Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ÚLTIMO TEMPLÁRIO
Naquela manhã havia uma multidão amontoada em frente da grande catedral de Notre Dame, sobre a multidão pairava uma tensa expectativa, uma espécie de pressentimento contido, como se as pessoas soubessem que o que iam ver não era apenas mais uma humilhação pública de um criminoso.
Tratava-se de um acontecimento que até podia ser considerado como sendo mais importante do que uma execução, e parecia que o povo de Paris sabia que a ocasião iria ser recordada durante séculos uma vez que as pessoas haviam aparecido aos milhares para assistirem. Agora, toda aquela gente aguardava com uma expectativa semelhante à de uma multidão instalada à beira da fossa dos ursos e à espera que lhes atiçassem os cães.
Nunca a multidão seria tão densa se se tratasse de homens vulgares, de gatunos ou de ladrões. Os parisienses, tal como a maior parte dos habitantes das cidades do Norte, gostavam de se amontoar para assistir aos castigos impostos aos criminosos enquanto gozavam a atmosfera de Carnaval, bem como o vivo e buliçoso comércio do mercado. Contudo, aquele era um dia diferente e parecia que a cidade inteira se encontrava ali para assistir ao fim de uma Ordem que todos haviam reverenciado durante séculos.
De vez em quando, o Sol brilhava por entre as nuvens e lançava breves clarões de calor sobre as pessoas reunidas na praça. No entanto, durante a maior parte do tempo, a multidão aguardava sob um céu cinzento de chuva e carregado de pesadas nuvens. Aqueles clarões intermitentes limitavam-se a aumentar ainda mais a sensação de depressão e de melancolia, como se as súbitas explosões de luz solar troçassem dos homens e das mulheres que se agitavam lentamente de um lado para o outro, pondo em destaque o ambiente lúgubre que os rodeava. Contudo, por outro lado, quando o Sol espreitava por trás da sua cobertura e dava brilho à área, também punha em relevo as cores das roupas e dos estandartes, afastando momentaneamente a frieza daquele dia de Março e dava a toda a área uma aura de alegria estival, como se os homens e as mulheres estivessem ali para uma feira e não para a destruição de milhares de vidas. Era como se o Sol pretendesse depreciar a gravidade dos motivos que tinham dado origem ao ajuntamento e tentasse aligeirar os espíritos de toda aquela gente com o seu calor dador de vida.
Todavia, pouco depois, o Sol voltava novamente a ocultar-se por trás das nuvens, tal como um homem a espreitar em busca de um qualquer perigo antes de voltar a esconder-se no seu abrigo, como se também ele se encontrasse demasiado nervoso e receoso quanto às possíveis consequências daquele dia. Para o homem alto e trigueiro que permanecia encostado contra a parede da catedral, tanto aquelas nuvens escuras como os súbitos clarões de luz serviam apenas para aumentar ainda mais a sua sensação de irrealidade e de abatimento.
Era um homem seco de carnes e elegante, com um ar arrogante, mas que no entanto parecia curiosamente contido no meio das pessoas vulgares que se encontravam à sua volta, como se não estivesse habituado à companhia daqueles homens e mulheres. Tinha um corpo volumoso oculto sob o manto e poderia parecer-se com um daqueles cavaleiros itinerantes tão vulgares na altura mas que, tendo perdido o seu senhor, deixara de possuir rendimentos ou uma razão para a sua existência. Não envergava um traje de batalha nem o uniforme de um grande senhor, com uma orgulhosa insígnia bem à vista, mas sim uma túnica gasta e suja por baixo de um manto de lã cinzenta. Para além disso, parecia ter passado muitos dias e noites sobre a sela ou a dormir nos descampados. Porém, a sua mão nunca permanecia muito longe do punho da espada e estava sempre pronta para o agarrar, como se esperasse um ataque de um momento para o outro e se encontrasse constantemente alerta, embora os olhos raramente pousassem nas pessoas que o rodeavam. Era quase como se soubesse que nenhum dos homens que se encontravam por perto constituía uma ameaça e se sentisse suficientemente a salvo dos humanos. Conservava os olhos sempre fixos na plataforma improvisada erguida ao lado da parede da catedral, como se essa construção em madeira simbolizasse, por si só, todas as ameaças.
Tudo começara há muito, muito tempo, mas no entanto ainda se conseguia recordar do dia em que o inimaginável acontecera: fora na sexta-feira, 13 de Outubro do ano de 1307. Era uma data que sabia que nunca iria esquecer, uma data inventada pelo próprio diabo! Oh, tivera muita sorte, encontra-se fora do Templo com três companheiros, de visita ao navio que se encontrava na costa, pelo que escapara às prisões que tinham apanhado tantos dos membros da sua Ordem. Nem sequer ouvira falar nesses acontecimentos até já estar de regresso a Paris, na altura em que, nos arredores de uma pequena aldeola, fora avisado para não prosseguir viagem porque, se regressasse à capital, também seria preso e interrogado pela Inquisição.
Fora uma mulher quem o avisara a respeito dos crimes que estavam a ser cometidos contra a sua Ordem. O grupo, que o incluíra a ele, aos amigos e aos respectivos escudeiros, detivera-se numa das bermas da estrada para comer quando a mulher os avistara. Era pequena, tinha um rosto cor de cinza e parecera-lhe uma pessoa bem-nascida por causa das roupagens ricas - embora sujas e manchadas pela viagem - e encontrava-se incluída no grupo de seis outras que rodeavam o carro de bois que passara por eles. Tinham passado junto ao tranquilo grupo de cavaleiros e a mulher exibira um aspecto desesperançado e de profunda infelicidade enquanto seguia ao lado do carro com a cabeça baixa, a tropeçar de dor e de tristeza. Todavia, levantara a cabeça, tivera um relance do grupo através das lágrimas e sobressaltara-se ao ver os cavaleiros barbudos sentados à beira da estrada, com os elmos tirados. Inicialmente parecera invadida por uma espécie de esperança louca e ficara de boca aberta, com os olhos a saltitarem rapidamente de um para outro daqueles homens que comiam tranquilamente, para logo de seguida correr para eles com o optimismo a dar lugar ao desgosto, chorando ruidosamente e ignorando os gritos das companheiras.
Começara a chamá-los ainda antes de se aproximar mais do que alguns passos, e fizera-o com uma voz quebrada e uma fala balbuciante que provocara o espanto dos cavaleiros e os levara a interromper a refeição e a perguntarem a si mesmos se seria uma louca. Tinham dado ouvidos às suas tiradas chorosas... e as palavras da mulher haviam-nos atingido com a forma de um golpe de maça. O filho também era Templário, dissera-lhes, e que pretendia ajudá-los e protegê-los. Precisavam de evitar a capital e fugir para um lugar seguro, para a Alemanha ou Inglaterra, para qualquer lado excepto Paris. Não estariam a salvo em Paris, e talvez até em nenhum lugar de França. Os cavaleiros tinham-se mantido sentados, surpreendidos, e a mulher falara com o frágil corpo abalado pelos soluços, por causa de um filho que sabia que estava a ser torturado e que provavelmente não voltaria a ver, excepto talvez na fogueira.
Inicialmente, os cavaleiros nem sequer haviam acreditado. Todos os irmãos do Templo... presos? Porquê? A mulher não fora capaz de o explicar. Não fazia a mínima ideia. Sabia apenas que os membros da Ordem haviam sido presos e que os cavaleiros estavam a ser interrogados pela Inquisição. Pasmados, os cavaleiros tinham-na visto a arrastar-se para junto das viajantes que rodeavam o carro, ainda a gritar-lhes avisos e a implorar-lhes que se salvassem enquanto os pacientes bois puxavam a carroça e as pessoas a seguiam tão tranquila e lentamente como num cortejo. Profundamente perturbados, os homens tinham tido em conta aqueles conselhos ameaçadores e seguido lentamente o seu caminho, mas já não para Paris. Haviam-se dirigido para oeste, para o ducado de Guyenne. Fora ali, no acampamento montado com outro pequeno grupo de Templários encontrados na estrada, que tinham começado a ouvir relatos dos acontecimentos.
Ainda parecia inconcebível que o Papa Clemente pudesse acreditar nas histórias propagadas contra eles, mas o Papa estava aparentemente a apoiar a campanha de Filipe, o monarca francês, e nada fizera para salvar a Ordem que existia apenas para o servir, a ele e à cristandade. Essas histórias haviam irrompido como uma onda de maré, esmagando todos os argumentos e não dando qualquer possibilidade de defesa, isto porque negar as acusações servia apenas para lançar todo o peso da Inquisição sobre quem o fizesse, o que só podia significar uma coisa, a destruição.
Ao princípio tudo aquilo parecera ridículo. Os cavaleiros eram acusados de serem heréticos... mas como poderiam eles ser heréticos depois de terem perdido tantas vidas na defesa dos estados cristãos? Toda a sua razão de existência era a defesa dos estados dos Cruzados no ultramar, na Palestina, uma causa por que tinham lutado e morrido ao longo de séculos, com muitos deles a preferir a morte à vida quando a escolha lhes era proposta. Escolhiam a morte mesmo quando eram apanhados pelos Sarracenos e estes lhes davam a possibilidade de continuarem vivos em troca da renúncia a Cristo. Como era possível haver alguém capaz de acreditar que fossem heréticos?
Correra o rumor de que até as pessoas vulgares tinham tido dificuldades para acreditar numa coisa daquelas. Ao longo de dois séculos - desde que São Bernardo lhe dera o seu apoio durante a cruzada - as pessoas haviam sido ensinadas de que a Ordem era inultrapassável na sua santidade. Como era possível que tivessem caído tão baixo? Quando enviara ordens para a captura e prisão dos cavaleiros, o monarca vira-se forçado a explicar por que razão empreendia uma tal acção. Era óbvio que pressentia que, se não o fizesse, as ordens poderiam acabar por não ser cumpridas. No Fim de contas, as acusações eram tão chocantes que se tornavam quase inacreditáveis. O monarca entregara uma declaração escrita a cada um dos oficiais encarregues da captura, declaração em que acusara os cavaleiros e a sua Ordem de crimes desumanos e diabólicos, ordenando que fossem presos, bem como os respectivos servos, para serem interrogados pela Inquisição. Para além disso, todos os seus bens deveriam ser apreendidos. Nas últimas horas daquela sexta-feira já todos os cavaleiros haviam sido acorrentados e já os monges Dominicanos da Inquisição tinham iniciado os interrogatórios.
Poderiam ser culpados de tais crimes? De certeza que tal não era possível! Como podia a mais santa de todas as Ordens tornar-se tão amoral, tão maléfica? As pessoas não conseguiam acreditar. Todavia, a descrença transformara-se em horror quando as confissões começaram a transpirar para o exterior. Depois das torturas inimagináveis que a Inquisição lhes infligira, depois de centenas deles terem sofrido as agonias de semanas inteiras de dores ininterruptas e de muitos terem morrido, as confissões tinham começado a ressoar nas orelhas da populaça como fezes a escorrerem de uma fossa para irem poluir um poço de águas limpas. A seguir, tal como é costume com esse tipo de sujidade, os boatos tinham contaminado todos aqueles em que haviam tocado... e a culpa fora confirmada.
Contudo, depois de verem os camaradas a perderem pés e mãos na angústia contínua das câmaras de tortura, quem duvidaria que acabariam por confessar fosse o que fosse para porem fim à dor e ao horror?
A tortura durava dias e semanas intermináveis e as dores eram incessantes nas celas de tortura criadas nos seus próprios edifícios porque não existiam prisões suficientes para albergarem um tão grande número de prisioneiros.
Confessaram tudo o que os Dominicanos lhes puseram na frente. Admitiram terem renunciado a Cristo. Admitiram a adoração do diabo.
Admitiram que tinham cuspido na cruz, a homossexUalidade e tudo o mais que pudesse pôr Fim aos tormentos. Todavia, isso não lhes chegara... e os monges Dominicanos haviam passado para toda uma série de novas perguntas. Tinham tantas acusações para confirmar que as torturas prosseguiram durante semanas. Foram muitos os indivíduos que confessaram crimes inacreditáveis, mas isso continuou a não ser suficiente. Só permitia que o monarca punisse indivíduos... e ele queria a morte da própria Ordem. Por isso, as torturas continuaram.
Gradualmente, devagar, sob os contínuos e pacientes interrogatórios dos monges Dominicanos, as admissões modificaram-se e as declarações começaram a implicar a própria Ordem. Os Cavaleiros passavam por rituais satânicos de iniciação, tinham-lhes dito para adorarem ídolos e haviam sido forçados a renunciarem a Cristo. Agora, finalmente, Filipe possuía as suas provas. Toda a Ordem era culpada e tinha de ser dissolvida.
Na praça, os olhos do homem eram ardentes e aguçados agora que os recordava os amigos, os homens que treinara e ao lado de quem combatera, homens fortes e corajosos cujo único crime - e ele sabia-o - fora terem permanecido leais à causa. Tinham sido tantos os mortos, tantos os destruídos por uma dor muito pior do que tudo o que os seus inimigos sarracenos jamais lhes tinham infligido...
Todos se tinham alistado na Ordem prestando os três votos, de pobreza, castidade e obediência, tal como em qualquer outra ordem de monges. Sim, porque eles eram monges. Eram os monges-guerreiros, dedicados à protecção dos peregrinos na Terra Santa. Contudo, desde a perda de Acre e da queda do reino do Ultramar na Palestina - havia mais de 20 anos - as pessoas tinham-se esquecido disso. Tinham esquecido a dedicação desinteressada e os sacrifícios, as enormes perdas e os perigos que os cavaleiros haviam sofrido nas suas lutas contra as hordas Sarracenas. Já só se recordavam das histórias sobre a culpabilidade da maior de todas as Ordens, histórias postas a circular por um monarca avarento que desejava apoderar-se das suas riquezas. Era por isso que aquela multidão se encontrava ali, para testemunhar a humilhação final, a última indignidade. Estava ali para ver o último Grande Mestre da Ordem a admitir as culpas e a confessar os crimes, tanto dele como da sua Ordem.
Uma lágrima, que era como a primeira gota a assinalar a aproximação de uma tempestade, correu lentamente pela face do homem, que a limpou com um gesto rápido e zangado. Não era o momento oportuno para lágrimas. Não estava ali para lamentar a perda da Ordem. Isso podia ficar para mais tarde. Estava ali para assistir tanto por ele como pelos amigos, para testemunhar a confissão do Grão-Mestre e descobrir se todos haviam sido traídos.
Ao terem conhecimento de que aquele espectáculo público iria ter lugar, ele e os amigos haviam discutido o assunto prolongadamente durante um encontro realizado três dias antes. Os sete, homens de diferentes países, os poucos que restavam, os poucos que não tinham ido para mosteiros ou entrado para uma das outras ordens, tinham-se sentido confusos e desesperados por causa daquele inferno na Terra. Teriam realmente existido tais crimes, tais obscenidades? Se o Grão-Mestre confessasse, então isso significava que tudo o que haviam defendido estava errado? A Ordem poderia ser corrupta sem que o soubessem. Parecia-lhes impossível. Contudo, seria igualmente incrível se nada daquilo fosse verdade, pois implicaria uma conivência entre o monarca e o Papa para a destruição da Ordem. Seria possível que a Ordem pudesse ser tão atraiçoada precisamente pelos seus dois principais patronos? A sua única esperança estava na possibilidade de uma retractação, numa admissão de erro, e também na hipótese da Ordem vir a ser considerada inocente e reconduzida à sua posição de honrosos serviços ao Papa.
Os sete haviam discutido as opções e tinham concordado com o alemão de Metz, que propusera o envio de um deles a testemunhar o acontecimento para depois os informar. Não podiam confiar nos relatos de outros. Precisavam de ter alguém presente, uma pessoa que pudesse ouvir as declarações para lhes contar o que fora dito, para que pudessem decidir por si mesmos se as acusações eram ou não verdadeiras. O homem que se encontrava encostado à parede da catedral fora o que tirara a palhinha mais curta.
Todavia, ainda continuava mistificado, incapaz de compreender o que se passava, e não tinha a certeza de conseguir dedicar ao assunto toda a concentração necessária. Sentia-se perturbado, porque era inacreditável, era impossível que a Ordem em que servira fosse tão horrivelmente perversa. Como era possível que o dedicado grupo de cavaleiros que conhecera, e de que ainda se recordava, pudesse ser tão deformado, tão envilecido? Tinham entrado na Ordem para poderem prestar um melhor serviço a Deus, mais como soldados do que como monges. Quando um Templário decidia abandonar a Ordem, só o fazia para passar para uma outra ainda mais estrita, para os Beneditinos, para os Franciscanos, ou para qualquer outro grupo de monges a viver na mesma pobreza forçada, escondidos do mundo. Como era possível que a Ordem houvesse sido tão grandemente atraiçoada?
Limpou outra lágrima e caminhou por entre a multidão, apático, com o rosto fechado a revelar o medo e as preocupações. Espreitou para as bancas do mercado durante alguns minutos sem na realidade prestar atenção às mercadorias, até descobrir que o seu pequeno passeio sem destino o levara de volta à plataforma, onde se virou para a enfrentar de uma maneira mais frontal, como que a desafiá-la a permitir a destruição da Ordem.
Erguia-se na sua frente como um patíbulo, uma grande construção de madeira com troncos novos que brilhavam um pouco quando o Sol os iluminava. De um dos lados existia uma série de degraus que conduziam ao estrado, lá em cima. Enquanto o olhava, o conjunto como que estremeceu. Conseguia sentir o mal quase como uma força, mas não era o mal da sua Ordem, mas sim o daquele feio palco onde ele e os seus amigos iriam ser denunciados. Agora, sem saber muito bem como, tinha a sensação de que era inútil alimentar esperanças. Não haveria reconciliação, nenhum reatamento das glórias passadas. Essa sensação invadiu-o, e era como se anteriormente ainda não estivesse verdadeiramente consciente das profundezas em que a Ordem caíra, como se nos últimos e difíceis anos tivesse mantido um pequeno clarão de esperança de que a Ordem pudesse ser salva. Mas agora, ali, naquele lugar, era como se essa minúscula chama tivesse morrido e sentisse o desespero como se fosse a dor de uma ferida de espada no seu ventre.
A plataforma atraía a sua atenção horrorizada. Erguia-se na sua frente como um símbolo do falhanço absoluto do Templo, obstinada e impassível, como se troçasse da natureza transcendente da honra da Ordem quando comparada com o seu próprio poder para a destruir. Aquilo não era um lugar de confissão, era um de execução, era o local onde a sua Ordem ia morrer. Tudo aquilo que ele e os milhares de outros cavaleiros tinham defendido ia finalmente morrer ali, naquele dia. Quando a compreensão desse facto o invadiu foi como se o atingisse fisicamente, fazendo-o estremecer como se tivesse aparado um golpe. Não havia protecção, não havia defesa contra a implacável maré de acusações que os iria destruir a todos. Era inevitável e o resultado ia ser a destruição absoluta do Templo.
Porém, mesmo enquanto o compreendia, mesmo enquanto se apercebia da chegada do fim, um fim que era uma certeza, também sentia a esperança a debater-se novamente dentro do seu peito, tentando libertar-se dos grilhões do desespero que o envolviam com tanta rigidez.
Estava tão emerso na sua própria infelicidade que ao princípio nem sequer deu pela alteração nos ruídos da multidão. Ouviram-se gritos entre a populaça quando os condenados apareceram, gritos que foram imediatamente seguidos por troças, mas tudo isso esmoreceu e morreu como se as pessoas ali em volta reconhecessem as terríveis implicações da ocasião. A calma foi crescendo até ao momento em que a praça ficou quase silenciosa, com a multidão de pé e à espera dos homens que avançavam para desempenharem os papéis principais naquele triste drama. Ainda não se encontravam completamente à vista das testemunhas, ainda não tinham chegado à plataforma mas o homem percebia que se aproximavam por causa do modo como as pessoas junto à plataforma se começaram a agitar, empurrando-se e acotovelando-se para conseguirem ver melhor. Entretanto havia mais gente a chegar à praça, pessoas que tentavam abrir caminho até à frente, atraídas pelo súbito silêncio e pelo aumento da agitação. Descobriu-se a ter de controlar a fúria, a ter de acalmar a ira despertada pelo facto daqueles homens e mulheres comuns o estarem a empurrar, a ele, um cavaleiro, mas pouco depois já a visão que surgiu na sua frente o fez esquecer-se das pessoas que o rodeavam.
Conseguia distinguir, com alguma dificuldade e por cima das cabeças da multidão, as quatro figuras que eram conduzidas e empurradas para o alto da plataforma. A seguir - no meio de um súbito e quase tangível aumento da tensão da multidão - ficou a olhar e sentiu uma vaga de optimismo a aliviar-lhe o espírito. Todos eles envergavam os seus mantos! Era a primeira vez, nos longos anos decorridos desde aquele dia 13 de Outubro de 1307, que via homens vestidos com os uniformes de Templários. Poderia aquilo querer dizer que iriam ser reintegrados? Inclinou-se para a frente num impulso de esperança renovada, com a boca aberta enquanto se esforçava por lhe ver os rostos e com o desesperado desejo de uma recuperação da Ordem a contrair-lhe as feições. Um desejo que era quase como uma dor requintada.
Contudo, logo a seguir, até esse sonho lhe foi arrancado, deixando-o num abatimento que o fez sentir-se vazio e quebrado. A breve animação do seu espírito desapareceu imediatamente logo que espreitou por cima das cabeças das pessoas à sua frente e teve de controlar o grito que se debateu para se lhe libertar da garganta. Era óbvio que aqueles homens estavam vestidos com os trajes de Templários apenas para serem mais facilmente identificados porque, quando os empurraram para a frente e os obrigaram a parar, com os olhos sem brilho a fitarem a multidão, viu-lhes as pesadas algemas e correntes que os prendiam. Não iria haver uma reinstalação.
Sentiu-se a encolher-se, a esconder-se por trás das pessoas como se quisesse enfiar-se pelo chão enquanto a mão limpava os olhos para impedir que as quentes lágrimas se soltassem, juntamente com a angústia e a desolação. Simultaneamente, baixou a cabeça como se estivesse a rezar, escondendo-a da vista dos homens na plataforma porque não queria captar os seus olhares de modo a poder ser associado com eles e vir a sofrer o mesmo tipo de destruição. Não queria ver-lhes o desespero nos olhos, o medo e o autodesprezo. Iria recordá-los - queria recordá-los - como sendo os homens fortes que respeitara como guerreiros e não tal como eram agora.
Não passavam de destroços. Estavam ali, tremendo de medo e de apreensão enquanto vigiavam as multidões que se apertavam para testemunhar a sua queda. As glórias do passado haviam desaparecido. Jacques de Molay, o Grão-Mestre, mantinha-se um pouco à frente dos outros, parecendo de algum modo pequeno e insignificante no grande manto branco que pendia, informe, dos seus ombros, fazendo com que parecesse envergar uma mortalha. Tinha mais de 70 anos e a idade notava-se enquanto ali permanecia, com o rosto cor de cinza, dobrado e a oscilar sob o peso das cadeias, observando as pessoas na praça em silêncio e parecendo simultaneamente nervoso e frágil.
O homem no meio da multidão observou-o, horrorizado com as diferenças no seu aspecto. Sete anos antes, quando vira Molay pela última vez, deparara com um homem forte e vibrante, seguro do seu poder e autoridade como líder de um dos mais fortes exércitos da Cristandade, responsável perante ninguém excepto o Papa. Passara meses a redigir um novo relatório para o Papa e estava convicto de que a Terra Santa poderia ser recuperada com uma nova cruzada. O relatório indicara como seria possível reconquistá-la e mantê-la permanentemente em segurança. Confiara na sua habilidade para persuadir o pontífice a começar a planear a cruzada, e fora por isso mesmo que começara a aprontar os seus soldados, organizando-os e treinando-os, reforçando as estritas Regras da Ordem de modo a que todos obedecessem às linhas de conduta originais. Agora, estava completamente desfeito.
Parecia um velho cansado, encolhido e ressequido pela dor de ver a sua Ordem arruinada, pela sua incapacidade para a defender e por sentir o falhanço de tudo o que procurara alcançar. Em 1307 fora o dirigente supremo da mais antiga e maior ordem militar, podendo comandar milhares de cavaleiros e de soldados a pé sem necessidade de prestar contas a nenhum senhor ou rei, mas apenas ao Papa. Agora, desprovido do seu posto e da autoridade, parecia apenas velho e cansado, como se já tivesse visto demasiado e se encontrasse pronto para a morte. Desistia... e já nada lhe restava que lhe desse uma razão para viver.
No meio da multidão, o observador silencioso puxou o capuz mais para cima da testa, pestanejando e contraindo o rosto para deter as lágrimas que ameaçavam sulcar a sujidade que lhe cobria as faces. Agora, já tinha a certeza de que tudo terminara. Se podiam fazer uma coisa daquelas a Jacques de Molay, então a Ordem chegara ao fim. Retirou-se para o isolamento relativo do interior do seu manto quando a depressão o invadiu, de modo a bloquear todos os sons das proclamações... e para poder esconder-se da humilhação final da sua Ordem e da sua vida.
Distraído, sem prestar atenção aos rituais que tinham lugar na plataforma, virou-se lentamente e começou a abrir caminho por entre a multidão. Vira o suficiente. Não aguentava mais. Só queria ir-se embora dali e abandonar aquela cena de horror, como se pudesse deixar o desespero e a tristeza para trás das costas, naquela maldita praça.
Tinha dificuldades para se mover. A multidão era demasiado espessa, com pessoas ainda a debaterem-se para se chegarem mais para a frente a fim de poderem ver os homens sobre a plataforma. Era como se estivesse a fazer força contra uma maré e precisou de uma era para conseguir avançar apenas alguns metros. Esforçava-se desesperadamente, procurava rodear as pessoas para se escapar dali, empurrava homens e mulheres que não o deixavam passar, até ao momento em que se descobriu na frente de um homem volumoso e trigueiro que não quis afastar-se e permaneceu enraizado no local, olhando-o com fúria. Então, quando tentava dar a volta ao homem, ouviu a voz de Molay. Chocado, reconheceu subitamente que não se tratava de uma voz fraca e trémula tal como esperara, mas sim poderosa e forte como se o Grão-Mestre tivesse descoberto uma oculta reserva de forças.
Surpreendido, parou, deu meia volta e virou-se novamente para a plataforma a fim de o escutar.
- ... perante Deus no Céu, perante Jesus, o seu Filho, e todos os que se encontram aqui, na Terra, confesso que sou culpado. Sou culpado do maior dos logros, um logro que pôs em causa a honra e a confiança dos meus cavaleiros e da minha Ordem. Confessei crimes que sei que nunca aconteceram... e tudo por minha causa. Confessei para me salvar, por medo à tortura. A minha fraqueza foi o meu crime, e conduziu à traição da minha gente. Declaro que os crimes atribuídos à minha Ordem são falsos. Confesso a honestidade, a pureza e a sagrada santidade dos homens do Templo. Nego completamente todos os crimes atribuídos à Ordem. Morrerei por isto. Morrerei para confirmar a inocência dos homens já mortos, dos homens assassinados pelos inquisidores... Contudo, agora, pelo menos, poderei morrer com honra, com...
Jacques de Molay parecia ter crescido. Mantinha-se, sólido e forte, na frente da plataforma, mesmo junto ao parapeito, com a cabeça bem erguida enquanto injuriava com orgulho os seus acusadores e declarava a inocência tanto dele como da Ordem numa voz firme que se propagava por cima da multidão imóvel, mergulhada num silêncio chocado. Porém, muito em breve, o homem que se encontrava no meio da multidão começou a ganhar consciência dos murmúrios zangados que soavam à sua volta mas que lhe chegavam como que vindos de uma grande distância. Aquilo não era o que a populaça esperara. Tinham-lhes dito que os Templários iriam ali para confessarem, para admitirem os crimes pelos quais haviam sido condenados. Se aquele homem os negava a todos, então por que haviam sido tão brutalmente punidos? Um soldado puxou Molay para trás, para a traseira da plataforma, e houve um outro Templário que avançou. Foi no meio da visível confusão dos soldados e monges à sua volta que fez a sua própria denúncia, rejeitando as acusações contra a Ordem com tons orgulhosos e ressonantes.
Na multidão, o homem ouvia o rugido zangado das pessoas que se encontravam à sua volta e tinha os olhos a brilharem de orgulho perante as retracções dos seus líderes. Mesmo depois de anos de sofrimento, a sua honra e a da Ordem haviam sido confirmadas. Os boatos malignos eram falsidades e agora já o sabia. Então, quem poderia ter posto de pé aquelas acusações? Devagar, os seus sentimentos deram lugar à ira, uma ira pura e crua enquanto pensava nos homens que poderiam ter causado aquilo, que haviam provocado tanta dor e angústia... e endireitou os ombros sob o manto, sob o efeito de uma nova resolução.
A multidão estava furiosa. Tinham-lhes dito que os Templários eram diabólicos, homens malignos que haviam cometido grandes crimes contra a Cristandade... e no entanto estavam ali dois dos mais importantes Templários a negarem as suas culpas. Eram as declarações de homens que iriam morrer por aquilo que afirmavam... e por isso mesmo era preciso acreditar no que diziam. Todavia, se o que afirmavam era verdade, então os crimes cometidos contra eles tinham sido de uma escala inimaginável. As pessoas, na sua ira, empurravam-se e apegavam-se umas às outras, tentando chegar-se mais para a frente, gritando e praguejando para os soldados e monges, que retiraram apressadamente os homens de cima da plataforma e os levaram dali, deixando o homem sozinho no meio da multidão, como uma rocha largada na praia depois da descida da maré.
Ficou quieto, com os olhos a arderem das lágrimas não derramadas, sentindo a tristeza e a dor, mas também o orgulho e a raiva. Agora não tinha dúvidas. Dissessem o que dissessem a respeito da Ordem, sabia que as acusações eram falsas. Se eram falsas, tinha de haver um responsável. A sua vida tinha uma nova finalidade: descobrir os homens que haviam causado aquela injustiça e conseguir a vingança. A Ordem estava inocente. Não podia duvidar da convicção que soara naquelas duas vozes. Lentamente, virou-se e caminhou de volta à estalagem onde deixara o cavalo.
Simon Puttock sentia-se alvoroçado, mas não sem uma certa trepidação. Seguia os meandros da estrada entre Tiverton e Crediton, deixava que o cavalo o conduzisse a passo lento e aproveitava para pensar na sua nova posição.
Havia já muitos anos que trabalhava para os Courtenay - tal como sucedera com o seu pai antes dele -, e supunha que deveria ter estado à espera de uma promoção, mas não estivera. Esta fora um choque súbito e completamente inesperado. Não teria ficado mais surpreendido se lhe tivessem dito que ia ser preso por roubo. Esperara, como era natural, que os senhores estivessem satisfeitos com o seu trabalho ao longo dos anos, mas nunca sonhara que viessem a colocar um castelo sob o seu comando, em particular um tão importante como o de Lydford. Por isso, de vez em quando, a sua expressão séria rasgava-se num sorriso rápido quando a alegria explodia momentaneamente e lhe interrompia as meditações.
Os Courtenays, os senhores do Devon e da Cornualha, tinham podido confiar na família de Simon durante décadas. Peter, o pai de Simon, fora o senescal do castelo de Oakhampton durante 20 anos e até à data da sua morte, que ocorrera dois anos antes. Tratara cuidadosamente das propriedades e mantivera a paz durante as longas e regulares ausências da família Courtenay sempre que esta visitava as terras que possuía mais para o norte. Anteriormente, o pai de Peter fora o camareiro da família e lutara lealmente ao lado do amo durante os tempos perturbados que haviam precedido a subida do Rei Eduardo ao trono. Por isso, Simon tinha imenso orgulho na associação e nos honrosos serviços que os seus antepassados haviam prestado àquela antiga família.
Contudo, apesar de se encontrarem há tanto tempo ao serviço da família Courtenay, a honra de terem colocado o castelo de Lydford sob os seus cuidados continuava a ser uma delícia inesperada... e uma oportunidade assustadora. Se desempenhasse o cargo com êxito e as terras fossem rentáveis, então poderia vir a ficar rico e transformar-se-ia num homem de poder e influência por direito próprio. Claro que, como almoxarife do castelo, também seria responsável por quaisquer falhas, por uma diminuição no rendimento dos impostos, por uma menor produtividade das terras do domínio, por tudo. Agora, de regresso para junto da esposa, organizava os pensamentos e procurava o melhor enquadramento para lhe explicar as possibilidades e opções do seu novo papel. Sendo um realístico, sentira não apenas orgulho ante o reconhecimento que lhe havia sido oferecido, mas também ficara consciente da assustadora imensidade da tarefa que lhe fora confiada.
Sabia que as coisas corriam progressivamente pior desde que os Escoceses tinham derrotado o exército inglês em Bannockburn, dois anos antes. Não se tratava apenas dos ataques contínuos aos condados do norte por parte dos Escoceses, ou da sua invasão da Irlanda, como por vezes até parecia que o próprio Deus se zangara com toda a Europa e a estava a castigar. Havia dois anos que todo o país definhava e sofria sob as piores chuvas jamais testemunhadas. No ano anterior, 1315, até nem fora muito mau ali, no Oeste distante, e a população quase não notara a falta de bens essenciais. Contudo, nos finais do Outono de 1316 a chuva voltara a ser constante e arruinara as colheitas pelo segundo ano consecutivo. Nalguns outros condados as pessoas tinham ficado reduzidas a comerem os cavalos e cães numa vã busca de subsistência, embora as coisas não fossem tão más em Devon. Isso significava que iria ter muito que planear e Simon pretendia, no seu novo trabalho como almoxarife de Lydford, fazer tudo o que pudesse para ajudar as pessoas que se encontravam sob a sua responsabilidade.
Ia perdido nos seus pensamentos e seguia de cenho carregado enquanto cavalgava. Era um homem alto e musculoso, com um corpo bem afinado pelas cavalgadas e pela caça, e que se encontrava no seu melhor agora que tinha quase 30 anos. A cabeleira era espessa e de um castanho-escuro uniforme, sem cabelos cinzentos ou brancos a mancharem o ar juvenil que escondia tão bem a sua verdadeira idade. Para além disso tinha a pele avermelhada pelos dias passados na sela, ao ar livre. Felizmente, os seus exercícios tinham evitado a concentração de gordura suspensa em pesadas dobras sob o queixo do pai, de que se recordava muito bem e que o fizera tão parecido com um dos seus próprios mastins. No entanto, já conseguia sentir o começo de um espessamento em volta da cintura por causa da pesada cerveja de que a sua casa tanto se orgulhava.
O rosto queimado pelo sol e pelos ventos exibia uns olhos cinzentos-escuros que observavam o mundo com uma confiança calma. Tivera a felicidade de crescer perto de Crediton e ter sido ensinado a ler e a escrever pelos amigos do pai, na igreja, um facto que sem dúvida iria fazer dele uma personagem única no mundo dos almoxarifes do distrito, e sentia-se confiante de ser inteiramente capaz de assumir as responsabilidades que lhe haviam sido confiadas.
Olhou para o céu e verificou que já começava a escurecer, agora que o Sol mergulhara lentamente no horizonte ocidental. Lançou uma olhadela ao servo, que se arrastava atrás dele no velho cavalo de trabalho.
- Hugh... - chamou, pousando a mão na anca do cavalo quando se torceu na sela para se virar para trás - creio que devemos parar em Bickleigh para a noite, se nos permitirem que o façamos. Já fará demasiado escuro antes de conseguirmos chegar a casa, em Sandford.
O servo, um homem magro e moroso, de cabelos escuros e feições aguçadas como as de um furão, devolveu-lhe o olhar. Tinha o comportamento de um prisioneiro que estivesse a ser conduzido para o patíbulo e a quem tivessem interrogado a respeito do tempo. Ficara zangado por lhe terem interrompido os pensamentos e desconfiado dos motivos para o comentário.
Contudo, ficou satisfeito ao verificar que a frase não fora feita com intenções maliciosas e grunhiu um assentimento enquanto oscilava na sela. Não tinha qualquer vontade de continuar a cavalgar naquela noite e Bickleigh era bem conhecida pela sua reserva de vinho e cerveja pelo que, tanto quanto lhe dizia respeito, seria um bom sítio para descansar.
O almoxarife sorriu para si mesmo. Embora Hugh já tivesse viajado muito com o seu amo nos cinco anos decorridos desde que ocupara aquela posição, nunca conseguira sentir-se à-vontade num cavalo. Pertencia a uma família de agricultores perto de Drewsteignton, onde mantinham um pequeno rebanho de ovelhas, e nunca montara a cavalo antes de começar a trabalhar para Simon. Mesmo agora, depois de um grande número de lições individuais, ainda se sentava de uma maneira demasiado solta e irradiava desconforto enquanto permitia que o cavalo seguisse a passo transportando-o sobre o dorso.
Uma vez, Simon perguntara-lhe por que sentia tão-pouco à-vontade com os cavalos, Em parte por se preocupar mas também por causa de um certo grau de frustração, uma vez que a lentidão do seu servo o atrasava sempre que tinha de viajar para longe.
Hugh olhara agressivamente para o chão e levara algum tempo para responder. No entanto, acabara por o fazer numa voz baixa e murmurante.
- É por causa da distância. É disso que não gosto.
- A distância? Que queres dizer? - perguntara-lhe Simon, confundido com aquela resposta taciturna. - Se isso é tudo o que te preocupa, então deverias andar mais depressa para conseguirmos lá chegar mais rapidamente.
- Não me referia a essa distância. Estava a falar da distância... para baixo, para o chão - respondera Hugh, fitando os sapatos com um olhar truculento. Simon ficara a olhá-lo por instantes antes de rebentar em gargalhadas.
Simon recordou o episódio e sorriu para si mesmo quando voltou a virar-se na sela para olhar para a estrada que tinha pela frente. Naquele local a estrada seguia ao longo do rio Exe e acompanhava os meandros das águas turbulentas à beira da floresta, pelo que acabou por se descobrir a vigiar as sombras entre as árvores à sua direita com um interesse desconfiado.
Desde o começo das chuvas no ano anterior que a falta de alimentos levara um certo número das pessoas mais pobres a enveredar por uma vida de roubos e assaltos. Na realidade, não estava muito preocupado com aquela área, mas não deixava de ter consciência dos problemas. Como sempre, os preços subiam quando a comida escasseava e pessoas que por regra obedeciam à lei viam-se forçadas a utilizar métodos mais violentos para obterem aquilo de que necessitavam. Agora que as colheitas haviam falhado pelo segundo ano consecutivo, tinham sido vários os bandos de fora-da-lei que se haviam reunido para se protegerem contra as forças da autoridade. Essa gente procurava conseguir sobreviver apoderando-se das posses dos viajantes desprevenidos. Simon ainda não ouvira dizer que tivessem aparecido na sua área, mas já fora avisado para o facto de um grupo ter começado a operar um pouco mais para o norte, na floresta real perto de North Petherton. Não havia notícia de se terem deslocado tão para o sul mas mantinha os olhos bem abertos à possibilidade de uma emboscada.
Passou por um instante de surpresa ao reconhecer o sentimento de alívio que o invadiu quando chegaram ao alto da colina que conduzia a Bickleigh, como se tivesse permanecido sob grande tensão ao longo de horas. Não se apercebera de estar tão nervoso. Entrou no trilho para o pequeno castelo e exibiu um pequeno sorriso de desgosto pesaroso ao compreender até que ponto se preocupara com os fora-da-lei quando não havia necessidade disso.
A minúscula fortaleza pertencia à família Courtenay e era uma das muitas construídas ao longo dos anos para ajudarem a defender o condado contra os homens da Cornualha. Era um pequeno edifício fortificado, uma torre de pedra, quadrada e com uma simples muralha a rodeá-la e a servir de protecção. Tal como muitos dos castelos construídos no seu tempo, a entrada para o edifício era por uma porta no primeiro piso, a que se chegava por uma escada externa. Agora, Bickleigh era mais utilizado como pavilhão de caça do que como posto defensivo, e o Lorde de Courtenay visitava-o com pouca frequência, uma ou duas vezes por ano. Possuía o seu próprio almoxarife, que era responsável pela cobrança dos impostos e pela manutenção das quintas e terras em volta, mas para além disso era um lugar tranquilo, profundamente aninhado nos bosques na vertente de uma colina a cerca de dois quilómetros das estradas para Tiverton. Funcionara originalmente como um pequeno forte e possuíra uma guarnição permanente contra possíveis ataques, mas agora estava em paz e não passava de uma aldeola isolada ignorada até pelo seu senhor, que passara a favorecer castelos maiores e mais imponentes, com importância estratégica... e com melhor caça.
Bickleigh deixara de ser importante. Oh, Simon sabia que já o fora nos dias depois da invasão, quando os Normandos tinham considerado essencial a posse de postos espalhados pelo país que haviam conquistado. Nessa altura fora essencial como ponto de paragem entre Exeter e Tiverton, uma fortaleza entre as várias centenas construídas pelos invasores para pacifIcarem uma população que estava sempre pronta a revoltar-se contra o novo monarca, muito em especial os habitantes de Wessex, em lIevEn. E agora? Agora, a fortaleza fora ultrapassada pelas outras.
Simon cavalgou até à velha muralha, desmontou junto ao portão e conduziu o cavalo para o pátio interior. Surgiu imediatamente um moço de cavalariça sorridente, avisado pelo sonoro matraquear dos cascos no pátio empedrado, que lhe tirou as rédeas das mãos e apontou para as grandes portas de carvalho que davam acesso às salas interiores. Simon devolveu-lhe o sorriso e acenou antes de começar a subir as escadas e passar a porta principal, onde encontrou John, o almoxarife de Courtenay em Bickleigh.
- Simon, meu velho amigo! - disse o homem, estendendo-lhe as mãos enquanto os olhos se lhe enrugavam num sorriso de boas-vindas. - Entra, entra! Queres refrescar-te? É bom voltar a ver-te!
Simon sorriu, acenou e apertou a mão de John.
- Obrigado. Sim, Gostaria de um pouco de cerveja, de comida... e de um lugar para descansarmos durante a noite, se possível. Estou de volta a casa e por hoje já não me consigo aguentar mais tempo na sela. Importas-te?
- Importar-me? - John passou um braço em volta dos ombros de Simon e riu-se enquanto o conduzia ao longo do corredor. - Entra, vamos dar-te de comer!
O pequeno castelo ecoava o seu vazio enquanto John indicava o caminho para o salão. Simon sempre se surpreendera com o facto de um castelo, que já conhecera o ressoar com os sons dos cozinheiros, servos e hóspedes, parecer sempre tão deserto quando o seu senhor não se encontrava presente. Era quase como se todo o edifício se encontrasse em hibernação, a aguardar o regresso do amo. Enquanto caminhavam até atingirem o salão em que John estivera sentado junto da lareira onde o fogo rugia, o som das botas sobre as placas de pedra da passagem parecia matraquear através da torre. Os servos surgiram pouco depois com pratos de carnes frias e vinho que colocaram sobre a mesa, perto de Simon, que se sentou e começou a servir-se. Hugh chegou alguns minutos depois - ficara para trás a ajudar a cuidar dos cavalos - e instalou-se junto do amo, perdendo imediatamente a costumeira morosidade ao observar a fartura de comida a que se atirou com gosto.
Mais tarde, depois de John lhes ter saciado a fome e a sede, pediu-lhes para puxarem as cadeiras para junto da lareira e inclinou-se para a frente, voltando a encher-lhes os copos de vinho.
- Então, que há de novo lá fora, no mundo? - perguntou.
Simon sorriu para o amigo sentado na sua frente numa velha arca com espaldar, com o rosto avermelhado no lado que era iluminado pelas chamas, mas depois desviou os olhos para observar o salão que os rodeava.
Parecia uma alta caverna com uma base quase quadrada, aclarada pelo fogo e pelas velas colocadas em suportes nas paredes. As velas pingavam sob a corrente de ar que alimentava as chamas e as tapeçarias que tapavam as janelas davam muito pouca protecção contra os ventos do exterior. O solo encontrava-se coberto por palha velha e o lugar tinha um cheiro que era simultaneamente amargo e doce por causa da urina dos cães e dos restos de comida em putrefacção escondidos entre as fendas do chão, ou seja, era o cheiro habitual num salão tão velho como aquele. Simon teria ficado mais satisfeito se a palha fosse mudada com mais frequência, mas sabia que John defendia o antigo ponto de vista de que era melhor não a mudar com demasiada regularidade porque isso poderia dar origem a infecções.
Quando voltou a fitar John já os seus olhos revelavam uma leve preocupação. O amigo envelhecera muito. Era apenas dez anos mais velho do que o próprio Simon mas tinha um corpo esquelético que parecia antigo, prematuramente dobrado sob a túnica por falta de exercício e por passar muito tempo ao frio, a ler à luz das velas. O rosto magro possuía o aspecto estranhamente pálido e ceroso de quem estava demasiado tempo dentro de casa, e as linhas gravadas na testa e nos lados da boca marcavam-lhe o rosto com profundos sulcos que provocavam as suas próprias sombras sob a luz da fogueira. Quando o vira pela última vez, John possuíra uma espessa cabeleira cinzenta, que era agora de um branco quase puro, como se tivesse sofrido um súbito choque. Simon não estivera à espera de o ver tão mudado em apenas sete meses, e ao olhar para o amigo compreendeu subitamente a tremenda pressão a que estaria sujeito no seu novo cargo em Lydford.
- Para além do meu novo cargo, queres tu dizer? Em Taunton, o preço da comida era a única coisa de que as pessoas falavam. Conversaram durante algum tempo sobre os efeitos da chuva nas colheitas, e sobre o súbito aumento dos preços depois da última colheita falhada, até ao momento em que a porta se abriu e ambos se calaram, vendo um servo a entrar e a aproximar-se rapidamente para falar com John. Passado um momento, este pediu desculpa e levantou-se.
- Perdoa-me, Simon. Chegou um viajante que pediu para falar comigo - explicou John, encaminhando-se para a porta.
Simon levantou as sobrancelhas num gesto de surpresa e olhou para Hugh.
- Um viajante? A estas horas da noite? Já deve ter escurecido há mais de três horas! - Hugh encolheu os ombros com indiferença e serviu-se de mais vinho.
John regressou apenas alguns minutos depois na companhia de um homem alto e com um aspecto forte, obviamente um cavaleiro, que usava um pesado manto sobre uma cota de malha que parecia velha e estava coberta por muitas marcas de golpes. Por trás vinha um servo, um homem delgado e rijo mais ou menos da idade de Simon, com olhos que pareceram saltitar por toda a sala quando entrou, como se estivesse em busca de quaisquer sinais de perigo. Ao entrar colocou-se ao lado do cavaleiro para poder ver toda a sala, e só depois passou novamente para trás dele, para o seguir.
- Simon... - disse John com um sorriso - este é Sir Baldwin Furnshill, o novo amo de Furnshill Manor.
Simon levantou-se e aceitou a mão do estranho. Parecia calmo mas notou-lhe uma subtil desconfiança nos olhos, bem como uma ligeira hesitação ao apertar-lhe a mão. Logo que Simon lha largou, o cavaleiro recuou um passo e lançou um olhar interrogativo a John, que lhe explicou de quem se tratava enquanto os inquisidores olhos de Simon observavam os dois estranhos.
O cavaleiro era alto, provavelmente até um pouco mais alto do que o próprio Simon, e ostentava o porte de um lorde. Tinha um corpo largo e poderoso por baixo da cota de malha, bem como uma postura orgulhosa e altiva, como um homem que já tivesse combatido com êxito em muitas batalhas. Simon teve de o espreitar para lhe conseguir ver o rosto na sala escura. Tinha uma cicatriz numa face, não muito profunda mas apenas como se tivesse sido arranhado por uma lâmina, o que constituía uma marca muito vulgar num guerreiro. Contudo, não foi nisso que Simon começou por reparar. Foi antes nos profundos vincos, nas marcas de angústia que lhe nasciam por baixo dos olhos, lhe passavam pela boca e terminavam no queixo, na linha da barba. Apontavam para um grande sofrimento, como se tivesse conhecido um nível de dor tão profundo que fosse quase insuportável, embora não tivesse um aspecto muito idoso.
Simon deu-lhe cerca de 35 anos. Os cabelos escuros e a barba negra bem aparada (uma característica invulgar nos cavaleiros modernos) que lhe seguia o contorno do queixo não sugeriam mais do que isso. Quando o cavaleiro se virou e sorriu, com os olhos castanhos a enrugarem-se de boas-vindas depois da elogiosa descrição que John fez do seu amigo mais jovem, Simon também viu neles as marcas da mágoa. Descobriu-as com um choque, como se se tratasse de uma mancha que devesse ter sido apagada há muito. No entanto ela estava lá, uma melancolia que parecia nunca o abandonar, uma depressão que ganhara raízes tão profundas que, se fosse exorcizada, talvez levasse consigo a própria alma do cavaleiro. Foi uma visão que fez com que Simon sentisse uma vaga de simpatia a agitar-lhe o peito.
- Por favor, aproxime-se e sente-se. Viajou até muito tarde, senhor. Sente-se e descanse - pediu, empurrando Hugh para arranjar mais espaço no banco.
O cavaleiro fez uma pequena vénia e contorceu os lábios num meio sorriso quando Hugh se deslocou ao longo do banco, pesaroso, afastando-se das chamas.
- Obrigado, mas há aqui espaço para mim - respondeu, indicando a arca em que John se encontrava. Sentou-se lentamente e suspirou quando pôde descontrair os músculos. Aceitou, com gratidão, a taça de vinho que John lhe ofereceu e de que tomou um longo gole. - Ah, é bom. - O servo permanecia por trás dele, como se aguardasse que lhe dessem uma ordem... ou como se estivesse preparado para defender o seu amo? - Edgar, também te podes sentar.
Simon olhou para cima quando o servo deu a volta para se sentar, e ficou vagamente perturbado com a expressão de desconfiança que lhe viu nas feições escuras. Era como se estivesse a ser medido e avaliado, em comparação com outros perigos potenciais. Depois, o que provocou em Simon um vago aborrecimento, o servo arrogante pareceu concluir que o almoxarife não constituía um perigo, ou que nem sequer era suficientemente significativo para merecer ser classificado como uma ameaça. Edgar olhou para baixo e sentou-se, para logo a seguir começar a percorrer a sala com os olhos, que pousavam muito brevemente nas restantes pessoas ali presentes. Simon teve a sensação de que se tratava de um homem muito desconfiado e que, mesmo sentado, olhava para todo o lado como se duvidasse da sua segurança e da do seu amo.
O almoxarife encolheu os ombros, fitou o cavaleiro e ficou muito satisfeito por aceitar mais um pouco do vinho que John lhe oferecia.
- Porque viaja até tão tarde na noite, senhor? - perguntou, vendo o cavaleiro a esticar as pernas na sua frente e a afastar a cota de malha para as poder esfregar. Baldwin levantou as sobrancelhas quando lhe devolveu o olhar, com uma sugestão de humor sardónico nos olhos escuros. Parecia estar prestes a rir-se de si mesmo.
- Há muito que não viajava nestas estradas. Sou o novo amo de Furnshill Manor, para onde me dirijo tal como o John disse, mas o orgulho e a estupidez atrasaram-me. Quis apreciar algumas das velhas paisagens mas há muitos anos que não percorria estes caminhos. Enganei-me demasiadas vezes e... bom, acabei por me perder. Precisei de muito mais tempo do que esperava para descobrir as estradas apropriadas. - Levantou a cabeça e fitou Simon directamente nos olhos enquanto mostrava um ligeiro sorriso. - Terei quebrado alguma lei por andar lá fora até tão tarde, almoxarife?
Simon riu-se e aceitou outra taça de vinho das mãos de John.
- Não, não! Sou apenas curioso por natureza. Nesse caso, vai a caminho de Furnshill?
- Sim. Segundo sei, o meu irmão morreu há algum tempo e a mansão passou a pertencer-me. Vim logo que fui informado da sua morte. Ia prosseguir viagem durante a noite, mas... perdi-me com tanta facilidade durante o dia que não tinha grandes possibilidades de descobrir o caminho no escuro... Não, se o John mo permitir...? Terminou a frase com uma sobrancelha levantada numa interrogação enquanto olhava para o homem mais velho que se encontrava a seu lado.
- Claro, claro, Sir Baldwin! Tem de descansar aqui esta noite! Simon estudou o cavaleiro com cuidado. Agora que a luz da fogueira e das velas lhe iluminavam o rosto, já podia ver as feições do homem mais claramente e apercebia-se das parecenças familiares. Sir Reynald fora conhecido como um amo bondoso e Simon descobriu-se a desejar que o irmão Baldwin também o fosse. Um homem cruel numa mansão importante poderia ser perturbador para toda a área.
- O seu irmão era um bom homem, sempre pronto a ajudar quem necessitasse e bom para o seu povo - declarou, especulativo.
- Obrigado. Sim, era um bom homem, embora não o tenha visto durante muitos anos. É triste não ter tido uma oportunidade para me despedir dele. Ah, sim, muito obrigado, John... - Estendeu a taça para que John lha voltasse a encher. O olhar do cavaleiro encontrou o de Simon e deteve-se. Havia ali uma arrogância, notou Simon, a arrogância nascida da experiência, das batalhas e das proezas postas à prova, mas havia também humildade, uma bondade, uma quase tangível ansiedade pela paz e pelo descanso, como se o homem tivesse viajado até muito longe e visto demasiadas coisas, e agora desejasse apenas descobrir um lugar onde pudesse assentar.
O jovem almoxarife estava intrigado.
- Se se perdeu durante o regresso... então há quanto tempo esteve aqui pela última vez?
- Estive aqui no meu décimo sétimo ano de vida, e isso foi em 1290... - declarou suavemente, e a seguir sorriu quando viu que Simon fazia contas. - Sim, tenho 43, almoxarife.
Simon ficou a olhá-lo. Parecia-lhe quase incrível que o homem pudesse ser tão velho, em particular naquele momento, em que sorria de divertimento com a luz da fogueira a cintilar-lhe nos olhos. Parecia-lhe demasiado vigoroso, demasiado vivo e rápido para ter aquela idade, e foi apenas graças a um esforço mental que Simon conseguiu impedir que o queixo lhe caísse.
- De qualquer modo, honra-me com o seu espanto - declarou o cavaleiro com um pequeno sorriso. - Sim, parti em 1290, há pouco mais de 26 anos. O meu irmão era o mais velho, e portanto o herdeiro. Pela minha parte, decidi ir em busca de fortuna em qualquer outro lado. - O cavaleiro espreguiçou-se. - Estava na hora de regressar. Quero voltar a cavalgar nas serranias e ver as charnecas. - De súbito, o seu sorriso alargou-se e olhou rapidamente para o almoxarife com as sobrancelhas erguidas numa expressão de devassidão divertida. - Para além disso, também está na hora de começar a procriar. Pretendo tomar uma esposa e constituir uma família.
- Bom, desejo-lhe o melhor na sua busca pela paz e pelo casamento - retorquiu Simon, devolvendo-lhe o sorriso.
Houve um brilho nos olhos do cavaleiro, que não era de ira. Simon notou que se tratara de um brilho intrigado e interessado.
- Por que razão falou em "paz"?
Simon teve consciência da leve rigidez exibida pelo servo que permanecia ao lado do cavaleiro, e ficou aborrecido.
- Disse-nos que esteve fora muitos anos e que quer assentar na sua casa. - Despejou a taça e pousou-a em cima do banco a seu lado. - Espero que isso queira dizer que pretende encontrar a paz e não nenhuma batalha.
- Hum... Sim, já vi demasiado da guerra. Sinto a necessidade de descansar e também, tal como disse, de paz. - Por instantes, Simon voltou a ver-lhe a dor iluminada pelas chamas quando o cavaleiro olhou para a lareira, aparentemente perdido no seu passado. Porém, o instante fugidio desapareceu e Baldwin voltou a sorrir como se tivesse recordado a si mesmo, em silêncio, que havia outros à sua volta, e tivesse afastado a dor para longe, pelo menos de momento.
- Bom, se assim o desejar, poderá viajar connosco, amanhã. Passaremos perto de Furnshill Manor no caminho para a nossa casa. Baldwin inclinou a cabeça com uma gratidão evidente.
- Obrigado, terei muito prazer na vossa companhia.
A manhã seguinte estava brilhante e clara, com o Sol a cintilar num céu de um azul perfeito. Depois de um pequeno-almoço de carnes frias e pão, Simon e o novo proprietário de Furnshill abandonaram o pequeno castelo na companhia dos servos e voltaram à estrada que seguia na direcção de Cadbury, onde se erguia a mansão do cavaleiro.
Simon descobriu-se a observar disfarçadamente o cavaleiro e o respectivo servo. Pareciam mover-se em perfeito acordo um com o outro, como se constituíssem uma unidade completa. Tanto quanto o almoxarife conseguisse ver nunca havia uma qualquer troca de sinais entre eles, mas quando Baldwin queria afastar-se um pouco, para apreciar uma vista ou uma flor à beira da estrada, era como se o servo também já se estivesse a afastar, como se tivesse antecipado os desejos do cavaleiro. Para onde quer que fossem, o cavaleiro seguia sempre à frente mas o servo nunca se afastava muito e ia sempre um pouco atrás e à direita, conduzindo o pequeno cavalo de carga pela longa rédea. Simon começou a pensar que os dois homens se completavam perfeitamente e por instanteS chegou a interrogar-se sobre se conseguiria treinar Hugh a montar devidamente, para que o seu próprio servo se pudesse comportar da mesma maneira impecável. Lançou uma olhadela por cima do ombro para onde Hugh os seguia com uma expressão sombria, e desistiu da ideia com uma careta sardónica.
Sir Baldwin passou para a frente pouco depois de terem começado a trepar a íngreme serra a partir de Bickleigh e pareceu surpreendido com o lento avanço de Hugh.
- O Hugh só cavalga há relativamente pouco tempo - explicou Simon com um sorriso irónico, em resposta a um olhar interrogativo. - Está sempre com medo que o cavalo comece a galopar e o deixe ficar para trás. Não gosto de andar demasiado depressa, para não o preocupar...
O cavaleiro olhou em frente contemplativamente enquanto o seu servo fitava Hugh com uma careta de desprezo.
- Recordo-me desta estrada - disse Baldwin. - Lembro-me de cavalgar por aqui quando era muito jovem. Parece ter sido há tanto tempo... - A voz apagou-se-lhe.
Simon olhou-o. O homem parecia estar a reflectir, com a testa franzida de concentração enquanto estudava a estrada à sua frente até chegarem ao alto de uma serra e poderem contemplar a vista. Fizeram uma pausa e esperaram por Hugh. Dali, no topo da elevação, podiam ver muito para longe para sul e oeste, até às florestas e charnecas de Devon, tão longe como Dartmoor.
Ao princípio, sob a neblina do meio da manhã, era como se estivessem sós no mundo enquanto permaneciam sentados nas selas no alto da serra e aguardavam que Hugh os alcançasse. Contudo, logo a seguir, os sinais de vida tornaram-se evidentes. A uns sete quilómetros de distância via-se fumo a subir da chaminé que se erguia no meio das árvores. Um pouco mais para diante havia uma aldeola, aninhada na vertente de uma colina por cima de uma série de campos que se estendiam até ao vale. Ainda mais para diante, a cena coloria-se de azul com a distância e havia mais casas e campos aqui e acolá, as inevitáveis colunas de fumo a revelarem onde os lumes haviam sido acesos para os cozinhados. Simon sorriu quando olhou para a área com um certo sentido de orgulho de proprietário ante a visão do seu condado. Olhou para o cavaleiro a seu lado, ficou surpreendido ao vê-lo inclinado para a frente, a descansar sobre o pescoço do animal, com o rosto a exibir um pequeno sorriso enquanto contemplava a paisagem.
- É uma boa terra, não é verdade? - perguntou Simon baixinho.
- A melhor... - murmurou Baldwin, sempre a olhar para a vista. A seguir libertou-se do seu sonho acordado, virou-se rapidamente e lançou um sorriso para o almoxarife. - Não posso ficar à espera do seu homem. Esta estrada pede um cavalo rápido, para fazer fluir as recordações. Meu amigo, fico á espera de o ver na mansão. Como amigo e companheiro de estrada, terei muito prazer em lhe oferecer uma bebida antes de prosseguir o seu caminho para casa.
Ainda as suas palavras não haviam sido inteiramente compreendidas e já cravara os calcanhares nos flancos do cavalo e se precipitara ao longo da vertente com o manto a flutuar ao vento por trás dele, com o servo a ocupar uma posição um pouco atrás e à direita do cavaleiro. Simon levantou as sobrancelhas e ficou a vê-los a cavalgar pela serra até ao momento em que Hugh parou a seu lado.
- Está com pressa de chegar à mansão - comentou, sombrio. O amo acenou uma confirmação.
- Sim. Creio que é a primeira vez que anseia tanto por qualquer coisa em muitos anos. Tem o ar de quem se sente novamente jovem.
Começaram a descer a colina lentamente, na direcção da mansão, que ficava a uns quatro quilómetros dali.
- É um homem estranho... - comentou Hugh pensativo depois de alguns minutos de cavalgada.
- Sob que aspecto?
- Por vezes parece perdido, como um cordeiro separado da mãe... mas depois recorda-se novamente de quem é e volta a sorrir. Simon ficou a pensar naquele comentário durante o resto do caminho. Estava de acordo com as suas próprias observações da noite anterior. Era quase como se o cavaleiro regressasse para esquecer qualquer coisa do seu passado, ou voltasse para casa para poder esquecer os anos que passara longe dali. Porém, quando Simon lhe perguntara o que fizera desde que partira tantos anos antes, limitara-se a responder com toda a simplicidade: "A combater." Fizera-o com um laconismo conciso que parecera inadequado e não quisera dar mais explicações.
Simon sabia que era estranho. A maioria dos cavaleiros gostava de discutir as suas proezas e estava sempre pronta a gabar-se e a falar do seu valor e coragem no campo de batalha.
Era natural que os cavaleiros fossem orgulhosos e arrogantes, e que descrevessem as suas batalhas em grande pormenor para narrarem a sua valentia. Era um pouco estranho encontrar um cavaleiro que não queria falar no seu passado. Porém, por outro lado, Simon sabia que se um cavaleiro perdesse o seu senhor também podia perder todas as suas riquezas e propriedades. Teria de sobreviver o melhor que pudesse fossem quais fossem os meios, tentando conseguir um novo senhor que o mantivesse armado e alimentado. Talvez aquele cavaleiro tivesse passado por um mau bocado e se visse obrigado a esforçar-se para se manter... e pretendesse esquecer tudo isso. Simon encolheu os ombros. Se Baldwin queria guardar o passado para si mesmo, fossem quais fossem as razões, então só lhe restava respeitar os seus desejos.
Não precisaram de muito tempo para chegarem à estrada da mansão, não obstante o lento avanço de Hugh. Por uma vez sem exemplo, Simon estava satisfeito por cavalgar lentamente porque isso lhe dava mais tempo para meditar sobre as novas responsabilidades, pelo que acabou por se descobrir a planear as inevitáveis visitas que iria ter de fazer. Em primeiro lugar estavam os outros almoxarifes. Teria de os procurar a todos, aos seus novos pares, e também de verificar o estado das terras em torno de Lydford. Também queria visitar os regedores de cada uma das subdivisões do condado, para se certificar de que os seus contingentes de homens estavam prontos em caso de guerra. Não lhe parecia uma coisa muito provável, mas um almoxarife devia encontrar-se preparado a todo o momento, não fosse o seu senhor necessitar dele e dos respectivos homens. Não estava demasiado preocupado com as outras responsabilidades dos regedores, que deveriam ser capazes de lidar com uma qualquer agitação pública convocando os homens e organizando um grupo para apanhar os ofensores.
Numa sociedade em que a maior parte dos homens vivia num estado de pobreza era inevitável que os roubos fossem frequentes. Os ladrões, assaltantes, larápios e caçadores furtivos eram um problema constante, mas esperava-se que todos os homens que viviam de acordo com a lei estivessem prontos para lutar pelo seu senhor de um momento para o outro, pelo que podiam ser convocados rapidamente pelos regedores para irem perseguir os criminosos. No fim de contas, até o próprio monarca queria o povo pronto para a defesa do reino e esperava-se que toda a gente estivesse em condições de se armar rapidamente em defesa das suas casas. As pessoas que viviam na nova área de Simon eram todas camponeses endurecidos, bem habituadas ao uso das armas para a caça. Que Deus ajudasse um homem qualquer que tentasse cometer um crime. Seria perseguido como um lobo pelos melhores caçadores do reino... e a perseguição só terminaria quando fosse apanhado. Não seria difícil. Os que precisavam de viajar eram muito poucos, pelo que qualquer estranho num determinado distrito seria sempre interrogado pelos locais, e as notícias a respeito desses viajantes acabariam por chegar aos ouvidos do amigo de Simon, Peter Cliford, o sacerdote de Crediton. Se tivesse lugar uma qualquer agitação pouco depois do aparecimento de um recém-chegado, então o principal suspeito era óbvio.
Estava precisamente a pensar nisso quando foi surpreendido ao ver um pequeno grupo de monges um pouco para lá do acesso a Furnshill Manor, a deslocar-se na estrada de Cadbury para Crediton. Perguntou a si mesmo quem poderiam ser e para onde iriam, colocou o cavalo a trote e deixou Hugh para trás para ir ter com os monges. Desde os tempos de aprendizagem com os padres de Crediton onde conhecera muitos monges que viajavam para a Abadia de Buckland e para lá dela, para a Cornualha -, Simon sempre tivera prazer em falar com esses santos homens que haviam trocado os pecados terrenos por uma vida de pobreza, para ajudarem o povo e dedicarem as suas vidas a Deus.
Havia cinco homens no grupo, quatro dos quais caminhavam lentamente, com um deles a conduzir uma mula de carga, e um quinto homem a cavalo. Pelos hábitos deviam ser Cistercianos, tal como os monges de Buckland.
Simon aproximou-se, pôs o cavalo a passo e saudou-os.
- Bom dia, irmãos, para onde estão a viajar?
Ao ouvir o som da sua voz, o homem do cavalo rodopiou repentinamente e Simon ficou chocado ao ver o medo estampado no seu rosto.
Era um homem grande, para o gordo, com carnes flácidas em volta das feições quadradas, mas que não deixava de parecer musculoso. Para além disso cavalgava como um cavaleiro, com uma pose firme e à-vontade, embora um pouco encurvada. Tinha o aspecto de ter sido um homem forte e resistente no passado mas que acabara por desenvolver um excesso de interesse por boa comida e bebida.
- E quem sois vós, senhor? - perguntou um homem, numa voz quase petulante e com um sotaque pronunciado, onde Simon reconheceu os tons da França, mas isso era um facto normal para muitos monges agora que o Papa vivia em Avinhão.
- Simon Puttock, senhor. Sou o almoxarife de Lydford - respondeu, sorrindo para o homem para o pôr à-vontade. Aparentemente, não deu resultado. Era óbvio que o homem ficava aterrorizado com os estranhos e os seus olhos saltitaram por cima de Simon quando este se colocou a seu lado. Despreocupado, Simon observou os outros membros do grupo. O mais velho, um homem com um aspecto jovial, cabelos quase inteiramente brancos e faces risonhas, observou-o com um sorriso, como que num mudo pedido de desculpas pela rudeza do outro, mas a seguir virou-se e olhou fixamente para a estrada à sua frente, com os restos do sorriso ainda colados aos cantos dos lábios. Os outros limitaram-se a seguir tranquilamente em frente e a ignorá-lo, o que lhe provocou uma leve surpresa porque os monges, em geral e tal como todos os outros viajantes, ficavam sempre satisfeitos com um pouco de diversão para animar a viagem.
- Está muito longe de Lydford, almoxarife. Simon soltou uma curta gargalhada.
- Acabei de ser nomeado almoxarife, senhor. Estou de volta a casa em Stanford para ir dar a notícia à minha mulher, e só depois regressarei a Lydford para assumir as novas responsabilidades. E os senhores, para onde vão? Para Buckland?
- Sim. - O homem pareceu fazer uma pausa. - Sim, é para aí que vamos. Vou ser o novo abade do mosteiro. - Os seus olhos saltaram rapidamente de Simon para a estrada por trás deles.
Simon apercebeu-se daquele olhar e voltou a sorrir.
- Aquele é o meu servo, abade. Não precisa de ter medo da estrada por estas bandas. Ainda não ouvi falar de ladrões de estrada tão para sul. Ao que parece, esses grupos estão todos nos arredores de Taunton e Bristol. Estarão a salvo durante a vossa jornada.
- Óptimo, óptimo - retorquiu o abade, distraído e de testa franzida. A seguir olhou para o almoxarife com uma mirada avaliadora. - Diga-me, meu amigo, qual é o melhor caminho entre Buckland e Crediton.
Simon contraiu os lábios e ficou a pensar.
- Há dois percursos principais, a oeste, para Oakhampton, e depois para sul através de Lydford. Conheço bem esse caminho. As estradas são boas e há lugares onde se pode descansar durante a noite. O outro seria para leste das charnecas. Nunca estive tão longe, não obstante já uma vez ter ido a Exeter. Se a escolha fosse minha... iria pela estrada de Oakhampton.
- Óptimo! Então, seguiremos por essa estrada. - Pareceu ficar a pensar por instantes enquanto olhava para a estrada, para logo se virar para Simon. - Irá viajar connosco? Ficaríamos gratos com a protecção do almoxarife ao longo da estrada.
Simon fitou-o com uma leve expressão de surpresa e respondeu:
- Ora, como lhe disse, não tem de se preocupar com ladrões. Esta área continua muito tranquila.
- Talvez, talvez, mas a sua companhia seria mais uma protecção muito desejável, senhor.
Simon levantou os olhos para ele e ficou chocado com a expressão no rosto do homem. Parecia estar a tentar sorrir mas, mesmo assim, não conseguia esconder a ansiedade estampada no rosto. Tinha os olhos muito abertos e fixos, quase como que num rogo ao jovem almoxarife, e Simon começou a perguntar a si mesmo o que poderia ter provocado um tal medo. Quase o perguntou... mas decidiu não o fazer para não ofender ninguém.
- Receio ter de ir fazer uma visita a um amigo, Sir Baldwin Furnshill, em Furnshill Manor, não muito longe daqui. Porque não vêm comigo? Poderíamos prosseguir mais tarde - declarou. Embora não tivesse a certeza, ficou com a sensação de que o monge mais idoso, que se encontrava por perto, lhe lançara uma olhadela rápida ao ouvir pronunciar o nome "Furnshill".
- Não, não! Temos que chegar a Buckland o mais depressa que pudermos. O senhor deve vir connosco agora.
Simon começou a sentir-se repelido por aquele homem, tão obviamente cheio de medo sem qualquer razão. Parecia-lhe quase obsceno mostrar tanto receio numa tão tranquila zona do país. Claro que as viagens eram perigosas, fosse qual fosse o destino, mas um tão grande terror, ali, em Devon... Pensou por instantes.
- Não, tenho de ir à mansão. Dei a minha palavra. Contudo, como não irei lá ficar muito tempo, mais tarde talvez ainda vos apanhe na estrada. Poderei ir convosco pelo menos até Crediton.
- E por que não vai connosco até Buckland?
- Preciso de ir ter com a minha mulher para a levar comigo para Lydford.
- E não pode ir buscá-la depois de nos levar a Buckland? - A voz do homem choramingava, como se fosse uma criança a pedir um doce.
Simon quase soltou uma gargalhada, mas viu que o abade falava muito a sério e controlou-se.
- Abade, isso significaria um atraso de sete ou oito dias. Não, não o posso fazer. Tenho de seguir para Lydford com a minha mulher.
- Oh, muito bem... - retorquiu o monge, petulante. Caminharam em silêncio durante alguns minutos, até Simon dizer, com suavidade:
- Tem a certeza de que não quer juntar-se a mim e visitar a mansão? No mínimo, servirá para interromper um pouco a vossa viagem e estou certo de que os seus companheiros gostariam de uma bebida refrescante. - Pelo canto do olho, Simon verificou que o monge mais velho agitava a cabeça, acenando a sua aprovação àquela sugestão. A seguir piscou um olho, como se soubesse que Simon o podia ver, mas não o abade.
- Não, estamos bem. Não há necessidade.
- Nesse caso, desejo-vos uma boa viagem, em segurança. - Simon suspirou. - Tenho de seguir para a mansão. Espero voltar a vê-lo em breve, abade. Por agora, despeço-me.
O abade grunhiu, desagradado com aquele comportamento, mas Simon virou a montada para galopar de volta à alameda de acesso à mansão. Virou-se e ainda captou um leve sorriso no rosto do monge mais velho, como que de gratidão pela oferta que lhes fizera. O almoxarife acenou-lhe com a cabeça e pôs o cavalo a galope.
Chegou à entrada da alameda e encontrou Hugh que o aguardava, sentado no cavalo e com um ar maldisposto.
- Afastou-se com tanta pressa que pensei que se tinha esquecido de mim.
- Ora, cala-te - retorquiu Simon, metendo pela alameda da mansão. Naquele dia já aturara gente maldisposta mais do que suficiente.
Já era perto do meio-dia quando os cascos dos cavalos matraquearam em frente da velha mansão.
A casa fora construída pela família Furnshill há mais de 100 anos, quando a mesma chegara a Devon para servir os seus senhores, os Courtenay.
Erguia-se bem alta na vertente de uma colina e tinha os lados quase ocultos por entre os espessos bosques que a rodeavam. Era um longo edifício de um só piso, com paredes caiadas, formadas por uma mistura de palha, barro e cascalho, reforçadas por troncos negros. Era muito semelhante às restantes quintas da área e parecia estar a espreitar por sobre o caminho que conduzia até à sua porta. Tinha pequenas janelas abertas nas paredes logo por baixo do telhado de colmo e a porta encontrava-se praticamente no centro do edifício, o que lhe dava um ar alegre e agradável. Não se tratava de uma mansão fortificada, construída no medo e pronta para se defender. Era antes uma casa de família, resistente e acolhedora.
Por trás e para a direita ficavam os estábulos. Eram formados por um grupo de grandes construções semelhantes à casa principal, que rodeavam o solo espezinhado de um pátio. Era ali, tal como Simon sabia, que se encontravam as áreas para os cavalos e bois, e onde até existia um grande abrigo para os instrumentos agrícolas. Simon e Hugh ignoraram a entrada do pátio e cavalgaram até junto da frente da casa antes de desmontarem. Surgiu imediatamente um par de cavalariços como que vindo de lado nenhum, o que fez com que o almoxarife se sorrisse para si mesmo. Era óbvio que todo o pessoal se esforçava por causar uma boa impressão ao seu novo amo.
Simon desmontou do cavalo, entregou-o ao palafreneiro que o aguardava e deteve-se para observar a paisagem. Os seus olhos, ali do alto, abarcavam quilómetros por cima do topo das colinas cobertas de árvores e até às charnecas, que se perdiam na malevolência azul-acinzentada da distância. A seguir descalçou as luvas e virou-se para a porta no momento em que Baldwin saía de casa para lhes dar as boas-vindas.
- Penso que fiz bem em vir à frente! - comentou, enquanto apertava a mão ao almoxarife. - Levou imenso tempo para chegar aqui, Simon. Não consegue ensinar o seu servo a cavalgar um pouco mais depressa?
Simon sentiu que Hugh ficava rígido por trás dele mas sorriu.
- A culpa foi minha, senhor. Parei para conversar com os monges.
- Quais monges? - inquiriu o cavaleiro com um ar distraído enquanto os conduzia para a espessa porta de madeira.
- Não os viu? Demos por eles na extremidade do caminho para sua casa. Quatro monges e um abade que vão a caminho do mosteiro em Buckland.
Baldwin fez uma leve careta.
- Não, não os vi - declarou, desinteressado. Encolheu os ombros e pareceu afastar o assunto da mente enquanto voltava a sorrir. - Vinho? Ou preferem um pouco de cerveja?
A mansão não parecia ter sofrido as privações de tantas outras áreas do condado durante as chuvas. Simon e Hugh foram presenteados com uma farta refeição de carneiro guisado e pão fresco, enquanto ao mesmo tempo tinham de responder a uma torrente de perguntas do inquisitivo anfitrião que parecia querer saber tudo a respeito das suas novas propriedades, como se tinham modificado durante a sua ausência e como correra a vida das pessoas enquanto estivera fora. Por fim, quando se afastaram da mesa e se sentaram junto à lareira, o cavaleiro sorriu e pediu desculpa.
- Lamento se tiveram de pagar um preço tão caro pela vossa comida, mas quero ser um bom amo para o povo daqui. Já vi muitos senhores a tratarem mal a sua gente e a impor-lhes impostos demasiado pesados. Quero ser justo para com eles e é por isso que preciso de aprender tudo o que puder.
- Creio que tendes aqui uma boa e forte propriedade, senhor... - começou Simon, mas o cavaleiro interrompeu-o.
- De cavaleiro para almoxarife, creio que podemos falar um com o outro como iguais.
Simon reconheceu a honraria, baixou a cabeça e sorriu. Não era imaginação sua... e sentia que já se estabelecia uma qualquer espécie de ligação entre ele e aquele cavaleiro tão grave. O homem parecia estar em busca da sua amizade e Simon considerava esse facto como lisonjeiro, embora soubesse que muito provavelmente se tratava apenas do interesse de um recém-chegado solitário a tentar estabelecer uma relação com um vizinho importante.
- Obrigado... - continuou Simon. - Nesse caso, Baldwin, posso dizer-te que a tua propriedade não foi tão gravemente afectada como muitas outras. As chuvas foram más este ano mas Furnshill está suficientemente alta para ter escapado aos prejuízos piores. As áreas mais baixas ficaram alagadas, mas as tuas colheitas não foram afectadas. Há pessoas a passar fome noutros condados, mas penso que a tua gente não sofreu muito.
- Sim, já vi e ouvi dizer que há gente sem nada para comer em Guyenne e em França. Também vi que o povo do Kent estava a sofrer quando passei por lá. - Pareceu ficar a pensar, recolhendo-se para dentro de si mesmo com a testa franzida de concentração.
- Quando foi isso?
- O quê?
- Quando foi que passaste pelo Kent? Foi recentemente? Já tinha perguntado a mim mesmo se as coisas ainda estariam muito más ou já teriam melhorado.
- Oh, suponho que deve ter sido há cerca de nove meses. No entanto, falei com muitos viajantes depois disso e a situação parece não ter melhorado. - Soltou um suspiro. - Por vezes, parece-me injusto que tantas pessoas tenham de sofrer tanto para sobreviverem. Não achas?
- Sim - concordou Simon, olhando para a caneca, pensativo. No entanto, as coisas são assim. Todos nós temos de servir, quer seja o nosso amo ou o nosso Deus, e o povo tem de trabalhar para nos servir, embora alguns sejam tratados com muito mais dureza do que a necessária.
- Sob que aspecto?
- Tal como dizes, as coisas por vezes podem parecer injustas... quando se vêem homens carregados com impostos tão pesados, ou xerifes que tiram dinheiro dos impostos para os seus próprios bolsos, ou ladrões que roubam todos os lucros de um agricultor, que terá de ir procurar outro modo de alimentar os filhos. Quando se é agricultor, os problemas não são causados apenas pelo tempo...
- Não, não. Claro que não... - respondeu o cavaleiro, que pareceu reflectir. - Diz-me uma coisa, por que te referiste aos xerifes? Há algum problema com o de Exeter?
- Não, por esse lado temos sorte. Parece ser um homem bom e honesto. Não, está tudo bem com ele, mas de certeza que deves saber o que se passou com os outros? Há um par de anos foram quase todos substituídos, em todo o país, por causa da sua corrupção.
- Não, não ouvi falar nisso. De qualquer modo, na altura estava fora do país....
- É como te digo, a maioria foi substituída. Havia muitos casos de falsas acusações... e está a ver-se quem beneficiava com isso. Creio que está tudo a recomeçar outra vez. Como é costume, os pobres são os mais atingidos...
- Pareces ter fortes sentimentos a esse respeito, Simon.
- Ah, e tenho, sim. Quero que me conheçam por ser justo para com as gentes da minha área, e que elas me considerem um seu protector. Não quero que me vejam como um cobrador de impostos pesados e injustos, interessado apenas em engordar a minha bolsa à custa de outros. Para além disso, quero certificar-me de que as pessoas poderão viajar em segurança. Graças a Deus, por aqui ainda não há problemas com os fora-da-lei!
- Sim, estamos com sorte, sob esse aspecto.
- Pois estamos. Ainda não apareceram tão para ocidente, embora estejam a aproximar-se. Aparentemente há alguns nos arredores de Bristol, e outro grupo em North Petherton. Tenhamos esperança de que desapareçam antes de chegarem aqui...
Baldwin ficou a olhar para as chamas por instantes, meditabundo.
- Pergunto a mim mesmo por que razão as pessoas se juntam a esses grupos? Devem saber que nunca mais terão paz. No caminho para aqui ouvi dizer que tinham atacado um certo número de agricultores e mercadores, e creio que até um cavaleiro, que conseguiu salvar-se. Penso que os fora-da-lei estão a ficar mais desesperados.
- Porquê?
- Mesmo que consigam roubar, nunca será o suficiente para sustentarem grupos tão grandes. - A voz apagou-se-lhe e o rosto tornou-se pensativo enquanto pareceu considerar as suas palavras. Simon captou um relance daquela expressão de concentração e acenou.
- Óptimo! Essa gente não tem desculpa. Quando mais depressa forem presos ou mortos, melhor será!
Baldwin olhou para as chamas com um sorriso triste a erguer-lhe o canto da boca e a torcer-lhe o bigode.
- Eu sei. Não podemos ter a paz do condado arruinada por meia dúzia de pessoas e as estradas têm de permanecer abertas. Mas que mais podem esses vilões fazer? Não há comida para eles, e a que há custa demasiado dinheiro. Não conseguiriam arranjar trabalho mesmo que o quisessem... e neste momento até há lordes a expulsarem os seus rendeiros. Corre o boato de que alguns cavaleiros recorreram ao banditismo porque não podem comprar comida. Como poderão os fora-da-lei sobreviver?
