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Series & Trilogias Literarias
Muitos diziam que ele era descendente da própria Amaterasu, a Deusa do Sol. As pessoas o adoravam como sagrado e divino. Eu sempre achei essa história divertida. Para mim, Kamuyamato Iwarebiko era apenas um menino levado e curioso, que cresceu valente e audaz, e se tornou imperador sem saber ao certo o que isso significava. E, como os mitos e lendas se formam como se tivessem vida própria, nem a família, nem o próprio imperador nunca desmentiram isso.
Afinal, quem sabe a verdade?
Confirmo, entretanto, que o meu amigo fez jus ao seu título e, séculos depois, recebeu a merecida alcunha de Jimmu, o Deus-Guerreiro, o primeiro imperador de Yamato, ilha que viria ser conhecida como Japão.
Mas essa já é uma parte avançada da história.
Gostaria de compartilhar com você um pouco da minha vida, de como me tornei filho de Tsukuyomi, o Deus da Lua – por ironia do destino, eu, sim, me tornei filho de um Deus –, e passei a caminhar pelas trevas, tal como uma sombra, um akuma que as pessoas tanto temem.
A nossa ilha era muito mais vazia do que hoje, desabitada em muitas partes, com clãs dispersos povoando os terrenos mais férteis próximos aos rios ou beira-mar. Naquela época, víamos uma grande migração de povos de aparência semelhante à nossa, mas com língua e costumes diferentes. Eles vinham do oeste pelo mar, em seus barcos impulsionados por grandes velas de tecido grosso. Eram muito maiores que os nossos barcos a remo, usados para a pesca e para nos deslocar até as ilhotas mais próximas, onde colhíamos frutos e pegávamos caranguejos.
Nos primeiros anos houve muitos desentendimentos e até mesmo algumas batalhas entre nós, como me contou o meu avô. Contudo, a maioria dos clãs preferiu a paz e a troca de mercadorias e experiências. Lutar, como nos ensinavam os anciãos, sempre é o pior dos caminhos, afinal, os cadáveres que restam mal adubam a terra.
Aprendemos com os visitantes – muitos deles navegaram para leste para fugir das guerras em sua terra natal – como forjar o ferro de melhor qualidade, e os ensinamos a trabalhar a cerâmica. Aprimoramos a pesca, a navegação e o plantio de alimentos. Nossos filhos se casaram com as filhas deles e juntos prosperamos. Éramos um povo ligado à terra e ao mar, rústico e ainda iniciante nas tradições que marcariam os séculos posteriores. Contudo, éramos disciplinados e obstinados em aprender, ensinar e desenvolver nossos conhecimentos e habilidades.
Eu sou um espectador desses séculos. Vi a aurora e é muito provável que eu veja o ocaso dessa terra.
Kamuyamato Iwarebiko e eu crescemos juntos na ilha de Kyushu, no sopé do Monte Kuju, um vulcão que havia muito tempo não cuspia a lava vermelha das suas entranhas e apenas ficava fumegando, resmungando, baforando dia e noite uma longa coluna de fumaça quase preta que cheirava a ovo podre. Vivíamos em uma região cercada de vulcões raivosos, cujo solo tremia sempre. Os anciãos diziam que era por causa das lutas dos Deuses e dos oni que povoavam o subterrâneo.
– Os Deuses nos protegem – o velho Hideaki arrancou um matinho e começou a mascá-lo. – Quando as hordas de demônios tentam subir ao nosso mundo, os Deuses os impedem com fogo e raios. É por isso que a terra treme.
– E eles nunca conseguem vir ao nosso mundo? – A menininha jogou uma pedra na fogueira e viu as fagulhas subirem incandescentes até se tornarem cinzas.
– Às vezes conseguem sim – o velho tossiu –, e é por isso que vemos peixes mortos boiando no mar, frutas podres antes de amadurecer e os invernos rigorosos. Os oni causam a desordem e as pragas.
O futuro imperador e eu não ligávamos muito para essas histórias. Preferíamos passar as tardes brincando, aproveitando as águas quentes que brotavam próximas da nossa aldeia e formavam os laguinhos onde a gente se divertia. Naquela época podíamos ficar sem fazer nada sem sermos importunados por ninguém. Ainda não tínhamos muitas responsabilidades ou preocupações. Não éramos os primogênitos: ele com três irmãos mais velhos, eu com cinco. Não era raro os nossos pais e avós se esquecerem de nós por um tempo.
Quantas noites passamos sob o luar, fazendo planos para a nossa juventude.
Ah, a ingenuidade é linda! Pena que seja tão efêmera.
Gostávamos de ficar junto aos macacos e de caçar pequenos lagartos e aves marinhas que usávamos para alimentar os cães selvagens, que se tornavam nossos companheiros depois disso. Meu bom amigo tinha facilidade em conquistar a confiança dos animais. Eu, ao contrário, levava algumas mordiscadas nas mãos e nos braços, nenhuma grave, apenas alguns avisos para manter a distância.
– Você não pode ir tão rápido! – Ele trouxe um punhado de algas, que colocou sobre a mordida. – Você precisa deixá-los cheirar você, se acostumar com você, depois você tenta fazer carinho neles.
Assenti com lágrimas nos olhos e os dedos latejando.
– Você precisa conquistar a confiança deles – meu amigo se deitou na grama e três filhotes vieram lambê-lo, sob o olhar atento da mãe. – Se não confiarem, você sempre será mordido.
Meu amigo manteve essa sabedoria natural, instintiva, durante sua longa jornada como imperador.
Passamos muitos bons momentos juntos. Fomos realmente felizes.
Nossa vida era boa e completa.
Entretanto, o tempo voou como um grande pelicano e, quando menos percebemos, a infância nos abandonou. Viramos homens.
*
– Taneko! – O jovem Sano no Mikoto, nome pelo qual o futuro imperador também era conhecido pelos mais próximos, acenou da praia. – Venha pescar comigo. O mar está calmo e o vento está fraco. Vamos conseguir encher o cesto hoje.
– Não posso, meu amigo – limpei o suor da testa. – Preciso cortar lenha e levar para o meu pai. Ele está fazendo umas ferramentas e armas para o seu irmão Itsuse. Soube que ele vai para o norte na primavera tentar a sorte em outras terras. É verdade?
