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Após Os Versículos Satânicos, Salman Rushdie regressa ao romance, com O Último Suspiro do Mouro, uma saga torrencial, em que, através do torvelinho de conflitos e paixões que sucedem à poderosa família dos Gamas, e dos seus aliados Meneses, Lobos e Mirandas, trespassa todo o século XX e as brutais convulsões da índia imensa.
Ao jeito de As Mil e Uma Noites, o herói-narrador vai passando em revista os acontecimentos e as personagens da sua própria família, desde Cochim, no princípio do século, junto do túmulo vazio de Vasco da Gama, até ao áspero olival andaluz onde, depois de expressar o testemunho dos seus antepassados, ele próprio se extingue de pura exaustão.
O Último Suspiro do Mouro revela-se como a obra-prima de um autor que, sofrendo na sua própria vida as brutais'consequências dos fanatismos e dos fundamentalismos religiosos, os estigmatiza como um retorno a uma barbárie que há muito devia ter desaparecido.
1
Perdi a conta aos dias que passaram desde que fugi aos horrores da delirante fortaleza de Vasco Miranda na aldeia de Benengeli, nas serranias da Andaluzia; fugi
para salvar a vida, a coberto da escuridão, deixando um recado pregado na porta.
E desde então, ao longo de toda esta jornada, apesar da fome e do calor alucinante, escrevinhei outros bocados de papel que preguei à martelada com pregos de cinco
centímetros. Há muitos anos, quando era novo e inocente, a minha amada dizia-me com ternura:
- Meu querido Mouro, de pele tão escura, sempre com as mãos cheias de teses e sem nenhuma porta de igreja onde as pregar!
(Ela, uma Indiana devota, não-Cristã, aludia jocosamente ao protesto de Lutero em Wittenberg para trççar de mim, seu amante, Indiano, Cristão e determinadamente
Ateu: como os factos viajam através do tempo, em que gracejos se transformam!) A minha Mãe, infelizmente, ouviu-a e replicou, veloz como uma serpente ao ataque:
- Com as mãos cheias de fezes, é o que tu queres dizer!
É isso, Mãe: como sempre, foste tu a ter a última palavra.
"Amrika" e "Moskva", alguém um dia lhes chamou, a Aurora
minha Mãe, e a Uma minha amada, atribuindo-lhes as alcunhas das superpotências da época. E as pessoas achavam que elas eram parecidas, embora eu não lhes visse a
mínima semelhança. Agora
ambas estão mortas de causas não-naturais e eu, numa Terra longínqua, fujo da morte que me persegue. Tenho nas mãos a história delas, uma história que ando a crucificar
em portões, tapumes, oliveiras, espalhando por esta derradeira paisagem uma história que termina comigo. Na minha fuga fiz do mundo o meu mapa-de-piratas, com pistas
secretas, cruzes indicando o caminho para o tesouro escondido. Quando os meus perseguidores descobrirem todos os segredos, hão-de dar comigo à espera, sem fôlego,
pronto. Aqui estou eu. Não podia ter feito outra coisa.
(Aqui me sento, mais exactamente. Nesta mata escura, nesta colina coberta de oliveiras, escondido pelo arvoredo, observado pelas bizarras cruzes de pedra semitombadas
de um pequeno e antigo cemitério, invadido pelo mato, um pouco abaixo do caminho na berma do qual fica a bomba de gasolina da povoação de Ultimo Suspiro. Sem a companhia
de nenhum Virgílio, neste ponto que devia ser o meio do caminho da minha vida(*) mas que se transformou, por razões extremamente complexas, no fim da estrada - sinto-me
quase a desmaiar de cansaço.)
Sim, minhas senhoras, muita coisa ficou definitivamente arrumada. Houve quem recusasse render-se. Mas eu, depois de uma vida não-muito-longa (embora movimentada
e colorida), não tenho mais teses para pregar nas portas. A própria vida é crucifixão que baste.
Quando o vapor se esgotou, quando já quase se extinguiu o sopro que nos faz andar, é a altura das últimas confissões. Chamem-lhe testamento, se quiserem, ou o "Bar-da-Última-Bebida
". E assim, aqui estou eu - sentado ou em pé - com as sentenças de toda a minha vida pregadas na paisagem e tendo na algibeira as chaves de um fortim vermelho, vivendo
estes momentos de pausa antes da rendição final.
(*) Alusão à "Divina Comédia" de Dante. (N. T.)
Por isso, é altura de cantar o que já não existe; o que aconteceu e nunca mais voltará a acontecer; o que esteve certo e o que estava errado. Um último suspiro
por um mundo desaparecido, uma lágrima pela sua desaparição. E no entanto, um último viva!, uma série de anedotas escandalosas e umas tantas cantigas brejeiras,
próprias para o velório. A história de um Mouro, completa com som e fúria. Não é o que querem? Não? Pois mesmo que o não queiram. E para começar, passem a pimenta.
- O que é que disse?
As próprias árvores parecem surpreendidas com o discurso. (Nunca lhes aconteceu, no meio da solidão e do desespero, falarem para as paredes, para o estúpido do cão,
para o próprio ar?)
Repito: a pimenta, por favor. Porque, se não fossem os grãos da pimenta, o que agora está a acabar tanto no Ocidente como no Oriente talvez nunca tivesse começado.
Foi a pimenta que trouxe os grandes barcos de Vasco da Gama do lado de lá dos oceanos, desde a Torre de Belém até à Costa do Malabar: primeiro até Calecute e depois,
por causa da sua laguna e do seu porto, até Cochim. Os Ingleses e os Franceses navegaram na esteira dos Portugas (primeiros a chegar) e assim, nesse período da Descoberta-da-Índia
(como é que nós, Indianos, pudemos ser descobertos se não estávamos escondidos?) nós fomos "não tanto um subcontinente como um subcondimento" como a minha distinta
Mãe costumava dizer.
- Desde o princípio - dizia ela - o que o Mundo quis da tal Mãe índia era o picante. Aquilo que qualquer homem procura numa puta.
A minha história é a da caída em desgraça de um mestiço bem-nascido: eu, Morais Zogoiby, chamado o "Mouro", que durante a maior parte da vida fui o único herdeiro
varão dos milhões - em fabulosos negócios de especiarias - da dinastia dos da Gama-Zogoiby, de Cochim; a história de ter sido desapossado
pela minha própria Mãe de tudo aquilo que tinha o direito de pensar que era a minha vida natural; pela própria Mãe, Aurora, em solteira da Gama, a mais ilustre
das nossas pintoras modernas, mulher de uma grande beleza e possuidora da língua mais afiada da sua geração, atacando sem mercê todo aquele que passava ao seu alcance.
Os seus filhos não eram de forma alguma poupados.
- Nós, as chavalas do rosário e crucifixo, temos a malagueta no sangue, costumava ela dizer. - Não há favores para a gente da família. Meus queridos, nós gostamos
de trincar carne e de beber sangue!
- Ser filho da nossa diabólica Aurora - dizia-me quando eu era criança o pintor goês V. (de Vasco) Miranda - é o mesmo que ser, efectivamente, um Lúcifer moderno.
Sabes o que eu quero dizer: filho da manhã.
Por essa altura a nossa família já se tinha mudado para Bombaim e as palavras de Vasco eram tidas por um cumprimento no "Paraíso", lendário Salão de Aurora Zogoiby;
mas agora recordo-as como uma profecia, porque acabou por chegar o dia em que fui realmente expulso desse fabuloso Jardim e atirado para o abismo. (Banido do natural,
que escolha tinha eu senão conver-ter-me ao seu oposto? Ou seja ao contranaturalismo, o único verdadeiro "ismo" desses dias de barafunda e de pés virados pela cabeça.
Escorraçado para lá dos limites, como não havia eu de procurar transformar em luz a escuridão? E assim foi. Morais Zogoiby, expulso da sua estória, encaminhou-se
para a História.)
- E tudo isto sai dum pimenteiro!
Não só pimenta, mas também cardamo, caju, canela, gengibre, pistache, cravinho; além das especiarias e frutos secos, também os grãos do café e as poderosas folhas
do chá. Mas a verdade é que, nas palavras de Aurora:
- ... e a pimenta à frente de tudo - sim, sim "à frente". Porque é que se há-de dizer "acima de tudo" se na verdade é "à frente"?
O que foi verdade na História, também o foi na história e na fortuna da nossa família. A pimenta, o cobiçado Ouro Negro do Malabar, esteve na origem dos negócios
da minha gente (podre de
rica); os mais ricos mercadores de especiarias, frutos secos, grãos e folhas de Cochim e que, sem qualquer prova a não ser uma tradição secular, juram ser descendentes-de-mão-esque
rda do grande Vasco da Gama.
Não há mais segredos. Estão todos pregados na paisagem.
2
Quando tinha treze anos a minha Mãe, Aurora da Gama, costumava vaguear descalça pela enorme e cheirosa casa dos seus avós na Ilha de Cabral durante as noites de
insónia, mal de que sofreria pela vida fora; nessas odisseias nocturnas ela entre-tinha-se a abrir completamente todas as janelas - primeiro as janelas de rede muito
fina que protegiam a casa contra os mosquitos, depois as de vidrinhos e finalmente as persianas de madeira. E, em consequência, a sexagenária matriarca Epifania
- em cuja janela de rede tinham aparecido com o correr dos anos uns bura-quinhos minúsculos mas nefastos em que ela, por miopia ou arrogância, nem reparava - era
acordada todas as manhãs por comichões devidas às picadas que constelavam os seus ossudos antebraços azulados, e soltava um gritinho ao ver moscas a esvoaçar sobre
o tabuleiro com chá e biscoitos que a criada Teresa lhe tinha deixado sobre a cama antes de se escapulir o mais depressa que podia. Epifania desenvolvia então uma
actividade frenética de palmadas e coçadelas, rebolando-se pela enorme e curvilínea cama de teca, entornando muitas vezes o chá sobre as rendas do lençol ou sobre
a camisa de noite de musselina branca com uma alta gola farfalhuda que lhe tapava o outrora belíssimo colo de cisne, agora todo amarfanhado pelas rugas. Enquanto
a mão direita, empunhando o mata-moscas dava golpes repetidos e as longas linhas da mão esquerda procuravam nas costas zonas de comichão, a touca de Epifania da
Gama escorregava-lhe na cabeça e revelava um
emaranhado novelo de cabelos brancos onde se entreviam (infelizmente!) algumas peladas e clareiras.
Quando a jovem Aurora, à escuta junto à porta achava que os sons da fúria da odiada avó (pragas, louça partida, palmadas ineficazes do mata-moscas, zumbido insultuoso
dos insectos) estavam a atingir o máximo, afivelava o seu sorriso mais doce e aproximava-se da matriarca com uma alegre saudação matinal, sabendo muito bem que a
mãe de todos os Gamas de Cochim seria lançada do alto da sua fúria para o abismo da sua impotência de velha pela chegada daquela jovem testemunha. Epifania, hediondamente
desgrenhada, ajoelhada nos seus lençóis manchados, procurando um escape para a sua raiva, uivava como uma feiticeira, banshee(*) ou rakshasa(*), ao aperceber Aurora,
para secreta delícia da rapariga.
- Ah, menina, que susto me pregaste! Um dia destes ainda me rebentarizas o coração!
Foi assim que Aurora teve a ideia de assassinar a sua avó, colhendo-a dos lábios da futura vítima. A partir de então começou a fazer planos, mas essas macabras fantasias
de venenos e precipícios esbarravam invariavelmente em problemas práticos, tais como a dificuldade de apanhar uma víbora e a meter entre os lençóis de Epifania,
ou a recusa terminante da velha bruxa em caminhar por qualquer terreno que, como ela dizia, "andarinhasse para baixo e para cima". E embora Aurora soubesse muito
bem onde podia deitar mão a uma faca bem afiada e tivesse a certeza de que já tinha força suficiente para estrangular a Avó, achou melhor afastar esses projectos
porque não queria ser apanhada e um ataque muito óbvio podia levar a que lhe fizessem perguntas desconfortáveis. Não tendo conseguido atingir o plano do crime perfeito,
Aurora continuou a desempenhar o seu papel de neta perfeita; mas continuava a pensar nisso, na intimidade, sem reparar que, nesses pensamentos solitários havia muito
da natureza implacável da própria Epifania.
(*) No folclore gaélico, espírito feminino cujos guinchos prenunciam a morte. (N. T.)
(**) Demónio tradicional indiano. (N. T.)
- Paciência é virtude, dizia para si própria. É só esperar pela primeira ocasião.
Entretanto, lá ia abrindo as janelas naquelas noites húmidas e por vezes deitava fora pequenos objectos valiosos, figurinhas de madeira com cabeça de elefante, que
ficavam a boiar nas águas da lagoa que lambiam as paredes da casa da ilha até que a maré as levava, ou ainda delicadas estatuetas de marfim que iam directamente
para o fundo e nunca mais eram vistas. Durante alguns dias a família preocupava-se com estes incompreensíveis desaparecimentos. Os filhos de Epifânia da Gama, o
tio Aires e o pai Camões descobriam, ao acordar, que as malévolas brisas nocturnas tinham ido buscar camisas de caqui aos armários e espalhado os papéis de cima
das suas secretárias. Correntes de ar extremamente habilidosas tinham desatado as bocas dos sacos de amostras, sacos de juta cheios de paus de canela, de folhas
de eucalipto e de caju, que se perfilavam como sentinelas ao longo dos escuros corredores da ala dos escritórios. Daí resultava que sementes de alforva e de pistache
se espalhavam pelo belo piso feito de calcário, carvão, clara de ovo e outros esquecidos ingredientes, e que o cheiro das especiarias se espalhava pelo ar e incomodava
a matriarca, que com o correr dos anos se tornara alérgica aos aromas das fontes de riqueza da família.
E se as moscas entravam quando se abriam as janelas de rede e correntes de ar mal intencionadas se infiltravam pelas janelas de vidro entreabertas, a abertura das
persianas dava entrada a todo o resto: o pó e o tumulto dos barcos no porto de Cochim, as sereias dos cargueiros e dos rebocadores, as graças obscenas dos pescadores
atingidos pelo veneno das alforrecas, a luz do Sol afiada como uma faca, o calor sufocante como um pano húmido apertado contra a cara, os gritos das gaivotas pairando
no ar, o bafo da tristeza dos judeus solteiros vindo das bandas de Mattancherri, a ameaça dos contrabandistas de esmeraldas, as intrigas dos comerciantes, o crescente
nervosismo da colónia inglesa em Cochim, as exigências salariais dos trabalhadores das plantações na Serra das Especiarias, os rumores da agitação comunista, os
nomes de Gandi e Nehru, o flagelo da fome na costa oriental e as greves de fome
no norte, as cantigas e tambores dos contadores de histórias, e o pesado fragor das marés da História ao quebrarem-se contra os molhes da Ilha de Cabral.
- Que raio de terra de classes baixas! - praguejava o tio Aires ao pequeno-almoço, devidamente enchapelado e empolai-nado. - O mundo exterior não tem lixo que chegue?
Porquê esta horrorosa chinfrineira? Quem foi o cabrãozinho que deixou entrar tudo isto? Esta é uma casa decente ou uma retrete de merda - desculpem a expressão -
lá do Bazar?
Nessa manhã Aurora percebeu que tinha ido longe demais quando o seu querido pai, Camões de nome próprio, (um homenzinho empertigado, de barbicha, que a filha já
ultrapassava em altura) a levou para o cais positivamente saltitando de emoção e nervosismo, de tal forma que a sua silhueta se recortava contra a inesperada beleza
da lagoa como uma personagem fantástica, um gnomo dançando na clareira dum bosque ou um génio benfazejo fugido duma lâmpada. E aí lhe confiou num sussurro a extraordinária
notícia: usando o nome de um grande poeta e tendo um feitio sonhador (mas desprovido de talento) Camões sugeria timidamente a possibilidade de ser perseguido por
uma aparição.
- É minha convicção - disse ele à filha perplexa - que a tua querida Mãezinha voltou para junto de nós. Lembras-te de como ela gostava da frescura da brisa, como
ela lutava contra a tua Avó para ter as janelas abertas; e agora elas abrem-se magicamente todas as noites. E repara, querida filha, quais são as coisas que desapareceram:
tudo o que ela detestava, estás a ver?! "Os elefantes sagrados do Aires" costumava ela chamar à colecção de figuras que desapareceu. Isso e o marfim.
Os dentes de elefante de Epifania. Há elefantes a mais cá por casa. A falecida Isabella da Gama dizia sempre tudo o que lhe passava pela cabeça.
- Penso que se eu ficar a pé esta noite, talvez volte a ver o seu querido rosto, confiou Camões à filha. - O que é que achas? A mensagem dela é claríssima. Não queres
ficar de atalaia comigo? Tu e eu estamos na mesma situação: tenho muitas saudades da minha esposa e tu da tua mãe.
Aurora, corada de vergonha e de confusão, gritou:
- Mas eu não acredito no raio dos fantasmas! E correu para dentro de casa, incapaz de confessar a verdade: que era ela própria o fantasma da mãe desaparecida, fazendo
o que ela fazia e falando com a mesma voz; que a filha que vagueava pela casa durante a noite mantinha viva a sua mãe, oferecendo o seu corpo para morada da falecida,
recusando a morte, insistindo em que o amor perdura para além-túmulo; que ela se transformara na nova alvorada da sua mãe, passara a ser a carne do seu espírito,
duas Bellas numa só.
(Muitos anos mais tarde havia de chamar Elephanta à sua própria casa; e assim os temas elefantinos, tal como os temas espectrais, continuaram a ter um papel importante
na nossa saga.)
Bella morrera apenas há dois meses. Infernal Bella(::"), costumava chamar-lhe o Tio Aires (que tinha aliás a mania de dar alcunhas a toda a gente, impondo grosseiramente
ao mundo em geral o seu universo particular). Isabella Ximena da Gama, a avó que eu nunca conheci. Entre ela e Epifania a guerra tinha estalado desde que se viram
pela primeira vez. Viúva aos quarenta e cinco anos, Epifania tinha começado imediatamente a assumir uma posição de matriarca e costumava sentar-se logo de manhã,
à fresca sombra do seu pátio favorito, com o colo cheio de pistaches, abanando-se e abrindo as cascas com os dentes, numa ruidosa manifestação de poder, cantarolando
com uma voz aguda e implacável.
Bobby Shaft foi pró ma-a-a-ar numa noite de lu-a-ar.
Crrc! Crrc! faziam as cascas dos pistaches a abrirem-se na sua boca.
Sei bem que ele há-de volta-a-ar. e que sempre o bei-de ama-a-ar.
(*) "HelPs Belle", em inglês, jogando com a rima. (N. T.)
Bella foi a única pessoa que nunca teve medo de Epifania.
- Amar no mar ao luar!... É giro que na sua idade ainda cante canções de amor. Mas essa é estúpida demais - disse-lhe Isabella quando aos dezanove anos entrou em
casa da Sogra como noiva não muito bem aceite.
- Camões - disse Epifania imperturbável. - Informa a tua mulher que deve fecharizar a torneira. Assim está a pingarinhar de merda.
Nos dias seguintes, Epifania deu um recital completo das suas versões pessoais de canções populares inglesas, o que provocou uma desajustada reacção de troça por
parte da nora e levou a sogra a escolher uma que parecia aludir aos deveres conjugais das jovens casadas.
Contam-se muitas lendas a propósito da guerra dos Gamas de Cochim. Vou recordá-las na forma em que chegaram até mim, polidas e fantasiadas por sucessivas narrações.
São velhos fantasmas, sombras distantes e se eu conto aqui estas histórias é também para me ir libertando delas; elas são tudo o que me resta e é melhor deixá-las
ir. De Cochim a Bombaim, da costa até às montanhas do Malabar: a história dos nossos encontros, das nossas separações, das nossas subidas, das nossas quedas, do
tal "andarinhar para baixo e para cima". E depois é só dizer adeus a Mat-tancherri, adeus a Marine Dive... De qualquer forma, quando minha mãe Aurora nasceu naquele
casarão privado de bebés e foi crescendo até ser uma miúda de treze anos, alta e rebelde as linhas da acção já estavam traçadas.
- Comprida demais para rapariga, foi a reprovadora sentença de Epifania a respeito da neta quando ela chegou aos treze anos.
- Parece um espeto. Aquele olhar esquisito quer dizer que tem o Mal no coração. Traz vergonhas estampadas na testa, como todos podem ver. Cara estanhada.
Ao que Bella respondeu, zangada:
- E onde é que está a criança mais-que-perfeita engendrada pelo seu querido Aires? Ao menos aqui está uma jovem Gama, viva e aos pulos. Se parece um espeto, tanto
melhor. Do mano Aires e da mana Sahara é que não vem nada: nem espeto nem bolas.
O nome da mulher de Aires era Carmen, mas Bella, seguindo o gosto do cunhado pelas alcunhas, tinha-lhe dado o nome do deserto - "porque ela é tão chata e tão estéril
como a areia e não vejo naquele deserto sítio onde se possa beber".
Aires da Gama, com a cabeça cheia de brilhantina, numa tentativa de alisar a sua crespa cabeleira branca (o embranquecimento prematuro era característico da família;
minha Mãe Aurora ficou com o cabelo branco aos vinte anos, e que mágico encanto, que serenidade gelada eram acrescentados à sua beleza pela branca e macia cascata
que lhe descia da cabeça!): que empatia tinha o meu tio-avô! Recordo as fotografias dessa época: uma figura ridícula com o seu monóculo, colarinhos de goma, e fato
completo do melhor tecido, gabardine. Numa das mãos, uma bengala de castão de marfim (tinha uma lâmina por dentro, diz a lenda) na outra uma boquilha descomunal;
e lamento acrescentar que o meu tio-avô tinha o mau gosto de usar polainas. Se fosse um pouco mais alto e usasse um bigode retorcido nas pontas, seria a imagem perfeita
de um vilão de ópera-cómica; mas Aires era formato-de-
- bolso, como o irmão, com as faces bem escanhoadas e luzidias e o seu aspecto de falso zangão era sobretudo digno de dó.
Numa outra página deste álbum fotográfico da memória, está a tia.-a.vó Sahara, a Mulher-Sem-Oásis, vesga e marreca, a mastigar casca de betel com as suas mandíbulas
de camelo a quem nem sequer faltava a bossa. Carmen da Gama era prima direita de Aires, filha órfã de uma irmã de Epifania, Blimunda, e dum pequeno impressor chamado
Lobo. Os pais de Carmen tinham sido levados por uma epidemia de malária e as perspectivas da rapariga, que já eram muito fracas, desceram abaixo de zero. Até que
Aires causou o espanto de sua mãe ao concordar em casar com Carmen. Epifania passou uma semana sem dormir, torturada*pela indecisão, sem conseguir optar entre o
seu sonho de encontrar para Aires uma presa digna de ser caçada e a necessidade imperiosa de impingir Carmen antes que fosse tarde demais. Por fim o dever para com
a falecida irmã sobrepôs-se às esperanças que tinha para o filho.
Carmen nunca foi jovem, nunca teve filhos, sempre sonhara despojar fraudulentamente Camões da sua parte da herança e
nunca disse absolutamente a ninguém que na noite de núpcias o seu marido tinha demorado a entrar no quarto, tinha pura e simplesmente ignorado a noiva escanzelada
e aterrorizada que o esperava tremendo virginalmente, tinha-se despido com exagerada lentidão, tinha facilmente enfiado o corpo nu (de proporções muito semelhantes
ao dela) no vestido de noiva que a criada dispusera num manequim como símbolo da união, e tinha saído pela janela da casa de banho. Carmen ouvira um assobio vindo
da água que banhava aquele lado da casa e chegara à janela embrulhada no lençol, pressentindo o pesado futuro que lhe caía naquele momento sobre os ombros e a deixaria
marreca para sempre. Vira então o seu vestido de noiva a brilhar lá em baixo, à luz do luar, enquanto um rapaz o levava de barco - e a quem o vestia - em busca daquilo
que, entre gente tão estranha, era tido como a suprema felicidade.
A história de Aires e do vestido de noiva acabou por me chegar aos ouvidos mau grado o total silêncio da Tia-Avó Sahara, abandonada nas frias dunas dos seus imaculados
lençóis nupciais. A maior parte das famílias normais não consegue guardar segredos; e no nosso clã, muito afastado da normalidade, os mais profundos segredos acabavam
na forma de grandes quadros a óleo, exposto nas galerias... Talvez, no fim de contas, toda esta história tivesse sido inventada pela própria família, para dar um
tom poético e exótico ao facto bruto da homossexualidade de Aires? O que é certo é que Aurora da Gama veio a pintar a cena - nesse quadro o homem vestido de noiva,
iluminado pelo luar, está de frente para o remador de que se vê apenas o dorso nu e transpirado - embora se possa dizer, mau grado a vida boémia da própria pintora,
que este duplo retrato era uma fantasia eufemística, só convencionalmente chocante: que a história, tal como foi contada e pintada, disfarçou com um toque de beleza
o brutal segredo de Aires, escondendo o falo em riste e as nádegas e o sangue e a audácia de tudo aquilo, os receios do dandy em cio tentando aliciar parceiros entre
os vigorosos ratos-das-docas, o terror exal-tante das carícias compradas, os ternos apalpões, por becos e barracos, dos estivadores de grossos punhos, o amor das
musculosas
coxas dos jovens ciclistas dos rickshaws e das bocas subalimentadas dos rapazitos dos bazares; que o quadro daquele amour fou conflituoso, intermitente, duradouro
mas cheio de infidelidades, que há muito ligava Aires ao rapaz do barco nupcial a quem chamava "Príncipe Henrique, o Navegador"; que a pintura mandava a verdade
para fora de cena provocantemente ataviada e depois desviava os olhos.
Não senhor. A autoridade da pintora não pode ser posta em causa. Seja o que for que se tenha passado entre estas três personagens - a seu tempo será aqui registada
a estranha intimidade que veio a estabelecer-se muito tempo depois entre Carmen da Gama e o Príncipe Henrique - o episódio do vestido de noiva e da sua partilha
marca o início de tudo.
A nudez do noivo sob o vestido roubado, o seu rosto sob o véu nupcial - eis o que liga o meu coração à memória daquele estranho tio-avô. Sei muitas outras coisas
a seu respeito que não me agradam especialmente; mas naquela imagem da sua feminilidade, onde muita gente da família (e não só) viu degradação, eu vejo a sua coragem
e a sua capacidade de atingir a glória. Sim senhor, a glória.
Falando do seu detestado Tio Aires, minha Mãe costumava dizer na sua linguagem florida herdada da sua própria Mãe:
- Fora das suas actividades de pila-e-cu, o Tio era mais chato do que uma perna partida.
Falando então da raiz de todas as guerras da família, das mortes prematuras e dos amores contrariados, das paixões e dos pulmões enfraquecidos, do poder e do dinheiro
e das imorais seduções e mistérios da arte é bom não esquecermos quem começou tudo, quem foi o primeiro a sair do seu elemento e a morrer afogado, aquele cuja morte
aquática derrubou a pedra de apoio da família e deu início ao seu longo declínio que terminou com a minha queda no abismo: Francisco da Gama, falecido esposo de
Epifania.
É que Epifania, noutros tempos, também fora noiva. Vinha de uma velha família de comerciantes, agora muito reduzida, os Menezes de Mangalore; e houve grandes ciúmes
quando, pouco depois de o ter conhecido num casamento em Calecute, Epifania conquistou o riquíssimo partido que era Francisco da Gama, contra inúmeras mães desapontadas
que achavam que um homem tão rico como ele devia ficar chocado com as contas bancárias a descoberto, as jóias de pechisbeque e a roupa baratucha daquela família
pelintra de caçadores de fortunas. No alvorecer do século, pelo braço do Bisavô Francisco, ela chegou à Ilha de Cabral, o primeiro dos quatro paraísos privados desta
história, paraísos infernais com serpente e tudo. (Sendo o Salão de minha Mãe, em Mala-bar Hill, o segundo, o jardim suspenso do meu Pai o terceiro e o bizarro reduto
de Vasco Miranda, o seu "Pequeno Alhambra", em Benengeli, Espanha, o último.)
Na Ilha de Cabral encontrou Epifania uma grande e antiga mansão de estilo tradicional, com uma sucessão de deliciosos pátios cheios de fontes cobertas de musgo e
de laguinhos esverdeados, rodeados de galerias ricamente ornamentadas em talha de madeira, das quais partiam labirintos de salas enormes com tectos muito altos,
trabalhados em masseira ou azulejos. A casa assentava num paraíso de folhagem tropical, próprio de um homem muito rico; exactamente na conta certa na opinião de
Epifânia, que embora tivesse conhecido uma relativa penúria na sua infância, achava que tinha gosto e talento para viver na magnificência.
Contudo, poucos anos depois do nascimento dos seus dois filhos, Francisco da Gama chegou a casa acompanhado de um francês impossivelmente jovem e suspeitosamente
amável, um certo Monsieur Charles Jeanneret (*), que se dava ares de Génio da Arquitectura embora pouco passasse dos vinte anos. Antes que Epifânia pudesse sequer
pestanejar, o seu crédulo marido já tinha encomendado à presumida criatura não uma mas duas casas no
(*) Charles-Edouard Jeanneret é o nome oficial do arquitecto mundialmente conhecido como Le Corbusier, nascido na Suíça em 1887, naturalizado francês em 1930 e falecido
em 1965. (N. T.)
'meio dos seus preciosos jardins. E que estranhíssimas construções ali foram erguidas!
Uma delas era um edifício bizarro, todo em ângulos e placas, por dentro do qual avançava o jardim; de tal forma que era às vezes difícil perceber se estávamos dentro
se fora da casa. Os móveis pareciam feitos para um hospital ou para uma aula de geometria; não nos podíamos sentar sem esbarrarmos contra bicos pontiagudos.
A outra era uma casa de madeira e papel feita com cartas de jogar - "em estilo japonês" - explicou ele a uma Epifania aterrada - uma ratoeira em caso de incêndio,
cujas paredes eram painéis de pergaminho deslizantes e onde não era suposto as pessoas sentarem-se mas sim ajoelharem-se; devia dormir-se numa esteira pousada no
chão com a cabeça apoiada num bloco de madeira, como um criado; a falta de privacidade levou Epifania a observar:
- Numa casa com paredes de papel higiénico, o conhecimento do estado de saúde do aparelho digestivo dos membros da família não representa pelo menos nenhum problema.
Pior ainda: Epifânia cedo descobriu que assim que aquelas casas malucas ficaram prontas, Francisco da Gama frequentemente se cansava de viver na sua bela mansão,
batia com a mão na mesa do pequeno-almoço e anunciava que iam "avançar para Leste" ou "avançar para Oeste"; e toda a família não tinha outro remédio senão mudar-se
com armas e bagagens para uma ou para outra das extravagâncias arquitectónicas do Francês, sem que os mais enérgicos protestos fizessem a menor diferença. Passadas
semanas, mudavam-se todos outra vez.
Não só Francisco da Gama era incapaz de viver uma vida bem ordenada de pessoa normal, como também - descobriu Epifânia com desespero - gostava de apoiar as artes.
Bebedores-de-rum-e-de-whisky e mastigadores de cânhamo, pesscfas de baixa extracção e de revoltante indumentária eram convidadas para longuíssimas estadias e enchiam
as casas do Francês de músicas estridentes, maratonas de Poesia, modelos nus, beatas de marijuana e outras manifestações do mais inconveniente comportamento.
Artistas estrangeiros passavam ali grandes temporadas e deixavam atrás de si estranhas esculturas articuladas que pareciam enor-
mes cabides oscilando à brisa, retratos de mulheres infernais com ambos os olhos do mesmo lado do nariz e telas gigantescas que davam ideia de que qualquer acidente
tinha ocorrido com as tintas. Epifânia era obrigada a pendurar esses horrores nas paredes da sua casa bem-amada e a olhar para eles todos os dias como se fossem
coisas decentes.
- A tua merdarte, Francisco, disse ela, cheia de perfídia, é tão feia que me vai cegarizar. - Mas ele era imune ao seu veneno.
- A velha beleza não basta, respondeu. Os velhos palácios, os velhos costumes, os velhos deuses. O mundo de hoje está cheio de questões e existem novos caminhos
para a beleza.
Francisco era um herói nato, vocacionado para buscas e interrogações; sentia-se tão pouco à vontade na vida doméstica como se sentiria o Quixote. Era belo como o
pecado mas extremamente virtuoso e provou, na esteira de lançamentos do cricket ser capaz de executar um arremesso em curva positivamente diabólico e, por outro
lado, possuir uma batida elegante e eficaz. Na Faculdade de Medicina era o mais brilhante aluno do seu ano, mas quando o pai morreu decidiu, depois de profunda reflexão,
abandonar os estudos e cumprir o dever de entrar nos negócios da família. Com o correr dos anos tornou-se um perito na velha arte dos da Gama de transformar especiarias
em oiro. Farejava no vento o cheiro do dinheiro, podia adivinhar se o tempo ia trazer lucros ou perdas; mas era também um filantropo, fundando orfanatos, abrindo
hospitais para os pobres, construindo escolas nas aldeias mais afastadas, criando institutos para o estudo das pragas nos coqueiros, instituindo esquemas de protecção
dos elefantes das montanhas contíguas às suas plantações e patrocinando um concurso anual por ocasião do Festival da Flor em Ouam em que eram revelados e premiados
os melhores contadores de histórias tradicionais; era tão generoso na sua filantropia que Epifânia se lamentava (sem qualquer resultado):
- E quando a massa acabar e as crianças andarem a pedir? Vamos comezainar a tua coisada, a tua antropologia?
Ela lutou contra ele palmo a palmo e perdeu todas as batalhas menos a última. Francisco, o modernista de olhos fixos no futuro, tornou-se um discípulo, primeiro
de Bertrand Russel - "Religião
,e Ciência" e "A Crença de um Homem Livre" foram as suas Bíblias ateias - e depois dos ferventes políticos nacionalistas da Sociedade Teosófica da Sr.a Annie Besant.
Recordem-se: Cochim, Travancore, Mysore, Hyderabad não faziam oficialmente parte da índia inglesa; eram Estados indianos, com os seus príncipes próprios. Alguns
deles - como Cochim - podiam orgulhar-se, por exemplo, de padrões académicos e literários muito acima dos que vigoravam nas zonas de dominação britânica, enquanto
que em outros (Hyderabad) existia aquilo a que o Sr. Nehru chamava o "perfeito feudalismo" e em Travancore, o próprio Congresso era considerado ilegal.
Mas não confundamos (Francisco não confundia) a aparência com a realidade; a folha da figueira não é a mesma coisa que o figo. Quando Nehru içou a bandeira nacional
em Mysore, as autoridades locais (Indianas) fizeram desaparecer não só a bandeira mas o próprio mastro assim que Nehru voltou costas, não fosse o evento irritar
os verdadeiros governantes... Pouco depois de estalar a Grande Guerra, quando fez 38 anos, qualquer coisa deu um estalo no espírito de Francisco:
- Os Ingleses devem ir-se embora - anunciou solenemente ao jantar, diante dos retratos dos seus antepassados, devidamente vestidos e calçados à europeia.
- Oh meu Deus! Para onde é que vão? - inquietou-se Epifânia sem perceber o sentido das palavras do marido. - Num momento tão grave vão abandonar-nos ao nosso destino
e àquele espantalho do Kaiser Bill? (**)
Francisco explodiu de fúria e Aires, então com doze anos e Camões, com onze, ficaram petrificados nos seus lugares.
- O Kaiser é uma conta alheia que estamos a pagar! Impostos a dobrar! Os nossos rapazes a morrerem "fardados à inglesa! A riqueza do país está a ser desencaminhada,
minha Senhora! O nosso povo passa fome mas John Buli come o nosso trigo e o
(*) Guilherme II, Imperador da Alemanha entre 1888 e 1918. "Bill" não só
e um diminutivo de Guilherme, como significa "conta", o que permite o trocadilho de Francisco. (N. T.)
nosso arroz! Pessoalmente, sou obrigado a vender os meus produtos abaixo do custo. As nossas minas estão a ser saqueadas: salitre, mica, manganês. Caramba! Os figurões
de Bombaim estão podres de ricos e a nação à beira da ruína.
- Tens os ouvidos cheios de aldrabices e leste livros a mais - protestou Epifânia. - Que somos nós senão filhos do Império Britânico? Os Ingleses deram-nos tudo,
ou não deram? Civilização, lei, ordem, toda essa história. Até as tuas especiarias que empestam a casa, são eles que as compram, para nós podermos vestir-nos e dar
de comer aos nossos filhos. Para quê essa conversalha de alta traição? Para quê encher os ouvidos dos meus filhos com essas tretas do diabo?
A partir desse dia passaram a ter muito pouco que dizer um ao outro. Aires, contrariando o pai, tomou o partido da mãe; Epifânia e ele eram pela Inglaterra, por
Deus, pelo respeito pelas aparências, pelos usos e costumes conservadores, por uma vida sem fazer ondas. Francisco era todo alvoroço e energia, por isso Aires adoptou
a indolência e sabia como enfurecer o pai com o seu exagerado à vontade e a sua ociosidade. (Na minha juventude, por razões diferentes, também era dado à ociosidade.
Mas não era para chatear ninguém; o meu patético objectivo era o de opor a minha lentidão ao movimento acelerado do próprio Tempo. Mas este tema será também tratado
no momento próprio.) No mais novo dos rapazes, Camões, encontrou Francisco um aliado, nele inculcando as virtudes do nacionalismo, da razão, da arte, da inovação
e, acima de tudo, naqueles dias, do protesto. Francisco partilhava o primitivo desprezo de Nehru pelo Congresso Nacional Indiano:
- Uma conversa de chacha para os canecos. - Camões concordava com ar grave.
Mas Epifânia ralhava-lhe:
- Annie para um lado, Gandhi para outro! Nehru, Tilak, todos esses malandros, esses gangsters do Norte! Não faças caso do que diz a tua Mãe! Alinha com os refilões!
Vais ver se não vais parar à choça em três tempos!
Em 1916, Francisco da Gama aderiu à campanha para a Autodeterminação de Annie Besant e Bal Gangadhar Tilak, tendo como
objectivo a exigência de um Parlamento Indiano independente que decidiria do futuro do País. Quando a sua Besant lhe pediu que fundasse em Cochim um Comité para
a Autodeterminação, e Francisco teve a coragem de convidar para esse Comité os trabalhadores das docas, das plantações de chá, dos bazares e das suas próprias empresas
juntamente com a burguesia local, Epifânia ficou fora de si:
- Massas e classes ricas no mesmo clube! Uma vergonha, um escândalo! O homem perdeu o juízo - dizia ela apopléctica, abanando-se com o leque e deixando-se cair num
profundo silêncio.
Poucos dias depois da formação do Comité, houve um reencontro nas ruas do bairro de Ernakulam, junto às docas; umas escassas dezenas de militantes conseguiram dominar
um pequeno destacamento de tropas providas de armas ligeiras que foram capturadas. No dia seguinte o Comité foi formalmente dissolvido e apareceu na Ilha de Cabral
uma lancha a motor que levou Francisco da Gama para a prisão.
Francisco passou os seis meses seguintes a entrar e a sair da prisão, conquistando o desprezo do filho mais velho e a imorredoira admiração do mais novo. Um herói,
sem qualquer dúvida. Com as suas prisões, com o seu furioso activismo político quando em liberdade, em que procurava deliberadamente ser preso seguindo as instruções
de Tilak, com tudo isso conquistou as credenciais de homem notável, um homem a não perder de vista, alguém com uma brilhante carreira à sua frente: uma estrela.
As estrelas podem cair; os heróis podem falhar; Francisco da Gama não cumpriu o seu destino.
Na prisão encontrou tempo para o trabalho que viria a destruí-lo. Nunca ninguém percebeu em que recôndito meandro do seu espírito foi o Bisavô Francisco desencantar
a teoria científica que transformou o herói nascente no alvo das gargalhadas de todo o país; teoria que o foi ocupando cada vez mais durante esses anos,
rivalizando até nos seus afectos com o movimento nacionalista. Talvez que o seu velho interesse pelas teorias da Física se viesse a confundir com as suas mais recentes
paixões, tais como a Teosofia da Sr.a Besant, a insistência do Mahatma na unidade e identidade dos diferentíssimos milhões de Indianos, a procura por parte dos intelectuais
indianos modernistas de uma definição racional da vida do espírito, da tão-gasta palavra "alma"; seja como for, nos finais de 1916 Francisco da Gama imprimiu particularmente
um artigo que mandou aos mais importantes jornais da época, com um bilhetinho solicitando a amabilidade da sua atenção. O título era "Para uma Teoria Provisória
dos Campos Transformadores da Consciência "eo autor expunha a teoria da existência à nossa volta de invisíveis "redes dinâmicas de energia espiritual semelhantes
a campos electromagnéticos", esclarecendo que esses "campos de consciência" não são mais que os arquivos da memória - factual ou ética - da espécie humana. Que eles
eram, na realidade, aquilo a que o Stephen do Joyce(*) recentemente se referira (na revista Egoist) como desejando forjar na sua alma: a consciência-por-criar da
nossa raça.
No seu nível de funcionamento mais imediato os chamados "Campos Transformadores da Consciência" facilitavam aparentemente a educação, porque aquilo que era ensinado
em qualquer ponto da Terra, fosse por quem fosse, podia ser logo ensinado por outra pessoa noutro lugar qualquer; mas também se sugeria que num plano mais elevado,
um plano que se admitia como mais difícil de estudar, os campos agissem eticamente, simultaneamente definindo e sendo definidos pelas nossas opções de ordem moral,
sendo fortalecidos em qualquer ponto do planeta e, inversamente, enfraquecidos por más acções. De tal maneira que, em teoria, uma sequência de atrocidades danificaria
os Campos de Consciência de forma irreparável e "a Humanidade teria então de enfrentar a horrenda realidade de um universo tornado amoral, e logo sem sen-
(*) Stephen Dedalus, herói fictício do romance "Ulisses" de James Joyce, editado em livro em 1922, mas conhecido desde 1918 a partir de extractos publicados em Revistas
Literárias de todo o mundo. (N. T.)
tido, pela destruição das conexões éticas, da rede de segurança, com que se pode dizer termos vivido desde sempre.
O artigo de Francisco apenas propunha, de facto, as funções educativas dos "Campos" com um mínimo de convicção, remetendo as suas dimensões morais para uma curta
passagem, confes-sadamente especulativa. No entanto a troça que ele inspirou generalizou-se em grande escala. Um artigo de fundo do jornal de Madrasta "The Hindu
" intitulado "Raios e Coriscos do Bem e do Mal", ridicularizava-o cruelmente: "Os receios do dr. da Gama a respeito do nosso futuro ético parecem os de um meteorologista
louco que acredita que as nossas acções condicionam o tempo, de tal forma que se não nos portarmos convenientemente, por assim dizer, teremos terríveis tempestades
em cima das cabeças". O colunista satírico "Waspyjee" do "Bombay Chronicle" - cujo director, Hor-niman, amigo da Sr.a Besant e do movimento nacionalista, suplicara
a Francisco que não publicasse o artigo - perguntava perfidamente se os tais campos eram só para uso humano ou se outras criaturas
- as baratas, por exemplo, ou as víboras - podiam participar nelas; ou se, em alternativa, cada espécie tinha os seus próprios campos espalhados à volta do planeta.
"Deveremos recear a contaminação dos nossos valores - chamemos-lhe Radiações Gama - em consequência de colisões acidentais com outros campos? Oxalá que as nossas
pobres mentes não venham a ser fatalmente infectadas pelos hábitos sexuais da Louva-a-Deus, pelos valores estéticos dos gorilas e dos babuínos ou pelos valores políticos
do escorpião! Ou será que - Deus nos acuda! -já estamos infectados?"
Foram estes "Raios Gama" que deram'cabo de Francisco; fizeram dele uma anedota, uma válvula de escape para a carnificina da guerra, para as dificuldades económicas,
para a luta pela independência. Ao princípio ele manteve a calma, e concentrou-se de dentes cerrados em inventar experiências que pudessem confirmar as possibilidades
menos ambiciosas da sua Teoria. Escreveu um segundo artigo propondo que a lengalenga de palavras sem sentido utilizadas pelos professores da dança tradicional "Bharat
Norty am" - tat-tat-tadriguei-tun-tun/ji-ji-catay/taka-tan-tan/tat-tat-tai - servisse de base a uma experiência.
Esta lengalenga serviria de padrão e juntar-se-ia a outras quatro, também de palavras sem sentido e de ritmo idêntico. Estudantes de um outro país qualquer, sem
os mínimos conhecimentos sobre dança indiana seriam convidados a decorar as cinco lengalengas. Se a teoria estivesse certa teriam muito mais facilidade em decorar
a verdadeira (que já faria parte do tal campo mais ou menos magnético).
A experiência nunca foi levada a cabo. Mas foi logo pedida a demissão de Francisco do Comité pela Autodeterminação, cujos chefes, entre os quais se contava o próprio
Motilal Nehru (*), deixaram de responder às cartas cada vez mais lamentosas com que o meu bisavô os bombardeava. Deixaram de aparecer os carregamentos de artistoides
que se instalavam nas extravagâncias arquitectónicas da Ilha de Cabral para fumar ópio nas salas de papel do lado Este ou beber whisky entre as arestas e os bicos
do lado Oeste. À medida que a reputação do arquitecto francês ia crescendo, Francisco era muitas vezes solicitado a dizer se tinha sido o primeiro cliente indiano
do jovem que agora se chamava Le Cor-busier. Quando lhe faziam essa pergunta, o herói caído em desgraça respondia secamente: - Nunca ouvi falar nesse tipo. - E,
com o tempo, ninguém mais lhe perguntou nada.
Epifânia exultava. À medida que Francisco se afundava na introversão e no desalento, que o seu rosto tomava o aspecto franzido que é vulgar encontrar em homens convencidos
de que o mundo, inexplicavelmente, lhes quer mal - ela preparava-se para a estocada final. Cheguei à conclusão de que os anos de derrotas e desgostos reprimidos
tinha criado nela um desejo de vingança, uma raiva - sim, raiva, a minha única herança! - que não se distinguia do ódio verdadeiro e assassino; mas se lhe perguntassem
se amava o marido, a própria pergunta a indignava:
- O nosso casamento foi um casamento de amor. - disse ela ao seu infeliz esposo, durante uma interminável noite, lá na Ilha, apenas com a rádio por companhia. -
Só por amor é que eu acei-
(*) Pai do Pandita Nehru, falecido em 1931. (N. T.)
tei as tuas fantasias. Mas vê onde elas te levaram. Agora é a tua vez de, por amor, aceitares as minhas.
As detestadas "loucuras" do jardim foram fechadas a sete chaves. Nunca mais se falou de política na sua presença: quando a Revolução Russa abalou o mundo, quando
acabou a Grande Guerra, quando as notícias do Massacre de Amritsar foram chegando do Norte e acabaram com todos os sentimentos de anglo-filia (o prémio Nobel Rabindranath
Tagore devolveu o seu título de cavaleiro ao Rei de Inglaterra), Epifânia da Gama tapou os ouvidos e continuou a acreditar na bondade omniponente dos Ingleses; Aires,
seu filho mais velho, pensava como ela.
No Natal de 1921, Camões da Gama, então com 18 anos, trouxe timidamente a casa dos Pais, para lhes ser formalmente apresentada, uma órfã de 17 anos, Isabella Ximena
de Souza. (Epifânia perguntou onde se tinham conhecido: ao ser-lhe respondido, entre rubores, que se tinham visto pela primeira vez na Igreja de S. Francisco, ela
rosnou com o desdém nascido da sua extrema habilidade em esquecer tudo o que do seu passado lhe não convinha: - Raio de sítio! - Mas Francisco deu à rapariga a sua
bênção levantando a sua velha mão da mesa, para dizer a verdade não muito festiva e colocando-a na linda cabeça de Isabella de Souza.)
A futura noiva de Camões, como habitualmente, falou de mais. Com os olhos a brilharem de excitação, quebrou o tabu que Epifânia instituíra há cinco anos e manifestou
o seu prazer perante o boicote em Calcutá e as manifestações hostis em Bombaim relativamente à visita do Príncipe de Gales (futuro Eduardo VIII) louvando os Nehrus,
pai e filho, pela sua não-colaboração que os tinha levado à cadeia: - Agora é que o Vice-Rei vai ver como elas mordem, disse a rapariga. - Motilal Nehru gosta da
Inglaterra, mas até ele apoiou o boicote.
Francisco riu-se, com uma luzinha a brilhar-lhe de novo nos olhos. Mas Epifânia falou primeiro:
- Nesta Casa temente a Deus, os Ingleses ainda são os melhores, mademuazel. - Se tem quaisquer ambições quanto ao nosso rapaz, faça o favor de fecharizar a sua boca.
Quer peito ou perna?
Fale mais alto! E um copo de vinho do Dão, muito fresco? Pode beber, se quiser. Pudim-pim-pim? Porque não? E Natal, fraulaine. Quer recheio?
Mais tarde, à beira-mar, Bella foi igualmente sincera nas suas impressões, queixando-se amargamente de que Camões não a tinha apoiado: - A tua família parece perdida
no nevoeiro - disse ela ao namorado. - Falta-nos o ar. Parece que alguém lhes rogou uma praga e lhes está a sugar a vida, a ti e ao teu Pai. Quanto ao teu irmão,
que se lixe, é um caso perdido. Quer gostes quer não, é tão evidente como - desculpa lá! - as horríveis cores da tua camisa que alguma coisa má está a crescer na
tua família.
- Então não queres voltar cá a casa? - perguntou Camões, desalentado.
Bella entrou no barquinho que a esperava:
- Meu patetinha - disse ela. - És um querido e um tonto. E não fazes a mínima ideia do que eu sou capaz de fazer por amor: até onde irei, contra quem lutarei, que
feitiços serei capaz de desfazer com os meus próprios feitiços.
Nos meses seguintes foi Bella que manteve Camões informado sobre o que se passava no mundo, que lhe recitou o discurso que Nehru fez em Maio de 1922 quando foi de
novo condenado a mais tempo de prisão. A intimidação e o terrorismo de Estado são as principais armas do governo. Pensam eles suscitar assim algum afecto da nossa
parte? O afecto e a lealdade vêm do coração. Não podem ser extorquidas à ponta da baioneta.
- Isto para mim é o retrato do casamento dos teus pais - disse Isabella rindo; e Camões, com o seu fervor nacionalista reforçado pela adoração à sua bem-amada, às
suas palavras tão francas, corava infantilmente de admiração.
Bella tinha feito dele o seu projecto pessoal. Pouco depois do casamento Camões tinha começado a dormir mal, a ter ataques de asma, a resfolegar.
- É do mau ar desta casa - disse-lhe ela. - Olaré! Vou ter de salvar pelo menos um dos Gamas.
Ordenou grandes alterações. Sob as suas instruções - e com grande raiva de Epifânia (- "Não penses nem por um segundo
que se vai deixar de comer carne cá em casa lá porque a tua franguizela magrizola quer que tu comas comida-de-pobre" -) Camões tornou-se vegetariano e aprendeu
a estar o tempo que quisesse de cabeça no chão e pés no ar. Secretamente partiu uma das janelas da labiríntica construção do jardim - lado Oeste - onde a biblioteca
do seu pai jazia esquecida e começou a devorar os livros seguindo o exemplo dos bichos que os roíam. Attar, Omar Khayyam, Tagore, Carlyle, Ruskin, Wells, Poe, Shelley,
Raja Rammohun Roy.
- Estás a ver? - encorajou-o Bella - vais conseguir. Vais passar a ser uma pessoa em vez dum capacho vestido com uma camisa horrenda.
Mas Francisco não se salvou. Uma noite, depois das chuvas, atirou-se ao mar e nadou para longe; ia talvez à procura de ar puro, para lá do anel mágico da ilha encantada.
A maré levou-o; cinco dias mais tarde encontraram o seu corpo tumefacto junto a uma velha bóia do porto, toda enferrujada.
Ele deveria ser recordado pelo seu papel na revolução, por ter sido um benemérito, um progressista, um pensador; mas o seu verdadeiro legado foi um negócio à beira
da ruína (por tê-lo descuidado nos últimos anos) e uma morte violenta.
Epifânia recebeu a notícia da morte do marido sem o menor estremecimento. Engoliu a notícia; devorou a sua morte como tinha devorado a sua vida; e lá foi prosperando.
3
No patamar da larga e íngreme escada de acesso ao quarto de Epifânia estava instalada a capela privativa da família, que Francisco um dia tinha mandado redecorar
a um dos seus "francius", mau grado a gritaria de Epifânia. O altar dourado tinha ido à vida com as suas pinturinhas em que Jesus obrava os seus milagres contra
um fundo de coqueiros e de plantações de chá. E bem assim os bone-quinhos em louça dos doze apóstolos, os doirados querubins equilibrados em peanhas de teca, soprando
as suas doces trombetas e as velas nas suas taças de vidro com o feitio de grandes balões de conhaque, as rendas do altar importadas de Portugal e o próprio crucifixo.
- Tudo de primeira qualidade, queixava-se Epifânia. - Jesus e Maria também ficaram engavetados na arrecadação.
Não contente com estes sacrilégios, o maldito homem pintou as paredes de branco como se fosse uma enfermaria, mobilou a capela com os mais desconfortáveis bancos
corridos que encontrou em Cochim e, depois, nas paredes daquele espaço interior colou grandes recortes de papel imitando vitrais. A
- Como se não pudéssemos ter vitrais verdadeiros, se os quiséssemos - resmungou Epifânia. - Vejam como isto é bera, janelas de papel na casa de Deus - Janelas que
nem tinham figuras decentes mas só uns remendos malucos de todas as cores. - Como decorações, bonecos para uma festa de crianças! Neste sítio não se pode guardar
a carne e o sangue do Senhor, quando muito um bolo de anos.
Francisco explicara, em defesa da obra do seu protegido, que a forma e a cor não só tomavam o lugar do conteúdo como podiam, elas próprias, transformar-se em conteúdo.
O que provocou a réplica desdenhosa de Epifânia: - Então talvez nem precisemos de Jesus Cristo. Basta a forma da cruz, não? Para quê chatearmo-nos com a crucifixão?
O palerma do teu francês não só é parvo como blasfemo: fez uma igreja onde não tem cabimento o Filho de Deus a morrer para nos salvar.
No dia seguinte ao do funeral do marido, Epifânia mandou queimar toda a decoração e mobiliário da capela. Regressaram os querubins, a renda e os vidrinhos, as cadeiras
bem estofadas a seda vermelha escura e as correspondentes almofadas debruadas a oiro, onde uma Senhora da sua posição se pudesse decentemente ajoelhar diante do
Senhor. Tapeçarias antigas, vindas de Itália, mostrando santos assados no espeto e mártires fritos em azeite a ferver foram pregadas nas paredes e enfeitadas com
folhos e drapês. Rapidamente se desvaneceu a desconcertante memória das austeras novidades perante o retomar das rançosas práticas familiares da devoção:
- Deus está no Céu - anunciou a viúva-de-fresco. - Tudo vai como deve ser por esse mundo fora.
- De hoje em diante - determinou ela - vamos ter uma vida simples. A Salvação não está no homenzinho-da-tanga-de-linho nem nos da sua laia. - Na realidade, a vida
simples que ela buscava era tudo menos gandhiana, era a de se levantar tarde diante dum tabuleiro de chá forte e doce, de chamar o cozinheiro e encomendar-lhe as
refeições do dia, dizer à criada que lhe oleasse e escovasse os cabelos ainda longos mas já mais ralos e mais grisalhos, ralhar com ela como culpada de cada dia
ficarem mais cabelos presos na escova; era a vida simples das longas manhãs a descompor o alfaiate que ia lá a casa com uma batelada de fatos novos e se ajoelhava
aos pés de Epifânia com a boca cheia de alfinetes que só retirava para lisonjear a rica freguesa; e depois as tardes passadas nos armazéns de tecidos, enquanto peças
de sumptuosas sedas eram para seu deleite desdobradas no chão coberto de panos brancos, peças sobre peças em grandes ondas brilhantes que se espraiavam em macias
colinas de cintilante beleza; a vida simples
da permanente bisbilhotice com as raras amigas do seu nível social, dos convites para as reuniões dos Ingleses no Bairro do Palácio, com o cricket aos Domingos,
os chás dançantes, as festas de Natal das suas criancinhas arrasadas pelo calor; porque, apesar de tudo, eram Cristãos, embora Anglicanos. Os Ingleses tinham conquistado
o respeito de Epifânia ainda que não o seu coração, que esse, evidentemente, pertencia aos Portugueses: via-se em sonhos a passear ao longo do Tejo ou do Douro,
a exibir-se nas ruas de Lisboa pelo braço dum fidalgo lusitano. Era a vida simples com as duas noras que atendiam aos seus mínimos desejos enquanto ela lhes fazia
a vida num inferno e com os filhos que mantinham o fluxo do dinheiro tão abundante como as necessidades o requeriam; da vida simples, de estar tudo no seu lugar,
de ela estar finalmente no centro da teia, no poleiro, de se sentar como um dragão em cima duma pilha de ouro e de expelir quando lhe apetecesse uma baforada de
chamas, pavorosas e purificadoras.
- Vai custar uma fortuna manter a Mamã no seu estilo de vida simples - queixava-se Bella da Gama junto do marido, prenunciando uma graça muitas vezes dita a propósito
do Mahatma Gandhi; (Ela casara com Camões em princípios de 1923): - E se ela fizer tudo o que quer, vai custar-nos não só dinheiro mas a nossa própria juventude.
Os sonhos de Epifânia não se concretizaram: Francisco deixou-lhe apenas em herança as roupas, as jóias e uma modesta mesada. Quanto ao resto, soube ela com grande
fúria, passava a depender da boa vontade dos seus filhos, a quem tudo fora deixado numa base de metade-metade, na condição de que a "Gama Trading Company" não seria
liquidada a menos que "as circunstâncias do negócio o aconselhassem" e que Aires e Camões "deveriam procurar trabalhar em conjunto, com espírito fraterno, uma vez
que a fortuna da família seria gravemente prejudicada em caso de desacordo ou de conflito."
- Mesmo depois de morto - lamentou-se Epifânia à leitura do testamento - ainda me enche a cara de bofetadas.
Também isto é parte da minha herança: há desavenças que não acabam nem com a morte.
Os advogados da família Menezes não conseguiram encontrar qualquer falha no testamento, para grande desespero da viúva. Ela chorou que se fartou, arrancou os cabelos,
bateu no magro peito, rangeu os dentes com um barulho agudo e inquietante; mas os advogados dos Gamas continuaram imperturbáveis a explicar que o princípio matriarcal
em vigor em Cochim, Tra-vancore e Quilon (segundo o qual o destino da fortuna da família era um assunto da competência de Dona Epifânia e não do Dr. Gama) não se
podia aplicar, por mais que se torcesse a lei, à comunidade Cristã visto tratar-se de uma tradição exclusivamente Hindu.
- Então tragam-me uma imagem de Shiva e um regador - teria dito Epifânia, o que ela sempre negou. - Levem-me até ao Ganges e eu atiro-me à água em menos de um fósforo!
(Na minha opinião é muito pouco convincente este suposto e apócrifo desejo de Epifânia em fazer a peregrinação e o baptismo hindus; mas os choros, o ranger dos dentes
e o arranhar do peito foram de certeza uma realidade.)
Os filhos do falecido magnate descuidaram os negócios, há que admiti-lo, ocupados a maior parte do tempo por assuntos mundanos.
Aires da Gama, mais perturbado pelo suicídio do Pai do que gostava de reconhecer, procurou consolo na promiscuidade, provocando um verdadeiro dilúvio de cartas -
escritas em papel barato e numa linguagem quase indecifrável de semianalfabeto. Cartas de amor, mensagens de desejo e de ódio, ameaças de violência se o bem-amado
persistisse nas suas atitudes desdenhosas. O autor desta correspondência não era outro senão o rapaz do barco a remos da noite de núpcias: o próprio Príncipe Henrique,
o Navegador. Não penses que eu não sei tudo o que tu fazes. Dá-me o teu coração ou eu arranco-te do peito. Se o amor não é todo o mundo e o céu também, então não
é nada, é pior que merda.
Se o amor não é tudo, então não é nada: este princípio e a sua negação, (ou seja a infidelidade) vão chocar-se ao longo dos anos que dura esta minha história de
tirar a respiração.
Aires, na borga durante toda a noite, passava geralmente as horas do dia a dormir a ressaca de haxixe ou de ópio, a recuperar dos seus excessos e não poucas vezes
a tratar de ferimentos e nódoas negras; Carmen, sem uma palavra, aplicava-lhe os seus unguentos e preparava-lhe banhos quentes que lhe acalmassem as dores; quando
ele começava a ressonar, imerso pela água que a ela parecia tirada do poço do seu profundo desgosto, Carmen terá pensado por vezes em o afogar mas nunca cedeu à
tentação. Em breve surgiria outro escape para a sua raiva.
Quanto a Camões, à sua maneira tímida e de falas mansas, era bem o filho do seu Pai. Por intermédio de Bella juntou-se a um grupo de jovens nacionalistas radicais
que, sem paciência para as eternas conversas da não-violência e da resistência passiva, se deixaram deslumbrar pelos grandes acontecimentos na Rússia. Camões começou
a escutar e, mais tarde, a proferir conferências com títulos como "Avante!" ou "Terrorismo: os fins justificam os meios?"
- Camões, tu és incapaz de assustar um rato - ria-se Bella.
- Que raio de comuna vais dar!
Foi o avô Camões que deu origem ao caso dos falsos Ulyanov. Nos finais de 1923, informou Bella e os seus amigos de que um grupo de notáveis actores soviéticos tinham
o direito exclusivo de interpretar a figura de Vladimir Ilitch Ulyanov, "Lenine": não só em espectáculos itinerantes que mostrassem ao povo soviético a sua gloriosa
revolução mas também nas milhentas manifestações públicas a que o chefe não conseguia estar presente devido às suas inúmeras ocupações. Os actores especializados
em Lenine decoravam os discursos do grande homem e reproduziam-nos integralmente. Quando eles apareciam devidamente enfarpelados e caracterizados, as multidões gritavam
e agitavam-se como se estivessem na presença do produto genuíno.
- Pois agora - concluiu Camões todo excitado - vamos contratar actores estrangeiros para desempenharem o mesmo papel. Vamos poder dispor aqui dos nossos Lenines
privados, devidamente treinados e capazes de falar malaio ou tulu ou kannada ou todas as línguas que quisermos.
- Então agora lá na Cê-Cê-Cê-Pê (*) fazem reproduções do patrão. - disse-lhe Bella, pousando a mão dele na sua barriga - Mas oh marido, já começaste a fazer a tua
própria reprodução!
Esta foi uma manifestação grotesca - sim! atrevo-me a escrever essa palavra! - da grotesca e ridícula perversidade da minha família. Numa altura em que o país e
o próprio planeta enfrentavam os maiores problemas, numa altura em que os negócios da Família exigiam a mais escrupulosa das atenções, já que a seguir à morte de
Francisco da Gama a falta de direcção se tornara alarmante, o descontentamento alastrava nas plantações, o desleixo reinava nos dois entrepostos de Ernakulam e já
mesmo os velhos clientes da Companhia Gama iam começando a escutar os cantos de sereia da concorrência - e quando, para coroar tudo, a sua mulher lhe comunicou estar
grávida com aquela que não se limitou a ser a primeira filha mas foi a sua filha única e, o que é mais importante, a única da sua geração, a minha mãe Aurora, a
última das da Gama - o meu Avô ficou cada vez mais obcecado com os Lenines de imitação.
Com que diligência ele examinou os talentos locais para encontrar homens com o indispensável talento histriónico aliado à memória e ao interesse pelo projecto! Com
que energia trabalhou para obter cópias das últimas intervenções do ilustre político, encontrar tradutores, contratar os serviços dos caracterizadores e figurinistas
indispensáveis! Cedo começou a ensaiar o seu pequeno grupo de sete sujeitos a quem Bella, com a costumada brutalidade, alcunhou de Lenine-em-Alto, Lenine-em-Baixo,
Lenine-em-Gordo, Lenine-em-Magro, Lenine-em-Coxo, Lenine-em-Careca e (devido às deficiências dentárias do infeliz) Lenine-sem-Dentes.
Camões correspondeu-se febrilmente com Moscovo, usando a lisonja e a persuasão; certas autoridades de Cochim, tanto de pele clara como escura, foram igualmente lisonjeadas
e persuadidas e, finalmente, na estação quente de 1924, obteve a sua recompensa. Quando Bella estava na iminência de dar à luz, chegou a
(*) Letras do alfabeto russo (CCCP) que identificavam, nessa língua, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. (N. T.)
Cochim um autêntico membro da Trupe Especial de Lenine e do P.C.U.S.('S'), com o poder da aprovar e, ulteriormente, ensaiar os elementos da recém-criada Secção de
Cochim da dita Trupe.
Chegou de barco vindo de Bombaim e quando desceu o por-taló devidamente caracterizado provocou alguma agitação entre as pessoas que estavam no cais, à qual respondeu
com vénias e acenos magnânimos. Camões reparou no suor que lhe escorria em bica pelo rosto, com pequenos riachos de tinta escura do cabelo que tinham de ser constantemente
enxugados com o lenço.
- Como é que, o devo tratar? - perguntou Camões corando de embaraço diante do seu convidado que viajava com um intérprete.
- Sem cerimónia, Camarada. - disse o intérprete. - Sem Quaisquer títulos! Basta um simples Vladimir Ilyich.
Tinha-se entretanto juntado uma multidão para aplaudir o Grande Líder Mundial e então Camões, num gesto teatral, bateu as palmas e surgiram os sete Lenines locais
afagando as suas barbichas. Pararam todos numa fila sorrindo docemente ao colega soviético que explodiu numa violenta tirada em russo.
- Vladimir Ilyich pergunta que insulto é este - traduziu o intérprete enquanto a multidão engrossava. - Estas pessoas têm pele escura e as suas feições não são as
dele. Um é muito mais alto, outro mais gordo, outro mais magro, outro mais coxo, outro mais careca e o último não tem dentes.
- Fui informado, - disse Camões muito vexado - de que poderíamos adaptar a imagem do líder às nossas disponibilidades locais.
Novo tiroteio em russo. - Vladimir Ilyich é de opinião que isto não é uma adaptação mas sim uma caricajura satírica - disse o intérprete. - É um insulto e um ataque.
Ora veja: duas das barbas, pelo menos, estão mal coladas. Isto apesar da presença intimidante do proletariado. Será apresentado um relatório às mais altas instâncias.
E fica terminantemente proibido de continuar com este projecto.
(*) Partido Comunista da União Soviética. (N. T.)
Camões ficou estarrecido; a vê-lo à beira das lágrimas, com o seu sonho destruído, os seus actores, - os seus "quadros" - saltaram para a frente; ansiosos por mostrar
como tinham estudado bem os seus papéis, começaram a declamar e a gesticular todos ao mesmo tempo. Em malaio, kannada, tulu, concani, tamil, telugu e inglês proclamaram
a revolução, exigiram a partida imediata dos lacaios do colonialismo, essas sanguessugas do imperialismo, a que se seguiria a apropriação colectiva dos meios de
produção e a ultrapassagem anual das cotas da produção de arroz; os seus indicadores direitos apontavam repetidamente para o futuro enquanto os punhos esquerdos
repousavam majestosamente na anca. Leni-nes babélicos, com as barbas a descolarem-se por efeito do calor, dirigiam-se à enorme multidão que entretanto se juntara;
e que começou - pouco a pouco ao princípio e mais tarde em grande alarido - a rir e a troçar.
Vladimir Ilyich fez-se cor de púrpura. Vituperações leninistas saíram-lhe da boca e materializaram-se no ar em caracteres cirílicos. Depois rodou sobre os calcanhares,
subiu de novo o portaló e desapareceu nas entranhas do navio.
- O que é que ele disse? - perguntou Camões, consumido, ao intérprete.
- Este vosso país - replicou o outro - Vladimir Ilyich diz francamente que lhe faz caganeira.
Uma mulherzinha abriu caminho por entre a triunfante hilariedade do povo e Camões reconheceu nela, através da cortina encharcada do seu desgosto, Maria, a criada
da sua mulher.
- É melhor vir para casa - gritou ela por cima da berraria
- a Senhora teve uma menina.
Depois da humilhação sofrida no cais, Camões afastou-se do Comunismo e passou a gostar de dizer que tinha aprendido à sua custa que ele não convinha ao "estilo indiano".
Tornou-se um adepto do Congresso, um homem de Nehru e seguiu à distância
todos os grandes acontecimentos dos anos seguintes: à distância porque, embora passasse muitas horas por dia a estudar o assunto, com exclusão da maior parte das
outras coisas, lendo e conversando e escrevendo páginas e páginas sobre política, nunca publicou uma única palavra da sua escrita apaixonada...
Vejamos mais demoradamente o caso do meu avô materno: é fácil classificá-lo como uma borboleta, um peso pluma, um diletante! Um Milionário a namorar com o Marxismo,
uma alma tímida que só conseguia ser um ferrabrás revolucionário quando na companhia de alguns amigos ou na privacidade do seu gabinete, escrevendo artigos secretos
que - receando talvez a surriada que dera cabo de Francisco - não se atrevia a publicar; um nacionalista cujos poetas favoritos eram todos Ingleses, um ateu professo
e racionalista convicto que acreditava em fantasmas e que era capaz de recitar de cor e com profundo sentimento todo o poema de Marvell(*) "Numa Gota de Orvalho".
Assim a Alma, essa Gota, esse Raio Da clara Fonte do Eterno Dia,
Que dentro da humana flor pode ser vista
Lembrando ainda o seu primitivo esplendor,
Brilha nas folhas novas, nas florzinhas ainda verdes;
E, recordando a sua própria Luz,
Exprime, pelos seus pensamentos puros e envolventes,
Num Céu minúsculo um Céu imenso.
Epifânia, a mais severa e menos generosa das mães tratou-o com desprezo, vendo-o como um rapazinho tonto e confuso; mas eu, influenciado pelas opiniões mais afectuosas
de Bella e de Aurora, tinha dele uma ideia diferente. Para mim a vida dupla do Avô Camões revelava a sua beleza; a sua determinação de deixar coexistirem dentro
de si próprio impulsos conflituais foi a fonte
(*) Andrew Marvell (1621-1678) autor muito conhecido na sua época como poeta satírico e político. A lírica só começou a ser conhecida e apreciada depois da guerra de 14-18. (N. T.)
da sua humanidade plena e tolerante. Se lhe apontasse, por exemplo, a contradição entre as suas ideias igualitárias e a realidade olímpica do seu estatuto social,
ele responderia apenas com um sorriso de concordância e um desarmante encolher de ombros:
- Todos devem viver bem, não é verdade? - gostava de dizer.
- Uma Ilha de Cabral para cada um, é a minha divisa.
E no seu amor fervoroso pela literatura inglesa, na sua funda amizade com muitas famílias inglesas de Cochim e na sua não menos fervorosa convicção de que o domínio
britânico tinha de acabar e de levar com ele o poder dos príncipes - vejo eu aquela brandura "odeia-o-pecado-mas-ama-o-pecador", aquela histórica generosidade de
espírito que é uma das verdadeiras maravilhas da índia. Quando o Império chegou ao ocaso, nós não matámos os antigos Senhores, reservando para nós o privilégio de
nos matarmos uns aos outros... Mas esta noção é demasiado cruel para ter ocorrido ao espírito de Camões, sempre oposto ao mal, considerava-a "desumana", absurdo,
como costumava recordar a sua amada Bella; felizmente para ele (e infelizmente também) não viveu o suficiente para ver os massacres da Separação (*) no Punjab. (E
também morreu, tristemente, muito antes da eleição, depois da Independência, no novo Estado de Kerala, nascido dos antigos principados de Cochim-Travancore-Quilon,
do primeiro governo Marxista do subcontinente, a vitória de todas as esperanças que viu destruídas.)
Mas viveu o suficiente para assistir a grandes perturbações, uma vez que a família já ia a caminho do catastrófico conflito - a chamada "Guerra das Cunhadas" - que
teria destruído completamente qualquer outra casa e de que a fortuna familiar levou uma década a recompor-se.
As mulheres estão agora a dirigir-se para o centro do meu pequeno palco: Epifânia, Carmen, Bella e a recém-chegada Aurora. Elas, e não os homens, foram os verdadeiros
protagonistas da luta; e, inevitavelmente, a Bisavó Epifânia foi a combatente mais aguerrida.
(*) Quando da criação do Estado Muçulmano do Paquistão, 200 mil Hindus e Muçulmanos massacraram-se mutuamente ao longo da nova fronteira. (N. T.)
Foi ela que declarou a guerra no dia em que ouviu ler o testamento de Francisco e convocou Carmen para o seu boudoir, para uma conversinha:
- Os meus filhos são uns playboys sem préstimo, - anunciou ela agitando o leque. - De hoje em diante seremos nós a tocar a música.
Ela seria o comandante-em-chefe e Carmen, sua sobrinha e sua nora, seria a sua adjunta, mulher-de-mão e burra-de-carga.
- É o teu dever não só para com esta Casa mas também para a Família Menezes. Nunca te esqueças de que fui eu quem salvou a tua pele: estavas arrumificada numa prateleira
e ias ali apodrizar até ao dia de São Nunca.
A primeira ordem de Epifânia foi a de que se cumprisse o desejo dos fundadores de todas as dinastias: que Carmen concebesse um filho varão, um herdeiro-do-trono
através do qual as suas muito amadas Mãe e Avó pudessem governar. Carmen, compreendendo com amarga consternação que esta primeira e fundamental ordem não podia ser
obedecida, baixou os olhos e balbuciou:
- Muito bem, tia Epifânia, os seus desejos são ordens - e saiu do quarto.
(Quando Aurora nasceu os médicos disseram que devido a uma infeliz ocorrência, Bella não poderia ter mais filhos. Nessa noite Epifânia leu a Carmen e Aires a proclamação
da revolta: - Vejam o que a estúpida da Bella deitou cá para fora! Mas ter sido uma garina e ela não poder desovar mais nada foi para vocês uma bênção de Deus. Despachem-se!
Vão já prá.cama fazer um rapaz ou então o caroço ainda acaba todo na miúda.)
No dia em que Aurora da Gama fez dez anos uma barcaça chegou à Ilha de Cabral trazendo a bordo um tipo do Norte com uma enorme pilha de tábuas e varões com que ele
montou no jardim uma roda gigante em versão reduzida, um enorme X com assentos fixados nas pontas. Tirou de um estojo de veludo verde um
acordeão e encheu o ar com uma alegre música de feira. Quando Aurora e as suas amigas se fartaram de andar na roda, o homem pôs uma capa escarlate e começou a tirar
peixes vivos da boca das meninas ou cobras debaixo das suas saias, com grande horror de Epifânia, visível reprovação da ainda estéril Carmen e do seu marido Aires
e estridente alegria de Bella e Camões. Depois de ter visto o Homem-do-Norte, Aurora percebeu que aquilo de que mais precisava na vida era de um mágico particular,
alguém que desse realidade aos seus desejos, que fizesse desaparecer magicamente a Avó Epifânia, que arranjasse cobras para matarem a Tia Carmen e o Tio Aires e
que deixasse Camões viver feliz para todo o sempre; isto passava-se no tempo da casa dividida, com riscos de giz pelo chão como fronteiras e sacos de especiarias
arrumados nos pórticos formando pequenos muros, como se fossem defesas contra as inundações ou contra atiradores furtivos.
Tudo começara quando Epifânia, aproveitando como desculpa as divagações dos filhos, convidou a família para viver em sua casa em Cochim. Escolheu bem o momento:
Aires rompera com Francisco e entregava-se ao deboche, Camões ensaiava os seus Lenines e Bella cuidava da sua gravidez; de modo que houve poucos protestos. Na verdade
as objecções mais vigorosas vieram da parte de Carmen (*) que nunca tinha sido bem tratada pela família da mãe e sentiu eriçar-se o seu pêlo de Lobo à chegada de
tantos Menezes. Quando revelou os seus sentimentos a Epifânia, com grandes hesitações e circunlóquios, a senhora sua sogra respondeu-lhe com calculada brutalidade:
- Olha menina: as tuas hipóteses de futuro tem-las entre as perninhas por isso vê lá se te ocupas em fazer com que o teu marido se interesse por elas e não metas
a narigueta nos assuntos das pessoas mais velhas.
Como abelhas atraídas pelo mel, os Menezes machos encheram os barcos que vinham de Mangalore e as respectivas mulheres e crianças apareceram pouco depois. Outros
Menezes chegaram de
(*) Recorde-se que Carmen era filha de Blimunda Menezes (irmã de Epifania) e de um pequeno impressor chamado Lobo. (N. T.)
camioneta e ainda outros tentavam utilizar os comboios mas atrasavam-se devido às excentricidades do sistema ferroviário.
Na altura em que Bella já tinha recuperado do nascimento de Aurora e Camões do seu fiasco dos Lenines, a gente de Epifânia tinha-se espalhado por toda a parte, entrelaçavam-se
à volta da Companhia Comercial Gama como pimenteiras em torno de coqueiros, intimidando os capatazes das plantações metendo o nariz nas contas, interferindo nos
métodos de trabalho dos armazéns. Era uma verdadeira invasão e, como sempre, não era fácil para os invasores serem bem-queridos: mal Epifânia tinha assegurado o
seu poder, logo começou a praticar erros. O primeiro foi ser excessivamente maquiavélica, pois embora Aires fosse o seu favorito, não podia negar que Camões tinha
dado origem ao único herdeiro e que, por isso, não podia ser excluído dos seus cálculos e projectos. E assim começou canhestramente a lisonjear Bella que de forma
alguma lhe correspondeu, irritada com a conduta dos inumeráveis Menezes; mas esses esforços desastrados para seduzir Bella afastaram Carmen de Epifânia. E esta cometeu
então um erro ainda maior: invocando a sua crescente alergia ao cheiro das especiarias que eram o estio da fortuna da família - o cheiro da própria era o seu inimigo
número um! - Epifânia fez saber que de futuro a Companhia Gama iria meter-se no negócio de perfumes: - Para que em pouco tempo um aroma agradável substitua o destas
coisas que endoidificam o meu nariz!
Carmen perdeu a paciência: - Os Menezes sempre foram uns zeros - queixou-se ela a Aires. - Vais deixar a tua Mãe transformar o nosso grande negócio em frasquinhos
de cheiro?
Mas nesses dias as fraquezas de Aires tinham-lhe instilado um torpor que Carmen não conseguiu dissipar por mais que o apertasse:
- Então se não queres ocupar o teu legítimo lugar nesta casa
- gritou ela - Tem pelo menos o bom senso de permitir que os Lobos, os membros da minha família nos ajudem em vez desses Menezes que se espalham por toda a parte
como a formiga branca e devoram o nosso dinheiro.
O Tio-Avô Aires concordou prontamente. Bella, que também estava furiosa teve menos sucesso: Camões não era, por natureza,
um guerreiro e retorquiu que não tendo cabeça para os negócios, era melhor não se atravessar no caminho da Mãe.
E então chegaram os Lobos.
O que começou com perfume acabou por cheirar realmente muito mal. Às vezes há uma "coisa" que nasce em nós, uma coisa viva, que come a nossa comida, respira o nosso
ar e à qual ninguém está imune; quando ela toma conta de nós, tornamo-nos assassinos potenciais uns dos outros, a "coisa" a escurecer-nos o olhar e as mãos empunhando
armas reais, o vizinho contra o vizinho "coisado", primo contra primo, irmão contra irmão, criança contra criança. Carmen Lobo foi para as propriedades dos Gamas
na Montanha das Especiarias e as coisas começam a agitar-se.
O caminho para a Montanha só pode ser percorrido de jeep e segue aos saltos e às curvas ao longo de campos de arroz, bananeiras e tapetes de pimentos verdes e vermelhos,
ali postos para secarem ao sol; através de plantações de caju, e de areca (Quilon é terra de caju, assim como Kottayam é a cidade da borracha); e vai-se subindo,
subindo até ao reino da canela e do cominho, à sombra dos jovens cafezeiros em flor, ultrapassando os terraços do chá que lembram grandes telhados de telhas verdes
e chegando, lá no cume, ao império da pimenta do Malabar.
De manhã cedo ouve-se o canto dos tordos cantores, os elefantes de trabalho caminham com cuidado mastigando sossegadamente, uma águia descreve círculos no céu. Aparecem
ciclistas, a quatro de frente, com os braços entrelaçados nos ombros dos outros, desafiando os ribombantes camiões. Reparem: um dos ciclistas pousou o pé no selim
do companheiro. Idílico, não? Mas poucos dias depois da chegada dos Lobos, estalam notícias de conflitos na montanha: os Lobos e os Menezes disputavam o poder, contavam-se
histórias de discussões e pancadaria.
A casa da Ilha de Cabral, entretanto, estava completamente cheia; tropeçava-se em Lobos parados nas escadas, as casas de
banho estavam ocupadas pelos Menezes. Os Lobos, mal encarados, recusavam-se a deixar o Menezes subir ou descer as "suas" escadas e o monopólio das instalações sanitárias
por parte dos Menezes obrigava a gente de Carmen a cumprir ao ar livre as suas funções naturais, sob o olhar dos habitantes da ilha de Vypeen, com a sua aldeia de
pescadores e as suas ruínas do fortim português; ("Hã! Hã! ou "Ah... Ah..." gritavam os pescadores nos seus barquinhos e as mulheres dos Lobos coravam de vergonha
e escondiam-se melhor atrás dos arbustos); outros espectadores eram os operários da fábrica de esteiras e os rebentos de famílias decadentes que passeavam nas suas
lanchas. Formavam-se bichas tumultuosas à hora das refeições e os insultos ferviam por aqueles pátios sob o olhar indiferente das gárgulas gravadas nos belos painéis
de madeira.
Chegou-se a vias de facto. Os dois edifícios de Le Corbusier foram abertos para obviar à superpopulação; mas aquela parentela-por-afinidade não os apreciava e as
lutas continuavam para decidir quem gozaria do estatuto supostamente superior de dormir na casa grande. As mulheres dos Lobos começaram a puxar as tranças às Menezes
e as crianças destas começaram a apoderar-se das bonecas das primas e a fazê-las em pedaços. Os criados dos Gamas queixavam-se da arrogância daquela parentagem,
dos palavrões e de outras injúrias ao seu brio profissional.
As coisas extremaram-se. Uma noite bandos rivais de Menezes e Lobos adolescentes envolveram-se à pancada nos jardins da Ilha de Cabral: houve braços partidos, cabeças
rachadas e até facadas, duas delas graves. Os bandos rasgaram as paredes de papel da casa japonesa de Le Corbusier e danificaram de tal maneira a sua estrutura que
ela teve de ser demolida pouco depois; e vandalizaram também o edifício modernista destruindo muitos móveis e quase todos os livros do velho Francisco da Gama. Numa
dessas noites de violência, Bella acordou Camões e disse-lhe:
- Se não fazes nada, perdemos tudo.
Nesse momento um moscardo embateu contra a face de Bella que deu um grito de pavor. O grito acordou Camões completamente. Saltou da cama, esborrachou o moscardo
com um jornal e
quando ia fechar a janela sentiu um cheiro que lhe mostrou que o desastre já tinha começado: o inconfundível odor das especiarias a arder, cominhos, coentros, pimenta
branca e preta, pimentos verdes e vermelhos, alhos, gengibre, paus de canela. Era como se um gigante estivesse a preparar numa frigideira monstruosa o maior e mais
picante caril jamais cozinhado.
- Não podemos viver assim nem mais um dia - disse Camões - Estamos a queimar a nossa própria Casa.
Pois foi. O terrível fedor rolou pela Montanha das Especiarias abaixo em direcção ao mar: "os cunhados dos Gamas pegaram fogo às plantações!"
Nessa noite, quando Bella viu Carmen - Lobo em solteira - enfrentar pela primeira vez na sua vida a sua sogra Epifânia - Menezes em solteira - ambas em camisa de
noite, desgrenhadas como bruxas, gritando acusações e culpando-se uma à outra pela catástrofe das plantações incendiadas, foi calmamente instalar Aurora no seu berço,
encheu de água um grande jarro e veio com ele até ao pátio enluarado onde Epifânia e Carmen se degladiavam aos berros, fez pontaria e encharcou-as até aos ossos:
- Já que são vocês que ateiam incêndios infernais com as vossas lutas e manobras - disse-lhes - é por vocês que temos de começar a apagá-los.
Depois deste escândalo, a queda da família acentuou-se. Aquelas chamas malévolas não atraíram apenas os bombeiros. A polícia apareceu na Ilha de Cabral e atrás dos
polícias vieram soldados e Aires e Camões da Gama foram levados sob escolta com algemas nos pulsos não para a prisão mas para o belo palácio de Bolgatty na ilha
do mesmo nome, onde num salão fresco e de tectos muito altos foram obrigados a ajoelhar-se no chão sob a mira das espingardas enquanto um Inglês meio calvo, com
um fato claro, com umas lunetas de lentes espessas e um bigode de morsa se aproximou da janela, pôs-se a contemplar o porto de Cochim com as mãos atrás das costas
e começou a falar, aparentemente para si próprio:
- Ninguém, nem mesmo o governo de Sua Majestade, pode saber tudo sobre a administração do Império. Ano após ano a
Inglaterra envia novos reforços para a primeira linha de combate, para o que é oficialmente designado por Função Pública da índia. Esses reforços morrem, ou matam-se
por excesso de trabalho ou de preocupações ou arrumam a saúde e a carreira para que este território seja protegido da doença, da fome e da guerra e que possa eventualmente
ser capaz de tratar de si próprio. Nunca poderá viver só por si próprio mas a ideia é bonita, há homens capazes de morrer por ela e todos os anos prossegue o esforço
de empurrar esta terra pelo bom caminho, vigiando-a, censurando-a ou felicitando-a. Se algum progresso se regista, o crédito é atribuído aos nativos, enquanto os
Ingleses ficam na retaguarda a enxugar as frontes. Se há uma falha, os Ingleses avançam um passo e declaram-se responsáveis. Uma grande complacência em relação a
este esquema fez nascer aos nativos uma forte crença de que são capazes de administrar o país, havendo muitos Ingleses devotos dessa crença, visto que ela se exprime
num inglês perfeito e se enfeita com as mais recentes cores políticas.
- Não duvide, Excelência, da minha gratidão pessoal... - começou Aires, mas um sipaio, um tipo ordinário, esbofeteou-o e reduziu-o ao silêncio.
- Havemos de governar o nosso país, digam vocês o que disserem - gritou Camões num desafio. Foi também esbofeteado uma, duas, três vezes. O sangue escorria-lhe da
boca.
- Há quem tenha a esperança de poder administrar o país segundo as suas próprias ideias - disse o homem da janela, continuando a falar para o porto. - Ou seja, bem
condimentado com Molho Vermelho. É forçoso que tais homens existam numa população de 400 milhões; se não os tratarmos como merecem serão capazes de perturbar e até
destruir o grande ídolo a que chamam Pax Britannica e que, segundos os jornais, é adorado desde Pes-hawur até ao Cabo Comorin.
O homem voltou-se e, claro está, era bem conhecido dos dois irmãos; o homem culto com quem Camões tinha gostosamente discutido as opiniões de Wordsworth sobre a
Revolução Francesa, o Kubla Khan de Coleridge e os quase esquizofrênicos primeiros contos de Kipling sobre as inglesices e as indianices que
disputavam o seu coração; com cujas filhas Aires tinha dançado no finíssimo Malabar Club; com quem Epifânia tinha partilhado a sua mesa; mas que ostentava agora
um olhar estranhamente ausente.
E ele disse: - Este Governador (que recordo ser Inglês) está pouco disposto a ser acusado de negligência. Os vossos clãs são culpados de fogo posto, insurreição,
assassinato e crimes de sangue; e, na minha opinião, vocês os dois têm a responsabilidade nessas acções embora nelas não tivessem participado directamente. Nós -
e espero que percebam que este pronome se refere naturalmente às nossas autoridades locais - vamos fazer com que sejam castigados por isso. Nos próximos anos irão
passar muito pouco tempo no seio das vossas famílias.
Em Junho de 1925 os irmãos Gama foram condenados a 15 anos de cadeia. A insólita severidade da sentença levou a especulações de que a família estava a pagar pelas
ligações de Francisco da Gama ao Movimento pela Autodeterminação ou mesmo pelas tentativas de ópera-cómica de Camões no sentido de importar a Revolução Soviética;
mas, para a maior parte das pessoas, essas especulações tornaram-se supérfluas e até odiosas perante os horrores descobertos nas propriedades dos Gamas nas Montanhas
e que mostravam à evidência que os bandos de Lobos e de Menezes tinham perdido completamente a cabeça. Numa plantação de caju completamente carbonizada foram encontrados
os corpos do capataz (um Lobo), da mulher e de duas filhas amarrados às árvores com arame farpado: queimados como herejes na fogueira. E nas ruínas fumegantes dum
fértil bosque de cardamo os corpos carbonizados de três irmãos Menezes estavam também presos às árvores queimadas. Tinham os braços abertos e as seis palmas das
mãos estavam pregadas com grandes pregos de ferro.
Só conto estas coisas porque elas ainda hoje me fazem estremecer de vergonha.
A minha família tem grandes manchas sobre ela. Que espécie de família é? Será normal? Será que todos somos assim?
Somos todos assim; não sempre, mas em potência. Também somos este horror.
Quinze anos: Epifânia desmaiou no tribunal, Carmen soluçou mas Bella tinha os olhos enxutos e a expressão dura, com Aurora também calada e grave ao seu colo. Muitos
homens dos Lobos e dos Menezes e algumas mulheres foram também condenados, alguns a penas de prisão; os sobreviventes desandaram para Mangalore, ainda sujos de cinza.
Quando partiram, a casa da Ilha de Cabral ficou silenciosa mas as paredes, os móveis, os tapetes davam ainda estalidos provenientes da electricidade acumulada pelos
que se tinham ido embora; havia zonas tão carregadas que as pessoas ficavam literalmente com os cabelos em pé quando por lá passavam. O velho edifício ia-se libertando
das recordações daquela multidão mas lentamente, lentamente, como se receasse que voltassem os maus tempos. Acabou finalmente por se descontrair e a paz e o silêncio
começaram a pensar no regresso.
Bella tinha as suas ideias de como a civilização devia ser restaurada e não perdeu tempo. Dez dias depois da prisão de Aires e de Camões, as autoridades pensaram
melhor e ordenaram também a prisão de Epifânia e de Carmen; uma semana depois, com igual leviandade, soltaram-nas de novo. Durante esses sete dias, graças a uma
autorização expressamente escrita por Camões - que, como preso de categoria A, recebia refeições mandadas de casa, material para escrever, livros, jornais, sabonetes,
toalhas, roupa lavada e podia mandar para fora a roupa suja e as cartas que quisesse - Bella foi ver os advogados da Companhia Gama, testamenteiros da herança de
Francisco da Gama e convenceu-os da imperiosa necessidade de dividir o negócio em dois.
- As cláusulas do testamento são muito claras - disse ela - A desarmonia e a discórdia foram trazidas por partidários de Aires da Gama, directa ou indirectamente,
não importa; as circunstâncias mostram claramente que não é possível manter a integridade da Companhia. Se ela se mantiver como uma célula única, a vergonha destas
atrocidades acabará com ela. Se a dividirmos pode ser
que a doença fique confinada numa só metade. Ou vivemos separados ou morreremos juntos.
Enquanto os advogados estudavam minuciosamente a proposta de dividir ao meio o negócio da família, Bella dividiu ao meio a velha casa da Ilha de Cabral. Dividiu-a
de alto a baixo: os velhos jogos familiares de roupas de casa, de talheres e de louças foram rigorosamente divididos até à última colher de chá, à última fronha,
à última fotografia. Carregando na ilharga a pequena Aurora, com um ano de idade, comandou as operações em que participou todo o pessoal da casa: cómodas, toucadores,
poufs, cadeiras de verga, varas de bambu para os mosquiteiros, camas de campanha para os que preferiam dormir ao ar livre durante a estação quente, escarradores,
penicos, redes de repouso, copos para vinho, tudo levou uma volta; até as lagartixas foram apanhadas e divididas igualmente por ambos os lados da grande divisória.
Debruçada sobre as velhíssimas plantas da casa e contabilizando escrupulosamente o espaço das salas, das galerias e das varandas, dividiu a casa, os pátios e os
jardins rigorosamente ao meio. Mandou levantar muretes de sacos de especiarias ao longo da nova fronteira e nos sítios onde essas barreiras eram incómodas - como,
por exemplo, nas escadarias - traçou linhas brancas e pediu que elas fossem respeitadas. Na cozinha dividiu as panelas e as frigideiras e estabeleceu um horário
de utilização equitativo que abrangia todos os dias da semana. Os criados e criadas foram também repartidos e, embora a maior parte pedisse para ficar sob o seu
comando, Bella insistiu numa escrupulosa lisura, colocando uma criada aqui outra acolá, um moço de cozinha deste lado e o seu equivalente do outro lado da linha
de cessar-fogo.
- Quanto à capela - disse ela às estupefactas Epifânia e Carmen quando estas depararam com o facto consumado de um universo recém-segregado - aos dentes de marfim
e às figurinhas de Ganesha, o Deus-Elefante, podem ficar com tudo. Do nosso lado não temos nenhuns planos para rezar ou para coleccionar elefantinhos.
Depois dos últimos acontecimentos, nem Epifânia nem Carmen podiam oferecer qualquer resistência ao furioso vendaval das razões de Bella:
- Vocês as duas trouxeram o jogo do inferno para esta família. A partir de agora não quero voltar a ver as vossas trombas nojentas! Contentem-se com os vossos cinquenta
por cento! Dêem emprego aos vossos dependentes, ou deixem ir tudo por água abaixo ou vendam tudo - quero lá saber! Hei-de fazer com que os cinquenta por cento do
Camões se aguentem e prosperem!
- Tu é que vieste de parte nenhuma - replicou Epifânia, espirrando, do lado de lá do muro de sacos de cardamo - e o teu destino, menina, é voltar para lá!
Mas as palavras da matriarca não tinham convicção e nem ela nem Carmen discutiram quando Bella lhes declarou que os campos queimados faziam parte da metade delas
e quando Aires, da prisão, enviou uma mensagem de derrota e desespero:
- Liquidem toda essa merda! Que se lixe!
E foi assim que Bella da Gama, aos vinte nove anos, tomou conta da fortuna do seu encarcerado esposo; e através de muitas vicissitudes durante os anos seguintes,
desenvolveu-a muitíssimo bem. A seguir à prisão de Aires e de Camões, as terras e os armazéns da Companhia Gama tinham sido colocados sob administração judicial:
enquanto os advogados preparavam os documentos da separação, sipaios patrulhavam a Montanha das Especiarias e funcionários públicos sentavam-se nos altos cadeirões
dos Directores da Companhia. Bella passou meses e meses a discutir, a lisonjear, a pagar luvas e a namorar até conseguir recuperar o negócio. Mas entretanto muitos
clientes, chocados com o escândalo, tinham levado o seu negócio para outras empresas, ou então, quando souberam que quem mandava era uma miúda, um migalho de gente
exigiram novas condições que abalaram ainda mais as precárias finanças da Companhia. Houve imensas ofertas para comprar o negócio por um décimo ou, quando muito,
por um oitavo do seu valor.
Bella não vendeu. Começou a andar de calças, camisas brancas de algodão e o chapéu claro de Camões. Foi a todas as plantações, a todos os pomares que lhe pertenciam
e reconquistou a confiança dos seus apavorados funcionários, muitos dos quais tinham fugido para salvar a vida. Encontrou capatazes dignos de confiança que os trabalhadores
olhavam com respeito e sem medo. Fez charme a bancos que lhe emprestaram dinheiro, convenceu clientes a regressar e tornou-se uma especialista em cláusulas de letra
miúda. Por ter conseguido salvar os seus cinquenta por cento da Companhia, deram-lhe um epíteto respeitoso: dos salões de Cochim até às docas de Ernakulam, do Palácio
do Governo até à Montanha das Especiarias, só havia uma Rainha Isabella: a de Cochim. Ela não gostava da alcunha embora a admiração subjacente a fizesse corar de
orgulho.
- Tratem-me por Bella - insistia ela. - Bella, sem mais nada, chega muito bem.
Mas os outros não a achavam assim tão simples; mais do que qualquer princesa local, ela merecia realmente o título de Rainha.
Três anos mais tarde, Aires e Carmen renderam-se porque os seus cinquenta por cento estavam à beira do colapso. Bella podia tê-los comprado por quase nada; mas como
Camões nunca teria feito uma coisa dessas ao seu irmão, ela pagou-lhes o dobro do que eles pediam. E nos anos seguintes trabalhou com tanta energia para salvar os
Cinquenta de Aires como para salvar os seus próprios. Mas o nome da Companhia foi alterado: a Companhia Comercial Gama foi-se. No seu lugar ficou o restaurado edifício
da chamada C-50, Companhia Cinquenta por Cento de Camões, Limitada.
- E assim se mostra - gostava Bella de dizer - como, nesta vida, cinquenta mais cinquenta igual a cinquenta.
Querendo dizer com isto que a Companhia fora reunificada pela reconquista da Rainha Isabella mas que a família continuava separada; as barricadas de sacos continuaram
no seu lugar. E assim lá ficariam por longos anos.
Bella não era perfeita; talvez seja altura de o dizer. Era alta, bonita, brilhante, valente, enérgica, poderosa, vencedora - mas, minhas senhoras e meus senhores,
a Rainha Isabella não era nenhum anjo, não usava asas nem auréola não senhor. Nesses a nos que Camões passou na cadeia, fumava como um vulcão, falava cada vez pior,
não vigiava o seu vocabulário diante da filha que crescia, metia-se numas escapadelas de copos que a deixavam sem sentidos, esparramada como uma pega em cima de
uma esteira em qualquer tasca imunda; tornou-se numa tipa dura de roer e começou a perceber-se que os seus métodos de fazer negócio chegavam por vezes à intimidação,
à ameaça física contra fornecedores, empreiteiros ou rivais; e era frequentemente infiel, despudoradamente infiel, sem descriminação ou reserva. Trocava a sua roupa
de trabalho por um curto vestido de contas, um chapelinho em forma de sino e ensaiava o charleston, de olhos muito abertos e boquinha em bico, em frente do seu grande
espelho; deixava Aurora com a ama e zarpava para o Malabar Club.
- Té loguinho, pintainho - dizia ela na sua voz rouca de fumadora - A mamã vai caçar tigres esta noite.
Ou então dava uns passinhos de dança e despedia-se tossindo cavernosamente: - Sonhos felizes, minha abelhinha. A mamã precisa de comer um bife de leão.
Anos mais tarde, minha mãe Aurora da Gama contou esta história no seu grupo de amigos boémios:
- Eu tinha para aí cinco, seis anos, uma senhoreca muito pes-peneta. Se o telefone tocava, atendia e dizia: "Lamento mas o Papá e o Tio Aires estão na cadeia, a
Tia Carmen e a Avó estão no outro lado dos sacos e eu não tenho licença de lá ir e a Mamã vai estar fora toda a noite a caçar tigres; quer deixar algum recado?"
Enquanto Bella andava na farra, a pequena furora, criança solitária, deixada à solta naquela casa surrealista, desenvolveu aquele olhar interior que é uma dádiva
da solidão; segundo a lenda, descobriu então o seu próprio dom. Quando cresceu e se encasulou no culto de si própria, os admiradores gostavam de evocar a imagem
daquela menina sozinha no enorme casarão, abrindo as janelas de par em par e deixando a torrencial realidade da índia des-
pertar a sua alma. (Reparem que para criar esta imagem é preciso ligar dois episódios da infância de Aurora.) Dela se disse, com reverente admiração, que, mesmo
em criança, nunca fez bonecos de criança; as suas figuras e as suas paisagens foram sempre adultas. Ela nunca desmentiu esse mito; até o fomentou de certa maneira,
ante-datando alguns desenhos e destruindo outros do tempo da juventude. O que é quase certo é que Aurora começou a sua vida de artista durante longas horas em que
a mãe estava ausente; que ela tinha muito jeito para desenhar e colorir, o que um especialista poderia eventualmente ter descoberto; e que exerceu o seu talento
em completo segredo, escondendo não só os trabalhos como os próprios utensílios, de tal forma que Bella nunca soube disso enquanto viveu.
Trazia da escola os materiais de que precisava, gastava todo o dinheirito da semanada em lápis, papéis, canetas para tinta da China e aguarelas para crianças, servia-se
do carvão da cozinha e a sua ama Josy, que sabia de tudo e a ajudava a esconder os grandes cadernos, nunca traiu a sua confiança. Foi depois de Epifânia a ter fechado...
mas já me estou a adiantar muito na minha história. E em qualquer caso há cabeças mais bem equipadas do a que minha para falar do génio da minha mãe, olhos que vêem
com mais clareza o valor da sua obra. O que mais me intriga quando visualizo a imagem da rapariguinha solitária que veio a ser minha mãe, a minha Némesis, o meu
inimigo do além-túmulo, é que ela nunca responsabilizou pelo seu isolamento o pai ausente de toda a sua infância, encarcerado na sua cela ou a mãe passando os dias
a dirigir os negócios e as noites à procura de caça grossa; pelo contrário, ela adorava-os a ambos e recusava-se a ouvir qualquer crítica (minha, por exemplo) sobre
o seu desempenho como pais.
(Mas não lhes revelou a sua verdadeira natureza. Escondeu-a dentro de si até que ela explodiu, como acontece inevitavelmente com essa espécie de verdades.)
Epifânia rezava.
Tinha envelhecido, já que os filhos foram presos quando tinha quarenta e oito anos e cinquenta e sete quando foram libertados, depois de cumpridos nove anos da sua
sentença.
Anos que passam como barcos à deriva, Senhor, como se tivéssemos muito tempo a perder - rezava ela em êxtase, num frenesim apocalíptico em que se misturavam a culpa,
Deus, a vaidade, o fim do mundo, a destruição das velhas formas e o detestado advento das novas - não era suposto isto passar-se assim, Senhor, não era suposto eu
ser banida da minha própria casa, detida por uma barricada de sacos, proibida de cruzar as linhas brancas daquela maluca - ela arranhava por igual as feridas do
passado e as do presente - os meus próprios criados, Senhor, mantêm-me aqui fechada, estou numa prisão e eles são os meus carcereiros, não os posso despedir porque
não sou eu que lhes pago os salários, ela, ela, ela em toda a parte e cada vez mais, mas eu posso esperar, Senhor, a paciência é uma virtude, a minha vez há-de chegar
- Epifânia, nas suas orações amaldiçoava os Lobos - porque me atormentais, doce Jesus, Santa Maria, obrigando-me a viver com a filha dessa casa maldita, essa coisa
estéril que eu, na minha generosidade, tentei proteger, vede como ela me paga, como esses reles impressores vieram dar cabo da minha vida - mas outras vezes a memória
dos mortos vinha acusá-la - eu pequei, Senhor, devia ser fervida em azeite, Mãe de Deus tende piedade de mim, sou a mais indigna de todos os indignos, salvai-me,
se tal for esse o vosso desejo, do infernal abismo sem fundo, porque em meu nome e pelas minhas próprias mãos, uma catástrofe enorme e assassina espalhou-se por
sobre a terra - ela escolhia os seus próprios castigos:
- Senhor, esta noite vou dormir sem mosquiteiro, deixai-os vir, Senhor; os ferrões do Teu castigo, deixá-los esficaçar-me e chupa-rizar o meu sangue, deixá-los infectar-me,
Mãe de Deus com as febres da Tua ira - e esse castigo iria continuar depois da libertação dos filhos quando ela perdoou a si própria e de novo se envolveu no manto
protector de gase nocturna, recusando cegamente reconhecer que os mosquiteiros durante os anos em que tinham ficado guardados tinham-se enchido de buracos de traça
- Senhor.; o meu cabelo está a cair aos punhados, o mundo está desfeito, Senhor, e eu estou a ficar velha.
Carmen, no seu leito solitário, procurando consolo ao levar os dedos abaixo da cintura, enroscava-se em si própria, bebia a sua própria amargura e chamava-lhe mel,
percorria o seu próprio deserto e chamava-lhe bosque excitava-se a si própria com imaginárias seduções de marinheiros de pele escura no banco de trás do Lagonda
preto e dourado da família, ou dos amantes de Aires no His-pano-Suiza - oh Senhor, pensai em quantos novos homens ele vai encontrar ou já encontrou na prisão - e
nas repetidas noites de insónia acariciava o seu corpo ossudo enquanto a juventude a abandonava, vinte e um anos quando Aires foi para a prisão, trinta quando saiu
- e ainda intocada, intocável e jamais desflorada, ninguém lhe tocaria, mas estes dedos sabem, ah sabem, ah, ah, ah, - quando se ensaboava no banho ou se sentia
levemente transpirada no bazar, ela pensava no seu prazer diário - não era para ser assim, Aires como marido, Epifânia como sogra, era para ser tudo bom e belo;
e há beleza à minha volta, o infinito poder de Bella, o encanto e as possibilidades da sua beleza. Mas eu, eu, eu, sou a não-beleza. Nesta casa dominada pela beleza
eu já me vi a mim própria muitas vezes e, meus senhores, eu sou abominável, sou, sou, senhoras e senhores é a pura verdade - e fechando os seus olhos desventurosos
e arqueando as costas entregava-se aos prazeres da vergonha - esfolai-me, esfolai toda a pele do meu corpo e que eu comece de novo, que não tenha raça, não tenha
nome, não tenha sexo, que a noz apodreça na casca, ah, que as especiarias se queimem ao sol, deixá-las queimar-se, deixá-las queimar-se, ha! - e sucumbindo por fim,
em lágrimas, encolhia-se entre os lençóis, enquanto os mortos a atacavam e gritavam vingança.
Quando Aurora da Gama fez dez anos, o homem da roda gigante, do acordeão e dos passes de mágica perguntou-lhe:
- De que é que tu gostarias mais do que tudo no mundo?
E antes que ela lhe respondesse já lhe tinha satisfeito o desejo.
Uma lancha a motor apitou no porto e encostou ao desembarcadouro da Ilha Cabral; no tombadilho, libertados seis anos antes do Termo da Sentença, estavam Aires e
Camões em pele-e-osso como gritou, encantada, Epifânia. Aí estavam eles de regresso a casa, acenando debilmente e com um idêntico sorriso: o sorriso incerto mas
voraz do prisioneiro recém-libertado.
O meu Avô Camões e a minha Avô Bella abraçaram-se no cais:
- Tenho pronta para ti, bem engomada, a camisa mais horrenda que encontrei. Vai-te lá embonecar e ocupa-te da menina dos anos, que tem aquele enorme sorriso a torcer-lhe
a cara. Olha para ela, espigada como uma árvore, tentando reconhecer o pai.
Sinto o amor deles a escorrer até mim ao longo dos anos; tão grande ele foi e tão pouco o tempo que estiveram juntos! (É verdade: apesar das incontáveis fornicações
dela, insisto em que o que havia entre Bella e Camões era o amor autêntico, de origem garantida.) Posso ouvir a tosse de Bella quando ela conduziu Camões até junto
de Aurora; sinto aquela tosse funda e dura rasgar o meu próprio peito.
- Estou a fumar demais - tossiu ela. - Um péssimo hábito.
- E mentindo para não estragar a festa: - Vou deixar de fumar.
A pedido de Camões (- Esta família já sofreu muito, é altura de curar as feridas), Bella concordou em desmantelar as barreiras que tinham mantido Epifânia e Carmen
longe da vista. Por Camões, ela abandonou de um dia para o outro e para todo o sempre a sua vida agitada e dissoluta. A pedido do marido permitiu que Aires fizesse
parte da Administração da Companhia, ainda que ele não pudesse, por falta de dinheiro, comprar uma única acção. Penso, espero, que os meus avós tivessem sido uns
amantes maravilhosos, que a gentileza de Camões e a volúpia devoradora de Bella tivessem feito deles um par perfeito; que durante aqueles breves - tão breves! -
três anos seguintes à libertação de Camões tivessem tido grandes satisfações e sido felicíssimos nos braços um de outro.
Mas Bella tossiu sem parar durante esses três anos e embora a ressaca de tudo o que acontecera fizesse daquela Casa um lugar de tréguas, a filha adolescente nunca
se enganou:
- Ainda antes de eu ouvir a morte nos pulmões de Bella, elas sabiam, as duas bruxas - disse-me minha mãe. - E eu sabia que aquelas cabras só estavam à espera do
fim. Uma vez dividida, uma casa fica-o para sempre; naquela família a luta foi de morte.
Uma noite, pouco depois do regresso dos dois irmãos, a família reuniu-se, a pedido de Camões, na grande e abandonada sala de banquetes, sob os retratos dos antepassados
para um jantar de reconciliação. E foram os pulmões de Bella que estragaram tudo, foi Bella a cuspir uma espuma sanguinolenta para o escarrador cromado que inspirou
a Epifânia, que presidia ao repasto à cabeceira da mesa com uma mantilha de renda negra a maldosa admoestação:
- Suponho que agora, que já pescaste o dinheiro, as boas maneiras não te preocupem.
Houve logo uma troca de insultos e só dificilmente voltaram as tréguas. Mas nunca mais houve jantares de família.
Bella acordava a tossir e tossia aterradoramente antes de adormecer. A tosse acordava-a a meio da noite e ela vagueava pela casa abrindo as janelas de par em par.
Mas dois meses depois era Camões que acordava ouvindo-a tossir e dava com ela num sono febril a tossir e a cuspir sangue. Tuberculose foi o diagnóstico, instalada
já nos dois pulmões; nesse tempo a doença era muito mais perigosa do que agora e os médicos disseram-lhe que ia ter de lutar duramente pela vida, cortar radicalmente
a sua actividade profissional.
- Que se lixe - resmungou ela para Camões. - Se eu des-fodi tudo o que tu fodeste há uns anos, é melhor que continue por aí a desfoder tudo mais uma vez.
E Camões, aquela alma gentil, completamente fora de si, rompeu num pranto tão convulsivo como o seu amor.
No seu regresso, Aires também encontrou a esposa muito modificada. Carmen, na noite da chegada, entrou-lhe pelo quarto e disse-lhe:
- Se não acabares com as tuas vergonhas e com os teus escândalos mato-te enquanto estiveres a dormir.
O marido fez-lhe uma vénia de assentimento, uma vénia de um elegante de outros tempos, a mão direita fazendo várias espirais, o pé direito estendido graciosamente
para a frente e ela foi-se embora.
Aires não renunciou às suas aventuras mas tornou-se circunspecto, passando as tardes num apartamento alugado no bairro de Ernakulam, com uma grande ventoinha a girar
lentamente no tecto, paredes azul-bebé sem quaisquer adornos e uma grande cama de campanha cujas precintas ele tinha substituído por razões de higiene e de segurança;
ao lado do quarto uma casa de banho manhosa com uma retrete de buraco no chão. Através das persianas, finas lâminas de luz caíam sobre o seu corpo nu e o do parceiro
e a gritaria do mercado misturava-se com os gemidos dos amantes.
À noite jogava bridge no Malabar Club, onde a sua presença podia ser testemunhada, ou ficava pacatamente em casa. Pôs cadeados nas portas do quarto e comprou um
buldogue inglês ao qual chamou Jawaharlal para provocar o irmão. Saiu da prisão mantendo os mesmos sentimentos de oposição ao Partido do Congresso e às suas exigências
de independência e tornou-se um ardente escritor de cartas aos jornais enchendo colunas com a sua defesa de uma autodeterminada "Alternativa Liberal".
- É errada a política de expulsar dos nossos governantes - trovejava ele. - Suponhamos que ela é bem sucedida; que acontecerá então? Onde estão, no nosso país, as
instituições democráticas que substituam o Domínio Inglês ? Regime que é benevolente
- posso testemunhá-lo - mesmo quando tem de castigar os nossos disparates infantis.
Quando o director liberal do jornal "Leader", o senhor Chintamani, sugeriu que a índia "faria melhor em submeter-se ao actual governo inconstitucional do que a um
governo futuro, mais reaccionário e ainda mais inconstitucional", o Tio-Avô Aires escreveu "Bravo!" e quando outro Liberal, Sir P. S. Sivaswamy Iyer declarou que
"ao defender a eleição de uma Assembleia Constituinte, o Partido do Congresso põe demasiada fé na sabedoria da multi-
dão e faz pouca justiça à sinceridade e às capacidades de homens que já participaram em várias Conferências e Mesas Redondas. Duvido muito que uma assembleia constituinte
tivesse feito melhor" - Aires da Gama felicitou-o publicamente no jornal: "Concordo de todo o coração! Na índia, o homem comum sempre dobou o joelho e escutou o
conselho dos seus melhores - das pessoas bem nascidas e bem educadas".
Bella encontrou-o no dia seguinte. Pálida, de olhos vermelhos e envolta em xailes, ela insistia em despedir-se de Camões quando ele tomava o barco para ir trabalhar.
Quando os dois irmãos entravam na lancha da família, ela agitou o jornal na cara do cunhado:
- Esta é uma casa de pessoas bem nascidas e bem educadas que se portaram como cães.
- Nós não - respondeu Aires. - Os nossos parentes pobres, esses porcos ignorantes, raios os partam, pelos quais já sofri que chegue e a respeito dos quais não aceito
mais qualquer censura. Calado, Jawaharlal! Senta! Senta aí!
Camões corou mas calou-se pensando em Nehru, então na prisão de Alipore, e em tantos homens bons presos e exilados. À noite sentava-se ao lado de Bella e da sua
tosse, limpando-lhes os olhos e a boca, pondo-lhe compressas de água fria na testa e falando-lhe, muito baixinho, do amanhecer de um novo mundo, um país livre, Bella,
acima das religiões porque laico, acima das classes porque socialista, acima das castas porque esclarecido, acima do ódio porque fraterno, acima da vingança porque
indulgente, acima das tribos porque unido, acima da cor da pele porque multi-racial, acima da pobreza porque a venceria, acima da ignorância porque sabedor, acima
da estupidez porque brilhante, a liberdade, Bella, a liberdade de expressão, muito em breve estaremos na estação de Bombaim a saudar a chegada do combóio e enquanto
ele lhe falava dos seus sonhos ela adormecia e era assaltada por espectros de desolação e de guerra.
Quando ela pegava no sono, ele recitava versos àquela mulher adormecida:
Ausenta-te da felicidade por uns tempos,
Durante uma estação retém penosamente o fôlego.
E sussurava os versos não só para a mulher que era sua mas também para todos os prisioneiros, para todo o país cativo, inclinava-se sobre aquele corpo doente e adormecido
e soltava ao vento a sua esperança angustiada e o seu amor:
Quando o seu trabalho estiver feito, a mentira apodrece,
A verdade é grande e há-de vencer,
Quando já ninguém se inquietar se ela venceu ou não.
Não era tuberculose, não era apenas tuberculose. Em 1937 descobriu-se que Isabella Ximena da Gama, Souza em solteira, com apenas trinta e três anos de idade, sofria
de um cancro do pulmão que atingira um estádio avançado - e terminal. Ela piorou rapidamente, com grande sofrimento, revoltando-se contra o inimigo dentro do seu
corpo, furiosa contra a morte por chegar tão cedo e portar-se tão mal. Num Domingo de manhã, quando o toque dos sinos vibrava sobre a água da baía e o ar cheirava
a madeira queimada, com Àurora e Camões a seu lado, ela disse, virando o rosto para o Sol:
- Lembrem-se da história de El Cid Campeador. Também ele amava uma mulher chamada Ximena.
Nós lembramo-nos.
- E quando estava mortalmente ferido,pediu à sua amada que amarrasse o seu cadáver a um cavalo e o mandasse de volta para a batalha, para que o inimigo pensasse
que ele ainda estava vivo.
Sim, mãe. Sim, meu amor.
- Então ponham o meu corpo no raio de um rickshaw ou noutra merda qualquer, numa carroça puxada por um camelo, ou por um burro, ou por um ciclista - mas nunca, vejam
lá, por um elefante, está bem? O inimigo está perto e nesta triste história o Cid chama-se Ximena.
Assim farei, mãe.
(Morre.)
4
Na minha família sempre achámos difícil respirar o ar do mundo; quando nascemos já ansiamos por um lugar melhor.
Falo por mim, nesta hora tardia? Cá me vou arranjando, obrigado, ainda que velho, velho antes de tempo. Poderão dizer que vivi demasiado depressa, como um corredor
de maratona que cai por terra por não ter conseguido encontrar o seu ritmo ou um astronauta que sufoca por dançar com demasiada alegria na superfície da Lua e que
nos meus anos de louca juventude gastei a provisão de ar que tinha para toda a vida. Ó Mouro esbanjador! Gastaste em 36 anos a energia que tinhas para 72! (Deixem-me
dizer, em minha defesa, que não tive grande escolha.)
Vejamos então: é difícil, mas cá vou indo. Na maior parte das noites oiço ruídos, os roncos e rugidos de animais fantásticos que saem da selva dos meus pulmões.
Acordo sufocado e meio a dormir, agarro punhados de ar e meto-os na boca sem qualquer resultado. E, mesmo assim, é mais fácil, inspirar do que expirar. Como é mais
fácil absorver o que a vida nos dá do que entregar os resultados dessa absorção.
Como é mais fácil receber um grande soco do que devolvê-lo. No entanto, fungando e com vómitos, lá consigo expirar. E tenho razão para me orgulhar disso; não me
recuso uma palmadinha nestas costas tão doloridas.
Nestas ocasiões, identifico-me com a minha própria respiração. Concentro toda a força interior nas falhas do meu peito: a tosse,
as inspirações aflitas. Eu sou aquilo que respiro. Sou aquilo que começou há muitos anos com um grito e que acabará quando o espelho junto à minha boca já não se
embaciar. Não é o pensamento que nos faz existir, é o ar. Suspiro ergo sum. Suspiro, logo existo. É o Latim, como de costume, que fala verdade: suspirare - sub,
por baixo + spirare, respirar.
Suspiro: eu sub-respiro, respiro por baixo.
Ao princípio era (e foi até ao fim) o pulmão: o sopro divino, o primeiro grito do bebé, o ar feito em discurso, as explosões do riso, as árias exaltantes do canto,
o arfar do amante feliz, o lamento do amante infeliz, o queixume do avarento, o regougar dos velhos, o sopro fétido da doença, o suspiro do moribundo e, para lá
de tudo, para lá do ar, o silêncio do vazio.
Um suspiro não é só um suspiro. (*) Inspiramos o mundo e expiramos um conceito. Enquanto podemos. Enquanto pudermos.
- Nós respiramos luz - cantam as árvores. Aqui, no fim da jornada, neste lugar de oliveiras e de sepulturas, a vegetação decidiu meter conversa. Nós respiramos luz...
olha a novidade! Estas oliveiras minúsculas são rebentos dos viveiros "El Greco"; reparem que o nome está bem aplicado, tem a ver com o tal pintor grego que também
respirava luz e que não queria saber de Deus.
Daqui em diante não darei ouvidos a nenhuma folhagem tagarela, com a sua metafísica arbórea, e a sua clorofilosofia. A única árvore que eu tenho de ouvir é a minha
árvore genealógica.
Estive a viver numa extravagância arquitectónica: a fortaleza de Vasco Miranda na aldeia de Benengeli, de onde, no fim duma encosta acastanhada se avista uma planície
que sonha - através de
(*) Alusão ao 3º verso da famosa canção "As time goes by" do filme "Casablanca":
You must remember this,
A kiss is still a kiss A sigh is just a sigh... (N. T.)
brilhantes miragens - em transformar-se num mar mediterrâneo. Também eu, também eu sonhava da estreita janela do meu quarto; via não o sul da Espanha mas o sul da
índia; procurava através da imensidão do espaço e do tempo, regressar àquela Idade das Trevas, aquele espaço entre a morte de Bella e a entrada em cena de meu pai.
Vejo através duma fenda no tempo, Epifânia Menezes da Gama ajoelhada a rezar, a sua capela como um lago de ouro na escuridão da grande escadaria. Pestanejo e surge-me
uma imagem de Bella. Um dia, pouco depois da sua libertação, Camões desceu para o pequeno-almoço vestindo uma roupa simples de algodão; Aires, de novo muito elegante,
riu-se para o seu prato. Quando acabaram, Bella puxou Camões para o lado:
- Meu querido, vai já despir esse fato de máscara. O nosso papel é dirigir bem o negócio e de olhar pelos nossos empregados; não tens nada que andar vestido de moço
de recados.
Mas Camões foi irredutível. Tal como ela, ele era a favor de Nehru, não de Ghandi - a favor dos negócios e da tecnologia, do progresso e da modernidade, a favor
da cidade e contra toda aquela pieguice de fiar o próprio algodão e de viajar em terceira classe. Mas gostava de usar aquele tecido feito à mão.
- Muito bem, meu filho - troçou ela. Mas não penses que eu vou deixar as calças, a não ser para enfiar um vestido sexy, para ir dançar.
Fico a ver Epifânia a rezar e dou graças a Deus que os meus pais - por um rasgo de sorte que, na altura, parecia a coisa mais normal do mundo - se tivessem curado
de manias religiosas. (Qual terá sido o remédio que tomaram, o antiveneno contra a conversa da padralhada? Por favor, metam-no em frasquinhos e mandem-no para todo
o mundo!) Fiquei a olhar Camões na sua túnica de algodão e lembrei-me de que ele uma vez, sozinho sem Bella, fez todo o caminho até à cidadezinha de Malgudi, só
porque o Mahatma Ganhi ia ali fazer um discurso; e isto apesar de ser um adepto de Nehru. Escreveu então, no seu diário, o seguinte:
No meio daquela multidão sentada na areia da margem do Sarayu, eu era apenas um pontinho. Havia imensos voluntários, todos de algodão branco, circulando à volta
do palanque.
O suporte cromado do microfone brilhava ao Sol. Havia polícias espalhados pelo recinto. Tipos autoritários andavam de um lado para o outro pedindo às pessoas que
se mantivessem calmas e silenciosas. As pessoas obedeciam... o rio passava, as folhas das enormes figueiras bravas sussurravam, a multidão mantinha um vozear em
surdina, pontuado pelo saltar das rolhas das garrafas de gasosa; longas fatias de pepino do feitio de crescentes esfregadas numa casquinha de lima previamente passada
por sal iam desaparecendo do tabuleiro do vendedor que as apregoava em voz baixa (sinal de respeito pela iminente chegada do grande homem.) "Pepinos para quem tem
sede - o melhor que há. " Tinha enrolado à volta da cabeça, para se proteger do Sol, uma toalha turca de cor verde.
Até que Gandhi chegou e toda a gente começou a bater palmas ritmadamente acima das cabeças e a cantar o seu cântico favorito:
Raghupati Raghava Raja Ram Patitha pavana Sita Ram Ishwara Allah tera nam Sabko Sanmati dé Bhagwan.
E também se ouvia Jai Krishna, Hare Krishna, Jai Govind, Hare Govind e ouvia-se Sam Sadashiv, Samb Sadashiv, Sam Sadashiv, Samb Sadashiva Har Har Har Har.
- Depois de tudo isto - disse Camões a Bella, quando regressou - não ouvi mais nada. Já tinha visto a beleza da índia naquela multidão, com as suas gasosas e os
seus pepinos, mas o palavreado religioso assustou-me. Nas cidades somos a favor de uma índia laica, mas as aldeias são a favor do deus Ram. E dizem Ishwar e Alá
é o seu nome, mas quase sem querer, porque só querem falar de Rama, do rei do clã Raghu, purificador dos pecados juntamente com Sita. No fundo tenho medo que os
aldeões marchem sobre as cidades, que as pessoas como nós tenham de fechar as portas, e que tenhamos de suportar a vinda do grande Ariete. (*)
*) Trocadilho a partir de "Battering Ram" (ariete), tomando Ram (carneiro) por Rama, principal divindade do Hinduismo. (N. T.)
5
Poucas semanas depois da morte da sua mulher, misteriosos arranhões começaram a aparecer no corpo de Camões da Gama enquanto ele dormia. Primeiro um no pescoço,
da parte de trás, onde a sua filha - imagine-se! - o descobriu; depois três longas linhas paralelas na nádega direita e mais tarde um arranhão na face, junto ao
limite da sua barbicha. Nessa mesma altura Bella começou a aparecer-lhe em sonhos, nua e exigente; em consequência do que ele acordava a chorar, porque mesmo que
fizesse amor com a imagem onírica de Bella ele sabia que esse amor não era real. Mas os arranhões eram mesmo reais e, embora não falasse disso a Aurora, a sua convicção
de que era Bella que regressava tinha tanto a ver com essas marcas de amor como com as janelas abertas e o desaparecimento das elefantices.
O mano Aires tinha uma solução mais simples para o sumiço dos dentes de elefante e das imagens de Ganesha. Reuniu todo o pessoal no pátio grande debaixo da figueira
brava a que tinham caiado a metade inferior do tronco e, passeando de um lado para o outro em plena canícula, com o seu chapéu de palha, camisa aberta no peito,
calças brancas de algodão presas por suspensórios vermelhos, foi repetindo incansavelmente a sua fria convicção de que um dos presentes era um ladrão. Todo o pessoal
doméstico, jardineiros, barqueiros, varredores, limpadores das fossas e retretes todos o enfrentaram pálidos de terror, com um falso sorriso apologético enquanto
Jawaharlal, o buldogue, soltava
rosnidos ameaçadores e o dono os tratava por alcunhas insultuosas.
- Ninguém quer falar? Tu, Gobbledygokhale? Nallapaboom-diay? Karampalstiltskin? Despachem-se e respondam!
Os moços de recados ficaram Tweedlydum e Tweedlydee (*) e levaram um bofetão em cada face; os jardineiros ficaram com nomes das especiarias enquanto Aires lhes espetava
o dedo no peito. Caju, Pista, Cardamo Grande e Cardamo Pequeno; os limpadores de retretes, em quem nem quis tocar, nem nome tinham, eram o Número Um e o Número Dois.