- Não graças aos roubos! A vida pode ser dura, mas ser fora-da-lei não é solução. Não, os que apanhamos devem servir de exemplo - declarou Simon num tom decidido. - Temos de lhes mostrar que não podem ter esperança numa fuga ao castigo... e que serão apanhados e feitos pagar pelos seus crimes para onde quer que vão. Não se trata apenas dos que prejudicam os viajantes, porque há também aqueles que vivem nas florestas do Rei e quebram as respectivas leis. Têm de ser ensinados que não podem roubar e assassinar sem serem punidos. Em que situação ficaríamos se permitíssemos a fuga a essa gente? Ser pobre não é desculpa... Se fosse, então dentro em breve teríamos todos os vilões a juntarem-se aos ladrões de estrada. Não, temos de os apanhar e de os castigar. Se um homem foi um fora-da-lei, tem de ser apanhado e servir de exemplo. Não há outra maneira de evitar que outros lhe sigam o exemplo.
- E se o seu crime tiver sido insignificante? E se o homem culpado ainda puder ser útil para o seu senhor?
- Ah! - Simon soltou uma gargalhada curta e áspera, semelhante a um latido. - Se pudesse ser útil ao seu senhor... então é improvável que fosse acusado! - Para sua surpresa, Baldwin acenou, mas não com convicção. A sua cabeça movera-se lentamente, como que numa resposta automática. O almoxarife estava convicto de que a lei devia ser respeitada. Se acreditasse que não, então nunca teria sido capaz de aceitar a sua posição em Lydford. Todavia, o silêncio contemplativo de Baldwin obrigou-o a pensar. Sendo um homem justo, começava a interrogar-se como ele próprio iria reagir se a vida se lhe tornasse impossível, se o seu ganha-pão lhe fosse tirado e se tivesse de descobrir uma maneira de dar de comer à mulher e filha. Se Margaret e Edith tivessem fome e não lhes pudesse dar de comer, o que é que faria? Se não tivessem a pequena quinta e os seus alimentos, que faria para sobreviver? Tinha a incomodativa suspeita de que também ele se sentiria tentado a juntar-se a um bando de fora-da-lei para tentar sobreviver desse modo.
Libertou-se daqueles pensamentos e tentou expulsar a ideia da mente, mas a consciência do medo e desespero que uma tal pobreza lhe iria causar não o queria abandonar e abafava-lhe a anterior boa-disposição.
Os seus movimentos pareceram despertar Baldwin do sonho acordado. Olhou para cima, voltou a prestar atenção ao convidado, levantou-se de repente e falou com um tom decidido.
- A minha gente não será tratada com dureza nem injustiça. Serei justo para com todos eles. Viajei muito e já vi muitas das injustiças existentes neste mundo. Quero que as pessoas me reconheçam como um bom amo.
Simon terminou a bebida e levantou-se.
- Penso que o irás ser - declarou, com um ar muito sério. - Agora, temos de ir para podermos completar a nossa jornada. Com a tua autorização... - Fez uma vénia e encaminhou-se para a porta.
Já no exterior, os dois homens trocaram um breve aperto de mão enquanto Hugh se dirigia aos estábulos para ir buscar os cavalos.
- Obrigado pela refeição, Baldwin. Espero voltar a ver-te em breve.
- Com todo o gosto. Na minha casa, e enquanto eu aqui estiver, haverá sempre vinho e cerveja para o almoxarife de Lydford. Adeus e faz uma boa viagem, meu amigo.
Hugh regressou naquele momento e Baldwin ficou à porta, vendo-os montar e regressar novamente ao caminho que os levaria a Cadbury e a Sandford. Quando Simon se virou, no fundo da alameda, o cavaleiro ainda lá estava, olhando para eles com a carranca pensativa a escurecer-lhe o rosto.
Depois do almoço Simon mudou de opinião e decidiu prosseguir a corta-mato em vez de continuar pela estrada principal. O caminho seria mais directo e agora, já a meio da tarde, estava ansioso por regressar a casa e à esposa. Embora Hugh permanecesse em silêncio enquanto caminhava a seu lado, sabia que o servo também estava tão ansioso como ele por voltar para casa.
Para além disso, Simon ficava satisfeito por não ter de se encontrar com os monges, porque concluíra que o medo revelado pelo abade era muito inquietante. Sabia que era normal que os viajantes sentissem alguns receios, mas o abade quase parecera estar a sofrer de um medo mortal, como se temesse pela vida. Era muito mais profundo do que o costumeiro nervosismo que um viajante sentia quando se encontrava numa terra desconhecida, e tratava-se de um terror quase tangível, como se o abade soubesse que iria ser atacado em breve. A companhia de um homem obviamente tão assustado não era tranquilizadora, e era provável que voltasse a pedir que Simon o acompanhasse até ao fim da jornada. Não, seria muito mais fácil se evitasse os monges.
Quando saíram de East Village e prosseguiram em direcção a casa, em Sandford, seguindo pelos tortuosos trilhos que conduziam para sul e oeste, que os faziam subir e descer as colinas verdes, baixas e arredondadas do condado, Simon esqueceu-se do monge. Fez a maior parte do caminho com grande contentamento e com um sorriso de satisfação estampado no rosto. Ali, perto de casa, conhecia perfeitamente todos os trilhos à sua volta e foi com um estremecimento de prazer que reconheceu árvores e campos, como se voltasse a ver velhos amigos depois de uma longa ausência. O vento estava frio mas não era demasiado forte, refrescava-os enquanto cavalgavam, impedia-os de aquecerem demasiado, e o almoxarife deliciava-se com paragens ocasionais no alto de pequenas colinas para poder apreciar o panorama.
Fazia sempre o mesmo quando se encontrava naquela terra. As vistas eram boas mesmo a partir dos picos mais baixos e revelavam a terra a ondular suavemente, bem como as pequenas aldeolas aninhadas por baixo das colinas. Nos topos mais altos e arredondados era-lhe possível avistar um panorama de muitos quilómetros. Para sudoeste ficava Dartmoor, para norte ficava Extnoor, e Simon espreitava nas duas direcções, observando o contraste entre a aspereza azul-acinzentada das colinas à sua frente, a sul, com os contornos mais ondulantes das charnecas que lhe ficavam para trás. Por fim, viram-se a cavalgar pelo trilho que os conduziria a casa, e Simon esqueceu-se imediatamente das vistas, antecipando a satisfação da esposa ao ouvir a novidade a respeito da promoção.
Desmontou com alívio e esticou os ombros. Massajou a curva das costas e aproximou-se de Hugh para o ajudar com os fardos. Foi nesse momento que a porta se abriu e que a sua filha Edith saiu de casa, correndo para o saudar, rindo-se e gritando de alegria. Sorridente, Simon largou rapidamente os sacos quando ela se aproximou, agarrou-a e beijou-a, sentindo o orgulho e a alegria da paternidade ante aquelas exuberantes boas-vindas. Acabara de instalar a filha de seis anos em cima dos ombros quando Margaret, a sua esposa, apareceu à porta.
Ficou parada, a sorrir tranquilamente enquanto Simon avançava para ela. Era uma mulher alta e bonita com um corpo delgado mas forte. Beijou-a e puxou-a a si, sorrindo com a sensação de calor e conforto que a esposa sempre lhe dava.
Margaret era quase cinco anos mais nova do que ele. Conhecera-a quando fizera uma visita ao pai, oito anos antes, e soubera imediatamente que aquela iria ser a sua esposa, embora nem sequer tivesse compreendido por que razão uma tal ideia lhe surgira na cabeça. Ao princípio sentira-se atraído pelo sorriso sério, pelo rosto comprido e bonito, e também pelos compridos cabelos louros, tão raros nas terras em volta de Crediton. Agora, enquanto a segurava e ela o envolvia nos braços, voltava a maravilhar-se com o facto da mulher ter concordado em casar com ele. Simon segurou-a quando Margaret tentou libertar-se do abraço, apertou-a com suavidade e sorriu para os seus olhos azuis.
- Bem-vindo a casa, Simon - disse a mulher, olhando-o com um sorriso suave.
- Olá, meu amor. Como estás?
- Estou bem, agora que voltaste para casa. Como te correu a viagem?
Simon riu-se.
- A viagem foi óptima... mas não tão boa como a reunião! Estás abraçada ao novo almoxarife de Lydford!
A mulher olhou para cima com os olhos muito abertos de surpresa e Simon apertou-a subitamente, com força, rindo-se às gargalhadas e libertando a sua alegria contagiante enquanto a filha se lhe agarrava aos cabelos.
- Simon, Simon, larga-me! - acabou a esposa por conseguir dizer. Libertou-se, pousou as mãos nas ancas e olhou-o com uma falsa expressão de exaspero. - Parvo, não te esqueças que tens a tua filha às cavalitas! Então, agora és almoxarife? Que quer isso dizer? Temos que desistir da casa? Que vamos fazer com a quinta?
Ainda a sorrir, Simon agarrou na filha com todo o cuidado, como se se tratasse de um objecto frágil e precioso - e até o era, pelo menos para ele -, e pousou-a no chão entre os dois, onde a criança os ficou a olhar.
- Podemos largar a casa, se quisermos, mas acho que devíamos arrendá-la. Podemos fazê-lo enquanto vivermos no castelo.
- Nesse caso, temos de tratar da mudança de todas as nossas coisas para Lydford... - murmurou a mulher, com a testa ligeiramente franzida de preocupação. Virou-se, entrou em casa logo seguida por Simon, e encaminhou-se para a sala. Aí chegada, encaminhou-se para o banco junto à lareira, sentou-se com o queixo apoiado nas mãos e ficou a olhar para as chamas. Simon dirigiu-se lentamente até junto da parede para ir buscar um banco que colocou do outro lado do fogo, para se poder sentar e ficar a olhar para ela.
Margaret estava mergulhada em profundos pensamentos. Interrogava-se a respeito de Lydford e sobre se iria gostar das novas responsabilidades que iriam ser impostas ao marido como consequência inevitável do cargo. Levantou os olhos, viu que Simon tinha os olhos postos no fogo, com um pequeno sorriso de orgulho nos lábios, e soltou um suspiro. Sabia que não iria meter-se no caminho dele. Estava obviamente deliciado com a sua nova posição, pelo que também ela o deveria estar. No entanto ia ser difícil, pensou, enquanto olhava em volta, para a sala. Ia ser difícil deixar aquele lugar, que fora a sua casa desde que se tinham casado, a casa onde a filha havia nascido e onde tinham conhecido tantos momentos felizes.
Espreitou em volta da sala, da sua sala, como se fosse a primeira vez e nunca na verdade a tivesse visto.
O fogo encontrava-se no centro, assente numa cama de barro sobre o sólido chão de terra batida. Este, por sua vez, estava coberto por uma liberal camada de palha, que era renovada todos os meses. As janelas altas abriam-se para o ar, deixando entrar estreitas faixas de luz do dia.
À noite eram cobertas por tapeçarias, numa vã tentativa para manter de fora as frias rajadas de vento que surgiam constantemente vindas da costa. As mesas, compridas e pesadas, permaneciam encostadas às paredes, com os respectivos bancos por baixo dos tampos, excepto aquele que usavam todos os dias, o banco comprido com espaço para a família e para os quatro servos. Esse ficava sempre de fora, perto do fogo.
Iria sentir uma grande falta daquela casa? interrogou-se. No fim de contas era apenas uma casa... e um castelo iria ser uma grande melhoria. Pensou no quarto, o pequeno quarto familiar escondido por trás da tapeçaria na extremidade da sala, onde ela e o marido podiam dormir a salvo dos olhares inquisidores dos servos. Tal como o resto da casa, era uma divisão cheia de correntes de ar e quase sempre fria. De certeza que o castelo deveria ser, no mínimo, mais quente do que aquilo!
E quanto às novas obrigações? Era esse o verdadeiro problema, pensou. Levantou os olhos rapidamente, viu uma expressão preocupada no rosto de Simon e soube que ele estava a pensar no mesmo. Como almoxarife, tanto ele como ela teriam de estar disponíveis para os locais sempre que estes precisassem de ajuda. Não haveria privacidade e muito poucas oportunidades para descansar. Até que ponto conseguiria a família suportar essa tensão permanente? Depois, também havia a cidade. Lydford era uma cidade mineira, crucial para o comércio do estanho. O estanho significava dinheiro... e onde havia dinheiro existiam conflitos.
Margaret suspirou. Provavelmente, aquilo iria ser bastante mais difícil do que o próprio marido imaginara. Depois do pai dela ter sido morto dois anos antes, quando cavalgava com um grupo de perseguição, mantivera sempre bem escondido o seu maior pavor, o de que o seu homem pudesse vir a morrer em defesa da lei. Era vulgar - demasiado vulgar -, uma vez que os grupos de fora-da-lei eram como pequenos exércitos, como regimentos em marcha, que se apoderavam de tudo o que podiam, tanto nos campos como das pessoas. Agora que subira mais um pouco da escada, Simon passaria a ser um alvo ainda mais óbvio para um qualquer ladrão de estrada equipado com um arco e uma flecha. Estaria interessada em que ele assumisse essa responsabilidade extra?
Soltou outro suspiro e soube que as especulações eram inúteis. O pai fora apenas um agricultor, um homem local chamado para fazer parte de um grupo de perseguição. Agora, Simon era almoxarife. E então? Talvez isso significasse que voltaria a ser promovido em breve e afastado dos perigos da imposição das leis e dos controlos. Estaria em maior perigo do que o seu pai estivera? Olhou novamente para a sala, pensativa, já a calcular os custos da mudança e a avaliar o que poderia ser deixado para trás.
Simon olhava-a com um certo grau de trepidação enquanto lhe seguia os olhares em torno da sala. Pressentia com facilidade quais eram os seus sentimentos e soube que faria tudo o que pudesse para evitar que a mulher ficasse deprimida... mesmo que isso significasse a rejeição do cargo em Lydford. Se ela sentisse que não poderiam ser felizes no castelo... então teriam de ficar ali, naquilo que era a sua casa. Destruiria as suas perspectivas para o futuro mas havia muito que decidira, quando a escolhera para esposa, que Margaret era a coisa mais importante da sua vida. Nenhum trabalho poderia servir de substituto para a felicidade da mulher.
Por isso, foi com uma absoluta satisfação que viu os olhos dela a errarem novamente com uma calma aceitação. Soube, sem lho perguntar, que Margaret fizera uma escolha e que a aceitara.
Os dois dias seguintes passaram-se num verdadeiro rodopio enquanto Margaret começava a organizar a mudança e a tratar de arranjar uma carroça que os ajudasse a transportar os pertences. Hugh foi mantido atarefado com a torrente constante de visitantes que apareceram para os congratular. Aparentemente, a notícia divulgara-se rapidamente desde que ele e o almoxarife haviam chegado a casa, pelo que os agricultores e proprietários de terras que passavam por ali para lhes desejar a melhor das sortes pareciam nunca mais acabar.
Simon sempre se espantara com a rapidez com que as notícias se espalhavam numa área tão vazia como aquela. No total, o Devonshire continha poucos milhares de almas e no entanto parecia que todo o condado ficara a par da novidade no preciso momento em que ele próprio fora informado a respeito da sua nova posição. Chegou até a receber uma mensagem do bispo de Exeter, em que este expressava satisfação pela nova colocação.
Todavia, Simon começou rapidamente a sentir-se nervoso por se ver obrigado a ficar dentro de casa por causa do contínuo fluxo de visitantes. Agora, com as visitas a chegarem a todos os minutos do dia e depois de ter perdido tanto tempo em viagem, sentia-se como se lhe estivessem a roubar a vida. Já por três vezes prometera brincar com a filha mas acabara por se ver impedido de o fazer pela chegada de mais alguém que lhe queria dar os parabéns, e Edith, depois do último cancelamento, obrigara-o a prometer que passaria um dia inteiro com ela, sem interrupções. Fizera-lhe a vontade, principalmente para impedir o inevitável ataque de choro.
Ainda não conseguira ter tempo para ir cavalgar um pouco. Contudo, ao terceiro dia depois da sua promoção se ter tornado do conhecimento público, o dia em que deveria ignorar todos os visitantes para ficar em casa com Edith, Simon selou o cavalo de manhã muito cedo, antes da criança se levantar, e saiu para tentar descontrair os músculos tensos e conseguir alguns momentos de liberdade antes de honrar a promessa feita.
Era ainda cedo quando saiu, apenas um pouco depois da madrugada, e começou por cavalgar lentamente para aquecer tanto o animal como ele próprio antes de se lançar nalgum tipo de exercício mais a sério. Subiram tranquilamente a colina por trás da casa, seguindo os velhos trilhos por entre os campos, sob o fresco do princípio da manhã. A noite trouxera mais chuva e teve de patinhar por cima de poças e de pequenos riachos enquanto avançava pelos estreitos caminhos que separavam os campos dos bosques. Quando chegou ao alto da vertente virou para oeste e seguiu o alto da elevação durante um par de quilómetros até chegar ao alto espinhaço de terra que apontava para as charnecas do sul, já a avançar num meio galope fácil. Parou por um instante, um instante em que ele e o cavalo se mantiveram imóveis, e Simon saboreou a antecipação já com um certo brilho no rosto por causa do passeio até ali. Depois, com uma careta semelhante à de um garoto traquinas, olhou em volta e para trás para se certificar que ninguém o via, chicoteou o cavalo e lançou-o a galope.
Correram ao longo do trilho, com o pesado animal a patinhar na água enlameada que os rodeava por todo o lado e salpicando-os a ambos, contentes com a súbita explosão de energia, gozando a sensação de se atirarem para a frente furiosamente, à maior velocidade possível por cima do caminho irregular, com o vento frio a agitar-lhe os cabelos e a puxar pela capa de Simon. Lançaram-se pela descida, matraqueando no trilho como um cavaleiro e a sua montada a lançarem-se para uma batalha, sem pensar em mais nada excepto no prazer da corrida.
Abrandaram na extremidade do caminho, com Simon a puxar as rédeas suavemente para abrandar o grande cavalo e para impedir que este se cansasse excessivamente, e passaram gradualmente para uma confortável marcha a passo. Quando chegaram a Copplestone, uma pequena aldeia abraçada às terras florestais e à charneca de Dartmoor, a única evidência que ainda restava daquele galope era o grande sorriso de puro prazer no rosto do almoxarife. Penetraram pachorrentamente na aldeola, um antigo povoado que jazia a cerca de cinco quilómetros a oeste de Crediton, no local onde a estrada para Oakhampton se bifurcava, com um dos braços a conduzir para norte, até Barnstaple. Também existiam ali vários pequenos trilhos que seguiam para sul, pelo que Simon enfiou por um deles e vagueou sem destino durante alguns quilómetros, com os olhos postos nas charnecas que tinha pela frente.
As superstições locais sempre tinham deixado implícito que as charnecas eram pouco amigáveis para os homens e vistas dali, de baixo para cima, compreendia por que razão as pessoas tinham essa sensação. As serranias cobertas de mato pareciam estar a vigiá-lo enquanto cavalgava. Não havia dúvidas de que eram impressionantes, erguendo-se no horizonte à sua frente como grandes bestas, mas não possuíam a aura de maldade concentrada que Simon conseguia pressentir nos lobos e noutros animais. Sim, havia ali uma malevolência, sentia-a, mas era a crueldade despreocupada e sem sentimentos de um vasto ser que nada temia da parte de criaturas mais pequenas. Tinha a sensação de que as charnecas o olhavam tal como um homem podia olhar para uma formiga e que, tal como esse homem, sabiam que o podiam esmagar sem sequer darem por isso.
Simon estremeceu ante aquele pensamento e virou rapidamente para este, afastando-se das charnecas. Podia ir tão longe como Tedburn St. Mary, virar para norte e seguir para casa.
Agora, sentindo-se mais descontraído depois de ter queimado parte da sua frustração, bem como confortavelmente sentado no cavalo, deixou que a mente vagueasse. Ao princípio os seus pensamentos referiram-se apenas à próxima mudança e à alteração de circunstâncias que a mesma iria provocar mas depois, enquanto oscilava de um lado para o outro sobre o dorso do animal, também começou a pensar nas pessoas que encontrara na estrada.
Estava interessado em Sir Baldwin. O cavaleiro parecia-lhe tão mundano, tão experiente, que se tornava fascinante para um homem como Simon, que nunca estivera a mais de alguns dias de viagem de Crediton. Simon ansiava por o pôr a falar a respeito das suas viagens, por descobrir onde ele estivera, o que vira e em que batalhas combatera, porque era óbvio que estivera envolvido em várias. Tinha a arrogância e o orgulho de um guerreiro, embora parecesse querer manter essa arrogância controlada e quase escondida. No entanto, à volta daquele cavaleiro também havia uma aura de bondade e de humildade que, de acordo com a experiência do almoxarife, pareciam estranhamente fora do seu lugar. Os cavaleiros raramente eram humildes ou pios... e quando o eram tratava-se geralmente de uma piedade calculista, que tinha mais a ver com uma tentativa para conseguirem a salvação face às ofensas prévias cometidas contra Deus do que com um verdadeiro desejo de seguirem os ensinamentos de Cristo.
Em Tedburn St. Mary, Simon virou para a estrada de volta a Crediton. A súbita semelhança entre aquela estrada e a outra, perto de Furnshill, fez com que os seus pensamentos se virassem para o grupo de monges... e quando chegou a casa ainda estava a pensar no assustado abade.
Ficou surpreendido ao ver um cavalo amarrado à sua porta. Ergueu as sobrancelhas num gesto de vago interesse enquanto conduzia o cavalo para o estábulo antes de ir verificar quem poderia ser - sem dúvida mais um visitante para lhe dar os parabéns e desejar boa sorte -, e acabara de lhe remover a sela e o cobertor que se encontrava por baixo quando Hugh apareceu para se encarregar da tarefa.
- Está ali um homem para lhe falar.
- Oh... - Simon espreitou para a casa por trás das suas costas e encolheu os ombros, desinteressado. - Mais alguém para me perguntar como estou e quando vou para Lydford?
- Não, é um homem de Blackway. Morreu lá alguém durante a noite passada.
Simon olhou-o por instantes, sem compreender, mas depois enrolou o cobertor, atirou-lho e correu para casa.
No interior, houve um homem que se pôs de pé num salto quando o viu entrar. Estivera sentado no banco com as costas para a porta, obviamente a aquecer-se junto do fogo e derrubou um jarro de cerveja quando o almoxarife entrou.
Soltou um audível grunhido de mortificação mas Simon não teve a certeza se o homem o fizera por ter parecido desajeitado ou por causa da perda de cerveja.
O visitante era um jovem delgado e quase efeminado, com feições pálidas e finas por baixo de uma massa de cabelos cor de rato. Tinha um rosto quase tão aguçado como um machado, mas sem qualquer sugestão de desonestidade ou de astúcia de fuinha. Era pura e simplesmente o tipo de cara criado de propósito para um homem muito magro, que nunca seria um soldado e nunca partiria para combater. Aquele homem ia passar toda a vida na segurança rural da casa do sacerdote, sem provavelmente nunca se afastar mais do que 25 quilómetros de casa. O rosto pareceu avermelhar-se-lhe sob o olhar fixo do almoxarife, não por medo mas por embaraço por ter derrubado o jarro, quase como se esperasse que lhe gritassem. Todavia, Simon sorriu-se para ele, para lhe acalmar os nervos tão obviamente excitados. O rapaz devolveu-lhe o sorriso e Simon ficou com a certeza de o conhecer de qualquer lado... Havia algo na sua boca fina e descolorida quando esta se lhe estendia pelo rosto... Onde fora que já vira aquela cara? Oh, claro! Trabalha para Peter Clifford, o sacerdote de Crediton! Era um dos moços de estrebaria, não era? Simon avançou para o banco, fez sinal ao jovem para se sentar antes dele próprio o fazer e voltou a examiná-lo.
- Chamas-te Hubert, não é verdade?
- Sim, almoxarife, sou Hubert. Trabalho para Peter Clifford, que me enviou para o vir buscar logo que ouviu falar naquilo...
- Então, o que foi? Transmite-me o recado...
- Oh, senhor, foi horrível! Apareceu-nos um homem logo ao princípio da manhã - era Black, o caçador -, que também vive para aqueles lados. Parece que houve um fogo na casa de Harold Brewer, logo às primeiras horas da noite passada. Fica à beira de Blackway, a sul de Crediton. Black disse que os homens tentaram apagar o fogo, mas que nem sequer se conseguiram aproximar durante algum tempo por ser demasiado quente...
- Bom? E por que me vieram contar isso?
- Porque o corpo do Brewer, o homem que lá vive, estava no interior da casa...
Já passava bastante do meio-dia quando Simon chegou à pequena aldeia de Blackway, cerca de 19 quilómetros a sul e oeste de Crediton. Parecera-lhe que não existia uma grande necessidade de se apressar porque era provável que já se encontrasse muita gente em volta do local, não apenas o sacerdote bem como todos os aldeões, para além de um bom número de outros. Quando ocorria um desastre Simon ficava sempre espantado com a velocidade demonstrada pelas pessoas que apareciam para olhar a cena com as bocas abertas ante o infortúnio pessoal de outro homem, quer esse infortúnio tivesse sido causado por acidente ou pela malícia de um vizinho.
Os sinais de que algo acontecera eram óbvios mesmo a uma grande distância. Quando se aproximou da velha Weatherby Cross, onde a estrada de Crediton era cortada pelo trilho Moretonhampstead que seguia para Exeter, tornou-se claro que não fora a primeira pessoa a passar ali naquele dia. No seu melhor, o trilho estava sempre muito gasto e sulcado, uma vez que era muito popular entre os viajantes que se dirigiam para os portos da costa. Contudo, naquele princípio de tarde, o estado do pavimento era ainda pior do que de costume.
Em geral, o caminho de terra, com os profundos sulcos causados pelas rodas das carroças, mostrava-se suficientemente sólido. Contudo, agora, depois de tantos meses de chuvas, era um verdadeiro lamaçal. A lama colava-se aos cascos do cavalo, que produziam sons de sucção quando o animal libertava as patas da terra vermelha-acastanhada num esforço para seguir em frente, e só a passagem de um grande número de pessoas poderia ter destruído tão rapidamente a frágil superfície. Simon praguejou por entre os dentes e conduziu a montada para a berma do caminho, onde as ervas prometiam uma maior solidez e uma oportunidade para prosseguir com menos incómodos. Foi assim, com passos cuidadosos, que continuaram o longo e doloroso trajecto até à aldeola.
Blackway era uma minúscula povoação que jazia escarranchada sobre a estrada para sul como se tivesse caído ali, como um brinquedo largado por um membro da antiga raça de gigantes que se supunha ter habitado a área antes da chegada do homem. Era formada por um punhado de casas dispostas de cada lado da estrada, não casas compridas e modernas como a de Simon, com os seus reforços de madeira, mas sim velhas cabanas com paredes de taipa. O almoxarife recordava-se claramente daquele lugar - tinha lá estado recentemente quando ia a caminho da costa para visitar um mercador, a mando do seu senhor -, e tentou recordar qual seria a casa de Harold Brewer.
A aldeia tinha umas sete ou oito propriedades, uma estalagem e uma pequena igreja onde os serviços eram prestados por um capelão nomeado por Peter Clifford que era, nominalmente, o prior da paróquia. Simon virou os seus pensamentos para a última vez que se encontrara ali e conseguiu recordar-se com clareza da disposição geral do lugar. O caçador, John Black, morava na primeira casa à direita, uma construção simples com uma única divisão, tal como todas as outras, excepto ser mais pequena do que a maioria. Black vivia como caçador, apanhando e matando a sua própria comida, para além de ser pago pela destruição dos lobos e de outros animais nocivos existentes na zona. Era conhecido pela sua habilidade para seguir animais ao longo de quilómetros nas terras estéreis da charneca. Por isso mesmo, quando os Courtenay se encontravam na área era frequente que o chamassem para os ajudar a apanhar as peças de caça. Com um tal estilo de vida, o homem tinha pouca ou nenhuma necessidade de uma casa maior e bastava-lhe um lugar suficientemente grande para a mulher e os dois filhos.
Para lá dessa casa ficava a estalagem, a primeira das casas de maiores dimensões. Simon não sabia quem vivia ali mas supunha que a mesma, no passado, fora propriedade de Brewer. Seguiam-se as principais casas da aldeia, com a de Brewer na extremidade mais a sul. Tanto quanto se lembrasse, só havia uma outra um pouco mais adiante. As casas eram todas rodeadas por uma pequena área de terras comunitárias, em volta das quais a estrada descrevia uma curva tão apertada como o meandro de um rio, talvez porque acompanhava o curso do ribeiro, o Blackwater, que descia a gorgolejar até Dartmoor.
Na extremidade norte da aldeola, onde se erguia a casa de Black, o terreno era espessamente arborizado. Para sul, a terra abria-se para permitir um panorama que alcançava até Dartmoor, e no interior da própria aldeola existia um agradável equilíbrio entre os terrenos arborizados e os campos abertos. Uma antiga e estreita ponte estabelecia a ligação entre as duas partes do povoado e também passava por cima do novo esgoto que escorria para o ribeiro. Dava à aldeola um aspecto muito simpático e rural, mas quando Simon lá chegou, pelo norte, o que mais lhe chamou a atenção foram as grandes árvores da floresta por trás das casas. Pareciam-lhe quase ameaçadoras por causa da maneira como se erguiam por cima das habitações humanas.
Simon ainda se encontrava a quase um quilómetro de distância quando começara a ver a espessa coluna de fumo que se espalhava pela paisagem à sua volta, para além de ter ganho consciência do cheiro a queimado que fora aumentando à medida que se aproximara da aldeia.
Parecia-lhe ofensivo que um lugar tão pacífico e tranquilo tivesse sido violado pelo fogo, mas tratava-se, tal como Simon sabia demasiado bem, de uma ocorrência muito comum. As velhas casas não possuíam chaminés para permitir a saída do fumo e das fagulhas, afastando-as dos telhados de colmo. Em vez disso, baseavam-se na altura dos telhados para protecção. Se todas possuíssem chaminés, então o número de incêndios nas casas reduzir-se-ia drasticamente porque as fagulhas iriam cair no exterior dos telhados de colmo, quase sempre húmidos. Tal como as coisas estavam, as fagulhas que se erguiam das chamas subiam até ao interior do telhado, onde se alojavam com demasiada frequência... e de vez em quando faziam com que o colmo do interior começasse a arder. Quando isso acontecia, tudo o que as pessoas podiam fazer era sair de casa o mais depressa possível e esperar que os baldes de água atirados para o telhado viessem a salvar a parte principal da casa.
Simon verificou, ao cavalgar através do centro da aldeia, que daquela vez não fora esse o caso. Para chegar ao local tinha de passar pela estalagem, para depois acompanhar a estrada onde esta descrevia uma preguiçosa curva para a esquerda, na direcção da charneca. Quando o fez, ficou virado para sul e a casa tornou-se visível. Simon deteve-se e ficou imóvel ao abarcar a visão que tinha na frente dos olhos chocados.
A velha casa encontrava-se quase completamente destruída. O telhado desaparecera. Muito provavelmente, assim o supunha, caíra quando as chamas tinham acabado por se tornar demasiado quentes. A parede lateral do seu lado ainda permanecia visível, mas a outra extremidade, a que se encontrava mais longe da estrada, abatera e arrastara consigo uma grande secção da parede. Até Simon, que pouco sabia de construção de casas, conseguia perceber que os prejuízos eram irreparáveis.
Esporeou o cavalo para um trote lento e continuou a avançar. A toda a sua volta jazia uma cobertura de fuligem que era surpreendentemente espessa sob os cascos do cavalo. De acordo com a experiência de Simon, até o mais quente dos fogos produzia menos fuligem e descobriu-se a pensar no chão e no que poderia ter produzido uma camada tão espessa até ouvir chamar pelo seu nome. Levantou os olhos e viu o amigo Peter Clifford no meio de um pequeno grupo, não muito longe do que já fora a porta principal da casa.
Peter encontrava-se de pé e conversava com um grupo de locais, um dos quais Simon reconheceu imediatamente: era Black, o caçador. Os outros eram gente que nunca vira, ou pelo menos assim lhe pareceu, mas presumiu que deviam ser habitantes da aldeia. Havia um grande número de homens a andar por ali, de um lado para o outro, e isso fazia com que o pequeno grupo se destacasse. A pequena aldeia não podia abrigar nem metade das pessoas que olhavam, de boca aberta, para a casa destruída.
Para desgosto de Simon, havia na aldeola uma atmosfera quase de feira, como se o fogo tivesse sido feito deflagrar como uma espécie de celebração inaugural, uma fogueira alegre para dar início às festividades. Havia gente de toda a espécie a olhar, fascinada, para os bocados de paredes que ainda se mantinham de pé como se fossem as presas de um qualquer enorme animal. Via ali uma família que conhecia de Crediton, um mercador, a esposa e o filho pequeno, que apontavam e conversavam enquanto a criança se ria e brincava, como se aquele fosse mais um lugar preparado para seu divertimento e não a cena de uma morte recente. Simon fungou de desagrado, desmontou e encaminhou-se para o sacerdote.
- Boa tarde, Peter. Que aconteceu aqui?
O prior da igreja de Crediton era um homem delgado e ascético, no final da casa dos 40. Estava vestido de uma maneira informal, com uma túnica leve que lhe chegava aos joelhos, por cima de umas quentes calças de lã. Os olhos brilhavam-lhe de inteligência no rosto pálido e tinha uma pele suave e clara por causa das muitas horas passadas dentro de casa, a ler e a escrever. O cabelo que Simon recordava como sendo ruivo-claro tinha agora uma desbotada cor de palha, e o rosto estava marcado, mas não pelos problemas. As linhas que o sulcavam não tinham sido causadas pela dor ou medo, mas por demasiadas gargalhadas e pelo gozo da vida. Todas aquelas rugas nos lados dos olhos e os profundos pés-de-galinha tinham a ver com a alegria. Agora, contraíam-se em pregas de prazer por voltar a ver o amigo.
- Simon! - O sacerdote estendeu-lhe a mão. - É bom ver-te! Vem daí! Suponho que já sabes por que te chamámos?
O almoxarife acenou.
- Creio que estava um homem lá dentro quando a casa se incendiou?
- Sim... - interveio John Black, o caçador. - Vi o incêndio quando regressava do meu trabalho, a noite passada. A casa já estava completamente em chamas.
Mantinha-se firmemente assente nas pernas e era um homem compacto, cheio de confiança em si mesmo. A estrutura resistente do seu corpo dava a sensação de ser capaz de perseguir um animal de um extremo do reino ao outro, a pé, e a sua fluidez de movimentos levava Simon a pensar num lobo, como se o facto de caçar criaturas selvagens o tivesse levado a absorver algumas das suas características. Tinha um rosto quadrado, achatado e sólido, tão intransigente como uma placa de granito, e uns olhos que brilhavam com um tom escuro. Por cima das espessas sobrancelhas, que desenhavam uma linha contínua ao longo da testa, havia cabelos de um negro profundo, quase de corvo, que pendiam em madeixas escorridas em volta do rosto sério.
- Por que pensaste que o Brewer estava lá dentro? - perguntou Simon.
- Ao princípio nem sequer pensei nisso. Julguei que estivesse noutro sítio qualquer. Porém, acabei por ver o corpo quando comecei a tentar apagar o fogo e consegui espreitar para o interior. Ainda continua na cama.
Simon lançou uma olhadela involuntária para a casa, quase como se esperasse ver uma figura a erguer-se lá dentro. Franziu a testa ante aquele devaneio supersticioso e voltou a concentrar-se no testemunho do caçador.
- Logo que o avistei, disse aos outros para continuarem a apagar as chamas e fui imediatamente à procura do prior.
Simon acenou, distraído, e olhou para o sacerdote.
- Sim, o John apareceu um pouco depois da madrugada. Ouvi o que tinha para me contar e pedi ao Hubert para te ir chamar. Depois vim directamente para aqui, para ver se poderia ajudar. Quando cá cheguei já as chamas tinham sido apagadas e ficámos à espera que a casa arrefecesse para irmos buscar o corpo do pobre homem.
- Quanto tempo acham que vamos ter de esperar? - perguntou Simon, espreitando os destroços.
Black virou-se para lhe acompanhar o olhar.
- Creio que ainda temos de esperar um bocado. Já temos um morto... e é preferível não arriscar outros para irem buscar o corpo. Podemos deixá-lo lá ficar até termos a certeza de que é seguro.
Simon voltou a acenar e encaminhou-se para a casa, para a poder examinar mais de perto. A fuligem e cinzas por baixo dos seus pés pareciam-lhe suaves e moles, e não duras e secas como as cinzas da lareira da sua casa. O que poderia ter produzido resíduos tão macios como a neve? Havia várias pessoas de pé a olharem junto das paredes, e Simon teve de empurrar algumas para fora do seu caminho, fitando-as enquanto murmuravam, zangadas. Ignorou as queixas, avançou até à porta da frente e espreitou para o interior.
A porta era um destroço calcinado e quebrado, pendurada de qualquer maneira pela dobradiça inferior. Lá dentro, o entulho ainda escaldava e sentiu os carvões brilhantes a aquecerem-lhe o rosto, tão quentes como o Sol de um dia de Verão. Ao princípio teve dificuldades para distinguir fosse o que fosse porque o interior parecia ser formado por uma massa de pretos e cinzentos com as mais diversas tonalidades, mas sem características definidas que pudessem diferenciar os montões de destroços. Os madeiros do telhado deviam ter caído de um modo brutal, pensou. Se havia alguém por baixo, não tivera a menor hipótese de sobrevivência quando aquele enorme peso lhe caíra em cima. Via a maciça viga central a jazer no centro da sala, com uma das extremidades ainda apoiada na parede e a outra pousada no chão. De súbito, antes que o pudesse evitar, o vento soprou uma súbita rajada do interior da casa, directamente para a sua cara. Apanhado de surpresa, desprevenido, nem sequer lhe passou pela cabeça tentar evitá-la e aspirou o mau cheiro.
Era um vento sujo, carregado com um odor de morte que era quase como uma massa sólida e física, mas não só. O que se lhe agarrou à garganta e o lhe pôs os olhos a chorar não foi apenas o lembrete nasal de que havia um corpo lá dentro, mas sim as fezes queimadas, os restos dos excrementos do gado que vivera na casa com Brewer, uma porcaria de décadas que, tendo sido sujeita aos efeitos do fogo, parecia querer agarrar-se-lhe aos pulmões com tentáculos invisíveis, envenenados por uma virulência amarga. Ofegante, virou-se e começou a tossir, contorcendo-se miseravelmente.
Não conseguiu aguentar e afastou-se a cambalear, asfixiado, de volta ao local onde os outros se encontravam.
- Desagradável, não é? - disse Black num tom de conversa amigável, sorridente, como se estivesse apenas a fazer um comentário sobre o tempo.
Ainda a tossir, Simon lançou-lhe um olhar maléfico antes de pigarrear e cuspir, tentando limpar a garganta daquele sabor viscoso. Foi quando estava a cuspir com força que Baldwin Furnshill chegou.
Apareceu montado num enorme cavalo cinzento, com Edgar a segui-lo, como de costume, e envergava uma túnica branca com um pequeno emblema no peito que, mesmo àquela distância, Simon reconheceu como sendo o distintivo dos Courtenay. O cavaleiro calçava macias botas de couro e naquele dia parecia ter deixado a cota de malha e a espada em casa, embora ainda continuasse a usar a "misericórdia", a comprida faca de lâmina estreita que fora buscar o seu nome à tarefa para que era utilizada nas batalhas, uma vez que os cavaleiros se serviam delas para darem o golpe de misericórdia nos feridos caídos no campo de batalha.
Baldwin avistou o pequeno grupo de homens, esporeou o cavalo e dirigiu-se para eles, levantando um pouco as sobrancelhas no momento em que o almoxarife foi dominado por um novo ataque de tosse. Também podia ver que os outros homens tinham expressões sombrias e amargas. Sorriu para o sacerdote e para o caçador e fez um aceno de cortesia.
- Olá, meus amigos - disse. A seguir virou um sorriso perplexo para o almoxarife.
- Também vieste para olhares embasbacado para esta cena, Baldwin? - perguntou Simon, espreitando o cavaleiro por entre os olhos semicerrados e uma carranca de amargura. Seria que iria aparecer toda a gente dos arredores para ver aquilo? Parecia-lhe deprimente que até o seu novo amigo exibisse tendências mórbidas.
- Não, Simon. Tínhamos saído para cavalgar e quis certificar-me de que as pessoas daqui não precisavam de ajuda. Esta terra pertence-me, sabes? - Os seus olhos tinham um brilho escuro, como se estivesse prestes a mostrar-se ofendido com a atitude de Simon. Contudo, logo a seguir, observou a cena, viu as pessoas a apontar e a conversarem entre si. Pareceu compreender os sentimentos de Simon e esboçou um pequeno sorriso seco. - Disse-te que me iria interessar pelos meus servos, não é verdade? Como estão as pessoas que viviam ali?
- Era só um homem, graças a Deus! Porém, tanto quanto saibamos, ainda lá está dentro. Continua tudo demasiado quente para o irmos buscar - explicou Peter. - É uma tristeza, não é? Como se os pobres não fossem suficientemente miseráveis, ainda acabam por morrer queimados nas suas camas...
- Ora, ele não era assim tão pobre - afirmou Black, com um leve sorriso irónico enquanto Baldwin saltava com leveza do seu cavalo e atirava as rédeas a Edgar.
- Não? - Peter pareceu surpreendido e fez uma ligeira careta enquanto mirava o caçador. - Sempre me pareceu ser ou, pelo menos, sempre disse que o era.
- Ah, pois sim. Dizia que não tinha dinheiro quando alguém lho pedia ou implorava uma esmola. No entanto, as pessoas daqui interrogavam-se sobre como podia comprar tanta cerveja ou sustentar uma parelha de bois, e como era capaz de se livrar das obrigações de servo sempre que o desejava.
- Que queres dizer? - perguntou Simon. - Era um ladrão, ou algo do género?
O caçador soltou uma pequena gargalhada.
- Oh, nada disso! Não me parece. Creio que a velha história que se contava a seu respeito era verdadeira. Penso que ganhou muito dinheiro quando combateu nas guerras de há 25 anos, e que passou a viver desse dinheiro. Conta-se que ali dentro, por baixo do soalho, havia uma caixa de metal cheio de moedas... - continuou, agitando um dedo na direcção da casa. - Vão ter dificuldades para manterem as pessoas afastadas enquanto não escavarem todo o chão. Depois disso, se não encontrarem nada, as pessoas vão começar a escavar nas terras que eram dele.
Baldwin encarou-o com o rosto contraído.
- Não quero ver isso a acontecer, se o puder evitar. Simon, queres que coloque aqui um ou dois homens a vigiarem o local até se poder saber se há ali algum dinheiro? Temos de garantir que seja recuperado para os familiares deste homem. Sabem se tinha alguns parentes? Segundo julgo perceber, vivia sozinho naquela casa, não é verdade? - Olhou para Peter, mas o sacerdote limitou-se a sorrir e a encolher os ombros, olhando para o caçador. Para o cavaleiro, era óbvio que o homem nada sabia sobre a vida privada do morto.
- Estava sozinho quando eu aqui cheguei - disse Black, que puxou os cantos da boca para baixo e fez sobressair o lábio inferior com o esforço para se recordar. Franziu a testa para os sapatos e acrescentou: - Tenho uma vaga ideia de ter ouvido dizer que ele tinha um filho em Exeter. Posso tentar saber se há alguém que saiba alguma coisa a respeito de um rapaz.
- Sim, trata disso, Black - respondeu Simon.
O cavaleiro pareceu ficar a olhar para o caçador com um ar especulativo.
- Foste o primeiro a ver o fogo?
- Sim, senhor. - O caçador parecia estar disposto a tratar o cavaleiro com o devido nível de respeito, tratando-o como a um superior, embora tivesse encarado o sacerdote e o almoxarife como iguais. Simon pensou que isso talvez se devesse ao facto de, como caçador, o homem ter regras próprias e capacidades ocultas. Porém, um cavaleiro era uma coisa diferente. Um cavaleiro não detinha segredos, não era um mestre de conhecimentos ocultos. Um cavaleiro era a mais secular de todas as criaturas, que tomava aquilo que queria. Se lhe perguntassem com que autoridade tinha a presunção de se apoderar do que queria, qualquer cavaleiro, qualquer membro das mais antigas famílias normandas, puxaria imediatamente da espada e diria: "Este é o meu direito. Foi com esta espada que os meus senhores tomaram estas terras, e é com esta espada que tomarei o que quero!" Simon suspirou e concentrou-se na conversa.
Baldwin exibia um meio sorriso para o caçador, enquanto as leves rugas da sua testa indicavam que estava a pensar -, mas não a duvidar da verdade -, na narrativa de Black enquanto este lhe explicava os acontecimentos da noite anterior. Quando o caçador se aproximou do fim da sua história, Baldwin pareceu recolher-se para dentro de si mesmo. Encostou um braço ao peito, pousou o queixo e a boca na palma da outra mão e observou o caçador com uma sobrancelha levantada, como se tivesse dúvidas quanto a alguma parte daquela história. Black começou a tropeçar nas suas próprias palavras. Era óbvio que sentia as dúvidas a emanarem do cavaleiro, alto e trigueiro, e pareceu terminar com uma nota defensiva, quase como se desafiasse o cavaleiro a chamar-lhe mentiroso.
Quando finalmente se calou, o pequeno grupo ficou em silêncio por momentos como se tivesse consciência de que fora lançado um desafio silencioso, embora nenhum deles estivesse certo sobre quem o fizera ou porquê. Foi Baldwin quem quebrou o silêncio, num tom lento e meditativo.
- Muito bem. Então, o primeiro a ver o incêndio foste tu, num qualquer momento depois da meia-noite, não foi?
- Sim... - respondeu o caçador lentamente, obviamente a pensar. - Sim, creio que deve ter sido. Estive a montar armadilhas lá em baixo, junto à charneca e coloquei 20. Como só saí depois do escurecer, devo ter regressado depois da meia-noite.
O cavaleiro considerou a resposta com os olhos postos no chão, junto aos pés.
- Quando regressaste... de que direcção vieste?
Black apontou para a estrada para lá da aldeia e disse: - Dali. Da charneca, tal como disse.
- E para onde te dirigiste para dar o alarme? Com quem foste ter em primeiro lugar?
Black sacudiu o queixo na mesma direcção, para os lados da charneca.
- Com o Roger Ulton. Fiz a curva da estrada, além, e vi o incêndio... Não me pareceu valer a pena vir até aqui através da aldeia para depois ter de pedir a alguém para o chamar. Como a casa dele era a mais próxima, fui até lá e bati à porta para o acordar.
- E depois? - Os olhos calmos do cavaleiro estavam firmemente pousados no rosto do caçador.
- Depois? Vim para a aldeia, é claro. Bati às portas e acordei toda a gente para me ajudarem a apagar o fogo.
O almoxarife acenou. Os homens deveriam ter corrido para ajudar, ansiosos por apagarem as chamas antes que os ventos transportassem as fagulhas para as suas próprias casas e pusessem as outras propriedades em risco. Baldwin, com os braços cruzados sobre o peito, também pareceu concordar. Virou-se e observou a casa, ainda a fumegar, que se encontrava ali tão perto. Black olhou de uns para os outros antes de se começar a afastar lentamente como se tivesse sido mandado embora, e encaminhou-se para um pequeno grupo de aldeões para ir dar à língua.
Baldwin suspirou e deu um pontapé a uma pedra.
- É triste, não é? Um homem, na sua própria casa, provavelmente a dormir... e morre assim, sem mais nem menos. Deus! Espero, ao menos, que não tenha sofrido muito. - Suspirou, sentindo-se estranhamente triste por causa da morte daquele homem, alguém que nem sequer chegara a conhecer. Encolheu os ombros e pensou que devia ser por se tratar de uma morte aparentemente sem sentido. Não havia honra ou glória num fim como aquele e fora uma morte má e horrível. Lembrou-se do passado, pensou em todos os outros corpos negros e carbonizados que já vira e voltou a suspirar ao recordar as figuras contorcidas e torturadas, que pareciam sempre ter lutado contra a morte, esforçando-se por viver. Não era daquele modo que queria morrer...
- Sim, pois é... Tenho a certeza de que será feliz no sítio onde se encontra agora... - declarou Simon com reverência. - Que a sua alma descanse em paz.
Ficou surpreendido ao ver um estremecimento cínico na sobrancelha do cavaleiro, que lançou uma olhadela rápida para o almoxarife como se quisesse expressar dúvidas, o que deixou Simon um pouco chocado. Aquele homem podia ser um secular, um guerreiro... mas isso não era desculpa para a blasfémia! Encarou o cavaleiro e ficou espantado ao ver-lhe uma careta de auto-reprovação e embaraço, como se soubesse que Simon lhe captara os pensamentos e desejasse pedir desculpa pelos mesmos. Pareceu encolher muito ligeiramente os ombros, com um sorriso, como que para dizer: "Desculpa, não passo de um cavaleiro. De que estavas a espera?"
Aparentemente, Peter Clifford não reparara naquela comunicação silenciosa.
- Então, Baldwin, suponho que vais querer levar o melhor animal do homem?
- Como? - O cavaleiro virou-se, obviamente confuso.
- O animal. O tributo do defunto. Estas terras pertencem-te e era um dos teus servos. Podes escolher o seu melhor animal, tal como podes escolher o segundo melhor para pagar o funeral ao prior. O quê?! Não tinhas conhecimento dos impostos fúnebres?
O cavaleiro endireitou-se e olhou para o sacerdote com o rosto a exibir uma expressão de espanto absoluto.
- As cabeças de gado sobreviveram?! - acabou por perguntar.
- Claro que sim. Estão todas nas terras comuns. Os aldeões levaram-nas imediatamente logo que deram pelo fogo.
Baldwin virou-se para os restos calcinados e declarou:
- Gostaria de dar uma volta pela casa quando tiver arrefecido o suficiente. - Calou-se e afastou-se para ir falar com o seu servo. Simon viu-o a afastar-se e ficou a olhar para o cavaleiro enquanto perguntava a si mesmo qual seria o significado do comentário de Baldwin. A seguir, ao afastar os olhos não conseguiu evitar um súbito estremecimento, uma espécie de arrepio gelado, como que de medo, e o rosto ensombrou-se-lhe quando se virou para as ruínas fumegantes. Por que teria a sensação de que o cavaleiro tinha desconfianças quanto ao que, aparentemente, fora um acidente?
Passaram-se duas horas antes de se sentirem à-vontade para entrarem na concha enegrecida e ainda quente da casa incendiada. Black foi à frente, logo seguido por uma pequena equipa de habitantes do local, todos com panos colocados em volta das bocas por causa das cinzas. Simon, o sacerdote e o cavaleiro ficaram à espera junto à entrada, de onde podiam observar os homens que lá estavam dentro.
O corpo foi fácil de encontrar. Não fora atingido pela pesada viga de carvalho que caíra do telhado e continuava a jazer no colchão de palha que lhe servira de cama, perto da parede mais distante. Ao princípio, Simon não conseguiu ver grande coisa. A neblina provocada pelo calor distorcia-lhe a visão, havia pequenas nuvens de fumo a erguerem-se aqui e acolá dos carvões que ainda ardiam, e o próprio barrote tinha bocados de coisas queimadas ainda agarradas e obstruía-lhe a visão com a sua massa sólida, aparentemente pouco afectada pelas chamas que haviam destruído a casa à sua volta. Contudo, o pequeno grupo de Black caminhava com confiança no meio de toda aquela confusão e desolação. Seguiu ao longo do barrote, passou por baixo dele onde tinha uma extremidade ainda apoiada na parede e voltou para trás do outro lado do mesmo até ficarem em frente da porta onde jazia o simples colchão.
Simon ouviu-os a murmurar uma praga de desgosto e um pedido de ajuda quando se aproximaram do corpo. Não conseguiu impedir-se de pensar que aquilo lhe parecia estúpido. As paredes à sua direita tinham caído e não passavam de uma simples pilha de entulho. Os homens não tinham necessidade de entrar pela porta, a velha abertura na parede que fora construída há muitas décadas. Por que teriam entrado por ali? Por boa educação? Seria por respeito pelo morto que se tinham servido da porta por onde os convidados costumavam entrar, como se, ao fazê-lo, estivessem a obter a sua aprovação? Ou seria apenas por força de hábito que entravam por onde sabiam que existira uma porta, como se as suas mentes não fossem capazes de aceitar o facto de a casa ter ficado completamente modificada?
Baldwin permanecia a seu lado, mordiscando o bigode e franzindo a testa. Quando Simon o olhou de relance, ficou surpreendido ao verificar que os olhos do cavaleiro não seguiam, tal como os seus e os de Clifford, o avanço dos homens que se encontravam no interior. Em vez disso olhavam fixamente para a maciça porta do outro lado da casa, a porta para o estábulo.
Parecia perplexo com qualquer coisa, pensou Simon. Baldwin reparou no olhar de Simon e fez um sorriso envergonhado.
- Ando sempre à procura de complicações. Deve fazer parte da minha natureza... - declarou, virando-se para olhar o grupo no interior. Porém, Simon não deixou de reparar que, de vez em quando, os olhos do cavaleiro voltavam a desviar-se para a grande porta, como se fossem atraídos por ela contra a sua própria vontade.
Os homens pareceram necessitar de imenso tempo para retirarem o corpo. Rolaram-no para um velho cobertor, levantaram-no com um homem a pegar em cada canto e começaram a descrever o percurso sinuoso que os traria de volta ao exterior. Tinham de se esforçar por manter o cobertor esticado para que não tocasse nos carvões quentes que os rodeavam. A força necessária para o conseguir era evidentemente grande e fazia com que os homens se inclinassem, afastando-se do cobertor e uns dos outros enquanto se debatiam por cima do lixo e entulho, cambaleando e tropeçando à medida que avançavam. Passaram por algumas dificuldades quando tiveram de se dobrar por baixo da viga, mas acabaram por chegar a um acordo, após o que um dos homens passou para o outro lado - seria o Black? -, logo seguido por outro, com cada homem a cada canto do cobertor a dobrar-se à vez e passar por baixo da viga antes de se endireitar e esperar pelos companheiros. Depois, finalmente, avançaram para a saída e os outros recuaram para lhes darem espaço para passarem. Deixaram cair o cobertor com o seu conteúdo desagradável e fizeram-no com uma pressa irreverente enquanto se agarravam aos trapos que lhes tapavam as bocas a fim de poderem voltar a respirar o ar fresco, longe do mau cheiro e da poeira do interior da casa. O corpo rolou para fora do tapete e ficou a jazer de costas a meio metro dos homens que o aguardavam.
- É ele... - disse Black, antes de se afastar a cambalear e a tossir.
Simon viu o corpo e não conseguiu impedir um estremecimento de nojo e de dar um pequeno passo para trás. Depois, quando se tornou consciente das orações murmuradas por Clifford, sentiu-se envergonhado e voltou a aproximar-se.
O corpo enegrecido e arruinado era claramente o de um homem bem proporcionado, largo de ombros e relativamente alto. As suas roupas haviam ardido, ou pelo menos assim parecia, e o corpo permanecia rígido, como barro que tivesse ido ao forno. No entanto o almoxarife encolheu-se e foi obrigado a virar-se à vista do rosto, aspirando o ar profundamente numa tentativa para manter a bílis no seu lugar.
Baldwin sorriu quando viu Simon a virar a cara. Sabia que era natural quando se tratava de vitimas de chamas, mas aquela não era a primeira vez que o cavaleiro via corpos arruinados e queimados e ficou a olhar, reparando na posição das pernas com um desapego impessoal. Porém, quando estudou o rosto, o seu interesse aumentou repentinamente. Parecia não haver qualquer tipo de expressão precisamente onde seria de esperar ver uma dor agonizante nas feições contorcidas.
Intrigado, ficou a olhar para o corpo durante mais alguns instantes, para logo depois se virar para a casa. A seguir, tenso e ansioso, como um cão que tivesse apanhado um rasto, caminhou para a entrada da casa deixando Clifford e Simon a olharem-no, surpreendidos. O cavaleiro avançou rapidamente, entrou pela porta, colocou uma das mangas junto ao nariz e à boca e prosseguiu até ao meio da casa arruinada. Semicerrou os olhos e observou a viga e o lixo à sua volta. Tinha a certeza de que havia ali algo de errado. Todos os outros corpos que vira depois de um incêndio haviam revelado sinais da luta pela vida, dos desesperados esforços pela sobrevivência... e Brewer não tinha nenhum.
Parou e olhou para a porta do gado, onde a madeira, na extremidade da casa que quase não fora tocada pelas chamas, ainda mostrava as cicatrizes deixadas pelos cornos e cascos dos bois aterrorizados. A seguir deu alguns pontapés no chão e baixou-se, aparentemente a examinar uma qualquer porcaria no chão, antes de se levantar e sair novamente das ruínas, já a tossir.
Quando o cavaleiro deixara o grupo, o seu afastamento fizera com que Simon se virasse para o observar, e aquela indicação de que havia pelo menos uma pessoa que se sentia relativamente pouco afectada fê-lo tomar a decisão de arcar com as responsabilidades com mais dignidade do que aquela que exibira até ao momento. Endireitou os ombros e obrigou-se a baixar os olhos. Para sua surpresa, agora, depois do choque inicial, não se sentiu tão horrorizado e descobriu que podia olhar para o corpo com um certo grau de serenidade. Concluiu que, pelo menos, o homem não mostrava sinais de ter sofrido uma morte dolorosa. Os braços encontravam-se pousados ao lado do corpo e não contorcidos de esforço, as pernas permaneciam direitas e não encolhidas, num esforço para gatinhar para longe. Aparentemente, o homem falecera calmamente durante o sono. Simon sentia uma vaga tristeza, uma fugidia empatia pelo fim solitário daquele homem, e pouco mais. Contudo, a seguir, surgiu-lhe um pensamento que o chocou: por que fora que o homem não reconhecera o perigo, não acordara e tentara fugir? De certeza que não continuara a dormir durante o incêndio, pois não. A testa de Simon franziu-se ante aquela ideia.
A forma enegrecida também não parecia assustar Baldwin. O cavaleiro regressou e parou a olhar para o corpo, com as mãos nas ancas, como que a desafiá-lo a argumentar com ele. Interessado, Black aproximou-se do grupo, olhou para o corpo e depois para os homens que o rodeavam. Viu Baldwin a chamar a atenção dos olhos de Simon. - Parece muito descontraído, não é?... - perguntou o cavaleiro. Não se tratava de uma pergunta mas sim de uma afirmação seca e sem entoação, que não requeria uma resposta. Black viu Simon a olhar novamente para o corpo e a acenar, pensativo.
Clifford olhou de um para o outro com uma expressão de impaciência.
- Que querem dizer? Claro que está descontraído. Suponho que deverá ter morrido durante o sono. O fumo apanhou-o enquanto dormia.
Baldwin manteve os olhos postos nele enquanto dizia:
- Black?
O caçador grunhiu. Também ele mostrava um rosto franzido, interrogando-se sobre onde o cavaleiro quereria chegar.
- Black - continuou Baldwin - quantos dos bois deste homem morreram com ele?
- Nenhum, senhor. Os oito bois salvaram-se todos.
- E então? - perguntou Clifford, olhando do cavaleiro ao almoxarife. - Que tem isso de especial?
- E quanto aos outros animais?
- Também se salvaram a todos.
- Se se salvaram, então devem ter-se assustado com as chamas - declarou Baldwin num tom determinado. - Deves ter ouvido o barulho dos bois assustados. Não serias capaz de dormir no meio de tanto barulho, pois não?
Simon arriscou uma explicação:
- Bom, talvez tivesse sido asfixiado pelo fumo, ou...
- Ora, vamos lá! - Os dentes do cavaleiro brilharam por instantes num sorriso branco. - Os animais devem ter ficado aterrorizados ao primeiro sinal de chamas. Não continuariam a dormir até que a casa estivesse quase toda consumida. Acordariam logo que o incêndio se iniciasse. Se assim foi, então o homem também devia ter acordado. No fim de contas, dormia junto deles.
O sacerdote franziu a testa e abanou a cabeça.
- Ainda não estou a ver...
- É óbvio... pelo menos para mim... - ripostou Baldwin, repentinamente sério. - Penso que o homem já estava morto antes do incêndio começar. Creio que foi assassinado e que atearam o incêndio para ocultar o crime.
Black reparou que Simon era o que parecia aceitar aquela afirmação com mais calma. Enquanto os outros ficavam de boca aberta, o almoxarife pensava no assunto, olhava para o cavaleiro, espreitava para a casa, coçava a cabeça e fazia caretas para o chão.
- Nesse caso, o que sugere que façamos, Sir Baldwin? perguntou Clifford, com a consternação a esganiçar-lhe a voz. Baldwin lançou uma olhadela a Simon.
- Isso é com o almoxarife, não é?
- Não vejo como provar que já estava morto... - afirmou Simon, irritado - a não ser que alguém o tivesse visto quando... - A voz morreu-lhe na garganta. - Seria possível que alguém tivesse visto alguma coisa? Deus do céu! Tinham acabado de lhe confiar o cargo e aquele cavaleiro já pensava ter descoberto um crime! Obrigou os seus pensamentos a regressarem ao problema que tinha entre mãos e murmurou: - Nem sequer sabemos se foi assassinado. Não poderá ter sido um acidente?
- Não me parece - respondeu Baldwin, pensativo. - Os bois devem ter entrado em pânico logo que o incêndio se iniciou. Acho que isso é óbvio. Se estivesse a dormir, o barulho acordá-lo-ia rapidamente e não o teríamos encontrado na cama. O corpo estaria perto de uma porta ou, no mínimo, a caminho de uma saída. Não vejo nenhum motivo que o fizesse regressar à cama depois de compreender que havia um incêndio. Seria inconcebível. Por isso, os bois não o acordaram.... e se não o acordaram foi porque já estava morto. Recuso-me a acreditar que haja um homem com um sono tão pesado que não oiça oito bois a escoucearem tão perto dele!
- Mesmo assim, senhor, tudo isso não passa de pressupostos. Como podemos ter a certeza? - perguntou Clifford baixinho.
- Há outra coisa que me leva a desconfiar - declarou o cavaleiro. - Quando vais para a cama, como preparas a lareira?
- Ora, ponho-lhe mais lenha - respondeu Simon encolhendo os ombros. - Certifico-me de que tem lenha suficiente para continuar a arder durante a noite.
- Exacto, pões-lhe mais troncos para que não se apague. O fogo na lareira de Brewer estava demasiado baixo. Tem aspecto de não ter sido tocado desde a manhã, o que parece indicar que não a preparara para a noite, mas também que era improvável que pudesse soltar fagulhas que atingissem o telhado. O fogo estava demasiado baixo. Tenho a certeza de que o mataram. A questão, agora, é esta: quem o fez?
Dirigiram-se todos para a estalagem e sentaram-se nos bancos na frente da mesma enquanto esperavam pela comida. Dali podiam ver em ambas as direcções ao longo da escada, para sul e oeste do esqueleto vazio e queimado da casa de Brewer, e para norte e leste até à de Black. Na frente deles, a estrada formava a fronteira avermelhada e enlameada das pequenas faixas de campos onde as famílias da aldeia cultivavam os seus produtos naqueles dias em que não tinham responsabilidades para com os campos pertencentes à mansão do senhor da terra.
O Sol já ultrapassara o zénite e deslizava lentamente através de um céu que, pelo menos daquela vez e quase miraculosamente, estava livre de nuvens. O seu brilho iluminava o cenário com um esplendor suave. Na frente deles, do outro lado da estrada, encontrava-se a vala do esgoto, mas para lá dela via-se o ribeiro com as pedras achatadas que formavam a ponte que os atravessava aos dois, e do outro lado ficavam os campos.
Estes quase pareciam ter sido isolados de propósito para ajudarem a estalagem, dando-lhe um bom aspecto. Era como se irradiassem para o exterior com o edifício da estalagem no seu centro, e as cores - o vermelho suave da terra, o branco-amarelado das culturas mais antigas e o verde das ervas -, pareciam querer dar ênfase à natureza rural da cena. Para lá dos campos, as árvores voltavam a apoderar-se da paisagem. A área era completamente dominada pelos grandes carvalhos, faias, olmeiros e plátanos, que se erguiam, com um à-vontade indiferente, mesmo à beira das habitações. Quanto tempo, interrogou-se Simon, quanto tempo antes daquelas árvores serem abatidas para que as faixas de terreno se expandissem mais para o interior da floresta? Quanto tempo antes do desenvolvimento de novos campos de cultura que expulsem as árvores, para que esta pobre gente possa cultivar mais comida e não esteja dependente de tão-pouco? Porém, ao olhar para o anel de troncos, perguntou a si mesmo se algum dia poderiam ser eliminados. Pareciam-lhe demasiado substanciais, demasiado maciços para que os minúsculos humanos os pudessem destruir.
Black concordou em juntar-se a eles, embora contra vontade, e instalou-se entre Simon e o sacerdote enquanto Baldwin se sentava num banco em frente deles. Edgar manteve-se a alguma distância, como de costume, com os olhos a saltitarem sobre os homens que se encontravam com o seu amo.
- É na verdade muito simples - dizia Baldwin. - Conversamos com as pessoas que estiveram aqui ontem e tentamos perceber quem poderia ter razões para matar esse tal... Brewer.
- Mas, há aqui montes de pessoas, senhor... - Protestou Simon. - Não vai querer falar com todas elas, pois não?
- Sim - O tom de voz era inflexível. - Temos de o fazer. Se eu estiver certo, foi assassinado um homem. Temos a obrigação, no mínimo, de descobrir por que o mataram. Black? - O caçador sobressaltou-se ao ouvir o seu nome. - Sabes se havia algum motivo para que matassem este homem? Há alguém na aldeia que o odiasse o suficiente para o assassinar? É incrível que Brewer pudesse ter sido assassinado.
Baldwin tomou um longo gole de cerveja e pousou a caneca no chão a seu lado, com todo o cuidado, antes de se inclinar para a frente com as mãos unidas a oscilarem entre as pernas abertas, sempre com os olhos postos em Black.
- Fala-me das outras pessoas da aldeia. Quantas famílias há aqui?
- Oh... sete. Sete famílias em sete casas. Claro que também há filhos adultos num par delas. O Thomas tem dois filhos suficientemente crescidos para já terem casas suas, tal como o Ulric.
- Compreendo. Bom, fala-me desse tal Brewer. Como era ele?
Black lançou uma olhadela para o sacerdote, que murmurou com suavidade:
- Não te preocupes meu filho, e diz a verdade.
- Não era apreciado.
- Porquê? - perguntou o cavaleiro.
- Bom, tinha vários acres de terra... e oito bois. Isso provocava invejas nos outros agricultores. Para além disso sempre correu o boato que tinha dinheiro escondido no fundo da arca. Parecia injusto. Aqui, toda a gente se esforçava por sobreviver, cultivando os campos, pedindo emprestado aos vizinhos o que lhes pudesse fazer falta e trabalhando nos campos da mansão quando a época chegava... Mas o Brewer parecia conseguir viver sem nada disso. Pagava ao almoxarife para nunca ter de trabalhar nos campos do senhor. Para além disso, estava sempre a comprar mais terras e a abater mais parcelas da floresta. O senhor - ou seja, o seu irmão, Sir Baldwin - autorizava-o a desbastar novos lotes. Podia permitir-se tomar conta de novas terras e pagar a homens para lhas limparem, pelo que tinha cada vez mais dinheiro, mais terras e mais colheitas. As pessoas ficavam com inveja... - Calou-se de repente, a olhar para as botas, como se tivesse compreendido que falara durante muito tempo.
Foi salvo pelo estalajadeiro que apareceu com a comida. Trazia um pesado tabuleiro com malgas de barro, uma para cada um deles. No fundo das malgas havia uma grossa fatia de pão, sobre a qual havia sido despejado um espesso guisado.
Alguns minutos depois Baldwin voltou a recordar-se de Black e franziu a testa.
- E quanto ao filho do homem? Referiste-te a um rapaz em Exeter...
O caçador fungou e foi com evidente prazer que encheu a boca com mais uma colherada de guisado. Limpou os lábios com as costas da mão e arrotou.
- A minha mulher talvez saiba alguma coisa a esse respeito. Viveu aqui toda a sua vida.
Depois da refeição, Peter anunciou que precisava de os deixar. Afirmou que tinha de tratar das suas obrigações na igreja, embora Simon se interrogasse sobre se não seria apenas fogo-de-vista. Talvez o sacerdote achasse que tudo aquilo não passava de uma caçada aos gambosinos.
Simon não sabia muito bem como encarar as alegações do cavaleiro. Parecia-lhe inteiramente improvável que qualquer daqueles pacíficos aldeões de Blackway pudesse ter cometido um assassínio. Era muito mais provável, tal como haviam pensado inicialmente, que o homem tivesse morrido durante o sono. No entanto, seria possível que Sir Baldwin tivesse razão? O homem poderia ter sido morto para depois ser colocado na enxerga, de modo a que quem aparecesse a seguir presumisse que fora morto pelo espesso fumo da pira funerária em que a casa se transformara? Tinha de concordar que era possível... mas seria provável? Não sabia muito bem porquê, mas não lhe parecia. Todavia, o cavaleiro ficara repleto de uma energia nervosa ante aquela mera possibilidade.
Devorara a comida à pressa, ansioso por voltar ao trabalho, e o seu desejo de continuar com o que designara por "a nossa investigação" era tão intenso que parecera quase em pânico quando os companheiros haviam completado as suas refeições a um ritmo mais descontraído, talvez, embora não intencionalmente, para manifestarem dúvidas em relação àquela teoria. Simon ficou espantado com a mudança de comportamento do homem. Quando o conhecera pela primeira vez em Bickleigh, havia apenas alguns dias, parecera-lhe uma pessoa reservada e arredia, embora tolerante, mas perfeitamente consciente da sua posição e do nascimento nobre. No entanto, agora parecia interessado e ansioso por se encontrar com todos os servos e rendeiros, com os mais humildes habitantes da aldeia, apenas para satisfazer a curiosidade a respeito da morte de um homem que nunca conhecera. Para além disso, tratara-se de uma morte que parecia nada ter de notável para todos... excepto ele. Seria por isso? interrogou-se Simon. Dever-se-ia tudo ao facto de ter proposto aquilo que, à primeira vista, parecera ser uma ideia ridícula, e quisesse agora justificá-la perante os outros? Ou teria necessidade de a justificar a si mesmo? Baldwin Furnshill sabia que não tinha de justificar fosse o que fosse. Estivera doente durante meses, primeiro com uma enfermidade física e depois, mais recentemente, com uma febre cerebral de proporções alarmantes, mas tinha a certeza de que nenhuma dessas coisas influíra de algum modo sobre as suas ideias a respeito da morte do velho naquela casa. Claro que tinha consciência do cepticismo dos outros. Teria ficado surpreendido se não o exibissem, porque parecia realmente muito estranho que um tal crime tivesse sido cometido numa parte tão tranquila do país. Era capaz de pensar em muitos lugares onde a morte e o assassínio teriam sido menos surpreendentes, tal como Londres, Bristol, Oxford e centenas de outras cidades e vilas intermédias... mas ali, numa terra daquelas?
E porquê um homem idoso e inofensivo, que de qualquer modo já se encontrava perto do fim da vida? Qual era a lógica?
Ainda meditava no assunto quando chegaram à casa de Black, na extremidade norte da povoação e a oeste da estrada. Embora fosse mais pequena do que as outras casas de Blackway, era uma das mais novas. Tinha um aspecto mais sólido, era inteiramente feita de taipa mas possuía uma forte estrutura de madeira que se tornava visível em volta das portas e janelas. Baldwin ergueu uma sobrancelha, meio desconfiado, meio divertido, ante a visão da madeira, e perguntou a si mesmo se deveria fazer um comentário, mas preferiu calar-se. No entanto, olhou para Black com um interesse renovado. Se aquele caçador estava preparado para violar as leis da floresta e roubar a madeira do Rei, então podia vir a ser um conhecimento útil para o futuro. No fim de contas, o roubo da madeira podia significar uma corda ao pescoço num dos tribunais do couteiro real. Porém, logo a seguir surgiu-lhe outro pensamento. Se aquele homem não receava o desagrado do Rei, preocupar-se-ia com o assassínio de um vizinho? Pôs a ideia de lado e fez uma vénia à mulher do caçador quando esta surgiu à porta.
Black colocou-se entre ela e os restantes, numa posição que era obviamente defensiva. Era como se tentasse manter o resto do mundo afastado da mulher e Baldwin entendeu as suas razões. Jane Black era uma mulher forte e bonita, com um aspecto agradável, no princípio da casa dos 20. Usava uma simples bata de lã que chegava quase até ao chão, com mangas compridas e um padrão cuidadosamente bordado na frente. Pelos ruídos vindos do interior era óbvio que já brindara o marido com um par de jovens filhos, embora isso não se lhe notasse no rosto ou na figura. Tratava-se de uma mulher saudável, um pouco mais baixa do que Black e que ainda não fora marcada pela dureza do trabalho. Era claro que o caçador guardava o melhor das suas carnes para a família, porque o corpo jovem da mulher exibia umas agradáveis rotundidades. Tinha um rosto um pouco estreito para o gosto de Baldwin, uma boca talvez demasiado fina e seios que poderiam perfeitamente ser maiores, mas não se podia negar que se tratava de uma mulher extremamente atraente.
Porém, enquanto lhe examinava o aspecto, reparando no sorriso e no calor do seu olhar, Baldwin apercebeu-se de que aquela era uma avaliação superficial porque a mulher também devia ser muito inteligente. O intelecto era claro nos olhos avaliadores, na velocidade do olhar enquanto submetia os homens a um escrutínio pormenorizado, e no modo ousado e quase desafiador com que enfrentava os olhares dos outros.
O marido ganhou um certo ar de timidez quando lhe explicou por que razão estavam ali, como se tivesse mais medo de a perturbar do que de contrariar o cavaleiro e o almoxarife, e Baldwin soube, instintivamente, que aquela preocupação era justificada.
Jane Black estava intrigada. Nunca anteriormente vira tantos homens importantes na aldeia - Blackway ficava demasiado afastada das rotas normais para que as autoridades se dessem ao trabalho de lá ir -, e não percebia muito bem por que razão estavam tão interessados na história do rapaz do velho Brewer. Os visitantes não pareciam querer dar-lhe explicações mas isso não a incomodava porque sabia que o marido lhe contaria tudo mais tarde.
Contudo, enquanto os ouvia, foi o cavaleiro quem mais lhe atraiu a atenção. Parecia tão honesto, tão atento enquanto a observava. Começou a responder às perguntas e verificou que os olhos do cavaleiro pousavam nos seus lábios, como se tentasse tirar sentido das palavras ainda antes do seu significado poder atingir-lhe o cérebro através das orelhas, ou como se tudo o que ela dizia fosse tão crucial e tão fascinante que tinha de a escutar com toda a sua alma.
- Lembra-se do nome dele? - perguntou Simon.
Jane Black limpou lentamente as mãos no pano que lhe servia de avental enquanto se perdia no passado, nos tempos em que era ainda uma rapariguinha, muito antes de conhecer John Black e quando a família Brewer ainda se encontrava unida. Lentamente, as imagens começaram a ganhar vida à medida que recordava visões desbotadas de anos de há muito, de um rapaz com uma simples túnica grosseira que parecia estar sempre à beira das lágrimas por causa das tareias do pai, de um rapaz que ansiava por uma mãe mas cuja mãe morrera durante o parto, que pretendia o amor e o afecto de um pai mas parecia censurá-lo pela sua própria viuvez. Andara sempre encolhido, como um cão demasiado espancado e à espera da próxima chicotada. Sempre tivera uma vaga sensação de piedade por ele, como se o pudesse ter apoiado e ajudado, talvez no papel da irmã que o rapaz nunca tivera. Porém, a bondade entre as crianças é uma coisa difícil. Aliara-se às amigas e juntara-se às troças e aos gozos maléficos. Quando fora que o rapaz partira dali?
- Chamava-se Morgan. Baptizaram-no com o nome do pai da mãe - respondeu, com os olhos ainda virados apenas para o passado.
- E por que motivo se foi ele embora, sra. Black? - perguntou Baldwin, com uma careta de incompreensão a ensombrar-lhe as feições.
- Porquê? Ora, creio que foi para se escapar daqui! Conseguiu poupar algum dinheiro e foi para Exeter. Obteve a concordância do senhor das terras, que era o seu irmão, Sir Baldwin. Não é de surpreender. Brewer era um homem difícil. Lembro-me de ver o Morgan todo cheio de nódoas negras e dorido naquelas manhãs depois de o pai ter passado a noite nos copos.
- Nesse caso, embebedava-se muitas vezes?
A jovem soltou uma risadinha.
- Oh, sim, senhor! Muitas vezes! Na verdade, era raro que estivesse sóbrio. Foram muitas as noites em que tiveram de o ajudar a voltar para casa, da estalagem ou da casa de um amigo, depois de ter bebido demasiada cidra ou cerveja.
Baldwin acenou lentamente.
- E tornava-se violento depois de ter bebido demasiado?
Os olhos da mulher pareceram enevoar-se quando olhou para ele.
- Sim - acabou por responder - e era frequente que criasse conflitos. Quando bebia de mais queria lutar... e era um homem forte, muito forte. O meu pai costumava tentar evitá-lo, mas houve outros que foram espancados. Chegou até a bater nos homens que o ajudavam lá em casa. Oh, sim, conseguia ser muito violento!
- Esse filho, o Morgan... Acha que ainda continua em Exeter?
- Duvido! Se tivesse por onde escolher, penso que o Morgan iria para o local mais distante que pudesse arranjar. Creio que não precisava do dinheiro do pai. Ganhou o suficiente na cidade e podia permitir-se viajar para longe.
- Sabe onde o poderemos encontrar?
- Oh, não! Não faço ideia... e duvido que alguém em Blackway saiba.
Simon e Baldwin prepararam-se para partir, levantaram-se e aguardaram à entrada enquanto Black conduzia a mulher para o interior da casa, para se despedir.
- Tens a certeza de que esse tal Brewer foi assassinado? - acabou Simon por lhe perguntar.
Baldwin olhou-o de relance e exibiu um pequeno sorriso sardónico como se troçasse de si mesmo.
- Oh, não sei. Na verdade, não tenho a certeza. No entanto, tenho a certeza de que já estava morto quando o fogo se iniciou... e estou igualmente certo de que o incêndio não foi provocado pela lareira.
- Porquê? Como podes estar tão certo disso?
- Por causa do que já disse. O fogo estava demasiado baixo, não podia ter lançado fagulhas suficientes para pegarem fogo ao telhado. Simon coçou o pescoço, fez uma careta de cepticismo e espreitou a figura alta e trigueira que se encontrava a seu lado.
- Baldwin, podes ter razão... mas que podemos nós fazer mesmo que a tenhas? Não podemos provar que havia ferimentos no corpo. Está demasiado queimado para isso. Não podemos provar que esteve lá alguém para o matar. Que queres fazer?
- Claro que podemos prová-lo! - respondeu o amigo, olhando-o com uma expressão de paciência misturada com frustração. - Tudo o que precisamos é descobrir o homem que o fez e obrigá-lo a confessar!
- Ah! - exclamou Simon, trocista. - É só isso, não é? Nesse caso já posso ir andando para casa, uma vez que tens tudo perfeitamente resolvido.
Quando Black voltou a sair de casa, ficou vagamente divertido ao ver que os dois homens haviam discutido. Era óbvio, tanto por causa do seu silêncio, pela fixidez dos olhares - virados para todo o lado menos um para o outro - como pelo sorriso no rosto de Edgar, que se mantinha um pouco por trás deles, fora das vistas.
Black lançou um olhar interrogativo para o servo e Edgar limitou-se a encolher os ombros, num sinal de desinteresse completamente refutado pela simultânea ampliação do seu sorriso. O caçador não tinha consciência disso, mas Edgar sabia, de uma maneira demasiado dolorosa, até que ponto Baldwin estivera perto da morte no ano anterior. O cavaleiro, desde que sofrera de uma febre cerebral, mostrara-se sempre moroso e taciturno, só raramente permitira que um sorriso lhe abrisse as feições, quase nunca revelara petulância ou um qualquer tipo de egoísmo, permanecera sempre gentil e com uma tranquila calma, eternamente grato pelos cuidados que o seu servo lhe prestara. Agora, para Edgar, era uma satisfação e também um alívio ver novamente o seu amo com disposição para a argumentação.
Os quatro homens refizeram lentamente o caminho ao longo da estrada, com Black a apontar as casas e a indicar as pessoas que viviam em cada uma delas. Eram todas mais ou menos iguais, construídas com os mesmos materiais e das mesmas dimensões. Algumas tinham uma porta à frente para os habitantes humanos, mas todas possuíam uma grande porta lateral, ou um par de portas, para os ocupantes de maiores dimensões, os bois, porcos e cabras que representavam a riqueza da família. As pequenas janelas sem vidros olhavam-nos com uma aparente calma bovina, como que intrigadas por aquelas curiosas criaturas, mas de modo nenhum assustadas ou sentindo-se ameaçadas. O fumo erguia-se lentamente dos telhados de colmo e subia para o ar parado numa viagem sem destino, com pequenos farrapos a libertarem-se para subirem até ao alto dos telhados para se dispersarem, como acontece ao nevoeiro matinal quando o Sol se levanta.
Quase já tinham passado para lá da estalagem quando Baldwin se deteve, deu meia volta e se precipitou para a porta. Simon e os outros pararam e esperaram. O cavaleiro voltou a surgir quase imediatamente, com o dono da estalagem atrás dele.
O estalajadeiro era um homem enorme. Deveria ser apenas um par de anos mais velho do que Simon ou, pelo menos, foi essa a ideia com que o almoxarife ficou, e dava a impressão de ser uma pessoa com vastos conhecimentos. Essa aparência de conhecimentos acumulados era posta em destaque pela cabeça completamente careca. Todavia, tal devia-se apenas ao facto de a rapar todas as manhãs. Tinha uns olhos alegres e cintilantes, profundamente enterrados por baixo de uma testa pesada e inclinada, bem como uma característica que parecia estranhamente fora do seu lugar, uma vez que a queixada e o lábio superior se encontravam cobertos por uma espessa barba negra, o que lhe dava o aspecto de se encontrar virado de cima para baixo, como se tivesse sofrido um acidente à nascença que o deixasse virado ao contrário. Vestia uma túnica nojenta, o que tinha muito pouca importância na escuridão do seu salão, túnica essa cuja frente parecia ser utilizada como pano de limpeza, avental, saco para transporte de lenha e carne, tolha e peça de roupa. Na verdade, o homem tinha uma vasta cintura e o tecido que a conseguisse rodear, pensou Simon, seria capaz de transportar uma significativa carga de bens de qualquer espécie.
