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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO OLIMPIANO / Rick Riordan
O ÚLTIMO OLIMPIANO / Rick Riordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Embarco em um cruzeiro explosivo
O fim do mundo começou quando um pégaso pousou no capô de meu carro.
Até então, minha tarde estava ótima. Tecnicamente, eu não devia estar dirigindo, pois ainda faltava uma semana para completar dezesseis anos, mas minha mãe e meu padrasto, Paul, levaram a mim e a minha amiga Rachel para um trecho de estrada em uma praia particular em South Shore, e Paul nos emprestou seu Prius para uma voltinha.
Ora, eu sei que você está pensando: Puxa, isso é uma grande irresponsabilidade dele, blá-blá-blá, mas Paul me conhece muito bem. Ele já me vira fatiar demônios e saltar de janelas de escolas em chamas, então provavelmente concluiu que guiar um carro algumas centenas de metros não era exatamente a coisa mais perigosa que eu já havia feito.
Seja como for, Rachel e eu estávamos sozinhos no carro. Era um dia quente de agosto. O cabelo vermelho de Rachel estava preso em um rabo de cavalo e ela usava uma blusa branca sobre o maiô. Eu nunca a tinha visto com outra roupa que não camisetas velhas e jeans rabiscados, ela estava bonita como um milhão de dracmas de ouro.
— Ah, pare ali! — ela me disse.
Estacionamos num recuo que dava para o Atlântico. O mar é sempre um de meus locais favoritos, e naquele dia estava especialmente bonito — de um verde resplandecente, e liso como vidro, como se meu pai o estivesse mantendo tranquilo só para nós dois.
Meu pai, por falar nisso, é Poseidon. Ele pode fazer esse tipo de coisa.
— E então? — Rachel sorria para mim. — Sobre aquele convite.
— Ah... certo. — Tentei parecer animado.
Bem, ela me convidara para passar três dias na casa de praia de sua família na ilha de St. Thomas. Eu não recebia muitos convites assim. A ideia de férias bacanas para minha família era um fim de semana em um chalé velho em Long Island, com alguns filmes alugados e pizzas congeladas, e a família de Rachel estava me chamando para ir com eles para o Caribe.
Além disso, eu precisava mesmo de férias. O último verão fora o mais árduo de minha vida. A possibilidade de descansar por alguns dias era realmente tentadora.
Ainda assim, a expectativa era que algo importante acontecesse a qualquer dia. Eu estava “à espera” de uma missão. Ainda pior, meu aniversário seria na semana seguinte, e havia aquela profecia que dizia que quando eu completasse dezesseis anos coisas ruins aconteceriam.
— Percy — ela disse —, sei que a hora é ruim. Mas é sempre ruim para você, não é?
O argumento dela era bom.
— Eu quero ir, de verdade — garanti. — É só...
— A guerra.

 


 


Assenti. Eu não gostava de falar sobre isso, mas Rachel sabia. Ao contrário da maioria dos mortais, ela podia ver através da Névoa — o véu mágico que distorce a visão humana. Ela vira monstros. Conhecera alguns dos outros semideuses que lutavam contra os titãs e os aliados deles. Ela, inclusive, estava presente no último verão, quando o despedaçado Senhor Cronos se ergueu de seu caixão em uma forma nova e terrível, e conquistara meu respeito eterno ao acertá-lo no olho com uma escova de cabelos de plástico azul.

Ela pôs a mão em meu braço.

— Pelo menos pense a respeito, o.k.? Só vamos daqui a dois dias. Meu pai... — Sua voz falhou.

— Tem tido problemas com ele? — perguntei.

Rachel sacudiu a cabeça, infeliz.

— Ele está tentando ser legal comigo, o que é quase pior. Quer que eu vá para a Academia de Moças de Clarion no outono.

— A escola que sua mãe frequentou?

— É uma escola estúpida para garotas da sociedade, lá em New Hampshire. Você consegue me ver em uma escola para moças?

Tinha de admitir que a ideia parecia bastante estúpida. Rachel gostava de se dedicar a projetos de arte urbana, de alimentar os sem-teto, de frequentar manifestações de protesto para “Salvar o Pica-pau-de-barriga-amarela em Risco de Extinção” e de coisas desse tipo. Eu nunca nem mesmo a vira usar um vestido. Era difícil imaginá-la aprendendo a ser uma socialite.

Ela suspirou.

— Ele acha que se fizer um monte de coisas legais para mim vou me sentir culpada e ceder.

— E foi por isso que ele concordou em me deixar ir com vocês de férias?

— Sim... mas, Percy, você estaria me fazendo um imenso favor. Seria tão melhor se você estivesse conosco. Além disso, tem um assunto que eu queria comentar... — Ela se deteve abruptamente.

— Um assunto que você quer falar comigo? — perguntei. — Quer dizer... é tão sério que precisamos ir a St. Thomas para conversar a respeito?

Ela franziu os lábios.

— Olhe, esqueça isso por ora. Vamos fingir que somos um casal de pessoas normais. Saímos para dar um passeio e estamos olhando o oceano, porque é legal ficar junto.

Eu podia ver que algo a incomodava, mas ela exibiu um sorriso corajoso. A luz do sol fazia seu cabelo parecer feito de fogo.

Havíamos passado um bocado de tempo juntos naquele verão. Eu não havia exatamente planejado desse modo, porém, quanto mais séria a situação ficava no acampamento, mais eu tinha necessidade de ligar para Rachel e dar uma escapada, só para respirar um pouco. Precisava me lembrar de que o mundo mortal ainda estava lá, distante de todos os monstros que queriam me usar como saco de pancadas.

— O.k. — concordei. — Apenas uma tarde normal e duas pessoas normais.

— Ela assentiu.

— E então... hipoteticamente, se essas duas pessoas se gostassem, o que seria preciso para que o garoto estúpido beijasse a garota, hein?

— Ah... — Eu me senti como uma das vacas sagradas de Apolo: lento, burro e vermelho. — Hã...

Não posso fingir que não pensava em Rachel. Era tão mais fácil ficar na companhia dela do que na de... bem, do que na de algumas outras garotas que eu conhecia. Eu não precisava me esforçar, nem tomar cuidado com o que falava, nem queimar o cérebro para decifrar o que ela estava pensando. Rachel não escondia muito. Ela demonstrava o que sentia.

Eu não sei o que teria feito a seguir — mas estava tão distraído que não percebi a forma enorme e escura descendo do céu até quatro cascos pousarem no capô do Prius com um WUMP-WUM-CRUNCH!

Ei, chefe, disse uma voz acima da minha cabeça. Que carro bacana!

O pégaso Blackjack era um velho amigo, então tentei não ficar muito aborrecido com as crateras que ele acabara de abrir no capô; mas não achava que meu padrasto fosse ficar muito alegre.

— Blackjack! — Suspirei. — O que você está...

Então vi quem o estava montando e percebi que meu dia estava prestes a se complicar... e muito.

— E aí, Percy?

Charles Beckendorf, líder do chalé de Hefesto, faria a maioria dos monstros chorar chamando pela mamãe. Ele era enorme, tinha músculos muito definidos por causa do trabalho nas forjas todo verão, era dois anos mais velho que eu e um dos melhores ferreiros de armadura do acampamento. Ele criou verdadeiras engenhocas mecânicas para mim. Um mês antes, montara um mecanismo grego incendiário no banheiro de um ônibus de turismo que levava um bando de monstros para o outro lado do país. A explosão liquidou uma legião inteira de seres malignos de Cronos assim que a primeira harpia deu a descarga.

Beckendorf estava vestido para o combate. Usava um peitoral de bronze, um elmo de guerra, calça de camuflagem preta e uma espada presa por correia na lateral do corpo. Sua sacola de explosivos pendia a tiracolo.

— Está na hora? — perguntei.

Ele assentiu, sombriamente.

Um nó formou-se em minha garganta. Eu sabia que aquilo estava por vir. Havíamos planejado durante semanas, mas eu de certo modo esperava que nunca acontecesse.

Rachel olhou para Beckendorf.

— Oi.

— Ah, ei. Eu sou Beckendorf. Você deve ser Rachel. Percy me falou... hã, quer dizer, ele mencionou você.

Rachel ergueu uma sobrancelha.

— Verdade? Bom. — Ela olhou para Blackjack, que batia os cascos no capô do Prius. — Acho então que vocês precisam salvar o mundo agora.

— É por aí — concordou Beckendorf.

Olhei para Rachel, impotente.

— Você pode dizer a minha mãe...

— Eu digo a ela. Tenho certeza de que já está acostumada. E explico a Paul sobre o capô.

Fiz um gesto com a cabeça, agradecendo. Pensei que provavelmente seria a última vez que Paul me emprestava seu carro.

— Boa sorte. — Rachel me beijou antes que eu pudesse sequer reagir. — Agora, vá, meio-sangue. Mate alguns monstros por mim.

Minha última visão dela foi sentada no banco do carona do Prius, de braços cruzados, olhando Blackjack descrever círculos no ar, cada vez mais alto, levando-me com Beckendorf para o céu. Imaginei o que Rachel queria falar comigo, e se eu viveria tempo suficiente para descobrir.

— Então — disse Beckendorf —, acho que você não vai querer que eu comente aquela pequena cena com Annabeth.

— Ah, céus! — murmurei. — Nem pense nisso.

Beckendorf deu uma risadinha, e juntos fomos planando acima do Atlântico.

Era quase noite quando avistamos nosso alvo. O Princesa Andrômeda brilhava no horizonte — um imenso navio de cruzeiro iluminado de amarelo e branco. A distância podia-se pensar que se tratava apenas de um navio de turismo, e não do quartel-general do Senhor dos Titãs. Então, à medida que se aproximava, podia-se notar a gigantesca figura de proa — uma donzela de cabelos escuros em uma túnica grega, envolta em correntes, com uma expressão de horror no rosto, como se pudesse sentir o fedor de todos os monstros que estava sendo obrigada a carregar.

Ver o navio novamente fez meu estômago se revirar. Por duas vezes eu quase morrera no Princesa Andrômeda. Agora o navio estava seguindo direto para Nova York.

— Sabe o que fazer? — gritou Beckendorf acima do ruído do vento.

Confirmei com um aceno de cabeça. Havíamos ensaiado nos estaleiros de New Jersey, usando navios abandonados como alvo. Eu sabia que teríamos pouco tempo. Mas também sabia que aquela era nossa melhor oportunidade de pôr fim à invasão de Cronos antes mesmo de seu início.

— Blackjack — eu disse —, deixe-nos na popa, no convés mais baixo.

Entendido, chefe, ele disse. Cara, odeio ver esse navio.

Três anos antes Blackjack fora mantido como escravo no Princesa Andrômeda, até escapar com uma pequena ajuda minha e de meus amigos. Acho que ele preferiria ter a crina trançada como a do Meu Querido Pônei a voltar ali.

— Não espere por nós — eu lhe disse.

Mas, chefe...

— Confie em mim. Vamos sair sozinhos.

Blackjack encolheu as asas e mergulhou na direção do navio como um cometa negro. O vento zumbia em meus ouvidos. Eu via monstros patrulhando os conveses superiores do navio — dracaenae, cães infernais, gigantes e leões-marinhos humanoides demoníacos conhecidos como telquines —, mas passamos por eles tão rápido que ninguém deu o alarme. Descemos em disparada até a popa da embarcação, e Blackjack abriu as asas, pousando suavemente no convés inferior. Desmontei, sentindo-me enjoado.

Boa sorte, chefe, disse Blackjack. Não deixe que eles o transformem em comida de tubarão!

Com isso, meu velho amigo voou para dentro da noite. Tirei minha caneta do bolso e a destampei, e Contracorrente se expandiu até seu tamanho real — noventa centímetros de bronze celestial letal brilhando no cair da noite.

Beckendorf tirou um pedaço de papel do bolso. Pensei que fosse um mapa ou algo assim. Então percebi que era uma foto. Ele a fitou na luz fraca — o rosto sorridente de Silena Beauregard, filha de Afrodite. Eles tinham começado a namorar no último verão, depois de todos dizerem durante anos: “Dã, vocês gostam um do outro!” Apesar de todas as missões perigosas, naquele verão Beckendorf parecia mais feliz do que eu jamais o vira.

— Vamos voltar ao acampamento — prometi.

Por um segundo vi a preocupação em seus olhos. Então, ele voltou a mostrar seu velho sorriso confiante.

— Pode apostar — ele disse. — Vamos explodir Cronos em um milhão de pedaços.

Beckendorf ia à frente. Seguimos por um corredor estreito até a escada de serviço, exatamente como havíamos treinado, mas ficamos imóveis ao ouvir ruídos acima de nós.

— Não ligo para o que seu nariz diz! — rosnou a voz meio humana, meio canina de um telquine. — A última vez que você farejou um meio-sangue era um sanduíche de bolo de carne!

— Sanduíche de bolo de carne é gostoso — rosnou uma segunda voz. — Mas esse cheiro é de meio-sangue, eu juro. Eles estão a bordo!

— Seu cérebro é que não está a bordo!

Continuaram a discutir, e Beckendorf apontou para os degraus que levavam para baixo. Descemos o mais silenciosamente possível. Dois conveses abaixo a voz dos telquines começou a sumir.

Finalmente chegamos a uma escotilha de metal. Beckendorf balbuciou: “Sala das máquinas.”

Estava trancada, mas Beckendorf tirou um alicate da bolsa e partiu o cadeado como se fosse de manteiga.

Lá dentro, uma fileira de turbinas amarelas, do tamanho de silos de grãos, agitava-se e zumbia. Medidores de pressão e terminais de computador alinhavam-se na parede oposta. Um telquine encontrava-se curvado sobre um console, mas estava tão absorto no trabalho que não percebeu nossa presença. Tinha cerca de um metro e meio, pelo negro e liso de leão-marinho e pequenos pés atarracados. A cabeça era de dobermann, mas as mãos com garras eram quase humanas. Grunhia e murmurava enquanto digitava no teclado. Talvez estivesse mandando uma mensagem para os amigos no carafeia.com.

Dei um passo à frente, e ele retesou o corpo, provavelmente farejando algum problema. Virou de lado na direção de um grande botão de alarme vermelho, mas bloqueei seu caminho. Ele sibilou e saltou sobre mim, mas um movimento de Contracorrente o fez explodir em uma nuvem de pó.

— Um a menos — disse Beckendorf. — Agora faltam uns cinco mil.

Ele jogou para mim um frasco de um líquido verde espesso — fogo grego, uma das substâncias mágicas mais perigosas do mundo. Então, lançou outro acessório essencial aos heróis semideuses — fita adesiva.

— Prenda esse ao console — ele disse. — Eu vou para as turbinas.

Pusemos mãos à obra. A sala era quente e úmida, e logo, logo estávamos empapados de suor.

O navio prosseguia. Por ser filho de Poseidon, tenho ótima orientação no mar. Não me pergunte como, mas eu sabia que estávamos a 40,19° Norte, 71,90° Oeste, seguindo a dezoito nós, o que significava que o navio chegaria ao porto de Nova York ao amanhecer. Aquela seria nossa única chance de detê-lo.

Eu acabara de prender um segundo frasco de fogo grego aos painéis de controle quando ouvi o ruído de pés nos degraus de metal — eram tantas as criaturas descendo a escada que eu podia ouvi-las apesar do barulho dos motores. Aquilo não era um bom sinal.

Meus olhos encontraram os de Beckendorf.

— Quanto tempo mais?

— Bastante tempo. — Ele bateu no relógio, que era nosso detonador de controle remoto. — Ainda preciso conectar o receptor e dar a carga. Mais dez minutos, pelo menos.

A julgar pelo som dos passos, tínhamos cerca de dez segundos.

— Vou distraí-los — eu disse. — Vejo você no ponto de encontro.

— Percy...

— Deseje-me sorte.

Ele pareceu querer discutir. A ideia era entrar e sair sem sermos vistos. Mas teríamos de improvisar.

— Boa sorte — ele disse.

Abri a porta e saí.


Meia dúzia de telquines vinha descendo ruidosamente. Cortei-os com Contracorrente tão rápido que nem tiveram tempo de gritar. Continuei subindo — e passei por outro telquine, que ficou tão atônito que deixou cair sua lancheira do Meu Querido Pônei do Mal. Deixei-o vivo — em parte porque sua lancheira era legal, em parte para que ele pudesse dar o alarme e fazer com que seus amigos me seguissem em vez de irem para a sala das máquinas.

Saí por uma porta no convés 6 e continuei correndo. Tenho certeza de que o corredor acarpetado um dia fora bem macio, mas durante os últimos três anos de ocupação de monstros o papel de parede, o carpete e as portas dos camarotes foram tão arranhados por garras e cobertos por limo que pareciam a parte interna da garganta de um dragão (e, sim, infelizmente, falo por experiência própria).

Em minha primeira visita ao Princesa Andrômeda, meu velho inimigo Luke, para manter as aparências, levava a bordo alguns turistas atordoados, envoltos pela Névoa, de modo a não se darem conta de que estavam em um navio infestado por monstros. Agora eu não via sinal algum de turistas. Odiava pensar no que havia acontecido a eles, mas duvidava que os tivessem deixado ir para casa com seus ganhos no bingo.

Alcancei a área externa, um grande shopping aberto que tomava todo o centro do navio, e de repente me detive. No meio do pátio havia uma fonte. E, sobre ela, estava um caranguejo gigante.

Não estou falando “gigante” como uma oferta especial na lanchonete Rei dos Caranguejos. Digo gigante porque era maior do que a fonte. O monstro erguia-se a três metros da água. Seu casco era malhado de azul e verde, e as pinças eram maiores do que meu corpo.

Se você já viu a boca de um caranguejo, toda espumosa e nojenta, com pelos e restos de comida, pode imaginar que a daquele não parecia nem um pouco melhor, ampliada ao tamanho de um outdoor. Seus olhos negros semelhantes a contas me fitaram, e eu pude ver que neles havia inteligência — e ódio. O fato de eu ser filho do deus do mar não me garantiria pontos com o sr. Caranguejo.

— FFFFfffffff — ele sibilou, espuma do mar pingando de sua boca. O cheiro que vinha dela era como o de uma lixeira cheia de pedaços de peixe que haviam ficado a semana inteira ao sol.

O alarme soou, estridente. Logo eu teria muita companhia, e precisava seguir adiante.

— Ei, zangado. — Fui avançando bem devagar pela margem do pátio. — Eu vou apenas passar bem longe de você para...

O caranguejo moveu-se numa velocidade impressionante. Saiu rapidamente da fonte e veio diretamente até mim, as pinças abrindo e fechando. Entrei correndo em uma loja de suvenires, abrindo caminho em meio a uma arara de camisetas. Uma pinça estilhaçou as vitrines e revirou a loja. Corri de volta para fora, respirando ofegante, mas o sr. Caranguejo virou-se e me seguiu.

— Ali! — disse uma voz do balcão acima de mim. — Intruso!

Se eu queria criar uma distração, conseguira, mas não era ali que eu queria lutar. Se fosse apanhado no centro do navio, viraria comida de caranguejo.

O demoníaco crustáceo lançou-se sobre mim. Brandi Contracorrente, arrancando a ponta de sua pinça. Ele sibilou e espumou, mas não parecia muito machucado.

Tentei me lembrar de algum detalhe das histórias antigas que pudesse me ajudar com aquela criatura. Annabeth me falara sobre um caranguejo monstro — algo a respeito de Hércules tê-lo esmagado com o pé? Isso não funcionaria ali. Aquele caranguejo era um pouco maior do que meu tênis.

Então, um estranho pensamento me ocorreu. No Natal passado, minha mãe e eu havíamos levado Paul Blofis para nossa velha cabana em Montauk, para onde íamos desde sempre. Paul me levara para pescar caranguejos, e quando puxou a rede cheia daquelas coisas me mostrou que os animais têm uma fenda em sua casca, bem no meio da barriga asquerosa.

O único problema era chegar à barriga asquerosa.

Olhei para a fonte, em seguida para o piso de mármore, já escorregadio com a passagem do crustáceo. Ergui a mão, concentrando-me na água, e a fonte explodiu. A água jorrou para todos os lados, a uma altura de três andares, encharcando os balcões, os elevadores e as vitrines das lojas. O caranguejo não deu a mínima. Ele adorava água. Veio até mim de lado, abrindo e fechando as pinças, sibilando, e corri ao seu encontro, gritando:

— AHHHHHHH!

Um instante antes de colidirmos atirei-me no chão — ao estilo dos jogadores de beisebol — e deslizei no piso de mármore molhado por debaixo da criatura. Era como deslizar por baixo de um veículo blindado de sete toneladas. Tudo que o caranguejo precisava fazer era abaixar e me esmagar, mas, antes que ele se desse conta do que estava acontecendo, finquei Contracorrente na fenda em seu casco, soltei-a e tomei impulso para sair por trás do bicho.

O monstro estremeceu e emitiu um silvo. Seus olhos se dissolveram. Sua casca tornou-se de um vermelho vivo enquanto as entranhas evaporavam. A casca vazia chocou-se contra o chão, um bloco enorme e maciço.

Eu não tinha tempo para admirar minha obra. Corri para a escada mais próxima enquanto à minha volta monstros e semideuses gritavam ordens e pegavam suas armas. Eu estava de mãos vazias. Contracorrente era mágica e apareceria em meu bolso mais cedo ou mais tarde, mas por enquanto estava presa em algum lugar sob os destroços do caranguejo, e eu não tinha tempo de pegá-la.

No hall dos elevadores do convés 8 duas dracaenae atravessaram meu caminho coleando. Da cintura para cima, eram mulheres com pele escamosa verde, olhos amarelos e línguas bífidas. Da cintura para baixo tinham corpos duplos de cobra no lugar de pernas. Empunhavam lanças e redes com pesos, e eu sabia, por experiência própria, que elas sabiam usá-las.

— O que é isssto? — perguntou uma delas. — Um brinde para Cronosss!

Eu não estava com disposição para brincar de “cobra-cega”, mas à minha frente havia um estande com uma maquete do navio e um painel do tipo VOCÊ ESTÁ AQUI. Arranquei a maquete do suporte e a lancei sobre a primeira dracaena. O navio a atingiu no rosto, e ela caiu no chão. Saltei sobre ela, agarrei a lança de sua amiga e a girei. Ela chocou-se contra o elevador, e eu continuei correndo em direção à proa do navio.

— Peguem-no! — ela gritou.

Cães infernais latiam. Uma flecha vinda de sabe-se lá onde passou zunindo por meu rosto e cravou-se na parede revestida de mogno da escada.

Eu não ligava — contanto que mantivesse os monstros longe da sala das máquinas e ganhasse tempo para Beckendorf.

Enquanto eu subia correndo a escada, um garoto vinha descendo. Parecia ter acabado de acordar de um cochilo. Sua armadura estava colocada pela metade. Ele sacou a espada e gritou: “Cronos!”, mas soou mais assustado do que furioso. Não podia ter mais de doze anos — aproximadamente a idade que eu tinha quando cheguei pela primeira vez ao Acampamento Meio-Sangue.

Esse pensamento me deprimiu. O garoto estava sofrendo uma lavagem cerebral — estava sendo treinado para odiar os deuses e se rebelar contra o fato de ter nascido metade olimpiano. Cronos o estava usando, e, no entanto, o garoto acreditava que eu era seu inimigo.

Eu não o machucaria, de maneira alguma. Não precisava de uma arma para isso. Desviei-me de seu golpe e agarrei-lhe o pulso, batendo-o contra a parede. A espada caiu de sua mão.

Então, fiz algo que não havia planejado. Provavelmente, foi estúpido. Decididamente coloquei em risco nossa missão, mas não pude evitar.

— Se quer viver — eu lhe disse —, saia deste navio agora. Avise os outros semideuses. — Então, o empurrei degraus abaixo, mandando-o aos tropeços para o piso inferior.

Continuei subindo.

Más recordações: um corredor passava pela cafeteria. Annabeth, meu meio-irmão Tyson e eu o havíamos percorrido furtivamente três anos antes, em minha primeira visita.

Saí no convés principal. Além da amura de bombordo, o céu escurecia, passando do púrpura para o negro. Uma piscina reluzia entre duas torres de vidro com mais balcões e varandas de restaurantes. Toda a parte superior do navio parecia sinistramente deserta.

Tudo o que eu precisava fazer era atravessar para o outro lado. Então, poderia tomar a escada que descia para o heliporto — nosso ponto de encontro de emergência. Com alguma sorte, Beckendorf estaria ali. Nós pularíamos no mar. Meus poderes aquáticos protegeriam nós dois, e detonaríamos as cargas explosivas a uns quatrocentos metros dali.

Eu havia atravessado metade do convés quando o som de uma voz me deixou paralisado.

— Está atrasado, Percy.

Luke estava no balcão acima de mim, um sorriso no rosto marcado pela cicatriz. Ele usava jeans, camiseta branca e chinelos de dedo, como se fosse um rapaz normal, mas seus olhos revelavam a verdade. Eram de um dourado intenso.

— Estamos esperando você há dias.

A princípio, a voz dele soava normal, como a de Luke. Mas então seu rosto se contorceu. Um tremor percorreu seu corpo, como se ele tivesse acabado de beber algo de sabor detestável. Sua voz tornou-se mais pesada, ancestral e poderosa — a voz do Senhor Titã Cronos. As palavras desciam raspando pela minha espinha, como a lâmina de uma faca.

— Venha curvar-se diante de mim.

— Certo, fique esperando — murmurei.

Lestrigões gigantes formaram fila de ambos os lados da piscina, como se estivessem esperando uma deixa. Cada um deles tinha dois metros e meio de altura, braços tatuados, armadura de couro e porretes com espigões. Arqueiros semideuses surgiram no andar acima de Luke. Dois cães infernais saltaram do balcão do outro lado e rosnaram para mim. Em segundos eu estava cercado. Uma armadilha: não havia como eles terem assumido posição tão rápido, a menos que soubessem que eu viria.

Ergui os olhos para Luke, e a raiva ferveu dentro de mim. Eu não sabia se a consciência de Luke ainda estava viva dentro daquele corpo. Talvez, pelo modo como sua voz mudara... ou talvez fosse apenas Cronos se adaptando à nova forma. Disse a mim mesmo que isso não importava. Luke havia se desviado e se bandeado para o mal muito antes de Cronos se apoderar dele.

Uma voz em minha cabeça disse: Precisarei lutar contra ele mais dia, menos dia. Por que não agora?

Segundo a grande profecia, eu teria de fazer uma escolha que salvaria ou destruiria o mundo quando tivesse dezesseis anos. Isso seria dali a apenas sete dias. Por que não naquele momento? Se eu tivesse mesmo tal poder, que diferença faria uma semana? Podia pôr fim àquela ameaça bem ali, abatendo Cronos. Ei, eu já lutara contra monstros e deuses.

Como se lesse meus pensamentos, Luke sorriu. Não, ele era Cronos. Eu precisava me lembrar disso.

— Aproxime-se — ele disse. — Se tiver coragem.

A multidão de monstros abriu caminho. Subi as escadas, o coração em disparada. Tinha certeza de que alguém me apunhalaria pelas costas, mas me deixaram passar. Tateei o bolso e encontrei minha caneta à espera. Destampei-a, e Contracorrente transformou-se em espada.

A arma de Cronos apareceu em suas mãos — uma foice de quase dois metros, metade bronze celestial, metade aço letal. Só de olhar para aquela coisa meus joelhos se transformavam em gelatina. Mas, antes que eu mudasse de ideia, ataquei.

O tempo desacelerou. Quer dizer, literalmente mesmo, pois Cronos tinha esse poder. Minha sensação era de estar me movendo em meio a um melado. Meus braços estavam tão pesados que eu mal conseguia erguer a espada. Cronos sorriu, girando a foice em velocidade normal e esperando que eu me arrastasse para a morte.

Tentei lutar contra sua magia. Concentrei-me no mar à volta — a origem de meu poder. Com o passar dos anos, eu melhorara minha capacidade de canalizá-lo, mas agora nada parecia acontecer.

Dei outro passo vagaroso à frente. Gigantes zombavam. Dracaenae sibilavam às gargalhadas.

Ei, oceano, implorei. Agora estaria ótimo.

De repente, senti uma dor lancinante na barriga. O navio adernou, derrubando monstros. Quinze mil litros de água salgada ergueram-se da piscina, encharcando a mim, Cronos e todos que estavam no convés. A água me revitalizou, quebrando o feitiço do tempo, e investi contra Cronos.

Eu o ataquei, mas ainda fui lento demais. Cometi o erro de olhar para seu rosto — o rosto de Luke —, um cara que já fora meu amigo. Por mais que eu o odiasse, era difícil matá-lo.

Cronos, diferentemente, não hesitou e baixou a foice. Saltei para trás, e a lâmina maligna errou por pouco mais de um centímetro, abrindo um buraco no convés bem entre meus pés.

Chutei Cronos no peito. Ele cambaleou para trás, mas era mais pesado do que Luke seria. Tive a sensação de ter chutado uma geladeira.

Ele brandiu a foice novamente. Eu a desviei com Contracorrente, mas seu golpe foi tão poderoso que minha lâmina mal pôde desviá-lo. A ponta da foice cortou a manga da minha camisa e arranhou meu braço. Não era um ferimento sério, mas todo aquele lado de meu corpo explodiu de dor. Lembrei-me do que um demônio marinho uma vez dissera sobre a foice de Cronos: Cuidado, seu tolo. Um só toque e a lâmina vai separar sua alma de seu corpo. Agora compreendia o que ele quis dizer. Eu não estava apenas perdendo sangue. Podia sentir minha força, minha vontade, minha identidade se esvaindo.

Recuei, cambaleando, passei a espada para a mão esquerda e investi contra ele desesperadamente. Minha lâmina deveria tê-lo atravessado, mas foi desviada em sua barriga, como se tivesse atingido mármore sólido. Não havia como ele ter sobrevivido àquele golpe.

Cronos riu.

— Que desempenho fraco, Percy Jackson. Luke me diz que você nunca foi páreo para ele com a espada.

Minha visão estava turva. Eu sabia que não tinha muito tempo.

— Luke deixava que qualquer vitoriazinha lhe subisse à cabeça eu disse. — Mas pelo menos a cabeça era dele.

— É uma pena matá-lo agora — replicou Cronos —, antes que o plano final se revele. Eu adoraria ver o terror em seus olhos quando soubesse como vou destruir o Olimpo.

— Você nunca vai chegar com este navio a Manhattan.

Meu braço latejava. Pontos negros dançavam diante de meus olhos.

— E por que não? — Os olhos dourados de Cronos cintilavam. Seu rosto, o rosto de Luke, parecia uma máscara, sobrenatural e iluminada por algum poder maligno. — Você estaria contando com seu amigo dos explosivos?

Ele baixou os olhos para a piscina e chamou:

— Nakamura!

Um adolescente usando uma armadura grega completa abriu caminho entre a multidão. Seu olho esquerdo estava coberto por um tapa-olho preto. Eu o conhecia, é claro: Ethan Nakamura, filho de Nêmesis. Eu salvara sua vida no Labirinto no verão passado, e, em troca, o delinquente ajudara Cronos a voltar à vida.

— Sucesso, meu senhor — gritou Ethan. — Nós o encontramos, exatamente como nos informaram.

Ele bateu palmas, e dois gigantes avançaram pesadamente, arrastando Charles Beckendorf entre eles. Meu coração quase parou. Beckendorf tinha um olho inchado e cortes por todo o rosto e nos braços. Sua armadura havia desaparecido e a camisa estava rasgada.

— Não! — gritei.

Os olhos de Beckendorf encontraram os meus. Ele olhou para a mão como se estivesse tentando me dizer algo. O relógio. Ainda não o tinham tirado — e aquele era o detonador. Seria possível que os explosivos estivessem preparados para detonar? Certamente os monstros os teriam desarmado de imediato.

— Nós o encontramos na meia-nau — disse um dos gigantes —, tentando ir sorrateiramente para a sala das máquinas. Podemos comê-lo agora?

— Logo. — Cronos lançou a Ethan um olhar severo. — Tem certeza de que ele não armou os explosivos?

— Ele estava indo para a sala das máquinas, meu senhor.

— Como você sabe?

— Hã... — Ethan remexeu-se, desconfortável. — Ele estava indo naquela direção. E nos contou. Sua bolsa ainda está cheia de explosivos.

Lentamente, comecei a compreender. Beckendorf os enganara. Quando percebeu que seria capturado, virou-se para fazer parecer que ia na direção contrária. E os convenceu de que ainda não estivera na sala das máquinas. O fogo grego ainda podia ser ativado! Mas isso de nada nos servia, a menos que saíssemos do navio e o detonássemos.

Cronos hesitou.

Engula essa, rezei. A dor em meu braço agora era tamanha que eu mal podia suportar.

— Abra a bolsa dele — ordenou Cronos.

Um dos gigantes arrancou a sacola de explosivos dos ombros de Beckendorf. Espiou lá dentro, grunhiu e a virou de cabeça para baixo. Monstros em pânico recuaram, agitados. Se a sacola estivesse mesmo cheia de frascos de fogo grego, teríamos todos ido pelos ares. Mas o que caiu foi uma dúzia de latas de pêssegos em calda.

Eu podia ouvir a respiração de Cronos tentando controlar sua fúria.

— Você, por acaso — começou ele —, capturou esse semideus perto da cozinha? Ethan ficou pálido.

— Hã...

— E por acaso mandou alguém de fato CHECAR A SALA DAS MÁQUINAS?

Ethan recuou, aterrorizado, fez meia-volta e correu.

Praguejei em silêncio. Agora tínhamos apenas alguns minutos antes que as bombas fossem desarmadas. Captei novamente o olhar de Beckendorf e fiz uma pergunta silenciosa, esperando que ele compreendesse: Quanto tempo?

Ele juntou os dedos e o polegar, fazendo um círculo. Zero. Não havia tempo algum de espera no timer. Se ele conseguisse pressionar o botão do detonador, o navio explodiria imediatamente. Nunca alcançaríamos uma distância segura para pressioná-lo. Os monstros nos matariam primeiro, ou desarmariam os explosivos — ou ambos.

Cronos voltou-se para mim com um sorriso torto.

— Você deve desculpar a incompetência de meu ajudante, Percy Jackson. Mas isso já não importa. Agora temos você. Há semanas sabíamos que viria.

Ele estendeu a mão e balançou um pequeno bracelete de prata com uma foice como pingente — o símbolo do Senhor dos Titãs. O ferimento em meu braço estava acabando com minha capacidade de pensar, mas consegui murmurar:

— Dispositivo de comunicação... espião no acampamento.

Cronos deu uma risadinha.

— Não se pode contar com os amigos. Eles vão sempre desapontá-lo. Luke aprendeu essa lição da forma mais dura. Agora largue a espada e entregue-se a mim, ou seu amigo morre.

Engoli em seco. Um dos gigantes tinha a mão em torno do pescoço de Beckendorf. Eu não estava em condições de resgatá-lo, e, mesmo que tentasse, ele morreria antes que eu chegasse perto. Nós dois morreríamos.

Beckendorf balbuciou em silêncio: Vá.

Sacudi a cabeça. Eu não podia simplesmente abandoná-lo.

O segundo gigante ainda vasculhava as latas de pêssegos, e o braço esquerdo de Beckendorf estava livre, então. Ele o ergueu lentamente — na direção do relógio, no pulso direito.

Eu queria gritar: NÃO!

Naquele segundo, lá embaixo, perto da piscina, uma das dracaenae sibilou:

— O que ele essstá fazendo? O que é aquilo no pulssso dele?

Eu não tinha escolha. Atirei minha espada como um dardo contra Cronos. Ela quicou, inofensiva, em seu peito, mas pelo menos o assustou. Abri caminho aos empurrões por uma multidão de monstros e saltei pela amurada do navio — para a água, cem metros abaixo.

Ouvi um estrondo no fundo do navio. Monstros gritavam lá do alto para mim. Uma lança passou rente à minha orelha. Uma flecha perfurou minha coxa, mas eu mal tive tempo de registrar a dor. Mergulhei no mar e ordenei às correntes que me carregassem para longe — cem metros, duzentos metros.

Mesmo a distância, a explosão sacudiu o mundo. O calor queimou minha nuca. O Princesa Andrômeda explodiu de ambos os lados, uma bola maciça de chamas verdes elevando-se para o céu escuro, consumindo tudo.

Beckendorf, pensei.

Então, apaguei e desci como uma âncora na direção do fundo do mar.


DOIS

Encontro alguns parentes peixes

Sonhos de semideuses são péssimos.

O problema é que eles nunca são apenas sonhos. Acabam sendo visões, premonições e todas aquelas outras coisas místicas que fazem meu cérebro doer.

Sonhei que estava em um palácio escuro no alto de uma montanha. Infelizmente, eu o reconheci: o palácio dos titãs no topo do Monte Otris, também conhecido como Monte Tamalpais, na Califórnia. Era noite, o pavilhão principal a céu aberto era rodeado de colunas gregas e estátuas dos titãs, tudo negro. Tochas acesas brilhavam contra o piso de mármore, também negro. No centro do salão, um gigante de armadura sofria sob o peso de um redemoinho de nuvens — Atlas, sustentando o céu.

Dois outros gigantes estavam de pé diante de um braseiro de bronze ali perto, estudando as imagens nas chamas.

— Uma explosão e tanto — disse um deles.

Usava armadura preta com tachas prateadas como uma noite estrelada. Seu rosto estava coberto por um elmo de guerra com um chifre de carneiro enroscado de cada lado.

— Não tem importância — afirmou o outro.

Esse titã estava vestido com roupas douradas e tinha olhos dourados como os de Cronos. Todo o seu corpo brilhava. Ele me fazia lembrar Apolo, deus do sol, exceto pelo fato de que a claridade do titã era mais desagradável, e sua expressão, mais cruel.

— Os deuses aceitaram o desafio. Logo serão destruídos.

As imagens no fogo eram difíceis de distinguir: tempestades, edifícios desmoronando, mortais gritando aterrorizados.

— Vou para leste comandar nossas forças — disse o titã dourado. — Crio, você fica e guarda o Monte Otris.

O sujeito dos chifres de carneiro resmungou.

— Eu sempre fico com as tarefas estúpidas. Senhor do Sul. Senhor das Constelações. Agora tenho de bancar a babá de Atlas enquanto você fica com toda a diversão.

Sob o redemoinho de nuvens, Atlas gritou em agonia.

— Deixem-me sair, malditos! Sou seu maior guerreiro. Livrem-me de meu fardo para que eu possa lutar!

— Quieto! — rugiu o titã dourado. — Você teve sua chance, Atlas. Fracassou. Cronos quer que fique exatamente onde está. E quanto a você, Crio, cumpra seu dever.

— E se você precisar de mais guerreiros? — perguntou Crio. — Nosso traiçoeiro sobrinho de smoking não vai lhe ser muito útil numa luta.

O titã dourado riu.

— Não se preocupe com ele. Além disso, os deuses mal poderão enfrentar nosso primeiro desafiozinho. Eles não têm a menor ideia de quantos outros ainda lhes estão reservados. Preste atenção às minhas palavras: daqui a poucos dias o Olimpo estará em ruínas, e nós nos reencontraremos aqui para celebrar o início da Sexta Era!

O titã dourado irrompeu em chamas e desapareceu.

— Hum, certo — resmungou Crio. — Ele pode desaparecer em chamas. E eu tenho de usar estes estúpidos chifres de carneiro.

A cena mudou. Agora eu estava fora do pavilhão, escondido nas sombras de uma coluna grega. Havia um garoto perto de mim, espiando os titãs. Ele tinha cabelos escuros e sedosos, pele pálida e usava roupas escuras — meu amigo Nico di Angelo, filho de Hades.

Ele olhou diretamente para mim com expressão sombria.

— Está vendo, Percy? — sussurrou. — O tempo está se esgotando. Acha mesmo que pode vencê-los sem o meu plano?

Suas palavras caíram sobre mim tão frias quanto o fundo do oceano, e meu sonho escureceu.

— Percy? — chamou uma voz grave.

Eu tinha a sensação de que minha cabeça havia sido embrulhada em papel-alumínio e colocada no micro-ondas. Abri os olhos e vi uma figura grande avultando-se sobre mim nas sombras.

— Beckendorf? — perguntei, esperançoso.

— Não, irmão.

Minha visão entrou em foco. Eu estava olhando para um ciclope — o rosto indistinto, cabelos castanhos desgrenhados, um único e grande olho castanho cheio de preocupação.

— Tyson?

Meu irmão abriu um sorrisão.

— Ei! Seu cérebro está funcionando!

Eu não tinha tanta certeza assim. Meu corpo parecia não ter peso e estava frio. Minha voz soava estranha. Eu ouvia Tyson, mas era mais como se estivesse ouvindo vibrações dentro do meu crânio, não os sons de hábito.

Sentei-me, e um lençol muito fino saiu flutuando. Eu estava em uma cama feita de algas sedosas entrelaçadas, num quarto revestido de conchas de abalone. Pérolas cintilantes do tamanho de bolas de basquete flutuavam no teto, clareando o ambiente. Eu me encontrava debaixo d’água.

Bem, sendo filho de Poseidon, isso não é problema para mim. Consigo respirar bem debaixo d’água, e minhas roupas nem se molham, a menos que eu queira. Mas ainda fiquei um pouco assustado quando um tubarão-martelo entrou pela janela do quarto, me olhou com atenção e então saiu tranquilamente pelo outro lado.

— Onde...

— No palácio de papai — disse Tyson.

Em outras circunstâncias, eu teria ficado animadíssimo. Nunca tinha visitado o reino de Poseidon e vinha sonhando com isso havia anos. Mas minha cabeça doía. Minha camisa ainda estava salpicada de marcas de queimado em decorrência da explosão. Os ferimentos em meu braço e em minha perna estavam curados — o simples fato de estar no oceano faz isso comigo, desde que passe tempo suficiente —, mas ainda me sentia como se tivesse sido pisoteado por um time de lestrigões calçando chuteiras.

— Quanto tempo...

— Nós o encontramos ontem à noite, afundando na água — disse Tyson.

— E o Princesa Andrômeda?

— Foi pelos ares.

— Beckendorf estava a bordo. Vocês encontraram...

O rosto de Tyson tornou-se sombrio.

Nenhum sinal dele. Sinto muito, irmão.

Olhei pela janela para a água de um azul intenso. Beckendorf iria para a universidade no outono. Ele tinha uma namorada, um monte de amigos, a vida toda pela frente. Não podia ter desaparecido. Talvez ele tivesse conseguido sair do navio, como eu. Talvez tivesse saltado pela amurada... Mas e então? Ele não sobreviveria a uma queda de trinta metros na água, como eu. E não poderia ter conseguido se distanciar o suficiente da explosão.

No fundo eu sabia que ele estava morto. Que havia se sacrificado para destruir o Princesa Andrômeda, e que eu o havia abandonado.

Pensei em meu sonho: os titãs discutindo a explosão como se ela não tivesse importância, Nico di Angelo avisando-me que eu nunca venceria Cronos sem seguir seu plano — uma ideia perigosa que eu vinha evitando havia mais de um ano.

Uma explosão a distância sacudiu o quarto. Uma luz verde brilhou lá fora, deixando todo o mar claro como o meio-dia.

— O que foi isso? — perguntei.

Tyson parecia preocupado.

— Papai vai explicar. Venha, ele está explodindo monstros.

O palácio poderia ter sido o lugar mais incrível que eu já tinha visto se não estivesse em pleno processo de destruição. Nadamos até o fim de um longo corredor e fomos lançados para o alto em um gêiser. Enquanto subíamos mais alto que telhados, recuperei o fôlego — se é que se pode recuperar o fôlego debaixo d’água.

O palácio era tão grande quanto a cidade no Monte Olimpo, com pátios amplos, jardins e pavilhões pontuados por colunas. Os jardins eram esculpidos com colônias de coral e plantas marinhas brilhantes. Havia vinte ou trinta edifícios feitos de abalone, brancos mas cintilando com as cores do arco-íris. Peixes e polvos saíam e entravam em disparada pelas janelas. Os caminhos eram demarcados com pérolas reluzentes como luzes de Natal.

O pátio principal estava cheio de guerreiros — tritões, de cauda de peixe e tronco humano, exceto pelo fato de sua pele ser azul, o que eu nunca havia notado. Alguns cuidavam dos feridos. Outros afiavam lanças e espadas. Um deles passou por nós, nadando apressado. Seus olhos eram de um verde brilhante, como aquele fluido que se coloca dentro de pulseiras fosforescentes, e os dentes eram de tubarão. Eles não mostram coisas assim em A Pequena Sereia.

Fora do pátio principal havia grandes fortificações — torres, muros e armas anti-cerco —, mas a maior parte estava em ruínas. Outras construções ardiam com uma estranha luz verde que eu conhecia bem — fogo grego, que pode queimar mesmo debaixo d’água.

Mais além, o fundo do mar estendia-se na escuridão. Eu podia ver batalhas sendo travadas com violência — clarões de energia, explosões, o lampejo de exércitos se enfrentando. Um ser humano normal teria achado tudo escuro demais. Quer dizer, um ser humano normal teria sido esmagado pela pressão e congelado pelo frio. Nem mesmo minha visão sensível ao calor conseguia distinguir exatamente o que estava acontecendo.

Na extremidade do complexo do palácio, um templo com telhado de coral vermelho explodiu, lançando fogo e escombros, em câmera lenta, até os jardins mais distantes. Da escuridão acima surgiu uma forma enorme — uma lula maior que um arranha-céu. Ela estava envolta em uma nuvem brilhante de poeira — pelo menos me pareceu ser poeira, até que me dei conta de que se tratava de um enxame de tritões tentando atacar o monstro. A lula desceu sobre o palácio e agitou os tentáculos, esmagando toda uma coluna de guerreiros. Então, um arco brilhante de luz azul disparou do topo de um dos edifícios mais altos. A luz atingiu a lula gigante, e o monstro se dissolveu como tinta em água.

— Papai — disse Tyson, apontando para o ponto de onde viera a luz.

— Ele fez aquilo?

De repente, eu me sentia mais esperançoso. Meu pai tinha poderes inacreditáveis. Ele era o deus do mar. Podia enfrentar aquele ataque, certo? Talvez me deixasse ajudar.

— Você já participou da luta? — perguntei a Tyson, assombrado. — Esmagando cabeças com sua incrível força de ciclope ou algo assim?

Tyson ficou aborrecido, e eu soube imediatamente que havia feito a pergunta errada.

— Eu... conserto armas — resmungou ele. — Venha. Vamos encontrar papai.

Sei que isso pode parecer esquisito para as pessoas que têm, hã, pais comuns, mas eu só vira meu pai quatro ou cinco vezes em toda a vida, e nunca por mais de uns poucos minutos. Os deuses gregos não frequentam os jogos de basquete dos filhos. Ainda assim, achei que fosse reconhecer Poseidon assim que o visse.

Estava enganado.

O teto do templo era um grande deque que fora preparado como um centro de comando. Um mosaico no piso mostrava um mapa preciso da área do palácio e do oceano ao redor, mas o mosaico se movia. Ladrilhos de pedra coloridos que representavam exércitos diferentes e monstros marinhos deslocavam-se à medida que as forças de batalha mudavam de posição. Edifícios que ruíam de fato também ruíam na imagem.

De pé em torno do mosaico, estudando, taciturnos, a batalha, havia uma estranha variedade de guerreiros, mas nenhum deles parecia meu pai. Eu procurava um cara grandalhão e bronzeado, de barba preta, usando bermuda e camisa com estampa havaiana.

Não havia ninguém assim. Um deles era um tritão com duas caudas de peixe em vez de uma. Sua pele era verde, a armadura, dourada com pérolas. O cabelo preto estava amarrado em um rabo de cavalo, e ele parecia jovem — embora isso seja difícil dizer em se tratando de não humanos. Eles podiam ter mil anos ou três. De pé ao lado dele estava um velho com uma densa barba branca e cabelos grisalhos. A armadura parecia pesada demais para ele. Tinha olhos verdes e rugas de expressão em torno dos olhos, mas nesse momento ele não estava sorrindo. Estudava o mapa, apoiado em um grande cajado de metal. À sua direita havia uma mulher bonita, com armadura verde, de cabelos negros flutuantes e estranhos chifrinhos que pareciam garras de caranguejo. E havia um golfinho — um golfinho comum, mas que olhava o mapa compenetrado.

— Delfim — disse o velho —, mande Paláimon e sua legião de tubarões para a frente oeste. Precisamos neutralizar aqueles leviatãs.

O golfinho falou em uma voz não articulada, mas pude compreendê-lo em minha mente: Sim, senhor! E saiu em disparada.

Olhei consternado para Tyson e depois de volta ao velho.

Não parecia possível, mas...

— Pai? — chamei.

O velho me olhou. Reconheci o brilho em seus olhos, mas seu rosto... Ele parecia ter envelhecido quarenta anos.

— Olá, Percy.

— O que... o que aconteceu com você?

Tyson me cutucou. Ele sacudia a cabeça com tanta força que temi que ela caísse do pescoço, mas Poseidon não pareceu ofendido.

— Está tudo bem, Tyson — disse ele. — Percy, perdoe minha aparência. A guerra tem sido difícil para mim.

— Mas você é imortal — eu disse baixinho. — Pode ter a aparência... que quiser.

— Eu reflito o estado do meu reino — afirmou ele. — E neste momento seu estado é bastante medonho. Percy, deixe-me apresentá-lo... Pena que meu tenente Delfim, deus dos golfinhos, tenha acabado de sair. Esta é minha, hã, esposa, Anfitrite. Minha querida...

A mulher de armadura verde me olhou com frieza, cruzou os braços e disse:

— Com licença, meu senhor. Estão precisando de mim na batalha.

E se foi, nadando.

Fiquei bastante constrangido, mas acho que não posso culpá-la. Eu nunca havia pensado muito a esse respeito, mas meu pai tinha uma esposa imortal. Todos os seus romances com mortais, inclusive com minha mãe... bem, provavelmente Anfitrite não gostava muito disso.

Poseidon pigarreou.

— Sim, certo... e este é meu filho Tritão. Hã, meu outro filho.

— Seu filho e herdeiro — corrigiu o sujeito verde. Suas duas caudas de peixe chicoteavam de um lado para o outro. Ele sorriu para mim, mas não havia amabilidade em seus olhos. — Olá, Perseus Jackson. Finalmente veio ajudar?

Ele agia como se eu estivesse atrasado ou fosse preguiçoso. Se é possível enrubescer debaixo d’água, isso provavelmente aconteceu comigo.

— Diga-me o que fazer — falei.

Tritão sorriu como se aquela fosse uma sugestão engraçadinha — como se eu fosse um alegre cachorrinho que tivesse latido para ele ou algo assim. Ele voltou-se para Poseidon:

—Vou cuidar da linha de frente, pai. Não se preocupe. Eu não vou fracassar.

Ele cumprimentou Tyson educadamente com um gesto de cabeça. Por que eu não merecia o mesmo respeito? Depois saiu em disparada oceano adentro.

Poseidon suspirou. Ergueu o cajado, que se transformou em sua arma habitual — um imenso tridente. As três pontas brilharam com uma luz azul, e a água à sua volta ferveu com a energia.

— Peço desculpas por isso — ele me disse.

Uma imensa serpente marítima surgiu no alto e desceu espiralando em direção ao telhado. Era de um laranja brilhante e a boca repleta de presas era grande o suficiente para engolir um ginásio inteiro.

Sem mal olhar para cima, Poseidon apontou seu tridente para a fera e disparou um raio de energia azul. Cabum! O monstro explodiu em um milhão de peixinhos de aquário, que fugiram apavorados.

— Minha família está ansiosa — continuou Poseidon, como se nada tivesse acontecido. — A batalha contra Oceano está indo mal.

Ele apontou para a margem do mosaico. Com o cabo do tridente bateu na imagem de um tritão maior que os outros, com chifres de touro. Ele parecia estar dirigindo uma carruagem puxada por camarões e, em vez de uma espada, brandia uma serpente viva.

— Oceano — eu disse, tentando recordar. — O titã do mar?

Poseidon assentiu.

— Ele se manteve neutro na primeira guerra entre deuses e titãs. Mas Cronos o convenceu a lutar. Isto... bem, não é um bom sinal. Oceano não se comprometeria a menos que tivesse certeza de que estava escolhendo o lado vencedor.

— Ele me parece um idiota — falei, tentando parecer otimista. — Afinal, quem luta com uma cobra?

— Papai vai dar vários nós nela — disse Tyson com firmeza.

Poseidon sorriu, mas parecia abatido.

— Agradeço sua confiança. Estamos em guerra há quase um ano. Meus poderes estão sendo exigidos demais. E ele ainda encontra novas forças para lançar contra mim... monstros marinhos tão antigos que eu já os havia esquecido completamente.

Ouvi uma explosão a distância. A quase um quilômetro dali, uma montanha de coral desintegrou-se sob o peso de duas criaturas gigantescas. Tive dificuldade em distinguir suas formas. Uma era uma lagosta. A outra era um humanoide grande como um ciclope, mas cercado por uma agitação de membros. A princípio pensei que estivesse vestido com um monte de polvos gigantes. Então, percebi que eram seus braços — uma centena de braços lutando e se agitando.

— Briareu! — gritei.

Fiquei feliz em vê-lo, mas ele parecia estar em grande perigo. Era o último de sua espécie — um centímano, primo dos ciclopes. Nós o havíamos salvado da prisão de Cronos no último verão, e eu sabia que ele viera ajudar Poseidon, mas nunca mais tivera notícias dele.

— Ele luta bem — observou Poseidon. — Queria que tivéssemos todo um exército assim, mas ele é o único.

Eu fiquei olhando enquanto Briareu gritava furioso e erguia a lagosta, que se debatia e tentava agarrá-lo com as pinças. Ele a atirou da montanha de coral e ela desapareceu na escuridão. Briareu foi atrás, nadando, sua centena de braços girava como as hélices de um barco a motor.

— Percy, talvez não tenhamos muito tempo — disse meu pai. — Conte-me sobre sua missão. Você viu Cronos?

Contei-lhe tudo, ainda que minha voz tenha ficado embargada quando expliquei sobre Beckendorf. Olhei para os pátios lá embaixo e vi centenas de tritões feridos deitados em macas improvisadas. Vi fileiras de montes de coral que deviam ser túmulos feitos às pressas. Percebi que Beckendorf não era a primeira baixa. Era apenas um de centenas, talvez milhares. Nunca senti tanta raiva e impotência como naquele momento.

Poseidon passou a mão na barba.

— Percy, Beckendorf escolheu uma morte heroica. Você não é culpado por isso. O exército de Cronos deve estar desbaratado. Muitos foram destruídos.

— Mas nós não o matamos, não foi?

Enquanto fazia a pergunta, sabia que era uma esperança ingênua. Podíamos explodir seu navio e desintegrar seus monstros, mas o Senhor Titã não seria assim tão fácil de matar.

— Não — admitiu Poseidon. — Mas vocês ganharam tempo para o nosso lado.

— Havia semideuses no navio — falei, pensando no garoto que eu encontrara na escada.

De alguma forma eu me permitira me concentrar nos monstros e em Cronos. Estava convencido de que não era errado destruir o navio porque eles eram seres do mal, porque estavam navegando para atacar minha cidade e porque, além do mais, não podiam mesmo ser mortos para sempre. Os monstros se pulverizam, mas acabam novamente reconstituídos. Já os semideuses...

Poseidon pôs a mão em meu ombro.

— Percy, havia apenas alguns guerreiros semideuses a bordo daquele navio, e todos tinham escolhido lutar por Cronos. Quem sabe alguns ouviram seu aviso e escaparam. Se isso não aconteceu... eles tinham feito sua escolha.

—Tinham sofrido uma lavagem cerebral! — disse eu. — Agora estão mortos, e Cronos ainda vive. Espera que isso faça com que eu me sinta melhor?

Olhei para o mosaico — pequenas explosões destruíam monstros de ladrilho. Parecia tão fácil quando tudo era só uma imagem...

Tyson pôs o braço à minha volta. Se qualquer outra pessoa tivesse tentado fazer isso, eu a teria afastado, mas Tyson era grande demais e teimoso demais. Ele me abraçou, quisesse eu ou não.

— Não foi culpa sua, irmão. Cronos não é bom para explodir. Da próxima vez, vamos usar mais bombas.

— Percy — disse meu pai. — O sacrifício de Beckendorf não foi em vão. Vocês dispersaram as forças de invasão. Nova York estará em segurança por algum tempo, o que libera os outros olimpianos para enfrentar a ameaça maior.

— Ameaça maior? — Pensei no que o titã dourado dissera em meu sonho: Os deuses aceitaram o desafio. Logo serão destruídos.

Uma expressão sombria cruzou o rosto do meu pai.

— Você já teve sofrimento suficiente para um dia. Pergunte a Quíron quando você deverá voltar ao acampamento.

— Voltar ao acampamento? Mas você está com problemas aqui. Eu quero ajudar!

— Não pode, Percy. Sua missão é em outro lugar.

Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Olhei para Tyson em busca de apoio.

Meu irmão mordeu o lábio.

— Papai... Percy sabe lutar com a espada. Ele é bom.

— Eu sei disso — disse Poseidon gentilmente.

— Pai, eu posso ajudar — afirmei. — Sei que posso. Você não vai resistir aqui por muito mais tempo.

Uma bola de fogo foi disparada para o alto por trás das linhas inimigas. Pensei que Poseidon fosse desviá-la ou coisa parecida; no entanto, ela caiu no canto externo do pátio e explodiu, vários tritões foram lançados para longe, girando na água. Poseidon estremeceu, como se tivesse acabado de ser apunhalado.

— Volte para o acampamento — insistiu. — E diga a Quíron que chegou a hora.

— De quê?

— Você deve ouvir a profecia. A profecia inteira.

Eu não precisava perguntar qual profecia. Havia anos eu ouvia falar da “Grande Profecia”, mas ninguém me contava a história toda. Tudo o que sabia era que deveria fazer uma escolha que decidiria o destino do mundo — sem nenhuma pressão.

— E se for esta a escolha? — perguntei. — Ficar aqui para lutar ou ir embora? E se eu for e você...

Eu não podia dizer morrer. Os deuses supostamente não morriam, mas eu vira isso acontecer. Mesmo que não morressem, podiam ser reduzidos a quase nada, exilados, aprisionados nas profundezas do Tártaro, como acontecera a Cronos.

— Percy, você precisa ir — insistiu Poseidon. — Não sei qual será sua decisão final, mas sua luta está no mundo lá em cima. Se não por outro motivo, para avisar seus amigos no acampamento. Cronos sabia do seu plano. Há um espião entre vocês. Nós vamos continuar aqui. Não temos escolha.

Tyson agarrou minha mão, desesperado.

— Vou sentir sua falta, irmão!

Enquanto nos observava, nosso pai pareceu envelhecer outros dez anos.

— Tyson, você também tem trabalho a fazer, meu filho. Estão precisando de você no arsenal.

Tyson ficou ainda mais chateado.

— Eu vou — fungou ele. Então me abraçou com tanta força que quase quebrou minhas costelas. — Percy, tenha cuidado! Não deixe que os monstros matem você!

Tentei assentir, confiante, mas aquilo era demais para o grandão. Ele soluçou e afastou-se, nadando em direção ao arsenal onde seus primos consertavam lanças e espadas.

— Você deveria deixá-lo lutar — eu disse a meu pai. — Ele detesta ficar preso no arsenal. Você não percebe?

Poseidon sacudiu a cabeça.

— Já é ruim o bastante que eu tenha de enviar você para o perigo. Tyson é jovem demais. Preciso protegê-lo.

— Deveria confiar nele — falei —, não tentar protegê-lo.

Os olhos de Poseidon faiscaram. Pensei que tivesse ido longe demais, mas nesse momento ele baixou os olhos para o mosaico, e seus ombros se vergaram. Nos ladrilhos, o tritão na carruagem puxada por camarões estava se aproximando do palácio.

— Oceano está chegando — disse meu pai. — Preciso enfrentá-lo na batalha.

Eu nunca sentira medo por um deus antes, mas não via como meu pai poderia enfrentar aquele titã e vencer.

— Vou resistir — prometeu Poseidon. — Não vou entregar meu domínio. Mas me diga uma coisa, Percy: você ainda tem o presente de aniversário que lhe dei no verão passado?

Assenti e mostrei meu colar do acampamento. Tinha uma conta para cada verão que eu havia passado no Acampamento Meio-Sangue, mas desde o ano anterior tinha também uma bolacha de areia, ou “dólar de areia”, no cordão. Meu pai me dera de presente quando fiz quinze anos. Dissera que eu saberia quando “gastá-lo”, mas até agora eu não tinha entendido o sentido daquilo. Tudo o que eu sabia era que aquele dólar não cabia nas máquinas de refrigerante do refeitório da escola.

— A hora está chegando — ele sentenciou. — Com sorte, vou vê-lo em seu aniversário na semana que vem, e vamos comemorar adequadamente.

Ele sorriu, e por um momento vi o antigo brilho em seus olhos.

Então, o mar inteiro escureceu à nossa frente, como se estivesse desabando uma tempestade de nanquim. Um trovão ribombou, o que deveria ser impossível debaixo d’água. Uma presença imensa e glacial estava se aproximando. Senti uma onda de medo atravessar os exércitos abaixo de nós.

— Preciso assumir minha verdadeira forma divina — disse Poseidon. — Vá... e boa sorte, meu filho.

Eu queria encorajá-lo, abraçá-lo ou coisa assim, mas sabia que era melhor não ficar ali. Quando um deus assume sua verdadeira forma, o poder é tamanho que qualquer mortal que o olhe se desintegra.

— Adeus, pai — consegui dizer.

Então me afastei. Pedi às correntes oceânicas que me ajudassem. A água se agitou à minha volta, e disparei em direção à superfície numa velocidade que teria feito qualquer ser humano normal estourar como um balão de gás.

Quando olhei para trás, tudo o que consegui ver foram lampejos de verde e azul enquanto meu pai lutava contra o titã, e o próprio mar era cindido pelos dois exércitos.


TRÊS

Dou uma espiada na minha morte

Se quiser ser popular no Acampamento Meio-Sangue, não volte de uma missão com más notícias.

A notícia de minha chegada espalhou-se assim que saí do oceano. Nossa praia fica no litoral norte de Long Island e é encantada; portanto, a maioria das pessoas nem pode vê-la. Ninguém surge na praia, exceto semideuses ou deuses — ou entregadores de pizza completamente perdidos. (Já aconteceu — mas isso é outra história.)

Seja como for, naquela tarde o sentinela de plantão era Connor Stoll, do chalé de Hermes. Quando ele me avistou, ficou tão agitado que caiu da árvore onde estava. Então soprou a trombeta de concha para avisar ao acampamento e correu para me cumprimentar.

Connor tem um sorriso torto que combina com seu senso de humor. É um cara muito legal, mas você precisa manter a mão sempre na carteira quando ele está por perto, e em nenhuma circunstância lhe dê acesso a creme de barbear, a menos que queira encontrar seu saco de dormir inteiramente lambuzado. Ele tem cabelos castanhos cacheados e é um pouquinho mais baixo que seu irmão, Travis, e essa é a única maneira pela qual consigo diferenciá-los. Os dois são tão diferentes de meu velho inimigo Luke que é difícil acreditar que sejam todos filhos de Hermes.

— Percy! — gritou ele. — O que aconteceu? Onde está Beckendorf?

Então ele viu minha expressão e seu sorriso se desfez.

— Ah, não! Pobre Silena. Santo Zeus, quando ela souber...

Juntos, subimos as dunas. Algumas centenas de metros adiante as pessoas já chegavam em grande número, vindo em nossa direção, sorrindo, animadas. Percy voltou, provavelmente pensavam. Salvou a pátria! Talvez tenha trazido suvenires!

Parei no pavilhão do refeitório e esperei por eles. Não havia sentido em descer correndo até lá para lhes dizer que eu havia fracassado.

Corri o olhar pelo vale e tentei lembrar como era o Acampamento Meio-Sangue da primeira vez que o vi. Isso parecia um zilhão de anos atrás.

Do pavilhão do refeitório dava para ver praticamente tudo. Colinas delimitavam o vale. Na mais alta, a Colina Meio-Sangue, o pinheiro de Thalia erguia-se com o Velocino de Ouro pendendo de seus galhos, magicamente protegendo o acampamento de seus inimigos. O dragão sentinela Peleu estava tão grande agora que eu podia vê-lo daqui — enroscado no tronco da árvore, soltando sinais de fumaça enquanto roncava.

À minha direita estendia-se a floresta. À esquerda, o lago de canoagem cintilava e o muro de escalada brilhava com a lava que escorria pelos lados. Doze chalés — um para cada deus do Olimpo — formavam o desenho de uma ferradura em torno de uma área comum. Mais ao sul ficavam os campos de morangos, o arsenal e a Casa Grande de quatro andares, com sua pintura de céu azul e o cata-vento com a águia de bronze.

Em alguns aspectos, o acampamento não mudara. Mas não era nas construções ou nos campos que se podia ver a guerra. Era no rosto dos semideuses, sátiros e náiades que vinham subindo a colina.

Não havia tantos no acampamento quanto quatro verões atrás. Alguns tinham partido e jamais voltaram. Alguns haviam morrido em combate. Outros — tentávamos não falar deles — tinham passado para o lado do inimigo.

Os que ainda se encontravam ali estavam endurecidos pelas batalhas, e exaustos. Havia poucas risadas no acampamento por esses dias. Mesmo o chalé de Hermes não pregava tantas peças como antes. É difícil achar graça em pegadinhas quando a sua vida já parece uma.

Quíron foi o primeiro a chegar ao pavilhão, o que era fácil para ele, visto que tem o corpo de um garanhão branco da cintura para baixo. Sua barba havia se tornado mais rebelde ao longo do verão. Ele usava uma camisa verde que dizia MEU OUTRO CARRO É UM CENTAURO, e um arco pendia de suas costas.

— Percy! — disse ele. — Graças aos deuses. Mas onde...

Annabeth chegou correndo logo atrás dele, e vou admitir que meu coração disparou quando a vi. Não que ela tentasse se arrumar. Vínhamos tendo tantas missões de combate ultimamente que ela mal penteava os cabelos louros e encaracolados, e não dava a mínima para as roupas que usava — em geral, a mesma velha camiseta laranja do acampamento e jeans... e de vez em quando sua armadura de bronze. Seus olhos eram de um tom cinza de tempestade. Quase nunca conseguíamos terminar uma conversa sem tentar estrangular um ao outro. Ainda assim, o simples fato de vê-la fez com que eu me sentisse confuso. No verão passado, antes de Luke ter se transformado em Cronos e tudo ter dado errado, algumas vezes pensei que talvez... bem, que talvez pudéssemos deixar pra lá a fase de estrangulamento mútuo.

— O que aconteceu? — Ela agarrou meu braço. — Luke...

— O navio explodiu — falei. — Mas ele não foi destruído. Não sei onde...

Silena Beauregard abriu caminho em meio à multidão. Estava despenteada e nem sequer usava maquiagem, o que não era próprio dela.

— Onde está Charlie? — perguntou, olhando ao redor, como se ele pudesse estar se escondendo.

Olhei para Quíron, impotente.

O velho centauro pigarreou.

— Silena, minha querida, vamos conversar sobre isso na Casa Grande...

— Não — murmurou ela. — Não. Não.

Ela começou a chorar, e nós ficamos ali parados, perplexos demais para falar. Já havíamos perdido muitos durante o verão, mas aquela era a pior baixa. Sem Beckendorf, parecia que alguém havia roubado a âncora do acampamento inteiro.

Finalmente, Clarisse, do chalé de Ares, avançou e abraçou Silena. Elas tinham uma das amizades mais estranhas possíveis — uma filha do deus da guerra e uma filha da deusa do amor —, mas desde que Silena, no verão anterior, aconselhara Clarisse em relação ao primeiro namorado, Clarisse decidira que era a guarda-costas particular da colega.

Clarisse estava vestida com sua armadura de combate vermelho-sangue, o cabelo castanho preso sob uma bandana. Era grande e forte como um jogador de rúgbi, sempre de cara feia, mas falou delicadamente com Silena.

— Vamos, garota — disse ela. — Vamos para a Casa Grande. Vou fazer um chocolate quente para você.

Todos deram meia-volta e se afastaram em grupos de dois ou três, de volta aos chalés. Agora ninguém mais estava animado com minha chegada. Ninguém queria ouvir sobre a explosão do navio.

Somente Annabeth e Quíron ficaram para trás.

Annabeth enxugou uma lágrima.

— Estou feliz por você não estar morto, Cabeça de Alga.

— Obrigado — disse eu. — Eu também.

Quíron pousou a mão em meu ombro.

— Tenho certeza de que você fez tudo o que pôde, Percy. Pode nos contar o que aconteceu?

Eu não queria reviver aquilo tudo, mas contei-lhes a história, inclusive meu sonho com os titãs. Deixei de fora o detalhe sobre Nico, que me fizera prometer não contar a ninguém sobre seu plano até que eu me decidisse, e o plano era tão assustador que eu preferia mesmo mantê-lo em segredo.

Quíron olhou para o vale lá embaixo.

— Precisamos convocar um conselho de guerra imediatamente para discutir a questão do espião e outros assuntos.

— Poseidon mencionou outra ameaça — falei. — Algo ainda maior que o Princesa Andrômeda. Pensei que talvez fosse esse desafio que o titã mencionara em meu sonho.

Quíron e Annabeth trocaram olhares, como se soubessem de algo, e eu não. Eu detestava quando faziam isso.

— Vamos discutir isso também — prometeu Quíron.

— Mais uma coisa. — Respirei fundo. — Quando conversei com meu pai, ele me pediu que dissesse a você que já é hora. Preciso conhecer a profecia completa.

Os ombros de Quíron se vergaram, mas ele não pareceu surpreso.

— Temi que esse dia chegasse. Muito bem. Annabeth, vamos mostrar a verdade a Percy... toda ela. Vamos para o sótão.

Eu já estivera no sótão da Casa Grande três vezes, e isso era três vezes mais do que eu gostaria.

Uma escadinha de mão acomodada no topo de uma escadaria levava até o sótão. Estava me perguntando como Quíron ia chegar até lá, sendo metade cavalo, mas ele nem tentou.

— Você sabe onde está — disse ele a Annabeth. — Tragam aqui para baixo, por favor.

Annabeth assentiu.

— Venha, Percy.

O sol estava se pondo lá fora, portanto, o sótão estava ainda mais escuro e sinistro que de hábito. Velhos troféus de heróis se empilhavam por toda parte — escudos amassados, cabeças de vários monstros conservadas em vidros, um par de dados de pelúcia preso em uma placa de bronze que dizia: ROUBADOS DO HONDA CIVIC DE CRISAOR, POR GUS, FILHO DE HERMES, 1988.

Peguei uma espada de bronze curva tão amassada que parecia a letra M. Ainda dava para ver no metal as manchas verdes do veneno mágico que já a cobrira. A etiqueta tinha a data do verão anterior. Dizia: Cimitarra de Campe, destruída na Batalha do Labirinto.

— Lembra-se de Briareu atirando aquelas pedras? — perguntei.

Annabeth me dirigiu um sorriso relutante.

— E Grover causando pânico?

Nossos olhos se encontraram. Pensei em outro momento do verão passado, sob o Monte Santa Helena, quando Annabeth pensou que eu fosse morrer e me beijou.

Ela pigarreou e desviou o olhar.

— A profecia.

— Certo. — Pus de volta a cimitarra. — A profecia.

Fomos até a janela. No banquinho de três pernas estava sentado o Oráculo — uma enrugada múmia de mulher com um vestido tingido no estilo dos hippies. Tufos de cabelo preto ainda estavam grudados a seu crânio. Olhos vítreos espiavam do rosto cuja pele se assemelhava a couro. O simples ato de olhar para ela me dava arrepios.

Se você quisesse deixar o acampamento durante o verão, costumava ter de ir ali para ser designado para uma missão. Nesse verão, essa regra foi deixada de lado. Os campistas saíam o tempo todo em missões de combate. Não havia outra escolha se quiséssemos deter Cronos.

Ainda assim, eu me lembrava muito bem da estranha névoa verde — o espírito do Oráculo — que vivia dentro da múmia. Ela agora parecia sem vida, mas sempre que anunciava uma profecia ela se movia. Às vezes saía de sua boca uma fumaça que criava estranhas formas. Uma vez, ela chegara até mesmo a sair do sótão e dar um passeio de zumbi até a floresta, para transmitir um recado. Eu não sabia o que ela aprontaria para a “Grande Profecia”. Eu quase esperava que ela começasse a sapatear ou coisa parecida.

No entanto, ela continuou sentada ali, parecendo morta — e estava mesmo.

— Nunca entendi isso — sussurrei.

— O quê? — perguntou Annabeth.

— Por que é uma múmia.

— Percy, ela não era uma múmia. Durante milhares de anos o espírito do Oráculo viveu dentro de uma linda donzela. O espírito era passado de geração a geração. Quíron contou-me que essa era a linda donzela há cinquenta anos. — Annabeth apontou para a múmia. — Mas ela foi a última.

— O que aconteceu?

Annabeth começou a dizer algo, então aparentemente mudou de ideia.

— Vamos fazer o que temos de fazer e dar o fora daqui.

Olhei, nervoso, para o rosto murcho do Oráculo.

— O que vem agora?

Annabeth aproximou-se da múmia e estendeu as mãos com as palmas voltadas para cima.

— Ó Oráculo, a hora é esta. Peço que nos diga a Grande Profecia.