– Ele resolveu ir, e ninguém consegue tirar essa ideia da cabeça dele. Teimoso! – Sano no Mikoto jogou a rede ao mar. – Meu irmão não precisa ir para o leste. Temos bastante espaço por aqui e bastante peixe. Nossas terras são suficientes para alimentar muitas famílias.
– Meu pai diz que o seu irmão é um jovem de valor – apoiei o machado no ombro e parei para descansar um pouco. – Ele fala que nós dois devíamos aprender com ele.
– Ele é um sem juízo, isso sim! – Puxou a rede e sorriu ao ver uma boa quantidade de peixes se debatendo. – Eu prefiro continuar com a minha vida por aqui. Aposto que não há lugar mais bonito que esse nessa ilha.
– Eu também quero viver aqui, Sano – estalei as costas.
– Então vamos ficar no vilarejo, não importa o que aconteça – meu amigo abriu um sorriso. – Vamos encontrar companheiras, ter um monte de filhos, envelhecer e morrer nessas terras.
– Por mim tudo bem – comecei a caminhar devagar. – Eu até já tenho alguém em vista...
– Você nunca me falou nada sobre isso – meu amigo soltou a rede e me encarou. – Quem é ela?
– Depois eu lhe conto... – falei e segui meu caminho até o bosque. – Agora tenho muito trabalho a fazer.
– Não faz isso comigo, Taneko! – ele gritou. – Volte aqui!
Continuei, rindo da curiosidade do futuro imperador.
*
Como éramos ingênuos...
Tínhamos vinte e poucos anos naquela época e os nossos sonhos ainda podiam ser alcançados.
*
Naniwa, verão de 663 A.C.
– O senhor Itsuse no Mikoto foi atingido por uma flecha! – um dos soldados veio correndo contar, aos berros, a fatalidade. Ele tinha o rosto coberto de sangue e coxeava da perna esquerda.
– É muito grave? – Kamuyamato Iwarebiko segurou o ombro do homem ofegante. – Fale, homem!
– Foi no cotovelo – respirou fundo para recobrar o fôlego. – Varou o braço de lado a lado.
– E onde o meu irmão está agora? – Sano encarou o soldado.
– Junto às linhas de frente do exército. Ele não quis recuar. Tentamos arrastá-lo de lá, mas ele nos ignorou. Segurou a sua espada com a mão esquerda e continuou avançando, matando os inimigos – tossiu. – As coisas estão complicadas, meu senhor, nossos oponentes não cedem e Nagasunehiko não recua. Ao contrário, instiga seus homens com coragem e força. Não sei se o senhor Itsuse no Mikoto vai conseguir suportar por muito tempo.
Kamuyamato Iwarebiko olhou para o horizonte e rosnou. Dispensou o soldado, que correu manquitolando novamente para a batalha.
– Ame no Taneko no Mikoto! – ele berrou o meu nome completo, atitude que só tinha quando estava muito nervoso, ainda mais que eu estava praticamente do seu lado.
– Estou aqui – respondi prontamente.
– Vá buscar o Teimoso – meu amigo tinha o semblante sério. – Vá logo, antes que aconteça o pior. Eu vou organizar as nossas forças na colina. Não podemos perder. Pelos Deuses, não podemos!
Assenti com a cabeça e saí correndo, atravessando o acampamento, cruzando com os feridos e os moribundos que agonizavam pelo chão. O cheiro de sangue e mijo impregnava as narinas e os gemidos de dor formavam um zumbido constante.
Os cães selvagens e as aves se fartavam com as carcaças, enquanto os ratos corriam com pedaços de tripas para alimentar os seus filhotes. Eles e os vermes engordariam bastante.
Corri uns duzentos passos e os sons da batalha foram se intensificando. Metal contra metal, metal contra carne e ossos. Os gritos de raiva se misturavam aos berros de dor. Os mais fracos choravam; alguns permaneciam em silêncio, matando metodicamente. Para eles era somente mais uma tarefa a ser cumprida, como lavrar a terra ou fisgar um peixe com um arpão.
Passei pelo soldado que nos trouxera as informações sobre Itsuse. Ele estava morto, os olhos esbugalhados e uma flecha cravada na garganta. Ele cumprira a sua missão nessa terra.
Continuei correndo aos tropeços.
Cinquenta passos. Eu precisava pular os cadáveres e os agonizantes para poder avançar. Um menino aparentando uns dez, doze anos, segurou a minha perna, seu semblante pálido deixava transparecer o medo. Ele balbuciou algumas palavras que não compreendi e tossiu sangue, estava sufocando. Na sua barriga um corte profundo evidenciava as vísceras sujas de terra. Ajoelhei-me ao seu lado, saquei o meu punhal e dei um talho no pequeno pescoço, acabando com o seu sofrimento. Ele me encarou e, aos poucos, seu corpo amoleceu e seu espírito pôde se libertar do peso do corpo destruído.
– Que o seu espírito encontre os seus antepassados e seja aceito pelos Deuses – continuei a correr em busca de Itsuse no Mikoto.
Teríamos muito trabalho para queimar os mortos.
Se algum de nós sobrevivesse.
Vinte passos. Consegui ver Itsuse no Mikoto em meio aos inimigos, numa pequena elevação de terra, brandindo sua espada com a mão esquerda. A flecha cravada no cotovelo direito e vários ferimentos pelo corpo. Ele estava exausto, apesar de permanecer imponente, suas vestes banhadas de sangue e suor. Muitos hesitavam em atacá-lo. Quem arriscava morria. Aos seus pés, vários corpos de amigos, parentes, adversários.
Junto dele, poucos de nós ainda resistiam. Todos feridos, nenhum pensando em recuar. Alguns ainda portavam suas armas, outros se viravam com pedras e paus. Havia até aqueles que contavam apenas com a força dos punhos.
Nunca fui um homem de armas, sempre preferi a paz, no máximo usava o arco para caçar veados, contudo eu precisava tirá-lo de lá. Peguei a lança de um dos mortos, pedi força a Hachiman-jin, Deus dos guerreiros, e avancei.