- Black, a tua mulher disse que Brewer era um grande bebedor, não é verdade? Óptimo! Estalajadeiro, conta a estes homens o que acabaste de me dizer - pediu Baldwin, fazendo um sinal na direcção do pequeno grupo.
O estalajadeiro encostou as costas à parede, limpou as mãos na suja túnica e soltou um arroto.
- É sobre o Harold Brewer, senhores. Esteve aqui a noite passada. Veio para cá logo depois do crepúsculo, como de costume, e ficou até muito tarde. Devia passar das 11 quando se foi embora, talvez até perto da meia-noite.
- Foi ele quem decidiu ir para casa? - perguntou Simon.
- Bom... - O homem tinha olhos matreiros e parecia prestes a piscar-lhes um olho. - Não, não foi ele. Fui eu quem decidiu por ele. Estava outra vez a tornar-se barulhento e a berrar, e disse-lhe que era melhor ir para a cama.
Baldwin inclinou-se para a frente.
- Então, trouxeste-o para o exterior e puseste-o na estrada. E depois? Por favor, conta o que viste aos meus amigos.
- Sim, trouxe-o cá para fora e vi um homem a passar, que seguia o seu caminho. Chamei-o e disse-lhe: leva este tipo contigo, já o aturámos o suficiente por esta noite. O homem pareceu satisfeito por poder ajudar. Aproximou-se e segurou Brewer pelo braço. Para mim bastou e voltei para dentro para fazer as limpezas.
- Porém, tanto quanto saibas, o homem levou Brewer para casa com ele?
- Oh, sim! Mesmo depois de fechar a porta ainda ouvi o Harold a gritar e a amaldiçoá-lo. Queria mais cerveja, queria ficar aqui, não se sentia pronto para voltar para casa. Claro que eu não lhe ia fornecer mais bebida. Estava pronto para mais um conflito... e eu estou farto de tanta pancadaria na minha estalagem ao longo dos anos. No entanto, senti pena do homem, que tinha de aguentar o pior do Harold em termos de linguagem.
- Viste quem era esse estranho tão prestável? - perguntou Simon.
Os olhos alegres e cintilantes viraram-se para ele. Por instantes, Simon conseguiu penetrar no exterior amigável do estalajadeiro e apercebeu-se do egoísmo e do desinteresse que se encontravam por trás da fachada antes desta voltar a fechar-se como uma ponte levadiça.
- Não. Estava escuro e eu tinha acabado de sair da estalagem. Distingui apenas uma figura e fechei a porta logo de seguida. Não, não vi quem era e não estava interessado em saber. Tudo o que queria era ver-me livre do Harold e meter-me na cama.
Os homens deixaram-no à porta da estalagem e continuaram ao longo da estrada. Black parecia ir mergulhado em pensamentos e Simon olhou para Baldwin com uma expressão intrigada.
- E agora, como vamos saber quem era o homem? O cavaleiro virou-se e encarou-o com um sorriso.
- Perguntamos às pessoas, Simon. Perguntamos às pessoas.
Estava a fazer-se tarde, o ar refrescara e as sombras já começavam a crescer enquanto o pequeno bando seguia atrás do cavaleiro, que atirava perguntas a Black e apontava as casas, inquirindo a respeito dos seus habitantes, quantas pessoas lá viviam, há quanto tempo, os pais também lá tinham vivido? Black parecia saber bastante a respeito de toda a gente da aldeia, uma vez que as pessoas lhe pediam frequentemente que lhes arranjasse comida durante as viagens, isto apesar do caçador só lá viver havia cerca de quatro anos, desde que se casara e concordara em mudar-se para a zona para que a esposa não tivesse de abandonar o povoado em que crescera.
Baldwin pigarreou para limpar a garganta e comentou:
- O homem, quem quer que ele fosse, caminhava nesta direcção... e suponho que isso faria sentido se vivesse numa das casas deste lado. Claro que também podia ser um dos habitantes da outra extremidade da estrada que tivesse saído para fazer qualquer coisa e só pretendesse voltar a casa mais tarde. Todavia, acho que seria conveniente que perguntássemos às pessoas deste lado da aldeia, deste lado da estalagem, para sabermos se alguma delas terá andado por fora durante a noite passada. Que achas, Simon?
O almoxarife acenou, com a animosidade para com o companheiro já esquecida agora que o seu interesse despertara.
- Sim, acho que faria sentido. Black, entre as pessoas que conheces, quem poderia andar na rua até tão tarde na noite passada?
O caçador ficou a pensar, franzindo a testa para a estrada à sua frente e coçando a barriga, numa concentração que lhe repuxava os cantos da boca para baixo, num crescente de infelicidade que era quase humorístico.
- Bom, que eu me lembre, há quatro pessoas que podiam ainda estar levantadas a essa hora. Cenred, o tratador dos coelhos, está frequentemente na rua até tarde. Tem de estar, se quiser apanhar os texugos e as raposas... e manter os coelhos em segurança. Depois temos o Alfred, o rapaz mais novo dos Carter. Tem de cuidar das ovelhas que se encontram junto ao pico rochoso e por vezes volta muito tarde. É frequente que o Edward, o irmão, o acompanhe. Há também o Roger, que costuma aparecer muito tarde.
- Porquê? - perguntou Simon, semicerrando os olhos perante a falta de explicações e espreitando o caçador.
Foi recompensado com uma sonora gargalhada.
- Porque anda enrolado com uma mulher de Hollowbrook, a Ema Boundstone. Vem para casa o mais tarde que pode, todas as noites. Estavam quase de regresso à casa arruinada. A multidão que viera ver os resultados do incêndio era mais pequena porque as pessoas tinham perdido o interesse e dispersado depois do corpo ter sido removido. Os espectadores que restavam eram os próprios habitantes do local, que se mantinham por ali em pequenos grupos e falavam em tons baixos, com os olhos a saltitarem de desconfiança sobre os homens que acompanhavam Black quando este se aproximou.
- Black - pediu Baldwin - quero que me apontes os quatro homens que acabaste de mencionar. Depois, trá-los até junto de nós. Quais são?
- Aquele ali é o Alfred, com o irmão a seu lado... - disse o caçador, apontando dois homens jovens. O primeiro era um homem delgado e flexível com o aspecto de estar em boa forma, com cabelos claros, uma pele escura e avermelhada. Os movimentos sacudidos e matreiros faziam com que Simon o achasse parecido com um rato. O irmão era um pouco mais alto mas tinha um cabelo pardacento, escasso e penugento. Tinha uma figura mais expansiva e mais cheia, como se gostasse demasiado da sua cerveja. Via-se, apesar de se encontrar a 50 metros de distância, que as faces brilhantes e rosadas pareciam indicar um excessivo consumo da mesma. Todavia, os olhos eram tão rápidos e aguçados como os do irmão, e lançavam relances breves e quase ansiosos para os lados do almoxarife e dos amigos.
O dedo do caçador voltou a espetar-se:
- O Roger Ulton é aquele, além... - Pareceu estar a apontar para um homem tranquilo e com ar de rato de biblioteca, com um rosto muito pálido, magro e de olhos afundados. Aparentava cerca de 19 anos e parecia encolhido e nervoso. Simon olhou-o com interesse. O jovem tinha um ar de medo deprimido, como se estivesse à espera de ser acusado e soubesse que iria ser considerado culpado.
- E quanto ao outro? O dos coelhos? - inquiriu Baldwin num tom baixo.
- O Cenred? Não o vejo aqui. É provável que tenha ido trabalhar.
- Muito bem. Black, começa por ires buscar os dois irmãos, está bem? Acho que poderemos resolver este assunto rapidamente agora que só temos de falar com cinco homens.
- Cinco? Como? São apenas quatro... - disse Black, parecendo surpreendido.
- Não, são cinco. Também teremos de conversar contigo, Black.
Foi com um rosto tão negro como o seu nome sugeria que o caçador foi buscar os dois jovens. Alfred parecia ser o mais novo dos dois. Os seus olhos astutos saltitaram por todo o lado quando se viu na frente dos outros, enquanto o irmão dava mostras de nervosismo e mantinha os olhos postos no chão, numa demonstração de humildade. Alfred tinha o aspecto de alguém que acabara de sair da adolescência e conservava a ousadia da juventude, como se não compreendesse que estava a ser interrogado a respeito de um possível assassínio. Parecia destemido e nada intimidado por se encontrar em frente do almoxarife e do cavaleiro, que se sentaram no tronco de uma árvore caída, com Black e Edgar logo por trás.
Simon olhou para o rapaz com interesse. O cabelo claro parecia-lhe de algum modo demasiado brilhante para a vida aborrecida e monótona de um aldeão, e as maneiras vivas e astutas não se encaixavam na opinião do almoxarife a respeito do aspecto habitual de um servo da gleba. Vestia uma túnica azul-desbotada por baixo de um colete de couro. As calças coçadas e manchadas estavam cheias de remendos e passajadas, o que indicava que eram muito velhas, e usava um fino cinto de couro em volta da cintura, com uma faca de cabo de madeira enfiada numa bainha também de couro. Enfrentou os homens com os olhos carregados de arrogância e desafio.
Edward continuava a manter os olhos em baixo e tinha um aspecto mais de acordo com o que Simon esperava encontrar num servil trabalhador dos campos. O almoxarife não era de modo nenhum um homem duro ou cruel, mas compreendia as diferenças entre os homens e sabia o tipo de reacções que podia esperar. Como filho do senescal de um castelo, Simon tinha consciência de que era impossível conseguir que os servos se mantivessem sempre tranquilos e humildes. Fazia parte da natureza dos homens aguentar tudo até um certo ponto, para depois acabarem por explodir. No fim de contas, todos os homens necessitam de auto-respeito, e esse só pode ser conseguido se o respeito lhes for concedido pelos outros. Simon sabia-o e era por isso que tratava os seus homens com a correspondente dose de consideração. No entanto, mesmo assim, a maioria dos seus próprios homens mostrar-se-ia humilde em frente de um novo senhor quando lhe fosse apresentado pela primeira vez... independentemente do que pudessem vir a dizer dele depois disso!
Aquele irmão mais velho estava vestido com simplicidade, com espessas meias, bem apertadas pelas correias das sandálias, por baixo de uma túnica leve e de uma capa curta. Parecia sentir-se bem quente nas suas roupas e Simon ficou surpreendido ao verificar que quase todas as peças eram relativamente novas, ainda sem manchas ou remendos, ao contrário das do irmão.
Baldwin pareceu notar a mesma disparidade, porque lançou pequenas olhadelas para um e para o outro enquanto se sentava. A seguir disse:
- Ao que sei, vocês andaram por fora até tarde, ontem à noite. Onde estiveram?
Ficou à espera para ver qual deles iria responder, com os olhos transformados em pequenas faíscas brilhantes por baixo das espessas sobrancelhas. Por fim, foi Alfred quem falou depois de lançar uma rápida mirada de confirmação para o irmão.
- Sou o pastor dos rebanhos do meu pai. Estivemos com as ovelhas.
- Não serás um pouco velho de mais para esse trabalho?
O rosto do jovem permaneceu impassível.
- Não. Tenho apenas 20 anos e sou o mais novo da família, por isso em geral sou eu quem sai para ver se as ovelhas estão bem. O Edward costuma ir comigo.
- Ah, sim. Edward, que fazes tu para ganhar a vida?
- Eu? Vendo produtos no mercado. Recolho-os na aldeia e levo-os na carroça. Porquê?
- Então, por que ajudas o teu irmão a tratar das ovelhas?
- Ora, para podermos sair da aldeia e falar à vontade. Para além disso, acabamos o trabalho mais depressa. Porquê?
O cavaleiro ignorou a pergunta pela segunda vez.
- A que horas regressaram, a noite passada?
- Oh, não sei... - respondeu Alfred, parecendo ansioso por ser ele a falar, como se estivesse nervoso e receasse que o irmão falasse de mais. - Suponho que teremos saído da colina por volta das dez e meia. Duvido que possa ter sido muito mais tarde.
- De quanto tempo precisaram para regressar?
- Para voltar a casa? Ora, talvez meia hora, mas não tenho a certeza.
- Viram mais alguém durante o caminho para casa?
O jovem olhou para o irmão enquanto respondia por ele.
- Não, ninguém! - Simon ficou com a certeza de ter visto qualquer coisa - ira, ou talvez medo -, nos seus olhos escuros. Porquê?
- E não viram nenhum incêndio quando passaram pela casa do Brewer?
- Não, não havia nada. Era capaz de apostar a minha vida!
Baldwin acreditou. Alfred parecia absolutamente convencido de que na altura não tinham existido quaisquer sinais de um incêndio, mas começava a pôr-se uma questão: quando começara o fogo? Olhou outra vez para o homem mais jovem, que o fitava com um vago interesse... ou seria hostilidade? A seguir fitou o mais velho.
- Houve alguma altura em que se tivessem separado quando iam de regresso a casa?
Para sua surpresa, foi Alfred quem respondeu antes do irmão conseguir abrir a boca.
- Não. Estivemos juntos durante todo o tempo.
Quando os dois se afastaram e Black foi buscar Roger Ulton, Baldwin ergueu os cantos da boca numa pobre imitação de sorriso e encarou Simon.
- Então...?
- Não gostei do aspecto do mais novo e não confio nele. Quanto a serem capazes de matar o Brewer e de tentarem ocultar o facto... bom, não sei...
- Nem eu... - retorquiu Baldwin, pensativo. - De qualquer modo, fiquei com a ideia de que o mais novo, o Alfred, estava a tentar esconder qualquer coisa. O Edward pareceu-me suficientemente honesto ou, pelo menos, não disse nada que me fizesse desconfiar.
- Pois não. Bom, vejamos o que este Roger tem para dizer... - respondeu Simon, e viraram-se ambos para o homem que caminhava para eles na companhia de Black.
Mais de perto, o seu aspecto era menos anémico do que parecera à distância. Era um jovem muito magro, uma visão nada invulgar depois dos dois últimos anos de fome, e a aparência definhada era acentuada por uma curiosa palidez da pele. As roupas, uma túnica e umas calças de lã castanha, pareciam grandes de mais para ele e Simon interrogou-se imediatamente sobre se originalmente não teriam sido feitas para um irmão, ou para o pai. As botas estavam gastas e chapinhavam enquanto caminhava, o que aumentava ainda mais a sensação de decomposição que o homem parecia emanar, e para além disso também eram demasiado grandes para os seus pés. A túnica tinha um capuz mas que estava atirado para trás quando o homem avançou para o cavaleiro e para o almoxarife, deixando à vista um pescoço efeminado, longo e fino, tão pálido como as feições, e Simon descobriu que o mesmo atraía imediatamente as atenções. Aquele pescoço, quase de cisne na sua elegância, atraía os olhos mesmo contra vontade das pessoas, como se se tratasse de uma qualquer deficiência física, ou como se quisesse dar destaque à sua própria vulnerabilidade ao ponto de levar o observador a perguntar a si mesmo como era possível que houvesse sangue vermelho a ser bombeado por baixo de uma carne com um tom de alabastro tão puro.
O almoxarife quase teve necessidade de fazer um esforço físico para desviar os olhos e levantá-los para o rosto da testemunha. A agitação súbita à sua direita deu-lhe a saber que Baldwin também se deixara afectar do mesmo modo. Ambos estudaram com interesse o rosto que tinham na sua frente.
Tal como fizera Edward antes dele, Roger manteve os olhos baixos por humildade, num perfeito exemplo de um pobre servo. Todavia, os seus olhos brilhavam ocasionalmente sempre que tentava ter um relance do rosto dos seus dois inquisidores. O rosto era fino como o pescoço e igualmente pálido, o que criava um perturbante contraste com os cabelos num tom negro de corvo, tão negros como os do próprio Black. Todavia, enquanto o caçador emitia uma aura de saúde forte e brilhante, este homem parecia fraco e doentio. A boca não passava de uma fenda fina aberta por baixo do nariz, que parecia ter um pingo permanente suspenso na sua ponta, e os olhos, quando olhava para cima, tinham um aspecto aquoso e quase descoloridos, como se, tal como um livro colorido deixado à chuva, a água tivesse arrastado as cores consigo. Era um homem que produzia um impacto negativo e que nem sequer tinha o interesse, pensou Baldwin, do jovem Alfred. Este último, por exemplo, ainda detinha uma faísca de individualidade e era capaz de poder ser um bom comerciante. Aquele homem não tinha nada.
O cavaleiro olhou para baixo, para os próprios pés, interrogando-se sobre como começar. Depois, quando olhou para cima, captou um relance fugidio de um Roger muito diferente. Captou e fixou os olhos do homem por uma fracção de segundo... e foi nesse momento que compreendeu que não se tratava de uma pessoa tão fraca como pensara.
- Chamas-te Roger? - perguntou, com firmeza.
- Sim, senhor. - O homem tinha uma voz estranhamente profunda, um baixo completamente inesperado num corpo tão fino, e falou com um respeito quase reverente.
- A noite passada foste visitar essa tua mulher, uma tal Emma...
- Emma Boundstone, senhor. Vive em Hollowbrook com os pais.
- Sim. A que horas a deixaste?
Talvez fosse por causa da brusquidão da pergunta ou do olhar intenso do cavaleiro... Fosse qual fosse a razão, o rosto do jovem ganhou cor instantaneamente.
- Porquê, senhor?
- O quê?! - Baldwin bateu com a luva no tronco a seu lado e soltou um berro, fazendo com que Simon desse um salto e o olhasse com nervosismo. - Perguntei-te quando foi que a deixaste! Não te atrevas a perguntar-me porquê! Responde à minha pergunta!
- Senhor, não pretendi ofender... Eram... Eram cerca de dez horas, senhor. Dez horas e não muito mais. - Calou-se, com o rosto novamente baixo, numa infelicidade aparente.
Baldwin voltou a perguntar, agora num tom mais suave:
- A que distância fica Hollowbrook?
- Cerca de quatro quilómetros, senhor, não mais.
- Portanto, regressaste aqui... perto das dez e meia, ou talvez das 11?
- Mais perto das dez e meia do que das 11, senhor.
- Viste alguém durante o caminho para casa?
- Não senhor, não vi ninguém.
- Vives sozinho?
- Não, os meus pais ainda cá estão. E o meu irmão...
- Nesse caso, sabem a que horas entraste?
- Oh, não, senhor! Já estavam todos a dormir. Não, tive cuidado e fui para a cama sem os incomodar.
Baldwin acenou e olhou para Simon.
- Queres perguntar-lhe alguma coisa?
- Sim - respondeu Simon, inclinando-se para a frente e fitando o homem. - Para que lado fica Hollowbrook, a partir daqui?
- Para que lado? Fica para além, senhor... - disse o homem, apontando para a estrada, para sul.
- Portanto, não tinhas de passar pelo Brewer para chegares a casa, pois não? - O homem abanou a cabeça e Simon mandou-o embora com um gesto. - Muito bem, era tudo o que queríamos saber. Podes ir... por agora.
Viram-no a afastar-se, arrastando-se pela estrada, a caminho de casa.
- Então? - perguntou Baldwin.
- Não faço ideia. Parecem todos tão assustados... e talvez isso se deva ao facto de nós não sermos aldeões, como eles. Metemos-lhes medo. Não ficarei surpreendido se viermos a descobrir que o potro é a única maneira de arrancar a verdade à maior parte deles.
- Não! - O curto e angustiado grito de Baldwin fez com que Simon se detivesse, horrorizado e chocado com a expressão dorida do amigo. Ao ver a preocupação e a ansiedade nos olhos de Simon, o cavaleiro esticou-se para ele, levantando um braço que tremia, como que numa súplica... ou seria para o manter à distância? O almoxarife aceitou a mão que lhe era oferecida, sentindo de um modo fugidio a força agonizante e convulsiva do aperto do cavaleiro. Passado um instante, os dedos dos cavaleiros descontraíram-se mas Simon continuou chocado com a depressão e infelicidade que continuavam visíveis nos seus olhos escuros.
Para Black, foi como se o mundo tivesse parado por causa daquele único grito de agonia. Sentiu, mais do que viu, que Edgar avançara um pouco e depois parara, como que indeciso, com a mão pousada no punho da adaga e os olhos postos nos dois homens à sua frente. O caçador compreendeu que Edgar estava dividido.
Era como se quisesse saltar para a frente para defender o seu cavaleiro mas se sentisse restringido pelo facto de não existir ali nenhum perigo real. Black olhou do cavaleiro para o almoxarife, e a seguir observou atentamente o servo. Descontraiu-se ao ver a mão de Edgar a largar o punho da adaga. Lambeu os seus próprios lábios, que agora se encontravam ressequidos, e largou a faca de esfolar. Gostava do almoxarife e não ia ficar à espera que o matassem sem o defender.
Baldwin respirava rapidamente, não de cansaço mas sim num esforço para recuperar a compostura enquanto segurava na mão de Simon.
- Meu amigo... - murmurou - não me parece que o potro e as outras torturas do mesmo género dêem resultado. Já as vi, e vi o seu efeito. Não funcionam. Tudo o que fazem é destruir um homem. Não conseguem forçá-lo a dizer a verdade, mas levam-no a mentir só para pôr fim ao sofrimento. Não nos ajudam a encontrar a verdade, e tudo o que conseguem é quebrar um homem e deixá-lo destruído e arruinado.
Os seus olhos fixaram os de Simon por instantes, tão firmes como a mão que segurava a do almoxarife. O medo e o desgosto estavam novamente lá, misturados com... Com quê? Um rogo? Aquele cavaleiro estaria a rogar-lhe que compreendesse... ou a pedir perdão? Simon sentiu-se nervoso, incerto sobre como reagir, preocupado com a possibilidade de perturbar ainda mais o seu amigo mas certo de que Baldwin precisava de ser tranquilizado.
- Baldwin, não usaremos qualquer tipo de tortura neste caso - afirmou, e isso pareceu ser o suficiente.
O cavaleiro deu um lento passo atrás, como se tivesse relutância em perder o contacto com o almoxarife e sem nunca desviar os olhos do rosto de Simon. Não havia negação possível e o cavaleiro soube que ainda se encontrava gravemente afectado pelas experiências por que tivera de passar em França. Explodir daquele modo... e ainda por cima quando era óbvio que Simon não falara a sério! Era ridículo!
Virou-se e começou a andar de volta à estalagem. Simon seguiu-o com o olhar pousado das suas costas e uma expressão pensativa. O que o fizera reagir assim? Era quase como se ele próprio fosse um criminoso, pensou o almoxarife.
Deixaram Black na estalagem depois de o interrogarem. O caçador permaneceu de pé, sério e silencioso, vendo-os a chicotear os cavalos para regressarem a Crediton. Não os pudera ajudar grandemente, para além das declarações que prestara anteriormente. Ao regressar a casa, já tarde, vira as chamas e dera o alarme. Na altura não houvera ninguém à sua volta ou, pelo menos, não vira ninguém.
Simon estava apreensivo e preocupado com o seu novo amigo. Observava Baldwin à socapa enquanto cavalgavam, sempre consciente do olhar fixo de Edgar. O servo nem sequer pestanejava. Era como se receasse que o almoxarife pudesse atacar o amo e viesse a aumentar ainda mais os danos que já causara, embora sem o querer, ao mencionar o potro.
Baldwin cavalgava de um modo rígido, com a mente obviamente ocupada com outras coisas e com os olhos fixos na estrada à sua frente. Parecia distante, tão distante que Simon sentiu instintivamente que o cavaleiro não o ouviria mesmo que o chamasse. Regressara ao passado, com um olhar fixo e duro, a mão transformada num punho que agarrava nas rédeas e os músculos dos maxilares a contraírem-se.
O almoxarife baixou os olhos para o pescoço do cavalo. Sem dúvida que o cavaleiro, logo que se sentisse pronto para o fazer, lhe falaria naquele seu horror, naquela recordação diabólica. Até lá teria de aguardar e de ter a esperança de que a vividez daquele aparente pesadelo acabasse por se esbater. A seguir levantou os olhos e verificou que o cavaleiro perdera a expressão mal-assombrada, para além de ter recuperado um pouco do anterior bom humor.
Os olhos do cavaleiro fixaram-se nos seus por um instante e os dois homens olharam-se, até ao momento em que o cavaleiro sorriu e declarou:
- Vamos, ou demoraremos toda a noite para lá chegar se continuarmos com este passo. - Incitou a montada e os três homens galoparam para Crediton.
Simon deixara os outros dois um pouco antes de Crediton. A estrada de Blackway para Crediton dividia-se num ramal que se dirigia para leste, para Exeter e daí para Tiverton, passando por Furnshill, e um outro que seguia para Crediton, para norte, e daí para Sandford. Fora aí que os três homens se tinham separado, com Simon a seguir sozinho pelo ramal da esquerda.
A estrada levou-o até ao centro de Crediton, onde teve de se desviar junto da antiga igreja. Ao passar por ela perguntou a si mesmo se deveria parar para pedir uma bebida a Peter Clifford. Contudo, quando se viu em frente da porta ouviu as vozes erguidas num cântico e compreendeu que o prior deveria estar demasiado ocupado para conversar, pelo que prosseguiu o seu caminho. Evitou o esgoto a céu aberto com todo o cuidado, estremeceu ante o odor fétido, avançou ao longo do estreito caminho que bordejava o velho cemitério, passou para lá das habitações onde viviam os trabalhadores da igreja e subiu a colina que o conduziria para fora da vila.
Sempre achara que aquela estrada, sob a luz do dia, era uma estrada lenta, descontraída e agradável. Subia a colina numa suave curva, serpenteando como um velho riacho, com um muro de um lado a proteger as propriedades da igreja. Do outro lado, a estrada dava directamente para os campos de cultivo, uma área de estreitas faixas de terra que se estendiam até à floresta e à elevação por cima desta. Era uma cena rural de tranquilidade - um quadro pastoral em verde onde cresciam as ervas e as culturas, e em vermelho onde a terra fértil fora lavrada -, que nunca deixara de lhe agradar. Quando se sentia perturbado ou nervoso, uma cavalgada ao longo daquela estrada acabava inevitavelmente por o acalmar. Era uma amostra do modo como o homem podia modificar a natureza, vergando-a à sua vontade e manipulando-a de modo a que lhe fornecesse alimento e protecção. Sentia sempre o mesmo quer olhasse para as faixas de terreno ou para os bosques e ambos lhe pareciam prova do domínio da humanidade sobre a anarquia da natureza selvagem.
Contudo, agora, enquanto passava para lá do topo da colina e seguia o caminho para o vale do outro lado, a estrada pareceu modificar-se. A escuridão aproximava-se, passara para o outro lado da colina e os seus sentimentos, tal como o cenário, estavam a modificar-se. Ali, a natureza selvagem ainda não fora alterada. Os lenhadores não tinham querido lá ir porque o local ficava demasiado distante da cidade. Os agricultores não queriam abater as árvores porque os campos seriam demasiado distantes para o transporte das sementes. Para além disso, até os animais eram mantidos mais perto da vila, onde podiam ser vigiados e protegidos.
Não, ali a terra continuava selvagem e não domesticada, a natureza ainda governava e os homens caminhavam com mais cautelas. As florestas escuras e ameaçadoras apertavam-se de cada lado da estrada como se se esforçassem para alcançar os humanos que viajavam por ela de modo a poderem espremer-lhes as vidas. As silvas expandiam-se a partir das bermas da estrada numa tentativa para colonizarem a terra batida do caminho, agarrando e rasgando as roupas de qualquer passante suficientemente desprevenido para caminhar demasiado perto delas. Por entre as árvores ouvia por vezes o estalar dos troncos e ramos, mas para as suas orelhas receosas, educadas desde o berço a terem medo dos variados espíritos que assombravam as charnecas e colinas de Devon, esses ruídos pareciam-lhe as vozes dos indescritíveis horrores fantasmagóricos que perseguiam os humanos. No escuro, aquela estrada fazia-o recordar-se dos mais assustadores de todos, o Velho Nick e o Velho Crockern.
Tratava-se de duas personagens bem conhecidas em Devon, com uma notoriedade ilimitada em todo o território, e Simon descobriu-se, contra a sua vontade, a analisar cada uma delas com um grau de agitação que não sentia há muitos anos. Depois da morte do velho Brewer - ainda lhe custava a acreditar que tivesse sido um assassínio e preferia encará-la como devendo-se a um daqueles acidentes tristes e demasiado comuns, como uma fagulha a saltar para o telhado e um homem demasiado bêbedo para acordar -, as histórias e lendas pareciam querer amontoar-se sobre ele enquanto percorria o seu solitário caminho para casa.
O Velho Nick era o próprio diabo. As lendas falavam dele montado num cavalo, um cavalo sem cabeça, e a cavalgar pelas charnecas em busca de almas. A seu lado havia sempre uma matilha de mastins, criaturas diabólicas e de olhos selvagens cujos uivos queriam dizer que tinham apanhado o cheiro de um espírito humano pronto para ser apanhado. Dizia-se que essas caçadas selvagens eram um acontecimento regular e que não requeriam nevoeiros ou neblinas para cobrirem a sua crueldade quando a horda se lançava sobre a presa.
O outro era um espírito mais fácil de compreender, embora igualmente desagradável de enfrentar. O Velho Crockern era a antiga alma das charnecas. Estava por todo o lado mas, em certas ocasiões, tornava-se visível para os que ameaçavam as suas terras e destruía-os. Era verdade que se servia em geral de métodos simples, tal como a bancarrota de um agricultor que decidisse ocupar mais terrenos nas charnecas do que na verdade necessitava, certificando-se de que nunca conseguiria cultivar nada nos terrenos que roubara. Contudo, também se dizia que se o Velho Crockern encontrasse alguém a afectar intencionalmente a vida e a segurança das charnecas, então aparecia repentinamente e levava o criminoso consigo, para um inferno muito mais infernal do que todos os inventados pelo diabo.
Os caminhos iam escurecendo à medida que Simon avançava. O pôr do Sol fora um clarão quente e alaranjado no horizonte, numa promessa de mais um dia claro e seco, e ficara momentaneamente satisfeito por poder reflectir sobre esse facto antes da sua mente se virar novamente para as antigas superstições. Não que fosse demasiado crédulo, mas os caminhos que conduziam a Stanford eram estreitos e rodeados por escuras fileiras de árvores que se erguiam silenciosamente como monstros acusadores vindos de um passado distante. Os grandes ramos contorcidos e primevos esticavam-se dos dois lados da estrada, cinzentos e agourentos, levantando-se para o alto, para a escuridão que se acumulava, como se tentassem bloquear a luz numa tentativa para estrangular a luminosidade restante antes que esta conseguisse atingir a estrada. Enquanto prosseguia o seu caminho, Simon quase conseguia imaginar que as árvores estavam a tentar tocar-se por cima da estrada, e que quando o fizessem os seus ramos contorcidos e torturados iriam cair para esmagarem um qualquer passante incauto...
Sacudiu-se com vigor para se libertar daquelas ideias. Havia um nevoeiro a avançar de um modo silencioso e malevolente sobre a estrada à sua frente, e Simon estremeceu. Por Deus! pensou. Não sou assim tão velho para acreditar nestas coisas! Esporeou o cavalo, obrigando-o a cavalgar mais depressa.
Mesmo assim, de vez em quando ainda olhava para trás, por cima do ombro.
Quando chegou a casa já a noite se instalara pesadamente sobre a terra como um tapete de veludo cinzento e os seus medos bateram em retirada à vista do clarão alaranjado das janelas. Rodeou a construção para levar o cavalo para o estábulo, deu-lhe uma limpeza rápida e instalou-o para a noite antes de ir juntar-se à família.
Os apainelados a madeira que formavam o corredor - uma ideia da Margaret -, tinham sido dispendiosos mas estava satisfeito por os ter pago. Separavam a sala da área da cozinha, da despensa e das instalações dos servos, e detinham algumas das piores correntes de ar que costumavam assobiar na sala e levantar as palhas que cobriam o chão. O quarto da família ficava no outro extremo do salão, separado deste pelos pesados reposteiros. Alimentara a ideia, quando a pudesse pagar, de também o mandar apainelar. Encurvou o lábio num sorriso de troça. Já era demasiado tarde para o fazer. Agora, por causa da mudança para Lydford, não valia a pena gastar mais dinheiro naquela casa.
A esposa estava sentada na sala com Edith, no grande banco em frente da lareira. A filha parecia dormir, envolta no seu vestido ligeiro e com a cabeça apoiada no colo da mãe. Margaret apunhalava uma tapeçaria com golpes rápidos e violentos, como se estivesse a tentar matar o bocado de pano.
Simon ficou a olhá-la. A mulher não levantou a cabeça mas disse, por entre os dentes cerrados:
- Deixei guisado para ti, na panela - sem sequer tirar os olhos do seu trabalho de agulha.
Simon avançou silenciosamente para a lareira que ardia no meio da casa. O guisado encontrava-se no pequeno caldeirão suspenso do tripé de ferro, e via-se que já estava pronto havia bastante tempo porque a carne quase se desfizera no molho.
- Hugh! - gritou. O servo apareceu a correr e pediu-lhe para ir buscar uma malga e uma colher. Encheu o recipiente de barro com o guisado, foi-se sentar ao lado da mulher e começou a comer o guisado.
- Muito bem, explica-me o que se passa.
A mulher largou o pano e olhou-o com uma fúria misturada com desespero por causa da sua falta de compreensão.
- O que se passa? Devias ter estado aqui durante todo o dia e foste-te embora! Prometeste à Edith que passavas o dia com ela! Que explicação querias que lhe desse quando desapareceste?
Sentiu Edith começar a mexer-se, num prelúdio para o despertar, e calou-se. Afagou a filha, pegou-lhe ao colo e levou-a para o quarto. Porém, logo que regressou e começou a falar num tom baixo, a sua voz não passava de um sussurro sibilante.
- Por que não enviaste um dos outros, tal como o Tanner, o regedor, ou não deixaste o assunto para o padre? Porque tiveste de lá ir para tratares pessoalmente de um incêndio?
Olhou-o com fúria, sentindo a injustiça de tudo aquilo. Margaret não era nenhuma megera, nem uma mulher irascível, mas precisava que o marido compreendesse o seu ponto de vista. Claro que sabia muito bem que o marido, em particular agora que passara a ser o almoxarife, tinha responsabilidades a que necessitava de responder. No entanto também ela tinha tarefas para executar, entre elas o governo da casa, que nem sequer era a mais importante. Por outro lado, a filha podia ser muito rebelde e difícil quando esperava que o pai passasse algum tempo com ela. Fora o que acontecera naquele dia.
Margaret contara poder reorganizar a despensa e preparar as coisas para o fabrico de uma nova dose de cidra, mas descobrira Edith sempre por perto e a exigir atenção quando tentara falar com Hugh a esse respeito. De cada vez que fora para a cozinha Edith seguira-a e pedira-lhe para brincar com ela, ou limitara-se a fazer perguntas constantes até ao momento em que Margaret perdera a paciência, acabando por a mandar brincar para a rua e deixar de a incomodar.
Fora então que a sua pequena e tirânica filha afirmara que o pai nunca lhe diria uma coisa daquelas e que a odiava.
Margaret ficara chocada e profundamente magoada, apesar de saber que não era verdade, que se tratava apenas de uma súbita explosão de temperamento que em breve seria esquecida e que ela, a mãe, também teria de perdoar. Contudo, não era capaz. O facto fizera com que se sentisse ressentida com Simon por este ter conseguido, mais uma vez, passar o dia fora de casa envolvido num trabalho que ninguém interrompia. Por que razão era considerado correcto que o pai se visse livre das suas obrigações familiares enquanto a esposa, que tinha tanto que fazer, não se podia escapar?
Assim, depois de ter conseguido acalmar a ira e o aborrecimento de modo a poderem passar um resto de tarde mais ou menos tranquila, Margaret sentia-se justificada ao descarregar tudo sobre o marido que voltara para casa. Porém, agora que o olhava, com a fúria um pouco diminuída pela ausência da causadora das perturbações da tarde, via o marido a rir-se e Margaret em breve se descobriu dividida entre a fúria por Simon ainda ser capaz de lhe provocar um tal efeito... e o prazer por o ver satisfeito.
- Por que não vens para aqui e me dizes o que se passou? - perguntou Simon, fazendo um gesto para o lugar a seu lado, no banco. Margaret assim fez. Avançou para ele, sentou-se e contou-lhe o seu dia. Tal como já sabia que iria acontecer, o facto de poder desabafar fê-la sentir-se melhor, mais calma e mais em paz.
- E que estiveste tu a fazer? Por que demoraste tanto tempo? Foi apenas uma casa incendiada, não foi?
Sentiu-o a ficar rígido logo que pronunciou aquelas palavras.
Endireitou-se, pousou as mãos no colo e concentrou-se no marido.
- Conta-me tudo!
Simon assim fez. Começou a falar-lhe a respeito do corpo que tinham encontrado na casa, a figura carbonizada e irreconhecível do velho Brewer, que morrera tão sozinho que nem sequer havia alguém que soubesse onde vivia o filho ou se este estava vivo. A mulher observava-o e escutava-o com um rosto calmo e distante enquanto ele lhe falava de Baldwin, o novo cavaleiro, e o modo como este encarara o incêndio de uma maneira diferente. Franziu a testa de concentração quando Simon lhe falou dos homens que lá se encontravam, os Carters e Roger Ulton, que pareciam nada saber, e de Cenred, que esperava poder interrogar em breve. Ao princípio escutou-o com descrença, mas logo depois com uma sensação de crescente preocupação, como se o simples facto de ter sido informada das suspeitas de Baldwin, fosse o suficiente para a persuadir de que fora cometido um crime.
- Então, pensas que foi assassínio? - acabou por perguntar.
- Não sei o que pensar. Pode ter sido, tal como o Baldwin disse, mas na verdade não sei. É tão improvável... Não me admiraria que isso acontecesse numa cidade como Exeter... mas numa aldeola tranquila como Blackway? Não me parece possível.
Simon olhou para o fogo, pensativo, e Margaret perguntou:
- E se o Cenred diz que também não sabe de nada? Que irão vocês fazer?
- Não sei. Penso que Baldwin irá conversar com toda a aldeia. Vai interrogar toda a gente para tentar esclarecer as coisas desse modo. O problema está em que não há provas de que tenha sido um crime! Como podemos esperar que as pessoas acusem alguém se nem sequer podemos mostrar que houve um crime?! - Calou-se e fez uma careta para as chamas como se estas o pudessem ajudar a adivinhar a resposta.
- Que vais fazer amanhã? - perguntou.
- Oh, tenho de lá voltar e ver se consigo tirar algum sentido de tudo aquilo. No mínimo, vou ter de falar com o Cenred, e talvez volte a interrogar os outros. O Baldwin disse que irá ter comigo e suponho que saberá o que fazer.
Jane Black apertou-se contra o marido, na cama, tentando ajudá-lo a acalmar com o calor e a promessa do seu corpo, mas o gesto não pareceu ajudar. Acontecera o mesmo dois anos antes quando perdera o seu cão favorito, Ulfrith, o mastim, que fora morto por um lobo. Nessa altura também se deixara ficar na cama até tarde, sem se mexer, quase sem respirar mas também sem adormecer, tal como ela sabia muito bem.
Era óbvio que era isso o que se estava a passar, pela posição rígida do corpo do marido, pela tensão revelada, tão diferente de uma pose de descanso quanto ela conseguia imaginar, e estava desesperada por o ajudar... Mas como?
- John... - chamou, baixinho - por que não me contas tudo? Talvez te possa ajudar...
Sentiu o peito dele a imobilizar-se, como se suspendesse a respiração para a ouvir melhor, tal como já o vira fazer quando andava à caça. Contudo, aquilo era diferente, era mais como se ela tivesse quebrado uma cadeia de pensamentos e o marido se concentrasse nas suas palavras, a avaliar o respectivo valor. A seguir sentiu que o peito voltava a agitar-se e o Black virou-se lentamente para ela. Sentiu o raspar da barba do marido e chegou-lhe o cheiro do seu hálito.
- Julgam que o Brewer foi assassinado. Acham que teve de ser alguém que andou na rua até tarde, na noite passada. Isso quer dizer que pensam que posso ter sido eu.
A mulher imobilizou-se de repente.
- Não serias capaz de fazer uma coisa dessas, não tinhas motivo para o matar. Por que iriam pensar que...
- Andava na rua... e eles sabem-no. Como querias que escondesse esse facto, se fui eu quem deu pelo incêndio!?
- Ora, John, se tivesses sido tu, então não irias avisar ninguém a respeito do incêndio! Vais ver que acabarão por se aperceber disso. Não te preocupes!
- Estou preocupado. Para além do mais, quem foi que o fez? Deve ter sido muito tarde. Quem o teria podido fazer? Quem terá levado o Brewer para casa desde a estalagem?
- Então e o Roger Ulton?
- O Roger, quando regressava da casa da Emma? Nem sequer se deve ter aproximado da estalagem quando voltou de Boundstone.
A mulher calou-se e olhou-o, no escuro. Quando falou, fê-lo com uma voz baixa e perturbada.
- O Roger não veio de Boundstone. Vi-o na estrada. Não vinha do sul, de Hollowbrook ou de casa. Vinha do norte e ia para casa...
- O quê?! - Black mexeu-se de repente e segurou-lhe o ombro com força. - Tens a certeza? Mas... a que horas foi isso?
- Não sei. Foi pouco antes de ir para a cama. Penso que deveriam ser quase 11 horas, mas...
- Tens a certeza de que era o Ulton?
- Oh, sim, claro!
- E ia na direcção da sua casa?
- Sim.
O caçador largou-a e recostou-se, para ficar a olhar para o tecto. Se o Ulton descera a estrada, então mentira quando dissera que voltara da casa de Emma. Porquê? Teria sido ele quem matara o Brewer? No dia seguinte teria ele que dizer aquilo ao cavaleiro. Afastaria as suspeitas para longe dasua própria pessoa.
Para seu grande alívio, a mulher não precisou de esperar muito para o ouvir a respirar lentamente e para sentir a tensão do corpo do marido a abrandar. Foi apenas nesse momento que se ajeitou para dormir. Lançou um sorriso na direcção do marido, pousou a cabeça na curva do braço e procurou o sono.
Simon chegou à casa do couteiro a meio da manhã do dia seguinte. Tal como o pôr do Sol prometera, o dia estava claro e brilhante, sem a menor sugestão de chuva no ar.
A jornada, pelas mesmas estradas que percorrera no fim da tarde anterior, fizera-o rir-se de si mesmo. Onde estavam os terrores apavorantes que imaginara?
Cavalgara por entre as árvores sob a luz da manhã e olhara para os ramos e troncos com uma autodepreciação sardónica. Agora, as árvores pareciam-lhe guardas amigáveis, sentinelas sempre de vigia para protegerem os viajantes contra os perigos das jornadas. Ao calor da luz do dia as árvores haviam perdido todos os sinais ameaçadores que lhe tinham parecido tão claros e aterrorizadores na noite anterior. Eram visões de conforto e segurança no seu caminho, e dava-lhes as boas-vindas tal como as daria a um bom companheiro de viagem.
A povoação permanecia adormecida sob a brilhante luz do Sol, que de algum modo fazia com que as casas parecessem mais novas e limpas, e as ervas mais verdes. Enquanto cavalgava para lá da estalagem quase era capaz de imaginar que nenhum dos acontecimentos do dia anterior jamais tivera lugar.
Havia pouca gente por ali. Conseguia ver algumas mulheres junto ao rio, lavando as suas roupas, viu a barrela nos alguidares e as pás de madeira usadas para bater os tecidos mais recalcitrantes. As mulheres riam e gritavam, com os vestidos alegremente coloridos a brilharem ao sol e Simon sentiu uma onda de inveja por naquela manhã não poder ser tão descuidado e feliz como elas.
Depois, quando percorreu um pouco mais do caminho, as mulheres deram por ele. As gargalhadas e as conversas morreram tão subitamente que Simon pensou que poderiam ter desaparecido todas, levadas dali por uma qualquer estranha magia. Porém, quando se virou para olhar ainda continuavam todas lá, silenciosas e imóveis a olharem para ele, o viajante desconhecido que atravessava a sua aldeia.
Aquele silêncio repentino, onde houvera um ruído e uma agitação bem humorada, era desconcertante. Simon sentiu uma incomodativa sensação de excitação, como se aquilo fosse um augúrio, um aviso para o informar de que a sua presença não era desejada, que não passava de uma intrusão desnecessária. Observou as mulheres por um minuto enquanto cavalgava, até passar a apertada curva da estrada e ficarem ocultas por uma casa. Ficou grato por as perder de vista porque os seus olhares silenciosos haviam sido profundamente perturbadores.
A casa do couteiro era uma propriedade ainda mais pequena do que a de Black. Jazia a curta distância do caminho e tinha na sua frente uma faixa de pasto onde uma cabra se alimentava com satisfação. A cabra deixou de mastigar quando o almoxarife se aproximou e fitou-o com olhos amarelos e insensíveis, com as íris verticais. Simon descobriu que as suas sensações de desconforto regressavam sob o olhar amarelo daquela criatura, sensação de que não conseguiu libertar-se enquanto amarrava o cavalo. Não havia sinais de Baldwin. Deveria esperar pelo cavaleiro? Virou-se e espreitou para a estrada, perguntando a si mesmo se deveria esperar o amigo, mas depois surgiu-lhe na mente a imagem de Margaret a dizer: "Por que passaste todo o dia fora de casa mais uma vez?" e isso decidiu o assunto. Deu meia volta e encaminhou-se para a porta da frente, sentindo os olhos da cabra postos nas suas costas à medida que avançava.
A casa era velha, pouco mais do que uma cabana só com duas divisões. Ao contrário das outras da aldeia, esta não tinha necessidade de abrigar animais pelo que o ar à sua volta estava limpo e fresco. A construção parecia ter sofrido um colapso alguns anos antes, tal como era muito vulgar com as casas mais antigas quando as paredes deixavam de suportar o peso do telhado. Em certa época devia ter tido o dobro das dimensões actuais, porque os contornos das antigas paredes ainda eram visíveis no meio das ervas, num dos lados. Sem dúvida que aquela extremidade havia abatido e que o buraco deixado por esse desastre fora de algum modo tapado para que o resto da propriedade continuasse habitável. Parecia ter sido bem cuidada recentemente porque as paredes estavam caiadas de fresco, as madeiras pintadas e o colmo do telhado bem tratado, com poucos sinais de musgos e sem buracos abertos pelos ninhos dos pássaros.
Foi o próprio couteiro quem abriu a porta. Tinha ar de quem acabara de se levantar da cama, com os cabelos despenteados e os olhos enevoados, olhos que ficou a esfregar quando parou à entrada, fitando o estranho à sua porta com olhos turvos.
- És o Cenred? - perguntou Simon, para logo acrescentar, depois do aceno de confirmação do homem: - Chamo-me Simon Puttock e sou o almoxarife. Gostaria de te fazer algumas perguntas a respeito da noite de anteontem.
- Porquê? - inquiriu o couteiro, pestanejando.
Simon teria preferido um qualquer outro tipo de pergunta.
- Porque é possível que o homem que morreu nessa noite...
- O velho Brewer... - disse o couteiro, para o ajudar.
- Sim, o velho Brewer - concordou Simon - tenha sido assassinado. Estou a tentar descobrir se o foi ou não. - Sentiu um certo grau de alívio por ter conseguido concluir o discurso introdutório e prosseguiu com um pouco mais de confiança. - Por isso, quero saber o que andaste a fazer naquela noite, onde estavas, a que horas voltaste para casa e assim por diante.
As feições do homem ainda se mostravam ensonadas quando olhou para Simon. Tinha um rosto aberto e amigável, numa cabeça redonda no alto de um corpo corpulento e quadrado. Era óbvio que estava ligeiramente divertido enquanto olhava para o almoxarife porque havia um pequeno sorriso a brincar nos seus lábios cheios e vermelhos, e porque as rugas do riso, em volta dos olhos castanhos-escuros, se tinham aprofundado. O cabelo na sua cabeça parecia ralo mas mais do que compensado pela espessa massa de pêlos encaracolados que espreitava no colarinho aberto da túnica. Usava barba, com pêlos também muito negros excepto na ponta do queixo, onde havia um amarelado, como se tivessem sido mergulhados em tinta quando era ainda um jovem e ficassem manchados para sempre. Era provável que tivesse apenas 28 anos mas o rosto exibia um aspecto mais sensato do que a idade implicava, e Simon descobriu que estava a sentir-se nervoso, como se tivesse a obrigação de pedir desculpa ao homem por lhe ter interrompido o sono.
Libertou-se daquela sensação e perguntou:
- Então, onde estiveste naquela noite? Na noite de anteontem? Cenred pareceu achar a pergunta ligeiramente divertida - ao ponto de quase soltar uma gargalhada -, mas depois viu a expressão séria no rosto de Simon e reconsiderou.
- Entre e beba uma caneca de cerveja, almoxarife. Dentro de casa podemos conversar mais confortavelmente e tenho a certeza de que a cavalgada lhe deve ter dado alguma sede...
O homem tinha razão e Simon sabia-o. Sentia a garganta seca da jornada e seria agradável poder sentar-se. Acenou uma confirmação e seguiu-o para a sala.
Era uma divisão muito simples mas com sinais de modernização. A primeira coisa em que Simon reparou foi na chaminé. Era a primeira pequena habitação em que entrava e onde existia uma tal inovação. A maior parte das pessoas contentava-se em deixar que o fumo saísse por entre o colmo do telhado, tal como os seus antepassados haviam feito, mas era óbvio que este homem desejava mais conforto do que o oferecido por uma lareira enfumaçada. Em frente da lareira encontrava-se um grande bloco de granito e fora aí que o homem colocara o seu colchão. Enrolou-o e pousou-o ao lado do fogo para o manter quente.
- Estive fora toda a noite, tentando apanhar uma raposa. O senhor acordou-me... - declarou o couteiro com toda a simplicidade, encaminhando-se para as traseiras para ir buscar a cerveja. Simon avançou para um banco, puxou-o para junto da lareira, pousou-o sobre a palha que cobria o chão, sentou-se e ficou à espera. Cenred regressou pouco depois, carregado com duas grandes canecas de barro. Entregou uma delas a Simon antes de ir buscar outro banco junto à parede, para se poder sentar na frente do almoxarife.
- Quer então saber o que andei a fazer na noite de anteontem, não é verdade?
O almoxarife acenou em silêncio, estudando aquele homem volumoso à vontade e acima de tudo muito confiante. Era uma confiança que brilhava como a luz de uma lanterna na escuridão, num grande contraste com o nervosismo hesitante dos três homens com quem ele e Baldwin haviam conversado no dia anterior. Enquanto os outros se tinham arrastado e contorcido, este parecia estar positivamente a divertir-se, confortavelmente sentado, de pernas esticadas, uma das mãos no assento a seu lado e outra a segurar na caneca da cerveja.
- Pois bem, saí daqui ao fim da tarde. Tive de ir ao bosque para arranjar paus para reparar uma zona da vedação que tinha caído. Levei os paus directamente para a coelheira, arranjei a vedação e fui investigar as armadilhas. Numa delas havia um texugo, que matei, e perto de outra encontrei a pele de um dos meus coelhos. Passei uma boa meia hora a andar às voltas para ver se conseguia apanhar a pista do animal que o matara, mas não consegui e voltei para aqui. Comi o meu jantar e...
- Quando foi isso? - interrompeu-o Simon.
- Quando? Oh, suponho que já ao crepúsculo. Talvez por volta das sete e meia. De qualquer modo, voltei à coelheira para ver se conseguia apanhar o tal animal. Fiquei lá até tarde, não vi sinais dele e voltei para casa.
- A que horas terás chegado a casa?
- Na verdade, não sei. Já escurecera havia muito tempo, mas é tudo o que lhe posso dizer.
Simon ficou a pensar por instantes e perguntou:
- Para chegares a casa não tens de atravessar a aldeia, pois não?
- Não, a coelheira fica junto à charneca, a cerca de 800 metros a sul daqui, pelo que quando regresso a casa só tenho de passar pela casa do Ultons e do Brewer.
- Hum... Diz-me, o que pensas dos Ultons?
- Oh, são boa gente. Têm inveja de mim, pelo menos o Roger, mas são suficientemente amigáveis.
- Inveja? Que queres dizer com isso?
- Sou um homem livre. Todos os outros da aldeia são servos do senhor destas terras, mas eu consegui a minha liberdade. Obtive-a comprando-a aos Furnshill e algumas pessoas não gostaram. É uma estupidez porque há por aí alguns - veja o caso do Brewer -, que são mais ricos do que eu, mas isso não os impede de me invejarem.
- Que sabes a respeito do Brewer? Ninguém foi capaz de me dizer grande coisa a seu respeito. Conhecia-lo bem?
O sorriso amigável do couteiro não lhe abandonou o rosto mas os olhos perderam um pouco do seu foco, fazendo com que parecesse mergulhar num sonho. Quando falou, a sua voz enfraquecera e tornara-se mais baixa e tranquila.
- Não era um homem fácil. Por aqui, toda a gente tinha a certeza de que possuía muito dinheiro, mas não sei se será verdade. De qualquer modo, isso não o tornava muito popular.
- Não?
- Não. Tinha dinheiro mas guardava-o para si. Para além disso era um grande bebedor e tornava-se violento quando bebia demasiado. O Brewer era um homem grande... e magoava as pessoas quando decidia bater-lhes.
- Nesse caso, havia alguém com motivos para o odiar? Terá magoado alguém recentemente?
O couteiro soltou uma súbita gargalhada, num verdadeiro vendaval de divertimento, e teve de limpar os olhos com as costas das mãos antes de responder.
- Oh, desculpe, almoxarife! Sim, acho que o podemos dizer! Era um bêbedo, provocava frequentes cenas de pancadaria, estava sempre a troçar dos outros e a amesquinhá-los. Não me parece que consiga compreender o que as pessoas pensavam a seu respeito! Por estas bandas... deve ser difícil encontrar alguém que gostasse dele!
O almoxarife devia ter revelado até que ponto o comentário o deprimira, porque o couteiro levantou-se, aproximou-se dele e deu-lhe uma palmada num ombro.
- Ora, vamos lá, almoxarife! É muito provável que tenha morrido na cama e que fosse um acidente. Tem a certeza de que não anda a perder o seu tempo? Passe-me a caneca. Se gosta da minha cerveja, pode beber outra caneca comigo. - Retirou a caneca das mãos de Simon e voltou a dirigir-se ao quarto das traseiras.
Quando regressou já o almoxarife conseguira recuperar o suficiente para poder sorrir de gratidão pela nova cerveja.
- Obrigado. Queres fazer o favor de me aturar um pouco mais? Por exemplo, viste alguém quando voltaste para casa? Informaram-nos que o Brewer foi ajudado a voltar para casa na noite em que morreu, mas ninguém parece saber quem o fez. E tu?
- Bom, não... Não o vi a ser ajudado. Presumo que me está a querer dizer que foi arrastado para casa depois de ter sido novamente expulso da estalagem? Sim, foi o que me pareceu. Não, não o vi.
- Depois do que me disseste a respeito de ser pouco popular, não estás surpreendido por alguém o ter ajudado?
- Não, era frequente que as pessoas o fizessem. Oh, pode ter a certeza que ele era odiado. Era arrogante e bruto, sempre pronto a usar os punhos quando não conseguia encontrar as palavras, mas isto é uma aldeola pequena. Temos de continuar a darmo-nos uns com os outros. No caso contrário, se estivéssemos sempre a discutir como faríamos as colheitas ou lavraríamos os campos? Temos de continuar a conviver... mas ele tornava as coisas difíceis.
- Como?
Os olhos do couteiro voltaram a enrugar-se de divertimento.
- Gosta de fanfarrões? O Brewer era um fanfarrão. Os boatos a respeito do seu dinheiro... bom, não sei se eram verdadeiros, mas foi ele próprio quem ajudou a espalhá-los. Possuía os seus próprios bois, tinha sempre dinheiro para cerveja e estava sempre pronto para amesquinhar os outros.
- Estou a ver... - O almoxarife espreitou para o fogo. - Não o viste naquela noite?
- Não, não o vi - declarou, mas a seguir inclinou a cabeça para um lado e olhou para Simon com o que este pensou ser um sorriso levemente envergonhado. - No entanto, posso ter visto alguém quando vinha a caminho de casa.
- Quem?
O homem soltou uma risadinha.
- Não tenho a certeza! Estava demasiado escuro mas posso contar-lhe como foi. Tinha desistido de tentar apanhar a raposa, ou lá o que era, e estava de volta a casa. Vinha aborrecido e cansado, e ia a passar pela casa dos Ulton quando...
- Tens alguma ideia das horas?
Cenred lançou-lhe um olhar de piedade.
- Não percebo por que me está sempre a perguntar isso. Olhe, almoxarife, não ando lá por fora com uma vela daquelas que marcam as horas. Como podia saber que horas eram? Só sei que estava muito escuro. Tanto pode ter sido às 11 horas como depois da meia-noite. Como quer que soubesse? Só lhe posso dizer que não pode ter sido depois da uma e que já passava das dez. Para além do mais, estava demasiado cansado para pensar nisso. Como lhe ia dizer, ao passar pela casa dos Ulton, na estrada que segue na direcção da minha própria casa, era capaz de jurar que vi uma figura na berma do caminho. Suponho que terá sido em frente da casa do Brewer, nas árvores do outro lado da estrada. Na altura não reagi... - Fez uma pausa, embaraçado. - Pareceu-me uma figura escura e delgada. Sabe, com a escuridão, com as sombras provocadas pela Lua e tudo o mais, vi aquela forma negra a desaparecer nas árvores à minha frente, recordei-me das velhas histórias... Continuei o meu caminho e tentei esquecer-me do que vira. De qualquer modo, foi perto da casa do Brewer, no outro lado do caminho, no sítio onde as árvores chegam até à estrada. Está a ver o sítio?
- Acho que sim... - respondeu Simon. Todavia, pensava noutra coisa: quem poderia ter sido? Que horas eram? Teria sido um dos dois irmãos? O Roger Ulton... o homem que levara Brewer a casa... ou outra pessoa qualquer?
A conversa terminou, Simon saiu e ficou parado junto da casa do couteiro durante alguns minutos. Desejava que Baldwin tivesse estado ali para ouvir o testemunho de Cenred e para o favorecer com a sua opinião. Todavia, o cavaleiro ainda não aparecera. Deu alguns pontapés nas pedras do caminho, encaminhou-se para a égua, soltou-a e começou a caminhar a seu lado, afastando-se da aldeia.
A estrada curvava para a esquerda quase imediatamente a seguir à casa do couteiro e dirigia-se mais directamente para sul quando passava pelas ruínas da casa de Brewer. O almoxarife continuou em frente quase sem olhar para os destroços. Era estranho, pensou, que agora que Baldwin lhe plantara na mente, com toda a firmeza, o conceito de assassínio, a verdadeira realidade da morte lhe parecesse quase irrelevante. A casa já não tinha qualquer espécie de importância. Os animais de Brewer já não eram importantes. A única coisa que dominava a sua atenção era o homem responsável pelo crime.
Uma vez para lá da casa desmoronada e manchada pelo fumo, a estrada abria-se um pouco e apontava a direito para o tom azul-acinzentado da charneca. Ali, era claro, a estrada afastara-se de antigas propriedades, para longe dos campos, pastagens e terras com donos, porque os meandros acabavam repentinamente e seguia a direito, recta como uma régua, deixando o ribeiro para trás na sua margem esquerda.
Era naquele local, onde a estrada prosseguia solitariamente para as colinas distantes, que se erguia a casa dos Ulton. Fora outrora uma construção solitária e muito comprida. Devia encontrar-se ali há mais de 100 anos porque era um edifício de taipa, basicamente construído com barro velho, terra e excrementos de bovinos, criada originalmente para um agricultor e para os seus filhos, mas também a pensar na segurança do respectivo senhor das terras. Era daquele ponto que a vastidão da paisagem podia ser avistada, e os inimigos, quer se tratasse de uma horda da Cornualha ou de viquingues numa incursão a partir da costa, seriam vistos com a antecedência suficiente para que fosse dado o alarme. Simon sabia que agora, desde a feliz subida ao trono de Guilherme da Normandia, os ataques e as matanças levados a cabo pelos estrangeiros haviam praticamente cessado. Contudo, embora as provações às mãos de exércitos estrangeiros tivessem acabado, ainda existia a ameaça de um ataque por parte de inimigos menos distantes.
Ainda não se tinham passado muitos anos desde que a última guerra civil, um período insensato e violento em que as alianças haviam sido feitas e desfeitas com uma monótona regularidade, e em que os homens tinham feito malabarismos com as suas lealdades para permanecerem do lado que mais provavelmente lhes daria poder e riqueza... se vencesse. E se parecesse que não ia vencer? Então, estava na hora de mudar de lealdades!
A partir daquela casa, com paredes maciças e minúsculas janelas, o seu ocupante podia não apenas ver quilómetros de estrada, uma visão desimpedida de árvores durante a maior parte do caminho, como podia também montar uma furiosa defesa. Tal como muitas das mais antigas propriedades, o acesso ao interior era feito apenas por uma larga porta.
Atacá-la seria uma loucura, provavelmente muito dispendiosa, uma vez que os defensores tinham a possibilidade de se servir das janelas como seteiras.
Todavia, os anos não haviam sido amigáveis para a velha casa. Quando fora construída dera segurança e protecção a uma família de boas dimensões, bem como para o gado e para os gansos e galinhas que se encontravam no pátio. O seu piso único protegeria tanto os animais como os humanos. Agora, já não. A parede do lado ocidental ruíra, possivelmente devido a demasiadas chuvas ou a um telhado malfeito, ou talvez por causa de demasiados Verões secos seguidos pelas chuvas dos últimos dois anos. Fosse qual fosse a razão, a taipa fora-se abaixo e o desastre daí resultante era bem visível.
A parede devia ter começado a abater pela esquina, pensou Simon, e espalhara-se sobre uma larga área como se tivesse sido empurrada pelo peso do telhado, criando um espaço semicircular de lama e porcaria. O telhado caíra pouco depois, com o espesso barrote do rebordo a exibir-se agora como uma espinha negra e com os caibros pendentes como costelas no meio dos restos do colmo.
A porção arruinada equivalia a quase metade de toda a casa, mas a parte restante, aparentemente, era ainda habitável. Simon deu a volta à parede sul e pôde ver os grandes esforços feitos para protecção do que restava. Barrotes de madeira, provavelmente recuperados do telhado, haviam sido encostados à parede para a impedir de cair. Onde o telhado de colmo desaparecera tinham sido colocados blocos de granito no topo das paredes para lhes dar alguma protecção contra as chuvas e para evitar que a taipa fosse arrastada pela água. Por outro lado, tinham erguido uma parede nova no interior, por baixo do telhado de colmo, para colmatar o enorme buraco. A casa poderia estar reduzida a metade das suas dimensões anteriores mas, pelo menos, continuava a ser habitável.
O almoxarife parou por instantes, para pensar. Era óbvio que aquela família precisava de dinheiro. Se acreditassem nas histórias a respeito do dinheiro de Brewer, se acreditassem que tinha dinheiro numa caixa escondida debaixo do chão... não teria sido possível que tentassem apoderar-se dele? Como o homem era um bêbedo, não teriam pensado que poderiam ir a casa dele tarde na noite, enquanto Brewer dormia? Se este os tivesse visto, então teriam de o matar para ocultarem o roubo, para depois pegarem fogo à casa a fim de esconderem o crime e as culpas.
- Almoxarife!
Simon virou-se lentamente, ainda a pensar no assunto, e viu Black a avançar para ele.
- Ah, John! Já viste Sir Baldwin hoje?
- Não, almoxarife. Até agora ainda não vi ninguém para além de si. Creio que tenho novidades para lhe dar.
Explicou rapidamente o que a mulher vira na noite do incêndio - Simon ainda não era capaz de usar a palavra "assassínio" -, bem como as horas a que o vira.
- Nesse caso, o jovem Roger regressava a casa vindo da direcção errada! Não pode ter-nos dito a verdade quando afirmou que passara todo o princípio da noite com a Ema. Por que iria mentir... se não para esconder as suas culpas?
Simon coçou o pescoço, pensativo.
- Não sei... mas penso que devemos ir visitar essa tal Emma antes de voltarmos a falar com o Roger, só para vermos o que ela nos diz.
Como não havia sinais de Baldwin, os dois homens saíram juntos de Blackway para cobrirem os quatro ou cinco quilómetros até Hollowbrook. Seguiram em silêncio durante a maior parte do caminho. Simon continuava a meditar nos testemunhos que ouvira até àquele momento, e tentava ver se encaixavam uns nos outros, se tal fosse possível. Não tinha vontade de condenar ninguém por assassínio, e muito menos um homem inocente, pelo que reconsiderava todas as provas numa tentativa para garantir a si mesmo que havia motivos para suspeitar de Roger Ulton.
A casa que pertencia aos pais de Emma Boundstone era grande e relativamente nova. As paredes de cal brilhavam sob o Sol do princípio da tarde e o pátio na frente da grande porta estava limpo de toda a porcaria. Era claro que as pessoas que viviam ali tinham orgulho na sua propriedade.
Simon deixou-se ficar para trás quando lá chegaram. Não conhecia nenhum dos membros daquela família, enquanto John Black era bem conhecido na área. Seria preferível que fosse John a bater à porta e a identificar-se.
A porta foi aberta por uma mulher baixa e alegre, de meia-idade, vestida de negro e com uma touca cinzenta a cobrir-lhe os cabelos entrançados e igualmente cinzentos. Tinha um rosto completamente redondo que parecia ser formado por círculos: os olhos eram como contas negras gémeas, o nariz era um pequeno botão, as faces tinham manchas vermelhas semelhantes a duas pequenas maçãs rosadas e até o queixo era uma esfera quase perfeita. Parou à porta e Simon descobriu que era quase impossível não lhe devolver o sorriso. Rejeitar o sorriso de uma mulher tão feliz e agradável não seria apenas grosseiro, mas também quase obsceno.
- Olá, John, como vais tu neste belo dia?
- Vou bem, sra. Boundstone, vou bem. E o seu marido?
- Está óptimo, John. Vieste à procura dele?
- Ah, nós... - O caçador hesitou e olhou para trás, para Simon.
- E quem é este? Não me parece que já o tenha visto anteriormente.
Simon avançou. Quando se aproximou verificou que a cabeça da mulher lhe dava apenas pelo ombro, pelo que só deveria ter cerca de metro e meio de altura. Para além disso, pelo aspecto, também deveria ser esse o seu diâmetro.
- Bom dia, sra. Boundstone. Chamo-me Simon Puttock e sou o almoxarife de Lydford. Podemos falar com a sua filha, por favor?
O sorriso da pequena mulher quase nem se modificou mas Simon viu-lhe os olhos a cintilar quando a sra. Boundstone olhou para ele.
- Ah, quer a nossa Emma, não é? Sim, está em casa. Esperem aqui, vou buscá-la.
Ainda mal se afastara da porta quando Emma apareceu e Simon achou-a um desapontamento. Interrogara-se sobre qual seria o aspecto da jovem e que tipo de rapariga poderia desejar o rapaz dos Ulton... e agora descobria que os opostos se atraíam.
Emma Boundstone era tão volumosa como a mãe, embora à sua própria maneira, mas não possuía o mesmo encanto. Era um pouco mais alta, talvez com um metro e cinquenta e cinco, e bem arredondada, mas as semelhanças acabavam aí. Tinha um rosto feio, comprido e pesado, muito semelhante ao corpo. Dava a impressão de peso, embora se tratasse mais de robustez do que de gordura. Possuía uma testa alta e inclinada de onde descia um rosto quadrado e sólido, com olhos pequeninos que eram como lascas brilhantes, um espesso nariz e uma boca que era semelhante a uma fenda. O corpo era espesso e pesado... e teria sido mais apropriado num dos seus irmãos. Simon começou a desejar não ter de a interrogar para poder voltar para o caloroso conforto do olhar da mãe.
A rapariga avançou e parou, agressiva, com uma das mãos na anca, como que a desafiá-los para começarem.
- Então? Queriam falar comigo?
Simon acenou e perguntou a si mesmo como começar.
- Sim, queria fazer-te algumas perguntas a respeito da noite de anteontem.
- Que teve essa noite de especial?
- Segundo sei, estiveste com o Roger Ulton, de Blackway?
- Sim. - Era claro que nem sequer ia tentar ajudá-los.
- A que horas chegou ele aqui?
- Não sei.
Simon começou a sentir a paciência a esgotar-se.
- Então dá-me uma ideia aproximada, Emma.
- Bom... - A jovem inclinou a cabeça para um lado, num gesto que seria encantador numa mulher menos volumosa. Nela, era apenas uma coisa desajeitada. - Chegou depois de escurecer. Suponho que deviam ser sete, ou perto disso. Porquê?
O almoxarife ignorou a pergunta e continuou.
- E quando foi que te deixou?
- Por volta das oito e meia.
- Tens a certeza?
Houve uma centelha de desafio a brilhar-lhe nos olhos.
- Sim, tenho a certeza! Se não acreditam, por que não lhe vão perguntar?
Os dois homens olharam um para o outro e de súbito a voz da jovem tornou-se rabugenta e petulante.
- Ele está bem, não está? Magoou-se, ou aconteceu-lhe alguma coisa?
- Não, está bem, tanto quanto sabemos. Por que razão se foi embora tão cedo? Julgávamos que vocês estavam a pensar num noivado...
Agitou a cabeça com um gesto de impaciência.
- Oh, sim, estávamos! Porém, já que querem saber, tivemos uma discussão. Recusou-se a casar comigo até acabar de reconstruir a casa do pai... e isso ainda pode demorar um ano! Avisei-o de que, se me quer, então terá de se despachar. Posso não ficar à espera. Discutimos e acabei por o mandar embora. Foi por isso que voltou para casa mais cedo.
Naquela noite, já sentado à lareira com Margaret, Simon relatou os acontecimentos do dia. Deixara Black durante a viagem de regresso de Hollowbrook porque já seria quase noite quando chegassem a Blackway. Parecera-lhe inútil seguir para lá quando podia prosseguir o seu caminho e chegar a casa mais cedo, para variar.
A mulher ficara contente por o ver regressar muito mais cedo do que era habitual e depois da refeição tinha jogado à malha com a filha, porque de momento era essa a sua brincadeira preferida. Agora, finalmente, já se encontrava na cama, no quarto, e dispunham de duas breves horas de paz antes de também irem dormir.
- Como se chama esse tal couteiro? - perguntou Margaret.
- Cenred - respondeu Simon, já ensonado.
- Ah, sim, Cenred. E que disse ele?
Jazia novamente com a cabeça no colo de Simon enquanto este lhe afagava os cabelos com uma das mãos e tinha a outra pousada na barriga da mulher. Lá fora, a chuva embatia contra as paredes em cortinas de água enquanto as ocasionais rajadas de vento punham a porta a vibrar e enfunavam as tapeçarias.
- Pouca coisa, na realidade. Diz que viu alguém, uma figura que se tentou esconder quando se aproximou. Aparentemente, foi mesmo em frente da casa do Brewer. O parvo ficou demasiado assustado para olhar. Pensou que poderia tratar-se do Velho Crockern, ou de qualquer coisa do mesmo género, e continuou para casa. De qualquer modo, quem me interessa agora é o outro, o Roger Ulton.
- Não é um daqueles com quem falaste ontem?
- Sim.
Simon baixou os olhos para o rosto da mulher e sorriu, embora ela pudesse ver que o marido estava exausto. Tinha o rosto acinzentado mesmo à luz das chamas e das duas espessas velas que se encontravam ali perto, nos seus tripés metálicos. Na sala enfumaçada, os grandes círculos de cansaço por baixo dos olhos de Simon pareciam-se com nódoas negras e perguntou a si mesma se a investigação não seria de mais para ele. Levada por um súbito capricho, Margaret levou um dedo à face do marido, num gesto de compreensão e amor, e ficou satisfeita ao ver que o seu sorriso se alargava.
Continuavam a ouvir a chuva, lá fora. Mantivera-se afastada durante todo o dia mas agora, na escuridão da noite, os céus tinham-se aberto e a água pingava regularmente de dois buracos no telhado de colmo. Margaret estava satisfeita por, pelo menos, ter o marido em casa, com ela. Estaria muito preocupada se ele continuasse lá fora com aquele tempo. Passou-lhe a mão pelo rosto, admirando-se com a aspereza nos sítios onde o restolho da barba lhe perfurava a pele das faces, tão diferente da pele do peito e do resto do corpo, que era macia e suave. Fitou os seus próprios dedos, gozando as sensações tácteis, deixando-se levar pelo prazer do toque e do cheiro do seu homem, e quase deixou escapar o comentário que ele fez a seguir.
- Desculpa, que foi que disseste?
- Disse que era muito estranho... - repetiu, sorrindo-se para baixo, para ela. - Esse tal Roger parece ter andado a tentar convencer uma rapariga a casar com ele, mas naquela noite tiveram uma discussão. Disse-me que esteve toda a noite com ela mas a rapariga jura que o mandou embora muito cedo. Para além disso, também me disse que tinha ido directamente para casa, mas a mulher do Black viu-o passar junto à casa dela, do outro lado da aldeia. Tendo tudo isso em conta, tenho quase a certeza de que foi ele quem levou o Brewer a casa. Contudo, se foi, por que não o disse?
- Estou certa de que o descobrirás amanhã. Que mais soubeste?
Conversaram durante cerca de uma hora, mas Margaret concluiu rapidamente que o marido precisava de dormir e arrastou-o para o quarto e para a cama. Mesmo assim, quando já estavam deitados, apercebeu-se de que Simon continuava acordado.
Não passava de uma figura infeliz, encolhida no espesso manto de viagem, com o capuz puxado para cima da cara, sentada na frente da fogueira que tentara acender e que ainda soltava um leve farrapo de fumo como se quisesse animar-lhe o espírito com a sua promessa de chamas e de calor. Contudo, a fogueira morrera à nascença. As rajadas de vento que atiravam as grossas gotas de chuva contra as suas costas tinham-na dissipado imediatamente.
- Apenas um ano. Só um ano... - murmurou, com a voz desfeita pelo vento que remoinhava à sua volta e que procurava encontrar uma fenda nas roupas para o apunhalar com o seu frio. Estremeceu, agarrou numa ponta solta do manto e puxou-a novamente para si enquanto lançava uma olhadela desconfiada à sua volta, para a clareira.
Claro que poderia ter-se dirigido a uma das quintas para implorar alguma comida e a oportunidade de se sentar em frente de uma lareira, mas o tempo, ao crepúsculo, parecera-lhe suficientemente quente para não ter de se sujeitar a um tal embaraço. No fim de contas ainda era um cavaleiro e esse tipo de comportamento era aviltante para um homem como ele, nascido numa boa família.
- Um ano! - repetiu, cuspindo as palavras por entre os dentes cerrados.
Havia apenas um ano que o seu senhor, Hugh de Lacy, Lorde Berwick, abandonara este mundo. Apenas um ano. A partir desse momento, perdera tudo. Todos os seus bens estavam agora com ele: a espada do pai e um saco com algumas pequenas posses. O resto desaparecera. A sua posição como marechal do castelo por cima da cidade fora entregue ao bastardo, o filho do irmão do seu senhor. Como os alojamentos que ocupara no castelo eram um direito inerente à posição que ocupara, também isso se fora. Depois, quando o seu sucessor lhe sugerira que talvez preferisse procurar outra casa, como se ele não fosse uma pessoa merecedora de confiança, ficara enraivecido e concordara.
Todavia, a partida precipitada custara-lhe caro. Não ficara à espera de poder tirar algumas vantagens da credibilidade que ainda lhe restava e preferira, pura e simplesmente, ir-se embora dali para esquecer a dor e o desespero de ver o seu cargo entregue a um idiota. Mandara que lhe preparassem o cavalo e partira naquela mesma noite, envolto no mesmo orgulho e excitação que sentira 15 anos antes quando se tornara um cavaleiro. Mas isso fora nessa altura e Rodney de Hungerford já viajara muito desde esse dia.
Ao princípio ficara surpreendido com a rapidez com que gastara o dinheiro. Era como se, para onde quer que fosse, os preços subissem antes da sua chegada. Inicialmente nem sequer se preocupara. No fim de contas, um cavaleiro não se preocupava com dinheiro porque isso era um assunto que só dizia respeito ao seu senhor. Todavia, a sua pequena reserva de moedas desaparecera tão depressa que começara a aperceber-se que muito em breve precisaria de ganhar algumas para as poder substituir.
Quando fora a última vez que estivera numa cama, numa cama verdadeira, dentro de uma casa? Contraiu os ombros contra o vento amargo que soprava dos lados da charneca. Duas semanas? Três? Não, tinham sido duas. Tinham-se passado duas semanas desde que lhe haviam permitido que passasse uma noite no priorado. O prior fora um homem amável que lhe oferecera a cama por mais tempo, mas Rodney não pudera aceitar. Seria como pedir uma esmola, coisa que não estaria ao nível da honra de um cavaleiro nascido numa antiga família. Por isso, recusara e voltara a montar o seu cavalo.
O fogo morrera. Ficou a olhar para os seus restos com uma expressão de tristeza e com um sorriso suave que parecia mostrar piedade pelas chamas que já não existiam, como se estas fossem uma criatura viva que desistira finalmente da luta pela vida e se tivesse ido a baixo na sua frente, entregando-se à paz da morte. Não podiam competir contra o cruel vento que tentava cortar as suas defesas com uma lenta inexorabilidade, como uma espada enferrujada que o golpeava. Era um vento que parecia saber que não teria forças para continuar durante muito mais tempo.
Não valia a pena e sabia-o. Agora que o cavalo lhe morrera não iria conseguir chegar à Cornualha, para se juntar ao irmão. Deviam faltar uns bons 100 quilómetros. 100 quilómetros através das charnecas e das florestas.
A ideia fê-lo levantar a cabeça e olhar, trocista, para as árvores que o rodeavam. Ali, embora se encontrasse nas profundezas da floresta e longe de uma estrada, as árvores encontravam-se perto da charneca e eram mais ralas. As suas formas mirradas e retorcidas erguiam-se como as vítimas torturadas pelo vento que passava por elas a uivar como uma bansbee em busca de presa para aquela noite. Na absoluta escuridão de uma noite de nuvens pesadas e sem Lua, os espessos troncos erguiam-se à sua volta como um exército de almas amaldiçoadas, lançadas para aquele lugar de infelicidade e desespero que era o seu Inferno.
A ideia agradou-lhe. Houve um sorriso irónico que lhe encurvou os cantos da boca espessa e vermelha, iluminando-lhe o rosto momentaneamente, o que fez com que as suas feições perdessem um pouco da dureza e lhe devolvessem uma parcela de juventude. Estava a pensar que, afinal, já não tinha de se preocupar com o Inferno. Depois daquela noite, sabia exactamente como ele era.
Suspirou, levantou-se devagar e colocou o fardo aos ombros. Não valia a pena ficar ali à espera que a morte o levasse e lutaria contra a sua mortalidade tal como lutara com tudo o resto ao longo da vida. O vento agarrou-se-lhe ao capuz e arrancou-lho da cabeça, expandindo e enchendo-o de ar como se também quisesse arrancá-lo do manto de que fazia parte, mas o cavaleiro ignorou-o. Foi com a lentidão da exaustão, a mover-se como uma máquina enferrujada, que levantou um pé e o fez descer novamente a curta distância. A seguir levantou o outro e arrastou-o para a frente para dar mais um passo... e prosseguiu gradualmente o seu caminho para ocidente.
Com o capuz caído por trás das costas, a tempestade punha-lhe os cabelos a chicotearem como loucos, dançando e saltando, como se cada uma das madeixas negras estivesse a tentar soltar-se do escalpe. Mantinha os olhos semicerrados enquanto caminhava por entre as árvores, numa tentativa para os proteger da chuva, mas mesmo assim brilhavam com uma raiva fria por entre o labirinto de rugas causadas pela vida difícil e pela sua má-fortuna. O rosto possuía um encanto áspero e uma elegância sólida por cima de um pescoço musculoso, excepto quanto ao nariz espesso com a grossa cicatriz que começava na ponta do mesmo e se estendia sobre a face direita, e que parecia demasiado brutal em contraste com o resto das feições. Esse nariz, com a sua cicatriz rosada, era como uma montanha solitária a erguer-se sobre uma planície enrugada, deslocado e estranhamente ameaçador sobre a grande boca sensual, e constituía um aviso quanto à sua verdadeira natureza.
O manto foi-lhe arrancado das mãos. Desistiu de tentar segurá-lo e continuou o seu caminho, ignorando as alfinetadas geladas do vento que o espetavam através da túnica e da cota de malha que cobriam o seu corpo, tão imenso e quadrado como o de um urso. Porém, como muito bem sabia, os ursos também morriam, e o cavaleiro soltou um novo suspiro.
Então, quando começava a ter pensamentos de descontracção, acalentando a ideia de se sentar junto de uma árvore para deixar que o frio se lhe introduzisse nos ossos, para descansar e talvez nunca mais se levantar, o cavaleiro ouviu um som, um som maravilhoso, miraculoso e celestial... O relinchar de um cavalo!
Os ouvidos estariam a pregar-lhe partidas? Virou a cabeça, apontando uma orelha para o som como se fosse uma arma enquanto tentava escutar por cima dos rugidos e dos silvos dos elementos. Sim, lá estava ele outra vez! Um cavalo!
Encontrou um pouco mais de energias sem saber muito bem como - nem de onde tinham vindo -, e enfiou-se no meio das árvores. Agora, rodeado pelos troncos daquelas sentinelas de madeira, só lhe restava tentar adivinhar ao acaso o caminho correcto para junto do animal e também, com sorte, para a segurança e o calor. Abriu caminho por entre os ramos que pareciam desesperados por o deterem, pontapeou os tentáculos das trepadeiras que se lhe prendiam nos pés e batalhou contra os espessos arbustos para tentar chegar até ao cavalo. Depois, de repente, viu-o. Estava na sua frente, de pé, a sacudir o medo e o horror aos elementos. O cavaleiro olhou em volta, espantado. Onde se encontrava o dono? Não havia sinais de ninguém, nenhuma fogueira, nenhum abrigo, apenas aquele cavalo. Num gesto automático, a mão agarrou o punho da espada enquanto se mantinha parado na linha de árvores e espreitava. Todavia, não parecia haver por ali nada a recear, nenhum movimento súbito entre os troncos, nenhum ruído de homens a correr, apenas o som do vento incessante.
