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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO REFÚGIO / Barbara Delinsky
O ÚLTIMO REFÚGIO / Barbara Delinsky

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Algumas vezes o amor nos encontra mesmo nos mais remotos esconderijos.

Garrick Rodenheiser teve de recomeçar sua vida do zero quando arruinou a carreira como ator de televisão. Após quatro anos de total reclusão em uma cabana, ele não conseguiu se livrar do passado, mas encontrou uma nova maneira de viver em paz. Até que em uma noite de muita chuva, os problemas voltam na forma de uma mulher ensopada da cabeça aos pés, ferida e necessitando de abrigo. Embora ela não fosse uma repórter, a palavra confiança não fazia parte do dicionário de Garrick.

Leah Gates, uma criadora de palavras cruzadas, tem alguns vocábulos que definem seu relutante salvador: rabugento, teimoso...irresistível. Ela não sabe se foi a proximidade forçada entre os dois, as solidão ou apenas a mão do destino que os uniu de forma tão mágica. Leah sabe que se apaixonar é a parte fácil. Mas ter confiança é um desafio muito diferente.

 

 

 

 

Léa Gates olhou desanimada para a dobradura de papel laminado azul que tinha nas mãos.

— Isso não se parece em nada com um pássaro — disse em voz baixa para a amiga que estava a seu lado.

Vitória Lesser que, compenetrada, tentava montar um pelicano, desviou a atenção para o trabalho de Léa.

— Claro que parece. Está na cara que é um pássaro.

— Então, eu sou uma marmota! — Léa levantou os óculos na esperança de que uma visão míope pudesse melhorar a aparência da dobradura. Não adiantou. Ela voltou a colocar os óculos.

— Está ótimo, Léa. Qualquer um pode ver que é um pássaro.

— Para mim não passa de um monte de pontas d papel dobrado.

Segurando com cuidado o frágil objeto, Vitória virou-o de um lado para o outro. Ela concordava com Léa aquilo não se parecia em nada com um passa, mas era educada demais para dizê-lo.

— Tem certeza de que montou direito a base? — indagou.

— Tenho.

— Então o problema deve ser com as dobras.

— Acho que o problema sou eu — emendou Léa.

— Deixa disso.

— Ou você — Léa continuou dizendo à amiga. — A idéia de fazer este curso de dobradura, ou origami, como você diz, foi sua. Como é que pude me deixar convencer?

— Até que foi fácil. Você não cria palavras cruzadas? Origami não passa de uma espécie de quebra-cabeça transposto para o papel. Um usa a cabeça, o outro, as mãos.

— Isso é verdade — concordou Léa.

— Senhoras? — Léa e Vitória levantaram os olhos para o professor que as encarava com ar reprovador. — Acho que agora podemos dar início à montagem do sapo. Alguém tem alguma dúvida em relação ao pássaro?

Léa fez que não com a cabeça, reprimindo um gemido. Um sapo?

Vitória sorria a seu lado, pronta para continuar com o envolvente trabalho. Porém, na hora em que a aula terminou, já não havia mais sombra de sorriso em seus lábios.

— Venha, vamos tomar um café — Ela pegou Léa pelo braço. — Esta aula quase me deixou louca.

Assim que se sentaram numa pequena cafeteria, na Terceira Avenida, Vitória perguntou, sem rodeios:

— Alguma coisa está preocupando você. O que é?

Léa tirou os óculos, colocando-os sobre a mesa. As lentes haviam ficado embaçadas no momento em que entraram na cafeteria, devido à mudança de temperatura.

— Meu sapo também não deu certo, não é?

— Faltou concentração. Sua mente estava em outro lugar. Posso ser indelicada o bastante para perguntar onde?

Léa não conseguiu segurar o riso. Há mais de um ano que conhecia Vitória, e já estava acostumada com a curiosidade da amiga. Mas, o que seria considerado indelicadeza se vindo de outra pessoa, era pura demonstração de carinho da parte de Vitória. Ela era tão perspicaz, realista e otimista, que bastava algum tempo a seu lado para animar qualquer pessoa.

— Adivinhe! — sugeriu Léa.

— Bem, não deve estar pensando no seu ex-marido porque já se divorciaram há dois anos. Com certeza não é outro homem já que, apesar dos meus esforços, você continua se recusando a arranjar um namorado. E duvido que o problema seja relacionado a trabalho. Na semana passada você me disse que haviam renovado seu contrato e que suas palavras cruzadas estão vendendo como nunca. O que nos deixa como última opção seu apartamento. Por acaso o proprietário está querendo aumentar o aluguel? — Vitória indagou, sabendo o quanto Léa adorava o antigo e espaçoso apartamento onde morava desde o divórcio.

— Pior!

— Está pensando em vender?

— Já está praticamente vendido. Vão construir um condomínio no lugar.

— Quando?

— Logo, logo — Léa respondeu desanimada. — Duvido que eu consiga outro apartamento tão bom quanto aquele. Os prédios antigos com vista para o rio são muito procurados porque recebem luz direta. E, mesmo que ainda houver algum para alugar, duvido que eu possa pagar; os preços estão altíssimos!

— Isto é Nova York!

Léa segurou a xícara de café com ambas as mãos, como que tentando aquecê-las.

— Desde que aluguei este apartamento, há dois anos, os aluguéis do bairro dispararam. Só o consegui por um preço razoável porque me dispus a fazer uma reforma. O lugar era um horror, mas a vista era... inefável.

— Inefável? — Vitória repetiu. Já estava acostumada com os termos complicados que a amiga usava para se expressar. Afinal, que outra coisa podia esperar de uma autora de palavras cruzadas?

— Indescritível. Ah, não é justo, Vitória. Durante semanas a fio eu raspei e lixei as paredes e tetos, depois pintei tudo com o maior cuidado, e agora que está finalmente em ordem... — Ela deu um suspiro de frustração. — Eu sabia que um dia isso acabaria acontecendo, só não pensei que fosse agora.

Vitória compartilhava a tristeza daquela que já se tornara uma boa amiga. Elas haviam se conhecido um ano atrás na biblioteca pública e, apesar dos vinte anos de diferença de idade, tinham vários interesses em comum. Vitória apreciava o bom senso e o jeito tranqüilo daquela jovem mulher de trinta e três anos. Juntas, iam á peças de teatro, experimentavam a comida dos novos restaurantes da cidade, faziam cursos não só de origami, mas também de papel machê, cultura russa e bale.

Vitória passara a conhecer Léa muito bem. Sabia o quanto ela havia sofrido com um casamento Infeliz e que, por trás da aparência urbana e moderna, se escondia uma moça tímida, vulnerável e solitária. Perder o apartamento do qual ela tanto gostava não devia estar sendo nada fácil.

— Olhe, querida, eu ficaria muito contente se aceitasse um empréstimo para dar de entrada para a compra do apartamento.

Léa pousou a mão sobre a da amiga, impedindo-a de prosseguir.

— Você sabe que não me fará falta — insistiu Vitória.

— Eu não poderia, Vitória. E não é uma questão de princípios; é a quantia envolvida que me impede de aceitar. Eu teria de lhe pagar mensalmente o empréstimo junto com a prestação e isso significaria ter de me privar de uma série de coisas durante anos...

A dívida poderia ser saldada em menos tempo, porém Léa levava uma vida confortável e não pretendia mudar seus hábitos. Gostava de poder comprar uma bela roupa nova, um par de sapatos importados ou um trabalho de um artista iniciante. Todo o dinheiro que gastava era fruto de seu trabalho e ela não via mal nenhum em gastá-lo em coisas que lhe dessem prazer. O banco, entretanto, classificaria tais gastos como supérfluos.

— Mas você não precisa ter pressa em me pagar.

— Você estaria fazendo um mal negócio.

— E daí? O dinheiro é meu, o negócio também... — E quanto à nossa amizade? Eu estaria me aproveitando dela.

— Sou eu quem está oferecendo! Léa balançou negativamente a cabeça.

— Obrigada, mas não posso aceitar.

Vitória abriu a boca, mas voltou a fechá-la sem dizer uma palavra. Estava para sugerir que Léa pedisse o dinheiro emprestado a Richard. Eles haviam sido marido e mulher e, como Léa não tinha família, parecia uma opção viável. Ele possuía um bocado de dinheiro e, infelizmente, uma nova esposa. No entanto, o orgulho de Léa a impediria de pedir-lhe qualquer coisa.

— O que pretende fazer? — indagou Vitória.

— Procurar outro lugar para morar. Nunca conseguirei outro apartamento charmoso como aquele, então terei . de me contentar com o que aparecer.

— Tem certeza de que quer continuar morando em Nova York? Seria muito mais fácil encontrar um lugar cheio de charme fora daqui.

Léa considerou a idéia.

— Mas eu gosto de Nova York.

— É porque está acostumada. Sempre morou aqui. Talvez tenha chegado a hora de mudar de ares.

— Não sei...

— Pense como seria bom para você. Lugar novo, pessoas diferentes, lojas novas, cursos...

— Está tentando se ver livre de mim?

— E perder minha companheira de programas fora do comum? Claro que não! Mas estaria sendo egoísta se não a incentivasse a procurar coisas novas. Uma parte de você adora experiências diferentes; a outra, têm medo. Você é jovem, Léa, tem a vida inteira pela frente.

— E existe lugar melhor para isso do que Nova York? Esta cidade é multifária...

— Léa, por favor, não dá para você falar como qualquer outra pessoa?

— Quero dizer que aqui há oportunidades diversas. Se não tiver experiências variadas em Nova York, onde mais as teria?

— Provavelmente, em qualquer lugar. Talvez lhe fizesse bem uma mudança de ares... — A mente de Vitória já começara a elaborar um plano. — Quem sabe você gostaria de... — Ela balançou a cabeça. — Não, não, acho que não gostaria.

— Do quê?

— Esqueça.

— Em que estava pensando? — Léa perguntou curiosa.

Vitória levou um minuto pensando, antes de responder. A demora não era só para promover um certo suspense. Ela detestaria ver alguém a quem adorava em uma situação difícil. No entanto já bancara o cupido em outra ocasião e tudo correra bem.

— Eu tenho uma casa num local afastado — disse em voz alta.

— Aquela ilha particular?

— Também tenho essa, mas estava pensando em outra. — Na ilha, Léa ficaria completamente isolada, e essa não era a intenção de Vitória. — Possuo um chalé em New Hampshire, que meu falecido marido comprou para suas caçadas. Estive lá algumas vezes depois que ele morreu, mas é um lugar quieto demais. — Ela meneou novamente a cabeça. — Não, você também acharia tranqüilo demais por lá. Está acostumada com a cidade.

— Conte mais.

— Você não vai gostar.

— Conte, Vitória.

Mais uma vez, Vitória fez uma pausa. Desta vez para causar impacto.

— A cabana fica num bosque, entre as árvores, e é pequena.

— Continue.

— Bem, há uma sala de estar e um quarto. A cidade mais próxima fica a cinco quilômetros de distância. Você ia odiar, Léa.

Léa, porém, não estava tão certa de que não gostaria. Ficara intimidada com a possibilidade de ter de se mudar para os subúrbios, mas algo assim rústico... Era uma possibilidade a ser considerada.

— Só que não tenho dinheiro para comprar esse chalé.

— Não está a venda — Vitória apressou-se em responder. — Mas eu terei prazer em lhe emprestar.

— Alugar — corrigiu-a a amiga.

— Está bem, posso alugá-lo a você. É exatamente do que precisa até decidir se quer ou não se mudar de Nova York. Seria uma espécie de teste.

— Há outros moradores por perto?

— Só na cidade. Não são muitos e, lembre-se, esse pessoal do interior costuma ser fechado.

Melhor assim, pensou Léa. Mas em voz alta comentou:

— Para mim está ótimo. Desde que tenha meus livros e máquina de escrever, posso perfeitamente fazer meu trabalho num chalé nas montanhas.

— Lembra que me falou que desejava aprender a tecer? A mais ou menos vinte quilômetros dali existe uma comunidade de artistas; quem sabe um deles concorde em lhe dar algumas aulas? — Vitória considerou se devia ou não comentar acerca de Garrick. Não, por enquanto não diria nada sobre ele. Léa estava sorrindo; com certeza ficara satisfeita com a descrição do lugar.

— É bem diferente de Nova York — Vitória voltou a lembrar-lhe.

— Eu sei.

— A mudança seria radical.

— Já entendi.

— Dez minutos atrás você disse que não queria se mudar daqui,

— Mas desde que vou ficar sem lugar para morar, acho que uma mudança será inevitável.

— Bem, você poderia procurar outro apartamento.

— Poderia, sim.

— Ou mudar-se para os subúrbios.

Léa balançou a cabeça resoluta, e os cabelos negros se enrascaram na gola da malha de lã.

— Quero que pense bem no assunto, Lia. Será uma mudança drástica — Vitória exclamou, satisfeita por ver que seu plano estava dando certo.

— Mas não será irrevogável. Se em uma semana eu não tiver me adaptado, é só fazer as malas e voltar. Agora me conte mais sobre a cabana; é muito rudimentar?

Vitória não pôde conter o riso.

— Se tivesse conhecido meu marido, não teria perguntado uma coisa dessas. Ele jamais viveria em um local considerado rudimentar. E, quanto a mim, você me conhece. Não sou do tipo que gosta de pouco conforto, não é?

Léa já tivera a oportunidade de conhecer o apartamento de Vitória, na Park Avenue. Era espaçoso, elegante, suntuoso até. Também já fora hóspede da amiga na casa de praia em Long Island. Mas uma cabana nas montanhas era bem diferente da exclusiva praia ou de Manhattan. Vitória era rica, mas não esnobe, e o excesso de dinheiro podia tornar as pessoas um tanto quanto excêntricas. Léa queria saber todos os detalhes.

— O chalé é todo equipado? Tem geladeira, fogão?

— Da última vez que estive lá, sim — Vitória declarou. — Olhe, não tome uma decisão agora. Pense um pouco mais. E quanto à sua mobília? Vai ter de guardar em algum depósito.

— Isso não será difícil.

— Ah, mas que coisa aborrecida!

— Aborrecido foi ter perdido meu apartamento. Além do mais, se eu não me der bem em New Hampshire, não terei de me preocupar com os móveis enquanto estiver procurando por outro lugar para morar.

— O quarto verde estará sempre a sua disposição. Léa sorriu.

— Estava esperando que você oferecesse. Embora não pudesse aceitar um empréstimo em dinheiro, ela não se sentiria mal em aceitar a hospedagem na casa de Vitória, onde, inclusive, já passara uma ou duas noites.

— Eu jamais me perdoaria se, depois de haver convencido você a ir para as montanhas, você odiasse a vida no campo e, então, ficasse sem ter onde morar. — Na verdade, Vitória preocupava-se com o que a amiga pensaria ao encontrar Garrick. Bem, da outra vez que seguira seus instintos tudo correra bem, e Deirdre e Neil viviam felizes e muito bem casados. Agora era a vez de se preocupar com Léa: alta e esguia, com os cabelos negros cortados em estilo chanel, com franja espessa e os óculos de aro vermelho. Quando Garrick a conhecesse...

— Eu aceito — Léa declarou.

— O quarto verde? É claro, querida.

— Não, o chalé. — Embora não fosse impulsiva, Léa sabia muito bem o que queria. Quando alguma coisa lhe agradava, não era mulher de demorar para se decidir. O chalé de Vitória parecia a resposta para o problema que vinha lhe atormentando. Lá, ela teria tempo para pensar e resolver quanto ao futuro. — Agora só temos de acertar o aluguel.

Vitória fez um movimento com a mão, querendo deixar o assunto de lado.

— Não é preciso ter pressa. Discutiremos isso mais tarde.

— Vitória, faço questão de lhe pagar um aluguel. Senão, nada feito.

— Está bem, querida. É que agora não tenho idéia de quanto pedir. Por que não fazemos assim: você vai até lá, vê em que estado se encontra o chalé, e me paga o quanto achar que vale?

— Preferia pagar adiantado.

— E eu prefiro esperar.

— Você está sendo pertinaz.

— Eu sei — declarou Vitória, sem ter a menor idéia do que a palavra significava.

— Está bem, vou fazer o que me pede. Mas, se você não aceitar o dinheiro depois...

— Acredite em mim, Léa, acredite em mim...

O entusiasmo de Léa crescia dia a dia. Ela mesma chegava a se espantar com isso, já que era uma pessoa essencialmente urbana. Era a primeira vez que uma mudança assim tão radical lhe despertava o interesse. Ficou imaginando se isso teria algo a ver com a idade; talvez a idade lhe houvesse trazido maior audácia. Ou desespero. Não, não iria ficar pensando nisso. Com certeza estava apenas se rebelando contra o modo de vida que levava desde seu nascimento.

Há muitos anos não saía de férias, quanto mais para um local remoto. Lembrava-se de pequenas escapadas junto com os pais para Cape Cod quando era criança, das dunas de areia e dos passeios de barco. As viagens que fizera com o marido estavam longe de ser relaxantes. Richard pensava constantemente no trabalho, e nunca encontrava tempo para ficarem realmente a sós.

Mas não era no ex-marido que Léa pensava enquanto terminava de arrumar as coisas para a viagem. Ela tentava entender melhor a estranha força que lhe dizia ter escolhido o rumo correto para sua vida. A certa altura passou a relembrar a conversa que tivera com Vitória na noite anterior, durante o jantar de despedida que a amiga insistira em lhe oferecer.

Haviam passado boa parte da refeição conversando sobre banalidades; foi apenas durante a sobremesa que Vitória tocou no assunto da viagem.

— Está mesmo resolvida a ir? — perguntou Vitória.

— Pode apostar que sim.

Durante as últimas três semanas Vitória se sentira um pouco culpada por não ter contado tudo para Léa, em relação ao chalé. Embora estivesse fazendo tudo pelo bem da amiga, não podia deixar de sentir um peso na consciência. Apesar de suas boas intenções, reconhecia a possibilidade de Léa ficar furiosa ao descobrir tudo.

— Tem certeza? — ela insistiu.

— Tenho.

— Lá não tem ar-condicionado.

— Tudo bem.

— Nem telefone.

— Você já me disse — comentou Léa com um sorriso. — Duas vezes, por sinal. Eu lhe telefonarei da vila, assim que estiver instalada.

— Já levaram sua mobília para o depósito?

— Hoje de manhã.

— A cama também? E onde vai dormir esta noite?

— No chão — E, antes que Vitória pudesse falar novamente, Léa completou: — E, obrigada, não quero ir dormir na sua casa. Ainda tenho umas coisinhas para arrumar. Depois, é só pegar o carro e partir.

Uma noite no chão! Vitória se sentia mais culpada do que nunca, porém, pela expressão no rosto de Léa, sabia que não adiantaria insistir.

— E que tal o carro? — indagou apreensiva, pensando no automóvel usado que a amiga comprara uns dias antes.

— Está perfeito.

— Tem certeza de que pode dirigi-lo?

— Claro!

— Mas você não guia há anos! E agora vai pegar a estrada sozinha...

— É como andar de bicicleta, a gente nunca esquece. Não foi você mesma quem me disse isso na semana passada?

Bem, o que está feito, está feito. Léa não pretendia mudar de idéia. Agora... que Deus a protegesse!

Vitória deu um longo suspiro e retirou dois envelopes da bolsa.

— Instruções para você chegar ao chalé — ela disse, apontando para o envelope de cima. — Pedi para minha secretária datilografar; está bastante detalhado.

Em silêncio, observou Léa abrindo o envelope e lendo as instruções. Notando-lhe as sobrancelhas franzidas, adivinhou que ela chegara ao parágrafo final.

— Esse tal de Garrick Rodenhiser é um caçador. A cabana dele fica a alguns quilômetros da minha, mas existe um atalho pelo bosque que você poderá usar em caso de emergência, sem dificuldade. É um bom homem, lhe ajudará em qualquer necessidade.

— Nossa, até parece que você espera que eu precise de ajuda! — murmurou Léa, enquanto relia as instruções.

— Não. É que eu confio em Garrick.

— Bem — Léa voltou a dobrar o papel e guardá-lo —, estou certa de que não precisarei de nada.

— E este — declarou Vitória, estendendo o segundo envelope — é para Garrick. Pode entregá-lo, por favor?

Léa tomou a carta nas mãos, virando o envelope opaco onde o nome do caçador fora escrito com a caligrafia caprichada de Vitória.

— Uma carta de amor? — ela brincou. — Não consigo imaginar você com um caçador.

— Caçadores podem ser ótimas pessoas.

— E há muitos por lá?

— Alguns.

— Eles não são agressivos? — indagou.

— Bem... — Vitória riu.

— São ou não são?

— Não muito.

— Ainda bem. Sabe, acho que esta viagem será muito educativa.

Enquanto dirigia com cuidado o automóvel através do tráfego intenso, Léa pensava. O carro estava completamente lotado com roupas e vários itens essenciais, além de caixas com livros, um gravador e fitas cassete. Ela pretendia levar adiante vários projetos que a manteriam ocupada, isso sem falar nas palavras cruzadas que criaria.

Tais pensamentos, ela sabia, eram uma espécie de mecanismo de defesa para não se lembrar do apartamento de que tanto gostava, onde se sentira independente pela primeira vez na vida. Junto com o apartamento, abandonara uma vida repleta de atividades: peças de teatro, cinema, restaurantes e museus que tanto apreciava.

Adorava a cidade de Nova York desde que amadurecera o suficiente para saber aproveitar o que ela lhe oferecia de bom. Embora o apartamento onde tinha vivido com os pais fosse simples para os padrões nova-iorquinos, sempre havia o Central Park, a Quinta Avenida, o Rockefeller Center e a Washington Square.

Ah... lembranças, alguns poucos amigos, milhares de desconhecidos. Assim era Nova York. Bem, mas tudo continuaria por ali quando voltasse.

Endireitando o corpo no assento, Léa decidiu trocar o sentimentalismo pela realidade. E isso significava, no momento, evitar os táxis que passavam velozmente pelo seu velho carro, e evitar os pedestres afoitos que não queriam esperar pelo sinal verde para atravessar as ruas.

O trânsito se encontrava surpreendentemente complicado para aquela hora da manhã e Léa não hesitava em gritar com os motoristas que "costuravam" à sua frente ou que a pressionavam para ir mais rápido tocando a buzina. Logo, já se sentiria mais tranqüila, ao deixar para trás a selva de concreto, pegando a rodovia em direção ao norte.

Era um dia ensolarado, raridade num mês de março, o que Léa interpretou como um bom augúrio. Embora houvesse levado consigo várias roupas de frio, ficava satisfeita por estar vestindo uma calça de malha com uma blusa de lã leve. Quanto mais se afastava da cidade, mais satisfeita consigo mesma ela se sentia.

Às duas da tarde, faminta, parou o carro numa lanchonete da estrada e desceu, não sem antes pegar o casaco. O sol havia desaparecido por trás das espessas nuvens desde que entrara no estado de Massachusetts e o ar já estava um pouco frio. Como sabia ainda ter pela frente mais três horas de viagem, e desejando chegar a seu destino antes do escurecer, Léa comeu rapidamente um hamburger, tomou um refrigerante, usou o banheiro e seguiu viagem.

O céu se tornava cada vez mais escuro até que, ao se aproximar de New Hampshire começou a chover.

"Que bom augúrio, que nada!", Léa pensou, ligando todos os botões do painel até conseguir acionar o limpador de pára-brisa.

O tempo estava frio e úmido e Léa agradeceu aos céus por ter lido as instruções dadas por Vitória até sabê-las de cor. Abominava a idéia de ter de parar o carro no acostamento por um minuto que fosse. Com o caminho bem decorado, poderia dedicar sua atenção inteiramente ao ato de dirigir.

Mesmo um motorista experiente necessitaria de toda sua habilidade para dirigir naquelas condições. Léa diminuiu a marcha, porém mesmo assim era difícil enxergar a estrada. A água e a lama espirradas pelos outros carros que passavam por ela dificultavam ainda mais a visibilidade. Léa deu um suspiro de alívio ao encontrar o desvio onde deveria virar, mas voltou a ficar tensa ao notar que era o único carro a trafegar por ali, não podendo usar, portanto, as luzes traseiras dos outros automóveis como guia.

Assim, então, ela prosseguiu. Ao passar por um restaurante de beira de estrada considerou a possibilidade de parar por ali até que a chuva passasse. Decidiu, porém, que seria bem pior ter de seguir por uma estrada desconhecida, e chegar a um chalé deserto, depois que tivesse escurecido.

Pouco depois, aproximando-se de um motel, pensou em passar a noite e seguir somente na manhã seguinte. Mas, não, ela queria mesmo era chegar logo à cabana. Passar a noite naquele lugar não ajudaria a diminuir a falta que ainda sentia de seu apartamento.

O que ajudaria bastante seria o fim daquela chuva! E, quem sabe, um pouco de sol entre as nuvens? E várias horas antes que escurecesse.

Nada disso aconteceu e, embora a chuva permanecesse estável, o céu foi se tornando cada vez mais escuro e fechado.

Quando chegou finalmente à pequena vila que Vitória havia mencionado, Léa ficou mais animada. Entretanto a animação passou assim que tomou o caminho indicado pela amiga, passou pelos correios e viu o que lhe esperava pela frente.

Uma estradinha de barro, estreita, cheia de curvas que mal dava para dois carros. Nada de faixas demarcatórias, nem iluminação, muito menos placas de sinalização.

Endireitando o corpo em frente à direção, esfregou os olhos àquela altura cansados pelo esforço necessário, para ver a estrada à sua frente. Só então percebeu que se esquecera de marcar a quilometragem a partir do posto do correio. As instruções de Vitória diziam que ela deveria virar na entrada que ficava a três quilômetros dali. Quanto já teria andado?

Léa seguiu devagar, procurando enxergar a grande pedra arredondada junto a uma velha árvore torta, que demarcava a entrada da estradinha que levava ao chalé de Vitória.

Se ela passasse a entrada... Não, precisava ter pensamento positivo. Vejamos, três quilômetros a quinze por hora davam... doze minutos... Há quanto tempo teria deixado a vila?

Quando já estava prestes a fazer meia volta e retornar ao posto do correio, a fim de começar de novo, desta vez contando a quilometragem, foi que Léa viu uma árvore torta junto de uma grande pedra arredondada. Ao lado, uma estradinha. Ou quase.

Começou a falar baixinho consigo mesma, procurando não se deixar impressionar pelos galhos de árvore que batiam no carro. Se fosse um pouco mais medrosa, acharia que o matagal lhe estava sendo claramente hostil.

— Esta é uma terra abençoada, garota. As montanhas, a floresta... imagine isto tudo sob a luz do sol. Você vai adorar!

O carro dava solavancos e jogava como nunca, e ficava cada vez mais difícil para Léa controlá-lo. Um dos pneus começou a rodar em falso na lama, fazendo-a prender a respiração, suspirando ao ver que o automóvel voltava a seguir em frente.

— Só mais um pouco, vamos! Estamos quase chegando. Vamos, carrinho, não faça isso comigo!

A estrada crescia num aclive e, embora o carro não chegasse a morrer, ia tão devagar que Léa teve medo de começar a descer a encosta de marcha a ré. Inúmeras vezes desejou ter tido a idéia de alugar um jipe ou uma caminhonete. Agora, no entanto, tudo que podia fazer era segurar com firmeza a direção daquele carro e tentar enxergar alguma coisa que não fosse barro e galhos de árvore.

Léa estava assustada. Os faróis iluminavam o que parecia ser o caminho para o fim do mundo. De repente uma enorme poça lamacenta surgiu à sua frente, e ela pisou nos freios com força. O carro deslizou no barro e quase parou.

"Volte, Léa, volte", ela pensava com o coração aos pulos. Isso, porém, não seria possível. O automóvel estava cercado pelo mato, e não havia como fazer meia-volta.

Com todo cuidado, acelerava, evitando pensar que da próxima vez os freios poderiam falhar ou que o automóvel de segunda mão talvez não agüentasse uma viagem tão difícil. Tentou também não pensar nos animais selvagens que poderiam estar ali escondidos, à espreita. Mantendo uma velocidade baixa, porém estável, prós- ; seguiu até onde a estrada melhorava um pouco.

O caminho continuava ruim, mas o importante era que ali a estrada de terra era mais larga, o que fez Léa dar um suspiro de alívio. Com o coração batendo forte, colocou o rosto mais para perto do vidro, procurando ver melhor. O chalé deveria estar perto agora.

— Não falta muito, calma, já está quase chegando...

E, de repente, sem que esperasse, a estrada pareceu haver sumido. Léa mal teve tempo de por o pé nos freios m e o carro escorregava por um declive, terminando por atolar fundo numa poça de lama.

Trêmula, fechou os olhos, tentando se acalmar. Com W um suspiro profundo, abriu os olhos e o que viu a deixou imóvel.

Durante três semanas sonhara com a visão de uma cabana pequenina, porém charmosa. Uma chaminé de um lado, janelas de madeira se abrindo para o jardim em frente. Aninhada entre as árvores do bosque, a cabana seria o protótipo do paraíso no campo.

Em vez disso, era o protótipo do inferno. Léa piscou várias vezes, tentando convencer-se de que aquilo não era alucinação. À sua frente jazia o que realmente fora um dia uma charmosa e confortável cabana nas montanhas.

-- Meu Deus! — ela soluçou alto — O que aconteceu?

Infelizmente, o que havia acontecido era bem claro. Houvera ali um incêndio. Mas, quando? E porque Vitória não fora informada?

Os soluços que se seguiram eram tanto de desapontamento quanto de cansaço e ansiedade. Léa sabia que precisava voltar rapidamente ao vilarejo antes que a noite caísse de vez.

Tornou a ligar o carro, engatou a primeira e acelerou. As rodas patinaram na lama. Engatou marcha a ré e tentou mover o automóvel. Nada. Engatou primeira... marcha a ré... primeira novamente, e repetiu a mesma coisa várias vezes sem sucesso. Precisava voltar à civilização, mas com certeza não seria naquele carro.

Encostando a cabeça na direção, procurou respirar fundo. Léa Gates não era mulher de entrar em pânico. Não o fizera quando os pais haviam morrido, nem quando perdera os bebês. Nem mesmo quando o marido declarara que ela não servia como esposa e a abandonara.

O que fizera em tais situações fora chorar até sentir-se aliviada, depois, reestruturará seus sonhos e levara a vida em frente. Era exatamente o que faria ali, só que não havia tempo a perder com lágrimas.

Não poderia passar a noite no carro. Também não daria para voltar à cidade. Ninguém sabia que estava ali, portanto, não havia por que esperar socorro, então...

Abrindo a bolsa, pegou a carta com as instruções que Vitória lhe entregara, e leu o parágrafo final, no qual mal havia antes passado os olhos. Sim, era verdade que prometera à amiga que iria até a cabana de Garrick Rodenhiser entregar o envelope endereçado a ele, mas nunca pensou que o faria no meio da noite, durante uma tempestade.

Entretanto, procurar pelo caçador parecia ser a única alternativa de Léa. A chuva continuava forte e a noite se fechara sobre o bosque. Sem um guarda-chuva, uma capa ou uma lanterna, decidiu agir como se estivesse em Nova York e tivesse sido pega desprevenida no meio de uma chuva de verão: tudo o que precisava era dar uma corrida até o chalé vizinho.

Releu mais uma vez as instruções. Olhando com atenção através do pára-brisa, conseguiu encontrar o caminho entre as árvores que supostamente a levaria até Rodenhiser. Tentando não se deixar impressionar pela escuridão, tornou a guardar a carta; escondeu a bolsa debaixo do banco do carro, e apagou as luzes internas e os faróis do veículo. Então, com um longo suspiro, colocou as chaves no bolso do casaco, abriu a porta e saiu na chuva.

Imediatamente, sentiu os pés afundando na lama. Atônita, olhou para onde deveriam estar seus tornozelos e, com uma expressão de desânimo puxou um dos pés para cima. O sapato não subiu junto. Colocou outra vez o pé na lama, procurou pelo sapato e puxou-o com a ponta dos dedos.

Tentando se equilibrar, apoiou uma das pernas para onde esperava encontrar terra firme. Pronto, agora precisava repetir a operação com a outra perna. Não havia tempo para pensar nos sapatos de couro que ela adorava, que agora estavam arruinados, assim como as meias de seda e o restante de suas roupas.

Imaginando que seria uma corrida rápida até o vizinho, seguida de outra trazendo ajuda, Léa nem pensou em trancar o carro e saiu correndo através da passagem do bosque.

Era aquilo o que Vitória chamava de atalho? A mata se fechara sobre o caminho que mal dava passagem para uma pessoa. No chão, poças de lama tornavam ainda mais difícil sua empreitada, e Léa afundou várias vezes os pés no barro, enquanto tentava seguir em frente.

Os minutos passavam, e ela sentia maior dificuldade em afastar os pensamentos nefastos e a vontade de chorar. Com uma risada quase histérica, lembrou-se que uma corrida na chuva, em Nova York, não se parecia em nada com o que se passava naquele momento. Estava completamente molhada e com frio. As roupas encharcadas, agarradas no corpo, não lhe ofereciam proteção alguma e os cabelos pingando caíam sobre os óculos de lentes sujas. Além disso, a tensão e o esforço da caminhada faziam seu corpo inteiro doer.

Pior, não havia nem sinal da cabana. Pela primeira vez desde que o carro atolara na lama, Léa se deu conta do quanto se encontrava só e vulnerável. Garrick Rodenhiser era um caçador, o que significava que por ali havia animais selvagens. A idéia de que poderia ser atacada por um deles a fez tremer mais do que a chuva e o vento frio.

Subitamente, Léa perdeu o equilíbrio e afundou no barro com um grito estridente. O pavor a fez levantar-se num segundo e ela seguiu em frente, chorando.

Várias vezes perdeu os sapatos e, se não fosse o fato de ser quase impossível seguir de meias ou descalça, os teria deixado para trás. Mais duas vezes ela tornou a cair, gritando de dor na segunda vez ao sentir alguma coisa pontuda arranhando-lhe a coxa.