Aurora veio a correr quando ouviu o que se estava a passar e, pela primeira vez na vida, a presença dos criados fê-la sentir-se envergonhada, sem poder olhá-los
nos olhos. Virou-se para a família entretanto reunida (Epifânia, impassível, Carmen com uma agulha de gelo no coração e mesmo Camões, que viera observar a técnica
inquisitorial de Aires) e, numa vozinha excessivamente aguda confessou:
- Não foram eles. Fui EU.
- O quê? - repetiu Aires, contrariado, um algoz interrompido no prazer da tortura - Fala mais alto, não percebi nada.
- Não os chateie mais - gritou Aurora - Eles não fizeram nada; não tocaram na porcaria das pepinices dos elefantes, nem nos coisos deles, nos dentes ou lá o que
é. Fui eu que os deitei fora.
O pai Camões empalideceu:
- Mas porquê, meu bebé?
O buldogue rosnou e mostrou os dentes.
- Não me trate por bebé - Aurora desafiou-o até a ele. - Fiz o que a minha mãe sempre quis fazer. Vocês verão: de hoje em diante tomo o lugar dela. E olhe, Tio Aires,
veja lá se fecha a besta desse cão. Ele devia era chamar-se Jaw-jaw, esse rafeirote que ladra e não morde.
Voltou as costas, de cabeça erguida, e foi-se embora deixando toda a família de boca aberta: era como se acabassem de ver um fantasma, uma reencarnação, a imagem
viva de sua mãe.
(*) Dois gémeos grotescos de "Alice do Outro Lado do Espelho", de Lewis Carroll. (N. T.)
Mas foi Aurora quem ficou fechada: como castigo ficou encerrada no seu quarto, a arroz e água, durante uma semana. No entanto muitos petiscos lhe foram levados
às escondidas pela sua babada Josy: panadinhos de carne picadas e puré de batata, fritos de peixe, camarões em molho picante, geleia de banana, pudim de caramelo,
gasosa; e a ama trouxe-lhe ainda às claras os instrumentos - carvão, pincéis, tintas - com os quais Aurora escolheu, no preciso momento em que mudava de idade, revelar
ao público a sua identidade interior. Durante toda aquela semana trabalhou sem descanso, parando só poucas horas para dormir. Quando Camões aparecia à porta, ela
mandava-o embora, queria cumprir sozinha a sua sentença, não precisava para nada de um pai ex-presidiário que não quisera lutar em sua defesa. Camões baixava a cabeça
e ia-se embora.
Quando terminou o período da prisão domiciliária, contudo, Aurora convidou-o a entrar fazendo dele a segunda pessoa em todo o mundo a ver a sua obra. Cada centímetro
de parede e até do tecto pululava de figuras, humanas ou de animais, reais ou imaginários, desenhados numa linha preta sinuosa que se alargava aqui e ali em grandes
blocos de cor, o vermelho da terra, a púrpura do céu, as quarenta gradações do verde; uma linha tão musculosa e livre, tão sugestiva, tão violenta que Camões, sentindo
estoirar de orgulho o seu coração de pai, deu por si a dizer:
- Mas isto é o próprio fervilhar da vida!
À medida que se foi habituando ao recém-revelado universo da sua filha, Camões começou a partilhar as visões de Aurora: ela tinha posto a História nas paredes, o
Rei Gondophares convidando o Apóstolo S. Tomás a vir para a índia; e, lá no Norte, o Imperador Asoka com os seus Pilares da Lei e as grandes filas de pessoas à espera
de poderem apoiar contra um deles as costas e tentar juntar as mãos do outro lado para propiciar a sorte; a sua versão dos baixos relevos eróticos de certos templos,
cujos explícitos pormenores deixavam Camões pálido de inquietação; a cons-
trução do Taj Mahal após a qual, como ela mostrava nas suas pinturas, os artífices tiveram as mãos cortadas para que nunca mais pudessem fazer nada de tão belo.
Do seu próprio Sul, ela tinha escolhido a Batalha de Srirangapatnam, a espada do Sultão Tipu na fortaleza mágica de Golconda, onde um homem falando normalmente à
porta de armas pode ser perfeitamente ouvido no alto da cidadela, e ainda a chegada dos Judeus há muito, muito tempo.
A história moderna também aparecia, havia celas cheias de homens ardendo em fé e paixão, o Partido do Congresso e a Liga Muçulmana, Nehru Gandhi Jinnah Patel Bose
Azad, e soldados ingleses falando entre si da guerra inevitável; para além da História, havia também as criaturas da sua fantasia, os-híbridos, meio-mulheres e meio-tigres,
meio-homens e meio-cobras, havia monstros marinhos e espíritos das montanhas. Em lugar de honra, Vasco da Gama em pessoa, pondo pela primeira vez o pé em terra indiana,
cheirando o ar e procurando tudo o que fosse especiaria e rendesse muito dinheiro.
Camões começou a reconhecer retratos da família, retratos não só dos vivos e dos mortos mas também os dos nunca nascidos, como, por exemplo os dos seus próprios
irmãos em atitude grave à vota do corpo da mãe junto a um enorme piano. Ficou atónito diante da imagem de Aires da Gama, completamente nu, numa doca, o seu corpo
irradiando luz enquanto sombras indistintas o rodeavam; e ficou chocado com uma paródia da Última Ceia, com os criados da nossa família em grande farra à volta da
grande mesa dos banquetes enquanto os retratos dos antepassados olhavam a cena com reprovação e os Gamas serviam os seus próprios criados, trazendo comida e enchendo
os copos e sendo rudemente tratados pelos alegres comensais, Carmen com uma nádega beliscada, Epi-fânia levando no traseiro o pontapé dum jardineiro bêbedo; mas
o quadro estava composto de tal maneira que o espectador era levado a abandonar as personagens e fundir-se na densa multidão indistinta que, de todos os lados invadia
a cena; por cima, por baixo e até no meio da família lá estava a multidão, a multidão sem quaisquer limites; Aurora tinha composto o seu gigantesco quadro de tal
forma que as figuras da família pareciam ter de abrir caminho
através daquela superabundância de figurantes, sugerindo que a privacidade da Ilha de Cabral era uma ilusão e que a realidade era aquela montanha humana, aquela
colmeia, aquela imagem infinita da humanidade metamórfica; para onde quer que olhasse, Camões via a raiva das mulheres, a tortura da fraqueza e a resignação dos
homens, a ambivalência sexual das crianças, os rostos neutros e passivos dos mortos. Ele queria saber como é que ela aprendera tudo aquilo e sentia na língua o gosto
amargo do seu fracasso como pai, concluindo que se a filha, com tão pouca idade, já tinha visto tanta raiva e tanto sofrimento e tanta desilusão e gozado tão pouco
das suas delícias, a ele competia dizer-lhe:
- Só quando vieres a conhecer o prazer e a alegria, só então o teu dom estará completo.
Mas ela já sabia tanta coisa que o medo lhe tolheu as palavras e não se atreveu a dizer nada.
Daquela obra só Deus estava ausente. Por mais minuciosamente que Camões examinasse aquelas paredes - e chegou a ir buscar uma escada para ver o tecto de perto -
foi incapaz de encontrar a figura de Cristo, na cruz ou fora dela, ou a mais indirecta representação de qualquer outra divindade, espírito dos bosques ou das águas,
santo ou demónio.
E tudo estava disposto numa paisagem que fez Camões tremer ao decifrá-la, porquanto se tratava da própria Mãe índia. Mãe índia com o seu espalhafato e o seu contínuo
movimento, Mãe índia que amava e traía e devorava e destruía e de novo amava os seus filhos e com a qual os ditos filhos travavam uma luta eterna e cheia de paixão
e furor, uma luta que durava bem para além do túmulo; que se estendia por gigantescas montanhas que pareciam exclamações da alma e ao longo de enormes rios cheios
de perdão e de doença, e através de altos planaltos varridos pelo vento, onde os homens têm de preparar à picareta a terra cultivável e infértil; a Mãe índia com
os seus oceanos e os seus coqueiros e arrozais, os seus bois a puxar à nora, os seus grous no topo das árvores com pescoços como cabides, os seus papagaios de papel
muito lá no alto, os gritos das mynahs e as brutalidades dos corvos, uma Mãe índia de muitos rostos que podia tornar-se monstruosa, que podia
ser uma serpente a sair do mar com o rosto de Epifania no topo de um longo pescoço coberto de escamas; que podia tornar-se uma assassina dançando com olhos enviesados
e com a boca de Kali, a das muitas línguas, enquanto os seus filhos morriam aos milhares. Sobretudo isto, no centro exacto do tecto, no ponto para o qual convergem
todas as linhas, todas as cornucópias, a figura da Mãe índia, com o rosto de Bella.
A Rainha Isabella era a única deusa em todo aquele universo e estava morta; no coração daquela primeira e enorme explosão da arte de Aurora estava a tragédia simples
da terrível perda; a dor inconsolável de ter passado a ser uma criança sem mãe. Aquele quarto era o seu luto.
Camões compreendeu tudo, de repente, e abraçou-a. Ambos choraram longamente.
Sim, minha mãe; a verdade é que também foi filha. Deram-lhe vida para que a vivesse. Mas a minha foi um rosário de desvarios, de mortes súbitas, de crimes de outras
pessoas e também de mim próprio. O fogo, a água e a doença têm de cumprir o seu papel ao longo - não, à volta e por dentro da existência humana.
Na véspera de Natal de 1938, dezassete Natais depois daquele em que o jovem Camões levou Isabella de Souza, então com 17 anos, a sua casa para a apresentar à família,
a filha de ambos, minha mãe Aurora da Gama, acordou com as dores do período e não conseguiu voltar a adormecer. Foi para a casa de banho e fez o que a velha Josy
lhe tinha ensinado, com algodão e gaze e um cordão para manter tudo no devido lugar. Assim arranjada, enroscou-se nos mosaicos frios do chão, suportando estoicamente
as dores. Ao fim de algum tempo, elas começaram a desaparecer. Aurora resolveu então ir para o jardim e expor o seu corpo dolorido à luz mágica da Via Láctea e ao
seu poder milagroso.
Olhamos para as estrelas e esperamos que elas olhem também para nós, rezamos para que haja estrelas que possamos seguir,
estrelas que se desloquem no firmamento e nos conduzam ao nosso destino. Mas isso é apenas a nossa vaidade. Olhamos para a galáxia e apaixonamo-nos, mas o universo
preocupa-se menos connosco do que nós com ele, as estrelas seguem o seu caminho por muito que desejemos que elas olhem por nós. É verdade que se olharmos durante
algum tempo para um céu estrelado acabamos por ver algum meteoro cair, inflamar-se e morrer. Não se trata de uma estrela que valha a pena seguir mas só de um pedregulho
com azar. Os nossos destinos estão aqui na Terra. Não há estrelas que nos guiem.
Mais de um ano passou sobre o incidente das janelas abertas e, naquela véspera de Natal a casa da Ilha de Cabral goza uma espécie de tréguas. Aurora, já sem idade
para brincar ao Pai Natal, pôs um xaile ligeiro sobre a camisa de noite, passou por cima do vulto adormecido de Josy, encolhida na sua esteira junto à porta e foi
descalça para o átrio.
O Natal, essa invenção das Terras do Norte, essa história de neve e de botas de feltro, de alegres fogueiras e de renas, de cânticos em latim e de Oh Tannenbaum
(*), de árvores sempre verdes e de Pais Natal com os seus minúsculos ajudantes, é restituída, por efeito do calor trópico, a qualquer coisa de mais parecido com
as suas origens. O Menino Jesus, seja lá o que tenha ou não tenha sido, foi sem dúvida um bebé de tempo quente; por muito pobre que tenha sido a sua mangedoura,
não era com certeza fria; e se houve Reis Magos, seguindo (por engano, como já disse) a sua estrela, eles vieram, sem qualquer dúvida, do Oriente. Em Cochim, famílias
inglesas armaram árvores de Natal e puseram nos ramos flocos de algodão branco; na Igreja de S. Francisco - então anglicana, hoje já não - o jovem Reverendo Oliver
D'Aeth já tinha celebrado o seu serviço anual de Cânticos do*Natal; há empadas e copos de leite à espera do Pai Natal e amanhã vão todos comer peru, sim senhor,
com dois recheios e mesmo couves de Bruxelas. Mas aqui em Cochim há muitas espécies de Cristãos, Católicos, Ortodoxos Sírios e Nestorianos; há missas do galo onde
o incenso
(*) Canto natalício alemão que se canta em todo o mundo. (N. T.)
não nos deixa respirar, há padres com treze cruzes nas suas vestes, simbolizando Jesus e os Doze Apóstolos, há querelas sobre as designações - Católicos Romanos
dum lado, Ortodoxos Sírios do outro - e todos concordam em que os Nestorianos não são propriamente Cristãos; mas todos eles preparam os seus Natais.
Na casa da Ilha de Cabral é o Papa quem manda. Não há árvore de Natal, mas sim um presépio, José parece um carpinteiro de Ernakulam, Maria podia perfeitamente ser
uma trabalhadora das plantações de chá, a vaca é um búfalo e a pele da Sagrada Família (aguentem!) é um tanto sobre o escuro. Não há presentes. Para Epifania da
Gama é o dia de Jesus. Os presentes - e até esta família tão pouco afectuosa troca presentes - são para o Dia de Reis, a noite do ouro, incenso e mirra. Nesta casa,
ninguém desce pela chaminé.
Aurora chegou ao cimo da escadaria e viu que as portas da capela estavam abertas; a capela estava iluminada e era uma zona dourada no grande espaço interior da casa.
Aurora aproximou-se sem ruído e espreitou. Uma pequena silhueta coberta com uma mantilha de renda preta estava ajoelhada junto do altar. Aurora podia ouvir a passagem
das contas do terço de Epifania - todo em rubis. A rapariguinha, não querendo que a Matriarca desse pela sua presença, afastou-se às arrecuas. E justamente nesse
momento, num silêncio total, Epifania Menezes da Gama caiu para o lado e ficou imóvel.
"Um dia hás-de liquidarizar o meu coração. "
"A paciência é uma virtude. O meu Tempo hã-de chegar. "
Que fez Aurora perante sua Avô, caída por terra? Correu para ela, como uma criança aflita, levando a mãozinha à boca?
Aproximou-se lentamente, cosida com as paredes da capela, avançando para o corpo imóvel em passos graduais e decididos.
Começou a gritar, bateu no gongo (havia um gongo na capela) ou tentou, de qualquer outra maneira, lançar o alarme?
Não o fez.
Talvez não houvesse nada a fazer; talvez já fosse evidente que Epifania já não precisava de ajuda; que a morte tinha sido rápida e misericordiosa?
Quando Aurora chegou junto da Avó, via que a mão que segurava o terço tentava ainda passar as contas; que os olhos estavam abertos e a reconheceram; que os lábios
se moveram fracamente, embora nenhum som tivesse saído.
E ao ver a sua Avó caída com restos de vida, Aurora fez tudo o que pôde para a salvar?
Limitou-se a parar.
E depois? Claro que era muito novinha; uma certa paralisia pode ser atribuída a um pânico infantil e, por isso, perdoada; mas, depois dessa pausa, chamou rapidamente
por socorro... não foi?
Depois da pausa, Aurora recuou dois passos, sentou-se no chão, de pernas cruzadas; e esperou.
Não sentiu pena, nem medo, nem vergonha?
Ficou preocupada, isso é verdade. Se o ataque de Epifania não fosse fatal, o seu comportamento ser-lhe-ia severamente censurado; mesmo o pai ficaria zangado. Ela
sabia-o.
E nada mais?
Não queria que descobrissem. Por isso fechou as portas da capela.
Então porque não escondeu tudo melhor? Porque é que não apagou as velas e a luz eléctrica?
Tudo devia ficar como Epifania deixara.
Mas então foi um assassinato a sangue frio. Tudo premeditado.
Se se pode cometer um assassinato por inacção - isso é verdade. Mas se Epifania tivesse sofrido um ataque fatal, sem hipótese de recuperação, então não. O caso é
discutível.
Epifania morreu?
Uma hora mais tarde, moveu os lábios uma última vez; os olhos procuraram os da neta. E esta, com o ouvido colado aos lábios da moribunda, recebeu a última maldição
da sua Avó.
E que fez a assassina? Ou, mais exactamente, a talvez-assas-sina?
Deixou as portas da capela abertas, tal como as encontrara. E foi dormir...
Com certeza que não conseguiu...?
... e dormiu como uma criança. Só acordou na manhã de Natal.
É altura de se dizer a dura verdade: depois da morte de Epifânia, a vida melhorou. Algum duende há muito afastado - talvez o duende da alegria - regressou à Ilha
de Cabral. Era evidente para todos que a qualidade da luz tinha mudado, como se alguém tivesse tirado um filtro do próprio ar; tudo ficou brilhante, como um nascimento.
No ano que então começou os jardineiros registaram um crescimento insólito das plantas, ao mesmo tempo que as pragas quase se extinguiam; mesmo os olhos menos horticulti-vados
podiam ver as enormes cascatas de buganvílias, o menos sensível dos narizes podia cheirar os maciços recém-nascidos de jasmim ou de lírios, de orquídeas ou de rainhas-da-noite.
A velha casa parecia zumbir de excitação, abrir-se a novas possibilidades; uma certa morbidez desapareceu dos pátios. Até Jawaharlal, o bul-dogue, parecia mais simpático.
Os visitantes tornaram-se tão frequentes como nos tempos de glória de Francisco. Carregamentos inteiros de jovens desembarcavam para se maravilharem com o Quarto
de Aurora e passar os serões na Casa de Le Corbusier que, com o zelo próprio da juventude, tornaram a pôr como devia ser; de novo se ouviu música na ilha e se dançaram
as danças da moda. Até a Tia-Avó-Sahara, Carmen da Gama, se deixou contagiar e, a pretexto de funcionar como chaperon das raparigas, participava naquelas festas;
até que uma noite se deixou convencer por um rapaz bem parecido a ensaiar uns passos de dança, o que fez garbosamente após ter manifestado a devida relutância. Acontece
que Carmen tinha o dom natural do ritmo. Nas noites seguintes, enquanto os amiguinhos de Aurora faziam bicha para dançar com ela, era possível ver a Senhora de Aires
da Gama perder os seus modos e atavios de respeitável figura, endireitar as costas, espetar o peito, deixar de franzir os olhos e substituir a sua expressão de culpa
envergonhada por uma tímida expressão de prazer. Ainda não tinha trinta e cinco anos e, pela primeira vez na vida, parecia ser mais nova do que era.
Quando viu Carmen a dançar o Shimmy(*), Aires começou a olhar para ela com qualquer coisa parecida com interesse e disse:
- Já é altura de nós, os adultos, termos pessoas cá em casa, para te exibirmos um bocadinho.
Nunca lhe dissera nada de tão amável e Carmen passou as semanas seguintes num frenesim de cartões de convite e de lanternas de papel para o jardim, menus e mesas
desmontáveis e a doce, doce agonia de decidir o que iria vestir. Na noite da festa havia uma orquestra no meio do grande relvado e um fonógrafo no belveder de Le
Corbusier; mulheres cheias de jóias e homens de casaca desembarcaram da lancha e se alguns deles deitaram ao marido uns olhares mais apoiados, Carmen, radiante na
sua noite de gala, fingiu não dar por nada.
Houve um membro da família que não foi afectado pelo ali-geiramento geral dos espíritos: durante toda a festa Camões só pensava em Bella, cuja beleza numa noite
daquelas eclipsaria a das próprias estrelas. Já não acordava com arranhões de amor por todo o corpo e como já não podia esperar pelo seu regresso do além-túmulo,
sentiu que se quebravam as amarras que o prendiam à vida; havia ocasiões em que nem podia olhar para a filha, tão forte era nela a presença da mãe. Chegou a sentir,
por vezes, uma espécie de raiva contra ela por possuir de Bella mais do que ele jamais poderia ter.
Deixou-se estar sozinho no molhe, com um copo de sumo de romã na mão. Uma mulher nova, um tanto toldada, com o cabelo preto penteado em caracóis espalmados, um bâton
excessivamente vivo, com uma saia tufada e mangas de balão veio pendurar-se no seu braço:
- Branca de Neve - declarou ela com a voz- entaramelada.
Camões, com o pensamento ausente, não respondeu.
- Não viu o filme? - sussurou ela, levemente irritada. - Já apareceu finalmente cá no cinema e eu vi-o para aí umas doze vezes. - Indicou o vestido. - É assim que
ela se veste. Mandei a modista fazer um igualzinho. E sei o nome de todos os anões:
(*) Dança muito saracoteada, em moda nos anos 20 e 30. (N. T.)
Envergonhadorezingãodungatchimestredorminhoquifelizardo. Qual é que quer ser?
Camões, sentindo-se infeliz, não encontrou resposta; limitou-se a abanar a cabeça.
A copofónica Branca de Neve não desistia:
- Atchim não, nem Felizardo, nem Mestre. Então escolha: Dor-minhocódungóenvergonhadórezingão. Se não quer escolher, escolho eu: Dorminhoco não, Dunga não, Rezingão
talvez mas Envergonhado é melhor. Hai-hô. Hai-hô! Vá lá, Envergonhado! Assobia!
Camões sentiu-se obrigado a dizer qualquer coisa:
- Talvez fosse melhor voltar para a festa. Peço muita desculpa mas não estou muito bem disposto.
Branca de Neve empertigou-se, desapontada:
- Senhor Magnate, ex-Presidiário Camões da Gama: o senhor não é capaz de ser bem educado para uma Senhora, ainda anda a chorar a morte da sua mulher, não é verdade?
Sem se importar que ela tenha dormido com meia cidade, homens ricos, homens pobres, pedintes ou ladrões. Oh meu Deus! não devia ter dito isto!
Virou-lhe as costas mas Camões segurou-a por um braço.
- Deixe-me! Está a fazer-me uma nódoa negra! - exclamou Branca de Neve. Mas a interrogação no rosto de Camões não podia ficar sem resposta. - Está com uma cara de
meter medo - continuou ela, libertando o braço. - Parece louco. O que é que tem? Bebeu demais? Lamento o que disse, mas toda a gente o sabe e mais tarde ou mais
cedo também o senhor havia de saber. E agora chega de paleio: o senhor não é o Envergonhado mas sim o Dunga; espero que haja para aí qualquer outro anão para mim.
Na manhã seguinte Branca de Neve, com uma dor de cabeça horrorosa, foi acordada por dois agentes da Polícia que lhe pediram o relato da cena da noite anterior.
- De que é que estão a falar, homens? Deixei-o no molhe e mais nada, fim, não há nada a acrescentar.
Foi ela a última pessoa a ver o meu Avô com vida.
A água reclama-nos. Reclamou Francisco e Camões, pai e filho. Ambos mergulharam na baía negra e nadaram para o oceano, a mãe de tudo. A maré levou-os para o largo.
6
Em Agosto de 1939 Aurora da Gama, então com 15 anos, viu o cargueiro "Marco Polo" ainda ancorado no porto de Cochim e entrou em fúria perante esse sinal de que,
no interregno entre as mortes da sua mãe e do seu pai e a sua entrada na idade adulta, o Tio Aires, com o seu desinteresse, estava a deixar fugir as rédeas do negócio
dos seus dedos indolentes. Disse ao motorista que fosse "na mecha" para o Armazém nº 1 da Companhia C-50 Limitada, na doca de Ernakulam e entrou como um furacão
por aquela enorme caverna; depois estacou, realizada pela fria serenidade da sua penumbra e pela sua atmosfera blasfema de catedral cheia de sacos de serrapilheira,
na qual os aromas de patchouli e de cravinho, açafrão e curcuma, de cominhos e cardamo enchiam o ar como se fosse música: as estreitas passagens entre as muralhas
de fardos prontos para a exportação podiam ser caminhos de ida e volta para o inferno, ou, quem sabe? para a salvação.
(As grandes árvores genealógicas nascem de minúsculas sementes. Não acham justo que a minha história pessoal, a história da criação de Morais Zogoiby tenha a sua
origem no atraso de um carregamento de pimenta?)
Naquele templo havia também sacerdotes: os empregados com as suas pranchetas na mão que se atarefavam entre os coolies(" ) carregadores e a trindade dos fiscais
- Os senhores Elaichipillai
(*) Trabalhador braçal na índia ou na China. (N. T.)
Kalonjee, V.S. Mirchandalchini e Karipattam Tejpattam - empoleirados como inquisidores em bancos altos iluminados por um círculo de luz e escrevendo com penas arcaicas
em gigantescos registos inclinados para eles nos tampos das suas altas escrivaninhas dotadas de pernas de cegonha. Para além destas ilustres personagens, numa secretária
vulgar, iluminado pelo seu candeeiro privativo, estava o gerente do armazém e foi para ele que Aurora se dirigiu, refeita da sua primeira impressão, para exigir
uma explicação do atraso do embarque da pimenta.
- Em que é que o meu Tio anda a pensar? - gritou ela, (insensatamente, porque como poderia um tão ínfimo verme conhecer o pensamento do Senhor Aires?) - Ele quer
afundarizar a fortuna da família ou quê?
A visão tão próxima da mais bela das Gamas e herdeira dos biliões da família - sabia-se no escritório que o falecido Sr. Camões só tinha deixado ao Sr. Aires e à
Sr.a D. Carmen uma mesada, ainda que generosa - atingiu o coração do gerente como uma espada, tornando-o momentaneamente mudo. A jovem herdeira inclinou-se sobre
ele, tomou-lhe o queixo entre o polegar e o indicador, trespassou-o com o olhar mais feroz - e ficou súbita e perdidamente apaixonada. Entretanto o homem tinha vencido
a sua paralisia e gaguejara as notícias da declaração.de guerra da Inglaterra à Alemanha e da recusa do Capitão do "Marco Polo" em zarpar para Inglaterra:
- Há hipóteses de os navios mercantes virem a ser atacados no alto mar, percebe?
Aurora tinha percebido, furiosa com a traição das suas próprias emoções, que em consequência do ridículo e inapropriado eclodir da sua paixão, ia ter que desafiar
as convenções da sua classe para casar imediatamente com aquele empregado da família tão absolutamente belo. "É como casar com o motorista" disse para si própria,
sentindo uma bendita infelicidade e ficou, naquele momento, tão estarrecida pelo doce horror da sua situação que nem reparou no nome pintado num blocozinho de madeira
colocado no tampo da secretária. "Meu Deus!" continuou o seu monólogo interior assim que as letras se organizaram em palavras, "não basta já que
ele não tenha um tostão de seu, nem saiba falar correctamente, também tem de ser judeu, ainda por cima". E continuou: "Encara os factos, Aurora. Meditariza: Apaixonaste-te
por um sacana dum moisés do armazém".
As letrinhas do bloco corrigiram-na, impertinentes (o objecto da sua afeição, fulminado por um raio, com a boca seca e o coração a bater ficara de novo privado do
uso da palavra, devido à explosão de sentimentos geralmente não encorajados no espírito do pessoal): "O nome do gerente do armazém é Abraham, Abra-ham Zogoiby".
Se é verdade que os nossos nomes têm a ver com o nosso destino, aquelas sete letras diziam que o gerente não era o grande líder dos hebreus, o vencedor dos faraós,
o recipiendário dos Mandamentos, o que apartou as águas; não era com certeza homem para conduzir um povo para a terra prometida. Seria antes um homem que aceitava
sacrificar o próprio filho no altar de um amor terrível.
E "Zogoiby" que quererá dizer?
"Infeliz", em árabe. Pelo menos de acordo com Cohen, o vendedor de velas, e com o folclore da família materna de Abraham. Ainda que nenhum dos seus membros jamais
tivesse falado essa língua longínqua. Só essa ideia era alarmante.
- Olhem para a escrita deles - observou um dia Flory, mãe de Abraham. - Até ela é violeta, parecem cortes feitos por lâminas de espadas ou feridas feitas por punhais.
Embora nós também descendamos de guerreiros, de guerreiros judeus. E talvez por isso que mantemos este nome estropiado do andaluz.
(Pergunta: Mas se esse nome é o da mãe, como é que o filho... Resposta: Aguente os cavalos, por favor!)
- Tens idade para ser pai dela.
Abraham Zogoiby, nascido no mesmo ano que o falecido Sr. Camões, enfrentava a ira da sua mãe, parados ambos junto à
sinagoga de Cochim - "Azulejos de Cantão. Não há dois iguais" era o que dizia um pequeno letreiro afixado na parede da antecâmara da entrada - que cheirava a especiarias
e outras coisas mais.
A velha Flory Zogoiby, com um vestido de chita verde desbotada, chupava as gengivas ouvindo a espantosa confissão do seu filho acerca daquele amor proibido. Com
a sua bengala traçou uma linha na poeira do chão. De um lado, a sinagoga, Flory e a História; do outro Abraham, a sua rica apaixonada, o universo, o futuro - tudo
coisas impuras. Fechando os olhos e ignorando o cheiro do filho e o seu titubear, Flory convocou o passado, servindo-se das recordações na previsão de vir a ter
que renegar o seu filho único, já que nunca se tinha ouvido falar de um Judeu de Cochim que casasse fora da sua comunidade.
Apelou à sua memória e para lá dela, à vasta memória da sua tribo: os judeus Brancos da índia, Sefardins da Palestina ali chegados (dez mil, aproximadamente) no
ano 72 da Era Cristã, fugindo às perseguições dos Romanos. Instalados em Cranganore, puseram-se a soldo, como soldados, dos príncipes locais. Em tempos remotos,
numa batalha entre o Senhor de Cochim e o seu inimigo, o Samorim de Calecute, Senhor dos Mares, teve de ser adiada porque os soldados judeus não combatiam ao sábado.
Ó próspera comunidade! Na verdade, floresceu. No ano de 370 o Rei Bhaskara Ravi Varman I concedeu a Joseph Rabban o pequeno reino da aldeia de Anjuvannam, junto
a Cranganore. As placas de cobre em que estava gravada a concessão acabaram na sinagoga dos azulejos, ao cuidado de Flory; em virtude dos seus muitos anos e desafiando
os preconceitos contra as mulheres, assumiu o honroso cargo de guardiã do templo. As placas estavam escondidas por trás do altar e ela polia-as de tempos a tempos
com grande entusiasmo e grande dispêndio de energia.
- Para ti já não era bastante mau escolheres uma cristã, tinhas de ir buscar a pior de todas - resmungava Flory. Mas o seu espírito ainda estava no passado remoto,
preso aos cajus dos judeus, às suas nozes de areca, às castanhas da índia, contemplando ondulantes campos judeus de colza, assistindo à colheita do cardamo judeu;
não tinha sido isto a base da riqueza da comunidade? -
Agora estes arrivistas roubaram-nos o negócio - protestou ela.
E até se orgulham de serem bastardos. Qual Vasco da Gama!
Não passam dum bando de Mouros!
Se Abraham não estivesse atordoado pelo amor, se não tivesse sido atingido há tão pouco tempo, ter-se-ia provavelmente calado por força do seu afecto filial e do
conhecimento que tinha de que os preconceitos de Flory nunca eram vencidos pela razão.
- Dei-te uma educação demasiado moderna - continuou ela. - Mouros e Cristãos, nunca esperei que eles viessem ter contigo.
Mas Abraham estava apaixonado e ao ouvir aquele ataque contra a sua amada declarou, exaltado:
- Em primeiro lugar, se não estivesse a ver o caso com olhos vesgos, veria que nós também somos arrivistas. - Queria dizer com isto que os Judeus Negros tinham chegado
à índia muito antes dos Brancos, vindos de Jerusalém fugidos às tropas de Nabucodonosor no ano de 587 antes de Cristo e embora esses não contassem muito, uma vez
que tinham casado com habitantes locais e acabado por desaparecer como comunidade, havia ainda, por exemplo, os Judeus que vieram de Babilónia e da Pérsia nos anos
490-518 da Era Cristã; muitos séculos decorreram antes que os Judeus começassem a abrir lojas em Cranganore e depois em Cochim, (um certo Joseph Azaar mudou-se para
essa cidade com a família em 1344, como toda a gente sabe). Mesmo os Judeus espanhóis só começaram a chegar depois da sua expulsão em 1492, incluída na primeira
leva a família de Solomon Castile...
Flory Zogoiby deu um grito quando o filho mencionou aquele nome; deu um grito e abanou a cabeça.
- Solomon Solomon Castile Castile - Abraham, com 36 anos, desafiava a mãe com uma teimosia de criança - De quem descende, pelo menos, este Infante de Castile. Quer
que eu tenha descendência, não quer? Então ela virá de longe, do Senor Leon Castile, o alfageme de Toledo que se apaixonou loucamente por uma Princesa espanuela,
até ao senhor meu pai que também não devia ter sido muito bom da cabeça. O que eu quero dizer é que, em primeiro lugar, os Castiles chegaram a Cochim 22 anos antes
do primeiro dos Zogoibys, quo erat demonstrandum. E em
segundo lugar, os Judeus com nomes árabes e segredos ocultos deviam ter cuidado ao chamar Mouros às outras pessoas.
Homens de idade com as calças arregaçadas e mulheres de carrapitos grisalhos apareceram na sombria viela judia, no exterior da sinagoga de Mattancherri, e passaram
a testemunhar com gravidade a discussão entre a mãe irada e o filho que a enfrentava. Por cima deles abriram-se persianas azuis e apareceram rostos nas janelas.
O ar da tarde cheirava a peixe e especiarias. E Flora Zogoiby, à menção dos segredos de que ela nunca falara, entrou num paroxismo incoerente de monossílabos e de
gestos sem significado. E, passado algum tempo lá conseguiu articular:
- Lanço uma praga a todos os Mouros. Quem destruiu a sinagoga de Cranganore? Os Mouros, evidentemente. Otelos de fabrico local, "made-in~-India". Uma praga para
todos eles, para as suas casas e para as suas esposas!
Em 1524, dez anos depois dos Zogoibys terem chegado de Espanha, houvera uma guerra entre Judeus e Muçulmanos naquelas paragens. Essa era uma questão morta e enterrada
e Flory só a recordou para afastar o pensamento do filho dos tais segredos ocultos. Mas as pragas não devem ser lançadas à toa, sobretudo diante de testemunhas.
A maldição de Flory esvoaçou pelo ar como um frango assustado e durante algum tempo não soube para onde seguir. O seu neto Morais Zogoiby só viria a nascer dezoito
anos mais tarde; altura em que o tal frango voltou ao poleiro.
(E qual foi a razão da guerra entre Judeus e Muçulmanos em mil quinhentos e tal? Qual havia de ser? O comércio da pimenta!)
- Os Judeus e os Muçulmanos foram para a guerra - resmungou a velha Flory, levada pela tristeza a falar demais - e os teus Vascos bastardos vieram e roubaram o negócio
tanto a uns como aos outros.
- Está em muito boa posição para falar de bastardos - gritou Abraham Zogoiby, que usava o apelido da mãe. - Eu já lhe ajusto as contas - disse ele para a multidão.
A seguir ao que, a espumar de fúria, entrou na sinagoga com a mãe atrás dele, numa corrida trôpega, sacudida por um choro seco e gritado.
Falemos da minha avó Flora Zogoiby e da sua equivalente Epifania da Gama, nascidas no mesmo ano e ambas duma geração bastante anterior à minha. Dez anos antes do
virar do século, Flora-Sem-Pavor tinha frequentado o campo de jogos da escola dos rapazes, desafiando aqueles jogos machos com o abanar das saias e cantiguinhas
provocatórias e com um pauzinho riscava no chão um desafio - não passar esta linha. - (Riscar linhas no chão é uma mania que vem dos dois lados da família.) Flora
provocava os rapazes com lengalengas sem sentido, mas aterradoras; "parecia uma feiticeira", diziam eles.
Obeah, jadoo, to, fum,
tripas de galinha, do outro mundo.
Ju-ju, voodoo, fee, fi,
Cocktails de mijo à hora da morte.
Quando os rapazes se chegavam a ela, Flora atacava-os com uma ferocidade que facilmente neutralizava as vantagens deles em força e tamanho. O seu jeito para a luta
vinha-lhe de um qualquer antepassado desconhecido; e embora os seus adversários lhe puxassem o cabelo e lhe chamassem judia, nunca nenhum a venceu. Às vezes ela
até conseguia, literalmente, esfregar-lhes os narizes no pó. Outras vezes, recuava um passo, cruzava os braços no peito magro e permitia que as suas vítimas atordoadas
batessem em retirada.
- Na próxima vez escolhe alguém do teu tamanho - dizia ela, juntando o insulto à injúria ao inverter o sentido habitual da frase.
- Nós, as judiazinhas peso-plumas chegamos bem para vocês.
Ela bem se esforçou, mas nem mesmo a tentativa de fazer uma alegoria a partir das suas vitórias, de fazer dela a amazona andante dos pequenos, da Minoria, das raparigas,
deu resultado; Flora-a-Atrevida, Flora-a-Berrona acabou por adquirir uma Má Reputação.
Chegou uma altura em que já ninguém atravessava as linhas que ela, com temível precisão, traçava através das ruelas e dos espaços
abertos da sua infância. Quando chegou aos dezoito, deixou de entrar em lutas, tendo entretanto aprendido alguma coisa sobre a maneira como se perdem guerras à força
de ganhar batalhas.
O ponto aonde eu quero chegar é que, no espírito de Flory, os cristãos lhe tinham roubado muito mais do que os ancestrais campos de especiarias. O que eles lhes
tiraram foi um bem que já então escasseava, e para uma rapariga com Má Reputação esse bem ainda era mais escasso. Quando Flory chegou aos 24 anos, Solomon Castile,
o encarregado da sinagoga atravessou o risco e pediu-a em casamento. Essa atitude foi geralmente considerada um acto de grande caridade, ou de estupidez ou de ambas
as coisas. Nesses dias, a comunidade estava a decrescer. Havia talvez quatro mil pessoas a viver no Bairro Judeu de Mattancherri, e, se excluirmos os membros da
família, os muito novos e os muito velhos, os rapazes em idade de casar não apresentavam grande escolha. Os solteirões abanavam-se com leques à sombra do campanário
e iam passear de mão dada pelos cais; solteironas desdentadas sentavam-se à porta das casas fazendo roupinhas para bebés que não existiam. Os casamentos eram grandes
festas, mas também ocasião de muita inveja. O casamento de Flory com o encarregado da sinagoga foi atribuído pelas más-línguas à fealdade de ambos os noivos.
- Feios como o pecado - diziam as bocas negras - Como serão os filhos?
(Já tens idade para seres pai dela, tinha Flory dito a Abraham; mas Solomon Castile, nascido no ano da Revolta da índia(*), é vinte anos mais velho do que ela, o
pobre homem quer casar enquanto ainda pode fazer alguma coisa, gracejaram as línguas viperinas. E ainda há outra coisa a respeito desse casamento: teve lugar em
1900, no mesmo dia em que ocorreu qualquer outro acontecimento mais importante; nenhum jornal registou a boda Castile-Zagoiby na sua coluna social, mas todos publicaram
fotografias do Sr. Francisco da Gama e da sua noiva sorridente.)
(*) Em 1857, os sipaios, tropas indianas comandadas por Ingleses, amotinaram-se e foram afogados num banho de sangue. (N. T.)
O espírito de vingança das solteironas acabou por ser satisfeito: depois de sete anos e sete dias de vida matrimonial explosiva, (durante os quais Flory deu à luz
uma criança, um menino que, perversamente, havia de ser o rapaz mais bonito da sua geração) o encarregado Castile, na noite dos seus cinquenta anos, foi passear
até ao cais, saltou para um barco a remos com meia dúzia de marinheiros portugueses completamente bêbados e com eles se fez ao mar.
- Devia saber a que se arriscava quando casou com a Flory-a-Berrona - grasnavam as solteironas -. Mas uma cabeça de homem sábio não acompanha obrigatoriamente o
nome de um homem sábio.
Aquele casamento desfeito passou a ser conhecido no bairro de Mattancherri como "O Erro de Salomão"; Flory deitou as culpas aos navios cristãos, a invencível armada
mercante do todo poderoso Ocidente que tentou o seu marido com a miragem de Ruas de Ouro. Aos sete anos de idade, o filho deles viu-se forçado a abandonar o nome
do pai; azar por azar, ficou com o apelido pouco propício da sua mãe: Zogoiby.
Depois de Solomon ter desertado, Flory ficou com o emprego de encarregada dos azulejos azuis e das placas de cobre de Joseph Rabban, reclamando esse posto com tamanha
ferocidade que fez calar todas as veleidades de oposição à sua nomeação. Ficaram sob sua protecção não só o pequeno Abraham, mas também o pergaminho do Velho Testamento
em cujas decrépitas páginas brilhavam os caracteres hebreus e a coroa de ouro (oca) oferecida em 1805 pelo Marajá de Travancore. Flory promulgou algumas reformas.
Quando os fiéis chegavam para a orações mandou-os tirar os sapatos. Levantaram-se logo objecções contra esta prática, manifestamente muçulmana; Flory deu umas gargalhas
mais parecidas com lápides e respondeu: *
- Quem é que fala de religião? Se querem que eu trate disto com cuidado, comecem vocês próprios por ser mais cuidadosos! Botinhas fora! E na mecha! Não estraguem
os azulejos dos chinocas!
Não há dois azulejos iguais. Os azulejos de uns 30 centímetros de lado, tinham vindo de Cantão em 1100 da era de Cristo, importados pelo Rabi Ezequiel e cobriam
o chão, as paredes e o tecto
da pequena sinagoga. Começaram a correr lendas a seu respeito. Alguns diziam que quem os estudasse durante tempo suficiente encontrava lá a sua própria história
num dos quadrados azuis e brancos, porque as figuras dos azulejos mudavam de geração em geração, de modo a contarem a história dos Judeus de Cochim. Outros estavam
convencidos de que os azulejos representavam profecias, cujo sentido se perdera com os anos.
Abraham, em rapaz, gatinhava por toda a sinagoga, de rabo para o ar, com o nariz esborrachado contra os velhos azulejos chineses. Nunca disse à mãe que o pai tinha
reaparecido em cerâmica no chão azulejado na sinagoga um mês depois de ter abalado a bordo de um barco a remos à mistura com os tipos de aspecto estrangeiro, rumo
ao azul do horizonte. Depois desta descoberta, Abraham recebia periodicamente notícias de Solomon Castile graças aos bons ofícios dos metamórficos azulejos. Na vez
seguinte, o rapaz viu o pai numa cena de grandes festejos dionisíacos entre dragões trucidados e vulcões fumegantes. Solomon estava a dançar num palanque hexagonal
com uma expressão de descuidada alegria na sua face azul-azulejo que contrastava fortemente com a habitual expressão dolorida de que Abraham bem se lembrava. "Se
ele está feliz" pensou o rapaz, "então ainda bem que se foi embora". Desde a mais tenra idade, Abraham sabia instintivamente da suprema importância da felicidade,
e foi esse mesmo instinto que, anos mais tarde, levou o gerente do armazém a colher o amor oferecido com muitos rubores e sarcasmos por Aurora da Gama no claro-escuro
do grande edifício de Ernakulam.
Ao longo dos anos Abraham foi encontrando no azulejo o seu pai, rico e gordo, sentado numas almofadas em posição de Real À-Vontade, servido por eunucos e bailarinas;
mas passados apenas poucos meses era já um escanzelado pedinte num outro cenário de 30 centímetros por 30. Abraham percebeu então que o antigo encarregado tinha
abandonado todas as suas inibições e seguia agora uma trajectória oscilante através de uma biografia que tinha perdido qualquer sentido.
Era um Sindbad à procura da fortuna na oportunidade oceânica da terra. Era um corpo celeste que tinha conseguido, por um
acto de vontade, libertar-se da sua órbita e vagueava agora pelas galáxias aceitando o que o destino lhe reservasse. A Abraham parecia-lhe que a libertação do seu
pai relativamente à força da gravidade da vida de todos os dias tinha exigido dele todas as suas reservas de força de vontade; e assim, depois do acto inicial e
radical de transformação, Solomon estava sem leme, à mercê de ventos e marés.
À medida que Abraham Zogoiby se aproximava da adolescência, Solomon Castile começou a aparecer em quadros vivos semi-pornográficos cuja presença numa sinagoga estaria
sujeita a grande controvérsia se alguém, além de Abraham, tivesse dado por eles. Estes azulejos encontravam-se nos recantos mais empoeirados e sombrios do templo
e Abraham protegia-os deixando o bolor cobri-los e as teias de aranha tapar as zonas mais repreensíveis nas quais o seu pai se divertia com numerosos indivíduos
de ambos os sexos de uma forma que o seu filho, de olhos arregalados só podia considerar educativa. E apesar daquelas brejeiras acrobacias o nosso envelhecido viandante
tinha recuperado o seu ar lúgubre; o que talvez quisesse dizer que todas as suas viagens não o tinham senão feito regressar àquelas praias de insatisfação que tinham
sido o seu ponto de partida.
No dia em que Abraham Zogoiby começou a mudar de voz, teve a revelação de que o pai estava prestes a voltar. Percorreu as vielas do bairro judeu até ao cais, onde
as redes de pesca dos chineses secavam ao sol, projectando-se em silhueta contra o céu; mas o peixe que ele procurava não saltou para fora da água. Quando voltou,
desanimado, à sinagoga, todos os azulejos que narravam a história do seu pai tinham mudado e mostravam agora cenas tão anónimas como banais. Abraham, numa raiva
febril, passou horas a rastejar sobre o chão da sinagoga à procura de mágicas notícias. Sem resultado: pela segunda vez na sua vida, o seu pai, o pouco sábio Solomon
Castile desaparecera da vista.
Já não me lembro de quando ouvi pela primeira vez a história que a mim me valeu a minha alcunha e à minha mãe o tema da sua mais famosa série de pinturas, "A Série
dos Mouros", e o seu triunfal apogeu na obra-prima incompleta "O Ultimo Suspiro do Mouro". Parece-me que sempre conheci essa sinistra saga da qual, há que acrescentar,
o sr. Vasco Miranda tirou também uma das suas primeiras obras; mas apesar desse antigo conhecimento tenho as mais sérias dúvidas sobre a verdade literal da história,
com a sua narrativa pesadamente melodramática, estilo filme de Bombaim, o seu desesperado desejo de ser tomada a sério, constituir uma espécie de prova...
Penso - e há confirmações disso - que há uma explicação mais simples para a transacção entre Abraham Zogoiby e a sua mãe Flory, incidindo muito especialmente no
que ele terá encontrado num baú escondido sob o altar: irei expondo a pouco e pouco essa alternativa. De momento apresento a versão aprovada e aperfeiçoada pela
família; a qual, por ser uma parte tão importante dos auto-retratos dos meus pais - e também uma parte muito significativa da História da Arte Contemporânea indiana
- tem, por essas razões, um poder e um peso que não tentarei negar.
Chegamos a um momento decisivo de toda esta história. Regressemos por breves instantes ao jovem Abraham de gatas, procurando freneticamente na sinagoga o pai que
de novo o abandonara, chamando por ele numa voz esganiçada, oscilando entre o canto do rouxinol e o grasnar do corvo; até que, por fim, desrespeitando um tácito
tabu, se aventurou pela primeira vez na sua vida para lá da cortina azul com franja dourada que ornava o altar-mor... Solomon Castile não estava lá; mas a lanterna
do adolescente iluminou um velho baú marcado com um Z e fechado com um cadeado barato que ele em pouco tempo conseguiu abrir; porque os rapazinhos têm talentos que
os adultos esquecem, tal como esquecem as lições aprendidas de cor. E assim, em vez do seu pai desaparecido, descobriu os segredos da sua mãe.
O que é que havia no baú? Pois bem, o único tesouro que tem valor, a saber: o passado e o futuro. Embora também lá houvesse esmeraldas.
E tudo ficou assim até ao dia da crise, quando Abraham Zogoiby entrou pela sinagoga como um furacão gritando para os circunstantes Já lhe ajusto as contas! e puxou
o baú para fora do esconderijo. A mãe que corria atrás dele viu os seus segredos expostos e sentiu as pernas fraquejarem. Deixou-se cair sentada nos azulejos azuis
enquanto Abraham abria o baú e tirava de lá um punhal de prata que entalou no cinto; Flora, com a respiração entrecortada, viu o filho tirar ainda uma coroa antiga
e colocá-la na cabeça.
Não o simples aro de ouro novecentista oferecido pelo Marajá de Travancore mas qualquer coisa de mais antigo, foi assim que ouvi descrever a coroa: um turbante verde-escuro
dum tecido que o tempo tornara quase irreal, tão delicado que até a luz alaranjada do fim da tarde que era filtrada pelas janelas da sinagoga parecia demasiado brutal;
um tecido tão etéreo que parecia quase desintegrar-se perante o olhar escaldante de Flory Zogoiby.
E sobre este turbante fantasmagórico, dizia a lenda, assentavam pesadas cadeias de ouro maciço nas quais se incrustavam esmeraldas tão grandes e verdes que pareciam
brinquedos. Tinha quatro séculos e meio de idade, era a última coroa a cair da cabeça do último príncipe de al-Andalus; nada menos do que a coroa do Reino de Granada,
tal como foi cingida por Abu Abdallah, o áhimo dos Nasrids, mais conhecido como "Boabdil".
- Mas como foi ali parar? - perguntava muitas vezes o meu pai.
E como, na verdade? Aquela jóia preciosíssima - a coroa real dos Mouros - como é que ela pode ter aparecido no baú de uma velha desdentada para assentar na cabeça
de Abraham, meu futuro pai, renegado judeu?
- Foi - respondeu meu pai - a incómoda joia da vergonha.
Vou continuar, por agora, sem me pronunciar sobre a sua versão dos eventos. Quando Abraham, em rapaz, tornou a colocar os tesouros no esconderijo, fechou de novo
o cadeado e passou a
noite e o dia seguinte a recear a fúria da sua mãe. Mas quando ficou claro que a sua bisbilhotice tinha passado despercebida, a curiosidade veio ao de cima e ele
encheu de ar o magro peito e forçou de novo o cadeado. Dessa vez encontrou, envolto em serapilheira, um pequeno livro de pergaminho com páginas escritas à mão, cosidas
grosseiramente com uma capa de pele. Estava escrito em espanhol, língua que o jovem Abraham ignorava; mas copiou um certo número de nomes e, nos anos que se seguiram,
foi desvendando o seu sentido fazendo perguntas inocentes ao velho vendedor de velas Moshe Cohen, que vivia muito isolado e que era, nesse tempo, o chefe da comunidade
e o guardião das suas lendas e tradições. O senhor Cohen ficou tão espantado que um membro da nova geração se interessasse pelos velhos tempos que falou com grande
à vontade, referindo horizontes muito longínquos perante os olhos arregalados do rapaz bem parecido que se sentava aos seus pés.
E assim Abraham aprendeu que em Janeiro de 1492, enquanto Cristóvão Colombo o observava maravilhado mas arrogante, o Sultão Boabdil, de Granada, tinha entregado
as chaves do seu palácio-fortaleza do Alhambra, a última e a mais poderosa das fortificações dos Mouros, aos todo-poderosos Reis Católicos Fernando e Isabel, renunciando
ao seu reino sem travar qualquer batalha. Partiu para o exílio com a mãe e o séquito, pondo fim a séculos de Espanha Moura; e dirigindo o seu cavalo para a Colina
das Lágrimas voltou-se para ver, por uma derradeira vez, tudo o que perdera: o seu palácio, as férteis planícies e toda a glória de al-Andalus. Ao ver tudo isso
o Sultão suspirou e rompeu em pranto enquanto a mãe, a terrível Ayxa-a-Virtuosa, o desprezava por não saber esconder o seu desgosto. Tendo sido obrigado a ajoelhar-se
perante uma rainha omniponente, Boabdil sofria nova humilhação às mãos duma impotente (mas formidável) ex-Soberana.
- Bem podes chorar como uma mulher por aquilo que não soubeste defender como um homem - insultou-o ela.
Ayxa desprezava aquele macho choramingas, seu filho, por entregar aquilo por que deveria ter lutado até à morte. Ela era a
igual e o oposto à Rainha Isabel; a sorte da Rainha de Aragão foi ter encontrado pela frente aquele bebé-chorão, aquele Boabdil.
Subitamente, enquanto o vendedor de cera falava, Abraham encolhido sobre um rolo de cabos sentiu todo o amargurado peso da ruína de Boabdil, sentiu-a como se dele
próprio se tratasse. O fôlego deixou o seu peito com um suspiro e a inspiração seguinte foi dolorosa. A aparição da asma (Asma! E espantoso como ainda consigo respirar!)
foi como um presságio, a ligação entre várias vidas através dos séculos, ou assim o entendeu Abraham à medida que se tornava homem e a doença se afirmava. Estes
suspiros sibilantes não são só meus, mas também dele. E estes olhos, vermelhos do seu antigo desgosto. Boabdil, também sou filho da tua mãe.
O choro será um sinal de fraqueza? E a luta-até-à-morte um sinal de força? Era o que perguntava a si próprio.
Depois de ter entregado as chaves do Alhambra, Boabdil esfumou-se em direcção ao Sul. Os Reis Católicos tinham-lhe reservado uma grande propriedade, mas até isso
foi vendido pelo seu mais fiel cortesão. Boabdil acabou por endoidecer. E terá, eventualmente, morrido em combate, lutando sob a bandeira de um qualquer reizinho
local.
Os Judeus, pela sua parte, também partiram para o Sul em 1492. Navios carregados de Judeus exilados encheram o posto de Cádiz, obrigando um outro viajante desse
ano, Colombo, a partir de Paios de Moguer. Os Judeus deixaram de fabricar o aço de Toledo; os Castiles partiram para a índia. Mas os Judeus não partiram todos ao
mesmo tempo. Os Zogoiby, lembrem-se, só seguiram os Castiles vinte e dois anos mais tarde. O que terá acontecido? Onde se esconderam?
- Tudo será revelado na devida altura, meu filho. Tudo a seu tempo.
Abraham, nos seus vinte anos, aprendeu com a mãe o gosto pelo secretismo e, para desespero do pequeno grupo das mulheres desposáveis da sua geração, manteve-se fechado
sobre si pró-pno, escondendo-se no centro da cidade e evitando o bairro judeu tanto quanto possível, sobretudo a sinagoga. Trabalhou primeiro
para Moshe Cohen e depois como pequeno escriturário dos Gamas, e embora fosse diligente e tivesse sido rapidamente promovido, tinha o ar de quem estava à espera
de qualquer coisa; tendo em conta a sua beleza e o seu ar distraído, começou a dizer-se que estava ali um futuro génio, talvez mesmo o grande poeta que os Judeus
de Cochim sempre tinham aspirado produzir. Sara, a sobrinha de Cohen, uma grande raparigona um tanto peluda demais que lembrava um subcontinente desconhecido à espera
de que a nau de Abraham entrasse no seu porto, era a fonte desta lisonjeira especulação. Mas a verdade é que Abraham carecia em absoluto de centelha artística; o
seu mundo era um mundo de números que exprimissem acções, a sua literatura era uma folha de balanço, a sua música era a frágil harmonia entre o fabrico e a venda,
o seu templo um armazém cheio de especiarias. Da coroa e do punhal escondidos nunca falava; e por isso nunca ninguém soube que era essa a razão daquele ar de Rei
no exílio. Descobriu, durante esses anos, os segredos da sua linhagem, aprendendo espanhol sozinho, a partir de livros, e decifrando o que o caderno de pergaminho
tinha para lhe dizer; até que, naquela tarde, pôs a coroa na cabeça e confrontou a mãe com a secreta vergonha da família.
No exterior da sinagoga, a multidão aumentava e falava excitadamente em voz baixa. Moshe Cohen, como chefe da comunidade, resolveu entrar na sinagoga para servir
de mediador na guerra entre mãe e filho, já que o templo não era lugar para tais bulhas: a sobrinha Sara seguiu-o, com o coração a estalar sob o peso da premonição
que o grande país do seu amor iria permanecer território virgem, que a traiçoeira paixão de Abraham por Aurora, a infiel, a condenara para sempre ao horrível inferno
das solteironas, o tricotar de botinhas inúteis e de casaquinhos azuis e cor-de-rosa para crianças que nunca encheriam o seu útero.
- Vais fugir com uma criança cristã, Abie - disse ela, a voz sonora e áspera ecoando na atmosfera de azulejos azuis - e já pareces uma árvore de Natal.
Mas Abraham estava a atormentar a mãe com os velhos pergaminhos encadernados em pele.
- Quem escreveu isto? - perguntou.
E como Flora ficasse calada, respondeu a si próprio:
- Uma mulher. - E continuou: - Qual o seu nome? Ninguém sabe. O que era ela? Uma Judia que se abrigou sob o tecto do sultão exilado; sob o seu tecto e entre os seus
lençóis. O que se chama miscigenação.
E ainda que fosse fácil sentir compaixão por aquele par, o destronado Árabe espanhol e a expulsa Judia espanhola - dois amantes impotentes fazendo causa comum contra
o poderio dos Reis Católicos - era apenas pelo Mouro que Abraham sentia compaixão.
- Os seus cortesãos venderam-lhe as terras, a sua amante roubou-lhe a coroa.
Depois de vários anos a seu lado aquela anónima antepassada tinha abandonado o decrépito Boabdil e embarcou para a índia com um precioso tesouro na bagagem e um
filho no ventre; do qual virá a descender o próprio Abraham.
- Mãe, já que tanto insiste na pureza da nossa raça, que tem a dizer deste Mouro seu antepassado?
" - A mulher não tem nome - interrompeu Sara. - E no entanto dizes que é teu o seu sangue impurp. Não tens vergonha de fazer chorar a tua mãe? E tudo pelo amor de
uma rapariga rica, essa é que é a verdade. Tudo isso cheira mal e, aliás, tu próprio também.
Flora Zogoiby soltou um fraco gemido de assentimento. Mas o discurso de Abraham ainda não acabara:
- Vejam esta coroa roubada, envolta em trapos, fechada num baú, há mais de quatrocentos anos. Se tivesse sido roubada por cupidez, não teria sido já vendida há muito
tempo? A coroa foi guardada por secreto orgulho da ligação ao sangue real e foi escondida por secreta vergonha do roubo. O que será pior, mãe?
A minha Aurora, que não esconde a sua descendência de Vasco da Gama, antes pelo contrário. Até tem gosto nisso; ou eu próprio, nascido dos últimos suspiros do velho
e gordo Mouro de Granada nos braços da sua traiçoeira amante - eu, bastardo judeu de Boabdil?
- Não há provas - sussurrou Flory em resposta, como um combatente mortalmente ferido, suplicando pelo golpe da misericórdia. - Apresentaste uma suposição; mas onde
estão os factos concretos?
Inexorável, Abraham fez a penúltima pergunta:
- Mãe: qual é o nosso nome de família?
Quando ouviu a pergunta Flory percebeu que o golpe de misericórdia ia chegar. Abanou a cabeça, sem falar. Abraham lançou então um desafio a Moshe Cohen, a cuja velha
amizade nesse dia para sempre renunciou:
- O Sultão Boabdil depois da sua queda passou a ser conhecido por um cognome e aquela que lhe roubou a coroa e as jóias também, por triste ironia, lhe roubou esse
nome: Boabdil, o Desventurado. Alguém aqui sabe como se diz em árabe essa palavra?
E o velho Cohen foi obrigado a completar a prova:
- El-Zogoiby.
Calmamente, Abraham colocou a coroa junto de Flora, derrotada, dando por concluídas as suas alegações.
- Ao menos apaixonou-se por uma rapariguinha ambiciosa
- disse Flory para as paredes. - Tive essa influência sobre ele enquanto foi meu filho.
- É melhor ires-te embora - disse Sara para Abraham que rescendia a pimenta. - Quando casares talvez passes a ter o nome dela, porque não? Que diferença é que há
entre um. bastardo Mouro e uma bastarda Portuga?
- Foi um erro grave - comentou o velho Cohen - fazeres da tua mãe um inimigo; porque inimigos há sempre muitos, mães é que são difíceis de encontrar.
Flory Zogoiby, deixada só no rescaldo duma catastrófica revelação, ainda teve de suportar outra. No clarão vermelho do crepúsculo viu passar diante dos olhos, um
por um, os azulejos chineses; pois não fora ela, durante tantos anos, a sua serva e a sua estudante? Não tentara ela, tantas vezes, entrar naqueles inúmeros mundos,
naqueles variados universos contidos na uniformidade dos trinta por trinta e prisioneiros daquelas paredes tão bem forradas? Flory, que gostava de traçar linhas,
ficara fascinada pelas filas tão exactas dos azulejos, mas até então nunca eles lhe tinham dito nada nem ela lá tinha encontrado maridos fugidos, futuros admiradores,
profecias para o futuro ou explicações do passado. Para ela, os azulejos tinham sempre negado qualquer conselho, significado, sorte, amizade, amor. Agora, naquela
hora de angústia, revelaram-lhe um segredo.
Cenas azuis sucederam-se ante os seus olhos. Havia mercados tumultuosos, fortalezas eriçadas de ameias, campos a serem cultivados, celas cheias de ladrões, havia
altas montanhas e grandes peixes ao alto mar. Jardins de recreio estavam pintados de azul e sangrentas batalhas azuis eram travadas com enorme brutalidade; cavaleiros
azuis passavam por baixo de janelas iluminadas e senhoras de máscaras azuis desfaleciam nos arvoredos. Inúmeras intrigas de cortesãos e inúmeros sonhos de camponeses,
de escribas de rabicho com os seus ábacos e de poetas com as suas taças. No chão, nas paredes e no tecto da pequena sinagoga e agora no espírito de Flory Zogoiby,
desfilava aquela enciclopédia de cerâmica que era também um bes-tiário, um livro de viagens, uma síntese e uma canção. Pela primeira vez em todos estes anos de cuidados
Flory viu o que é que faltava naquela hiperabundante cavalgada. "Não tenho o que falta mas quem falta", pensou ela enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas.
"Em todo este espaço nem um vestígio."*A cor alaranjada da tarde caía sobre ela como um dilúvio, curava a sua cegueira, abria-lhe os olhos. Oitocentos e trinta e
nove anos depois de terem chegado a Cochim e no limiar de um período de guerras e massacres, os azulejos trouxeram a sua mensagem a uma mulher que sofria.
- O que vemos é só o que existe - murmurou Flory. - Não há outro mundo para além do mundo. - E acrescentou, um
pouco mais alto: - Deus não existe. É tudo conversa. Só bla-bla-bla! Não há vida do espírito.
Não é difícil contrariar os argumentos de Abraham. O que é um nome? Os Gamas reclamam descenderem de Vasco, o navegador, mas a pretensão não é uma prova e tenho
as mais sérias dúvidas sobre tal ancestralidade. Mas quanto à embrulhada do Mouro de Granada, essa vaguíssima ligação - um apelido que soa como um cognome - por
amor de Deus! Cai por terra ainda antes do primeiro sopro. Um caderno de pergaminho? Nunca vi. Nem sombra. Quanto à coroa carregada de esmeraldas, também não acredito;
é uma história de fadas, daquelas que gostamos de vos contar acerca de nós próprios e, minhas senhoras e meus senhores, pura e simplesmente não pega. Abraham nunca
pertenceu a uma família rica e se vamos acreditar que um baú cheio de esmeraldas pode ficar durante quatro séculos sem que ninguém lhe mexa - então teremos que acreditar
seja no que for. E se fossem jóias de família? Deixem-me arregalar os olhos e dar uma palmada na testa! Que belíssima piada! Quem é que, em toda a índia, se rala
com jóias de família se lhe derem a escolher entre jóias velhas ou dinheiro no banco?
Aurora Zogoiby pintou quadros famosos e morreu em circunstâncias pavorosas. A razão manda-nos que tratemos do resto como a automistificação da artista, para a qual
o meu querido pai fez mais do que dar uma mãozinha...
Querem saber o que havia no baú? Então oiçam: esqueçam o turbante coberto de jóias; mas esmeraldas, sim senhor. Uns dizem que são muitíssimas, outros não tantas.
Mas não em jóias, não em peças de ouriversaria. Pedras é que lá estavam. Produto de roubos, de saques. Pedras de contrabando. Querem saber qual a vergonha da família?
Eu digo-lhes a verdade: a minha avó, Flory Zogoiby era uma ladra. Durante muitos anos fez parte dum bem sucedido gang que operava com esmeraldas; quem é que iria
espreitar debaixo do altar da sinagoga à procura de pedras roubadas? Ela ficava com a sua percentagem de cada golpe, mantinha o material em lugar seguro e não era
tão insensata que fosse gastar dinheiro espalhafatosamente. Ninguém jamais suspeitou dela; e quando chegou a altura de seu filho Abraham reclamar a sua ilegal herança...
Querem saber o que havia de ilegal na herança? Então deixem lá a genética e procurem a origem daqueles bens.
O que acima fica dito é a minha compreensão do que está por detrás das histórias que me contaram; mas há também uma confissão que tenho de fazer. No que se vai seguir
vão encontrar histórias ainda mais estranhas do que aquela que tenho tentado contar-lhes; deixem-me garantir-lhes, deixem-me declarar a quem isto possa interessar,
que não pode haver dúvida acerca da sua veracidade. No fim de contas não sou eu que tenho de julgá-las mas vocês, leitores.
Quanto ao folhetim do Mouro, se tivesse de escolher entre a lógica e as recordações de infância, entre a cabeça e o coração, não tenham qualquer dúvida: apesar de
tudo o que ficou dito, eu alinho com essa história.
Abraham Zogoiby saiu do bairro judeu e encaminhou-se para a Igreja de S. Francisco, onde Aurora da Gama o esperava com o futuro dele na palma da mão. Quando chegou
ao cais, virou-se a olhar para trás, por um momento; e pareceu-lhe ver em silhueta contra o céu que escurecia, a impossível figura de rapariga muito nova saltitando
sobre o telhado duma casa pintada às riscas horizontais e cantarolando lengalengas mágicas enquanto o desafiava: Não passes esta linha.
"Obeah, jaddo, to fum,
Tripas de galinha do outro mundo.....
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas; ele enxugou-as.
A rapariga desapareceu.
7
Cristãos, Portugueses e Judeus; azulejos chineses exibindo paisagens sem deus; senhoras ambiciosas, saias e não saris, Espanhóis, coroas mouras... é possível que
isto seja realmente a Índia? Bharat-mata, Hindustan-hamara (*), serás ainda este lugar? A guerra mundial foi declarada. Nehru e o Congresso Pan-Indiano exigem que
os Ingleses aceitem a independência da índia como condição prévia ao apoio indiano no esforço de guerra; Jinnah e a Liga Muçulmana recusam-se a apoiar essa exigência;
o senhor Jinnah está muito ocupado em articular a noção, capaz de mudar a história, de que há duas nações no subcontinente, uma Hindu, outra Muçulmana. Em breve
a fractura será irreversível; Nehru volta para a prisão de Dehra Dun e os Ingleses, tendo encarcerado a cúpula do Congresso, pedem o apoio da Liga. Numa altura de
tão grande agitação, de desastroso clima de divi-dir-para-reinar, não será esta a imagem a extrair de toda essa tumultuosa vida: um cabelo loiro arrancado de uma
trança de azeviche horrivelmente desgrenhada?
Não, minhas senhoras e meus senhores: nem pensar. A maioria, esse poderoso elefante e a sua companheira inseparável, a Maior-das-Minorias, não esmagarão sob os seus
pés a minha história. As minhas personagens não são indianas, todas elas? Pois bem: todo este enredo também é indiano. Há-de haver um desfe-
(*) Em hindi no texto: Mãe Sagrada, Nossa índia. (N. T.)
cho; mas por enquanto: cada coisa no seu lugar. Os elefantes virão mais tarde, está prometido. A Maioria e a Maior-das-Minorias terão a sua hora e muito do que foi
belo será espezinhado e destruído pelas hordas soltando barridos e de orelhas ao vento. Até lá continuarei a saborear esta última ceia; a exalar, se bem que asmático,
o já muito citado dernier soupir. (*) Os altos assuntos do estado que vão para o inferno! Tenho uma história de amor para contar.
Na penumbra perfumada do Armazém nº 1 da Companhia C-50, Aurora da Gama agarrou Abraham Zogoiby pelo queixo e olhou-o profundamente nos olhos...
Não, não pode ser assim. Estou a falar do meu pai e da minha mãe e embora Aurora-a-Grande fosse a menos tímida das mulheres, acho que neste caso a timidez é tanto
minha como dela. Já viram alguma vez a pila do vosso pai ou a rata da vossa mãe? Quer sim, quer não (não importa) o que interessa é que aqueles sítios são míticos,
protegidos pelo tabu, tirem os sapatos que o chão é sagrado, como disse a Voz no Monte Sinai e se Abraham Zogoiby desempenhava o papel de Moisés então a minha mãe
Aurora, mais que certo, era a Sarça Ardente. Estendendo os mandamentos, pilar de fogo, Eu Sou o que Sou... Ela tinha estudado o deus do Velho Testamento. Às vezes
penso que ela ensaiava no banho a separação das águas.
"Não podia esperar" era assim que Aurora costumava contar a cena. No seu Salão oiro-e-laranja cheio de fumo de cigarros, com jovens beldades recostadas nos sofás
enquanto os homens, sentados nos tapetes de Isfahani, lhes acariciavam os tornozelos ornados de jóias e os pés de unhas cor de violeta, enquanto o seu idoso marido,
Abraham Zogoiby, encostado a uma ombreira, vestido de escuro, com a boca torcida, sorria embaraçado sem saber que fazer
(*) Último suspiro. Em francês no texto original. (N. T.)
das mãos, Aurora bebia champanhe por um copo opalescente com o feitio de uma flor semiaberta, e era negligentemente explícita ao falar do seu desfloramento, rindo-se
alegremente da sua audácia juvenil.
- Pelo queixo, juro. Puxei por ele e ele seguiu-me, saltou da sua cadeira como uma rolha de champanhe. Fui eu que o levei. O meu, muito meu, judio. O meu nesses-dias-amado
Judeu.
Nesses dias... Haverá mais a dizer sobre a crueldade dessa frase, tão ligeiramente dita com um gesto ondulante da mão, uma ninharia sem importância. Mas agora estamos
nesses dias, estamos no próprio dia: ela levou-o pelo queixo e ele seguiu-a; abandonando o seu posto e olhado com reprovação, não tenho dúvida, pela alta trindade
dos escriturários, ocupados com os seus registos, os senhores Kalonjee, Mirchandalchini e Tejpattam.
Abraham seguiu atrás do seu queixo, submetendo-se ao seu destino. A beleza é uma espécie de destino, a beleza fala à beleza, reconhece-a e concorda consigo própria,
acredita que pode desculpar tudo. Por isso, mesmo que não soubessem um do outro mais do que as palavras Herdeira Cristã e Empregado Judeu, já tinham tomado a mais
importante de todas as decisões. Ao longo da sua vida, Aurora Zogoiby foi extremamente clara sobre a razão pela qual levara o seu empregado até às sombrias profundezas
do armazém e, ali chegados, fez-lhe sinal de que a seguisse, trepou por uma enorme e vacilante escada até ao mais alto dos mais longínquos fardos. Resistindo a qualquer
análise de motivação psicológica, Aurora rejeitou, zangada, a teoria de que, na ressaca de tantas mortes na família, estando mais vulnerável ao encanto de um homem
mais velho, ela tinha sido primeiro impressionada e depois seduzida pelo aspecto bondoso e sofredor de Abraham, num caso típico da inocência atraída pela experiência.
Aurora argumentava, entre aplausos, enquanto meu pai ganhava o meu desprezo ao afastar-se envergonhado:
- Em primeiro lugar - dizia ela - peço desculpa, mas quem é que levou quem e para onde? Parece-me bem que fui eu quem levou e não quem foi levada. Parece-me bem
que Abie era o doce inocentinho e eu a espertalhona de quinze anos. E em segundo
lugar, sempre perdi a cabeça por um herói, um pêssego, um pedaço de homem.
Lá em cima, perto do telhado do armazém nº 1, Aurora da Gama, com quinze anos de idade, deitou-se de costas nos sacos de pimenta, inspirou o ar carregado de aromas,
e esperou por Abraham. Ele veio para ela como um homem vai para o seu destino, trémulo mas decidido, e é nesta altura que as palavras me fogem, e por isso não vão
saber dos pormenores do que aconteceu quando ela, e depois ele, e depois ambos, depois do que, ela, ao que ele, e, em resposta a isso, ela, e com isso, e além disso,
e por um certo tempo, e depois por mais tempo ainda, e em silêncio, e ruidosamente, e quando já não podiam mais, e por fim, quando já não podiam mais, e depois até...
Bah! Acabemos com isto!
- Não. Ainda há mais. Toda a verdade deve ser dita. E vou dizê-la: o que eles tinham era algo de quente e esfomeado. Era o amor louco! Foi ele que levou Abraham
a enfrentar Flory Zogoiby e a afastar-se da sua raça, olhando para trás uma única vez.
- Que em paga desse favor ele se converta em Cristão, pediu o Mercador de Veneza no momento da sua vitória sobre Shylock, revelando um conceito muito limitado de
perdão. E o Duque concordou: - Terá de se converter, senão retiro o perdão que lhe concedi...
O que foi imposto a Shylock foi livremente aceite por Abraham, que preferiu o amor de minha mãe ao de Deus. Ele estava preparado para casar de acordo com a Lei de
Roma - e que tempestade se esconde nestas palavras! Mas o amor deles era suficientemente forte para sobreviver ao enorme escândalo; e foi o meu conhecimento dessa
força que me deu a mim forças para, quando por minha vez... quando a minha amada e eu... mas nessa ocasião a minha mãe... em vez de... como eu esperava... virou-se
contra mim quando eu mais precisava dela... contra a sua própria carne e o seu próprio sangue...
Estão a ver que também não sou capaz de contar bem esta outra história. Mais uma vez me fogem as palavras.
Um amor de pimenta: é assim que eu penso nele. Aurora e Abraham viveram um amor de pimenta naquele armazém de
Cochim. Quando desceram dos fardos, não eram só as roupas que cheiravam a especiarias. Tão apaixonadamente se tinham unido, tão profundamente se tinham misturado
o suor, o sangue e as secreções dos seus corpos naquela atmosfera pesada de cheiros do cardamo e dos cominhos, tão intimamente se tinham ligado não só entre si mas
também com tudo o que pairava no ar e ainda com os próprios sacos de especiarias - alguns dos quais estavam rotos de tal modo que deixavam escapar grãos de pimenta
e de anis que eram apertados entre pernas e ventres e coxas - que, daí para o futuro, transpiraram um suor de pimenta e especiarias e os seus fluidos corporais,
por seu lado, cheiravam e até sabiam àquilo que se esmagara contra as suas peles, àquilo que se misturara com as águas do amor, àquilo que fora inspirado com o ar
durante aquela transcendente foda.
Aí está: se estivermos durante muito tempo a pensar num assunto as palavras acabam por chegar. Sobre esse tal assunto, Aurora nunca se mostrara envergonhada:
- Desde esse dia, deixem-me que lhes diga, tive de manter aqui o Abie longe da cozinha porque o cheiro de especiarias moídas, meus queridos, põe-no positivamente
a escarvar o chão. Mas quanto a mim, eu lavo-me tanto, escovo-me tanto, perfumo-me tanto, trato tão bem de mim que fiquei este torrãozinho de açúcar.
Ó pai, meu pai, porque deixou que ela o tratasse assim, porque é que se tornou no alvo do seu escárneo? Será que a amava ainda loucamente? Será que nós a amávamos
realmente nesses tempos, ou era apenas o seu enorme domínio sobre nós e a aceitação passiva da nossa escravidão que nós tomávamos, erradamente, por amor?
- De hoje em diante olharei sempre por ti - disse o meu pai a minha mãe depois de terem feito amor pela primeira vez.
Mas ela já começara a ser uma artista, respondeu-lhe e por isso:
- Da parte mais importante de mim própria sou eu que tomo conta.
- Então - disse Abraham, humilde - tomarei conta da tua parte menos importante, aquela que precisa de comer, de se divertir e de repousar.
Homens com chapéus chineses de forma cónica tinham navegado lentamente através da laguna, ao escurecer. Os ferry-boats vermelhos e amarelos faziam as últimas viagens
do dia, deslizando imperturbáveis por entre as ilhas. Uma draga cessou o trabalho e quando parou o seu boom-yacka-yacka-yacka-boom, o silêncio caiu sobre o porto.
Havia iates ancorados e barquinhos de velas feitas de retalhos de couro seguiam o seu caminho para a aldeia de Vypeen onde passariam a noite; viam-se barcos a remos,
barcos a motor e rebocadores. Abraham Zogoiby, deixando para trás o fantasma de sua mãe fazendo cabriolas num telhado do Bairro Judeu, ia ao encontro da sua amada
que o esperava na Igreja de S. Francisco. As redes de pesca dos chineses estavam estendidas em terra. Cochim, cidade de redes, pensou ele: também eu fui apanhado
na rede, como um peixe. Vapores de duas chaminés, o cargueiro "Marco Polo" e mesmo uma canhoneira inglesa, banhados pela luz do poente, pareciam fantasmas. Tudo
parece normal, maravilhou-se Abraham. Como é que o mundo faz para manter essa ilusão de que tudo está na mesma quando, de facto, tudo foi alterado, irreversivelmente
transformado pelo amor?
Talvez, continuou ele a pensar, porque a estranheza, a ideia da diferença é qualquer coisa que nos provoca desconforto. O amoroso transido de felicidade, temos de
confessá-lo, faz-nos franzir o sobrolho; é como o sonâmbulo a falar para um companheiro invisível supostamente encostado a um portal vazio, como a estranha mulher
que olha fixamente para o mar com um enorme novelo no colo; nós vemo-los e passamos adiante. E o colega de trabalho que nós, por acaso, ficamos a saber ter extravagantes
preferências sexuais, ou a criança preocupada em repetir sequências de sons sem qualquer significado aparente, e a mulher belíssima que, por
acaso, avistamos a uma janela iluminada segurando um cãozinho que lhe lambe os mamilos; ah! e o brilhante cientista que, quando vai a festas, passa o tempo pelos
cantos, coçando o traseiro e examinando depois, cuidadosamente as unhas da mão, e o nadador com uma só perna, e...
Abraham parou de repente e corou. Que caminho levavam os seus pensamentos! Até esta manhã tinha sido o mais metódico e ordenado dos homens, um homem de registos
e de colunas e agora vê lá tu Abie, os disparates que tu dizes, vê lá mas é se te despachas, ela já está na igreja e tu, para o resto da vida, tens de arranjar maneira
de nunca fazeres esperar a tua jovem futura esposa.
... Quinze anos! Está bem, está bem... Nesta parte do mundo, nessa idade já não se é criança.
Na igreja de S. Francisco: quem é este tipo a gemer tão baixinho? Esta face pálida, de cu caído, cabelo de cenoura coçando desesperado as costas das mãos? Este querubim
de dentinhos de coelho com o suor a escorrer-lhe pelas pernas, por dentro das calças?
- Um padre, meus senhores.
Que outra coisa será de esperar que esteja numa igreja senão um homem de coleira branca? Neste caso, mais precisamente, o reverendo Oliver D'Aeth, um jovem de óptimo
pedigree anglicano, descido há pouco do barco e sofrendo, naquele forno indiano, de fotofobia.
Tal como os lobisomens, fugia da luz. Mas os raios de sol, contudo, perseguiam-no teimosamente; por mais que ele, com igual teimosia, procurasse a sombra. Os cães
solares dos trópicos apanhavam-no desprevenido, alcançavam-no, lambiam-no todo apesar dos seus inúteis protestos; por isso as borbulhinhas tipo champanhe da sua
alergia rebentavam à superfície da sua pele e, tal como um lazarento rafeiro, tinha de se coçar descontroladamente. Um padre abjecto, realmente, perseguido pelo
brilho sem mácula da luz do dia. À noite sonhava com nuvens, com a sua pátria lon-
gínqua onde o céu é repousante, todo em suaves tons cinzentos; sonhava com nuvens mas também - porque mesmo de noite o calor dos trópicos pesava-lhe nos rins - com
raparigas. Ou, para sermos mais precisos, sonhava com uma rapariga alta que entrava na igreja com uma saia de veludo vermelho até aos pés, com a cabeça coberta por
uma mantilha de renda branca claramente não anglicana, uma rapariga capaz de fazer um jovem padre transpirar como um carro de rega e de o fazer ficar roxo de desejo,
tão roxo como a púrpura das vestes eclesiásticas.
Ela vinha uma ou duas vezes por semana e sentava-se por momentos ao lado do túmulo vazio de Vasco da Gama. Da primeira vez que ela passou por D'Aeth como uma imperatriz
ou uma grande trágica, o padre ficou apanhado. Ainda antes de ver o rosto dela, já o rubor do rosto dele ia muito avançado. Então ela voltou-se para o padre e foi
como se ele se afogasse num clarão de luz. A violência simultânea do suor e da comichão assaltaram-no; o pescoço e as mãos ficaram inflamados apesar das vagas de
frescura vindas dos grandes leques de folhas de palma que varriam a atmosfera da igreja em lentos movimentos, como se escovassem os longos cabelos duma mulher. A
situação ficou pior quando Aurora se aproximou; sobreveio ao padre a temível alergia do desejo.
- O senhor parece uma lagosta. - Disse ela docemente. - Parece a pista do circo de pulgas depois de elas se terem ido embora. E quanto a repuxos, meu caro senhor!
Bombaim que fique com a sua Fonte de Flora, nós temo-lo a si!
Ela tinha-o na palma da mão, desde o primeiro momento.
A partir desse dia, o sofrimento da alergia não era nada comparado com o do seu amor, calado e impossível. Ele gozava com o desprezo dela, esperava por ele, já que
era tudo o que ela lhe dava. Mas alguma coisa foi mudando nele, lentamente. Ajuizado e deliquescente e comedido e estudantezinho-inglês, uma caricatura mesmo para
os seus semelhantes, troçado por Emily Elphins-
tone, viúva do negociante de fibra de coco que lhe dava empa-dão-de-carne-e-rim às quintas-feiras e que esperava (mas ainda não recebera) qualquer coisa em troca,
o reverendo D'Aeth transformou-se por detrás da sua fachada eclesiástica, numa coisa completamente diferente; a sua fixação por Aurora foi escurecendo lentamente
em direcção ao ódio.
Foi talvez o gosto dela pelo túmulo vazio do navegador português que o fez começar a odiá-la, devido ao medo que ele tinha de morrer. Como podia ela sentar-se ao
lado do túmulo de Vasco da Gama e falar para a lage tão baixinho? Quando havia gente viva suspensa de cada gesto seu, cada movimento e cada sílaba, como podia ela
preferir aquela mórbida intimidade com um buraco no chão, de onde o grande Vasco tinha sido retirado quatorze anos depois de ali ter sido sepultado, regressando,
morto, àquela Lisboa que ele há tanto tempo deixara? D'Aeth apenas uma vez cometeu o erro de se aproximar de Aurora e de lhe dizer:
- Deseja qualquer auxílio, minha filha?
Ela voltou-se para ele com toda a altiva raiva dos infinitamente ricos e respondeu:
- Isto é um assunto de família. Vá pôr a cabeça em água a ferver!
Depois, abrandando um pouco, disse-lhe que vinha ali para se confessar. Abalado por aquela blasfémia de pedir a absolvição a un túmulo vazio, D'Aeth retorquiu, molemente:
- Esta é uma Igreja Anglicana.
Isto fez Aurora levantar-se, endireitar-se, como Vénus numa anda de veludo vermelho, e fulminá-lo com o seu desdém:
- Em breve os deitaremos ao mar e podem levar convosco essa Igreja que só nasceu porque um velho Rei a cair da tripeça queria uma mulher mais nova e mais sexy.
Depois perguntou-lhe o nome. Quando ele o disse, desatou a rir a a bater palmas:
- Não pode ser! Reverendo "Completamente Morto"! (*)
(*) Oliver D'Aeth soa, em inglês, um pouco como "Ali Over Death" expressão inventada que pode traduzir-se como está proposto. (N. T.)
A partir daqui nunca mais conseguiu falar com ela. Aurora tinha-lhe tocado num ponto muito sensível. A índia tinha enervado Oliver D'Aeth; os seus sonhos ou eram
fantasias eróticas de chás nudistas com a Viúva Elphinstone em ásperos relvados castanhos de fibra de coco, ou então torturantes pesadelos em que ele era invariavelmente
batido, como um tapete ou uma mula e também lhe davam pontapés. Homens com chapéus chatos da parte de trás, o que lhes permitia encostarem-se completamente às paredes,
de forma a impedir os inimigos de os surpreender por detrás, chapéus feitos de um material rígido, negro e brilhante; os seus portadores, emboscados, esperavam-no
nas voltas de caminhos serpenteando pelas montanhas. Eles espancavam-no mas em silêncio. Ele, no entanto, berrava o mais que podia abandonando todo o orgulho. Era
humilhante para ele fazer toda aquela gritaria mas não conseguia evitar os gritos de lhe saírem boca fora. E no entanto ele sabia, no seu sonho, que o lugar onde
estava era a sua terra e que tinha de continuar a percorrer o carreiro da montanha.
Desde que o reverendo viu Aurora na Igreja de S. Francisco, ela começou a aparecer naqueles sonhos terríveis e martirizantes.
As escolhas de um homem são imperscrutáveis, disse-lhe ela uma vez num sonho, ao vê-lo arrastar-se penosamente após um espancamento particularmente violento. Ela
estava a julgá-lo? Às vèzes ele pensava que ela devia achá-lo desprezível por vê-lo aceitar tamanhas degradações. Mas outras vezes ele distinguia um fulgor de sabedoria
nos olhos dela, na sólida musculatura dos seus braços, na maneira como inclinava a cabeça fazendo lembrar um pássaro. Se as escolhas de um homem são imperscrutáveis,
parecia ela dizer, então são também insusceptíveis de serem julgadas, estão para além do desprezo.
- Estou a ser esfolado - dizia-lhe ele no sonho. - Obedeço a um chamamento sagrado. Nunca seremos verdadeiramente humanos enquanto não perdermos a nossa pele.
Quando acordava, D'Aeth não sabia se o sonho fora inspirado pela sua fé na ideia de que a humanidade era um todo, ou pela fotofobia que tanto lhe atormentava a pele.
Não sabia se o sonho era uma visão heróica, se era uma banalidade.
A índia era a incerteza. Era engano ou ilusão. Aqui em Cochim os ingleses tinham-se esforçado por erigirem uma miragem da Anglicidade, onde vivendas inglesas se
espalhavam à volta de um grande relvado inglês, onde havia Rotários e jogadores de golfe e chás dançantes e críquete e uma Loja Maçónica. Mas D'Aeth não podia deixar
de ver a falsidade de tudo aquilo, não podia deixar de ouvir as vogais mal pronunciadas pelos negociantes de fibra de coco que mentiam acerca da sua educação, ou
estremecer perante a forma grosseira como dançavam as suas mulheres (para dizer a verdade, bastante ordinárias), ou avistar os lagartos sugadores de sangue escondidos
sob as sebes inglesas, os papagaios voando sobre os exóticos jacarandás. E quando olhava para o mar, a ilusória imagem da Inglaterra desvanecia-se por completo;
o porto não podia ser disfarçado e por muito que a terra fosse anglicisada ela era totalmente contrariada pela água, era como se a Inglaterra fosse banhada por um
mar totalmente estranho. Estranho e avassalador; porque Oliver D'Aeth sabia perfeitamente que a fronteira entre os enclaves britânicos e a terra estrangeira que
os rodeava tinha-se tornado permeável e começara a dissolver-se. A índia iria reclamar tudo. Os Ingleses - tal como Aurora profetizara - seriam lançados ao Oceano
Índico, o qual, por uma perversidade bem indiana, era localmente conhecido por Mar da Arábia.
Apesar de tudo, pensou ele, os padrões têm de ser mantidos, a continuidade assegurada. Há o bom caminho e o mau caminho, a estrada de Deus e o atalho da Mão-Esquerda.
Embora se tratasse obviamente de metáforas e não conviesse tomá-las à letra, cantar muito alto os encantos do Paraíso, ou mandar para os encantos do Paraíso ou mandar
para o Inferno demasiados pecadores. Acrescentou este codicilo com certa ferocidade porque a índia estava a invadir os limites da sua natural brandura; a índia onde
S. Tomás, o céptico, estabelecera o que se podia designar por Cristandade da Incerteza, recebeu na realidade o suave racionalismo da Igreja Anglicana com grandes
nuvens de entusiasmo religioso... D'Aeth olhou para as paredes da sua Igreja, para os nomes lá gravados dos jovens wgleses mortos e teve medo. Raparigas de 18 anos
chegaram aqui com a intenção de pescar um marido, puseram pé em solo indiano e nele pareceu terem mergulhado para sempre. Os descendentes de grandes famílias, tiveram os seus caixões cobertos de terra indiana aos dezanove anos, poucos meses
depois de terem desembarcado.
O reverendo, que todos os dias perguntava a si próprio quando seria tragado pela índia, achou a piada de Aurora sobre o seu nome de tão mau gosto como as suas conversas
com o túmulo vazio do Gama. Claro que não o disse. Não seria correcto. Além disso a beleza dela parecia paralisar-lhe a língua; sentiu-se vermelho de confusão -
quando ela o atravessou com o seu olhar divertido e desdenhoso, ele desejou que o chão o engolisse, - e cada vez com mais comichão.
Aurora, com a cabeça coberta de rendas e cheirando fortemente a sexo e a pimenta, esperava o seu amante junto ao túmulo de Vasco da Gama; Oliver D'Aeth, a estoirar
de cio e de ressentimento, escondia-se na sombra. Os outros únicos ocupantes da igreja penumbrosa, que algumas lâmpadas amareladas pouco faziam por iluminar, eram
três colonas inglesas, as irmãs Aspin-wall, que estalaram a língua contra os dentes de pura reprovação quando Aurora passou por elas num clarão escarlate - uma delas
chegou a levar ao nariz um lencinho perfumado - e receberam imediatamente a recompensa dada por uma língua afiada:
- Para quem são esses cacarejos? galinhas, não parecem. Antes peixes, com espinhas espetadas na garganta.
E o jovem padre, incapaz de se aproximar dela, incapaz de se desinteressar dela, meio enlouquecido pelo seu poderoso odor, sentiu que a Viúva Elphinstone se evaporava
do seu espírito embora, com não mais de vinte e um anos, fosse um bom pedaço de mulher, a quem não faltavam admiradores.
- Talvez não sejam muitos, mas eu sou exigente - dissera-lhe ela a respeito dos muitos que lhe batiam à porta, a maior parte com intenções pouco cavalheirescas.
- Muitos são os que chamam, poucos os que levam resposta. Tenho que traçar uma linha que não seja fácil de transpor.
Emily Elphistone, uma mulher nova e bonita e péssima cozinheira, devia estar junto ao fogão à espera que Oliver D'Aeth viesse para jantar; e havia de ir. Mas entretanto,
contudo, deixou-se ficar onde estava, embora os olhares que deitava àquela rapariga de sonho lhe parecessem como uma infidelidade.
Abraham chegou num turbilhão e quase correu para o túmulo de Gama. Quando Aurora lhe tomou as mãos nas suas e os dois começaram a falar em sussurros urgentes, Oliver
D'Aeth sentiu um surto de raiva. Virou abruptamente as costas e afastou-se fazendo soar os tacões na pedra; quando passava por zonas de luz, as irmãs Aspinwall puderam
ver que ele ia de punhos cerrados. Levantaram-se e interceptaram-no junto à porta: tinha ele sentido aquele cheiro que embora espalhado por toda a igreja pelos grandes
e lentos abanos de folhas de palma era perfeitamente inconfundível?
- Senti sim, minhas senhoras.
E tinha visto a Papista a trocar carícias amorosas à vista de todos? Talvez ele não soubesse, já que chegara há tão pouco tempo, que o tipo que a apalpava ali, na
casa de Deus, era não só um empregadeco da família mas também - era preciso dizê-lo - um Judeu?
- Não sabia, minhas senhoras. Muito grato pela informação,
- Aquela falta de decoro era intolerável. Que tencionava o reverendo fazer?
- Neste momento nada, minhas senhoras. Não quero nenhuma cena feia nesta igreja. Mas vou certamente tomar medidas, sem qualquer dúvida, nada receiem a esse respeito.
Muito bem. Iam regressar a Ooty(*) no dia seguinte, mas gostariam que o assunto tivesse avançado alguma coisa da próxima vez que viessem à Igreja.
- Tem de meter na ordem aquele indelicado par - disse a mais velha das manas. - As indecências estão completamente fora de questão neste local de culto.
- Minhas senhoras, às vossas ordens.
(*) Diminuitivo de Ootacamund, cidade dos Montes Nilgris, ao norte de Cochim, conhecida como estância de turismo. (N. T.)
Nessa mesma noite quando tomava um cálice de porto com a jovem viúva, enquanto recuperava das pratadas de pequenos cadáveres coriáceos carbonizados que ela lhe tinha
dado a comer, D'Aeth referiu-se aos acontecimentos dessa tarde na Igreja de S. Francisco. Mal pronunciou o nome de Aurora da Gama, o suor e comichão reactivaram-se;
bastava o nome dela para o inflamar e Emily rompeu numa fúria pouco habitual nela:
- Essas pessoas também não são daqui, mas nós ao menos temos para onde ir. Um dia destes a índia também se voltará contra eles e eles ou nadam ou vão para o fundo.
- Não, não - acalmou-a o reverendo - aqui no Sul não há choques entre as Comunidades religiosas.
Mas ela voltou à carga, com ferocidade:
- Eles são intrusos, esses esquisitíssimos cristãos com os seus ritos folclóricos; para não mencionar esses Judeus miseráveis, que são as pessoas menos importantes
do mundo, os mais ínfimos dos ínfimos, e se querem, como dizer, acasalar, é lá com eles, não interessam a ninguém; não irá com certeza estragar uma noite agradável
a falar disso, e mesmo se essas velhas gárgulas de Ootaca-mund queriam armar zaragata, ela não tinha qualquer intenção de gastar mais tempo com o caso e só queria
dizer que Oliver tinha descido na sua consideração: esperava que ele tivesse a delicadeza de não referir o assunto e, muito menos, ficar todo encarnado e a escorrer
suor só por ter dito o nome de certa pessoa.
- O falecido Sr. Elphinstone - disse com voz trémula - tinha um fraco por mulheres espalhafatosas. Mas fez-me a gentileza de guardar para si próprio os seus gostos
por garotas mal comportadas; enquanto que o senhor - um homem de Igreja! - senta-se a minha mesa e baba-se.
Oliver D'Aeth, devidamente informado pela viúva Elphinstone de que não devia dar-se ao incómodo de voltar a visitá-la, apresentou as suas despedidas; e jurou vingar-se.
Emily tinha posto bem as coisas: Aurora da Gama e o seu Judeu não eram mais do que moscas pousadas no grande diamante da índia; como se atreviam a desafiar a ordem
natural das coisas? Estavam mesmo a pedir que os esborrachassem.
Junto ao túmulo vazio do lendário navegador português, Abraham Zogoiby tomou nas suas as mãos da amada e confessou: tinha-se zangado com a mãe, tinha sido expulso
de casa, não tinha para onde ir. Lágrimas de novo lhe chegavam aos olhos. Mas Abraham apenas trocara a mãe por uma sujeitinha ainda mais dura; Aurora tomou-o imediatamente
a seu cargo. Raptou-o e instalou-o no renovado Pavilhão Le Corbusier na Ilha de Cabral.
- É pena que sejas tão alto e tão largo de ombros - disse-lhe ela. - Os fatinhos do meu pai não te servem nas orelhas. Mas esta noite não vais precisar de roupa.
Tanto a minha mãe como o meu pai chamar-lhe-iam a sua verdadeira noite de núpcias, apesar dos acontecimentos previamente ocorridos em cima dos fardos de pimenta,
por tudo o que então aconteceu,
depois da herdeira do negócio das especiarias, com quinze anos ée idade, ter entrado no quarto do seu amante, o seu empregado, vinte e um anos mais velho, vestida
apenas de luar, com grinaldas 4e jasmim e de lírios entretecidas (por Josy) nos seus longos cabelos pretos que lhe caíam pelas costas como um manto real, os pés
nus movendo-se na pedra fria com tamanha leveza que por um momento o atónito Abraham pensou que ela não tocava o chão;
depois de terem feito pela segunda vez amor rescendendo a especiarias, durante o qual o homem maduro se rendeu completamente à vontade da rapariguinha como se a
sua capacidade de escolha se tivesse esgotado no acto de a ter escolhido a ela;
depois de Aurora lhe ter confessado ao ouvido os seus segredos, porque durante muitos anos me confessei apenas a um buraco, ntas agora, marido, posso dizer-te tudo,
o assassinato da Avó, a maldição da velha moribunda, tudo, tudo; Abraham aceitou o seu destino sem estremecer: banido pelo seu povo, tomou sobre si próprio a maldição
que Epifania tinha murmurado ao ouvido de Aurora e que ela, como um doce veneno, verteu no dele: uma casa dividida contra si própria não pode continuar a viver -
foi o que
ela disse, marido - que a tua casa fique para sempre dividida, que os alicerces se façam em pó, que os teus filhos se voltem contra ti e que a tua queda seja terrível;
depois de Abraham ter confortado Aurora, jurando ir neutralizar a maldição, ficar ao lado dela, ombro a ombro, através de tudo o que de mau a vida tivesse para lhes
oferecer;
e depois de lhe ter dito que casaria com ela, que daria esse irreversível passo, que se converteria à Igreja de Roma - e na presença do seu corpo nu, que lhe inspirava
uma espécie de culto religioso, nada disto era difícil de dizer - ele rendeu-se à vontade dela, às suas convenções culturais, ainda que ela tivesse menos fé do que
um mosquito, embora no íntimo de Abraham uma voz lhe desse uma ordem que ele não se atrevia a revelar, uma voz que lhe dizia que ele devia guardar a sua condição
de Judeu na mais secreta câmara da sua alma, que no âmago do seu ser ele devia construir um quarto em que ninguém pudesse entrar e guardar aí a sua verdade, a sua
identidade secreta e só então poderia consagrar ao amor o resto de si próprio;
então,
abriu-se de repente a porta do quarto nupcial e apareceu Aires da Gama em pijama e barrete de noite, parecendo uma ilustração de um livro de histórias se não contarmos
com a sua expressão de fingida indignação; e, numa velha touca e camisa de noite com folhos de Epifânia, Carmen Lobo da Gama fazendo o possível por parecer horrorizada
mas sem conseguir afastar do seu rosto a inveja; ligeiramente atrás deles o anjo da vingança, o traidor, encarnado como um tomate e suando copiosamente: Oliver D'Aeth,
obviamente. Mas Aurora não ia aceitar as regras daquele melodrama vitoriano tropicalizado:
- Tio Aires! Tia Sahara! - gritou alegremente. - Onde é que deixaram o querido cãozinho? Ele não vai ficar triste? Esta noite vejo que andam a passear um cão de
diferente coleira.
Ao que Oliver D'Aeth se tornou ainda mais vermelho.
- Meretriz da Babilónia! - rugiu Carmen, tentando pôr as coisas no caminho devido. - Filha de rameira rameira tem de ser!
Aurora, nua sob o lençol de linho, estirou o seu longo corpo para maior provocação; um seio saltou bem à vista, provocando
no reverendo um aflitivo soluço e obrigando Aires a desviar as suas observações para a telefonia Telefnnken.
- Zogoiby, por amor de Deus! Veja se tem alguma decência, homem!
- "Meu caro senhor, aquilo é minha sobrinha!" Vuau-Vuau-"Vuau! Tão pomposo - e com um cadastro daqueles!
Minha mãe sufocava de riso quando contava esta história,
- Ah meus filhos, eu ia rebentando!
O que significa isto?
- Asno chapado, foi o que eu chamei ao Tio Aires. - Isto significa casamento - disse-lhes eu. - Olhem: está aí um padre, estão presentes os membros da família mais
próximos e vocês estão a entregar-me ao meu destino" levar-me ao altar. Liguem a telefonia, talvez estejam a dar alguma marcha nupcial.
Aires ordenou a Abraham que se vestisse e se retirasse; Aurora deu a contra-ordem. Aires ameaçou chamar a polícia; e Aurora retorquiu:
- Veja lá bem, Tio Aires, Não tem nada a recear de algum
bisblioteiro?
Aires corou fortemente, e murmurou "Discutiremos isso amanhã* e bateu em retirada seguido precipitadamente por Oliver D'Aeth. Carmen ainda ficou por uns momentos
à porta, de boca aberta. Depois saiu, batendo com a porta.
Aurora rolou para cima de Abraham, que tapava a cara com as mãos.
Aqui estou eu, preparada ou não., Meu caro senhor, aqui tem a noiva.
Abraham Zogoiby cobriu a face naquela noite de Agosto não porque foi assaltado pelo medo; não por medo de Aires ou de Carmen ou do padre fotofóbico, mas pela súbita
e terrível apreensão de que a fealdade da vida pudesse derrotar a sua beleza; de que o amor não tornasse invulneráveis os amantes. No entanto,
pensou ele, mesmo que a beleza e o amor estejam em risco de destruição, eram o único partido que podia tomar; o amor derrotado não deixava de ser amor, a vitória
do ódio não faria dele uma coisa diferente. "Mas é melhor ganhar, apesar de tudo." Prometera a Aurora protecção e era homem de uma só palavra.
A minha mãe pintou "O Escândalo" e essa grande tela lá está na Galeria Nacional de Arte Moderna, em Nova Deli, ocupando toda uma parede. Passem diante de "Mulher
segurando um fruto ", de Raja Ravi Verma, essa jovem tentadora coberta de jóias, cujo olhar de aberta sensualidade me faz lembrar as pinturas de Aurora quando jovem;
virem à direita logo a seguir à fantasmagórica aguarela de Gaganendranath Tagore(*) "Jadoogar" (O Mágico) na qual uma versão indiana monocromática do mundo distorcido
de "O Gabinete do Dr. Caligari" posa sobre um chocante tapete cor-de-laranja (e confesso que aquilo me faz lembrar a casa da Ilha de Cabral pelas suas sombras agrestes,
os seus vultos meio-entrevistos e as suas perspectivas variáveis, para não falar da figura estranha e semiencoberta de uma mulher gigante de manto e coroa colocada
no centro da pintura); e - passemos adiante, este não é o momento de referirmos a opinião desdenhosa e ultra-cosmopolita sobre a obra da sua rival mais velha para
o título de Maior Pintora! - Em frente da obra-prima de Amrita Sher-Gil "O Contador de Histórias" lá está Aurora no seu melhor, na minha modesta (ou talvez não tão
modesta como isso) opinião, um quadro tão bom como qualquer círculo de dançarinos de Matisse no que toca a cor e movimento, só que numa composição densamente povoada
com os seus magentas berrantes, os seus escandalosos verdes-néon; a dança não é a dos corpos mas a das línguas: as línguas de todas as figuras coloridas que murmuraram
lick-lick-lick aos ouvidos dos vizinhos são pretas, pretas, pretas.
(*) Filósofo hindu, pai do poeta e romancista Rabindranath Tagore, Prémio Nobel em 1913. (N. T.)
Não vou aqui falar dos méritos técnicos da pintura mas tão somente referir algumas das suas mil-e-uma anedotas. Sabemos que Aurora apreendera muitas das tradições
da pintura narrativa do Sul da índia: observemos a repetida e críptica figura dum padre ruivo, a suar em bica e com uma cabeça de cão e concordaremos, espero eu,
que é essa a figura que comanda a orquestração de todo o quadro. Reparem! Há um clarão ruivo nos azulejos azuis da sinagoga; e, de novo, na Catedral de Santa Cruz
que é pintada naturalisticamente em rosas, amarelos, azuis, essa festa pictórica que é uma igreja pintada de alto a baixo, com falsas varandas, falsas grinaldas
e, evidentemente, os Passos da Paixão. Olhem! Ali está o padre-cão dizendo segredos ao ouvido dum Bispo Católico, representado como peixe paramentado para as grandes
ocasiões.
O escândalo - devia escrever "O Escândalo" - do quadro é uma grande cena em espiral, na qual Aurora entreteceu não só os escândalos que envolveram os Gamas de Cochim,
como os incêndios nos campos de especiarias como os amantes cujos amores só foram descobertos pelo perfume de especiarias que exalavam. Os clãs inimigos dos Lobos
e dos Menezes podem ser identificados nas montanhas que constituem o fundo da multidão eespiral; os Menezes têm cabeças de serpente e os Lobos, evidentemente, são
lobos. Mas no primeiro plano estão as ruas e canais de Cochim, pululantes de escandalizados fiéis de vária confissão: peixes-Católicos, cães-Anglicanos e Judeus
pintados em azul de Delft, como as figuras dos azulejos chineses. O Marajá, o Governador, vários representantes da Lei estão a receber petições e requerimentos,
acções de vária espécie estão a ser solicitadas - Lick-lick-rlick! Exibem-se cartazes, levantam-se tochas a arder. Homens armados defendem os armazéns contra os
moralistas incendiários da cidade. Naquele quadro os ânimos estão realmente muito exaltados: tal como na vida real. Aurora disse sempre que o quadro tem a sua origem
na história da sua família, irritando os críticos que objectam a essa ligação afirmando que ela reduz a arte a simples "bisbilhotice". Mas ela nunca negou que as
figuras que estão no centro daquela furiosa espiral se baseiam em Abraham e nela Própria. Eles são o coração tranquilo do furacão, adormecidos
numa ilha de paz situada no centro da tempestade; estão deitados, de corpos entrelaçados, num pavilhão aberto no meio de um jardim cheio de cascatas, de salgueiros
e de flores; se olharmos de perto para os dois amantes, veremos que eles têm penas em vez de pele, que as suas cabeças são cabeças de águia e que as suas línguas,
muito activas não são pretas, mas vermelhas, cheias e sumarentas.
- A tempestade passou - disse o meu pai quando, era eu rapaz, me levou a ver o quadro. - Mas nós pairamos acima dela, desafiámos todo o mundo e ganhámos.
Quero - finalmente! - dizer, nesta altura, algo de bom acerca do Tio Avô Aires e da sua mulher, Carmen - Sahara. Quero apresentar argumentos que justifiquem o seu
comportamento: que, no fundo, se preocuparam genuinamente com Aurora quando irromperam pelo seu ninho de amor, já que, afinal, é condenável que um homem de trinta
e seis anos, sem um tostão, desflore uma milionária de quinze anos. Quero dizer que a vida de Aires e de Carmen era dolorosa e retorcida porque viviam uma mentira,
e que, por isso mesmo, tinham por vezes atitudes retorcidas, também. Tal como o Jaw-jaw-jawaharlal, ladravam bastante, mas não mordiam. Acima de tudo quero salientar
que se arrependeram muito cedo da breve aliança feita com o Anjo Allover-Death e que, quando o escândalo atingiu o auge, quando a multidão estava prestes a destruir-lhes
os armazéns, quando se falava em linchar o Judeu e a sua puta-criança, quando a escassa população do bairro judeu dè Mattancherri teve durante uns dias de temer
pela sua vida, e as notícias da Alemanha não pareciam vir assim de tão longe, Aires e Carmen apoiaram os amantes: cerraram fileiras, defendendo os interesses da
família. E, se Aires não tivesse enfrentado aos gritos a multidão que ameaçava destruir os armazéns e feito calar os seus líderes - um acto de grande coragem pessoal
- e se ele e Carmen não tivessem visitado pessoalmente todas as
autoridades religiosas e civis da cidade e insistido que, o que existia entre Abraham e Aurora era um casamento por amor, e que, na qualidade de seus tutores legais
não punham qualquer objecção, então, talvez as coisas tivessem ficado descontroladas. Deste modo, todavia, o escândalo arrefeceu passados poucos dias. Na Loja Maçónica
(Aires tinha-se tornado Maçon recentemente), os ilustres locais congratularam o Sr. da Gama pela sensibilidade com que lidou com o caso. As manas Aspinwall, chegando
tarde demais de "Ootacamund", perderam o divertimento todo.
Nenhuma vitória é uma vitória total. O Bispo de Cochim recusou-se a aprovar a ideia da conversação de Abraham, e Moshe Cohem, o líder dos Judeus de Cochim, declarou
que em nenhuma circunstância poderia ocorrer um casamento judeu. Foi por isso mesmo que - revelo-o agora, pela primeira vez - os meus pais sempre fizeram questão
de chamar ao evento do pavilhão de Le Corbusier "a sua noite de núpcias". Quando foram para Bombaim intitulavam-se Senhor e Senhora e Aurora pegou no nome Zogoiby
e deu-lhe fama; mas, senhoras e senhores, não houve sinos de igreja.
Louvo a sua atitude de desafio em não casarem; e constato que o Destino arranjou as coisas de modo a que nenhum deles - descrentes como eram - precisou, afinal,
de quebrar elos confessionais com o passado. (Eu não fui, no entanto, educado como Católico, nem como Judeu. Fui ambas as coisas: um "Judólico"-anónimo, um "Catjudeu"
maluco, um cão rafeiro. Fui - como é que se diz hoje em dia? - atomizado. Sim senhores, um verdadeiro cocktail - um "Bombay Mix".)
Bastardo: gosto do som da palavra. Baab, a reacção a um mau cheiro, tardo, sem necessidade de tradução. Logo, bastardo, um mau cheiro demorado, como por exemplo,
eu.
Duas semanas após o fim do escândalo que desencadeou contra os meus futuros pais, Olivier D'Aeth foi visitado por um mosquito anófele particularmente nocivo, que entrou por um buraquinho do mosquiteiro, enquanto ele dormia. Logo após a visita do mosquito da justiça poética, contraiu
a malária que lhe era devida e, apesar de ser tratado noite e dia pela Viúva Elphistone, que lhe passava pela testa as frias compressas das esperanças vãs, suou
vigorosamente e morreu.
C'o a breca, hoje sinto-me meio compassivo. E esta? Até sinto pena desse pobre diabo.
8
O terceiro e mais chocante escândalo da nossa família nunca se tornou do conhecimento público, mas agora que o meu pai Abraham Zogoiby bateu a bota aos noventa anos
de idade, deixei de ter remorsos por tirar o seu esqueleto do armário... Mais vale ganhar era o seu lema constante e, a partir do momento em que ele entrou na vida
de Aurora, ela entendeu o que ele queria dizer; pois, assim que acabou o alarido acerca do romance deles, o cargueiro "Marco Polo", lançando fumo das chaminés e
um alto vuum vuum vuum da sirene, partiu em direcção às docas de Londres.
Nessa tarde, Abraham regressou à Ilha de Cabral após ter estado ausente um dia inteiro e quando chegou ao ponto de fazer uma festa na cabeça do buldogue Jawaharlal,
era óbvio que ardia de prazer. Aurora, no auge da sua autoridade, exigiu saber onde tinha ele estado. Como resposta, ele apontou para o navio que partia e fez, pela
primeira vez das muitas que se seguiram na sua vida de casados, o sinal de não faças perguntas: passou uma agulha e linha imaginárias pelos lábios, como querendo
cosê-los.
- Disse-te - retorquiu - que tratava das coisas pouco importantes. Mas, para o fazer, preciso por vezes de ir discretamente até Thread-Needle Street
(*) Rua que existe na City de Londres e que é aqui utilizada no seu sentido literal ("Rua-da-Agulha-e-Linha" para sugerir contactos altamente secretos. (N. T.)
Nessa altura, os jornais, a rádio e as conversas de rua não falavam de outra coisa senão da guerra - para ser franco, Hitler e Churchill fizeram tanto quanto os
outros para evitar que os meus escandalosos pais se lixassem; a deflagração da Segunda Guerra Mundial foi uma táctica de diversão bastante eficiente para pôr termo
aos mexericos a seu respeito. Particularmente persistentes eram os rumores acerca dos planos dos alemães para paralisar o Império Britânico, enviando navios de guerra
e submarinos (as pessoas começavam a aprender o termo U-boat) contra as rotas de navegação do Oceano Índico, bem como do Atlântico, e os navios mercantes (todos
acreditavam nisso) seriam um alvo tão prioritário como a Marinha Britânica e, ainda por cima, haveria as minas. Apesar de tudo isto, Abraham tinha feito o seu passe
de mágica, e o "Marco Polo" deixava agora a doca de Cochim, em direcção ao Ocidente. Não faças perguntas avisavam os seus lábios cosidos. E Aurora, a minha mãe imperatriz,
ergueu as mãos, juntou-as num pequeno aplauso e nada mais perguntou.
- Sempre quis um mágico. E parece que encontrei um - foi tudo o que disse.
Admiro a minha mãe quando penso nisso. Como conteve ela a sua curiosidade? Abraham tinha feito o impossível e ela não se importava de não saber como: estava preparada
para viver na ignorância, limitar-se-ia a ser a Jovem Senhora de Thread-Needle Street. E, nos anos que se seguiram, enquanto o negócio da família se diversificava
triunfantemente em mil e uma direcções, enquanto as montanhas-do-tesouro passavam de meros Montes-Gama a Cordilheiras-Zogoiby, imaginou ela alguma vez, por algum
momento lhe passou pela cabeça que... Mas é claro que tem que ter pensado... A sua cegueira era uma cegueira por opção, a sua cumplicidade a cumplicidade do silêncio,
do não me digas coisas que eu não quero saber, do agora não, estou ocupada com a minha Grande Obra. E tal era a força do seu não querer ver que nenhum de nós, tão-pouco
viu. Que excelente disfarce ela foi para as operações de Abraham Zogoiby. Que brilhante e legítima fachada... mas não quero adiantar-me na minha história. Para o
presente é apenas necessário revelar - não, já é altura que alguém
o revele! - que o meu pai, Abraham Zogoiby, mostrou ter um genuíno talento para convencer pessoas relutantes.
Soube-o de fonte segura: passou grande parte das horas de ausência entre os trabalhadores das docas, chamando à parte os maiores e mais fortes daqueles que o conheciam,
e fazendo notar que se a tentativa de bloqueio Nazi fosse bem sucedida, se os negócios como o "Companhia Cinquenta Por Cento de Camões, Lda" falissem, então, eles,
os estivadores e as suas famílias, também eles se afundariam rapidamente na miséria.
- Aquele capitão do "Marco Polo", - murmurava desdenhosamente -, com a sua cobardia em não querer navegar, anda a tirar o pão da boca dos vossos filhos.
Assim que conseguiu formar um bando suficientemente forte para dominar a tripulação do navio, para o caso de ser preciso, Abraham foi, sozinho, falar com os chefes
do escritório. Os senhores Tejpattam, Kalonjee e Mirchandalchini receberam-no com indisfarçável desagrado, pois não tinha sido ele, até bem recentemente, um seu
humilde lacaio, subjugado às suas ordens? Enquanto que agora - lá por ter conseguido seduzir aquela atre-vidota da Proprietária - tinha a desfaçatez de vir dar ordens,
como se fosse o patrão dos patrões... Contudo, não tendo outra hipótese, seguiram as suas instruções. Mensagens telegráficas urgentes e insistentes foram enviadas
aos proprietários do "Marco Polo" e, logo a seguir, Abraham Zogoiby, ainda desacompanhado, foi levado a bordo do cargueiro pelo próprio piloto do porto. O encontro
com o capitão do navio foi muito breve.
- Fui eu que expus toda a situação, para falar francamente, - disse-me o meu pai, quando já tinha muita idade. - Houve necessidade de acção imediata para garantir
o mercado britânico, como compensação pela perda das receitas alemãs, e assim por diante. Fui generoso e isso é sempre sensato num negócio.
"Dada a sua coragem - disse-lhe eu - faríamos dele um homem rico assim que chegasse à Doca da índia Oriental. Ele gostou disso. Pô-lo muito bem disposto". O meu
pai fez uma pausa, tossiu, tentando encher os farrapos que restavam dos seus pulmões.
- Naturalmente, não havia só essa cenoura; havia também um grande pau. Informei o Capitão que, caso não houvesse aceitação da sua parte até ao pôr-do-sol, então,
para grande mágoa minha, falando como colega, o seu navio iria parar ao fundo do porto e a ele próprio ser-lhe-ia pedido que seguisse o mesmo destino.
Teria ele levado avante a sua ameaça? Perguntei-lhe. Por um momento pensei que fosse recorrer à sua linha e agulha invisíveis, mas foi acometido por um ataque de
tosse, pigarreou, tossicou, os olhos leitosos gotejaram. Só quando as convulsões amainaram um pouco é que percebi que o meu pai se tinha estado a rir.
- Rapaz, rapaz, - grasnou Abraham Zogoiby, - nunca apresentes um ultimato a alguém a não ser que estejas preparado e disposto a que esse alguém o queira desafiar.
O Capitão do "Marco Polo" não se atreveu a desafiar-lhe o bluff; mas houve alguém que o fez. O cargueiro viajou pelo oceano, navegando para além dos rumores, para
além das hipóteses, até que um submarino alemão o torpedeou quando se encontrava a escassas horas da ilha de Socotra, na extremidade do Corno de África. Afundou-se
rapidamente; toda a tripulação, assim como a carga inteira se perderam.
- Joguei o às que tinha, - recordou o meu vetusto pai. - Mas, c'os diabos, cortaram-mo com o trunfo.
Quem poderia culpar Flory Zogoiby por ter ficado meio desatinada depois do seu próprio filho lhe ter dado com os pés? Quem poderia invejar-lhe as horas infindas
que passou de chapéu de palha na cabeça a chupar as gengivas, sentada num banco à entrada da sinagoga, a fazer paciências ou a brincar com as peças do mah-jong,
entregando-se a uma tirada sem paragens contra os "Mouros", um conceito o qual, hoje em dia, se expandiu ao ponto de incluir praticamente toda a gente? Quem não
a teria perdoado por pensar que andava a ver coisas, quando Abraham, o filho pródigo,
avançou até ela, numa audácia extrema, num belo dia de Primavera de 1940, com um largo sorriso como se tivesse acabado de encontrar um pote de ouro no final do arco-íris?
- Então, Abie, - disse-lhe ela lentamente, não o olhando directamente para o caso de descobrir que podia ver através dele, o que provaria que ela se tinha, finalmente,
partido em pedacinhos.
- Queres jogar?
Ele sorriu abertamente. Era tão bonito que a enfurecia. Que é que ele tinha que entrar por ali daquela maneira, atirando-lhe com a sua beleza para cima sem a avisar?
- Eu conheço-te, Abie querido, - disse-lhe, sem deixar de olhar para as cartas. - Quando pões esse teu sorriso, estás metido numa bronca e quanto maior é o sorriso,
maior é a merda. Parece-me bem que não sabes o que hás-de fazer e vens ter com a mãezinha. Nunca na minha vida te vi com um sorriso tão grande. Senta-te! Jogamos
em duas mãos.
- Nada de jogos, mãe. - disse Abraham com o sorriso quase a chegar às orelhas. - Podemos ir lá para dentro, ou será que o bairro judeu inteiro tem de saber da nossa
vida?
Aí, ela olhou-o nos olhos. - Senta-te. - disse. Ele sentou-se: ela deu para um rummy de nove cartas.
- Achas que me ganhas? A mim não, meu filho. Nunca conseguiste.
Um navio afundara-se. A fortuna da nova família de Abraham
- família de comerciantes - entrou de novo em crise. Fico feliz por dizer que isto não conduziu a qualquer inconveniente disputa na Ilha de Cabral - as tréguas entre
antigos e novos membros do clã mantiveram-se firmes. Mas a crise era demasiado real; após certas tácticas bastantes persuasivas - e outras menos confessáveis - vindas
das profundezas de Thread-Needle Street, um segundo e depois um terceiro carregamento Gama foram enviados, fazendo o percurso mais longo, via Boa Esperança, para
evitar os perigos do Norte de África. Não obstante estas preocupações e os esforços da Marinha Britânica para policiar todas as rotas marítimas vitais - embora se
tenha que dizer - e o Pandita Nehru disse-o na cadeia que a atitude dos Britânicos em relação aos navios indianos foi,
para não exagerar, um tanto frouxa - esses dois navios também acabaram por deitar especiarias no fundo do mar; e o império de condimentos C-50 (e, quem sabe, talvez
o próprio coração do império também, privado de "inspiração picante") começou a vacilar e balançar. As despesas gerais - salários, custos de manutenção, juros de
empréstimos - aumentaram. Mas isto não é um relatório da empresa, por isso terão simplesmente de acreditar em mim: as coisas tinham chegado a um estado lamentável
quando um radiante Abraham, mais tarde um poderoso comerciante de Cochim, regressou ao bairro judeu. Terão todas as suas especulações falhado? Como? Nenhuma fracassou?
- Nenhuma. Tudo bem? Então, vamos a isto. Quero contar-lhes um conto de fadas.
No fundo, as histórias são aquilo que resta de nós, não somos mais que os poucos contos que persistem. E nas melhores histórias de todas, aquelas que pedimos que
nos contem vezes sem fim, há amantes, é verdade, mas as partes de que mais gostamos são aqueles bocados em que uma sombra cai no caminho dos amantes. Uma maçã envenenada,
uma roca enfeitiçada, a Rainha Madrasta, a Bruxa Má, duendes que levam as criancinhas, essas tretas. Por isso: Era uma vez o meu pai, Abraham Zogoiby, que jogou
forte e perdeu. Mas tinha feito uma promessa: Eu trato das coisas. E, consequentemente, quando tudo o resto falhou, o seu desespero foi tão grande que se viu obrigado
a ir, com um enorme sorriso forçado, ter com a sua enfurecida mãe. - Com que fim? Que outro senão a arca do tesouro?
Abraham engoliu o seu orgulho e veio mendigar, o que só por si disse a Flory tudo o que ela precisava saber sobre o valor do seu jogo. Ele tinha-se gabado de uma
coisa na qual não fora bem sucedido: transformar a palha em ouro, esse tipo de tretas antigas; e era demasiado orgulhoso para admitir o seu fracasso perante os seus
parentes por afinidade, dizer-lhes que deveriam hipotecar ou vender as suas propriedades. Eles serviram-te a tua cabeça, Abie.
- Vês? Está aqui no prato, à tua frente. Fê-lo esperar um pouco, mas não demais; depois concordou. Era de capital que ele precisava? Das jóias da velha caixa? Então,
OK, podia levá-las. Todos os discursos de gratidão, explicações dos problemas de casb-flow temporário, referências "os poderes persuasivos das jóias quando aos marinheiros
lhes é pedido que arrisquem as suas vidas, ofertas de lucros e de ganhos monetários - tudo isso foi recusado.
- São jóias que te estou a dar, - disse Flory Zogüiby. - Uma jóia bem mais valiosa será a minha recompensa.
O filho não entendeu o que ela queria dizer. Com certeza, prometeu-lhe, radiante, que ela receberia a justa recompensa por aquele empréstimo, quando chegasse o triunfo
final; e se ela preferisse receber a sua parte sob a forma de esmeraldas, então ele próprio trataria de seleccionar as melhores pedras. Ele falava por falar; mas
tinha a sensação de se aventurar em águas mais escuras e, por cima, ficava uma floresta negra na qual, numa clareira, um anãozinho dançava, cantando Rumplestiltskin
(*) é o meu nome . . .
- A propósito, - interrompeu Flory. - Que me devolves o empréstimo eu não duvido. Mas para um investimento tão arriscado, só a mais preciosa das jóias poderá
ser o meu prémio. Terás de me dar o teu filho primogénito.
(Duas hipóteses explicavam a origem da caixa de esmeraldas de Flory: herança de família e reserva de contrabando. Pondo de parte os sentimentos, a razão e a lógica
recomendavam esta última hipótese; e, se fosse verdade, se Flory especulasse com reservas de gangsters, então estava em jogo a sua própria sobrevivência. Será que
a sua exigência se torna menos chocante pelo facto de arriscar a própria vida em troca da vida humana que exigia? Seria, de facto, heróico?)
Traz-me o teu primogénito... uma frase lefidária projectava-se entre esta mãe e este filho. Abraham, horrorizado, disse-lhe que estava fora de questão, que era cruel
e inconcebível.
- Tirei-te esse sorriso imbecil da cara, Abie, não tirei? - perguntou Flory severamente. - E não penses que podes pegar na
* Gnomo maléfico, personagem de um conto dos Irmãos Grimm. (N. T.)
caixa e fugir. Está noutro esconderijo. Precisas das minhas pedras? Dá-me o teu primeiro filho: a sua carne, a sua pele e os seus ossos.
Ó mãe, estás completamente louca, minha mãe. Ó progenitora minha, temo que estejas a passar-te dos carretos.
- A Aurora ainda não está de esperanças, - murmurou Abraham debilmente.
- Ha, ha, ha! - Flory deu umas risadinhas. - Pensas que estou louca, meu rapaz? Que vou matá-lo e comê-lo, ou beber-lhe o sangue, ou quê? Eu não sou uma mulher rica,
meu filho, mas tenho comida suficiente na mesa para não precisar de consumir os membros da família.
De súbito, ficou séria. - Ouve, podes vê-lo sempre que queiras. Até a mãe dele pode cá vir. Saídas, férias, também está tudo bem. Mas trá-lo para viver comigo para
que eu possa educá-lo o melhor possível e fazer dele aquilo que tu deixaste de ser: um rapaz judeu de Cochim. Perdi um filho; pelo menos, salvo um neto.
Não acrescentou a sua prece secreta: E talvez, ao salvá-lo, eu venha a descobrir um Deus só para mim.
Enquanto o mundo voltava ao lugar, Abraham, na vertigem do seu alívio, no desespero da sua necessidade e na ausência de uma gravidez em curso, aquiesceu. Mas Flory
foi implacável, quis tudo por escrito. "À minha mãe, Flory Zogoiby, pelo presente prometo o meu primeiro filho varão, para ser criado à boa maneira judia". Assinado,
selado e entregue.
Flory, arrebatando-lhe o documento, agitou-o acima da cabeça, levantou a saia e saiu aos pulinhos pela porta da sinagoga. Um juramento, um juramento, tenho um juramento
no céu...
E, por estes prometidos quilos de carne por nascer, entregou a Abraham a sua riqueza; pago e subornado com jóias, o navio da última chance da fortuna dos Zogoiby
içou as velas e fez-se ao mar.
Destes assuntos secretos, contudo, Aurora não foi informada.