O cavaleiro franziu a testa de perplexidade e avançou lentamente para o animal, que rolou os olhos de terror. Afagou-lhe o pescoço, viu que se tratava de uma égua e também, para sua surpresa, que ainda se encontrava arreada e selada. Os arreios pareceram-lhe ricos mesmo em plena escuridão e conseguiu sentir a qualidade do couro sob as pontas dos dedos. Não obstante a chuva, era-lhe possível ver os flocos de espuma que ainda permaneciam nos flancos e peito do animal.
Porquê? Teria o animal fugido por o seu dono ter sido atacado? Por que razão o haviam deixado ali?
Que acontecera?
Estendeu as mãos para as rédeas e puxou-as, mas pareciam estar presas. Quando olhou, viu que se tinham enleado num espesso ramo. A égua estivera em fuga e as rédeas tinham-se prendido, fazendo-a parar? Encolheu os ombros, soltou as rédeas e conduziu o animal, dando-lhe palmadinhas no pescoço enquanto falava com ele, sem que os olhos deixassem de saltitar para todos os lados à sua volta. Não havia sinais do dono em lado nenhum. Devagar, como um homem que se esqueceu de como se mover e tivesse de dar instruções a cada um dos seus músculos sobre como executar funções novas e pouco familiares, permitiu que um sorriso lhe abrisse uma fenda no rosto e murmurou uma rápida oração de graças. Aquilo era, sem dúvida, a sua salvação! O cavalo, evidentemente perdido por alguém, iria permitir-lhe cobrir os quilómetros que o separavam do irmão.
Porém, foi quando meteu as mãos nos sacos da sela que começou a compreender a sua verdadeira boa sorte. Uma delas estava cheia de moedas.
Simon passara a manhã com Hugh a cavalgar para o leste para verificar o estado das terras que ficavam desse lado e que se encontravam agora sob a sua responsabilidade. Na verdade, no que lhe dizia respeito, era apenas uma desculpa para se afastar da questão de Blackway e poder gozar uma boa cavalgada. Hugh, como de costume, não ficara deliciado com a ideia, mas o seu interesse aumentara repentinamente quando Simon mencionara a estalagem Half Moon, e lançara-se imediatamente ao caminho.
Tinham partido cedo, apenas uma hora, ou perto disso, depois do aparecimento da madrugada, e haviam chegado ao destino ainda antes do senescal da propriedade local ter terminado o pequeno-almoço. Haviam continuado sozinhos e a inspecção terminara antes das dez e meia, o que lhes permitira regressar depois de duas canecas de cerveja tomadas à pressa.
Todavia, quando chegaram a casa encontraram Edith já a pé e à espera deles.
- É o Tanner, pai. Diz que houve um roubo, na estrada - explicou a criança, com os olhos muito abertos de fascínio horrorizado. Simon soltou um gemido e virou os olhos para o céu num gesto teatral.
- E agora, o que foi? Roubaram um frango de um pátio? Houve alguém que perdeu a sua melhor cota de malha?
Lançou um breve sorriso para a filha, desceu da sela e entregou as rédeas a Hugh antes de caminhar para a porta com Edith a correr atrás dele.
Entrou e viu, encontrou Tanner, o regedor, a conversar com Margaret. A mulher aproximou-se rapidamente, beijou-o e deixou-os sós.
Encaminhou-se para o pátio atrás da casa com a filha, mas não deixou de lançar um olhar ansioso para trás das costas quando já ia a sair. Hugh permaneceu na sala com Simon e Stephen.
- Stephen, como estás? - perguntou o almoxarife. - Que vem a ser isso a respeito de um roubo?
Tanner era um homem grande e lento, com uma figura volumosa, alta e larga. Tinha um rosto quadrado no alto de um corpo que não teria ficado mal num dos carvalhos-anões da charneca, sólido, compacto e com a promessa de uma grande força. Sob as sobrancelhas negras havia um rosto sulcado e marcado pelo tempo, mas os olhos eram amigáveis e gentis. A boca era uma linha fina que parecia sempre fixa, rígida e direita, dando-lhe o aspecto de permanente desaprovação. Quando se mostrava inseguro a respeito de qualquer coisa, os seus olhos exibiam uma expressão de confusão que no entanto escondia uma inteligência cuidadosa e sensível, e uma astúcia que já levara à queda de muitos ladrões. Tinha uma construção tão forte como a casa de Simon e era conhecido como sendo um homem bom e honesto, o que fizera com que fosse reeleito várias vezes para o cargo. Agora, contudo, exibia um rosto muito perturbado.
- Olá, almoxarife! Desculpe aparecer assim, de repente, mas recebi um recado para ir a Clanton Barton esta manhã, àquela quinta que fica do outro lado de Coppleston, na estrada para Oakhampton. Ao que parece, o John Greenfield estava lá a trabalhar quando viu homens a caminharem nos seus campos. Tinham sido assaltados e roubados na estrada para Oakhampton, ontem à tarde. Disse-me que estavam num estado terrível, por causa da chuva e de tudo o mais. Tinham tentado encontrar um lugar onde pudessem ficar, mas por aqueles lados não há grande coisa e haviam passado a noite ao relento. O John instalou-os em frente da lareira e enviou o seu rapaz à minha procura. Ouvi dizer que tinhas sido nomeado almoxarife e pensei que era melhor vir buscar-te aqui antes de me dirigir para lá. Sei que é meu dever apanhar os ladrões, mas agora que és o almoxarife esse trabalho também te diz respeito. Para além disso, ficarei grato pela tua ajuda se for preciso organizar um grupo de perseguição. Não costumamos ter muitos roubos por aqui. Se se tratar de um bando de fora-da-lei talvez consigas arranjar homens em Oakhampton para nos ajudarem a apanhá-los.
- Sim, claro. É melhor ir contigo. Espera, vou só buscar as minhas coisas - disse Simon. Como almoxarife, era o representante do seu senhor no tribunal de Lydford e estava encarregue dos regedores locais. Era óbvio que, ao ajudar Tanner a apanhar os ladrões, estava a cumprir o seu dever. Embora Lydford não cobrisse a área de Tanner, todos os homens tinham a obrigação de ajudar a apanhar os criminosos. Dirigiu-se para o pátio por trás da casa, gritou instruções a Hugh para que selasse um cavalo fresco. A seguir beijou rapidamente a mulher e a filha antes de agarrar na espada e conduzir Tanner para a frente da casa.
Fizeram uma pausa, à espera de Hugh. Simon enervou-se com o atraso, arrancou as rédeas das mãos de Hugh quando este apareceu com o cavalo e saltou rapidamente para a sela. Tanner montou o seu grande e velho cavalo muito mais devagar, içando o corpo maciço com uma lenta inevitabilidade. A visão fez Simon pensar numa árvore a cair, com o mesmo início lento e hesitante, logo seguido por uma aceleração súbita até ao momento em que, finalmente, alcançava a paz. A árvore jazia no solo... e o regedor estava sentado na sela com um ligeiro sorriso de vitória no rosto, como se tivesse duvidado da sua capacidade para montar. A seguir meteram-se ao caminho, seguindo para a quinta de Clanton ao ritmo de um trote suave.
- O jovem disse mais alguma coisa a respeito dessa gente? - perguntou Simon.
- Não. Parece que eram viajantes, mas é tudo o que sei. O rapaz, que estava esgotado quando chegou a minha casa, já quase não conseguia falar. Deixei-o com a minha mulher.
- Podemos ter de reunir um grupo... - murmurou Simon, pensativo. - Quando lá chegarmos precisamos de descobrir onde foram roubados e o que se passou. Se for preciso, podemos organizar um grupo a partir da quinta...
- Sim, foi o que pensei. De qualquer modo, se vieram para este lado teremos de passar pelas casas dos homens.
Cavalgaram numa expectativa tensa e quase não falaram durante o resto do caminho, com Tanner a manter-se solidamente instalado na sua montada, e com Simon a lançar olhadelas desconfiadas à sua volta.
Estava espantado por aquilo ter acontecido, em especial tão-pouco depois do cargo lhe haver sido confiado. Em todos os anos que passara naquela área só ouvira falar em três roubos, e o último já fora há muitos meses. O facto daquilo ter acontecido tão cedo - em particular depois da morte de Brewer -, parecia-lhe ser um terrível augúrio para o desempenho do novo cargo. Para além disso, tinha um vago pressentimento maléfico, a suspeita de que o caso não iria ser tão fácil e simples como o recado de Tanner parecia deixar implícito.
Precisaram apenas de cerca de uma hora para chegarem à quinta de Greenfield Barton, um sólido edifício de blocos de granito com a argamassa num tom vermelho-escuro a ver-se perfeitamente nas fendas por entre as pedras. Era óbvio que havia uma lareira acesa no interior porque o fumo se escapava pela chaminé, o que emprestava um ar aparentemente tranquilo às redondezas.
Os dois homens desmontaram rapidamente e amarraram os cavalos, após o que Simon se aproximou da resistente porta de madeira e bateu com força. Conseguia ouvir vozes no interior e recuou uns passos. Escutou um som arrastado, a porta abriu-se apenas uma nesga e surgiu um rosto quadrado e barbudo, de olhos num tom azul-desbotado, contraídos numa expressão de desconfiança. Ao ver apenas Simon, a porta abriu-se um pouco mais e o almoxarife verificou que se tratava de Greenfield, um agricultor cujos cabelos louros, que se dizia deverem-se a antepassados viquingues, tinham perdido a cor e eram agora de um cinzento-baço. Os olhos do homem espreitaram o almoxarife com cuidado junto ao rebordo da porta parcialmente aberta. Tratava-se de um homem normalmente calmo, descontraído e à-vontade, pelo que aquelas cautelas extremas ante um estranho a bater à porta eram preocupantes. O seu rosto sulcado e gasto pelo tempo só se desanuviou quando viu Tanner aparecer por trás de Simon.
- Ah, Stephen, olá! Então, o meu rapaz entregou-te o recado?
- Sim, John. Deixei-o em minha casa a aquecer-se junto à lareira. Estava esgotado quando lá chegou.
- Bom, pelo menos conseguiu. Então, este é o sr. Puttock, não é? - perguntou, virando-se para Simon, que acenou uma confirmação.
- É o novo almoxarife, John. Foi por isso que esperei antes de vir para aqui. Queria trazê-lo comigo.
- Ah! Acho que é melhor entrarem.
Seguiram o velho agricultor para o interior e depararam com um largo corredor, iluminado por uma série de castiçais instalados nas paredes de madeira, que fora construído numa das extremidades da sala para separar os humanos das instalações para os animais. Uma tapeçaria suspensa dava passagem para a grande e escura sala que se encontrava do outro lado, onde quatro homens se encontravam sentados em fila na frente da lareira onde o fogo rugia enquanto observavam a mulher do agricultor a mexer o conteúdo de uma panela e a preparar comida sobre as chamas.
- O almoxarife e o regedor já cá estão - anunciou Greenfield. Simon sofreu um choque súbito e reconheceu os homens logo que entrou na sala. Eram os quatro monges que vira a caminhar na companhia do abade quando fora a caminho de Furnshill.
- Onde está o abade? - perguntou, logo que se aproximou dos homens. Olharam todos para ele com os rostos iluminados pelas chamas e Simon verificou, enquanto esperava por uma resposta, que se encontravam muito assustados, como se a pergunta lhes metesse medo. O almoxarife lançou uma mirada interrogativa para o agricultor.
- Então?
Greenfield encolheu os ombros, como se nada soubesse a respeito de um abade e aqueles fossem os únicos homens que vira aparecer. Simon franziu a testa de preocupação e virou-se para os monges.
- Onde é que ele está?
Por fim, um dos homens baixou os olhos e fitou o colo.
- Não sabemos... - declarou, com tristeza. A respiração prendeu-se-lhe na garganta e pareceu ter vontade de soluçar. - Levaram-no. Foi feito refém.
Simon avançou para se encostar à parede não muito longe da lareira, com os olhos a saltitarem de um para outro daqueles homens enquanto cruzava os braços sobre o peito.
- Contem-me o que aconteceu... - pediu, num tom suave.
Ao princípio foi-lhe difícil tirar algum sentido do que os homens lhe disseram e precisou de muita persuasão para os pôr a falar. Não se tratava apenas do choque da suas experiências, mas também da noite miserável que haviam passado em campo aberto, sem protecção contra o vento cortante e a chuva. O homem mais velho perdera completamente o sorriso e o ar de boa-disposição. Parecia ter sofrido mais do que os outros. Aparentava estar prestes a ir-se abaixo de medo e choque, as mãos tremiam-lhe como se sofresse de sezões e mantinha os olhos baixos como se quisesse evitar os olhos do almoxarife. Ao aperceber-se do estado do homem e compreender a sua dor, Simon dirigiu as perguntas ao monge com um aspecto mais jovem, embora talvez fosse tão velho como ele, mas que lhe pareceu ser o menos afectado.
O homem começou com cuidado, com muitas pausas e olhares de esguelha para os companheiros para verificar se não deixava de fora nenhum pormenor importante.
- Nós... íamos para Oakhampton...
- Por que levaram tanto tempo? Encontrei-os há vários dias e já deviam lá estar.
- Nós... O abade queria descansar e... ficámos na igreja, em Crediton. Só regressámos à estrada ontem... Chegámos a Copplestone...
- Onde estavam quando aquilo aconteceu? - perguntou Simon baixinho, com a mão a brincar com o punho da espada enquanto tentava controlar a impaciência e a vontade de pôr o homem a falar mais depressa para ir directo ao assunto.
- Foi para lá da povoação... Tínhamos saído da cidade e devem-se ter passado duas horas antes de...
- Ainda estavam na estrada?
- Sim. Sim, estávamos na estrada.
- Todos juntos?
- Sim, íamos a pé, excepto o abade, que seguia montado no seu cavalo... Apareceram dois homens por trás de nós... e tinham espadas. Passaram pelo meio do grupo... e fomos obrigados a afastarmo-nos do seu caminho. Apanharam o abade e... e...
Simon avançou muito devagar, agachou-se em frente do homem e olhou-o com uma expressão grave. Ao princípio o monge baixou os olhos como se estivesse embaraçado mas depois, a pouco e pouco, voltou a levantá-los com uma espécie de desafio. Falou directamente para o almoxarife, fitando-o directamente, isto enquanto a sua voz perdia o nervosismo e ganhava força ante a visão do funcionário de expressão sombria que tinha na sua frente e que parecia escutá-lo com uma intensidade silenciosa, com todo o corpo e alma.
- Nós... estávamos assustados. O abade mostrava-se preocupado há vários dias. Tinha a certeza de que iríamos ser atacados. Nunca explicou porquê, mas tinha a certeza. Parecia sentir que estávamos sempre prestes a ser atacados. - Simon acenou. Não havia dúvidas de que aquilo estava de acordo com as suas próprias observações. - Depois, aqueles homens apareceram por trás de nós e obrigaram-nos a dispersar. Usavam elmos e não lhes conseguimos ver os rostos. Empunhavam espadas e foram direitos ao abade... Sabiam o que queriam... Um deles agarrou as rédeas do cavalo do abade... que levava todo o nosso dinheiro nos sacos da sela... Pensámos que se apoderariam dos sacos e desapareceriam depois de largarem o abade... mas não o fizeram... Agarraram nas rédeas e levaram-no com eles... Desapareceram nos bosques ao lado da estrada... Não pudemos fazer nada. Começamos a segui-los e corremos atrás deles... mas compreendemos que, se nos vissem, poderiam matar o abade para poderem fugir... Gritaram-nos... disseram que matariam o abade se os seguíssemos... Nós... Também disseram que tinham outros na floresta... e que nos matariam se não nos fôssemos embora... Tivemos de voltar para trás... Tentámos encontrar um sítio para descansar mas não havia nenhum... e dormimos na estrada. Pensámos em voltar para Copplestone, mas era demasiado longe...
Simon tocou com gentileza no ombro do homem até que o jovem monge se acalmasse.
- Tinham algum distintivo nos elmos?
- Não... Não me parece.
- E as túnicas? Tinham distintivos?
- Também não.
- Então, não havia nada que os identificasse?
- Não.
- E os cavalos? De que cor eram?
- Eram ambos castanhos... mas um deles era muito grande, como o de um cavaleiro. O outro era mais pequeno.
- Haveria algumas marcas nas roupas, algo que demonstrasse que eram cavaleiros?
- Não, não me parece... - respondeu o jovem monge com a concentração a franzir-lhe a testa. - Aconteceu tudo tão depressa...
- Então, limitaram-se a aparecer a galope e levaram o abade? - insistiu Simon, meditativo e com a testa contraída enquanto espreitava o jovem monge sem perceber e tentava tirar algum sentido daquela situação. - E o abade disse alguma coisa?
- Não, senhor, manteve-se completamente silencioso. Creio que estava assustado - respondeu o monge com simplicidade.
Simon olhou-o por instantes, tornou-se repentinamente sério e levantou-se.
- Stephen, precisamos de ir à procura do abade. Seguirei à frente para ver o que consigo descobrir. Organiza um grupo e segue-me quando puderes. Vamos tentar salvá-lo. - Virou as costas ao jovem monge. - Importa-se de vir comigo para me mostrar onde isso aconteceu? Sabe montar?
Foi apenas no momento em que o monge o fitou com os olhos aterrorizados de um coelho imobilizado que o almoxarife compreendeu inteiramente o impacte daquela notícia. O abade fora raptado! O abade de um importante e rico mosteiro cisterciense que devia ser, quase de certeza, um homem de alto nascimento. Tinha de ser encontrado, e depressa, antes que lhe acontecesse algum mal.
Porém, quem iria manter um abade como refém?!
Greenfield possuía um velho e maciço cavalo cinzento que usava para puxar a carroça. Simon pensou para si mesmo que aquele animal já deveria ter sido abatido há muitos anos, num acto de piedade, mas quando saíram da quinta ficou suficientemente grato por o monge o poder levar emprestado.
Tanner, agora que sabia que um homem fora tomado como refém e que ainda por cima se tratava de um abade, saltou rapidamente para a sua montada e afastou-se para ir reunir os homens. Simon e o monge tiveram de esperar um bocado enquanto o velho cavalo era selado, com o almoxarife a enervar-se com a espera, mas o animal não demorara a ficar pronto e tinham saído rapidamente da quinta para a estrada. Uma vez aí, viraram os rostos para o Sol e lançaram os animais num trote rápido.
- Como se chama? Esqueci-me de lho perguntar lá dentro.
- Chamo-me David, almoxarife.
- Bom... Mantenha os olhos abertos, David. Quero que me avise logo que estejamos a aproximarmo-nos do local onde o abade foi raptado.
O monge acenou, com o medo ainda visível no seu rosto. Teria medo do que acontecera ao abade, interrogou-se Simon, ou do que nos poderá acontecer? Foi com uma expressão sombria que baixou a mão para se certificar que a espada ainda se encontrava na sua cintura. O toque no punho da arma reconfortou-o um pouco, mas continuou desconfiado e nervoso quanto ao que poderiam ir encontrar.
Já tinha coberto mais de oito quilómetros para lá de Copplestone quando o jovem monge puxou as rédeas ao cavalo para abrandar o trote, e se deixou ficar para trás. Simon deu por isso pelo canto dos olhos e também abrandou de modo a que o monge o pudesse alcançar. Via que o homem tinha uma expressão de concentração colada ao rosto e observava as árvores à sua volta enquanto avançava. De repente parou e esperou que Simon fosse ter com ele.
- Lembro-me deste sítio - disse, apontando para um freixo que fora atingido por um raio. - Ontem, reparei nessa árvore alguns minutos antes daquilo acontecer.
Simon acenou e saltou do cavalo com leveza. Ali, a estrada era uma larga pista por entre os bosques. Embora o monarca tivesse ordenado, havia muito, que as bermas de todas as estradas fossem limpas dos dois lados no espaço de alguns metros a fim de impedir que os fora-da-lei montassem emboscadas, ainda havia muitas, tal como aquela, onde o mato nunca fora cortado. As árvores altas existentes de cada lado pareciam aumentar a sensação de solidão da estrada, como se quisessem recordar que se encontravam a uma grande distância de qualquer aldeia ou casa. Para além disso, o ruído dos cascos dos cavalos e arneses era perfeitamente abafado no meio delas, o que aumentava ainda mais a sensação de solidão.
Atirou as rédeas para o monge e avançou a pé, lentamente, com o monge a segui-lo no seu cavalo enquanto o almoxarife examinava cuidadosamente o piso de terra batida da estrada. Ocasionalmente parava para examinar o chão com mais cuidado, mas os rastos dos monges e dos seus atacantes estavam demasiado misturados com os de outros viajantes, e para além disso as chuvas da noite anterior haviam sido suficientemente pesadas para apagarem a maior parte dos vestígios. Encolheu os ombros. Talvez um caçador conseguisse perceber o que se passara ali, mas ele não era capaz de o fazer. Continuou pela estrada, com o monge a segui-lo devagar, e com a apreensão a obrigá-lo a desviar constantemente os olhos para as árvores.
Simon mantinha-se tão concentrado na estrada que se sobressaltou com o grito repentino por trás dele.
Rodopiou e correu de volta para junto do monge, com o medo a fazê-lo desembainhar uma parte da espada.
- O que foi? - perguntou, numa espécie de silvo.
O monge virou-se para ele com os olhos a cintilar, e apontou para as árvores que flanqueavam a estrada.
- Foi aqui! - declarou, com simplicidade.
O almoxarife suspirou de alívio e olhou para onde o dedo apontava. Verificou que o solo se encontrava muito revolvido na berma do lado norte da estrada. Voltou a enfiar a espada na bainha, avançou até junto das árvores e espreitou para a escuridão. Desconfiado, sujeitou o bosque a um estudo atento, com os olhos a saltarem de árvore para árvore até ao momento em que, satisfeito por verificar que não estavam a ser observados, se agachou e examinou o chão. Era óbvio que tinham passado por ali três cavalos. Distinguia claramente os rastos na terra por entre as árvores, uma vez que as chuvas da noite não os tinham conseguido apagar. Simon franziu a testa e espreitou novamente para a escuridão, interrogando-se sobre o que deveria fazer. Seria mais sensato esperar pelo grupo de perseguição, mas isso poderia levar muito tempo. Tanner teria de visitar cerca de 20 quintas e aldeias para reunir algumas dezenas de homens e quando chegassem já seria noite. Tomou uma decisão e pô-la em prática.
- David, quero que fique aqui e que espere. O grupo de perseguição irá aparecer em breve e ficará em segurança. Quando chegarem, e se eu ainda não tiver regressado, diga-lhes que me sigam. Vou entrar na floresta para ver onde me levarão estes rastos.
O medo fez com que o monge apertasse as rédeas com força e o homem desviou os olhos do almoxarife para as árvores à sua volta. Quando falou, fê-lo com a voz abafada pela preocupação e pelo receio, como se as árvores pudessem estar a ocultar os raptores do abade.
- Mas... Mas... e se eles voltarem? Não serei capaz de os enfrentar... E se o virem? Poderão...
- Não me parece. Vai ficar bem, porque quem quer que tenha levado o abade já deve estar muito longe daqui. Não se preocupe, tudo o que tem a fazer é esperar pelos outros. Devo voltar em breve - acrescentou Simon, com muito mais confiança do que aquela que sentia. Olhou para as árvores e sentiu o rosto a franzir-se numa careta. Estava tão nervoso por ter de se meter no meio delas como o monge por ter de ficar ali, na estrada, à espera. No entanto tinha a obrigação de verificar se podia seguir o refém e os seus raptores. Deu uma palmada distraída no pescoço do cavalo, sorriu para o monge e desapareceu por entre as árvores.
Começou a andar no meio das árvores e pareceu-lhe que a própria floresta o escutava e vigiava. Não se ouvia qualquer som para além dos que os seus pés produziam quando ocasionalmente pisavam e esmagavam raminhos e folhas. Contudo, até esses ruídos lhe pareciam invulgarmente altos. Havia ali um silêncio, uma sensação de morte que lhe sabotavam a força de vontade, e só continuou depois de fazer uma pausa para olhar para trás e verificar que não cobrira mais de 40 metros. O nervoso levava-o a sentir que havia uma presença maligna a pairar ali perto. Se estivesse fora das vistas da estrada de certeza que teria corrido de volta para ela, mas o facto de saber que ainda o podia fazer levou-o a impacientar-se consigo mesmo e com o seu medo. Esboçou um gesto rápido e zangado e obrigou-se a prosseguir.
Começou a escutar pequenos ruídos à medida que foi penetrando cada vez mais na floresta. Ouviu qualquer coisa a raspar ali perto, bem como os estalidos das árvores que o rodeavam, sons que, no seu conjunto, o deixaram ainda mais tenso e com um prurido nos músculos do escalpe por causa do esforço para esticar as orelhas a fim de captar quaisquer sons humanos. A certa altura houve uma ave instalada num ramo alto que levantou voo do seu poleiro e o susto fê-lo dar um salto para trás de um grosso tronco, onde acabou por fazer uma careta de desgosto. A seguir escutou um latido súbito e um guincho agudo vindos de longe, que o fizeram imobilizar-se por um instante com a mão no punho da espada, mas não se ouviu mais nada. Lentamente, descontraiu os músculos e obrigou os pés a moverem-se, mas agora com a mão sempre no punho da espada. Ouviu um som de raspagem e rodopiou, mas tinham sido apenas dois ramos a tocarem um no outro. Olhou em volta, interrogando-se sobre se deveria voltar à estrada, mas acabou por endireitar os ombros e seguir em frente. O medo começava a abandoná-lo e já se movia menos por necessidade de cumprir a sua obrigação e mais por desejo de ajudar o abade, se pudesse. Simon não conseguia esquecer-se do terror no rosto do homem quando este pedira a sua ajuda e companhia, como se...
O almoxarife parou de repente. Como se soubesse que aquilo ia acontecer? Abanou a cabeça e prosseguiu. As especulações ficavam para mais tarde.
O ataque também teria acontecido se se tivesse juntado ao grupo do abade, conforme ele lhe pedira? A visão do almoxarife e do seu servo teria bastado para afastar os dois ladrões? Se assim fosse, então deixara-o ficar mal, realmente muito mal. Foi um pensamento que ganhou raízes e fez surgir uma chama de ira no seu interior. Não se tratava apenas do facto de o abade ter sido um homem muito assustado que obviamente desejara a sua protecção e ajuda, como também de se tratar de um homem de Deus. Não devia ter sido atacado, uma vez que, em geral, o traje eclesiástico era defesa suficiente em qualquer estrada. A ideia de que havia alguém ali, no seu próprio condado, capaz de roubar um abade e de o levar como refém era o suficiente para o deixar a fumegar de ira.
Voltou a imobilizar-se quando outra ave saltou do seu poleiro, incomodada com a súbita presença de um humano, mas os olhos de Simon desceram para o solo, onde o trilho prosseguia. Continuou a acompanhá-lo com cautela, pensando que, com tantos ruídos na floresta à sua volta, era improvável que existissem outros humanos por ali. Se os homens andassem por ali, então já todas as outras criaturas teriam fugido.
Continuou a avançar para o interior das árvores e a escuridão começou a instalar-se, forçando-o a concentrar-se mais intensamente nos rastos que se internavam na floresta. Em breve descobria que os rastos se tornavam confusos, pouco mais do que uma mancha no chão à sua frente, e passou a ter de parar com frequência, não para escutar os sons de possíveis bandidos emboscados mas simplesmente para se certificar que não perdia a pista. O mato era espesso, com inúmeros arbustos e jovens fetos a lutarem para crescerem na semiescuridão por baixo das altas árvores, e foram várias as vezes em que concluiu que perdera os rastos de vista e teve de voltar para trás, sobre os seus-próprios passos, para tornar a encontrá-los. Ao ver-se forçado a fazê-lo pela quarta vez, Simon decidiu seguir as aberturas por entre as árvores, nos sítios onde lhe parecia que um cavalo poderia passar com o seu cavaleiro, verificando ocasionalmente o terreno por baixo dos pés para se certificar que os rastos prosseguiam pelo mesmo caminho. De vez em quando olhava em volta para ter a certeza de que não estava a ser vigiado. Sentia os nervos prestes a romperem-se e quando finalmente ouviu aquele ruído foi quase como um alívio, e como se pudesse pôr de lado os receios de vir a ser surpreendido. A tensão foi substituída pela expectativa vigilante do caçador, misturada com uma crescente cautela.
O que ouvira fora o agudo latido de uma raposa. Simon ficou rígido e à escuta, mas acabou por soltar um suspiro longo e baixo e olhou para a cobertura de folhas por cima da sua cabeça. Alguns dos últimos raios do Sol poente lutavam para abrir caminho por entre a densa folhagem e o almoxarife concluiu que devia estar a caminhar há mais de uma hora, internando-se na floresta com passos lentos e cuidadosos. Encolheu-se por trás de uma árvore e encostou-se ao tronco. Respirou profundamente e pensou no que deveria fazer. Voltar para trás ou continuar? Já fora suficientemente longe? Devia tentar regressar para ir ter com os outros? E se Tanner ainda não tivesse aparecido com o seu grupo? Se os homens e o abade estivessem lá mais à frente, não seria melhor continuar? No fim de contas, talvez fosse capaz de dominar os ladrões, fossem eles quem fossem, ao surpreendê-los ao crepúsculo, para salvar o abade. No mínimo, deveria tentar aproximar-se deles para verificar se a tentativa valia a pena. A escuridão ainda não era completa e não seria difícil refazer os seus passos de volta à estrada.
Agarrou o punho da espada com força e continuou lentamente o seu caminho, olhando para baixo de vez em quando para se certificar de que os rastos seguiam na mesma direcção. Respirava de uma maneira superficial enquanto mantinha os ouvidos atentos a qualquer sinal, qualquer sugestão de que pudesse estar perto.
Lá estava, outra vez! Um latido. A testa enrugou-se-lhe enquanto pensava: o latido viera da sua frente, na direcção seguida pelos rastos. Se as raposas andavam por lá, então não era provável que existissem seres humanos porque aquelas tímidas criaturas evitavam os homens sempre que possível. Porque será, interrogou-se, que as raposas estão a emitir aqueles sons? Sentiu a tensão a regressar e o nervoso da excitação a crescer quando caminhou um pouco mais, verificando cautelosamente cada passo antes de colocar os pés no chão, olhando para o solo e evitando raminhos ou pequenos arbustos que pudessem revelar a sua presença. Dava um passo, fazia uma pausa e olhava em frente com uma expressão sombria, meio à espera de ser atingido pelo virote de uma besta ou pela seta de um arco, quase como se desafiasse alguém a tentar acertar-lhe enquanto vigiava os troncos. Procurou seguir o rasto enquanto caminhava nas sombras das árvores, tentando manter-se protegido e servindo-se dos troncos para não ser visto pelos homens que tinham capturado o abade.
Precisou de outra meia hora antes de conseguir ver a clareira, uma meia hora de passos muito lentos e cuidadosos, medidos e controlados, com todos os sentidos atentos ao mínimo som e as orelhas a esforçarem-se por distinguir um qualquer ruído que pudesse ter sido feito por um humano... mas não havia nenhum. Encontrava-se tão profundamente internado na floresta que até lhe parecia que todos os animais haviam fugido dali. Não havia um som, um guincho ou uma agitação de folhas que traísse a presença de um qualquer animal, excepto os ocasionais latidos. Era como se toda a floresta estivesse morta e só ele e a raposa respirassem aquele ar húmido e pesado.
Com o acentuar da escuridão, os cabelos da sua cabeça começaram a pôr-se de pé e sentiu o ar a prender-se-lhe na garganta. Não se tratava de receio dos humanos porque podia perfeitamente lidar com isso. Não, era como se a cada minuto que passava, à medida que a escuridão ia avançando para a noite, as suas superstições ganhassem mais força. Estava cada vez mais perto das áridas charnecas, mais perto do centro do poder de Crockern. Era como se existisse uma afinidade entre aquelas antigas árvores e os rochedos primevos que se encontravam tão perto, o que o fazia sentir-se como se a sua presença ali fosse uma abominação, ou como se fosse odiado pela própria terra sob os seus pés por se ter introduzido onde não devia. Foi com um verdadeiro esforço físico que se forçou a prosseguir.
Por fim, conseguiu avistar uma abertura entre as árvores e passou a mover-se ainda mais lentamente, centímetro a centímetro, com a infinita paciência de um lagarto que quer apanhar uma mosca, até chegar à protecção de um maciço carvalho e poder ficar a espreitar, em silêncio, sob a sua protecção.
Houve um farfalhar de folhagem, como se dois pequenos animais estivessem a brincar sobre as folhas caídas no chão. Simon concentrou-se. Não conseguia distinguir nada na escuridão à sua frente porque os troncos das árvores obscureciam quase tudo. Aliviou gradualmente o aperto no punho da espada e abriu e fechou a mão algumas vezes enquanto se mantinha à escuta, sentindo o suor gelado a irromper. Continuava a não haver ali nada. Limpou o suor da palma da mão e voltou a segurar na espada. Arrastou-se para a frente e moveu-se cautelosamente de árvore para árvore enquanto descrevia um largo círculo em torno da clareira.
À medida que avançava ia captando alguns relances breves e frustrantes: agora um grande carvalho, agora um altíssimo ulmeiro. Era como se se tratasse de uma tapeçaria cortada em bocados irregulares que ele tivesse de organizar na sua mente, dispondo as várias partes e tentando associá-las embora os fios em volta de cada bocado estivessem muito puídos, tornando impossível saber quais as peças que se ligavam entre si. O máximo que conseguia era tentar construir uma imagem.
Por fim, quando já percorrera quase um semicírculo em torno da área, sentiu que não podia continuar e começou a aproximar-se da clareira. A intensidade do medo fazia com que o sangue lhe martelasse nos ouvidos e a excitação crescia à medida que se arrastava para a frente até chegar à periferia das árvores.
Ali, sob a fraca luz, já conseguia ver o chão com clareza. Percorreu aquele espaço com os olhos, em busca de quaisquer sinais de humanos ou animais, mas parecia não existir nenhum. Não havia vestígios de pessoas, nem restos enegrecidos de uma fogueira ou fardos a jazerem no chão, nem o brilho do metal de uma espada. De súbito sentiu o medo a regressar, concentrado e quase avassalador na sua intensidade. A apenas alguns metros de distância, à sua frente, jazia uma pequena pirâmide de bosta de cavalo. O animal tivera de estar parado para poder criar uma forma tão perfeita como aquela. Muito provavelmente, tinha sido amarrado. Os ladrões teriam parado ali? Se assim fora, onde estariam agora? Fez uma pausa para analisar a questão. Estivera pelo menos um cavalo parado naquela clareira. Ou pertencera ao abade ou a um dos ladrões. O abade poderia ter escapado? Se o fizera, aquilo seria do seu cavalo? E se o cavalo tivesse pertencido a um dos ladrões? O homem ainda podia encontrar-se por perto. Voltou a percorrer todo o terreno com os olhos, o que não o impediu de continuar a interrogar-se. Se fora o cavalo do abade, onde estaria agora? E se fosse de um ladrão? Teriam descansado ali durante a noite e partido? Ou continuariam à espera, a vigiá-lo, preparando-se para o atacar?
Estudou novamente a área e tentou aclarar a mente para decidir o que fazer. Parecia-lhe impossível fazer uma escolha, saber o que seria melhor. Avançar... ou regressar à estrada? Adiou a decisão, fez uma careta e avançou muito devagar.
Foi quando já quase dera a volta completa em torno da clareira que lhe chegou o odor a madeira queimada e a carne cozinhada. Agachou-se muito devagar, farejando o ar tão silenciosamente quanto possível. O cheiro não provinha de uma fogueira recente, mas sim de uma já extinta, húmida e morta. Não havia ali fumos acres e tratava-se de um odor abafado e quase bafiento que parecia vir da sua direita, um pouco mais para diante.
O almoxarife rezou uma oração apressada com os olhos fechados, para logo voltar a espreitar à sua volta. Sentia-se como se estivesse a caminhar havia dias e a fadiga provocava-lhe cãibras nas pernas. Era agora, quando se encontrava perto do fim da trilha, que o peso do cansaço se lançava sobre ele como uma capa de chumbo que lhe esmagava simultaneamente a mente e os músculos. Não conseguiu evitar um olhar esperançoso por cima do ombro, como se esperasse ver o grupo de perseguição a aparecer entre as árvores por trás dele, mas não havia lá ninguém. Ia ter de continuar sozinho. Cerrou os dentes... e baixou-se silenciosamente para gatinhar em direcção ao cheiro sobre as mãos e os joelhos.
Percorreu apenas uma curta distância, deparou com uma segunda clareira, uma pequena abertura entre as árvores onde os troncos não se encontravam tão amontoados uns em cima dos outros e espreitou-a com cuidado. Chegava-lhe o cheiro a uma fogueira velha. Alguém deveria ter acampado ali, muito longe das casas mais próximas e do risco de vir a ser descoberto. Via os restos da fogueira, junto a uma árvore que o calor enegrecera, a uns 20 metros de distância. Mesmo que o fumo tivesse sido avistado, de certeza que ninguém penetraria tão profundamente na floresta para investigar. Pouco mais conseguia ver do que a mancha negra de mato enegrecido por entre os troncos que se erguiam entre ele e a clareira, pelo que iniciou um novo e lento avanço em torno da mesma, gatinhando de árvore para árvore, parando para observar e voltando a avançar. Não havia sons, não havia movimentos. Era como se aquele lugar de acampamento tivesse sido abandonado havia anos e permanecesse imperturbado e intocado por homem ou criatura.
Escutou novamente o tal latido. Foi um ruído inesperado que o deixou tenso, mas avistou imediatamente as duas raposas que brincavam por ali, junto da velha fogueira, pulando e saltando com a alegria de gatinhos pequenos.
Teve uma breve explosão de impaciência agora que lhe parecia que o seu avanço cauteloso fora em vão e que não havia razões para ter medo. Levantou-se com cuidado e investigou a clareira. Parecia completamente deserta, para além das duas raposas. Nada mais se movia. Os únicos ruídos provinham das árvores onde, lá muito em cima, os ramos eram agitados pela brisa. Teve um súbito ataque de ira perante a ideia de que os seus esforços haviam sido inúteis e berrou:
- Está aqui alguém?
A única resposta foi a súbita explosão de ruídos quando as duas raposas fugiram aterrorizadas e saltaram para a segurança da escuridão das árvores à beira da clareira. Não havia nada que traísse uma presença humana, nem sequer a agitação de um homem acordado pelo seu grito que tentasse agarrar num pau ou numa espada. Nada. Simon desembainhou a sua espada, preparou-se e avançou devagar até à beira da clareira. Quando aí chegou correu para a frente e agachou-se no meio daquele espaço aberto, rodopiando e olhando em volta, com a espada segura nas duas mãos e o sangue quente a martelar-lhe nos ouvidos.
Continuava a não haver ali nada. Ninguém saltou para o atacar, ninguém correu para as árvores que o rodeavam e o silêncio nem sequer foi perturbado pelos sons de um animal assustado. Gradualmente, um pouco envergonhado, descontraiu-se e baixou a espada. A clareira tinha apenas cerca de 20 metros de largura e não dispunha de nenhum local onde alguém se pudesse esconder. O único esconderijo possível eram as árvores que a rodeavam. Também não havia sinais que indicassem que alguém ali estivera, para além, é claro, dos restos da fogueira. Virou-se e olhou na direcção dos carvões enegrecidos para tentar determinar há quanto tempo aquele espaço se encontraria vazio. A fogueira jazia do outro lado da clareira e não passava de uma mancha mais escura entre as sombras.
Avançou na sua direcção mas, quando se aproximou, os pés começaram a falhar-lhe e cambaleou enquanto olhava para a árvore e fazia uma careta de estranheza. Ainda só cobrira metade da distância quando parou de repente. Os olhos escancararam-se-lhe de horror, sentiu-se a sufocar e caiu de joelhos a fitar a área de ervas queimadas e a árvore que se encontrava na sua frente.
Soltou um grito agudo, virou-se para escapar àquela visão e fugiu de volta para a estrada envolto num pânico louco.
O cheiro a carne cozinhada provinha do homem que fora morto - como uma mulher acusada de bruxaria -, sobre as chamas da fogueira.
Tanner e os outros acabaram por aparecer, e o regedor ficou surpreendido ao descobrir o monge e o almoxarife sentados à beira da estrada, na frente de uma pequena fogueira. O monge levantou-se imediatamente e correu para os receber com a expressão nervosa a abrir-se num sorriso de alívio desesperado. Tanner lançou uma olhadela ao almoxarife e começou imediatamente a compreender por que motivo o monge estava tão satisfeito com o aparecimento dos recémchegados. Simon não se movia. Permanecia imóvel e em silêncio, com a capa muito apertada à sua volta enquanto olhava para o fogo. Tanner desmontou e aproximou-se dele.
- Graças a Deus que chegaram! Já perguntávamos a nós mesmos se teríamos de esperar por vocês até de manhã e não queríamos ficar aqui sozinhos durante a noite! - declarou o monge ofegante, enquanto Tanner caminhava para o almoxarife. O regedor acenou, distraído, e deixou que o monge ficasse para trás e fosse ter com os outros.
- Almoxarife? Que se passa consigo?
Simon limitou-se a levantar os olhos do fogo, muito devagar. O horror por que passara na floresta fazia-o sentir-se mais cansado do que jamais estivera em toda a sua vida. A energia nervosa e a ira que o fizera avançar através das árvores haviam-no deixado esgotado. Depois, o horror da visão na clareira e a sua fuga louca de regresso à estrada tinham feito o resto. Agora, para o regedor, que o via a olhar para cima, para ele, Simon parecia ter envelhecido 20 anos desde aquela tarde. Exibia um rosto tenso e pálido, e os olhos brilhavam-lhe como se tivesse febre. Tanner agachou-se rapidamente a seu lado, com o rosto carregado de preocupações. Simon pareceu não dar por ele.
Virou os olhos novamente para a fogueira como se não quisesse ver o regedor e ficou a olhar para as chamas.
- Almoxarife? Que aconteceu? - perguntou Tanner num tom de espanto e choque.
- Chegámos aqui antes do escurecer... - respondeu Simon baixinho. - Encontrámos o local com facilidade. O David - o monge - localizou-o rapidamente. Os rastos eram nítidos e seguiam para os bosques, por ali... - Apontou brevemente para o outro lado da estrada com o queixo e voltou a fitar as chamas. Continuou a falar de um modo tranquilo e baixo enquanto Tanner franzia a testa numa preocupação ansiosa. - Disse ao David para esperar aqui por vocês e fui sozinho. Já devia ter andado cerca de uma hora quando encontrei uma pequena clareira. Deve lá ter estado pelo menos um cavalo, porque havia uma pilha de excrementos frescos no local onde o amarraram.
Simon olhou repentinamente para cima e o regedor pressentiu a dor nos olhos do almoxarife quando lhe investigou o rosto por instantes, antes de regressar ao seu introspectivo estudo das chamas.
- O abade não estava longe. Avancei um pouco mais e encontrei-o. Tinham-no amarrado... a uma árvore. Alguém reunira uma carrada de ramos... e empilharam-nos debaixo dele... - Tanner viu-o estremecer uma vez, involuntariamente, mas a voz permaneceu calma. - A seguir pegaram-lhes fogo e queimaram o abade...
Tanner ficou a olhá-lo fixamente.
- O quê? Queimaram o abade numa fogueira!?
- Sim... - afirmou Simon baixinho, num tom quase de espanto. - Foi queimado vivo. - Estremeceu e a voz tornou-se-lhe tensa e áspera ante todo aquele horror. - Deve ter gritado até morrer. Oh, meu Deus, Stephen, devias ter visto a cara dele! Era terrível! As chamas não foram suficientes para lhe queimarem a parte superior do corpo e parecia estar a olhar... para mim. Senti o próprio diabo a fitar-me através daqueles olhos. Vi-lhe o rosto com toda a clareza. Foi horrível!
- Mas... quem iria fazer uma coisa dessas!? Quem faria isso a um homem de Deus?! - perguntou Tanner com uma carranca de preocupação. Era claro que os fora-da-lei eram conhecidos pela sua brutalidade, que por vezes até excedia a dos piratas da Normandia, mas não havia conhecimento de existirem bandos de franceses ou de ingleses no coração de Devon. Tanner era mais velho do que o almoxarife e servira nas guerras contra os franceses, pelo que testemunhara a crueldade que os homens são capazes de demonstrar uns para com os outros, mas nunca ouvira falar de um monge morto daquele modo, como se fosse um herético. Estava tão intrigado como horrorizado.
Por outro lado, também estava preocupado. Se os fora-da-lei eram capazes de fazer uma coisa daquelas a um abade... então ninguém se encontrava a salvo até serem apanhados. Olhou para os outros homens, que amarravam os cavalos e se aproximavam do fogo, rindo-se e brincando uns com os outros. O seu bom humor parecia-lhe quase sacrílego depois do que acabara de ouvir e teve de se conter para não gritar com eles.
Tanner era um homem calmo e estável. Como agricultor estava habituado às mudanças das estações e ao firme avanço dos anos enquanto assistia ao crescimento dos animais e plantas, que floresciam e acabavam eventualmente por morrer, mas a violência e a crueldade também não lhe eram estranhas entre a vida selvagem, onde os mais fortes sobreviviam e os mais fracos pereciam. Mesmo assim, para ele, aquele crime parecia-lhe estranho na sua barbaridade. Os animais podiam fazer aquilo uns aos outros, matando por alimento ou prazer, mas parecia-lhe curioso que houvesse homens capazes de tal coisa num tão tranquilo ambiente rural. Os regedores das cidades talvez estivessem mais habituados a crueldades daquele tipo, concluiu. Vira actos semelhantes em tempo de guerra, quando fora um dos soldados da infantaria do Rei, mas nunca esperara vê-los ali e ainda por cima em tempo de paz. Por que iriam fazer aquilo a um abade? Suspirou e olhou para o almoxarife, que permanecia num silêncio absorto a seu lado.
- Precisas de descansar. Deita-te um pouco. Organizarei uma vigia e seleccionarei os homens.
- Sim... - murmurou Simon, distraído e acenando lentamente. Libertava-se gradualmente da sua sensação de horror sob o olhar firme do regedor e estava a substituí-lo por uma confusão desatenta, como se tivesse visto todo o seu mundo virado de cabeça para baixo. Vivera ali toda a sua vida e nunca vira um homem assassinado, nem um homem que tivesse morrido de um qualquer modo obsceno. Parecia-lhe que tudo aquilo em que acreditara e que soubera a respeito das pessoas que viviam no condado fora subitamente destruido, e de que necessitava agora de rever todas as suas mais profundas convicções à luz daquele único e desmoralizador acontecimento. Houve uma lágrima que lhe pingou lentamente de um dos olhos e lhe correu pela face, fazendo-o sobressaltar-se. Limpou-a com um gesto zangado.
Simon olhou para Tanner como se o gesto o tivesse acordado e viu-o a fitar as chamas.
- Muito bem. Amanhã iniciaremos a caça aos assassinos, sejam eles quem forem. Quero-os levados perante a justiça - declarou, quase a rosnar, como se sentisse o desgosto e o ódio a renovarem-se dentro dele. Estava zangado, não apenas por causa do crime e da hedionda morte daquele homem, no meio da floresta. Estava zangado por causa do seu alto grau de vulnerabilidade, pela sensação de que os homens que tinham cometido aquele acto poderiam vir a matar outros, e que provavelmente o fariam. Tinham de ser destruídos como se fossem ursos enlouquecidos. Tinham de ser caçados e massacrados sem qualquer espécie de piedade. - Pede a um dos homens que vá até Buckland para os informar sobre o que se passou aqui, enquanto seguimos os rastos e vemos se os conseguimos descobrir.
- Está bem... - respondeu Tanner, surpreendido com a carga de veneno na voz de Simon. - E quanto ao xerife? Não deveríamos enviar alguém a Exeter?
- Não. isto aconteceu aqui e a responsabilidade é nossa. Vamos apanhá-los. No entanto, por agora, vou dormir. - Levantou-se lentamente, exausto, olhando para os homens com uma leve surpresa como se só os tivesse visto naquele momento e afastou-se para junto de uma árvore. Sentou-se, encostou-se ao tronco, puxou a capa à sua volta e pouco depois já estava a dormir.
Tanner observou-o durante um bocado mas depois, quando um dos homens se aproximou dele com um jarro de cidra, estendeu-se e agarrou-o pelo braço.
- Houve aqui um assassínio. Diz aos homens que nos levantaremos de madrugada e que é melhor irem dormir.
O homem, um agricultor idoso e corpulento chamado Cottey, com as faces vermelhas e rosadas típicas dos bebedores de cidra, olhou-o sem compreender.
- Um assassínio? Quem foi que morreu?
- O Abade de Buckland - retorquiu Tanner com secura enquanto se levantava. - Vou ficar de vigia. Diz aos outros que descansem ou escolherei um deles para o fazer. - Uma súbita rajada de gargalhadas obrigou-o a olhar em volta e a falar numa espécie de silvo zangado. - Para além disso, diz aos engraçadinhos que não estamos numa excursão à feira. Os assassinos podem estar a observar-nos.
Caminhou para uma árvore perto do corpo adormecido de Simon e ficou a olhar para a floresta, de costas para o fogo, enquanto os homens começavam a instalar-se e emitirem algumas queixas abafadas enquanto disputavam posições mais perto das chamas. Não foi preciso esperar muito para que o acampamento ficasse tranquilo, para além dos murmúrios baixos das conversas, e Tanner conseguiu ouvir o regresso dos sons nocturnos da floresta, como se estes pudessem trazer consigo a normalidade.
Contudo, não era capaz de se libertar da sensação de haver ali algo de maléfico. O assassínio deixara-o preocupado e sentia-se demasiado inquieto para descansar, pelo que prosseguiu a sua vigília. Não conseguia deixar de pensar que havia alguém por ali, talvez até a vigiá-los das profundezas das árvores, alguém que matara o abade. Quem fora capaz de uma coisa daquelas era capaz de tudo.
Envolveu-se na capa e descreveu o primeiro circuito em volta do acampamento já a pensar na sua casa, onde o fogo deveria estralejar na lareira, com as chamas a saltarem dos cepos de carvalho bem seco.
Rodney também estava a pensar no calor que uma fogueira lhe poderia dar quando entrou na pequena aldeia de North Tawton. Sentia-se gelado e miserável, e sabia que precisava de se sentar em frente de uma lareira para se aquecer. Ao mesmo tempo, o cavalo necessitava de um lugar seco e de palha fresca, bem como de um sítio onde pudesse passar a noite.
A pequena aldeia era pouco mais do que uma estrada rodeada por casas, uma das quais era uma estalagem, e foi aí que o cavaleiro deteve a montada. Havia um estábulo nas traseiras, a que se chegava por um portão baixo, pelo que o cavaleiro desmontou e conduziu a égua para o estábulo antes de se dirigir para a sala da estalagem.
A manhã seguinte era fria e húmida. Havia um espesso nevoeiro a cobrir tudo em volta e nenhuma brisa para o dispersar. Os homens levantaram-se do seu sono, rígidos e gelados.
Tanner lançara periodicamente mais ramos na fogueira e mantivera-a acesa durante toda a noite, pelo que todos se haviam amontoado à sua volta para tentarem absorver um pouco de calor. O regedor andou de um lado para o outro enquanto os homens se iam sentando e agachando em torno das chamas, e foi apenas quando já todos haviam acordado completamente que sacudiu Simon com gentileza, por um ombro.
- Acorda, vamos procurar aqueles patifes!
Simon acordou lentamente e pareceu ficar um pouco confuso. Era como se continuasse meio a dormir, com o choque dos acontecimentos do dia anterior a precipitar-se novamente sobre ele e o sono não o tivesse descontraído. Tanner levou-lhe um pouco de carne fumada e ficou por perto enquanto Simon comia, como um guarda a proteger o seu senhor. Não permitiu que o almoxarife se levantasse antes de acabar de comer e Simon fez-lhe a vontade, embora com uma carranca algo contorcida. Quando terminou, o regedor conduziu-o para junto dos outros homens.
- Bom, rapazes, o almoxarife encontrou o corpo do abade na floresta, ontem à tarde...
- Permite-me... - interrompeu-o Simon tranquilamente. Enfrentou os homens e prosseguiu num tom baixo, falando devagar e com cuidado. - O abade foi tomado refém por dois homens e levado para a floresta. Os seus companheiros pensaram que o tinham raptado por dinheiro e deram o alarme. Contudo, os atacantes amarraram-no a uma árvore e mataram-no... Mataram-no, queimando-o vivo. Temos de encontrar os homens que o fizeram. Todos nós estaremos em perigo enquanto essa gente continuar em liberdade. Se fizeram isto a um abade... então são capazes de o fazer a qualquer pessoa. Qual de vocês é o melhor caçador?
- Deve ser o John Black... - declarou um dos homens. Simon seguiu-lhe o olhar e viu-o, com a sua figura seca e baixa sentada perto do fogo com as mãos estendidas para as chamas. O caçador nem sequer levantou os olhos quando Tanner prosseguiu.
- John? Achas que és capaz de seguir o rasto de cavalos através da floresta?
- Sim - retorquiu Black calmamente.
Simon olhou-o de alto a baixo. O homem exsudava uma consciência tranquila e parecia seguro das suas capacidades.
- Muito bem. Precisamos de alguém que vá a Buckland para comunicar aos monges o que se passou. Paul, podes tratar disso? - perguntou Tanner. Paul era o filho mais velho de Cottey, um jovem delgado com cerca de 16 anos, que acenou com um alívio evidente por não ter de acompanhar o grupo de perseguição. Montava um cavalo rápido e podia chegar a Buckland mais depressa do que qualquer outro.
Os homens afastaram-se e foram em busca dos seus cavalos. O dia já nascera, carregaram rapidamente as bagagens nos animais e aprontaram-se. Simon fez um sinal a Black, que os conduziu para a floresta levando a montada pelas rédeas. Simon foi atrás dele e os outros seguiram-nos.
Simon ficou surpreendido ao descobrir que as árvores pareciam ter perdido a sua sensação de malevolência sob a fresca luz verde que se filtrava através das folhas. Talvez fosse por causa dos homens que o seguiam, ou graças ao facto de já saber o que jazia na clareira, mas a verdade era que não sentia a trepidação da tarde anterior mas apenas o fogo lento da sua ira. Os outros homens pareciam nervosos. Caminhavam cabisbaixos e sem falar enquanto conduziam os cavalos para as árvores. Era óbvio que tinham percebido que não se tratava de um assassínio vulgar e de que seriam forçados a viver no medo até que os assassinos fossem apanhados. Talvez estivessem conscientes de que as suas vidas nunca mais voltariam a ser as mesmas mesmo que os responsáveis fossem apanhados e punidos, uma vez que ficariam permanentemente marcadas pelas acções dos assassinos naqueles bosques, como se a malevolência da morte do abade já tivesse deixado cicatrizes em todos eles.
No entanto também havia ali um outro facto de que Simon estava perfeitamente consciente. O abade era um homem rico e importante, de sangue nobre. Tinha de o ser, porque a posição de abade não era entregue a qualquer um. A morte de Brewer teria de esperar, não passava de um servo da gleba e nem sequer havia a certeza de ter sido assassinado, enquanto o abade... Contorceu-se, como se sentisse a responsabilidade como um fardo físico, suspirou e continuou em frente. A sua posição ganharia relevo se conseguisse apanhar os homens responsáveis... E se falhasse?
Precisaram de mais de uma hora para alcançarem a primeira clareira. Ficaram todos parados entre as árvores enquanto Black se agachava, escrutinava o solo em volta e estudava o monte de bosta de cavalo. Encolheu os ombros, levantou-se e seguiu o dedo com que Simon apontava para a clareira onde se encontrava o corpo. Simon foi atrás dele e sentiu as pernas a tornarem-se-lhe mais pesadas, como se tentasse, embora inconscientemente, manter-se longe daquela visão. No entanto forçou-se a continuar e caminhou com firmeza atrás do caçador.
Black atravessou a linha das árvores, parou repentinamente e Simon ouviu-o a aspirar o ar rapidamente enquanto examinava o que o rodeava. Depois, foi como se se tivesse repreendido a si mesmo por se ter permitido uma pequena distracção e voltou a concentrar-se no solo.
Olhou para Simon por cima do ombro, com olhos perturbados e com a testa contraída pelo esforço da caçada, e entregou-lhe as rédeas do cavalo antes de avançar para a clareira e começar a estudar o chão com atenção. Caminhou em volta do pequeno espaço até chegar ao outro lado, e ficou parado, a olhar para as árvores durante alguns minutos. A seguir prosseguiu ao longo da circunferência até voltar para junto de Simon.
- Não há grande coisa para dizer, senhor - declarou, com a testa ainda franzida pelo esforço da busca. - Entraram três homens na primeira clareira, todos a cavalo. Um deles deixou aqui o cavalo. Os outros encontravam-se amarrados por perto. O morto foi arrastado para aqui e amarrado à árvore. Ainda se pode ver o sítio onde os seus pés deixaram marcas no chão. Depois, os outros empilharam lenha à sua volta e fizeram uma fogueira. Parece que esperaram até o prisioneiro estar morto, porque pode ver onde se sentaram, além, para assistirem à sua morte. - Black apontou. - Quando morreu, conduziram os cavalos através das árvores, por aquele lado. A certa altura o último cavalo fugiu, obviamente antes dos outros abandonarem este sítio. Não se deram ao trabalho de o perseguir.
- Consegues seguir o trilho?
- Acho que sim. Um dos cavalos era grande e pesado. Os rastros são profundos e não foram destruidos pela chuva. Mais uma coisa: penso que o cavalo perdeu um cravo do casco traseiro direito, e que já não é ferrado há muito tempo. Pode ser útil. O outro cavalo era mais pequeno e ligeiro. - Fez uma pausa e olhou rapidamente para as árvores do outro lado da clareira. - Não poderão andar muito depressa no meio destes bosques. Vamos ter de fazer o mesmo, e de conduzir os cavalos à mão. Talvez consigamos montar lá mais para diante. Não sei, nunca me tinha internado tanto nesta floresta.
Simon acenou e virou-se para Tanner.
- Arranja dois homens para tirarem o corpo dali e o levarem para a quinta de Greenfield. Entreguem-no aos monges e aguardem que lhes enviemos uma mensagem. - Tanner começou imediatamente a organizar os homens enquanto Simon olhava para o monge, o irmão David. - Quer regressar com eles? Não me parece que nos possa ajudar na perseguição e pode ser melhor para si regressar a Greenfield para descansar um pouco. - David acenou e olhou para o corpo do abade, com o horror e o choque bem visíveis no rosto. Simon suspirou e fez um sinal ao caçador. - Então... vamos procurar esses estupores!
Fez uma pausa quando lhe ocorreu uma ideia súbita e chamou o monge:
- David? Como era o cavalo do abade?
- Oh, era uma égua cinzenta clara, muito dócil e mansa.
- Tinha alguma característica que nos ajude a reconhecê-la?
O jovem monge pensou por instantes e respondeu:
- Sim, tinha uma cicatriz com cerca de oito centímetros de comprimento no lado esquerdo da cernelha. É muito visível.
- Óptimo. Avisar-te-emos se a encontrarmos - declarou Simon. - Black, achas que devemos ir atrás dela?
- Não. Podemos procurá-la mais tarde, os rastos serão fáceis de seguir. É preferível mantermos o grupo junto até onde pudermos, para termos uma força suficientemente grande quando encontrarmos os homens que fizeram isto.
Simon acenou o seu acordo, Black tirou-lhe das mãos as rédeas do cavalo, atravessou o espaço aberto e penetrou nas árvores do outro lado. Simon seguiu-o, espreitando por cima do ombro para ver os homens escolhidos por Tanner a dirigirem-se ao corpo do abade. Tinham acabado de chegar junto dele e começado a cortar as tiras que lhe seguravam os braços em volta da árvore quando os troncos da floresta lhe impediram a visão, o que o deixou muito grato. Foi com alívio que afastou os olhos da forma enegrecida e contorcida que dois dias antes havia sido um homem vivo. Contraiu os maxilares e olhou em frente para as árvores que podiam ocultar a presa que procuravam.
O rasto levou-os a uma colina, ainda no interior das profundezas da floresta. Ali, na espessura das árvores, era-lhes praticamente impossível saber a direcção em que estavam a avançar. Os rastos pareciam seguir relativamente a direito, abrindo caminho por entre os troncos como se os homens conhecessem bem o caminho que tinham de seguir. Simon começou a interrogar-se sobre se o crime não teria sido cometido por alguns habitantes locais. Contudo, parecia-lhe impensável que alguém do seu condado fosse capaz de fazer uma coisa daquelas. No entanto, era igualmente improvável que alguém que não conhecesse a área pudesse ter seguido um caminho tão a direito através da floresta.
Continuaram a avançar, puxando os cavalos atrás deles, atravessando inumeráveis pequenos ribeiros e riachos, tropeçando e caindo ocasionalmente quando trepavam vertentes e elevações íngremes. Não havia um trilho. Limitavam-se a seguir os rastos dos criminosos através do espesso mato existente por entre as árvores. Era claro que não se tinham preocupado em ocultar os rastos porque sempre que os arbustos e ervas do solo eram mais raros logo as marcas dos cascos dos cavalos se tornavam perfeitamente visíveis. Talvez não esperassem ser seguidos tão-pouco tempo depois do crime, pensou Simon. Ou seria possível que tivessem ficado tão chocados com o seu próprio crime que nem sequer se preocupassem com isso? Fosse qual fosse a razão, eram fáceis de seguir.
Finalmente, depois de se arrastarem ao longo de mais de cinco quilómetros, Simon começou a ver o brilho da luz por entre as árvores. Já deviam estar a viajar há mais de duas horas. As costas e as coxas sentiam a tensão de ter de arrastar o cavalo atrás de si nas vertentes das colinas, e as canelas doíam-lhe por ter de as descer do outro lado. Lançou uma olhadela a Black. O caçador parecia não ter dado pela claridade da luz e mantinha os olhos firmemente postos nos rastos a seus pés. Simon olhou novamente em frente. Estava a clarear. Os limites da floresta deviam estar próximos. Foi com uma grande sensação de alívio que Simon constatou que em breve poderiam montar os cavalos e iniciar uma perseguição a sério. Deixariam para trás aquele avanço lento e poderiam andar mais depressa. Sentiu a tensão a subir enquanto cobriam os últimos metros e teve de se esforçar para evitar que o sorriso de antecipação se lhe espalhasse pelo rosto.
Black também reparou na claridade, mas aparentemente sem grande prazer, conforme Simon notou. Pareceu preocupado quando se aproximaram das últimas árvores, franziu a testa e levantou os olhos dos rastos que estava a seguir. Depois, quando chegaram junto das últimas árvores, Simon compreendeu subitamente o porquê dessa preocupação.
Teve uma sensação de afundamento, desviou os olhos das árvores e gemeu quando viu a estrada. Era a estrada principal para Barnstaple, não muito movimentada mas o suficiente, pelo que a poeira do caminho deveria estar bem pisada e sulcada pelas carruagens e carroças que passavam por ali regularmente, e cujas rodas transformavam o solo numa massa sólida e perfeitamente compacta. Simon compreendeu, com uma careta de desespero, que os rastos seriam impossíveis de seguir num piso como aquele. Suspirou e ficou parado, com os sentimentos de desânimo a aumentarem, enquanto Black se endireitava lentamente e saía do meio das árvores. Os seus olhos rodaram e acompanharam as últimas marcas discerníveis deixadas pelos cavalos e cavaleiros no local onde estes tinham saído da floresta, para logo desaparecerem, obliteradas pela enorme quantidade de rastos na lama da própria estrada.
A frustração quase o levou às lágrimas e Simon viu Black a prender as rédeas do cavalo num ramo próximo enquanto exibia uma expressão pensativa. Seria possível que fossem perder os rastos depois de os terem seguido até ali? Sentiu o ardor das primeiras lágrimas a aquecer-lhe os olhos. Estava prestes a chorar de desânimo. Sentia a dor e o desespero do falhanço a apertarem-lhe o coração enquanto observava o caçador, metódico e eficiente, a tentar descobrir os rastos.
Black caminhava numa série de círculos e deslocava-se de uma berma da estrada até à outra. Simultaneamente, ia deslocando o centro desses círculos cada vez mais para diante, pelo que também a avançava ao longo da estrada na direcção de Crediton. Mantinha os olhos sempre postos no solo mas desviava-se ocasionalmente para as bermas para se certificar de que ninguém abandonara a estrada. Fazia-o devagar, e quando percorreu cerca de 20 metros voltou para trás e fez o mesmo no sentido oposto, na direcção de Barnstaple. Por fim, parou e regressou para junto de Simon.
- Desculpem. Não há nada que eu possa fazer. Os rastos estão aqui... mas foram cobertos por todos os outros - declarou, agitando uma das mãos de um modo vago e olhando para um lado e para o outro da estrada. - Só posso deitar-me a adivinhar, mas não tenho certezas. - Encolheu os ombros e olhou para Simon com o desalento nos olhos.
Simon olhou-o e sentiu ondas de medo e temor a desabarem sobre ele. Tinha de haver uma maneira de descobrir os criminosos. Quem quer que fizera aquilo deveria ser louco e não haveria paz na área enquanto não fossem apanhados. Esqueceu-se dos outros e ficou parado, a olhar para a distância. Sentiu Tanner a aproximar-se por trás mas permaneceu assim, completamente infeliz, sem reconhecer a sua presença.
- Problemas? - perguntou Tanner tranquilamente.
- Vê com os teus olhos... - retorquiu Black com secura. - Não posso seguir ninguém no meio desta confusão. Só podemos tentar adivinhar para que lado foram e esperar que tenhamos sorte. Fiz o melhor que pude. - Quase parecia estar a implorar ao taciturno regedor, como se precisasse que confirmassem que fizera realmente o melhor que pudera.
- Almoxarife?
- Não sei... mas não podemos desistir! Temos de apanhar aqueles estupores ou voltarão a fazê-lo! - exclamou Simon, confuso e tentando desesperadamente descobrir o que fazer a seguir. - Eu... Bom, deixem-me sozinho por instantes...
Os outros dois observaram-no enquanto Simon avançava para o meio da estrada e olhava para um lado e para o outro. Tanner manteve-se calmo e Black coçou a cabeça ainda a observar o chão com uma expressão de derrota.
Muito bem, pensou Simon, os assassinos raptaram o abade, roubaram-no e mataram-no... mas para que foi que o queimaram? Por que não se limitaram a apunhalá-lo? Por outro lado, se era isso o que pretendiam fazer... porque não o fizeram perto da estrada? Jesus Cristo, ajuda-me!
Agachou-se, espreitou a superfície da estrada e olhou novamente para a distância.
- Não consigo perceber por que mataram o abade. Tudo o que sei é que o fizeram e que temos de os apanhar... No caso contrário, voltarão a fazer a mesma coisa. Por isso, temos de os descobrir e bem depressa. Para onde terão ido? Para Crediton? Ou para Barnstaple? Podem ter seguido para qualquer lado.
Abruptamente, Simon rodopiou e olhou ao longo da estrada, na direcção de Crediton. Para que lado? Para que lado iria eu? Se tivesse acabado de cometer um crime, para que lado iria? Se estivesse apenas a passar por aqui iria para Barnstaple... mas se vivesse na área, não iria para casa? O crime teria sido cometido por um habitante local? Porquê? Quem o poderia ter feito?
- Patifes! - Tomou uma decisão, levantou-se e aproximou-se do pequeno grupo. - Tanner! Black! Cheguem aqui por um momento. - Os dois homens obedeceram e Simon falou-lhes num tom tranquilo. - Olhem, não podemos saber para que lado foram. Se eu tivesse feito uma coisa deste género, escapava-me para as charnecas e escondia-me, mas é óbvio que estes homens continuaram. Tanner, se estivesse no lugar deles, para onde irias?
O regedor ficou com uma expressão vazia e deixou descair os cantos da boca.
- Se fosse eu e estivesse de passagem... suponho que seguiria para Barnstaple o mais depressa possível e continuaria para a Cornualha.
- Black?
- Ia rapidamente para casa. Voltava para casa e fingia que nem sequer tinha saído de lá.
- Hum, creio que eu também faria o mesmo. Se era um viajante, tal como pensas, Tanner, ia querer afastar-me desta zona. Se fosse um local, creio que ia para casa e mantinha-me longe das vistas.
- E isso serve para alguma coisa? - perguntou Tanner, duvidoso.
- Sim... porque quer dizer que não temos por onde escolher. Vamo-nos dividir em três equipas. Tanner, segue para Barnstaple e vê se consegues descobrir sinais de que tenha passado por lá algum estranho recentemente. Pergunta nas casas se viram passar um homem num grande cavalo, de trabalho ou de guerra, e outro num cavalo mais pequeno. Vestiam-se como cavaleiros mas sem insígnias que os identificassem, ou ao seu senhor. Nós voltaremos a Crediton e procuraremos sinais deles para aquele lado. Os outros homens, o terceiro grupo, irá fazer perguntas em todas as casas existentes aqui à volta, na floresta. Tanner, segues até Elstone e podes voltar para casa se não descobrires nada. Trataremos de verificar se alguém viu alguém...
- Vamos precisar de um pisteiro com cada uma das equipas que irão seguir pela estrada - disse Black. - Temos de manter os olhos bem abertos para rastos que saiam da estrada e voltem para a floresta.
- Tens razão. Tanner? Tens alguma ideia sobre quem poderemos utilizar?
- Sim, o jovem Fasten, que tem bons olhos. Vou levá-lo comigo. E quanto ao terceiro grupo?
- Dois homens bastam, desde que conheçam bem as redondezas. Certifica-te de que conhecem estas paragens e as pessoas que aqui vivem. Só têm de fazer perguntas: viram dois homens recentemente, provavelmente com armaduras, com um deles montado num cavalo grande, talvez de batalha? Viram uma égua cinzenta? Pode ter sido encontrada depois de ter fugido. Alguém viu ou ouviu alguma coisa na noite de anteontem? De certeza que alguém ouviu os gritos do pobre diabo! Um caçador, um lenhador... Não sei, mas de certeza que alguém o ouviu!
- Está bem, almoxarife, vou tratar disso. O Mark e o Gowen conhecem bem estas paragens.
- Óptimo. Quando voltarmos a Crediton iremos perguntar se alguém andou por fora quando aquilo aconteceu. Podemos ter sorte e descobrir que viram estranhos na estrada. Sei que vai ser difícil... mas não vejo outra maneira de os descobrir. Vêem alguma?
Os dois homens abanaram as cabeças. Agora que já tinham decidido o que iriam fazer, regressaram rapidamente para junto dos outros, dividiram-nos em dois grupos de seis e um de dois, montaram e partiram.
Black passou novamente para a frente quando tomaram a estrada de volta à povoação, com os olhos a saltarem constantemente de berma para berma e a verificarem o piso entre as mesmas em busca de sinais dos assassinos. Simon cavalgava logo atrás, meditando sobre os motivos para o que lhe parecia ter sido um assassínio sem sentido. O que mais o surpreendia era o modo como o assassínio fora levado a cabo e o almoxarife cavalgava com uma expressão de perplexidade estampada no rosto. O assassínio, em particular depois de um roubo, não era um acontecimento assim tão invulgar que fosse completamente desconhecido, mas tratava-se de um acontecimento muito raro na sua zona. Todavia, matar alguém de uma maneira tão horrível e tão fora do vulgar parecia-lhe muito estranho. Se não queriam o abade como refém... então podiam tê-lo morto rapidamente, muito mais perto da estrada, para poderem escapar-se mais depressa. Para quê matá-lo de uma maneira tão cruel? Tinham sido forçados a deslocarem-se para longe com o refém, para que o fumo da fogueira ficasse oculto da estrada e os gritos do homem fossem abafados pelas árvores. Para quê darem-se a tanto trabalho quando lhes bastaria apoderarem-se do dinheiro, largar o abade, e fugir?
Simon soltou um suspiro profundo, afastou os pensamentos sobre o assassínio para o fundo da mente e concentrou-se em Black. Se os apanhassem, em breve teriam respostas. Por agora, o principal era apanhá-los.
Chegaram a Crediton ao fim da tarde, cansados e esfomeados. Simon agradeceu a todos os homens, mas muito especialmente a Black, e mandou-os para casa para comerem. No entanto, ainda pediu a Black que os organizasse para regressarem no dia seguinte e que começassem a fazer perguntas em todas as casas para saberem se faltava alguém ou se tinham andado na rua na altura do crime. A seguir virou a cabeça do cavalo e regressou rapidamente para junto da esposa e da filha.
A casa encontrava-se silenciosa e Simon retirou a sela ao cavalo e tratou ele próprio do animal antes de se ir sentar em frente da lareira. Mergulhou nos seus pensamentos e só deu pelo aparecimento da mulher e da filha quando estas entraram repentinamente na sala. A esposa deixou-se ficar um pouco para trás, como de costume, e exibiu um pequeno sorriso perante a excitação da filha ao ver o pai. Depois, quando Edith se acalmou o suficiente, também Margaret avançou para o saudar.
- Que se passa? - perguntou-lhe, depois de lhe dar um abraço lento e de o fitar nos olhos. - Estás muito tenso.
- Não te preocupes - respondeu-lhe, com um sorriso retorcido. - É por causa daquele roubo em Copplestone.
- Porquê? Que teve de especial?
Simon mandou Edith brincar para a rua, pegou na mão da mulher e sentou-a junto dele em frente das chamas.
- Bom... não foi apenas um roubo. Os ladrões levaram um monge - um abade -, como refém, e mataram-no. Não consigo entender o motivo... - Calou-se e olhou para o fogo sem o ver. Quando voltou a falar fê-lo com uma voz baixa e quase interrogativa enquanto analisava mais uma vez todo o incidente. - Dois homens, com armaduras, levaram o abade com eles. O abade parecia saber que iria acontecer qualquer coisa e até eu me apercebi disso quando o encontrei na estrada. Os homens apareceram com as espadas em punho, raptaram o abade e mataram-no. Porquê? Por que iriam fazer uma coisa dessas se tudo o que queriam era o dinheiro?
Margaret aspirou o ar com suavidade enquanto absorvia a novidade. Nunca na sua vida se sentira tão ameaçada no seu próprio condado. Tivera sorte, porque os ataques e mortes dos séculos anteriores pareciam ter diminuído, e porque os que se continuavam a verificar só afectavam as localidades costeiras. Porém, se Simon tivesse razão e houvesse um homem, ou até talvez dois, que fossem capazes de fazer uma coisa daquelas... então de que não seriam capazes? O medo que sentia não era apenas por ela, mas sim pela família, por Simon e Edith. Se os assassinos os atacassem ali, o que poderiam fazer para se protegerem? Ou pior, se encontrassem Simon na estrada e o capturassem? E se também o matassem, tal como acontecera há tantos anos com o pai dela, que fora assaltado na estrada? Sentiu o peito a contrair-se com um medo súbito mas tentou manter a voz calma.
- Talvez pensassem que conseguiam mais dinheiro em troca da vida do abade? Pode ter sido por isso que o levaram...
- Sim, mas nesse caso, por que o mataram? Que motivos poderiam ter? Para quê matar um monge?
- Terá tentado fugir...?
- Não. Julgo que não... Os rastos pareciam indicar que o monge foi morto logo que se encontraram suficientemente afastados da estrada. Aparentemente, mataram-no assim que tiveram uma oportunidade.
- O abade tê-los-á reconhecido?
- Sim... É possível... ou talvez não. Como os poderia reconhecer? De certeza que os assassinos manteriam os elmos nas cabeças se corressem o risco de serem reconhecidos.
- E então? E se apareceu alguém e os homens o mataram rapidamente para impedir que fugisse?
Simon olhou-a.
- Não. Quem quer que matou o abade não o fez à pressa. Foi queimado... Foi queimado na estaca, como um herético. Contudo, em vez de uma estaca serviram-se de uma árvore da floresta.
- O quê?! - Os olhos da mulher arredondaram-se de horror. - Foi queimado vivo? Por que razão iria alguém fazer uma coisa dessas a um monge!?
- Quem me dera saber... - respondeu Simon, voltando a olhar para o fogo. - Quem me dera saber! Meu Deus, deve ter havido uma razão, mas qual?
- Os homens andam à procura deles?
- Sim. Saímos da floresta na estrada para Barnstaple. Perdemos os rastos na estrada, pelo que Tanner levou alguns homens para ver se será possível descobrir vestígios ao longo do caminho. Também enviámos dois homens para fazerem perguntas entre os locais, e regressámos a Crediton não fosse dar-se o caso de terem vindo por aqui. No entanto, parece que ninguém os viu. - Espreguiçou os braços por cima da cabeça e bocejou. - Pode ser que o Tanner tenha mais sorte.
Voltou a baixar os braços e Margaret perguntou:
- Então... e agora?
Simon abafou um novo bocejo e teve de pestanejar para limpar as lágrimas de cansaço.
- Depende. Depende do que os homens encontrarem. Se nós...
- Não, Simon - interrompeu-o a mulher. - Referia-me a Brewer e à nossa mudança para Lydford. Esquecemos a morte do Brewer, por agora, e adiamos a mudança?
- Oh, sim. Sim, neste momento não nos podemos preocupar com essas coisas. O assassínio do abade vai despertar muito mais interesse a toda a gente do que a morte do Brewer. Que importância tem a morte de um velho agricultor, quando comparada com o assassínio de um abade? Para além disso, não nos podemos mudar para o castelo enquanto não tivermos uma ideia sobre o que lhe aconteceu...
Margaret acenou, entristecida. Sabia que Simon tinha razão, é claro, mas magoava-a ouvir o marido, o homem que conhecia como sendo uma pessoa sensível e cuidadosa, a dizer que a morte do agricultor era irrelevante. Acabou por perguntar:
- E amanhã?
- Ah, amanhã, meu amor, creio que voltarei a Clanton Barton para falar novamente com aqueles monges. Tenho a sensação de que não nos deram toda a ajuda possível...
Caíram num silêncio incomodativo, ambos absorvidos nos seus pensamentos sobre o assassínio enquanto olhavam para as chamas que dançavam e morriam no solo de barro da lareira. De súbito, Margaret ofegou, aparentemente chocada com qualquer coisa.
- O que foi? - perguntou-lhe Simon, sobressaltado.
- Oh, Simon... - murmurou Margaret, virando para ele um rosto repleto de terror. - E se os dois homens que morreram foram mortos pelos mesmos?
- O quê?
- Brewer e o abade foram ambos roubados e mortos da mesma maneira. Morreram queimados! Simon tenho medo!
Na manhã seguinte, Simon levantou-se muito cedo e partiu com Hugh a arrastar-se atrás dele. Margaret concordara em avisar Black que o marido não iria estar em casa e enviara um dos trabalhadores agrícolas numa cavalgada até à casa do caçador. Também tratara de arranjar um homem que fosse a Furnshill Manor para explicar que o almoxarife iria estar ausente durante algum tempo e não podia ajudar na investigação da morte de Brewer. A seguir contrariara todas as objecções de Simon e obrigara-o a levar o servo com ele.
As suas preocupações incomodavam-na. Sabia muito bem que era improvável que o marido fosse atacado, mas não conseguia esquecer o aspecto do corpo do pai dela quando o tinham levado para casa. A visão quase a destruíra e não queria ter de voltar a sofrer o mesmo tipo de devastação. Ver o cadáver despedaçado e violado daquele modo... De certeza, pensou Margaret, que acabaria por enlouquecer se visse o corpo de Simon num estado semelhante. Por isso, fora suavemente persuasiva e insistira com ele, embora com gentileza.
- Sei que te vai atrasar, mas não me importa. Preciso de saber que estás a viajar em segurança, não vá dar-se o caso daqueles homens ainda se encontrarem por aí...
- Ora, não sabemos se estão, meu amor... já podem estar em qualquer lado e o Hugh só servirá para me atrasar.
- Pois não, não sabes se estão aqui porque não os puderam seguir. Podem estar por perto... e é por isso mesmo que vais levar o Hugh. - Não, mas...
- Levas o Hugh, para que eu saiba que estás um pouco mais seguro...
- Bom, mas é que...
- Desse modo, tenho a certeza de que estarás com alguém que te poderá dar alguma protecção.
Simon acabara por encolher os ombros e cedera. Sabia que Margaret ficaria a salvo na companhia de todos os homens da quinta mesmo que os fora-da-lei fossem até ali, pelo que fazia sentido levar Hugh com ele. Mesmo assim, a ideia de ir viajar não pareceu pôr Hugh num estado de espírito melhor do que o do próprio Simon. Hugh era leal e já se revelara capaz de lutar. Anos atrás, tinham sido atacados por três ladrões de bolsas no mercado de Moretonhampstead. Simon ficara surpreendido ao ver o seu amargo e taciturno companheiro a explodir repentinamente para a acção. Hugh acabara por conseguir pôr os três homens em fuga, primeiro com as mãos nuas, e depois com a ajuda de um bordão apanhado a um dos ladrões.
- Onde aprendeste a lutar assim? - perguntara-lhe Simon, tão espantado como surpreendido.
O servo perdera imediatamente a expressão de sombria satisfação perante a vitória e tornara-se manhoso, como se tivesse ficado envergonhado com as capacidades demonstradas e não quisesse ganhar uma reputação de lutador. Por fim, depois de muitos incitamentos, levantara novamente os olhos e dissera:
- Fui pastor de ovelhas, nas charnecas, quando ainda era muito pequeno para a idade. Era obrigado a manter as ovelhas reunidas quando os rapazes maiores tentavam levar uma ou duas para esconderem o facto de terem perdido as deles. Tinha de o fazer porque o meu pai era capaz de me esfolar se eu perdesse uma única ovelha... e foi por isso que aprendi muito rapidamente a lutar.
Contudo, isso já fora há mais de dois anos e Hugh estava obviamente infeliz ante a ideia de poder vir a ser emboscado e de ter de lutar com o aço das espadas. Passou toda a viagem a olhar constantemente à sua volta, o que, embora parecesse impossível, o tornou ainda mais lento do que de costume, para grande aborrecimento de Simon. Passado algum tempo, Simon resolveu abrandar o passo da sua montada até ficar ao lado do servo.
- Vê se te mexes, Hugh! Que se passa contigo?
- Hum? - Hugh olhou para ele e Simon ficou preocupado ao ver-lhe o medo no rosto.
- Nunca te vi assim. Por que estás tão preocupado?
- Nunca tive de lutar a sério... e nunca ouvi falar em ninguém que matasse um viajante numa fogueira. Estou preocupado com a possibilidade de sermos apanhados por essa gente...
- Ora, eram apenas dois. Devemos ser capazes de nos defender contra dois homens.