O primeiro inimigo morreu rapidamente. Cravei a lança na sua boca, destroçando dentes e língua até a ponta parar na coluna. Ele já estava fugindo da batalha, então foi fácil abatê-lo. Enquanto eu tentava tirar a lança presa no morto, um guerreiro, vestindo somente uma tanga, golpeou na minha direção com uma kama, fazendo a lâmina da foice resvalar no meu nariz, causando um corte superficial. Por pouco não tive o rosto rasgado. Chutei-o nos ovos e ele se dobrou de dor, tempo suficiente para eu liberar a lança e cravá-la no seu peito.
Ele não morreu, mas estava fora de batalha.
– Itsuse! – gritei mal enxergando, pois o sol estava à nossa frente.
Ele estava a uns cinco passos de distância, mas eu não conseguia chegar até ele. Matei mais três homens, o último estrangulado, pois minha lança se partiu depois de eu me defender de um golpe de machado. Meus dedos latejavam e todo o meu corpo doía.
– Itsuse! – berrei, a garganta em brasa, sedenta.
Dessa vez ele me ouviu. Consegui trazê-lo de volta, depois de muita relutância, quando um grupo com dez dos nossos homens avançou e abriu caminho por entre os inimigos. Ao contrário de mim, eles tinham a guerra no sangue.
Até hoje acredito que fui agraciado pelos Deuses ao ter sobrevivido naquele dia. Anos depois, meu amigo, o imperador, me disse que eu tive foi uma sorte imensa.
Talvez ele estivesse certo.
Depois de uma manhã inteira de luta, os dois exércitos recuaram carregando seus feridos e ignorando os mortos. Todos estavam exaustos, sedentos e famintos, e a batalha fora claramente perdida pelo nosso lado.
Voltei com Itsuse no Mikoto ao acampamento. Ele estava fraco, perdera muito sangue. As mulheres curandeiras o limparam, besuntaram os ferimentos com emplastros e lhe deram infusões de ervas amargas, misturadas com ostras. Acenderam folhas secas de artemísia sobre o peito e a garganta dele, e entoaram rezas para espantar o mal. Então quebraram a haste de madeira da flecha e arrancaram-na do seu cotovelo.
Ele berrou de dor e desmaiou.
Kamuyamato Iwarebiko logo chegou, suado, com um corte na bochecha. Sorriu ao ver o irmão, mas logo o seu semblante fora ficando mais sério e pesado.
Itsuse no Mikoto estava morrendo.
Assim como a moral e a vontade dos homens.
*
– Por que tem que ser assim? – Kamuyamato Iwarebiko andava de um lado para o outro. O sangue que escorrera do ferimento na sua bochecha, agora coberto de emplastros, deixara a sua barba toda empapada.
– Na guerra não há vencedores – eu estava cabisbaixo, o corpo doendo, a mente nublada e o espírito pesado. – Há somente dor. Para todos.
– Você sabe, Taneko, que eu não queria estar aqui – meu amigo desabou sobre a cadeira. – Nunca desejei essas batalhas. Eu preferia continuar nas nossas terras, pescando, plantando, colhendo, mas você sabe que isso foi impossível, você sabe que tive que seguir com o meu irmão, com o Teimoso! Somos sangue do mesmo sangue...
Ele colocou as mãos sobre a face e pareceu chorar. Até os descendentes dos Deuses sofrem.
– Eu sei, meu amigo – segurei-lhe os ombros. – Tanto sei que estou aqui contigo. E seja lá qual for o nosso destino, estaremos juntos.
Kamuyamato Iwarebiko me olhou fixamente, os olhos vermelhos, exaustos. Levantou-se da cadeira e me abraçou. Nunca tinha feito isso antes.
– Vá dormir, Taneko – ele me deu dois tapinhas no rosto. – Vá dormir, porque amanhã será um dia decisivo.
– Você também precisa descansar.
– Irei depois, agora preciso pensar – afastou a cortina que servia como porta da tenda. – Preciso conversar com os Deuses e ver se eles me iluminam. Ou pelo menos dissipam algumas das nuvens na minha cabeça.
– Peça ajuda para a sua parente, a Deusa do Sol – provoquei.
Ele sorriu, sem conseguir amenizar o semblante pesado, e saiu. Eu me deitei ali mesmo, no chão e, instantes após fechar os olhos, estava dormindo profundamente um sono sem sonhos.
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– Acorde, dorminhoco – Sano no Mikoto me deu um tapa na testa, fazendo-me despertar com um pulo.
Abri os olhos, ainda tonto, mas tive certeza de que ainda não havia amanhecido. Lá fora estava um breu e eu podia ouvir os roncos dos nossos companheiros nas outras barracas.
– Perdeu o sono? – sentei-me e bocejei.
– Ainda nem dormi, meu amigo! – Ele bebia um chá fumegante e de aroma gostoso, uma das poções que as anciãs preparavam para fortalecer o nosso espírito. – Mas valeu a pena, pois agora sei como vencer essa batalha.
– Como?
– Com a ajuda de Amaterasu, a minha antepassada – Sano no Mikoto gargalhou. – Venceremos porque as pessoas acreditam nas lendas e eu sei como usá-las a nosso favor. Você estava certo!
– Eu?
– Foi você que me disse para pedir ajuda à minha parente, não foi? – pegou um peixe defumado e engoliu-o quase sem mastigar.
– Sim, mas...
– Não sei se a inspiração veio dela, mas tive uma ideia – cuspiu uns espinhos. – Se der certo, podemos vencer, senão, logo mais nos encontraremos pessoalmente com os Deuses, meu amigo – bebeu os últimos goles do chá. – Agora vá e vista-se. Você irá lutar ao meu lado.
Já passávamos dos cinquenta anos de idade, contudo Sano no Mikoto sempre manteve a sua jovialidade, os olhos curiosos e o jeito leve de percorrer a vida.
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Andamos e andamos até os pés doerem, até as tiras das sandálias já gastas se arrebentarem. Kamuyamato Iwarebiko reuniu duzentos homens que ainda tinham condições de lutar e nos fez caminhar na calada da noite, com as tochas apagadas e com o máximo de silêncio possível.
Quando a lua aparecia, fazíamos o trajeto com certa facilidade. Quando ela ficava encoberta pelas nuvens, avançávamos trôpegos e devagar. Andávamos quase às cegas e sem saber os planos de Kamuyamato Iwarebiko.
– Por que estamos andando tanto, e no escuro? – eu acabara de bater com o dedão do pé direito em uma pedra.
