidas para camareiras e lavadoras de pratos, apenas disfarçadas pelo bom gosto dos figurinos chiques da Quinta Avenida; mas ele falava praticamente como um ex-aluno da minha faculdade. “Você teve de tudo”, costumava dizer alegremente. Tudo, aí incluídos, numa conta básica, os dois anos que passei em Florença, onde consegui, contra todos os mais certeiros prognósticos, permanecer como a única virgem do curso, e meu baile de debutantes em Boston, Massachusetts. Eu era uma autêntica flor da boa e velha aristocracia capitalista.

De modo que eu sabia que, de seu escritório, ele faria alguma coisa por Martha Dodd, e sonhei alto que talvez ajudasse também o caubói Johnny Swanson, e Evelyn Brent, e toda sorte de flores descartadas. Papai era um homem charmoso e simpático — exceto daquela vez que o encontrei em Nova York sem estar esperando — e havia algo de tocante no fato de ser o meu pai. Afinal de contas, era o meu pai — e faria qualquer coisa no mundo por mim.

Apenas Rosemary Schmiel estava na sala de espera do escritório, falando no telefone de Birdy Peters. Fez sinal para que eu sentasse, mas, empolgada com meus planos, disse a Martha para ficar à vontade, apertei o botão mágico sob a mesa de Rosemary e segui em direção à porta que se abria.

“Seu pai está em reunião”, gritou Rosemary. “Não exatamente em reunião, mas devo...”

A essa altura eu já atravessara a porta e o vestíbulo e outra porta, e então vi papai em mangas de camisa, muito suado, tentando abrir uma janela. Era um dia quente, mas não havia me dado conta de quanto, e pensei que ele estava doente.

“Não, não, estou bem”, disse. “O que houve?”

Expliquei a ele. Expliquei a teoria completa sobre pessoas como Martha Dodd, enquanto zanzava de um lado para o outro no escritório. Como dar um jeito de aproveitá-las e lhes garantir emprego regular? Papai parecia ter se entusiasmado com minhas ideias, e fazia que sim com a cabeça, aquiescendo, havia muito tempo que não me sentia tão próxima dele. Cheguei mais perto e dei-lhe um beijo no rosto. Ele tremia, a camisa ensopada.

“Você está doente”, falei, “ou então está muito estressado.”

“Não, não estou, de verdade.”

“O que foi?”

“Ah, é o Monroe”, ele disse. “Aquele desgraçado pensa que é o messias de Vine Street. Não sai do meu pé, dia e noite!”

“O que aconteceu?”, eu quis saber, muito mais calma.

“Ah, ele fica lá, como se fosse um desgraçado de um sacerdote ou rabino, dizendo o que vai fazer e o que não vai. Não posso te contar agora — estou meio atarantado. Por que você não vai indo na frente?”

“Não com você nesse estado.”

“Vamos, ande!” Farejei, mas ele jamais bebia.

“Vá pentear esse cabelo”, falei. “Quero que você receba Martha Dodd.”

“Mas aqui! Nunca mais vou me livrar dela.”

“Lá fora, então. Vá se lavar primeiro. E trocar essa camisa.”

Num gesto de exagerada impaciência, ele foi até o banheirinho adjacente. Fazia calor no escritório, como se tivesse estado fechado por horas, e talvez fosse isso o que o deixara doente, então abri outras duas janelas.

“Vá indo na frente”, ele gritou detrás da porta trancada do banheiro. “Já vou.”

“Seja muitíssimo simpático com ela”, falei. “Nada de caridade.”

Como se fosse a própria Martha a se manifestar, um longo lamento saiu de algum lugar da sala. Fiquei sobressaltada — em seguida, quando se repetiu, atônita; o ruído não vinha do banheiro onde o papai estava, não vinha de fora do escritório, e sim do armário na parede à minha frente. De onde tirei coragem, não sei, mas avancei para lá e abri a porta, e então a secretária do papai, Birdy Peters, despencou lá de dentro, nua — como um cadáver de filme. Com ela veio uma lufada de ar abafadiço e sufocante. Tombou de lado, uma das mãos ainda agarrada a algumas roupas, e ali ficou, no chão, banhada em suor — foi quando o papai saiu do banheiro. Eu podia senti-lo atrás de mim e, sem precisar me voltar, sabia exatamente qual era sua expressão, pois já o havia surpreendido outras vezes.

“Cubra ela”, falei, cobrindo-a eu mesma com a capa do sofá. “Cubra!”

Saí do escritório. Rosemary Schmiel viu minha cara ao partir e reagiu com uma expressão aterrorizada. Nunca mais a vi, nem Birdy Peters. Quando íamos embora, Martha perguntou: “Qual é o problema, querida?” — e, como eu não respondia: “Você fez o melhor que pôde. Não era uma boa hora, provavelmente. Sabe o que eu vou fazer? Vou levar você pra conhecer uma garota inglesa muito simpática. Você viu a moça sentada à nossa mesa, aquela com quem Stahr dançou na outra noite?”.

De modo que, pagando o preço de uma pequena incursão ao esgoto da família, consegui o que queria.

*

Não lembro de muita coisa da visita. E um bom motivo era porque ela não estava em casa. Com a porta da frente destrancada, Martha foi entrando e chamando “Kathleen” com alegre familiaridade. A sala era despojada e formal como a de um hotel; havia flores à vista, mas não pareciam ter sido mandadas para ela. Martha encontrou ainda um bilhete sobre a mesa que dizia: “Deixe o vestido. Saí pra procurar emprego. Passo amanhã”.

Martha o leu duas vezes, mas não parecia ser endereçado a Stahr, e esperamos uns cinco minutos. As casas parecem mortas quando seus donos não estão. Não que eu esperasse vê-las saracoteando por aí, mas deixo a observação a quem interessar possa. Parecem bem mortas. Solenes, quase, uma mosca apenas tomando conta, e que não dá a mínima para quem chega, uma ponta de cortina esvoaçante.

“Só fico me perguntando que tipo de emprego”, disse Martha. “Domingo passado ela foi a algum lugar com Stahr.”

Mas eu não estava mais interessada. Parecia uma coisa terrível estar ali — sangue de produtor, pensei, horrorizada. E, num pânico repentino, puxei-a para fora, para a luz do sol. Não adiantou — eu me sentia péssima, deprimida. Sempre tivera orgulho do meu corpo — imaginava-o um corpo geométrico, e por isso tudo o que ele fazia parecia certo. E não existia, provavelmente, nenhum tipo de lugar, incluindo igrejas, escritórios e santuários, onde pessoas já não tivessem se abraçado — mas nunca ninguém havia me enfiado nua num buraco na parede, e no meio de um dia de trabalho.

*

“Se você estivesse numa farmácia”, disse Stahr, “pegando uma receita...”

“Você quer dizer numa drogaria?”, perguntou Boxley.

“Se estivesse numa drogaria”, concedeu Stahr, “pegando uma receita para alguma pessoa da sua família que estivesse muito doente...”

“... muito enferma?”, atalhou Boxley.

“Muito enferma. É bem aí que, se alguma coisa chamasse sua atenção lá fora, pela janela, qualquer coisa que o distraísse e mantivesse assim, seria provavelmente bom material pra cinema.”

“Um assassinato visto pela janela, você quer dizer.”

“Isso mesmo”, disse Stahr, sorrindo. “Poderia ser uma aranha fazendo sua teia na vidraça.”

“Claro... entendo.”

“Acho que não entende não, sr. Boxley. O senhor vê a coisa como deve ser na sua forma de expressão, não na nossa. Fica com as aranhas para o senhor e tenta colocar os assassinatos na nossa conta.”

“Eu devia ir embora”, falou Boxley. “Não sirvo pra vocês. Faz três semanas que estou aqui e não consegui fazer nada. Sugiro coisas, mas elas nunca vão para o papel.”