- Dois cavaleiros? Dois homens com armadura completa? Dois homens dispostos a arriscar-se à maldição eterna por terem morto um abade? Achas que nos podemos proteger contra eles? Jesus!
Simon continuou em frente, com o rosto franzido perante a ansiedade do servo. Era compreensível, mas o almoxarife ficava irritado com o facto de o seu próprio homem já se encontrar tão ansioso. Parecia-lhe ser uma demonstração do modo como as outras pessoas se deveriam sentir, assustadas e com medo de viajarem até que os assassinos fossem apanhados.
Cavalgaram o resto do caminho em silêncio, ambos profundamente mergulhados nos seus pensamentos. O céu mostrava-se levemente carregado, com nuvens ralas e aquosas a deslocarem-se rapidamente, nuvens que guardavam para si a maior parte do calor do Sol. Eram forçados a manterem um bom ritmo de marcha apenas para se manterem quentes, para satisfação de Simon e desgosto de Hugh, pelo que pareceram cobrir a distância em relativamente pouco tempo.
Chegaram a Clanton e Simon ficou surpreendido ao ver David, o jovem monge, tranquilamente encostado ao poste do portão que dava acesso a um campo cultivado. Parecia estar a meditar.
- Bom dia, David!
- Olá, almoxarife... - respondeu o monge, mas não havia qualquer alegria naquelas boas-vindas e apenas uma espécie de confusão quase à beira do desespero.
- Sente-se bem, David? - perguntou Simon, sentindo uma vaga de simpatia à vista da óbvia infelicidade do homem.
O monge levantou os olhos para ele com uma expressão de aversão, como se tivesse ficado zangado com o ridículo da pergunta.
- Se me sinto bem? Quer que me sinta bem depois do que vimos ontem? Um abade que foi morto como se fosse um herético? Como é que posso estar bem!? - A voz do monge reduziu-se para o nível do murmúrio, como a de uma criança a que não tivessem entregue o prometido brinquedo. - Metemo-nos alegremente ao caminho... e agora o nosso abade está morto, assassinado de um modo obsceno. Nada voltará a estar bem outra vez! Tudo o que desejo é voltar para casa, para Tychefield... mas por causa disto tenho de prosseguir para Buckland para apresentar as minhas condolências ao priorado. Lamento muito, almoxarife... - declarou repentinamente, levantando os olhos com a testa ligeiramente franzida. - Lamento estar tão irritado, mas nunca esperei ver uma coisa destas, e muito menos envolvendo o nosso abade...
O almoxarife e o servo desceram dos cavalos e encaminharam-se para a quinta na companhia do monge.
- Peço desculpa - disse Simon. - Foi uma pergunta estúpida... mas esta não o é: tens alguma ideia sobre a razão porque mataram o abade?
Não houve resposta por parte do monge, para além de um encolher de ombros. Simon grunhiu, com a cabeça metida entre os ombros.
- Hunh! Quem me dera ter uma vaga ideia a esse respeito! Por que razão iria alguém tomar um refém, para depois fugir antes de poder pedir um resgate...? E para que iriam matar o refém sem mais nem menos? Não faz sentido!
O monge voltou a encolher os ombros. Era óbvio que se encontrava igualmente confuso.
- Diz-me, David, conhecias bem o abade?
- Na verdade, mal o conhecia. Vi-o pela primeira vez quando chegou a Tychfield, a minha abadia. O abade ia a caminho de Buckland e pediram-me que o acompanhasse e que levasse comigo alguns bens e presentes. Não conversou muito durante a viagem e manteve-se entretido com os seus próprios pensamentos durante a maior parte do caminho. Falei muito pouco com ele.
- Oh... Bom, está bem. Que sabes a seu respeito?
- Não muito. Sei que veio de França. Vi as cartas de apresentação do Papa.
- Cartas do próprio Papa? - Simon ficou surpreendido. - Então, que ia ele fazer para Buckland? Seria de pensar que ficaria em Avinhão... David lançou uma rápida olhadela a Simon e semicerrou os olhos. Era óbvio que estava a avaliá-lo.
- Talvez achasse que era melhor sair de França...
- Que queres dizer?
- Bom, o novo Papa não gostava do anterior, pelo que um certo número de homens que anteriormente gozavam de favores deixaram de os ter. Creio que o abade era pouco popular junto do novo Papa e que este o mandou para Buckland para o fazer sair de França...
- Oh?
- O abade nunca quis falar nisso, mas... - Calou-se e ficou pensativo por instantes, mas depois continuou precipitadamente, como se quisesse fazer sair as palavras antes de mudar de ideias. - Bom, penso que foi isso o que aconteceu. Acho que perdeu os favores... Penso que o novo Papa ouviu falar de qualquer coisa que ele terá feito e o enviou para aqui para o tirar do seu caminho, facto que o magoou profundamente, em particular no orgulho. Era um homem muito orgulhoso.
- Por que dizes isso?
O monge soltou uma curta gargalhada, com um som um pouco amargo.
- Sou um monge! Posso ser jovem e novo na ordem, mas mesmo assim... Supõe-se que devemos ser humildes... mas ele comportava-se como um cavaleiro no modo como tratava os outros, sempre arrogante e frequentemente abusivo. Houve várias vezes em que se embebedou e insultou outras pessoas. Tivemos de as acalmar antes que começassem à pancada. No entanto, se quer saber mais a respeito do abade, o melhor é falar com o irmão Matthew, que veio de França com o abade. Deve saber coisas a seu respeito.
- Qual deles é o irmão Matthew?
- O mais velho, aquele que está sempre bem-disposto, embora agora não o esteja. Pobre homem! Parece ter sofrido mais com isto do que qualquer um de nós, suponho que por ter vindo de França com o abade.
- Eram amigos?
- Oh, suponho que sim... bom... acho que sim. - O monge parecia indeciso.
O resto do caminho foi feito em silêncio. David parecia lamentar ter falado tanto e limitou-se a grunhir em resposta a novas tentativas de conversa, deixando Simon com a desagradável sensação de ser um confidente... mas sem o prazer de um segredo para guardar. Ficou aliviado quando chegaram finalmente ao pátio de Clanton Barton, e também ansioso por falar com os outros, na esperança de que pudessem lançar alguma luz sobre aquele caso.
Porém, quando penetrou na sala com o grande fogo a arder na lareira,surpreendeu-se com sua completa incapacidade para enquadrar devidamente os pensamentos, e mais ainda para fazer perguntas. Parecia-lhe grotesco interrogar aqueles bons homens sobre o passado do abade, precisamente na altura em que este acabara de morrer. Por outro lado, também sabia que precisava de saber o máximo possível a respeito do homem. Não se limitava a adivinhar que iria encontrar respostas no passado do homem. Tratava-se mais da premonição de que deveria haver uma razão lógica para o seu assassínio, e muito em particular para o método utilizado para o matar. De outro modo, por que o teriam morto assim? Ou os assassinos o tinham apanhado e morto sem qualquer justificação, ou já o conheciam e queriam matá-lo por uma razão muito específica. Por isso, a questão era esta: existira alguém que o quisesse morto? Se sim, por que motivo queriam matar um abade? A única maneira de o saber era interrogando os monges, pois de certeza que entre eles deveria haver alguém que soubesse algo sobre o homem que os conduzia.
- Suponho que já todos sabem que encontrámos o corpo do vosso abade? - começou, avançando, sentando-se e olhando em volta para todos eles. Sobressaltaram-se ao ouvirem a voz de Simon e viraram-se rapidamente para o olhar, como se tivessem entrado em pânico ante o mero som de um humano. Para além disso, estavam tão assustados como um rebanho de ovelhas que ouve um cão a ladrar. Agora pareciam estar a ouvi-lo atentamente, inclinados para a frente nos seus assentos e a olhá-lo com a concentração fixa e ansiosa dos homens que querem fazer o seu melhor para ajudar. Simon suspirou. Aquilo não iria ser fácil. - Foi morto por alguém que o amarrou a uma árvore e o queimou... provavelmente quando ainda se encontrava vivo. É óbvio que foi roubado, mas isso não é uma explicação, pois não? Por que haveriam de o matar daquele modo? Por que haveriam de o queimar na fogueira como se fosse um herético? Não faço nenhuma ideia sobre o porquê ou sobre o que aconteceu e preciso da vossa ajuda.
Levantou-se e caminhou lentamente pela sala, por trás dos monges, que se viraram para o olhar. Manteve os olhos no chão, pensando nas coisas com cuidado, como se estivesse a falar consigo mesmo e não com eles, e quase como se não tivesse consciência da sua presença. - Foi arrancado do meio de vocês e levado como que para pedir um resgate. Arrastaram-no para o bosque como um refém. Contudo, os ladrões andam geralmente em grupos maiores e não costumam aparecer aos pares. Mantêm-se dentro de um grupo para poderem emboscar os viajantes com mais facilidade. Nesse caso, estes homens faziam parte de um grupo maior ou estavam sozinhos? Só foram vistos dois e não havia rastos de outros... pelo que parece que estavam sós.
Levaram o abade para a floresta. Isso seria normal, para evitarem as estradas e para conseguirem fugir antes de ser dado o alarme. Porém, em geral, tal significaria que estavam a tentar escapar, a procurar um lugar seguro onde se pudessem esconder com o refém e com o seu dinheiro até poderem pedir um resgate. Estes homens limitaram-se a amarrar o abade a uma árvore e a pegar-lhe fogo. Porquê? Por que o fariam? - Rodopiou de repente e olhou para os monges. - Não consigo descobrir um motivo.
Regressou lentamente à cadeira junto do fogo, sentou-se e voltou a fitá-los.
- Por isso, quero que me façam o favor de me contarem tudo o que sabem a respeito deste abade. Como se chamava, de onde veio, por que razão ia para Buckland? Tudo! Qual de vocês o conhecia melhor?
Tentou fazer a pergunta o mais suavemente possível, mas os monges ficaram todos a olhá-lo num alarme silencioso, como se receassem que viesse a acusar um deles de desejar a morte do abade. O silêncio dos monges talvez se devesse ao choque provocado pela compreensão de que não se tratara de um simples ataque de ladrões, mas passados alguns minutos já Simon sentia que a sua confusão perante a falta de respostas se estava a tornar em impaciência.
Olhou para David e insistiu, com uma voz mais dura:
- Um de vocês deve tê-lo conhecido, mesmo que apenas um pouco. Quem era o abade? Como era ele?
- Era um homem orgulhoso. - Foi a afirmação de um facto e um comentário suave, como se se tratasse de uma falta facilmente perdoável nas fileiras do exército de Deus. Fora o monge mais velho quem falara, mas já não se mostrava alegre e capaz de piscar um olho como se estivesse a partilhar uma anedota. Agora não passava de um homem pequeno e preocupado, que permanecia sentado e com os olhos pousados no chão como se temesse a reacção dos irmãos. Porém, quando Simon o fitou, os olhos do monge enfrentaram a expressão interrogativa do almoxarife com um desafio calmo. Pareceu ficar a pensar por um instante e prosseguiu: - Foi um cavaleiro em França e serviu bem o Papa, e daí o seu orgulho e os favores do Papa Clemente - que Deus dê descanso à sua alma -, até à sua morte. A seguir foi-lhe proposto Buckland e decidiu vir para aqui para passar os seus últimos anos em paz e dedicação.
- Como te chamas?
- Chamo-me Matthew.
- Obrigado. Quem era ele?
- Chamava-se Oliver de Penne.
- E por que lhe propuseram Buckland? Por que não uma abadia mais perto de casa? Por que razão o papa o enviou para tão longe? - perguntou Simon, semicerrando os olhos enquanto tentava compreender.
- Porquê Buckland? Talvez o Papa pensasse que se tratava de um local suficientemente distante das velhas tentações e de tudo o mais no seu passado que o pudesse persuadir a desviar-se do bom caminho.
- Que queres dizer? Uma mulher?
O velho monge sorriu com gentileza.
- Há muitas tentações, almoxarife. Não sei. Sim, talvez fosse uma mulher. Quem o saberá?
- Fazes alguma ideia sobre por que motivo tinha tanto receio de vir a ser atacado na estrada?
- Receio de ser atacado? - O velho pareceu genuinamente surpreendido com a pergunta.
- Sim. Quando vos encontrei na estrada, perto de Furnshill, pareceu muito preocupado com a possibilidade de virem a ser atacados. Insistiu em que o acompanhasse na sua jornada e pareceu aborrecido quando recusei.
- Talvez... - retorquiu o monge, encolhendo os ombros. - Penso que são muitas as pessoas que ficam ansiosas quando se encontraram em terras novas, quando não conhecem as estradas e as povoações. Tenho a certeza de que estava apenas esperançado na companhia de um homem conhecedor da área.
- É possível - admitiu Simon, depois de pensar por um minuto. Agora que pensava no assunto... ter-se-ia enganado? Tratar-se-ia apenas do medo natural num homem de paz que se via num país novo e aparentemente ameaçador? Não. Estava seguro, mesmo enquanto pensava naquilo, que os receios do abade eram muito mais do que as simples cautelas de um viajante. Parecera-lhe tratar-se de um terror profundamente enraizado, quase como se estivesse à espera de ser atacado.
- No entanto, se foi um cavaleiro e era tão orgulhoso, por que razão teria medo de uma nova terra? Já devia ter viajado anteriormente...
- Ah, sim, almoxarife, talvez o tenha feito.
- Algum de vós se lembra de mais alguma coisa a respeito dele? - insistiu Simon, depois de soltar um suspiro. - Qualquer coisa que me possa ajudar?
Nenhum dos monges se moveu. Continuaram sentados, a olhá-lo em silêncio, com a excepção do velho monge, Matthew, que fitava o tecto com uma expressão imperturbável. Simon levantou as mãos num gesto de desgosto.
- Não me podem dizer mais nada? Deve haver alguma coisa no seu passado que nos possa dar uma indicação sobre as razões para o que lhe aconteceu. Não acredito que tenha sido morto sem motivos... Nem sequer um louco teria razões para matar um abade! - Não obteve resposta. Os monges deixaram-se ficar sentados e silenciosos, com os olhos fixos de choque e medo. - Nesse caso, já não estou aqui a fazer nada! Bom dia!
Saiu da sala zangado e deteve-se logo no exterior, no longo e escuro corredor apainelado. Sabia que os monges deviam estar confusos e preocupados depois do ataque e da morte do abade... mas de certeza que houvera um motivo para aquela morte! Era inconcebível que tivesse sido um ataque feito ao acaso... e um deles deveria saber por que razão o abade tivera tanto medo da estrada...
Simon pousou a mão no fecho da porta, para sair... e ouviu que o chamavam pelo nome. Virou-se e ficou surpreendido ao verificar que David e Matthew o tinham seguido. Respondeu com um aceno curto e levantou uma sobrancelha interrogativa.
- Almoxarife, iremos prosseguir a nossa jornada muito em breve. Contudo, antes de partirmos, Matthew gostaria de trocar algumas palavras consigo... - declarou David, que regressou imediatamente à sala.
Simon ficou à espera. O monge pareceu não se importar com o silêncio e olhou o almoxarife com uma expressão grave.
- Podemos ir lá para fora, almoxarife? O Sol brilha e é triste ficarmos fechados em casa como ratos, em especial depois das chuvas destes dois últimos anos.
Matthew esperou enquanto o almoxarife abria a porta e a segurava para o deixar passar. O monge saiu e começou a andar, meditativo, como se não tivesse consciência da presença de Simon a seu lado.
- Há coisas, almoxarife, que é melhor não serem ditas em frente dos meus irmãos... - começou o monge tranquilamente. - Não estão habituados ao mundo secular. Até o próprio David, que só está na ordem há poucos anos, teve muito poucos contactos com o mundo exterior. Como deve imaginar, todo este assunto os afectou muito profundamente. Foi por isso que os impedi de correrem atrás dos ladrões. O David queria persegui-los, mas detive-o. Pensei que os outros poderiam ficar em perigo... e que os ladrões poderiam matar o Penne se soubessem que estavam a ser seguidos. Pareceu-me mais sensato procurar ajuda... - O monge suspirou. - Ao que parece, estava errado. - Parou de repente e virou-se para a charneca com um ar pensativo. - É magnífica, não é? - murmurou, enquanto fitava as terras selvagens com um olhar vazio.
Simon olhou para lá dele e acenou. Queria que o monge continuasse a falar e perguntou:
- Nesse caso, pensa que o passado do abade poderia chocar os outros? - Ficou satisfeito ao ver o rápido olhar desconfiado que Matthew lhe lançou.
- O seu passado? Bom... - Fez uma pausa como se estivesse indeciso. - Sim, é possível, mas não pelas razões em que pode estar a pensar. - Começaram novamente a caminhar. - Sabe, a igreja é um lugar muito simples... para muitos. Pensam que se dedica à adoração de Deus e a ajudar as pessoas que se quiserem dedicar a Deus. Os meus irmãos sabem-no... e não querem saber mais nada. Sou diferente, porque a minha vocação surgiu muito tarde na vida. Fui muitas coisas, vi muitos lugares e gentes... - Soltou uma breve gargalhada. - Até já fui aquilo a que chamariam um pirata!
- E então?
- Então, meu amigo, sei como é o mundo... e eles não sabem. Procuro ser humilde e parto do princípio de que as pessoas são boas, mas tenho de me debater constantemente contra o cinismo que desenvolvi nos tempos da juventude. Por vezes, é muito difícil. Por isso, quando escutei o chamamento para vir a ser um monge, senti que podia perfeitamente suportar uma vida de reclusão e ajudar os outros, mas não consigo acreditar inteiramente nos motivos que se encontram por trás de todas as directivas da Igreja. Nem todas elas provêm de Deus. Algumas provêm dos homens... e todos os outros monges aceitam essas directivas como sendo vindas de Deus, sem qualquer interferência humana.
- Não estou a perceber...
- Pois não. Peço desculpa por estar a divagar. Tem razão. O que estava a tentar dizer era isto: os meus amigos não compreendem como é a vida em Avinhão. Eu compreendo, porque nasci no mundo secular e vivi nele muitos anos. Depois, quando fui chamado, comecei por me juntar a uma ordem muito antiga e nobre, onde a honra e a honestidade eram essenciais. Foi apenas muito recentemente que me juntei a esta ordem, meu amigo, e foi nela que passei os meus primeiros anos em Avinhão. Almoxarife, o Papa é o vigário de Cristo na Terra. Devia ser o primeiro entre os cristãos, pio, fiel e honrado. Contudo, as coisas nem sempre são assim. Sabe, a Santa Madre Igreja foi organizada e é dirigida por homens, que são tão falíveis como todos os homens. O controlo da Santa Sé trás consigo um grande poder e riqueza, pelo que dentro dela são muitos os que desejam usurpar esse poder. Os homens aparecem, são promovidos por dinheiro e recebem indulgências em troca de ouro. Por vezes, quando o Papa o permite, um governante pode comprar uma posição para um amigo. Esse amigo torna-se mais forte e ainda mais rico por causa dessa nova posição. Todavia, se o Papa muda, se o velho papa morre e o cargo é ocupado por outro, esses homens que detinham o poder podem ver-se subitamente sem autoridade, sem riquezas... e têm de procurar uma nova posição.
- Compreendo. Pensa que foi isso o que aconteceu a Penne?
O monge voltou a rir-se.
- Não tenho dúvidas. Creio que era um dos favoritos do Rei Filipe de França e do último Papa. Quase mo disse, numa noite em que bebeu demasiado. Sentia-se infeliz, lamentava o seu destino e queixava-se da sorte. Afirmou que fora membro de uma grande ordem, que realizara um serviço para o Papa Clemente, que fora por isso que alcançara a sua posição de poder, mas que o novo Papa não gostara dele e o afastara da corte papal. Daí a mudança para Buckland.
- Terá dito que serviço foi esse?
- Não, meu amigo... e também não me preocupei com o assunto. Quando passamos muito tempo em Avinhão tendemos a ignorar os gemidos e queixumes das pessoas que se sentem prejudicadas... porque há muitas a sentirem-se assim. Nestes nossos tempos duros são demasiados os que se esquecem dos votos de castidade e de pobreza. - Então, pensa que o enviaram para aqui como castigo? Foi banido? - perguntou Simon de testa franzida.
- Sim, mas tem razão. Não foi um castigo assim tão duro, pois não? No fim de contas, segundo ouvi dizer, Buckland é uma abadia próspera numa bela terra. Não, penso que foi apenas mandado embora para um sítio onde o Papa, ou qualquer outro dos seus inimigos, o pudessem esquecer. Subiu demasiado... e foi isso o que provocou a sua queda.
Simon fez uma careta para os seus próprios pés.
- Um dos seus inimigos de Avinhão poderá ter enviado alguém para o matar?
- Não. Suponho que se refere ao Papa... mas não. Estou certo de que não faria uma coisa dessas. Talvez um dos seus bispos... mas duvido. Não... - declarou, parando novamente e olhando para as charnecas que jaziam à distância. - Penso que é improvável. Atrever-me-ia a pensar que se tratou apenas de um encontro ocasional e que os ladrões o mataram por alguma ofensa ou insulto. No fim de contas era um homem orgulhoso e decidiram puni-lo por isso. Nada mais.
- Não pode ser. Não acredito, irmão. Ou estavam loucos... ou sabiam exactamente o que faziam e já tinham planeado matá-lo daquele modo, talvez como uma espécie de exemplo...
- Então eram loucos... - afirmou Matthew, sempre a olhar para a paisagem. No entanto, Simon pressentiu nele uma certa tensão, uma rigidez.
- Mas... porquê? Porquê raptar um homem para o matar assim? Mesmo que fossem apenas loucos, por que não foram à procura de outro homem que pudessem matar? Porquê um abade? Não faz sentido!
- Há muitas razões para matar, almoxarife - disse o monge, virando-se de repente para ele, mas sem rancor e com uma expressão de tristeza. - Talvez até demasiadas para que as possa compreender. Conheci algumas: o medo, o ódio, a inveja. Oh, sim, conheci muitas! Por vezes, também eu enlouqueci quando matei. - Os olhos pareceram enevoar-se-lhe, como se estivesse a andar para trás no tempo enquanto se recordava. - Matei muitos homens quando fui soldado. O fim do abade foi mau... mas já vi pior. Já fiz pior. Foi por isso que me juntei à ordem, para tentar esquecer e também como expiação. Agora, quando olho para trás, verifico que nenhuma dessas mortes fez um grande sentido.
- Então, pensa realmente que se tratou de um acto de loucura?
- Penso, sim. Alguém enlouqueceu quando fizeram aquilo ao abade.
- Nesse caso temos de os apanhar, para os impedir de voltarem a fazê-lo.
- Acha que sim? - perguntou o monge, olhando-o com uma leve tristeza. - Não me parece que o voltem a fazer, almoxarife.
- E por que não? - perguntou Simon, confuso.
- Quem quer que fez aquilo estava louco, mas neste momento já está bom e não voltará a fazê-lo. Estou certo disso. A vossa gente está a salvo.
Simon ficou a olhá-lo.
- Como pode dizer uma coisa dessas? - conseguiu finalmente perguntar, controlando a ira com dificuldade. - Como pode dizer uma coisa dessas? O homem foi morto de uma maneira horrível e está a querer dizer-me que o assassino na altura estava louco e agora já não o está? Como pode acreditar nisso?!
O monge encolheu os ombros e Simon acalmou-se em poucos instantes.
- Quer dizer, acha que foi alguém que andava atrás do abade?
- Penso que a hora do abade chegara e que o Senhor decidiu pôr fim à sua vida. O Senhor seleccionou um agente para executar a tarefa... e talvez o agente tenha sido afligido por uma loucura temporária enquanto executava a vontade de Deus. Contudo, a vontade de Deus foi cumprida e é provável que o assassino tenha voltado ao normal. Agora... - O monge olhou para cima, para o céu - penso que é tempo de voltar para sua casa antes que se faça demasiado tarde. - Matthew virou-se e voltou para trás, dirigindo-se à casa.
- Irmão! Espere, por favor! Quer explicar-se melhor? Por que pensa que...?
- Não, meu filho. Creio que já disse tudo o que queria. Não se esqueça das minhas palavras.
Simon ficou parado e viu-o regressar à casa. Virou-se quando chegou junto à porta, como que a interrogar-se sobre se deveria dizer mais qualquer coisa, mas abanou a cabeça de um modo vago e entrou. Simon ficou com a distinta impressão de que o velho monge sabia muito mais do que queria dizer. Encolheu os ombros e dirigiu-se aos cavalos, onde Hugh o esperava, entretido a afiar um pau com a faca. Simon aproximou-se, o servo olhou para cima e guardou a faca apressadamente.
- Vamos voltar?
- Sim, vamos voltar para casa.
Montaram, Simon lançou uma última olhadela de frustração na direcção da casa, virou o cavalo e foram-se embora.
Cavalgavam nas profundezas da floresta e Godwen captava relances ocasionais da habitação à medida que avançavam através das árvores.
"Graças a Deus!" - pensou. - "Esta é a última e a seguir já posso ir para casa."
Black ordenara a Godwen e Mark que visitassem todas as propriedades existentes na floresta em torno do local onde o corpo do abade fora encontrado, e que perguntassem se alguém tinha visto estranhos nos últimos dois dias. Para além disso, deveriam certificar-se de que as pessoas se encontravam bem e não haviam sido atacadas. Até àquele momento ainda não tinham descoberto nada e Mark estava ansioso por concluir a tarefa.
As paredes desbotadas e manchadas da casa caiada já eram mais claramente visíveis agora que se tinham aproximado o suficiente e entrado no espaço aberto entre as árvores, que formava uma espécie de pátio de terra batida. A casa era relativamente recente, com uma chaminé que lançava finos farrapos de fumo para o ar e deixava o ambiente à sua volta perfumado com uma promessa de calor e de descanso. As janelas abriam-se logo por baixo do tecto de colmo, onde a chuva não podia ser soprada pelo vento para ir molhar as tapeçarias que as tapavam, e a porta encontrava-se quase no meio da casa, dando ao lugar uma sensação de estabilidade simétrica. Detiveram as montadas em frente da casa mas não viram qualquer sinal do proprietário. Mark deixou que a montada se agitasse, inquieta, enquanto espreitava a propriedade. Godwen olhou-o e suspirou. Mark irradiava mau humor, com as sobrancelhas negras contraídas numa linha grossa por cima dos brilhantes olhos castanhos, e com a boca a exibir uma expressão dura e resoluta por baixo do nariz estreito e quebrado. Até o cabelo espesso luxuriante como uma sebe na Primavera, parecia espetado e tenso de emoção.
- Pelos vistos, não há aqui ninguém - disse Mark, olhando-o. Godwen grunhiu uma resposta:
- Bate à porta.
- Não é preciso, meus amores. Estou aqui!
Godwen rodopiou de repente e viu um homem baixo mas corpulento, que se encontrava de pé por trás de Mark. Este, apanhado de surpresa, sobressaltou-se e teve um espasmo de medo. Godwen sorriu e fez o cavalo avançar.
- Boa tarde - disse.
- Boa tarde para vocês. Em que vos posso ser útil?
Parecia divertido com a chegada dos homens e observava-os por baixo das sobrancelhas espessas, com os cabelos brancos a parecerem-se com líquenes agarrados a um velho tronco, de tão encaracolados e ásperos que eram. As roupas eram quase inteiramente de couro, desde a túnica ao kilt e até às botas leves, e empunhava uma lança enferrujada. Mark pareceu ficar momentaneamente sem palavras ao vê-lo, pelo que foi Godwen quem fez as apresentações e explicou os motivos da visita enquanto o homem escutava, acenando de vez em quando com a cabeça para dizer que compreendia.
Mark resolveu abreviar as explicações e interveio:
- Se não ouviu nada, diga-o e vamo-nos embora. Ouviu alguma coisa? Viu alguém?
Talvez fosse por causa dos modos bruscos de Mark, mas Godwen pressentiu que o pequeno homem se tornava reservado. Pareceu quase encolher-se na frente deles, como se quisesse desaparecer no interior da túnica.
- Oh, não, senhor. Não o ouvi, tenho a certeza - declarou num tom baixo, como que medroso, mas Godwen ficou convencido de que lhe vira um pequeno brilho nos olhos estreitos e negros.
- Muito bem. É tudo. Vem daí, Godwen - disse Mark. Fez rodopiar o cavalo e afastou-se a trote, como se esperasse que Mark o seguisse como um cão agora que dera uma ordem.
O lenhador viu-o partir e virou-se para Godwen, sentado no cavalo com um ar meditativo.
- Não vai com ele?
Godwen encolheu os ombros, adoptou uma expressão vazia e fitou as costas de Mark, que desaparecia novamente entre as árvores. Não tinha vontade de escutar as queixas de Mark durante todo o caminho para casa.
- Não precisa de ajuda para encontrar o caminho - comentou, encarando o pequeno homem vestido de couro.
Este fixou os olhos no rosto de Godwen e pareceu pensar no assunto antes de acenar com um ar muito sério.
- Creio que tem razão, parece-me ser uma daquelas pessoas que sabem o que querem. O único problema está no facto de ter demasiada pressa.
- Sim, mas eu não tenho. Posso fazer-lhe um par de perguntas?
- Claro! - retorquiu o homem. - O que quer saber?
Godwen olhou para o caminho, em particular para o local onde este passava através dos bosques, a uns 50 metros de distância.
- Não ouviu o homem quando o mataram, mas ouviu ou viu qualquer outra coisa?
- Não nessa noite. Não passou ninguém por aqui.
- E depois, passou alguém? Um homem que talvez fosse um cavaleiro, num grande cavalo? Era provável que tivesse um escudeiro ou um companheiro, num cavalo mais pequeno.
- Não, não vi nenhum par de homens. Só vi o outro.
- O outro?
- Sim, passou por aqui um cavaleiro, há dois dias. Era um homem grande, mas ia sozinho.
- Montado num cavalo de batalha?
- Oh, não, não. Ia montado numa bela égua cinzenta.
Simon e Hugh chegaram finalmente a casa a meio da tarde, ambos cansados e irritadiços por causa da viagem, e com o almoxarife a mostrar-se o mais maldisposto dos dois... embora não muito mais. Sentia-se zangado consigo mesmo, aborrecido, e não via razões para esconder esse facto. Tudo aquilo provinha de uma sensação de falhanço, como se tivesse esquecido ou deixado escapar um indício vital que pudesse resolver o mistério e o levasse ao assassino do abade. A conversa com o monge, que o deixara mais confuso do que nunca, nada fizera para lhe melhorar a disposição, e os maus modos para com o servo durante o caminho de regresso a casa tinham sido recebidos com um mau humor semelhante ao seu.
Amargos e tensos, cavalgaram até à velha casa mergulhados num silêncio forçado, entretidos com os seus próprios pensamentos. Hugh tentou interromper as meditações do almoxarife pelo menos um par de vezes, mas as tentativas de conversa haviam sido rejeitadas e o servo mantivera-se taciturno durante o resto da viagem, perguntando a si mesmo se teria escolhido o emprego mais apropriado quando fora trabalhar para aquele amo.
Havia um cavalo amarrado no exterior da casa e Simon sentiu uma onda de excitação quando reconheceu que era o de Black. Saltou da montada, atirou as rédeas a Hugh e apressou-se para o interior para saber o que o homem teria para lhe relatar.
Quando Simon entrou viu Black sentado em frente da lareira a observar Margaret, que remexia o conteúdo de um tacho. O almoxarife dirigiu-se rapidamente à mulher e beijou-a simbolicamente antes de se virar ansiosamente para Black. Acenou-lhe, aproximou-se e sentou-se num banco próximo do dele.
- Há novidades? - perguntou, tentando controlar a excitação e ocultar a esperança.
- Nem por isso... - declarou Black lentamente, tomando um grande gole da caneca de cerveja que Margaret lhe entregara. - Andámos por todo o lado desde Crediton a Half Moon e ninguém se lembra de ter visto um cavaleiro num cavalo de batalha ou com uma armadura. Viram passar vários cavalos das quintas, mas nenhum montado por alguém que parecesse um cavaleiro. Tratámos disso esta manhã e enviei alguns dos homens para sul para fazerem perguntas daquele lado enquanto eu as fazia aqui em volta. Até agora não descobrimos nada mas ainda não tive notícias de um par de rapazes que mandei para perto da charneca. Tenho mantido os olhos abertos para quaisquer rastos de um homem que tivesse cavalgado pelos bosques ao lado da estrada, mas não vi nenhum. O problema está em que a estrada ficou muito espezinhada depois das chuvas e tivemos tantos viajantes que é praticamente impossível descobrir rastos. Os assassinos parecem ter desaparecido. Já tiveste notícias do Tanner?
- Não, nada. Ah, obrigado, meu amor... - Simon aceitou a caneca de cerveja das mãos da esposa e bebeu um grande gole enquanto ela se sentava a seu lado para escutar a conversa. - Espero que tenhamos notícias em breve, mas só Deus sabe quanto tempo será necessário para verificar todas as estradas a oeste...
- Pois é. O problema está em que, com o tempo que fez e tudo o mais, podem tê-lo morto durante a noite e fugido no meio da escuridão. Talvez ninguém os tivesse visto... - concluiu o caçador, num tom sombrio.
Simon acenou lentamente.
- Eu sei... e se não encontrarmos pistas para seguir podemos nunca vir a saber o que realmente se passou e quem foi o responsável...
- Que iremos fazer se a busca do Tanner não der nada?
- Continuamos a procurar. Interrogamos pessoas mais longe. Pouco mais podemos fazer, não é verdade? Se não conseguirmos descobrir vestígios deles... vamos ter de assumir que foram para qualquer outro lado e que não voltarão a atacar ninguém por aqui.
- Sim... - Ao ouvir aquela resposta monossilábica, Margaret sentiu que Black se deixava afundar numa melancolia meditativa. Pareceu-lhe abatido pela incapacidade para encontrar o rasto aos fugitivos e pela ideia de que não havia muito mais que pudessem fazer a não ser que Tanner conseguisse qualquer coisa durante a sua busca. Margaret sentiu-se repelida por aquela depressão, pois parecia-lhe ridículo que o homem ficasse tão desanimado quando ainda existiam algumas esperanças. Pelo seu lado, Simon permanecia tranquilamente sentado e olhava para as chamas com a caneca na mão.
Margaret aguardou em silêncio durante alguns minutos e sentiu-se obrigada a tentar diminuir a tensão que pairava no ar. Interrompeu-lhes as meditações com uma voz que pareceu pouco natural e um pouco aguda de mais até para as suas próprias orelhas.
- Os monges deram-vos alguma ajuda?
Simon acenou devagar e pensativamente, e Black afirmou:
- Ouvi dizer que voltaste a Clanton Barton para falar com eles. Disseram-te alguma coisa?
- Não muito, na verdade... - respondeu Simon com uma pequena careta enquanto recordava a conversa com o monge. Explicou-lhe rapidamente tudo o que soubera.
- Agora, pelo menos, já sabemos o nome do abade. Chamava-se Oliver de Penne.
- Oliver de Pene? Nunca ouvi falar nele... - retorquiu Black, pensativo e abanando a cabeça.
- Nem eu. Tenho a certeza que não era daqui. Devia ser tão francês como o nome sugere...
Black franziu a testa, inquieto.
- Parece-me esquisito que o tenham morto daquele modo...
O rosto de Simon revelava toda a sua concentração mas a mulher, logo a seguir, verificou que a testa se lhe alisava quando o marido olhou para lá do ombro de Black, para a parede por trás do caçador. Margaret voltou a observar este último e verificou que o rosto do homem revelava exaspero e desânimo crescentes, como se já pensasse que haviam perdido e que nunca conseguiriam encontrar os assassinos. Foi por isso que, quando olhou para o marido, não pôde deixar de sentir um breve impulso de orgulho perante o contraste entre os dois homens.
Margaret casara-se com Simon não por se ter apercebido que este viria a ser um homem poderoso no condado, mas porque vira nele a mesma força que o pai dela possuíra. Como filha de um agricultor, fora criada como uma pragmática. Quer a decisão a ser tomada fosse a colheita das culturas, agora ou amanhã, ou o dilema de construir ou não um novo estábulo, o pai instilara em todos os seus filhos os mesmos princípios de bom senso: decidir sempre pelo que era mais necessário. Costumava dizer que era inútil tentar fazer qualquer coisa se não se tivesse a certeza do que era, e que as tarefas só podiam ser enfrentadas depois dos objectivos terem sido escolhidos e ficarem claros.
Agora, parecia-lhe que aqueles homens estavam a tentar fazer tijolos sem terem barro. Não possuíam informações. Então como podiam pensar em decidir qualquer coisa? No entanto, Black já quase desistira e parecia ter concluído que tinham sido derrotados. Como era possível que se sentisse assim quando nem sequer haviam explorado algumas das possibilidades? Margaret levantou-se e voltou para junto do tacho para remexer os cozinhados.
- Bom, Simon... - disse - o que é que na verdade sabemos a respeito desse abade?
- O nome, Oliver de Penne, a posição como abade em Buckland e o facto do seu cavalo ser uma égua cinzenta. Sabemos que tinha dinheiro com ele.
- E...?
- Passou algum tempo em França, com o Papa, em Avinhão. Parece que era muito popular junto do último Papa mas que, se Matthew estava certo, não era apreciado pelo actual. Se o que o David e Matthew me disseram for verdade, era um homem arrogante e conflituoso. Para lá disso, nada mais sabemos.
- Aparentemente, de acordo com o que viste, tinha medo de ser atacado?
- Sim. Muito medo...
- Hum... - Margaret continuou a remexer o tacho, pensativa. Virou-se, viu os olhos do marido pousados nela e sorriu antes de continuar. - Foi levado para a floresta, onde ninguém o conseguisse ouvir, e queimaram-no na fogueira?
- Sim.
O caçador estremeceu de desgosto e a ideia transformou-lhe os olhos em duas fendas finas, como se esperasse ouvir dizer que as palavras que ia pronunciar não faziam sentido.
- Almoxarife, não consigo deixar de pensar... Bom, não podemos imaginar que foi um vulgar ladrão quem fez aquilo ao abade... Não daria sentido, pois não? Não... Resta-nos esta estranha morte... e talvez haja um qualquer significado por trás dela, não é? Entretanto, lembrei-me que é assim que matam os heréticos, em França...
- Sim. Graças a Deus, não descemos tão baixo na Inglaterra. O monarca não autorizou a Inquisição no país...
- Pois não, mas não poderia ter sido uma coisa desse género? O abade, pelo nome, era francês....
- Sim, suponho que é provável. - Simon ficou a olhar para a caneca com um ar desanimado.
- No fim de contas, é possível que alguém tentasse transformar a morte num espectáculo, se é que me entendem...
O almoxarife ficou a olhá-lo:
- Queres dizer que pode ter sido morto como uma espécie de exemplo...?
O caçador encolheu os ombros e replicou:
- Bom, não vejo outra razão para que o assassinassem daquele modo. Vês alguma?
- Não, não vejo - confirmou Simon, olhando pensativamente para as costas da mulher. Abanou a cabeça. Aquilo não estava a levá-los a lado nenhum e nada sabia a respeito de tais coisas. O Baldwin poderia ajudá-los? Regressara de França muito recentemente. Contudo, a seguir sobressaltou-se, os olhos focaram-se-lhe repentinamente e aspirou o ar com força quando a sua mente considerou uma nova possibilidade... Baldwin poderia estar envolvido? Regressara de França havia pouco tempo, era um cavaleiro, tinha Edgar a acompanhá-lo como uma espécie de sombra perpétua... Poderia ter alguma coisa a ver com a morte do abade? Baldwin e o abade ter-se-iam conhecido anteriormente?
Foi com um pequeno suspiro de alívio que se recordou do dia em que vira os monges pela primeira vez e os mencionara ao cavaleiro, em Furnshill. Não, claro que não podia ter sido o Baldwin, por que nesse caso teria manifestado algum interesse pelos viajantes quando Simon lhos referira. De acordo com o que o almoxarife recordava, o cavaleiro nem sequer revelara uma curiosidade passageira e começara imediatamente a falar das suas novas propriedades.
Os olhos de Simon voltaram a ficar vidrados e a sua atenção vagueou novamente para a sala até se focar na esposa. Era inteligente, ele sabia-o, e estava ansiosa por compreender o seu trabalho. Verificava esse facto até na maneira como fizera perguntas a respeito do assunto precisamente quando Black parecera tão desanimado. De qualquer modo, as perguntas que fizera tinham-no posto outra vez a pensar. Se ela não tivesse... De súbito, as suas feições sérias abriram-se no sorriso rápido.
Margaret remexia o tacho e sorria para si mesma. Não fora preciso muito... mas resultara. Black pusera novamente a cabeça a trabalhar! Foi com uma leve sensação de presunção que lançou uma olhadela ao marido... e ficou irritada ao verificar que este se sorria para ela com uma sobrancelha ironicamente erguida como se lhe tivesse lido os pensamentos. Olhou-o com frieza. Era óbvio que percebera o que ela fizera, mas quando se virou de novo para o tacho também ela sorria e tinha de se esforçar por não soltar algumas risadinhas. Ouviu Black a murmurar:
- Mas por que haveria alguém interessado em fazer aquilo ao Penne?
- Não sei. Nem sequer era conhecido por aqui...
- Fizeram o mesmo ao Brewer. Por que o iriam matar?
- Por dinheiro, suponho. Para além disso, tal como o Cenred afirmou, era odiado por toda a gente na aldeia.
- Nem sequer temos a certeza de que o Brewer tinha dinheiro. Era um boato, mas nunca ninguém o viu.
- Portanto, não sabemos se era rico ou, pelo menos, não se sabe se guardava o dinheiro em casa?
- Não.
Simon levou uma das mãos à cabeça e esfregou a testa.
- Oh, Deus! Nenhuma destas mortes faz qualquer espécie de sentido. Por que razão...
Foi interrompido por uma forte batida na porta. Margaret deixou de mexer a comida no tacho, os dois homens ficaram imóveis e silenciosos, e todos os olhos se viraram para a tapeçaria que protegia a entrada. Simon teve de conter a vontade de dar um salto e ir ele mesmo abrir a porta, não fosse dar-se o caso de ser uma mensagem de Tanner. Os seus olhos brilharam de esperança. Hugh apareceu com um homem jovem, delgado e trigueiro, todo sujo por ter cavalgado rapidamente através das poças de água da estrada e com o rosto avermelhado pela exaustão. Simon abateu-se novamente sobre o assento com uma careta de desgosto. Aquele homem não pertencera ao grupo de perseguição, pois no caso contrário recordar-se-ia do rosto. O jovem entrou, olhou de Black para Simon com a confusão nos olhos escuros até que Simon lhe fez sinal para avançar.
- Senhor? Almoxarife? Fui mandado por Sir Baldwin Furnshill, que lhe envia os seus melhores cumprimentos e pergunta se o senhor e a sua senhora quererão fazer-lhe companhia, esta noite, na mansão.
Simon olhou de relance para a esposa e sorriu ao ver-lhe os inconfundíveis sinais de esperança no rosto. Já se esquecera da conversa com o caçador. Fingiu desinteresse e fitou-a casualmente.
- Não sei... Margaret? Gostarias de ir? - perguntou, num tom despreocupado.
Margaret ergueu uma sobrancelha e olhou-o com uma expressão de exaspero. O marido sabia muito bem que ela tinha vontade de conhecer o novo senhor de Furnshill porque já lho dissera, e muito em especial agora que ouvira algumas coisas a respeito do novo e estranho cavaleiro. Ignorou Simon e virou-se para o mensageiro enquanto soltava um suspiro de sofrimento paciente.
- Por favor diz ao teu amo que temos muito prazer em visitá-lo esta noite, mas avisa-o que o almoxarife parece estar um pouco confuso. Deve ser por causa da idade... - declarou, num tom doce e com uma ligeira sacudidela de cabeça, como se estivesse desgostosa com o marido. A seguir virou-se para a lareira e retirou o tacho do lume.
Simon sorriu para si mesmo. Baldwin era precisamente o homem com quem gostaria de discutir o caso do abade, em particular porque o cavaleiro parecera tão interessado na morte do agricultor. Talvez também o pudesse ajudar em relação àquele assassínio...
Mais tarde, quando cavalgavam juntos de Sandford para Cadbury depois de deixarem Edith ao cuidado de uma serva, Margaret virou-se e viu Hugh a arrastar-se um pouco atrás deles. Encarou o marido e olhou-o com uma preocupação desconfiada.
- Simon, pensas realmente que os assassínios podem ter sido cometidos pelas mesmas pessoas? O facto de ambas as mortes terem envolvido o fogo parece uma coincidência estranha.
Simon soltou um grunhido não comprometedor enquanto virava a sua atenção para as misteriosas mortes.
- A única semelhança entre as duas mortes foi o fogo...
- Não achas que se trata de uma coincidência curiosa? Há quanto tempo não morria ninguém num incêndio?
- Não era isso o que eu queria dizer. Se tivessem ambos morrido em incêndios, nas suas casas, então eu podia compreender... Se ambos tivessem sido raptados para serem trocados por resgates, eu poderia dizer: Sim, são demasiadas coincidências. Contudo, não posso. Um dos homens apareceu na cama e outro na fogueira. Um foi definitivamente roubado... e o outro pode ter sido.
Mergulharam num silêncio pensativo enquanto oscilavam em cima das montadas. Poderia haver um bando de fora-da-lei tão para sul, interrogou-se Simon, que tivesse descido até Crediton, encontrado a casa de Brewer e morto o homem, para logo depois raptarem o abade? A seguir - talvez num ataque de inveja por causa da riqueza do refém -, tê-lo-iam morto daquela maneira insensata?
Margaret viu-o levantar lentamente a mão para coçar a orelha, o que nele era um sinal claro de perplexidade. Sabia que a expressão iria desaparecer rapidamente logo que lhe ocorresse uma nova ideia que o fizesse perder a concentração enquanto olhava em frente, para o caminho, como uma pessoa perdida ou um velho confuso pelo ambiente que o rodeava. A seguir esgotaria essa nova ideia até ao fim e passaria para a seguinte. Sorriu ao ver aparecer no rosto do marido a nova expressão de que estivera à espera e virou o olhar para a paisagem à sua frente.
Atingiram o alto de uma elevação e esperaram por Hugh, que continuava a cavalgar lentamente atrás deles. Ali em cima tinham pela frente muitos quilómetros de paisagem e Simon ficou satisfeito por poder parar para a admirar, esquecendo-se do caso por instantes enquanto se apoiava no arção da sela e respirava o ar limpo. Margaret observou-o com um pequeno sorriso enquanto o marido permanecia confortavelmente sentado no cavalo. Tinha orgulho na sua força e tranquilidade, amava-o pela gentileza para com a filha... mas o sorriso escondia as suas preocupações. Nunca o vira tão absorvido num assunto como estava agora com aquelas duas mortes. No passado, o marido fora por vezes obrigado a envolver-se em questões legais quando acontecia um roubo na aldeia ou uma disputa de terras, mas em geral levavam uma tranquila vida em comum porque não se verificavam muitos crimes naquela parte do mundo. Também receava que os assassinos voltassem a atacar e que outra pessoa fosse morta sem motivo aparente. Contudo, ao pensar no assunto, compreendeu subitamente que o que mais receava era o modo como isso o poderia afectar. Tinha perfeita consciência de que o marido ocupava uma posição de responsabilidade e orgulhava-se por ele a ter conseguido alcançar. Não o impediria de tentar atingir qualquer ambição que acalentasse, contentando-se em tomar conta da filha e em criar a família que ambos desejavam, mas enervava-a que aquelas mortes o estivessem a consumir com tanta violência. Parecera tornar-se mais introspectivo desde que o assassínio tivera lugar, meditava constantemente sobre as implicações do mesmo enquanto se afastava dela, ou pelo menos assim lhe parecia. Aquele estado de espírito desapareceria com a captura dos assassinos? Não o sabia dizer. Agora, tudo o que desejava era ver o assunto arrumado para poderem esquecê-lo e mudarem-se para a nova casa, mas não tinha a certeza de o marido o conseguir fazer até capturar os responsáveis.
Simon virou-se quando Hugh se aproximou e reparou que a mulher o observava. Sorriu rapidamente e disse:
- Bom, vamos andando, para ver se comemos qualquer coisa.
Baldwin Funrshill avançava lentamente, na companhia do mastim, ao longo do caminho que dava acesso à sua casa. A morte do irmão deixara-o com um considerável canil para gerir e era agora responsável por cerca de 20 cães, bem como pelas propriedades.
Era uma sorte sempre ter gostado de cães, pensou. Uma das provações por que passara nos últimos anos fora a forçada ausência de um cão, não porque tivesse saudade das caçadas - embora gostasse tanto de uma boa perseguição como qualquer outro homem -, mas pela falta do afecto. Era maravilhoso ver os olhos de um desses animais a iluminarem-se e a felicidade a espalhar-se pelo focinho preto perante o súbito aparecimento do dono. Agora que continuava sozinho e ansiava por um companheiro, os cães podiam oferecer-lhe, no mínimo, a sua pouco complicada adoração que nada exigia em troca.
Afagou o pêlo áspero e castanho-claro do enorme mastim que seguia a seu lado. Encontrava-se na casa havia pouco tempo mas aquela cadela parecia já se ter ligado a ele. Tinham-lhe dito que o animal fora muito dedicado ao irmão e que ficara inconsolável quando este morrera. Dera focinhadas ao corpo caído no chão e ganira até compreender que o dono morrera, para logo se sentar ao lado dele e uivar de desgosto para o céu.
Porém, quando o novo Furnshill chegara a casa a cadela parecera aperceber-se imediatamente de que aquele era o seu novo senhor. Baldwin tivera a sensação de que o animal transferira todo o afecto e lealdade para ele logo que o vira pela primeira vez. Talvez porque o animal tivesse reconhecido, algures nas profundezas da sua inteligência canina, que se tratava do irmão do seu favorito morto, ou porque possuísse algumas semelhanças familiares de que o cão se dera conta. Fosse qual fosse a razão, sentira-se grato por aquela aceitação imediata, como se esta, de certo modo, demonstrasse a legitimidade do seu direito às propriedades. Começara a gostar rapidamente daquele focinho feio e enrugado, sempre aberto e a pingar, e dos calmos olhos castanhos. Não precisara de muito tempo para se habituar ao facto de que, para onde quer que fosse, dentro de casa ou no exterior, a cadela nunca se encontrar a mais de umas dezenas de centímetros de distância como se necessitasse de ter constantemente a certeza de que o novo dono não desaparecera.
O caminho de acesso a sua casa permitia que Baldwin tivesse uma visão de quase dois quilómetros para o sul, pelo que avistou Simon e o pequeno grupo quando ainda se encontravam a uma grande distância. Ficou a observá-los a subirem a vertente com todo o vagar.
Em geral mostrava-se reservado e cauteloso para com os estranhos e era-lhe difícil confiar nas pessoas. Precisava de muito tempo para desenvolver sentimentos de amizade por alguém. A vida de um guerreiro era dura e perigosa, em especial quando já não se dispunha da protecção de um senhor. Para além disso, tinham-lhe acontecido demasiadas coisas para que pudesse aceitar as pessoas pelo seu valor facial até as conhecer realmente bem. Por isso, e mesmo nesse caso, era seu hábito repelir todas as tentativas de estabelecimento de laços de amizade.
Porém, com o almoxarife, a sua desconfiança natural enfraquecera e o facto dava-lhe um sentimento de preocupação desconfiada. Esboçou uma careta e perguntou a si mesmo se tal se deveria ao facto de já ter uma base estável, de possuir finalmente uma casa depois de tantos anos a vaguear pelo mundo. Ou estaria a ficar mole? Sentir-se-ia demasiado velho para a vida de um cavaleiro e andaria em busca de amigos? Sabia que era possível, mas duvidava. Pressentia que o facto se devera à óbvia honestidade e honra de Simon. Encolheu os ombros e cerrou os maxilares numa atitude de determinação, com a cicatriz a tornar-se muito mais viva na sua face. Não interessava! O passado não lhe permitia abrir-se com o almoxarife, nem lhe poderia dar pormenores sobre a sua vida. Era impossível. Até um amigo íntimo consideraria difícil ignorar um passado como o dele. E um conhecimento recente, como Simon? De modo nenhum... pelo menos por enquanto.
Deu uma palmadinha na cabeça da cadela e encaminhou-se de volta a casa quando o grupo já se aproximava, com o mastim a caminhar, pesado e satisfeito, mesmo junto aos seus calcanhares. A seguir, como se tivesse decidido gozar a vida e garantir a satisfação dos convidados, o rosto moreno abriu-se-lhe num grande sorriso. Abriu os braços e gritou uma saudação:
- Bem-vindos!
As feições de Simon aligeiraram-se com um leve sorriso. Era impossível não se sentir bem com um anfitrião tão obviamente deliciado por os ver. Quando o almoxarife desceu finalmente do cavalo foi para ver a sua mão apertada com toda a firmeza ainda antes de poder ir ajudar a esposa a desmontar.
- Bem-vindo, Simon. Bem-vinda seja, Sra. Puttock! - disse Baldwin com um grande sorriso que punha à vista os dentes pequenos e quadrados. Todavia, as linhas de preocupação no rosto de Simon não escaparam à sua atenção, pelo que o almoxarife notou os primeiros sinais de uma testa ligeiramente franzida, rapidamente substituídos por um aceno seco, como que para confirmar a si mesmo que interpretara as mudanças na disposição do amigo e guardava esse conhecimento para futura referência antes de se virar para a sua mulher.
- Minha senhora, sou um seu servo... - Fez uma vénia profunda, dando força às palavras com a acção. Margaret sorriu quando Simon a ajudou a descer do cavalo, e acenou para o cavaleiro com uma expressão ligeiramente divertida enquanto examinava o novo amigo do marido.
Era claro que se tratava de uma pessoa que não passara a sua vida na região. A pose erecta e orgulhosa, os olhos escuros e brilhantes e a pele trigueira indicavam uma vida passada em terras muito mais para o sul, onde já lhe tinham dito que o Sol era mais quente. Achava-o estranhamente intrigante por causa do rosto quadrado e sério, com um olhar intenso, e compreendeu os motivos para que o marido parecesse tão fascinado por aquele homem. No entanto, havia um pensamento incomodativo no fundo da sua mente: o cavaleiro fazia-a recordar-se de alguém... Baldwin pareceu sujeitá-la a um cuidadoso escrutínio e Margaret recordou-se...
Nos tempos da sua juventude era costume haver uma procissão anual de peregrinos à igreja de Crediton para uma visita ao santuário de São Bonifácio, o famoso missionário que levara o cristianismo aos povos germânicos... e fora numa dessas procissões que vira um homem parecido com Baldwin.
Tratava-se de um monge, um homem santo com um manto branco, alto e com um aspecto forte. Falava com um forte sotaque que lhe chamara a atenção quando o ouvira cantar. Caminhava à cabeça da procissão e despertara-lhe a curiosidade. Interessada, e querendo saber como era o seu rosto, seguira a fila de peregrinos sujos e esfarrapados a alguma distância, sempre à escuta dos cânticos. Por fim, fascinada com aquele estranho, correra para a frente do grupo para o poder ver com mais clareza.
Na altura, pensara que aquele deveria ter sido o aspecto de Jesus. O monge não era como os homens magros e débeis que por vezes via na igreja ou na capela, e tinha o aspecto de um guerreiro. Usava uma grande espada pendurada no pesado cinto de couro e os braços eram claramente visíveis enquanto mantinha a cruz de madeira bem alta, o que fazia com que o tecido da túnica de mangas curtas escorregasse e pusesse à vista os enormes bíceps. De certeza que não fora a trabalhar a terra ou a partir lenha que aqueles braços se tinham tornado tão fortes. Haviam sido criados para servir a Deus na guerra, combatendo contra os heréticos e os não crentes. Aquelas ideias tinham-lhe surgido na mente quando o vira a caminhar para ela com os olhos fixos no horizonte distante, como se estivesse em transe e não pertencesse a este mundo. Fora como se tivesse descido do céu para erguer as massas e que muito em breve para lá regressaria.
A seguir, Margaret começara a sentir um vago medo do monge e pensara em afastar-se para que a procissão seguisse o seu caminho, mas o homem olhara para ela e piscara-lhe um dos olhos. Fora uma coisa tão inesperada que ficara de boca aberta. Olhara-o tão obviamente espantada que o monge quase rebentara em gargalhadas e parecera ter de fazer um esforço para se conter. Todavia, quando prosseguira o seu caminho, voltara a piscar-lhe um dos olhos e ficara com um sorriso estampado no rosto - Margaret tivera a certeza disso -, até o perder de vista.
O cavaleiro severo mas gentil que estava agora na sua presença provocava-lhe a mesma sensação. Possuía um rosto igualmente trigueiro e quase assustador, mas ali, ao dar-lhes as boas-vindas, via-lhe a mesma predisposição para o bom humor e para a alegria que notara no líder dos peregrinos havia já tantos anos. Apercebia-se das linhas de dor que Simon lhe descrevera, mas não lhe pareciam tão pronunciadas como esperara a partir do que o marido lhe contara.
Margaret sorriu, aceitando o ar de franca aprovação do cavaleiro, e Simon ficou satisfeito ao ver que a esposa ficara tão encantada com o cavaleiro como ele próprio.
- Minha senhora, o seu marido não lhe dá o devido crédito quando a descreve. Deixemo-lo aqui e entremos... - Dito aquilo, tomou-a pelo braço e conduziu-a para a casa enquanto berrava pelos servos para que aparecessem e se ocupassem dos cavalos.
Entraram todos para o salão principal - com Hugh a segui-los com uma expressão de desconfiança -, e depararam com uma mesa quase completamente oculta pelos pratos cheios de comida. O mastim afastou-se para se ir deitar confiantemente em frente da lareira. O dia ainda não começara a escurecer e a sala estava iluminada tanto pelo sol que entrava pelas janelas do lado ocidental como pela chamas da lareira, que se encontravam rodeadas por toda uma variedade de tachos e panelas. Havia um pequeno borrego a assar num espeto em frente das chamas, que estava a ser vigiado pelo sombrio e zeloso Edgar. Baldwin serviu-lhes canecas de cerveja quente e adoçada ainda antes de se sentarem e insistiu numa saúde à nova vida que Simon e Margaret iriam ter em Lydford. Até o próprio Hugh começou lentamente a aliviar a sua habitual carranca ante a hospitalidade do anfitrião.
- Aparentemente, já começas a sentir-te bem no teu novo lar, Baldwin - acabou Simon por comentar quando todos se encontravam sentados.
Baldwin fez um gesto vago, deu uma palmada na cabeça da cadela quando esta se instalou a seu lado e sorriu para o animal.
- Sim, é maravilhoso estar de volta e já me sinto como em casa.
- Mesmo depois de tantas viagens?
- Oh, vi muitos outros países, mas não há lugar melhor do que aquele em que nascemos. Para mim, este é o melhor país para se viver.
- Nesse caso, por onde andou, senhor, e o que fez? - perguntou Margaret.
- Andei por todo o mundo conhecido, minha senhora. Estive em França, na Espanha e até em Roma. Deve recordar-se que viajei durante muitos anos. Saí daqui há mais de 25 anos e nunca mais parei.
- Deve ter visto muitas coisas estranhas.
- Oh, sim, mas nada tão estranho como algumas das paisagens que temos aqui, no Devon. Não há nada parecido com as nossas charnecas e fiquei muito surpreendido com esse facto ao longo das minhas viagens. Dartmoor é espantosa... e tem tantas facetas diferentes, a charneca propriamente dita, as florestas, as terras de cultivo, as areias movediças... Ontem fui dar uma volta e consegui chegar até Morentonhampstead. Já me tinha esquecido até que ponto esta terra é maravilhosa.
Simon inclinou-se ligeiramente para a frente.
- No entanto, de certeza que deves ter visto paisagens ainda mais magníficas nalguns dos países que visitaste, não é verdade? - inquiriu inocentemente, tentando fazer com que o cavaleiro falasse mais sobre as suas viagens.
- Oh, suponho que talvez o fossem, pelo menos para alguns... Contudo, para mim, poder parar nas colinas por cima de Drewsteignton e olhar para as charnecas com o vento a agitar-me os cabelos vale bem qualquer número de paisagens estrangeiras. Margaret, quer um pouco mais de borrego? Ou talvez de coelho?
O almoxarife suspirou para dentro. Era claro que o cavaleiro ainda procurava evitar conversas sobre as suas viagens, e que ficaria muito mais satisfeito se pudesse mudar de assunto.
- Já ouviu falar no assassínio, Baldwin? - inquiriu Margaret depois de se servir de mais comida. Simon levantou os olhos rapidamente.
- Claro que sim. Estive em Blackway com o Simon...
- Então e o assassínio do abade...?
- Abade? - perguntou o cavaleiro, olhando para Simon com um ar interrogador. - Oh, era por isso que não estavas por cá e me mandaste aquele recado!
- O Simon está encarregue da caça aos homens. Raptaram um abade na estrada quando viajava para a Abadia de Buckland com alguns outros monges, levaram-no para a floresta e queimaram-no numa fogueira a poucos quilómetros de Copplestone.
- Ah, sim? Não tenho dúvidas de que o Simon irá apanhar os responsáveis. - declarou Baldwin, virando um rosto inexpressivo para o almoxarife. Simon ficou certo de lhe ter visto um breve clarão nos olhos, mas desapareceu rapidamente e o cavaleiro pareceu desinteressado. Fez uma tentativa óbvia para mudar de assunto, passou um coelho assado ao almoxarife e perguntou: - Então, já sabes mais alguma coisa a respeito da morte de Brewer?
- Sim, fui lá e conversei com o couteiro. - Simon suspirou. Naquela noite não tinha grande vontade de se ver envolvido em discussões sobre as mortes e seria agradável poder descontrair-se pelo menos por umas horas. - O homem pensa ter visto alguém na floresta, no outro lado da estrada em frente à casa do Brewer. Foi na noite em que este morreu, mas não é capaz de dizer quem era nem a que horas o viu. Ah, também falei com a mulher do Ulton. Disse que o rapaz se foi embora cedo naquela noite, pelo que pode ter regressado a tempo à casa do Brewer...
Baldwin agitou-se, com a boca transformada numa linha fina e as sobrancelhas contraídas enquanto pensava.
- Por que iria o Ulton servir-se dela como desculpa para dizer que não se encontrava no local quando sabia que a mulher não iria mentir para o proteger?
- De certeza... - interveio Margaret, desmembrando uma galinha com elegância e lambendo as pontas dos dedos - que lhe teria pedido que o fizesse, não acham?
- Sim... se já soubesse que iria matar o Brewer naquela noite. Se planeasse matar o homem iria certificar-se de que a mulher concordaria em protegê-lo... Que pensas desse Cenred, Simon?
O almoxarife engoliu um bocado de carne e limpou a gordura da boca, ainda a segurar na faca.
- Achei-o honesto. Não me pareceu que estivesse a esconder qualquer coisa. Admitiu ter visto uma figura nas sombras, e disse que não tinha feito nada por ter ficado com medo...
- Com medo?
- Ora, por causa das velhas histórias sobre o Velho Crockern...
- Ah, sim, compreendo! Portanto, resta-nos esse tal Ulton. Vou ter de pensar nisso. Por que achas que...
- Baldwin... - interrompeu-o Simon pacientemente - vou andar muito ocupado com a morte do abade e não tenho tempo para me preocupar com um agricultor como o Brewer...
- Mas se o homem foi assassinado, então é preciso procurar o assassino! - declarou Baldwin com uma pequena careta. - Podia não ser uma pessoa de alto nascimento mas não deixa de merecer que o vinguem...
- Sim, mas tenho de começar por procurar os assassinos do abade. Na minha posição, a morte deste tem a prioridade.
- Compreendo. Sim, é claro - respondeu Baldwin, agitando a faca com um ar distraído. - De qualquer modo, esqueçamos as mortes e os assassínios. Margaret, mais um pouco de borrego?
Simon sentiu-se vagamente agradado. Não queria a noite estragada com conversas a respeito do assassínio. Não desejava discutir a caçada aos criminosos. Queria passar um bom bocado, sem ter de levar a miserável morte do abade para aquela sala, pelo que ficou aliviado quando o cavaleiro não expressou mais interesse pelo assunto. Baldwin encontrava-se claramente no seu elemento como animador das conversas e estava notavelmente bem informado a respeito de toda uma variedade de assuntos acerca dos quais Simon tinha, quanto muito, uma vaga consciência. Falava de algumas coisas com uma profundidade de conhecimentos que só podia ter origem nas suas experiências pessoais. Conversou sobre comércio, e sobre os navios que transportavam bens de Veneza e Roma até locais tão distantes como a Palestina. Era óbvio que as cargas o fascinavam, desde os panos de Gaza até às doçarias das velhas cidades junto à costa. Via-se que sabia muito a respeito de transportes e navegação, e contou-lhes histórias a respeito dos navios de guerra dos mercadores das cidades italianas e sobre o modo como comerciavam. Falou-lhes das grandes riquezas que esses homens amontoavam, mas depois, quase tão depressa como começara, calou-se de repente com um leve sorriso no rosto contorcido, como se sentisse a aproximar-se demasiado do seu próprio passado. A seguir começara a falar sobre os problemas com os Escoceses, no norte.
Simon ficou surpreendido ao descobrir que o cavaleiro parecia saber muito a respeito dos conflitos com os Escoceses. Desde que o irmão de Robert Bruce, Edward, se coroara a si mesmo como Rei da Irlanda - facto que ocorrera no princípio do ano -, que os exércitos britânicos haviam sido submetidos a toda uma série de provações que tinham acabado por levar ao cerco de Carrickfergus. Ao mesmo tempo, os Escoceses mantinham outros homens a assaltar os condados fronteiriços e até tinham conseguido chegar tão a sul como o Yorkshire, matando e pilhando durante todo o caminho. A voz profunda de Baldwin ganhou um tom solene quando descreveu os acontecimentos no norte e os olhos pareceram vidrar-se-lhe, como se a sua visão interior lhe permitisse ver as hordas que avançavam para o sul.
Houve uma coisa que o almoxarife achou estranha ao longo da noite e durante toda a refeição. Simon reparou que Baldwin bebia com muita moderação, o que o levou a franzir a testa de admiração. O servo do cavaleiro só enchia as canecas dos outros. Mesmo depois da luz do Sol já ter desaparecido e do servo cobrir a janela com uma tapeçaria, Baldwin continuou a beber pouco mais do que água e um ou outro gole de vinho ocasional. Simon tomou nota mental daquele facto. Parecia-lhe curioso, uma vez que toda a gente bebia cerveja ou vinho e que a moderação era um traço invulgar. Contudo, depois de ter bebido mais alguns copos, o almoxarife esqueceu-se do assunto e dedicou-se a aproveitar a generosidade do anfitrião.
Logo que saciaram a fome, Baldwin conduziu-os para junto do fogo enquanto o servo limpava os restos da refeição que haviam ficado sobre a mesa.
A mansão era de construção relativamente recente e possuía uma lareira junto à parede, com uma chaminé, que Margaret se descobriu a examinar com olhos especulativos. Na verdade, parecia-lhe que não fumegava tanto como a dela, onde o fumo se limitava a escapar-se pelas frinchas do telhado. Talvez fosse uma boa ideia para a sua própria casa. Como seria a lareira do castelo de Lydford?
Simon e Hugh transportaram o banco para a lareira e o almoxarife sentou-se de costas para a parede, com a esposa a seu lado. Entretanto, Hugh afastou-se na direcção de outro banco, deitou-se e pouco depois já ressonava, parecendo um cão a dormir depois de uma refeição. Iniciada a arrumação da mesa, Baldwin puxou a sua própria cadeira baixa para junto da lareira e sentou-se, com os olhos a brilharem enquanto olhava para as chamas, embora os levantasse de vez em quando para observar o servo que arrumava os pratos.
Parecia estranhamente nobre, pensou Margaret, sonhadora, enquanto via Baldwin a tomar um pequeno gole de vinho. Nobre e orgulhoso como um Rei, a preguiçar com um cotovelo apoiado no braço da cadeira enquanto observava a lenha que ardia, e o outro pousado no colo, a segurar no vinho. Ficou satisfeita ao verificar que a expressão dolorosa e meditativa a que Simon se referira depois de se terem encontrado pela primeira vez em Bickleigh parecia ter desaparecido, para ser substituída por uma outra de calma interior. Instintivamente, teve a certeza de que isso se devia, pelo menos em parte, ao facto de estar novamente em casa, de ter regressado à terra que tão claramente amava, e de se encontrar agora no condado em que nascera e na residência que conhecia tão bem. No entanto, não conseguia deixar de perguntar a si mesma por que motivo aquele homem mostrava uma tão grande aversão a falar dos tempos que passara no estrangeiro.
Escutou e observou os dois homens que conversavam em tons baixos, sentindo o calor do fogo a penetrar-lhe nos ossos enquanto os examinava aos dois. Simon tinha aquela expressão tranquila e calma que conhecia tão bem, a expressão que usava quando estava descontraído e à-vontade. Permanecia sentado com a cabeça um pouco chegada para a frente, quase como se estivesse prestes a dormitar, com uma das mãos a apoiar a cabeça e outra a agitar-se de vez em quando no ar para salientar um qualquer ponto de vista.
Era óbvio que o anfitrião também se encontrava em paz. O rosto trigueiro mantinha-se parado e descansado enquanto olhava para as chamas com um pequeno sorriso, acenando de vez em quando numa reacção aos comentários de Simon. Porém, mesmo apesar de estar tranquilamente sentado, fazia com que Margaret pensasse num gato. Tinha a mesma graça felina, a mesma aparente prontidão para, se necessário, entrar repentinamente em acção.
Os dois homens tagarelavam inconsequentemente, com os rostos iluminados pelo fogo e pelas velas. O cavaleiro era um bom ouvinte e Simon descobriu-se a falar cada vez mais sob os suaves incitamentos do anfitrião, descrevendo o orgulho que sentia pela sua nova posição, o desejo de mais filhos, em particular de rapazes, bem como as esperanças e os sonhos para o futuro. Muito em breve já a própria Margaret cabeceava sob o efeito hipnótico do calor e do murmúrio das vozes, até ao momento em que achou que o peso da cabeça se tornara insuportável. Encostou-a ao ombro de Simon e a sua respiração tornou-se mais lenta e profunda quando cedeu à exaustão e começou a dormitar. Simon passou-lhe um braço em volta dos ombros e segurou-a enquanto falava, continuando a olhar para o fogo. O servo de Baldwin regressou depois de concluir a arrumação da mesa e parou junto à porta. Estava aparentemente descontraído mas quando Simon o olhou ficou com a ideia de que o homem continuava alerta, como um guarda de serviço. O almoxarife encolheu os ombros para si mesmo.
- Então, Baldwin, que irás fazer agora que estás em casa? Vais começar imediatamente em busca de uma esposa?
O cavaleiro acenou, muito sério, sem tirar os olhos das chamas.
- Sim, gostaria de me casar em breve, se puder. Sou como tu, Simon. Quero poder deixar a minha casa e os meus bens a um filho. Já viajei o suficiente e agora só me resta o desejo de descansar. Quero terminar os meus dias em paz, a cuidar das pessoas que vivem nas minhas terras e sem ter de voltar a viajar para muito longe.
- Até parece que as tuas viagens foram uma má experiência.
- Ah, sim? - Pareceu genuinamente surpreendido. - Nem por isso! Não me arrependo das minhas viagens. Tinha de tomar uma decisão quando o meu irmão herdou as terras do nosso pai e pareceu-me melhor abandonar a área. Ao princípio até foi agradável. Muito agradável... - Sorriu perante as recordações mas a expressão de satisfação desapareceu rapidamente e o rosto alterou-se-lhe, tornando-se moroso e pensativo. - Todavia, as coisas modificam-se. Quando se é um cavaleiro sem um senhor não se é nada, apenas um braço com uma espada... e por vezes nem sequer se consegue manter a espada. - O tom de voz era amargo.
- O teu senhor morreu?
Baldwin lançou-lhe uma olhadela rápida e desconfiada, mas depois sorriu como se troçasse da sua própria desconfiança.
- Sim, sim, morreu. Combatemos juntos na última batalha. Contudo, chega de infelicidades! - Levantou-se e espreguiçou-se lentamente, como se os seus ossos fossem de ferro e estivessem muito enferrujados por falta de uso. - Agora, vou para a cama, Simon. Vemo-nos amanhã de manhã. Espero que durmam bem. - Atravessou a sala e dirigiu-se para o quarto, com o servo a observá-lo silenciosamente antes de se dirigir para o seu próprio alojamento, do outro lado da sala.
Os olhos do almoxarife seguiram a alta figura do cavaleiro, mas a seguir levantou-se, segurou na esposa com cuidado e deitou-a no banco. No caso de haver ratos era melhor que se mantivessem longe das palhas que cobriam o chão. Foi buscar outro banco à mesa, colocou-o junto dela e deitou-se nele, instalando-se confortavelmente. Ficou a olhar para o fogo, à espera que o sono o reclamasse. Contudo, enquanto observava as chamas, não conseguiu libertar-se de uma pergunta incomodativa. Por que estaria Baldwin tão ansioso por evitar todas as conversas a respeito do passado?
Surgiu-lhe um novo pensamento precisamente quando a sonolência começava a invadi-lo e sentia os olhos a pesarem-lhe sob os efeitos soporíficos do vinho. Por que se mostrara desinteressado a respeito da morte do abade, um acontecimento que pusera as línguas a badalar em toda a região, e continuava interessado na morte de Brewer? Simon censurou-se a si mesmo por ser tão desconfiado, rolou para um lado e adormeceu.
De manhã, Simon acordou e descobriu que o Sol já emitia feixes de luz que penetravam pelas janelas, cujas tapeçarias se encontravam abertas. Margaret e Hugh já deveriam estar a pé, uma vez que se encontrava sozinho na sala. Levantou-se, um pouco rígido, dirigiu-se ao poço, fez subir um balde de água e despejou-o sobre a cabeça. Estremeceu e soprou sobre o choque do frio mas ficou grato por este o ter despertado imediatamente.
Começava a descobrir que se sentia mais lento e velho cada vez que acordava de manhã depois de uma boa refeição. Tinha consciência de que o pai se queixara do mesmo problema mas não esperara que aquela sensação lhe surgisse tão depressa, ainda antes dos 30 anos. Agora, enquanto examinava a paisagem através dos olhos semicerrados, concluiu que se sentia pior do que era costume. A barriga mostrava-se turbulenta, os ácidos do estômago fervilhavam e estavam prontos para lhe atacar a garganta e tinha a cabeça tão pesada como se estivesse cheia de chumbo. Para além disso, sofria de uma espécie de pulsar surdo por trás dos olhos, como se tivesse um pequeno exército de mineiros a abrirem-lhe buracos no crânio. Quanto à boca... Deu um par de estalos experimentais com os lábios e estremeceu. Não, era melhor não pensar na boca.
Simon caminhou lentamente junto a uma das paredes laterais da casa, até um tronco de carvalho que estava à espera de ser cortado para a lareira. Sentou-se com cuidado, de modo a poder ficar a olhar para o caminho de acesso à mansão enquanto tentava pôr os pensamentos em ordem, recuperar o controlo sobre o corpo e deter o leve tremor das mãos.
Ainda se encontrava sentado, a olhar para a paisagem, quando Baldwin saiu de casa, sorriu e avançou para se sentar a seu lado.
- Como estás, nesta bonita manhã? Vamos ter um belo dia, não é verdade?
Simon espreitou-o por entre os olhos semicerrados.
- Sim... - murmurou. - Está muito brilhante, não está? O cavaleiro riu-se com vontade.
- Também me costumava sentir assim depois de beber demasiado. Aprendi a beber com moderação e livrei-me desse sofrimento. Devias experimentar fazer o mesmo!
- Se não te importares, prefiro beber mais um pouco de vinho. Talvez me ajude a conservar a cabeça em cima dos ombros - retorquiu Simon, que estremeceu quando a sua frase provocou uma nova rajada de gargalhadas.
Caminharam de regresso ao interior. Os servos já tinham colocado comida sobre a mesa, Margaret estava sentada e debicava de um prato cheio. Era como se estivesse com pouco apetite e comesse mais para demonstrar a sua gratidão pela comida que lhe tinha sido oferecida do que por desejo ou necessidade. Simon sorriu, não obstante a ressaca. Reconheceu a expressão no rosto da mulher. Significava que estava irritadiça e que a cabeça dela doía mais do que a dele. Lembrou-se de uma coisa e estremeceu: como se iriam sentir quando Edith lhes desse as suas animadas boas-vindas? Era natural que se mostrasse ruidosa depois de ter passado toda a noite com uma das criadas. Margaret mantinha-se muito quieta, com o rosto tão pálido que parecia transparente. Simon teve a sensação de que podia colocar uma vela acesa do outro lado da mulher e veria a chama através da cabeça de Margaret.
Sentou-se a seu lado e descobriu que o mundo, apesar da sua sensação de fragilidade, começava a ter melhor aspecto depois de alguns goles de vinho acompanhados por bocados de borrego frio e de pão.
A refeição estava a chegar ao fim quando ouviram um cavalo a aproximar-se. Soaram vozes no exterior e Baldwin ficou na expectativa. O visitante entrou pouco depois. Simon ficou tão surpreendido que quase deixou cair o pão. Era Matthew, o monge.
Embora ainda sentisse a ressaca e a necessidade de um bom galope ao ar livre para limpar o nevoeiro que lhe cobria a mente, Simon apercebeu-se com facilidade das emoções que se perseguiam umas às outras no rosto do homem. O monge começou por avançar rapidamente, com os olhos firmemente postos no cavaleiro. Simon ficou quase certo de discernir expressões de acusação e de ira, mas que pareciam estar a lutar contra as dúvidas e a confusão. Era quase como se soubesse que o cavaleiro fizera qualquer coisa mas não tivesse uma certeza absoluta. Por qualquer razão que não conseguiu entender, a expressão do monge provocou-lhe um arrepio gelado, numa espécie de aviso que pareceu apunhalar-lhe o coração e que o colocou imediatamente em guarda.
Porém, no preciso momento em que deu por aquela expressão, o monge reparou nos convidados e abrandou o passo, como se lamentasse ter entrado agora que vira o almoxarife. Porém, depois de uma resolução quase palpável, acelerou novamente os passos e avançou para eles com um ar de prazer circunspecto.
- Sir Baldwin... - disse, quase como se falasse para com um igual, o que levou Simon a franzir a testa numa surpresa momentânea - um bom dia para si. As minhas desculpas por lhe ter interrompido o pequeno-almoço.
Baldwin levantou-se com um alegre sorriso de boas-vindas e fez sinal ao monge para se sentar.
- Por favor, junta-te a nós, irmão. Comes qualquer coisa?
- Não, muito obrigado - disse o monge, sentando-se na frente de Simon. - Almoxarife, receio ter más-notícias para si.
Simon levantou uma sobrancelha.
- Porquê? Que notícias são essas?
- A noite passada, um dos seus homens passou por Clanton Barton e perguntou por si. Parece que não tiveram êxito na busca dos responsáveis pelo rapto do abade, mas descobriram que ontem ocorreu um novo ataque perto de Oakhampton. Afirmou que alguns viajantes haviam sido mortos, embora outros tivessem escapado. O vosso regedor foi para a cidade e pediu que o senhor fosse ter com ele. Receio que tenham morrido mais pessoas na estrada, almoxarife.
Simon abafou uma praga, deixou cair a cabeça sobre as mãos e tentou coordenar os pensamentos. Todavia, quando falou fê-lo com uma voz forte e decidida.
- Esse homem disse onde foi o ataque?
- Sim, ao que sei foi perto de Asllbury, a oeste de Oakhampton.
- E o ataque foi semelhante? - Simon levantou a cabeça e observou o monge atentamente. - Isso quer dizer que foram feitos mais reféns, ou que houve mais gente queimada?
O monge devolveu-lhe o olhar por instantes. Depois, como se os seus olhos tivessem estado presos por uma corda que rebentasse de repente, desviou-os e respondeu com uma voz baixa e perturbada.
- O mensageiro afirmou que morreram pessoas, algumas das quais queimadas nas suas carroças... e também levaram mulheres.
- Disse quantos terão sido os responsáveis?
- Não. Lamento, almoxarife. É tudo o que sei, excepto que o regedor pediu que organize um grupo de perseguição o mais depressa possível.
Simon levou Margaret e Hugh consigo para irem buscar os cavalos enquanto Baldwin berrava ordens por trás deles e chamava dois dos seus próprios homens para os acompanharem, para depois os seguir para a luz do exterior com o monge a seu lado.
- Dois será o suficiente? - perguntou o cavaleiro. - Posso tentar arranjar mais se precisares deles, Simon.
- Não, dois está muito bem. Podes enviar alguém à quinta do Black por mim? Evitava que tivesse de mandar um dos meus.
- Sim, claro.
- Óptimo. Ele que informe o Black a respeito dos assaltantes e lhe peça para organizar um novo grupo e para ir ter comigo a Copplestone dentro de quatro horas. Seguiremos para Oakhampton logo que possível.
Simon montou o cavalo, teve uma súbita ideia e incitou a montada a avançar até onde Matthew se encontrava, junto à porta. O monge parecia exibir uma expressão de tristeza, de infelicidade fatigada, como se já tivesse visto demasiados acontecimentos daquele tipo ao longo da vida e se interrogasse sobre quantas mais vezes teria de assistir à partida de um grupo em perseguição dos fora-da-lei. Simon falou num tom lento e baixo, para que Margaret não o ouvisse, e perguntou:
- Matthew, sabe por que motivo Tanner, o regedor, quer que eu vá ter com ele tão depressa? Se o ataque foi a oeste de Oakhampton, de certeza que as pessoas da cidade podem tratar do assunto, não é?
- Sim, almoxarife... - respondeu o monge, com um rosto perturbado quando olhou para Simon - mas ele receia que os fora-da-lei avancem para Crediton. Pensa que, quem quer que seja o responsável, possa estar a vir nesta direcção.
Era incrível a diferença que um cavalo e dinheiro podiam fazer, pensou Rodney quando abandonou a pousada. No espaço de apenas alguns dias passara da fase em que estivera sem dinheiro e com um cavalo moribundo, para outra em que tivera de andar a pé, para agora se encontrar numa posição em que se podia permitir uma cama, comida e um estábulo para o animal. A sua nova égua parecia satisfeita e completamente recuperada do que quer que a aterrorizara. Pelo seu lado, Rodney comera bem e dormira melhor, e só tinha uns quantos dias de viagem pela frente até poder estar com o irmão. Agora, na verdade, a vida parecia-lhe muito mais interessante.