– Porque vamos revelar o meu poder divino aos nossos inimigos – ele continuou, impassível.
– Que poder divino, Sano no Mikoto? – franzi a testa. – Você tomou alguma pancada na cabeça?
– Você vai ver – ele prosseguiu, resoluto. – Confie em mim.
Andamos por mais um tempo, rasgando nossas vestes e pele em espinheiros, sendo açoitados pelo vento frio. Até que Kamuyamato Iwarebiko levantou a mão e parou.
– Chegamos! – Ele se sentou sobre uma pedra e bebeu um pouco de água do seu odre.
Todos os homens imitaram o seu gesto e desabaram sobre as pedras e troncos caídos. Uns começaram a dormir assim que se deitaram, tamanho o cansaço.
– E agora? – Bebi uns goles de água.
– Agora esperamos – Kamuyamato Iwarebiko colocou as mãos atrás da cabeça e fechou os olhos.
Não demorou muito até eu conseguir entender o plano do meu amigo e sorri com a sua simplicidade, sorri pela sua inteligência.
O horizonte atrás de nós começou a se avermelhar.
Kamuyamato Iwarebiko se levantou, estalou as costas e falou em voz baixa:
– Homens, preparem-se para a vitória!
Nós levantamos, fizemos nossas orações e pegamos as nossas armas.
Kamuyamato Iwarebiko caminhou uns passos e subiu uma pequena elevação de terra, um pouco mais alta do que ele.
Virou-se para nós e proferiu:
– Lá adiante está o acampamento deles – cuspiu. – Lá adiante estão os nossos inimigos. Avançaremos e venceremos com o poder de Amaterasu!
Os homens começaram a se alvoroçar e ele os silenciou com um gesto.
– Vamos ser como uma grande onda que destrói tudo o que estiver no seu caminho – meu amigo tinha fogo nos olhos. – A Deusa está conosco! Os Deuses estão conosco! E hoje os inimigos tombarão!
Agora os homens gritavam e ele não tentou contê-los. Os nossos oponentes acordavam sonolentos, ainda sem entender muito bem o que acontecia. Avançamos como uma onda, correndo como loucos, armas em punho e fúria no coração.
O sol ganhava força no horizonte atrás de nós, cegando os nossos adversários. A Deusa do Sol despertara e estava do nosso lado. Kamuyamato Iwarebiko fora esplêndido ao nos fazer caminhar durante a madrugada para dar a volta no acampamento de Nagasunehiko. Agora os homens acreditavam na bênção divina e no poder do descendente de Amaterasu.
Não foi uma batalha fácil, a luta foi dura, acirrada, e muitos dos nossos morreram. Conseguimos, contudo, subjugar o inimigo e os últimos combatentes se renderam. Eram camponeses assustados que também não queriam estar ali.
– Perdão senhor Kamuyamato Iwarebiko, nós não tivemos escolha – os homens largavam suas armas e se ajoelhavam diante do meu amigo.
– Vocês juram lealdade a mim? – Sua voz era dura e incisiva.
– Juramos – responderam em uníssono.
– Então podem viver – ele proferiu.
– Obrigado, grande mestre Kamuyamato Iwarebiko, o misericordioso – disse um dos homens, que perdera uma das orelhas.
– Onde está Nagasunehiko? – perguntei para um velhote.
– Ele fugiu...
– Covarde – cuspi. – Sano no Mikoto, nós iremos atrás dele?
– Não, Taneko – meu amigo respirou fundo. – Já tivemos muitas mortes por hoje. Vamos queimar nossos mortos e cuidar dos feridos.
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– Que você encontre o caminho até os nossos antepassados, meu irmão – Kamuyamato Iwarebiko beijou a testa de Itsuse no Mikoto, que não resistira aos ferimentos e morrera enquanto lutávamos.
Ele pegou a tocha e incendiou o corpo coberto de óleo de baleia. Logo a fumaça escura subiu aos céus e o seu espírito foi libertado da carne morta. Duas gaivotas voaram baixo, era um bom sinal, elas seriam as guias para o outro mundo.
Por todos os lados fogueiras eram acesas, e a fumaça pintou o céu de cinza. Os sons das madeiras estalando, do crepitar das chamas e dos prantos das viúvas e órfãos formavam uma triste música. Na guerra, mesmo os vitoriosos sofrem.
Sempre.
– Ainda bem que vencemos – eu estava exausto, o corpo coberto de feridas e um braço quebrado.
– Essa batalha, meu amigo, apenas essa batalha. – Kamuyamato Iwarebiko fechou os olhos e entoou preces pelo espírito do seu irmão. Sobre a sua cabeça o sol brilhava forte. A Deusa Amaterasu receberia bem Itsuse, tratá-lo-ia com honras por ter sido um grande guerreiro.
Permanecemos cinco dias em Naniwa, cuidando dos feridos, queimando os mortos, traçando planos para o futuro. Coletamos água e alimentos e partimos, deixando para trás mais da metade do nosso exército, homens combalidos que mal se sustentavam em pé.
A guerra definitiva por Yamato, para definir quem tinha direito ao trono, prosseguiria.
E Kamuyamato Iwarebiko precisava pôr um fim nela.
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Yamato, meses depois
– Kamuyamato Iwarebiko é, de fato, descendente dos Deuses, é descendente da poderosa Amaterasu e imperador por direito de Yamato! – Nigihayahi no Mikoto prostrou-se de joelhos, gesto repetido por todos os seus seguidores. – Eu vi seu esplendor enquanto o senhor se aproximava. Eu vi a sua divindade e a força que emanava do seu corpo, como se o senhor fosse um gigante de luz. Fui um tolo em acreditar que eu era o legítimo imperador. Um tolo! E, se assim desejar, entrego-lhe agora a minha vida.
Ele sacou seu punhal e colocou na garganta. Muitas pessoas na multidão também repetiram esse gesto, arrependidas de terem combatido o verdadeiro imperador.
– Você é mais útil vivo – Kamuyamato Iwarebiko aproximou-se e tirou a arma da mão do homem. – Acredito na sua honra e lealdade.
Todos o ovacionaram, gritando alcunhas como “misericordioso”, “filho dos Deuses”, “Deus-guerreiro”. Mesmo seu oponente Nagasunehiko, que protegia Nigihayahi no Mikoto, jurou fidelidade ao imperador.