“Quero que fique. Alguma coisa no senhor não gosta de cinema, não gosta de contar uma história dessa forma...”

“É uma chateação desgraçada”, desabafou Boxley. “A gente não consegue se soltar...”

Conteve-se. Sabia que Stahr, o comandante, encontrava tempo para ele em meio a uma constante e compacta ventania — conversavam por sobre o rangido ininterrupto do cordame de um navio singrando em formidáveis e complicadas amuras no mar aberto. Ou então — parecia, às vezes — estavam numa enorme pedreira, onde até o mármore recém-cortado continha traços de antigos frontões, de inscrições meio apagadas do passado.

“Sempre fico querendo que fosse possível começar de novo”, disse Boxley. “O problema é essa produção em massa.”

“Essa é a condição”, falou Stahr. “Sempre há de existir uma. Estamos filmando a história de Rubens — suponha que eu te pedisse que retrate gente tola e rica como Bill Brady e eu, Gary Cooper e Marcus, quando o que você queria era pintar Jesus Cristo. Você não encararia como uma condição? A condição aqui é que temos de pegar o que as pessoas gostam de mais folclórico, embalar e devolver a elas. Qualquer coisa além disso é luxo. O senhor não é capaz de nos dar algum luxo, sr. Boxley?”

Boxley sabia que podia se juntar a Wylie White naquela mesma noite, no Troc, para falarem mal de Stahr, mas estava lendo Lord Charnwood e reconhecia que o outro, como Lincoln, era um líder conduzindo uma guerra em muitas frentes de batalha; sozinho, praticamente, tinha feito o cinema avançar de uma arrancada na última década, a ponto de o conteúdo das produções de primeira linha ter se tornado mais rico e de maior escopo do que aquilo que se apresentava nos palcos. Stahr só se tornara um artista, assim como Lincoln um general, por necessidade e de forma autodidata.

“Venha ao escritório de La Borwitz comigo”, disse. “Eles certamente estão precisando de um toque de luxo por lá.”

Na sala de La Borwitz, dois roteiristas, uma estenógrafa e um supervisor de poucas palavras continuavam no mesmo impasse tenso e enfumaçado em que Stahr os deixara três horas antes. Encarou o rosto de um por vez e nada encontrou. Derrotado, La Borwitz falou com temor reverente.

“É que temos personagens demais, Monroe.”

Stahr, afável, bufou.

“Essa é a ideia principal do filme.”

Tirou uns trocados do bolso, olhou para a luminária do teto e lançou para o alto uma moeda de cinquenta centavos, que tilintou dentro do lustre. Examinou as moedas em sua mão e escolheu uma de vinte e cinco.

La Borwitz o observava com ar miserável; sabia que aquele era um dos truques preferidos de Stahr, e a areia da ampulheta já se esgotava. Naquele momento estavam todos de costas para La Borwitz. Súbito, ele tirou as mãos de sua plácida posição sob a mesa e as lançou bem alto no ar, tão alto que elas pareceram se soltar dos pulsos — e então ele as apanhou de volta, certeiro, quando caíram. Depois disso se sentiu melhor. Estava controlado.

Um dos roteiristas tinha sacado algumas moedas também, e logo foram definidas as regras. “A ideia é lançar a moeda tentando fazê-la passar entre as correntes do lustre. A que cair lá dentro acumula como aposta.”

Jogaram por mais ou menos meia hora — todos menos Boxley, que se abancou de lado e mergulhou no roteiro, e a estenógrafa, que ficou computando os pontos. Calculou o prejuízo de ter os quatro sem trabalhar e chegou à cifra de mil e seiscentos dólares. Ao final, La Borwitz foi o vencedor, com cinco dólares e cinquenta de arremessos certos, e um porteiro trouxe uma escada portátil para que o dinheiro fosse retirado do lustre.

Boxley se manifestou de repente.

“Isto aqui é encheção de linguiça”, disse.

“O quê!”

“Não é cinema.”

Voltaram-se para ele, atônitos. Stahr disfarçou um sorriso.

“Então temos aqui um verdadeiro especialista em filmes!”, exclamou La Borwitz.

“Um monte de belas falas”, continuou Boxley, atrevido, “mas nenhuma situação dramática. Afinal de contas, isto aqui não é um romance, certo? E está muito longo. Não consigo descrever exatamente o que me incomoda, mas não está funcionando muito bem. E não me empolga.”

Estava devolvendo na mesma moeda o que vinha escutando havia três semanas. Stahr ficou olhando de longe, espiando os demais com o canto do olho.

“Não precisamos de menos personagens”, falou Boxley. “Precisamos de mais. Essa é a ideia, pelo que entendo.”

“Essa é a ideia”, disseram os roteiristas.

“É... essa é a ideia”, repetiu La Borwitz.

Boxley se sentiu inspirado pela atenção que atraíra.

“Vamos deixar que cada personagem se veja no lugar de outro”, continuou. “O policial está prestes a prender o ladrão quando percebe que o outro, na verdade, tem a sua cara. Quero dizer, mostramos desse jeito. Quase daria pra dar um título assim: Ponha-se no meu lugar.”

De repente retomaram o trabalho — tocando variações sobre o tema como se fossem jazzistas numa banda de suingue em plena atividade. Talvez desistissem de tudo novamente no dia seguinte, mas a sala voltou a ganhar vida por um momento. O jogo de moedas tivera tanto efeito quanto a fala de Boxley. Stahr havia recriado a atmosfera propícia — sem jamais consentir com o papel de guia que conduzia os demais, mas se sentindo e agindo e até, por vezes, parecendo um garotinho dando seu show.

Ao sair, tocou de passagem o ombro de Boxley, num cumprimento deliberado — não queria que, passada uma hora, tivessem se unido contra ele e lhe tirassem o entusiasmo.

*

O dr. Baer o aguardava no escritório. Com ele, estava um rapaz de cor com um cardiógrafo portátil parecendo uma enorme mala. Stahr chamava aquilo de detector de mentiras. Tirou a camisa para que o exame semanal tivesse início.

“Como tem se sentido?”

“Ah... normal”, disse Stahr.

“Uns maus bocados? Tem conseguido dormir?”

“Não... umas cinco horas. Se vou cedo pra cama, simplesmente fico lá deitado.”

“Tome os comprimidos.”

“O amarelo me dá ressaca.”

“Tome dois dos vermelhos, então.”

“Esse negócio é um pesadelo.”

“Tome um de cada... o amarelo primeiro.”

“Certo, vou tentar. Como você tem passado?”

“Digamos que... eu me cuido, Stahr, me preservo.”

“Se cuida nada... passa a noite em claro, às vezes.”

“E então durmo o dia seguinte inteiro.”

Depois de dez minutos, Baer disse: “Parece que está tudo bem. A pressão sanguínea subiu cinco pontos.”

“Que bom”, falou Stahr. “Isso é bom, não é?”

“É bom, sim. Vou revelar os cardiogramas hoje à noite. Quando é que tiramos umas férias, você e eu?”

“Ah, uma hora dessas”, disse Stahr, descontraído. “Mais umas seis semanas e as coisas se acalmam.”

Baer olhou para ele com um afeto genuíno, que só fizera crescer naqueles últimos três anos.

“Você melhorou em 1933, quando deu uma descansada”, falou. “Mesmo tendo parado só por três semanas.”

“Vou fazer isso de novo.”