Novamente a cavalo, saiu lentamente da pequena aldeia de Inwardleigh e virou a cabeça da montada para oeste. O dia estava brilhante e claro, o vento transformara-se numa brisa suave e até a égua parecia sentir a excitação e a alegria da sua vida renovada. Era quase como se existisse uma empatia entre eles e a égua pudesse sentir a sua felicidade, ou talvez porque também sofrera e gozava a mesma libertação que a segurança e o conforto lhe tinham dado.
A estrada começou por o levar para uma vertente íngreme, até um planalto quase despido de árvores. O Sol por trás dele lançava a sua sombra, como uma flâmula, e fazia-a esticar-se na sua frente.
Gradualmente, começou a sentir que os olhos lhe pesavam à medida que cavalgava. As oscilações da montada produziam-lhe o efeito de um narcótico e as pálpebras fechavam-se-lhe enquanto olhava para a estrada que desaparecia à distância. Não valia a pena tentar concentrar-se, os pensamentos concentravam-se todos no conforto da barriga cheia, só tinha sentimentos para o calor do Sol nas suas costas e para o bambolear soporífico da égua.
De vez em quando a égua dava um solavanco que fazia com que os olhos se lhe abrissem e a cabeça se lhe endireitasse com o súbito sobressalto, mas os movimentos balouçantes voltavam a apoderar-se dele, a cabeça balouçava e caía até que o queixo lhe batia no peito e os olhos se lhe fechavam, com o ritmo lento a acalmá-lo com o seu bálsamo hipnótico.
Recordou-se que as coisas também tinham sido assim durante a cavalgada para Bannockburn. Estavam todos extremamente cansados depois das longas jornadas, cavalgavam meio adormecidos havia já vários dias, com pouco em que pensar ou com que se preocuparem, e nada mais para além do contínuo movimento ondulante do cavalo por baixo deles enquanto planeavam o que iriam fazer depois da batalha que se preparavam para vencer. No fim de contas, que poderiam os Escoceses fazer? Nem sequer se encontravam em posição de derrotar as forças concentradas da Inglaterra, os soldados que haviam vencido o País de Gales, que tinham feito a guerra contra a França e que também já haviam vencido os Escoceses. Que poderiam eles fazer?
Contudo, tinham-nos vencido. O exército do Rei Eduardo estava exausto quando chegara à estrada de Falkirk para Stirling. Era formado por quase 20000 e excedia os escoceses na proporção de dois para um. O inimigo começara a avançar para eles e Rodney recordava-se de que o amo do seu senhor, o Conde de Gloucester, aparecera e dera a ordem de avançar: "Em frente, homens, em frente!"
Subiu-lhe um sorriso aos lábios ante a recordação. Ah, como haviam cavalgado! Fora como uma vaga oceânica, uma avalancha, uma gloriosa e inexorável torrente de humanidade e de carne de cavalo, martelando o solo e transformando-o num lamaçal, numa magnífica cavalgada ao encontro do inimigo!
Contudo, o sorriso apagou-se-lhe e morreu quando se lembrou que os seus amigos e o conde tinham morrido no campo de batalha.
Os escoceses estavam prontos para os receber. A carga com os enormes cavalos de batalha perdera o impulso nas suas lanças. Tinham-se escondido por trás de um grande número de buracos cavados para fazerem cair os cavalos e encontravam-se a salvo no interior dos recintos oblongos que haviam montado com os escudos. Os cavaleiros nada tinham podido fazer para alcançarem os Escoceses que troçavam deles e haviam sido obrigados a retirar na frente de uma carga da cavalaria escocesa.
Mesmo assim, talvez tivessem sobrevivido se não se levantasse aquele clamor. Alguém vira homens a correrem para as linhas escocesas e pensara que deveriam ser reforços. A retirada transformara-se numa debandada, com os cavaleiros e os escudeiros a tentarem fugir o mais depressa que podiam antes dos escoceses os alcançarem, e fora por isso que haviam sido apanhados nos pântanos junto ao Bannock. Os arqueiros escoceses tinham-se apercebido rapidamente da sua oportunidade ao vê-los a debaterem-se na lama espessa e nas águas do rio.
A cavalaria, apanhada na armadilha daquele solo, nada pudera fazer. Tentara escapar-se, olhara com horror para os amigos que iam caindo e forçara as montadas a procurar um caminho que lhe permitisse escapar à infelicidade da morte certa que os perseguia... poucos o tinham conseguido.
Rodney fora um desses poucos. Alcançar a outra margem na companhia do seu senhor e ambos se tinham virado para verem o que se passava do outro lado. Era uma cena do Inferno, com os soldados de infantaria dos escoceses a saltitarem no meio da cavalaria, apunhalando as barrigas dos cavalos para que se empinassem e fizessem cair os cavaleiros, cujos corpos eram despedaçados e espetados logo que se encontravam no solo. Agrupavam-se em volta de qualquer cavaleiro que tentasse resistir, empurravam-no com as suas compridas lanças e lançavam-se sobre ele para o coup de grace quando o tinham no chão, indefeso.
Rodney regressara ao acampamento muito calado e chocado. Eram tão poucos os que haviam sobrevivido, os que tinham conseguido fugir àquela multidão...
Para ele, continuava tudo muito claro, inclusive o sangue no rio quando os Escoceses tinham lançado o corpo decapitado de Alfred, o seu jovem escudeiro, que flutuara lentamente entre as duas margens deixando escapar uma grande mancha avermelhada. Os gritos, as gargalhadas, o modo como as facas ensanguentadas subiam e desciam, pingando o sangue da vida dos homens caídos...
- Bom dia, senhor! Para onde vai?
A cabeça de Rodney endireitou-se de repente. Para seu grande horror, compreendeu que cavalgara até ao meio daquelas pessoas sem sequer ter dado por elas. Estivera a dormir? No mínimo, devia ter mantido os olhos fechados.
A seguir viu as facas e as espadas desembainhadas, reparou nos olhos muito abertos e nos sorrisos enquanto os homens o examinavam, avaliando o seu valor como presa.
Estavam de regresso a Sandford antes do meio-dia. Simon e Hugh correram imediatamente para casa em busca de provisões. Margaret ficou no exterior e segurou os cavalos por instantes, mas a seguir aceitou com gratidão a oferta de um dos homens de Baldwin, entregou-lhe as rédeas e seguiu os homens para o interior.
Estava cansada por causa da noite anterior e da rápida cavalgada de regresso a casa, e esse cansaço servia para aumentar ainda mais os seus sentimentos de preocupação. Não receava apenas pelo marido, porque teria a protecção dos homens do grupo e estaria a salvo. Não, o seu maior medo era o efeito que os fora-da-lei iriam ter naquela área. Ouvira, da boca de outros, o modo como os pequenos bandos de fora-da-lei haviam devastado áreas mais para o norte, como tinham roubado viajantes, assassinado e violado mulheres, atacando pessoas desprevenidas tanto nas estradas como nas suas casas. Era frequente, depois da chegada desses bandos, que as normas da lei e da ordem entrassem em colapso. Os ataques constantes e a possibilidade de se verificarem outros assaltos obrigavam as pessoas decentes e respeitadoras da lei a encerrarem-se em casa. Os assassinos impediam os mercadores e os agricultores de viajarem. Outras, demasiado pobres para pagarem resgates, eram em geral mortas enquanto os mercadores ricos eram frequentemente capturados e mantidos como reféns.
Atravessou a porta para a sala e sentou-se em frente da lareira. Ouvia os sons abafados e as pancadas provocadas pelo marido e por Hughh, que se abasteciam de comida e de água. Contudo, logo a seguir escutou um pequeno soluço que a fez virar-se rapidamente para a porta. Ali estava Edith, com um rosto enrugado e envelhecido pelo desgosto, para além de manchado pelas lágrimas. Margaret levantou-se rapidamente e foi ter com ela, agarrou-a e levou-a para a cadeira, mimando-a e murmurando baixinho. Sentou-se e balouçou a criança no colo, com os olhos a lacrimejarem de compreensão pelo sofrimento da filha.
- O papá vai-se embora outra vez, não vai?
- Sim, mas não irá estar fora durante muito tempo, Edith. Não precisas de te preocupar... - disse Margaret, pestanejando contra as lágrimas.
- Pode magoar-se! - gritou Edith. - Não quero que ele vá! - Deixou-se levar pelos soluços e Margaret, novamente dominada por um medo intenso, como se o terror da filha a tivesse recordado dos perigos, não conseguiu pensar em nada para dizer e sentiu-se vergada sob os seus próprios receios. Que poderia ela dizer? Que o pai estaria a salvo, que não demoraria muito tempo? Margaret estava demasiado consciente dos riscos para ser capaz de mentir convincentemente enquanto estivesse envolta no seu próprio medo. Sentaram-se juntas, em silêncio, com a criança a tremer e a chorar de ansiedade e Margaret a olhar para as chamas.
Simon surgiu pouco depois e parou à entrada para se despedir. Tinha um saco em cada mão e estava novamente equipado com a espada. Olhou para dentro da sala e sentiu-se quase embaraçado, como se tivesse interrompido uma conversa secreta entre a mulher e a filha. Sabia que era ele o responsável pelas lágrimas de Edith e não podia fazer nada para a consolar. Pousou os sacos no chão com cuidado e aproximou-se delas. A filha olhou para cima, com os olhos muito abertos de desespero, e Simon sentiu a respiração a prender-se-lhe no peito. Ajoelhou-se e rodeou as duas com os braços.
- O que foi? - perguntou, num tom suave, fitando os olhos de Margaret.
Foi Edith quem respondeu, com a voz a faltar-lhe enquanto engolia grandes golfadas de ar.
- Não quero que vás! Quero que fiques em casa!
- Não irei estar fora muito tempo, querida - respondeu. - Voltarei dentro de um par de dias, mais nada.
- Podes ficar magoado!
Soltou uma gargalhada curta e estendeu a mão para lhe afagar os cabelos.
- Vou ficar bem. Vou ter muitos homens para tomarem conta de mim.
A criança desviou a cabeça para evitar a mão do pai, escondeu a cabeça no ombro de Margaret e chorou baixinho. Simon largou-a com relutância, confuso ante a sua incapacidade para suster o fluxo das lágrimas, e ficou sentado sobre os calcanhares. Margaret olhou-o com um sorriso de compreensão e começou novamente a embalar a filha.
- Creio que será melhor adiarmos a mudança para Lydford... - acabou Simon por dizer - pelo menos até que este assunto fique resolvido. Podes dizer aos homens que somos forçados a adiar por uma ou duas semanas?
Margaret continuou a afagar e a embalar Edith enquanto o olhava com uma expressão interrogativa.
- Não sei de quanto tempo precisaremos para apanhar aqueles homens, pelo que talvez seja melhor esperarmos até estarem presos. Planearemos a mudança depois disso...
- Está bem, Simon. - A voz da mulher era calma e baixa. - Tem cuidado e apanha-os depressa. Ficaremos à tua espera. Não te preocupes connosco, vai, apanha-os e volta o mais depressa que puderes.
Simon acenou, levantou-se, beijou-a rapidamente e encaminhou-se para a porta. Pegou nos sacos, virou-se para sorrir para elas e foi-se embora.
Margaret só começou a chorar quando teve a certeza de que o marido saíra de casa.
Hugh já se encontrava a cavalo, ao lado dos dois homens de Furnshill, pelo que Simon amarrou rapidamente os sacos à sela e saltou para ela. Fez virar a montada e dirigiu-se para trás da casa, para a estrada de Copplestone.
Cavalgaram rapidamente e o almoxarife ignorou as pragas de Hugh. Tinha a mente ocupada com a organização do grupo de perseguição e no que iriam fazer quando chegassem a Oakhampton, pelo que o seu rosto manteve uma constante careta de concentração à medida que avançavam pelos caminhos. Seguiram a estrada ao longo da vertente e em breve desciam para Copplestone, onde se juntaram ao grupo principal, com cerca de 12 homens, reunido no centro da cidade. Black ainda não aparecera. Aparentemente, tomara a seu cargo a tarefa de cavalgar até às casas de todos os outros homens para os chamar para o grupo, e só apareceria mais tarde depois de o ter feito. Os homens mantiveram-se nos cavalos enquanto esperavam, e o proprietário da estalagem levou-lhes cerveja, o que deu a toda a cena um ar de festa, como se fossem grandes senhores a prepararem-se para uma caçada. Inicialmente, Simon chegou a preocupar-se com a possibilidade de alguns dos homens se embebedarem, mas a seguir concluiu que era improvável. Pareciam estar todos a falar e a rirem-se em tons demasiado altos mas bebiam a cerveja lentamente e Simon compreendeu que se sentiam nervosos e necessitavam da coragem que a bebida lhes dava, como se estivessem a preparar-se para uma batalha. Deixou-se ficar instalado na sela e observou-os.
Eram homens firmes e sólidos. Simon reconhecia-os a todos embora só conhecesse alguns pelo nome. Tratava-se, na sua maioria, de agricultores da zona, homens fortes, habituados à dureza do trabalho na charneca e às constantes mudanças do clima. As suas montadas não eram os grandes cavalos dos cavaleiros, mas sim os pequenos animais locais, muito resistentes e capazes de viajar durante quilómetros através das charnecas enquanto se alimentavam das ervas curtas que se encontravam por todo o lado, pelo que não precisavam de levar rações extra.
A espera estava a deixar os homens nervosos e irritadiços, como se quisessem despachar o assunto e voltar para as suas casas, mas não se tratava apenas do nervoso relacionado com o perigo pessoal e era visível que todos eles desejavam ajudar a capturar o bando. Havia uma tensão, uma excitação abafada nas suas gargalhadas e vozes, quase como se esperassem que a feira abrisse para iniciarem o divertimento do dia. Na verdade não receavam pela sua própria segurança e estavam ansiosos por se lançarem na séria tarefa da captura dos fora-da-lei para se livrarem do perigo que estes representavam, uma vez que esse mesmo perigo não afectava apenas os viajantes e era também uma ameaça para toda a região.
Quando os bandos apareciam numa área era vulgar que atacassem as casas mais isoladas, violando as mulheres e matando os homens. Os membros do grupo que se encontravam na praça sabiam o que se passara perto de North Petherton, onde várias quintas tinham sido destruídas por bandos de assassinos impiedosos. À sua maneira pragmática, tinham decidido que não iriam permitir a mesma loucura na sua área e estavam decididos a impedir que o bando sobrevivesse.
Black apareceu mais de uma hora depois de Simon e Hugh, à frente de um grupo de mais seis homens que reunira pelo caminho. Acenou com gravidade para o almoxarife quando entrou na povoação, cavalgou até à estalagem e aceitou uma caneca de cerveja, que despejou num único e longo gole. Limpou a boca com as costas da mão e incitou o cavalo a aproximar-se do almoxarife.
- Desculpe demorar tanto tempo, mas alguns dos homens encontravam-se nos campos.
- Não faz mal. - Simon olhou para o céu. - No entanto, está a fazer-se tarde. É melhor que comecemos a andar se queremos chegar até Oakhampton.
Black acenou e gritou para os homens. Lentamente, devolveram as canecas e colocaram-se em posição, pelo que em breve já todos estavam em marcha, não numa unidade organizada como uma matilha de lobos mas numa comprida linha de homens e cavalos, num grupo de indivíduos unidos pela necessidade comum de defesa contra a ameaça do bando de fora-da-lei. Simon e Black cavalgavam à frente, não por qualquer necessidade de liderança mas apenas para poderem marcar o andamento.
Cavalgaram a um bom ritmo e já tinham passado o caminho para Clanton Barton quando Simon se apercebeu de onde se encontrava. Virou-se e olhou para trás, para a quinta, fixando intensamente os edifícios como se pudesse penetrar nas paredes e ver os monges que se encontravam no interior, mas não havia sinal deles. Já teriam partido?
- Estive a pensar... - disse Black, a seu lado. - Acha que foi este bando que matou o abade? Ou antes, os homens que mataram o abade poderiam pertencer a este grupo? Seria uma vanguarda em busca de comida, que viu o abade e o matou por causa do dinheiro?
Simon virou-se e olhou para a estrada à sua frente com um rosto inexpressivo.
- Não sei. Espero que sim.
Continuaram a marcha num passo rápido. Já não seriam capazes de chegar a Oakhampton antes da noite e Simon contentava-se em cobrir a maior distância possível, descobrir um lugar para acampar e concluir a jornada na manhã seguinte. A estrada fazia-os passar por entre espessos bosques enquanto se curvava preguiçosamente em torno das charnecas e os conduzia cada vez mais para sul. A luz começou a diminuir quando Bow já se encontrava a cerca de cinco quilómetros para trás das costas e Black começou a procurar um local para o acampamento.
Por fim, quando a luz já se afundava a caminho da escuridão, encontraram um pequeno ribeiro e Black deu a ordem de paragem. Os cavalos foram postos a beber e peados em muito pouco tempo, após o que os homens acenderam fogueiras e instalaram-se, envolvendo-se nas capas ou cobertores logo que se sentaram para beberem e comerem antes de irem dormir.
Simon sentou-se um pouco afastado dos outros. O dia deixara-o exausto. A ressaca desaparecera, felizmente, mas todo o seu corpo se encontrava tenso e rígido das muitas horas passadas na sela e sentia-se como se tivesse envelhecido dez anos desde que saíra de Furnshill naquela manhã. Enrolou-se na capa, encostou-se a uma árvore não muito longe do ribeiro e pouco depois já estava a dormitar.
Na manhã seguinte levantaram-se antes da madrugada e ficaram prontos para a marcha quando o Sol ainda não tinha aparecido. Continuaram a jornada sob o frio cinzento do princípio de um novo dia, acompanhando as suaves vertentes da estrada que serpenteava no meio das árvores.
Tinham viajado menos de quatro quilómetros desde o acampamento quando Simon viu Black a franzir a testa e a olhar para a estrada à sua frente. Levantou a mão para deter todo o grupo e o almoxarife pensou ouvir o som de cascos que se aproximavam. Sentiu que Black o olhava rapidamente, após o que o caçador obrigou o cavalo a avançar mais um pouco. Simon seguiu-o com o rosto contraído, com os olhos postos na próxima curva da estrada e mão no punho da espada. Atrás deles, os homens permaneciam silenciosos e tensos, perguntando a si mesmos quem poderia estar a cavalgar a tanta velocidade àquela hora da manhã.
Não precisaram de esperar muito para verem aparecer um cavalo a descrever a curva da estrada, um pequeno animal malhado montado por um jovem que puxou as rédeas com força logo que deu pela presença do grupo. Os olhos do jovem percorreram os homens que se encontravam parados na sua frente com uma expressão sombria.
- Bom dia - disse-lhe Black. - Estás com muita pressa.
- Levo uma mensagem - retorquiu o jovem com secura.
- Para quem? Para onde vais?
O jovem fitou Black por instantes, para logo de seguida espreitar os homens que se encontravam por trás dele.
- Vou para Crediton.
Simon aproximou-se um pouco mais.
- Não precisas de ter medo de nós, meu amigo. Somos um grupo de perseguição a caminho de Oakhampton para ajudar a apanhar um bando de fora-da-lei.
O rosto do jovem irradiou alívio e as suas suspeitas desapareceram como pó limpo por um pano.
- Graças a Deus! Mandaram-me pedir que viessem e não sabia que já se encontravam tão perto! Pensei que fossem os fora-da-lei! Depressa, têm de voltar comigo, houve um ataque!
- Já sabemos e é por isso que estamos aqui. Deram-nos o recado a noite passada.
- A noite passada? Mas... o ataque foi na noite passada!
Houve um murmúrio de vozes ansiosas entre os homens, que se calaram quando Black se virou para trás e os olhou. Simon inclinou-se para a frente na sela.
- Onde? O que aconteceu? - perguntou, num tom urgente.
- Foi na noite passada, senhor, com um grupo da Cornualha que ia a caminho de Taunton. Encontravam-se a dez quilómetros de Oakhampton quando foram assaltados, roubados, e algumas das pessoas foram mortas. Duas delas conseguiram chegar à nossa quinta, uma mulher e um rapaz. A nossa casa não fica longe do local do ataque. Ainda lá estão. Disseram que os assaltantes estavam a ser perseguidos a oeste da cidade, pelo que o meu pai pensou que seria melhor eu ir a Crediton em busca de mais ajuda....
- Sim, sim, estou a ver... - disse Simon, meditativo. A seguir olhou para Black. - Este deve ter sido outro ataque.
- Sim - confirmou o caçador - e o Tanner pode ainda não ter ouvido falar nele. Podemos ser os que se encontram mais perto, mais à mão...
- Temos de lá ir para vermos o que podemos fazer!
Black encolheu os ombros e encarou o rapaz, que aguardava com uma ansiedade nervosa.
- A vossa quinta... fica a caminho de Oakhampton, a partir daqui?
- Sim, senhor.
- Então, leva-nos lá.
Começaram a cavalgar a trote. A ansiedade de todos eles aumentara agora que pareciam estar tão perto dos criminosos, e passou-se apenas uma hora até se verem na estrada lamacenta que conduzia à quinta.
Já à porta, o jovem saltou do cavalo e correu para a casa. Black e Simon disseram aos outros para ficarem no exterior antes de o seguirem para o interior.
Tratava-se de uma velha habitação com um rudimentar telhado de colmo que precisava de ser substituído, mas descobriram que o interior era o de uma casa alegre, iluminada pelo clarão alaranjado das chamas que rugiam na lareira. Havia um rapazinho e uma mulher jovem sentados em frente da lareira.
Entraram e verificaram que o mensageiro permanecia inseguro junto à porta, como se a ideia de avançar mais um pouco o pusesse nervoso, e Simon compreendeu porquê e estremeceu. Via-se que a jovem ainda nem sequer devia ter 20 anos. Era obviamente alta, com uma figura delgada mas forte e um corpo firme e elegante por baixo do vestido, mas o que mais lhe chamou a atenção foi o rosto. Estava completamente aterrorizada, o que era visível no modo como se mantinha toda encolhida, como que a confortar-se a si mesma. Quando se virou para os olhar, receosa, esse terror também era visível na palidez do rosto encimado por espessos e compridos cabelos pretos, nos grandes olhos repletos de lágrimas e no tremor do queixo por baixo dos lábios contraídos. Era um terror tão palpável, tão claro, que Simon sentiu a própria dor da jovem e teve vontade de ir ter com ela para a reconfortar.
O rapaz mantinha-se tranquilo e imóvel, quase como se não tivesse consciência da presença dos outros, e permanecia em silêncio em frente da lareira, com os cabelos cor de palha a reflectirem o brilho das chamas. Fitava os homens com olhos que não os viam, ou como se tivessem tão-pouca importância que nem merecessem uma reacção. Encontrava-se para lá do medo e parecia ter perdido todo o sentido da realidade.
Quando Simon e Black se aproximaram surgiu um casal idoso por trás deles. O homem agarrou-os pelos braços e a mulher continuou em frente e dirigiu-se para as duas figuras.
- Desculpem, desculpem, mas eles... - murmurou o homem, ofegante. Simon fitou-o sem compreender e olhou novamente para a sala. A mulher idosa balouçava lentamente o rapazinho, que se apertara contra ela como uma criança assustada agarrada à mãe. - Vamos lá para fora por favor... - pediu o homem. - Vamos lá para fora para podermos falar.
Simon e Black trocaram um olhar e seguiram-no.
No exterior, sobressaltou-se ao ver todos aqueles homens a cavalo e pareceu preocupado até que a voz de Simon lhe interrompeu os pensamentos.
- Não te preocupes, meu amigo. É o grupo de perseguição de Crediton. Viemos ajudar a apanhar o bando de fora-da-lei.
O agricultor descontraiu-se visivelmente.
- Graças a Deus! Por instantes, cheguei a pensar que podiam ser os mesmos que...
- Que se passou? Só sabemos o que o seu filho nos contou - disse Black, interrompendo-o.
Os olhos do homem enevoaram-se.
- Já viram como eles estão. Apareceram à minha porta a noite passada, tal como estão agora. Não fomos capazes de arrancar uma única palavra ao rapaz, que se recusa a falar. Passa todo o tempo sentado, a olhar. A rapariga é a irmã, ou pelo menos assim o julgo... Iam para Taunton com os pais e mais algumas pessoas e acamparam a três ou quatro quilómetros daqui. - Apontou para sudoeste, para a linha acinzentada da charneca. - Estavam a preparar a comida quando foram atacados.
- Sabe quando foi isso? - perguntou Simon.
- Não. Ela só diz que foi depois do escurecer. Os atacantes apareceram a cavalo no acampamento, mataram todos os homens e também algumas mulheres. Creio que ficaram com as outras para... para...
- Acha que foram molestadas...? - perguntou Simon, sentindo a ira a crescer ao compreender o que a rapariga e o jovem deviam ter testemunhado.
O rosto de Black tornou-se igualmente sombrio.
- A jovem também foi violada? - Simon apercebeu-se de que a sua própria esposa não deveria ser muitos anos mais velha.
O velho acenou com a cabeça, muito devagar.
- Não fala comigo, mas disse-o à minha mulher. - Encolheu os ombros e tinha lágrimas nos olhos quando se virou para Simon. - Quando entro na sala... cala-se e agarra-se à minha mulher. Está com muito medo dos homens, tal como puderam ver. A minha mulher diz que nunca tinha visto uma pessoa tão assustada.
- Descreveu os homens que a atacaram? - perguntou Simon, ignorando a praga que Black soltara por entre os dentes cerrados.
- Não. Só sabe dizer que um deles parecia um cavaleiro coberto por uma armadura... mas não sei o que quer dizer com isso. Tanto quanto eu saiba, o homem tanto podia estar a usar uma cota de malha como uma armadura completa. Os outros eram homens vulgares.
Black e Simon trocaram um olhar e o caçador acenou com uma expressão sombria. Simon virou-se novamente para o agricultor e perguntou:
- Pode pedir ao seu filho que nos mostre onde foi o ataque? Será capaz de encontrar o local?
- Oh, sim. Nem sequer precisam da ajuda dele, o sítio é bem visível. No entanto, podem levá-lo, se quiserem.
Simon e Black saltaram rapidamente para as selas. Quando o filho do agricultor ficou pronto seguiram ao longo do caminho, de volta à estrada, e viraram para sul e oeste na direcção das charnecas.
Os homens iam silenciosos, entretidos com os seus pensamentos. Simon reviu as poucas informações que o agricultor lhes fornecera e descobriu-se a estremecer sob a influência da maior vaga de ira que jamais sentira, provocada não tanto pela brutalidade insensata dos fora-da-lei, mas também por ter visto a jovem horrorizada. O terror absoluto que revelara quando o vira a ele e ao Black revelava perfeitamente o grau do seu sofrimento. A mente do almoxarife regressava sempre à mesma pergunta: quem podia fazer uma coisa daquelas? Quem era capaz de infligir uma tal dor a uma rapariga tão jovem, despedaçar as vidas de um rapaz e da irmã, criar uma tal infelicidade e continuar a viver consigo mesmo depois disso?
Sentiu-se como se a respiração o queimasse, como se estivesse a inalar chamas, e manteve-se muito alto e direito na sela. Era como se a ira lhe tivesse duplicado as forças e as energias.
O caçador cavalgava a seu lado com um porte de à-vontade e sem esforço, mas quando Simon o olhou verificou que Black também estava tão zangado como ele. Olhava em frente, quase sem pestanejar, com os olhos escuros fixos na estrada. Fazia com que Simon pensasse num gato, um gato que acabara de ver um rato e o perseguia lentamente com a intensidade de uma concentração total e absoluta. Todavia, a ira revelava-se em pequenos pormenores, tal como nos gestos bruscos e nos movimentos ocasionais da cabeça quando olhava para as árvores dos dois lados, como se as desafiasse a ocultarem os homens que perseguiam, e nos súbitos e rápidos movimentos da mão que agarrava no punho da espada curta, como se de vez em quando sentisse desejo de a desembainhar e de matar.
Mantiveram um passo acelerado que lhes permitiu cobrir rapidamente a distância que os separava do local onde o ataque tivera lugar. Quando se aproximaram, o filho do agricultor conteve a montada e apontou. Havia fumo a erguer-se por trás das árvores um pouco mais à frente e à esquerda da estrada.
- Deve ser aquilo - disse, continuando a apontar e a olhar, como que fascinado. Simon virou-se para ele e viu que o homem tremia, não com medo mas com uma espécie de horror calmo ante a ideia do que iriam encontrar para lá da linha de árvores que rodeava o acampamento dos viajantes. Simon pressentiu a excitação do jovem, não obstante a sua ira e o desejo de vingar a jovem e o rapaz.
- Guiaste-nos bem e agradeço-te. Agora, volta para casa. Continuaremos em frente e mandaremos notícias quando soubermos o que se passou.
O filho do agricultor lançou-lhe uma olhadela de gratidão, acenou, virou o cavalo e deu meia volta para regressar a casa. Simon e o caçador viram-no afastar-se e arrancaram em direcção ao fumo distante, deslocando-se lenta e cuidadosamente, sempre com miradas desconfiadas para as árvores de cada lado da estrada.
- Almoxarife... - murmurou Black alguns momentos depois.
- Hum...?
- Por acaso, também não me quer mandar para casa?
Simon olhou para o homem sombrio que cavalgava a seu lado. Por instantes, os dois homens fitaram-se um ao outro numa compreensão mútua e total. Depois, como se tivessem comunicado perfeitamente entre si com aquele olhar penetrante, chicotearam os cavalos e galoparam para o fumo, como a cavalaria para o campo da batalha.
Aproximaram-se do fumo e o almoxarife começou a sentir relutância em continuar. Adivinhava o que o iria confrontar para lá das linhas das árvores e queria abrandar para que Black fosse o primeiro a ver a cena, como se isso lhe permitisse reduzir o choque e o sofrimento. Simon descobriu que não era capaz de manter os olhos na estrada à sua frente. Era como se quisessem evitar a cena e lhe fugissem para todo o lado, para as árvores, para o chão, para o céu, para todo o lado... menos para o acampamento.
Black cavalgava como que em transe, dobrado e imóvel sobre a sela, com uma das mãos a segurar nas rédeas e a outra pousada no arção. Black sabia que aquela iria ser a primeira exposição de Simon à ferocidade de um ataque dos fora-da-lei, mas para ele já não se tratava de uma novidade. Viajara muito antes de seguir as pisadas do pai como agricultor e caçador, e chegara a ir até Iorque, no norte, na companhia de mercadores, ajudando-os a transportar os bens de cidade para cidade durante as incessantes tentativas para venderem os seus produtos.
Uma vez - por Deus, ainda se recordava como se tivesse sido ontem! - tinham deparado com um acampamento onde tivera lugar um ataque. Quantos anos teria na altura? 22? Vira-se exposto a uma cena que nunca anteriormente acreditara ser possível. Ficara tão chocado que não conseguira falar durante alguns dias, e também não fora capaz de dormir decentemente ao longo de anos. Agora, enquanto subia a trote a pequena vertente que o levaria ao acampamento, sentia novamente aquela velha ira, uma espécie de raiva pura e concentrada por haver alguém capaz de fazer coisas daquelas aos seus semelhantes. Da última vez fora demasiado jovem para capturar os homens responsáveis, demasiado jovem para poder ajudar. Para além disso era um estranho na área e não o tinham querido incluir no grupo de perseguição. No entanto seguira os homens que tinham ido atrás do bando, apenas com a intenção de dar escape à sua ira assistindo à vingança dos habitantes locais.
Não lhes fora possível localizar o bando. O grupo perseguira-o durante dias mas, por fim, perdera-lhe o rasto nas profundezas da floresta e voltara para trás completamente desanimado com o falhanço. Era em parte por isso que agora também se sentia deprimido ante a hipótese de deixarem escapar os assassinos do abade, que também sofrera um fim miserável e continuava ainda por vingar. Todavia, desta vez, Black estava decidido. Estes homens não lhe iriam escapar. Iria persegui-los e destrui-los, não só por causa daquele ataque mas também pelo abade e pelos pobres homens e mulheres que vira mortos quando tinha 22 anos. Black olhou para Simon e interrogou-se: como podia ele lidar com aquilo?
A ira de Simon estava a dar lugar ao medo à medida que se aproximavam. Era o medo do que poderia estar oculto por trás das árvores. Ficara chocado e horrorizado ao ver o que acontecera ao abade, mas este ataque - depois de ver os efeitos na jovem mulher e no irmão -, parecia ser muito pior, pelo que Simon batia em retirada para dentro de si mesmo à medida que cavalgava, como se pudesse esconder-se do que ia ter de enfrentar.
Simon olhou para trás e compreendeu que não estava só nos seus sentimentos de expectativa. Os outros, tudo homens resistentes, habituados a verem homens e animais mortos ou feridos, homens prontos para matar um animal gravemente ferido apenas por misericórdia, para pôr fim ao seu sofrimento, cavalgavam agora num grupo apertado e já não formavam uma fila ao longo da estrada. Era como se todos sentissem necessidade de um apoio mútuo e do conforto que só o seu número lhe conseguia dar. Cavalgavam com as expressões fixas de homens que tinham medo mas que levariam a cabo uma tarefa que sabiam que iria ser profundamente desagradável, como se soubessem que só a sua dedicação poderia prevenir a repetição de um ataque.
Simon virou-se de novo para a estrada e contraiu os maxilares. Se os outros eram capazes de cavalgar com aquele nível de determinação, então também ele o podia fazer. Olhou rapidamente para Black, que mantinha a mesma carranca fixa colada ao rosto, e fitou a estrada com uma pequena sensação de desespero. Era como se se encontrasse sozinho no seu sentimento de medo, como se os outros estivessem livres de preocupações e só ele receasse o que os aguardava lá mais para diante.
Atingiram as árvores e puseram as montadas a passo. A estrada continuava para lá do acampamento e tinham de virar para um pequeno caminho para o alcançarem. Seguiram os meandros do trilho, sentindo a tensão e a apreensão a crescerem. Simon teve a sensação de que os homens do grupo estavam a passar por um curioso afastamento da sua unicidade, como se estivessem gratos pela companhia dos amigos, mas se sentissem completamente sós com os seus pensamentos, isolados e separados enquanto cavalgavam, retirando-se para dentro de si mesmos para ganharem forças para prosseguirem.
O caminho descrevia uma curva para o local do acampamento, mas as ocasionais aberturas entre as árvores permitiam que Simon tivesse relances das escuras e tristonhas colinas da charneca que se abria lá mais à frente, o que queria dizer que seguiam para sul. Verificou que Black já tentava extrair algum significado da confusão de rastos na terra espezinhada do trilho. O caçador pareceu pressentir os olhos de Simon pousados nele e levantou o rosto por instantes, mas os seus olhos não mostraram qualquer reconhecimento mas apenas o brilho da ira. Desviou-os e regressou à sua investigação.
A primeira coisa a chamar a atenção do almoxarife foi o cheiro, não o odor amargo e bolorento de uma velha fogueira, mas sim o cheiro a fumo fresco de um fogo de madeiras secas que o fez franzir a testa e voltar a olhar para Black. De certeza que o bando já ali não estava... ou estaria? Já deviam ter escapado há muito, não era? Não iam ficar acampados e à espera no local do seu último ataque...
A expressão no rosto de Black imobilizou-o. O caçador estava a olhar com uma expressão rígida, com o maxilar cerrado e só os seus olhos se moviam. Nenhum outro músculo funcionava. Era como se tivesse sido enfeitiçado, como se tivesse sido amaldiçoado e ficasse com todo os membros imobilizados. Foi com uma sensação de horror que o almoxarife compreendeu que o homem se encontrava paralisado pelo desgosto e pela repulsa, e Simon sentiu o seu próprio terror a regressar quando entraram no acampamento.
Ao princípio, tudo o que conseguiu ver foi as carroças a arder. Entraram no acampamento por uma abertura entre as árvores e encontraram-se repentinamente numa pequena clareira rodeada por uma franja de árvores jovens. Embora as ervas tivessem sido espezinhadas há muito até se transformarem em lama, a primeira impressão do almoxarife foi de se tratar de um lugar festivo e pacífico, com as coloridas roupas das pessoas que dormiam à sua volta e o verde das árvores a reflectirem-se no pequeno charco de água do outro lado da clareira. Era como se tivessem penetrado num pequeno oásis de calma e sentiu que, se gritasse, todas aquelas pessoas acordariam e se levantariam para o saudar. Porém, voltou a percorrer a área com os olhos e verificou que nenhuma delas voltaria a acordar. Estavam todas mortas.
As duas carroças, paradas uma perto da outra, ainda fumegavam. Soltavam um fumo fino e acinzentado que se erguia e rodopiava no ar claro e parado. Havia duas outras carroças um pouco mais distantes, com o conteúdo espalhado pelo chão numa tapeçaria de cores dispostas ao acaso. Lentamente, a sensação de irrealidade que Simon sentira foi desaparecendo e as lágrimas aqueceram-lhe os olhos quando viu que o corpo mais próximo era o de uma mulher, golpeada até à morte e a jazer nas suas próprias entranhas. A seguir observou o corpo seguinte, o de um homem que jazia com os braços esticados como se tentasse alcançar a mulher mesmo na morte, e que tinha um golpe maciço e sangrento na nuca.
Sentiu-se como se não estivesse ali, como se se encontrasse muito longe daquela cena e a visse através dos olhos de outra pessoa qualquer enquanto examinava os corpos espalhados pela clareira. Era como se o cérebro se tivesse dissociado do corpo, ou como se, perante o horror que tinha na frente, a sua mente houvesse batido em retirada para o proteger contra a realidade daquela visão.
Tinha os olhos a arder e precisava de se virar rapidamente. Olhou novamente para as carroças. Quando viu a segunda, a sensação de se encontrar em qualquer outro lado abandonou-o e foi substituída por uma raiva e uma ira tão profundas que o engolfaram completamente, uma fúria tremenda por aquilo ter acontecido a viajantes pacíficos, ali, na clareira abrigada. Parecia-lhe uma injustiça tão grande, um acto tão errado! Depois, quando olhou com mais atenção, a respiração prendeu-se-lhe na garganta. Do outro lado da carroça aberta e fumegante, havia dois braços enegrecidos, pendentes dos destroços calcinados.
Ficou parado, incapaz de se mover, com os olhos fixos naqueles dois tristes restos do que fora um ser humano.
Black saltou do cavalo com ligeireza e fez sinal ao grupo para esperar. Percorreu o solo rapidamente, debruçando-se aqui e ali sobre os corpos, examinando atentamente a confusão de rastos no chão, verificando o conteúdo das carroças e ajoelhando-se para espreitar algumas marcas. Terminado esse trabalho, regressou e pegou nas rédeas do cavalo antes de se dirigir ao almoxarife.
- Senhor... - disse, numa voz baixa e controlada - estiveram aqui mais de cinco homens. Parecem ter chegado há algumas horas e partido também há várias horas porque os rastos estão ligeiramente apagados pelo tempo.
- Que aconteceu? Por que mataram toda esta gente? - A voz de Simon era abafada e quase atemorizada pela imensidade do crime.
- Levaram todo o dinheiro e todos os alimentos. - O caçador encolheu os ombros. - Não precisavam deles... - A sua mão acenou, num gesto aparentemente indiferente que abarcou todos os corpos.
- Para onde seguiram?
- Para sul, para as charnecas. Os rastos são claros.
- Então... vamos atrás deles! - Simon voltou a olhar para a carroça.
- Senhor? Em primeiro lugar temos de mandar um recado para que o agricultor saiba que pode chamar os homens de Oakhampton. - Black franzia a testa enquanto falava, tentando quebrar a nuvem de ira que abafava os pensamentos de Simon.
- Sim, sim, tens razão. Deixa dois homens aqui e envia outro à quinta. Os restantes irão connosco.
O caçador cumpriu rapidamente as ordens, escolheu os dois homens mais velhos para ficarem de guarda ao campo e o mais novo para ir avisar a quinta. A seguir montou no cavalo, lançou uma olhadela ao almoxarife, esporeou a montada, lançou-a num trote rápido e conduziu-os para lá do charco de água. Começou a subir a vertente do outro lado e levou-os na direcção da charneca.
Ao princípio avançaram relativamente devagar porque os rastos serpenteavam por entre as árvores. Parecia claro que os homens que haviam atacado o acampamento não tinham tomado precauções especiais para não serem seguidos, porque o rasto seguia por onde os troncos eram mais dispersos e por onde os ramos quase não os obrigavam a baixar-se. Chegaram rapidamente à charneca, onde os rastos prosseguiam a direito como uma seta, na direcção das serranias acinzentadas. À medida que avançavam, a sensação de irrealidade foi abandonando Simon e acabou por ser substituída por uma espécie de tonturas. Não conseguia compreender a ferocidade daquele ataque. Parecia-lhe demasiado maléfico, demasiado brutal. De certo modo, fora ainda pior do que o ataque ao abade porque a enormidade do crime tinha sido ampliada pelo número de vítimas, o que o deixava confuso, perturbado, e lhe aumentava ainda mais a raiva. Sentia mais do que nunca a falta da sua esposa, porque precisava de alguém que o escutasse enquanto tentava explicar os sentimentos que se lhe amontoavam na mente à mistura com o clamor da confusão. Era como se o seu cérebro estivesse prestes a estoirar com a louca variedade de emoções que o assaltavam. A ira continuava lá, a arder nas profundezas juntamente com a necessidade de vingar o ataque, mas também desejava uma explicação. Precisava de compreender porque razão aquilo fora feito, por que era que os homens matavam e destruíam sem motivos. Não poderia ter paz enquanto não o compreendesse. Se não havia um motivo, então por que fora que Deus admitira uma coisa daquelas? De certeza que Deus, na sua sabedoria, poderia ter impedido uma tal barbaridade.
Simon esporeou o cavalo quase sem pensar e colocou-o ao lado do de Black.
- Black, consegues perceber porquê?
O caçador levantou o rosto ainda com uma expressão de concentração. A luz do reconhecimento faiscou nos seus olhos e voltou a olhar para o rasto que estava a seguir.
- Não sei. Já tinha visto uma coisa destas, mas foi há muito tempo, quando andava nas terras do norte.
- E alguma vez percebeste por que o fizeram?
- Não. Não me quiseram no grupo de perseguição por eu não ser da zona. Oh, segui-os, queria ver qual era o aspecto dos assassinos, mas nunca os encontrámos. Não, nunca soube as razões.
Simon fez uma careta para o chão.
- O que os terá levado a comportarem-se assim? Só precisavam de amarrar as pessoas para levarem o que quisessem. Tratava-se apenas de mercadores que não conseguiriam resistir muito tempo mesmo que o tentassem.
- Não sei. - O caçador encolheu os ombros. - Ou eram loucos, ou não queriam deixar ninguém que os pudesse reconhecer mais tarde. Como quer que diga? Só sei que os quero alcançar para os impedir de voltarem a atacar outra vez.
- Achas que voltarão a fazê-lo?
- Claro. Vão continuar enquanto souberem que podem escapar impunes.
Simon olhou para longe, para o horizonte à sua frente.
- Para onde pensas que se dirigem?
- Não faço ideia. Depende de saberem ou não que os estamos a seguir. Se não o sabem, talvez voltem para trás, para Crediton ou Oakhampton. Ou então, podem continuar para sul, talvez para Moretonhampstead. Se sabem que vamos atrás deles poderão continuar a seguir para o sul, mas podem tentar evitar-nos ou até montar-nos uma emboscada se se sentirem suficientemente fortes para isso. - Black fez uma pausa e exclamou: - Malditos sejam esses estupores!
O veneno na sua voz deixou Simon vagamente chocado, como se a visão que tinha deixado para trás não justificasse uma ira tão violenta por parte de um homem habitualmente calmo. Não se apercebera até que ponto o acampamento horrorizara aquele caçador imperturbável, mas agora que o observava via que os maxilares de Black se contraíam a um ritmo regular, como se estivesse a mastigar um bocado de cartilagem, enquanto os olhos, normalmente tão calmos, se mantinham muito abertos e brilhavam com um desejo de vingança.
Simon abrandou um pouco a montada, deixou que o caçador seguisse à frente e juntou-se ao grupo principal sentindo-se ainda mais inquieto.
Seguiam os rastos havia mais de uma hora quando atingiram uma estrada. Black, ainda mergulhado na sua fúria silenciosa, levantou a mão para mandar parar os outros, saltou do cavalo e quase correu para a berma da estrada com a cabeça a girar para um lado e para o outro como um cão à procura de um odor. De súbito soltou um grito quase pagão, de verdadeira delícia. Simon esporeou o cavalo e foi ter com ele.
- O que é?
- Desta vez não foram muito espertos! Olhe! - Apontou para as ervas ao lado da estrada. Havia muito pouca vegetação entre a estrada e a charneca, excepto ocasionais aglomerados de urzes e tojos com as suas brilhantes manchas de cor em tons púrpura e amarelos. A berma da estrada permitira o crescimento de ervas verde-acinzentadas onde Simon via com clareza as muitas marcas de cascos que haviam destruído a vegetação, transformando-a numa massa lamacenta. Black olhou para cima com o rosto repleto de um prazer impiedoso.
- Agora, sou capaz de os seguir até ao inferno, se necessário! Aqui nas charnecas não há nenhum sítio onde possam apagar os rastos!
Ouviu-se um grito por trás deles, que fez com que se sobressaltassem e se virassem de repente. Hugh apontava para a estrada, para oeste. Seguiram a direcção apontada pelo dedo e viram um grupo de seis homens que se aproximava com um trote regular.
Black correu para a estrada, saltou para o cavalo e desembainhou a espada antes de incitar a montada a avançar para os estranhos.
- Black, pára! - gritou-lhe Simon, franzindo a testa e olhando para os cavaleiros.
Se se tratasse do bando, pensou, de certeza que aqueles homens não cavalgariam de um modo tão óbvio ao longo de uma estrada real. Ter-se-iam escondido para lhes montar uma emboscada em vez de andarem por ali a passear como se tivessem saído para um passeio matinal.
O grupo de perseguição saiu de entre as árvores e reuniu-se à espera que os outros se aproximassem, com os seus cavalos a soprarem e a agitarem-se como se pressentissem o nervosismo dos cavaleiros.
Por fim, quando o outro grupo já se encontrava mais perto, Simon sentiu-se como se lhe tivessem tirado um grande peso do coração e esporeou a montada com um grito de satisfação. Era Tanner com os seus homens.
Mais tarde, quando a escuridão desceu lentamente sobre o grupo e até Black admitiu que não podia prosseguir, pararam sob o abrigo de uma grande pilha de granito e montaram o acampamento.
Tinham seguido os rastos numa linha praticamente recta que se dirigia para sul, passando por várias pequenas aldeolas e atravessando um certo número de ribeiros. De cada vez que encontravam um desses ribeiros receavam que os fora-da-lei os tivessem aproveitado para os fazer perder o rasto, mas acabavam por descobrir que este continuava em frente, como se os homens do bando estivessem convencidos de serem invulneráveis e estarem a salvo de ataques. Era quase como se desafiassem o grupo a persegui-los, o que fazia com que Simon, de vez em quando, ficasse preocupado com a possibilidade de ser precisamente isso o que queriam. Estariam a conduzir o grupo de perseguição para a charneca para o poderem enfrentar de acordo com os seus próprios termos? Estariam a ser atraídos para uma emboscada? Todavia, não lhe parecia que fosse esse o caso. Achava mais provável que se sentissem tão seguros de si mesmos que não receassem nenhum tipo de perseguição.
Os outros membros do grupo conversavam junto das fogueiras enquanto descansavam as pernas e os corpos doridos, com as vozes a formarem um tranquilo acompanhamento ao estralejar dos troncos que ardiam. Black e Tanner trataram dos cavalos e foram-se juntar a Simon e Hugh, que se tinham instalado junto da sua própria fogueira. Quando se aproximaram e se sentaram na sua frente, Simon manteve-se apoiado num cotovelo para melhor descansar as coxas e as costas.
- Então, regedor, que andaste a fazer desde que nos separámos? O rosto de Tanner ficou sério e pensativo enquanto recordava as andanças dos dias anteriores.
- Começámos na estrada para Barnstaple e detivemos todos os que encontrámos para os interrogar a respeito dos assassinos do abade, mas não tivemos sorte. O problema está em que existem demasiadas estradas. Parámos para as examinar sempre que chegámos a uma delas e percorremo-las ao longo de umas centenas de metros. Não encontrámos nada e tivemos sempre que voltar para trás. Verificámos as bermas das estradas, mas estou seguro que ninguém saiu delas para se esconder na floresta. Quem quer que fosse, deve ter fugido pelas estradas.
- No fim do primeiro dia conseguimos chegar até Lapford. Acampámos no exterior da povoação e continuámos no dia seguinte. Verificámos todo o percurso até Elstone, sem qualquer resultado, e voltámos para trás. Alguns dos homens estavam cansados e mandei-os para casa pelo mesmo caminho. No entanto, pensei que os fora-da-lei podiam ter atravessado os campos e que não tivéssemos reparado nos rastos, pelo que levei os outros comigo por alguns dos caminhos secundários que seguem para sul. Lembrei-me de seguir até Oakhampton e voltar a Crediton. Bom, no fim do segundo dia ouvimos dizer que havia um bando a oeste de Oakhampton e achei que podiam ser os mesmos que tinham morto o abade. Como podiam estar a dirigir-se para leste, para Crediton, mandei um homem à tua procura para te avisar e segui para o Sul o mais depressa possível. Temos andado por lá, sempre à procura, mas umas pessoas que encontrámos disseram-nos que eles seguiam para Leste. Depois, a noite passada, ouvimos dizer que tinha havido um ataque deste lado e viemos ver se podíamos ajudar.
- Ainda bem que disseste ao teu homem para me procurar - comentou Simon. - Não estava em casa e ele pediu a um dos monges que tentasse descobrir-me.
- Ah, sim? - retorquiu Tanner, parecendo surpreendido. - Não lhe disse que era assim tão urgente. Era só para que soubesse por onde nós andávamos...
John Black, obviamente impaciente com aquela longa história, interrompeu-o e narrou rapidamente a jornada desde Crediton até ao momento em que se haviam encontrado naquela manhã.
- Foi terrível, Stephen. Havia corpos por todo o lado e até queimaram dois deles nas carroças...
- Mas porquê...? - perguntou Simon, pensativo, fazendo com que o olhassem, surpreendidos. - Por que queimaram os corpos...?
- Acontece frequentemente - disse Tanner, encolhendo os ombros. - Queimam-nos como tortura, para saberem se têm mais dinheiro e para se livrarem de provas. Outras vezes queimam-nos por divertimento. Parece que há quem goste disso...
- Condiz com o modo como mataram o abade... - resmungou Black - e também o Brewer...
- Não, não condiz - afirmou Simon, abraçando os joelhos enquanto se sentava e olhava para as chamas. Os outros olharam-no, surpreendidos com aquela negação tão peremptória.
Black foi o primeiro a recuperar.
- Que quer dizer? Claro que condiz! Foram mortes insensatas, com roubo, levadas a cabo por homens que gostam de queimar as suas vítimas. Foi exactamente a mesma coisa.
- Não, não foi. Um dos homens foi assassinado em casa, outro foi tomado refém e queimado vivo, e os viajantes foram assaltados na estrada. Não há nenhuma semelhança entre eles!
- Concordo. Brewer foi morto por outra pessoa qualquer, embora o abade possa ter sido morto por estes fora-da-lei. - Quem falou foi Hugh, sentado com a capa em volta dos ombros e a olhar para o chão à sua frente.
- Que queres dizer, Hugh? - perguntou Simon tranquilamente, fazendo com que o seu servo levantasse os olhos. Exibia uma careta de desconfiança, como se duvidasse que estivessem realmente a querer ouvir a sua opinião, e os seus olhos percorreram o rosto do amo como se procurasse a confirmação de que queriam escutar os seus pensamentos. Por fim, pareceu satisfeito com a expressão concentrada de Simon e continuou, falando directamente para ele e ignorando os outros.
- Bom, chegaram à conclusão de que o agricultor já estava morto antes do incêndio. O abade e os viajantes não o estavam. Foram todos mortos como se tivessem sido sujeitos a uma tortura. Estes fora-da-lei matam, mas só o fazem depois de roubarem tudo o que podem, não é?
- Contudo, o abade ainda valia dinheiro, valia um resgate - murmurou Simon, meditativo. - Por que o mataram? Por que o queimaram? Que estiveram a fazer? A torturá-lo para descobrirem em que saco da sela guardava o dinheiro? Para além disso, os fora-da-lei teriam morto todos os monges e não apenas o abade. Tal como dizes, o Brewer foi morto antes do fogo se iniciar... se é que foi morto. É por isso que todas estas mortes me parecem diferentes.
- Não. No caso do Brewer só queriam o dinheiro. Conseguiram-no e foram-se embora. O abade foi tomado como refém porque queriam o que ele levava na sela. Contudo, talvez se tenham assustado, talvez tenha aparecido alguém quando queimaram o abade e foram obrigados a fugir à pressa.... - declarou Tanner, com um gesto de alguém que não ligava muito ao assunto.
Simon voltou a olhar para Hugh.
- Bom, que pensas disto?
- Penso que um pequeno grupo destes fora-da-lei avistou o abade e roubou-o. Um monge deve ter-lhes parecido um alvo fácil! Para mim, o que não faz sentido é a hipótese de Brewer ter sido morto pelo mesmo bando. No entanto, talvez tivessem descoberto o seu dinheiro, mataram-no e pegaram fogo à casa para ocultarem o que haviam feito...
- É possível... - admitiu Simon, relutante - embora não se tenham preocupado muito em ocultar os seus rastos depois disso. Mas... para que iriam matar o abade daquele modo?
- Tal como disse, podem ter sido vistos por alguém e tiveram de fugir... - interveio Tanner.
- Tiveram de fugir? - comentou Hugh, erguendo as sobrancelhas de descrença enquanto se virava para o regedor. - Se fossem dois homens teriam levado o abade com eles e não o matavam... e não precisaram de pressas porque tiveram tempo para o queimar vivo. Por outro lado, se alguém os viu, essa pessoa ou pessoas daria o alarme, não é verdade? Pelo meu lado, se visse um corpo a arder na floresta... corria imediatamente para casa e ia à procura de ajuda.
- Talvez não vissem os fora-da-lei nem o corpo a arder... - disse Black, franzindo a testa.
Hugh fez uma pausa para lhe lançar uma olhadela sombria. Depois, quando falou, fê-lo num tom agudo e tenso.
- E o abade manteve-se muito calado? Estava a arder na fogueira e nem sequer gritou? De certeza que o ouviam mesmo que não o vissem!
Black levantou-se com um leve sorriso paternalista no rosto.
- Olhe, não sei por que o deixaram ali, mas sei uma coisa: Os homens que estamos a perseguir foram os que mataram o abade e provavelmente também o Brewer. O resto... não faz sentido. Amanhã vamos apanhá-los... e agora vou ver se durmo um pouco.
Black afastou-se e Tanner olhou para o almoxarife, que continuava sentado, de olhos postos no servo. Para Tanner pouco interessava saber quem fora o responsável pela morte do agricultor porque a sua principal preocupação dizia respeito às pessoas que talvez viessem a sofrer no futuro. Os ataques dos fora-da-lei podiam vir a causar o caos numa área como aquela, onde havia muitas florestas, onde se podiam esconder e onde existiam centenas de pequenos povoados que podiam atacar com relativa impunidade. Durante os seus dias de guerra, Tanner vira mais do que o suficiente a respeito dos grupos que tinham devastado o território, roubando, queimando, assassinando os camponeses e impedindo todo o trânsito de pessoas e bens. O seu único desejo era vê-los capturados ou mortos. O almoxarife parecia muito mais preocupado com os outros, com o abade e Brewer. Tanner não o estava. Na sua opinião, já ninguém os podia ajudar. No entanto, compreendia os sentimentos do almoxarife. Era demasiado jovem para ter visto os prejuízos que aqueles bandos podiam provocar. O regedor suspirou, levantou-se, deu-lhes as boas noites e deixou-os. Já não havia nada que pudesse fazer ali, naquela noite.
- Então, Hugh, também pensas que os responsáveis pela morte de Brewer foram outros? - perguntou Simon quando Tanner se afastou.
Hugh acenou, com um rosto desolado.
- Sim, acho que este bando matou o abade, mas não o Brewer. E sabe o que me incomoda mais? Também não faço a menor ideia sobre a razão por que o fizeram.
- Não interessa, Hugh - declarou Simon, num tom baixo mas deliberado. - Não sei quem foi... mas acabarei por o saber. Vou descobrir quem foi o responsável... e porquê. Já morreram demasiadas pessoas... e está na hora de as vingar a todas...
Acordaram rígidos e doridos para uma manhã clara e brilhante. Simon sentia-se péssimo. Quase não dormira. Tinham sido várias as vezes em que se sentira a escorregar para o sono... mas logo o seu cérebro começara a incomodá-lo com perguntas sobre o responsável pela morte do abade.
Queria aceitar as convicções simples dos seus companheiros, que pensavam que Brewer, Penne e os viajantes haviam sido mortos pelos mesmos homens, mas custava-lhe a acreditar. Parecia-lhe tratar-se de uma resposta demasiado óbvia - demasiado fácil -, e não acreditava, tal como o Hugh, que homens que tinham roubado tanta coisa aos viajantes acabassem por matar o abade, uma vez que se tratava de um refém muito valioso. Para além disso, confundia-o o facto de só terem raptado o abade. De certeza que os responsáveis pelas mortes dos viajantes também raptariam todos os monges e não apenas o abade....
O almoxarife levantou-se, massajou as nádegas e as coxas e fez caretas perante a agitação dos homens que o rodeavam, que arrumavam as coisas e começavam a preparar os cavalos. Sentia-se frio e húmido, cansado e miserável. Doíam-lhe as costas e as pernas, estava magoado no sítio onde uma pedra se lhe cravara nas costelas e ainda não se encontrava mais perto de uma resposta definitiva sobre quem matara o abade.
Agachou-se junto do que restava do fogo e tentou absorver algum calor das cinzas, mas estavam frias e não o reconfortaram. Por isso, foi com um sorriso retorcido que pensou na sua casa quente, na cama e no corpo de Margaret, e que perguntou a si mesmo: Meu Deus! Que estou eu afazer aqui?
- Almoxarife! - Virou-se e viu Black a caminhar para ele. O caçador sorriu quando se aproximou e se apercebeu do evidente mau humor de Simon. - Os homens estão prontos. - Fez uma pausa. - Podemos partir quando se sentir suficientemente bem - acrescentou com secura e com o sorriso a erguer-lhe um canto da boca.
- Obrigado, Mestre Black - retorquiu Simon com muito pouca sinceridade. No entanto levantou-se e acompanhou-o até aos cavalos. Hugh já os selara e preparara a ambos, e agora segurava-os pelas rédeas. Fez a habitual careta de boas vindas quando os viu a aproximarem-se. Simon pegou nas rédeas, montou lentamente e estremeceu ao sentir as dores da cavalgada do dia anterior. A seguir virou o cavalo e seguiu Black ao longo da ligeira vertente. Estavam de novo no encalço da presa.
Cavalgaram dispostos numa única fila, com o caçador à frente. Os olhos de Black esvoaçavam constantemente de um lado para o outro enquanto verificava os rastos e se certificava que ninguém abandonara o grupo que perseguiam. Ocasionalmente, o caçador detinha-se, levantava a mão para fazer parar os outros, olhava de testa franzida para as marcas enlameadas e chegava a baixar-se para interpretar algum novo sinal. A seguir levantava novamente a mão e todos o seguiam.
Simon, Hugh e Tanner iam logo atrás dele, num pequeno grupo. O almoxarife achou que aqueles primeiros quilómetros eram ainda mais difíceis do que haviam sido no dia anterior, uma vez que o pouco descanso nocturno lhe deixara os músculos cheios de nós, ou pelo menos era o que lhe parecia. Chegou a pensar que teria de parar para aliviar as dores mas depois, quando já se encontravam a cavalgar havia cerca de uma hora, descobriu que o exercício o descontraía e que se encontrava mais confortável em cima da sela. Depois de duas horas de cavalgada já se sentia como novo... para além de mais algumas dores em partes do corpo que nem sequer sonhara que podiam doer.
Ao princípio da manhã fora fácil seguir os rastos porque o Sol criava sombras sobre os locais por onde os cavalos tinham passado, mas essa tarefa, à medida que o Sol subiu no céu, tornou-se mais lenta e difícil sempre que Black tentava ler os sinais com precisão. Depois de viajarem durante três horas, Simon grunhiu para si mesmo e colocou-se ao lado do caçador.
- Black, não podemos ir mais depressa? - resmungou.
- Não, se os quisermos apanhar a todos ao mesmo tempo.
- O quê? Ora, vemos perfeitamente para onde se dirigem. Com certeza que podemos seguir em frente, certificando-nos de vez em quando de que não perdemos o rasto.
- Podemos... mas alguns podem afastar-se e seguir para um dos lados. Precisamos de saber se os temos a todos.
Simon olhou em frente com um sentimento de exaspero. Àquela velocidade nunca apanhariam o bando.
- Bom, se apanharmos o grupo principal, poderíamos...
- Não - retorquiu o caçador, distraído e sem tirar os olhos dos rastos. - E se alguns deles deixarem o grupo principal?
- E se deixarem? Desde que apanhemos o grupo maior...
- Não - repetiu Black, olhando repentinamente para ele. - Não podemos correr esse risco. Podemos apanhar metade, ou mais... E os outros? Se deixarmos escapar dois... podem assaltar uma quinta e matar uma família. Não vou aceitar uma coisa dessas! Temos de os apanhar a todos!
Simon acenou, suspirou e deixou-o prosseguir. Queria poder dar caça aos fora-da-lei e não apenas segui-los de uma maneira tão lenta. Queria ter a certeza de que ganhavam terreno aos homens que tinham morto os mercadores, para os poder capturar, ou para os matar se não se rendessem. Todavia, refreou o seu entusiasmo e permitiu que Hugh e Tanner o alcançassem enquanto Black prosseguia.
Já se tinham passado mais de quatro horas depois de terem abandonado o acampamento quando chegaram a um pequeno ribeiro e Black parou. Simon aproximou-se rapidamente, logo seguido por Tanner.
- O que foi?
- Olhem! - respondeu o taciturno caçador, apontando.
Um pouco mais à frente, o terreno tornava-se plano. Havia ali pedras organizadas num círculo irregular, com algumas dispostas em cima de outras como que para formar um pequeno muro, e no meio via-se um certo número de zonas enegrecidas. Os três homens avançaram com cuidado e pararam junto da primeira zona queimada. Black baixou-se e cheirou o ar. A seguir saltou do cavalo com ligeireza - como se não estivesse a cavalgar havia dias, pensou Simon, com desgosto -, ajoelhou-se, cheirou as cinzas e apalpou-as enquanto murmurava qualquer coisa para si mesmo.
- Então? - inquiriu Tanner, obviamente tão ansioso como Simon por poder continuar a caçada.
Black olhou para cima mas os seus olhos haviam perdido toda a expressão introspectiva e cintilavam com um brilho perverso.
- Foi aqui que acamparam a noite passada. As cinzas ainda estão mornas. - Agachou-se sobre os tornozelos, observou a área em volta e pareceu sobressaltado. Os outros acompanharam-lhe a direcção do olhar enquanto o caçador se punha de pé e corria.
Simon viu o que lhe pareceu ser um monte de trapos a jazer sob o muro e olhou para os homens, sem compreender. Hugh pareceu tão surpreendido como Simon, mas Tanner soltou uma praga, ficou com o rosto negro de ira e esporeou o cavalo. Os restantes encolheram os ombros e foram atrás dele.
Foi apenas quando se encontrava a poucos metros de distância que Simon compreendeu que aquele patético monte de farrapos era afinal um corpo humano meio nu. Soltou uma espécie de soluço que era também um meio suspiro e viu que se tratava de uma mulher muito jovem. Não deveria ter mais de 15 anos e era uma figura delgada com compridos cabelos negros que haviam sido entrançados mas que lhe haviam sido cortados com rudeza e que jaziam agora no chão junto à sua cabeça. Fora espancada, tinha grandes descolorações castanhas e azuladas espalhadas pela pele, para além de vergões. Os pés estavam descalços, com as solas ensanguentadas e cobertas de crostas. Black virou-a e tornou-se claro que a jovem deveria ter tido uma vida privilegiada, porque as mãos não estavam estragadas pelo trabalho.
Tratava-se provavelmente da filha de um dos mercadores.
O grupo ficou a olhar para a pequena figura, mergulhado num silêncio gelado e irado, enquanto o caçador procurava pistas sobre os homens que haviam cometido o crime. Observou cuidadosamente o vestido rasgado e verificou o solo, mas não parecia haver ali nada que o pudesse esclarecer. Acabou por se endireitar e Simon viu-lhe uma nova determinação estampada no rosto. Era como se o calmo e imperturbável caçador tivesse feito uma jura: os homens que estava a perseguir não lhe escapariam e iria apanhá-los antes que pudessem cometer mais crimes como aquele.
Simon observou-o a subir para o cavalo e a designar um homem para levar o corpo de volta. O almoxarife começava a ficar ansioso: como iriam os homens reagir quando apanhassem o bando de fora-da-lei? Não queria que os chacinassem a todos. Porém, logo a seguir, os seus olhos foram atraídos para o corpo como se este o chamasse, e descobriu-se a pensar que aquela jovem era pouco mais velha do que a sua própria filha. De súbito compreendeu que não lhe interessava saber como o grupo de perseguição iria reagir quando encontrasse o bando.
Pararam ao meio-dia, perto de um ribeiro onde deram descanso e água aos cavalos enquanto se sentavam e comiam qualquer coisa. Os homens de Tanner tinham conseguido comprar provisões enquanto andavam na estrada depois da morte do abade, mas Simon tinha consciência de que a comida do seu próprio grupo estava a esgotar-se rapidamente. Àquele ritmo de consumo só poderiam permanecer mais um ou dois dias na charneca, no máximo. Os homens estavam novamente muito calados. A pouca alegria que haviam sentido durante a cavalgada da manhã desaparecera à vista da pequena e triste forma meio escondida pela parede de pedras, e fora substituída pela ira e por um urgente desejo de vingança. Simon pressentia esse estado de espírito por causa do modo como os homens se mantinham sentados a mastigar o pão e as carnes fumadas. Todos queriam apanhar os responsáveis pelo crime e o almoxarife sabia que iriam ser difíceis de controlar quando deparassem com o bando.
Contudo, também sabia que isso já não lhe interessava. Estava tão desgostoso, tão nauseado perante a visão da morte que queria matar os responsáveis com as suas próprias mãos. O facto de haver quem fosse capaz de fazer uma coisa daquelas na sua terra deixara-o furioso quando se tratara apenas de um abade morto e pouco mais, mas agora, depois de ver o pobre corpo destruído nos restos do acampamento, um corpo que fora usado e deitado fora, sentia uma raiva tão profunda que o queimava por dentro.
Os outros encontravam-se sentados à sua volta, quase em transe enquanto comiam. Cada um deles parecia encontrar-se mergulhado no seu próprio mundo. Falavam pouco e só ocasionalmente se ouvia um murmúrio de vozes abafadas. Permaneciam calados e contemplativos durante a maior parte do tempo, como se estivessem todos a pensar no que fariam quando apanhassem os homens.
Black pôs-se de pé e o movimento súbito fez com que várias cabeças se virassem. Depois, com uma espécie de tranquilidade fatigada, todos se levantaram e prepararam para entrar de novo em movimento.
Os rastos levavam-nos agora não directamente para o Sul mas sim um pouco para Leste e dirigiam-se para o limite oriental da charneca. Eram rastos perfeitamente distintos no meio do verde que os rodeava. De vez em quando passava no meio de urzes mais espessas e Black pedia aos outros para cavalgarem de cada lado das mesmas para não se dar o caso de perder uma qualquer segunda pista por entre a vegetação, mas continuava a parecer que a presa se encontrava demasiado segura de si mesma para se dar ao trabalho de ocultar os rastos, uma vez que os eventuais membros do bando que se desviavam um pouco acabavam sempre por regressar ao grupo principal.
Foi já ao fim do dia que viram pela primeira vez os frutos da sua perseguição.
Estavam a chegar ao topo de mais uma colina, no meio de um pequeno grupo de árvores que se erguiam em volta de algumas velhas pedras que eram como sentinelas em torno de um rei, quando Black levantou mais uma vez a mão e Simon o ouviu a soprar por entre os dentes. O almoxarife avançou um pouco mais mas o caçador ignorou-o, com os olhos fixos na elevação seguinte.
Simon seguiu-lhe o olhar e distinguiu a fina linha de rastos que formava uma mancha negra contra a verdura da colina, quase como uma fenda no verde-acinzentado. Acompanhou-a, deixando que os rastos lhe puxassem os olhos para cima, na direcção do horizonte. De súbito, os seus olhos abriram-se quando avistou o pequeno grupo de homens e de cavalos que se esforçavam por atingir o alto da elevação. Mais para diante não existiam rastos... pelo que aqueles deveriam ser os homens que procuravam!
Virou-se e olhou para Black, que lhe lançou o mais leve dos sorrisos antes de rodopiar e precipitar para junto dos outros.
- Apanhámo-los! Estão um pouco à nossa frente, talvez a dois ou três quilómetros. Acabaram de passar para lá do cimo da colina seguinte! Houve uma sensação de excitação contida, uma vermelhidão nos rostos de todos os homens do grupo de perseguição quando compreenderam o significado daquelas palavras, logo seguida por murmúrios confusos.
- Calem-se! - pediu Tanner, que esperou pelo regresso do silêncio. - John? O que queres que façamos?
- Por agora, vamos continuar a segui-los. Não parecem estar a tomar qualquer tipo de precauções. Seguirei à frente com outro pisteiro e manter-nos-emos tão perto deles quanto possível. Vocês seguir-nos-ão. - Olhou para o céu com a testa ligeiramente franzida, e a seguir para o Sol, a oeste. Simon verificou que já ia baixo e parecia inchado e avermelhado. Maldição! Iria escurecer muito em breve! Black pareceu ficar a pensar no assunto por um instante, mas depois olhou para Simon e para Tanner. - Está a fazer-se tarde e vão acampar em breve. Penso que é melhor segui-los até que o façam, para os atacarmos quando se descontraírem e começarem a comer, logo que...
Tanner levantou uma das mãos.
- Será melhor esperarmos pela madrugada. Já alguma vez tentaste atacar um grupo de homens armados, à noite? Eu já o fiz. As coisas correm mal com muita facilidade... Será melhor que durmamos, para os atacarmos quando estivermos todos mais descansados.
- E se partirem durante a noite? Podemos perdê-los e... - murmurou Simon, assustado com a possibilidade do bando se conseguir escapar.
- Não se deslocarão durante a noite. Se deixaram um rasto tão nítido da charneca é porque não estão preocupados com a possibilidade de serem seguidos. Não, é melhor descansarmos um pouco e esperar para os atacarmos de madrugada.
Simon olhou para Jack com uma expressão de perplexidade. O caçador baixou os olhos momentaneamente enquanto analisava a questão, mas levantou-os e acenou.
- Sim, tem razão. Sigam-nos devagar, enquanto eu e o Fasten vamos atrás deles. Quando se instalarem para dormir... voltaremos para trás para vos procurar. Fasten? Ah, estás aí! Anda, vamos segui-los!
Obrigou a cabeça do cavalo a dar meia volta e afastou-se, logo seguido por Fasten. Os outros observaram-nos e viram os dois homens a separarem-se, com Black a cavalgar à esquerda dos rastos e Fasten à direita. Desceram o declive com facilidade e começaram a subir a colina seguinte.
Simon soltou um suspiro e disse:
- Bom, vamos...
Já escurecera havia muito quando encontraram um lugar para descansar, uma ligeira concavidade no topo de uma colina, abrigada do vento e afastada da direcção que o bando de fora-da-lei estava a tomar. Àquela altitude não havia lenha, nem sequer ramos secos, pelo que tiveram de se amontoar no abrigo rudimentar e ficaram a tremelicar sob o frio da noite.
Simon e Hugh trataram dos cavalos, encolheram-se por baixo dos arbustos e Tanner aproximou-se dos dois homens. Partilharam a carne e o pão, beberam um pouco de água e permaneceram num silêncio tenso, com a acção que iriam ter de enfrentar no dia seguinte a pesar-lhes as mentes.
- Olha, Stephen... - murmurou Simon, depois de terem terminado a refeição - já estiveste envolvido em lutas anteriormente... Como achas que as coisas irão correr?
- Não sei... - retorquiu Tanner, pensativo. - Participei nalguns combates que vencemos com facilidade quando devíamos ter perdido, e perdi outros que devíamos ter vencido. Na verdade, tudo depende deles. O grupo de perseguição é bastante grande mas devemos ter dois homens para cada um deles. No entanto, se estiverem treinados nas artes da guerra... ainda nos poderão vencer. Não sei...
Simon observou os homens à sua volta, espreitando-os um a um enquanto tentava recordar quantos deles já haviam estado envolvidos em batalhas. Tanto quanto soubesse, oito deles já tinha visto em acção. Só oito? Entre todos os homens que ali estavam, só oito sabiam o que era um combate? Mordeu o lábio, num nervosismo súbito.
- Viste quantos homens tinha aquele bando?
- Não tenho a certeza. Contei sete, mas podia haver mais alguns do outro lado da colina - disse Tanner, como se estivesse a pensar em voz alta. Contudo, a seguir apercebeu-se da expressão no rosto de Simon, sorriu e deu-lhe uma palmada numa perna. - Não te preocupes, almoxarife! Aqueles homens podem estar habituados a matar agricultores como o Brewer, ou monges, mas aposto que vamos ser uma surpresa para eles! De qualquer modo, em breve saberemos quantos são quando o Black regressar.
Foi precisamente nesse momento que ouviram o leve som de um cavalo a relinchar ali perto. Puseram-se de pé num salto, desembainhando as espadas, e escutaram a voz imperturbável do caçador.
- Bonito! Vamos fazer um trabalho para os amigos e somos recebidos de espada na mão quando voltamos! Onde está o Tanner?
- Estou aqui, John, com o almoxarife - respondeu Tanner um pouco envergonhado enquanto guardava rapidamente a espada na respectiva bainha. Pareceu embaraçado e aborrecido consigo mesmo por se ter deixado alarmar com tanta facilidade. Voltaram a sentar-se e esperaram até que o caçador cuidasse do cavalo e fosse ter com eles. - Muito bem, seguimo-los até ao local do acampamento. É um grande buraco no topo de uma elevação, a cerca de quatro quilómetros daqui, e parecem ter-se instalado para a noite. - Fez uma pausa quando Fasten se lhes juntou. - Estava a falar-lhes do acampamento. Como disse, é um grande buraco, quase inteiramente rodeado por rochas e por uma espécie de muralha. Acenderam fogueiras e estão sentados à sua volta, a beberem. Arranjaram cerveja em qualquer lado, talvez dos mercadores, pelo que não me parece que se levantem muito cedo. Demos a volta ao acampamento. Aparentemente, não instalaram sentinelas, pelo que não iremos ter problemas.
- Quantos são eles, John? - perguntou Tanner.
- Contámos nove - afirmou Black. Hesitou e olhou para Simon com firmeza. - Um deles parece ser um cavaleiro, todo vestido de malha.
Ainda havia uma escuridão própria da meia-noite quando Simon sentiu um toque nos tornozelos. Grunhiu e praguejou quando se sentou, esfregando os olhos para tentar clareá-los como se a escuridão estivesse dentro da sua cabeça. Precisava sempre de algum tempo para acordar completamente, mesmo quando estava em casa. Tinha os ossos gelados até à medula por ter passado demasiadas noites sob o frio e a humidade do exterior, e sentia-se extremamente infeliz, como se nunca mais conseguisse voltar a aquecer. Esboçou um sorriso triste e pensou novamente na sua cama em Sandford, que naquele momento ainda deveria encontrar-se quente e confortável com o corpo de Margaret a jazer dentro dela, como uma espécie de santuário contra todos os ventos e chuvas do mundo.
Sacudiu a cabeça, atordoado. Levantou os olhos, irritado, quando a recordação do calor da cama e da esposa lhe fugiram da mente, e observou o acampamento. Tanner e Black andavam de um lado para o outro, pontapeando para a vida as figuras encolhidas dos homens ainda adormecidos. Os que se encontravam a pé tratavam das armas, limpavam as lâminas das espadas, afiavam as adagas, agitavam os paus e os maços num esforço para soltarem os músculos que tinham ficado entorpecidos durante a noite ou se encontravam demasiado tensos.
Pensou para si mesmo que aqueles homens, envoltos na escuridão ou semiocultos pelo negrume mais profundo das rochas por trás deles, brandindo as armas e agitando os braços em padrões complexos, com o metal das cabeças dos machados a mostrar por vezes um tom cinzento-claro contra o fundo negro, constituíam uma estranha visão, quase fantasmagórica. Era como se se encontrassem num mundo diferente. Os homens permaneciam calados e quase não diziam uma palavra uns aos outros. Havia apenas uma ocasional sugestão de actividade quando se ouvia o som de uma faca a ser esfregada contra uma pedra, ou o sussurro de um machado a voltear no ar. Sentia-se como se estivesse a observar um exército de fantasmas, um pensamento que lhe provocou um estremecimento involuntário: quantos daqueles homens seriam fantasmas quando o dia chegasse ao fim?
Afastou a ideia para o fundo da mente, levantou-se rapidamente e foi ajudar a preparar os cavalos. Passou pelos homens e alguns deles olharam para cima. Houve uns quantos que grunhiram e se sorriram para ele, mas a maioria limitou-se a acenar. Quando descobriu e selou o seu próprio cavalo já a maioria dos outros se encontrava a pé e em movimento. Black e Tanner apareceram a conversar baixinho. Avançaram para ele vindos da escuridão e pararam junto de Simon.
- O John pensa que podemos cavalgar directamente para o acampamento - disse Tanner. - Forma uma espécie de muralha natural capaz de os manter lá dentro quando entrarmos. Se tivermos sorte e formos rápidos talvez possamos apanhá-los a todos antes que percebam o que lhes está a acontecer.
- Sim, deve ser possível. Parece existir apenas uma entrada do lado sul, como se fosse uma espécie de portão.
- Nesse caso, teremos de dar a volta ao acampamento? - perguntou Simon. - Não nos ouvirão?
- Não - afirmou Black. - O solo em volta é macio e estaremos a salvo se avançarmos lentamente.
Simon olhou de um para o outro.
- Acham que devemos lá entrar a cavalo? Por que não deixamos os cavalos no exterior e os atacamos a pé? No interior do acampamento pode não haver espaço para os animais e corremos o risco de que nos arranquem das selas. Não seria mais seguro avançarmos a pé?
Olharam um para o outro e Tanner acabou por acenar.
- Sim. Está bem, mas devemos manter alguns homens a cavalo no exterior, para que possam intervir no caso das coisas correrem mal. Simon concordou, acabou de apertar a cilha da sela e saltou para o cavalo.
Black e Tanner já se encontravam a cavalo e os três homens avançaram para o centro do acampamento. Tanner explicou aos outros o que pretendiam que fizessem. Levara cinco homens com ele, o que restava do grupo de perseguição que procurara os assassinos do abade, enquanto Simon e Black tinham levado 17, pelo que no total eram agora 21, depois de terem deixado três na cena do massacre dos mercadores e enviado um de volta para transportar o corpo da jovem rapariga.
Os homens agruparam-se e Tanner explicou-lhes o seu plano. Queria que 16 homens entrassem no acampamento e que os restantes cinco permanecessem no exterior, montados nos cavalos. Esses homens poderiam avançar como uma força de cavalaria de reserva se o combate se virasse contra eles, e derrubaria os fora-da-lei para que pudessem ser amarrados. Pretendiam capturar tantos quanto fosse possível. Mereciam um julgamento, independentemente do que os membros do grupo de perseguição pensassem deles. Falou sempre com uma voz dura e firme, como se também não se preocupasse muito com as suas vidas e estivesse disposto a matá-los, mas não se desviou do plano que haviam combinado. A seguir esperou que montassem, mandou-os todos para os seus lugares e conduziu-os para Sul, para o rasto. Fasten avançou rapidamente para se juntar a ele e os dois homens lideraram o grupo.
A escuridão era quase total mas Simon conseguiu ver que se encontravam num campo aberto. De vez em quando distinguia a forma torturada de uma árvore que se destacava contra a linha do céu, parecendo-se com o esqueleto fossilizado de uma antiga criatura erguida na charneca varrida pelos ventos, mas na sua maior parte não havia nada para ver, excepto a contínua ondulação das planícies que se erguiam suavemente para as colinas.
Os dois homens da frente cavalgavam um pouco separados, com o grupo principal a segui-los num nó muito apertado. Agora já nem murmúrios se ouviam porque os homens se encontravam tensos e com os nervos à flor-da-pele enquanto mantinham os ouvidos atentos ao mais ligeiro som que pudessem ouvir por cima do estalar dos couros e do tilintar metálico dos arneses. Ocasionalmente ouvia-se um ruído mais violento quando alguém entrechocava uma arma contra outra, ruído esse seguido imediatamente por uma praga, mas tirando isso o grupo quase nem emitia um som.
Desceram o flanco da colina onde tinham montado o acampamento, para depois seguirem um riacho que serpenteava suavemente por entre as elevações. Os cavaleiros mantiveram as montadas afastadas da água para evitar quaisquer sons indesejáveis, certificando-se de que os cavalos só pisavam a terra macia das margens. Era um lugar fantasmagórico sob o vago clarão cinzento que começava a iluminar o horizonte oriental. Não havia um ruído capaz de distrair os homens, nenhum guincho de coruja ou latido de raposa mas apenas o gorgolejar do ribeiro e os estalidos dos arneses.
Passaram por baixo da curva de uma colina e Black deu meia volta ao cavalo, deixou Fasten parado e regressou para junto do grupo principal.
- Estamos apenas a umas centenas de metros do acampamento, que fica no alto daquela colina. Deixem aqui os cavalos porque vamos continuar a pé.
Os homens desmontaram lentamente e entregaram as rédeas aos que iriam ocupar-se dos cavalos. A seguir, Tanner puxou pela espada e mostrou os dentes num rosnado de delícia animal.
- Vamo-nos a eles!
Black conduziu-os para o alto da colina, obrigando-os a moverem-se de uma maneira lenta e cuidadosa sob a fraca luminosidade da madrugada que já aclarava, com a sua espada a brilhar suavemente contra os tons mais escuros que os envolviam.