A certa altura achou que não conseguiria ir em frente. Seus braços e pernas tremiam, ela toda tremia e a respiração estava entrecortada. Precisava seguir. A agonia de ficar ali parada sem fazer nada era pior do que a dor que sentia.

Ao ouvir sons estranhos entre as árvores, o pânico aumentou. Virando-se rapidamente para trás, acabou batendo numa árvore e quase caiu outra vez. Tinha certeza de que estava chorando, mas era impossível distinguir as lágrimas dos pingos de chuva que lhe caíam no rosto.

Vários pensamentos aterrorizantes lhe vinham à mente. E se não tivesse fôlego para continuar? Como podia saber se a cabana do caçador ainda existia? E se Garrick Rodenhiser simplesmente não estivesse lá? O que faria, então?

De tão desesperada que estava, Léa não viu o chalé até que já se encontrava diante dele. Tornou a cair, desta vez sobre um caminho de pedras que levava à cabana. Limpando as lentes dos óculos com as costas das mãos, tentou enxergar através da chuva. Uma luz tênue podia ser vista atrás das persianas fechadas e ela se levantou, forçando-se a atravessar a pequena distância que a separava do chalé.

Já debaixo da varanda, estava protegida da chuva, mas seu corpo todo continuava a tremer. Suas pernas não suportavam mais tanto esforço. Escorregando o corpo até o chão, encostou-se na porta e, procurando por um último resquício de força, bateu como cotovelo na porta. Então, abraçou os joelhos e ficou esperando.

Um minuto se passou e ninguém foi atendê-la. O ar frio da noite parecia congelá-la até os ossos, e com um esforço quase sobre-humano tornou a bater.

A porta, então, foi aberta em questão de segundos, m Esgotada, Léa levantou os olhos e através das lentes molhadas pode ver uma silhueta enorme.

— Eu... — ela tentou falar — eu...

A pessoa não se mexeu.

— Eu sou... preciso... — A voz de Léa mal saía da garganta.

Devagar, a pessoa abaixou-se, tentando ouvir o que ela lhe dizia.

— Vitória me mandou — conseguiu sussurrar. — Eu tenho tanto frio...

 

Garrick Rodenhiser teria rido ante a declaração de Léa, se a criatura enrolada no chão à sua frente não fosse patética. Vitória podia ser excêntrica, mas não lhe mandaria uma mulher. Sabia o quanto ele valorizava sua privacidade, e por respeitar esse lado de sua personalidade é que haviam se tornado amigos.

Porém, aquela moça encharcada até os ossos, coberta de lama e, pelo modo como tremia, quase morta de frio, era mesmo digna de pena.

Bem, fosse lá o que houvesse levado a moça até sua cabana, não podia fechar a porta e deixá-la do lado de fora.

— Entre — ele falou, pegando-a pelo braço para ajudá-la a levantar-se.

— Eu estou imunda...

A mão forte apertou-a com mais força e ela se deixou ajudar. Suas pernas estavam doloridas e machucadas, e não tinha certeza se conseguiria se levantar sozinha. Assim que ficou de pé, Garrick a largou, dando um passo para o lado a fim de que pudesse entrar no chalé.

Léa deu um passo para dentro da sala aquecida pela lareira e imediatamente uma poça de lama se formou sob seus pés. Ela tirou os óculos e tentou limpá-los sem sucesso no casaco sujo. Olhando em volta, não distinguiu direito o que via.

— Suas roupas não são muito adequadas para este tempo, não é? — ele falou, numa voz quente e profunda.

Léa voltou os olhos para o caçador e, embora não pudesse enxergar bem por causa da miopia, não lhe era difícil perceber o quanto era alto: devia ter mais de um metro e noventa.

— Você é Garrick Rodenhiser? — A voz dela soou rouca e trêmula.

O homem fez que sim.

Tudo o que podia ver era que as roupas dele eram escuras e que usava barba. Se ele era quem dizia ser, então tudo estava bem, pois era amigo de Vitória.

— Preciso de ajuda — falou com dificuldade. — Meu carro atolou...

— Você precisa é de um banho. — Garrick a interrompeu atravessando a única sala do chalé em largas passadas, e, abrindo a porta de um armário, tirou duas toalhas limpas.

Embora não soubesse quem era a hóspede inesperada, tinha de ajudá-la pois, não só estava tremendo muito, como estava fazendo a maior sujeira em sua sala. O quanto antes ela estivesse limpa e aquecida, mais cedo poderia explicar o que acontecera.

Acendendo a luz do banheiro, Garrick colocou as toalhas sobre o armário da pia, fazendo então um gesto para que Léa entrasse.

— Aqui terá bastante água quente, sabonete e xampu.

Léa abaixou os olhos para as próprias roupas. Mal podia reconhecê-las.

— No cinema não é assim — ela exclamou.

— Como? — Garrick imaginou se a desconhecida não teria levado uma pancada na cabeça.

— Naquele filme Tudo por uma esmeralda. Eles caem na lama e mesmo assim suas roupas não ficam deste jeito!

Como fazia quatro anos que Garrick não assistia a um filme, não havia comentário a ser feito.

— Ê melhor se livrar dessas roupas. — Foi tudo o que ele disse.

— Mas não tenho outras. — O corpo de Léa tremia, seus dentes batiam de frio. — Minhas coisas ficaram no carro.

Garrick caminhou até o outro extremo do aposento, ocupado por uma imensa cama de casal e uma cômoda; abriu uma das gavetas, depois outra e voltou ao banheiro com uma pilha de roupas limpas, cuidadosamente dobradas.

Mais uma vez, fez um gesto para que Léa entrasse no banheiro e, quando o fez, com passos vacilantes, foi que Garrick notou que ela estava machucada.

— O que houve com sua perna?

Léa olhou para baixo e engoliu em seco. Nem mesmo a camada de barro que envolvia a calça, conseguia esconder o fato de que estava sangrando bastante.

— Eu caí.

— Em que bateu a perna?

— Em alguma coisa pontuda, não sei.

Em silêncio, observou Garrick ir até a parte reservada à cozinha e pegar um vidro de anti-séptico, gaze e esparadrapo. Em seguida, ele voltou ao banheiro e adicionou o material de primeiros socorros a pilha de roupas e toalhas.

— Agora tome seu banho — ele ordenou. — Vou fazer um café.

— Preciso de um conhaque.

— Sinto muito, mas não tenho conhaque.

— Uísque?

— Desculpe.

— Não tem nada alcoólico?

Ele balançou a cabeça, desejando ter alguma bebida forte para oferecer àquela moça que, apesar do calor da cabana, continuava a tremer. Se ela realmente houvesse se arrastado pelo bosque como suas roupas rasgadas e o machucado da perna indicavam, era possível que experimentasse os efeitos retardados do choque, e uma bebida seria indicada. Entretanto, não havia nada nem remotamente alcoólico. Desde que deixara a Califórnia havia quatro anos, ele sequer vira uma garrafa de bebida.

— Café, então, está ótimo — Léa tentou sorrir, mas seu rosto parecia não obedecê-la. Movendo-se com dificuldade, fechou a porta do banheiro. O aposento era surpreendentemente bem equipado, embora não houvesse uma banheira, como Léa sonhara. Era grande, claro e limpo.

— Há um aquecedor na parede — Garrick informou-a, por trás da porta fechada.

Ela o encontrou e o fez funcionar, evitando de propósito olhar-se no espelho. Após colocar os óculos sobre a pia, afastou a porta do enorme box e abriu a torneira. Quando a água ficou bem quente, ela entrou. De roupa e tudo.

Que maravilha! A água quente caindo sobre sua cabeça, espalhando-se sobre o corpo como uma cascata reconfortante. Léa ficou ali parada por muito tempo, deixando-se envolver pela maravilhosa sensação, sem se importar se estava gastando ou não muita água. Afinal, o caçador lhe oferecera o banho e depois de tudo que passara, ela bem merecia aquele momento de prazer.

Consciente de que após o banho teria de enfrentar a situação delicada em que se encontrava, Léa resolveu estender o banho ao máximo. Aos poucos a dormência de seus pés e mãos começou a passar e, não sem uma certa relutância, Léa tirou as roupas. Quando todas as peças já estavam empilhadas num canto do box, passou a esfregar o sabonete na pele e em seguida o xampu nos cabelos. Repetiu o processo uma, duas, três vezes, muito mais do que o necessário, como se pudesse tirar de si mais do que a sujeira, também a sensação de terror que a havia dominado no bosque.

Ao terminar o banho, a dor em seu corpo havia se transformado num enorme cansaço. Mais do que qualquer outra coisa, queria uma poltrona, um sofá ou, melhor ainda, uma cama. Porém, ainda havia muito para ser feito. Enrolando uma das toalhas nos cabelos molhados, saiu do box e começou a se enxugar. Uma dor aguda subiu por sua coxa ao tocar o ferimento. Após lavar e secar os óculos, Léa colocou-os para examinar o machucado.

Quase desejou não ter feito aquilo. O corte tinha quase oito centímetros de comprimento e era feio o suficiente para causar-lhe uma pontada no estômago só de olhá-lo. Endireitando o corpo e evitando ao máximo olhar novamente para a ferida, esticou a mão para pegar as roupas que Garrick lhe emprestara. Vestiu a camiseta cinza e, por cima, a camisa verde de flanela que lhe chegava quase aos joelhos. Então, sentando-se sobre o vaso sanitário, abriu o vidro de anti-séptico, molhou um chumaço de algodão no líquido e apertou-o firmemente no machucado.

Uma dor lancinante tomou conta dela que, soltando um grito, largou o vidro de remédio no chão.

Garrick, que se encontrava sentado junto à lareira, levantou-se imediatamente e correu para o banheiro.

Com as mãos apertando os joelhos, ela balançava o corpo para frente e para trás, esperando que a dor em sua perna diminuísse.

— Não pensei que fosse doer tanto — ela murmurou ao ver Garrick parado à porta.

Pegando o chumaço de algodão que ficara no colo de Léa, ele voltou-se para fitá-la.

— Agüente firme!

E com um movimento gentil, aplicou o que ainda restava de anti-séptico na ferida. Momentaneamente sem fôlego, Léa agarrou a perna com as duas mãos, tentando não tremer tanto.

— Pode deixar que faço isso — ela declarou, ao vê-lo pegar o material para curativo. O suor em seu rosto fizera com que os óculos escorregassem sobre o nariz e Léa os colocou no lugar.

Ignorando o comentário Garrick enrolou a gaze e colocou-a sobre o corte, prendendo-a com esparadrapo. Ao terminar, ele se abaixou, recolheu os cacos do vidro de remédio que se espatifara no chão. Levantando os olhos, fitou por instantes o rosto abatido de Léa, demorando-se um pouco mais numa das têmporas. Então, usando o que restara de anti-séptico, desinfetou os arranhões que ela mesma nem havia notado.

Garrick voltou sua atenção para o punho fechado de

Lea. Sem nem mesmo saber por que, ele abriu dedo por dedo, enquanto olhava para as marcas vermelhas que as unhas curtas haviam deixado na palma da mão. Então, com um carinho inesperado, passou um dos dedos pelas marcas avermelhadas € levantou os olhos para ela.

Lea não estava preparada para a força luminosa daqueles olhos, que pareceram penetrar dentro de sua alma, aquecendo-a e, ao mesmo tempo, assustando-a por sua intensidade.

Os olhos castanhos lhe falaram de solidão, de carência e as mãos fortes que envolveram as suas pareciam não pedir nada.

Garrick Rodenhiser não era afinal o velho e rústico caçador que ela havia imaginado. De todas as experiências novas pelas quais havia passado naquele dia, a mais inesperada era estar se sentindo atraída por ele.

Incapaz de aceitar o fato de se sentir atraída por um homem totalmente estranho, Léa abaixou o olhar. Imediatamente, Garrick soltou-lhe as mãos e ficou de pé.

— Não mexa nos cacos de vidro — ele ordenou. — Depois que você sair eu limpo tudo. — E, virando, saiu do banheiro, voltando para perto da lareira.

Ele continuava perto do fogo quando ouviu a porta do banheiro sendo aberta por Léa.

Com movimentos estudados, ele endireitou o corpo e se virou, pronto para saber os motivos que haviam trazido aquela mulher até a cabana no bosque. Não gostava de intrusos e ainda menos dos que vinham roubar-lhe a paz de espírito.

Garrick só não estava preparado para o que viu, muito menos para o que sentiu ao vê-la. Todo seu autocontrole se desvaneceu ante a visão daquela mulher da qual nada sabia, mas que o fazia tremer de desejo.

Se o desejo fosse uma manifestação apenas física, Garrick não se sentiria tão ameaçado pela presença de Léa. Necessidades físicas eram perfeitamente compreensíveis, aceitáveis até. Mas...

Não que ela fosse de uma beleza espetacular. Os cabelos negros caíam úmidos nos ombros e a franja espessa cobria as sobrancelhas. Entretanto o ar vulnerável, o modo como ela cruzara os braços sobre o peito faziam com que Garrick tivesse vontade de abraçá-la. Ele não entendia o porquê, não queria admitir, mas era isso que sentia.

— Eu lavei minhas roupas no banho — disse Léa, quebrando o silêncio. — Tem algum lugar onde eu possa pendurá-las para secar?

Garrick ficou aliviado com o tom casual da pergunta, o que lhe permitia mudar o curso de seus pensamentos.

— Acho melhor lavá-las direito na máquina — ele respondeu, apontando para a área destinada à cozinha.

Agora, com óculos limpos e secos, Léa pôde ver o que antes lhe passara despercebido. Ao lado da pia havia uma máquina de lavar e uma de secar roupas, assim como uma lavadora de louça e um forno de microondas. Cozinha e banheiros modernos e bem equipados... Garrick Rodenhiser levava uma vida rústica, mas só até certo ponto.

Após pegar as roupas no banheiro, ela as colocou na lavadora e olhou esperançosa para o café fumegante na cafeteira elétrica.

— Sirva-se. — Foi tudo o que Garrick falou. E continuou em silêncio, enquanto Léa procurava por uma xícara.

— Também quer uma xícara? — ela perguntou, depois de ter encontrado uma caneca de louça. — Não.

As mãos de Lea tremiam ao servir o café e, segurando a caneca com ambas as mãos, caminhou até a janela, procurando ver através da abertura da persiana. A chuva continuava forte e, pelo barulho que fazia no teto da cabana, era fácil adivinhar que não passaria tão cedo.

— Há alguma chance de tirarmos meu carro de lá ainda hoje?

— Não.

— Incomoda-se se eu me sentar perto do fogo?

Garrick afastou-se um pouco para o lado, cedendo-lhe espaço no velho sofá.

Léa sentiu o calor das tábuas largas que cobriam o chão sob seus pés descalços e sentando-se sobre as pernas, segurou a caneca com ambas as mãos.

As chamas que dançavam na lareira a manteriam aquecida e a salvo por aquela noite. Pela primeira vez, Léa podia ver claramente os perigos pelos quais passará e o que ainda tinha pela frente. Só poderia ficar ali aquela noite; seu carro dificilmente poderia ser consertado. O que faria, então?

Mesmo que houvesse como consertar o carro, a cabana de Vitória já não existia e, junto com ela haviam desaparecido os planos de passar algum tempo isolada nas montanhas. Bem, sempre poderia procurar outro chalé para alugar, só não sabia onde. Também poderia arrumar um quarto num hotel, porém não por muito tempo, já que não estava disposta a gastar as economias com despesas desse tipo. A última opção seria voltar... Nova York, mas Léa relutava ante tal idéia. Nunca, nem nos piores momentos de sua vida, estivera sem lugar para morar.

O sofá rangeu; era Garrick que se mexia. Com os óculos limpos, Léa podia agora ver detalhes que antes lhe haviam passado despercebidos. Também podia ver como Garrick Rodenhiser era bonito. Os ombros largos e o peito bem desenvolvido se delineavam pela malha de gola olímpica preta, enquanto que a calça de veludo escura moldava os quadris estreitos e as pernas longas. Ele usava uma barba bem aparada e, embora os cabelos de um loiro escuro fossem mais longos que o habitual, tinham uma aparência limpa e bem tratada.

O nariz reto e os lábios finos ressaltavam a masculinidade daquele homem, porém eram os olhos castanhos-claros que pareciam concentrar toda sua força interior; olhos repletos de perguntas ainda não formuladas e pensamentos nunca revelados.

Léa custava a acreditar que ele fosse um caçador. Garrick simplesmente não se encaixava no papel. Primeiro, havia todos aqueles aparelhos domésticos, que revelavam uma certa sofisticação. Depois, a maneira como falava, embora raramente o fizesse, demonstrava que vinha de outro mundo. E os olhos... ah, os olhos, eram experientes, cínicos, inquisitivos.

Léa ficou imaginando de onde ele teria vindo e o que o levara até lá; o que pensava sobre sua chegada inesperada e que tipo de homem seria no que dizia respeito às mulheres.

Garrick, por sua vez, tinha pensamentos bastante parecidos com os de Léa. Em seus quarenta anos de vida já tivera mais mulheres do que podia se lembrar e a maior parte do tempo importara-se mais com a quantidade do Que com a qualidade das mulheres com as quais se relacionara. Ele usara e se deixara usar até que a habilidade sexual da qual antes tanto se orgulhara, passara a ser um ato mecânico, vazio, que se refletira em outros aspectos de sua vida.

Tudo, entretanto, terminara havia quatro anos. Nos primeiros tempos ali em New Hampshire se mantivera longe das mulheres; seu único objetivo era forjar sua existência como a de um verdadeiro ser humano.

Dia a dia acomodara-se à nova vida. Ocasionalmente, então, tivera uma mulher, mais para provar a si mesmo que continuava sendo um homem normal do que por necessidade. Raramente saíra duas vezes com a mesma garota e nunca levara uma à sua casa.

Léa era a primeira, e Garrick não a havia convidado. Na verdade, queria que ela se fosse o mais rápido possível, mesmo sentindo, ao vê-la sentada olhando o fogo, bebericando o café, apertando os braços contra o corpo como para se proteger, uma necessidade premente de contato humano.

Pensou se já teria alcançado um novo estágio na vida, se já estava bem consigo mesmo, pronto a compartilhar nas experiências com alguém mais.

Compartilhar... Precisava aprender a compartilhar. Ele l se acostumara a fazer o que queria e quando queria. Não estava certo de sua capacidade em mudar tal aspecto de sua personalidade ou se preferia até continuar como sempre fora.

Só não havia como negar aquela vozinha interior que gritava dentro dele, quando olhava para Léa...

— Qual é seu nome? — ele perguntou.

A voz profunda e inesperada fez com que ela desse; um pulo no sofá.

— Léa Gates.

— É amiga de Vitória?

— Sou.

Garrick voltou os olhos para o fogo. Só quando Lea desviou o olhar, certa de que ele não lhe faria mais nenhuma pergunta, é que voltou a analisá-la.

Léa Gates, amiga de Vitória. Ele podia pensar em uma dezena de possibilidades, embora nenhuma delas o agradasse. Podia mesmo ser uma amiga, ou melhor, uma conhecida de Vitória que de algum modo ficara sabendo sobre ele e decidira, sabe-se lá por que, encontrá-lo. Ou então, poderia estar mentindo, usando o nome de Vitória para conseguir saber o que até aquele momento ninguém descobrira. Ou, quem sabe, ela dizia a verdade, o que significava ter de descobrir o que Vitória teria em mente ao lhe mandar uma mulher.

Apenas dois fatos pareciam claros: os dois estavam presos naquela cabana e ela passara por maus bocados para chegar até ali. Mesmo sentada ante o fogo, Léa não parava de tremer.

Garrick se levantou e foi pegar um cobertor que ficava dobrado sobre a cama. Depois, abriu-o e colocou-o em volta dos ombros de Léa em silêncio. Ela agradeceu em voz baixa, puxando a coberta em torno do pescoço.

Desta vez, ao sentar-se novamente no sofá, Garrick o fez com um vago sentimento de satisfação. Nunca fora homem de dar, de oferecer. Sua vida tinha sido tão repleta de egoísmo e pouca atenção à opinião alheia que ali, um gesto simples como o de oferecer agasalho a alguém, lhe agradava de modo interessante... encorajador... intrigante.

As horas se passaram e o único barulho que se ouvia era o da chuva batendo no telhado, fora o crepitar do fogo na lareira. De vez em quando, Garrick colocava mais lenha e atiçava o fogo. Léa foi se acomodando no sofá e, depois de um tempo, pela respiração profunda e os dedos segurando mais frouxamente o cobertor, Garrick percebeu que ela havia adormecido.

Vendo-a dormir, ele voltou a sentir necessidade de abraçar e ser abraçado, de protegê-la. Sua mente fértil imaginava-a como sendo uma pessoa sem laços ligando-a ao passado, sem planos para o futuro, cuja única necessidade fosse um pouco de calor humano. Era um sonho, é claro, mas refletia bem tudo o que ele tentara esconder de si mesmo até aquela noite. Tais pensamentos indicavam que na vida que ele tão bem moldara para si mesmo, faltava algo. Algo forte e estranhamente poderoso.

Garrick levantou-se e ficou olhando para o rosto de Léa semi-oculto pelo cobertor; descobriu-o e analisou-lhe as feições iluminadas apenas pelo fogo já quase extinto da lareira. Parecia tão inocente que, por um momento, desejou que isso fosse verdade.

Incapaz de controlar-se, Garrick passou de leve a mão pelo rosto delicado, sentindo sob os dedos a pele macia e morna, devido ao calor da sala. Os cabelos, já secos, eram negros e espessos e a franja comprida deixava o rosto ainda mais delicado. Ela não era linda, nem sexy, porém havia ali uma beleza que não podia negar. Se pelo menos fosse tão inocente quanto aparentava...

No entanto, não faria mal nenhum acreditar nisso por uma noite...

Com cuidado, para não acordá-la, pegou-a no colo, com cobertor e tudo, e a carregou até a cama. Depois de acomodá-la, Garrick deu a volta, despiu-se e enfiou-se embaixo das cobertas.

Deitado de costas, voltou a cabeça para o lado de Léa, embora não pudesse ver mais do que algumas mechas; de cabelo. Não possuía um corpo cheio de curvas, isso

ficara óbvio sob as roupas molhadas; também não era pesada, ele notara ao carregá-la no colo. Porém, mesmo inteiramente coberta de lama sentira-se desesperadamente atraído por ela.

Olhos fixos na escuridão, Garrick ajeitou-se na cama uma, duas vezes, cada vez chegando um pouco mais para perto dela. E, na escuridão, onde ninguém poderia vê-lo, sorriu e adormeceu em seguida.

Léa acordou na manhã seguinte sentindo o aroma de café fresco e bacon frito. Ainda de olhos fechados, ficou imaginando quem estaria em seu apartamento fazendo o café da manhã. Só então lembrou-se do que lhe acontecera no dia anterior, e abriu os olhos. A última coisa de que se lembrava era de ter adormecido no sofá. No entanto estava na cama, e havia apenas uma cama na cabana de Garrick.

Garrick. Ela passou os olhos pela cabana, encontrando uma forma humana perto do fogão. Segundos depois, já de óculos, identificou-a como sendo Garrick.

Sentindo cada músculo dolorido de seu corpo, Léa livrou-se das cobertas, ficou de pé e seguiu para o banheiro. Lá, depois de se lavar e pentear os cabelos, pensou seriamente em voltar para a cama. O corpo todo lhe doía e, pelo barulho no telhado, a chuva continuava a cair. Sair na chuva, mesmo durante a luz do dia, era a última coisa que desejava fazer.

Porém, não poderia voltar para a cama. Primeiro, porque a cama não lhe pertencia; segundo, porque Garrick Já a vira levantar-se e, por último, porque precisava tomar decisões.

Ao sair do banheiro, viu que ele já servira os dois pratos que havia sobre a mesa.

— Sente-se — falou, sem demonstrar compaixão pelo rosto pálido e os movimentos hesitantes dela. Não importavam as fantasias da noite anterior. O dia chegara e ele queria algumas explicações.

Léa sentou-se e passou a devorar os ovos mexidos, juntamente com quatro fatias de bacon, dois pãezinhos doces, um copo grande de suco de laranja e uma xícara de café. Estava se servindo da segunda xícara, quando percebeu que talvez houvesse abusado da hospitalidade de Garrick, ao comer daquela maneira.

— Desculpe — murmurou, olhando-o por cima da a borda da xícara. — Acho que eu estava mesmo com fome.

— Não jantou ontem à noite?

— Não. — Já deviam ser mais de oito horas quando ela batera na porta de Garrick e, depois, nem pensara em comer, só em tirar aquelas roupas molhadas e«se aquecer. Ao lembrar-se das roupas, Léa se levantou — Esqueci minhas roupas na lavadora...

— Já estão secas. Eu as coloquei na secadora quando acordei. Acho que não devia ter colocado o casaco de cashemere.

Era estranho pensar num estranho pondo suas roupas para secar, sua roupa de baixo... Pior, ele a carregara para a cama e haviam dormido juntos. Claro que na noite anterior não percebera nada, mas ali, à luz do dia não havia como ficar indiferente à potente masculinidade que ele transmitia. Garrick projetava uma imagem rude e ao mesmo tempo civilizada. Recém-saído do banho, com os cabelos ainda úmidos, de camisa verde calça de veludo marrom, ele estava lindo.

— O cashemere deve ter estragado muito antes de ter sido posto na lavadora — Léa comentou, voltando, então, os olhos em direção à janela. — Quanto tempo acha que ainda vai durar a chuva?

— Vários dias.

Léa encarou-o de olhos arregalados e tentou rir.

— Que boa notícia! — Ao ver que ele não ria da piada, deixou morrer o sorriso que tinha nos lábios. — Você não está falando sério, não é?

— Estou.

— Mas preciso pegar meu carro.

— Onde o deixou?

— Perto do chalé de Vitória.

— Por quê?

— Por que preciso do carro?

— Não, por que está na porta do chalé de Vitória?

— Porque eu aluguei o chalé e só quando cheguei lá é que vi... — ela interrompeu a frase devido ao modo provocativo como Garrick a olhava. Isso combinava com a maneira como ele estava sentado, recostado na cadeira, uma das mãos sobre a perna e a outra brincando divertido com a caneca de café.

— Quando abri a porta ontem à noite, você me disse que Vitória a havia mandado.

— É verdade.

— E o que queria dizer com isso?

As palavras de Léa saíam aos tropeços, devido ao nervosismo que começava a sentir.

— Vitória me disse para procurá-lo se eu tivesse algum problema. Acho que a cabana destruída pelo fogo e meu carro atolado é o que se pode chamar de problema, não? Agora terei de procurar outro lugar para ficar, porque meu apartamento...

— Vitória a mandou para o chalé? — ele perguntou, medindo bem as palavras.

Léa não gostou do tom de voz de Garrick.

— Por quê? Há algum problema nisto?

— Sim.

— Qual?

— O chalé de Vitória pegou fogo há três meses.

Por um minuto, Léa permaneceu em silêncio, então perguntou.

— O que disse?

— O chalé pegou fogo três meses atrás.

— Não pode ser.

— Mas é.

Se fosse há três dias, Léa poderia compreender. Três semanas, até que poderia ser aceitável, afinal ninguém vivia no chalé. Mas três meses? Com certeza alguém devia ter avisado a proprietária há algum tempo.

— Está me dizendo que houve um incêndio três meses atrás e ninguém avisou Vitória?

— Estou apenas lhe dizendo que o chalé não existe há três meses.

— E por que não contaram a Vitória? — ela indagou, impaciente.

— Contaram. A raiva de Léa cresceu. —Não acredito. Garrick a encarava com expressão de frieza.

— Eu mesmo telefonei a ela, e mostrei a cabana para o pessoal do seguro.

— Vamos telefonar agora mesmo para confirmar.

— Não tenho telefone. Léa não podia acreditar. Afinal, com todos os eletrodomésticos que ele possuía... Foi então que lembrou-se de Vitória dizendo que também não tinha aparelho telefônico. Meu Deus, como ela faria o que fez, sabendo que não havia mais cabana alguma?

— Vitória não sabia do incêndio! — ela exclamou.

— Sabia.

— Você está mentindo.

— Eu não minto.

— Você tem de estar mentindo! — Léa falou com a voz alterada. — Porque, se não estiver, isso significa que Vitória me mandou para cá sabendo muito bem que eu não teria onde ficar. E isso é absurdo!

A xícara começou a tremer nas mãos de Léa, e ela a colocou sobre a mesa, apertando os braços em volta do corpo, num gesto que Garrick já notara na noite anterior.

Ele ficou em silêncio, simplesmente estudando a confusão espelhada nos olhos dela.

— Vitória não faria uma coisa dessas — Léa murmurou, querendo acreditar nas próprias palavras. — Há quase um mês que vem fazendo planos comigo para esta viagem. Mandei minha mobília para um depósito, notifiquei a companhia elétrica, a telefônica, meus amigos. Ela mesma me entregou instruções datilografadas, ensinando-me a chegar no chalé... Chegou a relê-las a meu lado. Não teria tido todo esse trabalho, nem me faria passar por tudo isso, se soubesse do incêndio.

Garrick também achava difícil de acreditar, mas era a história de Léa que o tornava cético. A moça parecia confusa, mas talvez também fizesse parte da encenação. Bem, se fora atrás dele, havia conseguido encontrá-lo. Estava em seu chalé, vestindo suas roupas, comendo sua comida. Passara até a noite em sua cama, embora inocentemente. Se o que queria era bisbilhotar Greg Reynolds, estava conseguindo.

— Quem é você? — ele perguntou abruptamente. Ela levantou a cabeça.

— Já lhe disse: Léa Gates.

— De onde veio?

— De Nova York.

— Suponho que trabalhe num jornal, não é? — comentou, esperando por uma negativa imediata.

— Como adivinhou? — ela perguntou, e observou confusa a expressão enraivecida e os lábios de Garrick apertados sob a barba. — Você já viu meu nome no jornal?

Bem, se ele fosse um aficionado por palavras cruzadas saberia muito bem de quem se tratava. Léa sempre encontrava admiradores de seu trabalho, fosse onde fosse.

— Não leio jornais — ele declarou.

— Então, tem um de meus livros?

— Ah, você também escreve livros? —resmungou, agressivo, deixando Léa ainda mais atônita.

— Eu faço palavras cruzadas para um pequeno jornal semanal, mas tenho também vários livretos publicados.

Palavras cruzadas? Era provável, mas mesmo assim ela podia ser uma repórter...

— Por que veio para cá? — perguntou Garrick.

— Porque perdi meu apartamento e, como não tinha para onde ir, Vitória sugeriu que eu alugasse o chalé até resolver onde ficar de vez. Na hora me pareceu uma boa idéia — sussurrou, abaixando o olhar para a mesa.

Garrick não fez nenhum comentário. No silêncio que se seguiu, Léa relembrou os últimos minutos de conversa. Depois, voltou a encará-lo.

— Você não acredita no que estou dizendo. Por quê? Garrick não esperava tal franqueza e, ao vê-la tão confiante e vulnerável, ficou confuso. Não podia dizer-lhe a verdade. Após quatro anos escondendo a verdadeira identidade, não desejava contar tudo a uma estranha. Levantando um ombro displicentemente, ele comentou:

— Não é comum uma mulher vir morar sozinha por aqui. Veio sozinha, não é?

— Sim — Léa respondeu após uma breve hesitação.

Deus do céu, será que havia um fotógrafo junto com ela?

— Tem certeza?

— Claro!

— Então, por que hesitou antes de responder?

Os olhos dela faiscaram. Não estava acostumada a ser interrogada daquele jeito.

— Quando você passa a vida inteira numa cidade como Nova York, aprende a pensar duas vezes antes de dar certas informações a um homem. É instinto. Vitória me disse que vocês eram amigos, e eu acreditei. Até me pediu que lhe entregasse uma carta.

Garrick esticou a mão sobre a mesa e o leve sorriso em seus lábios só fez aumentar a atitude defensiva de Léa.

— Se a tivesse aqui comigo, já lhe teria entregue. Porém, está em meu carro, junto com minha bolsa e tudo o mais que possuo neste mundo.

— A não ser seus móveis — ele emendou, voltando a por a mão sobre a perna.

— Isso mesmo.

— E você não pode ir até seu carro. Talvez não possa sair daqui por vários dias.

Léa balançou a cabeça, tentando afastar aquela idéia. Não que ele fosse repulsivo, ao contrário. No entanto, enquanto havia nele um lado gentil e agradável, havia outro, cínico, que a assustava.

— Mais tarde tentarei chegar ao carro.

— A não ser que a chuva passe, não vai a lugar algum.

— Tenho de ir.

— Como?

— Do mesmo jeito que vim para cá. Se não quer me levar de carro, então vou andando.

— Não é que eu não queira, Léa — ele falou, chamando-a pelo nome pela primeira vez. — Eu não posso. Você chegou em plena estação de chuvas. Há lama por toda parte. Nenhum veículo conseguiria passar por essas estradas. — Levantando as sobrancelhas ele a estudou, enquanto cocava a barba. — Me diga, que tal foi dirigir até o chalé ontem à noite?

— Um inferno.

— E andar até aqui?

O olhar que Léa lançou, falava por si só.

— Bem, o tempo está ruim hoje, e ficará pior a cada dia. Nesta época do ano a neve das montanhas derrete e vem direto para cá. Quando a chuva começa, então pode esquecer.

Mas Léa não estava disposta a esquecer.

— E se fôssemos a pé até o carro? Eu...

— Deixe-Me dizer-lhe uma coisa — ele a interrompeu. — Nem um trator resolveria seu problema. Já vi veículos desse tipo mais atolados do que carros de passeio.

— Mesmo assim vale a pena tentar.

— Não vale.

— Vitória disse que você me ajudaria!

— Estou ajudando. Eu lhe ofereço um lugar par ficar.

— Não posso ficar aqui!

— Não tem muita escolha, tem?

— Não pode estar querendo que eu fique!