Não, não vai, pensou Baer. Com a ajuda de Minna, ele o havia obrigado a alguns curtos períodos de folga, anos antes, e ultimamente dava umas indiretas, tentando descobrir quem eram as pessoas que Stahr considerava seus amigos mais próximos. Quem seria capaz de tirá-lo da rotina e mantê-lo afastado? Algo que quase certamente seria inútil. A morte chegaria em breve para ele, agora. Em coisa de seis meses, podia-se prever, definitivamente. Qual seria o propósito de revelar os cardiogramas? Não dava para convencer um homem como Stahr a parar, deitar e ficar olhando o céu por seis meses. Ele preferiria morrer. Dizia outra coisa, mas, no fim, mantinha a clara urgência por uma total exaustão a que já se entregara antes. A fadiga era uma droga tanto quanto um veneno, e Stahr obtinha, aparentemente, certo prazer raro e quase físico de trabalhar zonzo de cansaço. Era uma perversão da força vital já conhecida do médico, mas que ele quase havia deixado de tentar controlar. Tinha curado um ou outro homem — vitórias inúteis, em que da matança sobravam os cartuchos.

“Mantenha a moderação”, disse Baer.

Trocaram um olhar. Será que Stahr sabia? Provavelmente. Mas não sabia quando — não sabia que seria tão breve.

“Se moderar, não posso pedir mais”, falou Stahr.

O rapaz de cor havia terminado de recolher a parafernália.

“Mesmo horário na semana que vem?”

“Ok, Bill”, disse Stahr. “Tchau.”

Quando a porta se fechou, Stahr ligou o ditafone. A voz da srta. Doolan soou imediatamente.

“O senhor conhece alguma Kathleen Moore?”

“Como assim?”, ele perguntou, surpreso.

“Tem uma srta. Kathleen Moore na linha. Diz que o senhor pediu a ela que ligasse.”

“Ora, meu Deus!”, ele exclamou. Foi tomado de um arrebatamento indignado. Tinham se passado cinco dias — aquilo não ia dar certo, não mesmo.

“Ela está aguardando?”

“Sim.”

“Bem, então pode passar a ligação.”

Um momento depois, ouviu a voz soar perto dele.

“Você se casou?”, quis saber, o tom baixo e enfadado.

“Não, ainda não.”

Seu rosto e sua forma estavam bloqueados na memória — ele ali, sentado, e ela parecia se inclinar por sobre a escrivaninha, encarando-o à altura dos olhos.

“O que você pretende?”, ele perguntou na mesma voz mal-humorada. Era difícil falar naquele tom.

“Você recebeu mesmo a carta?”, ela perguntou.

“Sim. Chegou naquela noite.”

“É sobre isso que quero falar com você.”

Enfim soube como agir — indignadamente.

“O que há pra conversar a respeito?”, inquiriu.

“Tentei te escrever outra carta, mas não consegui.”

“Isso eu também já sei.”

Houve uma pausa.

“Ah, anime-se!”, disse ela, surpreendentemente. “Esse não parece você. É Stahr mesmo quem está falando, não é? Aquele sr. Stahr tão afável?”

“Eu me sinto um pouco indignado”, ele disse, de forma quase pomposa. “Não vejo qual é o propósito disto. Pelo menos eu tinha guardado uma agradável lembrança sua.”

“Não acredito que seja você”, ela falou. “A próxima coisa que vai fazer é me desejar sorte.” De repente soltou uma risada: “Foi isso que você planejou dizer? Sei como é horrível quando a gente planeja dizer uma coisa...”

“Nunca esperei que você voltasse a me procurar”, disse ele, digno; mas não adiantou, ela deu outra risada — um riso de mulher que é como o de uma criança, uma só sílaba, um gritinho de deleite.

“Sabe como você faz com que eu me sinta?”, ela perguntou. “Como num dia em Londres, durante uma infestação de lagartas, em que uma coisa quente e peluda caiu na minha boca.”

“Sinto muito.”

“Ah, por favor, acorde”, ela implorou. “Quero te ver. Não dá pra explicar as coisas pelo telefone. Pra mim também não foi fácil, entenda.”

“Estou muito ocupado. Tem uma pré-estreia em Glendale hoje à noite.”

“Está me convidando?”

“George Boxley, o escritor inglês, também vai.” Ele surpreendeu a si mesmo. “Quer vir conosco?”

“Como poderíamos conversar?”

Ela ponderou. “Por que não me liga depois da sessão?”, sugeriu. “A gente poderia ir dar uma volta.”

A srta. Doolan tentava, no enorme ditafone, entrar na linha com um diretor que naquele momento estava em filmagem — a única interrupção permitida. Ele girou o botão e bradou um “espere” impaciente para a máquina.

“Lá pelas onze?”, prosseguiu Kathleen, em tom de segredo.

A ideia de “ir dar uma volta” parecia tão insensata que, se tivesse conseguido pensar nas palavras para declinar do convite, ele as teria dito, mas não queria ser uma lagarta. Súbito não restava nele nenhuma outra atitude além da sensação de que, ao menos, o dia estava completo. Tinha agora uma noite — um começo, um meio e um fim.

*

Ele bateu na porta de tela, ouviu-a gritar lá de dentro e ali ficou, esperando no último degrau antes da entrada. De um ponto mais abaixo, vinha o zunido de um cortador de grama — um homem aparava o gramado à meia-noite. A lua estava tão brilhante que, quando o rapaz parou para descansar, apoiando-se no cabo do aparelho antes de voltar a empurrá-lo, cruzando o jardim, Stahr pôde vê-lo claramente, uns trinta metros adiante e abaixo. Havia uma agitação de meio de verão lá fora — início de agosto, com seus amores imprudentes e crimes impulsivos. Uma vez que pouca coisa mais se podia esperar do verão, tentava-se ansiosamente viver no presente — ou, se não houvesse presente, inventar um.

Ela apareceu, enfim. Estava toda diferente e feliz. Vestia um conjunto cuja saia não parava de puxar para cima no caminho até o carro, com um jeito vistoso, alegre, estimulante e despreocupado de quem diz: “Aperte o cinto, baby. Vamos nessa”. Stahr tinha trazido sua limusine com chofer, e a intimidade do interior do carro, às sacudidelas em mais uma curva na escuridão, dissipou de vez qualquer estranheza. A seu modo, o pequeno trajeto que fizeram foi um dos melhores momentos de toda a sua vida. Certamente um momento em que, caso ele soubesse que estava para morrer, saberia que não era naquela noite.

Ela lhe contou sua história. Sentou-se ao lado dele tranquila e luminosa por um tempo, ganhando embalo, excitada, levando-o com ela a lugares distantes, conhecendo e encontrando as pessoas que já conhecia. A história era vaga de início. “Aquele Cara” era o que ela havia amado e com quem tinha vivido. “Esse Americano” era o que a havia resgatado quando afundava em areia movediça.

“Quem é ele, o Americano?”

Ah, nomes... de que importavam? Nenhum tão importante quanto Stahr, nem tão rico. Ele tinha morado em Londres e agora ambos morariam ali. Ela seria uma boa esposa, uma pessoa real. Ele estava se divorciando — não apenas por causa dela — e isso adiava um pouco as coisas.

“Mas e o primeiro cara?”, Stahr quis saber. “Como é que você se meteu nessa?”

Ah, no começo foi uma bênção. Dos dezesseis aos vinte e um anos, o problema havia sido comida. No dia em que a madrasta a apresentou ao Tribunal, as duas tiveram que comer com um xelim, o mínimo para não desmaiarem de fraqueza. Um pedaço a seis pence, mas a madrasta ficou observando enquanto ela comia. Morreu depois de alguns meses, e ela teria vendido o próprio corpo por aquele xelim, se não estivesse debilitada demais para ir para a rua. Londres pode ser hostil — ah, se pode.

Ela contava com alguém?

Havia os amigos, na Irlanda, que enviavam manteiga. Havia o sopão. Havia as visitas a um tio, que lhe dava uns adiantamentos quando ela estava de estômago cheio, e ela pedia mais e conseguia cinquenta libras para não contar à esposa dele.