Simon sentia-se com a cabeça muito leve e com o peito apertado enquanto se arrastava lentamente atrás do caçador. Sofria de uma espécie de excitação nervosa e quase receosa ante a ideia da luta que ia ter pela frente mas acabou por descobrir que, a cada passo que dava, essa sensação era abafada pela ira e pelo desgosto perante o que aqueles homens haviam feito, assassinando e violando gente no seu condado. Cerrou os dentes e prosseguiu. Sentia o estômago vazio, os músculos gelados e os nervos tensos ao máximo ante a ideia de que iria ter de combater, mas ganhou consciência de que também havia nele um certo júbilo, uma expectativa ansiosa. No fim de contas, aqueles homens não se iriam render sem luta porque eram fora-da-lei. Sabiam que o julgamento só poderia conduzi-los a uma sentença, a forca. Se lhes dessem uma oportunidade, lutariam até à morte sem esperar qualquer tipo de piedade. O grupo de perseguição precisava de se certificar de que não teriam uma tal oportunidade.
Continuaram a avançar lentamente. Black levantou a mão num aviso no momento em que atingiram a meia altura da colina e todos os homens se imobilizaram. Simon sentiu as tripas a desfazerem-se em água ao olhar para cima e ver uma figura de pé, lá no alto, perto de uma árvore. O homem daria o alarme se visse o grupo e perderiam todas as hipóteses de surpreenderem os fora-da-lei. A figura pareceu imóvel por instantes, mas depois virou-se e desapareceu. Simon compreendeu, com um rápido suspiro de alívio, que o homem deveria ter estado a urinar. A mão do caçador voltou a baixar lentamente e continuaram a avançar, com a tensão e a excitação a aumentarem a cada passo.
Havia ali uma espécie de ravina, um rasgão nos flancos da colina, com as vertentes muito inclinadas e um fio de água a correr no fundo, e foi por aí que Black os conduziu. Os lados daquele rasgão pareciam-se quase com falésias, altos e cinzentos, com um tom cinzento ligeiramente mais claro lá no alto, onde o céu se apressava em direcção à madrugada. Avançaram muito devagar e com todas as cautelas, tentando evitar as pedras espalhadas à sua volta como se tivessem sido ali colocadas de propósito para chocarem contra uma lâmina desprevenida e emitirem um sinal de aviso, e pararam de vez em quando para ficarem à escuta antes de prosseguirem.
Foi uma jornada muito difícil, que Simon nunca iria esquecer. Treparam por cima de rochas e de lama, tentando manter-se longe da água, procurando evitar que as armas tilintassem contra as paredes de pedra, caminhando encurvados para não serem vistos mas esforçando-se por avançar o mais depressa possível para atingirem o acampamento antes da madrugada para não perderem a vantagem da surpresa. Simon descobriu a sua mente a vaguear, como se pretendesse evitar ter de pensar na escaramuça que se aproximava ou quisesse ignorar os perigos que os aguardavam e isso os fizesse desaparecer. Começou a pensar em Lydford e no seu novo papel, e também na esposa e na filha, e em como estas iriam gostar da vida no castelo nas profundezas da charneca.
Depois, de repente e com um sentimento de quase alívio, viu a mão a levantar-se novamente e compreendeu que se encontravam quase no alto da ravina. Um pouco mais acima avistava-se o cinzento-claro do céu, que destacava o topo da própria colina. Simon espreitou para a sua frente e franziu a testa. Não via sinais dos fora-da-lei, nenhum fumo de fogueira ou movimento. Parecia não haver ninguém por perto, excepto os membros do grupo de perseguição, e os únicos sons que distinguia eram os das pesadas respirações dos homens por trás dele e do sangue a martelar-lhe nos ouvidos.
Black avançou com suavidade e desapareceu. Por instantes foi apenas uma mancha escura contra o horizonte e sumiu-se. Simon e os outros ficaram onde estavam e esperaram. Pareceu-lhes ter-se passado uma hora antes do caçador reaparecer, mas na verdade não podiam ter sido mais do que alguns minutos. Deteve-se no alto da ravina e fez uma pausa antes de lhes acenar.
Simon subiu rapidamente para o cimo da ravina e parou ao lado de Black à espera dos outros. O caçador esperou que se juntassem e conduziu-os para o alto da colina ao longo de um trilho aberto no meio das ervas, na direcção de uma saliência que se erguia ligeiramente do solo como uma espécie de muro. Simon achatou-se contra a saliência e ficou à escuta. A seguir deslizou ao longo da mesma e fez sinal aos outros para o imitarem. Por fim, ouviu um som. Era o de um cavalo a relinchar do outro lado daquele parapeito natural e levou-o a agarrar o punho da espada com mais força enquanto seguia o caçador.
A madrugada era já um brilho no oriente, que revelava as nuvens com toda a clareza e lhes iluminava o caminho ao longo do parapeito. Não se escutava qualquer outro som para além do do cavalo e dos passos suaves dos homens sobre as ervas. A tensão subia e Simon viu a mão de Black a fazer um novo aceno. Aquele, teve a certeza, iria ser o último sinal. Estava muito perto da entrada, uma mancha mais escura contra o acinzentado da muralha de terra. Viu Black a virar-se para trás rapidamente e a olhar para os homens que o seguiam, para logo saltar para a frente e espreitar o acampamento antes de fazer gestos urgentes. A seguir, desapareceu no escuro.
Simon respirou fundo, murmurou uma oração rápida e foi atrás dele.
Mais tarde, quando pensou na louca confusão da luta que se seguiu, pareceu-lhe que os minutos seguintes tinham sido uma mistura discordante de acontecimentos aparentemente desconexos logo que os homens tinham corrido silenciosamente para o acampamento para tentar capturar os fora-da-lei. Fora como se os homens tivessem todos de algum modo ficado paralisados nos seus próprios e breves quadros vivos juntamente com os inimigos, com cada pequena batalha a desenrolar-se com combatentes próprios, separados e únicos, mas que não deixavam de estar ligados uns aos outros para formarem um quadro geral. Para Simon, quando pensara nisso, fora como uma tapeçaria composta por um certo número de fios individuais que se tinham combinado para formar uma imagem total que, tal como numa tapeçaria, só podia ser compreendida quando os fios eram vistos no seu conjunto. Porém, na altura, quando Simon correra para o acampamento, a batalha fora uma confusão total. Parecera-lhe não haver sentido ou coerência nos pequenos grupos de homens que se debatiam, e a única ideia que permanecia na sua mente era a de que tinham de deter os fora-da-lei para evitar futuros ataques.
Simon penetrou no acampamento e avistou Black de relance. O caçador quase chocara com um homem que se preparava para sair, um jovem que bocejava e se espreguiçava enquanto caminhava, e que parou de repente, confuso, ante a visão do grupo de perseguição que se lançava contra eles. Pareceu ficar demasiado surpreendido para emitir um som. Sem sequer se deter, o caçador atingiu-o no estômago com o punho fechado e o homem caiu, ofegando de dor e agarrado à barriga. Havia um outro homem agachado sobre os carvões de uma fogueira, com as mãos esticadas para a frente a fim de as aquecer, e Black precipitou-se para ele. Estupefacto, o fora-da-lei ficou a olhá-lo de boca aberta. Porém, logo a seguir pareceu compreender o perigo, gritou... e todo o acampamento entrou em ebulição. Simon, que ia atrás de Black, lançou-se sobre a figura adormecida que se encontrava mais longe. Contudo, quando se aproximou, o homem mexeu-se, pôs-se de pé, agarrou num varapau e dançou com ligeireza para longe do apressado murro do almoxarife.
Agora já o acampamento se encontrava repleto de homens que lutavam entre si. Simon viu um dos membros do grupo de perseguição a ir-se abaixo, mas nesse momento sentiu um pau a raspar-lhe pelo queixo num golpe rápido e viu-se forçado a recuar. Baixou-se com a ponta da espada apontada à barriga do homem e a lâmina a oscilar de um lado para o outro, e observou o seu oponente.
Os olhos do fora-da-lei saltitavam nervosamente entre o rosto de Simon e a batalha que se desenrolava por trás dele. Pestanejava rapidamente e as suas feições magras e tensas pareciam irradiar um terror confuso. No entanto atacou, levantando o varapau de baixo para cima numa tentativa para atingir o rosto de Simon. O almoxarife saltou para o lado, aparou o golpe com a espada para o desviar, e rosnou:
- Desiste! - Começou a andar em volta do outro como um lutador, com a pesada espada a cortar o ar na sua frente. - Rende-te! Não têm hipótese de vencerem!
Tinha breves relances do resto da batalha e era claro que o grupo de perseguição não iria necessitar dos homens a cavalo. Já só havia quatro fora-da-lei em condições de combater e no preciso momento em que os contou viu um deles a cair com um grito, agarrado ao flanco, onde um enorme corte lhe rasgara as carnes e pusera as costelas à vista. Agora já eram só três, mas Simon compreendeu que um deles era precisamente aquele que mais desejavam apanhar.
Era um homem grande, volumoso como um urso, uma vasta massa sólida de ossos e músculos com um matagal de cabelos negros caídos sobre os olhos pequenos e negros de ira. Rodopiava e pulava com a espada numa mão e a adaga na outra. Já conseguira ferir Fasten, que jazia no chão, imóvel, a seu lado. Black e dois outros rodeavam-no, saltitando para tentarem atingi-lo, mas o homem desviava-se como se conseguisse antecipar todos os movimentos dos oponentes e era sempre um pouco mais rápido do que eles. Se a situação não fosse tão grave, a imagem do homem que saltitava para aqui e para acolá no meio dos outros três teria sido quase cómica. Contudo, toda a comicidade desapareceu quando outro dos seus atacantes caiu no solo sobre as mãos e os joelhos, a tossir, antes de tombar para um lado e ficar a estremecer como um coelho com a espinha partida, até se imobilizar com uma grande mancha escura a espalhar-se sobre o peito.
A visão fez com que o almoxarife fizesse uma pausa demasiado prolongada e o seu opositor aproveitou para se atirar a ele. Ergueu o pau por cima da cabeça com a intenção de lhe esmagar o crânio. Sobressaltado, Simon aparou o ataque com o lado da lâmina, mas o impulso forçou o fora-da-lei a continuar em frente no preciso momento em que a espada descia sob a força do golpe, pelo que acabou por se espetar na arma do almoxarife.
O homem olhou para baixo e pareceu surpreendido ao ver o metal a sobressair do peito. Levantou os olhos para Simon com uma expressão que nada tinha de medo ou de ira mas apenas de espanto e incompreensão por aquilo lhe ter acontecido. Todavia, essa expressão morreu-lhe no rosto e o homem caiu aos pés do almoxarife.
Simon ficou a ofegar por instantes, olhando para o corpo com uma certa irritação. Por que não se rendera? Todavia, quando a pergunta lhe surgiu na cabeça sentiu também o orgulho da vitória, a satisfação por ter vencido o seu primeiro combate até à morte, mas tratou-se de uma sensação que foi rapidamente abafada pelos sons por trás dele.
Virou-se, voltou a ver o grupo de homens em torno do cavaleiro e encaminhou-se para eles com a espada ainda na mão.
O homem que Simon pressupunha ser um cavaleiro era o único que ainda se debatia e a sua voz áspera berrava de raiva para os que o cercavam como cães de caça em volta da presa. Atacava e procurava golpear os seus inimigos com os olhos transformados em pequenas faíscas de ira, como se fossem os olhos enlouquecidos de um javali encurralado.
- Alto! Acabem com esta loucura! - gritou Simon quando se aproximou. O companheiro de Black pareceu hesitar mas o cavaleiro continuou a lutar e obrigou o caçador e o outro a recuarem, forçando-os a ceder terreno enquanto gritava a sua fúria. Movia-se tão rapidamente como um raio e parecia descobrir sempre um ponto fraco que explorava imediatamente, pressionando e continuando a pressionar até os outros dois terem de recuar enquanto brandiam desesperadamente as armas numa tentativa para se defenderem.
Porém, a sua sorte não durou para sempre. Lançou-se para a frente com violência, arrancou a arma das mãos do companheiro de Black e enterrou-lhe a própria espada na barriga, quase fazendo desaparecer a lâmina no corpo do oponente. A vítima olhou para baixo, incrédula, para a lâmina espetada no seu corpo e Black aproveitou a oportunidade, avançou por trás do cavaleiro e golpeou-o pelas costas. O cavaleiro estremeceu, soltou um rugido e pareceu pronto para rodopiar e atingir Black, mas depois cambaleou, caiu de joelhos e levou as mãos às costas numa vã tentativa para extrair a espada.
Simon parou, ficou a olhar... e houve qualquer coisa que o atingiu na nuca. Sentiu-se a cair, não para o chão mas para o enorme poço negro que pareceu abrir-se nas ervas à sua frente. Foi quase com alívio que aceitou a frescura suave da escuridão que o engoliu.
Ao voltar a si descobriu-se deitado de costas no exterior do acampamento, virado para sul, com um cobertor por cima do corpo para o manter quente. O dia tornara-se claro e brilhante, com um céu de um profundo tom azul a rodear as espessas nuvens brancas que o percorriam lentamente. Simon deixou-se ficar deitado e observou-as durante algum tempo, com a mente a vaguear, perdendo-se no prazer de continuar vivo.
Ouviu passos, virou-se e viu Black e Tanner a caminharem para ele. Tentou sentar-se para os saudar mas descobriu que os seus músculos pareciam ter-se transformado em geleia, pelo que tudo o que conseguiu fazer foi cair para um lado. Deixou-se ficar, surpreendido. Ouviu uma gargalhada e pés que corriam para ele. A seguir sentiu mãos delicadas a levantarem-no e a encostarem-no contra o parapeito do acampamento. Quando voltou a abrir os olhos deparou com os rostos de um Black muito sério e de um Tanner sorridente, agachados na sua frente.
Tanner parecia estar incólume, mas Black tinha um pano sujo a amarrar o que devia ser um longo corte no braço, desde o pulso ao cotovelo.
- Que me aconteceu? Ia ter convosco quando ficou tudo negro...
- Um dos fora-da-lei atingiu-te com o cacete e derrubou-te. Estava junto dos cavalos, na traseira do acampamento, e meteste-te no caminho dele quando tentou fugir. Não te preocupes, apanhámo-lo!
- Quanto tempo estive...?
- Oh, não muito, almoxarife, talvez à volta de meia hora. O Sol ainda mal começou a subir... - declarou Tanner, sorrindo-se para ele.
- E os homens? Quantos ficaram feridos?
Foi Black quem respondeu.
- O velho Cotten, o Fasten e dois outros... estão mortos. Há três feridos, mas nenhum deles com gravidade porque só sofreram arranhões. Pela minha parte fui marcado por aquele gigante do inferno... e o senhor levou uma pancada na cabeça. É tudo.
Simon abanou a cabeça, incrédulo.
- Quatro mortos? Meu Deus!
- Ora, almoxarife, até nos portámos muito bem. No fim de contas lutámos contra o que, pelo aspecto, parece ser um cavaleiro, e poucos de nós tiveram treino como soldados. Conseguimos muito... e com poucas perdas. Não te esqueças que só aquele estupor matou dois e feriu um. Se não fosse ele, teríamos muito menos vítimas...
- Sim, e todas as batalhas provocam baixas - declarou Black. - Bom, como se sente? Parece pouco mais do que um arranhão, mas o golpe deve ter sido violento para o ter deitado abaixo com tanta facilidade.
Simon apalpou o crânio com cuidado. Tinha um grande galo no sítio onde o bordão o atingira e os cabelos estavam empastados de sangue e terra.
- Penso que estou bem - afirmou, inseguro. - Agora já só tenho uma dor de cabeça.
Tanner espreitou o ferimento e fez uma pequena careta.
- Sim, deve sarar bem. Parece suficientemente limpa. Nada que uma boa noite de sono não cure.
- Quantos apanhámos? - perguntou Simon.
- Não escapou nenhum - respondeu Black. - Eram nove, tal como pensei. Quatro serão enforcados pelos seus crimes, mas os outros... Bom...
- Quero vê-los - declarou Simon, debatendo-se para se pôr de pé.
- Não, não, espera até estares melhor da cabeça - pediu Tanner, algo alarmado com a palidez do rosto do almoxarife.
- Não. Quero vê-los agora! Tenho de saber que espécie de homens são estes - insistiu Simon com firmeza, erguendo-se e apoiando-se no parapeito de terra.
Tanner e Black olharam um para o outro. O caçador encolheu os ombros imperceptivelmente e levantou-se. Estendeu o braço bom para o almoxarife e ajudou-o a dirigir-se para a entrada.
Os prisioneiros permaneciam encolhidos na outra extremidade do acampamento, com os braços atados, e eram vigiados por dois homens do grupo de perseguição, com as espadas desembainhadas e prontas. Simon deixou que o conduzissem até junto deles e depois parou por instantes, com a dor de cabeça a fazê-lo oscilar um pouco. Observou os homens com atenção, como um espectador a olhar para um urso e a avaliar as suas capacidades de luta antes dos cães serem soltos. A um canto via-se a figura do cavaleiro, de costas para a parede, a fitar o grupo de perseguição.
- Aquele não vai durar muito, almoxarife... - disse Black, baixinho. Simon avançou para o homem e ficou chocado ao ver o ódio amargo que transparecia na sua expressão. Era óbvio que não poderia sobreviver à jornada até Oakhampton. Tinha um fio de sangue a escorrer de um dos cantos da boca e quando os três homens se aproximaram Simon conseguiu ouvir o sangue a gorgolejar-lhe na garganta em simultâneo com a respiração difícil.
- Vieste regozijar-te? Queres ver a derrota da tua vítima?
As palavras trocistas eram duras, carregadas de desgosto e de ódio. O homem escarrou e cuspiu como se lhe tivessem sabido a veneno, e foi assolado por um ataque de tosse, com os espasmos a contorcerem-lhe o corpo como se quisesse vomitar. Quando voltou a olhar para eles tinha as feições tão pálidas e cerosas como um cadáver, o que fazia com que os cabelos negros parecessem falsos, como se tivessem sido pintados com breu. A cicatriz era uma furiosa chama rosada, mas até ela parecia estar a apagar-se em uníssono com o seu espírito enquanto os olhos eram os de um homem febril, brilhantes e líquidos, que dardejavam na direcção dos seus captores.
Simon agachou-se, fixou os olhos no rosto do cavaleiro, examinou o homem ferido e perguntou:
- Como te chamas?
O cavaleiro tossiu pela segunda vez, cuspiu um espesso coágulo de sangue para o chão e olhou-o por instantes, pensativo.
- Porquê? Para poderes desonrar o meu nome?
- Queremos saber quem foi o responsável por tantas mortes, mais nada.
- Tantas mortes? - O tom de voz do cavaleiro era amargo quando fitou os olhos de Simon. - Sou um cavaleiro! Tomo aquilo de que preciso e luto se tentarem deter-me!
- Até lutas contra mercadores? Não conseguiste encontrar inimigos mais fortes do que isso? - perguntou Simon com frieza e o cavaleiro desviou os olhos. - Não és daqui. De onde vieste?
- Sou do Leste, de Hungerford. - Tossiu numa série de movimentos entrecortados que o fizeram estremecer e o obrigaram a uma pausa para tentar acalmar-se e controlar a respiração. Quando voltou a falar saltou-lhe uma espécie de nevoeiro vermelho da boca, que lhe coloriu os lábios enquanto a vida lhe fugia. - Chamo-me Rodney.
- Por que te juntaste a este bando? Se eras um cavaleiro, por que te transformaste num fora-da-lei? - perguntou Simon, que pensou ter visto um fugidio clarão de tristeza nos olhos negros do homem.
- Perdi a posição quando o meu senhor morreu. Ia a caminho da Cornualha quando estes homens me emboscaram e me deram a escolher: ou me juntava a eles ou morria. Escolhi a vida. - Contorceu os lábios, como se reconhecesse a ironia daquelas palavras na sua actual situação. - Caí na emboscada e teria morrido... Eram demasiados para que me pudesse defender. Tentei, mas era inútil. Não resisti, mas no fim dei a minha palavra de que viveria com eles e juraram aceitar-me. Permitiram-me viver e concordei em ajudá-los...
O almoxarife acenou. Já ouvira falar de guerreiros sem um tostão nos bolsos que se tinham unido a bandos em busca de uma nova identidade e que procuravam sobreviver a qualquer custo.
- Mas para quê matar? Por que mataram tantos?
A tosse do homem tornou-se pior e mais torturada, enquanto o rosto empalidecia ainda mais e começava a suar. A voz saiu-lhe com dificuldade, como se tivesse a garganta ressequida.
- Matámos por comida e dinheiro... os que roubámos no outro dia eram ricos... e eram apenas mercadores. Que vida pode haver para um cavaleiro sem um senhor? Sem terras, sem dinheiro? Tinha perdido tudo quando os fora-da-lei me apanharam.... Por que não haveria de me juntar a eles? Que mais poderia fazer? Talvez prosseguir para a Cornualha, mas aí também não tinha garantias de vida... Sabia que seria aceite entre os fora-da-lei...
- E por que razão mataram o abade?
- Qual abade? - As palavras provocaram-lhe outro ataque de tosse. Simon olhou-o com um desgosto temperado por alguma piedade enquanto esperava que o ataque passasse. Piedade pela dor da sua morte lenta, desgosto pelo desprezo que o cavaleiro mostrava por todos os nascidos numa classe inferior à sua, e pelo pressuposto de que a mera posse de uma espada lhe conferia o direito de matar.
O espasmo passou e Simon perguntou-lhe:
- O abade que queimaram... que assassinaram na floresta... Por que o mataram?
- Eu?! Matar um homem de Deus? - por momentos, o olhar do cavaleiro foi de surpresa, rapidamente substituída pela raiva. A enorme figura olhou-os com uma fúria tão repentina que o almoxarife não conseguiu impedir um estremecimento. - Eu? Matar um homem santo?!
- Tu e o teu amigo levaram-no e queimaram-no vivo - prosseguiu Simon, já com algumas dúvidas.
- Quem se atreve a dizer que fui eu?
Preparou-se para uma negação furiosa, o que provocou uma nova erupção de sangue que lhe saltou da boca e do nariz. Quis falar mas as palavras afogaram-se-lhe na boca quando caiu para o lado. Agarrou-se à garganta numa vã tentativa para respirar enquanto se agitava numa desesperada luta pelo ar e pela vida, com os olhos sempre fixos em Simon. Não havia ali medo, apenas uma ira total perante a injustiça da acusação. O almoxarife continuou agachado, a olhá-lo, já sem qualquer tipo de sentimentos para além de um vago interesse em saber de quanto tempo precisaria o homem para morrer. Na sua mente ainda via os corpos carbonizados, os braços enegrecidos pendentes das carroças, o pequeno monte de farrapos abandonado na charneca, da rapariga que morrera tão longe de casa. A sua simpatia fora toda gasta com as vítimas do cavaleiro.
O fim não demorou. O espírito abandonou o corpo do homem, Simon levantou-se e olhou-o com um desprezo desinteressado antes de se virar para os outros dois e dizer:
- Juntem os fora-da-lei mortos e enterrem-nos. Levaremos os nossos mortos connosco, mas estes ficam aqui.
Black gritou para os homens do grupo e transmitiu as ordens enquanto o almoxarife continuava a olhar para o corpo. O cavaleiro matara muita gente mas negara ter feito algum mal ao abade. Porquê? Deus conhecia os seus crimes e Rodney devia saber que estava a morrer. Por que negara o crime? Seria possível que tivesse dito a verdade e não fosse o assassino de Penne?
Quando Simon se virou e estudou os outros prisioneiros já tinha o rosto contraído numa careta de concentração. O prisioneiro mais jovem, um homem encovado, magricela e com cabelos muito claros, talvez com apenas 22 ou 23 anos, começou a arrastar os pés, incomodado com aquele olhar. Black acabou de dar as suas ordens, Simon apontou para o homem e fez-lhe sinal para se aproximar. O jovem lançou uma olhadela nervosa para os companheiros antes de avançar cautelosamente para cerca de dois metros do almoxarife.
- Ah! - Tanner soltou uma exclamação de espanto. - Por que escolheste esse? - Simon olhou-o sem compreender e o regedor continuou: - Foi o que te bateu na cabeça, o que estava com os cavalos.
Simon podia ver, agora que o jovem se encontrava mais perto, que a magreza do prisioneiro se devia à subalimentação. As maçãs-do-rosto muito altas sobressaíam das faces descarnadas, os olhos azuis-claros estavam encovados e pareciam aquosos como se tivessem perdido toda a cor. Tinha um olhar pouco firme e cheio de medo, que saltitava para todo o lado, para os sapatos de Simon, para os ombros e para o que se passava por trás dele, e que só ocasionalmente enfrentava os olhos de Simon, para logo se voltar a desviar.
- Como te chamas? - perguntou Simon, que ficou surpreendido com a aspereza da sua própria voz.
- Weaver, senhor.
- De onde és?
- De Tolpuddle, senhor.
Simon olhou para Black, que encolheu os ombros numa expressão de desinteresse. Voltou a fitar Weaver.
- Há quanto tempo estás aqui, rapaz?
O jovem procurava evitar os olhos de Simon e baixou o rosto para o chão.
- Há um mês.
- Quantos mataste, nesse tempo?
O rapaz levantou a cabeça com um brilho de desafio nos olhos azuis.
- Só um... e foi porque tive de o fazer para que ele não-me matasse.
- E os mercadores? Dizes que não estiveste envolvido nas suas mortes?
Weaver voltou a olhar para os pés, como se aquela breve chama de ira lhe tivesse esgotado todas as energias.
- Não. Fiquei a tratar dos cavalos.
- Achas que isso vai melhorar as coisas? Pertencias ao bando que os matou, não é verdade? - Simon levantou as mãos num gesto de desprezo. - Quantos mataram?
Weaver deixou cair a cabeça. Parecia ter perdido todo o interesse na conversa.
- Não sei. Dez... ou talvez 12...
- Onde...? - O almoxarife passou uma das mãos pelos olhos cansados. Como podia aquele homem ter ajudado a matar tanta gente? Prosseguiu com uma voz baixa e triste. - Onde é que tu e o bando estiveram antes disso?
- Perto de Ashwater - respondeu o jovem, sombrio.
Simon voltou a olhar para o caçador, que demonstrou tanto interesse por Ashwater como demonstrara por Tolpuddle. - Quando foi que saíram de lá?
- Não sei. Talvez há uma semana.
- E quando chegaram a Copplestone?
- Onde?
- Copplestone, onde mataram o abade.
- Qual abade? Não sei nada a esse respeito!
- Quando foi que saíram de Ashwater?
- Há uma semana, já disse!
- Onde fica Ashwater?
De repente, Simon ficou convicto da honestidade do homem. Estava a dizer a verdade porque sabia que, de qualquer modo, iria morrer. Desinteressara-se e já não queria enganar ninguém. Agora só desejava juntar-se aos amigos para ter um pouco de paz junto dos da sua espécie antes de enfrentar a corda.
- Para Oeste, a norte de Launceston - disse o homem, e Simon ouviu o ar a silvar por entre os dentes de Black quando este avançou. Contudo, apertou-lhe o braço e o caçador imobilizou-se sem tirar os olhos de Weaver.
- Estás a mentir, rapaz - rosnou Black. - Nunca poderias chegar a Copplestone a tempo de...
- Não sei nada a respeito de Copplestone - retorquiu o jovem, enfrentando Simon. - Vou ser enforcado, senhor. Para que mentiria? Não me interessa o que pensam, mas não tive nada a ver com nenhum abade.
A mente de Simon rodopiava. Então, não tinham sido aqueles homens? Nesse caso, quem matara Penne? Reuniu os seus pensamentos. Os monges tinham falado em dois homens, não fora? E se...
- Quando foi que encontraram o cavaleiro? - inquiriu, com a voz a falhar-lhe um pouco.
- Esse! - A voz de Weaver revelou desprezo. - Rodney de Hungerford? Só o encontrámos há alguns dias. Tentámos apanhá-lo. Cavalgou até ao meio do nosso grupo mas manteve-nos afastados quando o atacámos. Conseguiu até matar o nosso chefe. Tinha dinheiro mas não pudemos fazer nada a esse respeito. No fim, deixámos que se juntasse a nós porque sabia lutar.
- E o amigo dele? - perguntou Simon, num impulso.
- Qual amigo?
- Estava na companhia de outro homem.
- Não, quando o encontrámos estava sozinho.
- Onde? Onde foi que o encontraram?
- Oh, não sei. Perto de Oakhampton. Disse que ia para a Cornualha...
Até Black pareceu interessado e olhou para Weaver com mais atenção.
- Disse de onde vinha?
- De Hungerford, como já disse. Creio que falou... num sítio qualquer para Leste daqui...
- Montava um cavalo de guerra?
- Um cavalo de guerra? Não. - Weaver soltou uma curta gargalhada. Não, tinha uma égua, uma égua pequena.
- Uma égua?
- Sim, numa égua cinzenta. Disse-nos que a encontrara pelo caminho, selada e arriada, como se o cavaleiro tivesse sido derrubado.
- Terá dito quando foi isso?
- Oh, não sei... Há uns dias. Talvez dois dias antes de o encontrarmos. Afirmou que a égua tinha dinheiro nos sacos da sela mas não quis partilhá-lo connosco.
- E disse-vos onde encontrou a égua?
- Não me parece...
- Pensa!
- Pode ter dito. Acho que foi algures para Leste de Oakhampton, mas eu...
- E tens a certeza de que o dinheiro estava nos sacos da sela?
- Sim. - A voz do jovem ganhava um tom aborrecido, como se começasse a ficar farto das perguntas.
- Então... - começou Simon, mas foi interrompido pelo jovem, que encolheu os ombros num pequeno movimento de indiferença.
- Não me interessa, e não compreendo por que tenho de vos ajudar! Não tenho nada a ver com o que ele possa ter feito! - Simon abriu a boca para falar mas Weaver deu um passo atrás, parecendo querer desafiá-lo a fazer-lhe mais perguntas. - Não quero saber! Já disse tudo o que sei.
Simon encolheu os ombros. Faria assim tanta diferença? E até que ponto podia confiar naquele homem? Weaver ficou a olhá-los por momentos, virou-se e caminhou para junto dos companheiros, deixando o rosto do caçador vermelho de fúria com a sua impertinência. Pareceu prestes a soltar um grito e a ir atrás do fora-da-lei, mas Simon deteve-o.
- Não, não vale a pena. Já nos disse o suficiente.
Black fitou-o, mas logo de seguida acalmou-se e olhou para o homem que se juntava ao grupo e se sentava, fitando-os com uma expressão de desafio.
- Sim, já disse, não é verdade? O cavaleiro veio do Leste. Deve ter atravessado Exeter pela estrada de Crediton e encontrou os monges pelo caminho.
- No entanto, os monges disseram que eram dois homens.
- Talvez fossem. Podem ter-se separado depois de uma discussão. Quem o poderá saber? De qualquer modo, agora é mais fácil. Graças a Deus, já apanhámos o assassino do abade! Se calhar também foi ele quem matou o Brewer, de passagem...
- O quê? - Simon virou-se para o encarar.
- Bom, o rapaz disse que o cavaleiro tinha vindo do Leste, não é verdade? Pode ter morto o Brewer para lhe roubar o dinheiro e prosseguiu o seu caminho. A seguir matou o abade, encontrou esta ralé e juntou-se ao bando. - Enfiou as mãos no cinto, muito satisfeito. - Acho que o nosso trabalho de hoje pôs fim à matança.
Virou-se e saiu lentamente do acampamento. Simon seguiu-o, ouviu um leve relinchar e virou a cabeça de repente.
- John, onde estão os cavalos deles?
- Os cavalos? Oh, estão além....
- Vamos dar-lhes uma olhadela.
Dirigiram-se ao local onde os cavalos dos fora-da-lei tinham ficado amarrados para a noite. Havia ali uma grande mistura de animais, desde os pequenos e resistentes póneis até grandes cavalos de tiro. Simon olhou-os durante cerca de um minuto.
- Black?
- Hum?
- Quando seguiste os rastos dos assassinos do abade, disseste que um dos cavalos era grande e que lhe faltava um cravo numa ferradura.
- É verdade.
- Para além disso, a montada do abade era uma égua cinzenta com uma cicatriz na cernelha.
- Sim.
- Podes dar-lhes uma vista de olhos? Vê se falta um cravo a um desses animais... e se está aí alguma égua cinzenta com uma cicatriz na cernelha.
Simon virou-se e afastou-se, para se ir deitar nas ervas, a olhar na direcção do mar, por cima das colinas cobertas de verde e salpicadas de árvores... e pouco depois já estava a dormitar sob o calor do Sol.
Partiram do acampamento a meio da manhã. Os prisioneiros, encolhidos e assustados, foram autorizados a montarem nos seus próprios cavalos mais por vontade, da parte dos homens do grupo de perseguição, de voltarem rapidamente a casa do que por bondade. Os mortos do grupo foram amarrados a cavalos e conduzidos pelos cavaleiros.
Simon e Hugh acompanharam os outros durante algum tempo mas separaram-se a cerca de três quilómetros da cena da batalha. Não lhe parecia haver qualquer vantagem em continuarem até Oakhampton na companhia do grupo e dos prisioneiros, pelo que Simon decidiu atalhar pela charneca e voltar para casa através de Moretonhampstead e Tedburn.
Os outros estavam ansiosos por chegarem à cidade para serem saudados como captores dos fora-da-lei, mas Hugh já cavalgara o suficiente para vários meses e Simon queria voltar para junto da mulher e da filha. Nada tinham a recear pelo caminho agora que o bando fora capturado, pelo que o almoxarife e o seu servo não necessitavam de uma protecção extra.
Separaram-se quando chegaram ao caminho para Moretonhampstead, uma grande estrada que atravessava a charneca e seguia até à costa. Hugh e o seu amo ficaram a ver o grupo de perseguição a afastar-se alegremente para o norte e acenaram aos amigos até estes desaparecerem para lá da colina seguinte. A seguir viraram as montadas e encaminharam-se para nordeste, de regresso a casa.
Simon manteve-se profundamente mergulhado em pensamentos durante a primeira hora, cavalgando lentamente com o queixo caído sobre o peito enquanto deixava que a montada seguisse a passo para permitir a Hugh apreciar a cavalgada pela primeira vez desde que tinham saído de casa, há já tantos dias.
Hugh nunca o vira tão absorto e concentrado, e cavalgava ao lado do amo com uma expressão de preocupação confundida. Hugh sempre tentara ser um bom servidor dos Puttocks, que adorava quase tanto como à sua própria família. Embora o seu aspecto exterior fosse em geral melancólico, tal devia-se principalmente aos tempos de juventude, quando tivera de suportar a dura vida de um pastor, no alto das serranias. Havia sempre uma certa amargura natural entre os homens que vigiavam as ovelhas nas serras em volta das charnecas. A solidão conduzia à introspecção e os ataques dos animais selvagens e ferozes levavam a uma certa dose de cinismo. Todavia, isso não alterava o facto de ser inteiramente leal ao amo e à respectiva família, e era por essa razão que se sentia preocupado com as atitudes soturnas de Simon.
Hugh ia tentar interromper os pensamentos do amo quando Simon levantou repentinamente a cabeça com uma carranca estampada na face e se virou para o servo.
- Hugh, recordas-te da conversa que tivemos com Black e Tanner, junto à fogueira, há um par de dias?
Hugh ficou aliviado por se ver incluído nos pensamentos do patrão, anteriormente privados, e lançou-lhe um rápido e túrgido sorriso de esguelha.
- Quando falámos a respeito do abade e de Brewer... e eu disse que os fora-da-lei não tinham morto o agricultor? - perguntou. Simon acenou uma confirmação, de rosto ainda franzido.
- Sim. Ainda acreditas nisso?
- Bom... - Hugh ficou a pensar por momentos, para logo continuar rapidamente. - Não, agora já não.
- Então porquê?
- O John Black disse-me que aquele homem, o cavaleiro, se tinha juntado aos outros há pouco tempo. Explicou que o cavaleiro devia ter passado por Crediton, a caminho de Oakhampton, mais ou menos na altura do crime. Ainda não fazia parte do bando mas encontrava-se na zona. Deve ter sido ele...
- Hum... Isso é o que o John Black diz, não é?
- Sim, e faz sentido, não é verdade?
- Que aconteceu ao cavalo de guerra? E ao companheiro?
- Não sei, talvez o cavalo fosse do outro. Ou talvez o amigo lho roubasse. Não há dúvida de que o cavaleiro tinha a égua em seu poder. Deve ter morto o abade e roubado a égua. Também faz sentido que tenha sido ele o assassino do Brewer.
- Olha que não sei...
Hugh olhou-o. Simon regressara ao seu silêncio pensativo, com o queixo pousado no peito enquanto oscilava sobre a montada e olhava para a superfície da estrada por baixo dele como que a desafiá-la a contrariar os seus pensamentos. Hugh respirou fundo e tossiu. Como o efeito foi nulo, perguntou:
- Mestre...?
Ouviu-se um grunhido mas Simon só levantou os olhos alguns metros depois. Espreitou o servo com uma careta de concentração e com pensamentos tão intensos que quase pareceu não o reconhecer.
- O que é?
- Por que me perguntou aquilo?
- Hum? Oh! Bom, estava a pensar, a perguntar a mim mesmo... Não consigo acreditar que foi ele quem matou o Brewer, embora pareça ter morto o abade. - A voz apagou-se-lhe e voltou a embrenhar-se nos seus pensamentos. Depois, com a cabeça de esguelha e sem olhar para o servo, começou a falar de um modo lento e conciso. - Se foí o cavaleiro quem capturou o abade e o tomou como refém... se foi o Rodney... então, tratou-se de um ataque ocasional, como roubo... ou foi planeado e pretendido, talvez como vingança. Se se tratou de uma vingança por qualquer ofensa, é provável que nunca venhamos a saber qual foi o motivo. Se não o foi, só pode ter sido um ataque por acaso... e que quer isso dizer?
Murmurava enquanto pensava no assunto, com a testa profundamente sulcada.
- O cavaleiro e o outro homem encontraram os monges na estrada. Agarraram o abade e levaram-no com ele para a floresta. Levaram-no para muito longe, amarraram-no a uma árvore, queimaram-no e ficaram a vê-lo morrer. Por que o mataram desse modo? Se tinham de o matar, então por que não lhe espetaram uma faca nas costas, ou por que não o enforcaram para poderem fugir o mais depressa possível? O simples facto de o terem morto desse modo torna improvável que se tratasse de um ataque ocasional. - Lançou uma olhadela atenta para Hugh. - Achas que isto faz algum sentido?
Hugh ficou a pensar durante um minuto, com o lábio inferior pendente enquanto se concentrava naquela lógica.
- Sim... - declarou lentamente - acho que faz.
- Belo! Então, continuemos... Assim, presumindo que foi um encontro ocasional, se eles fizeram aquilo... Temos de pensar bem no assunto... Se fizeram aquilo, se mataram o abade, então por que se separaram? Por que foi que um deles ficou com todo o dinheiro e com a égua do abade, e o outro com o cavalo de guerra? Porquê? O cavalo de guerra valia mais... e que aconteceu ao cavalo do outro homem? Os monges disseram que os dois atacantes estavam montados. Então, onde está o segundo cavalo?
- Talvez o outro os levasse aos dois...?
- Porquê? Por que o faria? Para que serviria? Um homem com dois cavalos levanta suspeitas e chama as atenções.
- Oh, não sei! De qualquer modo, o John Black deve ter razão, de certeza que foi o mesmo homem quem matou o Brewer.
- O quê? Ele? O cavaleiro? Matou o Brewer? - A incredulidade levou-o a aumentar o tom de voz. - Para quê? Pelo dinheiro? Como era que um cavaleiro em viagem podia ouvir falar, de passagem, nas riquezas de um agricultor? Achas que é credível? De qualquer modo, tratemos primeiro da morte do abade, está bem? Muito bem, acho que temos de pressupor que não se tratou de um encontro ocasional... e que foi intencional. O cavaleiro e o seu cúmplice viram os monges na estrada e atacaram. Que quer isso dizer? Não houve uma emboscada, o que me parece estranho. Talvez o cavaleiro deparasse com os monges e reconhecesse o abade... pelas costas? Não, claro que não! Não se reconhece um homem a cavalo pelas costas, só se reconhecem rostos. Isso quer dizer que devia ter ouvido falar no abade, sabia que o homem se encontrava ali antes de atacar os monges, foi atrás dele e tentou apanhá-lo. Talvez os dois homens andassem atrás dos monges há já algum tempo...? Contudo, mesmo assim...
- O quê, mestre?
- Por que diabo se separaram depois de o terem morto? Se eram dois e andavam atrás do abade havia já algum tempo, por que se separaram imediatamente a seguir? Seria de pensar que ficariam juntos... e que a imensidade do crime cometido os manteria unidos...
Hugh estava a ficar confuso.
- Então, que está a querer dizer?
- Não acredito que o Rodney tenha morto o abade. Não posso acreditar! Quer tenha encontrado o abade por acaso ou andasse à procura dele, não se separaria do cavalo de guerra. Era um cavaleiro, não o abandonaria, nem o daria! Um cavalo de guerra custa mais de 100 libras!
- Bom, sim... mas...
- Nesse caso, a história que o cavaleiro contou seria verdadeira? Será possível que tenha encontrado a égua? Será possível que a tenha encontrado e tivesse ficado com ela por não ter outro cavalo?
- Mestre, talvez ele...
- Não! - declarou Simon, decidido. - Tenho a certeza de que o assassino do abade foi outra pessoa qualquer... e isso significa que a opinião de Mestre Black está errada. O Black acha que, se passou por aqui um assassino... então também deve ter morto o Brewer. Penso que Rodney não matou o Penne. Acreditei nele quando se mostrou tão chocado com a ideia de matar um monge e creio que é igualmente improvável que tenha morto o agricultor. No fim de contas, o Brewer era impopular. Não é muito mais provável que tenha sido morto por alguém que o odiava, alguém da região? Não! Quem os matou foram outras pessoas! - Esporeou o cavalo e incitou-o a um trote ligeiro. Hugh suspirou e obrigou a montada a acompanhá-lo.
Não precisavam de seguir rastos e podiam manter-se nas estradas e caminhos, pelo que fizeram um bom tempo e chegaram a Drewsteignton por volta do meio-dia. Pararam uma única vez para darem de beber aos cavalos, voltaram a partir imediatamente, num passo fácil que não forçasse os animais, e chegaram a Crediton ao crepúsculo. Hugh esperava que o amo sugerisse que prosseguissem imediatamente, pelo que ficou muito surpreendido ao ouvi-lo mencionar dores no corpo e a propor que passassem a noite com o sacerdote, Peter Clifford, na igreja de Crediton. Hugh encolhera os ombros e concordara, embora no fundo da sua mente existisse a suspeita de que o amo tinha uma qualquer segunda intenção, uma vez que uma tal sugestão nem sequer parecera dele.
O sacerdote ficou deliciado por os ver. Precipitou-se para lhes dar as boas-vindas, de braços abertos e olhos a brilharem de satisfação.
Conduziu-os para a sala, sentou-os junto do fogo e serviu-lhes vinho quente e doce.
- Então, meus amigos, que fazem tão longe de casa? Ouvi falar no bando que matou o abade e que tinham ido atrás dele. A vossa caçada teve êxito?
Simon respondeu sem desviar os olhos da caneca de estanho.
- Sim, Peter, apanhámo-los na charneca. No entanto, ainda tiveram tempo para voltar a matar.
- Oh, não! - A testa de Peter enrugou-se de tristeza ante a notícia. Simon inclinou-se para a frente e fitou o amigo com um olhar firme.
- Peter, recordas-te de ter visto algum cavaleiro a passar por Crediton mais ou menos quando os monges apareceram? Ouviste alguma coisa a respeito de um estranho? Um homem alto, muito largo de ombros, montado num grande cavalo? Podia ter um companheiro com ele.
- Não, não me parece. Porquê? Quem era esse homem?
- Chamava-se Rodney de Hungerford. Encontrámo-lo com os fora-da-lei. Ao que parece, era um cavaleiro empobrecido. John Black e os outros pensam que pode ter sido ele quem matou o abade.
- Não. Tenho a certeza de que me recordaria se me tivessem dito alguma coisa a seu respeito.
- Pois é. Bom, de qualquer modo, acho que fiz bem em perguntar.
- E quanto a esse ataque, Simon? Mataram muita gente?
- Receio que sim... - respondeu o almoxarife, que começou a descrever os assassínios, a perseguição através da charneca e o combate com os fora-da-lei. O sacerdote escutou-o com atenção, inclinado para a frente, com os cotovelos assentes nos joelhos e a caneca na mão, acenando de compreensão à medida que a história se desenrolava.
- Estou a ver... - comentou, quando Simon terminou. - Tantas pobres almas... e tudo por causa da ânsia pelo dinheiro e pelas mulheres. Oh, meu Deus, toma-as ao teu cuidado e aceita essas pobres almas! - O sacerdote fitava as chamas sem as ver. Passados alguns instantes, olhou atentamente para Simon. - No entanto, não estás certo que esses homens tenham morto o Brewer e o abade, pois não?
- Bom, já que mencionas isso...
O sacerdote inclinou-se para trás com um sorriso no rosto.
- Ora, vamos lá, Simon. Sabes bem que acabarás por me contar tudo mais cedo ou mais tarde!
O almoxarife, descontraído pelo calor e pelo vinho, soltou uma gargalhada curta antes de olhar para o amigo.
- Está bem, Peter. Tenho a certeza, tanto quanto possível, de que foram eles quem matou os mercadores...
- Mas...?
- No entanto, não tenho tantas certezas quanto ao envolvimento daquele cavaleiro na morte do agricultor ou do abade. Custa-me a acreditar que o abade tenha sido morto por capricho e penso que foi um assassínio planeado. Isso significa que também não acredito que se tratasse de um roubo. Quem é que já ouviu falar de um ladrão a matar as suas vítimas daquele modo?
- Então, pensas que os ladrões podem ter sido perturbados, que entraram em pânico e quiseram fugir?
- Ora, Peter! Não, não é isso o que penso! Não te esqueças que o assassino levou o seu tempo. Amarrou o abade a uma árvore e acendeu uma fogueira por baixo dele. Sentou-se e ficou a assistir à morte do homem. Se tivesse aparecido alguém no local, não achas que já o saberíamos? Por outro lado, se os assassinos tivessem sido vistos, teriam apunhalado o homem. Não, se estavam com pressa não faz sentido que tenham morto o abade daquele modo!
- Nesse caso, estou a ficar confuso. Então, por que pensas que o mataram assim?
- Só consigo imaginar uma razão: o abade foi morto por causa de um qualquer tipo de vingança. É a única coisa que faz sentido. Mataram-no daquele modo por uma razão perfeitamente definida. Talvez pensassem que se tratava de um herético, ou que prestou falsos testemunhos contra outros... Não sei os motivos... mas tenho a certeza de que não foi o Rodney.
- Então, quem poderá ter sido?
- Não sei. Não faço a menor ideia.
Mergulharam todos no silêncio e ficaram a olhar para as chamas. Clifford exibia um sorriso pensativo estampado no rosto, Simon mantinha o rosto franzido enquanto tentava tirar algum sentido do assassínio e analisava todos os factos para tentar descobrir a ponta à meada da verdade, mas com muito poucas esperanças de o conseguir. Hugh ostentava uma expressão de perfeita indiferença, com os braços cruzados e as pernas esticadas na sua frente. No entanto, murmurou:
- Se ao menos soubéssemos...
- O quê? - perguntou Simon com secura.
- Se soubéssemos mais a respeito do abade... então talvez compreendêssemos as razões que possam ter existido para o ataque... se é que se tratou de uma vingança.
Simon inclinou a cabeça e olhou para Clifford com uma indiferença estudada. De súbito, perguntou:
- Peter, descobriste alguma coisa a respeito dos monges?
O sacerdote olhou para ele por instantes e a seguir rebentou em gargalhadas.
- Ah, meu amigo! Sempre tão subtil! Foi por isso que me fizeste esta visita, não é verdade? Não vieste apenas para comer e beber o que tenho de melhor, mas também para te servires da minha mente!
- É possível... - respondeu Simon, devolvendo-lhe o sorriso.
Hugh suspirou, voltou a cruzar os braços com um ar aborrecido e ficou a olhar para as chamas, deixando que a conversa se desenvolvesse à sua volta sem lhe prestar atenção. Para além disso, estava um pouco magoado com o facto do amo não lhe ter agradecido a sugestão. A seguir a sua expressão descontraiu-se, ignorou os outros dois homens e resolveu gozar o calor da casa.
- Nunca tinha falado com nenhum deles e nem sequer os conhecia pelos nomes. O abade apareceu com cartas de apresentação e não tive motivos para duvidar delas. Eram apenas viajantes a caminho de Buckland e não me parece que tenha descoberto alguma coisa a seu respeito.
- Sabes como se chama o abade? Oliver de Penne?
- Sim, claro!
- E quanto aos outros? Falaste com o Irmão Matthew?
- Matthew? - murmurou o homem, meditativo e a olhar para as chamas. - Ah, sim, é claro! Era o que tinha um amigo na zona! Foi por causa dele que os outros ficaram aqui tanto tempo.
- O quê? Que queres dizer?
- Bom, o Matthew encontrou um amigo em Crediton no primeiro dia da sua estada aqui e conseguiu convencer o abade a esperar um ou dois dias para que o pudesse ir visitar. Devo dizer que o abade não ficou nada satisfeito e que se mostrou muito incomodado. Agora, parece estranho... Foi quase como se soubesse que estava em perigo...
Simon inclinou-se para a frente, com a caneca bem apertada na mão.
- Quem era o amigo que o monge queria visitar, Peter?
Hugh endireitou-se de repente, espantado, quando ouviu Clifford dizer:
- O novo dono de Furnshill... Como é que se chama? Ah, sim, Baldwin. Sir Baldwin de Furnshill.
No princípio da manhã seguinte Simon sentia-se assaltado por muitas dúvidas, para além de estar desanimado e inseguro sobre como deveria proceder. O tempo mostrava-se feio, com nuvens baixas e tempestuosas a correrem rapidamente através de um céu pesado, empurradas pelos ventos da charneca e com a chuva a cair num fluxo constante. Hugh e Simon ficaram sentados no salão, em frente da lareira, à espera que a chuva passasse ou que, pelo menos, abrandasse um pouco para que pudessem prosseguir a jornada para casa.
Simon estava devastado. Agora, já tinha a certeza de que Baldwin se encontrava envolvido na morte do abade. Mas que devia fazer? Para um almoxarife era normal prender um ladrão de ovelhas ou um caçador furtivo. Contudo, prender um cavaleiro? Como representante do senhor local, Simon detinha a autoridade... mas onde estavam as provas de que Baldwin cometera um crime? Tudo o que possuía era uma série de vagas pistas e nada mais, nem sequer um motivo. Sabia que Baldwin conhecera Matthew, sabia que esse irmão atrasara a viagem dos monges... mas não tinha razões para o prender. O abade fora tomado refém por um homem que parecia um cavaleiro, um homem montado num grande cavalo. No entanto, em volta de Crediton existiam muitos homens que podiam ser confundidos com um cavaleiro. Para além disso, o facto de Baldwin conhecer Matthew não provava que o cavaleiro conhecesse o abade, e muito menos que o matara.
No entanto, embora continuasse a pensar no assunto, Simon tinha a certeza. Sabia que tinha razão. Baldwin chegara só Deus sabia de onde, viajara muito, ou pelo menos sugerira-o, não obstante nunca ter dito por onde andara nem porquê. Talvez o motivo para o assassínio se encontrasse no seu passado, enquanto permanecera no estrangeiro. Podia ter conhecido Oliver de Penne quando estivera fora do país e assassinara-o quando soubera que o homem se encontrava na área. Ou teria seguido os monges até ali?
Clifford entrou, dirigiu-se à sua cadeira junto do fogo e sentou-se sem pronunciar uma palavra. Simon levantou os olhos para ele e verificou que o amigo estava perturbado. O seu rosto magro e normalmente alegre mostrava-se muito sério, e as mãos brincavam com a bainha do roupão como se tentasse distrair a mente.
- Simon - disse, lentamente, olhando para as chamas e sem enfrentar os olhos do almoxarife - estive a pensar no que me disseste na noite passada a respeito do Furnshill. Meu amigo, não vás para casa antes de pensares bem nas acções que irás empreender.
- O problema está em que não sei como proceder, Peter - respondeu Simon.
- Em que posição é que estamos? Sabes que o monge, o Irmão Matthew, conhece o cavaleiro, não é verdade? Se o cavaleiro pretendia matar o abade, é provável que o monge se tivesse ido embora sem nos falar nesse conhecimento, não achas?
- Acho... mas o Matthew pode não ter sabido que o Baldwin ia matar o abade.
- Hum... Sim, é verdade. No fundo, tudo se resume a saber que motivos teria o Baldwin para matar o abade - declarou o sacerdote, pensativo, inclinando-se para a frente para apoiar o queixo na mão.
Simon acenou. Na verdade, descobrir a causa para o crime era o elemento essencial. Parecia-lhe que se tratara de um ataque de loucura. Que outra razão poderia haver para matar o abade daquele modo? Era como se o assassino quisesse fazer uma espécie de declaração pública, como se a morte do abade tivesse sido uma execução, um castigo, tal como a morte de uma bruxa ou de um herético. No fim de contas, os heréticos costumavam ser queimados nas fogueiras, não era verdade?
- Peter... - murmurou - achas que poderá ter sido uma espécie de vingança?
- O quê? Pensas que alguém matou o abade por causa de uma ofensa? Não sei... mas teria de ser uma ofensa muito grave!
- Sim, mas pensa nisto: o cavaleiro, o Rodney, se é que disse a verdade, afirmou que encontrara o cavalo com o dinheiro, o que quer dizer que o crime não foi por causa do dinheiro. O facto de não o terem levado comprova-o. Por isso, que outra razão poderia haver? Estou farto de puxar pela cabeça em busca de outro motivo e não consegui descobrir nenhum.
O sacerdote fez descair os cantos da boca numa expressão meditativa.
- É possível - admitiu. - No entanto, no fim de contas, o abade era um homem de Deus. Que falta poderia ter cometido?
- Nem sempre foi um homem de Deus... - disse Simon, esforçando-se por recordar o que Matthew lhe dissera quando haviam caminhado na estrada de Clanton Barton. - O irmão disse-me que o tinham enviado para aqui por causa do seu passado, porque ofendera o próprio Papa.
Clifford soltou uma gargalhada rápida, uma espécie de latido de humor.
- Se o Papa se sentisse assim tão ofendido... então era muito mais provável que o objecto do seu desagrado perdesse todos os seus títulos, posições... ou até a cabeça! Não me parece que fosse enviado para uma abadia tão rentável como a de Buckland.
- E se tivesse sido útil ao Papa anterior? Se tivesse feito algo para o Papa Clemente... que o Papa João não aprovou? Não o podia ter enviado para aqui apenas para o afastar?
- Bom... - Clifford fez uma pausa para pensar bem no assunto. O Papa Clemente morrera dois anos antes, em 1314. O papado ficara vago até àquele ano, quando tinham escolhido o Papa João. Franziu a testa enquanto pensava naquilo. Sim, e se o novo Papa não gostasse de Penne por qualquer coisa que ele fizera durante o reinado de Clemente? Penne manteria o seu lugar durante o interregno mas seria afastado da sua posição depois da eleição do novo pontífice... Seria porque os seus actos anteriores tinham ofendido o novo Papa que ia agora, em 1316, a caminho de Buckland?
- O Matthew disse que não haveria outro assassínio do mesmo tipo porque a morte do abade fora uma loucura temporária... - recordou Simon. - Deve ter sabido... ou adivinhado!
- Se o monge pensasse isso... de certeza que iria visitar o Furnshill para lhe pedir que confessasse. Seria sua obrigação tentar salvar-lhe a alma!
- Encontrei-o na mansão no dia em que parti para seguir os fora-da-lei! - exclamou Simon de repente. - Foi ele quem me transmitiu o recado de Tanner a respeito do bando! - Fez uma pausa e franziu a testa. - Se o Papa estava ofendido com as acções de Oliver de Penne... então o Baldwin também o poderia estar. E se o serviço que Penne prestou ao Papa Clemente - o serviço que foi tão ofensivo para o Papa João -, também fosse igualmente ofensivo para o Baldwin?
Clifford abanou a cabeça.
- Não. Admito que as datas coincidem, que é plausível... mas acho um exagero. Por que haveria o irmão de Baldwin de morrer precisamente nessa altura, tornando necessário que o cavaleiro voltasse para casa? Para Baldwin, não seria mais fácil matar o abade durante o seu percurso em França, ou em qualquer outro lado, muito antes de ter chegado aqui? Não, acho que estamos a exagerar...
- Mas a questão é precisamente essa! E se Baldwin nem sequer soubesse que o Penne estava aqui? E se soubesse apenas que vinha ocupar o seu lugar como novo amo de Furnshill Manor... e o encontro com o abade fosse um puro acaso? Foi o que aconteceu comigo! Deram-me um novo cargo, voltei para casa... e descobri quase imediatamente que tinha havido um assassínio! Podia ter acontecido noutra altura qualquer!
- Meu amigo... - disse Clifford, com um sorriso indulgente, como um professor a dirigir-se a uma criança com uma ideia nova e radical - não achas que seriam demasiadas coincidências? Por acaso, o irmão deste homem morre e ele volta para casa. Por acaso, o novo Papa não gosta do abade. Por acaso, o abade é enviado para Buckland. Por acaso, encontram-se e o cavaleiro mata o abade. Não! São demasiadas coincidências!
Simon acenou e olhou para as chamas com uma expressão lúgubre.
- Sim, é de mais... quando se põem as coisas desse modo. - murmurou.
- Ainda há outro pormenor... - murmurou Peter.
- O quê? - perguntou Simon sem virar a cabeça.
- Partes do princípio de que o assassino era um cavaleiro. E se não o fosse?
- Ora, só os cavaleiros usam armaduras! - protestou Simon, com o desespero a obrigá-lo a levantar os olhos. Sentia-se como se todos os seus raciocínios cuidadosos estivessem a ser desmantelados, tijolo a tijolo, enquanto ouvia o sacerdote. Agora, até ele tinha dificuldades para acreditar no seu próprio caso contra o cavaleiro.
- Todos os homens podem usar armaduras. Não é apenas uma concha que se veste e se despe? Talvez o homem tenha roubado a armadura a um cavaleiro? Não sei, mas é uma questão que também devias ter em conta, Simon. - Clifford levantou-se. - Bom, vou buscar um pouco de vinho para ti. Estás com cara de quem precisa de uma bebida...
Simon abanou a cabeça e também se levantou.
- Não. Obrigado por nos teres dado abrigo durante a noite, mas temos de nos pôr a caminho...
- Está bem, se é isso o que queres - respondeu Clifford, olhando-o com atenção. - Meu amigo, espero que Deus te acompanhe na tua jornada e te forneça uma resposta.
- Obrigado, velho amigo - retorquiu Simon. - Esboçou um sorriso rápido e acrescentou: - Para além disso, espero que Ele, ao mesmo tempo, faça com que as coisas se tornem mais claras.
Hugh e Simon cavalgaram lentamente para fora de Crediton, pela estrada de Sandford. A mente do almoxarife rodopiava enquanto tentava concentrar-se no assassínio. Por muitas voltas que desse ao assunto chegava sempre à conclusão de que o cavaleiro que acompanhara o bando de fora-da-lei, Rodney de Hungerford, não podia ter sido o homem que matara o abade. Peter Clifford, sendo sacerdote, era rapidamente informado a respeito de qualquer viajante que passasse nas estradas porque isso, por aqueles lados, ainda constituía uma novidade apesar do trânsito estar a aumentar. Um cavaleiro teria de certeza sido mencionado, e muito em particular um cavaleiro empobrecido.
Depois, havia também o problema do segundo homem. Quem quer que tivesse sido, não estivera com o cavaleiro quando o tinham apanhado. Poderia Rodney ter tido um companheiro que o deixara depois do assassínio em Copplestone? De certeza que era possível, mas pouco provável. Dois homens que tivessem cometido um crime como aquele ficariam unidos pelos laços da culpa.
O tempo melhorara um pouco, a chuva era mais ligeira e o vento amainara. As gotas haviam passado a cair na vertical e não como pequenas pedras empurradas pelas rajadas de vento, que lhes explodiam nos rostos. O Sol conseguiu finalmente ver-se livre das nuvens quando já estavam a sair da povoação e fez brilhar uma luz incerta, como se se tivesse verificado uma trégua entre os elementos.
De súbito, quando ao subir a íngreme vertente a norte da povoação, Simon teve uma ideia. Se o crime fora cometido por dois homens, então ambos deveriam ter as mesmas razões de queixa contra o abade! Endireitou-se rapidamente na sela quando se lembrou daquilo. Se só um deles se quisesse vingar do abade, então de certeza que o outro teria ficado com o dinheiro, mesmo que o primeiro não o quisesse. Se só um deles tivesse motivos para matar Penne, o outro ficaria com o dinheiro, em particular se já estivessem a pensar em separar-se.
- Que quer isto dizer? - perguntou, em voz alta. - Que ambos tinham a mesma razão para matarem o abade?
- Como...? - Hugh, como de costume, deixara-se ficar um pouco para trás e estava preocupado com o facto do amo se encontrar tão mergulhado em pensamentos enquanto cavalgava. Viu Simon fazer um gesto impaciente com a mão, como se tivesse ficado aborrecido com a interrupção. Sentiu-se ofendido e voltou a ostentar a habitual expressão taciturna.
- Portanto... - murmurou Simon - eram dois homens, ambos com o mesmo desejo de vingança contra o abade. Um era cavaleiro ou, pelo menos, envergava uma armadura. O outro estava vestido como um homem de guerra... Talvez como um escudeiro? Tinham um motivo para matar o Penne, um motivo que os levou a matá-lo de uma maneira pouco honrosa, como se fosse um herético. Todavia, não o roubaram. Porquê? Os cavaleiros ficam com o espólio dos inimigos quando saem vitoriosos. Seria uma questão de honra? Uma mulher? - Encolheu os ombros.
Sabia que, na guerra, havia mulheres que eram levadas como parte do saque dos cavaleiros. Se um cavaleiro perdera a sua mulher, talvez ele e um amigo tivessem decidido vingá-la, matando o seu violador? Era possível. Lançou uma olhadela ao servo.
- Hugh?
Hugh devolveu-lhe o olhar.
- Hugh... - perguntou Simon, hesitante - se alguém violasse Margaret e eu decidisse matar o homem, eras capaz de me ajudar a apanhá-lo?
O servo fitou-o, francamente espantado.
- Claro que sim! - retorquiu, com fervor.
- Hummm... - Simon regressou às suas meditações solitárias e não fez mais comentários.
Desceram lentamente o outro lado da elevação e continuaram a seguir o Creedy, o ribeiro que descrevia os seus meandros ao longo do vale que dava acesso a Sandford, com Simon a manter-se em silêncio durante todo o caminho. Hugh também se conservou calado, sem saber muito bem como interromper as meditações do amo mas preocupado com o estado em que o via.
Hugh cavalgava de um modo muito menos rígido. A noite anterior fora uma absoluta delícia para o seu corpo fatigado. O calor, a comida quente e a bebida tinham sido uma cura mágica para a infelicidade por causa dos muitos dias na sela e das demasiadas noites a dormir no chão, nas estradas e nas charnecas, em especial a última noite, em que nem sequer pudera acender uma fogueira. Sentia-se calmo e descontraído ante a ideia de voltar para casa e poder dormir no seu próprio catre.
Todavia, não estava feliz por ver que Simon continuava tão concentrado naquele assassínio como um gato a observar um rato. Claro que Hugh também ficara incomodado com o crime, mas o amo levava as coisas demasiado a peito e isso podia não ser bom para ele. Tentou conversar de vez em quando enquanto cavalgavam, a respeito de Margaret, de Edith e de como ficariam satisfeitas por o verem de volta, mas em resposta só conseguiu grunhidos, pelo que acabou por desistir e seguiu o amo no meio de um silêncio desanimado.
Por fim, quando já subiam a colina que conduzia a Stanford, Hugh sentiu a boa-disposição a despertar e não conseguiu impedir o sorriso que se lhe espalhou lentamente pelo rosto ao pensar na lareira do salão. Preparava-se para falar novamente com Simon quando viu o amo deter-se de repente na estrada que dava acesso à povoação. Simon ficou imóvel em cima do cavalo, olhando para norte, para a estrada que seguia para Furnshill.
- Vou sabê-lo em breve. Vou acabar por perceber tudo... - murmurou. Sacudiu as rédeas de repente e partiu a trote pelo caminho que o levaria a casa.
Porque iria Baldwin matar o abade? Era essa a pergunta que não lhe largava a mente cansada porque, por muito que se esforçasse, não via outra explicação para a morte de Penne. O culpado tinha de ser o seu amigo. Passaram pelo povoado, meteram pelo trilho que dava acesso à casa e Simon endireitou os ombros com uma nova determinação. Sabia quem era o responsável por uma morte, mas a confrontação teria de esperar. Tinha outra morte para resolver.
- Primeiro, vamos ver se descobrimos o que aconteceu ao Brewer.
Voltar a ver a esposa fez com que sentisse o coração a dar um pulo. Margaret estava ao pé da porta quando Simon e Hugh chegaram à casa. Era uma figura delgada e elegante, com as tranças dos cabelos caídas sobre os dois ombros, que sorria para eles.
Simon já estivera mais tempo fora de casa noutras ocasiões, como quando tivera de viajar para visitar a família Courtenay em Bristol ou Taunton, mas por qualquer razão aquela ausência parecera-lhe mais longa do que anteriormente e descobriu-se quase a conter o cavalo ao longo dos últimos metros, como se quisesse prolongar a alegria da reunião.
Saltou do cavalo, caminhou para ela, segurou-lhe nas mãos com um ar muito sério e fitou-a nos olhos. Margaret ficou espantada ao ver como os últimos dias o tinham modificado. Subitamente, o marido desenvolvera rugas de choque e preocupação onde antes não existira nenhuma, uma série de sulcos na testa e de cada lado da boca, pelo que o seu rosto revelou uma grande preocupação quando lhe devolveu o olhar.
- Meu amor, tu... - começou Simon.
Contudo, não conseguiu terminar a frase porque houve um súbito movimento no interior da porta e o almoxarife avistou um Roger Ulton com um ar exausto, uma das mãos na perna e outra na ombreira enquanto o espreitava. Simon olhou para a esposa, resignado.
- Bom, suponho que podemos esperar... - suspirou.
- Então, onde foste quando saíste de casa da Emma?
Estavam sentados em frente à lareira de Simon. Hugh ainda se encontrava a tratar dos cavalos, com Margaret a ajudá-lo depois de presentear o marido com um jarro de cidra aquecida e duas canecas. Simon e Roger Ulton haviam-se instalado na frente do fogo a beber a cidra. O almoxarife pensou que o jovem estava assustado. Sentara-se na berma do banco, inclinado para a frente, com a caneca segura nas duas mãos como se tivesse medo de a deixar cair. Os seus olhos raramente enfrentavam os de Simon e durante a maior parte do tempo, limitava-se a olhar para a bebida.
- Fui dar um passeio. Estava uma noite bonita e não podia ir para casa porque perceberiam que alguma coisa havia corrido mal. Não queria que me fizessem perguntas a respeito da Emma e de mim.
- Estou a ver... E para onde foste?
- Andei por aí. Passei para lá da aldeia, na direcção das colinas, mas fiquei com frio. No entanto, continuei a andar. Suponho que tentava decidir se devia continuar a afastar-me, talvez até Exeter ou qualquer outro lado, mas não podia. Não sou um homem livre. Se o fizesse, era apanhado e trazido de volta.
- Quando regressaste?
- Não sei, mas já devia passar das dez. Voltei do norte e caminhei ao longo da rua. Àquela hora não valia a pena evitar a aldeia porque já toda a gente deveria estar a dormir.
- Ah! Então foste tu, não foste, que ajudaste o Brewer a voltar para casa?
- Sim. - O rosto pálido virou-se para Simon, mas viu as feições rígidas do almoxarife concentradas nele e desviou imediatamente os olhos. - Sim, fui eu. O Brewer estava a ser expulso da estalagem quando passei por lá e o estalajadeiro, o Stephen, pediu-me para o levar comigo. Tinha estado outra vez a lutar.
- Quem?
- O Brewer. Estava sempre envolvido em lutas.
- Sabes com quem é que ele lutou naquela noite? - perguntou Simon, com a ansiedade a fazê-lo inclinar-se para a frente.
- Não, terá de perguntar ao Stephen. Ele sabe.
O almoxarife chegou-se um pouco para trás e franziu a testa para o jovem.
- Por que não nos contaste isso antes? Por que nos mentiste?
- Não queria que toda a gente soubesse a respeito de mim e da Emma. Não queria cortar com ela... Contudo, depois ouvi... - a voz apagou-se-lhe.
- O quê? Que foi que ouviste? De quem?
Levantou os olhos e encontrou finalmente coragem para fitar Simon de frente.
- Do Stephen, na estalagem... Disse-me que sabia que eu estava a mentir, que os rapazes do Carter me tinham visto lá, me tinham visto a levar o Brewer para casa. Devem ter sido eles quem o matou e estão a atirar as culpas para cima de mim. Era a palavra deles contra a minha, disse o Stephen. Afirmou que era melhor que me fosse embora... que fugisse...
Na manhã seguinte, Sir Baldwin desceu a pequena vertente para Blackway com um sentimento de grande expectativa. A mensagem do almoxarife fora breve mas intrigante: tinham surgido novas provas. Tendo em conta o seu interesse anterior, gostaria de aparecer para dar uma ajuda? O cavaleiro partiu imediatamente e encontrou Simon e Hugh sentados num dos bancos em frente à estalagem. O amigo pareceu-lhe cansado, com o rosto a revelar as tensões a que havia estado sujeito nos últimos dias, e Baldwin surpreendeu-se com o facto das boas-vindas de Simon parecerem contidas enquanto os seus olhos saltitavam entre ele e Edgar logo que os viu chegar. Não houve um sorriso de resposta ao alegre cumprimento do cavaleiro. Hugh permaneceu ao lado do amo com a sua carranca habitual.
- Então, almoxarife... - disse Baldwin, que sentiu a necessidade de usar o título de Simon - Como estás? Ouvi dizer que apanhaste os assassinos dos mercadores. É verdade?
- Sim - retorquiu Simon, olhando-o. O bigode negro e a barba bem aparada enquadravam os dentes pequenos e quadrados do cavaleiro que se sorria para ele. A seguir, libertou os pés dos estribos e saltou para o chão.
- Estalajadeiro! - Baldwin endireitou-se, de braços abertos, à espera do dono da estalagem.
- Temos algumas perguntas a fazer a este homem - disse Simon enquanto esperavam, aproveitando para lhe narrar rapidamente a conversa que tivera com Hugh na noite anterior. Quando terminou, os seus olhos enfrentaram os do cavaleiro com uma súbita intensidade. - Estou decidido a descobrir o que realmente se passou, Baldwin. Quando for para Lydford não deixarei por resolver nem sequer a morte de um pobre servo. Creio que foi assassinado e vou descobrir o responsável. A seguir, vou virar-me para a morte do abade. Estás disposto a ajudar-me? - O tom parecia implicar um desafio ao cavaleiro. Baldwin enfrentou-lhe o olhar com frieza.
- Claro que sim. Tenho o dever, para com o meu senhor, de ajudar o seu almoxarife... e Brewer era um dos meus servos. No entanto... ouvi dizer por aí que o abade foi morto pelos fora-da-lei. Foi o que constou em Crediton...
- É possível - retorquiu Simon com secura. Contudo, nesse momento ouviram passos que se aproximavam, viraram-se e viram o estalajadeiro, que pareceu nervoso sob o olhar dos dois homens.
- Sim? - perguntou. - Que desejam de mim?
- Edgar, vai servir-te - pediu Baldwin - e traz-me uma cerveja! - acrescentou, quando o servo desapareceu no interior. Olhou para o almoxarife e sentou-se a seu lado no banco antes de fixar os olhos no infeliz estalajadeiro. Stephen soube imediatamente que estava metido num grande sarilho. Pairava no ar uma certa tensão e percebeu que os dois homens o estavam a avaliar. Retirou imediatamente as mãos do cinto, como se tivesse perdido as forças, e deixou-as pender ao longo do corpo.
Simon respirou fundo e expulsou o ar num suspiro silencioso. Sentia o tremendo peso da depressão e das dúvidas. Baldwin poderia estar envolvido na morte do abade? Tudo parecia apontar para ele. Lançou uma olhadela rápida ao cavaleiro e apercebeu-se de que Baldwin também se encontrava tenso, como se conhecesse as suspeitas de Simon. E se... O almoxarife endireitou os ombros, olhou de novo para o cavaleiro e viu-lhe uma expressão calma e avaliadora. Olharam um para o outro por instantes. Depois, de repente, Baldwin sorriu, como se os fardos do mundo já não lhe pesassem sobre os ombros, e Simon sentiu as suas próprias feições a abrirem-se numa espécie de sorriso lívido.
Encarou o estalajadeiro com um vigor renovado. O cavaleiro, com o olhar e com aquele breve sorriso, parecera tentar demonstrar-lhe a sua compreensão e dizer-lhe que não o culparia pelo que pudesse vir a acontecer.
De qualquer modo, Simon pressentia que não era o momento apropriado para especular sobre a morte do abade. O assunto podia esperar. Tal como dissera, a morte de Brewer acontecera primeiro e a investigação merecia toda a sua atenção. Pôs de lado os pensamentos sobre a morte de Penne e fitou o estalajadeiro durante um minuto, em silêncio.
- Stephen... - começou, com suavidade - queremos fazer-te perguntas sobre a noite em que o Brewer morreu. Desta vez, quero que nos digas a verdade...
- Oh, senhor, eu nunca...
- Cala-te! - Foi Baldwin quem falou, com uma voz carregada de indiferença e desprezo, como se o homem o revoltasse.
- Da última vez que aqui estivemos mentiste-nos... - prosseguiu Simon.
- Eu? Tenho a certeza de que...
- Disseste-nos que não viste quem ajudou o Brewer. Quem foi?
O medo, era agora indiscutível, pensou Baldwin. O estalajadeiro parecia ter ficado gelado, com o rosto húmido e quase amarelo mesmo sob o brilhante Sol do fim da tarde.
- Como disse, estava escuro e...
- Foi o Ulton, não foi?
A pergunta fora feita e seguiu-se um longo silêncio e uma pausa, como se toda a aldeia tivesse ficado à espera da resposta. O estalajadeiro olhou para Simon como que hipnotizado, com os olhos muito abertos e pequenas gotas de suor a escorrerem-lhe da testa.
- Então? - insistiu Simon.
- Sim.... - A resposta foi um murmúrio baixo. - Sim, foi ele.
- Por que foi que nos mentiste?
- Não menti! Disse-vos que estava escuro e que quase não se via nada! De qualquer modo, o Roger ajudou-me ao levar o Brewer para longe daqui. Por que haveria de vos levar a pensar que tinha sido ele que matou o homem? O velho fazia com que até os santos tivessem vontade de o matar e era provável que vocês viessem a saber como ele era. Por que haveria de arranjar problemas ao Roger?
- Portanto, pensas que não foi o Ulton quem matou o Brewer?
- Não, claro que não!
Simon olhou rapidamente para Baldwin e viu-o acenar com convicção. Não havia dúvidas quanto à sinceridade na voz de Stephen. O almoxarife voltou a encarar o estalajadeiro e inquiriu:
- Havia alguns estranhos por aqui, nessa noite? Viste passar algum cavaleiro nos dias que antecederam a morte de Brewer?
Os olhos do homem viraram-se para o chão enquanto procurava recordar-se. A seguir levantou a cabeça e abanou-a uma única vez mas com convicção.
- Não.
- Então, quem mais estava aqui naquela noite?
- Quem mais?. Oh... o Simon Barrow, o Edric, o John, os Carters...
- O quê? Os rapazes dos Carters estavam aqui naquela noite? - perguntou Baldwin, inclinando-se para a frente e franzindo a testa para o homem.
- Ora, estavam, sim... - O estalajadeiro, nitidamente aterrorizado, devolveu-lhe o olhar e perguntando a si mesmo o que teria dito de errado.
- Disseram alguma coisa ao Brewer?
- Bom...
- A discussão em que o Brewer se envolveu foi com os Carters?
- Sim.
- A respeito de quê?
- O Brewer estava com vontade de implicar... - Agora que começara, as palavras escorriam da boca do homem corpulento como se as tivesse contido durante demasiado tempo e já não as conseguisse deter. - Afirmou que os rapazes eram esbanjadores, pouco melhores do que os mendigos. Disse que os podia comprar três vezes, a eles, à quinta, aos pais, a tudo... e que ainda ficaria com dinheiro! Edward tentou acalmá-lo mas o homem estava louco. Creio que era a bebida que o punha assim. Tentou esmurrar o Edward, o Alfred meteu-se na frente e o Brewer atingiu-o. Foi nessa altura que o pus na rua porque não queria pancadaria na minha sala. Levei-o lá para fora e vi o Roger, que disse que levaria o patife para casa. Não o pode ter morto, não é um assassino. O Roger é boa pessoa...
- No entanto, disseste-lhe para se ir embora daqui? Disseste-lhe para fugir? - perguntou Simon, inclinando-se para a frente e pousando os cotovelos nos joelhos.
Stephen encarou-o, receoso.
- Eu... Como já disse, não pode ter sido o Roger... mas os Carters têm andado por aí a dizer que ele estava aqui, e que vos iam contar que o tinham visto. A intenção foi boa, senhor, pareceu-me demasiado injusto atirar as culpas para...
Baldwin também se inclinou para a frente, com os cotovelos nos joelhos e a fitar o homem com um olhar duro.
- A que horas saíram os Carters da estalagem, naquela noite?
- Os Carters? - A ideia pareceu encher-lhe a voz de terror. - Os Carters? Mas eles...
- Responde à pergunta! - atirou-lhe Baldwin.
- Não muito depois, suponho... - Baixou novamente o tom de voz, como se tivesse medo de dizer demasiado se a levantasse. - Não muito depois...
Deixaram os cavalos na estalagem e caminharam pela estrada na direcção da casa dos Carters. Edgar fora enviado em busca de John Black, pelo que eram só três quando bateram à porta com força.
Baldwin parecia compreender que havia algo de errado, mas deixava que Simon se mantivesse com a sua carranca sombria e pensativa, como se estivesse a par das desconfianças do almoxarife. Houve um momento em que Simon lhe captou o olhar e teve a sensação de ter visto uma sensação de quase alívio, como se o cavaleiro estivesse satisfeito por ter sido descoberto. Tal fazia com que o almoxarife ainda se sentisse pior e foi com uma ira crescente que esperou que alguém aparecesse à porta. Esta abriu-se apenas uma fenda, para revelar uma mulher jovem e fatigada, vestida com uma túnica escura e um avental. Parecia ter estado a cozinhar e as suas mãos libertavam um cheiro a pão fresco que era uma verdadeira provocação para os três homens. Simon sorriu e perguntou:
- O Alfred e o Edward estão aqui?
Os olhos da mulher pareceram confusos quando o espreitou. Não devia ter muito mais de metro e meio de altura e parecia ainda mais pequena no enquadramento da porta, a limpar as mãos ao avental com uma expressão de desafio. Um par de madeixas castanhas claras soltara-se da touca e uma delas oscilava sob a brisa mesmo por baixo de um dos olhos. Desviou os cabelos da cara e puxou-os para trás sem deixar de olhar para Simon.
- Sim - respondeu - os meus irmãos estão aqui. Porquê?
- Pode pedir-lhes para chegarem à porta, por favor?
Pareceu relutante mas Edward apareceu nesse momento. Sorriu, convidou os três homens a entrarem e a juntarem-se a eles no interior, e empurrou a irmã para um lado enquanto abria a porta de par em par.
Simon e Baldwin seguiram-no para uma sala grande e barulhenta. Quando o tempo estava mau, a casa servia de abrigo a todos os membros da quinta, humanos e animais. Tinham tentado dar alguma aparência de refinamento à sala com uma vedação num dos lados, para que os animais e os humanos se mantivessem separados, mas não servira para grande coisa. Na área da família havia um grande fogo que rugia na lareira de barro, com o fumo a erguer-se para o telhado de colmo e a escoar-se lentamente para o exterior, pelas frestas. Havia ali um único sinal de modernização, uma plataforma construída sobre estacas, a que se tinha acesso por uma estreita escada de madeira. Era óbvio que era o local onde a família dormia, longe do fedor dos animais que ficavam por baixo.
A atmosfera, repleta de fumo e dos cheiros dos animais, era nojenta. As fezes dos animais assaltavam as narinas, o travo amargo do fumo agarrava-se à garganta e o conjunto tinha um efeito brutal que atacava os sentidos com uma violência maléfica. A luz vinda das janelas estreitas era pálida, penetrava em faixas inclinadas, esforçava-se por atravessar o espesso fumo e provocava pequenas poças de luz sobre o chão de terra.
Baldwin tossiu, fez sinal a Edward e Alfred, e regressou ao ar limpo em frente da casa. Foi com alívio que se viram novamente do outro lado da porta.
- Queremos fazer-lhes mais algumas perguntas sobre a noite em que o Brewer morreu. Ambos disseram que tinham estado a tomar conta dos rebanhos....
Edward pareceu suspender a respiração e ficou imóvel como uma estátua, com o rosto contraído numa máscara de medo. O irmão não se deixou afectar. As suas feições magras enfrentaram o almoxarife com o que parecia ser uma expressão de troça colada aos lábios.
- E então? - retorquiu. - Há algo de errado?
Ao princípio, Simon olhou-o apenas com desagrado. Era claro que o homem não se importava minimamente com a morte de Brewer, embora isso não fosse surpreendente se tivessem em conta a impopularidade do agricultor. Porém, logo a seguir, precipitaram-se sobre ele todas as ansiedades dos últimos dias, o cansaço, os horrores, a dor e o medo, que se concentraram numa raiva irracional contra os Carters.