Aconteceu que o navio chegou seguro ao porto, e depois dele outro, e outro, e outro... Enquanto as outras fortunas do mundo iam de mal a pior, a dos Gama-Zogoiby
prosperava. (Como assegurou o meu pai que a Marinha Britânica protegesse a sua carga? Alguém está a sugerir que esmeraldas, contrabando ou dinheiros da herança tenham
achado o caminho até aos bolsos imperiais? Que audacioso golpe teria sido uma coisa dessas, um lance tipo tudo-ou-nada! E quão implausível é sugerir que tal oferta
pudesse ter sido aceite! Não, não, temos que atribuir o que aconteceu a mera eficiência naval - uma vez que o navio pirata alemão "Emden" foi finalmente afundado
- ou às preocupações dos Nazis com outros teatros de guerra; ou chamem-lhe milagre; ou uma sorte parva.) Assim que pôde, Abraham pagou o empréstimo das jóias à sua
mãe, e ofereceu-lhe uma generosa soma adicional a título de lucro. No entanto, saiu bruscamente, sem lhe dar resposta quando ela recusou o tal bónus com um apelo
lamentoso: "Então e a jóia, a minha recompensa por contrato? Quando me será paga?" Reclamo a lei, a pena pelo não-cumprimento da promessa.
Aurora continuava sem ter um filho: mas nada sabia acerca do documento assinado. Os meses estenderam-se a um ano. Abraham continuava a manter silêncio. Por esta
altura ele era o único responsável pelo negócio da família; Aires nunca tivera estofo para isso, e, após o seu novo genro ter desempenhado o seu triunfante acto
de salvamento, o irmão Gama sobrevivente retirara-se com gratidão - como se costuma dizer - para a sua vida privada. No primeiro dia de cada mês Flory enviava ao
seu filho, o grande comerciante, uma mensagem: "Espero que não andes esquecido: quero a minha jóia preciosa." (Que estranho, que predestinação que, naqueles gloriosos
dias do seu amor, Aurora não tenha tido um filho! Pois, se tivesse vindo um rapaz, e aqui falo como único descendente masculino dos meus pais, então o pomo da discórdia
- a tal carne, pele e ossos - poderia ter sido eu próprio.)
Uma vez mais lhe ofereceu ele dinheiro; uma vez mais ela recusou. A dada altura Abraham alegou: como podia ele pedir à sua jovem mulher que entregasse o seu filho
recém-nascido, para ser criado por alguém que a odiava? Flory foi implacável.
- Tivesses pensado nisso antes.
Por fim, não conteve mais a sua fúria e desafiou-a:
- O seu bocado de papel não vale absolutamente nada, - gritou-lhe ao telefone; - Veremos quem paga mais ao juiz.
As pedras verdes de Flory não conseguiam fazer frente àquela renovada influência da família; e se de facto eram pedras roubadas, ela pensaria duas vezes antes de
as mostrar às autoridades, nem mesmo àquelas dispostas a encher o bandulho. Que opções lhe restavam? Tinha deixado de acreditar na retribuição divina. A vingança
pertencia a este mundo.
Outra vingadora! Outro cão raivoso, ou mosquito venenoso! Que epidemia de vinganças se apoderou da minha história, que Malária, que Cólera, que Tifóide de olho-por-olho
e dente-por-dente! Não admira que eu tenha acabado... mas o meu fim não deve ser contado antes do meu começo. Eis Aurora no dia dos seus dezassete anos, na Primavera
de 1941, visitando sozinha o túmulo de Vasco da Gama; e eis, aguardando na sombra, uma mulher velha e enrugada...
Quando viu Flory avançar disparada em direcção a ela, saída das sombras da igreja, Aurora pensou por breves momentos que a sua avó Epifania se tinha erguido da sepultura.
Depois recompôs-se com um pequeno sorriso, lembrando-se de como se tinha rido das ideias fantasmagóricas do seu pai; não, não, aquilo era apenas uma velha mendiga,
e o que era aquele papel que ela abanava? Por vezes certas pedintes davam-nos papéis daqueles, Tenha dó de mim, em nome de Deus, sou muda, 12 filhos para sustentar.
- Desculpe, não, - disse Aurora negligentemente, e virou-lhe costas.
Depois, a mulher chamou-a pelo nome. - Madame Aurora! - E, muito mais alto: - Puta romana do Abie! Tens de ler este papel.
Aurora voltou-se; pegou no documento que a mãe de Abraham lhe estendia; e leu.
Portia, uma menina rica, supostamente inteligente, que concordou com o testamento do seu defunto pai - casaria com qualquer homem que resolvesse o enigma dos três
escrínios (ouro-prata-chumbo) é-nos apresentada por Shakespeare como o verdadeiro arquétipo da justiça. Mas oiçam com atenção; quando o seu pretendente, o Príncipe
de Marrocos falha o teste, ela suspira:
Um doce adeus. Caia a cortina: vai-te.
Que todos os da sua raça falhem, como ele, a escolha.
Não, não gosta de "Mouros"! Ela ama Bassanio, que, por um feliz acaso, escolhe a caixa certa, aquela contendo o retrato de Portia {"tu, tu, ó pobre chumbo"). Oiçam
bem, portanto, esta explicação-modelo para a escolha dele.
... a beleza não é mais do que a pérfida costa É para um perigoso mar; o belo véu Escondendo uma beleza indiana; numa palavra,
A aparência enganadora que os astutos tempos assumem...
À, sim: para Bassanio, a beleza indiana é como um "perigoso mar"; ou, análoga a "tempos astutos"! Por conseguinte Mouros, Indianos e, obviamente "o Judeu" (Portia
apenas conseguiu dizer O nome de Shylock em duas ocasiões; o resto do tempo identificou-o simplesmente pela sua raça) são afastados. Um casal bastante imparcial,
como se vê; um par muito íntegro que intercede junto do juiz. Menciono tudo isto para mostrar porque é que, quando eu digo que a Aurora do nosso conto não era nenhuma
Portia isto não é uma censura. Ela era rica (como Portia, no seu conto), mas escolheu o seu próprio marido (ao contrário*da outra); era obviamente inteligente (igual),
e estava, aos dessazete anos, no auge da sua beleza indiana (Portia não tinha nada de indiano). O seu marido era - como o de Portia nunca poderia ter sido - Judeu.
Mas, tal como a donzela de Belmont negou a Shylock o seu meio quilo de carne, também a minha mãe arranjou uma maneira justa de negar a Flory a criança.
- Diz à tua mãe - exigiu Aurora a Abraham nessa noite - que não nascerá qualquer criança nesta casa enquanto ela for viva.
Correu com ele para fora do seu quarto.
- Fazes o teu trabalho e eu faço o meu - disse. - Mas o "trabalho" por que Flory espera, esse, nunca ela verá.
Também ela tinha traçado uma linha. Nessa noite esfregou o corpo até lhe sair a pele e não ficar qualquer traço do perfume do seu amor picante. Depois fechou e trancou
a porta do quarto, e caiu num sono profundo e sem sonhos. Nos meses seguintes, contudo, o seu trabalho - desenhos, pinturas, e umas bonequinhas horríveis todas tortas
moldadas em barro vermelho - saiu-lhe sob a forma de bruxas, fogo, apocalipse. Mais tarde viria a destruir grande parte deste material "Vermelho", tendo como consequência
que as peças sobreviventes subiram enormemente de valor; raramente tinham sido vistas nos salões de vendas e, quando o foram, deram azo a uma febril excitação.
Durante várias noites Abraham choramingou penosamente à sua porta fechada, mas não foi admitido. Contratou um acorde-onista que lhe fez serenatas no pátio por baixo
da janela, enquanto ele, Abraham, se prostrava idioticamente junto ao músico, murmurando as palavras de velhas canções de amor. Aurora abriu as persianas, depois
atirou flores; depois a água suja do balde do lavatório e, finalmente, o próprio balde. Tudo lhe acertou em cima. O balde, uma pesada peça de faiança atingiu Abraham
no tornozelo esquerdo, partindo-o. Foi levado, encharcado e aos uivos, ao hospital, e depois disso não mais ousou tentar fazê-la mudar de opinião. As suas vidas
evoluíram em rumos diferentes.
Após o episódio do balde, Abraham passou a coxear levemente. Tinha tristeza estampada em cada linha do seu rosto, uma tristeza que o fazia baixar os cantos da boca
e lhe estragava a beleza. Aurora, em contraste, continuou a florescer. Nascera génio dentro dela, preenchendo-lhe o espaço vazio da cama, do coração, do útero. Não precisava de mais ninguém senão de si mesma.
Aurora esteve ausente de Cochim durante grande parte dos anos de guerra, primeiro em longas visitas a Bombaim, onde conheceu um jovem Parsee, Kekoo Mody, que tinha
começado a negociar em artistas indianos contemporâneos - na altura um campo nada lucrativo - na sua casa em Cuffe Parade. O seu coxo marido não a acompanhava nessas
viagens; e sempre que ela partia, as invariáveis palavras de despedida eram, "OK, óptimo, Abie! Olha-me pela loja." Assim, foi na ausência de Abraham, longe da sua
figura coxa e lamentável, exprimindo uma insuportável saudade, que Aurora Zogoiby se transformou na grandiosa figura pública que todos conhecemos, a beleza estonteante
no coração do movimento nacionalista, a boémia de cabelo solto marchando audaciosamente ao lado de Vallabhbhai Patel e de Abul Kalam Azad quando eles desfilavam
em manifestações, a confidente (e, segundo persistentes rumores, amante) do Pandita Nehru, o seu "amigo entre os amigos", cujo coração disputaria mais tarde com
Edwina Mountbatten. Embora sem a confiança do Mahatma Gandhi e odiada por Indira, a sua prisão após a campanha "Fora da índia!", em 1942, fez dela uma heroína nacional.
Jawaharlal Nehru, também ele, foi preso no Forte de Ahmadnagar, onde, na era de quinhentos, a princesa-guerreira Chand Bibi resistira aos exércitos do Império Mughal
- ao próprio Grande Mughal Akbar. As pessoas começaram a dizer que Aurora Zogoiby era a nova Chand Bibi, enfrentando um diferente e ainda mais poderoso Império,
e a sua cara começou a aparecer por todo o lado. Pintada nas paredes, caricaturada nos jornais, a criadora de imagens tornou-se, ela mesmo, numa imagem. Passou dois
anos na Prisão Distrital de Dehra Dun. Quando emergiu tinha vinte anos de idade, e o cabelo todo branco. Regressou a Cochim, transformada num mito. As primeiras
palavras que Abraham lhe dirigiu foram:
"A loja vai de vento em popa". Ela anuiu brevemente, e voltou ao trabalho.
Algo tinha mudado na Ilha Cabral. Durante o tempo que Aurora passou na cadeia, o amante de longa data de Aires da Gama, o homem por nós conhecido como Príncipe Henrique
o Navegador ficou seriamente doente. Soube que sofria de um género particularmente pernicioso de sífilis e em breve se tornou claro que Aires também fora infectado.
Erupções sifilíticas na cara e no corpo tornaram impossível a sua saída de casa; ficou macilento e de olhar vazio e parecia ter vinte anos a mais que os seus quarenta
e picos. A sua mulher Carmen, que há muito tinha ameaçado matá-lo pelas suas infidelidades, veio, pelo contrário sentar-se à sua cabeceira.
- Olha o que te foi acontecer, meu irlandês - disse. - Vais morrer e deixar-me agora, ou quê?
Ele enterrou a cabeça na almofada e não viu senão compaixão nos olhos dela.
- Tens de melhorar - disse - senão, com quem é que eu vou dançar o resto da vida? Tu, - e aqui fez uma brevíssima pausa - e o teu Príncipe Henrique, também.
Ao Príncipe Henrique o Navegador foi cedido um quarto na casa da Ilha de Cabral, e nos meses que se seguiram Carmen com inesgotável determinação supervisionou o
tratamento dos dois homens levado a cabo pelos melhores e mais discretos - porque também mais bem pagos - especialistas da cidade. Ambos os doentes recuperaram lentamente;
e chegou o dia em que Aires, sentado no jardim, com um pijama de seda, o buldogue Jawahar-lal a seu lado e bebendo uma limonada fresca, foi visitado pela sua mulher,
que lhe sugeriu silenciosamente que não havia necessidade de que o seu amigo Príncipe se fosse embora.
- Já há demasiadas guerras dentro e fora desta casa - disse-lhe. - Vivamos, ao menos esta vez, num pacífico triângulo.
Em meados de 1945, Aurora Zogoiby atingiu a idade adulta. Passou o seu vigésimo primeiro aniversário em Bombaim, sem Abraham, numa festa que lhe foi oferecida por
Kekoo Mody e frequentada pela maior parte das luminárias artísticas e políticas da
cidade. Por essa altura os Britânicos tinham libertado os presos do Congresso, uma vez que pairavam no ar novas negociações; o próprio Nehru tinha sido libertado
e enviara a Aurora uma longa carta de uma casa chamada Armsdell em Simla, pedindo-lhe desculpa pela sua ausência nos festejos. "Estou rouquíssimo," - escreveu.
"Não consigo entender porque é que atraio multidões. É muito gratificante, sem dúvida, mas também muito doloroso e frequentemente irritante. Aqui em Simla tenho
frequentemente de ir até à varanda ou ao terraço para saudar a multidão. Duvido que alguma vez consiga sair para um passeio sem que eles me sigam, a não ser a meio
da noite... Devia agradecer-me por tê-la poupado a esta experiência ao afastar-me de si." Como prenda de aniversário, mandou-lhe a obra de Hogben, "Ciência Para
os Cidadãos e Matemática para Milhões". "Para que tempere o seu espírito artístico com um bocadinho do outro lado do espírito."
Ela deu imediatamente os livros a Kekoo Mody, com uma pequena careta.
- Jawahar entusiasma-se imenso com estas tretas científicas. Mas eu sou uma rapariga simples.
Quanto a Flory Zogoiby: ainda estava viva, mas ultimamente andava um tanto estranha. Até que, um dia no final de Julho, encontraram-na a andar de gatas às voltas
pelo chão da sinagoga de Mattancherri, clamando que conseguia ver o futuro nos ladrilhos chineses azuis, e profetizando que, muito em breve, um país não muito longe
da China seria devorado por cogumelos carnívoros gigantes. O velho Moshe Cohen viu-se no triste dever de a aliviar das suas obrigações. A sua filha Sara - ainda
solteirona - tinha ouvido falar numa igreja junto ao mar para onde tinha começado a ir gente mentalmente perturbada das mais variadas religiões, pois parecia ter
o poder de curar a loucura; ela disse a Moshe que pretendia levar Flory para lá, e o vendedor de velas concordou em pagar todas as despesas da viagem.
Flory passou o primeiro dia sentada no pó do recinto exterior da igreja mágica, fazendo riscos no pó com um ramo, e tagarelando infindavelmente com o seu invisível
(porque não-existente) neto, supostamente a seu lado. No segundo dia da sua estadia, Sara deixou Flory sozinha durante uma hora para ir passear para a praia e observar
os pescadores a partir e a chegar nos seus botes. Quando voltou havia um enorme pandemónio no recinto da igreja. Parece que um dos loucos que lá se juntavam tinha
cometido um suicídio flamejante entornando gasolina para cima de si, aos pés da figura em tamanho natural de Cristo crucificado. Assim que acendeu o fósforo fatal,
o vvvuuu das labaredas lambeu de modo assassino a bainha da saia estampada com flores de uma velhota, e, também ela tinha sido engolfada. Era a minha avó. Sara trouxe
o corpo para casa, e foi posto em descanso no cemitério do bairro judeu. Abraham manteve-se junto à sua sepultura durante muito tempo após o funeral ter acabado
e, quando Sara Cohen lhe pegou na mão, ele não a afastou.
Poucos dias depois uma nuvem gigante em forma de cogumelo devorou a cidade japonesa de Hiroshima, e ao ouvir as notícias Moshe Cohen, o vendedor de velas, largou
num pranto de quentes e amargas lágrimas.
Já tinham todos praticamente partido, os Judeus de Cochim. Não restavam mais que cinquenta deles, e os mais novos partiram para Israel. Seria a última geração; tinham
sido tomadas providências para que a sinagoga passasse a ficar a cargo do governo do Estado de Kerala que a transformaria em museu. Os últimos solteirões e solteironas,
todos desdentados, aqueciam-se ao sol das ruelas sem crianças. Também há que lamentar esta extinção; não foi propriamente um extermínio, como aconteceu noutros lados,
mas foi, apesar de tudo, o fim de uma história que levou dois mil anos a ser contada.
Nos finais de 1945, Aurora e Abraham tinham deixado Cochim e comprado um resplandecente bungalow cercado de tamarindos,
plátanos e jacarandás, na encosta de Malabar Hill em Bombaim, com um grande jardim construído num terraço caindo a pique sobre Chowpatty Beach, Back Bay e Marine
Drive.
- Cochim está acabada, de qualquer modo, - argumentou Abraham. - Do ponto de vista estritamente profissional esta mudança faz todo o sentido.
Deixaria homens escolhidos a dedo para se encarregarem das operações na região Sul e continuaria a fazer viagens de inspecção regulares ao longo dos anos... Aurora
não precisou de quaisquer argumentos. No dia em que se mudaram dirigiu-se ao parapeito onde o terraço acabava, olhando para baixo, para a vertiginosa vista de rochas
negras e mar espumoso e soltou, o mais alto que pôde, gritos de alegria.
Abraham ficou à espera dela alguns metros atrás, apertando uma mão na outra, olhando para o mundo como o tímido gerente que outrora tinha sido.
- Só espero que este novo local traga benefícios à tua criatividade, - disse com um formalismo triste. Aurora correu para ele e caiu-lhe nos braços.
- É criatividade que deseja? - perguntou-lhe, olhando-o como já não o olhava há anos. - Então venha daí, meu caro senhor, vamos lá para dentro criar qualquer coisa.
II
MELODRAMA EM MALABAR
9
Uma vez por ano minha mãe Aurora Zogoiby fazia questão em dançar mais alto que os deuses. Uma vez por ano os deuses vinham até à praia de Chowpatty para se banharem
no mar imundo: milhares de ídolos barrigudos, efígies em "papier mâché" das divindades Ganesha ou Ganpati Bappa de cabeça de elefante, deslizando até à água a cavalo
em ratazanas de "papier mâché" - porque, como é sabido, na índia os ratos são portadores tanto de deuses como de epidemias. Algumas destas parelhas de tromba-e-cauda
não eram tão grandes que não pudessem ser levadas aos ombros ou ao colo; outros eram verdadeiras bisarmas que tinham de ser puxadas por centenas de discípulos em
carros de madeira com enormes rodas. Havia além disso centenas de Ganeshas Dançantes agitando as ancas: era contra estas Ganpatis pançudas e já muito manuseadas
nas lides do amor que Aurora competia, rodopiando sacrilegamente em protesto contra o saracotear folgazão daqueles deuses tão multiplicados. Uma vez por ano os céus
enchiam-se de nuvens em tecnicolor: rosa e lilás, carmesim e vermelhão, açafrão e verde-lima; essas nuvens de pó sopradas de bombas de insecticidas esvaziadas e
reusadas, ou descendo lentamente de molhos de balões rebentados, pairavam no ar por cima dos deuses "como uma aurora-não-boreal-mas-bombayal" no dizer do pintor
Vasco Miranda.
Pairando igualmente sobre a multidão e sobre os deuses ano após ano (quarenta e um ao todo), erguendo-se sem medo à borda
do verdadeiro precipício que era a muralha de apoio da nossa casa em Malabar Hill - que ela própria insistira em chamar Elephanta, num momento de perversa ironia
- lá estava a figura quase divina da nossa Aurora Bombayal, emplumada num traje cada ano diferente, trabalhado em fragmentos de espelho de cores estonteantes, ultrapassando
em requinte o próprio firmamento e os seus jardins suspensos de poeira colorida. O seu longo cabelo branco volteava em torno dela em exclamações soltas (O cabelo
prematuramente e profeticamente embranquecido dos meus antepassados!), o ventre nu desenhava uma suave curva de jovem pantera e não as múltiplas rugas de uma velha
tartaruga, os pés descalços batiam rit-madamente, os tornozelos tilintavam campainhas de prata, o pescoço movia-se sacudidamente dum lado para o outro, as mãos expunham
tratados de coisas incompreensíveis: a grande pintora exprimia na dança o seu desafio, o seu desprezo pela perversidade da natureza humana, que levava aquela enorme
multidão a arriscar morrer espezinhada "só para molhar os bonecos na trampa", como ela gostava de dizer em tom de chacota, levantando os olhos ao céu e torcendo
a boca com ar incrédulo.
- A perversidade dos homens é maior que o seu heroísmo -tlim-tlão! - a sua cobardia-ta-ta-tum! - a sua arte, declamava minha Mãe continuando a dançar. - Porque para
essas coisas há pontos para além dos quais não vamos nunca; mas para a perversidade não há limites, ninguém achou fronteiras. Por maior que seja hoje o excesso,
podemos ultrapassá-lo amanhã.
Como para comprovar a sua teoria sobre a perversidade humana, a dança da Aurora tornou-se com os anos numa atracção própria do acontecimento que ela tanto desprezava,
parte daquilo contra o qual ela dançava. As multidões de devotos viam - sem razão, mas inevitavelmente - a sua própria devoção reflectida no movimento contestatário
das saias revoluteantes de Aurora; partiam do princípio de que também ela homenageava os deuses. Gan-pati Bappa morya, entoavam eles, gingando ao clangor estridente
dos trompetes e dos búzios gigantes e das arrochadas dos zabumbas ébrios de droga, com os olhos leitosos e as bocas atulhadas de notas de banco, homenagem apreciativa
dos fiéis; e quanto mais
desprezo a legendária senhora punha na sua dança lá no alto do parapeito, quanto mais longe de tudo aquilo ela parecia pairar, mais a multidão infrene a puxava para
baixo, para junto de si, vendo nela não uma rebelde mas uma bailarina sagrada; não o flagelo destruidor mas a seguidora fanática dos deuses.
(Abraham Zogoiby, como iremos ver, tinha outra ideia acerca das bailarinas sagradas.)
Um dia, durante uma altercação familiar, recordei-lhe, irritado, quantas e quantas vezes os jornais a tinham associado ao festival, por essa altura, a festa de Ganesha
Chaturthi tornara-se pretexto para jovens delinquentes de punhos cerrados e fitas amarelo-açafrão na testa exibirem o seu triunfalismo fundamentalista Hindu, pressionados
estentoriamente por políticos e demagogos partidários do "Exército de Shiva", tais como Raman Fielding, também conhecido por Mainduck ("O Sapo")**)
- A Mãe deixou de ser uma simples atracção turística - disse "U trocista. - Faz parte da propaganda para o Programa de Embelezamento. - Este projecto político dos
S.A. de denominação tão "traente consistia, a bem dizer, na eliminação física dos pedintes das ruas da cidade, mas a couraça de Aurora era forte demais para ser
trespassada por um golpe tão grosseiro.
- Julgas que posso ser calada por pressões vindas da sarjeta?
- disse ela, para me arrumar. - Julgas que posso ser conspurci-ficada por essa tua língua de víbora? Que é que eu tenho que ver com esse Exército da Treta de Shiva?
Há muitos anos que eu sou contra o próprio Deus Shiva Nataraja e o, seu rebento narigudo mai-ló-papagaio-da-trampa. (**) Há anos que eu danço contra eles todos.
Olha bem para mim, rapaz. Talvez aprendas comigo a vendavalizar um vendaval e a furacalizar um furacão. Sim senhor! Talvez aprendas a dançalizar uma tempestade!
(*) No original "Shivaji's Army" milícia fascista de inspiração nazi de cujas Sturm Abteilungen" (Secções de Assalto) tomou deliberadamente as iniciais S.A. (N. T.)
(**) Alusão sarcástica a Raman Fielding "O Sapo", chefe dos S.A. indianos. (N. T.)
Respondendo à deixa, ribombou um trovão mesmo por cima das nossas cabeças. Grossas cordas de chuva começaram a desabar do céu.
Quarenta e um anos a dançar na festa de Ganpati: ela dançava por simples atracção pelo perigo, sem um olhar para os penedos lá em baixo, coberto de lapas, pacientes
e ameaçadores como dentes arreganhados. A primeira vez que ela apareceu, saindo da Ele-pbanta vestida a preceito e começou as suas piruetas à beira do precipício,
o próprio Jaweharlal Nehru suplicou-lhe que desistisse. Isto passou-se pouco tempo depois das greves contra os Ingleses levadas a cabo no porto de Bombaim, e a paralisação
de solidariedade a que se chamou hartal, fora suspensa a pedido de Gandhi e de Vallabhbhai Patel em conjunto; Aurora não pôde deixar de meter a sua ferroadazinha.
"O Congresso está constantemente a recuar perante acções mais radicais, Pandit. Mas para estas bandas, a brandura não é uma opção a considerar." Como ele continuasse
a argumentar, ela lançou-lhe um repto dizendo que só desistiria se ele fosse capaz de recitar de memória "A Morsa e o Carpinteiro" (*) do princípio ao fim; o que
ele executou, para espanto de todos. Ajudando-a a descer da vertiginosa balaustrada onde ela se empoleirava, ele disse:
- Aquela greve foi um caso sério.
- Eu tenho uma opinião formada acerca da greve - respondeu ela. - Diga-me o que pensa do poema. - Ao que o sr. Nehru corou bastante e engoliu em seco.
- É um bocado triste - disse, após um momento. - As ostras são tão jovens. Pode dizer-se que é um poèma onde se trata de comer criancinhas. - Todos nós comemos criancinhas,
retorquiu minha Mãe. (Isto passava-se cerca de dez anos antes de eu nascer.) - Se não as dos outros, ao menos as nossas.
Ela veio a ter quatro à sua disposição. Ina, Minnie, Mynah, Mouro: uma refeição de quatro pratos com propriedades mágicas porque, por mais que ela botasse abaixo,
nunca ficava sem comida.
(*) Poema de Lewis Carrol incluído em "Alice no País das Maravilhas", em que as ostras são convidadas para um jantar e nele comidas. (N. T.)
Durante quatro décadas, comeu até mais não. Depois, aos sessenta e três anos, ao dançar pela quadragésima segunda vez no festival de Ganpati, Aurora caiu. A maré,
escassa como um rasto de saliva, varreu o seu corpo, que os dentes negros já tinham abocanhado. Mas por essa altura, embora ela ainda fosse minha Mãe, eu já não
era o seu filho.
Ao portão de Elephanta havia um homem com uma perna de pau, apoiado numa muleta. Mesmo de olhos fechados é-me fácil evocá-lo: um humilde Pedro à porta de um Paraíso
terreno que veio a ser o meu Virgílio pessoal de-trazer-por-casa para me conduzir ao Inferno - para a grande cidade de Inferno, no Pandemónio, a face escura vista
no espelho, a gémea maléfica daquela outra cidade, Bombaim, a minha cidade dourada.
Querido guardião monópode! Os pais, no seu linguajar deturpado, deram-lhe o nome de Lambajan Chandiwala (infectados ao que parece pela mania de Aires Da Gama de
pôr alcunhas ao mundo inteiro).
Naqueles tempos quase toda a gente teria entendido o trocadilho envolvendo várias línguas: lamba, que quer dizer longo; jan soa quase como John; Chandi quer dizer
prata. ('"') Long John Silver-fellow, de abundantes barbas façanhudas mas literalmente e metaforicamente tão desdentado como um reçém-nascido, mascando betel(**)
com as gengivas vermelhas como sangue.
- O nosso pirata privativo - como Aurora lhe chamava e, tal como seria de esperar, ele trazia geralmente no ombro um papagaio verde de asas aparadas que guinchava
obscenidades. A minha
(*) Silver em inglês. Long John Silver é, em "A Ilha do Tesouro" de R.L. Ste-venson, o pirata unijambista amigo do jovem herói do romance, que trazia um papagaio
empoleirado no ombro. (N. T.)
(**) O costume indiano de mascar betei produz abundante saliva avermelhada. (N. T.)
Mãe, perfeccionista atenta, tinha feito finca-pé em lhe arranjar o pássaro.
- Que graça é que tem um pirata sem papagaio? - perguntava ela, de sobrancelha alçada e torcendo a mão direita como se manipulasse uma maçaneta imaginária; e acrescentava,
frívola e escandalosa (porque não era bonito dizer piadas picantes acerca do Mahatma):
- Era o mesmo que o nosso homenzinho sem a tanga.
Ela esforçou-se por ensinar ao papagaio o praguejar dos piratas, mas o bicho era um velho pássaro bisnau de Bombaim.
- Pieces of eight! Me hearties!, gritava a minha Mãe, mas o aluno mantinha um silêncio rebelde. Contudo, ao fim de anos daquela perseguição, o papagaio acedeu a
berrar, com mau modo:
- Pisay - safed - hathi!
Esta frase notável, traduzida do eoncani dava aproximadamente Puré de elefante branco e passou a ser a praga preferida da nossa família. Eu não estava presente por
ocasião da última dança de Aurora, mas muitos dos presentes testemunharam que a praga magnífica do papagaio se fez ouvir, deixando um rasto em diminuendo atrás dela
à medida que ela mergulhava no tombo fatal:
- Ahhh ... Puré de Elefante Bra-a-a-a-ann..., - uivou minha Mãe antes de bater nas rochas. Levada pela maré, um dos bonecos representando um elefante-centauro foi
encontrado junto ao corpo dela. Mas não era a isso que ela se referia.
A frase do papagaio também provocou em Lambajan Chandi-wala um efeito profundo porque - como tantos de nós - ele trazia elefantes na cabeça; reconheceu no pássaro
pousado no seu ombro a presença de uma alma gémea e dali em diante abriu o coração àquele oráculo intermitente, àquele pássaro taciturno, irascível e, para dizer
a verdade, insuportável.
Com que ilhas de tesouro sonharia o nosso pirata? A maior parte do tempo falava da verdadeira Elephanta. Para nós, crianças educadas na ideia de que tudo tinha uma
explicação, o Monte Elephanta era pouco mais do que um amontoado de colinas dando sobre o porto. Antes da Independência - antes das minhas irmãs Ina, Minni e Mynah
- podia ir-se até lá de barco e arrostar com
a'possibilidade de encontrar cobras, etc.; mas na altura em que eu nasci, a ilha já tinha sido cultivada e havia excursões diárias em lanchas que partiam do Pórtico
da índia. As minhas irmãs achavam a ilha uma chatice. E assim, para o miúdo que eu era, agachado ao lado de Lambajan no calor da tarde, Elephanta seria tudo menos
uma ilha de fantasia; mas Lambajan falava dela como da própria terra do leite e do mel.
- Naquela terra, outrora, os elefantes eram reis, baba - contava ele. Por isso é que o deus Ganesha é tão popular em Bombaim. É porque antigamente, antes de haver
homens, eram os elefantes que se sentavam nos tronos, discutindo filosofia, e os macacos eram criados deles. Diz-se que quando os homens chegaram à Ilha de Elephanta,
logo a seguir à queda dos elefantes, encontraram estátuas de mamutes mais altas que o Minarete de Qutb, em Deli: tiveram medo e escavacaram-nas todas. É verdade!
Os homens quiseram varrer para sempre a recordação dos grandes elefantes mas nem todos nos esquecemos. Ali naquelas colinas em Elephanta é que é o sítio onde eles
enterravam os seus mortos. Não? Estás a abanar a cabeça? Olha, ele não acredita, papagaio. Está bem, baba. Franzes a testa? Então olha para isto.
*(, E, com grande acompanhamento de gritos de papagaio, Lambajan exibiu - o quê, o quê, meu nostálgico coração? - um pedaço de papel amarrotado que até eu, que não
passava de um rapazito, podia perceber que não era nada antigo. Era um mapa, claro.
-Aqui em cima esconde-se ainda um grande elefante, baba,
talvez mesmo O Grande Elefante. Eu bem sei o que vi! Quem é que tu achas que me arrancou a perna? E depois me deixou escorregar colina abaixo, a sangrar, até ao
meu barquinho? Eu vi grandeza no seu desdém! Ele possui jóias, baba, um tesouro maior do que o próprio Soberano de Hyderabad.
Lambajan tinha-se ajustado à nossa fantasia sobre os piratas - porque a minha Mãe, essa grande explicadora, tinha-o posto ao corrente de todos os debates relacionados
com a sua alcunha - e assim construíra o seu próprio sonho, uma Elephanta em que, com
o decorrer dos anos parecia acreditar cada vez mais firmemente.
Sem o saber, estava a ligar-se cada vez mais à lenda dos Gama-Zogoibys, em que figuravam com grande relevo estojos de jóias secretos. E assim o melodrama da Costa
do Malabar achou o seu equivalente ainda mais fabuloso em Malabar Hill(*) o que talvez fosse inevitável porque, por maiores que tenham sido as extravagâncias no
mundo das especiarias em Cochim, esta nossa grande Bombaim cosmopolita é que é o centro de todas as "tamashas"(*::') e as histórias mais picantes, as patranhas mais
suculentas e mais assacanadas, as tragédias mais imaginosas e mais horripilantes de faca-e-alguidar são as que correm as nossas ruas. Em Bombaim vive-se esmagado
por este mundo louco, ensurdecido pelas trombetas da abundância e - tal como os membros da família de Aurora, que aparecem no mural da ilha de Cabral - a nossa história
tem de romper caminho através da multidão. O que estava bem para Aurora Zogoiby, que nunca apreciara uma vida de sossego: gostava de absorver os seus molhos picantes,
de devorar pratadas inteiras. Aurora considerava-se uma espécie de corsário, rainha de todos os delinquentes da cidade.
- Nesta casa, hasteamos a bandeira dos piratas, - costumava ela dizer, para vergonha e desgosto dos filhos. Tinha efectivamente encomendado ao seu alfaiate uma bandeira
com caveira e tíbias que entregara ao porteiro.
- Depressa, senhor Lambajan! Erga isto no pau da bandeira e vamos lá ver quem faz continência.
Quanto a mim, nunca saudei a caveira-e-tíbias de Aurora; naqueles tempos o pirata não era o meu tipo. Além de que, por esta altura já eu sabia como é que Lambajan
tinha realmente ficado sem a perna.
(*) Promotório que domina a cidade de Bombaim e é a mais elegante zona residencial. (N. T.)
(**) Peças do Teatro Popular Indiano de índole brejeira ou mesmo obscena. (N. T.)
Em primeiro lugar, é preciso saber que as pessoas perdiam braços e pernas mais facilmente do que hoje em dia. Os estandartes da dominação inglesa pendiam sobre o
país como outras tantas fitas pega-moscas e, ao tentarmos despegar-nos dessas bandeiras fatais, nós, as moscas - se é que posso dizer "nós" referindo-me a uma época
anterior ao meu nascimento - deixávamos muitas vezes para trás pernas e asas, preferindo a liberdade à integridade física. Claro que, agora que a fita peganhenta
passou à história, arranjamos maneira de perder os nossos membros na luta contra outros valores que nós próprios construímos, igualmente mortais, igualmente antiquados
e igualmente pegajosos. - Mas basta! basta de arengas! Desliga o megafone e pára de agitar o indicador! - Continuemos. , A segunda informação essencial a respeito
da perna de Lambajan tem a ver com as cortinas de minha Mãe; refiro-me ao facto de serem cortinas adamascadas verde-e-ouro, sempre corridas, nas janelas e no vidro
de trás do seu automóvel americano...
Em Fevereiro de 1946, Bombaim, essa cidade que era como que uma superprodução cinematográfica, transformou-se de um dia para o outro num quadro imóvel, devido a
uma greve geral de "mbarcadiços e trabalhadores do cais: os navios não levantaram ferro, o aço não foi processado, os teatros ficaram quedos e silenciosos e nos
estúdios de cinema não se ouviu a voz de "acção!". Foi então que Aurora, que tinha 21 anos, começou a cirandar à volta da cidade paralisada no seu famoso Buick de
cortinas corridas, ordenando ao motorista Hanuman que seguisse até ao centro de toda a inércia que se verificava ao longo das docas e dos portões das fábricas, aventurando-se
sozinha pelo bairro miserável de Dharavi, os antros da ruim de Dhobi Talao e os bordéis iluminados a néon de Falkland Road, armada unicamente com um banquinho desdobrável
e um caderno de esboços. Abrindo um e outro, ela instalou-se para capturar a carvão os ventos da história.
- Não façam caso de mim, ordenou ela aos grevistas boquiabertos que ia retratando a alta velocidade à medida que eles faziam jãquete, bebiam e confraternizavam com
as putas. - Deixem-me *star para aqui sossegada, como se fosse uma lagartixa na parede, chamem-me gatafunho ambulante.
- Completamente doida - dizia Abraham Zogoiby, encantado, muitos anos depois. - A tua Mãe, rapaz. Doida varrida. Deus sabe o que lhe ia na cabeça. Estás a ver o
que era, em Bombaim, uma senhora só, sentada no meio da rua, a olhar fixamente para os homens, a entrar nos antros do jogo e a rapar do livro dos retratos? Uma verdadeira
bomba!
Devia ser um espectáculo. Estivadores enormes, de dente de ouro, acusavam-na de lhes estar a roubar a alma, de lhes sacar literalmente a alma de dentro do corpo
com o lápis; e trabalhadores do aço, na sua greve vigilante, suspeitavam que, secretamente, ela fosse espia da polícia. A própria estranheza da sua actividade de
artista fazia dela uma personagem suspeita, como é costume em toda a parte e provavelmente sempre será. Empurrões, ameaças sexuais, tentativas de intimidação física,
tudo isto e mais ainda ela dominou com um simples olhar directo e inflexível. Minha mãe sempre teve o poder oculto de se tornar invisível quando se entregava à sua
arte. Com aquele longo cabelo branco torcido em carrapito no alto da cabeça, com um vestidinho às flores comprado na Feira de Craw-ford, ela regressou dia após dia,
calma e indómita, aos cenários que escolhera e pouco a pouco a mágica resultou, as pessoas deixaram de reparar nela; esqueceram-se de que ela era uma grande senhora
que andava num carro do tamanho de uma casa que até tinha cortinas nas janelas e permitiram que a verdade de novo lhes assomasse aos rosto e por isso é que o carvão
vertiginoso nos dedos de Aurora pôde capturar tudo aquilo - as discussões e bofetadas entre crianças nuas à entrada dos prédios, o desespero desgrenhado dos trabalhadores
ociosos fumando "beedis", à porta das lojas fechadas, as fábricas silenciosas, a sensação de que o sangue nos olhos injectados dos homens não tardaria a saltar e
a inundar as ruas, a dureza das mulheres com os saris pela cabeça agachadas em frente de minúsculos fogareiros a petróleo, tentando esconjurar do nada refeições
para toda a família, o pânico no olhar dos polícias de cassetetes de bambu receosos de que um dia mais tarde, quando chegasse a liberdade, fossem vistos como o braço
armado da opressão, a tensão eufórica dos marinheiros em greve junto dos portões dos estaleiros, o seu orgulho infantil de crianças traquinas mascando "channa" à
entrada das docas secas e admirando os navios imóveis ancorados no porto que hasteavam bandeiras vermelhas em honra da revolução, gozando a arrogância naufragada
dos oficiais ingleses cujo poder se esvaía com as ondas, deixando-os encalhados com a recordação da atitude emproada da sua antiga invencibilidade, os farrapos das
suas vestes imperiais. E, por baixo de todas estas imagens estava Aurora e o seu sentido da insuficiência do mundo que não conseguia erguer-se à altura das suas
expectativas, de tal modo que o próprio desapontamento dela perante a realidade e a sua irritação perante a injustiça impregnavam a sua interpretação dos assuntos
retratados e faziam dos seus desenhos uma afirmação pessoal para além do mero documento e conferia-lhes uma violência e uma paixão no traço que tinham a força de
um ataque físico.
Kekoo Mody apressou-se a alugar um salão no bairro do Forte e a expor estes esboços que vieram a ser conhecidos por "desenhos Chipkali" ou desenhos da lagartixa
porque, aconselhada por Mody (os desenhos eram claramente subversivos, a favor da greve, e por isso constituíam um desafio à autoridade britânica), Aurora não os
assinou mas desenhou simplesmente uma lagartixa minúscula no canto de cada desenho. O próprio Kekoo esperava firmemente vir a ser preso e decidira aguentar o castigo
em nome de Aurora (a quem tinha ficado rendido desde o primeiro encontro); quando tal não aconteceu - porque, de facto, os Britânicos preferiram não tomar conhecimento
da existência da exposição - ele achou que isso era mais um sinal do declínio não só da força dos Ingleses como até da sua vontade. Alto, pálido, desastrado e majestosamente
míope, usando lentes tão grossas que pareciam à prova de bala, Kekoo passeava-se pela exposição à espera da prisão que não chegava, bebendo frequentes tragos de
um termos com ar inocente que ele enchera com rum barato cor de fihá forte e atalhava a passagem aos visitantes da galeria para lhes expor longamente as auas opiniões
acerca da queda iminente do Império Britânico. Uma tarde Abraham Zogoiby, de visita à exposição às escondidas de Aurora, revelou um ponto de vista diferente:
- Vocês os artistazecos - disse ele para Kekoo - estão sempre tão seguros do impacto que têm... Desde quando é que as massas visitam estas exposições? E quanto aos Britânicos, deixem que lhes diga que eles estão-se ralando para a Arte.
Durante algum tempo Aurora orgulhou-se do seu cognome, considerando que se tinha transformado, como era seu desejo, numa lagartixa que observava o mundo sem pestanejar
do alto do muro da história, espiando e registando; mas quando a sua obra de pioneira criou seguidores, quando outros jovens artistas começaram a portar-se como
cronistas públicos e até se agruparam no chamado "Movimento Lagartixa", a minha Mãe, num gesto bem seu, desvinculou-se dos seus discípulos. No artigo de um jornal
intitulado "Eu Sou a Lagartixa" revelou-se como autora dos desenhos, desafiando os Ingleses a tomarem medidas contra ela (o que eles não fizeram) e classificando
desdenhosamente os seus imitadores de "caricaturistas e fotógrafos".
- Tomar grandes atitudes é muito bonito - lembrava meu Pai já depois de velho - mas é o caminho mais curto para uma vida de solidão.
Quando Aurora Zogoiby soube que os chefes do Congresso tinham conseguido convencer o Comité da greve da gente do mar a levantar a proibição de trabalho e que já
fora convocada uma reunião para enviar de novo os trabalhadores para os seus postos, o seu desapontamento perante o mundo real não conheceu limites. Sem pensar,
sem esperar sequer pelo seu motorista Hanuman, saltou para o Buick e partiu em direcção à base naval. Por alturas da Igreja Afgã, contudo, ao passar pelo Quartel
de Colaba, o sentimento de invulnerabilidade que a protegia como um verniz abrira fendas e ela começou a ter dúvidas quanto à sensatez da sua iniciativa. O caminho
para a base estava coalhado de marinheiros vencidos, rapazes frustrados nos seus uniformes impecáveis e péssima disposição, homens apanhados num turbilhão de desânimo
como folhas caídas.
Ouviam-se corvos a crocitar num plátano, com ar trocista; um marujo pegou numa pedra e atirou-a em direcção ao ruído. Formas negras esvoaçaram desdenhosamente, descreveram um círculo e voltaram a instalar-se retomando os seus sarcasmos. Agentes da polícia de calções, agrupados aqui
e ali, murmuravam entre si com inquietação como crianças que receiam um castigo e até minha mãe começou a perceber que aquilo não era lugar para uma senhora munida
de um caderno de esboços e de um banquinho desdobrável, quanto mais um Buick rutilante sem ao menos a presença de um motorista. Era uma tarde quente, húmida, irritadiça.
Um papagaio de papel lilás com o fio cortado nalguma outra batalha perdida, desalbou pateticamente do céu.
Aurora não desceu o vidro para perguntar a opinião dos marinheiros porque pensava o mesmo que eles - que o Congresso se portava como uma data de lambe-cús e que,
mesmo agora que os Ingleses não tinham suficiente confiança no exército para o lançar contra os marinheiros, eles podiam ter a certeza que os figurões do Congresso
lhes poupariam esse esforço. Quando as massas finalmente se decidem a avançar, pensava ela, os patrões desatam a fugir. Brancos ou pretos, os patrões são sempre
a mesma coisa.
. - Esta greve meteu-nos tanto cagaço a nós como a eles. Aurora também sentia ganas de revolta; mas não era uma mulher do povo e sabia bem que aos olhos daqueles
homens furiosos não cara senão uma cabra rica num carro de luxo - talvez mesmo o inimigo.
O afluir da multidão taciturna tinha-a forçado a afrouxar a marcha do Buick; e de repente, num gesto rápido que traía uma força assustadora, um jovem gigante de
cara fechada torceu o retrovisor lateral do Buick que ficou pendurado do carro, inutilizado como um braço partido. Aurora teve um baque e decidiu que "a tempo de
se retirar. Não podendo voltar o Buick, meteu a marcha atrás; mas ao começar a andar percebeu que sem o retrovisor lateral a sua visão achava-se obstruída pela cortina
verde-ouro; que alguns marujos, numa atitude de desafio final, tinham subitamente resolvido sentar-se no asfalto; e que, graças a um sentimento crescente de pânico,
acelerara demais e estava a recuar com excessiva velocidade.
Ao meter travões, sentiu uma pancada ligeira.
São raras as ocasiões em que Aurora Zogoiby tenha entrado em pânico, mas esta foi uma delas: ao sentir a pancada, minha mãe horrorizada apercebeu-se de que alguém
se tinha sentado no chão atrás do carro em manifestação de protesto. Imediatamente meteu a primeira; o carro saltou uns metros para a frente, e a roda de trás passou
pela segunda vez sobre a perna estendida do marinheiro acidentado. Neste momento um grupo de polícias correu para o Buick agitando os cassetetes e apitando e Aurora,
agindo agora como que em sonhos, comandada por uma espécie de sentimento de culpa e por um desejo de fuga, de novo recuou, às sacudidelas. Houve um terceiro solavanco,
desta vez menos perceptível que os primeiros. Ouviram-se atrás dela gritos de raiva e, completamente desorientada por aquela situação, Aurora atirou-se uma vez mais
para a frente, numa reacção desvairada aos gritos - mal sentindo o quarto solavanco - e atropelou pelo menos um polícia que ficou estendido no chão. Chegado a este
ponto, graças a Deus, o Buick foi-se abaixo.
O que mais me intrigou quando, ainda em rapaz, ouvi esta história (e continua hoje a deixar-me perplexo) foi como é que ela conseguiu sair dali viva após ter praticamente
cortado um homem ao meio? A própria Aurora variava de explicação de cada vez que contava a história, atribuindo a sua fuga quer à desorientação daqueles infelizes
marinheiros, quer a algum resto de disciplina militar que evitou que eles se tornassem num pelotão de linchamento, quer ainda ao cavalheirismo inato e ao sentido
da hierarquia dos homens indianos que os impediu de maltratar uma senhora, especialmente uma grande senhora. Ou então talvez tenha sido por causa da sua profunda
e evidente consternação - posta de parte qualquer atitude de superioridade! - e da sua preocupação pelo pobre ferido, cuja perna assumira uma parecença alarmante
com o retrovisor bamboleante; ou por causa da rapidez e hábitos de comando com que ela o mandou levantar e colocar no banco de trás do Buick, onde ele ficou escondido
dos olhares irados da multidão pelas cortinas verde-ouro, enquanto ela fazia notar aos circunstantes que o ferido precisava de um transporte imediato e que o seu
carro era o mais rapidamente disponível nas
imediações. A verdade é que ela não tinha a menor ideia sobre o motivo por que fora poupada por aquela multidão, cada vez mais ameaçadora, mas nos seus piores momentos
talvez se encontrasse perto da verdade ao achar que tinha sido salva pela sua fama; porque o seu retrato andava por toda a parte e não era difícil de reconhecer
o seu belo rosto juvenil enquadrado pelos longos cabelos brancos.
- Diz aos teus amigos lá do Congresso que nos sentimos traídos - gritou alguém, ao que ela respondeu:
- É o que vou dizer - e então eles deixaram-na passar. (Alguns meses mais tarde, bailando no terraço da sua casa, Aurora cumpriu a palavra e teve com Jawaharlal
Nehru uma dura troca de palavras. Pouco tempo depois, os Mountbatten chegaram à India e Edwina e Nehru apaixonaram-se. Não será de pensar que essa discussão azeda
acerca da greve terá afastado Nehru de Aurora para o aproximar da consorte do Vice-Rei, possivelmente menos conflituosa?)
A versão de Abraham - que tinha prometido olhar por ela - era diferente. Ele contou-ma, em confidência, bastante depois da morte dela.
! " "Nessa altura eu tinha-a sob vigilância e bom trabalho nos dava a todos. Não quero dizer que fosse extremamente difícil garantir "ssegurança da tua Mãe quando
ela se embrenhava numa das suas aventuras de capa e espada, mas eu não podia dormir na forma. Fosse aonde fosse aquele Buick, os meus rapazes não estavam longe.
Mas como é que eu podia tranquilizá-la? Se ela soubesse, comia-me vivo."
Não é fácil para mim, ao fim de tantos anos, saber em quem acreditar. Como é que Abraham podia adivinhar que Aurora ia sair dali naquelas condições? Mas talvez a
versão dela seja suspeita - talvez a sua partida não tenha sido tão precipitada, afinal de contas. É o velho problema dos biógrafos: mesmo quando as pessoas estão
* contar a história da sua vida, estão invariavelmente a embelezar os factos, a reescrever a história ou pura e simplesmente a inventar. Aurora precisava de brandir
a sua independência: a versão de Abraham decorria da necessidade de fazer crer aos outros - sobretudo
a mim - que a segurança de Aurora dependia dele. O interesse dessas histórias está mais no que elas revelam acerca dos sentimentos dos protagonistas do que na realidade
dos factos. Mas no caso do marinheiro atropelado a verdade dos factos é simples de estabelecer - a perna do pobre diabo teve de ser-lhe amputada.
Aurora levou-o para casa e transformou-lhe a vida. Ela diminuíra-o fazendo perder uma perna e acabando com o seu futuro na marinha; agora procurava furiosamente
dar-lhe de novo maior estatura fornecendo-lhe um novo uniforme, um novo emprego, uma nova perna, uma nova identidade e um papagaio rezingão para coroar tudo. Destruíra-lhe
a vida, mas conseguiu salvá-lo das consequências mais graves da destruição, salvá-lo de um futuro de sarjeta e de mendicidade. Em consequência, ele apaixonou-se
por ela, nem mais: passou a ser Lambajan Chandiwala, tal como ela queria; contava histórias fabulosas de elefantes para exprimir o seu amor, que era o amor impossível,
a devoção canina de um escravo pela sua rainha, com extrema mortificação de Miss Jaya Hé, a nossa azeda e esquelética ama e governanta que se tornara sua noiva e
seu algoz.
- Baapré! - gritava ela para o insultar. - Vai passear para a praia e não pares quando chegares ao mar.
Ao portão de Aurora - as portas da Aurora, como lhes chamava Vasco Miranda - Lambajan protegia sua ama das investidas do mundo grosseiro mas, de certo modo, também
protegia os estranhos das investidas dela. Ninguém entrava sem que ele soubesse ao que vinha; mas também fazia questão de dar conselhos aos visitantes.
- Fale baixo hoje - dizia ele, por exemplo. - Ela hoje tem a cabeça cheia de murmúrios. Ou então: - Está com pensamentos sombrios. Veja se lhe conta uma anedota
engraçada.
E assim avisadas, as visitas de minha Mãe podiam evitar uma explosão atómica do seu lendário - e altamente artístico - temperamento.
Minha Mãe era uma estrela demasiado brilhante; olhá-la fixamente podia causar cegueira. Mesmo agora a sua recordação é ofuscante, temos de descrever círculos para
chegar a ela. Só pode ser apreendida indirectamente, pelo seu efeito sobre os outros - a flexão que o seu impacto provocava nos raios de luz emitidos pelos outros,
a sua atracção gravitacional que não deixava qualquer esperança de fuga, as órbitas em declínio de quem tentasse resistir-lhe até serem atraídos por aquele sol e
consumidos pelo seu fogo. Ah, os mortos, os que foram lenta e inexoravelmente morrendo, quão longa e rica a sua história! Nós os vivos temos de nos contentar com
encontrar espaço junto dos mortos - esses mortos gigantes que não podemos atar ao chão, por mais que nos agarremos aos seus cabelos e os atemos com cordas enquanto
eles dormem. (*)
Haveremos de morrer sem que as nossas almas, há tanto tempo reprimidas, possam exprimir-se, sem que a nossa natureza mais secreta possa dar-se a conhecer? Para quem
de direito declaro bem alto: Não, nem pensar. Quando era novo, costumava sonhar - tal como Carmen da Gama, mas por razões menos masoquistas e menos masturbatórias,
ou como o pobre Oliver d'Aeth, desamado de Deus e afligido de fotofobia - em retirar a minha própria pele, como se fosse uma banana e de seguir nu no mundo como
uma placa anatómica da Encyclopaedia Britannica, todo eu gânglios, ligamentos, trilho de nervos e de veias, finalmente liberto das correntes - de outro modo inescapáveis
- de cor, raça e clã. (Noutra versão, eu conseguia descascar-me ainda mais fundo do que a minha pele e flutuava no ar, largados a carne, a pele e os ossos, transformado
num simples intelecto ou num simples sentimento à solta no mundo, brincando pelos campos fora como um novelo de luz de ficção científica que não precisa de assumir
forma física.)
(*) Alusão a "Viagens de Gulliver", de Jonathan Swift. (N. T.)
Do mesmo modo, ao escrever isto eu tenho de esfolar de mim a história, essa prisão do passado. Chegou a altura de encontrar um final em que a minha verdade se liberte
finalmente da acção asfixiante dos meus pais, se liberte da minha própria pele escura. Estas palavras são como um sonho que se realiza. Um sonho doloroso, não o
nego; porque no mundo real não é tão fácil esfolar um homem como pelar uma banana, por mais maduro que ele esteja. E quanto a Aurora e Abraham, vai ser difícil livrar-me
deles.
A maternidade - se me permitem frisar este ponto - é uma grande ideia na índia, talvez mesmo a nossa maior ideia: a Terra-Mãe, a Mãe-Terra é a terra firme sob os
nossos pés. Senhoras-i-Cavalheiros: estou a falar-lhes da Terra-Mãe primordial. No ano em que nasci estreou-se em todo o país "Mãe índia", uma superprodução cinematográfica
de Mehboob - três anos de produção, trezentos dias de filmagens, manteve-se nos três primeiros lugares de lucros brutos de todos os tempos em Bollywood. Quem o viu
jamais poderá esquecer aquela saga viscosa de heroicidade campónia, aquela ode super-piegas à resistência da índia das aldeias feita pelos citadinos mais cínicos
do mundo. Quanto à actriz principal - ó Nargis, com a tua pá ao ombro e o teu fio de cabelo preto caído sobre a testa! - tornou-se na verdadeira Mãe índia de todos
nós, até ser suplantada por Indira-Mata.(*) Aurora conhecia-a, claro: como qualquer outra luminária do seu tempo, a actriz era atraída pela chama resplandecente
da minha Mãe. Mas não se deram lá muito bem, devido talvez ao facto de Aurora não ser capaz de se abster de mencionar o assunto
- tão próximo do meu coração - das relações mãe-filho.
- A primeira vez que eu vi a fita - disse ela, recebendo no seu terraço de Elephanta a famosa estrela de cinema -, assim que pus os olhos no seu Filho Mau, Birju,
pensei logo: ena pai, que grande borracho - estou cá com uns calores, é pior que piripiri, tragam-me água. Talvez seja um ladrão e é com certeza muito ordinário,
mas é material de primeira para a cama. E agora vejam só: vai você e casa com ele! Vocês gente do cinema divertem-se à brava: imaginem, casar com o próprio filho.
Chiça!
(*) Designação malaia do Sol. Alusão à Sr.a Gandhi. (N. T.)
O actor em questão, Sunil Dutt, estava de pé, ao lado da mulher, beberricando limonada, corado até às orelhas. (Nesses tempos reinava a lei seca em Bombaim e, embora
em Elephanta, houvesse uísque-com-soda à discrição, o actor estava tentando dar um exemplo de moralidade exemplar.)
- Não confunda a verdade com a ilusão, minha senhora - disse ele solenemente como se fosse pecado. - Tanto Birju como a sua mãe Radha são meras ficções a duas dimensões
no ecrã do cinema; nós somos de carne e osso e a três dimensões, como visitas da sua casa encantadora.
E, para amenizar a reprimenda contida na sua última frase, Nargis esboçou um pequeno sorriso amarelo.
- Só de ver a fita - continuou Aurora implacável -, percebi logo que o malandro do Birju estava cheio de tusa pela boazona da mãe.
Nargis calou-se, de boca aberta. Vasco Miranda, que não resistia a uma boa cena, viu aproximar-se a tempestade e apressou-se a entrar em cena.
- A sublimação dos anelos mútuos entre filhos e progenitores - disse ele -, tem raízes profundas na psique nacional. O uso dos nomes no filme, por exemplo, torna
esse sentido bem claro. A alcunha, "Birju", é também usada pelo Deus Krishna, não é verdade, e como se sabe a bela e leitosa "Radha" é o grande amor do deus azul.
No filme Sunil está caracterizado para se parecer com o deus a até brinca com as raparigas atirando pedras para lhes partir as cantarinhas que simbolizam úteros;
o que temos de admitir que é um comportamento típico de Krisíina. Na minha interpretação - e aqui o chocarreiro Vasco tentou, sem sucesso, introduzir no seu discurso
certa gravitas de erudito - a "Mãe índia" é a face oculta do mito Radha-Krishna, acrescido do tema subsidiário do amor proibido. Mas, que importa! O Édipo pode ir
para o diabo. Mais outro pastelinho?
- Que conversa porca - disse a Deusa Mãe. - Mete nojo, chi!... Eu já tinha ouvido dizer que a esta casa só vinha gente depravada, artistas, intelectuais e beatniks,
mas sempre lhes dei o benefício da dúvida. Agora é que eu vejo que estou rodeada de
gente sem respeito, da escória da terra. Vocês gostam é de fossar e refocilar em pensamentos negativos. No nosso filme acentuamos o lado positivo. Está lá a coragem
das massas, e há barragens (*) e tudo.
- Também tinham palavrões? - perguntou Vasco com ar inocente. - Boa! Assim é que é. Mas na montagem final a censura deve ter tirado tudo.
- Chiça! - gritou Sunil Dutt, fora de si. - Raio de estupidez! Não estamos a falar de palavrões mas de novas tecnologias, ou seja, o projecto hidroeléctrico que
minha mulher inaugura logo na primeira cena.
- E quando se refere a "sua mulher" - explicou Vasco muito prestimoso - está-se a referir, claro está, a sua mãe.
- Vamos embora, Sunil, - disse a lenda viva, dirigindo-se para a saída. - Se este gang antipatriótico e ateu é que é o mundo da arte, ainda bem que eu estou no lado
comercial.
Em "Mãe índia", uma obra dedicada ao mito Hindu e realizada por Mehboob Khan, um socialista muçulmano, a camponesa indiana é idealizada como noiva, esposa, mãe produtora
de filhos machos; sofredora, estóica, carinhosa, redentora e conservadora-mente dedicada à manutenção do status quo. Mas, como um crítico fez notar, para Birju,
expulso e privado do amor da sua mãe, ela transforma-se na imagem daquela mãe agressiva, traiçoeira e destruidora que assombra o espírito dos homens indianos.
Eu também tenho alguma coisa a dizer acerca dessa imagem: também eu em tempos fui condenado como mau filho.
Minha mãe não tinha nada a ver com Nargis Dutt - ninguém a apanharia carregando uma pá ao ombro. "Tenho o prazer de declarar que nunca vi uma pá."(*) Aurora era
uma rapariga da cidade, tipicamente citadina, a própria encarnação da metrópole elegante, tal como a Mãe índia era a aldeia feita carne. Apesar
(*) Barragem, "dam" em inglês, que Vasco Miranda finge confundir com "damn", imprecação inglesa assás inócua. (N. T.)
(**) Frase pronunciada pela jovem e elegante Gwendolen, personagem da peça de Oscar Wilde "A Importância de se Chamar Ernesto". (N. T.)
disso, achei instrutivo comparar e contrastar as nossas duas famílias. No filme, o marido da Mãe índia ficava impotente, com o braço esmagado por um rochedo: os
membros destruídos também têm um papel preponderante na nossa saga. (Quanto a saber se Abraham era impotente ou não, a decisão é vossa.) Comparando Birju com o Mouro,
a pele escura e a desonestidade não era tudo o que tínhamos em comum.
Tenho estado a guardar segredos tempo demais. Já é altura de pôr tudo em pratos limpos.
As minhas três irmãs nasceram com curtos intervalos entre si: Aurora carregou com elas e ejectou-as com tal desprendimento e desinteresse que ficou logo bem claro
para elas, muito antes de nascerem, que as suas necessidades post partum deparariam com poucas ou nenhumas concessões. Os próprios nomes que a mãe lhes deu vieram
confirmar essa suspeita. A mais velha, inicialmente chamada Cristina, apesar dos protestos do seu pai judeu, viu eventualmente o seu nome cortado ao meio.
- É escusado amuar, Abie, determinou Aurora. Daqui em diante ela passa a ser Ina, sem Cristo.
E assim a pobre cresceu só com meio nome. Um ano depois, quando nasceu a segunda filha, ainda foi pior porque Aurora insistiu em chamar-lhe "Inamorata". Abraham
protestou de novo: - As pessoas vão fazer confusão - queixou-se ele -, uma é "Ina", a outra "Ina-more"(*), como se fosse "Ina-mais"...
Aurora encolheu os ombros: - A Ina pesava cinco quilos quando nasceu, rais a partam. Tinha uma cabeçorra como uma bala de canhão, um cu como a popa dum navio. Esta,
que mais parece um hamster, com dois quilos e meio, só pode ser uma Ina-menos.
Em poucos dias decidiu que o bebé Inamorata era tal e qual a cara duma ratinha dum desenho animado muito conhecido:
(*) Em inglês "more" é "mais". (N. 71)
- É só orelhas, olhos esbugalhados e vestidos às pintinhas - e a minha irmã do meio passou a chamar-se Minnie daí em diante.
Quando Aurora anunciou, dezoito meses depois que a sua terceira filha iria chamar-se "Philomina",(*) Abraham arrepelou-se todo:
- Mais uma confusão de Minnie - Mina, gemeu ele. Mais uma - ina ainda por cima.
Philomina, presente em toda esta disputa, começou a chorar com um berreiro grosso e nada musical que convenceu toda a gente, excepto sua mãe, de quão comicamente
fora de propósito era dar-lhe o nome de "rouxinol". Quando a criança chegou aos três meses, a ama, Miss Jaya Hé, ouvindo uma série alarmante de grasnidos e trilos
agudos vindos do quarto das crianças, precipitou-se para lá e foi encontrar o bebé cantando como um pássaro, deitada no berço e dando largas à sua satisfação. Das
suas camas de grades, Ina e Minnie espreitavam a irmã com expressões de terror e admiração. Convocada Aurora, logo ela lavrou sentença com uma imperturbável despreocupação
que imediatamente racionalizou o milagre:
- Se ela está a imitar um pássaro, não é um bulbul mas uma mynah (**). E daí em diante foi Ina, Minnie, Mynah, que mais tarde na escola se tornou Eenie-Meeney-Miney,
três palavras numa sequência de quatro, com um silêncio onde faltava a quarta (***). Três irmãs à espera - e bem tiveram de esperar porque entre Mynah e eu houve
um intervalo de oito anos - para poderem agarrar o irmão pelo dedo do pé.
A criança do sexo masculino, por cuja posse a velha Flory Zogoiby tanto tinha lutado, continuava a revelar-se esquiva e em honra da memória de meu pai deve dizer-se
que ele sempre se manifestou satisfeito com as suas filhas. À medida que elas iam crescendo,
(*) Filomena etimologicamente significa "rouxinol". (N. T.)
(**) Aves indianas: bulbul - espécie de rouxinol; mynah-mainá, ave de voz estridente. (N. T.)
(***) Eenie-Meeney-Myney-Mo é o 1º verso duma lengalenga infantil, equivalente em português a "Um-dó-li-tá", que serve para os jogos e brincadeiras das crianças. (N. T.)
"ele mostrava-se o mais baboso dos pais; até que um dia - em 1956, durante as férias grandes depois da estação das chuvas - quando em digressão para visitar o templo
budista de Lonavla, situado em subterrâneos há dois mil anos, ele agarrou-se ao coração, ofegante, a meio caminho da escadaria íngreme cortada no monte que leva
à entrada da gruta principal e, com um estertor na garganta e os olhos embaciados, estendeu a mão inutilmente em direcção das três meninas, nessa altura com nove,
oito e quase-sete anos de idade que, sem reparar na agonia do pai, lá iam trepando a correr e a rir, afastando-se dele com aquela velocidade despreocupada e aquela
imortalidade irreflectida próprias da juventude.
Aurora apanhou-o nos braços. Uma velhota que vendia cogumelos apareceu por ali e ajudou-a a sentar Abraham encostado às rochas, com o chapéu de palha caído sobre
a testa e um suor frio escorrendo pelo pescoço abaixo.
- Tu não me estiques a canela, chiça! - gritou Aurora, segurando-lhe a cara entre as mãos - Não tens licença de morrer. Vá, respira! - E Abraham, obediente como
sempre, sobreviveu. Restabeleceu-se o fôlego, os olhos desanuviaram-se e ele ali ficou de cabeça baixa a descansar uns minutos. As raparigas voltaram para trás escada
abaixo, de olhos arregalados e mãos na boca.
- Estás a ver o problema de ser um pai já velho - segredou Abraham, que tinha então cinquenta e três anos, antes que as filhas se aproximassem. - Elas crescem tão
depressa e eu estou a ir-me abaixo. Por minha vontade tudo isto parava neste mesmo momento
elas de crescer e eu de envelhecer.
Aurora fez um esforço para responder em tom ligeiro:
- Tu ficas cá para semente. Contigo não me preocupo eu. Quanto a estas selvagenzinhas, tomara eu que elas crescessem depressa. Esta chatice da infância nunca mais
acaba! Porque é que eu não hei-de ter filhos - nem que seja só um - que cresça depressa e bem!
Atrás dela uma voz abafada disse umas palavras. Obeah, jadoo, fo, fum. Aurora virou-se rapidamente. - Quem é que disse isso?
Só ali estavam as crianças. Outros visitantes do templo, alguns transportados em cadeirinhas - Abraham recusara tão indolente
solução - entravam e saíam das grutas mas estavam todos longe dali, acima ou abaixo.
- Onde está aquela mulher? - perguntou Aurora às filhas - A mulher dos cogumelos que me ajudou. Onde é que ela se meteu?
- Nós não vimos ninguém - respondeu Ina. - Só estavam vocês os dois.
Mahabaleshwar, Lonavla, Khandala, Matheran... Ó frescas e bem amadas estâncias de montanhas que jamais tornarei a ver, cujos nomes ecoam para os habitantes de Bombaim
com a memória de risos de criança, doces canções de amor, dias e noites nas verdes e frescas florestas, gastas em passeios e ociosidade! Na estação seca antes das
chuvas aqueles cumes benditos parecem flutuar levemente num halo bruxuleante e mágico; após a monção, quando o ar está límpido, pode-se subir, por exemplo, ao Cume
do Coração em Matheran ou à Colina da Árvore Solitária e por vezes, naquela claridade sobrenatural, pode-se ver o futuro, senão todo, ao menos um ou dois dias para
diante.
No dia do colapso de Abraham, no entanto, o estilo de vida sossegado e mimoso da estância de montanha não era o mais indicado. A família estava a passar férias no
Hotel do Senhor em Matheran, o que queria dizer que, após o delíquio de Abraham, tiveram de seguir de carro durante trinta quilómetros por uma estrada em mau estado
ao fim da qual deixaram o Buick a cargo de Hanuman e tomaram o comboio miniatura pela colina acima desde Neral, através do túnel do Beijo e mais além, uma viagem
de duas horas a passo de caracol, durante a qual Aurora, abandonando por uma vez as sua normas férreas, encheu as raparigas de caramelos e chupa-chupas para as calar,
enquanto Miss Jaya molhava lenços em água fria, que Aurora aplicava na fonte fatigada de Abraham.
- Leva mais tempo a chegar ao raio do Hotel do Senhor - protestava Aurora -, do que ao próprio Paraíso.
Mas pelo menos o Hotel era real, tinha uma realidade de base empiricamente comprovável enquanto que o Paraíso era uma coisa à qual a minha família não dava grande
importância. O comboiozinho lá ia resfolegando pela encosta acima, com as cortinas cor-de-rosa a dar a dar nas janelas da 1ª classe; até que por fim parou, os macacos
desceram do tecto das carruagens para tirar os chupa-chupas às crianças aterradas. Tinham chegado ao fim da linha; e nessa noite, num quarto do hotel rescendendo
a especiarias, sob uma lenta ventoinha, Aurora Zogoiby num ruidoso colchão de molas acariciou o marido até o seu corpo voltar de novo à vida; quatro meses e meio
mais tarde, no dia de Ano Novo de 1957, dava à luz o seu quarto e último filho.
Ina-Minnie-Mynah e finalmente o Mouro. Que sou eu: o fim da linha. E não só. Sou também, chamemos-lhe assim, um desejo realizado. Ou então chamemos-lhe a praga da
defunta. Eu sou aquele filho que, nas escadas da gruta de Lonavla, Aurora lamentava não ter tido. É esse o meu segredo e, após tantos anos não posso senão contá-lo
assim, de caras, e tanto pior se não soa bem.
Estou a percorrer o tempo mais depressa do que é normal. Faço-me entender? Alguém algures está a carregar no botão marcado FF ou, para ser mais exacto, X2. Escuta
com atenção, leitor, não deixes escapar
uma palavra porque o que eu estou a escrever agora é a verdade simples e literal. Eu, Morais Zogoiby também conhecido como o Mouro - para mal dos meus pecados, por
minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa - vivo ao dobro da velocidade.
E a vendedora de cogumelos? Ao interrogar no dia seguinte na recepção do hotel o chefe dos porteiros, Aurora foi informada de que nunca tinha havido, que ele soubesse,
cogumelos cultivados ou vendidos na região das grutas de Lonavla. E a velhota - entranhas de galinha, o outro mundo, nunca mais foi vista.
(Vejo aproximar-se a aurora; discretamente, faço silêncio.)
10
Repetindo: desde o momento da minha concepção, como um visitante de outra dimensão, de outro tempo, eu tenho envelhecido duas vezes mais depressa do que o planeta
e tudo o que nele existe. Quatro meses e meio desde a concepção ao nascimento: a minha evolução em dupla velocidade não podia proporcionar à minha mãe senão uma
gravidez dificílima. Tal como vejo as coisas, numa visão fantástica, o inchar acelerado do seu útero era semelhante aos efeitos especiais num filme científico, como
se, em consequência de se ter premido duas vezes a seguir o botão da evolução biológica, os elementos bioquímicos da minha mãe tivessem começado a proliferar desordenadamente
e a impor ao seu corpo alterações tão violentas que os efeitos exteriores da minha gestação se tornavam visíveis a olho nu. Engendrado numa colina, nascido noutra,
eu atingi proporções de montanha quando ainda só cfiegara à altura de ser um montículo... O que eu quero tornar claro é que, se está fora de dúvida que eu fui concebido
na Casa do Senhor em Matheran, também não é de negar que quando o Bebé Gargântua Zogoiby inspirou o primeiro e surpreendente hausto na luxuosa Casa de Saúde das
freiras de Maria Gratiaplena em Bombaim, na Altamount Road, o seu desenvolvimento físico era tal - a pontos de exibir uma erecção generosa que bastante dificultou
a sua passagem pelo colo do útero
- que ninguém em seu juízo ousaria chamar-lhe semiformado.
Prematuro? Postmaturo é que era. Quatro meses e meio naquele elemento húmido e viscoso pareciam-me demais. Desde o início -
muito antes do início - já sabia que não tinha tempo a perder. Arrastado pelas águas do parto perdidas, em direcção ao ar necessário, firmemente bloqueado nas passagens
inferiores de Aurora pela decisão militar do meu pipi de celebrar aquele momento solene fazendo continência, resolvi dar a conhecer aos presentes a natureza urgente
do meu problema soltando um poderoso mugido. Ao ouvir o meu primeiro som a emergir do interior do seu corpo (e tomando pela primeira vez consciência do tamanho imenso
daquilo que estava para nascer), Aurora ficou a um tempo impressionada e consternada; mas, evidentemente, não perdeu o pio.
- A seguir às nossas Eeny-Meeney-Miney - proferiu ela arfando em direcção à parteira eclesiástica aterrada, que julgava ter ouvido uivar um canzarrão infernal -
creio, Irmã, que vem aí o Moo.
De Moo a Mouro, do primeiro gemido ao último suspiro: a minha história começa e acaba com estes sons.
Hoje em dia não sou o único a sentir que muita coisa passou depressa demais e já lá vai: um momento da vida, um período da história, um certo conceito de civilização,
um desvio na rota do mundo imperturbável. Mil anos aos teus olhos não são mais que uma noite, cantam eles na Catedral de S. Tomás ao seu deus indubitavelmente inexistente;
assim faço notar ao leitor omnipotente que também eu passei demasiado depressa. Uma existência a dupla velocidade só permite meia vida. Curto é o momento ao fim
da noite, antes do raiar da aurora.
Não há necessidade de uma explicação sobrenatural: qualquer confusão no DNA serve. Qualquer desordem que tenha a ver com envelhecimento prematuro do núcleo original,
levando à produção de um excesso de células de vida curta. Em Bombaim, minha cidade natal de casebres-e-blocos-de-apartamentos-chiques, pensamos que estamos no topo
dos tempos modernos, gabamo-nos conhecer as técnicas mais modernas, mas isso só é verdade nos apartamentos chiques do nosso espírito. Cá em baixo nos bairros miseráveis
dos nossos corpos ainda somos vulneráveis às doenças mais vis, ao escorbuto, à peste negra. Pode haver gatinhos de esti-mação nos nossos impecáveis apartamentos
de luxo junto ao céu,
mas eles não fazem esquecer a podridão infestada de ratazanas das lixeiras do nosso sangue.
Se o nascimento é o resultado da explosão causada pela junção de dois elementos instáveis, então talvez uma meia vida seja tudo o que podemos esperar. Da clínica
das freiras de Bombaim à extravagante fortaleza de Benengeli, a viagem da minha vida não durou mais de trinta e seis anos do calendário. Mas que resta do suave gigante
da minha juventude? Os espelhos de Benengeli reflectiram aos meus olhos um cavalheiro exausto de cabelo branco tão ralo e serpentino como a cabeleira há tanto tempo
desaparecida da Avó Epifania. Na cara macilenta e no corpo afilado, nem memória da antiga e compassada elegância de movimentos. O perfil aquilino é agora adunco,
os lábios carnudos perderam a sua curva, tal como minguou o volume do cabelo. Um velho casaco comprido de cabedal castanho, usado sobre uma camisa aos quadrados
suja de tinta e umas calças deformadas de bombazina, adeja atrás dele como uma asa partida. Com um pescoço de peru e um esterno de pombo, este velhote ossudo e poeirento
ainda consegue manter uma postura admiravelmente erecta (fui sempre capaz de caminhar confortavelmente com uma bilha de leite à cabeça); mas quem o visse agora e
tentasse adivinhar-lhe a idade, diria que estava pronto para a cadeira de baloiço, fefeições de papas e manta nos joelhos, ou pô-lo-ia a pastar como um cavalo velho
ou ainda - se por sorte não estivesse na índia - despachá-lo-ia para uma casa de repouso. Aí uns setenta e dois anos, diria, com a mão direita deformada como uma
matraca.
"Uma coisa que cresceu tão depressa não podia crescer direito", pensou Aurora (e mais tarde, quando chegaram os sarilhos, disse-o alto, bem na minha cara). Cheia
de repugnância à vista da minha deformidade em vão tentou consolar-se: - Que sorte ser só a mão.
A parteira, a Irmã John, lamentou a tragédia sobretudo por causa da minha mãe e porque era de opinião (no que não diferia muito da minha própria mãe) de que uma
malformação física estava só um
grau abaixo da doença mental na escala da vergonha familiar. Envolveu o bebé em panos brancos escondendo tanto a mão normal como a defeituosa; e quando o meu pai
entrou, entregou-lhe o enorme embrulho com um soluço abafado - e só um bocadinho hipócrita.
- Que belo bebé para uma casa tão boa - fungou ela. - Coração ao alto, senhor Abraham, que o Todo-poderoso quis marcar o seu filho com um toquezinho de amor.
Isto era obviamente demais para Aurora: a minha mão direita, por mais chocante que fosse, não era assunto para ser bisbilhotado por estranhos.
- Tira-me daqui essa mulher, Abie - bramiu minha mãe da cama onde jazia - antes que eu inflicta um toquezinho de amor num sítio que eu cá sei.
A minha mão direita: os dedos estão soldados entre si num bloco indiferenciado, o polegar é uma coisa mirrada como uma verruga. (Ainda hoje, quando dou um aperto
de mão, ofereço a minha esquerda invertida com o polegar para baixo.)
- Olá, boxeur - cumprimentou meu pai com ar infeliz, examinando o membro aleijado. - Olá, campeão. Acredita no que eu te digo: ainda vais pôr o mundo K.O. com um
punho desses.
Este esforço paterno para tirar partido de uma desgraça, proferido por uma boca torcida de desgosto, veio a ser nada menos do que uma profecia, nada mais do que
a pura verdade.
Para não lhe ficar atrás em optimismo, Aurora - que tinha intenção de fazer que a sua primeira gravidez difícil terminasse em triunfo - pôs de parte o seu horror
e o seu desgosto, arrumando-os nos subterrâneos húmidos da sua alma até ao dia da nossa discussão final, em que ela os libertou, enormes e monstruosos, espumando
de raiva e me atiçou a sua besta-interior...
Mas de momento preferiu realçar o milagre do meu nascimento, do meu extraordinário tamanho, da espantosa velocidade gestacional que lhe tinha dado tanto tormento
mas que também provava que eu devia ser uma criança excepcional.
- Aquela palerma daquela freira tinha razão numa coisa - disse ela pegando-me ao colo. - É o mais bonito dos nossos filhos. E isto, que é isto? Nada, n'é? Uma obra
de arte também
pode ter um pequeno borrão. Com estas palavras ela tornou a responsabilidade de um artista pela sua obra; a minha pata avariada, aquele toco deformado como a própria
arte moderna, transformou-se numa simples escorregadela de um pincel genial. A seguir, levando ainda mais longe a sua generosidade - ou seria uma mortificação da
carne, um castigo que infligia a si própria pela sua repulsa inicial? - Aurora deu-me um presente ainda maior:
- O biberão de Miss Jaya estava bem para as raparigas. Mas o meu filho, vou amamentá-lo eu própria.
- Olha que beleza - ronronou Aurora com determinação.
- Bebe, meu querido, bebe até quereres, meu pequenino, meu pavão, meu Mouro.
, Nos princípios de 1947, um jovem de ar anémico, um certo Vasco Miranda de Loutulim, em Goa, apresentou-se um belo dia ao portão de Aurora, identificou-se como
pintor e pediu para ser admitido à presença da "única Artista, nesta terra sem artistas, cujo talento se compara com o meu". Lambajan Chandiwala lançou uma olhadela
ao parco bigode fino como uma linha que sobrepujava o sorriso de pequeno vigarista, o penteado pacóvio de suíças é caracol sobre a testa pingando óleo de coco, a
camisa barata, as çalças e as sandálias e começou a rir. Vasco riu também e dentro em pouco reinava um ambiente de franca hilariedade às portas da madrugada, com
os dois homens a chorarem de riso, limpando as lágrimas e dando fortes palmadas nas coxas - só o papagaio, Totah, parecendo pouco divertido, se concentrava em agarrar-se
desesperadamente ao ombro do Chowkidar alfaiado pelo riso - até que por fim Lambajan conseguiu articular:
- Sabes de quem é esta casa? - e logo, para frustração de Totah, gargalhou nova série de abalos sísmicos à volta dos ombros.
- Sei - soluçou Vasco através de lágrimas de riso, em consequência do que o júbilo de Lambajan aumentou a tal ponto que o papagaio fugiu e foi-se instalar desconsolado
no cimo do portão.
- Não - carpiu Lambajan e começou a bater violentamente em Vasco com a sua comprida muleta de pau - Não, meu malandreco, tu não sabes de quem é esta casa. Estás
a perceber? Nunca soubeste, não sabes agora e amanhã também não hás-de saber.
Então Vasco fugiu pela colina abaixo até ao buraco onde morava na altura - alguma casa-de-malta manhosa para as bandas de Mazagaon - onde, dorido mas de forma alguma
desencorajado, sentou-se e escreveu a Aurora uma carta, com a qual conseguiu aquilo que não alcançara pessoalmente: a carta introduziu-se sorrateiramente na casa
e foi dar às mãos da grande senhora.
A carta era uma expressão frustre do Novo Descaramento - Nayi Badmashi - com que Vasco viria mais tarde a criar uma reputação, embora não passasse de uma versão
apimentada dos Surrealistas Europeus; chegou a fazer um pequeno filme a que chamou Kutta Kashmir Ka ("Um Cão Cashemir", alusão-homenagem a "Un Chien Andalou"). Mas
a carreira de Vasco não se alongou por estas excêntricas e derivativas paragens; depressa descobriu que o seu verdadeiro talento era para o tipo de criações amenas
e inofensivas pelas quais os proprietários de edifícios públicos estavam prontos a pagar somas, essas sim, surrealistas. Depois disto, a sua reputação, que nunca
fora muito significativa, declinou à medida que aumentava a sua conta no banco.
Na carta anunciava-se como a insuspeitada alma gémea de Aurora. Ambos eram "Estrelas do Sul", ambos "Anti-Cristãos", ambos expoentes de uma "Arte Épico-Mítico-Trágico-Cómica-Super-
Sexy-Altamente-Melodramática", na qual o princípio unificador era o "Enredo-em-Tecnicolor". Juntos dariam mutuamente força ao trabalho um do outro... "Como o franciú
Georges e o Espanhol Pablo(*) mas em melhor, por causa da diferença de Sexos. Além disso, vejo que a Senhora é Patriota e interessada em vários Tópicos do Momento;
enquanto que eu, receio-o bem, sou completamente Frívolo - quando a Esfera Política entra em cena eu torno-me numa criança maléfica e malcriada e, com um pon-
(*) Referência a Georges Braque e Pablo Picasso, amigos e criadores do Cubismo. (N. T.)
tapé valente despacho a dita cuja Esfera para fora da minha zona de Operações. A Senhora é uma Heroína e eu um molengão sem espinha dorsal, não podemos deixar de
levar tudo à nossa frente porque a Senhora é tudo o que está Certo e eu, infelizmente, sou tudo o que está Errado".
Quando Lanbajan ao portão de Elephanta ouviu as gargalhadas da patroa, os seus uivos de hilariedade soprados pela brisa até os seus ouvidos, percebeu que Vasco o
tinha enganado bem, que a comicidade se sobrepunha à segurança e que, da próxima vez que o palhaço subisse aquela colina, ele teria que se pôr em sentido e fazer
continência.
- Mas vou estar à coca - resmungou o Chowquidar para o taciturno papagaio. - Um dia o palerma há-de atrapalhar-se e quando eu o apanhar é que é ver com que lado
da cara é que ele se ri.
Reclinada como a Maja Vestida, sobre um tapete de Isfahani no canto do terraço superior, estava Aurora Zogoiby quando lhe trouxeram Vasco no dia seguinte, ao pôr-do-sol.
Bebia champanhe francês e fumava cigarros de importação por uma longa boquilha de âmbar, com a sua barriga grávida de Ina pousada sobre almofadas de seda. Ele apaixonou-se
por ela antes que ela abrisse a boca, apaixonou-se como prometera a si próprio nunca se apaixonar e ao apaixonar-se desencadeou grande parte dos acontecimentos futuros.
Como amoroso não correspondido, tornou-se um homem sombrio.
- Ando à procura de um pintor - disse Aurora.
- Aqui estou - disse Vasco assumindo uma pose, mas Aurora interrompeu-o imediatamente.
- Pintor de paredes - disse ela com brutalidade. - O quarto das crianças precisa de ser pintalgado e quanto mais depressa melhor. Você é homem para isso? Responda
depressa! Paga-se bem, nesta casa.
Vasco Miranda estava desiludido, mas precisava do dinheiro. Após uns segundos de desorientação, fez o seu sorriso mais estonteante e perguntou:
- E os seus motivos preferidos, minha senhora...?
- Desenhos animados - disse ela com ar vago. - Costuma ir ao cinema? Lê banda desenhada? Então é isso, aquele rato, o pato, e como-é-que-se-chama aquele coelho,
qualquer coisa Bunny. O marinheiro do cachimbo. Talvez o gato que nunca consegue apanhar o rato, o outro gato que não consegue apanhar o pássaro e o outro pássaro
esquisito que corre mais do que o coiote. Quero penedos que põem uma pessoa espalmada como uma folha de papel quando lhe caem em cima, mas só temporariamente, bombas
que só põem a cara preta e as corridas que eles aguentam pelo ar fora até que olham para baixo. Canos de espingarda atados em nó cego e banheiras cheias de moedas
de ouro. Não me chateie com harpas e anjos, nem jardins com flores. Para os meus miúdos, o que eu quero é o que eu disse.
Vasco, o autodidacta recém-chegado de Goa pouco sabia de maldosos picapaus ou de malditos coelhos. Embora não fizesse a mais pequena ideia do que Aurora estava a
dizer, sorriu com uma ligeira vénia:
- Minha senhora, falou o dinheiro. Tem a sorte de ter diante de si o maior, o número um, o rei dos pintores de Paraísos de Bombaim.
Ao fim de poucos dias, tinha-se instalado; nunca chegou a ser objecto de um convite formal, mas de uma maneira ou de outra foi ficando por ali durante trinta e cinco
anos. Ao princípio Aurora tratava-o como uma espécie de animal doméstico. Desa-patetou-lhe o penteado e convenceu-o a deixar de aparar o bigode; quando este cresceu
o suficiente para ficar longo e opulento, convenceu-o a usá-lo enorme, encerado e recurvo. Encomendou para ele no seu alfaiate todo um enxoval: fatos de seda de
largas riscas e enormes laços moles que convenceram a cidade inteira de que a nova descoberta de Aurora Zogoiby era um maricas declarado (na realidade ele era um
genuíno bissexual em partes iguais como muitos rapazes e raparigas do círculo Elephanta haviam de descobrir
com o decorrer dos anos). O que a atraía nele era a sua insaciável fome de informação, de comida, de trabalho e de prazer acima de tudo; e a franqueza com que avançava
à conquista do que pretendia, arvorando sem hesitar o seu sorriso Binaca.
- Deixa-o estar - disse ela quando Abraham timidamente quis saber se o fulano já tinha dado algum sinal de abalada. - Gosto de o ver por aí. Ao fim e ao cabo dá-me
sorte, ele próprio o diz; pensa nele como uma espécie de amuleto.
Quando ele terminou a decoração do quarto das crianças, ela deu-lhe um estúdio só para ele, que equipou com cavaletes, cra-yons, uma chaise-longue, pincéis e tintas.
Como um papagaio céptico, Abraham Zogoiby inclinou a cabeça sobre um ombro, dubitativo; mas não fez comentários. Vasco Miranda manteve o estúdio até muito tempo
depois de enriquecer e de ter o seu marchand nos Estados Unidos e ateliers espalhados por todo o Mundo Ocidental. Referia-se ao estúdio como às "suas raízes"; e
foi a decisão de Aurora de o desenraizar que o levou a dar o passo final.
A maneira de falar de Vasco depressa foi adoptada pela família Zogoiby. Lá em casa, em Elephanta, deixou de haver coisas ligadas ou desligadas; os telefones, os
interruptores, os aparelhos fosse do que fosse, ou estavam "abertos" ou estavam "fechados". Ina, Minnie e Minah cresceram habituadas a dividir as suas professoras
no Colégio de Walsingham em "heroínas" ou "molengonas".
Quanto ao quarto das crianças, Vasco cumpriu o prometido. Num quarto grande e claro com vista para o mar, criou o que para mim e para as minhas irmãs seria sempre
o mais próximo do que imaginávamos ser o Paraíso na terra (não do ponto de vista hor-ticultural, felizmente). Era um trabalhador diligente, apesar das suas fantasias
de actor cómico, falando à moda de Bombaim, fazendo molinetes com uma bengala torta, t em poucos dias adquirira conhecimentos que ultrapassavam de longe o que Aurora
esperava dele. Nas paredes do quarto começou por pintar uma série de janelas em trompe-Poeil, pequenas e grandes, inspiradas no palácio de Mughal, no Mourisco Andaluz,
no Manuelino Português, no Gótico Rosácio; depois, através desses caixilhos mágicos, que constituíam janelas para dentro e para fora do mundo da
fantasia infantil, fez-nos aperceber multidões fabulosas. O Mickey dos primeiros tempos no seu barco a vapor, Donald lutando contra os ponteiros do Tempo, o tio
patinhas com sinais $ de dólar nos olhos.
O Pernalonga, o Sylvestre, o Pateta, o Pluto. Corvos, esquilos e outros que já não consigo recordar: porcos, patos, ratos, gatos, cães e vacas.
No espaço por cima da sua galeria de retratos desenhou as suas admoestações e advertência cacofonéticas: "Hey!", "Oh-oh!", "Mip-Mip!", "Ah-Ah-Ah", "Pain-n-n-n!",
"Br-r-r-r-u-u-m!". Havia galos falantes, gatos de botas e Super-Cães voadores, de capa vermelha; havia outras galerias de heróis locais, pois ele ultrapassava o
que lhe fora pedido trazendo génios sobre tapetes voadores, ladrões dentro de enormes cântaros e um homem nas garras de um pássaro gigante. (*) Ofereceu-nos oceanos
encantados e abracadabras, fábulas de Panchatantra e lâmpadas novas em troca das velhas. Mas o mais
importante de tudo foi a noção que ele nos inculcou através das pinturas nas paredes: a noção da identidade secreta.
Quem era aquele homem mascarado? Foi das janelas da minha infância que eu conheci Bruce Wayne, playboy e milionário e o seu pupilo Dick Grayson, sob cuja luxuosa
residência se escondia a cave secreta do Homem-Morcego; o manso e delicado Clark Kent que era também o viajante espacial Kal-El do planeta Krip-ton, que era também
o Super-Homem; John Jones que era o Marciano J'onn J'onzz e Diana King que era a Super-Mulher, Rainha das Amazonas. Foi com estas paredes que eu aprendi que um super
herói pode desejar intensamente ser um homem normal, que o Super-Homem, que era valente como um leão e para quem todas as substâncias eram transparentes (menos o
chumbo), desejava mais do que tudo ser amado por Lois Lane como se não passasse de um tímido choninhas de óculos. Não que eu me considerasse um super-herói longe
disso; mas com a minha mão em forma de marreta e o meu calendário pessoal a perder as folhas a uma velo-
(*) Alusão aos contos tradicionais indianos das "1001 Noites". (N. T.)
cidade supersônica, sentia-me na verdade excepcional e sem vontade de o ser. Guiado pelo Fantasma, por Flash Gordon, Estrela Verde, Batman e Robin dos Bosques, comecei
a inventar uma identidade secreta para mim próprio. (Tal como tinham feito as minhas irmãs antes de mim, coitadas.)
Por volta dos sete anos e meio entrava na adolescência, adquirindo uma penungem na cara, uma maçã-de-adão, uma voz forte de baixo e orgãos sexuais completamente
desenvolvidos, com os respectivos apetites; aos dez era uma criança enclausurada no corpo de um gigante de vinte anos com um metro e noventa e cinco, possuindo já
então a obsessão de não ter tempo a perder. Atormentado pela maldição do tempo-que-corre, cobri-me de lentidão, da mesma forma que o Cavaleiro Solitário esconde
a cara numa máscara. Determinado a desacelerar a minha evolução unicamente pela força da minha personalidade, fui adquirindo uma certa lentidão corporal e aprendi
a espraiar as próprias palavras em longos bocejos sensuais. Durante uns tempos adoptei os maneirismos de fala arrastada e aristocrática do companheiro indiano de
Billy Bunter, Hurree Jamset Ram Singh, o Nababo Moreno de Bhanipur: nesse período nunca tive sede mas "a minha sequiosidade era intolerável". A minha irmã, Mynah,
que tinha talento para imitar pessoas, curou-me desse hábito e repetindo o que eu dizia como um eco ridículo, mas mesmo depois de ultrapassada essa minha fase de
Nababo Moreno, Mynah continuou a lançar a família em convulsão de riso com imitações dos meus movimentos de sonâmbulo ao retardador; mas esse "Tardador", como ela
me chamava, era uma das minhas identidades secretas, a mais visível das minhas muitas camadas de disfarces.
Canhoto, sinistro, esquerdino, canhestro: todo um vocabulário que se aplica ao uso da mão esquerda! Que infinidade de pequenas humilhações esperam o canhoto a cada
esquina! Onde encontrar uma braguilha para canhotos ou um livro de cheques, um saca-rolhas, um ferro de engomar (um ferro, sim; imaginem quão desconfortável para
um canhoto ter o fio eléctrico sempre a vir da direita)? Um jogador de críquete canhoto, por já ser muito apreciada essa singularidade, não tem dificuldade em encontrar
um taco
que lhe convenha; mas em toda a índia, onde reina o fanatismo pelo hóquei, não existe um único stick "ao contrário"! Não me rebaixarei a mencionar descascadores
de batatas ou câmaras de filmar... e se a vida é dura para os canhotos "naturais", quão mais dura para mim - porque, como se veio a verificar, eu não era canhoto,
era feito para preferir usar a mão direita, era um dextro cuja mão direita, por acaso, era inutilizável. Foi tão difícil para mim aprender a escrever com a mão esquerda
como seria para qualquer outro dextro no mundo. Aos dez anos, e parecendo ter vinte, a minha caligrafia era pouco melhor do que os primeiros gatafunhos de uma criança
de três. Também isso tive de ultrapassar.
O que era mais difícil de ultrapassar era o sentimento de viver naquela casa de artistas, rodeado por criadores de beleza, tanto residentes como visitantes, e saber
que para mim a alegria dessa criação devia permanecer um livro fechado; que para onde iam minha mãe (e também Vasco) para seu maior prazer, eu não os podia seguir.
Mais duro ainda era o sentimento de ser feio, aleijado, saber que a vida me tinha distribuído mau jogo e que um capricho da natureza me obrigava ainda por cima a
jogar sem demora. O que mais me custava era a sensação de ser um embaraço, um motivo de vergonha.
Tudo isto fui escondendo para comigo. As primeiras lições do meu Paraíso foram em como me disfarçar e transformar.
Quando eu ainda era muito novo (mas já não tão pequeno como isso), Vasco Miranda entrava no meu quarto enquanto eu dormia e mudava as pinturas das paredes. Fechava
umas janelas, abria outras; o rato, ou o gato ou pato mudavam de posição, saltavam para a parede do lado, mudavam duma aventura para outra. Durante muito tempo acreditei
que vivia num quarto mágico, que as figuras das paredes se tornavam vivas assim que eu adormecia. Mas Vasco deu-me uma outra explicação:
- Tu é que mudas o quarto - sussurrou-me ele uma noite.
- És tu. Fazes isso durante o sono com a tua terceira mão.
E apontou vagamente para o meu coração.
- C'al terceira mão?
- Esta. Esta mão invisível, com estes dedos invisíveis onde estão essas unhas duras e roídas...
- Onde? C'al?
- ... a mão que só em sonhos se vê claramente.
Eu adorava-o, e não era para admirar. Só por causa da mão feita de sonhos tê-lo-ia adorado; mas logo que eu tive idade para compreender, ele murmurou um segredo
ainda maior no meu ouvido nocturno. Contou-me que, devido a uma operação ao apêndice que um charlatão qualquer lhe tinha feito há uns anos atrás, ele tinha uma agulha
à solta dentro dele. Não lhe causava nenhum incómodo, mas um belo dia a agulha chegaria ao coração e ele morreria instantaneamente, espetado por dentro. Era esse
o segredo da sua personalidade hiperactiva, não dormia mais do que três horas por noite e, quando acordado, não podia estar quieto mais de três minutos.
- Tenho muito que fazer até ao dia da agulha - revelou ele.
- Viver até à hora da morte, é o meu lema.
Sou como tu. Era essa a sua mensagem generosa e fraterna. Também sofro de falta de tempo. E talvez ele estivesse apenas a tentar mitigar o meu sentimento de estar
sozinho no mundo porque, à medida que ia crescendo, ia achando a sua história mais difícil de aceitar; não compreendia como é que um homem tão invulgar e tão escandaloso
como o famoso Vasco Miranda podia aceitar passivamente um destino tão cruel, porque não mandava ele rastrear e depois remover a agulha? Assim acabei por pensar na
agulha como numa metáfora - como se fosse o aguilhão das suas ambições. Mas naquela noite da minha infância, quando Vasco levou a mão ao peito fazendo caretas, quando
revirou os olhos e caiu redondo no chão com os pés no ar e fingindo-se morto para me divertir - nesse momento acreditei nele completamente; e anos depois, ao recordar
essa credulidade absoluta (recordando-a mesmo agora, ao encontrá-lo eriÜ Benengeli, escravo de outras agulhas, o seu corpo esbelto e jovem inchado pelos anos até
à obesidade, escurecida a tez outrora clara, cerrada a sua abertura para a vida, o vinho do amor estragado há muito e transformado no vinagre do ódio), eu pude -
posso ainda - achar um significado diferente para o seu segredo. Talvez a agulha, se é que ela existia perdida no palheiro do seu corpo fosse na realidade a
fonte do seu eu - talvez fosse a sua alma. Perdê-la seria perder a vida - ou o significado dela. Era preferível trabalhar e esperar.
- O ponto fraco de um homem é a sua força, e vice-versa - disse-me ele um dia. - Teria Aquiles sido um grande guerreiro se não fosse aquele calcanhar?
Ao lembrar-me disto, quase lhe invejo a agulha, o seu agudo, errante e consentido anjo da morte.
No bem conhecido conto de Hans Andersen, o jovem Kay foge à Rainha da Neve, levando na veia uma lasca de gelo que o faz sofrer para o resto da vida. E se minha mãe
de cabelos brancos fora a Rainha da Neve de Vasco, a Rainha que ele amava e de quem acabará por fugir, com um misto de humilhação e de raiva como se fosse uma lasca
de gelo no sangue, que continuou a magoá-lo, a baixar-lhe a temperatura do corpo e gelar-lhe o coração, outrora tão caloroso?
Com o seu estilo cómico de vestir e as suas invenções verbais, a sua irreverência frívola por toda e qualquer convenção, pelas frases feitas, vacas sagradas, pompa
ou divindade, e sobretudo com a sua lendária infatigabilidade, revelada na caça às encomendas, no engate de parceiros para a cama ou num jogo de squash, Vasco tornou-se
no meu primeiro herói. Quando eu tinha quatro anos, o exército indiano invadiu Goa, pondo fim a 451 anos de colonização portuguesa e Vasco afundou-se durante várias
semanas numa das sua depressões mais negras. Aurora bem tentou encorajá-lo a olhar o acontecimento como uma libertação, como faziam tantos Goeses, mas ele permaneceu
inconsolável.
- Até agora tinha só uma trindade de deuses e uma Virgem Maria em quem não acreditar. Agora tenho trezentos milhões. E que Deuses! Têm demasiadas cabeças e pares
de mãos para meu gosto.
Mas acabou por reagir e passou dias na cozinha de Elephanta, tentando - e conseguindo - conquistar o nosso velho cozinheiro Ezequiel, ao princípio renitente e ensinando-lhe
os segredos da
cozinha goesa. Escreveu as receitas num caderno novo de capa verde que pendurou num arame atrás da porta da cozinha; e durante semanas só comemos carne de porco,
fomos obrigados a comer chouriço goês e sarapatel de fígado de porco e caril de porco com leite de coco, até Aurora se queixar de que estávamos todos a transformarmo-nos
em porcos; a isto Vasco respondeu voltando do mercado rindo de orelha a orelha e carregando cestos imensos cheios de mariscos que faziam estalar as pinças e bocados
de tubarão cheios de barbatanas e de dentes; e quando a mulher encarregada de varrer pôs os olhos naquilo atirou com a yassoura e fugiu portão fora, informando Lambajan
que não voltaria ao trabalho enquanto aqueles "monstros do inferno" estivessem na casa.
Mas a contra-revolução de Vasco não se limitou às refeições. Os nossos dias passaram a ficar cheios de histórias acerca do heroísmo de Afonso de Albuquerque que
conquistara Goa ao Sultão de Bijapur, um tal Yusuf Adilshah, no dia de Santa Catarina em 1510; e de Vasco da Gama também.
- Uma família ligada à pimenta-e-especiarias como a sua devia entender melhor o que sinto - disse ele a Aurora, melancólico - Nós temos uma história em comum; que
é que esses soldados indianos percebem do assunto?
Passou a cantar-nos canções de amor dos pescadores do rio Mandovy e a servir aos adultos licor de caju e de coco; e à noite sentava-se ao pé de mim no quarto das
janelas mágicas e contava-me improváveis contos goeses.
- Abaixo a Mãe índia! - gritava ele com ar teatral, enquanto eu abafava o riso abaixo dos lençóis - Viva a Mãe Portuga!
Ao fim de quarenta dias Aurora pôs ponto final na nossa contra-invasão de Goa: *
- Acabou-se o período de luto - anunciou. - Daqui por diante acompanharemos os ventos da história.
- Colonialista - rosnou Vasco em tom lúgubre. - Adpeta da "predominância cultural", ainda por cima...
Mas, como todos nós fazíamos quando Aurora dava uma ordem, Vasco obedeceu.
Eu adorava-o; mas durante muito tempo não me apercebi - como poderia eu fazê-lo? - das contradições dentro dele, a luta entre a sua sofreguidão e a sua superficialidade,
entre a lealdade e o oportunismo, entre a habilidade e o desejo. Não me apercebi do preço que ele pagava quando atravessou o portão da nossa casa.
Antes de nos conhecer, não tinha amigos; pelo menos nunca lhe ouvimos mencionar nenhum. Nunca falava da família e raramente da sua juventude. Mesmo da aldeia de
onde era natural, Loutulim, com as suas casas de pedra encarniçada e os vidros da janela feitos de madrepérola, era um facto que tínhamos de tomar por bom. Não falava
disso, embora tivesse deixado escapar uma referência a um período em que fora porteiro de um mercado na cidade de Mapusa, no norte de Goa, e de outra vez tivesse
havido menção de um trabalho não especificado no porto de Mormugão. Era como se, a caminho do futuro da sua escolha, ele tivesse abandonado qualquer ligação de família
ou lugar, uma decisão que implicava uma certa determinação implacável mas também denotava alguma instabilidade. Ele era uma invenção de si próprio e podia ter acontecido
com Aurora - como aconteceu com Abraham e com vários membros do seu círculo, como acontecera com as minhas irmãs mas não comigo - que a invenção não resultasse e
acabasse por se desmantelar. Mas durante muito tempo Aurora recusou-se a ouvir a mínima crítica acerca do seu protegido; tal como aconteceu comigo, mais tarde, acerca
de Uma Sarasvati, também ela inventora de si mesma. Quando um engano do coração se revela como sendo uma loucura, achamo-nos parvos e perguntamos à família e aos
amigos porque é que não intervieram, defendendo-nos de nós próprios. Mas nós próprios somos um inimigo de quem ninguém nos pode defender. Ninguém poderia salvar
Vasco de si mesmo: fosse ele quem fosse ou tivesse sido. E ninguém me poderia salvar a mim.
Em Abril de 1947, tinha a minha irmã Ina três meses e já havia sido confirmada a gravidez de Aurora com a futura ratinha Min-
nie, Abraham Zogoiby, esposo e pai ufano, dirigiu-se a Vasco Miranda numa tentativa fruste de exprimir a sua amizade:
- Já que parece que é um pintor a sério, porque é que não faz o retrato da minha mulher grávida e da minha filha?
Esse retrato foi a primeira obra que Vasco pintou sobre uma tela que Abraham lhe comprou e Aurora lhe ensinou a preparar. Os seus trabalhos anteriores tinham sido
executados sobre papel ou sobre madeira, por razões económicas; e pouco tempo depois de se mudar para o atelier de Elephanta, destruiu tudo o que fizera até à data,
declarando que era um homem novo que só agora começava a viver visto, disse ele, ter acabado de nascer. O retrato de Aurora marcou o começo.
Digo "o retrato de Aurora" porque, quando Vasco finalmente o destapou (tinha-se recusado a deixá-lo ver por quem quer que fosse durante a sua execução), Abraham
descobriu enfurecido que o Bebé Ina tinha sido totalmente omitido. Tendo já perdido metade do nome, a minha pobre irmã mais velha tinha conseguido desaparecer por
completo da obra de que era objecto principal e que tinha sido encomendado como resultado directo da sua recente entrada em cena. (A saliência que representaria
a futura Minnie também fora eliminada mas, num estado tão prematuro da segunda gravidez de Aurora, tal ausência era desculpável.) Vasco representara minha mãe debaixo
do seu pára-sol sentada de pernas cruzadas sobre um lagarto gigante, embalando o ar vazio. O seio esquerdo, vergado ao peso da maternidade, estava nu.
- Mas que raio! - gritou Abraham. - Miranda você não tem olhos na cara?
Mas Vasco afastou este tipo de crítica como sendo excessivamente naturalista; quando Abraham fez notar que a mulher jamais tinha pousado de seios nus e que, de qualquer
modo, a criança eliminada não era amamentada ao peito, a expressão do pintor tornou-se pesada de desdém.
- Está aqui a dizer-me que nesta casa não se usam lagartos gigantes como animais domésticos.
Quando Abraham exaltado lembrou a Vasco que quem pagava as contas era ele, o artista declarou, erguendo o nariz ao céu:
- O génio não é escravo do dinheiro. Uma tela não é um espelho para reflectir sorrisos idiotas. O que eu vi, eu vi: uma presença e uma ausência; uma plenitude e
um vazio. Queria um retrato duplo? Então olhe bem: quem tiver olhos para ver, que veja.
- Pois agora que terminou as suas reflexões - disse Abraham com voz cortante - também nós temos muito que reflectir.
Será que Vasco foi sumariamente expulso daquela casa pela mácula que imprimia na dignidade do bebé Ina? Será que a mãe da criança lhe caiu em cima com unhas e dentes?
Não, leitor, nem uma coisa nem outra. Como mãe, Aurora Zogoiby sempre acreditou num sistema educacional duro e nunca viu a necessidade de proteger os filhos dos
sopapos da vida (pergunto a mim próprio se não seria por ter precisado da colaboração de Abraham para nos criar que Aurora, individualista convicta, sempre nos considerou
a nós, seus filhos, como obras menores...). Seja como for, dois dias após a apresentação do retrato de minha mãe, Abraham convocou o artista para o seu escritório
em Cashondeliveri Terrace - assim chamado em memória do magnate e implacável usurário Parsi do século XIX Sir Duljee Duljeebhoy Cashondeliveri (*) para o informar
de que o quadro "não correspondia à encomenda" e que só devido à extrema clemência e bom feitio da senhora Zogoiby é que ele não era posto na rua - e Abraham concluiu
malevolamente: "que na minha opinião é o seu lugar".
Após a rejeição do retrato da minha mãe, Vasco deixou de encerar o bigode e fechou-se no estúdio durante três dias para emergir, desidratado e abatido, com a tela
debaixo do braço envolta em sacos de serrapilheira. Saiu de Elephanta passando entre os olhares hostis do porteiro e do seu papagaio e não foi mais visto durante
uma semana.
Lambajan estava justamente a começar a acreditar que o patife se tinha ido embora de vez, quando ele voltou num táxi preto e amarelo, com um fato novo e completamente
restabelecido no seu
(*) Presumível alcunha do usurário, realçando o seu carácter mafioso: "cash-on-delivery" quer dizer "dinheiro à vista". (N. T.)
antigo bom humor exuberante. Veio a saber-se que nos três dias do seu auto-sequestro tinha feito outra pintura sobre o retrato de minha mãe, tapando-o completamente.
Era o retrato equestre do próprio artista em traje árabe, que Kekoo Moody - que nada sabia acerca do quadro recusado existente sob aquela estranha representação
de Vasco Miranda mascarado, cavalgando, lavado em lágrimas, num enorme cavalo branco - tinha conseguido vender imediatamente a uma personagem que era nem mais nem
menos do que o bilionário do aço C. J. Bhabha por um preço tão astronómico que permitiu a Vasco pagar a tela a Abraham e encomendar mais umas tantas. Vasco descobrira
que a sua obra era comercial. Foi o lançamento daquela extraordinária - e por vezes prostituída
- carreira durante a qual parece ter-se entendido que nenhuma decoração de átrio de hotel ou terminal de aeroporto estava completa sem um mural gigante de V. Miranda,
simultaneamente pirotécnico e banal. E em todas as obras que Vasco pintou, em cada tríptico ou mural ou fresco ou vitral, ele nunca deixou de incluir a pequena imagem
imaculada de uma mulher de pernas cruzadas com um seio ao leu, sentada num lagarto, embalando nos braços coisa nenhuma a menos que embalasse o invisível Vasco ou
até o mundo inteiro; a menos que, parecendo ser mãe de ninguém, ela se tornasse na mãe de todos nós; e quando tinha acabado de pintar esse pequeno detalhe ao qual
parecia dedicar mais atenção do que ao resto da obra, invariavelmente o obliterava escondendo-o sob aquelas largas pinceladas que cada vez mais foram caracterizando
o seu trabalho - essas famosas pinceladas bombásticas e mistifica-doras que ele produzia tão prolificamente e tão depressa.
- Tinhas-me tanto ódio que arranjaste maneira de me exter-minarizar e me eliminarizar do teu quadro - gritou Aurora irrompendo pelo estúdio, a um tempo contritf
e atormentada. - Não podias esperar cinco minutos até eu acalmar o bom do Abie?
- Vasco fingiu não compreender - Claro que o problema não estava na Ina. Pintaste-me sexy demais e o Abraham teve ciúmes.
- Pois agora já não tem razões para ter ciúmes - disse Vasco com um sorriso amargo mas provocante. - Ou talvez tenha ainda mais: porque agora a Aurora vai ficar
enterrada debaixo de mim
para todo o sempre. O senhor Bhabha vai pendurar-nos a ambos no seu quarto, o Vasco visível, a Aurora invisível por baixo e a Ina, ainda mais invisível, nos seus
braços. De certa maneira, tornou-se uma espécie de retrato de família.
Aurora abanou a cabeça.
- Olha que estupidez! Vocês os homens...! Aquilo é tudo uma coisa sem tom nem som. Um Árabe a chorar em cima dum cavalo! É bem feito para aquele idiota daquele Bhabha.
Nem um pintor de bazar teria pintado uma coisa tão sem jeito!
- Chamei-lhe "O Artista como Boabdil, O Infeliz (el-Zogoi-by), O Ultimo Sultão de Granada, Despedindo-se do Albambra - disse Vasco com ar sério - Ou O Ultimo Suspiro
do Mouro. Espero que este título não seja considerado pelo seu marido mais um motivo de ofensa: apropriação do apelido e histórias privadas da família, etc., etc.,
tudo coisas muito pessoais. Sem pedir licença nem nada, ainda por cima.
Aurora Zogoiby ficou um momento a olhá-lo, surpreendida; depois largou em gargalhadas.
- Ó Vasco seu mauzão - disse ela por fim limpando os olhos
- Seu grande malvado. Como é que eu vou evitar que o meu marido te torça o pescoço é o que eu gostava de saber.
- E a senhora? - perguntou Vasco - gostou da pobre pintura rejeitada?
- Gostei do pobre pintor rejeitado - disse ela baixinho; deu-lhe um beijo na face e desapareceu.
Dez anos depois o Mouro encontrou em mim a sua próxima reencarnação; e lá veio o tempo em que Aurora Zogoiby, a exemplo de V. Miranda, fez também um quadro a que
chamou "O Ultimo Suspiro do Mouro"...
Demorei-me um pouco com estas histórias de Vasco porque contar a minha própria história obriga-me a enfrentar de novo o meu medo e a vencê-lo. Como explicar esta
sensação tumultuosa
do estômago a desprender-se, numa corrida louca que põe brancos os nós dos dedos, do pavor de viver uma vida em superacelerado
de ser obrigado contra vontade a viver literalmente aquelas
metáforas tantas vezes aplicadas a minha mãe e aos seus amigos? Sempre pela faixa rápida, pelo caminho mais curto, atalhando caminho, muito avançado para a época,
membro exemplar do jet-set até à ponta dos meus genes, dissipei as minhas energias vivendo desregradamente, embora por inclinação natural fosse mais dado à prudência
e à moderação. Como comunicar o terror, comparável ao suscitado por um filme com lobisomens, de sentir os pés crescerem rapidamente a ponto de me rebentarem os sapatos,
de ver praticamente o meu cabelo a crescer; como fazer-lhes sentir as dores do crescimento nos meus joelhos, a ponto de, por vezes, me não ser possível correr? Só
por milagre é que a minha coluna cresceu direita. Tenho sido uma planta de estufa, um soldado em perpétua marcha forçada, um viajante apanhado numa máquina do tempo
de carne e osso, perpetuamente esbaforido por andar a correr sempre à frente dos anos, apesar das dores nos joelhos.
Peço-lhes que acreditem que eu não pretendo ser nenhum prodígio. Nunca tive jeito especial para jogar xadrez, ou para a matemática, ou para tocar cítara. E contudo
sempre fui prodigioso, quanto mais não seja, no meu crescimento incontrolável. Tal como a própria cidade de Bombaim, terra das minhas alegrias e dos meus desgostos,
eu cresci como um cogumelo, expandi-me até atingir as proporções de um aglomerado urbano, sem plano prévio, sem pausas para aprender com os meus próprips erros,
com as minhas experiências, com os meus contemporâneos, sem tempo para reflectir. Como é que tudo poderia ter corrido se não mal?
Em mim tudo o que era corruptível foi corrompido; muito do que era susceptível de aperfeiçoamento, mas também da ruína total se perdeu.
"Vejam como é bonito o meu pavãozinho..." cantava a minha mãe amamentando-me ao peito; e posso dizer sem falsa modéstia que, apesar da minha pele escura de indiano
do Sul (tão pouco atraente para as casamenteiras da alta sociedade) e exceptuando a minha mão defeituosa, fui crescendo bastante bem parecido; mas
durante muito tempo aquela mão direita tornou-me incapaz de ver em mim qualquer coisa de bonito. E tornar-me um bonito adolescente quando de facto ainda era uma
criança revelou-se uma dupla maldição. Começou por privar-me das alegrias naturais da infância, do prazer de ser pequeno, da infantilidade de ser criança, e logo
desapareceu, de forma que quando me tornei homem já não possuía aquela beleza dourada da juventude. (Aos vinte e três anos a minha barba estava branca; e outras
coisas também já tinham deixado de funcionar tão bem como dantes.)
O meu interior e o meu exterior sempre estiveram dessíncro-nos; assim é fácil de entender que aquilo a que Vasco Miranda chamou em tempos o meu "físico de estrela
de cinema" pouco valor teve para mim.
Poupo-lhes os detalhes médicos: a minha história clínica encheria meia dúzia de volumes. A mão como um cepo de árvore, o envelhecimento acelerado, a minha altura
surpreendente - um metro e noventa e cinco num país onde um homem raramente atinge mais de um metro e sessenta e cinco: tudo isto era sujeito a repetidos e minuciosos
exames. (Até hoje, as palavras Hospital de Breach Candy evocam em mim a memória de uma espécie de casa de correcção, câmara de torturas benigna, uma zona de tormentos
infernais dirigida por demónios bem intencionados que me mortificaram, me assaram, espetaram e me cozinharam das mais variadas maneiras - e tudo para meu bem!) E
no fim de todos os esforços vinha inevitavelmente o lento abanar de uma eminente cabeça armada de estetoscópio de algum demoníaco patrão da medicina, o gesto de
impotência com as palmas das mãos viradas para cima, os murmúrios acerca de Karma, Kismet, Destino. Além de médicos, fui levado perante especialistas de Ayur-veda(*)
professores do Tibia College, santos e curandeiros. Aurora era uma mulher determinada e meticulosa, logo preparada - também ela no meu próprio interesse! - a expor-me
a toda a sorte de charlatanices que ela própria aborrecia e desprezava.
(*) Ayurveda, antigo tratado Hindu sobre a arte de curar doenças e prolongar a vida. (N. T.)
- Nunca se sabe... - ouvi-a eu dizer a Abraham em mais de que uma ocasião. - Juro que, se algum destes gajos das artes mágicas conseguir consertar o relógio do pobre
desgraçado, converto-me em menos de um fósforo.
Nada resultou. Apareceu nessa altura um jovem guru, Lord Khusro Khusrovani Bhagwan, que convertera milhões de seguidores, apesar de rumores insistentes de que seria
uma criação totalmente espúria de sua mãe, uma tal senhora Dubash. Um dia, tinha eu cinco anos (mas parecia ter dez), Aurora engoliu os escrúpulos
- por minha causa, claro - e, por um preço astronómico, marcou uma audiência privada com o menino mágico. Fomos encontrá-lo a bordo de um luxuoso iate ancorado no
porto de Bombaim e, no seu traje extravagante, com uma saia e um turbante dourados, impressionou os meus pais com o seu ar de menino aterrado, obrigado a viver para
o resto da vida mascarado como se estivesse numa festa de casamento; apesar do que minha mãe cerrou os dentes, expôs os meus problemas e pediu auxílio. O menino
pôs em mim um olhar grave, triste e inteligente.
- Aceita o teu destino - disse ele - Alegra-te com o que te trás desgosto. Volta atrás e corre com todo o teu coração para aquilo de que andas fugindo. Só poderás
transcender a tua desgraça transformando-te nela.
- Quanta sabedoria! - exclamou a senhora Dubash que estava deitada num divã comendo mangas e enchendo tudo de nódoas - Wah - wah! são rubis, diamantes e pérolas!
Agora, se faz favor! - acrescentou ela pondo finj à nossa entrevista - podem fazer o favor de pagar. Não se aceitam cheques. Só cash: rupias ou então divisas estrangeiras;
nesse caso podemos fazer um desconto que pode ir até quinze por cento em caso de pagar em dólares ou em libras esterlinas.
Durante muito tempo pensei nesses dias com amargura, nos médicos inúteis, nos charlatões ainda mais inúteis. Tive raiva a minha mãe por me fazer saltar através daqueles
arcos como um cãozinho de circo, por revelar a sua hipocrisia pondo-se de joelhos perante a actividade comercial dos gurus. Já não lhe tenho raiva; acabei por ver
amor no seu comportamento, por perceber
que a sua humilhação, às mãos peganhentas de todas as senhoras Dubash que tivemos de suportar, foi pelo menos tão grande como a minha. Além disso, devo dizer que
Lord Khusro me deu uma lição que pela vida fora tenho tido ocasião de relembrar. E em todas essas ocasiões o preço tem sido alto e ninguém me tem oferecido desconto.
Aceitando o inevitável, acabei por perder o medo. Vou dizer-lhes um segredo acerca do medo: é um absolutista, ou tudo ou nada. Ou regula a nossa vida como um tirano
familiar, com uma omnipotência - cega e estúpida, ou então, se o dominarmos,
o seu poder evola-se como uma baforada de fumo. Outro segredo: a revolta contra o medo, o engendrar da queda desse déspota aparatoso, pouco tem a ver com a "coragem".
É motivada por algo de muito mais básico: a simples necessidade de viver a nossa vida. Eu deixei de ter medo porque o meu tempo na terra era limitado e eu não tinha
nem um segundo a perder com cagaços. O ditame de Lord Khusro fazia eco ao lema de Vasco Miranda, de que encontrei, anos depois, outra versão num conto de Conrad.
Tenho de viver até a hora da morte.
Herdei da família o dom do sono. Todos nós dormíamos como crianças quando sobre nós impendiam problemas ou tristezas. Assim, nos dias em que me sentia mal deitava-me
na cama e cortava a corrente, "fechava a luz", como diria Vasco, à espera de a "abrir" num estado de espírito mais favorável. Mas nem sempre resultava. Por vezes
a meio da noite acordava a chorar desabaladamente. Os soluços provinham de um local em mim tão profundo que não conseguia localizá-lo. Com o tempo, acabei por aceitar
também este pranto nocturno, como o castigo que eu tinha de pagar por ser excepcional; embora, como já disse, não tivesse nenhum desejo de o ser - o que eu queria
era ser Clark Kent e não de forma alguma o Super-Homem. Na nossa bela mansão teria vivido feliz a minha existência de play-boy milionário, como
Bruce Wayne, com ou sem o benefício de um "pupilo". Mas por mais que eu quisesse, não podia negar a minha natureza essencial de morcego.
Permitam-me que torne claro um facto acerca de Vasco: desde o início houve sinais alarmantes de que nem todos os macaquinhos que ele tinha no sótão eram inofensivos.
Nós que gostávamos dele costumávamos minimizar as muitas ocasiões em que parecia jorrar dele uma fúria agressiva, em que ele parecia estrale-'' jar com uma corrente
negra de electricidade negativa, a tal ponto que evitávamos tocar-lhe para não nos colarmos a ele e ardermos em chamas. Partia para farras terríveis e - tal como
Aires ou Bella da Gama noutra época e noutro local - aparecia por vezes inconsciente numa valeta de Kamathipura ou a vaguear pela doca do peixe, perdido de bêbado,
drogado, roubado, coberto de sangue e deitando um terrível fedor a peixe que resistia a dias e dias de lavagens. Quando se tornou famoso, o ai-Jesus da classe rica
internacional, foi preciso gastar muito dinheiro para manter essas aventuras fora dos jornais, principalmente porque muitos dos seus parceiros nessas orgias bissexuais
não se sentiam nada felizes depois dessas experiências. Em Vasco havia um Inferno, nascido de qualquer pacto que ele fizera com o diabo para destruir o passado e
nascer de novo; de tempos a tempos Vasco explodia em chamas infernais.
- Eu sou o Velho Grão-Duque de York - costumava ele dizer quando estava melhor - Quando estou de pé, estou de pé ô quando estou caído, estou caído. E a propósito,
também eu já tive dez mil homens; e dez mil mulheres.
Na noite da independência, essas labaredas envolveram-no num turbilhão. As contradições daquele grande momento dilaceraram-no. Essa festa da liberdade, com as avassaladoras
emoções a que ele não se pôde furtar, embora como Goês não tivesse nada a ver com o acontecimento (que, ainda por cima, para seu horror, ocorria quando rios de sangue inundavam o Punjab)(*), destruiu o frágil equilíbrio que ele tinha inventado para si próprio e libertou o seu demónio interior.
Era assim, em todo o caso, que minha mãe contava o que se passara com ele e essa versão continha, sem dúvida, uma parte da verdade, mas eu sei que tudo aquilo se
misturava com o amor de Vasco por ela, esse amor que ele não podia declarar abertamente, mas que o consumia e o enchia de raiva.
Nessa noite, Vasco estava sentado numa extremidade da longa e brilhante mesa de Aurora e de Abraham, olhando fixamente os distintos e animados convidados e ia bebendo
litros de vinho verde(**) até se afundar na embriaguez. Quando, à meia-noite, os fogos-de-artifício incendiaram o céu, o seu estado de espírito foi ficando cada
vez mais sombrio, até que, perdido de bêbado, pôs-se de pé cambaleante e inundou os convidados com uma chuva de insultos e de perdigotos:
- Estão tão contentes com quê? Esta noite não é vossa! Não percebem? São todos uns abortos dos Ingleses! São "membros de grupos minoritários"! Aleijões humanos!
Vocês não são daqui! Não têm nada a ver com esta Terra! São como... como é que se diz, lunáticos, homens da lua! Leram os livros errados, estiveram do lado errado
em todas as discussões, só têm ideias falsas! Até os vossos sonhos têm raízes estrangeiras!
- Não faças figura de parvo! - disse-lhe Aurora. - Toda a gente aqui está chocada com os massacres dos Hindus e Muçulmanos. Não tens o monopólio desse luto; só tens
o do vinho verde e o de seres um palerma convencido que és bom.
Estas palavras teriam feito calar a maior parte das pessoas, mas não calaram o pobre Vasco, enlouquecido pela História, pelo amor e pelo tormento de procurar manter
a sua imagem de excepção:
- Chico-espertos de merda, seus intelectuais de mijo! - gritou ele inclinado num ângulo perigoso.
(*) Referência às terríveis lutas político-religiosas em que Hindus e Muçulmanos se massacraram mutuamente no Norte da índia. (N. T.)
(**) Em português no texto original. (N. T.)
- Seus sexualistas leigos. Não, esta saiu-me mal. Merda de trava-línguas. Socialistas laicos é que é. Da merda! O Pandita impingiu-lhes essa, como um vendedor de
relógios de Contrabando e vocês todos compraram e agora não percebem porque é que a merda do relógio não anda. A merda do Partido do Congresso cheia de vendedores
de Rolexes falsos. Julgavam que podiam derrubar a índia, que todos esses deuses sedentos de sangue, encharcados em sangue iam cair para o lado e morrer de vez. A
dona desta casa, Aurora, grande senhora, grande artista, julga que é capaz de acabar com os deuses dançando. Experimente! Dance! Ta-ta-ta-dreegay-tum-tum! Tai! Ta-tai!
Ta-tai! Chiça.
- Miranda, - disse Abraham pondo-se de pé - Já chega.
- E também tenho um recado para si, Senhor Magnate Abie,
- disse Vasco fungando de riso. - Vou-lhe dar uma dica. Há só um poder neste país de merda com força para se aguentar com os deuses e não é aspas aspas o socialismo
laico. Nem é aspas aspas o Pandita Nehru e a suas aspas aspas protecção das minorias. Quer saber o que é? Vou-lhe dizer o que é. A corrupção. Está a perceber? Suborno
e caroço por baixo da mesa.