— E eu, por acaso, tenho escolha?

Com um gemido, Léa se levantou e caminhou até a janela. Ele estava certo; nenhum dos dois tinha escolha. Ela poderia sair na chuva e chegar até o carro, mas, e depois? Com certeza mais tarde estaria batendo de novo na porta de Garrick, molhada, cheia de lama, exausta e humilhada.

Não era nada disso que pensara que fosse acontecer ao deixar Nova York!

 

O barulho de panelas trouxe Léa de volta de seu devaneio. Garrick já havia colocado a louça para lavar na máquina e agora lavava as panelas. Ela pegou um pano de prato e começou a ajudá-lo.

Trabalharam em silêncio até que, terminada a tarefa, Léa estendeu o pano sobre o fogão e virou-se para Garrick.

— Me desculpe — disse sem olhá-lo nos olhos — Deve estar me achando uma ingrata, mas não sou. Agradeço tudo o que está fazendo por mim. — Fez uma pausa, medindo bem as palavras antes de prosseguir: — Só não é bem o que eu havia planejado.

— E o que havia planejado?

— Sol e ar fresco; um chalé só para mim. Trabalho, leitura e passeios pelo bosque... Meu Deus, esqueci da comida que ficou no carro! Vai estragar tudo, se não colocarmos na geladeira.

— Está bastante frio lá fora.

— O suficiente para conservar a comida?

— Depende do que tiver comprado.

Não havia motivo para fazer um relatório acerca das compras. Com um suspiro, Léa deu de ombros. Não havia mesmo como chegar até o carro com aquela chuva, então, não adiantava ficar se preocupando.

— Sabe — ela prosseguiu — é a primeira vez que resolvo sair de Nova York, e as coisas deram tão errado... Ainda não consegui entender por que Vitória me ofereceu o chalé.

Garrick estava começando a desconfiar de um motivo. Seguiu até a sala e sentou-se no sofá, que pareceu ranger em protesto. Léa permaneceu na cozinha, esperando que ele falasse alguma coisa. Garrick, no entanto, parecia bastante aborrecido. E com razão. Nenhum homem que houvesse escolhido viver sozinho nas montanhas merecia ter sua privacidade invadida daquele modo.

Estudando as feições carrancudas e o corpo másculo no sofá, Léa ficou imaginando por que teria escolhido aquela vida de ermitão. Ele não era de falar muito, mas Léa também não, e mesmo assim vivia muito bem na cidade. Pela maneira polida como ele se expressava e as comodidades que possuía na cabana, era de se imaginar que anteriormente ele vivera numa cidade. No entanto, não podia acreditar que um problema como o dela o houvesse levado para cá. Garrick parecia ter optado por aquele tipo de vida.

Aproveitando a distração dele, Léa resolveu examinar melhor a cabana. Era uma sala grande, ocupada pela lareira de um lado e a cama de casal, de outro; a cozinha ficava na parte dos fundos, e além do banheiro só havia um closet. Do lado da porta de entrada havia duas janelas grandes e, completando a mobília encontravam-se estantes repletas de livros.

Isso explicava, em parte, o que Garrick Rodenhiser fazia em seu tempo livre. Naquele momento, porém, fitava as cinzas na lareira e seu semblante espelhava algo indefinido. Solidão? Tristeza? Confusão?

Com um aperto no coração, Léa olhou para a cama, ainda desarrumada. Então cruzou a sala, esticou os lençóis, a colcha e dobrou os cobertores.

O que mais poderia fazer? Tudo estava limpo, arrumado, bem organizado. Sem saber o que fazer, ela caminhou até a janela. O bosque continuava parcialmente coberto pela bruma, inundado pela chuva que insistia ©m cair. A paisagem desolada aumentou ainda mais o estranho vazio que sentia dentro de si.

A voz de Garrick a trouxe de volta ao mundo real.

— Qual é exatamente sua ligação com Vitória?

— Somos amigas — respondeu, voltando-se para encará-la.

— Sei... quando é que se conheceram?

— O ano passado.

— Onde?

— Na biblioteca pública. Vitória procurava algo sobre os aborígenes da Nova Zelândia. Nós literalmente demos de encontro uma com a outra.

A expressão carrancuda de Garrick transformou-se num leve sorriso.

— Os aborígenes da Nova Zelândia — ele repetiu. — É bem coisa de Vitória. Ela está estudando antropologia?

— Não exatamente — Léa respondeu, esforçando-se para falar pois, a visão do sorriso de Garrick, dos lábios se curvando entre a barba e o bigode, os dentes brancos e bem feitos, momentaneamente haviam absorvido seus pensamentos — Ela estava... hã... fascinada por um artigo que tinha lido sobre os maori, e planejava uma viagem até lá quando nos conhecemos.

— E ela foi?

— O que você acha? — Léa retrucou.

Garrick achava que sim, mas voltou o pensamento para o assunto que lhe interessava.

— E você, o que fazia na biblioteca?

— Gosto de trabalhar lá, às vezes vou a procura de palavras, você sabe que faço palavras cruzadas, mas de vez em quando vou apenas para passear.

— Então, vocês duas se tornaram amigas. Quantos anos você tem, Léa?

— Trinta e três. Garrick sorriu, surpreso.

— Eu lhe daria vinte e oito ou vinte e nove. — Ele tornou a ficar sério. — Mas, mesmo tendo trinta e três, a diferença entre vocês duas é bem grande, não acha?

— De jeito nenhum — Léa respondeu com veemência. — Isso é o que há de tão fascinante em Vitória. Ela é... amarantácea.

— Amarantácea?

— É, como uma sempre-viva, indelével, sem idade. Sua certidão de nascimento pode indicar cinqüenta e três anos, porém ela tem corpo de quarenta, a cabeça de trinta, o entusiasmo de vinte e o coração de uma criança.

A descrição é a mesma que Garrick faria da amiga, embora não fosse capaz de se expressar tão bem. No auge de sua carreira era capaz de dizer as falas exatamente como o diretor queria. Mas nem toda a arrogância do mundo, e ele a tivera de sobra, lhe fizera supor que um dia seria capaz de escrever um roteiro.

Pelo jeito Léa conhecia mesmo Vitória. No entanto, o resto da história podia ser mentira. Podia ter resolvido arriscar-se a fim de encontrar e entrevistar o homem que fora um dia o sonho de cada mulher americana entre dezesseis e sessenta anos. Cada mulher que via televisão. Será que Léa assistia também? Mesmo que fosse inocente, não o reconheceria?

Voltando os olhos para a lareira, Garrick continuou em silêncio, relembrando o quanto vivera assustado nos primeiros tempos em New Hampshire. Cada vez que tinha de ir à vila para comprar suprimentos, abaixava o rosto, evitava encarar as pessoas. Parecia estar sempre esperando que o reconhecessem, que fossem lhe pedir um autógrafo.

Na verdade, sabia estar bem diferente do homem que invadia ás telas dos televisores uma vez por semana, durante sete anos seguidos. Os cabelos estavam mais compridos, praticamente sem corte, e naqueles dias já não tentava mais descobrir os fios brancos que, anteriormente fazia questão de tingir.

A barba também fizera diferença, porém, nos primeiros tempos, tinha medo de que alguém pudesse ver além dos fios castanhos, o maxilar resoluto de que as revistas tanto falavam. Usava as roupas mais simples e velhas que possuía e, acima de qualquer outra coisa, contava com a quase total impossibilidade de alguém imaginar que um grande astro da televisão estivesse vivendo sozinho num lugarejo perto do fim do mundo.

O tempo havia passado e, como nunca alguém o reconhecera, Garrick tornou-se mais confiante. Passou a olhar as pessoas de frente, a andar de cabeça erguida.

Ele sabia que aquele não era o único motivo pelo qual não abaixava mais a cabeça. Sentia-se melhor a respeito de si mesmo. Estava aprendendo a viver junto à natureza, a respeitar as outras pessoas, a ter uma vida simples e despretensiosa, como um verdadeiro ser humano.

— Deve ter conhecido bem Vitória nesse ano de convivência. Passavam muito tempo juntas?

— Sim.

— Socialmente?

— Se está querendo saber se eu freqüentava as festas dela, a resposta é não.

— Você é casada?

— Não.

— Já foi? — indagou, curioso.

— Sim.

— Divorciada?

Léa fez um sinal afirmativo.

— Recentemente?

— Dois anos.

— Tem namorado?

— E você, tem namorada? — ela replicou.

— Quem está fazendo as perguntas sou eu.

— Isso é óbvio, porém eu gostaria de saber o porquê disso. Estou me sentindo como se estivesse num tribunal.

A voz de Léa soou magoada, e Garrick surpreendeu-se por estar sentindo remorsos. Mas estava perto de obter uma resposta e precisava continuar. Suavizando o tom de voz, ele declarou:

— Acredite-me, tenho razões para todo esse interrogatório.

— Eu sei, a razão exata é fazer com que eu dê meia-volta e vá embora. Olhe, eu iria, se pudesse. Sei que não gosta de ter uma estranha em sua casa e eu não sou exatamente uma estranha, sou uma refugiada e... — A voz de Léa foi abaixando de tom, enquanto ela passava os olhos pela sala. — Onde tem papel e lápis?

— O quê? — Garrick perguntou, sem entender o que ela pretendia.

— Se não escrever agora acabarei esquecendo.

— Esquecendo?

— A idéia: estranha, refugiada, invasora. É perfeito como tema de palavras cruzadas. Onde tem papel e lápis?

Divertido, Garrick fez um movimento de cabeça em direção à cozinha.

— Segunda gaveta à esquerda da pia.

Em segundos, Léa escrevia as palavras que havia dito a ele, acrescentando várias outras que lhe vinham à mente. Após arrancar a folha, ela a dobrou, e colocou no bolso. Guardou, então o lápis e o bloco de papel de volta na gaveta e sorriu para Garrick.

— Onde é mesmo que estávamos?

Ele nem mesmo tentou reprimir a sensação gostosa que o sorriso de Léa provocou em seu peito.

— Costuma fazer sempre isso? — perguntou.

— Escrever as idéias? Sim.

— Você escreve mesmo palavras cruzadas?

— Você também não acreditou nisso, não é? Garrick moveu a cabeça para o lado, e Léa não entendeu se aquilo significava sim ou não.

— Nunca pensei que alguém fizesse disso uma profissão.

— Alguém tem de escrevê-las, não acha?

Ele considerou a pergunta por alguns instantes, então declarou simplesmente:

— É verdade. — E voltou a ficar em silêncio.

Sem saber quanto tempo ficaria calado daquela vez, ela foi até uma das estantes. Havia ali um número enorme de livros, em sua maioria ficção, com títulos que haviam estado entre os mais vendidos nos últimos anos. Todos pareciam bastante manuseados e quase todos eram edições de luxo. Garrick não só lera todos aqueles exemplares, como comprara as edições de capa-dura, sem esperar pelas publicações mais baratas que saíam algum tempo depois.

Aquele não era um homem que passava necessidade e Léa ficou imaginando de onde provinha o dinheiro.

— Deve ser difícil — ouviu-o dizendo — encontrar as palavras certas, que combinem, arranjar as pistas...

Léa levou alguns segundos para perceber que Garrick falava sobre as palavras cruzadas. Não pôde conter um sorriso. Ele falava as coisas entremeando longos silêncios, mas seus pensamentos pareciam obedecer uma seqüência lógica.

— É um desafio — Léa admitiu.

— Eu nunca conseguiria fazer isso.

— Então, estamos quites. Eu nunca conseguiria caçar animais, preparar armadilhas.

— Foi isso que Vitória lhe disse?

— Falou que você era caçador.

— E o que mais ela falou? — Garrick perguntou, meio na defensiva.

— Só isso; que era um amigo e que eu podia confiar em você. Para falar a verdade, eu esperava alguém bem... diferente.

Ele levantou as sobrancelhas.

— Mais velho. Acabado — Léa ficou vermelha, e voltou o rosto em direção à janela. — Quando Vitória me entregou o envelope, perguntei se era uma carta de amor.

— E como soube que não era?

Bem, tinha de admitir a si mesma que ainda não sabia. Lembrou-se de Vitória dizendo que caçadores também podiam ser interessantes, porém nunca esclarecera direito aquela questão. Léa arregalou os olhos por atrás das lentes dos óculos.

Para surpresa sua, Garrick começou a rir.

— Eu e Vitória somos apenas amigos. — Garrick ficou sério, passando os nós dos dedos pelo bigode. Léa Já esperava por mais um longo silêncio, quando ele completou: — Pelo menos até agora.

— O que quer dizer?

Ele deu um suspiro, abaixando a mão.

— O fato de Vitória ter mandado você aqui. Está me parecendo um ato deliberado.

Léa procurou algo em sua expressão que denotasse o que lhe vinha em mente.

— Continue — pediu.

— Você falou que não costumava freqüentar as festas de Vitória. Então, quando é que se encontravam?

— Sempre saíamos para jantar juntas.

— Com homens?

— Não, sozinhas.

— Ela comentava acerca de amigos homens?

— Não. Olhe, sei o quanto amou o marido e que não tem intenção de voltar a se casar. Porém, sei também que, se precisar de companhia masculina, haverá sempre alguém disposto.

— E você? Costuma sair muito com homens?

— Não; a não ser que não tenha como evitar — respondeu como se não quisesse mais tocar no assunto.

Garrick não se deixou intimidar, pois estava perto de seu objetivo.

— É o que Vitória costumava dizer sobre isso?

— Vitória está sempre tentando me fazer mudar de idéia; fica me apresentando a vários homens e eu procurando fugir desses encontros forçados.

Garrick meneou a cabeça, pressionou os lábios e deixou-se escorregar um pouco mais sobre o sofá. Ficou por vários minutos perdido nos próprios pensamentos. Soltou um ou dois suspiros, então declarou:

— Era disso que eu tinha medo.

— O que quer dizer?

— Ela já me aprontou a mesma coisa várias vezes.

— Aprontou o quê?

— Tentou me arranjar uma mulher. — Garrick levantou as mãos para o céu. — Graças a Deus, aqui nas montanhas fica mais difícil, mas pelo jeito não foi o bastante para impedi-la de continuar. Vitória está convencida de que qualquer pessoa que não tiver experimentado o tipo de amor que ela e o marido compartilharam, não está realmente vivendo. — Procurou Léa com o olhar, e hesitou antes de perguntar: — Entende o que quero dizer?

— Vitória fez de propósito! — exclamou horrorizada.

— Pelo jeito...

— Não me contou sobre o incêndio, mas falou de você.

— Certo.

Léa fechou os olhos, procurando combater a raiva crescente.

— E pensar que ela disse que não queria receber aluguel adiantado, que era melhor eu ver primeiro o chalé.

— Muito honesto da parte dela...

— E, quando eu perguntei se a cabana era bem equipada, ela respondeu: "Da última vez que estive lá, sim".

— A pura verdade.

— Não admira que ela fosse tão evasiva.

— Vitória? Evasiva?

— Estranho, não é? Mas estava mesmo evasiva. Rapaz, como não percebi? Era culpa, pura culpa. E teve a coragem de me lembrar que não teria ar-condicionado, nem telefone. Aquela cobra... — Soltando um suspiro, Léa cruzou os braços e deu as costas a Garrick.

Por um momento, ele chegou a pensar se Léa estaria dizendo a verdade. Se andasse de um lado para o outro, gritando pela casa, teria certeza de que ela representava um papel muito bem ensaiado.

Porém, pelo contrário, a única mostra de sua raiva era a respiração acelerada e a postura rígida.

Estranhamente, a raiva de Garrick era bem menor do que poderia supor numa situação como aquela. Se houvesse sabido dos planos de Vitória com antecedência, ficaria furioso. Mas não o soubera, e, naquele momento Léa já estava ali, com toda angústia contida tocando-lhe o coração.

E ali, sob seus olhos, ele viu a angústia se transformar em mortificação. Enrubescida, Léa o olhou sobre os ombros.

— Desculpe, Vitória não tinha o direito de me empurrar para você.

— Mas a culpa não foi sua...

Sem saber como reagir ao tom amigável da voz de Garrick, Léa voltou a atenção para a estante de livros. Foi então que tomou consciência real da situação em que ; estava metida. Ela e Garrick haviam sido jogados, contra a vontade, numa situação embaraçosa, que Vitória classificava de romântica. Mas, se a amiga esperava por amor à primeira vista, ficaria desapontada. Léa não acreditava em amor à primeira vista, nem tinha muita certeza se acreditava no amor, desde que ele até aquele momento só lhe trouxera dor e amargura. Mas o caso era outro: não conhecia Garrick Rodenhiser e ficar fantasiando sobre amor era totalmente fora de propósito.

Atração à primeira vista, isso, talvez, pudesse ser considerado. Não negaria que se sentia atraída fisicamente por Garrick. Seu rosto, a barba, os ombros largos... teria de ser cega para não ver a masculinidade que ele exalava, e estar morta para não responder a, esse apelo.

— Eu não queria que isto acontecesse — sussurrou, quase que para si mesma.

— Eu sei — respondeu Garrick baixinho.

— Eu me sinto... bem, você deve estar... humilhado.

— Um pouco embaraçado, só isso.

— E eu aqui, usando suas roupas...

— Pode vestir as suas, se quiser.

Era, a coisa mais certa a ser feita. Talvez quando estivesse de novo usando as próprias roupas se sentisse menos vulnerável, menos exposta...

Cruzando a sala, Léa foi buscar suas coisas na secadora. A malha de lã, entretanto, permanecia úmida.

— Tome — Garrick surgiu às suas costas, com uma de suas blusas. — Limpo e seco.

Léa aceitou, agradecendo baixinho, e escapou para o banheiro. Garrick acendia a lareira quando ela voltou e só então Léa notou que, apesar da lareira estar apagada desde a noite anterior, a cabana continuava aquecida.

— Como faz com a eletricidade e o aquecimento? — ela indagou, aproximando-se do sofá.

Ele terminou o que estava fazendo e pegou um fósforo.

— Tenho um gerador.

— E quanto à comida? Já que não há como sair com um tempo desses...

— Enchi a despensa na semana passada. — Sentado sobre os calcanhares, ele ficou observando as, chamas crescerem. — Qualquer um que já tenha passado por uma estação de chuvas nestas paragens, sabe como agir e estar preparado. O congelador e os armários estão repletos. Receio, apenas, que tenhamos comido o último pedaço de bacon esta manhã.

"Ele teria mais para amanhã, se não houvesse dividido comigo", Léa pensou, mantendo para si os pensamentos cheios de culpa; afinal, não havia nada mais inconveniente do que uma pessoa que estava sempre se desculpando.

Garrick se levantou, olhando-a de frente, e no mesmo instante desejou não tê-lo feito. Léa usava a malha de lã emprestada que mais parecia um vestido para ela. Então, Léa, enrolara as mangas até um ponto razoável, mas o modo como a roupa lhe moldava os seios, evidenciando os ombros bem-feitos era muito mais sugestivo do que Garrick poderia ter imaginado. Léa estava adorável. Inseguramente adorável.

Ele fez um gesto em direção ao sofá. Agarrando-se a uma almofada, Léa sentou-se sobre as pernas. Foi então que Garrick se lembrou da ferida na perna dela.

— Como está sua perna?

— Igual.

— Você trocou o curativo?

— Não.

— Olhou embaixo da gaze?

— Eu saberia, se houvesse piorado. Está normal.

Ou Léa estava querendo bancar a forte, ou o machucado realmente não a incomodava. Garrick queria descobrir qual era a verdade. Ele inclinou o corpo e afastou a gaze.

— Está tudo bem. Verdade — ela afirmou. Mas ele já tirara o curativo.

— Não parece assim tão bem — E, com cautela, passou o dedo sobre a pele inchada ao redor, provocando um gemido abafado da parte dela.— O melhor seria ter dados alguns pontos, mas o hospital mais próximo fica a uns noventa quilômetros. Jamais conseguiríamos sair das montanhas.

— Logo vai ficar bom...

— Só que lhe deixará uma cicatriz.

— Uma cicatriz a mais ou a menos... Seus olhos se encontraram.

— Você tem outras?

"Oh, sim, mas não é visível a olho nu", ela pensou.

Mas em voz alta disse:

— Tirei meu apêndice quando tinha doze anos. Garrick a encarou e o que viu foi dor e solidão. Ela piscou, como se tentasse afastar aqueles sentimentos, porém de nada adiantou.

Garrick viu, sentiu o que se passava. Queria fazer-lhe perguntas, confessar-se com Léa, dividir a dor, suavizar o sofrimento que via nos olhos negros. Queria tocá-la.

Mas em vez disso, ele se levantou, voltando alguns instantes depois com pomada, gaze e esparadrapo. Depois de haver refeito o curativo como desejava, guardou tudo de novo no armário, vestiu uma capa, botas e saiu na chuva.

Léa ficou olhando, incapaz de compreender o que acontecia. Pouco depois um som facilmente reconhecível juntava-se ao bater da chuva no telhado. Ela caminhou até a janela e espiou para fora. Garrick rachava lenha no alpendre, além da clareira.

Sorrindo ante o impacto da imagem do homem das montanhas fazendo seu trabalho, tornou a se sentar no sofá. De olhos fixos na neblina, tentou não pensar naquelas mãos de dedos longos e calejados que no entanto a haviam tocado de maneira tão suave. Richard nunca a tocara daquela modo, embora, por ter sido seu marido, a houvesse tocado muito mais intimamente...

Incapaz de encontrar as respostas para as dúvidas que começavam a perturbá-la, Léa resolveu buscar distração num dos livros da estante. Ao voltar, Garrick a encontrou perdida na leitura.

Com os braços repletos de lenha, ele chutou as galochas dos pés, colocou a madeira numa cesta ao lado da lareira e desabotoou a capa. Léa não precisou perguntar se a chuva havia melhorado: as botas estavam cheias de lama e a capa pingava quando ele a retirou. Ela voltou a atenção para o livro. Garrick pegou um para si e se sentou também.

— Está gostando do livro? — Garrick perguntou, depois de algum tempo.

— É muito bem escrito.

Ele concordou com um gesto de cabeça e abaixou os olhos para o livro que tinha nas mãos. Léa leu várias páginas antes de notar que Garrick ainda não virará nenhuma, muito embora parecesse estar concentrado na leitura.

Esticando o pescoço, tentou ler algo no livro de Garrick. Já começava a pensar se deveria trocar os óculos por outros mais fortes, quando ele declarou:

— É latim. Léa sorriu.

— Está brincando!

— Não.

— Você entende bem o latim?

— Não, estou estudando, ainda. Tentando não atrapalhá-lo, Léa voltou à posição anterior. Estudando latim? Era bastante estranho para um caçador, mas nem tanto para um homem que tentava esconder o passado... Tinha vontade de lhe fazer perguntas, mas não sabia como começar, ele não encorajava nenhum tipo de conversa. Sua presença já não parecia agradar-lhe muito. Quanto mais quieta ficasse, melhor seria. Voltou a ler e, algumas páginas depois, ouviu-o perguntar:

— Está com fome?

— Um pouco.

— Quer almoçar?

— Só se eu puder fazer a comida.

— Não pode. — Devido às várias dúvidas que lhe enchiam a mente desde que Léa chegara, precisava ficar no comando de alguma coisa em sua vida. — Quer dizer que não vai comer?

Ela sorriu meio sem graça.

— Com essa você me pôs de volta em meu lugar, não foi?

— Ha-hã.

— Eu como.

Tentando não rir, Garrick colocou o livro de lado e foi preparar o almoço. Apesar do tempo que passara lá fora, continuava aborrecido com Vitória. Era difícil, porém, estar aborrecido com Léa. Ela fora uma inocente útil no jogo da amiga, tanto quanto ele e, ao menos aparentemente, sentia-se desconfortável com a situação forçada. Léa conduzia o problema com dignidade. E ele apreciava isso.

Nenhuma mulher, das que já conhecera no passado, teria suportado uma situação como aquela com tanta graça. Sônia Prince ficaria lívida só de pensar em ficar presa num chalé isolada. Mona Weston não passaria um só dia num lugar sem telefone, sem poder entrar em contato com seu agente. Darcy Hogan já teria remexido nas gavetas a procura de uma roupa que lhe caísse bem. Heather Kane estaria exigindo que ele desse um jeito de parar a chuva.

Léa Gates, por outro lado, aceitara agradecida o suéter que Garrick lhe emprestara, arranjara um livro para ler e tentava ao máximo não atrapalhar.

Isso é que o deixara ainda mais curioso. Ficava imaginando o que teria acontecido com seu casamento e por que ela não gostava de sair com outros homens. Indagava a si mesmo se ela teria uma família, se tinha planos para o futuro. Algo lhe dizia que a solidão que por várias vezes flagrara nos olhos negros não era devido ao isolamento em que se encontravam. Parecia ser algo mais Profundo, como o que ele próprio sentia.

Léa comeu sem protestar o sanduíche de queijo e presunto que Garrick preparara, sem sequer reclamar da quantidade de maionese que ele espalhara no pão, coisa normal entre as mulheres que vivem contando calorias. Bebeu cada gota do leite que Garrick lhe servira e, depois de terminado o lanche, lavou os dois pratos e copos, colocando-os sobre a pia.

Durante a tarde que corria lentamente, Garrick não conseguiu concentrar-se no livro de latim. Continuava pensando na moça sentada no outro extremo do sofá. As pernas longas estavam enroladas sobre o assento e o livro permanecia aberto em seu colo, mas com a cabeça apoiada no encosto, Léa dormia serenamente. Docemente...

Sentia pena dela. A viagem que enfrentara no dia anterior, primeiro guiando desde Nova York, depois enfrentando o frio e a chuva para chegar até a cabana a haviam deixado exausta. Por um instante voltou a sentir raiva de Vitória, então lembrou-se de que, como todas as pessoas pouco acostumadas com as montanhas, a amiga não devia ter a mínima idéia de como era aquele lugar na estação chuvosa.

Haviam se encontrado pela primeira vez durante uma das escapadas de Vitória até a cabana, no verão. Ele ficara intrigado com os motivos que a haviam levado até ali, já que ela parecia um ser essencialmente urbano. Não gostava de caçar, não apreciava caminhadas, não plantava vegetais no quintal do chalé. Lembrava-se da resposta de Vitória como se fosse naquele mesmo dia; perguntara porque fora, e ela lhe afirmara simplesmente sentir-se ali um pouco mais perto do marido que falecera.

Claro que não fora honesto da parte dela enviar Léa para um chalé que já não existia. Garrick, entretanto, tinha certeza de que Vitória o fizera com a melhor das intenções, deixando-os juntos na cabana. O que o intrigava é que Vitória sabia muito bem que ele queria ficar sozinho; já haviam conversado bastante sobre o assunto. O que a fazia pensar que havia mudado de idéia?

Até alguns anos ele fora um homem da cidade. Desfrutara de todas as comodidades e futilidades que a vida lhe pudera oferecer. As únicas coisas que temia naquela época fora a obscuridade e o anonimato. Ironicamente, as mesmas coisas que agora buscava.

Passara a odiar a fama, porque era efêmera, a glória, por estar baseada em falsidade; a multidão de fãs, porque traziam a tona o pior que existia no ser humano: a arrogância e a dominação.

Já tivera na vida sua cota de competição. Mesmo passados quatro anos, lembrava-se muito bem da sensação de não poder ser passado para trás, de ter de ser sempre o mais rápido, o mais talentoso. Apreciava não ter mais de se preocupar com a aparência, de estar sempre arrumado e cheiroso. Não queria ter de pensar nos jovens atores prontos para tomar seu lugar ao menor deslize. E não gostava nem de lembrar das mulheres que se agarravam a ele, prontas para trocá-lo ante a visão de uma nova presa, mas vantajosa.

Ah, sabia muito bem o que não queria. Tomara uma decisão racional ao deixar a Califórnia, com seu brilho e glamour. Possuía ali a vida que desejava: simples, tranqüila e confortável. Era isso o que queria.

Por que, então, sentia-se ameaçado pela presença de Léa?

Garrick voltou a atenção para ela, que estava acordando. Movendo-se com lentidão, ela esticou uma das Pernas, encostando a sola do pé na coxa de Garrick. Ele sentiu o calor e a leve pressão, enquanto a olhava passar uma das mãos sobre o abdômen. Viu-a, então, abrir os olhos e perceber onde estava.

Léa olhou para Garrick. Ele nem piscou. Devagar, puxou a perna de volta, tornando a se concentrar no livro.

Léa Gates realmente representava uma ameaça para Garrick. Não que ela estivesse quebrando a paz da cabana. Pelo contrário, era uma pessoa calma, quieta, que nada exigia. Também não era uma questão física, mas sim emocional. Garrick a olhava e via as duas únicas coisas das quais sentia falta: calor humano e companheirismo. Sempre pensara poder viver sem isso. Agora, começava a duvidar.

Léa, também, estava pensativa. Colocando de lado o livro, caminhou em direção à janela. A chuva parecia não terminar nunca de cair. Entretanto, mesmo que a chuva parasse, Garrick já deixara claro que não poderia partir. Havia a lama e, pelo jeito, teria de ficar ali por mais algum tempo.

Apoiando os cotovelos no parapeito, segurou o queixo, tentando analisar a situação. Garrick Rodenhisen era uma pessoa fácil para se conviver. Ela, como costuma fazer em casa, passava o tempo lendo. Se tivesse consigo os dicionários, poderia também trabalhar.

O único problema é que Garrick a fazia pensar em coisas que Léa acreditava estarem enterradas há anos.

Nove anos, para ser exata. Ela estava então com vinte e quatro anos, e havia terminado a faculdade de Letras, quando conhecera e se casara com Richard Gates. Era uma moça sonhadora, que acreditava no amor, e estava certa de que Richard pensava como ela. Ele tinha vinte e seis anos e trabalhava no mercado de ações, só que rapidamente Léa percebeu o quanto se enganara a respeito dele. Richard desejava, mais do que tudo, subir na carreira, não se importando em sacrificar a vida em comum. Passava os dias no escritório, viajava com freqüência e sempre dava um jeito de comparecer a inúmeras festas à noite. Com o tempo, sem que percebessem, o amor e a felicidade havia desaparecido da vida dos dois. Léa desistiu dos planos de dar aulas de inglês, afinal uma esposa trabalhando fora não combinava com o tipo executivo de Richard. Decidira, então, escrever palavras cruzadas a princípio apenas para passar o tempo, depois, porque a atividade lhe agradava e havia um mercado para tal tipo de trabalho. Ter um trabalho de meio período, ajudava-a a suportar a frustração que começava a sentir.

Talvez tudo houvesse sido diferente se ela não tivesse perdido os bebês, mas Léa duvidava. Richard teria do mesmo jeito continuado com as reuniões de negócios, as viagens e as festas de que tanto gostava. E por que não? Ele era carismático, sabia lidar com as pessoas e, na verdade, mesmo em outros assuntos, que não fosse filhos, Léa e ele tinham opiniões bastante diferentes.

Entretanto, ali estava ela pensando em amor e felicidade...

A verdade era que Garrick a afetava. Fazia-a pensar que havia algo errado em se viver sozinha... Garrick a fazia meditar sobre o futuro. Sim, provavelmente ela voltaria para Nova York e acharia um outro apartamento para morar. Trabalharia, encontraria amigos, visitaria museus, parques e jantaria em seus restaurantes favoritos. Faria o que sempre fizera até sair de lá.

Suspirando, voltou ao sofá e ao livro, embora tivesse conseguido ler pouquíssimo nas horas que se seguiram. De tempo em tempo sentia os olhos de Garrick sobre si e, de vez em quando, arriscava uma olhadela em direção a ele. Aquela presença máscula era ao mesmo tempo reconfortante e incômoda.

A presença dele a fazia sentir-se menos só, porque sabia que teria ajuda no que precisasse. Por outro lado, dava-lhe consciência de tudo o que faltava em sua vida.

No final da tarde, Garrick voltou a sair, sem que Léa tivesse a menor idéia do que pretendia fazer. Ficou andando pelo chalé, inquieta, até que ele retornou.

Indo diretamente para a cozinha, Garrick recusou mais uma vez a ajuda dela, e preparou o jantar para ambos.

Comeram em silêncio, desviando o olhar quando seus olhos se encontravam. Depois, voltaram a. se sentar perto do fogo e, mesmo sem o material necessário, Léa começou a esquematizar algumas palavras cruzadas simples.

Para total surpresa de Léa, Garrick pegou um pedaço de madeira e passou a entalhá-la.

Sentiu vontade de perguntar onde ele aprendera a esculpir madeira, como aprimorara a técnica, o que pretendia entalhar, mas não o fez.

Garrick, por sua vez, queria indagar como se inventava uma palavra cruzada, se era difícil encontrar palavras que combinassem, o que ela fazia quando se via diante de um impasse, porém permaneceu em silêncio.

Lá pelas dez horas, irritada por não ter criado nada que valesse a pena guardar, Léa amassou as folhas de papel e as atirou na lareira.

Após tomar um banho rápido, vestiu o pijama que Garrick lhe emprestara e deitou-se do mesmo lado da cama onde dormira na noite anterior.

Às dez e trinta, cansado e frustrado por não ter esculpido nada de interessante, Garrick jogou o pedaço de madeira no fogo que já se extinguia, e apagou as luzes. Depois de tirar a roupa, ficando só com a calça e a camiseta que usava por baixo, ele se deitou no seu lado da cama.

Permaneceu ali deitado, pensando na vida que levava em Luz Angeles nos meses que antecedera sua decisão de abandonar a carreira. Seu agente, Timothy Wilder há algum tempo passara a evitá-lo, mandando dizer que não estava quando Garrick lhe telefonava ou ia até seu escritório. Quando, finalmente haviam se encontrado num set de gravação, onde outros clientes de Timothy participavam de um filme, o agente praticamente o havia ignorado. Assim como o diretor, o astro do filme e até mesmo a atriz principal, que havia seis meses jurara estar apaixonada por Garrick. Ele nunca se sentira tão só na vida.