Eu me preparei, mas o Oráculo não se mexeu. Em vez disso, Annabeth se aproximou e abriu o fecho dos colares da múmia. Eu nunca prestara atenção àqueles colares. Deduzira que eram apenas contas hippies. Mas quando Annabeth se virou para mim, tinha nas mãos uma bolsinha de couro — como a bolsinha de remédios de um índio americano, presa numa corda tecida com penas. Ela abriu a bolsinha e tirou dali um rolo de pergaminho que não era maior que seu dedo mínimo.

— Sem essa — disse eu. — Quer dizer que durante todos esses anos em que venho perguntando sobre essa estúpida profecia ela esteve bem aí no pescoço dela?

— A hora ainda não havia chegado — disse Annabeth. — Acredite, Percy, eu li isto quando tinha dez anos... e ainda tenho pesadelos.

— Ótimo — falei. — Posso ler agora?

— Lá embaixo, no conselho de guerra — respondeu Annabeth. — Não na frente de... você sabe.

Observei os olhos vítreos do Oráculo e resolvi não discutir. Descemos para nos juntar aos outros. Eu ainda não sabia, mas essa seria minha última visita ao sótão.

Os membros seniores do conselho estavam reunidos em torno da mesa de pingue-pongue. Não me pergunte por quê, mas a sala de recreação havia se tornado o quartel-general informal para os conselhos de guerra no acampamento. Quando Annabeth, Quíron e eu chegamos, porém, mais parecia que estava havendo um campeonato de quem gritava mais alto.

Clarisse ainda usava o traje de batalha completo. Sua lança elétrica estava presa às costas. (Na verdade, sua segunda lança elétrica, já que eu quebrara a primeira. Ela chamava a arma de “Mutiladora”, mas pelas costas, os outros a chamavam de “Muito Amadora”.) O elmo no formato de javali estava debaixo de um braço e ela carregava uma faca no cinto.

Ela estava gritando com Michael Yew, o novo líder do chalé de Apolo, o que estava meio engraçado, já que Clarisse era uns trinta centímetros mais alta que ele. Michael assumiu a liderança no chalé de Apolo depois que Lee Fletcher morrera em batalha no último verão. Michael erguia-se em seu 1,37 metro, com mais meio metro de atitude. Ele me lembrava uma doninha, com o nariz pontudo e as feições contraídas — talvez porque ele franzia muito a testa ou porque passava tempo demais olhando a haste de uma flecha.

—Trata-se de nosso despojo! — gritou ele, erguendo-se na ponta dos pés, de modo a ficar cara a cara com Clarisse. — Se não gosta, pode encarar minhas flechas!

Ao redor da mesa as pessoas faziam força para não rir — os irmãos Stoll, Pólux, do chalé de Dioniso; Katie Gardner, de Deméter. Até Jake Mason, o novo conselheiro de Hefesto apressadamente nomeado, conseguiu dar um leve sorriso. Somente Silena Beauregard não prestava atenção. Estava sentada ao lado de Clarisse, olhando com apatia para a rede de pingue-pongue. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. À sua frente, uma xícara de chocolate quente intocada. Parecia injusto que ela tivesse de estar ali. Eu não podia acreditar que Clarisse e Michael estivessem discutindo sobre algo tão estúpido quanto despojos na frente dela, quando ela havia acabado de perder Beckendorf.

— PAREM! — gritei. — O que vocês dois estão fazendo?

Clarisse me fuzilou com o olhar.

— Diga a Michael que pare de bancar o idiota egoísta.

— Ah, isso é perfeito, vindo de você — disse Michael.

— A única razão de eu estar aqui é para apoiar Silena! — gritou Clarisse. — Caso contrário, estaria em meu chalé.

— Do que vocês estão falando? — perguntei.

Pólux pigarreou.

— Clarisse se recusa a falar com qualquer um de nós até que sua, hã, questão esteja resolvida. Ela não fala nada há três dias.

— Está sendo uma maravilha — disse, pensativo, Travis Stoll.

— Qual é a questão? — perguntei.

Clarisse voltou-se para Quíron.

— Você é o responsável, certo? Meu chalé vai ter o que deseja ou não?

Quíron mudou os cascos de posição.

— Minha querida, como já expliquei, Michael está certo. O chalé de Apolo tem o melhor argumento. Além disso, há questões mais importantes...

— Claro — interrompeu Clarisse. — Sempre há questões mais importantes que as necessidades de Ares. A vocês só interessa que nos apresentemos e lutemos quando precisam de nós, sem reclamar!

— Isso seria bom — murmurou Connor Stoll.

Clarisse empunhou sua faca.

— Talvez eu devesse perguntar ao sr. D...

— Como você sabe — interrompeu-a Quíron, seu tom agora ligeiramente irritado —, nosso diretor, Dioniso, está ocupado com a guerra. Não pode ser perturbado com esse assunto.

— Entendo — disse Clarisse. — E os membros seniores do conselho? Algum de vocês vai tomar o meu partido?

Agora ninguém sorria. Nenhum deles olhou Clarisse nos olhos.

— Ótimo. — Clarisse voltou-se para Silena. — Desculpe-me. Eu não pretendia tocar nesse assunto quando você acaba de perder... Seja como for, peço desculpas. A você. A ninguém mais.

Silena não pareceu registrar as palavras dela.

Clarisse atirou sua faca na mesa de pingue-pongue.

— Todos vocês podem travar essa guerra sem Ares. Até que minha vontade seja satisfeita, ninguém em meu chalé vai levantar um só dedo para ajudar. Divirtam-se morrendo.

Os conselheiros estavam todos atônitos demais para dizer algo enquanto Clarisse deixava a sala.

Por fim, Michael Yew disse:

— Já vai tarde.

— Você está brincando? — protestou Katie Gardner. — Isso é um desastre!

— Ela não pode estar falando sério — disse Travis. — Pode?

Quíron suspirou.

— O orgulho dela foi ferido. Ela vai acabar se acalmando. — Mas ele não pareceu convincente.

Eu queria perguntar por que diabos Clarisse estava tão furiosa, mas olhei para Annabeth e seus lábios desenharam as palavras Depois conto a você.

— Agora — continuou Quíron —, por favor, conselheiros. Percy trouxe algo que acredito que vocês devam ouvir. Percy... a Grande Profecia.

Annabeth me entregou o pergaminho. Era velho e ressecado, meus dedos se atrapalharam com o cordão. Desenrolei o papel, tentando não rasgá-lo, e comecei a ler:

— Um meio-sangue, dos meses antigos...

— Hã, Percy? — interrompeu Annabeth. — São deuses. Não meses.

— Ah, certo — disse eu. Ser disléxico é uma característica dos semideuses, mas às vezes eu realmente odeio isso. Quanto mais fico nervoso, pior é a minha leitura. — Um meio-sangue, dos deuses antigos filho... Chegará aos dezesseis apesar de empecilhos...

Hesitei, fitando as linhas a seguir. Uma sensação de frio surgiu em meus dedos, como se o papel estivesse congelando.

— Num sono sem fim o mundo estará, E a alma do herói, a lâmina maldita ceifará.

De repente, Contracorrente pareceu mais pesada em meu bolso. Uma lâmina maldita? Quíron certa vez me disse que Contracorrente levara sofrimento a muitas pessoas. Seria possível que eu fosse morrer por minha própria espada? E como o mundo poderia mergulhar em um sono sem fim, a menos que isso significasse a morte?

— Percy — instou Quíron. — Leia o restante.

Minha boca parecia estar cheia de areia, mas li os dois últimos versos.

— Uma escolha seus dias vai encerrar... O Olimpo pre... presentear...

— Preservar — disse Annabeth delicadamente. — Quer dizer salvar.

— Sei o que quer dizer — murmurei. — O Olimpo preservar ou arrasar.

A sala ficou em silêncio. Por fim, Connor Stoll disse:

— Arrasar é bom, não é?

— Aqui não é no sentido de ser um sucesso — disse Silena. Sua voz soou abafada, mas só o fato de ela falar qualquer coisa já me surpreendeu. — Arrasar, aqui, é destruir.

— Eliminar — completou Annabeth. — Aniquilar. Transformar em entulho.

— Entendi. — Meu coração pesava como chumbo. — Obrigado.

Todos me olhavam — com preocupação, pena ou, talvez, um pouco de medo.

Quíron fechou os olhos, como se fizesse uma prece. Em sua forma de cavalo, a cabeça quase esbarrava nas lâmpadas da sala de recreação.

— Agora você vê, Percy, porque achamos melhor não lhe dizer toda a profecia. Você já carregou bastante nos ombros...

— Sem perceber que morreria no fim, de qualquer forma? — disse eu. — É. Entendi.

Quíron me olhou com tristeza. O cara tinha três mil anos de idade. Vira centenas de heróis morrerem. Podia não gostar, mas estava acostumado a isso. Provavelmente, tinha coisa melhor a fazer do que tentar me tranquilizar.

— Percy — disse Annabeth. — Você sabe que as profecias sempre têm mais de uma interpretação. Isso não significa literalmente sua morte.

— Certo — falei. — Uma escolha seus dias vai encerrar. Isso tem milhares de significados, não é mesmo?

—Talvez possamos impedir — sugeriu Jake Mason. — E a alma do herói, a lâmina maldita ceifará. Talvez pudéssemos encontrar essa lâmina maldita e destruí-la. Parece tratar-se da foice de Cronos, não acham?

Eu não tinha pensado nisso, mas não importava se a lâmina maldita era Contracorrente ou a foice de Cronos. Uma ou outra, eu duvidava de que pudéssemos evitar a profecia. Uma lâmina ia ceifar minha alma. Como regra geral, preferiria não ter minha alma ceifada.

— Talvez devêssemos deixar Percy pensar nesses versos — disse Quíron. — Ele precisa de tempo.

— Não. — Dobrei a profecia e a enfiei no bolso. Sentia-me desafiador e furioso, embora não tivesse certeza de com quem eu estava furioso. — Não preciso de tempo. Se eu morrer, morri. Não posso me preocupar com isso, certo?

As mãos de Annabeth tremiam um pouco. Ela não me olhava nos olhos.

— Vamos continuar — eu disse. — Temos outros problemas a tratar. Existe um espião entre nós.

Michael Yew franziu as sobrancelhas.

— Um espião?

Contei-lhes o que acontecera no Princesa Andrômeda — que Cronos sabia de nossa chegada, que ele me mostrara o pendente da foice prateada que usara para se comunicar com alguém no acampamento.

Silena recomeçou a chorar, e Annabeth a abraçou.

— Bem — disse Connor, pouco à vontade —, suspeitamos que poderia haver um espião durante anos, certo? Alguém passava informações a Luke... como a localização do Velocino de Ouro alguns anos atrás. Deve ser alguém que o conhecia bem.

Talvez inconscientemente, ele olhou para Annabeth. Ela conhecera Luke melhor que qualquer outro, é claro, mas Connor desviou os olhos depressa.

— Hã, o que quero dizer é que pode ser qualquer um.

— É. — Katie Gardner franziu o cenho para os irmãos Stoll. Ela não gostava deles desde que haviam decorado o telhado de grama do chalé de Deméter com coelhinhos de Páscoa de chocolate. — Como um dos irmãos de Luke.

Travis e Connor começaram a discutir com ela.

— Parem! — Silena bateu na mesa com tanta força que seu chocolate quente derramou. — Charlie está morto e... vocês todos ficam aí brigando feito criancinhas! — Ela baixou a cabeça e começou a soluçar.

O chocolate quente escorria da mesa de pingue-pongue. Todos pareciam envergonhados.

— Ela tem razão — disse Pólux, por fim. — Acusar um ao outro não ajuda. Precisamos ficar de olho em um cordão de prata com uma foice como pingente. Se Cronos tinha um, o espião provavelmente também tem.

Michael Yew resmungou.

— Precisamos encontrar esse espião antes de planejar nossa próxima operação. A explosão do Princesa Andrômeda não vai deter Cronos para sempre.

— De fato, não — concordou Quíron. — Na verdade, seu próximo ataque já está a caminho.

Franzi as sobrancelhas.

— Você se refere à “ameaça maior” que Poseidon mencionou?

Quíron e Annabeth se entreolharam, como se dissessem: Chegou a hora. Eu já disse que detesto quando eles fazem isso?

— Percy — começou Quíron —, não queríamos lhe contar até que voltasse para o acampamento. Você precisava de um descanso com... seus amigos mortais.

Annabeth enrubesceu. Ocorreu-me que ela sabia que eu vinha saindo com Rachel e me senti culpado. Então fiquei com raiva por me sentir culpado. Eu tinha o direito de ter amigos fora do acampamento, certo? Não era como se eu...

— Contem-me o que aconteceu — falei.

Quíron pegou uma taça de bronze na mesa do lanche. Jogou água na chapa de metal quente onde costumávamos derreter queijo. O vapor subiu, criando um arco-íris nas luzes fluorescentes. Quíron tirou um dracma de ouro de sua sacola, atirou-o no meio da névoa e murmurou:

— Ó Íris, deusa do arco-íris, mostre-nos a ameaça.

A névoa tremeluziu. Vi a imagem familiar de um vulcão em erupção — o Monte Santa Helena. Enquanto eu observava, a encosta da montanha explodiu. Fogo, cinzas e lava eram lançados no ar. A voz de um repórter dizia: “... maior que a erupção do ano passado, e os geólogos advertem que a montanha pode ainda não ter se aplacado.”

Eu sabia tudo sobre a erupção do ano passado. Eu a causara. Mas esta era muito pior. A montanha se partira ao meio, ruindo para dentro, e uma enorme forma erguia-se da fumaça e da lava, como se estivesse saindo de um bueiro. Eu esperava que a Névoa estivesse impedindo que os humanos a distinguissem com clareza, porque o que vi teria causado pânico, terror e agonia por todos os Estados Unidos.

O gigante era maior que qualquer coisa que eu já vira. Nem mesmo meus olhos de semideus podiam distinguir sua forma exata em meio às cinzas e ao fogo, mas era vagamente humanoide e tão imensa que poderia usar o Edifício Chrysler como taco de beisebol. A montanha foi sacudida por um estrondo horrível, como se o monstro estivesse rindo.

— É ele — eu disse. — Tifão.

Eu esperava sinceramente que Quíron retrucasse algo positivo, do tipo: Não, aquele é o nosso enorme amigo Leroy! Ele vai nos ajudar! Mas isso não aconteceu. Ele simplesmente assentiu.

— O monstro mais terrível de todos, a maior ameaça isolada que os deuses já enfrentaram. Ele finalmente foi libertado de sob a montanha. Mas essa cena é de dois dias atrás. Eis o que está acontecendo hoje.

Quíron agitou a mão e a imagem mudou. Vi uma massa de nuvens de tempestade rolando sobre as planícies do Meio-Oeste. Relâmpagos fulguravam. Tornados destruíam tudo em seu caminho — arrancando do chão casas e trailers, lançando carros de um lado para o outro como se fossem carrinhos de brinquedo Matchbox.

“Enchentes monumentais”, dizia um repórter. “Cinco estados declararam estado de calamidade pública enquanto uma imprevisível tempestade assola o Leste, deixando um rastro de destruição.”

As câmeras deram um zoom em uma formação de tempestade aproximando-se rapidamente de uma cidade do Meio-Oeste. Eu não sabia qual era. Dentro da tempestade eu podia ver o gigante — apenas vislumbres de sua verdadeira forma: um braço enfumaçado, uma garra escura do tamanho de um quarteirão em uma cidade grande. Seu rugido furioso ressoava pelas planícies como uma explosão nuclear. Outras formas menores disparavam em meio às nuvens, cercando o monstro. Eu via lampejos de luz e percebi que o gigante estava tentando livrar-se deles com a mão. Estreitei os olhos, tentando enxergar melhor, e pensei ter distinguido uma carruagem dourada voando para a escuridão. Então uma espécie de pássaro enorme — uma coruja monstruosa — mergulhou em um ataque ao gigante.

— Aqueles são... os deuses? — perguntei.

— Sim, Percy — disse Quíron. — Estão lutando contra ele faz dias, tentando retardá-lo. Mas Tifão prossegue em sua marcha... em direção a Nova York. Em direção ao Olimpo.

Esperei até absorver aquela informação.

— Quanto tempo temos até ele chegar aqui?

— A menos que os deuses consigam detê-lo? Talvez cinco dias. A maior parte dos olimpianos está lá... exceto seu pai, que está travando sua própria guerra.

— Então, quem está guardando o Olimpo?

Connor Stoll sacudiu a cabeça.

— Se Tifão chegar a Nova York, não terá a menor importância quem está guardando o Olimpo.

Pensei nas palavras de Cronos no navio: Eu adoraria ver o terror em seus olhos quando soubesse como vou destruir o Olimpo.

Era disso que ele estava falando: um ataque de Tifão? Com certeza, era bastante aterrorizante. Mas Cronos estava sempre nos enganando, desviando nossa atenção. Isso parecia óbvio demais para ele. E no meu sonho o titã dourado falara sobre vários outros desafios iminentes, como se Tifão fosse apenas o primeiro.

— É um truque — eu disse. — Temos de avisar aos deuses. Algo mais vai acontecer.

Quíron me olhou com gravidade.

— Algo pior do que Tifão? Espero que não.

— Temos de defender o Olimpo — insisti. — Cronos planejou outro ataque.

Sim — lembrou-me Travis Stoll. — Mas você afundou o navio.

Todos olhavam para mim. Queriam alguma notícia boa. Queriam acreditar que eu, afinal, lhes daria uma pontinha de esperança.

Olhei para Annabeth. Eu podia ver que estávamos pensando a mesma coisa: e se o Princesa Andrômeda fosse um ardil? E se Cronos tivesse deixado que explodíssemos o navio para que baixássemos a guarda?

Mas eu não ia dizer isso na frente de Silena. Seu namorado havia se sacrificado naquela missão.

— Talvez você tenha razão — falei, embora não acreditasse nisso.

Tentei imaginar como as coisas poderiam piorar mais. Os deuses estavam no Meio-Oeste combatendo um monstro imenso que uma vez já quase os derrotara. Poseidon estava sitiado, perdendo a guerra contra o titã Oceano. Cronos ainda estava livre, em algum lugar. O Olimpo encontrava-se praticamente sem defesas. Os semideuses do Acampamento Meio-Sangue estavam por conta própria, com um espião em nosso meio.

Ah, e segundo a antiga profecia eu ia morrer quando completasse dezesseis anos — o que, por acaso, seria dali a cinco dias, o tempo exato em que Tifão deveria chegar a Nova York. Quase me esqueci disso.

— Bem — disse Quíron —, acho que é o suficiente por uma noite.

Ele agitou a mão e o vapor se dissipou. A tempestuosa batalha entre Tifão e os deuses desapareceu.

— Para usar um eufemismo — murmurei.

E o conselho de guerra foi suspenso.


QUATRO

Queimamos uma mortalha de metal

Sonhei que Rachel Elizabeth Dare atirava dardos em um retrato meu.

Ela estava em seu quarto... O.k. Volte. Preciso explicar que Rachel não tem um quarto. Ela tem todo o andar superior da mansão de sua família, uma das antigas casas de arenito do Brooklyn que foi reformada. Seu “quarto” é um imenso loft com iluminação industrial e janelas do chão ao teto. Tem mais ou menos o dobro do tamanho do apartamento de minha mãe.

Um rock alternativo soava nas caixas ligadas ao seu iPod todo sujo de tinta. Até onde eu sabia, as únicas regras de Rachel em relação a música eram que em seu iPod não podia haver duas músicas semelhantes, e todas tinham de ser estranhas.

Ela usava um quimono, e seu cabelo estava amarfanhado, como se tivesse acabado de acordar. A cama estava desarrumada. Havia vários cavaletes cobertos por lençóis. Roupas sujas e embalagens velhas de barras energéticas estavam espalhadas pelo chão, mas quando se tem um quarto desse tamanho, a bagunça não parece assim tão ruim. Pelas janelas podia-se ver toda a silhueta de Manhattan à noite.

O retrato que ela atacava era uma pintura em que eu aparecia erguendo-me sobre o gigante Anteu. Rachel o pintara alguns meses antes. Minha expressão no quadro era feroz — perturbadora até —, de forma que era difícil dizer se eu era o mocinho ou o bandido, mas Rachel dissera que minha expressão após a batalha era exatamente aquela.

— Semideuses — murmurou Rachel ao atirar outro dardo na tela. — E suas estúpidas missões.

A maior parte dos dardos quicava, mas alguns se cravaram. Um deles pendia do meu queixo como uma barbicha.

Alguém bateu na porta do quarto.

— Rachel! — gritou um homem. — O que está fazendo? Desligue essa...

Rachel pegou o controle remoto e desligou a música.

— Entre!

Seu pai entrou, mal-humorado e piscando por causa da luz. Ele tinha o cabelo cor de ferrugem um pouquinho mais escuro que o de Rachel. Estava amassado de um lado, como se ele tivesse acabado de perder uma luta contra o travesseiro. O pijama de seda azul tinha o monograma “WD” bordado no bolso. Francamente, quem é que usa pijama com monograma bordado?

— O que está acontecendo? — perguntou ele. — São três da manhã.

— Não consegui dormir — disse Rachel.

No quadro, um dardo caiu do meu rosto. Rachel pôs as mãos para trás para esconder os outros, mas o sr. Dare percebeu.

— Então... imagino que seu amigo não vai para St. Thomas... — Era assim que o sr. Dare me chamava. Nunca de Percy. Apenas seu amigo. Ou jovem, se estivesse falando comigo, o que raramente acontecia.

Rachel franziu as sobrancelhas.

— Não sei.

— Partiremos pela manhã — disse seu pai. — Se ele ainda não se decidiu...

— Ele provavelmente não vai — disse Rachel, infeliz. — Está satisfeito?

O sr. Dare pôs as mãos para trás. Andou de um lado para o outro no quarto com uma expressão severa. Imaginei que ele fizesse o mesmo na sala de reuniões de sua empresa de empreendimentos imobiliários, deixando os funcionários nervosos.

— Ainda está tendo pesadelos? — perguntou ele. — Dores de cabeça?

Rachel jogou os dardos no chão.

— Eu nunca deveria ter contado isso a você.

— Eu sou seu pai — disse ele. — E me preocupo.

— Preocupa-se com a reputação da família — murmurou Rachel.

O pai não reagiu — talvez porque já tivesse ouvido aquele comentário antes, talvez porque fosse verdade.

— Podíamos ligar para o dr. Arkwright — sugeriu ele. — Ele a ajudou a superar a morte de seu hamster.

— Eu tinha seis anos. E, não, papai, não preciso de um terapeuta. Eu só... — Ela sacudiu a cabeça, impotente.

O pai parou diante das janelas. Olhou a silhueta dos prédios de Nova York como se fosse seu proprietário — o que não era verdade. Era dono só de alguns deles.

— Vai ser bom para você sair um pouco daqui — concluiu ele. — Tem estado sob más influências.

— Eu não vou para a Academia de Moças de Clarion — afirmou Rachel. — E meus amigos não são da sua conta.

O sr. Dare sorriu, mas não era um sorriso terno. Era mais como: Um dia você vai perceber o quanto suas palavras soam tolas.

— Tente dormir um pouco — sugeriu ele. — Estaremos na praia amanhã à noite. Vai ser divertido.

— Divertido — repetiu Rachel. — Muito divertido.

O pai saiu do quarto e deixou a porta aberta.

Rachel olhou para o meu retrato. Então se dirigiu ao cavalete ao lado dele, que estava coberto por um lençol.

— Espero que sejam só sonhos — disse ela.

Ela descobriu o cavalete. Ali havia um desenho a carvão traçado apressadamente, mas Rachel era uma artista muito boa. O quadro era, definitivamente, Luke quando criança. Tinha uns nove anos, um sorriso largo e nenhuma cicatriz no rosto. Eu não fazia a menor ideia de como Rachel podia saber como ele era naquela época, mas o retrato era tão bom que tive a impressão de que ela não estava apenas supondo. Pelo que eu sabia sobre a vida de Luke (que não era muito), o retrato o mostrava pouco antes de ele descobrir que era um meio-sangue e fugir de casa.

Rachel fitou o desenho. Então, descobriu o cavalete seguinte. A imagem ali era ainda mais perturbadora. Mostrava o Empire State Building cercado por raios. A distância, uma tempestade escura se formava, com uma imensa mão saindo das nuvens. Na base do edifício havia uma multidão... mas não era uma multidão comum de turistas e pedestres. Eu via lanças, dardos e estandartes — os acessórios de um exército.

— Percy — murmurou Rachel, como se soubesse que eu a ouvia —, o que está acontecendo?

O sonho se desfez, e a última coisa de que me lembro foi de desejar poder responder àquela pergunta.

Na manhã seguinte eu queria ligar para ela, mas não havia telefones no acampamento. Dioniso e Quíron não precisavam de uma linha telefônica. Eles simplesmente falavam com o Olimpo via mensagem de Íris sempre que precisavam de alguma coisa. E quando os semideuses usam telefone celular, os sinais agitam todos os monstros em um raio de cento e cinquenta quilômetros. É como enviar um sinal luminoso: Estou aqui! Por favor, remodele a minha cara! Mesmo dentro dos limites seguros do acampamento, esse não é o tipo de anúncio que queremos fazer.

A maioria dos semideuses (exceto Annabeth e alguns outros) nem tem celular. E eu, definitivamente, não podia dizer a Annabeth: “Ei, me empreste seu telefone para eu ligar para Rachel!” Para fazer a ligação eu teria de sair do acampamento e andar vários quilômetros até a loja de conveniência mais próxima. Mesmo que Quíron me deixasse ir, Rachel já estaria no avião, a caminho de St. Thomas.

Tomei um deprimente e solitário café da manhã na mesa de Poseidon. Fiquei olhando a fenda no piso de mármore onde dois anos antes Nico havia banido para o Mundo Inferior um bando de esqueletos sedentos de sangue. A lembrança não aumentou meu apetite.

Depois do café da manhã, Annabeth e eu fomos fazer a inspeção dos chalés. Na verdade, era a vez de Annabeth fazer a inspeção. Minha tarefa matinal era organizar relatórios para Quíron. Mas como ambos detestávamos nossas tarefas, resolvemos cumpri-las juntos para que não fossem assim tão abomináveis.

Começamos pelo chalé de Poseidon, que era basicamente meu. Arrumara meu beliche naquela manhã (bem, mais ou menos) e endireitara o chifre do Minotauro na parede, de modo que me dei nota quatro de um total de cinco.

Annabeth fez uma careta.

— Está sendo generoso. — Ela usou a ponta de seu lápis para pegar um velho calção de corrida.

Tomei dela o calção.

— Ei, me dê uma folga. Não tenho Tyson para arrumar as coisas para mim este verão.

— Três de cinco — disse Annabeth.

Eu sabia que era melhor não discutir com ela, portanto, prosseguimos.

Tentei examinar a pilha de relatórios de Quíron enquanto andávamos. Havia mensagens de semideuses, espíritos da natureza e sátiros de todas as partes do país contando sobre recentes atividades de monstros. Eram bastante deprimentes, e meu cérebro, com seu transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, não gostava de se concentrar em coisas deprimentes.

Pequenas batalhas estavam sendo travadas por toda parte. O recrutamento de campistas estava reduzido a zero. Os sátiros estavam tendo dificuldade em encontrar novos semideuses e trazê-los para a Colina Meio-Sangue por causa do número de monstros que vagavam pelo país. Nossa amiga Thalia, que liderava as Caçadoras de Ártemis, não dava notícias fazia meses, e se Ártemis sabia o que acontecera a elas, não partilhava a informação.

Visitamos o chalé de Afrodite, que naturalmente recebeu nota cinco. As camas estavam perfeitamente arrumadas. As roupas nos baús de todos eram organizadas conforme a cor. Flores brotavam no peitoril das janelas. Eu queria tirar-lhes um ponto porque o lugar cheirava a perfume de grife, mas Annabeth me ignorou.

— Excelente trabalho, como sempre, Silena — disse ela.

Silena assentiu, indiferente. A parede atrás da cama dela era decorada com fotografias de Beckendorf. Ela estava sentada no beliche com uma caixa de chocolates no colo, e eu lembrei que seu pai era dono de uma loja de chocolates no Village — fora assim que ele chamara a atenção de Afrodite.

— Quer um bombom? — ofereceu Silena. — Meu pai me mandou. Pensou... pensou que poderiam me animar.

— São bons? — perguntei.

Ela sacudiu a cabeça.

— Têm gosto de papelão.

Eu não tinha nada contra papelão, então experimentei um. Annabeth recusou. Prometemos encontrar Silena mais tarde e prosseguimos.

Quando cruzávamos a área comum, começou uma briga entre os chalés de Ares e de Apolo. Alguns campistas de Apolo armados com bombas atacaram o chalé de Ares em uma carruagem puxada por dois pégasos. Eu nunca vira a carruagem antes, mas me pareceu boa para um belo passeio. Logo o telhado do chalé de Ares estava pegando fogo, e náiades do lago de canoagem corriam até o local para jogar água.

Então, os campistas de Ares lançaram uma maldição, e todas as flechas dos filhos de Apolo se transformaram em borracha. Os filhos de Apolo continuavam a atirar contra os de Ares, mas as flechas batiam e quicavam.

Dois arqueiros passaram correndo, perseguidos por um filho de Ares furioso, que gritava em versos:

— Maldição, pois sim! Vocês vão me pagar! / Não quero passar o dia todo a rimar!

Annabeth suspirou.

— Isso de novo, não. Da última vez que Apolo amaldiçoou um chalé, levou uma semana até que terminassem as parelhas de versos.

Estremeci. Apolo era o deus da poesia, assim como do tiro com arco, e eu já o ouvira recitar pessoalmente. Acho que prefiro ser ferido por uma flecha.

— Por que eles estão brigando, afinal? — perguntei.

Annabeth me ignorou enquanto escrevia em seu pergaminho de inspeção, dando aos dois chalés nota um.

Eu me vi olhando para ela, o que era estúpido, pois já a tinha visto um bilhão de vezes. Neste verão estávamos aproximadamente com a mesma altura, o que era um alívio. Ainda assim, ela parecia bem mais madura. Isso era um pouco intimidador. É claro, ela sempre fora bonitinha, mas estava começando a ficar bonita de verdade.

Por fim, ela disse:

— Aquela carruagem voadora.

— O quê?

— Você perguntou por que eles estavam brigando.

— Ah! Ah, certo.

— Eles a capturaram em um combate na Filadélfia na semana passada. Alguns dos semideuses de Luke estavam lá com essa carruagem voadora. O chalé de Apolo apoderou-se dela durante a batalha, mas foi o chalé de Ares que liderou o ataque. Por isso, eles estão brigando desde então.

Nós nos abaixamos quando a carruagem de Michael Yew bombardeou um campista de Ares. Este tentou atingi-lo e começou a xingá-lo em parelhas de versos. E foi bastante criativo nas rimas.

— Estamos lutando para salvar nossas vidas — disse eu —, e eles estão brigando por causa de uma carruagem estúpida.

— Vão superar isso — disse Annabeth. — Clarisse vai recobrar o juízo.

Eu não tinha tanta certeza. Recobrar o juízo não parecia próprio da Clarisse que eu conhecia.

Examinei mais relatórios e inspecionamos mais alguns chalés. Deméter ganhou quatro. Hefesto, três — e provavelmente teria uma nota menor, mas com a morte de Beckendorf e tudo mais, nós lhes demos uma folga. Hermes ganhou dois, o que não era nenhuma surpresa. Todos os campistas que não conheciam sua ascendência divina eram enfiados no chalé de Hermes, e como os deuses eram meio esquecidos, aquele chalé estava sempre superlotado.

Finalmente, chegamos ao chalé de Atena, que estava arrumado e limpo como sempre. Os livros estavam organizados nas prateleiras. A armadura estava polida. Mapas de batalha e projetos de arquitetura decoravam as paredes. Somente o beliche de Annabeth estava bagunçado. Estava coberto de papéis, e seu laptop prateado ainda estava ligado.

— Vlacas — murmurou Annabeth, o que era basicamente chamar a si mesmo de idiota em grego.

Seu substituto no comando, Malcolm, reprimiu um sorriso.

— É, hã... limpamos todo o resto. Não sabíamos se era seguro mexer nas suas anotações.

Isso provavelmente foi sábio. Annabeth tinha uma faca de bronze que reservava apenas para monstros e pessoas que mexiam nas suas coisas.

Malcolm sorriu para mim.

— Vamos esperar lá fora enquanto vocês terminam a inspeção.

Os campistas de Atena saíram em fila enquanto Annabeth limpava seu beliche.

Eu mudava de posição, constrangido, e fingia examinar mais alguns relatórios. Tecnicamente, mesmo durante a inspeção, era contra o regulamento do acampamento que dois campistas ficassem... assim, sozinhos, em um chalé.

Essa regra fora mencionada muitas vezes quando Silena e Beckendorf começaram a sair juntos. E eu sei que alguns de vocês devem estar pensando: todos os semideuses não são aparentados pelo lado divino e isso não faz com que namorar seja repulsivo? Mas o fato é que o lado divino da família não conta, geneticamente falando, posto que os deuses não têm DNA. Um semideus jamais pensaria em namorar alguém que tivesse o mesmo pai ou mãe divino. Dois campistas do chalé de Atena, por exemplo? Impossível. Mas uma filha de Afrodite e um filho de Hefesto? Eles não são parentes. Então, não há problema.

De qualquer forma, por alguma estranha razão eu estava pensando nisso enquanto observava Annabeth arrumar tudo. Ela fechou o laptop, que lhe fora dado de presente pelo inventor Dédalo no verão passado.

Pigarreei.

— Então... tirou alguma informação interessante dessa coisa?

— Muitas — disse ela. — Dédalo tinha tantas ideias que eu poderia passar cinquenta anos só tentando entender todas elas.

— É — murmurei. — Seria muito divertido.

Ela remexeu em seus papéis — a maior parte desenhos de edifícios e um punhado de anotações feitas à mão. Eu sabia que ela queria ser arquiteta, mas aprendera da maneira mais difícil a não perguntar em que ela estava trabalhando. Ela começaria a falar sobre ângulos e junções de sustentação até me deixar tonto.

— Você sabe... — Ela prendeu o cabelo atrás da orelha, como faz quando está nervosa. — Essa coisa toda com Beckendorf e Silena. Isso faz a gente pensar. Sobre... o que é importante. Sobre perder pessoas que são importantes.

Fiz que sim com a cabeça. Meu cérebro começou a deter-se em pequenos detalhes aleatórios, como o fato de ela ainda estar usando aqueles brincos de coruja de prata dados pelo pai, que era um professor de história militar sabichão e vivia em São Francisco.

— Hã, é — gaguejei. — Como... está tudo bem com sua família?

Está certo, uma pergunta totalmente estúpida, mas, puxa, eu estava nervoso.

Annabeth pareceu desapontada, mas assentiu.

— Meu pai queria me levar à Grécia neste verão — disse ela, melancólica. — Eu sempre quis ver...

— O Parthenon — lembrei.

Ela conseguiu dar um sorriso.

— É.

— Tudo bem. Vai haver outros verões, certo?

Assim que disse estas palavras, percebi que era um comentário idiota. Eu estava diante do fim dos meus dias. Dentro de uma semana o Olimpo deveria ruir. Se a Era dos Deuses chegasse de fato ao fim, o mundo, como o conhecemos, se desintegraria no caos. Os semideuses seriam caçados até serem extintos. Não haveria mais verões para nós.

Annabeth fitou seu pergaminho de inspeção.

— Nota três — murmurou — para uma líder de chalé desleixada. Venha. Vamos terminar com esses relatórios e encontrar Quíron.

A caminho da Casa Grande lemos o último relatório, manuscrito em uma folha de bordo por um sátiro no Canadá. Se é que isso era possível, o bilhete fez com que eu me sentisse ainda pior.

— “Caro Grover” — li em voz alta. — “Florestas nos arredores de Toronto atacadas por texugo maligno gigante. Tentei fazer como você sugeriu e evocar o poder de Pã. Em vão. Muitas árvores de náiades destruídas. Recuando para Ottawa. Por favor, seu conselho é necessário. Onde está você? — Gleeson Hedge, protetor.”

Annabeth fez uma careta.

— Não tem nenhuma notícia dele? Mesmo com seu elo de empatia?

Sacudi a cabeça, desanimado.

Desde o último verão, quando o deus Pã morrera, nosso amigo Grover passara a se aventurar cada vez mais longe. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido tratava-o como um pária, mas Grover ainda viajava por toda a Costa Leste, tentando espalhar a notícia sobre Pã e convencer os espíritos da natureza a proteger seus pedacinhos de mundo selvagem. Ele só havia voltado ao acampamento algumas vezes para ver a namorada, Juníper.

A última notícia que eu tivera dele era que estava no Central Park organizando as dríades, mas ninguém o via ou ouvia falar dele fazia dois meses. Havíamos tentado enviar-lhe mensagens de Íris, mas elas nunca chegavam. Eu tinha um elo de empatia com Grover, portanto, esperava sentir alguma coisa caso algo de ruim acontecesse a ele. Grover uma vez me dissera que, se morresse, o elo de empatia poderia me matar também. Mas eu já não tinha certeza se isso era verdade.

Imaginei se ele ainda estaria em Manhattan. Então, pensei em meu sonho com o esboço de Rachel — nuvens escuras aproximando-se da cidade, um exército reunido em torno do Empire State Building.

— Annabeth. — Eu a detive perto da quadra de tetherball, aquele jogo em que uma bola é presa no alto de um poste e dois participantes a jogam de um lado para o outro até enrolar a corda por completo. Sabia que estava procurando encrenca, mas não sabia em quem mais confiar. Além disso, eu sempre dependera dos conselhos de Annabeth. — Ouça, tive um sonho com, hã, Rachel...

Contei-lhe tudo, mesmo o estranho desenho de Luke criança.

Durante algum tempo ela não disse nada. Então, enrolou o pergaminho de inspeção com tanta força que o rasgou.

— O que você quer que eu diga?

— Não sei. Você é a melhor estrategista que conheço. Se fosse Cronos planejando esta guerra, o que faria em seguida?

— Usaria Tifão como distração. Então, atacaria o Olimpo diretamente, enquanto os deuses estivessem no Oeste.

— Exatamente como no quadro de Rachel.

— Percy — disse ela, a voz tensa —, Rachel é apenas uma mortal.

— Mas e se o sonho dela for verdade? Aqueles outros titãs... eles disseram que o Olimpo seria destruído em questão de dias. Disseram que haverá muitos outros desafios. E há ainda o quadro de Luke criança...

— Precisamos estar preparados.

— Como? — perguntei. — Olhe para o nosso acampamento. Não conseguimos nem parar de brigar entre nós. E eu ainda vou ter minha alma estúpida ceifada.

Ela jogou o pergaminho no chão.

— Eu sabia que não deveríamos ter mostrado a profecia. — Havia raiva e mágoa em sua voz. — Tudo o que ela fez foi assustar você. Você foge das coisas quando está assustado.

Eu a fitei, completamente perplexo.

Eu? Fujo?

Ela pôs o dedo no meu nariz.

— É isso mesmo. Você é um covarde, Percy Jackson!

Estávamos cara a cara. Os olhos dela estavam vermelhos, e de repente eu percebi que, ao me chamar de covarde, talvez ela não estivesse se referindo à profecia.

— Se acha que não temos chances — disse ela —, talvez tivesse sido melhor você ter saído de férias com Rachel.

— Annabeth...

— Se não gosta da nossa companhia.

— Isso não é justo!

Ela passou por mim e foi pisando duro na direção dos campos de morango. Ao passar, bateu na bola de tetherball, que girou com força em torno do poste.

Gostaria de poder dizer que meu dia melhorou a partir dali. Mas é claro que não.

Naquela tarde, tivemos uma assembleia junto à fogueira para queimar a mortalha de Beckendorf e nos despedirmos dele. Até mesmo os chalés de Ares e Apollo fizeram uma trégua temporária para comparecer.

A mortalha de Beckendorf era feita de elos de metal, como uma malha de aço. Eu não via como aquilo iria queimar, mas as Parcas deviam estar ajudando. O metal derreteu no fogo e transformou-se em fumaça dourada, que se elevou ao céu. As chamas da fogueira sempre refletiam o estado de espírito dos campistas, e hoje elas queimavam negras.

Eu esperava que o espírito de Beckendorf terminasse no Elísio. Talvez ele até optasse por renascer e tentar alcançar o Elísio em três vidas diferentes, de modo que pudesse chegar às Ilhas dos Abençoados, que eram como o último quartel-general do Mundo Inferior. Se alguém merecia chegar lá, era Beckendorf.

Annabeth saiu sem falar comigo. A maior parte dos outros campistas se afastou, voltando às suas atividades vespertinas. Eu fiquei ali parado, fitando o fogo que se extinguia. Silena estava sentada ali perto, chorando, enquanto Clarisse e o namorado, Chris Rodriguez, tentavam consolá-la.

Por fim, juntei coragem para ir até ela.

— Ei, Silena, eu sinto muito mesmo.

Ela fungou. Clarisse me fuzilou com o olhar, mas ela sempre fuzila todo mundo com o olhar. Chris mal me olhava. Ele fora um dos homens de Luke até Clarisse resgatá-lo do Labirinto no verão passado, e acho que ainda se sentia culpado por isso.

Pigarreei.

— Silena, você sabe que Beckendorf levava sua foto com ele. Ele olhou para ela antes de começarmos a batalha. Você significava muito para ele. Fez com que o último ano fosse o melhor da vida dele.

Silena soluçou.

— Bom trabalho, Percy — murmurou Clarisse.

— Não, está tudo bem — disse Silena. — Obrigada... obrigada, Percy. Eu preciso ir.

— Quer companhia? — perguntou Clarisse.

Silena sacudiu a cabeça e saiu correndo.

— Ela é mais forte do que parece — murmurou Clarisse quase para si mesma. — Vai sobreviver.

— Nisso, você podia ajudar — sugeri. — Podia honrar a memória de Beckendorf lutando conosco.

Clarisse procurou sua faca, mas não a encontrou. Ela a havia atirado na mesa de pingue-pongue na Casa Grande.

— Não é problema meu — grunhiu ela. — Se meu chalé não é prestigiado, eu não luto.

Percebi que ela não estava falando em rimas. Talvez não estivesse por perto quando seus companheiros de chalé foram amaldiçoados ou talvez conhecesse uma forma de quebrar o feitiço. Com um calafrio, imaginei se Clarisse poderia ser o espião de Cronos no acampamento. Seria por isso que ela estava mantendo seu chalé fora da luta? Mas, por menos que eu gostasse de Clarisse, espionar para os titãs não parecia seu estilo.

—Tudo bem — falei. — Não queria tocar nesse assunto, mas você me deve uma. Estaria apodrecendo na caverna de um ciclope, no Mar dos Monstros, se não fosse por mim.

Ela contraiu o maxilar.

— Qualquer outro favor, Percy. Esse, não. O chalé de Ares foi desprezado vezes demais. E não pense que eu não sei o que as pessoas falam de mim pelas costas.

Eu queria dizer: Bem, é a verdade, mas mordi a língua.

— Então... você vai simplesmente deixar Cronos nos destruir? — perguntei.

— Se quer tanto assim a minha ajuda, diga a Apolo que nos dê a carruagem.

— Você é uma bebezona.

Ela me atacou, mas Chris se interpôs entre nós.

— Ei, gente — disse ele. — Clarisse, sabe, talvez ele tenha razão.

Ela o olhou, furiosa.

— Você também não! — E saiu andando pesadamente, com Chris em seus calcanhares.

— Ei, espere! Eu só quis dizer... Clarisse, espere!

Fiquei observando as últimas centelhas do fogo de Beckendorf subirem em espiral pelo céu da tarde. Então, segui para a arena de esgrima. Eu precisava de um descanso e queria ver uma velha amiga.


CINCO

Enfio minha cadela em uma árvore

A sra. O’Leary me viu antes que eu a visse — uma manobra bastante boa, considerando-se que ela é do tamanho de um caminhão de lixo. Entrei na arena, e um muro de escuridão desabou sobre mim.

— AU!

Em um instante eu estava de costas no chão com uma pata imensa sobre meu peito e uma língua que parecia uma esponja de aço gigante lambendo meu rosto.

— Ai! — exclamei. — Ei, garota. Também estou feliz por ver você. Ai!

Levou alguns minutos até que a sra. O’Leary se acalmasse e saísse de cima de mim. A essa altura, eu estava praticamente encharcado de baba de cachorro. Ela queria brincar de pegar, portanto, escolhi um escudo de bronze e o atirei do outro lado da arena.

Por falar nisso, a sra. O’Leary é o único cão infernal amistoso em todo o mundo. Eu a herdei quando seu dono morreu. Ela vivia no acampamento, e Beckendorf... bem, Beckendorf costumava cuidar dela quando eu não estava ali. Foi ele quem fundiu o metal para o osso de bronze favorito da sra. O’Leary. Fizera na forja uma coleira com a carinha do Smiley e uma plaquinha de identificação com dois ossos cruzados. Assim como eu, Beckendorf era o melhor amigo dela.

Pensar nisso me fez ficar triste novamente, mas atirei o escudo mais algumas vezes, pois a sra. O’Leary insistiu.

Logo ela começou a latir — um som ligeiramente mais alto do que um canhão de artilharia —, como se precisasse ir dar uma volta. Os outros campistas não achavam nada engraçado quando ela usava a arena como banheiro – isso já havia causado alguns acidentes infelizes. Assim, abri os portões da arena, e ela correu direto para a floresta.

Corri atrás dela, sem me preocupar com o fato de ela estar muito à frente. Nada na floresta poderia representar uma ameaça à sra. O’Leary. Até mesmo dragões e escorpiões gigantes fugiam quando ela se aproximava.

Quando finalmente consegui alcançá-la, ela não estava usando o banheiro. Estava em uma clareira que eu conhecia, onde o Conselho de Anciãos de Casco Fendido certa vez havia levado Grover a julgamento. A aparência do lugar não era das melhores. A grama ficara amarelada. Os três tronos de topiaria haviam perdido todas as folhas. Mas não foi isso que me surpreendeu. No meio da clareira estava o trio mais estranho que eu já vira: Juníper, a ninfa da árvore, Nico di Angelo e um sátiro muito velho e muito gordo.

Nico era o único que não parecia apavorado com a presença da sra. O’Leary. A aparência dele era muito semelhante à que tinha em meu sonho — casaco de aviador, jeans preto e uma camiseta com uma estampa de esqueletos dançarinos, como aqueles das comemorações do Dia dos Mortos. Sua espada de ferro estígio pendia ao lado do corpo. Ele tinha apenas doze anos, mas parecia muito mais velho e mais triste.

Cumprimentou-me com a cabeça e, então, voltou a coçar as orelhas da sra. O’Leary. Ela farejou-lhe as pernas, como se ele fosse a coisa mais interessante depois de um filé de costela. Sendo filho de Hades, ele provavelmente andava por toda sorte de lugares agradáveis aos cães infernais.

O velho sátiro não parecia nem de perto tão feliz.

— Será que alguém... o que esta criatura do mundo inferior está fazendo na minha floresta? — Ele agitava os braços e batia os cascos, como se a grama estivesse quente. — Você aí, Percy Jackson! Esta fera é sua?

— Ah, me desculpe, Leneu — falei. — É este o seu nome, certo?

O sátiro revirou os olhos. Seu pelo era cinzento, e entre seus chifres crescia uma teia de aranha. A barriga poderia fazer dele um carrinho de bate-bate invencível.

— Bem, é claro que eu sou Leneu. Não me diga que se esqueceu de um membro do Conselho tão rapidamente. Agora chame sua fera!

— AU! — latiu a sra. O’Leary, feliz.

O velho sátiro engoliu em seco.

— Mande-a embora! Juníper, eu não vou ajudá-la nessas circunstâncias!

Juníper virou-se na minha direção. Tinha uma beleza bem própria das dríades, com um vestido roxo de tecido fino e o rosto de elfo, mas seus olhos estavam tingidos do tom verde da clorofila, de tanto chorar.

— Percy — fungou ela. — Estava perguntando sobre Grover. Eu sei que alguma coisa aconteceu. Ele não ficaria longe tanto tempo assim se não estivesse em apuros. Esperava que Leneu...

— Eu já lhe disse! — protestou o sátiro. — Você está melhor sem aquele traidor.

Juníper bateu o pé no chão com força.

— Grover não é um traidor! É o sátiro mais corajoso que já existiu, e eu quero saber onde ele está!

— AU!

Os joelhos de Leneu começaram a bater.

— Eu... eu não vou responder a pergunta nenhuma com esta cadela infernal farejando minha cauda!

Nico parecia estar tentando não rir.

— Vou levar a cadela para dar uma volta — ofereceu-se.

Ele assoviou, e a sra. O’Leary seguiu-o saltitando em direção ao outro lado do bosque.

Leneu bufou, indignado, e bateu a mão na camisa, tirando os galhos presos nela.

— Bem, como eu tentava explicar, minha jovem, seu namorado não enviou nenhum relatório desde que votamos pelo seu exílio.

— Vocês quiseram votar pelo exílio dele — corrigi. — Quíron e Dioniso impediram.

— Nada! Eles são membros honorários do Conselho. Esses votos não contam.

— Vou dizer a Dioniso que você falou isso.

Leneu ficou pálido.

— Eu só quis dizer... Agora, ouça aqui, Jackson. Esse assunto não é da sua conta.

— Grover é meu amigo — falei. — Ele não estava mentindo para vocês a respeito da morte de Pã. Eu vi com meus próprios olhos. Vocês só estavam com medo de aceitar a verdade.

Os lábios de Leneu tremeram.

— Não! Grover é um mentiroso, e já foi tarde. Estamos melhor sem ele.

Apontei para os tronos murchos.

— Se as coisas estão indo tão bem, onde estão seus amigos? Parece que seu Conselho não tem se reunido ultimamente.

— Maron e Sileno... eu... eu tenho certeza de que eles vão voltar — disse ele, mas dava para perceber o pânico em sua voz. — Só tiraram um tempo para pensar. Este está sendo um ano muito inquietante.

— E só vai piorar — assegurei. — Leneu, precisamos de Grover. Tem de haver uma forma de você encontrá-lo com sua magia.

Os olhos do velho sátiro se estreitaram.

— Estou lhes dizendo que não sei nada dele. Talvez esteja morto.

Juníper engoliu um soluço.

— Ele não está morto — falei. — Isso eu posso sentir.

— Elos de empatia — disse Leneu, desdenhoso. — Muito pouco confiáveis.

— Então, pergunte por aí — insisti. — Encontre-o. Há uma guerra chegando. Grover estava preparando os espíritos da natureza.

— Sem a minha permissão! E essa guerra não é nossa.

Agarrei-o pela camisa, o que, com sinceridade, não era o meu estilo, mas aquele bode velho e estúpido estava me deixando louco.

— Ouça, Leneu. Quando Cronos atacar, ele virá com matilhas de cães infernais. E vai destruir tudo em seu caminho: mortais, deuses, semideuses. Você acha que ele vai poupar os sátiros? Espera-se que você seja um líder. Portanto, LIDERE. Vá lá fora e veja o que está acontecendo. Encontre Grover e traga notícias para Juníper. Vá, AGORA!

Eu não o empurrei com muita força, mas ele tinha a cabeça meio pesada. Caiu sentado com seu traseiro peludo. Depois, conseguiu se pôr de pé com esforço e saiu correndo com a barriga sacudindo.

— Grover jamais será aceito! Vai morrer como um pária!

Depois que ele já havia desaparecido nos arbustos, Juníper enxugou os olhos.

— Desculpe, Percy. Eu não tinha a intenção de envolver você. Leneu ainda é um Senhor da Vida Selvagem. Não é bom tê-lo como inimigo.

— Sem problema — falei. — Tenho inimigos piores do que um sátiro gordo.

Nico caminhou de volta para onde nós estávamos.

— Bom trabalho, Percy. A julgar pela trilha de tufos de pelo de bode, eu diria que você deu uma bela sacudida nele.

Tinha receio de saber por que Nico estava ali, mas tentei sorrir.

— Bem-vindo de volta. Passou por aqui só para ver Juníper?

Ele enrubesceu.

— Hã, não. Isso foi um acidente. Eu hã... apareci no meio da conversa.

— Ele quase nos matou de susto! — disse Juníper. — Surgiu no meio das sombras. Mas, Nico, você é o filho de Hades. Tem certeza de que não ouviu falar nada de Grover?

Nico mudou de posição.

— Juníper, como tentei lhe dizer... mesmo que Grover morresse, ele reencarnaria em outro ser da natureza. Não consigo pressentir esse tipo de coisa, somente as almas mortais.

— Mas se você souber de algo... — implorou ela, pousando a mão em seu braço. — Qualquer coisa...

As bochechas de Nico ficaram ainda mais vermelhas.

— Hã, pode apostar. Vou ficar atento.

— Vamos encontrá-lo, Juníper — prometi. — Grover está vivo, tenho certeza. Deve haver uma razão simples para ele ainda não ter entrado em contato conosco.

Ela assentiu, abatida.

— Eu odeio não poder deixar a floresta. Ele pode estar em qualquer lugar, e eu presa aqui, esperando. Ah, mas se aquele bode tolo se machucou...

A sra. O’Leary voltou saltitando, e seu interesse foi despertado pelo vestido de Juníper.

Juníper gritou.

— Ah, não! Não ouse! Conheço a história de cães e árvores. Fui!

Puf! E se transformou em névoa verde. A sra. O’Leary pareceu desapontada, mas seguiu pesadamente em busca de outro alvo, deixando-me sozinho com Nico.

Ele bateu com a espada no chão. Um montículo de ossos de animais emergiu da terra. Eles se reuniram, formando o esqueleto de um ratinho-do-campo, que fugiu.

— Lamentei quando soube de Beckendorf.

Um bolo formou-se em minha garganta.

— Como é que você...

— Falei com o fantasma dele.

— Ah... certo. — Eu nunca iria me acostumar com o fato de que aquele garoto de doze anos passava mais tempo falando com os mortos que com os vivos. — Ele disse alguma coisa?

— Ele não acha que a culpa tenha sido sua. Imaginou que você deveria estar se martirizando e disse que não deve fazer isso.

— Ele vai tentar renascer?

Nico sacudiu a cabeça.

— Ele está no Elíseo. Falou que está esperando alguém. Não sei bem o que ele quis dizer com isso, mas pareceu não ter problemas com a morte.

Não era um grande consolo, mas já era alguma coisa.

— Tive uma visão de você no Monte Tam — disse a Nico. — Era...

— Real — disse ele. — Eu não tinha a intenção de espionar os titãs, mas estava nas redondezas.

— Fazendo o quê?

Nico mexeu no cinto onde carregava a espada.

— Seguindo uma pista da... você sabe, da minha família.

Fiz que sim com a cabeça. Eu sabia que o passado dele era um tema doloroso. Até dois anos atrás, ele e a irmã Bianca estavam parados no tempo em um lugar chamado Hotel e Cassino Lótus, onde permaneceram por uns setenta anos. Por fim, um misterioso advogado os tirou de lá e os matriculou em um internato, mas Nico não tinha nenhuma lembrança de sua vida antes do cassino. Ele não sabia nada de sua mãe. Não sabia quem era o advogado, por que haviam sido presos no tempo nem por que tiveram permissão de sair. Depois que Bianca morreu, deixando-o sozinho, ele se tornara obcecado em encontrar respostas.

— Então, como foi? — perguntei. — Teve sorte?

— Não — murmurou ele. — Mas devo ter uma nova pista em breve.

— Qual é a pista?

Nico mordeu o lábio.

— Isso não é importante neste momento. Você sabe por que estou aqui.

Uma sensação de pavor começou a crescer em meu peito. Desde que, no último verão, Nico apresentara pela primeira vez seu plano para vencer Cronos, eu passara a ter pesadelos. De vez em quando, ele aparecia para me pressionar a dar uma resposta, mas eu continuava a me safar com evasivas.

— Nico, eu não sei. Parece radical demais.

— Tifão está chegando em... digamos... uma semana? A maioria dos outros titãs está livre a essa altura, e do lado de Cronos. Talvez seja hora de ser radical.

Olhei na direção do acampamento. Mesmo a distância podia ouvir os campistas de Ares e de Apolo lutando de novo, gritando maldições e recitando poesia ruim.

— Eles não são páreo para o exército dos titãs — afirmou Nico. — Sabe disso. Essa luta se resume a você e Luke. E só há uma forma de você derrotá-lo.

Lembrei-me da luta no Princesa Andrômeda, em que eu fora irremediavelmente vencido. Cronos quase me matou com um único corte no braço, e eu não consegui nem feri-lo. Contracorrente foi repelida por sua pele.

— Podemos lhe dar o mesmo poder — instou Nico. — Você ouviu a Grande Profecia. A menos que você queira ter sua alma ceifada por uma lâmina maldita...

Eu me perguntei como Nico soubera da profecia... Provavelmente, a ouvira de algum fantasma.

— Não se pode escapar de uma profecia — falei.

— Mas você pode lutar contra ela. — Nico tinha um brilho estranho e faminto nos olhos. — Pode se tornar invencível.

— Talvez seja melhor esperarmos. Tentar lutar sem...

— Não! — rosnou Nico. — Precisa ser agora!

Eu o olhei fixamente. Havia muito tempo que eu não via seu temperamento inflamar-se desse modo.

— Hã, tem certeza de que está bem?

Ele respirou fundo.

— Percy, o que quero dizer... Quando a luta começar, não poderemos mais fazer a jornada. Esta é nossa última chance. Você me desculpe se estou sendo muito insistente, mas há dois anos minha irmã deu a vida dela para proteger você. Quero que honre esse gesto. Faça o que for preciso para se manter vivo e derrotar Cronos.

Eu não gostava da ideia. Mas então pensei em Annabeth me chamando de covarde... e fiquei furioso.

Nico tinha razão. Se Cronos atacasse Nova York, os campistas não seriam páreo para suas forças. Eu precisava fazer algo. A proposta de Nico era perigosa — talvez até mesmo mortal. Mas talvez me desse uma vantagem na luta.

— Está certo — decidi. — O que fazemos primeiro?

O sorriso dele, frio e sinistro, fez com que eu me arrependesse de ter concordado.

— Primeiro, vamos precisar reconstituir a história de Luke. Precisamos saber mais de seu passado, de sua infância.

Estremeci, pensando no quadro de Rachel no meu sonho — um Luke sorridente aos nove anos.

— Por que precisamos saber disso?

— Vou explicar quando chegarmos lá — disse Nico. — Eu já localizei a mãe dele. Ela mora em Connecticut.

Eu o fitei. Nunca pensara muito sobre a mãe mortal de Luke. Já havia encontrado o pai dele, Hermes, mas a mãe...

— Luke fugiu de casa quando era muito novo — disse eu. — Não achava que a mãe dele ainda estivesse viva.

— Ah, está bem viva. — A maneira como ele disse aquilo me fez pensar o que haveria de errado com ela. Que tipo horrível de pessoa ela seria?

— O.k. — disse eu. — Então, como vamos a Connecticut? Posso chamar Blackjack...

— Não. — Nico franziu as sobrancelhas. — Os pégasos não gostam de mim, e o sentimento é mútuo. Mas não há necessidade de ir voando. — Ele assoviou, e a sra. O’Leary veio trotando do bosque.

— Sua amiga aqui pode ajudar. — Nico deu tapinhas na cabeça dela. — Ainda não experimentou uma viagem nas sombras?

— Viagem nas sombras?

Nico sussurrou no ouvido da sra. O’Leary. Ela inclinou a cabeça, subitamente alerta.

— Suba a bordo — disse-me Nico.

Eu nunca imaginara cavalgar um cachorro antes, mas a sra. O’Leary, certamente, tinha tamanho para isso. Subi em suas costas e segurei sua coleira.

— Isso a deixa muito cansada — avisou Nico. — Portanto, não pode ser feito com frequência. E funciona melhor à noite. Mas todas as sombras são parte da mesma substância. Existe uma única escuridão, e as criaturas do Mundo Inferior podem usá-la como estrada, ou porta.

— Não entendi — disse eu.

— Não — replicou Nico. — Levei muito tempo para aprender. Mas a sra. O’Leary sabe. Diga a ela aonde ir. Diga a ela Westport, casa de May Castellan.

— Você não vem?

— Não se preocupe — disse ele. — Encontro você lá.

Eu estava um pouco nervoso, mas me inclinei sobre a orelha da sra. O’Leary.

— O.k., garota. Hã, pode me levar para Westport, Connecticut? Para a casa de May Castellan?

A sra. O’Leary farejou o ar. Olhou para a floresta sombria, então saltou adiante, bem na direção de um carvalho.

Um instante antes de o atingirmos, mergulhamos em sombras tão frias quanto o lado escuro da lua.


SEIS

Meus biscoitos queimam

Não recomendo viagens nas sombras se você tem medo de:
a) Escuro
b) Arrepios de frio na espinha
c) Ruídos estranhos
d) Deslocar-se tão rápido que dá a impressão de que a pele do seu rosto vai se soltar

Em outras palavras, eu achei incrível. Num minuto eu não conseguia ver nada. Só conseguia sentir o pelo da sra. O’Leary e meus dedos envolvendo os elos de bronze de sua coleira.

No minuto seguinte as sombras se dissolveram em um novo cenário. Estávamos em um penhasco nos bosques de Connecticut. Pelo menos me parecia Connecticut, pelas poucas vezes em que estivera lá: muitas árvores, muros baixos de pedra, casas grandes. Descendo um dos lados do penhasco, uma estrada atravessava a garganta. Do outro lado, havia um quintal. A propriedade era imensa — mais terras intocadas do que gramado. A casa era uma construção de dois andares em estilo colonial. Apesar de separada da estrada somente por um morro, dava a impressão de estar no meio do nada. Eu podia ver uma luz brilhando na janela da cozinha. Havia um balanço velho e enferrujado debaixo de uma macieira.

Eu não conseguia imaginar como seria morar numa casa daquelas, com um quintal de verdade e tudo mais. Passara a vida toda entre um apartamento minúsculo e dormitórios de escola. Se aquela foi a casa de Luke, eu me perguntava por que ele quisera ir embora.

A sra. O’Leary cambaleou. Lembrei-me do que Nico dissera sobre a viagem nas sombras deixá-la esgotada, então desci de suas costas. Ela deu um bocejo imenso, mostrando todos os dentes, o que seria capaz de assustar um T. rex, então rodopiou e desabou com tanta força que o chão tremeu.

Nico apareceu ao meu lado, como se as sombras tivessem se tornado mais escuras e originado ele. Tropeçou, mas eu o segurei pelo braço.

— Estou bem — conseguiu dizer, esfregando os olhos.

— Como você fez isso?

— Prática. Algumas vezes, dou de cara com muros. E outras já fui parar na China.

A sra. O’Leary começou a roncar. Não fosse o barulho do trânsito às nossas costas, tenho certeza de que ela teria acordado toda a vizinhança.

— Você também vai tirar um cochilo? — perguntei a Nico.

Ele sacudiu a cabeça.

— Na minha primeira viagem nas sombras, desmaiei por uma semana. Agora só me deixa um pouco tonto, mas não posso fazer isso mais do que uma ou duas vezes por noite. A sra. O’Leary não vai a lugar nenhum por algum tempo.

— Então teremos de aproveitar o tempo aqui em Connecticut. — Olhei para a casa colonial branca. — E agora?

— Tocamos a campainha — disse Nico.

Se eu fosse a mãe de Luke, não teria aberto minha porta à noite para dois garotos estranhos. Mas eu não era nada parecido com a mãe de Luke.

Soube disso antes mesmo de chegarmos à porta da frente. A calçada era ladeada por aqueles animaizinhos de pano cheios de feijão que se veem em lojas de presentes. Havia miniaturas de leões, porcos, dragões, hidras e até mesmo um minúsculo minotauro de fraldinha. A julgar por suas tristes formas, as criaturinhas com enchimento de feijão estavam ali fora havia muito tempo — pelo menos desde que a neve derretera na última primavera. Uma das hidras tinha uma arvorezinha brotando entre seus pescoços.

A varanda da frente era repleta de sinos de vento. Pedaços brilhantes de vidro e metal tilintavam com a brisa. Tiras de latão soavam como água e me fizeram perceber que eu precisava ir ao banheiro. Eu não sabia como a sra. Castellan podia suportar todo aquele barulho.

A porta da frente era pintada de azul-turquesa. O nome CASTELLAN estava escrito em letras romanas — e abaixo, também em grego: .

Nico olhou para mim.

— Pronto?

Ele mal havia batido à porta quando ela se abriu.

— Luke! — a velha senhora gritou, feliz.

Ela parecia alguém que gostava de enfiar os dedos em tomadas elétricas. O cabelo branco se projetava em tufos por toda a cabeça. O vestido simples cor-de-rosa estava coberto de marcas de queimado e manchas de cinza. Quando sorria, seu rosto parecia artificialmente esticado, e a luz forte em seus olhos me fez conjecturar se ela era cega.

— Ah, meu menino querido! — Ela abraçou Nico. Eu estava tentando descobrir por que ela confundia Nico com Luke (eles não tinham absolutamente nenhuma semelhança), quando ela sorriu para mim e disse: — Luke!

Então, se esqueceu de Nico e me deu um abraço. Cheirava a biscoitos queimados. Era tão magra quanto um espantalho, mas isso não impediu que ela quase me esmagasse.

— Entre! — insistiu ela. — Seu almoço está pronto!

Ela nos fez entrar. A sala de estar era ainda mais estranha que o gramado da frente da casa. Espelhos e velas ocupavam cada espaço disponível. Eu não conseguia olhar para lugar nenhum sem ver meu próprio reflexo. Acima do console da lareira um pequeno Hermes de bronze voava no ponteiro de segundos de um relógio. Tentei imaginar o deus dos mensageiros um dia se apaixonando por aquela senhora, mas a ideia era bizarra demais.

Então, percebi o retrato emoldurado na lareira e fiquei paralisado. Era exatamente igual ao desenho de Rachel — Luke com uns nove anos, de cabelos louros e um amplo sorriso que revelava a falha de dois dentes. Sem a cicatriz seu rosto era o de uma pessoa diferente — despreocupada e feliz. Como Rachel poderia saber dessa foto?

— Por aqui, meu querido! — A sra. Castellan me conduziu para os fundos da casa. — Ah, eu disse a eles que você voltaria. Eu sabia!

Ela nos acomodou à mesa da cozinha. Empilhados sobre a bancada havia centenas — e eu quero dizer centenas mesmo — de potes plásticos com sanduíches de manteiga de amendoim e geleia. Os de baixo estavam verdes e bolorentos, como se estivessem ali fazia muito tempo. O cheiro me fazia lembrar dos armários da escola na sexta série — o que não era nada bom.

Em cima do forno havia uma pilha de tabuleiros. Cada um deles continha dúzias de biscoitos queimados. Na pia, via-se uma montanha de jarros plásticos de suco instantâneo, vazios. Uma medusa com enchimento de feijões postava-se ao lado da torneira, como se estivesse guardando aquela bagunça.

A sra. Castellan começou a assoviar enquanto pegava manteiga de amendoim e geleia e fazia um novo sanduíche. Alguma coisa estava queimando no forno. Tive o pressentimento de que havia mais biscoitos a caminho.

Acima da pia, coladas com fita adesiva em volta de toda a janela, viam-se dezenas de figurinhas recortadas de anúncios de revistas e jornais — imagens de Hermes do logo da Flores Expressas e dos Limpadores a Jato, imagens de caduceus de anúncios médicos.

Meu coração se apertou. Eu queria sair daquele lugar, mas a sra. Castellan continuava a sorrir para mim enquanto fazia o sanduíche, como se estivesse se certificando de que eu não iria escapar.

Nico tossiu.

— Hã, sra. Castellan?

— Hein?

— Precisamos lhe fazer algumas perguntas sobre seu filho.

— Ah, sim! Eles disseram que ele nunca mais voltaria. Mas eu sabia que não seria assim. — Ela deu palmadinhas afetuosas na minha bochecha, deixando-me com vestígios de manteiga de amendoim no rosto.

— Qual foi a última vez em que o viu? — perguntou Nico.

Os olhos dela perderam o foco.

— Ele era tão novinho quando foi embora — disse, melancólica. — Terceira série. Isso é muito jovem para fugir! Disse que voltaria para o almoço. E eu esperei. Ele gosta de sanduíche de manteiga de amendoim e de biscoitos. Vai voltar para o almoço em breve... — Então, ela olhou para mim e sorriu. — Ora, Luke, aí está você! Está tão bonito. Tem os olhos do seu pai.

Ela se voltou para as imagens de Hermes acima da pia.

— Aí está um bom homem. De verdade. Às vezes ele vem me visitar, sabe?

O relógio continuava tiquetaqueando na outra sala. Limpei a manteiga de amendoim do meu rosto e olhei para Nico, suplicante, como se dissesse: Podemos dar o fora daqui agora?

— Senhora — disse Nico. — O que... hã... o que aconteceu com seus olhos?

O olhar dela parecia fragmentado — como se ela estivesse tentando encontrar o foco em um caleidoscópio.

— Ora, Luke, você conhece a história. Foi um pouco antes de você nascer, não foi? Eu sempre fui especial, conseguia ver através da... sei lá como chamam.

— A Névoa? — perguntei.

— Sim, querido. — Ela assentiu. — E me ofereceram um trabalho importante. De tão especial que eu era!

Olhei para Nico, mas ele parecia tão confuso quanto eu.

— Que tipo de trabalho? — perguntei. — O que aconteceu?

A sra. Castellan franziu a testa. A faca pairava acima do pão.

— Meu Deus, não deu certo, não foi? Seu pai me advertiu de que não deveria tentar. Disse que era perigoso demais. Mas eu precisava. Era meu destino! E agora... Eu ainda não consigo tirar as imagens da minha cabeça. Elas fazem tudo parecer tão vago... Querem uns biscoitos?

Ela puxou um tabuleiro do forno e despejou uma dúzia de torrões de carvão com gotas de chocolate sobre a mesa.

— Luke era tão generoso — murmurou a sra. Castellan. — Ele foi embora para me proteger, sabe? Disse que se fosse embora os monstros não me ameaçariam. Mas eu disse a ele que os monstros não são nenhuma ameaça! Eles ficam na calçada, do lado de fora, o dia todo, e nunca entram. — Ela pegou a pequena Medusa recheada de feijões do peitoril da janela. — Não é, sra. Medusa? Não, não, nenhuma ameaça, em absoluto. — Ela sorriu para mim. — Estou tão feliz que tenha voltado para casa! Eu sabia que não tinha vergonha de mim!

Mudei de posição na cadeira. Pensei como seria ser Luke sentado naquela cadeira, com oito ou nove anos de idade, começando a perceber que minha mãe era pirada.

— Sra. Castellan — disse eu.

— Mamãe — corrigiu ela.

— Hã, sim. A senhora tornou a ver Luke depois que ele saiu de casa?

— Ora, é claro!

Eu não sabia se ela estava imaginando aquilo. Pelo que dava para ver, todas as vezes que o carteiro batia à porta, era Luke. Mas Nico sentou-se na ponta da cadeira, em expectativa.

— Quando? — perguntou ele. — Quando foi a última vez que Luke a visitou?

— Bem, foi... ah, meu Deus... — Uma sombra atravessou seu rosto. — Da última vez ele parecia tão diferente. Uma cicatriz. Uma cicatriz terrível, e havia dor em sua voz...

— Os olhos dele — disse eu. — Estavam dourados?

— Dourados? — Ela piscou. — Não. Que bobagem. Luke tem olhos azuis. Lindos olhos azuis!

Então Luke tinha mesmo estado ali, e isso fora antes do último verão... antes de ele ter se transformado em Cronos.

— Sra. Castellan? — Nico pousou a mão no braço da velha senhora. — Isto é muito importante. Ele pediu algo à senhora?

Ela franziu a testa, como se tentasse se lembrar.

— Minha... minha bênção. Não é encantador? — Ela nos olhou em dúvida. — Ele estava indo para um rio e disse que precisava da minha bênção. E eu lhe dei. É claro que dei.

Nico me olhou, triunfante.

— Obrigado, senhora. Essa é toda a informação que...

A sra. Castellan arquejou. Curvou-se para a frente, e o tabuleiro de biscoitos caiu com um estrondo no chão. Nico e eu nos pusemos de pé em um pulo.

— Sra. Castellan? — chamei.

— AHHHH. — Ela se endireitou.

Eu saí correndo e quase caí por cima da mesa da cozinha, porque os olhos dela... os olhos dela emitiam uma luminosidade verde.

— Meu filho. — Ela falava com uma voz áspera e muito mais grave. — Preciso protegê-lo! Hermes, socorro! O meu filho, não! O destino dele... não!

Ela agarrou Nico pelos ombros e começou a sacudi-lo, como se quisesse fazê-lo entender.

— O destino dele... não!

Nico deu um grito estrangulado e a afastou com um empurrão. Então, agarrou o punho de sua espada.

— Percy, precisamos sair...

De repente, a sra. Castellan desabou. Saltei para a frente e segurei-a antes que ela batesse na quina da mesa. Consegui colocá-la sentada em uma cadeira.

— Sra. C? — chamei.

Ela murmurou algo incompreensível e sacudiu a cabeça.

— Meu Deus. Eu... eu deixei cair os biscoitos. Que tolice a minha.

Ela piscou, e seus olhos voltaram ao normal — ou, pelo menos, ao que eram antes. O brilho esverdeado havia desaparecido.

