Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
Em Washington, D.C., um sem-teto morre nos braços do comandante Gray Pierce, atingido pela bala de um assassino. Mas a morte deixa para trás um mistério ainda maior: uma moeda ensanguentada encontrada na mão fechada do morto, relíquia antiga relacionada ao oráculo grego de Delfos. Enquanto perseguidores implacáveis procuram o artefato, Pierce descobre que a moeda é a chave para desvendar uma conspiração que remonta à Guerra Fria e ameaça a própria fundação da Humanidade.
Dos templos da Grécia antiga aos mausoléus mais deslumbrantes, dos bairros pobres da Índia às ruínas tóxicas da Rússia, dois homens correm contra o tempo para resolver o mistério que chega ao presente desde o primeiro grande oráculo da história.
Mas uma questão permanece: o passado é suficiente para salvar o futuro?
Mestre na arte de combinar a intriga histórica e religiosa com as aventuras mais alucinantes, James Rolins traz de volta a Força SIGMA para combater um grupo de cientistas sem escrúpulos e seu projeto de bioengenharia capaz de condenar a humanidade à extinção.
PRÓLOGO
398 d. C.
Monte Parnaso Grécia
Vieram para matá-la.
A mulher permanecia junto ao pórtico do templo. Tremia com as suas vestes finas, uma simples muda de linho branco presa à cintura, mas não era o frio da madrugada
que lhe gelava os ossos.
Mais abaixo, uma procissão com tochas deslizava pelas encostas do monte Parnaso como um rio de fogo. Seguia a sinuosa estrada de pedra da Via Sacra, trepando na
direção do templo de Apoio. O bater da espada no escudo acompanhava a sua progressão, uma corte inteira da legião romana, composta por quinhentos homens. A estrada
intrometia-se por monumentos em ruínas e tesouros há muito saqueados. Tudo o que pudesse arder tinha sido incendiado.
Enquanto a luz do fogo dançava por cima das ruínas, as chamas davam uma ilusão cintilante de tempos mais prósperos, uma restauração ardente de antiga glória: tesouros
transbordando de ouro e Joias, legiões de estátuas esculpidas pelos melhores artesãos, uma amálgama de gente reunida para ouvir as palavras proféticas do oráculo.
Mas nada mais.
Ao longo do último século, Delfos perdera o seu estatuto ao ser invadida pelos Gauleses, saqueada pelos Trácios, mas, acima de tudo, consumida pela negligência.
Poucos vinham agora procurar as palavras do oráculo: um guardador de cabras interrogando-se acerca da fidelidade da sua mulher, ou um marinheiro procurando bons
presságios para uma viagem através do golfo da Coríntia.
Era o fim dos tempos, o fim do oráculo de Delfos. Ao fim de trinta anos de profecias, devia ser ela a última a usar o nome de Pítia.
O último oráculo de Delfos.
Mas com esta apreensão vinha um desafio final.
Pítia virou-se para oriente, onde o céu começara a aclarar.
Oh, essa rosada Eos, deusa da aurora, que apresse Apoio a amarrar os seus quatro cavalos ao seu carro solar.
Uma das irmãs de Pítia, uma jovem acolita, saiu do templo atrás dela.
- Senhora, venha connosco - implorou a jovem. - Ainda não é tarde. Ainda podemos escapar com as outras para as grutas altas.
Pítia colocou uma mão sobre o ombro da mulher para confortá-la. Na noite anterior, as outras mulheres tinham fugido para os terrenos altos e pedregosos onde as grutas
de Dionísio as manteriam seguras. Mas Pítia tinha um dever final a cumprir.
- Senhora, não há tempo para executar a sua última profecia.
- Tenho de fazê-lo.
- Então faça-o agora. Antes que .seja demasiado tarde.
Pítia virou-se.
- Temos de esperar pelo amanhecer do sétimo dia. E esse o nosso caminho.
Assim que o Sol se pusera ontem à noite. Pítia começara os seus preparativos. Banhara-se nas águas prateadas da nascente de Castália, bebera da fonte Kassotis e
queimara folhas de louro num altar de mármore branco no exterior do templo. Seguira o ritual com toda a precisão, idêntico ao efetuado pela primeira pitonisa há
milhares de anos.
Só que, desta vez, o oráculo não estivera sozinho nas suas purificações. Fizera-se acompanhar por uma garota, com pouco mais de doze verões.
Uma criatura tão pequena e de modos tão estranhos.
A criança deixara-se ficar nua. nas águas da nascente, enquanto a mulher mais velha a lavava e untava. Não dissera uma palavra, limitando--se a ficar de braço esticado
na horizontal, abrindo e fechando os dedos, como se estivesse a agarrar uma coisa que só ela podia ver. Que deus impunha tanto sofrimento à criança ao mesmo tempo
que a abençoava? Certamente que nem Apoio faria uma coisa dessas. Contudo, as palavras da criança proferidas há trinta dias só podiam ter vindo dos deuses. Palavras
que tinham obviamente espalhado e atiçado os fogos que agora subiam na direção de Delfos.
Oh, que bom seria que essa criança nunca tivesse vindo parar aqui.
Pítia não se importara de ver Delfos a definhar na obscuridade. Lembrava-se das palavras ditas por uma das suas antepassadas, desde há muito falecida, um presságio
terrível.
O imperador Augusto interrogara a sua irmã falecida: “Porque é que o oráculo ficou tão silencioso?”
A irmã respondera: “Um rapaz hebreu, um deus que governa entre os abençoados, deseja que eu abandone esta casa...”
Estas palavras revelaram ser uma verdadeira profecia. O culto de Cristo expandiu-se a ponto de consumir o Império e destruir qualquer esperança de um regresso aos
velhos tempos.
Depois, há uma lua atrás, a garota estranha viera cair-lhe aos pés.
Pítia desviou o olhar das chamas e fixou-o no adytum. o sanctitm interior do templo de Apoio. A garota esperava lá dentro.
Era uma órfã da cidade distante de Quios. Ao longo dos tempos, muitos foram aqueles que se encarregaram de trazer estas crianças até aqui. procurando largar tais
fardos no seio da irmandade. A maior parte era excluída. Apenas ficavam as garotas tidas por ideais: corpo robusto, visão apurada e incorruptas. Apoio nunca aceitaria
um contingente de qualidade inferior para o seu espírito profético.
Por isso, quando esta amostra de garota se apresentara nua nos degraus do templo de Apoio, Pítia mal olhara para ela. A criança estava imunda, com o seu cabelo escuro
crespo e emaranhado, a sua pele coberta de cicatrizes de varíola. Mas, pior ainda. Pítia denotara algo de errado na criança. A forma como se balouçava para trás
e para a frente. Até os olhos fitavam sem estarem verdadeiramente a ver.
Os seus patronos disseram que a criança tinha sido tocada pelos deuses. Que conseguia contar o número de azeitonas numa árvore com um simples olhar, que conseguia
dizer quando é que uma ovelha ia parir só com um toque da mão.
Ao ouvir estas histórias, o interesse de Pítia começou a aumentar. Chamou a garota para que esta viesse ter consigo à entrada do templo. A criança obedeceu, mas
movia-se como se estivesse desconectada, como se fossem os próprios ventos a empurrá-la. Pítia teve de dar-lhe a mão para a ajudar a sentar-se no degrau de cima.
- Podes dizer-me o teu nome? - perguntou à criança franzina.
- O seu nome é Anteia - declarou um dos patronos lá de baixo.
Pítia manteve o seu olhar focado na criança.
- Anteia, sabes porque é que te trouxeram até aqui?
- A tua casa está vazia - murmurou finalmente a criança com os olhos postos no chão.
Pelo menos sabe falar. Pítia olhou para o interior do templo. O fogo da lareira ardia no centro do átrio principal. Estava, na verdade, vazia de momento, mas as
palavras da criança pareciam querer dizer mais qualquer coisa.
Talvez fossem os seus modos. Tão estranhos, tão distantes, como se ela estivesse com um pé neste mundo e o outro fora dele.
A criança olhou para cima com aqueles olhos azuis-claros, tão cheios de inocência, tão em contraste com aquilo que a seguir lhe escapou dos lábios.
- Tu és velha. Vais morrer em breve.
Lá de baixo, o seu patrono tentou repreendê-la, mas Pítia não levou muito a peito as suas palavras.
- Acabaremos todos por morrer um dia, Anteia. É a ordem natural das coisas.
Ela abanou a cabeça.
- Não o rapaz hebreu.
Esses estranhos olhos penetraram-na. Os pelos dos braços de Pítia eriçaram-se. Era óbvio que a garota aprendera o catecismo do culto de Cristo, mais a sua maldita
cruz. Mas, de novo, a suas palavras. Que cadência tão estranha.
O rapaz hebreu...
Fez-lhe lembrar a profecia de destruição de uma das suas antepassadas.
- Mas outro virá - continuou a garota. - Outro rapaz.
- Outro rapaz? - Pítia inclinou-se mais. - Quem? De onde?
- Dos meus sonhos. - A garota esfregou a orelha com o pulso.
Pressentindo que havia mais coisas por revelar. Pítia tentou obter outras informações.
- Esse rapaz? - perguntou. ~ Quem é ele?
O que a criança disse a seguir fez com que a multidão reunida se agitasse de espanto - até eles reconheceram blasfêmia quando o ouviram.
- Ele é o irmão do rapaz hebreu. - A criança agarrou-se depois com força à borda da saia de Pítia. - Ele arde nos meus sonhos... e porá fogo a tudo. Nada sobreviverá.
Nem sequer Roma.
Durante o último mês. Pítia tentara saber mais coisas acerca desta profecia, tendo chegado mesmo a levar a garota para o seio da irmandade. Mas a criança parecera
apenas retrair-se. permanecendo calada. Todavia, havia uma possibilidade de vir a saber mais.
Se a garota fosse realmente abençoada, o poder da respiração de Apoio - os seus vapores proféticos - poderia libertar o que estava encarcerado nas profundezas estranhas
da garota.
Mas será que havia tempo suficiente?
Um toque no seu cotovelo interrompeu as suas divagações e fê-la voltar à realidade.
- Senhora, o Sol... - pressionou a irmã mais nova.
Pítia olhou para leste. Os céus orientais ardiam, apregoando o Sol nascente. Em baixo, gritos elevavam-se do seio da legião romana. A palavra sobre a garota espalhara-se.
As profecias de destruição haviam chegado longe... até os ouvidos do imperador. Um emissário imperial exigira que a garota fosse entregue a Roma, declarando-a possuída
pelo demônio.
Pítia recusara. Os deuses tinham enviado esta criança para junto de si, para o templo de Apoio. Pítia não iria descartar-se da garota sem primeiro testá-la, colocando-a
à prova.
A leste, os primeiros raios de sol iluminavam os céus da manhã.
O sétimo dia do sétimo mês nascia.
Tinham esperado tempo suficiente.
Pítia virou as costas à legião enfurecida.
- Vem. Temos de nos apressar.
Dirigiu-se para o interior do templo. Também aqui foi recebida pelas chamas, mas uma recepção cordial por parte do fogo sagrado do templo. Duas das irmãs mais velhas
continuavam a alimentar as chamas, demasiado velhas para procederem à penosa ascensão na direção das grutas.
Acenou com a cabeça para expressar-lhes individualmente a sua gratidão e depois apressou-se a sair dali, deixando o fogo para trás.
Nas traseiras do templo, umas escadas conduziam ao sanctum privado. Apenas aquelas que serviam o oráculo podiam entrar no adytum subterrâneo. Enquanto descia, o
mármore foi dando lugar à pedra de calcário. As escadas terminavam numa pequena caverna. A gruta fora descoberta há muito tempo por um guardador de cabras, que,
abeirando-se da entrada da caverna, caíra sob o efeito dos vapores adocicados de Apoio e sucumbira a estranhas visões.
Será que tais dons durariam mais um nascer do Sol?
Pítia encontrou a criança à espera no interior da gruta. A garota estava vestida com uma longa túnica de pano branco, demasiado larga para ela, e sentada de pernas
cruzadas ao lado do trípode de bronze que suportava o ônfalo sagrado, uma pedra convexa da altura da cintura que representava o umbigo do mundo, o centro do universo.
A única outra decoração na gruta limitava-se a uma cadeira destacada, assente em três pernas. Encontrava-se colocada sobre uma falha natural no chão. Pítia, desde
há muito acostumada aos vapores de Apoio, sentiu-se, ainda assim, envolvida pelo aroma a flor de amendoeira que se desprendia da falha.
O espírito do deus, a sua exalação profética.
- Está na altura - disse à irmã mais nova, que a seguira. - Traz-me a criança.
Pítia dirigiu-se ao trípode e sentou-se na cadeira. Posicionada sobre a falha no chão, os vapores inundaram-na com a respiração de Apoio. - Depressa.
A irmã mais nova pegou na criança e colocou-a sobre o seu colo. Pítia embalou -a gentilmente, como uma mãe faz a um bebé. mas a criança não reagiu a semelhante gesto
de ternura.
Pítia já sentia o efeito do espírito que se elevava do interior da terra. Um formigueiro familiar percorreu-lhe o corpo. Sentiu a garganta a arder com o calor enquanto
Apoio entrava nela. A sua visão começou a toldar-se.
Mas a criança era mais pequena, logo mais suscetível ao espírito.
A garota virou a cabeça; as suas pálpebras descaíram. Certamente que não sobreviveria à penetração de Apoio durante muito tempo. Contudo, se é que existia alguma
esperança, a garota teria de ser posta à prova.
- Menina - disse Pítia -, conta-nos mais coisas acerca desse rapaz e da destruição que ele te anunciou. De onde é que ele surgirá?
Os seus lábios minúsculos entreabriram-se num murmúrio.
- De mim. Dos meus sonhos.
Pítia sentiu uns dedos pequeninos a apertarem-lhe a mão.
As palavras continuavam a sair da boca da garota.
- A tua casa está vazia... as tuas nascentes secaram. Mas uma nova fonte de profecia brotará.
Os braços de Pítia envolveram por completo a garota. Durante muito tempo, a ruína pendera sobre o templo.
- Uma nova fonte? - A esperança soava na sua voz. - Aqui em Delfos?
- Não...
A respiração de Pítia tomou-se mais acelerada.
- Então de onde brotará?
Os lábios da garota mexeram-se, mas nenhumas palavras surgiram.
Ela abanou a garota.
- De onde?
A garota ergueu um braço mole e colocou a mão na sua própria barriga.
Com esse toque, uma visão cresceu em Pítia, de águas prateadas irrompendo do umbigo da garota, de dentro do seu útero. Uma nova fonte. Mas será que era uma visão
de Apoio? Ou nascera da sua própria esperança?
Um gritou tirou-a do seu deslumbramento. Vozes ríspidas ecoaram ao longe. Vinda das escadas, uma figura apareceu. Era uma das irmãs mais velhas que tinham alimentado
o fogo. Agarrou no ombro com uma das mãos. Uma mancha vermelha surgiu de debaixo dela. A ponta preta de uma seta sobressaía de entre os seus dedos.
- Tarde de mais - gritou a velha, caindo de joelhos. - Os Romanos...
Pítia ouviu as palavras da mulher, mas continuava perdida no meio dos vapores. Por detrás dos seus olhos, imaginava a nascente brotando da garota, uma nova fonte
de poder profético. Mas Pítia também conseguia cheirar o fumo das tochas romanas. O sangue e o fumo misturaram-se na sua visão. Da nascente prateada corria agora
um fio purpúreo, que se projetava no futuro.
A criança sucumbiu repentinamente nos seus braços, completamente perdida com os vapores do espírito. No entanto, enquanto Pítia observava a visão, viu a corrente
escura formar uma figura preta... a sombra de um rapaz. As chamas irromperam atrás dele.
As palavras da criança de uma lua atrás avivaram-se na sua memória.
O irmão do rapaz hebreu... aquele que poria o mundo em chamas.
Pítia segurou na garota débil. A profecia da criança visava tanto a destruição como a salvação. Talvez fosse melhor entregá-la à legião imperial, para terminar com
um futuro tão incerto aqui. De lá de cima, ecoaram vozes ríspidas. Já não havia saída. Exceto na morte.
Contudo, a visão cresceu nela.
Apoio enviara a criança. A Pítia.
Uma nova fonte brotará.
Respirou fundo, deixando que Apoio a penetrasse por completo.
O que devo fazer?
O centurião romano atravessou o átrio. Tinha ordens para cumprir. Matar a garota que falava acerca da destruição do império. Ontem à noite, tinham capturado uma
das serviçais do templo, uma criada. Sob a ameaça do chicote - e antes de a ter entregue aos seus homens -, a criada dera a entender que a garota ainda se encontrava
no templo.
- Tragam as tochas! - gritou. - Procurem em todos os cantos!
Um movimento perto do fundo da sala captou a atenção dos seus olhos - e da sua espada.
Uma mulher apareceu vinda das sombras de uma escada inferior. Avançou de rompante, expondo-se em duas passadas, instável, confusa. Vestida toda de branco, trazia
uma coroa de louros na cabeça.
Ele sabia quem tinha à sua frente.
O oráculo de Delfos.
O centurião conteve um arrepio de medo. Tal como muitos outros da sua legião, ainda praticava secretamente os ritos antigos. Incluindo matar touros em honra de Mitra
e banhar-se no seu sangue.
Contudo, um novo Sol erguia-se no horizonte.
Não havia como evitá-lo.
- Quem se atreve a violar o templo de Apoio? - inquiriu o oráculo.
Sentindo o peso do olhar dos seus homens sobre ele. o centurião avançou para enfrentar a mulher.
- Traz cá para fora a garota! - exigiu.
- Ela partiu. Para um lugar inatingível.
O centurião sabia que isso era impossível. O templo estava cercado.
A preocupação impeliu-o ainda mais para a frente.
O oráculo tentou impedi-lo de se aproximar das escadas. Ergueu uma mão em frente da sua couraça.
- O acesso ao culytum é vedado a todos os homens.
- Mas não ao imperador. E eu estou sob suas ordens.
Ela recusou-se a sair dali.
- Não passarão.
O centurião obedecia às ordens emanadas sob o selo do imperador Teodósio, e que lhe tinham sido entregues pessoalmente pelo filho do imperador, Acádio. Os deuses
antigos deviam ser todos silenciados, os seus velhos templos destruídos. Por todo o império, incluindo Delfos. O centurião recebera ainda uma ordem adicionai.
Obedeceria.
Enfiou a espada bem no fundo da barriga do oráculo, até ficar só com um punho à vista. Um gemido escapou da boca da mulher. Caiu por cima do ombro do centurião.
como num abraço de amantes. Ele afastou--a com rudeza.
O sangue espalhou-se por toda a sua armadura, por todo o chão.
O oráculo caiu sobre o mármore, prostrando-se de lado. Um braço trêmulo alcançou a poça do seu próprio sangue. Estendeu a mão para melhor senti-lo.
- Uma nova fonte... - murmurou, como se fosse uma promessa.
Depois o seu corpo cobriu-se de morte.
O centurião passou por cima da forma inerte da mulher e deixou que a sua espada o guiasse pelas escadas até a uma pequena caverna. O corpo de uma mulher velha, atingido
por uma seta, jazia numa poça escurecida de sangue. Uma cadeira de três pernas encontrava-se tombada ao lado de uma fenda no chão. Procurou por todos os cantos,
completando um círculo.
Impossível.
A câmara estava vazia.
Março 1959
Montes Cárpatos, Romênia
O major Yuri Raev subiu a custo para o camião russo ZiS-151 e meteu-se pela estrada poeirenta coberta de sulcos. Sentia as pernas a tremer lá em baixo. Para adquirir
maior firmeza, apoiou uma mão na porta de aço verde do veículo em mau estado, amaldiçoando-o e agradecendo-lhe ao mesmo tempo. A trepidação da longa viagem de três
semanas pelas montanhas acima ainda lhe provocava dores na coluna. Até os molares lhe pareciam desconjuntados no interior do crânio. No entanto, só um veículo daqueles
conseguiria trepar pelos caminhos rochosos e estradas inundadas que levavam a este isolado acampamento de Inverno.
Olhou por cima do ombro no momento em que o taipal da caixa do camião se abriu. Soldados vestidos com uniformes pretos e brancos saíram de lá dentro. A sua vestimenta
de Inverno fundia-se com a neve e granito desta região montanhosa densamente florestada. O nevoeiro matinal ainda persistia nas concavidades como fantasmas carrancudos.
Os homens praguejaram e calcaram o chão com as botas. Pequenas chamas de fogo faiscaram enquanto os ciganos eram largados ou esmagados no chão. Com um estrépito,
os soldados aprontaram as suas Kalashnikov de assalto. Mas eram apenas a retaguarda, com a intenção de manter o caminho livre.
Yuri olhou em frente enquanto o segundo no comando desta missão, o tenente Dobritsky. se aproximava. Era um ucraniano atarracado de rosto bexigoso e nariz partido,
vestido com a camuflagem de Inverno. As marcas vermelhas deixadas pelos óculos de neve ainda lhe circundavam os olhos.
- Meu major, o acampamento está sob controle.
- São eles? Aqueles que procuramos?
Dobritsky encolheu os ombros, deixando que fosse Yuri a decidir. Já tinham tido um falso alarme, invadindo um acampamento de Inverno de camponeses meio esfomeados,
que ganhavam a vida a partir pedra.
Yuri olhou com cara de poucos amigos. Estas montanhas eram de outra era, da Idade da Pedra, de outros tempos, repletas de superstição e pobreza. Contudo, a dura
região montanhosa coberta de floresta era também um refúgio perfeito para aqueles que desejavam manter-se escondidos.
Yuri desviou-se para o lado e observou a curva do caminho sulcado que servia de estrada. A lama e a neve tinham sido amassadas pelos veículos da frente. Por entre
as árvores, Yuri vislumbrou um sulco deixado pelas motorizadas IMZ-Ural. cada uma delas transportando um soldado armado num carro lateral. As pesadas motorizadas
tinham avançado em primeiro lugar para controlar o terreno, eliminando todas as possibilidades de fuga.
Vários rumores e depoimentos atormentados haviam-nos conduzido a este local tão remoto. E, ainda assim, fora preciso percorrer toda a região montanhosa e incendiar
algumas propriedades para soltar as ocasionais línguas presas. Poucos eram os que estavam dispostos a falar dos Romani dos Cárpatos. Especialmente tendo em conta
as histórias que circulavam sobre este clã isolado, rumores de strigoi e morai. Espíritos malignos e bruxas.
Mas será que ele os tinha encontrado finalmente?
O tenente Dobritsky mudou de posição.
- E agora, major?
Yuri reparou na irritação estampada nos lábios do ucraniano. Embora Yuri fosse um major do exército soviético, não era nenhum soldado. Era um pouco mais baixo do
que Dobritsky. com uma ligeira barriga e um rosto bolachudo. Recrutado na Universidade Estatal de Leninegrado. chegara a esta posição percorrendo as fileiras dos
ramos científicos militares. Com vinte e oito anos. já era chefe do laboratório de biofísica no Instituto de Investigação Médica e Biológica de Controlo Estatal.
- Onde está o capitão Martov? - perguntou Yuri. O representante do Serviço de Informações Militares Soviético deixava muitas vezes a companhia de Dobritsky, mantendo
um olhar oficioso sobre todos os assuntos.
- À nossa espera, à entrada do acampamento.
Dobritsky avançou lentamente por um caminho estreito até o centro da estrada. Yuri prosseguiu por uma das partes laterais, onde o chão estava ainda gelado e era
mais fácil caminhar. Alcançando a última curva, o tenente apontou para um acampamento abrigado numa zona de penhascos íngremes, rodeada por florestas.
- Ciganos - resmungou Dobritsky. - Como pediu, da?
Mas será que este é o clã romani certo?
A sua frente viam-se carroças ciganas pintadas em tons esbatidos de verde e preto, com rodas da altura de Yuri. Alguma da tinta começara a desprender-se revelando
cores garridas escondidas por baixo da camada solta, pequenas amostras de tempos mais felizes. As carroças altas de madeira encontravam-se cobertas de neve e adornadas
por blocos de gelo que pendiam de cada um dos lados. As janelas estavam cobertas de geada. Buracos escurecidos assinalavam o lugar de antigas fogueiras. Duas delas
estavam ainda acesas na zona mais longínqua do acampamento de Inverno, lançando chamas do tamanho da carroça mais alta. Outra carroça tinha sido completamente destruída
pelo fogo.
De um dos lados, alguns cavalos de tiro de dorso acentuado inclinavam vagarosamente as suas cabeças debaixo de uma cobertura feita com bocados de madeira e pedras
empilhadas. Algumas cabras e carneiros pastavam em redor.
Os soldados mantinham o local cercado. Alguns cadáveres com roupas esfarrapadas e casacos de pele jaziam aqui e ali. Os vivos não tinham um aspeto muito melhor.
Os residentes do acampamento tinham sido retirados à força das suas carroças e tendas pesadas.
Ouviram-se gritos no fundo do acampamento no momento em que os últimos ciganos foram reunidos. Um barulho de disparo automático soou. Kalashnikovs. Yuri observou
o grupo irado. Algumas mulheres estavam de joelhos, a soluçar. Estes homens morenos não viam com muitos bons olhos os intrusos. Muitos deles encontravam-se ensanguentados,
feridos e com os membros partidos.
- Onde estão as crianças? - perguntou Yuri.
A resposta veio do outro lado. tão viva e frágil quanto o gelo que cobria esta região montanhosa.
- Barricadas na igreja.
Yuri virou-se e viu o seu interlocutor, o capitão Savina Martov, a oficial do serviço de informações da missão. Estava enfiada dentro de um casacão preto com um
capuz com uma orla em pelo. O seu cabelo preto misturava-se com os pelos de lobo cinzento do capuz.
Ergueu um braço esguio na direção de um campanário que se estendia para além das carroças e tendas. Parecia ser a única estrutura de caráter permanente nestas paragens.
Construída com a pedra local, a igreja confundia-se com os penhascos envolventes.
- As crianças já estavam reunidas no interior da estrutura quando as nossas forças aqui chegaram - contou Salvina.
Dobritsky acenou.
- Devem ter ouvido o barulho das motorizadas.
Savina olhou diretamente para Yuri. A luz da manhã bailava nos seus olhos verdes. A oficial do serviço de informações tinha os seus próprios conhecimentos. Fora
Savina quem entregara um conjunto de documentos de investigação ao instituto de Yuri, contendo vários cadernos de apontamentos e um sem-número de dados relativos
a Auschwitz-Birkenau, especificamente o trabalho do doutor Josef Mengele, o “Anjo da Morte” do campo de concentração.
Yuri teve muitos pesadelos, que o deixavam encharcado em suor, depois de ter lido o material. Toda a gente sabia que o doutor Mengele tinha aproveitado os prisioneiros
para realizar as experiências mais horríveis, mas o fato é que o monstro revelou um fascínio especial por ciganos, especialmente crianças. Atraía-as com doces e
chocolates. Chegaram a tratá-lo por “Tio Pepe”. Tudo isto feito com a intenção de obter a sua cooperação. E claro que acabaria por matá-las a todas - mas não antes
de ter descoberto um par de gêmeas ciganas de caráter exemplar.
Duas garotas idênticas. Sasha e Meena.
Yuri lera todos aqueles apontamentos com uma mistura de fascínio e horror.
Mengele escrevera notas meticulosas sobre estas gémeas notáveis: idade, história familiar, linhagem. Torturou a família das gémeas para descobrir mais pormenores,
verificados por testes feitos às meninas. Mengele acelerou o ritmo das suas experiências. Mas à medida que a guerra se foi aproximando do fim, viu-se forçado a cancelar
prematuramente todos os seus testes. Matou as gémeas com injeções de fenol nos corações.
Mengele escrevinhara a sua frustração perto do fim.
Wenn ich nur mehr Zeit gehabt hätte...
Se ao menos tivesse tido mais tempo...
- Pronto? - perguntou Savina a Yuri.
Ele acenou afirmativamente.
Acompanhado por Dobritsky e outro soldado, o par entrou dentro do acampamento.
Yuri passou por cima de um cadáver deitado de barriga para baixo no meio de um charco de sangue gelado.
A igreja surgiu à frente. Só se viam pedras empilhadas, nada de Janelas. A sua única porta encontrava-se fechada, construída com tábuas de madeira rija, unidas e
decoradas com elementos em cobre. O edifício parecia-se mais com uma fortaleza do que com uma igreja.
Dois soldados flanquearam as portas com um aríete de aço.
Dobritsky olhou para Yuri.
Ele acenou com a cabeça.
- Derrubem-na! - ordenou o tenente com um ar severo.
Os homens empunharam o aríete e lançaram-no sobre a porta. A madeira estalou. Foram precisos mais dois golpes. Finalmente a porta cedeu com um barulho de trovão.
Yuri seguiu na esteira de Savina e entrou.
Pequenas lamparinas iluminavam o interior. Várias filas de bancos de igreja dispunham-se alinhadas de ambos os lados, no final dos quais se erguia um altar destacado.
Crianças de todas as idades permaneciam agachadas entre os bancos, estranhamente caladas.
Yuri pôs-se a observar as crianças enquanto prosseguia na direção do altar.
Muitas apresentavam deformações perturbadoras: microcefalia, lábios leporinos, nanismo. Uma criança não tinha braços, apenas torso.
Procriação consanguínea. Yuri sentiu o desconforto na pele. Por isso é que os camponeses locais temiam este clã romani, contando histórias de espíritos e monstros.
- Como podemos saber se são estas as crianças certas? - perguntou Savina com um profundo sentimento de repulsa na voz.
Yuri citou um dos relatos atormentados registrados por Mengele.
- O covil dos chovihanis. - O local onde as gémeas tinham nascido, um segredo guardado pelos ciganos desde o tempo da fundação dos clãs.
- Serão as tais? - insistiu Savina.
Yuri abanou a cabeça.
- Não sei.
Avançou na direção de uma garota que estava sentada defronte do altar. Mantinha uma boneca de trapos junto ao peito, embora a sua própria roupa não se apresentasse
lá muito melhor do que a da boneca. A medida que Yuri se foi aproximando reparou que a criança parecia perfeita. poupada a qualquer deformação. No meio da luz fraca,
o azul cristalino dos seus olhos brilhava de uma forma intensa.
Tão raro entre os Romani.
Tal como as gémeas, Sasha e Meena.
Yuri ajoelhou-se à sua frente. Eia parecia não ter reparado na sua presença, olhando em frente sem o fitar. Pressentiu que havia algo de eirado com esta criança,
possivelmente mais temível do que as outras deformações.
Embora os seus olhos nunca parecessem ter tido maior acuidade do que a que demonstravam, levantou uma mão na sua direção.
- Tchio Pepe - proferiu numa fina voz romani.
Uma torrente de medo invadiu o corpo de Yuri. Tio Pepe. O diminutivo de Josef Mengele. Aquele que fora usado por todas as crianças ciganas. Mas estas crianças eram
demasiado pequenas para sequer terem visto o interior de um campo de concentração.
Yuri olhou para aqueles olhos distantes. Será que a criança sabia o que Yuri e a sua equipe de investigação pretendiam? Como é que isso podia ser? As palavras de
Mengele vieram-lhe à cabeça:
Se ao menos tivesse tido mais tempo...
Esse não seria o problema de Yuri. A sua equipe teria todo o tempo do mundo. A unidade estava já a ser construída. Longe dos olhares mais curiosos.
Savina aproximou-se. Precisava de uma resposta.
Yuri sabia já a verdade; soubera-a no momento em que olhara para o rosto desta criança. No entanto, hesitava.
Savina colocou-lhe uma mão sobre o ombro.
- Major?
Não havia como voltar atrás, por isso Yuri acenou afirmativamente, reconhecendo o horror que estava para vir.
- Da. Estes são os chovihanis.
- Tem a certeza?
Yuri anuiu outra vez, mas manteve o olhar fixo nos olhos azuis da criança. Mal ouviu Savina ordenar a Dobritsky; “Reúna todas as crianças nos camiões. Eliminem todos
os outros.”
Yuri não contraordenou estas ordens. Sabia porque é que estavam ali.
A criança ainda tinha a mão estendida.
- Tchio Pepe - repetiu.
Segurou nos seus dedos minúsculos. Não havia como negar, como voltar atrás.
Sim, sou eu.
PRIMEIRO
1
ATUALIDADE
5 de setembro, 13h38
Washington, D. C.
Não era todos os dias que um homem morria nos seus braços.
O comandante Gray Pierce estava a atravessar o National Mal quando o sem-abrigo o abordou. A disposição de Gray já não era das melhores, depois da discussão que
tivera e da outra que estava para vir. O calor do meio-dia ainda fazia aumentar mais a sua irritabilidade. O dia escaldava com o habitual calor abrasador de D. C.,
libertando o passeio de qualquer transeunte. Envergando um casaco azul-marinho por cima de uma camisa de algodão desfraldada e calças de ganga, calculava que a sua
temperatura interna tivesse aumentado de médio para bem passado.
A meio quarteirão de distância, Gray vislumbrou uma figura delgada acenando na sua direção. O sem-abrigo estava vestido com umas calças de ganga largas enroladas
nos tornozelos, de onde sobressaíam umas botas militares já gastas, com os atacadores apertados até meio. Encolhia-se dentro de um casaco amarrotado. A medida que
o homem se ia aproximando, Gray reparou que a sua barba rala apresentava algumas manchas grisalhas, revelando uns olhos turvos e vermelhos enquanto procurava em
volta.
Tais mendigos não eram uma visão rara em tomo do National Mal, especialmente tendo em conta que as celebrações do Dia do Trabalhador tinham só terminado no fim-de-semana
passado. Os turistas tinham retomado os seus afazeres, a polícia de choque tinha-se retirado para a zona dos bares e o pessoal de limpeza tinha terminado de varrer
as ruas. Os últimos a partir tinham sido aqueles que ainda ansiavam por uma ligeira hipótese de ver aparecer por entre os caixotes de lixo algumas latas ou garrafas,
como caranguejos escarafunchando o último pedaço de carne agarrado a meia dúzia de ossos velhos.
Gray não se desviou do vagabundo quando se meteu pela Jefferson Drive na direção do Instituto Smithsoniano, o seu destino. Chegou mesmo a olhá-lo diretamente nos
olhos, não só para avaliar qualquer possibilidade de ameaça como para reconhecer a existência do homem. Embora houvesse certamente assaltos por parte de mendigos
que eram tudo menos necessitados, a maior parte dos homens e mulheres que vivia nas ruas estava lá por desgraça, vício ou vários tipos de doença mental. E muitos
eram veteranos das forças armadas. Gray recusou-se a afastar o olhar - e talvez tivesse sido isso que iluminou os olhos do outro homem.
Gray apercebeu-se de um misto de alívio e esperança no meio de tanta imundície e rugas. Ao descortinar Gray, a figura cambaleante do sem-abrigo tomou-se ainda mais
determinada no seu andar. Talvez temesse que a sua presa pudesse escapar para o Instituto, antes de ele poder alcançá-la. Os membros do homem tremiam. Estava claramente
inebriado ou se calhar sofria de tremores alcoólicos.
Uma mão foi estendida na sua direção, com a palma virada para cima.
Era um gesto universal - desde os bairros miseráveis do Brasil às vielas de Banguecoque.
Ajude-me. Por favor.
Gray procurou a carteira no interior do casaco. Muitos pensavam que ele era um idiota por ceder a tais fulanos. Usam o dinheiro que a gente dá para comprar bebidas
ou drogas. Não queria saber. Não lhe cabia a ele julgar. Aqui estava outro ser humano a precisar de ajuda. Tirou a carteira. Caso pedissem, dava dinheiro. Era este
o seu lema. E talvez, verdade seja dita, esta caridade funcionasse também para Gray como um bálsamo de bondade humana para compensar uma culpa enterrada mais fundo
do que ele se atrevia a pensar.
E tudo isto por uma moeda ou duas.
Não era um mau negócio.
Olhou para a carteira. Só tinha notas de vinte. Acabara de levantar dinheiro numa máquina automática na estação de metro. Encolheu os ombros e tirou uma nota com
o rosto de Andrew Jackson.
Está bem, muitas vezes custava mais do que uma moeda ou duas.
Ergueu a cabeça no momento em que os dois se cruzaram. Gray estendeu-lhe a nota de vinte dólares, mas viu que a mão do homem não estava vazia. No meio dela sobressaía
uma moeda sem brilho, do tamanho de uma moeda de cinquenta cêntimos.
Gray franziu as sobrancelhas.
Era a primeira vez que um sem-abrigo tentava pagar-lhe.
Antes de poder compreender a situação, o homem tropeçou na sua direção, como se tivesse sido subitamente empurrado pelas costas. A sua boca abriu-se num O de espanto.
Caiu em cima de Gray, que, num gesto reflexivo, amparou o homem idoso.
Era mais leve do que Gray esperara. Debaixo do seu casaco, o corpo do homem parecia só ossos, um esqueleto dentro da roupa. Uma mão agarrou o rosto de Gray. Estava
extremamente quente. Um arrepio de medo - de doença, de SIDA - percorreu o corpo de Gray, mas ele não largou o homem que lhe tombava nos braços.
Aguentando com o peso, Gray moveu o seu braço esquerdo. Sentiu uma umidade quente na parte inferior das costas do homem ao tocar-lhe com a mão. Algo escorreu por
entre os seus dedos.
Sangue.
Gray agiu sob instinto. Saltou para o lado com o homem ainda agarrado aos braços. A relva grossa amparou a queda.
Gray não ouviu os disparos seguintes - mas duas faíscas fizeram ricochete no passeio de cimento onde tinha estado. Sem parar, continuou a andar até chegar a uma
placa de metal e cimento plantada no relvado do Instituto Smithsoniano.
Dava apenas pela cintura. Escondeu-se atrás dela com o velho. O letreiro dizia: CENTRO DE INFORMAÇÃO DO INSTITUTO SMITHSONIANO.
Gray precisava certamente de informações.
Do gênero: quem estava a disparar sobre ele.
O imponente letreiro ficava entre ele e o Mall. Oferecia um abrigo temporário, Apenas a dez metros de distância, as portas em arco de uma entrada lateral do Instituto
Smithsoniano convidavam a entrar. O próprio edifício erguia-se com as suas torres e torreões de arenito vermelho, todo ele extraído de Sêneca Creek, Maryland, um
verdadeiro castelo normando, uma fortaleza no sentido literal do termo. A proteção que oferecia ficava apenas a uns passos de distância, mas atravessar essa distância
a céu aberto expô-los-ia ao atirador.
Em vez disso, Gray tirou uma pistola - um Sig Sauer P229 compacta - do coldre que tinha atrás das costas. Não é que tivesse um alvo predefinido. No entanto, mais
valia aprontar a sua arma não fosse dar-se o caso de um assalto direto.
Ao lado de Gray, o sem-abrigo gemia. O sangue inundava por completo as suas costas. Gray franziu o sobrolho perante a contínua desgraça do homem em vida. O pobre
pedinte viera pedir um pouco de caridade e recebera uma bala nas costas, danos colaterais numa tentativa de assassínio de Gray.
Mas quem estava a tentar assassiná-lo? E porque?
O sem-abrigo ergueu uma mão trêmula, enfraquecendo de cada vez que se esforçava por respirar. Pelo ponto de entrada e quantidade de sangue derramado, o tiro tinha
atingido um rim, uma ferida fatal para uma pessoa tão debilitada. O homem tocou na coxa de Gray. Os seus dedos abriram-se, deixando cair a moeda sem brilho que trazia
na mão. Tinha conseguido mantê-la na sua mão fechada. A moeda resvalou da perna de Gray e foi parar à relva.
Uma última dádiva.
Um pouco de caridade devolvida.
Cumprido o ato. os membros do sem-abrigo relaxaram. A cabeça caiu sobre o ombro de Gray. Gray praguejou entredentes.
Lamento, meu velho.
Com a outra mão, libertou o celular. Abrindo-o, carregou numa tecla de emergência de ligação rápida. Atenderam de imediato.
Gray falou rapidamente, lançando um pedido de socorro à central de comando.
- A ajuda está a caminho - anunciou seu diretor. - Você está na câmera do Instituto. Estou vendo muito sangue. Está ferido?
- Não - respondeu de forma sintética.
- Fique aí.
Gray não discutiu. Até agora não tinham sido disparados mais tiros. Nenhum impacto sonante contra o letreiro que servia de abrigo. Havia boas hipóteses de os tiros
terem acabado. No entanto. Gray não se atrevia a sair dali - pelo menos até a cavalaria chegar.
Enfiando o celular no bolso. Gray apanhou a moeda do homem que tinha caído na relva. Era pesada, grossa, rudemente cunhada. Servindo-se do sangue do morto que ainda
tinha nos dedos, limpou a sujidade que ocultava a superfície, de onde sobressaiu uma imagem daquilo que parecia ser um templo grego ou romano, com seis colunas sob
um telhado de duas
Mas que raio é isto?
No centro da moeda havia uma única letra.
Gray pensou que era a letra grega S.
Sigma.
Na matemática, a letra sigma representava a soma de todas as partes, mas era também o símbolo da organização para a qual Gray trabalhava: Sigma, um grupo de elite
composto por ex-soldados das Forças Especiais, que havia sido reconvertido cm várias áreas científicas de modo a funcionar como um braço militar secreto da DARPA.
a divisão de pesquisas e desenvolvimento do Departamento de Defesa.
Gray olhou para o instituto. A sede da Sigma era ali, enterrada debaixo das fundações do Instituto Smithsoniano, nos antigos bunkers da Segunda Guerra Mundial. A
localização era perfeita para se poder tirar partido da proximidade dos edifícios do Governo e do Pentágono, bem como dos vários laboratórios estatais e privados.
Concentrando-se de novo na moeda, Gray apercebeu-se subitamente do seu erro. A letra não era um S grego - mas apenas um grande E maiúsculo. No meio de tanto pânico,
os seus olhos tinham começado a ver coisas que não existiam, a ver o que lhes aparecia pela frente na mente.
Fechou a mão com a moeda lá dentro.
Apenas um E.
Não era a primeira vez, nas últimas semanas, que Gray começava a fazer conexões que não existiam - ou pelo menos era isso que diziam os seus colegas. Durante um
mês inteiro. Gray aguardara pela confirmação de que um amigo desaparecido. Monk Kokkalis. pudesse ainda estar vivo. Mas. até agora, mesmo utilizando todos os recursos
da Sigma, chegara apenas a becos sem saída.
Andas à caça de fantasmas, avisara-o Painter Crowe ao fim das primeiras semanas.
Talvez fosse isso.
Do outro lado. as portas abriram-se na parte da frente do Instituto. Uma dezena de figuras envergando ternos pretos saiu cá para fora, de armas em punho, posicionando-se
ombro a ombro em apoios duplos.
A cavalaria.
Avançaram com cuidado, mas ninguém disparou na direção deles.
Chegaram num ápice ao pé de Gray e dispuseram-se à sua volta num esquema de proteção.
Um dos homens ajoelhou-se ao lado do sem-abrigo. Abriu uma mala de paramédico, pronto para oferecer assistência.
- Acho que morreu - avisou Gray.
O médico verificou o pulso, confirmando o Julgamento de Gray.
Morto.
Gray pôs-se de pé.
Ficou surpreendido por ver o seu patrão, Painter Crowe, Junto à entrada lateral. Sem casaco e com as mangas da camisa enroladas até os cotovelos, o diretor Crowe
saiu pela porta. A sua expressão era ameaçadora. Embora dez anos mais velho do que Gray. Painter ainda se deslocava como um lobo de músculos poderosos. O diretor
devia ter avaliado que os riscos eram mínimos.
Ou talvez, a exemplo de Gray. tivesse a sensação de que atirador Já se pusera em fuga.
No entanto, o que é que este homem não sabia de trabalho de secretária?
Painter dirigiu-se a ele enquanto as sirenas soavam à distância.
- Tenho um departamento da polícia local a vigiar o Mall - disse num tom claro e preciso.
- Tão pouco e tão tarde.
- rovavelmente. No entanto, a balística irá traçar o raio da trajetória. Descobrir de onde os tiros foram disparados. Viste alguém a seguir-te?
Gray abanou a cabeça.
- Que eu tivesse dado por isso, não.
Gray interpretou os cálculos nos olhos do diretor enquanto este observava o Mall. Quem tentaria assassinar Gray? Mesmo à sua própria porta. Era um aviso claro, mas
contra o quê? Gray não se encontrava envolvido em nenhuma operação, desde a sua última missão no Camboja.
- Já pusemos os teus pais em segurança - disse Painter. - Por uma questão de precaução.
Gray acenou com a cabeça, grato pela atenção. Embora conseguisse imaginar o descontentamento do seu pai. E da sua mãe. Mal tinham recuperado de um rapto brutal ocorrido
há dois meses.
No entanto, com a imediata diminuição da ameaça, Gray virou a sua atenção para quem poderia ter tentado matá-lo - e, mais importante, porquê. Uma possibilidade afluiu-lhe
à mente - a sua linha de inquérito mais recente. Será que as investigações sobre o destino do seu amigo tinham incomodado alguém?
Apesar da morte ocorrida, a esperança invadiu Gray.
- Diretor, o assassínio poderia...
Painter ergueu uma mão ao mesmo tempo que as suas sobrancelhas se franziam de preocupação. Ajoelhou-se ao lado do sem-abrigo e, suavemente, virou-lhe a cabeça. Ao
fim de algum tempo, sentou-se de cócoras com a expressão cerrada. Parecia ainda mais preocupado.
- O que se passa, sir?
- Não creio que fosses tu o alvo, Gray.
Gray olhou para o passeio e lembrou-se das faíscas junto aos seus pés.
- Pelo menos o alvo principal - continuou o diretor. - O atirador poderá ter tentado eliminar-te como testemunha.
- Como é que sabe?
Painter apontou com a cabeça para o corpo do homem morto.
- Eu conheço este homem.
O choque invadiu-lhe o corpo.
- O seu nome é Archibald Polk. Professor de Neurologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
Gray lançou um olhar cético perante a palidez amarelada do homem, a sujidade, a barba rala. mas o diretor parecia não ter dúvidas. A ser verdade, este nosso amigo
tinha resvalado para uma situação bem difícil.
- Mas por que raio haveria de terminar desta maneira? - perguntou. Painter levantou-se e abanou a cabeça.
- Não sei. Há uma década que não tínhamos qualquer contato com ele. Mas a questão mais importante é: Porque é que alguém o queria matar?
Gray olhou para o corpo. Reavaliou o seu próprio Julgamento. Gray devia ter ficado aliviado por saber que não era o alvo de nenhum assassino, mas se Painter estivesse
correto, então a investigação de Gray nada tinha a ver com o ataque.
A raiva aflorou-lhe de novo à superfície - juntamente com um certo sentido de responsabilidade.
O homem morrera nos braços de Gray.
- Ele deve ter vindo aqui - murmurou Painter olhando para o Instituto - para falar comigo. Mas porquê?
Gray estendeu a mão, lembrando-se da urgência do homem. A moeda antiga permanecia na sua mão ensanguentada.
- Talvez quisesse entregar-lhe isto.
14h02
Enquanto as sirenas soavam à distância, um homem idoso caminhava calmamente pela Pensilvânia Avenue. Estava vestido com um terno cinzento coberto de pó. Transportava
uma mala de viagem dura batida pelo uso num dos lados, e no outro dava a mão a uma menina. A criança de nove anos envergava um vestido idêntico ao traje do idoso.
Tinha o seu cabelo escuro atado atrás do rosto pálido com um elástico vermelho. O brilho dos sapatos pretos apresentava-se ofuscado por uma mancha seca de lama do
parque onde estivera a brincar momentos antes de a terem ido buscar.
- Papá, encontraste o teu amigo? - perguntou em russo.
Ele apertou-lhe a mão e respondeu numa voz cansada.
- Sim, Sasha. Mas lembra-te, em inglês, minha querida.
Ela arrastrou um pouco os pés em face da reprimenda, depois continuou.
- E ficou contente por te ver?
Ele recordou-se da visão obtida através da mira da metralhadora ligeira, da queda do corpo.
- Sim, ficou. Ficou bastante surpreendido.
- Podemos ir para casa agora? A Marta deve estar à minha espera.
- Já não vamos demorar muito.
- Quanto tempo? - perguntou petulantemente, enquanto coçava a orelha.
Uma peça de aço reluziu no meio do cabelo escuro, no sítio onde ela estivera a coçar.
Ele libertou a sua mão e, suavemente, puxou-lhe o braço para baixo. Fez-lhe uma festa no cabelo.
- Tenho de ir a mais um sítio. Depois vamos para casa.
Aproximou-se da Tenth Street. Um edifício ergueu-se à sua direita, um caixote horroroso construído em placas de cimento que alguém tentou decorar com uma fila de
bandeiras. Encaminhou-se para a entrada.
O seu destino.
O quartel-general do Gabinete Federal de Investigação - o FBI.
15h46
Uma vibração zuniu no interior do cacifo de Gray.
Ele apressou-se para o local, quase escorregando no piso molhado. Acabara de sair do chuveiro, tendo apenas uma toalha em tomo da cintura. Depois de ter informado
o diretor Crowe acerca dos pormenores do tiroteio, retirara-se para o vestiário localizado nos níveis inferiores. Tomara um primeiro chuveiro, seguido de uma hora
completa de exercícios com pesos livres no ginásio - depois tomara outro chuveiro. O esforço ajudara a arrumar a sua mente.
Mas não total mente.
Não ate obter algumas respostas sobre o assassínio.
Chegado ao cacifo, abriu a porta e pegou no seu BlackBerry que zunia no fundo do cacifo de metal. Devia ser o diretor Crowe. Assim que os seus dedos tocaram no aparelho,
a vibração parou. Perdera a chamada. Verificou o nome de quem tinha feito a ligação e franziu as sobrancelhas. Não era Painter Crowe.
A tela dizia: R. Trypol.
Já quase que se tinha esquecido.
O capitão Ron Trypol do Serviço de Informações da Marinha.
O capitão estivera a supervisionar as operações de salvamento na ilha indonésia de Pusat. Tinha prometido um relatório para hoje sobre a sua avaliação de erguer
o navio de cruzeiro afundado, o Senhora dos Mares. Tinha dois submergíveis da marinha no local, investigando o naufrágio e toda a área envolvente.
Mas Gray tinha um interesse particular na investigação.
A ilha de Pusat fora onde o seu amigo e colega. Monk Kokkalis, fora visto pela última vez. identificado enquanto era arrastado para o mar por uma rede pesada, preso
no meio de todo aquele emaranhado. O capitão Trypol concordara em pesquisar o corpo de Monk. O capitão era um bom amigo e antigo colega da viúva de Monk. Kat Bryant.
Esta manhã. Gray deslocara-se até o Centro do Serviço Nacional de Informações Marítimas em Suitland. Maryland. na esperança de ouvir algumas notícias. Fora recambiado
de volta, obrigado a esperar até o fim das pesquisas. Por isso estava furioso enquanto se deslocava para cá, preparado para pedir ao diretor que fizesse pressão
sobre a marinha.
Acossado por um sentimento de culpa por ter negligenciado a sua causa. Gray carregou na tecla de reencaminhamento e levou o telefone ao ouvido. Enquanto esperava
pela ligação ao Centro, sentou-se num banco e ficou a olhar para o cacifo do lado oposto. Escrito a marcador preto numa tira de fita adesiva estava o nome do antigo
proprietário do cacifo.
KOKKALIS.
Embora a morte de Monk fosse Já dada como certa, ninguém queria remover aquela fita. Era uma esperança silenciosa. Pelo menos sustentada por Gray.
Ele devia muito ao seu amigo.
Monk subira nas fileiras da Sigma ao lado de Gray. O seu amigo tinha sido recrutado nos Green Berets ao mesmo tempo que Gray era retirado da prisão de Leavenworth.
na qual havia sido encarcerado depois de ter atingido um oficial superior durante a sua permanência nos Army Rangers. Ficaram rapidamente amigos, formando até uma
dupla um pouco estranha na Sigma. Monk media pouco mais de um metro e meio, um verdadeiro pit buli de cabeça rapada, comparado com o físico mais alto e magro de
Gray. Mas a verdadeira diferença era bem mais funda do que a mera aparência. O estilo calmo e relaxado de Monk tinha conseguido aos poucos suavizar a dureza intransigente
do coração de Gray. Se não fosse a amizade de Monque, Gray teria certamente desistido da Sigma, tal como tinha acontecido com os Army Rangers.
Enquanto esperava. Gray recordou o seu antigo colega. Haviam passado juntos por imensas complicações, ao longo destes anos. Monk tinha as enrugadas feridas de balas
e cicatrizes para provar. Perdera até a sua mão esquerda durante uma missão, substituída por uma prótese. Enquanto permanecia sentado.
Gray continuava a ouvir o tom sonoro da gargalhada de Monk... ou a intensidade tranquila da sua voz, revelando o QI de gênio do amigo, formado em medicina e ciência
forense.
Como é que uma pessoa tão grande e vital podia ter partido? Sem um vestígio?
O telefone deu sinal de resposta no seu ouvido.
- Capitão Ron Trypol - respondeu uma voz firme.
- Capitão, daqui fala Gray Pierce.
- Ah, comandante. Bom. Esperava entrar em contato consigo esta tarde.
Não tenho muito tempo antes da minha próxima reunião.
Gray pressentira já o tom amedrontador.
- Capitão?
- O melhor é ir direto ao assunto. Recebi ordens para suspender a pesquisa.
- O quê?
- Conseguimos recuperar vinte e dois corpos. Os registros dentários revelaram que nenhum deles era o seu homem.
- Apenas vinte e dois? - Até pelos cálculos mais realistas, não passava de uma pequena fração do número de mortos.
- Eu sei, comandante. Mas os esforços de recuperação Já estavam a ser atrasados pelas extremas profundidades e pressões. O fundo da lagoa está cheio de grutas e
túneis de lava, muitos deles prolongando-se por quilômetros e quilômetros de intrincados labirintos.
- No entanto, com...
- Comandante. - O tom do capitão denotava uma certa firmeza. -Perdemos um mergulhador há dois dias. Um bom homem com família e dois filhos.
Gray fechou os olhos, conhecendo a dor de uma perda desta natureza.
- Procurar nas grutas apenas porá em perigo a vida de mais homens. E para quê?
Gray permaneceu calado.
- Comandante Pierce, presumo que não tenha ouvido mais nenhuma palavra. Mais nenhuma mensagem críptica?
Gray suspirou.
Para obter a cooperação do capitão, relatara a única mensagem que recebera... ou possivelmente recebera. Ocorrera algumas semanas depois de Monk ter desaparecido.
Na sequência dos acontecimentos ocorridos na ilha. o único vestígio do amigo que conseguira recuperar fora a sua mão protética. uma peça inovadora de biotecnologia
construída pelos engenheiros da DARPA, que incluía um interface embutido de rádio sem fios. Enquanto transportava a mão para o funeral de Monk, os dedos começaram
a dar sinal de um fraco SOS. Durara apenas alguns segundos - e apenas Gray o ouvira. Depois silenciara-se. Os técnicos haviam examinado a mão e chegado à conclusão
de que devia ter sido um falha qualquer.
A tela digital da mão não registrava qualquer sinal de entrada. Fora apenas uma falha técnica. Nada mais. Um fantasma elétrico no aparelho.
Contudo, Gray recusara-se a desistir - embora tivessem decorrido já várias semanas.
- Comandante? - insistiu Trypol.
- Não - admitiu Gray com tristeza. - Não houve mais nenhuma palavra.
Trypol fez uma pausa, depois começou a falar mais lentamente.
- Então talvez seja altura de descansar, comandante. Para bem de todos.
- A sua voz adquirira um tom mais suave. - E a Kat? A mulher do seu homem. O que é que ela tem a dizer sobre isto tudo?
Era um assunto delicado. Gray desejava nunca ter mencionado isto a ela. Mas como é que isso podia ser? Monk era o seu marido; tinham uma filha pequena, Penelope.
No entanto, talvez não tivesse sido lá muito boa ideia fazê-lo. Kat ouvira a história de Gray com uma expressão estoica. Ali estava ela com o seu vestido preto de
funeral, costas direitas, os olhos afundados de dor. Sabia que era uma pequena corda de salvamento, uma esperança ténue. Olhara para Penelope no assento da limusine
preta, depois para Gray. Não disse uma palavra, apenas abanou a cabeça uma vez. Não podia agarrar essa corda de salvamento. Não podia sobreviver a perder Monk uma
segunda vez. Ia destruí-la quando já estava tão fragilizada. E tinha de pensar em Penelope, o seu próprio pedaço de Monk. Um ser de came e osso. E não uma esperança
fantasmagórica.
Ele compreendera. Por isso continuara as investigações sozinho. Não falara com Kat desde esse dia. Era um pato mútuo e silencioso que existia entre eles. Ela não
queria ouvir falar dele até que a situação estivesse resolvida de uma maneira ou de outra. A mãe de Gray, no entanto, passou várias tardes com Kat e o bebé. A sua
mãe não sabia nada acerca do SOS, mas pressentira que algo de errado se passava com Kat.
Assustada, fora como a sua mãe descrevera Kat.
E Gray sabia o que a assustara.
Apesar do que Kat decidira naquele dia, tinha agarrado essa corda de salvamento. O que a mente tentava pôr de lado, o coração não conseguia. E isso estava a torturá-la.
Para bem dela, para bem da família de Monk, Gray precisava de enfrentar a dura realidade.
- Obrigado pelo seu esforço, capitão - murmurou finalmente Gray.
- Fez o que tinha a fazer, comandante. Disso pode estar certo. Mas temos de andar para a frente.
Gray pigarreou.
- As minhas condolências pela perda do seu homem, sir.
- Igualmente para si.
Gray terminou a ligação. Respirou fundo. Por Fim, dirigiu-se ao cacifo oposto e colocou a mão na superfície fria de metal, tão fria como um túmulo.
Lamento.
Esticou os dedos, puxou por uma ponta da fita adesiva e arrancou-a. Gray estava cansado de perseguir fantasmas.
Adeus, Monk.
16h02
Painter fez girar a moeda antiga em cima da sua secretaria. Observou o brilho da prata enquanto se concentrava no mistério que ela representava. Regressara do laboratório
há meia hora. Lera o relatório pormenorizado que a acompanhava. A moeda fora explorada a laser para detecção de impressões digitais, o seu conteúdo metálico e superfície
analisado com um espectrômetro de massa e recolhida uma série de fotografias, incluindo algumas tiradas com um microscópio estereoscópico. A moeda abrandou o seu
giro e caiu no tampo de mogno. Cuidadosamente limpa, a antiga imagem na superfície brilhava vivamente.
Um templo grego suportado por seis colunas dóricas.
No centro do templo havia uma grande letra.
A letra grega épsilon.
No lado oposto havia um busto de mulher com as palavras DIVA FAUSTINA escritas por baixo. Segundo o relatório, pelo menos a origem da moeda deixara de ser um mistério.
Mas o que é que...?
O intercomunicador soou.
- Diretor Crowe, o comandante Pierce chegou.
- Muito bem. Mande-o entrar. Brant,
Painter puxou o relatório da investigação para o pé de si no momento em que a poita se abriu. Gray entrou, com o seu cabelo preto ainda molhado e penteado. Desfizera-se
das roupas ensanguentadas e vestia agora camiseta verde com a palavra exército estampada na frente, jeans preto e botas. Quando entrou, Painter notou uma ligeira
sombra no rosto do comandante, mas também um certo ar cansado nos seus olhos azuis-acinzentados. Painter sabia porquê.
Já ouvira falar da decisão tomada pelo Gabinete do Serviço de Informações da Marinha por intermédio dos seus próprios canais.
Painter fez sinal a Gray para se sentar.
Enquanto se sentava. Gray reparou na moeda depositada em cima da secretaria. Uma faísca de curiosidade reluziu.
Bom.
Painter virou a moeda na direção de Gray.
- Gray, sei que pediste uma interrupção de trabalho indeterminada, mas gostaria que tomasses conta deste caso.
Gray não fez qualquer gesto para pegar na moeda.
- Posso fazer uma pergunta primeiro, sir?
Painter acenou com a cabeça.
- O homem morto. O professor.
- Archibald Polk.
- Disse que devia estar a caminho daqui. Para falar consigo?
Painter acenou afirmativamente. Já sabia até onde esta linha de inquérito o poderia levar.
- Então o professor Polk era uma figura conhecida da Sigma? Apesar da permissão altamente secreta de tal conhecimento, ele sabia da existência da nossa organização?
- Sim. Por assim dizer.
Gray franziu o sobrolho.
- Por assim dizer como?
- Archibald Polk inventou a Sigma.
Painter sentiu-se satisfeito com o ar surpreendido do comandante. Gray precisava de um ligeiro abanão. O comandante endireitou-se na cadeira.
Painter levantou uma mão.
- Respondi à tua questão, Gray. Agora responde tu à minha. Tomas conta do caso?
- Depois de o professor ter sido baleado à minha frente, não posso senão querer respostas.
- E quanto às tuas... atividades extracurriculares?
Um arrepio de dor franziu os olhos de Gray. A superfície do rosto foi-se tornando cada vez mais hirta à medida que uma parte de si se contraía internamente.
- Presumo que já esteja a par da situação, sir.
- Sim. A marinha cancelou as buscas.
Gray respirou fundo.
- Averiguei todas as hipóteses. Nada mais me resta fazer. Devo confessá-lo.
- E achas que o Monk ainda está vivo?
- Eu... Não sei.
- E consegues viver com isso?
Gray olhou para ele diretamente, com um ar resoluto.
- Lá terá de ser.
Painter abanou a cabeça, satisfeito.
- Então vamos falar acerca desta moeda.
Gray estirou-se e pegou na moeda que estava na secretária. Virando-a entre os dedos examinou as suas superfícies agora limpas.
- Foi capaz de determinar alguma coisa acerca dela?
- Um pouco. É uma moeda romana cunhada no século II. Olha para o retrato feminino que aparece na parte de trás. Trata-se de Faustina, a Velha, mulher do imperador
romano Antonino Pio. Foi uma patrona das garotas órfãs e patrocinou muitas obras de caridade lançadas por mulheres. Também tinha um fascínio por uma irmandade de
sibilas, mulheres proféticas de um templo na Grécia.
Painter fez sinal a Gray para virar a moeda.
- É o templo do outro lado. O Templo de Delfos.
- Como no oráculo de Delfos? As mulheres profetas?
- O mesmo.
O relatório da moeda na secretária de Painter incluía uma nota histórica acerca do oráculo, pormenorizando a forma como estas mulheres inalavam os fumos alucinogênios
e respondiam a questões acerca do futuro por parte dos requerentes. Mas as suas profecias eram mais do que simples adivinhações, pois estas mulheres tinham um grande
impacto no mundo antigo. No decurso de um milênio, as profecias do oráculo desempenharam um papel muito importante na libertação de milhares de escravos, lançando
as sementes da democracia ocidental e elevando a santidade da vida humana. Há quem diga que as suas palavras foram fundamentais para erguer a Grécia do barbarismo
em direção à civilização moderna.
- E o grande E no centro do templo? - perguntou Gray. - Dá ideia de que se trata também de uma letra grega. O épsilon.
- Sim. É também do templo do oráculo. Havia uma, série de inscrições crípticas no templo: Gnothi seauton, que quer dizer...
- Conhece-te a ti próprio - respondeu Gray.
Painter acenou num gesto afirmativo. Convinha recordar que Gray era bastante versado em filosofias antigas. Quando Painter o fora buscar à prisão de Leavenworth.
Gray tinha andado a estudar química avançada e taoísmo. Era esta característica única da sua mente que intrigara Painter desde o início. Mas tal distinção tinha
um preço. Gray nem sempre se dava bem com os outros, como demonstrara amplamente nestas últimas semanas. Seria bom para ele concentrar-se de novo no aqui e agora.
- Então temos este misterioso E - continuou Painter, apontando com a cabeça para a moeda. - Está gravado no sanctum interior do templo.
- Mas o que é que isso significa?
Painter encolheu os ombros.
- Ninguém sabe. Nem sequer os Gregos. Vários historiadores, remontando ao antigo erudito grego Plutarco, especularam sobre o seu significado. O pensamento corrente
no seio dos historiadores atuais é que dantes havia duas letras. Um G e um E, representando a deusa da Terra, Gaia. O templo mais antigo de Delfos foi construído
para venerar Gaia.
- Todavia, se o significado é assim tão misterioso, porquê representá-lo na moeda?
Painter empurrou o relatório na direção de Gray.
- Poderás ler mais sobre isso aqui. Com o tempo, o E do oráculo tornou-se o símbolo para um culto profético. Está representado em pinturas ao longo dos séculos,
incluindo a Ordenação de Nicolas Poussin, onde aparece inscrito sobre a cabeça de Cristo enquanto este entrega as chaves do céu a Pedro. O símbolo serve para marcar
um tempo de grandes e fundamentais mudanças no mundo, geralmente trazidas por um único indivíduo, seja ele o oráculo de Delfos ou Jesus de Nazaré.
Gray tirou os papéis de cima da mesa e abanou a cabeça.
- Mas o que é que tudo isto tem a ver com o homem morto? - Gray ergueu a moeda de prata. - Era valiosa? Valia a pena matar por ela?
Painter abanou a cabeça.
- Não propriamente. E de um valor moderado, mas nada de espetacular.
- Então o que é que...?
O intercomunicador soou cortando o que estava a dizer.
- Diretor Crowe, lamento interrompê-lo - disse o seu ajudante através do altifalante.
- O que se passa, Brant?
- Tenho uma chamada urgente do doutor Jennings, no laboratório de patologia. Pede uma teleconferência imediata.
- Muito bem. Liga o monitor um.
Gray levantou-se, pronto para sair, mas Painter fez sinal para se sentar, depois girou na cadeira. O seu escritório, enterrado no bunker subterrâneo, não tinha quaisquer
janelas, mas tinha três grandes plasmas montados na parede. As suas janelas privadas para o mundo. Estavam presentemente sem sinal de vida, mas o monitor da esquerda
iluminou-se.
Painter viu-se a olhar para os laboratórios de patologia. No fundo, o doutor Malcolm Jennings. O chefe de I&D de sessenta anos. que trabalhava para a Sigma, estava
ataviado com a sua habitual bata de cirurgião e tinha uma proteção facial de plástico transparente presa à cabeça. Atrás dele, podia ver-se uma das salas de patologia:
um chão de cimento selado, filas de escalas digitais e, no centro, um corpo deitado numa mesa, respeitosamente coberto por um lençol.
O professor Archibald Polk.
Foram precisos vários contatos telefônicos para fazer com que o seu corpo viesse parar à Sigma e não à morgue da cidade, mas Malcolm Jennings era um patologista
forense bem conhecido.
Mas pelo aspeto severo dos lábios do médico, algo se passava de errado.
- O que é, Malcolm?
- Tenho de colocar o laboratório sob quarentena.
Painter não gostou do que ouviu.
- Um perigo de contágio?
- Não. mas há definitivamente um perigo. Mostro-lhe já. - Afastou-se do ângulo de visão da câmera, mas a sua voz continuava a ouvir-se. -Fiquei logo desconfiado
aquando do exame físico preliminar. Descobri zonas com falta de cabelo, esmalte dos dentes corroído e queimaduras na pele. Se o homem não tivesse sido alvejado,
por certo que morreria dentro de alguns dias.
- O que está a dizer, Malcolm? - perguntou Painter.
Ele não deve ter ouvido. O patologista apareceu de novo no ângulo de visão, envergando agora um avental mais pesado. Transportava um aparelho de onde pendia uma
varinha preta.
Gray aproximou-se mais do monitor.
O doutor Jennings passou com a varinha preta por cima do homem morto. O aparelho que tinha na outra mão começou a apitar loucamente. O patologista virou o rosto
para a câmera.
- O corpo está radioativo.
2
5 de setembro, 17h25
Washington. D. C.
De novo sob o calor abrasador. Gray caminhou a passos largos pelo passeio em frente ao Instituto Smithsoniano. O National Mall estendia-se à sua esquerda, praticamente
deserto devido ao calor.
Atrás de Gray. a fita de sinalização ainda assinalava o lugar do assassínio da tarde. A unidade forense acabara o seu trabalho, mas a área ainda estava vedada, sob
a vigilância de um polícia distrital.
Gray encaminhou-se para leste pela Jefferson Drive. Era seguido por um possante guarda-costas, que ele fazia todo o possível por ignorar. Não pedira qualquer proteção,
especialmente deste homem. Tocou no microfone que trazia junto à garganta e articulou de forma quase inaudível:
- Encontrei um rastro.
O silvo de uma resposta zumbiu no seu auricular sem fios. Levantando a cabeça,
Gray fixou-o melhor.
- Diga outra vez - murmurou.
- Consegues seguir o rastro? - perguntou Painter Crowe.
- Sim... mas não sei por quanto mais tempo. As leituras são fracas. - Gray sugerira o atual plano de ação. Observou o aparelho na sua mão. um detetor de radiações
Gamma-Scout portátil. O seu tubo de halogênio Geiger-Muller era sensível o suficiente para detectar qualquer vestígio de radiação, especialmente quando sintonizado
com o específico isótopo 90 de estrôncio detetado no corpo de Polk. Gray esperara que pudesse ter ficado para trás algum vestígio residual, o equivalente radiológico
a um rastro de aroma. E parecia estar a funcionar.
- Faz o teu melhor. Gray. Qualquer informação sobre os lugares frequentados pelo professor nestes últimos dias poderá ser crucial, lá liguei para a filha dele, mas
não obtive qualquer resposta.
- Seguirei este rastro o mais longe que puder. - Gray prosseguiu pelo passeio abaixo, monitorizando o detetor. - Comunicarei assim que descobrir alguma coisa.
Gray desligou e continuou ao longo do National Mall. Ao fim de mais outro meio quarteirão, o sinal morreu subitamente no aparelho. Praguejando, parou, recuou e tropeçou
no guarda-costas que ia na sua peugada.
- Bolas. Pierce - resmungou o homem. - Acabei de engraxar os sapatos.
Gray olhou por cima do ombro para a montanha de músculos que tinha atrás de si. Joe Kowalski, um antigo marinheiro da força naval, estava vestido com um casaco desportivo
e umas calças. Ambos lhe assentavam mal. Com o seu cabelo escuro cortado à escovinha e um nariz marcado por uma antiga fratura, parecia-se mais com um gorila sem
pelos enfiado num terno todo enrugado.
Kowalski dobrou-se e serviu-se do punho do seu casaco desportivo para dar lustro ao sapato.
- Dei trezentas mocas por eles. São uns Chukkas cosidos a ponto de cadeia, importados de Inglaterra. Tive de fazer uma encomenda especial por causa do tamanho.
Erguendo uma sobrancelha, Gray olhou para o seu leitor Gamma-Scout.
Kowalski deve ter-se apercebido do exagero das suas afirmações. Ficou com um ar um tanto ou quanto encabulado.
- Está bem. Gosto de sapatos. E daí? Tinha um encontro, mas... bem... ela cancelou-o.
Donzela esperta.
- Lamento o sucedido - disse Gray em voz alta.
- Bem... pelo menos não estão esfolados - disse Kowalski.
- Quero dizer, lamento a tampa que ela lhe deu.
- Oh, sim. - Encolheu os ombros. - Pior para ela.
Gray não se deu ao trabalho de discutir. Voltou a sua atenção para o leitor que tinha na mão e desenhou um círculo lento. Um passo à direita, apanhou o rastro radioativo
outra vez. Fazia um ângulo do passeio e infletia para a zona relvada do Mall.
- Por aqui.
A rota do professor levou-os pelo Jardim das Esculturas do Mall, em frente ao Museu Hirshhom. Gray seguiu os passos de Polk na direção do oásis sombrio e rebaixado,
e de novo para fora. Depois do Jardim, o caminho de Polk continuava pelo Mall, ao longo das tendas de um evento mediático do Dia do Trabalhador que ainda estavam
a ser desmontadas.
Gray olhou para trás, para o jardim rebaixado, estudando o caminho do professor.
- Ele estava a tentar manter-se fora do alcance.
- Ou talvez o tipo estivesse apenas com calor - contrapôs Kowalski, limpando a sua testa transpirada.
Gray procurou em volta. Para oeste, o Monumento a Washington apontava para o Sol escaldante; para este erguia-se a cúpula do edifício do Capitólio.
Ansiando por respostas, Gray continuou. A leitura digital no Gamma-Scout começou a desaparecer enquanto atravessava o Mall. A cada passo, observava os millirems
da radiação baixando.
Alcançando a extremidade do Mall, Gray apressou-se a entrar na Madison Drive. Recuperou o rastro outra vez no momento em que entrava noutro parque. O sinal foi ficando
cada vez mais forte à medida que Gray, se aproximava de um bosque sombrio composto por arbustos da família das cornáceas e litráceas. Podia ver-se um banco ao lado
de um canteiro de hortênsias da altura do joelho.
Gray caminhou na direção do banco.
Neste lugar recôndito, os millirems voltaram a aumentar.
Teria Polk esperado aqui? Seria por isso que o rastro de radiação residual era mais forte?
Gray mexeu num ramo florido de uma litrácea e descortinou uma ótima vista sobre o Mall estendendo-se à sua frente, incluindo uma vista direta para o Instituto Smithsoniano.
Teria o professor esperado aqui até ter achado que era seguro? Gray franziu os olhos contra o brilho do Sol. Lembrou-se do diagnóstico de Malcolm, a debilitação,
o enfraquecimento. Polk estava nas últimas. O desespero deve tê-lo feito dar tudo por tudo.
Por quê?
Gray começara já a afastar-se quando Kowalski aclarou a voz. Estava com um joelho no chão a limpar um sapato, enquanto procurava com o seu outro braço qualquer coisa
debaixo do banco.
- Veja isto - disse, levantando-se. Virou-se e estendeu-lhe um pequeno par de binóculos.
Gray aproximou o detetor dos binóculos. As leituras aumentaram.
- O sinal é significativo.
Kowalski fez uma careta, pegando nos binóculos peia tira.
- Leve-os, leve-os.
Gray recuperou os binóculos. Os receios do seu companheiro eram infundados. Apesar de haver radiação, era apenas moderadamente pior do que a habitual radiação de
fundo.
Virando-se. Gray elevou os binóculos e espreitou na direção do Instituto. A vista do edifício aumentou. Observou uma figura a passar pela frente. Através das lentes,
conseguia ver os transeuntes. Gray lembrou-se da urgência de Polk quando se aproximaram um do outro. Ele avaliara a situação como o desespero de um pedinte ansiando
por caridade. Suspeitava agora que Polk o tinha reconhecido. Talvez não fosse somente um desespero que o tivesse arrastado até ali. Será que tinha detetado Gray
a atravessar o Mall e saído do esconderijo para o interceptar?
Gray colocou os binóculos no saco revestido a chumbo que trazia à cintura.
- Vamos.
Fora do arvoredo. Gray seguiu o rastro na direção oeste, ao longo da Madison Drive. até um conjunto de degraus.
O rastro prosseguia escadas acima.
Gray ergueu a cabeça e viu-se defronte da entrada do Mall para um dos museus mais famosos do Instituto Smithsoniano: o Museu Nacional de História Natural. Albergava
uma importante coleção de artefatos de todo o mundo - ecológicos, geológicos e arqueológicos -. desde pequenos fósseis a um T-rex em tamanho real.
Gray empurrou a cabeça para trás. A cúpula do museu figurava por cima de um pórtico triangular suportado por seis enormes colunas coríntias. Olhando para cima, ficou
espantado com a forma como a fachada do museu se parecia com o templo grego da moeda do professor.
Será que havia alguma ligação?
Antes de seguir o rastro no interior, era melhor comunicar com o comando central. Desviando-se para o lado. encostou-se à balaustrada de pedra e ligou o seu rádio
codificado. Entrou logo em contato com o diretor Crowe.
- Já descobriste alguma coisa? - perguntou Painter.
Gray baixou a voz quase ao nível de um murmúrio.
- Parece que o rastro do professor leva-nos até o interior do Museu Nacional de História Natural do Instituto Smithsoniano.
- O museu...?
- Vou continuar as buscas no interior. Havia alguma ligação entre ele e este lugar?
- Que eu saiba. não. Mas vou confirmar Junto dos seus antigos associados.
Gray lembrou-se de um excerto de conversa acerca do passado do doutor Polk.
- Diretor Crowe. mais uma coisa. Nunca me chegou a explicar um pormenor.
- O quê, Gray?
- Disse que o professor tinha inventado a Força Sigma. O que queria dizer com isso?
O silêncio pairou durante algum tempo, depois Painter continuou.
- Gray, o que é que sabes acerca de uma organização que dá pelo nome de Jasons?
Surpreendido com a estranha pergunta. Gray não conseguia descortinar sequer o contexto.
- Sir?
- Os Jasons são um grupo científico formado durante o tempo da Guerra Fria. Incluem líderes de vários campos do saber, muitos deles agraciados com o Prêmio Nobel.
Juntaram-se para dar conselhos à elite militar acerca de alguns projetos tecnológicos.
- E o professor Polk era um membro?
- Era. Ao longo dos anos. os Jasons revelaram ser de grande valor para os militares. Encontravam-se todos os verões e discutiam sobre as novas inovações. E. para
responder à tua pergunta, foi durante um desses encontros que Archibald Polk sugeriu a formação de uma equipe militarizada de investigação para servir a DARPA, para
funcionar como operacionais no terreno da divisão.
- E assim nasceu a Sigma.
- Exatamente. Mas não tenho a certeza se isto e significante em relação ao assassínio. Do que ouvi até agora, há muitos anos que o Polk não trabalhava para os Jasons.
Gray olhou para a imponente fachada grega.
- Talvez um dos seus colegas Jasons trabalhasse aqui no museu. Talvez tenha sido por isso que veio até aqui.
- É um bom ponto de investigação. Vou verificar, mas poderá demorar algum tempo. Ao longo destes últimos anos. a sua organização foi-se tornando cada vez mais secreta.
Hoje em dia, divididos entre vários projetos de teor ultrassecreto, os Jasons não sabem sequer o que os outros Jasons fazem. Mas vou descobrir.
- E eu vou continuar a seguir o rastro. - Desligou e acenou para Kowalski. - Vamos. Toca a entrar lá dentro.
- Já era tempo de nos protegermos deste maldito sol.
Gray não discutiu. Passando pela porta, apreciou o interior sombrio, com ar condicionado. O museu era gratuito para o público, mas Gray mostrou o seu cartão de identificação
preto e reluzente ao guarda que controlava o detetor de metais.
Mandaram-no passar.
Entrando na rotunda principal, Gray ficou abismado com a dimensão total do espaço. A rotunda tinha uma forma octogonal e erguia-se em três pisos, cada um deles rodeado
por mais pilares, que conduziam à imponente cúpula ladrilhada de Guastavino. A luz do Sol entrava através das janelas do clerestório e de um óculo central.
Mais próximo, no centro da rotunda, sobressaía uma das mascotes do museu, um elefante africano de sete toneladas. Posava com o tronco elevado e os chifres curvados
no meio de um pasto de erva seca. O caminho de Polk contornava o elefante e seguia na direção de uma escadaria pública.
Enquanto Gray ia progredindo, reparou num estandarte pendurado no cimo da parede, à esquerda. Anunciava a abertura de uma exposição no próximo mês. Nele podia ver-se
a cabeça de Medusa, com o seu cabelo revolto de serpentes entrelaçadas, refletida num escudo circular. Olhando para cima, os pés de Gray abrandaram.
Recordou-se da estranha moeda de Polk, quando leu o nome da próxima exposição, e pressentiu que estava no caminho certo.
MISTÉRIOS PERDIDOS DA MITOLOGIA GREGA
18h32
Na sala escurecida, os dois homens olharam através do vidro espelhado para um quarto de brincar. Sentaram-se nas poltronas de cabedal, enquanto, atrás deles, se
erguiam quatro filas de bancadas, todas vazias de momento.
Era uma reunião particular.
O espaço contíguo, do outro lado do vidro, estava muito bem iluminado. As paredes estavam pintadas de branco, com um ligeiro toque azul-celeste, uma cor que, segundo
as estatísticas psicológicas, era boa para encorajar um estado relaxante, meditativo. Havia um sofá-cama com uma manta florida, uma caixa aberta com brinquedos e
uma secretária de criança.
O mais velho dos dois homens endireitou-se na poltrona. Ao seu lado,
encontrava-se uma mala batida pelo uso contendo uma metralhadora Dragunov de franco-atirador, desmontada.
O outro homem, de cinquenta e sete anos, era vinte anos mais novo do que o companheiro russo. Parecia um pouco congestionado, no seu terno apertado. Além disso,
não tirava os olhos da garota enquanto esta se mantinha em frente de um cavalete de plástico e ia remexendo num tabuleiro com canetas de feltro. A garota em questão
passara a última meia hora a desenhar meticulosamente um retângulo a verde sobre a folha branca de papel parafinado presa ao cavalete. Percorrera-o com a caneta
várias vezes, num padrão rítmico hipnótico.
- Doutor Raev - disse o homem, - não quero estar sempre a bater na mesma tecla, mas tem a certeza de que o doutor Polk não o tinha consigo?
O doutor Yuri Raev suspirou.
- Dediquei toda a minha vida a este projeto. - E a minha alma, acrescentou silenciosamente. - Não iria arruinar tudo, agora que estamos tão perto.
- Então onde é que isso está? Esquadrinhamos o motel onde passou a noite de ontem. Nada. Levantaria muitas questões se fosse parar a mãos inimigas.
Yuri olhou para o homem que estava, sentado na cadeira ao lado. John Mapplethorpe, chefe de divisão dos Serviços de Informações da Defesa, tinha um rosto comprido
de queixo duplo, bem como uns papos debaixo dos olhos, como se fosse feito de cera e tivesse estado exposto ao sol durante muito tempo. Até mesmo a tinta que usava
no seu cabelo pintado era demasiado escura, demasiado óbvia para a sua idade. Não que Yuri tivesse algum direito de culpar um homem por tentar travar o avanço da
idade. Debaixo da sua pele engelhada, o corpo de Yuri continuava tonificado, os seus reflexos eram apurados e a sua mente tão rápida e ágil como sempre fora. Entre
injeções de andrógenos e hormonas do crescimento, juntamente com exercícios vigorosos, lutara com determinação para impedir a passagem do tempo. Mas não era a vaidade
que o impelia a fazer isto.
Olhou para a sala.
Não, não era a vaidade.
Mapplethorpe tamborilou com os dedos no braço da cadeira.
- Temos de recuperar o que o Polk roubou.
- Ele não o tinha com ele - assegurou Yuri a Mapplethorpe, de um modo mais firme. - É demasiado grande para escondê-lo na sua pessoa, até mesmo debaixo de um casaco.
Tive sorte de o deter no momento certo. Antes de conseguir falar com alguém.
- Espero que tenhas razão. Para nosso bem. - Mapplethorpe voltou a virar a sua atenção para a sala. - E ela foi capaz de o seguir? Desde a Rússia?
Yuri acenou. O orgulho paterno fez-se notar na sua voz.
- Com ela e com o seu irmão gémeo, poderemos ter finalmente quebrado a barreira.
- Foi pena que ela não tivesse conseguido ser mais rápida - observou Mapplethorpe emitindo um som de desprezo. - A filha do meu cunhado tem um menino autista. Já
lhe tinha dito? Mas não é um sábio idiota. Mal consegue apertar os sapatos.
Yuri enfureceu-se.
- O termo correto é sábio autista.
O outro homem encolheu os ombros.
O enfado de Yuri pela América continuava a crescer. Tal como Mapplethorpe, poucas pessoas compreendiam realmente o autismo, mesmo na profissão médica. Yuri conhecia
bastante bem o distúrbio. Era na verdade um espectro de distúrbios, caracterizado por fraquezas nas capacidades de comunicação e interação social, juntamente com
respostas anormais às sensações. Isto conduzia tragicamente a crianças com atrasos na linguagem e na capacidade de fala. maneirismos motores repetitivos e tiques,
preocupação com os objetos e, muitas vezes, formas disfuncionais de se relacionarem com os acontecimentos ou com as pessoas.
Mas, às vezes, tal distúrbio produzia milagres.
Em raras ocasiões, uma criança autista era capaz de demonstrar um brilhantismo surpreendente numa área extremamente especializada, como a matemática, a música ou
a arte. E. apesar de dez por cento das crianças autistas demonstrarem algum grau de talento sábio, o que interessava a Yuri eram aqueles indivíduos raros, conhecidos
como sábios prodígios, os poucos que detinham um talento que se encaixava na verdadeira definição de gênio. Em todo o mundo, havia menos de quarenta indivíduos desses.
Mas, até mesmo no seio desses indivíduos excecionais. havia um pequeno grupo que se destacava dos demais.
Eram oriundos de uma única linha genética.
Uma velha palavra cigana ecoou na sua cabeça.
Chovihanis.
Yuri olhou pela Janela para a garota de cabelo escuro.
Mapplethorpe murmurou ao lado dele:
- Não podemos deixar que ninguém descubra o que andamos a fazer. Ou os julgamentos de Nuremberg serão vistos como de importância menor.
Yuri não respondeu. Mapplethorpe mal compreendia o âmbito global da sua investigação. Mas. depois da queda do Muro de Berlim. Yuri precisara de novos recursos para
continuar o seu trabalho. Fom preciso uma década inteira para lentamente experimentar as coisas na América. Parecia infrutífero; depois, o clima político mudou repentinamente.
A guerra global do terror acabaria por forjar novas alianças e fidelidades. Os inimigos tornaram-se aliados. Mas, mais importante, as fronteiras da propriedade foram
derrubadas. Era uma nova era. uma nova moralidade. Uma velha máxima era agora lei; os fms Justificam os meios.
A qualquer preço.
Desde que fosse para o bem comum.
O governo de Yuri sabia disto há muito tempo. Só os Americanos é que demoraram algum tempo a enfrentar esta dura realidade.
- O que é que a garota está a fazer? - perguntou Mapplethorpe. Yuri libertou-se do seu próprio sonho. Levantou-se. Sasha estava Junto ao cavalete, com uma caneta
de feltro preta na mão. O seu braço subia e descia ao longo da folha de papel. Golpeava e batia, tudo muito angular. Não parecia seguir nenhum padrão. Trabalhou
num canto, depois noutro. Mapplethorpe resmungou perante a confusão.
- Pensei que tinha dito que ela tinha talento para a arte.
- E tem.
Sasha continuava a trabalhar. O retângulo que originalmente desenhara a verde começou a encher-se de turbilhões de manchas pretas. Esticou o seu outro braço, hirto
como uma prancha, como se procurasse equilibrar-se com a ajuda de uma força exterior a este mundo.
Por fim. baixou os dois braços.
Afastou-se do cavalete, sentou-se de pernas cruzadas e começou a balouçar-se ligeiramente. Tinha a testa a transpirar. Pegou num bloco de madeira que servia de brinquedo
e começou a passá-lo ritmicamente por entre os dedos, como se estivesse a tentar resolver um quebra-cabeças que só ela conhecia.
Yuri virou a sua atenção para o trabalho efetuado.
Mapplethorpe juntou-se a ele.
- De que é que se trata? Não passa de uns rabiscos.
- Nyet. - Yuri deixou escapar acidentalmente em russo, mas ele estava preocupado... muito preocupado.
Correu para a porta que conduzia ao quarto adjacente. Mapplethorpe seguiu-o. No momento em que entrou no recinto, Sasha mais não fazia do que balouçar-se e agitar
o bloco de madeira entre os dedos. Da sua experiência, Yuri sabia que ela iria isolar-se por uns tempos.
Também aprendera algumas coisas sobre o talento de Sasha.
Dirigindo-se ao cavalete, tirou a folha do sítio.
- O que está a fazer? - perguntou Mapplethorpe.
Yuri virou a folha ao contrário e voltou a colocá-la no cavalete. Sasha, por vezes, desenhava ao contrário. Não era uma coisa invulgar nos sábios autistas. Muitas
vezes, experimentavam o mundo de uma forma bastante diferente. Os números tinham sons. As palavras tinham cheiros.
Yuri olhou para Sasha.
Os seus olhos azuis brilhantes continuavam fixos no brinquedo de madeira.
Yuri virou-se e notou o ar surpreendido de Mapplethorpe. O homem aproximou-se do desenho. Apontou para ele, mudo de espanto. Finalmente, deixou escapar algumas palavras.
- Deus meu... parece um elefante no centro.
Yuri olhou também. O seu coração deu um pulo. Ela não poderia ter feito uma coisa daquelas, a não ser que tivesse sido despoletada. Tinham sido aqueles desenhos
que os tinham conduzido ao doutor Polk - desenhos do Mall, do Instituto Smithsoniano -, levando-os a montar um ponto de mira num canto escondido do Mall. Tiveram
de atuar com rapidez, responder em duas horas.
Havia um limite para o alcance de Sasha.
Mapplethorpe inclinou-se um pouco mais.
- A sala está lá. Acho que conheço o lugar. Estive lá com o meu neto há duas semanas. E a rotunda do Museu de História Natural.
Yuri franziu as sobrancelhas.
- Aquele que fica no National Mall?
Onde a sua presa tinha estado escondida durante tanto tempo hoje.
Mapplethorpe acenou afirmativamente.
Yuri olhou para o espelho e viu apenas o seu próprio reflexo. Será que Sasha tinha dado pela sua presença? E, mais importante, será que pressentira a imensa preocupação
de Mapplethorpe acerca do que tinha sido roubado pelo doutor Polk?
Só havia uma maneira de saber.
Yuri apontou para o desenho e falou para Mapplethorpe.
- Sugiro que leve os seus homens até lá. Imediatamente.
18h48
Gray continuou a embrenhar-se no museu. Depois da rotunda central com o seu elefante embalsamado, o caminho radioativo de Polk levava diretamente a uma escadaria
pública. Gray subiu até o andar seguinte e avançou um pouco mais.
Terminava numa porta de segurança onde se lia: ACESSO RESERVADO AO PESSOAL DO MUSEU. ENTRADA PROIBIDA.
Gray experimentou a porta. Estava protegida por um fecho eletrônico. Exigia a utilização de um cartão magnético de funcionário para a abrir. Gray franziu as sobrancelhas.
Como é que Polk tinha entrado ali? Gray tocou no microfone que tinha Junto à garganta e ligou para o centro de comando.
Painter respondeu imediatamente.
- Comandante?
- Sir, preciso de ajuda. - Gray explicou onde o rastro terminava. - Preciso de aceder a esta zona.
- Aguenta um pouco, Gray. Vou actualizar a permissão do teu cartão de identificação para circular nos museus do Instituto Smithsoniano. - O silêncio prolongou-se
por algum tempo. Gray imaginou o diretor a escrever no seu computador.
Ao lado dele, Kowalski mantinha-se encostado à parede adjacente, assobiando entredentes.
- Experimenta agora - disse finalmente Painter.
Gray enfiou o cartão. Ouviu os trincos da fechadura a soltarem-se.
- Consegui. Depois digo-lhe o que encontramos.
Terminando a ligação, Gray passou pela porta e entrou na zona reservada do museu. Não era muito diferente do resto do edifício, apenas de caráter mais utilitário;
o chão de mármore apresentava um brilho lustroso resultante de décadas e décadas de corrupio, uma pálida luz fluorescente e portas de madeira cujas janelas de vidro
fosco assinalavam a presença de vários empreendimentos acadêmicos.
ENTOMOLOGIA, ZOOLOGIA DE INVERTEBRADOS, PALEOBIOLOGIA, BOTÂNICA.
O rastro avançava pelo labirinto - depois as leituras começaram a aumentar de intensidade à medida que se foram aproximando de uma poita não assinalada. Gray passou
com o leitor Gamma-Scout pela zona do puxador. Os números digitais dispararam. Recuando. Gray apercebeu-se de um rastro mais fraco que continuava pelo vestíbulo.
O corredor em frente terminava num espaço cavernoso, ladeado no extremo oposto por grandes portas de correr em aço. Os armazéns do museu. Gray olhou para cima e
para baixo, imaginando uma versão fantasmagórica de Polk. O professor devia ter entrado no museu pelos armazéns, depois saído pela porta da frente do museu.
Teria feito isso para despistar um rastro?
Kowalski experimentou o puxador.
- Não está fechado - disse e confirmou-o abrindo a porta.
O espaço escuro em frente cheirava a pó, forragem seca e um pouco de cedro.
Gray entrou e encontrou um pequeno interruptor. Ligou-o. Cabides e prateleiras enchiam metade do fundo de um espaço cavernoso. Caixotes de madeira com etiquetas
de endereço agrafadas jaziam amontoados numa pilha num dos lados. Alguns encontravam-se abertos. Um velho cordel de embrulho e umas mais modernas bolinhas de poliestireno
jaziam no chão.
Uma arrecadação.
A esquerda da porta, via-se uma única secretaria com um computador e uma impressora em cima. Havia várias mesas, num dos lados, cheias de peças de cerâmica e secções
de blocos de pedra decorados. Alguém andara a fazer um inventário. Vários objetos de maior porte repousavam em paletes de madeira no meio do chão, no fundo do compartimento:
uma estátua de mármore de uma mulher com os braços partidos, uma escultura em bronze de uma cabeça de touro corroída, uma base de uma coluna de pedra.
Gray seguiu o rastro por todo aquele espaço, indagando o que levara o professor a entrar lá. Será que se limitara a esconder-se de um guarda que passou por ali?
Mas o caminho do professor parecia conciso. Levava diretamente a um dos objetos assentes nas paletes. uma cúpula de pedra esculpida. O artefato dava pela cintura
e tinha um buraco no topo. Parecia um modelo de granito de um vulcão, só que estava coberto por uns dizeres. Gray inclinou-se para ver melhor as inscrições.
Grego antigo.
Franzindo as sobrancelhas, Gray passou com o seu leitor Gama-Scout pela área em redor.
O rastro de Polk torneava a palete.
Gray traçou os passos do homem morto. Porque é que Polk ficara tão fascinado por aquele artefato?
Antes de o poder contemplar com mais pormenor, ouviu um barulho à sua esquerda. Virou-se e viu Kowalski a afastar-se de uma das mesas. Tinha a asa de um cântaro
na mão. O resto do vaso jazia desfeito aos seus pés.
- Par... Partiu-se.
O homem tinha um dom para o óbvio.
Gray abanou a cabeça. Devia ter deixado Kowalski no comedor. Era como um touro a cirandar numa loja de porcelanas - só que um touro tinha mais autocontrole.
- Estava quase a partir-se. porra. - No entanto, parecia mais zangado consigo próprio. - Venha ver isto aqui. - Apontou com a asa partida na direção da mesa.
Gray aproximou-se. Na mesa havia vários montinhos preenchidos com antigas moedas gregas. Um intervalo na segunda fila indicava a falta de uma moeda. Será que era
a moeda de Polk? Tê-la-ia tirado daqui?
- Bati na base. Tentei apanhá-lo. - Kowalski colocou cuidadosamente a asa partida em cima da mesa. - Fiquei com a asa nas mãos.
- Não se preocupe com isso, vão apenas descontar do salário.
- Bolas. Quanto acha que vale?
- Algumas centenas.
Um assobio de alívio escapou da sua boca.
- Bem, não é muito grave.
- Algumas centenas de milhares - esclareceu Gray.
- Oh, mas que grande mer...
A reação de Kowalski foi interrompida por um movimento na maçaneta da porta. Gray começou a virar-se, mas a mão grossa que nem uma luva de Kowalski agarrou na parte
superior do braço de Gray e puxou-o para trás. Protegeu Gray com o seu próprio corpo enquanto retirava suavemente uma pistola de calibre 45 de um coldre que trazia
Junto ao ombro.
A figura esguia de uma jovem entrou. Vinha a remexer na mala, ignorando a presença daqueles dois. Chegou mesmo a procurar às cegas pelo interruptor até se aperceber
de duas coisas em simultâneo: as luzes já estavam acesas e um homem do tamanho de uma montanha tinha uma pistola erguida ao nível do seu peito.
Deu um grito e vacilou, incapaz de encontrar a porta devido ao medo.
- Desculpe - disse Kowalski e virou a pistola para o teto.
Gray rodeou o guarda-costas surpreendido.
- Não se assuste, ma’am. Fazemos parte da segurança do museu. Estamos a investigar um arrombamento.
Kowalski apontou a sua pistola para o vaso partido no chão.
- Sim, alguém partiu isto. - Olhou para Gray a pedir confirmação e colaboração ao mesmo tempo que guardava a arma.
Ela levou a mala ao peito. Com a outra mão ajeitou um par de óculos pequeninos por cima do nariz. Com o seu cabelo castanho curto e figura franzina, não se distinguia
de uma estudante universitária, mas olhando bem para os seus olhos enrugados, cheios de suspeição, via-se que devia ter mais uns dez anos em cima.
- Posso ver alguma identificação? - perguntou com firmeza, mantendo-se perto da porta.
Gray mostrou o seu cartão de identificação preto. Tinha o seu retrato. Juntamente com o selo presidencial ornamentado a ouro.
- Tenho um número para onde poderá ligar a confirmar quem somos.
Deu uma espreitadela para o cartão, parecendo ficar ligeiramente mais calma, mas os seus ombros ainda continuavam tensos. Olhou em tomo do compartimento.
- Roubaram alguma coisa?
- Talvez não fosse má ideia .ser você a responder - disse Gray, esperando que ela pudesse ajudar. - Reparei que há uma moeda que está evidentemente em falta aqui
na mesa.
- O quê? - Ela correu para a mesa, sem qualquer hesitação. Com um simples olhar, a sua expressão adquiriu um tom desesperado. - Oh, não... a coleção tinha sido cedida
por empréstimo pelo Museu de Delfos.
Delfos de novo.
Olhou para a cúpula de pedra esculpida, a que parecia ter atraído a atenção de Polk. Devia ser porque Kowalski estava com a mão encostada a ela.
- Por favor, não toque nisso.
Kowalski endireitou-se. Olhou para a mão, como se se sentisse culpado. Teve a decência de corar em tomo do colarinho.
- Desculpe.
- Posso perguntar o que é isso? - disse Gray casualmente, apontando com a cabeça para a pedra.
As mãos da mulher uniram-se num gesto de preocupação.
- A joia da coleção. Para a próxima exposição. Ainda bem que não foi vandalizada pelos ladrões. - Rodeou-a para ter a certeza. - Tem mais de seiscentos anos.
- Mas o que é? - pressionou Gray.
- Chama-se ônfalo. O que se pode traduzir por “umbigo”. Na antiga Grécia, o ônfalo era considerado o ponto em tomo do qual girava o mundo.
Existem muitas mitologias e histórias associadas aos ônfalos, aos quais são atribuídos grandes poderes.
- E como é que adquiriram isto?
Ela acenou para a mesa.
- Pertence à mesma coleção. A que veio por empréstimo do Museu de Delfos.
- Delfos? Onde o oráculo de Delfos tinha o seu templo?
Ela olhou para Gray com um ar surpreendido.
- É verdade. O ônfalo decorava o sanctum interior do templo. A sua câmara mais sagrada.
- E esta é essa pedra.
- Não. Infelizmente é apenas uma réplica. Até há bem pouco tempo, toda a gente pensava que era o ônfalo original, como descrito nas histórias antigas de Plutarco
e Sócrates. Mas a irmandade dos oráculos de Delfos remonta há três milênios e esta pedra tem metade dessa idade.
- O que aconteceu ao original?
- Perdido na história. Ninguém sabe.
Endireitou-se e dirigiu-se à bata que tinha pendurada num cabide junto à porta. Vestindo-a, retirou o cartão de identificação do museu que trazia preso à camisa
e colocou-o na bata.
Só então é que Gray reparou no cartão. Tinha o retrato e o nome por baixo.
POLK, E.
- Polk... - leu alto.
- Doutora Elizabeth Polk - disse.
Um formigueiro percorreu o corpo de Gray, enchendo-o de apreensão. Subitamente estava a par do motivo pelo qual o professor se tinha deslocado até ali.
- Por acaso conhece um tal Arquibaldo Polk?
Ela olhou para ele com um ar mais firme.
- Meu pai? Por quê?
3
5 de setembro, 19h22
Washington. D. C.
Morto?
Gray sentou-se na ponta da secretária da arrecadação do museu. Conhecia a dor daquilo que lhe acabara de dizer. Elizabeth Polk caiu na cadeira, desfalecendo em seu
jaleco. Não houve lágrimas. O choque as conteve, mas tirou os óculos pequeninos, como que para se recompor.
- Ouvi falar do tiroteio no Mall - murmurou. - Mas nunca pensei... - Abanou a cabeça. - Estive aqui nos depósitos durante todo o dia.
Onde não havia rede móvel, notou Gray silenciosamente. Painter mencionara o fato de ter tentado entrar em contato com a filha de Polk. E afinal ela tinha estado
ali o tempo todo, do outro lado do Mall.
- Peço desculpa por estar a insistir. Elizabeth - disse -, mas quando é que viu o seu pai pela última vez?
Ela engoliu em seco, começando a perder o controle. A sua voz tremia.
- Eu., não tenho a certeza. Há um ano. Tivemos uma discussão. Oh. meu Deus. o que lhe disse... - Levou uma mão à testa.
Gray viu o arrependimento e dor estampados nos olhos da jovem.
- De certeza que ele sabia que o amava.
Os olhos brilharam na sua direção, ficando mais duros.
- Obrigada pelas suas palavras. Mas não o conhecia, pois não?
Gray pressentiu a dureza escondida por detrás daquela aparência tímida e erudita. Enfrentou a sua raiva, sabendo que era dirigida mais para o seu interior do que
para ele. Kowalski recuara para a parle mais afastada do compartimento, sentindo-se claramente desconfortável com toda a cena.
Gray girou no lugar onde estava sentado e apontou para o tampo da mesa. As filas de moedas antigas continuavam dispostas em torno de um mata-borrão.
- Eu sei porque encontramos uma moeda no corpo do seu pai. - Gray recordou o que Painter lhe dissera sobre isso. - Uma moeda com o busto de Faustina, a Velha, num
dos lados e o Templo de Delfos no outro.
Os olhos delas abriram-se. Olhou para o intervalo na fila onde a moeda em tempos estivera.
Gray levantou um braço.
- Ele veio aqui antes de ter sido alvejado. Ao seu gabinete.
- Não é o meu gabinete - murmurou, olhando em volta, como se estivesse à procura do fantasma do seu pai. - Estou a fazer uma investigação para a minha dissertação
de doutoramento. Com efeito, foi o meu pai que puxou alguns cordelinhos e conseguiu que eu ficasse a trabalhar no Museu de Delfos, na Grécia. Estive lá até há um
mês. Estou a supervisionar a instalação desta exposição. Não imaginava que o meu pai soubesse que eu estava aqui. Especialmente depois da nossa... - Retirou o que
ia a dizer.
- Ele deve ter mantido um olho no seu trabalho.
Surgiram algumas lágrimas, suficientes para escorrerem por um dos lados da face. Limpou bruscamente a cara com a manga da bata.
Gray deu-lhe uns minutos. Ele olhou para Kowalski, que estava a andar em círculos em tomo do ônfalo de pedra, como uma lua numa órbita lenta. Gray sabia que o pai
de Elizabeth seguira a mesma órbita. Mas porquê?
Elizabeth colocou a mesma questão.
- Porque é que o meu pai veio aqui'.’ Porque é que levou a moeda'?
- Não sei. Mas tenho a quase a certeza de que o seu pai sabia que estava a ser vigiado, perseguido. - Imaginou Polk rondando pelo Mall, procurando alguma forma de
contactar a Sigma pessoalmente, mantendo--se escondido. - Ele pode ter levado a moeda consigo, não fosse dar-se o caso de ser assassinado. A moeda estava suja, fácil
de passar despercebida num bolso, caso o assaltante resolvesse fazer uma busca precipitada pelo corpo. Mas um exame mais aprofundado numa morgue revelaria a estranheza
da moeda. Acho que ele esperava que isso conduzisse até aqui. Ao seu gabinete onde ele sabia que confirmaria que tinha sido roubada.
As lágrimas da mulher secaram enquanto ele falava.
- Mas porque é que faria uma coisa dessas'?
Gray fechou os olhos, pensando exaustivamente, pondo-se a si próprio no lugar do homem.
- Se aquilo que eu disse acerca da moeda estiver certo, o seu pai estava preocupado com o fato de pode vir a ser investigado. Ele devia saber que os perseguidores
andavam atrás de alguma coisa. Algo que ele possuía...
Claro.
Gray abriu os olhos. Olhou também para Elizabeth. Os seus olhos perscrutaram o compartimento, mas não à procura de fantasmas. Gray denotou um certo entendimento
nas suas sobrancelhas franzidas. Ela pôs os óculos.
- O meu pai poderá ter escondido aqui o que os assassinos procuravam?
Gray apontou com a cabeça para Kowalski, que aguardava ao lado da pedra cônica.
- O seu pai parecia particularmente interessado no ônfalo do templo.
Elizabeth seguiu-o com um franzir de sobrolho.
- Como é que tem a certeza disso?
Gray explicou brevemente o que se passara com a exposição radioativa e ergueu o seu Gama-Scout.
- O rastro do seu pai conduziu-nos até aqui e, para haver um registro tão acentuado no aparelho, é porque o seu pai passou algum tempo perto do artefato.
Elizabeth empalidecera ligeiramente ao ouvir falar da aflição do seu pai. No entanto, acenou para Kowalski.
- Existe uma lanterna de emergência pendurada naquela parede ali.
Ele acenou e foi no seu encalço.
Ela aproximou-se da pedra.
- Embora pareça sólida, é, na verdade, oca por dentro. Não passa de uma taça esculpida em granito virada ao contrário. - Apontou para o buraco no cimo.
Gray compreendeu. O seu pai poderia ter facilmente deixado cair qualquer coisa lá para dentro. Aceitou a lanterna de Kowalski, inclinou-se sobre a pedra e apontou-a
diretamente para o fundo. Era, na verdade, uma pedra oca. Lá no fundo, as pranchas da palete que suportavam a pedra foram iluminadas. Mudou o ângulo de incidência
e descobriu uma coisa de um dos lados. Parecia uma pedra polida, mais ou menos do tamanho de um melão.
- Não consigo ver o que é - murmurou, endireitando-se. - Precisamos de levantar a pedra.
- E pesada - explicou Elizabeth. - Foram precisos seis homens para descarregá-la. Mas existe um pé-de-cabra no meio das ferramentas que estão ali atrás. Talvez consigamos
levantá-la. Mas teremos de ter muito cuidado.