Enfim, meu amigo pôde se consolidar como líder supremo da nossa terra, depois de sangrar muito, sofrer muito, como qualquer homem, para vencer as batalhas que selaram o seu destino.
*
– Vou morrer em breve, meu amigo – minha voz mal saía e eu me sentia cansado como se tivesse corrido por muito tempo. – Para mim, os dias parecem cada vez mais escuros e o meu corpo cada vez mais pesado, como se quisesse se afundar na terra. A velhice está cobrando o seu preço. Contudo, não tenho do que me queixar, vivi uma vida longa e próspera, consegui criar meus filhos e vi-o se tornar um imperador sábio e justo. Agora você é venerável pelos seus méritos.
– Trinta anos, desde a batalha que tirou a vida de Itsuse. Trinta anos que passaram tão rápido quanto o voo das andorinhas – Sano no Mikoto se sentou ao meu lado. Ele tinha o rosto enrugado, mas seus cabelos e barba continuavam negros como carvão, ao contrário dos meus, brancos como o topo do Monte Fuji.
– Ficamos tão entretidos com os nossos afazeres, com a construção da união de Yamato, que nem percebemos o tempo voar – tossi e meu peito ardeu. Demorei um pouco para me recuperar da falta de ar. – A minha jornada nessa terra dá os últimos passos, meu querido amigo. Contudo, sinto que você ainda terá muitos anos pela frente.
O imperador me olhou com ternura, os olhos brilhantes e úmidos. Nós éramos grandes amigos, praticamente irmãos, que desde crianças sempre estiveram juntos, compartilhando os mesmos sonhos, vivendo as mesmas felicidades, sofrendo as mesmas quedas.
– E eu posso fazer algo por você, Taneko? – Ele segurou as minhas mãos trêmulas. – Você me serviu bem durante todos esses anos, foi um amigo fiel, o melhor de todos. Agora merece ter o que desejar.
– Gostaria de voltar para a nossa terra natal – fechei os olhos e pude ver o mar, os bosques, as fontes termais que tanto amava. – Mas não consigo caminhar até lá.
Sano no Mikoto sorriu.
– Se esse é o seu desejo, meu querido Taneko, providenciá-lo-ei imediatamente. Preferia que ficasse aqui comigo, mas entendo e respeito a sua vontade.
– Muito obrigado, meu amigo.
O imperador se levantou e eu adormeci. Sonhei conosco quando éramos jovens, brincando com os cães selvagens, correndo pelas colinas relvadas. Sonhei com as nossas risadas e como passávamos as noites ao relento contando histórias inventadas.
Ah, fomos muito felizes!
Na semana seguinte segui para o meu destino final com uma pequena comitiva, escoltado pelos meus três filhos e por um dos filhos de Sano no Mikoto, Kamisama Gawa Mimino no Mikoto, que viria a ser o imperador após a morte do seu pai.
Demoramos quase um mês para chegar até o meu antigo lar. Temi não resistir e morrer no meio do trajeto. Contudo, eu desejava mais do que tudo chegar em casa e rever o belo Monte Kuju. Vencemos os ventos fortíssimos, a chuva e o frio, como se os Deuses estivessem mandando uma última provação.
Durante a jornada, soube que os homens da vila fizeram reparos no casebre da minha família, pois um mensageiro fora enviado para anunciar a minha chegada. Apesar do meu corpo debilitado por causa da idade, meu espírito continuava forte. Sabia que o fim estava próximo, mas seria no meu antigo lar.
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Chegamos em uma fria manhã, daquelas em que a mata fica coberta pela geada e os ossos doem a cada movimento. Eu estava coberto por várias peles, mas mesmo assim tremia. Animei-me somente quando vi o meu vilarejo, praticamente igual depois de tantas décadas.
Eu estava em casa.
As mulheres me trouxeram peixes assados, frutas e passarinhos fritos em gordura de foca. As crianças pequenas me davam conchinhas e florezinhas silvestres. Eu não era o imperador, mas tinha construído a minha reputação e o meu valor. Tinha sido um homem bom.
Agradeci a todos e fui levado até a casa na qual passei a minha infância. A pequena construção de madeira escura fora reformada, o telhado exibia a palha nova, dourada, e as tábuas foram lixadas até ficarem limpas de qualquer musgo.
Senti saudades dos meus pais. Sabia, entretanto, que logo estaria junto deles e dos meus antepassados. Vivi por mais de 80 anos, mais que a maioria das pessoas. Tornei-me sábio e pude aconselhar bem o imperador. Tinha cumprido a minha missão nessa terra.
Estava verdadeiramente em paz.
O sol se escondeu por detrás das colinas. Pude ver esse lindo momento pela pequena janela. As mulheres queriam vedá-la com panos grossos, para diminuir as friagens da noite. Não permiti, eu desejava ver as últimas claridades do dia e as estrelas.
Nunca imaginaria que esse seria o meu último pôr do sol.
Respirei o ar frio com o cheiro de mar que eu tanto amava e deliciei-me com o som das ondas quebrando nas rochas. Anoiteceu e as rãs começaram a sua algazarra lá fora, enquanto pequenas mariposas voavam em volta da lamparina. Fechei os olhos e fiz uma prece. Não lembro o que pedi, ou se pedi algo; sei apenas que me reconfortou.
Olhei mais uma vez pela pequena janela e as estrelas cintilaram.
Lágrimas escorreram pela minha face sulcada pelos anos. Eu estava pronto para partir.
Adormeci.
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Acordei assustado, suado, resfolegando.
O ar começou a faltar nos pulmões, e, por mais que eu me esforçasse, não conseguia puxá-lo para dentro do peito. Estava sufocando, desesperado.
– Deixo essa vida para me encontrar com os Deuses e os meus antepassados – pensei, a minha voz não saía. – Espero ser digno e forte para encontrar o caminho até eles.
Senti um peso grande no peito, as minhas mãos e os meus pés formigavam e agulhadas ferroavam a minha cabeça, como se um enxame de vespas estivesse dentro do meu crânio.
Levantei-me, a garganta fechada. Dei dois passos e caí de joelhos. Vomitei. Luzes como faíscas passavam à frente dos meus olhos. Tombei de lado, sem ar, o coração doendo, esmagado por uma mão invisível, meu corpo todo tendo espasmos, lutando com suas últimas forças para se manter vivo.