— A senhora está bem? — perguntei.

— Ora, é claro, meu bem. Estou ótima. Por que pergunta?

Olhei para Nico, cujos lábios esboçaram a palavra Saia.

— Sra. C, estava nos contando uma coisa — disse eu. — Algo sobre seu filho.

— Estava? — perguntou ela, sonhadora. — Ah, sim, seus olhos azuis. Estávamos falando sobre seus olhos azuis. Um garoto tão bonito!

— Precisamos ir — disse Nico, em tom de urgência. — Vamos dizer a Luke... hã, vamos dizer a ele que a senhora mandou lembranças.

— Mas você não pode ir embora!

A sra. Castellan levantou-se, trêmula, e eu recuei. Senti-me um tolo por ter medo de uma velha frágil, mas a maneira como sua voz havia mudado, a forma como ela havia agarrado Nico... — Hermes vai chegar daqui a pouco — garantiu ela. — Ele vai querer ver seu garoto!

— Talvez da próxima vez — falei. — Obrigado por... — Baixei os olhos para os biscoitos queimados espalhados pelo chão. — Obrigado por tudo.

Ela tentou nos deter, nos oferecer suco, mas eu precisava sair daquela casa. Na varanda da frente, ela agarrou meu pulso, e eu quase morri de medo.

— Luke, ao menos fique em segurança. Prometa que ficará em segurança.

— Vou ficar... mamãe.

Isso a fez sorrir. Ela soltou meu pulso, e enquanto fechava a porta eu podia ouvi-la falando com as velas:

— Ouviram isso? Ele vai ficar em segurança. Eu disse a vocês que ele ficaria!

Quando a porta se fechou, Nico e eu corremos. Os animaizinhos com enchimento de feijão na calçada pareciam sorrir quando passamos.

De volta ao penhasco, vimos que a sra. O’Leary tinha feito uma amizade.

Uma fogueira aconchegante crepitava em um círculo de pedras. Uma garota de uns oito anos estava sentada de pernas cruzadas ao lado da sra. O’Leary, coçando as orelhas da cadela infernal.

A garota tinha cabelos castanhos e usava um vestido marrom simples. Na cabeça tinha um lenço, o que a fazia parecer uma criança da época dos pioneiros — como o fantasma de Uma casa na campina ou algo no gênero. Ela usava um graveto para remexer o fogo, que parecia brilhar com um vermelho mais intenso que um fogo normal.

— Olá — disse ela.

Meu primeiro pensamento foi: monstro. Quando você é um semideus e encontra uma doce garotinha sozinha na floresta, esse costuma ser um bom momento para puxar sua espada e atacar. Além disso, o encontro com a sra. Castellan havia me abalado bastante.

Nico, porém, curvou-se para a garotinha.

— Olá novamente, senhora.

Ela me examinou com olhos tão vermelhos quanto as chamas da fogueira. Concluí que era mais seguro me curvar diante dela também.

— Sente-se, Percy Jackson — disse ela. — Gostaria de jantar?

Depois de ficar olhando para sanduíches de manteiga de amendoim mofados e biscoitos queimados, eu não estava com muito apetite, mas a garotinha agitou a mão e um piquenique surgiu perto do fogo. Havia travessas de rosbife, batatas assadas, cenouras na manteiga, pão fresco, e mais um monte de outras coisas que eu não comia fazia muito tempo. Meu estômago roncou. Era o tipo de refeição caseira que as pessoas deviam preparar, mas nunca faziam isso. A garotinha fez um biscoito de cachorro de um metro e meio aparecer para a sra. O’Leary, que, feliz, começou a despedaçá-lo.

Sentei-me ao lado de Nico. Pegamos a comida, e eu estava prestes a atacá-la quando mudei de ideia.

Joguei parte da minha refeição nas chamas, da forma como fazemos no acampamento.

— Para os deuses — disse eu.

A garotinha sorriu.

— Obrigada. Como guardiã das chamas, fico com uma parte de cada sacrifício, sabe?

— Agora eu a estou reconhecendo — eu disse. — A primeira vez que cheguei ao acampamento, você estava sentada junto à fogueira, no meio da área comum.

— Você não parou para falar — lembrou a garota com tristeza. — Aliás, a maioria faz isso. Nico conversou comigo. Foi o primeiro em muitos anos. Todos correm de um lado para o outro. Não têm tempo para uma visita à família.

— Você é Héstia — disse eu. — Deusa da lareira.

Ela assentiu.

O.k. Então, ela aparentava oito anos de idade. Não perguntei. Eu sabia que os deuses podem ter a aparência que quiserem.

— Minha senhora, por que não está com os outros olimpianos, combatendo Tifão? — perguntou Nico.

— Não sou muito de lutar.

Seus olhos vermelhos bruxuleavam. Percebi que não estavam apenas refletindo as chamas. Eles eram cheios de chamas, mas não como os de Ares. Os olhos de Héstia eram calorosos e aconchegantes.

— Além disso — disse ela —, alguém tem de manter o fogo aceso nas casas enquanto os outros deuses estão fora.

— Então você está guardando o Monte Olimpo? — perguntei.

— “Guardando” pode ser uma palavra muito forte. Mas se algum dia você precisar de um lugar quente para se sentar e de uma refeição caseira, será bem-vindo. Agora coma.

Meu prato estava vazio antes que eu me desse conta. Nico engoliu sua comida com a mesma rapidez.

— Estava ótimo — falei. — Obrigado, Héstia.

Ela assentiu.

— Fez uma boa visita a May Castellan?

Por um momento eu havia quase esquecido a velha senhora com seus olhos brilhantes e seu sorriso maníaco, a maneira como subitamente parecera possuída.

— O que exatamente há de errado com ela? — perguntei.

— Ela nasceu com um dom — contou Héstia. — Era capaz de ver através da Névoa.

— Como minha mãe — falei. E também estava pensando: Como Rachel. — Mas aquela coisa dos olhos brilharem...

— Alguns suportam a maldição da visão melhor que outros — disse a deusa com tristeza. — Durante algum tempo, May Castellan teve muitos talentos. E atraiu a atenção do próprio Hermes. Tiveram um lindo menino. Por um breve período, ela foi feliz. E, então, foi longe demais.

Lembrei-me do que a sra. Castellan dissera: E me ofereceram um trabalho importante... Não funcionou. Perguntei-me que tipo de trabalho deixaria alguém daquele jeito.

— Num minuto ela estava toda feliz — disse eu. — E, no outro, estava delirando sobre o destino do filho, como se soubesse que ele havia se transformado em Cronos. O que aconteceu para... para dividi-la daquele jeito?

O rosto da deusa tornou-se sombrio.

— Essa é uma história que não gosto de contar. Mas May Castellan viu demais. Se quiser entender seu inimigo Luke, precisa entender sua família.

Pensei nas tristes imagens de Hermes coladas com fita adesiva acima da pia de May Castellan. E me perguntei se ela já seria tão louca quando Luke era pequeno. Aquele surto e os olhos verdes poderiam ter assustado de verdade um garoto de nove anos. E se Hermes nunca tivesse aparecido, se tivesse deixado Luke sozinho com a mãe aqueles anos todos...

— Não é de admirar que Luke tenha fugido — disse eu. — Quer dizer, não foi certo deixar a mãe daquela forma, mas... ele era apenas um menino. Hermes não deveria tê-los abandonado.

Héstia coçou as orelhas da sra. O’Leary. O cão infernal abanou o rabo e acidentalmente derrubou uma árvore.

— É fácil julgar os outros — advertiu Héstia. — Mas você vai mesmo seguir os passos de Luke? Vai buscar os mesmos poderes?

Nico deixou o prato no chão.

— Não temos escolha, minha senhora. É a única maneira de Percy ter uma chance.

— Hummm. — Héstia abriu a mão e o fogo rugiu. As chamas subiram dez metros. Senti o calor em meu rosto. Então, o fogo diminuiu, voltando ao normal. — Nem todos os poderes são espetaculares. — Héstia olhou para mim. — Às vezes o poder mais difícil de dominar é o poder de ceder. Acredita em mim?

— Hã-hã — falei. Qualquer coisa que evitasse que ela acionasse seus poderes de fogo novamente.

A deusa sorriu.

— Você é um bom herói, Percy Jackson. Não é orgulhoso demais. Gosto disso. Mas tem muito a aprender. Quando Dioniso foi feito deus, eu cedi meu trono para ele. Era a única maneira de evitar uma guerra civil entre os deuses.

— Isso desequilibrou o Conselho — lembrei. — De repente, eram sete homens e cinco mulheres.

Héstia deu de ombros.

— Foi a melhor solução, não uma solução perfeita. Agora eu cuido do fogo. Fui aos poucos desaparecendo no cenário. Ninguém jamais escreverá poemas épicos sobre os feitos de Héstia. A maioria dos semideuses nem sequer se digna a falar comigo. Mas isso não é problema. Eu mantenho a paz. Cedo quando necessário. Você é capaz de fazer isso?

— Não entendo o que está querendo dizer.

Ela me observou atentamente.

— Talvez ainda não. Mas em breve saberá. Você vai continuar sua busca?

— É essa a razão de você estar aqui... para me aconselhar a não ir?

Héstia sacudiu a cabeça.

— Estou aqui porque, quando tudo mais dá errado, quando todos os outros deuses poderosos partem para a guerra, sou o que resta. O lar. A lareira. Sou o último olimpiano. Você deve se lembrar de mim quando enfrentar sua decisão final.

Não gostei da forma como ela disse final.

Olhei para Nico, então voltei-me para o olhar de brilho cálido de Héstia.

— Preciso continuar, minha senhora. Tenho de deter Luke... quer dizer, Cronos.

Héstia assentiu.

— Muito bem. Não poderei ser de muita ajuda além do que já lhe disse. Mas, como você me ofereceu um sacrifício, posso mandá-lo de volta a seu lar. Verei você de novo, Percy, no Olimpo.

Seu tom era agourento, como se nosso próximo encontro não fosse ser feliz.

A deusa fez um aceno com a mão, e tudo desapareceu.

De repente, eu estava em casa. Nico e eu estávamos sentados no sofá, no apartamento de minha mãe no Upper East Side, em Nova York. Essa era a boa notícia. A má notícia, porém, era que o restante da sala estava ocupada pela sra. O’Leary.

Ouvi um grito abafado vindo do quarto. A voz de Paul perguntou:

— Quem pôs esta parede de pelo na frente da porta?

— Percy? — chamou minha mãe. — Você está aí? Você está bem?

— Estou aqui! — gritei de volta.

— AU! — A sra. O’Leary tentou se virar à procura de minha mãe, derrubando todos os quadros da parede. Ela só viu minha mãe uma vez (uma longa história), mas a adora.

Foram necessários alguns minutos, mas finalmente conseguimos ajeitar as coisas. Depois de destruir a maior parte da mobília da sala e provavelmente deixar os vizinhos enfurecidos, conseguimos tirar meus pais do quarto e levá-los para a cozinha, onde nos sentamos em torno da mesa. A sra. O’Leary ainda ocupava toda a sala de estar, mas havia acomodado a cabeça no vão da porta da cozinha, de modo a poder nos ver, o que a deixava feliz. Mamãe jogou-lhe um pacote de cinco quilos de carne moída, que lhe desceu goela abaixo de uma só vez. Paul serviu limonada a todos enquanto eu explicava sobre nossa visita a Connecticut.

— Então é verdade. — Paul me olhava como se nunca tivesse me visto. Estava vestido com seu roupão branco, agora coberto de pelo da cadela infernal, e seus cabelos grisalhos estavam arrepiados em todas as direções. — Toda aquela conversa sobre monstros e semideuses... é mesmo verdade.

Fiz que sim com a cabeça. No outono passado eu tinha explicado a Paul quem eu era. Minha mãe havia confirmado minhas palavras. Mas até esse momento não creio que ele tivesse de fato acreditado em nós.

— Desculpe a sra. O’Leary ter destruído a sala e tudo mais falei.

Paul riu como se estivesse encantado.

— Você está brincando? Isso é incrível! Sabe, quando vi as marcas dos cascos no Prius, pensei que talvez fosse verdade. Mas isto!

Ele deu um tapinha no focinho da sra. O’Leary. A sala se sacudiu — BUM, BUM, BUM —, o que queria dizer que uma equipe da SWAT estava derrubando a porta ou a sra. O’Leary estava abanando o rabo.

Não pude deixar de sorrir. Paul era um cara bem legal, mesmo sendo meu professor de inglês e meu padrasto.

— Obrigado por não pirar — falei.

— Ah, mas eu estou pirado — garantiu ele, os olhos arregalados. — Acho isso tudo simplesmente incrível!

— É, bem — disse eu —, talvez você não fique tão animado quando souber o que está acontecendo.

Contei a Paul e à minha mãe sobre Tifão, os deuses e a batalha iminente. Então, falei sobre o plano de Nico.

Minha mãe entrelaçou os dedos em torno do copo de limonada. Ela estava vestida com seu velho roupão azul de flanela, e seus cabelos estavam para trás, presos. Ela começara a escrever um romance recentemente, como havia anos queria fazer, e dava para ver que vinha trabalhando nele até tarde da noite, pois suas olheiras estavam mais escuras que de hábito.

Atrás dela, na janela da cozinha, o enlace lunar prateado brilhava na jardineira. Eu trouxera a planta mágica da ilha de Calipso no último verão, e ela florescia enlouquecidamente sob os cuidados de minha mãe. Aquele aroma sempre me acalmava, mas também me deixava triste, porque me lembrava de amigos perdidos.

Mamãe respirou fundo, como se estivesse pensando em como me dizer não.

— Percy, é perigoso — disse ela. — Mesmo para você.

— Mãe, eu sei. Eu posso morrer. Nico deixou isso claro. Mas se não tentarmos...

— Todos nós vamos morrer — afirmou Nico. Ele nem tocara em sua limonada. — Sra. Jackson, não temos a menor chance contra uma invasão. E vai haver uma invasão.

— Uma invasão a Nova York? — perguntou Paul. — Isso é possível? Como poderíamos não ver os... os monstros?

Ele disse a palavra como se ainda não pudesse acreditar que fosse real.

— Eu não sei — admiti. — Não vejo como Cronos poderia marchar sobre Nova York, mas a Névoa é forte. Tifão está atravessando o país neste momento, arrasando tudo em seu caminho, e os mortais acham que se trata de uma tempestade.

— Sra. Jackson — disse Nico —, Percy precisa da sua bênção. O processo tem de começar dessa forma. Eu não tinha certeza até falarmos com a mãe de Luke, mas agora sei. Isso só foi feito com sucesso duas vezes antes. Em ambas as ocasiões, a mãe teve de dar sua bênção. Foi preciso que estivesse disposta a deixar o filho correr o risco.

— Você quer que eu dê minha bênção para isso? — Ela sacudiu a cabeça. — É loucura. Percy, por favor...

— Mãe, não vou conseguir sem você.

— E se você sobreviver a esse... esse processo?

— Então vou para a guerra — disse eu. — Eu contra Cronos. E apenas um de nós vai sobreviver.

Não contei a ela a profecia completa, sobre a minha alma ceifada e o fim dos meus dias. Ela não precisava saber que eu provavelmente estava condenado. Minha única esperança era deter Cronos e salvar o restante do mundo antes de morrer.

— Você é meu filho — disse ela, infeliz. — Eu não posso simplesmente...

Eu sabia que teria de pressionar mais minha mãe se quisesse que ela concordasse, mas não queria fazer isso. Lembrei-me da pobre sra. Castellan em sua cozinha, à espera de que o filho voltasse para casa. E percebi como eu tinha sorte. Minha mãe sempre estivera ao meu lado, sempre tentara me dar uma vida normal, mesmo com os deuses, os monstros e tudo. Ela tolerava as minhas aventuras, mas agora eu estava pedindo sua bênção para fazer algo que provavelmente me mataria.

Meu olhar encontrou o de Paul, e alguma espécie de entendimento aconteceu entre nós.

— Sally. — Ele pôs a mão sobre as mãos de minha mãe. — Não posso dizer que saiba o que você e Percy têm passado todos esses anos. Mas me parece... me parece que Percy está tendo uma atitude nobre. Eu gostaria de ter tanta coragem.

Fiquei com um nó na garganta. Não recebia muitos elogios desse tipo.

Minha mãe fixou os olhos em seu copo de limonada. Parecia estar se esforçando para não chorar. Pensei no que Héstia dissera, no quanto era difícil ceder, e deduzi que minha mãe devia estar descobrindo isso.

— Percy — disse ela afinal —, eu lhe dou minha bênção.

Não me senti diferente em nada. Nenhum brilho mágico iluminou a cozinha.

Olhei para Nico.

Ele parecia mais ansioso do que nunca, mas assentiu.

— Já é hora.

— Percy — minha mãe disse. — Uma última coisa. Se você... se você sobreviver a essa luta com Cronos, me mande um sinal. — Ela vasculhou a bolsa e me entregou seu celular.

— Mãe — comecei —, você sabe que semideuses e telefones...

— Eu sei — disse ela. — Mas, em todo caso... Se não puder ligar... quem sabe um sinal que eu possa ver de qualquer lugar de Manhattan? Para que eu saiba que você está bem.

— Como Teseu — sugeriu Paul. — Ele deveria levantar velas brancas quando voltasse para Atenas.

— Só que ele esqueceu — murmurou Nico. — E seu pai saltou do telhado do palácio em desespero. Mas, afora isso, era uma ótima ideia.

— Que tal uma bandeira ou um sinal luminoso? — sugeriu mamãe. — Do Olimpo... do Empire State Building.

— Algo azul — disse eu.

Havia anos tínhamos uma brincadeira sobre comida azul. Era minha cor favorita, e minha mãe fazia de tudo para me deixar feliz. Todos os meus bolos de aniversário, as cestas de Páscoa, os doces de Natal, tudo sempre tinha de ser azul.

— Sim — concordou mamãe. — Vou esperar um sinal azul. E vou tentar evitar pular de telhados de palácios.

Ela me deu um último abraço. Tentei não me sentir como se estivesse dizendo adeus. Apertei a mão de Paul. Então, Nico e eu fomos até a porta da cozinha e olhamos a sra. O’Leary.

— Desculpe, garota — falei. — Chegou a hora de viajar pelas sombras outra vez.

Ela choramingou e cruzou as patas sobre o focinho.

— Para onde agora? — perguntei a Nico. — Los Angeles?

— Não é preciso — respondeu ele. — Tem uma entrada mais próxima para o Mundo Inferior.


SETE

Minha professora de matemática me dá uma carona

Aparecemos no Central Park, bem ao norte de The Pond. A sra. O’Leary parecia bastante cansada ao caminhar mancando até um monte de pedras grandes e arredondadas. Ela começou a farejar por ali, e eu temi que fosse demarcar seu território, mas Nico disse:

— Tudo bem. Ela só está sentindo o cheiro do caminho de casa.

Franzi a testa.

— Por entre as pedras?

— O Mundo Inferior tem duas entradas principais — disse Nico. — Você conhece a de Los Angeles.

— O barco de Caronte.

Nico assentiu.

— A maioria das almas vai por aquele caminho, mas existe uma passagem menor, mais difícil de encontrar. A Porta de Orfeu.

— O camarada com a harpa.

— O camarada com a lira — corrigiu Nico. — Mas, sim, é ele. Usou sua música para encantar a terra e abrir uma nova passagem para o Mundo Inferior. Abriu caminho cantando até o palácio de Hades e quase escapou com a alma da mulher dele.

Eu me lembrava da história. Orfeu não devia olhar para trás enquanto guiava sua mulher de volta ao mundo, mas é claro que olhou. Era uma daquelas típicas histórias de “E, então, eles morreram. Fim” que sempre deixavam os semideuses muito sentimentais.

— Então essa é a Porta de Orfeu. — Tentei me mostrar impressionado, mas aquilo ainda parecia uma pilha de pedras. — Como é que se abre?

— Precisamos de música — disse Nico. — Que tal você cantando?

— Hã, não. Você não pode simplesmente, assim, mandar que isso se abra? Afinal, você é o filho de Hades.

— Não é assim tão fácil. Precisamos de música.

Eu tinha certeza de que se tentasse cantar tudo o que conseguiria era provocar uma avalanche.

— Tenho uma ideia melhor. — Virei-me e gritei: — GROVER!

Esperamos muito tempo. A sra. O’Leary se enroscou e tirou uma soneca. Eu podia ouvir os grilos na floresta e uma coruja piando. O trânsito zumbia ao longo da Central Park West. Cascos de cavalo ressoavam em uma trilha próxima, talvez uma patrulha da polícia montada. Eu tinha certeza de que eles adorariam encontrar dois garotos perambulando pelo parque à uma da manhã.

— Não vai adiantar — disse Nico, por fim.

Mas eu tinha um pressentimento. Meu elo de empatia estava formigando de verdade pela primeira vez em meses, o que significava que um monte de gente havia subitamente sintonizado o Nature Channel ou Grover estava por perto.

Fechei os olhos e me concentrei. Grover.

Eu sabia que ele estava em algum lugar do parque. Por que não conseguia pressentir suas emoções? Tudo que sentia era um leve zumbido na base do crânio.

Grover, pensei com mais insistência.

Humm-hummmm, respondeu alguma coisa.

Uma imagem surgiu em minha mente. Vi um olmo gigante bem no meio do bosque, afastado das trilhas principais. Raízes retorcidas se entrelaçavam, formando uma espécie de cama. Deitado nela com os braços cruzados e os olhos fechados estava um sátiro. A princípio eu não tinha certeza se era Grover. Ele estava coberto de galhos e folhas, como se estivesse dormindo ali havia muito tempo. As raízes pareciam estar tomando a forma de seu contorno, puxando-o lentamente para dentro da terra.

Grover, disse eu. Acorde.

Annnh... zzzzz.

Cara, você está coberto de terra. Acorde!

Com sono, murmurou sua mente.

COMIDA, sugeri. PANQUECAS!

Seus olhos se abriram de repente. Um amontoado de pensamentos encheu minha cabeça, como se de repente ele estivesse no modo fast-forward. A imagem se desfez, e eu quase caí.

— O que aconteceu? — perguntou Nico.

— Consegui contato com ele. Ele... sim, está a caminho.

Um minuto depois, a árvore ao nosso lado tremeu. Grover caiu de cabeça do meio dos galhos.

— Grover! — gritei.

— AU! — A sra. O’Leary levantou a cabeça, provavelmente se perguntando se íamos brincar de pegar com o sátiro.

— Béé-éé-éé! — baliu Grover.

— Tudo bem, cara?

— Ah, estou bem. — Ele esfregou a cabeça. Seus chifres haviam crescido tanto que se projetavam mais de dois centímetros acima dos cabelos encaracolados. — Eu estava do outro lado do parque. As dríades tiveram essa ótima ideia de me passar através das árvores para me fazer chegar até aqui. Elas não entendem muito bem essa coisa de altura.

Ele sorriu e pôs os pés no chão — bem, na verdade, os cascos. Desde o último verão, Grover tinha parado de tentar se disfarçar de humano. Não usava mais o boné nem os pés falsos. Não usava mais nem mesmo o jeans, já que suas pernas de bode eram peludas. Sua camiseta tinha uma ilustração daquele livro Onde vivem os monstros. Estava coberta de terra e seiva de árvore. Sua barbicha parecia mais cheia, quase igual à de um homem (ou bode?) adulto, e ele agora estava tão alto quanto eu.

— Que bom ver você, garoto bode — disse eu. — Lembra-se de Nico?

Grover dirigiu um cumprimento de cabeça a Nico, então me deu um forte abraço. Ele cheirava a grama recém-aparada.

— Perrrrcy! — berrou. — Senti sua falta! Sinto falta do acampamento. Na natureza não servem enchiladas muito boas.

— Eu estava preocupado — falei. — Onde se meteu nos últimos dois meses?

— Nos últimos dois... — O sorriso de Grover desapareceu. — Nos últimos dois meses? Do que você está falando?

— Não tivemos notícias suas — disse eu. — Juníper está preocupada. Mandamos mensagens de Íris, mas...

— Espere. — Ele olhou para as estrelas no céu, como se estivesse tentando calcular sua posição. — Em que mês estamos?

— Agosto.

Seu rosto ficou sem cor.

— Impossível. É junho. Eu só me deitei para tirar um cochilo e... — Ele agarrou meus braços. — Agora lembro! Ele me apagou. Percy, precisamos detê-lo!

— Uau! — falei. — Acalme-se. Conte o que aconteceu.

Ele respirou fundo.

— Eu estava... estava andando no bosque perto de Harlem Meer. Então, senti um tremor no chão, como se alguma força poderosa estivesse por perto.

— Você pressente essas coisas? — perguntou Nico.

Grover assentiu.

— Desde a morte de Pã, posso sentir quando algo está errado na natureza. É como se meus ouvidos e meus olhos ficassem mais aguçados quando estou no meio da vida selvagem. Bem, comecei a farejar o rastro. Havia um homem com um sobretudo preto caminhando pelo parque, e percebi que ele não tinha sombra. Estávamos no meio de um dia de sol, e ele não fazia sombra. E parecia tremeluzir ao andar.

— Como uma miragem? — perguntou Nico.

— É — concordou Grover. — E sempre que passava pelos humanos...

— Os humanos desmaiavam — completou Nico. — Se enroscavam e adormeciam.

— Isso mesmo! E depois que ele passava eles se levantavam e seguiam seu caminho, como se nada tivesse acontecido.

Olhei para Nico.

— Você conhece esse cara de preto?

— Receio que sim — disse Nico. — Grover, o que aconteceu?

— Segui o sujeito. Ele ficava olhando os edifícios em torno do parque como se estivesse fazendo estimativas ou algo assim. Uma mulher passou correndo por ele... Caiu enroscada na calçada e começou imediatamente a roncar. O homem de preto pôs a mão na testa dela, como se estivesse verificando sua temperatura. Então, continuou andando. A essa altura eu já sabia que se tratava de um monstro ou de algo ainda pior. Eu o segui até aquela alameda, até a base de um grande olmo. Estava prestes a convocar algumas dríades para me ajudar a capturá-lo quando ele se virou e... — Grover engoliu em seco. — Percy, o rosto dele... Eu não conseguia distinguir seu rosto, porque ele ficava mudando. O simples fato de olhá-lo me fez sentir sono. Perguntei: “O que está fazendo?” Ele respondeu: “Só estou dando uma olhada por aí. É preciso fazer o reconhecimento de campo antes da batalha.” Respondi algo muito inteligente, do tipo: “Esta floresta está sob minha proteção. Você não vai começar nenhuma batalha aqui!” E ele riu e disse: “Tem sorte de eu estar poupando minha energia para o evento principal, seu satirozinho. Só vou lhe conceder um cochilo. Tenha bons sonhos.” E essa é a última coisa de que me recordo.

Nico respirou fundo.

— Grover, você encontrou Morfeu, o deus dos sonhos. Tem sorte de ter acordado.

— Dois meses — gemeu Grover. — Ele me pôs para dormir por dois meses!

Tentei entender o que aquilo significava. Agora fazia sentido não termos conseguido fazer contato com Grover por tanto tempo.

— Por que as ninfas não tentaram acordá-lo? — perguntei.

Grover deu de ombros.

— A maioria das ninfas não é boa com a questão do tempo. Dois meses para uma árvore... isso não é nada. Provavelmente, acharam que não havia nada de errado.

— Precisamos descobrir o que Morfeu estava fazendo no parque — falei. — Não estou gostando desse negócio de “evento principal” de que ele falou.

— Ele está trabalhando para Cronos — disse Nico. — Já sabemos disso. Muitos dos deuses menores estão. Isso só prova que vai haver uma invasão. Percy, temos de prosseguir com nosso plano.

— Espere — disse Grover. — Que plano?

Contamos a ele, e Grover começou a puxar com força os pelos da perna.

— Vocês não estão falando sério — disse ele. — O Mundo Inferior novamente, não.

— Não estou pedindo que você venha, cara. Sei que acabou de acordar. Mas precisamos de um pouco de música para abrir a porta. Você toca?

Grover pegou a flauta de bambu.

— Acho que posso tentar. Conheço algumas canções do Nirvana capazes de rachar pedras. Mas, Percy, você tem certeza de que quer fazer isso?

— Por favor — falei. — É muito importante. Pelos velhos tempos?

Ele choramingou.

— Pelo que me lembro, nos velhos tempos, muitas vezes, nós quase morremos. Mas, tudo bem, vamos lá.

Ele levou a flauta aos lábios e tocou uma melodia aguda e animada. As rochas tremeram. Algumas stanzas mais e elas se abriram, revelando uma fenda triangular.

Espiei lá dentro. Degraus desciam para a escuridão. O ar cheirava a mofo e morte, e trouxe más recordações de minha viagem pelo Labirinto no ano anterior. Este túnel, porém, parecia ainda mais perigoso. Levava direto à terra de Hades, e quase sempre essa era uma viagem só de ida.

Voltei-me para Grover.

— Obrigado... acho.

— Perrrrcy, Cronos vai mesmo invadir?

— Gostaria de poder lhe dar outra resposta, mas sim. Vai.

Pensei que Grover fosse mastigar sua flauta de tanta ansiedade, mas ele se endireitou e limpou a camiseta com as mãos. Não pude deixar de pensar no quanto ele era diferente do velho e gordo Leneu.

— Preciso convocar os espíritos da natureza, então. Talvez possamos ajudar. Vou ver se consigo achar esse Morfeu!

— É melhor você dizer a Juníper que está bem.

Os olhos dele se arregalaram.

— Juníper! Ah, ela vai me matar!

Ele começou a correr, então voltou em disparada e me deu outro abraço.

— Tome cuidado lá embaixo! Volte vivo!

Assim que ele se foi, Nico e eu acordamos a sra. O’Leary de seu cochilo.

Quando ela sentiu o cheiro do túnel, ficou animada e desceu a escada à nossa frente. Era um espaço bastante apertado. Torci para que ela não ficasse entalada. Não podia imaginar de quanto desentupidor precisaríamos para soltar um cão infernal entalado em um túnel para o Mundo Inferior.

— Pronto? — perguntou-me Nico. — Vai dar tudo certo. Não se preocupe.

Ele parecia estar tentando convencer a si mesmo.

Olhei para as estrelas, perguntando-me se voltaria a vê-las outra vez. Então, mergulhamos na escuridão.

Os degraus eram intermináveis — estreitos, íngremes e escorregadios. Estava completamente escuro, exceto pela claridade da minha espada. Eu tentava ir devagar, mas a sra. O’Leary tinha outros planos. Ela saltitava, latindo feliz. O som ecoava no túnel como disparos de canhões, e deduzi que não iríamos pegar ninguém de surpresa quando chegássemos ao fundo.

Nico ficou para trás, o que achei estranho.

— Você está bem? — perguntei.

— Tudo bem. — O que era aquela expressão em seu rosto... dúvida? — Continue — disse ele.

Eu não tinha muita escolha. Segui a sra. O’Leary para as profundezas. Depois de mais uma hora, comecei a ouvir o som de um rio.

Emergimos na base de um penhasco, numa planície de areia vulcânica negra. À direita, o Rio Estige jorrava das pedras e estrondeava em uma sequência de cachoeiras. À esquerda, a distância na escuridão, o fogo ardia nas fortalezas de Érebo, os grandes muros negros do reino de Hades.

Estremeci. A primeira vez que fora ali tinha doze anos, e só tive coragem de ir adiante porque estava na companhia de Annabeth e de Grover. Nico não seria tão útil nesse aspecto da “coragem”. Ele mesmo parecia pálido e preocupado.

Apenas a sra. O’Leary estava feliz. Ela correu ao longo da praia, escolheu aleatoriamente o osso de uma perna humana e voltou brincando. Deixou o osso cair aos meus pés e esperou que eu o atirasse.

— Hã, talvez mais tarde, garota. — Olhei para as águas escuras, tentando reunir coragem. — Então, Nico... o que fazemos agora?

— Primeiro, precisamos passar pelos portões — disse ele.

— Mas o rio está bem aqui.

— Preciso buscar uma coisa — disse ele. — É o único jeito.

E saiu andando imediatamente.

Franzi a testa. Nico não havia mencionado nada sobre passar pelos portões. Mas, agora que estávamos ali, eu não sabia mais o que fazer. Relutante, eu o segui ao longo da praia em direção aos grandes portões negros.

Filas de mortos postavam-se diante dos portões, esperando para entrar. Deveria ter sido um dia intenso de funerais, pois até mesmo a fila de MORTE FÁCIL estava congestionada.

— AU! — latiu a sra. O’Leary.

Antes que eu pudesse detê-la, ela correu na direção do posto de inspeção da segurança. Cérbero, o cão de guarda de Hades, surgiu das sombras — um rottweiler de três cabeças tão grande que fazia a sra. O’Leary parecer um poodle toy. Cérbero é meio transparente, de modo que é muito difícil vê-lo até ele estar perto o suficiente para matar você, mas ele agia como se não estivesse nem aí para nós. Estava ocupado demais dizendo oi para a sra. O’Leary.

— Sra. O’Leary, não! — gritei. — Não cheire... Ah, cara.

Nico sorriu. Então, olhou para mim, e sua expressão ficou séria outra vez, como se tivesse se lembrado de algo desagradável.

— Venha. Não vão nos causar problemas na fila. Você está comigo.

Eu não gostava nada daquilo, mas passamos despercebidos pelos espíritos maléficos da segurança e entramos nos Campos dos Asfódelos. Tive de assoviar três vezes até que a sra. O’Leary deixasse Cérbero e viesse correndo atrás de nós.

Atravessamos campos de grama negra pontilhados de choupos também negros. Se eu de fato morresse em alguns dias, como dizia a profecia, poderia terminar naquele lugar para sempre, mas tentei não pensar nisso.

Nico caminhava penosamente à frente, levando-nos cada vez para mais perto do palácio de Hades.

— Ei — disse eu —, já passamos pelos portões. Aonde nós...

A sra. O’Leary rosnou. Uma sombra surgiu no alto — algo escuro, frio e com cheiro de morte, que desceu num mergulho e pousou no alto de um choupo.

Infelizmente, eu a reconheci. Tinha o rosto enrugado, um chapéu de tricô azul horrível e um vestido de veludo amarrotado. Asas de morcego que pareciam de couro projetavam-se de suas costas. Os pés tinham garras afiadas e em suas mãos com garras de bronze ela segurava um chicote flamejante e uma bolsa de mão com estampa de paisley.

— Sra. Dodds — falei.

Ela mostrou as presas.

— Bem-vindo, querido.

Suas duas irmãs — as outras Fúrias — também desceram e pousaram perto dela nos galhos do choupo.

— Conhece Alectó? — perguntou Nico.

— Se você se refere à bruxa do meio, sim. Ela foi minha professora de matemática.

Nico assentiu, como se isso não o surpreendesse. Ele ergueu os olhos para as Fúrias e respirou fundo.

— Fiz o que meu pai pediu. Leve-nos para o palácio.

Meu corpo se retesou.

— Espere um pouco, Nico. O que você...

— Desculpe-me, mas essa é minha nova pista, Percy. Meu pai me prometeu informações sobre minha família, mas ele quer ver você antes de irmos ao rio. Lamento.

— Você me enganou?

Eu estava tão furioso que não conseguia pensar. Investi contra ele, mas as Fúrias foram rápidas. Duas delas desceram e me agarraram pelos braços. A espada caiu de minhas mãos, e antes que eu me desse conta estava pendurado a vinte metros do chão.

— Ah, não lute, querido — minha antiga professora de matemática cacarejou em meu ouvido. — Eu odiaria deixá-lo cair.

A sra. O’Leary latia, zangada, e pulava, tentando me alcançar, mas estávamos alto demais.

— Diga à sra. O’Leary que se comporte — avisou Nico. Ele pairava no ar perto de mim, nas garras da terceira Fúria. — Não quero que ela se machuque, Percy. Meu pai está esperando. Ele só quer conversar.

Eu queria dizer à sra. O’Leary que atacasse Nico, mas isso não teria servido para nada, e Nico estava certo em relação a uma coisa: minha cadela poderia se machucar caso se envolvesse em uma briga com as Fúrias.

Trinquei os dentes.

— Sra. O’Leary, desça! Está tudo bem, garota.

Ela choramingou e ficou andando em círculos, os olhos voltados para o alto, me observando.

— Muito bem, traidor — grunhi para Nico. — Você tem a sua presa. Leve-me para o maldito palácio.

Alectó me soltou como um saco de batatas no meio do jardim.

O palácio era um lugar bonito, mas de uma beleza sinistra. Árvores brancas esqueléticas cresciam em bacias de mármore. Canteiros transbordavam com plantas douradas e pedras preciosas. Dois tronos, um, cor de osso, e o outro, prateado, erguiam-se na sacada com vista para os Campos dos Asfódelos. Seria um bom lugar para passar uma manhã de sábado, a não ser pelo cheiro de enxofre e pelos gritos das almas torturadas a distância.

Guerreiros esqueléticos guardavam a única saída. Vestiam-se como soldados americanos, com uniformes esfarrapados de combate no deserto, e carregavam fuzis M16.

A terceira Fúria depositou Nico ao meu lado. Então, as três se empoleiraram no alto do trono esqueletal. Resisti ao impulso de estrangular Nico. Elas me impediriam facilmente. Eu teria de esperar para me vingar.

Olhei aqueles tronos vazios, esperando que algo acontecesse. Então, o ar tremulou. Três figuras surgiram — Hades e Perséfone, em seus tronos, e uma mulher mais velha de pé entre os dois. Pareciam estar no meio de uma discussão.

— ... disse a você que ele era um vagabundo! — dizia a mais velha.

— Mãe! — replicou Perséfone.

— Temos visitas! — rugiu Hades. — Por favor!

Hades, um dos deuses de quem eu menos gostava, alisou seu manto negro, que era coberto de rostos aterrorizados dos malditos. Ele tinha a pele pálida e os olhos intensos de um louco.

— Percy Jackson — disse com satisfação. — Finalmente.

A rainha Perséfone me observou com curiosidade. Eu a tinha visto uma vez, no inverno, mas agora, no verão, parecia uma deusa totalmente diferente. Tinha cabelos pretos lustrosos e olhos castanhos calorosos. Seu vestido tremeluzia com várias cores. A estampa de flores do tecido mudava e florescia — rosas, tulipas, madressilvas.

A mulher de pé entre eles, obviamente, era a mãe de Perséfone. Tinha o mesmo cabelo e os mesmos olhos, mas parecia mais velha e severa. Seu vestido era dourado, da cor de um campo de trigo. O cabelo estava trançado com palha seca, e me lembrava uma cesta de vime. Imaginei que ela estaria em sérios apuros se alguém a seu lado acendesse um fósforo.

— Hum — bufou a mulher mais velha. — Semideuses. Só nos faltava essa.

Ao meu lado, Nico se ajoelhou. Desejei ter minha espada para poder decepar sua cabeça idiota. Infelizmente, Contracorrente ainda devia estar caída em algum lugar dos campos.

— Pai — disse Nico. — Fiz o que o senhor pediu.

— Demorou bastante — resmungou Hades. — Sua irmã teria feito melhor.

Nico baixou a cabeça. Se eu não estivesse tão furioso com o traidorzinho, teria sentido pena.

Olhei, feroz, para o deus dos mortos.

— O que você quer, Hades?

— Conversar, é claro. — O deus retorceu a boca em um sorriso cruel. — Nico não lhe falou?

— Então, toda essa busca era uma mentira. Nico me trouxe até aqui embaixo para que eu fosse morto.

— Ah, não — disse Hades. — Receio que Nico tenha sido bastante sincero em relação a querer ajudá-lo. O garoto é tão honesto quanto obtuso. Eu simplesmente o convenci a tomar um pequeno atalho e trazer você aqui primeiro.

— Pai — disse Nico —, o senhor prometeu que nada de mau aconteceria a Percy. Disse que se eu o trouxesse o senhor me contaria sobre meu passado... sobre minha mãe.

A rainha Perséfone suspirou dramaticamente.

— Podemos, por favor, não falar sobre aquela mulher na minha presença?

— Desculpe, minha pombinha — disse Hades. — Tive de prometer alguma coisa ao garoto.

A mulher mais velha pigarreou exageradamente.

— Eu avisei, filha. Esse canalha do Hades não presta. Você poderia ter se casado com o deus dos médicos ou o deus dos advogados, mas nãããão. Tinha de comer a romã.

— Mãe...

— E se enfiar aqui no Mundo Inferior!

— Mamãe, por favor...

— E cá estamos nós em pleno agosto, e você, por acaso, vai para casa como deveria? Você alguma vez pensa em sua pobre e solitária mãe?

— DEMÉTER! — gritou Hades. — Já chega. Você é uma hóspede em minha casa.

— Ah, isto é uma casa? — perguntou ela. — Chama esta espelunca de casa? Faz minha filha viver neste lugar escuro, úmido...

— Eu já lhe disse — cortou Hades, rangendo os dentes —, está havendo uma guerra no mundo lá em cima. Você e Perséfone estão melhores aqui comigo.

— Com licença — intervim. — Mas, se você vai me matar, pode ir em frente de uma vez?

Os três deuses olharam para mim.

— Bem, esse aí tem atitude — observou Deméter.

— De fato — concordou Hades. — Eu adoraria matá-lo.

— Pai! — disse Nico. — O senhor prometeu!

— Marido, já falamos sobre isso — repreendeu Perséfone. — Você não pode sair por aí incinerando todos os heróis. Além disso, ele é corajoso. Eu gosto disso.

Hades revirou os olhos.

— Você gostava daquele camarada Orfeu também. Olhe no que deu aquilo. Deixe-me matá-lo, só um pouquinho.

— Pai, o senhor prometeu! — exclamou Nico. — Disse que só queria falar com ele. Disse que se eu o trouxesse, explicaria.

Hades olhou-o com ar ameaçador, alisando o amarrotado de seu manto.

— E é o que vou fazer. Sua mãe... O que posso lhe dizer? Era uma mulher maravilhosa. — Ele olhou, desconfortável, para Perséfone. — Perdoe-me, minha querida. Eu quero dizer para uma mortal, é claro. Seu nome era Maria di Angelo. Ela era de Veneza, mas o pai era diplomata em Washington. Foi onde a conheci. Quando você e sua irmã eram pequenos, aquele era um péssimo momento para ser filho de Hades. A Segunda Guerra Mundial estava fervendo. Alguns de meus, hã, outros filhos estavam liderando o lado perdedor. Pensei que seria melhor colocar vocês dois fora de alcance.

— Foi por isso que nos escondeu no Cassino Lótus?

Hades deu de ombros.

— Vocês não envelheceram. Não perceberam que o tempo estava passando. Esperei o momento certo para tirá-los de lá.

— Mas o que aconteceu a nossa mãe? Por que não me lembro dela?

— Isso não é importante — respondeu Hades asperamente.

— O quê? É claro que é importante. E o senhor tinha outros filhos... Por que fomos os únicos a ser afastados? E quem era o advogado que nos tirou de lá?

Hades rangeu os dentes.

— Seria melhor você ouvir mais e falar menos, garoto. Quanto ao advogado...

Hades estalou os dedos. No alto do trono, a Fúria Alectó começou a se transformar: tornou-se um homem de meia-idade em um terno risca de giz com uma valise na mão. Ela — ele — parecia estranha empoleirada no ombro de Hades.

— Você! — exclamou Nico.

A Fúria cacarejou.

— Eu sou muito boa no papel de advogados e professoras!

Nico estava tremendo.

— Mas por que nos libertou do cassino?

— Você sabe por quê — disse Hades. — Esse filho idiota de Poseidon não pode ser o meio-sangue da profecia.

Arranquei um rubi da planta mais próxima e o atirei em Hades. A pedra afundou inofensivamente em seu manto.

— Você deveria estar ajudando o Olimpo! — disse eu. — Todos os deuses estão lutando contra Tifão, e você fica aqui, sentado...

— Esperando as coisas acontecerem — concluiu Hades. — Sim, é isso mesmo. Qual foi a última vez que o Olimpo me ajudou, meio-sangue? Qual foi a última vez que um filho meu foi recebido como herói? Ah! Por que eu deveria correr e ajudá-los? Permanecerei aqui, com minhas forças intactas.

— E quando Cronos vier atrás de você?

— Ele que tente. Estará enfraquecido. E meu filho aqui, Nico... — Hades olhou-o com aversão. — Bem, ele não é grande coisa agora, eu reconheço. Teria sido melhor se Bianca tivesse sobrevivido. Mas dê-lhe mais quatro anos de treinamento. Podemos resistir esse tempo, com certeza. Nico terá dezesseis anos, como diz a profecia, e então ele tomará a decisão que salvará o mundo. E eu serei o rei dos deuses.

— Você está louco — falei. — Cronos vai destruí-lo, logo depois que terminar de pulverizar o Olimpo.

Hades estendeu as mãos.

— Bem, você vai ter a chance de descobrir, meio-sangue. Porque estará aguardando o término da guerra em minhas masmorras.

— Não! — exclamou Nico. — Pai, não foi esse o nosso acordo. E o senhor não me contou tudo!

— Contei tudo o que precisa saber — disse Hades. — Quanto ao nosso acordo, conversei com Jackson, não lhe fiz mal algum e você obteve a informação que queria. Se quisesse um acordo melhor, deveria ter me feito jurar pelo Estige. Agora, vá para o seu quarto! — Ele fez um gesto e Nico desapareceu.

— Aquele garoto precisa comer mais — resmungou Deméter. — É muito magricela. Precisa comer mais cereal.

— Mãe, já chega de cereal. Meu senhor Hades, tem certeza de que não podemos deixar esse pequeno herói ir? Ele é tremendamente corajoso. — Perséfone revirou os olhos.

— Não, minha querida. Já poupei a vida dele. Isso basta.

Eu tinha certeza de que ela iria me defender. A bela e corajosa Perséfone me tiraria dali. Mas ela deu de ombros, indiferente.

— Está bem. O que temos para o café da manhã? Estou morrendo de fome.

— Cereal — disse Deméter.

— Mãe! — Protestou Perséfone, e as duas mulheres desapareceram em um turbilhão de flores e trigo.

— Não fique tão triste, Percy Jackson — disse Hades. — Meus fantasmas me mantêm bem-informado sobre os planos de Cronos. Posso assegurar-lhe que você não tinha a menor chance de detê-lo a tempo. Hoje à noite já será tarde demais para seu precioso Monte Olimpo. A armadilha terá sido acionada.

— Que armadilha? — perguntei, desesperado. — Se você sabe, faça alguma coisa! Pelo menos me deixe avisar os outros deuses!

— Você é destemido. Esse crédito eu lhe dou. Divirta-se em minha masmorra. Vamos checar você outra vez daqui a... hã, cinquenta ou sessenta anos — disse Hades, sorrindo.


OITO

Tomo o pior banho da minha vida

Minha espada reapareceu em meu bolso.

É, um ótimo timing. Agora eu podia atacar as paredes à vontade. Minha cela não tinha grades, nem janela, nem mesmo porta. Os guardas esqueletos me atiraram através de uma parede, que se tornou sólida às minhas costas. Eu não tinha certeza se a cela era hermética. Provavelmente. A masmorra de Hades se destinava a gente morta, que já não respira. Portanto, esqueça os cinquenta ou sessenta anos. Eu estaria morto em cinquenta ou sessenta minutos. Enquanto isso, se Hades não estivesse mentindo, alguma grande armadilha seria acionada em Nova York no fim do dia, e não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer.

Sentei-me no chão frio de pedra sentindo-me péssimo.

Não me lembro de ter cochilado. Mas deviam ser umas sete da manhã, pelo horário dos mortais, e eu passara por muita coisa.

Sonhei que estava na varanda da casa de praia de Rachel, em St. Thomas. O sol se erguia sobre o Caribe. Dezenas de ilhas cobertas de bosques pontilhavam o mar, e velas brancas cortavam a água. O cheiro de maresia me fez imaginar se um dia voltaria a ver o oceano.

Os pais de Rachel estavam sentados à mesa do pátio, enquanto um chef preparava omeletes. O sr. Dare vestia um terno branco de linho. Estava lendo The Wall Street Journal. A mulher do outro lado da mesa, provavelmente, era a sra. Dare, embora tudo que eu conseguisse ver dela fossem as unhas rosa-pink e a capa da Condé Nast Traveler. Por que ela lia sobre férias quando já estava de férias, eu não sabia.

Rachel estava de pé junto ao parapeito da varanda, e suspirou. Usava bermuda e sua camiseta do Van Gogh. (É, Rachel estava tentando me ensinar sobre arte, mas não fique muito impressionado. Eu só me lembrava do nome do sujeito porque ele havia cortado fora a própria orelha.)

Perguntei-me se ela estaria pensando em mim, e no quanto era ruim o fato de eu não ter ido com eles. Sei que isso era o que eu estava pensando.

Então, o cenário mudou. Eu estava em St. Louis, no centro da cidade, sob o Arco. Já estivera ali antes. Na verdade, eu quase despencara dali para a morte.

Sobre a cidade, uma tempestade se formava — uma parede de escuridão absoluta, com relâmpagos riscando o céu. A algumas quadras, enxames de veículos de emergência se reuniam com as luzes piscando. Uma coluna de poeira se erguia de um monte de escombros que, percebi, era um arranha-céu desmoronado.

Uma repórter nas proximidades gritava ao microfone:

“As autoridades estão descrevendo o acidente como uma falha estrutural, Dan, embora ninguém pareça saber se isso está relacionado às condições do tempo.”

O vento açoitava-lhe os cabelos. A temperatura caía rapidamente, algo como dez graus desde que eu estava ali.

“Felizmente, o edifício estava abandonado e pronto para ser demolido” — anunciou ela. — “Mas a polícia evacuou todos os prédios das redondezas com medo de que o desabamento possa acarretar...”

Ela gaguejou quando um poderoso gemido cortou o céu. A explosão de um relâmpago atingiu o centro da massa escura. Toda a cidade foi sacudida. O ar fulgurou, e todos os pelos do meu corpo se arrepiaram. A explosão foi tão forte que eu sabia que só podia ser uma coisa: o raio-mestre de Zeus. Aquilo deveria ter vaporizado o alvo, mas a nuvem escura apenas sacudiu um pouco, e recuou. Um punho fumegante surgiu do meio das nuvens e esmagou outra torre. O prédio inteiro ruiu, como blocos de montar para crianças.

A repórter gritou. As pessoas corriam pelas ruas. Luzes de emergência piscavam. Vi um risco prateado no céu — uma carruagem puxada por renas, mas não era Papai Noel que controlava as rédeas. Era Ártemis, cavalgando a tempestade, atirando setas de luar na escuridão. Um cometa dourado cruzou-lhe o caminho... talvez seu irmão Apolo.

Uma coisa era certa: Tifão alcançara o Rio Mississippi. Cruzava a metade do território dos Estados Unidos, deixando um rastro de destruição, e os deuses mal conseguiam retardá-lo.

A montanha de escuridão assomava acima de mim. Um pé do tamanho do estádio dos Yankees estava prestes a me esmagar quando uma voz sibilou:

— Percy!

Avancei sem pensar. Antes que eu estivesse completamente desperto, já tinha Nico preso ao chão da cela, com a extremidade de minha espada em sua garganta.

— Queria... resgatar... — ele sufocava.

A raiva me despertou rapidamente.

— Ah, é? E por que eu deveria confiar em você?

— Não tem... escolha? — ele engasgou.

Eu queria que ele não tivesse dito nada tão lógico. Soltei-o.

Nico se encolheu como uma bola, emitindo sons como se quisesse vomitar, enquanto sua garganta se recuperava. Por fim, ele se levantou, olhando para minha espada com cautela. Sua própria espada estava embainhada. Suponho que se ele quisesse me matar poderia tê-lo feito enquanto eu dormia. Ainda assim, eu não confiava nele.

— Precisamos sair daqui — disse ele.

— Por quê? — perguntei. — Seu pai quer conversar comigo outra vez?

Ele estremeceu.

— Percy, juro pelo Rio Estige que não sabia o que ele estava planejando.

— Você sabe como é o seu pai!

— Ele me enganou. Prometeu... — Nico ergueu as mãos. — Olhe... neste momento, precisamos ir embora. Coloquei os guardas para dormir, mas isso não vai durar muito.

Senti vontade de estrangulá-lo outra vez, só que, infelizmente, ele tinha razão. Não havia tempo para discutir, e eu não poderia escapar sozinho. Ele apontou para a parede. Uma seção inteira desapareceu, revelando um corredor.

— Venha. — Nico seguia à frente.

Desejei ter o boné de invisibilidade de Annabeth, mas, no fim das contas, não precisei dele. Todas as vezes que encontrávamos um guarda esqueleto, Nico simplesmente apontava para ele e seus olhos incandescentes se apagavam. No entanto, quanto mais vezes Nico fazia isso, mais cansado ele parecia. Atravessamos um labirinto de corredores cheios de guardas. Quando chegamos a uma cozinha com cozinheiros e criados esqueletos, eu estava praticamente carregando Nico. Ele conseguiu colocar todos os mortos para dormir, mas ele mesmo quase apagou. Então, eu o arrastei para fora, pela entrada de serviço, até os Campos dos Asfódelos.

Eu estava quase me sentindo aliviado quando ouvi o som de gongos de bronze vindo do castelo.

— Alarmes — murmurou Nico, sonolento.

— O que fazemos?

Ele bocejou e então franziu a testa, como se estivesse tentando lembrar.

— Que tal... correr?

Correr com um filho sonolento de Hades era mais como participar de uma corrida de três pernas com um boneco de pano de tamanho natural. Eu o arrastei comigo, mantendo a espada à minha frente. Os espíritos dos mortos abriam caminho como se o bronze celestial fosse uma labareda.

O som dos gongos vibrava pelos campos. À frente erguiam-se os muros de Erebos, mas quanto mais andávamos mais distantes eles pareciam. Eu estava prestes a desabar de exaustão quando ouvi um familiar “AUUUUU!”.

A sra. O’Leary surgiu pulando do nada e começou a correr em círculos à nossa volta, pronta para brincar.

— Boa garota! — disse eu. — Pode nos dar uma carona até o Estige?

A palavra Estige deixou-a animada. Ela saltitou algumas vezes, perseguiu a própria cauda — apenas para deixar claro quem é que mandava —, e então se acalmou o suficiente para que eu empurrasse Nico para suas costas. Subi nela também, e ela disparou na direção dos portões e saltou bem na direção da fila de MORTE FÁCIL, lançando guardas estatelados no chão e fazendo mais alarmes dispararem. Cérbero latiu, mas parecia mais animado do que zangado, como se dissesse: Posso brincar também?

Felizmente, ele não nos seguiu, e a sra. O’Leary continuou correndo. Não parou até estarmos bem distantes rio acima e os fogos de Erebos terem desaparecido nas trevas.

Nico deslizou das costas da sra. O’Leary e encolheu-se em um monte na areia negra.

Peguei um pedaço de ambrosia — parte da comida de emergência dos deuses que eu sempre levava comigo. Estava um pouco amassado, mas Nico o mastigou.

— Hã — murmurou ele. — Melhor.

— Seus poderes o esgotam demais — observei.

Ele fez que sim com a cabeça, sonolento.

— Com grandes poderes... vem uma grande necessidade de tirar um cochilo. Mais tarde você me acorda, o.k.?

— Ei, camarada zumbi. — Eu o segurei antes que ele pudesse apagar outra vez. — Estamos no rio. Você precisa me dizer o que fazer.

Dei-lhe meu último pedaço de ambrosia, o que era um pouco perigoso. A substância pode curar semideuses, mas também pode nos queimar até virarmos cinzas se comermos demais. Felizmente, pareceu funcionar. Nico sacudiu a cabeça algumas vezes e se pôs de pé com dificuldade.

— Meu pai logo virá — disse ele. — Precisamos nos apressar.

A correnteza do Estige criava redemoinhos com estranhos objetos — brinquedos quebrados, diplomas de faculdade rasgados, buquês murchos: todos os sonhos que as pessoas descartavam ao passar da vida para a morte. Olhando para as águas negras, eu era capaz de pensar em uns três milhões de outros lugares onde preferiria nadar.

— Então... é só mergulhar?

— Primeiro, você precisa se preparar — disse Nico. — Do contrário, o rio o destruirá. Vai queimar seu corpo e sua alma.

— Parece divertido — murmurei.

— Isso não é uma piada — advertiu Nico. — Só existe uma forma de se manter ancorado à sua vida mortal. Você precisa...

Ele olhou além de mim, e seus olhos se arregalaram. Virei-me e me vi cara a cara com um guerreiro grego.

Por um segundo pensei que fosse Ares, porque aquele cara tinha exatamente a mesma aparência do deus da guerra — era alto e musculoso, com um rosto cruel marcado por cicatrizes e cabelos negros cortados rente. Usava túnica branca e armadura de bronze. E carregava um capacete de guerra emplumado embaixo do braço. Mas seus olhos eram humanos — verdes, claros como um mar pouco profundo — e havia uma flecha sangrenta se projetando de sua panturrilha esquerda, pouco acima do tornozelo.

Até mesmo eu, que não era muito bom com nomes gregos, conhecia o maior guerreiro de todos os tempos, que morrera por causa de um ferimento no calcanhar.

— Aquiles — falei.

O fantasma assentiu.

— Avisei ao outro que não seguisse meus passos. Agora aviso a você — disse Aquiles.

— Luke? Você falou com Luke?

— Não faça isso — disse ele. — Isso o tornará poderoso. Mas também o tornará fraco. Sua habilidade em combate estará além das possibilidades de qualquer mortal, mas suas fraquezas, suas falhas também aumentarão.

— Você quer dizer que terei problemas no calcanhar? — perguntei. — Não vou poder, hã, calçar nada além de sandálias? Sem nenhuma ofensa.

Ele olhou seu pé coberto de sangue.

— O calcanhar é apenas minha fraqueza física, semideus. Foi ali que minha mãe, Tétis, segurou quando me mergulhou no Estige. O que me matou de fato foi minha arrogância. Tenha cuidado! Volte!

Ele falava sério. Eu podia perceber o arrependimento e a amargura em sua voz. Ele estava sinceramente tentando me salvar de um destino terrível.

Mas Luke estivera ali — e não havia recuado.

Havia sido por isso que Luke pudera abrigar o espírito de Cronos sem que seu corpo se desintegrasse. Fora assim que ele se preparara, e por isso parecia impossível matá-lo. Ele havia se banhado no Estige e assumido os poderes do maior herói mortal, Aquiles. Luke era invencível.

— Eu preciso — falei. — Senão, não terei a menor chance.

Aquiles baixou a cabeça.

— Os deuses são testemunhas de que tentei. Herói, se precisa mesmo fazer isso, concentre-se em seu ponto mortal. Imagine um ponto em seu corpo que permanecerá vulnerável. É nesse ponto que sua alma vai ancorar seu corpo ao mundo. Será sua maior fraqueza, mas também sua única esperança. Nenhum homem pode ser completamente invulnerável. Perca de vista o que o mantém mortal e o Rio Estige o transformará em cinzas. Você deixará de existir.

— Suponho que você não possa me contar qual é o ponto mortal de Luke...

Ele me lançou um olhar mal-humorado.

— Prepare-se, garoto tolo. Quer sobreviva ou não, você acaba de selar seu destino!

Com essa declaração feliz, ele desapareceu.

— Percy — disse Nico —, talvez ele tenha razão.

— Essa ideia foi sua.

— Eu sei, mas agora que estamos aqui...

— Espere na margem. Se alguma coisa me acontecer... Bem, talvez Hades tenha seu desejo satisfeito, e você será, afinal, o filho mencionado na profecia.

Ele não pareceu satisfeito com isso, mas eu não me importava.

Antes que pudesse mudar de ideia, concentrei-me na base da minha coluna — um pequeno ponto oposto ao meu umbigo. Ele ficava bem-protegido quando eu estava de armadura. Seria difícil atingi-lo por acidente, e poucos inimigos o alvejariam de propósito. Nenhum lugar seria perfeito, mas esse me pareceu bom, e bem mais digno do que, hã, a axila ou algum outro lugar.

Imaginei um fio, uma corda elástica me conectando com o mundo a partir desse ponto. E entrei no rio.

Imagine saltar em um poço de ácido borbulhante. Agora multiplique essa dor por cinquenta. Nem assim você estará perto de compreender a sensação de nadar no Estige. Eu planejei entrar lenta e corajosamente, como um herói de verdade. Mas assim que a água tocou minhas pernas, meus músculos transformaram-se em geleia e eu caí de cara na correnteza.

Submergi por completo. Pela primeira vez na vida eu não conseguia respirar debaixo d’água. Finalmente compreendi o pânico do afogamento. Cada nervo em meu corpo queimava. Eu estava me dissolvendo na água. Via rostos — Rachel, Grover, Tyson, minha mãe —, mas eles desapareciam assim que surgiam.

“Percy”, disse minha mãe. “Eu lhe dou minha bênção.”

“Tenha cuidado, irmão!”, pediu Tyson.

“Enchiladas!”, exclamou Grover.

Eu não sabia de onde vinha isso, mas não pareceu ajudar muito.

Estava perdendo a luta. A dor era forte demais. Minhas mãos e meus pés se dissolviam na água, minha alma estava sendo arrancada do corpo. Não conseguia me lembrar de quem eu era. A dor da foice de Cronos não era nada comparada a essa.

A corda, disse uma voz familiar. Lembre-se de sua corda salva-vidas, idiota!

De repente, senti um puxão na parte inferior das costas. A corrente me puxava, mas não estava me levando mais. Imaginei o fio nas minhas costas me mantendo preso à margem.

— Aguente firme, Cabeça de Alga. — Era a voz de Annabeth, bem mais nítida agora. — Você não vai escapar de mim tão fácil assim.

A corda ficou mais forte.

Agora eu conseguia ver Annabeth — descalça, de pé, no alto, no píer do lago de canoagem. Eu havia caído da minha canoa. Era isso. Ela estendia a mão para me puxar e fazia força para não rir. Vestia a camiseta laranja do acampamento e jeans. Seu cabelo estava escondido embaixo do boné dos Yankees, o que era estranho, pois isso deveria torná-la invisível.

— Às vezes você é tão idiota. — Ela sorria. — Vamos. Segure minha mão.

As lembranças me voltavam em enxurradas — mais vívidas e mais coloridas. Parei de me dissolver. Meu nome era Percy Jackson. Estendi o braço e segurei a mão de Annabeth.

De repente, emergi das águas do rio e desabei na areia. Nico recuou, surpreso.

— Você está bem? — gaguejou ele. — Sua pele. Ah, meus deuses. Você está ferido!

Meus braços estavam vermelhos, brilhantes. Eu tinha a sensação de que cada centímetro do meu corpo havia sido assado em fogo lento.

Olhei à minha volta, procurando Annabeth, embora soubesse que ela não estava ali. Aquilo parecera tão real...

— Estou bem... eu acho.

A cor da minha pele voltou ao normal. A dor abrandou. A sra. O’Leary aproximou-se e me farejou, preocupada. Aparentemente, eu tinha um cheiro bem interessante.

— Está se sentindo mais forte? — perguntou Nico.

Antes que eu pudesse decidir o que eu sentia, uma voz ribombou:

— ALI!

Um exército dos mortos marchava em nossa direção. Uma centena de esqueletos de legionários romanos vinha à frente com escudos e lanças. Atrás deles vinha um número semelhante de soldados britânicos com baionetas em posição. No meio das tropas, o próprio Hades guiava uma carruagem preta e dourada puxada por cavalos de pesadelos, com olhos e crinas que ardiam em chamas.

— Você não vai me escapar desta vez, Percy Jackson! — berrou Hades. — Destruam-no!

— Pai, não! — gritou Nico, mas era tarde demais. A linha de frente de zumbis romanos baixou suas lanças e avançou.

A sra. O’Leary rosnou e preparou-se para saltar sobre eles. Talvez tenha sido isso que desencadeou minha fúria. Não queria que machucassem minha cadela. Além disso, eu estava cansado de Hades bancar o grande tirano. Se eu ia morrer, era melhor que fosse lutando.

Gritei, e o Rio Estige explodiu. Uma gigantesca onda negra chocou-se contra os legionários. Lanças e escudos voaram para todos os lados. Zumbis romanos começaram a se dissolver, a fumaça subindo de seus capacetes de bronze.

Os soldados britânicos baixaram as baionetas, mas eu não esperei por eles. Ataquei.

Foi a coisa mais estúpida que já fiz na vida. Uma centena de mosquetes disparou contra mim à queima-roupa. Todos erraram. Alcancei a fileira e comecei a brandir Contracorrente. Baionetas e espadas cortavam o ar. Armas eram recarregadas e disparadas. Nada me atingia.

Eu girava através das fileiras, golpeando soldados e transformando-os em pó, um atrás do outro. Minha mente estava no piloto automático: fincar, esquivar, golpear, desviar, rolar. Contracorrente já não era uma espada. Era um arco de pura destruição.

Abri caminho em meio à linha de inimigos e saltei para a carruagem negra. Hades ergueu seu cajado. Um raio de energia disparou em minha direção, mas eu o desviei com minha lâmina e me lancei sobre o deus. Nós dois rolamos da carruagem.

Minha próxima lembrança é de estar com os joelhos plantados no peito de Hades. Eu segurava a gola de seu manto real com um punho, e minha espada apontava para seu rosto.

Silêncio. O exército nada fez para defender seu comandante. Olhei para trás e percebi por quê. Nada mais restava deles além de armas caídas na areia e pilhas de uniformes fumegantes e vazios. Eu havia destruído todos.

Hades engoliu em seco.

— Ora, Jackson, ouça aqui...

Ele era imortal. Não havia como eu matá-lo, mas os deuses podem ser feridos. Eu sabia muito bem disso, e supus que ter uma espada no rosto não era uma sensação muito agradável.

— Só vou deixar você escapar — rosnei — porque sou um cara legal. Mas, primeiro, fale sobre aquela armadilha!

Hades evaporou, deixando-me segurando o manto negro vazio.

Xinguei e me pus de pé, respirando pesadamente. Agora que o perigo havia passado, percebi o quanto estava cansado. Cada músculo do meu corpo doía. Olhei para as minhas roupas. Estavam cortadas em tiras e cheias de buracos de bala, mas eu estava bem. Nem uma só marca.

Nico estava boquiaberto.

— Você acaba... com uma espada... você acaba...

— Acho que essa coisa do rio funcionou.

— Ah, puxa! — disse ele sarcasticamente. — Você acha?

A sra. O’Leary latia alegremente e abanava a cauda. Começou a pular de um lado para o outro, farejando uniformes vazios e caçando ossos. Ergui o manto de Hades. Ainda podia ver os rostos atormentados tremeluzindo no tecido.

Andei até a margem do rio.

— Libertem-se.

Deixei o manto cair na água e observei enquanto ele rodopiava corrente abaixo, dissolvendo-se na água.

— Volte para o seu pai — disse eu a Nico. — Diga a ele que me deve uma, por deixá-lo ir. Descubra o que vai acontecer com o Monte Olimpo e o convença a ajudar.

Nico me fitava.

— Eu... eu não posso. Agora ele vai me odiar. Quer dizer... ainda mais.

— Você precisa fazer isso — falei. — Você também tem uma dívida comigo.

As orelhas dele ficaram vermelhas.

— Percy, já pedi desculpas. Por favor... deixe-me ir com você. Eu quero lutar.

— Você será mais útil aqui embaixo.

— Você quer dizer que não confia mais em mim — disse ele, infeliz.

Não respondi. Eu não sabia o que dizer. Estava atônito demais com o que acabara de fazer durante a batalha para pensar com clareza.

— Volte para seu pai — disse eu, tentando não soar severo demais. — Tente fazê-lo ouvir. Você é a única pessoa que talvez possa conseguir isso.

— Essa é uma ideia deprimente. — Nico suspirou. — Muito bem. Vou fazer o melhor que puder. Além disso, ele ainda está escondendo alguma coisa sobre minha mãe. Talvez eu consiga descobrir o quê.

— Boa sorte. Agora a sra. O’Leary e eu temos de ir.

— Para onde? — perguntou Nico.

Olhei para a entrada da caverna e pensei na longa subida de volta ao mundo dos vivos.

— Para dar início a essa guerra. É hora de ir ao encontro de Luke.


NOVE

Duas cobras salvam a minha vida

Eu adoro Nova York. Você pode sair do Mundo Inferior no Central Park, pegar um táxi, descer a Quinta Avenida com um cão infernal gigante saltitando atrás de você, e ninguém nem olha achando esquisito.

Naturalmente, a Névoa ajuda. As pessoas provavelmente não podiam ver a sra. O’Leary — ou talvez pensassem que se tratava de um caminhão enorme, barulhento e muito amistoso.

Corri o risco e usei o celular de minha mãe para ligar para Annabeth pela segunda vez. Eu havia ligado para ela, primeiro, do túnel, mas caíra na caixa postal. A recepção era surpreendentemente boa, já que eu me encontrava no centro mitológico do mundo, mas eu não queria nem ver quanto seriam as taxas de roaming de minha mãe.

Dessa vez, Annabeth atendeu.

— Ei — eu disse. — Recebeu minha mensagem?

— Percy, onde você se meteu? Sua mensagem não dizia praticamente nada! Estávamos loucos de preocupação!

— Conto tudo depois — falei, embora não tivesse a menor ideia de como iria fazer isso. — Onde você está?

— Estamos a caminho, como você pediu, quase chegando ao túnel do Queens para Midtown. Mas, Percy, o que você está planejando? Deixamos o acampamento praticamente indefeso, e não existe possibilidade de os deuses...

— Confie em mim — falei. — Encontro vocês lá.

Desliguei. Minhas mãos estavam tremendo. Eu não tinha certeza se aquela tremedeira era uma reação tardia ao meu mergulho no Estige ou por causa da expectativa em relação ao que estava prestes a fazer. Se nada funcionasse, estar invulnerável não ia me poupar de explodir em mil pedaços.

Era fim de tarde quando o táxi me deixou no Empire State Building. A sra. O’Leary saltitava de um lado para outro na Quinta Avenida, lambendo táxis e cheirando carrocinhas de cachorro-quente. Ninguém parecia notá-la, embora as pessoas se desviassem e parecessem confusas quando ela se aproximava.

Assoviei para que ela se aproximasse no momento em que três vans brancas paravam junto ao meio-fio. Traziam escrito Delphi Strawberry Service, que era o nome de disfarce do Acampamento Meio-Sangue. Eu nunca tinha visto as três vans no mesmo lugar de uma só vez, embora soubesse que elas transportavam para a cidade o que produzíamos no acampamento.

A primeira van era dirigida por Argos, nosso chefe de segurança de muitos olhos. As outras duas eram guiadas por harpias, que eram basicamente híbridos demoníacos de humanos e galinhas, muito malcomportadas. Usávamos as harpias principalmente na limpeza do acampamento, mas elas também se saíam muito bem no trânsito da cidade.

As portas deslizaram, abrindo-se. Um bando de campistas saltou, alguns parecendo um tanto esverdeados em consequência do longo trajeto. Eu estava feliz por tantos terem vindo: Pólux, Silena Beauregard, os irmãos Stoll, Michael Yew, Jake Mason, Katie Gardner e Annabeth, assim como a maioria de seus irmãos. Quíron desceu da última van. Sua metade cavalo estava disfarçada na cadeira de rodas mágica; portanto, ele usou a plataforma para deficientes. O chalé de Ares não tinha vindo, mas tentei não ficar furioso por causa disso. Clarisse era uma cabeça-dura idiota, turrona. Fim da história.

Fiz uma contagem: quarenta campistas ao todo.

Não muitos para travar uma guerra, mas, ainda assim, era o maior grupo de meios-sangues que eu já vira reunido fora do acampamento. Todos pareciam nervosos, e eu entendia o motivo. Provavelmente, estávamos emitindo tanta aura de semideus que cada monstro no nordeste dos Estados Unidos sabia onde nos encontrar.

Enquanto observava o rosto deles — todos aqueles campistas que eu conhecia havia tantos verões —, uma voz incômoda sussurrava em minha mente: Um deles é um espião.

Mas eu não podia me ater a isso. Eles eram meus amigos. Eu precisava deles.

Então me lembrei do sorriso maléfico de Cronos. Não se pode contar com os amigos. Eles sempre vão desapontá-lo.

Annabeth aproximou-se de mim. Estava vestida com roupa de camuflagem preta, com sua faca de bronze celestial presa ao braço e a bolsa do laptop pendurada no ombro — pronta para esfaquear alguém ou navegar pela internet, o que viesse primeiro.

Ela franziu a testa.

— O que foi?

— O que foi o quê? — perguntei.

— Você está me olhando de um jeito engraçado.

Percebi que estava pensando na minha visão de Annabeth me puxando do Rio Estige.

— Hã... não é nada. — Voltei-me para o restante do grupo. — Obrigado por vir, pessoal. Quíron, você primeiro.

Meu antigo mentor sacudiu a cabeça.

— Eu vim para lhe desejar sorte, meu garoto. Mas faço questão de nunca visitar o Olimpo, a menos que seja convocado.

— Mas você é o nosso líder.

Ele sorriu.

— Sou seu instrutor, seu professor. Não é o mesmo que ser seu líder. Vou reunir os aliados que puder. Talvez ainda não seja tarde demais para convencer meus irmãos centauros a ajudar. Enquanto isso, você chamou os campistas aqui, Percy. Você é o líder.

Eu queria protestar, mas todos me olhavam com expectativa, inclusive Annabeth.

Respirei fundo.