Léa, também acordada, relembrava as últimas festas às quais havia comparecido na companhia do ex-marido. Numa delas, uma noite de gala destinada a angariar fundos para uma entidade beneficente, ela se arrumara com esmero. Richard nem mesmo elogiara o vestido. No começo da festa, o marido a apresentara a algumas pessoas e, depois, a largara conversando com uma desconhecida. Nunca se sentira tão só em toda sua vida.

Garrick mexeu-se na cama. Pensou no acidente que sofrerá e nas longas semanas que passara no hospital, sem que ninguém fosse visitá-lo. Não lhe haviam enviado flores, nem cartões desejando sua melhora; ninguém lhe telefonara desejando uma rápida recuperação. Embora culpasse a si próprio pelo declínio de sua carreira artística, e tivesse consciência de que não merecia a simpatia de nenhum conhecido, até que teria gostado de um pouco de apoio moral. O total abandono em quê se encontrara naquelas semanas, fora a gota d'água.

Léa, também, remexeu-se de leve sob os lençóis. Lembrava-se dos dias passados no hospital, logo após ter perdido a segunda criança. Richard fizera algumas visitas, deixando-a, porém, com a impressão de que a culpava pelos abortos espontâneos. Embora os médicos dissessem que a culpa não era dela, Léa também começara a se sentir como uma mulher incompleta. Se seus Pais fossem vivos, teriam lhe dado o apoio de que necessitava. Se tivesse amigos, não apenas conhecidos, não teria se sentido tão só. Apenas a solidão preenchera aqueles dias.

Garrick deu um longo e estremecido suspiro. Sentia a presença morna de Léa a seu lado, ouvia sua respiração irregular. Devagar, virou a cabeça em direção a ela.

A cabana estava imersa na escuridão. Não podiam ver um ao outro, mas Garrick pôde ouvir o roçar dos cabelos de Léa sobre o travesseiro quando ela se virou em sua direção.

Ficaram assim deitados por um longo instante. A tensão entre eles cresceu, uma onda de desejo vibrante os atraía como ímã.

Quase que ao mesmo tempo, moveram-se um em direção ao outro, envolvendo-se num abraço.

E ficaram ali aconchegados em silêncio. Emocionados.

 

Léa fechou os olhos, apreciando o calor e a força do corpo de Garrick. Ele a abraçava com força mas nem por um segundo pensou em reclamar da pressão que os braços musculosos exerciam sobre si. Ao contrário, enlaçou-lhe o pescoço, suspirando docemente. Feliz, absorvia o conforto que a proximidade de Garrick lhe proporcionava. Encaixou uma das pernas entre as dele, e afundou os dedos nos cabelos quase castanhos.

Garrick, também, invadido por uma sensação nova, apreciava o contato do corpo macio de Léa. Abraçar aquela mulher praticamente desconhecida, dava-lhe uma sensação de plenitude, que jamais havia experimentado. Passou as mãos pelas costas delicadas, inspirou fundo, aumentando a pressão de seu peito contra os seios macios.

Léa também precisava dele. Os sons que emitia baixinho, o ronronar que lembrava um gato, lhe dizia isso. Precisava dele não porque pudesse ajudá-la em sua carreira, ou por causa de seu dinheiro. Léa não sabia quem ele era, e mesmo assim precisava dele. Por ele mesmo.

Garrick suspirou, feliz.

Por um longo tempo ficaram assim abraçados, como se aquela proximidade fosse um bálsamo para as dores e tristezas do passado. Nada existia a não ser o presente; um presente calmo e tranqüilo que nenhum dos dois ousava interromper.

Aos poucos, entretanto, uma nova sensação foi tomando conta de seus corpos. Léa inebriava-se com o perfume másculo, sentia os cabelos sedosos escorregando entre seus dedos, os músculos fortes contraindo-se sobre sua perna. Garrick, por sua vez, foi invadido por um perfume doce e suave.

Ele não estava pensando em sexo, ao puxar Léa para si. Desejara apenas abraçá-la, sentir um corpo quente contra o seu, só pretendera afastar a solidão. Mas de repente seu coração batia mais rápido, o sangue fluía com maior velocidade por suas veias, seus músculos se contraiam. Garrick nunca se sentira atingido por algo de maneira tão inesperada. Ou desesperada.

Ele poderia ter se controlado se não houvesse sentido o quanto Léa também o desejava. Ela escorregou as mãos por baixo do tecido da camiseta, insinuando-se sobre a pele nua, enquanto os quadris arqueavam-se ligeiramente contra os dele.

O corpo de Garrick apertou-se contra a maciez de Léa, e ele a acariciou com mais intimidade, aumentando a fome de amor até um ponto incontrolável.

Tinha de possuí-la. Mas sentia medo de destruir aquele momento de tanta magia.

Com mãos trêmulas, puxou a calça de Léa para baixo, e ela terminou de retirá-la, enquanto Garrick também se livrava das suas. No instante em que a penetrou, Léa passou uma das pernas por cima dele, acariciando-o nas costas, e suspirando de encontro ao seu rosto.

Foi tudo muito rápido. Garrick movia o corpo com ritmo, acompanhado de Léa e, juntos, atingiram o clímax de um ato gratificante, quente e maravilhosamente inesperado.

Com o coração ainda batendo descompassado, Garrick relutava em se afastar de Léa. Depois de algum tempo, achando que podia estar machucando-a, moveu o corpo. Léa, porém, agarrou-se a ele:

— Não vá — sussurrou.

Eram as palavras mais doces que já ouvira dos lábios de uma mulher. Não diziam apenas o quanto havia apreciado ter feito amor com ele, mas também que aquilo que acabara de acontecer entre os dois não fora apenas necessidade física.

Não se haviam acariciado muito, nenhuma palavra tinha sido dita, não houvera nenhum beijo. E, no entanto, quando a penetrara, Léa estava pronta para recebê-lo porque precisava dele. O que acontecera fora mais do que sexo pura e simplesmente.

Garrick não fez nenhum comentário ao notar, pelos tremores no corpo de Léa, que ela chorava. Falou apenas com as mãos, que deslizavam pelos cabelos negros, puxando-a de encontro ao peito. Ele a protegeu e a acariciou até que Léa pegasse no sono. Só, então, fechou os olhos e dormiu.

Ao acordar na manhã seguinte, a primeira coisa de que Léa teve consciência, foi de estar com o corpo deliciosamente aquecido. Ela virou-se de lado e bocejou, sentindo-se relaxada e satisfeita. Lembrou-se, então, de que não vestia nada da cintura para baixo, e abriu os olhos.

Garrick, completamente vestido, estava sentado na cama, observando-a. Sem saber o que dizer, Léa simplesmente olhou para ele.

Não sem um pouco de hesitação, Garrick passou a mão pela face delicada, colocando uma mecha dos cabelos compridos para trás da orelha.

— Você está bem? — indagou. Léa acenou que sim.

— Não machuquei você? — perguntou, quase que num sussurro.

Ela balançou negativamente a cabeça.

— Arrependida?

— Não — respondeu baixinho.

— Fico feliz. — Após uma pausa, Garrick perguntou: — Está com fome?

— Morrendo!

— Gostaria de comer umas panquecas?

— Adoraria.

Um leve sorriso surgiu no rosto de Garrick. Léa sentiu vontade de colocar os óculos para apreciá-lo melhor, mas não queria sair de onde estava.

— Farei uma porção dupla enquanto você se troca.

— Ótimo.

Dando um apertão de leve no ombro de Léa, Garrick seguiu em direção à pequena cozinha. Só quando ouviu o barulho dos utensílios sendo manuseados é que ela se levantou da cama, não sem antes colocar a calça do pijama. No banheiro, tomou uma rápida ducha e se vestiu. Ao voltar para a sala encontrou Garrick colocando uma pilha de panquecas sobre cada prato.

— Hmm, geléia caseira — exclamou, vendo o vidro sobre a mesa. — Que luxo!

— Sirva-se à vontade.

— Mas é bom demais para desperdiçar.

— Não é desperdício, se você gosta tanto.

Léa olhou bem o vidro, reparando que não possuía rótulo.

— É um produto desta região? — indagou.

— E, sim. Garanto que é supernatural. Sem aditivos, nem conservantes.

— Não vá me dizer que é você quem faz? — perguntou incrédula.

— Não. — Ele riu. — Compro de uma família que mora do outro lado do vilarejo.

— A família vive disso?

— Embora ganhem um bom dinheiro na temporada, não dá para sobreviver. Eles possuem uma lojinha, uma espécie de mercearia.

Léa fez um sinal de cabeça, contente por Garrick ter comentado algo sobre seu dia a dia. Até então, haviam trocado pouquíssimas palavras. Provavelmente, habituado a viver sozinho, Garrick se acostumara a falar pouco. Estaria arrependido do que acontecera na noite passada? Não, pela maneira tranqüila com que ele agia, Léa adivinhou que não.

Voltando a atenção para o prato, ela cortou um bom pedaço das panquecas e já ia comer, quando parou com o garfo no meio do caminho.

— Garrick?

— O que foi?

— Eu só queria dizer que... que... o que aconteceu ontem à noite... bem, nunca havia agido daquele modo antes...

Ele engoliu antes de responder.

— Eu sei.

— Sabe? — ela o encarou.

— Você estava tensa. Não fazia amor desde seu divórcio, não é?

Léa acenou que sim, vermelha de vergonha.

— Achei melhor lhe dizer porque não queria que tivesse uma impressão errada de mim. Não me arrependo, nem por um instante, mas não gostaria que pensasse que sou o tipo de mulher que se deixa levar por impulsos.

— E não acredito em encontros fortuitos...

— Eu sei.

Pousando o garfo sobre a mesa, Léa apoiou a testa numa das mãos.

— Não é nada disso. Estou dando a impressão de ser uma puritana que espera algo mais de você, mas não é isso.

— Eu sei. Agora, coma suas panquecas, senão ficarão frias.

— Não sou pudica nem ninfomaníaca. Acontece que ontem eu precisava de você...

— Léa... — Garrick apontou para o prato cheio.

Desistindo de tentar explicar, resolveu comer. Esperava que ele ao menos tivesse entendido o que tinha tentado dizer. Léa se importava com o que Garrick pudesse pensar sobre o que acontecera e, embora parte dela tivesse certeza de que haviam compartilhado algo de muito especial na noite anterior, outra parte permanecia insegura.

No que se referia a homens, nunca fora muito segura de si. Pensara saber o que Richard queria dela, mas se enganava. Essa era apenas uma das razões pelas quais evitara um contato mais íntimo com qualquer homem, desde o divórcio.

Pela primeira vez na vida sentia-se independente e gostava disso, além do que não suportava a insistência de um certo tipo de homens, que só desejava,levá-la para a cama. Queria algo mais de uma relação, e nenhum homem que conhecera lhe despertara interesse.

Léa orgulhava-se de si mesma como mulher e gostava de pensar que quando fazia uma coisa, fazia-a por uma boa razão.

E fora esse o caso. Sentira uma afinidade com Garrick. Seus instintos lhe diziam que não era uma espécie de conquistador, assim como ele adivinhara que Léa não fizera amor desde o divórcio. Nada no chalé indicava que uma mulher já houvesse pisado ali. Não vira nenhuma peça de lingerie, perfume ou brinco perdido nas almofadas do sofá... E a urgência com a qual ele a possuíra e atingira o clímax só faziam confirmar tal idéia.

Apesar do aparente celibato, Garrick era um homem de verdade, daqueles que só se vê em filmes. O cabelo loiro-escuro, entremeado por fios grisalhos, a barba crescida, a habilidade para cortar lenha e manusear madeira não constrastavam em nada com seus modos educados e a consideração que demonstrara por ela.

Tinham sido essas qualidades que haviam despertado em Léa uma emoção estranha que, em última análise, a levaram a fazer amor com ele.

Procurando tirar tais pensamentos da cabeça, Léa comeu o que restava das panquecas e olhou em direção à janela.

— Ainda está chovendo, não é?

— Está — Garrick respondeu, enquanto bebericava o café.

— Será que vai parar logo?

— Duvido.

Léa não ficou tão desapontada, e isso a fez sentir-se culpada. Afinal, continuava a impor sua presença no chalé.

— Não há esperança de conseguirmos chegar até meu carro?

Garrick deu de ombros.

— Estava pensando em tentar, um pouco mais tarde. Achei que gostaria de pegar suas roupas.

Léa sorriu, notando que ele não dissera nada sobre consertar o carro e mandá-la embora. Ela abaixou os olhos para o enorme suéter de Garrick que estava vestindo.

— Não sei. Acho que estou me acostumando com estas roupas confortáveis.

Garrick, por sua vez, não tinha certeza de acabar se acostumando com o jeito sexy que ela ficava ao usar as roupas que lhe emprestara.

Tentando mudar o curso dos pensamentos, ele se dirigiu à pia e começou a lavar os pratos com mais energia do que o necessário. Quando, finalmente, terminou o serviço, sua libido já parecia estar controlada. Não queria deixar Léa constrangida.

A noite anterior fora muito especial. Haviam se relacionado sensualmente, sim, mas fora um ato muito mais emocional do que físico e se voltasse a se repetir, a emoção estaria ali presente outra vez. Só que da próxima vez iria querer tocá-la, beijá-la, explorar-lhe o corpo...

Mas Léa o intrigava. O que será que lhe passava pela mente? Talvez não fosse uma atitude inteligente de sua parte tentar decifrar os mistérios da mente de Léa. Quando a chuva passasse, provavelmente iria embora e Garrick não desejava sentir falta dela.

Por isso mesmo não iria questioná-la da maneira que tinha vontade. Dizia a si mesmo que se não a conhecesse direito, seria mais fácil convencer-se de que Léa era superficial e aborrecida.

Durante a manhã, ela terminou o livro que estivera lendo e começou outro. Fazia notas freqüentes num caderno, ao encontrar palavras ou conceitos que pudessem ser usados na formação de palavras cruzadas. Em seu íntimo, porém, a única charada que lhe interessava chamava-se Garrick Rodenhiser.

Aquele homem era um enigma. Sabia que, pelo menos, possuíam algo em comum, mas o resto de sua vida, o dia-a-dia, o passado, tudo continuava um grande e completo mistério.

Mentalmente, criou uma espécie de palavra cruzada particular. O nome dele estava ali, assim como outros fatos relativos à relação entre ambos. No entanto outras informações essenciais para completar o jogo ainda faltavam.

Perto da hora do almoço, Garrick levantou-se e saiu sem dizer para onde ia. Quando voltou, meia hora mais tarde, Léa perguntou, curiosa:

— Você foi até o carro?

— Não — ele respondeu enquanto se secava.

— Estou impedindo que você faça suas coisas?

— Não.

— O que estaria fazendo, se eu não estivesse aqui? — insistiu.

— Num dia como este, não poderia estar fazendo muita coisa. — Garrick respondeu sentando-se no sofá.

Na verdade, Garrick havia estado no galpão ao lado da casa, achando que ao manter-se ocupado, conseguiria afastar Léa dos pensamentos. Mudara de idéia em seguida e agora, nem mesmo o livro que comprara na semana anterior parecia capaz de prender-lhe a atenção.

— E senão estivesse chovendo! —A voz de Léa o trouxe de volta à realidade.

— Estaria lá fora.

— Caçando? Garrick deu de ombros.

— Vitória disse que você era caçador.

— Sou, mas a época boa para caça já terminou» Pouco depois, ela voltou a insistir no assunto:

— Que animais costuma caçar?

— Martas, raposas, quatis... — ele respondeu, enquanto punha mais lenha na lareira.

— E você vende as peles?

— Vendo, sim.

— Nunca tive um casaco de peles...

— E por que não! — Garrick se virou para encará-la.

— Em primeiro lugar, porque são muito caros. Richard, meu ex-marido, queria me comprar um, mas eu fiz com que desistisse. Se você vai a um restaurante com um casaco desses, ou fica com medo de que o roubem na chapelaria, ou receia que seus chadonnay respinguem na pele. Além do mais, não gosto de coisas pesadas sobre meus ombros.

Não era bem a resposta que Garrick esperava, mas dava uma boa noção do tipo de vida que Léa levava. Depois de um longo silêncio, comentou:

— Entendo. — E sentou-se de novo. Em seguida, abaixou os olhos para o livro, a fim de terminar a conversa.

Léa percebeu o gesto ostensivo de Garrick e permaneceu calada.

Na hora do almoço, Léa tentou reiniciar a conversa que fora interrompida:

— Eu ofendi você?

— Como?

— Ficou ofendido com o que eu falei sobre casacos de pele?

— Você não me ofendeu em nada. Também não gosto.

— Não?

Ele balançou a cabeça.

— E isso não tira um pouco do prazer de seu trabalho? — ela perguntou. ,

— O que quer dizer?

— E o produto final do seu trabalho, agrada você?

— Agrada.

— E se visse alguém embrulhando peixe na feira com suas palavras cruzadas?

— Tentaria racionalizar a situação.

— Como?

— Diria a mim mesma que sou paga para criar palavras cruzadas, que gosto do que faço e que meu envolvimento termina ao entregar os originais ao editor. Se alguém embrulha peixe em palavras cruzadas... — ela hesitou. — O problema não é meu. Afinal, se meu trabalho é publicado em jornal, existe uma grande possibilidade de que isso aconteça.

Garrick riu.

Léa murmurou com ar malandro:

— Se alguém sente prazer em usar um casaco de peles, então que o use. — Ela colocou os cabelos para trás das orelhas e prosseguiu: — Gosta de caçar?

— Gosto.

— Por quê?

— É preciso habilidade.

— E você gosta do desafio.

— Sim.

— Como aprendeu a fazer isso?

— Um velho caçador me ensinou a preparar as armadilhas. Na verdade, é assim que caço, com armadilhas, não com armas. Já terminou de comer?

— Um velho caçador? Daqui?

— Ele já está morto. — Empilhando os pratos, copos e talheres, Garrick seguiu para a pia. — Acho que darei uma corrida até seu carro. Se me disser o que quer que eu traga...

— Vou junto. — Léa se levantou no mesmo instante.

— Não.

— Quatro mãos são melhores que duas. Ele se voltou para encará-la.

— Não, se eu tiver de carregar você.

— Isso não vai acontecer.

— Ora, Léa, já passou por maus bocados para chegar até aqui. Sabe como o caminho é duro sob a chuva.

Ela se aproximou da pia, tentando convencê-lo.

— Mas aquilo foi durante a noite. Eu mal podia enxergar; não sabia para onde estava indo. Além do que meus sapatos não eram adequados.

— E que sapatos usaria agora?

— Ah, você deve ter um par de botas velhas por aí.

— Claro que sim. Tamanho quarenta e três.

Léa estava parada logo atrás dele, o rosto repleto de esperança.

— Eu poderia vestir várias meias de lã.

— Não vai dar certo.

— Sei que conseguiria, Garrick.

— Mas ia demorar muito até chegarmos lá. No caso de ter se esquecido, está chovendo lá fora, e minha idéia é a de fazer a corrida no menor tempo possível.

— Quanto tempo levaria para corrermos esses quilômetros?

— Quilômetros? — ele riu. — Você acha que andou quilômetros até chegar aqui?

— Incrível... A sensação que tive foi de que fiquei andando uma eternidade até chegar aqui. Acho que foi por causa da escuridão, e caí várias vezes.

— Pois bem, agora é de dia e você cairia do mesmo jeito por causa do barro. Eu estou acostumado. — Garrick passou os dedos pelo bigode antes de completar: — Ah, e a cabana de Vitória não é longe, está a uns quinhentos metros daqui.

— Quinhentos metros? — exclamou surpresa, ficando imediatamente mais otimista. — Isso não é nada! Poderia percorrer essa distância sem maiores problemas.

Garrick virou-se para fitá-la. A cabeça morena estava jogada para trás, as sobrancelhas arqueadas em expectativa. Ficou encantado com o rubor em suas faces, com os lábios úmidos e entreabertos. A vontade que teve de beijá-la foi tão forte e repentina, que precisou de todas suas forças para se conter. Controle era a palavra chave de sua vida desde que chegara em New Hampshire. Autocontrole: nada de cigarros, nada de bebidas, nem beijos por impulso.

Colocando as mãos sobre os ombros de Léa, ele falou em voz baixa:

— Preferia que você ficasse aqui, para sua própria segurança e conforto.

Se Garrick houvesse dito de outra maneira, ou tivesse dado uma outra razão para querer que ela ficasse, Léa provavelmente prosseguiria com a discussão. Mas junto com a expressão preocupada em seu rosto, aquela voz suave e quente a acalmava.

Mordiscando o lábio, Léa deu um passo para trás, rodeou Garrick e lhe cutucou de leve na cintura.

— Vá, e pode deixar que eu limpo a cozinha.

— Precisa me dizer o que quer que eu traga.

— Vou fazer uma lista.

Enquanto isso, Garrick foi atiçar o fogo na lareira e vestir a capa de chuva. Já estava terminando de calçar as botas quando Léa lhe estendeu a lista dos objetos que eram necessários, e onde poderia encontrá-los. Colocando o papel no bolso, ele tocou a ponta do capuz, num cumprimento, e saiu.

Pouco depois, sentado no banco do motorista do carro de Léa, Garrick segurava entre os dedos a carta escrita por Vitória. Não tinha vontade de abrir o envelope; sabia que encontraria ali uma recomendação entusiasta a respeito de Léa e, no que dizia respeito a ele, sua "hóspede" não precisava de recomendação alguma. Estava se saindo muito bem por si mesma.

Guardando novamente a carta na bolsa, recolheu com rapidez as coisas que Léa lhe pedira. Foi uma tarefa fácil, pois, sendo bastante organizada, ela lhe escrevera uma lista detalhada:

"Por favor, trazer:

1) Mala preta assinada por Vuitton (não faz meu estilo, foi um presente), que está sobre as outras malas sem assinaturas, atrás do banco do passageiro.

2) Maleta do Mickey, cheia de livros, a uns dois palmos da mala.

3) Saco de mantimentos (grande) atrás do banco do motorista.

OBS: Se o saco rasgar, jogue a comida para os animais e em vez disso, traga a sacola de brim preto."

 

O saco de mantimentos não rasgou, e Garrick conseguiu levar tudo, inclusive a sacola de brim preto. Sentiu-se meio ridículo com uma bolsa de mulher pendurada à tiracolo mas, afinal, quem iria vê-lo?

Caminhou sob a chuva, cada vez mais nervoso. Estava irritado com Léa por ela ser tão doce, solitária e boa companhia. Morria de raiva de Vitória por tê-la enviado até ele. A bagagem de Léa batia de encontro às laterais de seu corpo, tornando mais difícil a tarefa de manter o equilíbrio no chão lamacento. Incomodava-lhe a chuva intermitente, que tornava a situação ainda pior.

Porém, acima de tudo, estava furioso com a vida por ter lhe aprontado tamanha armadilha quando ele menos esperava. As coisas iam correndo tão bem, até que Léa surgira, ameaçando o tipo de vida que lutara tanto para construir. Pior, sentia que nada seria como antes quando ela se fosse.

E Léa iria embora; pertencia às grandes cidades. Freqüentava restaurantes franceses, ia a teatros, possuía malas assinadas por Louis Vuitton, mesmo que houvesse ganho de presente. Claro que devia estar gostando da novidade, um lugar afastado e calmo para fugir da rotina da cidade. Mas Garrick tinha certeza de que ela logo se cansaria e partiria. E ele voltaria a ficar sozinho. Só que desta vez não reencontraria a paz de espírito perdida.

Ao chegar à cabana, Garrick já estava realmente de mau humor. Deixando a bagagem de Léa no chão, tornou a sair e caminhou por um bom tempo, sem se importar com a chuva e o frio.

Já era tarde quando voltou. Léa havia acendido as luzes e o fogo da lareira esquentava o ambiente. Não foi o cheiro da madeira, porém, que atingiu suas narinas em primeiro lugar. Tirando a capa, Garrick seguiu direto para a cozinha e encontrou Léa ao fogão.

Ela levantou os olhos para Garrick e voltou a fixar a atenção na comida que preparava. Apesar de encontrar-se há quatro anos longe da civilização, podia reconhecer muito bem uma panela especial para cozinhar comida chinesa.

— Você está preparando comida chinesa? — perguntou estarrecido.

— Estou tentando — Léa o olhou apreensiva, arrumando os óculos. — Fiz um curso há pouco tempo, mas nunca preparei nada sozinha. Era uma das coisas que pretendia praticar no chalé de Vitória.

— Quer dizer que eu estive carregando um saco de produtos chineses sob a chuva? — indagou, reparando no livro de culinária sobre a pia.

— Entre outras coisas — Léa apressou-se em dizer. "As outras já coloquei no refrigerador".

— Quer dizer que na bagagem que eu trouxe tinha uma wok. Pensei que houvesse me pedido para trazer objetos essenciais.

Léa lançou-lhe outro olhar nervoso. Não sabia por que ele ficara tão aborrecido.

— Você me pediu que dissesse o que eu queria que trouxesse. E não gosto de preparar comida chinesa em panela comum.

Garrick olhou em volta procurando pelas outras sacolas. Léa, pelo jeito, já guardara tudo, sabe-se lá onde.

— E o que mais andei carregando sob a chuva além da wok?

O tom de voz autoritário lembrava tanto a maneira como Richard costumava tratá-la, que Léa teve de fazer força para manter a voz controlada.

— A panela estava junto com meus livros na sacola do Mickey. Havia algumas roupas também. — Indicou a calça jeans desbotada que vestia. Usava também sapatos mocassim, porém continuara com o suéter de lã de Garrick. Agora desejava ter trocado de blusa.

— E na sacola de brim preto? Estava bastante pesada.

Naquele instante Léa desejou ser capaz de mentir satisfatoriamente. Não que adiantasse, pois Garrick logo descobriria a verdade.

— Um gravador cassete e algumas fitas — confessou.

— O quê?

Léa o olhou com firmeza e repetiu:

— Um gravador e fitas cassete.

— Ah, essa não! Não vou permitir que atrapalhe minha paz e tranqüilidade com música barulhenta.

— Não são músicas barulhentas.

— Alta, então. Não vim morar aqui para ter de suportar uma coisa dessas.

Léa sabia que deveria estar agradecida por ele a ter recolhido à cabana, mas desde o fim de seu casamento jurara nunca mais ter de suportar gritos ou mal tratos.

Pensara que Garrick fosse diferente.

— Tocarei baixinho, ou melhor, não tocarei quando você estiver em casa — afirmou. — Entretanto, quando sair e ficar tanto tempo fora quanto ficou hoje, ouvirei minhas fitas.

— Ficou aborrecida por eu tê-la deixado sozinha, não é?

— Não fiquei, não! Por mim, pode ir onde quiser, a hora que bem desejar. Só que quando estiver sozinha, ouvirei minhas músicas. E, de qualquer modo, daqui há alguns dias estará livre de mim. — Léa respirou fundo antes de acrescentar: — Posso estar invadindo sua privacidade, mas não se esqueça, se não fosse por sua causa, Vitória nunca teria me mandado para cá.

Garrick nunca havia pensado na situação sob tal ponto de vista. Como sempre, Léa parecia estar coberta de razão.

Dando-lhe as costas, caminhou até à cômoda ao lado da cama, arrancou a malha de lã e a camiseta de uma só vez, e passou a abrir todas as gavetas à procura de roupas secas.

Léa, que o observava da cozinha, engoliu em seco ante a nudez parcial de Garrick. Ainda bem que só tirara as blusas, mas mesmo assim a visão dos ombros largos, os músculos firmes e bem delineados, a cintura estreita e os braços fortes a fizeram estremecer.

Voltando a atenção para a comida, tampou a panela chinesa, desligou o fogo e deu uma olhada na panela de arroz.

Tudo estava pronto: a comida no ponto, a mesa arrumada. Léa só não sabia se deveria chamar Garrick. Ele continuava mal-humorado, sentado perto da lareira.

Após alguns segundos se aproximou hesitante:

— Garrick?

— Hum?

— Está tudo pronto, se quiser comer agora... — Léa passou as mãos úmidas sobre o jeans. Tudo o que obteve como resposta foi uma frase ininteligível. — O que disse?

— Não precisava ter feito o jantar.

— Eu sei.

— O que preparou?

— Frango cozido com feijão preto. Garrick continuou encarando o fogo.

— Há anos que não ouço falar de comida chinesa. Jamais gostei.

Inexplicavelmente ofendida, Léa deu as costas e se afastou. Não estava com muita fome, mas não desperdiçaria tanto trabalho e boas intenções por causa de um homem grosseiro. Fez seu prato e sentou-se à mesa.

Com o canto dos olhos pôde ver que ele se levantava do sofá. Chegando até o fogão, Garrick abriu as panelas e cheirou a comida. Momentos depois, sentava-se à frente de Léa com o prato cheio.

— Não está ruim — comentou, após a primeira garfada. Pouco depois, perguntou: — O que tem aqui?

— Broto de bambu, cebolinha, molho de ostras, conhaque, gengibre...

— Não é o tipo de comida que se encontra em qualquer restaurante chinês.

— Não.

Realmente a refeição estava excelente e Léa sentia-se orgulhosa.

Comeram em silêncio, e mais de uma vez Léa teve de se controlar para não fazer-lhe certas perguntas que permaneciam sem resposta. Queria saber por que Garrick estava tão irritado, e o que ela fizera para provocar tal fúria. Queria perguntar onde e o que estivera fazendo antes de se mudar para as montanhas.

Comida chinesa... A simples menção de tais palavras evocavam nele lembranças que gostaria de esquecer. O set de filmagens; uma grande mesa repleta de comida embalada em pratos descartáveis para viagem; a comida intragável, que ele conseguia engolir com algumas boas doses de uísque...

Outra imagem passou-lhe pela mente: uma noitada com uma loira sensacional, que insistira em comprar comida chinesa para ambos a caminho do apartamento dele. Na manhã seguinte, sentindo-se péssimo, tivera enjôo só de ver o resto de comida nos pratos.

Comida chinesa... Uma outra vez, sentindo-se só, fora completamente embriagado até um restaurante chinês e encomendara comida suficiente para doze pessoas, fingindo que daria uma festa. Fingindo continuar sendo um astro, seguira para casa e lá, olhando para as sacolas de comida, chorara como uma criança.

— Garrick? — A voz de Léa o trouxe de volta à realidade.

Levantando a cabeça, viu que ela lhe estendia a carta de Vitória. Garrick olhou para o envelope por algum tempo então, empurrou a cadeira para trás, ficou em pé e foi colocar a carta fechada sobre uma estante.

Léa limpou o fogão em silêncio, pensativa. Sabia que algo incomodava Garrick, não só por suas maneiras bruscas, como também pelos olhos dele. Oh, sim, sabia que estava magoado, mas o que poderia fazer?

Depois de tudo arrumado, ela pegou um de seus próprios livros e sentou-se num canto do sofá, embora fosse difícil manter-se concentrada na leitura. A presença de Garrick era forte demais.

Uma hora se passou. Garrick virou-se para ela.

— Você disse que havia roupas na maleta.

Ela fez um gesto em direção ao jeans e ao sapato.

— Além dessas, quero dizer.

Léa sabia que Garrick estava falando isso por causa do suéter que ela continuava a usar.

— Tem sim. Amanhã vou lavar as que você me emprestou.

Ele resmungou alguma coisa e se calou. Mais um período de silêncio se passou. Garrick levantou-se para atiçar o fogo.

— Ainda não consigo acreditar que me tenha feito ir até o carro para pegar livros e um gravador — exclamou. — Vai precisar de mais que uma muda de roupa.

— Há outra muda na maleta.

— Não será suficiente, se ficarmos presos aqui por muito tempo mais.

— Posso lavá-las. Além disso, tenho um par de botas na maleta, e quando puder ir até o carro eu...

— Botas? Por que, diabos, não colocou as botas na noite em que chegou aqui?

Léa enrijeceu o corpo.

— Eu não pensava que o caminho fosse tão ruim.

— Você não pensava... sei... Seu carro estava bem atolado, pelo jeito você fez um ótimo trabalho...

— Não sei muito sobre carros ou lamaçais — respondeu tremendo. — Fiz o melhor que pude!

Garrick desviou o olhar. A tensão enchia o ambiente.

— Nem mesmo trancou o carro! — grunhiu algum tempo depois. — Sua bolsa estava lá dentro, junto com tudo que é seu, e você o deixa aberto!

— Eu estava preocupada demais para pensar nisso.

— Imagine se não vivesse em Nova York! Léa fechou o livro com força.

— Nunca tive um carro antes. Qual é o problema, Garrick? Você disse que ninguém sai com um tempo destes, e mesmo que saísse, quem iria até uma cabana que foi incendiada? Minhas coisas estavam a salvo e, se não estivessem, qual o problema? São apenas objetos!

— Com certeza você vai dar o resto de presente, já que tem consigo seus preciosos livros e fitas, além da panela, é claro.

— Droga, Garrick! — ela gritou pondo-se de pé. — Por que está fazendo isso comigo? Não lhe digo como deve viver, não é? Se para mim livros são mais importantes que roupas, o problema é meu. — As lágrimas fluíam de seus olhos, mas ela tentava não chorar. — Talvez não seja como as outras mulheres que conheceu, mas é assim que sou. Será que o incomoda o fato de me ver sempre com as mesmas roupas? Se estiver limpa, qual é o problema? Será que sou tão horrível assim, que precise me enfeitar para tornar minha presença suportável?

Lutando para não chorar, Léa continuou:

— Sei que não me quer aqui e por isso eu queria poder estar longe. Nunca pedi para ficar trancafiada com você num chalé. Se soubesse o que Vitória tinha em mente, nunca teria saído de Nova York! — A respiração dela era ofegante, e embora tentasse, não conseguiu se controlar. — Sou uma mulher independente e prezo esse fato. Conquistei essa independência por méritos próprios. Acha que estou gostando de ficar isolada numa cabana com um homem grosseiro como você? Pois saiba que não. Já sofri demais nas mãos de meu ex-marido, não preciso agüentar seus ataques também!