“Não dava pra você trabalhar?”, perguntou Stahr.

“Eu trabalhava. Vendia carros. Vendi um, certa vez.”

“Mas não dava pra você ter um emprego normal?”

“É difícil... é diferente. Havia a sensação de que gente como eu tirava os empregos de outras pessoas. Uma mulher me agrediu quanto tentei conseguir uma vaga como arrumadeira num hotel.”

“Mas você tinha passado por um Tribunal?”

“Foi minha madrasta quem fez isso — uma tentativa desesperada. Eu não era ninguém. Meu pai foi abatido pelos Black-and-Tans em 1922. Escreveu um livro chamado Last Blessing. Você já leu?”

“Não leio.”

“Queria que você comprasse os direitos de adaptação. É um bom livrinho. Até hoje recebo os direitos — dez xelins por ano.”

Aí ela conheceu “O Cara”, e eles deram a volta ao mundo. Ela já estivera em todos os lugares sobre os quais Stahr tinha feito filmes, e vivera em cidades de cujo nome ele jamais ouvira falar. Então “O Cara” entrou em decadência, bebendo e dormindo com as empregadas, tentando empurrá-la para os amigos. Estes, todos, tentavam convencê-la a continuar com ele. Diziam que ela o salvara e agora precisava se manter firme por mais tempo, indefinidamente, até o fim. Era seu dever. Fizeram uma enorme pressão. Mas ela havia conhecido O Americano e, por fim, se mandou.

“Você devia ter dado o fora antes.”

“Bem, sabe, era difícil.” Ela hesitou, e acabou decidindo falar. “Sabe, eu estava fugindo de um rei.”

Os parâmetros morais dele, de certa forma, desabaram — ela conseguira sobrepujá-lo. Uma confusão de pensamentos atravessou-lhe a galope a cabeça — um deles, um vago e antigo credo de que toda realeza é doentia.

“Não era o rei da Inglaterra”, ela falou. “Meu rei estava desempregado, como ele mesmo costumava dizer. Tem um monte de reis em Londres.” Ela riu — depois acrescentou, quase desafiadora: “Ele era muito atraente, até começar a beber e aprontar todas”.

“E ele era rei do quê?”

Ela lhe disse — e Stahr visualizou o rosto num velho cinejornal.

“Era um homem muito culto”, ela falou. “Seria capaz de ensinar todo tipo de assunto. Mas não se parecia muito com um rei. Não como você parece. Nenhum deles parecia.”

Dessa vez foi Stahr que riu.

“Você sabe o que eu quero dizer. Todos eles se sentiam antiquados. A maioria tentava com grande esforço se manter atualizada. Um era sindicalista, por exemplo. E outro costumava carregar com ele umas matérias sobre quando fora semifinalista de um torneio de tênis. Vi aqueles recortes uma dúzia de vezes.”

Seguiram rodando, atravessaram Griffith Park e além, passando pela escuridão dos estúdios em Burbank, pelos aeroportos e, no caminho de Pasadena, pelos letreiros de neon dos cabarés à beira da estrada. Em sua cabeça, ele a queria, mas era tarde, e a viagem, por si só, um prazer irresistível. Deram-se as mãos e, a certa altura, ela se aproximou e, em seus braços, disse: “Ah, você é tão gentil. Gosto mesmo de estar com você”. Mas a mente dela estava dividida — aquela não era uma noite dele, como a tarde de domingo havia sido. Estava absorta em si mesma, inflamada de entusiasmo por contar-lhe suas aventuras; ele não pôde evitar de se perguntar se afinal ouviria a história que ela vinha adiando, sobre O Americano.

“Faz quanto tempo que você conhece O Americano?”, ele quis saber.

“Ah, já o conhecia fazia vários meses. A gente costumava se encontrar. A gente se entendia. Ele sempre dizia: ‘Parece que, de agora em diante, são favas contadas’.”

“Então por que você me ligou?”

Ela hesitou.

“Queria te ver mais uma vez. E também — era pra ele chegar hoje, mas ontem à noite veio um telegrama dizendo que demoraria mais uma semana. Queria conversar com um amigo — afinal, você é meu amigo.”

Ele a queria muito, mas uma parte de sua mente se mantinha fria e seguia dizendo: ela quer conferir se estou apaixonado, se quero me casar com ela. Só aí é que vai pensar se despacha ou não esse cara. Não vai considerar a hipótese até que eu tenha me comprometido.

“Você está apaixonada pelo Americano?”, perguntou.

“Ah, estou. Está tudo acertado. Ele salvou minha vida e minha razão. Está percorrendo meio mundo por mim. Por insistência minha.”

“Mas você está apaixonada por ele?”

“Ah, sim. Estou apaixonada.”

Aquele “ah, sim” lhe dizia que ela não estava — lhe dizia para falar sobre seus próprios sentimentos que ela então veria. Tomou-a nos braços e a beijou deliberadamente na boca e a reteve por um bom tempo. Era tão cálido.

“Hoje não”, ela sussurrou.

“Tudo bem.”

Passaram pela ponte dos suicídios, com seu novo e mais elevado alambrado.

“Sei o que é aquilo ali”, ela disse, “mas que idiotice. Os ingleses não se matam quando não conseguem o que querem.”

Fizeram o retorno na entrada de um hotel e iniciaram o caminho de volta. A noite estava escura, sem lua. A onda de desejo tinha passado e nenhum dos dois falou por um tempo. O papo dela sobre reis o havia transportado, estranhamente e em flashes, a um edulcorado White Way, na Main Street de Erie, Pensilvânia, quando era um menino de quinze anos. Havia um restaurante com lagostas na vitrine, e matinhos verdes e luzes brilhantes numa caverna de conchas, e além, atrás de uma cortina vermelha, o terrivelmente excêntrico e inquietante mistério de pessoas e música de violino. Isso foi logo antes de partir para Nova York. Aquela garota lhe trazia à lembrança peixes frescos no gelo e lagostas na vitrine. Ela era do tipo bonequinha. Minna nunca fora do tipo bonequinha.

Olharam um para o outro, e os olhos dela perguntavam: “Caso com O Americano?”. Stahr não respondeu. Passado um momento, falou: “Vamos a algum lugar no fim de semana.”

Ela ponderou.

“Amanhã, você quer dizer?”

“Amanhã mesmo.”

“Bem, amanhã te respondo”, disse ela.

“Responda hoje à noite. Senão vou ficar preocupado que...”

“Apareça um bilhete no seu carro?”, ela riu. “Não, não vai haver bilhetes no carro. Você já sabe de quase tudo agora.”

“Quase tudo.”

“É... quase. Umas poucas coisinhas.”

Ele precisaria saber que coisinhas eram essas. Ela contaria no dia seguinte. Ele duvidava — queria duvidar — que tivesse havido um emaranhado de relações frívolas: uma fixação a mantivera presa ao Cara, ao rei, obstinadamente e por longo tempo. Três anos de uma posição altamente anômala — um pé no palácio, outro nos bastidores. “Só rindo muito”, ela disse. “Aprendi a rir demais.”

“Ele podia ter casado com você — como aconteceu com a sra. Simpson”, protestou Stahr.

“Ah, ele era casado. E não era um romântico.”

Ela se interrompeu.

“E eu, sou?”

“É”, disse ela, contrariada, como se estivesse descartando um trunfo. “Uma parte sua é. Você é três ou quatro homens diferentes ao mesmo tempo, mas cada um deles um livro aberto. Como todos os americanos.”

“Não comece a confiar nos americanos tão implicitamente”, respondeu ele, sorridente. “Eles podem ser muito transparentes, mas mudam rapidinho.”

Ela pareceu preocupada.