— O.k., como eu disse a Annabeth pelo telefone, algo ruim vai acontecer esta noite. Algum tipo de armadilha. Temos de pedir uma audiência com Zeus e convencê-lo a defender a cidade. Lembrem-se: não podemos aceitar um não como resposta.

Pedi a Argos que tomasse conta da sra. O’Leary, e nenhum dos dois pareceu feliz com isso.

Quíron apertou minha mão.

— Você vai se sair bem, Percy. Tenha em mente suas forças e tome cuidado com suas fraquezas.

Aquilo parecia sinistramente semelhante ao que Aquiles me dissera. Então me lembrei de que Quíron havia educado Aquiles. Isso não serviu exatamente para me tranquilizar, mas assenti e tentei lhe dirigir um sorriso confiante.

— Vamos — disse eu aos campistas.

Um segurança estava sentado atrás da mesa no saguão, lendo um livro grosso com uma flor estampada na capa preta. Ele ergueu os olhos quando todos nós entramos em fila com nossas armas e armaduras tilintando.

— Visita escolar? Estamos quase fechando.

— Não — disse eu. — Sexcentésimo andar.

Ele nos examinou. Seus olhos eram de um pálido azul e sua cabeça era completamente careca. Eu não sabia dizer se ele era humano ou não, mas parecia ver nossas armas; portanto, acho que a Névoa não o enganava.

— Não existe o sexcentésimo andar, garoto. — Ele disse estas palavras como se fosse uma fala necessária, na qual ele não acreditava. — Vão embora.

Debrucei-me sobre a mesa.

— Quarenta semideuses atraem uma quantidade tremenda de monstros. Você quer mesmo que fiquemos aqui no seu saguão?

Ele pensou um pouco. Então, acionou um botão, e o portão de segurança se abriu.

— Sejam rápidos.

—Você não vai querer que passemos pelos detectores de metal — acrescentei.

— Hã, não — concordou ele. — Elevador à direita. Acho que você conhece o caminho.

Atirei um dracma de ouro para ele e entramos.

Concluímos que seriam necessárias duas viagens para que todos subissem de elevador. Fui com o primeiro grupo. A música ambiente no elevador era diferente da que tocava na minha última visita — aquela música antiga de discoteca, “Stayin’ Alive”. Uma imagem aterrorizante atravessou minha mente: Apolo de calça boca de sino e camisa de seda justa.

Fiquei feliz quando as portas do elevador finalmente se abriram com um tilintar. À nossa frente, um caminho de pedras flutuantes que, em meio às nuvens, conduzia ao Monte Olimpo pairava quase dois mil metros acima de Manhattan.

Eu vira o Olimpo várias vezes, mas a visão ainda me tirava o fôlego. As mansões cintilavam em dourados e brancos contra as encostas da montanha. Jardins floresciam em uma centena de terraços. Fumaça aromatizada subia de braseiros que ladeavam as ruas sinuosas. E bem no topo da colina coberta de neve erguia-se o principal palácio dos deuses. Era majestoso como sempre, mas algo parecia errado. Então percebi que a montanha estava silenciosa — não havia música, nem vozes, nem risos.

Annabeth me observava.

— Você parece... diferente — concluiu ela. — Onde exatamente você esteve?

As portas do elevador tornaram a se abrir, e o segundo grupo de meios-sangues se juntou a nós.

— Eu conto mais tarde — falei. — Vamos.

Atravessamos a ponte no céu até as ruas do Olimpo. As lojas estavam fechadas. Os parques, vazios. Um par de musas sentava-se num banco dedilhando liras flamejantes, mas não pareciam concentradas. Um ciclope solitário varria a rua com as raízes de um carvalho. Um deus menor nos avistou de uma sacada e entrou, fechando as persianas.

Passamos sob um grande arco de mármore com estátuas de Zeus e Hera de cada lado. Annabeth fez uma careta para a rainha dos deuses.

— Eu a odeio — murmurou.

— Ela amaldiçoou você ou coisa assim? — perguntei.

No ano anterior, Annabeth havia pisado nos calos de Hera, mas nunca mais falara no assunto.

— Só pequenas coisas até agora — disse ela. — O animal sagrado dela é a vaca, certo?

— Certo.

— Então ela manda vacas me perseguirem.

Tentei não sorrir.

— Vacas? Em São Francisco?

— É. Em geral eu não as vejo, mas elas me deixam presentinhos por toda parte: no quintal, na calçada, nos corredores da escola. Preciso prestar atenção aonde piso!

— Olhem! — gritou Pólux, apontando na direção do horizonte. — O que é aquilo?

Todos ficamos paralisados. Luzes azuis riscavam o céu de fim de tarde como minúsculos cometas em direção ao Olimpo. Pareciam vir de toda a cidade, seguindo direto para a montanha. À medida que se aproximavam, extinguiam-se com um chiado. Ficamos observando por vários minutos, e as luzes não pareciam causar nenhum dano, mas, ainda assim, eram estranhas.

— Como miras de infravermelho — murmurou Michael Yew. — Estamos sendo alvejados.

— Vamos para o palácio — disse eu.

Ninguém guardava o salão dos deuses. As portas de ouro e prata estavam escancaradas. Nossos passos ecoaram quando entramos na sala dos tronos.

Naturalmente, “sala” não traduzia com exatidão o lugar. Era do tamanho do Madison Square Garden. Muito acima, o teto azul brilhava com constelações. Doze gigantescos tronos vazios formavam um U em torno de uma lareira. A um canto, uma esfera de água do tamanho de uma casa pairava no ar, e dentro dela nadava meu velho amigo Ofiotauro, metade vaca, metade serpente.

— Muuuu! — disse ele, feliz, nadando em círculos.

Apesar de toda a gravidade da situação, tive de sorrir. Dois anos antes havíamos passado muito tempo tentando salvar o Ofiotauro dos titãs, e eu desenvolvera uma certa amizade com ele, que parecia gostar de mim também, embora a princípio eu tivesse pensado que ele era uma garota e o tivesse batizado de Bessie.

— Ei, cara — falei. — Estão tratando você bem?

— Muuu — respondeu Bessie.

Caminhamos na direção dos tronos, e uma voz de mulher disse:

— Olá, novamente, Percy Jackson. Você e seus amigos são bem-vindos.

Héstia estava ao lado da lareira, mexendo nas chamas com um graveto. Usava o mesmo tipo de vestido de antes, simples e marrom, mas agora era uma mulher adulta.

Eu me curvei.

— Lady Héstia.

Meus amigos seguiram meu exemplo.

Héstia me observava com seus olhos de brilho vermelho.

— Vejo que você foi adiante com seu plano. E que traz consigo a maldição de Aquiles.

Os outros campistas começaram a murmurar entre si: O que foi que ela falou? O que tem Aquiles?

—Você precisa tomar cuidado — advertiu-me Héstia. — Ganhou muito em sua jornada. Mas ainda está cego para a verdade mais importante. Talvez uma breve visão seja apropriada.

Annabeth me cutucou.

— Hã... sobre o que ela está falando?

Olhei nos olhos de Héstia, e uma imagem surgiu subitamente em minha mente: vi um beco escuro entre armazéns de tijolos vermelhos. Uma placa no alto de uma das portas informava: OFICINA METALÚRGICA RICHMOND.

Dois meios-sangues estavam acocorados nas sombras — um garoto de uns catorze anos e uma garota de uns doze. Percebi com um sobressalto que o garoto era Luke. A menina era Thalia, filha de Zeus. Eu assistia a uma cena do passado, de quando eles estavam em fuga, antes de Grover encontrá-los.

Luke carregava uma faca de bronze. Thalia tinha sua lança e seu escudo amedrontador, o Aegis. Tanto Luke quanto Thalia pareciam famintos e magricelas, com o olhar de um animal selvagem, como se estivessem acostumados a ser atacados.

— Você tem certeza? — perguntou Thalia.

Luke fez que sim com a cabeça.

— Tem alguma coisa aqui. Eu posso sentir.

Um barulho ecoou, vindo do beco, como se alguém tivesse batido em uma folha de metal. Os meios-sangues avançaram com cuidado.

Caixotes velhos estavam empilhados em um deque de carga. Thalia e Luke aproximaram-se com suas armas prontas. Uma placa de latão corrugado tremeu, como se houvesse alguma coisa atrás dela.

Thalia olhou para Luke. Ele contou silenciosamente: Um, dois, três! Então rompeu com a faca a folha de latão, e uma garotinha voou para cima dele com um martelo.

— Ui! — exclamou Luke.

A garota tinha cabelos louros emaranhados e usava um pijama de flanela. Não podia ter mais do que sete anos, mas teria quebrado a cabeça de Luke se ele não tivesse sido rápido.

Ele agarrou-lhe o pulso, e o martelo deslizou pelo chão de cimento.

A garotinha lutava e esperneava.

— Chega de monstros! Vão embora!

— Está tudo bem! — Luke lutava para contê-la. — Thalia, guarde seu escudo. Você a está assustando.

Thalia deu um tapinha em Aegis, e ele encolheu, transformando-se em um bracelete de prata.

— Ei, está tudo bem — disse ela. — Nós não vamos machucar você. Eu sou Thalia. Este é Luke.

— Monstros!

— Não — garantiu Luke. — Mas sabemos tudo sobre monstros. Nós também lutamos contra eles.

Aos poucos a menina parou de espernear. Ela observava Luke e Thalia com grandes e inteligentes olhos cinza.

— Vocês são como eu? — perguntou, desconfiada.

— Sim — disse Luke. — Nós... bem, é difícil explicar, mas nós também lutamos contra os monstros. Cadê a sua família?

— Minha família me odeia — disse a menina. — Eles não me querem. Eu fugi.

Thalia e Luke se entreolharam. Eu sabia que ambos entendiam o que ela estava dizendo.

— Qual é o seu nome, garota? — perguntou Thalia.

— Annabeth.

Luke sorriu.

— Bonito nome. Vou lhe dizer uma coisa, Annabeth... você é bastante corajosa. Uma lutadora assim poderia nos ser útil.

Os olhos de Annabeth se arregalaram.

— Poderia?

— Ah, sim. — Luke virou sua faca e ofereceu- lhe o cabo. — Que tal uma arma que mate monstros de verdade? Isto é bronze celestial. Funciona muito melhor que um martelo.

Talvez, na maioria das situações, oferecer uma faca a uma criança de sete anos não seja boa ideia, mas quando se é um meio-sangue, as regras comuns podem descer pelo ralo.

Annabeth agarrou o cabo.

— Facas são apenas para os lutadores mais bravos e mais rápidos — explicou Luke. — Elas não têm o alcance ou o poder de uma espada, mas são mais fáceis de esconder e podem encontrar pontos fracos na armadura do inimigo. É preciso um guerreiro inteligente para usar uma faca. Tenho a impressão de que você é bastante inteligente.

Annabeth o olhou com admiração.

— Eu sou!

Thalia sorriu.

— É melhor irmos, Annabeth. Temos uma casa segura no Rio James. Vamos providenciar roupas e comida para você.

— Vocês... vocês não vão me levar de volta para a minha família? — perguntou ela. — Prometem?

Luke pousou a mão em seu ombro.

— Agora você faz parte da nossa família. E eu prometo que não vou deixar que nada machuque você. Eu não vou desapontá-la como nossas famílias nos desapontaram. Combinado?

— Combinado! — disse Annabeth alegremente.

— Agora, venham — chamou Thalia. — Não podemos ficar muito tempo parados!

O cenário mudou. Os três semideuses agora corriam por uma floresta. Deviam ter se passado vários dias, talvez até semanas. Os três pareciam exaustos, como se tivessem enfrentado algumas batalhas. Annabeth usava outras roupas: jeans e uma jaqueta do exército muito grande para ela.

— Só mais um pouco! — prometeu Luke.

Annabeth tropeçou, e ele a pegou pela mão. Thalia fechava a retaguarda, brandindo seu escudo como se estivesse repelindo o que quer que perseguisse o grupo. Ela mancava da perna esquerda.

Eles conseguiram chegar a uma elevação e olharam do alto para uma casa branca em estilo colonial, do outro lado — o lar de May Castellan.

— Muito bem — disse Luke, respirando com dificuldade. — Vou entrar sem ser percebido e pegar comida e remédio. Esperem aqui.

— Luke, tem certeza? — perguntou Thalia. — Você jurou que nunca mais voltaria aqui. Se ela pegar você...

— Não temos escolha! — grunhiu ele. — Queimaram nosso esconderijo mais próximo. E você precisa tratar esse ferimento na perna.

— Esta é a sua casa? — perguntou Annabeth, perplexa.

— Era a minha casa — murmurou Luke. — Acredite, se não fosse uma emergência...

— Sua mãe é mesmo horrível? — quis saber Annabeth. — Podemos vê-la?

— Não! — disse Luke secamente.

Annabeth recuou, afastando-se, como se a raiva dele a surpreendesse.

— Eu... me desculpe — disse ele. — Esperem aqui. Prometo que vai ficar tudo bem. Nada vai ferir vocês. Vou voltar...

Um forte clarão dourado iluminou a floresta. Os semideuses estremeceram, e uma voz masculina ribombou:

— Você não deveria ter voltado para casa.

A visão foi interrompida.

Meus joelhos vergaram, mas Annabeth me agarrou.

— Percy! O que aconteceu?

— Você... você viu aquilo? — perguntei.

— Vi o quê?

Olhei para Héstia, mas o rosto da deusa não tinha expressão. Lembrei-me de algo que ela me dissera na floresta: Se quiser entender seu inimigo Luke, precisa entender sua família. Mas por que ela havia me mostrado aquelas cenas?

— Por quanto tempo eu fiquei fora do ar? — murmurei.

Annabeth franziu as sobrancelhas.

— Percy, você não ficou fora do ar. Você apenas olhou para Héstia por um segundo e desabou.

Eu podia sentir todos os olhares sobre mim. Não podia me dar o luxo de demonstrar fraqueza. O que quer que aquelas visões significassem, eu precisava me manter concentrado em nossa missão.

— Hã, Lady Héstia — disse eu —, viemos tratar de um assunto urgente. Precisamos ver...

— Sabemos do que vocês precisam — afirmou uma voz masculina.

Estremeci, pois era a mesma voz que encerrara a visão.

Um deus tremeluziu, corporificando-se ao lado de Héstia. Aparentava vinte e cinco anos, tinha cabelos grisalhos encaracolados e feições de elfo. Vestia um uniforme militar de piloto, com minúsculas asas de pássaro tremulando no capacete e nas botas de couro preto. Na dobra de seu braço havia um comprido cajado, no qual se entrelaçavam duas serpentes vivas.

— Vou deixá-los agora — disse Héstia.

Ela fez uma mesura para o aviador e transformou-se em fumaça, desaparecendo. Eu entendia sua pressa em partir. Hermes, o deus dos mensageiros, não parecia feliz.

— Olá, Percy.

Ele franziu a testa como se estivesse aborrecido comigo, e eu me perguntei se, de alguma forma, ele sabia sobre a visão que eu acabara de ter. Queria perguntar por que ele estava na casa de May Castellan naquela noite, e o que acontecera depois que ele apanhou Luke. Lembrei-me de quando conheci Luke no Acampamento Meio-Sangue. Perguntara a ele se já havia encontrado o pai, e ele me olhara com amargura e dissera: Uma vez. Mas dava para ver pela expressão de Hermes que aquela não era a melhor ocasião para tocar no assunto.

Curvei-me sem jeito.

— Lorde Hermes.

Ah, certo, uma das cobras disse em minha mente. Não nos diga oi. Somos apenas répteis.

George, repreendeu a outra cobra. Seja educado.

— Olá, George — disse eu. — Oi, Martha.

Você trouxe um rato para nós?, perguntou George.

George, pare com isso, disse Martha. Ele está ocupado!

Ocupado demais para ratos?, perguntou George. Isso é muito triste.

Decidi que era melhor não discutir com George.

— Hã, Hermes — falei. — Precisamos falar com Zeus. É

importante.

Os olhos de Hermes eram frios como o aço.

— Eu sou o mensageiro dele. Posso levar a mensagem?

Atrás de mim, os outros semideuses se remexiam, inquietos. As coisas não estavam correndo conforme o planejado. Talvez, se eu tentasse falar com Hermes em particular...

— Pessoal — disse eu —, por que vocês não fazem uma inspeção na cidade? Verifiquem as defesas. Vejam quem ainda está no Olimpo. Encontrem a mim e Annabeth aqui de volta em trinta minutos.

Silena franziu o cenho.

— Mas...

— É uma boa ideia — apoiou Annabeth. — Connor e Travis, vocês dois lideram.

Os irmãos Stoll pareceram gostar disso — receber uma responsabilidade importante bem na frente do pai. Em geral, eles não lideravam nada, exceto guerras de papel higiênico.

— Vamos nessa! — disse Travis.

Eles conduziram os outros, saindo da sala dos tronos, deixando a mim e Annabeth com Hermes.

— Meu senhor — disse Annabeth —, Cronos vai atacar Nova York. Vocês devem suspeitar disso. Minha mãe deve ter previsto isso.

— Sua mãe — resmungou Hermes. Ele coçou as costas com o caduceu, e George e Martha murmuraram: Ai, ai, ai. — Não venha me falar de sua mãe, minha jovem. Ela é a razão de eu estar aqui. Zeus não queria que nenhum de nós deixasse a linha de frente. Mas sua mãe continuou a importuná-lo sem parar: “É uma armadilha, é uma distração, blá-blá-blá.” Ela mesma queria voltar, mas Zeus não ia deixar sua principal estrategista sair do seu lado enquanto combatemos Tifão. E, então, naturalmente, ele me mandou para falar com vocês.

— Mas é mesmo uma armadilha! — insistiu Annabeth. — Zeus é cego?

Um trovão reverberou pelo céu.

— Eu tomaria cuidado com os comentários, garota — avisou Hermes. — Zeus não é nem cego nem surdo. E não deixou o Olimpo completamente indefeso.

— Mas tem umas luzes azuis...

— Sim, sim. Eu as vi. Algum truque daquela insuportável deusa da magia, Hécate, eu aposto, mas vocês devem ter notado que elas não estão causando dano nenhum. O Olimpo tem fortes proteções mágicas. Além disso, Éolo, o rei dos ventos, enviou seus mais poderosos seguidores para guardar a cidadela. Ninguém, exceto os deuses, pode se aproximar do Olimpo pelo ar. Seria derrubado do céu.

Levantei a mão.

— Hã... e quanto àquela coisa de materialização e teletransporte que vocês fazem?

— Essa também é uma forma de viagem aérea, Jackson. É muito rápida, mas os deuses do vento são mais. Não, se Cronos quer o Olimpo, terá de atravessar a cidade inteira com seu exército e subir de elevador! Você consegue vê-lo fazendo isso?

Hermes fazia com que a cena soasse bem ridícula — hordas de monstros subindo pelo elevador, vinte de cada vez, ouvindo “Stayin’ Alive”. Ainda assim, aquilo não me agradava.

— Talvez apenas alguns de vocês pudessem voltar — sugeri.

Hermes sacudiu a cabeça, impaciente.

— Percy Jackson, você não entende. Tifão é o nosso maior inimigo.

— Pensei que fosse Cronos.

Os olhos do deus fulguraram.

— Não, Percy. Nos velhos tempos, o Olimpo quase foi vencido por Tifão. Ele é o marido de Equidna...

— Eu a encontrei no Arco — murmurei. — Não é uma criatura das mais agradáveis.

— ... e pai de todos os monstros. Nunca podemos nos esquecer do quanto ele esteve perto de nos destruir; do quanto nos humilhou! Éramos mais poderosos nos velhos tempos. Agora não podemos esperar nenhuma ajuda de Poseidon, pois ele está travando sua própria guerra. Hades se mantém sentado em seu reino e não faz nada, e Deméter e Perséfone o seguem. Vai ser preciso todo o poder que nos resta para resistirmos ao gigante da tempestade. Não podemos dividir nossas forças, nem esperar até que ele chegue a Nova York. Precisamos combatê-lo agora. E estamos fazendo progresso.

— Progresso? — perguntei. — Ele quase destruiu St. Louis.

— Sim — admitiu Hermes. — Mas destruiu apenas metade do Kentucky. Ele está ficando mais lento. Perdendo força.

Eu não queria discutir, mas aquilo soava como se Hermes estivesse tentando convencer a si mesmo.

No canto, o Ofiotauro mugiu tristemente.

— Por favor, Hermes — pediu Annabeth. — Você disse que minha mãe queria vir. Ela nos mandou alguma mensagem?

— Mensagens — murmurou ele. — “Vai ser uma ótima função”, disseram-me. “Não terá muito trabalho. Mas muitos adoradores.” Humpf. Ninguém se importa com o que eu tenho a dizer. O importante é sempre a mensagem de outra pessoa.

Roedores, refletia George. Estou dentro, se o assunto for roedores.

Psiu, repreendeu Martha. Nós nos importamos com o que Hermes tem a dizer. Não é, George?

Ah, com certeza. Podemos voltar para a batalha agora? Quero entrar no modo laser outra vez. Aquilo é divertido.

— Quietos, vocês dois — grunhiu Hermes.

O deus olhou para Annabeth, que estava com os grandes olhos cinza em súplica.

— Tá — disse Hermes. — Sua mãe pediu que os avisasse de que estão por sua conta. Que precisam defender Manhattan sem a ajuda dos deuses. Como se eu não soubesse disso. Por que pagam a ela para ser a deusa da sabedoria, eu não sei.

— Algo mais? — perguntou Annabeth.

— Ela disse que vocês deveriam tentar o plano vinte e três. E que você saberia o que isso significa.

O rosto de Annabeth ficou pálido. Era óbvio que ela sabia o que a mãe queria dizer — e não tinha gostado.

— Prossiga.

— Última coisa. — Hermes olhou para mim. — Ela me pediu que dissesse a Percy: “Lembre-se dos rios.” E, hã, algo sobre ficar longe de sua filha.

Não sei bem qual rosto ficou mais vermelho: o de Annabeth ou o meu.

— Obrigada, Hermes — disse Annabeth. — E eu... eu queria dizer... sinto muito por Luke.

A expressão do deus endureceu, como se ele tivesse se transformado em mármore.

— Você não deveria ter tocado nesse assunto.

Annabeth deu um passo atrás, nervosa.

— Desculpe-me!

— DESCULPAS não resolvem!

George e Martha se enroscaram no caduceu, que tremeluziu e transformou-se em algo que parecia uma arma de choque de alta voltagem.

— Você deveria tê-lo salvado quando teve chance — grunhiu Hermes para Annabeth. — É a única que poderia ter feito isso.

Tentei me interpor entre eles.

— Do que estão falando? Annabeth não...

— Não a defenda, Jackson! — Hermes voltou a arma de choque em minha direção.

— Talvez você devesse culpar a si mesmo! — Eu deveria ter mantido a boca fechada, mas tudo o que eu conseguia pensar era em desviar sua atenção de Annabeth. Aquele tempo todo não era comigo que ele estava furioso. Era com ela. — Quem sabe se você não tivesse abandonado Luke e a mãe dele?!

Hermes ergueu a arma. Então, começou a crescer até atingir a altura de três metros. Pensei: bem, então esse é o fim.

Mas quando ele se preparava para atacar, George e Martha se aproximaram e sussurraram algo em seu ouvido.

Hermes trincou os dentes. Abaixou a arma, que voltou a se transformar em um cajado.

— Percy Jackson — disse ele —, por você ter assumido a maldição de Aquiles, eu devo poupá-lo. Agora você está nas mãos das Parcas. Mas nunca mais vai falar comigo dessa forma. Você não tem a menor ideia do quanto eu sacrifiquei, do quanto...

A voz dele falhou, e ele voltou ao tamanho de um humano.

— Meu filho, meu maior orgulho... minha pobre May...

Ele parecia tão arrasado que eu não soube o que dizer. Num minuto ele parecia prestes a nos aniquilar. Agora parecia precisar de um abraço.

— Olhe, Lorde Hermes — disse eu. — Por favor, me desculpe, mas eu preciso saber. O que aconteceu a May? Ela disse algo sobre o destino de Luke, e seus olhos...

Hermes me fuzilou com o olhar, e minha voz fraquejou. Porém, a expressão em seu rosto não era de raiva. Era de dor. Dor profunda, inconcebível.

— Vou deixá-los agora — ele disse, tenso. — Tenho uma guerra para lutar.

E começou a brilhar. Virei-me para o outro lado e me certifiquei de que Annabeth fizesse o mesmo, pois ela ainda estava paralisada pelo choque.

Boa sorte, Percy, sussurrou Martha, a cobra.

Hermes explodiu com a claridade de uma supernova. Então desapareceu.

Annabeth sentou-se aos pés do trono de sua mãe e chorou. Eu queria confortá-la, mas não sabia como.

— Annabeth — disse eu —, não é culpa sua. Nunca vi Hermes agir daquela maneira. Acho... eu não sei... provavelmente ele se sente culpado em relação a Luke. Está à procura de alguém para acusar. Não sei por que descontou em você, que não fez nada para merecer isso.

Annabeth enxugou os olhos. Olhou para a lareira como se fosse a sua pira funerária.

Mudei de posição, desconfortável.

— Você não fez, não é mesmo?

Ela não respondeu. A faca de bronze celestial estava presa a seu braço — a mesma faca que eu vira na visão de Héstia. Durante todos esses anos não me dera conta de que aquele era um presente de Luke. Eu havia lhe perguntado muitas vezes por que preferia lutar com a faca e não com uma espada, e ela nunca me respondera. Agora eu sabia.

— Percy — ela disse —, o que você quis dizer sobre a mãe de Luke? Você esteve com ela?

Assenti, relutante.

— Nico e eu a visitamos. Ela é um pouco... diferente.

Descrevi May Castellan e o estranho momento em que seus olhos começaram a brilhar e ela falou sobre o destino do filho.

Annabeth franziu a testa.

— Isso não faz sentido. Mas por que você foi visitar... — Os olhos dela se arregalaram. — Hermes disse que você carrega a maldição de Aquiles. Héstia disse a mesma coisa. Você... você se banhou no Estige?

— Não mude de assunto.

— Percy? Você se banhou ou não se banhou?

— Hã... talvez um pouquinho.

Contei-lhe a história sobre Hades e Nico, e de como eu havia derrotado um exército de mortos. Deixei de fora a visão em que ela me puxava do rio. Eu ainda não entendia bem aquela parte, e só de pensar me sentia constrangido.

Ela sacudiu a cabeça, incrédula.

— Você tem alguma ideia do quanto isso foi perigoso?

— Eu não tinha escolha — falei. — É a única maneira de poder enfrentar Luke.

— Você quer dizer... di immortales, é claro! Foi por isso que Luke não morreu. Ele foi até o Estige e... Ah, não, Luke. O que você estava pensando?

— Aí está você novamente preocupada com Luke — resmunguei.

Ela me fitou como se eu tivesse acabado de cair do espaço.

— O quê?

— Esqueça — murmurei.

Eu me perguntava o que Hermes quis dizer sobre Annabeth não ter salvado Luke quando teve chance. Era claro que ela escondia algo de mim. Mas, naquele momento, eu não estava com disposição para perguntar. A última coisa que eu queria era ouvir detalhes de sua história com Luke.

— A questão é que ele não morreu no Estige — disse eu. — Tampouco eu. Agora tenho de enfrentá-lo. Temos de defender o Olimpo.

Annabeth ainda observava meu rosto, como se estivesse tentando ver a diferença que fez meu mergulho no Estige.

— Acho que você tem razão. Minha mãe mencionou...

— Plano vinte e três.

Ela remexeu a bolsa e tirou o laptop de Dédalo. O delta azul brilhava na tampa quando ela o ligou. Annabeth abriu alguns arquivos e começou a ler.

— Aqui está — disse. — Deuses, temos muito trabalho a fazer.

— Uma das invenções de Dédalo?

— Muitas invenções... perigosas. Se minha mãe quer que eu use esse plano, deve achar que as coisas estão muito mal. — Ela olhou para mim. — E quanto à mensagem dela para você: “Lembre-se dos rios”? O que isso significa?

Sacudi a cabeça. Como sempre, eu não tinha a menor ideia do que os deuses me diziam. De que rios eu deveria me lembrar? Do Estige? Do Mississippi?

Nesse momento os irmãos Stoll entraram correndo na sala dos tronos.

— Vocês precisam ver isso — disse Connor. — Agora.

As luzes azuis no céu haviam cessado; portanto, de início eu não compreendi qual era o problema.

Os outros campistas haviam se reunido em um pequeno parque à beira da montanha. Estavam agrupados junto ao parapeito, olhando para Manhattan. Havia ali vários daqueles binóculos de turistas, onde se podia depositar um dracma de ouro e ver a cidade. Os campistas ocupavam todos.

Olhei para a cidade lá embaixo. Dava para ver quase tudo dali — os rios East e Hudson esculpindo a forma de Manhattan, a grade de ruas, as luzes dos arranha-céus, a extensão escura do Central Park ao norte. Tudo parecia normal, mas alguma coisa estava errada. Tive um pressentimento antes de perceber o que era.

— Eu não... ouço nada — disse Annabeth.

Era esse o problema.

Mesmo dessa altura, deveríamos ouvir os ruídos da cidade — milhões de pessoas correndo de um lado para outro, milhares de carros e máquinas — o zumbido de uma grande metrópole. Não se pensa nisso quando se mora em Nova York, mas esse ruído está sempre presente. Mesmo na calada da noite, Nova York nunca está em silêncio.

Mas agora estava.

Eu me sentia como se meu melhor amigo houvesse caído morto de repente.

— O que foi que fizeram? — Minha voz soou tensa e furiosa. — O que fizeram com a minha cidade?

Afastei Michael Yew do binóculo com um empurrão e dei uma olhada.

Nas ruas lá embaixo o trânsito estava parado. Os pedestres encontravam-se caídos nas calçadas ou enroscados nos vãos das portas. Não havia nenhum sinal de violência, nenhuma destruição, nada desse tipo. Era como se todas as pessoas de Nova York houvessem simplesmente decidido parar o que quer que estivessem fazendo e apagar.

— Estão mortos? — perguntou Silena, atônita.

O frio tomou conta do meu estômago. Um verso da profecia ressoou em meus ouvidos: Num sono sem fim o mundo estará. Lembrei-me da história de Grover sobre o encontro com o deus Morfeu no Central Park. Tem sorte de eu estar poupando minha energia para o evento principal.

— Mortos, não — disse eu. — Morfeu pôs a ilha de Manhattan inteira para dormir. A invasão começou.


DEZ

Compro alguns novos amigos

A sra. O’Leary era a única que estava feliz com a cidade adormecida.

Nós a encontramos se empanturrando em uma barraquinha de cachorro-quente tombada — enquanto o dono dormia na calçada, em posição fetal, chupando o polegar.

Argos estava nos esperando com sua centena de olhos arregalados. Ele não disse nada. Ele nunca diz nada. Acho que é porque ele tem, segundo se supõe, um globo ocular na língua. Mas seu rosto deixava claro que ele estava surtando.

Eu lhe contei o que soubéramos no Olimpo, e que os deuses não viriam para nos auxiliar. Argos revirou os olhos, desgostoso, o que pareceu bastante psicodélico, pois fez seu corpo todo se revolver.

— É melhor você voltar para o acampamento — eu lhe disse. — Proteja-o da melhor forma que puder.

Ele apontou para mim e ergueu as sobrancelhas, inquiridor.

— Eu vou ficar — disse eu.

Argos assentiu, como se essa resposta o satisfizesse. Olhou para Annabeth e desenhou um círculo no ar com o dedo.

— Sim — concordou Annabeth. — Acho que já é hora.

— De quê? — perguntei.

Argos vasculhou a traseira de sua van. Tirou dali um escudo de bronze e entregou-o a Annabeth. Parecia um escudo bastante comum — o mesmo tipo redondo que sempre usávamos na captura da bandeira. Mas quando Annabeth o colocou no chão, o reflexo no metal polido mudou do céu e dos edifícios para a Estátua da Liberdade — que não estava nem um pouco perto de nós.

— Uau — disse eu. — Um videoescudo.

— Uma das ideias de Dédalo — disse Annabeth. — Pedi a Beckendorf que fizesse este antes... — Ela olhou para Silena. — Hã, bem, o escudo direciona a luz do sol ou da lua de qualquer parte do mundo para criar um reflexo. Pode-se, literalmente, ver qualquer alvo sob o sol ou a lua, desde que uma luz natural o esteja tocando. Olhe.

Nós nos amontoamos em torno de Annabeth enquanto ela se concentrava. A imagem entrou em zoom e de início rodopiou, de forma que fiquei tonto só de olhar. Estávamos no zoológico do Central Park, em seguida correndo pela Rua 60 Leste, passando pela Bloomingdale’s, dobrando então na Terceira Avenida.

— Puxa — disse Connor Stoll. — Volte. Dê um zoom bem ali.

— O que foi? — perguntou Annabeth, nervosa. — Está vendo invasores?

— Não, bem ali, no Dylan’s Candy Bar. — Connor sorriu para o irmão. — Cara, está aberto. E todo mundo está dormindo. Você está pensando o mesmo que eu?

— Connor! — repreendeu-o Katie Gardner. Ela falava como a mãe, Deméter. — Isto é sério. Vocês não vão saquear uma loja de doces no meio de uma guerra!

— Desculpe — murmurou Connor, mas não parecia muito envergonhado.

Annabeth passou a mão na frente do escudo e outra cena surgiu: FDR Drive, dando vista para o outro lado do rio, o Lighthouse Park.

— Isso vai nos permitir ver o que está acontecendo pela cidade — disse ela. — Obrigada, Argos. Espero que possamos revê-lo no acampamento... um dia.

Argos grunhiu. Ele me dirigiu um olhar que claramente dizia: Boa sorte; você vai precisar, então subiu em sua van. Ele e as duas harpias motoristas afastaram-se, costurando entre grupos de carros em ponto-morto espalhados pela rua.

Assoviei chamando a sra. O’Leary, que veio saltitando.

— Ei, garota — disse eu. — Lembra-se de Grover? O sátiro que encontramos no parque?

— AU!

Eu esperava que isso significasse: Claro que lembro! E não: Você tem mais cachorros-quentes?

— Preciso que você o encontre — disse eu. — Veja se ele ainda está acordado. Vamos precisar da ajuda dele. Você entendeu? Encontre Grover!

A sra. O’Leary me deu um beijo molhado e efusivo, o que pareceu meio desnecessário. Então, partiu em disparada na direção norte.

Pólux abaixou-se perto de um policial adormecido.

— Não entendo. Por que não dormimos também? Por que só os mortais?

— Esse é um feitiço de grandes proporções — disse Silena Beauregard. — Quanto mais amplo o feitiço, mais fácil resistir. Se você quer pôr milhões de mortais para dormir, basta lançar uma fina camada de magia. É muito mais difícil fazer isso com semideuses.

Olhei para ela.

— Quando foi que você aprendeu tanto sobre magia?

Silena corou.

— Eu não passo todo o meu tempo cuidando do guarda-roupa.

— Percy — chamou Annabeth. Ela ainda estava olhando o escudo. — É melhor você ver isso.

A imagem no bronze mostrava o Estreito de Long Island, perto de La Guardia. Uma frota de doze lanchas atravessava velozmente as águas escuras em direção a Manhattan. Cada barco estava lotado com semideuses vestidos em armadura grega completa. Na popa do barco líder uma bandeira púrpura adornada com uma foice negra se agitava ao vento noturno. Eu nunca vira aquele desenho antes, mas não era difícil deduzir: a bandeira de batalha de Cronos.

— Examine o perímetro da ilha — disse eu. — Rápido.

Annabeth mudou a cena para o porto ao sul. Uma barca de Staten Island sulcava as ondas perto de Ellis Island. O convés estava cheio de dracaenae e uma matilha completa de cães infernais. Nadando na frente do navio estava um rebanho de mamíferos marinhos. A princípio pensei que fossem golfinhos. Então vi suas caras de cachorro e as espadas presas em sua cintura, e percebi que se tratava de telquines — demônios do mar.

A cena mudou novamente: a costa de Jersey, bem na entrada do Túnel Lincoln. Uma centena de monstros dos mais variados tipos marchava pelas faixas do trânsito parado: gigantes com porretes, ciclopes malfeitores, alguns dragões cuspidores de fogo e, para completar, um tanque Sherman da Segunda Guerra Mundial, empurrando os carros para fora do caminho à medida que ribombava entrando no túnel.

— O que está acontecendo com os mortais fora de Manhattan? — perguntei. — O estado inteiro está adormecido?

Annabeth franziu o cenho.

— Não creio, mas é estranho. Pelo que posso ver a partir dessas imagens, Manhattan está totalmente adormecida. O que significa que, em um raio de uns oitenta quilômetros em torno da ilha, o tempo está correndo muito, muito lentamente. Quanto mais você se aproxima de Manhattan, mais lento ele fica.

Ela me mostrou outra cena — uma autoestrada de New Jersey. Era noite de sábado, então o trânsito não estava tão ruim quanto estaria em um dia útil. Os motoristas pareciam acordados, mas os veículos se moviam a menos de dois quilômetros por hora. Os pássaros voavam acima deles em câmera lenta.

— Cronos — disse eu. — Ele está desacelerando o tempo.

— Hécate talvez esteja ajudando — disse Katie Gardner. — Olhem como todos os carros se desviam das saídas de Manhattan, como se estivessem recebendo uma mensagem subliminar para retornar.

— Não sei. — Annabeth parecia frustrada de verdade. Ela odiava não saber. — Mas de alguma forma eles cercaram Manhattan com camadas de magia. O mundo lá fora pode nem sequer se dar conta de que alguma coisa está errada. Quaisquer mortais vindo para Manhattan vão desacelerar tanto que não vão saber o que está acontecendo.

— Como moscas no âmbar — murmurou Jake Mason.

Annabeth fez que sim com a cabeça.

— Não devemos esperar nenhuma ajuda de fora.

Voltei-me para meus amigos. Pareciam atônitos e assustados, e eu não podia censurá-los por isso. O escudo nos havia mostrado pelo menos trezentos inimigos a caminho. E nós éramos quarenta. E estávamos sozinhos.

— Muito bem — disse eu. — Vamos defender Manhattan.

Silena mexeu em sua armadura.

— Hã, Percy, Manhattan é enorme.

— Nós vamos defendê-la — disse eu. — Temos de defendê-la.

— Ele está certo — afirmou Annabeth. — Os deuses do vento devem manter as tropas de Cronos afastadas do Olimpo pelo ar; portanto, ele vai tentar um ataque por terra. Temos de interceptar as entradas para a ilha.

— Eles têm barcos — observou Michael Yew.

Um formigamento elétrico percorreu minha coluna. De repente compreendi o conselho de Atena: Lembre-se dos rios.

— Eu vou cuidar dos barcos — disse eu.

Michael franziu a testa.

— Como?

— Deixe comigo — respondi. — Precisamos vigiar as pontes e os túneis. Vamos supor que eles optem por um ataque a Midtown ou ao centro da cidade, pelo menos na primeira tentativa. Esse seria o caminho mais rápido para o Empire State Building. Michael, leve o chalé de Apolo para a Ponte de Williamsburg. Katie, o chalé de Deméter fica com o Túnel Brooklyn-Battery. Façam crescer espinheiros e hera venenosa no túnel. Façam o que for preciso, mas os mantenham longe de lá! Connor, leve metade do chalé de Hermes e dê cobertura à Ponte de Manhattan. Travis, você fica com a outra metade e cobre a Ponte do Brooklyn. E nada de parar para saquear ou pilhar!

— Ahhhh! — queixou-se todo o chalé de Hermes.

— Silena, você vai levar a equipe de Afrodite para o Túnel Queens-Midtown.

— Ah, meus deuses — disse uma de suas irmãs. — A Quinta Avenida está bem no nosso caminho! Poderíamos nos equipar e, bem, os monstros certamente detestam Givenchy.

— Sem atrasos — disse eu. — Bem... essa história do perfume, se vocês acham que vai funcionar...

Seis garotas de Afrodite me beijaram o rosto, excitadas.

— Está bem, já chega! — Fechei os olhos, tentando pensar no que havia deixado de fora. — O Túnel Holland. Jake, leve o chalé de Hefesto para lá. Use fogo grego, prepare armadilhas. O que vocês tiverem.

Ele sorriu.

— Com prazer. Temos uma desforra a tirar. Por Beckendorf!

O chalé inteiro urrou em aprovação.

— A ponte da Rua 59 — falei. — Clarisse...

Gaguejei. Clarisse não estava ali. O chalé inteiro de Ares, malditos sejam, estava à toa no acampamento.

— Nós assumimos esta — interveio Annabeth, poupando-me de um silêncio constrangedor. Ela voltou-se para seus irmãos. — Malcolm, pegue o chalé de Atena, ative o plano vinte e três ao longo do caminho, exatamente como eu lhe mostrei. Ocupem suas posições.

— Não se preocupe.

— Eu vou com Percy — disse ela. — Depois nos juntaremos a vocês ou a quem precisar de nós.

Alguém mais atrás no grupo disse:

— Nada de desvios, vocês dois.

Houve alguns risinhos, mas resolvi deixar para lá.

— Muito bem — falei. — Mantenham contato pelos celulares.

— Não temos celulares — protestou Silena.

Abaixei-me, peguei o BlackBerry de uma senhora que roncava e joguei-o para Silena.

— Agora tem. Vocês todos sabem o número de Annabeth, certo? Se precisarem de nós, peguem um telefone por aí e liguem. Usem o aparelho uma vez, descartem-no e então peguem outro emprestado, se precisarem de novo. Isso deve fazer com que seja mais difícil para os monstros localizarem vocês.

Todos riram, como se essa ideia lhes agradasse.

Travis pigarreou.

— Hã, se encontrarmos um telefone muito legal...

— Não, não podem ficar com ele — disse eu.

— Ah, cara.

— Espere, Percy — disse Jake Mason. — Vocês se esqueceram do Túnel Lincoln.

Engoli um palavrão. Ele tinha razão. Um tanque Sherman e uma centena de monstros atravessavam em marcha aquele túnel naquele exato momento, e eu havia posicionado nossas tropas em todos os outros lugares.

Então uma voz feminina soou do outro lado da rua:

— Que tal deixar isso conosco?

Em toda a minha vida eu nunca me sentira tão feliz ao ouvir a voz de alguém. Um bando de umas trinta adolescentes atravessava a Quinta Avenida. Vestiam camisas brancas, calças de tecido de camuflagem prateado e botas de combate. Todas traziam espadas ao lado do corpo, aljavas nas costas e arcos a postos. Um bando de lobos brancos circulava em torno de seus pés, e muitas das garotas tinham falcões de caça nos braços.

A garota que vinha à frente tinha cabelos pretos espetados e uma jaqueta de couro preta. Usava um arquinho de prata na cabeça, como a tiara de uma princesa, que não combinava com os brincos de caveira nem com a camiseta que dizia Morte à Barbie e mostrava a estampa de uma boneca Barbie com a cabeça atravessada por uma flecha.

— Thalia! — gritou Annabeth.

A filha de Zeus sorriu.

— As Caçadoras de Ártemis apresentando-se ao trabalho!

Houve abraços e saudações por toda parte... bem, pelo menos Thalia foi simpática. As outras Caçadoras não gostavam de estar por perto de campistas, principalmente meninos, mas não atiraram contra nenhum de nós, o que para elas já eram boas-vindas bastante calorosas.

— Onde você esteve o ano passado? — perguntei a Thalia. — Agora você tem o dobro de Caçadoras!

Ela riu.

— É uma história muito longa. Aposto que as minhas aventuras foram mais perigosas que as suas, Jackson.

— Duvido — falei.

—Vamos ver — prometeu ela. — Depois que isso acabar, você, Annabeth e eu: cheeseburgers e fritas naquele hotel na 57 Oeste.

— Le Parker Meridien — eu disse. — Combinado. E, Thalia, obrigado.

Ela deu de ombros.

— Aqueles monstros não vão nem saber o que os atingiu. Caçadoras, em frente!

Ela bateu no bracelete de prata e o escudo Aegis, num movimento em espiral, assumiu sua forma. A cabeça dourada da Medusa moldada no centro era tão horrível que os campistas todos recuaram. As Caçadoras seguiram pela avenida, acompanhadas por seus lobos e falcões, e eu tive a sensação de que o Túnel Lincoln agora estaria a salvo.

— Graças aos deuses — disse Annabeth. — Mas se não bloquearmos os rios para aqueles barcos, proteger as pontes e túneis será inútil.

— Tem razão — concordei.

Olhei para os campistas, todos sérios e determinados. Tentei afastar a impressão de que essa era a última vez que eu veria todos juntos.

— Vocês são os maiores heróis deste milênio — falei. — Não importa quantos monstros caiam sobre vocês, lutem com bravura, e venceremos. — Ergui Contracorrente e gritei: — PELO OLIMPO!

Eles gritaram em resposta, e nossas quarenta vozes ecoaram pelos edifícios de Midtown. Por um momento, ressoaram com bravura, mas rapidamente morreram no silêncio de dez milhões de nova-iorquinos adormecidos.

Annabeth e eu teríamos escolhido um carro, mas estavam todos presos, com os para-choques quase colados. Nenhum motor estava ligado, o que era estranho. Parecia que os motoristas tinham tido tempo de desligar a ignição antes de cair no sono. Ou talvez Morfeu tivesse o poder de pôr motores para dormir também. A maioria dos motoristas aparentemente havia tentado parar junto ao meio-fio ao sentir que estava apagando, mas, ainda assim, as ruas encontravam-se atravancadas demais para que um carro conseguisse passar por elas.

Finalmente encontramos um carteiro inconsciente recostado em um muro, ainda montado em sua Vespa vermelha. Nós o tiramos da motocicleta e o deitamos na calçada.

— Desculpe, cara — disse eu. Com alguma sorte eu traria a moto dele de volta. Se não conseguisse, não teria a menor importância, pois a cidade então já estaria destruída.

Eu guiei, com Annabeth na garupa segurando em minha cintura. Descemos ziguezagueando pela Broadway, com o motor zumbindo no silêncio sinistro. Os únicos sons eram celulares tocando ocasionalmente — como se estivessem chamando um ao outro, como se Nova York houvesse se transformado em um gigantesco viveiro de pássaros eletrônicos.

Nosso progresso era lento. De vez em quando, encontrávamos pedestres adormecidos bem na frente de um veículo, e os removíamos, por medida de segurança. Também paramos para apagar o carrinho de um vendedor de pretzels que havia pegado fogo. Alguns minutos depois tivemos de resgatar um carrinho de bebê que descia a rua à deriva. Acabou que não havia nenhum bebê nele — apenas um poodle adormecido. Vai saber. Nós o estacionamos em segurança no vão de uma porta e prosseguimos.

Estávamos passando pelo Madison Square Park quando Annabeth disse:

— Pare.

Parei no meio da 23 Leste. Annabeth saltou e correu na direção do parque. Quando a alcancei, ela estava olhando para uma estátua de bronze em um pedestal de mármore vermelho. Provavelmente, eu já havia passado por ela um milhão de vezes, mas nunca a olhara de fato.

O sujeito estava sentado de pernas cruzadas em uma cadeira. Usava um terno antiquado — no estilo Abraham Lincoln —, com gravata-borboleta, casaca com abas longas e tudo mais. Vários livros de bronze empilhavam-se debaixo de sua cadeira. Ele segurava uma pena de escrever numa das mãos e um grande pergaminho de metal na outra.

— Que importância tem esse... — Estreitei os olhos para ler o nome no pedestal. — William H. Steward?

— Seward — corrigiu Annabeth. — Ele foi governador de Nova York. Um semideus menor... filho de Hebe, eu acho. Mas isso não vem ao caso. É a estátua que me interessa.

Ela subiu num banco do parque e examinou a base da estátua.

— Não me diga que ele é um autômato — falei.

Annabeth sorriu.

— A maioria das estátuas da cidade é autômata. Dédalo as plantou aqui para o caso de precisar de um exército.

— Para atacar ou defender o Olimpo?

Annabeth deu de ombros.

— Um ou outro. Esse era o plano vinte e três. Ele podia ativar uma estátua, que começaria a ativar seus pares por toda a cidade, até que um exército estivesse formado. Isso, porém, é perigoso. Você sabe o quanto os autômatos são imprevisíveis.

— Hã-hã — concordei. Havíamos tido nossa quota de experiências negativas com eles. — Você está pensando seriamente em ativá-los?

— Tenho as anotações de Dédalo — disse ela. — Acho que consigo... Ah, vamos lá.

Ela apertou a ponta da bota de Seward e a estátua se levantou, com a pena e o papel em punho.

— O que ele vai fazer? — murmurei. — Um memorando?

— Psiu — replicou Annabeth. — Olá, William.

— Bill — sugeri.

— Bill... Ah, cale a boca — disse-me Annabeth. A estátua inclinou a cabeça, olhando-nos com olhos de metal vazios.

Annabeth pigarreou.

— Olá, hã, governador Seward. Sequência de comando: Dédalo Vinte e Três. Defender Manhattan. Começar Ativação.

Seward saltou do pedestal e aterrissou no solo com tanta força que seus sapatos racharam a calçada. Então ele seguiu tilintando na direção leste.

— Provavelmente vai acordar Confúcio — supôs Annabeth.

— O quê? — perguntei.

— Outra estátua, na Division. É o seguinte: eles vão acordar os outros até que estejam todos ativados.

— E então?

— Tomara que defendam Manhattan.

— Eles sabem que não somos o inimigo?

— Acho que sim.

— Isso é tranquilizador. — Pensei em todas aquelas estátuas de bronze nos parques, praças e edifícios de Nova York. Devia haver centenas, talvez milhares delas.

Então uma bola de luz verde explodiu no céu noturno. Fogo grego, em algum ponto do Rio East.

— Precisamos nos apressar — falei. E corremos para a Vespa.

Estacionamos do lado de fora do Battery Park, no canto inferior de Manhattan, onde os rios Hudson e East se juntam e deságuam na baía.

— Espere aqui — eu disse a Annabeth.

— Percy, você não deveria ir sozinho.

— Bem, a menos que você possa respirar debaixo d’água...

Ela suspirou.

— Às vezes você é tão irritante...

— Como quando tenho razão? Confie em mim, eu vou ficar bem. Tenho a maldição de Aquiles agora. Sou invencível.

Annabeth não pareceu convencida.

— Mas tenha cuidado. Não quero que nada aconteça a você. Quero dizer... porque precisamos de você para a batalha.

Sorri.

— Volto em um instante.

Desci até a margem e entrei na água.

Para você aí que não tem nenhum parentesco com os deuses da água: não queira nadar no porto de Nova York. Pode nem ser tão imundo quanto nos tempos da minha mãe, mas aquela água provavelmente ainda pode criar um terceiro olho em você ou fazê-lo ter filhos mutantes quando crescer.

Mergulhei na água suja e fui até o fundo. Tentei encontrar o ponto em que as correntes dos dois rios pareciam se igualar — onde elas se encontram para formar a baía. Imaginei que aquele fosse o melhor lugar para chamar a atenção deles.

— EI! — gritei com minha melhor voz subaquática. O som ecoou na escuridão. — Ouvi dizer que vocês estão tão poluídos que têm vergonha de mostrar a cara. Isso é verdade?

Uma corrente fria ondulou a baía, revolvendo montes de lixo e lodo.

— Ouvi dizer que o Rio East é mais tóxico — continuei —, mas o Hudson é mais fedorento. Ou é ao contrário?

A água tremeluziu. Algo poderoso e furioso agora me observava. Eu podia sentir uma presença... ou, quem sabe, duas presenças.

Temi ter exagerado nos insultos. E se eles simplesmente acabassem comigo sem se mostrar? Mas aqueles eram deuses de rios de Nova York. Calculei que seu instinto seria me confrontar.

E, de fato, duas formas gigantescas apareceram na minha frente. A princípio eram apenas colunas marrom-escuras de lodo, mais densas que a água ao seu redor. Em seguida surgiram nelas pernas, braços e rostos de expressão colérica.

A criatura à esquerda parecia assustadoramente um telquine. Sua cara era lupina. Seu corpo lembrava vagamente o de uma foca — preto e luzidio, com mãos e pés de nadadeira. Os olhos brilhavam com uma claridade verde.

O camarada da direita era mais humanoide. Estava vestido em farrapos e algas, com um casaco de rede feito de tampas de garrafa e de embalagens plásticas para seis garrafas. Seu rosto tinha manchas de alga e a barba era excessivamente comprida. Os olhos de um azul profundo ardiam de raiva.

A foca, que tinha de ser o deus do Rio East, disse:

— Você está tentando morrer, garoto? Ou é apenas megaestúpido?

O espírito barbado do Hudson zombou:

— É você o especialista em estupidez, East.

— Cuidado, Hudson — grunhiu o East. — Fique do seu lado da ilha e cuide da sua vida.

— Senão...? Você vai virar outra barca de lixo em mim?

Eles flutuaram na direção um do outro, prontos para lutar.

— Esperem! — gritei. — Temos um problema maior.

— O garoto tem razão — rosnou o East. — Vamos os dois matá-lo, depois lutamos entre nós.

— Parece uma boa ideia — disse Hudson.

Antes que eu pudesse protestar, mil sucatas se ergueram do fundo e vieram em minha direção de ambos os lados: cacos de vidro, pedras, latas, pneus.

Mas eu esperava por isso. A água à minha frente se espessou, formando um escudo. O lixo batia nele, inocuamente. Apenas um pedaço conseguiu atravessá-lo: um grande pedaço de vidro que me atingiu no peito e provavelmente teria me matado, mas se estilhaçou contra a minha pele.

Os dois deuses dos rios me olharam, atônitos.

— Filho de Poseidon? — perguntou East.

Assenti.

— Deu um mergulho no Estige? — indagou Hudson.

— Sim.

Ambos emitiram sons de repulsa.

— Bem, isso é perfeito — disse East. — Agora, como vamos matá-lo?

— Poderíamos eletrocutá-lo — ponderou Hudson. — Se eu ao menos conseguisse encontrar alguns cabos elétricos...

— Ouçam-me! — disse eu. — O exército de Cronos está invadindo Manhattan!

— Você acha que não sabemos disso? — perguntou East. — Posso sentir os barcos deles neste exato momento. Estão quase terminando a travessia.

— É — concordou Hudson. — Alguns monstros nojentos estão atravessando as minhas águas também.

— Então os detenham! — falei. — Afoguem-nos. Afundem seus barcos.

— Por que faríamos isso? — resmungou Hudson. — Eles vão invadir o Olimpo? O que temos com isso?

— Porque posso pagar a vocês. — Peguei o dólar de areia que meu pai tinha me dado de aniversário.

Os olhos dos deuses dos rios se arregalaram.

— É meu! — exclamou East. — Dê isso para mim, garoto, e prometo que ninguém da escória de Cronos vai atravessar o Rio East.

— Pode esquecer — disse Hudson. — Esse dólar de areia é meu, a menos que você queira que eu deixe todos aqueles barcos cruzarem o Hudson.

— Vamos chegar a um acordo. — Quebrei o dólar de areia ao meio. Uma onda de água limpa jorrou da quebra, como se toda a poluição da baía estivesse se dissolvendo. — Cada um fica com a metade — disse eu. — Em troca, vocês mantêm todas as tropas de Cronos longe de Manhattan.

— Ah, cara — gemeu Hudson, estendendo a mão para pegar o dólar de areia. — Faz tanto tempo desde a última vez em que estive limpo.

— O poder de Poseidon — murmurou o Rio East. — Ele é um idiota, mas com certeza sabe como acabar com a poluição.

Eles se entreolharam, então falaram em uníssono:

— Negócio fechado.

— Hã... os invasores? — lembrei.

East fez um gesto rápido com a mão.

— Acabam de afundar.

Hudson estalou os dedos.

— Um bando de cães infernais acaba de dar um mergulho.

— Obrigado — disse eu. — Fiquem limpos.

Enquanto eu subia até a superfície, East gritou:

— Ei, garoto, sempre que tiver um dólar de areia para gastar, volte. Supondo que você sobreviva.

— Maldição de Aquiles — bufou Hudson. — Eles sempre acham que isso vai salvá-los, não é?

— Se ele soubesse... — concordou East.

Os dois riram, dissolvendo-se na água.

De volta à margem, Annabeth estava falando ao celular, mas desligou assim que me viu. Parecia bastante abalada.

— Funcionou — disse eu. — Os rios estão em segurança.

— Ótimo — replicou ela. — Porque temos outros problemas. Michael Yew acaba de ligar. Outro exército está marchando sobre a Ponte de Williamsburg. O chalé de Apolo precisa de ajuda. E, Percy, o monstro à frente do inimigo... é o Minotauro.


ONZE

Derrubamos uma ponte

Felizmente, Blackjack estava de serviço.

Dei o meu melhor assovio de chamar táxi e poucos minutos depois duas formas escuras descreviam círculos no céu. A princípio pareciam falcões, mas enquanto desciam pude distinguir as longas pernas galopantes dos pégasos.

Opa, chefe. Blackjack pousou com um trote, o amigo Porkpie logo atrás dele. Cara, pensei que aqueles deuses do vento fossem nos mandar lá para a Pensilvânia, até que eu disse que estávamos com você!

— Obrigado por virem — agradeci. — Ei, por falar nisso, por que os pégasos galopam enquanto voam?

Blackjack relinchou.

Por que os humanos balançam os braços enquanto andam? Sei lá, chefe. Fazemos isso naturalmente. Para onde vamos?

— Precisamos ir para a Ponte de Williamsburg — falei.

Blackjack abaixou o pescoço.

Você está certíssimo, chefe. Sobrevoamos a ponte a caminho daqui, e a situação não é nada boa. Subam!

No caminho para a ponte, um nó formou-se na boca do meu estômago. O Minotauro fora um dos primeiros monstros que eu derrotara. Quatro anos antes ele quase matara minha mãe na Colina Meio-Sangue. Eu ainda tinha pesadelos com isso.

Esperava que ele permanecesse morto por alguns séculos, mas deveria saber que minha sorte não duraria.

Vimos a batalha antes de estar perto o suficiente para identificar os lutadores. Agora já passava muito da meia-noite, mas a claridade na ponte era intensa. Carros queimavam. Arcos de fogo se desenhavam em ambas as direções à medida que espadas e flechas chamejantes cruzavam o ar.

Nós nos aproximamos voando baixo, e vi os campistas de Apolo recuando. Eles se escondiam atrás de automóveis e emboscavam o exército que se aproximava, disparando flechas explosivas e largando estrepes pelo caminho, montando barricadas de fogo onde quer que pudessem, tirando dos carros motoristas desacordados para deixá-los em um local seguro. Mas o inimigo continuava avançando. Toda uma falange de dracaenae marchava na vanguarda, os escudos colados uns aos outros, as setas das lanças despontando no alto. Vez ou outra uma flecha atingia o tronco de cobra de uma delas, um pescoço ou uma fenda na armadura, e a infeliz mulher cobra se desintegrava, mas a maioria dos disparos de Apolo ricocheteava na parede de escudos sem oferecer perigo. Cerca de uma centena de monstros marchava atrás delas.

De vez em quando, cães infernais saltavam para a linha de frente. A maioria era destruída pelas flechas, mas um deles conseguiu abocanhar um campista de Apolo e o arrastou para longe. Não vi o que aconteceu a ele em seguida. Não queria saber.

— Lá! — gritou Annabeth em seu pégaso.

De fato, no meio da legião invasora estava o próprio bom e velho Chifrudo.

Na última vez que eu vira o Minotauro, ele não usava nada além de cuecas justinhas. Não sei por quê. Talvez tivesse sido arrancado da cama para me perseguir. Desta vez ele estava preparado para a batalha.

Da cintura para baixo, usava os típicos acessórios gregos de combate — um avental de couro e abas de metal, grevas de bronze cobrindo as pernas e sandálias de couro bem presas aos pés. Na parte de cima ele era um touro — pelo, couro e músculos, e uma cabeça tão grande que ele poderia tombar só com o peso dos chifres. Parecia maior que da última vez que eu o vira — uns três metros a mais, pelo menos. Um machado de lâmina dupla estava pendurado às suas costas, mas ele era impaciente demais para usá-lo. Assim que me viu sobrevoando-os (ou me farejou, o que era mais provável, já que sua visão era ruim), urrou e ergueu do chão uma limusine branca.

— Blackjack, mergulhe! — gritei.

O quê?, perguntou o pégaso. Não tem como ele... Santa ração de cavalo!

Estávamos a pelo menos trinta metros do chão, mas a limusine veio bem na nossa direção, girando no ar como um bumerangue de duas toneladas. Annabeth e Porkpie rapidamente deram uma guinada para a esquerda, enquanto Blackjack encolhia as asas e mergulhava. A limusine passou uns cinco centímetros acima da minha cabeça. Depois passou pelos cabos de suspensão da ponte e despencou no Rio East.

Os monstros zombavam e gritavam, e o Minotauro pegou outro carro.

— Deixe-nos atrás das linhas do chalé de Apolo — eu disse a Blackjack. — Fique por perto, mas proteja-se!

Não vou discutir, chefe!

Blackjack mergulhou atrás de um ônibus escolar tombado, onde uns poucos campistas se protegiam. Annabeth e eu desmontamos de nossos pégasos assim que seus cascos tocaram o solo. Então Blackjack e Porkpie arremeteram para o céu noturno.

Michael Yew correu até nós. Ele, decididamente, era o combatente mais baixinho que eu já vira. Tinha um ferimento coberto por uma atadura no braço. Seu rosto de fuinha estava sujo de fuligem e sua aljava, quase vazia, mas ele sorria como se estivesse se divertindo imensamente.

— Que bom que puderam se juntar a nós — disse ele. — Onde estão os reforços?

— Por ora, somos só nós — falei.

— Então estamos mortos — replicou ele.

— Vocês ainda estão com a carruagem voadora? — perguntou Annabeth.

— Não — disse Michael. — Deixamos no acampamento. Eu disse a Clarisse que podia ficar com ela. Tanto faz, sabe? Não vale mais a pena brigar. Mas ela disse que era tarde demais. Disse que havíamos insultado sua honra pela última vez ou alguma estupidez desse tipo.

— Pelos menos você tentou — falei.

Michael deu de ombros.

— É, bem, eu a chamei de alguns nomes feios quando ela disse que ainda assim não lutaria. Duvido que isso tenha ajudado. Lá vêm os feiosos!

Ele sacou uma flecha e disparou-a na direção dos inimigos. A flecha emitiu um som semelhante a um grito ao se deslocar. Quando aterrissou, liberou um estrondo como o acorde de uma guitarra ligada ao maior amplificador do mundo. Os carros mais próximos explodiram. Os monstros deixaram cair as armas e taparam os ouvidos, em agonia. Alguns correram. Outros se desintegraram ali onde estavam.

— Essa foi minha última flecha sônica — informou Michael.

— Presente do seu pai? — perguntei. — O deus da música?

Michael sorriu perversamente.

— Música alta pode ser prejudicial. Infelizmente, nem sempre mata.

De fato, a maior parte dos monstros estava se reagrupando, recuperando-se da breve confusão mental.

— Precisamos recuar — disse Michael. — Temos Kayla e Austin preparando armadilhas mais adiante na ponte.

— Não — disse eu. — Traga seus campistas para esta posição e espere meu sinal. Vamos empurrar o inimigo de volta para o Brooklyn.

Michael riu.

— Como pretende fazer isso?

Puxei minha espada.

— Percy — disse Annabeth —, deixe-me ir com você.

— É perigoso demais — falei. — Além disso, preciso que ajude Michael a montar a linha de defesa. Vou distrair os monstros. Vocês se agrupam aqui. Tirem do caminho os mortais desacordados. Depois comecem a abater os monstros enquanto eu os mantenho concentrados em mim. Se alguém pode fazer tudo isso, é você.

Michael bufou.

— Muito obrigado.

Eu continuava olhando para Annabeth.

Ela assentiu, relutante.

— Muito bem. Vá em frente.

Antes que eu perdesse a coragem, disse:

— Não ganho um beijo de boa sorte? Já é quase uma tradição, não é?

Imaginei que ela fosse me dar um soco. Em vez disso, ela sacou a faca e olhou fixamente para o exército que marchava em nossa direção.

— Volte vivo, Cabeça de Alga. Então veremos.

Concluí que era a melhor oferta que eu teria, então saí de trás do ônibus escolar e comecei a subir a ponte, à vista, diretamente para o inimigo.

Quando o Minotauro me viu, seus olhos arderam de ódio. Ele berrou — um som que pareceu ao mesmo tempo um grito, um mugido e um arroto muito alto.

— Ei, Valentão — gritei de volta. — Eu já não matei você?

Ele socou o capô de um Lexus, amassando-o como papel-alumínio.

Algumas dracaenae lançaram dardos chamejantes contra mim. Desviei-os com a mão. Um cão infernal me atacou, e eu dei um passo para o lado. Poderia tê-lo atravessado com a espada, mas hesitei.

Não é a sra. O’Leary, lembrei a mim mesmo. É um monstro não domesticado. Vai me matar e matar todos os meus amigos.

Ele saltou sobre mim novamente. Desta vez, ergui Contracorrente em um arco mortal. O cão infernal desintegrou-se em pó e pelo.

Outros monstros avançaram — cobras, gigantes e telquines —, mas o Minotauro rugiu, e eles recuaram.

— Um contra um? — gritei. — Como nos velhos tempos?

As narinas do Minotauro tremeram. Ele precisava carregar um pacote de lencinhos de papel no bolso de sua armadura, pois seu nariz estava molhado, vermelho e bem nojento. Ele sacou o machado e girou-o.

Era uma arma bonita, do tipo vou-estripar-você-como-um-peixe. Cada uma das lâminas gêmeas tinha a forma de um ômega: O — a última letra do alfabeto grego. Talvez porque o machado fosse a última visão de suas vítimas. O cabo tinha quase a altura do Minotauro, era de bronze, envolto em couro. Presos na base de cada lâmina havia vários colares de contas. Percebi que eram colares do Acampamento Meio-Sangue — colares tirados de semideuses derrotados.

Fiquei tão furioso que imaginei meus olhos reluzindo como os do Minotauro. Ergui a espada. O exército de monstros deu vivas para o Minotauro, mas os gritos cessaram quando me esquivei do primeiro golpe e parti o machado em dois, bem no meio do cabo.

— Mu? — grunhiu ele.

— AAAH! — Girei e dei-lhe um chute no focinho.

Ele cambaleou para trás, tentando recuperar o equilíbrio, então baixou a cabeça para atacar.

Mas não teve chance. Minha espada moveu-se como um raio — decepando um chifre, depois o outro. Ele tentou me agarrar. Rolei para longe e peguei uma metade de seu machado quebrado. Os outros monstros recuaram em um silêncio atônito, formando um círculo à nossa volta. O Minotauro berrou de fúria. Ele nunca foi muito esperto, mas agora a raiva o tornava imprudente. Quando ele atacou, corri para a beira da ponte, passando entre uma fileira de dracaenae.

O Minotauro deve ter farejado a vitória. Ele pensou que eu estivesse tentando fugir. Seus lacaios aplaudiram. Na beira da ponte, virei-me e apoiei o machado na amurada para receber seu ataque. O Minotauro nem reduziu a velocidade.

CRUNCH.

Ele olhou, surpreso, para o cabo do machado, que se projetava do peitoral de sua armadura.

— Valeu a tentativa — disse a ele.

Levantei-o pelas pernas e atirei-o sobre a lateral da ponte. Enquanto caía, ele ia se desintegrando, voltando ao pó, sua essência retornando ao Tártaro.

Virei-me na direção de seu exército. Agora eram aproximadamente cento e noventa e nove contra um. Eu fiz o óbvio: ataquei-os.

Você vai perguntar como essa coisa de ser “invencível” funcionava: se era eu que desviava magicamente cada arma ou se eram as armas que me atingiam e simplesmente não me feriam. Com sinceridade, não lembro. Tudo o que eu sabia era que não ia deixar aqueles monstros invadirem minha cidade.

Eu cortava as armaduras como se fossem feitas de papel. Mulheres cobras explodiam. Cães infernais dissolviam-se em sombras. Eu golpeava, apunhalava e girava... e devo até ter gargalhado uma ou duas vezes — uma risada enlouquecida que me assustava tanto quanto aos meus inimigos. Estava ciente dos campistas de Apolo atrás de mim atirando flechas, desbaratando toda e qualquer tentativa do inimigo de se reagrupar. Por fim, os monstros fizeram meia-volta e correram — dos duzentos, cerca de vinte sobreviveram.

Eu os segui, com os campistas de Apolo logo atrás de mim.

— Isso mesmo! — gritou Michael Yew. — É isso aí!

Fizemos com que recuassem até a extremidade da ponte, no lado do Brooklyn. O céu ia se tornando mais pálido a leste. Eu podia ver as cabines de pedágio à frente.

— Percy! — gritou Annabeth. — Você já os fez debandar. Volte! Nós já viemos longe demais!

Uma parte de mim sabia que Annabeth tinha razão, mas eu estava indo tão bem que queria destruir cada monstro que restava.

Então, vi a multidão na base da ponte. Os monstros em retirada correram diretamente para seus reforços. Era um grupo pequeno, talvez trinta ou quarenta semideuses em armadura de batalha, montados em cavalos esqueletos. Um deles segurava uma bandeira roxa com o desenho da foice negra.

O cavaleiro líder avançou, trotando. Ele tirou o capacete e reconheci o próprio Cronos, os olhos feito ouro derretido.

Annabeth e os campistas de Apolo vacilaram. Os monstros que estávamos perseguindo alcançaram as fileiras do titã e foram absorvidos pela nova tropa. Cronos olhou em nossa direção. Estava a uns quatrocentos metros de distância, mas juro que pude vê-lo sorrir.

— Agora — disse eu —, recuamos.

Os homens do Senhor Titã sacaram as espadas e atacaram. Os cascos de seus cavalos esqueletos trovejavam no calçamento. Nossos arqueiros dispararam uma saraivada e derrubaram vários inimigos, mas eles continuavam avançando.

— Recuem! — disse aos meus amigos. — Eu vou detê-los.

Em questão de segundos os inimigos me alcançaram.

Michael e seus arqueiros tentaram recuar, mas Annabeth se manteve a meu lado, lutando com a faca e o escudo espelhado enquanto lentamente recuávamos para a ponte.

A cavalaria de Cronos nos cercava, desferindo golpes e gritando insultos. O titã avançava devagar, como se tivesse todo o tempo do mundo. Ele é o Senhor do Tempo, então acho que tinha mesmo.

Eu tentava ferir seus homens, não matá-los. Isso me atrasava, mas eles não eram monstros. Eram semideuses enfeitiçados por Cronos. Eu não conseguia ver os rostos sob os capacetes, mas alguns provavelmente haviam sido meus amigos. Eu golpeava as patas dos cavalos, fazendo-os se desintegrar. Depois que os primeiros semideuses foram ao chão, os outros deduziram que era melhor desmontar dos monstros e lutar comigo no solo.

Annabeth e eu nos mantínhamos ombro a ombro, voltados para direções opostas. Uma forma escura passou no alto e eu me atrevi a olhar para cima. Blackjack e Porkpie davam rasantes, atingiam com patadas os capacetes de nossos inimigos e afastavam-se, como pombos camicases gigantes.

Já estávamos quase no meio da ponte quando algo estranho aconteceu. Senti um frio na espinha — atrás de mim, Annabeth gritou de dor.

— Annabeth!

Virei-me a tempo de vê-la cair, segurando o braço. Um semideus com uma faca ensanguentada estava de pé junto a ela.

Em um segundo compreendi o que acontecera. Ele tentara me esfaquear. A julgar pela posição da lâmina, teria me atingido — talvez por pura sorte — na base da coluna, meu único ponto vulnerável.

Annabeth pusera o próprio corpo na frente da faca.

Mas por quê? Ela não sabia sobre meu ponto fraco. Ninguém sabia.

Meus olhos encontraram os do semideus inimigo. Ele usava um tapa-olho sob o elmo de guerra: Ethan Nakamura, o filho de Nêmesis. De alguma forma ele conseguira sobreviver à explosão no Princesa Andrômeda. Eu o atingi no rosto com o cabo de minha espada com tanta força que amassei seu elmo.

— Recuem! — Girei a espada no alto e forcei o restante dos semideuses a se afastarem de Annabeth. — Ninguém toca nela!

— Interessante — disse Cronos.

Ele surgiu acima de mim em seu cavalo esqueleto, a foice em uma das mãos. Estudava a cena com os olhos estreitados, como se pudesse pressentir que eu acabara de chegar bem perto da morte, assim como um lobo pode farejar o medo.

— Lutou com bravura, Percy Jackson — disse ele. — Mas chegou a hora de se entregar... ou a garota morre.

— Percy, não — gemeu Annabeth.

A camisa dela estava empapada de sangue. Eu precisava tirá-la dali.

— Blackjack! — gritei.

Rápido como um raio, o pégaso desceu e cravou os dentes nas tiras da armadura de Annabeth. Então se afastou voando sobre o rio antes que o inimigo pudesse sequer reagir.

Cronos rosnou.

— Em um dia, que não vai demorar a chegar, vou fazer sopa de pégaso. Mas por enquanto... — Ele desmontou do cavalo, a foice reluzindo à luz do amanhecer. — Eu me contento com outro semideus morto.

Aparei seu primeiro golpe com Contracorrente. O impacto abalou a ponte inteira, mas eu continuei firme. O sorriso de Cronos vacilou.

Com um grito, derrubei-o com uma rasteira. A foice deslizou pelo calçamento. Ergui a espada, mas quando o golpeei ele rolou para o lado e pôs-se novamente de pé. A foice voou de volta às suas mãos.