- Vou buscá-lo - disse Kowalski.
Enquanto se afastava, o telefone na secretaria de Elizabeth tocou. Debruçou-se sobre o aparelho e verificou a procedência da chamada.
- É a segurança. - Olhou para o relógio, depois olhou para Gray. - Já passa da hora de encerramento. Devem querer saber quanto tempo mais ficarei a trabalhar aqui.
- Diga-lhes que pelo menos mais uma hora.
Ela acenou e atendeu o telefone. Confirmou quem era depois escutou o que o seu interlocutor tinha para dizer. Os seus olhos abriram-se.
- Compreendo. Vamos já. - Desligou o telefone e virou-se para Gray. - Houve uma ameaça de bomba. Aqui no museu. Estão a evacuar o edifício.
Gray permaneceu em silêncio. Ele sabia que tal ameaça, especialmente agora, não era nenhuma coincidência. Viu pelos olhos da mulher que ela tinha interpretado o
mesmo.
- Alguém sabe - disse lentamente. - Depois do tiroteio de hoje no Mall, ninguém negligenciaria uma ameaça de bomba. E o disfarce perfeito para vistoriar o edifício
de urna ponta a outra.
Virou-se para observar a pedra-ônfalo.
O tempo não se compadecia com delicadezas.
Kowalski também .se apercebeu do que estava em jogo. Regressou do fundo da arrecadação.
- Eu ouvi - disse. Em vez do pé-de-cabra almofadado, trazia um grande martelo ao ombro. - Afastem-se.
- Não! - avisou Elizabeth.
Mas Kowalski não iria considerar o não como resposta. Galgou a distância numa passada, ergueu o martelo por cima da cabeça e baixou-o.
Elizabeth gemeu de medo pelo artefato centenário.
Mas em vez de atingir a pedra antiga, o martelo caiu nas ripas da palete que suportava o ônfalo. A madeira estalou e quebrou-se. Kowalski levantou o martelo de novo
e partiu mais ripas do mesmo lado.
Com metade do seu peso sem apoio, a grande pedra inclinou-se para o lado esmagado da palete - depois tombou lentamente, virando-se. Mais ripas foram esmagadas debaixo
do seu peso, mas parecia que não tinha ficado danificada devido à forma lenta como tinha rodado.
Kowalski levou o martelo ao ombro.
Elizabeth olhou para o homem, com uma expressão a meio caminho entre o horror e o espanto.
Gray aproximou-se da palete e ajoelhou-se. O objeto escondido debaixo do ônfalo estava agora bem visível. Não era uma pedra polida. Gray ergueu o leitor Gamma-Scout
na sua direção. A leitura era alta, mas não superior à dos binóculos que tinham encontrado antes.
Satisfeito, Gray retirou o objeto.
Elizabeth recuou enquanto ele se endireitava.
Os olhos de Kowalski franziram-se.
- Um crânio? É disto que se trata?
Gray examinou-o de perto. O crânio era pequeno e não tinha a mandíbula inferior. Virou-o ao contrário. Os dentes remanescentes expunham uns caninos proeminentes
num focinho protuberante.
- Não é humano - disse. - Pelo tamanho e forma do crânio, diria que se trata de um símio. Possivelmente um chimpanzé.
A expressão de Kowalski azedou-se ainda mais.
- Ótimo - proferiu. - Mais macacos.
Gray sabia que este homenzarrão desenvolvera um ódio por todas as coisas simiescas na sequência de uma missão anterior. Algo relacionado com babuínos... ou macacos.
Gray não conseguira ainda tirar nabos da púcara sobre isso.
- Mas... o que é que está de lado do crânio? - apontou Elizabeth.
Gray sabia o que é que ela queria dizer. Era difícil não reparar. Afixado ao osso temporal, mesmo por cima da abertura do canal auditivo, sobressaía um bloco curvo
de aço inoxidável.
- Não tenho certeza - respondeu. - Talvez um auxiliar de audição.
Talvez um desses novos implantes da parte interna do ouvido.
- Para um maldito macaco? - perguntou Kowalski.
Gray encolheu os ombros.
- Teremos de examiná-lo mais tarde.
- Por que meu pai trouxe isso para cá?
Gray abanou a cabeça.
- Não sei. Mas alguém queria detê-lo. E alguém queria isto de volta.
- O que fazemos?
- Temos de sair daqui. Antes de alguém saber que o recuperamos.
Gray demorou algum tempo a observar o resto da palete, não fosse o professor ter deixado mais alguma coisa. Como uma nota explicando tudo. Era uma possibilidade.
Apontou a lanterna para a cavidade côncava do ônfalo virado.
Nada.
Enquanto manobrava a lanterna, a luz projetou-se sobre a superfície interior. Algo captou a atenção do seu olhar. Parecia um entalhe esculpido em espiral na superfície,
começando na borda e progredindo em caracol na direção do buraco. Tocou com o dedo e viu que era uma linha única de escrita cursiva. Inclinando-se. iluminou o escrito
com a luz da lanterna.
Elizabeth reparou na sua atenção.
- Sânscrito antigo.
Gray endireitou-se.
- O que é que o sânscrito faz no interior...?
Kowalski interrompeu-o.
- Isso interessa para alguma coisa? - Apontou um polegar para a porta. - Lembrem-se da ameaça de bomba. Não devíamos estar já a milhas daqui?
Gray endireitou-se. O homem tinha razão. Tinham perdido tempo suficiente. A vistoria do edifício estava Já provavelmente...
Um grito abafado ecoou no corredor.
Kowalski revirou os olhos numa expressão de eu bem vos avisei.
- O que fazemos? - perguntou Elizabeth.
19h37
Painter bateu na porta meio aberta do gabinete do patologista.
- Entre - disse Malcolm. - Jones, tens os dados da...?
Painter abriu a porta no momento em que Malcolm fazia a sua cadeira girar. O patologista ainda estava vestido com a sua bata azul de cirurgião. Os óculos estavam
em cima da mesa. Estava a esfregar a cana do nariz quando reparou em quem estava à sua porta.
Os seus olhos abriram-se.
- Diretor... - Fez menção de se levantar, mas Painter fez sinal para que permanecesse sentado enquanto entrava.
- O Brant disse-me que me tinha ligado. Eu estava de volta ao meu gabinete, depois de ter visto as gravações do vídeo de vigilância.
- Algumas imagens do atirador?
- Até agora não. Ainda estamos a passar os registros a pente fino. Mas são imensos vídeos para analisar. E algumas fontes são lentas a responder.
Desde o 11 de setembro que a vigilância da capital fora apertada. Num raio de quinze quilômetros em tomo da Casa Branca, multicâmeras vigiavam todos os metros quadrados
de ruas, parques e espaços públicos. E também mais de sessenta por cento dos espaços interiores. Várias câmeras haviam captado partes do caminho do doutor Arquibaldo
Polk pelo Mall. Confirmaram o que Gray havia acedido com o seu rastro radiológico. Mas havia partes em branco. Embora tivessem imagens de Polk a cair nos braços
de Gray, nenhuma câmera captara qualquer sinal de disparo de arma ou do atirador.
Era preocupante.
Painter estava a começar a suspeitar de que o atirador sabia da existência das câmeras e encontrara um buraco na rede de vigilância atrás do qual se poderia esconder.
Ou, pior ainda, alguém podia ter-se apropriado das imagens do Mall e apagado propositadamente qualquer prova do assassino.
De qualquer maneira, tal conspiração sugeria que o assassínio do professor Polk poderia ter fortes ligações aqui em Washington. Mas quem e onde? Se a história de
Polk como um Jason tinha alguma coisa a ver com o assassínio, então abria-se uma caixa de Pandora de possibilidades. Os Jasons estavam envolvidos em projetos altamente
confidenciais de vários cambiantes que iam desde o cinzento ao preto mais retinto.
Painter sabia que não ia conseguir dormir esta noite.
Nenhum deles conseguiria.
- Algum sinal de Gray? - perguntou Malcolm, tirando um monte de papéis do cimo de uma cadeira e convidando Painter a sentar-se.
- Ele anda à procura no Museu de História Natural. O rastro de Polk ia até lá.
- Espero bem que ele encontre alguma coisa, mas também foi por causa disso que liguei para si. Sou capaz de ter descoberto mais algumas pistas para seguir.
Curioso, Painter sentou-se melhor na cadeira. Malcolm rodou a tela plano do seu monitor para que Painter pudesse ter um melhor ângulo de observação.
- O que é que descobriu? - perguntou Painter.
- Algo curioso. Não sei realmente o que fazer com isto, mas pode nos dar mais uma pista de onde prosseguir com as buscas. Sabendo que a vítima se encontrava contaminada
por via radioativa, procurei uma pista para a fonte. O exame inicial do trato gastrointestinal e do fígado do Polk revelou que ele não ingeriu nada de índole radioativa.
- Por isso, nenhum jantar envenenado com polônio-210 ou algo do gênero?
Malcolm acenou afirmativamente.
- Pelo grau das queimaduras de radiodermite na sua pele, é bastante provável que a radiação tivesse provindo de uma fonte ambiental. Ele deve ter estado nalguma
zona quente. A microanálise do seu cabelo revelou que a exposição foi de natureza aguda. Deverá ter sido contaminado há menos de uma semana.
- Mas onde...?
Malcolm ergueu urna mão num gesto de paciência e usou a outra para tocar no teclado e mostrar um mapa-múndi no monitor.
- As quantidades de vestígios radioativos foram encontradas nas bolsas alveolares mais profundas dos seus pulmões. Como o pó de carvão num pulmão de mineiro. Passei
a amostra por um espectrógrafo de massa e fui capaz de determinar uma queda bruta do conteúdo do isótopo.
Apontou para a tela. O lado esquerdo do monitor do computador começou a registrar uma série de dados.
- Tal informação é por vezes tão específica como a de uma impressão digital. Bastou dar uma vista de olhos pela base de dados da AIEA em Viena.
Painter reparou que a janela de busca aberta tinha o nome da organização inscrita no topo; AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA ATÓMICA.
- A agência monitoriza pontos quentes em todo o mundo: minas, reatores, fontes industriais. Apesar do que muitos poderão pensar, nem toda a radiação é igual. Estamos
a falar de um material que está em constante transformação, cujos isótopos variam, dependendo do sítio de onde foi extraído e da maneira como foi processado, O resultado
final são dados de radiação únicos para cada ponto.
- E os vestígios nos pulmões do professor?
- Fiz uma busca na base de dados da AIEA e consegui uma pista.
- Sabe onde o Polk esteve exposto?
Ele apontou com a cabeça para a tela no momento em que a paginação de conteúdos terminou e o mapa-múndi irrompeu, fazendo uma aproximação focal para um local na
Rússia Central. Um nome apareceu numa caixa destacada, um nome sinônimo de desastre radiológico.
CHERNOBYL
O que é que Arquibaldo Polk estava a fazer em Chernobyl? Como é que fora exposto a um nível tão letal de radiação no local do reator morto? O reator era para ser
selado esta semana com um novo sarcófago, uma gigantesca cúpula de aço articulada. No meio de toda esta construção, será que Polk teria sido exposto, de alguma maneira,
a uma dose letal de radiação?
Antes de Painter poder questionar Malcolm de uma forma mais aprofundada, o seu celular vibrou no cinto. Desbloqueou-o e verificou quem é que estava a ligar. Era
o seu ajudante. Franzindo o sobrolho, atendeu.
- O que se passa. Brant?
- Diretor, recebi um alerta da Pátria. Alguém ligou para o Museu de História Natural com uma ameaça de bomba.
Painter apertou com força o celular.
O Museu de História Natural... onde Gray se encontrava.
Não podia ser nada de bom.
- Põe-me em contato com o rádio do Gray.
Esperou, com o celular colado ao ouvido. Malcolm olhou para ele. Será que fora Gray? Outra pessoa qualquer?
Enfim, algo se passava de errado.
A confirmação não tardou a chegar.
Brant surgiu novamente em linha.
- Sir, ele não está a responder.
19h56
Elizabeth Polk avaliou Gray Pierce no momento em que se aproximaram dos armazéns de carga e descarga do museu. Observando-o de esguelha, reparou na zona contundida
de um dos lados do rosto. A sua compleição bronzeada escondia grande parte das contusões Já desvanecidas. A pancada devia ter ocorrido há cerca de um mês. O que
dava à superfície do rosto um ar de chapa de cobre batida, fazendo sobressair o azul dos seus olhos. Esses mesmos olhos que a enregelaram quando ele vislumbrou a
meia dezena de homens que tentava desimpedir o armazém do museu e os obrigou a deterem-se.
- Há qualquer coisa de errado aqui - disse.
Ela espreitou para a zona do armazém por cima do ombro de Gray. Iluminado por trêmulas luzes fluorescentes, o espaço cavernoso estava apinhado de prateleiras altas
atafulhadas com apetrechos de limpeza para as várias lojas concessionadas do museu. Uma única empilhadora encontrava-se ao lado de uma série de roldanas e contrapesos
para transportar as peças maiores de uma exposição. Uma porta de correr em aço estava aberta à direita. Destacado no meio da luz ténue do entardecer, um grupo de
homens com equipamento antimotim tinha formado um cordão de segurança perto da saída. Sob o aviso do alarme de evacuação, estavam a revistar todos os trabalhadores
e membros do pessoal que procuravam sair por este lado.
Um homem de ombros estreitos, envergando um terno azul, observava a cena a alguns metros de distância. Era claramente uma pessoa com um lugar de destaque na cadeia
hierárquica.
Gray impeliu-a a voltar para o corredor. Elevou o saco que trazia preso ao ombro. Tinha o logótipo do museu e transportava o estranho crânio que o seu pai escondera
na arrecadação do museu. Ao pensar nele, uma forte dor no peito ameaçava derramar um mar de lágrimas. Conteve-as. Choraria a sua perda num momento mais calmo.
Lá mais ao fundo, na direção oposta ao armazém, um grito ecoou da escadaria à frente, um pedido para revistarem todas as salas. Ouviu-se o som de botas a descerem
pelas escadas.
Gray parou e virou-se para ela.
- Há mais alguma saída?
Ela acenou afirmativamente.
- Os túneis de serviço. Por aqui.
Enquanto os guiava, Gray pôs-se a olhar fixamente para ela, com aqueles seus olhos agitados, questionando os seus conhecimentos.
- Alguns empregados costumam vir para aqui fumar nos intervalos. - Ela olhou para ele com uma certa dose de culpa. Queria mesmo deixar de fumar. No entanto, o hábito
proporcionara-lhe o estabelecimento de algumas relações pessoais com outros investigadores. Um clube de fumadores secreto. E tudo o que custava era o risco de enfisema
e cancro do pulmão. - E claro que não podemos fumar dentro do museu. Perigo de incêndio, mas, aqui em baixo, só há pedra e tubos de vapor.
Ela conduziu-os até a uma porta não identificada e abriu a fechadura eletrônica com o seu cartão. As escadas que se viam do outro lado eram de cimento manchado e
havia um corrimão de aço de um dos lados. Os degraus sucediam-se em curvas apertadas no sentido descendente.
Antes de conseguirem entrar, um ligeiro grunhido levou-os a olhar para trás, para os armazéns. Uma forma baixa apareceu no corredor. A trinta metros de distância.
Um pastor alemão. Estava equipado com um colete preto e preso por uma trela a um homem ainda fora do ângulo de visão.
Elizabeth ficou gelada.
O cão localizou-os e lançou-se para a frente, puxando pela trela.
- Vamos. - Gray empurrou-a pela porta aberta que dava acesso às escadas e seguiu-a. O seu parceiro volumoso juntou-se logo atrás. Foi por um triz. O ar condicionado
do museu não se estendia a esta zona. A única iluminação provinha de uma luz de emergência com uma grade de proteção.
Gray fechou a porta com o mínimo barulho possível. O sinal de alarme foi abafado. Fez sinal para que seguissem pelas escadas estreitas e esgueirou-se até o local
onde ela se encontrava.
- Sabe até onde vão dar os túneis?
Ela abanou a cabeça.
- Não sei bem. Nunca fui mais longe do que devia. E uma confusão isto aqui, com tantas bifurcações. Dizem que vai dar à Casa Branca. Mas certamente que deve haver
uma saída para a rua algures.
Atrás deles, algo de pesado bateu contra a porta em cima, seguido de fortes latidos. Ecoaram gritos, perseguindo-os pelas escadas abaixo.
- Poderá ser um cão detetor de explosivos? - perguntou Elizabeth. - Talvez a ameaça seja real.
O companheiro de Gray. Kowalski, resmungou.
- Só ao pé do Pierce é que uma ameaça de bomba real poderá ser considerada uma coisa boa.
Chegando ao fundo das escadas, foram detidos por uma portão trancado. Gray tirou a barra de proteção e abriu o portão. Os túneis estendiam-se em várias direções,
escuros como o breu, quentes, cheirando a cimento molhado e escorrendo pingos de água.
- Espero que alguém tenha trazido uma lanterna - comentou Kowalski.
Gray praguejou em voz baixa sob a respiração. Deixara a lanterna na arrecadação.
Elizabeth procurou no bolso e tirou o seu isqueiro. Era um Dunhill de prata antiga. Abriu-o e produziu uma pequena chama. Com destreza, ajustou a chama.
- Bom - disse Kowalski. - Quem me dera ter trazido os meus cigarros.
- A mim também - murmurou Elizabeth.
Kowalski olhou novamente para ela.
Antes de poder dizer alguma coisa, uma luz inundou as escadas atrás deles. O sinal do alarme soava com mais força. Os seus perseguidores haviam conseguido abrir
a porta.
- Depressa. - Gray encaminhou-se para a direita. - Mantenham-se juntos.
Elizabeth seguia colada ao ombro de Gray, com Kowalski atrás dela. Mantinha o isqueiro erguido. O brilho tremeluzente estendia-se apenas por alguns metros adiante.
Gray corria devagar pelo túnel. Tinha um braço levantado, seguindo com as pontas dos dedos os tubos por cima da cabeça. Optou pelo primeiro corredor para os tirar
da visão direta da saída das escadas.
Um único latido ecoou-lhes aos ouvidos.
Gray incentivou-os a correrem mais depressa.
A bata de Elizabeth esvoaçava atrás dela. A chama do isqueiro ia queimando as teias de aranhas enquanto prosseguiam por outro corredor.
- Para onde vamos? - perguntou Kowalski.
- Em frente - respondeu Gray.
- E esse o grande plano? Em frente?
Um ladrar furioso irrompeu subitamente. Ouviram-se gritos. O seu rastro fora encontrado.
- Esqueçam o que eu disse ~ corrigiu Kowalski. - Em frente parece-me ser uma boa ideia.
Todos juntos, fugiram por entre o emaranhado de túneis.
Do outro lado da cidade, Yuri sentou-se num banco sob a copa de uma cerejeira. Era bom sentar-se. Doíam-lhe os joelhos, a região lombar ameaçava entrar em espasmo
muscular. Já engolira em seco quatro comprimidos de Aleve. Tinha medicamentos mais fortes em casa, mas nada que se atrevesse a trazer para os Estados Unidos. Seria
boa ideia regressar à Toca.
Esticou uma perna e esfregou um joelho.
Enquanto descansava, o Sol ia descendo no horizonte, projetando grandes sombras no caminho do parque. A alguns metros de distância, um muro baixo de cimento bordejava
o outro lado do caminho. Crianças e pais debruçavam-se sobre ele. apontando para um habitat ao ar livre que se estendia à sua frente. Uma pequena parcela da floresta
chinesa havia sido recriada; um afloramento rochoso salpicado de grutas, lagos e riachos enevoados. Vários arbustos decoravam as suas encostas íngremes, ao lado
de chorões, sobreiros e várias espécies de bambu. Os dois ocupantes do habitat, dois pandas gigantes emprestados pela China - Mei Xiang e Tian Tian - atraíam a atenção
deliciada dos poucos visitantes do zoo que ainda permaneciam no local.
Incluindo Sasha.
A garota tinha os braços cruzados sobre a parte superior do muro de cimento. Um sapato batia ritmicamente contra o cimento. Mas estava a abrandar.
Como ele esperara.
Yuri levara a garota ao Parque Zoológico Nacional, depois da atuação que tivera junto de Mapplethorpe. Da sua longa experiência, sabia o efeito calmante que os animais
tinham após cada uma das suas cargas. Especialmente Sasha. Yuri não precisava de testar os níveis de BDNF no fluido espinal da garota. Depois de um episódio tão
intenso, os níveis hormonais de “fatores neuro tróficos derivados do cérebro” tinham certamente atingido um nível perigoso. Ele não se preparara. Apanhado de surpresa
pela sua atuação, sabia que tinha de acalmá-la rapidamente. Longe do ambiente de casa, eia ficara especialmente agitada, vulnerável. Havia um risco de danos neurais
irreversíveis. Já tinha visto isso antes. Haviam sido necessárias várias décadas para se descobrir a relação inata entre a saúde mental das crianças autistas e os
efeitos paliativos da sua interação com os animais.
Por isso, enquanto Mapplethorpe executava uma busca no Museu de História Natural, Yuri levara Sasha ao famoso parque zoológico da cidade. Era o que havia de mais
parecido com a Reserva, como iria descobrir aqui na cidade estrangeira.
O pontapear de Sasha abrandou ainda mais. Ela estava a readquirir o controle. No entanto, a ponta dos sapatos de cabedal tinha sofrido drasticamente com isso. Mas
antes os sapatos do que a mente.
Yuri sentiu a pressão entre as costelas a diminuir. Partiriam no próximo avião para a Rússia. Uma vez de regresso à Toca, marcar-lhe-ia um exame físico completo:
análises ao sangue e à urina, uma TAC craniana. Tinha de ter a certeza de que não havia lesões.
Mas, mais importante, precisava de uma resposta para o fato de ter sido ela própria a induzir um episódio destes. Isso não devia ter acontecido. O implante cortical
mantinha um nível estável de estimulação. adequado às aptidões de cada criança. A manifestação de Sasha no gabinete de Mapplethorpe não devia ter acontecido, a não
ser que o seu implante tivesse sido acionado à distância para provocar uma reação daquelas.
O que é que teria acontecido? Será que havia algum defeito no seu implante? Será que alguém o acionara? Ou, mais perturbador ainda, será que Sasha estava a crescer
para além do âmbito do seu controle?
Apesar do calor do dia e do seu alívio, ainda sentia calafrios.
Algo estava errado.
Um alvoroço estalou à sua frente. Vinha da multidão perfilada junto ao habitat dos pandas. Os murmúrios acalorados intensificaram-se. Uma imensidão de flashes de
máquinas fotográficas brilhou no meio da multidão. Mais pessoas foram arrastadas pelo burburinho. Yuri ouviu um nome a ser pronunciado repetidamente.
- Tai Shan... Tai Shan...
Sentou-se mais direito, esboçando um esgar de protesto pela dor que sentia nas costas. Reconheceu o nome que vinha na brochura do zoo. Tai Shan era a cria panda
nascida de Mei Xiang há algum tempo. O jovenzinho devia ter sido avistado.
Uma multidão acotovelou-se para ver melhor. Mais pessoas se aglomeraram. As crianças foram colocadas aos ombros dos pais. As máquinas fotográficas disparavam furiosamente.
Franzindo o sobrolho perante a reação maníaca dos turistas, Yuri levantou-se. Perdera o contato visual com Sasha no meio daquela multidão compactada. Ele sabia que
ela não gostava de ser tocada.
Avançou pelo caminho e meteu-se no meio da multidão. O parque fecharia dentro de minutos. Estava na altura de se irem embora.
Chegou ao muro onde Sasha estivera.
Ela não estava lá.
Com o coração aos pulos procurou ao longo do muro, de ambos os lados. Nenhum sinal do seu cabelo cor de ébano e fitas vermelhas. Saltou para o exterior outra vez,
tentando abrir caminho por entre a multidão. Protestos e resmungos saudaram a sua rude passagem. Uma máquina fotográfica caiu das mãos de alguém, estatelando-se
no chão.
Uma pessoa agarrou-lhe o ombro. Foi detido.
- Senhor, ou bem que nos apresenta uma boa razão para esta...
Yuri libertou-se. Os seus olhos, brilhando de verdadeiro pânico, cruzaram-se com os do homem.
- A minha... a minha neta. Perdi a minha neta.
A raiva transformou-se em preocupação.
Com imensos pais no local, a palavra espalhou-se rapidamente. Era o pior receio de um pai e de uma mãe. Encheram-no de perguntas. Como é que ela é? O que é que tinha
vestido? Outros ofereceram-se para ajudar, prometendo que iria ser encontrada.
Yuri mal os ouviu, atordoado com o seu próprio coração aos pulos. Nunca devia ter saído de junto dela, nunca se devia ter sentado.
A multidão diminuiu à sua volta, espraiando-se em todas as direções.
Yuri completou uma volta inteira. Procurou, mas sabia a verdade.
Sasha desaparecera.
4
5 de setembro, 20h12
Washington, D. C.
- Porta! - gritou Kowalski lá detrás.
Gray parou e olhou para ele. Elizabeth Polk ergueu o isqueiro e revelou uma pequena porta, escondida ao lado do túnel escuro. Gray passara por ela, demasiado concentrado
no teto, procurando por uma saída para a rua através dos túneis de serviço.
Atrás deles, ecoavam gritos dos perseguidores. Um pequeno latido áspero soou no momento em que estes últimos encontravam o seu rastro de novo. Gray andara para a
frente e para trás, ao longo de vários túneis, tentando despistá-los, mas tal revelara-se infrutífero e estavam a perder terreno.
Kowalski forçou o puxador da porta.
- Fechada. - Bateu na superfície de metal num gesto de frustração.
Passando para o seu lado, Gray reparou num fecho eletrônico por debaixo do puxador. A chama do isqueiro iluminou um pequeno letreiro de metal com letras Art Déco:
MUSEU NACIONAL DE HISTÓRIA AMERICANA
A porta era uma entrada subterrânea para outro dos museus do Instituto Smithsoniano. Junto à porta, Elizabeth introduziu o seu cartão de segurança do museu, mas
a fechadura não se abriu. Para se certificar, Kowalski pegou no puxador e abanou a cabeça.
- O meu cartão só é válido para o Museu de História Natural - disse Elizabeth. - Mas podia ser...
Um latido feroz chamou a sua atenção. O brilho tremeluzente de umas tantas lanternas iluminou o fundo do túnel.
- É melhor sairmos daqui - disse Kowalski e afastou-se da porta.
Um tiro de caçadeira soou. Algo bateu na superfície de metal onde Kowalski tinha estado um segundo antes. A esfera ricocheteou na porta e caiu no chão de cimento,
soltando faíscas azuis de eletricidade.
Kowalski fugiu como um elefante de um rato.
Gray reconheceu o tiro: uma Taser XREP. Disparada de uma caçadeira calibre 12 comum, lançava um projétil sem fios autocontido que provocava uma reação neuromuscular
incapacitante. Podia deter um gorila de montanha.
- SEGURANÇA INTERNA! PAREM OU VOLTAMOS A DISPARAR!
- É um aviso - disse Kowalski e ergueu os braços por cima da cabeça.
Meio escondido por detrás do corpo do seu companheiro. Gray girou e introduziu o seu cartão de identificação da Sigma na ranhura. Uma pequena luz verde brilhou ao
lado da fechadura.
Graças a Deus.
- MÃOS NA CABEÇA. JOELHOS NO CHÃO!
Gray manobrou o puxador e a porta abriu-se. Estava escuro. Virando-se para trás agarrou no ombro de Elizabeth. Ela hesitou, depois viu a porta aberta. A seguir,
virou-se e agarrou na parte de trás do cinto de Kowalski. Este tinha já as mãos na cabeça e preparava-se para se ajoelhar.
Olhou para eles.
Gray manteve a porta aberta com o apoio do ombro e puxou Elizabeth para junto dele. Desequilibrando-se, Kowalski caiu sobre um dos Joelhos - depois ergueu-se do
chão e entrou pela porta dentro.
Gray ouviu outro disparo de uma caçadeira.
Kowalski jogou-se sobre eles, empurrando-os pelas escadas escuras além do limiar da porta. Com a outra perna fechou a porta, continuando a dar pontapés para o ar.
- ...andes cabr...! - gritou entredentes.
Gray vislumbrou o projétil eletrônico enfiado na ponta do sapato da perna do companheiro. Elizabeth também. Subiu até Junto dele, imobilizou-lhe o tornozelo e afastou
a bala Taser com o salto do seu sapato.
A perna de Kowalski continuou a estremecer durante mais uns segundos, depois parou.
As suas imprecações não.
Gray deteve-se e estendeu um braço para o ajudar.
- Foi sorte ter atingido só o sapato. - O cabedal evitou que a ponta penetrasse mais profundamente.
- Sorte! - Kowalski dobrou-se e esfregou a zona magoada por entre o cabedal lustroso. - Os estúpidos arruinaram os meus Chukkas novos!
Gritos abafados aproximaram-se da porta.
- Vamos - incentivou Gray e avançou.
Kowalski continuou a resmungar enquanto se apressavam pelas escadas.
- O Crowe vai pagar-me um par novo!
Gray ignorou-o enquanto corria pelas escadas.
As imprecações de Kowalski continuavam.
- Deixem o crânio do macaco aqui. Eles que fiquem com essa coisa horrorosa.
- Não! - disseram Elizabeth e Gray ao mesmo tempo.
Gray sentiu a raiva na voz da mulher. Tinha a ver com a sua. O pai dela morrera para manter o crânio afastado dos seus perseguidores. Morrera nos braços de Gray.
Ele não ia desistir.
Atingiram a porta que ficava no topo das escadas. Também ela estava fechada. Os sons de alguém a bater ecoavam da porta em baixo. Não demorariam muito a encontrar
uma chave-mestra.
- Aqui - disse Elizabeth e apontou para o leitor de cartões escurecido.
Gray introduziu o seu cartão de identificação e ouviu a fechadura a soltar-se. Olhou atrás dele enquanto abria a porta. A informação já se devia ter espalhado. Quem
quer que estivesse à procura deles saberia que estavam a dirigir-se para o Museu de História Americana.
Gray conduziu-os até um recinto iluminado. Era quase igual às caves do Museu de História Natural, só que aqui havia montões de caixas no corredor, obstruindo a passagem.
Gray testou o seu próprio rádio, mas ainda não havia sinal, enfiados que estavam nas profundezas do museu.
- Por aqui - disse, dirigindo-se a umas escadas que davam acesso ao piso superior.
Quase que caíam por cima de um eletricista equipado com o seu uniforme de trabalho, caminhando alquebrado pelo peso de um rolo de fio condutor que transportava ao
ombro e de um pesado cinto de ferramentas.
- Porque é que não vêm por onde andam...!
Algo que viu na expressão de Gray fê-lo calar-se.
O eletricista desimpediu o caminho e encostou-se à parede. Passaram rapidamente por ele e continuaram a subir. Quanto mais subiam, maior era o caos que iam encontrando
pelo caminho: homens a trabalhar, paredes esventradas. condutas à vista. Chegando ao patamar seguinte, tiveram de desviar-se das inúmeras placas de reboco e lajes
de mármore que Jaziam empilhadas. O ar cheirava a tinta fresca e sabia a serradura.
Gray lembrava-se de que o Museu de História Americana encetara grandes obras de remodelação, modernizando as suas infraestruturas de quarenta anos para melhor expor
os seus três milhões de tesouros históricos, desde o chapéu alto de Abraham Lincoln até os sapatos de rubi de Dorothy. O museu estivera encerrado ao público durante
os últimos dois anos, mas devia abrir no próximo mês.
Pelo aspeto das coisas no momento em que Gray entrou no átrio central do museu, o dia da grande inauguração teria de ser adiado. Estava tudo ainda coberto de plásticos;
vários andaimes ocupavam os três andares por onde se estendera a remodelação. Umas escadarias de grande amplitude ligavam o primeiro andar ao segundo. No cimo, uma
imponente claraboia encontrava-se ainda forrada a papel.
Gray agarrou no trabalhador mais próximo, um carpinteiro cujo rosto se apresentava meio coberto por uma máscara.
- A saída! Onde é a saída mais próxima?
O homem franziu os olhos.
- A saída que dá para a Constitution Avenue está fechada. Têm de ir até o segundo andar. Dá para a entrada principal do Mall. - Apontou para a escadaria.
Gray olhou para Elizabeth, que acenou afirmativamente. Avançaram em grupo. Gray verificou o seu rádio de novo. Nada. Algo ou alguém devia estar a bloquear o seu
sinal.
Correram para as escadas e subiram até o segundo andar. O caos era menor aqui. O chão de mármore verde dava ares de ter sido colocado há bem pouco tempo, dele sobressaindo
inúmeras estrelas de prata incrustadas. Do pátio central, Gray conseguia ter uma ótima visão para as portas de vidro da saída do Mall. Precisava de tirá-los dali
antes de...
Demasiado tarde.
Um grupo de homens transportando armas de assalto apareceu no exterior da porta. Envergavam uniformes escuros com ombreiras.
Gray fez sinal a Kowalski e Elizabeth para se deterem.
Atrás deles, um rosnar ecoou do primeiro andar. Os trabalhadores gritaram surpreendidos.
- O que foi agora? - perguntou Kowalski.
Da entrada do Mall, soou um megafone.
- SEGURANÇA INTERNA! O EDIEÍCIO TEM DE SER EVACUADO IMEDIATAMENTE! POR FAVOR, DIRIJAM-SE PARA A SAÍDA PRINCIPAL!
- Por aqui - disse Gray.
Levou-os para a parte lateral, na direção da maior peça de arte existente neste piso. A instalação era uma bandeira abstrata, composta por quinze fitas de policarbonato
espelhado.
- Não podemos continuar a correr - disse Elizabeth.
- Não estamos a correr.
- Então estamos a esconder-nos? - perguntou Kowalski. - E os cães?
- Não estamos a correr ou a esconder-nos - assegurou-lhes Gray.
Passou pela bandeira luzidia. A sua superfície espelhada refletia uma visão prismática do museu. Aos bocadinhos, Gray viu o grupo armado criar um cordão impenetrável
ao longo da única saída.
Passando por um dos andaimes cheio de material e macacões de reserva, Gray agarrou no que precisava. Passou uns conjuntos a Kowalski. Ficou com o necessário para
si: uma lata de tinta e um frasco de diluente. Dirigiu-se para o corredor emoldurado pela bandeira abstrata. Kowalski leu o letreiro da galeria à entrada e assobiou
por entredentes.
- Pierce, o que está a pensar fazer?
Gray encaminhou-se para o núcleo das exposições mais valiosas do museu. Era a razão principal de toda a remodelação. Entraram num recinto escurecido. Várias cadeiras
sobressaíam alinhadas em frente a uma parede de vidro. Até o caos por detrás deles parecia ter ficado amortecido sob o peso do tesouro histórico preservado atrás
daquele vidro, um dos ícones mais importantes da nação. Estendido ao longo de um expositor inclinado. Jazia um pano de algodão e lã, com um quarto do tamanho de
um estádio de futebol. As cores tinham desvanecido, mas continuava a ser uma peça dramática da história americana, a bandeira estrelada que inspirara o hino nacional.
- Pierce...? - protestou Kowalski, começando a compreender. - E a Star-Spangled Banner.
Gray colocou a lata de tinta no chão e começou a abrir a tampa do frasco de diluente facilmente inflamável.
- Pierce... não está a pensar... nem sequer como uma distração.
Ignorando-o, Gray virou-se para Elizabeth.
- Ainda tem o isqueiro?
20h32
Sentado no gabinete de segurança do Parque Zoológico Nacional, Yuri sentiu o peso dos seus setenta e sete anos. Não havia andrógenos, estimulantes e cirurgias que
conseguissem disfarçar o peso do seu coração. Um medo entorpecido fazia com que os seus membros parecessem chumbo; a aflição vincara sulcos mais fundos no seu rosto.
- Vamos encontrar a sua neta - prometera-lhe o chefe de segurança. - O parque Já foi encerrado. Toda a gente anda à procura dela.
Yuri fora deixado no gabinete com uma Jovem loura que não devia ter mais do que vinte e cinco anos. Envergava o uniforme caqui de um empregado do zoo. O dístico
dizia TABITHA. Parecia nervosa na sua presença. sem saber como lidar com o .seu desespero. Apareceu vinda de trás da mesa.
- Gostaria de telefonar para alguém? Outro parente?
Yuri levantou a mão. Observou o seu rosto por breves instantes. As maçãs do rosto salientando a sua juventude... os anos que tinha pela frente. Apercebeu-se de que
seria pouco mais velho do que a garota quando saiu daquele camião trepidante na região montanhosa dos Cárpatos. Desejava nunca ter encontrado aquele acampamento
cigano.
- Quer usar o telefone? - perguntou.
Ele acenou lentamente.
- Da. - Não conseguia prolongar mais a situação. Já alertara Mapplethorpe, não tanto para lhe reportar a situação mas mais para obter cooperação das autoridades
policiais do distrito. Mas o homem andava distraído, entretido a procurar o que tinha sido roubado. Mapplethorpe mencionara algo acerca da filha do doutor Polk.
Mas Yuri já não queria saber. No entanto. Mapplethorpe prometera lançar o Alerta Amarelo pelo desaparecimento da criança. Todos os recursos do distrito e condados
vizinhos seriam alertados. Ela tinha de ser encontrada.
Sasha.
O rosto redondo e os olhos azuis brilhantes da garota encheram a sua visão. Ela nunca devia ter deixado o pé dele. Rezou para que se tivesse posto apenas a cirandar.
Mas, no meio de um parque cheio de animais selvagens, até o melhor cenário tinha os seus perigos. Pior ainda, será que alguém a tinha levado, raptado? No seu estado
atual, ela seria bastante domável. facilmente sugestionável. Yuri tinha a noção do número de pedófilos que andavam por aí.
Até tinham tido alguns problemas na Toca com alguns dos seus primeiros empregados. Tinham lidado com tantas crianças, demasiadas. Os erros tinham acontecido.
Mas nem todos os abusos tinham sido erros.
Assustou-se com este último pensamento.
Tabitha trouxe-lhe um telefone portátil.
Yuri abanou a cabeça e tirou o seu celular.
- Obrigado, mas é uma chamada internacional - explicou. - Para a Rússia. Para a avó. Prefiro usar o meu telefone.
Tabitha acenou e afastou-se.
- Vou dar-lhe alguma privacidade. - Entrou num gabinete contíguo.
Sozinho. Yuri marcou o número no seu celular internacional. Um pequeno chip desenvolvido pelos serviços de informações russos encobriria o sinal das várias torres
de celulares, tornando-o indetectável. assim como baralharia a comunicação.
Temera fazer esta chamada, mas já não conseguia aguentar mais tempo. A Toca precisava de ser alertada, mas ainda era de madrugada lá. Nem sequer quatro da manhã.
Contudo, a chamada foi prontamente atendida por uma voz seca e penetrante.
- O que é?
Yuri imaginou a mulher do outro lado da linha, a sua superior imediata, a doutora Savina Martov. Os dois tinham descoberto Juntos as crianças, começado a Toca em
equipa, mas os laços de Martov ao antigo KGB tinham-na colocado acima de Yuri no comando. Havia um ditado na Rússia; Ninguém abandona o KGB. E, apesar de tudo o
que os líderes ocidentais pudessem pensar, isso não excluía o atual presidente russo. O homem ainda se encontrava rodeado por ex-membros dos serviços de informações
soviéticos. Os grandes contratos continuavam a ir parar às mãos de antigos operacionais.
E a doutora Savina Martov não era exceção.
- Savina, temos um grande problema aqui - disse em russo.
Imaginou o rosto da mulher a ficar gelado. Tal como Yuri, também ela fora alvo de tratamentos hormonais, cirúrgicos e cosméticos, conseguindo ainda melhores resultados
do que Yuri. O seu cabelo ainda era escuro, as suas feições aparentavam poucos estragos. Podia passar por uma pessoa de quarenta anos. Yuri desconfiava porquê. Ela
não tinha de combater aquele nó de culpa que obstruía a garganta do russo. A certeza da sua visão e propósito resplandecia-lhe na cara. Só quando se olhava para
ela diretamente nos olhos é que esse engano era desfeito. Nenhum tratamento seria capaz de disfarçar a frieza calculista por eles irradiada.
- Ainda não encontrou o que nos foi roubado? - perguntou num tom ríspido. - Já ouvi dizer que o Polk foi eliminado. Então porque é que...?
- É a Sasha. Desapareceu.
Seguiu-se um longo silêncio.
- Savina, está a ouvir-me?
- Sim. Acabei de ser informada de outro desaparecimento por um dos funcionários do dormitório. E por isso que estou a pé tão cedo. Descobriram três camas vazias.
- Quem? Que crianças?
- O Konstantin, a sua irmã Kiska e o Pyotr.
Savina continuou a sua descrição, como estavam a decorrer as buscas na Toca, mas a sua voz começou a ficar cava, ecoando como se estivesse no fundo de um poço, enquanto
Yuri fixava o último nome.
Pyotr. Peter.
Era o irmão gémeo de Sasha.
- Quando? - quis saber. - Quando é que os três rebyonka desapareceram?
Savina suspirou asperamente.
- Ainda estavam deitados na cama aquando da última vistoria, segundo nos contou a funcionária de serviço. Por isso, não foi há muito tempo.
Yuri olhou para o relógio de pulso.
A mesma hora de Sasha.
Seria uma coincidência ou teria Pyotr pressentido que a sua irmã gémea estava em perigo? Será que o rapaz ficara em pânico? Mas Pyotr nunca dera sinal de possuir
tal talento antes. As suas pontuações de empada eram altas - especialmente com os animais -, mas nunca mostrara nenhuma das aptidões da irmã. No entanto, como gémeos,
eram mais chegados do que um irmão e uma irmã.
Com efeito, ainda partilhavam a sua própria língua especial, uma incompreensível linguagem de gémeos.
No momento em que Yuri levou o celular ao ouvido, suspeitou que algo de mais sinistro tivesse acontecido, que forças desconhecidas - possivelmente uma mão desconhecida
- estivessem a manipular os acontecimentos.
Mas quais?
Savina gritou com ele, para recuperar a sua atenção.
- Encontre essa garota ~ ordenou. - Antes que seja demasiado tarde.
Sabe o que pode acontecer dentro de dois dias.
Yuri sabia muito bem. Fora para isso que tinham trabalhado durante décadas, o motivo por que tinham praticado tantos atos de crueldade. Tudo para...Uma porta abriu-se.
Yuri virou-se. O chefe de segurança do zoo regressara. O seu rosto bronzeado patenteava um ar circunspecto, denotando uma grande preocupação.
Yuri falou ao telefone.
- Vou encontrá-la - disse firmemente, mas a promessa era mais para ele próprio do que para a sua superior gélida. Desligou e enfrentou o homem alto, mudando para
inglês. - A minha neta deu algum sinal de si?
- Lamento, mas não. Vasculhamos o parque. Até agora, nenhum sinal dela.
Yuri sentiu um aperto na garganta.
Uma hesitação surgiu na voz do chefe de segurança.
- Mas devo dizer-lhe uma coisa. Houve quem tivesse visto uma garota com características semelhantes à descrição que nos fez da sua neta a ser transportada para uma
van perto da saída sul.
Yuri levantou-se, de olhos bem abertos.
Um mão ergueu-se, apelando à paciência.
- A polícia distrital está a seguir essa pista. Pode ser um falso alarme. Não podemos fazer muito mais.
- Tem de haver mais.
- Lamento, senhor. Também fui informado, no caminho para aqui, de que alguém no FBI lhe tinha arranjado uma escolta. Deverão estar aqui dentro em breve. Vão levá-lo
ao hotel.
Yuri pressentiu a mão de Mapplethorpe neste último arranjo.
- Obrigado. Pela sua ajuda. - Yuri dirigiu-se à porta e pegou no puxador. - Preciso de... apanhar ar fresco.
- Claro. Há um banco lá fora.
Yuri saiu do gabinete de segurança. Vislumbrou o banco do parque, dirigiu-se a ele, mas, assim que ficou fora do alcance da janela do gabinete, passou pelo banco
e caminhou na direção da saída do parque.
Yuri não se podia colocar sob a alçada de Mapplethorpe. Nem sequer agora. O idiota sabia apenas uma fração daquilo que se estava a passar, o suficiente para manter
vivo o interesse das organizações de informações dos Estados Unidos. Não fazia a mínima ideia de como o mundo iria mudar nos próximos dias.
Teria de encontrar Sasha antes de Mapplethorpe o fazer.
E só havia uma maneira de fazer isso.
No momento em que saía do parque, irrompendo por um cordão policial, ligou o celular e requereu de novo a codificação. Tal como a anterior, esta chamada também foi
atendida prontamente, desta vez por um atendedor automático.
“Ligou para o centro de distribuição telefônica nacional da Argo, Inc. Por favor deixe uma mensagem...”
A Argo, Inc. era o disfarce dos Jason. O nome Argo fora escolhido em homenagem ao barco de Jasão da mitologia grega.
Yuri abanou a cabeça perante tal idiotice, enquanto esperava pelo sinal. Assassinara um dos seus há poucas horas. Agora precisava da ajuda da cabala secreta dos
cientistas americanos. E sabia como obtê-la. Remontando à Segunda Guerra Mundial, os dois lados tinham travado uma batalha clandestina pela supremacia tecnológica,
cada lado apoiado pelas suas respetivas unidades militares e comunidades de serviços de informações. As ferramentas da guerra não eram apenas intelectuais, envolvendo
igualmente meios mais abomináveis; sabotagem, coerção, chantagem. Mas, do mesmo modo, sendo eles homens e mulheres da ciência, cada lado operava independentemente
dos militares. Ao longo de várias décadas, acabaram por reconhecer duas coisas; podia haver ocasionalmente alguns pontos em comum entre eles. mas, mais importante,
existia uma barreira firme que nenhum dos lados se atrevia a ultrapassar.
Quando tal cenário surgiu, foi estabelecido um meio de comunicação, um botão de pânico. Falando ao telefone. Yuri deu este número codificado, seguido por um código
mundial que remontava à Guerra Fria.
- Pandora.
20h38
O fumo espraiava-se pelo recinto da galeria da Star-Spangled Banner.
Gray manteve o seu grupo entrincheirado no vestíbulo junto ao átrio central do museu. Tinham enfiado macacões de pintores por cima das suas roupas da rua e coberto
o rosto com máscaras. Gray também tinha espalhado alguma tinta pelas suas roupas.
Inclinou-se e olhou para a galeria da bandeira. O fumo queimava os seus olhos, mas conseguiu descortinar as chamas a bailarem e a comerem através das poças de diluente
que ele espalhara pelo chão de madeira da galeria. Um momento mais tarde, os extintores de emergência entraram em ação. A água foi lançada numa torrente dos esguichos
do teto. Um sinal de alarme soou com intensidade.
Gray aproveitou mais um momento para se certificar de que o expositor de vidro da bandeira continuava seco. Sabia que o expositor era uma câmara ambientalmente controlada
de propósito para preservar o ícone para as gerações futuras. Por agora, o expositor devia proteger a bandeira do fumo e da água.
Satisfeito com o fato de o tesouro estar a salvo. Gray virou a sua atenção para o átrio central. Novos gritos ecoaram no momento em que o fumo amedrontou os trabalhadores.
Os empreiteiros estavam já a espalhar a palavra de uma ameaça de bomba.
E agora o alarme de incêndio e o fumo.
Gray espreitou a saída do vestíbulo para o átrio.
Já informados pelos altifalantes para se dirigirem para a única saída, homens e mulheres corriam de um lado para o outro, empurrando-se entre si. Muitos empunhavam
ferramentas e mochilas. O pânico impeliu a multidão para as portas, onde homens armados procediam a uma busca sistemática Junto de cada trabalhador que saía. ainda
por cima sob o olfato de dois pastores alemães.
- Vamos - disse Gray.
Sob a cobertura de fumo e terror, os três Juntaram-se à multidão. Separaram-se para darem menos hipóteses de serem reconhecidos com os seus disfarces. No momento
em que se entrecruzaram com a multidão em pânico, foi como saltar para um mar tempestuoso de encontro a uma costa escarpada. Empurrado, esmurrado e acotovelado,
Gray continuava a observar os outros.
Os trabalhadores em evacuação precipitaram-se para as portas. Apesar da pressão, os homens armados mantinham um semblante de ordem lá fora. As buscas prosseguiam,
mas de uma forma mais apressada e ligeira. Os cães ladravam e puxavam as suas trelas, acirrados pelo barulho e confusão.
Gray segurou com força no saco. mantendo-o junto ao peito. Se fosse preciso, poderia avançar por entre a linha armada, como um defesa correndo velozmente para o
golo.
Num dos lados, Gray descortinou Elizabeth a ser empurrada para os braços de um dos guardas. Foi vistoriada com alguma brusquidão e incentivada a sair do local. Passou
por um dos cães, que ladrou e puxou pela trela. Mas não reconhecera o seu cheiro. A tinta fresca e o fumo também ajudaram a disfarçar o cheiro de Elizabeth. Afastou-se
do cordão de homens e viu-se no exterior, no crepúsculo do National Mall.
Do outro lado, Kowalski foi o próximo. Para ajudar o seu disfarce transportava uma lata de tinta em cada mão, que usava maioritariamente para afastar as pessoas
do caminho. Também foi revistado. Até as latas de tinta foram abertas.
Gary susteve a respiração. Nada de bom. O pânico não estava a diminuir a intensidade das buscas, conforme tinha pensado.
Passando a inspeção, Kowalski avançou para o Mall.
Gray empurrou a porta e deu de caras com a mão de um dos guardas.
- Mãos ao ar! - ordenou. O comando foi reforçado no momento em que outro guarda elevava uma arma na direção do seu peito.
Sentiu umas mãos a vistoriarem-no com ligeireza. Da cabeça aos pés. Ainda bem que se havia libertado do coldre que trazia no tornozelo e da arma no caixote de lixo
da galeria.
Contudo...
- Abra o saco!
Gray sabia que não havia nenhuma possibilidade de resistir. Tirou o saco e abriu o fecho de correr. Tirou de lá a única coisa que continha; uma pequena lixadeira
elétrica. O resto do saco foi agitado para se certificarem de que estava vazio - depois Gray foi impelido para o exterior.
Enquanto passava pelo cão a ladrar. Gray reparou num homem de pé, vestido de terno. Nada de armadura corporal. Tinha uns auriculares Bluetooth colocados numa orelha.
Estava a ditar ordens, visivelmente a tomar conta das operações. Gray também se lembrava de o ter visto no armazém do Museu de História Natural.
Passando por ele, Gray reparou nas credenciais afixadas no bolso do casaco.
DIA.
A Agência de Inteligência da Defesa.
Gray reparou no nome a letras grossas: MAPPLETHORPE.
Antes de chamar a atenção, Gray continuou a prosseguir na direção do Mall. Juntou-se com um ar circunspecto aos outros, já bem longe do museu e da confusão, apenas
um trio de trabalhadores reunindo-se. Gray ajeitou o microfone do rádio sob o seu queixo. Tentou o contato com o Comando da Sigma.
Finalmente, uma voz familiar respondeu.
- Gray! Onde estás?
Era Painter Crowe.
- Não tenho tempo para explicar - disse Gray. - Preciso de um carro sem distintivo na esquina da Fourteenth com a Constitution.
- Estarei lá.
Enquanto se dirigia para o ponto de recolha, Gray estendeu uma mão na direção de Kowalski.
O homem possante passou-lhe para a mão um dos baldes de tinta.
- Só de saber que estou a transportar esta coisa fico logo arrepiado.
Gray aceitou a lata de tinta com alívio. Submergido no fundo, jazia o estranho crânio. Gray apostara em como ninguém iria explorar com pormenor as profundezas da
grossa tinta de látex, especial mente transportada por um trabalhador cujo macacão estava coberto com a mesma tinta. Uma vez limpo o crânio, talvez conseguissem
obter algumas respostas.
- Conseguimos - disse Elizabeth com um suspiro de alívio.
Gray não comentou.
Ele sabia que tudo isto estava longe de estar terminado.
Do outro lado do mundo, um homem acordou num quarto escuro sem janelas. Algumas luzes diminutas brilhavam de uma bancada de equipamento vizinha. Reconheceu as luzes
e a batida intermitente de um eletrocardiógrafo. O seu nariz detetou um ligeiro cheiro a desinfetante e iodo. Confuso, sentou-se rapidamente. As poucas luzes flutuaram,
como um peixe atingido num mar noturno.
A visão movimentou algo enterrado. Uma memória.
... luzes em águas escuras...
Fez um esforço para se levantar, mas os seus cotovelos estavam presos às grades laterais da cama. Uma cama de hospital. Nem sequer conseguia libertar os braços da
roupa de cama. Fraco, voltou a deitar-se.
Terei tido um acidente?
Enquanto respirava fundo, sentiu alguém a observá-lo, um arrepio de aviso. Virando a cabeça, distinguiu vagamente o contorno de uma porta. Uma forma escura movimentava-se
na entrada. Um sapato roçou no ladrilho. Depois um suspiro furtivo. Numa língua estrangeira. Russo, a avaliar pela sonoridade.
- Quem está aí? - perguntou com voz rouca. A sua garganta ardia, como se tivesse engolido ácido.
Silêncio. A escuridão era mortífera.
Esperou, sustendo a respiração.
Depois um clarão de luz surgiu junto à porta. Cegava, doía. Tentou instintivamente levantar uma mão para cobrir os olhos, esquecendo-se de que os seus braços ainda
estavam presos à cama.
Piscou os olhos. O clarão provinha de uma pequena lanterna. O brilho revelou três pequenas figuras entrando no seu quarto. Eram todas crianças. Um rapaz - doze ou
treze anos - segurava na luz e escudava uma garota talvez um ou dois anos mais nova. Foram .seguidos por um rapaz mais pequeno, que não devia ter mais do que oito
anos. Aproximaram-se da sua cama como se estivessem a abeirar-se do covil de um leão.
O rapaz mais alto, claramente o líder, dirigiu-se ao mais novo. Murmurou qualquer coisa em russo, ininteligível, mas inquirida claramente num tom preocupado. Chamou
o rapaz mais novo por um nome. Parecia Peter. A criança acenou, apontou para a cama e sussurrou-lhe em russo com uma aura de certeza.
Mexendo-se na cama, pronunciou finalmente:
- Quem são? O que querem?
O rapaz mais alto recobriu-o com um olhar e rodeou a cama. O líder e a garota começaram a libertar as correias que prendiam os seus membros. O rapaz mais pequeno
afastou-se, de olhos bem abertos. Tal como os seus companheiros, a criança estava vestida com umas calças folgadas e uma camisola cinzento-escuro de gola alta, com
um colete por cima e um barrete de lã a condizer. O rapaz olhava diretamente para ele, um pouco intranquilo, como se estivesse a ler algo na sua testa.
Com os seus braços libertos, sentou-se. O quarto flutuou de novo, mas não tanto como da primeira vez. Passou com a mão pela cabeça, tentando recompor-se. Por debaixo
da sua mão, deu-se conta de uma zona macia e sem cabelo, bem como de uma linha rugosa de suturas atrás da orelha esquerda, confirmando a sua suposição. Teria sido
rapado para uma cirurgia? No entanto, ao percorrer com a mão a zona macia da cabeça, a sensação pareceu-lhe familiar, natural.
Antes de conseguir avaliar esta contradição, tirou a sua outra mão. Ou melhor, tentou. O seu outro braço terminava num coto junto ao pulso. O coração começou a bater-lhe
com força, em estado de choque. Ele devia ter tido um acidente horrível. Com a mão remanescente passou pelas delicadas suturas atrás da orelha, como se estivesse
a tentar ler em Braille. Era óbvio que se tratava de uma cirurgia recente. Mas o seu pulso estava endurecido e desde há muito sarado. No entanto, quase que sentia
os dedos desaparecidos. Sentia-os a enrolarem-se numa mão fantasma de frustração.
O rapaz mais alto afastou-se da cama.
- Venha - disse em inglês.
Da natureza clandestina da sua libertação e ações furtivas dos seus libertadores, pressentiu algum perigo. Vestido com uma roupa ligeira de hospital, colocou os
pés no chão ladrilhado e frio. O quarto vibrava com o movimento.
Esperem...
Um pequeno gemido de náusea escapou-se-lhe da garganta.
- Depressa - pressionou o rapaz mais alto.
- Espera - disse ele, inspirando uma golfada de ar para recompor o seu estômago. - Dizes-me o que se passa?
- Não há tempo. - O rapaz mais alto afastou-se. Era magro, todo braços e pernas. Tentava incutir um certo ar de autoridade, mas o tremor na sua voz foi suficiente
para trair a sua juventude e o seu terror. Tocou no peito, apresentando-se. - Menia zavut Konstantin. Tem de vir. Antes que seja tarde de mais.
- Mas... eu não...
- Da. Está confuso. Por agora, fique a saber que o seu zavut é Monk Kokkalis.
Libertando um som meio trocista, abanou a cabeça. Monk Kokkalis. O nome não lhe dizia nada. Enquanto tentava expressar o seu desacordo, para corrigirem o erro. apercebeu-se
de que não tinha munições, apenas um vazio no lugar onde o seu nome normalmente residia. O coração estreitou-se-lhe num nó apertado. O pânico tolheu-lhe a visão.
Como e que podia ser? Passou de novo com a mão pelas suturas. Será que tinha sofrido um golpe na cabeça? Uma contusão?
Procurou qualquer memória para além de acordar naquele quarto, mas não havia nada, uma terra de ninguém.
O que acontecera?
Olhou de novo para o eletrocardiógrafo ainda ligado ao peito pelos fios de chumbo. E, ao canto, havia um monitor de pressão arterial e um suporte para líquidos de
infusão intravenosa. Então, se conseguia identificar o que havia em seu redor, porque é que não conseguia lembrar-se do seu próprio nome? Procurou um passado, algo
que o ancorasse. Mas para além de acordar ali, naquele quarto escuro, não tinha qualquer memória.
O mais pequeno dos dois rapazes pareceu notar a sua aflição crescente. A criança aproximou-se. com os seus olhos azuis banhados pelo clarão da lanterna. Monk - se
era mesmo esse o seu nome - pressentiu que o rapaz sabia mais acerca dele do que ele próprio. Prova disso, o fato é que a criança pareceu ler o seu coração, pronunciando
as únicas palavras que o tiraria da cama.
O rapaz levantou uma mão pequena na sua direção, os dedos estendidos, acentuando a sua necessidade.
- Salve-nos.
5
5 de setembro, 21h30
Washington, D. C.
- Chernobyl? - perguntou Elizabeth. - O meu pai fazia na Rússia?
Olhou através da mesa do centro para os dois homens. Estava sentada numa poltrona de costas voltadas para uma janela larga que dava para a floresta de Rock Creek
Park. Tinham-se deslocado de carro até esta localidade, depois de terem fugido do museu. Gray usara as palavras casa segura, que pouco ou nada contribuíram para
se sentir segura. Era como uma cena extraída de um romance de espiões. Mas o encanto da casa - uma casa rústica, de dois andares, construída com tijolos escuros
e coberta por painéis de carvalho listrado e polido - ajudou a acalmá-la.
De alguma maneira.
Enxaguara-se depois de terem chegado, demorando alguns minutos a esfregar as mãos e passar com a água pela cara. Mas o seu cabelo continuava a cheirar a fumo e ainda
tinha as unhas cobertas de tinta. Depois disso, sentara-se durante cinco minutos na tampa da sanita, com o rosto coberto pelas mãos, tentando perceber alguma coisa
do que se tinha passado nestas últimas horas. Não se apercebera de que estava a chorar até sentir as suas mãos úmidas. Era demasiado. Ainda não tinha tido uma oportunidade
para digerir a morte do pai. Embora não duvidasse de que era verdade, não conseguira ainda aceitar a realidade.
Pelo menos até ter algumas respostas.
Foram essas questões que a fizeram sair finalmente da casa de banho.
Olhou para o recém-chegado através da mesa onde o café tinha sido servido. O homem foi apresentado como sendo o patrão de Gray, o diretor Painter Crowe. Ela observou-o.
As suas feições eram angulares, a sua compleição bronzeada.
Como antropóloga. conseguia detetar a herança do nativo americano no aspeto dos olhos - apesar do seu tom azul-glacial.
No meio do cabelo escuro destacava-se uma pequena listra branca sobre uma orelha, tal qual uma pena de garça enfiada.
Gray partilhava o sofá com ele, encurvado e verificando uma pilha de papéis em cima da mesa.
Antes de alguém poder responder à sua questão, Kowalski regressou da cozinha de meias calçadas. Os seus sapatos, acabados de engraxar, permaneciam na lareira apagada.
- Encontrei umas bolachas Ritz e uma coisa parecida com queijo. Não tenho bem a certeza. Mas tinham salame.
Inclinou-se para colocar o prato em frente de Elizabeth.
- Obrigada, Joe - disse, grata pelo simples e reconhecido gesto no meio de tanto mistério.
O homem grande corou um pouco em torno das orelhas.
- Não há problema - resmungou enquanto se endireitava. Apontou para o prato, parecendo ter-se esquecido daquilo que ia a dizer. Depois, com um abanar de cabeça,
retirou-se para inspecionar novamente os sapatos.
Painter endireitou-se, captando a atenção de Elizabeth.
- Em relação a Chernobyl, não sabemos porque é que o seu pai foi até lá. Na verdade, demos uma vista de olhos pelo passaporte. Não há qualquer registro de que tenha
visitado a Rússia, ou até reentrado nos Estados Unidos. Só podemos partir do princípio de que viajava com um passaporte falso. O último registro que temos das suas
viagens data de há cinco meses. Foi até a Índia. É a última informação que temos acerca das suas deambulações.
Elizabeth acenou com a cabeça.
- Ele ia lá muitas vezes. Pelo menos duas vezes por ano.
Gray endireitou-se ainda mais.
- A Índia? Por quê?
- Por uma bolsa de pesquisa. Como neurologista, estava a estudar a base biológica do instinto. Trabalhava com um professor de Psicologia na Universidade de Mumbai.
Gray olhou para o seu patrão.
- Vou verificar - disse Painter. - Mas Já ouvira falar do interesse do seu pai sobre o instinto e a intuição. Na verdade, era a base do seu envolvimento com os Jason.
Esta última frase foi dirigida a Gray, mas Elizabeth endireitou-se perante a menção da organização. Não conseguiu evitar o seu desagrado.
- Então sabem coisas acerca deles, os Jason.
Painter olhou para Gray, depois de novo para ela.
- Sim, sabemos que o seu pai andava a trabalhar para eles.
- Trabalhar? Diria que andava obcecado por eles.
- O que quer dizer com isso?
Elizabeth explicou como o trabalho com os militares se transformara numa paixão arrebatadora para o seu pai. Todos os Verões, ele desaparecia durante meses seguidos,
por vezes mais tempo. O resto do ano era dedicado às suas responsabilidades como professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Como tal, raramente estava
em casa. O que agudizou a relação entre os pais. As acusações transformaram-se em lutas. A mãe chegou mesmo a acreditar que o pai tinha um caso.
A tensão em casa só fez com que o seu pai se afastasse ainda mais. Um casamento sólido tomou-se numa ruína. A mãe, já de si uma alcoólica contida, ultrapassou os
limites. Quando Elizabeth tinha dezasseis anos, a mãe embebedou-se e atirou-se com o SUV da família para o Charles River. Nunca se soube se foi um acidente ou um
suicídio.
Mas Elizabeth sabia quem merecia ficar com o peso da culpa.
A partir desse dia raramente falou com o pai. Cada um deles enfiado no seu próprio mundo. Agora ele tinha partido, também. Para sempre. Apesar da sua perda não podia
deixar de sentir uma pequena chama de raiva para com ele. Até mesmo a sua estranha morte deixava imensas interrogações no ar.
- Acha que o seu envolvimento com os Jason teve alguma coisa a ver com a sua morte? - perguntou finalmente.
Painter abanou a cabeça.
- É difícil dizer. Ainda estamos no início da investigação. Mas consegui descobrir o nome do projeto militar sob regime de segurança que foi atribuído ao seu pai.
Chamava-se Projeto...
- ... Stargate - concluiu Elizabeth por ele. Ficou satisfeita com a cara de espanto do homem.
Kowalski sentou-se mais direito junto à lareira.
- Ei, vi um filme sobre isso... com extraterrestres e tudo o mais, certo?
- Não é esse Stargate, Joe - respondeu ela. - E não se preocupe, senhor Crowe. O meu pai não descurou o seu teor ultrassecreto. Ouvira-o mencionar o projeto pelo
nome uma série de vezes. Depois, uma década mais tarde, li os relatórios já sem regime de segurança da CIA, divulgados através da Lei da Liberdade de Informação.
- De que é que trata esse projeto? - perguntou Gray.
Painter apontou com a cabeça para a pilha de papéis em cima da mesa.
- Todos os pormenores estão ali, remontando à Segunda Guerra Mundial. Foi oficialmente fiscalizado pelo segundo maior grupo do país, o Instituto de Investigação
de Stanford, que, a um nível inferior, ajudaria a desenvolver tecnologias de reserva. Mas, em 1973, o instituto foi contratado pela CIA para investigar a exequibilidade
de usar a parapsicologia para ajudar na acumulação de inteligência.
- Parapsicologia? - Gray ergueu um sobrolho.
Painter acenou afirmativamente.
- Telepatia, telequinésia..., mas, sobretudo, concentraram-se na visão remota, usando indivíduos para espiarem páginas na Internet e atividades a distâncias vastas,
usando apenas o poder das suas mentes. Do tipo telepatia à distância.
Kowalski deixou transparecer o seu escárnio do outro lado da sala.
- Espiões psíquicos.
- Por mais estranho que isso possa parecer, têm de compreender que durante os dias mais negros da Guerra Fria, qualquer vantagem hipotética da parte dos Soviéticos
tinha de ser acompanhada pelos nossos serviços de informações. Nenhum fosso tecnológico podia ser tolerado. A União Soviética estava a dar tudo por tudo. Para os
Soviéticos, a parapsicologia era um campo multidisciplinar, abarcando a biônica, a biofísica, a psicofísica, a fisiologia e a neurofisiologia.
Painter acenou para Gray. Pelo ar desconfiado dos seus olhos, parecia não estar lá muito convencido, mas ele continuou a ouvir em silêncio. Ela fez o mesmo.
- Segundo os relatórios da CIA, os Soviéticos tinham começado a obter resultados. Depois, em 1971, o programa soviético deixou de estar subitamente sob o regime
de segurança. A informação secou. Tudo o que conseguimos averiguar foi que a investigação continuou na Rússia, financiada pelo KGB. Tínhamos de responder em gênero
ou seríamos deixados para trás. Por isso, o Instituto de Investigação de Stanford foi contratado para investigar.
- E quais foram os resultados? - perguntou Gray.
- Confusos - reconheceu Painter.
Elizabeth também lera acerca dos relatórios que tinham deixado de estar sob o regime de segurança.
- Na verdade, o projeto teve pouco sucesso.
- Isso não é completamente verdade - contrapôs Painter. - Os relatórios oficiais revelaram que a visão à distância produziu resultados úteis em quinze por cento
das vezes, resultados acima da probabilidade estatística. E depois, houve os casos excecionais. Como o do artista nova-iorquino, Ingo Swann, que foi capaz de descrever
edifícios com todo o pormenor, só com os dados de longitude e latitude. Os seus hits, segundo alguns oficiais, atingiram um patamar de oitenta e cinco por cento.
Painter deverá ter lido a dúvida permanente nos olhos deles. Bateu na pilha de papéis.
- Os resultados do Instituto de Investigação de Stanford foram reproduzidos em testes realizados em Fort Meade e no Laboratório de Investigação de Anomalias de Engenharia
de Princeton. Além disso, houve vários sucessos de monta. Um dos casos mais citados envolveu o rapto e salvação do general-brigadeiro James Dozier. Segundo o médico
encarregado do projeto, um
observador à distância descortinou o nome da cidade onde o general estava detido, enquanto outro descreveu pormenores do edifício, incluindo a cama onde estava acorrentado.
Tais resultados não podem ser prontamente negligenciados.
- Mas foram - disse Elizabeth. - Segundo entendi, a investigação foi interrompida em meados de 1990. O programa foi desmantelado.
- Não inteiramente - acrescentou Painter criticamente.
Antes de poder explicar, Gray interrompeu.
- Mas, retomando o fio à meada, o que é que isto tudo tem a ver com os Jason?
- Ah, era aí que eu queria chegar. Parece que o Instituto de Investigação de Stanford, tal como os Soviéticos, começaram a alargar os parâmetros da sua investigação,
estendendo-a a outras disciplinas científicas.
- Como a neurofisiologia - disse Gray. - O trabalho do doutor Polk.
Painter acenou afirmativamente.
- Embora o projeto tivesse recebido a classificação de ultrassecreto, contrataram os serviços dos dois Jason que estavam a fazer investigações paralelas. Um deles
era o teu pai, Elizabeth. O outro era o doutor Trent McBride, um engenheiro biomédico especializado em fisiologia cerebral.
Elizabeth conhecia o nome. Lembrava-se das visitas tardias, do pai sequestrado no seu escritório, rodeado de estranhos, incluindo o doutor McBride. Era uma pessoa
difícil de esquecer, com a sua voz sonora e vociferante, mas de índole benevolente. Também lhe trazia presentes quando ela era mais nova. As primeiras edições de
Nancy Drew.
- Tentei contactar o doutor McBride - continuou Painter. - E fiquei a saber que ninguém ouviu falar dele nestes últimos cinco meses.
Elizabeth .sentiu um arrepio. Cinco meses.
- Há precisamente o mesmo tempo da última viagem do meu pai à Índia.
Partilhou um olhar preocupado com Gray.
O que se passava?
21h40
Yuri Raev saiu do elevador no porão da unidade de pesquisa. Depois de ter recebido a chamada, foram precisos quarenta e cinco minutos para chegar ao Instituto de
Investigação Militar Walter Reed, em Maryland. O edifício albergava mais de quarenta e cinco mil metros quadrados de espaço laboratorial, grande parte dele concebido
para investigação BL-3, significando que lidava com todo o tipo de doenças infeciosas, Yuri usara o código de pânico - Pandora - para chegar aos Jason. Foram precisos
mais dez minutos para lançar um alerta àqueles que procurava, uma cabala interna da organização que tinha cooperado com os Russos no projeto para o grande hem de
ambas as nações. Yuri esperara contar com a colaboração dos Jason em seu favor, manter Sasha fora do controle de Mapplethorpe. Os Jason, com as suas várias formações
científicas, compreenderam o delicado que era lidar com a criança, tanto a nível fisiológico como psicológico.
Mapplethorpe, por outro lado. era bastante temerário, tinha ambições políticas e um autointeresse desmesurado. Yuri não confiou no homem.
Com Sasha desaparecida, Yuri precisava de aliados em solo americano.
Fora instruído a encontrar-se com o doutor James Chen, um neurologista e membro do círculo interno, para planear uma estratégia.
Seriam coadjuvados por um outro.
Alguém que podia ajudar, foi informado criticamente.
Yuri recebeu direções específicas e permissão para se dirigir ao local do encontro. Embrenhou-se pelo corredor. A esta hora, todas as portas estavam fechadas. Havia
poucos laboratórios instalados neste nível. Enquanto caminhava, sentiu um cheiro a lixívia e um aroma almiscarado. Atrás de uma das portas, ouviu um ligeiro assobio
familiar de algo simiesco. Era aqui que a unidade devia albergar os animais vivos que serviam de cobaias. deserta de pessoal a esta hora.
Verificou o número da sala.
B-2 340.
Encontrou a porta com um painel de vidro fosco e bateu. Uma sombra passou pela vidraça e a porta abriu-se prontamente.
- Doutor Raev. Obrigado por ter vindo.
Yuri mal viu o Jovem asiático que, de imediato, se virou. Usava uma bata de laboratório branca sobre umas calças de ganga azuis. Mantinha um par de óculos em cima
da cabeça, como se estivessem esquecidos. A sala tinha uma mesa de trabalho encostada a uma parede e, no lado oposto, via-se uma bancada com gaiolas de aço inoxidável.
Alguns narizes pretos com bigodes espreitavam por entre as grades. O raspar das unhas ecoava das gaiolas. Ratos de laboratório. Só que estes não tinham pelos, excetuando
os bigodes.
O doutor Chen conduziu-o através de uma porta aberta. Deparou-se com um gabinete desordenado: uma mesa de aço coberta de revistas, um quadro branco contendo listas
de coisas para fazer e uma estante cheia de frascos de vidro para conservação de espécimes.
Yuri ficou surpreendido ao ver uma figura familiar destacando-se atrás da secretária com um celular ao ouvido. O homem, na casa dos cinquenta, deixava transparecer
a sua herança escocesa na forma imponente da sua estrutura, de onde se destacava um rosto avermelhado e uma barba ruiva e grisalha muito bem aparada Junto a um maxilar
saliente. Era o chefe da cabala de Jason contratada para apoiar os Russos - e também um colega e amigo de longa data de Archibald Polk.
O doutor Trent McBride.
- Ele acabou de chegar - disse o homem ao telefone, acenando na direção de Yuri. - Informarei toda a gente dentro de uma hora.
McBride desligou o celular, levantou-se e estendeu a mão.
- Tenho tido informações suas, Yuri. Considerando o estado frágil da garota, é uma prioridade urgente. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudar a
encontrar a garota.
Yuri apertou a mão e sentou-se. Apesar de atemorizado, sentiu-se aliviado por encontrar McBride por estas bandas. Por debaixo da sua vanglória de pessoa tolerante
e generosa, o homem tinha uma mente prática e acutilante.
- Então compreende - disse Yuri - como é vital reavê-la de novo. E depressa.
Ele concordou.
- Quantas horas consegue a garota sobreviver sem medicação?
- Trinta e duas.
- E quando é que foi a sua última injeção?
- Há sete horas - respondeu amedrontado.
Isso deixa Sasha com pouco mais de um dia para ser encontrada.
- Então teremos de nos mexer depressa - disse McBride. - Como deve calcular, o Mapplethorpe já me tinha contactado. Na verdade, é por isso que estou aqui em pessoa.
- Pensei que estava em Genebra. Não decidiu manter-se discreto? Permanecer escondido?
- Só até as questões com o Archibald estarem resolvidas. - Os seus olhos endureceram ligeiramente quando olhou para Yuri. - O que parece ser verdade. Embora o resultado
pudesse ter sido melhor. Ele era meu amigo.
- Sabe tão bem como eu que o doutor Polk não sobreviveria por muitos mais dias. Tive de fazer o que era necessário.
McBridc parecia um pouco aliviado.
- E, se bem se lembra - acrescentou Yuri - comecei por votar contra uma eventual abordagem ao doutor Polk.
McBride afundou-se na cadeira com um rangido.
- Pensei seriamente que o Archibald fosse mais disciplinado, especialmente quando viu o projeto em primeira mão. No final de contas, era uma extensão do trabalho
de toda a sua vida. E, considerando a ameaça que colocou, a única outra opção era...
De novo, um triste encolher de ombros.
O doutor Polk chegara demasiado perto do cerne do projeto de investigação.
Mais perto do que McBride sabia. Só lhes restavam duas opções: recrutá-lo
ou eliminá-lo.
O recrutamento falhou... desastrosamente.
Levado à Toca, o homem acabara por escapar com informação valiosa. Não tinham outra hipótese senão eliminá-lo.
- Lamento o que aconteceu ao Archibald - disse Yuri.
E lamentava de fato. A morte do doutor Polk, apesar de ser uma necessidade trágica, era ainda uma perda profunda. Sozinho, o professor conseguira bastante, até aproximar-se
daquilo que os Russos tinham mantido em segredo dos Americanos. Por fim, ambos os lados haviam subestimado os conhecimentos do doutor Polk.
Quer antes de o terem raptado quer depois.
Yuri continuou.
- Em relação à garota desaparecida...
McBride interrompeu.
- Presumo que ela seja um das suas cobaias Omega.
Ele acenou afirmativamente.
- Testada ao nível do percentil noventa e sete. Ela é vital para o nosso projeto. Para o nosso trabalho. Temo que Mapplethorpe não compreenda o equilíbrio delicado
que é necessário para manter a cobaia Omega viva e em funcionamento.
McBride esfregou a cana do nariz.
- Durante a conversa telefônica que tive com ele, Mapplethorpe chegou mesmo a sugerir que talvez pudéssemos adquirir a criança para nós.
- Desconfiei que ele tentasse uma coisa dessas.
Atrás de Yuri, a porta para o gabinete exterior abriu-se. Ouviu o doutor Chen cumprimentar alguém, de uma forma rígida e formal.
Yuri rodopiou, espantado por ver o alvo da sua discussão aparecer à porta. As feições moles de Mapplethorpe pareceram ainda mais sérias do que o habitual. Um arrepio
de medo invadiu o corpo de Yuri.
McBride levantou-se.
- John, estávamos mesmo agora a falar de si. A sua equipe teve alguma sorte em conseguir o crânio aumentado?
- Não. Inspecionamos os dois museus.
- Estranho - disse McBride, franzindo as sobrancelhas de preocupação. - E no que toca à garota?
- Temos helicópteros percorrendo todo o perímetro da cidade, seção por seção, a partir do zoológico. Ainda não há rastro.
Yuri centrou-se nesta última parte da informação.
- Rastro... qual é o aparelho de detecção?
McBride contornou a mesa. Estendeu uma mão fechada a Yuri. Depois abriu-a, expondo um pequeno objeto que tinha na mão.
Pouco mais largo do que a cabeça de um alfinete.
Yuri teve de se inclinar para vê-lo.
- Maravilhas da nanotecnologia - disse McBride. - Um microtransmissor passivo com um atenuador de disparo de impulsos, tudo encaixado numa capa de polímero estéril.
Durante a minha última visita à Toca, consegui injetá-los em todas as crianças.
Yuri nada sabia destes implantes; mais uma vez não o informavam.
- Savina aprovou esses detectores?
Olhou e viu McBride erguer uma sobrancelha para ele. Certamente que é mais esperto do que isso. doutor Raev, parecia querer dizer.
Yuri percebeu o que americano insinuava. Savina nada sabia do assunto. McBride injetara as crianças - em segredo, sem o conhecimento de ninguém. Teve amplo acesso
às crianças, mas sempre enquanto era monitorizado. Yuri observou o tamanho do microtransmissor. Era pequeno o suficiente para ter sido colocado de múltiplas maneiras.
Por que McBride...?
A cabeça de Yuri percorreu todas as possibilidades, implicações e consequências. McBride devia ter colocado os aparelhos em todas as crianças. Uma vez implantados,
tudo o que tinha a fazer era arranjar o cenário adequado para fazer com que uma ou mais crianças saísse do ninho.
Yuri imaginou o rosto de Archibald Polk. A percepção avassalou-o como um golpe no plexo solar.
- Não passou tudo de uma artimanha - deixou escapar Yuri. - A fuga do doutor Polk...
McBride sorriu num gesto de confirmação.
- Muito bem.
A sombra de Mapplethorpe caiu sobre ele como um peso físico.
Yuri bancava idiota. Olhou para McBride.
- Você estava na Toca quando Archibald fugiu. Você o ajudou a fugir.
Um aceno de confirmação.
- Precisávamos atrair, de alguma forma, uma das suas cobaias Omega para o exterior.
- Você usou o doutor Polk como isca. O seu próprio amigo e colega.
- Uma necessidade, acho.
- Archibald... Archibald sabia que estava sendo usado?
McBride suspirou com uma dor na sua voz.
- Acho que deve ter suspeitado... embora não tivesse grande escolha. Morrer ou enfrentar as dificuldades. Por vezes, temos de ser patriotas, queiramos ou não. E
devo dizer que ele se saiu bem. Quase que atravessa a marca de gol.
- Tudo isto para raptar uma criança?
McBride esfregou o nariz.
- Desconfiávamos que vocês, russos, escondiam alguma coisa...
Yuri manteve o rosto passivo. McBride tinha razão, mas não fazia a mínima ideia da dimensão do que estava escondido.
- Vamos usar esta criança - continuou - para iniciar o nosso próprio programa aqui nos Estados Unidos. Para estudar com mais pormenor o que fizeram à criança. Apesar
das nossas constantes inquirições, o vosso grupo não se apresentou com uma explicação cabal. Tem estado a reter informação importante desde o início.
E eles tinham - não só informação. como planos futuros.
Yuri perguntou em voz alta:
- E os medicamentos da Sasha?
- Trataremos disso. Com a sua cooperação.
Yuri abanou a cabeça.
- Nunca.
- Receava que dissesse isso.
Um piscar de olho de McBride chamou a atenção de Yuri por cima do seu ombro.
Mapplethorpe tinha uma arma na mão.
Disparou à queima-roupa.
21h45
Gray não era pessoa para suportar coincidências. Dois cientistas no mesmo projeto desaparecidos ao mesmo tempo. Depois um aparece em Washington, radioativo e às
poitas da morte.
Gray massajou as suas têmporas doridas.
- Elizabeth, parece-me que tudo isto está de alguma forma relacionado com a investigação do seu pai.
Painter acenou.
- Mas a questão é como? Se tivéssemos mais pormenores... talvez algo que não esteja nos registros do seu pai.
A questão ficou no ar.
Elizabeth olhou para o colo. Mantinha as mãos fortemente apertadas. Pareceu finalmente notar a tensão reinante e abriu os dedos, estirando-os um pouco.
Murmurou vagarosamente.
- Não sei. Estes últimos anos... não falávamos muito. Ele não ficou nada contente por eu ter ido para antropologia. Queria que eu seguisse a sua... - Ela abanou
a cabeça.
- Esqueçam.
Gray esticou-se, encheu uma caneca de café quente e passou-lha. Ela aceitou-a com um aceno. Não bebeu logo, mantendo a caneca entre as mãos, para as aquecer.
- O seu pai não deve ter ficado lá muito triste com a escolha de carreira que fez - sugeriu Gray. - Arranjou-lhe um lugar de investigação nesse museu na Grécia.
Eia abanou a cabeça.
- O seu apoio não foi tão altruísta como parece. O meu pai esteve sempre muito interessado no oráculo de Delfos. Essas mulheres proféticas encaixavam-se nos seus
estudos sobre a intuição e o instinto. O meu pai chegou a acreditar que havia algo inerente a estas mulheres, algo que partilhavam. Uma associação genética. Ou uma
anormalidade neurológica partilhada. Por isso, como vêm, o meu pai arranjou-me esse lugar em Delfos só para que eu pudesse ajudá-lo na sua investigação.
- Mas que tipo de investigação é que ele andava a fazer exatamente? - perguntou Gray, encorajando-a a falar. - Tudo o que souber poderá ser-nos útil.
Ela suspirou.
- Posso contar-vos o que despoletou a obsessão do meu pai pela intuição e instinto. - Ela olhou para um e para o outro. - Algum de vocês já ouviu falar na primeira
experiência feita pelos Russos no campo da intuição?
Eles abanaram as cabeças.
- Foi uma experiência horrível, mas tinha a ver com a linha de investigação neurofisiológica seguida pelo meu pai. Há algumas décadas, os Russos separaram uma gata
dos seus filhotes. Depois enfiaram as crias num submarino. Enquanto monitorizavam os sinais vitais da gata, os mergulhadores russos mataram um dos seus filhotes.
No momento exato em que isto aconteceu, o coração da mãe acelerou e a sua atividade cerebral registrou um sofrimento acentuado. A gata começou a ficar agitada e
confusa. Fizeram o mesmo com os outros gatinhos nos dias seguintes. Sempre com os mesmos resultados. Embora separada pela distância, a mãe parecia pressentir a morte
dos filhos.
- Uma forma de instinto maternal - disse Gray.
Elizabeth acenou afirmativamente.
- Ou intuição. Enfim, para o meu pai, isto era uma prova verificável de alguma conexão biológica. Centrou a sua investigação na procura de uma base neurológica para
este estranho fenômeno. Por fim, começou a trabalhar com um professor na Índia, que estava a estudar capacidades semelhantes entre os iogues místicos desse país.
- Que capacidades? - perguntou Painter.
Elizabeth bebeu um gole de café quente. Abanou ligeiramente a cabeça.
- O meu pai começou a ler histórias curiosas de pessoas com talentos mentais especiais. Excluiu os loucos e charlatães, e procurou outros casos com algumas hipóteses
de comprovação, aqueles casos raros substanciados por verdadeiros cientistas. Como Albert Einstein.
Gray não disfarçou a sua surpresa.
- Einstein?
Um aceno.
- Na viragem do século, uma mulher indiana chamada Shakuntala foi levada a várias universidades espalhadas por todo o mundo para demonstrar as suas estranhas capacidades.
Ela não devia ter mais do que o equivalente ao ensino secundário, mas possuía um talento inexplicável para a matemática. Fazendo cálculos de cabeça de uma forma
surpreendente.
- Alguma forma de talento sábio? - perguntou Painter.
- Mais do que isso, na verdade. Com um giz na mão. a mulher começava a escrever a resposta a uma pergunta antes de esta ter sido sequer formulada. Até Einstein teve
conhecimento destes seus dotes. Colocou-lhe uma questão que ele próprio demorara três meses a resolver, envolvendo uma série de etapas complicadas. De novo, antes
de ele poder acabar de fazer a pergunta, ela estava já a escrever a resposta, uma solução que cobria toda a largura do quadro. Ele perguntou-lhe como é que ela era
capaz de fazer aquilo, mas ela não sabia, dizendo que os números começavam a aparecer defronte dos seus olhos e que ela limitava-se a escrevê-los.
Elizabeth olhou para eles. esperando claramente uma atitude de descrença. Mas Gray limitou-se a acenar para que ela continuasse. A sua permissão pareceu irritá-la,
como se Gray, ao consentir tais histórias, pudesse estar de algum modo a justificar algo dentro de si.
- Houve outros casos, também - continuou. - De novo na Índia. Um rapaz que puxava um riquixá em Madras. Ele conseguia responder a questões matemáticas sem sequer
ouvir a pergunta. A sua explicação era que ficava num grande estado de ansiedade sempre que alguém com uma questão matemática se abeirava dele. E a resposta aparecia
perfilada na sua cabeça “como soldados”. Foi levado até Oxford, onde foi testado. Para provar o seu talento, respondeu a questões matemáticas irresolúveis na altura.
Oxford registrou os seus resultados. Décadas mais tarde, quando níveis superiores de matemática foram alcançados, as suas respostas foram dadas como corretas. Mas,
nessa altura, o rapaz já tinha morrido de velhice.
Elizabeth pousou a caneca de café.
- Por mais surpreendentes que estes casos possam parecer, também frustravam consideravelmente o meu pai. Ele precisava de testar em cobaias vivas. Por isso, ao continuar
a coligir estas histórias curiosas, foi-se deparando com os casos mais intrigantes existentes na Índia. Entre os seus iogues e místicos. Na altura, outros cientistas
estavam já a descobrir a base
fisiológica para muitas das capacidades surpreendentes dos iogues. Como suportar o frio intenso durante dias, ajustando o fluxo sanguíneo nos seus membros e pele.
Ou jejuando durante meses baixando a taxa de metabolismo basal.
Gray acenou. Ele estudara muitos dos ensinamentos desses tais iogues. Era tudo uma questão de controle da mente, de aproveitar funções corporais consideradas involuntárias.
- O meu pai embrenhou-se na história e língua indiana, incluindo os antigos textos védicos de profecias. Procurou outros iogues de talento e começou a testá-los:
testes sanguíneos, electroencefalogramas, mapeamento cerebral, até testes de DNA para traçar a linhagem dos indivíduos mais talentosos. Por fim, procurou provar
cientificamente que havia uma base orgânica no cérebro para aquilo que os Russos tinham demonstrado com a gata.
Painter afundou-se no sofá.
- Por isso é que foi contratado para o projeto Stanford. A sua investigação encaixava-se perfeitamente nos objetivos do instituto.
- Mas porque é que o meu pai seria assassinado por causa disto? Já passaram vários anos. - Os seus olhos cruzaram-se com os de Gray. - E o que e que o estranho crânio
tem a ver com isto tudo?
- Ainda não sabemos - respondeu Painter mas, amanhã de manhã, devemos saber mais sobre o crânio do que agora.
Gray esperou que ele tivesse razão. Uma equipe de peritos foi chamada à Sigma para examinar o estranho objeto. Fora com alguma relutância que Gray permitira que
o crânio fosse levado para o comando central. Pressentindo que era aí que residia a chave do mistério, odiava tê-lo fora de vista.
Um bater na porta veio pôr um fim às suas discussões.
Painter deu um pulo; Kowalski levantou-se, com um dos sapatos na mão.
Gray pôs-se também de pé.
Dois guardas à paisana tinham sido colocados no exterior da casa. Se houvesse algum problema, teriam comunicado por rádio. Gray abriu o coldre e tirou de lá a pistola
semiautomática. Equipados com rádios, porque é que um dos guardas havia de estar a bater à porta?
Fez sinal para que os outros recuassem e aproximou-se da entrada. Pôs-se de lado e dirigiu-se a um pequeno monitor de vídeo dividido em quatro ângulos de visão,
cada um deles reproduzindo o que se passava lá fora a partir de câmeras exteriores. O ângulo superior esquerdo mostrava uma visão do alpendre.
Duas figuras permaneciam de pé, a dois passos da porta.
Um homem forte envergando um impermeável vermelho dava a mão a uma criança pequena. Uma garota. Com uma fita no cabelo e um pouco inquieta. Gray não vislumbrou qualquer
tipo de ameaça no modo como o homem se apresentava. Na sua outra mão sobressaía uma folha de papel grossa. Talvez um envelope. A figura inclinou-se para o fundo
da porta.
Gray sentiu alguma tensão, mas era apenas uma folha de papel amarelo. O homem fê-la deslizar por baixo da porta. A folha resvalou por entre o chão de madeira encerado
da entrada. Foi parar aos pés de Gray.
Ele olhou para baixo, para os rabiscos de uma criança a lápis preto. Revelando uns traços rudes mas incisivos, representava a sala principal da casa segura. Lareira,
cadeiras, sofá. Exatamente como estava decorada. Quatro figuras estavam também representadas. Duas sentadas no sofá, uma numa cadeira. Uma figura maior estava inclinada
junto à lareira com um sapato na mão e só podia ser Kowalski.
Era um desenho feito por uma criança da sala onde estavam.
Gray olhou novamente para o monitor de vídeo.
Um movimento captou a sua atenção para os outras telas das três câmeras exteriores. Vários homens apareceram, também eles vestidos com impermeáveis. Gray viu um
guarda, depois o outro aparecer, sob a ameaça de uma arma.
Kowalski pôs-se ao lado de Gray, depois de ter atravessado o recinto em silêncio, de meias calçadas. Observou igualmente a tela, depois suspirou.
- Ótimo - comentou Kowalski. - O que vamos fazer? Colocar as moradas dos seus esconderijos na Internet?
Lá fora, os guardas foram forçados a ajoelharem-se.
A casa estava cercada.
Estavam armadilhados.
Do outro lado do mundo, o homem chamado Monk procurava o seu próprio caminho para a liberdade.
Enquanto as três crianças vigiavam a porta do quarto de hospital, Monk enfiou-se dentro de um grosso macacão de brim azul-escuro, a condizer com a camisa de mangas
compridas que tinha vestido. Era difícil fazê-lo só com uma mão. Na cadeira restava apenas um barrete de lã preto e um par de meias grossas. Enfiou o barrete na
cabeça rapada e colocou as pesadas meias, depois as botas um pouco Justas, mas com um cabedal já gasto e quebrado pelo uso.
A privacidade permitiu a Monk reunir a sua sanidade mental, embora não tivesse contribuído muito para encher o vazio da sua vida. Ainda não se conseguia lembrar
de nada para além de ter acordado neste lugar. Mas, pelo menos, o esforço de se vestir ajudara-o a ganhar maior firmeza nos pés.
Juntou-se ao mais velho dos rapazes. Konstantin, à porta, que era de aço e tinha uma barra de proteção no exterior. A robustez, da porta só vinha confirmar que tinha
estado prisioneiro e que se tratava de uma fuga.
O mais jovem do trio, Pyotr, pegou na mão de Monk e levou-o pelo corredor, para longe das luzes do posto de enfermaria. Lembrou-se do pedido inicial do rapaz.
Salve-nos.
Monk não compreendeu. Do quê? A garota, que ele ficara a saber que se chamava Kiska, conduziu-os até uma escadaria escura, iluminada por um letreiro em néon vermelho.
Passando por baixo, na direção das escadas, Monk olhou para as letras do sinal.
Cirílico.
Tinha de estar na Rússia. Apesar da sua falta de memória, sabia que não pertencia aqui. Os seus pensamentos eram em inglês. Sem sotaque inglês. Isso significava
que tinha de ser americano, não é verdade? Se conseguia reconhecer isso tudo, porque é que não...
Uma cascada de imagens cegou-o subitamente, instantâneos gelados de uma outra vida, interpondo-se na sua cabeça como flashes de uma máquina fotográfica...
... um sorriso... uma cozinha com alguém de costas viradas para ele... a ponta de aço de um machado afiado brilhando através do céu azul... luzes erguendo-se das
profundezas da água escura...
Depois tudo desapareceu.
A sua cabeça doía-lhe. Tentou apoiar-se no corrimão das escadas e, instintivamente, agarrou-o com o seu membro amputado. O antebraço cicatrizado escorregou ao longo
do corrimão. Mal conseguia equilibrar-se. Olhou para baixo, para o .seu coto, e lembrou-se de um dos flashes de memória.
...a ponta de aço de um machado brilhando através do céu azul.
Fora assim que acontecera?
A frente, as crianças apressavam-se a descer as escadas. Exceto o rapaz mais novo, Pyotr. Pyotr ainda estava de mãos dadas a ele. Olhou para Monk com uns olhos tão
azuis que pareciam quase brancos. Dedos pequenos apertaram os seus, reconfortantes. Um puxão gentil impeliu-o para a frente.
Seguiu os outros.
Não encontraram ninguém nas escadas e saíram por uma porta dos fundos para uma noite sem luar e nublada. O ar estava um pouco fresco e úmido. Monk respirou fundo,
abrandando o bater do seu coração.
O barulho repetitivo do gerador inundou o espaço. Monk observou o tamanho e largura do hospital, estendendo-se por alas baixas e abrangendo duas torres de cinco
andares.
- Venham. Por aqui - disse Konstantin, tomando agora a liderança.
Apressaram-se a descer uma rua estreita e escura de paralelepípedos entre o hospital e um muro da altura de dois andares que ficava à sua esquerda. Monk olhou para
cima, procurando situar-se. Algumas lâmpadas brilhavam do outro lado do muro, iluminando os telhados de edifícios escondidos. Atingiram uma esquina e deixaram para
trás o recinto fechado. O chão passou a ser de pedra grosseira, escorregadio devido ao orvalho. Não havia luzes do lado de trás. Monk não conseguia ver mais nada
para além do muro que seguiam, construído em blocos de cimento. Percorreu--o com a mão enquanto corriam. A avaliar pela sua consistência rugosa e camada irregular
de tijolos, devia ter sido construído à pressa.
Monk ouviu um uivo assustador ecoando por cima do muro. Este foi seguido por latidos abafados e gritos reprimidos.
Os seus pés abrandaram. Animais. Seria uma espécie de zoo?
Como se o rapaz alto à frente tivesse lido os seus pensamentos, Konstantin olhou para trás e pronunciou a palavra reserva e acenou para que continuasse em frente.
Reserva?
Atingiram o canto distante e a inclinação do caminho foi-se acentuando, no sentido descendente. Da altura em que se encontravam, Monk olhou para um vale em forma
de U e uma aldeia pitoresca de vielas empedradas e casas de campo com telhados de duas águas e floreiras nas janelas. Candeeiros de rua ornamentados de preto tremeluziam
com as suas chamas de gás. Uma escola de três andares ocupava um canto da aldeia, rodeada por campos de bola e um anfiteatro ao ar livre. A pequena aldeia espraiava-se
em torno de uma praça central, onde o jorro de água de uma fonte alta dançava e brilhava.
No outro lado da aldeia, sucediam-se várias filas de prédios de cunho industrial, cada um deles com cinco andares, distribuídos e limitados por uma grelha prática.
Escuros e sem luz, davam um ar dilapidado e desertificado ao ambiente.
Ao contrário da aldeia em baixo.
As pessoas amontoavam-se aí. Ecoaram gritos. Viu crianças a serem reunidas com as roupas de dormir vestidas, confundindo-se no meio dos adultos, alguns deles vestidos
da mesma maneira, acabados de sair da cama. Outros ostentavam uniformes cinzentos e chapéus de aba dura. Lanternas serpenteavam no meio das ruas estreitas.
Algo havia perturbado o local.
Ouviu nomes a serem chamados, com pessoas a acenarem, outras zangadas.
- Konstantin! Pyotr! Kiskal
As crianças.
Um fogacho vermelho flamejante ergueu-se em arco do centro da cidade, iluminando a pequena aldeia adormecida, evidenciando o desconsolo dos edifícios atrás, fogo
dançante sobre os muros de cimento e janelas esburacadas.
O olhar de Monk captou a chama no momento em que atingia o zênite, lançando um pequeno paraquedas que desceu flutuando.
A atenção de Monk manteve-se no céu.
O céu... não estava só sem luar.
Não estava lá de todo.
O brilho avermelhado da labareda revelou uma imponente cúpula de rocha, estendendo-se em todas as direções engolindo todo o lugar. Monk abriu a boca. espantado,
girando em redor num círculo de espanto.
Não tinham passado lá para fora.
Estavam dentro de uma caverna gigante.
Possivelmente feita pelo homem atendendo ao aspeto dinamitado do teto e das paredes.
Olhou para baixo, para a pequena aldeia perfeita, preservada na caverna como um barco numa garrafa. Mas não havia tempo para mais contemplações.
Konstantin levou-o para trás de um afloramento calcário. Um trio de jipes subia silenciosamente por uma estrada inclinada na sua direção, ultrapassou-os e dirigiu-se
para o complexo hospitalar. Os veículos pareciam ser movidos a eletricidade e eram conduzidos por homens de uniforme, transportando armas.
Nada de bom.
Já com os Jipes fora do ângulo de visão, Konstantin apontou desde a aldeia para a escuridão do fundo da caverna. Atravessaram a paisagem rochosa e entraram num caminho
estreito, poucas vezes usado, a avaliar pelo seu aspeto.
Contornaram a aldeia subterrânea, esgueirando-se pelas paredes superiores da caverna. Monk reparou num túnel enorme do outro lado, iluminado por luzes elétricas
e selado por portas de metal gigantes, suficientemente largas para darem passagem a dois camiões de cimento, lado a lado. Assinalava uma estrada que saía da caverna.
Mas as crianças levaram-no na direção oposta.
Para onde é que o estavam a levar?
Atrás, um alarme sonoro irrompeu, aturdindo como uma sirena de ataque aéreo no recinto fechado. Todos os quatro se viraram. Uma luz vermelha brilhou e rodopiou no
topo do complexo hospitalar.
Os aldeãos tinham-se inteirado de outra verdade.
Não eram apenas as crianças que estavam desaparecidas.
Monk tentou conduzir as crianças pelo caminho, mas o barulho tremendo incapacitara-as. Taparam as orelhas e fecharam os olhos com força. Kiska parecia enjoada. Konstantin
estava de joelhos, balouçando-se. Pyotr agarrou-se a Monk.
Hipersensíveis.
Contudo. Monk impeliu-os para a frente, transportando Pyotr, quase arrastando Kiska.
Monk olhou para trás na direção dos clarões da sirena. Poderia ter perdido a memória - ou, mais precisamente, terem-na extraído de forma forçada - mas sabia uma
coisa.
Perderia muito mais do que a memória se fosse apanhado outra vez.
E temia que as crianças sofressem ainda mais.
Tinham de continuar a avançar - mas para onde?
6
6 de setembro, 05h22
Kiev, Ucrânia
Nicolas Solokov esperou que as câmeras fossem colocadas. Já tinha sido maquilhado e encontrava-se ainda com um lenço de papel enfiado na camisa branca engomada para
impedir que a maquilhagem sujasse a camisa e o terno azul-escuro. Recolhera-se para um momento privado de introspeção numa das unidades recuadas do hospital. As
equipas de notícias internacionais ainda se estavam a preparar para a transmissão da manhã nos degraus do orfanato.
Nas unidades recuadas do Lar de Crianças de Kiev, a luz do Sol Jorrava através das janelas. Uma única enfermeira movia-se silenciosamente entre as camas. Aqui os
piores casos eram escondidos dos olhares alheios: uma garota de dois anos com um tumor na tiroide que não podia ser operado, um rapaz de dez anos com uma cabeça
inchada de hidrocefalia, outro jovem cujos olhos se encontravam entorpecidos por um atraso mental grave. Este último rapaz estava amarrado pelos quatro membros.
A enfermeira, uma matrona ucraniana de linhas quadradas e uma farda azul, reparou na sua atenção.
- Para que ele não se magoe a si próprio, senador - explicou, os olhos exaustos de tanto sofrimento.
Mas existiram casos piores. Em 1993, um bebé nascera na Moldova com duas cabeças, dois corações, duas espinais medulas, mas apenas um conjunto de membros. Havia
outra garota cujo cérebro crescera fora do crânio.
Tudo legado de Chernobyl.
Na primavera de 1986, o reator número quatro da Central Nuclear de Chernobyl explodira a meio da noite. Durante dez dias, emitiu radiações equivalentes a quatrocentas
bombas de Hiroxima que se espraiaram numa nuvem que circundou o globo. Até à data, segundo a Academia de Ciências Médicas russa, mais de uma centena de milhar de
pessoas morrera devido à exposição às radiações e outros sete milhões tinham sofrido os efeitos dessa exposição, a maior parte delas crianças, deixando um legado
permanente de cancros e anomalias genéticas.
E agora, avizinhava-se uma segunda vaga de tragédia, com todos aqueles que tinham sido expostos numa tenra idade a começarem a ter os seus próprios filhos. Um aumento
de trinta por cento de defeitos à nascença fora já relatado.
Por essa razão, o volátil e carismático líder da câmara baixa do parlamento russo viera até aqui. O próprio distrito de Nicolas, Chelyabinsk, que ficava situado
a milhares de quilômetros de distância, tinha preocupações semelhantes. Fora na parte do seu distrito abrangida pelos Montes Urais que havia sido extraída a maioria
do combustível para alimentar Chernobyl, Juntamente com o plutônio usado no programa de armamento soviético. Continuava a ser um dos lugares mais radioativos do
planeta.
- Estão prontos para si, senador - disse a sua assistente atrás dele.
Ele virou-se para olhar para ela.
Elena Ozerov, uma mulher de cabelo negro e lustroso, com pouco mais de vinte anos e uma compleição acinzentada, envergava um terno preto de executivo que escondia
os .seus seios pequenos e transformava-a num ser andrógino. Era uma mulher austera, taciturna, que estava sempre ao seu lado. A imprensa referia-se a ela como o
Rasputin de Nicolas, o que ele não desencorajava.
Encaixava-se muito bem no seu plano político de ser visto como um grande reformista, enquanto simultaneamente apelava para a antiga glória czarista do velho império
russo. Até o seu homônimo, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, fora preso e morto em Ekaterinburg. onde Nicolas nascera. Apesar de o czar se ter comportado
como um líder fracassado durante toda a sua vida, depois da sua morte fora canonizado pela Igreja Ortodoxa russa. Os bispos construíram a Catedral do Sangue de cúpula
dourada por cima da casa onde a família fora assassinada. A construção marcou um renascimento simbólico dos Romanov.
Havia quem defendesse que o próprio senador Nicolas Solokov, de quarenta e um anos, com o seu cabelo preto liso e ralo e barba curta encaracolada, era o czar renascido.
Ele encorajou tais comparações.
Procurando a Rússia erguer-se de novo. com as suas pernas trêmulas - atolada de dívidas e pobreza, envolta em suborno e corrupção -, precisava de um novo líder para
este novo milênio.
Nicolas tencionava ser esse líder.
E muito mais.
Permitiu que Elena retirasse o lenço de papel que lhe rodeava o pescoço. Ela olhou para ele, de cirna a baixo, depois acenou num gesto de aprovação.
Nicolas avançou na direção das luzes que esperavam por ele lá fora.
Empurrou as portas, seguido circunspectamente por Elena. O pódio fora instalado no topo das escadas, com o nome do orfanato enquadrado na parte de trás.
Dirigiu-se para o emaranhado de microfones que enchiam o pódio e elevou um braço com o intuito de deter a avalanche de perguntas. Ouviu um repórter lançar uma questão
acerca das suas antigas ligações com o KGB, outro acerca das ligações financeiras da sua família às vastas operações de exploração mineira nos Montes Urais. Enquanto
ele se assenhoreava de poder, o mesmo acontecia com as vozes daqueles que procuravam derrubá-lo.
Ignorando as perguntas, procurou estabelecer o seu próprio ponto de ordem.
Para o efeito, inclinou-se para os microfones e deixou que a sua voz se sobrepusesse às questões impertinentes.
- Está na altura de encerrarmos estas portas! - gritou, apontando para a entrada do orfanato atrás dele. - As crianças da Ucrânia, de Belarus, de toda a Mãe Rússia
sofreram pelos pecados do nosso passado. Nunca mais!
Nicolas deixou a sua raiva transparecer. Ele sabia o aspecto que tinha nas câmeras. O rosto duro da reforma e da indignação. Prosseguiu com o seu discurso inflamado,
implorando uma nova visão da Rússia, um apelo à ação, um apelo para se olhar para a frente sem esquecer o passado.
- Daqui a dois dias, o reator número quatro de Chernobyl será selado debaixo de uma nova cúpula de aço. O novo sarcófago marcará o fim de uma tragédia e será para
sempre um memorial a todos os homens e mulheres que deram as suas vidas para protegerem não só a nossa terra natal, mas também o mundo. Os bombeiros que se mantiveram
firmes de mangueira na mão enquanto a radiação queimava o seu futuro. Os pilotos que arriscaram atravessar a nuvem tóxica para transportarem cimento e materiais.
Os mineiros que vieram de todas as partes do país para ajudarem a construir o primeiro escudo para tapar o reator. Estes gloriosos homens e mulheres, imbuídos de
um forte orgulho nacional, são o verdadeiro coração da Rússia! Que nunca os esqueçamos, nem os seus sacrifícios!