Léa se virou para sair, então parou e tornou a encará-lo.

— E já que retiramos as máscaras, deixe-me dizer outra coisinha: você é um grande mal-educado! Não precisava cozinhar esta noite, mas quis ser útil. E o que recebi em troca? Grosseria e falta de educação. Gastou seu precioso tempo decidindo se me daria ou não o privilégio de sua presença à mesa, e o que fez depois? Engoliu a comida como se me fizesse um favor. O que eu lhe fiz? Será que pode ao menos me dizer isso? Ou é incapaz de dividir seus pensamentos com alguém?

Durante todo o desabafo de Léa, Garrick não movera um só músculo.

Levantando os braços no ar, num gesto de desistência, ela retirou a mala preta de baixo da cama, pegou uma camisola e foi para o banheiro. Um minuto depois voltava, guardando as roupas na maleta e deitando-se bem na beirada da cama.

Estava louca da vida. E magoada. Porém, o que mais a preocupava fora a cena que acabara de fazer. Não era dada a explosões emocionais.

Léa só percebeu a aproximação de Garrick quando ele já se encontrava, em pé, ao lado da cama. Ficou olhando para as longas pernas; não ousava olhar para cima. Não saberia o que dizer.

Devagar, Garrick se agachou. Léa afundou mais o rosto nas cobertas, mas ele a fez levantar a cabeça com um dedo sob seu queixo, num gesto gentil.

Os olhos castanhos diziam todas as palavras de desculpas que ele não conseguia enunciar. E a mão forte a acariciava com ternura, passando pela face, pelo nariz, pelos lábios.

Léa ficou emocionada, pois, durante todo o tempo seus olhos transmitiam tristeza, humildade, sinceridade. Ela sentiu vontade de chorar.

Garrick inclinou o rosto para a frente, hesitante.

Ela passou a ponta dos dedos sobre a barba castanha, encorajando-o. Desta vez Garrick não hesitou e o que ele lhe disse com beijos substituiu qualquer palavra de amor.

 

Era a primeira vez que seus lábios se tocavam e a gentileza com que Garrick a beijou mostrava o quanto se importava com Léa, o quanto precisava dela. Em seguida afastou-se para fitá-la.

Com carinho, à beijou nas pálpebras, na ponta do nariz, nas faces e na testa. Quando a beijou de novo na boca, Léa o recebeu com os lábios entreabertos, mal contendo o desejo que a invadia.

O desejo era recíproco e os consumia. Garrick, feliz, percebia que seus gestos fluíam com espontaneidade; nunca se sentira tão bem em toda vida. A realidade do sexo vivido com Léa adquiria uma dimensão especial, mágica.

Léa notou o sentimento forte que havia por trás da boca que a beijava, da língua que percorria seu pescoço, as mãos que se emaranhavam entre seus cabelos com tanta ternura. Sentia coisas novas e diferentes, que a tocavam fundo no coração e a deixavam trêmula.

— Garrick? — sussurrou.

— Psss...

— Sinto muito ter gritado com você.

— Falaremos depois — murmurou, segurando-lhe o rosto entre as mãos. — Agora, preciso muito de você. — Então, o beijou mais uma vez, depois se afastou para tirar a camiseta.

Antes mesmo que Garrick a retirasse por completo, as mãos de Léa corriam o peito largo, coberto de pêlos castanhos que rebrilhavam feito ouro sob a luz do fogo. Com as mãos espalmadas, acariciou-lhe os ombros, escorregou até a cintura e subiu novamente, roçando os dedos sobre os mamilos, provocando em Garrick um suspiro de prazer.

De olhos fechados e cabeça jogada para trás, ele a segurava pelos pulsos, não porque pretendesse impedi-la de tocá-lo, mas porque precisava ter certeza de que aquilo não era apenas um sonho. Sentia-se inebriado e, quando percebeu as mãos de Léa fazendo largos círculos sobre os músculos de suas costas, com dedos trêmulos, Garrick desabotoou um por um os botões da camisola que ela usava.

Por um longo momento tudo o que pôde fazer foi olhá-la; a perfeição ante seus olhos o fez prender a respiração. Os seios de Léa eram lindos realçados pela luz tênue da lareira. Tocou-lhe um dos seios com delicadeza e Léa prendeu a respiração, passando as mãos nos quadris de Garrick.

Seus olhos se encontraram.

— Quero tocá-la, querida, inteirinha...

Garrick não pôde conter um sorriso ao perceber o prazer que Léa sentia. Era uma mulher adorável... Ele a beijou de novo, acariciando-lhe os mamilos, excitando-a, provocando-a.

— Acabe de se despir, Garrick...

Ele atendeu-lhe o pedido e em seguida a abraçou.

Com a boca Léa mordiscava-lhe a curva do pescoço, enquanto as mãos delicadas se deliciavam com os segredos do corpo másculo.

As carícias de Garrick cada vez mais íntimas a alucinavam. Era como se flutuasse, levada pela habilidade dele.

— Garrick... eu...

Mas ele insistia em dar-lhe todo o prazer do mundo. Sugando-lhe alternadamente os mamilos, colocou por terra a última resistência de Léa. Prendendo a mão de Garrick entre suas coxas, Léa estremeceu num êxtase inesperado.

Durante alguns minutos Garrick a ficou olhando-a em silêncio, acariciando-lhe os cabelos.

— Gosto de ver você assim... me parece tão tranqüila...

— E é assim exatamente que me sinto...

Os carinhos de Garrick recomeçaram, devagar. Com cuidado ele retirou-lhe a camisola e, cornos lábios, acariciou a pele macia.

Aos poucos Léa começou a reagir àqueles toques mágicos e retribuir-lhe as carícias, incitando-o, provocando-o, levando-o ao delírio.

Tomado por sensações novas para ele, Garrick sentia-se mais do que desejado. Sentia-se valorizado como homem, como ser humano. E percebeu que não se importava mais com o futuro. Precisava de Léa, e por todo o tempo em que ela quisesse ficar a seu lado. Depois, se voltasse a ficar só, pelo menos teria experimentado um sentimento que a maioria dos homens não encontrava durante a vida inteira. Teria a lembrança daqueles momentos maravilhosos, únicos.

Perdendo todo o autocontrole que se impusera Garrick a penetrou.

Os olhos de Léa estavam fechados e um leve sorriso de contentamento surgiu em seus lábios. Com um suspiro, enlaçou-lhe os quadris com as pernas.

— Não se mexa — ela pediu. — Fique assim por um instante... — Me sinto... plena.

— Léa? — Garrick murmurou.

Devagar, ela abriu os olhos. Estavam iluminados pelo mesmo amor que inundava Garrick. Ele sabia que era absurdo; eles só se conheciam há dois dias, sob condições pouco comuns. Não haviam quase conversado, trocado idéias, mas mesmo assim ele sentia que a amava.

Nunca sentira antes um desejo tão grande de se entregar. Como se pudesse ler-lhe os pensamentos, Léa começou um movimento cadenciado de quadris, que logo se intensificou. Levantando o rosto, ela o beijou e Garrick perdeu a noção de tudo, menos dos lábios macios e da língua morna que explorava-lhe a boca.

Num momento de lucidez, Garrick percebeu que Léa agora, junto com ele, mais uma vez atingia o clímax.

Devagar ele se afastou, acomodando-lhe o rosto na curva do ombro. Com um dos braços a enlaçava pelas costas, enquanto que o outro estava pousado sobre a coxa de Léa.

De olhos fechados, ela suspirou contente.

— Ah, Garrick, foi tão bom...

— Foi muito, muito bom... — ele concordou em voz baixa.

No passado, àquela hora Garrick estaria acendendo um cigarro, louco para que sua parceira fosse logo embora. Agora, tudo o que queria era permanecer ao lado de Léa, abraçando-a, afagando-a. E conversando com ela.

— Você foi maravilhoso. Acho que vou brigar com você mais vezes.

Garrick riu.

— Seria bom, mesmo. Acho que me coloca em meu devido lugar.

— Não sou do tipo de criar confusão.

— E eu não costumo ser tão mal-educado.

— Então, por que vem agindo dessa forma comigo?

— Por sua causa.

— É tão difícil ficar aqui comigo?

— É justamente o oposto. Gosto de ter você comigo.

— Então, por que...

— Gosto demais de você. Pensava que minha vida fosse perfeita, então você apareceu e complicou tudo...

— Ah, acho que sei o que quer dizer.

— Verdade?

— Ha-hã. Nunca me importei em viver só, sem um homem. Sempre achei que era o mais seguro.

— Seu casamento foi uma experiência tão ruim assim?

— Foi.

— Ele maltratava você?

— Ele nunca bateu em mim, se é o que quer saber. Era uma coisa emocional.

— Conte mais. Como era ele?

Léa pensou por alguns instantes, procurando uma maneira de descrever Richard sem demonstrar muita amargura.

— Era bonito, charmoso. Capaz de vender geladeira a um esquimó.

— Era vendedor?

— De certo modo, sim. Era um executivo importante de uma agência de propaganda. A pessoa mais carismática que já conheci. Atraía as pessoas como ninguém. Choviam clientes para a agência, só por causa dele. Só Deus sabe por que ele casou comigo.

Garrick passou a mão pelos cabelos e ela prosseguiu:

— É verdade... Acho que é porque Richard estava apenas principiando a carreira, quando nos conhecemos. Ele precisava de uma esposa que tivesse boa aparência e, quando eu queria, bem que conseguia. Alguém que, como eu, conhecesse bem a cidade de Nova York. E, acima de tudo, alguém que ele pudesse manipular.

— Você não parece alguém que possa ser manipulada — Garrick declarou, honestamente.

Léa riu.

— Diz isso mesmo depois do que Vitória nos aprontou?

— É uma exceção. Além do mais, da mesma maneira como nós dois fomos envolvidos, então, não conta.

— Bem, Richard conseguia fazer de mim o que bem entendesse. Eu queria agradá-lo em tudo e transformar nosso casamento num grande sucesso.

— E por que não conseguiu?

— Ah, por centenas de razões. Mas, a principal é que eu não pude ser a esposa que Richard desejava.

— Não pôde?

— E não quis. Cansei de ouvir dizerem o que deveria vestir e onde, de não satisfazê-lo por mais que me esforçasse.

— Mas o que ele queria afinal? — Garrick reclamou, irritado.

— Perfeição.

— Ninguém é perfeito.

— Vá dizer isso a Richard.

— Não, obrigado. É o tipo de pessoa que eu nunca gostaria de encontrar na vida.

— Você é bem esperto.

— Esperto ou fraco, ainda não sei bem. Léa virou-se para olhá-lo de frente.

— Você, fraco? Olhe só o modo como vive... É preciso muita força para suportar.

— Força física, sim.

— Não só física, psicológica. Morar sozinho nas montanhas, sentir-se bem consigo próprio, a maioria das pessoas não consegue.

Era a deixa perfeita para Garrick contar algo sobre seu passado. No entanto, as palavras teimavam em não sair de seus lábios. Queria o respeito de Léa e tinha medo da reação dela quando contasse a verdade.

— Não sei se me sentia bem aqui sozinho. Viu só como me apeguei a você! — Ele a beijou de leve, mas aos poucos o beijo tornou-se mais intenso. — Você tem um gosto delicioso — murmurou. — E eu adoro seu corpo. É tão bom senti-la assim em cima de mim.

E era exatamente onde Léa estava, os seios apertados contra o peito de Garrick.

— Você tem um cheiro bom... — ela afirmou. Você cheira a capim e madeira.

— Garrick?

— Que é, meu amor?

— Quero amar você outra vez. Ele riu, satisfeito.

— O que há de tão engraçado?

— Você. É maravilhosa.

— Isso significa que também me quer?

— Õ que você acha? — indagou, levantando os quadris e pressionando os dela.

— Acho que sim. Mas pode ser que você pense que estou só atrás de seu corpo.

Desta vez ele não riu. Obrigou-a a olhá-lo nos olhos e declarou cheio de ternura.

— O que acho, é que sou o homem com mais sorte em todo o mundo. — E ele a beijou, enquanto deslizava-lhe as mãos sobre o corpo.

Léa se deixou levar mais uma vez pela magia de seus corpos que mais pareciam um só. Então Garrick gritou de prazer e Léa percorreu de novo os caminhos infinitos do amor.

Mais tarde, sob as cobertas, protegidos do frio, ele disse:

— Nunca trouxe uma mulher aqui.

— Eu sei.

— Para falar a verdade, nunca veio muita gente aqui. Um ou outro caçador.

— E só no inverno?

— Praticamente até o mês de janeiro.

— Por quê?

— Existe uma lei. As peles são mais espessas no inverno e obtêm melhores preços. Isso porém, é controlado pelo Departamento de Caça e Pesca. Por exemplo, só me é permitido caçar três martas por ano. Com mais ou menos oitocentos caçadores neste estado, três animais cada, imagine a quantidade de martas abatidas ao ano. Se não puserem certos limites, é extinção na certa.

— E como esses limites são colocados?

— Bem, o departamento decide baseado nas informações dadas pelos próprios caçadores, no ano anterior. Temos de notificar cada animal caçado. Também informamos onde o pegamos, quando, qual era o estado do animal e o que achamos da situação da espécie em geral, enquanto armava minhas armadilhas.

— Então, os limites variam a cada ano?

— Teoricamente, sim. Mas como o número de animais tem se mantido estável há vários anos, acho que o departamento está agindo corretamente. Há muita política envolvida. Por exemplo: martas se alimentam de coelhos e outras espécies, então os caçadores desses animais querem um aumento da caça de martas, para sobrar mais para eles caçarem.

— E aí?

— Como as martas foram quase extintas na década de 30, o departamento é muito rígido com as tais leis.

— E por que só podem caçar até o fim de janeiro?

— Porque no mês seguinte começa o acasalamento. Caçar nessa época teria um efeito devastador.

t- Então, só pode trabalhar três meses por ano!

— Posso pegar esquilos até o final de março e coiotes quando bem entender. Só que o primeiro costumo usar como isca e os coiotes não me interessam muito. Além do mais, eles são espertos. Você pega um coiote, e os outros tratam de se manter longe daquele local.

Léa adorava ouvi-lo falar, não só pelo tom de voz quente e sensual, quase que um murmúrio, mas pelas coisas curiosas que ele contava.

— Caçar deve ser uma arte.

— É... mais ou menos... São poucos meses, mas o trabalho é duro. E tudo começa antes da temporada de caça. Tenho de obter licença, depois escrever aos proprietários das terras onde pretendo armar as armadilhas. Tenho de prepará-las, consertar as antigas. Cada vez que a estação começa, preciso colocá-las uma por uma e checá-las todos os dias.

— Todos os dias?

— De manhã bem cedo.

— Não é aborrecido?

— Não. Eu gosto.

Antes de se mudar para a montanha, Garrick detestava levantar cedo. Agora, não tinha problemas em acordar cedo e até achava as primeiras horas da manhã mais tranqüilas e producentes.

— E por que tem de checá-las de manhã cedinho?

— Porque a maioria dos animais que caço cai nas armadilhas durante a noite. Tenho de retirá-los logo em seguida.

— Por quê?

Garrick riu, e percebeu que rira mais nas últimas horas do que nas semanas anteriores.

— O que há de tão engraçado? Ele a puxou para mais perto.

— Você. Sua curiosidade.

— É que estou achando muito interessante tudo isso. Você se importa com as perguntas?

— Não, não me importo. — E isso era verdade, o que, o surpreendia tanto quanto suas risadas. Os últimos quatro anos haviam sido dominados pelo silêncio. Garrick falava apenas o necessário com os habitantes locais. Mesmo o velho que o ensinara a caçar, felizmente não era de falar muito o que agradava bastante Garrick. Ele já tivera sua cota de conversas fúteis e banais.

— Nunca na vida havia conseguido compartilhar com alguém o tipo de conversa leve e agradável que estava tendo com Léa.

— Então, quer saber por que tenho de recolher logo a caça? Se não recolhê-las, há o perigo das raposas e pegarem antes de mim, ou a pele estragar-se por outro motivo qualquer. Depois, tenho de trabalhar a pele.

— O que é preciso fazer?

— Bem, para retirar a carne... Ah, você não vai gostar nada desses detalhes.

— Está bem. Então, quer dizer que a temporada de caça é curta. O que você faz no resto do ano?

— Leio. Faço esculturas em madeira. Planto vegetais.

— Vegetais? Onde? ,

— Lá atrás, nos fundos.

— O que tem nos fundos? — Como não havia janela na parede dos fundos, era impossível Léa ver alguma coisa.

— Há uma clareira. — Ele a afagou com o polegar.

— É pequena, mas no verão, bate sol suficiente para que eu plante alguma coisa.

— E você come o que planta?

— Tudo não. Há uma certa quantidade de alface, que um homem é capaz de comer.

— Alface? E o que mais?

— Tomates, cenouras, repolhos, ervilhas... Congelo uma boa quantidade para consumir no inverno e, o que sobra, eu dou. Ou troco.

— Puxa! — exclamou Léa. — Estou espantada. Sabe que comigo não há planta que vá para a frente? Até que é melhor assim, se eu tivesse algum vaso em casa, teria que ter dado a alguém antes de vir para cá.

— Poderia ter trazido.

— Fico pensando, aqui estou eu com a maior parte de meus pertences dentro de um carro atolado; o chalé de Vitória está imprestável e eu não tenho para onde ir.

Garrick não a deixou continuar. Forçando-a a deitar, pressionou-lhe os lábios contra os seus mostrando o quanto a desejava novamente. Beijaram-se sem cessar, tocando-se com ainda mais vontade e ousadia do que anteriormente. E de novo fizeram amor.

Desta vez, ficaram abraçados em silêncio, até que Léa sussurrou:

— Garrick? Adoro fazer amor com você...

— Eu também...

— Há quanto tempo você está nas montanhas, Garrick?

— Quatro anos.

— E você tem alguma mulher, uma namorada.

— Não. Nunca me relacionei sexualmente com cada mulher por mais do que uma noite. — Por quê? Mais uma vez, Léa lhe estava dando a chance de se abrir. Seria fácil para ele aproveitar a deixa e dizer que passara muito tempo procurando por si mesmo, para se preocupar com casos de amor. E, se Léa continuasse a lhe fazer perguntas, teria de respondê-las. Não, esta noite não. Então, era melhor dar uma resposta evasiva:

— Nenhuma delas me fez desejar um segundo encontro.

— Oh!

— O que quer dizer com "Oh"?

— Vai me dispensar amanhã?

— Não posso. Lembre-se do lamaçal e da chuva...

— Quer dizer que se não fosse a chuva...?

— Nós já tivemos mais do que um caso de uma noite.

— Ainda não me respondeu.

— Como é que poderia mandá-la embora? Você não tem para onde ir.

— Garrick...

— Não, Léa — declarou, envolvendo-a num abraço apertado. — Eu não a mandaria embora. Nunca a mandarei embora. Gosto de ter você aqui, comigo. Pode ficar o quanto tempo quiser.

— Só porque a gente se relaciona bem sexualmente? — ela brincou.

— É.

— Garrick!

— Gosto de ter você a meu lado. Que tal?

— Melhorou.

— Quer mais?

— Sim.

— Porque você faz meu suéter ficar mais bonito.

— Pensei que o quisesse de volta.

— Pelo contrário; quero que você o use.

— Ótimo.

— Pode cozinhar quanto tiver vontade.

— Mas você odeia comida chinesa.

— Até que gostei bastante daquela que você fez para o jantar. Eu só estava bancando o difícil. — Ele fez uma pausa, então arriscou: — Sabe fazer mais alguma coisa que não seja comida chinesa?

— Fiz um curso de culinária francesa. E indiana, também. Mas acho que não teríamos os ingredientes certos para esta última.

— Sempre come esse tipo de comida em Nova York?

— Oh, não.

— O que come normalmente?

— Quer dizer, quando eu e Vitória não estamos acabando com a comida de algum restaurante?

— Pensando bem, você até que come um bocado. Como é que consegue permanecer magra?

— Cozinha de baixas calorias.

— Como?

— Baixas calorias. Compro congelada e esquento no forno de micro-ondas.

— Você compra comida congelada pronta?

— Claro. É uma delícia. E mais saudável que enlatados.

— Está cansada, Léa?

— Um pouco. Que horas são?

— Não sei. Não tenho relógio.

— E o meu, eu esqueci no banheiro. — Léa acomodou-se melhor sobre o peito de Garrick, reprimindo um bocejo.

— Não queria dormir. Preferia ficar conversando.

— Eu também.

— Vamos conversar mais de manhã, ou voltará a ficar mudo assim que o dia clarear?

Garrick riu.

— Vamos conversar.

— Promete?

— Palavra de escoteiro.

— Você é escoteiro?

— Já fui.

— Quero que me conte sobre isso — ela murmurou, quase dormindo.

— Está bem.

— Garrick?

— Hum?

— Quantos anos você tem? — indagou ela com voz pastosa.

— Quarenta. — Garrick esperou que Léa lhe perguntasse mais alguma coisa, mas ela já pegara no sono. Então, baixinho, ele pronunciou o nome amado e, sorrindo, beijou a testa de Léa.

 

Quando Léa acordou na manhã seguinte encontrou Garrick ainda dormindo a seu lado. Ela se espreguiçou e rolou de encontro ao corpo másculo, passando o braço pela cintura de Garrick.

A luz entrava pela persiana, iluminando de leve a cabana. Pelo barulho no telhado, a chuva estava mais fraca, mas ela nem se importava com o tempo. Garrick dissera que podia ficar o quanto quisesse e, por enquanto, não iria pensar na partida.

Garrick virou-se e cobriu com uma das mãos os dedos de Léa que lhe acariciavam o peito.

Era a primeira vez que ele ficava feliz em encontrar uma mulher em sua cama, de manhã cedo.

— Bom dia, querida — ele disse sorrindo.

— Bom dia.

— Dormiu bem?

— Como um anjo.

— Você não parece um anjo. — O olhar de Garrick percorreu o rosto de Léa, passando pelos cabelos e a boca que ele tanto beijara. — Está muito sexy.

— Você também.

Os olhos dele fixaram-se em seu busto nu.

— Nunca vi você à luz do dia.

— Viu sim.

— Nua — ele arrematou, abaixando as cobertas para vê-la por inteiro. — Você é linda.

Léa sentiu-se estremecer, não só pela intensidade do olhar de Garrick, mas porque ao descobri-la ele também ficara nu ante seus olhos.

— Quero você — ele sussurrou. — Acho que até sonhei com isso.

— Não precisa sonhar. Eu estou aqui...

— É tão difícil de acreditar... — Inclinando o corpo ele passou a acariciá-la.

— Garrick... Gosto tanto quando me toca desse jeito...

Garrick puxou-a para perto e olhou-a fixamente.

Abraçaram-se em silêncio por um bom tempo e o desejo acabou sendo substituído pela simples alegria de estarem juntos. E, naquele momento, aquela proximidade parecia mais significativa que tudo.

Depois de algum tempo, Garrick a soltou.

— Preciso de um banho. Quer ir junto?

— Sempre tomei banho sozinha...

— Verdade?

— É... a pura verdade.

— Está disposta a experimentar?

— Claro...

— Então venha — ele rolou da cama e a pegou nos braços.

— O chão está frio.

— Mas você está de pé!

— Quer me carregar no colo?

— Eu não, você é muito pesado!

— Então, fique quietinha.

Ao chegar ao banheiro, Garrick a colocou de pé, abriu o chuveiro e ajoelhou-se ante Léa, para tirar o curativo da perna machucada.

— Parece melhor — disse, passando em seguida os olhos pelo resto do corpo dela. — Mas prefiro o resto.

— Ainda bem.

Após dar-lhe um beijo, Garrick ficou de pé e entraram no banho. Ensaboaram um ao outro, deslizando as mãos em carinhos sensuais, resistindo, porém à tentação de fazerem amor, como se quisessem provar que a relação entre ambos era mais do que apenas sexo.

Depois do banho, prepararam juntos o café da manhã e, famintos, o devoraram rapidamente.

— Gosto de seus cabelos — falou Garrick. — Você sempre o usou assim?

— Não. Eu os cortei no dia em que saiu meu divórcio. Ele a puxou para seu colo, quando Léa se aproximou para retirar o prato vazio.

— Para celebrar?

— Comemorar minha independência. Sabe, quando eu era pequena minha mãe gostava de meus cabelos compridos porque podia penteá-los, prender fitas e laços. Depois, Richard queria-os compridos porque fazia uma imagem de mulher sofisticada: "mechas longas sobre ombros nus" — Léa imitou o tom do ex-marido. — Às vezes me fazia prendê-los num coque ou com uma fivela bem chique. Eu passava horas frente ao espelho tentando ficar do jeito que ele queria. Odiava isso.

— Então, você os cortou.

— Cortei.

Ele acariciou os fios negros.

— Gosto deles assim.

— É mais prático.

— Então são bonitos e práticos — Garrick passou os dedos pela franja. — Você gostava de sair?

— Nunca fui muito sociável. Era meio tímida.

— Tímida? Verdade?

Sorrindo, Léa o abraçou e esfregou o nariz nos cabelos dele.

— Verdade.

— E por quê?

Ela levantou os ombros.

— Era metida a intelectual, eu acho...

Garrick a fez ficar de pé e foi para a pia com os pratos sujos.

— Compreendo — ele disse.

— Por que está estudando latim? — Léa indagou.

— É interessante. Tantas palavras têm derivação latina...

— Não aprendeu latim na escola?

— Não. Aprendi espanhol. Minha mãe era professora de espanhol.

— Está brincando!

— É sério. — O modo como ela falara indicava que havia algo mais que não dissera.

— Oh-oh, você não gostava das aulas?

— Mamãe estava sempre muito envolvida com seu trabalho. Quando não estava dando aulas, viajava de um lado para outro fazendo cursos, ou atendendo alunos em casa.

— E você não gostava nada disso.

— Queria que ela ficasse mais tempo comigo.

— E seu pai, o que fazia?

— Era gastrenterologista.

— Dos mais ocupados.

— Acertou em cheio.

— Então, você ficava sempre sozinho?

— Acertou outra vez.

— Não teve irmãos?

Ele fez que não, e esticou a panela que acabara de lavar, para que Léa a enxugasse.

— E quanto a você?

— Filha única, também. Mas fui uma criança super-protegida. Não é engraçado que tenhamos tido experiências tão diferentes? Quem sabe se puséssemos nossos pais juntos numa caixa e a chacoalhássemos, teríamos afinal o que queríamos?

Garrick riu de um jeito meio triste.

— É... se pudéssemos...

Após terminarem de limpar a cozinha, Garrick acendeu a lareira, sentou-se no sofá e acomodou Léa entre suas pernas.

— Você sempre usou óculos? — perguntou, o hálito quente contra a orelha de Léa.

Desde os onze anos. Usei lentes de contato durante algum tempo, a pedido de Richard, mas nunca consegui me acostumar.

— Por quê

— Era horrível aquela rotina de "põe a lente todas as manhãs, tira as lentes de noite, limpa as lentes..." Além do mais, por que esconder que sou míope?

— Você fica adorável de óculos.

— Obrigada — ela respondeu sorrindo. — Esse lugar é tão bom, me sinto em paz. É assim que se sente, vivendo aqui?

— Mais ainda depois que você chegou.

— E antes? Foi essa sensação de paz que o fez vir para cá?

— São várias coisas juntas. Paz, também. Trabalho duro, mas de acordo com meu ritmo; aqui não existe aquele sentimento de competição que há na cidade.

Pelas palavras dele, era óbvio que Garrick conhecera uma vida bem diferente daquela, antes de ir para a montanha. Mais uma vez, Léa teve a oportunidade de indagar-lhe sobre o passado, mas não o fez. Voltando o rosto para o fogo, perguntou:

— Nunca fica entediado?

— Não, nunca...

— E quando é que aprendeu a esculpir em madeira?

— Logo que cheguei.

— Foi o velho caçador quem lhe ensinou?

— Não, aprendi sozinho. Com um livro daquele tipo "faça você mesmo".

— E que tipo de objetos você esculpe?

— O que me der vontade na hora. Na maioria, a figura de animais que vejo nos bosques.

— Onde você os guarda? Não vejo nenhum por aqui.

— Dou. Outros eu vendo. Também guardo alguns.

— Vende mesmo? Puxa, você deve ser bom.

— Isso eu não sei.

— Se as pessoas compram...

— Você sempre lidou com arte?

— Não, só depois que vim para cá é que descobri minha habilidade com as mãos.

— Acho você ótimo com as mãos — ela o provocou. — Tem de usar tipos especiais de madeira?

— Pinho, por exemplo, é uma madeira boa para se trabalhar. As madeiras mais duras uso para fazer tabuleiros de xadrez.

— Você faz tabuleiros de xadrez?

— Sim, você gosta de jogar?

— Não, porém sempre admirei aqueles tabuleiros bem trabalhados nas vitrines de lojas. Pensei até em comprar um só para usar como enfeite, sobre a mesinha de café. Mas, eu sei jogar damas. Já fez algum tabuleiro de damas?

— Não, mas posso fazer. Céus, não jogo damas desde que era criança.

— Até que seria divertido. E quanto a facas?

— Nunca joguei facas — ele brincou.

— Para esculpir, seu engraçadinho. Precisa de instrumentos especiais? A que você usava outro dia parecia um canivete comum.

— E era.

— Um canivete desses normais?

— Só que muito bem afiado. Ele possui três lâminas. Uso a maior para o trabalho geral e as duas pequenas para detalhes.

Ela o olhava fascinada.

— Seus olhos são lindos. Nunca vi olhos castanhos com manchinhas claras, como os seus.

O comentário pegou Garrick de surpresa. Era o tipo de observação que costumava ouvir nos tempos áureos, só que agora, dito por Léa com tanto carinho, inundava sua alma de alegria. Gostava quando ela o elogiava. Estranho que ainda não o houvesse reconhecido.

— Você costuma ver televisão? — ele perguntou.

— Raramente. Por quê?

— Estava só imaginando, se estaria sentindo falta de um aparelho.

— Não — Léa virou-se para o fogo. — Nem telefone, também.

— Não costuma falar muito quando está em casa?

— Pelo contrário. Falo bastante.

— Então, por que não sente falta aqui?

— Porque em Nova York é uma necessidade. Você tem de ligar para a livraria para encomendar um livro, reservar mesa nos restaurantes, telefonar para uma amiga. Aqui não tem nada disso.

— Você tem amigos em Nova York?

— Alguns. Antes de meu divórcio eu não tinha amigos próprios, só os de Richard. Ele não gostava de meus amigos de solteira.

— Por que não?

— Dizia que eles não serviam para nada.

— Quer dizer que para Richard as pessoas precisavam ser úteis?

— Não que ele costumasse pisar nas pessoas. Mas para Richard qualquer contato social tinha de ter um objetivo claro. Sair com alguém pelo simples prazer de uma boa conversa era coisa que não podia entender.

Garrick ia fazer um comentário contra Richard, quando lembrou-se de que ele mesmo fora assim alguns anos atrás. Era culpado dos mesmos pecados.

Fazendo com que Léa encostasse a cabeça em seu colo, perguntou:

— Como eram seus amigos?

Ela o abraçou pelo pescoço e passou um dedo pela barba macia.

— Vitória você já conhece. Há Greta, que conheci num curso de culinária. Ela tem uma mente voltada para a matemática que é incrível.

— O que ela faz?

— É contadora.

— Costuma vê-la sempre?

— Há cada quinze dias, mais ou menos.

— E o que fazem, quando estão juntas?

— Compras.

— Compras? É a última coisa que eu esperava de uma contadora.

— Ela não gosta de fazer compras. Ela é obrigada. Trabalha para uma firma grande, e é obrigada a estar sempre bem arrumada. Coitada, é a primeira a reconhecer que não tem bom-gosto para roupas. Então, vou para ajudá-la. Sou ótima para gastar o dinheiro dos outros.

— Que horror!

— Não há nada de errado se é a pedido de alguém para o próprio bem dessa pessoa.

— E Greta fica feliz com os resultados?

— Maravilhada.

— Conte mais sobre seus amigos.

— Existe Arlen.

— É ele ou ela?

— Ela. — Depois de uma pausa Léa perguntou: — Sabia que você é uma pessoa incrível?

— É o que você diz agora. Espere até me conhecer melhor. Sou uma pessoa incrível — ele repetiu, sério, pensando no que Léa faria ao saber tudo que escondera. — Mas não fui sempre assim. Bem, esse tempo já passou. Me conte sobre Arlen.

Léa olhou-o fixamente por alguns instantes. "Não fui sempre assim". O que será que ele queria dizer com aquilo? Oh, céus, não queria que nada estragasse a felicidade que sentia ao lado de Garrick. Não agora. Esperara a vida toda por alguém como ele.

— Nós nos conhecemos na sala de espera do dentista há três anos. — Naquela época, ambas estavam grávidas, mas Léa omitiu esse detalhe. — Ficamos amigas e depois que me separei de Richard passamos a ter um maior contato. Ela me ajudou a passar por sérias crises.

— O divórcio?

— Também.

— Ela trabalha?

— Como uma escrava. Tem cinco filhos com menos de oito anos.

— Nossa! É mãe solteira?

— Não! Ela tem um marido maravilhoso. Moram em Port Washington; já estive na casa deles várias vezes. Ela cozinha muito bem, principalmente salsicha.

Ele riu.

— Você gosta de cachorro-quente?

— Adoro! E, sabe qual é meu preferido?

— Não, qual?

— Vai achar que sou louca.

— Diga, qual?

— Aqueles que a gente compra nas carrocinhas perto do Central Park. Há uma certa atmosfera...

— Fumaça de cigarro!

— Ah, está estragando a imagem!— Léa esticou o dedo indicador na frente do nariz de Garrick. — Imagine um lindo dia de primavera, as flores brotando, ou um dia de verão quente quando o parque parece um oásis no meio do deserto. Existe algo de especial em se passear no parque num dia desses, comendo um cachorro-quente que pode até envenená-lo, mas que é uma delícia... é tão sibarítico.