“Mudam, é?”

“Muito rápido, e de maneira radical”, ele disse, “e não há o que os faça voltar ao que eram.”

“Você me assusta. Sempre tive uma grande sensação de segurança com os americanos.”

Ela pareceu tão sozinha que ele pegou sua mão.

“Aonde vamos amanhã?”, falou Stahr. “Que tal irmos às montanhas? Tenho uma pilhas de coisas a fazer amanhã, mas não vou fazer nada. Podemos começar a escalar às quatro da manhã que à tarde chegamos lá.”

“Não tenho muita certeza. Parece que estou um pouquinho confusa. Não me sinto muito mais aquela garota que veio pra Califórnia em busca de uma vida nova.”

Ele poderia ter dito: “Mas isto aqui é uma vida nova”, porque ele sabia que era, sabia que não podia deixá-la ir agora; mas alguma outra coisa pedia que ponderasse um pouco mais como adulto, sem romantismo. E que não dissesse nada a ela até o dia seguinte. Ela, no entanto, continuava a mirá-lo, o olhar passeando da testa ao queixo e então uma vez mais, de cima a baixo, com aquele estranho movimento ondulante e lento da cabeça.

... É sua chance, Stahr. Melhor aproveitar. Ela é sua garota. É ela quem pode salvá-lo, trazê-lo de volta à vida. Vai te colocar sob os cuidados dela e você vai se fortalecer pra poder voltar. Mas pegue-a agora — declare-se e leve-a com você. Nenhum de vocês sabe, mas longe daí, nessa mesma noite, O Americano mudou de planos. Nesse momento mesmo o trem em que viaja atravessa Albuquerque a toda a velocidade; cumpre com precisão o itinerário. O maquinista está no horário. Pela manhã estará aqui.

... O chofer virou morro acima na direção da casa de Kathleen. Parecia fazer calor mesmo na escuridão — qualquer lugar ali perto pelo qual tivesse passado era, para Stahr, uma espécie de lugar encantado: aquela limusine, a casa sendo erguida na praia, as próprias distâncias que os dois haviam percorrido na extensão da cidade. O morro que subiam agora emitia certo brilho, um som contínuo que lhe despertava na alma um estado de prontidão e deleite.

Ao se despedir, ele sentiu novamente que era impossível deixá-la, ainda que por algumas horas. Eram apenas dez anos de diferença entre os dois, mas a loucura que o tomava era a do amor que sente um velho por uma menina. Uma profunda e desesperada urgência de tempo, um relógio no compasso do coração, o que o instou a, contra toda a lógica de sua vida, passando por ela e entrando na casa, dizer: “Isto é pra sempre”.

Kathleen aguardava, ela própria indecisa — uma geada rosada e prateada à espera de derreter com a primavera. Era uma europeia, reverente diante do poder, mas havia nela um poderoso autorrespeito que a impedia de ceder mais do que isso. Não se iludia quanto às considerações que moviam príncipes.

“Vamos às montanhas amanhã”, falou Stahr. Milhares de pessoas dependiam de suas decisões equilibradas — pode acontecer que, de repente, perca força uma característica que por vinte anos definiu alguém.

Na manhã seguinte, um sábado, ele esteve muito ocupado. Às duas, quando voltou do almoço, havia uma pilha de telegramas à espera — um navio da companhia se perdera no Ártico; uma das estrelas do estúdio caíra em desgraça; um roteirista movia um processo de um milhão de dólares. Judeus morriam miseravelmente além-mar. O último telegrama o confrontou: Casei hoje ao meio-dia. Adeus; e, num adendo colado numa etiqueta: Envie sua resposta pela Western Union Telegram.


6

Eu não sabia de nada disso. Fui para Lake Louise e, quando retornei, nem passei perto do estúdio. Acho que teria tomado o rumo da Costa Leste em meados de agosto — não fosse Stahr me ligar em casa, certo dia.

“Quero que você me ajude com uma coisa, Celia... quero conhecer alguém do Partido Comunista.”

“Quem?”, eu quis saber, um pouco surpresa.

“Qualquer membro do partido.”

“E você não tem um monte deles aí?”

“Quero dizer um dos líderes — de Nova York.”

O verão anterior, para mim, havia sido só política — eu teria conseguido até um encontro com Harry Bridges naquela época. Mas então meu namorado morreu num acidente de carro depois que voltei para a faculdade, e agora estava afastada dessas coisas. Tinha ouvido falar que um cara da The New Masses andava no pedaço, em algum lugar.

“Você garante imunidade?”, perguntei, brincando.

“Ah, sim”, respondeu Stahr, sério, “não vou prejudicá-lo. Arranje um que fale bem — diga pra trazer com ele um de seus livros.”

Falava como se pretendesse se encontrar com algum membro de seita oculta.

“Você quer loira ou morena?”

“Ah, arranje um cara”, falou ele, mais do que depressa.

Ouvir a voz de Stahr me animou — desde que flagrara o papai, as coisas todas pareciam patinar um pouco. Com Stahr, mudava tudo — mudava o jeito de ver, mudava o próprio ar.

“Não acho que seu pai precise ficar sabendo”, ele disse. “Podemos fingir que o cara é um músico búlgaro ou algo assim?”

“Ah, esse pessoal não anda mais disfarçado.”

Foi mais difícil de arranjar do que eu pensava — as negociações de Stahr com o Sindicato dos Roteiristas, que já duravam mais de um ano, caminhavam para um impasse. Talvez eles temessem ser corrompidos, e me perguntaram qual era a “proposta” de Stahr. Mais tarde, Stahr me contou que havia se preparado para a reunião vendo os filmes da Rússia revolucionária que tinha na filmoteca de casa. Também mandou projetar O gabinete do doutor Caligari e O cão andaluz, de Salvador Dalí, possivelmente porque suspeitava que tivessem alguma coisa a ver com a questão. Os filmes russos o haviam surpreendido ainda nos anos 1920 e, por sugestão de Wylie White, chegara a pedir ao departamento de roteiros que lhe preparasse um “tratamento” de duas páginas baseado no Manifesto comunista.

Mas já não pensava nessa questão. Ele era um racionalista com ideias próprias e independentes do que diziam os livros — e acabara de conseguir superar uns mil anos de domínio judaico até fins do século xviii. Não suportava ver desmoronar tudo isso — prezava a apaixonada lealdade do parvenu a um passado imaginário.

A reunião aconteceu naquela que chamo de “sala do couro processado” — uma de um total de seis montadas para nós, anos atrás, por um decorador da Sloane, e então a expressão ficou na minha cabeça. Aquela era a sala típica de decorador: carpete de pele de angorá da cor do alvorecer, do mais delicado cinza que se possa imaginar — mal se ousava pisar nele; e os lambris prateados e as mesas revestidas de couro e os quadros em tons pastel e as frágeis silhuetas, tudo parecia tão facilmente sujeito a dano que a gente não podia respirar muito alto ali dentro, embora fosse maravilhoso olhar da porta quando, com as janelas abertas, as cortinas silvavam dolentes à brisa. O cômodo era descendente direto da velha sala de visitas americana, somente usada aos domingos. Mas mostrou-se a escolha perfeita, e eu esperava que, acontecesse o que acontecesse, a ocasião lhe daria o caráter próprio a torná-la, dali em diante, parte de nossa casa.

Stahr foi o primeiro a chegar. Estava pálido, nervoso e perturbado — exceto pela voz, que era sempre baixa e respeitosa. Havia um traço pessoal de bravura na maneira como recebia alguém — dirigia-se diretamente à pessoa, removendo qualquer coisa que estivesse no caminho, e a examinava inteira, como se não pudesse se conter. Dei-lhe um beijo, por alguma razão, e o conduzi à sala do couro processado.