— Então... — Ele me observou, parecendo ligeiramente irritado. — Você teve a coragem de visitar o Estige. Tive de pressionar Luke de muitas formas para convencê-lo. Se ao menos tivesse sido você a fornecer meu corpo hospedeiro, em vez de... Bem, não importa. Ainda sou mais poderoso. Eu sou um TITÃ.

Ele golpeou a ponte com o cabo de sua foice, e uma onda de força descomunal me lançou para trás. Os carros saíram derrapando. Semideuses — inclusive os homens de Luke — foram derrubados da ponte. Os cabos de suspensão sacudiram, e eu deslizei meio caminho de volta a Manhattan.

Fiquei de pé, um tanto sem equilíbrio. Os campistas de Apolo que restavam tinham chegado praticamente ao fim da ponte, exceto Michael Yew, que estava empoleirado em um dos cabos de suspensão, a alguns metros de mim. Sua última flecha estava preparada no arco.

— Michael, vá! — gritei.

— Percy, a ponte! — gritou ele de volta. — Já está fraca!

A princípio, não compreendi. Então olhei para baixo e vi fissuras no calçamento. Pedaços do asfalto derretiam com o fogo grego. A ponte levara a pior com o golpe de Cronos e as flechas explosivas.

— Derrube-a! — gritou Michael. — Use seus poderes!

Era uma ideia desesperada — não tinha como funcionar —, mas com um golpe finquei Contracorrente na ponte. A lâmina mágica afundou até o punho no asfalto. Jorrou água salgada da rachadura, como se eu tivesse atingido um gêiser. Arranquei a espada, e a fissura aumentou. A ponte sacudiu e começou a ruir. Pedaços do tamanho de casas caíam no Rio East. Os semideuses de Cronos gritavam, alarmados, e recuavam depressa. Alguns foram derrubados. Em poucos segundos, um abismo de quase vinte metros abriu-se na Ponte de Williamsburg, entre Cronos e mim.

As vibrações cessaram. Os homens de Cronos rastejaram até a beira da ponte e olhavam a queda de quarenta metros até o rio.

No entanto, eu não me sentia seguro. Os cabos de suspensão ainda estavam presos. Os soldados poderiam atravessar por ali se tivessem coragem. Ou talvez Cronos conhecesse uma forma mágica de transpor a fenda.

O Senhor Titã estudava o problema. Olhou para trás, para o sol que surgia, então sorriu do outro lado do abismo. Ele ergueu a foice em uma debochada saudação.

— Até esta noite, Jackson.

Cronos montou seu cavalo, fez meia-volta e retornou ao Brooklyn a galope, seguido por seus guerreiros.

Virei-me para agradecer a Michael Yew, mas as palavras sumiram em minha garganta. A uns sete metros, havia um arco caído no chão. Seu dono não estava à vista.

— Não! — Procurei nos destroços do meu lado da ponte. Olhei para o rio lá embaixo. Nada.

Gritei de raiva e frustração. O som reverberou interminavelmente no silêncio da manhã. Eu estava prestes a assoviar chamando Blackjack para que ele me ajudasse na busca quando o telefone de minha mãe tocou. O visor LCD indicava que eu estava recebendo uma ligação de Finklestein & Associados — provavelmente, um semideus ligando de um telefone emprestado.

Atendi, esperando boas notícias. Naturalmente, eu estava enganado.

— Percy? — Pela voz, parecia que Silena Beauregard estivera chorando. — Hotel Plaza. É melhor você vir depressa e trazer um curandeiro do chalé de Apolo. É... é Annabeth.


DOZE

Rachel fecha um péssimo acordo

Agarrei Will Solace, do chalé de Apolo, e disse a seus irmãos que continuassem procurando Michael Yew. Pegamos uma Yamaha FZI de um motoqueiro desacordado e seguimos para o Plaza a uma velocidade que teria provocado um ataque cardíaco em minha mãe. Eu nunca tinha pilotado uma moto daquele porte, mas não era mais difícil do que cavalgar um pégaso.

No trajeto, notei que muitos pedestais que normalmente exibiam estátuas estavam vazios. O plano vinte e três parecia estar funcionando. Eu só não sabia se isso era bom ou ruim.

Levamos apenas cinco minutos para chegar ao Plaza — um hotel antiquado, revestido de pedras brancas e com telhado azul de duas águas, no canto sudeste do Central Park.

Taticamente falando, o Plaza não era o melhor lugar para um quartel-general. Não era o edifício mais alto da cidade, nem o mais central. Mas tinha o estilo old school e havia atraído muitos semideuses famosos ao longo dos anos, como os Beatles e Alfred Hitchcock, então deduzi que estávamos em boa companhia.

Acelerei a Yamaha por cima do meio-fio e parei junto à fonte diante do hotel.

Will e eu saltamos. A estátua no topo da fonte falou:

— Ah, certo, suponho que também queiram que eu vigie sua moto!

Tratava-se de uma estátua de bronze em tamanho natural, de pé no meio de uma tigela de granito. Usava um tecido de bronze em torno das pernas e segurava uma cesta de frutas de metal. Eu nunca prestara muita atenção a ela. Mas também ela nunca falara comigo.

— Você é Deméter? — perguntei.

Uma maçã de bronze passou rente à minha cabeça.

— Todo mundo me toma por Deméter! — queixou-se. — Sou Pomona, a deusa romana da abundância, mas por que você se interessaria? Ninguém liga para os deuses menores. Se ligassem, não estariam perdendo esta guerra! Três vivas para Morfeu e Hécate, é o que eu digo!

— Olhe a moto — falei.

Pomona praguejou em latim e atirou mais frutas, enquanto Will e eu corríamos na direção do hotel.

Na verdade, eu nunca estivera no interior do Plaza. O saguão impressionava, com os candelabros de cristal e aquelas pessoas ricas desacordadas, mas não prestei muita atenção a isso. Algumas Caçadoras nos indicaram os elevadores, e subimos para as suítes da cobertura.

Os semideuses tinham ocupado completamente os andares superiores. Campistas e Caçadoras estavam jogados nos sofás, lavando-se nos banheiros, arrancando cortinados de seda para usar como atadura em seus ferimentos e servindo-se de lanchinhos e refrigerantes dos frigobares. Alguns lobos bebiam água nos vasos sanitários. Fiquei aliviado ao ver que tantos de meus amigos haviam sobrevivido àquela noite, mas todos pareciam esgotados.

— Percy! — Jake Mason bateu em meu ombro. — Estamos recebendo relatórios...

— Mais tarde — disse eu. — Onde está Annabeth?

— No terraço. Está viva, cara, mas...

Passei por ele com um empurrão.

Em outras circunstâncias eu teria adorado a vista do terraço. Dava para o Central Park. A manhã estava clara e resplandecente — perfeita para um piquenique, uma caminhada ou qualquer outra coisa, exceto lutar contra monstros.

Annabeth estava deitada em uma espreguiçadeira. O rosto pálido e pontilhado de suor. Embora estivesse debaixo de cobertores, ela tremia. Silena Beauregard enxugava sua testa com um pano úmido.

Will e eu abrimos caminho em meio a uma multidão de filhos de Atena. Will tirou as ataduras de Annabeth para examinar o ferimento e tive vontade de desmaiar. O sangramento havia parado, mas o corte parecia profundo. A pele em torno do corte tinha um tom esverdeado horrível.

— Annabeth... — Minha voz falhou.

Ela recebera a facada em meu lugar. Como pude deixar que isso acontecesse?

—Tinha veneno na lâmina — murmurou ela. — Bem estúpido da minha parte, não?

Will Solace soltou o ar, aliviado.

— Não é tão ruim, Annabeth. Mais alguns minutos e estaríamos em apuros, mas o veneno ainda não passou do ombro. Fique deitada imóvel. Alguém me dê um pouco de néctar!

Peguei um cantil. Will limpou o ferimento com a bebida divina enquanto eu segurava a mão de Annabeth.

— Ai — ela gemeu. — Ai, ai!

Ela apertava tanto meus dedos que eles ficaram roxos, mas Annabeth continuou imóvel, como Will pediu. Silena murmurava palavras de encorajamento. Will colocou uma pasta prateada sobre o ferimento e cantarolou em grego antigo — um hino a Apolo. Então, cobriu o local com ataduras limpas e levantou-se, trêmulo.

O processo de cura devia ter consumido grande parte de sua energia. Ele estava quase tão pálido quanto Annabeth.

— Isso deve bastar — disse. — Mas vamos precisar de alguns suprimentos dos mortais.

Pegou um pedaço de papel de carta do hotel, fez algumas anotações e o entregou a um dos filhos de Atena.

— Tem uma Duane Reade na Quinta Avenida. Normalmente, eu nunca roubaria...

— Eu sim — ofereceu-se Travis.

Will fuzilou-o com o olhar.

— Deixe dinheiro ou dracmas, o que você tiver aí, mas isto é uma emergência. Tenho a sensação de que vamos ter muito mais gente para tratar.

Ninguém discordou. Não havia praticamente nenhum semideus que já não estivesse ferido... exceto eu.

— Venham, caras — chamou Travis Stoll. — Vamos dar espaço a Annabeth. Temos uma farmácia para saquear... quer dizer, visitar.

Os semideuses voltaram para dentro do quarto. Jake Mason agarrou meu ombro quando estava saindo.

— Vamos conversar mais tarde, mas está tudo sob controle. Estou usando o escudo de Annabeth para ficar de olho nas coisas. O inimigo retirou-se ao nascer do sol; não tenho certeza do porquê. Temos um sentinela em cada ponte e em cada túnel.

— Obrigado, cara — falei.

Jake assentiu.

— Descanse.

Ele fechou as portas do terraço ao sair, deixando Silena, Annabeth e eu sozinhos.

Silena passou o pano úmido na testa de Annabeth.

— A culpa é minha — disse ela.

— Não — disse Annabeth, sem forças. — Silena, como pode ser culpa sua?

— Nunca servi para nada no acampamento — murmurou ela. — Ao contrário de você ou de Percy. Se eu lutasse melhor...

Sua boca tremeu. Desde a morte de Beckendorf ela vinha piorando, e sempre que a olhava eu sentia novamente a raiva pela morte dele. A expressão dela me lembrava vidro — como se pudesse quebrar a qualquer momento. Jurei a mim mesmo que se um dia descobrisse o espião que causara a morte do namorado dela, eu o daria à sra. O’Leary como brinquedo de mastigar.

— Você é uma excelente campista — disse eu a Silena. — É a melhor amazona de pégasos que temos. E se dá bem com as pessoas. Acredite, qualquer um que consiga ser amigo de Clarisse tem talento.

Ela me olhou como se eu acabasse de lhe dar uma ideia.

— É isso! Precisamos do chalé de Ares. Posso falar com Clarisse. Eu sei que posso convencê-la a nos ajudar.

— Ah, Silena. Mesmo que você conseguisse sair da ilha, Clarisse é muito teimosa. Quando está zangada...

— Por favor — disse Silena. — Posso pegar um pégaso. Eu sei que consigo voltar ao acampamento. Deixe-me tentar.

Troquei um olhar com Annabeth. Ela assentiu levemente.

A ideia não me agradava. Não achava que Silena tivesse chance de convencer Clarisse a lutar. Por outro lado, Silena andava tão distraída que acabaria por se ferir em uma batalha. Talvez mandá-la de volta ao acampamento lhe desse algo em que se concentrar.

— Muito bem — falei. — Não consigo pensar em ninguém melhor para tentar isso.

Silena me abraçou. Em seguida, afastou-se, constrangida, olhando para Annabeth.

— Hã, desculpe. Obrigada, Percy! Não vou decepcioná-lo!

Assim que ela se foi, ajoelhei-me ao lado de Annabeth e pousei a mãe em sua testa. Ainda estava queimando.

— Você fica uma gracinha quando está preocupado — murmurou ela. — Suas sobrancelhas ficam juntas e franzidas.

— Você não vai morrer e me deixar lhe devendo um favor — falei. — Por que levou aquela facada?

— Você teria feito o mesmo por mim.

Era verdade. Acho que ambos sabíamos disso. Ainda assim, eu me sentia como se alguém estivesse cutucando meu coração com um frio espeto de metal.

— Como você sabia?

— Sabia o quê?

Olhei à nossa volta para ter certeza de que estávamos sozinhos. Então cheguei mais perto dela e sussurrei:

— Meu calcanhar de aquiles. Se você não levasse essa facada, eu teria morrido.

O olhar dela estava longe. Seu hálito era de uvas, talvez por causa do néctar.

— Não sei, Percy. Eu simplesmente tive a sensação de que você estava em perigo. Onde... onde é o ponto?

Eu não deveria contar aquilo. Mas ela era Annabeth. Se eu não pudesse confiar nela, não poderia confiar em mais ninguém.

— Na base da minha coluna.

Ela ergueu a mão.

— Onde? Aqui?

Ela pôs a mão nas minhas costas e minha pele formigou. Conduzi seus dedos ao ponto que me conectava à minha vida mortal. Mil volts de eletricidade pareceram percorrer meu corpo.

— Você me salvou — falei. — Obrigado.

Ela tirou a mão, mas eu continuei a segurá-la.

— Então você está me devendo — disse ela, fraca. — Conte-me uma novidade.

Ficamos observando o sol elevar-se sobre a cidade. O trânsito àquela hora já deveria ser intenso, mas não havia carros buzinando, nem a multidão alvoroçada nas calçadas.

A distância, eu podia ouvir o alarme de um carro ecoar pelas ruas. Uma coluna de fumaça negra espiralava em direção aos céus em algum ponto do Harlem. Imaginei quantos fogões teriam sido deixados ligados quando o feitiço de Morfeu sobreveio; quantas pessoas teriam adormecido enquanto preparavam o jantar. Logo, logo haveria mais incêndios. Todos em Nova York estavam em perigo — e todas aquelas vidas dependiam de nós.

— Você me perguntou por que Hermes estava furioso comigo — disse Annabeth.

— Ei, você precisa descansar...

— Não, eu quero lhe contar. Isso me incomoda há muito tempo. — Ela se encolheu ao mexer o ombro. — Ano passado, Luke foi me ver em São Francisco.

— Pessoalmente? — Senti-me como se ela acabasse de me acertar com um martelo. — Ele foi até a sua casa?

— Isso foi antes de entrarmos no Labirinto, antes... — Ela relutou, mas eu sabia o que queria dizer: antes de ele se transformar em Cronos. — Ele foi com uma bandeira branca. Disse que só queria cinco minutos para conversarmos. Parecia assustado, Percy. Contou-me que Cronos ia usá-lo para dominar o mundo. Disse que queria fugir, como nos velhos tempos. E queria que eu fosse com ele.

— Mas você não acreditou.

— É claro que não. Pensei que fosse um truque. Além disso... bem, muita coisa tinha mudado desde os velhos tempos. Eu disse a Luke que não havia a menor chance. Ele ficou furioso. Disse... disse que então eu devia tentar derrotá-lo ali mesmo, porque aquela seria minha última oportunidade.

O suor brotou novamente em sua testa. A história estava consumindo grande parte de sua energia.

— Está tudo bem — falei. — Tente descansar um pouco.

— Você não compreende, Percy. Hermes tinha razão. Talvez, se eu tivesse ido com ele, pudesse tê-lo feito mudar de ideia. Ou... eu tinha uma faca. Luke estava desarmado. Eu poderia...

— Tê-lo matado? — completei. — Você sabe que isso não seria certo.

Ela fechou os olhos, bem apertados.

— Luke disse que Cronos iria usá-lo como um meio de vencer. Foram estas as palavras dele. Cronos usaria Luke e se tornaria ainda mais poderoso.

— Foi o que ele fez — disse eu. — Ele se apossou do corpo de Luke.

— Mas e se o corpo de Luke for apenas uma transição? E se Cronos tiver um plano para se tornar ainda mais poderoso? Eu poderia tê-lo detido. A guerra é culpa minha.

A história dela me fez ter a sensação de estar de volta ao Estige, dissolvendo-me lentamente. Lembrei-me do verão anterior, quando Jano, o deus de duas cabeças, advertira Annabeth de que ela teria de fazer uma escolha importante — isso foi depois de ela ver Luke. Pã também lhe dissera algo: Você terá um papel muito importante, embora talvez não seja o que você imaginou.

Eu queria perguntar a ela sobre a visão que Héstia me mostrara, sobre seus primeiros dias com Luke e Thalia. Eu sabia que isso tinha algo a ver com a minha profecia, mas não entendia o quê.

Antes que eu pudesse reunir coragem, a porta do terraço se abriu. Connor Stoll entrou.

— Percy. — Ele olhou para Annabeth como se não quisesse dizer nada ruim na frente dela, mas eu podia ver que as notícias não eram boas. — A sra. O’Leary acaba de voltar com Grover. Acho que você deveria falar com ele.

Grover estava fazendo um lanche na sala de estar. Estava vestido para combate. Usava uma camisa blindada feita de casca de árvore e fios torcidos, com o porrete de madeira e a flauta de bambu pendendo de seu cinto.

O chalé de Deméter havia preparado um bufê completo nas cozinhas do hotel — tudo, de pizza a sorvete de abacaxi. Infelizmente, Grover estava comendo a mobília. Ele já mastigara o estofado de uma elegante cadeira e agora roía o descanso de braço.

— Cara — disse eu —, só tomamos este lugar emprestado.

— Bé-é-é! — Havia enchimento espalhado por todo o seu rosto. — Desculpe, Percy. É que... são móveis Luís XVI. São deliciosos. Além disso, eu sempre como a mobília quando fico...

— Quando fica nervoso — completei. — É, sei disso. Então, o que houve?

Ele bateu os cascos.

— Já soube de Annabeth. Ela vai...?

— Ela vai ficar bem. Está descansando.

Grover respirou fundo.

— Ótimo. Mobilizei a maior parte dos espíritos da natureza na cidade... bem, os que me ouvem, pelo menos. — Ele esfregou a testa. — Eu não tinha a menor ideia de que bolotas de carvalho podiam ser tão dolorosas. De qualquer forma, estamos ajudando como podemos.

Grover me contou sobre os combates que tinham visto. Eles haviam coberto principalmente a parte alta da cidade, onde não tínhamos semideuses suficientes. Cães infernais haviam aparecido por toda parte, viajando nas sombras para dentro de nossas linhas, e as dríades e os sátiros haviam se incumbido de combatê-los. Um dragão jovem tinha aparecido no Harlem, e uma dúzia de ninfas do bosque morrera até que o monstro finalmente fosse derrotado.

Enquanto Grover falava, Thalia entrou na sala com duas de suas tenentes. Fez um gesto severo com a cabeça em minha direção, saiu para dar uma olhada em Annabeth, voltou e ficou ouvindo Grover completar seu relatório — os detalhes cada vez piores.

— Perdemos vinte sátiros para alguns gigantes em Fort Washington — contou ele, a voz trêmula. — Quase a metade dos meus parentes. No fim, os espíritos do rio conseguiram afogar os gigantes, mas...

Thalia pendurou no ombro seu arco.

— Percy, as forças de Cronos continuam se congregando em todas as pontes e túneis. E Cronos não é o único titã. Uma de minhas Caçadoras avistou um homem imenso com uma armadura dourada reunindo um exército no litoral de Jersey. Não sei quem é, mas ele irradia poder como somente um titã ou um deus seria capaz.

Lembrei-me do titã dourado em meu sonho — aquele que irrompeu em chamas no Monte Otris.

— Ótimo — falei. — Alguma notícia boa?

Thalia encolheu os ombros.

— Vedamos os túneis do metrô para Manhattan. Minhas melhores especialistas em armadilhas cuidaram disso. E mais: parece que o inimigo está esperando para atacar esta noite. Acho que Luke... quer dizer, Cronos — ela se corrigiu — precisa de tempo para se regenerar após cada combate. Ele ainda não está confortável em sua nova forma. Grande parte de seu poder está sendo consumida na desaceleração do tempo em torno da cidade.

Grover concordou.

— A maior parte de suas tropas é mais poderosa à noite também. E vão voltar depois que o sol se puser.

Tentei pensar com clareza.

— O.k. Alguma notícia dos deuses?

Thalia sacudiu a cabeça.

— Sei que Lady Ártemis estaria aqui se pudesse. Atena também. Mas Zeus ordenou que fiquem ao lado dele. A última notícia que tive foi que Tifão estava destruindo o vale do Rio Ohio. Deve alcançar os Montes Apalaches ao meio-dia.

— Portanto, na melhor das hipóteses — ponderei —, temos mais dois dias até ele chegar.

Jake Mason pigarreou. Ele estivera ali tão silencioso que eu quase havia me esquecido de sua presença.

— Percy, há mais uma coisa — disse ele. — O fato de Cronos ter aparecido na Ponte de Williamsburg, como se soubesse que você ia para lá. Além disso, ele desviou as tropas para nossos pontos mais fracos. Assim que nos posicionávamos, ele mudava de tática. Ele mal tocou no Túnel Lincoln, onde as Caçadoras eram fortes. Atacou nossos pontos mais vulneráveis, como se os conhecesse.

— Como se tivesse informações confidenciais — disse eu. — O espião.

— Que espião? — perguntou Thalia.

Contei-lhe sobre o pendente de prata que Cronos havia me mostrado, o aparelho de comunicação.

— Isso é ruim — disse ela. — Muito ruim.

— Poderia ser qualquer um — afirmou Jake. — Estávamos todos lá quando Percy deu as ordens.

— Mas o que podemos fazer? — perguntou Grover. — Revistar cada semideus até encontrarmos um pendente em forma de foice?

Todos me olharam, à espera de uma decisão. Eu não podia me dar o luxo de mostrar que estava em pânico, ainda que parecesse não haver esperanças.

— Vamos continuar lutando — falei. — Não podemos ficar obcecados por esse espião. Se começarmos a desconfiar uns dos outros, vamos nos destruir. Vocês todos foram incríveis na noite passada. Eu não poderia querer um exército mais bravo. Vamos estabelecer um revezamento para a vigilância. Descansem enquanto podem. Temos uma noite longa pela frente.

Os semideuses murmuraram, de acordo, e se separaram. Foram dormir, comer ou consertar as armas.

— Percy, você também — disse Thalia. — Vamos ficar de olho nas coisas. Vá se deitar. Precisamos de você em boa forma esta noite.

Não discuti muito. Encontrei o quarto mais próximo e desabei em uma cama de dossel. Pensei que estivesse ligado demais para dormir, mas meus olhos se fecharam quase que de imediato.

Em meu sonho vi Nico di Angelo sozinho nos jardins de Hades. Ele acabara de abrir um buraco em um dos canteiros de flores de Perséfone, o que imaginei que não fosse deixar a rainha muito feliz.

Nico despejou um cálice de vinho no buraco e começou a entoar uma melodia.

— Que os mortos provem o sabor novamente. Que se ergam e recebam esta oferenda. Maria di Angelo, apresente-se!

Uma fumaça branca condensou-se. Uma figura humana se formou, mas não era a mãe de Nico. Era uma garota de cabelos escuros e pele azeitonada, com o traje prateado de uma Caçadora.

— Bianca — disse Nico. — Mas...

Não evoque nossa mãe, Nico, avisou ela. Ela é um dos espíritos que você está proibido de ver.

— Por quê? O que nosso pai está escondendo?

Dor, disse Bianca. Ódio. Uma maldição que remonta à Grande Profecia.

— O que você quer dizer? — perguntou Nico. — Eu preciso saber!

O conhecimento só vai feri-lo. Lembre-se do que eu disse: guardar rancor é um defeito fatal para os filhos de Hades.

— Eu sei disso — afirmou Nico. — Mas eu não sou o mesmo de antes, Bianca. Pare de tentar me proteger!

Irmão, você não entende...

Nico passou a mão pela névoa, e a imagem de Bianca se dissipou.

— Maria di Angelo — ele tornou a dizer. — Fale comigo!

Uma imagem diferente se formou. Era uma cena, não um único fantasma. Em meio à névoa, vi Nico e Bianca ainda criancinhas, brincando no saguão de um hotel elegante, correndo em torno de colunas de mármore.

Uma mulher estava sentada em um sofá próximo. Usava vestido preto, luvas e chapéu também preto com véu, como uma estrela de cinema dos anos 40. Tinha o sorriso de Bianca e os olhos de Nico.

Em uma cadeira ao lado dela sentava-se um homem corpulento, de pele oleosa, de terno risca de giz preto. Com um susto, reconheci Hades. Ele se inclinava na direção da mulher, movendo as mãos enquanto falava, como se estivesse agitado.

— Por favor, minha querida — disse ele. — Você precisa ir para o Mundo Inferior. Não me importo com o que Perséfone pensa! Posso mantê-la a salvo lá.

— Não, meu amor. — Ela falava com sotaque italiano. — Criar nossos filhos na terra dos mortos? Não farei isso.

— Maria, me escute. A guerra na Europa pôs os outros deuses contra mim. Uma profecia foi feita. Meus filhos não estão mais em segurança. Poseidon e Zeus me forçaram a um acordo. Nenhum de nós deve ter mais filhos semideuses.

— Mas você já tem Nico e Bianca. Certamente...

— Não! A profecia adverte sobre uma criança que completa dezesseis anos. Zeus decretou que os filhos que tenho agora devem ser levados para o Acampamento Meio-Sangue para treinamento adequado, mas eu sei o que ele quer dizer. Na melhor das hipóteses, eles serão vigiados, aprisionados, doutrinados contra o pai. E o mais provável é que ele não vá se arriscar. Não vai permitir que meus filhos semideuses cheguem aos dezesseis anos. Vai encontrar uma forma de destruí-los, e eu não vou correr esse risco!

— Certamente — disse Maria. — Vamos ficar juntos. Zeus é un imbecile.

Não pude deixar de admirar a coragem dela, mas Hades olhou para o teto, nervoso.

— Maria, por favor. Eu lhe disse que Zeus me deu um prazo, que era semana passada, para entregar as crianças. A ira dele será terrível, e eu não poderei escondê-la para sempre. Enquanto você estiver com as crianças, também estará em perigo.

Maria sorriu, e de novo era sinistro o quanto ela se parecia com a filha.

—Você é um deus, meu amor. Vai nos proteger. Eu não levarei Nico e Bianca para o Mundo Inferior.

Hades apertava as mãos.

— Então existe uma outra opção. Conheço no deserto um lugar onde o tempo não passa. Posso mandar as crianças para lá por um período, para a segurança delas, e poderíamos ficar juntos. Vou construir um palácio dourado para você, à margem do Estige.

Maria di Angelo sorriu delicadamente.

—Você é um homem gentil, meu amor. Um homem generoso. Os outros deuses deveriam vê-lo como eu vejo, assim não o temeriam tanto. Mas Nico e Bianca precisam da mãe. Além disso, são só crianças. Os deuses não os machucariam de verdade.

— Você não conhece minha família — retrucou Hades, sombrio. — Por favor, Maria, não posso perdê-la.

Ela tocou-lhe os lábios com os dedos.

— Você não me perderá. Espere enquanto pego minha bolsa. Olhe as crianças.

Maria beijou o Senhor dos Mortos e se levantou do sofá. Hades a observou subindo a escada, como se cada passo dela ao se afastar lhe causasse dor.

Um momento depois ele se retesou. As crianças pararam de brincar, como se também pressentissem algo.

— Não! — exclamou Hades.

Mas até mesmo seus poderes divinos foram lentos demais. Ele só teve tempo de erigir uma parede de energia negra em torno das crianças antes que o hotel explodisse.

A explosão foi tão violenta que a imagem na névoa se dissipou. Quando voltou a entrar em foco, vi Hades ajoelhado em meio às ruínas, segurando o corpo destruído de Maria di Angelo. O fogo ainda queimava ao redor dele. Relâmpagos cruzavam o céu, e trovões ribombavam.

Os pequenos Nico e Bianca olhavam para a mãe, sem entender. A Fúria Alectó surgiu atrás deles, sibilando e batendo as asas coriáceas. As crianças pareceram não vê-la.

— Zeus! — Hades agitava o punho na direção do céu. — Eu vou destruí-lo por isso! Eu a trarei de volta!

— Meu senhor, isso não é possível — advertiu Alectó. — O senhor, de todos os imortais, é quem mais deve respeitar as leis da morte.

Hades irradiava ira. Pensei que fosse revelar sua verdadeira forma e pulverizar os próprios filhos, mas no último momento ele pareceu recuperar o controle.

— Pegue-os — ele disse a Alectó, reprimindo um soluço. — Apague a memória deles na fonte de Lete e leve-os para o Hotel Lótus. Zeus não lhes fará mal lá.

— Como quiser, meu senhor — replicou Alectó. — E o corpo da mulher?

— Leve-a também — disse ele, amargamente. — Ministre a ela os antigos ritos.

Alectó, as crianças e o corpo de Maria se dissiparam nas sombras, deixando Hades sozinho em meio aos escombros.

— Eu o avisei — disse uma nova voz.

Hades virou-se. Uma garota com um vestido multicolorido estava de pé ao lado dos restos fumegantes do sofá. Tinha cabelos pretos curtos e olhos tristes. Não devia ter mais de doze anos. Eu não a conhecia, mas ela me pareceu estranhamente familiar.

— Você ousa vir até aqui? — rosnou Hades. — Eu deveria transformá-la em pó!

— Você não pode — disse a menina. — O poder de Delfos me protege.

Com um calafrio, percebi que a garota que eu estava vendo era o Oráculo de Delfos, quando viva e jovem. Por alguma razão, vê-la assim era ainda mais sinistro do que vê-la como múmia.

— Você matou a mulher que eu amava! — rugiu Hades. — Sua profecia nos trouxe a isto!

Ele se avultou diante da garota, mas ela nem se encolheu.

— Zeus ordenou a explosão para destruir as crianças — disse ela — porque você desafiou a vontade dele. Não tive nada a ver com isso. E avisei a você que as escondesse antes.

— Não pude! Maria não deixou! Além disso, elas eram inocentes.

— Mas são seus filhos, e isso os torna perigosos. Mesmo que os esconda no Hotel Lótus, só estará adiando o problema. Nico e Bianca jamais poderão voltar ao mundo, para que não completem dezesseis anos.

— Por causa da sua assim chamada Grande Profecia. E vocês me obrigaram a fazer um juramento de não ter outros filhos. Não me deixaram nada!

— Eu prevejo o futuro — disse a garota. — Não posso mudá-lo.

Um fogo negro iluminou os olhos do deus, e eu sabia que algo de mau estava vindo. Eu queria gritar para que a garota se escondesse ou corresse.

— Então, Oráculo, ouça as palavras de Hades — grunhiu ele. — Talvez eu não possa trazer Maria de volta. Tampouco posso causar a você uma morte prematura. Mas sua alma ainda é mortal, e eu posso amaldiçoá-la.

Os olhos da garota se arregalaram.

— Você não...

— Eu juro — disse Hades — que enquanto meus filhos permanecerem proscritos, enquanto eu padecer sob a maldição de sua Grande Profecia, o Oráculo de Delfos jamais vai ter outro hospedeiro mortal. Você nunca descansará em paz. Ninguém vai tomar seu lugar. Seu corpo vai murchar e morrer, e o espírito do Oráculo ainda estará preso dentro dele. Você proferirá suas profecias amargas até se esfarelar e se transformar em nada. O Oráculo morrerá com você!

A menina gritou, e a imagem enevoada se desfez em fiapos. Nico caiu de joelhos no jardim de Perséfone, o rosto branco com o choque. De pé diante dele estava o verdadeiro Hades, avultando-se em seu manto negro e olhando severamente para o filho.

— O que exatamente você pensa que está fazendo? — perguntou a Nico.

Uma explosão negra tomou conta dos meus sonhos. E então o cenário mudou.

Rachel Elizabeth Dare caminhava por uma praia de areias brancas. Usava maiô com uma camiseta enrolada na cintura. Os ombros e o rosto estavam queimados de sol.

Ela ajoelhou-se e começou a escrever na arrebentação com o dedo. Tentei decifrar as letras. Pensei que minha dislexia estivesse me atrapalhando, até perceber que ela estava escrevendo em grego antigo.

Aquilo era impossível. O sonho tinha de ser falso.

Rachel terminou de escrever algumas palavras e murmurou:

— Que diabos...?

Eu sei ler grego, mas só reconheci uma palavra antes que o mar as desmanchasse: ?e?se??. Meu nome: Perseus.

Rachel de repente pôs-se de pé e recuou, afastando-se da arrebentação.

— Ah, deuses — ela disse. — É isso!

Ela virou-se e correu, levantando areia enquanto voltava em disparada para a mansão da família.

Subiu ruidosamente os degraus da varanda, ofegante. Seu pai levantou os olhos do Wall Street Journal.

— Pai. — Rachel marchou até ele. — Precisamos voltar.

A boca de seu pai se contorceu, como se ele estivesse tentando se lembrar de como sorrir.

— Voltar? Acabamos de chegar aqui.

— Há uma confusão em Nova York. Percy está em perigo.

— Ele ligou para você?

— Não... não exatamente. Mas eu sei. É um pressentimento.

O sr. Dare dobrou o jornal.

— Sua mãe e eu esperamos muito tempo por essas férias.

— Não esperaram nada! Vocês dois odeiam a praia! Só são teimosos demais para admitir.

— Olhe, Rachel...

— Estou lhe dizendo que está acontecendo alguma coisa errada em Nova York! A cidade inteira... Não sei exatamente o que é, mas Nova York está sendo atacada.

O pai dela suspirou.

— Acho que teríamos ouvido algo desse tipo no noticiário.

— Não — insistiu Rachel. — Não esse tipo de ataque. Você já recebeu algum telefonema desde que chegou aqui?

O pai franziu a testa.

— Não... mas é um fim de semana, em pleno verão.

— Você sempre recebe ligações. — Admita que isso é estranho.

— Não podemos simplesmente ir embora. Gastamos muito dinheiro. — O pai hesitou.

— Olhe — disse Rachel. — Papai... Percy precisa de mim. Tenho uma mensagem para ele. É questão de vida ou morte.

— Que mensagem? Do que você está falando?

— Não posso lhe dizer.

— Então não pode ir.

Rachel fechou os olhos, como se estivesse reunindo coragem.

— Pai... deixe-me ir, e eu faço um acordo com você.

Ele sentou-se mais à frente na cadeira. De acordos ele entendia.

— Estou ouvindo.

— Academia de Moças de Clarion. Vou para lá no outono. Sem queixas. Mas precisa me levar para Nova York agora.

Ele ficou em silêncio por um longo momento. Então, abriu o telefone e fez uma ligação.

— Douglas? Prepare o avião. Vamos partir para Nova York. Sim... imediatamente.

—Vou retribuir, pai! — Rachel disse e atirou-se nos braços do pai, que pareceu surpreso como se ela nunca o tivesse abraçado.

Ele sorriu, mas sua expressão era fria. Ele a observava como se não estivesse vendo sua filha — mas apenas a jovem que ele queria que ela fosse, assim que a Academia de Clarion acabasse o trabalho com ela.

— Sim, Rachel — concordou ele. — Certamente vai.

A cena desapareceu gradualmente, enquanto eu murmurava em meu sono: Rachel, não!

Eu ainda me debatia e me revirava quando Thalia me sacudiu para me acordar.

— Percy, venha. Já estamos no fim da tarde. Temos visitas.

Eu me sentei, desorientado. A cama era confortável demais, e eu detestava dormir no meio do dia.

— Visitas? — perguntei.

— Um titã quer vê-lo, em uma trégua — Thalia assentiu sombriamente. — Ele traz uma mensagem de Cronos.


TREZE

Um titã me traz um presente

Podíamos ver a bandeira branca a quase um quilômetro de distância. Era grande como um campo de futebol, carregada por um gigante de dez metros com pele azul brilhante e cabelos cinza-gelo.

— Um hiperbóreo — disse Thalia. — Os gigantes do norte. É mau sinal que tenham ficado do lado de Cronos. Em geral, eles são pacíficos.

— Você já os encontrou antes? — perguntei.

— Hã-hã. Há uma grande colônia deles em Alberta. Você não ia querer brincar de guerra de neve com esses caras.

À medida que o gigante se aproximava pude ver três figuras do tamanho de humanos o acompanhando: um meio-sangue de armadura, um demônio empousa de vestido preto e cabelos chamejantes e um homem alto de smoking. A empousa segurava o braço do sujeito de smoking, de modo que pareciam um casal a caminho de um espetáculo da Broadway ou algo assim — desconsiderando os cabelos chamejantes e as presas dela.

O grupo caminhava calmamente em direção ao Heckscher Playground. Os balanços e as quadras estavam vazios. O único ruído era o da fonte na Umpire Rock.

Olhei para Grover.

— O cara de smoking é o titã?

Ele assentiu, nervoso.

— Parece um mágico. Eu detesto mágicos. Eles costumam ter coelhos.

Eu o fitei.

— Você tem medo de coelhinhos?

— Bé-é-é! Eles são valentões. Estão sempre roubando aipo de sátiros indefesos!

Thalia tossiu.

— O que foi? — perguntou Grover.

— Vamos ter de trabalhar sua fobia de coelhos mais tarde — disse eu. — Aqui estão eles.

O homem de smoking deu um passo à frente. Era mais alto do que a média dos humanos — cerca de dois metros. Os cabelos pretos estavam amarrados em um rabo de cavalo. Óculos escuros redondos escondiam seus olhos, mas o que de fato me chamou a atenção foi a pele de seu rosto. Era coberta de arranhões, como se ele tivesse sido atacado por um animal pequeno — talvez um hamster muito, muito furioso.

— Percy Jackson — disse ele, numa voz de seda. — É uma grande honra.

Sua amiga, a empousa, sibilou para mim. Ela provavelmente ficara sabendo que eu destruíra duas de suas irmãs no verão anterior.

— Minha querida — disse o arrumadinho. — Por que você não se acomoda melhor ali, hein?

Ela soltou o braço dele e dirigiu-se a um banco do parque.

Olhei para o semideus de armadura atrás do arrumadinho. Eu não o havia reconhecido em seu novo elmo, mas era meu velho amigo traidor: Ethan Nakamura. O nariz dele parecia um tomate esmagado depois de nossa luta na Ponte de Williamsburg. Isso fez com que eu me sentisse melhor.

— Ei, Ethan — falei. — Você está bonito assim.

Ethan me fuzilou com o olhar.

— Aos negócios. — O arrumadinho estendeu a mão. — Eu sou Prometeu.

Fiquei surpreso demais para cumprimentá-lo.

— O sujeito que roubou o fogo? O cara acorrentado nas pedras com os abutres?

Prometeu estremeceu e tocou os arranhões em seu rosto.

— Por favor, não mencione os abutres. Mas, sim, eu roubei o fogo dos deuses e o dei a seus ancestrais. Em troca, o sempre misericordioso Zeus mandou me acorrentar a uma pedra e me torturar por toda a eternidade.

— Mas...?

— Como eu me libertei? Foi Hércules, zilhões de anos atrás. Portanto, como vê, tenho uma quedinha por heróis. Alguns de vocês podem ser bastante civilizados.

— Ao contrário daqueles com quem você anda — observei.

Eu estava olhando para Ethan, mas Prometeu aparentemente pensou que eu estivesse me referindo à empousa.

— Ah, demônios não são assim tão ruins — disse ele. — Você só precisa mantê-los bem-alimentados. Agora, Percy Jackson, vamos negociar.

Ele gesticulou na direção de uma mesa de piquenique e nos sentamos. Thalia e Grover ficaram atrás de mim.

O gigante azul encostou a bandeira branca em uma árvore e começou a brincar no playground. Ele subiu nas barras e as esmagou, mas não pareceu zangado. Limitou-se a franzir a testa e dizer:

— Oh-oh.

Então subiu na fonte e quebrou a tigela de concreto ao meio.

— Oh-oh.

A água congelou onde seu pé a tocou. De seu cinto pendia um monte de bichos de pelúcia — enormes, do tipo que você ganha como prêmio em fliperamas. Ele me lembrava Tyson, e a ideia de lutar contra ele me entristeceu.

Prometeu chegou mais para a frente na cadeira e entrelaçou os dedos. Ele parecia sério, generoso e sábio.

— Percy, você não está em boa posição. Sabe que não poderá conter outro ataque.

— Vamos ver.

Prometeu parecia aflito, como se de fato se importasse com o que me acontecesse.

— Percy, sou o titã das previsões. Sei o que vem por aí.

— E também o titã dos conselhos ardilosos — interveio Grover. — Com ênfase em ardilosos.

Prometeu deu de ombros.

— De fato, sátiro. Mas eu apoiei os deuses na última guerra. Disse a Cronos: “Você não tem força. Vai perder.” E tinha razão. Então, como veem, sei escolher o lado vencedor. Desta vez, estou apoiando Cronos.

— Porque Zeus o acorrentou a uma pedra — insinuei.

— Em parte, sim. Não vou negar que quero vingança. Mas essa não é minha única razão para apoiar Cronos. É a opção mais sábia. Estou aqui porque pensei que talvez você desse ouvidos à razão.

Ele desenhou um mapa na mesa com o dedo. Onde ele tocava, apareciam linhas douradas, que brilhavam no concreto.

— Isto aqui é Manhattan. Temos exércitos aqui, aqui, aqui e aqui. Sabemos quantos vocês são. Temos vinte homens para cada um dos seus.

— Seu espião vem mantendo vocês bastante informados — afirmei.

Prometeu sorriu, desculpando-se.

— Seja como for, nossas forças estão crescendo diariamente. Esta noite, Cronos vai atacar. Vocês serão vencidos. Lutaram bravamente, mas não têm como defender Manhattan inteira. Serão obrigados a recuar para o Empire State Building. Lá, serão destruídos. Eu vi isso. É o que vai acontecer.

Pensei no quadro que Rachel havia desenhado em meu sonho — um exército no pé do Empire State Building. Lembrei-me das palavras da garota Oráculo no outro sonho: Eu prevejo o futuro. Não posso mudá-lo. Prometeu falava com tanta certeza que era difícil não acreditar nele.

— Não vou deixar que isso aconteça — afirmei.

Ele espanou uma poeirinha da lapela de seu smoking.

— Entenda, Percy. Você está reencenando a Guerra de Troia aqui. Os padrões se repetem na história. Reaparecem da mesma forma que os monstros. Um grande cerco. Dois exércitos. A única diferença é que desta vez você está defendendo. Você é Troia. E você sabe o que aconteceu aos troianos, não sabe?

— Então você vai enfiar um cavalo de madeira no elevador do Empire State Building? — perguntei. — Boa sorte.

Prometeu sorriu.

— Troia foi completamente destruída, Percy. Você não quer que isso aconteça aqui. Desista, e Nova York será poupada. Suas tropas serão anistiadas. Eu, pessoalmente, garantirei sua segurança. Deixe Cronos tomar o Olimpo. Quem se importa? Tifão vai destruir os deuses de qualquer jeito.

— Certo — falei. — E eu devo acreditar que Cronos pouparia a cidade.

— Ele só quer o Olimpo — garantiu Prometeu. — A força dos deuses está ligada aos seus tronos de poder. Você viu o que aconteceu a Poseidon quando seu palácio submarino foi atacado.

Estremeci, lembrando-me do quanto meu pai parecia velho e decrépito.

— Sim — disse Prometeu com tristeza. — Sei que foi difícil para você. Quando Cronos destruir o Olimpo, os deuses vão desaparecer. Ficarão tão fracos que serão facilmente derrotados. Ele preferiria fazer isso enquanto Tifão mantém os olimpianos ocupados no oeste. Seria mais fácil. Menos vidas seriam perdidas. Mas não se engane: o máximo que você conseguirá fazer é nos retardar. Depois de amanhã Tifão chegará a Nova York, e vocês não terão a menor chance. Os deuses e o Monte Olimpo ainda serão destruídos, mas será muito mais desagradável. Muito, muito pior para você e sua cidade. De uma forma ou de outra, os titãs vão governar.

Thalia deu um soco na mesa.

— Eu sirvo a Ártemis. As Caçadoras vão lutar até o último fôlego. Percy, você não vai ficar ouvindo esse verme, vai?

Achei que Prometeu fosse liquidá-la, mas ele apenas sorriu.

— Sua coragem a distingue, Thalia Grace.

Thalia enrijeceu-se.

— Esse é o sobrenome de minha mãe. Eu não o uso.

— Como quiser — disse Prometeu casualmente, mas pude ver que ele a havia atingido.

Eu nunca nem sequer ouvira o sobrenome de Thalia. Por algum motivo, ele a fazia parecer quase normal. Menos misteriosa e poderosa.

— Seja como for — disse o titã —, vocês não precisam ser meus inimigos. Sempre fui um benfeitor da humanidade.

— Isso é um monte de bosta de Minotauro — disse Thalia. — Quando os homens ofereciam sacrifícios aos deuses, você os induzia, ardilosamente, a lhe dar a melhor porção. Você nos deu o fogo para irritar os deuses, não porque se preocupasse conosco.

Prometeu sacudiu a cabeça.

— Você não entende. Eu ajudei a dar forma à sua natureza.

Um pedaço de argila surgiu em suas mãos, remexendo-se. Ele o moldou em um bonequinho com braços e pernas. O homenzinho de argila não tinha olhos, mas começou a andar às cegas pela mesa, tropeçando nos dedos de Prometeu.

— Venho sussurrando no ouvido do homem desde o começo de sua existência. Represento sua curiosidade, seu senso aventureiro, sua inventividade. Ajude-me a salvá-los, Percy. Faça isso, e darei à humanidade um novo presente... uma revelação que permitirá um grande salto evolutivo, assim como aconteceu com o fogo. Vocês não conseguirão isso sob o domínio dos deuses. Eles nunca permitiriam. Essa poderá ser uma nova era de ouro para vocês. Ou...

Com o punho cerrado, ele esmagou o homenzinho de argila, que ficou parecendo uma panqueca.

— Oh-oh — ribombou a voz do gigante azul.

Mais adiante, no banco do parque, a empousa mostrou as presas em um sorriso.

— Percy, você sabe que os titãs e seus filhos não são todos maus — disse Prometeu. — Você conheceu Calipso.

Meu rosto ficou quente.

— Ela é diferente.

— Como? Assim como eu, ela não fez nada de errado e, no entanto, foi exilada para sempre. Simplesmente por ser filha de Atlas. Nós não somos seus inimigos. Não permita que o pior aconteça — pediu ele. — Estamos lhe oferecendo a paz.

Olhei para Ethan Nakamura.

— Você deve estar detestando isso.

— Não sei o que quer dizer.

— Se aceitarmos esse acordo, você não terá vingança. Não matará todos nós. E não é isso o que você quer?

Seu olho bom faiscou.

— Tudo o que quero é respeito, Jackson. Os deuses nunca me deram isso. Vocês queriam que eu fosse para aquele acampamento estúpido passar meu tempo espremido no chalé de Hermes porque não sou importante? Nem mesmo reconhecido?

Ele falava como Luke quando tentara me matar no bosque do acampamento quatro anos atrás. A lembrança fez minha mão doer no local em que o escorpião havia me picado.

— Sua mãe é a deusa da vingança — disse a Ethan. — Devemos ter respeito por isso?

— Nêmesis representa o equilíbrio! Quando as pessoas têm sorte demais, ela as derruba.

— E foi por isso que ela tirou seu olho?

— Foi um pagamento — grunhiu ele. — Em troca, ela me jurou que um dia eu seria o responsável pelo equilíbrio da balança do poder. Eu traria o respeito aos deuses menores. Um olho foi um preço baixo a pagar.

— Excelente mãe.

— Pelo menos ela mantém sua palavra, ao contrário dos olimpianos. Ela sempre paga o que deve... seja isso bom ou mau.

— Certo — disse eu. — Então salvei sua vida e você me pagou ajudando Cronos a se erguer. É justo.

Ethan agarrou o punho de sua espada, mas Prometeu o deteve.

— Ora, ora — disse o titã. — Estamos em uma missão diplomática.

Prometeu me observava como se tentasse entender minha raiva. Então ele assentiu, como se tivesse acabado de captar um pensamento em meu cérebro.

— Incomoda você o que aconteceu a Luke — concluiu ele. — Héstia não lhe mostrou a história completa. Talvez, se compreendesse...

O titã estendeu a mão.

Thalia gritou para me alertar, mas, antes que eu pudesse reagir, o dedo indicador de Prometeu tocou minha testa.

De repente eu estava de volta à sala de estar de May Castellan. As velas bruxuleavam no console da lareira, refletidas nos espelhos que cobriam as paredes. Pela porta da cozinha eu podia ver Thalia sentada à mesa enquanto a sra. Castellan enrolava em ataduras sua perna ferida. Annabeth, aos sete anos, estava sentada ao lado dela, brincando com uma Medusa com enchimento de feijões.

Hermes e Luke estavam afastados, na sala.

O rosto do deus parecia fluido à luz das velas, como se ele não conseguisse decidir que forma assumir. Estava vestindo roupa de corrida azul-marinho e usava Reeboks alados.

— Por que surgir agora? — perguntou Luke. Seus ombros estavam tensos, como se esperasse uma briga. — Todos esses anos eu o chamei, rezei para que você aparecesse, e nada. Você me deixou com ela. — Apontou na direção da cozinha, como se não suportasse olhar para a mãe, muito menos dizer seu nome.

— Luke, não a desrespeite — advertiu Hermes. — Sua mãe fez o melhor que pôde. Quanto a mim, eu não podia interferir em sua vida. Os filhos dos deuses devem encontrar o próprio caminho.

— Então foi para o meu próprio bem. Crescer nas ruas me defendendo sozinho, combatendo os monstros.

— Você é meu filho — disse Hermes. — Eu sabia que você seria capaz. Quando eu era apenas um bebê, saí engatinhando do berço e parti para...

— Eu não sou um deus! Pelo menos uma única vez você poderia ter dito alguma coisa. Poderia ter ajudado quando — ele respirou fundo, hesitante, baixando a voz para que ninguém na cozinha pudesse ouvir —, quando ela estava tendo um de seus ataques, me sacudindo e dizendo loucuras sobre meu destino. Quando eu me escondia no armário para que ela não me encontrasse com aqueles... aqueles olhos brilhantes. Você ao menos se importava que eu estivesse assustado? Sequer soube quando eu finalmente fugi?

Na cozinha, a sra. Castellan desandava a tagarelar, servindo refresco instantâneo a Thalia e Annabeth enquanto lhes contava histórias sobre Luke bebê. Thalia esfregava com nervosismo a perna envolta em ataduras. Annabeth olhou para a sala de estar e ergueu um biscoito queimado para que Luke o visse. Seus lábios desenharam as palavras: Podemos ir agora?

— Luke, eu me importo muito — disse Hermes devagar —, mas os deuses não devem interferir diretamente nas questões mortais. É uma de nossas Leis Antigas. Principalmente quando seu destino...

A voz dele falhou. Ele olhou para as velas como se lembrasse algo desagradável.

— O quê? — perguntou Luke. — O que tem meu destino?

— Você não deveria ter voltado — murmurou Hermes. — Isso só perturba vocês dois. No entanto, agora vejo que está crescido demais para fugir sem ajuda. Vou falar com Quíron no Acampamento Meio-Sangue e pedir-lhe que mande um sátiro buscá-lo.

— Estamos nos saindo bem sem sua ajuda — grunhiu Luke. — Agora, o que você estava dizendo sobre meu destino?

As asas nos Reeboks de Hermes bateram inquietas. Ele examinou o filho como se estivesse tentando guardar seu rosto na memória, e de repente uma sensação de frio tomou conta de mim. Percebi que Hermes sabia o que significavam os murmúrios de May Castellan. Eu não sei como, mas olhando para o resto dele tive certeza absoluta. Hermes compreendia o que um dia aconteceria a Luke, sabia que ele se tornaria mau.

— Meu filho — disse ele —, eu sou o deus dos viajantes, o deus das estradas. Se há uma coisa que sei é que você precisa trilhar o próprio caminho, embora isso me parta o coração.

— Você não me ama.

— Eu lhe asseguro que... que o amo. Vá para o acampamento. Vou providenciar que você logo tenha uma missão. Talvez possa derrotar a Hidra ou roubar as maçãs das Hespérides. Você terá a chance de ser um grande herói antes...

— Antes do quê? — A voz de Luke agora tremia. — O que foi que minha mãe viu que a deixou assim? O que vai acontecer comigo? Se você me ama, diga.

A expressão de Hermes se tornou severa.

— Eu não posso.

— Então você não se importa! — gritou Luke.

Na cozinha, a conversa cessou abruptamente.

— Luke? — chamou May Castellan. — É você? Meu menino está bem?

Luke virou-se para esconder o rosto, mas pude ver as lágrimas em seus olhos.

— Estou bem. Tenho uma nova família. Não preciso de vocês dois.

— Eu sou seu pai — insistiu Hermes.

— Um pai deve estar por perto. Eu nunca nem mesmo o conheci. Thalia, Annabeth, venham! Estamos indo!

— Meu menino, não vá! — gritou May Castellan atrás dele. — Já preparei seu almoço.

Luke saiu furiosamente pela porta, com Thalia e Annabeth correndo atrás dele. May Castellan tentou segui-los, mas Hermes a deteve.

Quando a porta de tela bateu, May desabou nos braços de Hermes e começou a tremer. Seus olhos se abriram — com aquele brilho verde —, e ela agarrou desesperadamente os ombros de Hermes.

— Meu filho — sibilou ela com a voz áspera. — Perigo. Destino terrível!

— Eu sei, meu amor — disse Hermes com tristeza. — Acredite, eu sei.

A imagem desvaneceu-se. Prometeu tirou a mão de minha testa.

— Percy? — chamou Thalia. — O que... o que foi isso?

Percebi que estava coberto de suor.

Prometeu assentiu, solidário.

— Estarrecedor, não é? Os deuses sabem o que está por vir e, no entanto, eles nada fazem, nem mesmo por seus filhos. Quanto tempo levou para que lhe contassem a sua profecia, Percy Jackson? Acha que seu pai não sabe o que vai acontecer a você?

Eu estava atônito demais para responder.

— Perrrcy — avisou Grover —, ele está manipulando sua mente. Tentando deixá-lo com raiva.

Grover podia ler as emoções; portanto, provavelmente sabia que Prometeu estava obtendo sucesso.

— Você culpa mesmo seu amigo Luke? — o titã me perguntou. — E quanto a você, Percy? Vai ser controlado pelo destino? Cronos lhe oferece um acordo muito melhor.

Cerrei os punhos. Por mais que odiasse o que Prometeu havia me mostrado, odiava muito mais Cronos.

— Eu lhe ofereço um acordo. Diga a Cronos que suspenda seu ataque, deixe o corpo de Luke Castellan e retorne aos abismos do Tártaro. Então, talvez eu não o destrua.

A empousa rosnou. Seus cabelos irromperam em chamas, mas Prometeu limitou-se a suspirar.

— Se mudar de ideia — disse ele —, tenho um presente para você.

Um vaso grego surgiu na mesa. Tinha pouco menos de um metro de altura e uns trinta centímetros de largura, e era esmaltado com desenhos geométricos em preto e branco. A tampa de cerâmica estava presa com correias de couro.

Grover gemeu quando o viu.

Thalia arquejou.

— Essa não é...

— É — disse Prometeu. — Você a reconheceu.

Olhando para o jarro, experimentei uma estranha sensação de medo, mas não tinha a menor ideia do porquê.

— Isto pertenceu à minha cunhada — explicou Prometeu. — Pandora.

Um nó formou-se em minha garganta.

— Da caixa de Pandora?

Prometeu sacudiu a cabeça.

— Não sei como essa história de caixa começou. Nunca foi uma caixa. Era um pithos, um jarro para armazenagem. Suponho que a expressão “pithos de Pandora” não surtisse o mesmo efeito, mas isso não tem importância. Sim, ela de fato abriu este jarro, que continha a maior parte dos demônios que agora assombram a humanidade: o medo, a morte, a fome, a doença.

— Não se esqueça de mim — ronronou a empousa.

— Claro — concedeu Prometeu. — A primeira empousa também estava aprisionada neste jarro e foi libertada por Pandora. Mas o que acho curioso nessa história é que Pandora sempre leva a culpa. Ela é punida por sua curiosidade. Os deuses querem que você acredite que é esta a lição: a humanidade não deve explorar. Não deve fazer perguntas. Deve fazer o que lhes dizem. Na verdade, Percy, este jarro foi uma armadilha criada por Zeus e os outros deuses. Foi uma vingança contra mim e toda a minha família: meu pobre e simples irmão, Epimeteu, e sua mulher, Pandora. Os deuses sabiam que ela abriria o jarro. E estavam dispostos a punir toda a raça humana junto conosco.

Pensei em meu sonho com Hades e Maria di Angelo. Zeus havia destruído um hotel inteiro para eliminar duas crianças semideusas — a fim apenas de salvar a própria pele, porque estava com medo de uma profecia. Havia matado uma mulher inocente e provavelmente nem perdera o sono por isso. Hades não era melhor. Não tinha poder suficiente para se vingar de Zeus, então amaldiçoara o Oráculo, condenando uma menina a um destino horrível. E Hermes... por que ele tinha abandonado Luke? Por que pelo menos não o advertiu ou tentou dar a ele uma criação melhor, para que não se tornasse mau?

Talvez Prometeu estivesse manipulando minha mente.

Mas e se ele estiver certo?, parte de mim se perguntava. Até onde os deuses são melhores que os titãs?

Prometeu bateu na tampa do jarro de Pandora.

— Apenas um espírito continuou preso aqui quando Pandora abriu o jarro.

— A esperança — falei.

Prometeu pareceu satisfeito.

— Muito bem, Percy. Elpis, o Espírito da Esperança, não abandonou a humanidade. A esperança não sai sem que lhe deem permissão. Ela só pode ser libertada pelo filho de um homem.

O titã deslizou o jarro pela mesa.

— Dou-lhe isto como um lembrete de como são os deuses — disse ele. — Fique com Elpis, se quiser. Mas se concluir que basta de destruição e sofrimento, então abra o jarro. Solte Elpis. Abra mão da esperança e eu saberei que está se rendendo. Prometo que Cronos será indulgente. Ele poupará os sobreviventes.

Olhei para o jarro e tive uma sensação ruim. Deduzi que, como eu, Pandora sofria de transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Eu nunca conseguia deixar nada de lado. Não gostava de tentação. E se essa fosse a minha escolha? Quem sabe a profecia não se resumia a manter esse jarro fechado ou abri-lo?

— Não quero essa coisa — grunhi.

—Tarde demais — disse Prometeu. — O presente já foi dado. Não pode ser levado de volta.

Ele se pôs de pé. A empousa avançou até ele e deu-lhe o braço.

— Morrain! — Prometeu chamou o gigante azul. — Estamos indo. Pegue sua bandeira.

— Oh-oh — disse o gigante.

— Nós o veremos em breve, Percy Jackson — garantiu Prometeu. — De uma forma ou de outra.

Ethan Nakamura dirigiu-me um último olhar de ódio. Então o grupo de trégua voltou-se e seguiu passeando pela alameda no Central Park, como se aquela fosse uma tarde de domingo comum e ensolarada.


QUATORZE

Porcos voam

De volta ao Plaza, Thalia me puxou de lado.

— O que foi que Prometeu lhe mostrou?

Com relutância, contei-lhe sobre a visão da casa de May Castellan. Thalia esfregou a coxa, como se estivesse se lembrando do antigo ferimento.

— Aquela foi uma noite ruim — admitiu ela. — Annabeth era tão pequena... Não creio que tenha de fato compreendido o que viu. Ela só sabia que Luke estava aborrecido.

Olhei para o Central Park pelas janelas do hotel. Pequenos incêndios ainda ardiam ao norte, mas, afora isso, a cidade parecia estranhamente em paz.

— Você sabe o que aconteceu a May Castellan? Quer dizer...

— Sei o que você quer dizer — replicou Thalia. — Eu nunca a vi ter uma, hã, crise, mas Luke me falou dos olhos acesos, das coisas estranhas que ela dizia. Ele me fez prometer que nunca contaria a ninguém. O que causou isso, eu não tenho a menor ideia. Se Luke sabia, nunca me contou.

— Hermes sabia — disse eu. — Algo fez com que May visse partes do futuro de Luke, e Hermes compreendeu o que aconteceria... que Luke se transformaria em Cronos.

Thalia franziu o cenho.

— Você não pode ter certeza disso. Lembre-se de que Prometeu estava manipulando o que você via, Percy, mostrando o que aconteceu do pior ângulo possível. Hermes amava, sim, Luke. Dava para ver só de olhar para ele. E estava lá naquela noite para conferir o estado de May. Ele cuidava dela. Não era de todo mau.

— Ainda assim não é certo — insisti. — Luke era só um garotinho. Hermes nunca o ajudou, não evitou que ele fugisse.

Thalia pôs o arco no ombro. Mais uma vez me ocorreu o quanto ela parecia mais forte agora que havia parado de envelhecer. Quase se podia ver uma aura prateada em torno dela — a bênção de Ártemis.

— Percy — disse ela —, você não pode começar a ter pena de Luke. Todos passamos por situações difíceis. Todos os semideuses. Nossos pais quase nunca estão por perto. Mas Luke fez escolhas ruins. Ninguém o forçou a isso. Na verdade... — Ela olhou no corredor, certificando-se de que estávamos sozinhos. — Estou preocupada com Annabeth. Se ela tiver de enfrentar Luke na batalha, não sei se vai conseguir. Ela sempre teve uma queda por ele.

Eu corei.

— Ela vai se sair bem.

— Não sei. Depois daquela noite, depois de sairmos da casa da mãe dele, sabe? Luke nunca mais foi o mesmo. Tornou-se irresponsável e mal-humorado, como se quisesse provar algo. Quando Grover nos encontrou e tentou nos levar para o acampamento... bem, parte do motivo por que tínhamos tantos problemas era que Luke não tomava cuidado. Ele queria provocar briga com todos os monstros com que cruzávamos. Annabeth não via isso como um problema. Luke era seu herói. Ela só compreendia que os pais dele o haviam magoado, e passou a defendê-lo em tudo. Ela ainda o defende. O que estou dizendo é... não caia na mesma armadilha. Agora Luke se entregou a Cronos. Não podemos nos dar o luxo de ser condescendentes com ele.

Olhei para os incêndios no Harlem, imaginando quantos mortais adormecidos estariam em perigo naquele exato momento por causa das escolhas erradas de Luke.

— Você tem razão — falei.

Thalia deu um tapinha em meu ombro.

— Vou ver como estão as Caçadoras, depois vou dormir um pouco antes que a noite caia. Você deveria dormir também.

— A última coisa de que preciso são mais sonhos.

— Eu sei, pode acreditar.

Sua expressão sombria fez com que eu me perguntasse com o que ela vinha sonhando. Era um problema comum entre os semideuses: quanto mais perigosa se tornava nossa situação, piores e mais frequentes ficavam nossos sonhos.

— Mas, Percy — ela continuou —, não temos como saber quando você terá outra chance de descansar. Vai ser uma noite longa... talvez nossa última noite.

Aquilo não me agradava, mas eu sabia que ela estava certa. Assenti, cansado, e lhe entreguei o jarro de Pandora.

— Faça-me um favor. Tranque isto no cofre do hotel, o.k.? Acho que sou alérgico a pithos.

Thalia sorriu.

— Feito.

Encontrei a cama mais próxima e desmaiei. Mas, evidentemente, o sono só me trouxe mais pesadelos.

Vi o palácio submarino de meu pai. O exército inimigo agora estava mais próximo, entrincheirado a apenas algumas centenas de metros dali. Os muros da fortaleza estavam completamente destruídos. O templo que meu pai havia usado como quartel-general ardia com fogo grego.

Olhei mais perto o arsenal, onde meu irmão e outros ciclopes faziam um intervalo para o almoço, comendo potes imensos de manteiga de amendoim com pedaços extragrandes (e não me pergunte que gosto isso tinha debaixo d’água, pois eu não quero saber). Enquanto eu observava, uma parede externa do arsenal explodiu. Um guerreiro ciclope cambaleou para dentro do espaço e desabou na mesa do almoço. Tyson ajoelhou-se para ajudar, mas já era tarde demais. O ciclope dissolveu-se em lodo marinho.

Gigantes inimigos se dirigiam ao buraco, e Tyson apanhou o porrete do guerreiro caído. Ele gritou algo para os companheiros ferreiros — provavelmente “Por Poseidon!” —, mas com a boca cheia de manteiga de amendoim soou mais como “HÃ EMDOM!”. Seus companheiros pegaram martelos e formões, gritaram “MANTEIGA DE AMENDOIM!” e seguiram Tyson, correndo para a batalha.

Então a cena mudou. Eu estava com Ethan Nakamura no acampamento inimigo. O que vi me fez tremer, em parte porque o exército era imenso, em parte porque reconheci o lugar.

Estávamos na região rural de New Jersey, em uma estrada destruída, ladeada por estabelecimentos comerciais em ruínas e outdoors despedaçados. Uma cerca derrubada circundava um grande pátio cheio de estátuas de cimento. A placa no alto do armazém era difícil de ler, pois as letras cursivas eram vermelhas, mas eu sabia o que estava escrito: EMPÓRIO DE ANÕES DE JARDIM DA TIA EME.

Havia anos que eu não pensava naquele lugar. Estava visivelmente abandonado. As estátuas estavam quebradas e pichadas com spray. Um sátiro de cimento — Ferdinando, tio de Grover — havia perdido o braço. Parte do telhado do armazém havia desmoronado. Numa grande placa amarela colada na porta se lia: CONDENADO.

Centenas de barracas e fogueiras cercavam a propriedade. Na maioria, o que eu via eram monstros, mas também havia alguns mercenários humanos em uniformes de combate e semideuses de armadura. Uma bandeira roxa e preta pendia do lado de fora do empório, guardada por dois enormes hiperbóreos azuis.

Ethan estava agachado diante da fogueira mais próxima. Uns poucos semideuses sentavam-se com ele, amolando as espadas. As portas do armazém se abriram e Prometeu saiu dali.

— Nakamura — chamou ele. — O mestre quer falar com você.

Ethan levantou-se com cautela.

— Algum problema?

Prometeu sorriu.

— Vai ter de perguntar a ele.

Um dos outros semideuses reprimiu um risinho.

— Foi um prazer conhecê-lo.

Exceto pelo buraco no teto, o lugar estava exatamente como eu lembrava. Estátuas de pessoas aterrorizadas congeladas em pleno grito. Na área da lanchonete, as mesas haviam sido empurradas para o canto. Entre a máquina de refrigerante e o aquecedor de pretzels havia um trono dourado. Cronos estava recostado nele, a foice no colo. Usava jeans e camiseta, e a expressão pensativa o fazia parecer quase humano — como a versão mais jovem de Luke que eu vira em meu sonho, pedindo a Hermes que lhe contasse seu destino. Então Luke viu Ethan, e seu rosto se contorceu em um sorriso muito desumano. Seus olhos dourados cintilaram.

— Bem, Nakamura. O que você achou da missão diplomática?

Ethan hesitou.

— Estou certo de que o Senhor Prometeu está mais apto a falar...

— Mas eu perguntei a você.

O olho bom de Ethan ia de um lado para o outro, observando os guardas a postos ao redor de Cronos.

— Eu... eu não creio que Jackson vá se render. Jamais.

Cronos assentiu.

— Algo mais que queira me dizer?

— N-não, senhor.

— Você parece nervoso, Ethan.

— Não, senhor. É só... Ouvi dizer que este era o covil da...

— Medusa? É, isso mesmo. Lugar adorável, não? Infelizmente, a Medusa não se reconstituiu desde que Jackson a matou; portanto não precisa ter medo de se juntar à coleção dela. Além disso, existem forças muito mais perigosas neste lugar.

Cronos olhou para um gigante lestrigão que mastigava umas batatas fritas ruidosamente. Cronos moveu a mão e o gigante ficou imóvel. Uma batata frita ficou suspensa no ar, a meio caminho entre a mão e a boca do monstro.

— Por que transformá-los em pedra — perguntou Cronos — se você pode parar o próprio tempo?

Seus olhos dourados cravaram-se no rosto de Ethan.

— Agora me conte mais uma coisa. O que aconteceu ontem à noite na Ponte de Williamsburg?

Ethan tremeu. Gotas de suor brotavam em sua testa.

— Eu... eu não sei, senhor.

— Sim, sabe, sim. — Cronos levantou-se do trono. — Quando você atacou Jackson, algo aconteceu. Algo não correu como devia. A garota, Annabeth, entrou na frente dele.

— Ela quis salvá-lo.

— Mas ele é invulnerável — disse Cronos baixinho. — Você mesmo viu isso.

— Não sei explicar. Talvez ela tenha esquecido.

— Ela esqueceu — disse Cronos. — É, deve ter sido isso. Ah, puxa, esqueci que meu amigo é invulnerável e recebi uma facada no lugar dele. Oops. Diga-me, Ethan, onde você pretendia apunhalá-lo quando atacou Jackson?

Ethan franziu o cenho. Fechou a mão como se estivesse segurando uma espada e refez o gesto.

— Não tenho certeza, senhor. Tudo aconteceu muito rápido. Eu não pretendia acertar nenhum ponto em particular.

Os dedos de Cronos tamborilaram sobre a lâmina de sua foice.

— Sei — disse ele em tom gélido. — Se sua memória melhorar, espero...

De repente o Senhor Titã estremeceu. O gigante no canto se moveu e a batata frita caiu em sua boca. Cronos cambaleou para trás e despencou no trono.

— Meu senhor? — Ethan deu um passo à frente.

— Eu... — A voz era fraca, mas por um instante era a de Luke. Então a expressão de Cronos endureceu. Ele ergueu a mão e flexionou os dedos lentamente, como se os forçasse a obedecer. — Não é nada — disse, a voz novamente metálica e fria. — Um leve desconforto.

Ethan umedeceu os lábios.

— Ele ainda está lutando contra o senhor, não é? Luke...

— Besteira — interrompeu Cronos. — Repita essa mentira e eu corto a sua língua. A alma do garoto foi destruída. Eu estou simplesmente me ajustando aos limites desta forma. Isso exige descanso. É algo irritante, mas nada mais do que um inconveniente temporário.

— Como... como quiser, meu senhor.

— Você! — Cronos apontou a foice para uma dracaena de armadura e coroa verdes. — Rainha Sess, não é?

— Sssssim, meu ssssenhor.

— Nossa surpresinha está pronta para ser acionada?

A rainha dracaena mostrou as presas.

— Ah, ssssim, meu sssssenhor. Uma sssssurpresa adorável.

— Excelente — disse Cronos. — Diga a meu irmão Hiperíon que desloque nossa tropa principal para o sul e entre no Central Park. Os meios-sangues estarão tão desbaratados que não serão capazes de se defender. Vá agora, Ethan. Esforce-se para lembrar algo mais. Conversaremos novamente depois que tivermos tomado Manhattan.

Ethan curvou-se, e meu sonho mudou uma última vez. Vi a Casa Grande do acampamento, mas era outra época. A casa estava pintada de vermelho, não de azul. Os campistas na quadra de vôlei usavam cortes de cabelo do início dos anos 90, o que provavelmente servia para manter os monstros a distância.

Quíron estava na varanda, conversando com Hermes e uma mulher, que segurava um bebê. O cabelo de Quíron estava mais curto e mais escuro. Hermes usava seu agasalho esportivo de sempre e os tênis alados de cano alto. A mulher era alta e bonita. Tinha cabelos louros, olhos brilhantes e um sorriso simpático. O bebê em seus braços se contorcia na manta azul como se o Acampamento Meio-Sangue fosse o último lugar em que desejasse estar.

— É uma honra tê-la aqui — disse Quíron à mulher, embora parecesse nervoso. — Faz muito tempo desde a última vez em que um mortal teve permissão para entrar no acampamento.

— Não a incentive — resmungou Hermes. — May, você não pode fazer isso.

Com um susto, percebi que estava vendo May Castellan. Ela não se parecia nada com a senhora que eu conhecera. Era cheia de vida — o tipo de pessoa que quando sorri contagia todos à sua volta.

— Ah, não se preocupe tanto — disse May, embalando o bebê. — Vocês precisam de um Oráculo, não precisam? O antigo está morto há, digamos, vinte anos?

— Mais do que isso — disse Quíron em tom grave.

Hermes levantou os braços, exasperado.

— Eu não lhe contei essa história para que você pudesse se candidatar. É perigoso. Quíron, diga a ela.

— É mesmo — advertiu Quíron. — Por muitos anos proibi qualquer um de tentar. Não sabemos exatamente o que aconteceu. A humanidade parece ter perdido a capacidade de abrigar o Oráculo.

— Já falamos sobre isso — disse May. — E eu sei que posso. Hermes, essa é a minha chance de fazer algo de bom. Recebi o dom da visão por algum motivo.

Eu queria gritar para que May Castellan parasse. Sabia o que estava prestes a acontecer. Finalmente compreendi como sua vida fora destruída. Mas não conseguia me mexer nem falar.

Hermes parecia mais magoado do que preocupado.

—Você não poderia se casar se viesse a se tornar o Oráculo — queixou-se. — Não poderia mais me ver.

May pousou a mão em seu braço.

— Não posso tê-lo para sempre, posso? Logo você seguirá adiante. Você é imortal.

Ele começou a protestar, mas ela pôs a mão em seu peito.

— Sabe que é verdade. Não tente me poupar. Além disso, temos um filho maravilhoso. Ainda poderei criar Luke mesmo sendo o Oráculo, certo?

Quíron pigarreou.

— Sim, mas com toda a franqueza, não sei como isso afetará o espírito do Oráculo. Uma mulher que já deu à luz um filho... Até onde eu sei, isso nunca aconteceu. Se o espírito não aceitar...