A multidão por detrás dos repórteres aumentara enquanto Nicolas falava. Foi recebido com palmas e gritos de encorajamento no momento em que se deteve.
Este seria o primeiro de muitos discursos que daria, até a derradeira cerimônia de Chernobyl, onde o novo sarcófago seria depositado por cima do núcleo tóxico do
reator morto. O escudo de cimento original já estava a desmoronar-se, tendo funcionado apenas como uma solução provisória, e isso fora há vinte anos. O novo sarcófago
pesava mais de dezasseis mil toneladas e era tão alto como a Torre Eiffel. Era a maior estrutura móvel existente no planeta.
Outros políticos estavam já a capitalizar a ocorrência com eventos e discursos semelhantes. Mas Nicolas apresentava-se como o mais sonante e verbal, um campeão da
reforma nuclear, por ter expurgado as estufas radiológicas de todo o país. Muitos procuraram conter a sua retórica devido aos custos elevados que ela acarretava.
Alguns membros do seu próprio parlamento entretinham-se a ridicularizá-lo, reprovando-o na imprensa.
Mas Nicolas sabia que tinha razão.
Como todos veriam um dia.
- E registrem as minhas palavras! - continuou. - Apesar de termos posto um fim a um capítulo da nossa história, receio que tenhamos apenas posto o nosso dedo num
buraco do dique. O nosso passado nuclear ainda não nos pode deixar descansados... nem o mundo. Quando a altura chegar, espero que tenhamos uns corações tão fortes
como os daqueles homens e mulheres de coragem que desistiram do seu futuro nesse trágico dia. Por isso, não desperdicemos a dádiva que nos deram. Que surja um novo
Renascimento! Do fogo, um mundo novo nascerá.
Ele sabia que os seus olhos cintilavam enquanto pronunciava estas últimas palavras. Era o lema da sua reforma.
Um novo Renascimento.
Um Renascimento russo.
Só precisavam de um pequeno empurrão na direção certa.
Elena inclinou-se para ele e tocou-lhe no cotovelo, pretendendo uma palavra. Ele curvou-se na sua direção no momento em que o estalido de uma arma soou no parque
do outro lado da rua. Do canto do olho, vislumbrou o clarão da arma de fogo uma fracção de segundo antes de algo ter raspado na sua orelha.
Um atirador furtivo.
Assassino.
Elena puxou-o para baixo, atrás do pódio, enquanto vários gritos se ouviam no meio da multidão. O caos dominou durante alguns segundos. Nicolas aproveitou o momento
para beijar Elena. Passou com a mão pelo seu cabelo comprido; com um dedo contornou a fria peça de aço cirúrgico que se destacava na parte de trás da sua orelha.
Murmurou no beijo que deram.
- Correu tudo bem.
22h25
Washington, D. C.
Painter juntou-se a Gray perto da entrada e olhou para o vídeo. Observou os guardas sob a mira das armas.
O homem envolto na penumbra falou através da porta, como que pressentindo a sua presença.
- Não queremos fazer mal - disse com um forte acento que o definia como leste europeu.
Painter olhou para o estranho na tela. Depois para a garota que estava ao lado dele, segurando-lhe na mão. Ela estava a olhar diretamente para a câmera escondida.
O homem falou outra vez.
- Somos aliados do Archibald Polk! - disse com um ar inseguro, como se não tivesse a certeza de que aqueles que estavam na casa soubessem o que isso significava.
- Não temos muito tempo!
Elizabeth colocou-se atrás de Painter. Entreolharam-se. Para encontrar respostas em relação ao destino de seu pai, um risco teria de ser tomado. Mas não demasiado
grande. Painter carregou no botão do intercomunicador e falou.
- Se são aliados, então libertem os nossos homens e larguem as armas.
O homem no alpendre abanou a cabeça.
- Não até provarem que podem ser de confiança. Arriscamos muito para trazer a garota até aqui. Expondo-nos.
Painter olhou para Gray. Ele encolheu os ombros.
- Vamos deixar-vos entrar - disse Painter. - Mas só o senhor e a garota.
- E eu manterei os vossos homens aqui para garantir a nossa segurança.
Kowalski resmungou ao lado deles.
- Uma grande família feliz.
Painter fez sinal a Gray para levar Elizabeth para um canto.
Painter manteve o seu corpo ao lado da porta. Kowalski pôs-se do outro lado, ainda de meias calçadas. O homem corpulento ergueu a sua única arma: o sapato que tinha
na mão.
Isso devia chegar.
Painter desfez o ferrolho e abriu a porta. O estranho ergueu a mão para mostrar que estava vazia. A garota segurava na sua outra mão. Parecia ter mais de dez anos,
de cabeio escuro e com um vestido aos quadrados cinzentos e pretos. O homem tinha uma tez cor de azeitona de onde sobressaía uma forte mancha escura da barba. Talvez
fosse egípcio ou arábico. Os seus olhos, tão castanhos que pareciam pretos à luz do alpendre, patenteavam um certo ar de desconfiança. Envergava calças de ganga
e um impermeável vermelho-escuro.
O estranho virou a cabeça, mas o seu olhar nunca se desviou da entrada da porta. Gritou para os seus homens. Painter não compreendeu a língua, mas pelo tom parecia
que era uma ordem para estarem em alerta.
- É um cigano - murmurou Kowalski.
Painter olhou para o homem corpulento.
- Tive uma família a viver no fim da minha rua - Kowalski apontou para estranho. - Ele estava a falar romani.
- Ele tem razão - disse o estranho. - O meu nome é Luca Hearn.
Painter abriu mais a porta e fez sinal para o homem entrar.
O estranho atravessou cautelosamente o limiar da porta, cumprimentando Painter e Kowalski com um aceno.
- Sastirnos.
- Nais tuke - respondeu Kowalski. - Mas é tudo o que consigo lembrar em romani.
Painter levou Luca e a criança para o centro da sala. Ela deslocou-se com um ligeiro tremor nas pernas. O seu rosto brilhava febrilmente.
Luca reparou em Gray, que aguardava num dos lados, empunhando uma pistola.
Painter fez sinal a Gray para guardar a arma. Não pressentia nenhuma ameaça direta da parte do homem. Apenas uma cautela inexorável.
Elizabeth avançou.
- Você referiu o nome do meu pai.
Luca franziu o sobrolho, não compreendendo.
Painter explicou:
- Ela é a filha do Archibald Polk.
Os seus olhos abriram-se. Inclinou a cabeça na sua direção.
- Lamento a sua perda. Era um grande homem.
- O que é que sabe acerca do meu pai? - perguntou ela. - Quem é esta garota?
A criança libertou-se da mão do homem e dirigiu-se à mesa. Sentou-se de joelhos ao lado dela e começou a balouçar-se para a frente e para trás.
- A garota? - perguntou Luca. - Não sei. Um mistério. Recebi uma mensagem do seu pai. Um voice-mail agitado. Era caótico, falado às pressas. Pediu-nos para comprar
dez receptores Cobra Marine na Radio Shack e sintonizá-los numa certa onda. Parecia louco, balbuciando números. Ele queria que inspecionássemos o National Mall.
Para procurarmos uma encomenda que ativasse os receptores.
- Encomenda? - perguntou Painter.
Luca olhou para a criança.
- Ela.
- A garota? - perguntou Elizabeth, espantada. - Por quê?
Luca abanou a cabeça.
- Devemos muito ao seu pai. Fizemos tudo como ele pediu. Estávamos até no Mall quando ele foi atingido, embora só tivéssemos sabido que ele era seu pai mais tarde.
Mas seguimos o rastro da criança.
Painter observou a garota. Devia haver um microfone implantado, um micro transmissor algures na sua pessoa.
- Nós a seguimos até o zoo, onde conseguimos recolhê-la sem ninguém notar.
- Raptaram-na? - perguntou Painter.
Ele encolheu os ombros.
- As últimas palavras na mensagem eram roubar a encomenda e trazê-la para alguma coisa ou alguém chamado Sigma.
As suas palavras agitaram Painter.
- A mensagem caiu abruptamente - disse o cigano -, sem mais direções ou explicações. Uma vez na posse da garota, tivemos de agir depressa. Temíamos que outros pudessem
andar à procura dela. Alguém capaz de encontrá-la, tal como nós o fizemos. Especialmente com um Alerta Amarelo em todo o distrito. Mas não fazíamos a mínima ideia
do que é que o professor queria dizer com Sigma. Enquanto andávamos por aí, tentando descobrir, a garota começou a desenhar furiosamente.
Ele apontou para a criança, que se tinha posto de pé e dirigido a uma parede vazia. Pegou num pedaço de carvão da lareira e começou a desenhar na parede de uma forma
casual, aos repelões, começando num ponto e deslocando-se para outro.
- Ela não parava - continuou Luca. - Desenhou uma silhueta de um parque com árvores e uma imagem da ponte de Rock Creek. - Apontou com a cabeça para a janela. -
Depois disso, uma casa. na mesma floresta. Tivemos de circundar todo o parque, à procura dela, acreditando que era importante. Quando encontramos este lugar, ela
desenhou a imagem que eu enfiei debaixo da porta.
Luca olhou para eles.
- Um retrato de vocês todos. Amigos e família do doutor Polk. Por isso, cabe-me a mim perguntar, conhecem essa tal Sigma?
Painter mostrou um cartão de identificação preto e brilhante. Tinha a sua fotografia fixada com o selo presidencial. Gravado na superfície uma letra grega holográfica.
Luca examinou o cartão, erguendo-o para estudar o holograma. Os seus olhos abriram-se profusamente quando o reconheceu.
Enquanto conversavam, Gray dirigira-se para junto da garota. Sentou-se de cócoras, observando o seu trabalho. Coçou o queixo. Algo chamara a sua atenção. Gray levantou
um dedo, meio escondido entre os Joelhos, como um apanhador assinalando para um lançador num jogo de basebol. Apontou para a garota.
O seu rosto tomou-se mais brilhante. A sua cabeça inclinou-se ligeiramente para ura dos lados. Os seus olhos estavam abertos, mas não estavam a seguir o caminho
do pedaço de carvão com que escrevia. Por mais perturbante que o seu comportamento pudesse parecer, não era o que Gray estava a indicar.
Painter reparara também. O seu cabelo, coberto de suor, abrira um espaço atrás da orelha. Um brilho de metal surgiu. A forma era nitidamente a mesma do objeto colocado
no estranho crânio.
Só que aqui tratava-se de uma cabaia.
O que é que Archibald lhes tinha entregue para as mãos?
Enquanto a mente de Painter tentava descortinar várias possibilidades, Elizabeth recuou ainda mais na sala. Apontou para a parede.
- Venham ver isto - disse, com a voz tremendo com uma ponta de medo.
Painter colocou-se ao lado dela. Apontou para a imagem que tinha surgido na parede. A esta distância, aquilo que pareciam gatafunhos sem sentido tinham começado
a tomar forma. Observou a transformação ocorrida ao longo de quatro silenciosos minutos.
Elizabeth gaguejou de espanto.
- E o... é o...
- ... Taj Mahal - concluiu Painter.
No silêncio que se seguiu, um som distante alertou-os. Flap.flap. Um helicóptero, voando baixo, aproximando-se.
Gray endireitou-se e colocou-se ao lado da garota.
- Já nos encontraram!
06h02
Kiev, Ucrânia
Nicolas desprendeu-se de Elena e encostou-se.
A ventoinha do quarto de hotel arrefeceu o seu corpo transpirado. Doíam-lhe as costas e os ombros apresentavam grandes arranhões que ainda ardiam. Elena pôs-se de
pé, agitando suavemente o cabelo, enrolado até meio das costas. A forma recurvada como as suas nádegas subiam e desciam, enquanto se dirigia para o chuveiro, quase
que o excitava de novo. Agitou-se, mas sabia que tinha outra entrevista dentro de meia hora.
As notícias da tentativa de assassínio já se tinham espalhado a toda a velocidade. Estaria em todas as transmissões internacionais. Já sabia que o atirador, alvejado
pela polícia, morrera antes de ter chegado ao hospital.
Com a morte, ninguém suspeitaria que tinha sido tudo planeado. Até o atirador - um mineiro de Polevskoy, cujo irmão morrera num acidente industrial no ano passado
- nunca saberia como tinha sido ardilosamente manipulado para se envolver no estratagema de assassínio.
Tudo tinha sido preparado com uma precisão técnica. Elena calculara o momento do seu toque na perfeição. Um talento seu. Quando incentivada, conseguia calcular probabilidades
ao mais alto grau. As suas análises estatísticas de folhas de cálculo empresariais rivalizavam com as dos melhores economistas do mundo. E tendo estudado as especificações
técnicas da maioria das pistolas e armas leves, bastava-lhe ver como uma arma era erguida para calcular a sua trajetória precisa.
Confiando nisto, ele pusera a sua vida nas suas mãos esta manhã.
E sobrevivera.
Nesse momento, atrás do pódio, nunca sentira tanta falta de controle, a sua sobrevivência à mercê de outrem. Depois de uma vida inteira a controlar, libertar essa
rédea, mesmo só por uns instantes acelerara a sua pulsação. Depois disso, não desejara outra coisa senão regressar ao hotel o mais depressa possível.
Elena saiu molhada do chuveiro e deixou-se ficar nua à entrada da porta. O desejo nos seus olhos desfez-se lentamente - recordando a última faísca de estímulo erótico
da sua matriz neural aumentada. A leoa feroz transformara-se numa gatinha adormecida. No entanto, Nicolas observou a última réstia de fogo - uma mistura crescente
de necessidade e de ódio mas até isso acabaria por desvanecer-se numa simples obediência fria.
Tal estimulação do seu implante era necessária - não só para intensificar o acasalamento, mas também para incentivar a resposta fisiológica adequada ao aumento das
hipóteses de fertilização. Nicolas lera alguns estudos. E a sua mãe queria que ele tivesse filhos, chegando mesmo a aprovar a união de Nicolas e Elena. Era uma combinação
perfeita: a sua vontade e os seus cálculos frios.
Nicolas fizera o seu melhor para tornar a sua mãe feliz esta manhã.
E tinha as nódoas negras e os arranhões para prová-lo.
Contudo, a sua mãe era capaz de não aprovar o fato de ele ter permitido que Elena o atasse à cama e lhe chicoteasse as coxas com uma escova. Mas, tal corno a sua
mãe não se cansara de repetir quando ele era pequeno:
Os fins justificam sempre os meios.
Sempre muito prática, a sua mãe.
O telefone tocou na mesa-de-cabeceira. Elena atendeu-o e, de seguida, estendeu-lhe o auscultador.
- O General-Major Savina Martov - disse Elena formalmente, com um ar outra vez frio. - Para o senador.
Ele pegou no auscultador com um suspiro. Como sempre, o momento escolhido pela sua mãe não podia ser melhor. Deve ter ouvido falar acerca da tentativa falhada de
assassínio. Era natural que quisesse um interrogatório completo e deve ter pensado porque é que ele ainda não tinha relatado nada. A agenda para os próximos dias
apertar-se-ia num nó inquebrável - em ambas as pontas - terminando na selagem formal de Chernobyl. Nada podia correr mal.
Nicolas transferiu o peso das nádegas doridas com um esgar.
Savina falou antes de ele poder dizer alguma coisa.
- Temos um problema, Nicolas.
Ele suspirou.
- O que se passa, mãe?
22h50
Washington, D. C.
Gray amparou a criança nos braços e apressou-se a atravessar o pátio frontal.
A noite de setembro contrastava com o calor febril da criança. Sentiu o calor da sua pele através da camisa. A febre aumentara-lhe enquanto executava a sua obra
de arte. Sofrera um colapso no momento em que Gray lhe retirara o carvão das mãos. Estava consciente, mas os seus olhos não tinham qualquer expressão e os seus membros
apresentavam-se estranhamente hirtos e endurecidos, como se ele estivesse a transportar uma boneca de tamanho real. As suas feições cerosas realçavam ainda mais
a comparação.
Gray tocou-lhe no rosto, reparando na delicadeza fina das suas pequenas pestanas.
Quem é que podia fazer isto a uma criança?
Tinham de colocá-la em segurança.
Lá fora, no pátio, Gray olhou para o céu. Um único helicóptero preto - de concepção militar - sobrevoava de perto a rua. Outro voava mais alto no outro extremo do
quarteirão. E um terceiro circundava o parque atrás deles.
Triangulando sobre a sua posição.
O carro deles, um três volumes, ainda estava no caminho de acesso. Luca e os seus homens tinham três SUV Ford idênticos estacionados na rua. O líder do clã cigano
já havia reunido os seus homens. Gritou ordens em romani e apontou as suas armas em várias direções. instruindo-os a separarem-se. Três homens dirigiram-se para
o parque a pé, onde se voltaram a dividir. Outros dois correram pela rua e desapareceram por entre duas casas. Um cão ladrou à sua passagem.
A frente, Kowalski caminhou ao lado de Elizabeth na direção do Lincoln Town. Esta última mantinha o celular Junto ao ouvido.
Painter dirigiu-se para um pequeno carro estacionado Junto ao passeio, um Toyota Yaris, que pertencia a um dos seguranças. Gray seguiu-o. O guarda Já estava atrás
do volante, depois de ter sido libertado pelos homens de Luca.
Painter abriu a porta de trás e virou-se para Gray, levantando os braços. Gray passou-lhe a garota.
- Ela está a escaldar - observou Gray.
Ele acenou.
- Uma vez em segurança, cuidaremos dela. Já liguei à Kat e à Lisa para avisarem o comando.
Lisa era a doutora Lisa Cummings, uma médica experiente com um doutoramento em Fisiologia. Era também a namorada do diretor. O capitão Kat Bryant era a perita da
Sigma responsável pelos serviços de informação e coordenação. Supervisionaria a operações de campo.
- Mas primeiro - disse Painter, com os olhos virados para o céu,
enquanto se enfiava no assento de trás com a criança -, temos de quebrar este cerco.
Do outro lado, um dos SUV Ford seguiu em frente, com os faróis dianteiros desligados; o outro deu meia volta e escapou na direção oposta, passando pelo lento Toyota
de Painter.
- Espero que funcione - disse Gray.
Antes de partirem, Painter pedira a Luca para levar consigo um dos receptores Cobra que haviam usado para seguir o rastro da garota no National Mall. Como o diretor
esperara, os aparelhos eram na realidade transcetores - capazes de receber e transmitir. Painter mostrara a Luca como mudar os rádios de receptores de um sinal específico
para transmissores. Luca instruiu também todos os seus homens. Estavam agora espalhados por todo o lado, transmitindo o sinal de presença da garota, criando uma
dezena de pistas para serem seguidas - e provavelmente transmitindo mais alto do que o pequeno micro transmissor da garota. No meio de toda esta confusão, Painter
esperava escapar com a garota para os bunkers subterrâneos do comando central da Sigma. Lá. poderia isolar o sinal e protegê-la.
Gray foi na outra direção. dirigindo-se para o Town Car. Kowalski já estava com o motor ligado, impaciente. O seu destino era o Aeroporto Internacional Reagan. Gray
imaginou o desenho a carvão do Taj Mahal. O famoso mausoléu localizava-se na Índia, o mesmo país onde o doutor Polk fora visto pela última vez. Mesmo antes da chegada
da garota, Gray tinha já decidido alargar o âmbito da investigação à Índia, para seguir o rastro do doutor Polk nesse território. O desenho misterioso só serviu
para aumentar ainda mais a sua determinação.
Na Índia, havia uma pessoa que podia introduzir uma nova luz sobre a investigação de Archibald Polk, bem como o seu paradeiro antes do seu desaparecimento.
Elizabeth ficou junto à porta aberta, observando o céu nervosamente. Desligou o celular no momento em que Gray se abeirou dela.
- Entrei em contato com o doutor Masterson - disse. - O colega do meu pai na Universidade de Mumbai. Mas ele não estava em Mumbai. Estava em Agra.
- Agra? - perguntou Gray.
- A cidade na Índia onde fica o Taj Mahal. Estava lá quando lhe liguei. No local.
Gray olhou para o Toyota a afastar-se da berma e a deslizar pela rua abaixo. O que se passa?
Por cima, os helicópteros movimentavam-se. Os pássaros começaram a espalhar-se em múltiplas direções, seduzidos por vários iscos.
Gray tentou uma última vez.
- Elizabeth, ficaria mais segura aqui.
- Não, vou com vocês. Como irá perceber, o doutor Masterson não é a pessoa mais simpática deste mundo. Mas ele conhece-me. Ele está à minha espera. Para obter a
cooperação do professor, tenho de estar presente.
O olhar de Elizabeth cruzou-se com o de Gray. O rosto dela era uma mistura de emoções: determinação, medo e uma dor profunda.
- Ele era o meu pai - disse. - Tenho de ir.
- E, além disso - acrescentou Kowalski do lado do condutor -, poderei mantê-la debaixo de olho.
A sombra de um sorriso suavizou os contornos duros da sua emoção.
- Não é uma coisa muito boa, pois não? - murmurou para Gray.
- Disso não tenho dúvidas.
Acenou para que entrasse no carro. Não se opôs com grande veemência à sua vinda. Suspeitava de que iriam precisar dos seus conhecimentos antes de tudo ter acabado.
O seu pai fora especificamente ao gabinete temporário que ela ocupava no Museu de História Natural. Conseguira que ficasse com aquele lugar no museu grego. De alguma
forma, tudo isto remontava a Delfos - mas como?
Luca estava ao pé deles agora. Ouvira a última parte da conversa.
- Eu vou também.
Gray acenou num gesto de concordância. Painter já tratara de tudo para comprar a colaboração de Luca na fuga da garota. O que era bom para Gray. Ainda tinha algumas
questões a colocar ao homem, na sua maioria respeitantes à sua relação com o doutor Polk. O líder cigano também parecia bastante determinado acerca de algo. Gray
viu-o nas sombras que pairavam por detrás dos seus olhos escuros.
Com a questão resolvida, Gray sentou-se na parte da frente do carro. Luca e Elizabeth ajeitaram-se atrás.
- Segurem-se! - disse-lhes Kowalski, enquanto fazia marcha-atrás, carregava no acelerador e avançava com o carro para o meio da rua.
Lá em cima, o flap-flap dos helicópteros retrocedeu na noite.
Os pensamentos de Gray encaminharam-se para as questões acerca da garota.
Quem é ela? De onde é que ela veio?
Monk seguiu as três crianças. Eram seguidos por uma outra figura que se juntara a eles na portinhola inferior.
Mas ela não era uma criança.
Monk sentiu esses olhos escuros atrás de si.
Em grupo, subiram por uma escada de caracol escavada no calcário. As paredes rochosas estavam cobertas de água. o que tomava os degraus escorregadios. A escada era
estreita, utilitária, obviamente uma escada de serviço. Revelou ser uma longa ascensão. Era Monk quem transportava praticamente Pyotr agora.
Momentos antes, enquanto a sirena soava, os miúdos tinham conduzido Monk por um caminho que ladeava a caverna e terminava numa pequena portinhola. A porta dava para
as escadas que estavam agora a subir. Lá em baixo, Monk fora apresentado ao último e estranho membro do grupo.
Chamava-se Marta.
- Aqui! - chamou Konstantin do cimo, transportando a única lanterna que tinham. Atingira o topo das escadas. Monk reuniu as outras duas crianças e Juntou-se a ele.
O rapaz mais velho dobrou o seu corpo franzino e agachou-se ao lado de uma pilha de mochilas. A frente, um pequeno túnel terminava noutra portinhola.
Konstantin colocou uma mochila nos braços de Monk. Monk transportou-a na direção da portinhola e pôs a mão na porta. Estava quente.
Virou-se no momento em que o último membro do grupo entrava no túnel, vindo das escadas. Pesando trinta e cinco quilos e medindo cerca de um metro, caminhava apoiada
nos nós dos dedos de uma mão. Tinha o corpo coberto de pelos macios e escuros, exceto na face, mãos e pés. Os pelos em torno do rosto eram de um tom cinzento-prateado.
Konstantin dizia que o chimpanzé fêmea devia ter mais de sessenta anos.
A reunião entre as crianças e o macaco na portinhola inferior fora também muito efusiva. Apesar do toque da sirena e da extrema sensibilidade das crianças, o chimpanzé
abraçara cada uma delas, apertando-as de uma forma reconfortante, quase maternal.
Monk tinha de admitir que a sua presença ajudara a acalmar as crianças.
Até mesmo agora, arrastava-se no meio deles, inclinando-se, articulando calmamente de uma forma quase inaudível.
O mais novo, Pyotr, era aquele que recebia mais atenção. O par parecia ter uma estranha forma de comunicação. Não era uma linguagem gestual, mas uma linguagem corporal:
toques suaves, poses, longos olhares recíprocos. O rapazito, exausto com a subida, parecia ganhar força com a presença do animal mais velho.
Konstantin dirigiu-se para a portinhola. Estendeu um pequeno suporte de plástico na direção de Monk e mostrou-lhe como prendê-lo ao seu macacão.
- O que é? - perguntou Monk.
Konstantin acenou na direção da porta selada.
“ Um dispositivo de monitorização... para os níveis de radiação.
Monk olhou para a porta. Radiação? O que havia para alem daquela porta? Lembrou-se do calor que sentira quando colocou a mão na portinhola. Na sua cabeça, imaginou
uma paisagem dizimada, um terreno transformado num monte de ruínas e escórias.
Com toda a gente pronta, Konstantin encaminhou-se para a portinhola e puxou com força a alavanca que a prendia. A porta cedeu e abriu-se.
Uma labareda de luz ofuscante inundou o local, como quem olha para uma fornalha ardendo ferozmente. Monk protegeu os olhos com o antebraço. Demorou alguns segundos
a aperceber-se de que estava defronte do Sol nascente. Saltou lá para fora com as crianças.
A paisagem não fora reduzida a um monte de escórias como ele temera.
Pelo contrário, parecia que o oposto era verdade.
A portinhola dava para a borda de uma encosta densamente florestada, coberta de bétulas e carvalhos. Muitas das árvores haviam ficado vermelhas com a mudança de
estação. Num dos lados, um riacho serpenteava por entre as rochas cheias de musgo. Alguns montes elevavam-se à distância, pontilhados por pequenos lagos alpinos
que brilhavam como gotas de prata.
Tinham subido ao paraíso.
Mas o inferno ainda não tinha desaparecido de vista.
Do túnel atrás deles, um estranho uivo ecoou-lhes aos ouvidos. Monk lembrava-se de ter ouvido o mesmo uivo junto ao complexo murado que ficava ao lado do hospital.
A Reserva.
Um segundo e um terceiro uivo sobrepuseram-se ao primeiro.
Ele não precisou do aviso de Konstantin para continuar a andar.
Monk reconheceu o que estava a ouvir - não pela memória, mas por essa parte enterrada do seu cérebro onde o instinto de predador e presa ainda se encontrava inscrito.
Outro uivo ecoou.
Mais alto e mais próximo.
Estavam a ser perseguidos.
7
6 de setembro, 04h55
Washington, D. C.
Ela continuava a ser um mistério numa encomenda muito pequena.
Painter observava a garota através da janela. Adormecera finalmente. Kat Bryant mantinha-se vigilante ao lado da cama, com um exemplar do livro do Doutor Seuss,
Green Eggs and Ham, aberto no seu colo. Estivera a ler para a garota até que os sedativos começaram a fazer efeito e a criança adormeceu.
A garota não dissera uma única palavra, desde que tinham chegado por volta da meia-noite. Os seus olhos detetavam coisas, registrando claramente o que se passava
à sua volta. Mas poucas mais respostas. Passava a maior parte do tempo a balouçar-se para a frente e para trás, ficando hirta sempre que lhe tocavam.
Conseguiram que ela bebesse de um pacote de sumo e comesse duas bolachas de chocolate... Também realizaram alguns testes iniciais; análises ao sangue, um exame físico
completo e até uma ressonância magnética da totalidade do seu corpo. Ainda tinha alguma febre, mas não era tão elevada como anteriormente.
Durante o exame físico, descobriram igualmente o micro transmissor bem incrustado no braço superior da garota. O chip só poderia ser removido através de uma cirurgia,
por isso decidiram deixá-lo no local. Além disso, o sinal encontrava-se bloqueado no sítio onde se encontravam. Não haveria possibilidade de segui-lo.
Kat mexeu-se e levantou-se. A mulher estava vestida com uma roupa confortável e o seu cabelo castanho destacava-se de encontro a uma camisa branca de algodão desfraldada
por cima de umas calças cor de canela. Fora chamada ao comando central para supervisionar as operações de campo, mas com a equipe de Gray ainda no ar, achava que
era mais útil aqui. Na sua qualidade de mãe de uma menina de tenra idade, Kat trouxera o livro do Doutor Seuss. Embora na criança a sua indiferença fosse notória,
reconheceu a proteção de Kat. O seu balouçar abrandou.
Painter ficou contente por ver Kat Bryant de regresso ao trabalho. Depois da perda do seu marido. Monk, estivera afastada durante várias semanas. Contudo, agora
parecia estar a recuperar, avançando de novo para a frente.
Saindo do quarto. Kat fechou a porta suavemente e juntou-se a Painter na sala de observação contígua. Várias cadeiras de costas altas rodeavam uma mesa de reuniões.
- Ela está a dormir. - Kat afundou-se numa das cadeiras com um suspiro.
- Talvez seja melhor ires dormir também. Ainda decorrerão algumas horas ate que o avião do Gray aterre na Índia.
Ela concordou com um aceno.
- Vou ver se está tudo bem com a baby-sitter que ficou a tomar conta da Penélope, depois vou-me deitar.
A porta do átrio exterior abriu-se. Ambos viraram-se para ver Lisa Cummings e o patologista do centro, Malcolm Jennings, entrarem na sala. Os dois, vestidos respetivamente
com a bata branca de laboratório e a bata azul de cirurgião, cochichavam entre si numa amena cavaqueira. Lisa trazia as mãos enfiadas nos bolsos da bata. o que fazia
com que os seus ombros se mantivessem hirtos, sinal de grande concentração. Fizera uma trança no seu longo cabelo louro. O par passara a última hora na sala da ressonância
magnética, a interpretar os resultados. A partir da sua acalorada conversa - cheia de jargões médicos, muito além da compreensão de Painter - tinham chegado à mesma
conclusão. embora não necessariamente a um consenso.
- A neuro modulação dessa escala sem um apoio celular glial? - perguntou Lisa com um abanar de cabeça. - A estimulação do núcleo basa-lis. claro, faz sentido.
- Ah. sim? - perguntou Painter, tentando captar a atenção dos dois.
Lisa parecia ter finalmente visto Painter e Kat. Os seus ombros relaxaram e as mãos libertaram os bolsos. Um sorriso silencioso cobriu-lhe o rosto no momento em
que o seu olhar se cruzou com o dele. Passou com uma mão pelos ombros de Painter quando se esgueirou por ele para se sentar numa das cadeiras.
Malcolm sentou-se na última cadeira que sobrava.
- Como é que está a criança?
- A dormir, por agora - disse Kat.
- O que é que já sabemos? - perguntou Painter.
- Que estamos a navegar por mares conhecidos e desconhecidos - respondeu Malcolm criticamente. Tirou um par de óculos, ligeiramente azulados para poder ler nas telas
de computador com uma menor tensão ocular. Colocou-os e abriu um computador portátil que trouxera consigo. - Compilamos as imagens da ressonância magnética da criança
e da minha análise ao crânio. As duas peças são as mesmas, embora a da criança seja mais sofisticada.
- O que são? - perguntou Kat.
- Na sua maioria, são geradores de EMT - respondeu Malcolm.
- Estimulação magnética transcraniana - especificou Lisa, embora isso não ajudasse muito,
Painter partilhou uma expressão confusa com Kat.
- Porque é que não começa pelo princípio? - perguntou. - E usa palavras mais simples.
Malcolm tocou na parte lateral da sua cabeça com uma caneta.
- Então vamos começar por aqui. O cérebro humano. Composto por trinta mil milhões de neurônios. Cada neurônio comunica com o seu vizinho por intermédio de sinapses
múltiplas. Criando aproximadamente um milhão de milhares de milhões de conexões sinápticas. Estas conexões, por sua vez, criam um grande número de circuitos neurais.
E quando digo grande, estou a referir-me a dez seguido de um milhão de zeros.
- Um milhão de zeros? - exclamou Painter.
Malcolm olhou por cima dos óculos para Painter.
- Para lhe dar alguma escala. O número total de átomos de todo o universo é apenas de dez seguido de oitenta zeros.
Perante a reação de espanto de Painter, Malcolm acenou.
- Por isso, existe uma grande quantidade de poder computacional encerrado nos nossos crânios que só agora estamos a começar a compreender. Ainda só arranhamos a
superfície. - Apontou para a janela. - Alguém lá fora tem andado a investigar de uma forma mais profunda.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Kat um tanto ou quanto preocupada com a garota.
- Com a nossa tecnologia atual, temos andado a apalpar terreno nesta nova fronteira, para ver até onde podemos ir. Tal como acontece quando enviamos sondas para
o espaço, assim temos andado a enfiar elétrodos nos cérebros. Todo o input que entra no cérebro é feito por intermédio de impulsos eletrônicos. Não vemos com os
nossos olhos. Vemos com o nosso cérebro. E por isso que os implantes na cóclea conseguem devolver a audição aos surdos. O implante transforma os sons em impulsos
elétricos, que passam para o cérebro por intermédio de micro elétrodos inseridos no nervo auditivo. Com o tempo, o córtex aprende a reinterpretar este novo sinal
e, tal como acontece quando se aprende uma nova língua, os surdos começam a ouvir.
Malcolm apontou com a cabeça para o seu computador portátil.
- O cérebro humano, sendo elétrico e maleável a novos sinais, tem uma capacidade inata para se conectar a máquinas. De alguma forma, isso toma-nos perfeitos ciborgues
à nascença.
Painter franziu as sobrancelhas.
- Aonde quer chegar com tudo isso?
Lisa colocou uma mão por cima da sua.
- Já chegamos. A divisão entre o homem e a máquina já foi atenuada. Agora temos microeléctrodos tão pequenos que podem ser inseridos nos neurônios individuais. Na
Universidade de Brown, em 2006, inseriram um microchip no cérebro paralisado de um homem, ligado por uma centena desses microeléctrodos. Ao fim de quatro dias de
prática, o homem era já capaz de deslocar um cursor de computador num ecrã, abrir o e-mail, controlar uma televisão e mover um braço robótico, e isso só através
dos seus pensamentos. Aqui está até onde conseguimos chegar.
Painter olhou para a Janela.
- E alguém foi mais longe do que isso?
Tanto Lisa como Malcolm acenaram afirmativamente.
- O aparelho? - perguntou Painter.
- Um passo à frente de tudo o que vimos até agora. Tem elétrodos com nanofilamentos tão pequenos que é difícil dizer onde termina o aparelho e começa o cérebro da
criança. Mas a função básica é bem conhecida. De acordo com os estudos efetuados pela Universidade de Harvard Junto de ratos, sabemos que os aparelhos de EMT promovem
o crescimento de neurônios - embora, estranhamente, apenas em áreas que envolvem a aprendizagem e a memória. Ainda não compreendemos porquê. Mas o que sabemos agora
é que a estimulação magnética pode também ligar e desligar esses neurônios como um interruptor. As crianças são especialmente maleáveis neste aspeto.
- Por isso, se é que estou a compreender tudo corretamente, alguém ligou tal aparelho à criança, estimulando o crescimento do nervo numa área específica, e agora
controla o seu funcionamento como um interruptor.
- Em termos gerais, sim - disse Malcolm. - Agiram profundamente sobre essa vasta rede neural que eu descrevi. Só com a estimulação magnética de novos neurônios,
conseguiram expandir ainda mais essa rede.
E, se não estou em erro, diria que centraram essa expansão numa área muito restrita.
- O que o leva a dizer isso?
- Há uma lei em neurologia. A lei de Hebb. Que afirma basicamente que os neurônios que disparam juntos, tendem a permanecer juntos. Estimulando um local no cérebro,
são reforçados cada vez mais.
- Mas com que fim? - perguntou Painter.
Malcolm partilhou um olhar preocupado com Lisa. Queria que ela explicasse.
Ela suspirou.
- Falei com o psicólogo, Zach Larson, que examinou a garota quando veio para aqui. Pela sua não resposta, comportamento repetitivo e sensibilidade à estimulação,
Zach está convencido de que a garota é autista. E, pelo comportamento que descreveu na casa segura, provavelmente uma autista sábia.
Painter lera também o relatório de Larson. Fora elaborado com alguma rapidez, mas fora ao cerne da questão. Socorrera-se de um pequeno conjunto de testes psicológicos,
incluindo um estudo genético sobre alguns dos indicadores típicos de autismo. O último ainda estava pendente.
Também incluíra uma compilação de dados sobre o tema dos autistas sábios, aqueles indivíduos raros que - embora comprometidos pelo seu distúrbio - apresentam focos
surpreendentes de talento. Uma aptidão profunda e limitada. Painter lembrava-se da personagem desempenhada por Dustin Hoffman no filme Encontro de Irmãos. A sua
habilidade era fazer cálculos de relâmpagos. Mas este era apenas um dos talentos sábios da lista de Larson. Outros incluíam cálculos de calendário, dotes de memorização,
talento musical, aptidões mecânicas e espaciais, discriminação extraordinária do cheiro, sabor ou audição, e também arte.
Painter visualizou o desenho do Taj Mahal. Fora esboçado em minutos, graciosamente desenhado à escala e com uma perspetiva perfeitamente equilibrada. A garota era
certamente talentosa.
Mas será que era mais do que isso?
A última informação constante na lista de talentos sábios de Larson era um relatório raro e controverso sobre alguns autistas sábios que demonstravam qualidades
extra sensoriais.
Painter não podia descartar que os desenhos da garota tinham levado os ciganos sem qualquer margem para erro à casa segura. Lembrava-se da discussão inicial com
Elizabeth, acerca do trabalho do pai sobre a intuição e o instinto, acerca da sua ligação com um projecto governamental ultrassecreto sobre a visão à distância.
Lisa prosseguiu.
- Pensamos que o aparelho pretende estimular essa área do cérebro onde residem os talentos sábios. E sabido que a maior parte do talento sábio surge do lado direito
do cérebro, o mesmo lado onde o aparelho está preso ao crânio e à garota. Mesmo com a tecnologia atual. não seria muito difícil localizar a região que regula este
talento. E, uma vez encontrada, a estimulação magnética podia amplificar essa área e controlá-la.
Painter ergueu-se horrorizado. Se Lisa e Malcolm estavam corretos, alguém estava a controlar as aptidões desta criança. Dirigiu-se para a Janela.
Quem fez isto à garota?
Kat juntou-se a Painter e apontou pela janela.
- Ela está acordada.
E estava a desenhar de novo.
A garota encontrara um bloco de notas e uma caneta de feltro preta na mesa-de-cabeceira. Estava a desenhar qualquer coisa, não de uma forma tão frenética como anteriormente,
mas continuava dobrada e concentrada sobre o papel.
Kat foi até a porta. Painter seguiu-a.
A garota não os reconheceu, mas quando entraram, o bioco e a caneta estavam em cima da cama. Começou de novo a balouçar-se.
Kat olhou para a obra de arte. depois recuou um passo dando um pequeno grito sufocado. Painter compreendeu a sua reação. Não havia engano possível em relação ao
que estava desenhado a tinta no papel, um retrato.
Era seu marido, Monk.
11h04
Montes Urais Meridionais
Federação Russa
Monk ajudou Pyotr ao longo de um tronco caído, que cruzava uma torrente profunda agitando-se vigorosamente sobre um emaranhado de rochas. O musgo crescia abundantemente
no tronco, juntamente com alguns cogumelos brancos de grande porte. Todo o lugar cheirava a umidade.
Kiska já estava do outro lado, ao pé de Marta, segurando na pata do velho chimpanzé. Monk queria fazer a próxima ascensão e passar para o vale vizinho.
Saindo do tronco, olhou para trás. Estavam a atravessar uma densa floresta de bétulas, cujos troncos revestidos de branco se assemelhavam a ossos secos. A folhagem
verde ia adquirindo aos poucos o seu tom flamejante.
Monk pegou numa das folhas vermelhas e esfregou-a com os dedos. Ainda macias, não secas. Primeira queda. Mas as folhas mutantes prometiam uma noite fria no meio
dos montes. Todavia, não ia haver neve. Largou a folha esmagada.
Como é que sabia isto tudo?
Abanou a cabeça. Tais respostas teriam de esperar. No entanto, achou perturbante a forma rápida como estava a ficar acostumado à desconexão entre a sua falta de
memória e o seu conhecimento do mundo. Por outro lado, estavam a ser perseguidos. Tinham de se movimentar depressa, avançar para longe no meio daquelas montanhas.
Através de murmúrios e sinais gestuais. comunicavam.
Monk observou o outro lado da torrente. Estavam a fugir há três horas. Tinha marcado um ritmo acelerado, tentando colocar a maior distância possível entre eles e
o local onde tinham saído do mundo subterrâneo. Não sabia quanto tempo iria ser necessário para que os perseguidores se apercebessem de que os foragidos tinham abandonado
a caverna e seguissem o seu rastro até aqui.
Monk esperou à beira do curso de água.
Onde estava Konstantin?
Como que atraído pelo seu pensamento, o rapaz mais alto apareceu a dançar pela encosta distante abaixo, tão flexível e firme como um jovem gamo. O seu rosto, no
entanto, apresentava uma máscara de medo, enquanto caminhava vagarosamente, de braços esticados, pelo tronco escorregadio.
- Consegui! - disse. Respirando pesadamente, saltou e aterrou ao lado de Monk. - Trouxe a sua camisa do hospital e joguei no rio no outro vale.
- Na água?
- Do outro lado do dique do castor. Como me disse para fazer.
Monk acenou com a cabeça. A sua camisa de hospital estava suja de sangue e transpiração. Um dos miúdos roubara-a do quarto, depois de ele se ter mudado. Fora uma
atitude esperta. Se tivessem deixado a camisa, os seus captores teriam sabido que ele tinha mudado de roupa.
Também podia proporcionar um rastro falso. Tinha sujado ainda mais a camisa limpando o suor da testa e dos sovacos. Fizera o mesmo com os miúdos e o chimpanzé também.
A veste oportuna devia deixar um rastro mais forte, um rastro falso. Se tudo corresse bem, o cheiro iria enviar os seus perseguidores na direção errada.
- Ajuda-me com isto - pediu Monk a Konstantin. inclinando o tronco que usaram para atravessar a torrente.
Juntos, conseguiram fazer com que o tronco balouçasse, mas não conseguiram deslocá-lo. Monk sentiu algo a bufar-lhe no rosto. Virou-se e viu Marta a dirigir-se para
o tronco. Com um simples empurrão, o chimpanzé fez rolar o tronco caído na torrente. Ela era forte. O tronco caiu com um forte chapão, depois foi levado pela torrente.
Monk viu-o a flutuar. Quantas mais formas pudessem arranjar para quebrar o seu rastro, melhor.
Satisfeito, Monk iniciou a caminhada.
Konstantin aguentou-se, mas Kiska e Pyotr tiveram grandes dificuldades. O caminho era íngreme. Monk e Marta ajudaram as crianças mais pequenas, rebocando-as nas
partes mais difíceis. Finalmente, atingiram o topo da ascensão. Lá à frente, mais montanhas espalhavam-se em todas as direções, a maior parte delas coberta por florestas
com alguns campos abertos. Para a esquerda, não muito longe, uma grande mancha de prata indicava a presença de um grande lago.
Monk deu um passo nessa direção. Com um lago como este, devia haver pessoas, alguém que os pudesse ajudar.
Konstantin agarrou-lhe no cotovelo.
- Não podemos ir por aí. Apenas a morte subsiste nesse lado. - Com a outra mão, apertou o dispositivo que trazia preso ao cinto, um monitor de radiações.
No meio de uma paisagem tão verdejante, Monk esquecera-se do perigo. Virou o dispositivo para cima. A sua superfície era branca mas. à medida que os níveis de radiação
fossem subindo, começaria a ficar cor-de-rosa, depois vermelha, depois carmesim, depois preta. Como aqueles testes de gravidez que se vendem nas farmácias...
Flashes fotográficos de memória atravessaram a sua visão.
... um rapaz sorridente de olhos azuis, dedos pequenos...
Depois, mais nada.
A cabeça doía-lhe. Passou com o dedo pela sutura delicada, por cima do barrete de lã. Konstantin olhou para ele com uns olhos franzidos de preocupação.
Kiska, que entretanto Monk soubera que era irmã de Konstantin, colocou os braços em cima da barriga.
- Estou com fome - murmurou, como se estivesse com medo de ser ouvida e mostrar a sua fraqueza.
Konstantin franziu as sobrancelhas na direção da irmã, mas Monk sabia que eles deviam comer qualquer coisa para manterem as forças. Depois da sua fuga precipitada,
precisavam de um momento para se reagruparem. para planearem alguma estratégia para além da fuga. Monk olhou para o lado enquanto tocava no dispositivo com os dedos.
Apenas a morte subsiste nesse lado.
Precisava de compreender melhor a situação em que se encontravam.
- Encontraremos um lugar para nos abrigarmos e comermos rapidamente - disse Monk.
Desceu para o vale seguinte. Uma série de pequenos lagos sucediam-se em cascata ao longo de uma cadeia de socalcos. O lugar cintilava com uma dezena de quedas de
água e cataratas. O ar cheirava a terra e a umidade. A meio caminho, um rochedo coberto de fenos sofrera os efeitos da erosão e proporcionava um excelente abrigo
debaixo de uma saliência. Levou as crianças até lá.
Agacharam-se e abriram as mochilas. Serviram-se de barras proteicas e água engarrafada.
Monk vasculhou a sua mochila. Nada de armas, mas encontrou um mapa topográfico. Desdobrou-o no chão. O título estava em cirílico. Konstantin pôs-se ao seu lado,
mastigando uma barra com aroma a manteiga de amendoim. Monk reparou que a paisagem montanhosa estava marcada com pequenos X.
- Minas - disse Konstantin. - Minas de urânio. - Passou com o dedo pelo título em cirílico. depois estendeu um braço para abarcar toda a área. - Os Montes Urais
Meridionais. O distrito de Chelyabinsk. Centro das fábricas de armas antigas. Muito perigoso.
O rapaz assinalou no mapa os lugares onde os símbolos de perigo radioativo marcavam o terreno.
- Muitas minas a céu aberto, velhas fábricas radioquímicas e de plutônio. Unidades de lixo nuclear. Todas fechadas, exceto uma ou duas. - Acenou com uma mão, apontando
para uma zona distante.
Monk murmurou com um abanar de cabeça, olhando para os símbolos de perigo.
- E eu que só queria saber onde estávamos...
- Muito perigoso, da - avisou Konstantin. Apontou com um braço na direção do grande lago. agora fora do ângulo de visão. - O lago Karachay. Um local de depósito
de resíduos líquidos do velho complexo atómico de Mayak. Se ficarmos uma hora ao pé do lago, dentro de uma semana estaremos mortos. Temos de dar a volta.
Konstantin inclinou-se para o mapa e assinalou o centro de um grupo de minas e centrais nucleares.
- Nós vimos daqui. A Toca. Uma velha cidade subterrânea. Cheliabinsk 88, onde milhares de prisioneiros foram albergados para trabalharem nas minas. Um dos muitos
lugares desse tipo.
Monk recordou-se dos edifícios de cunho industrial que vira na caverna. Obviamente alguém encontrara um novo uso para o lugar abandonado.
Konstantin prosseguiu.
- Temos de contornar o lago Karachay, mas não muito perto. -Olhou para Monk para ter a certeza de que este tinha compreendido. - O que significa que temos de atravessar
o pântano Asanov para chegar até aqui.
O rapaz apontou com o dedo para uma outra mina no outro lado do lago.
Monk não compreendeu. Não estavam a querer fugir, com a ideia de encontrarem alguém que os pudesse ajudar?
- O que é que há lá? - perguntou Monk, apontando com a cabeça para o lugar onde a mina estava assinalada.
- Temos de detê-los. - Konstantin olhou para Pyotr que estava aninhado ao lado de Marta numa cama de musgo.
- Deter quem? - Monk lembrava-se das palavras que o jovem rapaz lhe tinha dirigido.
Salvar-nos.
Konstantin virou-se para Monk.
- Foi para isso que o trouxemos até aqui.
11h30
O General-Major Savina Martov animou-se perante as crianças reunidas. Estavam no auditório principal da escola. Uma fotografia do americano brilhou no grande ecrã
LCD atrás dela.
- Alguém viu este homem escondido por aí esta manhã? - E capaz de estar vestido com uma roupa de hospital.
As crianças olharam inexpressivamente para ela dos seus bancos de madeira dispostos em fila. Todas elas tinham sido previamente retiradas dos seus dormitórios. Mais
de sessenta crianças estavam sentadas em filas, distribuídas pelas cores das camisas. As de camisas brancas estavam na última fila, correspondendo àquelas que possuíam
os indicadores genéticos mas demonstravam pouco talento. As cinzentas estavam no meio, algum talento, mas nada de especial.
Ao contrário das dez que partilhavam os lugares da frente.
Estas últimas tinham uniformes com camisas pretas. Classe Omega. Os poucos possuidores de um talento surpreendente. Os dez melhores, selecionados para servirem o
filho de Savina. Nicolas, nos tempos difíceis que se avizinhavam, para serem o seu conselho interino com Savina à cabeça.
Nicolas era um ponto negro para Savina, um desapontamento. Nascera camisa branca. Uma perda do dado genético. Savina sujeitara-se a uma inseminação artificial a
partir de um da primeira geração. Fora imprudente e pagara caro por isso. Atuara antes de compreenderem totalmente a genética. Houve complicações durante o parto.
Ela não podia ter mais filhos. Mas estabelecera um novo propósito para Nicolas, um propósito que traria uma verdadeira e duradoura mudança. Passou a ser o trabalho
da sua vida depois do nascimento de Nicolas.
E estavam tão perto.
Ela olhou para a fila de camisas pretas.
E para os dois lugares vagos na secção da classe Omega.
Uma criança desaparecera ontem à noite.
Pyotr.
A sua irmã desaparecera ao mesmo tempo de um parque zoológico na América. Savina ainda não ouvira nenhuma atualização da condição da garota por parte de Yuri. O
colega mostrava-se estranhamente silencioso, não respondendo sequer a um código de emergência que fora transmitido.
Algo estava a acontecer.
Precisava de respostas. A sua voz tornou-se mais aguda.
- E ninguém viu o Konstantin, a Kiska ou o Pyotr a saírem do dormitório? Ninguém?
De novo os olhares inexpressivos.
Um movimento no fundo da sala captou-lhe a atenção. Um homem com um ar atarracado entrou na sala e acenou para ela. O tenente Borsakov, segundo no comando. Estava
vestido com o seu habitual uniforme cinzento. incluindo um boné de aba preta e dura. Encontrara algo.
Até que enfim.
Virou-se para o trio de professores que estavam na parte lateral.
- Confinem-nos aos dormitórios. Sob estrita vigilância. Até o assunto estar resolvido.
Subiu as escadas e saiu do auditório, levando Borsakov na sua esteira. De cara inchada e ar amedrontado, o homem dava-lhe pelos ombros, o que não a incomodava nada.
Gostava de homens mais pequenos do que ela. Mas ele era um indivíduo portentoso e, por vezes, ela apanhava-o a olhar para ela com um ar esfomeado. O que também não
a incomodava nada.
Ele seguiu-a enquanto atravessavam a escola e se dirigiram para a saída. Uma vez lá fora, encontrou-se com dois dos seus homens. Um tinha um lobo russo ao seu lado
preso por uma corrente. Grunhiu e rugiu, arreganhando os dentes. O guarda puxou com força a trela, encurtando-a.
Savina manteve-se afastada da criatura. Uma mistura de lobo russo e lobo siberiano cuja forma musculada dava quase pelo peito de Borsakov. A besta provinha da sua
unidade de investigação animal - apelidada de Reserva. Era aí que experimentavam novos aumentos e testavam várias aplicações, usando todo o tipo de mamíferos: cães,
gatos, porcos, carneiros, chimpanzés. Também servia como um macabro zoo de animais de estimação para os habitantes da aldeia. Descobriram ao longo dos anos que os
animais ajudavam a estabilizar psicologicamente as crianças às quais se dedicavam. E é natural que a relação não fosse apenas humano-animal, mas também de aumento
para aumento, uma associação partilhada.
Até o lobo possuía uma peça de metal cirúrgica.
O aumento cobria a base do crânio do lobo, preso com parafusos de titânio e passível de ser ativado. Com um toque no botão do radiotransmissor, conseguiam provocar
a dor ou o prazer, aumentar a agressão ou docilidade, entorpecer os sentidos ou estimular o estado de alerta.
- O que é que encontrou, tenente? - perguntou ela.
- As crianças não estão na caverna - disse.
Ela parou e virou-se.
- Procuramos por toda a aldeia, até no complexo habitacional desertificado, mas quando aumentamos a área de busca, descobrimos um rastro de cheiro ao longo de um
muro traseiro, atrás do recinto dos animais. Conduzia a uma das portinholas de serviço que dão acesso à superfície.
- Foram lá para fora?
- Acreditamos que com o americano do hospital. O rastro das crianças vem do hospital.
Pelo menos respondia a uma questão. O americano não fugira ou raptara as crianças. Tudo levava a crer que fora o inverso. As crianças deviam-no ter ajudado a fugir.
Mas porquê?
O que é que o homem tinha assim de tão importante?
Era uma questão que inquietava Savina, desde que ele aparecera pela primeira vez à sua frente. Há dois meses, os serviços de informações russos tinham sido alertados
para a presença de um navio portador de uma praga, que havia sido pirateado nos mares da Indonésia. Fora incumbida de ver se as suas cobaias conseguiam encontrá-lo.
Um teste. Um teste que ela passara. Despoletadas, as doze cobaias ômegas tinham localizado a ilha onde o navio se encontrava detido. Um submergível russo fora enviado
para investigar e aparecera na lagoa no momento em que o navio se estava a afundar.
Fora uma vitória - até Sasha ter começado a escrevinhar com um fervor que quase destruía o seu aumento. Uma dezena de imagens, de uma dezena de ângulos, de um homem
a afogar-se, e a ser arrastado por uma rede. Crendo que se tratava de uma coisa significante - e estando ela própria curiosa -, Savina alertara os mergulhadores
russos. Já tinham os homens na água.
Encontraram o tal homem, quase inconsciente, preso numa rede. Apressaram-se a subir com a ajuda de trenós subaquáticos, colocaram uma máscara de oxigênio na sua
boca e levaram-no são e salvo para o seu submergível.
Savina ordenara para que trouxessem o homem para aqui, acreditando tratar-se de alguém importante. Mas, uma vez em Cheliabinsk 88, ele afirmou ser apenas um dos
eletricistas a bordo. Durante o interrogatório, o homem não lhe pareceu ser especialmente inteligente, apenas um bruto amedrontado de cabeça rapada, com um vocabulário
reles e sem uma mão. Sasha também não demonstrara qualquer interesse por ele. Nem os seus colegas da classe Omega.
Não fazia sentido, e o homem revelou ser um empecilho, apanhado um dia a escutar junto a uma mala de transmissão de superfície, ligada à sua mão protética. Não sabiam
o que estava a fazer nem que tipo de sinal enviara, mas, no final, acabou por não ter quaisquer repercussões. Por uma questão de segurança, a mão foi removida por
intermédio de uma intervenção cirúrgica.
Com o decorrer do tempo, Savina começara a acreditar que a intensidade da garota correspondera apenas a um medo infantil pela vida de um homem prestes a afogar-se.
Pondo de lado a questão, colocara o homem sob o cuidado do grupo laboratorial da Reserva. Andavam a estudar a memória e uma cobaia humana não era matéria-prima para
se desperdiçar.
Savina concordara com a cirurgia.
O que lhe haviam feito...
Ainda lhe provocava calafrios.
Mas agora ele tinha desaparecido - sumido com o irmão de Sasha, que também não estava presente. Que jogo estavam estas crianças a fazer?
Ela não sabia e, com os seus planos atrasados, não tinha tempo para descobrir.
- As suas ordens, General-Major?
- Procurem à superfície.
- Vou buscar todos os lobos - disse asperamente.
Ela deteve-o.
- Os lobos só não bastam.
Borsakov olhou para ela. franzindo as sobrancelhas com um ar inquiridor. Mas ele sabia o que é que ela queria que fosse feito.
- General-Major? E as crianças?
Ela afastou-se. Não havia tempo para ações subtis. Ainda tinha dez crianças. Isso seria suficiente.
Confirmou a sua ordem.
- Soltem os felinos, também.
11h45
Pyotr sentou-se entre as pernas de Marta. Os seus braços fortes e aconchegantes envolveram-no num abraço. Ele não gostava de ser tocado, mas não se importou que
ela o fizesse, O cheiro doce e terrestre da sua pelagem úmida aumentou à sua volta. Ouviu o barulho da sua respiração, sentindo o bater do grande coração na sua
própria espinha. Conhecia Marta desde pequeno. Estava acostumado a estes braços. Depois da primeira operação de Pyotr, aos cinco anos de idade, haviam-na levado
para o seu quarto.
Lembrava-se da sua grande mão. Assustara-o, mas ela ficava lá durante a maior parte do dia, com a sua cabeça pousada na extremidade da cama. olhando para ele. Por
fim. uma das suas mãos aproximara-se da dela. Os seus dedos deslizaram ao longo das linhas enrugadas da maná-pula do animal, curioso. Ela olhara para ele com os
seus grandes olhos castanhos, umedecidos e entendedores. Longos dedos envolveram os seus.
Ele sabia o que era.
Uma promessa.
Outros brincavam com ela, choravam nos seus braços, passavam longas noites sentados ao lado dela..., mas Pyotr ficou ciente de uma verdade essa manhã. Ela tinha
segredos que só ele sabia. E o seu segredo era também o dela.
No meio daqueles braços, olhou para a estranha floresta. Tinham autorização para virem até aqui, algumas vezes, para deambularem pela floresta com um professor,
para se sentarem no meio do silêncio. Mas continuava a assustar Pyotr. Um vento soprou através da floresta, batendo nos troncos e provocando a queda de folhas em
espiral. Observou-as e sabia que algo estava para chegar.
Ele não era como a sua irmã.
Mas umas coisas sabia. Inclinou-se mais para Marra, longe das folhas. O seu coração começou a bater mais depressa e o mundo desvaneceu-se, tudo exceto as folhas.
Caindo, contorcendo-se, dançando... aterrorizando...
Marta assobiou devagarinho ao seu ouvido. O que se passa de errado?
Estremeceu e tiritou. O seu coração estava na garganta, lançando um aviso à medida que as folhas iam caindo cada vez em maior número. Procurou nos espaços entre
as folhas. Konstantin contara-lhe uma vez como podia fazer multiplicações rápidas na sua mente.
Todos os números têm uma forma... até o número maior e mais comprido é uma forma. Por isso, quando calculo, olho para o espaço vazio entre aqueles dois números.
O intervalo também tem uma forma, composta pelos limites dos outros dois números. E esse espaço vazio também é um número. E esse número é sempre a resposta.
Pyotr não compreendeu totalmente. Não conseguia usar a matemática como Konstantin, nem resolver quebra-cabeças como Kiska, nem ver à distância como a sua irmã. Mas
Pyotr sabia que mais ninguém podia fazer o que ele fazia.
Ele podia ler corações... todo o tipo de corações.
Grandes e pequenos.
E algo estava para chegar, algo com corações negros e esfomeados.
Pyotr procurou entre as folhas que caíam enquanto o seu próprio coração, um coração pequenino, batia. Encheu no vazio um espaço de cada vez.
O suor cobria-lhe a testa. O mundo era só folhas a caírem e os espaços negros intercalares, rodopiando e agitando-se, aproximando-se dele. Lá longe, ouviu Konstantin
a chamar por ele.
Os braços de Marta envolveram-no com mais força - não para o proteger contra os outros, mas para o manter seguro. Ela conhecia também o seu coração.
Ele tinha de ver.
Tinha de saber.
Algo estava para chegar.
Encheu os espaços com manchas e sombras, com dentes e grunhidos, com o bater de uma patada no chão duro. Ele viu o que estava para chegar.
SEGUNDO
8
6 de setembro, 12h05
48 000 pés, no Mar Cáspio
Faltavam duas horas para o avião aterrar.
Gray olhou pelas janelas do Bombardier Global Express XRS. O dia avançava rapidamente, enquanto o avião particular rompia os céus. Durante o decurso da Jornada,
o Sol nascera para um novo dia, subira por cima das suas cabeças e começara a pôr-se outra vez atrás deles. Não tardariam a aterrar, viajando a uma velocidade supersônica.
O avião a Jato coletivo, modificado para o efeito, fora oferecido à Sigma pelo financeiro da aeronáutica, o milionário Ryder Blunt, por serviços prestados anteriormente.
Dois pilotos da força aérea americana forçavam os motores a tempo de largá-los na Índia por volta do meio da tarde, hora local.
Gray virou a sua atenção para o grupo reunido em tomo de uma mesa de teca. Permitira que toda a gente dormisse umas seis horas, mas a maior parte aparentava um ar
exausto. Kowalski ainda tinha a sua cadeira reclinada na horizontal, ressonando ao ritmo dos motores. Gray não viu qualquer razão para o incomodar. Podiam aproveitar
o tempo para dormir um pouco mais.
Concentrada no dossiê que tinha em frente, a única pessoa que não mostrava qualquer cansaço era a recém-chegada ao pequeno grupo. Perita em neurobiologia e neuro
química, as mesmas disciplinas de Archibald Polk, percebia-se porque é que Painter pedira a este membro da Sigma para se Juntar a eles.
A doutora Shay Rosauro tinha uma altura ligeiramente acima da média, uma compleição cor de canela a puxar para o moca, e os seus olhos âmbar-escuro refletiam em
laivos dourados a sua inteligência feroz. O seu cabelo preto, por altura do ombro, estava puxado para trás com uma fita preta. Servira na força aérea e, de acordo
com os seus registros, ela própria estaria em condições de pilotar o Bombardier. Usava até uma blusa de uniforme, com um grande cinto preto sobre as calças caqui,
e urnas botas.
E apesar de Gray nunca ter trabalhado com ela antes, parecia que já se tinha encontrado com Kowalski. Olhara surpreendida quando o homem grande aparecera à sua frente.
Kowalski sorrira, dando-lhe um grande abraço e entrando de seguida no avião. Seguindo-o olhara para trás para Gray com uma expressão do tipo deves estar a gozar.
Com toda a gente recuperada. Gray queria ter a sua equipe pronta para quando as rodas tocassem em solo indiano, especialmente tendo em conta a pessoa com quem se
iam encontrar.
- Elizabeth. o que nos pode dizer acerca do doutor Hayden Masterson? Qual era o nível de colaboração que o seu pai tinha com este professor de Mumbai?
Ela acenou com a cabeça, reprimindo um bocejo com a mão e ajeitando os óculos cm cima do nariz.
- Ele é originário de Oxford, na verdade. Formado em Psicologia e Fisiologia, especialista em técnicas de meditação e função cerebral. Encontra-se na Índia há já
trinta anos. estudando os iogues e místicos do país.
- Uma linha de pesquisa paralela à do pai.
Elizabeth acenou afirmativamente.
- Conheço o trabalho do doutor Masterson - disse Rosauro com uma surpresa moderada. - E uma pessoa brilhante, mas excêntrica, e algumas das suas teorias são polêmicas.
Foi um dos poucos investigadores a defender a tese da plasticidade do cérebro humano, controversa na altura, mas agora plenamente aceite.
- O que queres dizer com plasticidade? - perguntou Gray.
- Bem, até há bem pouco tempo, a neurologia tinha por base um velho dogma segundo o qual o cérebro humano permanecia imutável, com cada secção do cérebro a servir
um único propósito. Uma localização, uma função. Nas últimas duas décadas, o objetivo neurológico concentrou-se no mapeamento do cérebro em função daquilo que cada
uma das suas partes fazia. De onde vem a fala, que secção do cérebro lida com a audição, que neurônios fazem com que sintamos a mão esquerda ou controlemos o equilíbrio.
Gray acenou com a cabeça.
- Mas agora sabemos que o cérebro não é fixo, que estes mapas cerebrais são mutáveis, alteráveis. Ou, por outras palavras, plásticos. É esta fluidez de funções que
explica porque é que muitas das vítimas de ataques cardíacos são capazes de recuperar funções de membros paralisados, depois de uma parte do seu cérebro ter sido
destruída. O cérebro reconstrói-se a si próprio em torno dos danos.
Elizabeth acenou num gesto de concordância.
- O doutor Masterson estava a alargar a sua investigação ao estudo dos iogues. Através das capacidades destes místicos para controlarem o seu próprio metabolismo
e fluxo sanguíneo, procurava demonstrar porque é que o cérebro não só é mutável, mas também passível de ser treinado. Que a plasticidade do cérebro é moldável.
Rosauro inclinou-se.
- Com a possibilidade de controlar esta plasticidade, é todo um Admirável Mundo Novo que se abre para os neurologistas. Aumento da inteligência, possibilidade de
os cegos voltarem a ver, os surdos a ouvir.
Gray recordou o aparelho encontrado no crânio. Os surdos a ouvir. O aparelho tinha ar de ser um implante auditivo.
Gray perguntou a Elizabeth:
- O doutor Masterson disse quando é que tinha visto o seu pai pela última vez?
- O professor disse que me contaria mais coisas, mas que primeiro queria falar com as pessoas que tinham contratado o meu pai. Parecia assustado. Não consegui extrair
mais nada dele.
- Contratado o seu pai?
Luca Hearn, o último membro do grupo, falou, com o seu sotaque romani mais acentuado devido ao cansaço.
- Devia estar a referir-se ao nosso clã. Fomos nós que contratamos o doutor Polk.
Gray virou-se para o homem. Antes de aterrarem, Gray tencionava discutir o papel dos ciganos na história do doutor Polk. Ainda havia muitas coisas por explicar,
depois da fuga da casa segura. Como por exemplo, porque é que Polk optara por contactar Luca em vez de outra pessoa? Será que era alguma paranóia? Será que o professor
achava que não podia confiar em mais ninguém? Considerando que o seu assassínio fora seguido pela atuação suspeita de agentes do seu próprio governo, talvez o doutor
Polk tivesse razão.
- Como é que se envolveu com o professor? - perguntou Gray.
- Ele abordou-nos há dois anos. Pretendia colher amostras de DNA de alguns membros do nosso clã. Aqueles que praticavam pen dukkerin.
- Pen o quê?
Kowalski respondeu do seu leito provisório. Deixara de ressonar, mas mantinha os olhos fechados enquanto falava.
- Dukkerin. Predizer o futuro. Ler a sina, ver através de uma bola de cristal, essas coisas.
Luca acenou afirmativamente.
- É uma tradição do nosso povo. que data de há muitos séculos, mas o doutor Polk não queria ninguém que fizesse hokkani boro, o grande truque.
- Os impostores - acrescentou Kowalski. - Trapaceiros.
- O doutor Polk sabia que havia alguns no nosso clã que nós próprios respeitávamos pelas suas aptidões nesta arte. Os raros. Os verdadeiros chovihanis. Aqueles que
têm o dom. Aqueles de quem ele andava à procura.
Elizabeth endireitou-se.
- O meu pai estava a fazer o mesmo com os iogues na Índia. A recolher amostras de DNA, atento à mesma associação.
Gray lembrava-se de como o pai dela andara à procura desses casos raros de iogues e místicos já documentados, aqueles que demonstravam capacidades acrescidas de
intuição e instinto. A predição do futuro e a leitura de cartas de tarot dos ciganos encaixava-se nesse modelo. Mas o ângulo genético era novo.
Levantava outra questão na cabeça de Gray.
- Por que a súbita mudança dos iogues para os ciganos? Qual a relação?
Luca olhou para ele como se fosse estúpido.
- De onde acha que os clãs romani são originários?
Agora era a vez de Gray ficar confuso. Na verdade, não sabia muita coisa acerca dos clãs ciganos nômades, sobretudo das suas origens.
Luca reparou no seu ar confundido.
- Nem toda a gente conhece a nossa história. Quando os nossos clãs se deslocaram para a Europa, pela primeira vez, Julgaram que éramos oriundos do Egipto. - Esfregou
as costas da mão na sua face lustrosa. - Devido à nossa pele escura, olhos escuros. Chamaram-nos aigyptoi ou gyplians, o que mais tarde deu origem a gypsies em inglês.
Até há bem pouco tempo, nem mesmo os nossos clãs tinham a certeza das suas origens. Mas os linguistas descobriram que a língua romani tem as suas raízes no sânscrito.
- A língua da antiga Índia - disse Gray, surpreendido, mas estava a começar a compreender a relação agora.
- Somos oriundos da Índia. E a amaro haro them, a nossa terra natal ancestral. A Índia setentrional, para ser mais preciso, a região do Punjab.
- Mas porque é que iniciaram a vossa migração? - perguntou Elizabeth. - Segundo percebi da vossa história, passaram por tempos difíceis na Europa.
- Tempos difíceis? Fomos molestados, perseguidos, mortos. - A ira instalou-se na sua voz. - Morremos às centenas de milhares às mãos dos nazis, forçados a usar o
Triângulo Preto. Bengesko niamso! - O que se tratava claramente de uma imprecação contra os nazis.
Elizabeth ficou espantada com a sua veemência.
Luca abanou a cabeça, acalmando-se.
- Não se sabe muita coisa acerca do nosso passado mais longínquo. Até mesmo os historiadores não sabem ao certo a razão que terá levado os clãs a abandonarem a Índia.
De acordo com os registros mais antigos, sabemos que os clãs romani fugiram em determinada altura da Índia, no século X. atravessando a Pérsia e o império Bizantino.
A guerra afligia a Índia setentrional nessa altura. De igual modo, a Índia começara a adotar um estrito sistema de castas. Aqueles que se encontravam no patamar
inferior, sem direito a casta, eram considerados intocáveis. Deste grupo faziam parte os ladrões, os músicos, os guerreiros desonrados, mas também os mágicos, aqueles
cujos dons foram considerados heréticos pelas religiões locais.
- Os vossos chovihanis - disse Gray.
Luca acenou.
- A vida passou a ser insuportável, insegura. Por isso, os indivíduos sem casta reuniram-se em clãs e abandonaram a Índia, na direção do Ocidente, para terras mais
convidativas. - Fungou amargamente. - Ainda continuamos à procura.
- Voltemos ao doutor Polk - disse Gray, redirecionando a conversa. - Atenderam ao pedido do doutor Polk? Forneceram-lhe essas tais amostras?
- Sim. Um pagamento em sangue. Em troca da sua ajuda.
Gray observou o homem.
- Ajuda em quê?
A sua voz acendeu-se de novo.
- A encontrar algo brutalmente roubado. O verdadeiro coração do nosso povo. Nós...
O avião oscilou violentamente. Os copos elevaram-se no ar, tal como Kowalski. Irrompeu do interior da sua manta com um grito de surpresa. Gray, com o cinto apertado,
sentiu o estômago na garganta. Estavam a perder altura depressa.
O piloto falou através do intercomunicador.
- Lamento, amigos. Mau tempo pela frente.
O avião estremeceu todo.
- Apertem os cintos - continuou o piloto. - Aterraremos dentro de uma hora. Já agora, comandante Pierce, temos uma chamada terra-ar para si do diretor Crowe. Vou
passá-la.
Gray fez sinal a todos para ocuparem os seus lugares. Kowalski ergueu o assento e já estava a apertar o cinto.
Virando a sua própria cadeira para se afastar dos outros, Gray retirou o telefone do braço da cadeira e colocou-o junto ao ouvido.
- Comandante Pierce.
- Gray, pensei que era bom pôr-te ao corrente daquilo que a Lisa e o Malcolm descobriram acerca do aparelho preso ao crânio.
Enquanto Gray ouvia o diretor a falar sobre microeléctrodos e autistas sábios, olhou pela janela. Viu o Sol a pôr-se a ocidente, enquanto o avião avançava para oriente.
Recordou o pequeno rosto da garota, a sua fragilidade, a sua inocência.
Pelo menos estava salva.
Mas uma questão importunava Gray.
Será que havia outros como ela espalhados por aí?
12h22
Montes Urais Meridionais
Monk correu com Pyotr nos seus braços ao longo do leito do rio. O rapaz agarrou-se a ele. Os seus olhos continuavam vidrados, a face úmida, coberta de suor e lágrimas.
Kiska corria à frente, seguindo a passada longa de Marta, que caminhava apoiada nos nós dos dedos das duas mãos. Konstantin mantinha-se ao lado de Monk.
- Como é que sabes que aquilo que o Pyotr viu era real? - murmurou Monk a Konstantin. - Tigres? Se calhar não passou de um sonho, de um pesadelo acordado.
O rapaz mais velho virou-se ligeiramente e puxou o barrete de lã para cima. Afastou o cabelo de modo a poder revelar uma peça de aço curvada atrás da orelha.
- O senhor não foi o único que foi operado. - Voltou a pôr o barrete para baixo e apontou com a cabeça para Pyotr. - Aquilo que ele viu não foi nenhum sonho.
Monk fez um esforço para compreender. Konstantin Já tinha explicado como é que Monk viera parar aqui. resgatado de um navio prestes a afundar-se, em virtude de um
desenho feito pela irmã de Pyotr. Não fazia sentindo nenhum.
Talvez ele é que estivesse a sonhar.
Konstantin prosseguiu.
- Existem dois tigres da Sibéria na Reserva. Arkady e Zakhar. Os soldados caçam por vezes com eles na floresta densa. Javalis e alces. Eles são muito espertos. Difíceis
de enganar.
- A que distância e que se encontram? - perguntou Monk.
Konstantin falou em russo com o rapaz.
Pyotr respondeu na mesma língua. Enquanto falava, a sua voz ia adquirindo maior firmeza, libertando-se do seu transe.
Konstantin acenou finalmente.
- Ele só sabe que estão a chegar. Consegue detetar a sua fome.
Monk pressionou-os a seguirem pelo rio até um local onde o mesmo desembocava num outro mais largo. Ouviu a água a correr ainda antes de vero seu curso. Fluía sobre
um canal profundo. Se conseguissem atravessar...
Algo silvou no ar. Por cima das suas cabeças e no topo longínquo do vale apertado. Continuava a apitar, penetrando como uma sirene. Fez com que os seus dentes começassem
a doer e os ossos a vibrar. As crianças deitaram-se no chão, cobrindo as cabeças e rebolando de agonia. Marta assobiou e trotou à volta delas num círculo protetor.
Encolhendo-se com o barulho. Monk espreitou por entre os ramos de abeto. Algo pairava a meio caminho do vale que ficara para trás. Descia suportado por um para-quedas
vermelho, como um fogacho luminoso. mas transportava um objeto de metal redondo do tamanho de uma bola de basebol. O ruído estridente vinha daí. Uma espécie de chama
sônica. Trepando numa rocha, Monk vislumbrou outros projéteis vermelhos à distância. Mais fogachos.
Saltou da rocha para baixo.
Deviam estar a lançá-los ao acaso em todas as direções.
Um movimento frenético surgiu do outro lado da corrente.
Monk captou um movimento de pele de um tom castanho-amare-lado. O coração bateu-lhe com toda a força.
Tigre.
Em vez disso, duas cabras-monteses apareceram e, num movimento de cascos dançantes, afastaram-se a toda a velocidade. Monk sentiu o coração a subir-lhe à boca e
correu para as crianças. O forte estampido havia--as paralisado. Os perseguidores sabiam da hipersensibilidade das crianças e estavam a tentar imobilizá-las.
Monk levantou Pyotr com o seu braço amputado e atirou-o para cima do ombro. Puxou por Kiska e agarrou-a pela cintura, encavalitando-a nas suas ancas. Carregado.
Monk dirigiu-se até junto de Konstantin. tentando mover o rapaz.
Não podiam parar.
Marta interveio. Enfiou o nariz por baixo do peito de Konstantin e colocou um dos braços do rapaz por cima das suas costas. Suportando-o nos ombros, moveu-se lateralmente
na direção do rio cm baixo. As pernas do rapaz arrastavam-se atrás dela.
Monk seguiu-a com as outras duas crianças. Apesar de ensurdecido pela chama sônica, Monk ainda sentia os gemidos de agonia do rapaz. Acelerou o passo e atingiu o
curso do rio.
A água fluía através de um estreito de margens escarpadas, com uns quatros metros de largura. Corria agitada e gorgolejava alto o suficiente para abafar os cambiantes
mais agudos da chama sônica.
Monk acenou para Marta. Apontou para o rio em baixo. Ela deslocou-se nessa direção. Continuaram, serpenteando o curso de água. Ao fim de algumas curvas, os espinhaços
íngremes acabaram por bloquear o apito agudo.
Kiska parou primeiro. Libertou-se do braço de Monk e pôs-se de pé. Ainda tapava os ouvidos com as mãos. Konstantin não tardou a fazer o mesmo, libertando Marta,
que arfava e resfolegava, caminhando apoiada nos nós dos dedos.
Enquanto fugiam dos gritos, Monk foi olhando sempre para trás.
Esperando a qualquer momento ver um par de tigres movimentando-se a passos largos na sua direção.
Distraído, correu para Kiska, que tinha parado. Curvou-se e caiu de joelhos, largando o rapaz no chão.
Konstantin também tinha parado ao lado da irmã, detendo-se petrificado ao lado de Marta. Parecia que receavam mais alguma coisa, além dos predadores que seguiam
no seu encalço.
Atrás do par, um imponente urso castanho ergueu-se na margem do rio. Devia pesar mais de duzentos e cinquenta quilos, molhado do rio e visivelmente tenso com o barulho
estridente que provinha dos fogachos. Com os seus olhos pretos, olhou na direção do grupo. Ergueu-se nos .seus membros posteriores, perfazendo uns dois metros e
meio de altura, eriçando-se, roncando, expondo os seus dentes amarelos.
O urso pardo russo.
O símbolo da Mãe Rússia.
Com um rugido, caiu sobre as patas dianteiras e avançou na direção deles.
06h03
Washington. D. C.
O velhote acordou no meio da claridade. Fustigou seus olhos e atordoou seu cérebro. Gemeu e virou a cabeça. Teve ânsia de vômito. Fez uma respiração mais profunda.
Pestanejou para ver melhor e reparou que estava preso a uma cama. Embora estivesse coberto por um lençol, sabia que estava nu. O quarto era completamente branco,
asséptico, estéril. Nenhuma janela. Uma única porta com um pequena janela com grades. Fechada.
Uma figura estava sentada numa cadeira ao lado da cama, com terno, o paletó pendurado nas costas da cadeira, as mangas da camisa enroladas.
Tinha as pernas cruzadas, as mãos pousadas no colo.
Inclinou-se para a frente.
- Bom dia, Yuri.
Trent McBride sorriu-lhe sem o menor vestígio de simpatia.
Yuri olhou para o peito, lembrando-se de ter sido alvejado por um dardo tranquilizador. Observou em redor, ainda confuso, tonto.
- Foi-lhe administrado um contraestimulante - disse McBride. - Convém que se mantenha acordado, pois temos muito que conversar.
- Kak... ya... - balbuciou com dificuldade, sentindo a sua língua grossa e pastosa.
McBride suspirou, esticando-se na direção de uma mesa-de-cabeceira onde havia um copo com uma palhinha. Estendeu-o a Yuri para que bebesse um gole.
Ele não recusou. O líquido momo queimava como a vodca mais pura. Mas foi suficiente para pôr para trás as sombras que perduravam nas franjas dos seus pensamentos
e tirar a sensação pastosa que tinha na boca.
- Trent. o que está a fazer? - Yuri puxou pelas tiras que prendiam os seus braços.
- A tentar preencher os espaços vazios. - McBride carregou no botão de um intercomunicador na cabeceira da cama. - Como referi, não nos informou acerca de todos
os pormenores da investigação que está a decorrer em Cheliabinsk 88. Temos de corrigir esse lapso.
- O que quer dizer com isso? - Yuri tentou aparentar uma certa inocência, mas o tremor da sua voz fê-lo falhar redondamente. Tomara que fosse um homem mais forte.
- Hum - disse Trent. Inclinou-se para a frente e afastou o lençol que cobria Yuri. - Creio que nos devia inteirar da parte mais feia, para que pudéssemos falar como
verdadeiros colegas.
Yuri olhou para o corpo nu. Tinha a pele pálida marcada por pequenas ventosas, cada uma delas do tamanho de uma moeda de dez cêntimos, e encimada por um nó de componentes
eletrônicos do tamanho de uma ervilha, de onde sobressaía uma antena da espessura de um fio. Cobriam-lhe as pernas dos dedos às virilhas, os braços dos dedos aos
ombros. O seu peito era um tabuleiro de xadrez de ventosas.
Antes de poder perguntar o que era aquilo, a porta do quarto abriu-se e uma figura esguia entrou. Yuri teve de fazer um esforço para se recordar do seu nome. embora
tivesse acabado de conhecer o homem. O doutor James Chen. Tinham usado o gabinete do investigador para a reunião em Walter Reed.
A porta fechou-se. à prova de som.
Chen caminhou para eles. Transportava um computador portátil nos seus braços.
- Estamos todos calibrados.
Enquanto o homem puxava de uma cadeira e colocava o computador na mesa-de-cabeceira, Yuri conseguiu olhar para a tela antes de este ser desviado. Tinha uma figura
estilizada de um homem deitado e marcado por pequenos círculos brilhantes.
- Electro acupunctura - disse McBride. apontando com uma mão na direção das ventosas. - Microeléctrodos inseridos em pontos de acupunctura ao longo dos meridianos
principais. Não tenciono compreender na integridade. Isso cabe ao doutor Chen. Fez progressos notáveis usando esta técnica para aliviar a dor, permitindo a realização
de cirurgias complexas sem o recurso à anestesia. Um trabalho brilhante e a razão pela qual se tomou num Jason. Recrutei-o. posteriormente, para a nossa investigação
conjunta, devido ao seu uso inovador de microeléctrodos. Os microeléctrodos que costumava usar nas suas próprias cobaias.
McBride puxou por uma das antenas com um dedo. Yuri sentiu a dor cortante de uma picadela.
- Sabemos que aquilo que pode ser usado para amortecer a dor, nas circunstâncias corretas. pode também ser usado para amplificá-la.
- Trent... não... - implorou Yuri.
McBride ignorou-o, virando-se para Chen e apontando para uma das ventosas perto do Joelho, depois para uma segunda Junto das virilhas.
O investigador ergueu um marcador e desenhou uma linha na tela do computador.
A perna de Yuri empolou com uma dor agonizante. Um grito irrompeu da sua garganta. Era como se alguém o tivesse cortado com uma faca do Joelho até as virilhas, dilacerando
o músculo até o osso. Depois terminou tão subitamente como começara.
Gemendo. Yuri olhou para baixo. Estava à espera de ver o sangue a escorrer, a carne a fumegar. Mas só havia pele pálida.
McBride acenou outra vez para a área das ventosas.
- Podemos fazer o mesmo unindo qualquer um destes pontos. Seguindo qualquer padrão. Podemos esfolá-lo vivo sem tocar num pelo. Uma operação virtual com toda a dor.
- Pooor quê?
McBride olhou para ele outra vez. Apesar de o seu rosto aparentar uma certa suavidade, os seus olhos transmitiam uma expressão feroz.
- Terei respostas, sim? Comecemos por aquilo que tem mantido em segredo acerca das crianças.
- Eu não...
McBride virou-se para Chen.
- Não! - gritou Yuri.
McBride inclinou-se para ele.
- Então não vamos brincar. Fomos capazes de reproduzir os seus aumentos sem qualquer tipo de dificuldade. Os esquemas providenciados pela sua equipe eram muito precisos.
Mas. no final, pouco inovadores. Apenas um sofisticado aparelho de EMT. Tentamos duplicar os seus resultados, usando duas crianças sábias autistas no Canadá. As
nossas experiências foram... bem. digamos que um desapontamento.
Yuri encolheu os músculos. Com que então os Americanos estavam mais perto do que Savina suspeitava. Já se deviam ter apercebido do caráter único daquilo que .se
estava a passar em Cheliabinsk 88.
- Então - perguntou de novo McBride -. o que é que nos tem andado a esconder?
Yuri hesitou durante algum tempo. Uma dor pungente dilacerou-lhe o peito. Os músculos entraram em espasmos, as costas arquearam-se na cama. Gritou tão alto que nenhum
som saiu.
No momento em que a dor foi inibida. Yuri tremeu e oscilou com as réplicas do choque. Sentiu sangue na boca. Não se atreveu a esperar mais. Que importância tinha
se os Americanos descobrissem? Já era demasiado tarde.
- DNA - murmurou. - E o seu DNA.
McBride aproximou-se mais.
- O que quer dizer com isso?
Yuri engoliu em seco, tentando recuperar o ar.
- O segredo reside na genética das cobaias. Nós próprios só descobrimos isso há doze anos.
Yuri foi explicando aos poucos e poucos, questionado repetidamente por McBride. Relatou a descoberta em 1959 de um grupo excecional de talentos sábios, um grupo
de crianças ciganas. Uma linha genética que acompanhava a história dos ciganos. Os chovihanis. Os clãs mantinham esta linha secreta e procuravam preservá-la através
da consanguinidade, o que provocava aberrações genéticas. Explicou como os Russos tinham roubado essa herança genética para estudos posteriores, tencionando incorporá-la
na sua própria investigação no âmbito da parapsicologia.
- Mas não havia nada de místico - explicou Yuri. - As crianças eram meramente sábias... embora sábias a um nível prodigioso. Tentamos aumentar as suas capacidades:
primeiro através da procriação, depois da bioengenharia. Mas. ao longo dos anos, à medida que os testes genéticos iam sendo aperfeiçoados, fomos capazes de detetar
o que tomava as crianças únicas.
McBride aproximou-se mais.
- O autismo é desencadeado por uma mistura de fatores ambientais, juntamente com um número variável de dez genes. O que descobrimos era que o grupo mais forte de
sábios, as nossas cobaias ômegas, transportavam um grupo específico de três genes. Três marcadores genéticos. Quando apareciam na sequência certa, juntamente com
um autismo ligeiro a moderado, estavam criadas as condições para o aparecimento de um talento sábio surpreendente.
- Que por sua vez aumentavam - disse McBride. - Criando um turbilhão perfeito de genética e bioengenharia.
Yuri acenou afirmativamente.
- Brilhante. Verdadeiramente brilhante. Por conseguinte, ainda bem que usamos o Archibald para atrair uma das vossas cobaias ômega para o exterior. E mais uma razão
ainda para nos apropriarmos dessa garota.
Yuri ficou espantado. A preocupação invadiu-lhe o corpo.
- Não têm a Sasha convosco?
McBride franziu o sobrolho e recostou-se na cadeira.
- Não, mas nesta última hora, conseguimos saber onde é que ela poderá estar. E parece que esse mesmo grupo enviou uma equipe para seguir o rastro do Archibald. Felizmente,
tomamos medidas para apagar esse rastro por completo.
- Quem... quem é que tem a Sasha?
- Quer saber? - McBride olhou com raiva para Yuri. Era evidentemente um ponto sensível para o homem. - Vou mostrar-lhe.
Apontou para Chen.
Não!
O peito de Yuri ergueu-se como que atingido por um raio, demarcado por linhas irregulares ao longo do peito, unindo todos os pontos, formando um símbolo entrecortado
no peito, uma letra, uma agonizante letra grega.
McBride rosnou perante a agonia de Yuri.
- Eles não serão um problema por muito tempo.
14h04
Agra, Índia
Apesar do fascínio que o seu pai tinha pelo país, Elizabeth nunca estivera na Índia. Olhou para fora da táxi-van enquanto se afastavam do aeroporto. As Janelas estavam
abertas, mas pouco aliviavam da canícula. bem perto dos quarenta graus.
O tráfego deslocava-se a passo de caracol, serpenteando pelo meio de riquixás puxados por bicicletas e até por um camelo. Estava suficientemente próxima de um táxi
vizinho, cujas Janelas se encontravam igualmente abertas, para conseguir absorver o cheiro do charuto fino que o condutor se entretinha a mordiscar, O fumo cortava
que nem uma faca por entre a mistura densa de caril, imundície e gordura alimentar que inundava a cidade. O condutor vizinho pôs-se a bufar de raiva no meio do trânsito,
pressionando a buzina com a base da mão.
O barulho mal se ouviu, por cima do caos, ainda mais acentuado por um festival que se ia desenrolando à frente, abrilhantado pelo som dos címbalos. Por toda a parte,
os peões enchiam os passeios e caminhavam por entre os carros que se arrastavam, lutando por um espaço ao lado das bicicletas e motorizadas.
Elizabeth sentiu a respiração a ficar mais pesada, o peito constrangido - não da umidade e do calor mas da pressão da humanidade. Não era normalmente claustrofóbica,
mas o barulho, a vibração constante, o apregoar e gritar de tanta gente, invadiram-na por completo, espartilhando--a. Cerrou as mãos em cima dos Joelhos.
Por fim, através da utilização Judiciosa da sua própria buzina, o condutor do táxi lá conseguiu escapar por um buraco e virar no cruzamento seguinte. Dobrou a esquina
e o caminho abriu-se numa via ampla que conduzia diretamente ao centro da cidade.
Elizabeth suspirou de alívio.
- Até que enfim - disse Kowalski ao lado dela. interpretando o que lhe ia na alma. - Devíamos ter alugado uma van. Conseguia chegar mais depressa.
O homem grande mantinha-se encostado a ela, mas pareceu ter notado a sua aflição e procurou afastar-se, o que não ajudou o outro passageiro que partilhava a mesma
fila.
Ao lado de Kowalski, Shay Rosauro deu uma cotovelada ao homem grande, tentando arranjar mais espaço. Tinha o rosto a brilhar de suor. Aproveitara o tempo que tinham
estado presos no tráfego para tirar a fita preta que lhe prendia o cabelo e colocá-la de modo mais eficiente atrás das orelhas.
Gray, que estava sentado na fila da frente da van. inclinou-se para o motorista e apontou. O motorista acenou. Gray voltou a recostar-se.
O último membro do grupo sentado na fila de trás da van, Luca Hearn, mantinha uma expressão impenetrável, mas os seus olhos escuros pareciam estar a observar algo.
Enfiara dois punhais nuns estojos que trazia Junto aos pulsos, antes de saírem do avião, preparado para uma recepção menos calorosa na terra do seu povo.
Gray virou-se no assento.
- Estaremos no hotel dentro de dez minutos - disse-lhes.
O táxi avançou depressa até o sítio onde a rua terminava. Junto ao rio Jumna. As suas águas brilhavam como aço azul à luz do Sol. bordejadas por palmeiras. À esquerda,
erguia-se uma imponente fortaleza de arenito vermelho, com parapeitos altos e paredes grossas. Ao atingirem o curso de água, afastaram-se do forte e seguiram a curva
do rio.
O trânsito abrandou de novo. mas poucos minutos depois, a vista espraiou-se à esquerda, revelando uma extensa área de prados. Jardins, piscinas e manchas arborizadas.
A cintura verde ladeava as margens do rio mas a verdadeira maravilha parecia pairar acima de tudo, como uma nuvem de mármore branco destacando-se no meio do azul
do céu.
O Taj Mahal.
O mausoléu era uma maravilha da engenharia e da arquitetura. Mas, por agora, parecia-se mais com um sonho, brilhando e flutuando no céu. Construído há três séculos
pelo imperador mogul Jahan. para assinalar o local de descanso da sua esposa favorita, era para muitos um testamento à eternidade do amor.
Mas não era o destino deles.
O táxi desviou-se para o lado e parou Junto a um edifício branco de cinco andares, com as suas Janelas em arco, o Hotel Deedar-e-Taj. Era aqui que se iriam encontrar
com o doutor Hayden Masterson.
- O restaurante fica no topo - disse Elizabeth enquanto saíam. Olhou para o relógio. Estavam meia hora atrasados.
Gray pagou ao motorista e passaram por um repuxo antes de entrarem no hotel, gloriosamente refrescado pelo ar condicionado.
- Kowalski - disse Gray, apontando para a recepção -. você e o Luca ficam de olho nos quartos. Nós vamos Já lá para cima. - Acenou para Elizabeth e Rosauro.
Kowalski suspirou pesadamente, mas murmurou qualquer coisa relacionada com um chuveiro frio. Deteve-se por um momento, junto de Elizabeth. enquanto Gray se virava
na direção do elevador.
- Está bem? - murmurou-lhe ao ouvido.
- Eu?
- No táxi. Pensei que... parecia um pouco... - Encolheu os ombros.
- Era por causa do calor... talvez nervos - murmurou.
- Tenho o que precisa. - Inclinou-se de forma conspiradora para ela e abriu o casaco de modo a revelar dois charutos no bolso interior. - Cubanos. Do duty-free no
aeroporto.
Ela sorriu-lhe. Quase que lhe apetecia beijá-lo.
Antes de poder dizer alguma coisa, o elevador soou atrás dela. Gray disse-lhe para se apressar.
Kowalski endireitou-se e fechou o casaco. Piscou-lhe o olho enquanto se virava. Piscara mesmo. Quem é que ainda piscava o olho? Contudo, o sorriso ainda permanecia
nos seus lábios no momento em que se virou para Gray e Rosauro.
Gray fê-la entrar e carregou no botão para o último andar.
- Há mais alguma coisa que devamos saber acerca do doutor Masterson? - perguntou-lhe.
- Não fale no Manchester United - murmurou.
- A equipe de futebol?
- Confie em mim. ou nunca mais ouvirá uma palavra acerca do meu pai ou da sua investigação. Também não o pressione. Deixe que seja ele a conduzir as coisas.
As portas do elevador abriram-se para uma visão um tanto ou quanto estranha. Um grande restaurante ocupava o andar de cima, escassamente povoado àquela hora. As
mesas estavam postas com toalhas de pano e porcelana fina. Um cheiro a caril e a alho pairava de forma tentadora no ar.
Mas o que era invulgar era que todo o restaurante pirava lentamente. Girava de forma a proporcionar uma vista panorâmica da cidade, incluindo o Taj Mahal.
Numa mesa, junto a uma das janelas, um homem alto levantou-se do lugar. Ergueu um braço e depois baixou-o, batendo no relógio de pulso.
Elizabeth sorriu e caminhou na sua direção. entrando na plataforma giratória. Pareceu-lhe um pouco desconcertante de início, mas lá conseguiu conduzir os outros
por entre os grupos de mesas vazias. Alguns empregados de colete dourado acenaram, cumprimentando-os.
Já tinham decorrido vários anos desde que vira pela última vez o doutor Masterson. Continuava a usar o seu característico terno formal branco, estilo colonial, com
um panamá de abas largas que permanecia em cima de uma mesa vizinha. Havia também uma bengala, com um cabo de marfim esculpido em forma de uma ave branca. O cabelo,
por altura dos ombros, também era branco, combinando com o terno, pormenor que não lhe desagradava de todo. O rosto tinha um ar duro, curtido, com um bronzeado que
muito provavelmente nunca mais desapareceria.
Elizabeth fez as apresentações formais. A doutora Shay Rosauro exprimiu a honra que era conhecê-lo, fato que conseguiu mudar a sua expressão irritada para algo parecido
com um cumprimento de boas-vindas. As mulheres eram o ponto fraco de Hayden, especialmente quando se tratava de uma atenção vinda da parte de alguém com membros
tão delgados e flexíveis como a doutora Rosauro. O pai de Elizabeth dera a entender uma vez a razão pela qual o professor se deixara ficar pela Universidade de Mumbai
em detrimento da sua permanência em Oxford ou Cambridge. Tudo indica que teria a ver com um assunto desagradável relacionado com uma aluna universitária.
Hayden fez-lhe sinal para se sentarem, certificando-se de que a doutora Rosauro ficava ao seu lado. No momento em que o fizeram, o restaurante tinha girado de modo
a permitir uma visão surpreendente do Taj Mahal.
Hayden reparou na atenção deles.
- O mausoléu dedicado a Mumtaz Mahal. mulher do imperador Jahan! - disse com uma certa petulância. - Essa mulher tão amada conseguiu quatro promessas do fulano.
- Enumerou-as com os dedos. - Construir um grande túmulo para ela, claro. Segundo, que voltaria a casar. Que mulher, hem? Terceiro, que seria sempre gentil para
com os filhos de ambos. E, por último, que Jahan visitaria o seu túmulo todos os anos. pelo aniversário da sua morte. O que ele honrou, até o dia em que foi enterrado
no Taj ao lado da sua querida mulher.
- Um verdadeiro amor - disse Rosauro, contemplando a beleza do mausoléu.
- E o que é uma história de amor sem um pouco de sangue derramado? - disse Hayden, batendo na mão de Rosauro. Deixou ficar a mão. - Parece que Jahan mandou cortar
as mãos de todos os seus artesãos, após a conclusão do túmulo, para se assegurar de que nunca mais construiriam um monumento com tanta graciosidade como o Taj Mahal.
Ao lado de Hayden, Gray movimentou-se, claramente ansioso por começar a falar daquilo que os tinha levado até ali. obrigando-os a viajar em torno do mundo. Elizabeth
fez um sinal a Gray com o pé avisando-o.
Os seus olhos cruzaram-se.
Não o pressione, comunicou silenciosamente.
Enquanto olhava em redor, a orelha direita de Hayden rebentou com um jato de sangue - no momento exato em que um forte estampido soou como um cristal a partir-se.
Gray e Rosauro deslocaram-se em simultâneo, enquanto Elizabeth se mantinha paralisada no lugar. Rosauro arrastrou Hayden para o chão; Gray caiu em cima de Elizabeth.
Esta última conseguiu vislumbrar um buraco perfeito no vidro da Janela atrás de Hayden, a partir do qual o vidro começou a estalar.
Enquanto caía, mais buracos apareceram, com o vidro a estalar de forma sonante - depois tocou no chão, com Gray por cima dela.
- Não se levantem!
Deixou-se ficar estendida, no momento em que uma saraivada de tiros atingia o restaurante, vinda de um atirador instalado num telhado adjacente. Os vidros de cristal
começaram a estilhaçar. Um dos empregados girou, como que pontapeado. e caiu estatelado no chão. O sangue cobriu o chão ladrilhado.
Gray instigou-a a gatinhar. Mas Elizabeth estava com muito medo de se mexer. O atirador não conseguiria alcançá-la, se continuasse onde estava. Gray corrigiu-a.
- Ele está a confinar-nos ao chão! - gritou a Elizabeth e a Hayden, que também parecia incapaz de se mover. - Tentando manter-nos aqui!
Elizabeth compreendeu o que isso implicava. Pôs-se de gatas. Tinham de sair dali. Agora.
Mais atiradores estavam a caminho.
9
6 de setembro, 13h01
Montes Urais Meridionais
No momento em que o urso atacou, o homem grande atirou com Pyotr para a margem inclinada do rio. Com os braços estendidos, o rapaz bateu com força e rolou. Os ramos
partiram-se algo arranhou o seu rosto. Pyotr caiu na direção do rio, remexendo-se por entre os fetos molhados e tapetes escorregadios de caruma. Não sabia nadar.
A água aterrorizava-o.
Grilos mais agudos sobrepuseram-se ao rugido do urso.
Os seus amigos.
Konstantin e Kiska.
O joelho de Pyotr embateu numa rocha com uma dor tão violenta que lhe irradiou pela coluna. Aterrou espalmado no extremo da margem. A água chegou-lhe ao nariz.
Contraiu-se ao ver o seu reflexo nas águas escuras. A sua imagem flutuou e moveu-se, brilhando e faiscando à luz do Sol, enquanto uma forte brisa agitava os ramos
que se debruçavam sobre o rio.
Pyotr deixou-se ficar ali. nesse momento vivo de terror, debruçado sobre a água escura e perturbadora.
Não tivera nenhum aviso do urso pardo até o momento em que este se erguera à frente deles. O coração dócil do animal fora suplantado pela fome que os perseguia,
o seu batimento constante abafado pela sirena estridente que ecoava atrás deles.
Contudo, o terror de Pyotr aumentou ainda mais.
Não por causa da água.
Não por causa do urso.
A luz e a escuridão rodopiavam debaixo dele. Óleo na água.
Não o urso.
Não o urso.
Arfou de medo.
O urso não era o perigo.
Outra coisa...
13h02
Monk ergueu a sua mochila, a sua única arma, no momento em que o urso caiu sobre ele. Atirara Pyotr para a água e as outras duas crianças para o meio dos arbustos
no outro lado. Marta saltou para um ramo baixo e desceu até junto de Pyotr.
Monk gritou e brandiu a sua mochila bem alto.
O urso movimentou-se rapidamente na sua direção. Monk agitou a mochila com força e deu um salto para o lado. Demasiado tarde. Enquanto ele fugia, o urso ainda atingiu
as suas pernas, como um comboio de mercadorias, virando Monk de lado. A mochila ricocheteou nos ombros peludos do animal sem produzir qualquer efeito.
Monk bateu de través no tronco de um larício, estatelando-se na sua base. Com o vento por ele libertado, arfou e pôs-se de pé, levantando os braços para proteger
o rosto e a cabeça.
Mas o urso ignorou-o e continuou a avançar na direção das cabras monteses.
Monk voltou para o caminho, cambaleando. Trinta e cinco metros adiante, viu o urso a atirar-se para cima de duas formas sombrias que aí se escondiam. Dois lobos
altos de membros esguios e um ar raivoso. O urso deu uma sapatada com a sua portentosa garra e lançou um lobo pelo ar, confundido. O outro atirou-se à garganta do
urso, mas foi recebido por uns dentes amarelos e um violento grito de raiva. O lobo uivou, mas continuou a lutar.
Monk reparou na peça de aço na parte de trás do crânio dos lobos. Caçadores da cidade subterrânea. Podia haver mais.
Monk reuniu rapidamente Konstantin e Kiska. Marta apareceu, com Pyotr encavalitado nas suas costas. Monk pegou no rapaz e apontou.
- Corram! - murmurou.
Partiram juntos. Se houvesse mais caçadores no caminho atrás deles, teriam de passar pelo urso. O que oferecia alguma proteção.
Monk olhou para trás enquanto a batalha continuava no meio de urros e uivos. O urso reagira com uma agressão súbita e mortífera, respondendo com uma hostilidade
cega que rondava a fúria. Será que o urso já tinha tido contato com estes lobos? Será que os soldados costumavam andar pela floresta com eles? Ou era algo mais crucial,
uma reação a uma afronta contra a natureza. Como uma leoa a matar rapidamente uma cria deformada.
De qualquer modo, dava a Monk e às crianças algum espaço de manobra.
Mas por quanto tempo?
14h28
Agra, Índia
Gray reuniu toda a gente em tomo do restaurante destruído. Sem um alvo predefinido, a descarga ininterrupta do atirador limitava-se agora a detonações soltas, suficientes
para os manter imobilizados no chão.
Gatinhando, Gray procurou a saída de emergência. A escada era ao lado do elevador. Não se podiam atrever a usar o elevador. Quem quer que tivesse preparado esta
emboscada certamente que teria pessoas colocadas na entrada, observando a saída principal e a zona do elevador.
Chamar o elevador só iria alertar quaisquer homens colocados lá em baixo. Estavam armadilhados. A única esperança era usarem as escadas para alcançarem outro piso
do hotel e reunirem-se num dos quartos.
O caminho para as escadas ficara baralhado com a rotação do chão, mas Gray sabia que o movimento tinha salvo também a vida do doutor Masterson. A primeira bala era
para ter apanhado a parte de trás do crânio do professor. A rotação do chão deverá ter desviado o alvo do atirador, transformando um tiro fatal num pequeno arranhão.
Gray tinha de dar algum crédito ao velhote. Depois do choque inicial, parecia bastante amedrontado. Pressionou um guardanapo de pano contra a orelha, já empapada
em sangue. Conseguira, de alguma forma, agarrar no chapéu, que colocara enviesado por cima da cabeça. Rosauro manteve-se ao seu lado. transportando a bengala com
cabo de marfim do homem.
Gray e Elizabeth atingiram a parte fixa da entrada do restaurante, seguidos de imediato por Rosauro e Masterson.
- As escadas - disse Gray.
- E para já.
Rosauro atravessou a entrada em dois passos de corrida, depois deslizou rente ao chão até a porta, como um jogador de basebol a roubar a base principal. Tirou suavemente
uma Sig Saiier semiautomática de um coldre no tornozelo. Ajoelhada, estendeu o braço, agarrou no puxador e usou o ombro para manter a porta aberta, o suficiente
para cobrir com a pistola e observar as escadas.
Gray ouviu o barulho imediatamente. Botas trepando pelas escadas de ladrilhos. Muitas botas.
- Sete a dez - avaliou Rosauro.
Não iam chegar a tempo.
- Detém-nos - ordenou Gray dirigindo-se para o elevador.
Reparando no seu destino, Elizabeth tentou chegar a um dos botões de chamada, mas Gray impediu-a de o fazer. Segundo indicava o mostrador luminoso por cima das portas,
o elevador ainda se encontrava lá em baixo na entrada. Estaria certamente sob vigilância.
Gray correu para uma das zonas de serviço do restaurante e encontrou uma faca de cortar carne e uma mão-cheia de toalhas de mesa dobradas. Regressou ao elevador
e colocou a faca entre as portas. Pressionou a lâmina de modo a encaixar os dedos e a ponta de uma bota no intervalo. Com um único puxão, conseguiu abrir as portas.
Nesse momento, ouviu-se o estampido de uma pistola - seguido de um grito de surpresa e de dor vindo das escadas. Seguiu-se uma pequena troca de tiros. Mas Rosauro
estava num nível superior. Gray não sabia por quanto tempo essa vantagem duraria. Se eles se precipitassem para o seu posto, seria aniquilada.
Tinha de se despachar.
Do outro lado das portas abertas, o fosso do elevador estava escuro que nem breu. Dois cabos oleados oscilavam. Havia também uma escada de serviço em metal de um
dos lados.
Não teriam tempo para subir.
Gray passou as toalhas a Masterson e a Elizabeth. Mostrou-lhes como entrapar as mãos com elas.
- Não estão muito longe - assegurou-lhes. apontando para os cabos. - Segurem-se com força e travem com os sapatos. Tentem não fazer muito barulho quando chegarem
lá baixo. Esperem lá por nós.