Gritei. Não ouvi a minha voz e a minha vista se escureceu repentinamente, até eu ficar completamente cego.
Então desisti de lutar. E me entreguei ao meu derradeiro destino.
Veio o silêncio. Parei de sentir dor. Parei de sentir qualquer coisa, como se o meu corpo pairasse no ar.
– Será que o meu espírito está ascendendo aos céus?
Estava vivendo uma sensação estranha, sem entender o que acontecia ao meu redor. Vivo ou morto, não havia como saber.
O tempo pareceu parar.
Tudo se extinguiu. Restaram somente os pensamentos.
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– Ame no Taneko no Mikoto! – Uma voz grave e profunda quebrou o silêncio e ressoou dentro na minha cabeça, e junto dela veio uma sensação de frio e medo. – Enfim nos encontramos.
– Quem é você?
– Quem eu sou? – a voz grave ecoou. – Tsukuyomi é como me chamam.
– O Deus da Lua? – espantei-me.
– Sim, Ame no Taneko no Mikoto, e venho lhe fazer uma proposta.
– Proposta? Que proposta? – Já não sentia tanto medo e fui envolvido pela curiosidade. Será que falava mesmo com um Deus? Ou era um delírio que antecede a morte? Meus olhos continuavam cegos.
– Imortalidade – a voz ribombou no vazio.
– Imortalidade? – eu estava confuso, atordoado. – Do meu espírito?
Gargalhadas.
– Ofereço-lhe a imortalidade do seu corpo e do seu espírito, Ame no Taneko no Mikoto.
– Por quê? – Eu não sabia o que perguntar, estava totalmente perdido, sem conseguir compreender o que se passava ao meu redor. – Por que me escolheu?
– Eu lhe ofereço o dom da vida eterna e você ainda hesita? – O Deus riu, e novamente a sensação de frio intenso me envolveu. – Devia deixar você morrer e seu espírito simplesmente desaparecer.
– Quero ir para junto dos meus antep... – Fui interrompido bruscamente.
– Quem disse que há um caminho até os seus antepassados? – Sua voz era dura, mas não havia raiva nela. – Quem disse que há outro mundo junto aos Deuses?
– Os anciãos.
– Se você prefere acreditar nos seus anciãos, deixo-lhe agora. E você morrerá. E talvez haja essa jornada até os seus antepassados. – O frio diminuiu e a voz de Tsukuyomi foi se distanciando. – Talvez não haja nada depois da morte. Logo você descobrirá. A escolha é sua.
– Perdoe-me, ó venerável Tsukuyomi. – Eu estava confuso, incerto, mas não queria que ele fosse embora, mesmo sem saber o porquê. Não queria desrespeitar um dos grandes Deuses, tão importante quanto a própria Amaterasu. – Que arrogância minha tentar entender os desígnios divinos. Perdoe-me.
– Qual é a sua resposta? – a voz agora era um sussurro que me rodeava, envolvia-me como uma serpente se enrola ao tronco da árvore. – Qual é a sua resposta, Ame no Taneko no Mikoto?
Eu não sabia.
Sinceramente, não tinha qualquer definição na minha mente. Continuava confuso, perdido e incerto quanto à jornada do meu espírito até os meus antepassados. Se antes eu tinha convicção, agora ela se esfacelou como areia ao vento.
– Qual é a resposta? – o sussurro era quase opressor. Além dos olhos completamente cegos, minha mente estava se nublando. Eu sufocava como se tivessem tapado as minhas narinas e boca.
– Qual é a resposta, Ame no Taneko no Mikoto? – o Deus me pressionava.
Eu queria um tempo para pensar, para refletir sobre a decisão mais importante da minha vida. Eu teria a imortalidade, mas a que custo? E por que eu? O que era ser um imortal?
– Qual é a sua resposta? – A voz tornou-se áspera, incisiva, e o desespero tomou conta da minha consciência. Era como se eu estivesse prestes a perder os sentidos.
– Qual é a sua resposta, Ame no Taneko no Mikoto? – O Deus era incisivo e sua voz começou a me ferir. – Vai confiar nos seus velhos? Vai definir o seu destino baseado nas crendices dos anciãos? E se eles estiverem errados, Ame no Taneko no Mikoto, e se não existir nada além? Você deixaria seu espírito evaporar tal como a água que ferve?
– E-eu confio no senhor, ó venerável Tsukuyomi – a minha voz mal saiu. – É que eu não estava preparado para isso.– Quanta desculpas! – A voz do Deus da Lua vez meus ouvidos latejarem. – Quanta insegurança! Será que perdi meu tempo tentando lhe dar a vida eterna?
– Por favor não me entenda mal, grande Tsukuyomi – implorei. – Confio nos seus designios.
– Qual é a sua resposta, Ame no Taneko no Mikoto? – A sua voz pesava na minha cabeça.
– Sim – gritei, ou imaginei gritar. – Eu aceito essa dádiva, ó poderoso Deus da Lua, supremo Tsukuyomi!
Gargalhadas e o frio mais intenso que já senti me envolveram. Chorei como uma criança pequena, assustada e sozinha no escuro.
– O que é eterno durará para sempre – Tsukuyomi proferiu. – O filho da Lua não será venerado como os filhos do Sol. O Sol traz vida, a Lua, morte. O Sol traz esperança, a Lua, receios. Mas essa é a natureza da criação. Os contrapontos: claro e escuro, Luz e Trevas, esperança e descrença. Só há equilíbrio quando há forças opostas. Para existir o bem, é preciso que se conheça o mal. Para conseguir o alívio, antes é preciso sentir dor. Nos dias vindouros, a sua presença, Filho da Escuridão, causará o pânico, que trará pessoas para o correto caminho. Será o sangue o seu alimento. Da vida dos mortais você tirará o seu sustento. E só com o sangue você poderá manter a sua imortalidade. Pelo sangue você caminhará nas noites escuras. E com o sangue construirá o seu legado. Enquanto uns se deleitam com o mel, você se saciará com a seiva da vida dos homens. Assim, previ, assim proferi, assim fiz, assim aconteceu.