— Ele vai aceitar — insistiu May.

Não, eu queria gritar. Não vai.

May Castellan beijou o filho e entregou-o a Hermes.

— Volto logo.

Ela lhes dirigiu um último sorriso confiante e subiu os degraus.

Quíron e Hermes andavam de um lado para o outro em silêncio. O bebê se mexia.

Um clarão verde iluminou as janelas da casa. Os campistas pararam de jogar vôlei e ergueram os olhos para o sótão. O vento frio percorreu os campos de morangos.

Hermes deve tê-lo sentido também. Ele gritou:

— Não! NÃO!

Enfiou o bebê nos braços de Quíron e correu para a varanda. Antes que alcançasse a porta, a tarde ensolarada foi cortada pelo grito de terror de May Castellan.

Sentei-me tão rápido que bati com a cabeça no escudo de alguém.

— Ai!

— Desculpe, Percy. — Annabeth estava de pé diante de mim. — Vim justamente acordar você.

Esfreguei a cabeça, tentando afastar as visões perturbadoras. De repente, uma porção de coisas fazia sentido: May Castellan havia tentado se tornar o Oráculo. Ela não sabia sobre a maldição de Hades que impedia que o espírito de Delfos tomasse outro hospedeiro. Nem Quíron e Hermes. Eles não sabiam que, ao tentar assumir essa função, May enlouqueceria, atormentada por ataques em que seus olhos cintilariam com um brilho verde e ela teria vislumbres fragmentados do futuro do filho.

— Percy? — perguntou Annabeth. — O que há de errado?

— Nada — menti. — O que... o que está fazendo de armadura? Você devia estar descansando.

— Ah, eu estou bem — disse ela, embora ainda parecesse pálida. Ela mal movia o braço direito. — O néctar e a ambrosia me curaram.

— Hã-hã. Você não pode sair e lutar.

Ela me ofereceu a mão boa e me ajudou a levantar. Minha cabeça latejava. Lá fora, o céu estava púrpura e vermelho.

— Você vai precisar de cada pessoa que tiver — disse ela. — Acabei de olhar em meu escudo. Tem um exército...

— Seguindo para o sul, para o Central Park — completei. — É, eu sei.

Contei-lhe parte dos meus sonhos. Deixei de fora a visão de May Castellan, porque era perturbadora demais para ser mencionada. Também deixei de fora a especulação de Ethan sobre Luke estar lutando contra Cronos dentro de seu corpo. Não queria despertar esperanças em Annabeth.

— Acha que Ethan suspeita de seu ponto fraco? — perguntou ela.

— Não sei — admiti. — Ele não disse nada a Cronos, mas se fizer alguma ideia...

— Não podemos permitir isso.

— Vou bater na cabeça dele com mais força da próxima vez — sugeri. — Alguma ideia sobre a surpresa à qual Cronos se referiu?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não vi nada no escudo, mas não gosto de surpresas.

— Idem.

— Então — disse ela —, vai brigar comigo por ir com você?

— Não. Você me venceria mesmo.

Ela conseguiu dar uma gargalhada, o que era bom de ouvir. Peguei minha espada e fomos arregimentar as tropas.

Thalia e os chefes dos chalés estavam nos esperando no reservatório. As luzes da cidade piscavam ao crepúsculo. Acho que muitas estavam ligadas em timers. Postes de luz contornando a margem do reservatório brilhavam e faziam com que a água e as árvores parecessem ainda mais sinistras.

— Eles estão vindo — confirmou Thalia, apontando para o norte com uma flecha de prata. — Uma de minhas sentinelas avançadas acaba de informar que já cruzaram o Rio Harlem. Não havia como detê-los. O exército... — Ela encolheu os ombros. — É imenso.

— Vamos detê-los no parque — disse eu. — Grover, vocês estão preparados?

Ele assentiu.

— Mais preparados do que nunca. Se meus espíritos da natureza podem detê-los em algum lugar, este lugar é aqui.

— Sim, estamos, sim! — disse outra voz.

Um sátiro muito velho e gordo abria caminho em meio à multidão, tropeçando na própria lança. Estava vestido com uma armadura de casca de árvore que só cobria metade de sua barriga.

— Leneu? — perguntei.

— Não fique tão surpreso — bufou ele. — Eu sou um líder do Conselho, e você me disse que encontrasse Grover. Bem, eu o encontrei, e não vou deixar um mero proscrito liderar os sátiros sem a minha ajuda!

Às costas de Leneu, Grover fingia que estava prestes a vomitar, mas o velho sátiro sorria como se fosse o salvador da pátria.

— Não temam! Aqueles titãs vão ver só!

Eu não sabia se ria ou se ficava zangado, mas consegui manter a expressão inalterada.

— Hã... sim. Bem, Grover, você não estará sozinho. Annabeth e o chalé de Atena vão se posicionar aqui. Quanto a mim e... Thalia?

Ela me deu tapinhas no ombro.

— Não precisa dizer mais nada. As Caçadoras estão prontas.

Olhei para os outros chefes de chalé.

— Isso deixa vocês com uma tarefa igualmente importante. Precisam guardar as outras entradas de Manhattan. Sabem o quanto Cronos é astuto. Vai tentar nos distrair com esse imenso exército e infiltrar sorrateiramente outra tropa por outro ponto. Cabe a vocês não permitir que isso aconteça. Cada chalé já escolheu uma ponte ou um túnel?

Os chefes assentiram, sérios.

— Então, vamos — disse eu. — Boa caçada a todos!

Ouvimos o exército antes de vê-lo.

O barulho era como o de uma artilharia de canhões combinada a uma multidão em um estádio de futebol — como se todos os torcedores do Patriots na Nova Inglaterra estivessem nos atacando com bazucas.

Na extremidade norte do reservatório, a vanguarda inimiga abria caminho pelo bosque — um guerreiro de armadura dourada liderava um batalhão de gigantes lestrigões com enormes machados de bronze. Centenas de outros monstros vinham atrás.

— Em posição! — gritou Annabeth.

Seus companheiros de chalé saíram em disparada. A ideia era fazer o exército inimigo se separar a fim de contornar o reservatório. Para chegar até nós, eles teriam de percorrer as trilhas, o que significava que estariam marchando em colunas estreitas ladeadas por água.

A princípio o plano pareceu funcionar. O inimigo dividiu-se e vinha pelas margens em nossa direção. Quando estavam no meio do caminho, nossas defesas entraram em ação. A trilha se incendiou com fogo grego, incinerando instantaneamente muitos monstros. Outros corriam de um lado para o outro, envoltos em chamas verdes. Os campistas de Atena disparavam ganchos de quatro pontas contra os gigantes maiores e os derrubavam no chão.

No bosque à direita, as Caçadoras dispararam uma saraivada de flechas de prata contra a frente de inimigos, destruindo vinte ou trinta dracaenae, mas um número maior vinha marchando atrás delas. Um relâmpago retumbou e fritou um gigante lestrigão, transformando-o em cinzas, e vi que Thalia devia estar usando seus truques de filha de Zeus.

Grover pegou a flauta e tocou uma rápida melodia. Um rugido ergueu-se dos bosques de ambos os lados enquanto de cada árvore, pedra e arbusto parecia brotar um espírito. Dríades e sátiros ergueram seus porretes e atacaram. As árvores enroscavam-se nos monstros, estrangulando-os. A grama crescia em torno dos pés dos arqueiros inimigos. Pedras voavam e atingiam as dracaenae na cara.

O inimigo avançava com dificuldade. Os gigantes estraçalhavam as árvores e as náiades desapareciam à medida que suas fontes de vida eram destruídas. Cães infernais investiam contra os lobos, atirando-os para o lado. Arqueiros inimigos devolviam os disparos e uma Caçadora despencou do alto de um galho.

— Percy! — Annabeth agarrou meu braço e apontou para o reservatório.

O titã de armadura dourada não estava esperando que suas tropas avançassem pelos flancos: ele investia na nossa direção, caminhando pela água.

Uma bomba de fogo grego explodiu em cima dele, mas o titã ergueu a mão e, com a palma voltada para cima sugou do ar as chamas.

— Hiperíon — disse Annabeth, admirada. — O Senhor da Luz, titã do leste.

— Mau? — avaliei.

— Ao lado de Atlas, é o maior guerreiro titã. Nos velhos tempos, quatro titãs controlavam os quatro cantos do mundo. Hiperíon era do leste, o mais poderoso. Foi pai de Hélios, o primeiro deus do sol.

— Vou mantê-lo ocupado — prometi.

— Percy, nem mesmo você pode...

— Apenas mantenha nossas tropas juntas.

Havíamos nos organizado junto ao reservatório por um bom motivo. Concentrei-me na água e senti seu poder crescer em mim.

Avancei na direção de Hiperíon, correndo sobre a água. É, meu amigo. Nós dois podemos brincar desse jogo.

A uns cinco metros, Hiperíon ergueu a espada. Seus olhos eram exatamente como eu vira no sonho — dourados como os de Cronos, porém mais brilhantes, como miniaturas do sol.

— O pestinha, filho do deus do mar — refletiu ele. — Foi você quem aprisionou Atlas debaixo do céu de novo?

— Não foi difícil — falei. — Vocês, titãs, são quase tão brilhantes quanto minhas meias de educação física.

Hiperíon rugiu.

— Você quer algo brilhante?

O corpo dele se inflamou em uma coluna de luz e calor. Desviei os olhos, mas, ainda assim, estava cego.

Instintivamente ergui Contracorrente — na hora certa. A lâmina de Hiperíon chocou-se com a minha com um estrondo. O impacto formou um muro de água de três metros na superfície do reservatório.

Meus olhos ainda queimavam. Eu precisava apagar sua luz.

Concentrei-me na onda gigantesca e forcei-a a quebrar. Um instante antes do impacto, saltei para o ar em um jato de água.

— AHHHHH! — As ondas se quebraram contra Hiperíon e ele afundou, extinguindo sua luz.

Pousei na superfície do reservatório justamente enquanto o titã tentava se pôr de pé. Sua armadura dourada pingava água. Seus olhos não cintilavam mais, mas ainda tinham uma expressão homicida.

— Você vai queimar, Jackson! — rugiu ele.

Nossas espadas tornaram a se encontrar, e o ar ficou carregado de ozônio.

A batalha prosseguia à nossa volta. Do lado direito, Annabeth liderava um ataque com seus irmãos. À esquerda, Grover e os espíritos da natureza estavam se reagrupando, emaranhando os inimigos em arbustos e ervas daninhas.

— Chega de joguinhos — disse-me Hiperíon. — Vamos lutar em terra.

Eu estava prestes a fazer algum comentário inteligente, como “Não”, quando o titã deu um grito. Uma parede de força me lançou para o alto — exatamente o mesmo truque que Cronos havia feito na ponte. Recuei no ar uns trezentos metros até cair no chão. Não fosse por minha invulnerabilidade, teria quebrado todos os ossos do corpo.

Fiquei de pé, gemendo.

— Eu realmente odeio quando vocês, titãs, fazem isso.

Hiperíon aproximou-se de mim numa velocidade ofuscante.

Concentrei-me na água, buscando forças.

Hiperíon atacou. Ele era poderoso e rápido, mas parecia não conseguir acertar um golpe. O chão em torno de seu pés continuava a irromper em chamas, mas eu as extinguia com a mesma rapidez.

— Pare! — rugiu o titã. — Pare esse vento!

Eu não sabia a que ele estava se referindo. Estava muito ocupado lutando.

Hiperíon tropeçou, como tivesse sido empurrado. A água atingiu seu rosto, ferroando-lhe os olhos. O vento aumentou, e Hiperíon cambaleou para trás.

— Percy! — gritou Grover, pasmo. — Como você está fazendo isso?

Fazendo o quê?, pensei.

Então olhei para baixo e percebi que estava no centro de um furacão particular. Nuvens de vapor turbilhonavam à minha volta, ventos tão poderosos que fustigavam Hiperíon e varriam a relva em um raio de vinte metros. Guerreiros inimigos atiravam dardos contra mim, mas a tempestade os desviava.

— Maravilha — murmurei. — Mas eu quero mais!

Raios cruzaram o ar ao meu redor. As nuvens escureceram e a chuva passou a cair com mais velocidade. Aproximei-me de Hiperíon e o derrubei.

— Percy! — Grover tornou a gritar. — Traga-o aqui!

Eu brandia a espada e atacava, deixando que meus reflexos assumissem o comando. Hiperíon mal conseguia se defender. Seus olhos continuavam tentando se acender, mas o furacão extinguia as chamas.

Eu não poderia manter uma tempestade como aquela para sempre. Já sentia meus poderes enfraquecendo. Num último esforço, empurrei Hiperíon pelo campo, até onde Grover o esperava.

— Ninguém vai brincar comigo! — berrou Hiperíon.

Ele conseguiu se levantar outra vez, mas Grover levou a flauta de bambu aos lábios e começou a tocar. Leneu juntou-se a ele. No bosque, todos os sátiros começaram a tocar a canção — uma melodia estranha, como o som de um riacho fluindo sobre pedras. O solo se rompeu aos pés de Hiperíon. Raízes retorcidas envolveram-lhe as pernas.

— O que é isto? — protestou ele. Tentou livrar-se das raízes, mas ainda estava fraco. As raízes engrossaram até que ele parecia estar usando botas de madeira. — Parem com isso! — gritou ele. — Sua magia silvestre não é páreo para um titã!

Mas, quanto mais ele lutava, mais rápido as raízes cresciam. Elas se enroscaram em seu corpo, engrossando e enrijecendo até se transformarem em madeira. A armadura dourada do titã incorporou-se à madeira, e tudo se tornou um grande tronco.

A música continuou. As tropas de Hiperíon recuaram, assombradas, enquanto seu líder era absorvido. Ele esticou os braços, que se transformaram em galhos, de cujas ramificações menores brotaram folhas. A árvore foi ficando mais alta e robusta, até que somente o rosto do titã estava visível no meio do tronco.

— Vocês não podem me aprisionar! — gritou ele. — Eu sou Hiperíon! Eu sou...

A casca da árvore cobriu seu rosto.

Grover tirou a flauta da boca.

— Você deu uma árvore muito legal.

Vários sátiros desmaiaram de exaustão, mas tinham feito um bom trabalho. O senhor titã estava completamente encapsulado em um enorme bordo. O tronco tinha pelo menos uns sete metros de diâmetro, a copa tão alta quanto a mais alta do parque. Aquela árvore poderia ter estado ali por séculos.

O exército do titã começou a bater em retirada. Um viva ergueu-se da equipe de Atena, mas nossa vitória durou pouco.

Porque nesse exato momento Cronos deu início à sua surpresa.

— RIIIIII!

O grito ecoou por toda a parte alta de Manhattan. Tanto semideuses quanto monstros ficaram imóveis, aterrorizados.

Grover me lançou um olhar de pânico.

— Por que isso soa como... Não pode ser!

Eu sabia o que ele estava pensando. Dois anos antes havíamos recebido um “presente” de Pã: um enorme javali que nos carregou por todo o Sudeste (depois de tentar nos matar). O javali tinha um guincho semelhante, mas o que ouvíamos agora parecia mais agudo, mais esganiçado, quase como... como se o javali tivesse uma namorada furiosa.

— RIIIIIIII!

Uma imensa criatura cor-de-rosa planava sobre o reservatório — um pesadelo dirigível, digno do Desfile do Dia de Ação de Graças da Macy’s, só que com asas.

— Uma porca! — gritou Annabeth. — Procurem abrigo!

Os semideuses se dispersaram quando a porca alada atacou violentamente. As asas eram da cor das de um flamingo, o que combinava perfeitamente com sua pele, mas foi difícil pensar nela como algo bonitinho quando seus cascos se chocaram com o solo, errando por pouco um dos irmãos de Annabeth. A porca pisoteou de um lado para o outro, arrancou dois mil metros quadrados de árvores e arrotou uma nuvem de gás tóxico. Em seguida, levantou voo outra vez, descrevendo um círculo e preparando-se para um novo ataque.

— Não me diga que essa coisa é da mitologia grega — queixei-me.

— Receio que sim — disse Annabeth. — A porca Camoniana. Ela aterrorizou cidades gregas há muito tempo.

— Deixe-me adivinhar — disse eu. — Hércules a derrotou.

— Não — replicou Annabeth. — Até onde eu sei, nenhum herói jamais a derrotou.

— Perfeito — murmurei.

O exército do titã estava se recuperando do susto. Creio que perceberam que a porca não estava atrás deles.

Tínhamos apenas segundos antes que eles estivessem prontos para lutar, e nossas tropas ainda estavam tomadas pelo pânico. Sempre que a porca arrotava, os espíritos da natureza de Grover gritavam e voltavam a desaparecer em suas árvores.

— Aquela porca tem de dar o fora. — Peguei um gancho de um dos irmãos de Annabeth. — Vou cuidar dela. Vocês segurem o restante dos inimigos. Forcem-nos a recuar!

— Mas, Percy — disse Grover —, e se não conseguirmos?

Vi o quanto ele estava cansado. A magia de fato o havia esgotado. Annabeth não parecia muito melhor, combatendo com um ferimento grave no ombro. Eu não sabia como as Caçadoras estavam se saindo, mas o flanco direito do exército inimigo agora estava entre elas e nós.

Não queria abandonar meus amigos em condições tão ruins, mas aquela porca era a ameaça maior. Ela destruiria tudo: edifícios, árvores, mortais adormecidos. Precisava ser detida.

— Recuem se precisarem — disse eu. — Mas tentem retardá-lo. Volto o mais rápido que puder.

Antes que eu pudesse mudar de ideia, girei o gancho como um laço. Quando a porca desceu para seu próximo ataque, eu o atirei com toda a minha força. O gancho se enrolou na base da asa da porca, que guinchou de fúria e deu uma guinada, arrastando a corda e a mim para o céu.

Se você está indo do Central Park para o centro da cidade, meu conselho é que vá de metrô. Porcos voadores são mais rápidos, mas bem mais perigosos.

A porca passou voando por cima do Plaza, seguindo para o cânion da Quinta Avenida. Meu plano brilhante era subir pela corda e montar nas costas da porca. Infelizmente, eu estava ocupado demais balançando de um lado para o outro e me esquivando dos postes de luz e das laterais dos edifícios.

Também aprendi o seguinte: uma coisa é subir por uma corda na aula de educação física; outra, completamente diferente, é subir por uma corda presa à asa em movimento de um porco voando a 160km/h.

Ziguezagueamos por vários quarteirões e continuamos seguindo para o sul sobre a Park Avenue.

Chefe! Ei, chefe! Pelo canto do olho vi Blackjack voando perto de nós, disparando para um lado e para o outro a fim de evitar as asas da porca.

— Cuidado! — eu lhe disse.

Salte!, relinchou Blackjack. Eu posso pegá-lo... provavelmente.

Não era muito tranquilizador. O terminal Grand Central estava à nossa frente. Acima da entrada principal erguia-se a estátua gigante de Hermes, que imagino não fora ativada por ser alta demais. Eu voava bem na direção dele, a uma velocidade capaz de esmagar um semideus.

— Fique alerta! — disse eu a Blackjack. — Tive uma ideia.

Ah, odeio suas ideias.

Lancei-me para a frente com toda a minha força. Em vez de me chocar contra a estátua de Hermes, dei a volta nela, enrolando a corda sob seus braços. Pensei que assim fosse amarrar a porca, mas havia subestimado a força de um suíno de trinta toneladas em pleno voo. Assim que a porca arrancou a estátua do pedestal, soltei a corda. Hermes foi dar um passeio, tomando meu lugar como passageiro da porca, e eu despenquei em queda livre.

Naquela fração de segundo pensei no tempo em que mamãe costumava trabalhar numa doceria da Grand Central. Pensei no quanto seria ruim se eu acabasse como uma mancha de gordura na calçada.

Então uma sombra passou debaixo de mim e bum — eu estava nas costas de Blackjack. Não foi a aterrissagem mais confortável. Na verdade, quando gritei “AI!” minha voz estava uma oitava acima do habitual.

Desculpe, chefe, murmurou Blackjack.

— Sem problemas — guinchei. — Siga aquela porca!

A porca havia dobrado a direita na 42 Leste e voava de volta para a Quinta Avenida. Quando sobrevoava os telhados, pude ver incêndios aqui e ali pela cidade. Parecia que meus amigos estavam enfrentando dificuldades. Cronos atacava em várias frentes. Mas, no momento, eu tinha meus próprios problemas.

A estátua de Hermes ainda estava em sua coleira. Ia batendo nos edifícios e girando. A porca passou sobre um prédio comercial, e Hermes foi de encontro a uma caixa-d’água no telhado, lançando água e madeira para todos os lados.

Então algo me ocorreu.

— Aproxime-se dela — disse eu a Blackjack.

Ele relinchou, protestando.

— Só a uma distância que dê para eu gritar e ela ouvir — disse eu. — Preciso falar com a estátua.

Agora tenho certeza de que você pirou, chefe, disse Blackjack, mas ele fez o que pedi. Quando estava bem perto para ver o rosto da estátua com clareza, gritei:

— Olá, Hermes! Sequência de comando: Dédalo Vinte e Três. Mate Porcos Voadores! Iniciar Ativação!

Imediatamente a estátua moveu as pernas. Pareceu confusa ao perceber que não estava mais no topo do Grand Central Terminal, mas sim dando um passeio pelo céu na ponta de uma corda puxada por uma grande porca voadora. Ela chocou-se com a lateral de um edifício de tijolos, atravessando-a, o que, acho, deixou-a um pouco furiosa. Ela sacudiu a cabeça e começou a subir pela corda.

Olhei para a rua lá embaixo. Estávamos nos aproximando da biblioteca pública, com os grandes leões de mármore ladeando a escada. De repente, ocorreu-me uma ideia esquisita: será que estátuas de pedra também podiam ser autômatos? Parecia um tiro no escuro, mas...

— Mais rápido! — pedi a Blackjack. — Fique na frente da porca. Deboche da cara dela!

Hã, chefe...

— Confie em mim — disse eu. — Eu posso fazer isso... provavelmente.

Ah, está certo. Goze com a cara do cavalo.

Blackjack disparou. Ele podia ser muito veloz quando queria. Ficou na frente da porca, que a essa altura tinha um Hermes de metal nas costas.

Blackjack relinchou: Você tem cheiro de presunto! E atingiu a porca no focinho com os cascos traseiros, mergulhando em seguida. A porca gritou de raiva e o seguiu.

Disparamos na direção da escadaria frontal da biblioteca. Blackjack reduziu a velocidade o suficiente para que eu saltasse, então continuou voando para a entrada principal.

— Leões! Sequência de comando: Dédalo Vinte e Três. Mate Porcos Voadores! Iniciar Ativação! — gritei.

Os leões se levantaram e me olharam. Provavelmente pensaram que eu estava zombando deles. Mas nesse exato momento:

— RIIIIIII!

O monstro maciço e cor-de-rosa aterrissou com um baque, quebrando a calçada. Os leões o fitaram, sem acreditar na sua sorte, e saltaram sobre ele. Ao mesmo tempo, uma estátua de Hermes muito dilapidada pulou na cabeça da porca e começou a golpeá-la impiedosamente com um caduceu. Aqueles leões tinham garras terríveis.

Saquei Contracorrente, mas não havia muito que pudesse fazer. A porca desintegrou-se diante dos meus olhos. Eu quase tive pena dela. Torci para que encontrasse o porco dos seus sonhos lá no Tártaro.

Quando o monstro havia se transformado por completo em pó, os leões e a estátua de Hermes olharam à sua volta, confusos.

— Agora vocês podem defender Manhattan — eu lhes disse, mas eles pareceram não ouvir.

Dispararam pela Park Avenue, e imaginei que fossem continuar procurando porcos voadores até que alguém os desativasse.

Ei, chefe, disse Blackjack. Podemos fazer uma pausa para comer uma rosquinha?

Limpei o suor da minha testa.

— Eu bem que queria, grandão, mas a luta continua.

Na verdade, eu podia ouvi-la chegando mais perto. Meus amigos precisavam de ajuda. Saltei nas costas de Blackjack e voamos para o norte, na direção do som das explosões.


QUINZE

Quíron dá uma festa

Midtown era uma zona de guerra. Sobrevoamos pequenos conflitos por toda parte. Um gigante arrancava árvores no Bryant Park, enquanto dríades arremessavam nozes nele. Diante do Waldorf Astoria, uma estátua de bronze de Benjamin Franklin surrava um cão infernal com um jornal enrolado. Um trio de campistas de Hefesto lutava contra um pelotão de dracaenae no meio do Rockefeller Center.

Fiquei tentado a parar e ajudar, mas pela fumaça e pelo barulho dava para ver que a ação de verdade havia se deslocado mais para o sul. Nossas defesas estavam desmoronando. O inimigo estava se aproximando do Empire State Building.

Fizemos uma rápida varredura da área ao redor. As Caçadoras haviam disposto uma linha defensiva na Rua 37, apenas três quadras ao norte do Olimpo. A leste da Park Avenue, Jake Mason e outros campistas de Hefesto lideravam um exército de estátuas contra o inimigo. A oeste, o chalé de Deméter e os espíritos da natureza de Grover haviam transformado a Sexta Avenida em uma selva que enredava um esquadrão de semideuses de Cronos. O sul estava livre por ora, mas os flancos do exército inimigo estavam dando meia-volta. Mais alguns minutos e estaríamos totalmente cercados.

— Temos de pousar onde mais precisam de nós — murmurei.

Isso é em todo lugar, chefe.

Avistei a sudoeste uma bandeira cinza familiar com uma coruja pintada, na Rua 33 com o túnel da Park Avenue. Annabeth e dois de seus irmãos continham um gigante hiperbóreo.

— Lá! — disse eu a Blackjack.

Ele mergulhou na direção da batalha.

Saltei de suas costas e aterrissei na cabeça do gigante. Quando o monstro olhou para cima, deslizei pelo seu rosto, esmagando-lhe o nariz com o escudo.

— RÁÁÁÁÁ! — O gigante cambaleou para trás, o sangue azul escorrendo por suas narinas.

Toquei a calçada já correndo. O hiperbóreo soltou uma baforada, formando uma nuvem de névoa branca, e a temperatura caiu. O lugar onde eu saltara agora estava coberto de gelo, e eu, por uma camada branca como açúcar sobre uma rosquinha.

— Ei, feioso! — gritou Annabeth.

Esperava que ela estivesse falando com o gigante, não comigo.

O homem azul berrou e voltou-se para ela, expondo a parte posterior das pernas desprotegidas. Investi e o espetei atrás do joelho.

— AAAAH! — O hiperbóreo vergou para a frente.

Esperei que ele se virasse, mas ele congelou. E com isso quero dizer que ele, literalmente, se transformou em gelo. Partindo do ponto em que eu o havia espetado, surgiram em seu corpo rachaduras, que foram ficando mais longas e mais largas, até que o gigante desmoronou em uma montanha de cacos azuis.

— Obrigada. — Annabeth estremeceu, tentando recuperar o fôlego. — A porca?

— Virou costeleta — respondi.

— Ótimo. — Ela flexionou o ombro. Obviamente, o ferimento ainda a incomodava, mas ela viu minha expressão e revirou os olhos. — Estou bem, Percy. Venha! Ainda nos restam muitos inimigos!

Ela estava certa. A hora seguinte é uma lembrança obscura. Lutei como nunca havia lutado antes — investindo contra legiões de dracaenae, derrubando dezenas de telquines a cada golpe, destruindo empousai e nocauteando semideuses inimigos. Independentemente de quantos eu derrotasse, outros tomavam seu lugar.

Annabeth e eu corremos de quarteirão em quarteirão, tentando auxiliar nossas defesas. Muitos de nossos amigos jaziam caídos nas ruas, feridos. Muitos estavam desaparecidos.

À medida que a noite transcorria e a lua ficava mais alta no céu, fomos empurrados para trás metro a metro, até estarmos todos a apenas uma quadra do Empire State Building. Num momento, Grover estava perto de mim, batendo na cabeça de mulheres cobras com seu porrete. Então ele desaparecia na multidão, e era Thalia que estava ao meu lado, fazendo os monstros recuarem com o poder de seu escudo mágico. A sra. O’Leary surgiu saltitando do nada, pegou um gigante lestrigão na boca e lançou-o no ar como um frisbee. Annabeth usava seu boné de invisibilidade para passar sorrateiramente por trás das linhas inimigas. Sempre que um monstro se desintegrava sem nenhuma razão aparente e com uma expressão de surpresa na cara, eu sabia que Annabeth passara por ali.

Mas ainda não era suficiente.

— Mantenham as posições! — gritou Katie Gardner de algum ponto à minha esquerda.

O problema é que havia bem poucos de nós para manter qualquer coisa. A entrada para o Olimpo estava uns sete metros atrás de mim. Um círculo de bravos semideuses, Caçadoras e espíritos da natureza guardavam as portas. Eu brandia a espada e golpeava, destruindo tudo em meu caminho, mas mesmo eu estava ficando cansado. Além do mais, não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

Na retaguarda das tropas inimigas, algumas quadras para leste, uma luz brilhante começou a reluzir. Pensei que fosse o sol nascente. Então percebi que Cronos vinha em nossa direção em uma carruagem dourada. Uma dúzia de gigantes lestrigões carregava tochas diante dele. Dois hiperbóreos carregavam suas bandeiras pretas e roxas. O Senhor dos Titãs parecia bem-disposto e descansado, seus poderes na capacidade máxima. Avançava lentamente, deixando que eu me consumisse.

Annabeth apareceu ao meu lado.

— Precisamos recuar para a entrada. Defendê-la a todo custo!

Ela tinha razão. Eu estava prestes a ordenar uma retirada quando ouvi a trompa de caça.

O som atravessava o ruído da batalha como um alarme de incêndio. Um coro de trompas respondeu, ecoando por todo canto nos edifícios de Manhattan.

Olhei para Thalia, mas ela simplesmente franziu a testa.

— Não são as Caçadoras — assegurou. — Estamos todas aqui.

— Então, quem?

As trompas soaram mais alto. Eu não sabia dizer de onde estavam vindo por causa do eco, mas parecia que um exército inteiro se aproximava.

Eu receava que fossem mais inimigos, mas as tropas de Cronos pareciam tão confusas quanto nós. Gigantes baixavam seus porretes. Dracaenae silvavam. Até mesmo a guarda de honra de Cronos parecia inquieta.

Então, à nossa esquerda, uma centena de monstros gritou ao mesmo tempo. O flanco norte de Cronos inteiro avançou. Pensei que estivéssemos liquidados, mas eles não atacaram. Correram, passando por nós, e foram de encontro a seus aliados do sul.

Uma nova explosão de trompas sacudiu a noite. O ar tremulava. Em um movimento indistinto, toda uma cavalaria surgiu como se caísse do céu na velocidade da luz.

— É, benzinho! — gemeu uma voz. — É HORA DA FESTA!

Uma chuva de flechas voou sobre nossas cabeças, caindo sobre os inimigos e pulverizando centenas de demônios. Mas não eram flechas comuns. Eram flechas que assoviavam ao voar, fazendo um som parecido com “UÍÍÍÍÍÍ!”. Algumas tinham cata-ventos presos a elas. Outras tinham luvas de boxe no lugar da ponta.

— Centauros! — gritou Annabeth.

O exército dos Pôneis de Festa explodiu entre nós num tumulto de cores: camisas com estampas tie-dye, perucas afro multicoloridas, enormes óculos de sol e rostos com pintura de guerra. Alguns tinham slogans rabiscados em seus flancos, como CAVALOS ARRASAM ou CRONOS É UM BOBALHÃO.

Centenas deles tomaram a quadra. Meu cérebro não conseguia processar tudo o que eu via, mas eu sabia que se eu fosse o inimigo, estaria correndo.

— Percy! — gritou Quíron acima do mar de centauros selvagens. Ele estava vestido com armadura da cintura para cima, o arco na mão, e sorria de satisfação. — Desculpe por chegarmos tarde!

— CARA! — gritou outro centauro. — Deixe a conversa para depois. ACABE COM OS MONSTROS AGORA!

Ele carregou uma pistola de paintball de cano duplo e disparou contra um cão infernal inimigo, tingindo-o de rosa-pink. A tinta deveria estar misturada a pó de bronze celestial ou algo semelhante, porque assim que ela atingiu e se espalhou pelo cão infernal, o monstro gritou e se dissolveu em uma poça rosa e preta.

— PÔNEIS DE FESTA! — gritou um centauro. — SUL DA FLÓRIDA!

Em algum ponto do outro lado do campo de batalha, uma voz fanhosa gritou de volta:

— DIVISÃO CORAÇÃO DO TEXAS!

— O HAVAÍ ARRASA! — gritou uma terceira.

Era a coisa mais linda que eu já vira. O exército inteiro do titã fez meia-volta e fugiu, empurrado por uma enchente de bolas de tinta, flechas, espadas e tacos de beisebol de borracha. Os centauros pisoteavam tudo em seu caminho.

— Parem de correr, seu bando de tolos! — gritou Cronos. — Fiquem e AJAAAMM!

Esta última parte foi por causa de um gigante hiperbóreo em pânico que tropeçou para trás e caiu sentado em cima dele. O Senhor do Tempo desapareceu sob um traseiro azul gigante.

Nós os fizemos recuar várias quadras até que Quíron gritou:

— PAREM! Vocês prometeram. PAREM!

Não foi fácil, mas por fim a ordem foi transmitida pelas fileiras de centauros, e eles começaram a voltar, deixando o inimigo fugir.

— Quíron é esperto — disse Annabeth, enxugando o suor do rosto. — Se os perseguirmos, ficaremos dispersos demais. Precisamos nos reagrupar.

— Mas o inimigo...

— Eles não estão derrotados — concordou ela. — Mas a aurora está chegando. Pelo menos ganhamos algum tempo.

Eu não gostava de recuar, mas sabia que ela estava certa. Observei os últimos telquines fugindo precipitadamente na direção do Rio East. Então, relutante, fiz meia-volta e segui na direção do Empire State Building.

Delimitamos um perímetro de duas quadras, com uma tenda de comando no Empire State Building. Quíron informou-nos que os Pôneis de Festa haviam enviado divisões de quase todos os estados da União: quarenta da Califórnia, duas de Rhode Island, trinta do Illinois... Por alto, um total de quinhentos havia respondido ao seu chamado, mas, mesmo com tantos assim, não podíamos defender mais do que algumas quadras.

— Cara — disse um centauro de nome Larry, com uma camiseta que o identificava como GRANDE CHEFE MÁXIMO, FILIAL DO NOVO MÉXICO —, isso foi mais divertido do que nossa última convenção em Vegas!

— É — disse Owen, de Dakota do Sul. Ele usava uma jaqueta de couro preta e um antigo capacete do exército, da Segunda Guerra Mundial. — Nós acabamos com eles!

Quíron deu um tapinha nas costas de Owen.

— Vocês fizeram bonito, meus amigos, mas não sejam descuidados. Cronos nunca deve ser subestimado. Agora, por que não vão à lanchonete na 33 Oeste tomar o café da manhã? Ouvi dizer que a divisão de Delaware encontrou um estoque de root beer.

— Root beer! — Eles quase pisotearam uns aos outros ao sair galopando.

Quíron sorriu. Annabeth o abraçou, e a sra. O’Leary lambeu seu rosto.

— Argh — grunhiu ele. — Chega disso, cachorra. Tá, eu estou feliz em vê-la também.

— Quíron, obrigado — disse eu. — Quero dizer, vocês salvaram o dia.

Ele deu de ombros.

— Lamento ter demorado tanto. Os centauros viajam velozmente, vocês sabem. Podemos vencer qualquer distância galopando. No entanto, reunir todos os centauros não foi tarefa fácil. Os Pôneis de Festa não sá lá muito organizados.

— Como vocês conseguiram transpor as defesas mágicas em torno da cidade? — perguntou Annabeth.

— Elas nos retardaram um pouco — admitiu Quíron —, mas acho que se destinam principalmente a impedir a entrada de mortais. Cronos não quer humanos insignificantes se interpondo no caminho de sua grande vitória.

— Então talvez outros reforços possam passar — disse eu, esperançoso.

Quíron alisou a barba.

— Talvez, embora o tempo seja curto. Assim que Cronos se recuperar, ele vai atacar outra vez. Sem o elemento surpresa do nosso lado...

Entendi o que ele queria dizer. Cronos não estava derrotado. De jeito nenhum. Eu torcia para que ele tivesse sido esmagado debaixo do traseiro daquele gigante hiperbóreo, mas sabia que isso não tinha acontecido. Ele voltaria, no mais tardar esta noite.

— E Tifão? — perguntei.

O rosto de Quíron tornou-se sombrio.

— Os deuses estão ficando cansados. Dioniso foi posto fora de combate ontem. Tifão espatifou sua carruagem, e o deus do vinho caiu em algum ponto dos Montes Apalaches. Ninguém o viu desde então. Hefesto também está fora de ação. Foi arremessado da batalha com tamanha força que criou um novo lago na Virgínia Ocidental. Ele vai ficar bem, mas não a tempo de voltar a lutar. Os outros ainda estão lutando. Conseguiram retardar a aproximação de Tifão. Mas o monstro não pode ser detido. Vai chegar a Nova York aproximadamente a esta hora, amanhã. Assim que ele e Cronos juntarem forças...

— Então que chance nós temos? — perguntei. — Não vamos conseguir resistir mais um dia.

— Vamos ter de conseguir — afirmou Thalia. — Vou providenciar para que novas armadilhas sejam instaladas no perímetro urbano.

Ela parecia exausta. Sua jaqueta estava suja de fuligem e poeira de monstro, mas ela conseguiu se pôr de pé e sair cambaleando.

— Eu vou ajudá-la — decidiu Quíron. — Preciso me certificar de que meus companheiros não se excedam demais na root beer.

Pensei que “se exceder demais” resumia bastante bem os Pôneis de Festa, mas Quíron partiu a meio-galope, deixando-me sozinho com Annabeth.

Ela limpou o muco viscoso dos monstros de sua faca. Eu já a vira fazer aquilo centenas de vezes, mas nunca pensara no motivo de ela se preocupar tanto com aquela lâmina.

— Pelo menos sua mãe está bem — disse eu.

— Se lutar contra Tifão é estar bem... — Ela me olhou nos olhos. — Percy, mesmo com a ajuda dos centauros, estou começando a achar...

— Eu sei. — Tinha um mau pressentimento de que essa podia ser nossa última chance de conversar e sentia que havia um milhão de coisas que não tinha dito a ela. — Ouça, teve umas... umas visões que Héstia me mostrou.

— Sobre Luke?

Talvez fosse apenas uma dedução óbvia, mas tive a impressão de que Annabeth sabia o que eu vinha ocultando. Talvez ela viesse tendo seus próprios sonhos.

— É — falei. — Você, Thalia e Luke. O primeiro encontro de vocês. E seu primeiro encontro com Hermes.

Annabeth guardou a faca de volta na bainha.

— Luke prometeu que nunca deixaria que me machucassem. Ele disse... disse que seríamos uma nova família... e que seria melhor do que a dele.

Seus olhos me lembraram aquela garotinha de sete anos no beco — zangada, assustada, desesperada por um amigo.

— Thalia falou comigo mais cedo — disse eu. — Ela teme...

— Que eu não possa enfrentar Luke — completou ela, infeliz.

Fiz que sim com a cabeça.

— Mas tem algo mais que você precisa saber: Ethan Nakamura parecia pensar que Luke ainda estava vivo dentro de seu corpo, talvez até lutando contra Cronos pelo controle.

Annabeth tentou esconder, mas eu quase podia ver sua mente trabalhando nas possibilidades, talvez começando a ter esperanças.

— Eu não queria lhe contar — admiti.

Ela ergueu os olhos para o Empire State Building.

— Percy, durante muito tempo da minha vida eu sentia como se tudo estivesse mudando o tempo todo. Eu não tinha ninguém em quem confiar.

Assenti. Isso era algo que a maior parte dos semideuses podia compreender.

— Fugi de casa quando tinha sete anos — contou ela. — Então, com Luke e Thalia, pensei que tivesse encontrado uma família, mas ela se desmantelou quase imediatamente. O que estou dizendo... é que odeio quando as pessoas me decepcionam, quando as coisas são temporárias. Acho que é por isso que quero ser arquiteta.

— Para construir algo permanente — disse eu. — Um monumento que dure mil anos.

Ela sustentou meu olhar.

— Acho que isso, mais uma vez, se enquadra em meu defeito fatal.

Há alguns anos, no Mar dos Monstros, Annabeth havia me contado que seu maior defeito era o orgulho — acreditar que podia consertar qualquer coisa. Eu chegara a ter um vislumbre de seu desejo mais profundo, mostrado a ela pela magia das sereias. Annabeth havia imaginado sua mãe e seu pai juntos, diante de uma Manhattan recém-construída, projetada por ela mesma. E Luke também estava lá — novamente do lado do bem, dando-lhe as boas-vindas.

— Acho que entendo como se sente — falei. — Mas Thalia tem razão. Luke já traiu você muitas vezes. Ele era mau mesmo antes de Cronos. Não quero que ele a magoe mais.

Annabeth franziu os lábios. Dava para ver que estava tentando não se zangar.

— E você vai entender se eu continuar tendo esperanças de que existe uma chance de você estar errado.

Desviei os olhos. Tinha a sensação de ter tentado tudo que podia, mas isso não fez com que eu me sentisse melhor.

Do outro lado da rua, os campistas de Apolo haviam montado um hospital de campanha para cuidar dos feridos — dezenas de campistas e praticamente o mesmo número de Caçadoras. Eu os observava trabalhando e pensava em nossas escassas chances de defender o Monte Olimpo...

E, de repente, eu não estava mais ali.

Encontrava-me em um bar de segunda, comprido, com paredes negras, placas de néon e um monte de adultos festejando. Numa faixa pendurada no bar se lia: FELIZ ANIVERSÁRIO, BOBBY EARL. Música country soava nos alto-falantes. Caras grandalhões de jeans e camisas de trabalho lotavam o bar. Garçonetes carregavam bandejas de bebidas e gritavam umas com as outras. Era o tipo de lugar ao qual minha mãe nunca me deixaria ir.

Eu estava enfiado no fundo do bar, perto dos banheiros (que não cheiravam muito bem) e de algumas máquinas antigas de videogame.

— Ah, ótimo, você está aqui — disse o homem na máquina de Pac-Man. — Vou querer uma Coca Diet.

Era um sujeito gorducho, com uma camisa de estampa de pele de leopardo, short roxo, tênis de corrida vermelhos e meias pretas, o que não permitia que ele passasse despercebido. Seu nariz era muito vermelho. Uma atadura envolvia seus cabelos negros encaracolados, como se ele estivesse se recuperando de um traumatismo.

Eu pisquei.

— Sr. D?

Ele suspirou, sem tirar os olhos do jogo.

— Francamente, Peter Johnson, quanto tempo vai levar para que você me reconheça de imediato?

— Provavelmente, o mesmo tempo que vai levar para o senhor aprender meu nome — murmurei. — Onde estamos?

— Ora, na festa de aniversário de Bobby Earl — respondeu Dioniso. — Em algum lugar da adorável América rural.

— Pensei que Tifão o tivesse arremessado do céu. Disseram que o senhor fez uma aterrissagem forçada.

— Sua preocupação é tocante. Eu de fato fiz uma aterrissagem forçada. Foi muito doloroso. Na verdade, parte de mim ainda está enterrada debaixo de trinta metros de entulho em uma mina de carvão abandonada. Vão ser necessárias várias horas até que eu tenha força suficiente para me restabelecer. Mas, nesse meio-tempo, parte da minha consciência está aqui.

— Em um bar, jogando Pac-Man.

— Hora da diversão — disse Dioniso. — Você, certamente, deve ter ouvido falar disso. Onde quer que haja uma festa, minha presença é evocada. Por isso, posso existir em muitos lugares diferentes ao mesmo tempo. O único problema foi encontrar uma festa. Não sei se você está ciente de como as coisas estão sérias fora de sua pequena bolha de segurança em Nova York...

— Pequena bolha de segurança?

— ... mas acredite em mim, os mortais aqui fora, no continente, estão entrando em pânico. Tifão está aterrorizando todos. Bem poucos estão dando festas. Aparentemente, Bobby Earl e seus amigos, abençoados sejam, são um pouco lentos. Não perceberam que o mundo está acabando.

— Então... eu não estou aqui de verdade?

— Não. Em um instante vou mandá-lo de volta para sua vida insignificante, e vai ser como se nada tivesse acontecido.

— E para que me trouxe aqui?

Dioniso resfolegou com desdém.

— Ah, eu não queria particularmente você. Qualquer um de vocês, tolos heróis, serviria. Aquela garota, Annie...

— Annabeth.

— A questão — disse ele — é que trouxe você a esta festa para lhe dar um aviso. Estamos em perigo.

— Puxa — disse eu. — Nunca teria desconfiado. Obrigado.

Ele me fuzilou com o olhar, momentaneamente distraído de seu jogo. Pac-Man foi comido pelo fantasminha vermelho.

— Erre es korakas, Blinky! — praguejou Dioniso. — Vou liquidar sua alma!

— Hã, é só um personagem de videogame — falei.

— Isso não é desculpa! E você está estragando o meu jogo, Jorgenson!

— Jackson.

— Que seja! Agora ouça: a situação é mais séria do que você imagina. Se o Olimpo cair, não só os deuses vão desaparecer, mas tudo o que estiver conectado à nossa herança também vai começar a se desfazer. A própria essência de sua civilizaçãozinha insignificante...

No jogo soou uma musiquinha, e o sr. D passou para o nível 254.

— Ah! — ele gritou. — Tomem isto, seus camaradas de pixels!

— Hã, a essência da civilização — lembrei.

— Sim, sim. Toda a sua civilização vai se destruir. Talvez não de imediato, mas guarde as minhas palavras: o caos dos Titãs significará o fim da civilização ocidental. Arte, leis, degustação de vinhos, música, videogames, camisas de seda, quadros de veludo preto... todas as coisas que fazem com que valha a pena viver vão desaparecer!

— Então por que os deuses não voltam correndo para nos ajudar? — perguntei. — Devíamos juntar forças no Olimpo. Esqueçam Tifão.

Ele estalou os dedos, impaciente.

— Você esqueceu minha Coca Diet.

— Deuses, o senhor é irritante.

Chamei uma garçonete e pedi o estúpido refrigerante. Coloquei na conta de Bobby Earl.

O sr. D deu um longo gole. Seus olhos não deixaram por um só momento o videogame.

— A verdade, Pierre, é...

— Percy.

— ... os outros deuses jamais admitiriam isso, mas, na verdade, precisamos que vocês, mortais, resgatem o Olimpo. Veja bem, somos manifestações da sua cultura. Se vocês não se importam o suficiente para salvar o Olimpo...

— Como Pã — disse eu —, dependendo dos sátiros para salvar a Natureza.

— É, exato. Vou negar que disse isso, é claro, mas os deuses precisam dos heróis. Sempre precisaram. Não fosse por isso, não manteríamos vocês, pestinhas irritantes, por perto.

— Sinto-me tão querido... Obrigado.

— Usem o treinamento que eu lhes dei no acampamento.

— Qual treinamento?

— Você sabe. Todas aquelas técnicas de heróis e... Não! — O sr. D deu um tapa na máquina. — Na pari i eychi! O último nível!

Ele me olhou, e em seus olhos cintilava um fogo púrpura.

— Pelo que me lembro, uma vez previ que você acabaria se tornando tão egoísta quanto todos os outros heróis humanos. Bem, eis a sua chance de provar que eu estava errado.

— É, deixá-lo orgulhoso está mesmo no topo da minha lista.

— Você precisa salvar o Olimpo, Pedro! Deixe Tifão com os olimpianos e salve nossos tronos de poder. Isso precisa ser feito!

— Ótimo. Foi um papo muito agradável. Agora, se não se importa, meus amigos devem estar se perguntando...

— Tem mais — avisou o sr. D. — Cronos ainda não alcançou seu poder máximo. O corpo do mortal foi apenas uma medida temporária.

— Nós já imaginávamos isso.

— E vocês também imaginavam que, no máximo em um dia, Cronos vai queimar aquele corpo mortal e assumir a verdadeira forma de um rei Titã?

— E isso significa...

Dioniso introduziu outra moeda na máquina.

— Você sabe sobre a forma verdadeira dos deuses.

— Sim. Não se pode olhá-los sem queimar por completo.

— Cronos ficaria dez vezes mais poderoso. Sua simples presença iria incinerar você. E, uma vez que ele alcance essa condição, vai dar o mesmo poder aos outros Titãs. Eles estão fracos agora, comparados ao que se tornarão em breve, a menos que você possa detê-los. O mundo vai ruir, os deuses vão morrer e eu nunca vou conseguir a marca perfeita nesta máquina estúpida.

Talvez eu devesse ter ficado aterrorizado, mas, honestamente, já estava no limite do pânico.

— Posso ir agora? — perguntei.

— Uma última coisa. Meu filho Pólux. Ele está vivo?

Pisquei.

— Sim, da última vez que o vi.

— Eu ficaria muitíssimo grato se você pudesse mantê-lo assim. Perdi o irmão dele, Castor, no ano passado...

— Eu lembro. — Eu o fitei, tentando ajustar minha mente à ideia de que Dioniso podia ser um pai preocupado. Perguntei-me quantos outros olimpianos estariam pensando em seus filhos semideuses nesse momento. — Farei o melhor que puder.

— O melhor que puder — murmurou Dioniso. — Isso não é tranquilizador? Vá agora. Você tem algumas surpresas bastante desagradáveis pela frente, e eu preciso derrotar Blinky!

— Surpresas bastante desagradáveis?

Ele agitou a mão e o bar desapareceu.

Eu estava de volta à Quinta Avenida. Annabeth não se movera. E não dava nenhum sinal de que eu houvesse saído dali ou coisa assim.

Ela me viu olhando-a e franziu o cenho.

— O que foi?

— Hã... nada, eu acho.

Olhei a avenida, perguntando-me o que o sr. D teria querido dizer com surpresas bastante desagradáveis. Quanto as coisas ainda podiam piorar?

Meus olhos pousaram em um carro azul arruinado. O capô estava amassado, como se alguém tivesse tentado abrir algumas crateras nele. Minha pele formigou. Por que aquele carro parecia tão familiar? Então percebi que se tratava de um Prius.

O Prius de Paul.

Disparei rua abaixo.

— Percy! — chamou Annabeth. — Aonde você vai?

Paul estava desmaiado no banco do motorista. Minha mãe roncava ao lado dele. Minha mente parecia mingau. Como eu não os vira antes? Estavam sentados ali por mais de um dia, a batalha se desenrolando em torno deles, e eu nem sequer percebera.

— Eles... eles devem ter visto aquelas luzes azuis no céu. — Sacudi as portas, mas estavam trancadas. — Preciso tirá-los daí.

— Percy — disse Annabeth, delicadamente.

— Não posso deixá-los aqui! — Eu parecia um louco. Comecei a socar o para-brisa. — Tenho de tirá-los daqui. Tenho de...

— Percy, pare... pare. — Annabeth acenou para Quíron, que estava conversando com alguns centauros mais adiante. — Podemos empurrar o carro para outra rua. Eles vão ficar bem.

Minhas mãos tremiam. Depois de tudo por que eu passara nos últimos dias, sentia-me estúpido e fraco, mas a visão da minha família me fez ter vontade de sucumbir.

Quíron chegou a galope.

— O que...? Ah, puxa. Entendi.

— Eles vieram ao meu encontro — falei. — Minha mãe deve ter pressentido que alguma coisa estava errada.

— É provável — disse Quíron. — Mas eles vão ficar bem. O melhor a fazer por eles é nos concentrarmos em nossa tarefa.

Então percebi algo no banco traseiro do Prius, e meu coração falhou uma batida. Preso ao cinto de segurança atrás de minha mãe estava um jarro grego preto e branco de cerca de um metro de altura. Sua tampa estava presa por correias de couro.

— Não pode ser — murmurei.

Annabeth apoiou a mão na janela.

— É impossível! Pensei que tivesse deixado isso no Plaza.

— Trancado em um cofre — confirmei.

Quíron viu o jarro e seus olhos se arregalaram.

— Esse não é...

— O jarro de Pandora. — Contei-lhe sobre meu encontro com Prometeu.

— Então o jarro é seu — disse Quíron sombriamente. — Ele vai segui-lo e tentá-lo para que o abra, não importa onde o deixe. E vai aparecer nos momentos em que você estiver mais fraco.

Como agora, pensei. Olhando minha família indefesa.

Imaginei Prometeu sorrindo, solícito, pobres mortais. Abra mão da Esperança e eu saberei que está se rendendo. Prometo que Cronos será indulgente.

A raiva cresceu dentro de mim. Desembainhei Contracorrente e cortei o vidro do lado do motorista como se ele fosse feito de filme plástico.

— Vamos empurrar o carro, tirando-o do caminho — falei. — E levar esse jarro estúpido para o Olimpo.

— Um bom plano. Mas, Percy... — Quíron assentiu.

O que quer que fosse dizer, ele hesitou. Um rufar mecânico foi crescendo a distância — o vap-vap-vap de um helicóptero.

Em uma manhã normal em Nova York isso não seria nada demais, mas depois de dois dias de silêncio, um helicóptero era a coisa mais estranha que eu já ouvira. Algumas quadras a leste, o exército de monstros gritou em zombaria quando o helicóptero surgiu no campo de visão. Era um modelo civil vermelho-escuro, com as letras “ED” em verde brilhante na lateral. As palavras debaixo disso eram pequenas demais para ler, mas eu sabia o que diziam: EMPREENDIMENTOS DARE.

Senti um nó na garganta. Olhei para Annabeth e vi que ela também o reconhecia. Seu rosto estava tão vermelho quanto o helicóptero.

— O que ela está fazendo aqui? — perguntou Annabeth. — Como foi que passou pela barreira?

— Quem? — Quíron parecia confuso. — Que mortal seria tão insano para...

De repente, o helicóptero inclinou-se para a frente.

— O encantamento de Morfeu! — exclamou Quíron. — O tolo piloto mortal dormiu.

Observei, horrorizado, o helicóptero adernar, caindo na direção de alguns edifícios. Mesmo que não batesse neles, os deuses do ar provavelmente o derrubariam por se aproximar do Olimpo.

Fiquei paralisado, incapaz de me mover, mas Annabeth assoviou, e o pégaso Guido surgiu do nada.

Chamaram um lindo cavalo?, perguntou.

— Venha — grunhiu Annabeth. — Vamos salvar sua amiga.


DEZESSEIS

Recebemos ajuda de um ladrão

Eis a minha definição de nem um pouco divertido: voar em um pégaso indo ao encontro de um helicóptero descontrolado. Se Guido não fosse tão bom em voar teríamos sido cortados em pedaços e transformados em confete.

Eu podia ouvir Rachel gritando lá dentro. Por alguma razão, ela não adormecera, mas dava para ver o piloto debruçado sobre os controles, inclinando-se de um lado para outro à medida que o helicóptero oscilava na direção da lateral de um edifício comercial.

— Ideias? — perguntei a Annabeth.

— Você vai ter de pegar Guido e dar o fora — disse ela.

— E o que você vai fazer?

Em resposta, ela gritou:

— Iáá! — E Guido deu um mergulho.

— Abaixe-se! — avisou Annabeth.

Passamos tão perto do rotor que senti a força das lâminas aparando meu cabelo. Zunimos ao longo da lateral do helicóptero, e Annabeth agarrou a porta.

Foi aí que deu tudo errado.

A asa de Guido bateu no helicóptero e ele despencou comigo nas costas, deixando Annabeth pendurada na porta da aeronave.

Eu estava tão apavorado que mal conseguia pensar, mas enquanto Guido despencava em espiral vi de relance Rachel puxando Annabeth para dentro do aparelho.

— Aguente firme! — gritei para Guido.

Minha asa, gemeu ele. Está quebrada.

— Você consegue! — Tentei desesperadamente lembrar o que Silena costumava nos dizer nas aulas de equitação com pégasos. — Relaxe a asa. Estenda-a e plane.

Caíamos como pedras em direção à calçada cem metros abaixo. No último momento, Guido estendeu as asas. Vi os rostos dos centauros nos olhando, boquiabertos. Então interrompemos a queda, planamos uns quinze metros e tombamos na calçada — pégaso sobre semideus.

Ai!, gemeu Guido. Minhas patas. Minha cabeça. Minhas asas.

Quíron aproximou-se a galope com sua maleta de médico e começou a cuidar do pégaso.

Eu me levantei. Quando olhei para cima, meu coração veio à boca. O helicóptero estava a segundos de se chocar contra a lateral de um edifício.

Então, milagrosamente, o veículo se aprumou. Em seguida, descreveu um círculo e pairou no ar. Muito lentamente, começou a descer.

Pareceu levar uma eternidade, mas finalmente o helicóptero aterrissou com um baque surdo no meio da Quinta Avenida. Olhei pelo para-brisa e não pude acreditar no que via. Annabeth estava no comando.

Corri até lá enquanto o rotor rodopiava até parar. Rachel abriu a porta lateral e arrastou o piloto para fora.

Ainda estava vestida como se estivesse de férias, de short de praia, camiseta e sandálias. Seu cabelo estava emaranhado e seu rosto, verde, por causa da viagem de helicóptero.

Annabeth saiu por último.

Eu a fitei assombrado.

— Não sabia que você pilotava helicópteros.

— Nem eu — disse ela. — Meu pai é louco por aviação. Além disso, Dédalo deixou algumas anotações sobre máquinas voadoras. Eu só segui minha intuição com os comandos.

— Você salvou minha vida — disse Rachel.

Annabeth flexionou o ombro machucado.

— É, bem... não vamos fazer disso um hábito. O que você está fazendo aqui, Dare? Não sabe que não é aconselhável voar em zona de guerra?

— Eu... — Rachel olhou para mim. — Eu precisava vir. Sabia que Percy estava com problemas.

— Nisso você acertou — resmungou Annabeth. — Bem, se me dão licença, tenho de cuidar de alguns amigos feridos. Que bom que tenha dado uma passadinha por aqui, Rachel.

— Annabeth... — chamei.

Ela se foi, furiosa.

Rachel desabou no meio-fio e pôs a cabeça nas mãos.

— Ah, me desculpe, Percy. Não tive a intenção de... Eu sempre atrapalho tudo.

Era difícil dizer qualquer coisa, embora eu me sentisse feliz por ela estar em segurança. Olhei na direção em que Annabeth se fora, mas ela já havia desaparecido no meio da multidão. Eu não podia acreditar no que ela acabara de fazer — salvara a vida de Rachel, pousara um helicóptero e fora embora, como se aquilo não fosse nada de mais.

— Está tudo bem — disse eu a Rachel, embora minhas palavras soassem vazias. — Então, qual é a mensagem que você queria me dar?

Ela franziu o cenho.

— Como é que você sabia disso?

— Um sonho.

Rachel não pareceu surpresa. Ela puxou o short de praia. Estava coberto de desenhos, o que não era incomum para ela, mas aqueles símbolos eu reconhecia: letras gregas, desenhos de contas do acampamento, esboços de monstros e rostos de deuses. Eu não entendia como Rachel podia conhecê-los. Ela nunca fora ao Olimpo nem ao Acampamento Meio-Sangue.

— Também tenho visto coisas — murmurou ela. — Isto é, não só através da Névoa. Isso é diferente. Tenho feito desenhos, escrito versos...

— Em grego antigo — disse eu. — Você sabe o que dizem?

— Era sobre isso que eu queria falar com você. Eu esperava... bem, se tivesse viajado de férias conosco, eu esperava que pudesse me ajudar a entender o que está acontecendo comigo.

Ela me olhou, suplicante. Seu rosto estava queimado de sol. O nariz descascava. Eu não conseguia me recuperar do choque de ela estar ali em carne e osso. Havia forçado a família a interromper as férias, concordara em ir para uma escola horrível e viera de helicóptero para o meio de uma batalha de monstros só para me ver. Ao seu modo, era tão corajosa quanto Annabeth.

Mas o que estava acontecendo com ela, aquelas visões, me apavorava de verdade. Talvez fosse algo que acontecesse com todos os mortais que podiam ver através da Névoa. Mas minha mãe nunca falara sobre nada assim. E as palavras de Héstia sobre a mãe de Luke ficavam me voltando à mente: May Castellan foi longe demais. Tentou ver demais.

— Rachel — falei —, bem que eu queria saber. Talvez devêssemos perguntar a Quíron...

Ela se encolheu como se tivesse levado um choque elétrico.

— Percy, algo está prestes a acontecer. Uma armadilha que termina em morte.

— O que quer dizer? Morte de quem?

— Eu não sei. — Ela olhou ao redor, nervosa. — Você não sente?

— Essa é a mensagem que você queria me dar?

— Não. — Ela hesitou. — Ah, me desculpe. Minhas palavras não fazem sentido, mas esse pensamento acaba de me ocorrer. A mensagem que escrevi na praia era diferente. Tinha seu nome nela.

— Perseus — lembrei-me. — Em grego antigo.

Rachel assentiu.

— Não sei o significado. Mas sei que é importante. Você precisa saber. Dizia: Perseus, você não é o herói.

Olhei para ela como se ela tivesse acabado de me dar um tapa.

— Você voou milhares de milhas para me dizer que eu não sou o herói?

— É importante — insistiu ela. — Isso vai influenciar o que você fizer.

— Não sou o herói da profecia? — perguntei. — Não sou o herói que derrota Cronos? O que você quer dizer?

— Eu... me desculpe, Percy. Isso é tudo que sei. Eu precisava lhe dizer porque...

— Ora! — Quíron aproximou-se a meio galope. — Esta deve ser a srta. Dare.

Eu queria gritar para que ele fosse embora, mas é claro que não podia fazer isso. Tentei controlar minhas emoções. Tinha a sensação de ter outro furacão particular girando à minha volta.

— Quíron, Rachel Dare — apresentei. — Rachel, este é meu instrutor, Quíron.

— Olá — disse Rachel em tom grave, e não parecia nem um pouco surpresa com o fato de Quíron ser um centauro.

— Não está adormecida, srta. Dare — observou ele. — E, no entanto, é mortal...

— Sou mortal — concordou ela, como se esse fosse um pensamento deprimente. — O piloto adormeceu assim que cruzamos o rio. Não sei por que eu não. Só sabia que precisava vir aqui para prevenir Percy.

— Prevenir Percy?

— Ela tem visto coisas — disse eu. — E também tem escrito versos e feito desenhos.

Quíron ergueu uma sobrancelha.

— Mesmo? Conte-me.

Ela lhe contou as mesmas coisas que me contara.

Quíron alisava a barba.

— Srta. Dare... talvez devêssemos conversar.

— Quíron — disse eu. Subitamente vi uma imagem terrível do Acampamento Meio-Sangue na década de 1990, e do grito de May Castellan vindo do sótão. — Você... você vai ajudar Rachel, não vai? Isto é, vai avisá-la que ela precisa ter cuidado com essas coisas. Não ir longe demais.

Ele abanava a cauda rapidamente, como acontece quando está nervoso.

— Sim, Percy. Vou fazer de tudo para entender o que está ocorrendo e aconselhar a srta. Dare, mas isso pode levar algum tempo. Enquanto isso, você deve descansar. Empurramos o carro de seus pais para um lugar seguro. O inimigo parece estar parado por ora. Colocamos alguns beliches no Empire State Building. Durma um pouco.

—Todo mundo fica me mandando dormir — resmunguei. — Não preciso dormir.

Quíron conseguiu sorrir.

— Já se olhou no espelho recentemente, Percy?

Baixei os olhos para as minhas roupas, que estavam chamuscadas, queimadas, rasgadas e esfarrapadas depois de uma noite de batalhas.

— Estou horrível — admiti. — Mas você acha que consigo dormir depois do que acaba de acontecer?

— Você pode ser invulnerável em combate — censurou Quíron —, mas isso só faz com que seu corpo se canse mais rápido. Lembro-me de Aquiles. Quando aquele rapaz não estava lutando, estava dormindo. Ele devia tirar uns vinte cochilos por dia. Você, Percy, precisa descansar. Talvez você seja nossa única esperança.

Eu queria me queixar que eu não era sua única esperança. Segundo Rachel, não era nem mesmo o herói. Mas a expressão nos olhos de Quíron deixava claro que ele não ia aceitar um não como resposta.

— Claro — resmunguei. — Conversem.

Caminhei penosamente na direção do Empire State Building. Quando olhei para trás, Rachel e Quíron estavam andando juntos, absortos em uma conversa séria, como se estivessem discutindo os detalhes de um enterro.

No saguão, encontrei um beliche vazio e me joguei nele, certo de que não conseguiria dormir. Um segundo depois, meus olhos se fecharam.

Em meus sonhos, estava de volta ao jardim de Hades. O Senhor dos Mortos andava para cima e para baixo, com as mãos nos ouvidos, enquanto Nico o seguia, agitando os braços.

— O senhor tem de fazer isso! — insistia Nico.

Deméter e Perséfone encontravam-se sentadas atrás deles, à mesa do café da manhã. As duas deusas pareciam entediadas. Deméter serviu flocos de trigo integral em quatro tigelas imensas. Perséfone mudava por magia o arranjo decorativo da mesa, transformando as flores vermelhas em amarelas e depois com pontinhos coloridos.

— Eu não tenho de fazer nada! — Os olhos de Hades chamejavam. — Eu sou um deus!

— Pai — disse Nico —, se o Olimpo cair, a segurança de seu palácio não terá importância. O senhor também vai desaparecer.

— Eu não sou um olimpiano! — rosnou ele. — Minha família deixou isso bem claro.

— O senhor é — disse Nico. — Goste ou não.

— Você viu o que eles fizeram com a sua mãe — disse Hades. — Zeus a matou. E você quer que eu os ajude? Eles merecem o que estão tendo!

Perséfone suspirou. Ela movia os dedos pela mesa, distraidamente transformando os talheres em rosas.

— Podemos por favor não falar sobre aquela mulher? — pediu.

— Sabem o que seria bom para este garoto? — ponderou Deméter. — A agricultura.

Perséfone revirou os olhos.

— Mãe...

— Seis meses atrás de um arado. Excelente para a formação do caráter.

Nico entrou na frente do pai, obrigando Hades a olhá-lo.

— Minha mãe compreendia o que era a família. Era por isso que não queria nos deixar. Não pode simplesmente abandonar sua família porque eles fizeram algo horrível. O senhor também fez coisas horríveis a eles.

— Maria morreu! — lembrou-lhe Hades.

— O senhor não pode simplesmente se isolar dos outros deuses!

— Estou muito bem assim há milhares de anos.

— E isso o fez sentir-se melhor? — perguntou Nico. — Aquela maldição que lançou ao Oráculo o ajudou de alguma forma? Guardar rancor é um defeito fatal. Bianca me advertiu sobre isso... e tinha razão.

— Para semideuses! Eu sou imortal, todo-poderoso! Eu não ajudaria os outros deuses nem se eles me pedissem, nem se Percy Jackson implorasse...

— Você está tão exilado quanto eu! — gritou Nico. — Pare de alimentar sua raiva e faça algo útil pelo menos uma vez. Essa é a única maneira de eles o respeitarem!

As palmas de Hades se encheram de fogo negro.

— Vá em frente — disse Nico. — Acabe comigo. É exatamente isso que os outros deuses esperariam do senhor. Prove que eles têm razão.

— Sim, por favor — queixou-se Deméter. — Faça-o calar a boca.

Perséfone suspirou.

— Ah, eu não sei. Prefiro lutar na guerra a comer outra tigela de cereal. Isto é um saco.

Hades rugiu, furioso. Sua bola de fogo atingiu uma árvore prateada bem ao lado de Nico, transformando-a em uma poça de metal líquido.

E meu sonho mudou.

Eu me vi diante do prédio das Nações Unidas, menos de dois quilômetros a nordeste do Empire State Building. O exército do Titã havia armado acampamento em torno do complexo da ONU. Dos mastros das bandeiras pendiam horríveis troféus — capacetes e peças de armadura de campistas derrotados. Ao longo de toda a Primeira Avenida, gigantes amolavam seus machados. Telquines consertavam armaduras em forjas improvisadas.

O próprio Cronos andava de um lado para o outro no alto da praça, balançando sua foice, de modo que suas guarda-costas dracaenae deixaram-se ficar bem para trás. Ethan Nakamura e Prometeu mantinham-se por perto, fora do alcance da foice. Ethan manuseava nervosamente as correias de seu escudo, mas Prometeu parecia calmo e senhor de si em seu smoking, como sempre.

— Eu odeio este lugar — grunhiu Cronos. — Nações Unidas. Como se a humanidade um dia pudesse se unir. Lembre-me de demolir este prédio depois de destruirmos o Olimpo.

— Sim, senhor. — Prometeu sorriu, como se a fúria de seu mestre o divertisse. — Devemos demolir os estábulos no Central Park também? Sei o quanto os cavalos podem irritá-lo.

— Não zombe de mim, Prometeu! Aqueles malditos centauros se arrependerão de ter interferido. Vou servi-los como almoço para os cães infernais, começando por aquele meu filho, o fracote do Quíron.

Prometeu deu de ombros.

— Aquele fracote destruiu uma legião inteira de telquines com suas flechas.

Cronos brandiu a foice e cortou o mastro de uma bandeira ao meio. As cores do Brasil vieram abaixo sobre o exército, esmagando uma dracaena.

— Nós vamos destruí-los! — rugiu Cronos. — É hora de soltar o drakon. Nakamura, você se incumbe disso.

— S-sim, senhor. Quando o sol se puser?

— Não — disse Cronos. — Imediatamente. Os defensores do Olimpo estão seriamente feridos. Não estarão esperando um ataque rápido. Além disso, sabemos que eles não podem vencer esse drakon.

Ethan parecia confuso.

— Meu senhor?

— Não se preocupe, Nakamura. Apenas cumpra a minha ordem. Quero o Olimpo em ruínas quando Tifão chegar a Nova York. Vamos destruir os deuses completamente!

— Mas, meu senhor — disse Ethan. — Sua regeneração.

Cronos apontou para Ethan, e o semideus ficou imóvel.

— Por acaso parece — sibilou Cronos — que eu preciso me regenerar?

Ethan não respondeu. É meio difícil fazer isso quando você está paralisado no tempo.

Cronos estalou os dedos e Ethan desabou no chão.

— Logo — rosnou o titã — esta forma será desnecessária. Não vou descansar com a vitória tão perto. Agora, vá!

Ethan saiu apressado.

— Isto é perigoso, meu senhor — advertiu Prometeu. — Não seja apressado.

— Apressado? Depois de apodrecer por três mil anos nas profundezas do Tártaro você me chama de apressado? Vou cortar Percy Jackson em mil pedaços.

— Você o enfrentou três vezes — observou Prometeu. — E, no entanto, sempre disse que estava aquém da dignidade de um titã lutar com um mero mortal. Eu me pergunto se seu hospedeiro mortal não o está influenciando, enfraquecendo seu julgamento.

Cronos voltou os olhos dourados para o outro titã.

— Está me chamando de fraco?

— Não, meu senhor. Eu só quis dizer...

— Sua lealdade está dividida? — perguntou Cronos. — Talvez você sinta falta de seus velhos amigos, os deuses. Gostaria de juntar-se a eles?

Prometeu ficou pálido.

— Expressei-me mal, meu senhor. Suas ordens serão cumpridas. — Ele voltou-se para o exército e gritou: — PREPAREM-SE PARA A BATALHA!

As tropas começaram a se movimentar.

De algum lugar atrás do complexo da ONU um rugido feroz sacudiu a cidade — o som de um drakon acordando. O barulho era tão horrível que me acordou, e percebi que ainda podia ouvi-lo a quase dois quilômetros de distância.

Grover estava de pé ao meu lado, parecendo nervoso.

— O que foi isso?

— Eles estão vindo — eu lhe disse. — E nós estamos em apuros.

O chalé de Hefesto estava sem fogo grego. O chalé de Apolo e as Caçadoras estavam catando flechas. A maioria de nós já havia comido tanta ambrosia e tomado tanto néctar que não ousávamos ingerir mais nem um pouco.

Restavam-nos dezesseis campistas, quinze Caçadoras e meia dúzia de sátiros em condições de lutar. O restante havia se refugiado no Olimpo. Os Pôneis de Festa tentavam formar filas, mas cambaleavam, riam e todos cheiravam a root beer. Os texanos davam marradas nos integrantes do Colorado. A divisão de Missouri discutia com a de Illinois. Eram grandes as chances de que todo o exército acabasse lutando entre si em vez de contra o inimigo.

Quíron aproximou-se a trote com Rachel nas costas. Senti uma pontada de irritação porque Quíron raramente dava carona a alguém — e nunca a um mortal.

— Sua amiga aqui tem uns insights úteis, Percy — disse ele.

Rachel corou.

— São apenas algumas coisas que andei vendo.

— Um drakon — disse Quíron. — Um drakon de Lídia, para ser exato. O tipo mais antigo e mais perigoso.

Eu a fitei.

— Como você soube disso?

— Não sei ao certo — admitiu Rachel. — Mas esse drakon tem seu destino determinado. Ele será morto por um filho de Ares.

Annabeth cruzou os braços.

— Como você pode saber disso?

— Eu simplesmente vi. Não sei explicar.

— Bem, vamos torcer para que esteja errada — disse eu. — Porque estamos um tanto carentes de filhos de Ares... — Um pensamento me ocorreu e praguejei em grego antigo.