Recebeu um aceno preocupado de Elizabeth e um revirar de olhos de Masterson. Mas o tiroteio desencorajava qualquer dissidente. Elizabeth lançou-se primeiro. Esticou-se
com as mãos entrapadas e saltou para os cabos. Com um pequeno grito, deslizou pelo fosso.
Uma vez desaparecida no escuro, Masterson seguiu-a. prendendo a bengala no cinto das calças, tal qual uma espada numa bainha. Era alto e tinha as pernas suficientemente
compridas para poder chegar aos cabos com um simples estender de braços.
E lá se foi.
- Desce agora! - disse-lhe Rosauro. Não chegou a virar-se, tendo disparado duas pequenas balas. - Vou já atrás de ti.
- O trinco do elevador...
- Agora. Pierce!
Gray não queria discutir com uma mulher... especialmente com uma arma na mão. Entrapou as mãos. saltou e segurou no cabo. Deslizou com um grito para Rosauro.
Antes de o seu grito ter sequer terminado, ela apareceu junto à porta de patamar do elevador, destacada contra a luz. Lançou-se para a escada de serviço, puxou o
trinco interior e fechou as portas do elevador. A escuridão engoliu Gray enquanto deslizava pelo cabo. Sentiu a Unha a estremecer no momento em que Rosauro se juntou
a ele na descida.
Os olhos de Gray rapidamente se acostumaram ao escuro. Uma luz fraca filtrava-se através das portas de cada andar. Enquanto escorregava pelos vários andares, contando-os
até lá baixo, descortinou a caixa sombria do elevador. Duas figuras encontravam-se agachadas num dos cantos.
Uma ligeira chama brilhou no escuro.
O isqueiro de Elizabeth.
Gray travou a sua descida e aterrou com suavidade no topo do elevador.
Momentos depois, Rosauro apareceu ao lado dele.
Gray descobriu a portinhola de serviço. Removeu a sua própria arma e abriu a portinhola o suficiente para poder espreitar. A cabina estava vazia em baixo, com as
portas fechadas. Fez sinal aos outros para permanecerem em cima.
Agarrando-se à borda da portinhola com uma mão, Gray deu um salto lá dentro e caiu de cócoras, com a arma erguida. Procurou o botão que abria as portas. Ouviu gritos
de pânico vindos da entrada. O tiroteio transformara o hotel adormecido num local pleno de vida.
Muito bem.
O caos poderia ser-lhes útil.
Gray carregou no botão e as portas abriram-se. Saiu a correr lá de dentro, assim que teve espaço para isso, e caminhou para a esquerda, onde um vaso da altura da
cintura suportava uma palmeira anã.
A entrada estava cheia de pessoas movimentando-se de um lado para o outro. A gerência gritava em hindi e inglês.
Um pouco mais à frente. Gray descortinou duas pessoas com um ar demasiado calmo, envergando casacos, apesar do calor. Mãos nos bolsos. Reparou que tinham auriculares.
Eles detetaram-no também.
Mas esta repentina e inesperada presença apanhou-os de surpresa. Apesar da multidão. Gray não tinha outra opção senão reagir rapidamente. Um tiroteio prolongado
só poderia ameaçar mais vidas.
Com a arma erguida por entre as folhas da palmeira, apertou o gatilho e abateu o primeiro homem como um tiro. Girando sobre si próprio, apertou-o por mais duas vezes,
numa sucessão rápida, sabendo que o seu alvo não era o que tinha planeado. O primeiro tiro atingiu o ombro do homem, fazendo-o projetar-se para trás. O segundo escapou
e foi embater numa parede de gesso.
O atirador disparou através do bolso do casaco, mas Gray atirou-se para o chão no momento em que o gesso rebentou atrás dele. Deitado em cima do ombro, de braços
esticados, disparou outra vez, a alguns centímetros do chão. O tornozelo do assaltante explodiu e viu-o cair de barriga para baixo, batendo com toda força no chão
de mármore, destruindo o osso do queixo. O homem não se voltou a mexer.
Gray virou-se para o elevador a tempo de ver as portas a fecharem-se. Os espectadores na entrada, completamente estupefatos, largaram em todas as direções aos gritos.
Gray carregou no botão.
Nada.
Olhou para o mostrador luminoso. O elevador fora chamado.
Estava a subir.
Na direção dos atiradores no topo do restaurante.
Agachada em cima do elevador, Elizabeth ouviu o mecanismo do elevador a entrar em ação. Com um balanço brusco, o elevador começou a elevar-se.
- Mierda... - praguejou Rosauro ao lado dela.
Elizabeth olhou para cima para o fosso escuro.
- O que vamos fazer? - perguntou. Ainda tinha o isqueiro aceso, projetando uma pequena chama. Sentia-se desarmada e odiava a fornia como tinha as mãos a tremer.
- Vão ficar aqui - disse Rosauro e inclinou-se para a frente, apagando a chama. ~ No escuro. Sem uma palavra. Sem um som.
A mulher sentou-se à beira da portinhola, depois atirou-se para o interior da cabina.
- Fechem a porta - disse-lhes calmamente. - Mas mantenham-na destrancada. No caso de...
No caso de quê?
Contudo, Elizabeth obedeceu. Deixou a porta praticamente fechada, mantendo-a entreaberta com o seu dedo mindinho. A sua última visão de Rosauro foi ver a mulher
a aprontar uma arma.
Contendo uma imprecação, enquanto o elevador subia. Gray correu pelas escadas acima. Empurrou uma data de pessoas e passou por cima de um casal agachado nas escadas,
protegendo a cabeça com as mãos. Subiu os degraus três a três, contornando as escadas, parando apenas para se certificar de que o elevador não parara. Se conseguisse
chegar lá acima a tempo de carregar no botão de chamada, talvez pudesse parar o elevador antes de este chegar ao topo.
Perdeu-o no segundo andar e acelerou a subida.
Os gritos provinham de cima, fortes e bruscos. Parecia que a equipe de assalto estava agora a descer. Gray lançou-se no patamar do terceiro piso para verificar o
elevador e embateu numa parede - ou melhor, no equivalente humano a uma parede.
Kowalski estava junto à porta do elevador, com o dedo no botão.
- Gray! - disse, esfregando a barriga. - Mas que raio, homem?
O elevador abriu as portas.
Rosauro saiu, de pistola junto ao rosto de Kowalski.
- Ei! - O homem deu um passo atrás.
- Foi você que chamou o elevador? - perguntou Gray.
- Sim, ia lá cima ao restaurante ver que burburinho era este.
Gray não sabia qual era a melhor qualidade de Kowalski; se a sua cabeça dura ou a sua preguiça natural.
- Todos cá para fora! - gritou Gray.
Rosauro Já estava em ação, ajudando Elizabeth e Masterson a saírem pela portinhola. Gray levou-os até as escadas. Kowalski fechava o grupo.
Rosauro pôs-se ao lado dele enquanto fugiam pelas escadas.
- Ouvi-os falar em inglês. Sem acento britânico. Americano.
Gray acenou afirmativamente.
Mercenários, a avaliar pelo aspeto do par que estava na entrada.
No entanto, recordou-se do homem que tinha observado no exterior do Museu de História Americana. Com as credenciais da Agência de Inteligência da Defesa. Mapplethorpe.
Alguém sabia que estariam aqui.
Alcançaram a entrada deserta. Gray pressionou toda a gente na direção da porta aberta - mas antes de conseguirem lá chegar, uma figura interpôs-se. Trazia ao ombro
uma espingarda automática, uma carabina M4 de cano curto. Além disso, presa às suas costas, via-se uma M24 de cano longo, armada com um ponto de mira de franco-atirador.
Era o atirador do telhado vizinho.
Apontou com o cano da sua arma para o nariz de Masterson.
O atirador não tencionava falhar este tiro.
Depois a cabeça do atirador projetou-se para trás. Caiu de Joelhos como uma marioneta de cordas cortadas. Depois tombou no chão de barriga para baixo, com um estrondo.
Na base do crânio, sobressaía o cabo de aço brilhante de um punhal.
Do outro lado do corpo, Luca mantinha-se no exterior Junto ao repuxo. O cigano tinha outro punhal pronto a atirar na mão. Gray afastou a arma caída, que Kowalski
apanhou. Luca apressou-se a ir ter com eles empunhando a sua faca.
- Obrigado - disse Gray.
- Estava lá fora a fumar quando o tiroteio começou - explicou o homem, apontando para o pátio. - Reparei de onde vinha, do outro lado da rua. Fui até lá. Ia a subir
quando o tipo se pôs a descer, por isso escondi-me e segui-o até aqui.
Gray bateu nos ombros do homem, agradecido. Salvara a vida deles todos. Gray apontou para a porta.
- Todos lá para fora. Precisamos de sair desta cidade. Depressa.
Apressaram-se a sair para a rua.
- Depressa poderá ser um problema - disse Kowalski. Mantinha uma mão na anca. com a espingarda automática de cano curto meio escondida debaixo do casaco.
Gray olhou para cima e para baixo da rua. e ao longo da viela de serviço vizinha. Todas as direções estavam apinhadas de táxis, riquixás. carroças, camiões e carros.
Tudo parado. Nada mexia.
Ouviu-se um coro de buzinadelas e música, juntamente com o cantarolar e entoar de cânticos. Um festival encontrava-se no seu auge no fundo da rua. A agitação ajudara
a disfarçar o caos no hotel, mas não por completo.
Mais distante. Gray deu-se conta de uma sirena a tocar. Polícia citadina. Respondendo ao tiroteio. Também ouviu gritos a ecoarem na entrada. A equipe de assalto
Já estava cá em baixo.
Rosauro virou-se para ele.
- O que é que fazemos...?
Um barulho de motorizadas cortou a conversa. Gray virou-se. Do lado esquerdo, alguns quarteirões mais atrás, três ciclomotores pretos ziguezagueavam por entre a
massa de veículos que obstruía a rua. Bastante depressa, bastante decididos. Deslocavam-se a alta velocidade por entre as pessoas, afastando-as do caminho. Dirigiram-se
prontamente para o hotel. Cada veículo trazia mais um homem com uma arma. Mais comandos.
Gray empurrou toda a gente para a viela de serviço, fora do alcance dos veículos. Virou-se para Masterson e tirou-lhe o chapéu branco da cabeça.
- O casaco também ~ ordenou, enquanto punha o chapéu do homem na sua própria cabeça.
- O que pretende fazer, sir? - perguntou Masterson, tirando o casaco branco.
- Aquele atirador visou-o primeiro, doutor Masterson. O senhor é o alvo principal.
- Pierce... - disse Rosauro com uma certa precaução.
Gray enfiou-se dentro do casaco folgado.
- Vou tentar afastar aquelas motorizadas - explicou, apontando para a rua apinhada. Apontou com o outro braço para a viela estreita. - Tu levas os outros por este
lado. Voltaremos a nos reunir no forte que vimos quando vínhamos para cá.
Rosauro parou para digerir melhor o plano, depois acenou prontamente.
- Vou consigo - disse Kowalski. Saiu da beira de Elizabeth e levantou a arma. - Irá precisar de apoio.
Rosauro acenou com um ar aprovador.
- Ele estará melhor consigo do que comigo. Já tenho muito que fazer, protegendo civis.
Gray não tinha tempo para discussões. Poderia usar um pouco de músculos e de fogo protetor.
- Vamos! - disse.
- Senhor Pierce!
Gray virou-se. Masterson lançou-lhe a bengala. Ele apanhou-a, completando o seu semblante.
- Não a perca! Tem um cabo de marfim do século XVIII!
Gray embrenhou-se nas ruas. gritando com um acento britânico.
- Alguém me ajude! Estão a tentar matar-me!
Enfiou-se pela rua na direção do festival, correndo por entre os carros parados e carroças ociosas. Atrás deles, as motorizadas travaram bruscamente mal chegaram
ao hotel - depois deram meia volta com um forte roncar dos motores.
Indo no seu encalço.
Kowalski foi atrás.
- Morderam o isco.
06h33
Washington, D. C.
Uma pancada na porta espantou Painter. Estava quase a dormitar, sentado na cadeira, os cotovelos em cima da secretária, com um monte de notas e os resultados dos
testes de Lisa e Malcolm debaixo do rosto. Previamente. ordenara a Kat para dormir um pouco numa das camas extra do centro médico. Tendo passado a noite acordado,
devia ter seguido o mesmo conselho em relação a si próprio.
Pressionou no trinco debaixo da sua secretária e a porta abriu-se. Estava a espera de Lisa ou de Malcolm. Painter endireitou-se na cadeira, surpreendido, e pôs-se
de pé.
Um homem alto, de ombros largos, entrou vestido com um terno azul. Tinha o seu cabelo ruivo, praticamente grisalho e a puxar para o branco, muito bem penteado para
trás.
- Sean?
Sean McKnight era o diretor da DARPA e o superior imediato de Painter. Também fora o homem responsável pela contratação de Painter para a Sigma, há mais de uma década,
quando Sean ocupava o lugar de Painter. McKnight fora o primeiro diretor da Sigma, um homem visionário que pegara na ideia de Archibald Polk para transformá-la em
realidade. Mas, mais importante, Sean era um bom amigo.
O homem fez sinal a Painter para se voltar a sentar.
- Não te levantes por minha causa, filho - disse. - Não vou voltar a ocupar esse lugar outra vez.
Painter sorriu. No seu primeiro dia como diretor, Sean enviara a Painter uma caixa de antiácidos. Pensara que era um presente engraçado - mas, alguns anos depois,
Painter ainda só tinha tomado metade.
- Algo me diz, Sean, que o teu trabalho não está nada mais leve.
- Não, por agora não. - Sean afundou-se numa cadeira do outro lado da secretária. - Tenho andado a inspecionar esse homem que o comandante Pierce viu no exterior
do museu. Mapplethorpe. John Mapplethorpe.
- Então não se trata de nenhuma credencial falsa?
- Pelo contrário, Mapplethorpe é chefe de divisão da Agência de Inteligência da Defesa. Tem por missão observar a Federação Russa e os seus estados separatistas.
Painter lembrou-se da avaliação inicial de Malcolm acerca do fato de Polk ter sido exposto a uma dose fatal de radiação. Chernobyl. Qual era o papel de Mapplethorpe
no meio disto tudo?
- O homem tem poderosos aliados no seio dos vários serviços de informações - prosseguiu Sean. - É conhecido pela sua rudeza e caráter manipulador. Mas também é conhecido
por ser alguém capaz de obter resultados. Um bem precioso em Washington.
- Como é que ele aparece envolvido nisto tudo?
- Li o teu ponto da situação. Já sabes tudo acerca do Projeto Stargate, que deixou de estar sob o regime de segurança. Como foi descontinuado em meados da década
de 1990.
- Mas não foi - disse Painter. - Nos seus últimos anos, desapareceu na Agência de Inteligência da Defesa.
- É verdade. Tornou-se no projeto de Mapplethorpe. Ele foi abordado em 1996 por um par de cientistas russos - que estavam a trabalhar na versão soviética do Stargate.
Andavam à procura de financiamento e pediram-nos ajuda. Concordamos em ajudar - para nosso próprio benefício neste mundo novo de inimigos sem fronteiras. Por isso,
foi contratada uma pequena cabala de Jasão para trabalhar em conjunto com os Russos, Foi quando todo o projeto deixou de estar sob o regime de segurança. Desapareceu.
Apenas um grupo de pessoas sabia da continuidade da sua existência.
- Até o Arquibaldo aparecer a cambalear à nossa porta - disse Painter.
- É possível que cie pretendesse expô-los. Mostrar provas.
- Das atrocidades que estavam a ser cometidas em nome da ciência.
- Em nome da segurança nacional - corrigiu Sean. - Não te esqueças disso. E o óleo que faz. mover as rodas em Washington. Não subestimes o Mapplethorpe. Ele sabe
como atuar. E acredita que é um verdadeiro patriota. Também percorreu um longo caminho para se estabelecer como tal junto das comunidades dos serviços de informações.
Aqui e no estrangeiro.
Painter abanou a cabeça.
Sean continuou;
- O Mapplethorpe tem todas as agências de informação do país à procura desse crânio que tu adquiriste. Todas as combinações de iniciais possíveis e imaginárias.
CIA, FBI. NSA. NRO, ONI... É capaz até de ter utilizado a rede de espiões reformados da AARP{1}.
Sean tentou sorrir da sua própria piada, mas não foi lá muito convicto.
- Não posso manter o assunto abafado durante muito mais tempo. O Arquibaldo foi morto à nossa porta. Os seus laços com os Jasão com a Sigma, não passarão despercebidos
por muito mais tempo. E, depois da forma como o governo se pôs a vigiar as nossas operações, no ano passado, existem muitas pistas secretas que conduzem até aqui.
- O que está a querer dizer? - perguntou Painter.
- Acho que está na altura de o crânio voltar a aparecer. Os lobos estão a apertar o cerco. Poderei negociar o crânio através de outra agência de informação, para
que a pista que conduz à Sigma fique apagada. -Olhou diretamente para Painter. - Mas isso só permitirá um período de graça de meio dia com a garota. Se Gray e a
sua equipe não obtiverem respostas antes disso, seremos forçados a desistir dela.
- Não farei isso, Sean.
- Poderás não ter outra opção.
Painter levantou-se.
- Então vá vê-la primeiro. Olhe para ela, veja o que lhe fizeram. E depois diga-me como é que eu posso entregar essa garota ao Mapplethorpe.
Painter viu o seu mentor a hesitar. Era mais fácil condenar o que não tinha rosto. Contudo, Sean acenou e deixou-se ficar. Ele nunca temia as dificuldades. Era por
isso que Painter respeitava tanto o homem.
- Vamos lá cumprimentá-la - disse Sean.
Saíram juntos e desceram os dois pisos até o local onde se encontrava a garota.
No momento em que chegaram ao piso inferior, Painter descortinou Kat e Lisa no fundo do corredor, perto da porta do quarto da garota. Kat parecia agitada. Painter
sabia que a mulher ficara triste, depois de ter visto a criança a desenhar o retrato do marido, Monk, mas Kat já se acalmara. Admitira ter aberto a carteira para
mostrar à garota algumas fotografias da sua própria filha, Penélope, quando era bebé, na esperança de estabelecer uma ligação com a criança. Tinha um retrato de
Monk entre as fotos.
- Mas tenho a certeza de que ela não o viu - dissera Kat. - Absoluta.
A outra única explicação, por mais estranha que parecesse, prendia-se com 0 fato de a criança poder ter extraído a imagem de Monk da cabeça de Kat, alguém próximo
do coração de Kat.
De qualquer forma, Kat acalmara e concordara que era melhor dormir um pouco. A exaustão deixara-a à beira do limite.
Vislumbrando os homens. Kat foi ter com eles demasiado ansiosa para poder esperar.
- Diretor - disse apressadamente - Íamos ter consigo. A febre da garota voltou a subir. Temos de fazer alguma coisa. A Lisa acha que... ela está a morrer.
14h35
Agra, Índia
Gray apressou-se a descer a rua. Quanto mais se aproximava do cruzamento principal à frente, mais o trânsito piorava. Os peões estavam agora a caminhar ombro a ombro,
fluindo lentamente por entre os veículos rastejantes. O festival bloqueava o eixo principal. O trânsito estendia--se pelas ruas secundárias.
As buzinas soavam, as campainhas das bicicletas tiniam, as pessoas gritavam e praguejavam.
Atrás deles, o barulho das motorizadas transformara-se num verdadeiro ronco. Até os perseguidores tinham ficado atolados neste lamaçal de humanidade. No entanto,
Gray procurou manter-se agachado.
Kowalski pôs-se ao seu lado. protegendo-se na parte da frente de uma carroça puxada por um cavalo.
- Alguns deles agora vêm a pé.
Gray olhou para trás. As três motorizadas pretas tinham vindo a perder paulatinamente terreno. Os penduras dos ciclomotores tinham abandonado as máquinas e seguiam
agora por entre a multidão na sua esteira. Dois flanqueavam a rua e um vinha pelo meio.
Três ameaças transformadas em seis.
- Não gosto destes tipos - murmurou Gray. Delineou rapidamente um plano e disse a Kowalski o que fazer e onde se encontrariam.
- Eu avanço por cima. Você segue por baixo.
O homem grande agachou-se em frente de um camião. Olhou para os dejetos lançados pelos cavalos, burros e camelos que se entrepunham debaixo dos pés.
- Porque é que eu tenho de seguir por baixo?
- Porque cu estou vestido de branco.
Com um abanar de cabeça, Kowalski baixou-se ainda mais, pondo uma mão no asfalto. Agachado, recuou na direção do hotel.
Segurando no panamá em cima da cabeça, Gray saltou para cima do porta-bagagens do táxi à frente e fugiu por cima do carro na direção do festival. As suas botas calcaram
o tejadilho e o capô do táxi, depois saltou para o carro a seguir e continuou pela rua abaixo, saltando e galgando pela parte de cima dos carros, táxis e carroças.
Ouviram-se gritos e vários punhos ergueram-se atrás dele. Mas. no meio daquele trânsito infernal, passar por cima era a maneira mais fácil de se deslocar.
Gray olhou por cima do ombro. Como esperara, os perseguidores haviam-no detetado. Para não o perderem de vista, os três que iam a pé decidiram também avançar por
cima. Seguiam atrás dele. vindos de três direções diferentes, mas, pelo menos, estavam demasiado desequilibrados para tentar disparar.
Agachando-se e usando a bengala de Masterson para se equilibrar e apoiar, Gray avançou como se estivesse a saltar ao eixo por entre o festival barulhento e agitado.
Tinha de atrair os três homens apeados para longe das motorizadas.
Dividir para conquistar.
Deslizando pelo tejadilho de uma van, Gray observou o mar congestionado de humanidade atrás dele. Só que este mar tinha agora um novo tubarão nas suas águas. Gray
não conseguia ver Kowalski, mas pôde apreciar o trabalho manual do homem. Mais ao longe, a motorizada que ia na frente pôs-se ao lado de um camião. Quando atingiu
a parte da frente, o motociclista ergueu-se subitamente na vertical, com o corpo todo a tremer. Gray ouviu um longínquo pum-pum-pum, semelhante ao fogo-de-artifício
celebrativo que ecoava do festival.
O condutor e o veículo afundaram-se no mar revolto.
Kowalski permanecia escondido. Com os olhos dos perseguidores na mira de Gray, foi fácil para o homem grande posicionar-se na retaguarda, esperar atentamente, e
depois disparar a sua M4 roubada sobre o motociclista no momento em que este passou à sua beira. A queima-roupa, escondido.
Mas o tubarão ainda não tinha acabado de afugentar estes mares.
Gray deixou o homem grande fazer o seu trabalho sangrento e continuou na direção da confusão e do caos em que o festival se transformara. As pessoas cantavam, dançavam,
aplaudiam, riam e gritavam. A música saía das cometas e propagava-se com o bater dos címbalos. Era o festival de Janmashtami, uma celebração do nascimento de Krishna.
Da sua posição vantajosa, descortinou várias aglomerações de pessoas dançando o Ras Lila. uma dança tradicional manipuri representando os primeiros anos de Krishna,
cheios de travessuras, quando namorava com as leiteiras. A multidão reunida compreendia igualmente grupos de jovens formando pirâmides humanas, tentando alcançar
os potes de barro pendurados na rua. Os potes, chamados dahi-handi, estavam cheios de leite coalhado e manteiga. O jogo celebrava as explorações infantis de Krishna,
quando ele e os seus amigos de infância costumavam roubar manteiga aos vizinhos.
Gray ouviu o cântico tradicional de apoio.
- Govinda! Govinda!
Outro nome para Krishna.
Gray correu pelo topo dos veículos na direção do festival. Com a rua à frente bloqueada e o trânsito desviado, a caminhada de Gray terminou no aglomerado festivo.
Saltou do capô do último táxi e embrenhou-se no meio da multidão.
No momento em que se infiltrava por entre a massa de celebrantes, tirou o chapéu branco e o casaco, libertando o disfarce e misturando-se no meio da multidão. Mantinha
a bengala numa mão e a pistola pressionada contra a coxa, enquanto se movia por entre as pessoas. Pretendia alcançar a parte lateral da procissão onde lojas e carroças
de comida atulhadas de fregueses se encontravam alinhadas em tomo da praça.
O plano era reagrupar com Kowalski no canto noroeste da praça. Não se atreviam a continuar para o encontro no forte até terem a certeza de que os tinham despistado.
Gray aproximou-se de um edifício com uma escada de serviço. A escada de metal estava puxada para baixo, com as varandas repletas de pessoas observando a procissão.
Gray subiu para o segundo andar de modo a poder espiar a multidão e ver se via Kowalski.
Atingindo o patamar, Gray detetou um dos seus perseguidores no momento em que este saltava do capô de um camião para o meio da procissão. Os outros dois compatriotas
já estavam misturados, facilmente detetáveis devido aos seus capacetes pretos. Um baixou-se e apanhou um chapéu branco todo sujo e amachucado. Atirou-o para longe
com um ar de repulsa e frustração.
Gray esperava que se apercebessem da sua situação irremediável e retirassem. Mas as coisas não eram assim tão simples.
Kowalski irrompeu no meio da multidão. Vinha com o casaco completamente desfeito. Trazia as mãos vazias, o rosto ensanguentado. Mas o pior de tudo era a sua dimensão.
O homem tinha mais um ombro de altura do que a média dos celebrantes. Observou a multidão com uma mão sobre os olhos, tentando protegê-los do brilho do Sol, ao mesmo
tempo que se infiltrava no mar de folia.
Só que, desta vez. Kowalski não era o tubarão nas águas.
Um dos homens com capacete apontou na direção do gigante, reconhecendo-o. Aproximaram-se. vindos de todas as direções.
Nada bom.
Gray virou-se, mas a varanda estava ainda mais repleta, a escada cheia de pessoas. Nunca chegaria a tempo ao meio da multidão.
Dando meia volta. Gray subiu para cirna da balaustrada, depois saltou - para o ar.
Suspenso, um arame grosso e oleado atravessava a praça desde a varanda. Gray levantou o braço e prendeu o cabo de marfim da bengala ao arame. Com um balanço de pernas,
deslizou ao longo do fio. do meio do qual pendia um dos potes de barro de dahi-handi. Encaixou bem a bengala e baixou o outro braço.
No momento em que os seus calcanhares passaram por cima da cabeça de um dos perseguidores de capacete. Gray disparou por entre as pernas. O impacto fez com que o
homem caísse no chão. com o capacete a quebrar-se como uma casca de noz.
Depois Gray atingiu o topo da pirâmide humana que estava a preparar-se para derrubar o pote de barro. Afastou o homem mais alto e ocupou o lugar dele no topo. Enquanto
tentava manter o equilíbrio, a bengala caiu ao lado da pirâmide - Juntamente com a pistola de Gray.
Os rostos viraram-se para ele.
Incluindo os restantes dois homens armados.
Sem armas, Gray balanceou-se aos ombros do homem que estava por baixo dele e deu um pulo. Agarrou na parte de baixo do grande pote de barro, desprendeu-o, e, com
uma oração silenciosa a Krishna, deixou-o cair por cirna do atirador mais próximo.
A sua oração foi respondida.
O pesado pote atingiu o homem na cara, explodindo com um esparramar de cacos e de manteiga. Caiu desamparado.
O terceiro atirador levantou um braço, empunhando uma pistola. Enquanto a multidão gritava, disparou dois tiros para Gray mas Gray já não se encontrava ali. A pirâmide
humana cedeu sob o seu peso. As balas passaram por cima da sua cabeça enquanto caía.
Aterrou numa confusão de membros.
Gray mexeu-se, tentando encontrar um sítio onde pôr os pés. O atirador lançou-se sobre o monte de homens, de arma em punho. Antes de conseguir disparar, uma mancha
branca turvou por completo o espaço à sua frente. A cabeça do homem foi projetada para trás, apanhada no rosto pelo cabo da bengala de Masterson.
Kowalski manejara a bengala recuperada corno um batedor de basebol a girar para as bancadas.
O sangue espirrou e o homem caiu de costas no pavimento.
Kowalski agarrou na pistola do homem e estendeu a bengala por entre o emaranhado de membros e homens. Gray agarrou no cabo e Kowalski tirou-o dali.
- Morto com manteiga - disse o homem grande. - Nada mau. Pierce. Dará outro sentido à forma como vigia o colesterol.
Em volta, a praça mergulhara no caos. As pessoas fugiam em todas as direções. Polícia de uniforme tentava avançar contra a maré humana. Gray e Kowalski, agora agachados,
deixaram-se arrastar pela corrente, para fora da praça, enfiando nas ruas adjacentes.
Ao fim de alguns atormentados minutos, o corpo maciço do forte vermelho apareceu à sua frente, debruçado sobre as margens do rio Jumna. Atravessaram na direção da
antiga estrutura amuralhada - o Forte de Akbar -, a mais importante atração turística da cidade, a seguir ao Taj Mahal.
Táxis, vans e limusines ladeavam a avenida à sua frente.
- Pierce! - ouviu-se um grito de alguém a chamar.
Shay Rosauro acenou de trás de uma das limusines. uma grande baleia branca. Caminhou na direção dela. Luca estava ao lado da porta aberta. Masterson e Elizabeth
Já estavam lá dentro.
- Não podia ser mais modesto - disse Gray. olhando para o veículo.
- Deve dar para nós todos - explicou Rosauro. Depois esboçou um sorriso malandro. - Além disso, quem é que disse que não podemos arranjar uns clientes durante o
passeio?
- A dama sabe do que está a falar - disse Kowalski, caminhando para a parte da frente do carro. - Talvez me deixem guiá-lo.
- Não! - exclamaram Gray e Rosauro.
Com um sobrolho franzido de pessoa ferida. Kowalski deu meia volta e enfiou-se na parte de trás da limusine. Rosauro seguiu-o.
Antes de se juntar a eles, Gray olhou para o passeio, para as ruas. Ninguém parecia estar a prestar atenção. Esperançosamente, tinham-nos despistado por completo.
Esticou o pescoço e olhou em volta para a curva do rio.
Ao longe, o mármore branco do mausoléu brilhava à luz do Sol, de um modo pacífico e eterno, repousando ao lado da água luzidia.
Gray voltou as costas ao Taj Mahal.
Apenas os mortos conseguiam dormir tão pacificamente.
No momento em que entrava para a parte de trás da limusine, Masterson deixou escapar um gemido de raiva.
- O que fez com minha bengala?
Gray deixou-se cair no seu lugar. O cabo de marfim do século XVIII estava todo ensanguentado. Os entalhes delicados da bengala tinham sofrido algum desgaste com
a passagem pelo arame
- A bengala é última das minhas preocupações - disse Gray.
Masterson olhou para ele, enquanto a limusine se afastava da berma do passeio.
Gray apontou para a orelha tapada do homem.
- Alguém tentou matá-lo. A questão, doutor Masterson, é por quê?
10
6 de setembro, 07h45
Washington, D. C.
- Pontas soltas - explicou Trent McBride. - Há muitas pontas soltas.
Yuri viu o homem a olhar na sua direção, mas não se amedrontou. Eles que o matassem. Não interessava. Yuri sentou-se na cadeira do escritório. Autorizaram-no a vestir-se
outra vez. depois de terem removido os elétrodos. A sua tortura dolorosa continuara por mais vinte minutos. Yuri acabara por ceder. Divulgara bastante, confessando
mais pormenores acerca da genética das crianças, o segredo que ele e Savina tinham mantido afastado dos Americanos.
Até admitiu porque é que os Russos não se tinham oposto ao recrutamento do doutor Arquibaldo Polk. Yuri admitiu que Polk se aproximara demasiado do cerne do segredo
genético. Savina tinha até planeado orquestrar um acidente, enquanto o homem estivesse na Toca, para o silenciar.
Mas, neste jogo de malabarismo científico, nem ele nem Savina imaginavam que o próprio colega e amigo do doutor Polk planearia a sua fuga, só para atrair uma das
crianças ao exterior. E Savina mordera o isco. Não se importava muito com o fato de Polk ter escapado com o crânio que McBride lhe tinha dado. Era o segredo genético
que ele tinha em sua posse que levara Savina. em pânico, a enviar Yuri e Sasha à caça do homem. Caíra abertamente na armadilha americana.
- Pontas soltas? - perguntou Mapplethorpe, recuperando a sua atenção. Abanou a cabeça, desconcertado. - Vejo apenas três. A garota, o crânio e a pista de Polk na
Índia. Esta última já está a .ser tratada. E ouvi uns rumores, através dos canais dos serviços de informações, segundo os quais o nosso crânio desaparecido poderá
aparecer de um momento para o outro.
- Como é que conseguiu isso? - perguntou McBride.
- Deixe a água a ferver à temperatura certa e ficará surpreendido com o que aparece à superfície.
- E a garota?
Yuri prestou mais atenção. O olhar de Mapplethorpe brilhou na sua direção. Yuri sabia que a única razão pela qual ainda estava vivo era por causa de Sasha. Mapplethorpe
precisava dele, conhecia a situação médica da garota, o problema que existia com todas as crianças. O stresse da manipulação mental não deixava de ter as suas consequências
físicas nas cobaias. Com efeito, poucas viviam para alem dos vinte e tal anos. especialmente aquelas com o talento mais sábio. Era um problema que requeria a colheita
de óvulos e esperma para manter a linha genética mais potente em boas condições.
Mapplethorpe suspirou.
- Devíamos ter a garota antes do pôr do Sol... se não antes.
E continuará a ser demasiado tarde, pensou Yuri.
São tão simples estes americanos, partindo tão facilmente do princípio de que aquilo que consistiu num testemunho torturado constitui a história toda. Apesar de
Yuri não ter mentido, cometeu um pecado: um pecado de omissão. Na verdade. McBride nem sequer sabia qual a questão que devia colocar, tão seguro estava da sua superioridade
e confiança sádica no poder do sofrimento.
Yuri manteve a sua expressão séria. Procuraram derrubá-lo com as suas torturas, mas ele era uma pessoa velha, uma pessoa habituada a guardar segredos. Tudo o que
conseguiram foi avivar a sua memória daquilo que estava para vir. Nos últimos meses, Yuri começara a ter algumas reservas cm relação ao plano de Savina.
Era uma coisa natural.
Milhões morreriam de forma horrível.
Tudo isto para que nascesse um mundo novo.
Um novo Renascimento.
Yuri olhou para o sorriso pleno de auto satisfação de Mapplethorpe e para a confiança estampada nos olhos brilhante de McBride.
Toda a hesitação morreu dentro dele.
Savina tinha razão.
Estava na altura de o mundo arder.
14h55
Montes Urais Meridionais
O General-Major Savina Martov sabia que se passava algo de errado. Sentiu-o nos seus ossos, uma ansiedade não específica. Não podia estar mais tempo no escritório.
Precisava de confirmações.
Com um rádio colado à cara. conduziu dois soldados através da escuridão e das ruas abandonadas que passavam por entre os velhos apartamentos da era soviética, que
enchiam a parte posterior da caverna de Chelyubinsk 88. Os blocos de cimento sem formas que se erguiam de cada lado eram as habitações originais dos prisioneiros
que trabalhavam nas minas e refinarias. Os homens costumavam trocar uma condenação à morte nos gulagues por cinco anos de trabalho neste sítio. Não é que algum deles
tivesse chegado a ver alguma vez esse quinto ano. A maior parte morria antes do final do primeiro ano.
Um jogo louco, mas, por outro lado. a esperança fazia sempre mover qualquer homem racional desesperado. Este era o legado que ela tinha herdado. Estava ali para
servir de lembrete.
Outros achavam que ela era cruel, mas, por vezes, a necessidade não tinha outro rosto para apresentar. As crianças eram bem alimentadas, as suas necessidades providas.
A dor minimizada dentro do humanamente possível.
Crueldade?
Olhou em volta para os apartamentos esventrados. frios, escuros, assombrados.
Tudo o que ela via era necessidade.
O rádio zuniu-lhe ao ouvido no momento em que o tenente Borsakov regressava online. Até agora só lhe tinham chegado relatórios negativos do segundo no comando. Ainda
continuava à procura das crianças nas montanhas e contrafortes da região envolvente. Fora desviado do caminho certo por várias pistas falsas, incluindo uma camisa
de hospital abandonada.
- Encontramos dois lobos mortos - disse Borsakov. - Perto do rio. Foram despedaçados. Ataque de urso. Mas detetamos uma pista forte.
- E os felinos? - perguntou, falando para o rádio.
O silencio estendeu-se por uns momentos.
- Tenente -- disse mais firmemente.
- Estávamos a evitar usá-los até termos um rastro mais preciso. Não queria arriscar os lobos com os tigres a deambularem pelos montes.
A sua voz mantinha um tom prático, mas Savina reconheceu o nervosismo latente nas suas palavras. O tenente não estava tão preocupado com os lobos como estava com
as crianças.
Porque é que ela tinha de ser sempre a dura?
Falou de forma seca.
- Tem uma pista forte agora, não é verdade, tenente.
- Sim, General-Major.
- Então não me volte a desapontar.
- Não, General-Major.
Terminou a chamada. Era natural que tivesse parecido um pouco mais dura do que pretendia, mas Já ouvira notícias suficientemente perturbantes nesta última hora.
Um trabalhador de manutenção da cidade vizinha de Ozyorsk descobrira um dos camiões da Toca, agora retirado de serviço, que fora uma vez usado para transportar resíduos
de uma fábrica de enriquecimento de urânio, perto da costa do lago Karachay. Lá dentro, o trabalhador encontrara um distintivo falso com o retrato do doutor Archibald
Polk.
Respondia ao mistério da fuga do professor.
Ele tivera ajuda.
E não era preciso pensar muito para descobrir quem é que teria ajudado na fuga. Só podia ter sido o doutor Trent McBride. Que jogo estavam os Americanos a fazer?
Atendendo ao silêncio contínuo de Yuri, tudo levava a crer que ele e a garota tinham sido capturados. Na verdade, a fuga podia ter sido encenada para conseguir apenas
esse fim.
Se foi assim, Savina tinha de tirar o chapéu a McBride pelo esforço.
Tal como ela, ele compreendia a necessidade.
Olhando para trás, nunca se teria envolvido numa parceria com os Estados Unidos. Mas não tivera muitas opções na altura. Na confusão que se seguiu à desintegração
da União Soviética, o seu projeto perdera todo o financiamento. Só através de uma união deste tipo é que o seu trabalho poderia continuar.
Os Estados Unidos forneceriam o dinheiro por um tempo determinado, procurando novas formas de expandir a sua capacidade para reunir informação. O seu projeto oferecia
essa promessa. Mas também oferecia algo mais. Ela forneceria ao governo americano uma negação plausível, semelhante à dos campos de tortura secretos na Europa financiados
pela CIA. Neste novo mundo, as linhas da conduta aceitável - quer militar quer científica - tinham ficado esbatidas.
Não no nosso solo era o novo credo americano.
E ficara contente na altura por poder explorar isso.
No entanto, a perda de Yuri e da criança não era inultrapassável. Apenas exigia uma aceleração da sua agenda. A operação - intitulada Saturno - deveria dar continuidade
às ações desenvolvidas por Nicolas em Chernobyl, no prazo de uma semana. Agora, os dois começariam no mesmo dia.
Amanhã.
As duas operações - Úrano e Saturno - haviam recebido esta designação em função das ofensivas estratégicas realizadas durante a Segunda Guerra Mundial, quando as
forças soviéticas derrotaram os Alemães na batalha de Estalinegrado, a batalha mais sangrenta da história da humanidade. Cerca de dois milhões morreram nessa batalha,
incluindo um vasto número de civis. Todavia, a derrota alemã foi considerada o ponto de viragem da guerra.
Uma vitória gloriosa para a Terra Mãe.
E, tal como no passado, a Operação Urano e Saturno iria de novo libertar a Rússia e mudar o curso da História mundial.
E, tal como da outra vez, com danos colaterais.
A necessidade era um mestre cruel.
Savina atingiu a parede distante da caverna. Um túnel abriu-se, enquadrado por grossas portas de chumbo blindadas, versões em miniatura das mesmas portas que fechavam
o principal túnel de Chelyabinsk 88.
Mesmo no interior da boca do túnel havia um comboio e para-choques. Os carris eletrificados transportavam um único comboio nos dois sentidos, entre a Toca e o coração
da Operação Saturno, do outro lado do lago Karachay. O velho túnel passava debaixo do lago tóxico, permitindo 0 transporte rápido entre os dois locais, sem risco
de exposição ao caldo quente e radioativo de estrôncio 90 e césio 137.
O comboio já estava à sua espera.
Savina subiu para uma das cabinas revestidas a chumbo. Havia apenas dois vagões cobertos, um em cada extremo do comboio. As quatro secções restantes eram compostas
por vagões abertos para transporte de mantimentos, equipamento de mineração e rochas.
Enquanto o comboio deslizava com um barulho de rodas a chiar e um zumbido de eletricidade, as portas blindadas fecharam-se atrás dela. O túnel ficou escuro. Olhou
para cima no momento em que o comboio iniciava o seu percurso de cinco minutos. Enquanto acelerava, Savina imaginou o peso da água lá em cima, separada por quatrocentos
metros de rocha.
A região por cima era o centro da produção de urânio e plutônio da União Soviética. Defunta na sua quase totalidade, a instalação chegara a ter sete reatores de
produção de plutônio ativos e três centrais de separação de plutônio. Fora tudo dirigido de uma forma negligente. Com início em 1948, as instalações tinham libertado
cinco vezes mais radiação do que Chernobyl e todos os testes nucleares mundiais combinados.
E metade dessa radiação ainda estava armazenada no lago Karachay.
O nível de radiação na margem do lago media seiscentos roentgen por hora. O suficiente para oferecer uma dose letal em apenas uma hora.
Savina lembrava-se do sítio onde o trabalhador da manutenção de Ozyorsk encontrara o camião abandonado do doutor Polk.
Na margem do lago.
Abanou a cabeça. Não havia necessidade de perseguir o doutor Polk. Ele já estava morto.
As luzes apareceram à frente.
Brilhavam com a esperança de um futuro melhor.
O coração da Operação Saturno.
15h15
- Estão a planear fazer o quê? - perguntou Monk. num tom ligeiramente elevado, enquanto caminhavam ao longo da margem do rio.
Ele e os miúdos caminhavam ao longo do rio agitado há cerca de uma hora. Não era o mesmo curso de água onde tinham encontrado o urso. Monk atravessara a vau o riacho
turbulento, usando uma série de pedras, e seguira-o até desembocar no grande rio. encaixado numa densa floresta de abetos. Monk estudara o mapa topográfico várias
vezes. Parecia que estavam a seguir a bacia hidrográfica que drenava as encostas orientais dos montes Urais. No lado ocidental, os Urais lançavam a água da chuva
e da neve derretida no mar Cáspio; deste lado. fluía tudo para uma região de rios imponentes e centenas de lagos, que acabariam por se esvaziar no oceano Ártico.
Que os Russos estavam a planear...
O choque instalara-se na sua voz.
Konstantin retrocedeu perante a sua aspereza.
- Desculpa - disse Monk mais calmamente, sabendo como as vozes se propagavam nas montanhas. Fora ele quem alertara as crianças para falarem em voz baixa. Acabou
por obedecer à sua própria regra, embora a sua voz se mantivesse tensa. - Mesmo com o buraco na minha memória, sei que o que estão a planear é uma loucura.
- Eles conseguirão - contrapôs Konstantin. - Não é difícil. Uma estratégia simples. Nós... - principiou, apontando primeiro para Pyotr e Kiska. e depois para a vasta
região cm redor para indicar as outras crianças. iguais a ele. que residiam no complexo subterrâneo - percorremos cenários e modelos, avaliamos resultados prováveis,
analisamos dados estatísticos globais, estudamos o impacto ambiental e extrapolamos os resultados finais. Está muito longe da loucura.
Monk ouviu o rapaz. Parecia-se mais com um computador do que com um adolescente. Por outro lado. Monk lembrou-se do aço frio atrás da orelha de Konstantin. Todos
o tinham. Até Mana ostentava uma peça de aço cirúrgico do tamanho de um polegar, enterrada nos pelos atrás da orelha. Durante a última hora, Konstantin também aproveitara
o tempo para demonstrar as suas capacidades de cálculo. O exercício mental pareceu tê-lo acalmado. Kiska mostrou-lhe como conseguia identificar a canção de um pássaro
e imitar o seu som.
Apenas Pyotr parecia envergonhado face às suas capacidades.
- Empatia - explicara Konstantin. - Ele consegue ler as emoções de uma pessoa, mesmo quando esta as esconde ou atua de maneira diferente. Um professor disse que
ele era um detetor de mentiras em carne e osso. E por isso que prefere a companhia de animais, passando grande parte do tempo na Reserva. Foi ele que insistiu em
trazer a Marta.
Monk olhou para o sítio por onde o rapaz, caminhava, na companhia do chimpanzé idoso. Estivera a estudar o rapaz, observando a fornia como interagia. Os dois pareciam
estar em constante comunicação, trocando olhares silenciosos, um franzir de sobrolhos ou um enrugar de lábios, um balançar de braços.
Viu Pyotr endireitar-se e parar de repente. Marta também. Pyotr dirigiu-se a Konstantin e falou de um modo rápido e assustado, primeiro em russo, depois em inglês.
Os seus pequenos olhos viraram-se para Monk. à procura de uma salvação milagrosa.
- Eles estão aqui - murmurou o rapaz.
Monk não precisou de perguntar a quem é que Pyotr se estava a referir. Era óbvio pelo terror na sua voz.
Arkady e Zakhar.
Os dois tigres da Sibéria.
- Vamos! - disse Monk. Correram pela margem do rio. Konstantin liderava. A sua irmã. Kiska, tão ligeira como uma gazela, seguia-o. Monk deixou Konstantin escolher
o melhor caminho por entre os arbustos de arando que bordejavam as margens. Monk manteve um olho sobre o rastro que deixavam para trás. Tinha de ser cuidadoso. Os
fluxos de caruma de abeto amarelo-palha, que caíam da floresta densa para a borda do rio. criavam tapetes tão escorregadios como uma camada de gelo debaixo dos pés.
Pyotr escorregou num dos tapetes e caiu de costas. Marta ergueu-o com o seu braço peludo e endireitou-o. Monk reencaminhou-os para a frente. Konstantin e Kiska aumentaram
a distância à sua frente.
Comeram durante cinco minutos, mas a exaustão obrigou-os rapidamente a abrandar o ritmo. Até mesmo a adrenalina e o terror acabaram por afrouxar. Dez minutos mais
e Já estavam apenas a circular num trote ligeiro.
O grupo Juntou-se outra vez.
Não havia qualquer sinal de perseguição, nenhuma queda de ramos ou quebra de galhos. Nenhum sinal dos tigres.
Konstantin, ofegante e com a cara vermelha, olhou para Pyotr e falou duramente em russo, repreendendo visivelmente o rapaz pelo falso alarme.
Monk ralhou com Konstantin.
- A culpa não é dele - murmurou.
Pyotr fez uma expressão de quem se tinha ofendido, mas sem perder o ar aterrorizado.
Marta assobiou suavemente, batendo em Konstantin.
Kiska também repreendeu o seu irmão em russo.
Monk fora avisado de que Pyotr não conseguia avaliar as distâncias muito bem, apenas por alto. Teria de contar com isso, quando os tigres se aproximassem...
... Pyotr ficou hirto, com os olhos muito abertos.
Abriu a boca, mas o terror deixou-o silenciado.
Não eram necessárias palavras.
- Agora! - gritou Monk.
Virando-se ao mesmo tempo, começaram todos a correr - na direção do rio de caudal impetuoso, conforme combinado. Monk agarrou em Pyotr. abraçou-o com força e saltou
da margem. Ouviu dois chapões simultâneos no momento em que Kiska e Konstantin atingiam a água, alguns metros adiante do percurso do rio.
Monk emergiu na corrente de água gelada com o rapaz pendurado ao seu pescoço, tal qual uma videira. Virou-se a tempo de ver Marta a balançar-se para cima dos ramos
de uma árvore, trepando com rapidez.
Lá no fundo da floresta... um movimento... uma visão de pelos fogosos.
Monk correu para a corrente funda e veloz. Vislumbrou Marta a saltar de uma árvore para outra na floresta densa. Os chimpanzés não sabiam nadar e não tinham um poder
de flutuação natural. Teria de seguir por outro caminho.
As sombras na floresta dispersaram-se no momento em que uma enorme figura apareceu, baixa, ondulando o focinho, grandes garras, uma cauda às riscas alta e firme.
O tigre saltou diretamente da margem para cima de Monk.
O homem usou as mãos como remos e correu como pôde, tarefa dificultada pelo peso da mochila e do rapaz. Pyotr agarrou-se ainda mais, estrangulando-o.
O tigre saltou, com as pernas afastadas e as garras pretas bem visíveis, lançando um urro de fúria selvagem.
Monk não conseguia avançar suficientemente depressa.
Mas o fluxo do rio fez o trabalho por ele.
O tigre caiu no meio da água, a alguns metros de distância, falhando a sua presa.
Monk enfiou por um rápido que corria entre duas rochas. Foi apanhado por um redemoinho, projetado para o fundo, depois reapareceu.
Pyotr engasgou-se e tossiu.
Monk virou-se e descortinou o tigre a caminhar rio acima. Virou numa zona da corrente em que havia um remoinho. Apesar dos mitos existentes sobre os felinos e a
água, os tigres não eram adversos à água. No entanto, a besta avançou para a margem. Não era assim que os felinos caçavam.
Os felinos emboscavam.
Os tigres quase que os tinham apanhado, seguindo-os silenciosamente através da floresta enquanto eles fugiam, incitados pelo aviso inicial de Pyotr. O rapaz tivera
razão. Seguindo o instinto e a perspicácia de sempre, o par detetara-os, esperando que a presa ficasse cansada para depois atacar. Os tigres eram bons velocistas,
não corredores de fundo. Calculavam a sua investida para poderem atacar no momento certo.
Ao longo da beira do rio, outro tigre apareceu, movimentando-se para trás e para a frente, frustrado. O primeiro felino saiu do rio, todo encharcado. Abanou o corpo
e espalhou a água que lhe cobria a pele.
Monk pôde ver bem o par. Embora bastante musculados, pareciam magros, esfomeados. A sua pele tinha um aspeto áspero. Reparou nas peças de aço idênticas às dos lobos.
Um tigre tinha uma orelha retorcida, de uma antiga ferida. Zakhar. segundo a descrição de Konstantin. Nascidos irmãos, era a única maneira de poderem ser distinguidos.
Num único movimento suave, como que respondendo a um assobio silencioso, o par virou-se e desapareceu na escuridão.
Monk sabia que ainda não tinha acabado.
A caça tinha apenas começado.
Virou-se e viu Konstantin e Kiska a desaparecerem numa curva no rio. Monk nadou de lado atrás deles. Pyotr tremia de encontro a ele. Monk sabia que o rapaz não estava
a tremer de frio. nem sequer de medo dos tigres. Os seus grandes olhos de pânico não estavam na margem do rio, mas no fluxo de água em torno dele.
O que é que o aterrorizava?
15h35
Pyotr agarrou-se ao homem grande. .Mantinha os braços apertados em tomo do seu pescoço, as pernas em torno da sua cintura. A água fluía à sua volta, enchendo o seu
mundo. Provou-a nos .seus lábios, sentiu-a nas suas orelhas, cheirou a sua doçura e podridão verde. O frio gélido cortava-lhe os ossos.
Ele não sabia nadar.
Tal como Marta.
Olhou para margem longínqua, enquanto se deixava arrastar procurando o animal seu amigo.
Pyotr sabia que grande parte do receio que tinha pela água vinha do coração de Marta. A água funda era a morte para ela. Sentira o bater apressado do seu coração,
quando tinham atravessado o riacho por cima das pedras, observando a sua mandíbula a ficar apertada, os seus olhos a abrirem-se uma expressão vidrada.
O terror dela era o seu.
Pyotr agarrou-se com mais força ao homem.
Mas a verdadeira razão do terror de Marta tinha uma profundidade maior do que qualquer mar. Soubera-o no momento em que viera ter com ele à cama, colocando uma mão
por cima dos lençóis, apelando à amizade. A maior parte dos graúdos pensara que viera confortá-lo, enquanto recuperava da sua primeira cirurgia.
Mas, nesse longo momento de respiração contida, olhando para os seus olhos cor de caramelo, Pyotr ficara a par do seu segredo. Ela viera ter com ele, procurando
conforto para si própria, um encorajamento da parte dele.
A partir desse momento, o terror e o amor haviam unido os dois de igual para igual.
Juntamente com um segredo profundo.
16h28
Nova Déli. Índia
- Sabiam que o homem consegue prever o futuro? - perguntou o doutor Hayden Masterson enquanto escrevia no computador.
Gray cansou-se de estudar as profundezas do seu café. O grupo partilhava uma das salas privadas do Delhi Internet Café and Video. Kowalski colocou-se junto à porta
de vidro fosco, para assegurar a sua privacidade. Tocou no penso rápido que tinha no queixo. Elizabeth cuidara das feridas do homem e estava agora a amontoar os
papéis que saíam da impressora a laser, ao lado do computador. Só lá estavam os quatro. Rosauro e Luca tinham ido alugar um carro novo para a viagem que tinham pela
frente.
Embora Gray ainda não tivesse a certeza do sítio para onde iam.
Isso dependia de Masterson - e ele não estava com muita disposição para falar. O professor mal pronunciara uma palavra, desde que escapara ao ataque no hotel. Tentativas
para fazê-lo abrir-se um pouco, para revelar a razão pela qual poderia ser o alvo do assassínio, só tinham feito com que se fechasse ainda mais.
Continuava a observar os danos provocados no cabo de marfim da sua bengala. Os seus olhos brilhavam - não de choque, mas de profunda concentração.
Elizabeth abanara calmamente a cabeça na direção de Gray.
Não o pressione.
Por isso viajaram para norte de Agra. na direção da capital da Índia. Nova Déli. Durante o percurso de cento e cinquenta quilômetros, Gray fê-los mudar de veículo
duas vezes ao longo do caminho.
Assim que chegaram aos arredores concorridos da cidade, Masterson só lhes dera uma única instrução: Preciso de aceder a um computador.
Por isso aqui estavam, numa acanhada sala das traseiras de um café com Internet. O professor entrara prontamente num endereço privado da página da Universidade de
Mumbai. exigindo três níveis de código para ser acedida.
- A investigação do Arquibaldo - explicara Masterson, começando a imprimir. Permanecera calado até esta declaração críptica acerca da humanidade conseguir prever
o futuro.
- Como assim? - perguntou Gray.
Masterson afastou-se do computador.
- Bem, nem toda a gente sabe disso, mas foi cientificamente provado, nestes últimos dois anos. que o homem tem capacidade para prever o que se poderá passar num
espaço de tempo muito curto. Uns três segundos, mais ou menos.
- Três segundos? - disse Kowalski. - Que diferença faz?
- Muita - replicou Masterson.
Gray franziu as sobrancelhas para Kowalski e virou-se para o professor.
- Mas o que quer dizer com cientificamente provado?
- Sabe alguma coisa sobre o projeto Star gate da CIA?
Gray trocou um olhar com Elizabeth.
- O projeto onde o doutor Polk trabalhou durante algum tempo?
- Outro investigador do projeto, o doutor Dean Radin, executou uma série de experiências em voluntários. Ligou-os a detetores de mentiras, medindo a condutividade
na pele, e começou a mostrar-lhes uma série de imagens num ecrã. Uma seleção aleatória de fotos perturbadoras e tranquilizantes. As imagens violentas e explícitas
provocavam uma forte reação no detetor de mentiras, um recuo eletrônico. Ao fim de alguns minutos, os voluntários começavam a recuar antes de um imagem horrível
aparecer na tela, reagindo com um máximo de três segundos de avanço. Ocorreu repetidas vezes. Outros cientistas, incluindo vencedores do Prêmio Nobel, repetiram
estes testes nas universidades de Edimburgo e Cornell. Com os mesmos resultados estatísticos.
Elizabeth abanou a cabeça com descrença.
- Como é que isso pode ser?
Masterson encolheu os ombros.
- Não faço a mínima ideia. Mas a experiência foi também alargada a jogadores de cartas. Foram monitorizados enquanto Jogavam. Começaram a mostrar o mesmo padrão,
reagindo segundos antes de uma carta ser virada. Uma resposta positiva quando a carta era favorável e negativa quando não era. Isto intrigou um físico laureado da
Universidade de Cambridge que executou um estudo mais elaborado, ligando tais cobaias a um aparelho de ressonância magnética para estudar a sua atividade cerebral.
Descobriu que a fonte da sua premonição parecia residir no cérebro. Este vencedor de um Prêmio Nobel - e lembrem-se, nenhum impostor qualquer - chegou à conclusão
de que as pessoas vulgares conseguem prever o que se poderá passar num espaço de tempo muito curto.
- Isso é extraordinário - disse Elizabeth.
Masterson olhou para ela com firmeza.
- Foi isso que motivou o seu pai - disse suavemente. - A determinar o como e o porquê de tudo isto. Se as pessoas vulgares conseguem prever o futuro em três segundos,
porque não mais? Horas, dias, semanas, anos. Para os médicos, tal conceito não é de todo inexplicável. Até mesmo Albert Einstein disse uma vez que a diferença entre
o passado e o futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente. O tempo é apenas outra dimensão, como a distância. Não temos problemas em olhar para a frente
ou para trás ao longo de um caminho. Porque não também ao longo do tempo?
Gray recordou-se da garota estranha. Do seu desenho a carvão do Taj Mahal. Se o homem conseguia ver através do tempo, tal como o doutor Masterson estava a dizer,
então porque não através de distâncias maiores? Lembrou-se da declaração do diretor Crowe acerca dos sucessos do projeto da CIA no âmbito da visão remota.
- Bastava apenas - disse Masterson - descobrir aqueles indivíduos raros com capacidade para ver mais longe do que as pessoas vulgares. Estudá-los.
Ou explorá-los, indagou Gray, ainda a pensar na garota.
Elizabeth colocou a última folha da impressora no monte de papéis. Entregou-o a Masterson.
- O meu pai... ele estava à procura desses indivíduos raros?
- Não, minha querida, ele não estava à procura deles.
Os olhos de Elizabeth franziram-se, confusos.
Masterson bateu na sua mão.
- O seu pai encontrou-os.
Gray animou-se.
- O quê?
Um toque na porta interrompeu o professor, antes de ele poder explicar. Kowalski movimentou-se, verificou quem era e abriu a porta.
Rosauro enfiou a cabeça e passou a Gray um pesado molhe de chaves de um veículo de aluguer.
- Estão prontos?
- Não - respondeu Gray.
Masterson passou por ele com um monte de papéis debaixo do braço.
- Sim, estamos.
Gray revirou os olhos e acenou para os outros.
- Venham.
Ele seguiu, estrangulando mentalmente o irascível professor.
Kowalski manteve-se ao lado de Gray.
- Ele está apenas a cobrar-lhe - disse o homem grande, acenando para o bastão sob o outro braço de Masterson. - Pelo que você fez à sua bengala.
Saíram do Internet Café e encontraram Luca Heam inclinado sobre o capô de um Mercedes-Benz. G55 SUV prateado. Parecia um tanque.
Rosauro dirigiu-se para a parte da frente. Já tinha uma mão erguida contra as suas objeções.
- Está bem, não é nada modesto. Eu sei. Mas eu não sabia para onde íamos ou a que velocidade precisaríamos de lá chegar.
Kowalski sorriu abertamente.
- Ou quantos Honda teríamos de ultrapassar.
- Tem tração às quatro rodas, quase quinhentos cavalos e... e... - Encolheu os ombros. - Gosto dele.
Kowalski passou por ela para inspecionar o carro.
- Sim, a partir de agora, a Rosauro escolhe todos os nossos veículos!
Gray suspirou e avançou na direção do doutor Masterson.
- Para onde vamos agora?
O professor estava a estudar o monte de papéis e acenou com a sua bengala para o norte, visivelmente irritado. Gray esperou por mais pormenores, mas não obteve resposta.
O aviso de Elizabeth ecoou-lhe na cabeça. Não o pressione...
Desistindo, Gray apontou para o SUV. Não tinha tempo para discussões. Já tinham estado neste lugar demasiado tempo. Queria continuar a andar, mesmo não sabendo exatamente
para onde. Se alguém tivesse posto um traçador na página da Universidade de Mumbai, poderiam estar a apontar uma arma para eles agora mesmo.
- Entrem - ordenou Gray.
Kowalski pediu as chaves.
Gray atirou-as para Rosauro.
Kowalski olhou para ele.
- É mesmo diabólico.
17h06
Elizabeth não podia esperar mais. Indo contra o seu próprio conselho, dirigiu-se ao doutor Masterson.
- Hayden, já basta de joguinhos. O que queria dizer quando disse que o meu pai tinha encontrado essa gente?
- Aquilo que disse, minha querida.
O professor ia sentado no centro da fila do meio do SUV. ladeado por Elizabeth e Gray. De caneta em punho, Hayden estivera a verificar as folhas impressas durante
os últimos dez minutos. Rosauro olhou para eles do assento do condutor. Kowalski afundou-se no lugar ao lado. mantendo os braços teimosamente cruzados.
Luca mexeu-se atrás deles e inclinou-se para a frente para ouvir.
Hayden explicou:
- O seu pai passou a última década a colher e comparar amostras de DNA dos iogues e místicos mais destacados da Índia. Viajou de um lado para o outro, de norte a
sul. Reuniu montes de dados, códigos genéticos comparados. Usou um modelo estatístico para analisar a capacidade mental versus a variação genética.
- Ele também testou o povo de Luca - disse Elizabeth.
O cigano assinalou de forma sonora a sua concordância.
- Porque são provenientes da região do Punjab - disse Hayden.
- Por que é importante? - perguntou Gray.
- Vou mostrar. - O professor procurou no monte durante meio minuto, depois tirou uma folha. - Seu pai, Elizabeth. era um verdadeiro gênio, muito pouco considerado
pelos colegas. Ele foi capaz de distinguir três genes que pareciam ser comuns àqueles que demonstravam possuir os traços mais fortes. Tal como muitas descobertas
científicas, tal descoberta teve uma parte de brilhantismo e outra de sorte. Deu-se conta desses genes quando reparou que muitos dos indivíduos mais talentosos pareciam
evidenciar sinais de autismo em vários graus.
- Autismo? - perguntou Elizabete. - Por que autismo?
- Porque a condição mental debilitante, ao mesmo tempo que compromete a função social, pode muitas vezes produzir uma sapiência fora de comum - disse Hayden, batendo-lhe
no joelho. - Sabia que algumas das figuras mais importantes da história tinham tendências autistas?
Elizabete abanou a cabeça.
Ele referiu alguns nomes, enumerando-os com os dedos.
- Nas artes, temos Miguel Ângelo, Jane Austen, Emily Dickinson, juntamente com Beethoven e Isaac Newton. Na politica, Thomas Jefferson. Até Nostradamus parece ter
revelado um certo nível de autismo.
- Nostradamus? - perguntou Gray. - O astrólogo francês?
Hayden anuiu
- Estes indivíduos mudaram a história, melhoraram a humanidade, impeliram-nos para a frente. Há uma frase que o Arquibaldo adorava citar. Da doutora Temple Grandin,
uma escritora de grande êxito na área do autismo. “Se por magia, o autismo fosse erradicado da face da terra, então os homens estariam a socializar em frente de
uma fogueira à entrada de uma gruta.” E acredito que ela tinha razão.
- E o meu pai?
- Quase certeza. Seu pai chegou a acreditar que havia uma relação direta entre o autismo e os seus próprios estudos relacionados com a intuição e o pressentimento.
- E descobriu essa relação? - disse Gray.
O professor suspirou.
- Apesar de não sabermos a causa exata do autismo, a maior parte dos cientistas concorda que existem dez genes diferentes que potencialmente contribuem para o aparecimento
deste distúrbio. Por isso, o Arquibaldo introduziu esses dez genes no seu modelo estatístico e descobriu que eram comuns entre todos aqueles que tinham talento superior.
Era a descoberta de que andava à procura. Com estes três marcadores genéticos, começou a traçar geograficamente a frequência destes marcadores na população em geral.
Elaborou um mapa.
O professor passou a Elizabete a folha que tinha no colo. Era um mapa da Índia. Estava coberto em toda a sua extensão por centenas de pequenos pontos.
Elizabete observou-o, depois estendeu-o a Gray
Hayden explicou.
- Cada ponto representa um indivíduo portador do marcador genético. Mas, se olharem de perto, verão quantos pontos aparecem nas cidades mais importantes, como Deli
e Mumbai. O que faz sentido, dado que são locais com muita gente.
- E aqui? - perguntou Gray, apontando para o norte.
Elizabeth sabia o que é que Gray estava a perguntar. Um grande número de pontos - mais do que em qualquer outro sítio - situava-se a norte, sem que houvesse alguma
cidade importante.
- Exatamente. O Arquibaldo indagou o mesmo. - Hayden voltou a pegar no mapa e bateu com a mão no grupo de pontos a norte. - Ele concentrou os últimos três anos da
sua vida nesta área. Pretendia descobrir porque é que aparecia uma concentração tão densa neste sítio.
- O que há lá? - perguntou ela.
- O Punjab. - A resposta veio de trás de Elizabeth. De Luca Hearn. - A terra natal do povo romani.
- Com efeito. Por isso é que o Arquibaldo contatou os clãs ciganos na Europa e nos Estados Unidos. Descobriu que havia uma coincidência no fato de uma tão rica história
de profecias e predição do futuro vir do mesmo ponto e se ter espalhado pela Europa e outras terras. Ele procurou ver se este marcador genético poderia ser encontrado
no seio do povo cigano.
- E foi? - Elizabeth colocou a questão a Hayden e Luca.
Hayden respondeu:
- Sim, mas não na concentração que ele estava à espera. O seu pai ficou desapontado.
Luca fez um barulho de quem coloca algumas reservas.
Ela virou-se para ele,
- O quê?
- Havia uma razão - disse Luca.
Gray virou-se.
- O que quer dizer?
- Foi por isso que contratamos o doutor Polk.
Elizabeth lembrava-se de que o líder do clã cigano nunca tinha falado plenamente sobre o assunto. Começara a explicar no avião, mas tinham sido interrompidos.
- Como lhe disse antes, o doutor Polk procurou recolher amostras de sangue dos nossos chovihanis mais dotados. Não charlatães, mas verdadeiros adivinhos. Mas havia
poucos entre nós que ainda obedeciam a esse critério.
- Por quê?
- Porque o coração do nosso povo foi-nos roubado.
Lentamente, e com uma voz amarga, Luca prosseguiu, contando a história de um segredo profundo entre os seus clãs, um segredo que remontava há séculos. O segredo
que dizia respeito a um clã, entre todos os outros, um clã que era o mais acarinhado. Era até proibido falar deles aos gadje, aos estrangeiros. O clã foi mantido
à parte, escondido, protegido pelos outros clãs. Era a verdadeira fonte da herança cigana da profecia. Em raras ocasiões, alguns destes chovihanis deslocaram-se
e passaram a viver no seio dos outros clãs, partilhando os seus talentos, casando. Mas, na sua maioria, permaneceram isolados e afastados. Depois, há cerca de cinquenta
anos, o clã foi descoberto. Todos os homens e mulheres foram chacinados, exterminados e enterrados numa sepultura rasa e gelada.
As palavras de Luca foram-se tornando ainda mais amargas.
- Só que nesse cemitério comum não havia ossos de crianças.
Elizabeth compreendeu o impacto.
- Alguém as levou.
- Nunca descobrimos quem..., mas nunca deixávamos de procurar. Esperávamos que o doutor Pock, com o seu novo processo de investigação através do DNA, pudesse encontrar
uma pista desde há muito esmorecida.
- Teve algum êxito? - perguntou Elizabeth.
Luca abanou a cabeça.
- Que tivesse revelado, não. Enviou um inquérito estranho, há uns meses. Queria saber mais coisas acerca do nosso estatuto de intocáveis, o grupo dos sem casta na
Índia.
Elizabeth não sabia o que é que ele queria dizer. Olhou para Hayden. mas o professor encolheu os ombros. Contudo, notou algo na sua expressão, um franzir de olhos.
Ele sabia algo.
Mas, em vez de explicar, marcou um pequeno x no mapa com a sua caneta.
- O que é isso? - perguntou Elizabeth. reparando na forma como se situava no meio da concentração de pontos na região do Punjab.
- E para onde nos devemos dirigir, se quisermos respostas.
- E onde é que isso fica? - pressionou Gray.
- No lugar onde o Archibald desapareceu.
11
6 de setembro, 17h38
Pripyat, Ucrânia
Nicolas atravessou o parque de diversões da cidade fantasmagórica.
Velhos carrinhos de choque amarelos jaziam em poças de água verde estagnada, no meio de plantas que davam pela altura da cintura. O telhado da pista há muito que
havia caído, deixando um arco de corrosão vermelha sobre o local. A frente, a roda gigante do parque erguia-se imponente no céu de fim de tarde, posta em destaque
pelo sol baixo. As suas cadeiras amarelas protegidas por guarda-sóis pendiam ociosas do esqueleto enferrujado. Um símbolo e monumento à ruína deixada para trás na
sequência do que se passara em Chernobyl.
Nicolas prosseguiu.
O parque fora construído em antecipação das celebrações do Dia do Trabalhador, em 1986. Em vez disso, uma semana antes da celebração, a cidade de Pripyat, terra
de quarenta e oito mil trabalhadores e respetivas famílias, foi aniquilada, sufocada sob um véu de radiação. A cidade, construída na década de 1970. fora um exemplo
brilhante da arquitetura e do modo de vida urbano soviético: o Teatro Energético, o palaciano Hotel Polissia, um hospital moderno, inúmeras escolas.
O teatro jazia cm ruínas. O hotel tinha bétulas a crescer no telhado. As escolas transformaram-se cm esqueletos esmagados, sobre um manto de manuais antiquados,
velhas bonecas e blocos de construção em madeira. Numa das salas, Nicolas vira pilhas de máscaras de gás abandonadas, jazendo num amontoado flácido como escalpes
de mortos. A cidade vibrante de outrora fora reduzida a um monte de janelas partidas, paredes derrubadas. velhas estruturas de camas e tinta desfeita. As ervas e
árvores cresciam selvaticamente por todo o lado, desfazendo o que o homem tinha construído. Agora apenas as excursões eram autorizadas, a quatrocentos dólares por
cabeça, a explorar este lugar devassado.
E a causa de tudo isto...
Nicolas encobriu os olhos com a mão para ver melhor. Conseguia apenas descortinar no horizonte uma massa imprecisa, a três quilômetros de distância.
A explosão do reator número quatro lançara uma nuvem que envolvera o mundo. Contudo, neste preciso local, a ordem de evacuação fora só dada trinta horas depois.
A floresta em tomo da cidade ficara vermelha com o pó radioativo. Os citadinos varreram os seus alpendres e varandas. com o intuito de os manterem limpos, enquanto
as labaredas de plutônio ardiam a três quilômetros de distância.
Nicolas abanou a cabeça, sobretudo porque sabia que uma equipe de reportagem o seguia, captando imagens de fundo para os noticiários da noite. Nicolas caminhou através
do parque de diversões. Fora aconselhado a manter-se na recente faixa de asfalto que atravessava as minas da cidade abandonada. Os níveis de radiação aumentavam,
se as pessoas saíssem para as manchas musgosas de devastação urbana. As piores zonas estavam marcadas com sinais amarelos triangulares. O novo caminho asfaltado
fora colocado para receber o fluxo de dignitários e jornalistas que se tinham dirigido a Chernobyl em antecipação da instalação do novo sarcófago de aço que iria
cobrir a antiga estrutura de cimento.
Mas, esta noite, o Hotel Polissia iria recuperar um pouco da sua antiga glória. A sala de baile do hotel fora renovada à pressa, esvaziada e limpa para receber uma
festa de traje formal. Até as bétulas que cresciam no telhado foram cortadas para a ocasião.
Só o melhor para os seus convidados internacionais. Haveria representantes de quase todas as nações, até um punhado de estrelas de Hollywood. Pripyat resplandeceria
para esta única noite, uma gala de assombro no centro de uma ruína radiológica.
Tanto o presidente da Rússia como o primeiro-ministro estariam presentes, juntamente com vários membros da câmara alta e baixa da Assembleia Federal. Muitos já lá
estavam, fazendo afirmações indiferenciadas de mudança e reforma, pretendendo capturar dividendos políticos com a realização deste evento.
Mas ninguém havia verbalizado de uma forma tão veemente esta verdadeira mudança como o senador Nicolas Solokov. E depois da tentativa de assassínio desta manhã,
tinha as luzes da ribalta em cima dele.
No momento em que as câmeras incidiram sobre ele, Nicolas saiu do caminho asfaltado e dirigiu-se a uma parede próxima. Na sua superfície tinha sido pintada uma sombra
completamente preta de um par de crianças a brincar com um pequeno camião. Dizia-se que um francês maluco tinha passado meses em Pripyat. A sua arte das sombras
podia ser encontrada por toda a cidade, desolada e perturbadora, representando os fantasmas das crianças perdidas.
A sua própria sombra pessoal, Elena, permaneceu no caminho de asfalto. Escolhera esta obra de arte em especial como sendo a mais pungente. Previamente, havia vistoriado
a zona com um dosímetro para se certificar de que os níveis de radiação eram seguros.
Tinha tudo a ver com a capacidade de representação esta noite.
Nicolas colocou uma mão na parede. Percorreu a forma das crianças com um dedo. Levou a mão aos olhos. Elena aspergira previamente a manga do casaco com alguns pingos
de amônia. O contato proporcionou as lágrimas pretendidas.
Virou-se para as câmeras, mantendo os dedos no rosto sombreado da criança.
- É por isto que temos de mudar - disse, fazendo um gesto com a mão de modo a abarcar a cidade. - Como é que podemos olhar para esta paisagem destroçada e não saber
que o nosso grande país deve avançar para uma nova era? Temos de pôr tudo isto para trás das costas, mas sem nunca o esquecer.
Passou com a mão pelo rosto e desde logo o semblante ficou mais endurecido - algumas lágrimas estavam bem, mas não queria dar parte de fraco. A sua voz enrouqueceu
junto aos microfones.
- Olhem para esta cidade! O que o homem arruinou, a natureza consome. Alguns chamaram esta cidade de Jardim do Éden de Chernobyl. Não é uma floresta bonita a que
tomou conta da cidade? Os pássaros cantam. Os veados proliferam em grande abundância. Mas sabem que os lobos também estão de volta.
Olhou na direção do horizonte escurecido.
- Não nos deixemos iludir por essa beleza. Ainda continua a ser um jardim radioativo. Todos nós passamos pelos dois postos de controle militar para entrar na Zona
de Exclusão de Chernobyl, com trinta quilômetros de alcance. Todos nós passamos pelos dois mil veículos usados para eliminar a explosão radioativa de Chernobyl.
Carros de bombeiros, aviões, ambulâncias, ainda demasiado quentes para nos podermos aproximar. Todos nós temos daqueles dispositivos para medir a intensidade de
radiação. Por isso não se iludam. A natureza regressou, mas .sofrerá durante gerações e gerações. O que parece saudável e vital não o é. Não se trata de um renascimento.
Apenas de uma esperança falsa. Para um verdadeiro renascimento, teremos de olhar para novas direções, para novos objetivos, para um novo Renascimento.
Virou-se outra vez para as crianças sombreadas. Abanou a cabeça.
- Como é que não o podemos fazer? - terminou com tristeza.
Alguém no passadiço bateu palmas.
De frente para as câmeras, Nicolas sorriu. Enquanto os flashes das máquinas fotográficas captavam a sua pose. pensativa e resoluta, a sua própria sombra consumia
as formas das crianças. Ao fim de um longo momento, virou-se e regressou ao caminho de asfalto.
Voltou a dirigir-se para o hotel. Elena seguiu-o. Depois de uma curva, viu uma agitação na parte da frente do Hotel Polissia. Uma longa limusine preta apareceu Junto
à entrada do edifício, rodeada por uma frota luzidia de sedãs à prova de bala. Vários homens de terno escuro largaram as viaturas, formando um grosso cordão. O dignitário
que acabava de chegar saiu da limusine, cumprimentando com um braço levantado.
As luzes das câmeras e vídeos incidiram sobre a figura, acentuando o perfil do recém-chegado.
Não havia dúvidas quanto à sua silhueta.
O presidente dos Estados Unidos.
Aqui presente para apoiar o pato nuclear vital entre a Rússia e os Estados Unidos.
A principal razão pela qual Pripyat tinha sido limpa e desinfetada fora para poder receber tais dignitários.
Não querendo evidenciar-se, Nicolas esperou que todo o grupo desaparecesse no interior do hotel. Uma vez o caminho livre, tomou de novo a liderança.
Tudo estava no seu lugar.
Olhou para a central de Chernobyl no momento em que o Sol se punha no crepúsculo.
Por volta desta hora, amanhã, um novo mundo nasceria.
17h49
Montes Urais Meridionais
Monk permaneceu numa saliência e olhou para as montanhas baixas. Com o Sol a desaparecer, o vale em baixo apresentava sombras profundas.
- Temos de atravessá-lo? - perguntou. - Não há outro caminho?
Konstantin desdobrou o mapa.
- Não sem termos de fazer centenas de quilômetros para o circundar, o que nos levaria vários dias. A mina que temos de alcançar no outro lado do lago Karachay fica
apenas a vinte quilômetros de distância se atravessarmos aqui.
Monk olhou para baixo para o vaie pantanoso. O rio por onde tinham passado abandonava este último espinhaço para se lançar no vale largo que se abria em baixo. Muitos
outros riachos e ribeiros faziam o mesmo. A luz do Sol inclinado, as quedas de água e cataratas brilhavam como fluxos de mercúrio. Mas, sombreada pelas montanhas
baixas, a superfície do vale era composta unicamente por florestas inundadas e grandes extensões de pântanos escuros delimitados por juncos e ervas. Seria difícil
atravessá-lo e assim que escurecesse, poderiam perder-se com facilidade.
Suspirou pesadamente. Não tinham outra alternativa senão atravessar os terrenos pantanosos. Virou-se para o sítio onde Kiska e Pyotr estavam sentados, em cima de
um tronco. As crianças ainda pareciam um par de gatinhos meio-afogados. Tinham passado o rio durante umas centenas de metros, até o frio os ter conduzido para a
margem. Monk fizera-os sair do lado oposto àquele por onde tinham entrado os felinos predadores. A água devia eliminar o seu rastro e o rio ia-se alargando à medida
que se ia afastando do seu curso a montante. Os tigres teriam de enfrentar uma difícil travessia para recuperarem o seu cheiro.
E, durante estas últimas duas horas, Pyotr permanecera calado, visivelmente preocupado com Marta. Mas. pelo menos, o rapaz não demonstrava sinais de pânico, nenhum
sinal de tigres por perto.
Uma vez fora da água. Monk obrigara toda a gente a tirar a roupa, tentando secá-la o melhor possível, para depois voltarem a vesti-la. A caminhada de duas horas,
durante a parte mais quente do dia, ajudara a secar a maior parte dela. Mas agora iriam ficar molhados outra vez e o Sol estava a começar a pôr-se. Iria ser uma
noite fria.
Mas Konstantin tinha razão. Teriam de continuar a andar por agora. Não era seguro permanecerem em terra firme com dois tigres a deambularem por estas florestas altas.
O pântano iria finalmente oferecer algum abrigo.
Monk escolheu um caminho pela encosta inclinada. Ajudou Pyotr enquanto Konstantin dava a mão à irmã. As duas crianças mais novas estavam a ficar visivelmente cansadas.
Em grupo, saíram da luz quente e embrenharam-se nas sombras mais frias.
As árvores cresciam com maior intensidade nesta zona. composta essencialmente por pinheiros e bétulas. Mas. ao longo do emaranhado de ramos que fluía para o pântano,
os salgueiros sobrepunham-se, com as pontas dos seus ramos a varrerem as águas, drapejando dos seus ombros deprimidos.
Monk avançou, abrindo caminho. O matagal era uma mistura entrelaçada de arbustos e bagas de zimbro. Mas o caminho começou a ficar mais desanuviado à medida que o
terreno se ia tomando mais lamacento. Pouco tempo depois, estavam a saltitar de tufo de musgo em tufo de musgo, o que não era difícil considerando a forma como o
musgo se desenvolvia nestas paragens. O fofo tapete verde cobria afloramentos rochosos e trepava pelos troncos brancos das bétulas, como se estivesse a tentar arrastá-los
para debaixo da terra.
O ritmo que levavam começou a abrandar, atolando-se literalmente, à medida que as poças de água estagnada ia aumentando à sua volta.
Um grito estridente chamou a atenção de Monk. Uma águia passou com umas asas tão grandes como os braços esticados de Monk.
Caçando.
Monk lembrou-se dos perigos que os perseguiam.
Aumentou o ritmo imposto. Desta vez, as crianças pareciam mais aptas para o terreno. Os seus corpos leves flutuavam por cima da lama empapada, enquanto Monk tinha
de vigiar cada passada que dava para não perder uma bota pelo caminho.
Durante a hora seguinte, deslocaram-se preguiçosamente, percorrendo menos de um quilômetro e meio, segundo os cálculos de Monk. Viu cobras que se afastavam a rastejar
do seu caminho e vislumbrou uma raposa a saltar de elevação em elevação para depois desaparecer. Os ouvidos de Monk captavam todos os sons. Detetou coisas a movimentarem-se
pesadamente através do pântano. Um grande conjunto de chifres assinalou a passagem de um imponente alce.
Antes de se darem conta, estavam com a água pelos tornozelos, movendo-se aos ziguezagues de ilha em ilha. O ar fresco cheirava a umidade numa profusão de algas e
bolor. O caminho ia ficando mais escuro à medida que o Sol se punha atrás das montanhas.
Os passos de Monk sucediam-se a um ritmo de lavra.
Konstantin movia-se ao lado de Monk. Ainda tinha a mão dada a Kiska. A garota estava quase a dormir em pé.
Pyotr mantinha-se colado à anca de Monk. Monk tinha de transportar o rapaz ao ombro sempre que as águas se tornavam mais fundas.
Pyotr agarrou subitamente a mão de Monk. apertando-a com força.
Algo estalara entre as árvores, indo na sua direção.
Oh, não...
Monk gritou, sabendo o que vinha aí.
- Corram!
Monk agarrou no rapaz, que lutou e gritou. Konstantin acelerou o passo, erguendo bem os joelhos, arrastando a irmã atrás dele. O pé esquerdo de Monk afundou-se até
meio da perna. Fez um esforço, mas não conseguiu libertar a perna. Era como se estivesse presa ao cimento.
O cortar e estalar dos ramos continuava na sua direção.
Monk lançou Pyotr para uma distância razoável à sua frente e virou--se para enfrentar o ataque. Ouviu o rapaz a cair na água. Mas este, em vez de correr, voltou
para o pé de Monk.
- Não, Pyotr, corre!
O rapaz continuava ao pé dele no momento em que uma grande sombra apareceu, vinda do meio das árvores e caindo pesadamente na água com um forte estrépito. O rapaz
e a sombra abraçaram-se com alegria.
Marta.
Monk tentou travar o ritmo acelerado do seu coração.
- Pyotr, da próxima vez... avisa.
Tirou lentamente o pé da lama.
O chimpanzé abraçou o rapaz e retirou-o pessoalmente da água superficial. Konstantin e Kiska foram ter com eles. Marta largou Pyotr e apertou com força as outras
crianças. A seguir aproximou-se de Monk de braços levantados e afastados. Ele dobrou-se e aceitou também um abraço. O corpo do animal estava quente, a sua respiração
libertava um bafo ao ouvido de Monk. Sentiu um tremor de exaustão no corpo envelhecido. Devolveu o abraço, sabendo quão difícil devia ter sido para ela reencontrá-los.
Enquanto Monk se endireitava, começou a indagar como é que Marta os tinha descoberto. Compreendeu como é que ela os tinha alcançado. Enquanto eles tinham avançado
pesadamente através da lama e da água, ela havia saltitado por entre as árvores lamacentas, encurtando a distância. Mas como é que tinha recuperado o rastro deles?
Monk olhou para trás para o pântano escuro.
Se ela conseguira segui-los...
- Temos de continuar a andar - disse e acenou na direção do centro do pântano.
De novo juntos, atravessaram os terrenos pantanosos. O reaparecimento de Marta revigorara as crianças, mas o peso da lama depressa os fez voltarem à labuta anterior.
Konstantin ia mais à frente. Pyotr seguia ao lado de Monk. enquanto Marta se mantinha quase sempre agarrada às árvores, balouçando-se a uma altura baixa, com as
patas a roçarem a superfície das águas.
Lentamente, o Sol desapareceu atrás das montanhas, deixando-os no crepúsculo escuro. Monk mal conseguia ver Konstantin. A esquerda, uma coruja assobiou num tom oco
no momento em que a noite caía.
Konstantin alertou-os suavemente para qualquer coisa que encontrara no meio de um denso bosque de salgueiros, parecendo agitado.
- Uma izba!
Monk não sabia o que é que ele queria dizer, mas não parecia ser uma coisa muito boa. Alcançando o rapaz. Monk viu que a água ali era menos funda.
Afastou uma cortina de ramos de salgueiros e descortinou à sua frente uma daquelas ilhotas que se encontravam por todo o lado. Mas não estava vazia. Em cima da pequena
elevação havia uma pequena cabana assente em pequenos postes. Fora construída com troncos cortados de forma tosca e coberta por um telhado cheio de musgo. A única
janela estava escura. Não havia sinal de vida. Nenhum fumo da chaminé.
Konstantin esperou na borda da ilha no meio de uns juncos altos.
Monk juntou-se a ele.
O rapaz alto apontou.
Um abrigo de caçador. Há cabanas destas por todas as montanhas.
- Vou verificar - disse Monk. - Fiquem aqui.
Trepou para a ilha e circundou a cabana. Era pequena, com uma chaminé de pedras amontoadas. A erva dava-lhe pela cintura. Há anos que ninguém devia pôr os pés aqui.
Havia uma única Janela, fechada do interior. Monk viu um pequeno cais sem barcos amarrados. Mas uma embarcação achatada - uma Jangada com uma proa pontiaguda - fora
puxada para uns Juncos vizinhos. O musgo cobria metade da Jangada, mas. felizmente, ainda estava em condições de poder ser usada.
Monk regressou à parte da frente da cabana. Experimentou a porta. Estava destrancada, mas as tábuas de madeira tinham entortado de tal maneira que teve de fazer
algum esforço para abri-la, com um ranger de dobradiças enferrujadas. O interior estava escuro e cheirava a mofo. Mas, pelo menos, estava seco. A cabana de madeira
tinha apenas uma divisão. O chão era de pinho e encontrava-se coberto de feno, na sua maior parte. A única mobília era uma pequena mesa com quatro cadeiras. Uns
armários toscos cobriam uma parede inteira, mas não havia cozinha. Dava ideia que era tudo feito à lareira, onde havia uns tachos e panelas de ferro pendurados.
Monk reparou num monte de madeira seca.
Muito bom.
Monk foi até a porta e acenou para as crianças entrarem.
Não queria parar, mas todos precisavam de descansar um pouco. Com a janela fechada, Monk podia arriscar um pequeno lume. Seria bom secarem as roupas e as botas,
terem um lugar quente para se resguardarem durante a parte mais fria da noite. Uma vez descansados e secos, podiam partir antes do raiar do dia, talvez até com a
jangada.
Konstantin ajudou-o a acender o lume. enquanto as duas crianças se sentavam no chão, encostadas a Marta. O rapaz mais velho encontrou fósforos numa caixa encerada,
e a madeira seca e envelhecida pegou logo fogo à primeira faísca. A lareira ateou-se rapidamente, com o som da madeira a crepitar e estalar. O fumo desapareceu pelo
buraco da chaminé.
Enquanto Monk acrescentava mais lenha, Konstantin revistou os armários. Descobriu um fio de pesca, um lampião enferrujado com um pouco de querosene, uma pesada faca
de mato e uma caixa meio vazia contendo cartuchos de espingarda. Mas nenhuma arma. Num armário, descobriu umas revistas amareladas e encarquilhadas com mulheres
nuas. que Monk confiscou e descobriu um bom uso como acendalhas. E, na prateleira superior, quatro cobertores pesados, meio desbotados, encontravam-se dobrados e
arrumados.
Enquanto Konstantin estendia os cobertores, apontou para a mochila de Monk. Monk olhou. O rapaz assinalou o monitor de radiação. Já não estava branco, apresentando-se
agora com uma tonalidade cor-de-rosa.
- Radiação - murmurou Monk.
Konstantin acenou afirmativamente.
- A central de processamento que envenenou o lago Karachay. -Apontou para nordeste. - Também foi escapando lentamente para o solo.
Contaminando as águas subterrâneas, apercebeu-se Monk. E onde é que todas as torrentes das montanhas locais terminavam? Monk olhou na direção da janela fechada,
recordando-se do pântano lá fora.
Abanou a cabeça
E pensou que só tinham de se preocupar com os tigres predadores de homens.
19h04
Pyotr sentou-se nu, aconchegado por um cobertor grosso, à frente da lareira. Os sapatos estavam juntos ao borralho e as suas roupas penduradas a secar na linha de
pesca. A linha era tão fina que era como se as suas calças e camisa flutuassem no ar.
Apreciou as chamas reluzentes a dançar e a crepitar, mas não gostou do fumo. Subia pela chaminé como se fosse uma coisa viva, nascida do fogo.
Tremeu e arrastrou-se para o pé das chamas brilhantes com a ajuda das nádegas.
A dona da escola costumava contar-lhes histórias acerca da bruxa Baba Yaga, que vivia na floresta escura numa cabana de madeira sobre pés de galinha e apanhava crianças
para comer. Pyotr recordou-se dos postes que vira lá fora e que .seguravam a cabana. E se fosse a cabana da bruxa. escondendo as suas garras debaixo do chão?
Olhou para o fumo de uma forma mais desconfiada.
E não era a bruxa que tinha criados invisíveis para a servir?
Olhou em volta à procura deles. Não viu nada a mexer-se sozinho. Mas, por outro lado, as chamas lançavam sombras por tudo quanto era sítio, pelo que era difícil
de dizer.
Aproximou-se ainda mais do calor das chamas. Todavia, manteve o olhar fixo nos remoinhos de fumo.
Balançou ligeiramente no lugar para se reconfortar. Marta apareceu a seu lado, envolvendo-o. Encostou-se a ela. Um forte braço puxou-o ainda mais para junto dela.
Não tenha medo.
Mas ele tinha medo. Sentiu-o, fazendo-lhe comichão no interior do seu crânio como mil aranhas. Observou o fumo, sabendo que era aí que estava o verdadeiro perigo,
enquanto se esvaía pela chaminé, possivelmente avisando Baba Yaga de que havia crianças na casa.
O coração de Pyotr começou a bater mais depressa.
A bruxa estava a caminho.
Ele sabia.
Os seus olhos abriram-se para ver melhor o fumo. Tentou ver onde estava o perigo.
Marta assobiou ao seu ouvido, reconfortando-o, mas não serviu de nada. A bruxa ia comê-los. Corriam perigo. Crianças em perigo. O fogo crepitou com mais força, assustando-o
e obrigando-o a dar um salto. Depois soube.
Não eram crianças.
Mas uma criança.
E não eles.
Mas outra.
Pyotr olhou fixamente para o fumo, tentando descortinar a verdade no meio da escuridão. Enquanto o fumo se enrolava no ar, viu quem corria perigo.
Era sua irmã.
Sasha.
11h07
Washington, D. C.
- CID - explicou Lisa à beira da cama da garota.
Kat fez um esforço por compreender. Mantinha-se com os braços colados à barriga enquanto olhava para baixo para a garota, tão magra na sua roupa de hospital, perdida
entre os lençóis e almofadas da cama com grades. Os fios saíam de debaixo dos lençóis diretamente para uma banca de equipamento, que estava junto a uma parede, monitorizando
a pressão arterial e o ritmo cardíaco. De um tubo intravenoso pingava uma mistura fraca de sal e medicamentos. Contudo, ao longo das últimas horas, a sua pele pálida
ficara ainda mais branca, os lábios azulados.
- Coagulação intravascular disseminada - traduziu Lisa, embora pudesse estar igualmente a falar em latim.
Monk, com a sua formação médica, teria sabido de que é que ela estava a falar. Kat afastou este último pensamento da cabeça, ainda em sobressalto por ter visto a
imagem da criança. Ela tinha-a desenhado obviamente para Kat. Tinham estabelecido uma certa ligação. Kat detetara esse fato nos olhos da criança quando se pôs a
ler para ela. Os modos da criança eram maioritariamente inexpressivos e premeditados, mas, por vezes, ela virava os seus pequenos olhos para Kat. Deixava transparecer
algo, uma mistura de confiança e quase reconhecimento. O que derretera o coração de Kat. Com um novo bebé a caminho, ela sabia que os seus instintos maternais e
hormonas estavam ao rubro, as suas emoções feridas com a recente perda do marido.
- O que é que isso significa? - perguntou Painter a Lisa.
Ele estava do lado oposto da cama ao lado de Lisa. Regressara depois de ter feito uma chamada para Gray na Índia. A equipe deste tinha sido atacada e dirigia-se
agora para a região norte. Painter estava já a investigar quem é que tinha orquestrado a emboscada - a tentativa de assassínio ao professor não podia ser uma coincidência,
alguém sabia que Gray se encontrava lá. Apesar de ter de prosseguir com o mistério, o diretor arranjara um tempinho para vir até cá baixo, a fim de se inteirar do
relatório de Lisa.
A doutora Cummings acabara de fazer urna serie de testes sanguíneos.
Antes de a pergunta de Painter poder ser respondida, o doutor Sean McKnight entrou no quarto. Tirara o casaco e a gravata. Tinha as mangas da camisa enroladas até
o cotovelo. Fizera algumas chamadas a seguir à inquirição de Gray. Painter virou-se para ele. erguendo um sobrolho com um ar interrogativo, mas Sean limitou-se a
acenar para que Lisa continuasse. Afundou-se numa cadeira Junto à cama. Mantivera-se de vigília durante a última hora. Ainda agora mantinha a mão em cima da cama.
Kat e Sean tinham conversado durante algum tempo. Ele tinha dois netos.
Lisa aclarou a voz.
- A CID é um processo patológico em que o sangue do corpo começa a formar pequenos coágulos por todos os sistemas. Esgota os fatores de coagulação do corpo e provoca
o aparecimento de derrames internos. As causas são variadas, mas a situação surge geralmente como efeito secundário de uma doença principal. Mordidas de cobras,
câncer, grandes queimaduras, choque. Mas uma das principais razões é a meningite. Normalmente uma inflamação séptica do cérebro. O que tendo em conta a febre e...
Lisa apontou com a cabeça para o aparelho ligado à parte lateral do crânio da criança. Os seus lábios franziram-se de preocupação.
- Todos os testes confirmam o diagnóstico. Diminuição de plaquetas, produtos de degradação da fibrina elevados, longos períodos de hemorragia. Não tenho dúvidas
acerca do diagnóstico. Tenho-a em plaquetas e estou a fazer uma transfusão com antitrombina e drotecogina alfa. Deve ajudar a estabilizá-la, por enquanto, mas a
cura derradeira é tratar a doença primária que desencadeou a CID. E isso permanece desconhecido. Ela não é séptica. O sangue e as culturas de fluido cérebro=espinhal
apresentam valores negativos. Poderá ser virai, mas creio que se passa mais qualquer coisa, algo que não sabemos, algo relacionado com o implante.
Kat respirou fundo e estremeceu.
- E sem saber isso...
Lisa cruzou os braços imitando Kat.
- Ela está a morrer. Abrandei o seu declínio, mas precisamos de saber mais. Em inglês, as iniciais da doença têm outra conotação entre os profissionais de saúde.
Significam A Morte Está a Chegar{2}.
Kat virou-se para Painter.
- Temos de fazer alguma coisa.
Ele acenou afirmativamente e olhou para Sean.
- Não temos outra hipótese. Precisamos de respostas. Talvez com tempo possamos descobrir a patologia em causa, mas há pessoas que sabem mais, que estão a par desta
biotecnologia e sabem especificamente 0 que foi feito a esta garota.
Sean suspirou.
- Teremos de lidar cuidadosamente com isso.
Kat pressentiu que já tinha ocorrido uma discussão entre Sean e Painter.
- O que estão a planear?
- Se vamos salvar a criança - Painter olhou para a garota frágil vamos ter de dormir com o inimigo.
23h38
Trent McBride caminhou pelo longo corredor deserto. Esta secção de Walter Reed devia receber obras de beneficiação. Os quartos de hospital de ambos os lados estavam
numa confusão, as paredes cheias de mofo, o estuque a estalar, mas o seu objetivo era o pavilhão mental confinado na parte de trás do edifício. Aqui as paredes eram
em bloco de cimento, as Janelas barradas, as portas blindadas com pequenos recortes gradeados.
Trent dirigiu-se à última cela. Um guarda estava ao pé da porta. Não podiam correr nenhum risco. O guarda afastou-se e entregou um estridente molho de chaves a Trent.
Pegou nelas e espreitou pela pequena Janela na porta. Yuri Jazia completamente vestido em cima da cama. Trent desbloqueou a porta e Yuri sentou-se. Para a idade
que tinha, apresentava um ar bastante rijo e ágil, dando sinais de se ter enfrascado com um cocktail explosivo de andrógenos e outras hormonas anti envelhecimento.
Como estes russos adoravam estas drogas de melhoramento do desempenho.
Abriu a porta.
- Está na altura de ir trabalhar, Yuri.
O homem levantou-se, com os olhos a faiscar.
- Sasha?
- Veremos.
Yuri dirigiu-se à porta. Trent não gostava do aspeto decidido da expressão do homem e começou a ficar repentinamente desconfiado. Em vez de se mostrar abatido, Yuri
revelava uma orla de aço, como a lâmina de uma espada golpeada e dobrada numa orla mais fina. Talvez a força do velho não proviesse unicamente das injeções nas nádegas.
Mas, decidido ou não, Yuri estava sob o seu controle.
No entanto, Trent acenou para que o guarda os seguisse. Trent planeara levar sozinho Yuri. Com mais de um metro e oitenta e o dobro do peso, Trent não estava preocupado
com a necessidade de uma escolta. Mas não confiava nos olhos de Yuri.
Saíam-lhe das órbitas.
- Aonde vamos? - perguntou Yuri.
Pôr um último prego no caixão do Arquibaldo Polk, respondeu silenciosamente.
Trent orquestrara a morte do seu velho amigo, mas, agora, estava a planear pôr um fim a um dos grandes êxitos de Arquibaldo, uma invenção sua, a organização secreta
com que o homem sonhara enquanto trabalhava para os Jasão.
Uma equipe de cientistas assassinos.
Basicamente, uns Jasão com armas.
Mas, depois de ter assassinado o professor, Trent devia agora destruir a invenção do homem. Para que o seu próprio trabalho fosse por diante, a Sigma tinha de acabar.
12
6 de setembro, 19h36
Punjab, Índia
Enquanto o Sol se afundava no horizonte, Gray admitiu que a escolha que Rosauro fizera do veículo fora a mais acertada. Sentado no assento ao lado do condutor, mantinha
a mão pressionada contra o tejadilho para se manter no lugar, enquanto o SJJV galgava pela estrada profundamente sulcada e lamacenta. Há cerca de uma hora que haviam
deixado para trás a última cidade significante, avançando agora pela zona rural montanhosa.
Quintas de gado leiteiro, plantações de cana-de-açúcar e mangueirais dividiam a paisagem numa manta de retalhos. Masterson explicara que o Punjab era a região mais
próspera da Índia, em termos de produção de cereais, o Celeiro da Índia, como descreveu, produzindo a maior parte do seu trigo, milho e arroz.
- E alguém tem de trabalhar estes campos todos - dissera Masterson, enquanto lhes dava diretrizes do banco de trás.
Kowalski e Elizabeth partilhavam a fila com ele. Atrás deles, Luca ia-se entretendo a polir os seus punhais, sentado no banco de trás.
- Virem no próximo caminho à esquerda.
Rosauro agarrou-se ao volante e o SUV enfiou-se pelo meio de uma vala cheia de água, quase um ribeiro. Pequenos aguaceiros tinham caído sobre eles durante quase
toda a viagem até aqui. Punjab era o termo persa para “terra dos cinco rios”, uma das razões para que o território fosse considerado o maior estado agrícola da Índia.
Gray verificou os céus crepusculares enquanto a noite caía. As nuvens rolavam baixo. Teriam ainda mais chuva antes de a noite ter terminado.
- Para cima - disse Masterson. - Na direção daquela encosta.
O veículo avançou pesadamente pela encosta, no meio de toda aquela lama. No cimo da ascensão, abria-se um pequeno vale em U, rodeado por montanhas. Urna aldeia escura
situava-se no sopé. uma mistura compacta de casas de pedra e cabanas de lama com telhados de colmo. Algumas fogueiras chamejavam à beira do aglomerado, ateadas por
homens manobrando uns paus compridos. Queimando lixo. Um carro de bois permanecia ao lado de uma das fogueiras, cheio de lixo até cima. O único boi cornudo moveu-se
ligeiramente perante a aproximação do veículo descendo a encosta.
- O outro lado da Índia - disse Masterson. - Mais de três quartos da população da Índia ainda vive nas zonas rurais. Mas aqui temos aqueles que vivem na base do
sistema de castas. Os Harijan. como Gandhi os renomeou, que significa “povo de Deus”, mas comummente referidos por dalit ou achuta, que se traduz mais ou menos por
intocáveis.
Gray reparou que Luca tinha colocado os punhais no estojo, demonstrando um ar mais atento. Intocáveis. Podiam estar na raiz do seu clã.
Iluminados pelas chamas, os aldeões, armados com gadanhas e paus, olhavam desconfiados para os estrangeiros que se aproximavam.
- Quem é esta gente? - perguntou Gray. querendo saber mais acerca das pessoas que tinha pela frente.
- Para responder a isso - disse Masterson -, tem de compreender o sistema de castas indiano. Segundo reza a lenda, todas as grandes varnas - ou classes de pessoas
- derivam de uma entidade celeste. Os brâmanes, que incluem os sacerdotes e professores, provem da boca dessa entidade. Os governantes e militares dos seus braços.
Os comerciantes e proprietários de terras das suas coxas. Os pés deram origem aos artesãos, operários e camponeses. Cada uma tem a sua própria hierarquia, em grande
parte baseada numa coletânea com dois mil anos conhecida por Leis de Manu, que pormenoriza o que cada um pode e não pode fazer.
- E estes intocáveis? - perguntou Gray, olhando para o grupo de homens e rapazes reunidos.
- A quinta varna não terá provido sequer desta grande entidade. Eram excluídos, considerados demasiado poluídos e impuros para se misturarem com as pessoas normais.
As pessoas que lidavam com as peles de animais, o sangue, os excrementos, até os corpos dos mortos. Eram afastados das casas e dos templos das castas superiores,
não podendo comer com os mesmos utensílios. Nem sequer a sua sombra podia tocar num corpo de uma casta superior. E se alguém quebrasse alguma destas regras poderia
ser espancado, raptado, assassinado.
Elizabeth inclinou-se para a frente.
- E ninguém impede que isso aconteça?
Masterson fungou.
- A constituição indiana considera ilegal esta discriminação, mas ela continua, especialmente nas zonas rurais. Quinze por cento da população ainda cai na classificação
de intocáveis. Não há como escapar. Uma criança nascida de um achuta é para sempre achuta. Permanecem vítimas de leis religiosas com milhares de anos, leis que os
colocam permanentemente na categoria de sub humanos. E sejamos sinceros. Tal como disse antes, é necessário alguém para trabalhar estes campos todos.
Gray recordou-se dos vastos campos e pomares por onde tinham passado.
Masterson continuou;
- Os intocáveis são uma classe de escravos profundamente enraizada. Por isso. apesar de ter havido alguns progressos para seu bem, sobretudo nas cidades, as zonas
rurais ainda precisam de trabalhadores, e 0 sistema de castas presta-se a isso. Houve aldeias como esta que foram queimadas ou destruídas porque os habitantes se
atreveram a pedir melhores salários ou condições de trabalho. Daí a suspeição que existe agora.
Acenou para o grupo de acolhimento transportando instrumentos agrícolas.
- Meu Deus - disse Elizabeth.
- Deus não tem nada a ver com isto - disse Masterson amargamente. - Tem tudo a ver com economia. O seu pai era um grande defensor desta gente.
Ultimamente, começara a ter alguns problemas no que toca à colaboração dos iogues e místicos brâmanes.
- Devido à sua associação com os intocáveis? - perguntou.
- Isso... e o fato de estar à procura da fonte do marcador genético entre os intocáveis. Quando a palavra se propagou, houve muitas portas que se fecharam na sua
cara. Tanto pior para o esclarecimento da questão. Na verdade, depois de ele ter desaparecido, fiquei convencido de que fora assassinado por essa mesma razão.
Gray fez sinal a Rosauro para parar à beira da zona das fogueiras onde o lixo estava a ser queimado.
- E esta aldeia? Foi aqui que o doutor Polk foi visto pela última vez?
Masterson confirmou.
- A última vez que falei com o Arquibaldo foi durante uma acalorada conversa telefônica. Fizera uma descoberta e estava ansioso por partilhá-la, depois nunca mais
ouvi falar dele. Mas, por vezes, fazia isso, desaparecia durante meses seguidos, numa remota zona rural, por onde andava de aldeia em aldeia. Lugares que ainda hoje
não têm nome e são evitados pelos indivíduos das castas superiores. Mas, ao fim de algum tempo, comecei a temer o pior.
- E estas pessoas? - perguntou Gray. - Temos alguma coisa a temer delas?
- Pelo contrário. - Masterson abriu a porta do carro e usou a sua bengala para se apoiar e pôr-se de pé.
Gray seguiu-o. Outras portas abriram-se e toda a gente saiu.
- Fiquem perto do carro - avisou-os.
Masterson caminhou na direção da fogueira com Gray na sua esteira. O professor disse qualquer coisa em hindi. Gray compreendeu algumas frases e palavras dos seus
próprios estudos acerca da religião e filosofia indiana, mas não o suficiente para seguir o que o homem estava a dizer. Parecia estar a perguntar por alguém, procurando
rostos familiares.