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Senti meu espírito cair, como se empurrado em um abismo. Abri os olhos e a vista demorou até entrar em foco. Eu estava caído no chão, sobre o vômito quase seco que empapava a minha barba. Meu corpo todo doía. Tentei me levantar, não consegui, estava fraco demais. Senti uma pontada lancinante nas tripas e em seguida o jorro quente de merda. Vomitei novamente um jato azedo.
– Foi um pesadelo! – balbuciei entredentes. – Ainda estou vivo.
Urinei-me, não conseguia mais me controlar. O coração começou a acelerar como um tambor. Encolhi-me como um bebê recém-nascido e senti meu corpo se esquentar.
– Agora vem a morte – murmurei, desfalecendo. O coração cada vez mais descontrolado.
Até parar por completo.
E, novamente, o vazio, o silêncio, o nada.
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Despertei. Não sei quanto tempo se passou. Inspirei fundo e o ar entrou com facilidade nos pulmões, trazendo o fedor nauseabundo dos meus excrementos.
Levantei-me com facilidade e, mesmo com a lamparina apagada, a noite pareceu mais clara e nítida. Tentei alguns passos e as minhas juntas não doíam mais.
– Estranho... – Aprumei as costas e percebi que não estava mais tão curvado quanto antes. – Será outro sonho? Será que enlouqueci à beira da morte? Estou morto ou vivo?
Tirei as minhas roupas imundas e a brisa noturna acariciou a minha pele. Decidi caminhar até o mar para me lavar das imundícies. Os passos fluíam como na minha juventude. Ousei correr e consegui. Passadas largas e firmes deixando marcas profundas nas areias escuras.
Sorri.
Banhei-me nas águas frias e as impurezas pareceram sair com facilidade da minha pele. Ela estava mais branca do que eu me lembrava.
Olhei para cima. A lua imensa e redonda brilhava. Pensei em Tsukuyomi e em nossa conversa. Balancei a cabeça, convicto de que isso era um sortilégio da minha própria imaginação. Nadei como um jovem. Mergulhei e consegui segurar o fôlego por um longo tempo.
– Estranho... – voltei à superfície e boiei ao sabor das ondas. – Quando despertarei?
Senti um aperto no estômago e a garganta seca. Estava com fome, não do mesmo jeito que costumava ficar.
– Devo mesmo estar sonhando – nadei até a praia.
Corri veloz como uma lebre até o meu casebre. Se forçasse mais, seria ainda mais rápido.
Sorri. O mundo dos sonhos era mesmo estranho.
– Ou estou morto? – franzi o cenho. – Esse mundo dos espíritos é totalmente diferente do que os anciãos nos contavam.
Meu estômago reclamou novamente. Entrei no casebre e peguei um dos peixes assados. Dei uma mordida voraz. Mastiguei com asco e, ao engolir, senti a barriga doer. Vomitei.
– Estranho – limpei a boca com as costas da mão.
Peguei uma fruta e dei uma bocada, o mesmo gosto repugnante, e isso se repetiu quando mordi o passarinho frito.
A fome apertava e a garganta estava cada vez mais seca. Peguei um pouco de água fresca do pote de barro e só de prová-la senti nojo. Cuspi.
Saí do casebre para respirar a brisa marinha. Um gato dormitava sobre uma pilha de peles de foca. Aproximei-me e fiz carinho no seu pelo macio. Ele ronronou. Peguei-o no colo e ouvi seu coraçãozinho bater forte. A fome apertou. Comecei a salivar e senti meus dentes crescerem e roçarem no meu lábio, aguçados.
– Estranho... – ouvi o coração bater mais alto.
A garganta cada vez mais seca, incomodando, irritando-me.
Passei a mão no pescoço do gato e senti as veias pulsarem sob meus dedos, ritmadas. Comecei a acariciá-lo cada vez mais forte.
O gato rajado miou e tentou sair do meu colo. Segurei-o com força e ele cravou as unhas no meu braço. A dor era aguda, mas não o soltei, o coração dele cada vez mais rápido.
Tum dum, tum dum, tum dum.
As unhas tirando sangue da minha pele, fazendo um aroma delicioso entrar pelas minhas narinas.
O gato miava cada vez mais alto, as orelhas para trás e os pelos eriçados. Ele mordeu a minha mão, fazendo-a latejar. O aroma do sangue cada vez mais intenso.
Mordi-o no pescoço fofo e o sangue se misturou aos pelos antes de molhar a minha língua. E nesse instante o tempo pareceu parar novamente.
O sabor intenso me extasiando, as poucas gotas fazendo a minha garganta se aliviar e o estômago se acalmar. Suguei até ele amolecer e tirar as garras da minha pele.
Soltei seu corpo no chão e lambi os lábios, aproveitando cada gota. Eu não estava saciado, mas estava feliz. Vi outro gato a uns trinta passos de distância, sobre uma bancada de madeira. Corri e num piscar de olhos estava sobre ele, mordendo-o, bebendo seu rico sangue, fazendo-o berrar de dor.
Uma velha abriu a porta da sua cabana, sonolenta. Avancei sobre ela como um cão selvagem e finquei minhas presas no seu pescoço enrugado. O sangue esguichou na minha garganta, quente, forte, delicioso. Bebi dela, ela em pânico, sem conseguir se mexer ou gritar.
Soltei-a o corpo sem vida caiu na areia com um baque seco.
– Que sonho estranho. Parece tão real... – cocei a cabeça, saciado. – Espero conseguir acordar logo.
Não acordei...
Resolvi caminhar beira-mar, logo eu despertaria, pois certamente alguém me traria o desjejum. O céu se avermelhava no horizonte. Andei deixando as pequenas ondas morrerem aos meus pés, o dia cada vez mais claro. Minha pele começou a se esquentar e, conforme o dia ganhava força, o incômodo aumentava.
Então, os primeiros raios fúlgidos despontaram. E eu gritei de dor quando um feixe de luz tocou o meu rosto. Parecia que eu tinha brasas na face.
Estava longe do vilarejo. Senti uma necessidade imensa de me abrigar nas sombras. Corri pela praia, o sol fazendo a minha pele chiar. Corri como o vento até conseguir alcançar uma gruta, um local em que costumava brincar com o imperador quando éramos crianças. Arrastei-me pelo liso corredor de pedras limosas e, quando me escondi da claridade, a dor cessou.
Ainda podia sentir o cheiro de carne queimada. Tão real, tão perfeito.