— O que foi? — perguntou Annabeth.

— O espião — respondi. — Cronos disse: Sabemos que eles não podem vencer esse drakon. O espião o vem mantendo informado. Cronos sabe que o chalé de Ares não está conosco. Propositadamente escolheu um monstro que não podemos matar.

Thalia franziu o cenho.

— Se eu pegar esse espião, ele vai se arrepender muito. Talvez possamos mandar outro mensageiro ao acampamento...

— Já fiz isso — disse Quíron. — Blackjack está a caminho. Mas se Silena não conseguiu convencer Clarisse, duvido que Blackjack consiga...

Um rugido fez tremer o chão. Parecia muito perto.

— Rachel — disse eu —, entre no edifício.

— Eu quero ficar.

Uma sombra cobriu o sol. Do outro lado da rua, o drakon desceu serpenteando pela lateral de um arranha-céu. Ele rugiu, e mil janelas se estilhaçaram.

— Pensando bem — disse Rachel baixinho —, vou entrar.

Deixe-me explicar: existem dragões e existem drakons.

Os drakons são muitos milênios mais velhos do que os dragões, e muito maiores. Parecem serpentes gigantes. A maioria não tem asas. A maioria não cospe fogo (embora alguns o façam). Todos são venenosos. Todos são imensamente fortes, com escamas mais resistentes que titânio. Seus olhos podem paralisá-lo; não a paralisia do tipo você-vai-virar-pedra usada pela Medusa, mas aquela do tipo ah-meus-deuses-aquela-cobra-enorme-vai-me-comer, tão ruim quanto a primeira.

Temos aulas de combate a drakons no acampamento, mas não existe forma de se preparar para um réptil de setenta metros de comprimento e largo como um ônibus escolar deslizando pela lateral de um edifício, os olhos amarelos semelhantes a holofotes e a boca cheia de dentes afiados, grandes o suficiente para mastigar elefantes.

Eu quase senti saudade da porca voadora.

Enquanto isso, o exército inimigo avançava pela Quinta Avenida. Fizéramos todo o possível para tirar os carros do caminho e manter os mortais em segurança, e isso só facilitou a aproximação de nossos inimigos. Os Pôneis de Festa abanavam as caudas nervosamente. Quíron ia e vinha por suas fileiras a galope, com gritos de encorajamento para que se mantivessem firmes e pensassem na vitória e em root beer, mas achei que a qualquer instante eles iriam entrar em pânico e fugir.

— Eu fico com o drakon. — Minha voz saiu como um guincho tímido. Então gritei mais alto: — EU FICO COM O DRAKON! Todos os outros, segurem o exército!

Annabeth estava ao meu lado. Ela havia puxado o capacete de coruja sobre o rosto, mas eu sabia que seus olhos estavam vermelhos.

— Vai me ajudar? — perguntei.

— É isso que eu faço — ela disse, chateada. — Ajudo meus amigos.

Eu me senti um completo idiota. Queria puxá-la de lado e explicar que não pretendia que Rachel estivesse ali, que não foi ideia minha, mas não tínhamos tempo.

— Fique invisível — disse eu. — Procure brechas nas junções de suas escamas enquanto eu o mantenho ocupado. Mas tenha cuidado.

Assoviei.

— Sra. O’Leary. Junto!

— AUUU!

Minha cadela infernal saltou uma fileira de centauros e me deu uma lambida que tinha um cheiro suspeito de pizza de pepperoni.

Então, saquei a espada e atacamos o monstro.

O drakon estava três andares acima de nós, rastejando pela lateral do edifício enquanto avaliava nossas tropas. Para onde quer que ele olhasse, os centauros se imobilizavam de medo.

Vindo do norte, o exército inimigo investiu contra os Pôneis de Festa, e nossas fileiras se romperam. O drakon atacou, engolindo três centauros californianos de uma só vez antes que eu pudesse sequer me aproximar.

A sra. O’Leary saltou no ar — uma sombra negra e mortal com dentes e garras. Normalmente, um cão infernal atacando é uma visão aterradora, mas, perto do drakon, a sra. O’Leary parecia um brinquedo de criança.

Suas garras rasparam, inofensivas, as escamas do drakon. Ela mordeu a garganta do monstro, mas não conseguiu deixar nem sequer uma marca. Seu peso, porém, foi suficiente para derrubar o drakon da lateral do prédio. Ele se debateu desajeitadamente e tombou na calçada, o cão infernal e o réptil engalfinhados. O drakon tentou morder a sra. O’Leary, mas ela estava perto demais de sua boca. O veneno espirrou para todos os lados, transformando centauros, assim como alguns monstros, em pó, mas a sra. O’Leary continuava rodeando a cabeça do drakon, arranhando e mordendo.

— IÁÁÁ!

Enterrei Contracorrente bem fundo no olho esquerdo do monstro. O holofote se apagou. O drakon silvou e empinou-se para atacar, mas eu rolei de lado.

Ele mordeu um pedaço do calçamento do tamanho de uma piscina e se voltou para mim com o olho bom, e eu me concentrei em seus dentes para não ficar paralisado. A sra. O’Leary fez o máximo para atrair a atenção dele. Saltou em sua cabeça, arranhando e rosnando como se fosse uma peruca preta muito zangada.

O restante da batalha não estava indo bem. Os centauros haviam entrado em pânico sob o ataque de gigantes e demônios. Vez ou outra, uma camiseta laranja do acampamento surgia no mar de combatentes, mas rapidamente desaparecia. Flechas gritavam. O fogo explodia em ondas de um lado ao outro de ambos os exércitos, mas a ação estava se transferindo da rua para a entrada do Empire State Building. Estávamos perdendo terreno.

De repente, Annabeth se materializou nas costas do drakon. O boné de invisibilidade caiu de sua cabeça enquanto ela enfiava a faca de bronze em uma fenda nas escamas do réptil.

O drakon rugiu e se contorceu, derrubando Annabeth.

Alcancei-a no momento em que ela caía no chão. Arrastei-a, tirando-a do caminho, quando a serpente rolou, esmagando um poste de luz exatamente onde ela estivera.

— Obrigada — disse ela.

— Eu falei para ter cuidado!

— Sim, bem, ABAIXE-SE!

Foi a vez dela de me salvar. Ela me empurrou para o chão no momento em que os dentes do monstro se fechavam com um estalo acima da minha cabeça. A sra. O’Leary golpeou a cara do drakon para chamar sua atenção, e rolamos para sair do caminho.

Enquanto isso, nossos aliados haviam recuado para as portas do Empire State Building. O exército inimigo inteiro os cercava.

Estávamos sem opção. Não havia mais ajuda. Annabeth e eu teríamos de recuar antes que ficássemos isolados do Monte Olimpo.

Nesse momento, ouvi um estrondo no sul. Não era um som que se ouvia muito em Nova York, mas eu o reconheci imediatamente: rodas de carruagem.

— ARES! — gritou uma voz de garota.

E uma dúzia de carruagens de guerra lançou-se na batalha. Em cada uma ondulava uma bandeira vermelha com o símbolo da cabeça do javali. E todas eram puxadas por uma equipe de cavalos esqueletos com crina de fogo. Um total de trinta guerreiros descansados, de armadura brilhante e olhos cheios de ódio, baixou suas lanças a um só tempo — formando um áspero muro de morte.

— Os filhos de Ares! — exclamou Annabeth, perplexa. — Como é que Rachel sabia?

Eu não tinha uma resposta. Mas, liderando o ataque, estava uma garota em uma armadura vermelha familiar, o rosto coberto por um capacete de cabeça de javali. Segurava no ar uma lança que estalava com eletricidade. Clarisse viera pessoalmente para o resgate. Enquanto seis de suas carruagens atacavam o exército de monstros, ela liderava as outras seis diretamente contra o drakon.

O réptil se empinou e conseguiu derrubar a sra. O’Leary. Minha pobre cadela de estimação se chocou contra a lateral do edifício com um ganido. Corri para ajudá-la, mas o monstro já havia voltado a atenção para a nova ameaça. Mesmo com um só olho, seu olhar feroz foi suficiente para paralisar dois condutores de carruagem. Eles se desviaram, indo bater em uma fila de carros. As outras quatro carruagens continuaram o ataque. O monstro mostrou as presas, pronto para dar o bote, e sua boca recebeu uma carga de dardos de bronze celestial.

— IIISSSSS!!!!! — gritou ele, o que provavelmente significa AIIII! na língua dos drakons.

— Ares, comigo! — gritou Clarisse.

Sua voz parecia mais estridente do que de hábito, mas acho que isso não era de surpreender diante do que ela estava enfrentando.

Do outro lado da rua, a chegada de seis carruagens deu aos Pôneis de Festa nova esperança. Eles se reuniram nas portas do Empire State Building, e o exército inimigo foi momentaneamente tomado pela confusão.

Enquanto isso, as carruagens de Clarisse cercaram o drakon. Lanças se quebravam de encontro à pele do monstro. Cavalos esqueletos cuspiam fogo e relinchavam. Duas outras carruagens foram viradas, mas os guerreiros simplesmente saltaram dela, sacaram as espadas e foram à luta. Cravavam as lâminas nas fendas entre as escamas da criatura. Desviavam-se dos jatos de veneno como se tivessem sido treinados para isso durante a vida toda, o que, é claro, tinham mesmo.

Ninguém podia dizer que os campistas de Ares não eram bravos. Clarisse estava bem ali na frente, espetando sua lança na cara do drakon, tentando destruir o outro olho. Mas, enquanto eu observava, as coisas começaram a dar errado. O drakon agarrou um campista de Ares e o engoliu de uma só vez. Derrubou outro e borrifou veneno em um terceiro, que recuou, em pânico, a armadura derretendo.

— Temos de ajudar — disse Annabeth.

Ela estava certa. Eu havia ficado ali parado, assombrado. A sra. O’Leary tentou se levantar, mas tornou a ganir. Uma de suas patas estava sangrando.

— Fique aqui atrás, garota — disse-lhe eu. — Você já fez o bastante.

Annabeth e eu saltamos nas costas do monstro e corremos na direção de sua cabeça, tentando desviar sua atenção de Clarisse.

Seus companheiros de chalé atiravam dardos, a maior parte dos quais se quebrava, mas alguns se alojavam entre os dentes do monstro. Ele fechou os maxilares com força e sua boca tornou-se uma mistura de sangue verde, veneno amarelo espumoso e armas estilhaçadas.

— Você consegue! — gritei para Clarisse. — Um filho de Ares está destinado a matá-lo!

Através de seu capacete de guerra eu só conseguia ver seus olhos — mas dava para perceber que alguma coisa estava errada. Seus olhos azuis brilhavam de medo. Clarisse nunca se mostrava assim. E ela não tinha olhos azuis.

— ARES! — gritou ela em uma voz estranhamente esganiçada. Então, nivelou a lança e atacou o drakon.

— Não — murmurei. — ESPERE!

Mas o monstro olhou para ela — quase com desprezo — e cuspiu veneno diretamente em seu rosto.

Ela gritou e caiu.

— Clarisse!

Annabeth saltou das costas do monstro e correu para ajudar, enquanto os outros campistas de Ares tentavam defender sua líder caída. Finquei Contracorrente entre duas escamas da criatura e consegui voltar sua atenção para mim.

Fui lançado ao chão, mas caí de pé.

— VENHA, seu verme estúpido! Olhe para mim!

Nos minutos seguintes, tudo que vi foram dentes. Eu recuava e me desviava do veneno, mas não conseguia ferir aquela coisa.

Vi uma carruagem aterrissar na Quinta Avenida. Então alguém correu em nossa direção. Uma voz feminina, aflita, gritou:

— NÃO! Maldita seja, POR QUÊ?

Ousei olhar naquela direção, mas o que vi não fazia o menor sentido. Clarisse estava caída no chão. Sua armadura fumegava com o veneno. Annabeth e os campistas de Ares tentavam tirar seu elmo. E ajoelhada ao lado deles, com o rosto manchado de lágrimas, estava uma garota com roupas do acampamento. Era... Clarisse.

Minha cabeça girava. Por que eu não percebera antes? A garota na armadura de Clarisse era muito mais magra e não tão alta. Mas por que alguém se faria passar por Clarisse?

Eu estava tão perplexo que o drakon quase me quebrou ao meio. Esquivei-me, e a fera enterrou a cabeça em uma parede de tijolos.

— POR QUÊ? — perguntou a verdadeira Clarisse, segurando a outra garota nos braços enquanto os campistas lutavam para retirar o capacete corroído pelo veneno.

Chris Rodriguez veio correndo da carruagem voadora. Ele e Clarisse deviam ter vindo até aqui perseguindo os campistas de Ares, que equivocadamente haviam seguido a outra garota, acreditando que fosse sua líder. Mas ainda não fazia sentido.

O drakon soltou a cabeça da parede e gritou com fúria.

— Cuidado! — avisou Chris.

Em vez de se voltar para mim, o drakon girou na direção do som da voz de Chris, mostrando as presas para o grupo de semideuses.

A verdadeira Clarisse ergueu os olhos para o drakon, o rosto cheio do mais puro ódio. Eu vira um olhar com aquela intensidade apenas uma vez. Seu pai, Ares, tinha a mesma expressão quando eu o enfrentara.

— QUER MORTE? — gritou ela para o drakon. — ENTÃO VENHA!

Ela agarrou sua lança, que estava com a garota caída. Então, sem armadura nem escudo, investiu contra o drakon.

Tentei cobrir a distância para ajudá-la, mas Clarisse foi mais rápida. Esquivou-se para o lado quando o monstro atacou, pulverizando o chão diante dela. Então, saltou para a cabeça da criatura. Quando esta se empinou, ela enfiou a lança elétrica em seu olho bom com tanta força que espatifou a haste, liberando todo o poder mágico da arma.

A eletricidade percorreu a cabeça do monstro, fazendo com que todo o seu corpo estremecesse. Clarisse saltou, rolando em segurança para a calçada enquanto a fumaça saía da boca do drakon, cuja carne se dissolveu. Ele desabou; a couraça era agora apenas um túnel oco e escamoso.

O restante de nós fitava Clarisse com assombro. Eu nunca vira alguém abater um monstro tão imenso sozinho. Mas Clarisse não parecia se importar. Correu de volta para a garota ferida que havia roubado sua armadura.

Por fim Annabeth conseguiu remover o capacete. Todos nos reunimos em torno dela: os campistas de Ares, Chris, Clarisse, Annabeth e eu. A batalha prosseguia ao longo da Quinta Avenida, mas nesse momento nada existia, exceto nosso pequeno círculo.

Suas feições, antes lindas, estavam queimadas pelo veneno. Nenhuma quantidade de néctar ou ambrosia a salvaria.

Algo está prestes a acontecer. As palavras de Rachel soavam em meus ouvidos. Uma armadilha que termina em morte. Agora eu sabia o que ela quis dizer — e sabia quem havia liderado o chalé de Ares para a batalha.

Baixei os olhos para o rosto moribundo de Silena Beauregard.


DEZESSETE

Sento-me na cadeira quente

— O que você estava pensando? — Clarisse aninhava a cabeça de Silena em seu colo.

Silena tentou engolir, mas seus lábios estavam secos e rachados.

— Não quis... ouvir. O chalé... só seguiria você.

— Você roubou minha armadura — afirmou Clarisse, incrédula. — Esperou até eu e Chris sairmos em patrulha; roubou minha armadura e fingiu ser eu. — Ela lançou um olhar feroz aos irmãos. — E NENHUM de vocês percebeu?

Os campistas de Ares olharam para baixo, subitamente interessados em suas botas de combate.

— Não os culpe — disse Silena. — Eles queriam... acreditar que eu era você.

— Sua filha boboca de Afrodite — soluçou Clarisse. — Você atacou um drakon? Por quê?

— Tudo minha culpa — disse Silena, uma lágrima escorrendo pelo canto do rosto. — O drakon, a morte de Charlie... o acampamento em risco...

— Pare! — disse Clarisse. — Isso não é verdade.

Silena abriu a mão. Na palma havia um bracelete de prata com uma foice como pendente, a marca de Cronos.

Um punho frio fechou-se em torno do meu coração.

— Você era o espião?

Silena tentou assentir.

— Antes... antes de eu gostar de Charlie, Luke era gentil comigo. Ele era tão... encantador. Bonito. Mais tarde, eu quis parar de ajudá-lo, mas ele ameaçou contar. E garantiu... garantiu que eu estava salvando vidas. Menos pessoas se machucariam. Disse-me que não machucaria... Charlie. Ele mentiu para mim.

Meus olhos encontraram os de Annabeth. O rosto dela estava sem cor. Parecia que alguém havia acabado de puxar o mundo de sob os seus pés.

Atrás de nós, a batalha prosseguia furiosamente.

Clarisse olhou de cara feia para seus companheiros de chalé.

— Andem, vão ajudar os centauros. Protejam as portas. VÃO!

Eles correram para se juntar à luta.

Silena inspirou pesada e dolorosamente.

— Perdoem-me.

— Você não está morrendo — insistiu Clarisse.

— Charlie... — Os olhos de Silena estavam a um milhão de quilômetros dali. — Ver Charlie...

Ela não falou mais.

Clarisse continuou a segurá-la e a chorar. Chris pôs a mão em seu ombro.

Por fim Annabeth fechou os olhos de Silena.

— Temos de lutar. — A voz de Annabeth soava frágil. — Ela deu a vida para nos ajudar. Temos de honrá-la.

Clarisse fungou e enxugou o nariz.

— Ela foi uma heroína, entenderam? Uma heroína.

Assenti.

— Venha, Clarisse.

Ela pegou a espada de um de seus irmãos caídos.

— Cronos vai pagar.

Eu gostaria de dizer que afugentei o inimigo para longe do Empire State Building. A verdade é que Clarisse fez todo o trabalho. Mesmo sem a armadura e a lança, ela foi um demônio. Guiou sua carruagem direto de encontro ao exército do titã e destruiu tudo em seu caminho.

Ela foi tão inspiradora que até mesmo os centauros em pânico começaram a se reagrupar. As Caçadoras catavam as flechas de quem havia caído e lançavam saraivada após saraivada sobre o inimigo. O chalé de Ares brandia suas espadas, que era o que eles mais gostavam de fazer. Os monstros recuaram na direção da Rua 35.

Clarisse guiou a carruagem até a couraça do drakon e passou uma corda por suas cavidades oculares. Ela açoitou seus cavalos e decolou, arrastando o drakon atrás da carruagem como um dragão do Ano-novo chinês. Perseguiu o inimigo, gritando insultos e desafiando-os a irem ao encontro dela. Enquanto guiava, percebi que ela estava literalmente brilhando. Uma aura de fogo vermelho tremulava à sua volta.

— A bênção de Ares — disse Thalia. — Eu nunca tinha visto isso pessoalmente.

Nesse momento, Clarisse era tão invencível quanto eu. O inimigo atirava lanças e flechas, mas nada a atingia.

— EU SOU CLARISSE, MATADORA DE DRAKONS! — gritou ela. — Vou matar TODOS vocês! Onde está Cronos? Tragam-no aqui! Ele é um covarde?

— Clarisse! — gritei. — Pare. Recue!

— Qual o problema, Senhor Titã? — gritou ela. — VENHA PARA A LUTA!

Não houve resposta do inimigo. Lentamente, eles começaram a se retirar para trás de uma parede de escudos de dracaenae, enquanto Clarisse guiava em círculos em torno da Quinta Avenida, desafiando qualquer um a cruzar seu caminho. A carcaça do drakon de setenta metros produzia um ruído áspero e abafado contra o calçamento, como se ela arrastasse mil facas.

Nesse meio-tempo, cuidávamos de nossos feridos, trazendo-os para o saguão. Muito tempo depois de o inimigo ter desaparecido de vista, Clarisse continuava em sua carruagem, desfilando para cima e para baixo na avenida com seu horrível troféu, exigindo que Cronos a enfrentasse na batalha.

— Vou ficar aqui olhando-a — disse Chris. — Ela vai acabar se cansando. Vou me certificar de que entre.

— E quanto ao acampamento? — perguntei. — Ficou alguém lá?

Chris sacudiu a cabeça.

— Apenas Argos e os espíritos da natureza. O dragão Peleu ainda está protegendo a árvore.

— Eles não vão resistir por muito tempo — disse eu. — Mas estou feliz por vocês terem vindo.

Chris assentiu com tristeza.

— Lamento que tenhamos levado tanto tempo. Tentei argumentar com Clarisse. Disse que não havia sentido em defendermos o acampamento se vocês morressem. Todos os nossos amigos estão aqui. Lamento que tenha sido preciso que Silena...

— Minhas Caçadoras vão ajudá-lo a montar guarda — disse Thalia. — Annabeth e Percy, vocês deveriam ir para o Olimpo. Tenho a sensação de que vão precisar de vocês por lá... para preparar a defesa final.

O porteiro havia desaparecido do saguão. Seu livro estava com a capa voltada para baixo na mesa e a cadeira encontrava-se vazia. O restante do saguão, porém, estava lotado de campistas, Caçadoras e sátiros feridos.

Connor e Travis Stoll nos encontraram nos elevadores.

— É verdade? — perguntou Connor. — Sobre Silena?

Assenti.

— Ela morreu como uma heroína.

Travis mudou de posição, desconfortável.

— Hã, também ouvi...

— Isso é tudo — insisti. — Fim da história.

— Certo — murmurou Travis. — Ouça, calculamos que o exército do Titã terá problemas no elevador. Eles vão ter de subir aos poucos. E os gigantes simplesmente não vão caber.

— Essa é nossa maior vantagem — disse eu. — Tem alguma forma de desativar o elevador?

— Ele é mágico — afirmou Travis. — Em geral, você precisa de um cartão-chave, mas o porteiro desapareceu. Isso significa que as defesas estão desmoronando. Qualquer um agora pode entrar no elevador e subir direto.

— Então temos de mantê-los longe das portas — disse eu. — Vamos bloqueá-los no saguão.

— Precisamos de reforços — informou Travis. — Eles não vão parar de chegar. Vão acabar nos dominando.

— Não há reforços — queixou-se Connor.

Olhei para a sra. O’Leary do lado de fora, respirando de encontro às portas de vidro e lambuzando-as de baba de cão infernal.

— Talvez não seja assim — disse eu.

Fui lá fora e pus a mão no focinho da sra. O’Leary. Quíron havia enrolado ataduras em sua pata, mas ela ainda mancava. Seu pelo estava todo emaranhado com lama, folhas, fatias de pizza e sangue seco de monstro.

— Ei, garota. — Tentei soar animado. — Sei que está cansada, mas tenho mais um grande favor para pedir a você.

Então, me encostei nela e sussurrei em seu ouvido.

Depois que a sra. O’Leary se foi em uma viagem nas sombras, reencontrei Annabeth no saguão. A caminho do elevador, avistamos Grover ajoelhado ao lado de um sátiro gordo ferido.

— Leneu! — exclamei.

O velho sátiro tinha uma aparência horrível. Seus lábios estavam azuis. Havia uma lança quebrada projetando-se de sua barriga e suas pernas peludas de bode estavam retorcidas em um ângulo doloroso.

Ele tentou nos focalizar, mas não creio que tenha nos visto.

— Grover? — murmurou ele.

— Estou aqui, Leneu. — Grover piscava para conter as lágrimas, apesar de todas as coisas horríveis que Leneu falara sobre ele.

— Nós... nós vencemos?

— Hã... sim — mentiu Grover. — Graças a você, Leneu. Afugentamos o inimigo.

— Eu lhe disse — murmurou o velho sátiro. — Líder de verdade. Líder...

E fechou os olhos pela última vez.

Grover engoliu em seco. Pousou a mão na testa de Leneu e proferiu uma antiga bênção. O corpo do velho sátiro se desfez, até que só restou uma minúscula arvorezinha em uma pilha de terra nova.

— Um loureiro — disse Grover, com espanto. — Ah, aquele velho bode de sorte. — Ele tomou a arvorezinha nas mãos. — Eu... eu devo plantá-lo. No Olimpo, nos jardins.

— Estamos indo para lá — disse eu. — Venha.

Começou a tocar uma música orquestrada enquanto o elevador subia. Pensei na primeira vez que eu visitara o Olimpo, quando tinha doze anos. Annabeth e Grover não estavam comigo naquele dia. Fiquei feliz por estarem agora. Tinha a sensação de que essa poderia ser nossa última aventura juntos.

— Percy — disse Annabeth baixinho. — Você tinha razão em relação a Luke.

Era a primeira vez que ela falava desde a morte de Silena Beauregard. Ela mantinha os olhos fixos no número dos andares que piscavam magicamente no elevador: 400, 450, 500.

Grover e eu nos entreolhamos.

— Annabeth — disse eu. — Eu sinto muito...

— Você tentou me dizer. — Sua voz estava trêmula. — Luke não é bom. Eu não acreditei em você até... até saber como ele usou Silena. Agora eu sei. Espero que esteja feliz.

— Isso não me deixa feliz.

Ela encostou a cabeça na parede do elevador e não olhou para mim.

Grover segurava com cuidado o pequeno loureiro.

— Bem... é mesmo muito bom estarmos juntos outra vez. Discussões. Risco de vida. Terror abjeto. Ah, olhem. É o nosso andar.

As portas tilintaram e saltamos para o caminho aéreo.

Deprimente não é uma palavra que com frequência descreva o Monte Olimpo, mas agora era assim que ele estava. Não havia fogo iluminando os braseiros. As janelas estavam escuras, as ruas, desertas, e as portas, bloqueadas. O único movimento que se via era nos parques, que haviam sido transformados em hospitais de campanha. Will Solace e os outros campistas de Apolo andavam de um lado para o outro, cuidando dos feridos. Náiades e dríades tentavam ajudar, usando canções mágicas da natureza para curar queimaduras e eliminar venenos.

Enquanto Grover plantava a arvorezinha de louro, Annabeth e eu circulávamos, tentando animar os feridos. Passei por um sátiro com uma perna quebrada, um semideus envolto em ataduras da cabeça aos pés e um corpo coberto pela mortalha dourada do chalé de Apolo. Eu não sabia quem estava debaixo dela. Nem queria descobrir.

Meu coração pesava como chumbo, mas tentávamos encontrar coisas positivas a dizer.

—Você estará de pé lutando contra os titãs logo, logo! — disse eu a um campista.

— Você está ótimo — disse Annabeth a outro.

— Leneu se transformou em um arbusto! — disse Grover a um sátiro que gemia.

Encontrei Pólux, o filho de Dioniso, recostado em uma árvore. Tinha o braço quebrado, mas no geral parecia bem.

— Ainda posso lutar com a outra mão — disse ele, rangendo os dentes.

— Não — repliquei. — Você já fez bastante. Quero que fique aqui e ajude com os feridos.

— Mas...

— Prometa que vai ficar em segurança — pedi. — Está bem? É um favor pessoal.

Ele franziu a testa, indeciso. Afinal, nós não éramos amigos próximos nem nada, mas eu não ia lhe dizer que era um pedido de seu pai. Isso só iria constrangê-lo. Por fim, ele prometeu e, quando tornou a se recostar, dava para ver que estava um pouco aliviado.

Annabeth, Grover e eu continuamos andando na direção do palácio. Era para lá que Cronos seguiria. Assim que subisse pelo elevador — e eu não tinha a menor dúvida de que ele conseguiria, de uma forma ou de outra —, destruiria a sala dos tronos, o centro do poder dos deuses.

As portas de bronze se abriram com um rangido. Nossos passos ecoaram no piso de mármore. As constelações piscavam friamente no teto do grande salão. A lareira havia se reduzido a um brilho vermelho fraco. Héstia, na forma de uma garotinha de manto marrom, encontrava-se curvada diante dela, tremendo. O Ofiotauro nadava desalentadamente em sua esfera de água. Deixou escapar um mugido desanimado ao me ver.

À luz do fogo, os tronos lançavam sombras maléficas, como mãos que tentassem agarrar alguma coisa.

Aos pés do trono de Zeus, olhando para as estrelas, estava Rachel Elizabeth Dare. Ela segurava um vaso grego de cerâmica.

— Rachel? — chamei. — Hã, o que está fazendo com isso?

Ela me olhou como se estivesse saindo de um sonho.

— Eu o encontrei. É o jarro de Pandora, não é?

Seus olhos estavam mais brilhantes do que de hábito, e eu tive um desagradável flashback de sanduíches mofados e biscoitos queimados.

— Por favor, ponha o jarro no chão — pedi.

— Posso ver a Esperança dentro dele. — Rachel correu os dedos pelos desenhos na cerâmica. — Tão frágil.

— Rachel.

Minha voz pareceu trazê-la de volta à realidade. Ela estendeu o jarro, e eu o peguei. A cerâmica estava fria como gelo.

— Grover — murmurou Annabeth. — Vamos dar uma olhada no palácio. Quem sabe não encontramos fogo grego extra ou armadilhas de Hefesto.

— Mas...

Annabeth deu-lhe uma cotovelada.

— Certo! — gemeu ele. — Adoro armadilhas!

Ela o arrastou para fora da sala dos tronos.

Perto do fogo, Héstia estava encolhida em seu manto, balançando-se para a frente e para trás.

— Venha — disse eu a Rachel. — Quero lhe apresentar alguém.

Sentamo-nos ao lado da deusa.

— Lady Héstia — disse eu.

— Olá, Percy Jackson — murmurou a deusa. — Está esfriando. Fica mais difícil manter o fogo aceso.

— Eu sei — falei. — Os titãs estão próximos.

Héstia voltou os olhos para Rachel.

— Olá, minha querida. Finalmente você veio para o nosso lar.

Rachel piscou.

— Você estava me esperando?

Héstia estendeu as mãos, e as brasas brilharam. Vi imagens no fogo: minha mãe, Paul e eu no almoço do Dia de Ação de Graças, à mesa de nossa cozinha; meus amigos e eu em torno da fogueira no Acampamento Meio-Sangue, cantando e assando marshmallows; Rachel e eu na estrada à beira da praia, no Prius de Paul.

Eu não sabia se Rachel via as mesmas imagens, mas a tensão desapareceu de seus ombros. O calor do fogo pareceu espalhar-se por ela.

— Para reclamar seu lugar junto à lareira — disse Héstia —, você deve abrir mão do que a distrai. É a única maneira de você sobreviver.

Rachel assentiu.

— Eu... eu entendo.

— Espere — eu disse. — Do que ela está falando?

Rachel respirou fundo, trêmula.

— Percy, quando vim para cá... pensei que estivesse vindo por você. Mas não era. Você e eu... — Ela sacudiu a cabeça.

— Espere. Agora eu sou uma distração? Isso é porque eu “não sou o herói” ou sei lá o quê?

— Não sei se consigo expressar em palavras — disse ela. — Fui atraída para você porque... porque você abriu a porta para tudo isso. — Ela fez um gesto indicando a sala dos tronos. — Eu precisava compreender minha verdadeira visão. Mas você e eu, juntos, não fazemos parte dela. Nossos destinos não estão entrelaçados. Acho que você sempre soube disso, bem lá no fundo.

Eu a fitei. Talvez eu não fosse o cara mais brilhante do mundo quando o assunto eram garotas, mas eu tinha certeza de que Rachel acabara de me dispensar, o que era um absurdo, considerando-se que jamais estivéramos juntos.

— Então... — falei. — É “Obrigada por me trazer ao Olimpo. Até mais.”? É isso que está dizendo?

Rachel olhou para a fogueira.

— Percy Jackson — disse Héstia. — Rachel disse-lhe tudo que pode. A hora dela está chegando, mas a sua se aproxima ainda mais rapidamente. Você está pronto?

Eu queria me queixar que não, que não estava nem perto de estar pronto.

Olhei para o jarro de Pandora e pela primeira vez experimentei a ânsia de abri-lo. A esperança me parecia bastante inútil nesse momento. Tantos amigos haviam morrido. Rachel me dera o fora. Annabeth estava com raiva de mim. Meus pais encontravam-se desacordados em algum lugar das ruas lá embaixo, enquanto um exército de monstros cercava o prédio. O Olimpo estava prestes a ruir, e haviam sido tantas as crueldades que eu vira os deuses fazer: Zeus destruindo Maria di Angelo, Hades amaldiçoando o último Oráculo, Hermes voltando as costas a Luke, mesmo sabendo que o filho se bandearia para o mal.

Renda-se, sussurrava a voz de Prometeu em meu ouvido. Caso contrário, seu lar será destruído. Seu precioso acampamento será queimado.

Então olhei para Héstia. Seus olhos vermelhos brilhavam, calorosos. Lembrei-me das imagens que vira em sua lareira — amigos e família, todos com quem eu me importava.

Lembrei-me de algo que Chris Rodriguez dissera: Não tem sentido defendermos o acampamento se vocês morrerem. Todos os nossos amigos estão aqui. E Nico, enfrentando o pai: Se o Olimpo cair, disse ele, a segurança de seu palácio não terá importância.

Ouvi passos. Annabeth e Grover voltaram para a sala dos tronos e pararam ao nos ver. Provavelmente, eu tinha uma expressão bem estranha no rosto.

— Percy? — Annabeth não parecia mais estar com raiva, só preocupada. — Devemos, hã, sair outra vez?

De repente, eu tinha a sensação de que alguém havia me dado uma injeção de ânimo. Entendi o que devia fazer.

Olhei para Rachel.

— Você não vai fazer nada estúpido, vai? Quero dizer... você conversou com Quíron, não foi?

Ela conseguiu dar um sorriso fraco.

— Você está preocupado com a possibilidade de eu fazer algo estúpido?

— Bem, eu quero dizer... você vai ficar bem?

— Não sei — admitiu ela. — Isso depende de você salvar o mundo ou não, herói.

Peguei o jarro de Pandora. O espírito da Esperança agitou-se lá dentro, tentando aquecer o recipiente frio.

— Héstia — disse eu. — Eu lhe dou isto como oferenda.

A deusa inclinou a cabeça.

— Sou a menor entre os deuses. Por que o confiaria a mim?

— Você é o último dos olimpianos — disse eu. — E o mais importante.

— E por que motivo, Percy Jackson?

— Porque a esperança sobrevive melhor no seio de nosso lar — disse eu. — Guarde-a para mim, e eu não tornarei a me sentir tentado a desistir.

A deusa sorriu. Tomou o jarro em suas mãos, e ele começou a luzir. O fogo na lareira tornou-se um pouco mais brilhante.

— Muito bem, Percy Jackson — disse ela. — Que os deuses o abençoem.

— Estamos prestes a descobrir isso. — Olhei para Annabeth e para Grover. — Venha, pessoal.

E marchei na direção do trono de meu pai.

O trono de Poseidon ficava à direita do de Zeus, mas não era nem de longe tão grandioso. O assento de couro preto modelado era preso a um pedestal giratório, com alguns anéis de ferro na lateral para fixar uma vara de pesca (ou um tridente). Basicamente, parecia o assento de um barco de pesca em alto-mar, no qual você se acomodaria para caçar tubarões, marlins-azuis ou monstros marinhos.

Os deuses em seu estado natural têm cerca de cinco metros de altura; portanto, eu só conseguia alcançar a beira da cadeira se esticasse os braços.

— Ajudem-me a subir — pedi a Annabeth e Grover.

— Você está louco? — perguntou Annabeth.

— Provavelmente — admiti.

— Percy — disse Grover —, os deuses não gostam nada que alguém se sente em seu trono. É uma aversão, assim, do tipo vou-transformá-lo-em-uma-pilha-de-cinzas.

— Preciso chamar a atenção dele — disse eu. — É o único jeito.

Eles trocaram olhares inquietos.

— Bem — disse Annabeth —, isso vai mesmo chamar a atenção dele.

Eles juntaram os braços para fazer um degrau, então me alçaram ao trono. Sentia-me como um bebê com os pés tão distantes do chão. Olhei à minha volta, os outros tronos vazios e sombrios, e pude imaginar como seria sentar-me no Conselho Olimpiano — tanto poder, mas ao mesmo tempo tantas discussões, sempre enfrentando outros doze deuses tentando fazer valer a sua vontade. Seria fácil me tornar paranoico, olhar apenas os meus próprios interesses, especialmente se fosse Poseidon. Sentado em seu trono, senti-me como se tivesse o mar inteiro sob o meu comando — vastos quilômetros cúbicos de oceano agitando-se com poder e mistério. Por que Poseidon deveria dar ouvidos a alguém? Por que ele não deveria ser o maior dos doze?

Então, sacudi a cabeça. Concentre-se.

O trono ribombou. Uma onda de ira com a força de um vendaval chocou-se com a minha mente:

QUEM OUSA...

A voz parou abruptamente. A raiva recuou, o que era uma coisa boa, pois apenas aquelas duas palavras quase haviam feito minha mente explodir em estilhaços.

Percy. A voz de meu pai ainda estava furiosa, porém mais controlada. O que exatamente você está fazendo no meu trono?

— Desculpe, pai — disse eu. — Precisava atrair sua atenção.

Isso foi muito perigoso. Mesmo para você. Se eu não tivesse olhado antes de fulminá-lo, você agora seria uma poça de água do mar.

— Desculpe — repeti. — Ouça, as coisas estão barra-pesada por aqui.

Contei-lhe o que estava acontecendo. Em seguida, contei-lhe meu plano.

Ele ficou em silêncio por muito tempo.

Percy, o que você está pedindo é impossível. Meu palácio...

— Pai, Cronos mandou um exército contra você de propósito. Ele quer separá-lo dos outros deuses porque sabe que você poderia fazer pender a balança.

Pode ser, mas ele atacaria o meu lar.

— Eu estou no seu lar — falei. — O Olimpo.

O chão tremeu. Uma onda de ira varreu a minha mente. Pensei ter ido longe demais, mas então o tremor diminuiu. No fundo de minha ligação mental, ouvi explosões subaquáticas e o som de gritos de guerra: ciclopes berrando, tritões gritando.

— Tyson está bem? — perguntei.

A pergunta pareceu pegar meu pai de surpresa.

Está ótimo. Saindo-se muito melhor do que esperei. Embora “manteiga de amendoim” seja um estranho grito de guerra.

— Você o deixou combater?

Pare de mudar de assunto! Você se dá conta do que está me pedindo? Meu palácio será destruído.

— E talvez o Olimpo seja salvo.

Tem ideia de quanto tempo levei para reformar este palácio? Só a sala de jogos levou seiscentos anos.

— Pai...

Muito bem! Que seja como você diz. Mas, meu filho, reze para que funcione.

— Já estou rezando, falando com você, certo?

Ah... sim. Bom argumento. Anfitrite... estou indo!

O som de uma grande explosão interrompeu nossa conversa.

Desci do trono.

Grover examinou-me nervosamente.

— Você está bem? Ficou pálido e... começou a fumegar.

— Eu não fiz isso! — Então olhei para meu braços. O vapor ainda subia das mangas da minha camisa. Os pelos estavam chamuscados.

— Se ficasse sentado ali por mais tempo — disse Annabeth —, teria se consumido em combustão espontânea. Espero que a conversa tenha valido a pena.

Muu, disse o Ofiotauro em sua esfera de água.

— Vamos descobrir logo — repliquei.

Nesse exato momento as portas da sala dos tronos se abriram. Thalia entrou. Seu arco estava quebrado ao meio e a aljava, vazia.

— Vocês têm de descer — disse-nos ela. — O inimigo está avançando. E é Cronos quem está liderando.


DEZOITO

Minha familia entra na luta

Quando chegamos à rua, já era tarde demais.

Campistas e Caçadoras jaziam feridos no chão. Clarisse devia ter perdido a luta com um gigante hiperbóreo, pois ela e a carruagem encontravam-se imobilizados em um bloco de gelo. Os centauros não estavam em nenhum lugar à vista. Ou eles haviam entrado em pânico e fugido ou tinham sido desintegrados.

O exército do titã cercava o edifício, a uns três metros das portas. A vanguarda de Cronos liderava: Ethan Nakamura, a rainha dracaena em sua armadura verde e dois hiperbóreos. Não vi Prometeu. A doninha escorregadia provavelmente estava escondida em seu quartel-general. E o próprio Cronos encontrava-se à frente, com a foice na mão.

A única coisa que se interpunha em seu caminho era...

— Quíron — disse Annabeth, a voz trêmula.

Se Quíron ouviu, não respondeu. Tinha uma flecha pronta para disparar, apontada direto para o rosto de Cronos.

Assim que Cronos me viu, seus olhos dourados se inflamaram. Cada músculo no meu corpo se imobilizou. Então, o Senhor Titã tornou a dirigir sua atenção para Quíron.

— Saia do caminho, meu filho.

Ouvir Luke chamar Quíron de seu filho já era bastante estranho, mas Cronos tinha desprezo na voz, como se filho fosse a pior palavra que lhe ocorresse.

— Receio que não. — O tom de Quíron era calmo e frio, como ele fica quando está com muita raiva.

Tentei me mover, mas meus pés pesavam como concreto. Annabeth, Grover e Thalia pareciam fazer força também, como se estivessem igualmente imobilizados.

— Quíron! — gritou Annabeth. — Cuidado!

A rainha dracaena impacientou-se e atacou. A flecha de Quíron voou direto para o ponto entre seus olhos, e ela foi pulverizada de imediato, a armadura vazia retinindo contra o asfalto.

Quíron levou a mão para pegar outra flecha, mas sua aljava estava vazia. Ele largou o arco e puxou a espada. Eu sabia que ele odiava lutar com a espada. Essa nunca foi sua arma favorita.

Cronos deu uma risadinha. Avançou um passo, e a metade cavalo de Quíron agitou-se nervosamente. Sua cauda balançando de um lado para o outro.

— Você é um instrutor — disse Cronos com desdém. — Não um herói.

— Luke era um herói — afirmou Quíron. — Dos bons. Até você corrompê-lo.

— TOLO! — A voz de Cronos sacudiu a cidade. — Você encheu a cabeça dele com promessas vazias. Disse que os deuses se preocupavam comigo!

— Comigo — observou Quíron. — Você disse comigo.

Cronos pareceu confuso e, naquele momento, Quíron atacou. Foi uma boa manobra — uma finta seguida por um golpe no rosto. Eu mesmo não poderia ter feito melhor, mas Cronos era rápido. Tinha toda a habilidade de Luke na esgrima, o que era muita coisa. Com um golpe, ele arrancou a lâmina de Quíron de suas mãos e gritou:

— PARA TRÁS!

Uma luz branca cegante explodiu entre o Titã e o centauro. Quíron voou de encontro à lateral do edifício com tamanha força que a parede se esfacelou e desmoronou em cima dele.

— Não! — gemeu Annabeth.

O feitiço da imobilização se quebrou. Corremos para o nosso professor, mas não havia sinal dele. Thalia e eu retirávamos inutilmente os tijolos, enquanto uma onda de risadas pavorosas percorria o exército do titã.

— VOCÊ! — Annabeth voltou-se para Luke. — E pensar que eu... que eu achava...

Ela sacou a faca.

— Annabeth, não. — Tentei segurar seu braço, mas ela se livrou de mim.

E atacou Cronos. O sorriso presunçoso dele desapareceu. Talvez alguma parte de Luke tenha se lembrado de que costumava gostar daquela garota, costumava cuidar dela quando ela era criança. Ela mergulhou a faca entre as tiras da armadura dele, em sua clavícula. A lâmina deveria ter afundado em seu peito. Em vez disso, ricocheteou. Annabeth dobrou-se para a frente, agarrando o braço junto à barriga. O impacto devia ter sido forte o bastante para deslocar seu ombro ruim.

Puxei-a para trás quando Cronos brandiu a foice, cortando o ar no local onde ela estivera.

Ela tentava se desvencilhar de mim e gritava:

— EU ODEIO VOCÊ!

Eu não sabia ao certo com quem ela estava falando — comigo, com Luke ou com Cronos. Lágrimas abriam caminho em meio à poeira que cobria seu rosto.

— Tenho de enfrentá-lo — disse-lhe eu.

— Essa luta é minha também, Percy!

Cronos riu.

— Quanta coragem. Posso ver por que Luke queria poupá-la. Infelizmente, isso não vai ser possível.

Ele ergueu a foice. Preparei-me para aparar o golpe, mas antes que Cronos pudesse desferi-lo o uivo de um cão atravessou o ar, vindo de algum ponto atrás de seu exército.

— Auuuuuuuuu!

Era demais esperar isso, mas chamei:

— Sra. O’Leary?

As tropas inimigas moveram-se inquietas. Então, a coisa mais estranha aconteceu. Elas começaram a se dividir, abrindo passagem pela rua, como se algo atrás delas as obrigasse a isso.

Logo havia um corredor vazio no centro da Quinta Avenida. No fim da quadra estava minha cadela gigante e uma pequena figura de armadura negra.

— Nico? — chamei.

— ROLF! — A sra. O’Leary veio saltitando na minha direção, ignorando os monstros que rosnavam de ambos os lados da rua. Nico avançou a passos largos. O exército inimigo recuava diante dele como se ele irradiasse morte, o que, é claro, ele fazia.

Através da viseira de seu capacete em formato de caveira ele sorriu.

— Recebi sua mensagem. É tarde demais para participar da festa?

— Filho de Hades. — Cronos cuspiu no chão. — Você ama tanto assim a morte que quer experimentá-la?

— A sua morte — disse Nico — estaria ótima para mim.

— Eu sou imortal, seu tolo! Escapei do Tártaro. Você não tem nada para fazer aqui, e nenhuma chance de sobreviver.

Nico sacou a espada — quase um metro do maligno e afiado ferro estígio, negro como um pesadelo.

— Eu discordo.

O chão ribombou. Surgiram rachaduras na rua, nas calçadas, nas laterais dos edifícios. Mãos de esqueletos agarravam o ar à proporção que os mortos abriam caminho para o mundo dos vivos. Eram milhares deles, e, à medida que emergiam, os monstros do titã iam ficando nervosos e recuavam.

— MANTENHAM SUAS POSIÇÕES! — exigia Cronos. — Os mortos não são páreo para nós.

O céu ficou escuro e frio. As sombras se espessaram. Uma estridente corneta de guerra soou, e, enquanto os soldados mortos formavam fileiras com suas armas de fogo, espadas e lanças, uma enorme carruagem rugiu pela Quinta Avenida, indo parar ao lado de Nico. Os cavalos eram sombras vivas, modelados com a escuridão. A carruagem era marchetada com obsidiana e ouro, decorada com cenas de mortes dolorosas. No controle das rédeas estava o próprio Hades, Senhor dos Mortos, com Deméter e Perséfone atrás dele.

Hades usava armadura negra e um manto da cor de sangue fresco. No alto de sua cabeça pálida estava o capacete da escuridão: uma coroa que irradiava puro terror. Ela mudava de forma enquanto eu a observava — da cabeça de um dragão para um círculo de chamas negras e, então, para uma guirlanda de ossos humanos. Mas isso não era o mais assustador. O capacete entrou em minha mente e despertou meus piores pesadelos, meus medos mais secretos. Eu queria me enfiar em um buraco e me esconder —, e podia ver que o exército inimigo sentia o mesmo. Somente o poder e a autoridade de Cronos impediu que suas tropas fugissem.

Hades sorriu com frieza.

— Olá, pai. Você parece... jovem.

— Hades — rosnou Cronos. — Espero que você e as senhoras tenham vindo prestar sua lealdade.

— Receio que não. — Hades suspirou. — Meu filho aqui me convenceu de que talvez eu devesse estabelecer prioridades em minha lista de inimigos. — Ele me olhou com desprazer. — Por mais que eu desgoste de certos semideuses ascendentes, isso não compensaria a queda do Olimpo. Eu sentiria falta de discutir com meus irmãos. Aliás, se há uma coisa em que concordamos, é que você foi um PÉSSIMO pai.

— É verdade — murmurou Deméter. — Não teve nenhum apreço pela agricultura.

— Mãe! — queixou-se Perséfone.

Hades puxou a espada, uma lâmina estígia de dois gumes marcados com prata em água-forte.

— Agora lute comigo! Pois hoje a Casa de Hades passará a ser chamada de Os Salvadores do Olimpo.

— Não tenho tempo para isso — rosnou Cronos.

Então ele bateu no chão com a foice. Uma fenda se espalhou em ambas as direções, circulando o Empire State Building. Uma parede de força tremulou ao longo da fissura, separando a vanguarda de Cronos, meus amigos e eu do corpo dos dois exércitos.

— O que ele está fazendo? — murmurei.

— Lacrando-nos aqui dentro — disse Thalia. — Está desativando as barreiras mágicas em torno de Manhattan, isolando apenas o prédio... e nós.

De fato, do lado de fora da barreira motores de carros ganharam vida. Pedestres despertaram e olharam sem entender para os monstros e os zumbis à sua volta. Não tinha como saber o que viam através da Névoa, mas estou certo de que era bastante assustador. Portas de carros se abriram. E, no fim daquela quadra, Paul Blofis e minha mãe saltaram do Prius.

— Não — disse eu. — Não...

Minha mãe conseguia enxergar através da Névoa. Pela expressão dela, eu podia ver que compreendia o quanto as coisas estavam sérias. Esperei que tivesse o bom senso de correr. Mas seus olhos encontraram os meus, ela disse algo a Paul, e eles correram em nossa direção.

Eu não podia gritar. A última coisa que queria era chamar a atenção de Cronos para ela.

Felizmente, Hades o distraiu. Investiu contra a parede de força, mas sua carruagem colidiu contra ela e virou. Ele se levantou e tentou explodir a parede com energia negra. A barreira resistiu.

— ATAQUEM! — rugiu ele.

O exército dos mortos investiu contra os monstros do titã. A Quinta Avenida transformou-se em um verdadeiro caos. Os mortais gritavam e corriam, em busca de proteção. Deméter agitou a mão e toda uma coluna de gigantes se transformou em um campo de trigo. Perséfone fez as lanças das dracaenae virarem girassóis. Nico brandia sua espada, abrindo caminho em meio ao inimigo, tentando proteger os pedestres. Meus pais corriam em minha direção, desviando-se de monstros e zumbis, mas não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-los.

— Nakamura — disse Cronos —, você me dá cobertura. Gigantes, cuidem deles.

Ele apontou para mim e meus amigos. Então, disparou para o saguão.

Por um segundo, fiquei atônito. Eu estivera esperando uma luta, mas Cronos havia me ignorado completamente, como se não valesse a pena perder tempo comigo. Isso me deixou furioso.

O primeiro gigante hiperbóreo me golpeou com seu porrete. Eu rolei por entre suas pernas e espetei Contracorrente em seu traseiro. Ele se estilhaçou em uma pilha de cacos de gelo. O segundo gigante bafejou gelo em Annabeth, que mal conseguia ficar em pé, mas Grover puxou-a, tirando-a do caminho, enquanto Thalia atacava. Ela saltou nas costas do gigante como uma gazela, deslizou suas facas de caça pelo pescoço azul monstruoso e criou a maior escultura de gelo sem cabeça do mundo.

Olhei para fora da barreira mágica. Nico lutava, abrindo caminho na direção de minha mãe e de Paul, mas eles não ficaram esperando ajuda. Paul agarrou a espada de um herói caído e fez um trabalho bastante bom mantendo uma dracaena ocupada. Por fim, ele a espetou na barriga, e ela se desintegrou.

— Paul? — disse eu, assombrado.

Ele virou-se para mim e sorriu.

— Espero que tenha sido um monstro isso que acabei de matar. Fiz parte de um grupo de teatro de Shakespeare na faculdade! Aprendi um pouquinho de esgrima!

Gostei ainda mais dele por isso, mas então um gigante lestrigão atacou minha mãe. Ela vasculhava um carro de polícia abandonado — talvez à procura do rádio de emergência — e estava de costas para o gigante.

— Mãe! — gritei.

Ela girou quando o monstro estava quase em cima dela. Pensei que o que tinha nas mãos fosse uma sombrinha até que ela engatilhou e a explosão da espingarda lançou o gigante uns sete metros para trás, direto ao encontro da espada de Nico.

— Boa — disse Nico.

— Quando foi que você aprendeu a atirar com espingarda? — perguntei.

Mamãe soprou o cabelo que lhe caía no rosto.

— Há uns vinte segundos. Percy, nós vamos ficar bem. Vá!

— Sim — concordou Nico —, vamos cuidar do exército. Você precisa pegar Cronos!

— Venha, Cabeça de Alga! — chamou Annabeth.

Assenti. Então olhei para a pilha de escombros na lateral do prédio. Meu coração se afligiu. Eu havia me esquecido de Quíron. Como pudera fazer isso?

— Sra. O’Leary — disse eu. — Por favor, Quíron está lá embaixo. Se alguém pode tirá-lo de lá, é você. Encontre-o! Ajude-o!

Não sei o quanto ela compreendeu mas foi correndo para a pilha e começou a cavar. Annabeth, Thalia, Grover e eu corremos para os elevadores.


DEZENOVE

Destruímos a cidade eterna

A ponte para o Olimpo estava se desintegrando. Saltamos do elevador para o caminho de mármore branco e imediatamente apareceram rachaduras aos nossos pés.

— Pulem! — disse Grover, o que para ele era fácil, pois ele é metade bode montês.

Ele saltou para a laje de pedra seguinte enquanto a nossa se inclinava nauseantemente.

— Deuses, eu odeio altura! — gritou Thalia quando eu e ela pulamos.

Annabeth, porém, não estava em condições de pular. Ela cambaleou e gritou:

— Percy!

Peguei-a pela mão no momento em que o calçamento ruiu, transformando-se em pó. Por um segundo pensei que ela fosse cair, me levando com ela. Seus pés pendiam no ar. Sua mão começou a escorregar até que eu a segurava apenas pelos dedos. Então, Grover e Thalia agarraram minhas pernas, e eu encontrei força extra. Annabeth não ia despencar.

Puxei-a para cima e ficamos caídos, tremendo, no calçamento. Não percebi que estávamos abraçados até que, de repente, ela se retesou.

— Hã, obrigada — murmurou.

Tentei dizer Não há de quê, mas saiu algo como: “Hã, dãh.”

— Continuem! — Grover puxou meu ombro.

Nós nos soltamos e atravessamos correndo a ponte no céu enquanto mais pedras se soltavam e despencavam no abismo. Chegamos à montanha no momento em que o último trecho ruiu.

Annabeth olhou para trás, para o elevador, que agora estava completamente fora de alcance — duas portas de metal polido pairando no espaço, presas a nada, seiscentos andares acima de Manhattan.

— Estamos isolados — disse ela. — Por nossa própria conta.

— Bé-é-é! — respondeu Grover. — A conexão entre o Olimpo e a América está se dissolvendo. Se ruir...

— Os deuses não vão se mudar para outro país desta vez — disse Thalia. — Esse vai ser o fim do Olimpo. O momento derradeiro.

Corremos pelas ruas. Mansões queimavam. Estátuas haviam sido derrubadas. Nos parques, árvores tinham sido reduzidas a lascas. Parecia que alguém havia atacado a cidade com um cortador de grama gigante.

— A foice de Cronos — disse eu.

Seguimos o caminho sinuoso em direção ao palácio dos deuses. Não me lembrava de a estrada ser tão comprida. Talvez Cronos estivesse fazendo o tempo passar mais lentamente — ou talvez fosse apenas o terror me retardando. Todo o topo da montanha estava em ruínas — tantos prédios e jardins lindos destruídos.

Alguns deuses menores e espíritos da natureza haviam tentado deter Cronos. O que restava deles espalhava-se pela estrada: armaduras espatifadas, roupas rasgadas, espadas e lanças partidas ao meio.

Em algum lugar à nossa frente a voz de Cronos rugiu:

— Tijolo por tijolo! Foi esta a minha promessa. Vou demolir TIJOLO POR TIJOLO!

Um templo de mármore branco com um domo dourado subitamente explodiu. O domo disparou para o alto como a tampa de uma chaleira e se estilhaçou em um bilhão de pedaços, fazendo chover entulho sobre a cidade.

— Aquele era um santuário para Ártemis — grunhiu Thalia. — Ele vai pagar por isso.

Corríamos sob o arco de mármore com as imensas estátuas de Zeus e Hera quando toda a montanha rangeu, adernando como um barco em uma tempestade.

— Cuidado! — gritou Grover. O arco desmoronou. Ergui os olhos a tempo de ver uma Hera de vinte toneladas, carrancuda, caindo sobre nós. Annabeth e eu teríamos sido esmagados, mas Thalia nos empurrou por trás e caímos no chão, fora de perigo.

— Thalia! — gritou Grover.

Quando a poeira assentou e a montanha parou de balançar, nós a encontramos ainda viva, mas com as pernas presas sob a estátua.

Tentamos desesperadamente mover a estátua, mas teriam sido necessários vários ciclopes para isso. Quando tentamos soltar Thalia, puxando-a, ela gritou de dor.

— Sobrevivo a todas aquelas batalhas — resmungou ela — para ser derrotada por um estúpido pedaço de pedra!

— É Hera — disse Annabeth, ultrajada. — Ela aprontou comigo o ano todo. Sua estátua teria me matado se você não nos tivesse empurrado.

Thalia fez uma careta.

— Bem, não fiquem aí parados! Eu vou ficar bem. Vão!

Não queríamos deixá-la, mas eu podia ouvir Cronos rindo ao se aproximar do tribunal dos deuses. Mais prédios explodiram.

— Nós voltaremos — prometi.

— Eu não vou a lugar algum — gemeu Thalia.

Uma bola de fogo foi lançada na encosta da montanha, perto dos portões do palácio.

— Precisamos correr — disse eu.

— Não creio que você queira dizer para longe — murmurou Grover, esperançoso.

Disparei na direção do palácio, Annabeth logo atrás de mim.

— Era o que eu temia — suspirou Grover, trotando em nosso encalço.

As portas do palácio eram grandes o bastante para deixar passar um transatlântico, mas haviam sido arrancadas das dobradiças e estraçalhadas como se nada pesassem. Tivemos de escalar uma imensa pilha de pedras destroçadas e metal retorcido para entrar.

Cronos estava no centro da sala dos tronos, os braços abertos, olhando para o teto estrelado como se abarcasse tudo aquilo. Sua gargalhada ecoava ainda mais alta do que no abismo do Tártaro.

— Finalmente! — berrou ele. — O Conselho Olimpiano... tão orgulhoso e poderoso. Qual trono de poder eu vou destruir primeiro?

Ethan Nakamura estava parado a um lado, tentando se manter longe do caminho da foice de seu mestre. O braseiro estava quase apagado, apenas algumas brasas brilhavam embaixo das cinzas. Héstia não se encontrava em nenhum lugar à vista. Tampouco Rachel. Eu torcia para que ela estivesse bem, mas havia visto tanta destruição que tinha medo de pensar a respeito. O Ofiotauro nadava em sua esfera de água no canto mais distante da sala, sabiamente não emitindo nenhum som, mas não ia demorar muito para que Cronos o notasse.

Annabeth, Grover e eu demos um passo à frente na direção da luz das tochas. Ethan nos viu primeiro.

— Meu senhor — avisou ele.

Cronos virou-se e sorriu por meio do rosto de Luke. Exceto pelos olhos dourados, ele parecia exatamente o mesmo de quatro anos atrás, quando me dera as boas-vindas no chalé de Hermes. Annabeth emitiu um som dolorido no fundo da garganta, como se alguém tivesse acabado de lhe acertar um soco inesperado.

— Devo destruí-lo primeiro, Jackson? — perguntou Cronos. — Essa é a escolha que você fará: lutar contra mim e morrer em vez de se curvar? As profecias nunca terminam bem, você sabe.

— Luke lutaria com uma espada — falei. — Mas suponho que você não tenha a habilidade dele.

Cronos sorriu com escárnio. Sua foice começou a mudar, até ele estar segurando a antiga espada de Luke, Mordecostas, com sua lâmina metade aço, metade bronze celestial.

Ao meu lado, Annabeth arquejou como se de repente tivesse tido uma ideia.

— Percy, a lâmina! — Ela desembainhou sua faca. — E a alma do herói, a lâmina maldita ceifará.

Não entendi por que ela estava me lembrando daquele verso da profecia naquele momento. Não era exatamente algo que levantasse o moral, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa Cronos ergueu a espada.

— Espere! — gritou Annabeth.

Cronos veio para cima de mim como um furacão.

Meus instintos assumiram o controle. Eu me desviei, ataquei e rolei, mas tinha a sensação de estar lutando contra uma centena de espadachins. Ethan correu, tentando posicionar-se atrás de mim, mas Annabeth o interceptou. Eles começaram a lutar, mas eu não podia me concentrar em como ela estava se saindo. Percebi vagamente que Grover começara a tocar sua flauta de bambu. O som me encheu de entusiasmo e coragem — imagens da luz do sol, de um céu azul e de uma campina tranquila, em algum lugar distante da guerra.

Cronos encurralou-me contra o trono de Hefesto — uma imensa estrutura mecânica reclinável coberta por engrenagens de bronze e prata. O titã brandiu a espada, e eu consegui saltar para o assento. O trono começou a emitir barulhos e zumbidos, vindos dos mecanismos secretos. Modo de defesa, avisou ele. Modo de defesa.

Aquilo não podia ser bom. Pulei por sobre a cabeça de Cronos quando o trono disparou ondas elétricas em todas as direções. Uma delas atingiu Cronos no rosto, fazendo-o arquear o corpo e erguer a espada.

— ARGH! — Ele caiu de joelhos e largou Mordecostas.

Annabeth viu sua oportunidade. Chutou Ethan, tirando-o do caminho, e avançou para Cronos.

— Luke, ouça!

Eu queria gritar com ela, dizer-lhe que era louca por tentar argumentar com Cronos, mas não houve tempo para isso. Cronos moveu a mão, e Annabeth voou para trás, indo bater no trono de sua mãe e desabando no chão.

— Annabeth! — gritei.

Ethan Nakamura levantou-se. Ele agora se interpunha entre mim e Annabeth. Eu não podia lutar com ele sem dar as costas para Cronos.

A música de Grover assumiu um tom mais urgente. Ele se movia na direção de Annabeth, mas, tocando, não podia ir mais rápido. No chão da sala dos tronos começou a crescer grama. Raízes minúsculas insinuavam-se entre as rachaduras das pedras de mármore.

Cronos ergueu-se, apoiando-se em um dos joelhos. Seu cabelo fumegava. O rosto estava coberto por queimaduras. Ele estendeu a mão para a espada, mas dessa vez ela não voou para ele.

— Nakamura! — ele gemeu. — Hora de provar seu valor. Você conhece o ponto vulnerável de Jackson. Mate-o, e será infinitamente recompensado.

Os olhos de Ethan desceram para a parte inferior do meu tronco, e eu tive certeza de que ele sabia. Mesmo que não conseguisse me matar, tudo o que tinha de fazer era contar aquilo a Cronos. Não havia como eu me defender para sempre.

— Olhe à sua volta, Ethan — disse eu. — O fim do mundo. É essa a recompensa que você quer? Quer mesmo ver tudo destruído: o bem e o mal? Tudo?

A essa altura Grover já estava alcançando Annabeth. A grama se espessava no chão. As raízes tinham quase trinta centímetros e pareciam pelos de barba crescendo.

— Não tem nenhum trono para Nêmesis — murmurou Ethan. — Nenhum trono para minha mãe.

— Isso mesmo! — Cronos tentou se levantar, mas cambaleou. Acima de sua orelha esquerda um tufo de cabelos louros ainda fumegava. — Aniquile-os! Eles merecem sofrer.

— Você disse que sua mãe é a deusa do equilíbrio — lembrei-lhe. — Os deuses menores merecem mais, Ethan, mas a destruição total não é o equilíbrio. Cronos não constrói. Ele só destrói.

Ethan olhou para o trono crepitante de Hefesto. A música de Grover continuava, e Ethan se balançava com o ritmo, como se a música o enchesse de nostalgia — um desejo de ver um lindo dia, de estar em qualquer lugar, menos ali. Seu olho bom piscou.

Então ele atacou... mas não a mim.

Enquanto Cronos ainda estava de joelhos, Ethan baixou sua espada contra o pescoço do Senhor Titã. Isso deveria tê-lo matado instantaneamente, mas a lâmina se estilhaçou. Ethan caiu para trás, abraçando a barriga. Um estilhaço de sua própria lâmina havia ricocheteado e perfurado sua armadura.

Cronos se ergueu, vacilante, assomando junto ao servo.

— Traição! — rosnou.

A música de Grover continuava a tocar, e a grama crescia em torno do corpo de Ethan, que me fitou, o rosto contraído de dor.

— Merecem mais — arquejou ele. — Se eles ao menos... tivessem tronos...

Cronos bateu o pé e o chão se abriu ao redor de Ethan. O filho de Nêmesis caiu por uma fissura que passava direto pelo coração da montanha — direto para o vazio.

— Este é o fim dele. — Cronos apanhou a espada. — E agora o de vocês.

Meu único pensamento era manter Cronos longe de Annabeth.

Grover agora estava ao lado dela. Havia parado de tocar e dava-lhe um pouco de ambrosia.

Em todo lugar que Cronos pisava as raízes envolviam seus pés, mas Grover havia parado a mágica cedo demais. As raízes não eram grossas nem fortes o suficiente para fazer outra coisa que não irritar o titã.

Atravessamos o braseiro lutando, chutando brasas e faíscas. Cronos arrancou um descanso de braço do trono de Ares, o que para mim não era nenhum problema, mas então ele me fez recuar até o trono de meu pai.

— Ah, sim — disse Cronos. — Este vai dar ótima lenha para minha nova lareira!

Nossas lâminas se chocaram com uma chuva de centelhas. Ele era mais forte do que eu, mas nesse momento eu sentia em meus braços a força do oceano. Empurrei-o para trás e golpeei novamente, acertando Contracorrente em seu peitoral com tanta força que abri uma brecha no bronze celestial.

Cronos tornou a bater o pé, e o tempo desacelerou. Tentei atacar, mas estava me movendo à velocidade de uma geleira. Cronos recuou lentamente, recuperando o fôlego. Examinou o rasgo em sua armadura enquanto eu lutava para avançar, amaldiçoando-o em silêncio. Ele podia ter todos os tempos de descanso que quisesse. Podia me imobilizar à vontade. Minha única esperança era que o esforço o estivesse consumindo. Se eu pudesse esgotá-lo...

— É tarde demais, Percy Jackson — disse ele. — Olhe.

Ele apontou para o braseiro, e as brasas brilharam. Um lençol de fumaça branca fluiu do fogo, formando imagens como uma mensagem de Íris. Vi Nico e meus pais na Quinta Avenida, lutando uma batalha perdida, cercados por inimigos. Em segundo plano, Hades lutava em sua carruagem negra, convocando onda após onda de zumbis, que iam emergindo do chão, mas as forças do exército do titã pareciam igualmente infindáveis. Enquanto isso, Manhattan ia sendo destruída. Os mortais, agora totalmente despertos, corriam aterrorizados. Automóveis guinavam e colidiam.

A cena mudou, e vi algo ainda mais apavorante.

Uma massa de tempestade aproximava-se do Rio Hudson, movendo-se rapidamente pela costa de Jersey. Carruagens a cercavam, unidas em combate contra a criatura na nuvem.

Os deuses atacavam. Relâmpagos cintilavam. Flechas de ouro e prata penetravam a nuvem como foguetes traçantes e explodiam. Lentamente, a nuvem se abriu, e vi Tifão com clareza pela primeira vez.

E soube que enquanto vivesse (o que não deveria ser assim tanto tempo) jamais conseguiria tirar aquela imagem de minha mente. A cabeça de Tifão mudava o tempo todo. A cada momento ele era um monstro diferente, cada um mais horrível do que o anterior. Olhar para seu rosto teria me enlouquecido, então fixei os olhos em seu corpo, que não era muito melhor. Ele era humanoide, mas sua pele me lembrava um sanduíche de almôndegas que tivesse ficado no armário de alguém o ano todo. Tinha manchas verdes, com bolhas do tamanho de edifícios, e marcas enegrecidas pelos éons que ficaram presos debaixo do vulcão. Suas mãos eram humanas, mas com garras de águia. As pernas eram escamosas e reptilianas.

— Os olimpianos estão empreendendo seu esforço final. — Cronos riu. — Que patético!

Zeus lançou um raio de sua carruagem. A explosão iluminou o mundo. Pude sentir o choque mesmo ali no Olimpo, mas quando a poeira baixou, Tifão ainda estava de pé. Cambaleava um pouco, com uma cratera fumegante no alto da cabeça deformada, mas rugia enfurecido e continuava avançando.

Meus membros voltaram a se mexer. Cronos não pareceu perceber. Sua atenção estava voltada para a luta e sua vitória final. Se eu pudesse resistir mais alguns segundos, e se meu pai cumprisse a palavra...

Tifão entrou no Rio Hudson e mal afundou até a metade da panturrilha.

Agora, pensei, implorando à imagem na fumaça. Por favor, tem de acontecer agora.

Como um milagre, uma trombeta de concha soou vindo da imagem fumacenta. O chamado do oceano. O chamado de Poseidon.

Ao redor de Tifão, o Rio Hudson irrompeu com violência, agitando-se com ondas de mais de doze metros. Da água surgiu uma nova carruagem — esta puxada por imensos cavalos-marinhos, que nadavam no ar com a mesma facilidade que na água. Meu pai, brilhando com uma aura azul de poder, descreveu um círculo desafiador em torno das pernas do gigante. Poseidon não era mais um velho. Mostrava-se novamente como ele mesmo — bronzeado e forte, com a barba preta. Quando ele brandia o tridente, o rio respondia, formando uma nuvem afunilada em torno do monstro.

— Não! — Cronos berrou após um momento de silêncio atônito. — NÃO!

— AGORA, MEUS COMPANHEIROS! — A voz de Poseidon era tão alta que eu não tinha certeza se a estava ouvindo da imagem de fumaça ou do outro lado da cidade. — LUTEM PELO OLIMPO!

Guerreiros irromperam do rio, cavalgando as ondas em imensos tubarões, dragões e cavalos-marinhos. Era uma legião de ciclopes, e liderando-os na batalha estava...

— Tyson! — gritei.

Eu sabia que ele não podia me ouvir, mas eu o olhava assombrado. Ele havia aumentado magicamente de tamanho. Devia estar com uns dez metros de altura, tão grande quanto qualquer um de seus primos mais velhos, e pela primeira vez estava usando a armadura completa. Logo atrás dele ia Briareu, o centímano.

Todos os ciclopes seguravam imensas extensões de correntes de ferro negro — grandes o suficiente para ancorar um encouraçado — com ganchos de quatro pontas nas extremidades. Eles as giravam como laços e começaram a prender Tifão, lançando cordas em torno das pernas e dos braços da criatura, usando a maré para continuar circulando, enredando-o lentamente. Tifão se sacudia, rugia e puxava as correntes, arrancando alguns ciclopes de suas montarias; mas havia correntes demais. O simples peso do batalhão começou a cansar Tifão. Poseidon atirou seu tridente e atravessou a garganta do monstro. O icor dourado imortal jorrou do ferimento, criando uma cachoeira mais alta que um arranha-céu. O tridente voou de volta para a mão de Poseidon.

Os outros deuses atacaram com força renovada. Ares aproximou-se e apunhalou Tifão no nariz. Ártemis acertou o monstro no olho com uma dúzia de flechas de prata. Apolo disparou uma chamejante saraivada de flechas e ateou fogo à tanga do monstro. E Zeus continuou golpeando o gigante com raios até que por fim, lentamente, a água se ergueu, envolvendo Tifão como um casulo, e ele começou a afundar, sob o peso das correntes. O monstro gritava em agonia, debatendo-se com tanta força que as ondas inundaram o litoral de Jersey, cobrindo prédios de cinco andares e erguendo-se na Ponte George Washington, e afundou quando meu pai abriu um túnel especial no fundo do rio, um interminável escorrega que o levaria direto para o Tártaro. A cabeça do gigante foi engolida por um redemoinho fervilhante, e ele desapareceu.

— AH! — gritou Cronos, e então atravessou a fumaça com a espada, estilhaçando a imagem.

— Estão vindo para cá — falei. — Você está perdido.

— Eu ainda nem comecei.

Ele avançou numa velocidade ofuscante. Grover — o sátiro bravo e estúpido — tentou me proteger, mas Cronos o atirou para o lado como uma boneca de pano.

Eu dei um passo para o lado e o apunhalei sob a guarda. Era um bom truque. Infelizmente, Luke o conhecia. Ele contrapôs o golpe e me desarmou usando um dos primeiros movimentos que me ensinara. Minha espada deslizou pelo chão e foi cair direto na fissura aberta.

— PARE! — Annabeth surgiu do nada.

Cronos girou para enfrentá-la e brandiu Mordecostas, mas não sei como Annabeth aparou o golpe com o punho de sua faca. Era uma jogada que somente o lutador de faca mais rápido e hábil poderia ter feito. Não me pergunte onde ela encontrou a força, mas deu um passo à frente para alavancar as lâminas cruzadas, e por um momento ficou cara a cara com o Senhor Titã, imobilizando-o.

— Luke — disse ela, rangendo os dentes —, agora eu compreendo. Você tem de confiar em mim.

Cronos rugiu de fúria.

— Luke Castellan está morto! Seu corpo será consumido pelo fogo quando eu assumir minha verdadeira forma!

Tentei me mover, mas meu corpo estava novamente imobilizado. Como Annabeth, machucada e quase morta de exaustão, encontrava forças para lutar contra um titã como Cronos?

Ele fez força contra ela, tentando soltar sua lâmina, mas ela o conteve, os braços tremendo enquanto ele forçava a espada na direção de seu pescoço.

— Sua mãe — grunhiu Annabeth. — Ela viu o seu destino.

— Servir a Cronos! — rugiu o titã. — Esse é o meu destino.