— Sibarítico?

— É, prazeroso.

— Esqueça. O que mais gosta a respeito de Nova York?

— O anonimato. Fico assustada com a sensação de ter de corresponder à imagem que as outras pessoas têm de mim. Lá ninguém conhece ninguém. Você pode ser mais autêntico. — Nas ruas de Nova York sou completamente desconhecida — ela prosseguiu. — Posso escolher meus próprios amigos, fazer o que bem entender. Acho que não sobreviveria numa comunidade pequena.

— E o que mais?

— Que mais o quê?

— O que mais você gosta em Nova York? Léa nem precisou pensar.

— A vida cultural. Os cursos. Adoro fazer cursos, aprender coisas novas. Vitória me disse que aqui perto havia uma comunidade de artistas. Gostaria de aprender a tecer.

— Verdade?

— Já pensou? Ser capaz de fazer tapetes, panos... Bem, pelo menos gostaria de tentar.

— Aposto que aprende fácil. — Ele mesmo poderia lhe fazer um tear. A imagem de Léa ali tecendo, o barulho ritmado enchendo a cabana o fez pensar num lar.

Lar... Há muito tempo Garrick não pensava em ter um lar. O que tivera na infância fora distante do ideal e quando havia crescido, ficara preocupado demais em ter seu nome escrito em néon, para se preocupar com isso.

Seu mundo então passara a ser o público. Interessava-se somente por coisas que pudessem torná-lo mais famoso, e um lar não proporcionaria nada disso. Lar era algo privativo e pessoal. Algo para um homem e sua família.

— Garrick? — Léa sussurrou.

Ele piscou, só então notando que seus olhos estavam marejados de lágrimas.

— O que foi? — Na voz Léa demonstrava a preocupação e medo que sentia. Durante momentos como aquele, quando parecia distante, temia saber sobre o passado de Garrick. E não tinha coragem de fazer perguntas.

Garrick tentou sorrir, apertando-a contra o peito.

— Às vezes eu sonho acordado — murmurou. — E assustador...

— Não quer se abrir comigo?

— Ainda não.

— Qualquer dia, então?

— Qualquer dia.

Ficaram ali sentados em silêncio. De repente ouviram um estalido alto da madeira no fogo.

— Hei, acho que está tentando nos dizer algo — ela comentou.

— Será? Tenho uma idéia: por que a gente não põe uma roupa? Poderíamos andar pelas matas.

Os olhos de Léa se iluminaram.

— É um convite?

— Exatamente — ele a afagou na cabeça. — Acho que já ficou muito tempo presa aqui dentro.

Pouco depois saíam juntos para a chuva. O temporal havia se transformado num chuvisco leve, porém constante. Garrick levou Léa para as montanhas, indicando vários sinais da vida selvagem. O caminho não era dos melhores, mas durante o dia e com um bom guia como ele, Léa até que se saiu bem da caminhada.

Ela não sabia bem o porquê, mas a montanha que antes lhe parecera tão ameaçadora, agora a fascinava. Garrick fazia parte daquele lugar, e ela era sua convidada de honra.

Algum tempo depois, foram até o carro de Léa buscar o restante de suas coisas e, ao voltar para o chalé, Garrick ajudou-a a guardar tudo com a maior boa vontade. Em seguida, cederam ao impulso de se amarem perto da lareira.

Ainda abraçados sobre o tapete, Léa começou a rir.

— Fico imaginando a cara de Vitória se nos visse agora.

— Ela ficaria contente.

— E você, está contente, Garrick?

— Mais do que contente. Estou muito feliz. Léa o olhou fixamente.

— Eu te amo, Garrick.

— Eu também te amo, Léa. Nunca disse isso para ninguém em minha vida, mas eu te amo. Ah, querida, como eu te amo!

E seus lábios se encontraram com um desejo nunca antes experimentado.

Nos dias que se seguiram o amor cresceu entre os dois. Passavam juntos cada minuto e nunca se cansavam da companhia um do outro. Havia sempre algo a ser dito, geralmente num tom baixo, típico dos casais apaixonados. Outras vezes ficavam em silêncio, comunicando-se apenas com o olhar, com um toque ou um sorriso.

Garrick mostrou a ela as figuras que havia entalhado na madeira. Várias delas haviam sido também pintadas e Léa gostou particularmente de um par de gansos.

Garrick também mostrou-lhe os modelos de casas que construíra usando palitos de dentes, explicando como começara a fazê-las apenas para passar o tempo. Porém, um dos homens que vinha comprar-lhe as peles as mencionara a um casal de Boston, que encomendara uma cópia de sua própria mansão. Foi assim que começara a vender seus modelos.

— Você devia ter sido arquiteto — declarou, espantada com a quantidade e a perfeição de detalhes que ele fizera usando material tão estranho quanto palitos de dentes.

Garrick ficou encantado com o elogio, mas não disse nada. Para ser arquiteto teria de voltar para a cidade. E aí, então, seria reconhecido.

No entanto, não compartilhou seus medos com Léa. Ela o amava pelo que era agora e Garrick não queria que ela soubesse como ele vivera no passado. Tinha medo de Léa deixar de amá-lo e o pensamento de que não mais o amasse ou respeitasse era pior que qualquer receio que pudesse ter.

Por outro lado, incomodava-lhe não dizer a verdade. Não gostava de ter-lhe omitido dezessete anos de sua vida pregressa, como se nada houvesse acontecido. Havia tantas outras coisas para compartilhar com Léa e, embora achasse que ela suspeitava de algo, não tinha coragem de se expor.

Por essa razão, talvez, nenhum dos dois falava sobre o futuro. Viviam um dia de cada vez, tratando aquele amor inesperado como um tesouro.

De posse de seus dicionários, um atlas e um almanaque, Léa começou a trabalhar. O local calmo ajudava-a. a concentrar-se, mesmo com o bombardeio de perguntas feitas por Garrick.

— Como é que se começa a escrever uma palavra cruzada?

— Como quiser. Se houver um tema...

— Um tema?

— Sim, por exemplo nomes de times de futebol, modelos de automóveis, frutas...

Garrick sentou-se ao lado dela, vendo-a trabalhar.

— Existe alguma fórmula especial para aqueles quadradinhos pretos que a gente vê na palavra cruzada?

— Não, dependo mesmo de quem faz.

— Você leva muito tempo checando e revisando o trabalho depois de pronto, Léa?

— Um tempão... E sempre acho coisas para serem modificadas.

— Tem algum problema quanto ao prazo da entrega?

— As vezes, mas eu sempre mantenho tudo em dia.

— Não estou deixando você trabalhar direito...

— Não me importo — Léa respondeu, gostando de ver que Garrick se interessava por seu trabalho.

Na verdade, conforme os dias foram se passando, Léa perguntava a si mesma se aquilo não seria um sonho. Garrick era tudo o que sempre desejara num homem. Tinha paciência quando ela estava trabalhando, atencioso quando desocupada. Conversavam sobre qualquer assunto e, caso discordassem, mesmo assim não brigavam. Ao vê-la cansada, sempre sugeria um passeio ou um jogo de damas, no tabuleiro que fizera especialmente para Léa.

A única coisa que atrapalhava a total felicidade de Léa era a ruga de preocupação que, a cada dia que passava, se tornava mais freqüente na testa de Garrick.

Garrick sabia que precisava contar a verdade a ela e, que apesar do medo que sentia não podia continuar a esconder seu verdadeiro nome e os fatos do passado. Queria que Léa soubesse de tudo, e que continuasse a amá-lo. Queria que o respeitasse por haver reconstruído sua vida. Queria, e precisava, compartilhar o passado e o medo atual com Léa, receber seu apoio e compreensão.

Certo dia, quando a chuva parará, eles haviam ido caminhar pelo bosque, e Garrick pretendia aproveitar a oportunidade para contar tudo a ela. Só que no caminho encontraram uma corça com seu filhote, e Garrick não quis estragar a beleza do momento.

Em outra ocasião foram até a cidade e Léa estava tão feliz e animada que Garrick de novo voltou atrás no seu intento. Naquele dia, após almoçarem, Léa insistira em ligar para Vitória.

— Eu disse que telefonaria assim que estivesse instalada. Ela deve estar preocupada.

— Preocupada que você nunca mais volte a falar com ela, depois do que aprontou para nós.

— Mas até que nós gostamos, não é querido? Ele riu.

— É... mais ou menos.

— Mais ou menos?

— Está bom querida: bem mais do que menos. Eles entraram numa cabine telefônica e, de lá, ligaram para Vitória.

— Residência da sra. Lesser — atendera a empregada.

— Por favor, aqui é Léa Gates. Eu poderia falar com a sra. Lesser?

— Um momento, por favor.

Léa cobriu o fone e sorriu para Garrick.

— Imagine só a cara dela, Garrick... De repente a voz excitada de Vitória:

— Onde é que você está?

— Alô, Vitória.

— Léa Gates! Estou quase morta de preocupação.

— Más, por quê? Eu lhe disse que não haveria problemas. O chalé é maravilhoso. É fácil ver porque seu marido gostava tanto deste lugar.

— Léa... Está chovendo aí?

— Claro que continua chovendo. É por isso que não pude telefonar antes. Meu carro continua atolado na lama.

Houve então uma pausa.

— De onde está ligando?

— De uma cabine telefônica.

— Como chegou até aí, se seu carro está atolado?

— Peguei uma carona.

— Léa!

Garrick pegou o fone das mãos de Léa.

— Alô, Vitória?

O silêncio foi maior. Então, cautelosamente, Vitória indagou:

— Garrick?

— Você jogou sujo.

— Ah, graças a Deus — ela suspirou —, Léa está com você.

— Como você planejou!

— Você me odeia?

— Agora não.

— Você já contou?

— Um pouco.

— Mas, e aquilo, Garrick?

— Não.

— Ela está no chalé com você?

— Seria difícil eu deixá-la na chuva sem ter para onde ir, não acha? — ele declarou, piscando para Léa.

— Oh, Garrick, me desculpe, achei que vocês dois podiam terminar juntos. São perfeitos, um para o outro!

Ele cobriu o fone, dirigindo-se a Léa:

— Ela disse que somos perfeitos um para o outro.

— Espertinha... — Léa pegou o telefone de volta. — Não lhe mandarei o dinheiro do aluguel, ouviu?

— Ah, você não está tão brava. Afinal, telefonou.

— Porque tenho mais consideração que você — Léa respondeu, rindo.

E Vitória percebeu o sorriso.

— Posso mandar arrumar o quarto aqui para você?

— Ainda não.

— Quer dizer que vai ficar por aí mais um tempo? Desta vez Léa nem se preocupou em tampar o bocal.

— Ela quer saber se ainda vou ficar por aqui.

Garrick tomou o fone.

— Sim, ela fica. Descobri como é ótimo ter uma empregada que dorme no emprego.

— Eu não sou empregada dele. — Léa gritou enquanto Vitória dizia indignada:

— Garrick, você não está usando Léa...

— E ela cozinha, também — ele acrescentou. — Precisa ver os ovos cozidos que ela fez.

— Olha que mentiroso! Quem não sabe fazer ovo cozido? — Léa retirou-lhe o fone da mão.

— Vitória...

— Quer dizer que você aprendeu a fazer ovo cozido? Mas que progresso, Léa! Parabéns!. Agora quero falar de novo com Garrick.

— Vitória quer falar com você — Léa disse entregando-lhe de novo o aparelho.

— Garrick? Léa está nos ouvindo?

— Não.

— Não quero que você a magoe.

— Eu sei.

— Ela já passou por maus bocados. Não me importo que brinquem comigo, eu mereço, mas quero que você a trate muito bem. Se vocês não se acertarem, quero k que a mande de volta.

— Nós já nos acertamos.

— Mesmo? — ela perguntou, esperançosa.

— Sim.

— O suficiente para pensarem no futuro?

— Talvez...

— Então, terá de contar-lhe a verdade.

— Eu sei.

— Vai contar?

— Vou.

— Se esperar demais, ela vai ficar muito magoada.

— Eu sei disso, Vitória.

— Confio em você. Sei que fará a coisa certa.

— Está bem — ele disse, e acrescentou: — Léa quer dizer tchau. Diga tchau, Léa.

— Tchau Vitória! Um dia você vai se arrepender por se preocupar tanto com os outros...

 

A verdade acabou surgindo mais espontaneamente do que Garrick esperara. Naquela manhã, após terem caminhado pela lama para ver a barragem construída pelos castores num riacho próximo, voltaram para o chalé, trocaram de roupa e se sentaram perto do fogo.

Garrick lia, enquanto ela, com os pés sobre o braço do sofá, escutava uma de suas fitas, usando fones de ouvidos, adaptados por Garrick no gravador.

Num impulso, ele removeu os fones dos ouvidos de Léa e falou:

— Tire os fones. Quero ouvir também. Léa voltou a cabeça para olhá-lo admirada.

— Ah, Garrick, você não quer ouvir.

— Claro que quero.

— Mas você gosta de silêncio.

— Quero ouvir suas fitas. E, além disso, não gosto de me sentir posto de lado.

Léa ajoelhou-se e abraçou Garrick.

— Você não está sendo posto de lado.

— Mesmo assim quero ouvir música. Se você gosta, pode ser que eu goste também. Nossos gostos são parecidos.

— Você odiou o livro de Ludlum que eu trouxe.

— Mas ambos concordamos que o novo de Le Carré é ótimo — ele replicou.

— Você não gostou do frango ao curry que fiz na noite passada.

— Porque eu coloquei curry em excesso. Não vá me dizer que não achou forte demais, porque eu vi você tomando muita água depois do jantar.

— Você odiou o pássaro que fiz para você com dobraduras.

— Eu não odiei, só não soube dizer o que era. — E imitando um tom de raiva: — Vai ou não deixar eu ouvir a música?

— Quer mesmo?

— Quero.

Feliz, ela removeu o plug que ligava os fones ao gravador. O som da guitarra e da voz suave encheu a sala e Léa recostou-se para ver a reação de Garrick. Ele sorria.

— Cat Stevens. Essa é antiga.

— Setenta e quatro.

Garrick afundou o corpo e esticou as pernas, enquanto ouvia em silêncio. O ar pensativo do rosto dele fez com que percebesse que a música trazia de volta algumas lembranças tristes. Quando a fita terminou, Garrick pediu que colocasse outra.

— Simon e Garfunkel — ele reconheceu.

— Gosta?

Garrick ouviu um pouco antes de responder.

— Gosto. Nunca havia prestado atenção na letra. Encarava essas músicas como fundo musical de restaurantes.

— Restaurantes de onde?

— Los Angeles — respondeu, surpreendendo-se com a facilidade com que o dissera.

— Você morava lá?

— Sim.

— Por quanto tempo?

— Dezessete anos.

Léa não perguntou mais nada, ficou apenas observando-o em silêncio.

— Eu era ator. Léa achou que havia entendido errado. — Como?

— Eu era ator — ele repetiu.

— Ator... — Léa engoliu em seco.

— Sim.

— Cinema?

— Televisão.

— Mas eu... seu nome não é conhecido.

— Eu usava um nome artístico.

Ator? Garrick, o homem que ela amava pelo tipo de vida solitária, um ator? Com certeza ele fizera algumas cenas sem importância em algum seriado...

— Você aparecia muito nos filmes?

— Todas as semanas, durante vários anos.

Ela abraçou as pernas, como que tentando fazer o corpo parar de tremer. ,

— Então, você tinha um papel importante?

— O principal.

— Qual é o seu nome verdadeiro?

— Garrick é o nome com o qual fui batizado.

— E o nome artístico?

— Greg Reynolds.

Léa empalideceu. Não se ouvia um só som na cabana. Ela nunca fora uma telespectadora assídua, mas tinha olhos. Mesmo para quem não tivesse boa memória seria difícil não reconhecer o nome. Costumava aparecer sempre nas manchetes de revistas.

— Não pode ser — ela balançou a cabeça.

— Mas é.

— Não reconheço você.

— Você que não assistia muita televisão.

— Mas sempre li jornais e revistas. E havia fotos.

— Estou bastante diferente agora.

Ela tentou analisar-lhe as feições, mas era difícil. Havia Garrick, e então... um outro homem. Um estranho. Conhecido de todo mundo, menos dela. Ela amava Garrick. Ou será que ele...

— Devia ter me contado antes.

— Não pude.

— Mas, Greg Reynolds? — gritou surpresa. — Você é um superastro!

— Era, Léa. Eu era um astro.

Ela abaixou a cabeça, esfregando a testa com as mãos.

— O programa se chamava...

— A Lei de Pagen. Polícia e ladrões. Coisa de machões.

— Que milhões de pessoas assistiam toda semana.— Ela voltou a se recostar no sofá. — Um ator. Um superastro da televisão.

Num segundo Garrick estava a seu lado, segurando a mãos frias de Léa entre as suas.

— Eu era um ator, mas tudo terminou há muito tempo. Agora sou apenas Garrick Rodenhiser, caçador, estudante de latim, entalhador, o homem que você ama.

— Como posso amar um ator? Não suportaria viver sob as luzes dós refletores.

Ele apertou-lhe as mãos com mais força.

— Nem eu, Léa. Greg Reynolds está morto; ele não existe mais. É por isso que estou aqui. Eu. Garrick. Esta é minha vida, isto que você viu desde que chegou.

Ela permaneceu em silêncio, olhos fixos no chão.

— Não! — ele gritou. — Não faça isso, meu amor! Fale comigo, Léa. — Ele a fez levantar rosto. — Diga o que está sentindo.

— Você é um sucesso. Um superstar.

— Era. Está tudo acabado.

— Não dá. Você não vai conseguir ficar longe por muito tempo. Eles não vão deixar.

— Ninguém mais me quer por lá e, mesmo que quisessem, eu não voltaria. Já fiz minha escolha.

— Porém, mais dia menos dia vai querer e aí...

— Não! Está tudo terminado, Léa. Não voltarei nunca mais àquela vida!

A força de suas palavras a deixaram assustada.

— Estou lhe dizendo, nunca mais quero voltar — ele repetiu, desta vez mais calmo, acariciando-lhe o rosto. — Desisti de tudo, Léa. Não posso voltar atrás.

Novamente ali estava a angústia que se acostumara a ver nos olhos de Garrick.

— O que aconteceu?

Esta era a pior parte. Teria de contar a ela sobre o sucesso que alcançara e de como o desperdiçam, o perdera. Entretanto, devia a ela a verdade.

Garrick se levantou e caminhou até a janela. O sol brilhava, porém a desolação que tomava conta de sua alma, eclipsava qualquer sentimento de alegria. Cruzando as mãos atrás do corpo, ele começou a falar:

— Quando me mudei para a costa oeste a coisa que eu mais queria era ser conhecido, deixar de ser mais um na multidão. Acho que você sabe por que — ele acrescentou em voz baixa. — Eu me achava bonitão. Era alto, atraente. Além do mais esperto e determinado. Fiquei algum tempo apenas observando, tentando conhecer bem o lugar, descobrindo quem por ali detinha o poder e como me aproximar das pessoas que realmente interessavam. Então, comecei a trabalhar. Em primeiro lugar convenci um agente de alto gabarito a me aceitar como cliente, depois passei a fazer obedientemente tudo o que ele mandava. A maioria dos papéis era puro lixo, pontas apenas, mas dei tudo de mim nessas produções e fiz com que fossem assistidas pelas pessoas certas.

Quando já estava em Los Angeles há mais ou menos três anos, não me faltavam papéis razoáveis, embora secundários. Mas, para mim era pouco; eu queria o máximo, queria ser um astro de primeira grandeza. Aprendi bem cedo que não importava apenas ser bonito ou interpretar corretamente um personagem. Havia muita política no meio; política suja. E eu joguei o jogo do poder. Eu tentava desculpar a mim mesmo dizendo que os fins justificavam os meios, e suponho que, na época, fosse verdade. Aí então consegui o papel de Pagen. — Garrick levantou os ombros, numa atitude negligente. — Não me pergunte por que o programa fez tanto sucesso. Olhando para trás não consigo compreender a causa de todo aquele sucesso. Entretanto, parece que o seriado atingia o público de maneira espetacular, o que atraía patrocinadores, trazendo dinheiro para eles, para a rede de televisão, para o diretor e para mim. Foi assim que levamos o programa em frente, e eu acreditava sem a menor sombra de dúvida que éramos o máximo, que o seriado era fenomenal. E que o sucesso se devia à minha presença no papel principal.

Garrick abaixou a cabeça, dando um suspiro profundo e continuou:

— Esse foi meu primeiro erro. Não, retiro o que disse. Meu primeiro erro foi ter ido para Hollywood, por que, afinal, não era o lugar certo para mim. Oh, claro que eu achava que pertencia àquele lugar, e esse foi meu segundo erro. O terceiro foi acreditar que eu lutara e merecia todo aquele sucesso. Desse ponto em diante fui acumulando erros, um atrás do outro, até estar tão afundado na lama que não sabia mais nem mesmo quem eu era.

Ele fez uma pausa, arriscando uma olhada para o lado de Léa. Ela estava sentada no canto do sofá, com as pernas em cima do assento, abraçando os joelhos. O rosto parecia haver se congelado numa expressão de dor, e Garrick sentiu vontade de ajoelhar-se a seus pés, pedindo perdão por sua vida pregressa. No entanto, havia muito mais a ser confessado.

Ainda parado ao lado da janela, Garrick virou-se de frente para Léa.

— O programa permaneceu no ar durante nove anos e, durante esse tempo, acabei perdendo o controle sobre mim mesmo. — Seu tom de voz tornou-se de escárnio. — Eu era o grande astro, o melhor entre os melhores. Eu era o maior ator que já pisara em Hollywood nas últimas décadas. Meu nome sozinho poderia transformar um programa, qualquer programa, num imenso sucesso de público e de crítica. — E houve também os filmes. Depois de cinco anos com o Pagen na lista dos dez mais, comecei a aceitar convites para fazer filmes nos intervalos da temporada. No princípio resisti à idéia, na época não sabia por quê. Agora compreendo que alguma coisa dentro de mim tentava me avisar que seria demais para mim, que eu precisava de umas férias longe daquele ambiente de competição pelo menos uma vez por ano, que necessitava entrar em contato com meu verdadeiro eu. Mas, não, queria era ser mais e mais famoso, queria me tornar uma lenda viva do mundo dos espetáculos.

Garrick suspirou e abaixou a cabeça, esfregando a nuca com dedos nervosos.

— Estava ficando apavorado, essa é que é a verdade. Tinha medo de que, se não agarrasse tudo o que podia, viria alguém atrás e tiraria tudo de mim. Isso, porque eu sabia que não era muito bom ator.

Garrick se aproximou do sofá e depois voltou para junto da janela.

— Ah, claro, eu era Pagen, mas só interpretava tão bem o papel porque ele não exigia demais de mim. Agora, para os outros filmes, os que necessitavam de um verdadeiro ator, eu falhei. Nenhum foi sucesso de bilheteria como eu e os produtores esperávamos. Em vez de ter um pouco de sensibilidade, analisar meus erros e tentar aprender com eles, fiz exatamente o contrário. Passei a atacar os críticos em público. Disse que o público médio americano não tinha gosto para o cinema. Me tornei uma pessoa intragável. Fiquei meio alucinado, paranóico. Acreditava que todos ao meu redor desejavam ver minha decadência, que me espreitavam como a uma presa, esperando pela hora de tirar minha pele e dar o resto aos lobos. Fiquei desesperado, e foi aí que comecei a beber. Quando o efeito do álcool já não era suficiente, passei para as drogas, qualquer coisa que aparecesse em minhas mãos capaz de diminuir a infelicidade que sentia. E tudo o que consegui foi afastar a realidade e a realidade do mundo do cinema e televisão significa estar um dia no topo e no outro ser jogado às profundezas do inferno. Com um suspiro entrecortado, ele prosseguiu:

— A lei de Pagen foi cancelado após nove anos seguidos de exibição semanal. A causa principal acho que foi meu modo de agir. O produtores não encontravam um diretor sequer que estivesse disposto a me agüentar e ao meu mau humor. Tiveram problemas até mesmo para escalar o elenco de apoio pois eu era tão impaciente e exigente, crítico em excesso, que já não estava mais valendo a pena continuar. Isso sem contar que comecei a aparecer no estúdio de filmagens bêbado ou dopado, mal conseguindo decorar as falas de meu personagem. E, então, culpava todos que estivessem junto a mim.

Devagar, ele caminhou em direção ao sofá. Os braços estavam largados e os ombros largos arqueados para a frente. A desolação que Garrick sentia era tanta, que precisava, pelo menos, ficar ao lado de Léa.

— Daí para a frente a decadência foi inevitável. Houve alguns pequenos papéis depois que o seriado foi cancelado, mas além de pouco eram bastante espaçados. Ninguém queria trabalhar comigo e não os culpo por isso. Novos programas tomaram o lugar antes conquistado por Pagen, apareceram novos astros.

Devagar, ele se sentou no sofá, as mãos estendidas sobre as pernas, num gesto de defesa.

— No fim de tudo eu estava só, sem amigos, sem trabalho e não tinha ninguém a quem culpar, apenas eu mesmo. — Ele abaixou o olhar para as mãos. — Havia ficado tão obcecado com a idéia de ser um astro, que, quando me vi sem aquilo tudo, era como se o futuro não mais existisse. Então, um dia, sem saber mais o que fazer, peguei meu carro e fui para as montanhas. Perdi o controle da direção numa curva e caí num barranco. A última coisa da qual me lembro foi ter pensado: "Felizmente, o meu dia chegou".

A respiração ofegante de Léa chamou a atenção de Garrick. Ela estava com as mãos fechadas pressionando os lábios, os olhos inundados de lágrimas. Garrick esticou a mão para tocá-la, então, voltou atrás. Precisava urgentemente tocá-la, mas não sabia se tinha esse direito. Estava se sentindo tão só quanto se sentira ao acordar no hospital, após o acidente de automóvel.

— E como você vê... eu não morri. Os médicos disseram que se eu não tivesse tanta sorte poderia ter me ferido mais seriamente. Acontece que eu não colocara o cinto de segurança e fui atirado para fora do carro. Tive algumas contusões e uns ossos quebrados. Aí de repente, entendi tudo o que me aconteceu como uma mensagem de Deus, talvez. E essa mensagem me dizia que havia algo mais nesta vida do que eu pensava. A princípio tive muita pena de mim mesmo, mas após semanas sozinho naquela cama de hospital, comecei a dar valor a outras coisas...

Garrick abaixou o tom de voz e a olhou com carinho.

— Assim que pude voltar a dirigir, peguei o carro e saí de Los Angeles sem saber ao menos para onde ir. Só sabia que precisava me afastar o máximo possível daquele mundo de falsidade. Continuei dirigindo, sabendo que quando chegasse eu saberia reconhecer o lugar certo para mim. Ao chegar em New Hampshire percebi que minha jornada terminara. Foi então que vi esta cabana. Gostei do lugar à primeira vista e resolvi comprá-lo.

Garrick deu uma risada amarga.

— É engraçado. A única coisa que fiz que prestasse durante todos esses anos de sucesso, e excesso, foi dar meu dinheiro a um assessor, para que ele investisse dá melhor maneira possível. Posso viver mais do que confortavelmente com os juros desse dinheiro, sem precisar tocar no capital.

— Construí uma nova vida, Léa. Há quatro anos não tomo uma gota de álcool, nem drogas, e abandonei o sexo indiscriminado. Este é o tipo de vida que gosto, não o outro. Eu não quero e jamais voltarei ao passado.

Seus olhos encararam Léa, hesitantes.

— Você tem toda razão. Eu deveria ter lhe contado antes. Mas, eu não podia. Tinha medo. Ainda tenho medo.

O rosto de Léa estava coberto de lágrimas, e a mão continuava junto aos lábios.

— Eu também — ela sussurrou. Garrick então segurou-lhe a mão.

— Você não precisa ter medo. Não de mim. Você me conhece melhor que qualquer outra pessoa do mundo.

— Mas aquele outro homem...

— Ele não existe. Nunca foi real. Ele não passava de uma falsa imagem, como tudo mais em Hollywood. Uma imagem tão sem estrutura que não resistiu e desmoronou. Nunca mais quero saber daquele tipo de vida. Tem de acreditar em mim, Léa. A única coisa que quero dai vida é o que tivemos aqui juntos. Isto é real, é isto quê me completa...

— E quanto à necessidade de ser reconhecido pelo público?

— Já sofri disso e quase me acabei. É como uma doença. Quase morri antes de me ver curado, mas valeu a pena. — Ele suspirou fundo, antes de prosseguir: — Por favor, não se deixe afastar por causa dos erros que cometi no passado. Aprendi com eles, ah, como aprendi...

Léa queria acreditar em tudo que Garrick lhe dizia. Queria tanto que suas mãos começaram a tremer.

— Greg Reynolds nunca sentiria atração por mim.

— Garrick Rodenhiser está apaixonado por você.

— Eu não seria nada no mundo de Greg.

— Mas é tudo que existe para mim.

— Não quero esse tipo de jogo.

— Não quero jogos, quero a vida real. E você. Incapaz de manter-se afastado de Léa por mais um segundo, Garrick a prendeu num beijo que expressava seus sentimentos de maneira mais clara do que quaisquer palavras.

— Nunca volte a ser aquele homem. Eu morreria se você o fizesse.

— Juro que não, eu juro — ele murmurou, enquanto a puxava para si. Deixe-me amar você — sussurrou, abrindo a blusa de Léa — Deixe-me dar a você tudo que tenho... tudo que guardei nestes quatro anos... tudo o que veio à tona depois que encontrei você. — Com a blusa dela totalmente aberta, Garrick começou a acariciá-la nos seios, com volúpia. — Ah, como é bom tocá-la. Você é o que sempre quis na vida.

Léa gemeu alto e ajudou-o a tirar o suéter. Esse era o Garrick que ela conhecia, aquele que a excitava como nenhum homem o fizera. E que a achava linda e inteligente. Aquele que a amava com devoção.

Enquanto Garrick lhe contara a sua história, Léa sentira-se como se viajasse pelo espaço. Num planeta distante existira um ator, porém à medida que se aproximava havia um homem que sofrerá demais, que sentira medo, desilusão e dor. Mais perto ainda estava o homem que descera ao mais baixo nível de sua existência, e recomeçara a subir. E, ali, ao lado dela, estava agora aquele que conseguira vencer.

— Eu te amo tanto... — falou, enquanto Garrick a puxava para perto do dorso nu, pressionando-lhe os seios de encontro aos pêlos macios do peito musculoso.

Beijaram-se mais e mais, até que ele a fez deitar-se no sofá e tirou-lhe a calça jeans. Quando Léa ficou totalmente nua, Garrick começou a acariciá-la com os lábios até tocar-lhe o sexo.

Agarrada com força no encosto do sofá, ela fechou os olhos imersa no doce tormento provocado pela língua de Garrick. Então, o mundo começou a girar e, com todos os músculos retesados, gritou por ele:

— Garrick!

— Oh, meu amor, meu amor — ele sussurrou. Em seguida abriu o zíper da calça e a penetrou seguindo com Léa os caminhos do prazer.

Só depois, cansados, deixaram que as emoções mais dolorosas aflorassem. E Léa chorou, abraçada a Garrick que tinha os olhos também umedecidos pelas lágrimas.

— Quero me casar com você, Léa, mas não vou pedir que me dê uma resposta agora. Não depois de tudo que houve hoje; não seria justo. Porém, continuarei desejando isso, pois é a única coisa que desejo neste mundo.

Léa acenou que sim, mas não disse uma palavra. Estava exausta... e feliz. Muita coisa acontecera, entretanto, havia uma outra coisa que vinha lado a lado com um casamento que ela ainda não lhe contara. Sim, ela também tinha segredos, e a obrigação de revelá-los agora era dela.

Assim como a Garrick, o destino se encarregaria de apresentar o melhor momento para que Léa lhe contasse seu segredo.

Um mês já se passara desde que chegara na cabana e dia após dia, viviam imersos na felicidade. Com a melhora do tempo puderam usar a caminhonete de Garrick para ir até a cidade comprar mantimentos e conhecer a comunidade de artistas e pedir informações sobre as aulas de tear. Voltaram até a cabana de Vitória, desatolaram o carro de Léa e o levaram até o chalé de Garrick. Davam longos passeios pelo bosque, geralmente de manhã cedo, quando ele ia verificar as armadilhas que preparara para os coiotes e várias vezes haviam feito piqueniques, sentindo o cheiro da primavera que não demoraria a chegar.

Então, certa manhã Léa acordou sentindo-se um pouco tonta. No entanto, a indisposição passou logo, e ela não pensou mais no assunto. Mas na manhã seguinte a tontura voltou, desta vez seguida por náuseas. Garrick a viu correndo para o banheiro e ficou preocupado. Seguiu-a e a encontrou debruçada sobre o vaso sanitário.

— O que houve, amor? — ele perguntou, colocando uma toalha úmida na testa de Léa.

— Garrick... oh... Ele segurou-lhe a testa, ajudando-a depois a enxaguar o rosto.

— O que há, Léa? — ele repetiu a pergunta.

— Não pensei que pudesse acontecer... não pensei...

— O quê, meu amor?

— Nunca fiquei assim enjoada... — Ela o olhava desnorteada.

— Léa?

— Oh, Garrick! — Ela cobriu o rosto com as mãos, então abaixou-as e agarrou-se a ele. — Me abrace — pediu. — Apenas me abrace forte.

— Está me assustando, Léa — Garrick falou, apertando-a contra o peito.

— Eu sei... me desculpe... acho que estou esperando um bebê.

Por um momento ficaram abraçados em silêncio, então começaram ambos a tremer. Segurando-lhe o rosto com as duas mãos, Garrick afastou-a um pouco e a olhou nos olhos.

— Eu pensei... quer dizer, achei que você... eu não devia... tem certeza?

— Não.

— Mas está bastante desconfiada?