Perdeu o equilíbrio e caiu para trás. Dois criados de casacos brancos à Nehru com botões dourados agarraram-no, aguardando um sinal de Abraham para o expulsar da
festa. Mas Abraham Zogoiby ficou parado e esperou que a cena chegasse ao fim.
- Suborno e untadelas de mãos - disse Vasco em tom choroso. - Percebe o que eu quero dizer? Senhor Abie: está a seguir o meu raciocínio? Definição de V. Miranda
para "democracia": umas luvas para cada homem. Essa é que é a maneira. Esse é que é o segredo. E isso mesmo. - Levou a mão à boca em tom de falso alarme - Oh. Oh.
Que estúpido que eu sou. Estúpido Vasco. Não é segredo nenhum. O senhor Abie é um homem de negócios tão importante, não havia de saber o segredo. Desculpem. Perdão.
Abraham fez um sinal; os casacos brancos enfiaram os braços pelos sovacos de Vasco e começaram a arrastá-lo às arrecuas.
- Só mais uma coisa - berrou Vasco tão alto que os criados pararam. Ele ficou ali pendurado pelos braços como um espantalho, agitando um dedo demente:
- Um conselho para todos. Metam-se nos barcos com os Ingleses! Metam-se mas é na merda dos barcos e ponham-se na alheta. Esta terra não quer nada convosco. Esta
terra vai comê-los vivos. Vão-se embora! Vão-se embora enquanto podem.
- E você, Vasco - perguntou Abraham com cortesia palaciana no meio de um silêncio escandalizado - Você, Vasco: que conselho é que dá a si próprio?
- Ora, eu... - cantarolou ele, de novo arrastado pelos casacos brancos. - Não se preocupem comigo. Eu cá sou Português...
11
Nunca ninguém fez um filme chamado "Pai índia". "Bharat Pita?" Soa mal. "Hindustan-ké-Bapuji"? Demasiado Gan-dhiano. "Valid-e-Azam"? Demasiado Mughal (*). Mas "O
Senhor índia", talvez a mais primária das fórmulas nacionalistas, acabou eventualmente por aparecer nos ecrãs. O protagonista era um jovem galã melífluo que tentava
convencer-nos dos seus poderes super-heróicos: aqui não havia conotações paternalistas, nenhum Deus-Pai indiano cheio de vigor, nem um Papá-indiano patriarcal. Só
um Bond de imitação, baixote, feito na índia. A grande Sridevi, no seu melhor estilo de sereia, envolta num sari molhado, comia-lhe as papas na cabeça com uma desconcertante
facilidade... Mas eu recordo-me do filme por outra razão. Quis-me parecer que, naquele filme extravagante e piroso, tão ordinário no seu colorido berrante como o
antigo, o da mãe Nargis,.era pretensioso e sombrio, talvez os produtores nos tenham, apesar de tudo, fornecido uma imagem involuntária do Pai Nacional. Ali estava
ele como um dragão acocorado na sua gruta, como um manipulador de marionetas com mil dedos, como o próprio coração das trevas; comandante de legiões de metralhadoras
de fabrico israelita, controlando nas pontas dos dedos colunas de fogo diabólicas, orquestrador de toda a música secreta das esferas inferiores: o vilão máximo,
o chefe
(*) Ou "Mogul", dinastia muçulmana que reinou sobre grande parte da índia desde inícios do séc. XVI até meados do séc. XVIII. (N. T.)
mafioso, mais Moriarty que o próprio Moriarty, ("') mais Padrinho que o próprio Padrinho: Mogambo. O nome, roubado de um velho filme com Ava Gardner, fitosa popular
e medíocre passada em África, foi cuidadosamente escolhido para não ofender nenhuma das comunidades indianas: não é Muçulmano nem Hindu, Parsi ou Cristão, Jaina
ou Sikh e, se há nele algum eco das caricaturas de Sanders-of-the-River(*) impostas pelo Hollywood do após guerra aos habitantes do "Continente Negro", paciência!
é um exemplo de xenofobia que não é susceptível de criar hoje em dia na índia muitas objecções.
No combate entre o senhor índia e Mogambo reconheço a oposição vida-morte de vários pais e filhos cinematográficos. Em "Blade Runner" o trágico herói-robot esmagando
o crânio do seu criador num abraço a um tempo filial e mortal; em "A Guerra das Estrelas", no seu duelo final, Luke Skywalker e Darth Vader são paladinos, um da
Luz e o outro das Trevas. E neste drama de rebotalho com o seu vilão de banda desenhada e o seu herói de paco-tilha, vejo uma sinistra imagem-espelho do que nunca
foi e nunca será um filme: a história de Abraham Zogoiby e de mim próprio.
À primeira vista era a antítese de um rei demónio. O Abraham Zogoiby, que eu conheci pela primeira vez com sessenta anos e o seu coxear acentuado pela idade, era
uma figura fraca e diminuída, de respiração ofegante, com a mão direita apoiada levemente no peito, num gesto a um tempo de autoprotecção e preito de obediência.
Além dos sinais de deferência própria de um gerente, não restava qüase nada daquele homem por quem a herdeira Aurora se apaixonara tão instantânea e tão perdidamente!
Na minha memória de criança ele aparece-me como um fantasma incolor mo-
(*) Génio do crime; arqui-inimigo de Sherlock Holmes. (N. T.)
(**) Funcionário colonial na África Ocidental Inglesa, personagem de Edgar Wallace. (N. T.)
vendo-se nas franjas da corte tumultuosa de Aurora, hesitante, ligeiramente curvado, com aquele vago franzir de testa que denuncia nos servidores a sua preocupação
em serem agradáveis. No seu corpo inclinado para a frente parecia haver qualquer coisa de excessivamente ansioso, de insinuante, que resultava incómodo.
- Aqui está um pleonasmo vivo - dizia Aurora com a sua língua afiada, para provocar uma gargalhada - Um homem fraco.
E eu, como filho de Abraham, não podia deixar de o desprezar por ser alvo daquela piada e de sentir que a sua fraqueza nos diminuía a todos - isto é, todos os homens.
Seguindo uma estranha lógica do coração, a grande paixão de Aurora pelo "seu Judeu" decrescera rapidamente após o meu nascimento. Caracteristicamente, ela anunciou
o arrefecimento do seu ardor a quem a quis ouvir.
; - Quando o vejo chegar-se para mim cheio de cio e a tresandar a caril - dizia ela rindo - puah! Escondo-me logo atrás das crianças e aperto o nariz.
Ele suportou também estas humilhações sem protestar. E Aurora continuava perorando nas famosas salas-laranja-e-ouro.
- Os homens são todos ou pavões ou coitadinhos. Mas nem mesmo um pavão como o meu Mouro se pode comparar conosco, as senhoras, que vivemos num resplendor de glória.
Cuidado mas é com os coitadinhos, digo-lhes eu! Esses é que são os nossos carcereiros. São eles que detêm os livros de cheques e as chaves das gaiolas douradas.
Isto era mais parecido com um agradçcimento que ela concedia a Abraham pelo fornecimento submisso e incansável dos seus cheques e pela cidade de ouro que ele tinha
tão rapidamente erguido com a fortuna da família dela - que, apesar da elegância que provém do dinheiro antigo não era mais do que, por assim dizer, uma aldeola,
uma propriedade de campo ou uma vilazinha de província comparada com a enorme metrópole da sua fortuna actual. Aurora não ignorava que a sua prodigalidade subentendia
fortes meios de subsistência, a tal ponto que estava ligada a Abie pelas suas próprias exigências. Por vezes quase o admitia, chegava mesmo a temer que a magnitude
dos seus gastos ou as suas imprudências verbais pudessem arruinar a família. Apreciadora de histórias macabras, gostava de me contar a parábola da rã e do escorpião, em que o escorpião, tendo conseguido
que a rã o leve às costas para atravessar um curso de água, em troca da promessa de a poupar aos seus ataques, quebra a promessa e administra-lhe uma ferroada fatal.
No último momento, quando ambos estão a morrer afogados, o assassino pede perdão à vítima: "Não tenho culpa", diz o escorpião "é a minha natureza".
Levei algum tempo a perceber que Abraham era mais rijo que qualquer rã; ela bem o picava, porque era da sua natureza ser assim, mas ele é que não se afogava. Quão
fácil era o meu desprezo por ele, quanto tempo demorei a compreender a sua dor! Pois ele nunca tinha deixado de a amar como no dia do seu primeiro encontro; e tudo
o que fazia, fazia-o por ela. Quanto mais excessivas e mais públicas eram as suas infidelidades, mais abrangente e secreto era o amor dele.
(E quando eu soube de certas coisas que ele tinha feito, coisas perante as quais o desprezo seria completamente inadequado, foi-me difícil voltar a ter de novo aquele
sentimento de reprovação da minha juventude, porque por essa altura já eu tinha caído sob o poder de uma rã, ou sapo, de outro calibre e os meus próprios crimes
tinham-me retirado o direito de julgar o meu pai.)
Quando ela o insultava em público, fazia-o com um sorriso resplandecente que sugeria que estava só a brincar, que a sua constante depreciação não era senão uma maneira
de esconder uma adoração grande de mais para ser exprimida; um sorriso irónico que parecia destinado a pôr todo o seu comportamento entre aspas. Este número nunca
foi muito convincente. Muitas vezes ela bebia demais - as leis contra o álcool apareciam e desapareciam ao sabor dos êxitos políticos de Morarji Desai e, depois
da divisão do estado de Bombaim em Maharashtra e Gujarat, essas leis foram banidas da cidade de uma vez para sempre - e quando bebia, ela praguejava. Confiante no
seu génio, armada com uma língua tão implacável como a sua beleza e tão violenta como a sua obra, não poupava ninguém às suas imprecações de prima-dona,
aos seus ataques de falcão, aos seus riffs(*) em estilo rococó e ao seu elaborado praguejar, tudo proferido com um sorriso prazenteiro duro como o aço, que procurava
anestesiar a sua vítima enquanto lhe arrancava as tripas. (Se querem saber o que eu sentia? Eu era filho dela: quanto mais perto nos chegarmos ao touro mais oportunidades
temos de sermos estripados.)
Era como se Bella tivesse regressado para ocupar o corpo da filha, como Aurora prometera: Vocês verão, (dissera Aurora), daqui em diante sou eu no lugar dela.
Imaginem: num sari de seda creme com uma bordadura dourada de desenho geométrico especialmente concebido para evocar uma toga de Senador romano - ou talvez, se o
seu ego está particularmente elevado, num sari ainda mais resplandecente cor de púrpura imperial - reclinada numa chaise-longue, Aurora empesta os seus salões exalando,
como um dragão, nuvens de tabaco barato, presidindo a um dos seus famigerados serões de má reputação animados pelo uísque e não só, noites de devassidão na alta-roda
que fazem agitar as muitas línguas de prata da cidade; embora ela própria nunca tenha sido vista em situação menos correcta quer com homens quer com mulheres quer,
porque não dizê-lo, com agulhas... E nas madrugadas de deboche, passeia-se de um lado para o outro como uma profetiza embriagada e lança-se numa imitação cruel de
Vasco desenfreado pela bebedeira na Noite da Independência; e como ela não se incomodou a dar a conhecer o "direito de autor" dele, os presentes não fazem ideia
de que ela está a parodiar um libelo difamatório: ela parece estaf a anunciar de facto a futura ruína dos seus convidados - pintores, modelos, autores de "cinema
de autor", actores, bailarinos, escultores, poetas, play-boys, vedetas do desporto, mestres de xadrez, jornalistas, jogadores profissionais, contrabandistas de obras
de arte. Americanos, Suecos, excêntricos, cortesãs de luxo e a juventude dourada mais destravada e mais decorativa da cidade - e a paródia é tão convincente e tão
convicta, a ironia tão profundamente oculta que é
(*) Do jazz ou do rock, frase musical repetitiva, tocada sobre harmonias variáveis. (N. T.)
impossível não acreditar na sua alegria perversa e regalada ou - porque as suas disposições de espírito variam constantemente - o seu desapego olímpico e imortal.
- Vocês são imitações da vida! Anomalias históricas! Dinossauros! - declama. - Pensam que não vão ser reduzirificados a migalhas pelas tempestades que aí vêm? Híbridos,
rafeiros, almas penadas, sombras! Peixes fora de água! Vêm aí tempos maus, meus queridos, não pensem que não vêm; e nessa altura os fantasmas vão para o Inferno,
a noite apaga as sombras e o sangue rafeiro vai correr como água! Só eu vou sobreviver - isto, em plena peroração, proferido com as costas muito direitas e o indicador
apontado para o céu como a Estátua da Liberdade - por causa da minha Arte! seus miseráveis desgraçados!
Os convidados jazem aos molhos pelos cantos, tão perdidos que já não ouvem, nem querem saber. Para os filhos também ela prevê tragédias:
- Pobres miúdos, saíram uns abortos, parecem destinados a levar um grande tombo.
...e nós passámos as nossas vidas a cumprir ou a tentar fugir às suas previsões... já me ouviram dizer que ela era irresistível? Escutem com atenção; ela era a luz
da nossa vida, o estro da nossa imaginação, a bem-amada dos nossos sonhos. Amávamo-la enquanto ela nos destruía. Inspirava-nos um amor grande demais para nós, como
se tivesse fabricado um sentimento e depois no-lo entregasse para o sentirmos - como se fosse uma tarefa a executar. Se ela nos espezinhava, era porque nos estendíamos
voluntariamente sob as suas botas e as suas esporas; se ela nos lacerava a carne era por causa do prazer com que experimentávamos as doces chicotadas da sua língua.
Quando finalmente percebi isto é que perdoei ao meu pai; porque todos éramos escravos dela e ela fazia dessa escravidão o Paraíso. E é isso mesmo, dizem, que os
deuses conseguem fazer.
E na sequência do seu mergulho fatal naquele mar rochoso, ocorreu-me que o tombo que ela tinha profetizado com aquele soberbo sorriso duro como o gelo, com a ironia
que ninguém reconhecera, tinha sido talvez a sua própria queda.
Perdoei a Abraham também porque comecei a perceber que, apesar de já não dormirem no mesmo leito cada um deles era a pessoa cuja boa opinião o outro prezava mais;
que minha mãe precisava da aprovação de Abraham tanto quanto ele desejava a dela.
Ele era sempre o primeiro a ver as suas obras (seguido de perto por Vasco Miranda que invariavelmente contrariava todas as opiniões do meu pai). Na década após a
Independência, Aurora caiu numa profunda confusão criativa, uma semiparalisia criada por uma insegurança não só acerca do realismo mas também acerca da natureza
da realidade. A sua escassa produção desse período é torturada, irresoluta; beneficiando de reflexão posterior, é fácil encontrar nessas telas a tensão entre a influência
brincalhona de Vasco, o seu pendor para mundos imaginários em que a única lei era a sua extravagância soberana, e a insistência dogmática de Abraham na importância
(na actual conjuntura histórica) de um naturalismo lúcido que ajudasse a índia a descrever-se a si própria perante si própria. A Aurora desses tempos - e era esta
em parte a razão pela qual ela se abandonava por vezes àquelas noites de embriaguês e delírio superficial - oscilava pouco à vontade entre temas mitológicos toscamente
revisionistas e um retorno desconfortável e até pomposo às pinturas documentais assinadas com uma lagartixa da sua época Chipkali. Era fácil para um artista perder
a sua identidade numa época em que muitos .pensadores acreditavam que a amargura e a paixão naturais daquele país imenso só poderiam ser representadas por uma espécie
de mimetismo desinteressado, dedicado e até patriótico. Abraham estava longe de ser o único advogado de tal ideia. O grande realizador de cinema, o Bengali Sukumar
Sen, amigo de Aurora e, de todos os seus contemporâneos, talvez o único que estava artisticamente à sua altura, era o melhor desses realistas e, numa série de filmes
obsessivos e humanos, trouxe ao cinema indiano - o cinema indiano, essa velha puta pintalgada - uma fusão de coração e espírito que muito fez para justificar as
suas opções estéticas. E contudo esses
filmes realistas nunca foram populares - num momento de amarga ironia foram atacados por Nargis Dutt, a própria Mãe índia, pelo seu elitismo ocidentalizante - e
Vasco (abertamente) e Aurora (secretamente) preferiram a série de filmes para crianças em que Sen deu largas à sua fantasia, em que havia peixes que falavam, tapetes
que voavam e rapazinhos que sonhavam com encarnações anteriores em fortalezas douradas.
Além de Sen havia o grupo de escritores distintos que durante algum tempo se reuniram sob a asa de Aurora: Premchand e Sadat Hasan Manto e Mulk Raj Anand e Ismat
Chughtai, todos eles realistas convictos; mas mesmo nas obras destes autores existiam elementos de fábula, por exemplo "Toba Tek Singh", o excelente conto de Manto
sobre a redistribuição dos lunáticos do subcontinente por alturas da Grande Divisão (*). Um dos loucos, que fora em tempos um próspero proprietário, foi apanhado
numa terra-de-ninguém do espírito, incapaz de dizer se a sua cidade natal do Punjab ficava na índia ou no Paquistão e, na sua loucura, que era também a loucura do
seu tempo, refugiou-se numa espécie de algaraviada celeste que fascinou Aurora. O seu quadro inspirado na trágica cena final do conto de Manto, em que o infeliz
maluco se encontra encalhado entre duas extensões de arame farpado, para além das quais fica a índia e o Paquistão, é talvez a sua melhor obra deste período e a
algaraviada do seu pobre homem, que representa o colapso não só da sua capacidade de comunicação pessoal mas também da nossa, forma o longo e maravilhoso título
do quadro: "Uper the gur gur the annexe the bay dhayana the mung the dal of the laltain."
O espírito da época e as preferências pessoais de Abraham arrastavam Aurora para o naturalismo; mas Vasco recordou-lhe o seu horror instintivo a tudo o que era pura
imitação (horror que já a tinha levado a rejeitar os seus discípulos da época Chipkalista) e tentou encaminhá-la de novo para a maneira épico-fabulista que exprimia
a sua verdadeira natureza, encorajando-a a prestar mais
(*) Partilha do Subcontinente indiano entre um Estado hindu (União Indiana) e um Estado Muçulmano (Paquistão), decretada em 1947. (N. T.)
uma vez atenção não só aos seus sonhos mas também ao sonho maravilhoso que era o novo mundo que se avizinhava.
- Nós não somos uma nação de meias-tintas, mas uma raça mágica. Quer passar a vida a pintar pequenos engraxadores e hospedeiras do ar e dois acres de terra? Daqui
por diante vai ser tudo coolies e condutores de tractores e projectos hidroeléctricos, como diz a Nargis? Na sua própria família não encontra senão provas em contrário.
Esqueça os palermas dos realistas! A realidade está sempre escondida dentro duma miraculosa sarça ardente, não é verdade? A vida é fantástica! Pinte a vida - é um
dever para com o seu filho que é fantástico, irreal. Que gigante é essa criança, esse foguete do tempo! Ocupe-se da incrível verdade que ele representa, não dessa
caca de lagartixa, já usada, ainda por cima!
Por desejar que Abraham tivesse dela uma boa opinião, Aurora usou durante uns tempos roupas artísticas que não condiziam com ela; e porque Vasco era a voz da sua
própria identidade secreta, ela perdoava-lhe todos os excessos. E por causa desta confusão, Aurora passou a beber, tornou-se estridente, hostil e obscena. Mas finalmente
seguiu o conselho de Vasco; e, assim, durante muito tempo, fui eu o seu talismã e o centro da sua arte.
Quanto a Abraham, muitas vezes vi atravessar-lhe o rosto uma Sombra de perplexidade. Eu desorientava-o, o realismo confundia-o tanto que, após alguma das suas longas
ausências, ao voltar de viagens de negócios a Deli ou Cochim ou outros destinos cujo nome ficou secreto por muitos anos, trazja-me roupas cujo tamanho seria apropriado
para uma criança da minha idade mas absurdamente pequenas para mim; ou livros que um rapaz do meu tamanho poderia apreciar mas completamente desconcertantes para
a criança que residia no meu enorme corpo. A própria mulher o desnorteava, com as suas mudanças constantes de sentimentos para com ele, pela violência negra que
trazia consigo e pelos seus dons de autodestruição, que nunca foram tão bem demonstrados como no último encontro que ela teve com o Primeiro-Ministro da índia, nove
meses antes de eu nascer...
... Nove meses antes de eu nascer, Aurora Zogoiby foi a Deli para receber, das mãos do seu grande amigo, o Primeiro-Ministro, um Prémio Oficial - o chamado "Venerado
Lotus" - pelos seus serviços no campo das artes. Mas por uma infeliz coincidência, o senhor Nehru acabava de regressar duma viagem a Inglaterra, onde tinha passado
a maior parte dos seus tempos livres na companhia de Edwina Mountbatten. Ora era um facto muitas vezes observado na família (embora pouco comentado) que a simples
menção do nome dessa distinta senhora era o bastante para lançar Aurora em vituperações apoplécticas. Os detalhes íntimos sobre a amizade entre o Pandita Nehru e
a esposa do último Vice-Rei têm sido motivo de especulações; mas as minhas próprias especulações demoram-se cada vez mais sobre rumores similares acerca do Primeiro-Ministro
e minha mãe. Certas evidências cronológicas não podem ser desmentidas. Voltando com o relógio atrás quatro meses e meio antes do meu nascimento vamos dar aos acontecimentos
no Hotel de Matheran e aquilo que bem pode ser a última vez em que os meus pais fizeram amor um com o outro. Mas se atrasarmos o relógio outros quatro meses e meio
temos Aurora Zogoiby em Deli, entrando num salão em Rashtrapati Bhavan para ser recebida pelo próprio Pandita; temos Aurora Zogoiby criando um escândalo ao ceder
àquilo que os jornais iriam chamar "uma exibição indecorosa do seu temperamento artístico" e dizendo bem alto na cara estarrecida de Nehru:
- Essa gaja de peito em quilha!? Edwina Mountina! Se o marido é o Vice-Rei, meu caro, ela é a rainha do vício! (*) Deus sabe porque é que o senhor anda a rondar-lhe
a porta como um mendigo! Se é carne tenra que quer, não encontra lá muito disso.
Após o que, deixando boquiabertos todos os presentes e o Presidente à espera com o Venerado Lotus na mão, rejeitou desde-
(*) Trocadilho com "Vice" (vício), "Vice-Roy" (Vice-Rei) e a inexistente expressão "Vice-Queen". (N. T.)
nhosamente o prémio, girou sobre os calcanhares e voltou para Bombaim. Essa foi, pelo menos, a versão publicada no dia seguinte pela imprensa horrorizada; mas há
dois detalhes que me dão que pensar, o primeiro dos quais é o facto de Aurora ter viajado para Norte enquanto Abraham foi para o Sul. Por que misteriosa razão é
que ele não acompanhou a sua esposa naquele momento alto em que ia ser reconhecido o seu talento, para ir, em vez disso, ocupar-se de assuntos de negócios? Há dias
em que não consigo ver nisto - por mais que me custe! - senão o comportamento típico de um marido complacente... e o segundo detalhe tem a ver com os livros de receitas
de Ezequiel, o nosso cozinheiro.
Ezequiel, o meu Ezequiel: ei-lo velhíssimo desde os tempos mais recuados da minha memória, careca como a palma da mão, exibindo os seus três dentes amarelo-canário
num perpétuo riso cacarejado, agachado junto de um fogão tradicional de lume aberto, afastando os fumos de carvão com um abano de palha em forma de leque. No seu
ramo era um artista e reconhecido como tal por todos os que comiam as refeições cujas receitas secretas ele confiava, numa letra trémula e vagarosa, aos caderninhos
de capa verde que guardava sob cadeado, como se fossem esmeraldas. Um verdadeiro arquivista, o nosso Ezequiel; porque no seu tesouro de cadernos não havia só as
receitas mas também relatórios sobre refeições - narrativas completas, feitas durante os longos anos ao nosso serviço, acerca do que tinha sido servido, a quem e
em que ocasião.
Durante os primeiros anos da minha infância sequestrada (de que falarei mais tarde), passei longas horas de aprendizagem a seu lado, aprendendo a fazer com uma só
mão o que ele fazia com duas; e aprendendo também a história da nossa família através da comida, adivinhando momentos de stress pelas notas à margem que me diziam
que naquele dia pouco se tinha comido, suspeitando discussões acesas por trás da lacónica menção "entornado". Os momentos felizes também eram evocadores pelas simples
referências ao vinho, bolos, ou outro pedido especial: petiscos favoritos para uma criança que tinha tido boas notas na escola, banquetes de comemoração para marcar
um triunfo nos negócios ou
na arte. Claro que na gastronomia como em outras actividades humanas há muito das nossas personalidades que permanece opaco. Como explicar o ódio profundo da minha
irmã às beringelas, pelas quais eu nutria uma verdadeira paixão? O que significará a preferência do meu pai por carneiro ou frango com osso e a insistência da minha
mãe em só comer carne sem osso?
Deixo estes mistérios de parte para registar que quando consultei o caderno referente ao período em questão, descobri que Aurora não regressara a Bombaim senão três
noites após o escândalo em Deli. Estou suficientemente familiarizado com o comboio-correio Deli-Bombaim para poder afirmar: a viagem leva duas noites e um dia, o
que deixa uma noite por explicar. "A senhora provavelmente ficou em Deli para provar uma receita diferente de Khansama foi o comentário melancólico de Ezequiel à
ausência dela. Parecia um homem traído, tentando perdoar à amante infiel.
Uma receita diferente de Khansama... Qual seria a iguaria picante que afastava Aurora Zogoiby de casa? Uma das fraquezas da minha mãe era que o desgosto e a dor
transpareciam nela tantas vezes transformados em ira; outra fraqueza era que, assim que se permitia ao luxo de esfacelar alguém, imediatamente a acometia um forte
impulso de afeição e remorso para com aquele que tinha magoado. Como se os bons sentimentos nela só pudessem nascer como consequência de uma inundação de fel.
Nove meses certos, dia por dia, antes da minha chegada, faltava uma noite de que não se prestavam contas. Mas o princípio de estar-inocente-até-se-provar-o-contrário
é uma regra excelente e nem Aurora nem o nosso falecido grande-chefe têm de responder por qualquer espécie de comportamento menos correcto. Existem provavelmente
explicações perfeitamente adequadas para todos estes assuntos. As crianças nunca entendem os motivos de actuação dos seus progenitores.
Como seria baixo da minha parte proclamar filiação, se bem que ilegítima, de uma linha tão nobre! Leitor: procurei unicamente exprimir certa perplexidade, mas descanse
que não vou fazer nenhuma alegação. Mantenho-me fiel à história que contei, a saber: fui concebido na estância de Inverno atrás especificada e certas
regras biológicas derivaram desse acontecimento. Permitam-me que insista: não se trata de nenhuma espécie de encobrimento.
Jawaharlal Nehru tinha sessenta e sete anos em 1957; minha mãe, trinta e dois. Nunca se voltaram a encontrar; o grande homem nunca mais voltou a Inglaterra, para
conviver com a esposa de outro grande homem.
A opinião pública - e não pela última vez - inclinava-se contra Aurora. Entre a gente de Deli e a de Bombaim sempre houve um desprezo mútuo (falo obviamente da burguesia);
os cavalheiros de Bombaim têm tendência a considerar os habitantes de Deli como lacaios do poder, trepadores de mastros ensebados e mangas de alpaca, enquanto os
naturais da capital condenam a superficialidade, a sacanice, a "Ocidentoxicação" dos homens de negócios meus conterrâneos e das suas consortes laçadas e envernizadas.
Mas acerca da recusa de Aurora em receber o Lotus, o furor foi o mesmo em Deli como em Bombaim. Os muitos inimigos que ela tinha feito com o seu estilo arrogante
não perderam aquela oportunidade de lhe cair em cima. Salafrários e patrioteiros chamaram-lhe traidora, os religiosos chamaram-lhe ímpia, autoproclamados porta-vozes
dos pobres censuraram-lhe o ser rica. Não houve muitos artistas que tomassem a sua defesa: os Chipkalistas lembraram-se de que ela os tinha atacado e calaram-se;
aqueles artistas que estavam verdadeiramente vendidos ao Mundo Ocidental e gastavam as suas carreiras a imitar, com o pior dos resultados, os estilos das grandes
figuras artísticas dos Estados Unidos ou da França, agora acusavam-na de "provincianismo", enquanto outros artistas - e não eram poucos - que chapinhavam no mar
morto da antiga herança da nação (e muitas vezes fabricando secretamente cópias falsas de obras pornográficas da arte Mughal ou Kashmir), insultavam-na com não menos
irfclignação por "ter perdido o contacto com as suas raízes". Todos os antigos escândalos da família foram de novo trazidos à luz, com excepção do caso do filho
primogénito reclamado por Flory a Abraham que nunca tinha sido pasto da opinião pública; os jornais publicaram com satisfação todos os detalhes disponíveis acerca
da vergonha do velho Francisco com os seus "raios Gama" e acerca dos esfor-
ços absurdos de Camões da Gama para treinar uma trupe de Leni-nes Indianos e acerca do massacre entre Lobos e Menezes em resultado do qual os manos Gama tinham ido
para a cadeia e acerca do suicídio por afogamento do pobre inconsolável Camões e, claro, acerca do grande escândalo do juntar-dos-trapinhos, fora do matrimónio,
do Judeu pobre e insignificante com a sua puta cristã e podre de rica. Mas quando começaram a ser levantadas questões acerca da legitimidade das crianças Zogoiby,
certo dia, ao que parece, os directores de todos os jornais importantes receberam a visita discreta de emissários de Abraham Zogoiby que tinham uma palavrinha a
segredar-lhes ao ouvido; e logo a seguir a campanha de imprensa cessou instantaneamente como se tivesse morrido de susto com uma paragem cardíaca.
Aurora retirou-se um pouco da vida pública. O seu salão continuou a brilhar, mas os elementos mais conservadores da alta sociedade e da vida artística e intelectual
do país deixaram-na cair de vez. Ela própria manteve-se cada vez mais dentro das paredes do seu Paraíso pessoal e tomou de uma vez por todas a direcção que Vasco
Miranda lhe vinha recomendando insistentemente, a verdade para que tendia o seu coração, a realidade dos sonhos.
(Foi por esta altura, quando motins originados pelas diferenças linguísticas prefiguravam a divisão do país, que ela anunciou que dentro das suas paredes não se
falaria nem Marathi nem Gujarati: a língua do seu reino era o inglês e nada mais. "Todas estas falas diferentes separam-nos uns dos outros", explicou ela. "Só o
inglês nos reúne.")
Eu também fui obrigado a adoptar uma vida relativamente resguardada; mas devo salientar que nós os dois fomos mais unidos do que a muitas mães e filhos, porque logo
a seguir ao meu nascimento ela começou a série de grandes telas a que o seu nome é mais frequentemente associado; aquelas obras, "os quadros do Mouro", cujo nome
é o mesmo que o meu, no qual o meu crescimento está mais significativamente documentado do que em qualquer álbum de fotografias e que nos há-de manter juntos para
sempre, por mais violentamente que a vida nos tenha separado.
A verdade acerca de Abraham Zogoiby é que ele tinha assumido um disfarce; criara uma identidade secreta de mansidão a fim de mascarar a sua natureza oculta. Tinha
deliberadamente composto uma imagem de si próprio o mais baça possível - nele não havia nada do excesso kitsch do lacrimoso auto-retrato de Vasco Miranda em árabe!
- sobrepondo-a à realidade excitante mas inaceitável. A superfície deferente, benevolente era aquilo a que Vasco chamaria o seu "por-de-cima"; por de baixo, ele
reinava num submundo ainda mais sinistro do que qualquer melodramática fantasia.
Pouco depois de se ter estabelecido em Bombaim fora prestar o seu preito de homenagem ao velho Sassoon, chefe da grande família judia Baghdadi, que tinha sido íntima
dos reis de Inglaterra, criado alianças de casamento com os Rothschilds e dominado a cidade durante séculos. O patriarca acedeu em recebê-lo mas unicamente no escritório
da Sassoon & Companhia; não na sua própria casa, não como um igual, mas como um recém-chegado da província, um suplicante, é que Abraham foi admitido à Augusta Presença.
- Pode ser que a liberdade esteja a chegar a este país - disse o velho senhor sorrindo com benevolência - mas deve perceber, Zogoiby, que Bombaim é uma cidade fechada.
Sassoon, Tata, Birla, Readymoney(::), Jepjeebhoy, Cama, Wadia, Bhabha, Goculdas, Wacha, Cashondeliveri - essas grandes famílias dominavam a cidade, os seus metais
preciosos ou industriais, os seus produtos químicos, têxteis e especiarias e não estavam dispostas a largá-la de mão. A empresa Gama-Zogoiby tinha uma posição segura
na última destas áreas; e fosse aonde fosse, Abraham era mimoseado com chá ou refrescos, doces, recepções cor-
(*) Tal como Cashondeliveri, Readymoney (em inglês "dinheiro na mão") é uma graça linguística do autor, como acontece aliás com muitos dos nomes próprios e alcunhas. (N. T.)
diais e, por último, uma série de avisos infinitamente corteses mas gelidamente sérios para não pisar qualquer outro ramo sobre o qual tivesse lançado um olhar cobiçoso
de empresário. Contudo, uns meros quinze anos depois, quando fontes oficiais revelaram que 0,5% das empresas possuíam mais de 50% de todo o capital privado e que,
mesmo dentro dessa élite, 1,5% (apenas vinte empresas) dominavam o resto e que dentro dessas vinte empresas havia quatro supergrupos que controlavam entre eles 25 % de todo o capital accionista da índia, a Companhia Gama-Zogoiby C-50 já era a número cinco.
Ele começara por estudar história. Existe em Bombaim, ende-micamente, uma noção vaga do que se refere ao tempo passado; se se perguntar a um homem há quanto tempo
está estabelecido, ele responde:
- Há muito tempo.
- Muito bem. E a sua empresa quando é que começou?
- É muito antiga. Vem dos Velhos Tempos.
- Estou a ver. E o seu bisavô, em que ano nasceu?
- Há uns tempos atrás. Para que é que pergunta? Essas coisas são letra morta perdida no nevoeiro.
Os registos, atados com uma fita e metidos em caixas são guardados em arrecadações poeirentas onde nunca ninguém vai. Bombaim é uma cidade relativamente recente
num país antiquíssimo e não está interessada nos dias passados. "Considerando que o hoje e o amanhã são áreas competitivas", pensou Abraham, "deixa-me começar por
investir naquilo em que ninguém está interessado, isto é, no passado".
Dedicou então muito tempo e muitos meios ao estudo pormenorizado do passado das grandes famílias, desenterrando os seus segredos. Da história dos Mania ou dos Bubble,
de algodão, ficou a saber que em 1860, num período de especulação selvagem, muitos magnates tinham sido duramente atingidos e quase arruinados e que a partir daí
os seus negócios eram marcados por um profundo espírito conservador e muita precaução.
"Nesse caso pode haver uma falha no modo de enfrentar o risco", concluiu Abraham, "e só os valentes merecem ganhar."
Traçou a rede de contactos e ligações das grandes casas e descobriu como é que elas puxavam os cordelinhos; descobriu também quais eram os impérios construídos na
areia. E assim, quando nos anos cinquenta executou a sua espectacular golpada sobre a Casa de Cashondeliveri, que tinha começado por ser uma firma de agiotagem e
crescera no decorrer de um século até ser uma empresa gigante com holdings extensivas a bancos, imobiliário, navios, produtos químicos e pescas, isso foi devido
a ter descoberto que a velha família Parsi estava secretamente num estado de decadência terminal e "quando a deterioração está tão avançada, escreveu ele no seu
diário, os dentes podres têm de ser arrancados o mais depressa possível, senão é o corpo inteiro que é infectado e morre."
Com cada nova geração Cashondeliveri o nível de eficácia nos negócios declinara fortemente e a geração actual de play-boys tinha incorrido em perdas colossais ao
jogo em todos os casinos da Europa, e além disso cometido a estupidez de se deixar envolver num escândalo de subornos a custo silenciado, resultado dos seus esforços
para exportar métodos indianos de fazer negócio para um mercado financeiro ocidental que exigiria um tratamento mais subtil. A expedita equipe de Abraham conseguiu
extrair todos estes esqueletos dos armários onde estavam escondidos: e um belo dia Abraham entrou pura e simplesmente no gabinete privado da Casa Cashondeliveri
e abertamente à luz do dia fez chantagem com os dois rapazes já-não-tão-novos-como-isso que lá encontrou obrigando-os a submeterem-se imediatamente às suas muitas
e precisas exigências. Lowjee Lowerjee Cashondeliveri e Jamibhoy Lifebhoy Cashondeliveri, os débeis rebentos do outrora poderoso clã, ao venderem o seu direito hereditário
pareceram quase felizes por se libertarem das responsabilidades para as quais estavam mal equipados "tal como se sentiram os Imperadores decadentes da Pérsia quando
foram avassalados pelos exércitos do Islão", como Abrahan costumava dizer.
Mas Abraham não era nenhum santo guerreiro, não senhor. Esse homem que na sua vida doméstica transpirava um ar de ineficácia e até de fraqueza tornou-se na realidade
um verdadeiro
czar, um tirano reinando sobre a fragilidade humana. Será um choque saber que poucos meses após a sua chegada a Bombaim já tinha começado a traficar em carne humana?
Para mim foi um choque, leitor. O meu pai, Abraham Zogoiby? Abraham, cuja história de amor tinha sido uma história de paixão e de romance? - Lamento dizê-lo; esse
mesmo: o meu imperdoável pai, a quem eu já perdoei...
Já muitas vezes disse que, para além do esposo amantíssimo, do protector paciente e conformado da nossa maior artista contemporânea, existira desde o início um Abraham
mais tenebroso, um homem que fizera o seu caminho através de ameaças e coacção de gente relutante, não só capitães de navios como também barões da imprensa. Este
Abraham invariavelmente preferia tratar com certas personagens, com quem de resto chegava a acordos mutuamente satisfatórios - chamemos-lhe gente de negócios escuros
- que forneciam intimidações, uísque de contrabando e também sexo com a mesma devoção com que os Tatas e os Sassoons exerciam o seu comércio mais respeitável, o
seu "mercado branco". Bombaim nesta época, descobriu Abraham, não era a "cidade fechada" que se referira o velho Sassoon. Para um homem preparado para correr riscos
e alijar escrúpulos, estava aberta de par em par e os únicos limites para o dinheiro que se podia ganhar eram os limites da própria imaginação de cada um.
Mais adiante se contarão mais detalhes acerca do temido chefe de gang muçulmano "Gilvaz", cujo verdadeiro nome não me atreverei a pôr aqui, contentando-me com a
alcunha apavorante pela qual era conhecido em todo o submundo de Bombaim e mais tarde - como veremos - mais além ainda. Para já contento-me em registar que, como
resultado da sua aliança com aquele cavalheiro, Abraham obteve "protecção", que sempre constituiu um elemento imprescindível para o seu modo de operar; e em troca
dessa protecção meu pai tornou-se - e manteve-se sempre, durante a sua longa e iníqua vida - o principal fornecedor de rapariguinhas novas para as casas tão eficientemente
mantidas pela gente de "Gilvaz", o círculo Grant Road-Falkland Road-Foras Road-Kamathipura de bordéis de Bombaim.
- Como era isso? Onde é que ele as arranjava? Ora, nos templos do Sul da índia, lamento dizê-lo, especialmente nos santuários dedicados a uma certa deusa Karnataka,
Kellamma, ao que parece incapaz de proteger as suas pobres e jovens discípulas... É sabido que nos nossos tristes tempos, com os seus preconceitos a favor dos filhos
rapazes, muitas famílias pobres cedem aos templos da sua divindade favorita as filhas que não conseguem casar ou sustentar, na esperança de que elas vivam santamente
como criadas, ou, se tiverem sorte, como bailarinas; esperanças vãs, infelizmente, porque em muitos casos os sacerdotes desses templos eram homens dos quais estavam
misteriosamente ausentes quaisquer padrões de honestidade, uma falha que os deixava abertos a ofertas de dinheiro na mão por jovens virgens ou não-completa-mente-virgens
ou revirginizadas a seu cargo. E assim Abraham, o negociante em especiarias, podia servir-se largamente das suas ligações com o Sul para arrecadar uma nova colheita
de meninas lançadas nos seus registos como "Garam Masala Qualidade Super" ou, então, é com embaraço que o escrevo "Malaguetas Extra Picantes: Verdes".
E foi também em sociedade oculta com "Gilvaz" que Abraham Zogoiby entrou para a indústria do pó de talco.
Hidro-silicato de magnésio cristalizado (H2 Mgu SÍ4 O12): talco. Quando Aurora lhe perguntou ao pequeno-almoço porque é que se ia meter no negócio dos cuzinhos-de-bébé,
ele referiu as vantagens combinadas da economia proteccionista, que impunha taxas proibitivas às marcas estrangeiras de pó talco e da explosão demográfica que garantiria
uma enorme produção de cuzinhos. Falou com entusiasmo do potencial global do produto, caracterizando a índia como a única economia do Terceiro Mundo capaz de rivalizar
com o primeiro em sofisticação e crescimento, sem necessariamente se escravizar ao todo-poderoso dólar e sugeriu que muitos outros países do Terceiro Mundo saltariam
sobre a
oportunidade de comprar um talco de superior qualidade sem ter de gastar dólares. Quando dissertava sobre as possibilidades a curto prazo de a sua marca Baby Softo
bater a própria Johnson & Johnson no mercado indiano, já Aurora não estava a ouvir. Quando começou a cantarolar o "jingle" com que ele se propunha lançar a sua nova
endrómina, com versos escritos por ele próprio e adaptados à música exasperante de Bobby Shafto, a minha mãe tapou os ouvidos. "Podes fabricar o talco que quiseres
- gritou Aurora - mas esse cagarim tem de acabar já! A casca do meu ovo está a abrir rachas."
Ao escrever isto espanto-me de novo com a teimosia de Aurora em não querer ver quantas vezes e quão facilmente Abraham a enganou, espanto-me com tudo o que ela aceitou
sem fazer perguntas; porque ele estava obviamente a mentir e o pó branco que o interessava não provinha das pedreiras de Ghats, mas fazia o seu caminho em caixas
de Baby Softo especialmente escolhidas, seguindo uma estranhíssima rota que incluía comboios de camiões viajando de noite a partir de locais desconhecidos e implicando
enormes e sistemáticas gratificações a polícias e outros funcionários encarregados dos postos de controle das grandes estradas do subcontinente; essas caixas, relativamente
pouco numerosas, produziram durante vários anos lucros de exportação que ultrapassaram de longe o resto dos proventos da empresa e foram distribuídos por todos os
sectores - um rendimento que não foi nunca declarado como tal, que não aparecia em nenhum livro de registos, excepto o ultra-secreto livro dos livros que Abraham
conservava profundamente escondido, talvez em algum escuro recanto da sua alma corrupta.
A cidade de Bombaim, e talvez todo o país, era um palimp-sesto, submundo por baixo de submundo, mercado negro por baixo do branco; quando toda a vida era assim,
quando uma realidade invisível se movia fantasmagoricamente por baixo das ficções visíveis, subvertendo todos os significados, como poderia ter sido diferente a
carreira de Abraham? Como poderia algum de nós ter escapado a essa mortal sobreposição? Como teríamos podido - nós, encurralados numa mistificação do real a cem
por
cento, na fantasia árabe kitsch e piegas do superficial - penetrar até à verdade plena e sensual da mãe perdida, lá no fundo de tudo? Como poderíamos ter vivido
vidas autênticas? Como poderíamos ter evitado o grotesco?
Olhando para trás é claro para mim que a piada de Vasco Miranda, na Noite da Independência, acerca do poder da corrupção ser igual ao poder dos deuses só pecava
pela brandura da sua formulação. E Abraham Zogoiby deve ter sabido perfeitamente que as alusões do pintor emborrachado, que ele pretendia de um cinismo bombástico,
não chegavam sequer a aflorar a realidade.
- A tua mãe e o seu bando de artistas estavam sempre a queixar-se de terem de criar qualquer coisa do nada - recordava Abra-ham bastante divertido na sua idade avançada,
recordando os seus crimes. - Que é que eles fabricaram? Quadros? Então e eu, que criei uma cidade inteira do nada? Avalia por ti: qual é melhor como truque de magia?
Do chapéu alto da tua querida mãe saíram criaturas belíssimas; mas do meu, meu caro - saiu o King Kong.
Durante os meus primeiros vinte e tal anos de vida, grandes extensões de terra - "alguma coisa criada do nada" - foram conquistadas ao Mar da Arábia na ponta Sul
da Península de Bombaim e Abraham investiu forte nesta Atlantis-ao-contrário, emergida das águas. Nesses dias falava-se muito em aliviar a tensão da cidade superpopulada
limitando a área e a altura dos novos edifícios na área conquistada e construindo um segundo centro da cidade na terra firme do outro lado da água. Era importante
para Abraham que este projecto não fosse por diante - "se não, como posso eu manter o valor dos terrenos em que tanto investi?" perguntou-me ele abrindo os braços
esqueléticos e mostrando os dentes no que outrora devia ter sido um sorriso desarmante mas agora, na semiobscuridade do seu escritório num andar elevado dava ao
meu pai nonagenário a aparência de uma caveira voraz.
Encontrou um aliado em Kiran Kolatkar, (dito K.K. ou "Kéké"), um político de Aurangabad, uma verdadeira bala de canhão, negrusco, de olhos esbugalhados e o manda-chuva
mais duro de Bombaim nos últimos anos, que acabou por aceder ao domínio da Autoridade Municipal. Abraham Zogoiby expôs-lhe os
princípios da invisibilidade, essas leis secretas da natureza que não podiam ser subvertidas pelas leis visíveis dos homens. Abraham explicou-lhe como é que fundos
invisíveis podiam fazer caminho através de uma série de contas bancárias invisíveis para surgirem, visíveis e puras como a neve, na conta de uma pessoa amiga. Demonstrou-lhe
como é que a invisibilidade da cidade-de-sonho do outro lado da água, se continuasse a existir, viria a beneficiar aqueles amigos que tinham - ou talvez viessem
a ter nos tempos mais próximos - interesses naquilo que permanecera invisível até então mas se arriscava agora a emergir como uma nova Bombaim, tal Vénus saindo
das águas. Mostrou-lhe como seria fácil persuadir os dignos funcionários, cujo papel consistia em verificar e controlar o número e a altura dos novos edifícios na
Terra Conquistada, de que ficariam muito beneficiados se perdessem o dom da vista - "metaforicamente, meu rapaz, claro, é só um modo de falar; não penses que queremos
tirar os olhos a alguém, como fez o Xá Jehan àquele abelhudo que pretendia lançar sobre o Taj Mahal uma olhadela antecipada" - de modo que enormes moles de edifícios
novos pudessem permanecer invisíveis aos olhos do público, enquanto cresciam para o céu tanto quanto se quisesse. E de novo - hop la!
- os edifícios invisíveis iriam gerar montes de dinheiro, iriam mesmo contar-se entre os bens imobiliários mais valiosos do mundo: algo criado do nada, um milagre,
e todos os amigos que quisessem ajudar seriam generosamente recompensados.
Kolatkar aprendia depressa e até teve uma inspiração: e se esses edifícios invisíveis fossem construídos por uma força-de-trabalho invisível? Não seria um resultado
elegante e económico? "Evidentemente concordei" -, confessou o velho Abraham. - "O Kéké Cabeça-de-Apito estava a entrar na dança."
Pouco tempo depois as autoridades camarárias decretaram que as pessoas que se tinham instalado em Bombaim após o último recenseamento eram declaradas não existir.
A cidade não assumia nenhuma responsabilidade no seu alojamento ou condições de existência, o que foi considerado um alívio merecido para aqueles cidadãos honestos
- e de existência comprovada - que contribuíam com os seus impostos para a manutenção daquele burgo
dinâmico e abagunçado. Contudo, não se pode negar que a vida se tornou difícil para aquele milhão ou mais de fantasmas recém-criados pela lei. Foi aí que entrou
Abraham Zogoiby e todos os que se tinham atrelado ao carro da Terra Conquistada, dando generosamente trabalho a quantos fantasmas havia, nas gigantescas obras de
construção que surgiam em cada polegada do novo território; e até iam ao ponto - aqueles filantropos! - de lhes pagar pequenas somas pelo trabalho executado.
- Nunca ninguém ouvira sequer falar em pagar a espectros, fomos nós os primeiros - disse o velho Abraham casquinando asmaticamente. - Mas claro que não podemos aceitar
qualquer responsabilidade em caso de doença ou acidente. Seria, pelo menos, ilógico. Ao fim e ao cabo aquela gente não só era invisível como também, de acordo com
decretos oficiais, pura e simplesmente não estava lá.
Estávamos sentados na crescente penumbra do trigésimo primeiro andar da jóia da Nova Bombaim, a obra prima de I. M. Pei, Torre Cashondeliveri. Pela janela eu podia
ver a lança resplandecente da Casa K.K. trespassando a noite. Abraham levantou-se e abriu uma porta. A luz entrou e com ela finos arpejos musicais. Segui-o até um
átrio gigantesco cheio de árvores e plantas vindas de climas mais temperados que o nosso - havia pomares de macieiras e pereiras e até latadas de vinha - tudo debaixo
de vidro, mantido em condições ideais de humidade e temperatura por um sistema de climatização cujo custo teria sido inimaginável senão tivesse sido invisível; porque,
por um feliz conjunto de circunstâncias, nenhuma conta de electricidade fora jamais apresentada a Abraham para pagamento. É desse átrio que vem a minha última recordação
dele - do meu velho pai com que eu, com os meus trinta-e-seis-quase-a-fazer-setenta-e-dois*anos, começava a parecer-me cada vez mais; o meu pai impenitente e serpentino,
que tomara o controle do Éden na ausência de Aurora e de Deus.
"Mas estou como hei-de ir - suspirou ele. - Está tudo a esboroar-se nas minhas mãos. A mágica deixa de resultar quando se vêem os cordelinhos. Mas c'os diabos! Morra
Marta morra farta. Come uma maçã."
12
Quer quisesse quer não, fui crescendo em altura e em largura. O meu pai era um homem grande, mas aos dez anos os meus ombros já não cabiam nos casacos dele. Eu era
como um arranha-céus livre de todos os limites legais, uma explosão demográfica de um homem só, uma megalópolis, um Hulk que faz rasgar camisas e saltar os botões.
"Olha para ti", disse a minha irmã Ina quando cheguei ao tama-niho adulto. "Tornaste-te num Gulliver e nós somos os teus liliputianos". O que era verdade, pelo menos
neste aspecto: se a nossa Bombaim era o meu Liliput pessoal, o meu enorme tamanho fazia-me sentir como que atado ao chão por cabos invisíveis.
Quanto mais se estendiam os meus limites físicos, mais limitados pareciam os meus horizontes. A minha educação era um problema. Muitos rapazes de "Casas boas" em
Malabar Hill, Scandal Point e Breach Candy começavam a sua educação na Escola de Miss Gunnery, Walsingham House, que era uma escola mista a nível de Jardim-escola
e primária, antes de irem para Campion ou Cathedral ou outro daqueles estabelecimentos de élite só para rapazes como era costume nesses tempos. Mas a lendária "Artilheira"
(*) com os seus óculos de tartaruga com barbatanas de Bat-mobile, recusou-se a aceitar a verdade dos factos acerca da minha condição excepcional.
(*) Em inglês "Gunner", trocadilho com o apelido "Gunnery". (N. T.)
- Já não tem idade para o Jardim de Infância - fungou ela após uma entrevista em que ela me tratou sempre, a mim que tinha três anos e meio, como se eu fosse o rapazinho
de sete anos que ela via sentado à sua frente. - E para a escola primária, lamento dizê-lo, está muito atrasado.
Minha mãe foi aos arames:
- Quem é que a senhora tem nas aulas? É tudo Einsteinsinhos? Albertos e Albertinas, deve ser? Uma sala inteira de Mc2?
Mas a artilheira a nada se moveu, de modo que tive de ser ensinado em casa. Seguiu-se um corropio de explicadores, a maior parte dos quais durou poucos meses. Não
lhes tenho rancor. Ao enfrentar, por exemplo, um rapaz de oito anos que decidira, a exemplo do seu amigo o pintor V. Miranda, deixar crescer um bigode revirado para
cima e bem encerado, compreende-se que tenham desatado a fugir. Apesar de todos os meus esforços para apresentar uma personalidade asseada, obediente, arrumada,
moderada e normal, permaneci pura e simplesmente qualquer coisa de esquisito aos olhos deles; até que finalmente me arranjaram uma professora. Ó Dilly Hormuz, de
doce memória! Tal como Miss Gunnery, usava óculos grossos com barbatanas, ou asas; mas estas eram asas de anjos. Chegou de vestido branco e soquetes, nos começos
de 1967, de tranças, livros apertados ao peito, pestanejando com ar míope e falando nervosamente pelos cotovelos; à primeira vista parecia mais criança do que eu.
Mas valia a pena olhar com mais atenção porque, tal como eu, Dilly usava um disfarce. Trazia sapatos rasos e mantinha-se um pouco curvada como as raparigas altas
quando querem parecer mais pequenas; mas logo que ficámos sós ela começou a endireitar-se - ah, que magnífico desenrolar, desde a cabeça pequena até aos pés, bonitos
mas enormes! Além disso - e, após tantos anos, esta memória ainda me trás um afogueamento de saudade e nostalgia - começou a distender-se. Fingia querer chegar a
um livro, uma régua, uma caneta e esticava-se, revelando só para mim as curvas do seu corpo por baixo do vestidinho; em breve começou a retribuir os meus olhares
embasbacados com o seu firme olhar a direito. E quando ficámos sós, ela desmanchou as tranças e tirou os óculos para olhar
para mim pestanejando com aqueles olhos ausentes, encovados, obsessivos e então é que mostrou o seu verdadeiro rosto - olhou longamente para o seu novo aluno e suspirou.
- Dez anos de idade... Cria de homem, és a oitava maravilha, não há que errar. - Depois, lembrando-se da sua função didáctica, começou a sua primeira lição fazendo-me
aprender de cor as sete maravilhas do Mundo Antigo e as setes maravilhas Modernas, salientando a coexistência, aqui em Malabar Hill, de mim próprio (o "Jovem Colosso")
e dos Jardins Suspensos - como se as maravilhas se reunissem aqui, numa versão indiana.
Parece-me agora que naquele monstro em que um espírito infantil espreitava, confuso, através das portadas de um corpo de rapaz bonito (porque, apesar da minha mão
aleijada, da minha aversão por mim próprio e da minha necessidade de carinho, Dilly teria visto em mim a minha beleza: a beleza, a maldição da nossa família!), Miss
Hormuz, a minha professora encontrou uma espécie de libertação pessoal, percebendo que eu estava à sua disposição para obedecer às suas ordens, como criança que
era, mas também - e aqui aventuro-me em terreno perigoso - à sua disposição para ela tocar e ser tocada, como homem.
Não me lembro agora que idade tinha (embora já tivesse rapado o meu bigode à Vasco) quando Dilly deixou de se maravilhar com o meu físico e começou, ao princípio
timidamente e depois com crescente abandono, a acariciá-lo. Por dentro, eu estava numa idade em que tais carícias são gestos inocentes próprios daquele amor pelo
qual eu estava sedento; mas por"fora, o meu corpo tornara-se apto para reacções completamente adultas. Não a condenem, porque eu não posso fazê-lo: eu era um das
maravilhas do seu mundo e ela estava simplesmente fascinada!
Durante quase três anos as minhas lições tiveram lugar em Elephanta e durante esses mil e um dias houve limites impostos pelo lugar e pelo receio de sermos apanhados
em flagrante. Por favor, não me perguntem até onde foram as nossas carícias; não me obriguem a parar de novo nas fronteiras para as quais não tínhamos passaporte!
A memória desse tempo permanece uma dor ofegante, faz-me bater o coração, é uma ferida que não fecha; porque a minha carne
sabia mais do que eu e, enquanto a criança permanecia, meio atordoada, dentro da prisão do seu corpo, os meus lábios, a minha língua, os meus membros começaram,
sob a hábil tutelagem dela, a agir independentemente do meu espírito; e em certos dias abençoados, quando nos sentíamos seguros, ou quando aquilo que nos movia nos
excitava a tal ponto que deixávamos de nos preocupar com o risco, as mãos dela, a sua boca, os seus seios movendo-se contra o meu baixo ventre, trouxeram-me um alívio
quente e desesperado.
Noutros dias ela pegava-me na mão aleijada e colocava-a assim, e assim. Durante aqueles momentos roubados, foi ela o primeiro ser humano a fazer-me sentir inteiro...
quase todo o tempo - e não obstante o que o corpo dela podia estar a fazer ao meu - ela mantinha uma corrente ininterrupta de informações. Não havia entre nós tagarelices
de amantes; em vez de tatibitates, a nossa conversa era acerca da batalha de Srirangapatnam e das principais exportações do Japão. Enquanto os seus dedos borboleteantes
elevavam a minha temperatura a alturas insuportáveis, ela mantinha o controle obrigando-me a recitar a tabuada dos treze ou a enumerar as valências dos elementos
químicos. Dilly era uma rapariga que gostava de conversar e infectou-me com o vício da loquacidade, que ainda hoje tem, para mim, uma poderosa carga erótica. Quando
me ponho a tagarelar, ou quando escuto a garrulice alheia, acho isso - como dizê-lo? - excitante. Muitas vezes, no calor do bavardage(*) tenho de pousar as mãos
sobre o colo para ocultar o que se passa por aquelas paragens dos olhares dos circunstantes, que ficariam admirados com tão óbvia reacção; ou, mais provavelmente,
divertidos. Até agora nunca tive vontade de tornar-me motivo de tal divertimento. Mas agora tudo deve ser dito e tudo o será; agora, a história da minha vida, esse
tecido de volubilidade eréctil, está a chegar ao fim.
Dilly Hormuz era uma solteirona de talvez de 25 anos quando nos conhecemos e teria os seus trinta e cinco quando a vi pela última vez. Vivia com uma mãe minúscula,
velhíssima e completamente cega, que passava os dias sentada à sacada fazendo acolchoa-
(*) Tagarelice, em francês no original. (N. T.)
dos, visto os seus dedos de costureira há muito terem deixado de precisar do auxílio dos olhos. Como é que uma mulher tão pequena e tão franzina podia ter produzido
uma filha tão alta e voluptuosa, perguntava eu, quando aos treze anos ficou entendido que eu já tinha idade de ir a casa de Dilly receber as lições, porque até me
faria bem sair de casa. Por vezes renunciava ao automóvel, mandava o motorista embora e ia a pé - na realidade, saltitando
- pela colina abaixo até casa dela, passando pela bonita farmácia antiga em Kemp's Corner - isto passava-se antes do local se ter tornado no deserto espiritual de
viadutos e boutiques que é hoje - e a Barbearia Real (onde um mestre barbeiro sem céu da boca oferecia um serviço de circuncisões como actividade secundária). Dilly
vivia nas profundidades escuras e peladas de tinta de uma velha casa Parsi cinzenta, toda em sacadas e floreados em Gowalia Tank Road, algumas portas acima dos Armazéns
Vijay, essa misteriosa loja de produtos múltiplos onde tanto se podia comprar "Time"(~*:) para dar lustro aos móveis, como "Hope" para limpar o rabo. Nós, as crianças
Zogoiby, costumávamos chamar-lhe Armazéns Jaya, do nome da nossa azeda ama, Miss Jaya Hé que ia lá fornecer-se de pacotinhos de "Life", com palitos de eucalipto
para limpar os dentes e "Love", para pintar o cabelo de castanho-avermelhado...
Com o coração a cantar e um sentimento muito próximo do êxtase, entrava em casa de Dilly, um pequeno apartamento com algum requinte, pobre mas de bom gosto. A presença
de um piano no salão, com fotografias em molduras de prata, retratos de patriarcas de chapéu em forma de vaso cheios de borlas e de uma jovem elegante com ar provocador,
que se revelou ser a velha senhora Hormuz, indicavam que a família já tinha conhecido tempos melhores, tal como os conhecimentos de Dilly em Latim e Francês. Eu
já esqueci quase todo o meu Latim, mas o que recordo do Francês - a língua, a literatura, beijos (**), cartas, os prazeres
(*) Os nomes das marcas dos produtos citados traduzem-se por ordem por "Tempo", "Esperança", "Vida" e "Amor". (N. T.)
(**) "French Kiss" - beijo com introdução da língua na boca do parceiro/a. (N. T.)
dos fins de tarde suados das ónq à sept - Dilly, tudo isso aprendi contigo... Mas agora as duas mulheres estavam condenadas a uma vida de lições particulares e de
acolchoados. Isso explica talvez porque é que Dilly tinha tanta fome de homem que se contentava com um rapaz crescido demais; porque é que saltava para o meu colo
com uma perna para cada lado e murmurava, mordendo-me o lábio inferior:
- Agora que tirei os óculos, só vejo o meu amante e nada mais.
Foi ela a minha primeira amante, realmente, mas penso que nunca a amei. Sei-o porque ela fez-me sentir feliz com a minha condição, com o facto de a minha forma exterior
ser de um homem mais velho do que os meus anos deviam permitir. Eu era ainda uma criança; por causa dela, queria precipitar-me para a idade adulta o mais depressa
possível. Queria ser um homem para ela, um homem verdadeiro e não um simulacro de masculinidade, e mesmo que isso significasse o sacrifício de parte do meu já abreviado
tempo de vida, teria de bom grado feito esse pacto com o diabo. Mas quando o amor verdadeiro, essa grande coisa magnífica, veio ao meu encontro, bastante tempo depois
de Dilly ter saído da minha vida, como me senti infeliz com a minha sorte, então! Com que fome, com que raiva eu ansiei por poder retardar o meu relógio interior
demasiado rápido! Dilly Hormuz nunca abalou a minha convicção de criança na minha imortalidade, e por isso desejei tão levianamente deitar fora os meus anos de juventude.
Mas Uma, a minha Uma, quando a amei fez-me ouvir os passos acelerados da Morte correndo para mim; então, e só então, escutei aterrado cada golpe sibilante da gadanha
fatal.
Percorri o meu caminho para a idade adulta levado pela mão suave e hábil de Dilly Hormuz. Mas - e aqui vai uma confissão difícil de fazer, talvez a mais difícil
de todas - não foi ela a primeira mulher que me tocou. Ou foi o que me disseram, embora deva avisar que a declarante - a nossa ama Miss Jaya Hé, a esposa tirânica
do perneta Lambajan - era uma mentirosa e uma ladra.
Os filhos dos ricos são criados pelos pobres e, como tanto minha mãe como o meu pai se consagravam ao seu trabalho, eu era frequentemente abandonado, só com o Chowkidar
e a ama por companhia. E apesar de Miss Jaya ser áspera como uma garra, e com lábios finos como arranhões e olhos estreitos como gritos, embora fosse magra como
uma camada de gelo e mandona como um par de botas, tenho muito que lhe agradecer pois no seu tempo de folga era um bicho itinerante, gostava de passear pela cidade
à procura de motivos de embirração, dando pequenos estalos com a língua, de lábios franzidos e abanando a cabeça quando deparava com alguma desgraça. E assim aconteceu
que foi com Miss Jaya que eu andei pela cidade de eléctrico e de autocarro e, enquanto ela deplorava o facto de estarem superlotados, eu secretamente tirava prazer
de toda aquela humanidade compacta, de ser empurrado contra os outros tão apertadamente que toda a privacidade deixava de existir e as fronteiras do próprio ser
começavam a dissolver-se, um sentimento que só experimentamos no meio duma multidão, ou no amor. E foi com Miss Jaya que eu me aventurei a conhecer a famosa turbulência
da Feira de Crawford com o seu friso feito pelo pai de Kipling, os seus vendedores de galinhas, tanto vivas como de plástico; e foi com Miss Jaya que eu penetrei
nos antros de rum de Dhobi Talao, nas casas-de-malta e apartamentos de aluguer de Byculla (onde ela me levou a visitar os seus parentes pobres - melhor dizendo,
mais pobres - que, empobrecendo-se ainda mais com ruinosas ofertas de refrescos e bolos, festejaram a sua chegada como se fosse a visita da Rainha), e foi com ela
que eu comi melancia em Apollo Bunder e cbaat no molhe de Worli e perante todos aqueles locais e os seus barulhentos habitantes, todos aqueles artigos, produtos
combustíveis e os seus insistentes vendedores, com o meu excesso de natural de Bombaim, apaixonei-me profundamente e para sempre, enquanto
Miss Jaya, encantada da vida, dava largas à sua enorme capacidade crítica distribuindo julgamentos certeiros, sem apelo nem agravo; "Caro demais!" (As galinhas.)
"Porcaria!" (Rum velho.) "Que miséria!" (Casa de hóspedes.) "É muito seca!" (Melancia.) "Demasiado picante!" (O chaat). E na volta para casa, nunca deixava de se
voltar para mim com um olhar ressentido, fuzilando despeito e cuspia: "Tu, baba, tu é que tens sorte! Agradece à tua boa estrela!"
Um dia, tinha eu dezoito anos - foi nos primeiros tempos do Estado de Emergência (*), se bem me recordo - fui com ela ao Bazar de Zaveri, onde se viam joalheiros,
fazendo lembrar macacos sábios, sentados em lojecas minúsculas, todas vidros e espelhos, comprando e vendendo prata antiga a peso. Quando Miss Jaya estendeu ao avaliador
um par de pesadas pulseiras, reconheci-as imediatamente como sendo de minha mãe. O olhar de Miss Jaya trespessou-me como uma lança; eu tinha a boca seca e não pude
dizer palavra. A transacção fez-se rapidamente; afastámo-nos do joalheiro para o bulício da rua, desviando-nos das carroças carregadas de fardos de algodão embrulhados
em serrapilheira e atados com cintas de metal, as bancas de rua vendendo bananas, mangas, os coolies com enormes cestos à cabeça, os scooters, as motorizadas, a
vida real. Voltámos para Elephanta; só quando descemos do autocarro é que a ama falou:
- Há coisas demais lá em casa. Há muitas coisas demais.
Não respondi.
- E pessoas também. - disse Misse Jaya. - A entrar. A sair. A acordar. A dormir. A comer. A beber. Nas salas. Nos quartos. Em todos os sítios. Gente demais.
Percebi o que ela queria dizer: Aurora não poderia suspeitar do seu círculo de amigos e portanto ninguém jamais poderia identificar o ladrão; a não ser eu.
- Tu não falarás - disse Miss Jaya; e concluiu, jogando o seu trunfo: - Pelo Lambajan. Por causa dele.
(*) Decretado por Indira Gandhi em 1966, para tentar dominar a oposição: milhares de adversários foram presos e foi instituída a censura à imprensa. (N. T.)
Tinha razão. Eu não podia trair Lambajan: ele ensinara-me a jogar boxe. Fizera cumprir-se a profecia desesperada do meu pai: Com um punho assim, vais pôr o mundo
K. O.
Nos tempos em que Lambajan tinha duas pernas e nenhum papagaio, antes de se tornar Long John Silverfellow, tinha-se servido dos punhos para ganhar um suplemento
para a sua escassa jorna de marinheiro. Nas vielas do jogo da cidade, onde galos de combate e ursos com argolas no nariz forneciam o divertimento preliminar, ganhara
certa reputação e razoáveis maquias como pugilista sem luvas. Ao princípio pensara dedicar-se à luta livre, porque em Bombaim um lutador podia tornar-se uma grande
vedeta, como o famoso Dara Singh, mas após uma série de derrotas voltara ao mundo mais cru e mais duro dos pugilistas de rua e começou a ser conhecido como homem
capaz de aguentar os murros. O seu balanço de vitórias-derrotas era-lhe favorável: perdera os dentes todos, mas nunca tinha sido posto a K.O.
Durante os primeiros anos da minha meninice, Lambajan entrava nos jardins de Elephanta uma vez por semana trazendo longas tiras feitas de trapos com as quais me
enfaixava as mãos e apontava para o seu queixo barbudo: "Aqui mesmo, baba" ordenava, "largue a superbomba".
Foi assim que descobrimos que a minha direita aleijada era uma mão e peras, um torpedo, o rei dos punhos. Uma vez por semana eu dava em Lambajan o mais forte que
podia e ao princípio o seu sorriso sem dentes nunca falhava.
- Bas?! - troçava ele. - Estás a fazer-me cócegas com uma pena? Isso é o que me faz o meu amigo papagaio.
Mas mais tarde deixou de sorrir. Continuava a oferecer-me o queixo mas agora eu bem o via a preparar-se para o golpe, chamando em seu auxílio todas as suas reservas
de profissional.
No dia em que fiz nove anos dei-lhe uma com balanço e Totah esvoaçou ruidosamente em direcção ao céu, enquanto o Chowkidar caía redondo. "Puré de Elefante Branco!"
guinchou o papagaio. Fui a correr buscar a mangueira ao jardim. Tinha-o posto K.O., o pobre Lamba.
Quando voltou a si, fez uma careta, sensivelmente impressionado, sentou-se e massajou as gengivas que sangravam.
- Boa, baba - disse ele com respeito. Agora é tempo de começar a aprender.
Pendurámos no ramo de um plátano um travesseiro cheio de arroz e, após Dilly ter acabado as suas inolvidáveis lições, Lam-bajan começava a dar-me as suas. Durante
os oito anos seguintes, treinámos. Ele ensinou-me a estratégia, aquilo a que se podia chamar a técnica do ringue se tivesse existido um ringue. Ele trabalhou o meu
sentido da posição e sobretudo a minha defesa.
- Não esperes não ser atingido, baba, e se ficares tonto não vais poder bater, mesmo com esse punho. - Como treinador, Lam-bajan tinha obviamente uma mobilidade
muito reduzida; mas, com uma determinação hercúlea, tentou sempre ignorar a sua desvantagem física. Por vezes durante os treinos deitava fora a muleta e saltava
de um lado para o outro num pé só como um pogo-stick(::) humano.
À medida que ia crescendo, a minha mão ia-se tornando uma arma poderosa. Tinha de reter a minha força, para não deitar abaixo Lambajan tão frequentemente ou com
demasiada violência. Vinha por vezes ao meu espírito a imagem do Chowkidar a ficar tonto e a esquecer o meu nome e isso obrigava-me a reduzir a força dos meus socos.
Na altura em que comecei a ir ao Bazar Zaveri com Miss Jaya, já era suficientemente hábil para que Lambajan murmurasse ao meu ouvido:
- Se queres um combate a sério, baba, é só dizeres.
Fiquei um tempo excitado e aterrado. Estaria eu pronto? O saco
com arroz, ao fim e ao cabo, não devolvia os meus socos e Lambajan era um partenaire demasiado familiar. Que seria de mim se um adversário bípede, feito de carne
e osso e não de arroz e serra-
(*) Brinquedo que consiste numa barra vertical com apoio para os pés e as mãos e uma mola para saltar. (N. T.)
pilheira, dançasse à minha volta com duas pernas e me enchesse de nódoas negras?
- O punho está pronto - disse Lambajan encolhendo os ombros. - Mas acerca do teu coração, não posso dizer.
Finalmente, movido por instintos sanguinários, lá disse que sim e fomos pela primeira vez para aquelas vielas sem nome do Centro de Bombaim. Lamba apresentou-me
simplesmente como "O Mouro"; como vinha com ele, não encontrei o desdém que esperava. Mas quando ele lhes disse que eu era um pugilista novo de classe dos juniores-de-mais-de-dezas
sete começaram às gargalhadas, porque era óbvio para todos os espectadores que eu ia nos trinta e já começava a ter cabelos brancos: devia ser um tipo nas lonas
que o perneta do Lamba andava a treinar por caridade. Mas juntamente com as vaias ouviram-se vozes erguidas a meu favor.
- Talvez ele seja bom - diziam - porque ainda tem uma carinha bonita, apesar de andar nisto há muito tempo.
Então trouxeram o meu adversário, um Sikh guedelhudo tão grande como eu, se não maior, mencionando negligentemente que aquele gajo, embora não tivesse mais de vinte
anos, já tinha morto dois tipos em combates daqueles e andava fugido à polícia. Senti-me desfalecer e olhei para Lambajan, mas ele fez-me calmamente um aceno de
cabeça e cuspiu no punho direito. Cuspi também no meu e aproximei-me do assassino. Ele avançou logo, transbordante de confiança, pensando que tinha sobre mim a vantagem
de catorze anos menos e ia arrumar este velhadas na esgalha. Eu pensei no travesseiro cheio de arroz e dei-lhe. Mal lhe toquei ele foi-se abaixo e lá ficou bastante
mais tempo do que levou a contagem até dez. Quanto a mim, apesar de só ter dado um soco, fui acometido por um ataque de aspa tão grave, com lágrimas e falta de ar,
que apesar da minha vitória comecei a duvidar se teria verdadeiramente um futuro naquele género de actividade. Lambajan minimizou as minhas incertezas.
- São só nervos virginais - assegurou-me ele a caminho de casa - já vi rapazes, depois do primeiro combate, ter ataques e cair ao chão a espumar da boca, quer ganhassem
quer perdessem.
- E acrescentou, deliciado: - Nem sabes o que aí tens, baba.
Não és só um martelo-pilão. Tens velocidade para dar e vender. E tomates!
Não havia uma marca no meu corpo, acrescentou ele, e ainda por cima tínhamos um rico bolo a dividir por nós dois.
Por tudo isto, eu não podia acusar a mulher do Lambajan de roubo, com risco de serem ambos despedidos. Não podia perder o meu treinador, o homem que me tinha dado
a conhecer o meu próprio dom. Segura do seu poder sobre mim, Miss Jaya começou a desafiar-me, roubando coisas debaixo do meu nariz, tomando cuidado em não o fazer
com excessiva frequência nem com objectos demasiados valiosos - agora uma caixinha de jade, mais logo um pequeno alfinete de ouro. Por vezes eu via Aurora e Abraham
abanando a cabeça ao olharem para um espaço vazio, mas os cálculos de Miss Jaya saíram acertados: os criados foram severamente interrogados mas nunca se chamou a
polícia, para poupar o pessoal doméstico às amáveis actuações da polícia de Bombaim e para não colocar mal os amigos. (E também me pergunto se Aurora se lembrava
dos seus próprios pequenos furtos e extravios propositados dos ornamentos Ganesha na Ilha de Cabral há alguns anos atrás. Dos elefantes a mais a Elephanta ia uma
longa viagem; seria que o fantasma da sua juventude vinha repreendê-la ou mesmo fazê-la sentir alguma simpatia, alguma solidariedade para com o ladrão?)
Foi durante o período dos roubos que Miss Jaya me contou o terrível segredo da minha primeira infância. Passeávamos em Scandal Point, do outro lado da grande Casa
Chamchawala e eu penso ter feito um comentário - lembro-me que o Estado de Emergência era ainda recente - acerca da relação mórbida entre a Senhora Indira Ghandi
e o seu filho Sanjay.
- A nação inteira está a pagar por esse problema mãe-filho - disse eu.
Miss Jaya, que vinha estalando desaprovadoramente a língua ao ver casais de namorados de mãos dadas a passear pelo molhe fora, deu uma fungadela de repugnância.
- Bem podes falar - disse ela. - A tua família. Bando de degenerados. As tuas irmãs e a tua mãe também. Quando eras bebé. O modo como brincavam contigo. Anormais.
Eu não sabia, nunca soube, se ela estava a falar verdade. Miss Jaya Hé era um mistério para mim, uma mulher tão profundamente revoltada com a sua sorte que se tornara
capaz das vinganças mais bizarras. Digamos que era mentira; sim, era provavelmente uma mentira nojenta; mas a verdade é que - deixem-me fazer esta revelação enquanto
estou em disposição de fazer revelações - cresci com uma atitude extraordinariamente desprendida em relação ao meu órgão sexual primário. Deixem-me informá-los que
algumas pessoas o têm agarrado - sim, sim! - ou de outra forma, tanto suave como peremptória, exigido os seus serviços; ou têm-me dado a entender como e onde e com
quem e por quanto devo usá-lo e, de um modo geral, tenho-me mostrado sempre perfeitamente disposto a colaborar. Será isto habitual? Acho que não, senhoras e cavalheiros...
De forma mais convencional, noutras ocasiões o mesmo órgão tem dado as suas instruções, que eu tenho tentado também - como é costume dos homens - seguir, se possível:
com resultados desastrosos. Se Miss Jaya estava a falar verdade, então as origens deste comportamento podem estar nessas carícias precoces a que ela tão perversamente
aludia. E para dizer a verdade, sou capaz de imaginar essas cenas, parecem-me perfeitamente credíveis: minha mãe brincando com a minha pilinha enquanto me dava de
mamar, ou as minhas três irmãs à roda do meu berço, puxando pelo meu cordelinho castanho. Bando de degenerados. Anormais. Aurora, dançando em Ganpati por sobre a
multidão, falava da perversão humana que não tem limites. Então pode ter sido verdade. Sim, pode ter sido verdade.
Meu Deus, que espécie de família que nós éramos, mergulhando juntos nas Cataratas da Destruição? Já aqui tenho dito que penso na Elephanta daqueles tempos como num
Paraíso, e é um facto, - mas podemos imaginar que para alguém de fora parecia bastante mais o Inferno.
Não sei se o meu tio-avô Aires da Gama pode ser considerado alguém de fora mas, quando apareceu em Bombaim pela primeira vez aos setenta e dois anos de idade, era
um ser humano tão tristemente deteriorado que Aurora Zogoiby só o reconheceu pelo bul-dogue Jawaharlal a seu lado. O único vestígio que restava do dandy anglófilo
e janota que ele fora em tempos era uma certa indolência eloquente de falas e de gestos que, no meu continuado esforço para lutar contra o meu destino de demasiadas-rotações-por-mi
nuto e para cultivar os prazeres da lentidão, eu tentava imitar com todas as minhas forças. Parecia doente - grandes olheiras, mal barbeado, mal alimentado - e não
teria sido uma surpresa saber que a sua antiga doença o atacara de novo. Mas não estava doente.
- A Carmen morreu - disse ele. (O cão morrera também, claro, há décadas. Aires tinha-o mandado embalsamar e aparafusar pequenos rodízios debaixo das suas patas para
poder continuar a puxá-lo pela trela.)
Aurora teve pena dele e pôs de lado todos os antigos ressentimentos familiares, instalando-o no mais luxuoso dos quartos de hóspedes, o que tinha o colchão e edredão
mais macios e a melhor vista do mar, e proibindo-nos a todos de rir do costume de Aires de falar com Jawaharlal como se ele ainda estivesse vivo. Durante a primeira
semana o Tio Aires sentava-se à mesa muito calado, como se tivesse relutância em chamar as atenções, não fosse reacender velhas hostilidades. Comia pouco, embora
mostrasse apreciar bastante a nova marca de pickles de lima e manga, Braganza, que se tornara muito popular na cidade; procurávamos não o olhar fixamente, mas pelo
canto do olho víamos o velho senhor virar vagarosamente a cabeça dum lado para o outro, como se tivesse perdido alguma coisa.
Nas suas viagens a Cochim, Abraham Zogoiby tinha feito breves e constrangidas visitas de cortesia à casa da Ilha de Cabral, de forma que tínhamos alguma notícia
acerca dos acontecimentos extraordinários nesse ramo quase completamente desligado do nosso conflituoso clã; e a pouco e pouco o Tio-Avô foi-nos contando toda a
triste, se bem que bela, história.
No dia em que Travancore-Cochim se tornou no Estado de Kerala, Aires da Gama renunciou à sua fantasia secreta, segundo a
qual os Europeus regressariam um dia à Costa do Malabar e entrou numa espécie de retiro abandonando o seu habitual desprezo pelas artes e iniciou uma leitura exaustiva
dos melhores exemplos da literatura inglesa, consolando-se das desagradáveis mudanças da história com o que há de melhor no velho mundo. Os outros membros daquele
singular triângulo doméstico, a Tia-Avó Carmen e o Príncipe Henrique o Navegador foram-se encontrando cada vez mais e tornaram-se íntimos, jogando às cartas até
altas horas da noite com apostas elevadas e mesmo especulativas. Ao fim de uns anos o Príncipe Henrique pegou no canhenho onde assentavam os resultados das apostas
e informou Carmen, com um meio sorriso, que ela lhe devia naquele momento metade da sua fortuna. Por essa altura os Comunistas chegaram ao poder, cumprindo o sonho
de Camões Zogoiby, e a sorte do Príncipe Henrique ergueu-se nos ares com o novo governo. Mercê das suas relações nas docas de Cochim, apresentou-se a eleições e
foi eleito por esmagadora maioria como membro da Assembleia Estadual sem ter tido sequer necessidade de fazer campanha. Na noite em que ele lhe anunciou a sua nova
carreira, Carmen inspirada pela notícia ganhou-lhe de novo, até à última rupia, a fortuna que perdera para ele, numa maratona de poker que culminou numa parada gigante.
O Príncipe Henrique sempre dissera que a razão de Carmen perder tantas vezes era porque nunca desistia de ir a jogo, mas daquela vez ele é que foi apanhado na teia
dela, levado pelas quatro damas que tinha na mão a subir a aposta a paragens vertiginosas. Quando finalmente ela mostrou quatro reis, ele percebeu que em todos aqueles
anos de pseudo maré de azar ela tinha estado a treinar-se em dar jogo viciado; que tinha sido vítima da mais longa golpada da história dos jogos de cartas. De novo
pobre, não pode deixar de aplaudir os talentos ardilosos de Carmen.
Os pobres nunca hão-de ser tão sorrateiros como os ricos, por isso é que acabaram sempre por perder, disse-lhe ela com amizade.
O Príncipe Henrique levantou-se da mesa, deu-lhe um beijo no alto da cabeça e dedicou o resto da vida a ajudar a implementar a política educacional do partido, quer
ele estivessse dentro quer fora do Governo, porque só a educação forneceria aos
pobres a prova de que Carmen não tinha razão. E realmente a taxa de alfabetização no novo Estado de Kerala chegou a ser a mais alta em toda a índia - o próprio Príncipe
Henrique depressa aprendeu a ler - e Carmen da Gama lançou um jornal diário destinado às novas massas de leitores nas aldeias de pescadores da costa e também nas
aldeias dos arrozais do interior, infestados de jacintos-de-água. Descobriu que tinha um verdadeiro talento como planfetária e o jornal teve enorme sucesso junto
dos pobres, para grande irritação do Príncipe Henrique porque, embora seguisse uma boa linha de esquerda, de certo modo conseguia desviar do Partido o espírito das
pessoas; e quando a Aliança Anticomunista tomou o poder no Estado foi o jornal de Carmen, essa batoteira, essa dissimulada, essa língua bífida, que o Príncipe Henrique
culpou, tanto como a interferência do Governo central de Deli.
Em 1974, o ex-amante de Aires da Gama (os seus amores tinham acabado há muito) partiu de viagem às Montanhas das Especiarias para visitar a próspera reserva de elefantes
que patrocinava, e desapareceu. Carmen soube a notícia no dia em que fazia setenta anos e ficou histérica.
O seu jornal publicou cabeçalhos de uma mão travessa de altura em que se faziam acusações graves. Mas nada ficou provado. O corpo do Príncipe Henrique nunca foi
encontrado e o caso foi encerrado após um prazo decente. A perda do homem que se tornara seu maior amigo e no seu mais querido rival foi o fim de Carmen e uma noite
ela sonhou que estava junto de um lago rodeado de colinas de floresta e o Príncipe Henrique fazia-lhe um aceno, do alto do dorso de um elefante selvagem. "Ninguém
me matou", disse ele, "chegou apenas a altura de desistir de ir a jogo."
Na manhã seguinte Aires e Carmen foram sentar-se pela última vez no jardim da ilha e Carmen contou o seu sonho ao marido. Tendo percebido o significado da visão,
Aires baixou a cabeça e não a levantou senão quando ouviu a chávena cair das mãos sem vida da sua mulher.
Tento imaginar qual terá sido a reacção do Tio-Avô Aires quando chegou a Elephanta com um cão empalhado e o coração partido, que desorientação se deve ter instalado
no seu espírito enfraquecido. Após o isolamento da Ilha de Cabral, que terá ele pensado da violência constante do nosso dia-a-dia, do ego opressivo de Aurora e das
suas monumentais orgias de trabalho, em que se furtava ao nosso convívio durante dias seguidos até sair cam-baleante do estúdio, vesga de fome e de cansaço; das
minhas três loucas irmãs e de Vasco Miranda, de Miss Jaya-a-Ladra e do perneta Lambajan e de Totah e da luxúria míope de Dilly Hormuz? Que pensaria ele de mim?
E depois havia as constantes idas e vindas de pintores e coleccionadores e donos das galerias e mirones e manequins e assistentes e amantes e modelos-de-nu e fotógrafos
e embaladores e negociantes de pedras e vendedores de pincéis e Americanos e vadios e drogados e professores e jornalistas e celebridades e críticos e a conversa
sem fim acerca da problemática do Ocidente e do mito da autenticidade e da lógica dos sonhos e dos contornos lânguidos no figurativismo de Sher-Gil e a presença
tanto de exaltação como de dissidência na obra de B.B. Mukherjee e o progressivismo derivativo de Souza e a centralidade da imagem mágica e do provérbio e a relação
entre o gesto e os motivos revelados, para já não falar nas discussões de antagonistas entre o quanto e o para quem e entre exposições de grupo e one-man-shows e
entre Nova Iorque e Londres e as sucessivas chegadas e partidas de quadros e mais quadros e mais quadros. Era como se todos os pintores do país tivessem sido acometidos
pela necessidade de fazer peregrinação até à porta de Aurora para lhe pedirem a bênção para o seu trabalho - o que ela concedeu ao ex-banqueiro e à sua "Última Ceia"
luminosa e indianizada e recusou com um grunhido de desdém ao publicitista de Nova Deli casado com uma bailarina lindíssima, com quem Aurora foi ensaiar as suas
danças Ganpati deixando o pintor sozinho com as suas telas horrorosas.
Seria esta gloriosa superabundância simplesmente de mais para o pobre velho Aires? - Sendo esse o caso, a hipótese atrás formulada de que o Paraíso de uns pode ser
o Inferno de outros, está plenamente demonstrada.
Mas ai de tal hipótese! A verdade estava bem longe dela. Deixem-me que lhes diga desde já que o Tio-Avô Aires foi encontrar em Elephanta muito mais do que um refúgio.
Encontrou, para seu espanto e o de toda a gente, um momento de doce e tardia camaradagem. Talvez não de amor. Mas "qualquer coisa". Aquele "qualquer coisa" que é
bastante melhor que "nada", mesmo quando se está a chegar ao fim dos nossos pouco satisfatórios dias.
Muitos dos pintores que vinham sentar-se aos pés da grande Aurora ganhavam a vida noutras profissões e eram conhecidos entre nós como - para dar só alguns exemplos
- o Médico, a Médica, o Radiologista, o Jornalista, o Professor, o Tocador da Sarangi o Dramaturgo, o Impressor, o Curador, o Cantor de Jazz, o Advogado e o Contabilista.
Este último - o artista que é hoje sem dúvida o herdeiro do manto de Aurora, tomou Aires sob a sua protecção. Era ele então um quarentão cabeludo, que usava óculos
enormes com lentes do feitio e do tamanho de um ecrã de televisão portátil; por trás deles, uma expressão de perfeita inocência tão patente que imediatamente se
suspeitava duma partida. Em poucas semanas tornou-se amigo íntimo do meu tio-avô. Nesse último ano da sua vida o Tio Aires serviu regularmente de modelo ao Contabilista
e, na minha opinião, foi seu amante. Os quadros aí estão para quem quiser vê-los, sobretudo o extraordinário "Nem Sempre se Pode Ter o Que Se Quer", 1,14 m x 1,14
m, óleo sobre tela, no qual uma cena de rua de Bombaim fervilhante de gente (talvez a rua Muhammad Ali Road) é observada de uma sacada do primeiro andar pelo corpo
inteiro e nu de Aires da Gama, esbelto como um jovem deus mas com os desejos incum-pridos e incumpríveis, as saudades inexpremidas e inexprimíveis dos velhos estampados
em cada pincelada da sua figura pintada. Tem aos pés um velho buldogue; e talvez seja só a minha imagi-
(*) Instrumento de corda que se toca com um arco, como uma rabeca. (N. T.)
nação, mas lá em baixo no meio da multidão - sim, ali mesmo!
- aquelas duas figurinhas minúsculas sentadas nas costas daquele
elefante que leva um anúncio do Vim pintado nos flancos! - parecem ser... claro que são! - o Príncipe Henrique o Navegador e Carmen da Gama acenando ao Tio para
ir ter com eles?
(Era uma vez um barco com duas personagens, uma vestida de noiva, a outra não, e uma terceira personagem deixada só no seu leito nupcial. Aurora imortalizou essa
cena dolorosa; e aqui, na obra do Contabilista, lá estavam as mesmas três figuras. Só a disposição delas não era a mesma. A dança tinha evoluído; tornara-se uma
dança da morte.)
Pouco depois de estar terminada Nem Sempre se Pode Ter o Que Se Quer, Aires da Gama faleceu. Aurora e Abraham resolveram fazer a viagem até ao Sul para o enterrarem
lá- Desprezando o costume dos trópicos, em que as pessoas se apressam para o eterno repouso para não deixarem o mundo empestado, minha mãe chamou a agência funerária
Mahalaxmi - Removedores de Cadáveres Pvt. Ltd. (Slogan: "O corpo está aqui/e queremos que vá para ali. - Pois então é só pedir/e nós fazemos seguir") e mandou pôr
Aires no gelo, para que fosse enterrado ao lado de Carmen no talhão da família na Ilha de Cabral, onde o Príncipe Henrique o poderia encontrar se alguma vez resolvesse
vir por aí abaixo, descendo das Montanhas das Especiarias no seu elefante. Quando Aires chegou à sua última morada e abriram o contentor para o transferirem para
o caixão, parecia, segundo nos contou Aurora - "um gigantesco chupa-chupa azul". Tinha as sobrancelhas cobertas de geada e estava mais frio que a própria cova.
- Não se rale, Tio - murmurou Aurora durante o serviço fúnebre em que ela e Abraham eram os únicos presentes - No sítio para onde vai, logo lhe dá o calor. *
Mas não o disse com gosto. As disputas do passado há muito estavam esquecidas. A casa da Ilha de Cabral parecia uma coisa a mais, uma irrelevância. Até o quarto
que Aurora, jovem prodígio, cobrira de pinturas durante a sua "prisão domiciliária" já não lhe dizia respeito, porque ela tinha voltado aos mesmos temas vezes e
vezes sem conta, tinha voltado obsessivamente ao tom mítico-
-romântico em que se acotovelavam a história, a família, a política e a fantasia como uma multidão numa estação de comboios; e tinha regressado também à exploração
de uma visão alternativa da Índia-como-mãe, não a aldeia-mãe piegas de Nargis, mas uma mãe citadina, a um tempo cruel e amorosa, sombria e brilhante, múltipla e
solitária, atraente e repugnante, grávida e vazia, verdadeira e enganosa como a própria metrópole bela, impiedosa e irresistível.
- O meu pai achava que eu tinha feito aqui uma obra-prima
- disse ela para Abraham olhando as paredes pintadas. - Mas como vês são os primeiros passos duma criança.
Aurora mandou tapar os móveis e fechou a casa. Nunca mais voltou a Cochim e depois da sua morte Abraham poupou-lhe a humilhação de ser mandada de avião para o sul
como um peixe congelado. Vendeu a velha casa que se tornou num hotel decadente, de preços modestos para jovens viajantes de mochila às costas ou velhos reformados
de parcos recursos em última visita a um mundo perdido. Eventualmente ouvi dizer que tinha ido abaixo. Tive pena; mas acho que era eu a única pessoa da família a
fazer caso do passado.
Quando o Tio Aires morreu, todos nós tivemos a sensação de ter chegado a um ponto de viragem. Congelado, azul, ele marcava o fim de uma geração. Dali em diante era
connosco.
Decidi não acompanhar mais Miss Jaya nas suas sortidas pela cidade. Mas mesmo este acto de distanciamento não foi suficiente; os acontecimentos do Bazar Zaveri continuavam
a incomodar-me. Finalmente fui ter com Lambajan ao portão de entrada e, corando com a sensação de que estava a humilhá-lo, contei-lhe o que sabia.
Quando acabei, olhei-o apreensivo. Ao fim e ao cabo, nunca dissera a um homem que a mulher era uma ladra. Pensaria ele bater-me para defender a honra da família,
ou matar-me ali mesmo? Lambajan não disse nada e o seu silêncio foi-se espalhando à sua volta, amortecendo as buzinas dos táxis, os pregões dos vendedores de cigarros,
os berros dos garotos da rua que lançavam papa-
gaios de papel e jogavam ao arco e fugiam do trânsito, e a música em altos gritos que provinha do restaurante iraniano "Lamentamos não" (assim chamado por causa
do enorme quadro preto à entrada que dizia "Lamentamos não Servir Bebidas Alcoólicas, Não Damos Indicações de Moradas na Vizinhança, Não E Permitido Pentear o Cabelo,
Não Servimos Carne de Vaca, Não É Permitido Regatear Preços, Não Servimos Copos de Agua sem fornecimento de Comida, Não Temos Jornais nem Revistas de Cinema, Não
E Permitido Partilhar Alimentos Líquidos, Não E Permitido Fumar, Não Temos Fósforos, Não E Permitido Fazer Chamadas Interurbanas, Não É Permitida a Entrada com Comestíveis
Próprios, Não Permitido Discutir Cavalos, Não Fumar, Não Permanecer Muito Tempo no Interior do Estabelecimento, Não Levantar a Voz, Não Temos Trocos", e os dois
avisos finais, decisivos: Não Baixar o Volume - É Assim Que Nós Gostamos e Não há Músicas a Pedido - Todas as Melodias Escolhidas são ao gosto do Proprietário).
Até o maldito papagaio parecia suspenso da resposta do Chowkidar.
- No meu ofício, baba - disse finalmente Lambajan - vemos muitas coisas de que temos de nos proteger. Vem aí um com pedras falsas para vender, as senhoras da casa
têm de ser protegidas. Vem outro com relógios de pulso ordinários, tenho de o mandar embora. Pedintes, meliantes, vigaristas, tudo. É melhor eles irem-se embora,
para eu fazer o meu trabalho. Aqui estou eu a olhar para a rua e quando me perguntam eu respondo. Mas agora parece que também tenho de ter olhos na nuca.
- Pronto, esquece - disse eu embaraçado - Estás zangado. É melhor não pensarmos mais no caso.
- Tu não sabes, baba, mas eu sou um homem temente a Deus
- continuou Lamba, como se eu não tivesse dito nada. - Estou aqui de guarda a esta casa sem Deus e não digo nada. Mas em Walkeshwar Tank e no Templo de Mahalaxmi
conhecem-me. Agora tenho de ir lá, fazer uma oferta ao Deus Ram e pedir mais um par de olhos para a nuca. E orelhas moucas também, para não ouvir essas coisas más.
Depois de eu acusar Miss Jaya os roubos terminaram. Não trocámos uma só palavra, mas Lamba tinha feito o necessário e a car-
reira dela como ladra ficou por ali. Mas outra coisa acabou também: Lambajan deixou de ser o meu treinador, não mais saltitou pelo jardim gritando "Vamos lá, senhor
papagaio: quer-me fazer festinhas com uma pena? Vá lá, dê-me o seu melhor!" nunca mais propôs levar-me à rua dos pugilistas de rua para treinar a minha mão contra
os piores rufiões da cidade. A questão de saber se os meus problemas respiratórios iriam deitar a perder o meu talento pugilístico inato teria de esperar alguns
anos para ser resolvida. As nossas relações ressentiram-se bastante e nunca haviam de recuperar até à minha grande derrocada. Entretanto Miss Jaya tramava a sua
vingança e acabou por consegui-la.
Essa era a minha vida no Paraíso: uma vida cheia mas sem amigos. Não podendo ir à escola, estava privado da companhia da gente da minha idade; e neste mundo em que
a aparência se torna realidade e somos forçados a ser aquilo que parecemos, depressa me tornei num adulto honorário a quem todos falavam e tratavam como tal, excluído
do mundo a que pertencia. Como sonhei com a inocência dos dias da infância a jogar críquete em Cross Maidan, com as excursões às praias de Juhu ou Marvé, com as
idas ao Aquário de Taraporevala fazer bocas de peixe ao anjo-do-mar, discutindo com os colegas se será bom para comer; com usar calções curtos e cintos com fivela
em forma de serpente e com a delícia que é o kulfi de pistache e a comida chinesa e os primeiros beijos tão incompetentes dos muito jovens; com as lições de natação
ao domingo de manhã no Clube Willingdon, com aquele professor que gostava de aterrorizar os alunos deitando-se ao comprido no fundo da piscina cheia e deixando sair
todo o ar dos pulmões! A vida-em-tamanho-ampliado das crianças, os seus altos e baixos de montanha russa, as suas alianças e traições, as pândegas e os joelhos esfolados
dos rapazes, tudo isso me foi negado pelo meu tamanho e aparência. No meu Éden havia o Conhecimento. Mas fui feliz ali.
- Porquê? Porquêf Porquê?
- Essa é fácil: porque era o meu lar.
Sim, era feliz no meio daquela vida de adultos, entre as tarefas obrigatórias das minhas irmãs e as bizarrias dos meus pais que
eu me habituei a considerar ocorrências do dia-a-dia e de certo modo ainda estou persuadido de que a ideia do que é normal é que é bizarra, essa noção de que os
seres humanos têm vidas nor-mais, de todos os dias... Sinto vontade de responder: por trás da porta fechada de cada casa existe um mundo mágico e macabro tão bravio
como o nosso. E talvez eu tenha razão; ou talvez esta atitude seja também parte daquilo de que me queixo, talvez esta disposição de espírito dissidente e confusa
seja também culpa da minha mãe.
As minhas irmãs provavelmente diriam que sim. Ó minha Ina, Minnie, Mynah de outros tempos! Como era difícil para elas serém filhas da minha mãe! Por mais bonitas
que fossem, ela era mais bonita. O espelho mágico do seu quarto nunca privilegiou as raparigas mais novas. Aurora era mais inteligente, mais dotada e tinha o condão
de seduzir qualquer jovem admirador que as filhas se aventurassem a apresentar-lhe, de os enfeitiçar tão profundamente que as esperanças delas ficavam definitivamente
arrumadas; cegos pela mãe, os rapazes deixavam por completo de ver Ina, Mina ou Mynah... Havia ainda a sua língua afiada, a sua falta de disponibilidade quando elas
precisavam dela, a facilidade com que as abandonava durante longos períodos da sua tenra infância às garras ossudas e sem alegria de Miss Jaya Hé. Aurora perdeu-as
todas três, sabem, todas arranjaram maneira de a deixar, embora a amassem com mais desespero e mais paixão do que ela era capaz de sentir por elas, embora a amassem
mais do que eram capazes de se amar a si próprias.
Ina, a mais velha, com o seu nome amputado de metade, era a mais bela das três e também, lamento dizê-lo, o que as irmãs chamavam "A Bronca-da-Família". Aurora,
sempre amável e generosa, costumava agitar uma mão angelical em ditecção a Ina e dizer às visitas, nos momentos mais festivos: "É um prazer para os olhos, não para
os ouvidos. Sabem, é um bocado limitada em matéria de miolos, coitadita".
Aos dezoito anos, Ina encheu-se de coragem e mandou furar as orelhas nos Irmãos Jhaveri, a grande joalharia de Warden Road; pelo maior dos azares, a sua coragem
foi recompensada por uma
infecção: na parte de trás das orelhas apareceram enormes tumores supurando pus que foram piorando devido à sua decisão de continuar a picá-los e espremê-los. Finalmente
teve de ser tratada no hospital, onde durante três meses foi receber curativo; aquele triste episódio deu à mãe uma nova arma contra ela.
- Talvez tivesse sido melhor mandar cortar as orelhas - ironizou Aurora. - Talvez servisse para fixar o bloqueamento. Porque há aí um bloqueamento, não há? Como
se fosse cera ou um tampão nos ouvidos. A forma exterior é melhor que boa, mas lá dentro não entra nem sai nada.
Não há dúvida que Ina tapou os ouvidos às opiniões da mãe e rivalizou com ela no único campo em que o podia fazer: a sua beleza. Ofereceu-se como modelo a todos
os artistas do círculo de amigos de Aurora, um por um - ao Advogado, ao Tocador de Sarangi, ao Cantor de Jazz - e quando lhes revelou por completo o seu físico sublime,
a sua força gravitacional atraiu-os imediatamente; como satélites desviados das suas órbitas foram estatelar-se nas suas doces colinas. Após cada conquista, arranjava
maneira de a mãe surpreender um bilhetinho de amor ou um desenho pornográfico, como se fosse um guerreiro Apache exibindo escalpos ao Grande Chefe na sua tenda.
Entrou também no mundo do comércio, como no mundo da arte, tornando-se como a primeira manequim indiana a desfilar nas passerelles e a aparecer nas capas das revistas
- Femina, Buzz, Celebrity, Patakha, Debonair, Bombay, Bombshell, Ciné Blitz, Lifestyle, Gentleman, Eleganza, Chie, e a sua fama chegou a ser tão grande como as das
estrelas de Hollywood. Ina tornou-se a deusa muda do sexo, sempre pronta a usar as roupas mais exibicionistas desenhadas pela nova estirpe de jovens criadores de
moda radicais que estavam a emergir na cidade, roupas tão reveladoras que muitas das modelos mais na berra sentiam-se embaraçadas em as mostrar. Ina que nada no
mundo conseguia embaraçar, era a rainha de todos os desfiles com o seu célebre Super-Requebro-com-Golpe-de-Ancas. A sua cara numa capa de revista fazia subir as
vendas trinta-por-cento; mas não dava entrevistas, recusava todas as tentativas para descobrir os seus segredos mais íntimos, as cores do seu
quarto de cama ou o seu actor favorito, ou a canção que costumava 'cantarolar no banho. Não revelava truques de beleza nem dava autógrafos. Permanecia distante:
com a sua imagem de jovem lady das classes altas de Malabar Hill, deixava crer que só passava modelos "para se divertir". Este silêncio fazia crescer a sua "classe";
os homens sonhavam dela as suas próprias versões e as mulheres podiam imaginar-se usando as suas sandálias de tiras ou os seus sapatos de crocodilo. Em pleno Estado
de Emergência, quando em Bombaim já estava tudo normalizado (exceptuando o facto de toda a gente perder frequentemente os comboios devido a eles terem passado andar
à tabela), quando a praga do fanatismo estava ainda na fase de disseminação e a doença ainda não irrompera na metrópole - nestes estranhos tempos a minha Irmã Ina
foi eleita Primeira Mulher em Destaque pelas jovens leitoras de revistas da cidade, batendo a senhora Indira Ghandi por uma margem de dois para um.
Mas não era a senhora Ghandi a rival que ela procurava ultrapassar e os seus triunfos perdiam todo o significado porque Aurora não reagia à provocação, recusava-se
a condenar a sua devassidão e o seu exibicionismo; até que Ina conseguiu finalmente mandar à mãe uma prova epistolar de uma ligação - um único fim-de-semana, veio
a saber-se, no Hotel Lord em Matheran - com Vasco Miranda. Aí, conseguiu o que queria. Aurora convocou a sua filha mais velha, amaldiçoou-a chamando-lhe puta nnifomaníaca
e ameaçou pô-la no olho da rua.
- Não é preciso empurrar - disse Ina orgulhosamente - Não se preocupe; eu é que vou já daqui para fora.
Dentro de vinte e quatro horas chegava a Nashville, no Tennessee, com um jovem play-boy que era o único herdeiro do que restava da fortuna da família Cashondeliveri
depois de Abraham ter comprado as partes do seu pai e tio. Jamshedjee Jamibhoy Cashondeliveri era conhecido nos clubes nocturnos de Bombaim, sob
o nome artístico de "Jimmy Cash", como o fornecedor daquilo que ele chamava "Música Country Oriental", uma série de canções em tom fanhoso e aguitarrado acerca de
ranchos, comboios, amor e vacas, com um idiossincrático toque de inspiração indiana. Agora ele e Ina tinham abalado para novas paragens, onde areja-
vam o seu amor. Ela adoptou o nome artístico de Goody Gama
- o uso do nome de família de sua mãe sugerindo a influência sempre presente de Aurora sobre os pensamentos e actos da filha
- e as coisas tomaram novo rumo. Ina, que se tornara uma lenda mercê do seu silêncio, agora resolveu abrir a boca e cantar. Formou um grupo, com um coro de mais
três cantores, cujo nome, com o qual concordou apesar das lamentáveis conotações cavalares, era "Jimmy Cash e os seus G.G."(*).
Ina regressou a casa um ano mais tarde, corrida de vergonha. Todos ficámos chocados. Trazia o cabelo sujo e desgrenhado e tinha engordado trinta e cinco quilos:
que seria feito agora da Goody Gama?... Os funcionários da imigração não queriam acreditar que se tratava da mesma rapariga cujo retrato figurava no passaporte.
O casamento estava acabado e, embora ela nos contasse que Jimmy revelara ser um monstro e que nós "nem podíamos imaginar" as coisas que ele tinha feito, com o tempo
fomos percebendo que o seu apetite sexual de omnívora, tendo como objecto cowboys ornados de strassi e vocalizando à tirolesa, e o seu crescente exibicionismo não
tinham caído bem com os árbitros moralistas que decidiam no Tennessee do futuro dos cantores, nem finalmente com o seu marido Jamshed; e para o cúmulo
o seu canto lembrava o guincho agónico de um ganso a quem torcem o pescoço. Tinha gasto dinheiro com a mesma intensidade com que saboreara as delícias da cozinha
americana e os seus ataques de fúria foram crescendo tão desmedidamente como crescia
o seu volume. Jimmy acabara por lhe fugir, desistindo da "Música Country Oriental" para ir estudar direito para a Califórnia.
- Tenho de o reconquistar - suplicou ela - Tenho um plano, ajudem-me.
A terra natal é o sítio onde sempre se pode voltar, por mais dolorosas que tenham sido as circunstâncias da partida. Aurora não fez menção da fractura que abrira
entre as duas um ano atrás e tomou nos seus braços a filha pródiga.
(*) Gee! gee! é o que os americanos dizem aos cavalos para que virem à direita. (N. T.)
Vamos ajustar contas com esse patifório, - disse ela para
; consolar Ina que chorava. - É só dizeres o que queres.
- Quero trazê-lo para cá. Ele volta de certeza, se pensar que
eu estou a morrer. Mandem um telegrama a dizer que há suspeitas de não-sei-quê. Nada que seja contagioso. Uma doença de coração.
Aurora reprimiu um sorriso.
- E que tal - sugeriu ela abraçando a filha pela cintura descomunal - uma doença qualquer daquelas que fazem definhar? , Ina não compreendeu a ironia.
- Não, tonta - disse ela encostada ao ombro de Aurora - Como é que eu ia perder peso em tão pouco tempo? Deixe-se de ideias parvas. Diz-lhe: Cancro! O que pareceu
animá-la muito.
Minnie, durante a ausência de Ina encontrou a sua própria linha de fuga. Lamento ter de informar que a nossa doce Inamorata, a mais suave das mulheres, apaixonou-se
nesse mesmo ano por uma personagem que era nem mais nem menos que o próprio Jesus de Nazaré, o Filho do Homem; e também pela sua santa mãe. Minnie-a-ratinha sempre
tão fácil de escandalizar, a única das irmãs para quem a nossa libertinagem de beatniks era objecto de reprovação, com estalejar de língua e tapar a boca com a mão,
a nossa inocente mini-Minie de olhos esbugalhados, que andara a estudar enfermagem nas freiras de Altamount Road, anunciou a sua intenção de trocar Aurora, sua mãe
carnal, por Maria Gratia-plena, Mãe de Deus, de abandonar as suas irmãs por outras Irmãs e passar o resto dos seus dias longe de Elephanta, na Casa de, e envolvida
no amor de...
- Cristo!-praguejou Aurora e eu nunca a tinha visto tão zangada. - É essa a paga que nos dás por tudo o que fizemos por ti.
Minnie corou e bem se via que queria dizer à mãe para não usar
o santo nome de Deus em vão, mas mordeu os lábios até fazer sangue e entrou em greve da fome.
- Deixá-la morrer - Disse Aurora inexorável. - Antes morta que freira.
Mas durante seis dias a pequena Minnie não comeu nem bebeu até que começou a ter desmaios dos quais cada vez era mais difícil reanimá-la. Sob pressão de Abraham,
Aurora acabou por ceder. Não foram muitas as vezes que eu vi chorar a minha mãe, mas naquele sétimo dia ela chorou como se as lágrimas lhe fossem arrancadas para
emergirem em soluços ásperos como machadadas. A Irmã John, do convento de Gratiaplena foi convocada - a Irmã John que assistira a todos os nossos partos - e chegou
com a autoridade serena de uma rainha vencedora, como se fosse a rainha Isabel de Espanha entrando em Granada para receber a rendição de Boabdil-o-Mouro. Era uma
mulher que parecia um barco velho e largo, com velas brancas à roda da cabeça e suaves ondas de carne à volta do queixo. Tudo nela tinha ressonâncias simbólicas
naquele dia; parecia ser o veleiro em que a nossa irmã embarcaria para o além. Tinha no lábio superior um sinal, grande e nodoso como um tronco de árvore - significando
a obstinação da verdadeira fé - e dele saíam como setas meia dúzia de pelos duros e agudos como agulhas - alusão aos sofrimentos do verdadeiro crente.
- Bendita seja esta casa por dar uma noiva a Cristo - disse ela.
Foi preciso a Aurora Zogoiby todo o seu autodomínio para
não a matar ali mesmo.
E assim Minnie fez-se noviça e quando vinha visitar-nos com
o traje de Audrey Hepburn em "Histórias de Uma Freira", os criados chamavam-lhe Minnie mausi. O que significa "mãezinha", mas eu não podia deixar de achar que soava
um pouco arrepiante, como se as figuras de Walt Disney que Vasco Miranda pintara nas paredes do nosso quarto fossem de certo modo responsáveis pela metamorfose da
minha irmã. Além disso, aquela nova Minnie, tão composta, longínqua e segura de si, com um sorriso de Mona Lisa e um brilho devoto no olhar fixado na eternidade,
aquela Minnie era para mim tão desconhecida como se se tivesse tornado um exemplar de outra espécie: um anjo, ou um Marciano ou um rato a duas dimensões. Ina, a
nossa irmã mais velha, contudo, por-
tava-se como se nada se tivesse modificado entre elas, como se Minnie - apesar de alistada num exército diferente - tivesse ainda de obedecer às ordens da Mana-Mais-Velha.
- Fala às tuas freiras - ordenou-lhe Ina - Arranja-me um quarto lá na clínica. (As freiras do convento de Gratiaplena especializaram-se nas duas extremidades da
vida, ajudando as pessoas a entrar e a sair deste mundo pecador.) - Tenho de estar num sítio desses quando o meu Jimmy Cash voltar.
Porque é que o fizemos? - Porque fiquem sabendo que todos nós colaborávamos na conspiração de Ina. Aurora mandou o tele-cancrograma e Minnie convenceu as Irmãs a
arranjarem-lhe um quarto sob pretexto de caridade, dizendo que tudo o que podia salvar um casamento, tudo o que podia proteger aquele sacramento, era puro aos olhos
de Deus. E quando o telegrama resultou e Jamshed Cashondeliveri se meteu num avião e apareceu na cidade, a ficção manteve-se. Até Mynah, a terceira das minhas irmãs
e a mais dura, que tinha sido admitida recentemente na advocacia de Bombaim e que ultimamente nos visitava cada vez com menos frequência, cerrou fileiras.
Sempre fomos uma gente danada nós os Gama-Zogoiby, precisando cada um de nós de atacar numa direcção diferente dos
outros, para podermos reclamar um território a que pudéssemos chamar o nosso. Depois dos negócios de Abraham e da arte de Aurora, vieram a profissionalização da
sexualidade de Ina e a entrega de Minnie a Deus. Quanto a Philomina Zogoiby - essa abandonou o "Mynah" assim que pôde a a criança mágica que imitava cantos de pássaros
há
muito desaparecera, ainda que, com a teimosia característica da família, continuemos a irritá-la, tratando-a pela detestada alcunha sempre que lá vai a casa - escolheu
fazer uma carreira a partir daquilo com que as filhas-mais-novas têm de se preocupar para chamar a atenção; ou seja, o protesto. Assim que se qualificou como advogada,
informou Abraham que tinha entrado para um grupo só de mulheres activistas radicais, cineastas e juristas cujo objectivo era o de revelar o escândalo das pessoas
e dos arranha-céus invisíveis que tanto dinheiro lhe tinham rendido. Levou a tribunal Kéké Kolatkar e os seus
capangas da Autoridade Municipal, num processo célebre que durou muitos anos e sacudiu até aos alicerces o velho Palácio da Autoridade.
- Velho? Quantos anos tem?
- Muitos. Vem dos Outros Tempos.
Anos mais tarde, Philomina conseguiu meter na cadeia o velho malandro do Kéké; Abraham Zogoiby logrou no entanto escapar, aceitando uma proposta do tribunal, depois
de árduas negociações com o fisco, para grande fúria da filha. Pagou alegremente uma multa descomunal, testemunhou contra o seu antigo aliado e, em troca, obteve
imunidade contra qualquer acusação; meses mais tarde comprou o belo palácio de Kéké, então na cadeia, por meia dúzia de patacos. E essa foi outra derrota de Mynah;
porque, embora ela tivesse provado à saciedade a existência dos arranha-céus invisíveis, não conseguiu estabelecer a realidade dos invisíveis que os construíram.
Essas pessoas continuavam a ser classificadas como fantasmas e a circular pela cidade como espectros, só que eram esses espectros que faziam funcionar a cidade,
carregando os seus fardos, limpando o lixo e, depois, morrendo, pura e simplesmente, cada um por sua vez, sem ninguém dar por eles, enquanto o seu sangue espectral
lhes saía pelas bocas irreais em plena rua, nas ruas indiferentes e imundas da cidade ultra-real.
Quando Ina se hospedou no lar das Freiras de Altamount para esperar o regresso de Jummy Cash, Philomina surpreendeu toda a família ao ir fazer-lhe uma visita. Havia
então uma canção de Dory Previn muito popular em que ela acusava o amante de estar pronto a dar a vida por pessoas estranhas embora se recusasse a viver com ela...
Pois bem, era isso também que nós pensávamos acerca da nossa Philomina. Daí o nosso espanto pela sua preocupação com a pobre da Ina.
E porque é que nós a apoiávamos? Eu acho que tínhamos percebido que alguma coisa se quebrara na sua vida, e que esta era a última jogada de Ina. Eu acho que todos
nós sabíamos que ainda que Minnie fosse mais pequena e Mynah mais nova, era Ina a mais frágil das três, sabíamos que nunca tinha estado realmente connosco desde
que os pais lhe partiram o nome ao meio, sabíamos que, com
a sua ninfomania e tudo resto, ela estava destruída há muito tempo. Estava a afogar-se, a agarrar-se a troços de palha como sempre se agarrara a homens e Jimmy-o-Bera
era a sua última palha.
Mynah ofereceu-se para ir buscar Jamshed Cashondeleveri ao aeroporto pensando que, agora que ele começara a estudar direito, se poderia entender mais facilmente
com ela. Ele apareceu com ar de miúdo assustado e, para o pôr à vontade enquanto o trazia para a cidade, começou a falar-lhe da sua própria actividade de jurista,
da sua "luta contra a falocracia", do seu processo contra o mundo invisível e também dos esforços do seu grupo feminista para levar a tribunal os responsáveis pelo
Estado de Emergência. Falou do clima de medo que alastrava pelo país e da importância da luta , pelos direitos humanos e democráticos.
- Indira Gandhi, - disse ela, - perdeu o direito de ser considerada mulher. É como se lhe tivesse crescido um pirilau invisível.
Tão absorvida estava com as suas preocupações e tão convencida da sua justeza que nem reparou que Jimmy se tornava, minuto a minuto, cada vez mais tenso e aflito.
Ele não era um intelectual - o curso de Direito estava a revelar-se um enorme esforço para ele - e, ainda mais importante, não tinha no sangue nem gota de radicalismo
político. E assim Mynah foi a primeira de nós a estragar os planos de Ina. Quando ela lhe disse que tanto ela como as companheiras esperavam ser presas a todo o
momento, ele pensou seriamente em saltar do carro em andamento e voltar directamente para o aeroporto antes que o considerassem cúmplice de uma parente tão contaminada.
- Ina está a morrer de saudades - disse Mynah terminado o seu monólogo, e logo corou com a metáfora que escolhera. - Quer dizer, a morrer não está - corrigiu ela,
o que piorou a situação. Fez-se um silêncio. - pronto, de qualquer modo chegámos ' - acrescentou pouco depois. - Pode ver por si.
Minnie veio ter com eles à porta da clínica, mais parecida do que nunca com a Audrey Hepburn, e durante todo o caminho até ao quarto, onde Ina jazia à espera como
um enorme balão infeliz, falou das chamas do inferno e da condenação eterna e do
até-que-Deus-nos-separe numa voz seráfica aguda como um partir de vidros.
Jimmy tentou dizer-lhe que Ina e ele não tinham assinado nenhum contrato completo, sagrado, a cheirar a incenso e a enxofre, tendo optado antes pelo "Especial da
Meia-Noite" e cinquenta dólares, que era um casamento civil com baile popular à moda do campo num salão de casamentos-à-pressão em Reno, estado de Nevada; que tinham
casado ao som da música de Hank Williams e não ao som de hinos quer antigos quer modernos, em pé defronte não de um altar mas de um "Hitching Post" (*); que não
tinha havido padre mas um homem com um enorme chapéu de cowboy e um par de pistolões nas ancas, com coldres de madrepérola e que, no momento em que ele anunciou
que eram marido e mulher, um cowboy de rodeo com "chaparajos" e um lenço de pintas à roda do pescoço saltou de repente atrás deles com um poderoso "Yahoo!" e laçou-os
bem apertados um ao outro, esmagando o ramo de noiva de Ina, de rosas amarelas, contra o seu peito. Os espinhos tinham-na picado até fazer sangue.
A minha irmã não se deixou comover com tais desculpas de laicos.
- Esse pastor de vacas - declarou ela - era o mensageiro de Deus. Não estão a ver}
O encontro com Minnie só veio reforçar a pulsão de fuga que o monólogo de Mynah já tinha desencadeado; confesso que, a seguir, fui eu a dar a minha contribuição.
Quando Minnie e Jimmy chegaram à porta do quarto de Ina, eu estava cá fora no corredor, encostado a uma porta, meditabundo. Distraído, pensando ver um enorme Sikh
que avançava para mim numa viela apinhada de gente, cuspi na minha mão direita defeituosa. Jamshed Cashondeleveri deu um salto para trás e fugiu, esbarrando com
Mynah e eu dei-me conta que devo ter parecido o irmão vingador, um gigante de um metro e noventa e cinco, preparando-me para abater o homem que causava à irmã tanta
infelicidade. Levantei as mãos num gesto de
(*) Poste onde se amarram cavalos. (N. T.)
paz, mas ele tomou-o por um desafio de boxeur e mergulhou no quarto de Ina com uma expressão de puro terror na cara.
Foi derrapando até parar a uns centímetros de Aurora Zogoiby, ela própria. Atrás dela, na cama, Ina tinha começado os seus gemidos e ais; mas Jimmy só tinha olhos
para Aurora. A grande dama teria naquela altura uns cinquenta anos de idade mas o tempo não fizera senão aumentar o seu fascínio; Jimmy ficou paralizado como um
pobre animalzinho apanhado pelos faróis de um poder superior, ela virou para ele o grande holofote da sua atenção e sem uma palavra fez dele seu escravo. Mais tarde,
terminada aquela farsa trágica, ela disse-me - mais exactamente confessou-me que não o devia ter feito, devia ter-se afastado e deixado que o casal dividido fizesse
o que pudesse das suas vidas miseráveis.
- Que fazer? - perguntou ela (eu estava a servir-lhe de modelo e ela ia conversando enquanto trabalhava) - Eu só queria saber se uma galinha velha como eu ainda
era capaz de fazer um rapazola mudar de ideias.
*- Não tenho culpa - queria dizer a minha mãe-escorpião. - é a minha natureza.
Atrás dela, Ina estava a perder o controle rapidamente. O seu .patético plano consistia em conquistar de novo o amor de Jimmy dizendo-lhe que estava perdida, que
o cancro era sistémico, pernicioso e difuso, os nódulos linfáticos estavam atacados e provavelmente tinha sido descoberto tarde demais. Quando ele lhe tivesse caído
aos pés pedindo perdão, ela havia de o deixar sofrer ainda umas semanas enquanto fingia ser sujeita a quimioterapia em
prol dos seus amores, estava pronta para passar fome e até para arrancar o cabelo). Finalmente anunciaria uma cura milagrosa ; e viveriam felizes para sempre. Todos
estes planos eram reduzidos a pó pelo olhar de adoração imbecil com que o marido contemplava a mãe dela.
Naquele instante a paixão de Ina por ele transformou-se em loucura. No seu pânico, ela cometeu a asneira irreversível de acelerar o seu plano.
- Jimmy - guinchou ela. - Milagre, milagre! Agora que chegaste, estou boa. Sinto que estou curada, juro, mandem-me
fazer-me os testes e vão ver. Jimmy, salvaste-me a vida, Jimmy, isto só tu, é o poder do amor.
Ele olhou para ela com atenção e todos pudemos vê-lo cair em si. Voltou-se para olhar para nós um por um e viu nas nossas caras a conspiração nua e crua, a verdade
que não conseguíamos esconder. Ina, vencida, desatou numa catarata de pranto.
- Que família - disse Jamshed Cashondeliveri. - Juro que nunca vi. Absolutamente chanfrados.
Abandonou a clínica de Gratiaplena e nunca mais Ina lhe pôs a vista em cima.
A frase de despedida de Jimmy foi profética. A humilhação de Ina foi um ponto de ruptura na história da nossa família. Depois daquele dia e durante todo o ano que
se seguiu Ina esteve louca, entrando numa espécie de segunda meninice. Aurora instalou-a de novo no quarto das crianças onde ela - como todos nós - tinha começado;
quando a loucura piorou puseram-lhe uma camisa-de-forças e o quarto foi acolchoado, mas Aurora nunca permitiu que a internassem num manicômio. Agora que era tarde
demais, agora que Ina tinha estalado de vez, Aurora tornou-se na mãe mais afectuosa do mundo, alimentando-a à colher, lavando-a como se fosse um bebé, abraçando-a
e beijando-a como ela nunca fora abraçada e beijada quando estava sã de espírito - dando-lhe o amor que, se tivesse sido dado mais cedo, poderia ter feito nascer
na sua filha mais velha a força necessária para resistir à catástrofe que lhe fizera perder o juízo.
Pouco depois do fim do Estado de Emergência, Ina morreu de cancro. Um linfoma desenvolveu-se de repente e devorou-lhe o corpo como um pedinte num banquete. Só Minnie,
que completara o noviciado e renascera com o nome de Irmã Flóreas, teve a coragem de dizer que Ina tinha atraído a doença, que tinha "escolhido a sua própria companhia".
Aurora e Abraham nunca falaram da morte de Ina, venerando-a em silêncio, o mesmo silêncio
que ajudara a fazer de Ina uma beleza célebre e que era agora o silêncio da tumba.
Ina morrera, Minnie partira e Mynah estivera presa por um breve espaço de tempo, pois foi presa nos finais do Estado de Emergência, mas libertada rapidamente com
a sua reputação bastante favorecida após a derrota eleitoral da Senhora Gandhi. Aurora quis dizer à sua filha mais nova quão orgulhosa estava dela mas fosse pelo
que fosse nunca chegou a dizê-lo; fosse pelo que fosse a frieza, a brusquidão de Philomina Zogoiby no que tocava aos contactos com a família conseguiram suster a
língua de sua mãe. Mynah raramente visitava Elephanta; restava eu.
Uma última pessoa caíra também pela brecha aberta no nosso mundo. Dilly Hormuz fora despedida. Miss Jaya Hé, cuja ocupação na nossa casa evoluíra de ama para governanta,
tinha-se aproveitado da sua situação para executar uma última golpada. Roubou do estúdio de Aurora três desenhos a carvão retratando-me a mim em rapazinho, retratos
em que a minha mão direita aparecia metamorfoseada por artes mágicas em flor, em pincel, em espada. Miss Jaya levou os desenhos a casa da minha Dilly, dizendo que
eram um presente do "jovem Sahib". A seguir foi dizer a Aurora que vira a professora roubar os retratos e já agora desculpe que lhe diga, Begum Sahib, mas a atitude
dessa mulher para com o nosso menino não é lá muito moral. Nesse mesmo dia Aurora foi à casa de Dilly e os desenhos, que aquela querida colocara sobre o piano nas
molduras de prata, escondendo os retratos da sua família, foi a prova que a minha mãe procurava da culpa da professora. Tentei defendê-la, mas uma vez que Aurora
tomava uma decisão não havia forças que a pudessem demover.
- Seja como for - disse ela - já estás muito crescido. Já não há mais nada que ela te possa ensinar.
Dilly recusou todas as minhas tentativas de aproximação - telefonemas, cartas, flores - depois de ser despedida. Desci uma
última vez a colina até à casa ao lado dos Armazéns Vijay mas quando lá cheguei ela não me deixou entrar. Entreabriu a porta uma mão travessa mas não me deu passagem.
Aquela longa fatia de Dilly emoldurada em teca, aquele maxilar rebelde e o olhar míope foram a única recompensa da minha viagem encalorada.
- Segue o teu caminho, meu pobre rapaz - disse ela - desejo-te felicidades no teu duro destino.
Essa foi a vingança de Miss Jaya Hé.