Os homens continuavam a formar uma parede sólida, mostrando um ar enfurecido com as suas armas na mão.
O boi mugiu a sua própria insatisfação ao lado da carroça, como que pressentindo a tensão.
Finalmente, Masterson interpôs-se entre as duas piras fumegantes. O ar fedia, cheirando a fígado frito e pneus queimados. Gray fez um esforço para não tapar a boca.
Masterson acenou para a van e continuou a falar. Gray ouvir o nome Arquibaldo Polk seguido da palavra hindi betee.
Filha.
Todos os homens dirigiram o olhar para Elizabeth. As armas foram baixadas. Começaram a conversar entre eles. Apontaram para ela com os braços. A parede humana desfez-se
num gesto de boas-vindas. Dois rapazes, erguendo as suas vozes num grito de felicidade, correram por uma ruela abaixo por entre duas casas de pedra.
Masterson virou-se para Gray.
- Os achuta desta área tinham grande consideração por Arquibaldo. Não tenho dúvidas de que a presença da filha do homem será acolhida com hospitalidade. Não temos
nada a recear desta gente.
- Exceto a disenteria - disse Kowalski no momento em que se juntou a eles, com o resto do grupo atrás.
Elizabeth deu-lhe uma cotovelada nas costelas.
Gray levou-os até a aldeia, pressentindo que tinham mais com que se preocupar do que com uma revolução nas entranhas.
20h02
Elizabeth passou entre as duas fogueiras. Do outro lado das chamas, a aldeia irrompeu. Alguém começara a bater ruidosamente num tambor improvisado. Apareceu uma
mulher, com o rosto meio coberto por um sari. Convidou-os a seguirem na direção do centro da aldeia.
No momento em que se virava, Elizabeth viu um pedaço de carne flácida e cicatrizada, escondida por detrás de um véu delicado. Masterson reparou na atenção de Elizabeth.
Ela inclinou-se para ele.
- O que lhe aconteceu?
O professor respondeu gentilmente, acenando para a mulher.
- O seu pai falou dela. O filho foi apanhado a pescar num lago de uma aldeia de casta superior. Ela foi até o local para repreendê-lo, mas foram apanhados. Os aldeões
bateram na criança e verteram ácido no rosto da mulher.
Ela perdeu um olho e metade da face.
O corpo de Elizabeth ficou gelado.
- Que coisa horrorosa.
- E ela acha que teve sorte. Porque não a violaram.
Chocada, Elizabeth seguiu a mulher, atormentada com tamanha atrocidade, mas, ao mesmo tempo, espantada com a sua força para sobreviver e resistir.
A mulher levou-os ao longo de um emaranhado de vielas tortuosas até o centro da aldeia. Outro fogo resplandecia. Várias pessoas encontravam-se reunidas a umas tantas
mesas de madeira em tomo de uma bomba manual. As mulheres tiravam as folhas de cima das mesas ou transportavam comida. As crianças mais pequenas corriam de um lado
para o outro, descalças, na sua maioria despidas da cintura para cima.
À medida que Elizabeth foi passando, vários foram os homens que inclinaram a sua cabeça numa vênia, por vezes até a cintura. Obviamente, um sinal de respeito para
com o seu pai. Ela nunca soubera muita coisa acerca do que ele tinha andado a fazer ali.
Masterson moveu-se com a sua bengala na direção dos homens.
- O Arquibaldo fez muita coisa boa pelas aldeias locais. E denunciou e desmantelou uma milícia que andava a aterrorizar esta região, conseguindo até melhores salários
para os aldeões, bem como melhor educação e assistência médica. Mas, mais importante, ele respeitava-os.
- Não sabia - murmurou.
- O fato é que ganhou a confiança desta gente. E foi nestas montanhas que concentrou os seus testes genéticos.
- Por que aqui? - perguntou Gray do outro lado do professor.
- Porque assim como o Arquibaldo elaborou esse mapa que lhe mostrei, também fez um esquema mais pormenorizado da região do Punjab. Um rastro de provas genéticas
apontava para estas montanhas, mas acho que havia algo mais.
Elizabeth franziu as sobrancelhas.
- Como o quê?
- Não tenho a certeza. O seu interesse pela região atingiu o auge há dois anos. Deixou de fazer testes pelos vários lugares da Índia para se concentrar neste lugar.
O professor olhou para Luca. - E nos ciganos.
Elizabeth recuou dois anos. Acabara o seu doutoramento em Georgetown. Tivera muito pouco contato com o pai durante esse período. Nem paciência. As suas ocasionais
conversas telefônicas eram geralmente curtas e concisas. Se ela se tivesse inteirado do que é que ele andava a fazer, para lá do seu próprio campo de estudo, talvez
as coisas pudessem ter seguido um rumo diferente.
Tendo atingido o núcleo da aldeia, foram cumprimentados com sorrisos e convidados ajuntarem-se à mesa. A comida já estava a amontoar-se - pão roti, pratos de arroz,
vegetais cozinhados ao vapor, pequenas ameixas e tâmaras gordas, taças de soro de leite -, comida simples mas autêntica. Uma mulher de joelhos ia mexendo lentamente
um guisado de lentilhas numa fornaça em forma de ferradura. A sua filha apareceu com um balde de estrume de vaca para alimentar as chamas.
Kowalski juntou-se a Elizabeth, colando-se a ela.
- Não é propriamente o Burger King.
- Talvez porque veneram as vacas.
- Ei, eu também as venero. Especialmente grelhadas com uma bela batata assada.
Ela sorriu. Como é que esse homem infernal conseguia fazê-la sempre sorrir? Ficou subitamente consciente da sua proximidade e afastou-se.
Ao lado, um dos aldeões começou a tocar uma cítara, acompanhado por uma harmônica e uma tabla.
Um recém-chegado alto aproximou-se deles todos. Parecia ter trinta e tal anos, o cabelo curto, pele cor de azeitona. Estava vestido com um traje tradicional, o dhoti
kiirta. uma peça imaculada de tecido retangular que pendia presa na cintura até o tornozelo, juntamente com uma túnica abotoada sobre uma longa camisa de mangas
compridas. Na cabeça, tinha um chapéu redondo e sem abas bordado chamado kiifi. Fez uma grande vênia e falou em inglês com um nítido acento britânico.
- Chamo-me Abhi Bhanjee, mas dar-me-iam uma grande honra se me tratassem por Abe. Nós, indianos, temos um ditado: Atithi devo bhava. Significa: “Os nossos convidados
são como deuses.” E ainda para mais a filha do professor Arquibaldo Polk, um querido amigo meu. - Acenou na direção da mesa. - Por favor, façam-nos companhia.
Eles obedeceram, mas não levou muito tempo para o sorriso dele se dissipar, enquanto ia sendo informado sobre o seu pai.
- Não sabia - disse suavemente, o seu rosto uma máscara de dor. - É uma perda muito trágica e triste. As minhas condolências, menina Polk.
Ela fez uma vênia com a cabeça, agradecida.
- Ele foi visto pela última vez aqui na aldeia - acrescentou Gray e acenou para Masterson. - Ligou para o professor, disse que vinha até cá.
Masterson aclarou a voz.
- Esperávamos que nos pudessem dar algumas pistas acerca do sítio aonde ele foi.
- Eu sabia que ele não devia ter ido sozinho - disse o homem com um abanar de cabeça, - Mas ele não quis esperar,
- Ir aonde? - perguntou Gray.
- Foi errado tê-lo levado lá de início. E um lugar amaldiçoado.
Elizabeth estirou-se e tocou com os seus dedos na mão do homem.
- Se souber alguma coisa... qualquer coisa...
O homem engoliu em seco de forma bem visível e introduziu a mão num bolso que tinha na túnica. Tirou de lá um pequeno saco de pano que fez barulho ao ser mexido.
- Tudo começou quando eu mostrei isto ao seu pai. - Abriu o saco e colocou o conteúdo na mesa. - Encontramos por acaso, quando cultivávamos os campos nestas terras.
Velhas moedas sem lustro, bastante enegrecidas pelo tempo, tiniram e rodopiaram. Uma rolou para junto de Elizabeth. Parou-a com a mão, depois pegou nela. Examinou
a superfície, afastando alguma sujidade com o polegar, até se aperceber do que tinha na mão.
Na sua superfície, desgastada mas ainda assim distinguível, via-se o rosto de uma mulher, com as feições emolduradas por um entrançado de pequenas cobras. Era uma
górgone chamada Medusa. Elizabeth sabia o que tinha nas mãos.
- Uma antiga moeda grega - disse com surpresa. - Encontraram-nas nos vossos campos?
Abe confirmou.
- Surpreendente. - Elizabeth virou a moeda na direção da luz. - Os Gregos governaram o Punjab por uns tempos. Juntamente com os Persas. os Árabes, o Império Mogul,
os Afegãos. Alexandre, o Grande, chegou mesmo a travar uma grande batalha nesta região.
Gray pegou noutra moeda. A sua expressão endureceu. Estendeu-a na sua direção.
- Olhe para esta, Elizabeth.
Ela pegou nela e observou-a. Os dedos começaram a tremer-lhe. Na sua superfície fora cunhado um templo grego. E não qualquer templo. Olhou para os três pilares que
emolduravam a porta escura. Destacada na soleira uma grande letra E.
- É o Templo de Delfos - suspirou.
- Parece a mesma moeda que o seu pai roubou do museu.
Ela fez um esforço para entender, mas não conseguia pensar. Era como se algo tivesse feito um curto-circuito no seu cérebro.
- Quando... quando é que mostrou pela primeira vez ao meu pai estas moedas?
Abe franziu o sobrolho.
- Não tenho a certeza. Há cerca de dois anos. Ele disse-me para as guardar num lugar seguro, mas como morreu e você é sua filha...
Ela mal o ouviu. Há dois anos. Na mesma altura em que o seu pai lhe conseguira um lugar no Museu de Delfos. Desconfiou que tinha a moeda que a levara a ocupar esse
cargo no museu. Demasiado ocupado nestas paragens, o seu pai deveria ter querido que ela prosseguisse na senda do mistério. Um arrepio de raiva percorreu-lhe o corpo,
mas também tinha perfeita consciência dos aldeões à sua volta e da forma como tinham sido tratados. Talvez o seu pai não os pudesse abandonar.
No entanto, podia ter-lhe dito alguma coisa.
A não ser que... talvez estivesse a protegê-la.
Abanou a cabeça, cheia de interrogações. O que se passava aqui? Procurou algumas respostas no outro lado da moeda. A superfície estava escura com um grande símbolo
já gasto que não parecia ser grego.
Abe reparou na sua expressão confusa. Apontou para a moeda, já a tinha estudado anteriormente.
- É uma roda chacra. Um antigo símbolo hindu.
Mas por que numa moeda grega?, se perguntou.
- Posso ver? - perguntou Luca. Rodeou a mesa e pôs-se a olhar por cima do seu ombro. Ficou com o corpo hirto e agarrou-se com os dedos à extremidade da mesa. - Esse...
esse símbolo. Também está na bandeira romani.
- O quê? - perguntou Elizabeth.
Ele endireitou-se, com as sobrancelhas franzidas de confusão.
- O símbolo foi escolhido porque a palavra em sânscrito chakra significa “roda”. Diz-se que representa a carroça cigana, um símbolo da nossa herança nômade, ao mesmo
tempo que honra as nossas raízes indianas. Mas houve sempre rumores de que o símbolo tinha raízes mais profundas e antigas entre os clãs. Enquanto os outros discutiam
o seu significado, Elizabeth pôs-se a observar a moeda em silêncio, começando a detetar pelo menos uma verdade.
Gray inclinou-se para ela, lendo algo no seu rosto.
- O que é?
Ela foi ao encontro do seu olhar endurecido. Segurou na moeda e apontou para o lado do templo.
- O meu pai conseguiu que eu ficasse com aquele cargo no Museu de Delfos pouco tempo depois de ter descoberto isto. - Virou a moeda para o lado da chacra. - Ao mesmo
tempo, começou a investigar os ciganos e a sua conexão com a Índia. Dois lados da mesma moeda, duas linhas de investigação.
Elizabeth olhou para o rebordo da moeda.
- Mas o que é que há entre os dois? O que é que os relaciona?
Virou-se para Abhi Bhanjee. Ele não lhes contara tudo.
- Aonde é que o meu pai foi? - perguntou com um ligeiro tremor na voz.
Um grito de um dos aldeões deu-lhe a resposta. Um homem apareceu a correr vindo das fogueiras distantes. A música abrandou imediatamente - mas, lá longe, continuava
a ouvir-se uma batida, um ritmo pesado que se repercutia no peito.
Gray deu um salto.
Elizabeth deixou-se ficar, confusa, e começou a olhar para as montanhas, tentando discernir a direção do barulho, mas parecia que vinha de toda a parte - depois
três luzes surgiram no meio do céu nublado.
Helicópteros.
- Toda a gente para o SUV! - gritou Gray.
Abe gritou em hindi, dando ordens firmes. Homens e mulheres fugiram em todas as direções. No tumulto, Elizabeth viu-se afastada, virada pelos corpos que passaram
à sua frente. Desorientada, tentou seguir o grupo.
Tal como abutres num voo picado, os helicópteros aproximaram-se da aldeia, depois separaram-se num círculo alargado. Com os olhos postos no céu, Elizabeth tropeçou,
mas um braço grosso apanhou-a. Kowalski agarrou-a em torno da cintura, ajudando-a a pôr-se de pé e pressionando--a a andar mais depressa.
- Vamos, minha linda.
Embrenhou-se no meio do caos. como uma pedra rolante.
Na zona limítrofe da aldeia, os helicópteros mantiveram-se a pairar por uns instantes. Alguém lançou cordas das partes laterais abertas. Ainda antes das suas pontas
terem tocado no solo, formas escuras escorregaram pelas cordas, carregadas com capacetes e equipamento.
Nunca conseguiriam chegar ao SUV.
20h38
Pripyat, Ucrânia
Nicolas desligou o celular. Um problema a menos com que se preocupar. Atravessou o corredor na direção da gala. A música flutuava no ar, uma composição tradicional
russa do século XIX. “Snegurochka”, a “Dama da Neve”.
Passou com as mãos pelo smoking. Enquanto os outros se encontravam vestidos com ternos de corte recente. Nicolas escolhera o seu terno em Milão, um casaco de caxemira
Brioni de um botão só e lapela pontiaguda. Era clássico e elegante, escolhido devido ao fato de o duque de Windsor ter usado tais fatos nas décadas de 1930 e 1940.
Dava um ar sofisticado que condizia com a retórica de Nicolas. mas ele modernizara o seu aspeto substituindo o tradicional laço - que nunca ficava bem com a sua
barba aparada - por uma gravata de seda pregueada, acentuada por uma pregadeira em prata russa com um diamante incrustado.
Sabendo como estava bem vestido, entrou no salão de baile.
Um novo chão de mármore brilhava sob a luz de uma dezena de candelabros de cristal Baccarat, uma doação de caridade da marca para este evento. As mesas circundavam
uma pista de dança vazia. Mas a verdadeira dança já tinha começado. A multidão misturava-se e girava num corrupio de poder político, competindo pelo aceno certo,
um momento a sós com o potentado ideal, um acordo entredentes.
O primeiro-ministro da Rússia e o presidente dos EUA formavam a maior coligação de interesses. Ambos procuravam apoios em relação à forma como lidar com as sanções
contra o aumento das ameaças nucleares. Uma cimeira importante sobre o assunto estava marcada para São Petersburgo, depois da cerimônia que estava agora a ter lugar.
A selagem de Chernobyl era o início simbólico dessa reunião.
Nicolas olhou para o par. rodeado por um mar de gente. Tencionava imiscuir-se naquelas águas. Com a sua crescente popularidade, como porta-voz da reforma nuclear,
aqueles mares eram-lhe cruciais.
Devia, pelo menos, dar um aperto de mão aos dois homens que tencionava matar.
Mas antes de o fazer, dirigiu-se a Elena. Ela estava ao lado de uma das janelas em arco. Uns cortinados de seda pesados enquadravam tanto a janela como a mulher.
A sua figura soberba destacava-se num vestido preto que fluía como óleo sobre a sua silhueta flexível, um ídolo das matinés de Hollywood ressuscitado. Transportava
uma taça de champanhe numa das mãos com ar de quem se tinha esquecido dela. Olhou para o escuro do outro lado da janela.
Ele juntou-se a ela.
Para além das ruínas da cidade, as luzes brilhantes agitavam-se perto do horizonte. Equipas de trabalhadores labutavam durante a noite para aprontar os postos de
observação e assegurar que a instalação do novo sarcófago sobre a concha de Chernobyl iria decorrer sem problemas. Os olhos do mundo estariam fixados naquele evento.
Tocou-lhe no braço.
Ela não ficou nada surpreendida, ao notar o reflexo do homem no espelho.
O seu voluptuoso Rasputin.
- Já está quase no fim - disse ele, abeirando-se do ouvido de Elena.
Segundo o seu homem, os custos do choque já tinham sido avaliados. Nada os deteria.
20h40
Punjab, Índia
O tiroteio surgiu antes de Gray conseguir alcançar a zona limítrofe da aldeia. Os gritos ecoaram. Os helicópteros moviam-se por cima das suas cabeças. Encostou-se
a uma parede de pedra. Do outro lado das fogueiras de lixo, o Mercedes aguardava no limiar do brilho.
Um soldado com uniforme preto correu agachado pelo terreno aberto, transportando a espingarda automática ao ombro. Os outros já deviam estar a consolidar as suas
posições em torno da aldeia, colocando o lugar sob a mira das armas. Depois, aproximar-se-iam para a matança, irrompendo por entre a confusão.
Gray sabia que a única esperança para os aldeões era que a sua equipe fugisse, para afastar os perseguidores. Tinha de conseguir escapar antes de a aldeia ficar
cercada.
Estendeu um braço a Rosauro.
- Chaves.
As chaves foram passadas para a sua mão, mas Rosauro tinha outras notícias más.
- Kowalski. Elizabeth. Eles não estão aqui.
Gray olhou para trás. Na corrida louca pelas vielas tortuosas, não reparara.
- Tenta encontrá-los - ordenou a Rosauro. - Agora.
Ela acenou num gesto de concordância e saiu dali.
Gray olhou para Luca.
- Proteja o professor. Mantenha-se fora de visão.
O cigano acenou. Dois punhais brilharam nos seus dedos.
Gray não podia esperar mais.
Agachando-se, saiu do esconderijo e avançou para a zona descoberta.
Elizabeth fugiu com Kowalski para uma viela tortuosa. O esgoto corria a céu aberto por uma vala lateral, imunda, libertando um cheiro nauseabundo.
- Siga a vala - pressionou. - Tem de levar a qualquer lado. Kowalski acenou e dobrou a primeira esquina. Tinha uma pistola
bem presa na sua mão carnuda. Ela não lhe largava o ombro.
- Tem outra arma? - perguntou ela.
- Sabe disparar?
- Skeet. Na faculdade.
- Não faz grande diferença. Os alvos apenas gritam um pouco mais. - Enfiou a mão sob o casaco, até a zona lombar, e tirou de lá uma pequena Beretta de aço azulado,
que colocou cegamente nas mãos de Elizabeth.
Os seus dedos apertaram com força o punho, extraindo alguma energia do contato com o aço frio.
Partiram. A viela estava deserta, mas o tiroteio estalava nas redondezas, com os aldeões a defenderem as suas casas e vidas.
Um dos helicópteros sobrevoou muito baixo. O agitar dos rotores espalhou uma imensidão de folhas e restos de lixo. Saíram do ângulo de visão do aparelho e entraram
numa cabana de lama. Elizabeth descortinou umas crianças escondidas atrás de uma cama baixa.
Depois de o helicóptero ter passado, Kowalski arrastrou-a na direção da porta - para depois voltar a recuar precipitando-se sobre ela. Um soldado de preto passou
junto à abertura. O conflito devia estar a deslocar--se para o interior da aldeia. Kowalski espreitou outra vez, fez-lhe sinal para se aproximar, depois levou-a
lá para fora.
- Vamos para a encosta - disse.
Contornaram mais duas curvas e alcançaram um caminho que conduzia diretamente à encosta. Os corpos Jaziam na rua em frente, o sangue jorrando para o esgoto. Pelo
menos, um deles tinha uma camuflagem preta. Kowalski manteve-se junto a uma parede e correu em frente empunhando a pistola.
Uma saraivada de disparos automáticos irrompeu do outro lado da aldeia.
Como é que iriam passar por ali?
Kowalski parou junto ao corpo do soldado morto. Pegou no capacete do homem.
Talvez um disfarce, pensou Elizabeth. Não era mal pensado.
Mas quando Kowalski puxou com força, a cabeça do soldado saiu com o capacete. Chocado e horrorizado, recuou para junto dela. Embrulhando-se um no outro, tropeçaram
e caíram no chão.
Uma sombra preta apareceu por detrás deles.
Outro soldado.
Ela ergueu a pistola e disparou selvaticamente. As balas partiram pedras e fizeram ricochete, falhando o alvo. mas obrigando-o a recuar para outra esquina. A arma
de Kowalski soou atrás dela, parecendo um canhão na ma estreita. Arriscou olhar por cima do ombro e viu mais dois soldados no fim da rua.
Estavam imobilizados e sem armas.
Gray saiu da viela para a zona de céu aberto. Enfiou-se debaixo do carro de bois que ainda estava ao lado das piras de lixo a arder. Deslizando de barriga para baixo,
aproximou-se gradualmente de uma das fogueiras. Escudado pela carroça, estirou-se de modo a alcançar a extremidade da fogueira. Se os tiros e os helicópteros não
tinham retirado o boi do seu posto, então Gray teria de acender uma fogueira debaixo da cauda do animal.
Literalmente.
Retirando um bocado de borracha a arder da borda da pira, Gray lançou-o para a pilha de lixo que ainda enchia a carroça. Não demorou muito para que as chamas se
espalhassem. Com um ramo a arder na outra mão, gatinhou sob a carroça e acirrou o traseiro do boi.
Ouviu-se um forte mugido, seguido de um coice, o que fez com que a carroça se agitasse violentamente. Gray agarrou-se à parte da frente do veículo no momento em
que o boi debandava, mungindo irritado. Partiu diretamente para a encosta, arrastando a carroça e deixando atrás de si um rastro de lixo a arder.
Prosseguindo aos solavancos debaixo da carroça. Gray continuava a agarrar-se com força à parte da frente do veículo, certificando-se de que se mantinha afastado
das rodas pesadas. O boi e a carroça atingiram o início da encosta e galgaram por cima de um canal de escoamento.
Gray largou o veículo e afundou-se no lamaçal.
A carroça continuou a subir a encosta, um meteoro ardente viajando para pontos desconhecidos. Gray esperava que quem quer que fosse que estivesse a observar do céu
fosse capaz de manter a trajetória fumegante sob vigilância.
No escuro. Gray fez um esforço para avançar ao longo do fosso lamacento que circundava a aldeia. Atingiu o outro lado do Mercedes e esperou que o próximo helicóptero
se afastasse - depois saiu do canal e correu agachado, mantendo-o entre ele e a aldeia.
Tinha de entrar dentro do veículo depressa. A luz do tejadilho do SUV iluminar-se-ia assim que abrisse a porta. De chaves na mão, respirou fundo.
Não podia esperar mais.
Confinada na viela com os soldados nos dois extremos, Elizabeth procurou uma escapadela. Encontrou uma. Uma Janela aberta. A um passo de distância.
Deu uma cotovelada a Kowalski e apontou.
- Vamos! - ouviu ele grunhir.
Enfiou-se pela abertura. Segurando na pistola, caiu de forma abrupta. O quarto estava vazio, apenas um chão sujo. Kowalski seguiu-a. Por pouco que ela não se conseguia
desviar a tempo. O tiroteio irrompeu mesmo aos pés deste. O barulho das botas propagou-se na direção deles, vindo de ambos os lados.
- Porta - anunciou ela.
Do lado oposto da Janela, um pequeno arco dava para outra rua. Fugiram lá para fora ao mesmo tempo...
... esbarrando num grupo de quatro soldados.
Surpreendidos, tanto uns como outros, levaram as mãos às armas. Mas antes de poder ter sido dado algum tiro. uma profusão de aço faiscou sobre os soldados. Elizabeth
e Kowalski recuaram juntos. Um homem apontou a pistola para os atacantes, mas uma vergastada de aço separou-lhe a mão do braço. Outro caiu de joelhos, com a garganta
aberta.
Num segundo, os quatros homens estavam mortos no chão. completamente desfigurados.
Os seus salvadores eram três homens.
Abe e dois dos aldeões.
As suas armas eram únicas no país. Urumi. As famosas espadas chicote da Índia. Cada espada era composta por um malho de quatro lâminas flexíveis, com dois centímetros
e meio de largura e um metro e meio de comprimento - mas tão finas a ponto de o aço brandir como um chicote. O pai de Elizabeth dera-lhe a conhecer algumas demonstrações
da luta conhecida por Kalaripayattu. Com uma movimentação do pulso, as lâminas desenrolavam-se e fustigavam a carne com uma força superior à de qualquer espada normal.
- Vamos! - disse Abe. - Os seus amigos foram por aqui.
Conduziu-os ate ao centro da aldeia. Seguiram por um caminho tortuoso tanto em torno como através das casas e cabanas da aldeia. Abe brandia a espada de vez em quando,
chegando mesmo a atacar ao virar das esquinas com o intuito de cegar e aleijar. Depois aparecia para acabar o trabalho com a ajuda dos seus homens.
Os olhos de Kowalski brilharam na escuridão enquanto observava a matança.
- Com uma arma assim, não era de estranhar que fossem considerados intocáveis. Tenho de arranjar uma coisa dessas.
Dobrando outra esquina. Abc agitou a arma - depois retirou imediatamente o braço com uma faísca de aço batido. Um grito de surpresa ressoou da esquina.
- Peço imensa desculpa - disse Abe.
Rosauro apareceu. Trazia a mão na cara. O sangue escorria-lhe por entre os dedos. Mas os seus olhos abriram-se de alívio quando viu quem estava ao lado do homem
da espada.
- Ainda bem que vos encontro - disse. - Depressa!
Em grupo, seguiram atrás dela.
Depois de uma série de voltas confusas, um duo de fogueiras familiares cintilou ao fundo de uma viela. Agachado entre duas cabanas de lama. Luca acenou-lhes. Elizabeth
topou o professor, escondido no meio das sombras.
Onde estava Gray?
Em resposta, o som forte de um motor soou do outro lado da aldeia.
- Preparem-se! - roncou Rosauro. dirigindo-se a eles, com o sangue a escorrer -lhe do rosto.
Preparem-se para o quê?
Gray meteu a mudança e carregou no acelerador. As quatro rodas catapultaram-no para a frente. O SLJV arrancou com toda a força ao mesmo tempo que uma das janelas
laterais se estilhaçava. Passou disparado pelas duas fogueiras de lixo.
Um helicóptero apareceu à frente. Não tinha nenhuma arma montada, mas alguém pendurado na porta lateral empunhando uma metralhadora.
Gray travou a fundo. As balas metralhavam através da lama mesmo à frente do para-choques. Meteu a marcha-atrás, acelerou e recuou precipitadamente com a força de
quinhentos cavalos.
Girando o volante, fez rodar a traseira do cairo, apoiado em duas rodas. Depois de endireitar o carro, voltou para a viela e carregou no botão de abertura da porta
de trás. Uma luz de aviso apareceu no painel enquanto a porta se abria por intermédio das dobradiças hidráulicas. Enfiou por entre as duas fogueiras, espalhando
o lixo a arder.
Parou, quase atingindo Rosauro nas pernas, enquanto esta corria com os outros na sua direção. Entraram lá para dentro e enfiaram-se na cabina traseira. Precipitaram-se
para a fila do meio, num emaranhado de corpos, tentando acomodar-se. Gray descortinou uma cabeça de buldogue rapada de cunho familiar. Tinham descoberto Kowalski.
E Elizabeth também.
Presentemente esmagada sob o peso do homem gigante.
Rosauro gritou da parte de trás;
- Vamos!
Gray acelerou e carregou com força no botão para fechar a porta.
A frente, dois helicópteros avançavam na sua direção vindos de lados opostos. Linhas gémeas de balas percorreram a lama.
Gray desviou-se, enfiando-se por um caminho, depois por outro.
Os helicópteros seguiram as suas movimentações.
Uma torrente de novo tiroteio emergiu da aldeia atrás dele ~ direcionada para os pássaros no céu. A descarga era impressionante, incluindo até balas traçadoras luminosas.
Uns tantos aldeões deviam ter confiscado algumas das espingardas automáticas da equipa.
Um dos atiradores do helicóptero caiu do seu pouso. O holofote partiu-se e a luz desapareceu.
O outro pássaro desviou-se. Gray passou sob a sua linha de fogo e alcançou a encosta. Mantinha o pé no acelerador. Com os faróis desligados, seguiu o caminho do
carro de bois esperando que, qualquer que fosse o trilho seguido pelo animal, possibilitaria igualmente a passagem do veículo de quatro rodas.
Afastou-se das fogueiras luminosas da aldeia e embrenhou-se na escuridão envolvente. Dois helicópteros foram atrás deles, perseguindo-os com holofotes. O terceiro
baixou na zona limítrofe da aldeia, lançando cordas para recolher os homens isolados.
Rosauro inclinou-se para a frente.
- São russos!
- Russos?
- Creio que sim - explicou. - Os comandos transportavam umas NA-94.
Espingardas automáticas russas.
Através do espelho retrovisor, Gray captou um olhar preocupado no rosto de Masterson. Primeiro uma equipe de mercenários americanos, agora russos... Quantas pessoas
queriam este tipo morto? As respostas teriam de esperar um pouco mais.
Gray reparou que os helicópteros, refletidos nos espelhos do carro, continuavam a encurtar a distância. Embora Gray tivesse tido êxito com o seu plano - retirar
o grupo da aldeia e afastar a equipe de assalto -, como é que ia fazer agora?
- Vire à direita quando chegar ao fundo da próxima encosta! - soou uma voz atrás dele com um acento britânico. Gray olhou para trás e viu que tinham um passageiro
clandestino.
Abhi Bhanjee.
Rosauro explicou:
- Ele sabe um caminho para eliminar o nosso rastro! Atingindo o fundo da encosta com um chapinhar de água, Gray virou subitamente à direita e seguiu pelo vale enlameado.
- Depois à esquerda a seguir à próxima cerca! - gritou Abe.
Que cerca?
Gray inclinou-se para a frente. Sem faróis, estava demasiado escuro para ver. Se ao menos tivesse mais luzes...
Um helicóptero passou, com as luzes no máximo. Não era propriamente o que Gray pretendia. No entanto, com uma melhor iluminação, descortinou uma cerca de pedras
amontoadas à sua frente. Infelizmente, 0 feixe de luz também os detetou. Uma luz brilhante inundou o SUV.
Ouviu-se uma salva de tiros, cobrindo a água de pequenos projéteis que bateram na parte de trás da viatura.
Sem mais demoras, Gray atingiu a cerca e virou à esquerda. Mesmo com o veículo de tração às quatro rodas, a traseira derrapou na água e na lama. Mas os pneus conseguiram
recuperar, subindo para uma ligeira elevação e colocando o carro de fora da água.
O helicóptero passou ao largo. Mas o seu projetor oscilava com destreza, mantendo-se fixo neles, cobrindo o seu rastro.
Galgando para cima da elevação seguinte, o SUV manteve-se no ar durante alguns segundos para depois cair e embater no chão com força suficiente para encaixar os
maxilares de Gray um no outro. Os gritos elevaram-se do banco de trás.
No fundo da encosta, à direita, um mar negro dividia a paisagem acinzentada que se apresentava pela frente. Não era água. mas uma vasta floresta.
- Um mangueiral! - disse Abe. - Uma quinta antiga. Arvores muito antigas. A minha família trabalhou aqui durante várias gerações.
Gray dirigiu-se para o pomar escurecido.
As luzes seguiram-nos. O tiroteio recomeçou, mas Gray manteve um percurso imprevisível, sempre aos ziguezagues. Nenhuma bala os atingiu.
Com um rugido final do motor, enfiaram-se pelo pomar dentro. As árvores estavam dispostas ao longo de várias filas. Os ramos arqueavam numa canópia contínua, cortando
o brilho das luzes. No entanto, fez várias curvas, correndo perpendicularmente ao caminho original. O barulho das pás do helicóptero desvaneceu-se. Gray enfiou-se
ainda mais no interior do pomar, como um prisioneiro em fuga a correr por entre um campo de milho.
- Qual é a dimensão deste pomar? - perguntou, calculando o nível de proteção que poderia proporcionar-lhes.
- Mais de quatro mil hectares.
O equivalente a um grande campo de milho.
À medida que o perigo ia declinando, todos se recompuseram de modo a ficarem mais confortáveis nos seus assentos.
Rosauro inclinou-se para a frente.
- Existe outra razão para o Abe ter insistido em vir connosco.
- Qual?
Ela mostrou a moeda. Era a moeda grega com a roda chacra na parte de trás. Apontou para o templo.
- Ele sabe onde fica.
Gray olhou pelo espelho retrovisor. Descortinou Abhi Bhanjee sentado na fila de trás ao lado de Luca. Apesar da obscuridade, Gray reconheceu o terror estampado no
rosto do homem. Lembrou-se da descrição do hindu acerca do lugar onde Arquibaldo Polk fora levado quando desapareceu.
Um lugar amaldiçoado.
13
6 de setembro, 22h26
Montes Urais Meridionais
Monk mantinha-se de vigília.
Com as roupas secas e os ossos aquecidos pela lareira, Monk circundou a cabana. Caminhou o mais silenciosamente possível, pondo os pés no chão com cuidado. Tinha
as botas calçadas, embora os atacadores estivessem desapertados. As crianças já se tinham voltado a vestir e colocado os sapatos, antes de se enfiarem dentro dos
cobertores. Se tivessem de partir subitamente, não queria que perdessem tempo à procura da roupa.
Konstantin e Kiska aninharam-se ao lado um do outro, protegidos pelas coberturas. Pareciam mais pequenos a dormir, especialmente Konstantin. A sua argúcia e discurso
maduro faziam-no parecer mais velho. Mas com o corpo relaxado, Monk apercebeu-se de que não devia ter mais de doze anos.
Passando por eles, Monk moveu-se com extrema suavidade. Por agora, já sabia quais as tábuas de madeira que rangiam mais alto e evitou--as. Pyotr estava enrolado
em tomo dos braços do velho chimpanzé. O animal mantinha-se sentado no chão, com a cabeça sobre o peito, respirando profundamente enquanto dormia. Pyotr entrara
em pânico antes, com medo do que se podia estar a passar com a sua irmã gémea. Monk confiava no instinto do rapaz, mas não havia nada que pudessem fazer. Fora preciso
uma hora para que Pyotr conseguisse relaxar, mas a caminhada deixara o rapaz num farrapo. Por fim, lá sucumbiu de exaustão e começou a dormir, protegido por Marta.
Por mais suavemente que Monk andasse, de todas a vezes que passava por perto ela levantava a cabeça na sua direção. Uns olhos escuros e quentes fixavam-no, depois
as pestanas caíam juntamente com a cabeça.
Continua a vigiá-los, Marta.
Pelo menos, alguém amava estas crianças.
Monk regressou ao seu lugar junto à porta. Tinha erguido a mesa ao longo da soleira e colocado a cadeira em frente. Caiu nela com um suspiro.
Ouviu os barulhos da noite no pântano: o borbulhar da água. o coaxar das rãs, o trilar dos grilos e o piar suave e ocasional de uma coruja a caçar. Ficara previamente
surpreendido com um grande movimento em torno da cabana, mas uma espreitadela pela janela revelara um javali enlameado, vasculhando à volta.
Monk deixou a criatura deambular à vontade, na esperança de que pudesse servir de sentinela com presas. Mas acabou por se ir embora.
Os ritmos do pântano embalaram-no. Não demorou muito para que o seu próprio queixo pendesse sobre o peito. Fechara apenas os olhos há alguns minutos.
... Estás atrasado de novo, Monk! Toca a despachar!
Endireitou a cabeça com força, batendo na parte inferior da mesa levantada. A dor infiltrou-se-lhe no crânio - não em resultado da pancada contra a madeira, mas
vinda de uma zona muito mais funda. Por instantes, sentiu... sentiu o sabor da canela, agradável e fresco, juntamente com um murmúrio a roçar-lhe pelos lábios. Um
aroma impregnou-o emocionou-o.
Desapareceu rapidamente.
Apenas um sonho...
Mas Monk sabia. Sentou-se direito enquanto a dor fria e pungente se desvanecia. Passou com os dedos pelas suturas atrás da orelha.
Quem sou eu?
Konstantin descrevera um cruzeiro afundado, uma rede pesada e o seu salvamento no mar. Trabalhava no barco? Era um passageiro? Não havia nenhuma resposta no seu
interior, apenas escuridão.
Monk observou o quarto e descobriu um par de olhos contemplando--o. Pyotr não se mexera. Estava apenas a olhar para Monk. A pancada com a cabeça contra a mesa deveria
ter acordado o rapaz.
Ou talvez fosse outra coisa.
Monk captou o olhar do rapaz. Detetou um poço de sofrimento nos olhos do petiz, um poço demasiado fundo para um ser tão jovem. Monk ficou um pouco amedrontado. Não
era uma simples dor ou um receio. A falta de esperança brilhava no seu rosto pequeno, um desespero que não se via nos olhos de mais nenhuma criança. O rapaz tremeu,
agitando Marta.
Ela assobiou suavemente e olhou para Monk por cima do ombro.
Este levantou-se e foi ter com eles. O rosto do rapaz brilhava com intensidade à luz da lareira. Demasiada intensidade. Monk verificou-lhe a testa.
Quente. Febre.
Era o que lhe fazia mais falta agora, uma criança doente.
Não podia ter um pequeno descanso?
A sua questão silenciosa foi respondida por um grito selvagem. Perto. Começou como um grunhido gutural e depois transformou-se num rugido selvagem. Monk recordou-se
de alguém a puxar com força a corda de uma serra elétrica.
Um segundo grito respondeu do outro lado da cabana.
Os gritos selvagens fizeram com que Konstantin e Kiska se levantassem de imediato.
Não tinha havido qualquer aviso.
Monk não ouvira qualquer sinal da aproximação dos felinos. Até o rapaz não dera por nada. Talvez fosse da febre ou da simples exaustão. Monk esperara que ele lhe
pudesse dar alguma informação.
A cabana não era segura. Pelo que tinha visto anteriormente na margem do rio, cada tigre pesava cerca de trezentos quilos, na sua maior parte constituídos por músculos
enrijecidos. Os felinos podiam atirar-se à porta ou trepar pelo telhado em segundos. Mas, por agora, circundavam, rugindo, medindo o lugar.
Konstantin expressara outra preocupação. Mesmo que os tigres não entrassem dentro da cabana, estavam por certo a ser seguidos por caçadores de duas pernas. Não podiam
deixar que os felinos os mantivessem armadilhados ali.
Por isso, sem mais alternativas, movimentaram-se rapidamente.
Monk tirou do cinto a faca de mato que encontraram na cabana e prendeu o cabo de madeira nos dentes - depois dirigiu-se para a lareira de pedra e tirou um pau flamejante
do fogo. Antes, servira-se da faca, para cortar um ramo com um metro de comprimento de um pinheiro irregular que havia lá fora. A resina era altamente combustível
e transformara o pau numa tocha ardente.
Monk movimentou-se rapidamente em tomo do aposento. Bateu com a tocha na parte inferior do telhado de palha. Há muito negligenciado, estava tão seco como as aparas
de uma mecha. Também embebera uns panos com o querosene do lampião enferrujado e enfiara-os no meio da palha.
As chamas espalharam-se rapidamente.
Os felinos uivaram com uma intensidade ainda mais alta ferindo a noite.
Atrás de Monk. Konstantin levantou duas tábuas de pinho do chão.
Monk tinha já retirado os pregos velhos com a mesma faca e soltado as tábuas, Erguida sobre pequenas estacas, a cabana tinha um espaço por baixo, aberto de todos
os lados. Era demasiado baixo para Monk mas não para as crianças ou Marta. Rezou para que os felinos não se enfiassem por baixo também.
Do lado oposto da porta. Kiska destrancou as persianas da janela da cabana e deixou-a aberta.
Ao mesmo tempo, Monk deu um pontapé à mesa que estava em frente da porta.
Preparado, e já sem muito tempo pela frente, fez sinal às crianças para descerem pelo buraco, enquanto o fumo enchia a parte superior da cabana e aquecia o espaço
em baixo.
Marta ajudou Pyotr a descer por entre as tábuas de madeira. Kiska foi a seguir, Konstantin seguiu-a. O rapaz mais velho acenou para Monk, já não era o rapazinho,
mas o jovem circunspecto.
- Tenha cuidado - avisou Konstantin.
Com a faca entre os dentes, Monk respondeu com um aceno.
Konstantin desceu e desapareceu.
Monk tinha de manter os felinos distraídos. O fogo no telhado e o fumo deviam confundi-los. Tinha de acrescentar mais qualquer coisa. Com a tocha na mão, contou
até dez - depois pontapeou a porta já de si entortada com toda a força. As tábuas estalaram e a porta abriu-se completamente desfeita.
Um tigre estava a três metros de distância. Surpreendido, encurvou-se num longo e ameaçador sibilo. Com uma garra varreu o ar em volta.
O equivalente felino a vai-te lixar.
Monk levou um segundo a avaliar a sua dimensão. Quatro metros de comprimento. Os olhos brilhavam com o reflexo da luz enquanto a cabana ardia. Os lábios recuaram,
expondo uma língua cor-de-rosa arqueada bem no fundo de uma armação de caninos compridos.
Monk desenhou um arco de fogo com a tocha. O coração batia-lhe de uma forma enérgica, num ritmo primitivo que devia remontar às raízes pré-históricas da humanidade,
abrigada em cavernas escuras.
Contudo, como esperara, o estrondo da porta atraíra o segundo felino. O animal intrometeu-se pelo lado esquerdo, rasteiro, uma mancha de pele às riscas com umas
garras maciças. Monk atirou com a tocha pura o rosto do tigre no momento em que este se lançou por cima dele.
A pele ficou a arder e o felino berrou e rebolou pelo chão.
Monk reparou na orelha esquerda do tigre, que o identificava como sendo Zakhar.
O seu irmão, Arkady, rugiu e atacou, defendendo o parceiro.
Monk sabia que o felino tencionava saltar para cima dele com tocha ou sem tocha.
Por isso, Monk recuou o braço e lançou o ramo tal qual um dardo. O projétil rompeu o ar e atingiu o tigre, entrando pela sua boca aberta. O felino levantou-se cuspiu
e retorceu-se suspenso no ar.
Monk pegou na faca que tinha nos dentes, girou sobre si próprio e voltou para a cabana. No momento em que se virava, conseguiu ver pelo canto do olho Zakhar a vir
na sua direção.
Gemendo de terror. Monk correu a toda a velocidade para o interior cheio de fumo da cabana. Tal como gás lacrimogêneo, o calor e a fuligem cegaram-no. Correu instintivamente.
A janela aberta ficava no lado oposto da porta. Olhando por entre lágrimas, descortinou um quadrado escuro na parede turva.
Mergulhou diretamente sobre ele, esticando os braços à sua frente.
O seu objetivo era seguro - até que uma garra o agarrou por uma perna das calças. O tecido rasgou-se, mas conseguiu desprender o corpo. Bateu com o ombro na extremidade
da janela, um toque que lhe entorpeceu 0 braço. Mas o ímpeto que levava permitiu-lhe saltar da janela para fora. Caiu com um estrondo libertando algum vento durante
a queda. A faca escapou-se-lhe dos dedos e perdeu-se no meio da erva alta.
Atrás dele, Zakhar embateu na parede, não estando preparado para o buraco de rato através do qual Monk tinha escapado. O impacto abanou toda a cabana; as chamas
elevaram-se ainda mais. Um uivo de fúria selvagem fez com que Monk se pusesse imediatamente de pé.
Tropeçou, recompôs-se, depois correu na direção da água. Foi esse tropeção que o amaldiçoou.
14h20
Washington, D. C.
- Ela padece de uma forma de meningite - admitiu o doutor Yuri Raev.
Painter sentou-se do outro lado da mesa de jantar, onde se encontrava o velho cientista russo. O doutor Raev estava rodeado por John Mapplethorpe, que Painter reconhecera
de um dossiê que Sean McKnight tinha preparado - e um convidado surpresa, o doutor Trent McBride, o colega de Arquibaldo Polk supostamente desaparecido.
Pelos vistos, já tinha sido encontrado.
Painter tinha um milhar de questões a colocar ao homem, mas a reunião que estavam a ter no Capital Grille, na Pensilvânia Avenue, fora amplamente negociada e preparada
através dos canais dos serviços de informações. O limite e âmbito das suas discussões foi-a também previamente definido. Qualquer discussão sobre o doutor Polk estaria
fora de questão. Pelo menos, por agora. O único assunto passível de diálogo era a saúde da garota.
Como tal, Painter trouxera os seus próprios peritos para a mesa redonda. Ao seu lado na mesa estavam Lisa e Malcom. Os dois tinham o conhecimento médico e experiência
necessários para validar a informação fornecida.
Do outro lado da mesa, o russo não se mostrava lá muito à vontade. Não era o monstro que Painter concebera na sua mente, quando negociara esta mesa redonda. O homem
dava verdadeiramente ares de ser um avô bondoso, com o seu terno escuro e amarrotado, mas os seus olhos evidenciavam um certo desvario. Painter também observou a
preocupação contida no rosto enrugado do velho, enquanto falava acerca da criança. As linhas do seu rosto aprofundaram-se e alargaram-se quando olhou para o registro
médico que Lisa pusera em cima da mesa. Painter suspeitava que a única razão pela qual o homem estava a colaborar tinha a ver com um medo real de que a vida da garota
estivesse em perigo.
- A sua deterioração deriva do aumento - continuou Yuri. - Não sabemos exatamente a razão. Os microeléctrodos do aparelho são compostos por nanotubos de carbono-platina.
Acreditamos que quanto mais uma cobaia utiliza os seus talentos, mais depressa se deterioram. Será que a Sasha tem andado a desenhar muito desde que está sob a vossa
vigilância?
Painter lembrava-se de todos aqueles desenhos febris: a casa segura, o Taj Mahal, uma imagem de Monk. Acenou lentamente,
- O que é que ela está realmente a fazer quando desenha?
Mapplethorpe levantou uma mão. Notava-se uma certa untuosidade na forma como falava, bem adequada para deslizar em torno da verdade.
- Não é esse o assunto que nos traz aqui. Está a querer meter a mão em seara alheia, diretor Crowe.
Yuri sobrepôs-se à objeção de Mapplethorpe, fato que Painter achou interessante.
- Ela é um sábio prodígio - disse, ignorando os olhares do outro lado. - Os seus talentos naturais combinam uma forte dinâmica espacial com um certo talento artístico
e. quando aumentadas, estas capacidades ultrapassam os...
- Basta - resmungou Mapplethorpe. - Caso contrário, damos por encerrada a reunião e vamos embora. Poderão enviar-nos o corpo da garota depois de ela estar morta.
O rosto de Yuri obscureceu, mas ele manteve-se calado.
Lisa encorajou-o a retomar o fio à meada.
- Porque é que a utilização das suas capacidades acelera a deterioração da Sasha?
Yuri falou suavemente, com uma evidente dose de culpa.
- Quando estimulado, o interface entre o orgânico e inorgânico começa a gotejar.
Malcolm mexeu-se.
- O que quer dizer com “gotejar”?
- Os nossos investigadores acreditam que as nano partículas começam a destacar-se das extremidades dos microeléctrodos e a contaminar o fluido espinal cerebral.
Lisa mexeu-se ligeiramente.
- Por isso é que as nossas culturas deram negativo. A meningite não era bacteriana ou virai, mas uma contaminação de partículas estranhas.
Yuri confirmou.
- E para curá-la, temos de tratar a contaminação? - perguntou.
- Sim. Levamos muitos anos a descobrir um sistema de medicina preventiva. No fundo, empregamos uma versão modificada de uma droga quimioterapêutica usada para tratar
o cancro do fígado. A cisplatina. A platina monoatômica que funciona como um aglutinante para as nano-partículas desgarradas e que faz com que estas fluam melhor.
O cocktail exato e a dosagem de drogas necessárias para facilitar tal tratamento exige que se faça um exame à garota e se tenha um acesso imediato aos mais recentes
testes sanguíneos.
Painter reparou nos cantos dos lábios de McBride a endurecerem. Parecia que havia um descontentamento com esta dependência do doutor Raev. Mas se o russo estava
a dizer a verdade, ele era vital para a sobrevivência da garota.
Debaixo da mesa, a mão de Lisa pousou no joelho de Painter. “Alonga toalha de linho escondeu o seu gesto. Estavam sentados na Fabric Room da steakhouse Capital Grille.
terreno neutro, um restaurante conhecido pelo número de acordos negociados entre o linho e a porcelana fina. Tinham a sala de jantar privada por conta deles. O resto
do restaurante estava consideravelmente vazio. Era provável que Mapplethorpe tivesse providenciado a obtenção de uma maior privacidade.
Os dedos de Lisa apertaram-lhe o joelho, dando a entender que acreditava no doutor Raev. Painter também reparou na divisão entre o russo e os outros dois homens.
Será que havia alguma maneira de tirarem pro-leito disto?
McBride falou.
- Temos conosco a farmácia do doutor Raev. Se trouxerem a garota do hospital, podemos começar já o tratamento. Talvez no Centro Médico Militar Walter Reed.
Painter abanou a cabeça.
Bela tentativa, amigo.
Lisa apoiou-o.
- Ela está demasiado frágil para se poder deslocar. Mal conseguimos gerir a CID, no estado em que ela está. Qualquer pressão adicional poderá desestabilizá-la, impedindo
a recuperação.
- Então tenho de ir ter com ela - disse Yuri.
Painter sabia que tinham chegado ao ponto-chave destas negociações. A criança era uma batata quente política e científica. Deixara-a ao cuidado de Kat e de Sean.
Este, enquanto diretor da DARPA, estava também a utilizar o seu talento nos bastidores. A mesa redonda era a ponta do icebergue político.
Painter não tinha outra alternativa senão levar Yuri à garota, abrindo uma brecha na segurança da Sigma - mas, infelizmente, Mapplethorpe também estava a par disso.
E, a avaliar pelas suas reações e pela fricção óbvia que existia entre eles, Mapplethorpe nunca permitiria que Yuri ficasse sozinho.
- Autorizo a presença de mais uma pessoa ao lado do doutor Raev - disse Painter.
Mapplethorpe interpretou mal esta restrição.
- Nós sabemos onde é que fica o comando da Sigma, se é isso que teme revelar. Debaixo do Instituto Smithsoniano.
Embora Painter não tivesse razões para ficar surpreendido, sentiu ainda assim um aperto na barriga. Mapplethorpe movia-se com facilidade na rede dos serviços de
informações de Washington. Sean avisara que o homem não devia demorar muito tempo para determinar quem estava envolvido e onde se encontrava localizado. No entanto,
com todo o seu poder político, Mapplethorpe não tinha como obter acesso ao interior sagrado da Sigma. Agindo nos bastidores, ainda devia estava a tentar derrubar
os portões da organização. O objectivo de Sean era manter esses portões fortemente fechados.
Painter manteve a expressão estoica.
- Muito bem. Apenas autorizo a presença de mais uma pessoa ao lado do doutor Raev. - Olhou separadamente para os dois homens.
McBride levantou uma mão.
- Vou eu. Poderei ser útil ao Yuri.
Pela forma como revirou os olhos, parecia que o doutor Raev não concordava.
Mapplethorpe olhou firmemente para Painter, depois acenou lentamente.
- Mas queremos uma concessão pela nossa cooperação - disse.
- O que é?
- Poderão manter a garota, mas, daqui em diante, nos garantirão acesso livre a ela, mal se recupere. É um recurso que não podemos deixar escapar. E a nossa segurança
nacional que está em perigo.
- Não se ponha a defender o país - disse Painter. - A colaboração prestada para a produção desta garota está para além de todas as convenções de decência humana.
- Só financiamos e oferecemos conselho científico no final. O projeto já estava bem definido. Se não tivéssemos cooperado, como está a dizer, o nosso país correria
um sério risco.
- Treta! Quando se atravessa uma fronteira dessas, causa-se danos a toda a gente. Que nação está a tentar proteger, se essa nação defende a brutalidade necessária
para produzir esta garota.
- E assim tão ingênuo, Crowe? E um mundo novo que está para nascer.
- Não, não é. De acordo com a minha última verificação, é o mesmo planeta girando em tomo do mesmo sol. A única coisa que mudou foi a maneira como reagimos, que
fronteiras estamos dispostos a atravessar. Temos capacidade para impedir isso.
Mapplethorpe olhou intensamente para ele. Painter viu a resolução contida nos olhos do homem. O homem acreditava verdadeiramente que aquilo que estava a fazer era
mesmo necessário, que não via nenhum mal nisso. Aqui estava um nível de fanatismo que carecia de qualquer argumento. Painter indagou de onde vinha tanta certeza
- seria apenas patriotismo ou rodeara-se de tal dogma para se proteger das atrocidades que cometera, dos crimes que, lá no fundo do seu coração, sabia que eram demasiado
horríveis para poder Justificar de outro modo?
Enfim, estavam num impasse.
- Chegamos a um acordo? - perguntou Mapplethorpe. - Caso contrário, vamos continuar. Elá sempre outras crianças.
Painter não podia deixar a garota morrer. Teria de arcar com as consequências políticas do fato.
Painter acenou lentamente.
- Quando é que poderão estar prontos?
McBride interveio:
- Preciso de uma hora para recolher os medicamentos do doutor Raev.
- Esperaremos - disse Painter, levantando-se e dando por encerrada a reunião.
Mapplethorpe seguiu-o e estendeu-lhe a mão como se tivessem acabado de concretizar a venda de uma propriedade. E talvez fosse esse o Icaso. Painter estava prestes
a vender uma parte da sua alma.
No entanto, sem mais nenhuma outra opção, viu-se forçado a apertar a mão ao homem.
Sentiu a secura e frieza da mão de Mapplethorpe, segurando na sua de uma forma firme e resoluta.
Uma parte de Painter invejava a forma inabalável como demonstrava este nível de convicção. Mas será que o homem dormia bem dá noite? Enquanto saíam do restaurante
decorado com painéis em madeira| passando por baixo do toldo azul-esverdeado, Painter matutou sobre uma declaração de Mapplethorpe, um acrescento perturbador.
Há sempre outras crianças.
De que é que ele estava a falar?
22h42
Montes Urais Meridionais
Ele tinha de fugir dali.
Monk correu para as águas abertas. Atrás dele. um grito de tigre atravessou a noite, vindo da cabana a arder.
Zakhar.
O felino tentava trepar pela janela.
Monk aumentou a sua passada.
A frente, vislumbrou uma pequena jangada na água. Previamente, Monk tirara a velha barcaça do meio dos juncos. Raspara a maior parte do musgo e descobrira que a
jangada ainda flutuava. Infelizmente não havia remos, por isso Monk arranjara um pau comprido a partir de um tronco de uma árvore jovem.
Na zona mais funda. Konstantin mantinha-se na proa da jangada, exercendo pressão sobre o remo improvisado. A jangada desviara-se para longe. Pelo menos, eles tinham
conseguido.
Como planeado, as crianças tinham rastejado por debaixo da cabana enquanto Monk distraía os felinos. A jangada esperava por eles a um metro da costa. Deviam saltar
para bordo, empurrar a embarcação e avançar para a zona mais funda.
Monk devia juntar-se a eles, mas a sua saída da cabana não correra tão pacificamente como esperara.
O atraso dera tempo ao segundo tigre - Arkady - para circundar a cabana em chamas, com um sibilo de fúria, e carregar diretamente sobre Monk.
O bater das patas pesadas ecoou atrás dele. Monk fez um esforço para chegar à borda da água. Sem uma arma. a fuga era a sua única esperança.
Arfando, alargou a passada.
A paisagem tremeu.
Um rugido baixo incidiu sobre ele.
O som das passadas sobrepondo-se com força.
A respiração contida.
O bater do coração nos seus ouvidos.
Um sibilo agudo... pronto para a carga.
Um brilho de água.
Demasiado longe.
Sem esperanças, virou-se e caiu. escorregando de nádegas.
O felino arqueou-se para saltar após a sua última passada, mas...
... do meio dos Juncos altos, uma sombra negra saltou e atacou o felino de lado. Monk vislumbrou um clarão de prata. Depois a sombra galgou por cima do tigre, bateu
no chão e esgueirou-se precipitadamente por entre a grossa mancha de salgueiros, desaparecendo de vista.
Marta.
O chimpanzé não ficara com as crianças.
Arkady, desequilibrado com o impacto do ataque, caíra de lado. O tigre voltou a levantar-se, enquanto Monk recuava como um caranguejo com os pés e as mãos no chão.
Cambaleando, o tigre emitiu um som cru e estrangulado.
A escuridão invadiu a garganta do felino, transformando riscas em sombras.
Sangue.
Debaixo da sua mandíbula, sobressaía o punho de uma faca.
A faca de mato da cabana.
O chimpanzé recuperara-a, usara-a, salvara a sua vida.
Monk lembrava-se - e não sabia dizer porque é que se lembrava - de que os chimpanzés eram hábeis utilizadores de ferramentas. Com pequenos galhos sacavam térmitas
dos ninhos. Com ramos afiados golpeavam pequenos lêmures africanos para os obrigarem a sair dos buracos nos troncos.
E Marta não era um chimpanzé normal.
Arkady tremia por todo o lado, com o seu gemido esvaindo-se em sangue.
Um grito sobrepôs-se ao seu pranto.
Zakhar gritava com uma violência que atordoava os maxilares de Monk.
Monk saltou e fugiu na direção da água. Atingindo a margem lamacenta, mergulhou e aterrou de barriga para baixo nas águas superficiais. Levantou-se e avançou pelo
meio da água até a zona mais funda.
O rugido de Zakhar aumentou de raiva.
Monk chapinhou e avançou o suficiente para poder enfiar-se debaixo de água. O frio libertou o pânico, mas até mesmo dentro de água, ouviu o grito do tigre. Sustendo
a respiração, Monk embrenhou-se nas águas mais fundas.
Quando os seus pulmões começaram a arder, emergiu calmamente.
Andando pela água, olhou para trás para a cabana. As chamas elevavam-se na escuridão. Sobressaindo no meio da luz do fogo, Zakhar circundava o irmão. O outro tigre
não se movia.
Monk ouviu Marta a deambular por entre as árvores. Esticou a cabeça e viu-a a balouçar-se e a deixar-se cair pesadamente no meio da jangada. Estava a uns dez metros
dela.
Monk nadou até lá e içou-se para cima da embarcação. Deitou-se de costas, ofegante, arquejando.
A esquerda, Marta estava enrolada ao seu lado, muito dobrada, balançando-se ligeiramente. Ouviu-se um ligeiro pranto. Pyotr debruçou-se sobre ela, confortando-a
e abraçando-a.
Monk levantou um sobrolho, olhou para a cabana, depois para Marta.
Enquanto Zakhar continuava a gritar, Monk estendeu uma mão e pousou-a no ombro do chimpanzé. O corpo tremia-lhe, dobrado, numa postura de dor.
Tinha de ser feito, quis dizer.
Arkady fora torturado, abusado, enlouquecido. O felino tornara-se mais um monstro do que uma criatura de Deus.
A morte era uma bênção.
Contudo, Marta lamentava-se.
Matar não era fácil.
Na proa, Konstantin exerceu pressão sobre o pau comprido e enviou-os a flutuar até o centro do pântano.
Monk sentou-se. Algo chamou a sua atenção. Antes de se terem preparado para a noite, colocara as mochilas de todos na jangada. O seu olhar concentrou-se num dispositivo
que pendia de um fecho de correr, O monitor de radiação.
Na luz refletida, era fácil de ver.
A cor rosada começava a ficar mais escura.
E, com ela, também as suas esperanças.
16h31
Washington D. C.
Yuri ajustou o fluxo da válvula de gotejamento do saco de soro. Os dedos tremiam-lhe enquanto trabalhava. Estava demasiado consciente de Sasha na cama, perdida no
meio dos lençóis e do cobertor. Estava pior do que receara.
Amaldiçoou silenciosamente a hora que perdera, esperando por McBride e Mapplethorpe. Era um tempo que podia ter sido usado para iniciar o tratamento de Sasha. Ao
invés, estivera fechado no edifício do FBI, enquanto os outros dois tinham ido tratar de uns assuntos particulares. McBride regressou finalmente, com todos os medicamentos
do quarto de hotel de Yuri.
A pé, atravessaram então o Mall. concentrando-se no exterior do Instituto Smithsoniano, antes de serem escoltados e descerem por um elevador particular até o piso
inferior. Foram revistados, monitorizados e vendados. De mão dada, Yuri perdeu facilmente o sentido no labirinto subterrâneo das instalações da Sigma. Chegaram finalmente
a um quarto, cuja porta se fechou atrás deles com a fechadura a emitir um estalido.
Só lá é que lhe retiraram a venda.
Yuri viu-se num pequeno quarto de hospital. Uma das paredes estava praticamente coberta por espelhos, certamente vidros espelhados. Duas pessoas vigiavam a criança;
uma mulher alta de cabelos castanhos que se apresentou como sendo Kat Bryant e a doutora Lisa Cummings, que ele encontrara no restaurante. Lisa passou-lhe para as
mãos uma série de relatórios médicos.
- Estamos ao seu dispor - disse Lisa. - Diga-nos o que devemos fazer.
Yuri começou a trabalhar. Leu todos os relatórios, reviu as últimas análises ao sangue. Precisou de mais dez minutos para calcular as dosagens. McBride tentou ajudar,
observando por cima do ombro.
Yuri rosnara para ele.
- Saia do meu caminho.
Os Americanos não estavam a par da alquimia necessária para preservar as crianças. Yuri tencionava manter as coisas assim e o método era demasiado complicado para
o obterem sob tortura. Mas não podia deixar Sasha morrer sem tentar salvá-la, por isso teve de deixar McBride observar. Mas uma vez safa...
Kat interrompeu a sua deambulação, pondo-se ao seu lado.
- Ela vai ficar bem?
Yuri bateu ligeiramente na válvula. Satisfeito com o fluxo, virou-se e reparou nos olhos da mulher fixos nos dele. Tinha o cabelo apanhado numa trança, denotando-se
alguma preocupação nas extremidades endurecidas dos seus olhos e boca.
Suspirou e disse-lhe a verdade.
- Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Precisamos de fazer exames renais de hora a hora, gravidades específicas de urina. Dará uma ideia do progresso, mas serão
necessárias cinco ou .seis horas para sabermos sei ou não sobreviver.
A sua voz cedeu com estas últimas palavras. Virou-se, para não mostrar qualquer sinal de fraqueza a estes estrangeiros. Viu McBride olhar para ele, um olhar rígido
perscrutando os seus olhos. O homem retirara-se para uma cadeira ao pé da porta. Sentou-se de pernas cruzadas com um ar presumido.
- Só nos resta esperar - murmurou Yuri, colocando uma cadeirão lado da cama. Um livro infantil estava aberto em cima.
Kat estendeu-se e recolheu-o.
- Estava a ler para ela.
Yuri acenou. No avião para aqui, Sasha inclinara a sua cabeça sobre o braço de Yuri, enquanto ele lhe lia calmamente algumas fábulas russas. Sorriu ligeiramente
perante a recordação. Tinham sido treinados para não demonstrarem grande afeição, mas ela era especial.
A sua mão deslocou-se para o sítio onde um dos dedos da garota espreitava por entre os lençóis. Um monitor de pressão arterial estava agarrado a ele. Passou com
o seu dedo pelo dígito fino, idêntico ao de uma boneca de porcelana.
Por fim, inclinou-se para trás na cadeira. Seria uma longa espera, McBride bateu com o pé no chão. As máquinas silenciavam-se e apitavam. Ao fim de alguns minutos,
a doutora Cummings saiu do quarto para discutir alguns assuntos com o patologista do grupo. Kat sentou-se numa cadeira no lado oposto da cama.
Enquanto a primeira hora decorria lentamente, Yuri reparou num monte de papéis em cima da mesa-de-cabeceira. Um canto de uma folha chamou-lhe a atenção. Estava inteiramente
rabiscado a marcador preto. Olhando para a borda, Yuri reconheceu o trabalho de Sasha. Passou várias folhas, não compreendendo o seu significado. Mas, na última
folha, Yuri viu um rosto familiar. Endireitou-se na cadeira com um ar surpreendido.
Era o prisioneiro que tinham em Chelyabinsk 88.
Yuri manteve a imagem estendida. McBride não sabia nada acerca da captura do americano. Nunca fora informado sobre isso. No entanto, Yuri deve ter ficado a olhar
durante algum tempo para a imagem.
- Meu marido. - Kat falou do lado oposto da cama. - A Sasha desenhou. Acho que ela viu esta imagem na minha carteira.
Ele acenou lentamente e cobriu a imagem.
O marido dela...?
- Por que ela fez isto? - perguntou Kat. Olhou para ele com uma intenção redobrada. - Desenhou esta imagem?
Yuri olhou para a garota. O coração batia-lhe com mais força e os olhos franziram-se. Foram os desenhos de Sasha que salvaram a vida deste homem. E agora aqui estava
a mulher desse mesmo homem. Não era apenas uma coincidência, um fruto do acaso. O que se passava?
- Doutor Raev? - pressionou a mulher.
Foi poupado à resposta pela movimentação de umas pequenas pestanas. Os olhos de Sasha abriram-se, revelando as suas profundezas azuis. Yuri aproximou-se dela. A
mulher levantou-se.
Sasha continuava zonza, o olhar turvo. Mas o seu rosto em forma de coração virou-se para Yuri.
- Unchi Pepe...?
Esse nome.
O sangue de Yuri afluiu-lhe às orelhas e gelou-o por completo. Veio-lhe à memória a visão de uma ala escura numa igreja fria. de uma criança agarrada a uma boneca
de trapos diante de um altar de pedra, olhando ira ele com os mesmos olhos azuis.
Aqui estavam as mesmas palavras. A mesma acusação.
Unchi Pepe...
0 diminutivo de Josef Mengele, o Carniceiro de Auschwitz..
Pegou na mão de Sasha, aliviando o monitor de pressão arterial.
Não. prometeu-lhe. Nunca mais.
As lágrimas toldaram-lhe a visão.
Os seus dedos pequeninos agarram-se debilmente a ele. As suas pestanas mexeram-se.
- Papá... Papá Yuri...?
- Sim - murmurou. - Estou aqui, querida. Não te vou abandonar. Os seus lábios moveram-se enquanto voltava a adormecer. Os dedos relaxaram e desprenderam-se dos seus.
- A Marta... A Marta tem medo...
22h50
Montes Urais Meridionais
O corpo ainda estava quente, mas o sangue estava frio.
A matança ocorrera mais ou menos há uma hora.
O tenente Borsakov ergueu a mão do flanco do tigre morto. Observou a cabeça, agarrou numa orelha e puxou-a. A outra orelha condizia! com a primeira, identificando
este felino como sendo Arkady.
Deixou-a cair e levantou-se.
Na sua outra mão, Borsakov transportava uma arma de proteção, uma pistola Yarygin PYa. Manteve-a erguida, desejando que estivesse apetrechada com algo mais forte
do que umas meras balas de 9 mm. Procurou Zakhar. Não havia sinais do felino.
Atrás dele, a velha ibza ainda fumegava e ardia.
Impressionado com a fuga, voltou para o barco próprio para este tipo de águas. Um piloto e dois outros soldados estavam sentados a bordo, transportando espingardas
automáticas, cobrindo-o. A lâmpada frontal do barco do pântano espalhava-se na escuridão. A hélice gigante na parte de trás da embarcação começou a rodar lentamente
enquanto o piloto punha o motor a trabalhar.
Borsakov subiu para bordo e acenou para eles no pântano escuro. O motor roncou, a hélice girou com toda a força e lá partiram das ruínas flamejantes da cabana do
caçador, voltando a embrenhar-se na noite. A caçada poderia ter sido mais fácil se tivessem usado miras de infravermelhos ou óculos de visão noturna, mas Borsakov
descobrira que alguém se tinha esgueirado até a barraca de provisões, durante o último dia, e danificado o seu equipamento já de si limitado.
Ou o americano ou as crianças.
Eles sabiam que iam ser perseguidos.
- Devemos relatar ao General-Major Martov? - perguntou o segundo no comando, pegando no rádio da equipa.
Borsakov abanou a cabeça.
O General-Major não aceitava bem os reveses.
O barco atravessou o pântano.
Ligaria quando o americano estivesse morto.
Enquanto fugiam, Borsakov olhou para trás para a ilha, para as ruínas fumegantes e o felino morto. Imaginou o americano e o que ele conseguira.
Quem era este homem? E onde recebeu este tipo de treino?
18h02
Washington, D. C.
Trent McBride ergueu o auscultador e levou-o ao ouvido. Tinham-no deixado usar um telefone de parede e ligar para o gabinete de Mapplethorpe. Trent sabia que a conversa
seria tudo menos privada. Alguém estaria certamente a escutar.
Mas isso não o impediria de pô-lo ao contente dos fatos.
Depois de uma breve troca de palavras com Mapplethorpe, Trent disse:
- Parece que a garota tem algumas hipóteses de sobreviver.
Se ela tivesse morrido, então não haveria qualquer razão para prosseguir.
- Muito bem - respondeu Mapplethorpe. Seguiu-se uma curta e significante pausa; depois disse: - Quanto tempo vai demorar até termos a certeza?
Trent olhou para o relógio e calculou o tempo necessário.
- Para ter a certeza. Seis horas - disse.
A meio da noite.
Seria necessário alguma coordenação, mas depois teriam tudo. Mapplethorpe rosnou de satisfação.
- Então, são de fato muito boas notícias.
14
6 de setembro, 23h04
Punjab, Índia
Não podemos ir mais longe - disse Abhi Bhanjee.
Gray não discutiu. O Mercedes SUV estava coberto de lama até os eixos. Exausto, com os nervos tão tensos como as cordas de um piano. conduziu a viatura até uma zona
pedregosa.
Durante as duas últimas horas, a chuva caíra pesadamente das nuvens baixas. Parecia impossível que umas simples nuvens conseguissem conter um volume tão grande de
água. Tinham deixado o mangueiral há uns bons cinquenta quilômetros e viajado através de uma paisagem igualmente florestada, mas, aqui, o terreno era mais agreste.
Os montes arredondados haviam dado lugar a um conjunto fragmentado de escarpas precipícios. Com a chuva, os ribeiros tinham aumentado de volume, rompendo ao longo
da paisagem. Era como se o mundo inteiro estivesse a verter lágrimas.
Mas, pelo menos, a torrente de chuva afastara os helicópteros. Os caçadores tinham desistido da perseguição, depois de terem perdido a sua preza entre os milhares
de hectares de propriedade. Abe conhecia bem os fenos em volta e guiara-os ao longo de um vale encaixado, desde o naraté esta zona pouco hospitaleira.
Ninguém vem aqui, dissera o homem. Não é bom para a agricultura.
Era uma mitigação.
- Não estamos longe - assegurou-lhes Abe, no momento em que parava definitivamente. - A menos de um quilômetro. Mas temos de caminhar a partir daqui.
Gray escondeu o SUV debaixo dos ramos drapejados de uma figueira-de-bengala. Desligando o motor, olhou lá para fora para os penhascos e lembrou-se do templo na moeda
grega. Abe dizia que tal estrutura se destacava algures no meio destas terras. Fora aí que o doutor Polk fora levado no dia em que desaparecera. Apenas alguns aldeões
conheciam este lugar. Era um local simultaneamente venerado e temido pelo povo de Abe, um terreno sagrado para os achuta.
Por que doutor Polk veio aqui? O que tinha entusiasmado tanto o professor?
A água fluía por cima do para-brisas, nublando a visão.
- Talvez seja melhor esperarmos por uma aberta - sugeriu Masterson. - Podíamos procurar esse templo depois de a chuva parar.
Gray olhou para o relógio. Era quase meia-noite. Não queria em nenhum lado perto daqui, assim que rompesse a manhã. A luz do dia os helicópteros estariam em condições
de prosseguir com a busca. O Mercedes SUV, do tamanho de um tanque, seria fácil de detetar nos vai abertos. Gray já tomara medidas e desmontara a unidade de GPS
da viatura, temendo que tivesse sido isso a fazer com que os Russos se pusessem a persegui-los desde Deli.
Tinha muitas questões sem resposta na sua cabeça, mas sabia que uma coisa era certa. Se iam percorrer os últimos passos dados pelo doutor Polk, era melhor fazerem-no
agora.
Virou-se para falar com os restantes passageiros.
- Vou com o Abe. Mas vocês talvez queiram ficar ao pé do veículo,
Elizabeth levantou a mão.
- Eu vou consigo. Se houver alguma coisa perdida no templo, poderá necessitar da minha ajuda.
Kowalski acenou.
- E onde ela vai, eu vou também.
Elizabeth olhou para ele, com um olhar inicialmente aborrecido, mas que se viria a converter em algo menos preciso.
- Devíamos ficar juntos - disse Rosauro, agarrando na sua mochila com o equipamento.
Luca acenou.
Masterson revirou os olhos.
- Parece que vamos ficar todos molhados.
Com a questão decidida, saíram do SUV e meteram-se à chuva. Ao fim de alguns passos, Gray já estava encharcado até os ossos. As suas roupas pareciam ter adquirido
quilos.
Kowalski lançou uma imprecação, olhando longamente para o SUV, mas com Elizabeth em andamento, teve de ir no seu encalço.
- Por aqui - disse Abe, apontando para uma zona escarpada que se erguia em planaltos irregulares cobertos de árvores. As raízes entrelaçavam-se nas paredes de arenito,
tal qual os rostos engelhados de homens idosos, retiradas das rochas pela chuva e pelo vento. Os raios rasgavam o céu, os trovões ribombavam com a máxima força.
A tempestade piorara.
Esgotado, Gray começou a ter dúvidas acerca do seu plano. Desde que tinham saído de Deli, ao início do dia, que não conseguia contactar a Sigma. Tinham perdido o
telefone por satélite da equipe durante o assalto ao hotel. O celular pré-pago que comprara em Deli não tinha rede nesta área remota.
Estavam por sua conta. E, apesar de Gray preferir operar normalmente com a menor supervisão possível, tinha de pensar nos civis.
Abe partiu na direção de uma estreita ravina cortada na escarpa. Um ribeiro fluía pelo centro, engrossando ruidosamente com a água das torrentes. Um caminho estreito
bordejava-o. com as paredes alcantiladas erguendo-se de ambos os lados.
Gray seguiu Abe por esse caminho. Uma vez no desfiladeiro, as chuvas enfraqueceram, devido ao bloqueio dos ventos. No entanto, a água continuava a escorrer pelas
paredes. O burburinho do ribeiro, armadilhado na ravina, foi aumentando de intensidade.
Prosseguiram em fila indiana.
O desfiladeiro serpenteava como o desenho de um raio, estreitando e afunilando-se à medida que avançava para as zonas mais altas.
Abe narrava enquanto caminhava.
- O nosso povo costuma retirar-se para aqui, de todas as vezes que ocorre uma perseguição. O meu bisavô contou histórias de purgas, em que aldeias inteiras foram
destruídas. Aqueles que escaparam fugiram para aqui para se esconderem.
Por isso é que os achuta mantinham este sítio secreto, pensou Gray.
- Mas estas paredes não garantem proteção - acrescentou Abe criticamente. - Pelo menos para sempre.
Gray olhou para ele, mas Abe continuou em frente até o local onde desfiladeiro se dividia em dois. Abe passou com a mão ao longo da parede, como se estivesse a assegurar-se
de algo - depois prosseguiu e irou à esquerda.
Gray passou com os dedos pelo mesmo sítio de Abe. Havia umas inscrições na parede, que mal se viam com a chuva, apenas sombras na rocha.
Elizabeth observou a inscrição de perto.
- Harappiano - disse, surpreendida, e olhou em volta. - Devem estar no extremo do vale do Indo. Uma grande civilização desenvolveu-se em tempos neste local.
Masterson aquiesceu com um aceno.
- Os Harappianos viveram ao longo do rio Indo, há cinco mil ano deixando para trás as ruínas de cidades e templos sofisticados. Podemos encontrá-los em toda a região.
Talvez o nosso jovem amigo hindu tenha confundido uma das velhas ruínas harappianas com o templo inscrito estranha moeda.
Gray continuou a avançar.
- Só há uma maneira de descobrir.
Ao fim de mais duas curvas, o desfiladeiro alargou-se repentinamente num pequeno vale em U. A água brotava no lado oposto, caindo de cima de um pequeno rochedo para
um lago que alimentava o ribeiro que tinham estado a seguir.
Abe parou e abarcou com um braço o vale em U.
- Já chegamos.
Gray franziu o sobrolho. O desfiladeiro estava vazio - depois os raios faiscaram numa exibição radiante que iluminou a bacia. A luz prateada banhou os rochedos e
refletiu o lago central.
Em torno do vale, as paredes de arenito tinham sido escavadas em diferentes níveis. Cada nível albergava casas construídas no interior do rochedo. Treparam do sítio
onde estavam até a reentrância que se destacava sobre o vale. Secções de casas tinham sido destruídas ao longo dos séculos, desfazendo-se em pedras e cascalho, Gray
lembrou-se das casas escavadas na rocha dos índios Anasazi. Mas, pelo estilo de arquitetura, nenhum índio americano - ou qualquer outro povo da Índia - construíra
tais habitações.
Gray deu um passo em frente e completou um círculo. As fachadas das casas eram de mármore branco, sobressaindo no meio da pedra mais escura. Os rochedos, compostos
por arenito mais macio, encontravam-se desgastados por séculos de vento e de chuva. As casas pareciam ter crescido diretamente das paredes. O mármore branco fazia
lembrar a Gray esqueletos fossilizados saindo da face de um rochedo.
Apesar de meio engolidos pelas paredes consumidas pelas tempestades, os elementos arquitetônicos básicos das estruturas em mármore eram evidentes. Telhados baixos
triangulares suportavam colunas estriadas. Inscrições e esculturas, desgastadas pelo tempo, decoravam frontões e cornijas.
Não havia dúvidas quanto à fonte da arquitetura.
- É grego - disse Elizabeth espantada. Olhou em volta, com a água a escorrer-lhe pelo rosto. - Um complexo de templos gregos. Escondido aqui.
Masterson pôs-se ao lado dela. Trazia o chapéu completamente empapado na mão e passou com os dedos pelo cabelo branco molhado.
- Surpreendente. Arquibaldo, meu malandro, podias ter-me dito...
Gray também ficou boquiaberto, sentindo toda a exaustão a ir-se embora perante a maravilha que tinha pela frente.
Elizabeth apontou.
- É um templo in antis, um das unidades arquitetônicas gregas mais simples. Ali está uma estrutura em prostilo, de uma era mais tardia. E olhem para aquela fachada
de colunas arredondada. Deve marcar um tholos, um templo circular, escavado no rochedo.
Enquanto falava, a atenção de Gray virou-se para uma estrutura no outro lado do vale. O coração começou a bater-lhe mais depressa. Um templo que ficava a meio caminho
da face do rochedo. Havia rochas depositadas no fundo, marcando o sítio onde uma parte da ponta do desfiladeiro se tinha fragmentado e quebrado. A água da chuva
fluía pela fenda superior e corria através da frente do templo, dando-lhe um aspeto aquoso e ilusório.
Mas não havia engano possível.
Seis colunas suportavam um telhado triangular, enquadrando uma entrada escurecida.
- Tal como na moeda - disse Rosauro. reparando na sua atenção.
Abe dirigiu-se para o templo elevado.
- E não é tudo.
Cheio de curiosidade, Gray seguiu-o, arrastando o grupo encharcado atrás dele.
Assim que chegaram ao monte de rochas. Abe atravessou para um dos lados e acenou-lhes para que o seguissem. Galgou as rochas e avançou até um sítio mais alto. Parecia
conhecer o caminho por cima do cascalho.
Trepando em fila indiana, seguiram o homem hindu.
Elizabeth e Masterson estabeleceram um diálogo constante.
- Por que teriam construído o templo aqui? E de uma maneira tão estranha?
Eles estavam nitidamente a esconder-se - disse Masterson. - É um lugar extremamente difícil de se encontrar, especialmente enterrado nestas paredes. Mas já vi construções
similares, no meio das ruínas harappianas, noutras zonas mais fundas do rio Indo. Talvez estes construtores tenham ocupado um antigo lugar harappiano, modificando-o
a seu gosto.
- Podia ser. Era comum uma civilização construir os seus edifícios por cima de outros Já edificados.
Enquanto falavam, Gray olhou para o templo. Mais perto agora, viu que o que pensara serem sombras pretas nas colunas de mármore eram, na realidade, antigas marcas
chamuscadas. Pequenos pormenores emergiram. As fendas e fissuras desfiguravam as fachadas; uma grande secção do frontão superior partira-se.
Gray suspeitava que os danos não eram só fruto da idade. Tudo indicava que em tempos tinha ocorrido aqui uma batalha.
A frente. Abe saltou da rocha superior e trepou por entre dois pilares. Gray foi a seguir e içou-se para o chão de mármore do templo, finalmente fora do alcance
da chuva. As seis colunas de suporte estavam a um metro do edifício que tinham pela frente, erguendo-se num pequeno alpendre.
Colocou-se de modo a dar espaço aos outros. Kowalski e Luca ajudaram Elizabeth e Masterson. Rosauro foi a última, transportando a sua mochila. Com toda a gente reunida,
Gray dirigiu-se à porta, mas Abe ajoelhou-se por uns breves instantes e proferiu uma oração em voz baixa. Gray esperou, pressentindo que fazer o contrário seria
como trespassar a alma do homem.
Abe levantou-se e acenou.
Gray puxou de uma pequena lanterna e apontou a luz para o interior. Entrou primeiro, com a luz a brilhar no interior escurecido.
A câmara era grande e perfeitamente quadrada, com seis metros de lado e a mesma medida de altura. Mais colunas rodeavam as paredes, várias delas partidas. Cavado
no centro do chão, havia um buraco de fogueira, profundamente escurecido. De cada lado, aberturas em arco conduziam a câmaras laterais, como capelas de uma igreja.
Gray notou em algo amontoado nas divisórias pequenas. Virou-se para inspecionar melhor, enquanto os outros entravam no templo. Abe manteve-se junto a um dos lados,
com os braços cruzados de nervosismo. Ele não o seguiu.
Assim que Gray apontou com a lanterna, compreendeu a relutância do homem hindu. Vários ossos enchiam a divisória, dispostos como pequenos troncos de madeira e encimados
por centenas de crânios. Todos humanos. E, a avaliar pelo seu aspecto apodrecido e amarelado, os esqueletos deviam ser bem antigos.
Gray lembrou-se das marcas chamuscadas no edifício.
Abe falou.
- Contaram-nos histórias, passadas de pais para filhos, de mães para filhas. De uma grande batalha ocorrida aqui. Há mil anos. Crê-se que os nossos antepassados
encontraram este lugar cheio de ossos. Em honra dos mortos, reunimos os seus restos e enterramos nestes templos. - Acenou para o vale no exterior. - Ainda há muitos
ossos espalhados por aí.
Gray virou-se para sair da câmara. Alguém descobrira este povo e massacrara-o. Lembrou-se das palavras crípticas de Abe, ditas anteriormente.
Estas paredes não garantem proteção. Pelo menos para sempre.
O destino dos habitantes originais era um aviso para o povo de Abe. Era um bom lugar para se esconderem, mas onde não se podia permanecer para sempre.
Gray passou por cima do único outro elemento que existia no aposento.
Tal como a fachada do templo, esta imagem encontrava-se igualmente representada na moeda.
Gray dirigiu-se à parede posterior e apontou a lanterna para a superfície.
A parede de mármore creme estava incrustada com uma pedra bastante escura, compondo um símbolo familiar que atingia os seis metros de altura.
- Uma roda chacra - disse Elizabeth, abismada. Pegou numa câmera digital de bolso e começou a tirar fotografias. - Tal como o outro lado da moeda.
Luca passou com uma mão pela parede. Gray pôde ler os seus pensamentos. Seria este o símbolo antigo que estava na base da insígnia romani?
Será que Arquibaldo tinha pensado no mesmo?
Kowalski suspirou, pouco ou nada impressionado com o local.
- Que desapontamento.
- De que é que está a falar? - censurou Elizabeth. - Isto é a descoberta arqueológica e antropológica de uma vida inteira.
Ele encolheu os ombros.
- Sim, e daí? Onde estão o ouro e as joias?
Gray não queria admiti-lo, mas concordava com Kowalski. Afastou-se. Rodopiou com a lanterna em torno da câmara. Algo estava a faltar, mas não era o ouro e as pedras
preciosas.
Rosauro juntou-se a ele.
- O que se passa?
- Falta algo aqui - murmurou.
- O quê?
Os outros ouviram-nos no espaço apertado. Olharam em volta.
Gray desenhou mais um círculo.
- Na moeda... havia esse tal E proeminente. A letra grega épsilon.
Gray limpou algumas gotas de chuva que corriam pela cara.
- Encontramos tudo o que havia na moeda: a fachada do templo, a roda chacra. Por isso, onde está a letra grega?
- E um pormenor insignificante - disse Masterson. - O que é que isso interessa?
- Não é insignificante - argumentou Elizabeth. - Alguém se deu ao trabalho de reproduzir o complexo de templos que existia em Delfos. Aquilo que vimos lá fora...
o templo in antis tinha a forma dos tesouros! de Delfos, o templo redondo tholos parecia uma reprodução fiel daquele que fora construído para adorar Atena em Delfos.
E este lugar aqui. O exterior e interior têm a mesma disposição do templo do oráculo. E o E era um dos elementos mais destacados da decoração.
Gray lembrou-se da sua discussão com Painter. acerca da forma como o E délfico passara a simbolizar um culto de profecia, um código que atravessou a história da
arte e da arquitetura.
Luca deu um passo.
- Também sei alguma coisa sobre esta letra.
Gray virou-se para o líder do clã cigano.
- Contei-lhe acerca das crianças que nos foram roubadas - disse. - As pessoas do meu povo que primeiro se deslocaram ao campo do massacre falaram de uma igreja de
pedra que existia aqui. A porta fora derrubada, mas no meio das tábuas desfeitas foi encontrado um grande E. Ninguém sabia o que significava. Os únicos que sabiam
tinham sido enterrados nessa sepultura comum. O segredo morreu com eles. Talvez seja esse mesmo E.
Identificando os chovihanis, pensou Gray. Os adivinhos ciganos. Outro culto de profecia.
- Muito bem - persistiu Masterson, dando igualmente ares de estar cansado. - Mas o que é que interessa se falta aqui um E?
- Se calhar nada - admitiu Gray, mas disse-o com pouca convicção. Virou-se para Abe. - Quando é que mostrou este sítio ao doutor Polk pela primeira vez?
Ele encolheu os ombros.
- Trouxe o doutor Polk aqui. peia primeira vez. há um ano. Ele olhou em volta, tomou notas e foi-se embora.
Os olhos de Elizabeth abriram-se.
- Ele não me contou nada acerca desta descoberta.
- Porque respeitava os nossos segredos - disse Abe firmemente. - Era um bom homem.
Gray observou a expressão azeda de Masterson. O professor ficara inicialmente surpreendido com a descoberta, mas depois de o impacto inicial se ter desvanecido,
e de não ter encontrado nada verdadeiramente útil para a sua filha de investigação, o seu interesse desaparecera. Será que o doutor Polk sentira o mesmo? A descoberta
arqueológica parecia ‘importante, mas como não conseguira relacioná-la com a sua própria investigação, respeitara o segredo dos achuta e mantivera-se silencioso
acerca do assunto.
Se assim foi, porque a súbita urgência em vir até aqui pouco tempo antes do seu desaparecimento? E natural que tenha descoberto alguma nova conexão, algo relacionado
com a sua própria linha de investigação.
Gray perguntou a Abe:
- Houve alguma coisa que tivesse desencadeado a necessidade repentina de o doutor Polk vir até aqui? Algo invulgar que tenha ocorrido nesse dia?
O homem abanou a cabeça.
- Ele veio visitar a aldeia. Tal como o fizera por diversas vezes.
Estávamos a falar das próximas eleições, em que havia um candidato achuta que aspirava a uma posição de destaque. Encontrara uma nova moeda e mostrei-lha, mas ele
pediu-me para ver outra vez aquela que tinha o templo. Olhou para ela sem grande interesse, rodopiando-a na mesa enquanto falávamos. Depois, repentinamente, os seus
olhos ficaram enormes, e deu um salto. Pretendia vir aqui de imediato, mas eu tinha obrigações para cumprir relacionadas com as eleições. Pedi-lhe para esperar até
que regressasse e...
A sua voz diminuiu de intensidade e a frase foi retomada por Elizabeth.
- O meu pai não era conhecido pela sua paciência.
Masterson acenou.
- Foi nesse dia que recebi a chamada agitada. Disse que tinha descoberto algo que abalaria nossa compreensão da mente humana assim que fosse a público.
Enquanto uma ideia se ia formando na sua cabeça. Gray virou-se para Rosauro.
- Deixa-me ver a moeda outra vez.
Ela passou-lha.
Gray examinou-a: o templo de um lado, a roda chacra do outro.
- Elizabeth, disse que seu pai lhe arranjou o cargo no museu para que pudesse pesquisar até que ponto a moeda poderia estar relacionada com a sua própria investigação?
O ele contou da história de Delfos?
- O básico - disse. - Ele estava mais interessado na descoberta dos gases de etileno, perto do templo, do que na história em si. O meu pai queria mais pormenores
sobre os rituais do oráculo, procurando de novo uma base psicológica para os seus poderes intuitivos.
- Então se ele não estava interessado na história, quando é que soube o significado da letra grega épsilon?
- Enviei-lhe um trabalho sobre isso.
- Quando?
- Mais ou menos um mês antes de ele... - Os seus olhos dilataram-se subitamente.
Gray acenou. Ajoelhou-se no chão de mármore e colocou a lanterna no chão. Segurando na borda da moeda, Gray fê-la rodopiar no chão. iluminada pelo feixe de luz.
Inclinou-se, observando-a.
Enquanto rodopiava, a moeda foi formando um globo prateado e turvo. O E, posicionado no centro da moeda, passou a estar no centro do giro. Gray apercebeu-se do simbolismo.
Painter dissera que o E poderia ter as suas raízes num culto anterior da Mãe Terra. Gaia. Agora estava no centro da esfera prateada, como a própria Gaia no mundo
físico. Mas a letra também representava o potencial intuitivo do homem, ascendendo do núcleo do corpo humano para fora do cérebro.
Gray deixou a sua própria mente relaxar um pouco, procurando extrair algum significado.
O que é que Arquibaldo Polk descobrira?
A moeda girou, um mistério prateado, escondendo um segredo antigo.
Mas o quê...?
Depois Gray soube.
Estendendo a mão, tocou na moeda e imobilizou-a no chão.
Claro!
23h35
Pripyat, Ucrânia
- Os Americanos têm a Sasha - disse Nicolas com severidade no momento em que entrava no quarto. Estava nu debaixo de um roupão aberto, mas a sua raiva mantinha-o
aquecido.
Elena Jazia envolta na colcha, igualmente nua. Tinha uma perna para cima e um braço estendido de lado, esperando por ele. Tinham regressado da gala para o hotel
localizado fora da Zona de Exclusão de Chernobyl, onde muitos dos dignitários se encontravam igualmente albergados, antecedendo os eventos de amanhã.
Nicolas passara a última meia hora a falar através de um telefone por satélite, numa frequência especial para evitar a interceptação de chamadas, certificando-se
de que tudo estava em ordem para a manhã seguinte. Uma chamada para a sua mãe na Toca revelara o último conjunto de notícias preocupantes. Através dos contatos que
ainda mantinha com antigos operacionais do KGB, ouvira rumores provenientes dos serviços de informações de Washington. A cidade andava numa convulsão há vinte horas
à procura de uma garota. Devia ser Sasha. Depois, tudo ficou profundamente silencioso. Até Yuri ficou silencioso. Tanto ele como a sua mulher sabiam o que isso implicava.
Alguém encontrara-a.
E Nicolas suspeitava de quem era.
Cerrou os dedos da mão.
Devia ser a mesma organização que estivera a importuná-lo na Índia, desenterrando a investigação do doutor Polk, mexendo em algo que Nicolas pensara que tinha terminado
com a morte do homem. Uma tentativa para pôr de lado essa pista tinha Já fracassado. Mas talvez fosse melhor assim.
Obtivera uma comunicação, breve, depois do fracasso.
Parecia que a equipe na Índia estava próxima de um segredo que o doutor Polk mantivera afastado de toda a gente. Algo vital para a investigação do professor. Algo
significante acerca das crianças. Mas o quê?
Elena mexeu-se na cama e acabou por se levantar apoiada nos cotovelos. A preocupação notava-se na sua voz.
- O que vais fazer com a pequena Sasha?
Nicolas sabia que todas as crianças tinham crescido juntas. Educadas em conjunto na Toca, as crianças mais velhas assumiam muitas vezes deveres parentais para com
as mais novas. Elena dedicara-se especialmente à pequena Sasha e ao seu irmão.
O par também era importante para Nicolas.
Meteu-se dentro da cama. com ela a enrolar-se sobre ele, preocupada e zangada. Sentiu uma das mãos de Elena a deslizar debaixo do roupão até a coxa. A pele dela
estava quente, febril. Ele tinha-a feito esperar muito tempo.
Depois, umas unhas compridas cravaram-se subitamente na sua coxa, magoando-o profundamente.
Elena olhou para ele. O fogo ardia-lhe atrás dos olhos, esperando para ser solto. Um fio de sangue escorria pela coxa interior de Nicolas, Ião excitante como a ponta
de uma língua esfomeada.
Uma certeza inabalável ecoou da voz de Elena. Não se compadecia com qualquer argumento, exigindo, ordenando.
- Nada poderá acontecer à pequena Sasha.
Os seus dedos cravaram-se de novo, fazendo com que a dor se alastrasse até as virilhas.
Ele suspirou e prometeu-lhe;
- Já foram tomadas medidas. Só precisamos de...
As unhas teceram um sulco ao longo da perna, arrastando a dor.
- ... ter algo para negociar.
23h45
Punjab, Índia
Enquanto a trovoada ressoava e os raios iluminavam a câmara do templo, Elizabeth seguiu Gray ate à roda chacra gigante que cobria a parede. Colocou a mão em cima.
Depois de ter rodado a moeda, apercebera-se claramente de algo.
Mas o quê?
Gray falou enquanto olhava para cima.
- De acordo com os meus estudos sobre a filosofia indiana, o centro de uma roda chacra tem uma letra em sânscrito. representando um dos centros de energia. Muladhara.
a raiz chacra na base da coluna. Manipura. na região do plexo solar. Anahata o coração. - Olhou para cima. - Esta aqui está vazia. Sem nada.
- O mesmo na moeda - proferiu Elizabeth com alguma hesitação, não compreendendo até onde é que isto os poderia levar.
- Exatamente. - Gray pegara na moeda e passara-a a ela. - Mas vire a moeda. Se conseguir olhar através do centro da roda chacra para o outro lado da moeda, o que
é que está lá posicionado?
Elizabeth virou a moeda de um lado para o outro. A letra maiúscula épsilon aparecia no centro do templo, na mesma posição do eixo da roda chacra do outro lado.
- E o E - murmurou.
- Está no lado oposto da roda. - Gray virou-se para Masterson. - Posso usar a sua bengala?
O professor passou-a com alguma relutância.
Gray recuou, esticou-se e empurrou a extremidade do círculo central do mármore preto. Os seus músculos contraíram-se e o pequeno círculo deslocou-se, girando em
torno de um eixo vertical, como uma válvula de um cano.
- Uma porta secreta - exclamou Masterson.
Gray acenou para Kowalski.
- Ajude-me a subir.
Kowalski aproximou-se, pôs um joelho no chão e entrelaçou os dedos, Gray colocou um pé no apoio e subiu o suficiente para empurrar a laje de mármore. A borda inferior
da porta secreta ficava a três metros do chão. Com o impulso de Kowalski. Gray lançou-se através da abertura.
- Há umas escadas! - disse, enquanto as suas pernas desapareciam. - Para baixo! Escavadas no arenito!
Elizabeth mal podia esperar. Juntou-se a Kowalski.
- Ajude-me.
Pôs um pé em cima do seu joelho, mas ele agarrou-a pela cintura e ergueu-a até cima. Deu um grito de surpresa. O homem era forte. Agarrou-se à borda da abertura
para se firmar e cegamente, procurou um sítio onde pôr o pé para dar um impulso.
- Ai. o meu nariz - queixou-se Kowalski.
- Desculpe.
Agarrou-lhe no tornozelo e colocou-o em cima do ombro. Ela deu um impulso e escorregou lá para dentro. Encontrou Gray logo ao fim de uns degraus, projetando a luz
ao longo das paredes. A escrita decorava todas as superfícies, numa mistura de formas e letras.
- Harappiano de novo - disse ela, com um certo esforço, enquanto, se punha de pé.
- E olhe para isto - disse Gray. Agitou a lanterna e fê-la incidir na parte de trás da porta de mármore preto. Um grande épsilon maiúsculo fora talhado com alguma
profundidade na pedra.
Ele estava certo.
Elizabeth pegou a câmera e tirou várias fotografias, enquanto Rosauro e Luca se juntavam a eles, entupindo as escadas.
Gray espreitou lá para fora.
- Doutor Masterson?
Através da abertura. Elizabeth viu o professor a virar as costas.
- Essas subidas são para pessoas mais jovens do que eu - disse, visivelmente exausto, apoiando-se na sua bengala. - Depois digam-me o que encontraram.
- Eu fico aqui também - acrescentou Abe, mas a sua voz parecia mais assustada do que cansada. Elizabeth notara como o seu nervosismo fora aumentando à medida que
se iam aproximando do lugar.
Gray intimou o homem grande.
- Kowalski, fique aqui. No caso de haver problemas.
- Ótimo - respondeu. - Duvido que coubesse nessa passagem.
Kowalski lançou um olhar a Elizabeth. Acenou com a cabeça, avisando-a silenciosamente para ter cuidado.
A trovoada retumbava de novo, caindo nas pedras.
- Vamos - disse Gray.
Ele desceu com a lanterna. Elizabeth seguiu, juntamente com Rosauro e Luca. Os seus dedos tatearam a parede. A escrita harappiana continuava pela escadaria. A antiga
língua nunca fora decifrada, em grande parte devido à escassez da escrita que sobrevivera. Os arqueólogos ainda andavam à procura da pedra de Roseta desta língua,
de algum códice que lhes permitisse decifrar o código antigo.
Ela olhou em volta. Talvez, estivesse aqui.
Espantada e maravilhada, o coração começou a bater-lhe com toda a força no peito. Estava surpreendida por mais ninguém conseguir ouvi-lo. Ao mesmo tempo, imaginou
o seu pai a seguir os mesmos passos. Imaginou o coração dele a saltar da mesma forma que o dela. Nesse momento, sentiu uma estranha intimidade, uma proximidade que
eles nunca tinham partilhado na vida. E nunca iriam partilhar. A garganta fechou-se-lhe ligeiramente, enquanto se deixava trespassar pela emoção.
A escadaria não era longa e terminava numa pequena câmara, escavada no arenito. A água borbulhava e ecoava no outro lado. Uma nascente natural saía de um buraco
na parede da altura de um Joelho. Ruindo através de uma falha no chão para depois desaparecer na parede oposta.
- Um poço harappiano - disse Elizabeth, reconhecendo a configuração. - Vivendo ao longo do rio Indo, a civilização adquiria bastantes conhecimentos a nível da irrigação.
Gray projetou a luz em tomo do espaço. Era rudemente circular. Recortada no chão de pedra, destacava-se uma outra roda chacra. Mas o centro desta estava vazio. Uma
grande pedra em forma de ovo repousava no local.
- É uma cópia do ônfalo - disse Elizabeth.
Ela e os outros aproximaram-se do objeto. Dava-lhe pela cintura e era duas vezes maior do que o do Museu de Delfos. A superfície exterior da cúpula estava esculpida
com árvores e folhas.
Elizabeth engoliu em seco e olhou em tomo dela.
- Alguém recriou o adytum original, o sancturn interior do oráculo onde ele realizava as profecias.
Elizabeth dirigiu-se a uma cadeira de bronze. Tinha três pernas.
- Aqui está um trípode. O banco clássico do oráculo.
Ou oráculos, indagara Gray alguns passos atrás. Apontou a lanterna para mais cadeiras tombadas.
Cinco ao todo.
Elizabeth tirou várias fotografias. Que lugar era este? O que estava isto a fazer aqui?
Rosauro chamou da zona onde se encontrava, junto à parede, ajeitando a mochila.
- Deverão querer ver isto - disse.
Luca estava um pouco mais longe. Tinha o braço levantado, apontando para a superfície sem tocar nela. Até nas sombras, Elizabeth pôde ver como a sua mão tremia.
Elizabeth foi ter com Rosauro. Um mosaico, bastante enegrecido com o tempo, cobria a parede. Vários ladrilhos revestiam o chão, desprendendo-se aos poucos. Alguém
se entretivera a limpar secções do mosaico inferior, eliminando, séculos de bolor e imundície. Parecia ter sido um trabalho feito à pressa. Elizabeth imaginou o
seu pai a passar com um pano pela obra de arte, procurando destacar o que estava por baixo.
Olhou para o que estava à vista.
Do chão até o teto, representava um cerco a um templo no meio das montanhas.
- Parnaso - murmurou Elizabeth. - Sob o ataque dos Romanos. Mostra a queda do templo de Delfos.
A secção seguinte revelava uma câmara não muito diferente daquela onde se encontravam, até com um ônfalo no centro - mas a pedra era mostrada num corte transversal.
Escondida por debaixo da sua cúpula, via-se uma pequena garota, acocorada e anichada nos braços de uma [mulher jovem, que a abraçava com força enquanto um soldado
romano procurava por elas.
Elizabeth olhou para a pedra atrás dela. Não podia ser...
Caminhou ao longo da parede. Os quadros seguintes revelavam uma caravana composta por cavalos, burros e carroças. Encabeçando o grupo, mesma mulher esguia prosseguia
com a criança. A longa caravana subia uma montanha. A última carroça era conduzida por dois fogosos garanhões, representando claramente as montadas que conduziam
a carruagem de Apoio através dos céus. Mas não estavam a arrastar o Sol. Na parte de trás da carruagem via-se a mesma pedra que protegera a mulher e a criança. O
ônfalo de Delfos.
Elizabeth virou-se e viu a pedra atrás dela. Estremeceu.
- Não é uma cópia - disse com um arrepio. - É o ônfalo original, aquele que é descrito nas histórias de Plutarco e Sócrates.
- E veja isto - disse Rosauro.
A mulher levou Elizabeth até a cena seguinte. Era uma representando o desfiladeiro, uma cena alegre dos Gregos construindo templos nos rochedos. O adytum estava
também representado, mas, em vez do oráculo sentado em cima de um trípode, havia cinco. Circundava a pedra-ônfalo que fumegava como um vulcão, do buraco no topo.
O fumo compunha a figura de um jovem com os braços afastados. Os seus olhos era fogo e as chamas trepavam das suas mãos abertas.
Seria o rapaz indicador de profecia ou algo mais específico?
Assim como assim, Elizabeth sentiu aqueles olhos brilhantes a olharem para ela.
Junto ao seu ombro, Gray também seguiu a história. Apontou cora um braço em tomo da parede, para abarcar toda a história.
- O último oráculo, a criança, deverá ter escapado após a queda do templo. Em segredo, os guardiães e apoiantes do templo grego fugiram à perseguição romana e fixaram-se
aqui. onde reconstruíram os seus templos no meio das ruínas harappianas e permaneceram escondidos.
Elizabeth recordou-se da história de Abe acerca deste lugar.
- Permaneceram seguros durante sete séculos, talvez misturando-se em segredo com as tribos locais. E, ao fim de várias gerações, os Gregos foram sendo lentamente
absorvidos pela cultura indiana.
- Depois cresceram no meio da perseguição religiosa e do crescente sistema de castas indiano - disse Gray. - Todos esses ossos. Ocorreu aqui um massacre.
Luca falou do fundo da parede.
- E fugiram de novo - disse.
Juntaram-se a ele. Ele estava a um passo da nascente agitada. A arte aqui não era composta por mosaicos, mas por algo pintado num friso feito à pressa. Fora traçado
a tinta preta, mostrando o ataque aos templos. As pessoas fugiam em todas as direções, mas um grupo, salientado por listras radiantes, escapava numa caravana composta
por carroças altas com grandes rodas. Ia-se reduzindo ao longo da parede, partindo para um local distante.
Luca passou suavemente com os dedos por cima das carroças. Tinha a voz presa de emoção.
- E o nosso povo - disse. - O povo romani. E daqui que provimos. E esta a nossa origem.
Gray virou-se para trás. Olhou em torno da parede, com o rosto coberto de espanto.
Os guardiães gregos escaparam com a última criança e o ônfalo, escondendo-se neste vale e absorvendo ao longo de sete séculos a cultura indiana, depois essa mesma
cultura perseguiu-os e obrigou-os a fazerem-se à estrada, mais uma vez, mas sob um novo nome.
Ciganos.
Gray movimentou um braço, procurando abranger toda a parede.
- A história aqui representada deve traçar uma linha genética que foi preservada ao longo da história. Partindo da Grécia para este local e daqui para fora outra
vez. Uma linha genética de poderes sábios.
- E por isso que andamos de um lado para o outro - disse Luca, ainda a olhar para a caravana. - Como o homem hindu disse, nenhum lugar é seguro para sempre. Por
isso continuamos a andar, tentando proteger o segredo mantido no coração dos nossos clãs.
- Até que o segredo vos foi roubado - disse Gray.
- Um segredo que remontava a Delfos - acrescentou Elizabeth.
Ela recordou-se da criança em Washington. Poderia ser realmente um descendente do último oráculo de Delfos?
Rosauro aproximou-se do fresco e apontou os contornos de outras figuras fugindo do complexo sitiado em várias direções.