— Este enjôo, e ontem me senti tonta. E além disso minha menstruação não veio.

— Você não estava usando nada, um DIU?

Os olhos dela estavam marejados de lágrimas.

Não.

— Já ficou grávida alguma vez?

Ela fez que sim e desatou a chorar.

Garrick apertou-a novamente si e a acariciou nas costas, procurando acalmá-la.

— O que aconteceu? — ele murmurou. Demorou um pouco até que Léa pudesse responder e, quando o fez foi com a voz cheia de dor.

— Os bebês nasceram mortos.

— Bebês?

— Dois. Duas gestações diferentes. Ambos mortos.

— Oh, Léa... sinto muito.

Ela soluçava, mas mesmo assim continuou a falar.

— Eu os queria... tanto... e Richard também. Ele me culpou... mesmo quando os médicos disseram... que eu não havia feito nada errado.

— É claro que você não fez nada de errado. O que disseram os médicos?

— Isso é o pior de tudo... não souberam explicar a causa!

— Calma, está tudo bem. — E ele a embalou como a uma criança, enquanto um sorriso se formava em seus lábios. Um bebê. Léa ia ter um bebê! Um filho seu. — Nosso bebê — ele sussurrou.

— Ainda não tenho certeza.

— Então, teremos de ir até o médico mais próximo para termos certeza.

— Oh, Garrick — ela recomeçou a chorar. — Tenho tanto medo.

Ele abaixou o rosto, acariciando-a com dedos firmes, enquanto enxugava-lhe as lágrimas.

— Não há o que temer. Estou aqui com você. Ficaremos juntos aconteça o que acontecer.

— Você não compreende! Eu quero este bebê; o nosso bebê, e se alguma coisa acontecer a ele, não sei o que farei!

— Nada de ruim vai acontecer. Não deixarei.

— Mas, não há nada que você possa fazer. Ninguém pôde da última vez, nem da outra...

— Agora vai ser diferente — ele afirmou categórico. E, pegando-a no colo, Garrick a levou até a cama. — Agora, descanse. Mais tarde iremos tirar uma licença de casamento.

— Não, Garrick.

— O que quer dizer com não?

— Não quero me casar por enquanto.

— Por que ainda não tem certeza de estar grávida? Quero me casar com você de qualquer modo. Você ama, não é?

— Amo, muito.

— E eu te amo. Então, se estiver mesmo esperando bebê, nossa vida estará completa.

— Não quero me casar ainda.

— Por que não?

— Porque não sei se posso ter filhos... E, se não puder, ficarei achando que nos casamos cedo demais e que você se ressentirá de estar ligado a mim de maneira irreversível.

— Esta é a coisa mais boba que já ouvi você dizer. Eu amo você, Léa. E já disse antes que queria me casar com você.

— Você algum dia pensou em ter filhos?

— Claro que sim.

— Mas eu...

— Léa, querida, até você chegar aqui eu pensava que seria capaz de seguir em frente sozinho. Então, você chegou e mudou minha vida. Não vê? Com bebê ou sem bebê, ter você a meu lado é muito mais do que eu podia sonhar...

— Por favor — Léa pressionou-lhe a mão contra o peito. — Eu preciso esperar. Preciso saber o que vai acontecer. Se... se algo der errado e você ainda me quiser, prometo que me caso. Mas, não me sinto capaz de fazer isso agora. Se eu estiver mesmo grávida, os próximos meses serão muito difíceis para mim. Se, além disso tiver de me preocupar com o sucesso de nosso casamento... — A voz de Léa transformou-se num sussurro. — Acho que não suportaria passar por tudo novamente.

Garrick fechou os olhos, compreendendo de repente o que ela sentia. Jogou a cabeça para trás, respirou fundo e voltou a fixar os olhos em Léa.

— Então, foi isso que houve com Richard?

— Sim.

— Você mencionou outro motivo...

— Existiram outros empecilhos, e talvez o casamento não fosse em frente de qualquer jeito. Mas o bebê, os bebês foram a gota d'água. Richard esperava que eu lhe desse filhos; faziam parte da imagem social: esposa, casa, crianças... Da primeira vez dissemos a nós mesmos que fora o destino. Mas, depois da segunda, com toda a espera, as orações, a preocupação... bem, não havia mais esperanças para nós como marido e mulher.

— Mas que homem! — Garrick grunhiu. — Poderiam ter adotado uma criança...

— Oh, garrick...

— Quero você, Léa. Se tivermos filhos, ficarei muito feliz. Mas se não pudermos e mesmo assim o desejarmos adotaremos uma criança.

Léa fechou os olhos, exausta.

— Ficar grávida não estava em meus planos.

— Algumas das melhores coisas da vida acontecem sem que haja planejamento.

— Eu preferiria ter esperado e só tentar ter um filho depois.

— Case-se comigo, Léa.

Ela abriu os olhos, tomou a mão de Garrick entre as suas e a levou aos lábios. Beijou com ternura cada um dos dedos longos, então pressionou-os contra o rosto.

— Eu amo tanto você que meu peito chega a doer, Garrick, porém, quero esperar. Por favor... Se você me ama, então tenha paciência comigo.

Garrick não concordava, mas eram os sentimentos de Léa que importavam no momento, e ele não teve outra alternativa se não concordar.

— Se não estiver esperando bebê, vai pensar no assunto?

Com enorme alívio, ela fez que sim.

— E se estiver grávida, e mudar de idéia a qualquer momento nos próximos meses, você me dirá?

Mais uma vez ela concordou.

— Quando o bebê vier ao mundo, gritando e batendo as perninhas, terá de esperar por sua refeição até que o juiz tenha declarado seus pais marido e mulher.

— Casar num quarto de hospital?

— Sim, senhora.

Léa inclinou o corpo para a frente, abraçando-o com força.

— Amo você, Garrick Rodenhiser.

 

Quando o médico confirmou, afinal, a gravidez de Léa, sua reação inicial foi de incontida felicidade, só superada pela alegria demonstrada por Garrick. Depois, porém, o medo, a preocupação e a dúvida em como lidar com aquela nova gestação tomaram conta dela.

— Gostaria de consultar meu médico em Nova York — declarou, sentada lado a lado com Garrick nos degraus de entrada do chalé. Era um lindo dia, conturbado apenas pela preocupação de Léa.

— Não haverá problema. Posso levá-la amanhã até a cidade, para que possa se comunicar com ele. Inclusive, andei pensando em comprar um aparelho telefônico para instalar aqui na cabana.

Um telefone sempre estivera fora dos planos de Garrick, entretanto, agora que Léa estava grávida, o aparelho poderia significar muito num caso de emergência.

Tímida, Léa levantou os olhos para ele.

— Eu queria mesmo é ir até Nova York. — Ao ver os olhos de Garrick se arregalando, alarmado, apressou-se em completar: — Apenas para ver o dr. John Reiner.

— Não gostou do médico que consultamos?

— Não é isso; é que John conhece todo meu histórico médico.

— Não basta falar pelo telefone?

— Gostaria de vê-lo pessoalmente.

Garrick a compreendia e, na verdade, há dias vinha desconfiando de que Léa desejava lhe dizer algo.

— Não está pensando em ter o bebê em Nova York, não é?

— Oh, não — ela garantiu. — É que para minha tranqüilidade gostaria de falar com John. Seria apenas um exame. Ele pode fazer alguma sugestão, como uma dieta especial, exercícios, vitaminas, qualquer coisa que possa aumentar as chances de que o bebê sobreviva.

Colocado desse modo, Garrick não podia recusar. Ele também queria muito aquele filho. Mesmo assim, não agradava-lhe a idéia de vê-la partir, por poucos dias que fosse. E não poderia ir com ela.

— Levarei você até Concord, a cidade mais próxima, e de lá pode tomar um avião para Nova York. Avisarei Vitória para ir buscá-la no aeroporto.

— Você não vem? — ela perguntou baixinho.

— Não, eu não poderia. Com um sinal de cabeça, Léa abaixou o olhar. Ainda não aprendera a conviver com a expressão "Não posso", que representava o medo de Garrick e, embora ela não concordasse, esforçava-se em respeitar.

— Precisarei telefonar antes marcando consulta, mas acho quê ele arranjará um horário para me examinar na próxima semana. Posso ir e voltar no mesmo dia.

— Não, Léa, isso não... Não quero que nada lhe aconteça. Com a correria dos vôos e a consulta você ficaria muito cansada e tensa.

— Descansarei quando voltar, querido.

— Passe a noite com Vitória e volte no dia seguinte

— ele insistiu. — Assim não ficarei tão preocupado.

Na semana seguinte, Léa foi para Nova York. Vitória ficou exultante ao saber que Léa e Garrick estavam apaixonados e deu pulos de alegria quando a amiga lhe contou o motivo de sua ida a Nova York.

Entretanto, algumas coisas que o médico declarou deixaram Léa muito preocupada. E aquela apreensão aumentou quando de volta, encontrou Garrick no aeroporto.

— Como está se sentindo? — indagou apreensivo enquanto seguiam para o automóvel. Ele havia telefonado na noite anterior para a casa de Vitória, do aparelho recém-instalado, e ficara sabendo que o médico a achara bem.

— Cansada — ela respondeu arrumando os óculos.

— Você é que está certo; aquela cidade é uma selva. Não sei como consegui morar a minha vida toda lá.

— Venha, Léa — ele disse, enlaçando-a pela cintura.

— Vamos para casa.

Durante a maior parte do caminho Léa permaneceu em silêncio. Com a cabeça apoiada no encosto e os olhos fechados, procurava as palavras certas para contar a Garrick o que o médico recomendara.

Ao chegarem na cabana ficou sem coragem de dizê-lo, pois Garrick surpreendeu-a com um pequeno tear e um livro que a ensinava a tecer. Léa ficou tão emocionada com a gentileza dele, que não quis estragar o momento.

Na manhã seguinte, porém, acordou decidida a falar. Não importava o quanto fosse difícil para ambos; o mais importante era que o bebê nascesse bem.

— O que há, amor? — Garrick indagou em voz baixa.

Umedecendo os lábios, Léa apoiou-se num cotovelo e acariciou a barba de Garrick.

— John deu uma sugestão que, acho, não vai agradar a você.

— Verdade? Não vamos mais poder fazer amor?

— Não é isso.

— Então, o que é?

Léa suspirou fundo, tomando coragem.

— Ele acha que seria melhor eu ficar perto de um hospital, da metade da gravidez em diante.

— Perto de um hospital? O que quer dizer?

— Significa morar na cidade. Ele me deu o nome de um colega que viveu em Nova York há vários anos e que agora dirige o departamento de obstetrícia de um hospital em Concord. John tem total confiança nele e quer que esse colega acompanhe minha gravidez.

— Entendo — foi o que Garrick disse, recostando-se no travesseiro. — Como se sente a respeito disso?

— Quero o melhor para o bebê.

— Eu também.

— O que, exatamente, seu médico acha que o colega de Concord poderia fazer por você?

— Um bom acompanhamento. John sugeriu que eu consultasse logo esse médico. E disse que falaria com o colega pelo telefone e enviaria uma cópia de minha ficha médica e exames. Geralmente... — ela hesitou, então prosseguiu — geralmente neste estágio da gestação as consultas médicas são mensais. Mas, John quer que eu as faça quinzenalmente.

Garrick a abraçou e a beijou de leve nos lábios.

— Vai dar tudo certo, Léa. Não se preocupe. Faremos esse acompanhamento direitinho.

Garrick levava Léa duas vezes por mês até Concord, para as consultas médicas, mas assim que terminavam ele dirigia imediatamente de volta para casa. Garrick só se sentia bem num ambiente familiar.

Com o início do verão, eles trocaram as calças compridas e os suéteres por shorts e camisetas. Na maioria das vezes, trabalhando ao ar livre, Garrick dispensava até a camiseta, e Léa adorava vê-lo de peito nu. O suor fazia sua pele brilhar, realçando os músculos firmes das costas e dos braços. A pele adquirira um tom bronzeado e os cabelos estavam mais claros por causa do sol.

Garrick aos poucos foi colocando o jardim em ordem, e Léa ficava horas a seu lado, tecendo, tomando sol ou elaborando palavras cruzadas. Enviava constantemente seu trabalho para a editora em Nova York e, o fato de agora possuírem um telefone facilitava bastante a comunicação.

Os enjôos do início e o sono já haviam passado e, no princípio do mês de julho, Léa se sentia ótima e uma barriguinha já começava a aparecer.

Estavam mais apaixonados do que nunca. Garrick esforçava-se para realizar os menores desejos de Léa, cobrindo-a de atenção e carinho. E ela, por sua vez, fazia de tudo para tornar cada dia especial.

Ela não queria pensar muito na gravidez. Estava por demais apavorada para deixar-se levar por sonhos ou esperanças. Na metade do mês de julho submeteu-se a um exame de amniocentese, cujo resultado foi que o bebê até então se encontrava bem. Nem ela nem Garrick quiseram saber o sexo da criança.

Às vezes quando estava entalhando objetos em madeira, ou ouvindo música no gravador de Léa, Garrick deixava os pensamentos vagarem e, nesses momentos, tinha sentimentos confusos em relação ao bebê. Oh, é claro que queria aquele filho; mas assentia-se pois sabia que ele levaria Léa para longe. E evitaram tocar no assunto até que ela atingisse a metade da gestação. Mesmo na época em que não comentavam sobre a partida dela, Garrick sabia o que lhe passava pela mente, ao ficar de cabeça baixa, pensativa. E ele temia o dia em que, afinal, teriam de enfrentar o dilema. E esse dia chegou.

— Temos de conversar, Garrick — ela afirmou sentando-se ao lado dele no balanço que haviam colocado na varanda.

— Eu sei.

— O dr. Walsh quer que eu me mude para perto do hospital.

Garrick balançou a cabeça em silêncio.

— Você vai comigo? — ela perguntou.

De olhos fixos nas árvores à sua frente, Garrick suspirou fundo. Quando falou, sua voz era decidida:

— Não posso.

— Se quiser, pode.

— Não posso.

— Por que não?

— Porque meu lugar é aqui. Não poderia viver novamente numa cidade.

— Pode, se realmente se esforçar.

— Não.

— Não estou lhe pedindo que se mude para sempre. Seria por quatro meses, mais ou menos. Dr. Walsh está pensando em fazer uma cesariana em dezembro.

Garrick engoliu em seco.

— Estarei lá com você.

— Mas eu quero você comigo todo o tempo. Ele a encarou, sério.

— Não posso, Léa. Não posso... Léa tentava ser compreensiva, mas Garrick não a estava ajudando muito.

— Por quê? Por favor, me diga por quê?

Ele se levantou de repente do balanço e, com apenas um passo já se encontrava encostado na grade da varanda, de costas para Léa.

— Há muita coisa a ser feita por aqui. A estação de caça começa no final de outubro, e tenho de preparar tudo até lá.

— Garrick, você quer mesmo este bebê?

— Que pergunta boba; você sabe que sim.

— Você me ama?

— Claro!

Léa levantou os olhos para ele que continuava de costas.

— Então, porque não pode fazer isso por mim? Pelo bebê... Por nós?

— Você não compreende — gemeu Garrick.

— Eu entendo sim! — ela gritou, levantando-se do balanço e indo para o lado dele. — Você tem medo... das pessoas, da cidade, medo de ser reconhecido. Isso é ridículo, Garrick! Você construiu uma nova vida. Não tem nada de que se envergonhar!

— Tenho sim, passei dezessete anos agindo como um imbecil.

— Você pagou o preço e reconstruiu sua vida. E daí se alguém reconhecer você? Tem vergonha do que é agora?

— Não!

— Então, por que não pode viver de cabeça erguida?

— Não tem nada a ver com orgulho. O que sou agora é mil vezes melhor do que já fui. Você é a melhor coisa que já tive na vida.

— Então, Garrick... por que fica nervoso cada vez que nos aproximamos de uma cidade? Pensa que não vejo? Seus ombros ficam tensos, você abaixa a cabeça, evita olhar para as pessoas. Não entra em restaurantes, só pensa em voltar para cá.

— Está cansada de não poder ir à cidade quando quer?

— Claro que não! O que não suporto é ver o jeito como você fica. Eu amo você; tenho orgulho de você. Me machuca vê-lo pelos cantos como... se estivesse sendo caçado.

— Eu sei tudo sobre armadilhas e caça. Às vezes a gente não as vê até que esteja irremediavelmente preso.

— Aja como um coiote, que nunca é preso duas vezes na mesma armadilha.

— O coiote é um animal. Eu sou humano. — Isso mesmo. Você é inteligente, forte...

— Forte? Nem tanto. O que tive por dezessete anos, Léa era uma espécie de doença. Um vício. E, se há coisa que um ex-viciado não pode fazer, é deixar que lhe apontem o vício bem debaixo de seu nariz. Não quero entrar em restaurantes que possuam um bar, porque teria de caminhar entre todas aquelas garrafas, até chegar à minha mesa. Não gosto de encarar estranhos, pois se me reconhecerem passarão a me olhar de maneira diferente. Não assisto televisão, nem vou ao cinema.

— Não confia em si mesmo. — Ela entendia finalmente a extensão do medo de Garrick.

— Não. Quando você chegou, pensei que fosse uma repórter. Queria me livrar de você o mais rápido possível. E, sabe por quê? Se uma repórter, especialmente uma repórter bonita, viesse me entrevistar, eu me sentiria importante. Então, eu iria pensar que já paguei minha pena e, quem sabe, poderia tentar tudo de novo.

— Mas você diz que não quer mais!

— Quando estou aqui, não. Quando sou racional, não. Mas, quem disse que, após ter agido como um irracional por tantos anos, eu não teria uma recaída?

— Você não faria isso. Não depois de tudo que passou.

— Isso é o que digo a mim mesmo — ele declarou, cansado. — Não sei como reagiria cara a cara com a tentação.

— Não acha que está na hora de tentar? Não pode passar o resto de sua vida se escondendo. — Ela acariciou-lhe o rosto de leve. — Você tem sido feliz aqui. Não seria bom provar a si mesmo de uma vez por todas que tem força e coragem, como eu sei que você tem?

— Você me ama. Vê o mundo sob lentes cor-de-rosa. Léa deixou as mãos caírem, suprimindo um gesto de

raiva.

— Minhas lentes são transparentes. Eu amo você, mas já passei por um casamento falido e sei ser realista em matéria de amor. Entrei nesta relação de olhos bem abertos...

— Não sei não...

— Entrei sim. Ora, Garrick, vejo muito os bem seus defeitos; todos nós os temos. Isso é que significa ser humano. Você conseguiu vencer suas próprias fraquezas uma vez. Porque não tenta vencer esta última?

— Porque tenho medo de falhar! Posso encarar a tentação e não resistir. E o que aconteceria a mim, a nós e ao bebê?

— Não vai acontecer nada — ela falou baixinho.

— É uma garantia?

— A vida não nos dá certificado de garantia.

— Pois é...

— No entanto, você tem muito mais pelo que lutar, agora. Tem uma nova vida; tem a mim. Eu não ficaria aqui sentada vendo você afundar na lama, se autodestruir. Eu te amo, Garrick. Isso não significa nada para você?

Garrick virou o rosto, procurando pela mão de Léa, que segurou entre as suas.

— Significa muito, muito mais do que possa imaginar.

— Então, venha comigo — ela implorou. — Sei que você teria de deixar de lado a temporada de caça, mas não precisa do dinheiro. Você mesmo disse. E esta é uma exceção, não irá acontecer todo ano. Pode ser que nunca mais aconteça.

— Mas, Léa...

— Preciso de você.

— Acho que precisa de algo que não posso lhe dar.

— Olhe só pelo que já passou, meu amor! Não é qualquer um que consegue dar a volta por cima e se transformar em alguém que... — Ela pensou por um instante, então prosseguiu: — Que quer recolher uma desconhecida cheia de lama, mesmo suspeitando que ela está ali para bisbilhotar sua vida.

Garrick sorriu com amargura.

— Você estava tão engraçada...

— O fato é que você quer o melhor para nós. Você é capaz de fazer qualquer coisa a que se proponha.

— Ah, Léa... — Ele jogou a cabeça para trás. — Você faz tudo parecer tão simples. Talvez eu conseguisse se tivesse você a meu lado a cada segundo, repetindo tais coisas. Só que não poderia viver tão dependente. Não quero. Preciso contar apenas comigo. Aqui sei que posso fazer isso.

— Você me pediu em casamento. Quer dizer que nunca tiraremos umas férias, nunca iremos a um lugar diferente?

— Se você fica entediada de estar aqui...

— Não, e você sabe disso! Mas todo mundo precisa de uma mudança de vez em quando. Suponha, apenas suponha que nosso bebê sobreviva...

— Ele vai viver!

— Vê, consegue ser otimista com relação ao nosso filho. E eu, embora muito preocupada e não com tanto otimismo quanto você, estou me arriscando novamente...

— Nós não planejamos; aconteceu.

— Eu poderia ter feito um aborto.

— Você nunca faria um aborto; não é desse tipo.

— Assim como você não é o tipo de pessoa que desiste com facilidade. Poderia ter desistido de viver naquele hospital, ou voltar a beber assim que estivesse bem. Mas, não. Você decidiu construir uma nova vida, coisa que poucas pessoas teriam coragem de fazer, tudo o que estou lhe pedindo é que dê mais um passo nessa sua caminhada. — Ela balançou a cabeça, desalentada. — Garrick, se eu realmente conseguir ter essa criança ela irá se tornar cada vez mais exigente, e haverá momentos em que desejarei ir para algum lugar a sós com meu marido. Quem sabe um local que tenha o inverno mais ameno, ou mais fresquinho no verão? Pode ser que tenha vontade de conhecer um lugar exótico, como Pequim ou o Cairo. Não teria nada a ver com tédio, ou não gostar de viver com você e nosso filho nas montanhas. Seria simplesmente um desejo natural de ver outras pessoas, aprender coisas novas. Você recusaria?

Garrick ficou algum tempo em silêncio.

— Nunca cheguei a pensar numa coisa dessas.

— Pois é... acho que já era tempo.

— Antes de voltar a falar em casamento?

— Isso mesmo.

— É um ultimato, Léa?

— Ultimato? Já usei essa palavra várias vezes em minhas palavras cruzadas... — retirando os óculos, ela massageou o nariz. — Não, é apenas algo para se pensar.

Como Léa permanecesse de cabeça baixa, Garrick a fez olhar para ele, com o dedo indicador. As lágrimas que turvavam-lhe os olhos atingiram-no em cheio, mesmo assim ele disse o que estava sentindo.

— Eu te amo, Léa, e continuarei te amando quer você esteja em Concord ou aqui. Mas, não posso ir com I você. Ainda não. Preciso esclarecer certas coisas para mim mesmo. Continuo querendo me casar com você; isso também não irá mudar. No entanto, talvez fosse bom ficarmos algum tempo separados um do outro. Enquanto estiver em Concord, sendo cuidada de perto pelo dr. Walsh, poderei analisar se sou o homem que você deseja como marido. Com ou sem filho, você merece a chance de ser feliz e, se eu for um obstáculo... então, seria bom você ter um tempo para analisar seus sentimentos...

Léa não sabia mais o que dizer. Já havia explicado tudo o que pensava e nada parecia mudar o modo de ele pensar. Simplesmente fechou os olhos e deixou-se envolver pelos braços de Garrick.

Léa partiu no dia seguinte, enquanto Garrick estava nas montanhas. Não levou muito tempo para fazer a mala, já que possuía poucas roupas. Os objetos1 que mais queria consigo eram seus livros, o gravador e o tear, e estes ela carregou facilmente até o carro. Arrumou tudo o mais rápido que pôde, parando apenas para escrever um bilhete:

"Querido, todos nós às vezes nos acovardamos perante a vida e é exatamente o que acontece comigo neste momento. Não tive coragem de me despedir de você. Telefonarei de Concord hoje à noite para lhe dizer onde vou ficar.

Te amo, sempre Léa"

Embora ela não tivesse consulta marcada para aquele dia, Léa foi rapidamente atendida pelo dr. Walsh.

— O que houve? Não está se sentindo bem? — ele perguntou assim que ela estava acomodada no consultório.

— Está tudo bem — Léa forçou um sorriso. — Mas acho que poderia me ajudar a resolver um probleminha. Acabei de chegar e... bem, não tenho onde ficar e, como o senhor está acostumado com a cidade, pensei que pudesse me indicar um local onde pudesse ficar. Um apartamento pequeno, mobiliado talvez.

Walsh ficou calado por alguns instantes, os olhos plácidos dando coragem a sua paciente.

— Você está só — refletiu em voz alta.

— Sim.

— Onde está Garrick?

— No chalé.

— Há algum problema entre vocês, Léa?

— Nada sério. Ele acha que não poderia ficar aqui por tanto tempo...

— E como se sente em relação a isso?

— Bem.

— Mesmo?

— Acho que sim.

Mais uma vez o médico silenciou, passando a mão pelo queixo bem barbeado. Quando falou, seu tom era extremamente gentil.

— Muitas pessoas acham que meu trabalho limita-se à parte física das gestantes, examinando uma mulher atrás da outra, prescrevendo vitaminas, trazendo bebês m ao mundo. Porém, há muito mais, Léa. A gravidez é uma época de mudanças importantes na vida de uma mulher, que acarreta problemas emocionais também. Faz parte de meu trabalho, e de meu jeito de ser, ajudar as minhas pacientes em todos os sentidos. Do ponto de vista médico, uma gestação tranqüila sem preocupações é muito saudável tanto para a mãe como para a criança. — Ele respirou fundo, colocando as mãos sobre a mesa. —Veja bem, de acordo com seu histórico médico, você já tem preocupações de sobra. Trazê-la para perto do hospital me dá uma segurança maior quanto à proximidade física, mas eu pensava também que você ficaria livre de qualquer problema emocional.

— Mas eu estou bem, acredite.

— Só que das outras vezes Garrick veio junto. Me diga, Léa, honestamente, o que a preocupa?

Não havia como não se sentir confortável e segura conversando com aquele homem. Era como se ele possuísse um sensor para detectar as necessidades de suas pacientes. Sabia quando falar e quando se calar.

— O que está sentindo, pelo fato dele não estar aqui com você? — o médico insistiu.

— Várias coisas diferentes...

— Cite uma.

— Tristeza. Sinto falta dele. Sei que faz poucas horas que parti, mas mesmo assim sinto saudade. Não é só isso; fico pensando nele sozinho no chalé e sinto pena. Sei que é tolice de minha parte, ele já é um adulto, sabe cuidar de si. Garrick viveu sozinho muitos anos antes de eu chegar. Mesmo assim, isso me incomoda...

— Porque você o ama, é isso.

— É...

— O que mais está sentindo? — ele a encorajou. Léa pensou um pouco e depois disse:

— Desânimo. Vivi algum tempo sozinha, sei cuidar de mim mesma. Mesmo assim, aqui estou eu, batendo na porta de seu consultório pedindo ajuda, sem saber onde passar a noite. É como se estivesse...

— Uma mulher grávida se sente muito mais vulnerável.

— É isso, me sinto vulnerável, completamente desamparada.

— E o que mais?

— Léa levantou um dos ombros colocando a cabeça de lado, enquanto abaixava o olhar.

— Raiva. Ressentimento. Garrick tem suas razões, e eu tento aceitar, mas está sendo muito difícil.

— O que está sentindo é absolutamente normal, Léa.

— Ele até queria se casar.

— Agora mudou de idéia?

— Não, porém, mesmo que estivéssemos casados, duvido que ele viesse para cá, comigo. Ele tem um... problema. E não posso comentá-lo com o senhor.

— E respeito você por isso, Léa. Pretende entrar em contato com ele?

— Eu disse que telefonaria hoje à noite.

— Acha que ele virá visitá-la.

— Não sei. Ele falou que estaria aqui quando o bebê nascesse.

— Bem, então vamos esperar pelo curso natural dos acontecimentos. E fique tranqüila, no fim tudo vai dar certo.

— Espero doutor, espero...

— E quanto ao seu pedido, acho que tenho a solução perfeita: você pôde ficar na minha casa.

— Na sua casa?

— Eu e minha esposa há alguns anos resolvemos deixar Nova York. Sabe, ela está muito doente, presa em uma cadeira de rodas. Estava sendo difícil continuar numa metrópole como aquela.

— Sinto muito — ela murmurou.

— Bem, quando fui chamado para dirigir o departamento de obstetrícia deste hospital, procuramos uma casa que tivesse lugar para acomodar nossos filhos, quando viessem nos visitar. Há, portanto, um apartamento pequeno junto à garagem, totalmente mobiliado e independente da casa. Se quiser aceitar, ficaria perto do hospital e do médico. Além do mais, Susan adoraria ter companhia.

— Eu não poderia...

— Você não atrapalhará em nada, e eu teria certeza de que estaria confortável.

— Eu não lhe causaria problemas, doutor?

— Olhe, deixe-me lhe dizer uma coisa, Léa. Um dos motivos pelo qual quis deixar Nova York, é que já estava cansado dos regulamentos que transformam a relação médico-paciente numa coisa fria e impessoal. E aqui em Concord consegui mudar um comportamento que para mim sempre foi deplorável.

— Gostaria, então de pagar um aluguel. — Ela franziu os olhos, fazendo uma careta — Ah, da última vez que me preocupei com aluguel, a casa havia sido destruída.

— Este apartamento não foi destruído e, se a faz sentir-se melhor, pode pagar o aluguel.

— Então, aceito — ela sorriu. — Obrigada, dr. Walsh.

— Obrigado você! Fez com que eu ganhasse meu dia. — Ante o olhar surpreso de Léa, ele explicou. — Quando consigo fazer um paciente sorrir, especialmente uma que estava tão triste quanto você, sei que estou fazendo meu trabalho direito.

— E está mesmo — O sorriso de Léa alargou-se. — Pode ter certeza, dr. Walsh.

 

O apartamento junto à garagem era tão confortável quanto o dr. Walsh havia dito. Com o espaço dividido entre a sala de estar, o dormitório e uma pequena cozinha, parecia menor que o chalé, mas era aconchegante. A mobília em palhinha, e vários almofadões estampados de azul e branco davam um tom informal ao ambiente.

Susan Walsh, apesar de presa à cadeira de rodas encarava a vida com otimismo. Durante o dia Léa sentia-se muito bem, mas à noite, quando deitava-se, a solidão lhe parecia insuportável

Fisicamente, tudo ia bem. Consultava-se com o dr. Walsh no hospital, a cada quinze dias e não havia com que se preocupar, já que os resultados dos exames eram tranqüilizadores. Não sentia nada de anormal, apenas os movimentos do bebê, que tornavam-se cada vez mais freqüentes à medida que as semanas avançavam.

Já se encontrava em Concord havia quase um mês quando acordou uma noite sobressaltada. Ainda de olhos fechados, colocou a mão sobre o ventre. Nada, nenhuma dor, nem contração prematura. Mal respirava, tentando identificar o que a havia acordado, quando dedos carinhosos tocaram seu rosto.

Ela arregalou os olhos e virou-se bruscamente, um grito preso na garganta.

— Psss... — Mãos suaves acariciaram seus ombros — Sou eu.

Tudo o que Léa podia enxergar eram formas inexatas à luz da madrugada.

— Garrick? — sussurrou, ao mesmo tempo em que agarrava os pulsos que envolviam seus ombros.

— Desculpe se assustei você.

Ela se afastou um pouco, segurando os braços incapaz de acreditar que era Garrick quem estava a seu lado na cama.

— Assustar? Você quase me mata — ela exclamou baixinho. — O que... por que... a esta hora?

Ele deu de ombros e sorriu.

— Não demorou tanto quanto eu pensava, para fazer as malas.

— Malas?

— Sim, vim ficar com você.

Repetindo o nome dele, quase chorando, Léa se atirou nos braços de Garrick, abraçando-o com força.

— Aquele chalé não vale nada sem você — confessou com um sussurro. — Me senti muito mal depois que você partiu.

Léa não conseguiu conter um riso nervoso.

— Verdade?

— Não sabe como o chalé ficou vazio...

— Oh Garrick... — falou junto ao pescoço dele. — Mas, e a sua firme decisão em não vir para cá...

— Você escreveu as palavras certas no bilhete que me deixou. E elas ficaram martelando em minha cabeça até que não agüentei mais. Não sei o que vai acontecer aqui, porém preciso tentar. Não tenho outra escolha. Estar junto de você significa muito para mim.

— Garrick... confie em você. Confie na sua tenacidade e tudo vai se resolver.

Eu vou tentar, querida...

— Agora quero muito fazer amor com você.

— Te amo Léa... Te amo tanto...

Garrick procurou encontrar interesses próprios em Concord. Assim que chegou inscreveu-se em algumas disciplinas na faculdade local.

E os dias transcorriam numa paz imensa. Como p doutor Walsh recomendara exercícios para Léa, ele sempre a levava para passear. Numa dessas caminhadas Léa lhe perguntou:

— Como se sente?

— Nada mau.

— Nervoso?

— Até que não. Ninguém parece me reconhecer. Nem me olham duas vezes — suspirou. — Se eu não tivesse juízo, acho que ficaria ofendido.

— É justamente porque tem juízo que não está. E a escola? Alguma surpresa desagradável?

— Não.

E Garrick não contou à Léa sobre a ansiedade que sentira num daqueles primeiros dias, quando tivera vontade de tomar alguma bebida alcoólica para relaxar. Nem disse a ela sobre as vezes em que permanecera parado, olhando os cartazes espalhados pelo campus, oferecendo trabalho em produções dramáticas...

Em Outubro, Garrick sentiu muito vontade de mostrar a Léa as cores do outono vistas do chalé, mas não arriscaria uma viagem às montanhas. O bebê estava cada vez maior e o corpo dela cada vez mais pesado, em termos de conforto e segurança, sabia que o melhor seria permanecer em Concord.

Novembro trouxe acentuada queda de temperatura, ao mesmo tempo em que Garrick insistia para que se casassem. Logo, o dr. Walsh recomendou que Léa permanecesse de cama. Ela não gostou da ordem, pois significava o fim de seus passeios ao ar livre com Garrick, além de ter mais tempo para se preocupar com o parto.