13
As chamadas "Telas do Mouro", de Aurora Zogoiby, podem dividir-se em três períodos distintos: as pinturas "primitivas", pintadas entre 1957 e 1977, quer dizer, entre
o ano do meu nascimento e o ano das eleições que afastaram do poder a senhora Ghandi, e da morte de Ina; os "anos grandes" ou "altos", 1977-81, durante os quais
ela criou as telas resplandecentes e profundas com as quais habitualmente se associa o seu nome; e os chamados "Mouros negros", quadros de exílio e terror que ela
pintou após a minha partida e que incluem a sua última obra-prima, inacabada € por assinar, "O Último Suspiro do Mouro" (170 x 247 cms, óleo sobre tela, 1987), onde
ela se volta finalmente para o único assunto que nunca tivera encarado directamente - enfrentando, naquela severa representação do momento da expulsão de Boabdil
de Granada, o seu próprio tratamento do seu filho único. Apesar do seu tamanho era um quadro despojado até à sua essência mais áspera, em que todos os elementos
convergiam para o rosto que ocupava o centro, o rosto do Sultão onde se derramavam, como se fossem trevas, o horror, a fraqueza, a perda e a dor, num rosto em condições
de tormento existencial que faziam lembrar Edvard Munch. Não podia ser mais diferente do quadro com o mesmo tema que Vasco Miranda fizera, ao seu modo sentimental
e até piegas. Mas era também um quadro misterioso, esse "quadro perdido" - e quão surpreendente era o facto de ambos os quadros tratando o mesmo tema, o de Vasco
e o de Aurora, terem desaparecido pou-
cos anos depois da morte de minha mãe, um roubado da colecção privada de C. J. Bhabha, o outro do próprio Espólio Zogoiby! Senhoras e Cavalheiros: permiti-me que
estimule o vosso interesse revelando que se tratava de um quadro no interior do qual Aurora, nos seus últimos dias de desassossego, ocultara o anúncio profético
da sua própria morte. (E o destino de Vasco também estava ligado à história destas telas.)
Ao estampar aqui as recordações do meu papel nesses quadros, estou obviamente consciente de que aqueles que se submetem a ser modelos para uma obra de arte só podem
oferecer, da obra terminada, na melhor das hipóteses, uma versão subjectiva, muitas vezes magoada, por vezes despeitada, do-outro-lado-da-tela.
O que poderá o humilde barro dizer de útil acerca das mãos que
o moldaram? Talvez isto, simplesmente: que eu estava lá. E que durante anos e anos de pose também eu fiz uma espécie de retrato dela. Ela olhava para mim e eu olhava
para ela.
E foi isto que eu vi: uma mulher alta com um kurta(*) suja de tinta, usada sobre umas calças de marinheiro azuis escuras, descalça, com o cabelo branco empilhado
no alto da cabeça ouriçado de pincéis dando-lhe um ar excêntrico de Madame Butterfly, interpretada por Katherine Hepburn ou - porque não? - por Nargis numa versão
indiana maluca: já um tanto entrada, sem atavios nem pinturas e certamente já não muito interessada num regresso patético de Pinkerton. Ali estava ela à minha frente
num estúdio sem o mínimo luxo, uma sala onde nem sequer havia uma cadeira confortável e sem ar condicionado, quente e húmida como um táxi velho, com uma única ventoinha
girando lentamente do tecto. Aurora nunca mostrou ralar-se minimamente com as condições climatéricas; e eu, naturalmente, também não. Sentava-me onde ela mandava
e como ela mandava, fazendo ponto de honra em não me queixar de dores nos membros dispostos como ela entendia, até ela se lembrar de me perguntar se queria fazer
um intervalo. Desse modo, um pouco da sua lendária teimosia e determinação passaram para mim através da tela.
(*) Espécie de túnica comprida, direita e sem gola usada na índia pela gente do povo, geralmente tecida em casa. {N. T.)
Eu fui o único dos filhos que ela amamentou. Isso fez uma diferença: porque, embora tenha recebido a minha quota parte dos ataques da sua língua afiada, sempre houve
na atitude dela para comigo algo de menos destrutivo do que para com as minhas irmãs. Talvez fosse a minha "condição", (que ela não permitia que alguém chamasse
doença) que lhe abrandava o coração. Os médicos deram ao meu infortúnio primeiro um nome, depois outro, mas quando estávamos no seu estúdio como artista e modelo
Aurora dizia-me constantemente que não devia pensar em mim como vítima de um caso incurável de envelhecimento precoce, mas como uma criança-prodígio, um viajante
no tempo.
- Só quatro meses e meio no meu útero - lembrava ela - Meu bebé, começaste logo logo a ir depressa demais. Talvez um dia levantes vôo e saias a zumbir desta vida
para outro espaço e Outro tempo. Talvez - quem sabe - uma vida melhor.
Foi o mais perto que ela jamais chegou de admitir uma crença num outro mundo. Como se tivesse decidido lutar contra o medo
- o dela e o meu - adoptando uma estratégia que consistia em transformar a minha sorte num destino privilegiado e apresentando-me, aos meus próprios olhos e aos
olhos do mundo, como um ser especial, alguém com significado, uma Entidade sobrenatural que não era verdadeiramente deste mundo e destes tempos, mas cuja presença
aqui definia a vida dos outros à sua volta e dos tempos em que viviam.
Bom, eu acreditava nela. Precisava de consolo e apressava-me a aceitar o que me era oferecido. Acreditava nela e isso era bom para mim. (Quando vim a saber do que
ocorrera em Deli na noite do Lótus recusado, quatro meses e meio antes da minha concepção, perguntei a mim próprio se Aurora não estaria a tentar ocultar um problema
diferente; mas não penso que estivesse. Penso que estava a dar à minha meia-vida uma mágica inteireza, a trans-formá-la graças ao poder do seu amor.)
Amamentou-me, e as primeiras obras do "Mouro" foram feitas comigo ao colo: desenhos a carvão, aguarelas, pastéis e, por fim, a grande pintura a óleo: Aurora e eu
aparecemos, de forma um tanto blasfema, como uma Madonna-e-Menino sem Deus. A minha mão
aleijada tornara-se uma luz resplandecente, a única fonte de luz no quadro. O tecido da sua túnica amorfa caía em pregas duramente sombreadas. O céu era de um azul-cobalto
eléctrico. Era aquilo que Abraham Zogoiby desejava quando encomendara o retrato dela a Vasco há quase uma década; não, era mais do que Abraham podia ter imaginado.
Mostrava a verdadeira Aurora, a sua capacidade de paixão profunda e desinteressada, bem como o seu gosto pelo auto-elogio; revelava a magnificiência, a grandeza
do seu desapego pelo mundo e a sua determinação em transcendê-lo e redimi-lo das suas imperfeições através da arte. Era a tragédia disfarçada de fantasia e transmitida
na cor e na luz da forma mais bela e intensa que ela podia criar: era uma jóia mitomaníaca. Chamou-lhe Uma luz para Iluminar as Trevas.
- Porque não? - disse ela encolhendo os ombros quando interrogada por Vasco, entre outros. - Estou interessada em fazer quadros religiosos para gente sem deus.
- Então nunca ande sem um bilhete para Londres na algibeira
- aconselhou ele - Neste país podre de deuses, nunca se sabe quando temos de fugir para salvar a vida.
(Mas Aurora riu-se do conselho; e finalmente Vasco é que se foi embora.)
À medida que fui crescendo ela continuou a usar-me como assunto dos seus quadros; também isso era um sinal de amor. Não podendo achar maneira de evitar que eu "fosse
depressa demais", ofereceu-me a imortalidade na sua pintura, tornando-me parte do que dela perduraria. Por isso, como diz o hino, deixem-me louvá-la de espírito
alegre, por ela ser tão bondosa. Sofrer pelas Suas Mercês... E, na verdade, se me pedissem para pôr o dedo - e até a minha mão inteira - na origem da minha convicção
de que, apesar da vida acelerada, da mão aleijada e da falta de amigos, tive uma infância feliz no Paraíso, eu diria que a minha alegria de viver nascera da nossa
colaboração, na intimidade dessas horas, quando ela falava de tudo, em tom distraído, como se eu fosse o seu confessor, e eu fiquei a conhecer os segredos do seu
espírito e do seu coração.
Fiquei a conhecer, por exemplo, os seus sentimentos para com
o meu pai: a grande sensualidade que tinha explodido em ambos
certo dia num armazém de Ernakulam, forçando-os a unirem-se, ! tornando possível aquilo que era impossível, exigia que lhe fosse permitido existir. O que eu mais
amava nos meus pais era aquela paixão um pelo outro, o simples facto de ela ter existido em tempos (porque, à medida que o tempo foi passando, foi-se tornando mais
difícil descortinar os jovens amantes que eles tinham sido
- naquele casal cada vez mais afastado). E porque eles se tinham
- amado tanto é que eu queria um amor idêntico para mim, ansiava por ele e mesmo enquanto me perdia nas ternuras e nos surpreendentes atletismos eróticos de Dilly
Hormuz, eu sabia que não era ela de quem eu estava à espera; o que eu queria era aquele asli mirch masala, (aquilo que nos fazia suar gotas de óleo de coentros e
soprar chamas de chili picante pela boca). Queria ter, como eles, um amor de pimenta.
E quando o encontrei, julguei que a minha mãe ia compreender. Quando precisei de mover montanhas por amor, julguei que a minha mãe me ia ajudar.
Ai de mim e de todos nós: eu estava enganado.
Ela estava ao par do negócio de Abraham com as meninas dos templos, claro; soubera tudo desde o princípio, - Um homem que quer guardar segredos não deve dar com
a língua nos dentes quando está a dormir, - resmungou ela um
dia vagamente. - As tagarelices nocturnas do teu pai chateavam-me tanto que resolvi mudar de quarto. Uma pessoa precisa de dormir.
Olhando o passado e vendo-a como ela era então, uma mulher activa e orgulhosa, ouço-a dizer-me mais qualquer coisa para além daquelas palavras descuidadas - ouço-a
confessar que ela, que recusava compromissos e não fazia acordos, tinha tomado o partido de aceitar Abraham tal como era apesar das fraquezas da carne que o tornavam
incapaz de resistir à tentação de experimentar a mercadoria que importava do sul.
- Estes velhos, - bufou ela outro dia - sempre a babar-se atrás das miúdas. E os que têm filhas são os piores.
Ao princípio, quando eu era jovem e inocente, pensava que estas reflexões eram parte do processo pelo qual entrava na vida das personagens dos seus quadros; mas
depois que as mãos de Dilly Hormuz acordaram a minha sensualidade, comecei a perceber.
Sempre me tinha dado que pensar o intervalo de oito anos entre Mynah e eu próprio e assim, quando a luz do entendimento desceu como uma língua de chamas sobre a
jovem-velha criança que eu era, eu a quem tinha sido negada a companhia de outras crianças e tinha começado cedo a usar um vocabulário de adulto, sem a delicadeza
e o controle que eles utilizam, não resisti a deixar escapar a minha descoberta:
- Vocês deixaram de ter bebés, porque ele começou a dormir com outras - gritei eu.
- Dou-te uma chapada - prometeu ela - que te parto os dentes todos dessa cara estanhada. - Mas a estalada que se seguiu não criou o mínimo problema dentário. A sua
suavidade foi a confirmação de que eu precisava.
Porque é que ela nunca confrontou Abraham com as suas infidelidades? Peço-vos que considerem que, apesar dos seus modos boémios e de livre-pensadora, Aurora Zogoiby
era no fundo do seu coração uma mulher da sua geração, uma geração que achava que aquele comportamento era tolerável e até normal num homem; uma geração cujas mulheres
encolhiam os ombros e enterravam a sua dor dizendo banalidades acerca da natureza da besta e da sua necessidade periódica de coçar a comichão. Em nome da preservação
da família, esse grande absoluto em nome do qual tudo era possível, as mulheres desviavam os olhos e guardavam o seu desgosto atado num nó bem apertado na ponta
duma écharpe ou bem abotoado no fundo de uma pequena bolsa de seda, com o dinheiro trocado e as chaves de casa. E também pode ter sido porque Aurora sabia que precisava
de Abraham, precisava dele para tomar conta dos negócios e deixá-la livre para a sua arte. Pode ter sido tão simples e tão complacente como isso.
(Um parêntesis a propósito de complacência: nos meus comentários acerca da decisão de Abraham de ir para o sul quando Aurora foi para o norte, para o seu último
encontro com o senhor Nehru e o escândalo do Lótus, eu suspeitei do meu pai de ter feito o papel de cônjuge complacente. Seria essa reprocidade que determinou o
seu rumo, aquele "casamento aberto" e vazio, aquele sepulcro caiado, aquela impostura? - Ó Mouro, calma, calma! Já estão ambos fora do alcance das tuas censuras;
essa ira já nada pode alcançar, embora faça estremecer a terra.
Como ela se deve ter detestado a si própria por fazer uma escolha tão mole, tão cobarde e tão motivada pelo dinheiro num pacto diabólico com o destino! Porque -
geração ou não geração - a mãe que eu conheci, a mãe que vim a conhecer durante aqueles dias no seu estúdio tão espartano, não era pessoa para aceitar fosse o que
fosse da vida caída no chão. Era uma pessoa que confrontava, que punha os pontos nos ii, que discutia abertamente até ao fim. Contudo, perante a ameaça de perigo
para o grande amor da sua vida, perante a escolha de uma guerra honesta e uma paz de mentiras e de conveniências, fechou a boca e não dirigiu ao marido o mínimo
comentário desagradável. E assim o silêncio cresceu entre eles como uma acusação: ele falava enquanto dormia, ela resmungava no seu estúdio e dormiam em quartos
separados. Por um momento, quando o coração dele quase se afundou na escadaria para a gruta de Lonavla, ambos puderam recordar o passado. Mas a realidade depressa
regressou. Por vezes convenço-me que ambos viram na minha mão aleijada, no meu envelhecimento, um castigo para eles - uma criança deformada, uma meia vida nascida
de um casamento que já não estava inteiro. Se jamais tivesse havido o fantasma de uma hipótese de se reconciliarem, o meu nascimento fez fugir esse fantasma. *
Comecei por idolatrar a minha mãe, depois odiei-a. Agora, no fim de todas as nossas histórias, olhando para trás sinto - pelo menos em rajadas - alguma compaixão.
O que é uma espécie de lenitivo, para o seu filho como para a sua sombra inquieta.
A força do desejo uniu Abraham e Aurora; a fraqueza da lascívia separou-os. Nestes últimos dias, ao descrever aqui a arro-
gância de Aurora, a sua dureza e aspereza, senti debaixo dessa teatralidade estridente uma tonalidade triste, de perda e desperdício. Ela perdoou a Abraham o tê-la
desapontado em Cochim, aquando da tentativa de Flory Zogoiby de lhes levar o filho ainda por nascer. Em Matheran, tentou - e ao tentar, gerou-me - perdoar-lhe pela
segunda vez. Mas ele não modificou o seu comportamento e não houve terceiro perdão... e contudo, ela ficou. Ela, que tinha abalado o seu mundo por amor, agora abafou
a sua revolta e acorrentou-se a um casamento cada vez mais desprovido de amor. Não é de admirar que a sua língua fosse ficando tão afiada.
Quanto a Abraham: se ele tivesse voltado para ela, desdenhando de todas as outras, poderia ela tê-lo impedido de mergulhar no submundo de Kéké, de Gilvaz e de outros
ainda piores que estavam para vir? Poderia ele, com o lastro abençoado do amor, ter evitado cair naquele abismo?... Não adianta tentar re-inventar outra vida para
os nossos pais. Bem basta tentar descrevê-la; para não falar da minha própria vida.
Nos "primeiros Mouros" a minha mão aparecia transformada numa série de milagres; por vezes também o meu corpo era miraculosamente mudado. Num dos quadros, - Galanteio
- eu era um pavão, abrindo em leque a minha cauda com mil olhos; ela pintou a sua própria cabeça no alto do corpo de uma rechonchuda pavoa. Noutro (pintado quando
eu tinha doze anos e parecia ter vinte e quatro) Aurora inverteu a nossa relação, pintando-se a ela como Eleanor Marx em jovem e a mim como o seu pai, Karl. O Mouro
e a Rapariga era uma ideia chocante - a minha mãe em rapariguinha apaixonada e eu em pose patriarcal, agarrado às lapelas da minha sobrecasaca, de suíças, como uma
profecia de um futuro próximo.
- Se tu fosses duas vezes mais velho do que pareces e eu tivesse metade da minha idade, podia ser tua filha - explicou minha mãe; nessa altura ela tinha quarenta
e tal e eu era novo
demais para ouvir outra coisa que não fosse o tom ligeiro que ela usou para disfarçar certas coisas estranhas na sua voz. E este não foi o nosso único retrato duplo
que também era ambíguo: também ouve Morrer num Beijo, em que ela se retratou como Desdémona assassinada sobre a cama e eu apunhalando-me como Otelo, caindo sobre
ela num último suspiro de remorso suicida. Minha mãe descrevia estas telas, depreciativamente, como "Panto-pinturas", feitas para entreter a família: o equivalente
artístico de um baile de máscaras. Mas - tal como no episódio do seu famoso "quadro do críquete", que a seu tempo será aqui narrado
- Aurora dava o seu máximo como iconoclasta quando estava despreocupada; e o erotismo ardente de todas estas obras, que ela nunca exibiu em vida, criou uma onda
de choque que só não deu em maremoto porque ela, erotómana descarada, já cá não estava para provocar a gente decente recusando-se a pedir desculpa ou sequer a exprimir
a mínima parcela de arrependimento.
Depois do quadro do Otelo, contudo, a série mudou de direcção e começou a explorar a ideia de colocar uma nova variante da velha história do Mouro Boabdil - "não
uma Versão Autorizada mas uma Versão Aurorizada", como ela disse - num cenário local, comigo a representar uma espécie de último dos Nasrids(*) em Bombaim. Em Janeiro
de 1970 Aurora Zogoiby colocou, pela primeira vez, a Alhambra em Malabar Hill.
Eu tinha treze anos e estava nos primeiros ardores do meu desvario com Dilly Hormuz. Enquanto pintava o primeiro dos "verdadeiros" ou "genuínos" Mouros, Aurora contou-me
um sonho. Estava de pé, na plataforma de trás de um comboio tipo calhambeque, de noite em Espanha comigo dormindo nos seus braços. De repente, soube - soube como
acontece nos sonhos, sem que ninguém lho dissesse mas com uma absoluta certeza - que, se me deitasse fora como um sacrifício oferecido à noite, ficaria segura e
invulnerável para o resto dos seus dias.
- Digo-te, rapaz, que pensei muito a sério no assunto.
(*) Última dinastia Muçulmana, que terminou com a conquista Cristã de Granada em 1492. (N. T.)
Por fim recusou a oferta e levou-me de novo para a minha cama. Não é preciso conhecer a Bíblia a fundo para compreender que ela tinha distribuído a si própria o
papel de Abraão e mesmo aos treze anos, naquela casa de artistas, as imagens da Pietá de Miguel Ângelo eram-me familiares, de modo que percebi a mensagem.
- Obrigado, mãe. - disse-lhe eu.
- Não tens de quê - respondeu ela - eles que se lixem.
O sonho, como tantos outros sonhos, tornou-se realidade; mas Aurora, quando chegou o seu momento abraâmico, não fez a escolha com que tinha sonhado.
Uma vez o fortim vermelho de Granada instalado em Bombaim, as coisas moveram-se rapidamente no cavalete de Aurora. O Alhambra depressa ficou quase-Alhambra; certos
elementos das fortalezas velhas que há na índia, os palácios-fortalezas da dinastia Mughal em Deli e Agra misturaram o esplendor indiano com a graciosidade mourisca
do edifício espanhol. A colina tornou-se quase-Malabar Hill sobrepujando um quase Chowpatty povoado com criaturas vindas da imaginação de Aurora - monstros, divindades
elefantinas, fantasmas. A beira da água, linha divisória entre dois mundos tornou-se, em muitos destes quadros, o seu principal foco de atenção. Encheu o mar de
peixes, navios afundados, sereias, tesouros, reis; em terra, uma cavalgada da gentalha local, ladrões de carteiras, chulos, pegas gordas arregaçando os saris por
causa das ondas - e outras figuras da história ou da fantasia ou do dia-a-dia ou de parte nenhuma, crescendo em multidão em direcção à água como os verdadeiros habitantes
de Bombaim nos seus passeios à praia, ao fim da tarde. À beira da água estranhas criaturas híbridas deslizavam para lá e para lá cruzando a fronteira dos elementos.
Por vezes ela pintava a linha de água de forma a sugerir que olhávamos um quadro inacabado que fora abandonado semitapando outro. Mas seria um mundo-de-água pintado
sobre o mundo-de-terra, ou vice-versa? Impossível saber.
- Chama-lhe Mouristão - disse-me Aurora. - Esta praia, esta colina com o forte lá em cima, jardins aquáticos e jardins suspensos, torres de vigia e torres de silêncio.
Um sítio onde os mundos colidem, se interpenetram, voltam a separar-se e são levados
pelas ondas. Um sítio onde um homem pode afogar-se ou então crescerem-lhe guelras; onde um peixe pode embriagar-se com ar ou então morrer sufocado. Um só universo,
uma só dimensão, um só país, um só sonho, chocando uns com os outros, um por cima, outro por baixo. Chama-lhe Palimpséstia. E por cima de tudo, no palácio, tu.
(Vasco ficaria convencido para o resto da sua vida que ela lhe tinha roubado a ideia; que a sua pintura-sobre-outra-pintura era a fonte da sua arte palimpséstica
e que o seu Mouro lacrimoso era a inspiração para os retratos de olhos secos que ela fazia de mim. Aurora não negou nem confirmou. "Não há nada de novo debaixo do
sol", costumava ela dizer. E na sua visão da oposição e mistura da terra e da água havia algo do Cochim da sua infância, onde a terra pretendia fazer parte da Inglaterra
mas era banhada por um mar Indiano.)
Ela não tinha parança. À volta da figura do Mouro na sua fortaleza híbrida ela tecia a sua visão, que era de facto uma visão de tecelagem, ou mais exactamente de
entretecelagem. Decerto modo eram pinturas polémicas, de certo modo pretendia criar um mito romântico da nação plural e híbrida; ela usava a Espanha Árabe para recriar
a índia e aquela paisagem de água-e-terra em que a terra podia ser fluida e o mar seco como uma pedra era a sua metáfora - idealizada? sentimental? provavelmente
- do presente e do futuro que se seguiria. Por isso, havia aqui sem dúvida certo didactismo, mas graças ao surrealismo vívido das suas imagens e do brilho metálico
do seu colorido e da aceleração dinâmica das suas pinceladas, era fácil não sentir o sermão, divertirmo-nos na feira sem escutarmos a arenga do aldrabão, dançarmos
com a música sem nos importarmos com as palavras.
As personagens - tão abundantes no exterior do palácio começaram agora a aparecer lá dentro. Ayxa, mãe de Boabdil, essa velha acha-de-armas, apareceu naturalmente
com as feições de Aurora; mas, nesses primeiros quadros, o futuro sombrio, os exércitos da reconquista de Fernando e Isabel, mal se deixavam entrever. Em uma ou
outra tela via-se no horizonte a saliência duma lança agitando uma flâmula; mas a maior parte das vezes, durante a minha
infância, Aurora Zogoiby procurava pintar uma idade de ouro. Judeus, Cristãos, Muçulmanos, Parsis, Sikhs, Budistas, Jains, acotovelavam-se nos bailes de máscaras
dos seus quadros e o próprio Sultão era representado de modo cada vez menos naturalista, aparecendo cada vez mais sob a forma de um arlequim mascarado e multicor,
menos homem que manta de retalhos; ou despojando-se da sua velha pele como uma crisálida e exibindo-se como uma borboleta gloriosa, cujas asas eram uma composição
miraculosa de todas as cores do mundo.
À medida que os quadros do Mouro iam progredindo no seu caminho, tornava-se claro que a minha mãe já mal precisava que eu posasse para ela; mas ela queria-me ali,
dizia que precisava de mim, chamava-me o seu talis-mouro da sorte. E eu ficava feliz porque a história que se desenrolava naquelas telas parecia-me mais a minha
biografia do que a verdadeira história da minha vida.
Durante os anos do Estado de Emergência, enquanto a sua filha Philomina ia para a guerra contra a tirania, Aurora retirava-se para a sua tenda e trabalhava: e talvez
isso fosse um golpe de espora para os quadros do Mouro desse período, talvez Aurora visse no trabalho a sua resposta às brutalidades daquele tempo. Mas por ironia
um antigo quadro de minha mãe, inocentemente incluído por Kekoo Mody numa anódina exposição sobre o tema do desporto, provocou uma explosão maior do que qualquer
coisa que Mynah jamais pudesse inventar. O quadro, datado de 1960, chamava-se Beijando Abbas Ali Baig e baseava-se num incidente real que ocorreu durante o Terceiro
Encontro de Críquete contra a Austrália no Estádio Brabourne em Bombaim. A partida estava empatada 1-1 e o terceiro jogo não estava a correr bem para a índia. No
segundo turno, uma jogada de Baig equilibrou as coisas. Quando chegou aos 50, uma rapariga bonita saltou da Tribuna Norte, geralmente frequentada pela alta sociedade
mais serena e reservada, e veio beijar o batedor na face. Oito tentos depois, tal-
vez um pouco perturbado, Baig foi substituído, mas o jogo estava ganho.
Aurora gostava de críquete - nessa altura o público feminino apreciador da modalidade estava em franco crescimento e jovens estrelas como A.A. Baig começavam a ser
tão populares em Bombaim como os semideuses das fitas de cinema - e por sorte estava presente no dia desse beijo escandaloso entre dois estranhos e bonitos jovens,
perpetrado à luz do dia num estádio apinhado de gente, numa altura em que nenhum cinema da cidade era autorizado a oferecer ao público uma imagem tão provocantemente
obscena. Parece impossível! Minha mãe teve uma inspiração. Precipitou-se para casa e num ímpeto único completou o quadro, em que o recatado beijinho dado, na vida
real, em tímido desafio, foi transformado num atração em grande escala, à maneira de um filme de Hollywood. Foi da versão de Aurora - rapidamente exibida por Kekoo
Mody e muito reproduzida na imprensa - que toda a gente se lembrou; mesmo os que tinham presenciado o jogo naquele dia começaram a falar, com muitos abanos de cabeça
desaprovadores, das contorções licenciosas, das humidades desinibidas daquele beijo interminável que, juravam, tinha durado horas, até que os árbitros tinham separado
o casal à força e lembrado ao batedor o seu dever para com a equipa. "Isto só em Bombaim" diziam as pessoas com aquela dose exacta de excitação e desaprovação que
só um escândalo pode misturar e abanar para dar um cocktail perfeito. "Que cidade tão devassa! Que raio! Isto só visto." *
No quadro de Aurora, o Estádio de Bradbourne no auge da excitação precipitara-se a rodear os dois beijoqueiros, as próprias tribunas inclinavam-se e curvavam-se,
quaseAescondendo o céu para melhor os comer com os olhos e entre o público encontravam-se estrelas de cinema de olhos arregalados - algumas das quais tinham realmente
estado presentes - políticos babando-se, cientistas observando serenamente e industriais batendo palmadas nas coxas e dizendo apartes ordinários.
Até o célebre Homem Comum, do caricaturista R.K. Laxman lá estava empoleirado nas bancadas, com um ar chocado
à sua maneira pateta e fora deste mundo. Assim, o quadro tornara-se uma imagem do estado-da-índia, um instantâneo da chegada do críquete ao coração da consciência
nacional e, mais controver-samente, o grito da revolta sexual duma geração. A hipérbole explícita do beijo - um emaranhado de membros femininos com os chumaços protectores
do jogador de críquete e com as suas calças brancas, que lembrava o erotismo dos baixos-relevos tântricos nos templos Chandela em Khajuraho - era descrita por um
crítico de arte como "o grito da Juventude por Liberdade, um acto de desafio em plena face do Statu Quo", e por um chefe de redacção mais conservador como "uma obscenidade
que devia ser queimada na praça pública". Abbas Ali Baig foi forçado a declarar publicamente que não tinha correspondido ao beijo da rapariga; o popular comentador
de críquete "A.F.S.T." escreveu uma nota espirituosa em sua defesa, sugerindo que "simples artistas deviam daí por diante coibir-se de meter os seus pincéis em coisas
realmente importantes da vida, como seja o críquete"; e após uns tempos aquele pequeno escândalo parecia ter-se esgotado. Mas no jogo seguinte, contra o Paquistão,
o pobre Baig marcou só, 1, 13, 19 e 1, foi afastado da equipa e nunca mais voltou a jogar pela índia. Tornou-se o alvo de um jovem caricaturista político, Raman
Fiel-ding que - parodiando os célebres desenhos Chipkali de Aurora
- assinava as suas caricaturas com uma pequena rã, que fazia comentários cínicos nas bordas do desenho. Fielding, já mais conhecido como Mainduck, depois da rã -
cometeu a vileza de acusar falsamente Baig, um homem honesto e bastante dotado, de perder propositadamente contra o Paquistão por ser Muçulmano. "E tem este gajo
a lata de beijar as nossas patrióticas raparigas indianas", resmungava a rã ao canto da página.
Chocada com o ataque a Baig, Aurora embrulhou o quadro e arrumou-o. Se permitiu quinze anos mais tarde que ele fosse exibido, foi porque tinha passado a considerá-lo
uma curiosa peça de tempos passados. O jogador envolvido estava há muito retirado e beijar já não era uma actividade tão afrontosa como o fora naqueles maus velhos
tempos. O que ela não previra é que Mainduck
- agora um político a tempo inteiro, fundador do "Exército de
Shiva", um partido de nacionalistas hindus que crescia rapidamente em popularidade entre os pobres - iria voltar ao ataque.
Já não fazia caricaturas, embora na estranha relação de atracção e repulsa que tinha com a minha mãe - que, recordemos, invariavelmente usava a palavra "caricaturista"
como se fosse um insulto - era sempre possível distinguir nele um forte ressentimento e uma atitude provocatória em relação a ela. Parecia não poder decidir se queria
cair de joelhos perante a grande artista e residente ilustre de Malabar Hill, ou arrastá-la com ele para a lama em que vivia; e esta ambiguidade era sem dúvida o
que atraía a grande Aurora para ele - para aquele indivíduo negrusco e gordo que representava tudo o que ela mais profundamente abominava. Muitos dos membros da
minha família tem a atracção da sarjeta.
O nome de Raman Fielding provinha, segunda a lenda, do pai, fã de críquete, jovem maltrapilho das ruas de Bombaim que costumava frequentar as imediações do Bombay
Gymkhana suplicando que lhe dessem uma oportunidade.
- Por favor, patrõezinhos, deixem-me pegar num taco! Ou lançar uma bola! Pronto, ao menos tentar um "fielding"! (*)
Revelou-se péssimo como jogador mas quando o Estádio Bra-bourne foi inaugurado em 1937 arranjou emprego como funcionário da segurança e ao longo dos anos o seu talento
para interceptar e expulsar os "penetras" veio a ser notado pelo imortal C. K. Nayudu que o reconheceu dos velhos tempos do Gimkhana e lhe disse rindo:
- Com que então, meu pequeno "Só-um-fielding", sempre cresceste e apareceste para fazeres umas intercepções valentes!
Depois disto, o fulano passou a ser conhecido como S. U. Fielding e adoptou orgulhosamente o nome como seu.
O filho aprendeu com o críquete uma lição diferente (para desgosto, diz-se, do pai). Para ele, nada de gozar o prazer humilde e democrático de fazer simplesmente
parte, por mais pequena que fosse, por mais marginal, daquele idolatrado mundo do críquete.
(*) De "fielder", jogador colocado no campo de críquete para interceptar a bola. (N. T.)
Não: na sua juventude, passada nos antros do rum da Zona Central de Bombaim, costumava explicar aos amigos que as origens do críquete indiano estavam na rivalidade
entre as várias comunidades.
- Desde sempre os Parsis e os Muçulmanos têm tentado roubar-nos o jogo - declarava ele - Mas quando nós, os Hindus, formámos as nossas equipas, provámos naturalmente
ser mais fortes do que eles. Da mesma maneira devemos operar mudanças para lá das fronteiras. Há muito que nos agachamos e deixamos tipos não-Indianos passar à nossa
frente. Vamos reunir forças e nada poderá fazer-nos frente.
Na sua bizarra concepção do críquete como um jogo funda-mentalista, essencialmente Hindu mas sempre ameaçado pelas outras traiçoeiras comunidades, estavam as origens
da sua filosofia política e do próprio Exército de Shiva. Houve mesmo uma altura em que Raman Fielding pensou dar ao seu novo movimento político o nome de um grande
jogador de críquete indiano - Exército de Ranji, talvez, ou Milícias de Mankad - mas finalmente resolveu-se pelo herói Mahratta, Shiva, reunindo assim o nacionalismo
regional e o religioso no seu potente e explosivo agrupamento.
O críquete, o mais individualista de todos os desportos de equipa, ironicamente tornou-se a base do "Exército de Shiva", rigidamente hierárquico, de estrutura interna
neo-estalinista; como mais tarde vim a descobrir por experiência própria, Raman Fielding insistia em agrupar os seus quadros mais dedicados em grupos de onze e cada
um destes pequenos pelotões tinha um "capitão de equipa" a quem cada um jurava vassalagem absoluta.
O conselho director do Exército de Shiva é conhecido ainda hoje por Primeiro XI. E Fielding exigiu ser tratado por "Capitão" desde o início.
A sua velha alcunha dos tempos de caricaturista nunca era mencionada na sua presença mas o famoso símbolo da rã - Votem em Mainduck - podia ser visto nas paredes
e colados nos automóveis. Curiosamente, para um chefe populista tão bem sucedido, era um homem que detestava familiaridades. Por isso, pela frente era sempre "Capitão"
e por trás Mainduck. E nos quinze anos
entre os seus dois ataques a Beijando Abbas Ali Baig, como um homem que, com o tempo, vem a parecer-se com o seu cão, ele tornara-se verdadeiramente numa versão
gigante daquela rã de caricatura há tanto abandonada. Reunia a sua corte debaixo duma árvore no jardim da sua casa de campo de dois andares em Lal-gaum, no subúrbio
de Bandra East, rodeado de assistentes e suplicantes, à beira de um lago coberto de nenúfares e entre dúzias de estátuas de Shiva de todos os tamanhos; flores douradas
flutuavam no lago para ungir as cabeças das estátuas, bem como a de Fielding. A maior parte do tempo ostentava uma imobilidade meditabunda; mas de vez em quando,
espicaçado por uma observação menos judiciosa de algum visitante, um discurso explodia nele, cheio de obscenidades, aterrador, mortal. E - na sua cadeira baixa de
verga, com o ventre enorme juncando-lhe os joelhos como o saco dum ladrão, com o seu coaxar de rã e a língua como uma pequena seta lambendo os cantos da boca, com
os olhos encapuzados sob grossas pálpebras de rã olhando cobiçosamente para baixo, para os rolos de dinheiro com que os trémulos requerentes procuravam apaziguá-lo
e que ele deliciado fazia rolar entre os dedinhos gorduchos, até que finalmente rompia num enorme sorriso de gengivas carminadas de betei - era deveras o Rei dos
Sapos, o rajá Mainduck cujas ordens não podiam ser contestadas.
Por esta altura tinha decidido escrever a história da vida do seu pai, omitindo o pormenor do "só-um-fielding". Começara a dizer aos jornalistas estrangeiros que
o visitavam que o pai tinha sido um homem de cultura, finamente educado, um literato e um internacionalista que adoptara o nome de Fielding em homenagem ao autor
de "Tom Jones".(*)
- Vocês acham que eu sou provinciano e estreito de vistas - dizia ele aos jornalistas com ar de censura. - Também me chamaram fanático e puritano. Mas desde a minha
infância, os meus horizontes foram sempre largos e livres. Foram - por assim dizer - picarescos.
{*) Henry Fielding (1707-1754), escritor inglês que faleceu em Lisboa e está enterrado no Cemitério dos Ingleses, à Estrela, (N. T.)
Aurora soube que a sua obra tinha inflamado de novo a ira daquele poderoso anfíbio quando Kekoo Mody lhe telefonou, um tanto agitado, da sua galeria de Cuffe Parade.
O Exército de Shiva tinha anunciado a sua intenção de marchar sobre a pequena sala de exposições de Kekoo, clamando que estava a ser indecorosa-mente exibida uma
representação pornográfica de um ataque sexual feito por um "desportista" muçulmano a uma inocente donzela hindu. O próprio Raman Fielding devia encabeçar a manifestação
e arengar à multidão. A polícia comparecera mas em número insuficiente; o perigo de violência, e até de um fogo posto na galeria, era evidente.
- Espera aí - disse-lhe a minha mãe. Eu sei como é que vou arrumar esse cara de rã. Dá-me trinta minutos.
Dentro de meia hora a marcha tinha sido cancelada. Numa declaração especialmente redigida, um representante do Primeiro XI do Exército de Shiva disse numa conferência
de imprensa convocada à pressa que, devido à proximidade do Gudhi Padwa, o Ano Novo Maharash, o protesto antipornografia fora suspenso, não fosse dar-se o caso de
um acto de violência - Deus nos livre! - manchar a feliz ocasião. Por outro lado, como gesto de deferência para com o povo ultrajado, a Galeria Mody tinha acedido
a retirar das vistas a pintura incriminada. Sem sair de Elephanta, minha mãe evitara a crise.
Mas, mãe: não foi uma vitória. Foi uma derrota.
A primeira conversa de todas entre Aurora Zogoiby e Raman Fielding tinha sido curta e directa ao assunto. Por uma vez, ela não pedira a Abraham para lhe fazer o
trabalho difícil. Foi ela própria que telefonou. Eu sei: eu estava lá. Anos mais tarde vim a saber que o telefone que Raman Fielding tinha sobre a secretária era
um aparelho especial, importado dos Estados Unidos; tinha o feitio de uma rã de plástico verde vivo e coaxava em vez tocar uma campainha. Fielding deve ter encostado
a rã à cara e ouviu a voz da minha mãe saindo da boca verde:
- Quanto? - perguntou ela.
E Mainduck fez o seu preço.
Decidi contar aqui a saga deste quadro do beijo com todos os pormenores porque a entrada de Fielding nas nossas vidas foi um momento de grande significado; e porque
esta cena do críquete originou o quadro pelo qual, durante algum tempo Aurora Zogoiby se tornou, digamos, demasiado conhecida. A ameaça da violência recuou um pouco
mas a obra teve de ficar oculta - só pôde salvar-se passando a fazer parte do grupo dos invisíveis de Bombaim. Um princípio tinha sofrido erosão; um pequeno calhau
rolara pela encosta abaixo: plink-plonk-plank! Muitas outras erosões do mesmo género iriam fazer-se sentir nos próximos anos e o calhau iria ser seguido por vários
pedregulhos. Mas Aurora nunca exigiu reconhecimento - pelo quadro; para ela era um jogo de espírito, rapidamente concebido, facilmente executado. Contudo, tornou-se
um albatroz e eu tive ocasião de testemunhar o seu tédio por ter de o defender vezes e vezes sem conta, e a sua fúria pela facilidade com que aquela "tempestade
num bule de chá" distraíra as atenções do resto da sua obra. Foi solicitada para falar na imprensa dos seus "motivos ulteriores", quando na realidade se tratara
de pouco mais que um capricho, para fazer declarações morais onde só houve ("só!") uma brincadeira, um sentimento e a lógica inexorável que se desprende do pincel
e da luz.
Foi obrigada a refutar acusações de irresponsabilidade social por vários "entendidos", ao que respondeu resmungando irritada que, ao longo da história, os esforços
para obrigar os artistas a serem responsáveis socialmente tinha sempre acabado em nulidades: arte de tractor, arte de corte, arte de caixa de chocolates, lixo.
- O que mais me chateia nestes ideologistas de merda que parecem nascer como cogumelos é que me obrigam a fazer também um pouco de ideologia.
De repente, descobriu que andava a ser apodada - por vozes do Exército de Shiva mas não só - de "artista Cristã" e até, numa ocasião, de "essa tipa Cristã casada
com um Judeu". A princípio estas fórmulas fizeram-na rir; mas depressa viu que não tinham graça
nenhuma. Como era fácil varrer de vez uma vida inteira de trabalho e acção e afinidades e oposição com um ataque daquele género!
- Até parece que não marquei pontos cá no meu críquete. - disse-me ela, usando acidentalmente uma metáfora do jogo que suscitara o escândalo. Ou, noutra ocasião:
- Até parece que não tenho dinheiro no sacana do banco!
Lembrando-se dos avisos de Vasco, reagiu de uma forma caracteristicamente imprevisível. Um belo dia, naqueles dias negros dos anos 70 - anos que parecem ainda mais
negros porque a tirania passava tão desapercebida, porque em Malabar Hill o Estado de Emergência era tão invisível como os arranha-céus ilegais e os pobres desmaterializados
- ao fim de um longo dia no estúdio, entregou-me um envelope contendo um bilhete de avião para Espanha e o meu passaporte com um visto espanhol.
- Mantém sempre válido o passaporte - disse-me ela. - O bilhete, podes renová-lo todos os anos, bem como o visto. Eu não vou para parte nenhuma. Se essa Indira,
que nunca me gramou, quiser vir ter comigo, já sabe onde me encontra. Mas talvez chegue o dia em que vais ter que seguir o conselho do Vasco. Mas não vás ter com
os Ingleses. Já vimos Ingleses que chegue. Vai à procura da Palimpséstia. Vai visitar o Mouristão!
Para Lambajan, também tinha um presente: uma cartucheira em cabedal preto, a que estava ligado um coldre da polícia que fechava com uma patilha e um botão e dentro
do coldre, carregada, uma arma. Mandou-o ter lições na carreira de tiro. Quanto a mim, guardei o seu presente; e de então para cá, supersticiosamente, nunca deixei
de fazer o que ela tinha sugerido. Deixei aberta a porta das traseiras e assegurei-me de que havia sempre um avião à mão de semear. Tinha começado a dar em droga.
Todos tínhamos. Depois do Estado de Emergência, as pessoas começaram a olhar para nós com olhos diferentes. Antes, éramos Indianos. Depois, éramos Judeus Cristãos.
Plank, plonk, plink.
Nada aconteceu. A população não apareceu ao portão, nenhum oficial veio lá a casa, qual anjo vingador de Indira. A arma de Lamba permaneceu no coldre. Mynah é que
foi detida, mas só por umas semanas e foi tratada com grande cortesia e autorizada a receber visitas, livros e víveres na sua cela. O Estado de Emergência terminou.
A vida continuou.
Nada aconteceu, e tudo aconteceu. Houve agitação no Paraíso. Ina morreu e depois do funeral Aurora veio para casa e pintou um quadro Mouro em que a linha entre a
terra e o mar tinha deixado de ser uma fronteira permeável. Desta vez ela pintou-a sob a forma de uma racha em ziguezague asperamente delineada para dentro da qual
a terra se entornava juntamente com o oceano. Comedores de manga e singhani, bebedores de xaropes azuis-eléctricos tão doces que só olhar para eles fazia cair os
dentes, empregados de escritório de calças arregaçadas levando nas mãos os sapatos bara-tuchos e todos os namorados descalços que caminhavam ao longo do Chowpatty
Beach abaixo do Palácio do Mouro gritavam sentindo a areia debaixo dos pés ser sugada em direcção à fenda, juntamente com os ladrões de carteiras, os stands iluminados
a néon dos vendedores de comidas várias e os macacos sábios vestidos de soldados que tinham estado a morrer-pela-pátria para divertir os que passavam. Tudo aquilo
se precipitava para dentro do abismo chanfrado em dentes de serra, juntamente com o peixe miúdo, as medusas e os caranguejos. A própria curva de Marine Drive, com
o seu colar trivial de luzes como pérolas-de-cultura, estava distorcida; e as esplanadas estavam a ser puxadas para o vazio.
No seu palácio sobre a colina, o Mouro-arlequim olhava a tragédia a seus pés, impotente, suspirando e prematuramente velho. Ina morta estava de pé ao seu lado, translúcida,
a Ina de antes-de-Nashville, mostrada no auge da sua voluptuosa beleza. Este quadro, O Mouro e o fantasma de Ina olhando o Abismo, foi mais tarde considerado o primeiro
dos quadros da série do Mouro do chamado "período alto", telas de alta tensão, telas apocalípticas onde Aurora verteu toda a sua agonia pela morte de uma filha,
todo o amor maternal que ficara por exprimir há tanto tempo; mas também sentimentos mais vastos, os seus receios proféticos pela
nação, o seu desgosto violento perante o azedume do que em tempos, pelo menos numa índia sonhada, tinha sido tão doce como a cana-de-açúcar. Tudo isso estava nos
quadros, sim, mas também os seus ciúmes.
- Ciúmes? De quê? de quem, de qual?
Tudo aconteceu. O mundo mudou. Apareceu Uma Sarasvati.
14
A mulher que transformou, exaltou e destroçou a minha vida fez a sua aparição no campo de corridas de Mahalaxmi quarenta e um dias após a morte de Ina. Era uma manhã
de domingo no princípio da estação fresca do fim do ano e, segundo um velho costume (- "Velho, quanto?" perguntam vocês e eu yvspondo à moda de Bombaim: " Velho,
meus senhores. Dos velhos tempos"), os cidadãos mais ilustres tinham-se levantado cedo e tomado o lugar dos cavalos de corrida, tanto no paddock como no terreno.
Não havia corridas nesse dia; só a sombra dos jockeys ausentes nas suas camisas berrantes, os ecos fantasmas de cavalgadas passadas e futuras e os relinchos longínquos
dos corcéis soltando vapor, só o roçagar da queda dos folhetos com o programa éas corridas passadas; tudo isto só podia ser apercebido pelos olhos e ouvidos da fantasia,
brilhando como os vestígios ténues de QUtra pintura feita por baixo desta cena campestre em plena cidade que se repetia semanalmente, esta procissão de sombrinhas
dos ricos ociosos, correndo, de sapatos de jogging e calções, com os bebés amarrados às costas, ou passeando despreocupadamente de bengala e chapéu de palha, lá
vinham os nobres do peixe e do aço, Os condes da fiação e dos navios, os senhores da finança e do imobiliário, os príncipes da terra e do mar e dos poderes do ar
e também suas damas bem ataviadas de sedas e ouro ou então com fatos de treino e caudas-de-cavalo ou bandas de tecido cor-de-rosa cingindo-lhes as frontes atléticas
como coroas reais. Havia os que
corriam o mais que podiam, controlados pelos treinadores de cronómetro na mão; enquanto outros vogavam majestosamente diante da tribuna principal como transatlânticos
que chegam ao cais. Era uma ocasião para encontros, tanto lícitos como ilícitos; para se fazerem negócios e para se apertarem as mãos sobre eles; para o matriarcado
da cidade avaliar a juventude e conspirar futuras núpcias e para rapazes e raparigas trocarem olhares e fazerem as suas próprias escolhas. Era uma ocasião de reunir
os membros da família e concentrar os clãs mais poderosos da cidade. Poder, dinheiro, família e desejo: estas coisas, escondidas sob o pretexto de um passeio higiénico
à roda do velho campo de corridas, eram as forças que comandavam o Passeio-do-Fim-de-Semana de Mahalaxmi, uma corrida sem cavalos mas com classes de corredores,
um derby sem o tiro de partida nem a foto de chegada, mas uma corrida em que havia muitos prémios a ganhar.
Naquele domingo,.seis semanas depois da morte de Ina, estávamos a fazer um esforço para cerrar fileiras na nossa família tristemente dizimada. De calças elegantes
e camisa de linho branco, Aurora exibia a solidariedade da família caminhando de braço dado com Abraham, que, com a sua juba branca e costas magnificamente direitas,
de casaco e botas, era um patriarca sob todos os aspectos, já não o primo da província entre os grandes, mas o maior de todos eles. A manhã, contudo, não tinha sido
auspiciosa. A caminho de Mahalaxmi tínhamos ido buscar Minnie - a Irmã Flóreas - que, por deferência, tinha sido dispensada das devoções matinais no convento de
Gratiaplena. Ia ao meu lado no banco de trás, com a sua coifa de freira, dedilhando o terço e murmurando avé-marias, fazendo-me lembrar a Duquesa da Alice, mais
bonita, claro, mas igualmente uma absolutista; ou uma rapariguinha mascarada de figura de baralho: Carinha Marota e Dama de Espadas.
- Vi a Ina ontem à noite - anunciou ela sem mais preâmbulos. - Manda dizer que está feliz lá no Céu e que a música é muito agradável.
Aurora corou que nem um tomate, cerrou os dentes e espetou
o queixo. Ultimamente Minnie começara a ter visões, embora Aurora não estivesse nada convencida. A opinião da Duquesa
acercca do bebé chorão (*) podia ser parafraseada a respeito da minha irmã: Só chora para chatear, porque não sabe fazer mais fiada.
Abraham disse:
- Não incomodes a tua mãe, Inamorata.
E agora era a vez de Minnie franzir o sobrolho porque aquele nome pertencia ao seu passado e não tinha nada a ver com o que ela era agora: a querida das freiras
de Gratiaplena, a mais ascética das fiéis, a mais submissa das trabalhadoras, a que esfregava o chão com mais energia, a mais gentil e dedicada das enfermeiras e
- ,como se procurasse expiar uma vida inteira de privilégios - a que usava roupas íntimas mais ásperas e irritantes em toda a Ordem, roupas que ela própria fizera
com sacos velhos de juta tresandando ;a cardamo e chá, e provocavam na sua pele sensível manchas e ver-tgões, até que a Mãe Superiora a avisou de que essa mortificação
excessiva era em si própria uma forma de vaidade. Após esta reprimenda, a Irmã Flóreas deixou de usar serapilheira junto da pele e começaram as visões.
Sozinha na sua cela, deitada numa tábua (tinha desde o princípio dispensado a cama) era visitada por um anjo sem sexo de cabeça de elefante que fazia em palavras
vigorosas uma crítica da decadente moralidade dos cidadãos de Bombaim, que ele compactava aos habitantes de Sodoma e Gomorra, e ameaçava com inundações, secas, explosões
e fogos, castigos que seriam disseminados por um período de aproximadamente dezasseis anos; e por um rato preto falante que profetizava que a Grande Peste ia voltar,
.como a última peste de todas. A visão de Ina era uma coisa muito mais pessoal e, enquanto as primeiras manifestações tinham feito Aurora recear pelo equilíbrio
mental da filha, esta nova aparição punha-a ao rubro, talvez por causa da aparição recente do fantasma de Ina no seu trabalho; mas também por um sentimento geral
que ela desenvolvera desde a morte da filha - um sentimento partilhado por muita gente naqueles tempos paranóicos e
(*) Alusão à obra, já citada, de Lewis Carroll, "Do Outro Lado do Espelho". (N. T.)
instáveis - de que andava a ser seguida. Os espectros estavam a invadir a nossa vida de família, cruzavam a fronteira entre as metáforas da arte e os factos comuns
da vida de todos os dias, e Aurora, enervada, refugiou-se na ira. Mas o dia de hoje tinha sido reservado à unidade da família e assim, incaracteristicamente, minha
Mãe cerrou os dentes.
- Também diz que a comida é óptima. Toda a ambrósia, néctar e maná que se quiser, e não faz engordar.
Felizmente o hipódromo não era longe de Altamount Road.
E agora Abraham e Aurora estavam de braço dado, como há muitos anos não faziam e Minnie, o nosso querubim, ia atrás deles enquanto eu me deixava ficar um pouco para
trás, baixando a cabeça para evitar olhar as pessoas nos olhos, enterrando a minha mão direita no bolso das calças e dando pontapés na terra, envergonhado, porque
podia ouvir as risadas e murmúrios das matriarcas e das jovens belezas de Bombaim, sabendo que se caminhasse perto de Aurora - que, aos cinquenta e três anos de
idade e apesar do cabelo branco, não parecia ter mais de quarenta e cinco - então, aos olhos do espectador desprevenido, este vosso criado aos vinte-parecendo-quarenta
tinha um ar demasiado velho para ser filho dela. Olha para aquilo... aleijado... um aborto... uma doença qualquer esquisita... Ouvi dizer que o mantêm fechado à
chave... que vergonha para a família... quase uma espécie de idiota, dizem... e logo o único filho daquele pai, coitado... Deste modo a língua oleosa da bisbilhotice
lubrificava a roda do escândalo. O nosso povo não reage bem às desgraças do corpo. Nem tão-pouco às do espírito.
De certo modo talvez tivessem razão, esses murmuradores do hipódromo. De certo modo eu era uma espécie de aborto social, separado da vida de todos os dias pela minha
natureza, tornado um estranho pelo destino. Nunca me considerei uma pessoa versada em nenhum campo do estudo.
Graças a uma educação fora do vulgar e até inadequada segundo critérios convencionais, tinha-me tornado numa espécie de pega da informação, juntando toda a sorte
de coisas brilhantes, factos de êxito garantido, piadas, livros, história de arte, política,
música, filmes, e desenvolvendo uma certa habilidade para manipular e dispor esses fragmentos insignificantes de forma a que brilhassem e apanhassem a luz. Ouro
falso ou pepitas preciosas extraídas do rico veio boémio da minha singular infância? Deixo essa decisão aos outros.
Também é verdade que consegui, por razões que nada tinham a ver com os estudos, agarrar-me a Dilly por muito mais tempo âo que seria desejável. Nem era questão de
frequentar um colégio. Fiz de modelo para a minha mãe, enquanto o meu pai me acusava de desperdiçar a minha vida e começou a insistir em introduzir-me nos negócios
da família. Há muito tempo que ninguém : - excepto Aurora - se atrevia a contrariar Abraham Zogoiby. Aos setenta e tal anos era forte como um touro, tinha a forma
hsica de um pugilista e, tirando a asma, tanta saúde como os jog-gers em fato de treino no campo de corridas. As suas origens relativamente humildes tinham sido
esquecidas e a velha empresa C-50
Camões da Gama tinha sido assimilada ao enorme consórcio conhecido no mundo dos negócios pelo crónimo "Siodi Corp.", *siodi" queria dizer C.O.D., por sua vez Cashondeliveri,
e o uso dessa alcunha era energicamente encorajado por Abraham. Afastava o que era velho - a memória do império decadente dos magnates da família Cashondeliveri
- e trazia o que era novo. Um "perfil" publicado num jornal financeiro referia-se a ele como "o "ÜK Siodi, o brilhante novo empresário por detrás da Casa Casbondelrveri
e depois disto alguns dos seus sócios tinham, erradamente, começado a chamar-lhe "Senhor Siodi". Abraham nem sempre se dava ao trabalho de os corrigir. Estava passando
nova mão de tinta sobre o seu passado.
Como pai, também os anos pintaram uma imagem palimpséscà sobre a memória do homem que me abraçara em recém-nacido e chorara palavras de consolação. Agora tinha-se
tornado um pai formidável, distante, perigoso, frio e impossível de ser desobedecido. Baixei a cabeça e aceitei a sua oferta de uma posição ao nível de entrada no
departamento de marketing, vendas e publicidade da Companhia (privada) "Talco para Bebé Softo Limitada". Depois disso tive de combinar o meu trabalho de posar para
Aurora de forma a não interferir com os meus deveres no escritório. Mas acerca de poses e de bebés, falaremos mais tarde.
Quanto à questão de eu vir a casar, a minha mão aleijada - uma desvantagem no mundo dos privilegiados - era realmente uma espécie de espectro no festim matrimonial,
fazia as meninas estremecer de horror, lembrando-as das coisas feias da vida quando por nascimento deviam concentrar-se só nas coisas bonitas. Puah...! O meu punho
era hediondo. (Quanto ao seu futuro, a longo termo, devo dizer que, embora Lambajan me tivesse revelado um pouco do verdadeiro potencial do meu punho direito, eu
ainda não tinha descoberto a minha vocação. A espada ainda dormia na minha mão.)
Não, eu não fazia parte daqueles puro-sangues. Apesar das minhas peregrinações com a nossa governante Jay Hé, eu continuava a ser um estranho no meio deles - uma
espécie de Mow-gli, uma criança selvagem. Pouco sabia das suas vidas, e (o que era pior) não queria saber mais. Embora fosse um perpétuo estranho no meio daquela
gente do hipódromo, tinha ganho tal experiência, ainda só com vinte anos, que começara a pensar que o tempo à minha volta se movia comigo, a dupla velocidade. Já
não me sentia um rapaz enclausurado numa pele velha - ou, para empregar a nomenclatura da indústria têxtil da cidade, "antiquada" ou mesmo "gasta". A minha idade
exterior, isto é, aparente, tinha-se simplesmente tornado a minha idade.
Julgava eu; até que Uma me mostrou a verdade.
Jamshed Cashondeliveri, que inesperadamente ficara muito deprimido com a morte da ex-mulher e desistira pouco depois da faculdade de direito, juntou-se a nós em
Mahalaxmi, como Aurora tinha combinado. Não longe do campo de corridas fica a Grande Brecha, ou a Brecha Candy, para dentro da qual o mar se precipitava em certas
alturas, inundando os Terrenos Baixos que ficavam por trás; tal como a Barreira Hornby foi construída para tapar Breach Candy (terminada, segundo fontes seguras,
por volta de 1805), assim a brecha entre Jimmy e Ina devia ser colmatada, decidira Aurora, pela barreira da sua vontade indómita.
- Olá, Tio, olá Tia. - disse Jimmy Cash à nossa espera junto da meta, com um sorriso torcido. De repente, a sua expressão
transformou-se. Esbugalhou os olhos, a cor fugiu-lhe das faces já de si pálidas, escancarou a boca.
- Que tens? - perguntou Aurora surpreendida. - Parece que viste um fantasma.
Mas Jimmy, fascinado, não respondeu; e continuou embasbacado.
- Cumprimentos a toda a família, - disse a voz sardónica de Mynah atrás de nós. - Espero que não se importem, trouxe uma amiga comigo.
Cada um de nós, que passeara com Uma à volta do campo naquela manhã, veio para casa com uma opinião diferente acerca dela. Alguns factos ficaram estabelecidos: que
tinha vinte anos, que estudava arte na Universidade de Baroda, onde era uma espécie de vedeta, a quem já tinham sido feitos os maiores elogios pelo chamado "Grupo
de Baroda" e onde o célebre crítico Geeta Kapur tínha publicado uma nota extremamente apreciativa sobre a sua gigantesca escultura em pedra de Nandi, o grande touro
da mitologia Hindu, que lhe fora encomendado pelo corretor, financeiro e bilionário quase homónimo V. V. Nandy, Nandy-o-Crocodilo ; em pessoa. Kapur comparara a
obra àquela maravilha monolítica * feita por artistas anónimos do século oitavo, o Templo Kailash, o maior das grutas de Ellora; mas ao ouvir falar da estátua, Abra-bam
largou uma gargalhada notavelmente parecida com o mugido de um touro.
- Esse jovem jacaré do V. V. sempre teve cá uma lata...! Um touro Nandi, imagine-se... Devia ter sido antes um desses crocodilos cegos dos rios lá do norte.
Com uma recomendação de uma amiga da filial de Gujarate da Frente das Mulheres Unidas Contra a Subida de Preços, Uma apresentou-se no escritório minúsculo e apinhado
de gente, num edifício de três andares bastante escalavrado perto da Estação Central de Bombaim, de onde o Grupo de Mynah, o Comité das Acti-
vidades Civis e Direitos das Mulheres (também chamado pelos seus detractores como o Comité das Mulheres que Provavelmente Dormem Juntas) organizava a luta contra
meia dúzia de Golias.
Uma exprimira a sua alta consideração pela pintura de Aurora, mas sem esquecer a importância do trabalho feito por grupos como o de Mynah, fortemente empenhados
em denunciar o hábito criminoso de queimar as viúvas, em organizar patrulhas de mulheres contra a violação, e em muitas outras actividades. A sua paixão e os seus
conhecimentos encantaram a minha intransigente irmã; daí a sua presença na nossa pequena reunião de família no relvado de Mahalaxmi.
Até aqui, nada havia a contestar. O que foi notável foi que durante aquela passeata matinal a recém-chegada achou meio de passar alguns minutos em conversa privada
com cada um de nós, e depois da sua partida, (dizendo com modéstia que já tinha imposto a sua presença tempo demais na nossa reunião familiar), cada um de nós tinha
a sua opinião firmemente estabelecida acerca dela e estas opiniões eram totalmente contraditórias e de impossível conciliação. Para a Irmã Flóreas, Uma era uma mulher
onde a espiritualidade fluía como um rio, era sóbria e disciplinada, uma grande alma capaz de levar a cabo a unidade final de todas as religiões, cujas diferenças,
tinha a certeza, se dissolveriam sob o bendito brilho da luz divina; enquanto que, na opinião de Mynah, ela era uma mulher tesa - o que, da parte da nossa Philomina,
era um grande elogio -, uma feminista marxista empenhadamente laica, cuja devoção incansável à luta tinha renovado em Mynah a sua própria vontade de combater. Abraham
Zogoiby classificava ambas estas opiniões de "patetices" e elogiava o talento financeiro de Uma, acerado como uma navalha e o seu domínio das últimas técnicas de
fazer acordos e de dominar empresas. E Jamshed Cashondeliveri, de olho esbugalhado e mandíbula descaída, confessou em voz abafada que ela era a encarnação viva da
deslumbrante defunta Ina, tal como ela era antes de ser destruída pelos burgueses de Nashville.
- Mas esta - despejou ele como o palerma que sempre fora,
- é como se fosse a Ina com a diferença que tem uma voz lindíssima e miolos também.
E começou a explicar que Uma e ele se tinham afastado por momentos para trás da tribuna e aí a rapariga tinha cantado para ele a mais doce canção tradicional que
ele jamais ouvira. Para Aurora aquilo era demais:
- Parece que está tudo doido hoje aqui; mas tu, menino, acabas de passar das marcas. Raspa-te! Pira-te daqui para fora depressa e não me voltes a aparecer à frente.
Deixámos Jimmy no campo com cara de peixe congelado.
Aurora resistiu a Uma desde o início; foi a única que deixou o hipódromo com uma curva céptica nos lábios. Que fique bem entendido: ela nunca lhe deu uma oportunidade,
embora Uma fosse infalivelmente modesta quanto às suas próprias habilidades artísticas, se mostrasse verbosamente rendida ao talento da minha mãe e não pedisse favores
a ninguém. Pelo contrário, após o seu triunfo em 1978 na exposição Documenta em Kassel, quando viu as suas obras disputadas pelos mais ilustres negociantes de arte
de Londres e Nova Iorque, telefonou a Aurora, da Alemanha, e gritou, através das crepitações internacionais:
- Obriguei Kasmin e Mary Boone a prometer que também faziam uma exposição da sua obra. De outra maneira, disse-lhes que não deixava mostrar a minha.
Como uma deusa ex-machina ela veio até nós e falou ao mais íntimo do nosso ser. Só a deusa Aurora se recusou a escutá-la. Dois dias mais tarde Uma veio a Elephanta
timidamente e Aurora fechou-se à chave no seu estúdio. O que foi uma atitude infantil e mal-educada - para não dizer pior. Para disfarçar a grosseria da minha mãe,
eu ofereci-me para mostrar a casa a Uma, dizendo com fervor:
- Será bem-vinda em nossa casa sempre que quiser.
Quanto ao que Uma me disse em Mahalaxmi, não o repeti a
ninguém. Para consumo público, ela dissera rindo "já que isto é um campo de corridas, vou correr", tirou as sandálias e desatou a correr com elas na mão pela pista
abaixo, com o seu longo cabelo desfilando atrás de si como linhas a indicar a velocidade na banda desenhada, como o rasto no céu de aviões a jacto. Eu correra atrás
dela, claro; nem lhe passara pela cabeça que eu a não seguisse. Ela
era veloz, mais do que eu e finalmente tive de desistir porque comecei a arquejar e a sibilar. Encostei-me ofegante à balaustrada branca, apertando ambas as mãos
ao peito para acalmar o espasmo. Ela voltou para trás e pôs as suas mãos sobre as minhas. Quando a minha respiração se acalmou ela afagou levemente a minha mão direita
e disse num tom quase inaudível:
- Aqui está uma mão capaz de abater tudo o que se puser de permeio. Junto de uma mão assim podia sentir-me tão segura...
Depois, olhando-me nos olhos:
- Sinto que está aí um menino. Estou a vê-lo a olhar para mim. Céus, que combinação. Um espírito jovem com esse aspecto de homem mais velho, que toda a vida me atraiu.
É demais.
E então isto, disse eu extasiado. Esta sugestão de lágrimas, este aperto na garganta, este súbito calor no sangue. A minha transpiração tinha um cheiro a pimenta.
Senti o meu ser, o meu ser verdadeiro, a identidade secreta que eu ocultava há tanto tempo que já receava que não existisse, subir dos recantos do meu corpo e encher-me
o centro. Agora já não era escravo de mais ninguém mas, ao mesmo tempo seu escravo, completamente, sem remédio e para sempre.
Ela retirou as mãos; deixando para trás um Mouro apaixonado.
Na manhã da primeira visita de Uma minha mãe decidira pintar-me nu. A nudez não era nada de especial no nosso círculo; ao longo dos anos muitos pintores e os seus
amigos tinham posado uns para os outros em pelote. Ainda não há muito, o toilette dos homens em Elephanta tinha sido decorado por Vasco Miranda com um mural representando
ele próprio e Kekoo Mody de chapéu de coco e nada mais. Kekoo estava magro e filiforme como sempre, mas o sucesso e os anos de deboche e excessos tinham feito engordar
Vasco que ainda por cima era muito mais baixo. O interesse da pintura estava no facto óbvio de que os dois pareciam ter trocado os pénis. O pirilau de Vasco era
surpreendentemente longo e fino,
"como uma linguiça pálida, enquanto o longilíneo Kekoo ostentava um orgão tronchudo e escuro de impressionante diâmetro e circunferência. Contudo, ambos juravam
que não tinha havido troca.
- Eu tenho o pincel e ele o rolo das notas - explicou Vasco
- Nada mais a propósito. Foi Uma Sarasvati que deu à obra o nome pelo qual viria a ser conhecido.
- Parecem o Bucha e o Estica - disse ela rindo, e o nome ficou.
Depois da nossa visita ao Bucha e Estica dei por mim a contar a Uma a história dos quadros do Mouro e o novo projecto do Mouro Nu. Ela ouviu-me gravemente descrever
com orgulho a minha colaboração artística com a minha mãe e depois fez-me explodir ao atirar-me com aquele enorme sorriso, com aqueles raios de luz que conseguia
desferir dos seus olhos cinzentos-pálidos.
- Não está certo ficar nu em frente da senhora sua mãe, na sua idade, - repreendeu ela. - Quando nos conhecermos bem, eu é que vou esculpir a sua beleza num mármore
importado de Garrara. Como o David com a mão grande demais, eu vou fazer da sua mão a mais bonita do mundo. Até lá, senhor Mouro, guarde-se para mim, por favor.
Saiu pouco depois, para não perturbar o trabalho da grande pintora. Apesar desta prova de sensibilidade requintada, a minha mãe, cada vez mais egocêntrica, não foi
capaz de ter uma boa palavra para com a nossa nova amiga. Quando lhe disse que não ia poder posar para o quadro novo, por causa das horas que teria de dedicar ao
pó de talco Softo, o meu novo trabalho nos escritórios de Worli, ela explodiu.
- Qual Softi nem meio Softo - gritou ela - essa pescadorazinha deitou-te o anzol e tu engoliste-o e agora, como és estúpido que nem um peixe, julgas que ela só quer
é brificar. Deixa que ela já te tira da água para te fritar, com alho, gengibre, sementes de cominho e talvez umas batatinhas fritas à parte.
Fechou a porta do estúdio com estrondo e nunca mais me deixou entrar; nunca mais me pediu para posar.
O quadro O Mouro Desnudado Pela Mãe Presencia a Chegada de Ximena era tão formal como Las Meninas de Velásquez, o qual
fazia lembrar, com o seu jogo de perspectivas. Numa câmara do Alhambra fictício que Aurora criara no Malabar, contra uma parede decorada com intrincados elementos
geométricos, o Mouro estava de pé, no tecnicolor aos lozangos da sua pele nua. Atrás dele, no peitoril de uma janela recortada em festões, estava pousado um abutre
da Torre do Silêncio e, encostada à parede junto daquele enquadramento macrabro, estava uma cítara, com um rato roendo-lhe a caixa lacada, em feitio de melão. À
esquerda do Mouro, a sua temível mãe, a Rainha Ayxa - Aurora, com um manto negro flutuante, estendia um espelho de corpo inteiro à nudez do filho. A imagem no espelho
era de uma beleza naturalista - nada de arlequins, nem sugestão de Boabdil - só eu. Mas o Mouro não se olhava no espelho, pois no limiar da porta à sua direita estava
uma belíssima mulher - Uma, naturalmente, Uma inventada, hispanizada, como "Ximena", com alguns traços de Sophia Loren em "El Cid", tirada da história de Rodrigo
de Bivar e introduzida sem mais explicações no universo híbrido do Mouro
- e entre as mãos dela, abertas, convidativas, havia maravilhas mil
- esferas de oiro, pássaros cravejados de pedras preciosas, minúsculos homúnculos - flutuando magicamente no ar luminoso.
No seu ciúme maternal pelo primeiro grande amor do seu filho, Aurora criara aquele grito de dor, em que a tentativa de uma mãe de mostrar ao filho a simples verdade
acerca de si próprio é condenada ao fracasso pelos truques desnorteantes de uma feiticeira; enquanto os ratos destruíam com os dentes qualquer possibilidade de música
e os abutres esperavam pacientemente pela próxima refeição. Desde que Isabella Ximena da Gama, no seu leito de morte, reunira na sua pessoa as figuras de Cid Campeador
e da sua Ximena, a sua filha Aurora, que tomara das mãos dela o testemunho, passava a ver-se a si própria como uma combinação de herói e heroína. Ter de fazer agora
a separação - que ao Mouro do quadro fosse atribuído o papel de Charlton Heston e a mulher com a cara de Uma fosse baptizada com uma versão afrancesada do segundo
nome próprio da minha avó - era quase a admissão de uma derrota, uma sugestão de mortalidade. Aurora, tal como a velha rainha-mãe Ayxa, não estava agora a olhar-se
ao espelho; era Boabdil-o-Mouro que o
espelho agora reflectia. Mas o verdadeiro espelho mágico era o dos olhos dele (os meus); e nesse espelho oculto não podia haver dúvida que a feiticeira no limiar
da porta era a mais bela de todas.
O quadro, pintado como muitos dos últimos Mouros em várias camadas à maneira dos velhos mestres europeus, e importante na história da arte por ser o primeiro a introduzir
a figura de "Ximena" na sequência do Mouro, parecia-me demonstrar que a arte, ao fim e ao cabo, não era a vida; que aquilo que poderia parecer real aos olhos do
artista - por exemplo aquela história de usurpação maléfica, de uma linda feiticeira que vem separar a mãe do filho - não tinha necessariamente nenhuma relação com
acontecimentos e sentimentos e pessoas do mundo real.
Uma era um espírito livre; ia e vinha conforme lhe apetecia. As suas ausências em Baroda partiam-me o coração, mas ela recusou-me autorização para ir visitá-la.
- Não podes ver o meu trabalho até eu estar pronta para ti. - disse ela - Quero que te apaixones por mim, não pelo que eu faço.
Porque, contra todas as probalidades e seguindo os caprichos imperiais da beleza, ela, que poderia escolher quem quisesse, tinha apostado o coração neste jovem-velho
tonto e defeituoso e sus-surrava-me ao ouvido promessas de acesso ao jardim das delícias terrenas.
- Espera - dizia ela. - Vai esperando, meu amado inocente, porque eu sou a que conhece os segredos do teu coração e dar-te-ei seguramente tudo o que pretendes e
mais ainda. Espera só um pouco, pedia-me ela sem explicar porquê, mas a minha perplexidade era anulada pela excitação lírica das suas promessas. Então serei o teu
espelho, o ser do teu ser, tua igual, tua imperatriz e tua escrava até à morte.
Devo confessar que me surpreendeu saber que ela tinha estado um certo número de vezes em Bombaim sem me contactar. Minnie telefonou-me do convento para me dizer
em voz trémula que Uma a visitara para perguntar como é que um não-Cristão podia aceder a uma vida em Cristo.
- Penso seriamente que ela virá para Jesus - disse a Irmã Flóreas - e para sua Santa Mãe.
Deve-me ter ouvido fungar, porque a sua voz passou a ter um tom estranho: - Sim, sim, - disse ela. - A Uma, abençoada seja, disse-me que estava muito preocupada
por ver que o Diabo tem sobre ti uma forte influência.
Também Mynah, - Mynah, que nunca telefonava! - falou-me a fim de relatar encontros exaltantes com a minha amada na primeira fila de uma manifestação política que
conseguira temporariamente evitar a demolição dos tugúrios invisíveis habitados por pobres invisíveis que ocupavam espaço valioso mesmo à vista das colinas mais
bem cotadas de Cuffe Parade. Aparentemente, Uma conduzira os manifestantes e habitantes dos bairros de lata num coro que gritava: Não temos medo, não temos medo!
Ninguém vai parar o nosso movimentol De repente Mynah, em tom de confidência - Mynah, que nunca fazia confidências! - disse-me que tinha chegado à conclusão que
Uma era decididamente lésbica (Philomina Zogoiby nunca revelara a ninguém os segredos da sua própria sexualidade, mas toda a gente sabia que nunca tinha saído com
um homem; quase a chegar aos trinta, admitia sorrindo que "estava na prateleira - para mim, é a vida de solteirona". Mas agora talvez Uma Sarasvati estivesse mais
ao corrente da situação).
- Somos muito íntimas, sabes? - confessou Mynah surpreendentemente, com uma estranha mistura de excitação adolescente e desafio. - Finalmente, tenho alguém com quem
me enroscar e tagarelar toda a noite, com uma garrafa de rum e uns maços de cigarros. As sacanas das minhas irmãs nunca serviram para isso.
Quais noites? Quando? No apartamento de Mynah não havia lugar nem para mais uma cadeira, quanto mais um colchão extra; sendo assim, onde é que se passava aquele
"enroscanço"?
- A propósito, ouvi dizer que andas para aí com a língua de fora... - disse a voz da minha irmã ao meu ouvido; seria a hiper-sensibilidade do amor, ou aquilo era
mesmo um aviso? - deixa-me dar-te um conselho, maninho: não tens hipótese. Esta franga não gosta de galos, prefere galinhas.
Eu não sabia o que pensar destes telefonemas, e ainda menos porque no telefone de Uma em Baroda nunca ninguém atendia as chamadas. Durante as filmagens de um anúncio
para a televisão do
Talco Softo, por entre o palrar de sete bebés bem polvilhados, eu estava tão imerso nos meus pensamentos que me esqueci da incumbência simples que me fora atribuída
- assegurar-me, com o auxílio de um cronómetro, que as luzes potentes dos projectores não incidissem sobre os bebés durante mais de um minuto em cada cinco - e fui
acordado do meu sonho pela ira de toda a equipa, os gritos das mães e o choro dos bebés que começavam a fritar. Fugi envergonhado do estúdio e encontrei Uma à porta
de casa, sentada no degrau.
- Vamos comer, - disse ela. - Estou cheia de fome.
E, claro, ao almoço mostrou-me que para tudo havia uma explicação perfeitamente simples.
- Queria conhecer-te - disse ela com os olhos marejados de lágrimas. - Queria que me admirasses pelo esforço que eu fiz para aprender tudo o que há para saber E
também quero estar próxima da tua família, tão próxima como o sangue ou mais perto ainda. Bem sabes que a nossa Minnie, coitada, tem aquelas preocupações com Deus;
fiz-lhe umas perguntas, só por amizade, e ela coitadinha, tão santa, percebeu tudo ao contrário. Eu, freira?! Não brinquem comigo. E aquela história do Diabo, foi
só uma brincadeira. Quer dizer, se a Minnie está do lado de Deus, tu e eu e toda a gente que é normal tem de estar do lado do Diabo, não é?
Durante todo este tempo ela tinha a minha cara entre as mãos, e as mãos dela acariciavam as minhas como no nosso primeiro encontro, e a cara dela exprimia tanto
amor, tal desgosto por ter sido posta em dúvida... - mas eu persistia, embora sentisse que era um acto de crueldade terrível continuar a interrogar uma criatura
tão amorosa e dedicada:
- E Mynah?
- Claro que fui visitá-la. Para lhe agradar, juntei-me à luta dela. E como tenho boa voz, cantei. O que é que tem?
- E as duas enroscadas?
- ó meu Deus. Se queres saber quem é a apreciadora de mulheres, meu grande pateta, olha para a machona da tua irmã, não olhes para mim. Dormir na mesma cama não
é nada, todas fazemos isso em estudantes. Mas isso do enroscanço é um sonho
Húmido da tua irmã, desculpa a franqueza. E já agora, por franqueza, estou muitíssimo zangada. Tento fazer amizade com a vossa família e todos me acusam de ser beata
falsa, uma mentirosa e de dormir com a tua irmã ainda por cima. Que é que vocês têm para serem assim? Não são capazes de ver que eu fiz tudo por amor?
Enormes lágrimas ressaltavam ao cair-lhe no prato vazio. A tristeza não lhe tirara o apetite.
- Pára, por favor, não chores - supliquei eu, arrependido. - Nunca mais na minha vida...
O sorriso dela através das lágrimas foi tão intenso que quase esperei ver um arco-íris.
- Talvez seja a altura de te provar que sou hetero até dizer chega - murmurou ela.
Foi vista ao lado do próprio Abraham Zogoiby, a devorar sanduíches-clube junto da piscina no Clube Willingdon, antes de se deixar vencer amavelmente ao golfe pelo
velho.
- Era a oitava maravilha, aquela tua Uma - disse-me ele anos depois, lá no alto do seu Éden de Cashondeliveri. - Tão sabida, tão original e a olhar fixamente para
nós com aqueles olhos de piscina... já não via olhos como aqueles desde que olhei para a tua mãe pela primeira vez. Deus sabe o que eu tagarelei! os meus próprios
filhos não se mostravam interessados - tu, por exemplo, o meu único rapaz! - e um velho tem de ter alguém com quem conversar. Eu tinha-lhe dado um bom emprego se
ela quisesse, mas ela disse que dava prioridade à sua arte. E Jesus! que mamas que ela tinha! Mamas do tamanho da tua cabeça.
Emitiu uma espécie de cacarejo indecoroso e pediu desculpa, sem a mínima sinceridade.
- Que é que queres que eu te diga, rapaz, as mulheres foram sempre a perdição da minha vida.
E, de repente, uma grande nuvem passou sobre a sua cabeça.
- Ambos perdemos a tua querida mãe por olharmos para outras mulheres - murmurou.
Esquemas de corrupção bancária à escala mundial, jogadas na Bolsa ao nível épico do Mogambo, tráfico de armas de muitos biliões de dólares, conspirações envolvendo
tecnologia nuclear com computadores roubados e Mata-Haris das Ilhas Maldivas, exportação de antiguidades que incluíam o próprio símbolo da nação, o leão de Sarnath
de quatro cabeças... quanto deste mundo negro, quanto dos seus grandiosos projectos Abraham teria revelado a Uma Sarasvati? Quanto, por exemplo, acerca de certos
carregamentos especiais para exportação de Talco Softo? Quando lhe perguntei, limitou-se a abanar a cabeça.
- Não muito, acho eu. Não sei. Tudo. Já me disseram que falo enquanto durmo.
Mas estou a adiantar-me demais. Uma falou-me do jogo de golfe que tivera com o meu pai "nem uma vacilação - na idade dele!" - e da sua generosidade para com uma
rapariga acabada de chegar. Tínhamos por hábito encontrar-nos em quartos de hotel baratos em Colaba ou Juhu (os hotéis de cinco estrelas eram arriscados: demasiados
olhos de máquina fotográfica e línguas de longo curso. Mas os nossos preferidos eram os Quartos de Repouso de Bombaim: nesses aposentos de tectos altos, persianas
corridas, frescos, limpos e anónimos é que eu iniciei a minha viagem ao Céu e ao Inferno.
- Comboios... - disse Uma Saravasti. - Todos aqueles pistões... Não te fazem tesão? *
É-me difícil falar do nosso amor propriamente dito. Ainda hoje, apesar de tudo, essa recordação faz-me arrepiar de saudade pelo que perdi. Lembro-me da facilidade
e da ternura, de uma espécie de revelação como se uma porta se me abrisse na carne e através dela entrasse todo um universo insuspeitado da quinta dimensão, os planetas
com os seus anéis e as caudas dos cometas.
Galáxias girando. Sóis explodindo. Mas para além da comunicação, para além da linguagem havia a simples corporalidade, o movimento das mãos, a tensão das nádegas,
o arquear das costas, a subida e descida de tudo aquilo, aquela coisa sem sentido senão ela própria, que queria dizer tudo; aquele acto animal tão breve, por causa
do qual tudo - tudo - se poderia fazer. Não posso imaginar - não, mesmo agora a minha fantasia não chega lá - que uma tal paixão, tal primitivismo pudessem ser fingidos.
Não creio que ela me tenha mentido ali, daquela maneira, entre o som dos comboios que passavam. Não creio; creio; não creio; creio; não creio; não creio; creio!
Houve um detalhe embaraçoso que tenho de contar - visto que resolvi não esconder nada.
Quase a chegarmos ao Everest do nosso êxtase, Uma, a minha Uma, murmurou ao meu ouvido que havia uma coisa que lhe dava
- Venero a tua mãe, mas ela não gosta de mim.
E eu, ofegante e a pensar noutra coisa, consolei-a: Gosta, sim. Mas Uma - arquejante, suada, arrojando o seu corpo contra o meu - repetia a sua queixa:
- Não, meu amor. Não gosta. Não gosta mesmo nada.
Confesso que naquele momento alto não tinha disposição para
uma conversa daquelas. Uma obscenidade veio-me aos lábios, sem pensar. Que ela se foda.
- Que é que disseste?
- Disse que ela se foda. A minha mãe que se foda. Ooooh...
Nesta altura ela mudou de assunto e concentrou-se no que
estava a fazer. Ao meu ouvido a sua voz falava de outras coisas. Queres isto meu querido e isto, para fazeres isto, podes fazer se quiseres, podes fazer. Oh Deus
quero sim quero, deixa-me, sim, sim... Ooooh...
Esta conversa fiada, é melhor fazê-la que escutá-la e por isso mais não direi. Mas tenho de admitir - embora core ao fazê-lo
- que Uma voltava constantemente a mencionar a hostilidade da minha mãe para com ela, até que começou a parecer-me que o assunto fazia parte daquilo que a excitava.
"Ela detesta-me, odeia-
-me; diz-me o que é que eu hei-de fazer". E eu era suposto responder e sob o império da paixão, Deus me perdoe, respondia como ela queria. Ela que se foda, dizia
eu. Ela que se foda essa besta dessa cabra. E Uma: "como? Querido, meu querido, como?" Fodê-la. Fodê-la por cima, por baixo e de lado. "E tu podes, meu único amor,
se quiseres podes, é só dizeres". Ó sim. Quero. Sim. Ó Deus.
E assim, no auge da minha maior alegria, é que eu lancei a semente da minha desgraça: minha e da minha mãe, e a ruína da nossa grande casa.
Todos nós, ou quase todos, estávamos apaixonados por Uma naqueles tempos e mesmo Aurora, que não estava, cedia; porque a presença de Uma em nossa casa atraía as
minhas irmãs e além disso ela podia ver a felicidade estampada na minha cara. Por pouco maternal que sempre tivesse sido, a verdade é que era mãe e isso abrandava-lhe
o coração. Por outro lado, Aurora tomava a profissão a sério e, quando Kekoo foi a Baroda e voltou encantado com as esculturas da rapariga, a grande Aurora derreteu-se
ainda mais. Uma foi coroada visita de honra numa das soirées de Elepbanta, agora muito menos frequentes.
- Ao talento, disse minha mãe, tudo deve ser perdoado.
Uma sorria com doçura, lisongeada e tímida.
- Quanto à gente de segunda ordem - acrescentou Aurora
- esses não merecem nem um tostão furado. Tu, Vasco, que dizes a isto?
Aos cinquenta e tal anos, Vasco já não passava muito tempo em Bombaim; quando ele aparecia, Aurora não fazia cerimónia e atacava a sua "arte para aeroportos" com
um veneno excessivo, mesmo para uma mulher tão abrasiva. A obra de Aurora nunca tinha "viajado". Algumas galerias importantes da Europa - a Stedelijk, a Tate - tinham
adquirido peças suas, mas a América continuava indiferente, com excepção da família Gobler, de Fort Lau-
derdale, na Florida, sem cujo zelo de coleccionadores tantos artistas indianos teriam morrido à fome; assim, era possível que a inveja tivesse afiado a língua da
minha mãe.
- Como vão os teus Especiais para Salas de Trânsito, Vasco? Já reparaste que os passageiros nem param um instante para admirar as tuas obras? E o trauma das diferenças
horárias, servirá para afinar as faculdades críticas?
Sob estes ataques, Vasco sorria amarelo e baixava a cabeça. Tinha juntado uma enorme fortuna em divisas estrangeiras e tinha recentemente vendido as suas residências
e estúdios em Lisboa e Nova Iorque para construir um "capricho" no alto de uma colina na Andaluzia, no qual, ao que se dizia, estava a gastar mais do que a soma
dos rendimentos do total da comunidade dos artistas indianos. Esta história, que ele nada fazia para desmentir, só servia para aumentar a sua impopularidade em Bombaim
e a intensidade dos ataques de Aurora Zogoiby.
A sua cintura alargara prodigiosamente e o seu bigode à Dali elevava-se num duplo ponto de exclamação, o cabelo oleoso partia dum risco mesmo por cima da orelha
esquerda para lhe tapar o crânio luzidio com uma pasta cheia de Brylcreem a toda a largura.
- Não admira que ainda estejas solteirinho - troçava Aurora.
- Com um pneu, as senhoras ainda aguentam, mas tu parece que compraste a fábrica Goodyear toda inteira.
Por uma vez, os motejos de Aurora coincidiam com a opinião da maioria. O tempo, que tinha sido tão amável com a conta bancária de Vasco, fora cruel com a sua reputação
artística na índia, bem como com o seu corpo. Apesar de milhentas encomendas, a cotação do seu trabalho estava em queda livre, considerado fútil e espalhafatoso
e, embora os museus nacionais tivessem adquirido uma ou duas das suas obras dos primeiros tempos, há muitos anos que não lhe compravam nada. Nem uma das suas telas
estava actualmente em exposição. Para os críticos mais perspicazes e para os artistas da nova geração, V. Miranda era um petardo molhado. À medida que a estrela
de Uma Sarasvati se elevava no céu, a de Vasco afundava-se rapidamente; mas quando Aurora lhe dava com os pés, ele abstinha-se de lhe responder.
A colaboração tipo Picasso-Braque entre Vasco e Aurora nunca se tinha materializado; apercebendo-se das falhas do seu talento, ela afastava-se seguindo o seu caminho
e deixando-o manter o seu estúdio em Elepahanta unicamente em memória dos velhos tempos e talvez porque gostasse de o ter à mão para fazer troça dele. Abraham, que
sempre detestara Vasco, mostrou a Aurora recortes de jornais estrangeiros provando que V. Miranda fora frequentemente acusado de comportamento desordeiro e só por
pouco escapara de ser expulso tanto dos Estados Unidos como de Portugal; que tinha sido forçado a submeter-se a longos tratamentos psiquiátricos em vários hospitais,
desintoxicações alcoólicas e a estadias em clínicas de reabilitação antidroga por toda a Europa e América.
- Livra-te desse palhaço, desse impostor - implorou ele.
Quanto a mim, eu lembrava-me de Vasco e dos seus vários gestos de bondade para comigo quando eu era pequeno e vivia assustado, e ainda o amava por isso, mas bem
via que os seus demónios tinham ganho a batalha contra o seu lado bom. O Vasco que veio visitar-nos na noite de Uma, aquele palhaço todo inchado, era um triste espectáculo.
Lá para o fim da noite, quando o álcool lhe fizera baixar as defesas, capitulou:
- O raio que os parta a vocês todos - gritou ele. - Vou voltar para Benengeli e só se for doido é que volto a pôr cá os pés.
Depois pôs-se a cantar, sem tom nem som.
- Adeus Bombaim! Adeus Malabar Hill!
Parou, piscando os olhos e abanando a cabeça:
- Não, não é nada disto. Adeus Marine Drive! Adeus Shandra-Bose-Road.
(Muitos anos depois, quando eu também fui a Espanha, havia de me lembrar da cantiguinha incompleta de*Vasco e até cantar baixinho uma versão inventada por mim.)
Uma Saravasti avançou até aquela triste figura de gente, pôs-lhe as mãos nos ombros e beijou-o na boca.
O que teve um efeito inesperado. Em vez de mostrar gratidão
- e havia muitos naquele salão, incluindo eu, que teriam recebido com júbilo aquele beijo - Vasco virou-se para Uma.
- Judas! - disse-lhe ele - Eu conheço-te. Devota de Nosso Senhor Judas Cristo o Traidor. Sei quem tu és, menina. Tenho-te visto naquela igreja da traição!
Uma corou violentamente e recuou. Eu saltei em sua defesa:
- Está a fazer uma triste figura, Vasco.
Vasco afastou-se e saiu, de nariz no ar; um momento depois caía com estrépido no lago do jardim.
- Ora bem, já está, - disse Aurora muito animada - Vamos jogar ao "Três personagens sete pecados."
Era o seu jogo de salão preferido. Uma selecção feita à sorte por moeda ao ar determinava o sexo e a idade de três "personagens" imaginárias e de dentro de um chapéu
tiravam-se papéis onde se especificavam os "pecados" de que cada um era culpado. Aos presentes competia inventar uma história onde interviessem os três pecadores.
Desta vez as personagens foram a Velha, a Rapariga e o Rapaz e os pecados, respectivamente, a Ira, a Vaidade e a Luxúria. Determinadas as escolhas, Aurora, sempre
brilhante e provavelmente mais afectada do que parecia pelo furacão levantado por Vasco, gritou:
- Tenho uma ideia.
Uma aplaudiu, com admiração:
- Diga, diga.
- Então cá vai, - disse Aurora olhando a sua jovem convidada de honra de olhos nos olhos. - Uma velha rainha descobre com ira que o seu lúbrico filho foi seduzido
pela sua inimiga mortal, uma jovem vaidosa.
- Boa história - disse Uma sorrindo serenamente - Bravo! Isso é osso com muita carne. Sim senhor.
- É a tua vez - disse Aurora com um sorriso tão largo como o de Uma.- Que é que acontece a seguir? Que deve fazer a velha Rainha Irada? Talvez expulsar os amantes
de uma vez por todas; dizer-lhes exactamente o que pensa deles e pô-los fora.
Uma meditou.
- Não basta - disse ela. - Acho que era necessária uma solução mais drástica. Porque uma rival dessas, refiro-me à jovem Pretendente Vaidosa, se não for eliminada,
e quero mesmo dizer
completamente aniquilada, vai preparar-se para esmagar a Velha Rainha Irada. Vai querer o jovem Príncipe Lúbrico só para ela e vai querer o Reino também; é demasiado
vaidosa para partilhar o trono com a mãe dele.
- Que sugeres então? - perguntou Aurora num tom a um tempo doce e gélido, na sala subitamente silenciosa.
- A morte - disse Uma encolhendo os ombros. - Isto é obviamente uma história policial. De uma maneira ou de outra, alguém terá de morrer. A Rainha Branca come o
Peão Preto porque senão este alcança a última linha, resgata a Rainha Preta e esta, por sua vez, come a Rainha Branca. (*) Não vejo outro final. - Aurora pareceu
impressionada.
- Uma, filha, que dissimulada me saíste. Porque é que não me disseste que não é a primeira vez que jogas este jogo?
Que dissimulada me saíste... A minha mãe não podia tirar da cabeça a ideia de que Uma tinha qualquer coisa a esconder. "Não se sabe donde vem e intromete-se na família"
era motivo constante de preocupação para Aurora - que nunca se preocupara, nos velhos tempos, com o passado, igualmente duvidoso, de Vasco Miranda. "Mas que gente
será a dela? Onde estão os amigos? Que vida terá feito?" Participei estas dúvidas a Uma, num dos Quartos de Repouso, enquanto as sombras móveis da ventoinha do tecto
lhe acariciavam o corpo nu e a brisa lhe secava o suor.
- A tua família não pode falar de segredos, - disse ela - desculpa. Não gosto de dizer mal dos teus, mas não sou eu que tenho uma irmã que morreu doida, outra a
falar com os ratos num convento e a terceira a desabotoar os botões do pijama da ami-guinha. E já agora: de quem é o pai metido em negócios sujos até aqui e em prostituição
de menores? E de quem é a mãe - des-
(*) Referência a uma jogada no final de uma partida de xadrez, possível tecnicamente mas improvável. (N. T.)
culpa lá, meu amor, mas isto deves saber - que não tem um, nem dois, mas três amantes ao mesmo tempo?
- Quem é que te disse uma coisa dessas? - gritei eu sentando-me na cama. - Quem é que te deu a beber esse veneno para tu o vomitares agora aqui?
- Toda a cidade fala - disse Uma abraçando-me. - Pobre querido. Julgas que ela é uma espécie de deusa ou quê? Toda a gente sabe. Número um: aquele atrasado mental
Parsi, o Kekoo Mody; número dois: Vasco Miranda, o pantomineiro gorducho; e
o pior é o número três: aquele malandro dos SA, Mainduck. Raman Fielding! Aquele bandido! Lamento dizer que essa senhora não tem classe nenhuma. Há até quem diga
que ela seduziu o próprio filho - sim, meu pobre inocente, não fazes ideia de como as pessoas são más! - mas eu cá digo sempre: há limites para tudo, isso não é
verdade, posso garantir. Vês como a tua reputação está agora nas minhas mãos?
Foi desta vez que tivemos a nossa primeira briga a sério, mas mesmo enquanto defendia a minha mãe sentia no coração o bem-fundado das acusações de Uma. A devoção
canina de Kekoo tinha tido provavelmente a sua recompensa e quanto à prolongada tolerância (simultaneamente com o tratamento insultuoso) de Aurora para com Vasco
só fazia sentido no contexto de um "envolvimento", por mais decadente que fosse. Agora que ela e Abraham dormiam em camas separadas, aonde podia Aurora ir buscar
conforto? O seu talento e a sua grandeza tinham-na isolado; as mulheres poderosas assustam os homens e poucos machos haveria em Bombaim com a coragem de lhe fazer
a corte. Isso explicava Mainduck. Grosseiro, fisicamente forte, implacável, seria um dos poucos homens que não teria medo dela. O seu encontro durante o incidente
do quadro do beijo, The Kissing of Ahhas Ali Baig, tinha-o excitado; ele tinha aceitado o suborno e quisera - pensava eu - conquistá-la. E no meu espírito eu via-a
a um tempo revoltada e fascinada por aquela criatura-da-sarjeta de grande gabarito, aquele selvagem, aquela escória ambulante. Se o marido a preteria por prostitutas
de Falkland Road, então ela, Aurora-a-Magnífica, vingar-se-ia cedendo o corpo aos apalpões e investi-
das de Fielding; sim, eu era capaz de compreender que isso a excitasse, que desencadeasse a própria violência que havia nela. Talvez Uma tivesse razão. Talvez minha
mãe fosse a puta do Fielding.
Não admira que ela parecesse ultimamente um pouco paranóica, preocupada com a ideia de estar a ser seguida; com uma vida secreta tão complicada, e com tanto a perder
se viesse a ser conhecida! Kekoo, o amante da arte, o vulto cada vez mais ocidentalizado de V. Miranda e o sapo fundamentalista; acrescente-se a isto o mundo invisível
da finança e do mercado negro de Abraham Zogoiby e teremos um retrato das coisas que minha mãe apreciava realmente, os ponteiros da sua bússola interior, revelados
pelos homens que escolhia. Vista por este prisma, a sua arte parecia uma fuga às duras realidades do seu carácter, como uma capa galantemente lançada sobre a lama
nojenta da sua alma.
Na minha confusão, dei por mim simultaneamente lavado em lágrimas e com uma erecção. Uma fez-me deitar para trás na cama e cavalgou-me, limpando-me as lágrimas com
beijos.
- Há mais alguém que saiba, além de mim? - perguntei. - A Mynah? A Minnie? Quem?
- Não penses mais nas tuas irmãs, - disse ela, movendo-se lentamente, suavemente. - Coitadinho, gostas de toda a gente, não queres senão amor. Se elas gostassem
de ti como tu gostas delas... Mas havias de ouvir o que me dizem de ti. É cada coisa...! Nem sabes as discussões que eu tenho tido com elas a teu respeito.
Obriguei-a a parar.
- Que dizes tu? O que é que me estás a querer dizer?
- Pobre bebé. - Disse ela enrolando-se em mim como uma colher. Eu adorava-a naquele momento. Como era bom, neste mundo traiçoeiro, ter comigo a sua maturidade, a
sua serenidade, o seu conhecimento do mundo, a sua força, o seu amor.
- Coitado do meu Mouro infeliz. Daqui em diante serei eu a tua família.
15
Os quadros foram ficando cada vez menos coloridos, até que Aurora já só trabalhava com preto, branco e ocasionalmente alguns tons de cinzento. O Mouro agora era
uma figura abstracta, coberto dos pés à cabeça por um motivo de lozangos pretos e brancos. A Mãe, Ayxa, era preta; e a amante, Ximena, dum branco brilhante. Muitas
destas telas eram cenas de amor. O mouro e a sua amada faziam amor com cenários diversos. Deixavam o palácio para frequentar as ruas da cidade. Procuravam hotéis
baratos, quartos com persianas onde estavam deitados acima de comboios que iam e vinham. Ayxa a mãe estava sempre algures nesses quadros, por trás de um reposteiro,
olhando pelo buraco de uma fechadura, voando à altura da janela do ninho de águias dos amantes. O Mouro branco-e-preto voltava-se sempre para a sua amada branca
e de costas para a mãe; mas ambas faziam parte dele. E agora, no horizonte mais longínquo dos quadros, exércitos iam-se amontoando. Cavalos escarvavam o solo, brilhavam
lanças. Os exércitos aproximavam-se com o decorrer dos anos.
Mas o Alhambra é invencível - dizia o mouro à sua amada.
- A nossa fortaleza, tal como o nosso amor, nunca cairá.
Ele era preto e branco. Era a prova viva de que era possível a união dos opostos. Mas Ayxa-a-Negra puxava para um lado e Ximena-a-Branca, para o outro. Começaram
a rasgá-lo ao meio. Diamantes negros, diamantes brancos, caíam pelo rasgão, como lágrimas. Conseguiu libertar-se da mãe e agarrou-se a Ximena.
Quando os exércitos chegaram ao sopé da colina, quando aquela grande força branca se juntou na praia de Chowpatti, uma figura coberta por uma capa preta com capuz
esgueirou-se da fortaleza e desceu a colina. Na sua mão traidora levava a chave do portão. O guarda perneta viu-a e saudou-a. Reconhecera a capa da sua patroa. Mas
ao fundo da colina, a traidora deixou cair a capa. Era uma mulher de um branco brilhante, levando na mão infiel a chave da derrota de Boabdil. Entregou-a aos sitiantes
e a sua brancura misturou-se com a deles. O palácio caiu. A sua imagem dissolveu-se no branco.
Aos cinquenta e cinco anos, Aurora Zogoiby autorizou Kekoo Mody a organizar uma retrospectiva do seu trabalho no Museu do Príncipe de Gales - a primeira vez que
aquela instituição honrou dessa maneira um artista vivo. Peças de jade, loiças, esculturas, miniaturas e panos antigos foram arredados respeitosamente para dar lugar
às obras de Aurora. Havia por todo o lado cartazes a anunciar a exposição. (Apollo Bunder, Colaba Causeway, Flora Fountain, Churchgate, Nariman Point, Civil Lines,
Malabar Hill, Kemp's Comer, Warden Road, Mahalaxmi, Hornby Vellard, Juhu, Sahar, Santa Cruz. Abençoada ladainha da minha cidade perdida! Os sítios escaparam-me para
sempre; tudo o que possuo é a memória. Perdoem, por favor, se cedo à tentação de os conjurar, nomeando-os, perante os meus olhos ausentes. Livraria Thacker, Pastelaria
Bombelli, Cinema Eros, Pedder Road Oum mani paduré hum...)(*) Era impossível escapar ao monograma especialmente desenhado, "A.Z."; estava por toda a parte, em inúmeros
cartazes espalhados à sorte, e em todos os jornais e revistas. A inauguração, a que compareceram todas as figuras importantes da cidade, porque faltar a um acontecimento
daqueles teria sido
(*) Tradução livre do "hindi": "Oh meu Deus, ponho a teus pés estas flores da memória...". (N. T.)
uma gaffe social imperdoável, pareceu-se mais com uma coroação do que com uma exposição de pintura. Aurora foi engrinaldada, elevada aos píncaros e inundada de pétalas
de rosa, lisonja e presentes. A cidade inteira ajoelhou e beijou-lhe os pés.
O próprio Raman Fielding, poderoso líder dos S.A. compareceu, piscando os seus olhos de sapo e fez-lhe uma vénia respeitosa.
- Ora aqui está um exemplo do que fazemos a favor das minorias, - disse ele muito alto. - É porventura um Hindu o alvo desta homenagem? Algum dos nossos grandes
artistas hindus? Não importa. Na índia cada comunidade tem o seu lugar, as suas actividades e os seus lazeres - a arte, etc. - todos. Cristãos, Parsis, Jains, Sikhs,
Budistas, Judeus, Mughals. Aceitamos tudo. Isso também faz parte da ideologia de Ram Rajya, da lei do Senhor Ram. Só quando as outras comunidades usurpam o nosso
lugar de Hindus, quando as minorias tentam exercer uma ditadura sobre as maiorias, então é que dizemos que os mais pequenos também devem aceitar vergar-se perante
os maiores. Isto também se aplica no campo das artes. Eu próprio comecei por ser artista. Por isso tenho alguma autoridade para dizer que a arte e a beleza também
devem servir o interesse nacional. Madame Aurora, dou-lhe os meus parabéns pela sua exposição privilegiada. Quanto a saber qual a arte que perdura, se a arte intelectual,
rarefeita, só para elites ou aquela que é amada pelo povo, a nobre ou a degenerada, a que se exalta a si mesma ou a modesta, a das grandes almas ou a da sarjeta,
a espiritual ou a pornográfica, todos concordarão certamente - e aqui deu uma pequena gargalhada para anunciar uma gracinha - que só o O Times o dirá.
No dia seguinte, o Times of índia (edição de Bombaim), tal como todos os outros jornais da cidade, publicaram em lugar proeminente reportagens sobre a inauguração
de gafa e extensíssimas notas críticas sobre a obra. Nessas críticas a longa e distinta carreira de Aurora da Gama Zogoiby ia sendo completamente destruída. Habituada,
ao fim de tantos anos aos elogios mais fervorosos, mas também a ataques estéticos, políticos e morais, com acusações que iam de arrogância, imodéstia e obscenidade
a falta de autenticidade e até - no caso do quadro do louco que não
sabia de que país era - a simpatias pró-Paquistanesas ocultas, minha mãe era uma rata de rabo pelado; mas não estava preparada para a sugestão de que, simplesmente,
se tornara irrelevante. Com efeito, numa daquelas desnorteantes e radicais movidas pelas quais uma sociedade revela ter mudado de opinião, os tigres da irmandade
dos críticos de arte, numa ardente unanimidade, viraram-se contra Aurora Zogoiby e estraçalharam-na chamando-lhe "artista da alta sociedade", fora de moda e até
"deletéria" para o tempo actual. No mesmo dia, o assunto de primeira página em todos os jornais era a dissolução do parlamento após a queda do governo de coligação
anti-Indira; e vários jornais usaram o contraste entre os destinos das duas velhas rivais. Aurora Mergulha nas Trevas, era o título do artigo de junto do Times e
continuava mas para Indira é uma Nova Aurora.
Algures noutro ponto da cidade, na Galeria Ghandy's Che-mould, a jovem escultora Uma Saravasti fazia a sua primeira exposição em Bombaim. A obra central era um grupo
de sete peças aproximadamente esféricas de um metro de altura, cada uma com uma pequena cova escavada no topo e cheia de pó de cor berrante: escarlate, ultramarino,
açafrão, esmeralda, roxo, laranja, dourado. Esta obra intitulada "Alterações nas Exigências da Essência da Maternidade na Época Post-Laica" tinha sido o grande êxito
da exposição "Documenta" na Alemanha no ano anterior e só agora regressava, após ter sido mostrada em Milão, Paris, Londres e Nova Iorque. E agora os mesmos críticos
que tinham malhado em Aurora Zogoiby recebiam Uma como a nova estrela da arte indiana-jovem, bonita e inspirada por uma sólida fé religiosa.
Este era de facto um acontecimento sensacional; mas para mim a reacção às duas exposições foi de natureza pessoal. A primeira vez que vi o trabalho de Uma - porque
até àquele momento ela mantivera a proibição de qualquer visita minha ao seu estúdio em Baroda - foi também a primeira suspeita de que ela pudesse ter um espírito
minimamente religioso. Mais desconcertante ainda foi o facto de ela ter começado a dar entrevistas em que se declarava discípula do deus Ram. Depois da inauguração,
ao fim de uns dias em que me dizia sempre estar "ocupada", acedeu a encontrar-se
comigo num dos Quartos de Repouso no Terminal da Estação de Vitória; perguntei-lhe então porque é que me ocultara uma parte tão importante da sua vida.
- Chegaste a dizer que o Mainduck era um malandro - lembrei eu. - E agora os jornais estão cheios das tuas loas, que devem ser música para os ouvidos dele.
- Não disse nada antes, porque a religião é um assunto privado - disse ela. - E como tu sabes eu prezo muito a minha privacidade, talvez demais. Além disso, acho
que o Fielding é um bandido, um porco, uma serpente, porque está a servir-se da minha devoção a Ram como de uma arma contra os Muçulmanos. Mas, meu pequenino, (ela
insistia em aplicar-me epítetos juvenis embora, em 1979, eu já tivesse vinte e dois anos e o meu corpo aparentasse quarenta e quatro) tens de perceber que, tal como
tu pertences a uma escassa minoria, eu sou filha da grande Nação Hindu e como artista tenho de contar com isso. Tenho de encontrar as minhas raízes, acomodar-me
às verdades eternas. E isso não tem nada a ver consigo, meu caro senhor, nadinha mesmo. E ainda por cima, se eu sou tão fanática como isso, que é que eu estou aqui
a fazer contigo?
O que me pareceu razoável.
Aurora, em estrito recolhimento em Elephanta, era de opinião diferente.
- Essa tua pequena é a pessoa mais ambiciosa que eu jamais encontrei, desculpa que te diga. Sem excepção. Ela viu que os ventos estão a mudar e toma publicamente
atitudes nesse sentido. Espera só: não tarda que ela suba aos palanques do SA e se junte ao coro do ódio.
Uma nuvem toldou-lhe o olhar.
- Julgas que não sei o que ela fez para esbandalhar a minha exposição? - murmurou ela. - Julgas que não descobri as ligações dela a essa gente que me insultou?
Aquilo era demais; era indigno. No estúdio vazio - porque todos os Mouros tinham sido mandados para o Museu do Príncipe de Gales - Aurora olhava para mim de olhos
encovados, do outro lado de uma tela virgem, com os pincéis caindo-lhe do carrapito como setas que não acertassem no alvo. Junto da porta eu
fumegava de fúria. Tinha lá ido preparado para uma discussão - porque a exposição dela também tinha sido um choque para mim; antes da inauguração eu nunca vira aquelas
telas monocromáticas em que o Mouro-aos-lozangos e a sua Ximena-Branca-de-Neve faziam amor sob as vistas da mãe negra. As acusações de Aurora a Uma - que me pareciam
o cúmulo do mau gosto, vindas da amante secreta de Mainduck! - deram pretexto aos meus ataques.
- Lamento muito que a tua exposição tenha sido arrastada pelas ruas da amargura - gritei eu. - Mas mesmo que a Uma quisesse influenciar os críticos, querida mamã,
como podia ela fazê-lo? Não percebes o embaraço que foi para ela, ter sido elogiada à tua custa? A pobre rapariga está tão envergonhada que não se atreve a vir cá
a casa. Ela sempre te adorou e tu em paga só lhe atiras lama para cima. Essa tua mania da perseguição está a ficar descontrolada. E a propósito de descobrir ligações,
o que pensas tu que eu senti ao ver aqueles quadros em que tu estás a espreitar-nos no nosso quarto de cama? Há quanto tempo nos andas a espreitar e a espiar?
- Livra-te dessa mulher, - disse Aurora calmamente. - É uma louca e uma mentirosa. E como um lagarto sugador de sangue: gosta do teu sangue, não de ti. Vai acabar
por te sugar como um fruto e cuspir o caroço.
- Tu não estás bem - gritei eu horrorizado. - Estás doente da cabeça.
- Eu não, filho, respondeu ela ainda mais baixo. - Mas existe na verdade uma mulher doente - doente ou má. Louca ou má ou ambas as coisas. Quanto a meter o nariz
na tua vida, confesso-me culpada. Há já um tempo que eu encarreguei o Dom Minto de descobrir a verdade acerca da tua misteriosa amiga. Queres saber o que ele descobriu?
- Dom Minto?
O nome fez-me estacar de súbito. Era como se ela tivesse dito "Hercule Poirot", ou "Maigret" ou "Sam Spade". Toda a gente conhecia aquele nome, toda a gente lera
"Os Mistérios de Minto", a literatura de cordel que se vendia nas estações e que relatavam episódios da carreira do grande detective privado de Bombaim.
Tinha havido uma série de filmes acerca dele nos anos 1950, o último dos quais narrava o seu envolvimento num célebre caso de assassinato (porque existia "realmente"
um Minto, detective privado na vida real), em que o Comandante Sabarmati, celebrado herói da Marinha Indiana, tinha abatido a tiro a mulher e o amante desta, matando
o homem e ferindo gravemente a senhora. Fora Minto que descobrira o ninho de amor do casal adúltero e fornecera a morada ao marido ultrajado. Profundamente afectado
pelo crime e pelo relato pouco simpático que dele transparecia no filme baseado no caso, o velhote - pois já então era velho e coxo - reformara-se da profissão;
e os fantasistas tinham-se apoderado da personagem, criando um heróico superdetective de romances baratos e séries na rádio (e ultimamente novas versões para o cinema,
dos antigos filmes da série B, grandes orçamentos e supervedetas), transformando uma glória passada num novo mito. O que estaria este herói de melodrama a fazer
na história da minha vida?
- Pois, esse mesmo, - disse Aurora não sem alguma ternura. - Já tem mais de oitenta anos. Foi o Kekoo que o descobriu.
- o Kekoo. Outro dos teus queridos. "Pois, o Kekoo descobriu-o e ele é mesmo amoroso, o velhote, pu-lo logo a trabalhar... "
- Estava a viver no Canadá, - disse Aurora - reformado, a viver com os netos, chateado, a chatear toda a gente. Aconteceu depois que o Comandante Sabarmati saiu
da cadeia e fez as pazes com a mulher. E foram viver - imagina - para Toronto, felicíssimos da vida. Depois duma destas, segundo diz o Kekoo, o Minto sentiu-se desculpado,
voltou para Bombaim, e apesar da avançada idade, retomou o antigo ofício. O Kekoo é um fã dele e eu também. O Dom Minto! Em tempos, sabes, não havia melhor.
- Óptimo! - disse eu o mais sarcasticamente possível; mas no fundo, confesso, o meu coração aventureiro vibrava com aquela história. - E que é que esse Sherlock
Holmes de trazer por casa tem a dizer-me acerca da mulher que eu amo?
- É casada - disse Aurora secamente. - E neste momento trás à trela não um, nem dois, mas três amantes. Queres fotogra-
fias? Aquele palerma do Jimmy Cash, que foi casado com a tua pobre irmã Ina; o palerma do teu pai; e tu, meu estúpido pavão.
- Escuta bem, porque eu só vou dizer isto uma vez - respondera Uma à minha insistente curiosidade acerca do seu passado. Pertencia a uma família respeitável, se
bem que pouco abonada, de Brâmanes de Gujarate, mas perdera os pais muito nova. A mãe maníaco-depressiva, enforcara-se quando Uma tinha doze anos, e o pai, um professor
primário, enlouquecido pela tragédia, imolara-se pelo fogo. Uma fora salva da penúria por um bondoso "tio" - na realidade não era tio, mas um colega do pai - que
a sustentara e educara em troca de favores sexuais (o que já não era tão "bondoso" como isso).
- Desde a idade dos doze anos até há pouco. Por minha vontade enfiava-lhe uma faca num olho. Em vez disso roguei-lhe uma praga e voltei-lhe as costas, simplesmente.
Talvez percebas agora porque é que não gosto de falar do passado. Esta é a última vez.
A versão de Dom Minto, relatada por minha mãe, era bastante diferente. Segundo ele, Uma não era de Gujarate, mas de Maharashtra - a outra metade do antigo estado
de Bombaim - e tinha sido criada (tal como o Príncipe Shiva) em Poona, onde o pai era um alto comissário da polícia. Muito nova demonstrara um talento artístico
prodigioso e fora encorajada pelos pais, sem cujo apoio provavelmente nunca teria chegado ao nível necessário para obter uma bolsa de estudo na Universidade, onde
era considerada por todos uma rapariga excepcionalmente prometedora. Mas em breve começara a dar sinais de desequilíbrio mental. Agora que se estava a tornar conhecida,
as pessoas tinham medo ou relutância em falar contra ela, mas após um inquérito persistente Dom Minto descobrira que em três ocasiões ela aceitara tomar uma forte
medicação a fim de controlar as suas frequentes aberrações mentais; mas de todas as vezes abandonara o tratamento logo a seguir ao seu início. A sua habilidade em
assumir diferentes personagens conforme
as pessoas que frequentava - em tornar-se naquilo que ela supunha agradar mais a um determinado homem ou mulher (mas geralmente homem) - era invulgar; mas esse talento
para representar era levado a um ponto próximo da loucura. Além disso, gostava de inventar longas histórias pessoais elaboradíssimas e extremamente vívidas e agarrava-se
a elas obstinadamente, mesmo quando confrontada com contradições e faltas de nexo, ou com a verdade. Era possível que já não tivesse um sentido claro de identidade
"autêntica", independente de tais invenções e que essa confusão existencial começasse a passar as fronteiras do seu próprio eu e a infectar, como uma doença, todos
aqueles com quem entrava em contacto. Era conhecida em Baroda por contar mentiras maldosas e manipuladoras, acerca por exemplo de certos membros da faculdade com
quem inventava casos de amor tão intensos como absurdos; e por vezes escrevia às respectivas mulheres cartas com detalhes explícitos de encontros amorosos, que tinham,
em alguns casos, dado lugar a separações e divórcios.
- A razão por que ela não te deixava ir à faculdade - disse a minha mãe - é que lá toda a gente a detesta de morte.
Os pais tinham reagido à notícia da doença mental da filha abandonando-a ao seu destino; o que não era caso único, como eu muito bem sabia. Não se tinham enforcado
nem imolado pelo fogo - essas ficções de violência nasciam da raiva (assás legítima) da filha rejeitada. Quanto ao "tio" lúbrico: segundo Aurora e Minto, Uma, após
ter sido abandonada pela família - e não aos doze anos, como pretendia! - ligara-se sem tardança a um velho conhecido de seu pai em Baroda, um comissário de polícia
reformado que dava pelo nome de Suresh Sarasvati, um viúvo melancólico que a jovem beldade facilmente seduziu e rapidamente levou ao casamento, numa altura em que,
comi mulher repudiada, precisava desesperadamente de um estatuto respeitável de senhora casada. Pouco depois do casamento, o velho senhor teve um ataque e ficou
completamente fora de combate.
("E qual foi a causa?" perguntou Aurora. "Queres que te explique? E preciso fazer um desenho para tu perceberes?") e agora levava uma semivida horrorosa, mudo e
paralítico, tratado unica-
mente por um vizinho solícito. A jovem esposa tinha-se raspado com tudo o que ele possuía e nunca mais pensara nele. Agora, em Bombaim, andava à caça. Os seus atractivos
e o seu poder de persuasão estavam no auge.
- Tens de quebrar esse encanto - disse a minha mãe - ou estás feito. Ela é como uma Raksbasa(*) do Ramayana('**) e vai acabar contigo.
Minto fora meticuloso. Aurora mostrou-me documentação - certidões de nascimento e de casamento, relatórios médicos confidenciais adquiridos pelo método habitual
de untar mãos já habituadas a serem untadas, etc. - que não deixava dúvidas sobre a veracidade do seu relato quanto a todos os pormenores importantes. Mas o meu
coração recusava-se ainda a acreditar.
- Tu não a entendes, - protestei eu. - Pronto, mentiu acerca dos pais. Com pais daquele género, também eu mentiria. E talvez esse polícia reformado, esse Sarasvati,
não seja tão angelical como parece. Mas... perversa? Louca? Um demónio em forma humana? Mãezinha, acho que intervêm aí factores puramente pessoais.
Nessa noite fiquei sozinho no quarto, sem poder comer nem dormir. Era óbvio que tinha de fazer uma escolha. Se escolhesse Uma, teria de cortar com a minha mãe, provavelmente
para sempre. Mas se aceitasse as provas de Aurora - e a sós, na privacidade daquelas quatro paredes, era obrigado a concordar que eram irresistivelmente poderosas
- estava a condenar-me a uma vida de solidão. Quanto tempo teria de vida? Dez anos? Quinze? Vinte? Poderia eu enfrentar o meu estranho e negro destino sem uma amante
a meu lado? O que era mais importante: a verdade ou o amor?
Mas, a acreditar em Aurora e Minto, ela não me tinha amor, era simplesmente uma grande comediante, predadora de paixões, uma fraude. De repente, percebi que muitas
das opiniões que eu formara recentemente sobre a minha família baseavam-se em coisas ditas por Uma. Senti a cabeça à roda. O chão abriu-se-me aos pés. Seria
(*) Demónio tradicional indiano. Pode assumir a forma de uma mulher extremamente bela. (N. T.)
(**) "Romance de Rama". Poema épico sânscrito, III séc. a. C. (N. T.)
verdade tudo aquilo acerca de Aurora e Kekoo, Aurora e Vasco, Aurora e Raman Fielding? Seria verdade que as minhas irmãs diziam mal de mim nas minhas costas? E se
era mentira, queria dizer que Uma - Ó minha amada! - tinha deliberadamente procurado envenenar as minhas opiniões acerca dos que me estavam mais próximos, a fim
de se imiscuir entre a minha família e eu. Desistir da imagem que se tem do mundo para se tornar completamente dependente de outra pessoa - não era esta uma descrição
exacta do processo de abandonar o juízo, de enlouquecer? Nesse caso, para usar a classificação de Aurora, eu era o louco. E a bela Uma a perversa.
Confrontado com a possibilidade da existência do mal, essa pura malignidade que entrara na minha vida e me convencera que era amor, perante a perda de tudo o que
eu queria da vida, desmaiei. E sonhei escuros sonhos de sangue.
Na manhã seguinte, estava eu sentado no terraço em Elephanta, olhando a baía reluzente, quando Mynah veio fazer-me uma visita. A pedido de Aurora, também ela ajudara
Dom Minto nas suas investigações. Averiguara-se que ninguém da filial em Baroda da Frente das Mulheres Unidas Contra a Subida de Preços conhecia Uma ou ouvira falar
em quaisquer actividades suas em qualquer espécie de campanha.
- O que quer dizer que até a recomendação que ela apresentou era falsa - disse ela. - Digo-te, mano, que desta vez a mãe acertou em cheio.
- Mas eu amo-a. - Disse eu sem saber que fazer. - Não posso parar. Não sou capaz. A
Mynah sentou-se a meu lado e pegou-me na mão esquerda. Falava numa voz tão mansa, tão pouco habitual em Mynah, que me chamou a atenção.
- Eu também gostava dela. Demais até. Mas depois deu para o torto. Eu não queria contar-te. Não era da minha conta. De todo o modo, não terias acreditado.
- Acreditado em quê?
- Um dia veio ter comigo depois de ter estado contigo - disse Mynah olhando o horizonte com a testa franzida. - Disse-me umas coisas sobre o que se passava entre
vocês. Sobre o que tu... Enfim... Não tem importância. Disse-me que não gostava nada. Disse mais coisas, mas agora não interessa. Depois disse-me uma coisa a meu
respeito: Quer dizer: queria... Mandei-a bugiar. Não nos falamos desde então.
- Ela contou-me que era ao contrário, - disse eu abatido. - Quer dizer: que eras tu que andavas atrás dela.
- E tu acreditaste, - gritou Mynah, mas depois deu-me um beijo rápido na testa. - Está-se a ver que acreditaste. O que é que sabes a meu respeito? Do que eu gosto,
do que eu preciso? E andavas mesmo louco de amor. Pobre pateta. Vê lá se tens juízo, agora.
- Achas que a deixe? Assim sem mais nem menos?
Mynah levantou-se, acendeu um cigarro, tossiu: era um som
cavo, estrangulado, doentio. Era a sua dura voz da luta, a voz do advogado a interrogar uma testemunha da parte contrária, o instrumento poderoso com que lutava
contra a corrupção, contra o assasinato das raparigas recém-nascidas, contra a imolação das viúvas, contra as violações. Ela tinha razão. Eu não sabia o que era
ser como ela, as opções que tinha de tomar, em que braços buscar conforto, e porque é que os braços dos homens eram por vezes sinónimos de terror, não de prazer.
Podia ser minha irmã, e então? Eu nem sequer a tratava pelo nome que era o dela.
- Qual é o problema? - disse ela encolhendo os ombros e sacudindo a cinza do cigarro, em direcção à porta. - Deixar de fumar é muito mais difícil. Acredita no que
te digo. Corta com essa cabra totalmente e o mais depressa possível e dá graças por não seres fumador.
- Eu sabia que iam tentar separar-nos. Sabia-o desde o princípio.
Uma mudara-se para um apartamento de luxo num décimo oitavo andar com vista para o mar em Cuffe Parade, no prédio ao lado do hotel Presidente, perto da Galeria Mody.
Estava de pé, teatralmente devastada pela dor, num pequeno balcão que dava, muito a propósito, para um fundo operático de palmeiras agitadas pelo vento e uma chuvada
súbita, torrencial; e logo a seguir veio o tremor sensual do lábio inferior e as lágrimas em catarata.
- A tua própria Mãe a dizer-te... com o teu próprio pail Desculpa mas é revoltante. Chiii...! E com o Jimmy Cashondeliveri! Esse estúpido guitarrista. Sabes tão
bem como eu que, desde o primeiro dia nas corridas, ele acha que eu sou uma reencarnação da tua irmã. Desde então segue-me como um cão com a língua de fora. E por
isso hei-de ir, supostamente, com ele para a cama? Céus, e com quem mais? V. Miranda, talvez? Com o perneta do portão? Não tenho vergonha, eu?
- Mas o que tu contaste da tua família... E o "tio"...
- E quem é que te deu o direito de querer saber tudo a meu respeito? Foste intrometido e eu não quis dizer-te. Pronto.
- Mas era mentira, Uma. Os teus pais estão vivos e o tio é teu marido.
- Era uma metáfora. Sim, uma metáfora acerca da minha vida desgraçada, a minha dor. Se me amasses, percebias. Se me amasses não estavas aí a interrogar-me como se
eu fosse uma criminosa. Se me amasses, paravas de agitar esse pobre punho e punha-lo aqui e calavas a tua boca querida e punha-la aqui e fazias o que fazem os amantes.
- Não era uma metáfora, Uma - disse eu, recuando. - Era uma mentira. E o que me mete medo é que tu não sabes a diferença.
Saí às arrecuas pela porta da frente que fechei, sentindo-me como se tivesse saltado do balcão em direcção às palmeiras. A sensação era essa: a duma queda. Como
se me tivesse suicidado. Como se estivesse morto.
Mas isso também era uma ilusão. A verdadeira morte estava ainda a dois anos de distância.
Aguentei-me durante meses. Vivia em casa, ia trabalhar, tornei-me exímio na arte da venda e promoção do talco para bebé Softo e até fui nomeado chefe de vendas por
um pai orgulhoso de mim e lá fui desfiando o calendário dos dias vazios. Houve mudanças em Elephanta. Na sequência do fiasco da retrospectiva, Aurora decidiu-se
finalmente a expulsar Vasco. Passou-se tudo numa gélida calma: Aurora mencionou uma necessidade crescente de solidão e Vasco, com uma fria vénia, concordou em abandonar
o estúdio. Se isto foi o fim de uma relação, pensei eu, foi honrosamente digno e discreto; mas a frieza polar de tudo aquilo fez-me estremecer, confesso. Vasco veio
despedir-se de mim e fomos os dois ao quarto das crianças decorado por ele, há tanto tempo desocupado, e onde tudo começara.
- E é tudo, minha gente. (*) É tempo do V. Miranda partir para o Ocidente. Tenho um castelo para construir no céu.
Estava perdido num monte de carne, parecia um sapo, um reflexo distorcido por um espelho de feira da figura de Raman Fielding, e na boca tinha um esgar de dor. A
voz estava sob controle, mas eu via-lhe nos olhos uma chama de ressentimento.
- Ela foi sempre a minha obsessão, deves ter percebido, - disse ele afagando as paredes cheias de exclamações (Pum! Zzzap! Splashhh!) - Como foi e é e será a tua.
Talvez um dia queiras encarar a situação. Vem ter comigo. Vem, antes que aquela agulha me chegue ao coração.
Havia anos que eu não pensava na agulha perdida de Vasco, aquela lasca de gelo da Rainha da Neve; e lembrei-me então que o coração daquele Vasco tão mudado, tão
inchado, tinha a temer outros ataques mais convencionais que os de uma agulha. Pouco depois, Vasco deixou a índia e foi para a Espanha para nunca mais voltar e,
tal como profetizara, acabei por lhe seguir as pisadas.
(*) No original "That's ali, folks", frase de despedida no final de alguns filmes de desenhos animados americanos. (N. T.)