- Estes refugiados... - disse para Elizabeth. - Deve ser por isso que o seu pai encontrou todas as pistas genéticas nesta região, o motivo pelo qual os marcadores
se apresentam tão concentrados nesta área, especialmente entre as castas mais baixas. Foi onde os refugiados foram absorvidos pela população.
Enquanto falavam. Gray percorrera a parede de novo, observando as imagens mais de perto. Chegou ao último mosaico, aquele com o rapaz de olhos brilhantes.
- Há qualquer coisa escrita aqui em baixo - disse.
Elizabeth aproximou-se. Havia três linhas. A superior era uma bonita linha de escrita harappiana. a linha a seguir estava em sânscrito e a última em grego. Abaixo
das linhas havia outra roda chacra.
- Não consigo ler os hieróglifos harappianos - disse. - Ninguém consegue. E. por baixo disso, só consigo perceber as primeiras palavras do sânscrito e grego. O resto
foi apagado. O que posso traduzir é o mundo arderá... Tirou algumas fotografias, especialmente da figura de olhos brilhantes. - O resto perdeu-se.
Gray inclinou-se mais para baixo e locou na roda chacra inscrita a seguir às linhas.
- Deve ser importante. Aparece repetido vezes sem conta.
Endireitou-se e virou-se para a roda chacra maior esculpida no chão. O ônfalo permanecia no centro. Elizabeth quase que podia ler a mente de Gray. Se a chacra era
importante, então o que estava no seu centro devia ser ainda mais. Os olhos do homem franziram-se enquanto se dirigia para apedra. Só tinham olhado para ele de fornia
sumária.
- O seu pai escondeu o crânio dentro da pedra no museu. Talvez houvesse uma razão.
Gray subiu para o cimo do ônfalo abobadado.
- Tenha cuidado - guinchou Elizabeth. temendo que ele pudesse estragar a peça histórica. Circundou a pedra e reparou que a borda inferior estava inscrita outra vez
em três línguas; harappiano, sânscrito e grego.
Tirou mais fotografias.
Equilibrando-se no topo do ônfalo. Gray incidiu a lanterna através do buraco apontando para o núcleo oco.
- O que está a ver? - perguntou ela.
- Ouro... com a forma de duas águias.
A respiração de Elizabeth ficou mais acelerada.
- Estão de frente uma para a outra?
Gray olhou para ela.
- Sim.
- É outro artefato perdido de Delfos, representando as águias de Zeus. Segundo a mitologia, o par partiu em direções opostas dos seus ombros para marcar o centro
do mundo. Foram empoleirar-se em Delfos,' estabelecendo assim o umbigo do mundo.
- O seu pai deve tê-las encontrado também. - Gray procurou no interior. - Talvez haja alguma razão para que estejam aqui escondidas, a mesma razão que levou o seu
pai a esconder o crânio dentro do ônfalo no museu.
Enquanto ele se estirava, Elizabeth avançou lentamente em tomo da pedra, continuando a sua tradução das três linhas.
- Acho que consigo apanhá-las... - disse Gray.
Elizabeth murmurou as palavras encontradas, percorrendo cada letra com o dedo.
A avidez, e a blasfêmia destroem tudo.
Elizabeth parou.
Oh, não!
- Consegui - disse Gray, no momento em que se abeirava dos ídolos dourados.
Elizabeth endireitou-se.
- Não!
Surpreendido, Gray escorregou.
Algo sonoro ressoou no interior da pedra, seguido por um crepitar monstruoso por baixo dos pés. Seguiu-se um rugido fraco, vindo da parte de trás da câmara, aumentando
de intensidade, como um comboio de mercadorias movimentando-se na sua direção.
Toda a gente ficou com a respiração cortada, depois Gray agitou um braço na direção das escadas.
- Todos lá para fora! - gritou.
Demasiado tarde.
Do buraco da nascente, uma explosão de água irrompeu com o poder de uma mangueira de incêndio - numa coluna com sessenta centímetros de grossura. As fissuras prolongaram-se
através da parede, irradiando da abertura.
Uma inundação súbita provocada pelo homem.
A água embateu no lado oposto da parede e encheu o aposento, atingindo-os com a força da sua corrente.
Elizabeth enrolou-se nos outros, enquanto a câmara se enchia rapidamente de água gelada. Gray agarrou-lhe logo pelo cotovelo, arrastando-a na direção das escadas.
- Uma armadilha... - Ela tossiu de choque. - Uma mudança de pressão! O meu pai... tentou avisar-nos...
Gray gritou;
- Fora! Fora!
Elizabeth subiu os primeiros degraus com as mãos no chão. Atrás dela, Gray içou Luca da água e lançou-o na direção das escadas. O nível já subira até a parte de
cima das suas coxas e aumentava a cada respiração. Gray continuou em baixo, junto à abertura da escadaria, revistando a pequena gruta.
Elizabeth sabia porquê.
Onde estava Rosauro?
Gray perdera-a de vista. Devia estar perto da nascente quando esta rebentou. A água rodopiava como um redemoinho na caverna, refletindo a luz da sua lanterna. Não
conseguia ver debaixo da superfície. Por agora, a água subira até a sua cintura. No entanto, Rosauro devia ser capaz de se manter de pé, e, mesmo que tivesse sido
derrubada, seu corpo deveria flutuar de modo a revelar a sua localização.
A não ser que...
Gray virou-se para Luca e estendeu-lhe o braço.
- O punhal!
Com um clarão de prata, uma lâmina apareceu na mão do cigano. Passou a arma para a mão de Gray que a agarrou pelo punho. Por sua vez, Gray entregou-lhe a lanterna.
- Mantenha a luz debaixo de água! - ordenou e atirou-se para o lago crescente.
Acorrente apanhou-o e lançou-o para a parte lateral da câmara. Não tentou opor-se. Deixou que a força da água o projetasse para o lado oposto da caverna. Apercebeu-se
do momento, sentindo o poder furioso da corrente em baixo. Virou-se e avançou de encontro à parede oposta.
Consciente ou não, só uma coisa poderia estar a deter Rosauro debaixo de água.
A pressão.
Gray mergulhou no sítio onde a nascente se lançara para a caverna. Com a fraca luz da lanterna, vislumbrou uma forma a lutar para se desprender do canal de escoamento.
Rosauro fora sugada contra o buraco, mantendo um braço enfiado no interior do mesmo. Gray ouviu falar de pessoas afogadas por terem ficado presas em escoadouros
de piscinas. Era uma força cem vezes superior.
Gray agarrou no braço livre de Rosauro e aproximou-se dela. Posicionou as pernas de cada lado do canal. Ela olhou para ele. Mesmo com a luz fraca, dava para ver
o pânico instalado no seu rosto.
Gray brandiu o punhal. Perdera um membro da equipe afogado - não ia perder outro. A lâmina retalhou as tiras da mochila de Rosauro. Metade da mochila estava enfiada
no buraco, mantendo-a presa. Uma vez libertada, Gray largou o punhal, agarrou-a em torno do peito e fez força com as pernas.
Por breves instantes, ela permaneceu agarrada. Depois a mochila afundou-se no buraco, enfraquecendo a pressão o suficiente para permitir a Gray tirá-la de lá. Caiu
para trás com ela nos braços. Deixou que fosse a força da corrente a levá-los na direção da luz e da escadaria.
A água estava quase a chegar ao teto.
Ouviu-se um barulho de pedra a desmoronar-se. A corrente incidiu subitamente com mais força no momento em que a parede da caverna cedeu atrás dele.
Impulsionando-se para a frente, Gray largou o chão da gruta e avançou para a escadaria inundada.
Arfando, chegou aos braços de Luca. Luca ajudou Gray a içar Rosauro até o cimo das escadas. Ela tossiu e engasgou-se. A água escorria-lhe dos lábios. Mas conseguiu
inalar algumas golfadas de ar pelo meio.
Usou uma pausa para praguejar qualquer coisa em espanhol, capaz de fazer corar Kowalski.
Atrás deles, a câmara encheu-se de água até o telhado, fazendo com que o nível da água ao pé deles subisse repentinamente.
- Temos de ir - disse Gray.
Puxou por Rosauro e acenou para Elizabeth e Luca à frente. Rosauro tinha os joelhos trêmulos, mas assim que sentiu a água a bater-lhe nos calcanhares, ganhou força
suficiente para correr sozinha. Contudo, não largava o seu braço esquerdo, ainda tenso da sucção.
Fugiram para cima, perseguidos por um crescente canal de inundação.
Atingindo o topo. Elizabeth deslizou de costas pela abertura, pendurando-se pelas mãos, depois deixou-se cair no chão em baixo.
- Vá! - gritou Gray para Luca quando o homem hesitou.
Luca obedeceu e desapareceu.
Gray ajudou Rosauro através da porta de mármore preto. Ela pendurou-se com o seu braço bom, depois deixou-se cair. Gray seguiu-a no momento em que a água inundava
o último degrau e caía sobre ele numa onda.
Deu um salto, libertando os dedos um segundo antes de a água atingir a porta, que .se fechou com força. Caiu no chão e olhou para cima. Com a porta de mármore cortada
em ângulo, só podia rodar numa direção. A pressão da água fizera com que se fechasse.
Um sistema de auto fecho.
Virando-se, ouviu um ruído ecoando do desfiladeiro. Os raios faiscaram. Uma água branca e agitada fluiu ao longo do vale. O desfiladeiro também estava inundado,
mas tratava-se de um fluxo natural - e não consequência do tatear desajeitado de Gray.
Olhou para o volume de água que atravessava o desfiladeiro.
Por isso é que os edifícios tinham sido construídos a meio dos rochedos.
Gray apercebeu-se de outra coisa.
Luca reparara também e murmurara:
- Onde está toda a gente?
Como se tivesse ouvido a questão, Masterson apareceu Junto à porta, apoiado na bengala. Mantivera-se fora de visão no alpendre lá fora. Provavelmente, observando
a enchente ao lado dos outros.
- Graças a Deus - disse o professor. - Estiveram lá em baixo uma data de tempo. O que é que encontraram?
Elizabeth aproximou-se, entusiasmada.
- As respostas para tudo! Foi extraordinário.
- Tanto assim?
Atrás de Masterson, mais figuras apareceram.
Outros saíram de duas câmaras laterais. Estavam todos vestidos de preto, com as espingardas automáticas ao ombro.
Os comandos russos.
- Tem de me contar tudo - disse Masterson. - Já que o seu pai se recusou a fazê-lo.
Kowalski apareceu na porta exterior, com as mãos na cabeça. Tinha o sobrolho direito fendido e o sangue escorria-lhe pelo rosto. Os soldados forçaram-no a pôr-se
de joelhos.
- Eles mataram Abe - rosnou. - Morto como um cão.
Masterson encolheu os ombros.
- E porque não? Ele era um achuta. Os cães são tratados de melhor maneira na Índia.
Os soldados espalharam-se à sua volta.
Elizabeth olhou para o professor, espantada, incapaz de falar. No entanto, o ardor disparou através das palavras, apercebendo-se da profundeza da traição.
- Foi você! Traiu o meu pai!
- Não tinha outra hipótese, Elizabeth. Ele estava a aproximar-se demasiado da verdade.
Gray ficou gelado. Compreendeu aquilo que estava em jogo. Masterson fora pago para manter um olho na investigação do doutor Polk, para passar a informação para os
seus superiores... mas, assim que o pai de Elizabeth se aproximou demasiado, teve de ser retirado do Jogo.
Quem é que estava por detrás disto tudo?
Masterson deve ter reconhecido a fúria gelada nos olhos de Gray. Este deu um passo atrás, embora não houvesse nada que pudesse fazer, Masterson acenou com a bengala.
- Comandante Pierce, parece que, por agora, o senhor e os outros são precisos vivos. Mas talvez não o grandalhão aqui.
Apontou com a bengala para Kowalski.
- Matem-no.
Os olhos de Kowalski quase que saíam das órbitas.
Gray lançou-se para a frente, mas três barreiras de espingardas interpuseram-se à frente do seu peito.
Elizabeth gritou:
- Por favor. Hayden, não! Imploro-lhe!
Gray ouviu a quebra na sua voz, tal como Masterson.
O professor olhou para Elizabeth e Kowalski, depois revirou os olhos.
- Está bem. Apenas porque o devo ao seu pai. Mas ao primeiro sinal de insurreição, começamos a disparar.
Masterson olhou para Gray.
- Queria saber até onde é que o Arquibaldo fora? - Virou-se e avançou para a frente. - Devia ter cuidado com os seus desejos.
TERCEIRO
15
7 de setembro, 05h05
Montes Urais Meridionais
Monk manobrou a vara o melhor que podia através dos pântanos. Mas não se atreviam a parar. Tinham sido perseguidos durante a noite. Estabilizando o remo improvisado
com a ponta do coto, puxou e empurrou com a sua mão boa. A jangada deslizou silenciosamente por entre a paisagem submersa.
Ao longo da noite, os .seus olhos haviam-se ajustado à luz pálida da Lua. Aperfeiçoara-se na arte de manobrar a jangada. Tiveram várias surpresas na medida em que
um barco próprio para estas águas percorria os pântanos à procura deles. O zumbido da sua hélice, bem como o holofote brilhante, deram a Monk motivos suficientes
para procurarem abrigo. A espessa névoa que se mantinha à superfície da água, também os ajudou a esconderem-se.
No entanto, quase que iam sendo apanhados uma vez, quando Monk avaliou mal uma consente lenta e foram embater numa árvore com um forte estalido. O barco ouvira e
aproximara-se. Tentou esconder-se o melhor que podia debaixo dos ramos de um salgueiro, mas tinha a certeza de que seriam descobertos se os perseguidores se aproximassem.
A sua salvação veio de um lugar inesperado.
Enquanto o barco abrandava, reduzindo a aceleração, Kiska levara as mãos à boca, respirara fundo, depois deixara escapar o som de um balido de alce. Tinham ouvido
os gritos, de tempos a tempos, durante a noite. Monk lembrava-se de como a garota havia demonstrado o seu talento, um ouvido para imitar os tons de uma forma perfeita,
reproduzindo o canto dos pássaros com uma precisão misteriosa. Os caçadores continuaram a procurar sem grande minúcia, prosseguindo para diante ao fim de um minuto.
Contudo, não podiam contar com a mesma sorte para sempre. E. pior ainda. Monk sabia que estavam a ser lentamente empurrados para o lago Karachay, mais a sua mortalha
de radioatividade. O barco percorreu as regiões seguras do pântano, o que só lhes deixava um único recurso: arrastarem-se cada vez mais na direção do lago.
De hora a hora, Monk arriscava-se a acender um só fósforo para verificar a cor dos dosímetros. O aviso cor-de-rosa escurecera a ponto dei ficar vermelho. Konstantin
informara Monk, sem mais rodeios, de que um dia inteiro com esse nível seria letal. Enquanto Monk manobrava a vara através de balsas flutuantes de ervas e algas,
ia sentido um prurido na pele que lhe dava a sensação áspera de estar a ser progressivamente envenenado.
E as crianças eram ainda mais suscetíveis.
O trio dormia intermitentemente, enroscado ao lado de Marta na jangada. Uma onda de terror fazia com que saltassem a cada grasnado e assobio vindos do pântano noturno.
Marta acabou por optar pelo caminho das árvores. Fizera-o amiúde, retirando até uma vez os caçadores do caminho, ao assobiar e atrair o barco na direção oposta.
A forma como conseguiu desviar a atenção rendeu-lhes uma hora de alívio.
Ela era um primata esperto.
Monk rezou para que fosse tão esperta como ele esperava - pois um perigo maior do que a ameaça de envenenamento por radiação pairava sobre eles.
A oriente, os céus escuros começavam a aclarar com o romper da aurora. Sem a cobertura da noite, seriam rapidamente descobertos. Para sobreviver, teriam de descobrir
uma forma de escapar a tão incessante busca.
Isso significava deixarem para trás um rastro de lixo.
Konstantin e Kiska tinham cortado aos pedacinhos o invólucro das suas barras energéticas e reunido as garrafas de água vazias. Enquanto Monk abria caminho por entre
as ervas, traçando um trilho claro por entre a vegetação, as duas crianças tinham largado os restos na água.
- Não muito - avisou Monk num murmúrio. - Espalhem-nos um pouco por todo o lado.
Monk passara a última hora à procura da margem perfeita no pântano escuro. Acabou por descobri-la; um longo curso curvilíneo, alinhado por densos bosques de salgueiros
e manchas pretas de abetos. O momento do desembarque tinha de ser perfeito. Só tinham uma oportunidade. Mas com a margem do lago ainda a três quilômetros de distância,
e a aurora a avizinhar-se com grande rapidez, estariam condenados se não assumissem o risco.
O último membro do grupo, Pyotr, sentou-se no meio da Jangada, com os braços em tomo das pernas. Enquanto balouçava no lugar olhou para a popa da jangada, parecendo
estar a ver os seus amigos a espalharem os restos, mas Monk sabia que o olhar do rapaz tinha um alcance muito maior.
Atingindo o fim do curso aquático, Monk projetou a vara para a frente e enterrou-o no leito do pântano. Apoiou-se nele com o ombro e parou a jangada. Era aqui que
iriam sair.
Borsakov sentou-se ao lado do piloto do barco. Os assentos erguia-se a pouca altura sobre o casco de alumínio achatado. A frente deles, agachados, iam dois dos seus
soldados; um manobrava o holofote na proa do barco, o outro mantinha ao ombro uma espingarda pronta para entrar em ação.
Ao fim de cinco horas de busca, os ouvidos de Borsakov doíam de tanto barulho. Atrás dele. o motor roncava enquanto a hélice gigante rodava. A grade de metal partida
por cima das pás sacudia e batia a cada volta. A corrente de ar produzida pela hélice, que propulsionava a embarcação, agitava os juncos e ramos atrás do barco.
O piloto era o único que tinha auriculares. Mantinha uma mão no comando do leme e a outra no acelerador. O cheiro a fumo e a diesel disfarçava a umidade musgosa
do pântano. Deslizaram a uma velocidade reduzida pelas águas abertas de profundidade baixa. O holofote varreu os juncos que bordejavam as margens.
Ao longo da noite, tinham avistado javalis e alces, assustado as águias nos ninhos, passado por diques de castores e por entre nuvens de insetos. O seu holofote
refletira milhares de pequenos olhos, de residentes do pântano.
No entanto, não haviam captado nenhum sinal dos fugitivos.
E já com o último depósito de combustível em uso, tinham até...
Um grito simiesco sobrepôs-se ao roncar do motor. Vinha da direita. Os soldados na proa ouviram-no também. O holofote e a espingarda moveram-se nessa direção. Borsakov
tocou no ombro do piloto e apontou.
No clarão da luz, algo grande balouçou-se através de um pequeno intervalo na linha de árvores, depois desapareceu no meio da floresta. Borsakov sabia que um dos
animais do laboratório desaparecera também com as crianças. Um chimpanzé.
O motor rugiu mais alto enquanto o piloto impulsionava o cabo do acelerador para a frente. O barco dirigiu-se para a abertura, deslizando sobre uma almofada de ar.
A embarcação abrandou no momento em que atingiram a extremidade das águas abertas. Os juncos aqui encontravam-se dobrados, no sítio onde alguém os tinha empurrado
para passar para um canal lateral.
Finalmente...
Borsakov apontou para a frente.
Do outro lado da abertura, um canal estreito seguia serpenteando, alinhado por salgueiros e coberto por manchas de ervas flutuantes. A embarcação acelerou. O holofote
varreu toda a zona, perscrutando no meio da escuridão. O soldado armado com a espingarda debruçou-se sobre a água e agarrou numa garrafa de água de plástico.
Alguém passara definitivamente por aqui.
Borsakov acenou ao piloto para andar mais depressa, pressentindo que os seus alvos não podiam estar muito longe. O curso estendia-se ao longo de curvas suaves. O
barco seguiu rapidamente, virando à direita e à esquerda.
O holofote revelou mais destroços a flutuarem na água, pedaços de lixo e mais garrafas. Coisas a mais. Algo de errado se passava. A sua presa nunca atuara de uma
forma assim tão estúpida. Desconfiado. Borsakov aproximou-se do piloto e apertou-lhe o ombro. Fez-lhe sinal para abrandar.
Monk ouviu o rugido do motor a baixar de intensidade.
Agachado com as crianças, viu o barco do pântano a aparecer depois de dobrada a última curva do canal, claramente a desacelerar. indo demasiado devagar.
Nada bom.
O holofote incidiu, deslizando através da água mesmo na sua direção. Seriam avistados em poucos segundos. A sua única esperança...
... do meio da floresta escura, do lado esquerdo, uma sombra negra saltou precipitadamente por cima do barco. Voou alto, evitando as pás mas dos seus pés, uma data
de objetos escuros caíram sobre ele.
Atingiram a hélice gigante como cargas de bombas.
Os cartuchos de espingarda que estavam na cabana.
Monk ouviu-os a estourar contra as pás. A hélice dilacerou os invólucros de plástico, que não se incendiaram mas explodiram para o exterior libertando o seu chumbo.
Os gritos emergiram, de surpresa e de dor. à medida em que a equipe ia sendo apanhada pelos projéteis voadores. O piloto, elevado na sua cadeira, baixou a cabeça
e escorregou de medo. Bateu no comando e o motor voltou a acelerar. O barco saltou para a frente como um coelho espicaçado, um tanto ou quanto desequilibrado devido
à curva. O piloto puxou com força a alavanca de comando.
O holofote varreu o canal e apontou para eles, assinalando-os com o seu brilho. Monk viu o copiloto a gritar e a apontar.
Demasiado tarde, amigo.
Os dois soldados da frente foram subitamente projetados para trás. Caíram sobre os outros. Envolvidos num remoinho, atingiram a grade de metal na traseira do barco.
O barco ergueu-se no ar e rolou sobre si próprio a grande velocidade.
Monk ouviu um grito de agonia e um triturar gaguejado de pás. Sangue e ossos espalharam-se desde a hélice como o rastro deixado por um avião - depois o barco caiu
na água ao contrário, amarando com um arfar de fumo diesel e o afogamento do motor. O holofote ainda brilhava no meio da água turva.
Monk virou-se. Previamente. com a ajuda das crianças, entrançara a linha de pesca que tinham encontrado na cabana de modo a obter uma corda translúcida tão grossa
como o seu dedo - depois esticara-a por altura dos ombros ao longo do canal. A corda detivera a tripulação e elevara no ar o barco instável.
Saltando do meio das árvores para cima da jangada. Marta aterrou pesadamente nas tábuas. Pyotr apressou-se a ir tem com ela. O animal acocorou-se, suspirando, arfando.
Mas não deixou de abraçar Pyotr. Os seus olhos, contudo, permaneciam fixos em Monk, vidrados e iluminados pelo luar.
Monk acenou para ela, agradecido, mas, ao mesmo tempo, ligeiramente inquieto.
Ele precisara que o barco especial percorresse o canal, atraído pelo rastro visível da sua presa. O bombardeio de Marta fora engendrado para funcionar como motivo
de distração e assim impedi-los de verem a corda esticada ao longo do canal.
Ela fizera o seu trabalho de uma forma brilhante.
Pyotr uniu-se a ela. Depois de ter explicado o plano antes, o rapaz sentara-se ao lado de Marta, passando-lhe os cartuchos para a mão. Falara-lhe lentamente em russo,
mas Monk suspeitava de que a verdadeira compreensão que existia entre os dois tinha um caráter bastante mais fundo. Posto isto, colocara os cartuchos nos dedos dos
pés saltando para as árvores e desaparecendo.
Monk manobrou a vara pelo canal seguinte. Deixaram-se levar por uma corrente lenta que os arrastrou para diante. Para a costa distante. Embora aliviado por a sua
armadilha ter funcionado, Monk sabia, sem margem para erro de que estavam a abeirar-se de um perigo ainda maior.
Mas não tinha outra opção.
Milhões de vidas estavam em jogo.
No entanto, Monk observou Marta e as três crianças. Para ele, sem memória de outra vida, elas eram o seu mundo. Eram tudo o que interessava. Ele faria tudo o que
estivesse ao seu alcance para as proteger.
Enquanto pressionava a jangada ao longo da corrente, lembrou-se da recordação dolorosa que lhe sobreviera na cabana enquanto dormitava.
O sabor da canela, lábios suaves...
Que vida lhe fora roubada?
E será que a recuperaria alguma vez?
00h04
Washington, D. C.
Pouco passava da meia-noite quando Kat desligou o telefone e levantou-se da mesa. Olhou pela janela para o quarto de hospital contíguo. Acabara a teleconferência
com o diretor Crowe e Sean McKnight. Os dois estavam reunidos no escritório de Painter, travando uma guerra interdepartamental do seu bunker. Tanto um como o outro
estavam envolvidos numa luta de poder entre as várias agências dos serviços de informações.
Sobre o destino da criança.
Kat, com a sua própria experiência na área, oferecera-se para aconselhar da melhor forma que podia, mas já havia atingido o seu limite. Cabia agora aos dois a tarefa
de conseguirem demover John Mapplethorpe.
Kat sabia onde é que ela podia ser necessária.
Dirigiu-se à porta que dava para o quarto do hospital. Estava guardada por um ajudante médico armado. Parou junto à janela de vidro espelhado e olhou para o quarto.
Aconchegada por umas almofadas, Sasha estava sentada em cima da cama com um livro de colorir no colo e uma caixa de lápis Grayola. Com o tubo intravenoso ainda no
braço, entretinha-se a pintar uma página, com o rosto concentrado mas calmo.
Sasha olhou de repente para cima, diretamente para Kat. O vidro era espelhado no outro lado; não havia qualquer possibilidade de se inteirar de que ela estava ali.
Mas Kat não pôde descurar a sensação de que a criança estava a olhar para ela, que a conseguia ver.
Num dos lados, Yuri mantinha-se sentado numa cadeira. Tirara Sasha do leito de morte, provando os seus conhecimentos. Parecia tão aliviado como Kat em relação à
recuperação da garota. Satisfeito e exausto, afundara-se na cadeira, com o queixo no peito, dormitando um pouco.
Kat virou-se e acenou para o guarda. A porta já se encontrava aberta para ela passar. Entrou no quarto. McBride ainda estava sentado na mesma cadeira. Só se movera
para fazer algumas chamadas e para usar a casa de banho, sempre sob guarda.
No outro lado da cama. Lisa e Malcolm estavam de pé, ambos com gráficos na mão. Comparavam notas e números, tão crípticos como qualquer código.
Lisa sorriu-lhe, assim que ela chegou ao pé deles.
- A sua recuperação é admirável. Era capaz de passar anos e anos só a estudar o regime de tratamento.
- Mas é apenas uma solução temporária - disse Kat, acenando para Yuri. - Não uma cura.
A expressão de Lisa acalmou-se e virou-se para a garota.
- Lá isso é verdade.
Yuri relatara o prognóstico a longo prazo para Sasha. O aumento que tinha encurtava-lhe a esperança de vida. Tal como a chama de uma vela, consumi-la-ia por dentro,
aniquilando-a por completo. Quanto maior o talento, mais forte a chama.
Kat perguntara a Yuri quanto anos é que esperava que a criança vivesse. A resposta deixara-a gelada. Com o seu nível de talento, só lhe restavam mais quatro ou cinco
anos.
Kat desanimara perante tal afirmação.
Ao contrário, McBride parecera ter ficado aliviado, expressando a sua confiança no fato de o engenho americano poder certamente duplicar essa esperança de vida,
o que ainda assim significava que Sasha não atingiria o seu vigésimo aniversário.
Lisa continuou.
- A única esperança que lhe resta é ficar sem o implante. Perderia as suas capacidades, mas também sobreviveria.
McBride falou atrás deles.
- Ela poderá sobreviver, mas em que estado? O aumento, além de aumentar o seu talento sábio, também minimiza os sintomas do seu autismo. Tirem-lhe o aumento e ficarão
com uma criança desconectada da realidade.
- É melhor do que estar no túmulo - disse Kat.
- É? - McBride desafiou-a.
- Quem são vocês para julgar? Com o aumento, ela tem uma vida nobre pela frente, por mais curta que possa ser. Muitas crianças nascem amaldiçoadas à nascença, com
uma sentença de morte por condições médicas. Leucemia, SIDA, defeitos congênitos. Não devíamos proporcionar-lhes a melhor qualidade de vida, em vez de quantidade?
Kat olhou com uma expressão carrancuda.
- Só querem usá-la.
- Desde quando uma coisa tão má é de benefício mútuo?
Kat virou-lhe as costas, frustrada com os seus argumentos e justificações. Era monstruoso. Como é que ele podia racionalizar tudo isto? Especialmente com a vida
de uma criança em Jogo.
Sasha continuou a trabalhar no seu livro de colorir. Desenhava com um lápis verde, A sua mão movia-se rapidamente pela página, enchendo uma mancha depois outra,
totalmente ao acaso.
- Ela devia estar a pintar? - perguntou Kat.
Yuri mexeu-se, depois de ter despertado com a conversa.
- Convém descomprimir um pouco depois de um episódio destes -murmurou, aclarando a voz. - E como abrir uma válvula de pressão. Desde que o aumento não seja ativado
remotamente, um trabalho calmo como este ajudará a apaziguá-la mentalmente.
- Bem, parece-me feliz - admitiu Kat.
Enquanto trabalhava, o rosto de Sasha parecia relaxado com um ligeiro esboço de um sorriso. Endireitou-se e estendeu a sua mão pequena a Kat. Falou em russo e puxou-lhe
pela manga com os seus dedos esguios.
Kat olhou para Yuri.
O homem esboçou um sorriso cansado.
- Ela disse que você também devia estar contente.
Sasha empurrou o livro na direção de Kat. como se quisesse que Kat participasse na pintura. Kat afundou-se numa cadeira e aceitou o livro.
Franziu as sobrancelhas quando viu que a garota não tinha estado a preencher os espaços vazios, mas sim a trabalhar numa página em branco. Com uma clareza surpreendente,
desenhara uma cena. Um homem remava numa jangada de madeira através de uma floresta escura, com uma sugestão fugidia de outras figuras sentadas atrás dele.
IMAGEM 19
As mãos de Kat começaram a tremer. Viu quem manejava a Jangada. Fez um esforço para compreender. Parecia Monk. Mas não tinha memória de Monk ter estado alguma vez
numa Jangada. Porque é que a garota desenhara uma coisa daquelas?
Sasha deve ter sentido a sua aflição. O seu sorriso esmoreceu numa expressão confusa. Os lábios tremeram-lhe, como se tivesse feito algo de errado. Olhou para Yuri
e depois para Kat. As lágrimas cintilaram. Murmurou qualquer coisa cm russo, com um ar angustiado e amedrontado.
Yuri aproximou-se mais dela e confortou-a com a voz suave de um avô. Kat conteve a sua reação - para bem da criança. No entanto, o seu coração batia.
No momento, durante um segundo, pensara que ele talvez tivesse reconhecido o rosto no papel, mas isso era impossível.
McBride levantou-se da cadeira e abeirou-se da cama, bastante curioso.
Kat ignorou-o. Não era nada que lhe interessasse. Ao invés, o seu olhar fixou-se em Yuri. O homem olhou para ela por cima da cabeça de Sasha. Tal como a criança,
ele tinha uma expressão angustiada.
Porque é que...
Uma explosão abafada irrompeu pelas instalações, ecoando de cima. O alarme começou a tocar. Todos os olhos se viraram para o teto, mas Kat deu um pulo para a frente.
Demorou uma fração de segundo a mais.
McBride arremessou-se e agarrou na doutora Lisa Cummings pela sua longa trança loura. Puxou-a para o pé de si enquanto recuava para a parede. Kat Bryant tentou apanhá-lo
mas falhou. Ele encostou-se a um canto, fora do ângulo de visão direto da porta e da Janela.
Com a outra mão, tirou o celular do bolso do casaco. Carregou num botão de lado e a parte de cima abriu-se entre os seus dedos, revelando um pequeno cano de arma
de fogo. Compeliu-o com força contra a garganta de Lisa, apontando para a cabeça.
- Não se mexa - murmurou-lhe ao ouvido.
Os celulares-armas tinham-se tornado o flagelo das forças de segurança. Mas o aparelho que Mapplethorpe lhe tinha dado era recentíssimo. Podia até fazer chamadas
com ele. Passara incólume pela segurança e raios X sem uma luzinha de preocupação. Equipada com balas de calibre.22. havia infelizmente um limite para a arma.
- Tenho cinco balas! - gritou para a sala surpreendida. - Matarei o médico primeiro, depois a criança.
Um guarda ergueu uma arma na sua direção, mas ele manteve-se escudado atrás do corpo de Lisa.
- Largue a arma! - gritou para o homem.
O guarda manteve a sua posição, segurando firmemente na arma.
- Ninguém tem de morrer! - disse McBride. Apontou para cima com a cabeça. - Apenas queremos a criança. Por isso, largue essa pistola!
Kat recuperou do seu salto em vão. Estivera quase a apanhá-lo de surpresa. Ele teria de mantê-la sob vigilância. Por sua vez, ela olhou para ele, observando-o como
se estivesse a ler um livro. No entanto, a mulher fez sinal ao guarda para baixar a arma.
- Largue-a e atire-a para aqui! - ordenou McBride.
Com outro aceno de Kat, o revólver foi parar aos seus pés.
A missão de McBride era simples; deter a criança enquanto Mapplethorpe e as suas forças não chegavam.
- Só nos resta esperar! - disse. - Por isso, nada de movimentos bruscos, nada de heróis.
Enquanto a explosão ecoava pelo bunker subterrâneo, Painter virou--se instintivamente para o monitor que tinha na parede à sua esquerda. O grande ecrã exibia um
registro ao vivo do que se estava a passar no quarto de Sasha.
Painter ergueu-se logo. O coração começou a bater-lhe e os olhos franziram-se de fúria. Captou o som com um murro cego no teclado.
Nada de movimentos bruscos, nada de heróis!
Sean levantou-se no outro lado da secretária. O tiroteio ecoou até eles. Painter captou o registro da câmera instalada no nível superior da Sigma e exibiu-o na tela
atrás da secretária. Afastou os olhos de Lisa e verificou o outro monitor. O fumo enchia a passagem. Umas figuras com capacete na cabeça, envergando máscaras e coletes
à prova de bala. corriam agachadas através do subterrâneo, de espingarda ao ombro.
- Não acredito no descaramento deste tipo - disse Sean.
Não havia necessidade de adivinhar a quem é que ele se estava a referir.
Mapplethorpe.
- Eles querem a garota - grunhiu Sean.
Um megafone ecoou do nível superior da Sigma.
- TODOS NO CHÃO! QUALQUER RESISTÊNCIA SERÁ VENCIDA PELAS ARMAS!
Sean foi ter com Painter.
- Isto não pode ter sido sancionado. Era natural que recebêssemos uma ordem de suspensão do estado de alerta primeiro. O sacana está a atuar de uma forma suja. Sean
virou-se para ele. - Sabes o que tens a fazer, não sabes?
A atenção de Painter voltou-se para Lisa. Viu a arma pressionada sob o seu maxilar, um pescoço gentil que ele beijava todas as manhãs. Mas acenou lentamente. Havia
um sistema de segurança que podiam ativar caso a Sigma fosse atacada por uma força hostil.
Mas primeiro precisava de tirar a sua gente do caminho do perigo. Esta guerra era entre Painter e Mapplethorpe. Pegou no telefone.
- Brant.
- Sir. - A voz do seu ajudante era breve e eficaz.
- Ative o Protocolo Alfa.
- Muito bem, Sir.
Uma nova buzina soou ordenando todo o pessoal para se dirigir para a saída de emergência mais próxima. Mapplethorpe queria apenas um caminho livre para a criança.
Para proteger os seus, Painter tencionava fornecer-lhe isso.
Sean encaminhou-se para a porta.
- Eu vou lá cima. Tentarei negociar, mas se fracassar...
- Compreendido. - Painter virou-se, abriu uma gaveta e tirou de lá uma pistola Sig Sauer P220. - Leva isto.
Sean abanou a cabeça.
- O poder do fogo não nos vai livrar disto.
O seu amigo saiu. Painter agarrou na pistola e observou a tela. Tinha um último dever para com a Sigma. Deslocou-se para o computador e introduziu o código de segurança,
depois pressionou o polegar no leitor de impressões digitais.
Um quadrado vermelho apareceu, disposto sobre um esquema azul do sistema de ventilação de ar das instalações. A contagem decrescente por defeito tinha sido fixada
em quinze minutos. Painter duplicou o tempo e sincronizou-a com o seu relógio para entrar em ação no 0100. Olhou entre a porta e a tela na parede. Tinha muito que
fazer num tempo tão limitado. Contudo..,
Escrevendo rapidamente, Painter introduziu o código final de ativação. A contagem decrescente começara.
Com a pistola na mão, correu para a porta.
07h05
Montes Urais Meridionais
Enquanto o Sol se erguia sobre as montanhas envolventes, Monk empurrou com a vara e conduziu a Jangada para o meio dos juncos. A proa embateu numa margem lamacenta.
Finalmente, tinham chegado a tema firme, por mais instável que pudesse parecer.
- Fiquem aqui - ordenou às crianças.
Usando a vara, testou a firmeza do solo. Satisfeito, saiu da jangada, depois virou-se e ajudou Pyotr e Kiska a treparem para urna elevação relvada que existia por
perto. Konstantin saltou sozinho, tão ágil como sempre, mas o rapaz aterrou com alguma rudeza. A exaustão era visível nas linhas escuras sob os seus olhos e na forma
como tremia. Marta também não fez muito melhor, arremessando-se com as duas pernas e aterrando de cócoras com as mãos no chão.
Monk acenou para que seguissem em frente. O caminho manteve-se lamacento e encharcado, durante mais uns quatrocentos metros, mas, lentamente, começou a tornar-se
mais firme sob os seus pés, A floresta ia perdendo os salgueiros para se expor mais altiva com as bétulas e os abetos. Os prados abriam-se, verdes com gencianas
e edelvais.
Atingiram o topo de uma ascensão e obtiveram uma visão mais ampla do território à sua frente.
A um quilômetro e meio de distância, uma pequena cidade, separada por um ribeiro cor de prata, destacava-se na encosta inferior da montanha envolvente. Monk observou
o lugar. Parecia deserto e abandonado. Uma mistura negligente de edifícios de pedra e madeira erguia-se ao longo das encostas acompanhando o traçado tortuoso de
uma estrada de gravilha. Um velho moinho circundava o ribeiro pedregoso. A roda de água jazia caída e partida no meio do ribeiro como se fosse uma ponte. Muitas
outras estruturas tinham dado de si, e o lugar tinha um aspeto rude e selvagem, enfiado no meio das ervas altas e da floresta luxuriante de juníperos e abetos.
- E uma velha cidade mineira - explicou Konstantin. O rapaz desdobrou o mapa, para verificar a sua posição. - Ninguém vive aqui. Não é seguro.
- A que distância estamos do poço da mina? - perguntou Monk.
O rapaz mediu o mapa com o polegar, depois apontou para o conjunto desorganizado de edifícios.
- A menos de um quilômetro depois do limite da cidade. Não é longe.
Konstantin olhou para a direita da cidade. A sua expressão tomou-se mais carrancuda. Não precisava de dizer mais nada. Meio escondido atrás do planalto, um grande
volume de água preta e esverdeada estendia-se até a linha do horizonte.
O lago Karachay.
Monk verificou o seu dispositivo. Ainda apresentava um tom avermelhado. Mas para chegaram até a cidade teriam de se dirigir diretamente para o lago. bem no meio
da sua sombra radioativa.
- Até que ponto o lugar é perigoso? - perguntou Monk, apontando com a cabeça para a cidade.
Konstantin voltou a dobrar o mapa e levantou-se.
- Não vamos poder parar para fazer um piquenique.
Monk olhou para trás para o rapaz, apreciando a sua tentativa de humor. Mas nenhum deles se riu. Contudo. Monk pôs um braço em torno do rapaz enquanto caminhavam
para a frente. Apertou Konstantin com força e este respondeu ao gesto de conforto com um sorriso divertido. Uma visão rara.
Pyotr e Kiska seguiram com Marta na sua esteira.
Tinham conseguido chegar até ali.
Não havia ponto de retorno.
A quase um quilômetro de distância. Borsakov viu os seus alvos a desaparecerem ao longo de uma cumeeira. Lançando uma imprecação silenciosa ao homem que conduzia
as crianças, ajoelhou-se ao lado da Jangada abandonada e usada pelos outros e tirou a espingarda do ombro. Antes de continuar, a sua arma precisava de ser limpa.
Depois da difícil caminhada através do pântano, a espingarda estava cheia de lama e de água. Pousou a arma e inspecionou cuidadosamente cada secção: cano, culatra
e carregador. Limpou e secou todas as partes muito bem. Satisfeito, montou a espingarda. A rotina familiar devolvera-lhe um pendor mais calmo e determinado.
Uma vez terminado, levantou-se e pôs a arma ao ombro.
Tendo perdido o rádio. Borsakov estava por sua conta, o único sobrevivente do desastre ocorrido no pântano. O braço do piloto fora apanhado pela hélice. A cabeça
de outro soldado sofrera um duro golpe ao ser atingida pela borda do barco a voar. O último fora encontrado a flutuar de barriga para baixo, afogado.
Só restava Borsakov embora com uma perna completamente dilacerada. Usara a camisa de um dos homens mortos para fazer de ligadura
E proteger a ferida. Necessitaria de atenção médica pata evitar perder a perna em virtude de uma infeção provocada pela água lamacenta.
Mas primeiro tinha um trabalho a fazer.
O fracasso não era uma opção.
Coxeando com a perna ferida, Borsakov seguiu atrás da sua presa.
16
7 de setembro, 08h11
Pripyat, Ucrânia
- Acorde!
Gray ouviu as palavras, mas o seu cérebro fez outro movimento para decifrá-las. Uma bofetada dolorosa tirou-o da sua embriaguez. A luz povoou-lhe a cabeça, depois
dissolveu-se em imagens aquosas.
Luca inclinou-se para ele e abanou os ombros de Gray.
Tossindo, Gray empurrou o homem e ergueu-se apoiado num cotovelo. Olhou em tomo do quarto. Estava numa cela de cimento com a tinta a desprender-se das paredes nuas
e uma porta vermelha enferrujada. A luz vinha de uma única janela com grades que existia no cimo de uma parede. Por baixo da janela, Kowalski estava sentado num
tapete fino e bafiento, com a cabeça pendurada entre os joelhos, gemendo de náusea.
Gray respirou fundo, fez um esforço para se descontrair e recordou-se do que tinha acontecido. Lembrava-se de uma subida árdua para fora do desfiladeiro, sob a mira
das armas, um pequena viagem de helicóptero, depois um avião de mercadorias numa pista alagada. Tocou numa nódoa negra que tinha no pescoço. Uma vez no avião, tinham
sido drogados.
Gray não fazia a menor ideia para onde haviam sido levados.
- Elizabeth... Rosauro...? - perguntou com voz rouca.
Luca abanou a cabeça. Encostou-se à parede e deixou-se escorregar.
- Não sei onde estão. Talvez noutra cela.
- Alguém sabe onde nós estamos?
Luca encolheu os ombros. Kowalski grunhiu.
Gray pôs-se de pé, esperou que o mundo deixasse de girar, depois avançou na direção da janela. Era demasiado alta para chegar lá sozinho.
Kowalski levantou a cabeça, apercebendo-se do local para onde Gray estava a olhar.
- Pierce, deve estar a brincar comigo.
- Levante-se - ordenou. - Ajude-me.
Kowalski levantou-se com as mãos na barriga. Juntou os dedos de modo a imitar um estribo.
- Quem acha que sou? A sua escada pessoal?
- As escadas não se queixam tanto.
Gray apoiou-se nas mãos dele, atingiu o bordo inferior da Janela e com a ajuda de Kowalski, colocou o queixo no parapeito. Olhou em tomo da estranha paisagem. Uma
cidade, meio consumida pela floresta, estendia-se para além das grades. O local parecia delapidado e bombardeado. Os telhados estavam cobertos por musgo ou tinham
simplesmente ruído, as janelas mais pareciam garras escancaradas, as escadas de serviço sobressaíam engalanadas com pendentes de ferrugem e as ervas e arbustos espreitavam
por entre o asfalto fragmentado. Do outro lado da rua, um cartaz esbatido publicitava uma espécie de parque de diversões, representado por uma roda gigante e diversos
carrosséis. Ao fundo, podia ver-se uma versão estilizada de uma família verdadeiramente robusta dirigindo-se para o parque de diversões.
Do outro lado da cidade, Gray descortinou a mesma roda gigante do cartaz sobressaindo agora no meio do céu árido. Uma relíquia solitária de uma antiga glória. Os
membros de Gray ficaram mais pesados perante a visão. Sabia onde estava. O parque de diversões abandonado tornara-se emblemático para a cidade.
- Chernobyl - murmurou, deixando-se cair no chão.
Mas porque é que os tinham trazido até aqui?
Gray lembrou-se do relatório do patologista sobre o corpo do doutor Polk. As marcas de radiação sugeriam que o professor tinha sido envenenado neste mesmo lugar.
Embora testes posteriores de Malcolm Jennings tivessem alterado esta avaliação.
O que se estava a passar?
Nos dez minutos seguintes. Gray esquadrinhou toda a cela e experimentou a porta. Embora enferrujada, parecia sólida. Gray ouviu sons de alguém lá fora: um bater
de pés. um pigarreio. Provavelmente um guarda. Devia tê-los ouvido a falar e comunicado via rádio aos seus superiores porque, pouco tempo depois, ouviu-se um bater
de botas dirigindo-se para a porta.
Muita gente para uma emboscada.
Gray recuou enquanto a porta se abria. Com as pistolas apontadas, os soldados de uniformes pretos e cinzentos entraram de rompão no compartimento. Abriram caminho
para um homem alto que avançou, enquadrado pela porta. As suas feições não eram muito diferentes das do pai do cartaz que jazia esbatido no exterior.
O seu rosto era todo ângulos e esquinas; uma barba aparada definia os contornos de um queixo saliente. Vestia terno azul-marinho, com um gravata de seda vermelha,
confeccionado sob medida. Até mesmo debaixo das suas...
- Belos sapatos - comentou Kowalski.
O homem olhou para os sapatos pretos com atacadores, muito bem engraxados, e franziu as sobrancelhas perante observação tão inesperada sobre a sua indumentária.
- Bem. estou a falar sério - disse Kowalski à defesa.
Os olhos do recém-chegado viraram-se para Gray.
- Dobreye utro, comandante Pierce. Se quiser vir comigo... temos uns assuntos a tratar e o tempo escasseia.
Gray permaneceu onde estava.
- Só vou se me disser onde estão as duas mulheres.
Uma mão agitou-se com desprezo.
- A Elizabeth Polk e a doutora Shay Rosauro. Estão bem, garanto. Na verdade, as suas instalações são um pouco mais requintadas. Mas tivemos muito pouco tempo para
preparar. Se não se importa, por aqui.
Os seis soldados com pistolas faziam diminuir a delicadeza do convite. Levado para um corredor. Gray observou o espaço em redor. As celas distribuíam-se de ambos
os lados, claramente uma prisão abandonada. Espreitando por algumas portas abertas, descortinou a presença constante de água, camas enferrujadas viradas ao contrário
e lixo amontoado nos cantos. O que tornava a sua cela um pouco melhor em termos de comparação.
O corredor terminava num posto da guarda. Tinha uma vista sobre um pátio coberto de ervas. A distância, no horizonte, Gray reparou na alta torre de refrigeração
que assinalava o reator de Chernobyl.
Mais perto, uma cadeira chiava com um estribilho enervante.
Gray virou-se. Havia uma mesa no meio da sala. Masterson estava sentado atrás dela, muito direito na sua cadeira, vestido novamente de branco, com um ar repousado
e presunçoso. Gray teve de se conter para não saltar para cima do sacana e apertar-lhe o pescoço. Mas ele precisava de algumas respostas, e a cooperação parecia
ser a melhor forma de obtê-las.
Encaminhado para uma cadeira no lado oposto da mesa, Gray sentou-se. Uma arma continuava apontada para a sua nuca.
Outra figura estranha aguardava na sala. Estava atrás da mesa. O seu cabelo preto emoldurava um rosto sombrio, estoico, hirto. Estava também vestida com um terno
preto, em perfeita sintonia com o do homem que conduzira Gray até ali.
A mulher dirigiu-se à mesa e sentou-se, mal reconhecendo Masterson.
O homem cruzou as mãos em cima da mesa.
- Sou o senador Nicolas Solokov. Já deve ter ouvido falar de mim.
Gray não disse nada, o que fez com que a boca do homem se encurvasse de desapontamento.
- Não? Bem, isso vai mudar - respondeu. Acenou para a mulher esguia. Esta dirigiu-se a Gray, deslocando-se com uma graça firme. Ajoelhou-se ao lado da sua cadeira,
inclinou a cabeça e debruçou-se sobre a sua mão. Antes de lhe tocar, franziu um sobrolho, pedindo autorização.
Gray encolheu os ombros. A mulher pegou-lhe gentilmente na mão e manteve-a por cima da sua. Sentiu algumas cócegas na parte interior do pulso. Ela fixou-o profundamente
nos olhos.
- Já tivemos uma conversa com a Elizabeth Polk - disse Nicolas. - A filha do doutor Polk informou-nos acerca da vossa descoberta na Índia. Surpreendente. Só essa
informação valeu que os tivéssemos transportado até aqui. E fascinante verificar que a nossa herança se estende à Grécia antiga, ao famoso oráculo de Delfos.
Gray aclarou a voz.
- A vossa herança?
- Sim. O doutor Masterson informou-me de que estavam a par dessa infeliz mas necessária aquisição de crianças. Na verdade, o meu pai era uma dessas crianças ciganas.
E acredito que conheceram outro membro da nossa família alargada. A pequena Sasha. Uma garota com um talento especial.
Gray sabia a quem é que ele se estava a referir, mas manteve as suas feições brandas, fingindo ignorância.
Elena virou-se para Nicolas e falou suavemente em russo.
O senador acenou.
- Então, já conhece a Sasha. Por favor, não se preocupe em mentir. - Fez um sinal para a mulher ao seu lado. - A Elena é muito... digamos, perceptiva.
Tem um tato muito sensível, conseguindo medir o calor da pele, do pulso.
Também sabe ler as pupilas e a respiração. Nada lhe escapa. E a minha detetora de mentiras pessoal.
Nicolas apontou para a orelha dela. Elena virou-se e com a outra mão afastou o cabelo para trás da orelha. Gray vislumbrou uma curva de aço cirúrgico. O mesmo implante
da garota. A mulher era o equivalente adulto de Sasha, apenas com um talento sábio diferente.
- Ela é admirável - grunhiu Nicolas, com as suas palavras a revelarem um certo orgulho, mas escondendo algo mais sombrio.
Gray observou o homem, reparando que faltava alguma coisa.
- E o seu implante onde está?
Os olhos de Nicolas franziram-se na sua direção. Gray apreciou a ligeira irritação contida no seu rosto, claramente um ponto sensível. O homem passou com os dedos
pela sua orelha direita num gesto auto consciente.
- Não tive o mesmo destino.
A mente de Gray avaliou a implicação. Se Nicolas não fora aumentado, então devia ter nascido .sem qualquer talento sábio. Contudo, alguém o colocara numa posição
de poder na Rússia. Por quê? Qual o sentido disto tudo?
Nicolas continuou:
- De volta a Sasha. Com todo a confusão que se instalou em Washington, temos tido alguns problemas em conseguir localizá-la. Foi essa a principal razão para vos
trazermos até aqui.
Contra serem alvejados imediatamente como aconteceu a Abhi Bhanjee.
- Estamos preocupados com o bem-estar da Sasha e queremo-la de volta. Por isso, em primeiro lugar, gostaríamos de saber onde ela está e quem está com ela.
Gray olhou diretamente para Nicolas.
- Não sei.
Ao seu lado, Elena abanou a cabeça.
- Vamos fazer mais um esforço? Estou a tentar manter as coisas civilizadas. Não se esqueça de que temos quatro dos seus amigos aqui.
- Não posso dizer ao certo - respondeu Gray. - Da última vez que a vi, ela estava ao cuidado da nossa organização.
Nicolas olhou para Elena, que acenou afirmativamente. Era verdade.
- E presumo que não trabalha para o John Mapplethorpe, dado que o traidor tentou assassiná-lo a si e ao doutor Masterson no hotel em Agra.
- Não, na verdade, estamos a fazer um grande esforço para mantermos a criança longe dele.
- Inteligente. O homem está longe de ser digno de confiança. Nesse caso, talvez possamos negociar a sério. Sobretudo tendo em conta que agora temos algo com que
negociar.
- Primeiro, o que quer da garota? - perguntou Gray.
- Ela pertence aqui. Ao lado da família. Podemos tomar conta dela muito melhor do que qualquer outra pessoa no seu país.
- Talvez. Mas porque é que a querem? Com que fim?
Nicolas olhou para Gray, observando-o com os seus olhos sagazes. Gray deu-se conta de uma certa esperteza, a par de uma forte arrogância, típico de alguém que anseia
por ser reconhecido, compensando talvez uma falta de talento noutras áreas.
Gray pressionou essa fraqueza.
- Têm um plano que vai para além da exploração de crianças como a Sasha?
Os olhos dele brilharam.
- Não desvalorize o âmbito da nossa iniciativa. Nem nos pinte com uma intenção tão maliciosa. Não temos senão os objetivos mais humanitários em mente, para melhorar
o mundo para sempre. O sacrifício exigido a umas poucas crianças é infinitesimalmente menor quando comparado com as atrocidades que permanecem esquecidas no mundo
cotidiano.
Gray interpretou a necessidade de validação por detrás do ardor crescente que depositava nas suas palavras.
- Que objetivos?
- Algo capaz de mudar o curso da história da humanidade.
Neste momento, a vaidade do homem irrompeu de forma brilhante. Chegou mesmo a sentar-se mais direito e inclinar-se para Gray.
- De tantos em tantos séculos, há uma grande figura que emerge abruptamente para modificar a história, alguém que altera o caminho fundamental da humanidade. Estou
a falar de grande profetas. Buda, Maomé, Jesus Cristo. Alguém que pensa de modo diferente, que vê o mundo através dos seus olhos únicos, cujos ponto de vista encaminham
a humanidade para novas direções. De onde é que essas figuras provêm? De onde é que esta singularidade de mente provém?
Masterson agitou-se endireitando as costas.
Gray lembrou-se da discussão do professor acerca do autismo e do seu papel na história da humanidade. E da citação que utilizara. Se por magia, o autismo tivesse
sido erradicado da face do planeta, então os homens ainda estariam a socializar em frente de uma fogueira à entrada de uma gruta.
- Por que esperar pelo lançamento certo do dado genético? - perguntou Nicolas. - Na eventualidade de tal singularidade poder ser reconhecida, destacada e estimulada
para o bem de todos, imagine a nova era de iluminismo que não poderia surgir. Sobretudo, se tal singularidade pudesse ser aumentada para níveis de exceção.
Os olhos de Nicolas fixaram-se em Elena.
Gray começou a compreender o âmbito da visão do projeto. Não era um mero programa de espionagem. A organização de Nicolas planejava assumir o controle da história
da humanidade usando os indivíduos aumentados como cavalos de tiro. E Gray começou a suspeitar da razão por que Nicolas fora colocado num lugar de tanto poder. Alguém
estava a projetá-lo como figura de proa, escorado e apoiado nos bastidores pelas crianças aumentadas. Gray tentou imaginar todo esse talento à mercê de um único
indivíduo.
- Basta! - gritou Nicolas. - Agora que compreende melhor a nossa intenção, já deve saber porque é que queremos a Sasha de volta. Ela é importante para o nosso programa...
e tem um significado especial para mim
Gray leu algo nos seus olhos.
- Por que o senhor?
- Por quê? - Olhou com dureza para Gray. - Porque ela é mais do que uma cobaia, ela é minha filha.
As unhas de Elena arranharam o interior do pulso de Gray. A mulher virou-se abruptamente para Nicolas. Aparentemente, tal constituía também uma surpresa para ela.
Por isso é que Gray e os outros tinham sido arrastados até Chernobyl.
- Antes de o dia terminar, saberão do que sou capaz. - Nicolas inclinou-se para Gray, com os seus olhos cheios de determinação. - E irei recuperar a minha filha.
08h20
Montes Urais Meridionais
O General-Major Savina Martov permanecia no coração da Operação Saturno. Atrás dela, o comboio da mina aguardava nos carris, resfolegando e crepitando, cheirando
a fumo e a óleo. Estava a uma centena de metros do sítio onde a via férrea terminava no Complexo Mineiro 337, uma mina de urânio abandonada que perfurava os vizinhos
montes Urais. O C.M. 337 era onde os prisioneiros albergados em Chelyabinsk 88 costumavam passar dezoito horas por dia a trabalhar no escuro, enquanto iam sendo
lentamente envenenados.
Agora servia como local de depósito para o equipamento de mineração deteriorado e as rochas extraídas da Operação Saturno. Ao longo de cinco anos, uma pequena equipe
de mineiros e peritos em demolição tinham enchido vários poços antigos até a borda com os resíduos retirados deste local.
A Operação Saturno ocupava uma pequena caverna feita pelo homem ao lado da via férrea. O espaço dinamitado - do tamanho de um átrio de hotel - estava rodeado por
andaimes imbuídos em óleo e repleto de equipamento de mineração: correias transportadoras, guinchos hidráulicos. peneiras, bombas de água, mangueiras, tudo em volta
de uma broca de perfuração compacta com pinos de carboneto de tungstênio.
A maior parte seria deixada no sítio onde estava ou transportada no próximo comboio.
Savina viu uma retroescavadora a largar uma carga de pedra e cascalho num dos vagões atrás dela. O comboio faria um último carregamento para o C.M. 337.
Tudo corria conforme o previsto.
No entanto, deixou-se ficar de mãos nas ancas, pernas afastadas, vigiando o local de operações. A sua conversa com Nicolas ainda a mantinha agitada. Sabia que ele
era teimoso e dado a decisões dramáticas e precipitadas. Lamentou ter-lhe contado o que sabia acerca de Sasha. Não pensara que ele reagiria de uma forma tão estúpida.
Onde estava o seu desprendimento em relação a estes assuntos? Ainda tinham dez cobaias Omega, mais do que suficiente para lançar sementes no novo local em Moscovo.
Os dez eram suficientemente poderosos para lhe entregarem o mundo, para guiarem a humanidade para o seu novo Renascimento, liderado por um Império Russo ressuscitado.
E o futuro czar não teria um Rasputin para o aconselhar, mas dez. Dez sábios prodígios, que juntos e aumentados, podiam poupar tempo e distância para o servir.
Ele não via isso?
O que era uma criança contra um argumento destes?
Duas se contássemos com o filho de Nicolas, Pyotr. Mas o talento do rapaz, apesar de forte, era de pouco valor. O que interessava a empatia quando o que se pretendia
era forjar um mundo novo? Quanto muito era um obstáculo. Aquilo que se perderia com o rapaz pouco mais era do que o seu potencial genético. Uma perda significativa,
mas de modo algum inultrapassável. E ainda havia esperança de o recuperarem. A última informação que ouvira da parte do tenente
Borsakov era de que estava quase a entrar nos pântanos Asanov. Seria difícil encontrar alguma coisa no escuro, mas com o Sol já de pé, esperava resultados a qualquer
momento. Ou assim assegurara a Nicolas.
E, bem vistas as coisas, isso não interessava. Nicolas cresceria para ver isto.
Um técnico de bata branca, capacete e máscara de oxigênio aproximou-se dela. Era um engenheiro do Instituto Mineiro do Estado de São Petersburgo.
- Pronta para testar o quadro e o diafragma?
Ela acenou. Depois deste abalo final, o local de operações seria evacuado. Tivera de incentivar a sua equipa, nestes últimos dois dias, para poder corresponder ao
prazo encurtado. A operação de Nicolas fora programada para se efetivar na data de hoje, seguida da de Savina dentro de duas semanas. Mas, com a recente traição
de Mapplethorpe, decidiram iniciar as duas operações no mesmo dia. Assim que tivesse conhecimento do êxito de Nicolas, deveria avançar com a sua.
- Há algum problema? - perguntou ao engenheiro.
A sua voz surgiu abafada do interior da máscara enquanto caminhavam.
- Executamos todos os diagnósticos, voltamos a verificar as concentrações de combustível e nitrato de amônio, executamos um GPR{3} final da sobrecarga e inspecionamos
todos os sistemas elétricos. Estamos prontos para evacuar o local e abrir o diafragma, sob as suas ordens. Vamos fazer o teste de fogo agora.
- Muito bem.
Savina seguiu o homem sob o arco do andaime. A broca de perfuração montada num veículo já estava a ser retirada do caminho. Os homens trabalhavam em torno do espaço
reduzido: nas amarrações, no chão e no meio do equipamento. Ela olhou para a parede superior da caverna. Um poço com dois metros de largura sobressaía inclinado
num ângulo acentuado, alinhado por uma lenta correia transportadora, gotejando água das mangueiras. As luzes brilhavam no extremo do poço, quase a meio quilômetro
de distância. Pequenas sombras moviam-se no brilho, partículas na claridade. A equipe de demolição estava a fazer uma última inspeção.
Savina apreciou a sua eficácia.
Mais de cinquenta buracos perfurados - da largura do seu polegar e com um metro de profundidade - tinham sido feitos na extremidade do poço e preenchidos com super
cargas de ANFO{4}. As perfurações incidiam sobre uma falha que havia por baixo do lago Karachay. Ligadas para detonar em sequência, as cargas abririam um grande
buraco no fundo do lago envenenado, largando a sua mistura de estrôncio e césio radioativo no poço.
- Por aqui, General-Major. - O técnico acenou-lhe do centro da caverna.
Colocado no chão havia um alçapão circular com três metros de largura. Obtivera-o nos Estaleiros Navais de Sevmorput em Murmansk. Era a mais recente porta de silo
de mísseis, composta por seis lâminas de aço com meio metro de espessura em forma de diafragma.
Afastou-se do local e dirigiu-se a uma mesa de trabalho onde se encontrava um computador portátil de diagnóstico. O técnico tinha os esquemas de engenharia abertos
na tela. Outros homens tinham parado para observar.
Ele falou para um rádio, ouviu, depois acenou para Savina.
- Está tudo a postos na sala de controle. Dez segundos até a denotação.
Savina cruzou os braços. A sala de controle ficava em Chelyabinsk 88, num dos prédios de habitação da era soviética agora abandonados. Os técnicos enchiam a pequena
sala repleta de monitores e computadores. Uma vez evacuado o lugar, trinta câmeras diferentes fariam a cobertura da área.
O engenheiro fez a contagem decrescente.
- Três... dois... um... zero.
Um estampido de um circuito eletrônico soou da porta do silo e as suas pétalas de aço abriram-se como o diafragma de uma máquina fotográfica. Enquanto se iam afastando,
um ligeiro rugido de água ecoou da superfície inferior. Savina dirigiu-se para o diafragma e olhou lá para baixo. Um poço vertical estendia-se ao longo de duzentos
metros na rocha.
O engenheiro juntou-se a ela e apontou com uma pesada lanterna para a garganta do poço da mina. Muito em baixo, descortinou uma corrente prateada, refletindo a luz.
Um rio subterrâneo. Havia vários cursos de água como este drenando os Urais, grandes aquíferos fluindo das terras altas. No lado oposto das montanhas, as águas fluíam
para o mar Cáspio, mas aqui os aquíferos drenavam uma série de rios, especificamente o Techa e o Ob, a caminho do oceano Ártico.
Savina virou-se e olhou para cima, para o poço inclinado que conduzia até a linha de falha .sob o lago Karachay. Continha cem vezes mais estrôncio e césio do que
aquele que fora libertado em Chernobyl. E a nuvem tóxica de Chernobyl circundara o globo. Voltou a olhar para o poço vertical, para o aquífero que fluía lá em baixo.
Fora uma ameaça latente. Os geólogos estavam bem cientes das falhas que jaziam sob o lago Karachay. Era só uma questão de tempo até um sismo romper uma das fissuras
e largar toda a radioatividade na bacia hidrográfica dos montes Urais. Estudos feitos por geofísicos da Noruega calculavam que tal catástrofe seria capaz de esterilizar
uma boa porção do oceano Ártico, um dos últimos e maiores redutos de vida selvagem do planeta. A partir daí. o seu lastro de veneno estender-se-ia a metade do planeta,
concentrando os seus piores efeitos na Europa do Norte, Cálculos conservadores apontavam para um número de vítimas de radiação primária e cancros secundários na
ordem dos cem milhões. E isso podia ser facilmente duplicado ou triplicado de acordo com os danos econômicos e ambientais daí resultantes.
Desviou o olhar do poço inclinado para o rio em baixo. Tal desastre fora sempre uma constante, mas uma ameaça pouco reconhecida. A natureza mais não precisava do
que de um ligeiro empurrão.
Depois o mundo arderia.
A sua respiração começou a ficar mais pesada perante a enormidade daquilo que estava para a acontecer. Depois desse fogo radiológico, um novo Império Russo renasceria,
tal como uma fénix nascida das cinzas do seu próprio legado nuclear.
Não deixaria que nada a detivesse.
Passara a sua vida e alma aqui na Toca, tudo para servir a Terra Mãe. E depois de tantos sacrifícios, tanto derramamento de sangue, o que restava da Rússia? Ao longo
das últimas décadas, Savina observara a Terra Mãe a transformar-se numa sombra corrupta e lamentável de si própria. No final da sua vida estaria em condições de
oferecer esperança outra vez. Esse seria o seu legado, gerido pelo seu próprio filho.
Destruiria a corrupção e criaria um mundo novo.
- General-Major? Mais alguma coisa?
Ela abanou a cabeça e controlou as suas palavras.
- Já vi o suficiente.
O engenheiro acenou e dirigiu-se a uma alavanca de aço, ao lado da sua estação de trabalho. Parecia um travão de mão gigante de um carro. Carregou no botão da alavanca,
puxou a tranca para cima e empurrou com o ombro na direção oposta. O diafragma fechou-se aos seus pés. selando o poço. Havia ainda algum trabalho a fazer. Os mineiros,
que tinham parado para ver as portas do silo a abrirem-se, regressaram ao trabalho. passando por cima do diafragma, como haviam feito nos últimos dois anos desde
que tinham construído este primeiro poço.
A Operação Saturno estava pronta para começar.
Savina virou-se e dirigiu-se para o comboio que a aguardava. Também tinha umas coisas para ultimar em Chelyabinsk 88. Olhou para o relógio. Nicolas devia estar a
dirigir-se para a cerimônia em Chernobyl, dentro de uma hora. Apesar das suas últimas ações precipitadas, tinha tudo sob controle. Com ou sem ele, os sistemas estavam
a postos e seguiriam o seu curso. Estava tudo em ordem.
Nada poderia deter o que estava para acontecer.
Enquanto entrava no comboio e as portas se fechavam, olhou para o coração da Operação Saturno. Tentou imaginar os milhões que iram morrer. mas eram uma abstração,
um número demasiado grande para poder contemplar para além da frieza das estatísticas. Olhou em frente enquanto o comboio se punha em andamento e voltava para a
Toca em Chelyabinsk 88. Os professores e investigadores deviam estar a preparar-se para a sua própria evacuação. Os computadores estavam a ser retirados, os registros
incinerados. As crianças estavam também a ser preparadas - mas não para a evacuação. Iriam andar de comboio pela última vez.
Todas elas, exceto as dez que ficariam com ela.
Savina imaginou os rostos das outras crianças. Sessenta e quatro, incluindo os mais pequenos. Era um número muito pequeno para poder contemplar de uma forma puramente
abstrata. Conhecia a maioria das crianças pelo nome. Enquanto o comboio rolava no escuro na direção da Toca, Savina encostou uma mão à parede. Os joelhos tremiam-lhe
e uma onda de emoção percorreu-lhe o corpo. Não a combateu. Fluiu-lhe do peito e invadiu-lhe a garganta. Algumas lágrimas quentes escorreram-lhe pelo rosto. Neste
momento a sós, deixou as suas emoções seguirem o seu curso. Reconheceu a sua humanidade e permitiu-se a si mesma um momento de dor.
Mas apenas este momento.
Quando o comboio começou a abrandar, limpou o rosto e deu uma palmada nas faces. Respirou fundo por diversas vezes. Não havia ponto de retorno.
A necessidade era um mestre cruel.
E ela tinha de ser apenas cruel.
09h32
Pripyat, Ucrânia
Nicolas subiu para a limusine com Elena. Uma caravana de veículos saiu da área em frente do Hotel Polissia. Políticos e funcionários estavam a ser transferidos ou
seguiam sob escolta privada. Desde a meia-noite que equipas de informação de todo o mundo se encontravam a montar as suas câmeras e a preparar as suas vans com as
antenas de transmissão via satélite. Desde a primeira luz que celebridades e dignitários se concentravam no local, para entrevistas, visitas guiadas, um momento
de fama.
Nas próximas horas, os olhos do mundo estariam concentrados na selagem de Chernobyl, um último ato que vinha pôr um fim à velha era nuclear e lançar uma importante
e nova cimeira para projetar o tema no futuro.
Mas Nicolas tinha os seus próprios assuntos a tratar.
Assim que a porta da limusine se fechou, Nicolas teve o seu primeiro momento de privacidade com Elena. Virou-se para ela.
- Desculpa. Devia ter-te contado acerca da Sasha e do Pyotr.
Elena abanou a cabeça ligeiramente, furiosa. Não lhe dissera uma única palavra desde o interrogatório aos Americanos. Mesmo agora, resolveu olhar pela Janela da
limusine. Sasha e Pyotr tinham tido sempre um lugar especial no seu coração. Era mais do que uma afeição normal. Ela também tinha uma ligação pessoal. Fora a irmã
mais velha de Elena, Natasha, quem os tinha dado à luz, morrendo durante o parto.
- Conheces a política na Toca - pressionou Nicolas enquanto a limusine descia a rua. - Os registros de nascimento são selados.
Fora uma orientação que desde sempre vigorara na Toca. Os ascendentes familiares da maior parte deles eram mantidos em segredo. As crianças sabiam quem eram os seus
irmãos para desencorajar a confraternização inadequada, mas era tudo. A procriação era ditada e controlada pelos geneticistas.
Mas Nicolas não era um descendente vulgar. Como filho do fundador, fora criada uma história à volta dele, começando em Yekaterinburg, onde a sua mãe dera à luz no
hospital local, usando o nome falso Solokov. A mãe teria preferido o nome Romanov, mas podia parecer demasiado óbvio. Desde o início que fora criado para um destino
especial. Como tal, recebera alguns privilégios.
- Verifiquei os registros clínicos de fertilização um dia - disse. - Estava curioso em saber se tinha filhos. Foi então que descobri que a Sasha e o Pyotr eram do
meu sangue. Mas fui proibido de contar fosse o que fosse.
Quis colocar-lhe uma mão sobre o joelho, mas deixou-a a pairar no ar, com receio de lhe tocar.
- Na verdade, foi devido à produção de crianças tão talentosas que a minha mãe encorajou a nossa união. Numa tentativa para repetir um cruzamento genético tão feliz.
Elena não iria ceder. Uma parte dele gostava da sua frieza, deste controle.
Ele queria tocar-lhe, mas ela ainda não lhe tinha dado autorização.
- Por favor, milaya moya, perdoa-me.
Ela ignorou-o.
Suspirando, olhou para a frente.
Através da privacidade da janela, Nicolas vislumbrou a elevação de Chernobyl. Uma grande torre de refrigeração, rodeada por um andaime de manutenção, erguendo-se
bem alta no céu. Elevava-se de um emaranhado de edifícios de cimento. Comprimida de um dos lados, destacava-se uma maciça cripta atarracada de aço preto e cimento.
Tinha um ar umedecido, como se estivesse a transpirar. Não era nenhum mistério a razão pela qual a estrutura fora chamada de sarcófago. Parecia uma tumba preta e,
no seu centro, jaziam as ruínas do reator número quatro.
Nicolas vira imagens do interior, uma paisagem dinamitada de cimento chamuscado e aço entrelaçado. Numa sala, havia um relógio, carbonizado e meio derretido, que
marcava para sempre a hora da explosão. Dentro do sarcófago, cerca de duas centenas de toneladas de urânio e plutônio permaneciam enterradas no interior das ruínas,
na sua maior parte sob a forma de lava solidificada, formada com a fusão radioativa do combustível derretido, cimento e perto de duas mil toneladas de combustíveis.
Pedaços do núcleo explodido podiam ser encontrados por toda a parte, alguns embutidos nas paredes exteriores. Nos níveis inferiores da instalação, os pingos da água
da chuva e o pó do combustível formavam uma sopa radioativa.
Ainda havia dúvidas de que uma nova solução era necessária?
A resposta encontrava-se à sua esquerda.
Tinha vários nomes: o Abrigo, o Arco da Vida, o Novo Sarcófago. O arco em forma de hangar tinha a altura de trinta e sete andares. Pesando cerca de vinte mil toneladas,
estendia-se ao longo de mais de duzentos e cinquenta metros de vão e cento e cinquenta de comprimento. O seu interior era tão cavernoso que os engenheiros temiam
que se pudessem formar nuvens e chover realmente dentro da estrutura. Na parte inferior do arco, guindastes robóticos esperavam para desmantelar o Velho Sarcófago,
peça a peça, operados por técnicos colocados em segurança fora do abrigo.
Mas as coisas já estavam em andamento.
O arco inteiro assentava numas calhas de aço bem oleadas e estava agora a ser lentamente conduzido ao longo dos carris por dois grandes macacos hidráulicos. Era
a maior estrutura móvel alguma vez construída pelo homem. E. por volta das onze horas desta manhã, o abrigo seria colocado por cima do velho sarcófago e selado contra
o vizinho edifício de cimento, cobrindo totalmente a antiga cripta e encerrando assim para sempre um pedaço horrível da história da Rússia, ao mesmo tempo que prenunciava
um novo começo.
Por isso, era natural que um evento como este marcasse o início da cimeira agendada para mais tarde. Uma cimeira que infelizmente, nunca teria lugar.
A limusine dirigiu-se para as bancadas que permaneciam alinhadas no lado sul do velho sarcófago. As cadeiras Já estavam preenchidas com os convidados VIP. Os discursos
haviam começado no palco que dava para as bancadas, liderados pelas declarações oficiais conjuntas dos Russos e Americanos, escolhidas para coincidirem com a selagem
final de Chernobyl. Toda a série de eventos estava programada ao minuto, em função da deposição do arco gigante.
Tal como o plano de Nicolas.
Um momento de receio invadiu-lhe o corpo. Tal como tinha acontecido quando se abeirou do pódio e um assassino se preparava para o tiro fatal. Só que o risco esta
manhã era mil vezes pior.
Tinha a mão cerrada enquanto a mantinha pousada no assento. Virou-se e viu a mão de Elena em cima da sua. Ela olhava pela janela. zangada, dando-lhe a entender que
ainda não tinha acabado. Os dedos dela encurvaram-se e pressionaram com força a palma da sua mão, uma promessa de que mais tarde iria ser punido.
Inclinou-se para trás enquanto ela cravava as unhas com mais força. A dor ajudou-o a concentrar-se.
A frente, o arco fechava-se lentamente sobre Chernobyl.
Ele sabia o que estava para chegar.
E certamente que merecia ser punido.
10h04
Gray caminhava pela cela quando ouviu algo a bater fortemente contra a porta. Kowalski mexeu-se e Luca levantou-se do sítio onde estava encostado à parede.
- O que se passa agora? - murmurou Kowalski.
Ouviu-se o ranger de uma barra de metal e a porta abriu-se.
Uma figura passou por cima das botas de um guarda no chão.
- Depressa - disse o homem, acenando com a sua bengala de cabo de marfim. - Temos de sair daqui.
Gray olhou surpreendido.
Era o doutor Hayden Masterson.
Confuso, Gray permaneceu gelado no lugar, apanhado entre querer estrangular o
homem e apertar-lhe a mão.
Masterson leu a sua expressão surpreendida.
- Comandante, trabalho para o MI6.
- O serviço de informações britânico?
Ele acenou afirmativamente com um suspiro exasperado.
- As explicações ficam para depois. Temos de ir. Agora.
Masterson dirigiu-se ate ao fundo do corredor, arrastando-os atrás de si. Gray parou o tempo suficiente para recuperar o revólver do guarda, uma pistola russa chamada
Grach ou Rook. O homem fora derrubado e tinha o nariz partido. Parecia que a bengala de Masterson era mais do que um simples acessório.
Gray Juntou-se a Masterson. A suspeição imperava na sua voz.
- Você? E um operacional do MI6?
Kowalski murmurou atrás dele.
- Não propriamente um James Bond.
Masterson continuou a andar pesadamente, mas olhou para Gray.
- Um membro reformado, para falar verdade. - Encolheu os ombros. - Se é que se pode chamar a isto reforma.
Gray permanecia de pé atrás, mas não conseguia pensar em nenhum contra por este homem os ter libertado da cela.
Masterson continuou num passo apressado.
- Fui recrutado depois de me ter licenciado em Oxford e sido colocado na Índia durante a ocupação soviética do Afeganistão. Reformei-me há dez anos, depois entrei
nesta confusão quando alguém me ofereceu um bom dinheiro para espiar o Arquibaldo. Não demorei muito a inteirar-me de que os Russos estavam por detrás disto. Por
isso, contactei o MI6 e informei-os. Foi designado prioridade baixa. Ninguém achava que o trabalho do Arquibaldo era uma ameaça à segurança global. Para falar verdade,
eu também não. Até que ele foi raptado e acabou por morrer em Washington, D. C. Tentei acender o rastilho no M16, mas quem é que ouve um pobre velho hoje em dia?
Não podia esperar. O velho instinto a funcionar. Sabia que algo de grandes dimensões estava a ser preparado. Por isso, lamento dizer, mas depois de ter perdido o
Arquibaldo tive de usá-los para forçar uma apresentação.
- Nos usar? - disse Kowalski. - Eles mataram Abe.
Masterson recuou.
- Tentei detê-los, mas o nosso amigo foi muito rápido com a sua arma chicote. - Abanou a cabeça tristemente. - Talvez isto seja um jogo para gente mais nova, vendo
bem as coisas.
- Mas espere! - Kowalski apercebeu-se subitamente de uma coisa. - Você ia me matar!
Gray rejeitou a sua preocupação.
- Masterson estava fingindo.
Um aceno.
- Tinha de ser convincente.
- Conseguiu convencer-me a mim!
- E ainda bem que tive êxito. - Masterson virou-se para Gray. - O sacana está a pensar aniquilar metade dos líderes mundiais hoje.
- O quê?
Masterson levou-os até uma escadaria ao lado do velho posto da guarda e baixou a voz.
- Mais homens lá em baixo. Mantiveram-me aqui. Prisioneiro como vocês. Estou em condições de poder libertar a Elizabeth e a doutora Rosauro. - Acenou para o corredor
que se estendia para lá do posto. - Se pudesse contar com esse seu colega tão bem proporcionado, tentaríamos alcançar um telefone e dar início a uma evacuação.
- Leve o Luca consigo - disse Gray. Queria os civis fora do caminho do perigo, dentro da medida do possível. Mais, a presença do líder cigano ajudaria a convencer
Rosauro de que Masterson estava a ser sincero.
Luca acenou num gesto de concordância.
- Muito bem. Posso usar a sua ajuda - disse Masterson. Tirou um walkie-talkie do exército russo do casaco e passou-o a Gray, para que pudessem comunicar. - Entretanto...
Gray cortou-lhe a palavra.
- ... tenho de deter o senador Solokov.
Masterson acenou com a cabeça.
- Tem menos de uma hora. Não sei o que é que ele tem na manga, mas deve ser algo relacionado com a cerimônia que está a decorrer em Chernobyl.
- Que cerimônia?
Masterson tirou um pedaço de papel do bolso do casaco, desdobrou--o e passou-o a Gray.
- Eles estão a selar o velho sarcófago em Chernobyl - disse, apontando com a cabeça para a folha. - Sob um grande hangar de aço.
Enquanto Gray observava a folha com atenção, Masterson listava os dignitários e líderes presentes no evento e, rapidamente, resumiu as cerimônias da manhã.
- Quanto aos planos específicos do Nicolas, tudo o que consegui obter foi o nome. Operação Úrano.
- Operação O Teu Ânus?{5} - inquiriu Kowalski. - Deve ser doloroso.
Gray ignorou-o e dirigiu-se às escadas.
- Onde está o Solokov agora?
- A caminho de Chernobyl.
Enquanto Gray descia com Kowalski, recordou-se da alta torre de refrigeração. O que quer que fosse que o sacana estivesse a planear, devia envolver o reator. Mas
o nome da ofensiva - Operação Úrano - porquê escolher este nome? Enquanto treinava para os Army Rangers, Gray aprendera o contexto histórico da operação nas aulas
de Estudos Estratégicos. Operação Úrano era o nome de uma ofensiva russa, realizada durante a Segunda Guerra Mundial, que deu origem à batalha mais sangrenta da
história da humanidade, a batalha de Estalinegrado.
Então, porquê o nome?
Algo perturbava Gray, algo incomodativo, mas a tensão afastou-o. À frente, dois guardas defendiam a saída da prisão. Estavam de costas voltadas para Gray.
Empunhou a sua pistola Rook roubada.
As preocupações teriam de esperar.
17
7 de setembro, 10h07
Montes Urais Meridionais
Enquanto o Sol brilhava numa manhã imaculada. Monk percorria a estrada de gravilha que atravessava a cidade fantasma. As ervas e os arbustos davam pela altura da
cintura, parecendo que estavam a arrastar-se no meio de águas verdes. Konstantin mantinha-se ao lado dele. enquanto Pyotr e Kiska iam atrás. Marta seguia-os, também,
mas ela parecia afogar-se no mar verde, apartando as ervas enquanto se deslocava através delas.
- Há pouco carvão nas montanhas aqui - sentenciou Konstantin cm torno de um bocejo de fazer estalar os ossos. - Toda a exploração mineira na região é para a extração
de metal.
Monk sabia que o miúdo estava perdido entre a exaustão e o terror. O rapaz alto falava calmamente para se manter acordado e para combater a ansiedade.
- Cobalto, níquel, tungstênio, vanádio, bauxite, platina...
Monk deixou-o tagarelar enquanto observava a cidade do outro lado. Os edifícios pareciam ter sido construídos à pressa, revestidos com tábuas e delimitados por passadiços
de madeira que os separavam da estrada. Passaram por uma escola de divisão única, com as janelas intactas e as secretárias de madeira ainda no interior. Uma série
de camiões velhos, com a cor verde da era soviética, enferrujavam no leito da estrada. O único edifício de tijolo tinha caracteres cirílicos ao longo da fachada.
Monk não conseguia ler, mas a avaliar pelas prateleiras interiores, parecia tratar-se de um armazém que também funcionava como correios. Ao lado via-se uma taberna
com as garrafas empoeiradas ainda nas prateleiras.
Era como se um dia os habitantes da cidade tivessem simplesmente saído pelas respetivas portas e abandonado o território sem olhar para trás.
Monk não precisava de adivinhar porquê. Desta sua posição mais vantajosa, o lago Karachay estendia-se em toda a sua magnitude, bordejado por margens lamacentas e
refletindo a luz solar numa mentira flamejante que escondia o seu núcleo tóxico. Monk olhou para o dispositivo pendurado na sua mochila. A cor vermelha adquirira
um tom carmesim mais escuro. Olhava para ela repetidamente.
Konstantin reparou na sua atenção.
- Não podemos ficar aqui mais do que uma hora. E muito perigoso. Temos de entrar no subsolo rapidamente.
Monk acenou e olhou para cima. A entrada da mina ficava a um quilômetro e meia acima deles. Conseguia ver as construções exteriores de aço e os guindastes esqueléticos
que compunham uma estrutura maior que sobressaía da montanha. Duas grandes rodas de metal ladeavam o edifício central, rodas de descarga, usadas para verter o remanescente
das escavações em baixo. A gravilha no chão vinha provavelmente dessa mina.
Monk acelerou a passada.
A frente, depararam-se com a única outra estrutura substancial, no momento em que a estrada contornava uma curva difícil para subir para outro nível na encosta da
montanha. O moinho tinha três andares de altura, o edifício mais alto do local. Fora construído com troncos de madeira e tinha um telhado de estanho. A roda hidráulica
de madeira, verde do musgo e dos líquenes, tinha-se separado das suas amarrações e jazia tombada no meio do riacho. Uma antiga inundação deveria tê-la fragmentado.
Enquanto se aproximavam. Kiska gritou.
Monk virou-se e viu Pyotr de pé muito hirto, tal como um poste, os olhos enormes, lívido de terror.
O peito de Monk apertou-se.
Não... não aqui.
Marta movimentou-se num círculo em tomo do rapaz, pressentindo igualmente a sua aflição. Tal como Monk, ela não sabia onde estava o perigo ou de onde poderia vir,
mas ambos sabiam o que o rapaz pressentira.
Monk lembrou-se do tigre a atacá-los, com uma orelha retorcida.
Zakhar.
A besta não devia ter sido capaz de seguir-lhes o rastro por aquela água toda. Mas os tigres eram grandes nadadores. O caçador deverá ter atravessado o pântano e
esperado para poder emboscar a sua presa neste lugar. Monk não duvidava de tal atuação da parte de Zakhar.
Monk examinou as ervas altas, o emaranhado de edifícios. A criatura podia estar escondida em qualquer parte. Os pêlos no braço de Monk eriçaram-se, quase pressentindo
os olhos selvagens em cima dele. Estavam desprotegidos, expostos. E sem uma única arma. Tinham perdido a sua única faca quando Marta atacara Arkady.
- Para trás - disse Monk, apontando para o edifício de tijolo. -Devagar. Para o armazém.
Apesar de todas as janelas, seria a fortaleza mais robusta. Poderiam encontrar algo nas suas prateleiras que pudessem usar como defesa. Monk puxou Pyotr para o pé
de si. O rapaz tremeu debaixo dele. Num grupo apertado, fugiram ao longo do caminho que haviam forjado através das ervas.
Monk olhava constantemente para trás, sobretudo porque Pyotr fazia o mesmo. Confiava na intuição do rapaz. No sítio onde a estrada curvava na direção da estação
mineira, o moinho sobressaía do outro lado do riacho. Monk sabia que os tigres procuravam muitas vezes o ponto mais alto; uma pedra grande, um ramo de árvore mais
amplo, uma saliência na montanha, um lugar de onde pudessem saltar sobre a presa.
Como se tivesse pressentido que tinha sido descoberta, uma forma às riscas indefinida deslizou como um fluxo de óleo de uma das janelas do piso superior, junto à
parte de trás do moinho. Se Monk não estivesse concentrado, não teria visto. O tigre desapareceu nas ervas altas.
- Corram - recomendou a Konstantin e Kiska.
Monk levantou Pyotr com um único movimento de braços.
As duas crianças dispararam a correr à frente dele, levadas pelo terror e acalentadas pela adrenalina. Monk seguiu-as, com Marta a correr ao lado dele.
Atrás de Monk, ouviu-se um forte estalo de madeira como se algo pesado tivesse saltado da roda hidráulica e caído no riacho. A porta do armazém estava aberta, apenas
a trinta metros de distância. Estavam quase lá. Rezou para que houvesse uma câmara frigorífica ou algo atrás do qual se pudessem entrincheirar.
O estalo de uma espingarda rompeu o seu terror.
A gravilha explodiu com uma faísca brilhante aos seus pés.
Monk atirou-se para o chão de lado, rolando pela erva alta, amparando e protegendo Pyotr com o seu próprio corpo. Continuou a rolar até parar atrás da carcaça enferrujada
de um velho camião.
O atirador disparara da parte inferior da rua.
Tinha de ser um dos soldados russos.
Virando-se, Monk viu Konstantin e Kiska saltando como veados assustados sobre o passadiço de madeira e entrando pela porta aberta do armazém. Marta seguiu-os com
um salto. Uma das janelas estilhaçou-se no momento em que um tiro ecoava. Mas o trio conseguira entrar lá dentro em segurança.
Monk abrigou-se atrás do camião e abaixou-se. Não conseguiria atingir o armazém sem atravessar o terreno aberto.
Olhou para a rua.
Não havia sinais do tigre. Nem uma folha de erva se mexia. Nenhum raspar de gravilha sob uma pata pesada. O tiro repentino devia ter feito com que Zakhar se agachasse,
tão surpreendido quanto eles. Devia estar deitado algures. Monk agachou-se, armadilhado entre o tigre e um atirador. Mas não era o único perigo. Outro risco pendia
sobre eles. Para além dos limites da cidade, o lago Karachay brilhava com toda a intensidade, irradiando para o exterior a sua mortalha tóxica. Ficar quieto aqui
era também a morte.
00h30
Washington, D. C.
Enquanto o alarme continuava a tocar, Yuri permaneceu ao lado da cama de Sasha, protegendo-a com o seu corpo de McBride. A criança enfiara-se dentro dos lençóis,
com as mãos a tapar as orelhas, hipersensível às campainhas e gritos. Do outro lado da cama, Kat Bryant foi ter com Sasha, pondo-lhe uma mão por cima da cabeça para
a consolar. Atrás da mulher estava o patologista Malcolm Jennings e um guarda.
Yuri olhou para McBride. O homem recuou alguns passos, com as costas viradas para o canto do quarto, a mão amarrada na longa trança da sua refém, a doutora Lisa
Cummings. Mantinha o celular-pistola junto ao pescoço da mulher.
Estavam num impasse.
E Mapplethorpe já estava a caminho do local com os seus comandos. O sangue de Yuri ardia só com o pensamento de ver o sacana a meter as suas mãos sebosas em cima
de Sasha. Não podia deixar que isso acontecesse.
Yuri deslocou-se para a mesa onde se encontravam os instrumentos de aço inoxidável e tirou uma seringa de entre os frascos de drogas usados para tratar de Sasha.
- Yuri! - advertiu McBride.
Respondeu em russo, sabendo que McBride compreendia.
- Não o vou deixar ficar com a Sasha - disse, enfiando a agulha no tubo intravenoso.
Enquanto empurrava o êmbolo, viu McBride a afastar a arma da refém e a redirecioná-la para si. A seringa continha apenas salina, um ardil. Yuri deu meia volta e
voou para cima do homem. Ao mesmo tempo. Lisa cravou-lhe um salto no peito do pé e deu-lhe com a cabeça no rosto.
A pistola disparou, explosiva num lugar tão pequeno.
Atingido no ombro. Yuri rodopiou meio passo. Mal sentiu a dor. Atirou-se para cima de McBride, tirando Lisa das suas garras. Yuri agarrou no pescoço de McBride e
enfiou a segunda seringa que tirara da mesa de instrumentos, espetando-a na jugular. A seringa continha uma concentração não diluída dos medicamentos de Sasha. Na
sua plenitude, era uma farmacologia tóxica de quimios terapêuticos, epinefrina e esteroides.
Engalfinhados um no outro, McBride esvaziou o conteúdo do seu carregador no estômago de Yuri. Abafados pelo seu corpo, os disparos soaram como fortes palmadas, como
se alguém estivesse a esmurrá-lo na barriga. Ainda assim. Yuri conseguiu empurrar o êmbolo com força, enviando a mistura venenosa diretamente para o coração do homem.
McBride gritou.
Yuri caiu com o homem no chão. Sabia o que McBride estava a sentir: chamas a percorrerem-lhe as veias, a pressão a detonar-lhe na cabeça, o coração a espremer-se
de agonia. Mãos puxaram Yuri de McBride e fizeram-no rolar pelo chão. Descortinou Kat inclinada sobre Sasha. protegendo-a do tiroteio, mantendo a cabeça da criança
virada para o outro lado.
Ao seu lado, McBride retorcia-se numa convulsão, cuspindo saliva, que ia ficando ensanguentada de tanto morder a língua. O corpo viveria, mas não a sua mente. As
drogas queimariam o seu cérebro, deixando-o com uma casca oca.
Lisa inclinou-se para Yuri.
- Ajude-me!
Mais mãos apareceram, exercendo pressão sobre a sua barriga. O sangue derramou-se pelo chão. Kat aproximou-se dele, amparando-lhe a cabeça. Tossiu. Mais sangue.
Estendeu uma mão, sabendo que ela ajudaria.
- Sasha... - arfou.
- Nós vamos protegê-la - disse Kat.
Ele abanou a cabeça. Já sabia que isso iria acontecer, não duvidava do coração dela.
- Mais... mais rebyonka.
A focalização era quase nula - mente e visão. O mundo escurecia e a dor afundava-se na frieza.
Tentou falar, para lhe dizer onde.
- Chela... insk... - A mão resvalou para o chão, desenhando dois números no seu próprio sangue; 88.
A mão dela fechou-se sobre a sua.
- Aguente, Yuri.
Ele desejava fazê-lo, por Sasha, por todos eles.
A escuridão sobrepôs-se como uma nuvem; vozes soaram ao fim de um longo túnel. Ofereceu a única coisa que podia com o seu último suspiro.
Esperança.
Agarrou na mão de Kat e fez um esforço para transmitir uma última mensagem.
- Ele está vivo...
Espantada, Kat pousou a cabeça de Yuri no seu colo. Será que ouvira corretamente? Olhou para baixo, para os seus olhos abertos, agora sem vida e completamente vidrados.
Ele manifestara-se de uma forma agitada no fim, como se estivesse à procura de uma última penitência, falando até em russo. Fluente na língua dos seus primeiros
tempos no Serviço de Informações da Marinha, Kat compreendia algumas coisas.
Mais rebyonka.
Mais crianças.
Como Sasha.
Ela olhou para a garota na cama, agora guardada por Malcolm.
Yuri havia balbuciado depois disso, tentara escrever algo, mas nada fazia sentido... E o que dissera no final?
Kat virou-se para Lisa.
A amiga ajoelhou-se numa poça contendo o sangue do homem.
- Ele salvou a minha vida - murmurou, colocando uma mão no peito de Yuri. Ocupada com os seus afazeres. Lisa não ouvira as últimas palavras. Do outro lado de Lisa,
o corpo de McBride parara de ter convulsões. Os seus olhos estavam abertos, inertes e vidrados, mas o seu peito subia e descia.
Kat sentou-se, incapaz de ficar em pé, com o olhar concentrado em Sasha, no monte de desenhos.
As palavras de Yuri encheram o seu mundo.
Ele está vivo.
Sentira os dedos dele a apertarem-lhe a mão.
Uma mensagem só para ela.
Ela sabia de quem é que ele estava a falar, mas isso era impossível.
No entanto, as suas últimas palavras desencadearam algo dentro dela, aqueceram aquilo que nunca esfriara. A sua respiração ficou mais pesada. A cada inspiração,
o fogo foi crescendo dentro dela, queimando as dúvidas, iluminando os lugares mais escuros do seu coração. Uma parte dela temia libertar-se dessa escuridão; havia
segurança nas sombras. Mas ela recusou-se a apagar estas novas chamas.
Em vez disso, o fogo estendeu-se até os pés.
Agarrou na arma abandonada do guarda que estava no chão. Endireitando-se, falou precipitadamente para todos os que estavam no quarto.
- Não estamos seguros aqui. E melhor procurarmos uma saída... caso contrário, teremos de nos barricar nalgum sítio.
Enquanto Lisa desprendia o tubo intravenoso da garota, Kat descortinou o livro de colorir, ainda aberto na mesa-de-cabeceira, desenhado a verde, com um homem numa
jangada.
Impossível, mas Kat sabia que era verdade.
Monk...
Ele está vivo.
10h20
Montes Urais Meridionais
O americano devia estar morto.
Borsakov amaldiçoou o seu tiro falhado. Continuava estendido no chão, protegido pela sombra de um barracão. A espingarda jazia à sua frente, com o rosto pousado
sobre a coronha da arma.
Não esperara a fuga repentina dos seus alvos - vindos na sua direção. Tal exigira o seu reposicionamento e a necessidade de disparar antes de estar totalmente preparado.
Mais, suspeitava que as suas miras estavam a ficar desalinhadas, depois do abuso no pântano. Não pudera testar a arma e calibrar as miras. Os disparos teriam avisado
os alvos da sua aproximação.
Contudo, tinha-os cercados.
Duas crianças e o chimpanzé escondidos no edifício de tijolo. O americano e o rapaz atrás do camião. Borsakov deslizou para trás, mantendo-se junto às ervas. Bastava-lhe
atravessar a rua para ter o americano novamente debaixo da sua mira.
Desta vez não podia falhar.
Moveu-se furtivamente e a baixa altura, através da rua, mantendo-se nas sombras o mais tempo possível. Atingiu o outro lado e agachou-se atrás de um barril derrubado.
Inclinou-se, pronto com a sua espingarda.
Deste lado da rua, tinha agora uma visão mais ampla da retaguarda do camião.
Os dedos de Borsakov agarraram com força na espingarda num gesto furioso e confuso.
Ninguém estava lá,
O americano e o rapaz tinham desaparecido.
Pyotr agachou-se dentro do camião, enrolado junto aos pedais. Monk erguera-o e enfiara-o pela Janela meio aberta, depois desaparecera entre os dois edifícios atrás
do camião. Antes de partir, fizera sinal a Pyotr para permanecer abaixado e encaixado no espaço em frente do assento. As folhas e os escaravelhos partilhavam este
seu esconderijo. Agarrou os joelhos com os braços.
Algures nos lugares mais recônditos da sua mente, para onde receava olhar, lembrava-se de ter estado escondido como agora; apertado, sustendo a respiração, perseguido.
Outra vida. Não a sua. A pedra tinha-o envolvido então, em vez do aço enferrujado.
Oscilando entre o passado e o presente, sentiu ferroadas de luzes na escuridão. Estrelas no céu noturno. Se ele olhasse o tempo suficiente, ficariam mais brilhantes,
caindo na sua direção. Mas o céu noturno sempre o assustara. Por isso. desviou-se, voltando para o momento presente.
Enquanto fazia isto. a fome invadiu-o. Mas tal como a memória anterior, este apetite não lhe pertencia. Por perto, um grande coração batia, engolindo o batimento
fraco de Pyotr. Odores estranhos inundavam os seus sentidos: relva molhada, os murmúrios de sangue quente no ar, a sensação da gravilha nos pés. Uma respiração tomou-se
mais pesada, mais ampla do que o seu próprio peito pequeno. O cheiro da caça invadiu todo o seu corpo.
Depois outro cheiro sobrepôs-se.
Um novo cheiro.
Outro caçador no meio deles.
Mas este cheiro transportava mais do que um odor pungente.
Acompanhava-o a memória de uma agonia abrasadora.
Aferroando como um espinho, a fúria afastou a fome.
Enquanto Pyotr se agachava mais, esse grande coração avançou para a frente, caminhando na sua direção.
Monk fugiu ao longo das traseiras dos edifícios que ladeavam a rua e dirigiu-se para a parte inferior da rua. As costas e o peito ardiam-lhe. arranhados e trespassados
pelas lascas da forte entaladela entre as tábuas dos dois armazéns. Colocara Pyotr no camião, a salvo do tigre por enquanto - mas não do atirador. A sua prioridade
número um era desviar o soldado das crianças, pô-lo no seu encalço no meio dos edifícios em baixo.
Sobreviver e ser mais esperto do que o soldado viriam a seguir.
Monk correu agachado. Encostou-se aos edifícios e evitou as pilhas de folhas secas e gravilha que cobriam no chão. Moveu-se silenciosamente até chegar ao sítio onde
a curva apertada cortava para baixo. Contornando o último edifício, avançou lentamente para a rua principal. Será que já estava suficientemente longe?
Sustendo a respiração, espreitou em torno da esquina e examinou a rua. Viu o tijolo do armazém, o camião ferrugento e o caminho de ervas e relva alta. Nada movia.
Uma brisa soprou pela montanha abaixo e levantou a ponta das folhas.
Mas não havia qualquer sinal do atirador.
Tinha de estar algures, possivelmente à espreita das crianças. Monk acocorou-se. Tinha de avançar pela rua e descer até a zona inferior da cidade desmantelada. O
barulho da gravilha seria notório.
Mas tinha de ser convincente a chamar a atenção do soldado.
Respirando fundo, Monk saiu do esconderijo e encaminhou-se para a gravilha.
- Corram! - gritou, acenando com um braço para as crianças imaginárias. - Continuem a correr!
Convinha que o atirador pensasse que todas as crianças estavam com...
...pum...
O disparo atingiu a perna de Monk. A perna esquerda ergueu-se no ar.
Caiu com força, com os braços esticados para se proteger. A gravilha arrancou-lhe a pele da mão e do coto. Deixou-se ficar a rolar pela rua abaixo. Um segundo disparo
passou rente à relva, por cima da sua cabeça, um assobio agudo.
Monk estendeu-se ao comprido no chão, mas ficou a espiar através da relva, vendo o soldado a erguer-se. Mantivera-se escondido um pouco mais acima da rua, a meio
caminho do armazém de tijolo. De espingarda ao ombro, deslizou na direção de Monk.
O soldado antecipara o seu adversário rondando para a retaguarda. Estivera escondido à espera, pronto para a emboscada.
Mas o soldado não era o único que estava a caçar.
Quarenta e tal metros acima da rua, um V aberto na relva avançou diretamente sobre o soldado, como um torpedo através da água.
Borsakov manteve o rosto firme, mas uma satisfação sombria percorreu-lhe o corpo. Tinha o homem em baixo, imóvel, .sem defesa. Terminaria o trabalho aqui obrigando
o americano a pagar pelas mortes dos seus companheiros no barco, fazendo-o sofrer; uma bala na rótula, talvez outra no ombro.
Enquanto Borsakov dava outro passo, um barulho na gravilha soou atrás dele, um murmúrio de folhas de erva, agitando-se com o vento.
Mas não era o vento.
Ele sabia.
Borsakov virou-se. Começou a disparar antes de conseguir posicionar sequer a sua arma. Apertou com força, com a espingarda a disparar em fogo automático sobre uma
ampla resteva. Um grito selvagem de raiva elevou-se por entre os tiros, no momento em que Zakhar saía da relva e saltava por cima dele: de pernas afastadas, expondo
as suas garras pretas, com o focinho escancarado e os seus caninos amarelos bem à vista.
Borsakov disparou repetidamente. O sangue esguichou da pele estriada - mas ele sabia que nada deteria o monstro.
Era fúria e dor, vingança e fome, desejo e determinação.
Perante tal horror, um grito saiu da garganta de Borsakov, gutural e cru um grito primitivo de terror.
Depois o tigre caiu por cima dele, derrubando-o.
Monk elevou-se, vendo o tigre a dar cabo do corpo do soldado. Fez-lhe lembrar o urso atacando os vigorosos lobos ainda ontem. Monk ouviu o estalar dos ossos e o
grito do homem. O corpo do soldado tremia como uma boneca de trapos, agarrado pelo pescoço, jorrando sangue como uma fonte.
Monk vira já o suficiente e avançou diretamente na direção do tigre, com a perna esquerda a arder, inundada em sangue.
A arma do soldado soltara-se do corpo deste, no momento em que se viu esmagado pelos quase quatrocentos quilos de músculos e garras selvagens. A espingarda aterrou
a meio caminho entre o tigre e Monk. Não sobreviveriam a este monstro sem ela.
Um rugido soou na sua direção.
Os olhos de Zakhar fixaram-se em Monk. Nesse olhar sombrio, Monk sabia que o felino o reconhecera, o assassino do seu irmão. O tigre agachou-se por cima do corpo
partido do russo, com os músculos a ondularem, os pelos eriçados, a pele esticando-se em todas as direções. O sangue escorria pelo peito e flancos do tigre, manchando
as riscas. O felino sobrevivia na mais pura das fúrias.
Abeirando-se da arma, Monk ajoelhou-se e puxou pela espingarda. Com uma mão, tentou manobrar a arma, agarrando na sua tira e tateando para conseguir levantá-la e
encontrar o gatilho.
Não iria ter tempo.
Os quartos traseiros de Zakhar dobraram-se, prontos para a matança...
... no momento em que o grito de um segundo felino ecoou na rua abaixo. Não era tão alto, mas um urro perfeito de fúria e de dor. Monk reconheceu-o, tendo-o ouvido
há algumas horas.
O grito de morte de Arkaday, irmão de Zakhar.
Reconhecendo-o também, Zakhar saltou, virou-se em pleno ar e aterrou agachado de cauda erguida. Um assobio elevou-se do felino gigante, com menos fúria, mais cauteloso
e confuso.
Monk ergueu a espingarda e visou a peça de metal encaixada na parte de trás do crânio. Atirou um pouco mais abaixo.
A alguns passos de distância, o assobio selvagem de Zakhar transformou-se num uivo de dor, de lamento, procurando o seu irmão perdido.
Firmando a sua pontaria, Monk apertou o gatilho.
A espingarda disparou com uma forte réplica.
O tigre saltou, depois caiu estendido na relva.
Monk caiu de lado, inclinando-se sobre o seu coto. Pôs a espingarda ao ombro. Sabia que o seu alvo fora verdadeiro, um golpe misericordioso na base do crânio. Verificou
a sua própria ferida. A bala do soldado fizera um corte na coxa, mas passara ao lado.
Ele sobreviveria.
Monk respirou fundo várias vezes, depois fez um esforço para se levantar.
Do fundo da rua, Konstantin e Kiska apareceram. Monk sabia que devia a sua vida à pequena Kiska e ao seu perfeito assobio. Tendo-o ouvido uma vez, imitara o grito
de Arkaday. amplificado pela folha de estanho enrolada que Konstantin entretanto atirara para a relva.
Marta saiu do armazém e avançou diretamente para o camião.
Iriam buscar Pyotr e sairiam dali. Coxeando, Monk observou o complexo mineiro por cima da cidade. Ainda tinham uma ascensão difícil pela frente, mas Monk tinha ainda
uma coisa para fazer aqui. Debruçou-se sobre Zakhar e colocou uma mão no ombro ensanguentado do tigre, desejando à besta a paz que nunca conhecera durante toda a
sua vida.
- Vai-te, amigo... vai ter com o teu irmão.
00h43
Washington. D. C.
Painter correu pelo corredor vazio na direção das escadas. O alarme soara, acompanhado pela sirena do Protocolo Alfa. A evacuação das instalações estava quase terminada.