– Que sonho estranho! – um torpor começou a dominar o meu corpo e a minha mente. – Será que preciso adormecer aqui para acordar lá?
Deitei-me sobre um tufo de algas mortas. Mal conseguindo abrir os olhos.
Adormeci.
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– Esse foi o sonho mais estranho que tive – falei antes de abrir os olhos. Estiquei os braços para me espreguiçar e minhas mãos tocaram a rocha fria e úmida.
– Estou no mesmo lugar da noite passada? – Estava confuso.
Arrastei-me para fora da gruta e vi o mar cintilante. Por sorte a maré estava baixa, senão eu teria sido pego de surpresa e me afogado naquele lugar.
E, tal como na noite anterior, senti fome, sede, na verdade. A mesma sensação de estômago vazio e garganta seca.
– Não era um sonho? – murmurei, assustado. – Pelos Deuses! O que aconteceu comigo?
A vontade de beber sangue se intensificou e nesse instante me recordei das palavras do Deus da Lua:
“O filho da Lua não será venerado como o filho do Sol. O Sol traz vida, a Lua, morte. O Sol traz esperança, a Lua, receios. Mas essa é a natureza da criação. Os contrapontos, o claro e o escuro, a Luz e as Trevas, a esperança e a descrença. Só há equilíbrio quando há forças opostas. Para existir o bem, é preciso que se conheça o mal. Para conseguir o alívio, antes é preciso ter a dor. Nos dias vindouros, a sua presença, Filho da Escuridão, causará o pânico, que trará pessoas para o correto caminho. E eu me fortalecerei quando sangue regar a terra. Da vida dos mortais você tirará o seu sustento. E só com o sangue você poderá manter a sua imortalidade. Pelo sangue você caminhará nas noites escuras. E com o sangue construirá o seu legado. Enquanto uns se deleitam com o mel, você se saciará com a seiva da vida dos homens. Assim, previ, assim proferi, assim fiz, assim aconteceu.”
Levei a mão à boca para conter o grito. Lembrei-me dos gatos mortos. Lembrei-me da pobre velha sugada até ficar vazia. E essas lembranças aguçaram a minha sede e os meus dentes. Toquei-os e senti os caninos pontiagudos.
Prostrei-me de joelhos, confuso, querendo entender porque Tsukuyomi fizera isso comigo. Chamei-o, berrei o seu nome, blasfemei contra a sua divindade. Ele não apareceu.
Isso era ser imortal? Virar esse akuma bebedor de sangue?
Senti raiva do que me tornara. Senti tristeza pelas mortes.
Peguei uma concha lascada e sem hesitar talhei os pulsos. O sangue escorreu escuro, espesso. Preferia morrer à me tornar esse mal. Sentei-me de frente ao mar. Lindo. Um ótimo lugar para deixar essa terra. Uma bela paisagem.
Contudo, o inimaginável aconteceu. Os ferimentos se curaram rapidamente, não deixando uma cicatriz sequer. Incrédulo, cortei os braços, as pernas, a barriga, e todos os machucados se curavam quase que no mesmo instante.
– Maldição! – berrei em desespero. – O que você fez comigo, seu trapaceiro!
– A imortalidade é a minha bênção – ouvi a voz de Tsukuyomi na minha cabeça.
– Bênção? – levantei-me, furioso. – Como pode chamar isso de bênção? Estou fadado às sombras e ao sangue!
Gargalhadas.
Iguais as que ouvi quando o Deus falou comigo.
Chorei.
A sede apertou, doeu. Até dominar completamente a minha vontade. Resisti o quanto pude, juro.
Saí em busca de sangue e saciedade. Tornara-me um lacaio do Deus da Lua e causaria medo nas pessoas para o seu deleite. Nunca entendi os desígnios de Tsukuyomi, tampouco ouvi a sua voz novamente, ou vi seu rosto.
Desde então caminho sozinho pelas sombras, espreitando os desavisados, buscando aplacar a sede que nunca cessa.
*
585 A.C.
– Achei que você tinha morrido afogado, meu amigo – o imperador mal conseguia falar. – Ou tinha sido atacado pelo homem ou demônio que matou a senhora e os gatos – tossiu. – Procuramos por você durante meses e só desistimos quando veio o rigoroso inverno.
Eu sabia dessas buscas, mas sempre me mantive oculto nas sombras. Não queria que meus filhos me vissem assim.
– Eu não morri, meu amigo. – Toquei o seu ombro. – Digamos que eu renasci.
Ele franziu o cenho.
– Vejo que você está forte e saudável – ele me encarou com seus olhos negros. – Ao contrario de mim, que não passo de uma carcaça que ainda vive.
Esboçou um sorriso.
– Você viveu por longos 126 anos – afastei um chumaço de cabelo da sua testa enrugada. – Cheguei a pensar que você era imortal. Um descendente verdadeiro da Deusa Amaterasu.
– Quem me dera ser imortal! Daria tudo para ter mais uns anos – tossiu novamente.
– Cuidado com o que deseja – sorri, tristonho.
– Mas por onde você andou durante todos esses anos? Por que não voltou?
– Porque eu não podia – peguei um pano e limpei o catarro do canto da boca de Sano no Mikoto. – Estive por perto durante todo o tempo, acompanhando-o, zelando por você. Até essa noite, em que nos reencontramos.
– Ah, meu amigo, foi uma grata surpresa. Estou feliz, apesar de confuso. Não entendo seus motivos, mas os respeito, pois você sempre foi sábio e... – soltou um chiado e tossiu, dessa vez perdendo o fôlego.
– Não se esforce. Descanse e durma – passei a mão sobre os olhos do imperador e logo ele adormeceu. – Um imperador não deve definhar, não deve sofrer mais que o necessário.
Mordi delicadamente o seu pescoço e suguei o sangue cansado. Sano no Mikoto, morreu logo em seguida, soltando um longo suspiro.
– Que o seu espírito encontre os seus antepassados – cobri seu corpo. – É a escolha que eu deveria ter feito...
Saí do palácio e caminhei como um vulto pela noite. Amanhã descobririam a sua morte e seu filho seria o novo imperador. E eu o acompanharia e o protegeria pela sua longa vida. E faria o mesmo pelos seus descendentes, enquanto a sua linhagem e Yamato existissem.
Eduardo Kasse
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