Aurora despediu também o seu agente. Informou Kekoo que o considerava pessoalmente responsável pelo "fiasco quanto a relações públicas" da sua exposição. Kekoo não
aceitou pacificamente a ruptura, apresentando-se ao portão todos os dias durante um mês a pedir a Lambajan que o deixasse entrar (o que foi sempre recusado), mandando
flores e presentes (que foram devolvidos), escrevendo cartas intermináveis (que foram deitadas fora por abrir). Aurora disse-lhe que, não tendo intenções de voltar
a expor a sua obra, deixara de ter necessidade de uma galeria. Mas Kekoo, pateticamente, convencéu-se de que ela o trocara pelo seu grande rival da Galeria Chemould.
Desfez-se em pedidos e súplicas pelo telefone (que Aurora não vinha atender), em telegramas (a que ela deitava fogo desdenhosamente) e até por intermédio de Dom
Minto (que se revelou ser um senhor velhinho quase cego, de óculos azuis com uns enormes dentes de cavalo como o Fernandel, a quem Aurora ordenou que não trouxesse
mais recados). Não pude deixar de pensar nas acusações de Uma. Se aqueles dois supostos amantes tinham sido mandados embora, que se passaria então com Mainduck?
Teria sido também alijado ou seria ele agora o único locatário do coração de Aurora?
Uma, Uma. Que falta me fazia. Sofria como um drogado em carência de droga: de noite sentia o seu corpo-fantasma mover-se sob a minha mão aleijada. Ao adormecer,
via com os olhos do espírito a cena de um velho filme de Fernandel em que ele, não sabendo como se diz "mulher" em inglês usa as mãos para traçar no ar o perfil
de uma figura feminina cheia de curvas.
Eu era o outro interlocutor, na fita.
- Ah, - dizia eu - uma garrafa de Coca-cola?
Uma passava por nós, dando às ancas. Fernandel abria um sorriso lúbrico e espetava o polegar na direcção do traseiro dela.
- A minha garrafa de Coca-cola - dizia ele, com justificado orgulho.
A vida quotidiana. Aurora continuava a pintar todos os dias, mas eu já não tinha acesso ao estúdio. Abraham trabalhava até tarde e quando lhe perguntei porque é
que me deixava definhar no mundo dos cuzinhos de bebé - a mim, com o tempo tão contado! - respondeu:
- Uma grande parte da tua vida passou-se depressa demais. Não te faz senão bem afrouxar durante uns tempos.
Num gesto de solidariedade muda, deixara de jogar golfe com Uma Sarasvati. Talvez também ele estivesse a sentir a falta do seu versátil encanto.
Silêncio no Paraíso: silêncio e dor. A senhora Gandhi voltou ao poder, com o seu filho Sanjai à mão direita, o que queria dizer que não houve nos assuntos de estado
uma moralidade final, só uma Relatividade. Lembrei-me da "Variação Indiana" de Vasco Miranda sobre o tema da Teoria Geral de Einstein: "Tudo é relativo. Não é só
a luz que se curva, mas tudo no universo. Como tudo é relativo, podemos curvar um ponto, curvar os critérios de emprego, curvar a lei. D igual a Mc c ao quadrado,
sendo D igual a Dinastia, m a massa de parentes e c, evidentemente, corrupção, que é a única constante do Universo -porque na índia até a velocidade da luz depende
de perdas de carga e variações da corrente eléctrica".
A partida de Vasco também fez reinar na casa uma maior tranquilidade. A velha mansão tagarela parecia um palco vazio pelo qual deambulavam, como fantasmas sussurrantes,
um grupo exaurido de actores que tinham esquecido as deixas. Ou talvez estivessem agora noutros palcos e só este teatro estivesse às escuras.
Não deixou de me ocorrer - de facto, durante um tempo não pensei noutra coisa - que o que acontecera fora de certo modo uma derrota para a filosofia pluralista em
que todos tínhamos sido educados. Porque no caso de Uma Sarasvati, tinha sido Uma, a pluralista, (com as suas múltiplas personalidades, o seu compromisso altamente
imaginativo com a infinita maleabilidade do real, o seu senso modernístico da verdade como coisa provisória) que se revelara ser a má peça; e Aurora tinha-a lixado.
- Aurora, essa eterna defensora do todos-contra-um, tinha, com o auxílio de
Dom Minto, descoberto certas verdades fundamentais e revelara-se estar dentro da razão. A história da minha vida amorosa transformara-se numa parábola amarga, cuja
ironia teria enchido de prazer malévolo Raman Fielding, porque nela a polaridade entre o bem e o mal estava invertida.
Fui alimentado durante esse tempo vazio dos primeiros anos de oitenta por Ezequiel, o nosso cozinheiro sem idade. Como se sentisse que a casa precisava de ser animada,
lançou-se num programa gastronómico que combinava a nostalgia com a invenção, generosamente polvilhada de esperança. Todos os dias antes de partir para o país do
Talco Softo e depois de chegar a casa, eu encontrava-me a gravitar cada vez mais em volta da cozinha, onde ele se agachava com a sua mandíbula grisalha e um grande
sorriso cheio de gengivas, fazendo saltar crepes na sua frigideira.
- Alegria! - gargalhava ele com sabedoria - Baba sahib, sente-se aí, vamos cozinhar um futuro feliz. Vamos esmagar as especiarias, picar o alho, contar o cardamo
e ralar o gengibre, vamos aquecer a manteiga do futuro e fritar todos os dramas para lhes realçar o sabor. Alegria! Sucesso para o Patrão nos seus negócios, talento
para a Patroa e as suas pinturas, e uma linda noiva para si! Vamos cozinhar o passado e o presente, e o futuro logo se verá!
Assim aprendi a cozinhar "Alfanges de Carne" (empadinhas de puré de batata recheadas de picado de borrego muito condimentado) e "Frango do campo à Capitão"; para
mim não tiveram segredos o padda de camarão, o ticklegummy, o dhope e o ding-ding. Também me tornei mestre no balchão e aprendi a fazer bolas de caju com proficiência.
Aprendi com Ezequiel a preparar o "Especial de Cochim", uma compota de banana, vermelha e picante, de fazer crescer água na boca. À medicfa que viajava através daqueles
cadernos de receitas, cada vez mais embrenhado no mundo privado da papaia e da canela e da pimenta, o meu espírito ia ficando realmente mais desanuviado, porque
sentia que Ezequiel conseguia ligar-me, depois de um longo interregno, à história do meu passado. Na sua cozinha sentia-me transportado a um Cochim longínquo, onde
Francisco, o patriarca, sonhara com os
raios Gama e Solomon Castile fugira para o mar e reaparecera nos azulejos da sinagoga. Entre as linhas daqueles cadernos de capa cor de esmeralda eu via Bella às
voltas com os livros de contas da empresa familiar e nos aromas da sua magia culinária sentia o cheiro do armazém em Ernakulam onde uma rapariguinha se apaixonara.
E a profecia de Ezequiel começou a cumprir-se. Com o passado na barriga, as minhas perspectivas de futuro pareciam mais animadoras.
- Boa comida, - riu Ezequiel, sorvendo ruidosamente a própria língua. - Comida para engordar. É tempo de pôr uma barriguinha aí à sua frente. Um homem sem barriga
não tem apetite para a vida.
No dia 23 de Junho de 1980 Sanjai Gandhi, ao tentar executar um looping no céu de Nova Deli, despenhou-se e morreu. No período de instabilidade que se seguiu, também
eu me despenhei em plena catástrofe. Poucos dias depois da morte de Sanjai, soube que Jamshed Cashondeliveri morrera num desastre de automóvel a caminho do Lago
Powai. A passageira ao lado, cuspida do carro, milagrosamente escapada com choque e ferimentos ligeiros era a brilhante jovem escultora Uma Sarasvati, que o morto
se preparava para pedir em casamento, ao que se dizia, naquela estância de desporto conhecida pelas suas belezas naturais. Quarenta e oito horas depois, soube-se
que Miss Sarasvati tinha tido alta do hospital e fora conduzida por pessoas amigas à sua residência. Continuava, bem entendido, a sofrer consideravelmente de choque
e desgosto.
A notícia do desastre de Uma veio reacender todos os sentimentos que eu tentara reprimir durante tanto tempo. Durante dois dias lutei comigo próprio, mas logo que
soube que ela estava de novo em Cuffe Parade, saí de casa dizendo a Lambajan que ia dar uma volta pelos Jardins Suspensos e chamei um taxi logo que me apanhei fora
de vista. Uma veio abrir a porta de collants pretos e
uma camisa japonesa frouxamente atada como um quimono. Parecia em pânico, acossada. Era como se a sua força de gravidade interna estivesse a diminuir; parecia uma
montagem frágil de partículas pronta a desmonorar-se a cada momento.
- Ficaste muito ferida? perguntei.
- Fecha a porta, - respondeu. Quando me voltei para ela, desatara a camisa que caíra no chão. - Verifica por ti mesmo.
A partir daí não houve nada que nos pudesse separar. O que havia entre nós parecia ter crescido em potência durante a nossa separação.
- Ó, meu Deus, - murmurou ela quando eu a acariciei com a minha mão torcida. - Sim, ó sim... Meu Deus, meu Deus... - E, mais tarde:
- Eu bem sabia que não podias ter deixado de gostar de mim. Eu não deixei. E eu bem dizia: Morte aos nossos inimigos. Quem nos quiser separar será destruído.
O marido morrera.
- Se eu sou assim tão má, como se explica que ele me tenha deixado tudo? Depois do ataque que teve, não reconhecia ninguém, julgava que eu era a criada. Por isso
arranjei quem tratasse dele e vim-me embora. Se isso foi mal feito, então é porque sou má.
Absolvi-a facilmente. Não, meu amor, minha vida, não és má.
Não tinha nem um arranhão no corpo.
- Estúpidos dos jornais, - disse ela. - Eu nem ia no raio do carro dele. Levei o meu carro porque tinha outros planos para essa noite. Ele ia no estúpido do Mercedes
(encantou-me a maneira como ela pronunciava mal Mercedes) e eu no meu Suzuki novo. E naquela estrada péssima o pateta do playboy quis fazer uma corrida. Naquela
estrada cheia de camionetas e autocarros, motoristas drogados, carroças de cavalos, camelos e Deu? sabe mais o quê.
Chorava; eu limpei-lhe as lágrimas.
- Que é que eu havia de fazer? Eu ia no meu carro, a guiar normalmente e gritei-lhe: "não, não, vem atrás de mim!" Mas o Jimmy não era bom da cabeça. Que é que queres
que eu te diga? Não olhou para mim, insistiu em ficar na faixa de ultrapassagem, chegou a uma curva, estava lá uma vaca que ele tentou evitar, não pôde entrar na
mão porque estava lá o meu carro, saiu da estrada disparado para o outro lado, onde havia uma árvore enorme. Clasb!
Tentei sentir pena do Jimmy mas não consegui.
- Os jornais diziam que vocês iam casar.
Ela olhou para mim furiosa.
- Tu nunca me entendeste. O Jimmy não era nada. Para mim nunca houve ninguém senão tu.
Encontrávamo-nos sempre que podíamos. Eu guardei segredo dos nossos encontros e pelos vistos Aurora dispensara os serviços de Dom Minto, porque nunca se apercebeu
de nada. Passou um ano; mais de um ano: os quinze meses mais felizes da minha vida. "Morte aos nossos inimigos!" A frase de desafio de Uma passou a ser o nosso lema.
Depois foi a morte de Mynah.
Minha irmã morreu - imaginem! - asfixiada. Tinha ido visitar uma fábrica de produtos químicos a norte da cidade para investigar os maus tratos sofridos pelos trabalhadores,
na sua grande maioria mulheres dos bairros de lata de Dharavi e Parei - quando houve uma pequena explosão muito perto dela. A "integridade" de um bidão selado contendo
produtos químicos perigosos ficou, para usar a linguagem edulcorada do relatório oficial, "comprometida". A consequência lógica desta perda da integridade química
foi a libertação para a atmosfera de uma quantidade substancial de iso-cianeto de metilo. O relatório oficial não justificava o atraso em pedir assistência médica,
embora especificasse que em quarenta e sete pontos diferentes a fábrica tinha desrespeitado as normas oficiais de segurança. A equipa de primeiros socorros local
também foi censurada pela demora em chegar ao sítio onde estava Mynah e as companheiras. Apesar de ter recebido na ambulância uma injecção de tiosulfato de sódio,
Mynah morreu antes de chegar ao hospital. Foi uma agonia de olhos exorbitados, com vómitos e ânsias de falta de ar, enquanto o veneno lhe devorava os pulmões. Duas
das suas colegas da Liga morreram também; outras três sobreviveram com deficiências graves. Não foi paga nenhuma indemnização. A investigação concluiu que o incidente
tinha sido um ataque deliberado à Organização de Mynah por "agentes exteriores indeter-
minados" e por isso a fábrica não podia ser considerada responsável. Alguns meses atrás Mynah conseguira finalmente mandar Kéké Kolatkar para a cadeia por fraudes
no ramo imobiliário, mas nunca pode ser estabelecida uma ligação entre o político e o atentado. E Abraham, como já foi dito, tinha-se safo com uma multa... Olhem
lá, a Mynah era filha dele. Filha dele. Tá bem?
Tá bem.
- Morte aos nossos...
Uma calou-se a meio da frase ao ver a minha cara, quando fui ter com ela após o funeral de Philomina Zogoiby.
- Pára com isso - disse eu, chorando. - Nunca mais digas isso. Por favor.
Deitei-me na cama com a cabeça no colo dela. Ela afagava-me o cabelo branco.
- Tens razão, - disse ela. - E tempo de acabar com isto. A tua mãe e o teu pai têm de nos aceitar, têm de reconhecer o nosso amor. Depois podemos casar e pronto.
Felizes para sempre e mais uma artista na tua família.
- Ela não vai... - mas Uma fechou-me a boca com um dedo.
- Não tem outro remédio.
Quando estava com aquela disposição, Uma era uma força irresistível. O nosso amor era um imperativo categórico, insistia ela; exigia existir e tinha esse direito.
- Quando eu explicar isso aos teus pais, eles hão-de compreender. Suspeitam da minha boa fé? Muito bem. Em nome do nosso amor vou falar com eles - esta noite! -
e mostrar-lhes que não têm razão.
Protestei - fracamente. Era cedo demais. Não tinham no coração lugar senão para Mynah, objectei, não há lugar para nós. Ela resistiu a todos os meus argumentos.
Não há Coração que não tenha lugar para acolher uma declaração de amor, disse ela; tal como não há vergonha que o verdadeiro amor não apague - e agora que o senhor
Sarasvati tinha deixado de existir, que mácula haveria sobre o nosso amor, a não ser que ela já tinha sido casada e portanto não era virgem? As objecções dos meus
pais não eram razoáveis. Como podiam eles atravessar-se no caminho da felici-
dade do seu filho único? Um filho que tinha de suportar um fardo tão monstruoso desde o dia em que nasceu?
- Vai ser esta noite, - insistiu ela sombriamente. - Tu ficas aqui à espera. Eu vou convencê-los.
Pôs-se em pé de um salto e começou a vestir-se. Antes de sair prendeu o seu walkman no cinto e ajustou os auscultadores.
- Hai-ho! Hai-ho! A trabalhar eu vou! - disse ela com um sorriso, metendo uma cassette no aparelho. Eu fiquei aterrado.
- Felicidades - gritei eu.
- Não ouvi nada - disse ela, fechando a porta.
Depois de ela sair, fiquei a pensar vagamente porque é que ela teria levado o walkman quando tinha no carro uma óptima aparelhagem sonora. Avariou-se, provavelmente,
pensei. Neste país de merda nada trabalha bem durante muito tempo.
Uma voltou, já passava da meia-noite, cheia de amor.
- Acho que está tudo arranjado, - murmurou ela.
Eu estivera deitado à espera dela; a tensão transformara o meu corpo em nós de aço.
- Tens a certeza? - perguntei eu, não muito tranquilo.
- Eles não são más pessoas, - disse ela baixinho, enfiando-se na cama ao meu lado. - Ouviram tudo o que eu lhes disse e tenho a certeza que perceberam o meu ponto
de vista.
Naquele momento senti a vida surgir em mim como nunca, senti que o novelo emaranhado da minha mão direita se endireitava, se arrumava, formando uma palma da mão,
falanges, dedos e polegar separados. No auge da exaltação, penso que me pus a dançar. É verdade, dancei mesmo: gritei, bebi, forniquei selvaticamente cheio de alegria.
Na verdade, ela era miraculosa e tinha conseguido o impossível. Adormecemos enrolados um no outro. Quase a dormir, murmurei vagamente:
- Que é feito do walkman?
- Ah, essa porcaria, - disse ela. - Sempre a estragar-me as gravações. Parei pelo caminho e atirei-o para um caixote do lixo.
Quando cheguei a casa da manhã seguinte, Abraham e Aurora estavam à minha espera no jardim, de pé, lado a lado, de cara fechada.
- Que foi? - perguntei.
- Deste momento em diante - disse Aurora Zogoiby - já não és nosso filho. Já tomámos todas as providências para te deserdar. Tens vinte e quatro horas para reunir
as tuas coisas e sair. O teu pai e eu não queremos voltar a pôr-te a vista em cima.
- Estou completamente de acordo com a tua mãe, - disse Abraham Zogoiby. - És nojento. Agora sai daqui para fora.
(Houve palavras mais duras; e gritos, muitos deles, meus. Não os quero pôr aqui por escrito.)
- Jaya? Ezequiel? Lambajan? Alguém me quer explicar o que se passa?
Ninguém respondeu. A porta de Aurora estava fechada à chave. Abraham saíra de casa e as secretárias tinham recebido ordem de não fazerem seguir as minhas chamadas.
Finalmente Miss Jaya Hé permitiu-se pronunciar algumas palavras:
- É melhor fazer as malas.
Nada me foi explicado - nem a minha expulsão nem a forma brutal como ela tivera lugar. Um castigo tão extremo para um "crime" tão leve! O "crime" de me apaixonar
delirantemente por uma mulher que a minha mãe não aprovava! Ser cortado da árvore familiar, como um ramo seco, por um motivo tão trivial - não, tão maravilhoso!
- não bastava. Não fazia sentido. Conhecia pessoas - a maior parte - que viviam assim, neste país de poder paternal absoluto; no mundo melodramático do cinema, estas
cenas de nunca-voltes-a-pisar-a-soleira-desta-porta eram de três-
-ao-vintém. Mas nós éramos diferentes; e aquele país de ferozes hierarquias e certezas morais antiquadas nunca tinha sido o meu, nem aquele tipo de material tinha
qualquer lugar na história das nossas vidas! - mas, pelos vistos, estava enganado, porque não houve mais discussão; telefonei a Uma para lhe dar a notícia e, não
tendo outra opção, encarei o meu destino.
Abriram-se as portas do paraíso e Lambajan desviou o olhar. Passei o portão, sentindo-me tonto, desorientado, perdido. Eu não era ninguém, não era nada. Nada do
que eu sabia me servia para alguma coisa, nem podia dizer que sabia fosse o que fosse. Tinha sido esvaziado, cancelado; estava, para usar um epíteto antiquado mas
que subitamente se me adequava, desonrado. Caíra em desgraça e esse horror fazia estilhaçar-se o universo, como se fosse um espelho. Eu próprio me sentia como que
estilhaçado, como se estivesse a cair muito alto, feito em mil e uma imagens fragmentadas de mim próprio, repartido em mil lascas de espelho.
Depois da queda, cheguei a casa de Uma Sarasvati com uma mala na mão. Quando veio abrir a porta, tinha os olhos vermelhos, o cabelo em desalinho, os modos de uma
louca. O melodrama à velha maneira indiana explodia por toda a sofisticada fachada do nosso modo de vida, como a verdade explodindo através dum fino verniz de doces
mentiras. Uma estoirou em gritos e desculpas. A sua força de gravidade interna enfraquecera tragicamente: estava realmente a desconjuntar-se.
- Ó meu deus, se eu tivesse imaginado... mas como puderam eles, parece uma coisa da pré-história, dos tempos antigos - pensei que eram tão civilizados - pensei que
nós os tontos religiosos é que reagíamos assim, não vocês, laicos... Ó meu deus, vou falar com eles outra vez, vou imediatamente, vou jurar que nunca mais te torno
a ver...
- Não vás - disse eu, ainda entorpecido pelo choque - Por favor não vás. Não faças mais nada.
- Então vou fazer a única coisa que me não podes proibir, - gritou ela desvairada. - Vou-me matar. Já, esta noite. Mato-me pelo meu amor por ti, para te libertar.
E então eles têm de te receber.
Devia ter estado a empreender naquilo desde o meu telefonema, parecia uma personagem de ópera, desmesurada.
- Estás doida, Uma, - disse eu.
- Eu não estou doida! - gritou ela como louca. - Não me chames doida. Toda a tua família me considera doida. Eu não sou doida. Estou apaixonada. Uma mulher é capaz
de fazer tudo por amor. Um homem apaixonado faria o mesmo, mas eu já não te peço tanto. Não espero grande coisa de ti, nem de homem nenhum. Não estou doida, a não
ser que esteja doida por ti. Chama-me doida de amor. E - por amor de Deus! - fecha o raio da porta.
Febril, com os olhos injectados de sangue, ela começou a rezar. No pequeno oratório dedicado ao Deus Ram que havia num canto da sala, acendeu uma lamparina que começou
a mover pelo ar em círculos tensos. Eu deixei-me ali ficar, de pé em plena escuridão, com a mala aos pés. Para ela isto é a sério, pensei eu. E nada disto é uma
invenção. Está mesmo a acontecer. É a minha vida, a nossa vida, e esta a forma que ela tomou. A sua verdadeira forma, a forma por trás de todas as formas, a que
se revela só no momento da verdade. Naquele momento fui assaltado por um desespero absoluto que me esmagava sob o seu peso. Percebi que já não tinha vida própria.
Tinha-me sido retirada. A ilusão do futuro, que o cozinheiro Ezequiel reconstruíra para mim na cozinha, revelava-se Uma quimera. Que é que eu havia de fazer? O futuro
para mim seria a sarjeta ou um momento final, supremo, de dignidade? Teria eu coragem de morrer por amor, tornando assim imortal a nossa paixão? Seria capaz de o
fazer por Uma? Seria capaz de o fazer por mim próprio?
- Mato-me contigo - disse eu em voz alta. Ela pousou a lamparina e voltou-se para mim.
- Eu bem sabia - disse ela. - O deus disse-mo. Disse-me que eras um homem corajoso, que me amavas e claro que me ias
acompanhar na minha viagem. Não serias tão cobarde que me deixasses ir sozinha.
Ela sempre soubera que a sua ligação à vida não era sólida, que viria o momento em que estaria pronta a desistir. Por isso desde a infância, como um guerreiro que
parte para a guerra, ela trazia sempre consigo a sua morte. Em caso de captura. Antes a morte que a desonra. Foi ao quarto e voltou com ambos os punhos fechados.
Em cada punho trazia uma pastilha branca.
- Não perguntes nada, - disse ela - Em casa dos polícias há sempre coisas secretas.
Pediu-me para ajoelhar ao lado dela em frente da imagem do deus.
- Bem sei que não acreditas. Mas por amor de mim, não hás-de recusar.
Ajoelhámos.
- Para provar como sempre te amei, - disse ela - para te provar finalmente que nunca menti, vou ser a primeira a engolir. Se me és fiel, segue-me logo, logo, porque
eu estarei à espera, ó meu único amor.
Naquele momento qualquer coisa mudou em mim. Houve uma recusa.
- Não! - gritei eu e tentei arrancar-lhe a pastilha, que caiu no chão. Com um grito, ela precipitou-se para a apanhar, no momento em que eu fazia o mesmo. As nossas
cabeças chocaram.
- Au! - dissemos os dois. - Ai-ai...
Quando dei por mim vi ambas as pastilhas no chão. Com um gesto brusco apanhei-as; mas, tonto e de cabeça dorida, só consegui segurar uma. Uma agarrou na outra e
pôs-se a olhá-la com um brilho diferente nos olhos, presa de um novo horror, um horror doce, como se tivesse sido posta perante uma hipótese terrível, que ela não
sabia como enfrentar.
Eu disse:
- Não faças isso, Uma. Não se faz. É uma loucura.
A palavra feriu-a de novo.
- Não digas essa palavra. - guinchou ela - Se queres viver, vive. Mas será a prova de que nunca me amaste. A prova de que tu é que és o mentiroso, o charlatão, o
palhaço, o manipulador, o conspirador, o falso! Eu não: tu! Tu és o traidor, o malvado, o diabo. Eu, não: Olha para isto!
E engoliu a pastilha.
Por um momento, uma expressão de enorme e genuína surpresa atravessou-lhe a cara, imediatamente seguida por um ar de resignação. Depois caiu no chão. Ajoelhei-me
a seu lado transido de terror e o cheiro a amêndoas amargas encheu-me as narinas. Durante a breve agonia, a cara dela pareceu atravessar mil mudanças, como o rápido
folhear das páginas de um livro, como se ela estivesse a desfazer-se, uma a uma, das suas inúmeras identidades. Finalmente, uma página em branco, e já não era ninguém.
Não, eu não ia morrer, já tinha decidido. Meti a pastilha que restava na algibeira das calças. Quem quer que ela fosse, o que quer que ela tivesse sido, boa ou má,
ou nem uma coisa nem outra, ou ambas as coisas, eu amara-a, sem qualquer dúvida. Morrer agora não imortalizaria aquele amor, mas aniquilá-lo-ia. Eu ia viver para
ser o porta-estandarte da nossa paixão; demonstraria, com a minha vida, que o amor era mais forte que o sangue, que a vergonha - mais, até, que a morte. Eu não vou
morrer por ti, minha Uma, vou viver por ti, por mais dura que seja essa vida.
A campainha da porta tocou. Deixei-me ficar sentado no escuro, com o corpo sem vida de Uma. Alguém dava murros na porta. Continuei sem responder. Uma voz gritou,
alto:
- Abram! Polícia!
Levantei-me e fui abrir a porta. O patamar Estava coalhado de uniformes azuis, todos de calções, pernas magras e escuras com joelhos nodosos e mãos empunhando cassetetes.
Um inspector de boné apontava uma arma à minha cabeça.
- Chama-se Zogoiby, não é? - gritou ele o mais alto que podia.
Disse que sim.
III
Bombaim, zona central
16
Dei por mim algemado numa rua de que nunca ouvira
falar, diante de um edifício que nunca vira, uma construção tão gigantesca que todo o meu campo de visão estava ocupado com uma parede lisa na qual, um pouco para
a minha direita, avistei uma minúscula porta de ferro - ou melhor, uma porta que parecia minúscula, ínfima, um buraco de rato só por estar inserida naquela medonha
imensidade de pedra cinzenta. Fui empurrado pelo bastão do agente que me tinha prendido e afastei-me obedientemente do carro sem janelas em que tinha sido transportado
desde o macabro local onde morrera a minha amada. Atravessei aquele enorme espaço vazio e silencioso num estado de grande perplexidade porque em Bombaim as ruas
nunca estão silenciosas e nunca, mas nunca, vazias: ali não há "pela calada da noite" ou, pelo menos, era o que eu pensava. À medida que me aproximava da porta,
vi que ela era na verdade enorme e que me dominava como a entrada duma catedral. Que gigantesca seria então aquela parede! Vista agora de perto ela ocupava todo
o nosso campo de visão e escondia a lua. Senti o meu coração ir áb fundo. Descobri que não me lembrava do que se tinha passado naquele dia. Amarrado e às escuras
eu tinha evidentemente perdido todo o sentido da direcção que seguia ou da passagem do tempo. Que lugar era este? Quem eram estas pessoas? Seriam eles verdadeiros
polícias; ou teria eu acidentalmente caído de uma página do livro da vida para outra? No meu estado de completa desorientação teria o dedo
que seguia a leitura escorregado duma frase da minha história para este outro texto, incompreensível, que, por acaso, estava na linha abaixo? Se calhar, tinha sido
isso que acontecera.
- Não sou criminoso! - gritei a plenos pulmões. - Nem pertenço a este submundo. Há aqui um grande engano!
- Não te agarres a esta falsa esperança, malandro. - respondeu o Inspector. - Aqui se transformaram em sombras muitos figurões do mundo do crime. Engano? É preciso
teres lata, palerma. Não há engano nenhum! Entra! Lá dentro vais ver como é.
A grande porta abriu-se, com muitos estalos e rangidos. O ar, subitamente, encheu-se de gritos e gemidos infernais. O Inspector Singh deu-me, sem cerimónias, um
empurrão:
- Esquerdo-direito, um-dois, esquerdo... esquerdo! Mexe-te, Belzeboohy. Vais entrar no Para-além-da-vida!
Fui levado por escuros corredores cheirando a excrementos e a tortura, a tristezas e violações, conduzido por homens brandindo chicotes, homens com cabeças de animais
e línguas transformadas em cobras. O Inspector tinha desaparecido ou então também se metamorfoseara num daqueles monstros híbridos. Tentei perguntar por ele mas
o poder de comunicação dos monstros não ia além da acção física. Pancadas, empurrões e até o toque ardente da ponta do chicote num tornozelo: era esta a soma de
tudo o que tinham a dizer. Calei-me e avancei para as profundezas da prisão.
Passado muito tempo o meu caminho foi bloqueado por um homem com - estreitei os olhos para ver melhor - uma cabeça de elefante barbudo que tinha na mão um crescente
de ferro cheio de chaves. Ratazanas passeavam-se respeitosamente junto aos seus pés.
- Trazemos para este lugar homens sem deus como tu. Aqui irás pagar pelos teus pecados. Vamos-te humilhar de maneira em que tu nunca pensaste, nem em pesadelos.
Ordenaram-me que me despisse. Nu, a tremer na noite quente, fui atirado para uma cela. Uma porta - a vida toda, toda uma forma de entender a vida - fechou-se atrás
de mim. Fiquei no escuro, perdido.
Clausura solitária. O calor aumentava o cheiro a lixo. Mosquitos, palha, charcos de líquido e, por toda a parte, no escuro, bara-
tas. Os meus pés descalços esmagavam-nas quando andava. Se parava, subiam-me pelas pernas. Curvando-me, em pânico, para as enxotar, senti os cabelos roçarem as paredes
da minha negra gaiola. As baratas passaram para a cabeça e daí desceram-me pelas costas. Senti-as passar ao estômago, descer ao púbis. Comecei aos saltos como uma
marioneta, dando grandes palmadas em mim próprio e soltando gritos de terror. Uma coisa nova - um aviltamento - tinha começado.
De manhã, a luz infiltrou-se até à cela e as baratas retiraram-se à espera do regresso das trevas. Não tinha dormido nada: a minha batalha contra aquelas repugnantes
criaturas tinha consumido toda a minha energia. Deixei-me cair no monte de palha que me servia de cama; as ratazanas entraram para os buracos da parede. Abriu-se
um postigo na porta da cela:
- Daqui a pouco, hás-de andar a caçar baratas para matares a fome - riu-se o carcereiro. - Mesmo os presos vegetarianos acabam nisso; e tu, não me pareces nada que
sejas vegetariano.
A ilusão da cabeça de elefante, vi-o agora, vinha dum capuz com abas dos lados (as orelhas) e de um cachimbo (a tromba). O tipo não era o Ganesha da mitologia, mas
um bonito sádico e grosseiro.
- Que lugar é este? - perguntei. - Nunca o vi na minha vida.
- Vocês, os gajos finos - disse ele, cuspindo com desespero um longo jacto de espuma vermelha - vivem na cidade e não sabem nada dos seus segredos, do seu coração.
Para vocês ele é invisível mas agora és obrigado a vê-lo. Estás na prisão da Zona Central de Bombaim. É o estômago da cidade, as suas tripas. E é por isso que tem
tanta merda.
- Mas eu conheço o centro de Bombaim, - protestei. - As estações de comboio, os bazares. E nunca lá vi um lugar como este.
- Uma cidade não se mostra a qualquer sacana, meu filho da mãe, - gritou a besta antes de bater com o postigo. - Estavas cego. Mas agora espera que já vais ver.
O balde da merda, o balde das sopas, o rápido declive para a extrema degradação: poupo-lhes os pormenores. Os meus antepassados Aires e Camões da Gama, e a minha
mãe também, tinham estado presos nas cadeias dos Ingleses; mas esta prisão
post-Independência, "made in índia", excedia a pior das imaginações. Não era só uma cadeia, era um centro de educação. Fome, exaustão, crueldade são bons professores.
Aprendi rapidamente as suas lições - a minha culpa, a minha insignificância, o abandono por parte daqueles a quem poderia chamar a minha gente. Não merecia mais
do que estava a receber. Encolhia-me junto à parede com a testa nos joelhos e os braços à roda das canelas, deixava as baratinhas andar à vontade.
- Isto não é nada - dizia o carcereiro. - Espera até virem as doenças.
E era bem verdade. Em breve chegou o tracoma, a infecção do ouvido interno, o escorbuto, a desinteria, as infecções do aparelho urinário. Malária, a cólera, tuberculose,
tifo. E ouvia falar de uma nova peste, uma coisa ainda sem nome. As putas morriam disso
- transformando-se em esqueletos vivos, segundo se dizia - e os chulos de Kamathipura não deixavam que se falasse disso. Não que eu tivesse muitas hipóteses de me
pôr numa puta.
Enquanto as baratas passeavam pelo meu corpo e os mosquitos me sugavam o sangue, sentia que a pele se separava do corpo, como dantes sonhara que acabaria por acontecer.
Mas nesta versão do sonho a pele levava com ela todos os elementos da minha personalidade. Transformei-me em ninguém, em coisa nenhuma: ou melhor, passei a ser aquilo
que faziam de mim. Era aquilo que o carcereiro via, o que o meu nariz cheirava no meu corpo, aquilo de que as ratazanas se aproximavam com crescente à vontade. Um
pedaço de merda.
Tentei agarrar-me ao passado. Naquele terrível turbilhão, procurava os culpados; culpava sobretudo a minha mãe, a quem o meu pai não sabia dizer não.
"Que espécie de mãe seria capaz de aproveitar uma tão frágil provocação para destruir o filho, o seu filho único?
"Um monstro!" "Estamos na era dos monstros, Kaling(*) quando Kali, a vesga, a fúria louca, de dentes sanguinolentos, passa
(*) Na mitologia hindu, a quarta idade do mundo, caracterizada pela decadência total (N. T.)
por nós semeando a morte. Lembra-te, Beowulf,(::) que a mãe de Grendel era mais cruel e mais temível que o filho! Ah Aurora como te foi fácil transformares-te em
infanticida! Com que fria determinação sufocaste o último sopro daquele que era a tua carne e o teu sangue, para o expulsares do seio do teu amor para as profundezas
sem ar, para aí sufocar e ter uma morte horrível com os olhos revoltos e a língua enrolada na boca! Antes queria que me tivesses destruído em bebé, antes que me
transformasse naquele jovem-velho da marreta na mão. Tiveste estômago para me bateres, dares pontapés, destruir-me! Vê como sob os teus golpes a pele escura da criança
adquire o irisado característico dos hematomas! Ouve como ele grita! A própria lua escurece com tais gritos! Mas tu és incansável, implacável. E quando o filho está
esfolado, quando não passa de uma massa sem fronteiras, um ser sem paredes, então as tuas mãos agarram-lhe o pescoço e apertam, estrangulam; o ar sai do corpo dele
através de todos os orifícios disponíveis, ele está a peidar a sua própria vida, tal como a sua mãe lha soprou. E quando já só lhe resta uma última bolha de ar,
de esperança...
- Oh! - gritou o carcereiro, sacundindo-me da minha auto-piedosa divagação e tendo-me ouvido falar em voz alta.
- Guarda as tuas orelhas para ti, homem-elefante!
- Chama-me o que quiseres - disse ele calmamente. - O teu destino já está escrito.
Encolhi-me de novo no chão, enterrei a cabeça nas mãos.
- Fizeste o teu discurso de acusação, - continuou o carcereiro. - Terrível discurso, muito forte, mas a defesa? Uma mãe tem direito à defesa, não tem? Quem vai falar
por ela?
- Isto não é um tribunal, - respondi, naquele vazio desagradável em que ficamos depois de dar largas à fúria. - Se ela tem outra versão, que a diga quando quiser.
- Pronto, pronto, - disse o carcereiro, numa expressão de troça. - Continua com o teu trabalho. Para mim, o que me interessa é divertir-me com o que dizes.
(*) Poema épico, jóia da literatura do inglês arcaico (700-750 A.D.). Beowulf é um príncipe escandinavo que mata o monstro Grendel e a sua poderosa mãe. (N. T.)
E eu pensei no amor louco, nos amours com que atravessaram as gerações dos Gamas-Zogoibys. Recordei Camões e Bella, e Aurora e Abraham, e a pobre Ina fugindo com
o seu galante Cas-hondeliveri. Incluí na lista Minnie-Inamorata-Flora e o seu êxtase em Jesus Cristo. E pensei sobretudo - sem parar, como uma criança coçando uma
ferida - em Uma e em mim próprio. Tentei agarrar-me ao nosso amor, a essa verdade, embora ouvisse, dentro de mim, vozes que me escarneciam a propósito do erro descomunal
que fizera a seu respeito. Deixa-a partir, aconselhavam-me essas vozes. Ao menos agora, depois de tudo o que se passou, esquece o que perdeste. Mas eu queria acreditar
naquilo em que os amantes acreditam: que a coisa em si é melhor do que qualquer alternativa, mesmo que não correspondida ou derrotada, ou tresloucada. Queria agarrar-me
à imagem do amor como fusão dos espíritos, mistura, triunfo do impuro, da mestiçagem, daquilo que une o que há de melhor em nós, ignorando o solitário, o isolado,
o austero, o dogmático, o puro; o amor como democracia, como vitória da ideia de que nenhum-homem-é-uma-ilha, vitória do Casal sobre o Indivíduo puro, mesquinho,
isolacionista. Procurava ver o não-amor como arrogância - quem senão os sem-amor podem julgar-se completos, lúcidos, sábios? Amor é perder omnipotência e omnisciência.
Caímos na ignorância quando caímos no amor; a paixão é uma espécie de queda. Fechamos os olhos e saltamos do rochedo na esperança de cairmos em terreno macio. Não
que seja sempre macio; mas mesmo assim, disse para mim próprio, sem esse salto ninguém entra na vida. O próprio nascimento, mesmo se acaba em morte, numa procura
confusa de comprimidos e no cheiro a amêndoas amargas na boca da amada.
- Não - dizem as minhas vozes. - O Amor tal como a tua mãe, deixou-te mal.
A minha respiração tornava-se difícil; a asma arranhava-me os pulmões. Dormia muito pouco. Quando conseguia passar pelo sono, sonhava estranhamente com o mar. Nunca
até então eu tinha dormido num sítio onde não ouvisse o ruído das ondas, da colisão das esferas da água e do ar, e os meus sonhos reclamavam o som das ondas a desfazerem-se.
Às vezes, nesses sonhos, o mar
estava seco ou era feito de ouro. Às vezes era um oceano de tela, cosida à terra ao longo da praia. Às vezes a terra era uma página rasgada e o mar um vislumbre
da página que estava por baixo. Estes sonhos mostravam-me aquilo que eu não gostava de ver: que eu era bem o filho da minha mãe.
E um dia acordei de um desses sonhos, no qual, tentando fugir de perseguidores desconhecidos, cheguei a uma escura ribeira subterrânea e ali encontrei uma mulher
embuçada que me ordenou que nadasse para além dos limites do meu fôlego, porque só então poderia alcançar a única costa onde estaria para sempre a salvo, a Praia
da Fantasia; obedeci-lhe prontamente, nadei com todas as forças até os pulmões me falharem; quando eles cederam, o Oceano invadiu-me e eu acordei numa grande aflição.
Diante de mim estava a figura impossível de um homem de uma só perna com um papagaio no ombro e um mapa-do-tesouro na mão.
- Venha, baba, - disse Lambajan Chandiwala. - Chegou a altura de ir em busca da fortuna, qualquer que ela possa ser.
Não era um mapa-do-tesouro, mas era um tesouro em si próprio, a saber: um documento autorizando a minha imediata libertação. Não era um passaporte para um caçador
de fortunas, mas um inesperado golpe de sorte. Apareceu água limpa e roupa limpa. Ouviu-se o rodar das chaves nas fechaduras e a delirante inveja dos outros presos.
O carcereiro, dono elefantino daquela casa de ratazanas, aquele motel superlotado de baratas, não apareceu; lacaios curvados e deferentes provieram às minhas necessidades.
A caminho da saída nenhum demónio com cabeça de animal me espetou as suas forquilhas ou ululou com a sua língua de cobra. Abriu-se a porta, uma porta de tamanho
normal; a parede onde ela estava era uma parede como as outras. Nenhuma máquina mágica nos esperava no exterior - não, nem mesmo o nosso velho Hanuman com o seu
grande Buick - mas sim um táxi normal, preto e amarelo, tendo pintadas pequenas letras brancas em fundo preto que diziam: Hipo-
tecado ao Banco Internacional Khazana. Começámos a percorrer ruas familiares onde se podiam ver os conhecidos recados dos sapatos Metro, das calcinhas sanitárias
stayfree; em tapumes e em letras de néon os cigarros Rottman e Charminar, os sabonetes Brisa e Rexina, cera Time e papel higiénico Hope e palitos Life e tinta para
o cabelo Love - Todos me davam as boas vindas nesse regresso a casa. Porque não tinha a menor dúvida de que ia a caminho de Mala-bar Hill e se havia uma pequena
sobra no meu radioso horizonte é porque me sentia obrigado a ensaiar os velhos argumentos sobre arrependimento e perdão. Quem deveria perdoar a quem? Deveria eu
oferecer-lhes o meu arrependimento como presente de regresso a casa? Mas o Filho Pródigo recebeu o bezerro mais gordo - foi amado - sem ter sequer de pedir desculpa.
E as amargas pílulas do arrependimento não me passavam na garganta; como todos os da minha espécie, havia demasiada teimosia no meu sangue. Mas que raio! - estranhava
eu - de que é que tenho que me arrepender? Estava neste ponto das minhas cogitações quando percebi que estávamos a seguir para norte, não para os braços dos meus
pais, mas, pelo contrário, a afastar-me deles. Não estava a regressar ao Paraíso mas sim a descer mais um degrau da minha queda.
Entrei em pânico e comecei a balbuciar: Lamba, Lamba, explica a este tipo. Mas Lambajan procurava acalmar-me:
- Vai ter que descansar durante algum tempo, baba. Esta experiência deu-lhe cabo dos nervos, é natural.
Mas para contrabalançar Lambajan lá estava o desprezo do papagaio que o exprimia aos guinchos junto ao vidro de trás. Deixei-me escorregar pelo assento e fechei
os olhos. O Inspector examinava o corpo de Uma e eu também ia sendo examinado. Da minha algibeira emergia um rectângulo pequeníssimo branco.
- O que é? - perguntou o inspector, aproximando-se (era quase uma cabeça mais abaixo do que eu) encostando o bigode ao meu queixo. - Pastilhas de hortelã pimenta?
Comecei imediatamente a choramingar frases desamparadas sobre pactos de suicídio.
- Cale a boca! - ordenou o Inspector partindo a pastilha ao meio. - Chupe e já veremos!
Aquilo acalmou-me. Quase não me atrevia a entreabrir os lábios; o inspector avançava com a meia-pastilha em direcção à minha boca. Mas isso mata-me, caro senhor,
ficarei prostrado e arrefecerei ao lado do corpo da minha amada.
- Nesse caso, teremos encontrado duas pessoas mortas, - disse o Inspector, como se referisse uma evidência. - Triste história de amor que acaba tragicamente.
Leitor: não acedi ao seu pedido. Agarraram-me pelos braços, pelas pernas, pelo cabelo. Num instante estava deitado no chão não longe de Uma, cujo cadáver estava
a ser esbofeteado por uma multidão bem intencionada de homenzinhos com calções de caqui. Já tinha ouvido falar de pessoas mortas no que se descrevia eufe-misticamente
como "recontros com a polícia". A mão do Inspector apertou com força o nariz. A falta de ar obrigou-me a abrir a boca e - pop! - lá engoli a pastilha fatal.
Mas - como já terão adivinhado - não morri. A pastilha não era amarga como a amêndoa mas doce como o açúcar. Ouvi o Inspector dizer:
- O sacana deu à tipa uma dose fatal enquanto dava a si próprio o presente de um rebuçado, de uma guloseima. Temos então um assassinato. É um caso arrumado!
E o inspector metamorfoseou-se em Hurree Jamset Ram Singh, o Nababo Moreno de Bhanipur e os homens de calções numa turba de meninos de escola, os azes da Retirada.
Retiraram-me em braços até ao elevador. Entretanto a potente pastilha fazia o seu efeito - a grande velocidade, dado o meu metabolismo acelerado
- e tudo começou a alterar-se.
- Oh-oi, rapazes! - gritei já convulsionado nas garras do alucinogénio. - Oi! Deixem-me! Vão-se embora!
Correndo atrás de um Coelho Branco, passando pelos cavalos de baloiço do "País das Maravilhas" uma menina tinha de fazer a sua escolha entre "come-me" e "bebe-me";
perguntem à Alice, diz a cantiga. Mas a minha Alice, a minha Uma, já tinha feito a sua escolha, que não era uma simples questão de tamanho: estava morta e não podia
responder. Não me façam perguntas e eu não lhes direi mentiras. Escrevam isso no seu túmulo. Que devia eu
fazer daquelas duas pastilhas, a da morte e a do sonho? A minha amada teria tido a intenção de morrer e de me deixar sobreviver depois de um período de alucinações?
Onde assistir à minha morte através de uma visão alterada pela droga? Seria ela uma heroína trágica, ou uma assassina? Ou, de uma maneira irreal, as duas ao mesmo
tempo? Havia em Uma Sarasvati um mistério que levou consigo para a tumba.
Naquele taxi hipotecado, pensei que nunca a conhecera nem haveria de conhecer. Ela estava morta e eu lá ia andando, nascia de novo para uma outra vida. Ela merecia
a minha recordação, o benefício da dúvida e todos os generosos sentimentos de que eu ainda podia dispor. Abri os olhos. Bandra. Estávamos em Bandra.
- Quem conseguiu isto? - perguntei a Lambajan. - Quem fez este truque de magia?
- Chiu, baba - murmurou ele. - Já vai ver.
Raman Fielding estava no parque da sua casa de Lalgalum com um chapéu de palha, óculos escuros e calças brancas. Transpirava imenso e trazia um pesado bastão.
- Bom trabalho - disse ele no seu coaxar gutural. - Borkar fez um bom trabalho.
Quem seria Borkar? Quando vi Lambajan cumprimentar Raman, é que me lembrei do nome do marujo, há muito esquecido. Então Lamba era um quadro clandestino dos S.A.
Tinha-me dito que era religioso e lembrei-me vagamente que ele vinha duma aldeia qualquer do Maharashtra mas era embaraçosamente óbvio que eu não sabia nada de importante
a seu respeito nem nunca procurara saber. Mainduck veio até nós e deu uma palmadinha no ombro de Lambajan.
- Um verdadeiro guerreiro Maharatta, - disse ele, soprando-me na cara fumos de betei. - Bela Mumbai, Marathi Mumbai, não é, Borkar?
Lambajan pôs-se em sentido com a sua muleta, para responder:
- É sim, meu comandante, sir.
Fielding estava divertido com o espanto que via na minha face.
- Sabes de quem é esta cidade? - perguntou. - Em Mala-bar Hill vocês bebem uísque-e-soda e falam de democracia. Mas
a nossa gente vigia os vossos portões. Vocês pensam que os conhecem, mas eles têm as suas vidas e não lhes contam nada. Quem é que se rala com vocês, homens sem
deus? Como se diz em Mara-thi: "Quando o pau seco arde, tudo pega fogo". Um dia esta cidade - a minha bela Mumbai e não esta suja Bombaim - infla-mar-se-á com as
nossas ideias. E então Malabar Hill vai arder toda e Ram Rajya vai chegar.
Virou-se para Lambajan: - A teu pedido, já fiz muito por ele. A acusação de assassinato foi retirada e estabelecido o veredicto de suicídio. No que toca à droga,
as autoridades querem apanhar os big bosses e nãó a passarada miúda. E agora dá-me uma boa razão para eu ter feito isto.
- Sim, meu comandante, sir - E o velho Chowkidar voltou-se para mim - Bata-me! - pediu ele.
Fiquei tolhido de espanto: - Como?
Fielding bateu as palmas, impaciente: - És surdo ou quê?
A expressão de Lambajan era quase suplicante. Percebi então que ele tinha arriscado tudo para me salvar da prisão, ficando muito vulnerável; que tinha jogado tudo
para convencer Mainduck a mover montanhas em meu favor. Parecia agora que eu devia retribuir e salvá-lo a ele, fazendo o que ele me pedisse.
- Como nos velhos tempos, baba, - murmurou. - Bata-me aqui. Aqui. - E indicava a ponta do queixo.
Enchi o peito de ar e concordei: - Ok.
- Peço permissão, sir, para pôr o papagaio de lado, sir.
Fielding fez um gesto impaciente e deixou-se cair, como um
pedaço de massa, numa cadeira de verga (que rangeu ameaçadoramente) junto a um pequeno lago. Estátuas de Shiva pareciam juntar-se para assistir à demonstração.
- Cuidado com a língua - disse eu e dispârei o soco. Ele caiu pesadamente, ficou aos meus pés, inconsciente.
- Muito bem, - grasnou Mainduck, impressionado. - Ele disse que esse teu punho aleijado era um martelo que valia a pena ter ao nosso serviço. O que é que achas?
Parece que é verdade?
Lambajan levantou-se lentamente, esfregando o queixo.
- Não se preocupe, baba - foram as suas primeiras palavras.
Subitamente, Mainduck lançou-se numa das suas famosas tiradas:
- Sabes porque é que foi Ok quando lhe bateste? - gritou ele. - É porque eu disse que era. E porquê? Porque eu sou dono do seu corpo e da sua alma. E como é que
o comprei? Porque me ocupei da família. Nem sonhas quantos parentes ele tem lá na aldeia. Mas eu arranjo educação para os miúdos e resolvo os problemas de saúde
e de higiene de há muitos anos para cá. Abraham Zogoiby, o velho Tata, C. P. Bhabha, Crocodile Nandy, Kéké Kolatkar, Birlas, Sassons e a própria Mãe Indira - todos
eles pensam que têm as rédeas na mão, mas não se ralam absolutamente nada com o Homem Vulgar. Em breve esse homenzinho vulgar lhes vai mostrar que estão no caminho
errado.
Eu estava rapidamente a perder todo o interesse pelo discurso até que ele passou a um assunto mais pessoal:
- Tu, amigo Martelo, fui-te buscar ao meio dos mortos. A partir de agora serás minha criatura.
- Que quer de mim? - perguntei mas já sabia a resposta. Qualquer coisa que tinha sempre estado presa dentro de mim libertou-se quando pus Lambajan K.O., alguma coisa
que, estando presa, fazia com que toda a minha vida até agora não tivesse andado à deriva, sujeita a forças exteriores; quando essa coisa se soltou, senti-a como
a minha própria liberdade. Percebi, a partir desse instante, que não precisava de viver uma vida provisória, eternamente à espera; já não era mais obrigado a ser
o que a família, a educação e a desventura tinham decretado; podia, a partir de agora, entrar finalmente em mim próprio - na minha verdadeira personalidade, cujo
segredo residia naquele membro deformado que eu escondi demasiado tempo na profundeza da minha roupa. Acabou-se! A partir de agora ia exibi-lo com orgulho. Eu seria
o meu punho. Passaria a ser o Martelo, deixaria de ser o Mouro.
Fielding continuava a falar, as palavras saíam-lhe rápidas e duras. Sabes quem é o teu Paizinho, lá na sua torre? Esse homem que expulsou de casa o seu único filho
varão, podes imaginar quão profundamente o mal está nele enraizado? A sua falta de coração? O que sabes tu do chefe de quadrilha muçulmano que dá pelo nome de Gilvaz?
Confessei a minha ignorância. Mainduck mandou-me calar com um gesto da mão.
- Hás-de vir a saber. Droga, terrorismo, gangs muçulmanos, computadores para armamento, o escândalo do Banco Khazana, bombas atómicas. Vocês tratam de unir bem juntas
as minorias. Tratam de se organizar contra os Hindus. E nós, boas pessoas, não vemos como é perigosa a vossa ameaça. Mas agora o teu pai mandou-te ter comigo e vais
ficar a saber tudo. Eu próprio te explicarei o que se passa com os robots, o fabrico de autómatos de alta tecnologia destinados a atacar e a matar Hindus. E também
com os bebés, a marcha dos bebés das minorias que vão expulsar os nossos dos seus berços e roubar-lhes a comida. São esses os planos deles. Mas não vão conseguir.
Hindustão é o país dos Hindus. Havemos de derrotar o eixo Zogoiby-Gilvaz, custe o que custar. Havemos de os fazer dobrar os joelhos. Meu morto-vivo, meu martelo:
estás por nós ou contra nós, pelo bem ou pelo mal? Diz lá: estás connosco ou não?
Entreguei-me sem hesitar ao meu destino. Sem fazer sequer uma pausa para perguntar que ligação havia entre a tirada anti-Abraham de Fielding e a sua alegada intimidade
com a Sr.a Zogoiby: sem qualquer impedimento, resolutamente e mesmo com alegria dei o salto decisivo. Para onde me mandaste, mãe - para a escuridão, para fora da
tua vista - foi para onde escolhi ir. Os nomes que me chamaste - fora-da-lei, intocável, repugnante, vil
- aperto-os contra o peito e faço-os meus. A praga que me rogaste será a minha bênção e ódio que me lançaste á cara, bebê-lo-ei sofregamente como uma poção de amor.
Desonrado, exibirei a minha vergonha e chamar-lhe-ei orgulho - exibi-la-ei, grande Aurora, como uma letra escarlate bordada no peito. Agora estou a descer o caminho
que começa em Malabar *H.ill, mas não sou nenhum anjo. A minha queda não é a de Lúcifer mas sim a de Adão. A minha queda é a passagem a adulto. Sinto-me feliz por
dar essa queda.
- Estou convosco, meu comandante, sir.
Mainduck deixou escapar um poderoso ruído de alegria e levantou-se a custo. Lambajan - Borkar - veio ajudá-lo.
- Muito bem - disse Fielding. - Vamos dar muito uso a esse teu martelo. E a propósito, sabes fazer mais alguma coisa?
- Sou cozinheiro, sir, - disse lembrando-me dos bons tempos passados na cozinha com Ezequiel e os seus livros de receitas. - sopas anglo-indianas, carne com coco
à moda do Sul, kor-mas de Mughai, shirmal de Kashmir, espetadas reshmi(" ), peixe à moda de Goa, beringelas à Hyderabad, arroz dum, clube-sanduíches, sei fazer tudo.
E se for do seu gosto, numkeen chai.(*)
O prazer de Fielding não tinha limites. Via-se que era um homem que gostava de comer.
- Parece que és um verdadeiro topa-a-tudo, - disse, batendo-me nas costas. - Vamos lá ver se és de primeira classe (**). (A equipa de críquete da índia estava então
em digressão pela Austrália e Nova Zelândia.) - Na minha equipa há sempre lugar para um jogador de primeira.
O meu serviço em casa de Raman Fielding começou com o que ele chamava "tornares-te conhecido" na cozinha, com grande descontentamento do seu cozinheiro oficial,
Chhaggan Cinco-Duma-Vez, um gigante de dentes quebrados que parecia ter um cemitério na sua enorme boca.
- Chhaggan é um selvagem - disse Fielding com admiração, explicando-me a sua alcunha enquanto fazia as apresentações. - Uma vez, numa luta, deu uma dentada no pé
do adversário e arrancou-lhe os cinco dedos.
Chhaggan deitou-me uma mirada de orgulho, exibindo uma figura de espantalho desgrenhado e constelado de nódoas - incongruente numa cozinha brilhante de limpeza -
e pôs-se a afiar uns enormes facalhões e a resmungar entredentes.
(*) Comidas e bebidas indianas. (N. T.)
(**) No texto: "Test Class", um termo do críquete para designar os melhores jogadores. (N. T.)
- Mas é doce como mel - berrou Fielding. - Não é verdade, Chhaggan? Deixa-te de amuos. Vais tratar aqui o chefe como se fosse teu irmão. Ou melhor: não. - Acrescentou,
virando-se para mim. - Foi o irmão dele que perdeu a tal luta. Aqueles dedos! Pareciam salsichas pequenas, se esquecermos as unhas sujas.
Lembrei-me da velha história de Lambajan sobre o fabuloso elefante que lhe comera a perna e pensei quantas dessas histórias de perdas de membros circulam, fantasiosas,
pela cidade. Felicitei Chhaggan pelo asseio da sua cozinha e disse ao pessoal que esperava que não houvesse qualquer quebra nos padrões de qualidade. O gosto pela
limpeza era uma coisa que tinha em comum com o velho dentes-de-serra declarei eu, sem fazer qualquer referência ao estilo pessoal do Cinco-Duma-Vez; disse para comigo
que os dentes do cozinheiro podiam ser uma arma. Os dentes dele e o meu martelo, davam uma coisa para a outra. Fiz-lhe o mais doce dos sorrisos:
- Não vai haver nenhum problema, chefe, - disse simpaticamente para o patrão da cozinha. - Havemos de nos dar muitíssimo bem.
Nesses dias em que cozinhei para Mainduck fiquei a conhecer algumas das excentricidades do homem. Eu sei que estão na moda certas "Memórias" tipo criado-do-Hitler
e que muita gente está contra elas, acham que não se deve humanizar o desumano. Mas o que acontece é que eles não são desumanos, esses hitlerzinhos tipo Mainduck,
e é justamente na sua humanidade que devemos colocar a nossa culpa colectiva, a culpa da humanidade nos crimes dos seres humanos; porque se eles fossem apenas monstros
- se fosse só uma questão de King Kong e Godzilla fazerem muitos estragos até os aviões os abaterem - então nós, os outros, estávamos desculpados. *
Pessoalmente, não desejo ser desculpado. Fiz a minha escolha e vivi a minha vida. Acabou! Fim! Quero continuar com a história.
Entre os seus gostos não-Hindus, Fielding adorava carne. Borrego (que era carneiro), carneiro (que era cabra), keema, frango, espetadas: para ele estas viandas nunca
eram suficientes. Os comedores de carne de Bombaim, Parsis, Cristãos e Muçulmanos -
pelos quais, em muitos outros aspectos, não tinha senão desprezo
- mereciam muitas vezes o seu aplauso pela sua recusa da cozinha vegetariana. Não era esta a única contradição daquele homem duro e ilógico. Cultivava cuidadosamente
uma aparência de brutamontes mas, espalhadas pela casa, viam-se estatuetas preciosas de Ganesha, bronzes de Candeia, miniaturas de Caxemira que revelavam um genuíno
interesse pela mais requintada cultura indiana. O ex-caricaturista tinha sido admitido à Escola de Belas-Artes e embora nunca o admitisse em público, a sua influência
fazia-se sentir. (Nunca falei com Mainduck sobre a minha mãe, mas se na verdade ela se sentiu atraída por ele, as paredes da sua casa mostravam uma razão possível
para isso. Embora elas também pudessem provar outra coisa: que a arte não tem poder sobre o carácter. Mainduck tinha as estátuas e os quadros mas a sua fibra moral
era de baixa qualidade; suspeito que se lhe tivesse chamado a atenção para esse facto, ele sentiria sobretudo orgulho.)
Quanto aos finaços de Malabar Hill, Mainduck dava-lhes grande importância; mais do que ele gostaria de admitir. A história da minha família lisonjeava-o: transformar
Morais Zogoiby, o único filho do grande Abraham, no seu homem-martelo particular, excitava-o muito, mesmo que eu tivesse sido deserdado. Deu-me um quarto na casa
de Bandra e tratava-me sempre com um toque de ternura que não se estendia a qualquer outro empregado; deixava escapar por vezes um tratamento respeitoso em vez da
forma habitual de dar ordens. Há que levar a crédito dos meus colegas que eles nunca se tenham mostrado ressentidos com o tratamento especial que me era dispensado
e a meu descrédito, suponho, a naturalidade com que aceitei o que me era oferecido: o uso regular da casa de banho, com água quente e fria, presentes de lungis(*)
e de túnicas, ofertas de cerveja. Uma educação branda deixa no sangue um resíduo de brandura.
O que era interessante era a importância que os aristocratas da cidade davam a Fielding. Havia uma forte corrente de visitantes,
(*) Longa peça de algodão que os homens atam à volta da cintura, das ancas ou da cabeça. (N. T.)
vindos dos palácios super-desejáveis de Malabar Hill. Os mais novos, mais delgados, mais elegantes dos jovens tigres da selva urbana vinham tentar caçar no seu terreno,
todos eles cheios de fome mas não dos meus jantares; ficavam suspensos das palavras de Mainduck e bebiam todas as sílabas. Ele era contra os sindicatos, a favor
de quebrar greves, contra o trabalho das mulheres, a favor do sati(*), contra a pobreza e a favor da opulência. Era contra os "imigrantes" na cidade, designação
que ele aplicava a todos os que não falam Marathi, incluindo os que aqui nasceram e a favor dos "residentes naturais" onde incluía todos os de fala Marathi, mesmo
que acabados de descer da camioneta. Era contra a corrupção no Congresso e a favor da "acção directa" que era, para ele, uma actividade paramilitar em apoio dos
seus objectivos políticos e da instituição de um sistema de luvas que ele organizara. Troçava da análise marxista da sociedade como luta de classes e louvava a preferência
dos Hindus pela eterna estabilidade do sistema de castas. Quanto à bandeira nacional era a favor da cor de açafrão e contra o verde. Falava da Idade do Ouro "anterior
às invasões", quando os bons Hindus, homens e mulheres, podiam circular livremente.
- Agora a nossa liberdade, a nossa nação bem amada, está sepultada sob as coisas que os invasores construíram.
Essa nação verdadeira é a que devemos reclamar, por baixo das camadas lá postas pelos imperialistas estrangeiros.
Foi enquanto servia os meus acepipes à mesa de Mainduck que ouvi falar pela primeira vez da existência de uma lista de locais sagrados onde os conquistadores muçulmanos
tinham propositadamente construído mesquitas. Lugares de nascimento de várias divindades Hindus - e não só os lugares de nascimento, mas as suas casas de campo e
ninhos-de-amor, também, para não falar das lojas favoritas e dos sítios onde gostavam de comer. Onde vai uma divindade divertir-se decentemente à noite? Pois todos
esses sítios importantes - tinham sido invadidos por minaretes e por cúpulas em cebola. Não podia ser! Os deuses também têm direitos e
(*) Ritual em que a viúva é queimada viva na pira funerária do marido. (N. T.)
devem poder recuperar o seu antigo estilo de vida. Os invasores tinham de ser repelidos.
Os enérgicos rapazinhos de Malabar Hill concordaram com entusiasmo. Sim, uma campanha a favor dos direitos dos deuses. Não haveria nada de mais actual, de mais na
ondal Mas quando eles começaram, com gargalhadas alarves a depreciar a cultura do Islão Indiano que cobre, à maneira de um palimpsesto, a face da Mãe índia, Mainduck
levantou-se e fulminou-os com um discurso que os fez encolherem-se nos seus lugares. Então entoou ghazals(;:') recitou de cor poesia Urdu(i:'*) - Faiz, Josh, Iqbal
- e falou com entusiasmo das glórias de Fatehpur Sikri(**) e do esplendor do Taj-Mahal. Era realmente um tipo complicado.
Havia mulheres, mas um tanto periféricas. Eram importadas de noite, Mainduck divertia-se com elas, mas nunca parecia muito interessado. O poder interessava-lhe mais
do que o sexo e as mulheres aborreciam-no, por muito que se esforçassem por cativá-lo. Devo declarar que nunca vi em toda a casa o mais pequeno sinal da minha mãe
e isso leva-me a pensar que qualquer eventual ligação entre ela e o meu novo patrão terá sido de curtíssima duração.
Ele preferia a companhia masculina. Havia noites em que, na presença dum grupo de membros da juventude S.A., de faixas açafrão na cabeça, ele organizava umas mini-Olimpíadas.
Havia luta e braço de ferro, concursos de flexões, assaltos de boxe de salão. Animados pela cerveja e pelo rum, os circunstantes acabavam por se irem despindo entre
cantigas e insultos, até ficarem exaustos, nus e suados. Nessas ocasiões Fielding parecia verdadeiramente feliz. Despojando-se dos seus floridos lungi, misturava-se
com os seus capangas, coçando-se, arrotando, peidando-se, dando grandes palmadas nàs nádegas e nas coxas.
(*) Canções de amor árabes aparecidas no século VII. (N. T.)
(**) Língua oficial do Paquistão, também falada em certas zonas da União Indiana. (N. T.)
(***) Cidade do Norte da índia cuja mesquita é uma das jóias da arquitectura muçulmana. (N. T.)
- Ninguém nos faz frente! - berrava ele atingindo um estado de felicidade dionisíaco. - Vai ser o Inferno! Somos um único homem!
Chamavam-me às vezes para junto deles e naqueles pugilatos nocturnos a reputação do Martelo foi crescendo. Os corpos suados dos jovens S.A. iam parar ao chão e ali
ficavam até à contagem fatal. (Os Olímpicos formavam uma espécie de quadrado à nossa volta e gritavam em uníssono: - Nove!... Dez!... KayoW)
- E o Cinco-Duma-Vez era igualmente o campeão incontestado de luta-livre.
Oiçam: não nego que houvesse em Mainduck muitas coisas que me provocavam fundas reacções de náusea e repugnância, mas eu esforcei-me por superá-las. Ligara a minha
sorte à sua estrela. Rejeitei o passado porque o passado me tinha rejeitado a mim e não fazia sentido trazer para a minha nova vida atitudes de tempos idos. Resolvi
que seria como ele: estudei Fielding de perto. Passei a falar como ele falava, a fazer o que ele fazia. Ele era a nova maneira de ver as coisas, o futuro. Havia
de o aprender como se aprende um caminho.
Passaram semanas e, depois, meses. O meu estágio completou-se; tinha passado com sucesso provas invisíveis. Mainduck convocou-me ao seu gabinete, o que tinha um
telefone em forma de rã verde. Quando entrei, vi na minha frente, de pé, uma figura tão assustadora, tão bizarra que, com lucidez aterradora, compreendi de repente
que não tinha realmente deixado aquela fantasmagórica Bombaim, aquela Zona Central para onde fora atirado a seguir à minha prisão no apartamento de Cuffe Parade
e da qual, na minha ingenuidade, eu pensei que Lambajan me resgatara naquela bendita viagem para a liberdade a bordo do táxi hipotecado.
A figura em questão era a de um homem, mas de um homem com partes de metal. Uma placa de aço era perfeitamente visível na sua face esquerda e uma das mãos era lisa
e brilhante. A placa de ferro que trazia ao peito (fui-o percebendo gradualmente) não fazia parte do seu corpo, mas era um ornato, um provocante embelezamento da
imagem cibernética criada pela face e pela mão de metal. Era só toilette.
- Diz bom-dia a Sammy Hazaré, o nosso famoso Homem-de-Lata, - disse Mainduck do seu lugar, atrás da secretária. -Ele é o capitão da tua equipa. É altura de tirares
o barrete de cozinheiro, vestires as calças brancas e entrares em campo.
A série do "Mouro no Exílio" - a controversa série dos "Mouros Negros", nascida duma apaixonada ironia mais tarde vencida pela dor e que foi injustamente acusada
de ser pintura "negativa", "cínica" ou mesmo "nihilista" - constitui o mais importante trabalho dos últimos anos de Aurora Zogoiby. Nessa série ela abandona não
só as referências ao palácio da colina e à orla do mar, presentes na pintura anterior, mas também a própria noção de pintura "pura". Cada tela tem elementos de colagem
e, com o tempo, esses elementos, tornaram-se a característica dominante de toda a série. A figura unificadora do narrador/narrado - o Mouro - estava geralmente presente
mas cada vez mais como um desperdício, e colocado num amontoado de objectos partidos ou abandonados, muitos deles sucata verdadeira, peças soltas ou latas de conserva,
incrustadas na superfície da tela e cobertas de tinta. Mas até podia acontecer que a figura imaginada por Aurora, o "Sultão Boabdil" estivesse ausente dos quadros
que se vieram a chamar "de transição" na longa série do Mouro. Como num díptico intitulado "A Morte de Ximena ", cuja figura central - um cadáver de mulher atado
a uma vassoura - é erguido ao alto (no painel da esquerda) por uma multidão em delírio, como uma estátua do deus Ganesha montado numa ratazana entrando pelo mar
dentro no dia do festival de Ganpati. No painel da direita a multidão dispersou-se e a composição pictória limita-se a uma zona da praia, com areia e mar, na qual
entre imagens quebradas, garrafas vazias e jornais velhos, jaz a mulher morta, amarrada à sua vassoura, azul e inchada, desprovida de beleza e de dignidade, reduzida
ao estatuto de lixo.
Quando o Mouro reaparece é num ambiente totalmente imaginado, uma espécie de lixeira humana que se inspira nos abrigos
dos vagabundos e nos edifícios feitos de remendos, que se encontram nos bairros de lata de Bombaim. Ali tudo era colagem, as barracas feitas do lixo da cidade, chapas
enferrujadas, bocados de caixas de cartão, longos pedaços de madeira carcomida, portas de automóveis destruídas, pára-brisas de outros tempos. E tudo aquilo era
a cidade dos fumos venenosos, das querelas mortais à beira dos chafarizes entre as mulheres da bicha (hindus contra judias, por exemplo), dos suicídios pelo fogo,
das rendas impossíveis de pagar e cobradas com extrema violência por bandos de gansgsters. A vida das pessoas que vivem, sob terrível pressão, na base da pirâmide,
tòrnou-se tão heterogénea, tão remendada como as barracas, feitas de peças de pequenos roubos, esquírolas de prostituição, fragmentos de mendicidade ou, no caso
daqueles que mais se respeitam a si próprios, cenas de engraxar sapatos, vender flores de papel, cestinhos de verga e brincos e leite de coco e polimento para automóvel
e sabonetes desinfectantes.
Mas Aurora, para quem a reportagem não tinha limites, levou o seu golpe de vista ainda mais longe e mais fundo: o próprio povo era feito de lixo, feito daquilo que
não tinha qualquer valor; botões perdidos, limpa pára-brisas partidos, trapos, livros queimados, película já exposta. As pessoas tinham mesmo de remexer o lixo para
encontrar os seus próprios membros: ao deparar com montes de bocados de corpos já cortados, procuravam o que lhes faltava e não eram muito exigentes, não podiam
estar com esquisitices; de forma que muitos deles acabaram por ficar com dois pés esquerdos ou desistiram de encontrar nádegas e puseram um par de seios amputados
lá onde devia estar o traseiro que não tinham. O Mouro tinha entrado no mundo invisível, o mundo dos espectros, de gente que não existe e Aurora seguiu-o e tornou
visível esse mundo, pela força da sua artística vontadé.
E a figura do Mouro: agora só, sem mãe, afundado na imoralidade, visto como uma criatura das sombras, degradado no deboche e no crime. Nestes últimos quadros, o
Mouro parece ter perdido a primitiva função metafórica de unificador dos opostos, de porta-bandeira do pluralismo deixando de aparecer como símbolo
- ainda que aproximado - da nova nação e transformando-se,
pelo contrário, numa figura semi-alegórica da decadência. Aurora tinha aparentemente decidido que as ideias de impureza, de mistura e promiscuidade cultural que,
durante a maior parte da sua vida de criadora, fora o que de mais próximo ela entendera como noção do Bem eram afinal passíveis de distorção e continham um potencial
não só de luz como de trevas. Esse "Mouro negro" era uma nova imagem para o conceito de híbrido - uma flor baude-laireana, uma flor do mal, sem qualquer exagero:
... Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
Chaque jour vers l'Enfer nous descendons d'un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent. (*)
Imagem também de fraqueza: o Mouro transformou-se num perseguido, num fugitivo acossado pelos fantasmas do seu passado que o atormentavam por mais que ele lhes suplicasse
que se fossem embora. Até que, a pouco e pouco, ele próprio se transformou em fantasma, tornou-se o Fantasma Ambulante, mergulhou na abstracção, foi despojado dos
seus losangos de Arlequim, das jóias e dos últimos vestígios da sua glória; obrigado a combater como soldado no exército de um apagado Senhor da Guerra (e aqui Aurora,
curiosamente, cingiu-se por uma vez aos factos históricos relativos ao Sultão Boabdil) reduzido a mercenário no país onde fora Rei, rapidamente se tornou numa criatura
tão lamentável e anónima como aquelas entre as quais alinhava. O lixo foi-se acumulando e acabou por soterrá-lo.
O formato díptico foi repetidamente utilizado e, nos segundos painéis desses dípticos, Aurora deu-nos aquela série de auto-retra-tos tão angustiante, magistral e
comovente, onde há qualquer coisa de Goya e qualquer coisa de Rembrandt, mas sobretudo um deses-
(*) Nas coisas repulsivas vemos algum encanto;
Direitos ao Inferno, cada dia descemos um degrau,
Atravessando sem horror as trevas fétidas.
De "Au Lecteur", poesia liminar de "Les Fleurs du Mal" de Charles Baude-laire (1821-1862). (N. T.)
pero erótico e selvagem de que há poucos exemplos em toda a história da Arte. Aurora/Ayxa senta-se sozinha nesses painéis, paredes meias com a crónica infernal da
degradação do filho e jamais verte uma lágrima. A sua expressão torna-se cada vez mais dura, como de pedra, mas nos olhos brilha um horror sem nome - como se estivesse
a ver alguma coisa que abalasse as profundidades da sua alma, uma coisa que estivesse em pé, diante dela, no lugar natural de qualquer pessoa que estivesse a contemplar
o quadro - como se a raça humana lhe estivesse a mostrar a ela a sua face mais secreta e mais aterradora e isso a tivesse petrificado, tivesse transformado em pedra
a sua velha carne. Estes "Retratos de Ayxa" são quadros aziagos e deprimentes.
Nos painéis de Ayxa aparecem ainda os dois temas gémeos dos duplos e dos espectros; uma Ayxa espectral persegue o Mouro-do-lixo; e por detrás de Ayxa/Aurora, distinguem-se,
por vezes, as imagens translúcidas de uma mulher e de um homem. As suas faces foram deixadas vazias. A mulher será Uma (Ximena) ou a própria Aurora? E serei eu -
ou melhor, o "Mouro" - o homem/espectro? Se não sou eu, quem é? Nesses retratos "espectrais" ou "duplos", a figura de Ayxa/Aurora parece - ou é imaginação minha?
- assombrada, como estava Uma quando a fui ver depois das notícias do desastre de Jimmy Cash. Não, não é imaginação minha. Conheço aquele olhar. Aurora tem o olhar
de quem se sente à beira dum colapso. De quem é perseguido.
Tal como, naqueles quadros, ela me persegue a mim. Como se fosse uma bruxa no alto de um penhasco, vendb-me na sua bola de cristal, com um macaco ao lado. Era verdade:
eu movia-me através daqueles lugares tenebrosos (na superfície da lua, por detrás do sol) que ela criava na sua obra. Eu habitava as suas ficções e os olhos da sua
imaginação viam-me com toda a clareza. Ou quase: porque havia coisas que nem os seus olhos tão perscrutantes conseguiam ver.
O que ela não via era o seu próprio snobismo, revelado pela sua raiva desdenhosa, era o medo da cidade invisível, o ser tão tipicamente Malabar Hill. Como teria
Aurora, a rainha dos nacionalistas, detestado essas suas fraquezas! Não via que, nos últimos anos, se tornara apenas em mais uma grande dama de Malabar Hill, tomando
o seu chá e olhando com repugnância para os pobres à sua porta. E o que ela não via em mim foi que eu só naquele estranhíssimo mundo senti o gosto da normalidade,
de não ser nada de especial, de estar entre gente igual a mim, vivendo com um homem de lata, um espantalho denteagudo e tendo por companhia um sapo cobarde. (Mainduck
era sem dúvida um cobarde, não participava em nenhuma das acções que apregoava.)
Havia uma coisa que Raman Fielding sabia e que era a fonte secreta do seu poder: que não é por uma norma civil e social que os homens almejam mas sim a atitude ultrajante,
desmesurada, que não respeita quaisquer limites. É ela que nos permite libertar a nossa força selvagem. Temos de conquistar a autorização de sermos o que, na verdade,
somos.
E é assim, mãe: naquela horrorosa companhia, praticando aqueles feitos horríveis, encontrei o caminho para casa sem ter de calçar quaisquer sapatinhos mágicos.
Admito: sou um homem que espancou muitos outros. Levei a violência a muitas casas como o carteiro leva a correspondência. Fiz o trabalho sujo sempre que era preciso
- e tive prazer em fazê-lo. Já lhes falei da dificuldade que tive em aprender a ser canhoto, que não me era, de todo, natural. Pois bem: agora já podia finalmente
usar a mão direita, no meu novo estilo de vida, tirar o meu valente martelo da algibeira e servir-me dele para escrever a história da minha vida. Foi-me muito útil,
a minha marreta. Rapidamente me tornei uma das estrelas dos S.A., ao lado de Hazaré, o Homem-de-Lata e de Chhaggam Cinco-Duma-Vez (o qual, como descobrimos sem grande
surpresa, era um topa-a-tudo
cujos talentos excediam os limites de qualquer cozinha). O onze de Hazaré - cujos outros oito membros eram tão perigosos como nós os três - reinou sem rival durante
uma década como a Equipa das Equipas. Equivalentes à magnificiência das proezas da nossa força bruta eram as recompensas do sucesso total e os prazeres viris da
camaradagem e do todos-por-um.
Compreendem com que deleite me aninhava na simplicidade da minha nova vida? É que era essa a verdade: "Finalmente - dizia para mim próprio - sentes alguma estabilidade;
finalmente podes ser aquilo para que nasceste". Com que alívio abandonei a procura constante de uma inatingível normalidade, com que alegria revelei ao mundo a minha
supernaturalidade. Imaginem quanta raiva fui acumulando por via das imposições e das complexidades emocionais da minha anterior existência - quanto ressentimento
perante as rejeições, os risinhos mal disfarçados das mulheres, as piadas dos professores, quanta fúria calada por não poder satisfazer as exigências da minha vida
oculta, necessariamente abafada, sem amigos e, finalmente, liquidada pela minha própria mãe? Foi toda essa existência de fúria recalcada que explodiu com os golpes
do meu punho - Humm! Humm! - Ah, Senhoras e Senhores: eu sabia muito bem o que então fazia e sabia muito bem porque o fazia! Fiquem com as vossas censuras! Metam-nas
naquele sítio onde não entra o sol. Vão ver um filme e tomem nota de quem provoca mais gritos entusiasmados; não é o rapaz, o herói - é o tipo de chapéu preto cravando
o seu punhal, disparando a sua pistola, acertando os seus murros e abrindo à força o seu caminho através do filme. Ah, caramba! A violência excita! É isso que a
malta quer!
Os meus primeiros tempos, ocupei-os em quebrar a greve das grandes fábricas de têxteis. A minha tarefa era fazer parte da secção de vingadores mascarados chefiada
por Samífty Hazaré. Depois das autoridades terem dispersado uma manifestação com bastões e gazes lacrimogénios - e nesses anos não faltava agitação em toda a cidade,
organizada pelo partido do Sr. Datta Samant e pelo sindicato dos trabalhadores do Têxtil - os grupos de élite dos SA seleccionavam e perseguiam os manifestantes
mais destacados e não paravam antes de os terem encurralado e espancado até ao desfale-
cimento. Tínhamos pensado muito sobre o assunto das máscaras, rejeitando a ideia de usar máscaras de estrelas de cinema em favor das figuras da tradição folclórica
indiana: demos a nós próprios cabeças de leões, de tigres ou de ursos. Foi uma boa decisão porque assim aparecíamos à consciência dos grevistas como vingadores mitológicos.
Assim que entrávamos em cena, os trabalhadores fugiam aos gritos pelas ruelas escuras onde nós os perseguíamos para lhes fazer pagar as consequências dos seus actos.
Como consequência secundária deste trabalho fiquei a conhecer os grandes bairros novos da cidade: nos anos de 82 e 83 devo ter actuado em todas as travessas e becos
de Worli, Parei e Bhiwandi perseguindo refugo sindicalista, escórias activistas e escumalha comunista. Uso estes termos sem intenção pejorativa, mas num sentido,
por assim dizer, técnico. Todos os processos industriais produzem escórias, material que tem que ser reduzido, eliminado, deitado fora para que prevaleça a boa qualidade
das peças. Os grevistas era exemplos deste material espúrio. Nós eliminávamo-los. No fim da greve havia nas fábricas menos 60 mil postos de trabalho do que no princípio
e os industriais podiam finalmente modernizar as suas instalações. Nós removíamos o lixo e deixávamos atrás de nós uma industria poderosa, actualizada, a faiscar
de moderna. Era isto que Mainduck me explicava, pessoalmente.
A minha maneira de actuar era a soco, enquanto outros preferiam o pontapé. Com a mão nua batia as minhas vítimas cruelmente, metronomicamente, como tapetes, como
mulas. Como o tempo. Não dizia uma palavra. Os socos tinham a sua própria linguagem e tornavam muito claro o seu significado. Espancava tipos de dia e de noite,
às vezes por pouco tempo, fazendo-os perder os sentidos com um simples golpe da marreta, outras fazendo render o tempo, aplicando a mão direita nas suas partes mais
moles e fazendo uma careta interior quando eles gritavam. Era um ponto de honra manter a minha expressão neutra, impassível, vazia. As nossas vítimas não nos olhavam
nos olhos. Depois de os trabalharmos durante algum tempo deixavam de fazer barulho; pareciam estar em paz com os nossos punhos, as nossas botas, as nossas matracas.
Também eles ficavam impassíveis, de olhar sem expressão.
Um homem que é seriamente espancado (como nos seus sonhos, Oliver D'Aeth tinha pressentido) fica irreversivelmente modificado. As relações com o seu próprio corpo,
com a sua mente, com o mundo à sua volta, alteram-se de uma forma simultaneamente clara e subtil. Uma certa confiança, uma certa ideia de liberdade desaparece para
sempre com as pancadas; isto se o agressor souber do ofício. Muitas vezes, as pancadas trazem consigo o desprendimento. A vítima - tantas vezes o vi - desprende-se
do acontecimento e envia a sua consciência flutuar lá para cima para a atmosfera. Fica a olhar para si próprio para o seu próprio corpo que se contorce e talvez
se quebre. Depois disto nunca mais voltará a entrar em si próprio e qualquer convite para aderir a qualquer entidade colectiva - um sindicato, por exemplo - será
imediatamente recusado.
Pancadas em diferentes partes do corpo afectam diferentes partes da alma. Bater durante muito tempo, por exemplo, nas plantas dos pés, afecta o riso. Os que passaram
por isso nunca mais riem.
Só os que se submetem ao seu destino, que aceitam os golpes aceitando-os como homens - só os que põem as mãos ao ar, reconhecem a sua culpa, dizem "mea culpa" -
encontram nessa experiência qualquer coisa de positivo. Só eles dizem: - Pelo menos, aprendemos uma lição.
O mesmo se passa com o agressor: também ele se modifica. Bater num homem cria uma espécie de exaltação, uma revelação de estranhas portas no universo. O tempo e
o espaço saem dos seus gonzos. Escancaram-se abismos. Há lampejos de coisas espantosas. Vi, por vezes, o passado - e o futuro também. As recordações dessas práticas
depressa esfumam. Mas lembro-me de que algumas coisas aconteceram. Houve visões. Houve conhecimentos novos.
Acabámos com a greve. Fiquei espantado com o tempo que foi preciso para isso, com a lealdade dos trabalhadores para com as escórias e o refugo. Mas - tal como Raman
Fielding nos explicou a greve era o nosso campo de batalha, afiou-nos o gume,
foi ela que nos formou. Nas eleições municipais que se seguiram,
o partido do Dr. Samant obteve apenas uma meia dúzia de lugares e os SAP mais de setenta. O combóio pusera-se em marcha.
Será que devo dizer-lhes de que maneira - a convite dum senhor feudal dono de muitas terras - nós fomos de visita até uma aldeia perto da fronteira com o Gujarate,
onde as malaguetas vermelhas, recém-colhidas, se acumulavam junto às casas em pequenas colinas de cor e de perfume e aí dominámos uma revolta das trabalhadoras?
Não, talvez seja melhor não: o vosso estômago delicado ficaria perturbado com uma descrição muito escaldante. Será que devo falar-lhes da nossa campanha contra aqueles
desgraçados sem casta, intocáveis ou Harijans ou Dalits, chamem-lhes o que quiserem, que na ideia estúpida de fugirem ao sistema de castas se converteram ao Islão?
Será que devo descrever-lhes as medidas que tomámos para os fazer regressar ao seu lugar? Ou falar-lhes daquela vez que a equipa de Hazaré foi chamada para fazer
cumprir o antigo costume do sati e dar-lhes alguns pormenores sobre a forma como persuadimos uma jovem viúva a subir para a pira funerária do seu falecido marido?
Não, não. Já ouviram que baste. Depois de seis árduos anos de trabalhos no campo começamos a arrecadar uma rica colheita. Os SA tinham alcançado o controlo político
da cidade; Mainduck era agora o Presidente da Câmara. Mesmo nas áreas rurais mais afastadas, onde ideias como as de Fielding nunca se tinham enraizado, as pessoas
começavam a falar do advento do Reino do Senhor Ram, e a dizer que os senhores da terra deviam aprender a mesma lição que os operários tão penosamente tinham aprendido.
E acontecimentos de outra escala desempenharam também o seu papel no sangrento jogo de crimes e represálias em que a nossa história se estava a tornar. Um templo
dourado abrigando homens armados foi atacado e os que lá estavam foram assassinados; em represália, homens armados mataram a Primeira-Ministra; e em represália multidões
armadas e não armadas percorreram as ruas da capital e massacraram pessoas inocentes que nada tinham em comum com os homens armados senão o turbante; e a consequência
foi que homens como Fielding que falavam da necessidade de refrear as minorias, de submeter tudo e todos à dura Lei do
Amor de Ram, ganharam uma certa influência, um acréscimo da sua força.
... disseram-me que no dia da morte da Senhora Gandhi - a mesma Sr.a Gandhi que ela odiara e que lhe retribuíra com entusiasmo esse sentimento - minha mãe Aurora
Zogoiby chorou lágrimas torrenciais.
Vitória é vitória: nas eleições que levaram Fielding ao poder, as organizações operárias apoiaram os SA. Nada como mostrar ao povo quem é que manda... se por vezes
dava por mim a vomitar sem causa aparente, se todos os meus sonhos eram pesadelos infernais, o que é que isso tinha? Se chegava a ter a sensação de estar a ser seguido
- sim, talvez por vingança - punha esses pensamentos de lado. Eles faziam parte da minha vida passada, esse membro amputado; agora não queria ter nada a ver com
esses escrúpulos, com essas fraquezas. Acordava a suar de terror, enxugava a testa e voltava a adormecer.
Era Uma quem me perseguia, Uma-a-morta, aterradora, de cabelos desgrenhados, olhos arregalados, língua torcida. Uma transformada num anjo de vingança, assumindo
o papel de Des-démona perante mim, o Mouro. Fugindo dela, eu abrigava-me numa poderosa fortaleza, fechava os portões - e via-me de novo cá fora, e ela flutuando
no ar por cima de mim. Uma com dentes de vampiro do tamanho de presas de elefante. E de novo a fortaleza à minha frente, os portões abertos, oferecendo-me abrigo;
de novo eu corria e fechava os portões e de novo me via cá fora, sem qualquer defesa, à sua mercê.
- Sabes como são as construções dos Mouros - murmurava ela. - Têm tuna arquitectura que liga perfeitamente o exterior e o interior. Jardins rodeados de palácios
rodeados de jardins e assim sucessivamente. Mas tu - tu ficas condenado ao exterior de hoje em diante. Para ti nunca mais haverá refúgios; ficarei à tua espera nestes
jardins. Através destes infindáveis exteriores, perseguir-te-ei até te apanhar. - Depois aproximou-se de mim e abriu a sua horrível boca.
Para o inferno essas criancices de quem tem medo do escuro! Foi o que decidi ao acordar destes horrores. Era um homem; iria
agir como um homem, seguindo o meu caminho e suportando as consequências. Se, durante os últimos anos, Aurora Zogoiby e eu tivemos, por vezes, a sensação de estarmos
a ser seguidos, isso tinha a mais prosaica das explicações: estávamos mesmo a ser seguidos!
Como viria a saber depois da morte da minha mãe, Abraham Zogoiby mandou-nos seguir durante anos a fio. Era um homem que gostava de estar informado. E embora ele
pusesse Aurora ao corrente de quase tudo o que sabia a respeito das minhas actividades - tornando-se assim na fonte a partir da qual ela criou os quadros do "Exílio"
- não achou necessário mencionar que também a vigiava a ela. Na sua velhice, os dois tinham-se afastado tanto que quase viviam fora do alcance das respectivas vozes
e trocavam pouquíssimas palavras para além das necessárias. De qualquer forma, Dom Minto, quase com noventa anos mas ainda à frente da mais importante agência de
informações da cidade, tinha-nos mantido sob vigilância por conta de Abraham. Mas Minto deve, por um tempo, sentar-se lá atrás: Miss Nadia Wadia está à espera de
entrar em cena.
Claro que houve mulheres, não vou tentar negá-lo. Migalhas da mesa de Fielding. Lembro-me duma Smita, duma Shobha, duma Rekha, duma Urvashi, duma Anju, e duma Manju
entre outras. E também um número relevante de senhoras não-Hindus: Dollies, Marias e Gurinders, já um tanto usadas e que não duraram muito. Também às vezes, a pedido
do Comandante, eu "recebia encomendas": quer dizer, ia como uma espécie de call-girl dar o prazer da minha companhia a qualquer rica matrona que se aborrecia na
sua torre, oferecendo os meus favores pessoais em troca de donativos para os cofres do partido. Aceitava também pagamento se tal me fosse oferecido. Era-me indiferente.
E fui muitas vezes felicitado por Fielding ao "revelar uma aptidão genuína" para aquele tipo de trabalho.
Mas nunca toquei em Nadia Wadia. Nadia Wadia era diferente. Tinha sido uma rainha de beleza - Miss Bombaim e Miss índia em 1987 e, mais tarde, nesse mesmo ano, Miss
Mundo. Em várias revistas foram feitas comparações entre a recém-chegada de dezassete anos e a sempre-lembrada Ina Zogoiby, minha irmã, com a qual viam impressionantes
semelhanças. (Por mim, não as via; mas a verdade é que em matéria de semelhanças, sempre fui um pouco lento. Quando Abraham Zogoiby sugeriu que Uma Sarasvati tinha
alguma coisa da jovem Aurora, aquela impressionante rapariga de quinze anos por quem se tinha tão perdidamente apaixonado, isso foi para mim uma novidade total.)
Fielding queria Nadia - a alta, valquiriana Nadia que tinha um porte de guerreiro e uma voz de telefonema obsceno, a sisuda Nadia que doou uma percentagem do seu
prémio a hospitais de crianças e que queria ser médica quando se cansou de deixar doentes de desejo todos os machos do planeta - queria-a mais do que a qualquer
outra coisa ou pessoa à superfície da Terra. Ela tinha tudo o que a ele lhe faltava e que, em Bombaim, sabia que lhe era indispensável para o sucesso total. Tinha
glamour. E chamou-lhe sapo na cara quando se encontraram numa recepção: tinha estaleca e precisava de ser domesticada.
Mainduck queria possuir Nadia, trazê-la pelo braço como um troféu; mas Sammy Hazaré, o seu mais leal companheiro - o horrendo Sammy, meio homem, meio lata - deu
um passo em falso ao ficar perdidamente apaixonado por Nadia.
Eu tinha perdido qualquer interesse pelo amor das mulheres. De verdade. Depois de Uma, qualquer coisa se tinha desligado em mim, um fusível qualquer tinha rebentado.
As "migalhas" que o patrão tão arrogantemente me deixava e as chamadas "encomendas" eram suficientes para me satisfazer, iam e vinham sem groblemas. E havia também
a questão da minha idade. Quando cheguei aos trinta, o meu corpo chegou aos sessenta e uns sessenta não particularmente juvenis. A idade inundava as minhas decrépitas
barragens e apossava-se das terras baixas do meu organismo. As minhas dificuldades respiratórias tinham aumentado a um ponto que me obrigavam a renunciar às minhas
actividades mais violentas. Acabaram-se as perseguições nas vielas dos bairros-de-lata e as subidas por escadas
arruinadas de sórdidos tugúrios. E as longas noitadas sensuais também deixaram de ser possíveis: nessas noites, quando muito, era um bicho de uma só habilidade.
Fielding, afectuosamente, ofereceu-me trabalho no seu secretariado pessoal, como a qualquer dos seus cortesãos menos inclinados para as proezas físicas...
Mas Sammy, dez anos mais velho em anos mas vinte anos mais novo no corpo, Sammy ainda sonhava. Para ele não havia problemas respiratórios; nas Olimpíadas nocturnas
de Mainduck, ele ou
o Cinco-Duma-Vez ganhavam sempre as competições de fôlego (suster a respiração, soprar uma zarabatana, apagar velas).
Hazaré era um Cristão de Maharashtra e tinha-se juntado a Fielding por razões regionalistas e não religiosas. Lá razões, todos as tínhamos, pessoais ou ideológicas.
Há sempre razões. Podem-se comprar razões em qualquer bazar, qualquer feira-da-ladra, razões aos molhos, por dez patacos a dúzia. As razões são baratas, tão baratas
como as respostas dos políticos, vêm logo à ponta da língua: foi por dinheiro, pela farda, pelo grupo, a família, a raça, a nação, o deus.
Mas o que realmente nos motiva - o que nos faz bater, dar pontapés e matar, o que nos faz vencer inimigos e terrores - não se encontra nessas lojas de palavras prontas-a-usar.
Os nossos motores são mais estranhos, usam um carburante mais escuro. Sammy Hazaré, por exemplo, era motivado por bombas. Explosivos que já lhe tinham levado uma
mão e metade da cara eram o seu amor e os discursos com que tentava convencer Fielding - até agora sem sucesso - do valor político dos atentados do Ira eram ditos
com toda a paixão de Cyrano declarando-se a Roxane. Mas se as bombas eram a primeira paixão do Homem-de-Lata, a segunda era Nadia Wadia.
A Autoridade Municipal de Bombaim, organizou uma grande festa de despedida à sua menina quando ela partiu para a final do Concurso em Granada, Espanha. Nessa festa,
Nadia, a beldade Parsi de espírito livre, amesquinhou o ultra-reaccionário Mainduck em frente das câmaras.
- Sr. Raman, na minha opinião pessoal, o senhor é muito mais sapo do que rã, e não acredito que se eu o beijasse se transfor-
masse em príncipe, - respondeu ela em voz alta a um convite murmurado para um tête-à-tête privado. E para sublinhar essa atitude, dirigiu deliberadamente os seus
encantos para o seu guarda-costas pessoal metalizado. (O outro guarda-costas era eu mas fui poupado.)
- Diga-me uma coisa, - sussurrou ela para o pobre Sammy, paralisado e banhado em suor - acha que posso ganhar?
Sammy não conseguiu falar. Ficou roxo e fez um som bizarro com a garganta. Nadia Wadia concordou gravemente, como se tivesse ouvido as mais sábias palavras.
- Quando entrei no concurso de Miss Bombaim - continuou ela, enquanto Sammy tremia dos pés à cabeça - o meu namorado disse-me: "Ó Nadia, olha para aquelas raparigas
tão belas, não penses que podes ganhar". Mas como vê, ganhei!
Sammy vacilou perante a violência do seu sorriso.
- Depois quando entrei no Concurso para Miss índia, - suspirou Nadia, - o meu namorado disse-me de novo: "Ó Nadia, olha para aquelas raparigas tão belas, não penses
que podes ganhar!" Mas, como vê, ganhei outra vez.
Muitos de nós estavam a pensar na estupidez daquele desconhecido namorado, achando natural que ele não tivesse sido convidado para acompanhar Nadia à festa. Mainduck
estava a tentar achar graça a que ela lhe tivesse chamado sapo; e Sammy... Sammy estava quase a desmaiar.
- Mas agora é o Concurso para Miss Mundo, - disse Nadia franzindo os lábios preocupada. - E eu vejo estas fotografias a cores daquelas candidatas tão belas e digo
para mim própria: "Nadia Wadia, não me parece que possas ganhar". Olhou ansiosamente para o Homem-de-Lata suplicando-lhe que a tranquilizasse enquanto Raman Fielding,
ao seu lado, era como se não existisse.
Sammy conseguiu abrir a boca: - Não se preocupe, minha Senhora! Vai numa viagem em classe de luxo por toda a Europa, ver coisas espantosas e falar com as pessoas
mais importantes do mundo. Vai portar-se lindamente e honrar a nossa bandeira. Tenho a certeza absoluta. Portanto, minha Senhora, não se preocupe com
o Concurso. Quem são os tontos dos juizes? Para nós - para o
povo da índia - a Senhora já é e há-de ser sempre a vencedora.
Foi o mais eloquente discurso de toda a sua vida.
Nadia Wadia fingiu-se consternada.
- Oh - murmurou ela, quebrando-lhe o coração inexperiente ao voltar-lhe as costas. - Então também não acha que eu posso ganhar.
Quando ela ganhou, finalmente, o título de Miss Mundo, apareceu logo esta canção:
Nadia Wadia you've gone fardia
Whole of índia has admiredia
Whole of world you put in whirlia
Beat their girls for you were girlia
I will buy you a brand new cardia
Let me be your bodyguardia
I love Nadia Wadia hardia.
Hardia, Nadia Wadia, hardia. (*)
Ninguém conseguia deixar de cantarolar a cantiga, e muito menos, o nosso homem-de-lata. Let me be your bodyguardia. Deixa-me ser o teu guarda-de-corpo... Aquele
verso parecia-lhe uma mensagem dos deuses, uma intimação do destino. Ouvi também uma versão desafinada e sem palavras por detrás da porta do escritório de Mainduck.
Porque Nadia Wadia, depois da sua vitória, tornou-se o emblema da nação, tal como a Estátua da Liberdade ou como Mariana, tornou-se a razão do nosso orgulho e da
nossa autoconfiança. Eu via como tudo isso perturbava Fielding, cujas aspirações estavam a ultrapassar os limites da cidade de Bombaim e do estado de Maharashtra;
cedeu o cargo de Presidente da
(*) O sentido das palavras é quase irrelevante, e por isso, não as traduzimos. O que importa é um jogo bem-humorado em que as palavras são deformadas de modo a rimarem com os nomes da beldade: Nadia Wadia. (N. T.)
Câmara a um politiqueiro SA e começou a sonhar com o palco de toda a nação, de preferência com Nadia Wadia ao seu lado. Har-dia Nadia Wadia... Raman Fielding, esse
homem de intenções tão tortuosas, tinha-se fixado um novo objectivo.
Chegou a altura do Festival Ganpati. Era o quarto aniversário da Independência e a Autoridade Municipal, controlada pelos SA tentou organizar o maior Encontro Ganesha
de todos os tempos. Crentes e efígies foram trazidos aos milhares, de camionetas, de todas as partes. Espalharam-se por toda a cidade bandeirolas cor de açafrão
com slogans dos SA. Uma tribuna VIP foi construída ao largo de Chowpatty, perto do viaduto; e Raman Fielding convidou a nova Miss Mundo como convidada de honra e
ela, por respeito pelas festividades populares, aceitou. E assim a primeira parte do sonho de Mainduck realizou-se e ele estava ao lado dela quando os camiões SA,
cheios de rufiões, passaram diante da tribuna, agitando os punhos e lançando pétalas para o ar. Fielding fez um gesto de braço estendido e mão espalmada; Nadia Wadia,
ao ver a saudação nazi, voltou-lhe as costas. Mas Fielding estava numa espécie de êxtase, e enquanto o som dos festejos subia a níveis insuportáveis, ele voltou-se
para mim (eu estava um pouco atrás dele com Sammy, o Homem-de-Lata, apertado naquela tribuna tão cheia de gente) e gritou com toda a força:
- Chegou a altura de me ocupar do teu pai. Agora temos força que chegue para enfrentar Zogoiby, Gilvaz, seja quem for. Quem nos poderá resistir?
E com esgares de volúpia, agarrou na longa e bela mão da horrorizada Nadia Wadia e beijou-lhe a palma:
- Beijo aqui a índia! Vejam bem: beijo aqui o Mundo!
Ninguém ouviu a resposta de Nadia Wadia, abafada pelos gritos da multidão. *
Essa noite ouvi a notícia de que a minha mãe morrera ao cair da falésia durante a sua dança anual contra os deuses. Foi como
que a prova do grito de confiança de Fielding; porque a morte dela tornou Abraham mais fraco e Mainduck mais forte. Nas notícias da Rádio e da TV julguei detectar
uma nota apologética, como se os repórteres, os obituaristas e os críticos tivessem consciência de como tinham tratado mal essa grande e orgulhosa mulher - de como
eram responsáveis pelo amargo silêncio dos seus últimos anos. E, na verdade, nos dias e meses que se seguiram à morte, a sua estrela subia mais alto do que nunca,
as pessoas corriam a reapreciar e a louvar a sua obra com uma pressa e uma inquietação que me deixaram furioso. Se ela agora merecia essas palavras, é porque sempre
as tinha merecido. Nunca conheci uma mulher mais forte nem com mais claro sentido de quem era e do que valia; mas tinha sido ferida e as palavras de hoje - que poderiam
tê-la consolado se ela as tivesse ouvido - chegavam tarde de mais. Aurora da Gama Zogoiby, 1924-87. Os números tinham-se fechado sobre ela, como o mar.
E o quadro que encontraram no seu cavalete era a meu respeito. Na sua última obra, "O Ultimo Suspiro do Mouro", a pintora restituía ao Mouro a sua humanidade. Já
não era um arlequim abstracto nem uma colagem de sucatas. Era o retrato do filho, perdido num limbo como uma sombra errante: o retrato de uma alma no Inferno. E,
atrás dele, a mãe, já não num painel separado, mas de novo junto ao Sultão atormentado. Já não para o humilhar - "bem podes chorar como uma mulher" - mas com aspecto
aterrorizado e a protegê-lo com a mão. Era, igualmente, uma desculpa que chegava tarde demais, um acto de perdão de que eu já não podia beneficiar. Tinha-a perdido
e o quadro apenas aumentava o desgosto da sua perda.
Ó mãe, mãe. Sei agora porque me afastaste. Ó minha grande, morta, mãe, minha genetriz ludibriada, minha louca.
17
Contumaz, não regenerado, todo-poderoso: o supremo senhor do Alto Mundo, nos seus jardins suspensos do céu, rico para além dos sonhos dos mais ricos, Abraham Zogoiby,
de oitenta e quatro anos e a caminho da imortalidade, com os dedos longos como a aurora. Embora sempre tivesse receado uma morte prematura, tinha chegado a uma idade
provecta; Aurora, pelo contrário, morreu cedo. A sua saúde tinha melhorado com a idade. Ainda coxeava, ainda tinha dificuldades respiratórias, mas o coração estava
mais forte do que nunca desde o incidente de Lonavla, a vista mais penetrante, o ouvido mais sensível. Apreciava cada prato como se estivesse a comê-lo pela primeira
vez e nos seus negócios, farejava sempre qualquer tramóia. Em boa forma, mentalmente ágil, sexualmente activo, ele tinha qualquer coisa de divino - tinha-se elevado
acima do comum dos mortais e, obviamente, acima da própria Lei. Para ele não havia acalorados debates verbais, processos sinuosos, documentos ambíguos. E agora,
depois da queda de Aurora, recusava a própria morte. Por vezes, alcandorado, sozinho, no pico mais alto dos gigantes erigidos na ponta Sul da cidade, achava maravilhoso
o seu destino. Transbordava de sentimentos, via de lá de cima o rasto da lua nas águas paradas e parecia-lhe ver, para lá da superfície, a sua mulher, despedaçada,
por entre o restolhar dos caranguejos, o estalar das conchas, e o tracejado das lâminas brilhantes dos peixes. "Para mim, ainda não - pensou ele. - Comecei mesmo
agora a viver.
Uma tarde, numa praia do Sul, tinha-se visto a si próprio como uma parte da Beleza, como a metade de um anel mágico, completado com a presença daquela brilhante
e voluntariosa rapariga. Tinha receado a derrota do belo por tudo o que de feio há na terra, no mar e em nós próprios. Duas filhas e uma esposa mortas, uma outra
filha fugida para Jesus e um jovem-rapaz-velho que fora para o Inferno. Há quanto tempo tinha ele sido belo, há quanto tempo a beleza fizera dele um conspirador
do amor! Há quanto tempo, à força do seu desejo, tinham adquirido legitimidade certos votos profanos, como o carvão se transforma em diamante sob a pressão dos séculos.
Mas ela afastara-se dele, do seu amado, não tinha cumprido a sua parte do acordo e ele perdera-se ao cumprir a sua. Nas coisas deste mundo, nas coisas da terra e
da natureza encontrou compensação pela perda daquilo em que tocara, graças ao amor dela, pela perda do transcendente, do incomensurável. Agora que ela tinha partido,
deixando-o com o mundo nas mãos, só lhe restava envolver-se no seu poder, como num manto dourado. Guerras aproximavam-se; ele as ganharia. Novas paragens se avistavam;
ele as tomaria de assalto. Não a imitaria na sua queda.
Aurora teve funerais nacionais. Abraham ficou de pé, na catedral, e deixou os pensamentos correrem por novas estratégias de lucro. Dos três pilares da vida, Deus,
família e dinheiro, só tinha um e precisava, pelo menos, de dois. Minnie veio despedir-se da mãe, mas até parecia contente.
"Os devotos alegram-se com a morte", pensou Abraham, "pensam que ela é a antecâmara da glória Divina. Mas essa antecâmara está vazia. A eternidade acontece na terra
e o dinheiro não pode comprá-la. Imortalidade é o mesmo que dinastia. Preciso do meu filho, o desterrado".
Quando encontrei um recado de Abraham Zogoiby cuidadosamente entalado sob a almofada da minha cama em casa de Raman Fielding, percebi pela primeira vez como o seu
poder tinha aumentado.
- Sabes quem é o teu paizinho, lá no alto da sua torre? - tinha-me perguntado um dia Mainduck, antes de lançar uma tirada sob robots anti-Hindus e outros mimos no
género. A nota sob a almofada fez-me reflectir sobre quem ele realmente seria, já que no santuário do submundo, recebia calmamente a prova do comprimento do seu
braço; Abraham seria um formidável antagonista na guerra dos mundos que se avizinhava, submundo contra super-mundo, sagrado contra profano, deus contra o diabo,
passado contra futuro, sarjeta contra palácio: essa luta entre essas duas camadas de poder entre as quais eu e Nadia Wadia, e Bombaim e a própria índia nos encontrávamos
apanhados, como poeira entre duas demãos de pintura.
Campo de corridas, dizia a nota, escrita pelo seu próprio punho. Paddock (*) Antes da Terceira Corrida. Quarenta dias tinham passado desde que a minha mãe, na minha
ausência, fora enterrada ao som de uma salva de canhões. Quarenta dias e agora esta comunicação extremamente banal mas magicamente entregue, este ramo murcho de
oliveira. Claro que não iria aparecer, pensei de imediato, picado no meu orgulho, como seria de prever. Mas, como também seria de prever, e sem informar Mainduck,
lá me pus a caminho.
No hipódromo de Mahalaxmi, as crianças brincavam às escondidas por entre as pernas dos adultos. É isto que eu e ele somos um para o outro, gerações completamente
separadas. Será que os animais da floresta compreendem a verdadeira natureza das árvores entre as quais vivem a sua vida de todos os dias? Na floresta-mãe, entre
os poderosos troncos abrigamo-nos e brincamos; mas não sabemos se essas árvores são saudáveis ou doentes, se abrigam bons espíritos ou demónios. Nem sabemos o maior
de todos os segredos: um dia também nos transformaremos em árvores como eles. E essas árvores, cujas folhas comemos, cuja casca roemos, lembram-se tristemente do
tempo em que eram animais, em que trepavam como esquilos, saltavam como gamos até que um dia as pernas se enfiaram pela terra e ali ficaram presas, alastrando
(*) Nos hipódromos, recinto reservado ao passeio e exibição dos animais. (N. T.)
por baixo do chão enquanto ramos e folhas brotavam das suas cabeças ondulantes. Os adultos lembram-se disso como de um facto; mas a realidade vivida dos seus tempos
de animais, do sentimento daquela caótica liberdade, não é possível recapturá-la. Lembram-se da infância como se lembram de um sopro nas suas folhas. "Não conheço
o meu pai" - pensava eu percorrendo o paddock antes da terceira corrida - "Somos estranhos. Ele não me vai reconhecer e eu vou passar por ele às cegas".
Alguma coisa - um pequeno embrulho - foi-me posto na mão. Alguém murmurou, apressado:
- Preciso de uma resposta antes de prosseguirmos.
Um homem de fato branco, com um panamá na cabeça, meteu-se pela floresta humana e desapareceu. Crianças, aos gritos, corriam à roda das minhas pernas.
Abri o embrulho; já tinha visto aquele objecto, preso ao cinto de Uma. Aqueles auscultadores tinham rodeado noutros tempos a sua cabeça adorável. "Estava sempre
a estragar as minhas gravações. Deitei-o no caixote do lixo". Outra mentira; outro jogo de escondidas. Via-a fugir de mim, desaparecendo na multidão com um desagradável
gritinho de coelho. Que iria eu encontrar quando a encontrasse? Pus os auscultadores, alargando o suporte até servir na minha cabeça.
Lá estava o botão play, o botão do jogo. Mas eu não queria jogar. Não estava a gostar daquele jogo.
Carreguei no botão. A minha própria voz, destilando veneno, encheu-me os ouvidos.
Vocês conhecem aquelas pessoas que afirmam ter sido capturadas por extraterrestres e sujeitas a indescritíveis experiências e torturas - privação do sono, disseção
sem anestesia, cócegas prolongadas nas axilas, malaguetas metidas no ânus, superexposição a intermináveis espectáculos de ópera chinesa. Devo dizer-lhes que quando
acabei de ouvir a gravação no walkman de Uma, senti que tinha passado pelas garras do mais hostil dos demónios. Imaginei uma criatura tipo camaleão, um lagarto de
sangue frio vindo do outro lado do cosmos, que podia tomar uma forma humana, masculina ou feminina, como lhe conviesse, com o objectivo expresso
de causar o maior dano possível, porque o mal era o seu alimento
- o seu arroz, as suas lentilhas, o seu pão. Perturbações, rupturas, tristeza, catástrofes, sofrimento: tudo isto estava na lista dos seus pratos preferidos. Apareceu
entre nós (ela apareceu, neste caso) como uma torturadora, uma provocadora de guerras, vendo em mim (Pobre louco! Triplo asno!) um campo fértil para as suas fétidas
sementes. Paz, serenidade, alegria eram terrenos em que não podia viver. Ela alimentava-se das nossas divisões e ficava mais forte com as nossas lutas.
A própria Aurora - que viu a verdade desde o princípio - acabou por sucumbir. Não há dúvida que tinha sido um ponto de honra para Uma: como grande predador que era,
fazia questão em devorar a presa mais difícil. Nada do que pudesse dizer teria minimamente convencido a minha mãe; sabendo isso, Uma usou as minhas palavras - as
minhas obscenidades raivosas, provocadas pelo cio - em vez das suas. Gravou-as todas; e com que sedução me conduziu por esses caminhos, fazendo-me pensar que ela
precisava absolutamente de ouvir aquelas frases fatais! Não me estou a desculpar. Aquelas palavras fui eu quem as disse. Se não fosse tão louco não teria dito tanto.
Mas por amar Uma e por saber da oposição da minha mãe, soltei toda a minha raiva, exprimindo num grito a primazia do amor romântico sobre a sua variedade mãe-filho;
vindo duma casa onde a obscenidade fácil tinha sempre apimentado as nossas conversas, não hesitei no foder, e cona e broche. E fui murmurando estas escuras palavras
enquanto fazíamos amor porque a minha amada me pedia - Ó mulher falsa! Ó infame! - um lenitivo para a sua autoconfiança e o seu orgulho feridos! A nossa amante pede-nos,
em pleno acto do amor, que satisfaçamos a sua necessidade; ela precisa disso, diz que precisa que lhe digamos isso; podemos, porventura, recusar? Se tem que ser,
tem que ser. Não conheço os vossos segredos nem desejo conhecê-los, mas não iriam com certeza recusar. Diriam: "Sim, meu amor, sim, também eu preciso disto!"
Disse aquelas palavras na privacidade e na cumplicidade do acto do amor. Que era, também, aliás, parte táctica de Uma, um meio necessário para atingir os seus fins.
Quarenta e cinco minutos (em cada lado da cassete) de momentos escolhidos e montados de gravações dos nossos orgasmos e o horroroso leitmotiv: Fodê-la. Oh sim, é
o que eu quero! Foder a minha mãe. Pôr-me nela! Foder aquela cabra! Cada sílaba daquelas remexia um punhal no coração despedaçado da minha mãe.
Com Aurora em estado de choque, a seguir à morte de Mynah, a criatura escolheu o seu momento, disfarçando a mensagem do ódio em diligência de amor. Entregou nessa
noite a cassete aos meus pais. Foi lá com esse fito e não outro, e eu mal posso imaginar o choque e a dor deles essa noite - posso talvez ver Aurora imóvel no banco
do piano durante toda a noite no seu salão oiro e laranja, o velho Abraham torcendo as mãos encostado a uma parede e, entrevistos através dum arco, vultos de criados
assustados, esvoaçando nas margens do quadro.
Na manhã seguinte, quando saí da sua cama, Uma sabia o que me esperava em casa - as faces hostis e lívidas no jardim, a mão a apontar o portão: embora, vai-te embora
daqui e nunca mais voltes! E quando, cheio de espanto e de horror, regressei ao seu apartamento, como ela se ultrapassou! Que espectáculo ela deu! - Mas hoje eu
sei tudo. Não lhe dou nenhum benefício da dúvida.
Uma, minha amada traidora, estavas pronta a jogar o jogo até ao fim; assassinares-me e assistires à minha agonia enquanto o alu-cinogéneo te desvairava o espírito.
Mais tarde anunciarias, sem dúvida, o meu trágico suicídio: - "Que triste discussão familiar, pobre rapaz tão sensível, não resistiu! E a morte da irmã, ainda por
cima!" Mas a farsa intrometeu-se, um passo em falso, duas cabeças que chocam e então tu, como grande actriz e grande jogadora que foste, representaste a cena até
ao fim; o pior foi que o final foi o lado errado duma aposta a cinquenta por cento. Mesmo o mal absoluto tem o seu lado esplêndido. Minha Senhora, tiro-lhe o chapéu.
E muito boa noite!
De novo o gritinho do coelho; fica por momentos no ar e desaparece. Como se uma antiga malignidade, incapaz de suportar a luz do dia, se dissolvesse no pó...
Mas não! Não me vou permitir tais fantasias. Uma era mulher; mulher de carne e osso. É assim que temos que a ver... Louca ou
má} Para mim, isso não é problema. Tal como rejeitei todas as teorias sobrenaturais (invasões extraterrestres, vampiros guinchadores) também não deixarei que ela
tenha sido louca. Lagartos espaciais ou sugadores de sangue não são susceptíveis de um julgamento moral, e Uma tem de ser julgada.
Os homens são assim: plantam ventos e colhem tempestades. Há, entre nós, os que se alimentam da desgraça; não podem viver sem um fornecimento regular de catástrofes.
A minha Uma era dessas.
Seis anos! Perdidos seis anos de Aurora, doze anos do Mouro. A minha mãe tinha sessenta e três anos quando morreu; eu parecia ter sessenta. Podíamos passar por irmão
e irmã. Podíamos ter sido amigos. - "Preciso duma resposta" tinha dito o meu pai no hipódromo. Pois vai ter uma. Terá de ser a verdade nua e crua: tudo sobre Uma
e Aurora, Aurora e eu e eu e Uma Sarasvati, a minha bruxa. Vou expor-lhe tudo e submeter-se à sua sentença. Tal como Yul Brynner, no seu papel de Faraó, tanto gostava
de dizer no filme "Os Dez Mandamentos"-.
- Assim seja escrito. Assim seja feito.
Houve uma segunda nota colocada debaixo da minha almofada por uma mão invisível. Houve novas instruções e uma chave-mestra que abria uma entrada de serviço não guardada
nas traseiras da Torre Cashondeliveri e bem assim a porta do elevador particular que conduzia directamente ao "penthouse" do 31º andar. Houve uma reconciliação,
umas explicações aceites, um filho regressado aos braços do pai, a renovação de um laço quebrado.
- Ó meu rapaz! A tua idade! *
- Ó meu pai! A sua também!
Havia uma noite clara, um jardim suspenso, uma conversa como nunca tínhamos tido.
- Meu rapaz, não me escondas nada. Embora eu já saiba tudo. Tenho olhos para ver, ouvidos para ouvir e conheço os teus feitos e os teus crimes.
E antes que eu pudesse esboçar qualquer justificação, levantou a mão e teve uma espécie de sorriso, um grasnido:
- Gosto de te ver. Quando saíste eras um rapaz, agora que voltaste, és um homem. Vamos falar como homens de coisas que interessam aos homens. Sempre gostaste mais
da tua mãe do que de mim. Não te levo isso a mal. Eu também gostava mais dela. Mas agora é a vez do teu pai, ou melhor, é a vez de nós os dois. Agora posso-te pedir
que juntes a tua força à minha, e espero podermos falar livremente de muitas coisas secretas. Na minha idade preciso de ter confiança em alguém. Preciso de abrir
o meu coração, de revelar os meus mistérios. Preparam-se grandes coisas. Esse Fielding, quem é ele? Um piolho. Na melhor das hipóteses o Pluto do submundo e nós
sabemos bem, lembrando o quarto das crianças, quem é o Pluto. Um cão estúpido. Ou agora talvez possamos dizer um sapo.
Havia lá um cão. Num canto da entrada havia um buldogue embalsamado e com rodas.
- Ficou com ele - espantei-me. - Com o velho Jawaharlal do Aires.
- Em atenção aos velhos tempos. Às vezes puxo-o pela trela, dou-lhe um passeio aqui no terraço.
Aí vinha o perigo!
Tendo concordado em trabalhar para o meu pai, aprender o que ele sabia e ajudá-lo nas suas empresas, concordara também em manter o meu lugar junto de Fielding. Para
trair o meu patrão em favor do meu pai, tinha de voltar para casa do patrão. E dizer a Mainduck
- porque ele não era parvo nenhum - uma parte da verdade:
- Foi bom fazer as pazes com o meu pai, mas isso não afecta as minhas convicções.
Fielding, disposto a aceitar-me em virtude dos seis anos de bons serviços, concordou em que eu continuasse ali; mas ficou de pé atrás.
Eu sabia que ele ia mandar vigiar-me a partir de agora. O meu primeiro erro seria o último. Eu sou uma pequena ponte do campo de batalha, eles são a guerra total.
Quando os meus colegas - os meus velhos camaradas de combate - souberam da feliz notícia reagiram. Chhaggan enco-
lheu os ombros, como se dissesse: - "Tu nunca foste um dos nossos, menino rico. Nem Hindu nem Mahratta. Foste só um cozinheiro com uma família fina e um punho especial.
Vieste aqui para dares uso ao teu martelo. És um chanfrado! Um maluco à procura de porrada - estavas-te ralando para a nossa causa. E agora a tua classe, a tua família,
vêm-te buscar de volta. Já não vais ficar aqui muito mais tempo. Para quê? Estás velho demais para a porrada."
Mas Sammy Hazaré, o Homem-de-Lata, limitou-se a olhar-me de lado. E por isso percebi de quem era a mão que punha recados debaixo da minha almofada, quem era o agente
do meu pai. Sammy, o Cristão, seduzido por Abraham, o Judeu.
Cuidado, Mouro, murmurei para comigo mesmo. O conflito aproxima-se e quem ganhar, ganha o futuro. Cuidado, não vás perder nessa batalha a tua cabeça de imbecil.
Mais tarde, no seu jardim suspenso, Abraham disse-me que Aurora tinha pensado muitas vezes em me perdoar, anular o meu desterro e fazer-me voltar para casa. Mas
depois lembrava-se da minha voz, das palavras nojentas que não podia fingir que não tinham sido ditas - e o seu coração de mãe voltava a endurecer. Quando ouvi isto
comecei a ser perseguido pelos anos perdidos, a viver obcecado de dia e de noite. Quando dormia inventava máquinas do tempo que me permitiam recuar e atravessar
a fronteira da sua morte; quando acordava ficava furioso ao ver que a viagem no tempo não passava dum sonho.
Passados meses nesta frustração, lembrei-me do retrato que Vasco Miranda fizera da minha mãe e achei que, pelo menos de certa maneira, poderia de novo tê-la de volta;
na arte duradoura, já que não na breve vida. Claro que a sua obra estava cheia de auto-retratos, mas a perdida tela de Miranda, repintada e vendida, representava
talvez melhor a minha perdida mãe e a perdida mulher de Abraham. Se pudéssemos descobrir o quadro! Seria como se voltasse a reaparecer
mâis jovem; seria um renascer, uma vitória sobre a morte. Todo excitado, comuniquei ao meu pai a minha ideia. Ele franziu a testa.
- Esse quadro.
Mas as objecções tinham desaparecido com os anos. Pude ver o desejo transparecer no seu rosto.
- Mas foi destruído há muito tempo.
- Destruído, não. - corrigi eu. - A tela foi repintada: "O Artista Como Boabdil, O Infeliz (el-Zogoiby), Último Sultão de Granada, Visto ao Deixar o Alhambra. Oh
O Ultimo Suspiro do Mouro". Uma horrenda pintura equestre, própria da tampa duma caixa de chocolates que a Mãe dizia que era pior que qualquer borradela de Bazar.
Retirar essa nova pintura não era perda nenhuma. E assim ficávamos de novo com ela.
- Remover a pintura, dizes tu.
Via-se que a ideia de vandalizar uma pintura de Vasco Miranda, especialmente aquela em que ele tinha roubado a lenda da família, agradava muito a Abraham: - Achas
que é possível?
- Tem de ser - disse eu. - Há-de haver especialistas para isso. Se quiser, informo-me.
- Mas o quadro é do Bhabha. Será que o velho sacana o quer vender?
- Se o preço for bom... - E piquei-o: - Por muito sacana que seja, não é tanto como o pai.
Abraham deu um grasnido e agarrou no telefone:
- Zogoiby, - disse a quem atendeu. - O C.P. está? - E pouco depois: - Boa noite, C.P. Porque é que andas a fugir dos teus amigos?
Seguiram-se algumas frases, alguns ladridos de negociação, em que o rude staccatto da sua fala contrastava estranhamente com o vocabulário que usava, palavras brandas
e floreadas de lisonja e de deferência. Depois a conversa parou de repente como um motor de automóvel que se vai abaixo; Abraham recolocou o telefone no suporte
com uma ruga de espanto na testa.
- Roubado - disse ele. - Há poucas semanas. Roubado da própria casa.
Notícias chegadas de Espanha diziam que o velho (e cada vez mais excêntrico) pintor indiano V. Miranda, a residir nessa altura na aldeia andaluza de Benengeli tinha
ficado ferido ao tentar a singular façanha de pintar um elefante adulto visto por baixo. O elefante, um animal de circo mal alimentado e alugado por um dia por uma
soma exorbitante, tinha que trepar por uma rampa de cimento especialmente construída pelo celebrado (mas temperamentalmente instável) Senor Miranda em pessoa e posar
depois sobre uma placa de vidro supostamente reforçado, sob a qual o velho Vasco tinha instalado o seu cavalete. Jornalistas e equipas de televisão acorreram a Benengeli
para registar aquela curiosa proeza. No entanto, Isabella, a elephanta, apesar de habituada a fazer todas as palhaçadas a que a obrigavam no circo, teve a delicadeza
e a sensibilidade de recusar cooperar naquilo a que alguns comentadores locais chamaram "um acto degradante" ou "bisbilhotice debaixo do ventre" e que parecia o
emblema da libertinagem perdulária, da indulgente amoralidade e, no fim de contas, a extrema inutilidade de qualquer arte. O artista saiu do seu palacete com as
pontas dos bigodes em posição de sentido. Tinha-se vestido de uma forma tão absurda que poderia parecer a aplicação sistemática da incongruência: uns calções de
couro tiroleses, uma camisa bordada e um chapéu de que energia um talo de aipo. Isabella tinha parado a meio da rampa e os esforços dos tratadores eram impotentes
para a deslocar. O artista bateu as palmas:
- Elefante! Obedece!
A esta ordem, a elephanta, com evidente desprezo, resolveu deixar de vez a rampa e, ao recuar, pisou o pé esquerdo de Vasco Miranda. Os elementos mais conservadores
da multidão que assistia ao espectáculo tiveram o mau gosto de aplaudir a elephanta.
Depois disto Vasco, tal como Abraham, passou também a coxear; mas em todos os outros campos os seus caminhos mantinham-se divergentes. O fracasso da aventura do
elefante não diminuiu minimamente os loucos entusiasmos da sua velhice. Pouco tempo depois, graças a uns donativos particularmente substanciais
às escolas do Município, obteve autorização para construir, em honra de Isabella, uma enorme e hedionda fonte em que elefantes cubistas deitavam água pela tromba
enquanto posavam como bailarinas, equilibradas na pata esquerda traseira.
A fonte foi construída no centro da praça onde estava o "Pequeno Alhambra" de Vasco e que passou a chamar-se "Praça dos Elefantes", perante a fúria dos habitantes
mais velhos, reunidos num bar das proximidades chamado "La Carmencita" em homenagem à filha do falecido ditador, os veteranos recordavam por entre explosões líquidas
de nostalgia ultrajada, que a praça agora vandalizada se chamara até então Plaza de Carmen Polo, segundo o nome da mulher do Caudilho. Era uma homenagem e uma honra
que ficava para sempre enxovalhada com a conexão aos paquidermes; era isso, pelo menos o que os velhotes, furiosos, unanimemente declaravam.