As saídas de emergência davam para uma garagem subterrânea vizinha. Painter não duvidava de que Mapplethorpe tinha homens vigiando as saídas, certificando-se de
que a criança não escapava. Mas, pelo menos, o pessoal da base podia sair do bunker de cimento subterrâneo.
Todos exceto aqueles que haviam sido apanhados durante o ataque inicial.
Depois de ter ativado o sistema de segurança, Painter parara primeiro no posto de comunicação do comando central e observara os registros de vídeo. Descobrira que
a comunicação com o exterior fora cortada, indicando que alguém tinha o esquema da estrutura de comando, mas deixara as linhas internas abertas. Das câmaras do andar
de cima, viu os comandos de Mapplethorpe reunindo uma dezena de reféns, pulsos amarrados atrás das costas com algemas de plástico.
Podia ter sido pior. A esta hora tardia, a Sigma não tinha muita gente. Satisfeito, Painter preparou o que precisava e, terminado o trabalho, virou a sua atenção
para o perigo mais próximo do seu coração. Abriu a porta que dava para a escadaria e quase que chocava com a parte posterior de Kat Bryant.
Ela transportava Sasha nos braços.
Fez um esforço para compreender.
Atrás de Kat, descortinou Malcolm Jennings e um segurança.
- O quê? Como? - gaguejou.
Lisa apareceu na esteira de Malcolm e apressou-se a ir ter com ele. Estava coberta de sangue. Sentiu o coração a bater com mais força, mas parecia que ela não estava
ferida. Ela envolveu-o com os braços e deu-lhe um abraço rápido. Ele sentiu o tremor do alívio que se desprendia dela. acompanhado do seu, depois separaram-se, de
novo profissionais.
- O que aconteceu? - perguntou ele.
Kat relatou os fatos de uma forma resumida, terminando com um “estávamos a tentar sair”.
- Nunca conseguirão com a Sasha - disse. - As saídas devem estar todas vigiadas.
- Então o que fazemos? - perguntou Lisa.
Painter olhou para o relógio.
- Bem. ao escaparem por vossa conta. Já tornaram as coisas mais fáceis. - Apontou para baixo. - Levem a Sasha para o vestiário do ginásio. Mantenham-na aí. Todos
vocês.
- E tu? - perguntou Kat.
Beijou Lisa na face. virou-se para a porta e saiu.
- Tenho uma última coisa a fazer, depois irei ter convosco.
- Tem cuidado - disse Lisa.
Kat gritou para ele.
- Diretor! O Monk ainda está vivo!
Painter parou, olhou para trás mas a porta da escadaria fechou-se. O quê? Não tinha tempo para inquirir o que ela queria dizer com aquilo. Teria de esperar. Voltou
a correr para o corredor e regressou ao sítio por onde tinha começado, de volta ao posto de comunicação. Abrandando, testou o ar. Um aroma adocicado permeava o espaço,
como devia estar a acontecer em todo o comando central.
Era a primeira etapa do programa do sistema de segurança: manter um acelerante gasoso no ar. Demorava apenas quinze minutos a atingir os níveis críticos. E, apesar
de ser seguro respirar durante pelo menos algumas horas, não tinham tanto tempo. Dentro de dez minutos, o sistema de segurança ativaria faíscas por toda a base e
desencadearia uma tempestade de fogo em todos os níveis do comando central. O fogo duraria apenas alguns segundos, alimentado pelo acelerante no ar, abrasando toda
a superfície dentro do bunker de cimento. Depois, os vaporizadores entrariam em ação. extinguindo as chamas imediatamente.
Dentro do posto de comunicação. Painter verificou a fila de monitores, recebendo o registro das câmeras instaladas em todos os níveis.
Percorreu-as com o olhar até chegar àquela que lhe interessava. Mostrava Mapplethorpe de pé ao lado de Sean McKnight. Tinha uma pistola apontada para as costas de
Sean. Atrás deles, os comandos começavam a desaparecer através de uma porta aberta para as escadas.
Painter ligou o áudio da câmera.
- ... uma loucura - disse Sean. - Não pode cercar canais como este. Acha que pode realizar um assalto não sancionado a outra agencia, para a seguir tentar limpar
tudo?
- Já o fiz anteriormente - grunhiu Mapplethorpe. - E tudo uma questão de produzir os resultados de acordo com a ofensiva.
- Por outras palavras, os fins justificam os meios - ridicularizou Sean. - Nunca se irá livrar disso. Já morreram duas pessoas.
- É tudo? Tal como disse, já o fiz muitas vezes. No estrangeiro e aqui.
Painter interrompeu a conversa. Falou ao microfone que transmitia através de altifalantes existentes no piso.
- Mapplethorpe!
O homem deu um salto, mas manteve a sua pistola firme. Procurou em redor, depois descobriu a câmera na parede. Recuperou a sua compostura, desenhando com os lábios
um gesto de escárnio.
- Ah, diretor, então ainda não saiu com o resto do seu pessoal. Muito bem. Podemos terminar isto rapidamente. Traga a garota e mais ninguém precisa de ficar ferido.
Painter falou ao microfone.
- Já derrubamos o seu homem, Mapplethorpe, e escondemos a garota num sítio onde não a encontrará.
- Ah, é? - Mapplethorpe fungou um pouco no ar. - Estou a ver que ativou o programa do sistema de segurança da Sigma.
Painter sentiu um arrepio. O homem obtivera mais informação do que a contida nos seus esquemas básicos; inteirara-se profundamente dos protocolos existentes. O sacana
tinha as mãos metidas em todo o lado, como uma aranha preta dançando na teia dos serviços de informações. A sua conduta branda e untuosa escondia uma essência muito
mais perigosa.
- E acredito que regulou o temporizador para zero cem - disse Mapplethorpe. confirmando o alcance do seu processador. - Não fomos capazes de decifrar o código para
o travar, mas algo me diz que não será necessário. Pelo menos, com os vinte reféns que tenho lá em cima. Vinte dos seus homens e mulheres. Com famílias e vidas para
além destas paredes. Não acho que tenha coragem para os deixar morrer, chacinados com as suas próprias mãos. Ao passo que eu...
Mapplethorpe ergueu a sua arma para a nuca de Sean.
- ... não tenho tais escrúpulos.
O homem disparou. A pistola soou, sobrepondo-se nos altifalantes, transformando-se num estouro e grito digital. Sean caiu de joelhos, depois no chão.
O peito de Painter apertou-se, incapaz de respirar. A descrença invadiu-lhe o corpo. Uma parte dele ainda esperava que Sean se recompusesse. para devolver o ataque.
Mas de imediato, uma cham.a tão quente como a tempestade que se aproximava queimou Painter. Surpreendido com a banalidade e crueldade do homem, Painter não conseguiu
articular quaisquer palavras.
Ao contrário do seu adversário.
A voz de Mapplethorpe regressou.
- Vamos buscar a garota, diretor. E ninguém vai nos deter.
18
7 de setembro, 10h38
Pripyat, Ucrânia
Gray apertou o cinto preto por cima do casaco verde do uniforme militar russo, com camuflagem florestai. Enfiou ainda com mais cuidado os pés nas botas. Kowalski
passou-lhe um boné forrado. O uniforme roubado servia perfeitamente, mas o conjunto do seu companheiro parecia estar quase a rebentar-lhe pelas costuras. Os dois
soldados russos, só com a roupa interior, haviam sido deixados na parte da frente da prisão. Apanhados de surpresa, não fora difícil derrubá-los e sacar-lhes os
uniformes.
- Vamos - disse Gray dirigindo-se para a motorizada.
- Shotgun!{6} - gritou Kowalski.
Gray olhou por cima, apercebendo-se de que o homem não estava a falar de uma arma. Ambos tinham as suas espingardas automáticas russas AN-94.
Kowalski olhou para o sidecar da motocicleta.
- Sempre quis andar numa coisa destas - disse, trepando para o banco.
Pouco tempo depois, com os motores a roncar, saíram pelos velhos portões da prisão para as ruas cobertas de ervas de Pripyat. Gray olhou para o relógio de pulso.
Vinte minutos.
Inclinando-se para baixo, carregou no acelerador com toda a força e avançou a alta velocidade através da cidade descolorida e ferrugenta. O asfalto apresentava fendas
e o vidro estilhaçado ameaçava os pneus. Em torno das esquinas, havia sempre um obstáculo inesperado: estruturas enferrujadas e abandonadas, mobília coberta de musgo
e até um conjunto estranhamente surreal de instrumentos de banda.
Apesar dos perigos, Gray avançou a uma velocidade estonteante, chegando a levantar os pneus do sidecar de cada vez que dobrava uma esquina. Kowalski gritava um pouco
nestas viragens. Passaram por soldados ocasionais patrulhando as ruas, que levantavam uma espingarda ou um braço para os saudarem; outras vezes, Gray descortinava
um rosto assustado aparecendo fugazmente por entre uma janela partida, um dos trabalhadores errantes da cidade.
Atingindo os limites de Pripyat, Gray deslocou-se na direção do horizonte, enquanto um trio de veados se afastava do roncar do veículo motorizado. Dirigiu-se para
a torre de refrigeração do reator. Mesmo por cima do roncar do veículo, ouviu excertos de vozes amplificadas ecoando das bancadas. Segundo Masterson, o senador Nicolas
Solokov estava a planear uma espécie de ataque a todos aqueles que se encontravam aqui reunidos para observar a selagem do reator de Chernobyl.
Mas qual era o plano do homem?
O que era a Operação Úrano?
Enquanto Gray circulava por uma estrada de asfalto recentemente pavimentada, observou o volume crescente do complexo de Chernobyl à sua frente. Os seus olhos foram
atraídos para aquilo que parecia ser uma colossal estrutura semicircular pré-fabricada de um dos lados. O hangar de teto abaulado construído em aço refletia a luz
da manhã como um espelho.
E estava a mover-se.
Tal como óleo fluindo na água, o Sol espraiava-se ao longo de toda a sua curvatura exterior. A estrutura ia encerrando lentamente o reator de Chernobyl. A maior
parte do complexo era cinzento-cimento, com algumas superfícies caiadas, mas, de um dos lados, uma estrutura grosseira sobressaía na ponta, escurecida como um dente
podre. Assinalava a tumba do reator número quatro, um imponente sarcófago preto. O hangar rolante abria-se numa das extremidades, procurando engolir a estrutura
sob o seu arco elevado.
À medida que se iam aproximando, a mente de Gray começou a antever várias hipóteses. Archibald Polk fora exposto a um nível letal de radiação, possivelmente daqui.
O que quer que fosse que Nicolas estivesse a planear teria de envolver o velho reator. Nada mais fazia sentido.
Masterson avisara que a segurança seria apertada Junto das bancadas, especialmente tendo em conta o número de dignitários presentes. As bancadas ficavam a uns quatrocentos
metros de distância do reator. Gray pesou as decisões a tomar; dirigir-se para as bancadas ou para o reator.
E se ele estivesse errado em relação ao reator? Será que havia uma bomba algures no meio das bancadas?
Enquanto a motorizada avançava pelo terreno aberto entre Pripyat e Chernobyl, uma voz abeirou-se dele, ecoando como um barulho oco, exaltando as virtudes da cooperação
nuclear no novo mundo. Não havia engano em relação a essa voz. Gray assistira a vários eventos na Casa Branca.
Era o presidente dos Estados Unidos.
Gray teve isto em consideração. Os Serviços Secretos deviam ter forçosamente inspecionado o lugar, pesquisando-o por diversas vezes, estabelecido um protocolo rígido.
Além disso, os Serviços Secretos deviam ter agentes em todos os lados do reator, à procura de qualquer ameaça.
Gray observou o número de veículos estacionados, o mar de antenas por satélite. Toda a área da tribuna estava protegida por cercas, portões e patrulhas - a pé e
em cima de jipes. Apesar do seu disfarce funcionar bem à distância, Gray duvidava que o estratagema lhe permitisse passar pelas bancadas. Não tinha identificação,
nenhum passe para o evento.
Enquanto media as suas opções, dirigindo-se para o local imenso, ficou surpreendido com a enorme dimensão do projeto. O hangar de aço gigante rolava lentamente ao
longo de duas calhas, puxado por macacos hidráulicos do tamanho de uma baleia. Já atingira o reator morto e começava a fechar-se por cima dele, arqueando-se bem
alto no céu, com o seu aço a brilhar profusamente sob o efeito da luz solar, tão alto que até a Estátua da Liberdade podia erguer-se nos seus próprios ombros sem
conseguir atingir o telhado do hangar abaulado.
Até Kowalski assobiou num gesto de apreciação, perante as dimensões da estrutura rolante. Acabou por se inclinar e gritar.
- Qual é o plano quando nós...?
Gray levantou um braço, para que ele se calasse. Uma nova voz cortara o discurso do presidente. Tal como o anterior, este novo orador também lhe era familiar. Falou
em russo, depois repetiu as palavras em inglês, falando para uma audiência internacional.
A voz do senador Nicolas Solokov soou na direção de Gray.
- Protesto contra todo esta paródia! - disse em voz alta. - Aqui estamos nós, a festejar por estarmos a apagar um pedaço vergonhoso da história russa, por o termos
escondido, como se nunca tivesse acontecido, varrendo-o para debaixo de um tapete de aço. E quanto àqueles que morreram durante a explosão, as centenas de milhares
condenados a morrerem de cancro e leucemia, os milhares de bebés nascidos com deformações, dores e atrasos mentais? Quem falará por eles?
Gray estava agora perto o suficiente para poder ver o palco que se erguia defronte do anfiteatro. As figuras eram muito pequenas para se poderem distinguir, mas
havia ecrãs gigantes de cada lado do palco. Uma mostrava o presidente russo; o outro, o líder dos Estados Unidos. Cada um dos presidentes encontrava-se atrás de
um pódio. No centro do palco, outra figura sobressaía no meio do caos. Nicolas Solokov. Alguns guardas tentaram retirar o senador do palco, enquanto outros o protegiam
para que pudesse falar. No meio da confusão crescente. Nicolas devia ter-se abeirado do palco para poder dar início a este seu protesto dramático coberto pelas televisões.
De um lado. os homens de preto rodearam e escudaram o presidente.
O que quer que fosse que Nicolas tivesse planeado. Já começara. Gray abaixou-se e acelerou o motor. A motorizada rolou a todo o gás pelo asfalto na direção das bancadas.
O alto-falante chiou com um feedback eletrônico. depois Nicolas continuou, gritando.
- Todos acreditam que um bonito caixão como este porá um fim a um legado amaldiçoado, mas tudo não passa de um embuste! O monstro já escapou da sua jaula! Por maior
que seja a tranca, ou por mais forte que seja o aço não podemos meter esse monstro atrás das grades. A única forma de pôr um fim a este legado é mudar fundamentalmente
a nossa atitude, estabelecer uma política verdadeira e duradoura. Esta cerimônia não passa de uma triste charada! E só pose, nenhuma substância! Devíamos ter vergonha!
Finalmente, os guardas detiveram os apoiantes do senador. O microfone foi-lhe retirado das mãos. Foi arrastado do palco.
O presidente russo começou a falar na sua língua materna, parecendo simultaneamente zangado e angustiado. O presidente dos EUA fez um sinal aos agentes para dispersarem,
não querendo dar ares de parecer muito preocupado com um político gabarolas. Os discursos retomaram lentamente o seu curso.
Atrás deles, o arco continuava a engolir o reator.
Gray abrandou a sua motorizada. Ainda tinha uma opção a tomar: dirigir-se para as bancadas ou para o reator. Considerou o protesto de Nicolas, sua saída dramática.
Fora tudo cuidadosamente encenado. O senador orquestrara seguramente uma razão para não estar presente no evento, para ser retirado dali. Mas para onde? Não deixaria
isso ao acaso. Não arriscaria ficar armadilhado de modo a sair prejudicado. Quem quer que tivesse arrastado Nicolas do palco devia estar ao seu serviço, retirando-o
dali em segurança.
Para lá do grupo de vans de televisão. Gray descortinou um jipe do exército verde fugindo a grande velocidade da zona onde os meios de comunicação se encontravam
concentrados. Circulava numa estrada enlameada que seguia paralela às calhas de dois metros e meio de altura da arcada maciça. O trilho sulcado afastava-se do reator
e desenhava uma curva, na parte final das calhas, na direção das traseiras do complexo.
Gray descortinou uma figura de casaco no assento de trás.
Nicolas.
Gray olhou para cima. A estrutura de aço brilhante consumia agora metade do volume escurecido do sarcófago. Dentro de quinze minutos, fechar-se-ia por completo por
cima da cripta. As bancadas estavam a uns quatrocentos metros de distância do reator.
Gray tinha de fazer uma escolha.
Recordou-se de Nicolas Solokov sentado atrás da secretária no posto da guarda durante o interrogatório. Desde o corte das suas roupas ao padrão do seu discurso,
o homem era arrogante e autoconfiante. um ego apenas compatível com uma extrema necessidade de controle. Irradiava dele.
Nicolas devia querer ver o que estava para acontecer.
Então porque é que se estava a dirigir para as traseiras do reator?
A não ser que...
Gray retirou a motorizada do asfalto e atalhou pelo campo aberto. Dirigiu-se diretamente para a parte final das calhas, tentando interceptar o veículo enquanto este
contornava a curva na estrada.
- Pierce! - gritou Kowalski. - Aonde vai?
- Salvar o presidente.
- Mas a bancada fica daquele lado! - Kowalski apontou com um braço na direção oposta.
Ignorando-o. Gray acelerou a motorizada como se fosse uma mota todo-o-terreno, galgando pela superfície ondulada. Kowalski agarrou-se com força às barras de apoio.
Gray carregou no acelerador e avançou pelo terreno. A lama e a erva espalharam-se atrás dele.
A frente, o Jipe percorreu os quase quatrocentos metros de calhas. O veículo estava quase a chegar ao fim. Seria por pouco. Gray ainda estava a um estádio de futebol
de distância da estrada.
E tinham sido detetados.
Um braço apontou na direção da motorizada veloz onde seguiam. A distância, Gray e Kowalski podiam passar por soldados russos a divertirem-se um pouco. A confusão
deve ter imperado por uns instantes no jipe. Não teriam muito mais do que isso.
- Kowalski!
- O que é?
- Importa-se de atirar para um dos pneus traseiros no momento em que fizerem essa curva?
- Você é doido ou quê? - perguntou, com a sua voz estremecida pelas sacudidelas da motorizada.
- Prepare-se.
Gray enfiou a motorizada por um leito de areia seca. As chuvas haviam deixado o trecho bastante plano e suave.
- Dispare agora! - gritou para Kowalski.
O homem possante já tinha a sua espingarda automática preparada. Kowalski apoiou-se com força no sidecar e colocou a arma ao ombro. Gray ouviu-o praticamente a rugir
para a arma.
- Anda lá, menina, faz com que o papá se sinta orgulhoso.
Mesmo à frente, o jipe atingira o final dos calhas. Abrandou para fazer a curva apertada mas não foi suficiente. O condutor teve dificuldades em aguentar o veículo
sobre as quatro rodas.
Gray ouviu um pum-pum vindo do carro lateral. A NA-94 disparava tiros duplos a cada apertão. Simultaneamente, o jipe derrapou, enquanto o motorista perdia o controle,
com o pneu da parte de trás esquerdo a fumegar e a soltar-se. O veículo deslizou de lado e embateu num poste de cimento entre as extremidades da calha.
Kowalski assobiou de satisfação e afagou a parte lateral da arma.
- Obrigada, querida!
Mais autoelogios foram interrompidos no momento em que a motorizada deixava o leito arenoso e voltava para o terreno mais duro. Derrubando pedras, o veículo deslocou-se
para a frente e atingiu a estrada em segundos.
O jipe russo estava no sítio onde tinha embatido, com um dos lados todo danificado, tendo provocado a morte a um dos soldados que iam no banco da frente. Os outros
três ocupantes tinham deixado o veículo e fugido para um emaranhado de barreiras de cimento e pequenos barracões de metal que preenchiam o espaço entre as duas calhas.
Enquanto Gray aparecia à vista, um rugido de palmas emergiu das bancadas, juntamente com aplausos. A cerimônia estava a atingir o seu auge. Devido ao barulho, Gray
mal ouviu os disparos que lhe foram dirigidos. O pneu da frente da motorizada explodiu, mas Gray antecipara o ataque e direcionara a motorizada para o outro lado
do jipe danificado. Embateu na traseira deste com uma derrapagem e rolou para fora da motorizada.
Kowalski caiu ao lado dele e juntos abrigaram-se atrás do veículo espatifado.
Mais balas sibilaram da frente do jipe.
Gray arriscou uma espreitadela rápida em torno do para-choques traseiro. Viu uma figura de casaco a fugir diretamente para o centro das calhas, que se elevavam a
dois metros e meio de altura de cada lado, construídas em cimento e aço.
Nicolas Solokov iniciara uma comida de trezentos metros na direção do objetivo, neste caso, a ponta final do arco rolante. Gray tentou olhar para ele, mas uma bala
bateu no para-choques e assobiou junto ao seu ouvido. Ainda viu uma pistola a fumegar, sustida no alto por uma mulher de cabelo preto.
Elena.
Praguejando, recuou.
Kowalski uivou, ferido no ombro.
A mulher e um soldado tinham-nos cercados.
Gray olhou para o relógio.
Dez minutos.
Nicolas ouviu um tiroteio atrás dele e tentou correr mais depressa pelo meio das calhas elevadas, mas torcera o tornozelo esquerdo depois do acidente. Tinha de confiar
em Elena para o manter em segurança.
Dois trabalhadores caminhavam atrás da parte posterior do abrigo de aço. A estrutura maciça rolava lentamente ao longo das calhas, avançando trinta centímetros por
minuto sobre rolamentos de politetrafluoretano e puxada pelos imponentes macacos hidráulicos que sobressaíam de cada um dos lados.
Uma porta de serviço do tamanho de uma porta de garagem estava aberta à frente e oferecia acesso ao interior do abrigo rolante. Era a principal razão pela qual Nicolas
fugira dos outros. Não podia estar sentado em frente dessa porta aberta quando a Operação Úrano entrasse em ação.
Coxeou o mais depressa que podia pelo caminho cheio de gravilha que mediava as calhas. Tinha de passar por aquela porta, atravessar o interior do abrigo e sair pela
porta dos fundos antes de esta se fechar.
Mesmo que não pudesse parar a Operação Úrano.
Só tinha de sair do seu caminho.
O plano fora formulado em 1999, quando o Plano de Implementação do Abrigo fora iniciado. O objetivo do plano era estabilizar e cobrir 0 velho sarcófago. Os engenheiros
tinham sido avisados, durante anos, de que a velha cripta podia entrar em colapso a qualquer momento, libertando cerca de duas centenas de toneladas de urânio radioativo
para a atmosfera. Nessa altura, várias secções do velho sarcófago tinham começado já a ceder. Haviam surgido pequenos buracos e fissuras. Por isso. a primeira fase
do plano procurara estabilizar o sarcófago. Isso significava cobrir os buracos, escorar os pilares das paredes mestras e fortalecer a débil torre de refrigeração.
O que foi feito enquanto a imponente estrutura semicircular do abrigo estava a ser construída a uns seguros quatrocentos metros de distância.
O trabalho estrutural inicial ficou concluído em 1999, mas continha alguns segredos. Depois da queda da União Soviética, a corrupção galopara. Não fora muito dispendioso
proceder à colocação secreta de quatro cargas detonadoras nos novos pilares das paredes. Tinham permanecido adormecidas e inativas até ontem. Na noite passada, um
dos homens de Nicolas enviara um sinal para as cargas escondidas, ativando os temporizadores para coincidirem com o encerramento do abrigo por cima do sarcófago.
Uma vez ativado não havia ponto de retorno.
Precisamente dois minutos antes de o abrigo ser selado, as cargas explodiriam. Ninguém as ouviria. Só se notaria um fraturar de cimento, seguido pelo colapso de
uma secção inteira da parede do sarcófago - o lado que dava para as bancadas. Durante dois minutos, as bancadas seriam atingidas por quantidades importantes de radiação,
antes de o abrigo ser finalmente selado contra a parede de cimento atrás do sarcófago. A exposição não seria suficiente para causar danos imediatos. Na verdade,
ninguém sentiria nada. Mas durante esse dois minutos, toda a gente presente absorveria uma dose letal de radiação.
Estariam todos mortos dentro de uma semana.
Presentes estavam também o primeiro-ministro e presidente. Juntamente com os líderes do lado de lá das Américas e da União Europeia. Se o plano tivesse êxito, a
missão de Nicolas colocaria os principais governos mundiais na maior das confusões, pelo que quando a nuvem radiológica se espalhasse globalmente em virtude da operação
da sua mãe em Chelyabinsk 88, o mundo precisaria de uma voz forte, alguém que tivesse passado toda a sua carreira a avisar acerca da possibilidade de ocorrência
de uma tal catástrofe.
Voltar-se-iam para o único sobrevivente da Operação Úrano.
E. no decorrer dos próximos meses, orientado pela conjura secreta de sábios, Nicolas demonstraria uma presciência notável, um conhecimento intuitivo e uma previsão
brilhante.
Fora do fogo que se avizinhava, Nicolas ascenderia rapidamente ao poder na Rússia e. a partir daí, alargaria a sua influência em termos globais.
O Império Russo renasceria destas cinzas radioativas para orientar o mundo numa nova direção.
Era um pensamento que já estava a deixá-lo todo entusiasmado.
Coxeou na direção dos dois homens que seguiam atrás do abrigo. Tirou a pistola do bolso. Dois tiros na cabeça. Quase à queima-roupa. Caíram como sacos pesados na
gravilha. Não podia haver testemunhas.
Nicolas apressou-se a entrar pela porta de serviço aberta que furava a parede traseira do hangar. Foram precisos doze passos para atravessar a porta. As paredes
de aço do abrigo tinham doze metros de espessura.
Uma vez lá dentro. Nicolas entrou no coração do abrigo.
Apesar do desespero em que se encontrava, ficou boquiaberto perante a absoluta maravilha de tão imponente espaço. O arco em aço atingia uns cem metros de altura
e tinha uma largura duas vezes e meia superior. Cavernoso não era um adjetivo suficiente para descrever o lugar. Tal como estrelas num céu noturno. centenas de lâmpadas
iluminavam o interior, colocadas ao longo de andaimes de aço que cobriam o interior do abrigo. Por cima, um emaranhado de calhas amarelas cruzava o telhado. Guindastes
robóticos gigantes esperavam imóveis, prontos para desfazer o velho sarcófago. Ganchos gigantes do tamanho de âncoras de navios e suportes de braços esqueléticos
pendiam dos guindastes.
No interior do abrigo. Nicolas parou o tempo suficiente para carregar no botão vermelho que fechava a porta de serviço. A porta começou a rolar lentamente atrás
dele. deslizando com a ajuda de engrenagens gigantes.
Segundo o seu plano original, Nicolas e Elena deviam encontrar-se no exterior, num posto de controle do outro lado do abrigo. O posto, que controlava os motores
dos guinchos, apresentava um forte revestimento a chumbo para proteger o operador de qualquer radiação. Estava também posicionado no lado oposto das cargas detonadoras,
pelo que a exposição seria mínima.
Nicolas precisava de alcançar esse posto, mas se Elena permanecesse armadilhada entre as calhas lá fora, ele teria de protegê-la do choque da radiação que estava
para vir. Embora não estivesse na linha de exposição direta como as bancadas, a sua posição não evitava que viesse a ser atingida por qualquer radiação que escapasse
através da porta traseira aberta - talvez não o suficiente para a matar, mas capaz de inviabilizar qualquer hipótese de vir a ter crianças saudáveis.
Por isso, para proteger a sua própria herança genética. Nicolas procurou defendê-la. Mas, mais do que isso não podia descurar que gostava realmente desta mulher.
A sua mãe interpretaria tais sentimentos ternos como um sinal de fraqueza, mas Nicolas não podia ignorar o seu coração.
Enquanto a porta baixava lentamente, Nicolas saiu dali.
- Elena! - gritou Gray de trás do jipe. - Precisa nos ajudar!
Não houve resposta.
Pelo menos da parte de Elena.
- Pierce, não creio que consiga se safar desta - disse Kowalski. O companheiro agachou-se a alguns metros de distância. O casaco apresentava uma mancha de sangue
proveniente do ombro, mas era só uma esfoladela. - A mulher é doida. Por que os loucos são sempre bons atiradores?
- Não creio que ela seja louca - murmurou Gray.
Pelo menos era isso que esperava.
Viu como ela reagira à revelação de que Sasha era filha biológica de Nicolas. Uma mistura de pavor e proteção. Havia alguma ligação entre Elena e a garota, algo
mais do que uma irmandade aumentada.
Tinha de confiar em sua suposição.
- Sasha veio me procurar! - gritou. - Ela me procurou, nos trouxe aqui por alguma razão.
O silêncio perdurou. Depois uma voz suave acabou por falar.
- Como? Como Sasha trouxe vocês aqui?
Era um teste.
Gray respirou fundo. Elevou a sua espingarda no ar e jogou-a para o lado.
- Pierce... - grunhiu Kowalski. - Se acha que vou largar a minha arma, deve estar tão doido quanto ela.
Gray levantou-se.
No intervalo, a espingarda do soldado russo rolou na sua direção. Elena também se ergueu e gritou para o soldado, impedindo-o de atirar de imediato. Elena queria
saber mais coisas sobre Sasha. Do outro lado do caminho, o casal russo partilhava uma fortaleza de postes de cimento. Elena manteve a pistola apontada para ele.
Gray respondeu à pergunta.
- Como Sasha nos trouxe até aqui? Desenhando. Primeiro guiou os ciganos até minha porta. Depois desenhou o Taj Mahal que nos levou à Índia, onde descobrimos sua
verdadeira herança e história. São vocês que têm que perguntar por quê? Sasha é especial, não é?
Elena se limitou a olhar para ele, com seus olhos escuros e duros.
Gray tomou isso como um sinal de concordância e continuou, deixando-a ver e ouvir a verdade contida nas suas palavras.
- Por que fomos enviados à Índia? Por que nos envolveu? Por que agora? Tem que haver uma razão. Acho que Sasha, consciente ou inconscientemente, está tentando frear
seus planos.
Elena não mostrava qualquer sinal de reconhecimento, mas Gray ainda estava vivo.
- Ela nos indicou um caminho para descobrirmos suas raízes; do oráculo de Delfos, por intermédio dos ciganos, até aqui. Acho que havia alguma razão para que sua
linhagem surgisse. Talvez a concretização de uma grande profecia que ainda esteja por ocorrer.
- Que profecia? - perguntou Elena.
Gray reparou num brilho de reconhecimento e medo. Será que havia algum pesadelo gravado na sua psique? Gray lembrou-se dos mosaicos encontrados no complexo grego
na Índia, incluindo o último mosaico na parede, uma forma a arder erguendo-se do fumo do ônfalo. Gray arriscou e rapidamente descreveu o que haviam encontrado, terminando
com a frase:
- A figura parecia com um rapaz com olhos de fogo.
A pistola no braço de Elena começou a tremer, embora continuasse a apontar para o peito do seu interlocutor. Gray ouviu Elena murmurar um nome parecido com Peter.
- Quem é Peter?
- Pyotr - corrigiu Elena. - O irmão da Sasha. Ele tem pesadelos às vezes. Acorda aos gritos, dizendo que seus olhos estão a ardendo. Mas... mas...
- O quê? - pressionou Gray, intrigado apesar da corrida contra o tempo.
- Quando ele acorda, todos nós também acordamos. Por breves instantes, vemos Pyotr ardendo. - Ela abanou a cabeça. - Mas o seu talento é a empatia. Ele é muito forte.
Atribuímos os pesadelos a algum abalo do seu talento que irradia para fora. Um eco de empatia.
- Não é apenas um eco de Pyotr - apercebeu-se Gray em voz alta. - É um eco que remonta ao início de tudo.
Mas onde é que tudo isto termina?
Gray olhou para Elena.
- Não pode querer verdadeiramente o que está para acontecer. A Sasha claramente que não queria. Ela trouxe-me até aqui. Se ela quisesse que o plano do Nicolas funcionasse,
tudo o que tinha a fazer era ficar calada. Mas não ficou. Trouxe-me até si, Elena. Até si. Até este momento. Tem hipóteses de ajudar ou destruir o que ela começou.
A escolha é sua.
A sua decisão foi automática, talvez nascida do fogo no seu cérebro. Rodopiou num pé e atirou. O soldado russo caiu. morrendo instantaneamente.
Gray correu para ela.
- Como é que detemos a Operação Úrano?
- Não é possível - respondeu, com a sua voz ligeiramente confusa, talvez devido à inversão repentina dos papéis, ou talvez por estar meramente a acordar de um longo
sonho.
Elena entregou a Gray a sua pistola, como se soubesse aonde ele devia ir. O homem já estava a passar pela sua frente e a avançar por entre os carris. Se ela não
sabia como parar a Operação Úrano, talvez Nicolas soubesse.
- Tem de se apressar - disse. - Mas eu... talvez saiba como ajudar.
Virou-se e olhou para a parte traseira do complexo, para onde Nicolas se dirigira inicialmente.
Gray apontou para a motorizada. Embora o pneu da frente estivesse furado, iriam mais depressa nela do que a pé.
- Kowalski. ajude-a.
- Mas ela alvejou-me.
Gray não tinha tempo para discussões. Virou-se e correu para a floresta de postes de cimento. O caminho abria-se à frente, alinhado pelas calhas de cada lado. No
extremo oposto, descortinou Nicolas a escapar, coxeando, por uma grande porta aberta na imponente parede de cimento e a desaparecer na escuridão.
Gray avançou pelo caminho.
Só restavam seis minutos.
Enquanto o outro fugia, viu um intervalo preto na parede de aço que começava a estreitar-se. A porta estava a fechar-se.
Tinham escapado à prisão, e agora?
Elizabeth correu atrás de Rosauro, enquanto Luca as seguia e protegia as suas costas com a pistola. Usando a sua bengala, Masterson cambaleava o melhor que podia
ao lado de Elizabeth. Ela ajudou o velhote, segurando-o pelo cotovelo.
A sua prioridade número um era encontrarem um telefone e lançarem o alarme. Mas toda a cidade parecia assombrada e desolada. As bétulas cresciam no meio das ruas
esburacadas, a relva crescia por todo o lado. os edifícios estavam cobertos de líquenes e musgo. Como e que iriam encontrar um telefone a funcionar aqui?
- O próximo cruzamento! - arfou Masterson, acenando com a bengala ao mesmo tempo que pulava com a sua perna boa. - A esquerda. O Hotel Polissia deve ficar no fim
desse próximo quarteirão.
Masterson sugerira o destino. Aparentemente, o hotel tinha sido renovado para uma gala que tivera lugar na noite anterior e estava agora a ser usado como local de
transferência para os convidados da cerimônia.
E aqueles que não tinham sido convidados?
Elizabeth vira Gray e Kowalski a voar em cima de uma motorizada enquanto eles fugiam. Esperava que estivessem bem e pudessem fazer alguma coisa ao sacana. Enquanto
fugia com os outros, a sua cabeça começara a doer e os olhos a franzirem-se. A tensão e o medo tinham-na deixado de rastros.
- Lamento. Elizabeth - disse Masterson com um ar ofegante.
Ela olhou para ele. Sabia que ele estava a pedir-lhe desculpa por mais do que tê-la envolvido a ela e aos outros nesta fuga.
- Não pensei sinceramente que o seu pai corresse tanto perigo - explicou. - Julguei que o interesse russo pelo trabalho do Arquibaldo era apenas uma questão de espionagem
industrial, roubo de informações. Nunca pensei que resultaria na sua morte.
Embora compreendesse a posição do professor no passado e reconhecesse a ameaça internacional que existia agora, não conseguia arranjar maneira de lhe perdoar. Não
pelo seu pai, não por os ter envolvido em tudo isto sem o seu consentimento. Ela estava farta de segredos - do seu pai e deste homem.
No momento em que se abeiravam do cruzamento, dois soldados russos saíram de uma porta. Um largou um cigarro e esmagou-o com o pé no chão. O outro levantou a sua
espingarda e gritou para eles em russo.
- Kak tebya zavut?
- Deixem comigo - disse Masterson. acenando a Rosauro e a Luca para baixarem as armas.
O professor endireitou o seu chapéu branco e apoiou-se com mais força na bengala. Avançou um pouco trêmulo para a frente e gritou em russo:
- Dobraye utro!
Masterson falava fluentemente. A única coisa que Elizabeth compreendeu foram as palavras London Times. Masterson devia estar a tentar fazê-los passar por imprensa
convidada.
O soldado baixou a arma.
- São ingleses?
Masterson acenou com um sorriso largo e embaraçado.
- Fala inglês, ótimo. Nós nos perdemos e não conseguimos descobrir o caminho para o Hotel Polissia. Se fosse gentil, talvez nos pudesse escoltar até lá.
Pelo franzir de sobrancelhas dos soldados, não deviam ter entendido lá muito bem. Masterson estava a usar a sua própria falta de fluência para os confundir, para
impedi-los de pesquisar toda a história. Mas o soldado com a espingarda terá compreendido o seu objetivo.
- Polissia Gostineetsa? - perguntou.
- Da! Isso é que é ser amigo. Podem levar-nos até lá?
Os dois trocaram algumas palavras em russo. Por fim, um encolheu os ombros e o outro virou-se com um aceno.
Atrás deles, ouviu-se o barulho de uma motorizada, perturbando a cidade silenciosa. Ao longe na rua, na direção da prisão, uma motorizada com uma luz azul a piscar
e sidecar apareceu na estrada, transportando dois soldados com bonés forrados. Tinham sido localizados. Gritos em russo irromperam na sua direção.
De repente, os dois soldados à sua frente ficaram mais hirtos.
- Sarilhos - disse Masterson e empurrou Elizabeth rua abaixo. - Corram!
Rosauro rodou num tacão e bateu na cara do soldado mais próximo. O osso fraturou-se e ele caiu rigidamente para trás. O outro guarda ergueu a sua arma, mas Luca
foi mais rápido no manejo da pistola. O sangue explodiu do ombro do soldado, fazendo-o girar como se tivesse levado um coice de uma mula, mas a sua arma continuou
a disparar em fogo automático na direção deles.
Masterson rolou e protegeu Elizabeth, enquanto Luca e Rosauro se atiravam para o chão de barriga para baixo. O professor caiu por cima dela, batendo-lhe nos Joelhos.
A pistola de Luca entrou de novo em ação e o tiroteio acabou.
Masterson saiu de cima dela e tombou no chão. Elizabeth sentira os impactos violentos no corpo do homem. Ele virou-se de barriga para cima enquanto o sangue se ia
esvaindo do corpo.
- Hayden!
Ele acenou-lhe, ainda cora a bengala nas mãos.
- Vão!
A motorizada rugiu no fundo da rua na direção deles todos.
Rosauro levantou-a do chão.
Luca disparou para a motorizada, mas esta escondeu-se atrás de uns tantos carros e destroços para se encobrir. O fogo de retorno do soldado que ia no sidecar faiscou
no pavimento à volta deles.
- Peço desculpa, Elizabeth - disse Masterson outra vez, com o sangue a jorrar-lhe dos lábios.
- Hayden... - Ela cobriu a boca, incapaz de encontrar as palavras exatas para lhe agradecer, para o perdoar.
Mas ele detetou isso nos olhos dela e acenou-lhe ligeiramente num gesto de agradecimento, esboçando um sorriso, feliz.
- Vão... - disse com uma voz rouca, as pálpebras a fecharem-se.
Rosauro empurrou-a pela rua abaixo na direção do próximo cruzamento. Luca continuava a disparar com uma mão atrás enquanto comia, depois a parte lateral da sua pistola
abriu-se, sem munições. O fogo metralhado perseguia-os.
Rosauro guiou-os pela beira da estrada, colocando-os entre um camião enferrujado e a motorizada.
- Dobrem a esquina!
Mas nunca conseguiriam chegar a tempo.
Não estando mais debaixo de fogo, a motorizada aproximara-se deles.
Elizabeth olhou por cima do ombro. No momento em que a motorizada se desviava para não pisar os corpos na rua, Masterson rolou subitamente com as últimas forças
que tinha, batendo com a bengala na roda da frente da motorizada. O bastão robusto enviou a motorizada pelos ares. Caiu de pernas para o ar e deslizou ao longo do
pavimento duro, lançando faíscas e libertando um cheiro ensanguentado.
Rosauro pressionou-os para a frente.
- Depressa!
Felizmente, o ruído da motorizada havia-se sobreposto ao do tiroteio, mas tinham de sair dali o mais depressa possível. Atingindo o cruzamento, enfiaram-se na rua
a seguir. Quatrocentos metros adiante, surgiu um hotel claro, recentemente pintado, com as luzes a cintilar. Algumas limusines pretas, resplandecendo de brilho,
esperavam junto ao passeio.
Correram para lá. Luca atirou para o chão a sua pistola vazia e tentaram compor as suas roupas de modo a apresentarem-se com um ar normal. Abrandaram quando chegaram
ao hotel e caminharam na sua direção como se fossem hóspedes. Ninguém os deteve. O hotel estava praticamente deserto, com apenas um grupo de motoristas a conversar
na entrada. Alguns membros do pessoal encontravam-se a trabalhar atrás de uma secretaria. Todos os outros deviam estar na cerimônia.
Rosauro dirigiu-se ao balcão central.
- Há algum telefone que possamos usar? Nós... nós trabalhamos para o New York Times.
- Sala de imprensa... ali - disse um jovem com um ar cansado, num inglês hesitante. Apontou na direção de uma porta Junto à entrada.
- Spacibo - agradeceu Rosauro.
Levou-os até a porta. A sala era quadrada com uma bancada baixa que se estendia ao longo de todo o seu perímetro. Uma mesa central continha todo o tipo de material
de escritório: resmas de papel, blocos, canetas, agrafadores. Mas o que chamou a atenção de Elizabeth foram as duas dezenas de telefones pretos colocados ao longo
da bancada que havia junto à parede.
Rosauro dirigiu-se a um lado. pegou no auscultador e esperou pelo sinal de ligação. Acenou com um ar satisfeito. Enquanto marcava, disse:
- Vou dar o alerta para o comando central. Espalharão a palavra e procederão à evacuação.
Elizabeth afundou-se numa cadeira vizinha. Na calma momentânea, começou a tremer por todo o lado. Não conseguia parar. A morte de Masterson... destroçara algo nela.
As lágrimas começaram a cair-lhe, sentindo pesar pelo professor, mas também pelo seu pai.
Rosauro concluiu a marcação e esperou. Franziu o sobrolho devagar e as suas sobrancelhas uniram-se.
- O que se passa? - perguntou Luca.
Ela abanou a cabeça, preocupada.
- Não estou tendo resposta alguma.
00h50
Washington. D. C.
Painter bateu ligeiramente na porta do vestiário e empurrou-a com cuidado. Foi cumprimentado com uma pistola apontada ao rosto. Kat baixou a arma, com um olhar aliviado.
- Como está toda a gente? - perguntou, seguindo-a para o interior.
- Até agora, tudo bem.
Um ajudante médico armado da Sigma tomou a sua posição à porta. Kat levou Painter para a sala principal, alinhada por filas de bancos e cacifos de metal. No fundo
havia uma arcada que dava para os chuveiros e sauna.
Ket levou-o até uma ala lateral. Encontrou Malcolm num banco e Lisa sentada no chão. como o braço em tomo de Sasha. A garota olhou para ele, com os seus grandes
olhos azuis, e balouçou ligeiramente. O seu olhar encontrou o de Kat e todo o seu corpo relaxou.
Lisa levantou-se. Mudara de indumentária, já não estando coberta de sangue. Kat dobrou-se. pegou na Sasha e sentou-se no banco com ela. Murmurou qualquer coisa ao
ouvido da garota que a fez esboçar um pequeno sorriso de criança.
Lisa deslizou para os braços de Painter. depois olhou para ele durante um segundo.
- O que se passa? - murmurou, preocupada.
Painter pensou que conseguia escondê-lo mas como é que era possível disfarçar a fúria e a dor que se tinham apoderado dele?
- É o Sean - disse.
Kat e Malcolm olharam para ele.
Painter respirou fundo.
- O sacana matou-o. - Ainda conseguia ouvir o tiro, o barulho do feedback e o corpo do seu amigo a cair.
- Oh. meu Deus... - murmurou Lisa, agarrando-se mais a ele.
- O Mapplethorpe deve estar a dirigir-se para aqui à procura da garota. - Painter olhou para o relógio.
Kat reparou no seu gesto.
- O sistema de segurança?
- Entrará em ação dentro de quatro minutos. - Painter rezou para que tivesse preparado tudo corretamente. O ar estava a ficar pesado com o acelerante adocicado.
- Se tivermos de defender o espaço - perguntou Kat temos de nos preocupar com o fato de o tiroteio poder vir a incendiar o ar?
Ele abanou a cabeça.
- O composto funciona como C4 aerossolizado. Seria necessário uma enorme faísca elétrica para o incendiar, nunca uma pequena chispa.
Lisa manteve-se ao seu lado.
- Então o que podemos fazer daqui?
Painter apontou com a cabeça para os pés deles. Ele queria protegê-los o melhor que podia. Não iria perder mais ninguém. Mas não tinha muito para oferecer.
- E melhor escondermo-nos.
Mapplethorpe seguiu a sua tropa de elite pelo corredor abaixo.
Empregara o mesmo grupo de homens várias vezes no passado, uma equipe de mercenários que incluía antigos membros das SAS britânicas e das Recces sul-africanas. Eram
os seus músculos no mapa-múndi político. Faziam tudo o que lhes fosse pedido; assassínios, raptos, torturas, abusos. Qualquer que fosse a operação clandestina que
precisasse de efetuar, estes homens estavam sempre prontos. Melhor ainda, depois de tudo, limitavam-se a desaparecer, não deixando qualquer rastro, apenas sombras
e fantasmas. Eram homens duros como estes que mantinham o país seguro. Onde outros temiam pôr os pés, estes soldados não hesitavam.
O homem da frente atingiu a porta no final do corredor. O seu letreiro dizia VESTIÁRIO. O soldado levantou um punho. Na outra mão, trazia um seguidor eletrônico.
Previamente, Trent McBride reportara que o microchip da criança ainda estava a funcionar. Não havia lugar onde ela se pudesse esconder. Conseguiriam apanhar o seu
sinal neste piso.
O comando esperou por ordens para prosseguir.
Mapplethorpe acenou-lhe através da porta. Olhou para o relógio. O sistema de segurança atuaria dentro de três minutos. No caso de Painter Crowe decidir não abortar
a tempestade de fogo, ele queria agarrar a garota rapidamente e evacuá-la. Se fossem suficientemente céleres, isso não seria um problema.
Havia uma saída de emergência no outro extremo do corredor que dava para uma garagem subterrânea.
A frente, os soldados irromperam pela porta e correram agachados e velozes para a sala seguinte. Mapplethorpe seguiu na sua esteira, fechando a porta atrás dele.
Ouviu ordens silenciosas a circularem entre o grupo enquanto se espalhavam pelas filas de cacifos.
Mapplethorpe seguiu o comando com o seguidor, ladeado por mais dois soldados. O homem da frente correu ao longo dos cacifos, com o braço levantado. Acabou por atingir
a fonte do sinal, baixando o braço e apontando.
No silêncio, Mapplethorpe ouviu um ligeiro gemido vindo do interior do cacifo.
Até que enfim.
Um cadeado mantinha a porta trancada, mas um outro soldado sacou de um pequeno conjunto de cortadores de cadeados e abriu a porta.
Mapplethorpe acenou. Já não tinham muito tempo.
- Depressa!
O comando da frente agarrou no puxador do cacifo e abriu a porta com toda a força. Mapplethorpe deparou-se com um gravador digital, um transmissor de rádio e uma
pistola Taser ligada à porta.
Uma armadilha.
Mapplethorpe virou-se e desatou a correr.
Atrás dele, a pistola disparou com um estampido e crepitar de eletricidade.
Mapplethorpe gritou no momento em que ouviu um forte barulho de ignição, idêntico ao disparo de um grelhador a gás. Uma onda de calor e uma bola de fogo sobrevieram
na sua direção. Derrubaram-no e projetaram-no para a frente. As suas roupas começaram a arder. Ele respirava chamas, com o couro cabeludo queimado até os ossos.
Agarrou-se à parede, não mais humano, apenas uma tocha ardente de agonia.
Rolou e ficou a arder durante uma eternidade, até que a escuridão o consumiu por completo.
Um piso em baixo, no vestiário do ginásio, Painter ouviu os gritos ecoando do vestiário médico, mesmo por cima deles. Montara a armadilha no piso superior, sabendo
que Mapplethorpe iria procurar a garota em função do sinal detetado. Colocara um dos transmissores de rádio Cobra usados para afastar os helicópteros da casa segura.
Tal como anteriormente, ativara o aparelho para imitar o sinal da garota.
Quando era criança, Painter costumava ir caçar com o seu pai para a Reserva Mashantucket, as terras tribais do seu povo. Crescera com conhecimentos na arte de construir
armadilhas e atrair presas. Hoje não foi diferente.
A sua pista falsa atraíra os outros como traças a uma chama.
E, tal como as traças, tiveram um fim brutal.
Painter não sentia remorsos pela armadilha. Ainda tinha em mente Sean McKnight a cair no chão. Outros dois membros do pessoal tinham também morrido. Painter olhou
para o relógio. O segundo ponteiro ultrapassava já as doze, aproximando-se da hora prevista para a entrada em ação do sistema de segurança.
Susteve a respiração, mas nada aconteceu.
Previamente, depois de ter ativado o sistema de segurança, fugira para a sala de mecânica e, manualmente, desmontara o sistema de ignição eletrônico. Teria sido
necessário inundar os pisos com o gás acelerante, mas Mapplethorpe mostrara-se correto na sua observação. Painter não podia permitir que os homens e mulheres capturados
pela equipe de comando morressem, nem sequer para proteger a garota. Por isso, montara a armadilha, concentrando a tempestade de fogo num único compartimento e atraindo
Mapplethorpe e a sua equipe para ele.
Com a maior parte dos soldados liquidada e o seu líder morto, os outros iriam dispersar-se e desaparecer na noite.
Lisa encostou-se a ele.
- As chamas alastrarão?
A resposta veio de cima. Os borrifadores entraram em funcionamento e a água e a espuma começaram a cair.
- Já terminou tudo? - perguntou.
Painter acenou.
- Aqui, sim.
No entanto, Painter sabia que as coisas noutro sítio estavam longe de estar terminadas.
10h53
Pripyat, Ucrânia
Gray correu para a porta de aço que se ia fechando no extremo do hangar gigantesco. Percorreu o caminho entre as calhas elevadas. Passou pelos corpos de dois trabalhadores,
alvejados na cabeça.
Ouvia o seu coração aos saltos, mas os aplausos ecoando das bancadas distantes chegavam-lhe insistentemente aos ouvidos, como se estivesse numa pista de atletismo
a correr a prova de quatrocentos metros obstáculos a toda a velocidade, para poder alcançar a meta em primeiro lugar. Só que nesta corrida, as vidas dos espectadores
dependiam dele conseguir cru não chegar à meta a tempo.
Com um último ímpeto de velocidade, atingiu a porta e mergulhou de cabeça sob a porta descendente. Era como entrar num espaço diminuto por baixo de uma casa. A porta
tinha vários metros de espessura, composta por placas de aço. Rastejou para a frente enquanto a extremidade continuava a descer, exercendo pressão sobre ele. O pânico
incendiou o seu coração. Esbracejou e esperneou, tentando avançar para a frente, enquanto ia sendo progressivamente esmagado sob o peso da porta grossa.
Por fim conseguiu e rolou para um espaço cavernoso. Olhou para o lugar durante uns breves segundos: um interior vasto, rodeado por andaimes, confinando uma estrutura
de dez andares de cimento e aço escurecido. Era o famoso sarcófago, a sepultura por cima do reator quatro. Por agora, o hangar fora rebocado de modo a encenar a
cripta quase por completo. Do outro lado do sarcófago, erguia-se uma parede de cimento. O hangar terminaria a sua viagem e unir-se-ia a essa parede, selando o sarcófago
na sua totalidade.
Mas, por enquanto, um arco de luz ainda se espalhava pelo sarcófago como um arco-íris abrasador. Era tudo o que restava em termos de contato com o mundo. Enquanto
Gray olhava, o arco-íris iluminado pelo Sol começou a ficar cada vez mais estreito.
Do lado esquerdo, Gray ouviu alguém a falar em russo fora do hangar, num tom orgulhoso e destemido, ressoando de forma sonora das bancadas. Também ouviu o zumbido
firme e contínuo dos macacos hidráulicos, enquanto puxavam o hangar de modo a cobrir os últimos metros.
Depois, do lado direito, uma pistola disparou.
Gray recordou-se dos corpos lá fora.
Nicolas estava a deixar um rastro fácil de seguir.
Enquanto Gray corria agachado nessa direção ia-se esquivando em torno das várias placas de aço, um monte de cimento partido e uma empilhadora. O ar cheirava a óleo
e sabia a ferrugem. No momento em que alcançou o canto do sarcófago, tirou a pistola do cinto.
Espreitando em redor, descortinou uma figura coxeando na direção do arco cada vez mais estreito de luz solar. Faltavam-lhe uns vinte metros para conseguir escapar.
Gray ergueu a pistola.
- Nicolas! - gritou Gray.
Espantado, o homem tropeçou.
- Não se mexa! - gritou Gray.
Nicolas olhou em volta, durante alguns segundos, depois virou-se e fugiu. Gray não podia arriscar matar o homem. Pelo menos até saber o que estava planeado. Por
isso apontou com cuidado e disparou. A perna boa de Nicolas ergueu-se no ar. Caiu no chão.
Gray aproximou-se do homem, mas um homem como Nicolas não ascendia ao poder deixando-se abater pela pressão. O senador rolou para trás de um monte de vigas de aço
em 1. Atirou contra Gray obrigando-o a desviar-se para o lado. Este abrigou-se atrás de umas paletes de madeira.
- Chyort! Rodilsya cherez jopu! - Nicolas amaldiçoou-o em russo, com a sua voz a roçar a histeria. Gritou para Gray. - Não podemos ficar aqui, seu svoloch! Temos
menos de três minutos.
Para lá do esconderijo do homem. Gray viu a réstia de luz solar que ainda existia entre a imponente parede de cimento e o hangar em movimento a diminuir cada vez
mais. Restava apenas um metro de espaço. Por isso é que Nicolas tinha tanta pressa.
- Então diga-me como parar a Operação Úrano! - gritou Gray.
- Não há maneira de parar! Está tudo em andamento. A única coisa que nos resta é sair daqui... agora!
- Diga-me o que fez.
- Muito bem. Cargas detonadoras! Colocadas no interior dos pilares do outro lado do sarcófago. Irão destruir uma parede e expor todos aqueles que se encontram daquele
lado a uma dose letal de radiação. Não há maneira de neutralizá-las. TEMOS de ir agora!
Gray procurou digerir o que ouvira, tentando arranjar uma solução. Mesmo que corresse lá para fora e gritasse para uma evacuação, seria demasiado tarde.
- Não há nenhuma razão para morrermos com eles - continuou Nicolas. - O mundo precisa de uma nova direção. Precisa de um homem forte. Como eu. Como você. O objetivo
do nosso grupo é melhorar o estado da humanidade, forjar um novo Renascimento.
Gray lembrou-se da discussão anterior do senador acerca da necessidade de apoiar o aparecimento de um novo profeta na cena mundial. Então fora assim que ele planeara
fazê-lo, provocando o caos mundial para depois oferecer uma solução promovida por um governante fantoche orientado pela presciência e conhecimento das crianças aumentadas.
- Mesmo que morramos aqui - pressionou Nicolas -, não será o fim. Há outros planos em andamento que não poderão ser detidos. As nossas mortes não serviriam nenhum
propósito. Junte-se a nós. Homens como você são sempre úteis.
Na verdade, Gray não conseguia pensar em nenhuma forma de deter o que estava para acontecer.
Atrás de Nicolas, as paredes continuavam a fechar-se.
- Dois minutos! - gritou para Gray. - Há um posto de controle revestido a chumbo lá fora. Conseguiríamos ir até lá se saíssemos daqui agora.
Nicolas mexeu-se no seu esconderijo, pensando claramente na hipótese de correr nessa direção. Mas com um tornozelo torcido de um lado e uma perna baleada no outro,
devia saber que esse caminho era certamente a morte.
Por outro lado, o mesmo aconteceria se ficasse aqui.
Nicolas largou finalmente a sua pistola e expôs-se no espaço aberto. Enfrentou Gary, com os braços esticados de cada lado, cambaleando nas suas pernas.
- Se só assim poderei viver, que seja!
Gray soltou uma imprecação para si mesmo. Incapaz de deter as mortes que estavam para vir, o seu único recurso era apreender o assassino de massas que orquestrara
a operação mortal. Gray apareceu com a sua pistola erguida.
Nesse momento, o zumbido do macaco hidráulico transformou-se num rugido estridente. Com um ronco de cerca de vinte mil toneladas, o arco maciço começou a estremecer.
O que estava a acontecer?
Kowalski passou por cima do soldado morto para se juntar a Elena no painel de controle. Enquanto Gray se pusera a correr, Elena conduzira a motorizada como um autêntico
piloto NASCAR. Kowalski segurara-se com tanta força às barras de apoio do sidecar que os seus dedos ainda tremiam. Tinham disparado a toda a velocidade para a parte
de trás da arcada em aço e trepado até um bunker de cimento que arrastava grandes cabos.
Era o posto de controle dos macacos hidráulicos.
Seguiu-se uma violenta mas breve troca de tiros.
Kowalski tentara ajudar, mas Elena rodopiava como uma bailarina de metralhadora em punho. Dançava e fazia piruetas por entre uma chuva de balas como que antecipando
cada disparo. Derrubou quatro soldados. Kowalski conseguir matar apenas um.
Os homens de Nicolas, dissera Elena, assim que o tiroteio terminou.
Uma vez lá dentro, Elena pusera-se ao trabalho. Dobrada sobre o painel de controle, empurrara os hidráulicos para a linha vermelha, procurando fechar o hangar mais
depressa.
No exterior da janela do posto de controle, um dos motores altos pôs-se a fumegar, quase a rebentar. Num das telas, os sinais vermelhos de aviso começaram a piscar.
Não podia ser boa coisa.
Kowalski saiu do caminho de Elena e olhou para uma fila de monitores. Exibiam o que se passava no interior do hangar. Na tela do meio, Kowalski descortinou duas
figuras esguias no meio do chão.
Gray e o tipo russo.
Do ângulo da câmera, Kowalski podia ver o que Gray não conseguia.
Oh, merda!
- Elena! - gritou. - Uma ajudinha aqui!
Virou-se a tempo de vê-la a cair repentinamente no chão. Aproximou-se e ergueu-a pela cintura. Sentiu a camisa debaixo do casaco preto quente e empapada. Afastou
o casaco e viu que tinha o lado esquerdo todo ensanguentado. Pelos vistos, a sua dança não tinha sido tão exímia como pensara.
- Porque é que não diz alguma coisa? - perguntou, com uma dor na sua voz.
Ela apontou com a cabeça para os monitores.
- Mostre-me.
Gray fez um esforço para compreender a aceleração repentina do encerramento do hangar. Não era fácil pôr cerca de vinte mil toneladas a andar mais depressa, mas
o certo é que a estrutura estava a fechar-se a um ritmo mais veloz, acompanhado pelo gemido dos motores hidráulicos.
- Não! - gritou Nicolas.
Gray apercebeu-se de que a aflição na voz dele era dupla: medo de ter agora menos tempo para escapar e horror de que os seus planos pudessem ir por água abaixo,
caso o hangar se fechasse mais depressa.
- Vamos! - disse Gray, apontando a pistola para o homem.
Nicolas baixou os braços esticados, revelando o que estava a esconder por detrás da pilha de vigas em I. A mão do homem estivera fora de visão até agora.
Uma segunda pistola.
Apontou para a barriga de Gray e disparou.
Gray conseguiu virar-se de lado, mas a bala ainda lhe raspou pelo estômago. Apontou a sua própria arma e disparou. O tiro desencadeado pelo ataque repentino, fez
ricochete no chão de uma forma inofensiva. Pior ainda, a parte lateral da pistola abriu-se.
Sem munições.
O mesmo não se podia dizer de Nicolas.
O russo atirou sobre Gray.
Devido à sua concentração, Nicolas não se apercebera do movimento ao longo do telhado do hangar abaulado. Um imponente guindaste amarelo passou por cima deles, lançando
um gancho gigante.
O assobio provocado pela descida deste captou finalmente a atenção de Nicolas.
Olhou para cima. enquanto o imponente gancho de aço suficientemente largo para ancorar um navio, bateu na pilha de vigas que se encontravam ao pé dele. Tentou saltar
para o lado. mas o impacto fez com que a pilha se desfizesse, apanhando-lhe as pernas.
A pistola caiu sobre o chão de cimento.
- Ajude-me! - grunhiu o homem, desesperado, aflito.
Não havia tempo a perder.
Do outro da pilha, o intervalo cada vez mais estreito entre o arco de aço e a parede de cimento pouco mais tinha do que trinta centímetros.
Gray saltou por cima da pilha de vigas deitada abaixo e correu para a saída.
No momento em que atingia a faixa de luz solar, Nicolas gritou-lhe.
- Não venceu, seu svoloch! Milhões não deixarão de morrer!
Gray não tinha tempo para o interrogar. Enfiou-se pela abertura e deslizou por entre as paredes que se comprimiam, cimento de um lado, aço do outro. O arco tinha
doze metros de espessura. Fugiu o mais depressa que podia. Contudo a pressão começou a apertar-lhe o peito, tentando detê-lo para o embate final.
Respirou fundo por uma última vez e expirou o ar todo, esvaziando o peito. Percorreu os últimos metros e lançou-se para o outro lado com um grande jato de ar, aterrando
com as mãos e os joelhos no chão.
Como se tivesse nascido por uma segunda vez.
Atrás dele. não se apercebeu de uma figura ao lado do hangar. Enfiou-se pela abertura, depois de ele ter saído de lá.
Gray virou-se.
- Elena! Não! Nunca conseguirá!
Pôs-se de pé e foi atrás dela. Mas ela tinha já deslizado para o outro lado da abertura, mais fundo do que ele podia alcançar com o seu corpo possante.
Moveu-se com ligeireza, com a sua figura esguia a desvanecer-se progressivamente.
Gray rezou para que ela tivesse passado em segurança para o outro lado, mas era, ainda assim, a morte certa. Só depois é que notou um longo rastro de sangue na direção
da abertura estreita.
Uma voz rosnou atrás dele.
- Onde está a Elena? - perguntou Kowalski.
Gray viu-a desaparecer pelo buraco. Abanou a cabeça.
Kowalski olhou para cima e para baixo ao longo da parte lateral do hangar.
- Deixou-me lá em cima. Depois de ter lançado a âncora sobre o sacana.
Disse que vinha aqui abaixo para ajudar.
Gray virou-se.
- Acho que sabia para onde ia.
Nicolas jazia de costas, com as pernas debaixo da meia tonelada de vigas de aço. No meio da névoa de agonia, ouviu passos a virem na sua direção. Virou a cabeça.
Elena surgiu à sua frente.
Os seus olhos franziram-se com uma dor mais forte do que qualquer osso partido.
- Oh, milaya moya, o que estás a fazer aqui?
Ela afundou-se ao seu lado.
O sangue empapava-lhe a camisa.
- Lubov moya... - disse ele com um misto de dor e de proteção. Levantou um braço e ela deixou-se envolver pelo seu enleio. Segurou-a e balançou-a gentilmente, no
momento em que o último raio de sol se desvanecia.
Um som triturador de aço a embater no cimento soou como uma nota final no momento em que o abrigo ficou selado. Segundos depois, um poderoso estrondo ecoou na mesma
altura em que o lado oposto do sarcófago se desmoronava. As cargas detonadoras tinham funcionado como previsto, mas o abrigo já estava selado à sua volta, poupando
os que estavam lá fora.
Ele não teve tanta sorte.
Nicolas olhou para cima para a arcada iluminada. As superfícies interiores de aço estavam todas cobertas por um revestimento grosso de policarbonato, o que havia
de melhor para refletir a radiação e mantê-la no interior.
Não é que lhe servisse de alguma coisa, mas Nicolas levantou a parte de cima do suporte do dosímetro preso ao bolso do seu casaco. A superfície apresentara uma coloração
branca quando o pusera nessa manhã. Estava completamente preta agora.
Largou-a e esticou o outro braço para aninhar melhor Elena.
- Por quê? - perguntou.
Havia muitas questões encenadas nessa palavra. Porque é que Elena o traíra? Nicolas sabia que ela o devia ter feito. Nada mais fazia sentido. Mas também porque é
que voltara?
Elena não respondeu. Ele mexeu-se e viu o brilho nos seus olhos.
Morta.
E ele também.
Os mortos vivos.
Ele sabia que fim o esperava. Vivera a sua vida profissional explorando tais mortes. Seria tão agonizante como humilhante.
Enquanto aconchegava mais Elena, algo escorregou da mão dela, indo parar à sua perna. Esticou-se e agarrou no último presente que ela lhe deixara.
A pistola dele.
Devia tê-la apanhado do chão.
Fora por isso que viera.
Para lhe dizer adeus e para lhe oferecer uma forma de escapar com ela.
Abraçou-a carinhosamente e beijou os seus lábios frios por uma última vez.
- Ty moyo solnyshko...
Ela era na verdade o seu sol.
Segurando nela, ergueu a arma até junto dos lábios.
E com ela escapou.
19
7 de setembro, 11h00
Montes Urais Meridionais
Com uma espingarda ao ombro. Monk contornou a última curva e contracurva da estrada. A frente, o complexo mineiro destacava-se em frente de uma parede de granito.
Os anexos de metal e a antiga casa das máquinas tinham ambos oxidado. Dos telhados e goteiras pendiam blocos de ferrugem, as Janelas estavam partidas ou fechadas
e o equipamento corroído Jazia no lugar onde havia sido largado há décadas: pás, picaretas, carrinhos de mão.
Ao lado dos rochedos erguiam-se grandes montanhas de resíduos e escombreiras provenientes de antigas minas. No meio dos amontoados de pedras destacava-se a torre
de um basculhador, com as suas lanças, guindastes e várias rampas usadas para transportar o minério e descarregá-lo nos camiões.
Enquanto Monk coxeava com a sua perna entrapada à pressa, indagava como é que sabia tanto acerca de minas. Será que a sua família estivera envolvida...
A sua cabeça agitou-se repentinamente com uma série de imagens que lhe sobrevieram à mente como clarões de uma lâmpada: um homem mais velho de macacão, coberto pelo
pó do carvão... o mesmo homem num caixão... uma mulher chorando...
Um choque elétrico de dor veio pôr um termo aos fragmentos intermitentes de memória.
Retrocedendo, conduziu as crianças e Marta através de um emaranhado de correias transportadoras, vagões de minério e rampas de descarga na direção do seu objetivo.
Dois cairis conduziam a uma abertura na parede do rochedo. Era a entrada principal da mina.
Enquanto caminhavam, Monk olhou por cima do ombro.
O lago Karachi estendia-se em baixo. Monk calculou que tivesse três quilômetros de largura aqui e três vezes mais de comprimento. Observou as montanhas cobertas
de florestas no outro lado, tentando descortinar o local onde tinham começado esta jornada.
- Temos de nos apressar - lembrou-lhe Konstantin.
Monk acenou. O rapaz mais velho caminhava entre as duas crianças mais novas.
Marta seguia-os. Levou-os na direção da abertura.
A medida que se ia aproximando, deu-se conta de um obstáculo. Uma grande barreira em madeira, com vários troncos empilhados e unidos com argamassa, bloqueava a entrada
da mina de cima a baixo.
A avaliar pelas condições do complexo exterior, parecia que ninguém utilizava o local há anos. Mas Monk reparou numa série de beatas e garrafas de vodca vazias Junto
à barreira. Marcas recentes de botas cobriam o chão de areia. A mina em baixo não devia estar tão abandonada como parecia. Alguém se detivera por estas bandas recentemente.
Monk olhou para trás. Não havia camiões estacionados ou marcas recentes de pneus junto ao complexo, pelo que quem quer que tivesse estado aqui saíra por outros meios.
Konstantin já tinha descrito esses meios.
Um comboio subterrâneo atravessava o lago desde o Complexo Mineiro 337 até Chelyabinsk 88. Fosse quem fosse que trabalhasse nas minas, devia sair habitualmente pelo
outro lado.
Monk rezou para que não estivessem à espera de visitantes na porta das traseiras.
Dirigiu-se ao retângulo de arame farpado colocado na barreira.
- O que fazemos? - perguntou Monk. - Batemos?
Konstantin franziu as sobrancelhas e foi até a porta. Levantou a tranca e empurrou. A porta abriu-se sem problemas.
Monk pegou de imediato na espingarda, apontando-a na direção da porta.
- Para a próxima avisa antes de fazeres uma coisa dessas! - murmurou.
- Ninguém vem aqui - disse Konstantin. - Demasiado perigoso. Não é preciso chave. Só está fechada para afastar os ursos e os lobos.
- E o casual tigre - murmurou Monk.
Konstantin pegou na sua mochila, abriu-a e tirou de lá a lanterna. Passou-a a Monk, que pôs a espingarda ao ombro.
Baixando a cabeça para poder entrar no túnel principal, Monk apontou com a lanterna. Traves de madeira maciça escoravam a passagem que se projetava inclinada para
o interior na montanha. Dois carris de aço sobressaíam na escuridão, estendendo-se para além do alcance do feixe de luz. Próximo deles, dois vagões de minério permaneciam
nos carris perto da barreira.
Mais ao fundo, Monk reparou na existência de vários túneis escurecidos. Suspeitou que a montanha estivesse perfurada de poços e túneis. Não seria de admirar que
alguém que trabalhasse na mina resolvesse vir de vez em quando cá fora para fumar o seu cigarrinho, sair das trevas, mesmo que isso tivesse de ser feito à sombra
de um lago envenenado.
Monk perguntou qual a direção que deviam seguir, antes de progredirem pelo interior da montanha.
- Para onde, então?
Konstantin manteve-se calado.
Monk virou-se para ele.
O rapaz encolheu os ombros.
- Não sei. Só sei que é para baixo.
Monk suspirou. Bem, sempre era uma direção.
Com a lanterna na mão, embrenhou-se na escuridão.
Savina olhou para todos aqueles rostos sorridentes. As crianças mais velhas conversavam animadamente, enquanto as mais novas corriam, procurando esgotar a sua energia
nervosa. Contrastavam visivelmente com o grupo dos mais pequenos, englobando os menores de cinco anos demasiado imaturos para os seus implantes. Estes permaneciam
sossegados e afastados, demonstrando níveis diferentes de autismo ainda não tratado: sentados em silêncio, olhavam para o vazio, atormentados por uma série de gestos
repetitivos.
Quatro professores procuravam organizar os seus sessenta e tal pupilos.
- Permaneçam nos vossos grupos!
O comboio aguardava para lá das portas blindadas abertas nas traseiras de Chelyabinsk 88. Transportaria as crianças para um pequeno passeio recreativo. Os mais novos
tinham ocasionalmente direito a um luxo destes, mas hoje o comboio era uma viagem só de ida. Não iria regressar, terminando numa última paragem no coração da Operação
Saturno.
Atrás dos ombros de Savina, os velhos prédios de habitação da era soviética miravam as crianças com os seus olhos sombrios. Os professores evidenciavam o mesmo olhar
sombrio, apesar das suas palavras calorosas.
- Tomaram todos o medicamento? - gritou uma mulher com ar de matrona.
O medicamento era um sedativo combinado com um composto sensível à radiação. Embora de momento se encontrassem excitadas, dentro de uma hora as crianças entrariam
num repouso desassociado. Atenuaria qualquer ansiedade quando as cargas explodissem no fundo do túnel e se desse início à Operação Saturno. O primeiro jorro de água
do lago através do túnel, bem como o subsequente lastro de radiação, levaria a que o composto sensível à radiação se transformasse numa toxina mortal na corrente
sanguínea das crianças, matando-as instantaneamente.
O grupo considerara a hipótese de matar as crianças com uma injeção letal, mas uma ação tão próxima colocaria sempre uma certa pressão, mesmo sobre o desapego mais
profissional. E, depois disso, todos os pequenos corpos teriam de ser rebocados, carregados e levados para o coração da Operação Saturno. O plano era para que a
radiação, alastrando durante semanas enquanto o lago secava, queimasse os corpos e desnaturasse qualquer exame posterior do DNA - isto é, no caso de alguém se atrever
a aproximar-se dos corpos. Os níveis de radiação no túnel impediriam qualquer penetração durante décadas.
Portanto, bem vistas as coisas, o plano atual podia ser considerado não só eficiente como minimamente cruel, proporcionando às crianças um último momento de alegria
e frivolidade.
No entanto. Savina permanecia com os braços atrás das costas. Mantinha as mãos apertadas com a força necessária para não agarrar nas crianças e tirá-las do comboio.
Mas ela salvara dez.
Tinha de se consolar com esta realidade.
As dez melhores.
Continuavam no prédio de habitação atrás dela, onde se encontrava localizado o centro de controle da Operação Saturno. Uma vez terminados os trabalhos aqui, as dez
cobaias ômega seriam transportadas para as novas instalações em Moscovo. Estava na altura do projeto sair da escuridão e saltar para a luz do dia.
Seria o seu legado.
Mas tal ascensão tinha um custo.
Risadas alegres e gritos efusivos acompanharam a chegada das últimas crianças. Discutiam quem iria viajar nos vagões abertos e quem ocuparia as cabinas da frente
ou de trás. Apenas algumas vozes indagavam porque é que iam sem adultos, mas até estas pareciam mais excitadas do que preocupadas.
Com as últimas crianças embarcadas, o comboio apitou, os travões hidráulicos resfolegaram e. com uma fagulha de eletricidade, lá partiu pelo túnel. As risadas e
os gritos ainda se ouviam à distância. Seguidamente, as portas fecharam-se lentamente no final do túnel, cortando as suas vozes felizes.
Os quatro professores dispersaram-se. Ninguém falou com ninguém. Mal contactavam. Exceto uma matrona de ancas largas com um avental comprido. No momento em que passava,
levantou uma mão consoladora na direção de Savina, depois pensou melhor e baixou-a outra vez.
- Não precisava de ter vindo - murmurou a mulher.
Savina afastou-se sem dizer uma palavra, não confiando na sua voz.
Sim... Sim, precisava.
11h16
Pripyat, Ucrânia
Gray sentou-se na parte de trás da limusine. A frente. Rosauro guiava, com Luca no banco do passageiro. Passaram a correr pelo primeiro posto de controle, enquanto
se dirigiam para fora da cidade. A Zona de Exclusão de Chernobyl estendia-se por um raio de trinta quilômetros em redor do complexo do reator. Tinha dois postos
de controle, um no marco que assinalava os dez quilômetros e outro aos trinta.
Gray queria estar do outro lado desta segunda cancela, antes de alguém se aperceber de que havia algo de errado com o reator. Não demoraria muito para que os corpos
mortos fossem descobertos e o local fosse encerrado.
Previamente enquanto Gray e Kowalski tinham regressado por terra a Pripyat, vindos do local da cerimônia, ligara para Rosauro do walkie-talkie que Masterson lhe
fornecera. Esta última relatara a sua dificuldade em entrar em contato com o comando da Sigma. Ele insistira para que continuasse a tentar. Quando Gray chegou ao
hotel, as linhas de comunicação com Washington tinham sido retomadas. Rosauro confiscara uma das limusines. Também roubara o celular ao motorista.
Gray segurava no celular agora, aguardando por um contato do diretor Crowe. Painter tinha muito que fazer em Washington, mas, pelo menos, Mapplethorpe estava fora
da corrida e Sasha em segurança.
Gray partilhava a parte de trás da limusine com Elizabeth e Kowalski. O seu companheiro estava sentado de peito nu enquanto Elizabeth tratava a ferida provocada
pelo tiro no ombro.
- Pare de se mexer!
- Dói que se farta.
- E apenas tintura de iodo.
- E daí... arde como o cara...
A expressão ameaçadora da mulher silenciou qualquer tipo de imprecação.
Gray tinha de dar algum crédito ao homem. Kowalski salvara a sua vida no hangar largando aquele gancho de aço de meia tonelada. Embora Elena fosse responsável pela
proeza, foram os olhos aguçados de Kowalski que repararam na ameaça e o salvaram.
No entanto, ainda não estavam fora de perigo.
Gray virou-se e olhou para as montanhas em redor, salpicadas por bosques de bétulas. O seu coração continuava a bater. A sua mente girava em tomo de uma centena
de cenários possíveis. Enquanto saíam a correr de Chernobyl, sabia que tinham de se dirigir a algum lado.
As últimas palavra de Nicolas atormentavam-no: Não venceu... milhões não deixarão de morrer.
O que é que ele queria dizer? Gray sabia que não fora uma ameaça em vão. Algo mais estava programado para acontecer. Até o nome do plano de Nicolas - Operação Úrano
- chegara a incomodar Gray. O nome recordava uma antiga vitória soviética sobre os Alemães, durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a vitória não fora obtida através
de uma única operação. Fora concretizada através de um conjunto de estratégias executadas na perfeição. Duas operações: Úrano seguida por Saturno.
Enquanto Gray fugia do hangar, Nicolas dera o máximo de pistas. Outra operação estava pronta a iniciar-se, mas onde e com que forma?
O celular tocou finalmente.
Gray abriu-o e levou-o ao ouvido.
- Diretor Crowe?
- Como é que as coisas estão a correr por aí? - perguntou Painter.
- Tal como se esperava.
- Consegui arranjar-vos transporte. Há uma pista de aviação privada a alguns quilômetros de distância da Zona de Exclusão, que foi usada para receber os convidados
VIP da cerimônia. Os serviços de informações britânicos disponibilizaram um dos seus jatos. Devem estar a tentar salvar a face por não terem dado ouvidos ao professor
Masterson, um dos seus antigos agentes. A propósito, avancei e fiz soar o alarme. A palavra está a alastrar-se que nem fogo através dos canais dos serviços de informações,
relativamente ao ataque falhado a Chernobyl. Por questões de segurança, a evacuação já está a decorrer, mas, por enquanto, vocês estão à frente desse caos.
- Muito bem. - Gray tinha de reconhecer que a voz firme do diretor ajudara a colmatar a sua ansiedade. Não estava sozinho nisto.
- Deves ter tido um dia muito ocupado.
- Como o senhor... mas não creio que tenha terminado ainda.
- O que queres dizer com isso?
Gray relatou o que o senador russo dissera, manifestando igualmente as suas próprias preocupações.
- Espera um segundo - disse Painter. - Tenho a Kat Bryant e o Malcolm Jennings aqui comigo. Vou ligar o altifalante.
Gray continuou, explicando os seus receios de uma segunda operação, algo destinado a provocar um número gigantesco de mortes.
Kowalski também ouviu, enquanto Elizabeth lhe colocava um penso por cima da ferida.
- Fale-lhes dos jelly beans{7} - gritou.
Gray franziu as sobrancelhas. No hangar, Elena tentara avisar Kowalski acerca de algo, antes de ter partido para junto de Nicolas, mas o homem não percebera claramente,
perdendo algo na tradução.
- Você sabe - pressionou Kowalski. - Os oitenta e oito jelly beans!
A voz de Kat soou debilmente ao telefone.
- O que é que ele disse?
- Não creio que ele tenha compreendido o que...
- Ele disse chellabins?
- Não, jelly beans!
Kowalski acenou, satisfeito. Gray abanou mentalmente a cabeça. Não queria acreditar que estava a ter esta conversa.
Seguiu-se um diálogo um pouco confuso, enquanto Painter, Kat e Malcolm discutiam um assunto. Gray não conseguiu apanhar tudo. Ouviu Kat a dizer qualquer coisa acerca
do número oitenta e oito inundado em sangue.
A voz de Malcolm aumentou de volume, de tanta excitação, enquanto se dirigia a Gray e a Kat em simultâneo.
- Já ouviram a palavra Chelyabinsk?
- Chelyabinsk? - perguntou Gray em voz alta.
Kowalski ficou em estado de alerta.
Gray revirou os olhos.
- Poderá ser.
Kat concordou.
Malcolm falou rapidamente, um sinal evidente de que o patologista estava excitado.
- Já me deparei com esse nome. Mas durante o tumulto que houve aqui. não tive tempo de pesquisar o significado.
- O quê? - pressionou Painter.
- O corpo do doutor Polk. A marca de radiação das amostras recolhidas nos seus pulmões era idêntica ao conteúdo do isótopo específico de urânio e plutônio usado
cm Chernobyl. Mas. como sabem, testes subsequentes vieram alterar esta avaliação. Não era tão claro como pensara inicialmente. Era como se o seu corpo tivesse sido
poluído por uma mistura de fontes radioativas, embora a mais forte fosse constante nas fontes de combustível presentes em Chernobyl.
- Aonde quer chegar com tudo isso?
- Baseei as minhas descobertas nos dados da Agencia de Energia Atómica Internacional relativos às zonas quentes. Mas há uma região do mundo tão poluída pela radioatividade
que se toma impossível definir uma marca. Essa região é Cheliabinsk, na Rússia Central. A União Soviética esconde o centro da sua produção de urânio e plutônio nos
montes Urais. Durante cinco décadas, a região esteve inacessível a toda a gente. Só nos últimos anos é que a restrição foi levantada. - Parou para dar mais ênfase
ao que iria dizer a seguir. - Foi em Cheliabinsk que o combustível para Chernobyl foi extraído e armazenado.
Gray sentou-se mais direito.
- E acha que foi aí que o doutor Polk foi envenenado? Não no reator, mas no local onde o combustível foi produzido. Em Chelyabinsk.
- Acho que sim. Até o número oitenta e oito. Os Soviéticos construíram cidades mineiras subterrâneas nos montes Urais e nomearam-nas segundo os códigos postais locais.
Chelyabinsk quarenta, Chelyabinsk setenta e cinco.
E Chelyabinsk 88.
O coração de Gray começou a bater com mais força outra vez. Agora sabia para onde tinham de se deslocar. Até tinha código postal.
Painter compreendeu também.
- Vou alertar os serviços de informações britânicos. Dar-lhes a conhecer que terão de fazer um pequeno desvio. Deverão ser capazes de pô-los nos montes Urais em
pouco mais de uma hora.
Gray rezou para que ainda tivessem tempo suficiente.
Milhões morrerão.
Enquanto a limusine atingia o segundo posto de controle e recebia a saudação de um guarda com ar aborrecido. Painter continuou:
- Mas, comandante, vai ser difícil providenciar apoio terrestre num prazo tão curto.
Gray falou enquanto a limusine saía da Zona de Exclusão e entrava em terreno aberto.
- Acho que temos essa questão resolvida.
De cada lado da estrada, camiões de fabrico antigo encontravam-se estacionados em pequenas valas ou concentrados em desvios. Uma boa dezena deles. Os homens permaneciam
sentados nas camas abertas, enchendo as cabinas.
No lugar da frente. Luca inclinou-se sobre Rosauro e falou rapidamente. Ela abrandou a limusine e Luca endireitou-se. acenando com um braço para fora da janela.
O sinal foi fácil de interpretar.
Sigam-nos.
Enquanto a limusine prosseguia, os camiões saíram do lugar onde estavam e foram atrás deles. Tal como o diretor Crowe. Luca Heam soara o seu próprio alarme, usando
os telefones no hotel, depois de terem falhado o contato inicial com o comando central.
Gray recordou-se das palavras do homem ao descrever os Romani: Estamos por toda a parte. Luca provara ter razão com esta resposta ao seu chamamento.
Atrás da limusine, seguia um exército cigano.
11h38
Montes Urais Meridionais
Quanto mais Monk descia na mina, mas convencido ficava de que o lugar estava deserto. Não obtinha eco de vozes ou do arranhar de maquinaria distante. E, apesar disto
ser suficiente para apaziguar a sua mente em relação ao fato de não virem a ser descobertos, também era desconcertante. Com tanto silêncio, era como se o lugar estivesse
a suster a respiração.
Monk caminhou por uma rampa de acesso bastante inclinada, com a sua perna ferida a arder de dor. Sem um mapa, Monk tinha de seguir a pista de quem quer que fosse
que tivesse deixado as beatas e garrafas na entrada principal da mina. Não era uma pista difícil de seguir. O chão arenoso revelava sinais evidentes de pisadas.
O mineiro seguira uma rota direta para as zonas inferiores da mina, passando por algumas rampas de acesso inclinadas.
E embora o lugar parecesse deserto agora. Monk encontrara várias provas de plena atividade: resíduos recentes depositados em poços, equipamento novo e brilhante
encostado às paredes, até uma caixa térmica abandonada contendo umas latas de cerveja a flutuar na água.
Konstantin seguia com a sua irmã, enquanto Pyotr permanecia colado à anca de Monk. Os olhos da criança ficavam completamente abertos nas passagens escuras. Monk
sentiu a febre do seu terror enquanto Pyotr se agarrava a ele. Não eram os espaços apertados que o amedrontavam, mas a escuridão. Monk desligava ocasionalmente a
lanterna à procura de qualquer vestígio intrigante de luz.
Nesses momentos, Pyotr agarrava-se fortemente a ele.
Marta também seguia de perto o rapaz, protetora, mas até o chimpanzé tremia nesses momentos de profunda escuridão, como se partilhasse o terror de Pyotr.
Monk atingiu a parte final de uma rampa. Dava para outra longa passagem com uma via férrea e uma lenta correia transportadora. Enquanto se afadigava à procura de
marcas de botas, reparou num ligeiro abrandar da escuridão ao fim do túnel. Agachou-se, empurrou Pyotr para o lado com a ponta do seu coto e desligou a lanterna.
A escuridão envolveu-os como uma mortalha. Mas, no fundo da passagem, o brilho débil era por demais evidente.
Konstantin deslocou-se para o pé de Monk.
- Já não há mais luz - murmurou Monk e passou a lanterna apagada para o rapaz. Se ele estivesse errado em relação ao fato de o lugar estar deserto, não queria anunciar
a sua aproximação com um feixe de luz.
Monk mexeu na espingarda que tinha confiscado ao atirador russo morto.
- Silêncio agora - avisou.
Monk enfiou-se pelo túnel. Caminhava pela parte lateral das traves que compunham a via férrea, evitando o barulho produzido pelo leito de gravilha. As crianças seguiram-no.
Marta balanceava ao longo dos carris. Enquanto prosseguiam, Monk tentou ouvir algumas vozes, qualquer sinal de presença humana. Mas a única coisa que conseguia ouvir
era o gotejar de água ecoando pelo túnel. Era um barulho que começara a aumentar de intensidade à medida que iam descendo. Monk estava consciente da presença vizinha
do lago Karachi.
Também se apercebeu de um odor crescente, uma mistura de óleo, gordura e fuelóleo. Mas no momento em que atingiram a curva, o nariz sensível de Monk detetou outro
cheiro pairando sob os cheiros industriais. Era fétido, orgânico, nojento.
Fazendo precavidamente a curva, Monk descobriu que a passagem terminava numa caverna central, cavada na rocha. Era apenas um centésimo do tamanho de Cheliabinsk
88, mas tinha três pisos de altura e ocupava metade de um campo de futebol.
A maior parte do chão estava coberto por equipamento largado em vários sítios, bem como pilhas de material de construção: condutas em espiral, traves de madeira
empilhadas, uma coluna de andaime desmantelada, montes de pedras. De um lado, erguia-se um equipamento de perfuração, montado na parte de trás de um camião. O local
dava ideia de ter sido evacuado à pressa. Não havia ordem nenhuma, como se alguém tivesse estado a carregar uma van em andamento, atirando com tudo lá para dentro
de qualquer maneira.
Pelo menos, tinham deixado as luzes acesas.
Várias lâmpadas de sódio brilhavam no lado oposto da divisão.
- Cuidado - disse Monk. Fez um sinal às crianças para se deterem, para se preparem para fugir e esconder entre os destroços, se fosse necessário.
Monk deslocou-se para a frente, mantendo-se agachado, com a espingarda a postos no seu ombro. Calcorreou o espaço aos ziguezagues, sustendo a respiração, vendo com
cuidado onde punha os pés. Atingindo o lado oposto, descobriu um conjunto imponente de portas de aço blindadas e seladas, que refletiam a luz dos lampiões. Pareciam
mais novas do que os objetos na mina. À direita havia um pequeno barracão, do tamanho de um posto de portagem. Espreitando pela porta aberta. Monk conseguiu descortinar
alguns monitores escurecidos, um teclado e filas de interruptores.
Ninguém estava aqui.
Monk reparou que tinha a espingarda a tremer. Sentia-se inquieto e nervoso. Respirou fundo para se acalmar. O cheiro fétido era muito mais forte. A esquerda, Monk
reparou numa poça de óleo atrás de um monte de equipamento. Aproximou-se com cuidado e deu uma espreitadela.
Não era óleo. Era sangue.
Encontrou a fonte do cheiro. Um emaranhado de corpos jazia encostado à parede do fundo, enrolados num molhe, com roupas de mineiro ou jalecos brancos de laboratório.
O sangue espalhara-se ao longo das paredes que se erguiam atrás deles.
Mortos por um pelotão de fuzilamento.
Alguém estivera a fazer limpezas.
Atrás dele, Konstantin apareceu, expondo-se com alguma precaução. Monk virou-se, abanou a cabeça e apontou para o compartimento onde estavam os computadores. Não
queria que as crianças vissem a matança. Fez sinal a Pyotr e a Kiska para ficarem onde estavam.
Konstantin juntou-se a Monk, enquanto avançam a passos largos para as portas blindadas.
- Já estive aqui - disse o rapaz. - Tínhamos autorização para andar de comboio às vezes. Estes são os controles da subestação.
- Mostre - disse Monk.
Konstantin já tinha referido o que o General-Major Savina Martov andava a planear, sob a designação de Operação Saturno. Estava para além daquelas portas.
Os dois encaixaram-se no compartimento e Konstantin observou os controles da subestação, com os olhos a brilharem por cima das letras em cirílico. Monk quase que
conseguia ouvir a mente da rapaz a voar a alta velocidade, para além da atividade mental normal. Ao fins de alguns minutos de observação, pôs-se a percorrer o painel
com as mãos, mexendo nos interruptores com uma tranquilidade destra, como se já tivesse feito aquilo milhares de vezes.
Enquanto trabalhava, Monk perguntou.
- Como é que soubeste acerca da Operação Saturno?
Konstantin olhou para ele com um certo ar de embaraço.
- Os meus dotes são os cálculos rápidos e a análise derivativa. Trabalho muitas vezes no laboratório de computadores da Toca. - Encolheu os ombros.
Monk compreendeu. Era possível transformar um rapaz num sábio, mas ele era ainda uma criança: curioso, travesso, tentando ultrapassar os limites.
- Acedeste ilegalmente aos seus ficheiros.
Voltou a encolher os ombros.
- Há uma semana, a Sasha, a irmã de Pyotr, desenhou-me uma imagem. Deu-ma no meio da noite. Quando fomos todos acordados por um dos pesadelos de Pyotr.
- Que imagem?
- O comboio aqui, com muitas crianças a bordo, todas mortas e a arder. Também mostrava o local da mina para além destas portas. Por isso... por isso, no dia seguinte,
tentei descobrir nos ficheiros coisas acerca da operação. Soube o que estava planeado e quando estava previsto acontecer. Não sabia o que fazer. Em quem confiar.
A Sasha partiu com o doutor Raev para a América, por isso falei com o Pyotr. - Konstantin abanou a cabeça. - Não sei como é que o Pyotr sabia... talvez ele nem sequer
soubesse... às vezes é assim.
Konstantin olhou para Monk à procura de compreensão.
Embora não tivesse compreendido totalmente. Monk acenou.
- O que é que o Pyotr sabia? - pressionou.
- Ele é um grande empata. Pressentiu que você nos poderia ajudar. Até sabia o seu nome. Disse que a sua irmã o murmurara num sonho. Eles são muito estranhos, os
dois, muito poderosos.
Monk apercebeu-se de uma certa dose de medo contida na voz do rapaz.
Konstantin olhou cautelosamente para trás. na direção de Pyotr depois voltou a trabalhar.
- Por isso fomos ter consigo.
Com um toque final num interruptor, uma fila de monitores brilhou no topo do painel de controle. Mostravam imagens a preto e branco, tomadas de diferentes ângulos
de uma pequena caverna, equipada com andaimes. No chão havia um grande diafragma em aço.
O coração da Operação Saturno.
Um movimento captou a atenção de Monk na tela mais central. Mostrava um comboio parado no exterior do local da mina. Os vagões abertos estavam repletos de crianças.
Algumas tinham saído para fora e olhavam como um ar perplexo. Outras pareciam estar a rir-se e a brincar. Konstantin agarrou na manga de Monk.
- Elas... elas já estão aqui.
Savina estava sentada numa estação de controle muito bem iluminada, ladeada por dois técnicos. Procediam aos diagnósticos finais executados em dois computadores.
A estação ficava numa cave transformada em bunker por baixo de um dos prédios de habitação abandonados. Não havia Janelas. Os olhos do mundo vinham de sete ecrãs
LCD montados nas paredes. Exibiam imagens de vídeo recolhidas pelas câmeras instaladas no túnel e no local da operação.
Olhou para o comboio estacionado durante mais uns segundos, depois levantou-se, incapaz de permanecer sentada. Sentiu uma cãibra familiar nas costas. Não tivera
tempo de tomar a injeção de esteróides, demasiado ocupada com os preparativos finais. Desviou o olhar do comboio. Não porque lhe doesse olhar, o que até era verdade,
mas porque a ansiedade lhe percorria o corpo.
Olhou para o relógio de pulso. Já passavam das onze e meia e ainda não tivera notícias de Nicolas. Saiu da sala de controle, para que os outros não a vissem a apertar
as mãos. Era um gesto que não se coadunava com a sua pose de mulher madura e fez um esforço para se controlar. Dirigiu-se às escadas e subiu até o nível superior.
Não é que tivesse qualquer destino em mente, apenas para se mexer.
Através dos contatos que mantinha junto das comunidades dos serviços de informações, ouvira alguns rumores acerca de um “acidente” em Chernobyl. Uma fuga de radiação.
Mortos. O lugar estava a ser evacuado. E se Nicolas tivesse tido êxito, tal partida em massa era tardia. Talvez o seu filho tivesse sido apanhado no meio do caos
e fora incapaz de lhe comunicar qualquer coisa. A sua operação devia começar dentro de quarenta e cinco minutos, mal obtivesse a confirmação de Nicolas.
Enquanto subia pelas escadas, imaginou-o a vibrar com o seu sucesso, possivelmente até a ter um encontro secreto com a pequena Elena. Não seria novidade ver Nicolas
a festejar primeiro e tratar dos negócios depois. A raiva amenizou a sua ansiedade.
Atingiu finalmente o piso por cima da estação de controle. Fora convertido para servir de domicílio aos técnicos: quartos, espaço para exercício e uma zona de convívio
repleta de sofás e mesas de jantar. Os únicos ocupantes àquela hora eram as dez crianças. Sabia o nome de todas elas.
Viraram-se para olhar para ela, rodando as cabeças ao mesmo tempo, tal qual um bando de pássaros mudando subitamente de curso de voo. Savina sentiu um arrepio de
apreensão, um reconhecimento da estranheza das suas mentes. As cobaias ômega eram sábios tão talentosos que as suas aptidões ultrapassavam o reino do físico para
um lugar onde Savina não podia viajar.
Boris, um rapaz de treze anos de olhos tão azuis que se confundiam com o gelo, parecia estar a observá-la. O seu talento era a memória fotográfica, juntamente com
um poder de retenção impressionante. Até se lembrava do seu próprio nascimento.
- Porque é que não pudemos ir com os outros? - perguntou.
Mais cabeças acenaram.
Savian engoliu em seco antes de responder:
- Vocês vão fazer outra viagem. Têm as mochilas prontas?
Ficaram a olhar. Não era necessário qualquer resposta. Claro que tinham as mochilas prontas. A questão espelhava o nível do seu nervosismo. A frente dela estava
o poder que alimentaria a Terra Mãe numa nova era. E, no fundo, Savina sabia que tal poder permanecia para além da sua total compreensão.
- Partiremos dentro de uma hora - disse Savina.
Aqueles dez pares de olhos azuis devolveram-lhe o olhar.
Ouviram-se passos atrás dela. Virou-se no momento em que um dos técnicos se aproximou dela.
- General-Major - disse -, estamos a ter um pequeno problema com as portas blindadas no outro lado do túnel. Se nos pudesse aconselhar relativamente aos procedimentos
a seguir.
Ela acenou, contente por se concentrar na resolução de um problema.
Seguiu o técnico até as escadas. No entanto, sentiu aqueles dez pares de olhos atrás dela, frios e desapaixonados, gelados. Para escapar ao seu julgamento, apressou-se
a descer as escadas.
- Abre as portas! - gritou Monk para Konstantin.
Do interior da estação de controle o rapaz acenou. Os motores elétricos soaram e os grandes mecanismos de aço começaram a fazer rolar as portas blindadas, que se
abriram ao meio.
Konstantin apareceu a correr ao pé dele, ofegante.
- Cinco minutos - avisou o rapaz.
Monk compreendeu. Konstantin fizera com que o sistema da câmera digital do túnel ficasse temporariamente encerrado para diagnóstico. O miúdo inteligente engendrara
uma interrupção de cinco minutos. Tinham esse tempo para tirar as crianças do trem antes de as câmeras voltarem a estar ligadas.
Pouco mais podiam fazer. A estação de controle principal ficava no outro lado do túnel. Assim que o subterfúgio fosse detetado, a outra estação cortaria a energia
ao posto de Konstantin.
Tinham apenas esta oportunidade única.
Enquanto as portas se afastavam, Monk enfiou-se por elas, seguido por Konstantin. Marta também saltou atrás deles. O velho chimpanzé estava completamente exausto,
mas não abrandou, chegando até a ultrapassar Monk.
O animal sabia que tinham de se despachar.
A uma centena de metros de distância, o comboio permanecia sobre os carris.
Monk correu para ele, saltitando um pouco com a sua perna ferida. Konstantin gritou em russo, dizendo para saírem do comboio na direção da porta blindada. O rapaz
acenou com os dois braços.
- Basta saírem do comboio - disse Monk. - Tenho de partir daqui o mais depressa possível.
Monk gritou ao longo do comboio enquanto corria. Transportava duas espingardas automáticas ao ombro, cada uma delas com carregadores de sessenta balas. Konstantin
já lhe dera uma lição sobre o mecanismo de condução do comboio. Não era muito complicado.
Entre na cabina da frente, empurre a alavanca para cima.
Atingindo o comboio, Monk correu por um lado, Konstantin pelo outro.
- Toca a sair do comboio! - gritou Monk. - Para as portas!
Konstantin repetiu as ordens em russo.
No entanto, o caos dominou durante meio minuto. As crianças gritavam ou choravam. Agarraram-se a ele com as mãos, socando e tropeçando. Mas os miúdos também estavam
bem treinados para seguirem ordens. Lentamente, a maré deslocou-se e as crianças começaram a dirigir-se para as portas.
Já sem gente à sua volta, Monk atingiu o último vagão, uma cabina coberta. Subiu pela porta aberta e dirigiu-se para a parte da frente. Uma pequena cadeira de condutor
tinha ao seu lado uma alavanca verde e outra vermelha.
Verde para arrancar. Vermelho para travar. Um pequeno quadro de bordo mostrava os índices de calibragem e voltagem.
Monk não tinha tempo para delicadezas. Debruçou-se sobre a janela.
- Konstantin!
A voz do rapaz ecoou até si.
- Pronto! Partida!
Ótimo.
Monk empurrou a alavanca verde para a frente. A eletricidade disparou, lançando algumas faíscas na escuridão que se erguia à frente. O comboio projetou-se para diante,
depois começou a rolar pelo túnel.
Quatro minutos.
Tinha de colocar o comboio do outro lado do túnel, antes de o sistema de vigilância voltar a estar operativo. Konstantin tinha de levar as crianças para fora do
túnel e fechar as portas blindadas. Monk ensinara ao rapaz como bloquear o mecanismo para que as portas permanecessem fechadas.
Konstantin também tinha outra tarefa.
Monk confiscara dois rádios utilizados pelos mineiros. Assim que Monk atingisse as outras portas, comunicaria com Konstantin para que este as abrisse. Se tudo corresse
conforme o plano, Monk teria a vantagem da surpresa - e duas espingardas automáticas totalmente carregadas. Embora parecesse uma missão suicida, não tinha outra
opção. As crianças estavam seguras por agora, mas se a Operação Saturno tivesse êxito, quantos milhões morreriam? Monk não tinha outra opção senão atacar a estação
de controle principal, de armas em punho.
Inicialmente, pensara em sabotar o local da mina, mas Konstantin empalidecera mediante tal sugestão. As cargas - cinquenta - seriam detonadas via rádio. Mesmo que
ele conseguisse subir os quinhentos metros de poço em quatro minutos para chegar até lá, qualquer manuseamento indevido dos explosivos podia provocar o seu rebentamento.
Por isso, a questão nem sequer se punha.
Com um agitar de rodas, o comboio partiu pelo túnel escurecido. iluminado de tantos em tantos metros por lâmpadas isoladas. A cabina da frente também tinha uma única
lâmpada pendente, que iluminava o espaço à sua frente. Enquanto o comboio avançava cada vez mais depressa. Monk reparou nuns marcos na parede. Segundo Konstantin,
o túnel tinha quatro quilômetros de extensão.
Monk viu-se a suster a respiração, contando um minuto inteiro na sua cabeça. Do lado direito, viu o número dois impresso na parede.
Meio caminho.
Na melhor das hipóteses teria menos de trinta segundos de vantagem.
Não muito, mas nada mau.
Depois as luzes apagaram-se. como se Deus tivesse batido palmas.
Debaixo de Monk, o comboio suspirou como que ecoando o seu desespero. Sem eletricidade, o comboio moveu-se até parar no meio da escuridão.
Atrás dele da parte de trás do comboio, uma criança gritou aterrorizada. O corpo de Monk apertou-se. Conhecia aquela voz.
Pyotr.
Savina olhou para a bancada de monitores escurecidos na estação de controle. Abanou a cabeça. Minutos antes, um dos técnicos chamara-a, preocupado com uma falha
no sistema, algo relacionado com as portas blindadas do outro lado do túnel. Quando chegou cá baixo, as câmeras estavam desligadas, executando um código de diagnóstico.
Ninguém pedira tal.
A suspeita percorreu-lhe as veias. Algo de errado se passava. Em vez de se sentar sem fazer nada. resolveu atuar de forma preventiva e cortar toda a energia ao túnel.
- C.M. três trinta e sete - disse Savina. - Há uma subestação no complexo mineiro.
Um dos técnicos, um engenheiro elétrico, acenou-lhe num gesto afirmativo.
- E, se bem me lembro, há uma câmera montada no posto de controle. Para permitir a comunicação com os técnicos no outro lado.
O homem acenou outra vez, depois os seus olhos abriram-se.
- Pertence a um sistema independente do túnel.
Era uma precaução concebida em caso de falhas como esta, possibilitando a comunicação entre as duas estações.
- Mostrem as imagens dessa câmera. - Bateu num dos monitores.
O engenheiro escreveu rapidamente no seu computador. Segundos depois, a tela iluminou-se, mostrando uma imagem a preto e branco com algum grão. A câmera era pequena
e utilitária, colocada por cima do painel de controle existente no barracão para dar uma boa visão do operador naquele lado.
Savina inclinou-se mais. Pela porta aberta do barracão, Savina captou uma movimentação de crianças na caverna. Muitas crianças. Aquelas que haviam subido para o
comboio.
Savina fez um esforço para compreender, quando um rapaz alto apareceu na tela. Era alto, com cabelo escuro e um rosto comprido e anguloso. Os seus dedos apertaram-se.
Ela conhecia o rapaz.
Konstantin.
O que é que se estava a passar?
Com tudo o que acontecera nesta manhã, não tivera tempo para seguir o rastro do tenente Borsakov na peugada do americano e das três crianças. Observou Konstantin
a acenar com um braço e a gritar em voz baixa para a multidão de crianças. Era óbvio que Borsakov falhara.
Mas o que é que elas estavam a fazer ali?
Vasculhou por entre a multidão, à procura do americano e das outras duas crianças. Procurava uma criança em particular, aquela que queria de volta.
Pyotr gritou enquanto a escuridão o envolvia. As suas pestanas esticaram-se à procura de luz, Marta amparava-o com os seus fortes braços. Os dois tinham aproveitado
a confusão no outro lado do túnel para se esgueirarem para cima do último vagão e esconderem-se.
Pyotr sabia que tinha de permanecer ao lado do homem.
Mas a escuridão...
Pyotr arfou, afundando-se no mar negro. Começou a balouçar enquanto Marta tentava aninhá-lo. Era o seu pesadelo transformado em realidade. Tivera o mesmo sonho várias
vezes; em que a sua sombra se erguia e o consumia, abafando-o até haver só escuridão. A única forma de se defender contra isso era deixar-se arder, arder como uma
tocha gigante no meio da escuridão - depois acordava a gritar.
Outras crianças disseram que o viram a arder nos seus próprios sonhos. De início, pensou que estavam a gozar com ele, mas, depois das primeiras vezes, começaram
a olhar para ele de uma forma estranha, falando raramente com ele, brincando raramente com ele. Os professores também ficaram zangados. Repreenderam-no, não o deixavam
comer bolos com mel, disseram que entristecia as outras crianças, a ponto de ninguém conseguir ter bons resultados nos testes depois disso. Culpavam-no de assustar
toda a gente.
E assustou-o também, profundamente - e isso era só um sonho. Esta escuridão agora não era nenhum sonho.
Aflito, fez um esforço para lhe escapar, mas estava por todo o lado. Procurou a luz onde não havia luz. Até mesmo esse caminho o aterrorizou, mas era melhor do que
se ver oprimido por uma camada de tinta escura.
Do meio da escuridão, pequenos pontos de luz apareceram como agulhas ardentes, sobressaindo através da cobertura preta, dando corpo à sua existência por via do seu
terror. Primeiro umas quantas, depois uma profusão delas. Olhou para cima, enquanto a paisagem estrelada se alargava e afastava a escuridão.
Mas ele sabia a verdade. Não eram estrelas.