“Quando você volta pra faculdade?”, ele quis saber.

Não era a primeira vez que pisávamos nesse terreno fascinante.

“Você gostaria de mim se eu fosse mais baixa?”, perguntei. “Eu podia usar salto baixo e o cabelo lambido.”

“Vamos jantar juntos hoje à noite”, ele sugeriu. “As pessoas vão achar que sou seu pai, mas não ligo.”

“Amo homens mais velhos”, assegurei-lhe. “Se o cara não andar de muletas, pra mim é como qualquer outro namorico.”

“E você já teve muitos assim?”

“O suficiente.”

“As pessoas se apaixonam e desapaixonam o tempo todo, não é mesmo?”

“A cada três anos, mais ou menos, segundo Fanny Brice. Acabei de ler no jornal.”

“Eu me pergunto como conseguem”, falou Stahr. “Sei que é verdade porque vejo. Mas parecem tão seguras todas as vezes. E, então, de repente, não parecem mais tão convencidas. Mas se deixam convencer outra vez.”

“Você anda fazendo filmes demais.”

“Fico imaginando se elas se sentem tão seguras na segunda vez, ou na terceira, ou na quarta”, ele insistiu.

“Mais e mais a cada vez”, respondi. “Mais do que nunca na mais recente.”

Ele ponderou a respeito e pareceu concordar.

“Acho que sim. Mais do que nunca na mais recente.”

Não gostei do jeito como disse aquilo, e súbito vi que, sob a superfície, ele se sentia muito infeliz.

“Foi uma grande chateação”, ele disse. “Vai melhorar quando tiver terminado.”

“Espera aí um minuto! Talvez a indústria do cinema esteja nas mãos erradas.”

Brimmer, o membro do Partido Comunista, foi anunciado, e ao me dirigir a ele escorreguei num daqueles capachos de fios trançados e praticamente fui parar em seus braços.

Era um sujeito bem-apanhado, esse Brimmer — um pouco na linha de Spencer Tracy, mas com um rosto mais marcante, expressando um espectro mais amplo de reações. Não pude evitar de pensar, vendo ele e Stahr sorrirem, apertarem as mãos e se estudarem, que aqueles eram dois dos homens mais ágeis que eu já vira. De imediato se mostraram muito cautelosos da presença um do outro — tão corteses para comigo quanto se poderia desejar, mas suavizando o final das frases quando se voltavam na minha direção.

“O que vocês estão tentando fazer?”, inquiriu Stahr. “Meu pessoal mais jovem está todo contrariado.”

“Isso os mantém alertas, não é?”, disse Brimmer.

“Primeiro deixamos que uns russos inspecionassem nossas instalações”, falou Stahr. “Que as estudassem como modelo, você entendeu. E aí vocês tentam quebrar a unidade que faz com que sejamos esse modelo.”

“Unidade?”, repetiu Brimmer. “O senhor se refere ao que se conhece por Espírito da Companhia?”

“Ah, não, não falo disso”, atalhou Stahr, impaciente. “Parece que o alvo de vocês sou eu. Na semana passada, veio ao meu escritório um roteirista — um bêbado — um sujeito que circula por aí há anos à beira de ser internado — e começou a querer me dizer o que fazer.”

Brimmer sorriu.

“O senhor não me parece alguém a quem se poderia dizer o que fazer, sr. Stahr.”

Ambos gostariam de um chá. Quando voltei à sala, Stahr contava uma história sobre os irmãos Warner e Brimmer ria com ele.

“Vou te contar outra”, disse Stahr. “Balanchine, o bailarino russo, os confundia com os irmãos Ritz. Não sabia diferenciar entre os irmãos que estava treinando e os que pagavam seu salário. Costumava andar por aí comentando: ‘Não consigo fazer esses irmãos Warner acertarem a coreografia’.”

Parecia uma tarde tranquila. Brimmer perguntou a ele por que os produtores não haviam apoiado a liga antinazista.

“Por causa de vocês”, respondeu Stahr. “É a maneira como influenciam os roteiristas. A longo prazo estão perdendo tempo. Roteiristas são como crianças — mesmo em tempos normais, não conseguem se concentrar no trabalho.”

“Eles são como agricultores nessa indústria”, falou Brimmer, simpático. “Plantam a comida, mas não são convidados para o banquete. Têm por vocês, os produtores, o mesmo ressentimento do agricultor pelo sujeito da cidade.”

Eu me perguntava sobre a garota de Stahr — se estaria tudo acabado entre eles. Mais tarde, quando escutei de Kathleen a história toda, as duas paradas debaixo de chuva numa rua deplorável chamada Goldwyn Avenue, deduzi que aquele encontro devia ter ocorrido uma semana depois de ela ter enviado o telegrama. Não teve alternativa a não ser mandá-lo. O homem desembarcou do trem inesperadamente e a levou ao cartório sem a menor sombra de dúvida de que era isso o que ela queria. Eram oito da manhã, e Kathleen ficou tão confusa que sua principal preocupação foi descobrir como fazer chegar um telegrama a Stahr. Em tese, poderia ter parado e dito: “Escute, esqueci de te contar, mas é que conheci um cara”. Mas aquele caminho lhe fora apontado com tal precisão, tal confiança, tal esforço, tal alívio, que, ao delinear-se à sua frente, cortando de forma súbita a outra trajetória possível, ela se viu como num carro trafegando em circuito fechado. Ele a observou enquanto redigia o telegrama, olhando diretamente da posição onde estava, do outro lado da mesa, e ela só pôde esperar que não conseguisse ler de cabeça para baixo...

Quando minha mente voltou à sala, os dois acabavam de destruir os pobres roteiristas — Brimmer tinha chegado ao ponto de admitir que eles eram “instáveis”.

“Não são equipados pra lidar com a autoridade”, disse Stahr. “Não há o que substitua a capacidade de decisão. Às vezes é preciso fingir que se tem, mesmo quando não se tem nenhuma.”

“Já tive essa experiência.”

“É preciso dizer: ‘Tem de ser desse jeito — e de nenhum outro’ — ainda que não se tenha certeza. Isso me acontece uma dúzia de vezes por semana. Situações em que não existem, de fato, razões para o que quer que seja. A gente finge que existem.”

“Todos os líderes já passaram por isso”, falou Brimmer. “Líderes trabalhistas, e líderes militares, certamente.”

“Então precisei tomar uma atitude nessa história do Sindicato. Parece, pra mim, que se trata de uma disputa de poder, e tudo que estou disposto a ceder aos roteiristas é dinheiro.”

“O senhor paga muito pouco a alguns deles. Trinta dólares por semana.”

“Quem é que ganha isso?”, quis saber Stahr, surpreso.

“Os que são commodities, fáceis de repor.”

“Não os meus”, retrucou Stahr.

“Ah, sim”, falou Brimmer. “Dois sujeitos do seu departamento de curtas ganham isso, trinta dólares por semana.”

“Quem?”

“Um se chama Ransome, e o outro, O’Brien.”

Stahr e eu sorrimos ao mesmo tempo.

“Esses não são roteiristas”, disse Stahr. “São primos do pai da Cecilia.”

“Tem outros, em outros estúdios”, falou Brimmer.

Stahr apanhou sua colher de chá e se serviu de um pouco de remédio de um frasco.

“O que é um pelego?”, perguntou de repente.

“Um pelego? É um fura-greve ou um infiltrado.”

“Foi o que pensei”, disse Stahr. “Tenho um roteirista de mil e quinhentos por semana que, a cada vez que entra no refeitório, para atrás da cadeira de um e outro de seus colegas e diz: ‘Pelego!’. Seria engraçado, não fosse o baita susto dos caras.”

Brimmer soltou uma risada.

“Queria ver isso”, falou.