Nos antigos tempos, recordavam uns para os outros, Benengeli tinha sido a aldeia andaluza favorita do Generalíssimo; mas os antigos tempos tinham sido varridos para
sempre por aquele presente, amnésico e democrático, que achava que todo o passado era lixo que tinha de ser despachado o mais depressa possível. E que uma monstruosidade
como a fonte dos elefantes lhes fosse imposta por um não-Espanhol, um Indiano que deveria antes ter ido fazer os disparates para Portugal e não em Espanha, vista
a tradicional lusofilia dos Goeses - isso é que era intolerável! Mas o que se há-de fazer aos artistas, que cobriam de vergonha o bom nome de Benengeli importando
para a aldeia as suas mulheres e os seus licenciosos costumes e os deuses estrangeiros? É que embora esse tal Miranda se declarasse católico, é bem sabido que todos
os orientais são pagãos lá por dentro.
Vasco Miranda foi acusado pela velha guarda de ter provocado a maior parte das transformações em Benengeli e se pedissem aos habitantes que indicassem a data exacta
em que tudo tinha começado, todos eles indicariam o ridículo incidente da elephanta na rampa, porquanto aquele burlesco episódio muito pouco elegante mas largamente
difundido por toda a parte, trouxe para Benengeli a atenção dos detritos humanos de todo o mundo e, dentro de poucos anos, aquela outrora pacata aldeia que fora
o retiro meridional preferido pelo chefe hoje caído, tornara-se num ninho de
marginais, de vermina desterrada e uma zona de espuma com os dejectos do planeta. O Chefe da Guarda Civil de Benengeli, Sargento Salvador Medina, um vociferante
opositor aos novos residentes, fazia ouvir a sua opinião a quem o queria ouvir e mesmo a quem não queria:
- O Mediterrâneo, o antigo "Mare Nostrum" está a morrer de porcaria. E a terra - a "Terra Nostra" - esta igualmente a morrer.
Vasco Miranda, numa tentativa de ganhar os favores do chefe da Guarda Civil, mandou-lhe o dobro do presente de dinheiro e álcool devido pelo Natal, mas Medina não
se deixou apaziguar. Depositou pessoalmente à porta de Vasco o dinheiro e o álcool a mais e disse-lhe na cara:
- Os homens e as mulheres que deixam os lugares onde nasceram, não chegam a ser humanos. Ou lhes falta alguma coisa na alma, ou têm dentro deles alguma coisa a mais:
a semente do mal.
Depois deste insulto Vasco Miranda retirou-se para trás das altas muralhas da sua extravagante fortaleza e passou a ter uma vida de recluso. Nunca mais foi visto
nas ruas de Benengeli. Os criados que o serviam (nesse tempo muitos rapazes e raparigas vinham para o Sul de Espanha - já assaltado por problemas de desemprego -
a partir das zonas de crise da Mancha ou da Estremadura, prontos a trabalhar em restaurantes, hotéis ou serviços domésticos, o que fazia com que esse tipo de mão-de-obra
fosse tão disponível em Benengeli como em Bombaim) falavam das aterradoras mudanças de humor em que períodos de reserva e silêncio absolutos alternavam com intermináveis
arengas sobre temas abstrusos ou mesmo incompreensíveis, com embaraçosas revelações sobre os mais íntimos pormenores da sua agitada carreira e com bebedeiras colossais;
e havia ainda terríveis períodos de depressão durante os quais disparatava aos gritos contra os bárbaros infortúnios da sua vida, muito especialmente os do seu terror
pela "agulha perdida" que ele acreditava estar a seguir um inexorável caminho para o seu coração. Mas pagava bem e pontualmente e por isso mantinha o seu pessoal.
Talvez que as vidas de Vasco e de Abraham não fosse, no fim de contas, tão diferentes como isso. A seguir à morte de Aurora ambos passaram a viver isolados, Abraham
na sua Torre, Vasco na
dele; ambos procuravam enterrar o desgosto da sua perda em novas actividades, novos empreendimentos, por muito mal concebidos que estivessem. E ambos, como viria
mais tarde a saber, afirmavam ser visitados pelo fantasma dela.
"Ela anda por aqui. Tenho-a visto." Abraham, no pomar com o cão empalhado confessou ter tido uma visão - levada, pela primeira vez na sua existência, e após uma
vida inteira de cepticismo total sobre o assunto, a admitir que a mera possibilidade da vida após a morte fosse pronunciada pela sua descrente língua.
- Ela não espera por mim; esconde-se nas árvores.
Os fantasmas como as crianças gostam de brincar às escondidas.
- Ela não está descansada. Sei que ela não anda descansada. Que posso eu fazer para lhe dar paz?
Para mim, o próprio Abraham é que me parecia muito agitado, sem conseguir acostumar-se à perda da mulher.
- Talvez que se a obra dela tiver o seu lugar condigno... - sugeriu ele.
E foi assim que o gigantesco Legado Zogoiby, no qual se incluía toda a colecção de obras de arte de Aurora - centenas de peças! - foi doado à nação sob condição
de ser construída uma galeria em Bombaim que guardasse e expusesse as peças da melhor maneira. Mas, como consequência dos massacres de Meerut, e dos motins entre
Hindus e Muçulmanos na Velha Deli e por todo o lado, a arte deixou de ser uma prioridade do Governo, e a colecção salvo algumas obras-primas que foram expostas na
National Gallery de Deli foi ficando à espera. As autoridades civis de Bombaim, sendo controladas por Mainduck, não estavam dispostas a pagar os fundos que o erário
público negara.
- Então que se lixem os políticos todos, raios os partam! - gritou Abraham. - O espírito de iniciativa é a melhor política de todas.
Conseguiu que outros patrocinadores se juntassem ao seu projecto; havia dinheiro oriundo da rápida expansão do Khazana
Bank e também do superfinanceiro V. V. Nandy, cujos extraordinários ataques-surpresa aos mercados monetários mundiais começavam a ganhar uma fama lendária, ainda
por cima vindos de uma fonte Terceiro Mundista.
- O Crocodilo está a transformar-se num herói pós-colonial para os nossos jovens - disse-me Abraham, rindo dos caprichos do destino. - Ele serve-lhes os seus interesses
de império-contra-ataca e de enriqueça-rapidamente.
Foi encontrado o local ideal: uma das raras velhas mansões de Parsis que restavam em Cumballa Hill ("Quão velha?" - "Velha, homens. Mesmo muito velha") - e uma jovem
e brilhante crítica de Arte, Zeenat Vakil, devota da obra de Aurora e já autora de um importante estudo das miniaturas de Hamseh-Nameh, foi nomeada administradora.
A Dr.a Vakil iniciou de imediato a compilação de um catálogo exaustivo, e começou a trabalhar, de igual modo, num estudo de apreciação crítica: "Imperso-nação e
Disseminação: Carácter Dialógico do Eclectismo e Interrogações de Autenticidade em A.Z.", que deu à sequência do Mouro - incluindo as últimas telas nunca antes vistas
- o seu legítimo lugar no centro da obra de Aurora, o que muito viria a contribuir para colocar Aurora na legião dos imortais. O Legado Zogoiby abriu ao público
apenas três anos após a triste morte de Aurora; seguiu-se uma certa dose de inevitável ainda que efémera controvérsia, por exemplo acerca dos primitivos e, a certos
olhos incestuosos, quadros do Mouro - aqueles "panto-quadros" que ela tinha pintado com certa ligeireza há muito tempo. Mas lá no alto de Cas-hondeliveri Tower o
seu fantasma ainda vagueava.
Agora Abraham começara a exprimir a convicção de que a morte dela não tinha sido aquele óbvio acidente que toda a gente supusera. Levando um lenço aos olhos remeleiftos
disse com voz trémula que aqueles que são mortos à traição necessitam de um ajuste de contas antes de obterem o repouso desejado. Abraham parecia cair cada vez mais
profundamente nas malhas da superstição, aparentemente incapaz de aceitar o facto da morte de Aurora. Em circunstâncias normais esta escorregadela para aquilo a
que ele sempre chamou de "rituais da treta" ter-me-ia chocado profunda-
mente; mas, também eu fui apanhado nas cada vez mais fortes garras da obsessão. A minha mãe estava morta e, no entanto, eu devia fazer qualquer coisa. Se ela estivesse
definitivamente morta então não poderia haver nunca uma reconciliação. Persistiria sempre esta tormentosa e imperativa necessidade, esta ferida-que-não-cura. Por
isso, resolvi não contradizer Abraham quando ele falou em fantasmas nos seus jardins suspensos. Até cheguei a esperar - sim!
- por ouvir um súbito tilintar de pulseiras, um roçagar de roupa por detrás de um arbusto. Ou, melhor ainda, cheguei a esperar pelo regresso da mãe dos meus tempos
favoritos, cheia de pingos de tinta e com pincéis enfiados no seu felpudo e caótico cabelo.
Até mesmo quando Abraham anunciou que tinha pedido a Dom Minto que reabrisse, numa base privada, o inquérito à morte dela (Logo a Minto, olha quem!, cego, desdentado,
numa cadeira de rodas, surdo, e mantido vivo, à beira dos cem anos, através de máquinas de diálise, transfusões de sangue regulares, e sem perder aquela insaciável
curiosidade que o tinha levado ao topo da sua árvore profissional!) eu não pus qualquer objecção. Deixem lá o velhote conseguir o que precisa para acalmar o seu
atormentado espírito, pensei. E também, devo dizer, não era fácil contradizer Abraham Zogoiby, aquele monte de ossos desumano. Quanto mais confiança me deu, abrindo
as suas cadernetas do banco, os livros secretos e o seu coração, mais profundamente eu comecei a sentir medo.
- Foi o Fielding - berrou ele a Minto. - E quanto a Mody, o tipo não vale nada. Investigue o Fielding. Aqui o Mouro dar-lhe-á toda a ajuda de que precisar.
O meu medo aumentou. Se o Raman Fielding - culpado ou inocente - alguma vez desconfiasse que eu o espiava no sentido de o incriminar num suposto assassínio, isso
não seria muito bom para mim. No entanto não podia furtar-me a Abraham, o meu readquirido pai. Nervosamente, dei por mim a conseguir fazer perguntas indiscretas:
o que levaria Mainduck a... que motivo tinha ele tido...?
- O miúdo quer saber porque é que eu suspeito desse grande sacana - berrou Abraham Zogoiby por entre sinistras gargalha-
das e o velho e acabado Minto, também ele, bateu alegremente na coxa. - Se calhar pensa que a mãezinha dele era alguma santa, e que só o malvado do pai é que seguiu
por maus caminhos. Mas ela papou tudo o que tinha calças, ou não foi? Pegava-lhes e largava-os. Não há pior fúria que a de um sapo desprezado.
Dois velhotes rindo macabramente, acusações de infidelidades conjugais e de assassínio, um fantasma deambulante e eu. Fiquei desnorteado. Só que não tinha para onde
fugir, onde me esconder. Só me restava fazer o que tinha de ser feito.
- Paizão, não te preocupes - murmurou Minto, tão brando na fala como Abraham tinha sido estentóreo. - Esse tal Fielding, considera-o esquartejado, afogado e enforcado.
As crianças tendem a fantasiar os pais, reinventando-os segundo as suas infantis necessidades. A realidade de um pai é um peso que poucos filhos conseguem suportar.
Naquele período, era ideia geralmente aceite que os gangs (principalmente Muçulmanos) que controlavam o crime organizado da cidade, cada um deles com o respectivo
chefe dirigente ou dada, se encontravam enfraquecidos devido à sua tradicional dificuldade em formar qualquer tipo de aliança ou de frente unida duradoura. A minha
própria experiência com os SA, trabalhando na zona mais pobre da cidade para angariar amigos e conseguir apoio, deu-me uma ideia diferente. Tinha começado a vislumbrar
lampejos e sinais de algo sombrio, tão assustador que ninguém queria falar no assunto - uma camada qualquer escondida sob a superfície do que parecia ser. Eu sugerira
ao Mainduck que os gíngs poderiam ter finalmente alcançado a unidade, que talvez até existisse agora um único capo di tutti capi ao estilo da Mafia, dirigindo todos
os negócios escuros da cidade, mas ele gozou-me de morte.
- Limita-te a dar-lhes murros nos cornos, Hammer - escarneceu. - Deixa as coisas mais profundas para as mentes mais profundas. A unidade requer disciplina, e nós
é que temos o mono-
pólio desse produto. Esses cabrões hão-de arranjar contendas até que caia o céu.
Mas agora, com estes que a terra há-de comer, tinha ouvido que Dom Minto tinha nomeado o meu pai como o maior padrinho de todos eles. No momento em que ouvi isso,
soube logo que era verdade. Abraham era um líder genuíno, um negociante nato, o rei dos que fechavam negócios. Jogara sempre no mais alto risco; até se dispusera,
quando jovem, a apostar o seu filho por nascer. Sim, o Alto Comando sempre existia, e os gangs muçulmanos tinham sido unidos por um Judeu de Cochim. A verdade é
quase sempre excepcional, caprichosa, improvável, e quase nunca normativa, quase nunca o que um cálculo frio sugere. No fim, as pessoas fazem as alianças de que
precisam. Seguem o homem que os sabe levar na direcção que preferem. Ocorreu-me que a preeminência do meu pai sobre Gilvaz e os seus colegas era uma sombria e irónica
vitória do laicismo enraizado na índia. A própria natureza desta liga de cínico interesse pessoal intercomunidades deitou por terra a visão de Mainduck de uma teocracia
na qual uma variante particular do Hinduísmo governaria, enquanto todos os outros povos da índia baixariam as derrotadas cabeças.
Vasco tinha-o dito, anos atrás: a corrupção era a única força que conseguia derrotar o fanatismo. Aquilo que, na sua boca, não passara de conversa de bêbados, tinha
sido transformado por Abraham Zogoiby em pura realidade, numa união de tugúrios e palácios, um exército de malandros ateus que podia tomar o poder e levar de vencida
tudo aquilo que a brigada de Deus lhe opusesse.
Talvez.
Raman Fielding já tinha cometido o erro fatal de subestimar o seu adversário. Será que Abraham Zogoiby viria a ser mais sensato? Os indícios mais recentes não eram
famosos.
- Um insecto. - Chamava ele a Mainduck. - Um estúpido cão com coleira.
E se ambas as partes tinham ido à guerra por acreditarem que o inimigo seria fácil de vencer? E se ambas as parte se tivessem enganado? E aí, o que é que acontecia?
O Armageddon?
No caso do escândalo dos narcóticos Baby-Softo, Abraham Zogoiby - como ele próprio me veio a confirmar durante as nossas conversas com um descarado sorriso arreganhado
- tinha recebido uma total absolvição das autoridades.
- Um atestado de saúde perfeito, - proferiu. - As mãozinhas igualmente limpas. Os meus inimigos podem querer dar cabo de mim, mas vão ter de se esforçar mais.
Não havia dúvida de que as exportações da empresa de pó-de-talco Softo tinham sido um mero disfarce para o envio para o estrangeiro de outros pós brancos bem mais
lucrativos, mas não obstante os esforços hercúleos dos agentes da brigada de narcóticos foi impossível provar que Abraham estava a par de qualquer actividade ilegal.
Certos funcionários menores da empresa - dos departamentos de embalagem e de despacho - mostraram claramente ter sido pagos por um sindicato de droga, mas no fim,
todas as investigações ficaram em águas de bacalhau. Abraham foi generoso na atenção que teve para com as famílias dos homens que tinham sido presos. "Porque é que
as mulheres e as crianças têm de sofrer pelas actividades dos pais?", gostava de dizer; e, no fim, o caso foi encerrado tendo sido retiradas todas as acusações às
altas personalidades que tinham sido feitas nomeadamente por Raman Fielding em nome da Autoridade Municipal. Continuou um tanto escandaloso o facto do barão da droga
conhecido por "Gilvaz" continuar em liberdade. O que corria era que ele se tinha refugiado algures no Golfo Pérsico. Mas Abraham Zogoiby tinha diferentes novidades
para mim.
- Seríamos uns idiotas chapados se não conseguíssemos solucionar também os assuntos relativos à emigraçãô e à imigração, - gritou. - E óbvio que os nossos sabem
perfeitamente entrar de mansinho no país e escapulirem-se sempre que quiserem. E os agentes da brigada de narcóticos também são humanos. Com o pouco que ganham é-lhes
difícil equilibrar as finanças. Que queres que te diga? É obrigação do rico. A filantropia é a nossa função inevitável. Noblesse oblige.
A vitória de Abraham no caso Baby Softo fora um duro golpe para Fielding, que me exigia constantemente que bombardeasse o meu pai com um interrogatório acerca das
actividades relacionadas com droga. Mas eu não precisei de o bombardear. Abraham fez questão de me abrir o coração e disse-me claramente que a vitória do caso Softo
não teria sido possível sem custos a longo prazo. Com a rota do pó de talco encerrada, teve de ser levada a cabo uma operação bem mais arriscada, a grande velocidade
e debaixo do próprio nariz da polícia.
- Os custos iniciais foram ridiculamente altos, - confidenciou-me. - Mas que podia eu fazer? No mundo dos negócios a palavra de um homem é o seu compromisso, e havia
contratos para cumprir.
Gilvaz e os seus homens tinham trabalhado a tempo inteiro para estabelecer a nova rota, a qual culminava nos poeirentos desertos do Rann of Kutch (tendo sido necessário
o suborno de funcionários em Gujarat bem como em Maharashtra). Pequenos barcos fariam a travessia levando o "talco" a outros barcos de carga que aguardavam. A nova
rota era mais lenta e mais arriscada.
- Isto é só um breve interregno - disse Abraham. - A seu tempo faremos novos amigos no terminal de carga aéreo.
Costumava ir até ao seu Éden de vidro à noite e ele contava-me as suas retorcidas histórias. E de certo modo eram iguais aos contos de fadas: sagas de duendes dos
dias de hoje, contos do absolutamente anormal recontados em tons prosaicos e banais, próprios de um gerente de armazém. (Então era a isto que o meu selvagem pai
se referia quando falava em afundar-se em trabalho para o ajudar a aguentar a sua perda! Era isto que ele fazia para atenuar a sua dor!) ...Os armamentos tinham
um especial destaque nestas histórias, muito embora a lista de actividades conhecida publicamente da sua grande Empresa não incluísse comércios desse tipo. Uma famosa
casa de armamentos nórdica estava a negociar o fornecimento à índia de uma vasta gama de produtos basicamente decentes, elegantemente desenhados e naturalmente letais.
As quantias envolvidas eram altas demais para ter significado, e, como é normal em tais Himalaias de capital, alguns pedre-
gulhos de dinheiro periféricos saíram do monte principal e desataram a rolar montanha abaixo. O que era preciso agora era arranjar uma maneira discreta de arrumar
esses pedregulhos rolantes de modo a beneficiar todos os envolvidos nas negociações. Os participantes nas negociações eram gente muito fina, possuidores de uma delicadeza
tal que os impossibilitava de arrumar este cascalho de lucro, até mesmo dentro das suas contas bancárias. Nem um trago mínimo de indecência poderia ser ligado aos
seus bons nomes!
- Assim, - disse Abraham com um alegre encolher de ombros - nós fazemos o trabalho sujo e muitos dos calhaus acabam por vir parar aos nossos bolsos.
Acontecia que a "Siodicorp" de Abraham - como era mundialmente conhecida - era um interveniente importante dentro do Khazana Bank International, o qual nos finais
dos anos oitenta se tinha tornado a primeira instituição financeira do Terceiro Mundo e rivalizava com os mais importantes bancos ocidentais em termos de activo
e de transacções. O negócio mais ou menos moribundo que ele tinha tirado aos irmãos Cashondeliveri tinha sido brilhantemente ressuscitado, e as suas ligações com
a empresa KBI tinham-no tornado na maravilha da cidade.
- Os velhos dias em que se montava um sistema de desvio de dólares para as economias de cabaz-de-compras acabaram - declamou o meu pai. - Chega de cooperações pobrezinhas
entre Sul e Sul. Que entrem os grandes senhores! Dólar, Marco Alemão, Franco Suíço, Iene, façam favor de entrar! Agora é que os vamos derrotar no seu próprio jogo!
Não obstante esta sua nova franqueza para comigo, isto passou-se alguns anos antes de Abraham Zogoiby admitir que debaixo da sua cintilante visão monetarista se
escandia uma oculta camada de actividade: o inevitável mundo secreto que existira, à espera de revelação, para lá de tudo o que eu conhecera até agora.
E se a realidade daquilo que somos não é mais que as muitas verdades encobertas que existem por detrás dos véus do desconhecido e da ilusão, então porque não Céu
e Inferno, também? Porque não Deus e o Diabo e essa treta toda? Se há uma Revela-
ção, porque não há um Apocalipse? - Por favor. Não é altura para se discutir teologia. O assunto em questão é o terrorismo e um dispositivo plano nuclear ultra-secreto.
De entre os inúmeros clientes da KBI havia um certo número de cavalheiros e de organizações cujos nomes figuravam nas listas dos mais-procurados e mais-perigosos
de todos os países do mundo ocidental - mas que, misteriosamente, pareciam ser livres de entrar e sair no país, viajar em aviões comerciais para visitar dependências
bancárias e receber tratamento médico nos países que quisessem, sem risco de serem presos ou importunados. As suas contas bancárias secretas eram mantidas em arquivos
especiais, escudadas por uma impressionante parafernália de passwords, "bombas" de software e outros mecanismos de defesa, e a tais contas não havia, teoricamente
pelos menos, acesso pelo computador central. Mas estas precauções não eram nada e esta pouco recomendável clientela era positivamente angelical quando comparadas
com as precauções tomadas para proteger a grande empresa KBI, bem como a todo o pessoal envolvido, nomeadamente quanto a financiamento e fabrico "para certos países
ricos em petróleo e seus aliados ideológicos" de armamento nuclear ultra-secreto de larga escala. A força de Abraham tinha aumentado incrivelmente. Se havia em qualquer
parte uma reserva de urânio ou plutónio adequadamente enriquecidos, ao Khazana Bank era dada uma grossa fatia desse bolo; se por algum acaso um sistema de mísseis
chegasse inesperadamente ao mercado vindo dos estados da recentemente desmoronada União Soviética, o dinheiro da KBI mover-se-ia sinuosa e invisivelmente, por debaixo
do tapete, através das paredes, até a esse vendedor. Assim, finalmente, a cidade invisível de Abraham, construída por gente invisível fazendo invisíveis proezas,
atingia a sua apoteose. Fabricava uma bomba invisível.
Em Maio de 1991 uma demasiado visível explosão em Tamil Nadu acrescentou o Sr. Rajiv Gandhi à lista dos seus familiares assassinados, e Abraham Zogoiby - cujas decisões
conseguiam por vezes ser incompreensivelmente obscuras no que respeita ao facto de ele acreditar que estava realmente a ser engraçado - escolheu esse horrível dia
para me "pôr ao corrente" da existên-
cia do projecto secreto da Bomba-H. Nesse momento houve algo que mudou dentro de mim. Foi uma alteração involuntária, nascida não de uma vontade ou escolha consciente
mas de uma qualquer função mais profunda e inconsciente. Ouvi cuidadosamente enquanto ele me punha a par dos detalhes: o problema principal com que o projecto se
defrontava no momento, notou ele, era a necessidade de um supercomputador ultra-rápido capaz de dominar os complexos programas de localização de armas, sem o qual
os mísseis não conseguiriam nunca atingir aquilo que era suposto atingirem; em todo o mundo existiam menos que duas dúzias desses tais computadores FPS, ou "Floating
Point System" equipados com o sistema de acesso VAX que lhes permitia fazer cerca de setenta e cinco milhões de cálculos por segundo, e vinte desses computadores
estavam nos Estados Unidos, o que significava que os restantes três ou quatro - e uma dessas máquinas tinha sido localizada no Japão - teriam de ser das duas uma:
ou adquiridos por uma organização tão impenetrável que fosse capaz de enganar os altamente sofisticados sistemas de segurança inerentes a uma venda dessas, ou então
teria de ser roubada, e depois tornada invisível e contrabandeada até ao utilizador final através de uma insuspeita cadeia de corruptos funcionários, facturas falsas
e inspectores enganados. Mas, à medida que o ouvia, ouvi também uma voz dentro de mim que me obrigava a uma recusa absoluta e não-negociável. Tal como tinha recusado
a morte que Uma Sarasvati planeara para mim, também acreditava agora que estava a ultrapassar os limites daquilo que me era exigido pela lealdade à família. Para
minha grande surpresa, outro tipo de lealdade tinha tomado precedência. Surpresa porque, apesar de tudo, eu tinha sido educado em Elephanta, onde todos os laços
religiosos ou raciais haviam sido deliberadamente quebradas; num país onde todos os cidadãos tinham o duplo compromisso instintivo de fidelidade a um local e a uma
fé, eu tinha sido transformado num homem-de-nenhures-e-sem-comunidade - e com um certo orgulho, devo dizê-lo. Assim, foi com um agudo sentimento de espanto que me
vi a confrontar-me perante o meu formidável e mortífero pai.
- ... E se nós formos apanhados nessa operação de contrabando - dizia ele, - todos os acordos de ajuda, privilégios de nação-favorecida e outros protocolos económicos
entre governos cessarão imediatamente.
Respirei fundo, e arrisquei:
- Penso que saberá quem esta bomba vai fazer explodir em mais bocadinhos que o pobre Rajiv, e onde?
Abraham tornou-se de pedra. Era gelo, e chama. Era Deus no Paraíso e eu, a sua melhor criatura, estava a colocar a ultraproi-bida folha de figueira da vergonha.
(*)
- Eu sou um homem de negócios - disse. - Faço o que tem de ser feito. - Sou o que sou.
- Para meu grande espanto, - disse eu a esta sombra de Jeová, este Todo-Poderoso, este buraco negro no céu, o meu paizinho, - peço desculpa mas acabei de descobrir
que sou Judeu.
Por esta altura eu já não trabalhava para Mainduck; assim, Chhaggan tinha razão: o sangue que me corria nas veias provava ser mais espesso que aquele que juntos
tínhamos derramado. Não fui eu, mas Fielding que sugeriu, não sem uma certa elegância, que tínhamos chegado ao ponto da separação de caminhos. Povavel-mente saberia
que eu não estava preparado para espiar o meu pai por conta dele, e deve ter deduzido que as informações que recebia sobre as actividades dele estavam longe de ser
correctas. Devo acrescentar que o meu apetite pelo trabalho de escritório não era grande; pois enquanto os meus juvenis hábitos de higiene e a minha ânsia pela normalidade
se adequava bem às humildes e mecânicas tarefas que me tinham sido dadas, a minha "identidade secreta" (ou seja o meu verdadeiro, indomado e amoral eu) rebelou-se
violentamente contra o tédio diário. Não havia nada a fazer
(*) Alusão à desobediência de Adão e Eva ao seu criador: provaram o fruto proibido, perderam a inocência, taparam-se com folhas. (N. T.)
com um arruaceiro empedernido, um super-rufião, a não ser reformá-lo.
- Vai descansar, - disse Fielding, pondo-me a mão na cabeça.
- Bem o mereces.
Pergunto-me se ele não estaria a informar-me de que tinha decidido não me matar. Ou o oposto: de que num futuro próximo a faca do Homem-de-Lata ou os dentes do Cinco-Duma-Vez,
poderiam vir a acariciar-me a garganta. Fiz as minhas despedidas e saí. Nenhum assassino veio atrás de mim. Nessa altura, não. Mas a sensação de estar a ser perseguido,
essa persistiu.
A verdade é que em 1991 a estratégia de Mainduck tinha muito mais a ver com o nacionalismo-religioso que a plataforma original de "Bombaim Para os Mahrattas!" graças
à qual ele chegara ao poder. Fielding, também ele, fazia aliados, com partidos nacionais da mesma cor e organizações paramilitares, aquelas sopas de letras do autoritarismo,
BJP, RSS, VHP. Nesta nova fase de actividade das SA não havia lugar para mim. Zeenat Vakil, curadora do Legado Zogoiby - (onde eu começara a passar uma grande parte
do meu tempo, vagueando pelos mundos-de-sonho da minha mãe, seguindo a visão de Aurora a meu respeito através das aventuras que ela tinha inventado para mim) - a
esquerdista da Zeeny, a quem eu não revelara a minha ligação a Mainduck, só tinha desprezo pela retórica do Ram-Rajya.
- Que grande besta, francamente! - protestava ela. - Ponto número um: numa religião com mil e um deuses decidem, de repente, que só um deles é que conta. Então e
Calcutá, por exemplo, onde eles não seguem o deus Ram? Entao e os templos-Shiva já não são um local de culto adequado? Estúpido demais. Ponto dois; o Hinduísmo tem
vários livros sagrados e não um só, e agora de repente é só o Ramayan que conta. Então e o*Gita, onde está? E onde estão os Puranas todos? Como se atrevem eles a
distorcer as coisas desta maneira? Tem cá uma graça! E ponto três: aos Hindus não lhes são pedidos actos de adoração colectivos, mas sem isso como é que os tipos
vão reunir as multidões de que tanto gostam? Então agora, de repente, inventam um ritual hindu em massa, e fica declarado ser essa a única forma de demonstrar devoção
ver-
dadeira, devoção de primeira classe. Uma divindade marcial única, um livro único e a supremacia da multidão: foi isto que fizeram da cultura Hindu, da sua multifacetada
beleza, da sua paz.
- Zeeny, tu és uma Marxista - fiz-lhe notar. - Esse discurso acerca de uma Verdadeira Fé que teria sido destruída pelos Abastardamentos Realmente Existentes costumava
ser a vossa cantiga padrão. Achas que os Hindus, os Sikhs e os Muçulmanos nunca se mataram uns aos outros no passado?
- Pós-Marxista - corrigiu-me ela. - E independentemente do que era verdadeiro ou falso na questão do socialismo, esta treta do fundamentalismo é realmente algo de
novo.
Raman Fielding encontrou imensos aliados inesperados. Para além dos das sopas de letras havia também os finaços de Malabar Hill, gozando nas suas festas com a ideia
de "dar uma lição aos grupos minoritários" e de "pôr as pessoas nos seus lugares". Mas essas pessoas tinham sido, afinal, aquelas que ele tinha cortejado. O que
lhe deve ter vindo como uma espécie de bónus foi que, pelo menos no respeitante à contracepção, ele conseguiu o apoio dos Muçulmanos e, mais surpreendente ainda,
das freiras de Maria Gratiaplena. Hindus, Muçulmanos e Católicos, à beira de uma violenta confrontação ficaram momentaneamente unidos pelo seu ódio comum ao preservativo,
ao diafragma e à pílula. A minha irmã Minnie - a Irmã Flóreas - era, será escusado dizer, extremamente enérgica nessa luta.
Desde o falhanço da tentativa de introduzir pela força uma campanha de controlo de natalidade em meados dos anos setenta, o planeamento familiar era um tópico muito
difícil na índia. Mais tarde, contudo, foi iniciada uma nova campanha em favor de famílias mais pequenas sob o slogan "Somos dois e temos dois". Fielding serviu-se
disto para lançar a sua própria campanha de terror. Os membros das SA varreram casas finas e bairros pobres para dizer aos Hindus que os Muçulmanos se recusavam
a cooperar com a nova política.
- Se formos dois e tivermos dois, mas se eles forem dois e tiverem vinte e dois, então em breve eles serão muito mais do que nós e empurram-nos para o mar!
A ideia de 750 milhões de Hindus poderem ser esmigalhados pelos filhos de 100 milhões de Muçulmanos era curiosamente legitimada por muitos líderes políticos muçulmanos,
que deliberadamente exageravam no número de Muçulmanos Indianos na tentativa de engrandecer a sua própria importância e o sentido de dar autoconfiança à comunidade;
e que também gostavam muito de fazer notar que os Muçulmanos eram muito melhores combatentes do que os Hindus.
- Dêem-nos seis Hindus a cada um de nós! - gritavam eles nos seus comícios. - E aí, ao menos, ficamos em igualdade de circunstâncias. Nessas condições talvez haja
um combate justo, antes dos cobardes fugirem.
Ora bem, este jogo de números surrealista levou uma reviravolta. As freiras Católicas desataram a palmilhar as habitações colectivas do centro de Bombaim e as imundas
ruelas dos bairros pobres de Dharavi, protestando violentamente contra o controlo de natalidade. Nenhuma delas trabalhou mais horas, ou argumentou mais apaixonadamente,
do que a nossa Irmã Flóreas; mas passado uns tempos foi retirada da linha da frente, porque uma outra freira ouviu-a a explicar aos amedrontados habitantes dos bairros
pobres que Deus tinha a sua própria forma de controlar o número dos seus fiéis, e as suas visões confirmavam que num futuro muito próximo muitos deles morreriam
de qualquer maneira, devido à violência e às epidemias que aí vinham.
- Eu própria serei levada para o Céu - explicava docemente.
- E como anseio a chegada desse dia.
Fiquei com setenta anos no dia de Ano Novo em 1992, ao fazer a bela idade de trinta e cinco anos. É sempre um marco ameaçador, essa breve travessia da ponte Bíblica
dos setenta anos, principalmente num país onde a esperança de vida é demarcadamente inferior ao que o Velho Testamento consente; e no caso deste vosso amigo, para
quem seis meses causavam os danos de um ano,
esse momento tinha um saborzinho picante muito especial. Quão facilmente a mente humana "normaliza" o anormal, com que rapidez o impensável se torna não apenas "pensável"
mas enfadonho, desprovido de interesse! - Assim, a minha "enfermidade", já anteriormente diagnosticada como "incurável", "inevitável", e outros "ins" de que não
me consigo lembrar, tornou-se rapidamente tão chata que nem mesmo eu pensava muito nela. O pesadelo da minha vida-reduzida-a-metade era um mero Facto, e nada há
a dizer sobre um Facto excepto que é assim mesmo.
- Poderá alguém negociar com um Facto, caro senhor?
- De maneira nenhuma!
- Será que alguém consegue esticá-lo, encolhê-lo, condená-lo, pedir-lhe perdão?
- Não; ou pelo menos seria bem idiota tentar.
- Como é que devemos então abordar uma Entidade tão intransigente, tão absoluta?
- Caro senhor, pouco importa se a abordamos ou a deixamos em paz; o melhor que há a fazer é aceitá-la e seguir a nossa vida.
- E será que os Factos mudam alguma vez? Será que os velhos Factos não devem ser substituídos por novos, como as lâmpadas; como os sapatos e os navios e todas as
outras coisas?
- Se devem, isso prova apenas uma coisa: que para começar nunca houve Factos, mas meras Poses, Atitudes, e Imitações. O verdadeiro Facto não é a sua vela a arder
e a derreter-se sobre um monte de cera, não é a sua Lâmpada Eléctrica, de filamentos tão frágeis e tão efémera como a Traça que esvoaça à sua volta. Nem é feito
do seu vulgar cabedal, nem abre quaisquer fendas. Brilha! Anda! Flutua! Para todo o sempre e mais um dia.
Após o meu trigésimo quinto ou septuagésimo aniversário, tornou-se impossível para mim justificar a existência do grande Facto da minha vida referindo meras balelas
como kismet, karma ou destino. Passei na vida por uma série de sofrimentos e hospitalizações com as quais não cansarei o enjoado e impaciente leitor; a não ser para
dizer que me fizeram ver a realidade que eu tentava há tanto tempo ignorar. Não me restava muito tempo de vida. Essa verdade nua e crua caía-me em frente dos olhos
em letras de fogo sempre
que adormecia; era a primeira coisa em que eu pensava quando acordava. Então hoje lá te safaste. Será que ainda cá estás amanhã? É verdade, meu enjoado e impaciente
amigo: de um modo vergonhoso e nada heróico, devo dizê-lo, tinha-me habituado a viver minuto-a-minuto com aquele medo da morte. Era uma dor de dentes para a qual
nenhum analgésico podia ser receitado.
Um dos efeitos das minhas aventuras na terra da medicina foi ser dado por fisicamente incapaz daquilo a que já há muito tinha perdido a esperança de fazer; isto
é, tornar-me eu próprio pai, e assim aliviar - se não mesmo anular - o fardo de ser filho. Este último diagnóstico enfureceu de tal maneira Abraham Zogoiby (que
completara o seu nonagésimo aniversário e estava mais são que nunca) que ele foi incapaz de esconder a sua irritação por detrás da mínima mostra de simpatia ou preocupação.
- A única coisa que esperei de ti - berrou ele à cabeceira da minha cama do Breach Candy Hospital. - Nem mesmo isso me consegues dar.
Um certo grau de frieza tinha entrado na nossa relação, desde o dia em que eu me recusara a envolver-me na mais secreta operação do Khazana Bank, em particular o
fabrico da tão falada bomba atómica islâmica.
- Se calhar já é altura de usares um solideu(*) , - rosnou o meu pai. - E amuletos?(*) Que tal umas lições de Hebreu? Uma viagem-só-de-ida para Jerusalém? E só para
eu saber. Muitos dos nossos Judeus de Cochim, a propósito, queixam-se do racismo com que são tratados na nossa preciosa Terra Prometida, do lado de lá do oceano.
Abraham, o traidor à sua raça, repetia a uma espantosa e gigantesca escala o crime de voltar as costas à mãe e à tribo, e sair do Bairro Judeu pelo braço católico
de Aurora. Abraham, o buraco negro de Bombaim. Vi-o mergulhado na escuridão, uma estrela cadente atraindo a escuridão à sua volta à medida que a sua massa aumentava.
Nenhuma luz filtrava do horizonte da sua presença.
(*) No original "yarmulke" e "philacteries", adereços tradicionais dos Judeus praticantes. (N. T.)
Tinha começado a meter-me medo há muito tempo; agora incutia em mim um verdadeiro terror, e ao mesmo tempo uma pena tal que nem encontro palavras para descrever.
Digo-o mais uma vez: não sou nenhum anjo. Mantive-me afastado dos negócios do KBI, mas o império de Abraham era enorme, e nove décimos dele estava submerso abaixo
da superfície das coisas. Havia muito para eu fazer. Também eu me tornara um dos habitantes das mais altas esferas de Cashondeliveri Tower, e tirei muita satisfação
em participar dos prazeres-piratas de ser filho do meu pai. Mas depois das minhas vicissitudes médicas tornou-se claro que Abraham tinha começado a olhar para os
outros pedindo algum apoio; e, em particular, para Adam Braganza, um génio precoce de dezoito anos com orelhas de Dumbo, que se destacou das fileiras da Siodicorp
tão rapidamente que podia ter morrido das contorções que fez.
O "Sr. Adam", tal como vim gradualmente a descobrir no decurso das minhas conversas nocturnas com o meu pai (que continuava a usar-me como confessor dos muitos pecados
da sua longa vida) era um jovem com um passado de altos e baixos espectaculares. Parece que começou por ser filho ilegítimo de um arruaceiro de Bombaim e de uma
mágica itinerante de Shadipur e foi depois não-oficialmente adoptado, por uns tempos, por um homem de Bombaim actualmente dado como desaparecido ou pre-sumível-falecido,
que se eclipsara misteriosamente há catorze anos atrás, pouco depois de ter sido vítima de alegados maus tratos por parte de agentes da polícia durante o Estado
de Emergência de 1974-1977. Desde então o rapaz fora criado num arranha-céus cor-de-rosa em Breach Candy por duas velhinhas goesas que tinham enriquecido devido
ao sucesso da sua popular gama de condimentos, Braganza Pickles. Ficou com o apelido Braganza em honra das duas velhotas, e, depois da morte delas, passou a gerir
ele próprio a fábrica. Pouco depois disso, e ostentando aos dezassete anos o aspecto elegante de muitos executivos com o dobro da sua idade, dirigiu-se à Siodicorp
à procura de capital para a expansão do seu negócio esperando conseguir levar os lendários pickles e chutneys das velhotas aos mercados mundiais com o chiquérrimo
nome de marca de Brag's. Juntamente com as elegantes embalagens que ele levou para mostrar à gente de Abraham, ia o slogan Plenty to Brag About(*).
O que também se aplicava, ao que parecia, ao próprio rapaz maravilha. Num piscar de olhos vendeu o negócio a Abraham, que tinha rapidamente visto o enorme potencial
de exportação da marca, especialmente em países com uma substancial população de INR (Indianos Não-Residentes). Agora o jovem turco estava rico e independente mas
no decorrer da sua primeira reunião com o Grande Patrão Zogoiby, conseguiu impressionar de tal maneira o meu pai com o seu conhecimento acerca tanto das últimas
teorias sobre negócios e gestão, como das novas tecnologias da informação que começavam a desenvolver-se no país, que Abraham de imediato o convidou "a juntar-se
à família Siodi" com funções de vice-presidente e com .especial responsabilidade nas inovações técnicas, e no desenvolvimento do espírito de empresa. Em Cashon-deliveri
Tower ficaram atarantados com as novas ideias do rapaz, desenvolvidas, ao que parece, após os estudos feitos no Japão, em Singapura e na Orla do Pacífico, "a capital
global do Terceiro Milénio", como ele lhe chamava. As suas "notas de serviço" tornaram-se lendárias. "Para optimizar a utilização de potencial humano, a solução
está no enraizar do sentimento do nós", era uma máxima típica. Assim, os executivos eram "encorajados" ( ou seja, obrigados) a despender pelo menos meia hora por
semana em pequenos grupos de dez ou doze, onde se abraçavam mutuamente. Outros "encorajamentos" foram dados à ideia de que cada empregado deveria fazer "avaliações"
mensais sobre os pontos fortes e fracos dos colegas - transformando assim aquele edifício numa torre de "bufos" hipócritas (com abraços às claras e punhaladas pelas
costas).
- Seremos a empresa dos que sabem ouvir - Adam informou-nos a todos. - De tudo o que disserem tomaremos cuidadosamente nota.
(*) "Tem muito de que se gabar", trocadilho com "Brag" (dimutivo de Bra-ganza) e "to brag" (gabar-se). (N. T.)
E como essas orelhas ouviam! Todo o veneno, todas as sujeiras caíam nas suas amplas profundezas. "Todas as grandes empresas são uma mistura heterogénea de desordeiros,
saneadores e gente saudável", dizia uma das notas de Adam. "A esperança dos nossos directores é que os desordeiros sejam, com a vossa ajuda, aperfeiçoados. " (Sublinhado).
O velho Abraham adorou estas tretas.
- Era moderna - disse-me, - logo, dialecto moderno. Adoro a ideia! Este miúdo com a atitude de duro está a trazer uma lufada de ar fresco a isto tudo!
As minhas próprias atitudes-de-tipo-duro tinham sido de um género diferente (possivelmente, aos olhos de Abraham, de um género obsoleto) e de qualquer maneira, chegavam
agora ao fim. Esta não era a altura de atacar o jovem Adam Braganza. Mordi o lábio e sorri. Havia um novo Adão no Paraíso. O meu pai levou o jovem até ao seupenthouse
e em poucos meses - semanas! dias!
- a Siodicorp vira-se para os computadores; para já não falar de cabos, fibras ópticas, parabólicas, satélites, telecomunicações de todo o tipo; e adivinhem quem
é que dirigia o novo espectáculo?
- Vamos colocar a nossa pegada no mundo. - Abraham sorriu exultantemente, orgulhoso de saber a nova conotação do termo.
- Como é provinciana essa gentinha com essa conversa do poder de Ram! Fiquem eles com Ram, que nós ficamos com RAM! (*)
Não Ram, mas RAM: reconheci imediatamente o toque sloga-nista do rapazinho. Abraham tinha razão. O futuro tinha chegado. Havia uma geração à espera de herdar a Terra,
não querendo saber das preocupações dos mais velhos: dedicados à conquista do novo, falando a estranha, binária e fria linguagem do futuro - uma significativa diferença
em relação às exclamações dos nossos melodramas. Não admira que Abraham, o infatigável Abraham, se voltasse para Adam. Estávamos a assistir ao nascimento de uma
nova era na índia, onde o dinheiro, bem como o fundamentalismo religioso iam quebrar todos os grilhões que interferiam com os seus desejos; uma era para os luxuriosos,
os famintos, os sedentos-de-vida, não
(*) Jogo entre "Ram", deus hindú e "RAM", termo de informática (Random Access Memory). (N. T.)
para a gente gasta e vazia. Senti-me como um jornal velho; nascido rápido demais, nascido aleijado, a envelhecer depressa demais e embrutecido ao longo da jornada.
Agora já voltava o rosto para o passado, para a perda do amor. Quando olhava para a frente, via a Morte à minha espera. Morte essa que Abraham continuava calmamente
a desafiar, e que poderia colher o filho em vez do pai.
- Não ponhas esse ar infeliz - disse Abraham Zogoiby. - Do que precisas é de uma esposa. Uma mulher decente para te varrer essas preocupações do rosto. Ora bem:
A Nadia Wadia. O que é que dizes?
Nadia Wadia!
Durante o ano do seu reinado como Miss Mundo, Raman Fielding tinha-a perseguido. Cortejou-a com flores, telefones sem fio, câmaras de video e fornos micro-ondas.
Ela mandou tudo para trás. Ele convidou-a para todas as recepções da Municipalidade, mas após o seu incidente no dia de Ganpati ela deu-lhe invariavelmente com os
pés. O desejo de Fielding por Nadia tinha sido anunciado à nação através da conhecida colunista social "Waspyjee", descendente de um antigo escritor que, debaixo
do mesmo pseudónimo literário, tinha escrito sobre os "Raios Gama" no Bombaim Chro-nicle e, ao fazê-lo, terminara com a brilhante carreira do meu bisavô Francisco
da Gama. Depois disso a recusa de Nadia Wadia de aceitar a corte de Mainduck tornou-se, para muitos cidadãos de Bombaim, o símbolo de uma resistência superior -
tornou-se heróica, política. Os cartoons deram-lhe relevo. Naquela cidade que o Mainduck afirmava "conduzir como o sêu automóvel particular", a resistência de Nadia
Wadia foi a provà da sobrevivência de uma nova e mais livre Bombaim. Ela deu grandes entrevistas, também. Não o beijaria nem que ele fosse o último sapo da cidade,
jurou Nadia... Larga-me a cueca, Mainduck! A Nadia anda a ter aulas de boxe!... as manchetes alimentavam o gozo.
Duas coisas aconteceram.
Primeiro: Fielding, de paciência esgotada, considerou a hipótese de meter um susto à teimosa rainha da beleza; e assim, pela primeira vez na sua longa e inquestionável
liderança nas SA, enfrentou uma revolta, liderada por Sammy Hazaré e apoiada unanimemente pelos "capitães de equipa" das "operações especiais" das SA. O Homem-de-Lata
liderou um grupo que fez uma visita a Fielding ao seu gabinete do telefone-rã.
- Com o devido respeito, meu comandante, não alinhamos - foi a sua firme resposta.
Mainduck recuou, mas depois disso passou a vigiar Sammy com o mesmo olhar que eu lhe vi quando lhe contei da minha reconciliação familiar. E tinha razão em fazê-lo,
pois Sammy tinha mudado. E num tempo não muito distante iria ser empurrado para fora do seu eterno posto de incondicional apoio, forçado pelos acontecimentos e pela
angústia que tinha no coração a desempenhar, no grande drama que ainda estava presentemente em ensaios, um inesquecível papel de protagonista.
Segundo: Nadia Wadia tinha cessado o seu reinado de Miss Mundo. Havia uma nova Miss índia, uma nova Miss Bombaim. Nadia Wadia passou à história. A sua canção já
não era passada na rádio nem na nova versão indiana da MTV: A Massala Televi-sion ignorava a rainha destronada. Nadia Wadia não conseguiu entrar para Medicina, o
namorado de quem ela tinha uma vez falado sumiu-se no ar, a sua carreira artística tinha nascido morta. O dinheiro vai-se depressa em Bombaim. Nadia Wadia aos dezoito
anos era uma náufraga sem dinheiro nem planos. Foi nesta altura que Abraham Zogoiby fez a sua jogada. Ofereceu-lhe, e à mãe viúva, um luxuoso apartamento no extremo
sul de Colaba Cause-way, acompanhado de uma generosa soma. Nadia Wadia já não detinha uma posição negocial forte, mas não tinha perdido o orgulho. Quando visitou
Abraham em Elephanta para discutir a sua oferta (e quão rapidamente chegaram as notícias aos ouvidos de Mainduck, via Lambajan Chandiwala, o agente duplo! Como isso
enfureceu o patrão do mal!) ela falou com a maior dignidade.
- Penso comigo mesma: "Nadia Wadia, que será que este generoso cavalheiro pede em troca de tão grande favor? Talvez
seja algo que Nadia Wadia não pode dar, nem mesmo ao grande Abraham Zogoiby."
Abraham ficou impressionado. Disse-lhe que uma empresa como a Siodicorp precisava do rosto radioso de uma figura
- Olhe para mim, - disse ele com voz de cana rachada. - Não sou um velho horroroso? Neste momento, quando as pessoas pensam na nossa empresa, pensam logo neste velho
idiota. A partir de agora, e se concordar, pensarão em si.
E foi assim que Nadia Wadia se tornou no rosto da Siodicorp: nos anúncios, nos posters, e em pessoa, como anfitriã dos mais prestigiados eventos publicitários -
shows de moda, jornadas internacionais de críquete, congressos dos que figuravam no "Guiness", a Expo do 3.° Milénio, campeonatos mundiais de luta-livre. E foi assim
que ela foi tirada da valeta e devolvida à celebridade pública que a sua beleza merecia. E foi assim que Abraham Zogoiby obteve mais uma vitória sobre Raman Fielding,
e a canção da Nadia Wadia voltou a entrar, regravada num remix para dançar, na lista dos mais tocados da Massala Television e chegando ao top da parada de êxitos.
Nadia e a sua mãe, Fadia Wadia, mudaram-se para o apartamento de Colaba Causeway, e na parede da sala Abraham pendurou o único quadro de Aurora Zogoiby que Zeenat
Vakil não conseguira ainda expor na galeria de Cumbala Hill, um quadro no qual uma linda jovem beijava um jovem e bonito jogador de críquete, com aquela paixão que,
em tempos, tinha causado tantos problemas.
- Que maravilha! - disse Nadia Wadia, batendo as palmas quando Abraham destapou ele próprio O Beijo de Abbas Ali Baig.
- A Nadia Wadia e a Fadia Wadia adoram cnquete, não é verdade, Fadia Wadia?
- Que grande verdade, Nadia Wadia, - disse Fadia Wadia - O críquete é o desporto dos reis.
- Que tonta está a ser, Fadia Wadia! - reprovou Nadia Wadia. - O desporto dos reis são os cavalinhos. Fadia Wadia já devia saber isso. Nadia Wadia sabe.
- Divirta-se, minha filha, - disse Abraham Zogoiby, beijando Nadia no cocuruto à saída. - Mas por favor: mostre um pouco mais de respeito para com a sua mãe.
Abraham nunca lhe tocou com um dedo, foi sempre o perfeito cavalheiro. E depois, sem mais nem menos, deu-ma de bandeja, como se ela fosse propriedade sua, um presente
seu, uma bagatela, uma esposa.
Disse a Abraham que iria visitar as Wadias e discutir a sua proposta. As duas mulheres esperaram-me no seu deslumbrante poiso de Colaba, aparentemente aterrorizadas.
Nadia Wadia estava vestida para a ocasião como um presente de Natal, com brinco no nariz e tudo.
- O seu pai tem sido tão bom para nós, - confessou-me Fadia Wadia, com o instinto maternal a sobrepor-se às exigências da sua situação. - Mas realmente, respeitável
senhor, a minha Nadia Wadia merece ter filhinhos... um homem mais novo...
Nadia Wadia olhava-me de um modo estranho.
- Nadia Wadia não o conheceu já, há uns tempos? - perguntou, lembrando-se vagamente de Ganpati. Ignorei a questão e fui directo ao assunto em questão. O problema
era, expliquei, que elas estavam a viver sob a protecção de um dos mais poderosos homens da índia.
Se recusassem a proposta de casamento do seu único filho, seria muito provável que a protecção do velhote fosse retirada. Poucos pretendentes apareceriam, depois
disso, com medo de ofender o grande Zogoiby. Provavelmente a única parte interessada seria um certo cavalheiro que noutros tempos assinara os seus cartoons com o
desenho de um sapo...
- Nunca! - gritou Nadia Wadia. - Eu, Senhora Mainduck? Isso é coisa que Nadia Wadia nunca será. Antes disso pegaria na mão de Fadia Wadia e, juntas, saltaríamos
daquela varanda que ali vê.
- Não será necessário, não será necessário - acalmei-a. - A minha ideia é um pouco melhor, penso eu.
O que lhes propus foi um noivado só-de-nome, apenas. Abraham acharia graça, seria uma bela manobra de relações públicas, e
o período de noivado poderia ser infinitamente prolongado. Contei-lhes o segredo da minha existência acelerada. Era certo, disse-lhes que não tinha muito tempo de
vida. Assim que morresse elas colheriam os consideráveis frutos do facto de estarem ligadas à família Zogoiby, de cuja fortuna eu era o único herdeiro. E mesmo que
vivesse o tempo suficiente para o casamento se tornar necessário, jurei-lhes que o nosso acordo platónico se manteria. Apenas pedi a Nadia Wadia como sua parte no
contrato que manti-vessse as aparências e desse a ideia de um noivado perfeito.
- Tudo o resto será o nosso segredo.
- Oh, Nadia Wadia - lamentou-se Fadia Wadia - Já viu como estamos a ser malcriadas? O seu lindo noivo veio fazer-nos uma visitinha e nós nem lhe oferecemos uma fatia
de bolo.
Porque fiz eu tudo isto? Porque sabia que dissera a verdade; Abraham teria tomado a recusa como uma ofensa pessoal, e tê-las-ia posto no olho da rua. Porque admirava
a atitude de Nadia Wadia contra Fielding, e também o modo como ela tinha lidado com o meu notoriamente lascivo pai. E porque ela era tão bonita e tão jovem, e eu
era já uma desgraça completa. E talvez ainda porque, após os meus anos de violência e corrupção, procurava redi-mir-me, queria lavar-me dos meus pecados.
Redimir-se de quê? Limpo por quem? Não me façam perguntas difíceis. Fi-lo e ponto final.
O noivado de Morais Zogoiby, único filho do Sr. Abraham Zogoiby e da falecida Sra. Aurora Zogoiby (Gama, em solteira), com a menina Nadia Wadia, única filha do Sr.
Kapadia Wadia, já falecido, e da Sra. Fadia Wadia, todos eles de Bombaim, foi anunciado. E algures na cidade, um Homem-de-Lata soube da notícia, e uma chama malévola
inflamou-lhe o destroçado mas implacável coração.
A festa de noivado teve lugar no Taj, naturalmente, e foi sem dúvida um elegante acontecimento em Bombaim. Na despeitada
presença de mais de um milhar de estranhos, lindos, viperinos e cepticamente divertidos, entre eles a minha derradeira irmã, Irmã Flóreas, que de dia para dia se
tornava cada vez mais uma estranha, enfiei um "fabuloso diamante", (como descreveram os jornais) no dedo daquela encantadora rapariga, e, assim, iniciei aquilo a
que "Waspyjee" chamaria de "um espantoso e quiçá sacrificial noivado do Ocaso com a Aurora". Mas Abraham Zogoiby - o mais malicioso e cruel dos velhos - tinha preparada,
com o seu habitual humor negro, uma pequena surpresa para essa noite. Depois de completado o ritual do anúncio do noivado - e depois de os fotógrafos se terem deliciado
com a mais-radiosa-que-nunca beleza de Nadia, e se terem dado por satisfeitos - Abraham subiu ao estrado e pediu silêncio, pois tinha uma declaração a fazer.
- Morais, único filho do meu sangue, e Nadia, minha encantadora futura nora - grasnou. - Deixem que ouse mostrar a esperança que tenho em que brevemente dêem a esta
família tristemente vazia alguns novos membros - (ó cruel pai sem coração!) para este velho desfrutar. Entretanto, contudo, eu próprio tenho aqui um novo membro
para lhes apresentar.
Muita perplexidade, muita expectativa. Abraham deu uma gargalhada e inclinou a cabeça.
- Sim, meu pequeno Mouro. Finalmente, meu rapaz, tens um irmão mais novo.
As cortinas vermelhas abriram-se, teatralmente à "deixa", no fundo do pequeno estrado. Adam Braganza - o pequeno Orelhudo, o próprio! - avançou. De entre os vários
e sonoros gritos sufocados houve o de Fadia Nadia, o de Nadia Wadia e o meu.
Abraham beijou-o em ambas as faces, e nos lábios.
- A partir deste momento, - disse ao rapaz perante a reunida elite da cidade, - passas a chamar-te Adam Zogoiby - meu filho adorado.
18
Bombaim era central, era-o desde o princípio da sua
criação: filha bastarda de um casamento de Português e Inglesa, e no entanto a mais indiana de todas as cidades. Em Bombaim todas as índias se encontravam e fundiam.
Em Bombaim, igualmente, a índia encontrava o que não era índia, o que vinha através da água negra para fluir até às nossas veias. Tudo a norte de Bombaim era índia
do Norte, tudo a sul dela era índia do Sul. Para oriente era a índia Oriental e para ocidente, aquilo que o mundo chamava Ocidente. Bombaim era central; todos os
rios desaguavam no seu mar humano. Era um oceano de histórias: nós todos éramos os seus narradores, e todos falávamos ao mesmo tempo. Que magia era cozinhada nessa
caldeirada, que harmonia emanava dessa cacofonia! No Punjab, em Assam, Cachemira ou Meerut, em Deli, em Calcutá - de tempos a tempos cortavam-se as gargantas dos
vizinhos e tomavam-se duches mornos, ou banhos de espuma vermelha, banhos de sangue espumoso. Matavam-nos por sermos cir-cuncisados e matavam-nos por termos o prepúcio
no sítio. Cabelo comprido era razão para assassínio e cabelo fortado também; a pele clara esfolava a pele escura e se falássemos a língua errada podíamos ficar sem
a língua. Em Bombaim, este tipo de coisas nunca acontecia. - Nunca, dizem vocês? Está bem: nunca é uma palavra demasiado absoluta. Bombaim não estava imune ao resto
do país, e o que acontecia noutros lados, como por exemplo o problema da língua, também se espalhava pelas suas ruas. Mas a
caminho de Bombaim os rios de sangue eram geralmente diluídos, outros rios iam dar a eles, de maneira que na altura em que chegavam às ruas da cidade as consequências
eram relativamente minoradas. Será que estou a sentimentalizar a coisa? Agora que deixei tudo para trás, terei eu, entre as minhas variadas perdas, perdido também
a visão clara das coisas? Pode ter sido esse o caso; mas mesmo assim mantenho.
Ó Embelezadores da Cidade, será que não viram que o que era belo em Bombaim era o facto de ela pertencer a todos e a ninguém? Não repararam nos milagres quotidianos
do "vive e deixa viver" que se amontoaram nas suas apinhadas ruas?
Bombaim era central. Em Bombaim, enquanto o velho e gasto mito da primitiva nação se foi esvaindo, nascia a nova índia do dinheiro. A riqueza do país circulava através
das trocas feitas nos seus portos. Aqueles que odiavam a índia, os que procuravam destruí-la, teriam de destruir Bombaim: essa era uma explicação possível para o
que acontecera. Enfim: podia ter sido isso. E também podia tudo aquilo ter sido desencadeado no norte (em Ayodhya(*), já que tenho mesmo de dizer o nome) por aquele
ódio e aquele fanatismo que se infiltraram no fluxo sanguíneo da nação quando a mesquita de Babri foi destruída e os planos para a construção de um templo ao poderoso
Ram no alegado local de nascimento do citado deus atraíram largas multidões (como se costumava dizer nos anúncios dos cinemas de Bombaim). Talvez esse fanatismo
estivesse nesta altura demasiado concentrado, e nem mesmo os poderes de diluição da grande cidade fossem suficientes para o enfraquecer. Os que vêem assim as coisas
têm uma certa razão, isso não se pode negar. No Legado Zogoiby, Zeenat Vakil lançou-me o seu sarcasmo:
- A culpa é da ficção, disse ela. - Os seguidores de uma crença deitam abaixo uma outra crença qualquer, e pumba! é a guerra! Para a próxima vão encontrar o berço
de Vyasa debaixo da casa de Iqbal e a roca de bebé de Valmiki debaixo do trono de
(*) Um dos sete lugares sagrados dos Hindus, fonte de intensos e violentos conflitos religiosos. (N. T.)
Mirza Ghalib. ("') Óptimo, óptimo. Eu por mim prefiro morrer a combater num conflito sobre grandes poetas do que sobre deuses.
Tenho sonhado com Uma - ó desleal subconsciente! - Uma esculpindo o seu último trabalho, o grande touro Nandi. Tal como o touro, pensei eu quando acordei, e tal
como o Krishna azul, o querido das raparigas, o deus Ram era uma encarnação de Vishnu; Vishnu, o mais metamórfico dos deuses. O verdadeiro "domínio de Ram" deve
então, seguramente, ser o das mutáveis e inconstantes realidades da natureza humana, mas também divina. Que toda esta trampa seja invocada em nome do grande deus,
vai bater-lhe na cara da sua essência, tal como da nossa. O pior é que quando o penedo da história começa a rolar, ninguém se rala em discutir pontos tão delicados.
O juggemaut(**) já está a andar.
.. .e se Bombaim era central, pode muito bem ser que tudo tenha tido por base as rixas de Bombaim. Mogambo versus Mainduck; o duelo há tanto esperado, o assalto
final dos dois pesos-pesados com vista a estabelecer, de uma vez por todas, qual dos gangs (crimino-empresarial ou político-criminal) governaria a cidade. Vi uma
coisa deste género acontecer, e apenas posso relatar o que vi. Factores ocultos? A intromissão de secretas mãos (talvez estrangeiras)? Deixo isto à consideração
de analistas mais sábios.
Vou dizer-lhes o que penso - aquilo em que, não obstante toda uma vida de cepticismo em relação ao sobrenatural, não posso deixar de acreditar: Alguma coisa aconteceu
quando Aurora Zogoiby caiu - não apenas um conflito mas um extenso e amplo rasgão no tecido das nossas vidas. Ela não repousou em paz, passou a perseguir-nos infatigavelmente.
Abraham Zogoiby viu-a cada vez mais amiúde no seu jardim, exigindo ser vingada. É isso que eu realmente penso. O que se seguiu foi precisamente a sua vingança. Desencarnada,
pairou no céu sobre nós,' Aurora Bombayalis em todo o seu esplendor, e o que choveu sobre nós foi a sua
(*) Referência sarcástica a vários deuses da mitologia hindu, para ridicularizar os conflitos religiosos. (N. T.)
(**) Gigantesco carro ritual da religião hindu, sob o qual os fiéis se deixam esmagar para alcançarem directamente o paraíso. (N. T.)
ira. Cherchez la femme, é o que eu digo. E vejam o fantasma de Aurora pairando no ar flamejante. E vejam a Nadia, também - Nadia Wadia que, tal como a cidade de
quem era filha - Nadia Wadia, a minha noiva, também foi figura central neste conto.
Será que, então, tudo isto foi um conflito ao estilo de Mahabharata(*) , uma Guerra de Tróia, qual os deuses que tomaram posições e desempenharam os seus papéis?
Não, senhor. Nada de divindades dos velhos tempos aqui, mas antes "malta do bairro", ou seja, Abraham-Mogambo e os seus Gilvazes, Mainduck e o seu Cinco-Duma-Vez;
todos nós. Aurora, Minto, Sammy, Nadia, eu. Não tínhamos um estatuto trágico. Se Carmen Lobo da Gama, a minha infeliz Tia-Avó Sara, jogou em tempos a sua fortuna
contra o Príncipe Henrique o Navegador, não há necessidade de se ouvirem os ecos da perda do reinado de Yudhisthira por um fatal lance de dados. E lá por ter havido
homens a lutar por Nadia Wadia, ela também não era nenhuma Helena, nem nenhuma Sita. Apenas uma miúda gira num sítio "quente", mais nada. A tragédia não estava nas
nossas naturezas. Estava a decorrer uma tragédia, lá isso estava, uma tragédia nacional a uma larga escala, mas aqueles de nós que entravam nela desempenhavam -
e chamemos as coisas pelos nomes - o papel de palhaços. Palhaços! Bobos burlescos, projectados no teatro da história à falta de melhores homens. Em tempos houve,
de facto, gigantes no nosso palco; mas no refugo de uma época, a Senhora D. História tem de se contentar com o que conseguir. Jawaharlal, nos nossos dias, era apenas
o nome de um cão empalhado.
Num impulso do meu coração aproximei-me do meu novo "irmão" e propus-lhe "um almocinho para nos conhecermos
(*) Poema sânscrito que narra as lutas sangrentas de duas famílias. Uma das fontes do hinduísmo. (N. T.)
(**) Personagem do "Mahabharata". (N. T.)
melhor". Pois bem, meus caros, deviam ter visto o alvoroço. "Adam Zogoiby" - não poderia nunca pensar neste nome sem o colocar entre aspas - ficou positivamente
em estado de agitação nervosa, num pânico típico dos arrivistas. Que tal àquele restaurante de comida polinésia em Oberoi Outrigger? Não, não, aí só havia almocinhos
tipo buffet e um tipo aprecia sempre um serviço agradável. E que tal ir comer qualquer coisa no "Taj Sea Lounge"? Não, pensando melhor, tem demasiados velhotes a
reviver glórias passadas. Então e que tal o "Sorryno"? Fica perto de casa, tem uma vista simpática, mas meu querido, não há pachorra para aquele dono tão antipático!
Então e que me diz de uma entrada-por-saída rápida naquele iraniano, ou no "Bombay Al", ou no "Pyrke's", em Flora Fountain? Não, é muito barulhento, e uma conversa
decente é fundamental que se possa arrastar. Um chinês, então? - Sim, mas é dramático ter de escolher entre o "Nanking" e o "Kamling". Que tal o "Village"? Naaah,
todo aquele ambiente falso-rústico, querido, tudo aquilo é tão dépassé. Após um longo e agitado solilóquio (eu tinha-me limitado a fazer reparos) ele
sugeriu - ou melhor, impôs-a célebre cozinha continental
do "Society". E, uma vez entrados, deu largas a uma elegante jovialidade.
- Dimple! Simple! Pimple! Que prazer em ver estas meninas de novo! - Ah, bonjaw, Kalidasa, quero o clarete habitual e o serviço de prata. - Ora muito bem, meu caro
Mouro - não te importas que te trate por Mouro, não? Óptimo, fantásticol - Ora viva, Harish! Comprou o OTCEI, disse-me um passarinho. Uma bela jogada, sim senhor.
Tem um altíssimo potencial, se bem que nesta altura esteja um bocadinho subaproveitado. - Oh, Mouro, desculpa, desculpa. Já te vou dar a minha atenção exclusiva,
juro. Monsooar, Frah-swah! Oh, traga-nos o que The apetecer, colo-camo-nos totalmente nas suas mãos. Mas nada de manteiga, nada de fritos, nada de carne gorda, nada
de carbo-coisos e não me ponha beringelas à frente, faz favor! Uma pessoa tem de manter a linha, não achas? - Até que enfim! Irmão! Que belos tempos vamos passar!
Vamos ter uma superfarra, hã? P-H-E-S-T-A, festa! Que sítios é que estão a dar? Ouve, não me fales no "Midnite
-Confidential", no "Nineteen Hundred", no "Studio 29" e no "Cavern". Já passaram de prazo, querido. Eu estou metido no negócio de um sítio novo. Vamos chamar-lhe
W-3 por "World Wide Web". Ou então fica só "The Web". Realidade virtual e meninas disk-jockeys de saris molhados. Ciber-punks num décor delirante! E talento, topas?
A ideia é fazer Arte. Tudo isto é um P-H-A-C-T-O, facto.
E se eu fizesse uma cara carrancuda e rabujenta, o que é que acontecia? Senti-me nesse direito. Olhei para aquele cabaret non-stop, aquele dançarino-dos-sete-véus
que era "Adam Zogoiby", e dei por ele a olhar por mim. Percebeu desde logo que aquele número do "Mr. Cool" não pegava e passou rapidamente para o género voz-baixinha-de-conspiração
.
- Ó maninho, tu tens um passado de duras guerras, ouvi dizer. Nada habitual num rapaz judeu. Sempre os vi com os narizes enfiados nos livros, com quatro olhos e
participantes na conspiração-internacional-pelo-domínio-do-mundo.
Esta também não lhe correu bem. Balbuciei qualquer coisa sobre os Judeus-guerreiros mercenários que tanto tinham feito para marcar a presença da comunidade na costa
de Malabar, e ele notou a frieza no meu tom de voz.
- Ora, maninho, não percebes quando alguém está a gozar? Sou eu que aqui estou. - Madhu, Mehr, Ruchi, ora vivaml É bestial vê-las, meninas! Este é o meu mano mais
velho. Oiçam, este tipo é um disparate, uma de vocês devia agarrá-lo. - Mouro, o que é que achas? Olha que elas são fora de série, mais famosas que a nossa tristemente
falecida irmã, Ina. Sabes que mais? Acho que elas gostaram de ti. E são umas tipas com muita classe, com muita classe.
No capítulo "Adam Zogoyby" tinha o espírito a fechar-se-me rapidamente. Lá tinha ele mudado de novo, assumindo um ar de homem de negócios, muito profissional.
- Tu devias definir a tua própria posição financeira, sabes? O nosso pai, e é triste dizê-lo, não é nenhum jovem. Eu encontro-me presentemente a ultimar a definição
da minha posição pessoal em discussão detalhada com os homens dele.
Aquilo foi a gota de água. Algo no Adam me tinha impressionado como déjà vu, e finalmente percebi o que era. A sua recusa em falar no passado, a fluidez das suas
mudanças de ritmo enquanto tentava enfeitiçar e cortejar, o cálculo frio das suas jogadas. Eu já uma vez tinha sido vítima de uma pessoa assim se bem que Uma fosse
bem mais eficiente no papel de camaleão do que ele, e tivesse feito muito menos erros. Recordei, com um arrepio, os meus antigos pesadelos. Da última vez, uma mulher,
desta vez um homem. "A Coisa" estava de volta.
- Em tempos conheci uma mulher como tu - disse a Adam
- E caramba, irmão, ainda tens muito que aprender.
- Bom, - grunhiu ele - Já que um de nós está a fazer um esforço tão grande, não vejo porque é que um de nós está a ser tão ofensivo. Tens um grave problema de comportamento,
Mouro mano. E uma má escolha. E uma má jogada de carreira, também. Ouvi dizer que te enxofraste com o nosso paizinho querido. Com franqueza, na idade dele?! A sorte
dele é um dos filhos ocupar-se dos negócios sem respondanços nem insolências.
Sammy Hazaré vivia nos subúrbios de Andheri, rodeado por um emaranhado confuso de pequenas indústrias - a "Nazareth Leathercloths", a "Vajjo's Ayurvedic Laboratory"
(especializada em gel vajradanti para as gengivas), a "Thums Up Cola Bottle Caps", a "Clenola Brand Cooking Oil", e até um pequeno estúdio de cinema, utilizado sobretudo
para filmes publicitários, o qual se gabava de ter - num cartaz ao lado do portão - "Um Duplo e uma Dupla no Local" e uma "Grua Manoal de Assesso Fácil (equipa de
6 homens)". A casa de Sammy, um bungalow de madeira de um andar só, há muito ameaçada de demolição mas ainda de pé (à maneira abandalhada de Bombaim) escondida entre
as fétidas traseiras das fábricas e um grupinho atarracado de casinhas amarelas destinadas às pessoas de poucas posses, como se se esforçasse ao máximo para evitar
chamar a atenção das equipas de
demolição. Viam-se limas e pimentões verdes pendurados por cima da porta para afastar os maus espíritos. Calendários antigos representando imagens em cores alegres
do deus Ram e de Ganesh (com a sua cabeça-de-elefante) tinham sido durante muitos anos os únicos elementos decorativos; agora, contudo, fotografias de Nadia Wadia,
tiradas das revistas, coladas com fita-cola, enchiam de cima a baixo as paredes azul-esverdeadas. E havia igualmente fotografias do noivado de Miss Wadia e do Sr.
M. Zogoiby no Taj Hotel, e nessas fotografias a minha cara tinha sido violentamente riscada com uma caneta ou estraçalhada com a ponta de uma faca. Em uma ou duas
fotos eu tinha sido completamente decapitado. Palavras obscenas estavam escritas no meu peito.
Sammy nunca casara. Partilhava estes aposentos com um anão chamado Dhirendra, careca e com o nariz em forma de gancho, um actor de papéis secundários que afirmava
ter entrado em mais de trezentas longas metragens e cuja ambição de vida era entrar no "Guiness" como recordista de participação em mais filmes. Dhiren o anão cozinhava
e limpava para o feroz Sammy, e até lhe oleava a mão de lata quando era preciso. E à noite, à luz de um candeeiro a petróleo, ajudava o Homem-de-Lata no seu pequeno
hobby. Bombas incendiárias, bombas de relógio, detonadores de rockets: toda a casa - armários, cantos e frestas, e até vários buracos que os dois homens tinham escavado
por baixo do soalho do único quarto existente - tudo isto se tinha tornado um arsenal privado.
- Se eles vierem atacar-nos, - costumava dizer Sammy ao seu pequeno camarada com uma feroz satisfação, - diabos me levem se não vamos todos pelos ares.
Em tempos Sammy e eu fôramos companheiros; por causa das nossas mãos deformadas considerávamo-nos irmãos de sangue, e durante alguns anos, nesses tempos, fomos o
terror da cidade. O minorca Dhirendra, como uma esposa ciumenta, ficava em casa, cozinhando refeições que Sammy, regressando exausto dos nossos trabalhos, engolia
alarvemente sem uma palavra de agradecimento antes de adormecer e encher o quarto de sonoros arrôtos e pei-dos. Mas agora havia Nadia Wadia, e Sammy, no tormento
da sua
patética paixão por aquela indomável senhora - minha noiva - estava pronto, pelo menos as suas paredes assim o sugeriam, para fazer saltar a minha odiada cabeça.
Em tempos o Homem-de-Lata fora o Soldado Número Um de Raman Fielding, o seu superagente, o seu Homem de entre os homens. Até que Mainduck, obcecado com Nadia, ordenou
a Sammy que desse uma pequena ensinadela à miúda, e Hazaré desencadeou uma revolução. Durante uns meses Mainduck manteve Sammy debaixo de olho, observando-o com
aqueles olhos frios e letais, como os olhos que as rãs deitam à sua esvoaçante presa. Depois convocou o Homem-de-Lata ao seu santuário secreto e pô-lo no olho da
rua.
- Vou ter de prescindir de ti, meu velho - disse ele. - Nenhum homem, por si, é mais importante que o negócio, e tu começaste a ditar as tuas próprias regras.
- Comandante, sir, as senhoras e as crianças não são meus adversários.
- O jogo mudou, Homem-de-Lata - disse Mainduck brandamente. - Vejo que pertences à era dos cavalheiros. Só que agora, meu caro Sammy, agora é a guerra total.
Andhera significa escuridão, e foi em Andheri que Sammy "Homem-de-Lata" Hazaré se sentava em silêncio durante longas horas, mergulhado na melancolia. Nos primórdios
do seu desvario por Nadia Wadia, por vezes dançava pela casa, segurando junto à cara, como uma máscara, uma fotografia de página inteira de Nadia Wadia na qual ele
tinha feito dois buraquinhos nos olhos, para poder ver o mundo através dos olhos dela; e cantava os últimos êxitos dos seus filmes com voz de falsete. " O que tenho
por baixo do meu chóli?" cantava, sacudindo sugestivamente o torso. "O que tenho sob a minha blusa?" Um dia, Dhirendra, enfurecido pela (permanência da) fixação
do seu companheiro e também pela apavorante qualidade da sua voz, gritou-lhe, à laia de resposta, "Mamas! Ela tem mamas por baixo da merda do chóli, ou que é que
achas? Dois melões do caneco!"
Mas Sammy, imperturbável, continuou a cantar. "Amor é o que tenho sob a minha blusa. "
Agora, no entanto, os seus dias de cantigas pareciam ter acabado. O pequeno Dhiren cirandava pela sala, cozinhando e brincando, fazendo as suas habilidades - pinos,
saltos para trás, contorções - tentando animar Sammy, indo mesmo ao ponto de cantar a picante canção da blusa, pondo de parte os seus ressentimentos contra Nadia
Wadia, essa pin-up fabulosa que se tinha materializado do nada e, num ápice, destruíra as suas vidas. O pequeno Dhiren tinha o cuidado de não partilhar a sua ideia
com Sammy, mas Nadia Wadia era uma gaja a quem ele pessoalmente gostaria de fazer mal.
Finalmente, Dhirendra descobriu a palavra-chave, o "abre-te Sésamo", aquela revigorada animação para o mal-humorado Sammy Hazaré. Saltou para cima de uma mesa, fez
a pose de uma pequena estátua de jardim e disse as ocultas letras: "RDX", anunciou.
Lealdades divididas nunca foram um problema para Sammy; não tinha ele recebido dinheiro do meu pai e espiado Mainduck anos e anos? Um homem pobre tem de fazer pela
vida, e apoiar ambos os lados nunca é má ideia. Não, lealdades divididas estava certo; mas agora nenhuma lealdade de todo? Isso era confuso. E esta história de Nadia
Wadia tinha de certo modo quebrado todos os elos do Homem-de-Lata - com Fielding, com a equipa Hazaré e as SA no seu todo, com Abraham e comigo. Agora, jogava só
para si próprio. E se ele não podia possuí-la, porque é que outro qualquer havia de poder? E se não autorizavam que a sua casa ficasse de pé, porque é que todas
as outras mansões e torres não haviam também de cair? Sim, era isso mesmo. Ele sabia segredos, e sabia fazer bombas. Eram essas as suas aptidões, as possibilidades
que lhe restavam. "Vou fazê-lo", disse em voz alta. Aqueles que o tinham magoado iriam sentir o peso da mão do Homem-de-Lata.
- Um Duplo e uma Dupla posso eu garantir - dizia Dhiren.
- De primeira classe e com um desconto para clientes antigos. - A equipa de marido e mulher especialistas em sequências de acção do estúdio ao lado (fornecedores
de clarões e explosões inofensivas) também estavam, menos directamente, preparados para ajudar. Eram peixe miúdo, sem dúvida, mas durante anos tinham sido
os fornecedores de mais confiança do Homem-de-Lata em gelenhite, TNT, cronômetros, detonadores e rastilhos. Mas o explosivo RDX! O Duplo e a Dupla deviam ter subido
muito na vida. Para o RDX, os bolsos duma pessoa têm de ser fundos e os contactos têm de chegar lá muito acima. O casalinho das sequências-de-acção devia ter sido
recrutado por gente que não brinca em serviço. Se o RDX ia ser trazido para Bombaim, em quantidade suficiente para a dupla de duplos poder vender qualquer coisinha
à margem, então havia sérios problemas no ar.
- Quanto? - perguntou Sammy.
- Sei lá! - gritou Dhiren, dando pulinhos. - O suficiente para as nossas brincadeiras, isso de certeza.
- Tenho algum ouro guardado, - disse Sammy Hazaré. - E alguma massa. Tu também tens um pé de meia.
- A vida de um actor é muito curta - protestou o anão. - Vais deixar-me morrer à fome nos anos do crepúsculo?
- Não vai haver crepúsculo nenhum para nós. - Replicou o Homem-de-Lata. - Em breve seremos fogo, como o sol.
O meu "irmão" e eu não desfrutámos de qualquer outro almoço juntos. E para o "nosso" pai, também, os anos em que se alimentara da força vital do país estavam quase
a chegar ao fim. A minha mãe já tinha dado com os burrinhos na água. Chegara a hora do mergulho paternal.
A história da queda vertiginosa de Abraham Zogoiby do topo da sociedade de Bombaim é já sobejamente conhecida; a velocidade e a altura da queda garantiram a sua
triste celebridade. E nesta infeliz história há um nome que está totalmente ausente, enquanto outro surge vezes sem conta.
Ausente: o meu nome. O nome do único filho biológico do meu pai.
Evocado: "Adam Zogoiby." Conhecido antes disso como "Adam Braganza". E antes disso: "Aadam Sinai". E antes disso?
Se, tal como os respeitáveis sabujos da imprensa descobriram e posteriormente nos informaram, os seus pais biológicos se chamavam "Shiva" e "Parvati", e tendo em
conta - perdoem-me por gozar com isso - o enorme tamanho das suas orelhas, posso sugerir "Ganesh"?(*) Se bem que "Dumbo" (ou "Goofo" ou "Mutto" ou "Crooko" ou então
"Sabu") seja mais apropriado no caso do odioso Rapaz-Elefante.
Assim, esse miúdo-do-século-vinte-e-um, esse arrivista que estropiava o "I Did It I Way", provou ser não apenas um manhoso usurpador, mas também um imbecil - que
se julgava impossível de apanhar, e que no entanto foi apanhado com uma facilidade hilariante. E um Jonas, também; arrastando com ele para o fundo toda a tripulação.
Sim, a chegada de Adam à nossa família desencadeou a reacção em cadeia que atirou o grande magnata da Sio-dicorp do seu alto pedestal abaixo. Permitam-me, se não
se importam, que volte a contar, enquanto varro todos os sinais de disfarçada alegria da minha voz, os pontos culminantes do gigantesco desmoronamento do negócio
da família.
Quando o superfinanceiro V. V. Nandy, o "Crocodilo", foi preso e acusado da extraordinária façanha de subornar ministros do governo central para que lhe facultassem
biliões sobre biliões de fundos do erário público, com os quais ele pretendia "pôr em ordem" a própria Bolsa de Bombaim, houve alguém que foi preso em simultâneo,
o acima-citado "Adam Zogoiby", por ter sido, ale-gadamente, o "correio" do negócio, levando pastas contendo largas somas de notas de banco, usadas e sem-sequência
até às residências particulares de vários dos mais proeminentes homens do país, e que depois, tal como subtilmente alegou na sua defesa, "esquecendo-se acidentalmente"
delas nesses locais.
Investigações feitas às variadas actividades de "Adam Zogoiby"
- levadas a cabo com um enorme zelo por parte da polícia, das brigadas antifraude e de outras forças apropriadas, sob pressão do embaraçado Governo Central, e também
da Autoridade Munici-
(*) Deuses hindus. Shiva e Parvati são, respectivamente, pai e mãe de Ganesh, o deus-elefante. (N. T.)
pal (controlada pelas SA), a qual, segundo palavras do Presidente das SA, o Sr. Raman Fielding, fez notar que "o ninho de víboras tem de ser exterminado com Vigor
e Rapidez ('With Flit and Vim')" - essas investigações revelaram em breve o envolvimento de Adam num escândalo ainda mais colossal. As notícias da enorme fraude
global perpetrada pelos patrões do Khazana Bank International, do seu alegado envolvimento com organizações terroristas e do desvio em larga escala de urânio ou
outra matéria físsil e software ou hardware de alta tecnologia começaram a atingir os incrédulos ouvidos da opinião pública; e o nome do filho adoptado de Abraham
Zogoiby apareceu numa série de facturas falsas ligadas ao delicado caso do contrabando de um supercomputador roubado no Japão e enviado para local não identificado,
algures no Médio Oriente. Enquanto o Khazana Bank ruía (e dezenas de milhar de cidadãos comuns desde motoristas de taxis hipotecados a donos de agências noticiosas
a Indianos Não Residentes donos de lojas de esquina de todo o mundo se viram na falência) emergiam mais detalhes sobre a ligação do instrumento das transacções bancárias
da Siodicorp (a House Cashondeliveri) com directores corruptos do banco falido, muitos dos quais apodreciam em prisões britânicas ou americanas. As acções da Siodicorp
entraram em queda livre. Abraham - o próprio Abraham
- estava aniquilado. Na altura em que rebentou o escândalo do dinheiro-para-armamento, e as sérias alegações referentes ao seu envolvimento pessoal com o crime organizado
o levaram a tribunal para enfrentar graves acusações tais como gangsterismo, contrabando de droga e lavagem de "dinheiro sujo", o império que ele tinha construído
com a fortuna da família Gama ruiu. Os Bom-baítas revoltados apontavam o dedo à Cashondeliveri Tower e perguntavam-se quando é que ela abriria fendas, tomo a Casa
de Usher, e cairia redonda no chão.
Numa sala de tribunal apainelada em madeira o meu nonagenário pai negou todas as acusações.
- Não estou aqui para participar numa versão melodramática do filme "O Padrinho", - disse, mantendo desafiadoramente o porte erecto e com um desarmante sorriso,
o mesmo sorriso que
a sua mãe, Flory, classificara anos atrás como o esgar de um homem desesperado.
- Perguntem a qualquer pessoa, de qualquer sítio entre Cochim e Bombaim, quem é Abraham Zogoiby. Dirão que é um respeitável cavalheiro com negócios no ramo da pimenta
e especiarias. Digo-o aqui do fundo da minha alma: é apenas isso que eu sou e o que sempre fui. Toda a minha vida foi passada no comércio de especiarias.
A caução foi fixada em um bilião de rupias, não obstante os vigorosos protestos da acusação.
- Uma pessoa não pode enviar para o calabouço um dos mais importantes homens da cidade sem que seja provada a sua culpa, - disse o Juiz Kachrawalas, e Abraham fez
uma vénia em direcção à mesa do Tribunal. Havia ainda alguns sítios onde o seu braço chegava. Para assegurar a caução, os títulos de propriedade dos campos de especiarias
da família Gama teriam de ser dados como garantia. Mas Abraham saiu em liberdade, de volta ao seu moribundo Shangri-La. E sentado sozinho num gabinete às escuras
perto do seu jardim lá do cimo, chegou à mesma conclusão que Sammy Hazaré tinha chegado na sua barraca de Andheri: se tivesse de ser derrotado, sê-lo-ia com todos
os seus canhões em brasa. Na Rádio e na TV, Raman Fielding regozijava-se com a queda do velho.
- A cara bonita de uma miúda na televisão já não safa Zogoiby, desta vez, - disse, e depois, surpreendentemente, desatou a cantar. " When they come big, then they
fali hardia ", guinchou ele. - "Hardia, Nadia Wadia, Hardia (*) Em consequência do que Abraham soltou um ruído de desagrado e dirigiu-se ao telefone.
Abraham fez dois telefonemas nessa noite, e recebeu apenas um. O registo das chamadas veio a mostrar depois que a primeira chamada era dirigida a um dos bordéis
de Falklando Road con-
(*) Palavras de uma canção muito popular na época em que Nadia Wadia foi Miss Mundo. Fielding deformou-as primeiro para dizer "Quanto maiores eles são, mais dura
(harder) é a queda". (N. T.)
trolados pelo chefe-de-gang conhecido por "Gilvaz". Mas não há provas de que qualquer mulher tenha sido mandada ao escritório de Abraham, ou à sua residência de
Malabar Hill. Parece que a sua mensagem era de género diferente.
Mais tarde nessa noite - bastante depois da meia-noite - Abraham ligou para Dom Minto, agora já quase com cem anos. Não há qualquer transcrição textual da conversa
dos dois, mas eu tenho o relato dela feito pelo meu pai. Abraham disse-me que Minto não falara como o homem exaltado e intratável que era. Estava deprimido, melancólico
e apenas falou da morte.
- Ela que venha! Para mim, toda a existência tem sido um filme porno, - terá dito Minto. - Já vi o suficiente do que a vida tem de sujo e obsceno.
Na manhã seguinte, o velho detective foi encontrado morto à sua secretária. - Não há suspeita de crime - disse o Inspector Singh.
O segundo telefonema de Abraham foi para mim. A seu pedido cheguei a Cashondeliveri Tower, completamente deserta a meio da noite e servi-me da minha chave-mestra
para entrar e subir no seu elevador privado. O que ele me disse no seu escuro gabinete fez-me ter menos certezas do que o Inspector acerca da causa da morte de Dom
Minto. Ele confidenciou-me que Sammy Hazaré
- que aparentemente não queria ser visto nas proximidades dos locais habitualmente frequentados por Abraham - tinha ido visitar Minto e passou a jurar pela alma
da mãe que a morte de Aurora Zogoiby tinha sido um assassínio por contrato, executado por um tal Cinco-Duma-Vez a mando de Raman Fielding.
- Mas porquê? - gritei eu.
Os olhos de Abraham cintilaram:
- Falei-te acerca da tua mãezinha, meu rapaz. Provar e largar era a política dela tanto com os homens, como com a comida. Só que com o Mainduck ela mordeu o fruto
errado. O motivo do crime foi sexual. Sexual. Vingança... sexual. - Nunca o ouvira ser tão cruel. Obviamente, a dor da infidelidade de Aurora ainda lhe queimava
as entranhas. A dor bárbara de ter de falar nela ao filho de ambos.
- E como é que foi? - Eu precisava saber. A resposta, disse-mo ele, estava num pequeno dardo hipodérmico no pescoço, daqueles usados para anestesiar pequenos animais
- não elefantes, mas gatos selvagens, talvez. Disparado de Chowpatty Beach durante a loucura da festa de Ganpati, a droga pôs-lhe a cabeça a andar à roda, e Aurora
caiu da borda do terraço. Direitinha às rochas da maré baixa. As ondas devem ter levado o dardo; e no meio dos estragos ninguém reparou - também ninguém andou à
procura - no pequeno furo num dos lados do pescoço.
Eu lembrei-me que tinha estado no pavilhão VIP com Sammy e Fielding, nessa noite; mas Chhaggan podia ter estado em qualquer sítio. Chhaggan, que, juntamente com
Sammy, era o campeão de "sopradores de zarabatanas" das Olimpíadas privadas de Mainduck.
- Mas não pode ter sido soprado com uma zarabatana - pensei em voz alta. - A distância era muito grande.
Abraham encolheu os ombros. - Então foi com uma espingarda lança-dardos, - disse. - Os detalhes vêm todos no testemunho de Sammy. Minto traz-mo amanhã de manhã.
Mas a verdade - acrescentou -, é que não temos provas que se aguentem.
- Nem é preciso - respondi-lhe. - Este assunto não vai ser resolvido por nenhum juiz.
Minto morreu antes de poder levar o testemunho de Sammy a Abraham. O documento não foi encontrado juntamente com os seus papéis. O Inspector Singh não suspeitava
de crime; mas isso era problema dele. Quanto a mim, tinha trabalho a fazer. Antigos e irrefutáveis imperativos exigiam a minha presença. Contra tudo o que seria
de esperar, a sombra perturbada da minha mãe pairava sobre mim, exigindo vingança: "Sangue pede sangue. Lava o meu corpo nas fontes vermelhas dos meus assassinos
e deixa-me repousar em paz ".
É o que farei, mãe.
A mesquita de Ayodhya foi destruída. Militantes partidários, "fanáticos" ou, em alternativa, "devotos libertadores do local sagrado" (risque o que não interessa)
invadiram em magote a Mesquita Babri, templo do século dezassete e destruiram-na com as mãos nuas, à dentada, com o simples poder daquilo a que Sir V. Naipaul chamou
aprovativamente "o seu acordar para a história". A polícia, tal como os fotógrafos de imprensa mostraram, assistiram impassíveis às forças da história a fazer o
seu histórico e destruidor trabalho. Bandeiras cor de açafrão foram hasteadas. Ouviram-se muitos cânticos em louvor do deus Ram & Cia. Foi um daqueles momentos que
se designam habitualmente por "contraditórios": simultaneamente trágico e alegre, autêntico e falso, espontâneo e manipulado. Abriu portas e fechou-as. Foi um fim
e um princípio. Foi aquilo que Camões da Gama profetizara muito tempo antes: a chegada do aríete.
Ninguém sequer podia ter a certeza, alguns comentadores atreveram-se a fazer notar que a cidade de Ayodhya dos nossos dias se situava no mesmo local que a mítica
Ayodhya, casa natal do deus Ram segundo o Ramayan. A ideia de que era ali o local de nascimento de Ram não é uma tradição antiga, - não tem ainda cem anos. Tinha
sido um Muçulmano rezando na velha mesquita de Babri o primeiro a afirmar ter tido ali uma visão do deus Ram e então a bola pôs-se em movimento; poderia haver melhor
imagem de tolerância religiosa e pluralismo do que essa? Após a visão, Muçulmanos e Hindus partilharam-na por algum tempo sem discussões...
Mas que vão p'ró diabo esses factos tão antigos! Quem é que quer saber dessas ninharias pouco saudáveis? O templo tinha caído. Era altura para tirar consequências
e não para saudosismos: para o-que-irá-acontecer-agora, não para o que podia ou não ter-se passado noutros tempos.
O que aconteceu foi o seguinte: em Bombaim, houve um assalto nocturno ao Legado Zogoiby. Os ladrões foram rápidos e profissionais; o sistema de alarme da galeria
revelou-se ser irremediavelmente inadequado. Foram roubados quatro quadros, todos pertencentes ao período do Mouro, e inteligentemente selec-
cionados - um quadro de cada um dos três períodos mais importantes, e também a última e inacabada mas sempre suprema tela, O Ultimo Suspiro do Mouro. A conservadora,
Dr.a Zeenat Vakil, tentou em vão convencer as estações de rádio e televisão a divulgar a notícia. Os acontecimentos em Ayodhya, e as suas sangrentas consequências
monopolizaram as ondas hertzianas. Se não fosse Raman Fielding, a perda destes tesouros nacionais nem teria sido alvo de qualquer notícia. O patrão das SAs ligou
a destruição da mesquita ao desaparecimento dos quadros.
- Quando artefactos estrangeiros desaparecem do solo sagrado indiano, que ninguém se lamente - disse. - Se está para nascer uma nova nação, muitas marcas dos invasores
deverão ser apagadas.
Então agora éramos invasores, é? Depois de dois mil anos, ainda não pertencíamos a este país, iríamos em breve ser "apagados" - supressão essa que nem necessitava
ser seguida de qualquer expressão de arrependimento, ou dor. O insulto de Mainduck à memória de Aurora ajudou-me a levar a cabo a tarefa da qual eu me tinha incumbido.
A minha disposição assassina não podia propriamente ser atribuída ao atavismo; se bem que inspirada na morte da minha mãe, não se pode dizer que fosse uma repetição
de características que teriam saltado algumas gerações! Poderia eventualmente ser apelidada com mais precisão de uma espécie de herança-por-afinidade; pois não introduziram
violência na família Gama os sucessivos casamentos?
Epifania trouxe o seu clã assassino dos Menezes e Carmen os seus Lobos letais. Abraham tivera o instinto assassino desde o início, se bem que preferisse encarregar
outras pessoas de cumprirem as suas ordens. Apenas os meus avós maternos, os verdadeiros apaixonados, Camões e Belle, estão inocentes de tal acusação.
Nem mesmo as minhas próprias ligações amorosas vieram melhorar esse estado de coisas. Não lanço uma sombra sobre a doce Dilly; mas o que pensar de Uma, que me privou
do afecto da minha mãe ao convencê-la de que eu albergava paixões incestuosas? De Uma, que só não conseguiu matar-me devido à insó-
lita intrusão dum gag de farsa - um choque de cabeças - numa cena de grande dramatismo.
Mas apesar de tudo, não há necessidade de pôr as culpas nos antepassados ou nas amantes. A minha própria carreira de espancador de homens - o meu destruidor período
Martelo - teve as suas origens num capricho da natureza, que deu uma força de sôco enorme à minha mão direita, que, sem isso, não serviria para nada. É verdade que
eu nunca tinha, até agora, morto ninguém; mas dada a força de alguns socos que administrei, isso deveu-se a mera sorte. Se, no caso de Raman Fielding, foi decisão
minha ser ao mesmo tempo juiz e carrasco, foi apenas porque estava na minha natureza fazê-lo.
A civilização é o truque de prestidigitação que nos oculta a nossa própria natureza. À minha mão, gentil leitor, faltou destreza, mas sempre soube para que servia.
Assim, a ânsia de sangue estava na minha própria história, e bem entranhada nos meus ossos. Não vacilei nem por um instante na minha decisão; obteria vingança -
ou morreria na tentativa de a obter. Os meus pensamentos giravam constantemente à volta da ideia de morrer de velho. Aqui estava, finalmente, a maneira de dar algum
sentido ao meu fim, de o tornar menos frouxo. Apercebi-me, com uma espécie de surpresa abstracta, que estava preparado para morrer, desde que o cadáver de Raman
Fielding estivesse aos meus pés. Pelos vistos também eu me tinha tornado um "fanático assassino". (Ou um "vingador justiceiro", escolham.)
Violência era violência, assassínio era assassínio, duas coisas erradas não fazem uma certa: eis um tipo de verdades de que estava plenamente consciente. Outra:
se descermos ao nível do nosso adversário perdemos a posição mais favorável. Nos dias seguintes à destruição da Mesquita de Babri, "Müçulmanos justamente enraivecidos
"/"fanáticos assassinos" (mais uma vez, escolham o que quiserem) destruíram templos Hindus, e mataram Hindus, por toda a índia e também no Paquistão. Há um ponto
na violência de massas para além do qual se torna irrelevante perguntar "Quem é que começou?" As fatais convergências da morte impossibilitam qualquer justificação,
não querem saber da justiça
para nada. Crescem no meio de nós - esquerda e direita, Hindus e Muçulmanos, faca e pistola - matando, queimando, saqueando, e erguendo no ar fumarento os punhos
cerrados. Ambos os lados estão amaldiçoados pelos seus crimes; ambos os lados prescindem do direito a qualquer réstea de virtude; são as pragas uns dos outros.
Eu não sirvo de exemplo. Fui um homem violento durante tempo demais e, na noite seguinte a Fielding ter insultado a minha mãe na televisão, pus brutalmente fim à
sua vida amaldiçoada. E, ao fazê-lo, atraí uma maldição para a minha própria vida.
À noite, os muros que rodeavam a propriedade de Fielding eram patrulhados por oito equipas de dois craques que faziam turnos de três horas; eu conhecia as alcunhas
que eles tinham no seu círculo fechado. Os jardins estavam protegidos por quatro lobos de Alsácia rasgadores de gargantas ("Gavaskar", "Vengsarkar", "Mankad" e -
como prova da ausência de preconceitos do seu dono - "Azharuddin")(*) ; estas encarnações caninas de grandes vedetas do desporto vieram ter comigo pedindo festas,
e abanando as caudas calorosamente. À porta de casa de Fielding estavam mais guardas. Eu conhecia bem esses gorilas - um par de jovens gigantes que davam pelos nomes
de Badmood (Mau-Feitio) e Sneezo (Fanhoso) - mas mesmo assim revistaram-me dos pés à cabeça. Eu não levava qualquer arma; ou, pelo menos, nenhuma arma que eles me
pudessem tirar.
- Isdo hoje é côbo os velhos têpos - disse-me o Fanhoso, o mais novo, permanentemente fanhoso e - talvez como compensação - o menos lacónico deles todos.
- O Hobem-de-Lada passou bor gá há bogado duba vesita de cortesia. Acho que ele estava à esbera que o deixassei ficar, bas o
(*) Nomes de conhecidos jogadores de críquete, os primeiros Hindus e o último Muçulmano. (N. T.)
O ÚLTIMO SUSPIRO DO MOURO
gabitao é u tipo de ideias fixas. - Disse-ihe que tinha pena de não ter visto Sammy; e como é que estava o velho Cinco-Duma-Vez?
- O gabitao teve pê da do Hazaré, - murmurou o jovem guarda. - Vôrau os dois abanhar uba bebedâra. - O colega deu-lhe uma palmada na nuca e ele calou-se. - Mas é
o velho Bar-telo, - queixou-se, apertando o nariz entre o polegar e o indicador, e fungando ruidosamente. O ranho saltou por todo o lado. Eu afastei-me rapidamente.
Foi um golpe de sorte, pensei, o facto de Chhaggan não estar por ali. Ele tinha um sexto, direi mesmo um sétimo sentido para topar uma bronca e as hipóteses que
eu tinha de o dominar, a ele e ao Fielding, e conseguir escapar sem lançar um alerta geral teriam sido nulas. Eu tinha chegado lá esperando o pior; esta ausência
fortuita dava-me hipóteses de, pelo menos, conseguir sair dali vivo.
O mais taciturno deles todos, o esmagador-de-cabeças, Mau-Feitio, perguntou-me o que é que eu queria. Repeti o que dissera nos portões.
- É só com o capitão. - Mau-Feitio ficou descontente.
- Nem penses nisso. - Pus um ar sério: - Tudo bem, és tu que ficas sem a cabeça quando ele souber.
Ele rendeu-se: - Para tua grande sorte, o capitão está a fazer serão devido aos últimos acontecimentos nacionais, - disse com ar furioso - Espera aqui que eu vou
perguntar-lhe. - E após breves momentos voltou e espetou o polegar em direcção ao covil secreto.
Mainduck trabalhava apenas sob a luz amarela de um candeeiro de estirador. A sua enorme cabeça estava semi-iluminada, metade dela no escuro; o seu enorme corpanzil
fundia-se com a noite. Estaria sozinho? Era difícil ter a certeza.
- Martelo, Martelo - grasnou. - Em que condição vieste tu esta noite? Como emissário do teu pai, ou como traidor à puta da causa dele?
- Mensageiro - disse eu. Ele acenou com a cabeça.
- Então, entrega a mensagem.
- É só contigo - disse-lhe. - Nada de microfones.
Muitos anos antes Fielding tinha louvado a decisão do Presidente Americano Nixon de pôr escutas no seu próprio gabinete.
"O tipo tem o sentido da história", dissera ele na altura. "E tomates, também. Fica tudo gravadinho." Eu fizera-lhe notar que essas gravações tinham ajudado a acabar
com a sua Presidência. Fielding desdenhou essa objecção. "Aquilo que eu digo não me pode trazer mal", proclamou. "A minha ideologia é a minha fortuna! E um dia os
putos ainda hão-de estudar as minhas declarações no liceu."
Portanto: nada de microfones. Ele sorriu de orelha a orelha, parecendo, sob aquela luz, muito mais o Gato de Cheshire (*) do que um sapo.
- Lembras-te de demasiadas coisas, Martelo - repreendeu-me afectuosamente. - Vá lá então, meu querido, vem murmurar-me pequenos nadas ao ouvido.
Eu estava velho e isso preocupava-me enquanto avançava para ele. Talvez que o velho soco do KO tivesse desaparecido. "Dá-me forças, roguei a ninguém em particular:
à alma de Aurora, talvez. Só mais uma vez, dá-me a minha força-martelo. " O telefone-sapo verde olhava para mim no tampo da secretária. Meu Deus, como eu odiava
aquele telefone. Debrucei-me sobre Mainduck; que num ápice ergueu a mão esquerda, me agarrou pelo cabelo e me puxou a boca até à orelha esquerda. Atarantado por
uns momentos, apercebi-me com horror que a minha mão direita, a minha única arma, não conseguiria atingir o alvo. Mas ao cair sobre a beira da secretária, a minha
mão esquerda - mão essa que eu me vira obrigado (durante toda a minha vida e contra a minha natureza) a aprender a usar - bateu, por sorte, no telefone.
- A mensagem é da parte da minha mãe, - segredei-lhe, e esmaguei-lhe o sapo verde na cara. Ele não proferiu qualquer som. Os seus dedos soltaram-me o cabelo, mas
o telefone-sapo persistia em querer beijá-lo, por isso pus o sapo a beijá-lo com todas as minhas forças, depois ainda com mais força, e mais força, até que o plástico
se estilhaçou e o instrumento começou a desfazer-se-me na mão.
- Que coisa tão rasca, esta - pensei, e pousei-o.
(*) Gato sorridente que Alice encontra no País das Maravilhas. (N. T.)
Como o deus Ram matou o raptor da bela Sita, Ravan, Rei do Lanka:
Ainda a dúbia batalha perdurava, quando Rama, na sua fúria Empunhou a mortífera arma de Brahma flamejando num fogo celestial!
A arma que Santo Agastya ao herói dera,
Veloz como a flecha de Indra, fatal como o raio do céu, Envolvida em fumo e em raios flamejantes, soltou-se do arco tendido,
Atingiu o coração de ferro de Ravan, prostrou por terra o herói sem vida...
Uma voz de bênção caiu do céu brilhante até ao bravo filho de Raghu,
"Defensor da verdade e da justiça! Agora a nobre tarefa está concluída!"
Como Aquiles matou Heitor, o assassino de Pátroclo:
Depois falou Heitor, o do elmo cintilante,
Toda a sua força esvaída: "Rogo-te pela tua vida,
Pela tua força, por teus pais, não me deixes para os cães Dos Aqueus, que estão junto dos barcos me comerem..."
Mas Aquiles olhando carrancudo, disse rapidamente:
"Não me rogues, cão, pela minha vida ou pelos meus pais. Apenas desejava ter coragem e vontade Para te arrancar a carne e comê-la crua, A Por tudo o que me fizeste!
Não viverá ninguém Que afaste de ti os cães...
... cães e pássaros comer-te-ão totalmente!
Estão a ver a diferença. Enquanto Ram se serviu de uma máquina celestial que poderia exterminar a humanidade, eu tive de
me contentar com um sapo telecomunicativo. E, depois disso, não recebi do Céu quaisquer palavras de felicitação pelo meu feito. Quanto a Aquiles: eu não tinha nem
a sua selvajaria de comedor de entranhas nem a sua veia poética. Os cães dos Aqueus, contudo, acabariam por ter os seus equivalentes em Bombaim...
...Após Ram ter morto Ravan organizou cavalheirescamente um funeral para o seu derrotado inimigo. Aquiles, sem dúvida o menos galante desses grandes heróis, prendeu
o corpo de Heitor à sua quadriga e arrastou-o dando três voltas à sepultura de Pátroclo. Quanto a mim: não vivendo em tempos heróicos, não honrei nem profanei o
corpo da minha vítima; pensava apenas em mim, nas minhas hipóteses de sobrevivência e de fuga. Depois de ter assassinado Fielding voltei-o na cadeira, de modo a
que não ficasse com a cara voltada para a porta (se bem que já não tivesse cara). Levantei-lhe os pés pousando-os numa prateleira e cruzei-lhe os braços sobre as
suas sangrentas feridas, para que desse a ideia de ter adormecido, exausto do seu trabalho. Depois rapida e silenciosamente, procurei os gravadores - deveria haver
dois, para se apoiarem um ao outro.
Foi fácil encontrá-los. Fielding nunca tinha feito segredo do seu gosto pelas gravações, e os armários do seu escritório - que não estavam fechados à chave - revelaram-me
as bobinas girando lentamente, quais derviches, no escuro. Arranquei metros e metros de fita e enfiei-a nos bolsos.
Era altura de partir. Saí da sala e fechei a porta com um cuidado exagerado.
- Não o incomodem - sussurrei a Mau-Feitio e a Fanhoso,
- O capitão está nos braços de Morfeu.
Isso aguentá-los-ia por uns momentos, mas teria eu tempo de sair da propriedade? Só tinha à minha frente visões de gritos, apitos, tiros, e quatro mastins rosnando
ruidosamente ao lançarem-se à minha garganta. Os meus pés começaram a apressar-se; Acalmei-os e aí parei. "Gavaskar", "Vengsarkar", "Mankad" e "Azharuddin" apareceram
e lamberam-me a mão boa. Ajoelhei-me e abracei-os. Depois levantei-me, deixando cães e estátuas de Shiva atrás de mim, saí pelos portões, e entrei no Mercedes-Benz
que tinha tirado da garagem da Torre de Cashondeliveri. Enquanto
ia conduzindo perguntava-me quem me apanharia primeiro; a polícia, ou Chhaggan Cinco-Duma-Vez. Do mal o menos: preferia a polícia. Um segundo cadáver, Sr. Zogoiby.
Que descuidado! A negligência é uma coisa lixada.
De repente, ouvi o rugido de um animal por trás de mim, só que nunca nenhum animal tinha rugido tão alto, e uma mão gigante fez o meu carro dar uma volta, duas,
e rebentou com os vidros traseiros. O Mercedes ficou em pé mas virado em sentido contrário.
O sol tinha nascido. A primeira coisa em que pensei foi n'A Morsa e o Carpinteiro:
A lua brilhava amuada,
Porque pensava que o sol Não tinha nada que estar ali Agora que o dia tinha acabado.
"É deselegante da parte dele, " disse a lua,
"Aparecer assim e estragar-me a festa. "
A minha segunda ideia que um avião se tinha despenhado sobre a cidade. Havia chamas altas, e gritos, e pela primeira vez apercebi-me que algo acontecera na residência
de Fielding. Recordei as palavras de Fanhoso: "O Hobem-de-Lada passou bor gá há bogado duba vesita de cortesia. "
A sua última visita de cortesia. A sua visita de cortesia de velho guerreiro despedido. Como foi que Sammy, o bombista, conseguiu passar os seus explosivos pelos
guardas? Apenas me ocorria uma resposta: Dentro do seu membro de metal. O que queria dizer que tinha de ser muito pequeno. Ali não havia espaço para paus de dinamite.
O que seria, então? Plástico, RDX, Semtex? "Bravo, Sammy", pensei. "Uma miniaturização, hã? Ora"bem! Para o velho Mainduck nada menos que o melhor e mais moderno."
Que tão cedo não iria despedir mais ninguém. Ocorreu-me que tinha assassinado um homem morto. Mesmo estando ainda vivo na altura em que estive com ele, Sammy tinha
superado os meus socos.
Demorei mais alguns momentos a realizar que não devia ter sobrado muito de Mainduck. Sammy era bom demais para não ter
pensado nisso. Era muito possível, nesse caso, que eu não viesse a ser suspeito de ter cometido qualquer crime. Se bem que, tendo sido a última pessoa a ver Mainduck
vivo, teria por certo que responder a algumas perguntas.
O carro pegou obedientemente à primeira. O ar estava irrespirável, cheio de fumo e do cheiro característico dos explosivos. Muita gente corria. Era altura de partir.
Enquanto fazia inversão de marcha imaginei ouvir o ladrar de cães famintos a quem tinham sido inesperadamente lançados nacos de carne, grande parte ainda agarrada
ao osso. Imaginei isso e o bater de asas de abutres.
- Vai-te embora - disse Abraham Zogoiby. - Vai-te já embora e não voltes tão cedo.
Era o meu último passeio com ele pelo seu pomar suspenso. Tinha-lhe feito o relatório dos fatais acontecimentos de Bandra.
- Então o Hazaré trabalha por conta própria? - disse o meu pai. - Não importa. Mas anda aí um negócio esquisito. Algum fornecedor anda a negociar em paralelo, e
isso terá de ser resolvido. Mas não são contas do teu rosário. A partir deste momento ficas por tua conta. Por isso, adeus. Põe-te a milhas. Vai-te, enquanto podes
fazê-lo.
- E que vai acontecer por aqui?
- O teu irmão vai apodrecer na cadeia. Será o fim. Eu próprio estou acabado. Mas o meu fim, esse ainda não começou.
Tirei uma maçã madura de dentro de um cesto e fiz-lhe a minha última pergunta.
- Em tempos - disse - Vasco Miranda disse que este não era um país para nós. Nessa altura ele disse aquilo que o pai me está a dizer agora. "Capatazes de Macaulay(*)
, para a rua!" Então ele tinha razão, era? "Pirem-se, mudem-se para o Ocidente", é isso?
(*) Thomas B. Macaulay. Político e historiador inglês que advogava a criação duma classe de indianos anglicizados e ao serviço do Império Britânico. (N. T.)
- Tens os teus documentos em ordem? - Abraham, com o seu poder destruído, parecia envelhecer à minha vista, como um imortal obrigado a sair para fora dos mágicos
portais de Shangri-La. Mas sim, assegurei-lhe, tinha os documentos em ordem. Essa tão-renovada passagem para Espanha que tinha sido o legado da minha mãe. Essa janela
para outro mundo.
- Então vai tu mesmo fazer-lhe essa pergunta - disse Abraham, lançando-me um sorriso desesperado à medida que se afastava de mim por entre as árvores. Larguei a
maçã e parti.
- Olha lá, Morais, - gritou-me. - És mesmo estúpido, caramba. Quem é que pensas tu que roubou aqueles quadros senão o maluco do teu Miranda? Vai procurá-los, rapaz.
Vai lá procurar o teu precioso Palimpsesto. Vai ver essa besta maldita.
E a sua última ordem foi o mais próximo que jamais esteve de uma declaração de afecto:
- Leva a merda do cão.
Saí daquele jardim suspenso com Jawaharlal debaixo do braço. Estava prestes a amanhecer. Havia um aro vermelho rodeando o planeta, separando-nos do céu. Era como
se alguém, ou alguma coisa, tivesse estado a chorar.
Bombaim explodiu. Eis o que me contaram: foram utilizados trezentos quilos de explosivos RDX. Dois mil e quinhentos quilos foram apreendidos mais tarde, parte em
Bombaim, parte dentro de um camião de carga perto de Bhopal. E também mecanismos de relojoaria, detonadores, toda essa treta. Não houvera nunca algo assim na história
da cidade. Algo "tão frio, tão calculado, tão cruel. Paun-n-n-n! Um autocarro da escola cheio de crianças. Paun-n-n-n! O edifício da Air-índia. Paun-n-n-n! Comboios,
residências, prédios de habitação, docas, estúdios de cinema, fábricas, restaurantes. Paun-n-n-n! Paun-n-n-n! Paun-n-n-n! Armazéns de mercadorias, edifícios de escritórios,
hospitais, ruas inteiras no coração da cidade. Bocados de corpos por todo o lado,
sangue humano e animal, vísceras e ossos. Os abutres, de tão ata-fulhados de carne ficavam entorpecidos nos telhados, à espera que lhes voltasse o apetite.
Quem o fez? Muitos dos inimigos de Abraham foram atingidos: agentes da polícia, funcionários das SAs, rivais do crime. Paun-n-n-n! O meu pai quando chegou a sua
última fase fez um simples telefonema, e a metrópole desatou a explodir. Mas teria podido Abraham, apesar dos seus imensos recursos, conseguir reunir um tal arsenal?
Como é que uma guerra de gangs podia provocar uma tal legião de mortos inocentes? Foram atacadas áreas tanto de Hindus como de Muçulmanos; homens, mulheres e crianças
morreram, e não havia ninguém que desse às suas mortes a dignidade de um significado. Que demónio vingador surgiu no horizonte, e provocou uma chuva de fogo sobre
as nossas cabeças? Estaria a cidade simplesmente a assassinar-se a si própria?
Abraham desencadeou a guerra, e deixou a sua maldição cair onde quer que pudesse. Em parte foi isso. Mas não só isto. Eu não sei tudo. Conto-lhes apenas o que sei.
Eis o que eu quero saber: quem matou Elepbanta, quem assassinou a minha casa? Quem é que a fez explodir em mil bocados, e, com ela, o porteiro "Lambajan Chandiwala"
Borkar, Miss Jaya Hé e o cozinheiro Ezekiel, o dos mágicos cadernos de receitas de cozinha? Terá sido vingança de Fielding, iniciativa do mercenário Hazaré, ou será
que houve movimentos mais profundos, bem lá no fundo da história, aonde nem mesmo aqueles de nós que passaram tanto tempo no submundo tinham acesso?
Bombaim era central; sempre o fora. Tal como os fanáticos Reis Católicos invadiram Granada e aguardaram a queda do Alhambra, também os bárbaros nos batiam agora
à porta. Ó Bombaim! Prima in Indis! Porta da índia! Estrela do Oriente de rosto voltado para Ocidente! Tal como Granada - a al-Gharnatah dos Árabes - foste a glória
dos teus tempos! Mas um tempo mais obscuro atacou-te de surpresa, e tal como Boabdil, o último Sultão de Granada, foi demasiado fraco para defender o seu valioso
tesouro, também nós não estivemos à altura. Porque os bárbaros não estavam apenas nos nossos portões como também na nossa
pele. Nós fomos os nossos próprios cavalos de Tróia, cada um de nós prenhe da nossa própria maldição. Talvez Abraham Zogoiby tenha acendido o rastilho, ou então
"Gilvaz": foram esses ou outros fanáticos, os nossos loucos ou os vossos; mas as explosões saíram dos nossos próprios corpos. Fomos ao mesmo tempo os bombistas e
as bombas. As explosões foram o nosso próprio Mal, não é preciso procurar justificações alheias, se bem que tenha havido e ainda haja o Mal fora das nossas fronteiras,
bem como dentro delas. Decepámos as nossas próprias pernas, engendrámos a nossa própria queda. E agora só podemos chorar por aquilo que fomos tão fracos, tão corruptos,
tão pequenos, tão desprezíveis a defender.
- Por favor, perdoem-me o arrebatamento. Deixei-me levar pela emoção. O velho Mouro não soltará mais nenhum suspiro.
A Dr.a Zeenat Vakil foi morta quando uma bola de fogo destruiu a galeria do Legado Zogoiby em Cumballa Hill. Nem um único quadro foi poupado; remetendo por conseguinte
a minha mãe Aurora para um lugar bem próximo da esfera da irrecuperável antiguidade, para os arredores daquele infernal jardim cheio com as sombras daqueles - agora
sem cabeças e sem braços, tal como as suas estátuas - cujo trabalho de toda uma vida desapareceu (lembro-me de Cimabue(*), de quem apenas conhecemos uma mão-cheia
de obras).
O Escândalo foi poupado. Tinha sido há muito emprestado ao Museu Nacional de Deli pelo Legado Zogoiby, e ainda hoje lá está, enfrentando confiadamente Amrita Sher-Gil.
Algumas outras telas lá estão. Quatro desenhos da Lagartixa, do período inicial; o quadro do homem que não conseguia falar; e o penetrante e doloroso Mouro Nu e
Sua Mãe; estando todos eles, afortunadamente, emprestados a outros Museus, na índia ou no estrangeiro.
(*) Pintor medeval italiano, mestre de Giotto. (N. T.)
Também preservada, por ironia, a perturbadora fantasia do críquete pendurada na parede da sala das senhoras Wadia, Beijando Abbas Ali Baig. Oito obras. Mais o quadro
do Museu de Frankfurt, o da Tate Gallery e o da colecção Gobler. Alguns quadros do "Período Vermelho" eram propriedade de particulares. (Que irónico o facto de ela
própria ter destruído a maior parte deles!)
Mais obras sobreviventes do que Cimabue, afinal de contas; mas um mero fragmento da produção total daquela prolífica pintora.
E os quatro Auroras roubados representavam agora um segmento crucial da totalidade das obras sobreviventes.
Na manhã das explosões, Miss Nadia Wadia foi pessoalmente atender a porta, pois a criada tinha ido de manhã cedo às compras e ainda não voltara. À sua frente estavam
duas caricaturas: um anão de caqui e um homem com uma placa na cara e uma mão de metal. Preparava-se para soltar um grito e uma gargalhadinha; mas antes de poder
emitir qualquer som já Sammy Hazaré tinha esfaqueado Nadia na face, com dois golpes paralelos feitos da parte superior direita para a parte inferior esquerda, poupando
profissionalmente os olhos. Ela desmaiou no capacho, e quando recuperou a consciência, tinha a cabeça no colo da sua mãe aflita e os lábios sujos com o próprio sangue;
os assaltantes desconhecidos tinham desaparecido para nunca mais voltar.
O guru Khusro morreu nas explosões: o arranha-céus cor-de-rosa de Breach Candy, onde "Adam Zogoiby" tinha feito a sua carreira foi igualmente destruído. O corpo
de Chhaggan "Cinco-Duma-Vez" foi encontrado numa valeta em Bandra: golpes fundos tinham-lhe aberto a garganta. Os cinemas exibindo em ecrã gigante o remake do clássico
Gai-Wallah, os Cafés Sorryno e Pio-
neer, nada disto existia. E a Irmã Flóreas, a minha única e verdadeira parente viva, provou ter-se enganado na previsão que fez sobre o futuro: as bombas tinham
atingido a clínica e o convento de Gratiaplena, e Minnie contava-se entre os mortos.
Paun-n-n-n! Paun-n-n-nl Não apenas irmãs, amigos, quadros, e locais favoritos, mas também o próprio sentimento tinha explodido. Quando a vida se tornara tão mesquinha,
quando cabeças saltavam e corpos decapitados dançavam nas ruas, como podemos nós preocupar-nos com uma única morte? Como podemos preo-cupar-nos com a iminente probabilidade
da nossa própria morte? Após cada monstruosidade surge uma pior ainda: como viciados em último grau, parecemos necessitar de doses reforçadas. A catástrofe tornou-se
o hábito da cidade, e nós todos éramos os seus fantasmas, os seus zombies, os seus não-mortos. Atordoado e - para usar a já tão gasta mas desta vez apropriada palavra
- chocado, entrei num estado remoto e próprio de um deus. A cidade que eu conhecera estava a morrer. O corpo que eu habitara, idem. E então? Que ser a ser a...
E reparem: o que era para acontecer, aconteceu. Sammy Hazaré, o "Homem-de-Lata", com o pequeno Dhirendra trotando determinadamente a seu lado, marchou pelo hall
da Torre de Cashondeliveri adentro. Tinha explosivos atados ao torso, pernas e costas. Dhirendra trazia dois detonadores; Sammy empunhava a sua espada. Os guardas
do edifício viram que a heroína que os bombistas tinham injectado para lhes dar coragem lhes transtornava o olhar e lhes fazia tremer o corpo todo; e recuaram aterrorizados.
Sammy e Dhiren subiram no elevador non-stop até ao trigésimo-primeiro andar. O Chefe da Segurança falou para Abraham Zogoiby para guinchar avisos e balbuciar justificações.
Abraham interrompeu-o bruscamente: *
- Evacuem o edifício - foram estas as suas últimas palavras.
Os empregados da torre desataram a fugir loucamente para a rua. Sessenta segundos depois, contudo, o enorme átrio do topo da Torre de Cashondeliveri irrompeu no
céu como um gigantesco fogo-de-artifício e uma chuva de vidros começou a cair, esfaqueando os fugitivos no pescoço, nas costas, nas coxas, rebentando
com os seus sonhos, os seus amores, a sua esperança. E após a chuva de vidro, várias outras tempestades. Muitos dos trabalhadores tinham ficado retidos na torre
pela explosão. Os elevadores estavam inacessíveis, os poços de escada tinham ruído, havia chamas e nuvens de um devorador fumo negro por todo o lado. Houve quem
entrasse em pânico e saltasse pelas janelas ao encontro da morte.
Por fim, o jardim de Abraham despenhou-se como uma bênção. Terra importada, relva inglesa e flores estrangeiras - crocos, narcisos, rosas, malva-rosas, miosótis
- caíram sobre a praça; e frutos exóticos, também. Árvores inteiras elevaram-se graciosamente nos céus antes de aterrar no chão, como esporos gigantes. Penas de
pássaros não-Indianos pairaram no ar durante dias e dias.
Grãos de pimenta, cominho em bruto, paus de canela e grãos de cardamo misturados com plantas e pássaros importados caíam sobre as ruas e passeios como granizo perfumado.
Abraham tinha sempre sacos de especiarias de Cochim à mão de semear. Por vezes, quando estava sozinho, abria-os, e enfiava as mãos nostálgicas nas suas odoríferas
profundezas. Grãos de alforva e aniz, sementes de coriandro e assa-fétida caíram sobre Bombaim; mas o que caiu mais foi pimenta preta, o Ouro Negro do Malabar, sob
o qual, há uma eternidade e mais um dia, um jovem gerente de armazém e uma rapariga de quinze anos caíram num amor de pimenta.
Em 1835, Macaulay escreveu nas suas "Notas Sobre a Educação": ... para formar uma classe de indivíduos. Indianos pelo sangue e pela cor, mas Ingleses pelas suas
opiniões, pela sua moral e pelo seu intelecto. E para fazer o quê? - diga lá... para servirem de intérpretes entre nós e os milhões que nós governamos. Como nos
vão ficar reconhecidos, esses tais indivíduos! Porque na índia os dialectos são pobres e rudes e uma única prateleira de uma boa biblioteca europeia vale mais do
que toda a literatura indígena.
A história indiana, a ciência, a medicina, a astronomia, a geografia, a religião eram igualmente amesquinhadas: Tornariam ridículo qualquer ferrador inglês... e
despertariam o riso das raparigas de um colégio interno.
E assim, os tais "capatazes de Macaulay" teriam de odiar o melhor da índia. Vasco não tinha razão: nós nunca seríamos, nunca poderíamos ser essa classe. O melhor
e o pior estavam em nós, lutavam dentro de nós, como lutavam em todo o nosso imenso país. Nalguns de nós triunfara o mal; mas apesar disso podíamos dizer - e com
inteira verdade - que tínhamos amado o melhor da índia.
Enquanto o meu avião sobrevoava a cidade, podiam ver-se enormes colunas de fumo. Já nada me prendia a Bombaim. Aquela já nem era a minha Bombaim, já não era especial,
já não era a capital da alegria de sermos uma enorme mistura. Alguma coisa chegara ao fim (o Mundo?) e o que restava não sabia o que era. Dei por mim a querer estar
em Espanha - em Outro Sítio. Já a caminho do país de onde tinha sido expulso, há vários séculos. Seria possível que ele não viesse a ser o meu perdido lar, o meu
lugar de repouso, a minha terra prometida? Que não viesse a ser a minha Jerusalém?
- Não concordas, Jawaharlal? - Mas o rafeiro empalhado que eu trazia ao colo não tinha nada a dizer.
Enganei-me numa coisa, contudo: o fim de um mundo não é o fim do mundo. A minha ex-noiva, Nadia Wadia, apareceu na televisão alguns dias depois dos atentados, com
as cicatrizes do rosto ainda pálidas, a sua desfiguração ainda visível. E, no entanto, a sua beleza era tão enternecedora, a sua coragem tão evidente, que de certo
modo parecia mais bela do que nunca. Um jornalista tentava interrogá-la sobre a sua penosa experiência; mas, num momento extraordinário, ela virou-lhe as costas,
e falou directamente para a câmara, e para o coração de cada telespectador.