Pyotr começou a ficar cada mais tenso, com o seu coração a palpitar que nem um pássaro armadilhado. Olhou para cima, enquanto as estrelas se iam tornando mais brilhantes,
aumentando de dimensão à medida que se iam aproximando. Ele sabia que se devia desviar. Mas os seus olhos abriram-se mais..., tal como a escuridão dentro dele. Procurava
igualmente a luz, uivando do fosso escuro, precisando de ser alimentada.
As estrelas começaram a cair cada vez mais depressa, poucas de início. Depois outras se seguiram. De todas as direções, caíram sobre ele, embatendo nele.
Ouviu os gritos e sentiu os corações a baterem. Encheram-no com a sua luz. Caiu para trás enquanto o céu noturno ruía sobre ele e alumiava o seu coração.
À distância, ouviu um uivo simiesco de aviso.
Porque Marta conhecia o seu segredo.
Nesses momentos de alerta, depois dos seus pesadelos, quando acordava aos gritos, não era apenas de medo - era também de alegria.
Algo se passava de muito errado com as crianças.
Depois de ter cortado a energia, Savina continuara a observar as imagens da câmera do C.M. 337. Embora não tivesse áudio, era óbvio que as crianças permaneciam agitadas,
movimentando-se confusas, algumas chorando, a maior parte delas caminhando ou deixando-se ficar de pé atordoadas. A única que parecia estar sob controle era Konstantin.
Movia-se entre elas, aparecendo na tela, para depois desaparecer novamente.
Savina tentou ver se Pyotr estava entre elas.
Embora tivesse dez cobaias ômegas, se o rapaz estivesse ali...
Depois uma das crianças em cena caiu no chão. Outra que estava próxima virou-se para a criança tombada e caiu também, como se tivesse levado uma tacada. Mais e mais
crianças caíram. Aflito. um rapaz passou a correr - depois também sucumbiu.
O engenheiro técnico também notou o mesmo.
- É a neurotoxina?
Savina olhou, na dúvida. O composto sensível à radiação era inerte, salvo quando exposto a doses elevadas de radiação. As leituras no C.M. 337 nunca haviam sido
assim tão altas. Logo a seguir, Konstantin reapareceu. Transportava uma garota magra nos braços. Era a sua irmã Kiska. Virou-se diretamente para a câmera. Com os
olhos cheios de terror.
Depois Savina viu - como uma luz projetada nos seus olhos. O medo transformou-se numa sonolência e ele sucumbiu.
Não era a neurotoxina.
Konstantin e Kiska não haviam tomado o medicamento.
Ouviu-se um forte som por cima. Depois outro e outro.
Savina olhou para cima.
Oh, não...
Virando-se, correu para as escadas. Galgou os degraus dois a dois. As costas doíam-lhe e o coração batia com um arpão de dor. Entrou de rompante no quarto onde as
dez crianças esperavam por ela.
Toda elas tinham caído, nas cadeiras, no chão, com as cabeças pendidas, os membros moles. Correu para Boris, ajoelhou-se ao lado dele e verificou-lhe o pulso na
garganta. Sentiu um bater fraco sob os seus dedos.
Ainda estava vivo.
Virou-o para cima e levantou-lhe as pálpebras, que caíam a meia altura. As pupilas do rapaz estavam dilatadas e não reagiam à luz.
Voltou a pôr-se de pé e olhou em tomo da sala.
O que estava a acontecer?
20
7 de setembro, 02h17
Washington, D. C.
Painter caminhou apressado pelo corredor. Não precisava de mais sarilhos, mas teve-os.
Todo o bunker fora relegado para o regime de confinamento a seguir ao ataque. Como suspeitara, depois da morte exaltada de Mapplethorpe, os poucos combatentes remanescentes
desapareceram na noite. Painter estava determinado a encontrar cada um deles, juntamente com todas as raízes e ramificações que forneceram a Mapplethorpe as fontes
e serviços de informações para preparar este ataque.
Entretanto, Painter tinha de recuperar a ordem no local.
Tinha uma equipe reduzida a atuar no interior. Os feridos foram transportados para os hospitais locais. Os mortos permaneciam no sítio onde estavam. Não queria nada
alterado até poder trazer a sua própria equipe forense. Era uma lúgubre ronda de dever a que deveria fazer aqui esta manhã. Embora Painter tivesse utilizado os purificadores
de ar e ventiladores para apagar os vestígios do acelerante, não fizera nada para eliminar o odor a carne queimada.
E além de ter de voltar a garantir a segurança das instalações, estava a receber inúmeras mensagens da agência de inteligência: tanto sobre o que acontecera aqui
como acerca do ato terrorista falhado em Chernobyl. Painter não quis saber da maior parte delas. Não tinha tempo para fazer reuniões sobre o ponto da situação ou
para fazer o jogo político de quem tinha a maior rede de detetives. A única chamada breve que atendeu foi a do presidente agradecido. Painter usou essa gratidão
para comprar a liberdade de poder fazer orelhas moucas a quem quer que fosse.
Outro ataque ameaçava.
Essa era a grande prioridade.
E como o último problema estava relacionado com isso, concedeu-lhe a sua plena e imediata atenção. Atingindo o piso médico, dirigiu-se a um dos quartos particulares.
Entrou e viu Kat e Lisa ladeando uma cama.
Sasha estava deitada em cima dela, enquanto Lisa reposicionava um elétrodo de eletroencefalograma numa das têmporas da criança.
- Ela está doente outra vez? - perguntou Painter.
- Uma coisa nova - respondeu Lisa. - Não está febril como dantes.
Kat mantinha-se em pé de braços cruzados. Tinha a testa sulcada por rugas de preocupação.
- Estava a ler-lhe umas coisas, tentando adormecê-la depois de tudo o que aconteceu. Ela estava a ouvir. Depois, repentinamente, sentou-se, virou-se para um canto
vazio da sala, gritou o nome Pyotr, para logo a seguir ficar mole e desvanecer-se.
- Pyotr? Tens a certeza?
Ela acenou.
- O Yuri informou que a Sasha tinha um irmão gémeo chamado Pyotr. Deve ter sido uma alucinação.
Enquanto falavam. Lisa retirara-se para uma bancada de equipamento para ativar os aparelhos. Sasha estava ligada a um eletrocardiograma e a um eletroencefalograma.
monitorizando a atividade cardíaca e neurológica.
- O aparelho dela está ativo? - perguntou Painter, apontando com a cabeça para a unidade de EMT de Sasha.
- Não - respondeu Lisa. - O Malcolm verificou. Ele já cá esteve, mas teve de se ausentar. Para fazer uns contatos. Mas algo está de certeza ativo. As suas leituras
estão a registrar um aumento repentino na convexidade lateral do lobo temporal. Especificamente no lado direito, onde o implante se encontra localizado. E como se
ela estivesse a ter um ataque no lobo temporal. Por outro lado, o ritmo cardíaco é baixo e a pressão arterial diminuiu nas extremidades. E como se todos os recursos
do corpo estivessem a servir um único órgão.
- O seu cérebro - disse Painter.
- Exatamente. Tudo o mais está no modo de pausa.
- Com que fim?
Lisa abanou a cabeça.
- Não faço a mínima ideia. Vou fazer mais testes, mas se ela não reagir, só vejo uma solução possível.
- Qual é? - perguntou Kat.
- Embora o implante de EMT não esteja ativo, os picos máximos dos eletroencefalogramas estão centrados à sua volta. Começo a acreditar que esses neuro elétrodos
estão a contribuir para aquilo que lhe está a acontecer. A sua atividade elétrica está assustadoramente elevada nessa região. E como se esses condutores no seu cérebro
estivessem a funcionar como para-raios. Se eu não conseguir acalmar a sua atividade neural. ela é bem capaz de se desvanecer.
Kat empalideceu perante esta avaliação.
- Falaste de uma solução.
Lisa suspirou, não parecendo muito contente.
- Se calhar precisamos de remover o seu implante. Foi por isso que o Malcolm se ausentou. Para ligar para um cirurgião do George Washington.
Painter atravessou e pôs um braço em volta dos ombros de Kat. Ele sabia a ligação que ela estabelecera com a criança. Haviam perdido muitas vidas a protegê-la. Perdê-la
agora...
- Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance - prometeu-lhe Painter.
Kat acenou.
O beeper de Painter soou no seu cinto. Usou o braço livre para ver o número. Da embaixada russa. Era uma chamada que tinha de atender. Gray devia estar a aterrar
em Cheliabinsk dentro de alguns minutos.
Enquanto ele olhava para trás. Lisa acenou-lhe, esboçando um pequeno sorriso de cansaço.
- Ligo-te se houver alguma alteração.
Ele dirigiu-se para a porta - depois, subitamente, adveio-lhe um pensamento, algo que pusera de lado e sobre o qual ainda não se debruçara. Franziu as sobrancelhas
com um ar inquiridor para Kat.
- Há bocado - disse não sei se ouvi corretamente.
Kat olhou para ele.
- O que é que querias dizer com a história do Monk ainda estar vivo?
12h20
Montes Urais Meridionais
Monk deslizou ao longo do comboio no meio da escuridão. Percorreu as várias cabinas com o seu antebraço amputado, enquanto caminhava pelos carris. Esticou o outro
braço e foi tateando com a mão o espaço em frente. Tropeçando sobre as traves e as pedras maiores da gravilha. conseguiu passar da parte da frente para a parte de
trás do comboio.
Minutos antes, enquanto Monk saía do comboio. Pyotr deixara de gritar. Parara abruptamente. O silêncio era ainda pior. criando um vazio tão profundo como a escuridão.
O coração de Monk batia.
Atingindo o vagão seguinte, abeirou-se para ver se ele lá estava e acenou com o braço no espaço aberto.
- Pyotr?
A sua voz soou excecionalmente alta, ecoando pelo túnel. Mas ele não sabia onde o rapaz estava ou até se ainda estava no comboio. A única opção era pesquisar metodicamente
até o fim.
Monk saltou para baixo e passou para o vagão seguinte. Esticou novamente o braço direito, perscrutando o espaço à sua volta...
... depois algo agarrou-lhe a mão.
Monk gritou de surpresa. Uns dedos quentes e felpudos apertaram os seus. Num gesto reflexivo, recuou com o braço, mas os dedos mantiveram-se firmemente apertados.
Um suave assobio acompanhou o aperto.
- Marta! - Monk relaxou e procurou dar-lhe um abraço no meio da escuridão.
Ela devolveu-o, roçando o seu rosto pelo dele e bufando suavemente de alívio. Todo o seu corpo tremia. Sentiu o coração dela a bater contra o seu peito. Ela desfez
o abraço, mas manteve a sua mão apertada. Pressionou-o a avançar com um puxão gentil.
Monk pôs-se de pé e deixou que ela o guiasse. Ele sabia onde é que ela o estava a levar. A Pyotr. Movendo-se mais rapidamente, Monk atingiu o último vagão. Ao contrário
dos vagões abertos no meio, o último era fechado.
Marta saltou por uma porta aberta.
Monk trepou a seguir. O velho chimpanzé andou às voltas e levou-o até um canto traseiro. Encontrou Pyotr no chão, deitado de costas.
A mão de Monk passou por cima dele, procurando definir os seus contornos no meio da escuridão.
- Pyotr?
Não houve resposta.
Sentiu o peito do rapaz a subir e a descer. Os dedos verificaram o seu pequeno rosto. Será que estava ferido? Será que caíra? A sua pele estava febril ao toque.
Depois uma mão pequena vagueou como um pássaro perdido e descobriu os dedos de Monk, agarrando-os com força.
- Pyotr, graças a Deus. - Monk puxou-o para si e sentou-se com o rapaz no colo. - Já estou ao pé de ti. Estás seguro.
Pequenos braços envolveram-no no pescoço. Monk sentiu o ardor da pele do rapaz, mesmo através das roupas.
Pyotr pronunciou qualquer coisa ao seu ouvido.
- Vá...
Monk sentiu um arrepio no corpo. O tom parecia mais forte do que o falsetto de Pyotr. Talvez fosse o escuro, talvez fosse o medo brutal do rapaz. Mas Monk não sentiu
os seus membros esguios a tremerem. A única palavra era mais uma ordem do que uma imploração.
No entanto, não era uma má ideia.
Levantou-se e ergueu o rapaz. Pyotr parecia mais pesado, embora Monk tivesse já ultrapassado os limites da exaustão, sentindo-se agora com a fadiga embrenhada nos
ossos, perto do colapso. Marta ajudou a levá-lo até a porta. Saltou do vagão e aterrou com força. Com o rapaz nos braços, apressou-se a voltar para a parte da frente
do comboio. Trouxera uma espingarda com ele mas deixara a outra na cabina da frente.
Atingindo o vagão, Monk perguntou.
- Consegues...?
Ainda antes de ele terminar a pergunta, Pyotr desprendeu-se dos seus braços e pôs-se de pé.
- Fica aqui. - Monk trepou rapidamente lá para dentro, agarrou na segunda espingarda, e pendurou-a ao ombro.
Regressou a Pyotr. O rapaz pegou-lhe na mão.
Monk exalou com força. Que direção? O comboio parara a meio caminho do túnel.
Podiam regressar até junto de Konstantin e das outras crianças ou continuar para a frente. Mas se tinham alguma esperança de parar esta mulher doida, Monk não via
qualquer vantagem em regressar.
Talvez Pyotr pensasse a mesma coisa. O rapaz posicionou-se naquela direção. Para Cheliabinsk 88.
Com duas espingardas amarradas às costas, e um rapaz e um chimpanzé na sua esteira, Monk caminhou pelo túnel completamente escuro. Tinham feito um círculo completo
e voltado para casa. Mas que recepção teriam pela frente?
O médico abanou a cabeça.
- Lamento, General-Major. Não sei o que se passa com as crianças. Elas nunca demonstraram este estupor antes.
Savina olhou através da sala. Duas enfermeiras e dois soldados haviam ajudado a colocar as dez crianças no chão, alinhadas como árvores caídas. Trouxeram almofadas
e cobertores dos quartos contíguos. Dois médicos haviam sido chamados: o doutor Petrov especializado em neurologia e o doutor Rostropovitch em bioengenharia.
Vestido com um casaco em pele de carneiro, Petrov mantinha-se de pé com as mãos nas ancas. A equipe médica encontrava-se já no processo de evacuação quando fora
chamada até aqui. Uma grande caravana de camiões e veículos encontrava-se alinhada para a partida.
- Precisaria de fazer um diagnóstico completo para entender melhor o que está a acontecer - disse. - E já desmantelamos...
- Sim. Eu sei. Teremos de esperar até chegarmos a Moscovo. As crianças podem ser transportadas em segurança?
- Acho que sim.
Savina olhou firmemente para a porta. Não gostou da forma equívoca como ele se expressara.
O médico acenou com a cabeça, demonstrando uma maior convicção.
- Elas estão estáveis. Podemos transferi-las.
- Então faça os preparativos necessários.
- Sim, General-Major.
Savina deixou os outros pormenores a cargo da equipe médica e dirigiu-se para o bunker de controle embaixo. Enquanto lidava com esta questão, Savina mantivera-se
em contato com as suas fontes no seio do serviço de informações russo e das comunidades militares. A informação retida em Chernobyl parecia estar finalmente a desbloquear-se.
Circulavam rumores e relatórios contraditórios relacionados com os eventos na cerimônia: tudo desde uma fusão nuclear plena a um ataque terrorista falhado por parte
de rebeldes chechenos. A opinião que recolhia maior consenso era a de que houvera definitivamente uma fuga radiológica. embora a sua extensão ainda fosse incerta.
E porque é que Nicolas não dizia nada?
A preocupação começou a atormentá-la, tornando-a ainda mais irritada e impaciente.
E agora esta coisa estranha que se estava a passar com as crianças.
Savina precisava de controlar o caos e concentrar-se na questão que tinha em mãos. Quaisquer que fossem as circunstâncias em Chernobyl, a Operação Saturno iria prosseguir.
Mesmo que Nicolas tivesse de algum modo fracassado, o mesmo não iria acontecer com ela. A sua operação por si só iria alterar as economias mundiais, matar milhões
de pessoas e espalhar uma nuvem radioativa pelo mundo. Seria uma tarefa árdua, mas com as crianças sábias ainda sob o seu controle, iram conseguir ultrapassá-la.
Com isto em mente, libertou-se de toda esta confusão e procurou a objetividade fria de quem precisa de tomar resoluções. Sabia o que tinha a fazer.
Alcançando o bunker, viu que todos as telas ainda estavam escuros, exceto o visor do C.M. 337. Observou os pequenos corpos aglomerados no chão de pedra. Ainda não
havia sinal de movimento.
Virou-se para os dois técnicos.
- Por que as outras câmeras ainda não funcionam?
O engenheiro-chefe levantou-se.
- O encerramento para diagnóstico acabou há alguns minutos. Estávamos à espera de suas ordens para pôr os sistemas novamente a funcionar.
Savina suspirou e pressionou os dedos na testa. Será que teria de arrastar alguém pelo nariz? Deslocou-se para o painel.
- Avancem.
Apesar do desejo que tinha de dar uma estalada ao homem, manteve a sua voz calma. Tinha ordenado o corte, mas não havia deixado nenhuma instrução em relação à situação
energética.
Para evitar futuras incompreensões, Savina apontou para o visor do C.M.337.
- Mantenham a energia cortada para a outra subestação. Tudo exceto a sua câmera. - Não queria mais surpresas daquele lado.
Enquanto os dois técnicos voltavam ao trabalho, as luzes brilharam através do painel e as telas escurecidos encheram-se de imagens do túnel e do coração da sua operação.
Tudo parecia bem, tirando uma dolorosa exceção.
O comboio já não estava estacionado ao lado do local da mina.
Savina apontou para as telas.
- Verifiquem as imagens das câmeras, sequencialmente, ao longo do túnel.
Encontrem o comboio.
Os técnicos começaram a carregar nas teclas no controle principal e vários instantâneos apareceram através das telas, revelando o que se estava a passar no túnel,
atormentando-a. Depois, a meio caminho da passagem, o comboio apareceu. Repousava languidamente nos carris. Não viu qualquer movimento. Alguém podia estar escondido,
mas Savina não acreditava nisso.
- Continuem pelo túnel abaixo - ordenou.
Mais imagens digitais apareceram. Descortinou um certo movimento numa delas.
- Parem!
Uma única lâmpada de parede iluminava esta secção do túnel escuro. Estava a uns duzentos e cinquenta metros das portas blindadas. Enquanto Savina observava, começaram
a destacar-se algumas figuras no meio da escuridão, caminhando para a luz vindas do túnel profundo.
Os dedos de Savina apertaram com a força a extremidade do painel de controle.
Era o americano... levando uma criança pela mão.
No momento em que apareceram no meio do brilho, Savina reconheceu o rapaz.
Pyotr.
Endireitando-se, Savina olhou para a imagem com grão do C.M. 337. Todas as crianças permaneciam caídas. Por isso. porque é que um rapaz ainda estava de pé e a mexer-se?
- General-Major? - perguntou o engenheiro.
A mente de Savina começou a girar, mas não conseguiu arranjar uma explicação. Abanou a cabeça. Como que pressentindo os olhos que incidiam sobre eles, os dois pararam
na luz. O americano olhou para trás dele. Os seus olhos franziram-se de confusão.
No momento em que a energia voltou e as luzes brilharam, Monk sabia que as câmeras deviam ter ficado novamente operativas. Sem grande razão ou capacidade para se
esconder, Monk continuou a andar, dirigindo-se para a lâmpada mais próxima. Só então se apercebeu de que algo estava errado.
Ou melhor, faltava.
Procurou atrás dele. Marta tinha desaparecido. Pensara que ela o seguia no escuro. Ela movia-se muito silenciosamente. Olhou para trás para o fundo do túnel. Não
viu qualquer sinal dela. Será que tinha ficado no comboio? Monk procurou até em frente, pensando que talvez se tivesse adiantado. Mas o túnel terminava daí a uns
.sessenta metros, junto a um conjunto de portas altas e blindadas.
Marta não se via em parte alguma.
Os altifalantes junto às portas estalaram com eletricidade estática, depois ouviu-se uma voz dura a falar em inglês.
- Continue a andar! Acompanhe o rapaz até a porta se quiser continuar a viver.
Monk permaneceu gelado, sem saber para onde ir.
12h35
Kyshtym, Rússia
Sentado num velho camião rural, Gray saiu com a caravana pelos portões da pista de aviação e entrou numa estrada de duas faixas que partia para as montanhas. Paredes
de abetos flanqueavam a estrada, criando um bonito corredor verde.
Pelo espelho retrovisor, Gray viu a pequena montanha de Kyshtym a ficar para trás e a desaparecer no meio da densa floresta. A cidade ficava nas encostas orientais
dos montes Urais, apenas a catorze quilômetros do seu destino, Cheliabinsk 88. Tal como toda a área em redor, a cidade tinha também as suas marcas do desastre e
consequente contaminação nuclear. Ficava a favor do vento de um outro complexo nuclear, designado por Cheliabinsk 40, também conhecido por Mayak, a palavra russa
para “farol”. Mas Mayak não era um farol brilhante no que diz respeito à segurança nuclear russa. Em 1957, um tanque de resíduos explodira, devido a um arrefecimento
inadequado, lançando oitenta toneladas de material radioativo na região e obrigando à evacuação de centenas de milhares de pessoas. Os Soviéticos mantiveram o acidente
secreto até 1980. Depois de uma curva, a cidade desapareceu, tal como grande parte da história nuclear da União Soviética.
Continuando em frente, Gray ajeitou-se no lugar. A estrada atravessava uma ponte com protetores pintados de vermelho-vivo. Um aviso. A ponte passava por cima de
um rio profundo que assinalava a antiga fronteira de território restrito. A estrada prosseguia trepando pelas montanhas.
Atrás de Gray, seguia uma dezena de camiões de diferentes modelos e feitios, mas todos usados e enlameados. Gray partilhava o assento da frente com Luca e o condutor,
que estavam a conversar em romani. Luca apontou para a frente e o condutor acenou.
- Não estamos muito longe - disse Luca, virando-se para ele. - Já temos observadores a vigiar a estrada de acesso. Relatam imensa atividade. Muitos carros e camiões
descendo as montanhas.
Gray franziu as sobrancelhas perante a notícia. Parecia uma evacuação. Será que tinham chegado demasiado tarde?
Na cama do caminhão, quatro homens acomodavam-se, meio escondidos por cobertores. Gray ficara impressionado com o arsenal escondido debaixo dos cobertores: caixas
de espingardas automáticas, uma grande quantidade de revólveres, até granadas propulsionadas por foguete.
Luca explicara a falta de controle de tais armas no mercado negro russo. O pequeno exército, reunido a partir de clãs ciganos locais havia-se encontrado com eles
em Kyshtym. Vieram engrossar as fileiras de homens que Luca trouxera com eles da Ucrânia. Gray tivera de pôr tudo nas mãos de Luca Hearn; na eventualidade de ser
necessário reunir rapidamente uma milícia nada melhor do que contactar um cigano.
Nos camiões atrás deles, seguiam Kowalski e Rosauro. Tinham deixado Elizabeth no jato, segura, guardada por um trio de soldados das SAS britânicas.
Toda a gente tinha de se deslocar com destreza. A velocidade era essencial. O plano era atacar as instalações subterrâneas, encerrá-las e deter o que quer que fosse
que tivesse sido planeado. A natureza da Operação Saturno permanecia um mistério. Contudo, tendo em conta o fato de se encontrarem no centro das instalações de produção
de plutônio e das minas de urânio da antiga União Soviética, teria de ser de natureza radiológica.
As palavras do senador Nicolas Solokov ainda lhe permaneciam na cabeça.
Milhões não deixarão de morrer.
Gray já fora informado de que o homem nascera a cerca de trinta quilômetros daqui, na cidade de Ekaterinburg. Era a região que ele representava na Assembleia Federal
russa, o que significava que conhecia a área e os seus segredos. Se alguém quisesse maquinar um evento nuclear, aqui seria um bom lugar para fazê-lo.
Mas o que é que estava planeado?
Em Kyshtym, Elizabeth começou a caminhar a todo o comprimento do Jato. Avançava de braços cruzados, com o queixo para baixo em concentração. Estava preocupada com
os outros, tendo ficado mais receosa depois de ter ouvido o que Gray e os outros procuravam deter.
Milhões morrerão.
Uma loucura.
A ansiedade manteve-a de pé, pela equipa, pelo destino de milhões. Tinha um computador portátil numa mesa. Tentara trabalhar, para se manter ocupada. Começara a
descarregar as imagens digitais que tinha na câmera. O professor Masterson mantivera a sua máquina em segurança, depois de ela ter sido raptada pelos Russos. Devolvera-a,
depois da fuga da prisão em Pripyat.
Na tela, as fotos iam passando à medida que iam sendo descarregadas para o portátil.
Dando uma vista de olhos, apanhou uma imagem do ônfalo, pousado no centro da roda chacra. Apesar da preocupação, o seu coração ainda se punha a palpitar perante
o pensamento de que a pedra era o artefato délfico original. Há duas décadas que os historiadores sabiam que a pequena pedra no museu era uma cópia, o destino da
original um mistério. Alguns eruditos haviam colocado a hipótese de um ou outro culto oracular ter sobrevivido à destruição do templo e roubado a pedra do seu templo
secreto.
Elizabeth voltou ao portátil. Olhou para o ônfalo. Aqui estava a prova. Afundou-se na cadeira no momento em que, subitamente, se apercebeu de uma coisa. Lembrava-se
daquilo que estava inscrito na cópia do museu: uma linha curva em sânscrito.
Era uma antiga oração a Sarasvati, a deusa hindu da sabedoria e do conhecimento secreto. Ninguém sabia quem é que inscrevera aquilo ali ou porquê. Mas não era invulgar
verem-se grajfhi religiosos de uma religião assinalando outra.
No entanto, Elizabeth começou a suspeitar da verdade. Talvez a cópia do ônfalo tivesse sido deixada para trás como um marco miliário. Percorreu as imagens e chegou
à foto do mosaico na parede, representando uma criança e uma jovem mulher a esconderem-se de um soldado romano debaixo da cúpula do ônfalo, onde o poema sânscrito
fora inscrito. Dizia: “Ela que não teve início, fim ou limite, que a deusa Sarasvati a proteja.” Podia estar muito bem a referir-se ao último oráculo, uma oração
para proteger a sua linhagem. Além disso, a própria deusa Sarasvati acabara por se fixar num rio sagrado. Muitos eruditos religiosos acreditavam que este rio mítico
era o rio Indo, onde os gregos exilados se haviam instalado.
Elizabeth suspeitava de que alguém deixara a mensagem secreta para os outros a seguirem. Tal como ela e o seu pai.
Voltou a observar a imagem do ônfalo original. Tirara várias fotografias, incluindo a linha tripla esculpida na pedra que avisava da armadilha - escrita em harappiano,
sânscrito e grego. Observou essa imagem.
Havia outro exemplo desta escrita tripla nas paredes da câmara. Por baixo da figura do rapaz de olhos a arder. Colocou também essa imagem. Sob o mosaico, a linha
em harappiano estava intacta, mas metade do sânscrito e do grego havia desaparecido. Apenas uma ou duas letras continuavam legíveis.
Leu o que conseguia.
- O mundo arderá...
A linha perturbava-a, fazendo-lhe lembrar o que Gray e os outros procuravam evitar. Olhou para a imagem de um rapaz erguendo-se do ônfalo no meio do fumo e do fogo
e sentiu um arrepio de preocupação. E quanto ao resto da mensagem? A única linha intacta era aquela escrita em harappiano, indecifrável. Era um quebra-cabeças de
palavras que estava ali para a desafiar.
A não ser que...
Elizabeth endireitou-se e aproximou-se mais um pouco, pondo de parte as suas preocupações anteriores. Olhou entre as duas imagens na tela. Começou a compreender
para o que é que estava a olhar. Tinha linhas de harappiano traduzidas para o grego e o sânscrito. Traduzidas. Respirou com mais força. No computador, tinha o início
de uma pedra de Roseta digital para esta linguagem perdida.
Regressou à linha quebrada por baixo do rapaz que se erguia no meio do fumo. Estudou-a, comparou-a e procurou igualmente as fotografias da escrita na parede da escadaria.
Começou a descortinar elementos comuns.
Será que conseguia traduzir?
Pressentindo algo de importante, embrenhou-se no trabalho.
12h45
O General-Major Savina Martov estudou o seu adversário. Olhou para o americano na tela. O indivíduo permanecia parado, enquadrado pelo feixe de luz fornecido pela
lâmpada do túnel. Levou o microfone aos lábios.
- Dirija-se para as portas agora! - gritou com firmeza.
Pela forma como saltou com as suas palavras, o homem deve tê-la ouvido. Não havia problema com os altifalantes que se encontravam junto às portas blindadas.
- General-Major - disse o engenheiro. - Tenho uma chamada prioritária para si da Base de Mísseis de Arkhangelsk.
Savina inclinou-se para trás e pegou nos auriculares. Um dos seus contatos estava localizado nessa base.
- Daqui fala Martov.
- General-Major, uma informação inquietante acaba de nos chegar da Ucrânia. Parece que o senador Nicolas Solokov morreu.
Savina inspirou com força. Tentou controlar qualquer tipo de reação mais forte. No entanto, sentiu a garganta a apertar-se-lhe. O seu contato não sabia se Nicolas
era seu filho, apenas que era íntimo e apoiante das suas operações aqui.
O contato continuava a falar.
- Correm rumores quanto aos pormenores relacionados com o evento. Há quem diga que foi morto por terroristas, enquanto outros são da opinião de que poderá ter tido
uma intervenção direta naquilo que se passou por lá. A verdade é que ele está morto. As câmaras no interior do abrigo selado revelaram seu corpo e o da assistente.
Foi ferido na cabeça. Os níveis de radiação são ainda muito elevados para se poder remover o corpo em segurança, mas estão a ser tomadas algumas medidas. Não posso
dizer...
As palavras do homem continuavam a zunir aos seus ouvidos, mas Savina deixara de ouvir. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Inclinou a cabeça para trás para evitar
que escorressem pela cara. Terminada a conversa, Savina agradeceu-lhe a informação prestada e desligou.
Virou ligeiramente as costas ao técnico e ao engenheiro.
Nicolas estava morto.
O seu único filho.
Talvez uma parte dela já estivesse à espera disto. Durante a última hora, fora incapaz de se libertar de uma certa dose de desespero. A sua respiração tomara-se
mais pesada. Nicolas...
- General-Major? - perguntou delicadamente o engenheiro.
A sua gentileza só veio irritá-la mais. Virou a atenção para a tela. O americano ainda não se tinha mexido. A sua frustração incendiou-se, como se a sua dor fosse
óleo. Uma fúria foi-se arquitetando no seu interior. O americano estivera a fazer troça dela o dia inteiro e agora desafiava-a.
Mas não seria por muito mais tempo.
As lágrimas secaram com o calor da sua veemência.
O seu filho poderia estar morto, mas ela dera à luz outra criança, o sonho que aqui se ergueria das cinzas. O sangue da família não era a única forma de deixar para
trás um legado. Acabaria o que matara o seu filho. Encontraria outra figura de proa para ocupar o seu lugar. Poderia demorar mais algum tempo, mas fá-lo-ia. O mundo
roubara o seu filho. Mas ela tinha o poder para atacar de novo.
A sua voz ganhou tal ímpeto que obrigou o engenheiro a dar um passo atrás.
- Basta! - Apontou para os dois ecrãs do lado esquerdo. Representavam o coração da Operação Saturno. Um exibia uma vista do poço abrangendo o local onde se encontravam
as cargas; o outro centrava-se no diafragma colocado no chão. - Iniciem o Saturno! Ao meu sinal!
O engenheiro e o técnico voltaram-se para os seus comandos, carregando furiosamente nas teclas.
Savina olhou para o homem na tela. Se ele não lhe trouxesse Pyotr, ela acenderia um fogo debaixo do homem. Não haveria qualquer possibilidade de retirada, ou de
fuga.
- Verde no painel - disse o engenheiro sinteticamente. - Aguardando pelo seu sinal.
- Agora!
Ela respirou fundo e observou os dois ecrãs. Um monitor encheu-se de luz. Ouviu uma explosão abafada soando à distância. As pedras caíram junto da câmara, seguidas
por uma invasão de lama que toldou a visão. No outra tela, o diafragma abriu-se no momento em que um fluxo de pedra e de lama caía por cima dele com um forte estrondo.
Instantes depois, a água preta começou a brotar de cima numa coluna sólida. Os cálculos dos engenheiros revelaram-se corretos. O arco de água fluía diretamente para
o bucho aberto do diafragma,
Começara.
O mundo matara o seu filho. Mas o filho do seu cérebro sobreviveria. Embora tivesse iniciado a operação com uma fúria que continha tanto de esperança como de retribuição,
não podia negar uma veia escura na sua frieza de aço. Enquanto a água fluía, ela sabia que estava a lançar a sua vingança no mundo por aquilo que hoje lhe tinha
sido roubado.
Virou a sua atenção para o americano.
Uma vez estimulada, a sua vingança precisava de um outro alvo.
Ainda não tinha terminado.
Monk levantou-se do chão. A explosão ainda fervilhava na sua cabeça. Armadilhado no espaço fechado, a força do abalo projetara-se contra as suas orelhas como uma
palmada de gigante. Cobrira Pyotr com o seu próprio corpo.
Enquanto a sua cabeça continuava a zunir, ajudou o rapaz a erguer-se. Um rugido pesado ecoou à distância do túnel escuro atrás dele, tal qual o rugido de um grande
dragão. Mas Monk sabia o que estava a ouvir.
A precipitação da água.
Toneladas de água.
Também sabia o que tudo isso significava - a explosão, a queda de água subterrânea -, significava que ele falhara. A Operação Saturno estava a decorrer, lançando
uma mistura tóxica no coração do mundo.
O altifalante guinchou de novo junto às portas blindadas.
- Largue as armas! - disse a mulher com um misto de gelo e de fogo, uma determinação fria envolta em raiva. - Acompanhe o rapaz até a porta. E aconselho a despachar-se.
Os níveis de radiação estão a aumentar rapidamente. Tem menos de cinco minutos até absorver uma dose letal.
Monk não tinha outra hipótese. Libertou-se das espingardas e deixou-as cair com ruído por cima dos carris, Pyotr esticou-se e agarrou na manga do seu braço amputado.
Juntos apressaram-se a percorrer os últimos metros, correndo, enquanto a radiação se erguia no túnel. A frente, as portas blindadas abriram-se lentamente, revelando
uma linha de cinco soldados de espingardas em punho.
O seu comité de boas-vindas.
Pyotr pressionou-o a avançar mais depressa, como se o rapaz soubesse alguma coisa que Monk ignorava.
A perna ferida de Monk fazia-o gemer com um dor agonizante a cada passada. Sentia o peito a apertar-se. Tinha dificuldade em respirar. Olhou para baixo na direção
da cintura. Ainda tinha o suporte do dosímetro. Batia contra o seu corpo a cada passada. Monk conseguia ver a superfície. Estava carmesim, mas à medida que iam avançando,
ia ficando cada vez mais escura.
Mesmo com a perna naquele estado, acelerou.
Monk e Pyotr correram para as portas.
Enquanto se aproximavam da saída, um valente estrondo soou como um trovão no interior da caverna de Chelyabinsk 88. Os passos de Monk titubearam de surpresa, mas
Pyotr impulsionou-o para a frente.
Os guardas, igualmente surpreendidos, viraram-se. Um estatelou-se no chão, tal era o medo.
Pyotr lançou-se pelo intervalo. Atingindo a linha, o rapaz caiu sobre a figura esparramada do soldado. Esticou a sua outra mão e tirou um revólver do coldre de um
soldado que estava por perto. O rapaz rodopiou e atirou a arma para a única mão de Monk.
O lançamento foi perfeito. Acertara em cheio na sua mão. Monk levantou o braço. Disparou à queima-roupa para a linha, usando uma qualidade reflexiva enterrada bem
mais fundo do que a sua memória apagada.
Gastou todas as munições, deitando por terra os cinco homens.
Monk atirou a pistola para o lado. Pyotr lançou-se para a frente e pegou noutra. Passou-a a Monk, agarrou-o outra vez pela manga e saíram dali.
Soaram mais explosões em tomo da caverna. Os homens gritaram e o fumo apareceu vindo dos prédios de habitação abandonados. Enquanto corria, deu-se conta da passagem
sibilante de um morteiro ou granada propulsionada por foguete. Embateu noutro edifício. O cimento e o vidro explodiram para o exterior, precipitando-se sobre os
soldados em baixo.
A base estava a ser atacada.
Mas por quem?
Gray acelerou com o camião pela rampa de cimento e através das portas maciças. Na viagem de avião para aqui, lera acerca destes complexos, destas cidades subterrâneas.
Os Soviéticos costumavam trazer orquestras e bandas para tocar para os trabalhadores, enchendo anfiteatros subterrâneos. No entanto, Gray não estava preparado para
a dimensão gigantesca do local
Nem para o caos.
Seis camiões lideraram o assalto inicial.
Para os acalmar, dissera Luca.
Gray não podia discutir. Era o exército de Luca, não o dele.
Ele tinha uma missão.
Gray disparou por uma parede de fumo. Viu um míssil embater nos prédios de habitação de cinco andares, fazendo com que caíssem secções inteiras. Luca estava na caixa
do camião, protegido por um foguete que transportava ao ombro. Dois camiões seguiam lado a lado. Kowalski conduzia um, Rosauro o outro.
Depois de os seus camiões terem passado pela boca do túnel, os ciganos fecharam a saída atrás deles, bloqueando o caminho com dois camiões de transporte de madeira,
completamente atulhados. Duas dezenas de homens guarneciam a barricada e impediam toda a gente de sair.
Gray ficou impressionado com a estratégia de ataque dos ciganos - tanto agora como momentos antes.
Quando vinham para aqui, vindos do aeroporto, todos os veículos na região pareciam fazer parte do tráfego local, vagueando pelas estradas de montanha e pistas enlameadas.
Depois, aquando de um sinal coordenado, o ar pacífico da região transformou-se e a montanha viu-se invadida por um assalto sincronizado. As espingardas saíram dos
bunkers construídos no interior dos camiões de feno. Os cavalos irromperam das carroças com cavaleiros transportando espingardas da caça, que cobriram rapidamente
o terreno inclinado. As motorizadas saíram pelas traseiras de camiões distribuidores de leite e embrenharam-se pelas estradas laterais. A transformação repentina
isolou a encosta da montanha numa questão de minutos.
Os Russos que já tinham deixado o complexo subterrâneo foram surpreendidos na estrada, encaminhados para as valas, desprovidos das suas armas e atados. Quando Gray
chegou à entrada da montanha, a equipe que iniciara o assalto já estava a fazer uma barreira no fundo do túnel, deixado um rastro de fumo e de fogo para que ele
o seguisse.
Gray não hesitara. Não tinham tempo a perder. A Operação Saturno tinha de ser encontrada e detida.
E os homens de Luca também estavam lá para apoiar. Tal como qualquer bom exército, os ciganos tinham recolhido informações na perspetiva de um ataque. No caminho
para aqui, um homem com um casaco preto por altura do tornozelo parara no meio da estrada e fizera sinal ao camião de Luca para parar. Dois homens com batas de laboratório
estavam ajoelhados na vala lateral da estrada, com as mãos atrás das costas, as espingardas apontadas às suas cabeças. Os ciganos não foram gentis. Por outro lado,
tinham sido os Russos que haviam matado a sua aldeia no topo da montanha e raptado as suas crianças.
Os Russos tinham começado esta guerra; os ciganos tencionavam acabá-la.
O interrogador passou a Luca um mapa desenhado à mão, cheio de sangue. Luca entregou-o a Gray. Era um esquema simples de Cheliabinsk 88, incluindo um círculo em
tomo da estação de controle responsável pela Operação Saturno, localizado num bunker inferior, por baixo de uma das estruturas habitacionais da caverna.
Com o objetivo conhecido, Gray enfiou o camião pela estrada tortuosa na direção do cerco em progressão Junto do complexo habitacional. O ataque inicial, apesar de
dramático e surpreendente, também obstruíra a estrada com destroços. Um edifício inteiro tinha caído no meio da estrada principal.
Os ciganos, em camiões, continuaram a montar uma barreira de fogo.
Outros abandonaram os veículos e prepararam-se para uma ofensiva por terra.
Gray avançou com o camião a patinar para o local onde os homens se encontravam reunidos e rolou para fora do veículo. Kowalski e Rosauro Juntaram-se a ele. Saltando
da caixa do camião, Luca gritou em romani. Os homens responderam. Depois de algumas trocas de palavras, Luca virou-se para Gray e avançou ao lado dele, agachando-se
atrás de um dos camiões.
- Os Russos retiraram-se para os edifícios, defendendo mais ferozmente à medida que vamos progredindo.
Gray sabia porquê.
- Fizeram recuar as suas forças para defenderem a estação de controle. Se ainda não iniciaram o Saturno, não demorará muito para que isso aconteça. Não podemos esperar
mais.
Luca levantou uma mão, num gesto de retenção, e olhou para trás na direção das tropas reunidas.
- Tenho um homem... ah. cá está ele.
Uma figura baixa correu agachada na sua direção. Usava roupas de um cinzento-cimento e um boné preto. Os dois homens romani falaram rapidamente.
- É o Rat - disse Luca, apresentando o recém-chegado.
- Bonito nome - murmurou Kowalski.
- É um batedor. Experiente em descobrir caminhos que ninguém pensaria proteger. Ele poderá indicar um caminho, mas somente acessível a poucas pessoas. Cinco ou seis,
mais não. - Luca olhou em tomo do .seu pequeno grupo. - Talvez apenas nós. Va?
- Va - concordou Kowalski, depois olhou para Gray à procura de confirmação.
- Os outros homens manterão os Russos ocupados - acrescentou Luca, apontando com a cabeça para as tropas e os camiões.
- Vamos então? - perguntou Rat num inglês forçado.
- Va - respondeu Gray, recebendo um esgar do homem e uma palmada no joelho.
Prepararam as suas armas - espingardas e revólveres - e seguiram o homem baixo na direção de uma pilha de destroços. Gray não via nenhum caminho à frente. Luca fez
um sinal às tropas enquanto estas passavam. Um forte assobio soou através da caverna fumarenta.
Rat acenou para a sua pequena equipa, debaixo de uma secção inclinada da parede. Gray caminhou e descobriu que dava para uma Janela da cave do prédio mais próximo.
Enquanto prosseguiam lentamente pelo labirinto do batedor, Gray ouviu um grito erguer-se atrás dele.
- Opre Roma!
Tal como uma chama atiçada na erva seca, o toque da trombeta espalhou-se.
O tiroteio e os disparos de foguetes intensificaram-se.
Continuando para a frente, Gray rezou para que não fosse demasiado tarde.
Savina deslocou-se rapidamente pelas escadas abaixo e entrou no bunker. Ignorou as pontadas nas suas costas, as dores lancinantes que lhe prendiam as pernas e o
coração a bater. Ao primeiro sinal de ataque, mandara selar as portas blindadas que davam para o túnel.
Em cima, esperando por ela, estava um grupo constituído pelos soldados mais fortes e que fora convocado peio doutor Petrov. O plano era escapar com cinco crianças,
transportadas às costas dos soldados. Nada mais. Ela não podia levar dez. A melhor forma de escaparem era deslocarem-se rápida e eficientemente. O prisioneiro americano
dera-lhe uma ideia. Ele e as crianças tinham fugido por um túnel de serviço nas traseiras. Eles fariam o mesmo.
Mas Savina tinha uma última medida a tomar.
Entrou no bunker e encontrou o técnico e o engenheiro a arrancarem os teclados. Já tinham usado varinhas magnéticas para retirarem os discos rígidos. Os danos nos
controles seriam um garante de que nada interferiria com o progresso da Operação Saturno.
- Está tudo desmontado?
O engenheiro acenou com a cabeça vigorosamente.
- Seriam necessárias várias semanas para que um gênio elétrico pudesse reparar tudo isto.
- Muito bem. - Ergueu a sua pistola e alvejou o engenheiro na testa. O técnico tentou fugir, mas Savina moveu o braço e derrubou-o no fundo das escadas, com um tiro
no pescoço. Ele contorceu-se e acabou por se asfixiar com o seu próprio sangue.
Não podia arriscar que estes dois fossem apanhados. O que haviam desmontado poderiam ser forçados a montar outra vez, sob a ameaça de uma arma.
Não podia permitir que isso acontecesse.
Para se contentar ainda mais. Savina agarrou num machado de incêndio que estava na parede do fundo e foi até os painéis. Erguendo-o bem alto, escangalhou os painéis
e os computadores. Depois disso, pousou o machado no chão e inclinou-se sobre o seu cabo. Olhou para a fila de ecrãs LCD. Ainda mostravam a imagem de várias câmeras.
Pensou em esmagar os monitores também, mas com as costas a doerem-lhe daquela forma, não sabia se conseguiria levantar o machado outra vez.
E, no final, o que é que isso interessava?
Atirou o machado para o chão e olhou para a tela mais ao centro. A água brotava numa corrente preta tóxica.
Eles que vissem o que ela forjara.
Sorriu, apreciando este último ato de crueldade, depois virou-se e dirigiu-se para as escadas.
Eles que vissem o mundo a morrer.
Ninguém a deteria.
21
7 de setembro, 13h03
Montes Urais Meridionais
Pyotr conduziu o homem pela manga da camisa. Correram através do caos. Os soldados gritavam, o vidro estilhaçava-se, as espingardas ressoavam, as chamas retorciam-se
e o fumo sufocava. Mas não era caos para Pyotr.
Puxou por Monk para que este se abrigasse numa porta escura enquanto um soldado dobrava uma esquina à frente, depois prosseguiram. Pyotr levou o homem por um corredor,
subiram umas escadas, saíram pela janela e passaram por cima de uma pilha de destroços para o edifício seguinte.
- Pyotr, aonde vamos?
Ele não respondeu, não podia responder.
Atingindo outro corredor, Pyotr parou. Na sua cabeça, concebeu exteriormente um milhar de possibilidades. Os corações brilhavam com pequenas piras, trepidando de
medo, raiva, pânico, cobardia e malícia. Compreendeu como cada um se iria dispersar antes de o fazerem. Era o seu talento, mas muito mais agora.
Pois ele tinha um segredo.
Ao longo dos últimos anos, quando acordava a gritar do seu pesadelo, despertando as outras crianças com visões de corpos a arder, havia uma razão para que, depois
disso, os seus colegas tivessem umas prestações tão fracas nos testes. Os professores atribuíam isso ao fato de Pyotr os ter assustado, mas estavam errados. O talento
de Pyotr era ler corações. Chamavam a isso empatia. Mas ele tinha um segredo, algo sobre o qual só falava com Marta.
Algo que sabia dos seus sonhos.
Ele podia fazer mais do que ler corações - ele podia também roubá-los. Não era o medo que fazia com que as outras crianças tivessem más prestações; elas tinham ficado
sem algo. Durante alguns minutos, depois de acordar, Pyotr podia fazer tudo. Podia multiplicar grandes números, como Konstantin; podia dizer se uma pessoa estava
a mentir ouvindo como falava, como Elena; podia ver lugares escondidos, como a sua irmã; e muito mais. E isso enchia-o até se pôr a arder.
Imaginava as estrelas a caírem sobre ele, gritando, alimentando o vazio no seu interior. Nos seus sonhos, acordara sempre antes de consumi-las na sua totalidade.
Não hoje. Pyotr caminhava através de um sonho do qual não podia acordar. Ele sabia que tinha ultrapassado uma fronteira, mas também sabia que não tinha alternativa.
Ele fora feito para arder.
Pyotr olhou para o caos com um olhar de fogo que não era só seu. Através de uma centena de olhos, estabeleceu um padrão no meio do caos. Embora não pudesse ver o
futuro - ou pelo menos não mais do que alguns segundos - os seus ouvidos apanhavam todos os barulhos, os seus olhos interpretavam todas as chamas ou mudanças de
sombras, o seu coração interpretava aquilo que levara um homem a escolher ir por este ou aquele sítio, dobrar ou não a esquina, disparar ou correr. E com uma sombra
da capacidade da sua irmã, os seus sentidos estendiam-se ainda mais alguns metros para além disso.
E no meio do caos, um caminho tomou forma.
Um que podia seguir.
Pyotr atravessou o corredor, guiando Monk atrás ele.
Apontou para a esquerda e Monk alvejou o soldado que apareceu um segundo depois. O homem estava a aprender a confiar no instinto de Pyotr. Ir atrás dele, disparar
sob o seu comando, transformando-se numa extensão de Pyotr.
Juntos, seguiram este padrão.
Movendo-se através do instinto puro.
E era o que Pyotr era agora; instinto disparado por uma centena de talentos.
Ele compreendeu plenamente. O instinto era meramente a interpretação inconsciente do cérebro de milhões de mudanças subtis no ambiente, no momento e antecipando-o.
O cérebro recebia toda essa informação caótica, via um padrão e o corpo reagia. Parecia mágico, mas era apenas biológico.
Pyotr fazia o mesmo agora, só que de uma forma muitíssimo mais poderosa.
Alargava os sentidos, lendo corações, motivações, trajetórias, distâncias, barulhos, vozes, direções, cadências, fumo, calor... e por aí fora. Os milhões de pormenores
enchiam-no e filtravam-se através de centenas de mentes que ele partilhava. Desse caos, os padrões abriam-se e ele sabia cada passo que devia tomar.
- Aonde vamos? - perguntou de novo Monk.
Onde precisa de estar, respondeu Pyotr silenciosamente.
Pyotr levou-o pelas escadas abaixo de novo, depois puxou o homem para o chão no momento em que um tiro lhes passou por cima. A partir daí, gatinharam sob uma fila
de secretárias de aço, enquanto os soldados revistavam, depois debaixo de outro conjunto de cadeiras, para um longo corredor na cave com ramificações que davam para
um labirinto de salas e outras passagens.
Pyotr apressou-se.
Apesar de ver um padrão, ele não podia ver realmente o futuro. Dançou mais depressa ao longo dos fios de puro instinto, pressentindo a pressão das gerações sobre
ele. Eles não tinham muito tempo.
O homem estava a ficar cada vez mais angustiado, talvez pressentindo o mesmo.
- Aonde é que tu...?
Uma nova voz irrompeu, vinda do fundo do corredor, num tom de surpresa. Pyotr leu o bater no coração do recém-chegado. Um nome foi gritado num tom de descrença.
- Monk!
Gray quase que o alvejara. Circundando a sala, Gray descobrira duas figuras correndo na sua direção, uma com uma arma apontada em frente. Se não fosse a presença
do rapaz, Gray teria atirado por instinto.
Em vez disso, gelou momentaneamente entre o reconhecimento e o choque.
O seu amigo não. A pistola disparou. Gray sentiu um coice no ombro, que o atirou para trás. A dor projetou-se para o exterior.
Kowalski apanhara-o no momento em que ele caía e gritava mais alto do que o estampido do tiro da pistola.
- Monk, meu sacana! O que estás a fazer?
Monk parou, travado pelo rapaz. O seu rosto transformou-se numa máscara confusa.
- Quem... quem são vocês?
Kowalski ainda espumava.
- Quem somos nós? Somos os teus malditos amigos!
Gray pôs-se de pé. com o ombro esquerdo a arder com o tiro.
- Monk, não nos reconheces?
Monk passou com o dedo por uma linha vermelha e saliente de suturas que tinha atrás das orelhas.
- Não... na verdade, não.
Gray aproximou-se dele, com a mente atordoada de tantas questões, com a impossibilidade de tudo isto. Seria amnésia ou será que lhe tinham feito algo? Como é que
Monk podia estar aqui? Gray não queria saber. Abraçou com força o seu amigo, recebendo uma queixa ardente da parte do seu ombro. Apenas uma esfoladela, mas teria
suportado tudo o que fosse preciso para ter este homem de volta à sua vida. Apertou-o ainda mais.
- Eu sabia... eu sabia... - murmurou Gray com fervor. As lágrimas escorriam-lhe pela cara abaixo. - Meu Deus, estás vivo.
Kowalski grunhiu.
- Não permanecerá vivo por muito mais tempo se não sairmos daqui.
O homem tinha razão. Gray largou Monk, mas manteve uma mão no cotovelo do seu amigo, para se certificar de que ele não desaparecia outra vez.
Monk olhou para eles todos.
- Ouçam - disse e apontou lá para fora. - Podia usar a vossa ajuda. Há uma coisa que tenho de parar.
- A Operação Saturno - disse Gray.
Monk olhou estupefato na direção de Gray, depois acenou.
- É verdade. Este rapaz pode...
Monk girou repentinamente.
- Onde está Pyotr?
Gray compreendeu a sua confusão.
O rapaz desaparecera durante o caos.
13h15
Kyshtym, Rússia
Elizabeth estudou a imagem na tela do computador. Mostrava o mosaico de parede do templo na Índia. Cinco figuras estavam sentadas em trípodes rodeando o ônfalo central.
Do buraco na pedra, o fumo elevava-se em rodopios como um vulcão fumegante. Um rapaz a arder erguia-se por cima, meio enterrado numa coluna de fumo.
Mas não era apenas o fumo que o elevava.
Ao seu lado, Elizabeth tinha papéis repletos de linhas escritas em harappiano, sânscrito e grego. Tinha imagens das inscrições na parede e no ônfalo. Não estava
inteiramente segura da sua tradução.
O mundo arderá...
Estudou o mosaico mais de perto. Cinco mulheres agitavam-se nas suas cadeiras, como se estivessem num transe, mas todas elas erguiam um braço na direção do rapaz
envolvido pelo fumo. O seu primeiro pensamento foi que representava uma invocação do rapaz ou chamamento. Mas agora pensava noutra coisa. Não estavam a invocá-lo,
estavam a apoiá-lo.
Ela olhou para a linha que tinha acabado de traduzir na sua totalidade.
O mundo arderá... a não ser que o múltiplo se transforme no uno.
Era um aviso. O mosaico previa o que devia vir a acontecer ou que o mundo viria a ser destruído por algum grande incêndio. Elizabeth lembrava-se da preocupação de
Gray de que, fosse qual fosse a operação que estivesse em curso nestas montanhas, mataria milhões e provavelmente envolveria um acontecimento nuclear ou radiológico.
Recordou-se de um nuvem cogumelo, ardendo e fumegando como um fogo infernal.
Não era distinto do fogo ondulante do mosaico.
...a não ser que o múltiplo se transforme no uno.
Percorreu a imagem toda, por baixo do aviso acabado de traduzir. Tocou com o dedo naquilo que lá estava.
Uma roda chacra.
Com o dedo percorreu uma das pétalas até o centro. A roda chacra representava o mesmo aviso. As numerosas pétalas davam todas para um centro.
O múltiplo se transforme no uno.
Olhou de novo para as cinco mulheres, elevando um rapaz nas alturas.
A certeza apoderou-se dela, não apenas acerca do rigor da sua tradução, mas também da sua importância. O corpo de Elizabeth estremeceu de medo. Tinha de transmitir
a palavra a alguém. Dirigiu-se ao telefone por satélite que Gray lhe tinha deixado. Ele aconselhara-a a ligar para o diretor Crowe, caso houvesse algum problema.
No entanto, hesitou. E se ela estivesse errada? E se ela fosse aumentar ainda mais a confusão? Pensou em ficar calada. Mas lembrou-se do seu pai e de todos os seus
segredos. De Masterson e do dele. Estava farta de segredos e de meias verdades, de palavras não ditas.
Mais não.
Não seria o seu pai.
Sabendo que a sua descoberta era importante, levantou o auscultador e marcou o número que Gray lhe deixara.
03h18
Washington, D. C.
Painter ficou a ver a criança a ser preparada para a operação. Permanecia ao lado de Kat Bryant numa sala de observação contígua à pequena sala de operações da Sigma.
O equipamento esterilizado esperava para ser utilizado na operação delicada: aspiradores ultra sônicos, bisturis a laser, aparelhos estereostáticos. Tabuleiros com
utensílios em aço e vários jogos de brocas permaneciam alinhados em cima das mesas. No interior da sala. Lisa, Malcolm e uma equipe de neurocirurgiões do Hospital
Universitário George Washington prosseguiam com os preparativos.
No meio, Sasha estava deitada sob um fino lençol cirúrgico. A única coisa que era visível era a parte lateral da sua cabeça, rapada, coberta por um anti séptico
cor de laranja e enquadrada numa estrutura rígida ligada a um aparelho de rastreio. No centro do campo cirúrgico, o seu implante de aço refletia à luz.
Kat, pálida e preocupada, estava de pé com uma mão na janela.
Ao longo desta última hora, os resultados dos eletroencefalogramas e das tomografias computorizadas vinham revelando a existência de progressivos danos cerebrais
na criança. O que quer que fosse que estivesse a acontecer a Sasha, estava lentamente a destruir o seu cérebro. Fora decidido, enquanto a criança ainda estava forte,
remover o implante. Parecia ser o centro em tomo do qual se radicava a tempestade de atividade neurológica.
Lisa usara o termo “para-raios”.
A única forma de salvá-la era removê-lo. O neurocirurgião estudara todas as tomografias e radiografias. Acreditava que o aparelho podia ser removido em segurança.
Seria uma operação delicada, mas dentro das suas capacidades.
Essa tinha sido a primeira boa notícia dessa noite.
O telefone de Painter tocou no seu bolso. Pensou em não responder, mas tirou-o para verificar a identificação. De Kyshtym, Rússia. Afastou-se da janela, abriu o
telefone e respondeu.
- Painter Crowe.
- Diretor - falou uma mulher, parecendo bastante aliviada. Era Elizabeth Polk. - O Gray deixou-me este número.
Denotou uma certa ansiedade na sua voz apressada.
- O que se passa, Elizabeth?
- Não tenho bem a certeza. Descobri algo, traduzido... enfim...
Painter ouviu enquanto ela descrevia as suas conclusões, os seus medos, aquilo que acreditava ser a mensagem contida no antigo mosaico.
- Os oráculos estavam todos tombados nas suas cadeiras, inconscientes, drogados, exaustos. A única razão para existirem era para apoiarem aquele que podia salvar
o mundo da destruição. Sei que poderá parecer uma loucura, mas acho que está relacionado com o que se está a passar hoje.
Enquanto falava, Painter aproximara-se outra vez da janela que dava para a sala de operações. As suas palavras ressoavam. Tombados, inconscientes, drogados...
Tal como o colapso de Sasha.
Lembrou-se de Kat ter relatado que a garota gritou pelo nome do irmão antes de cair inconsciente.
A única razão para existirem era para apoiarem aquele que podia salvar o mundo da destruição.
Painter viu o cirurgião a levantar o seu bisturi, pronto para começar a operação.
Não.
Lançou-se para a porta.
Kat chamou-o.
- O que se passa?
Painter não tinha tempo a perder. Entrou na área esterilizada e na sala de operações.
- Parem! Ninguém se mexa!
13h14
Montes Urais Meridionais
- General-Major, devia ir lá baixo, ao bunker - avisou o soldado. Era bastante mais alto do que ela. com o corpo bastante musculado. - Devíamos tentar defender isto
aqui.
Outro soldado arrastrou a figura aos gritos do doutor Petrov entrando na sala vindo do corredor. A sua perna fora atingida junto ao joelho. O sangue brotava. Outros
soldados corriam com as crianças aos ombros.
O grupo tivera de recuar até o apartamento devido ao colapso das forças russas, que se tinham retirado antes do assalto da guerrilha.
O soldado imponente apontou com o seu braço carnudo para a escadaria.
- Por favor, General-Major. Resistiremos até onde for possível.
- As crianças... - disse Savina, vendo o seu plano a desmoronar-se à sua volta. Não podia deixar que mais ninguém roubasse aquilo que começara. - Matem-nas a todas.
Os olhos do homem quase que lhe saíam das órbitas, mas ele era um soldado.
Acenou afirmativamente.
Savina retirou-se descendo pelas escadas. Não queria ver. As pernas tremiam-lhe sob o corpo quando atingiu o fundo das escadas. A porta que dava para a sala tinha
dez centímetros de aço de espessura. Barricada no interior, esperaria pela resolução do conflito em cima. A frente, reparou no brilho das telas para lá da porta.
Na tela central, a água vertia o veneno para a terra.
Enquanto se mantivesse aqui resguardada, retiraria consolação daquilo que ia observando.
O tiroteio emergiu em cima.
As crianças...
Contraindo os músculos, dirigiu-se ao quarto.
Mas uma forma apareceu à sua frente junto à porta aberta, bloqueando-a.
Um rapaz.
Pyotr.
Pyotr apareceu à porta e olhou para a mulher. Ela era escuridão e sombra na obscuridade da escadaria. Ele não a viu verdadeiramente, mas conhecia-a. Concentrou-se
na chama do coração da mulher, brilhando no fundo das escadas.
- Pyotr - gritou-lhe, com um ligeiro tom de esperança na sua voz.
Enquanto ela se aproximava dele, ele levantou os braços e estendeu-os - não com a carne mas com o seu espírito a arder. Envolveu a chama do coração de Savina entre
as suas mãos abertas, protegendo-a como um pássaro assustado. Depois apertou suavemente, abafando a chama.
A mulher caiu de joelhos com um grito, sentindo um murro no seu coração.
- Pyotr, o que é que tu...?
A esperança transformou-se em terror enquanto gritava.
Ele ainda não tinha terminado.
Havia outra faceta relacionada com o talento de empatia de Pyotr. Podia certamente pressentir as emoções dos outros, mas com a força de uma centena, podia fazer
ainda mais.
Com uma centena de olhos a projetarem-se dos seus, retirou das outras crianças: toda a agonia do bisturi, a dor da solidão, a frieza da negligência. A dor do abuso
secreto à noite. Recuou mais no tempo, para uma criança de olhos azuis numa igreja escura, vendo uma mulher e um homem a aproximarem-se. Roubou todo aquele medo
do passado e atirou-o como um punhal ao coração dela.
A mulher gritou, arqueou-se para trás, contorceu-se e encerrou-se numa dor sem fim.
Contudo, de igual modo, enquanto as emoções escuras percorriam Pyotr, o mesmo fogo atingiu-o. Caíram-lhe lágrimas quentes por toda a inocência perdida, incluindo
a sua.
Ele mal se deu conta da pistola que se erguia à sua frente.
A mulher procurou às cegas matar aquilo que a torturava.
Enquanto ele fazia o mesmo a ela.
A pistola disparou esmagando o silêncio.
Pyotr caiu para trás quando a chama da mulher se extinguiu repentinamente entre as suas mãos. Enquanto ele recuava, ela caiu no chão, com metade da cara desfeita.
Olhou para cima e viu Monk a descer as escadas vindo de cima, com a sua pistola a fumegar.
O homem saltou para cima da mulher e agarrou nele com os seus braços.
- Pyotr!
Monk ergueu o rapaz hirto. Passou com a mão pelo seu corpo pequeno. Não parecia estar ferido, embora a sua pele ardesse ao toque. Aconchegou Pyotr junto ao peito.
Os outros correram para escadas abaixo atrás dele.
Um breve tiroteio eliminara os defensores em cima. Tudo levava a crer que os Russos estavam prestes a disparar sobre um grupo de crianças inconscientes.
Se tivessem chegado um minuto depois...
Os ciganos permaneciam em cima para proteger a área e vigiar as crianças. Elas estavam seguras por enquanto.
- E este o lugar? - perguntou Gray.
Com o rapaz nos braços, Monk dirigiu-se com os outros para o bunker. O painel de controle fumegava com os profundos golpes nos circuitos que ardiam lentamente. Os
teclados estavam partidos. O vidro estilhaçado debaixo dos pés. Tudo estava danificado, exceto uma fila de monitores de parede.
Monk apontou para a tela do meio, reconhecendo a sala. Era o coração da Operação Saturno. Só que agora a água preta brotava como um rio de um buraco no teto, rodopiando
para um buraco no chão.
- Já começou - disse de forma oca. - Chegamos tarde de mais.
Numa tela contígua, Monk viu a câmara de mina onde deixara Konstantin e os outros. As crianças jaziam deitadas num emaranhado de corpos. A imagem era granulada demais
para se ver se ainda estavam vivas. Será que a radiação já os atingira?
Um poço de desespero varreu-lhe o corpo.
Enquanto Gray acionava um telefone por satélite, Monk olhou para os outros: Kowalski e Rosauro. Monk procurou qualquer ponta de reconhecimento. Nenhuma. Quem eram
estas pessoas? Se eram amigos, não deviam motivar uma reação da parte dele?
Enquanto observava os outros, Pyotr apontou com uma mão para a tela central e colocou a palma sobre ele.
- O que é que ele está a fazer? - perguntou Gray com o telefone colado ao ouvido.
Monk virou a sua atenção.
- Pyotr?
O rapaz olhou profundamente para a imagem na tela.
Kowalski falou para esquerda.
- Eh! O comboio está a vir para aqui!
Monk olhou. O comboio deslizava lentamente pelos carris, espalhando eletricidade. O túnel ainda devia ter energia, .sem que tivessem qualquer controle sobre isso.
- É o miúdo que está a fazer isso? - perguntou Kowalski. - A movê-lo com a sua mente?
Monk susteve a respiração, depois libertou-a lentamente.
- Não - disse e olhou para o comboio a recuar, lembrando-se repentinamente. - Ainda está alguém nele.
- Quem? - perguntou Gray.
Enquanto a mão de Pyotr tocava na tela, fixou os seus sentidos no túnel, estirando-se até o seu limite máximo. Incendiado por talentos roubados, o aço e o cimento
não podiam deter o seu alcance. Enquanto as vozes se desvaneciam atrás dele, mergulhou no túnel escuro e avançou na direção da única estrela brilhante que continuava
lá dentro, um grande coração, um coração que ele amara durante toda a sua vida.
Pyotr encontrou-a agachada no comboio, balouçando-se. Mantivera-se fora do alcance das câmeras porque ele pedira para que ela o fizesse. Ela fazia parte do padrão.
Mas, por agora, nada disso interessava. Ele magoava, mais fundo do que alguma vez fora magoado. Ele precisava simplesmente dela. Atingindo o seu velho coração, pegou
delicadamente na chama com as duas mãos e enviou-lhe todo o seu amor e toda a sua necessidade.
Ela sabia que ele estava lá e assobiou suavemente, esticando-se para o ar vazio. No túnel escuro, abraçaram-se um ao outro, partilhando emoções a um nível mais profundo
do que qualquer outra pessoa.
Era um dos seus segredos.
Ele soubera a verdade no momento em que, pela primeira vez, haviam dado as mãos. Pyotr sabia a razão que fazia com que tantas crianças adorassem Marta, viessem ter
com ela em busca de conforto, para chorarem nos seus braços ou simplesmente serem abraçadas.
Ela tinha um talento, desconhecido dos seus guardadores, um forte dom de empatia, tal como Pyotr. Duas almas gémeas. Por isso, ele mantivera o segredo, e ela o seu.
Mas não era o seu único segredo.
Havia um outro muito mais sombrio, envolto em terror, revelado de uma forma que os dois não compreendiam, mas que eles sabiam ser verdade. A partir do momento em
que se tinham encontrado, pela primeira vez, sabiam que iriam morrer juntos.
Gray viu o comboio a acelerar pelo túnel na direção do local da Operação Saturno. Monk fornecera-lhe uma versão resumida do objetivo.
- Mas quem está no comboio? - perguntou. - Podemos comunicar com eles?
Monk apoiou o rapaz enquanto os seus pequenos dedos percorriam a tela.
- Acho que o Pyotr já está lá. O rapaz sabe como operar o comboio.
- Mas quem está no comboio?
- Uma amiga.
Na tela que mostrava o coração da Operação Saturno, o comboio apareceu à vista na ponta final e travou. Uma figura escura saltou do vagão da frente e caminhou para
a câmera.
- É um macaco? - perguntou Kowalski, recuando.
- Um primata - corrigiu Rosauro com um suspiro, como se estivesse cansada de corrigir o homem. - Um chimpanzé.
- É a Marta - disse Monk.
Gray ouviu a dor contida na sua voz. Uma tempestade de radiação devia estar a processar-se em todo aquele espaço. A figura moveu-se lentamente, deslizando, caminhando
com as mãos no chão de forma estranha, já doente.
- O que é que ela está a tentar fazer? - perguntou Gray.
- A tentar salvar-nos a todos - respondeu Monk.
Pyotr ficou com Marta. Puxou a chama dela para Junto da sua, não para ser consumida, mas para ele poder alimentá-la com a sua força, dar-lhe a conhecer o que tinha
a fazer, que não estava sozinha. Dessa maneira, captou imagens através dos seus olhos, através dos seus sentidos mais apurados.
Ele viu a coluna de água ruidosa. Sentiu um calor a enfraquecer e a queimar Marta. O ar cheirava a peixe podre e assustou os dois, um fluxo de água preta, dos seus
pesadelos partilhados.
Mais mortal do que qualquer rio.
Mas enfrentaram-no juntos.
Marta circundou o buraco escancarado que engolia a água com tanta sede. Tinha de ser travado.
Só havia uma maneira.
Pyotr sabia e disse a Marta. Konstantin explicara em pormenor como é que todo o equipamento funcionava: as cargas explosivas, os transmissores de rádio, as portas
de silo gigantes.
Também falara a Pyotr acerca da alavanca.
Marta precisava de ajuda. Ela viu a alavanca de aço atrás de um equipamento.
Podia fechar as portas de silo e parar o fluxo para o centro do mundo. Pyotr sentiu os assobios suaves de medo a virem dela. Sentiu-os sob as suas próprias costelas.
Tu consegues, Marta...
Ela fez um esforço, a sua pele ardia, os seus pêlos pareciam agulhas de pinheiro, os nós dos seus dedos empolavam em contato com o jato de água na rocha.
Pyotr segurou na chama dela e determinou a sua força.
Ela chegou-se ao pé da alavanca. Estava inclinada sobre o chão. Precisava de ser erguida na sua totalidade. Enfiou um ombro por debaixo, agarrou na extremidade com
ambas as mãos e empurrou com as pernas.
O aço não se movia.
Enquanto a morte fluía atrás dela numa corrente ardente, Pyotr sentiu a pressão nas costas dela, nas pernas delas, no coração dela.
A chama dela brilhou nas suas mãos.
Marta...
Mas a alavanca não se movia.
Monk viu Marta a lutar com a alavanca. Ela estava demasiado fraca. Não se mexia. Pyotr começou a respirar com força, partilhando o medo e a dor do velho chimpanzé.
- Porque é que não se mexe? - perguntou Gray.
- Vamos, maldito macaco! - gritou Kowalski.
Monk aproximou-se, colocando a mão na tela. Tentou lembrar-se daquilo que vira no compartimento quando passara por ele a correr. Enquanto se esforçava um choque
elétrico percorreu-lhe a cabeça. Imagens de outro tempo e de outro lugar apareceram.
...um homem sujo de carvão... um percurso abismal num vagão de minério... um esgar branco contra a pele coberta de pó... isso é que é, rapaz!... tal como, o pai...
Depois desapareceu.
Monk fez um esforço para reter alguma coisa, mas tal como um sonho ao acordar, a memória começou a desaparecer-lhe entre os dedos. Porque é que essa memória em particular
desaparecia? Enterrada lá no fundo, devia ser qualquer coisa importante.
Enquanto a memória se desvanecia, captou uma imagem desse homem coberto de pó de carvão, abrandando o vagão de minério ao apertar o...
- O travão de mão! - deixou escapar.
Lembrou-se da breve espreitadela que dera antes para o local da mina.
Recordou-se da alavanca. Tinha um botão no extremo.
Monk virou-se para Pyotr. Inclinou-se e murmurou no seu calor febril.
- A Marta tem de carregar na extremidade da alavanca. Tem de premir o botão. Depois, será mais fácil deslocar a alavanca.
Pyotr continuou a olhar, como que surdo às suas palavras, e talvez o rapaz não conseguisse ouvi-lo verdadeiramente. Monk teve de fazer um esforço para que ele o
fizesse.
Parecendo compreender a sua frustração, a mulher Rosauro aproximou-se dele.
- Como é que eles estão a comunicar? Telepaticamente?
- Não. Deve ser empaticamente. A partilhar emoções. Vi-o a fazer isso com ela antes. Mas não a uma distância tão grande.
- Então tem de comunicar com ela da mesma maneira.
Monk olhou para ela, como, se fosse uma louca.
Gray falou.
- A especialidade da Rosauro é a neurologia. Ouve-a.
A mulher falou lentamente.
- A empatia tem tudo a ver com a sensação e o tato. Poderá comunicar com eles da mesma forma. Ofereça algo que o conforte. Poderá abrir um caminho.
Monk imaginou Pyotr e Marta. Passavam o tempo a tocar um no outro, roçando-se, aconchegando-se, mas Monk lembrava-se do que proporcionara ao rapaz a maior sensação
de conforto e segurança.
Virando-se, envolveu os seus braços em torno de Pyotr como vira Marta a fazer tantas vezes. Sentiu o coração do rapaz a bater rapidamente como um beija-flor. Balouçando
o rapaz suavemente, Monk soprou ao seu ouvido e murmurou o que tinha de ser feito.
Desejou-o com todo o seu coração.
Premir o travão de mão...
Pyotr deixou-se ficar ao lado de Marta enquanto esta lutava com a alavanca - depois sentiu um calor familiar a vir de trás dele. Olhou por cima do ombro e encontrou
um coração forte, lançando uma chama forte. Olhou para o fogo e sentiu o que tinha de ser feito enquanto ouvia.
Virou-se para Marta e abraçou-a, fazendo com que ela o soubesse também.
Mas a sua amiga tremia e ardia, cada vez mais fraca.
Por favor...
Ela assobiou, assustada, mas uma das suas grandes mãos deslizou por cima da alavanca e encontrou o botão. Longos dedos envolveram-no e premiram-no. Depois ela puxou
outra vez, pondo um ombro sob a alavanca e empurrando com as pernas.
A alavanca mexeu-se, mas continuava a ser muito pesada. Com os membros a tremer, fez um esforço para endireitá-la e empurrou-a para trás. Algo bateu com força.
Uma grande ranger de mecanismos soou.
Exausta e enfraquecida, Marta caiu no chão.
- Conseguiu! - disse Gary.
Na tela, o buraco no chão começou a fechar-se. detendo a corrente com um diafragma de aço. O rio de água, incapaz de correr para baixo, inundou a câmara da mina.
O chimpanzé foi projetado da sala para o túnel, enquanto a água ia fluindo com uma intensidade crescente. Embora visivelmente exausta e queimada, pôs-se de pé e
saltou para cima do vagão do comboio. A medida que a água preta ia subindo à volta dela, saltava para trás e para diante de encontro ao teto. traçando um caminho
de pânico e aflição.
O coração de Gray apelou à pobre criatura.
- Tirem o maldito macaco dali, por amor de Deus! - gritou Kowalski. Bateu com um punho no painel de controle quebrado.
Mas não havia nada que pudessem fazer. As portas estavam completamente fechadas e a água começava lentamente a encher o túnel, selado de ambos os lados. Mesmo que
pudesse abrir as portas, o nível de radiação matá-los-ia a todos. E, por último, o chimpanzé Já fora exposto a uma dose letal muitíssimo elevada.
Rosauro virou as costas e afastou-se, cobrindo a boca de preocupação.
Finalmente, o velho chimpanzé sentou-se nos seus quartos traseiros, agarrado aos joelhos. Começou a balouçar-se. Sabia o que estava para chegar.
Monk agarrou no rapaz, uma única lágrima a correr-lhe pelo rosto.
Nos seus braços, o rapaz balouçou-se também, em perfeita sincronia com a sua amiga no túnel.
Pyotr deixou-se ficar ao lado de Marta enquanto as águas subiam. O seu coração brilhava e rodopiava de medo. Ela sempre soubera que a água escura iria matá-la. Amparou-a
agora, como ela tinha feito com ele tantas vezes no passado. Envolveu-a com os seus braços quentes e apertou-a com força. Balouçaram-se Juntos por uma última vez,
dois corações partilhando uma chama.
Marta conhecia o seu segredo também.
Eia assobiou suavemente e inclinou o seu rosto contra o dele.
Pyotr...
Amo-te. Marta...
A medida que as águas iam consumindo a sua amiga, Pyotr olhou para o mar negro que o enchia, resplandecendo com setenta e sete luzes brilhantes, rodopiando em tomo
de uma fogueira mais viva que era o seu próprio coração. Um dos seus professores explicara-lhe como os planetas giravam em tomo dos sóis, presos nas suas órbitas.
Ele compreendeu.
Ele sabia que consumindo essas estrelas não as poderia largar mais. Não era nenhum pesadelo em que ele roubava apenas um pouco da aptidão delas. Tinha transposto
uma linha sem retomo. Enquanto olhava, viu essas luzes roubadas a ficarem infinitesimalmente mais fracas. Ele estava a queimá-las, consumindo os seus amigos, a sua
irmã.
Só havia uma maneira de deixá-las partir.
Era a outra razão para ir ter com Marta.
Ele precisava dela.
Pyotr... não...
Tens de...
Sentiu as mãos dela a esticarem-se temporariamente para essa luz brilhante dentro do seu mar negro. Os seus longos dedos quentes envolvendo o seu próprio coração.
Pyotr...
Mas ela sabia. Para que os outros vivessem, só havia um caminho. Os outros estavam presos na órbita dele e se deixados à solta, ele arderia através deles todos.
A única forma de libertá-los era tirar o sol que os sustinha. Depois as estrelas poderiam voar e regressar ao sítio onde pertenciam.
Por isso, Marta apertou-o e apertou-o enquanto as águas pretas subiam à sua volta. Centrada nele, já não tinha medo. Enquanto se balouçavam, fechou os dedos suavemente,
mas ainda assim magoava.
Depois, pouco antes de a luz de Pyotr morrer completamente, ele atingiu uma única estrela no mar negro, ligeiramente mais brilhante do que as demais.
Sasha, murmurou e contou à sua irmã um segredo.
O rapaz tombou subitamente nos seus braços. A sua pequena mão caiu longe da tela. Ele viu o corpo de Marta a ser levado do comboio pelas águas e a desaparecer na
escuridão do túnel.
Monk pousou o rapaz no chão.
- Pyotr?
O rapaz olhou cegamente em tomo do teto, com as pupilas dilatadas. Monk verificou-lhe o pulso. Estava fraco. O peito do rapaz subia e descia.
Em cima, pequenos gritos ecoavam. As outras crianças. Estavam a acordar, dando-se conta de um quarto repleto de cadáveres.
Gray apontou.
- Rosauro, Kowalski, vão lá cima ajudá-las!
Monk olhou para a imagem granulosa do outro lado do túnel. Viu as crianças a mexerem-se, outras já de pé. Viu Konstantin a ajudar Kiska a sentar-se.
Eles estavam bem.
- E o rapaz? - perguntou Gray.
Monk sentou-se no chão e amparou o seu corpo magro. Pyotr respirava, o sangue bombeava, mas Monk olhou para os seus olhos inexpressivos e sabia que o rapaz tinha
partido.
Pyotr... porquê?
Gray aproximou-se dele e colocou-lhe uma mão por cima do ombro.
- Talvez seja do choque. Talvez com o tempo...
Monk apreciou a oferta de esperança, mas ele sabia a verdade. Enquanto segurava no rapaz, sentira a criança partir. O olhar de Monk regressou para a tela cheio de
crianças em movimento. Monk sabia. Pyotr sacrificara a sua vida por elas, por todos os seus irmãos e irmãs.
Gray sentou-se de cócoras ao lado dele, mantendo-se de vigília.
O estranho parecia ser um bom homem e, no silêncio deste momento a sós, Monk sentiu um certo conforto em tomo do tipo. Não uma memória, apenas uma sensação de que
podia largar as suas defesas sem medo.
Por isso, Monk não sentiu vergonha no momento em que as suas lágrimas corriam em catadupa enquanto balouçava Pyotr por uma última vez, agora apenas a concha vazia
de um rapaz.
22
28 de setembro, 16h21
Washington, D. C.
Painter caminhou por entre a profusão de tendas e carroças que cobriam o National Mall. O acampamento cigano ocupava os terrenos relvados e os longos prados do Mall.
As tendas eram uma mistura de estruturas tradicionais feitas com varas de castanheiro enfiadas no chão e cobertas por teia e tendas mais modernas, compradas recentemente
numa loja de artigos desportivos. As carroças eram bastante diversas, desde estruturas simples a imponentes casas com chaminés fumegantes assentes em rodas altas
pintadas.
Os Romani tinham vindo de todo o mundo para a sua grande reunião. Os cavalos estavam encurralados em cercas improvisadas, as crianças corriam por todo o lado, a
música tocava, as risadas ecoavam alto no ar. E muitos mais iam chegando diariamente.
O presidente tinha uma cerimônia oficial de agradecimento marcada para o final da .semana. Nada como salvar a vida a alguém para obrigá-los a estender uma mão agradecida
de hospitalidade. Para não falar de salvar o mundo.
Painter seguiu um caminho através do caos, enquanto os cães ladravam e as crianças corriam à sua frente. Os turistas também partilhavam as vielas apinhadas e bazares
estreitos, comprando bugigangas, pedindo para ler a sina ou limitando-se a olhar distraidamente para a alegre confusão. Painter olhou para o Monumento a Washington
para se poder orientar e continuar em frente.
Dobrando uma esquina, abriu-se um espaço à sua frente, emoldurado por uma das carroças maiores e mais elaboradamente decorada. As suas portas de madeira estavam
abertas. Painter descortinou um lar aconchegante com uma cama de casal soerguida, armários pintados com cores vivas e laçados em tons de amarelo e vermelho. Havia
até um pequeno fogão com uma cornija esculpida de uma forma curiosa.
Nas escadas que davam acesso à carroça, Painter encontrou Luca sentado ao lado de Gray, em amena cavaqueira. O braço do comandante ainda estava enfaixado. A alguns
passos de distância, Shay Rosauro estava a jogar um Jogo de punhais com um grupo de homens ciganos. Uma das suas lâminas assobiou pelo ar e atingiu o olho de um
touro, expulsando a faca do opositor. Tendo em conta a forma queixosa como apelavam por piedade, devia estar a dar-lhes uma grande coça.
Ao lado, Painter ficou surpreendido por ver Elizabeth e Kowalski. A mulher devia ter acabado de regressar da Índia para assistir à cerimônia. Estava a trabalhar
com uns historiadores romani e arqueólogos indianos para recuperarem o templo grego inundado.
Painter olhou para a direita e viu o estandarte pendurado em frente da fachada principal do Museu de História Natural. Exibia um templo de montanha grego com um
épsilon proeminente no centro, anunciando a próxima exposição acerca do oráculo de Delfos. Com toda a publicidade recente acerca da descoberta arqueológica, os bilhetes
tinham esgotado com meses de avanço, muitos deles comprados pelos ciganos aqui presentes, desejosos de saberem mais coisas sobre a origem dos seus clãs.
Luca viu Painter a chegar e levantou-se. O cigano estava vestido com umas calças largas e um cinto grosso, bem como umas botas pretas a condizer, juntamente com
um colete aberto por cima de uma camisa de mangas compridas bordada.
- Ah, Diretor Crowe! Bem-vindo!
Painter fez uma vênia ao líder do clã.
- Nais Tuke - agradeceu-lhe na língua romani.
Gray também se levantou. Tal como Kowalski, o comandante estava vestido casualmente com umas calças de ganga e um casaco leve. Ao longo dos últimos dias, tinham
convergido todos para aqui. Foram umas semanas de funerais e reuniões tristes. Painter deambulava por estes lados quase todas as noites com Lisa. Passeavam pelo
acampamento, de braço dado, sem falar, mas ouvindo as canções e risadas das famílias reunidas em tomo de refeições à luz das velas. Painter consolou-se com esta
ardente e brilhante recordação da plenitude da vida. Painter também viu nas canções partilhadas e camaradagem comunal um regresso à sua própria infância, aos festivais
tribais na reserva Mashantucket. Sentia-se de regresso a casa... mesmo que fosse só um bocadinho.
Mas a reunião de hoje era mais formal e útil.
Juntaram-se todos numa mesa de madeira vizinha. Dois imponentes cavalos de tiro mantinham-se encurralados por perto.
Enquanto se sentavam, Gray perguntou:
- Como é que decorreu a reunião?
Luca olhou para ele com os olhos a brilhar.
Painter acabara de regressar de uma reunião com representantes do Departamento de Estado, a embaixada russa e várias organizações de cuidados infantis. O estatuto
das setenta e sete crianças era o ponto contencioso. Havia muitas reivindicações.
- Os Russos ficaram contentes por nos delegarem toda a autoridade - começou Painter. - Já têm muito com que se entreter a limpar. Os últimos estudos radiológicos
da task force nuclear sugerem que a infiltração parcial do lago Karachay nas águas subterrâneas, apesar de localmente desastrosa e exigindo a evacuação de terras
a jusante, não será globalmente catastrófica. As comportas foram fechadas a tempo.
Gray olhou aliviado.
- E as crianças?
Painter visitara o hospital esta manhã. Uma ala inteira do Hospital Universitário George Washington fora reservada para tratar das crianças que tinham viajado desde
a Rússia. A equipe de neurologia passara as últimas semanas a remover os implantes de uma forma lenta e meticulosa. Tal como o chefe neurologista originalmente pensara,
a extração era um processo delicado mas não excecionalmente complicado. A última criança tivera o seu implante retirado há alguns dias. Estavam todas a recuperar
bem.
- Os resultados dos testes mostram que o talento sábio permanece nas crianças, mas a um nível substancialmente mais fraco - disse Painter. - Qualquer que tivesse
sido a comunhão partilhada no final, parece que destruiu as fundações da estrutura neurológica que produzia o seu talento prodigioso. Mas, por outro lado. a mudança
também parece ter enfraquecido o seu autismo. As crianças revelaram melhorias notáveis. No entanto, quem quer que fique encarregado de vigiar estas crianças terá
de velar por uma monitorização supervisionada do seu estado de saúde, juntamente com avaliações psicológicas regulares, tanto em relação ao seu talento como à sua
saúde mental em geral.
Painter olhou para Luca, que permanecia firme, mas com os olhos a brilhar de esperança. Painter sorriu finalmente.
- Mas o consenso unânime do painel é que as crianças deverão ficar à guarda de famílias ciganas.
Luca deu um murro na mesa.
- Eu sabia!
A sua forte reação foi recebida com um relinchar queixoso por parte dos cavalos de tiro, bem como pela pisadela firme de um grande casco.
Painter passou a meia hora seguinte a explicar mais pormenores, que ajudaram a sossegar o homem, mas não conseguiram enfraquecer o brilho nos olhos do cigano. Finalmente,
levantara-se todos e começaram a dispersar.
Elizabeth saiu, com Kowalski na sua esteira.
- Agora que está de volta à cidade - murmurou-lhe Kowalski. passando com a mão por cima da sua cabeça rapada. - Quer... Talvez não se importasse...?
Gray recuou perante os esforços do homem e acenou para Painter para se retirar.
- Não vai ser fácil.
- O que é, Joe? - perguntou Elizabeth, com um sobrolho erguido de curiosidade enquanto olhava para o homem grande.
Ele gaguejou, praguejou para dentro, depois endireitou-se.
- Quer sair comigo?
Não foi mau, pensou Painter suprimindo o riso.
Elizabeth encolheu os ombros e resolveu lançar a confusão sobre Kowalski.
- Quer dizer, pela segunda vez. não é verdade?
O sobrolho de Kowalski franziu-se como uma tábua de lavar roupa.
- Acho que ser alvejada, raptada, exposta à radiação e salvar o mundo poderá ser considerado, no mínimo, como fazendo parte de um primeiro encontro.
Kowalski caminhou ao lado dela. com a sua cabeça a tentar apanhar o mesmo ritmo.
- Então vem?
Elizabeth acenou.
- Desde que traga os charutos.
Kowalski sorriu.
- Tenho uma caixa cheia de... bolas! - Parou e olhou para os sapatos. Pisara com o seu pé esquerdo uma bosta de cavalo.
- Os meus Chukkas novinhos em folha!
Elizabeth deu-lhe o braço e saiu dali.
- Isso sai.
- Mas não compreende! O couro é polido à mão por...
Os dois desapareceram no meio da multidão.
Gray abanou a cabeça.
- Kowalski conseguiu um encontro. Acho que o inferno está a ficar um pouco mais fresco.
Painter e Gray dirigiram-se para o Instituto Smithsoniano. Ambos tinham uma porção de trabalho pela frente. O comando da .Sigma ainda estava num caos, quer política,
quer estruturalmente. Haviam perdido algumas pessoas importantes, durante o assalto inicial, e um piso inteiro ainda se encontrava interdito devido à turbulência
do incêndio. A reparação e a inspeção das infraestruturas ainda estavam a decorrer.
Mas politicamente, as coisas estavam mais imprevisíveis. Tinham conseguido capturar o neurologista doutor James Chen, um dos Jasons envolvidos com Mapplethorpe e
McBride. Debaixo de interrogatório, ele estava a ajudá-los a distinguir os Jasons corruptos dos cientistas legítimos que trabalhavam para o Departamento de Defesa.
Mas Mapplethorpe era outra questão. Ele tinha metido as mãos cm todas agências de inteligência de Washington. Ainda não era claro se operara sozinho como um agente
vilão ou se havia membros da instituição de Washington que tivessem apoiado a ação do homem. Como tal. os tipos dos serviços de informações andavam a circundar o
seu território, protegendo-se a si próprios, mas apontando dedos acusatórios.
Mesmo à Sigma.
As aves de rapina circundavam, mas Painter tinha o apoio de um presidente agradecido. Daria algum trabalho, mas teriam as coisas a avançar lentamente dentro de pouco
tempo. Na verdade, Painter devia encontrar-se com o substituto de Sean McKnight amanhã, o novo chefe interino da DARPA. O presidente oferecera inicialmente o cargo
a Painter mas ele declinara. A Sigma precisava de alguma continuidade. Como invenção conjunta de Arquibaldo Polk e Sean McKnight, Painter não podia abandonar a Sigma.
Painter olhou para Gray.
- Presumo que vai passar todo o dia no hospital amanhã.
Ele acenou.
- A Kat precisará de companhia.
A cirurgia de Monk Kokkalis estava marcada para as seis da manhã. Uma ressonância magnética revelara o que fora feito a Monk no laboratório russo, mas não se sabia
se os danos podiam ser revertidos. Os Russos tinham ligado um microchip à amígdala basolateral de Monk. Os neurologistas acreditavam que a placa tinha induzido e
mantinha uma amnésia fluida. Era uma técnica que estava Já a ser investigada através do uso de químicos, especialmente o propranonol que atuava como um bloqueador
beta para apagar memórias particularmente fortes de trauma. Os Russos haviam experimentado em Monk. usando o equivalente biotecnológico.
A cirurgia fora atrasada até Monk ter acabado uma série de tratamentos anti radiação. Os neurologistas usaram o tempo extra para estudar o caso de Monk, mas ainda
não conseguiam dizer se ele iria recuperar a memória - sobretudo tendo em conta o outro resultado obtido durante a ressonância magnética. Para instalar o chip tinha
sido removida uma pequena secção do córtex cerebral de Monk.
Painter lembrou-se do horror estampado no rosto de Gray ao saber disto e as suas palavras de consternação: Primeiro a mão, agora uma secção do cérebro... é como
se Monk estivesse lentamente a ser despedaçado.
- Há alguma indicação de que o Monk venha a reconhecer a Kat? - perguntou Painter.
Gray abanou a cabeça.
- Os médicos têm-na mantido afastada. Estão convictos de que, enquanto o chip estiver na cabeça, a introdução de mais stresse na sua memória, como a ligação emocional
à Kat, poderá causar, na verdade, mais mal do que bem.
- No entanto, ela foi vê-lo.
Ele acenou.
- Tinha de o fazer. Foi ao quarto dele com um grupo de enfermeiras. O Monk conversou com elas, mas não teve qualquer reação ao ver a Kat. Nada. O que quase a destruiu.
Ela tinha o Monk de volta, mas ele estava perdido para ela.
- Então temos de rezar pelo melhor.
29 de setembro, 18h21
Hospital Universitário George Washington
O homem acordou numa sala demasiado iluminada. Sentiu os olhos a arder e uma pressão na nuca. A náusea sobreveio-lhe, acompanhada por uma golfada de pormenores.
Engoliu várias vezes e forçou a vista a fixar-se.
Uma mulher esguia com uma bata azul bateu-lhe na mão.
- Pronto, senhor Kokkalis. Respire. - Ela afastou-se. - Ele estar a vir a si com mais força desta vez.
A tontura acalmou. O bater do tambor dentro da sua cabeça abrandou para uma pressão entorpecida. Viu-se num quarto de hospital, lembrando--se aos poucos.
A operação. Levantou um braço e viu-o amarrado a uma tala de plástico através da qual tubos intravenosos iam largando salina e uma unidade de sangue. Ao lado, os
monitores apitavam e zumbiam.
Monk tentou mexer a cabeça, mas o pescoço doía-lhe e tinha um tubo a sair-lhe de uma proteção na cabeça.
Uns tantos médicos apareceram, incidindo luzes nos seus olhos, obrigando-o a fazer simples testes motores, avaliando a sua capacidade para engolir com cubos de gelo
e executando outros testes para verificarem as funções nervosas. Ao fim de uns dez minutos, afastaram-se, discutindo o seu caso, deixando duas pessoas aos pés da
cama.
Monk reconheceu o homem.
- Gray... - disse com uma voz rouca, a garganta ainda ferida do tubo endotraqueal.
Os olhos do homem cintilaram.
Monk sabia o que eles todos esperavam, o que ele esperava, mas abanou a cabeça. Só conhecia o homem do caos na Rússia. Uma mulher esplendorosa, vestida com umas
calças de ganga e uma blusa folgada, debruçava-se sobre ele, com o seu cabelo castanho-avermelhado dando-lhe pelos ombros. Os seus olhos cor de esmeralda procuraram
alguma resposta da parte de Monk. Mas ele nem sequer sabia qual era a pergunta.
Gray tocou-lhe no ombro.
- Poderá .ser demasiado cedo, Kat. Sabe disso. Os médicos disseram que poderá levar meses.
Ela virou-se ligeiramente para o lado e limpou os olhos.
- Eu sei - disse, mas parecia mais um gemido.
Com os seus sentidos mais apurados por um rastro de náusea, Monk apanhou um aroma no ar, familiar, agradável mas almiscarado. Nenhuma memória vinha com ele, mas
a sua respiração ficou mais pesada. Algo... algo acerca de...
- Devíamos deixá-lo descansar - disse Gray, afastando a mulher dali. - Voltamos pela manhã. Foi um longo dia. Era melhor levá-la para casa.
Gray acenou para um carrinho de criança azul atrás dele. Uma pequena criança dormia, aconchegada nos cobertores, a cabeça protegida como a de Monk, os olhos fechados,
os lábios cerrados como um botão.
Os olhos de Monk concentraram-se no bebé. As imagens começaram a surgir, destacando-se no meio do nada.
...pequenos dedos enrolados em torno do seu dedo... caminhando por um longo corredor escuro, cansado, embalando a pequena figura nos seus braços... pequenos pés
a espernear enquanto mudava uma fralda...
Apenas fragmentos. Nenhuma coerência. Mas, ao contrário de outras alturas, não havia dor, apenas uma claridade suave que teimava em não desaparecer.
No meio desse brilho, encontrou uma pequena porção dele próprio.
- Ela... o seu nome... - Os dois viraram-se para ela. - É a Penélope.
A mulher olhou para a criança, depois para ele. Todo o seu corpo estremeceu, enquanto os mamilos vertiam listras brilhantes de alegria.
- Monk...
Correu para o pé dele. caindo sobre ele. Inclinou-se e beijou-o suavemente, o cabelo envolvendo-o como uma tenda.
Ele lembrava-se.
O sabor a canela, lábios suaves...
Ainda não sabia o seu nome, mas um ímpeto de amor percorreu-lhe o corpo fazendo com que as lágrimas lhe viessem aos olhos. Talvez nunca viesse a saber o seu nome.
pelo menos como tal. mas Monk sabia uma coisa do fundo do seu coração: se ela o deixasse, ele passaria o resto da vida a tentar saber quem ela era.
19h01
Gray caminhou pelo corredor do hospital, deixando Kat e Monk sozinhos. Enquanto permanecesse aqui, ainda queria verificar um último paciente. Dirigiu-se à secção
das crianças. Mostrou a sua identificação a um guarda armado que protegia a ala.
Uma vez lá dentro, passou por várias secções e quartos pequenos. As paredes estavam pintadas com balões e animais de bandas desenhadas. Passou por um rapaz alto
vestido com um pijama de hospital. Estava a andar com uma garota mais pequena. Tinham as cabeças rapadas de um lado. Estavam a conversar animadamente em russo.
Todas as crianças pareciam ter recuperado da sua experiência difícil.
Ou seja. todas exceto uma.
Atravessou outro corredor comprido até um quarto particular que se encontrava mesmo no extremo. A porta estava aberta. Ouviu vozes lá dentro.
Gray bateu suavemente e entrou. O quarto tinha uma única cama e uma pequena zona de brincar, com uma mesa amarela de plástico e um conjunto de cadeiras infantis
à sua volta. Viu a doutora Lisa Cummings de pé preenchendo um quadro. Devido aos seus conhecimentos médicos, disponibilizara-se para apoiar os cirurgiões e médicos
enquanto mantinha Painter a par dos relatórios sobre o seu estado e a eventual ocorrência de quaisquer problemas.
Sasha estava sentada à mesa. pintando o seu livro. Tinha uma touca cor-de-rosa que cobria a sua cabeça rapada.
- Senhor Gray! - gritou a criança, saltando da cadeira como um coelho e correndo para ele. Abraçou-lhe a perna.
Ele bateu no seu ombro.
Sasha vinha aqui tão amiúde como Gray, a fim de visitar o seu irmão.
Pyotr estava sentado numa cadeira de rodas peito da janela, olhando lá para fora para o crepúsculo crescente. Estava sentado como um manequim. Direito, hirto e indiferente.
- Alguma alteração? - perguntou Gray, acenando para o quadro nas mãos de Lisa.
- Sim algumas. Já está a comer pela colher. Comida de bebé. E como se tivesse ficado infantilizado. Os médicos esperam que, com o decorrer do tempo, possa vir a
crescer no seu corpo.
Gray ansiava por que tivessem razão. O rapaz salvara o mundo e sacrificara tudo para o fazer.
- Gray, se não te importasses de pôr o rapaz na cama podias ficar com ele um pouco.
Gray acenou.
- Anda. Sasha, vamos voltar para o teu quarto.
- Espere! - Largou a perna de Gray e correu para Pyotr.
- Diz boa-noite ao Pyotr. a seguir vamos - insistiu Lisa.
Sasha beijou o irmão no rosto, depois veio a correr para Gray e levantou os braços na sua direção.
Gray ajoelhou-se para um último beijo de despedida e estendeu-lhe a cara. Ela beijou-a, depois agarrou no seu lóbulo. Inclinou-se mais e murmurou qualquer coisa,
dando-lhe uma pancadinha na orelha.
- O Pyotr não está ali - disse num tom conspirativo. - É outra pessoa que está ali. Mas ainda continuo a amá-lo.
Gray sentiu um ligeiro arrepio ao ouvir as suas palavras. Sasha devia ter ouvido sem querer os médicos. O prognóstico era muito reservado. Até se Pyotr conseguisse
recuperar algum modo de vida. não seria o mesmo rapaz.
Gray afagou-lhe o braço, para a reconfortar, mas não lhe deu qualquer falsa esperança. Era melhor que ela se adaptasse à realidade de sua própria maneira.
- Sasha - disse Lisa num tom de aviso.
- Espere! - disse outra vez e correu para a mesa. - Tenho uma coisa para o senhor Gray. - Começou a procurar no seu monte de papéis.
Gray esperou, ainda com um joelho no chão.
Lisa sorriu.
- Ela não quer ir mesmo para a cama.
A garota apareceu a correr com uma página arrancada do seu livro de colorir na mão. Deu-a a Gray.
- Tome - disse orgulhosa.
Gray olhou para o desenho de um palhaço. Pintara-o na perfeição, acrescentando até algum sombreado para dar ao palhaço um ar mais triste e ligeiramente horripilante.
Era óbvio que ainda retinha algum do seu talento artístico.
Sasha inclinou-se novamente para o seu ouvido.
- Vai morrer.
Gray ficou surpreendido com a declaração, mas não havia nenhum tom ameaçador na sua voz, apenas um tom factual, como se estivesse a comentar o tempo. Gray imaginou
que Sasha estivesse a fazer um esforço para compreender o conceito de morte. Vira tanta morte à sua frente e o seu irmão pendurado algures entre os vivos e os mortos.
Gray não sabia o que dizer. Mas, tal como anteriormente, não lhe ia mentir. Levantou-se, mas manteve a mão no seu ombro.
- Vamos todos morrer um dia, Sasha. É a ordem natural das coisas.
Ela suspirou daquele modo dramático de todas as crianças exasperadas.
- Não, pateta. - Apontou para o papel. - Tem de ter cuidado com isso! Foi por isso que o desenhei!
Lisa apontou para a porta.
- Basta, Sasha. Está na hora de ir para a cama.
- Espere!
- Não.
Desapontada, deixou arrastar-se por Lisa. Acenou para Gray, usando toda extensão do seu braço.
Assim que elas partiram, Gray foi ter com Pyotr. Ele gostava de se sentar ao lado do rapaz, dar-lhe a entender que não fora esquecido, que o seu sacrifício seria
sempre lembrado. Também vinha aqui por causa de Monk. O rapaz fora muito importante para o seu amigo. Gray sentia-se na obrigação de fazer companhia a Pyotr.
Mas, na verdade, as visitas eram também um bálsamo para o seu coração. Sentia uma tranquilidade estranha com o rapaz que lhe parecia inexplicável, como se a criança
ainda estivesse rodeada por uma aura empática.
Enquanto Gray permanecia sentado, pensou em tudo o que tinha acontecido. Lembrou-se do rapaz a arrastar Monk para um lugar visível no corredor. Gray compreendia
agora o que Pyotr fizera. A sua irmã tinha salvado a vida de Monk, tirando-o do mar e das suas vidas, e Pyotr retribuíra-lhe, como quem volta a colocar uma chave
de parafusos emprestada na caixa de ferramentas do vizinho.
Tudo isso acontecera... Gray sabia que não tinha sido sorte, nem sequer coincidência. Olhou para Pyotr e imaginou Sasha também.
Fora tudo orquestrado.
E enquanto Gray olhava, também se recordou do objetivo de Nicolas Solokov; manipular os sábios para produzir o próximo grande profeta mundial. O próximo Buda ou
Maomé ou Jesus Cristo. Gray também discutira tais especulações com Monk, quando os dois tinham visitado Pyotr.
Depois disso, o seu amigo apontara com a cabeça para o rapaz.
Talvez os Russos tivessem tido mais sucesso do que imaginavam.
De qualquer forma, tal como muitas figuras de proa, Pyotr pagara pelo último sacrifício. Agora nunca saberiam a verdade. E talvez fosse melhor assim.
Gray suspirou e afastou estes pensamentos tão melancólicos. Nas suas mãos, viu a página de colorir de Sasha e olhou para ela. Aparentemente, tirando tudo o resto,
Gray tinha agora de se preocupar com palhaços horripilantes. Enquanto dobrava o papel, viu que a criança desenhara algo à mão na página em branco do verso.
Desdobrando-o, olhou para a forma, primorosamente desenhada a lápis preto.
Era um pequeno dragão chinês, muito bem executado.
Um arrepio gélido de reconhecimento percorreu o corpo de Gray. Levou a mão ao pescoço. Enfiado no interior da camisa tinha um pendente com o mesmo dragão em prata,
um presente de um assassino, simultaneamente uma promessa e uma maldição.
Gray olhou para a porta. Será que Sasha vira o amuleto antes? Olhou para o desenho a lápis, sabendo intimamente que isso não era possível.
Era um aviso - mas não acerca de palhaços. Enquanto olhava, Gray apercebeu-se de que Sasha tinha estado a apontar para a parte de cima da página que tinha nas mãos.
Da sua posição inferior, não tinha estado a indicar para o palhaço.
Tinha estado a indicar para a parte de baixo da página.
Para o símbolo do dragão.
Na tranquilidade do quarto, Gray pressentiu um perigo a aproximar-se. Murmurou o nome relacionado com essa ameaça.
- Seichan.
EPÍLOGO
O rapaz está sentado ao pé da janela, olhando lá para fora para o mundo crepuscular. Não está pronto para partir ainda. Ainda tem muito a que se ajustar nesta sua
nova casa. Não se adequa muito bem a ele e dificulta-lhe os pensamentos.
Consegue ver o seu reflexo no vidro: cabelo escuro, feições pequenas, um rosto familiar. Mas ainda não parece que seja o seu. Também isso virá com o tempo. Enquanto
olha. vai vendo as folhas a cair do outro lado da janela, voando ao vento.
Não há medo agora, mesmo que a sua intensidade vá aumentando. Aquilo que reside bem fundo no seu interior entre os espaços de sombra e de forma. A partir da sua
memória. O que aparece é ainda mais familiar do que o seu próprio reflexo no vidro. Ele sabe que era o rosto que dantes tinha.
Ainda se lembra da escuridão, de um mar negro de luzes. Lembra-se do Sol moribundo no meio, abafado para que outras luzes pudessem voar e brilhar. Mas, no último
momento, o rapaz que em tempos fora detentor deste corpo mantivera um segredo deles todos. Enquanto partia desse mar negro para terras distantes, puxou outra luz
do caminho do perigo e deixou-a cair no mar negro vazio.
Para que pudesse viver novamente.
Lá fora agora, mais folhas vão caindo e sombras de memória preenchem os intervalos, compondo a verdadeira face daquele que agora detém este corpo.
Este velho rosto acabará por ser esquecido, mas não o rapaz que desistiu da sua vida para que algo de novo pudesse nascer. Muitas vezes, nos seus sonhos, vê esse
rapaz a correr pelos campos, subindo uma encosta, acenando de volta - depois desaparece.
Tão feliz agora.
O novo rapaz que está sentado na cadeira a olhar pela janela.
Um dia ele também correrá de novo.
James Rollins
O melhor da literatura para todos os gostos e idades