“Você não gostaria de passar um dia comigo lá?”, sugeriu Stahr.

Brimmer riu, realmente achando graça.

“Não, sr. Stahr. Mas não duvido que ficaria impressionado. Ouvi dizer que o senhor é um dos homens que mais trabalham duro, e com maior eficiência, de todo o mundo ocidental. Seria um privilégio observá-lo, mas acho que terei de declinar do convite.”

Stahr olhou para mim.

“Gosto do seu amigo”, disse. “É maluco, mas gosto dele.” Encarou Brimmer de perto: “Nascido do lado de cá?”.

“Ah, sim. Há várias gerações.”

“Muitos deles como você?”

“Meu pai era pastor batista.”

“Quero saber se muitos deles são comunistas. Gostaria de conhecer esse judeuzão que tentou explodir a fábrica da Ford. Como é o nome...”

“Frankensteen?”

“Ele mesmo. Imagino que alguns de vocês acreditam nisso.”

“Vários”, falou Brimmer, seco.

“Você não”, disse Stahr.

Uma sombra de irritação cruzou o rosto de Brimmer.

“Ah, sim”, falou ele.

“Ah, não”, disse Stahr. “Talvez tenha acreditado um dia.”

Brimmer deu de ombros.

“Quem sabe o equilíbrio de forças não esteja mudando?”, falou. “No fundo do seu coração, sr. Stahr, o senhor sabe que estou certo.”

“Não”, respondeu Stahr. “Acho que isso tudo é papo furado.”

“... o senhor pensa consigo mesmo: ‘Ele tem razão’, mas acha que o sistema terá uma sobrevida além da sua.”

“Você não acha, realmente, que vai derrubar o governo.”

“Não, sr. Stahr. Mas achamos que talvez o senhor, sim.”

Estavam se provocando — aquelas cutucadinhas que os homens se dão às vezes. As mulheres também fazem isso; mas elas encampam a batalha, sem perdão. Não é agradável ver homens fazê-lo, porém, pois nunca se sabe o que vem em seguida. Certamente aquilo não melhorava, para mim, as associações tonais da sala, e, saindo por uma das portas altas, conduzi os dois até nosso jardim californiano em tons de amarelo e dourado.

Era pleno verão, mas a água fresca dos aspersores resfolegantes conferia um brilho primaveril ao gramado. Pude perceber que Brimmer admirava aquilo como quem suspira com o olhar — um jeito que esse pessoal tem. Ele se agigantara ali fora — era alguns centímetros mais alto do que eu pensara, os ombros largos. Me lembrava um pouco o Super-Homem, quando tirava os óculos. Para mim, ele era tão atraente quanto homens que na verdade não dão bola para mulheres podem ser. Jogamos uma rodada de pingue-pongue, todos contra todos, e ele tinha habilidade com a raquete. Escutei quando papai entrou em casa cantando aquela porcaria de “Little Girl, You’ve Had a Busy Day”, para em seguida se interromper, como se tivesse se lembrado de que não estávamos mais nos falando. Eram seis e meia — meu carro estava parado na entrada, e sugeri que fôssemos jantar no Trocadero.

Brimmer tinha aquela expressão do padre O’Ney quando, em Nova York, certa vez, dispensou a batina para ir comigo e com papai a um balé russo. Não tinha exatamente de estar ali. Quando Bernie, o fotógrafo, que andava à espreita de algum bom flagrante, veio até nossa mesa, pareceu sentir-se encurralado — Stahr fez Bernie sair dali, e eu gostaria de ter tirado aquela foto.

Então, para meu espanto, Stahr tomou três coquetéis, um depois do outro.

“Agora vejo que você teve uma decepção amorosa”, falei.

“O que te faz pensar isso, Cecilia?”

“Os coquetéis.”

“Ah, eu nunca bebo, Cecilia. Me dá indigestão — nunca fui muito resistente.”

Contei: “... dois... três”.

“Nem percebi. Não consegui sentir o gosto. Achei que alguma coisa não estava certa.”

Uma expressão tola e vidrada passou por seus olhos — então se foi.

“Este é meu primeiro drinque na semana”, comentou Brimmer. “Bebi tudo a que tinha direito na Marinha.”

A mesma expressão voltou aos olhos de Stahr — piscou para mim e, enfatuado, disse: “Esse agitador filho da puta esteve na Marinha.”

Brimmer não soube muito bem como reagir àquilo. Ficou evidente que decidira botar na conta do que estava sendo aquela noite, pois sorriu debilmente, e vi que Stahr sorria também. Eu me senti aliviada ao perceber que estávamos no terreno seguro da grande tradição americana e tentei assumir o rumo da conversa, mas Stahr logo pareceu retomar a forma.

“Tipicamente, minha experiência é a seguinte”, disse, muito sucinta e claramente, dirigindo-se a Brimmer. “O melhor diretor de Hollywood — um cara em cujo trabalho jamais me meto — tem essa mania de sempre dar um jeito de colocar um efeminado em todos os seus filmes, ou algo do tipo. Um negócio ofensivo qualquer. É alguma coisa arraigada no cara, que não consigo mudar. E toda vez a Legião da Decência vem pra cima, e é preciso sacrificar algum filme honesto.”

“Típica encrenca organizacional”, concordou Brimmer.

“Típica”, falou Stahr. “É uma batalha sem fim. E agora esse diretor vem me dizer que tudo bem, porque ele está com o Sindicato dos Diretores e não posso ser um opressor dos pobres. É assim que vocês me criam mais problemas.”

“Isso está um pouco distante da gente”, disse Brimmer com um sorriso. “Não acho que tenhamos muita entrada com os diretores.”

“Os diretores costumavam ser meus chapas”, falou Stahr, orgulhoso.

Era como Eduardo vii se gabando por ter se cercado da nata da sociedade europeia.

“Mas alguns deles nunca me perdoaram”, ele continuou, “por ter trazido diretores de teatro quando começamos com filmes falados. Ficaram escaldados e tiveram de reaprender o ofício, mas nunca me perdoaram, na verdade. Naquela época incorporamos uma porção de novos roteiristas, que achei que eram ótimos sujeitos até todos virarem comunistas.”

Gary Cooper entrou no restaurante e se sentou a um canto com um bando de rapazes, os quais respiravam ao ritmo dele, e davam a impressão de que dependiam dele para viver, e de que por nada sairiam de perto dele. Uma mulher cruzou o salão, e por acaso era Carole Lombard — gostei de ver que Brimmer estava ao menos podendo encher os olhos.

Stahr pediu um uísque com soda, e mais outro, quase imediatamente em seguida. Não comeu nada além de algumas colheradas de sopa e falou todas aquelas coisas horríveis sobre todo mundo ser preguiçoso e tal, e que nada daquilo importava para ele, que tinha montes de dinheiro — era o tipo de conversa que se ouvia sempre que papai e os amigos dele se reuniam. Acho que Stahr se deu conta de que era bem feio ficar falando daquele jeito fora das dependências da companhia — talvez pela primeira vez estivesse ouvindo como soava. Seja como for, calou a boca e tomou uma xícara de café preto. Eu o amava, e o que dissera não havia mudado tal fato, mas odiei que Brimmer levasse dele essa impressão. Queria que visse Stahr como uma espécie de virtuose da tecnologia, e o que Stahr estava fazendo ali era bancar o gestor perverso, de tal modo que classificaria sua própria atuação como lixo, se a assistisse projetada numa tela.

“Sou um produtor”, disse, como que mudando sua atitude anterior. “Gosto de roteiristas — acho que os entendo. Não quero mandar embora ninguém que esteja fazendo seu trabalho.”

“Tampouco queremos que o senhor faça isso”, falou Brimmer, simpático. “Gostaríamos de tê-lo na conta de alguém sempre preocupado.”