- Então perguntei a mim mesma: Nadia Wadia, será que chegou o teu fim? É o cair do pano? E durante algum tempo pensei, sim, acabou tudo, infelizmente. Mas depois
dei por mim a perguntar-me: Nadia Wadia, também te referes aos homens? Dizer
aos vinte e três anos que a vida é, em todos os aspectos, uma fantochada? Que disparate, Nadia Wadia! Ó rapariga, tu aguenta-te, sim? A cidade vai sobreviver. Outras
torres se erguerão. Melhores dias virão. E agora digo todos os dias: Nadia Wadia, o futuro chama-te. Toma atenção ao que ele te diz.
IV
O Último Suspiro do Mouro
19
Fui para Benengeli porque o meu pai me disse que Vasco Miranda, um homem que eu não via há catorze anos - ou vinte e oito, de acordo com o meu calendário pessoal
acelerado - tinha como prisioneira a minha falecida mãe; ou, pelo menos, a melhor parte do que restava dela. Acho que esperava poder reclamar-lhe os quadros roubados
e, ao fazê-lo, sarar em mim uma profunda ferida antes de chegar ao termo da minha jornada.
Nunca tinha andado de avião, e a experiência de passar através das nuvens - parti de Bombaim com um céu excepcionalmente cheio de nuvens - era para mim tão perturbante
como as imagens que, nos filmes ou nos livros ilustrados, retratam o Além, o Mundo-para-lá-da-Vida. Estaria a atravessar o país dos mortos? Quase esperava ver um
portão cor de pérola pousado nos fofos campos dos cúmulos que avistava pela janela, com um homem segurando o livro do registo do mal e do bem. O sono envolveu-me
e, nos meus primeiros sonhos de alta altitude, fiquei a saber que já tinha deixado o país dos vivos. Talvez tivesse morrido nas explosões de Bombaim, como tantas
pessoas que tinha conhecido. Uma rapariga amável ofereceu-me comida e bebida e aceitei ambas as coisas. A garrafinha de Rioja tinto era deliciosa mas muito pequena:
pedi mais.
- Tenho a sensação de ter mudado de época - disse à gentil hospedeira pouco tempo depois. - Só não sei se fui para o passado, se para o futuro.
- Muitos passageiros sentem o mesmo - tranquilizou-me ela.
- E eu digo-lhes que não é nem uma coisa nem outra. O passado e o futuro é onde vivemos a maior parte das nossas vidas. Na verdade, o que está a sentir neste nosso
microcosmos é a desorientação de se ter mudado, por algumas horas, para o presente.
O nome dela era Eduviges Refugio e era estudante em psicologia na Universidade Complutense de Madrid. Uma espécie de flexibidade da alma tinha-a levado a pôr de
lado a sua educação e a enveredar por aquela vida deambulante, confiou-me ela candidamente, sentando-se por momentos no lugar livre ao meu lado e colocando Jawaharlal
no colo:
- Xangai! Montevideo! Alice Springs! Sabe que estes lugares só revelam os seus segredos, os seus mais profundos mistérios àqueles que lá vão apenas de passagem?
Tal como é possível fazer confidências a um estranho encontrado numa estação de autocarros - ou a bordo de um avião - e entrar mesmo em intimidades que nos fariam
corar se as referíssemos, ainda que levemente, às pessoas com quem vivemos. A propósito, que simpático este cão empalhado! Eu tenho lá em casa uma colecção de passarinhos
empalhados; e, vinda dos Mares do Sul, uma autêntica cabeça humana reduzida. Mas a verdadeira razão por que eu viajo - debruçou-se sobre mim - é que sinto prazer
na promiscuidade e num país católico como a Espanha não é fácil satisfazê-lo.
Mesmo nessa altura - tal era a turbulência interior que o vôo me causava - não percebi que me estava a oferecer o seu corpo. E ela viu-se obrigada a explicitá-lo:
- Neste vôo, ajudamo-nos uns aos outros - disse. - As minhas colegas vão estar atentas para que ninguém nos incomode.
Levou-me para um pequeno toilette e fizemos sexo muito rapidamente: ela atingiu o orgasmo com uns poucos movimentos enérgicos enquanto eu nem dele me aproximei,
sobretudo porque ela pareceu ter perdido todo o interesse em mim a partir do momento em que satisfez as suas necessidades. Aceitei a situação passivamente - a passividade
era o meu estado natural - compusemos as roupas e saímos rapidamente, um de cada vez. Um pouco mais tarde senti urgência em voltar a falar com ela, nem que fosse
para
-fixar na memória o seu rosto e a sua voz, que já se iam desvanecendo; mas foi outra mulher que apareceu em resposta à luzinha que eu tinha acendido ao premer um
botão com um bonequinho desenhado.
- Queria a Eduviges - expliquei.
A outra rapariga franziu a testa: - Como? Disse Rioja?
O som pode alterar-se a bordo dum avião, de modo que repeti mais claramente:
- Eduviges Refúgio, a psicóloga.
- O senhor deve ter passado pelo sono - disse a rapariga, com um sorriso sardónico. - Não temos nenhuma hospedeira com esse nome.
Quando insisti que havia e levantei provavelmente a voz, apareceu um homem com galões dourados nos punhos do blazer:
- Não faça barulho e esteja calmo. Na sua idade, francamente, e com essa deformidade! Devia ter vergonha de estar a fazer essas propostas a raparigas decentes. Vocês,
os Indianos, pensam que as mulheres europeias são umas pegas.
Fiquei estupefacto; mas ao olhar para a segunda rapariga vi que ela levava um lencinho ao canto dos olhos:
- Peço desculpa se pedi qualquer coisa que não devia - desculpei-me. - Deixem-me dizer-lhes que retiro desde já qualquer pedido.
- Ainda bem. - Concordou o homem. - Já que reconheceu o seu engano, não se fala mais nisso.
E lá se foi embora com a segunda mulher que parecia começar a achar graça; na verdade, enquanto se afastavam pela coxia, via-se que estavam a conter o riso e a divertirem-se
à minha custa. Não consegui perceber o que tinha de facto acontecido e caí num sono profundo e sem quaisquer sonhos. Nunca mais tornei a ver Eduviges Refúgio. Deixei-me
imaginar que ela seria uma espécie de fantasma do ar, materializada pela força dos meus desejos. Essas huris devem flutuar lá em cima, por entre as nuvens e passam
através das paredes dos aviões sempre que lhes apetece.
Já vêem que o meu estado de espírito era um tanto estranho. O lugar que eu conhecia, a língua, as pessoas e costumes - tudo
isso me tinha sido retirado pelo simples facto de ter entrado a bordo daquele avião; tinha perdido as quatro âncoras da alma. Se acrescentarmos a isso os efeitos,
até retardados, dos horrores dos últimos dias, perceberão que eu sentia que todas as minhas raízes tinham sido arrancadas, como acontecera às árvores do terraço
de Abraham, atiradas ao ar pela força da explosão. O mundo novo em que estava a entrar dava-me um aviso enigmático, um tiro de advertência. Não conhecia nada, não
compreendia nada. Mas, pelo menos, ia à procura de uma coisa concreta: tinha que me agarrar a isso. Tinha um objectivo preciso e ao persegui-lo com a maior energia
que pudesse, acabaria por entender este mundo estrangeiro e surrealista cujo sentido, por enquanto, não conseguia decifrar.
Mudei de avião em Madrid e fiquei aliviado por deixar aquela singular tripulação. No avião mais pequeno que me levou para o sul, ia muito mais reservado, com Jawaharlal
ao colo e recusando todas as ofertas de comidas e bebidas com um curto aceno negativo da cabeça. Quando cheguei à Andaluzia, a recordação do meu vôo transcontinental
já estava a desaparecer. Já nem sequer me lembrava dos rostos dos três tripulantes que, segundo agora estou convencido, conspiraram para me pregar uma partida, escolhendo-me
como vítima por ser o meu primeiro vôo, um facto que tinha revelado a Eduviges Refúgio - agora, lembrava-me, sem qualquer dúvida, de lho ter dito. Aparentemente
as viagens de avião não eram tão estimulantes como Eduviges pretendia; os tripulantes condenados a intermináveis horas de um tempo desbus-solado procuravam um pouco
de alegria, pequenas emoções eróticas ao pregar partidas a virgens como eu. Pois bom proveito! Tinham-me dado uma lição, tinham-me ensinado a manter os pés na terra
e, ao fim e ao cabo, tendo em conta o meu estado de decrepitude, qualquer oferta de sexo devia ser considerada como positiva e até caridosa.
Saí do meu segundo avião debaixo de um sol ofuscante e de um calor intenso - não o "calor podre", pesado e húmido, do meu país, mas um calor seco, estimulante, muito
mais benigno para os meus arruinados pulmões. Vi mimosas em flor e colinas salpicadas de olivais. O sentimento de estar num mundo estran-
geiro mantinha-se. Parecia-me que não tinha ainda chegado, ou então que faltava ainda chegar uma outra parte de mim, ou ainda que aquele lugar não era bem o meu
destino - apenas quase. Sentia-me tonto, surdo e velho. Ouviam-se cães ao longe. Doía-me a cabeça. Trazia um grande casaco de cabedal e transpirava imenso. Devia
ter bebido água durante o vôo.
- Férias? - perguntou-me um homem fardado, quando chegou a minha vez.
- Sim.
- O que é que vai ver? Enquanto cá estiver deve procurar visitar os nossos belos locais turísticos.
- Espero ver alguns quadros da minha mãe.
- É uma esperança um tanto surpreendente. Não tem no seu país suficientes quadros da sua mãe?
- Não "da" minha mãe. Mas "pintadas pela" minha mãe.
- Não percebo. Onde está a sua mãe? Aqui? Nesta cidade ou onde? Vai visitar os seus parentes?
- A minha mãe morreu. Mas estávamos zangados já há muito tempo.
- A morte da nossa mãe é uma coisa terrível. Terrível. E agora espera encontrá-la num país estrangeiro? Não é vulgar. Se calhar, não vai ter tempo para fazer turismo.
- Pois talvez não.
- Tem que arranjar tempo. Tem de visitar os nossos belos locais. É indispensável vê-los! Compreende?
- Compreendo.
- Que cão é esse? Porque o trouxe?
- É o antigo Primeiro-Ministro indiano metamorfoseado em cão.
- Está bem, deixe lá.
Como não falava espanhol não consegui entender-me com os motoristas de táxi.
- Benengeli - disse e o primeiro taxista abanou a cabeça e afastou-se, cuspindo copiosamente. O segundo pronunciou um número para mim incompreensível. Estava num
sítio em que não sabia os nomes das coisas nem as razões dos actos dos homens. Era
um universo absurdo. Não sabia dizer "cão" nem "onde?" nem "sou um homem". Além disso sentia a cabeça espessa como sopa.
- Benengeli - repeti, atirando o meu saco para a traseira do terceiro táxi e sentando-me no banco com o Jawaharlal debaixo do braço. O taxista abriu um grande sorriso
cheio de dentes de oiro. Os dentes que não eram de oiro tinham uma ameaçadora forma triangular. Mas parecia um tipo simpático.
Apontou para si próprio: - Bivar. - Depois apontou para as montanhas: - Benengeli. - Finalmente apontou para o carro: - O.K. Chefe. Camone, vamos embora.
Percebi que éramos ambos cidadãos do mundo. A nossa língua comum era o calão básico dos piores filmes americanos.
A aldeia de Benengeli fica nos Montes Alpujuras, um braço da Serra Morena que separa a Andaluzia da Mancha. Enquanto subíamos, vi muitos cães que seguiam pela estrada
aos ziguezagues. Soube depois que muitos estrangeiros se instalavam na região com as famílias e os animais de estimação para depois, de uma forma bárbara e desumana,
se irem embora abandonando os cães ao seu destino. A região estava cheia de cães andaluzes, esfomeados e tristíssimos. Quando ouvi isto, mostrei-os a Jawaharlal:
- Vês a sorte que tens? Dá graças a Deus!
Chegámos à cidadezinha de Avellaneda, famosa pela sua Praça de Touros com trezentos anos e Bivar, o taxista, acelerou:
- Terra de ladrões. - Explicou. - Terra de mau olhado.
A povoação seguinte era Erasmo, mais pequena que Avellaneda, mas suficientemente grande para ter uma grande Escola em cujo pontão se liam as palavras Lectura-locura.
Perguntei ao motorista para traduzir e ele, depois de alguma hesitação, encontrou as palavras:
- "Reading", leitura. Lectura, "reading" - disse com visível satisfação.
- E "locura"?
- Maluquice, sócio.
Uma mulher de negro, envolta num xaile, olhou para nós desconfiada enquanto saltávamos sobre o empedrado das ruas de Erasmo. Uma espécie de reunião muito animada
estava a decorrer na praça, à
sombra de uma grande árvore. Tiras com slogans espalhavam-se por toda a parte. Copiei algumas das frases. Pensei que seriam slogans políticos mas revelaram-se como
sendo muito estranhos.
"Os homens são tão loucos que seria ainda mais louco, por um desvio de pensamento, não sermos nós próprios loucos", dizia uma tira. Outra afirmava: "Tudo na vida
é tão diverso, tão oposto, tão obsceno que não podemos ter nenhuma certeza". E uma terceira, mais sibilina: "Tudo é possível". Parecia que toda a classe de Filosofia
de uma Universidade próxima tinha concebido um comício naquela aldeia por causa do seu nome, para discutir as noções cépticas e radicais de Blaise Pascal, do velho
apreciador da loucura que foi Erasmo ou de Marsilio Ficino (*). O zelo dos estudiosos de Filosofia era tão grande que fazia reunir verdadeiras multidões. Os habitantes
de Erasmo tinham prazer em participar nos grandes debates.
- Sim, o mundo é aquilo que a conjuntura é!
- Não é verdade, não senhor!
- A vaca está no prado mesmo quando não olhamos para lá!
- Não, porque pode já lá não estar!
- A personalidade é homogénea, cada homem é responsável pelos seus actos!
- Pelo contrário: somos entidades tão contraditórias que o próprio conceito de personalidade, se examinado de perto, deixa de fazer sentido.
- Deus existe!
- Deus está morto!
- Devemos confiar na eternidade das verdades eternas!
- Qual é a atitude mais pura, relativamente falando?
- Como deve um cavalheiro dispor a sua roupa interior?
- Todas as autoridades concordam em que um cavalheiro deve vestir para a esquerda.
- Ridículo! O verdadeiro filósofo veste para a direita!
- O lado mais grosso do ovo é o melhor!
- Absurdo! O lado mais fino é que é!
(*) Filósofo italiano (1433-1499) mentor do "Platonismo Florentino da Renascença", movimento que influenciou toda a Filosofia dos séculos seguintes. (N. T.)
- Eu digo: "Para cima!"
- Mas é evidente, meu caro Senhor, que é mais rigoroso dizer "Para baixo!"
- Então digamos "Para dentro".
- "Para fora!"...
- Há aqui uns tipos giros nesta parvónia - disse Bivar quando íamos saindo.
Segundo o meu mapa, Benengeli era a próxima povoação; mas à saída de Erasmo a estrada começou a descer em vez de continuar em frente e o subir. Bivar explicou-me
que desde a Guerra Civil, quando Erasmo alinhou pela República e Benengeli por Franco, um ódio sem tréguas existia entre os habitantes dos dois lugares, um ódio
tão fundo que não tinham deixado nunca construir uma estrada que os ligasse.
Quando Franco morreu, Erasmo fez uma festa popular enquanto o povo de Benengeli pôs luto carregado. (Com excepção dos "parasitas" ou dos exilados que nem deram por
nada até começarem a receber telefonemas alarmados dos seus países.)
Lá tivemos que rolar um grande bocado pela colina de Erasmo abaixo e outro grande bocado pela próxima colina acima. No sítio onde a estrada de Erasmo se encontrava
com a auto-estrada para Benengeli, muito mais importante, com quatro faixas, havia uma bonita propriedade rodeada de romãzeiras e jasmins em flor. Sobre o pórtico
viam-se colibris. Ouvia-se à distância o som agradável do bater de bolas de ténis. A tabuleta do pórtico dizia "Campo de Ténis Pancho Vialacta".
- Esse Pancho, hã? - disse Bivar espetando um polegar elogioso. - Grande Hombre!
Vialactada, mexicano por nascimento, fora um dos grandes tenistas da era anterior aos Opens, jogando com Hoad e Rosewal e Pancho Gonzalez nos circuitos profissionais
de exibição e por isso impedido de disputar os jogos do Grand Slam(*), onde certamente brilharia a grande altura. Tinha sido uma espécie de fan-
(*) Conjunto dos 4 grandes Torneios mundiais de Ténis: Austrália, Forest Hills (E.U.A.), Roland Garros, Wimbledon. (N. T.)
tasma glorioso, pairando nos bastidores dos cortes onde tenistas muito inferiores a ele erguiam ao ar os grandes troféus. Morrera de cancro de estômago há alguns
anos atrás.
Era então aqui que ele ganhava a vida, a ensinar o serviço e o passing-shot a matronas endinheiradas. E pensei: se este foi o fim da sua peregrinação por todo o
globo, qual será o fim da minha?
Embora ouvisse as pancadas das bolas, não se via um único tenista nos cortes de terra batida. Decidi que haveria outros cortes fora do nosso campo de visão.
- Quem dirige agora o clube? - perguntei a Bivar que abanou a cabeça exibindo o seu sorriso aterrador:
- O Vialactada, claro - insistiu ele. - Isto é território do Pancho. O mesmo.
Tentei imaginar o que seria esta paisagem quando os nossos longínquos antepassados aqui viveram. Não havia muitas coisas a retirar do cenário: a estrada, a silhueta
negra de um touro Osborne vigiando-me do alto de um monte, alguns postes de electricidade e de telefone, alguns carros SEAT e carrinhas Renault. Benengeli, uma enfiada
de paredes brancas e telhados vermelhos estendia-se à nossa frente na encosta da colina, muito parecida com o que teria sido nos séculos passados.
Sou um Judeu espanhol, como o filósofo Maimonides, disse para mim próprio, para ver se as palavras soavam certas. Não: soavam a falso. O fantasma de Maimonides riu-se
de mim. Experimentei outra frase: Sou a Mesquita de Córdova, catoliázajja. Também não soava certo. Eu não era ninguém, não era de parte nenhuma, não me parecia com
ninguém. Isto já soava melhor. Soava a verdadeiro. Todas as minhas ligações se tinham soltado. Tinha alcançado a anti-Jerusalém: não um lar, mas uma ausência. Um
lugar que não me prendia mas, antes, me dissolvia.
Vi o capricho arquitectónico de Vasco, as suas muralhas vermelhas dominando a crista da colina por cima da cidade. Fiquei
impressionado com a torre, altíssima, que parecia saída dum conto de fadas. Estava coroada por um gigantesco ninho de cegonhas, embora não se avistasse nenhuma dessas
enormes e magestosas aves. Vasco tinha sem dúvida subornado as autoridades locais para que estas o autorizassem a construir uma coisa tão fora da escala das casas
baixas da provoação, tão frescas e caiadas. A fortaleza de Vasco era tão alta como as Torres da Igreja de Benengeli; o pintor afirmava-se como rival de Deus e isso
tinha-lhe valido, como vim a saber, um grande número de inimigos. Disse a Bivar que me levasse até ao "Pequeno Alhambra" e ele lá começou a percorrer as tortuosas
ruas da vila que estavam praticamente desertas talvez por ser a hora da sesta. E no entanto o ar estava cheio de ruídos de trânsito: buzinas, gritos, travagens.
Ao virar de cada esquina esperava encontrar uma pequena multidão ou um engarrafamento de trânsito. Mas aparentemente por acaso, parecia que estávamos sempre a evitar
essa zona da vila. O que acontecia é que estávamos perdidos. Quando passámos pela terceira vez por um bar chamado "La Gobernadora" decidi mandar parar o taxi e fazer
o resto do caminho a pé, mau grado o trauma da diferença horária que me punha tonto e cheio de dores de cabeça. O taxista ficou zangado por ser tão bruscamente mandado
embora e é possível que, devido à minha ignorância da moeda local, lhe tenha dado uma gorjeta demasiado mesquinha.
- Oxalá nunca encontres o que procuras - gritou-me num inglês perfeito, fazendo o sinal de cornos com os dedos da mão esquerda. - Oxalá te percas neste labirinto
infernal, nesta aldeia maldita, durante mil e uma noites!
Fui ao "La Gobernadora" perguntar o caminho. Os meus olhos (que eu tinha quase fechados como defesa contra o brilho afiado da luz a ricochetear entre as paredes
brancas de Benengeli) levaram algum tempo a ajustar-se à escuridão do bar. Um barman de avental branco estava a dar brilho a um copo. Viam-se algumas silhuetas de
velhotes no fundo da sala estreita e funda.
- Alguém fala inglês? - perguntei. Foi como se não tivesse dito nada. - Desculpe - disse eu, aproximando-me do barman. Olhou através de mim e virou-me as costas.
Teria eu ficado invi-
sível? Claro que não: tinha sido suficientemente visível para o furibundo Bivar e bem assim o meu dinheiro. Fiquei irritado e inclinei-me sobre o bar para bater
nas costas do homem:
- A casa do Senor Miranda, - pronunciei cuidadosamente.
- Em que rua?
O barman, um tipo barrigudo com uma camisa branca, um colete vérde e cabelo preto empastado para trás, fez uma espécie de grunhido - desprezo? preguiça? repugnância?
- e saiu de trás do seu bar. Foi até à porta e apontou. Do outro lado da rua vi uma travessa muito estreita, passando entre duas casas e lá ao fundo muita gente
andando dum lado para o outro. Devia ser a multidão que até aí tinha ouvido; como é que não tinha dado pela travessa? Estava ainda em pior forma do que pensava?
Com a minha mala a ficar cada vez mais pesada e puxando Jawaharlal pela trela (com as rodas a saltar sobre o empedrado irregular), lá percorri a travessa e fui dar
a uma rua o menos espanhola possível, uma rua "pedonal" cheia de estrangeiros. A maioria dos passantes era já de certa idade e imaculadamente vestida; a minoria
jovem e calculadamente descuidada no vestir, à maneira das pessoas com consciência de classe. Ninguém queria saber da sesta ou dos costumes locais. A rua a que os
naturais da terra, como mais tarde vim a saber, chamavam "Rua dos Parasitas", tinha muitas boutiques caras - Gucci, Hermès, Aquascutum, Cardin, Paloma Picasso -
e também muitos restaurantes desde os escandinavos vendedores de almôndegas até a um Chicago Rib Shack decorado com estrelas e riscas norte-americanas. Fiquei parado
no meio de uma multidão que me empurrava em várias direcções ignorando em absoluto a minha presença, comportando-se como habitantes de uma grande cidade e não de
uma pequena vila. Ouvi pessoas a falarem inglês, americano, francês, alemão, sueco, dinamarquês, norueguês e se calhar também holandês ou afrikander. Mas não eram
visitantes: não traziam câmaras e portavam-se como fazem as gentes no seu próprio território. Esta parte desnaturada de Benengeli tinha-se tornado propriedade deles.
Não estava à vista um único espanhol. "Talvez estes exilados sejam os novos Mouros" - pensei eu. - "E eu sou um deles, no fim de contas, vindo aqui à procura duma
coisa que não interessa a ninguém a não ser eu próprio e aqui ficando talvez até morrer. Talvez numa outra rua qualquer os habitantes estejam a planear uma Reconquista
e tudo vá acabar, como com os nossos antepassados, por nos meterem à força nos barcos ancorados no porto de Cádiz."
- Repare que embora a rua esteja cheia, os olhos daqueles que a enchem estão vazios - disse uma voz nas minhas costas. - Talvez lhe seja difícil ter pena destas
almas perdidas com sapatos de crocodilo e também crocodilozinhos sobre os mamilos, mas olhe que aí há muito de que ter pena. Perdoe os pecados desta gente, porque
estes chupadores de sangue já estão no Inferno.
Quem assim falava era um homem alto, elegante, de cabelos de prata, um fato de linho e uma expressão sardónica. A primeira coisa que reparei nele foi a língua enorme
que parecia não lhe caber na boca. Estava sempre a passar a língua pelos lábios, num tic suspeito e satírico. Tinha olhos azuis muito bonitos e brilhantes e de forma
alguma vazios; pareciam, pelo contrário, estar cheios de sabedoria e de malícia.
- Parece cansado meu caro senhor - disse ele, cerimoniosamente. - Permita-me que lhe ofereça um café e que seja, se o desejar, o seu interlocutor e o seu guia.
Chamava-se Gottfried Helsing, falava doze línguas - "as doze do costume", dizia ele distraidamente como se encomendasse ostras - e embora tivesse maneiras de aristocrata
alemão, reparei que lhe faltavam recursos para mandar limpar as nódoas do fato. Estava tão cansado que aceitei imediatamente o seu convite.
- É difícil perdoar à vida a força com que as grandes máquinas pesam sobre aquilo que somos - disse ele despreocupada-mente quando já estávamos sentados à sombra
de um guarda-sol e tínhamos à nossa frente dois cafés bem fortes e dois cálices de Fundador. - Como podemos perdoar ao mundo a sua beleza se ela apenas esconde a
sua fealdade? A sua gentileza que apenas encobre a sua crueldade? A ilusão da continuidade, com as noites a sucederem-se aos dias - enquanto a vida, na realidade,
é uma série de rupturas brutais, caindo sobre as nossas cabeças indefesas como o machado do carrasco?
- Peço perdão, meu caro senhor - disse eu, escolhendo as palavras para não o melindrar. - Vejo que o senhor se inclina para a vida contemplativa. Mas acabo de fazer
uma longa viagem que ainda não chegou ao fim e as actuais circunstâncias não me permitem o prazer de ficar aqui a conversar...
Uma vez mais tinha a sensação de não existir. Helsing continuou simplesmente a falar, dando a impressão de não ter ouvido uma palavra do que eu dissera.
- Vê aquele homem? - disse ele apontando para um homem de idade, com aspecto inesperadamente espanhol, que bebia cerveja num bar do outro lado da rua. - Era o Presidente
da Câmara de Benengeli. Mas durante a Guerra Civil tomou o partido da causa republicana, juntamente com a gente de Erasmo; já ouviu falar de Erasmo? - Não esperou
pela minha resposta. - Quando a guerra acabou, as pessoas como ele, cidadãos importantes que se tinham oposto ao General Franco, foram amontoados no pátio da escola
em Erasmo ou na praça de touros em Avellaneda e fuzilados. Ele resolveu esconder-se. Em casa dele havia uma alcova minúscula por trás de um armário e ele, desde
então, ali passou os seus dias. À noite a mulher fechava as persianas e ele saía do cubículo. As únicas pessoas ao corrente eram a mulher, a filha e o irmão. A mulher
tinha o cuidado de fazer as compras longe de casa para que os vizinhos não vissem que comprava comida para dois. Não podiam fazer amor porque, como católicos que
eram, não podiam usar preservativos e as consequências duma gravidez podia ser-lhes fatal. Isto durou trinta anos, até à amnistia geral.
- Trinta anos a viver escondido! - disse eu, empolgado pela história apesar do meu cansaço. - Que tortura deve ter sido!
- Isso não foi nada em comparação com o que aconteceu depois. Porque por essa altura a sua querida vila Se Benengeli tornara-se o refúgio da escória internacional;
ainda por cima os sobreviventes da sua geração eram todos Falangistas e recusavam-se a falar com o seu antigo adversário. A mulher morreu com gripe, o irmão com
um tumor e a filha casou e foi viver para Sevilha. Agora está reduzido a estar para ali sentado no meio dos Parasitas, porque já não há lugar para ele entre os seus
conterrâneos. E como
vê, foi assim que ele se tornou também num forasteiro sem raízes aqui. Foi assim que os seus princípios foram recompensados.
Houve uma breve pausa no solilóquio de Helsing, enquanto ele meditava na história do Presidente da Câmara e eu aproveitei a ocasião para lhe perguntar o caminho
para a casa de Vasco Miranda. Olhou-me ligeiramente espantado como se não tivesse percebido o que eu tinha estado a dizer e, com um encolher de ombros, voltou ao
assunto.
- Eu também tive uma recompensa parecida - disse ele, pensativo. - Fugi do meu país quando os Nazis subiram ao poder e passei uns anos a viajar pela América do Sul.
Sou fotógrafo de profissão. Na Bolívia fiz um livro que ilustrava os horrores das minas de estanho. Na Argentina fotografei a Eva Perón quando ainda era viva e depois
de morta. Nunca regressei à Alemanha porque sofro com a poluição da sua cultura pelo que lá se passou. Senti a falta dos Judeus como uma enorme lacuna, embora não
seja Judeu.
- Eu sou meio-Judeu - disse eu imprudentemente. Helsing não me deu atenção.
- Em más circunstâncias financeiras, acabei por me instalar em Benengeli, porque aqui podia viver sem grandes dificuldades com a minha pequena reforma. Quando os
Parasitas souberam que eu era Alemão e tinha estado na América do Sul começaram a chamar-me "o Nazi". Agora, é o nome que eles me dão. A minha recompensa por uma
vida inteira de oposição a certas ideias perniciosas é vê-las agora na velhice penduradas ao meu pescoço. Deixei de falar aos Parasitas. Já não falo com ninguém.
Que regalo para mim ter alguém como o senhor com quem conversar! Os velhos daqui foram em tempos criminosos sem categoria: patrões da Mafia de segunda ordem, anti-sindicalistas
para a pancada, racistas de baixa extracção. As mulheres são do tipo que gosta de fardas e botas altas e que ficaram frustradas com a chegada da democracia. A gente
nova é lixo: drogados, vadios, plagiadores, prostitutas. Estão todos mortos, tanto os velhos como os novos, mas como ainda recebem reformas e mesadas recusam-se
a deixar-se enterrar. Andam por aí, rua abaixo rua
acima, comem, bebem e falam das vidas horríveis que levam. Repare por favor em que não há espelhos nesta terra. Se os houvesse, veria que nenhuma destas sombras
seria por elas reflectida. Quando percebi que isto era o Inferno deles, tal como eles são o meu Inferno, comecei a ter pena de tudo isto. Aí tem Benengeli, a minha
terra.
- E o sr. Miranda... - repeti timidamente, pensando que seria melhor não contar a Helsing a minha vida, moralmente contestável.
- Não há a mínima hipótese de o senhor vir a encontrar-se com o Senor Vasco Miranda, o nosso mais importante e mais terrível conterrâneo - disse Helsing sorrindo.
- Esperava que o senhor o tivesse percebido, pela minha recusa em responder às suas repetidas perguntas, mas visto que não foi esse o caso, deixe-me que lhe diga
desde já que o seu empreendimento está condenado ao insucesso. Como diria Dom Quixote, anda à procura dos passarinhos deste ano nos ninhos do ano passado. Passam-se
meses e meses em que ninguém vê Miranda, nem sequer os criados. Apareceu aí uma mulher à procura dele, não há muito tempo - uma rapariga bem engraçada! - mas não
conseguiu nada e lá se foi embora não sei para onde. Dizem...
- Que mulher? - interrompi eu. - Há quanto tempo? Como é que sabe que ela não foi lá a casa?
- Uma mulher qualquer. - Disse ele lambendo os lábios. - Há quanto tempo? Sei lá, não há muito. E sei que não entrou lá em casa porque não entra ninguém. Não ouviu
o que eu lhe disse? Dizem que naquela casa tudo se tornou estático; tudo. Dão corda aos relógios mas o tempo não se mexe. A torre grande está fechada há anos. Ninguém
lá vai, excepto talvez o velho louco. Dizem que a poeira nos quartos da torre chega aos joelhos, porque o homem não deixa entrar lá os criados para fazer a limpeza.
Dizem que uma ala inteira daquele enorme palácio foi invadida por aquele arbusto trepador a que chamam la gobernadora. Dizem...
- Quero lá saber o que dizem - gritei eu, vendo que era tempo de tomar uma atitude mais firme. - É imperativo que eu o veja. Vou-lhe ligar pelo telefone do café.
- Não seja estúpido - disse Helsing. - Há anos que tem o telefone cortado.
Duas bonitas quarentonas espanholas, usando aventais brancos sobre vestidos pretos tinham aparecido por trás de mim sem eu dar por isso.
- Não pudemos deixar de ouvir a conversa - disse uma delas em excelente inglês. - Desculpe interromper, mas tenho de lhe dizer que esse Nazi não tem razão nenhuma.
O Vasco tem o telefone ligado, com um atendedor de chamadas e até um fax, mas não responde aos recados. De qualquer modo, o dono do café, um Dinamarquês de maus
fígados chamado Olé, não deixa os clientes do café usar o telefone, seja por que motivo for.
- Suas bruxas! Vampiros! - gritou Helsing subitamente enfurecido. - Deviam cravar-lhes estacas no coração!
- O senhor está a perder o seu tempo com esse vigarista, esse cretino - disse a outra criada que falava, se possível, um inglês ainda mais perfeito que o da sua
colega e cujas feições eram ainda mais requintadas. - Aqui todos o conhecem como um fantasista tortuoso e amargo; foi toda a vida um fascista e agora pretende ter
sido um opositor do fascismo; é um pinga-amor que todas as mulheres sem excepção rejeitam e que ele passa a insultar daí por diante. Deve ter-lhe contado todo o
género de histórias da carochinha acerca dele próprio e da nossa linda terra. Se quiser, venha connosco; acabamos de largar o serviço e podemos corrigir qualquer
falsa impressão que ele lhe tenha causado. Infelizmente, há muitos fantasistas instalados em Benengeli que se enrolam em mentiras como se fossem agasalhos para o
Inverno.
- Chamo-me Felicitas Larios e esta é a minha meia-irmã Renegada - disse a primeira criada. - Se é Vasco Miranda que o senhor procura, fique sabendo que nós temos
sido governantas dele desde que ele cá chegou. Geralmente não servimos à mesa no bar do Olé; hoje estamos a fazer-lhe um jeito porque as empre-
gadas dele adoeceram. Ninguém pode dar-lhe tantas informações como nós acerca de Vasco Miranda.
- Porcas! Megeras! - gritou Helsing. - Estão a levá-lo à certa. Há anos que trabalham aqui por uma ninharia, todas mesureiras, a lavar e a varrer, e a propósito,
o proprietário não é nenhum Dinamarquês chamado Olé mas um barqueiro do Danúbio chamado Uli.
Eu já estava farto de Helsing. As criadas de Vasco tiraram os aventais e guadaram-nos em grandes cestos de palha que traziam consigo; era óbvio que tinham pressa
em partir. Levantei-me e pedi desculpa por me retirar.
- E todo o meu esforço em lhe ser útil não valeu nada para si? - perguntou o desgraçado. - Fui o seu mentor e é assim que me agradece.
- Não lhe dê um tostão - disse Renegada Larios. - Está sempre a tentar extorquir dinheiro aos forasteiros, como um vulgar pedinte.
- Quero pagar as nossas bebidas, ao menos - disse eu, pondo uma nota sobre a mesa.
- Vão arrancar-lhe o coração e fechar-lhe a alma num frasco de vidro - gritou-me Helsing como louco. - Depois não diga que eu não o avisei. Vasco Miranda é um espírito
demoníaco e elas, familiares do diabo. Cuidado! Já as vi transformarem-se em morcegos...
Embora falasse aos gritos, ninguém naquela rua cheia de gente prestava a menor atenção a Gottfried Helsing.
- Já estamos habituadas - disse Felicitas. - Deixamo-lo disparatar e passamos para o outro lado. De vez em quando o sargento Salvador Medina, da Guarda-Civil, fá-lo
passar uma noite na cadeia e ele lá se acalma.
Devo dizer que Jawaharlal, o cão empalhado, já tinha visto melhores dias. Desde que eu começara a acarretá-lo comigo dum
lado para outro, perdera uma orelha e dois ou três dentes. Não obstante, Renegada, a mais bonita das minhas novas conhecidas, foi generosa nos seus elogios, arranjando
maneira de me tocar frequentemente no braço ou no ombro, para sublinhar os seus sentimentos. Felicitas Larios mantinha-se calada mas tive a impressão de que não
aprovava aqueles contactos físicos.
Entrámos numa pequena casa de dois andares numa rua íngreme chamada indevidamente Calle de Miradores, pois os edifícios eram demasiado humildes para fazerem lembrar
os balcões ou varandas envidraçadas em cujo nome se inspiravam. Mas a tabuleta com o nome da rua (letras brancas num fundo azulão) não deixava lugar para dúvidas:
mais uma prova de que Benengeli era uma terra de sonhadores e de segredos. Ao longe, mesmo no alto da estrada, via-se a silhueta de um grande e horrendo fontanário.
- É a Praça dos Elefantes - disse Renegada com carinho. - O portão principal da residência Miranda é lá na praça.
- Mas não vale a pena tocar a campainha, nem bater, porque ninguém responde - continuou Felicitas. - O melhor é entrar e descansar aqui um pouco. O senhor parece
cansado e até doente, se me dá licença.
- Por favor, tire os sapatos. - disse Renegada. Não entendi aquele ritual, quase religioso, mas acedi e ela fez-me entrar para um pequeno quarto cujo chão, tecto
e paredes estavam revestidos de azulejos em cerâmica, mostrando uma infinidade de pequeninas cenas em azul de Delft.
- Não há dois iguais - disse Renegada com orgulho. - Dizem que é tudo o que resta da antiga sinagoga de Benengeli, que foi demolida após a expulsão dos Judeus. Dizem
que têm o condão de mostrar o futuro àqueles que têm olhos para o ver.
- Disparate - disse rindo Felicitas, que além de ser mais robusta e de aspecto mais grosseiro do que a outra, com um grande sinal desgracioso no queixo, era também
a menos romântica. - Os azulejos são de três-ao-vintém, não são antigos; esse tom de azul tem sido usado na região há anos. Quanto a predizer o futuro, isso são
tretas. Por isso deixa-te de tolices, querida Renegada e deixa o senhor dormir, que ele está muito cansado.
Não precisei de ouvir mais - a insónia, mesmo na pior ocasião, nunca foi problema para mim! - e atirei-me vestido para cima do estreito catre no quarto dos azulejos.
Nos últimos instantes antes de adormecer o meu olhar deteve-se por acaso num certo azulejo perto da minha cabeça e lá estava a minha mãe a olhar para mim e a sorrir
o seu sorriso mais atrevido. Tonto de sono, perdi a consciência.
Quando acordei tinham-me despido e enfiado uma longa camisa de noite pela cabeça. Por baixo estava completamente nu. As duas criadas de tímidas não tinham nada,
pensei eu; e como eu devia ter dormido profundamente! Logo a seguir lembrei-me do milagre do azulejo, mas por mais que tentasse não consegui encontrar nada que de
longe ou de perto se assemelhasse à cena que eu tinha a certeza de ter visto antes de adormecer. "O espírito prega-nos partidas quando estamos a mergulhar no sono",
pensei eu, levantando-me da cama. Era de dia e da sala principal da casa vinha um aroma forte e irresistível a sopa de lentilhas. Felicitas e Renegada estavam sentadas
à mesa e havia um terceiro lugar, onde já fumegava uma grande tigela. Observaram-me com prazer enquanto eu engolia colher após colher.
- Quanto tempo dormi? - perguntei e elas entreolharam-se brevemente.
- Um dia inteiro - disse Renegada - Já é amanhã.
- Que disparate - discordou Felicitas. - Dormiu apenas umas horas. Ainda é o mesmo dia.
- A minha irmã está a brincar consigo - disse Renegada. - Eu não quis assustá-lo, mas a verdade é que esteve a dormir quarenta e oito horas pelo menos.
- Diz antes quarenta e oito minutos. Renegada, não faças confusão a este senhor, coitado. **
- Limpámos e passámos a sua roupa, - disse Renegada mudando de assunto. - Espero que não se importe.
Mesmo após aquele descanso, os efeitos da viagem ainda perduravam. Se era verdade que tinha dormido durante dois dias, era de prever uma certa desorientação. Voltei
ao assunto que ali me trazia.
- Minhas senhoras, estou-lhes muito grato - disse eu cortesmente. - Mas agora tenho a pedir-lhes um conselho urgente. Vasco Miranda é um velho amigo da minha família
e eu preciso de tratar com ele importantes assuntos familiares. Chamo-me Morais Zogoiby, de Bombaim, na índias, ao vosso dispor.
Elas sufocaram um grito de surpresa.
- Zogoiby! - murmurou Felicitas, abanando a cabeça como se não pudesse acreditar.
- Nunca pensei ouvir da boca de alguém esse nome tão detestado - disse Renegada Larios, corando intensamente.
E esta foi a história que acabei por arrancar-lhes.
Quando Vasco Miranda chegou a Benengeli, como um pintor de reputação mundial, as duas meias-irmãs (nessa altura com vinte e tal anos), tinham-lhe oferecido os seus
serviços e obtido emprego imediatamente.
- Disse que apreciava o facto de dominarmos o inglês e de conhecermos a lida da casa, mas admirava especialmente a nossa árvore genealógica - disse Renegada para
meu grande espanto. - O nosso pai, Juan Larios, era marinheiro e a mãe de Felicitas era marroquina enquanto a minha nascera na Palestina. Por isso a Felicitas é
meio-Árabe e eu sou Judia da parte da minha mãe.
- Nesse caso a senhora e eu temos algo em comum - disse-lhe eu. - Porque eu também tenho cinquenta por cento de sangue judeu. - Renegada pareceu extremamente satisfeita.
Vasco tinha-lhes dito que iriam relançar no seu "Pequeno Alhambra" a fabulosa multicultura do antigo al-Andaluz. Seriam mais uma família do que amo e serviçais.
- Achámos que ele era um pouco doido, claro, - disse Felicitas - mas todos os artistas o são, não é verdade, e o salário que ele oferecia era bastante acima do costume.
Renegada acrescentou:
- De todo o modo, tudo aquilo não passava de fantasia. Só palavras, mais nada. Entre nós seria sempre ele o patrão e nós as empregadas. Mas depois ele foi ficando
cada vez mais louco; ves-tia-se como um Sultão dos antigos tempos e começou a portar-se ainda pior que um desses Mouros déspotas e infiéis.
Passaram a ir todas as manhãs limpar a casa o melhor que podiam. Os jardineiros foram despedidos e o jardim aquático, em tempos uma pequena jóia, imitação em miniatura
do Generalife, estava quase perdido. O pessoal da cozinha tinha-se ido embora e Vasco dava às duas mulheres dinheiro e listas de compras.
- Queijos, salsichas, vinho, bolos - disse Felicitas - Tenho a impressão que este ano não se cozeu nem um ovo naquela casa.
Desde o dia do insulto de Salvador Medina, há mais de cinco anos, que Vasco se retirara. Passava os dias fechado no apartamento no alto da torre, onde lhes não era
permitida a entrada, sob pena de despedimento imediato. Renegada disse ter visto no estúdio duas ou três telas, obras blasfemas em que Judas ocupava o lugar de Cristo
na cruz; mas essas imagens do "Judas Cristo" tinham lá ficado meses, inacabados, aparentemente abandonados. Ele não parecia estar a trabalhar em mais nada. Já nem
viajava, como antes, para executar murais que lhe tinham sido encomendados para átrios de aeroportos e hotéis em toda a parte do mundo.
- Comprou uma quantidade de equipamento de alta tecnologia - contou ela. - Máquinas de gravar e até um daqueles aparelhos de raios X. Com as máquinas fez umas gravações
estranhíssimas, só guinchos e pancadas, berros e percussão. Lixo de vanguarda. Põe aquilo no máximo volume, lá na torre e até as cegonhas abandonaram os ninhos.
- E a máquina de raios X?
- Isso não sei. Talvez queira fazer arte com radiografias.
- É doentio - disse Felicitas. - Não vê ninguém, absolutamente ninguém.
Há mais de um ano que nem uma nem outra tinham visto o patrão. Mas às vezes, em noites de luar, da aldeia podia avistar-se a sua figura envolta numa capa passeando
pelas ameias da fortaleza, como um fantasma gordo e lento.
- E o que é isso do meu "nome detestado"? - perguntei.
- Era uma mulher - disse finalmente Renegada. - Desculpe. Talvez sua tia?
- Minha mãe. Uma pintora. Já morreu.
- Deus a tenha em descanso. - disse Felicitas.
- Vasco Miranda tem uma grande raiva a essa mulher - disse Renegada num ímpeto, como se fosse preciso tomar coragem para falar do assunto. - Penso que deve tê-la
amado muito, não?
Não respondi.
- Desculpe, vejo que é difícil para si. É uma coisa difícil, para um filho. Um filho não pode trair a mãe. Mas eu penso que deve ter sido... deve ter sido...
- Amante dela - disse Felicitas bruscamente. Renegada corou.
- Se não sabia, desculpe - disse ela pondo a mão no meu braço esquerdo.
- Continue, por favor - respondi.
- Depois ela foi brutal com ele e mandou-o embora. Desde então, tem vindo a crescer nele o ressentimento. Cada vez mais, tenho reparado. Está mesmo possesso.
- É uma coisa pouco saudável - repetiu Felicitas. - O ódio consome a alma.
- E agora o senhor aqui - disse Renegada. - Não me parece que ele consinta jamais em receber o filho da sua mãe. Penso que o seu nome ultrapassa o que ele pode aguentar.
- Ele pintou bonecos dos desenhos animados e heróis de banda desenhada no meu quarto de criança - disse eu. - Ele tem que falar comigo. Vai ver que fala.
Felicitas e Renegada olharam uma para a outra: um olhar de-quem-já-sabia, um olhar resignado.
- Minhas senhoras - disse eu. - Eu também tenho uma história para contar.
- Há tempos veio um embrulho - disse Renegada quando eu terminei. - Talvez fosse um quadro. Não sei, talvez fosse a pintura com o retrato de sua mãe por baixo. Deve-o
ter levado para a torre. Mas quatro quadros grandes? Não, não apareceu cá nada desse género.
- Talvez seja cedo demais - disse eu. - O roubo foi muito recente. Vocês é que têm de ficar de atalaia. Tal como estão as coisas, estou a ver que não devo apresentar-me
à porta dele. Seria um aviso para ele não mandar vir os quadros para aqui. Por isso, vocês é que têm de estar atentas e eu tenho de ficar à espera.
- Se quiser vir morar cá em casa - concedeu Felicitas - podemos entrar num acordo. Se quiser, claro.
A isto, Renegada virou a cara.
- O senhor veio numa grande missão - disse ela sem se voltar para mim. - Um filho em busca do tesouro perdido de sua mãe, em busca de paz e concórdia. Como mulheres,
é nosso dever ajudá-lo a encontrar o que procura.
Fiquei a viver lá em casa por mais de um mês. Durante esse tempo fui bem tratado e fizeram-me boa companhia; mas pouco mais soube das suas vidas. Os pais tinham
morrido, aparentemente, mas como elas não queriam discutir o assunto, naturalmente, tive de o deixar cair. Não pareciam ter mais irmãos, nem amigos. Não havia amantes.
Contudo pareciam muito felizes e inseparáveis. Saíam de manhã para o trabalho de mãos dadas e regressavam juntas também. Houve dias em que, na minha solidão, cheguei
a ter algum desejo por Renegada Larios mas, como não houve nunca ocasião de estar a sós com ela, não pude dar seguimento ao caso. Todas as noites, depois da ceia,
as meias-irmãs retiravam-se para o andar de cima, para a cama que ocupavam juntas, e eu ouvia-as murmurar e mexer-se até tarde; contudo estavam sempre a pé antes
de eu acordar.
Finalmente, vencido pela curiosidade, ]perguntei-lhes uma vez à hora da ceia porque é que nunca tinham casado.
- Porque para estes lados todos os homens estão mortos do pescoço para cima. *
E Renegada acrescentou, olhando a irmã de lado:
- E do pescoço para baixo também.
- Lá está a minha irmã com as suas fantasias - disse Felicitas.
- Mas é verdade que somos diferentes da gente de cá. Os membros da nossa família não eram como esta gente. Já todos morreram e nós não queremos perder-nos uma à
outra em troca de sim-
ples maridos. A nossa ligação é muito mais forte. Sabe que as nossas atitudes não são bem recebidas pela maior parte da gente desta terra? Por exemplo, nós ficámos
contentes com o fim do regime de Franco e o regresso à democracia. E, para falar de coisas mais pessoais, não fumamos nem gostamos de bebés e em Benengeli toda a
gente perde a cabeça por ambas as coisas. As pessoas só falam do prazer que tiram dos seus maços de Fortuna ou de Ducados, da sensualidade e da intimidade do acto
de acender o cigarro de outra pessoa; mas nós detestamos acordar com aquele cheiro pegajoso nas roupas ou adormecer com nuvens de fumo a empastar-nos o cabelo. Quanto
às crianças, aqui o que é bonito é pensar que quantas mais se tiverem melhor; e nós não temos a intenção de nos deixarmos encurralar por uma quantidade de pequenos
carrascos aos gritos e aos saltos. Se me permite dizê-lo, gostamos do seu cão precisamente por ser empalhado e não precisar de cuidados especiais.
- Mas a mim tratam-me como um rei. - Ripostei.
- É um negócio - explicou Felicitas. - O senhor é um hóspede e paga o seu dinheiro.
- Mas não haverá homens que lhes tenham afecto, sem querer criar grandes famílias? - continuei eu. - E quanto às opiniões políticas, porque não vão a Erasmo, por
exemplo? Ouvi dizer que os homens de lá pensam de modo diferente.
- Já que insiste em ter uma resposta - replicou Felicitas - nunca conheci um homem que gostasse de uma mulher por si mesma. Quanto a Erasmo, não há nenhuma estrada
de cá para lá.
Surpreendi uma estranha expressão nos olhos de Renegada. Talvez ela não concordasse com tudo o que a irmã dizia. Depois daquela conversa pus-me a imaginar, nas minhas
noites solitárias, que em qualquer momento talvez a minha porta se abrisse e Renegada Larios se esgueirasse para dentro da minha cama, nua por baixo da longa camisa
branca... mas tal não aconteceu. E eu ficava deitado na cama sozinho, escutando os movimentos e os murmúrios por cima da minha cabeça insone.
Durante aquele mês de espera passeei pelas ruas de Benengeli - por vezes levando Jawaharlal pela trela mas a maior parte das vezes sozinho - dominado por um tédio
que me entorpecia a tal ponto que me era impossível concentrar-me no passado. Perguntava a mim mesmo se não teria já adquirido aquele olhar vazio que caracterizava
tantos dos chamados Parasitas, que pareciam passar os dias acotovelando-se na "sua" rua, comprando roupas, comendo nos restaurantes e bebendo nos bares, sempre a
conversar garrulamente mas com um ar estranhamente ausente, o que sugeria uma total indiferença pelo assunto da conversa. Aparentemente Benengeli possuía a faculdade
de exercer a sua influência mesmo sobre os menos apáticos, pois sempre que calhava eu passar pelo velho tonto do Gottfried Helsing ele piscava-me o olho, acenando-me
animadamente e gritava "Temos de voltar a ter uma daquelas nossas excelentes conversas um dia destes!", como se fôssemos amigos do peito. Depreendi que tinha chegado
a um daqueles sítios onde as pessoas vão para se esquecerem de tudo, - ou melhor ainda, para se perderem em si mesmas, para poderem viver o sonho do que poderiam
ter sido - ou então, perdida a memória do que tinham sido, para se desligarem discretamente daquilo em que se tinham tornado. Assim, tanto podiam ser mitómanos como
Helsing, ou quase catatónicos como o "Parasita Honorário", o antigo Presidente da Câmara que passava os dias sentado num banco à porta do bar sem dizer uma palavra,
como se ainda vivesse em casa da falecida mulher na solidão preservada de uma alcova escondida atrás de um grande armário de madeira. E o ar de mistério que ali
prevalecia era de facto uma atmosfera de ignorância generalizada: o que parecia um enigma não era senão um vácuo. Aqueles vagabundos desenraizados tinham-se tornado,
por vontade própria, autómatos humanos. Podiam simular a vida humana, mas já não eram capazes de vivê-la.
Os naturais da terra - pareceu-me - não estavam tão dominados pela qualidade anestesiante do sítio como os Parasitas; mas o ambiente de alienação, de vazio e de
apatia também os afectava até certo ponto. Por três vezes tive de interrogar Felicitas e Renegada acerca da visita a Benengeli da senhora nova de que falara
Gottfried Helsing, que viera recentemente à procura de Vasco Miranda. Das duas primeiras vezes elas encolheram os ombros, lembrando-me que o velho Helsing não era
de fiar; mas certa noite, quando voltei ao assunto, Renegada levantou os olhos da costura em que se ocupava e disse dum jacto:
- Ah, sim, meu deus, agora me lembro, é verdade que apareceu aí uma mulher - tipo oriental, uma especialista de Barcelona, restauradora de quadros ou coisa assim.
Não conseguiu grande coisa com as suas manhas femininas e modos de coquette; a esta hora já deve ter voltado para Catalunha, que é o lugar dela.
Tive mais uma vez a impressão de que Felicitas não aprovava a bisbilhotice da irmã. Coçou o sinal franzindo a boca mas não disse nada.
- Mas então essa mulher que veio da Catalunha sempre chegou a falar com Vasco? - disse eu, excitado.
- Ninguém disse isso - disse Felicitas muito seca. - Não há motivo para se falar mais no caso.
Renegada baixou a cabeça submissamente e voltou à sua costura.
Durante os meus passeios tinha por vezes ocasião de encontrar Salvador Medina, o sargento da Guarda Civil, sempre a suar muito, que invariavelmente olhava para mim
de sobrolho franzido, tirando o boné para coçar os caracóis alagados em suor, como se tentasse lembrar-se quem diabo seria eu. Nunca nos falámos, em parte porque
eu ainda não falava bem espanhol, embora estivesse a fazer progressos, devidos tanto ao estudo de livros à noite como às lições diárias que recebia das irmãs Larios
em troca de um pagamento suplementar acrescentado à minha conta semanal de cama e mesa; e em parte porque a língua inglesa resistira a todos os esforços envidados
por Salvador Medina para a dominar, tal como um criminoso de alto coturno consegue sempre escapar à lei por uma unha negra.
Fiquei satisfeito por Medina ter feito tão pouco caso de mim que já se esquecera da minha cara, o que parecia provar que a Polícia indiana não se interessava pelo
meu paradeiro. Eu lembrava-me bem de que cometera recentemente um crime de morte; mas concluí que a explosão em casa da minha vítima conseguira, era evi-
dente, apagar os vestígios do meu crime. A violência maior da bomba fora como que pintada por cima da cena em que eu tomara parte e escondera-a para sempre dos olhos
dos investigadores. Outra confirmação de que eu não era suspeito chegou-me através da minha conta bancária. Durante os anos de trabalho com o meu pai, eu conseguira
colocar fortes somas de dinheiro em bancos estrangeiros, incluindo contas numeradas em bancos da Suíça (por isso bem vêem que eu estava longe de ser só o rufião
e o brutamontes por quem "Adam Zogoiby" me tomara!). Tanto quanto sabia, não tinha havido recentemente qualquer tentativa de interferir com as minhas disposições
financeiras, embora muitos aspectos da falência da Siodi Corp., estivessem a ser investigados e muitas contas bancárias tivessem sido colocadas sob administração
judicial ou congeladas.
Era estranho, contudo, que o meu crime - um assassinato, ao fim e ao cabo, um assassinato brutal e o único que eu jamais cometera - tivesse desaparecido tão facilmente
da minha consciência imediata. Talvez o meu inconsciente tivesse aceitado também a autoridade superior, a realidade esmagadora das bombas e passado uma esponja sobre
o total dos meus pecados. Ou talvez esta ausência de culpa - esta animação moral suspensa - fosse uma dádiva de Benengeli para mim.
Fisicamente também me sentia num estado de interregno, numa zona intemporal sob o signo de uma ampulheta em que a areia se mantivesse imóvel ou uma clépsidra em
que o líquido tivesse cessado de correr. Até a minha asma melhorara; que sorte eu tinha, pensei, em me terem calhado as duas únicas não-fumadoras da terra - porque
na verdade onde quer que eu fosse só encontrava gente a fumar desalmadamente. Para evitar o fedor dos cigarros passeava por ruas guarnecidas de festões de salaichas
e lojas onde se vendia pão e canela, cheirando os doces aromas dos enchidos e pastéis e pão acabado de fazer e abandonando-me às leis misteriosas da terra. O ferreiro
da vila, cuja especialidade era o fabrico de correntes e algemas para a cadeia de Avellaneda, cumprimentava-me, como cumprimentava todos os que passavam gritando,
no pesado sotaque espanhol da região:
- Ainda anda em liberdade, ãn? Deixe, que não dura muito...
- e agitava as pesadas correntes, rindo às gargalhadas.
À medida que o meu espanhol ia melhorando, ia-me afastando da rua dos Parasitas e ganhando assim novas perspectivas sobre a outra face de Benengeli, aquela vila
vencida pela história onde homens ciumentos de fato completo seguiam as noivas para as vigiar, como se estivessem certos da infidelidade dessas castas donzelas e
onde à noite se ouvia nas calçadas o ressoar dos cascos dos cavalos de Dom Juans mortos há muito. Comecei a perceber porque é que Felicitas e Renegada Larios passavam
as noites em casa, com as persianas descidas, falando uma com a outra em voz baixa enquanto eu estudava espanhol no aconchego do meu quartinho.
Na quarta-feira da minha quinta semana em Benengeli, voltei para casa depois de um passeio durante o qual uma rapariga de aspecto desmazelado, com uma só perna,
meteu na minha mão relutante um panfleto mal impresso, onde se enumeravam as exigências antiaborto da "Deixai-Vir-a-Mim-as-Criancinhas, Cruzada Revolucionária a
favor dos Cristãos por nascer" e me convidavam para um comício. Recusei o convite mas de repente fui acossado pela memória da Irmã Flóreas, que levava o combate
a favor da vida até às zonas mais superpovoadas de Bombaim e tinha abalado para um lugar onde uma gravidez indesejada deixara presumivelmente de constituir um problema;
minha doce, fanática Minnie, pensei, espero que sejas feliz agora... Lembrei-me também do meu antigo treinador de boxe, Lambajan Chandiwala Borkar, que também só
tinha uma perna e de Totah - aquele papagaio que eu sempre detestara e que desaparecera depois das bombas em Bombaim, para não mais ser visto. A pensar na ave desaparecida
senti-me dominado pela saudade e pela dor a tal ponto que comecei a chorar no meio da rua, para consternação e embaraço da jovem militante, que se afastou rapidamente
de regresso ao covil dos seus companheiros de Cruzada.
O Mouro que regressou à casinha das irmãs Larios na Calle de Miradores era pois um homem diferente, restituído por uma coincidência ao mundo dos sentimentos e da
dor. As emoções, há tanto anestesiadas, invadiam-me como uma inundação. Mas antes que pudesse explicar aquela mudança às minhas senhorias, elas precipitaram-se para
mim falando ao mesmo tempo, interrompendo-se mutuamente na pressa de me informarem que os quadros roubados tinham chegado, tal como se esperava, ao "Pequeno Alhambra!".
- Chegou um camião... - começou Renegada.
- ... a meio da noite; passou mesmo à nossa porta - acrescentou Felicitas.
- ... e eu embrulhei-me no xaile e fui logo a correr...
- ... e eu também...
- ... vimos o portão da casa grande aberto e o camião...
- ... entrou logo lá para dentro...
- ... e hoje as lareiras estavam cheias de bocados de tábua...
- ... como tábuas de caixote, percebe?
- ... ele deve ter passado a noite a partir aquilo!
- e no lixo havia montes daquele plástico com bolhas...
- daquele que os miúdos gostam de rebentar...
- ... aquele material próprio para proteger coisas frágeis...
- ... pois, com bolhas, e também cartão canelado, cintas metálicas...
- ... quer dizer que naquele camião vinham embrulhos grandes e que outra coisa podiam ser senão os quadros?
Não era uma prova concludente mas eu sabia que não iria ter, naquela terra de incertezas, nada mais próximo da certeza. Pela primeira vez comecei a imaginar o meu
encontro com Vasco Miranda. Em tempos, eu fora uma criança que adorava sentar-se aos pés dele; agora éramos dois velhos disputando a mesma mulher, bem podia dizer-se,
e a luta não seria menos esforçada pelo facto de a senhora em questão estar morta.
Era altura de planear o próximo lance.
- Já que ele não quer falar comigo, vão ter de me ajudar a entrar clandestinamente - disse eu às irmãs Larios. - Não vejo outra maneira.
Na manhã seguinte muito cedo, ainda o sol era um assomo que corria ao longo das cristas das montanhas distantes, acompanhei Renegada Larios ao seu local de trabalho.
Felicitas, mais volumosa e de ossos largos, emprestara-me uma saia preta larga e uma blusa. Nos pés levava vulgares sandálias de borracha compradas na parte espanhola
da vila. No braço direito levava um cesto com as minhas próprias roupas, escondidas por baixo de um estendal de panos de pó, esponjas e produtos de limpeza; levava
a mão direita, bem como a cabeça, embrulhada num xaile que segurava cuidadosamente com a mão esquerda para não escorregar.
- Parece tudo menos uma mulher - disse Felicitas Larios mirando-me com o seu olhar crítico. - Mas felizmente ainda está escuro e não vamos para longe. Curve-se um
bocado, dê passinhos pequenos. Vamos lá. Estamos a pôr em risco a nossa subsistência em sua intenção, espero que não se esqueça.
- Em intenção de uma mãe que morreu - corrigiu Renegada. - Nós sabemos o que é já não ter mãe. Por isso compreendemos.
- Deixo o meu cão a seu cargo - disse eu a Felicitas. - Ele não dá trabalho nenhum.
- Ai não dá, não! - disse ela, rezingona. - Vai logo para dentro do armário logo que o senhor sair aquela porta e nem pense que ele sai de lá antes do seu regresso.
Nesta casa não somos tão loucas que levemos um cão empalhado a passear.
Despedi-me de Jawaharlal. Ele também fizera uma longa viagem e merecia melhor sorte do que o armário das vassouras num país estrangeiro. Mas tinha mesmo de ser.
Eu ia a caminho do confronto final com Vasco Miranda e Jawaharlal, ao fim e ao cabo, acabara por se tornar em mais um cão andaluz abandonado.
Vestido pela primeira vez na vida com roupas de mulher, lembrei-me da história de Aires da Gama enfiando o vestido de noiva de sua mulher e abalando para uma noite
de loucura na compa-
nhia do Príncipe Henrique o Navegador; mas como a comparação me era desfavorável! Esta farpela escura não se comparava com o fabuloso vestido de Aires, e como eu
me adaptava mal ao vestuário feminino! Quando saímos, Renegada contou-me que o antigo Presidente da Câmara - o mesmo que agora passava os dias, sem um amigo, a bebericar
café na rua dos Parasitas - tinha sido um dia obrigado a calcorrear aquelas ruas disfarçado com as roupas da sua própria avó porque, já para o fim do seu cativeiro,
a sua casa tinha sido designada para demolição e a família tinha sido forçada a mudar de casa. Assim, eu tinha um precedente local, bem como um precedente familiar,
para o meu disfarce.
Era a primeira vez que Renegada e eu estávamos sós sem Felicitas a servir-nos de pau-de-cabeleira mas, embora ela me lançasse uma série de olhares cheios de significado
explícito, eu sentia-me demasiado inibido (tanto pelo vestuário feminino como pelo nervosismo gerado pela cena imprevisível que se adivinhava) para reagir favoravelmente.
Chegámos à entrada de serviço do pequeno Alhambra sem sermos detectados, tanto quanto pude julgar, embora fosse impossível saber de certeza se não haveria olhos
curiosos a observar-nos das janelas sombrias da rua dos Miradouros, à medida que nos íamos aproximando da incongruente fonte dos elefantes. Pareceu-me entrever um
rasto verde vivo voando sobre os muros do castelo.
- Há papagaios em Espanha? - murmurei eu para Renegada, sem obter resposta. Talvez ela estivesse amuada por eu me ter recusado a aproveitar aquela rara oportunidade
de namoro.
Havia uma placa de código electrónico de acesso encastoada na parede cor de terracota e Renegada carregou rapidamente numa série de quatro botões. A porta abriu-se
com um "click" e penetrámos no covil de Miranda.
Tive imediatamente uma sensação de estar entre coisas já vistas anteriormente, uma sensação tão forte que a cabeça me andou à roda. Quando recuperei um pouco, maravilhou-me
a arte com que Vasco Miranda reconstituíra, no interior do seu palácio de fantasia, os quadros do Mouro pintados por Aurora Zogoiby. Encontrava-me num pátio ao ar
livre, com o chão axadrezado de mosai-
cos brancos e pretos; os lados formavam um claustro e para lá dos arcos estendia-se uma planície que cintilava à luz da madrugada, como o mar. Um palácio junto de
uma miragem de oceano, parte Árabe, parte Mughal, com qualquer coisa de Chirico; era precisamente o lugar que Aurora em tempos descrevera como "o sítio onde os mundos
colidem, se interpenetram, voltam a separar-se e são levados pelas ondas. Um sítio onde um homem pode afogar-se ou então crescerem-lhe guelras; onde uma criatura
marinha pode embriagar-se com ar ou então morrer sufocada". Mesmo no estado actual de incipiente decadência e de abandono eu tinha encontrado o verdadeiro Mouristão.
Sala após sala fui encontrando os cenários dos quadros de Aurora trazidos de novo à vida; esperava quase ver surgir as suas personagens, vê-las desempenhar os seus
papéis nas suas histórias tristes; esperava quase ver o meu próprio corpo renascer naquela figura de lozangos multicores que era o Mouro, cuja tragédia - a tragédia
da multiplicidade vencida pela singularidade, a derrota dos Muitos pelo Único - fora o princípio unificador de toda a série. E talvez a minha mão disforme fosse,
a cada momento, expandir-se numa flor, numa luz, numa chama! Vasco, que sempre pensara que Aurora lhe tinha roubado a ideia para os quadros do Mouro do seu retrato
kitsch de um cavaleiro lacrimejante, acabara por gastar fortunas e toda a energia que nasce duma profunda obsessão, para se apropriar da visão dela. Aquela casa
fora feita de amor ou de ódio? A acreditar nas histórias que eu ouvira contar, era um verdadeiro palimpsesto onde o seü ressentimento actual cobria de fel a memória
de um velho e doce romance perdido. Porque havia aqui qualquer coisa de amargo, alguma inveja embaciando a emulação; e passado o primeiro choque, comecei a ver,
à luz do dia que aumentava, as falhas naquele grande projecto. Vasco Miranda continuava a ser o mesmo novo-rico de sempre e aquilo que Aurora imaginara de forma
tão vívida e requintada tinha sido reconstituído por Vasco em cores que falhavam o alvo por aquela distância mínima mas vital que separa o agradavelmente competente
do grosseiramente inadequado. Além disso, as proporções do edifício estavam erradas e as suas linhas mal concebidas. Não, afi-
nal não era um milagre; a minha primeira impressão fora ilusória e a ilusão já se desvanecera. Apesar do seu tamanho e ribombância, o "Pequeno Alhambra" não era
nenhum Mourosalem, mas um palacete feio e pretensioso.
Não tinha visto sinal dos quadros roubados nem da maquinaria mencionada por Renegada e Felicitas. A porta que dava para a torre principal estava solidamente fechada
à chave. Vasco devia estar lá em cima com as suas engenhocas e os seus segredos roubados.
- Quero mudar de roupa, - disse eu a Renegada. - Não posso enfrentar o sacana do velho nesta figura.
- Então mude - respondeu ela sem papas na língua. - O senhor não tem nada que eu não tenha já visto.
De facto, tinha havido uma mudança em Renegada; desde que entráramos no "Pequeno Alhambra" os seus modos tinham-se tornado assertivos, como se estivesse na sua própria
casa. Tinha sem dúvida detectado a repugnância crescente com a qual - após a minhas primeiras exclamações de prazer - eu tinha vindo a inspeccionar a casa de que
ela cuidava há tantos anos. Era natural que tivesse ficado aborrecida com a minha falta de entusiasmo. Em todo o caso, aquela observação pareceu-me provocatória
e atrevida e resolvi não deixar passar.
- Tenha cuidado com o que diz - avisei eu e passei para a sala ao lado para ficar sozinho, sem me importar com o seu olhar furibundo. Enquanto mudava de roupa comecei
a ouvir um ruído vindo de certa distância. Era um barulho horroroso - uma mistura de gritos de mulher e de guinchos em feedback, ululações provenientes de indivíduos
de sexo indeterminado, gemidos e pancadas, sons criados em computador, com um fujjdo de desabar de latas que sugeriam uma cozinha abalada por um tremor de terra.
Devia ser a "música de vanguarda" de que se tinha falado. Vasco Miranda tinha acordado.
Renegada e Felicitas tinham-me dito claramente que não viam o patrão há mais de um ano, por isso a minha surpresa foi grande, ao sair do quarto onde mudara de roupa,
por ver a figura volumosa do velho Vasco em pessoa à minha espera no centro
da praça aos quadrados, com a governante ao lado; e não só ao lado mas fazendo-lhe cócegas, toda brincalhona, com um espanador de penas, enquanto ele soltava risadas
e gritinhos de gozo. Estava efectivamente vestido de Mouro de fantasia, como as duas irmãs tinham dito, e nas suas pantalonas tufadas e colete bordado, aberto sobre
uma camisa de balão sem gola, parecia um monte tremelicante de rahat lacoum{*). O bigode tinha diminuído - as estalagmites de pelos encerados tinham desaparecido
- e a cabeça estava tão careca e marcada de covas como a superfície da lua.
- Hi, hi, hi, - gargalhou ele afastando o espanador com uma sapatada. - Olá, namaskar, salaam (**), Mouro, meu rapaz. Estás com um aspecto horrível, parece que vais
cair para o lado de um momento para o outro. Então aquelas minhas duas senhoras não te têm alimentado convenientemente? Não tens gostado destas feriazinhas? Há quanto
tempo...? Catorze anos, hã...? Estás velho, rapaz.
- Se eu soubesse que era tão fácil chegar à fala consigo - disse eu com um olhar zangado para a governante -, tinha dispensado toda esta palhaçada. Mas parece que
afinal os boatos acerca da sua reclusão eram largamente exagerados.
- Quais boatos? - disse ele, falsamente ingénuo. - Bom, talvez, mas só quanto a certos pormenores, - disse ele, conciliador, mandando embora Renegada com um gesto.
Ela pousou o espanador sem uma palavra e retirou-se para um canto do pátio.
- É verdade que aqui em Benengeli todos prezamos muito a nossa privacidade - e, a propósito, tu também, a julgar pela tua insistência em mudar de roupa à porta fechada.
A Renegada achou imensa graça. - Mas onde é que eu ia? Ah, é verdade. Já reparaste que está terra se distingue pelas coisas que não tem? Ao contrário do que acontece
em toda esta região da Costa, é destituída
(*) Guloseima muito popular no Oriente, extremamente doce e de consistência gelatinosa. (N. T.)
(**) Formas de saudação, a primeira usada na índia e a segunda pelos Muçulmanos. (N. T.)
de excrescências tais como discotecas Coco-Loco, excursões em autocarro, visitas guiadas, burros-a-taxímetro, casas de câmbio e vendedores de chapéus de palha. Salvador
Medina, o nosso excelente sargento, desencoraja esses horrores administrando cargas de pancada, de noite, nas muitas vielas escuras desta vila, a todo e qualquer
empresário que tente explorar aqui essas actividades. Salvador Medina não gosta de mim, como detesta todos os recém-chegados, mas eu, tal como qualquer imigrante
bem sucedido, tal como a grande maioria dos Parasitas, aprovo a sua política de rechaçar a nova vaga de invasores. Agora que nós entrámos, é tempo de alguém fechar
a porta.
- Não achas admirável a minha Benengeli? - continuou ele, apontando vagamente na direcção do oceano-miragem, visível através das janelas. - Adeus sujidade, doença,
corrupção, fanatismo, política de castas, caricaturistas, lagartixas, crocodilos, música em playback e, acima de tudo, adeus família Zogoiby! Adeus Aurora-a-grande,
Aurora-a-cruel, adeus Abe-o-trapaceiro, Abe-o-desdenhoso!
- Não é tanto assim - discordei. - Pelo que vejo, tentou - com um sucesso muito relativo, deixe que lhe diga - criar à sua volta o mundo imaginativo da minha mãe,
para o usar como uma folha de parra a esconder as suas próprias deficiências; mas falta-lhe agora enfrentar este Zogoiby e tem um pequeno assunto de quadros roubados
a resolver.
- Estão lá em cima - disse Vasco encolhendo os ombros. - Devias estar-me grato por eu os ter fanado. Foi a sorte grande para eles. Se não fosse o meu bando de profissionais,
estavam agora todos esturricados.
- Exijo vê-los imediatamente - disse eu com firmeza. - E depois, talvez o sargento Medina me possa prestar um favor. Talvez possa mandá-lo chamar pela sua governante
Renegada, ou pelo telefone.
- Sem dúvida, vamos lá acima deitar uma olhadela - disse Vasco muito descontraído. - Mas faz-me o favor de ir devagar, que eu sou gordo. Quanto ao resto, tenho a
certeza que não tens muito interesse em ir a correr ter com a polícia. Nas tuas cir-
cunstâncias, quanto mais incógnito melhor, não é verdade? Além disso, a minha bem-amada Renegada recusa-se a trair-me. E ainda ninguém te disse que o telefone está
cortado há anos?
- "Bem-amada Renegada"?
- E a minha bem-amada Felicitas também. Não me fariam mal por nada deste mundo.
- Então essas duas irmãs estiveram a brincar comigo.
- Não são irmãs, nem meias-irmãs, pobre Mouro, coitado. São amantes.
- Uma da outra?
- Há quinze anos. E minhas amantes, há catorze. Durante quantos anos tive de os ouvir a vocês dizer disparates acerca da unidade na diversidade e não sei que mais.
E agora eu, Vasco, criei essa nova sociedade com as minhas raparigas.
- Não quero saber dos seus negócios de cama. Até podem fazer de si trampolim, se lhes apetecer, o que é que eu tenho com isso? Toda esta conspiração, estes truques
é que me enchem de raiva.
- Mas tínhamos de esperar que chegassem os quadros, não tínhamos? Isso não era truque nenhum. E depois tínhamos de te fazer entrar aqui sem ninguém saber.
- Com que intuito?
- Que é que achas? Para me ver livre dos Zogoibys todos, quatro quadros e um em pessoa - o último da malfadada geração, por sinal - com um grande estrondo final;
ou, para pôr as coisas de outra maneira, cinco-duma-vez.
- Que é isso, uma arma? Isso é a sério, Vasco? Está a apontar-me uma pistola?
- É pequenina. Mas está na minha mão. É a minha sorte e o teu azar.
Eu tinha sido avisado. Vasco Miranda é um espírito demoníaco e elas, familiares do diabo. Já as vi transformarem-se em morcegos...
Mas eu tinha sido apanhado na rede desde o princípio. Quanta gente da terra seria aliada dele? Salvador Medina não, isso parecia claro. Gottfried Helsing? Tinha
razão quanto ao telefone, mas quanto ao resto só servira para me confundir. E os outros? Teriam todos conspirado contra mim naquela farsa, obedecendo às ordens imperiosas
de Vasco? Quanto dinheiro teria mudado de mãos? Seriam todos membros de alguma seita oculta, maçónica - Opus Dei ou coisa assim? E até onde iria no passado, a conspiração?
Até Bivar, o taxista, até ao oficial dos serviços de emigração, até aquele estranho pessoal de cabine no avião de Bombaim? Cinco-duma-vez dissera Vasco. Ele disse
aquilo. Seria que os tentáculos desta história se estendiam para trás, tão longe até uma bomba numa casa em Bandra; e seria isto a vingança das vítimas? Senti vacilar
a razão e refreei as minhas especulações, sem bases e sem valor. O mundo era um mistério insondável. O presente, um enigma a decifrar.
- Então cá temos o Lone Ranger e Tonto-o-Pele-Vermelha num vale sem saída, cercados por índios hostis, - dizia Vasco Miranda resfolegando pelas escadas acima atrás
de mim. - E o Lone Ranger diz: "Não adianta, Tonto. Estamos cercados". E o Tonto responde: "Estamos? Que é que isso quer dizer, estamos, cara pálida?" "
Lá no alto estava a origem da música de guinchos electrónicos que eu tinha ouvido. Era um som fantasmagórico, torturado - ou por outra, torturante - sádico, desapaixonado,
distante. Eu queixara-me, antes de começar a subir a escada, mas Vasco afastara as minhas objecções.
- Em certas regiões do Extremo Oriente - informou ele -, esta música é considerada altamente erótica.
À medida que subíamos, Vasco tinha de falar mais alto para se fazer ouvir. A minha cabeça começou a latejar.
- Ora cá temos então o Lone Ranger e o Tonto a acampar para passarem a noite. - "Acende a fogueira, Tonto", diz o Lone Ranger. - "Sim, Kemo sabay". - "Vai buscar
água no riacho, Tonto". - "Sim, Kemo sabay". - "Faz café, Tonto". - "Sim, Kemo Sabay". E assim por diante. Até que o Tonto de repente solta uma exclamação de repugnância.
O Lone Ranger pergunta:
- "Que foi?! - "Puah..." responde o Tonto olhando para as solas dos mocassins. "Acho que acabo de pisar um grande monte de Kemo sabay".
Lembrei-me do taxista Bivar, o fanático de fitas de cowboys, que usava o nome de um cowboy medieval couraçado de chapa, o segundo maior cavaleiro errante de Espanha,
- refiro-me a Rodrigo de Bivar, El Cid, e não a Dom Quixote, pondo-me de sobreaviso quanto a Benengeli, num sotaque que era metade John Wayne, metade Eli Wallach
em "Os Sete Magníficos": "Cuidado, chefe. Estamos a entrar em território de peles-vermelhas".
Mas será que ele tinha realmente dito aquilo? Não seria uma falsa memória, um sonho semiesquecido? Já não tinha a certeza de nada. Excepto, talvez, que isto era
realmente território de peles-vermelhas, eu estava cercado e cada vez mais atolado em Kemo sabay.
De certo modo toda a vida vivera em território de peles-vermelhas, aprendendo a ler os sinais, a seguir as pistas, gozando a sua imensidade, a sua beleza inexaurível,
lutando pelo meu território, enviando sinais de fumo, fazendo soar os tambores, alargando fronteiras, abrindo caminho entre perigos, esperando encontrar amigos,
temendo a crueldade da terra e desejando o seu amor. Em território de peles-vermelhas, nem um pele-vermelha estava seguro, sobretudo se fosse um pele-vermelha da
espécie errada - usando o toucado de penas errado, falando o dialecto errado, dançando as danças erradas, adorando os deuses errados, viajando em companhia errada.
Não pude deixar de pensar que talvez não houvesse muita consideração, da parte dos guerreiros que cercavam o homem das
balas de prata, para com o seu companheiro de penas na cabeça. Em território de peles-vermelhas não há lugar para o homem que não quer pertencer a nenhuma tribo,
cujo sonho é seguir sempre em frente; arrancar a pele e revelar a sua identidade secreta - isto é, o segredo da identidade de todos os homens -; ficar de pé perante
os bravos cobertos de pinturas de guerra e revelar a unidade da carne viva, nua e esfolada.
Renegada não tinha subido à torre connosco. Aquela traidorazinha tinha provavelmente fugido precipitadamente para os braços da sua amante de sinal na cara e a esta
hora estavam ambas rejubilando com o sucesso da sua armadilha. Uma luz fantasmagórica escoava-se para a escada em espiral através de janelas estreitas como fendas.
As paredes tinham pelo menos um metro de espessura, proporcionando na torre uma temperatura fresca e até fria demais. Sentia a transpiração secar-me nas costas e
tive um pequeno arrepio. Vasco flutuava atrás de mim, bufando e soprando, como um espectro bulboso de revólver em punho. Aqui no palácio Miranda estes dois espíritos
proscritos, o último dos Zogoibys e o seu inimigo louco, executariam os últimos passos da sua dança de fantasmas. Morrera toda a gente, tudo estava perdido e naquela
penumbra não havia tempo senão para aquela história de espectros. Haveria balas de prata na arma de Vasco Miranda? Dizem que são precisas balas de prata para matar
um ser sobrenatural. Se eu me tornara também um espectro, assim teria de ser para mim.
Passámos pelo que devia ser o estúdio de Vasco e vi de relance uma obra inacabada: um homem crucificado fora descido da cruz e jazia no colo duma mulher que chorava;
moedas de prata - sem dúvida trinta - caíam das suas mãos estigmatizadas. Este anti-pietá devia pertencer à sequência de quadros "Judas Cristo" de que me tinham
falado. Só tinha tido uma visão de relance, mas a óbvia imitação de El-Greco em estilo sensacionalista deu-me von-
tade de vomitar e desejei que a obra inacabada significasse que Vasco abandonara o projecto de vez.
No andar acima mandou-me entrar para uma sala onde, com o coração aos pulos, vi outra obra inacabada de categoria totalmente diferente: o último quadro de Aurora
Zogoiby, a sua declaração angustiada de amor maternal que transcendia e perdoava os supostos crimes do seu bem-amado filho, O Ultimo Suspiro do Mouro. Na mesma sala
havia o que me pareceu ser equipamento de raios X; e, entaladas num grande painel de vidros foscos iluminados por trás, um certo número de radiografias. Aparentemente
Vasco estava a observar o quadro roubado secção por secção, como se, examinando o que estava por baixo da superfície, pudesse descobrir, embora tarde demais, o segredo
do génio de Aurora e apo-derar-se dele. Como se estivesse à procura duma lâmpada mágica.
Vasco fechou a porta e eu deixei de ouvir aquela música ensurdecedora. Era evidente que a sala tinha sido insonorizada sem olhar a despesas. Contudo, a luz naquela
câmara - as janelas em fresta tinham sido tapadas com flanela preta, de forma que a única luz era o clarão branco encandeante que emanava do painel de vidros iluminados
- era quase tão opressiva como a música o tinha sido.
- O que é que faz aqui? - perguntei eu a Vasco, procurando ser o mais malcriado possível. - Anda a aprender a pintar?
- Vejo que tens a língua afiada dos Zogoibys, - respondeu
- Mas não é prudente desafiar um homem que trás na mão uma arma carregada; ainda por cima, um homem que te prestou o serviço de decifrar o enigma da morte da tua
mãe.
- Eu conheço a resposta a esse enigma. E este quadro não tem nada a ver com o caso.
- Vocês os Zogoiby são mesmo arrogantes - continuou Vasco Miranda sem fazer caso da minha observação. - Por pior que tratem uma pessoa, estão sempre certos de continuar
a ser amados. A tua mãe pensava isso de mim. Ela escreveu-me, sabias? Pouco tempo antes de morrer. Ao fim de catorze anos, um grito de socorro.
- Isso é mentira - disse eu. - Como é que a poderia ajudar fosse no que fosse?
- Ela andava assustada - continuou ele, sem me dar atenção.
- Disse que havia alguém que a queria matar. Alguém suficientemente zangado, ciumento e implacável para a mandar matar. Esperava ser assassinada dum momento para
o outro.
Eu tentava manter uma fachada de desprezo, mas como podia eu ficar indiferente à imagem da minha mãe num tal estado de terror - e de isolamento - a ponto de a levar
a recorrer ao auxílio daquela figura gasta pelo tempo, daquele alienado? Como podia eu deixar de ver no meu espírito a cara dela, contorcida pelo medo? Via-a no
estúdio, passeando de um lado para o outro, torcendo as mãos, como se o mais pequeno ruído fosse o arauto da fatalidade.
- Eu sei o que aconteceu à minha mãe - disse, calmamente.
Vasco explodiu: - Os Zogoibys acham que sabem sempre
tudo. Mas não sabem nada! Nada de nada! Desta vez sou eu, o Vasco de quem todos vocês fazem troça, esse artista para aeroportos que não é digno nem de beijar a bainha
da túnica da artista genial, Vasco o pintor popularuncho, Vasco a anedota - desta vez eu é que sei!
Recortava-se em silhueta contra a bancada iluminada, com radiografias à esquerda e à direita.
- Se fosse assassinada - disse ela - queria que o assassino fosse apanhado. Por isso escondeu o retrato dele por baixo do que estava a pintar. Manda radiografar
o quadro, recomendou-me ela, e verás o retrato do meu assassino.
Vasco segurava na mão uma carta. Finalmente, neste tempo de miragens, de truques e estratagemas, um facto simples e palpável. Peguei na carta e minha mãe falou-me
do além-túmulo.
- Olha para aqui.
Vasco apontou o revólver para as radiografias. Em silêncio, desconcertado, fiz o que me mandavam. Não havia*dúvidas que a tela era um palimpsesto: podia distinguir-se
um retrato a corpo inteiro em negativo, por baixo da pintura superficial. Mas Raman Fielding tinha a corpulência de Vasco e o homem na imagem-fantasma era alto e
magro.
- Não é Mainduck - as palavras saíram-me da boca espontaneamente.
- Correcto! Precisamente - disse Vasco. As rãs não fazem mal a ninguém. Mas este tipo? Não o conheces? Segue os teus instintos! E não só os instintos como os ex-tintos!
Aqui está ele por baixo, mas já o tens visto por cima. Olha, olha para ele - o chefe dos mauzões em pessoa. Blofeld, Mogambo, Don Vito Corleone: não reconheces o
cavalheiro?
- É o meu pai - disse eu, e era mesmo. Sentei-me pesadamente no chão de pedra fria.
A sangue frio: nunca a frase se aplicou a alguém tão bem como a Abraham Zogoiby. De princípios humildes (convencendo um capitão relutante a levantar ferro) elevou-se
a alturas Edênicas; donde, como uma divindade gélida, semeou a devastação entre os meros mortais, mas também, e nisto se diferenciou de outras divindades, entre
o seu próprio sangue e a sua própria carne. - Observações desligadas passavam-me pela cabeça esperando a minha apreciação, ou lá o que era. - Como o Super-Homem,
eu tinha recebido o dom de uma visão de raios X; mas ao contrário do Super-Homem, essa faculdade mostrara-me que o meu pai era o homem mais celerado à face da terra.
- A propósito, já que Renegada e Felicitas não eram irmãs, quais seriam os seus apelidos? Lorenço, dei Toboso, de Malindrania, Carculiambro? - Mas o meu pai, estava
a falar do meu pai Abraham, que fora quem começara a investigação do mistério da morte de Aurora; que não podia esquecê-la e via o seu fantasma passeando no jardim,
(seria por um sentimento de culpa ou faria parte do seu plano a sangue-frio?) Abraham, que me contara que Chhaggan Cinco-Duma-Vez tinha feito uma deposição escrita
e jurada perante Dom Minto, a qual deposição nunca se confirmara de facto mas que me levara a matar um homem à pancada. - E Gottfried Helsing? Seria possível que
ele não soubesse a verdade acerca das autodenominadas "Manas Larios", ou seria a sua indiferença tão grande que não achou necessário pôr-me ao corrente; teria o
sentido da solidarie-
dade humana decaído tanto entre os Parasitas de Benengeli que um homem já não sentia a mínima responsabilidade perante o destino de outro homem? - Sim; morto à pancada,
matei-o à pancada. Malhei-lhe na cara. E Chhaggan, também, encontrado morto numa valeta: Sammy Hazaré era suspeito do crime, mas talvez tivesse andado por ali outra
mãozinha. - E agora, como diabo se chamavam os actores que faziam de homem mascarado e de índio? Qualquer-coisa-Jay, é isso Jay, e não Silverbullets, mas Silver-heels(*).
O Chefe Jay Silverheels e Clayton Moore. - Oh Abraham! Com que pressa sacrificaste o teu filho no altar da tua ira! A quem pagaste para soprar a seta envenenada?
Houve realmente uma seta ou foram empregues meios mais escorregadios - um pouco de vaselina estaria na base do teu truque assassino, bastava um pingo no sítio certo,
tão fácil de lá pôr, tão fácil de limpar; porque é que eu havia de acreditar numa só palavra daquela história do Minto, afinal? Sentia-me perdido num mundo de ficções
e rodeado de assassinos por todos os lados. - O meu mundo estava louco e eu também; como acusar Vasco, quando os Zogoibys perpretaram tanta loucura uns contra os
outros e contra aqueles tempos desgraçados? - E Mynah, a minha irmã, morta numa explosão: Mynah que enviara para a cadeia um político corrupto e obrigara o meu pai
a uma despesa considerável! Poderia também a filha ter morrido às mãos do pai - teria sido esse o ensaio do senhor nosso pai para a subsequente eliminação da sua
esposa? - E Aurora? inocente ou culpada? Ela achava-me culpado e eu não o era; não deveria eu evitar cair no mesmo erro? Teria ela, tendo sido infiel, dado um verdadeiro
motivo a Abraham para um ataque de raiva e de ciúme - a tal ponto que, após uma vida inteira a viver na sombra dela, sujeitando-se aos seus caprichos (enquanto,
relativamente aos outros áspectos da sua vida se tornava omnipotente, monstruoso, diabólico), a teria matado e depois se teria servido do mistério da sua morte para
me influenciar para que eu matasse também o seu inimigo? - Ou seria ela casta, pura, íntegra como deve ser uma mãe indiana, e ele con-
(*) Balas de prata e Tacões de prata. (N. T.)
fundindo a virtude com o vício, teria agido como um idiota chapado, um ciumento irracional? - Quando o passado desapareceu, quando tudo explodiu e está feito em
estilhas, como é possível atribuir as culpas com justiça? Como descobrir o significado de uma vida em ruínas? - Uma coisa era certa: eu fora ludibriado pela sorte
e pelos meus pais.
O chão está frio. Devia levantar-me. Ainda ali está um tipo gordo e está a apontar-me uma arma ao coração.
20
Perdi a conta aos dias que passaram desde que comecei a cumprir a pena de prisão na torre da fortaleza de Vasco Miranda erigida na vila serrana de Benengeli na Andaluzia,
mas agora que tudo acabou sinto que devo registar as minhas memórias daquele terrível encarceramento, quanto mais não seja para celebrar o papel heróico desempenhado
pela minha colega de cativeiro, sem cuja coragem, espírito inventivo e serenidade eu certamente não estaria vivo para contar esta história. Porque, como vim a descobrir
naquele dia em que descobri tantas coisas, eu não era a única vítima da obsessão psicótica de Vasco Miranda pela minha falecida mãe. Havia um segundo refém.
Ainda abalado até ao íntimo do meu ser pelas revelações dos raios X, fui mandado prosseguir escada acima. Assim cheguei à célula circular onde ia ser deixado a apodrecer
durante tanto tempo, ensurdecido pelos sons horríveis que provinham de altifalantes montados num ponto alto da parede, seguro da iminência da minha morte e tendo
como único consolo aquela mulher espantosa que brilhava como um farol na minha noite. Agarrei-me a ela e por isso não sossobrei.
Havia também no centro deste quarto um quadro num cavalete: o Boabdil de Vasco, o cavaleiro lacrimejante, galopara chorando de volta a Espanha, abandonando a casa
de C. P. Bhabha que o comprara e regressando ao seio do seu criador. Aquilo que tinha sido feito em Elephanta vinha acolher-se a Benengeli: o
crime, a vingança e a arte. A primeira obra de Vasco em tela e a última de Aurora, o começo da nova carreira dele e o triste fim da carreira dela: dois quadros roubados,
ambos tratando o mesmo tema e cada um escondendo por baixo da pintura o retrato de cada um dos meus pais. (Nunca cheguei a ver os outros "Mouros" roubados. Vasco
afirmou que os cortara aos bocados e os queimara juntamente com os caixotes; só os tinha mandado roubar, disse, para disfarçar o facto de que O Ultimo Suspiro do
Mouro era o único que ele queria.)
Os raios X colocaram Abraham Zogoiby num círculo inferior deste inferno ascendente, mas para descobrir Aurora as radiografias não chegaram. O Mouro de Vasco tinha
de ser destruído e estava a ser pelado placa por placa; a imagem da minha mãe em nova, a Madonna-sem-criança de seio nu que tanto irritara Abraham em tempos bem
longínquos, estava a surgir do seu longo cativeiro. Mas a sua liberdade era ganha à custa da sua libertadora. Não levei muito tempo a reparar que a rapariga que
estava diante do cavalete, arrancando escamas de tinta seca e clepositando-as num prato, estava presa - pelo tornozelo! - à parede de pedra vermelha.
Era Japonesa mas passara a maior parte da sua vida profissional a trabalhar nos grandes museus da Europa como restauradora de pintura. Casara com um diplomata espanhol,
um tal Benét e viajara com ele por todo o mundo até o casamento se desfazer. Um belo dia Vasco Miranda telefonara-lhe para a Fundação Joan Miró em Barcelona - dizendo
unicamente que ela lhe tinha sido "altamente recomendada" - e convidou-a a visitá-lo em Benengeli a fim de examinar e dar o seu parecer sobre certas pinturas palimp-sésticas
que ele recentemente adquirira. Embora ela não admirasse a obra de Vasco, achou que recusar o convite seria um insulto; além disso, tinha curiosidade em espreitar
para o interior dos altos muros do seu legendário castelo e descobrir talvez o que havia sob a máscara daquele recluso famoso. Quando chegou ao "Pequeno Alhambra"
com as ferramentas do ofício como ele pedira expressamente, ele mostrou-lhe o Mouro da sua autoria e as radiografias do retrato subjacente; e perguntou-lhe se seria
possível exumar a pintura escondida tirando a camada superficial.
- Seria perigoso mas talvez possível, sim, - disse ela, após um estudo inicial. - Mas com certeza que não quer destruir a sua própria obra.
- Foi justamente para isso que a convidei a vir aqui. - Respondeu ele.
Ela recusara. Apesar do seu pouco apreço pelo Mouro de Vasco, que ela considerava de pouco valor, a perspectiva de passar semanas de trabalho árdua, meses talvez,
a destruir, em vez de preservar, uma obra de arte, não lhe agradava. A sua recusa foi cortês e delicada mas provocou a raiva de Miranda. "É dinheiro que quer?" perguntou
e ofereceu-lhe uma soma tão absurda que só veio confirmar as suas preocupações acerca do equilíbrio mental dele. Perante uma segunda recusa ele rapara duma arma
e aí começara o seu cativeiro. Não seria libertada, disse ele, antes de cumprir as suas obrigações até ao fim; se se recusasse a obedecer, matá-la-ia "como um cão".
E assim começou o seu calvário.
Vendo-a presa com aquelas correntes pensei que o ferreiro devia ser uma pessoa muito condescendente, para aceitar instalar aqueles dispositivos numa casa particular
sem fazer perguntas. Então lembrei-me do seu grito: "Ainda anda em liberdade, ãn? Deixe que não dura muito ..." e voltou a torturar-me o pressentimento de uma enorme
conspiração.
- Tens aí companhia. - Disse Vasco à rapariga e, voltando-se para mim
anunciou que, dada a nossa velha amizade e a sua própria natureza bondosa, adiava por uns tempos a minha execução.
- Vamos reviver juntos os velhos tempos - propôs ele alegremente . - já que os Zogoiby vão ser apagados da face da terra, e se os crimes do pai, e da mãe também,
vão ser punidos na pessoa do filho, então que seja o último dos Zogoiby a relatar a sua saga criminosa.
Depois disto, passou a fornecer-me todos os dias lápis e papel. Tinha feito de mim uma espécie de Scheherazade. Enquanto se mantivesse o seu interesse pela minha
história, deixar-me-ia viver.
A minha companheira de cativeiro deu-me um bom conselho.
- Faça durar a tarefa. É o que eu estou a fazer. Em cada dia que estivermos vivos aumentam as nossas oportunidades de salvação.
Ela tinha a sua vida lá fora - trabalho, amigos, casa - a sua desaparição por força havia de levantar suspeitas. Vasco sabia-o e obrigava-a a escrever cartas e postais,
pedido licenças sem vencimento no local de trabalho e explicando aos amigos que o "fascínio" de ter acesso ao mundo secreto do famoso V. Miranda a encantava. Isto
atrasaria as investigações mas não para sempre, porque ela introduzira nas cartas enganos propositados, referindo-se, por exemplo, ao namorado ou ao animal doméstico
duma amiga pelo nome errado; e mais tarde ou cedo alguém havia de desconfiar. Quando soube isto fiquei excitadíssimo, porque o desânimo que me atacara no seguimento
das revelações das radiografias de Vasco levara-me a desesperar de que alguém viesse jamais libertar-me. Agora nascia uma nova esperança e eu fiquei delirante de
expectativa. Mas ela deitou logo água fria no meu entusiasmo.
- É só uma tentativa, com poucas probabilidades de sucesso
- disse ela. - As pessoas, geralmente, não são rigorosas. Não lêem com atenção, só passam os olhos. Não estão à espera de receber mensagens em código e portanto
são capazes de nem darem por nada.
Para ilustrar o que dizia, contou-me uma história. Em 1968, durante a "Primavera de Praga" um seu colega americano tinha levado um grupo de estudantes de arte a
visitar a Checoslováquia. Estavam em plena Praça Wenceslas quando os primeiros tanques russos entraram na cidade. Durante os distúrbios que se seguiram o professor
americano foi um dos apanhados à sorte pelos esquadrões antimotim e passou dois dias na cadeia antes que o Cônsul Americano conseguisse libertá-lo. Durante esses
dias notou que havia um código de batidas inscrito na parede da célula e começou imediatamente a mandar mensagens a quem quer que estivesse do outro lado da parede.
Ao fim de uma hora de estar para ali a bater, abriu-se bruscamente a porta da célula e entrou um guarda com aspecto divertido que lhe disse, num inglês horrível,
que o vizinho lhe pedia para "parar a merda do batuque" porque infelizmente "ninguém lhe tinha dado a merda do código".
- E além disso - continuou ela serenamente -, mesmo que apareça um auxílio, mesmo que a polícia comece a deitar abaixo
os portões desta terrível fortaleza - quem sabe se Miranda permitirá que sejamos libertados com vida? Ele está a viver exclusivamente no momento presente, escapou-se
das grilhetas do futuro. Mas se esse amanhã chegar, se ele se vir forçado a enfrentá-lo, pode decidir morrer, como um desses chefes de culto de quem se ouve falar
cada vez mais e provavelmente há-de querer levar-nos com ele - Renegada, Felicitas, eu e você também.
Conheci-a tão perto do final da nossa história que não posso fazer-lhe justiça. Não há tempo nem espaço para lhe prestar a homenagem de a descrever, por assim dizer,
exaustivamente; também ela tinha a sua história, amava e era amada, era um ser humano e não uma mera prisioneira naquele odioso espaço de paredes espessas, onde
tiritávamos de frio durante a noite, mesmo abraçados para mantermos o calor, embrulhados no meu sobretudo de cabedal. Não posso contar a história dela - só posso
prestar tributo à generosidade com que me segurou durante aquelas noites intermináveis em que eu sentia a morte aproximar-se e dava parte de fraco. Só posso recordar
o seu murmúrio aos meus ouvidos, quando ela cantava para mim ou dizia graças. Ela conhecera outras paredes mais humanas, olhara para outras janelas que não estas
frestas como golpes abertos na pedra vermelha, por onde de dia entravam barras de luz como grades de prisão e pelas quais não sairia nenhum grito que viesse a ser
escutado por uma orelha amiga.
O que eu posso dizer é isto: o nome dela era um milagre de vogais. Aoi Ué: estes cinco sons, agrupados desta maneira, construíam a sua imagem. Era pequena, delgada
e pálida. A cara era um oval perfeito liso e sem rugas, no qual as sobrancelhas, como duas dedadas colocadas bem acima na testa lhe davam uma expressão permanente
de ligeira surpresa. Era uma cara sem idade. Tanto podia ter trinta como sessenta anos. Gottfried falara de "uma rapariga bem engraçada" e Renegada Larios - ou lá
como realmente se chamava - de "tipo oriental". Ambas as descrições estavam ligeiramente desfocadas. Ela não era nenhuma rapariguinha mas uma mulher dotada de um
formidável autocontrole - para dizer a verdade, o seu domínio de si mesma poderia ter sido um pouco
assustador no mundo exterior, mas ali, confinados como estávamos no nosso círculo fatal, tornou-se o meu apoio, o meu alimento de dia e o meu travesseiro de noite.
Longe de ser uma marginal, tinha pelo contrário um espírito organizado. O seu formalismo, a sua precisão acordavam em mim recordações do meu próprio gosto pela arrumação
e pelo asseio dos dias da minha infância, antes de me render aos imperativos brutais do meu punho torcido. Nas odiosas circunstâncias da nossa existência acorrentada,
ela definia a necessária disciplina e eu seguia-a sem hesitar.
Era ela que modelava os nossos dias, criando um horário a que obedecíamos com todo o rigor. Éramos acordados todas as manhãs cedo por uma hora daquela "música" que
Miranda insistia em chamar "Oriental" e mesmo "Japonesa", mas se a sua prisioneira achava tais epítetos insultuosos, nunca lhe deu a satisfação de exprimir a sua
contrariedade. O barulho era massacrante mas enquanto durava fazíamos, por sugestão de Aoi, as nossas necessidades quotidianas. Cada um por sua vez desviava o olhar
deitando-se voltado para a parede, enquanto o outro fazia o que tinha a fazer num dos dois baldes-latrinas que Vasco, esse carcereiro de pesadelo, providenciara
para nós; e o barulho ensurdecedor nos nossos ouvidos poupava-nos aos ruídos um do outro. (De tempos a tempos eram-nos fornecidas algumas folhas de papel pardo para
nos limparmos; essas folhas constituíam um tesouro que defendíamos como verdadeiros dragões.) A seguir lavávamo-nos usando os alguidares de alumínio e os jarros
com água que uma das "Manas Larios" nos trazia todos os dias. Durante estas visitas Felicitas e Renegada punham uma cara-de-pau e recusavam quaisquer súplicas, ignorando
protestos e insultos.
- Até onde é que vocês querem ir? - gritei eu, - até onde, por amor désse gordo maluco? Até ao assassinato? Até ao fim da linha? Ou saem do comboio antes?
Permaneciam surdas, implacáveis, indiferentes, a todas estas perguntas. Aoi Ué ensinou-me que numa situação daquelas só guardando silêncio se podia manter o indispensável
respeito por si próprio. Depois disso, deixei as mulheres de Miranda entrar e sair sem mais uma palavra.
Acabada a música, aplicávamo-nos ao trabalho: ela às escamas de tinta e eu a estas páginas. Mas, além disso, arranjámos espaço para umas horas de conversa durante
as quais, segundo combinámos, falávamos de tudo menos da nossa presente situação; e também breves "conversas de negócios" durante as quais avaliávamos as nossas
opções e falávamos em tentativas de fuga; períodos de exercício físico; e ainda tempos de solidão em que não falávamos, mas cuidávamos das nossas próprias identidades.
Esta era a maneira de nos agarrarmos à nossa qualidade humana e de não deixarmos que o encarceramento nos limitasse.
- Somos maiores que esta prisão - dizia Aoi. - Não devemos deixar-nos encolher para cabermos entre estas paredes. Não podemos tornarmo-nos os fantasmas que assombram
este horroroso castelo.
Fazíamos jogos - jogos de palavras, jogos de memória, jogos de números. E, por vezes, sem nenhuma intenção sexual, abraçávamo-nos. Por vezes ela punha-se a tremer
e a chorar e eu dei-xava-a. Mas a maior parte das vezes o que acontecia era o inverso. Porque eu sentia-me velho e gasto. As minhas dificuldades respiratórias tinham
reaparecido, piores que nunca. Não tinha trazido medicamentos, e não me forneceram nenhum. Cheio de dores, tonto, percebi que o meu corpo me estava a mandar um recado
simples e absoluto: a festa está-se a acabar.
Uma parte do dia escapava aos nossos horários. Era a visita de Miranda, quando ele inspeccionava os progressos de Aoi, levava as páginas que eu escrevera e fornecia-me
folhas brancas e lápis se necessário; e divertia-se à nossa custa de muitas e variadas maneiras. Tinha-nos dado "nomes de estimação" anunciou ele, visto sermos os
seus bichinhos de estimação, guardados no canil e acorrentados, feitos cão e cadela.
- O Mouro é o Mouro, claro; mas tu, minha querida, passas a ser a sua Ximena.
Falei a Aoi Ué da minha mãe que ela estava a ressuscitar de entre os mortos e da sequência de quadros em que outra Ximena encontrara, amara e traíra outro Mouro.
Ela contou-me:
- Sabes que amei um homem, o meu marido, Benét. Mas ele traía-me, muitas vezes, em vários países; era mais forte que ele.
Amava-me e traía-me embora continuasse a amar-me. Finalmente, fui eu que deixei de gostar dele e me fui embora: e deixei de gostar dele, não por causa das suas traições
- a isso já me habituara
- mas por causa de pequenos hábitos que sempre me tinham irritado e acabaram por esgotar o meu amor. Pequenos hábitos. O prazer com que tirava macacos do nariz.
O tempo que demorava na casa de banho enquanto eu estava na cama à espera dele. A sua recusa em me lançar um olhar e me sorrir com afecto quando estávamos em público.
Coisas triviais; ou talvez não. Que é que achas - talvez a minha traição fosse tão grande como a dele, ou pior? Não tem importância. Só quero dizer que o nosso amor,
apesar de tudo, continua a ser a coisa mais importante da minha vida. O amor vencido não deixa de ser um tesouro e os que escolhem uma vida sem amor nunca conheceram
a vitória.
Amor vencido... Ó ecos dolorosos do passado! Sobre a minha escrivaninha naquela cela da morte, o jovem Abraham Zogoiby amou a sua herdeira das espeçiarias e aliou-se
ao amor e à beleza contra as forças da fealdade e do ódio: seria isto verdade ou estaria eu a atribuir ao meu pai as palavras de Aoi? Continuava de noite a sonhar
que me esfolavam; e assim, quando relatava os pensamentos masturbatórios de Carmen da Gama, quando à minha ordem e na privacidade da sua própria imaginação ela sonhava
ser flagelada e aniquilada, o que era ela senão uma mera criatura do meu espírito? Como o são todos, não tendo meios de existir senão através das minhas palavras.
Também eu sabia alguma coisa acerca do amor vencido. Eu amara Vasco Miranda. É verdade! O homem que me queria assassinar era uma pessoa que eu em tempos amara...
mas eu sofrera uma derrota ainda maior.
Uma, Uma.
- E se a pessoa que eu amei não existisse verdadeiramente - perguntei eu a Aoi - Se ela criou uma imagem de si própria, base-ando-se nas minhas necessidades; se
ela representou artificiosamente o papel de uma pessoa a quem eu não podia resistir, o da minha amante de sonho; se ela fez tudo para que eu a amasse a fim de me
trair, se a traição fosse, não o fracasso do amor, mas o objectivo de todo aquele empreendimento, desde o início?
- Mas você amava-a - disse Aoi -, não estava a representar nenhum papel.
- Sim, mas...
- Então, mesmo assim - disse ela irrevogavelmente, - mesmo assim, não vê?
Vasco disse:
- Ouve isto, Mouro. Li no jornal que uns tipos em França inventaram uma droga maravilhosa que atrasa o processo de envelhecimento. Não é bestial? A pele fica mais
elástica, os ossos mais ossudos, todos os órgãos funcionam em pleno e o estado de saúde e a vivacidade mental dos velhos melhoram a olhos vistos. Vão começar em
breve as experiências com voluntários. É pena que já seja tarde para ti.
- Sim, sim - disse eu. - Obrigado por esses bons sentimentos.
- Vem tudo aí - disse ele, estendendo-me o recorte de jornal. - Parece o elixir da longa vida. Ena pai, que frustrado te deves sentir.
À noite apareciam as baratas. Dormíamos sobre um enxergão de palha coberto de serapilheira e assim que fazia escuro as criaturas saíam de lá, passando através de
fendas de espessura de um cabelo, como é hábito das baratas, e nós sentíamo-las a passar-nos pelo corpo como dedos sujos. Ao princípio eu tremia de nojo dos pés
à cabeça, saltava ao ar como louco e começava a bater-lhes e a calcá-las aos pés à cegas, chorando histericamente. O meu arfar de asmático misturado com os soluços
fazia hi-hó, hi-hó, como o zurrar dum burro.
- Não, não... - dizia Aoi confortando-me e embalando-me nos braços. - Não... Tens de aprender a deixar passar... Deixa passar o medo e a vergonha.
Ela, a mais requintada das mulheres, dava-me o exemplo, sem estremecer nem se queixar, mostrando uma disciplina de ferro, mesmo quando as baratas tentavam esconder-se
dentro do seu cabelo. E pouco a pouco fui aprendendo com ela.
Como minha professora, fazia-me lembrar Dilly Hormuz; quando trabalhava, recordava-me Zeenat Vakil. Era o verniz que tornava possível o seu trabalho, explicou: aquela
película finíssima que separava as duas pinturas. No cavalete estavam dois mundos diferentes separados por uma transparência invisível que permitia a separação final.
Mas nessa separação um dos mundos seria totalmente aniquilado e o outro corria um grande risco de ser danificado.
- Sim, um grande risco - disse Aoi. - Basta tremer-me a mão de medo e está tudo perdido.
Ela tinha um jeito especial para descobrir boas razões para não ter medo.
O meu mundo tinha ardido em chamas. Eu tentara saltar para fora dele mas caíra em pleno fogo. Todavia Aoi não merecia um fim destes. Tinha vagueado pelo mundo, tinha
tido o seu quinhão de dor, mas como parecia à vontade no seu desenraizamento, como parecia bem consigo própria! O que demonstrava que o eu era autónomo, afinal,
e que Popeye-o-marinheiro - tal como Jeová - é que sabia como era. Eu sou o que sou e é isso que eu sou e que se lixem as raízes. O nome de Deus passou a ser também
o nosso nome. Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou. Dizei-lhe que EU SOU me mandou ter convosco.
Ela enfrentava o seu destino, por mais injusto que fosse. E durante muito tempo conseguira esconder de Vasco o medo que sentia.
E o que é que a assustava? Eu, leitor. Era eu. Não pela minha aparência ou pelas minhas acções. O que lhe metia medo eram as minhas palavras, o que eu tinha posto
por escrito, pelo cântico que eu entoava todos os dias para salvar a vida. Ao ler o que eu escrevera antes que Vasco o arrebatasse, ao saber toda a verdade sobre
a história em que fora apanhada tão injustamente, ela estremecia. O seu horror perante o que tínhamos feito uns aos outros desde há tantos anos tornava-se ainda
maior por lhe mostrar o que éramos ainda capazes de fazer; a nós e a ela também. Nos piores momentos da história, ela escondia a cara nas mãos e abanava a cabeça.
E eu, que precisava da sua serenidade, para quem o seu autodomínio era uma bóia de salvação, ficava consternado ao sentir-me responsável por aquele descontrole nervoso.
- Então tem sido uma vida assim tão má? - perguntei eu, lamentoso, como uma criança à professora. - Tem sido verdadeiramente assim tão mau?
Comecei a ver os episódios que passavam diante dos seus olhos
- os campos de especiarias em chamas, Aurora assistindo à agonia de Epifania na Capela, o pó de talco, os negócios escuros, os crimes de morte.
- Claro que tem - disse ela com um olhar penetrante. - Todos vocês... terrível, terrível.
E, após uma pausa:
- Não poderiam todos vocês ter vivido um pouco mais calmamente?
Era essa a história da nossa vida, a nossa tragédia desempenhada por palhaços. Escrevam-na nas nossas lápides, espalhem-na aos quatro ventos. Esses Gamas! Esses
Zogoibys! Não eram capazes de viver calmamente!
Éramos como consoantes sem vogais, como rasgões informes. Se a tivéssemos tido a ela para nos orquestrar, a nossa senhora das vogais, então, talvez... Talvez noutra
vida, numa encruzilhada da estrada, se nos tivéssemos encontrado com ela seríamos todos salvos. Existe em todos nós uma luz, uma possibilidade. Começamos por aí,
mas também com o seu contraponto de escuridão, e as duas forças gastam a nossa vida a lutar uma contra a outra; se tivermos sorte, a luta acaba num empate.
Quanto a mim, nunca tive o auxílio de que precisava. Até hoje, nunca encontrei a minha Ximena.
Para o fim, Aoi foi-se afastando de mim, dizendo que não queria ler mais nada; mas continuou a ler, saturando-se cada dia com
um póuco mais de horror, um pouco mais de repugnância. Supliquei o seu perdão, disse-lhe (as minhas confusões de católico-judeu persistiam até ao fim) que precisava
que ela me desse a absolvição. Respondeu: "Isso não é o meu género. Arranja um padre." Depois disso, passou a haver entre nós uma distância.
À medida que as nossas tarefas se aproximavam do fim, o medo baixava sobre nós e escorria-nos para os olhos. Eu tinha terríveis acessos de tosse que me provocavam
vómitos e rios de lágrimas e quase me faziam desejar a morte, para assim despojar Miranda do seu triunfo final. A minha mão tremia-me no papel e Aoi também tinha
por vezes de interromper o trabalho e arrastar as suas correntes para um canto, onde ficava encolhida até se recompor. Também eu ficava horrorizado ao ver fraquejar
aquela mulher forte. Mas quando eu tentava consolá-la, naqueles últimos dias, ela sacudia a minha mão. Claro que Miranda assistia a tudo aquilo, ao fraquejar dela
e ao fim da nossa amizade; rejubilava ao ver como nos desmoronávamos e escarnecia de nós: "A execução talvez seja para hoje... Sim, sim, hoje mesmo! Não, pensando
melhor, talvez amanhã". Não gostou do que eu escrevi acerca dele e em duas ocasiões encostou o revolver à minha têmpora e premiu o gatilho. De ambas as vezes o tambor
estava vazio e os meus instintos também, felizmente; de outra forma teria com certeza acontecido uma humilhação nas minhas calças.
- Ele não vai matar-nos - repetia eu vezes sem conta. - Não vai, não, não vai.
Aoi Uè não aguentou mais.
- Claro que vai, meu canalha - gritou ela soluçando de terror e de raiva. - Ele está doido, completamente doido e não pára de se picar.
Tinha razão, claro. Este Vasco do último período tornara-se cliente da droga pesada. Vasco Miranda perdera uma agulha mas achara muitas outras. Quando viesse ter
connosco pela última vez estaria cheio de coragem em pó a correr-lhe nas veias. De repente, com um arrepio, lembrei-me da cara dele depois de ter lido o meu relato
acerca do investimento de Abraham Zogoiby no negócio dos produtos para bebé; lembrei-me do seu esgar de louco e ouvi
de novo - com um novo entendimento que me aterrorizou - a sua voz quando desceu as escadas cantando a cantiguinha publicitária do pó de talco Baby-Softo.
Claro que ia matar-nos. Imaginei-o depois, sentado entre os nossos cadáveres, tendo esgotado o ódio na violência, olhando o retrato recuperado da minha mãe: finalmente
unido com a sua amada. Esperaria com Aurora até o virem buscar. Depois, talvez se servisse da última bala de prata para si próprio.
O socorro não aparecia. Os códigos não tinham sido decifrados, Salvador Medina não suspeitava de nada e as "Manas Larios" mantinham-se leais ao seu amo. Haveria
ali uma "lealdade de pó de talco?" - pensei eu. Será que também usavam agulhas dessas?
O meu relato já ia em Benengeli, e a minha mãe, embalando o nada, olhava para mim do seu cavalete. Aoi e eu já mal nos falávamos e todos os dias esperávamos pelo
fim. Por vezes, enquanto esperava, interrogava em silêncio o retrato de minha mãe pedindo respostas para as grandes perguntas da minha vida. Perguntava-lhe se tinha
sido de facto amante de Miranda ou de Raman Fielding, ou de outro tipo qualquer; pedia-lhe uma prova do seu amor. Ela sorria, sem responder.
Por vezes observava Aoi Ué a trabalhar, aquela mulher que era ao mesmo tempo uma íntima e uma estranha. Sonhava encontrá-la mais tarde, quando tivéssemos escapado
àquele destino, em qualquer abertura duma exposição, numa cidade estrangeira. Cairíamos nos braços um dos outro ou passaríamos ao lado como se não nos conhecêssemos?
Depois daquelas noites em que tremíamos abraçados, depois das baratas, teríamos algum significado um para o outro? Ou pior: cada um recordaria ao outro o pior momento
das nossas vidas. Odiar-nos-íamos e voltaríamos as costas, furiosos.
Estou coberto de sangue. Há sangue nas minhas mãos trémulas, nas minhas roupas. As palavras que escrevo têm nódoas de sangue. Ó, a vulgaridade, a falta de subtileza,
o espalhafato que faz o sangue... Lembro-me de relatos de violência nos jornais, de inofensivos amanuenses que se revelam perigosos assassinos, cadáveres putrefactos
descobertos sob o soalho do quarto ou sob os arbustos do jardim. Lembro-me das caras dos sobreviventes, as esposas, os vizinhos, os amigos. "Ontem as nossas vidas
eram ricas e variadas" dizem eles. "E depois aconteceu aquela atrocidade; e agora somos meras coisas, actores secundários numa história que não é a nossa. Que nunca
imaginámos que pudesse ser a nossa. Fomos esmagados, triturados."
Catorze anos é uma geração; ou tempo suficiente para uma regeneração. Em catorze anos Vasco poderia ter deixado escoar a sua amargura, podia ter expurgado a terra
do seu veneno e feito novas sementeiras. Mas deixou-se atolar no passado, marinar no fel da rejeição. Ele próprio era um prisioneiro neste castelo de fantasia, a
sua maior extravagância, que o mantinha preso na ratoeira da sua própria mediocridade, na sua incapacidade de se aproximar do nível de Aurora; estava apanhado num
remoinho estridente de recordações, de memórias gritantes cujo som ia subindo cada vez mais estrídulo até começar a estilhaçar coisas: tímpanos, vidros, vidas.
Aquilo que temíamos acabou por acontecer. Esperávamos, acorrentados; e aquilo chegou. Ao meio-dia, quando ele já tinha levado a minha história para a sala dos raios
X e Aurora acabara de destruir completamente o choroso cavaleiro, apareceu ele no seu traje de Sultão com um barrete preto na cabeça, chaves penduradas à cintura
e o revólver na mão, cantarolando o slogan do pó de talco. Isto é uma nova versão de um filme de cowboys "made in" Bombaim, pensei eu. É o confronto final com o
sol a pino, com a diferença de que só um de nós está armado. Não vale a pena, Tonto. Estamos cercados.
A sua expressão era estranha, sombria.
- Por favor, não faça isso - disse Aoi. - Vai-se arrepender. Por favor.
Ele voltou-se para mim.
- Dona Ximena pede misericórdia, Mouro. - Disse ele. - Não vais salvá-la? Não vais defendê-la com a tua própria vida?
Lâminas de luz atravessaram-lhe a cara. Tinha os olhos vermelhos e tremia-lhe o braço. Eu não percebi do que ele estava a falar.
- Não estou em estado de defender ninguém - disse eu. - Mas se me soltar e pousar essa arma, pode ter a certeza que lutarei consigo em defesa das nossas vidas.
A respiração saía-me ruidosa como um zurro, forçando-me a fazer de novo figura de burro.
- Um verdadeiro Mouro - respondeu Vasco - atacaria o agressor da sua dama mesmo se isso significasse morte certa.
E levantou a arma.
- Por favor - disse Aoi, com as costas coladas à parede de pedra vermelha. - Mouro, por favor.
Em tempos, uma mulher pedira-me para morrer por ela e eu escolhera a vida. Agora, pediam-me de novo: uma mulher melhor, que eu amava menos. Como nos apegamos à vida!
Se eu me atirasse a Vasco, a vida dela prolongar-se-ia por mais um momento apenas; mas que precioso parecia ser esse momento, como parecia infinito, como ela o desejava
e como me detestava por lhe recusar aquela eternidade!
- Mouro, por amor de Deus.
Não, pensei eu. Não.
- Tarde demais - disse Vasco alegremente. - Ó Mouro falso e cobarde...
Aoi gritou e desatou a correr pela sala. Durante um momento, ficou oculta pelo quadro. Vasco disparou um tiro. Apareceu um buraco na tela, em cheio no coração de
Aurora; mas foi o peito de Aoi Ué que foi atingido. Ela caiu pesadamente agarrando-se ao cavalete; e por um instante - imaginem! - o sangue dela correu da ferida
no peito da minha mãe. Depois o retrato caiu, o canto superior direito bateu no chão e o quadro saltou vindo a ficar
virado para cima, manchado com o sangue de Aoi. Mas Aoi Uê estava caída no chão, imóvel, com a cara voltada para baixo.
O quadro estava danificado. A mulher estava morta.
Afinal tinha sido eu a ganhar aquele momento de trégua, tão longo na antecipação e tão breve visto em retrospectiva. Desviei os olhos cheios de lágrimas do vulto
caído de Aoi. Queria olhar nos olhos o meu assassino.
"Bem podes chorar como uma mulher" - disse ele - "pelo que não foste capaz de defender como um homem. "
E depois, pura e simplesmente, rebentou. Saiu dele um som, como que um borbulhar, vi-o dar um esticão, como que subitamente puxado por arames e todas as correntes
do seu sangue se soltaram para sair em catadupas pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos, pelos olhos. - Juro! - Manchas de sangue alastraram pela frente e por trás
das pantalonas de Árabe e ele caiu de joelhos, fazendo esparrinhar as poças do seu próprio sangue que continuava a jorrar. Havia sangue e mais sangue por todos os
lados, o sangue de Vasco misturava-se com o de Aoi, o sangue escorria aos meus pés, deslizava por baixo da porta e pelas escadas abaixo até pingar na sala dos raios
X para dar a notícia às radiografias de Abraham - Uma overdose, acham que sim? Uma agulha a mais no braço, fazendo o corpo mortificado rebentar por dúzias de rombos?
- Não, era uma coisa mais antiga, uma agulha mais antiga, a agulha punitiva, que fora implantada nele ainda antes que ele cometesse um só crime; ou então era a agulha
do conto de fadas, a lasca de gelo que o encontro com a Rainha da Neve, minha mãe, lhe deixara nas veias; a minha mãe que ele amara e que o fizera enlouquecer.
Ao morrer, ficou deitado sobre o retrato dela e as últimas gotas do seu sangue empaparam a tela. Também ela partira para não mais voltar sem ter falado comigo, sem
ter feito a sua confissão, sem me ter restituído aquilo de que eu mais precisava: a certeza do seu amor.
Quanto a mim, voltei à escrivaninha e escrevi o fim da história.
No cemitério a erva rude crescia alta e pontiaguda e, sentado numa pedra tumular, parece que estou a descansar sobre as pontas amarelas das ervas, como se não tivesse
peso e flutuasse, livre de obrigações, sustentado miraculosamente por um espesso maciço de lâminas hirtas. Não tenho muito tempo. Os meus momentos estão contados
de trás para diante como os anos antes de Cristo e a contagem até zero está muito avançada. Gastei o resto das minhas forças para fazer esta peregrinação, porque
quando caí em mim e me libertei das correntes usando as chaves que Vasco trazia à cintura, quando acabei o meu manuscrito para prestar a devida honra
- e desonra - aos dois que ali jaziam mortos, o objectivo último da minha vida tornou-se-me claro. Vesti o sobretudo e saí da cela; encontrei o resto do meu texto
no estúdio de Vasco e enfiei aquele grosso maço de papel nas algibeiras, juntamente com um martelo e pregos. As criadas em breve encontrariam os corpos e Medina
iria começar a procurar-me. Pois que me encontre, pensei, que ele não imagine que não quero ser encontrado. Que saiba tudo o que há para saber e que o transmita
a quem desejar. E assim deixei o meu relato pregado na paisagem, a marcar o meu rasto. Tenho evitado as estradas; apesar destes pulmões que já não me obedecem, escalei
íngremes colinas e percorri o leito seco dos riachos só devido à determinação em chegar à minha meta antes de ser encontrado. Espinhos, ramos e pedras furaram-me
a pele. Não dei atenção aos ferimentos: já que a pele me estava a abandonar, finalmente, senti-me feliz por alijar esse lastro. E assim aqui estou sentado nesta
pedra, a esta luz final, entre estas oliveiras, olhando para além do vale para um monte distante; e lá está, muito ao longe, a glória dos Mouros, a sua obra prima
triunfante e o seu último reduto. O Alhambra de Granada, o fortim vermelho da Europa, irmão do forte de Deli e do de Agra - esse palácio de formas entrelaçadas e
secreta sabedoria, de pátios deleitosos e jardins aquáticos, esse monumento a uma possibilidade perdida, e que contudo se manteve de pé muito tempo após a queda
dos seus conquistadores; como
um testamento a favor de um amor perdido, o mais doce de todos, o amor que perdura para lá da derrota, da aniquilação, do desespero; a favor do amor vencido que
é bem maior que aquilo que o venceu, daquela necessidade mais profunda do nosso ser, da nossa necessidade de voarmos juntos, de pôr fim às fronteiras, de apagar
os limites da própria identidade. Sim, eu vi tudo isso para lá duma planície oceânica, embora não me tenha sido concedido frequentar aquele nobre palácio. Vejo-o
desaparecer no crepúsculo e o seu desvanecimento traz-me lágrimas aos olhos.
No topo desta lápide há três letras quase apagadas pelo tempo; leio-as com as pontas dos dedos. R.I.P. Muito bem: descansarei e esperarei ter paz. O mundo está cheio
de gente que dorme, enquanto espera a sua hora de regressar: Artur dorme em Avalon, Barbarossa na sua gruta, Finn MacCool(*) repousa nas colinas da Irlanda e Ouroboros-a-Serpente(*
*) no fundo do mar. Os primitivos habitantes da Austrália, os Wandjinas, descansam debaixo da terra e algures, num emaranhado de espinhos, uma Bela Adormecida num
caixão de cristal espera o beijo de um príncipe. Olhem: isto é o meu cantil e eu vou beber o vinho. E depois, como um Van Winkle(***) moderno, deitar-me-ei nesta
pedra gravada, com a cabeça por baixo destas letras R.I.P., e fecharei os olhos, de acordo com o velho hábito da nossa família de adormecer quando os tempos estão
maus, esperando acordar, recuperado e alegre, em tempos melhores.
(*) Chefe lendário dos Fenianos, guerreiros irlandeses dos séculos II e III A.D. {N. T.)
(**) Serpente da mitologia egípcia que é representada mordendo a própria cauda. (N. T.)
(***) Personagem de um conto de Washington Irving (escrito em 1819) que dorme durante vinte anos. (N. T.)
Salman Rushdie
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