Todos os exames mostravam que Léa e o bebê estavam muito bem.

— Esta criança é enorme — ela reclamou num dia em que se sentia particularmente desconfortável.

— Tal pai, tal filho — Garrick provocou.

— Ah, isso não sabemos. E se tivermos uma garota?

— Para mim pode ser menino ou menina só quero que corra tudo bem.

Cada vez mais, embora evitasse, Léa pensava na criança. De que sexo seria, como a chamariam... E, quanto mais sonhava acordada, mais nervosa ficava, já que o momento crítico se aproximava rapidamente.

Garrick também sentia-se cada vez mais ansioso, mas só uma parte desse nervosismo se relacionava com o parto. Quando estava no campus, via-se cada vez mais freqüentemente caminhando em direção ao edifício que abrigava o pequeno teatro. Por vezes, ele simplesmente permanecia do lado de fora, olhando. Um dia, porém, aventurou-se a entrar.

O teatro era escuro, com fileiras e fileiras de poltronas vazias, uma das quais ele ocupou enquanto percorria o palco com o olhar. Apoiou o queixo com a mão e observou os jovens ensaiando um texto de Tchecov.

"Até que estão se saindo bem", ele reconheceu após algum tempo. Os atores eram interrompidos de vez em quando pela diretora da peça, uma mulher cuja voz podia ouvir, embora não conseguisse ver o rosto. E todos prestavam atenção nas orientações dela e seguiam o que lhes era sugerido.

Garrick ficou imaginando o que teria acontecido, se houvesse escutado os diretores com os quais trabalhara

Será que algum daqueles jovens se tornaria um astro. O que fariam após terminar o curso? Seguiriam para Nova York, tentariam um espetáculo na Broadway? Outro cariam tudo por um modo de vida simples, como ele, mesmo havia feito?

O que pensariam se soubessem que Greg Reynolds estava sentado no fundo do teatro observando-os? Garrick suspirou. Na certa nem se lembravam mais de Greg Reynolds... Além do mais, não era Greg Reynolds que se encontrava ali incógnito, e sim Garrick Rodenhiser. E incógnito era exatamente como desejava permanecer.

Levantando-se abruptamente, saiu do teatro com pressa. (

Dias mais tarde, porém, retornou e se sentou na me ma poltrona para assistir ao ensaio. Ficou olhando se: saber ao certo por que continuava ali, tendo assuntos muito mais importantes para tratar?

Voltou lá de novo e ficou até que o ensaio terminasse e os atores, um a um, passassem diante dele. A diretora foi a última a sair e, enquanto os outros não lhe lançavam um único olhar, ela parou a seu lado.

Garrick reparou que era uma mulher bonita: alta, esbelta, com os cabelos longos presos num rabo-de-cavalo. Vestia jeans e um blusão e carregava um maço de papéis junto ao peito. Era mais jovem do que ele esperava, talvez uns vinte e cinco anos.

— Acho que conheço você — ela disse, olhando-o fixamente.

— É que tenho aparecido por aqui.

— O espetáculo estréia no próximo fim de semana. Gostaria de assistir?

— Os ensaios são mais interessantes. Permitem observar o que realmente acontece nas produções.

— É estudante de teatro?

Ele suspirou, preparando-se para levantar.

— Não exatamente.

— Um crítico?

Ele deu de ombros e se colocou de pé.

— Não. E você, o que faz?

— Estou terminando o meu curso de direção de teatro.

Quando ela se virou e começou a sair da sala, Garrick a seguiu com o coração palpitante.

— Encenar Tchecov é um trabalho ambicioso — ele comentou.

— Mas o sentido do aprendizado não é este? Um desafio?

Garrick não respondeu. Nunca havia associado suas interpretações ao aprendizado, e seu maior desafio havia sido aumentar o índice de audiência a cada semana.

— Há muito público por aqui?

— Às vezes. Para esta peça provavelmente não, já que o texto é mais sério e pesado. O pessoal daqui prefere enredos leves.

Juntos passaram pelo corredor e alcançaram a porta. Logo que o rosto de Garrick foi iluminado pela luz do sol, a moça o encarou.

— Você mora por aqui?

— Temporariamente.

— Está matriculado na faculdade?

— Faço algumas disciplinas. Pararam nos degraus de cima da escadaria. Ela continuava a encará-lo.

— Algum curso em especial?

— Latim.

— Que estranho! — a moça riu.

— Algo errado?

— Não, não. É que você me parece familiar. E, no que me consta, não conheço nenhum estudante de latim. É seu primeiro ano por aqui?

— É. Sentindo-se inexplicavelmente audacioso, apesar das mãos estarem suadas, Garrick a encarou, não sem alguma hesitação.

— O que fazia antes de vir para cá?

— Trabalhava — ele respondeu.

— Onde?

— Mais para o norte. A moça franziu as sobrancelhas, fixando o olhar na barba de Garrick.

— Desculpe a insistência, mas acho que o conheço de algum lugar.

— Devo ser parecido com alguém que conhece — ele sugeriu, com falsa indiferença.

— Pode ser... — Ela arregalou os olhos — É isso! Alguém já lhe disse que se parece com Pagen?

— Pagen?

— E, aquele personagem da televisão, de alguns anos atrás. Na verdade, seu nome é Greg Reynolds. Eu era adolescente quando ele estava no auge, era um homem muito bonito. — A moça enrubesceu, voltando a se concentrar no rosto dele — Ele sumiu de cena assim que a série acabou. Gostaria de saber o que aconteceu com Greg Reynolds.

— Talvez tenha abandonado a profissão para viver nas montanhas.

— Talvez — repetiu, pensativa, com uma ponta de dúvida. — Tem certeza de que não é ele?

"Claro que tenho", Garrick poderia ter dito, ou "Está brincando," ou "Que é isso?" Por razões que nem ele saberia explicar, apenas deu de ombros.

— Você é ele! — exclamou, com um tom de alegria na voz. É Greg Reynolds, agora tenho certeza. Os cabelos estão um pouco diferentes, a barba cresceu, mas os olhos são os mesmos... — Ela o olhava de uma maneira, que o deixou constrangido. — Faz de conta que não descobri — falou com ar de superioridade. — Seu segredo estará seguro comigo. Prometo. — De repente a maturidade que ela demonstrava desapareceu: — Não acredito que é você! Como era em Hollywood? Deve ter sido maravilhoso trabalhar naquele seriado. Eu adoro ver você! O que tem feito desde então? Já pensou em trabalhar por aqui? Não acredito que tenha abandonado completamente a profissão... não depois de tudo aquilo!

— Abandonei — respondeu com calma, embora não conseguisse diminuir o entusiasmo da moça.

— Não tinha idéia de que contávamos com uma celebridade; meus alunos adorariam conhecê-lo. Você seria uma inspiração para eles.

— Acho que não — Garrick começou a se afastar, mas a garota o segurou.

— Talvez pudesse ao menos falar ao pessoal do grupo de teatro. Sei que os professores e os alunos ficariam tão contentes quanto eu, em conhecê-lo.

— Obrigado, mas não posso.

Garrick deu alguns passos, mas ela barrou-lhe o caminho.

— Então, almoce comigo um dia. Nem imagina como eu adoraria ouvir você contar sobre suas experiências. Puxa, elas dariam um livro fantástico. Já pensou alguma vez em escrever um livro fantástico. Já pensou alguma vez em escrever um livro sobre os anos em que interpretou Pagen?

— Não. — Garrick forçou o caminho, porém a moça o seguiu.

— Então, só um almoço... ou jantar? Conheço um lugarzinho ótimo, muito tranqüilo. Ninguém ficaria sabendo que estivemos lá.

— Não tenho tempo.

A jovem parou de segui-lo, mas não resistiu a chamá-lo novamente:

— Sr. Reynolds?

Ele não respondeu. Não era o sr. Reynolds.

Naquela noite, enquanto ele e Léa terminavam de preparar um cozido, Garrick lhe contou o que acontecera.

— Você contou a ela quem era? — perguntou perplexa.

— Ela achou que eu era Pagen e não neguei. Foi estranho. Acho que no fundo queria que ela descobrisse, mas não consigo entender por quê. Você sabe como prezo meu anonimato... Por que fiz aquilo, Léa? — perguntou empurrando o óculos dela com o dedo.

— Não sei. Por acaso sentiu algo, sentado lá no teatro?

— Quer saber se senti inveja? Não.

— Não sentiu um ímpeto de subir no palco?

— Não, não.

— Saudade?

— Não senti falta da época em que trabalhava em teatro ou televisão. Estava muito feliz ali na platéia.

Léa suspirou aliviada.

— Eu ouvi esse suspiro. Ficou preocupada?

— Não quero que sinta falta de nada que diga respeito àquela vida — comentou evasiva. — E quanto à garota?

— O que tem ela?

— Acha que, de algum modo, inconscientemente talvez, você quis impressioná-la?

— Não. Ela é bonita e atraente, mas não como você — reforçou a negativa com um movimento de cabeça.

— É uma atriz?

— Não... é diretora, mas isso não tem a menor importância.

— Claro que tem. Ela está envolvida no mesmo tipo de atividade que você fazia.

— O que eu interpretava não tinha nada a ver com Tchecov, ou Shakespeare. Não, eu não estava tentando impressioná-la.

— Talvez estivesse testando a si mesmo...

— Como assim?

— Não deve ser fácil andar pela cidade, esperando que alguém nos reconheça... E, quando isso aconteceu, você ficou preocupado. É um modo de superar a situação. Talvez uma parte de você deseje que as pessoas saibam quem é.

Garrick abriu a boca para protestar, porém desistiu, e permaneceu em silêncio por um minuto.

— Talvez.

— Como se sentiu quando a verdade veio à tona? Suas sobrancelhas espessas franziram enquanto Garrick tentava expressar os pensamentos:

— Meio estranho. Um pouco orgulhoso, mas também um impostor. Me soou um pouco vago, como se ela estivesse falando de outra pessoa. A sensação era a de que eu estava participando de algum jogo, deixando que ela acreditasse que eu era Greg Reynolds, o superstar, quando eu sabia que não era.

— Ela lhe fez recordar as fãs?

— Sim e não. Ela ficou de olhos arregalados e falava alto como uma fã típica, porém não gostei nada daquilo. Na verdade, foi repulsivo. Até aquele momento eu pensei que ela fosse uma pessoa madura. — Garrick abriu um sorriso. — Tenho de admitir que me senti bem, ao me afastar dela.

— Acha que a garota ficou ofendida?

— Sinceramente, espero que sim. Com sorte, nunca mais se aproximará de mim.

— Ela sabe seu nome verdadeiro?

— Não! mas sabe que estudo latim. Não seja difícil me encontrar. Acho que vou faltar um ou dois dias e ficar aqui com você. — Ele a encarou sério.

— Covarde — brincou Léa.

Garrick cobriu as mãos dela com as suas e começou uma suave massagem.

— Quero ficar por aqui, de verdade. A hora está chegando.

— Faltam três semanas.

— Como se sente?

— Cansada.

— Emocionalmente?

— Também... A espera está me desgastando.

— Tudo dará certo, você vai ver.

— Nas outras duas vezes também diziam isso.

— Você nunca fez uma cesariana antes. Causa menos sofrimento ao feto durante o parto.

— Espero que sim.

— Tudo vai terminar bem, amor — ele apertou-lhe a mão com força. — Você vai ver. Daqui a um mês, teremos uma coisinha linda choramingando em nossos braços.

— Isso é exatamente o que disse a mim mesma durante nove meses, nas duas outras gestações.

— Mas dessa vez será diferente. É o meu bebê que você está carregando.

Era suspirou e sorriu com tristeza.

A semana seguinte Léa passou quase que totalmente na cama, com exceção da hora das refeições. Não lia muito porque era incapaz de se concentrar. Não tecia já que o tamanho da barriga tornava o passatempo bastante desconfortável. Então ouvia música, se distraindo com as novas fitas compradas por Garrick, das quais os dois gostavam.

Susan aparecia constantemente para visitá-la, na maioria das vezes enquanto Garrick estava na faculdade.

A semana de Garrick já não foi tão tranqüila. Retornou ao curso sem perder uma só aula e, embora estivesse precavido, não viu sinal da garota do teatro. No terceiro dia, exatamente quando começava a relaxar, ela o abordou na saída.

— Tenho de conversar com você um instante, Reynolds — declarou com certo nervosismo. — O que falei naquele dia era sério. Significaria muito para nós se concordasse em dar uma pequena palestra.

Ele continuou caminhando sem diminuir o passo.

— Não tenho nada a dizer.

— Tem sim. Viveu experiências com as quais apenas sonhamos.

— Não sou quem você pensa.

— É sim. Depois que conversamos naquele dia, fui até a biblioteca e estudei detalhadamente alguns microfilmes. A última notícia que se teve de Greg Reynolds foi que ele sofreu um acidente de automóvel. Ele sobreviveu e, então, desapareceu. Com o seu rosto e esse corpo, seria muita coincidência achar que você não é ele. Pesquisei a fundo. O verdadeiro nome de Reynolds é Garrick Rodenhiser, o nome com o qual você está inscrito na faculdade.

— Sou um cidadão comum, srta...

— Schumacher. Liza Schumacher.

— Não dou palestras, srta. Schumacher.

— Liza. Poderíamos reduzir essa conversa para um grupo pequeno se preferir.

— Prefiro ter minha privacidade respeitada.

— Nós pagaremos.

— Não, obrigado — ele recomeçou a caminhar.

— Uma hora, meia hora. É tudo que pedimos.

— Não — foi a resposta. E Liza Schumacher parou de segui-lo.

Mais uma vez Garrick contou a Léa sobre o encontro. E, novamente, ela quis ter certeza do que ele sentia.

— Tem certeza de que não quer ir?

— O quê? Falar? Está brincando!

— De certo modo ela tem razão. Você viveu um tipo de experiência que muitos deles gostariam de ter vivido. Não é incomum que representantes de profissões diferentes falem a grupos de estudantes.

— De que lado você está, Léa?

— Do seu, você sabe disso.

Garrick ficou de pé e se dirigiu à janela.

—. Bem, não quero falar, com estudantes ou qualquer outro grupo. E lhe digo por que: não considero muito o tipo de experiência que tive. Além disso não me agrada a idéia de confessar meus pecados a uma platéia.

— Houve um lado positivo no que fez.

— Pode ser... só que não consigo enxergá-lo. Suponho que eu pudesse contar uma boa estória...

— Garrick...

Ele continuou olhando a janela.

— Por que, realmente, não quer falar com os estudantes?

Garrick ficou em silêncio, mas sabia que Léa suspeitava da verdade.

— Está certo! — ele resmungou, afinal. — Estou é com medo de gostar da sensação de poder que toma conta de nós quando temos uma audiência a nossos pés... Rostos extasiados, adulação, aplausos. Se fizer isso uma vez, posso querer fazê-lo novamente, e se fizer uma segunda vez, viria uma terceira e aí eu poderia me agarrar à idéia de que sou um homem maravilhoso.

— Você é maravilhoso, Garrick.

Ele virou-se e sorriu, voltando a sentar ao lado de Léa na cama. Aproximou-se e levou as mãos dela aos lábios.

— Você é a única que quero ouvir dizendo isso, porque é a única que me conhece de verdade. Nunca confiei tanto em alguém como confio em você. Sabia que você é melhor do que um analista?

— Verdade? Mas prefiro ser apenas sua mulher — ela afirmou, oferecendo os lábios para um beijo.

A repentina tempestade de neve que caiu durante a primeira semana de dezembro não ajudou em nada a paz de espírito de Léa. As aulas de Garrick foram canceladas e ele permaneceu em casa a seu lado. Ela temia entrar em trabalho de parto de repente e não poder chegar a tempo no hospital.

No entanto, nada aconteceu. E dia após dia Léa sentia a criança mais baixa e, embora o dr. Wash houvesse preparado tudo para que a operação se realizasse no dia quinze, Léa achava que o bebê não esperaria tanto.

Quando a nevasca diminuiu, foi difícil para ela ver Garrick voltar às aulas. Léa se sentia fisicamente desconfortável e muito mal emocionalmente. Só quando estava com ele é que conseguia se acalmar. Mas não ousou pedir que Garrick não se afastasse. No dia 11 de dezembro, se arrependeu de não ter sido mais egoísta.

 

Garrick acabara de sair da aula, e seguia em direção a seu carro, quando ouviu alguém gritando:

— Sr. Reynolds!

Só havia uma pessoa que o chamava por aquele nome e a última coisa que queria era conversar com Liza Schumacher. Desejava ir para casa ficar ao lado de Léa.

— Sr. Reynolds, por favor, espere!

Garrick abriu a porta do carro e teve a idéia de entrar e ir embora sem explicações. Entretanto, viu que chegara a hora de parar de fugir.

— Sim, srta. Schumacher?

Respirando com dificuldade por causa da corrida, a garota parou a seu lado.

— Obrigada por esperar... minha aula foi até mais tarde.

— Eu também já estou atrasado. Deseja alguma coisa?

— Já que não se sentiria à vontade para falar, tive uma idéia. — Ela deu uma olhadela para trás e, para desagrado de Garrick, um rapaz estava indo juntar-se a eles. — Darryl trabalha para o jornal local. Eu... nós pensamos que daria um ótimo artigo...

Garrick franziu o cenho.

— Pensei que houvesse me dito que manteria em segredo.

— Eu sei, mas então comecei a pensar. Não é certo bancar a egoísta acerca de...

— Continue!

— Não me parece justo me manter em silêncio quando sei que você está aqui na cidade.

— Não lhe parece justo em relação a quem?

— Em relação às pessoas que adorariam ler sua história.

Garrick a estudou fixamente.

— E quanto a mim? O que seria justo ou injusto em relação à minha pessoa?

Liza tornou-se ainda mais teimosa.

— Mas você é um astro, sr. Reynolds, isso lhe dá certas responsabilidades.

— Não sou mais um artista, sou um cidadão comum — ele declarou com certo orgulho. — Tenho muitas responsabilidades, mas pelo que eu saiba, nenhuma delas envolve você ou seus colegas, professores ou amigos. — Garrick fez um sinal de cabeça na direção do rapaz. — Ele é seu namorado?

Liza olhou para Darryl, sem entender.

— Nós saímos juntos algumas vezes, mas isso não tem nada a ver com...

— São amantes?

— Isso não...

Ele se virou para o rapaz:

— Ela é sua amante? Liza ficou vermelha.

— Isso não é da sua conta. Não vejo o que minha vida íntima tenha a ver com...

— Minha vida íntima? — Garrick repetiu. — Viu só srta. Schumacher? Viu como é difícil? Você não gosta que invadam a sua privacidade, e nem eu a minha! Já lhe disse que não estou interessado em publicidade. Isso vale para conferências, palestras, entrevistas, fotos ou seja lá o que inventar.

Enquanto ele estivera falando, a expressão de Liza passara de surpresa a desprezo.

— Os jornais estavam certos. Você é arrogante demais.

— Não sou, não. Estou apenas tentando explicar o que sinto a respeito de tudo isso. — E não era só para aqueles dois jovens que ele falava. Aquelas palavras lhe davam uma segurança que jamais sentira.

Liza endireitou o corpo com arrogância.

— Quer saber, para mim você morreu. Deve ter saído de cena porque não conseguiu mais nada depois de Pagen. E, por isso, tem medo de enfrentar as pessoas.

— Sabe de uma coisa, srta. Schumacher? Não dou a mínima importância para o que possa pensar de mim. Não estou com medo; simplesmente não estou interessado. Escolhi abandonar a carreira de ator porque não trouxe bem nenhum à minha vida. Não quero mais saber de Greg Reynolds. Meu nome é Garrick Rodenhiser. Tenho uma vida tranqüila, que vale mais do que qualquer outra coisa para mim. Se quiser me entrevistar, ficarei feliz em falar sobre caça, latim ou entalhe em madeira. Quanto à arte de representar, não tem mais nada a ver comigo. Já faz tempo que a abandonei e não sinto a menor falta.

— É difícil de acreditar.

— Problema seu.

— Está satisfeito em ser um caçador?

— Esta é apenas uma de minhas ocupações, mas estou, estou muito satisfeito.

— Mas a publicidade...

— Não significa nada para mim. Não quero, não preciso dela. — O tom de Garrick era controlado, porém bastante firme. Ele lançou um olhar mais de pena do que de simpatia para Darryl. — Sinto muito não poder ajudá-lo, mas não tenho nada a dizer para seu jornal.

— Sr. Rodenhiser! Sr. Rodenhiser! — Uma voz soou, vindo de encontro a eles. Era a secretária do departamento de línguas que corria até o carro.

— Graças a Deus que ainda está aqui! — ela exclamou, meio sem fôlego.

O sangue de Garrick começou a correr com maior rapidez por suas veias e seu coração disparou.

— Suzan Walsh telefonou. Disse para ir encontrar-se com Léa no hospital.

— Meu Deus! — Ele entrou rapidamente no carro, esquecendo-se de Liza, Darryl e da secretária ali parados. Seus únicos pensamentos eram para Léa e o bebê.

Dirigiu o mais depressa que pode, estacionando, afinal, perto da entrada de emergência do hospital. Após pedir informações para meia dúzia de enfermeiras, conseguiu encontrar o doutor Walsh, que tratou de acalmá-lo.

— A bolsa se rompeu. Ela já está sendo preparada para o parto.

— Como ela está?

— Apavorada.

— E o bebê?

— Até agora está bem. Quero retirá-lo o mais rápido possível.

Garrick começou a rezar; sabia que o médico não teria a resposta para a pergunta que mais o atormentava.

Quando entraram na sala de parto, Léa esticou a mão, agarrando-se na de Garrick.

— Que bom que você chegou!

— O que aconteceu?

— A bolsa de água se rompeu. Eu estava deitada na cama e, de repente...

— Vai dar tudo certo... — Ele pousou um beijo na testa coberta pela franja negra. — Agora me diga, como chegou até aqui.

— Liguei para Susan, e ela tomou todas as providências.

— Fez muito bem em chamá-la. Susan sabe como agir numa situação de emergência.

— A ambulância não demorou muito.

— Está tudo bem, querida. — Ele passou a mão pelos cabelos de Léa, enquanto olhava em volta tentando entender o significado de todo aquele movimento na sala. — Está sentindo dores?

— Não — ela mexeu a cabeça de leve. — Senti algumas contrações antes, mas agora a anestesia já fez efeito. Não sinto nada — Ela apertou a mão de Garrick com mais força. — Não sinto nada. Será que aconteceu alguma coisa?

Nesse momento, o dr. Walter se aproximou.

— O bebê está bem, Léa. Estamos controlando as batidas cardíacas pelo monitor e está tudo em ordem. O médico olhou de Léa para Garrick. — Tudo pronto? Então vamos lá.

O anestesista ficou ao lado de Léa enquanto uma enfermeira trazia um banquinho para que Garrick se sentasse.

— Oh, Deus, faça com que o bebê sobreviva. — Léa pediu em voz alta.

— Ele vai viver — Garrick murmurou, procurando pelos olhos do médico.

— Estamos otimistas — o dr. Walsh declarou. Não estava fazendo promessas, mas seu ar confiante ajudou os dois a se sentirem melhor.

— Garrick?

— Sim, amor?

— Correu tudo bem hoje na escola?

Momentaneamente ele ficou aturdido. Não estava em condições de conversar sobre banalidades. Porém, logo entendeu que Léa tentava se acalmar, conversando sobre o dia a dia.

— Tudo ótimo. Passei no exame de latim.

— Verdade?

— Acha que eu mentiria numa hora destas? Tirei nove.

— Bem que dizem que os alunos mais velhos são os melhores. ,

— Me livrei de mais uma preocupação hoje.

— Qual?

— Liza Schumacher.

Eles falavam em voz baixa, olhos fixos um no outro.

— O que houve?

— Ela foi atrás de mim com um jornalista.

— Jornalista?

— Queriam uma entrevista.

— Oh, não! — Agarrou com força a mão de Garrick, não pelo o que ele havia dito, mas por não compreender o que os médicos e enfermeiras diziam. Queria perguntar como estava indo a operação, porém não tinha coragem suficiente.

Garrick estava no mesmo dilema. Olhava impaciente para o doutor Walsh, mas o médico estava concentrado em seu trabalho, o rosto abaixado coberto pela máscara. Garrick tratou de suavizar a expressão antes de voltar-se para Léa.

— Eu disse a Liza que não estava interessado em dar entrevistas, e é a pura verdade.

— Que tentação!

— Para mim não é. Não estou interessado.

— E se ela já tiver dito a algum repórter quem você é?

— Não me importo. Pode dizer a dez repórteres que continuarei repetindo a mesma coisa.

— E se um deles escrever algo?

— Tudo bem. Podem escrever sobre como construí uma vida nova é melhor para mim. Não é o tipo de história que vende jornais, portanto logo me deixarão em paz.

— Fico feliz — Léa declarou. Fez então um movimento de cabeça em direção ao médico: — O que estão fazendo?

— O bebê vai indo bem, Léa — o médico falou. — Vocês dois aí continuem conversando. Estou gostando muito do assunto.

— Quero muito nosso bebê, Garrick.

— Eu também, amor. Eu também. Está sentindo alguma coisa?

— Não.

— Nenhuma dor?

— Não.

Consciente de que a dor de Léa era emocional, Garrick dirigiu-se ao anestesista.

— Não seria melhor dar algo para que ela dormisse?

— Não! — Léa gritou. — Quero ficar acordada!

— Estamos quase no fim. — Ela ouviu o médico dizendo.

Isso a acalmou um pouco. Olhou em direção a Garrick, procurando também acalmá-lo.

— Quando serão os outros exames?

— Daqui a uma semana. Mas acho que não vou fazê-los...

— Oh, não, depois de todo trabalho que teve?

— Só estou fazendo esses cursos para passar o tempo.

— Então, preste os exames para passar o tempo. Eu ajudo você a estudar.

— Mas, pode ser que você...

Um chorinho fez com que Garrick interrompesse suas palavras. Seu coração disparou e ele levantou a cabeça em direção ao médico.

As palavras pareciam estar presas na garganta de Léa.

— Garrick? — Ela chamou mais alto.

O choro ecoou, mais alto, pela sala, seguido pelo comentário do doutor Walsh:

— Mas que menina robusta!

— Menina — Léa disse com voz entrecortada, procurando por Garrick com os olhos cheios de lágrimas.

Ele havia se levantado do banco, fixando o olhar na pequena criatura nos braços do médico. Um bracinho gorducho balançou no ar. Sem conter as lágrimas que brotavam em seus olhos, se virou para Léa:

— Ela é linda...

— Veja Léa! — disse o doutor Walsh, mostrando-lhe o bebê.

Então, Léa a viu. Braços e perninhas agitavam-se ao som de poderosos pulmões.

— Ela está viva... é linda... Garrick... você viu? — falou chorando.

Garrick abaixou-se, encostando o rosto molhado na testa de Léa.

— Meu amor... Como estou feliz...

— O show terminou. — Era a voz do neonatologista, tomando a recém-nascida nos braços continuou: — Desculpe, pessoal, mas agora ela será minha por alguns minutos. — E saiu levando a menina para os primeiros exames.

Garrick e Léa ficaram ali de rostos colados, chorando baixinho de alegria e gratidão.

— Amanda. É um nome tão lindo quanto ela — disse Léa, deitada na cama com Garrick a seu lado, o rosto repleto de orgulho.

— O neonatologista disse que está tudo em ordem com ela. Ficarão de olho por alguns dias, mas não prevêem nada de errado.

— Três quilos e meio.

— Nada mal para uma garotinha.

— Oh, querido, estou tão feliz! — Léa sorria sem parar, assim como Garrick.

— Obrigado, querida. Obrigado por me dar uma filha tão linda, por fazer com que eu passasse a confiar em mim e por me amar.

Léa o puxou para si, dando-lhe um beijo.

— Eu que agradeço a você... Me sinto completa. Já avisou Vitória?

— Já. Ela disse que vem no final da semana. Insistiu em me ajudar a levar você e o bebê para casa.

— Levar o bebê para casa... — Léa sorriu enlevada. — Nunca pensei que um dia diria estas palavras. — Pela primeira vez, então, seu sorriso desapareceu. — Garrick! Roupinhas, fraldas, um berço! Nós não temos nada! — Após duas gestações fracassadas, ela se tornara supersticiosa e insistira em não comprar nada até que o bebê nascesse.

— Não se preocupe. Comprarei um berço amanhã mesmo. E, quanto ao resto, Vitória já se encarregou de tudo.

— Vitória? Mas, ela não pode...

— Ah, se pode!

— Mas Garrick, não é justo.

— Duvido que possamos fazê-la mudar de idéia. Quando liguei para avisá-la que o bebê tinha nascido quis desligar logo o telefone para pegar as lojas ainda abertas.

Léa riu alto.

— É bem próprio dela.

— Vitória se sente responsável pelo bebê.

— Aquela mulher não existe. Ele a beijou no nariz.

— Garrick?

Mas não foi ele quem respondeu.

— Olha, olá. — A voz de Susan veio da porta. O marido empurrava a cadeira de rodas, seguido por um homem que Léa nunca vira antes.

— Ah, nossos visitantes — Garrick ficou de pé, beijou Susan e apertou a mão do dr. Walsh e do outro homem. Depois, voltou-se para Léa: — Querida, cumprimente o juiz Hopkins. Ele veio nos casar.

— Nos casar? — exclamou Léa. — Mas, não podemos nos casar agora!

— Por que não?

— Olhe só para mim! Meus cabelos estão horríveis, eu...

— Pelo menos está de branco — brincou o dr. Walsh.

— Uma camisola de hospital. Não posso ao menos trocar de roupa?

— Aqui está — Susan entregou-lhe uma caixa que trazia no colo. Depois, dirigiu-se aos homens: — Agora saiam, deixem a noiva trocar de roupa. Gregory, seja bonzinho e mande uma enfermeira vir nos ajudar.

E foi assim que Léa se casou, usando a camisola e o robe cor-de-rosa que Susan lhe dera de presente. Garrick, com a mesma roupa que vestira para ir à aula ficou a seu lado, dando-lhe a mão, enquanto o juiz celebrava a curta cerimônia.

Ao final, o dr. Walsh, abriu uma garrafa de champanhe.

— Você não pode beber por enquanto. Daqui uns dias poderemos comemorar direitinho. Agora, dê só uma molhadinha nos lábios — Garrick disse ao ouvido de Léa, segurando a taça de champanhe.

Cinco dias depois, Léa e Garrick levaram Amanda para o pequeno apartamento sob a garagem. Léa se recuperava rapidamente e o bebê demonstrava ser tão sadio quanto os pais haviam rezado para que fosse.

Vitória, que se hospedara com os Walsh, disputava com Garrick a honra de dar banho e trocar as fraldas.

Léa decidira amamentar Amanda no peito e adorava os momentos que passava a sós com o bebê. No entanto, as vezes em que Garrick estava a seu lado observando-as eram ainda mais especiais.

— Adoro ver vocês duas assim... é tão lindo. — Não consigo pensar na vida sem você, Léa. Você... Amanda... quando penso na vida inútil que tive antes...

— Esqueça o passado — Léa falou, inclinando o rosto para que ele a beijasse. — lemos um presente maravilhoso. Agora vamos nos preocupar apenas com o futuro.

Conversaram muito sobre o futuro que os aguardava e Garrick decidiu que terminaria os cursos que estava fazendo. Mesmo com o bebê em casa, conseguiu estudar e, além de passar nos exames, foi aceito em Dartmouth, para um curso avançado de latim.

— Você vai gostar de Hanover. É uma cidade com muito charme.

— Sei que vou gostar. Mas, e quanto a você? Não vai sentir falta da cabana?

— Para dizer a verdade, não. — Ele ficou tão surpreso quanto Léa, com a rapidez de sua resposta. — Adoro aquele lugar, mas minha vida está tão completa que mal penso no chalé. Podemos ter uma casa em Hanover e usar o chalé para as férias.

E foi exatamente o que fizeram. Com Amanda num moisés, procuraram até encontrar uma linda casa estilo vitoriano em Hanover, a poucas quadras da faculdade onde Garrick estudaria. Nas férias, cada vez que o tempo permitia, eles seguiam para as montanhas.

Em junho, pouco antes de irem para o chalé, nas férias.

— Que tal irmos para Nova York? - Os olhos dela se iluminaram.

— Nova York?

Léa o enlaçou pela cintura.

— Eu adoraria, Garrick. Mas tem certeza de que quer ir?

— Tenho. — Ele deu uma piscadela — Quem sabe teremos um tempinho só para nós dois?

A viagem foi maravilhosa sob todos os aspectos, embora tanto Garrick quanto Léa ansiassem pela hora de irem para as montanhas.

Em Nova York ficaram sabendo que Richard tivera outro filho natimorto. Após vários exames, os médicos haviam descoberto que ele tinha um problema genético que era a causa de seus filhos não sobreviverem ao parto. Léa ficou triste pelo ex-marido, mas não pode deixar de sentir um grande alívio.

— Tanta preocupação por nada — exclamou Léa, porém Garrick discordava.

— Não, meu amor. Tudo foi escrito para que nos encontrássemos. Se você não aparecesse no chalé, eu ficaria lá para sempre.

Léa estava feliz. A autoconfiança de Garrick fora restaurada e o respeito por si mesmo tomara novas dimensões.

— Isso quer dizer que poderemos ter outros filhos — Garrick se animou.

— Sem preocupações exageradas.

— Mas não já.

— Quem sabe, quando Amanda tiver uns dois anos?

— Aí poderemos tentar um menino.

— E como pretende fazer isso?

— Andei lendo um artigo numa revista médica...

— E desde quando se interessa em ler artigos que ensinem a programar o sexo de bebês?

— Desde que o mundo se abriu para mim e pude voltar a sonhar.

 

 

                                                                  Barbara Delinsky

 

 

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