Stahr assentiu, de cara fechada.

“Queria só ver você numa sala cheia de colegas meus. Todos eles têm uma dúzia de motivos para querer que o Fitts ponha vocês pra correr da cidade.”

“Agradecemos sua proteção”, disse Brimmer, com certa ironia. “Para ser franco, achamos o senhor um pouco difícil, sr. Stahr — precisamente por ser um patrão paternalista com tamanha influência.”

Stahr parecia um tanto distraído.

“Nunca me considerei”, falou, “mais inteligente que um roteirista. Mas sempre achei que a inteligência deles pertence a mim, porque sabia como usá-los. Como os romanos — ouvi dizer que nunca inventavam nada, mas sabiam usar as coisas. Entende? Não digo que seja o certo. Mas é assim que sempre senti, desde menino.”

Aquilo interessou Brimmer — era a primeira coisa por que se interessava em uma hora.

“O senhor se conhece muito bem, sr. Stahr”, disse.

Acho que queria dar o fora. Estava curioso para ver que tipo de homem era Stahr, e agora pensava que já sabia. Ainda na esperança de que as coisas seriam diferentes, apelei impensadamente que nos acompanhasse no carro até em casa, mas, quando Stahr parou num bar para mais uma bebida, soube que tinha cometido um erro.

Era uma noite suave, inofensiva, imóvel, tomada por carros de fim de semana. A mão de Stahr repousava no encosto do banco, tocando meu cabelo. Súbito desejei que a cena se passasse dez anos antes — quando eu tinha nove anos. Brimmer teria uns dezoito, um estudante batalhando para se formar numa faculdade do Meio-Oeste, e Stahr, uns vinte e cinco, cheio de confiança, exultante, tendo recentemente herdado o mundo inteiro. Teríamos ambos admirado Stahr nessa condição, sem dúvida. E ali estávamos num conflito adulto, para o qual não havia solução pacífica, e mais complicado agora, pela exaustão e pela bebida.

Embicamos na entrada de casa e na direção do jardim, mais uma vez.

“Preciso ir agora”, disse Brimmer. “Tenho de encontrar um pessoal.”

“Não, fique”, falou Stahr. “Não cheguei a dizer o que queria. Vamos jogar pingue-pongue e tomar mais um drinque, e aí dizemos umas verdades um pro outro.”

Brimmer hesitou. Stahr acendeu o holofote e apanhou sua raquete, enquanto eu entrava em casa para pegar uísque — não ousaria desobedecer a ele.

Quando voltei, não estavam jogando, mas Stahr sacava uma caixa inteira de bolinhas novas para Brimmer, que as desviava de lado. Parou quando cheguei, tomando da garrafa e se retirando para uma cadeira justo à sombra do holofote, dali passando a presidir em obscura e perigosa majestade. Estava pálido — de tal modo transparente que quase dava para ver o álcool se misturar com o veneno da exaustão.

“Hora de relaxar num sábado à noite”, falou.

“Você não está relaxando”, eu disse.

Travava uma batalha perdida contra um instinto que tendia à esquizofrenia.

“Vou derrubar o Brimmer”, anunciou, depois de um momento. “Vou cuidar desse negócio pessoalmente.”

“Não pode pagar alguém pra isso?”, perguntou Brimmer.

Fiz sinal para que ficasse quieto.

“Eu mesmo faço meu trabalho sujo”, falou Stahr. “Vou acabar com você e te colocar pra correr.”

Levantou e deu um passo à frente, no que o envolvi com meus braços, agarrando-o.

“Por favor, pare com isso!”, falei. “Ah, você está se comportando tão mal.”

“Esse sujeito está te influenciando”, ele disse, sombrio. “E todos os jovens. Você não sabe o que está fazendo.”

“Por favor, vá embora”, eu disse a Brimmer.

O terno de Stahr era feito de um tecido escorregadio e, de repente, ele me escapou e avançou na direção do outro. Brimmer recuou para trás da mesa. Tinha uma estranha expressão no rosto, e mais tarde pensei que era como se dissesse: “Então é isso? Essa pessoa frágil, meio doente, é quem controla o negócio todo”.

Stahr se aproximou ainda mais, as mãos tomando posição, no alto. Me pareceu que Brimmer o manteve afastado com seu braço esquerdo, por um minuto, depois disso desviei o rosto — não aguentava assistir àquilo.

Quando voltei a olhar, Stahr estava fora do campo de visão, abaixo do nível da mesa, e Brimmer o observava.

“Por favor, vá embora”, falei para Brimmer.

“Está bem.” Ele continuou parado, olhando para Stahr no chão, enquanto eu contornava a mesa. “Sempre quis acertar a dezena de milhar, mas não sabia que seria assim.”

Stahr jazia imóvel.

“Por favor, vá”, falei.

“Desculpe. Posso ajudar a...”

“Não. Vá, por favor. Eu entendo.”

Brimmer olhou de novo, um pouco admirado das profundezas a que se entregara Stahr em seu repouso, algo que ele havia provocado numa fração de segundo. Então se afastou apressadamente pelo gramado, e me ajoelhei junto a Stahr, sacudindo-o. Passado um momento, com uma formidável convulsão, ele acordou e levantou de um salto.

“Cadê ele?”, gritou.

“Quem?”, perguntei, inocentemente.

“Aquele Americano. Por que diabos você tinha de casar com ele, sua tola imbecil?”

“Monroe — ele já foi embora. E não me casei com ninguém.”

Fiz com que se sentasse numa cadeira.

“Já foi faz quase meia hora”, menti.

As bolinhas de pingue-pongue se espalhavam em torno, na grama, feito uma constelação de estrelas. Liguei um dos aspersores e voltei com um lenço úmido, mas não havia sinal de pancada no rosto de Stahr — devia ter sido atingido na lateral da cabeça. Ele se dirigiu para trás de algumas árvores a fim de vomitar, e o ouvi chutando um punhado de terra para cobrir a sujeira. Depois disso, pareceu ficar bem, mas se recusava a entrar em casa até que eu lhe arrumasse algo para bochechar, então apanhei a garrafa de uísque, levei para dentro e trouxe de volta outra, com água para bochecho. Sua famigerada tentativa de bebedeira estava acabada. Já havia saído com calouros de faculdade, mas aquilo, pela total inépcia e falta de espírito boêmio, sem dúvida era digno de um troféu. Tudo de ruim lhe acontecera, mas ficou nisso.

*

Entramos em casa; o cozinheiro disse que papai, o sr. Marcus e Fleischaker estavam na varanda, então ficamos na “sala do couro processado”. Ambos tentamos sentar aqui e ali, mas parecíamos escorregar dos assentos, de modo que, por fim, me acomodei num tapete felpudo e Stahr, num apoiador de pés ao meu lado.

“Acertei ele?”, Stahr quis saber.

“Ah, sim”, falei. “Em cheio.”

“Não acredito.” Passado um minuto, acrescentou: “Não queria machucá-lo. Só queria dar uma carreira. Acho que ele se assustou e me acertou”.

Se era essa sua interpretação para o que ocorrera, por mim tudo bem.

“Está com raiva dele?”

“Ah, não”, ele disse. “Eu estava bêbado.” Olhou em volta. “Nunca estive aqui antes — quem montou esta sala... alguém do estúdio?”

“Bem, tenho de dar o fora daqui”, falou, daquele seu jeito de sempre, ameno. “Você não está a fim de ir ao rancho de Doug Fairbanks e passar a noite lá?”, perguntou. “Sei que ele adoraria te receber.”

Foi assim que começaram as duas semanas em que ele e eu circulamos juntos. Depois da primeira, Louella já estava anunciando que tínhamos nos casado.

 

                                                                  F. Scott Fitzgerald

 

 

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