— Não! — insistiu Annabeth. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas eu não sabia se eram de tristeza ou de dor. — Não é esse o fim, Luke. A profecia: ela viu o que você faria. A profecia se aplica a você!

— Eu vou destruí-la, criança! — berrou Cronos.

— Não vai — replicou Annabeth. — Você prometeu. Neste exato momento você está contendo Cronos.

— MENTIRAS!

Cronos tornou a empurrar, e dessa vez Annabeth perdeu o equilíbrio. Com a mão livre, Cronos bateu em seu rosto, e ela deslizou para trás.

Reuni toda a minha força de vontade. Consegui me levantar, mas era como se eu estivesse segurando o peso do céu novamente.

Cronos avultou-se junto a Annabeth, a espada erguida.

O sangue escorria do canto da boca de Annabeth. Ela grasnou:

— Família, Luke. Você prometeu.

Dei um passo doloroso à frente. Grover estava de pé outra vez, perto do trono de Hera, mas também parecia estar fazendo força para se mover. Antes que um de nós conseguisse se aproximar de Annabeth, Cronos cambaleou.

Ele olhou para a faca na mão de Annabeth, para o sangue em seu rosto.

— Promessa.

Então arquejou, como se não conseguisse respirar.

— Annabeth... — Mas não era a voz do titã. Era a de Luke. Ele tropeçou, como se não conseguisse controlar o próprio corpo. — Você está sangrando...

— Minha faca. — Annabeth tentou erguer a faca, que caiu ruidosamente de sua mão. Seu braço estava dobrado em um ângulo estranho. Ela olhou para mim, suplicante. — Percy, por favor...

Eu podia me mover outra vez.

Corri e peguei a faca. Arranquei Mordecostas da mão de Luke e lancei-a na lareira. Luke mal prestava atenção em mim. Ele deu um passo na direção de Annabeth, mas eu me coloquei entre os dois.

— Não toque nela — falei.

A raiva atravessou seu rosto. A voz de Cronos rosnou:

— Jackson...

Era imaginação minha ou seu corpo inteiro estava brilhando, ficando dourado?

Ele tornou a arquejar. A voz de Luke:

— Ele está mudando. Ajudem-me. Ele está... está quase pronto. Não vai mais precisar do meu corpo. Por favor...

— NÃO! — berrou Cronos.

Ele olhou ao redor, procurando a espada, mas ela estava na lareira, ardendo entre as brasas.

Ele cambaleou naquela direção. Tentei detê-lo, mas ele me tirou do caminho, me empurrando com tanta força que fui cair ao lado de Annabeth e bati a cabeça ruidosamente na base do trono de Atena.

— A faca, Percy — murmurou Annabeth. Sua respiração era superficial. — Herói... lâmina maldita...

Quando minha visão recuperou o foco, vi Cronos pegando a espada. Ele então gritou de dor e a deixou cair. Suas mãos fumegavam, queimadas. O fogo na lareira havia se tornado incandescente, como se a foice não fosse compatível com ele. Vi uma imagem de Héstia bruxuleando nas cinzas, franzindo a testa com um olhar de desaprovação para Cronos.

Luke virou-se e desabou, apertando as mãos destruídas junto ao corpo.

— Por favor, Percy...

Consegui ficar de pé. Caminhei na direção de Cronos com a faca. Eu devia matá-lo. Esse era o plano.

Luke parecia saber o que eu estava pensando. Ele umedeceu os lábios.

— Você não pode... não pode fazer isso sozinho. Ele vai romper meu controle. Vai se defender. Somente minha mão. Eu sei onde. Eu posso... posso mantê-lo sob controle.

Ele agora estava definitivamente brilhando, sua pele começando a fumegar.

Ergui a faca para golpeá-lo. Então, olhei para Annabeth, para Grover embalando-a nos braços, tentando protegê-la. E finalmente entendi o que ela tentara me dizer.

Você não é o herói, dissera Rachel. Isso vai influenciar o que você fizer.

— Por favor — gemeu Luke. — Não há tempo.

Se Cronos evoluísse para sua verdadeira forma, não haveria como detê-lo. Ele faria Tifão parecer um garotinho valentão no playground.

O verso da grande profecia ecoava em minha cabeça: E a alma do herói, a lâmina maldita ceifará. Meu mundo inteiro virou de cabeça para baixo, e eu entreguei a faca a Luke.

Grover gritou.

— Percy? Você está... hã...

Louco. Insano. Com um parafuso frouxo. Provavelmente.

Mas observei Luke segurar o cabo.

Fiquei parado na frente dele — indefeso.

Ele abriu as correias laterais de sua armadura, expondo um pequeno pedaço de pele abaixo do braço esquerdo, um lugar que seria muito difícil atingir. Com dificuldade, ele apunhalou a si mesmo.

Não foi um corte muito fundo, mas Luke uivou. Seus olhos ardiam como lava. A sala do trono tremeu, me derrubando. Uma aura de energia cercou Luke, tornando-se cada vez mais brilhante. Fechei os olhos e senti uma força, como uma explosão nuclear, formar bolhas na minha pele e rachar meus lábios.

Tudo ficou silencioso por um longo tempo.

Quando voltei a abrir os olhos, vi Luke estatelado no braseiro. No chão à sua volta havia um círculo de cinzas. A foice de Cronos se liquefizera, transformando-se em metal derretido e se misturando ao fogo, que agora reluzia como a forja de um ferreiro.

O lado esquerdo de Luke estava ensanguentado. Seus olhos estavam abertos — azuis, como antes. Sua respiração era um ronco profundo.

— Boa... lâmina — gemeu ele.

Ajoelhei-me a seu lado. Annabeth aproximou-se mancando, amparada por Grover. Ambos tinham lágrimas nos olhos.

Luke fixou os olhos em Annabeth.

— Você sabia. Eu quase a matei, mas você sabia...

— Psiu. — A voz dela tremia. — No fim você foi um herói, Luke. Irá para o Elíseo.

Ele sacudiu a cabeça fracamente.

— Estou pensando... no renascer. Tentar três vezes. Ilhas dos Abençoados.

Annabeth fungou.

— Você sempre exigiu demais de si mesmo.

Ele ergueu a mão queimada. Annabeth tocou a ponta de seus dedos.

— Você... — Luke tossiu e seus lábios brilharam, vermelhos. — Você me amava?

Annabeth enxugou as lágrimas.

— Houve um tempo em que pensei... bem, pensei... — Ela olhou para mim, como se estivesse fascinada com o fato de eu ainda estar vivo. E percebi que eu fazia o mesmo. O mundo estava desabando, e a única coisa que de fato me importava era que ela ainda estava viva. — Você era como um irmão para mim, Luke — disse ela, suavemente. — Mas eu não o amava.

Ele assentiu, como se já esperasse essa resposta. E estremeceu de dor.

— Podemos ir buscar ambrosia — disse Grover. — Nós podemos...

— Grover. — Luke engoliu em seco. — Você é o sátiro mais corajoso que já conheci. Mas não. Não tem cura... — Ele tornou a tossir.

Ele agarrou a manga da minha roupa e pude sentir sua pele me queimando como fogo.

— Ethan. Eu. Todos os não reclamados. Não deixe... Não deixe acontecer outra vez.

Em seus olhos havia raiva, mas também súplica.

— Não vou deixar — falei. — Prometo.

Luke assentiu, e sua mão me soltou, flácida.

Os deuses chegaram alguns minutos depois em trajes completos de guerra, entrando estrondosamente na sala dos tronos, na expectativa de uma batalha.

O que encontraram foi Annabeth, Grover e eu de pé ao lado de um semideus destruído, à luz pálida e aconchegante do braseiro.

— Percy — chamou meu pai, o assombro em sua voz. — O que... o que é isto?

Eu me virei e encarei os olimpianos.

— Precisamos de uma mortalha — anunciei, minha voz falhando. — Uma mortalha para o filho de Hermes.


VINTE

Recebemos recompensas fabulosas

As Três Parcas levaram o corpo de Luke.

Eu não via as velhas senhoras havia anos, desde que testemunhara o momento em que cortaram um fio da vida em uma barraquinha de frutas na beira da estrada quando eu tinha doze anos. Elas haviam me assustado naquela época, e me assustaram agora — três avós demoníacas levando bolsas com agulhas de tricô e novelos de lã.

Uma delas olhou para mim, e embora não tenha dito nada, minha vida, literalmente, passou diante dos meus olhos. De repente, eu estava com vinte anos. Em seguida, era um homem de meia-idade. Então, estava velho e enrugado. Toda a força deixou o meu corpo, e vi meu próprio túmulo e uma cova aberta, um caixão sendo baixado para dentro da terra. Tudo isso aconteceu em menos de um segundo.

Está feito, disse ela.

A Parca ergueu o pedacinho de lã azul — e eu soube que era o mesmo de quatro anos antes, o fio da vida que eu as vira cortar. Eu havia pensado então que se tratava da minha vida. Agora me dava conta de que era a vida de Luke. Elas haviam me mostrado a vida que teria de ser sacrificada para que tudo fosse consertado.

Elas recolheram o corpo de Luke, agora envolto em uma mortalha branca e verde, e começaram a levá-lo da sala dos tronos.

— Esperem — disse Hermes.

O deus mensageiro estava vestido com seu traje clássico: túnica grega branca, sandálias e capacete. As asas de seu capacete tremulavam enquanto ele andava. As cobras George e Martha se enroscavam em torno do caduceu, murmurando: Luke, pobre Luke.

Pensei em May Castellan, sozinha em sua cozinha, assando biscoitos e fazendo sanduíches para um filho que jamais voltaria para casa.

Hermes desenrolou o rosto de Luke e beijou sua testa. Murmurou algumas palavras em grego antigo — uma bênção final.

— Adeus — sussurrou ele. Então, fez um gesto com a cabeça e permitiu que as Parcas levassem o corpo de seu filho.

Enquanto partiam, pensei na Grande Profecia. Os versos agora faziam sentido para mim. E a alma do herói, a lâmina maldita ceifará. O herói era Luke. A lâmina maldita era a faca que muito tempo atrás ele dera a Annabeth — maldita porque Luke havia quebrado sua promessa e traído seus amigos. Uma escolha seus dias vai encerrar. Minha escolha de dar a ele a faca e acreditar, como Annabeth fizera, que ele ainda era capaz de consertar tudo. O Olimpo preservar ou arrasar. Ao se sacrificar, ele havia salvado o Olimpo. Rachel estava certa. No fim, eu não era mesmo o herói. Luke é que era.

E compreendi algo mais: quando Luke descera ao Rio Estige, ele também tivera de se concentrar em algo importante que o manteria ligado à sua vida mortal. Caso contrário, seria destruído. Eu vira Annabeth, e tinha a sensação de que ele também. Ele havia visualizado a cena que Héstia me mostrara — de si mesmo nos bons e velhos tempos, com Thalia e Annabeth, quando prometera a elas que seriam uma família. Ferir Annabeth na luta o havia abalado e feito com que se lembrasse daquela promessa. E permitira à sua consciência mortal assumir novamente o comando e derrotar Cronos. Seu ponto fraco — seu calcanhar de aquiles — havia salvado todos nós.

Ao meu lado, os joelhos de Annabeth se vergaram. Eu a segurei, mas ela gritou de dor, e percebi que havia agarrado seu braço quebrado.

— Ah, deuses. Annabeth, me desculpe.

— Está tudo bem — disse ela no momento em que desmaiava em meus braços.

— Ela precisa de ajuda! — gritei.

— Deixe comigo. — Apolo deu um passo à frente. Sua armadura cor de fogo era tão brilhante que era difícil olhar para ele, e seus óculos de sol combinando e seu sorriso perfeito faziam-no parecer um modelo masculino para equipamentos de guerra. — Deus da medicina, a seu serviço.

Ele passou a mão sobre o rosto de Annabeth e recitou um encantamento. Imediatamente, os hematomas clarearam. Os cortes e cicatrizes desapareceram. Seu braço endireitou-se, e ela suspirou adormecida.

Apolo sorriu.

— Ela estará bem em alguns minutos. Tempo suficiente para eu compor um poema sobre nossa vitória: “Apolo e seus amigos salvam o Olimpo.” Bom, não?

— Obrigado, Apolo — disse eu. — Eu, hã, vou deixar você cuidar da poesia.

As horas seguintes passaram indistintamente. Lembrei-me de minha promessa para minha mãe. Zeus nem sequer piscou quando lhe fiz meu estranho pedido. Estalou os dedos e informou-me que o topo do Empire State Building agora estava iluminado de azul.

A maioria dos mortais apenas se perguntaria o que aquilo significava, mas minha mãe saberia: eu havia sobrevivido. O Olimpo estava salvo.

Os deuses puseram-se a consertar a sala dos tronos, o que foi surpreendentemente rápido com doze seres superpoderosos trabalhando. Grover e eu cuidamos dos feridos, e assim que a ponte aérea foi refeita recebemos nossos amigos que haviam sobrevivido. Os ciclopes tinham resgatado Thalia de sob a estátua caída. Ela estava usando muletas, mas no geral estava bem. Connor e Travis Stoll haviam conseguido chegar ao fim da batalha com apenas pequenos ferimentos. Eles me juraram que não tinham saqueado muito a cidade. Disseram-me que meus pais estavam bem, embora não tivessem permissão para ir ao Monte Olimpo. A sra. O’Leary havia cavado os escombros, tirando Quíron de lá, e correra com ele para o acampamento. Os Stoll pareciam preocupados com o velho centauro, mas pelo menos ele estava vivo. Katie Gardner contou que vira Rachel Elizabeth Dare sair correndo do Empire State Building no fim da batalha. Rachel não parecia estar machucada, mas ninguém sabia para onde ela fora, o que também me preocupava.

Nico di Angelo chegou ao Olimpo e recebeu as boas-vindas de um herói, o pai vindo logo atrás dele, apesar do fato de que Hades só deveria visitar o Olimpo no solstício de inverno. O deus dos mortos pareceu perplexo quando os parentes lhe deram tapinhas nas costas. Duvido que algum dia ele tivesse sido recebido com tanto entusiasmo.

Clarisse entrou marchando, ainda tremendo pelo tempo que passara no bloco de gelo, e Ares berrou:

— Essa é a minha garota!

O deus da guerra desarrumou-lhe os cabelos e lhe deu tapinhas nas costas, dizendo-lhe que era a melhor guerreira que ele já vira.

— O extermínio daquele drakon!É DISSO que estou falando!

Ela parecia desnorteada. Tudo que conseguia fazer era assentir e piscar, como se tivesse medo de que ele começasse a bater nela, mas no final acabou sorrindo.

Hera e Hefesto passaram por mim, e apesar de Hefesto estar um tanto mal-humorado por eu ter pulado em seu trono, achava que eu tinha feito, “no geral, um trabalho extraordinário”.

Hera fungou, desdenhosa.

— Acho que agora não vou destruir você e aquela garotinha.

— Annabeth salvou o Olimpo — disse a ela. — Ela convenceu Luke a deter Cronos.

— Humpf.

Hera fez meia-volta e se afastou, zangada, mas calculei que nossas vidas estavam a salvo, pelo menos por algum tempo.

A cabeça de Dioniso ainda estava envolta com ataduras. Ele me olhou de cima a baixo e disse:

— Bem, Percy Jackson, vejo que Pólux sobreviveu. Então, acho que você não é completamente incompetente. Tudo graças ao meu treinamento, suponho.

— Hã, sim, senhor — respondi.

O sr. D assentiu.

— E graças à minha bravura Zeus reduziu à metade minha pena naquele acampamento miserável. Agora só me restam cinquenta anos, e não cem.

— Cinquenta anos, é?

Tentei imaginar como seria tolerar Dioniso até eu envelhecer, supondo-se que eu vivesse tanto tempo.

— Não fique tão entusiasmado, Jackson — percebi que ele estava dizendo meu nome corretamente. — Ainda pretendo tornar sua vida um inferno.

Não pude deixar de sorrir.

— Naturalmente.

— Só para deixarmos as coisas bem claras. — Ele virou-se e começou a consertar seu trono de videiras, que ficara chamuscado.

Grover ficou ao meu lado. De tempos em tempos, ele irrompia em lágrimas.

— Tantos espíritos da natureza mortos, Percy. Tantos.

Pus o braço em seu ombro e dei-lhe um lenço para assoar o nariz.

— Você fez um excelente trabalho, homem bode. Nós vamos consertar tudo isso. Vamos plantar novas árvores. Vamos limpar os parques. Seus amigos reencarnarão em um mundo melhor.

Ele fungou, desanimado.

— Eu... acho que sim. Mas já foi muito difícil arregimentá-los antes. Eu ainda sou um exilado. Mal pude conseguir que alguém me ouvisse falar de Pã. Será que agora vão me ouvir de novo? Eu os guiei para uma carnificina.

— Eles ouvirão — garanti. — Porque você se preocupa com eles. Você se preocupa com o mundo selvagem mais do que qualquer um.

Ele tentou sorrir.

— Obrigado, Percy. Espero... espero que saiba que tenho muito orgulho de ser seu amigo.

Dei-lhe um tapinha no braço.

— Luke tinha razão em uma coisa, homem bode. Você é o sátiro mais corajoso que já vi.

Ele corou, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa trombetas de concha soaram. O exército de Poseidon entrou marchando na sala dos tronos.

— Percy! — gritou Tyson. E correu para mim com os braços abertos. Felizmente, voltara ao seu tamanho normal, e assim seu abraço foi como ser atropelado por um trator, não pela fazenda inteira. — Você não morreu! — exclamou ele.

— É! — concordei. — Impressionante, não é?

Ele bateu palmas e riu, feliz.

— Eu também não morri. Ei, acorrentamos Tifão. Foi muito divertido!

Atrás dele, cinquenta outros ciclopes de armadura riram, assentiram e bateram as mãos espalmadas nas dos outros.

— Tyson nos liderou — bradou um deles. — Ele é corajoso!

— O mais corajoso dos ciclopes! — gritou outro.

Tyson corou.

— Não foi nada.

— Eu vi você! — falei. — Foi incrível!

Pensei que o pobre Grover fosse desmaiar, por causa de seu medo mortal de ciclopes. No entanto, ele encheu-se de coragem e disse:

— É. Hã... três vivas para Tyson!

— UHUUUU! — rugiram os ciclopes.

— Por favor, não me devorem — murmurou Grover, mas não creio que alguém o tenha ouvido.

As trombetas de concha soaram novamente. Os ciclopes se separaram, e meu pai entrou na sala dos tronos em sua armadura de combate, o tridente reluzindo em suas mãos.

— Tyson! — trovejou ele. — Muito bem, meu filho. E Percy... — Seu rosto assumiu uma expressão grave. Ele agitou o dedo em minha direção, e por um segundo temi que fosse me fulminar. — Eu até o perdoo por se sentar em meu trono. Você salvou o Olimpo!

Ele estendeu as mãos e me deu um abraço. Percebi, um pouco constrangido, que nunca havia abraçado meu pai. Ele era quente — como um ser humano comum — e cheirava a água salgada e brisa do mar.

Quando se afastou, sorriu carinhosamente para mim. Eu me senti tão bem que, admito, vieram-me lágrimas aos olhos. Acho que até aquele momento eu não me permitira perceber o quanto me sentira aterrorizado nos últimos dias.

— Pai...

— Psiu — disse ele. — Nenhum herói está acima do medo, Percy. E você elevou-se acima de todos os heróis. Nem mesmo Hércules...

— POSEIDON! — rugiu uma voz.

Zeus ocupara seu trono. Do outro lado da sala, olhou ferozmente para meu pai, enquanto todos os outros deuses seguiam-no em fila e sentavam-se em seus tronos. Até Hades estava presente, sentado junto ao fogo em uma simples cadeira de pedra para convidados. Nico sentava-se de pernas cruzadas no chão, aos pés de seu pai.

— Então, Poseidon? — resmungou Zeus. — Está orgulhoso demais para se juntar a nós no Conselho, meu irmão?

Pensei que Poseidon fosse ficar furioso, mas ele só me olhou e piscou.

— Ficaria honrado, senhor Zeus.

Acho que milagres acontecem. Poseidon dirigiu-se à sua cadeira de pesca, e o Conselho Olimpiano se reuniu.

Enquanto Zeus falava — um longo discurso sobre a bravura dos deuses etc. —, Annabeth chegou e ficou parada ao meu lado. Parecia bem para alguém que havia desmaiado poucos momentos antes.

— Perdi muita coisa? — sussurrou ela.

— Ninguém está pretendendo nos matar, até agora — sussurrei de volta.

— É a primeira vez hoje.

Dei uma risada, mas Grover me cutucou, pois Hera estava nos lançando um olhar maléfico.

— Quanto aos meus irmãos — disse Zeus —, estamos agradecidos... — Ele pigarreou, como se fosse difícil falar aquelas palavras. — hã, agradecidos pela ajuda de Hades.

O Senhor dos Mortos assentiu. Tinha uma expressão presunçosa no rosto, mas acho que conquistara esse direito. Ele deu tapinhas no ombro do filho, e Nico pareceu mais feliz do que eu jamais o vira.

— E, naturalmente — prosseguiu Zeus, embora tivesse a expressão de alguém cujas calças estivessem pegando fogo —, devemos... hã... agradecer a Poseidon.

— Desculpe, irmão — disse Poseidon. — Eu não ouvi.

— Devemos agradecer a Poseidon — rosnou Zeus. — Sem ele... teria sido difícil...

— Difícil? — perguntou Poseidon, inocentemente.

— Impossível — disse Zeus. — Impossível derrotar Tifão.

Os deuses murmuraram em concordância e bateram suas armas em aprovação.

— O que nos deixa agora — continuou Zeus — apenas a questão de agradecer aos nossos jovens heróis semideuses, que tão bem defenderam o Olimpo... mesmo que haja alguns amassados em meu trono.

Ele chamou Thalia à frente, primeiro, pois ela era sua filha, e lhe prometeu ajuda no preenchimento das fileiras de Caçadoras.

Ártemis sorriu.

— Você se saiu muito bem, minha tenente. Deixou-me orgulhosa, e todas as Caçadoras que pereceram a meu serviço jamais serão esquecidas. Elas vão alcançar o Elíseo, tenho certeza.

Ela olhou para Hades, que deu de ombros.

— Provavelmente.

Ártemis olhou-o ferozmente por mais alguns instantes.

— O.k. — grunhiu Hades. — Vou acelerar seu processo de requerimento.

Thalia estava radiante de orgulho.

— Obrigada, minha senhora.

Ela curvou-se para os deuses, inclusive Hades, e então seguiu mancando para postar-se ao lado de Ártemis.

— Tyson, filho de Poseidon! — chamou Zeus.

Tyson parecia nervoso, mas foi colocar-se no meio do Conselho, e Zeus grunhiu.

— Parece que ele não perde muitas refeições, não é? — murmurou o deus. — Tyson, por sua bravura na guerra e por liderar os ciclopes, você será nomeado general dos exércitos do Olimpo. Daqui por diante, vai liderar seus companheiros na guerra sempre que for requisitado pelos deuses. E poderá ter um novo... hã... que tipo de arma você gostaria de ter? Uma espada? Um machado?

— Um bastão! — disse Tyson, mostrando seu porrete quebrado.

— Muito bem — disse Zeus. — Nós lhe concederemos um novo, hã, bastão. O melhor bastão que puder ser encontrado.

— Viva! — gritou Tyson, e todos os ciclopes aplaudiram, e deram-lhe tapinhas nas costas quando ele voltou para junto deles.

— Grover Underwood, dos sátiros! — chamou Dioniso.

Grover avançou, nervoso.

— Ah, pare de comer sua camisa — ralhou Dioniso. — Pode acreditar: não vou fulminá-lo. Pela bravura, sacrifício, blá-blá-blá, e como infelizmente temos uma vaga, os deuses consideraram apropriado nomeá-lo membro do Conselho dos Anciãos de Casco Fendido.

Grover desmaiou na mesma hora.

— Ah, maravilha — suspirou Dioniso, enquanto várias náiades aproximavam-se para socorrer Grover. — Bem, quando ele acordar, alguém diga a ele que não será mais um exilado e que todos os sátiros, náiades e outros espíritos da natureza, daqui para a frente, vão tratá-lo como um Senhor do Mundo Selvagem, com todos os direitos, privilégios, honras, blá-blá-blá. Agora, por favor, arrastem-no daqui antes que ele acorde e comece a se deleitar com torpezas.

— COMIIIIDA — baliu Grover, enquanto os espíritos da natureza o carregavam.

Calculei que ele ficaria bem. Acordaria como um Senhor do Mundo Selvagem e com um bando de lindas náiades cuidando dele. A vida podia ser pior.

Atena chamou:

— Annabeth Chase, minha filha.

Annabeth apertou meu braço, então avançou e ajoelhou-se aos pés de sua mãe.

Atena sorriu.

— Você, minha filha, superou todas as expectativas. Usou sua inteligência, sua força e sua coragem para defender esta cidade e nosso centro de poder. Sabemos que o Olimpo está... bem, arruinado. O Senhor Titã causou muitos danos que terão de ser reparados. Poderíamos reconstruir tudo com mágica, é claro, e deixar como era antes. Mas os deuses acham que a cidade pode ser melhorada. Vamos aproveitar a oportunidade. E você, minha filha, projetará essas melhorias.

Annabeth ergueu os olhos, atônita.

— Minha... minha senhora?

Atena sorriu, divertindo-se.

— Você é uma arquiteta, não é? Estudou as técnicas do próprio Dédalo. Quem melhor para redesenhar o Olimpo e torná-lo um monumento que durará mais um éon?

— Quer dizer que... posso projetar o que quiser?

— O que seu coração mandar — disse a deusa. — Construa para nós uma cidade que perdurará por muitos anos.

— Desde que tenha muitas estátuas minhas — acrescentou Apolo.

— E minhas — concordou Afrodite.

— Ei, e minhas também! — disse Ares. — Estátuas grandes com espadas imensas, cruéis e...

— Está bem! — interrompeu Atena. — Ela já entendeu. Levante-se, minha filha, arquiteta oficial do Olimpo.

Annabeth ergueu-se em transe e voltou na minha direção.

— Muito bem — disse a ela, sorrindo.

Pela primeira vez ela estava sem palavras.

— Eu... eu vou ter de começar a planejar... Papel de rascunho e, hã, lápis...

— PERCY JACKSON! — anunciou Poseidon.

Meu nome ecoou pela sala.

Todas as conversas cessaram. A sala ficou em silêncio, exceto pelo crepitar do fogo no braseiro. Os olhos de todos estavam em mim — todos os deuses, semideuses, ciclopes e espíritos. Caminhei até o centro da sala dos tronos. Héstia sorriu para mim, tranquilizadora. Tinha a forma de uma menina agora e parecia contente por estar sentada diante do fogo novamente. Seu sorriso me deu coragem para continuar andando.

Primeiro curvei-me diante de Zeus. Então me ajoelhei aos pés de meu pai.

— Levante-se, meu filho — disse Poseidon.

Pus-me de pé, inquieto.

— Um grande herói deve ser recompensado — afirmou Poseidon. — Existe alguém aqui capaz de negar que este meu filho seja merecedor?

Esperei que alguém se pronunciasse. Os deuses nunca concordavam em relação a nada, e muitos deles ainda não gostavam de mim, mas nenhum deles protestou.

— O Conselho concorda — anunciou Zeus. — Percy Jackson, você pode escolher um presente dos deuses.

Hesitei.

— Qualquer coisa?

Zeus assentiu soturnamente.

— Sei o que você vai pedir. O maior presente de todos. Sim, se é o que você quer, será seu. Os deuses não conferem esse presente a um herói mortal há muitos séculos, mas, Perseu Jackson, se você assim deseja, será feito deus. Imortal. Eterno. Servirá como tenente de seu pai para todo o sempre.

Eu o fitei, perplexo.

— Hã... um deus?

Zeus revirou os olhos.

— Um deus obtuso, ao que parece. Sim. Por consenso de todo o Conselho, posso torná-lo imortal. Então, vou ter de aturá-lo para sempre.

— Humm — refletiu Ares. — Isso significa que posso esmagá-lo, transformando-o em polpa, quantas vezes eu quiser, e ele vai sempre voltar para que eu faça de novo. Gosto dessa ideia.

— Eu também aprovo — disse Atena, embora estivesse olhando para Annabeth.

Olhei para trás. Annabeth tentava não me olhar nos olhos. Seu rosto estava pálido. Lembrei-me de dois anos atrás, quando pensei que ela fosse fazer os votos a Ártemis e se tornar uma Caçadora. Eu ficara à beira de um ataque de pânico, pensando que a perderia. Agora, ela parecia estar sentindo o mesmo.

Pensei nas Três Parcas, e em como vira minha vida passar em um flash. Eu podia evitar tudo aquilo. Não envelheceria, não morreria, meu corpo não desceria ao túmulo. Poderia ser um adolescente para sempre, no auge de minha condição física, poderoso e imortal, servindo ao meu pai. Teria poder e vida eterna.

Quem recusaria isso?

Então, olhei outra vez para Annabeth. Pensei em meus amigos do acampamento: Charles Beckendorf, Michael Yew, Silena Beauregard e tantos outros que agora estavam mortos. Pensei em Ethan Nakamura e em Luke.

E soube o que fazer.

— Não — falei.

O Conselho ficou em silêncio. Os deuses se entreolharam, de testa franzida, como se tivessem ouvido mal.

— Não? — perguntou Zeus. — Você está... recusando nosso generoso presente?

Havia uma entonação perigosa em sua voz, algo como uma tempestade prestes a desabar.

— Sinto-me honrado e tudo mais — disse eu. — Não me entendam mal. É só que... ainda tenho muito para viver. Detestaria já chegar ao auge em meu segundo ano da escola.

Os deuses me fuzilavam com os olhos, mas Annabeth cobria a boca com as mãos. Seus olhos brilhavam. E isso compensava tudo.

— Mas eu quero, sim, um presente — disse eu. — Vocês prometem conceder meu desejo?

Zeus pensou um pouco.

— Se estiver ao alcance de nossos poderes...

— Está — disse eu. — E nem é difícil. Mas preciso que jurem pelo Rio Estige.

— O quê? — gritou Dioniso. — Não confia em nós?

— Alguém uma vez me disse — repliquei, olhando para Hades — que sempre se deve obter um juramento solene.

Hades deu de ombros.

— Culpado — admitiu.

— Muito bem! — grunhiu Zeus. — Em nome do Conselho, juramos pelo Rio Estige conceder-lhe seu pedido razoável desde que esteja em nosso poder.

Os outros deuses murmuram seu consentimento. Um trovão ribombou, sacudindo a sala dos tronos. O acordo estava fechado.

— A partir de agora, quero que vocês reconheçam devidamente os filhos dos deuses — anunciei. — Todos os filhos... de todos os deuses.

Os olimpianos se mexeram, desconfortáveis.

— Percy — disse meu pai —, o que exatamente você quer dizer com isso?

— Cronos não teria se erguido se não fosse por um bocado de semideuses que se sentiam abandonados pelos pais — disse eu. — Eles sentiam raiva, ressentimento e carência de afeto... e tinham bons motivos para isso.

As narinas reais de Zeus tremeram.

— Você ousa acusar...

— Basta de filhos não reconhecidos — continuei. — Quero que vocês prometam reconhecer seus filhos... todos os seus filhos semideuses... quando fizerem treze anos. Eles não ficarão largados no mundo por sua própria conta, à mercê de monstros. Quero que sejam reconhecidos e levados para o acampamento para que possam receber o treinamento adequado e sobreviver.

— Agora, espere um instante — disse Apolo, mas eu estava no embalo.

— E os deuses menores — prossegui —, Nêmesis, Hécate, Morfeu, Jano, Hebe... todos merecem anistia e um lugar no Acampamento Meio-Sangue. Seus filhos não devem ser ignorados. Calipso e os outros parentes pacíficos dos titãs também devem ser perdoados. E Hades...

— Você está me chamando de deus menor? — berrou Hades.

— Não, meu senhor — apressei-me em dizer. — Mas seus filhos não devem ser excluídos. Eles devem ter um chalé no acampamento. Nico provou isso. Nenhum semideus não reconhecido será jogado no chalé de Hermes, perguntando-se quem é seu pai ou sua mãe. Haverá chalés para todos os deuses. E nada mais de pacto entre os Três Grandes. Afinal, isso não funcionou. Vocês precisam parar de tentar se livrar de semideuses poderosos. Em vez disso, vamos treiná-los e aceitá-los. Todos os filhos dos deuses serão bem-vindos e tratados com respeito. Este é o meu desejo.

Zeus sorriu com desdém.

— Isso é tudo?

— Percy — disse Poseidon —, você está pedindo muito. Está abusando.

— Confio em seu juramento — disse eu. — No de todos vocês.

Recebi muitos olhares duros. Estranhamente, foi Atena quem se pronunciou:

— O garoto está certo. Fomos imprudentes ao ignorar nossos filhos. Esta se mostrou uma fraqueza estratégica nessa guerra e quase causou nossa destruição. Percy Jackson, tenho minhas dúvidas em relação a você, mas talvez — ela olhou para Annabeth, e então falou como se as palavras tivessem um sabor azedo —, talvez eu esteja enganada. Proponho que aceitemos o plano do garoto.

— Humpf — disse Zeus. — Receber ordens de uma simples criança. Mas suponho...

— Todos a favor — disse Hermes.

Todos os deuses ergueram as mãos.

— Hã, obrigado — agradeci.

Fiz meia-volta, mas, antes que me afastasse, Poseidon chamou:

— Guarda de honra!

Imediatamente os ciclopes adiantaram-se e formaram duas fileiras, que iam dos tronos até a porta — um corredor para que eu percorresse. E ficaram em posição de sentido.

— Todos saúdem Perseu Jackson — disse Tyson. — Herói do Olimpo... e meu irmão mais velho!


VINTE E UM

Blackjack é sequestrado

Annabeth e eu estávamos de saída quando avistei Hermes em um pátio lateral do palácio. Ele recebia uma mensagem de Íris na névoa de uma fonte.

Olhei para Annabeth.

— Encontro você no elevador.

— Tem certeza? — Então ela observou minha expressão. — É, tem sim.

Hermes não pareceu perceber minha aproximação. As imagens na mensagem de Íris passavam tão depressa que eu mal as compreendia. Noticiários de mortais por todo o país desfilavam rapidamente: cenas da destruição de Tifão, o presidente fazendo uma coletiva de imprensa, o prefeito de Nova York, alguns veículos do exército percorrendo a Avenida das Américas.

— Impressionante — murmurou Hermes. Ele virou-se na minha direção. — Três mil anos e eu ainda me surpreendo com o poder da Névoa... e com a ignorância dos mortais.

— Obrigado, acho.

— Ah, não me refiro a você. Mas suponho que devesse... Recusar a imortalidade!

— Foi a escolha certa.

Hermes me olhou com curiosidade, então voltou a atenção para a mensagem de Íris.

— Olhe para eles. Já concluíram que Tifão foi uma série anormal de tempestades. Quisera eu. Não descobriram como todas as estátuas de Manhattan foram removidas de seus pedestais e destruídas. Ficam mostrando uma tomada de Susan B. Anthony estrangulando Frederick Douglass. Mas imagino que vão acabar encontrando uma explicação lógica até para isso.

— Qual é o estado da cidade?

Hermes deu de ombros.

— Surpreendentemente, não muito ruim. Os mortais estão abalados, é claro. Mas isto é Nova York. Nunca vi um grupo de humanos tão resistente. Imagino que em poucas semanas terão voltado ao normal; e, naturalmente, vou ajudar nisso.

— Você?

— Sou o mensageiro dos deuses. É minha função monitorar o que os mortais estão dizendo e, se necessário, ajudá-los a dar sentido ao que acontece. Vou tranquilizá-los. Acredite em mim, eles vão atribuir tudo isso a um terremoto excepcional ou a uma erupção solar. Tudo, menos a verdade.

Ele falava com amargura. George e Martha estavam enroscados em seu caduceu, mas mantinham-se calados, o que me fez pensar que Hermes devia estar muito, muito zangado. Eu provavelmente deveria ter ficado calado, mas disse:

— Eu lhe devo um pedido de desculpa.

Hermes me olhou, cauteloso.

— E por que seria?

— Pensei que fosse um pai negligente — admiti. — Pensei que tivesse abandonado Luke porque sabia o seu futuro e que não tivesse feito nada para detê-lo.

— Eu sabia, sim, o futuro dele — disse Hermes, infeliz.

— Mas sabia mais do que o lado ruim, que ele passaria para o lado do mal. Você compreendeu o que ele faria no fim. Sabia que ele tomaria a decisão certa. Mas não podia dizer isso a ele, não é?

Hermes fitou a fonte.

— Ninguém pode interferir no destino, Percy, nem mesmo um deus. Se eu o tivesse avisado sobre o que estava por vir ou tentado influenciar suas escolhas, teria piorado ainda mais as coisas. Ficar calado, ficar longe dele... essa foi a coisa mais difícil que já fiz.

— Você precisava deixá-lo encontrar seu próprio caminho — disse eu — e desempenhar seu papel na salvação do Olimpo.

Hermes suspirou.

— Eu não deveria ter ficado furioso com Annabeth. Quando Luke foi vê-la em São Francisco... bem, eu sabia que ela teria um papel importante no destino dele. Isso eu previ. Pensei que talvez ela pudesse fazer o que eu não podia e salvá-lo. Quando ela se recusou a ir com ele, mal pude conter minha ira. Eu devia ter compreendido. Estava furioso era comigo mesmo.

— Annabeth o salvou de fato — disse eu. — Luke morreu como um herói. Ele se sacrificou para matar Cronos.

— Agradeço as suas palavras, Percy. Mas Cronos não está morto. Não se pode matar um titã.

— Então...

— Eu não sei — grunhiu Hermes. — Nenhum de nós sabe. Virou pó. Espalhou-se no vento. Com sorte, espalhou-se tanto que nunca mais poderá formar uma consciência, muito menos um corpo. Mas não se iluda tomando-o por morto, Percy.

A náusea revirou o meu estômago.

— E quanto aos outros titãs?

— Estão escondidos — disse Hermes. — Prometeu mandou uma mensagem a Zeus com um monte de desculpas por ter apoiado Cronos. “Eu só estava tentando minimizar o dano” etc. Vai manter a cabeça baixa por alguns séculos, se for esperto. Crios fugiu, e o Monte Otris desmoronou, transformando-se em ruínas. Oceano voltou para as profundezas do mar quando ficou claro que Cronos havia perdido. Enquanto isso, meu filho Luke está morto. E morreu acreditando que eu não me importava com ele. Nunca vou me perdoar por isso.

Hermes brandiu o caduceu em meio à névoa. A imagem de Íris desapareceu.

— Há muito tempo — lembrei — você me disse que a coisa mais difícil de ser um deus era não ser capaz de ajudar seus filhos. Também me disse que não se podia desistir da família, independentemente do quanto eles tornassem essa possibilidade tentadora.

— E agora você sabe que sou um hipócrita?

— Não, você tinha razão. Luke o amava. No fim, ele percebeu seu destino. Acho que se deu conta de que você não pôde ajudá-lo. Lembrou-se do que era importante.

— Tarde demais para ele e para mim.

—Você tem outros filhos. Honre a memória de Luke reconhecendo-os. Todos os deuses podem fazer isso.

Os ombros de Hermes se vergaram.

— Eles vão tentar, Percy. Ah, nós todos vamos tentar cumprir a promessa. E, talvez, por algum tempo as coisas fiquem melhores. Mas nós, deuses, nunca fomos muito bons em manter um juramento. Você nasceu por causa de uma promessa quebrada, não é mesmo? Vamos acabar esquecendo. É sempre assim.

— Vocês podem mudar.

Hermes riu.

— Depois de três mil anos, você acha que os deuses podem mudar sua natureza?

— Sim — respondi. — Acho.

Hermes pareceu surpreso.

— Acha que... Luke de fato me amava? Depois de tudo que aconteceu?

— Tenho certeza.

Hermes fitou a fonte.

— Vou lhe dar uma lista dos meus filhos. Tem um garoto no Wisconsin. Duas meninas em Los Angeles. Alguns outros. Você vai providenciar para que eles cheguem ao acampamento?

— Prometo — falei. — E não vou me esquecer.

George e Martha giraram em torno do caduceu. Sei que cobras não podem sorrir, mas eles pareciam estar tentando.

— Percy Jackson — disse Hermes —, talvez você possa mesmo nos ensinar uma ou duas coisinhas.

Outro deus me esperava na saída do Olimpo. Atena estava no meio da estrada, de braços cruzados e com um olhar que me fez pensar Oh-oh. Ela havia trocado a armadura por jeans e blusa branca, mas não parecia nem um pouco menos guerreira. Seus olhos cinzentos ardiam.

— Bem, Percy — disse ela. — Então você vai continuar mortal.

— Hã, sim, senhora.

— Gostaria de saber suas razões.

— Quero ser um cara normal. Quero crescer. Ter, sabe, uma experiência normal na escola.

— E minha filha?

— Eu não poderia deixá-la — admiti, a garganta seca. — Ou deixar Grover — acrescentei rapidamente. — Ou...

— Poupe-me. — Atena aproximou-se de mim, e eu pude sentir sua aura de poder fazendo minha pele formigar. — Uma vez eu o adverti, Percy Jackson, de que para salvar um amigo você destruiria o mundo. Talvez eu estivesse errada. Parece que você salvou tanto seus amigos quanto o mundo. Mas pense com muito cuidado em como vai agir a partir daqui. Eu lhe dei o benefício da dúvida. Não estrague tudo.

Só para enfatizar suas palavras, ela irrompeu em uma coluna de chamas, chamuscando a frente da minha camisa.

Annabeth me esperava no elevador.

— Por que você está cheirando a fumaça?

— É uma longa história — disse.

Juntos, descemos até o nível da rua. Nenhum dos dois falou uma só palavra. A música era terrível. Neil Diamond ou coisa parecida. Eu deveria ter incluído isso em meu pedido aos deuses: músicas melhores no elevador.

Quando chegamos ao saguão, encontrei minha mãe e Paul discutindo com o segurança careca, que voltara a seu posto.

— Eu estou lhe dizendo — gritava minha mãe —, precisamos subir! Meu filho... — Então ela me viu, e seus olhos se arregalaram. — Percy!

Ela me abraçou até me deixar sem ar.

— Vimos o edifício se iluminar todo de azul — disse ela. — Mas então você não descia. Você subiu faz horas!

— Ela estava ficando um pouco ansiosa — disse Paul, irônico.

— Eu estou bem — garanti, enquanto mamãe abraçava Annabeth. — Está tudo bem agora.

— Sr. Blofis — disse Annabeth —, aquela foi uma manobra magistral com a espada.

Paul deu de ombros.

— Parecia a coisa certa a fazer. Mas, Percy, este é mesmo... quer dizer, essa história do sexcentésimo andar?

— O Olimpo — respondi. — Sim.

Paul olhou para o teto com uma expressão sonhadora.

— Gostaria de ver isso.

— Paul — censurou-o minha mãe. — Não é para mortais. De qualquer forma, o importante é que estamos em segurança. Todos nós.

Eu estava prestes a relaxar. Tudo parecia perfeito. Annabeth e eu estávamos bem. Minha mãe e Paul haviam sobrevivido. O Olimpo estava salvo.

Mas a vida de um semideus nunca é assim tão fácil. Nesse exato momento Nico veio correndo da rua, e seu rosto mostrava que algo estava errado.

— É Rachel — disse ele. — Acabei de encontrá-la na Rua 32.

Annabeth franziu a testa.

— O que foi que ela fez dessa vez?

— A questão é para onde ela está indo — respondeu Nico. — Eu lhe disse que ela morreria se tentasse, mas ela insistiu. Acabou de pegar Blackjack e...

— Ela pegou o meu pégaso? — perguntei.

Nico assentiu.

— Está indo para a Colina Meio-Sangue. Disse que precisava ir ao acampamento.


VINTE E DOIS

Sou despejado

Ninguém rouba o meu pégaso. Nem mesmo Rachel. Eu não sabia se estava mais zangado, atônito ou preocupado.

— No que ela estava pensando? — perguntou Annabeth enquanto corríamos para o rio. Infelizmente, eu tinha uma boa ideia da resposta, e isso me enchia de terror.

O trânsito estava horrível. As pessoas se espalhavam pelas ruas, olhando, pasmas, os danos na zona de guerra. Sirenes de polícia soavam em todos os quarteirões. Não havia possibilidade de pegar um táxi, e os pégasos já haviam partido. Eu teria me contentado com alguns Pôneis de Festa, mas eles tinham desaparecido junto com a maior parte da root beer de Midtown. Assim, corremos, abrindo caminho em meio a multidões de mortais atordoados que atravancavam as calçadas.

— Ela nunca vai passar pelas defesas — disse Annabeth. — Peleu vai comê-la.

Eu não havia pensado nisso. A Névoa não enganaria Rachel como faria com a maior parte das pessoas. Ela conseguiria encontrar o acampamento sem problemas, mas eu estava torcendo para que as fronteiras mágicas, como um campo de força, a mantivessem de fora. Não me ocorrera que Peleu poderia atacá-la.

— Precisamos correr. — Olhei para Nico. — Não creio que você possa convocar alguns cavalos esqueletos...

Ele ofegava enquanto corria.

— Estou tão cansado... não conseguiria chamar nem um osso de cachorro.

Finalmente conseguimos vencer o aterro e chegar ao rio, e dei um assovio bem alto. Eu odiava fazer isso. Mesmo com o dólar de areia que eu dera ao Rio East por uma limpeza mágica, a água ali era bastante poluída. Eu não queria fazer com que nenhum animal marinho adoecesse, mas eles atenderam ao meu chamado.

Três sulcos surgiram nas águas cinzentas, e um grupo de cavalos-marinhos irrompeu na superfície, relinchando, infelizes, enquanto sacudiam a imundície do rio de suas crinas. Eram lindas criaturas, com caudas de peixe multicoloridas e as cabeças e pernas dianteiras de garanhões brancos. O cavalo-marinho da frente era muito maior que os outros — uma carona apropriada para um ciclope.

— Arco-Íris! — chamei. — Como está, amigão?

Ele relinchou uma queixa.

— Sim, me desculpe — disse eu. — Mas é uma emergência. Precisamos chegar ao acampamento.

Ele resfolegou.

—Tyson? — perguntei. — Tyson está ótimo! Lamento que não esteja aqui. Agora ele é um grande general no exército dos ciclopes.

RIIINCH!

— Sim, tenho certeza de que ele ainda vai lhe trazer maçãs. Agora, quanto àquela carona...

Logo Annabeth, Nico e eu estávamos subindo o Rio East mais rápido do que os jet skis. Passamos em disparada debaixo da Ponte Throgs Neck e seguimos para o Estreito de Long Island.

Pareceu que uma eternidade se passara até avistarmos a praia do acampamento. Agradecemos aos cavalos-marinhos e andamos até a terra firme, só para encontrar Argos à nossa espera. Ele estava de pé na areia, de braços cruzados, sua centena de olhos nos fitando de modo penetrante.

— Ela está aqui? — perguntei.

Ele assentiu, sombriamente.

— Está tudo bem? — perguntou Annabeth.

Argos sacudiu a cabeça.

Então o seguimos, trilha acima. Era surreal estar de volta ao acampamento, pois tudo parecia bem pacífico: nenhum prédio queimado, nenhum guerreiro ferido. Os chalés brilhavam à luz do sol e os campos cintilavam com o orvalho. Mas o lugar estava praticamente vazio.

Na Casa Grande, alguma coisa, definitivamente, estava errada. Uma luz verde lançava-se de todas as janelas, exatamente como eu vira em meu sonho com May Castellan. Névoa — do tipo mágico — envolvia o pátio. Quíron estava deitado em uma enorme maca perto da quadra de vôlei, com um bando de sátiros à sua volta. Blackjack, nervoso, andava a meio-galope na grama.

Não me culpe, chefe!, pediu ele ao me ver. A garota estranha me obrigou a vir!

Rachel Elizabeth Dare estava ao pé dos degraus da varanda. Seus braços estavam erguidos, como se ela estivesse esperando que alguém no interior da casa lhe atirasse uma bola.

— O que ela está fazendo? — perguntou Annabeth. — Como foi que passou pelas barreiras?

— Ela voou — respondeu um dos sátiros, olhando acusadoramente para Blackjack. — Passou pelo dragão e atravessou as fronteiras mágicas.

— Rachel! — chamei, mas os sátiros me detiveram quando tentei me aproximar.

— Percy, não — advertiu Quíron. Ele estremeceu quando tentou se mover. Seu braço esquerdo estava em uma tipoia, as duas pernas traseiras estavam presas a talas e a cabeça encontrava-se envolta com ataduras. — Você não pode interromper.

— Pensei que você tivesse explicado tudo a ela!

— Eu expliquei. E a convidei para vir aqui.

Eu o fitei, incrédulo.

— Você disse que nunca mais deixaria alguém tentar! Disse...

— Eu sei o que eu disse, Percy. Mas estava errado. Rachel teve uma visão sobre a maldição de Hades. Ela acredita que agora pode estar suspensa. E me convenceu a lhe dar uma chance.

— E se a maldição não estiver suspensa? Se Hades ainda não tiver feito isso, ela vai enlouquecer!

A Névoa espiralava em torno de Rachel, que tremia como se estivesse entrando em choque.

— Ei! — gritei. — Pare!

Corri na direção dela, ignorando os sátiros. Cheguei a uns três metros e bati em algo parecido com uma bola de borracha invisível. Quiquei para trás e caí na grama.

Rachel abriu os olhos e se virou. Parecia uma sonâmbula — como se pudesse me ver, mas apenas em sonho.

— Está tudo bem. — Sua voz soava distante. — Foi por isso que eu vim.

— Você será destruída!

Ela sacudiu a cabeça.

— Este é meu lugar, Percy. Finalmente entendi o porquê.

Aquilo soava muito semelhante ao que May Castellan dissera. Eu precisava detê-la, mas não conseguia nem ficar de pé.

A Névoa ondulou em uma centena de serpentes fumacentas, subindo pelas colunas da varanda, enroscando-se na casa. Então, o Oráculo apareceu na porta.

A múmia ressequida avançou, arrastando-se em seu vestido de arco-íris. Parecia ainda pior do que de costume, o que já diz tudo. Seus cabelos caíam em tufos. A pele coriácea rachava como os assentos de um ônibus velho. Seus olhos vítreos fitavam sem expressão o espaço, mas eu tinha a sinistra sensação de que ela estava sendo atraída diretamente para Rachel.

Rachel estendeu os braços. Não parecia assustada.

— Você esperou demais — disse Rachel. — Mas agora estou aqui.

O sol brilhou com mais intensidade. Um homem surgiu acima da varanda, flutuando no ar — um sujeito louro em uma toga branca, com óculos de sol e sorriso arrogante.

— Apolo — disse eu.

Ele piscou para mim, mas levou o dedo à frente dos lábios.

— Rachel Elizabeth Dare — disse ele. — Você tem o dom da profecia. Mas isto também é uma maldição. Tem certeza de que é seu desejo?

Rachel assentiu.

— É o meu destino.

— Você aceita os riscos?

— Aceito.

— Então prossiga — disse o deus.

Rachel fechou os olhos.

— Eu aceito este papel. Faço meus votos a Apolo, deus dos oráculos. Abro meus olhos para o futuro e abraço o passado. Eu aceito o espírito de Delfos, Voz dos Deuses, Porta-voz dos Enigmas, Vidente do Destino.

Eu não sabia de onde Rachel estava tirando aquelas palavras, mas elas fluíam à medida que a Névoa se espessava. Uma coluna verde de fumaça, como uma imensa píton, desenrolou-se da boca da múmia e desceu serpenteando os degraus, enroscando-se afetuosamente nos pés de Rachel. A múmia do Oráculo esfarelou-se até nada restar além de uma pilha de pó em um velho vestido tingido. A Névoa envolveu Rachel em uma coluna.

Por um momento não pude vê-la. Então, a fumaça dissipou-se.

Rachel desabou e se dobrou em posição fetal. Annabeth, Nico e eu corremos até ela, mas Apolo disse:

— Parem! Esta é a parte mais delicada.

— O que está acontecendo? — perguntei. — O que isso quer dizer?

Apolo observou Rachel, preocupado.

— Ou o espírito se estabelece ou não.

— E se ele não se estabelecer? — indagou Annabeth.

— Quatro palavras — respondeu Apolo, contando-as nos dedos. — Isso seria muito ruim.

Apesar do aviso de Apolo, avancei e me ajoelhei ao lado de Rachel. O cheiro do sótão se fora. A Névoa penetrou no solo e a luz verde esmaeceu. Mas Rachel ainda estava pálida. Ela mal respirava.

Então, seus olhos tremularam e se abriram. Ela me focalizou com dificuldade.

— Percy.

— Você está bem?

Ela tentou sentar-se.

— Ai. — Pressionou as têmporas com as mãos.

— Rachel — disse Nico —, a aura de sua vida quase desapareceu completamente. Pude ver você morrendo.

— Eu estou bem — murmurou ela. — Por favor, me ajudem a me levantar. As visões... elas me deixam um pouco desorientada.

— Tem certeza de que está bem? — perguntei.

Apolo desceu da varanda.

— Senhoras e senhores, permitam-me apresentar-lhes o novo Oráculo de Delfos.

— Você está brincando — disse Annabeth.

Rachel conseguiu dar um sorriso fraco.

— É um pouco surpreendente para mim também, mas esse é o meu destino. Vi isso quando estava em Nova York. Sei por que nasci com a verdadeira visão. Estava destinada a me tornar o Oráculo.

Pisquei.

— Quer dizer que agora você pode prever o futuro?

— Não o tempo todo — disse ela. — Mas existem visões, imagens, palavras em minha mente. Quando alguém me faz uma pergunta, eu... Ah, não...

— Está começando — anunciou Apolo.

Rachel dobrou o corpo para a frente, como se alguém a tivesse socado. Então ela se aprumou e seus olhos brilhavam com um tom verde, de serpente.

Quando ela falou, sua voz soava triplicada — como se três Rachels falassem ao mesmo tempo:
Sete meios-sangues responderão ao chamado.
Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado.
Um juramento a manter com um alento final,
E inimigos com armas às Portas da Morte afinal.

 


Com a última palavra, Rachel desmoronou. Nico e eu a seguramos e a ajudamos a chegar à varanda. Sua pele estava febril.

— Estou bem — disse ela, a voz voltando ao normal.

— O que foi isso? — perguntei.

Ela sacudiu a cabeça, confusa.

— O que foi o quê?

— Eu creio — disse Apolo — que acabamos de ouvir a próxima Grande Profecia.

— O que ela quer dizer? — perguntei.

Rachel franziu a testa.

— Não me lembro do que eu disse.

— Não — refletiu Apolo. — O espírito só falará através de você de vez em quando. No restante do tempo, nossa Rachel será quase a mesma de sempre. Não tem sentido submetê-la a um interrogatório agora, mesmo que ela tenha acabado de anunciar a próxima grande previsão para o futuro do mundo.

— O quê? — espantei-me. — Mas...

— Percy — disse Apolo —, eu não me preocuparia. A última Grande Profecia sobre você levou quase setenta anos para se completar. Esta pode nem acontecer durante a sua vida.

Pensei nos versos que Rachel recitara naquela voz sinistra: sobre tempestade e fogo e as Portas da Morte.

— Pode ser — disse eu —, mas a mensagem não pareceu muito boa.

— Não — disse Apolo com alegria. — Certamente que não. Rachel vai ser um Oráculo maravilhoso!

Era difícil deixar o assunto de lado, mas Apolo insistiu em que Rachel precisava descansar, e ela de fato parecia bastante desorientada.

— Ah, me desculpe, Percy — disse ela. — Lá no Olimpo, eu não expliquei tudo a você, mas o chamado me assustava. Não pensei que você fosse entender.

— Ainda não entendo — admiti. — Mas acho que estou feliz por você.

Rachel sorriu.

— Feliz provavelmente não é a palavra certa. Ver o futuro não vai ser fácil, mas é o meu destino. Só espero que minha família...

Ela não terminou o pensamento.

— Você ainda vai para a Academia de Clarion? — perguntei.

— Fiz uma promessa ao meu pai. Acho que vou tentar ser uma garota normal durante o ano escolar, mas...

— Mas agora você precisa dormir — ralhou Apolo. — Quíron, não creio que o sótão seja o lugar apropriado para o nosso novo Oráculo, não acha?

— Não, de fato. — Quíron parecia bem melhor agora que Apolo aplicara um pouco de magia médica nele. — Rachel pode usar um quarto de hóspedes na Casa Grande por enquanto, até pensarmos melhor na questão.

— Estou pensando em uma caverna nas colinas — refletiu Apolo. — Com tochas e uma grande cortina púrpura na entrada... bem misterioso. Mas, por dentro, um apartamento totalmente decorado com uma sala de jogos e um daqueles sistemas de home theater.

Quíron pigarreou bem alto.

— O que foi? — perguntou Apolo.

Rachel me deu um beijo no rosto.

— Até logo, Percy — sussurrou ela. — E eu não preciso ver o futuro para lhe dizer o que fazer agora, preciso?

Seus olhos pareciam mais penetrantes do que antes.

Corei.

— Não.

— Ótimo — disse ela, e então se virou e seguiu Apolo, entrando na Casa Grande.

O restante do dia foi tão estranho quanto o começo. Os campistas iam chegando aos poucos de Nova York — de carro, pégaso ou carruagem. Os feridos eram atendidos. Os mortos receberam os ritos funerários apropriados junto à fogueira.

A mortalha de Silena era rosa-pink, com o bordado de uma lança elétrica. Tanto o chalé de Ares quanto o de Afrodite reivindicaram seu reconhecimento como heroína e atearam fogo à mortalha juntos. Ninguém mencionou a palavra espião. Esse segredo virou cinzas à medida que a fumaça com perfume de grife subia para o céu.

Mesmo Ethan Nakamura recebeu uma mortalha — de seda preta com o desenho de duas espadas cruzadas debaixo de um par de balanças. Enquanto sua mortalha se consumia em chamas, desejei que Ethan soubesse que, no fim, havia feito diferença. Ele pagara com muito mais do que um olho, mas os deuses menores finalmente teriam o respeito que mereciam.

O jantar no pavilhão foi discreto. O único ponto de destaque foi Juníper, a ninfa das árvores, que gritou “Grover!” e pulou em cima do namorado, abraçando-o e fazendo todos aplaudirem. Os dois desceram para a praia para dar uma caminhada à luz da lua, e eu me senti feliz por eles, embora a cena tenha me lembrado Silena e Beckendorf, o que me deixou triste.

A sra. O’Leary brincava por ali, feliz, comendo os restos de todas as mesas. Nico sentou-se à mesa principal com Quíron e o sr. D, e ninguém parecia pensar que ele estava deslocado ali. Todos davam tapinhas nas costas de Nico, cumprimentando-o por seu desempenho na luta. Mesmo os garotos de Ares pareciam achá-lo bem legal. Apareça com um exército de mortos-vivos para salvar o dia e de uma hora para a outra você se tornará o melhor amigo de todos.

Lentamente, a turma do jantar foi se dissipando. Alguns seguiram para a fogueira para uma cantoria. Outros foram para a cama. Eu fiquei sentado sozinho à mesa de Poseidon, observando o luar sobre o Estreito de Long Island. Podia ver Grover e Juníper na praia, de mãos dadas e conversando. Era uma cena de paz.

— Ei. — Annabeth deslizou para o lugar ao meu lado no banco. — Feliz aniversário.

Ela segurava um imenso e disforme cupcake com cobertura azul.

Eu a fitei.

— O quê?

— Hoje é dia 18 de agosto — disse ela. — É seu aniversário, não é?

Eu estava atônito. Isso nem mesmo me ocorrera, mas ela estava certa. Eu havia completado 16 anos naquela manhã — a mesma manhã em que fizera a escolha de dar a faca a Luke. A profecia se realizara pontualmente, e eu nem sequer me lembrara do fato de que era meu aniversário.

— Faça um pedido — disse ela.

— Foi você mesma quem fez? — perguntei.

— Tyson ajudou.

— Isso explica por que parece um tijolo de chocolate — disse eu. — Com cimento azul extra.

Annabeth riu.

Pensei por um segundo, então soprei a vela.

Nós o cortamos ao meio e dividimos, comendo com as mãos. Annabeth ficou sentada ao meu lado, olhando o oceano. Grilos e monstros faziam barulho no bosque, mas, fora isso, era tudo silêncio.

— Você salvou o mundo — disse ela.

— Nós salvamos o mundo.

— E Rachel é o novo Oráculo, o que significa que não vai poder namorar ninguém.

— Você não parece desapontada — percebi.

Annabeth deu de ombros.

— Ah, eu não ligo.

— Hã-hã.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Você tem alguma coisa a me dizer, Cabeça de Alga?

— Você provavelmente me daria um passa-fora.

— Você sabe que eu lhe daria um passa-fora.

Limpei o bolo das mãos.

— Quando eu estava no Rio Estige, me tornando invulnerável... Nico disse que eu tinha de me concentrar em algo que me mantivesse ancorado ao mundo, que me fizesse querer permanecer mortal.

Annabeth mantinha os olhos no horizonte.

— Sim?

— Então, lá no Olimpo, quando queriam me tornar um deus e coisa e tal, continuei pensando...

— Ah, então você queria.

— Bem, talvez um pouquinho. Mas não quis, porque pensei... Eu não queria que as coisas ficassem as mesmas para toda a eternidade, porque elas sempre podem melhorar. E eu estava pensando... — Minha garganta estava totalmente seca.

— Em alguém em particular? — perguntou Annabeth, com a voz suave.

Olhei para ela e vi que estava tentando não sorrir.

— Você está rindo de mim — queixei-me.

— Não estou, não!

— Você não está tornando as coisas nada fáceis.

Então ela riu de verdade e abraçou meu pescoço.

— Eu nunca, mas nunca vou tornar as coisas fáceis para você, Cabeça de Alga. Acostume-se a isso.

Quando ela me beijou, tive a impressão de que meu cérebro estava se derretendo e escorrendo para o corpo.

Eu poderia ter ficado assim para sempre, mas uma voz às nossas costas resmungou:

— Já não era sem tempo!

De repente, o pavilhão estava cheio de tochas e campistas. Clarisse ia à frente, enquanto os bisbilhoteiros nos pegaram e colocaram em seus ombros.

— Ah, puxa vida! — reclamei. — Não se tem mais privacidade?

— Os pombinhos precisam se refrescar! — disse Clarisse com alegria.

— O lago de canoagem! — gritou Connor Stoll.

Com um grande viva, eles nos carregaram morro abaixo, mas nos mantiveram perto o suficiente para que ficássemos de mãos dadas. Annabeth ria, e eu não pude deixar de rir também, embora meu rosto estivesse completamente vermelho.

Ficamos de mãos dadas até o momento em que nos despejaram na água.

Depois, quem riu por último fui eu. Criei uma bolha de ar no fundo do lago. Nossos amigos ficaram esperando que subíssemos, mas... ei, quando você é filho de Poseidon, não precisa se apressar.

E aquele foi, sem dúvida, o melhor beijo subaquático de todos os tempos.


VINTE E TRÊS

Dizemos adeus, ou quase isso

O período no acampamento se estendeu naquele verão. Durou mais duas semanas, indo até o começo do novo ano letivo, e tenho de reconhecer que foram as duas melhores semanas da minha vida.

Naturalmente, Annabeth me mataria se eu dissesse algo diferente, mas havia muitas outras coisas legais acontecendo também. Grover assumira os sátiros buscadores e os estava enviando pelo mundo todo para encontrar meios-sangues não reconhecidos. Até então, os deuses estavam mantendo a promessa. Novos semideuses pipocavam por toda parte — não só nos Estados unidos, mas em muitos outros países também.

— Mal podemos dar conta — admitiu Grover numa tarde, durante uma pausa no lago de canoagem. — Vamos precisar de um orçamento de viagem maior, e eu poderia empregar mais uns cem sátiros.

— Sim, mas os sátiros que você tem estão trabalhando demais — disse eu. — Acho que eles estão com medo de você.

Grover corou.

— Isso é tolice. Eu não inspiro medo.

— Você é um Senhor do Mundo Selvagem, cara. O escolhido de Pã. Um membro do Conselho dos...

— Pare! — protestou Grover. — Você parece Juníper. Só falta agora ela querer que eu concorra à presidência.

Ele mastigava uma lata de conserva enquanto olhávamos do outro lado do lago a fila de novos chalés em construção. O U da formação atual logo se pareceria mais com um círculo, e os semideuses haviam adotado a nova tarefa com prazer.

Nico tinha alguns construtores mortos-vivos trabalhando no chalé de Hades. Embora ainda fosse o único nele, o lugar ia ficar bem legal: sólidas paredes de obsidiana com uma caveira no alto da porta e tochas que queimavam com fogo verde vinte e quatro horas por dia. Ao lado dele, estavam os chalés de Íris, Nêmesis, Hécate e vários outros que eu não reconhecia. A cada dia acrescentavam um novo ao projeto. Estava indo tão bem que Annabeth e Quíron falavam sobre acrescentar toda uma nova ala de chalés para conseguir espaço suficiente.

O chalé de Hermes estava muito menos lotado agora, pois a maioria dos filhos não assumidos havia recebido sinais de seus pais divinos. Acontecia quase toda noite, e toda noite mais semideuses atravessavam a divisa da propriedade guiados pelos sátiros, em geral com algum monstro asqueroso os perseguindo, mas quase sempre conseguiam chegar.

— Vai ser muito diferente no próximo verão — disse eu. — Quíron espera que tenhamos o dobro de campistas.

— É — concordou Grover —, mas este continuará sendo o lugar de sempre.

Ele suspirou, contente.

Eu observava Tyson liderar um grupo de ciclopes construtores. Eles içavam imensas pedras, colocando-as no lugar, para o chalé de Hécate, e eu sabia que era um trabalho delicado. Cada pedra era gravada com escritos mágicos, e se deixassem uma cair, ela explodiria, ou transformaria em árvore todo mundo em um raio de oitocentos metros. Eu calculava que ninguém, exceto Grover, gostaria disso.

— Vou viajar bastante — avisou Grover —, dividido entre proteger a natureza e encontrar meios-sangues. Não devo vê-lo muito.

— Isso não vai mudar nada — disse eu. — Você ainda é o meu melhor amigo.

Ele sorriu.

— Exceto por Annabeth.

— É diferente.

— É — concordou ele. — Certamente que é.

No fim da tarde, eu dava uma última caminhada ao longo da praia quando uma voz familiar disse:

— Um bom dia para pescar.

Meu pai, Poseidon, estava de pé na arrebentação, mergulhado até os joelhos na água, usando sua típica bermuda, um boné surrado e uma camisa havaiana em tons claros de verde e rosa. Tinha uma vara de pesca em alto-mar nas mãos e lançou a linha muito distante — quase até a metade do Estreito de Long Island.

— Ei, pai — falei. — O que o traz aqui?

Ele piscou.

— Não conseguimos conversar com privacidade no Olimpo. Queria agradecer a você.

— Agradecer a mim? Você foi em nosso auxílio.

— Sim, e tive meu palácio destruído nesse ínterim, mas você sabe... palácios podem ser reconstruídos. Recebi muitos cartões de agradecimento dos outros deuses. Até mesmo Ares me escreveu, embora eu ache que Hera o tenha obrigado. É muito gratificante. Portanto, agradeço. Creio que até os deuses podem aprender novos truques.

O Estreito começou a fervilhar. Na ponta da linha de pesca de meu pai uma serpente marinha imensa e verde emergiu da água. Ela se debatia e lutava, mas Poseidon apenas suspirou. Segurando a vara de pesca com uma só mão, ele pegou a faca e cortou a linha. O monstro afundou.

— Não tem o tamanho próprio para o consumo — ele se queixou. — Tenho de soltar os pequenos ou os guarda-caças vêm em cima de mim.

— Pequenos?

Ele sorriu.

— Você está se saindo bem com esses novos chalés, por falar nisso. Suponho que isso signifique que posso reconhecer todos aqueles meus outros filhos e filhas e mandar alguns irmãos para você no próximo verão.

— Hã-hã.

Poseidon puxou a linha vazia.

Mudei o peso de um pé para o outro.

— Hã, você estava brincando, não é?

Poseidon me deu uma daquelas suas piscadelas que indicam piadinhas particulares, e eu fiquei sem saber se ele estava falando sério ou não.

— Até breve, Percy. E lembre-se: saiba reconhecer qual peixe é grande o bastante para ser pescado, hein?

Com isso, ele se dissolveu na brisa marinha, deixando uma vara de pesca caída na areia.

Aquela era a última noite no acampamento — a cerimônia das contas. O chalé de Hefesto havia desenhado a conta esse ano. Ela mostrava o Empire State Building, e marcados em minúsculas letras gregas, espiralando em torno da imagem, estavam os nomes de todos os heróis que haviam morrido defendendo o Olimpo. Eram nomes demais, mas eu me sentia orgulhoso de usá-la. Coloquei-a em meu cordão do acampamento — que agora tinha quatro contas. Eu me sentia um veterano. Pensei na minha primeira reunião em torno da fogueira, quando tinha doze anos, e em como me sentira tão em casa. Isso pelo menos não mudara.

— Nunca esqueçam este verão! — disse-nos Quíron. Ele havia se recuperado extraordinariamente bem, mas ainda trotava diante da fogueira ligeiramente manco. — Descobrimos a bravura, a amizade e a coragem neste verão. Defendemos a honra do acampamento.

Ele sorriu para mim, e todos aplaudiram. Olhando para o fogo, vi uma garotinha de vestido marrom cuidando das chamas. Ela piscou para mim com olhos vermelhos brilhantes. Ninguém mais pareceu notá-la, mas me ocorreu que talvez ela preferisse assim.

— E agora — disse Quíron —, cedo para a cama! Lembrem que vocês precisam desocupar seus chalés antes do meio-dia de amanhã, a menos que tenham combinado passar o ano conosco. As harpias da limpeza comerão quem ficar para trás, e eu detestaria que o verão terminasse com um incidente desses!

Na manhã seguinte, Annabeth e eu ficamos parados no topo da Colina Meio-Sangue. Observamos os ônibus e as vans se afastarem levando a maior parte dos campistas de volta para o mundo real. Alguns veteranos ficariam, e alguns recém-chegados também, mas eu estava voltando para a Goode High School, para o meu segundo ano — a primeira vez na vida em que eu ficaria dois anos em uma mesma escola.

— Tchau — disse-nos Rachel, pondo a bolsa no ombro.

Ela parecia bem nervosa, mas ia cumprir a promessa feita ao pai e frequentar a Academia de Clarion em New Hampshire. Somente no próximo verão teríamos nosso Oráculo de volta.

— Você vai se sair bem. — Annabeth abraçou-a.

Engraçado, agora elas pareciam se dar bem.

Rachel mordeu o lábio.

— Espero que você esteja certa. Estou um pouco preocupada. E se alguém perguntar o que vai cair no próximo teste de matemática e eu começar a recitar uma profecia no meio da aula de geometria? O teorema de Pitágoras será a questão número dois... Deuses, isso seria constrangedor.

Annabeth riu, e, para meu alívio, isso fez Rachel sorrir.

— Bem — disse ela —, vocês dois se comportem.

Vá entender, mas ela olhou para mim como se eu fosse algum baderneiro. Antes que eu pudesse protestar, Rachel nos desejou boa sorte e desceu a colina correndo para pegar sua carona.

Annabeth, graças aos deuses, ficaria em Nova York. Recebera permissão dos pais para frequentar um internato na cidade a fim de ficar perto do Olimpo e supervisionar os trabalhos de reconstrução.

— E perto de mim? — perguntei.

— Bem, alguém está ficando muito convencido.

Mas ela entrelaçou os dedos nos meus. Lembrei-me do que ela dissera em Nova York, sobre construir algo permanente, e pensei que... talvez... estivéssemos a caminho de um bom começo.

O dragão sentinela Peleu enroscou-se todo contente no pinheiro, sob o Velocino de Ouro, e começou a roncar, expelindo vapor a cada vez que respirava.

— Você tem pensado na profecia de Rachel? — perguntei a Annabeth.

Ela franziu a testa.

— Como você sabe?

— Porque conheço você.

Ela me deu um empurrão com o ombro.

— O.k., tenho sim. Sete meios-sangues responderão ao chamado. Eu me pergunto quem serão eles. Vamos ter tanta gente nova no próximo verão.

— É — concordei. — E toda aquela coisa sobre o mundo acabar em tempestade ou fogo.

Ela franziu os lábios.

— E inimigos nas Portas da Morte. Não sei, Percy, mas não gosto disso. Pensei que... bem, que talvez teríamos um pouco de paz, para variar.

— Esse não seria o Acampamento Meio-Sangue se reinasse a paz — disse eu.

— Acho que você tem razão... Ou talvez a profecia não aconteça por anos.

— Pode ser um problema para outra geração de semideuses — concordei. — Então podemos relaxar e curtir a vida.

Ela assentiu, embora ainda parecesse inquieta. Eu não a culpava, mas era difícil ficar preocupado demais em um dia bonito, com ela ao meu lado, sabendo que não estava dizendo adeus de verdade. Tínhamos muito tempo pela frente.

— Uma corrida até a estrada? — desafiei.

—Você vai perder. — Ela disparou Colina Meio-Sangue abaixo, e eu arranquei atrás dela.

Dessa vez, não olhei para trás.

 

 

                                                   Rick Riordan         

 

 

 

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