Na sua arrogância, aquele homenzinho pequenino parecia estar a desafiar o almoxarife por causa da sua incapacidade para encontrar o assassino de Brewer. Era como se também soubesse das suspeitas de Simon a respeito de Baldwin, como se o seu sorriso paternalista ridicularizasse os esforços de Simon... e a fúria deste reagiu e atingiu o rubro-branco. Aquilo era um insulto não só para ele, como para todos os outros. Era um insulto para o velho agricultor, para o abade, para os mercadores, para a pobre, quebrada e solitária rapariga que tinham encontrado na charneca, e até para os homens do grupo de perseguição e para os fora-da-lei que haviam morrido. O almoxarife vira mais morte e destruição nos últimos dias do que durante todo o resto da sua vida, e a brutalidade, a carnificina sem sentido que fora forçado a testemunhar tinham deixado as suas marcas. Sentiu-se avassalado por um ódio cego, quase asfixiante na sua intensidade.
Soltou um rosnado, avançou, agarrou o jovem pela gola, torceu-lhe a roupa enquanto o puxava e colocou-o em desequilíbrio ao arrastá-lo para a frente.
A acção apanhou de surpresa o próprio Baldwin. De súbito, o cavaleiro viu-se a olhar para o amigo com um novo respeito. Simon, tal como estava a ver, erguera o rapaz no ar cerca de 90 centímetros, contra a vontade do mesmo e apenas com um braço. Baldwin descobriu-se a tentar controlar um sorriso enquanto levantava um dedo para coçar a orelha. Aquele almoxarife seria um inimigo duro de roer numa luta, pensou para si mesmo.
Agora, Simon tinha os olhos esbugalhados e falava para o rapaz dos Carters por entre os dentes cerrados, num tom baixo e venenoso.
- Sabemos que nos mentiste... e não estou com disposição para brincadeiras! Que fizeram quando saíram da estalagem? Foram direitos à casa do Brewer? Mataram-no logo que o Ulton se foi embora? Que se passou?
- Não fizemos nada! - O rapaz evitava o rosto de Simon.
Encontravam-se tão juntos que quase se tocavam.
- Viemos para casa!
- Por que nos mentiste?
A voz do rapaz era quase um lamento, ansioso por persuadir o xerife.
- Não nos pareceu que fizesse diferença. Se vos disséssemos, o nosso pai podia descobrir e levávamos uma tareia por não termos tomado conta das ovelhas tal como era nossa obrigação.
- A que horas chegaram a casa naquela noite?
- Já vos dissemos! Chegámos por volta das 11!
- Estás a mentir!- Simon berrou as palavras junto ao rosto agora assustado. - Estás a mentir! Saíram da estalagem depois do Brewer. Saíram da estalagem pouco depois do Stephen o expulsar, do Ulton o agarrar por um braço e o ajudar a ir para casa, não é verdade? Seguiram-no porque estavam zangados com a sua atitude na estalagem, porque o odiavam, porque tinha dinheiro, porque vos bateu. Odiavam-no, não é verdade?
- Não, não, eu...
- Ficaram a ver enquanto o Ulton o metia em casa, não foi? A seguir foram atrás dele. Mataram-no e pegaram fogo à casa para que ninguém pensasse que se tratara de um assassínio, não é verdade? Não é verdade? - insistiu, num berro, enquanto fitava o rosto aterrorizado.
- Simon, Simon... - murmurou Baldwin, tocando no braço rígido que segurava o servo petrificado. - Acalma-te, Simon. Demasiada cólera pode ser má para a saúde. Bom... - continuou, virando-se para o rapaz que tremia, já livre, enquanto Simon lhe virava as costas com desprezo. O jovem apalpava o pescoço onde o tecido do colarinho lhe queimara a pele, deixando-a vermelha. O cavaleiro encolheu os ombros, sorriu, e decidiu que se podia arriscar a fazer um pouco de bluff. - Alfred, só queremos saber a verdade, nada mais. Sabias que o Cenred vos viu naquela noite?
Os olhos do jovem esbugalharam-se de horror e gritou:
- Não! - Ficou de boca aberta, a fitar o cavaleiro com uma terrível intensidade. - Não! Não pode ter visto!
- Oh, sei que se esconderam rapidamente no meio das árvores mas, mesmo assim, ele viu-vos. Por isso, penso que é melhor que nos contes a verdade.
Edward pareceu finalmente recompor-se. Olhou para o irmão com uma expressão estranha e fulminante, talvez de desagrado ou de piedade. Baldwin não teve a certeza mas havia ali algo que quase implicava desprezo para com o irmão mais novo. Começou a falar tranquilamente, como se repetisse a história para si mesmo, mais para a recordar do que para informar a audiência. Baldwin viu Edgar e John Black a avançarem para eles e fez-lhes rapidamente um sinal para que parassem, para não interromperem a narrativa.
- Sim, nós seguimo-lo, é verdade... - A voz tinha uma qualidade vazia e Baldwin pensou que era como se o jovem estivesse exausto. - O Alfred estava furioso por ele lhe ter batido. Não fora um murro muito forte, ou pelo menos não tão forte como aqueles que o nosso pai nos daria por não termos ido ver das ovelhas, mas o pai também nunca o tinha esmurrado assim, por ser o mais novo... - Olhou para Baldwin. - No entanto, não fomos nós. Já estava morto quando lá chegámos. Deve ter sido o Roger quem o matou.
Baldwin observava o jovem e tinha a certeza de que lhe estava a contar a verdade. Parecia haver muita convicção no modo como se mantinha à sua frente, com os olhos fixos no rosto do cavaleiro e um corpo sólido e perfeitamente assente sobre as pernas ligeiramente afastadas como se tivesse sido plantado ali e ganho raízes na terra. Baldwin via que o rapaz não implorava nem lhes pedia que acreditassem nele, como se soubesse que confiariam se lhes dissesse a verdade e o estivesse a fazer precisamente por isso.
- Sim, fomos até lá e aguardámos nas árvores até que o Roger se fosse embora. Vimo-lo sair porta fora e correr pela colina. Foi então que nos aproximámos. Eu não queria, mas o Alfred pretendia devolver-lhe o murro. Não estava satisfeito com o facto de Brewer o ter agredido sem que nada lhe acontecesse. Dirigi-me à porta e bati, mas nesse momento o Alfred ouviu os passos de alguém. Baixei-me e ele correu para o outro lado da estrada. Era o Cenred, que continuou em frente como se não tivesse visto nada. Afastou-se e voltei a bater à porta. O Alfred juntou-se a mim mas não houve resposta.
- E depois? - perguntou Baldwin, lançando uma olhadela rápida para Simon. O almoxarife estava parado, de cabeça baixa mas a escutar em silêncio, como que envergonhado da sua reacção anterior.
- O Alfred entrou. A porta não estava fechada. Eu segui-o. O Brewer jazia no chão, junto à enxerga. O fogo estava fraco e não se via grande coisa, mas o Alfred dirigiu-se a ele e deu-lhe um pontapé. O Brewer não se mexeu. Isso assustou-nos, porque compreendemos que havia ali algo de errado. Acendi uma vela na lareira e vimos... O Brewer tinha sido apunhalado no peito por quatro ou cinco vezes...
- Que fizeram a seguir?
- Começámos a sair mas o Alfred quis ver se aquela história do dinheiro era verdadeira. Quis ver se o Brewer tinha realmente dinheiro para nos comprar... - Edward não conseguiu evitar a expressão de troça no rosto. - Eu deixei-o. Estava farto e disse-lho. Deixei-o à procura enquanto voltava a colocar o Brewer na cama.. Não sei porquê... mas pareceu-me uma falta de respeito deixá-lo ali... Pois bem, o Alfred encontrou a bolsa de Brewer e uma pequena arca de madeira e pegámos nas duas coisas. Depois, quando íamos a sair, ele disse: "Se se souber que foi assassinado, vão pensar que fomos nós." As pessoas ouviriam falar na discussão e nos murros. Diriam imediatamente que o tínhamos morto. Por isso, decidimos ocultar a morte. No fundo, não íamos fazer mal a ninguém. O Brewer não se ia importar. Se não se soubesse que houvera um assassínio, as pessoas não iriam pensar que tínhamos feito qualquer coisa. Por isso, pegámos fogo a um pouco de palha e deixámos a casa a arder...
Claro, pensou Simon. Todas aquelas cinzas no chão tinham sido da palha armazenada na casa.
- E a seguir voltaram para casa? Deixaram aquilo a arder e voltaram para casa?
- Sim. Depois, quando pareceram perceber que o Brewer havia sido assassinado, soubemos que tínhamos de fazer qualquer coisa. Pensámos que o Roger fugiria se soubesse que o tínhamos visto a ajudar o Brewer. Se fugisse... diriam que tinha sido ele... independentemente do que dissesse quando o apanhassem...
Baldwin acenou, pensativo, e a seguir virou-se para Alfred.
- O que havia dentro da caixa?
- Nada! Apenas alguns tostões, tal como na bolsa.
- Vão buscá-las! - Encarou Edgar e acrescentou: - Tu, esperas aqui. Ficas com a bolsa e a arca quando eles voltarem e não lhes permitas que saiam daqui. Estás de acordo, Simon?
- Sim. Para já, creio que precisamos de ter outra conversa com o Roger Ulton.
A casa delapidada tinha um aspecto abandonado quando os quatro homens se aproximaram. Baldwin pensou que se parecia com uma ruína, como um castelo destruído depois da força de cerco se ter ido embora, com os barrotes escuros e quebrados do telhado a erguerem-se como os restos queimados e enegrecidos por um ataque com fogo grego. Era uma imagem tão clara na sua mente - que o fazia recordar-se de tantas batalhas passadas -, que estremeceu involuntariamente. Até a maneira como a esquina da parede mais distante caíra o recordou do modo como o canto da torre de um castelo ia abaixo depois da abertura de uma mina ou de um ataque com catapulta... e quase esperou ver corpos espalhados pelo chão.
Simon e ele deixaram Hugh para trás, avançaram para a porta e bateram. A porta abriu-se e foi o próprio Roger quem apareceu na frente deles.
- Almoxarife, eu... - Calou-se quando viu o cavaleiro. A seguir teve um relance dos dois outros homens e ficou com a boca aberta, desesperado.
- Já sabemos de tudo, Roger... - afirmou Baldwin com suavidade. - Só não sabemos o motivo. Que foi que o Brewer te disse, que fez com que o matasses?
Roger regressou ao interior sem pronunciar uma palavra e os dois homens seguiram-no. O jovem pálido e magricela pareceu cair para trás como se pudesse desaparecer na escuridão do interior e com as feições cerosas a apagarem-se nas sombras. A sala tinha um fogo a arder tranquilamente na lareira rodeada por três bancos, e Ulton deixou- se cair num deles, a olhar para os homens.
- Não sei... - respondeu, com os olhos muito abertos de medo mas também, conforme Baldwin pressentiu, com uma incredulidade genuína. - Estive com a Emma e ela disse-me que já não queria ter nada a ver comigo. Andei por aí até serem horas de voltar para casa para que os meus pais não percebessem... porque esperava voltar a convencê-la mais tarde. Contudo, quando passei pela estalagem, o Stephen quase atirou o Brewer para cima de mim. Não podia recusar-me a ajudá-lo. Contudo, ele não se calava. Só falava de dinheiro e de coisas desse género. Estava sempre a dizer que eu era um inútil, tão mau como os Carters, que nem sequer conseguia chegar aos calcanhares do filho, que é mercador. Insistiu que os meus pais não prestavam e que não eram capazes de tratar da casa. Começou a dizer que a Emma era o máximo a que eu podia aspirar, quando qualquer outra pessoa arranjaria uma mulher muito melhor. Continuou com essas coisas, sem nunca se calar, mesmo depois de o ter metido dentro de casa. Virei-me para me ir embora... e afirmou que até poderia comprar a Emma, se lhe apetecesse, que podia comprar casas como a do meu pai, que podia comprar o que quisesse. Tinha de o calar... Na verdade, não sei muito bem o que aconteceu. Num determinado momento ainda troçava à minha custa.... e no momento seguinte vi-o estendido no chão...
- Que fizeste a seguir? - perguntou Baldwin calmamente.
- Fechei a porta e corri para casa. Quando lá cheguei... ainda tinha a navalha na mão...
Saíram da casa e Roger acompanhou-os para se juntarem a Hugh e Black.
- Baldwin, podes levá-lo a ele e aos Carters para a cadeia? Mais tarde, irei fazer-te uma visita...
O cavaleiro revelou a sua surpresa no modo como olhou fixamente para o almoxarife.
- Sim, sim... claro... se é isso o que queres...
- Pois é... Primeiro, tenho de voltar a casa. Irei ter contigo daqui a... três horas.
Baldwin olhou-o, desanimado, enquanto o almoxarife ia ter com Hugh e o levava dali, de volta à estalagem onde haviam deixado os cavalos. O cavaleiro virou-se, sorriu para Black com um encolher de ombros embaraçado e regressou à casa dos Carters. Black seguiu-o com a mão no braço do prisioneiro, pronto para o conduzir para a cadeia de Crediton, onde ficaria a aguardar julgamento.
- Não tenho a mínima ideia sobre o que fazer. Tenho a certeza, mas não sei se será correcto prendê-lo...
Margaret olhou para o marido com o exaspero a enrugar-lhe a testa. Desde que o marido chegara, na companhia de Hugh, que andara a vaguear para aqui e para acolá como um urso à espera do combate com os cães, caminhando de um lado para o outro na sala com uma carranca ameaçadora mas também ansiosa. Enquanto o observava, viu-o dar um murro na palma da outra mão e começar outra vez a andar em volta da sala.
Margaret respirou fundo e disse:
- Queres fazer o favor de te explicares um pouco melhor?
Permaneceu calmamente sentada, com as mãos unidas sobre o colo e com os olhos a seguirem-no. Nunca o vira naquele estado anteriormente. Parecia preocupado, confuso e inseguro sobre como deveria proceder. Passara-se qualquer coisa, Margaret já o percebera, mas o marido parecia demasiado preocupado para ser capaz de se explicar. Por fim, acabou por ser atraído para ela como um cão forçado a abandonar um rasto, aproximou-se e deixou-se cair a seu lado.
- Óptimo! - comentou Margaret. - Agora, tenta explicar-me qual é o teu problema.
Os olhos de Simon percorreram o quarto enquanto tentava encontrar as palavras de que necessitava, mas acabaram por se pousar nela. Margaret ficou com a sensação de que o marido, ao fitar o seu olhar sereno e firme, se aquietara um pouco, como se a sua pose calma lhe tivesse transmitido um pouco de paz.
- Tivemos de prender o Roger Ulton hoje de manhã. Quando verificámos as coisas, tornou-se claro que foi ele quem matou o Brewer. Houve quem o visse a ajudar o homem a chegar a casa e a fugir de lá. As pessoas que entraram a seguir na casa do Brewer já o encontraram morto.
- Nesse caso, está tudo resolvido.
- Oh, sim, isso está resolvido. O problema está em que tenho andado a pensar no abade e no que lhe pode ter acontecido. Toda a gente pensava que as mortes do Brewer e do abade podiam estar ligadas porque ambos morreram nas chamas ou, pelo menos, por as suas mortes envolverem o fogo. Porém, o Ulton, embora o tenha assassinado o Brewer, não tinha motivos para matar o abade e nem sequer se aproximou dele. O Black e o Tanner pensam que quem matou o abade foi o Rodney, o cavaleiro que acompanhava os fora-da-lei, que o terá encontrado ao longo do caminho. Se assim foi, que aconteceu ao seu companheiro? E por que razão o fez? Não vejo qualquer motivo para que o fizesse. Para além disso, o cavaleiro disse que encontrou o cavalo e o dinheiro. Se for verdade, isso significa que o assassínio foi cometido por alguém que não queria o dinheiro e que não houve um roubo.
- Sim, estou a perceber. Nesse caso, por que o mataram?
- Porque se tratou de uma vingança. Não sei o motivo, mas foi a paga por um qualquer tipo de insulto ou desonra, ou então foi um castigo. Pensa nisso e verás que faz sentido. O Rodney encontrou o cavalo. Não tinha nenhum companheiro e a sua história é verdadeira. Então, quem poderá ter morto o abade? Teve de ser alguém que tenha estado no estrangeiro porque, de acordo com os monges, o abade nunca estivera na Inglaterra. Teve de ser alguém que tivesse viajado muito. Teve de ser alguém com um escudeiro, um homem muito chegado, que estivesse no estrangeiro com ele...
- Porquê? Por que razão teve de ser um escudeiro, alguém que tivesse estado com ele no estrangeiro? Não podia ser uma pessoa contratada depois de ter chegado aqui?
- Sim, é possível, mas como podia um homem confiar num contratado recente para manter a boca fechada? É possível... mas será credível? Por outro lado, não fará mais sentido que se tratasse de um conhecimento de muitos anos, uma pessoa em quem pudesse confiar? Talvez alguém que tivesse sofrido o mesmo insulto ou ofensa?
- Julgas saber quem foi, não é? - perguntou Margaret, com as mãos apertadas com força e os olhos receosos.
- Quem mais poderia ser? - confirmou Simon com uma expressão desesperada.
Os cascos dos cavalos começaram finalmente a matraquear no acesso à mansão mas Simon e Hugh tiveram a sensação de que a casa se encontrava deserta. Não havia ninguém para os receber e atravessaram o pátio na direcção do estábulo sem avistarem vivalma. Até os cavalariços tinham desaparecido, pelo que voltaram novamente para a frente da casa. Simon bateu à porta enquanto Hugh ficava a tomar conta dos animais com o rosto ainda carregado por aquilo que considerava uma caça aos gambosinos.
Passados alguns minutos ouviram-se passos pesados na passagem interior e a porta abriu-se. Era Edgar, o servo de Baldwin.
- Sim? Oh, é o senhor, almoxarife...
- Pois sou. Onde está o teu amo?
O rosto de Edgar tinha um ar arrogante e desdenhoso, como se o interesse de Simon pelo amo não o interessasse e até estivesse vagamente divertido com a presença do almoxarife.
- Sir Baldwin saiu para uma cavalgada. Deve voltar dentro de cerca de uma hora.
- Belo. Então, esperarei por ele lá dentro - replicou Simon, abrindo a porta um pouco mais. Contudo, parou de repente como se lhe tivesse ocorrido uma ideia. - Ah, é melhor irmos tratar dos cavalos.
Virou-se, tirou as rédeas da montada das mãos de Hugh e conduziu o animal em volta da casa, para os estábulos. O pátio continuava vazio, pelo que Simon levou o cavalo para o interior e amarrou-o antes de lhe tirar a sela e de o limpar. Hugh seguiu-o mergulhado num silêncio que era uma censura muda, e começou a tratar do seu próprio cavalo.
Simon concluiu a sua tarefa, encaminhou-se para a porta do estábulo e olhou para o exterior. Continuava a não haver ninguém no pátio. Agachou-se e examinou o solo do estábulo, que era de terra batida e estava coberto de palha. A seguir levantou-se, começou a pontapear a palha para os lados, debruçando-se de vez em quando para olhar cuidadosamente para o chão por baixo da mesma. Investigou todo o pavimento desse modo e acabou por se endireitar com uma expressão de desgosto, com as mãos nas ancas, observando todo o estábulo antes de sair para o pátio.
Para Hugh, era como se o amo tivesse enlouquecido. Acabou de limpar o cavalo e verificou se o animal tinha feno e água antes de correr atrás do amo com o rosto preocupado com aquela demonstração de excentricidade.
Descobriu Simon encostado à parede da casa, com um sorriso triste no rosto enquanto olhava para a paisagem. Hugh avançou para ele com cuidado e hesitante.
- Senhor? - perguntou, baixinho. - Senhor? Sente-se bem? Não quer ir lá para dentro, para descansar na frente da lareira? - Agora que pensava no assunto, lembrava-se que ouvira a sua mãe a falar em doenças semelhantes. A mãe dissera que era frequente que os pastores que passavam demasiado tempo sozinhos nas serras, no meio do frio e da humidade, acabassem por ficar muito confusos nos seus pensamentos. Em geral, a fase seguinte era de tremores, antes de serem invadidos por uma grande febre. Talvez aquilo fosse o resultado dos dias que tinham passado nas charnecas? Nervoso, levantou uma das mãos para tocar no braço do amo.
- O que é? - Simon virou-se de repente perante a interrupção dos seus pensamentos e fitou Hugh com uma expressão azeda. - De que estás a falar? Que queres? Sim... - a palavra surgiu como um suspiro. - Sim, estou bem. Olha!
- Pensei que... Sente-se bem?
O rosto de Hugh virou-se lentamente na direcção que o dedo apontava mas os olhos continuaram colados ao rosto do amo. No entanto, arriscou uma olhadela rápida. Simon apontava para o chão. Hugh voltou a fitá-lo. Simon parecia entristecido pela lama e olhava-a com uma expressão de infelicidade resignada.
Confuso, Hugh observou novamente a lama, interrogando-se. Tudo o que conseguia ver era a sujidade habitual no pátio dos estábulos, coberto de terra, de palha e também, aqui e acolá, de rastos dos cavalariços e dos cavalos. Simon parecia estar a apontar para uma zona protegida pela parede do estábulo, onde a chuva dos dois últimos dias não caíra mas que ficava perto da entrada dos mesmos. Hugh reparou nas marcas de pés e cascos. Fez uma careta, inclinou-se para a frente e espreitou uma marca profunda, deixada pela ferradura de um grande cavalo, uma ferradura a que faltava um cravo.
- Suponho que tivemos sorte por esse rasto ter ficado aí. A chuva não o atingiu por se encontrar tão perto da parede. Caso contrário, não o veríamos. No entanto, prova que eu tinha razão e que...
- O que é? O que estão a fazer?
Rodopiaram os dois e viram Edgar a observá-los a alguma distância com uma expressão furiosa.
- Chega aqui, Edgar... - pediu Simon tranquilamente. No entanto, apesar da sua calma aparente, Hugh distinguiu-lhe um tom de amargura na voz. - Encontrámos uma coisa muito interessante...
- O quê? - perguntou o servo, desconfiado, enquanto se aproximava.
Simon apontou para o chão com a mão esquerda. Os olhos de Edgar pareceram ser irresistivelmente atraídos para baixo, acompanhando o dedo que apontava. Porém, quando voltou a levantá-los, confuso, descobriu-se a olhar para a ponta da espada de Simon.
- Que vem a ser isto? - perguntou, numa voz que revelava uma incredulidade zangada.
- Isto é a pegada de um grande cavalo, com uma ferradura a que falta um cravo. É igual às marcas que encontrámos junto ao corpo morto do abade de Buckland - respondeu Simon baixinho.
- Não, não! Não pode ser! - exclamou Edgar, olhando de um para o outro como se estivesse completamente espantado. A seguir pareceu oscilar de fraqueza, inclinando-se para a esquerda e levando a mão ao rosto como se fosse desmaiar.
- Patife! Depressa, Hugh! - gritou Simon, mas o homem pareceu explodir para a acção enquanto ele falava. Edgar endireitou-se de repente, evitou a lâmina de Simon que o acompanhara quando fingira estar prestes a desmaiar, atirou-a para um lado e lançou-se à garganta do almoxarife, obrigando-o a cair. Simon ficou com os olhos muito abertos de surpresa ante o ataque súbito e caiu no solo com o servo em cima dele.
Hugh suspirou ao vê-los rolar na lama e porcaria do chão. Levou a mão à bolsa, sopesou-a na mão por um minuto... e depois fê-la descer sobre a nuca de Edgar, que atingiu com uma pancada forte e muito satisfatória. Edgar foi-se abaixo e caiu inconsciente sobre o almoxarife, que teve alguma dificuldade para o empurrar para um lado e para sair debaixo daquele peso morto.
- Eu... bom, Hugh, talvez seja melhor amarrar-lhe as mãos... - murmurou.
Estremeceu, endireitou-se e levou uma das mãos ao pescoço. Hugh acenou com uma expressão azeda e dirigiu-se ao estábulo. Havia ali várias tiras de couro suspensas num gancho. Agarrou numa e em breve tinha o ainda inconsciente Edgar amarrado como se fosse uma galinha. Pegaram-lhe e arrastaram-no para a frente da casa, puxaram-no pela porta e levaram-no para o salão, onde o largaram na frente do fogo.
Tiveram de esperar mais de meia hora antes que recuperasse a consciência. Viram-no estremecer de dor enquanto sacudia a cabeça para a aclarar e olhava para os dois homens sentados ali perto.
- Acho que nos deves explicar por que mataram o abade... - disse Simon, inclinando-se para a frente e contemplando o homem com o queixo apoiado numa das mãos.
- Não o matei...
- Sabemos que o fizeram. A marca do casco do cavalo prova-o. Sabemos que o monge Matthew conhecia o Baldwin, e que pediu aos outros para esperarem enquanto vinha aqui fazer uma visita ao teu amo. Sabemos que tu e o teu amo foram atrás dos monges quando eles saíram de Crediton, e que os apanharam já para lá de Copplestone. Levaram o abade para a floresta e mataram-no. A seguir, quando já estava morto, seguiram para norte, para a estrada, e voltaram para casa. Só quero saber uma coisa: porquê?
Edgar pareceu hesitar por instantes mas acabou por contrair o maxilar numa expressão determinada. Debateu-se e contorceu-se até se conseguir sentar, e ficou a olhar para os dois homens sentados no banco.
- Sabemos que o mataram... mas porquê? - repetiu Simon. - Por que razão o mataram daquele modo? Ofendeu o teu amo? Ou foi por causa de alguma mulher?
O servo continuava a olhá-los e pareceu sobressaltar-se ao ouvir a pergunta de Simon. Começou a falar numa voz lenta e contemplativa, quase como se recitasse lentamente, de memória.
- Sim... foi por causa de uma mulher. Era a minha esposa. O Penne apanhou-a e violou-a... e eu jurei vingança. Tentei apanhá-lo em França mas quando chegámos aqui vi o Matthew na cidade, que me disse com quem estava a viajar. O Matthew nada sabia do assunto. Quando se foram embora segui-os com um amigo, e apanhámo-los já fora de Copplestone. Agarrei o abade... e matei-o.
Simon inclinou-se para a frente com uma expressão de descrença.
- Dizes-me que o mataste daquele modo por causa de uma mulher? Eras casado enquanto te encontravas ao serviço de um cavaleiro? Enquanto viajavas por todo o mundo?
- Sim. O meu amo deu-me a sua autorização.
- E o teu amo não esteve presente durante o assassínio?
- Não.
- Contudo, a marca do casco era do cavalo dele.
- Sim, levei o cavalo.
- E também a armadura?
- Eu... tenho uma armadura.
Simon olhou-o por instantes, sem palavras, mas acabou por perguntar:
- Estás a querer dizer-me que ele nada teve a ver com o assunto? Nesse caso, quem estava contigo? Quem era o teu amigo?
- Não o denunciarei! - retorquiu Edgar, com ira, como se a pergunta fosse um insulto, ou como se a sugestão de que pudesse trair um amigo fosse inconcebível ou desprezível.
O almoxarife observou-o, meditabundo, com o queixo ainda pousado na mão. Os seus olhos nunca largaram o rosto e os olhos do homem sentado no chão à sua frente, até ao momento em que Edgar abandonou o ar zangado e baixou a cabeça.
- Não! - afirmou. - Não acredito em ti. Creio que o Baldwin também esteve envolvido e que estás a tentar protegê-lo.
- Foi como eu disse! Fui eu quem o matou! Sir Baldwin não estava lá!
- Veremos. - Simon levantou-se e encaminhou-se para a porta. - Fica com ele, Hugh. Preciso de pensar.
Saiu da sala, dirigiu-se à porta da frente e parou no exterior, à espera.
Era muito difícil. Simon conhecera Baldwin havia muito pouco tempo mas sentia-se como se já fossem amigos há anos. Gostava do olhar firme e calmo do cavaleiro, do modo como o homem parecia arremessar-se a tudo o que fazia como se estivesse disposto a aproveitar inteiramente os seus dias ou como um jovem que tivesse descoberto novos prazeres há muito pouco tempo. Agora ia ter de o acusar. Ia ter de acusar aquele homem, um amigo, de um crime hediondo. Tinha de o denunciar ainda antes de conseguir conhecê-lo bem.
Sentia a depressão a abater-se sobre ele enquanto pensava no que teria de fazer. Como iria o homem reagir? Puxaria pela espada? No fim de contas, era um cavaleiro. Podia muito bem decidir negar a sua culpa e exigir um julgamento pelas armas, enfrentando o seu acusador. Simon tinha a incomodativa consciência de que necessitaria de muita ajuda divina para dominar um oponente tão forte. Caminhou em volta da casa, até ao tronco em que se sentara havia apenas algumas manhãs para tentar curar a ressaca. Parecia-lhe que já fora há muito tempo, tal como a noite que passara na companhia daquele homem e a Margaret se rira das brincadeiras do cavaleiro, sempre sério mas inteligente e educado.
Sentou-se lentamente no tronco e ficou a olhar para os campos na sua frente.
Baldwin chegou quase uma hora mais tarde, sujo e a suar da cavalgada. Aproximou-se, acenou e rugiu uma saudação a Simon, que permanecia sentado no tronco. O almoxarife devolveu-lhe o aceno com um breve sorriso perante a óbvia satisfação revelada pelo amigo ao vê-lo ali. A seguir levantou-se e deu a volta à casa até ao pátio do estábulo, onde o cavaleiro entrava naquele momento.
- Simon, estás de volta! Foste rápido, não estava à tua espera tão cedo! - gritou Baldwin quando saltou da sela e avançou para lhe apertar a mão. - Trouxeste a tua mulher? A Margaret está aqui?
- Não, Baldwin. Pensei que, desta vez, seria melhor não a trazer - respondeu Simon, com o rosto abatido. Tentou sorrir e retribuiu o sorriso e apertou a mão do cavaleiro. No entanto, embora os lábios obedecessem às ordens do cérebro, os olhos não perderam a expressão de medo e desespero.
- Estás muito sério. Passa-se alguma coisa? - perguntou Baldwin, já a conduzir o cavalo para o estábulo.
Simon abanou a cabeça, entorpecido. O cavaleiro encolheu os ombros e prosseguiu para o estábulo. Simon sentiu os olhos a descerem para o chão e ficou parado, a olhar, cada vez mais infeliz. Não podia haver dúvidas. A prova estava ali, no chão, mesmo na sua frente. Enfiou os polegares no cinto e seguiu o cavaleiro, que retirava a sela do cavalo e lhe afagava o pescoço.
- Que se passa, Simon? Posso ajudar-te nalguma coisa? - perguntou Baldwin, com a simpatia a revelar-se nos olhos sérios, fazendo com que se sentisse ainda pior.
- O abade... - retorquiu Simon, numa voz sem entoação, o que fez com que o cavaleiro deixasse de afagar o cavalo.
- Sim?
- Por que foi que o mataste?
Os olhos de Baldwin brilharam e houve um clarão de ira nas suas feições, clarão esse que desapareceu tão rapidamente como aparecera. O cavaleiro soltou um suspiro.
- Como foi que descobriste? - Parecia quase desinteressado, como se a coisa não fosse importante mas se tratasse de uma pergunta que tinha de ser feita.
- Na verdade, não tive certezas... - suspirou Simon. - Pensei que pudessem ter sido os fora-da-lei, mas as minhas dúvidas desapareceram completamente quando vi os rastos do teu cavalo...
O cavaleiro olhou para baixo, surpreendido.
- Falta um cravo numa das ferraduras traseiras. Vimos este rasto na cena do crime. Era a única pista que tínhamos.
Distraído, Baldwin voltou a dar palmadas no pescoço do cavalo.
- Bom, é melhor entrarmos para discutirmos o assunto - declarou, afastando-se lentamente para a casa.
Entraram na sala e o cavaleiro viu Edgar sentado no chão. Hugh encontrava-se na sua frente, com a espada desembainhada e apontada ao prisioneiro. Baldwin virou-se para Simon, irado.
- Por que fizeram isto ao meu servo? - grunhiu. - Não basta que...?
- Sir Baldwin! Sir Baldwin, já confessei! - exclamou Edgar rapidamente, interrompendo-o. Simon olhou para ele e achou que o homem quase que implorava. Exibia uma expressão desesperada, como se estivesse ansioso por poder confessar e não quisesse que o cavaleiro lhe roubasse a possibilidade de... De quê? Confissão? Absolvição? Simon virou-se para o cavaleiro, que avançava lentamente para o servo.
- Confessaste? Tu?! - perguntou Baldwin baixinho. Aproximou-se de Edgar e agachou-se a seu lado, com a mão no ombro do homem. - E isso irá ajudar-nos? Não temos nada a temer, Edgar. Se eu tiver de morrer, então morrerei feliz, finalmente. No entanto não permitirei que morras por uma coisa que foi da minha responsabilidade. - Olhou para Simon. - Posso garantir a obediência deste homem. Não precisam de o ter amarrado como a um animal.
Simon ouviu a exclamação de protesto de Hugh mas não tirou os olhos de Baldwin. Este devolveu-lhe o olhar, não com ira mas com uma espécie de dor e de tristeza indiferente, como se a última coisa que desejasse fosse ver o servo naquela situação e ter dado tantos problemas ao almoxarife que considerava seu amigo. Era como se tivesse perfeita consciência do que fizera mas achasse que não fora nada, que não era importante. Simon acedeu com um gesto breve e Baldwin puxou da adaga e libertou o servo.
- Vai buscar um pouco de vinho. Não precisamos de passar sede enquanto confesso o meu crime... - ordenou, dando uma palmada no ombro de Edgar. Encaminhou-se calmamente para um banco, sentou-se e fez sinal a Simon, que se aproximou e instalou na sua frente, ao lado de Hugh.
O cavaleiro suspirou, com as chamas da lareira a lançarem-lhe ocasionais clarões alaranjados e vermelhos para o rosto e pondo-lhe os olhos a cintilar. Estudou Simon com cuidado, com um pequeno sorriso na face embora a testa permanecesse enrugada, como que a interrogar-se sobre como contar a sua história.
- Matei-o... porque era um herético e uma pessoa diabólica, e porque provocou a morte de centenas dos meus leais companheiros.
- Suponho que tenho de começar pelo momento em que deixei este país e pelo que me aconteceu a seguir. De outro modo, nada disto faria sentido para ti e não explicaria por que razão tive de matar o Penne. Tenho a sensação de que tudo se passou há muito tempo, mas suponho que é assim que as coisas acontecem - declarou, olhando para Simon e Hugh com uma calma fatigada, agora que começara a falar. - Disse-vos que abandonei a minha casa quando era jovem, não foi? Bom, suponho que és demasiado novo para te recordares disso, mas o mundo estava todo em fermentação quando me fui embora daqui. O reino de Jerusalém caía nas mãos dos Sarracenos, já tínhamos perdido Tripoli há cerca de um ano e o Rei Hugh enviara mensageiros aos monarcas da Europa, em busca de homens e dinheiro para defender as cidades que restavam e que já não eram muitas. Decidi dar uma ajuda... se pudesse. No fim de contas, não havia aqui nada para mim. De acordo com a lei da primogenitura eu não passava de um embaraço para o meu irmão, que era o mais velho. Herdou as terras depois da morte do nosso pai e não havia nada que me mantivesse aqui. Decidi fazer o que muitos já haviam feito anteriormente e partir para o ultramar para ver se conseguia obter a minha própria herança. Tinham chegado notícias a respeito de um novo exército de Sarracenos enviado para tomar Acre, a última grande cidade da Terra Santa, e pareceu-me uma boa altura para lá estar. Embarquei num pequeno navio e fui juntar-me aos defensores. Consegui um lugar num navio veneziano e cheguei no princípio de Abril de 1291. A cidade estava completamente cercada pelos Sarracenos, que possuíam armas enormes, incluindo quase uma centena de catapultas. Era óbvio que pretendiam tomar a cidade e que possuíam os homens necessários para o fazer. - Olhou para o fogo por instantes e prosseguiu. - Deviam ter cerca de 100.000 homens a combaterem contra a cidade. E quantos tínhamos nós? No total, não chegávamos a somar 15.000 cavaleiros e homens de armas. Começaram o assalto no princípio de Abril. Colocara-me ao serviço de Otto de Grandison, o suíço, que já lá se encontrava com um pequeno grupo de ingleses quando aquilo começara. Ao princípio, o inimigo limitou-se a bombardear as muralhas... Meu Deus! Era terrível ver aquelas grandes pedras a voarem para nós... Mais tarde, começaram a atirar potes de barro cheios de fogo grego. Os potes partiam-se quando atingiam o solo ou um edifício, rebentavam em chamas e provocavam um incêndio que era quase impossível de apagar.
Edgar regressou naquele momento, carregado com um jarro de vinho e canecas. Pousou o jarro junto do fogo e serviu-lhes o vinho, ouvindo o amo enquanto trabalhava.
- Obrigado, Edgar. Bom, nos primeiros dias ainda pensei que poderíamos aguentar. O porto continuava a ser nosso e os Sarracenos não dispunham de navios, pelo que conseguíamos receber abastecimentos e evacuar os feridos. Julguei que estaríamos a salvo. No fim de contas, era jovem... e nunca vira uma cidade com fortificações como as de Acre. Eram enormes, formadas por muralhas duplas. A muralha exterior, que se estendia para o norte e leste da cidade, estava guarnecida com dez torres. O mar ficava a sul e oeste, pelo que tudo o que os sarracenos podiam fazer era tentar destruir as muralhas para poderem entrar na cidade. - Soltou um suspiro. - Porém, não fazia ideia da destruição que eram capazes de provocar. Sofremos com o bombardeamento das catapultas, com as pedras e os incêndios, com as setas e com os constantes ataques do inimigo. Era como se nada pudéssemos fazer para os manter afastados. Contudo, Hugh, o monarca de Chipre, apareceu com os seus soldados quando eu já lá estava havia um mês. Pareceu-nos que poderíamos vencer... mas já era demasiado tarde. As torres começaram a abrir fendas e a cair menos de duas semanas depois dele ter chegado. Ainda não o sabíamos, mas os Sarracenos tinham escavado minas profundas sob as muralhas, e encheram os túneis com lenha embebida em óleo. A seguir, pegaram-lhes fogo. A madeira ardeu, os túneis abateram e arrastaram consigo as muralhas e as torres que se encontravam por cima. Depois disso já vi aquilo acontecer muitas outras mais vezes, mas na altura foi um choque. Quando as torres caíram... foi como se o próprio chão rejeitasse a nossa pretensão de defender a Terra Santa... A seguir, atacaram. Atiraram-se contra todas as zonas da muralha e não houve nada que pudéssemos fazer. Não tínhamos homens suficientes para defender toda a área e conseguiram capturar a torre central. Chamava-se Torre Maldita... e foi um nome bem-posto. - Mergulhou no silêncio, para continuar pouco depois. - As hordas avançaram ao longo do alto das muralhas. Conseguiram chegar à zona central, abriram os portões e os outros entraram de roldão. Tivemos de combater naquelas ruelas estreitas, defendendo-nos com os machados e as espadas o melhor que podíamos, esforçando-nos para os conter, mas foi inútil. Quando os contínhamos numa rua, davam a volta por outra e atacavam-nos por trás. Tivemos de ceder. O Grandison ocupou algumas galeras venezianas e os ingleses treparam para bordo. Todos os que o podiam fazer estavam a partir, mas eu atrasei-me. Vi o Edgar ser atingido por uma seta quando corríamos para o cais, e parei para o ajudar. Teria morrido se não o fizesse, pelo que tentei carregá-lo para os navios mas chegámos demasiado tarde. O Edgar sofria terrivelmente, não nos podíamos apressar, e quando chegámos ao porto já os navios tinham partido. No fim, conseguimos atingir o Templo, a fortaleza dos Templários, precisamente quando estavam a fechar a grande porta.
"Era a loucura total. O sítio estava cheio de gente. Todos os que não tinham conseguido chegar aos navios haviam fugido para ali e o Templo estava repleto de mulheres e crianças, as esposas e filhos dos que tinham morrido nas muralhas e nas ruas. No entanto, não havia homens suficientes para as proteger das hordas porque só lá estavam cerca de 200 Cavaleiros Templários. Os muçulmanos corriam pelas ruas, matando todos os homens, capturando as mulheres para escravas, assassinando as que eram demasiado velhas ou demasiado novas. Roubavam tudo e destruíam as igrejas e os templos por onde passavam. Meu Deus! Era terrível ouvir os gritos das pessoas enquanto lá estávamos dentro, mas que podíamos nós fazer?
"O Templário no comando era Peter de Severy... e que Deus o abençoe! Devo-lhe a vida! Tinha algumas embarcações e navios à sua disposição e usou-os para evacuar os feridos. Eu era um deles, tal como o Edgar. Tinha partido uma perna ao tropeçar numas pedras quando ajudava na defesa, e já não lhes podia ser útil. O ferimento de Edgar também era grave e foi por isso que partimos juntos. O Templo caiu apenas alguns dias depois e os Sarracenos mataram todos os que lá estavam dentro. O Edgar e eu fomos levados para Chipre, onde os Templários nos trataram e devolveram a saúde. Tivemos sorte, porque muitos outros acabaram por morrer. Eu era ainda jovem, mas não tinha uma causa por que lutar e o Edgar não tinha um cavaleiro para servir. Pareceu-nos que fazíamos parte de um plano divino e que nos tinham dado uma nova razão para a nossa existência. Pudemos conversar com os cavaleiros, observámos o modo como procediam e ficámos tão gratos que resolvemos juntarmo-nos a eles. Não tinha motivos para regressar a Inglaterra, nem sequer uma casa, uma vez que o meu irmão ficara com as propriedades, pelo que pensei que seria melhor ficar com os cavaleiros por lealdade e pela sensação de que estávamos a obedecer à vontade de Deus. Tinham-nos ajudado, tinham sido bondosos para connosco e queria pagar essa dívida.
- Foste um Templário! - exclamou Simon, endireitando-se de repente e olhando-o com horror.
- Sim, tive a honra de ser um Templário - confirmou Baldwin calmamente. - Não acreditem nas histórias que se contaram. Não penses que fomos blasfemos ou heréticos. Os meus companheiros tinham lutado e morrido pela Terra Santa, para recuperarem Jerusalém e Belém. Achas que o teriam feito se fossem heréticos? Teriam aceite a morte em vez de renunciarem a Cristo? Já ouviste falar de Safed? Não? Quando o castelo de Safed foi tomado pelos Sarracenos, estes capturaram 200 Templários e ofereceram-lhes a vida se renunciassem à sua fé. 200... e todos eles escolheram a morte. Foram chacinados, um de cada vez, em frente dos outros. Não houve um único que se dispusesse a denunciar a sua fé! Um único! Consegues realmente acreditar que aqueles homens eram heréticos? Não! Tinha orgulho em ser um Templário, em ser aceite como um guerreiro de Deus. Só lamento... - baixou um pouco a voz enquanto olhava para Simon - ainda estar vivo quando a Ordem foi destruída.
Simon e Hugh não tiravam os olhos do cavaleiro. Simon recordava-se com clareza das histórias sobre os Templários, os terríveis cavaleiros que tinham traído toda a Cristandade com os seus crimes revoltantes, e no entanto... parecia que aquele homem, por quem tinha respeito, os reverenciara. Como podia ser isso, a não ser que também tivesse sido enganado por eles? Seria possível que tivesse cometido os mesmos crimes?
Baldwin continuou, agora um pouco na defensiva depois de interpretar as expressões de Simon.
- Éramos monges-guerreiros, compreendes? Prestávamos os mesmos votos que os monges normais, de pobreza, castidade e obediência. Éramos a mais antiga ordem de cavaleiros, muito mais velha do que os Cavaleiros Teutónicos, e ainda mais velha do que os Hospitalares. Fomos criados depois da Primeira Cruzada para defendermos os peregrinos que viajavam para a Terra Santa e a partir daí participámos em todas as batalhas até à queda de Acre... Foram 200 anos...
- Então, por que foi que... - começou Hugh, num tom sarcástico.
- Cala-te, Hugh, e deixa-o continuar - ordenou Simon num tom seco.
- Bom, talvez compreendam tudo quando eu terminar - prosseguiu o cavaleiro. -Juntei-me à Ordem. Fui enviado de volta a França para aprender a combater e para me mostrarem como melhor servir a Ordem, e vivi aí, em Paris, durante vários anos. - Olhou para o servo e os seus olhos suavizaram-se. - O Edgar estava comigo. Salvara-lhe a vida e pediu-me para me acompanhar. Não tinha treino de cavaleiro, não sabia como usar uma espada, mas podia trabalhar comigo, como meu escudeiro.
"Era bom sentirmo-nos como fazendo parte do exército de Cristo, ter esquecido os prazeres terrenos e poder viver uma vida dedicada a honrar Deus e Cristo. Era tudo o que eu realmente desejava.
"Porém, um dia... Foi na quarta-feira, 4 de Outubro do ano de 1307... - lembro-me tão bem! -, que fui enviado para a costa para entregar uma mensagem a um navio que partia para Creta. Não sei o que constava nessa mensagem, mas aparentemente era urgente. O novo Grão-Mestre, Jacques de Molay, pedira que fosse entregue rapidamente. Como também era inglês, encarregou-me de o fazer. Foi por isso que o Edgar e eu nos encontrávamos fora de Paris quando aquilo aconteceu.
- Na sexta-feira, dia 13, o Templo em Paris e todos os outros existentes em França foram atacados por homens enviados pelo Rei de França. Meu Deus! Essa data viverá para sempre como sendo a mais negra da história... e só a morte do próprio Cristo pode ser mais deplorável! - Os olhos do cavaleiro brilhavam com uma raiva quase maníaca quando gritou aquelas palavras, mas acalmou-se com esforço e descontraiu-se, esgotado pela explosão de energia de que necessitara. - Já estávamos na viagem de regresso quando nos avisaram a respeito do que se estava a passar em Paris. Parecia impossível, incrível, que os membros da ordem estivessem a ser presos... mas era verdade! - A voz perdera a entoação, como se a sua vida tivesse terminado com a destruição do Templo que servira durante tanto tempo. Estremeceu, numa grande convulsão que o fez derramar um pouco do vinho da caneca, mas a seguir sorriu com tristeza e voltou a olhar para as chamas. - O Edgar recusou-se a deixar-me ir descobrir o que se passava. Insistiu comigo para que ficasse fora da cidade enquanto ele entrava em Paris para investigar. Separámo-nos num bosque no exterior da cidade e combinámos encontrarmo-nos daí a dois dias. Pois bem, encontrámo-nos no local combinado e confirmou tudo o que nos tinha sido dito. O Templo era acusado de crimes tão revoltantes que o próprio Rei se vira forçado a tomar o assunto nas suas mãos. Fê-lo... e com um grande entusiasmo!
"Ordenou que todos os Templários fossem imediatamente presos, incluindo o Grão-Mestre, Jacques de Molay. Pobre Jacques! Foram todos postos a ferros e lançados nas prisões. Não havia prisões suficientes para os Pobres Soldados de Cristo, pelo que acabaram por os agrilhoar no interior dos edifícios dos Templários, espalhados por toda a França. Estavam presos nos seus próprios templos!
"Edgar e eu viajámos pelo país. Por sorte, encontrámos alguns amigos nas florestas a sul de Lyon. Deve ter sido em 1310. Por essa altura, é claro, já tínhamos ouvido histórias sobre as confissões. Sabem como é que aqueles homens foram interrogados? Não? Então dêem graças a Deus por nunca terem sido obrigados a responder perante a Inquisição! Ainda por cima, acusaram-nos, a nós, de sermos diabólicos!
"Estávamos com esses tais homens no exterior de Lyon quando ouvimos falar no concílio que o Papa ia realizar em Viena no ano seguinte. - Soltou uma gargalhada curta, uma espécie de latido sem qualquer alegria. - Deviam tê-lo visto! Reuniu o seu grande concílio para nos denunciar! A nós, os Templários! Só vivíamos para o servir, a ele e a Deus, e queria denunciar-nos! Os outros que lá estavam, os arcebispos, os bispos e os cardeais, queriam todos ouvir a nossa defesa. Sabes, quando perguntaram aos homens que se encontravam nas prisões se estavam dispostos a defender a Ordem, todos os que disseram que sim foram imediatamente mortos, queimados na fogueira pelo Arcebispo de Sens! Maldito seja! Queimaram mais de 50 homens só numa manhã apenas porque afirmaram que defenderiam o Templo. Por isso, quando o Papa pediu outros Templários para defenderem a Ordem, creio que pensava que não apareceria nenhum. Todavia, os outros homens de Deus em Viena, os bispos e arcebispos, garantiram um salvo-conduto a todos os que se apresentassem para testemunhar. Nessa altura, eu e seis outros pensámos: por que não? E fomos!
"No momento em que subimos os degraus da câmara cheguei a pensar que o Papa ia desmaiar! Clemente estava sentado no seu trono.... e ficou muito, muito vermelho quando nos viu entrar vestidos com as nossas túnicas de Templários. Creio que teria caído do trono se os braços deste não fossem tão altos!
"Os representantes do clero ficaram-nos gratos, acho eu, porque pretendiam na verdade saber quais eram os nossos argumentos e escutaram-nos com toda a atenção. Depois, quando afirmámos que havia cerca de 2000 homens dos nossos perto de Lyon, o Papa pareceu ter um ataque! Fugiu da câmara e pouco depois disseram-nos que íamos ser presos. O palácio do Papa ficava junto a Lyon e creio que temeu pela vida ao saber que havia quase 2000 Templários tão perto da sua casa! De qualquer modo, os outros clérigos clamaram pela nossa libertação porque nos tinham prometido a passagem em segurança, e acabaram por nos libertar. Saímos de Viena à noite, sem darmos nas vistas, e regressámos para junto dos nossos amigos.
"Depois disso tornou-se claro que não estaríamos em segurança em lado nenhum. Era óbvio que o Papa estava desejoso de ver a Ordem destruída, pelo que não valia a pena continuar. Muitos partiram e regressaram às suas pátrias, e muitos juntaram-se a outras Ordens. Houve quem se juntasse aos Teutónicos, ou aos Hospitalares, e também houve quem passasse a ser um simples monge. Todavia, alguns de nós queriam saber o que acontecera. Estávamos decididos a esclarecer o assunto e também, se possível, a conseguir uma vingança. - O cavaleiro bebeu um trago da caneca. - Levámos dois anos... mas acabámos por descobrir a verdade.
Simon permanecia sentado a olhar para o cavaleiro com uma mistura de consternação e descrença. Parecia-lhe incrível que a história daquele homem pudesse ser verdadeira, mas todas as palavras que pronunciava espelhavam a sua convicção. Baldwin estava descontraído, com os olhos a saltarem lentamente de Simon para Hugh e para o fogo, e desviando-se de vez em quando para Edgar. Parecia já se encontrar para lá de todas as preocupações, como se soubesse que não acreditariam na sua história e que ia morrer, e isso pouco lhe importasse. Era como se já tivesse desistido, como se houvesse sonhado com o descanso e a paz na tranquilidade de Devon mas se visse agora obrigado a travar uma nova luta.
Tinha os olhos semicerrados, o que lhe dava um ar cansado, talvez do esforço para recordar, mas Simon ainda os via a brilhar. Ao princípio pensara que se tratava do brilho da ira por ter sido descoberto, mas agora tinha a certeza de que essa ira não era dirigida a ele mas sim a Oliver de Penne, o homem que assassinara, como se o facto de o ter morto não tivesse sido suficiente para limpar a enormidade do crime que cometera contra Baldwin e os seus amigos.
Hugh agitou-se no banco, inquieto, e o cavaleiro continuou:
- Era óbvio que não podíamos permanecer em França. Tanto o monarca francês como o Papa pareciam inteiramente dedicados à destruição do Templo e à morte ou afastamento de todos os Cavaleiros Templários. Os castigos eram muito variados, mas qualquer homem que confessasse sob tortura e depois se retratasse ia parar à fogueira. A Ordem teve a sorte de possuir um homem que a podia defender, Peter de Bolonha, que fora Preceptor do Templo em Roma, com grandes conhecimentos e que compreendia a Igreja. Os seus conhecimentos permitiam-lhe defender o caso servindo-se das próprias leis da Igreja. Examinou os testemunhos contra a Ordem e em breve se tornou claro que não havia provas concretas a respeito de nada. As testemunhas haviam-se limitado a narrar coisas que tinham ouvido dizer, ou provou-se que eram mentirosas, e Bolonha tirou vantagem da confusão dos nossos inimigos.
"Por essa altura, o velho arcebispo de Sens morreu e era preciso encontrar um novo homem. O novo arcebispo foi Philip de Marigny, um amigo do monarca francês, que entrou rapidamente em acção logo que ocupou o cargo. Confirmou as sentenças dos Templários que se encontravam nas prisões mesmo apesar dos seus julgamentos ainda prosseguirem. Numa só manhã... retirou 54 cavaleiros da prisão e mandou-os queimar nas fogueiras.
Baldwin deixou cair a cabeça como se rezasse, e Simon sentiu uma fria punhalada de dor quando viu as lágrimas a correrem pelo rosto do cavaleiro. Baldwin levou a mão à testa e segurou a cabeça por um minuto, em silêncio. Os únicos sons na sala eram os silvos e estalos dos troncos que ardiam na lareira, e os olhos de Simon foram atraídos para eles enquanto pensava nas mortes daqueles homens.
Baldwin endireitou-se e limpou o rosto.
- As minhas desculpas... mas eu tinha amigos nesse grupo - explicou, com os olhos postos no chão. - Peter de Bolonha foi apanhado por esse mesmo arcebispo e condenado a uma vida na prisão. Não lhe permitiram continuar a defender a Ordem. Porém, Peter era um homem astuto e cheio de recursos. Conseguiu escapar aos ferros que o mantinham na prisão e fugiu. Teve uma vida dura nos campos da França durante algum tempo, até conseguir fugir para Espanha, onde o encontrei.
"Peter, se bem me lembro, era uma pessoa robusta. Quando o encontrei em Espanha era novamente um soldado, mas não em nenhuma das Ordens. Fui para lá porque tinha a ideia de me juntar aos Cavaleiros Hospitalares. Os Espanhóis, tal como o nosso próprio Rei Eduardo, nunca se convenceram da culpa dos Templários. Os Espanhóis sempre tinham combatido ao lado dos Templários na sua luta para manter os Mouros afastados, pelo que sabiam que a Ordem era honrada. Pareceu-me um bom sítio para onde ir. Pensei que me podia juntar a outra Ordem e encontrar um pouco de paz.
"Porém, Peter de Bolonha nem quis ouvir falar nisso. Sabem, conseguira ver determinados documentos durante o julgamento enquanto tentava defender a nossa Ordem. Depois disso sentiu-se demasiado amargurado para se juntar a outra Ordem. Continuou a ser um soldado da fortuna, lutando por aquilo em que acreditava, combatendo para proteger a Cristandade.
"Devo dar-vos algumas explicações, porque provavelmente não sabem como os Templários estavam organizados. O Papa é o Vigário de Cristo sobre a Terra, pelo que tem poder sobre todos os homens, incluindo os Reis. Os Templários só tinham de responder perante ele porque eram a mais santa de todas as Ordens, que fora criada para proteger os peregrinos. Os documentos que Peter viu durante a sua defesa da Ordem foram listas com os nomes de todos os homens que haviam prestado falso testemunho contra nós. Um dos membros do tribunal foi muito prestável e permitiu que Peter visse ainda mais coisas, talvez por desejar que a Ordem tivesse um julgamento justo, e algumas dessas coisas que lhe mostrou provavam que havia uma conspiração contra a Ordem.
"Ao princípio, Peter nem queria acreditar no que estava a ver porque lhe pareceu demasiado horrível. Os documentos revelavam que o monarca francês e o Papa se tinham coligado para destruir a Ordem, mas não por causa dos crimes alegados. Não! Tinham apenas uma razão: queriam o nosso dinheiro! Mais nada! - O cavaleiro estava agora inclinado para a frente, com o desespero perante a futilidade dos motivos para a destruição da Ordem bem visíveis no rosto enquanto olhava fixamente para Simon. Era como se tentasse transferir para ele os seus sentimentos de traição e angústia através daquele olhar penetrante e concentrado.
Simon sentiu os seus próprios sentimentos a agitarem-se de compreensão e teve de se esforçar para controlar a compostura. Agora, compreendia finalmente as terríveis cicatrizes da dor e da perda que notara naquele homem quando o conhecera.
- O monarca queria o nosso dinheiro porque tinha vários débitos à Ordem e queria poder esquecê-los. Os Templários haviam-lhe emprestado dinheiro para o dote da filha quando do acordo de casamento com Eduardo de Inglaterra. Tinham-lhe emprestado dinheiro para as guerras. Tinham-no ajudado de muitas maneiras diferentes e ele desejava ficar com tudo o que tínhamos e não ter de pagar as dívidas. Decidiu destruir a Ordem para o conseguir. O Papa estava sob o seu poder porque vivia em Avinhão e não em Roma, e porque também queria o nosso dinheiro.... não para a Igreja mas para ele próprio! - Soltou outra gargalhada curta e seca. - E resultou! Nunca nos passara pela cabeça que o Papa nos pudesse trair daquele modo e nós, na nossa inocência, acreditávamos que o monarca francês nos estava grato pela ajuda que sempre lhe tínhamos dado. Nunca nos apercebemos que pretendia destruir-nos precisamente porque o tínhamos ajudado! - Calou-se e olhou novamente para as chamas, com os olhos cheios de mágoa por causa daquela traição. - Quando Peter viu aquilo, jurou nunca mais servir reis ou papas. A partir daí decidiu servir Deus à sua própria maneira, e fê-lo, combatendo contra os Mouros em Espanha até ao momento da sua morte, há um ano. Contudo, antes de morrer contou-me tudo o que sabia.
"O monarca francês tinha um ajudante chamado Guillaume de Nogaret. Era um homem tão diabólico como o próprio diabo. Era brilhante e inteligente, que fora educado pela igreja desde a morte dos pais, mas que mesmo assim parecia odiá-la. Foi ele quem decidiu que a melhor maneira de destruir a Ordem dos Templários era acusando-a de heresia e lançou-se nessa tarefa com todo o vigor. Organizou confissões falsas em troca de dinheiro. Sempre que havia um Templário que tivesse sido expulso da Ordem, Nogaret ia procurá-lo e subornava-o para prestar falsas declarações contra a Ordem.
"Houve um homem que o ajudou mais do que qualquer outro. Tratou de obter falsas confissões de assassínio, de heresia e idolatria, e certificou-se de que eram tornadas públicas. Para além disso, espalhou toda a espécie de histórias diabólicas sobre a Ordem.
"Foi o mesmo homem que conseguiu confissões entre os servos dos Templários, e que os levou a afirmar que adoravam ídolos e obrigavam os novos membros a cuspirem na cruz...
Simon interrompeu-o acaloradamente:
- Como podes dizer uma coisa dessas? Estás a querer convencer-me de que as acusações eram falsas e que os crimes foram todos inventados? Foram muitos, e até eu ouvi falar nisso. Queres que acredite que nenhuma delas era verdadeira?
O cavaleiro olhou-o com um pequeno sorriso triste.
- Meu amigo - perguntou - poderá o inverso ser verdadeiro? Pensa nisso! Todos os homens que se juntaram à Ordem eram cavaleiros por direito próprio. Juntaram-se a ela porque eram virtuosos, porque estavam empenhados, porque queriam tornar-se membros de uma ordem que exigia que prestassem os votos de um monge, que exigia que fossem honrados e pios, que lhes pedia obediência e lhes impunha a pobreza. Se quisesses juntar-te a uma Ordem desse tipo, estarias disposto a cuspir na cruz logo no primeiro dia? Claro que não! Se tivesses decidido dedicar a tua vida a Cristo, se tivesses decidido entregar tudo o que possuísses, o teu primeiro gesto seria profanar o próprio símbolo do poder de Deus? Acreditas que um monge fosse capaz de fazer uma coisa dessas? Então, por que achas que um Templário o faria? Não é possível!
Os seus olhos tristes fitaram Simon por um minuto ou dois, até o almoxarife se sentir obrigado a acenar. Agora que as coisas tinham sido postas assim, parecia-lhe muito improvável...
- O homem inventou tudo aquilo. A sua motivação não era a honra, mas sim o dinheiro e o poder.... e conseguiu-os! Oh, se conseguiu!
"Não sabíamos como se chamava nem tínhamos nenhuma informação a seu respeito, porque estava muito bem protegido. Tudo o que sabíamos é que fora um Templário, um cavaleiro que havia sido recrutado mas que era diabólico. Um homem retorcido, mau e ambicioso que nunca deveria ter sido aceite nas nossas fileiras. Porém, como descobrir o seu nome? Como descobrir a sua identidade? Peter nunca a conheceu, mas eu consegui identificá-lo.
"Em 1314, nós, os que restávamos, descobrimos que iria realizar-se uma manifestação pública de penitência da nossa Ordem. Tens de compreender que, mesmo nessa altura, quando já sabíamos do homem que nos traíra a todos, ainda nos parecia que poderia ter havido algo de errado na Ordem precisamente por causa do que acabaste de dizer: como era possível que todos aqueles crimes tivessem sido inventados? E porquê?
"Nesse ano, há apenas dois anos, o Grão-Mestre, Jacques de Molay, bem como três outros, deveriam confessar os seus crimes perante o povo de Paris, em frente da catedral de Notre Dame. Quando eu e os meus amigos ouvimos falar nisso, tirámos à sorte com palhinhas para escolhermos uma testemunha... e fui o escolhido.
Mergulhou mais uma vez no silêncio, com a tristeza a fazer-lhe cair a cabeça até ao peito enquanto recordava a sua dor. Quando recomeçou fê-lo com uma voz baixa, como se estivesse a referir-se a profundas injustiças cometidas contra ele e os seus companheiros num passado distante, e não a acontecimentos que haviam tido lugar há apenas dois anos. Voltara a recolher-se para dentro de si mesmo, como se não se encontrasse na mesma sala com os outros e estivesse a falar sozinho, ou como um velho a recordar antigas memórias, esquecido da presença de uma audiência.
- Fui para Paris. Instalei-me em frente da plataforma até chegarem, tolhidos com cadeias como vulgares ladrões. Todos eles negaram as acusações. Pouco depois, Jacques de Molay e os outros foram queimados nas fogueiras em frente da catedral. Houve uma enorme multidão que foi vê-los morrer, mas eu não. Não podia! O Jacques... o bom, forte e honesto Jacques? Nunca! Como podia vê-lo a ser destruído pelas chamas? Como podia?
Virou-se para Simon com o rosto repleto de desgosto e com os olhos a percorrerem-lhe as faces como se necessitasse desesperadamente do seu apoio.
- Na manhã seguinte, quando os soldados voltaram para limpar as cinzas, não encontraram nenhuns ossos. O povo de Paris recolhera-os e levara-os. Depois de tudo o que acontecera, as pessoas sabiam que as acusações eram falsas e consideraram os ossos como relíquias sagradas. Até os mais pequenos ossos dos dedos...
Manteve os olhos fixos em Simon enquanto levava a mão ao pescoço e puxava um fio. Tinha uma pequena bolsa de couro presa ao fio, olhou-a por instantes e acenou para Simon antes de voltar a guardá-la no interior da túnica.
- Tive de contar aos meus amigos o que acontecera... Depois seguimos os nossos caminhos, para narrarmos o fim da ordem e para mantermos viva a memória de Jacques de Molay e do seu martírio final. Porém, eu tinha de descobrir quem nos traíra. - A boca contorceu-se-lhe num sorriso sardónico. - No fim, foi o próprio Papa quem mo disse.
Simon sobressaltou-se e abriu os olhos de espanto.
- O Papa disse-te? Como...?
Baldwin riu-se baixinho, como que para si mesmo, pegou no jarro e voltou a encher a caneca. A seguir, ainda a sorrir, fitou Simon.
- Não, não o fez de propósito. A coisa aconteceu assim: como já disse, depois da farsa das confissões de Notre Dame, decidi descobrir o responsável. Ao princípio pareceu impossível mas o Edgar e eu viajámos muito, e falámos com muitos dos que tinham sido membros da Ordem. Gradualmente, surgiram pistas que pareciam apontar para um punhado de homens. Contudo cada um daqueles com quem falei parecia ter sofrido muito por causa das confissões que tinham feito. Cada um deles parecia ter saído beneficiado com a queda do templo. Nenhum era rico - de facto, na sua maioria eram monges e nem sequer importantes -, e não passavam de homens desconhecidos dedicados a Deus e às suas novas vidas. Muitos, na realidade, estavam tão amargurados como eu pelo modo como os altos ideais da Ordem haviam sido pervertidos. Porém, quando falei com eles havia um nome que aparecia constantemente. Havia um homem que parecia ter falado com um grande número de Templários quando estes ainda sofriam nas masmorras. Também era um prisioneiro mas parecia ter sido transferido de prisão em prisão... e onde quer que aparecera... os homens haviam admitido os crimes que depois negaram junto de mim.
"Não me manifestei a esse respeito e prossegui com a minha caçada. O homem estava em Paris, o homem estava na Normandia, o homem estava no Sul... e até apareceu em Roma! Por que razão, perguntei a mim mesmo, iria um homem suspeito de heresia andar tanto de um lado para o outro? Onde quer que aparecesse estava tão acorrentado como os outros, mas ninguém jamais o viu a ser torturado. Onde aparecia, os outros prisioneiros ouviam narrar as torturas que eram infligidas aos seus irmãos, tomavam conhecimento das horríveis dores que sofriam e acabavam por temer pela sua própria sorte. Dizia-lhes o que lhe iria acontecer se não confessassem, e esse homem, esse Cavaleiro Templário - quase cuspiu as palavras, com nojo -, esse pobre e sofredor cavaleiro ensinava-lhes o que tinham de dizer, explicava-lhes como garantir a si mesmos que se salvariam das chamas da fogueira.
"A seguir ouvi um homem de Roma falar a seu respeito, sobre o modo como dissera aos homens que lá se encontravam que até o Grão-Mestre havia confessado, que admitira os pecados da Ordem. Na altura pareceu-me estranho, mas não consegui perceber porquê durante vários meses. Depois, compreendi...
"Na altura em que estivera em Roma, o Grão-Mestre não confessara nada. Era demasiado cedo. Comecei finalmente a suspeitar do homem e a interrogar-me se não teria sido instalado em todas aquelas prisões como um agente do monarca e do Papa, para persuadir os Templários a confessarem para evitarem os castigos. Só mais tarde me apercebi de que tinha razão mas precisei de mais seis meses para o provar.
"Foi depois da morte de um amigo, perto de Chartres, que vi a prova final. Fui lá para rezar por ele logo que soube que morrera e fiquei para o funeral. Um outro meu amigo na mesma abadia teve conhecimento da minha chegada e insistiu que ficasse com ele. O seu abade ouvira falar do meu passado, demonstrou-me uma grande simpatia, escutou a minha história e permitiu-me que lá ficasse durante algumas semanas. Por essa altura já eu estava exausto de corpo e de espírito, profundamente ferido pelas provações da minha busca e quase pronto para desistir depois de um ano de viagens contínuas, mas o abade mostrou-me uma bula papal que havia sido publicada algum tempo antes e que em breve me renovou as energias.
"Era uma declaração sobre os homens com quem o Papa queria lidar pessoalmente. O Papa escolhera alguns homens para um tratamento especial. Iriam ser punidos por ele próprio e mais ninguém poderia decidir qual seria o seu destino. Continha vários nomes, incluindo o do Grão-Mestre, de vários preceptores e de outros - não me lembro de todos -, mas houve um que, para mim, se destacou. Era o nome que ouvira por toda a Europa durante as minhas viagens: Oliver de Penne. Tratava-se de um vulgar irmão da Ordem, sem qualquer espécie de importância, um simples monge-guerreiro e não um grande líder como Jacques de Molay. Fora escolhido juntamente com os outros, os maiores homens da irmandade do templo, para um tratamento especial. Como era isso possível? Um simples monge? Escolhido para atenções especiais por parte do Papa? Agora, já tinha a certeza de que descobrira o homem que procurava.
"Claro que tinha de me certificar e tentei saber o que fora feito dele. Precisei de semanas de viagem, de semanas de conversa com os poucos que sobreviveram, conversas com homens de que anteriormente mal ouvira falar, e sofri um certo número de revezes. Alguns não quiseram falar comigo, fui denunciado por duas vezes e tive de fugir. Houve uma vez em que tive de lutar. No entanto, por fim, consegui a minha informação. Finalmente descobri qual fora a sua punição, a sua penitência pelos seus crimes nos Templários. O castigo fora severo: tinha sido nomeado arcebispo no sul da França. O castigo do Papa fora a promoção e não só, porque o monarca de França também o recompensara bem, com dinheiro e terras. Agora, já não tinha qualquer espécie de dúvidas. Todas as provas apontavam para ele.
"Porém, quando tentei aproximar-me dele - e isso foi há pouco mais de um ano -, tornou-se óbvio que iria ser impossível. Nunca saía do palácio e o edifício estava tão bem guardado que um ataque seria inconcebível. O Edgar e eu aguardámos semanas, mas era claro que não podíamos fazer nada. Ao mesmo tempo estava a ficar cada vez mais doente, com uma fraqueza no corpo e na alma por causa da busca constante e da vida ao ar livre. No fim, decidi voltar a Inglaterra e esquecer a minha vingança, em grande parte graças ao Edgar, que disse que eu acabaria por morrer se lá ficássemos muito mais tempo. Tinha razão. Era tempo de esquecer e de tentar encontrar uma nova vida, regressar à Inglaterra e esquecer o passado.
"Era como se Deus me tivesse abandonado. Tudo o que desejava era vingar a destruição da Sua Ordem, mas pusera aquele vilão fora do meu alcance. Estava cansado de viajar, tinha a mente danificada por causa de tudo o que se atravessara no nosso caminho e quando vínhamos a caminho de casa fui assolado por uma febre que quase me matou. O Edgar conseguiu ajudar-me a recuperar a saúde, mas a seguir disseram-nos que o meu irmão tinha morrido e que podia voltar para aqui, para Furnshill, para ocupar a mansão. Decidimos vir para cá, esquecer a vingança e viver tranquilamente e em paz. Confesso que comecei a interrogar-me se Deus estaria realmente interessado. Decidimos não voltar a procurar uma oportunidade para castigar o Penne pelos crimes cometidos contra a nossa Ordem e os nossos amigos, e escolhemos o retiro, em busca da paz tão desejada pelos nossos corações.
"Contudo, estávamos aqui apenas há alguns dias quando Edgar encontrou o irmão Matthew em Crediton. O Matthew também fora um Templário mas nunca sofreu as torturas porque estava em Espanha a combater os Mouros quando o Templo foi destruído. Quando soube qual fora o destino da Ordem... renunciou aos seus votos e juntou-se aos monges. O Edgar viu-o e convidou-o a vir aqui.
"Matthew pediu ao seu abade para adiar a partida a fim de me vir visitar. Explicou que eu fora um Templário e que gostaria de passar uma noite comigo. Matthew sabia que Penne também tinha sido um Templário e pensou que o abade compreenderia o seu desejo de me visitar. Contudo, ficou muito surpreendido com a reacção. O abade enfureceu-se! Repreendeu-o, zangado e rabugento, mas o Matthew pensou que o homem estava a exagerar por desejar esquecer o passado e por estarem a lembrar-lho à força. O Matthew foi sempre um homem bondoso. Sabia que o abade perdera as graças da Igreja quando o Papa João subira ao trono, e pensara que isso se devera ao facto do novo Papa ter sabido do seu passado na Ordem. Eu penso que o Papa João descobriu como fora que o Penne alcançara uma posição tão elevada e não gostou. Preferiu enviá-lo para o lugar mais distante possível, e Buckland fica muito distante para um homem de Avinhão.
"Assim, o meu velho amigo veio visitar-me e durante a conversa acabou por nos dizer quem era o abade. - O rosto do cavaleiro ficou pensativo enquanto recordava o que se passara. - Fiquei espantado. O Penne só podia ter sido mandado para aqui, para mim, por interferência divina. Por que haveria Deus de o colocar no meu caminho... se não para ser o agente da Sua justiça? Ah, fiquei como louco! Senti-me invadido pelo Espírito Santo e encantado por Deus me ter escolhido para realizar a Sua vontade!
"O Matthew ficou connosco naquela noite e eu devo ter-lhe parecido demasiado excitado. Tive o cuidado de não lhe dizer quem era o Penne e o que ele fizera, porque sabia que o Matthew não desejaria ver sangue derramado e que preferiria deixá-lo escapar para Buckland. No entanto, penso que a minha satisfação, naquela noite, me levou a beber demasiado porque não me lembro de muito do que se passou. Creio que o deixei preocupado porque, como sabem, não costumo beber em excesso. De manhã mandei o Edgar acompanhar o monge até à cidade, para o proteger na estrada, mas também lhe disse para lá ficar, de vigia, e para só regressar quando soubesse que os monges estavam de partida.
"Não conseguia descansar. Não conseguia dormir. A minha vingança estava tão perto, tão perto... que parecia queimar-me a alma com uma luz sagrada. - Virou-se e fitou as chamas, com um pequeno sorriso a brincar-lhe em volta dos lábios.
"A seguir, quando o Edgar regressou e me disse que os monges tinham partido, senti-me indeciso. Não me conseguia convencer a mim mesmo de que aquele era realmente o homem que eu queria. Como ter a certeza? Tentei recordar tudo o que ouvira, para me certificar, na minha própria mente, de que era aquele, que merecia a morte... mas como podia ter a certeza? Andei confuso durante todo um dia, mas depois decidi apanhá-lo e interrogá-lo. No fim de contas, não seria demasiada coincidência ter vindo para aqui, e que a sua presença me tivesse sido comunicada? Tinha de ser a vontade de Deus.
"Parti ao fim da manhã. Lembrava-me das estradas para Oakhampton e o Edgar tinha a certeza que haviam tomado esse caminho, pelo que fui sozinho. Edgar descobriu que eu partira e decidiu seguir-me para tentar impedir-me. Quando viu que não me convencia, decidiu acompanhar-me. Não podia impedi-lo porque também ele, tal como eu, perdera muitos amigos nas fogueiras.
"Como sabem, encontrámo-los nos arredores de Copplestone. Arrancámo-lo aos monges e levámo-lo para a floresta. Não tínhamos qualquer desejo de magoar os outros mas creio que os assustámos o suficiente para não terem vontade de nos seguir.
"Contudo, o Matthew percebeu quem nós éramos, não obstante usarmos túnicas sem distintivos. Penso que reconheceu a minha voz. Bom, levámos o Penne para as profundezas da floresta, amarrámo-lo a uma árvore e interroguei-me sobre o que fazer com ele. Deus, na sua sabedoria, fez-me ter pena do homem, como que a tentar-me com a minha própria fraqueza. Já tinham morrido tantos... para que serviria mais uma morte? Sentei-me, olhei para ele e compreendi que nada poderia fazer.
"No entanto, tinha de ter a certeza de que aquele era o homem. Tinha de saber se fora verdadeiramente o agente da destruição do Templo. Baldwin passou a mão pela testa, como se estivesse a tentar limpar as recordações.
"Interroguei-o a respeito dos Templários. Pensei que não iria confessar se lhe fizesse perguntas directas sobre o seu passado porque me parecia demasiado receoso e nervoso, mas também demasiado empedernido para admitir que fizera algo de mal. Por isso, acusei-o de ser um Templário e portanto um herético. - Baldwin riu-se. - Pensou que o ia matar por causa daquilo... e confessou tudo para provar que não era culpado: como conspirara com Nogaret para encontrar provas contra a Ordem, como inventara crimes que sabia serem falsos, como andara pelas prisões e persuadira os Templários a admitirem as suas culpas. Como prova, disse-me que ganhara os favores do Papa! Tinham-lhe concedido um arcebispado como recompensa... e esperava que esses crimes me levassem a libertá-lo!
"Veio tudo ao de cima, toda a sua culpa, todas as iniquidades, perjúrios e mentiras. Pela minha parte, eu já sabia o suficiente para ter a certeza de que tudo aquilo era verdade. Falara com os homens que ele traíra e o que me disse pôs a nu as suas culpas. Fiquei como louco e perdi toda a compreensão e compaixão!
"Avancei para ele, tirei o elmo para que pudesse ver o meu rosto e falei-lhe. Disse-lhe quem era. Ficou a olhar para mim. Ao princípio pareceu não querer acreditar, continuou a abanar a cabeça com a boca muito aberta, como se não conseguisse convencer-se do que estava a ouvir. Depois... Bom, depois disse-lhe que o iria matar, e que a morte dele iria ser semelhante àquela para onde enviara tantos outros.
O cavaleiro estremeceu, como que de dor.
- Fitou-me, com a boca ainda aberta e a cabeça a mover-se lentamente de um lado para o outro... e a seguir começou a implorar, a pedir-me que tivesse piedade. Piedade! Quando fora que ele mostrara alguma piedade? Matara por dinheiro, pelo seu próprio prestígio e riqueza! Esquecera todos os votos, desprezara os amigos e arruinara uma velha e honrada Ordem! Piedade? De mim? Não conseguia suportar a ideia de ir sofrer a morte que impusera a tantos outros. Só espero que a sua alma, neste preciso momento, esteja a arder no inferno por causa de tudo o que fez!
"Pouco mais tenho para contar. Podia tê-lo deixado ali para morrer à fome mas, com sorte, seria descoberto e salvo. Podia ter-me limitado a apunhalá-lo, mas nesse caso a sua morte não teria significado. O único fim que me parecia correcto era aquele para onde enviara os nossos companheiros... a pira dos heréticos. Então, sim, seria uma morte com algum significado. Quando lho perguntei, o Edgar concordou que seria melhor deixá-lo como um símbolo para mostrar que se tratava de um homem sem honra e para mostrar a sua culpa. Haveria maneira melhor? No mínimo, seria uma indicação, um sinal. Reunimos a lenha e acendemos a fogueira enquanto ele gritava e berrava. Creio que já estava louco quando pegámos fogo à lenha, porque parecia ser incapaz de compreender o que lhe dizíamos. Sentei-me à sua frente e fiquei a vê-lo morrer. O corpo ardeu. Não tirei qualquer prazer daquilo, meu amigo, acredita. Foi como executar os últimos ritos para um criminoso... o que, de certo modo, até era. Porém o cheiro, aquele odor... era revoltante. Deixámos o corpo a arder logo que morreu e voltámos para aqui.
- Ocultaram os rastos com muito cuidado... - comentou Simon baixinho.
Baldwin olhou-o com evidente surpresa.
- Não, não! Limitámo-nos a cavalgar para o norte até chegarmos a uma estrada, e depois seguimo-la na direcção de Crediton até podermos voltar para aqui. Nem sequer pensei na minha protecção. No fim de contas, posso tê-lo morto mas não senti nenhuma culpa. Ele merecia-o! Foi por vontade de Deus que o enviaram para aqui e que me deram a conhecer a sua presença! Foi Deus quem lhe tirou a vida e não eu! Não fizemos qualquer esforço para ocultar os nossos rastos.
"Admito que esta história vos possa parecer incrível. Admito que, se as nossas posições estivessem invertidas, também eu não acreditaria... mas juro que é a verdade. Decidi matá-lo pelo que fizera aos Templários. Tive uma oportunidade para me vingar... e aproveitei-a. Foi o próprio Deus quem o permitiu ao colocá-lo no meu caminho. Tenho a certeza de que era culpado e que Deus me utilizou para aplicar a justiça que merecia.
Simon olhou-o, tentando tirar algum sentido da espantosa história do cavaleiro. Baldwin continuava sentado, evitava encarar o almoxarife e mantinha os olhos nas chamas da lareira. Não parecia embaraçado, antes pelo contrário, era como se estivesse descontraído, quase aliviado, como se a confissão lhe tivesse tirado um grande peso das costas e pudesse finalmente encarar um futuro em paz. Por quanto tempo? interrogou-se Simon. Por quanto tempo guardara ele aquela história para si? Durante quanto tempo andara em busca daquele homem? De quanto tempo precisara para descobrir todos os pormenores, para descobrir quem fora o culpado e porquê? Afirmara que Molay morrera em 1314, o que significava que passara dois anos em busca de informações, à procura de novas pessoas capazes de corroborar ou acrescentar elementos à história, até acabar por encontrar o Penne. E depois? Descobrira o homem e tivera de desistir, de regressar a casa e de admitir que falhara.
Como me sentiria eu, perguntou Simon a si mesmo, se tivesse passado por tudo aquilo e depois, perdidas as esperanças de vingança, viesse a descobrir que a presa me seguira, como um cordeiro a caminhar para a toca do lobo? Também acreditaria que se tratava da vontade de Deus?
- E quanto ao monge, o Matthew? Até que ponto soube de tudo isso?
- O Matthew? - Baldwin virou-se, com o rosto a revelar uma leve surpresa. - Não soube de nada... até levarmos o abade e ter ouvido a minha voz. Creio que compreendeu quem nós éramos. A seguir soube o que acontecera ao Penne e veio aqui logo que lhe foi possível. Não o pôde fazer imediatamente e chegou quando cá estavas. Quando te foste embora exigiu saber porque tínhamos feito aquilo ao seu abade.
- Então, foi por causa disso que afirmou que o assassínio não se repetiria, e que me disse ter-se tratado de uma loucura temporária. Sabia que tinhas sido tu.! - declarou Simon, pensativo. - Disseste-lho? Confessaste?
- Oh, sim, disse-lhe. Não me perdoou, não podia. No entanto, creio que compreendeu.
- E terá contado a verdade a alguém?
- Não. É um bom homem e só lhe contei tudo depois de o obrigar a um juramento de silêncio. - Despejou a caneca com um gesto decidido e levantou-se. - Agora, meu amigo, estou pronto e à tua disposição. Faz o que achares conveniente.
Uma semana mais tarde, Simon foi fazer uma última visita ao seu amigo Clifford antes de ocupar o novo cargo em Lydford.
- Entra! Entra e senta-te, meu velho amigo! - exclamou o sacerdote quando o viu chegar e entregar a capa ao servo. Simon entrou, sentou-se, e aceitou a caneca cheia de vinho enquanto o sacerdote se inclinava para trás com um sorriso contemplativo, a observá-lo.
Durante o último encontro, quando o almoxarife regressara da perseguição aos fora-da-lei, Simon parecera-lhe mais velho. Tivera linhas de ansiedade e preocupação nas faces e no rosto, rugas tão profundas como cicatrizes. Contudo, agora, o sacerdote mostrava-se satisfeito por ver que a paz regressara às suas feições, fazendo-o parecer outra vez mais novo. Era como se se tivesse testado numa provação severa e tivesse ficado satisfeito com o resultado. As recordações dos horrores que vira nunca o abandonariam, mas Clifford tinha a sensação de que o amigo as conseguia encarar com uma perspectiva mais clara.
O sacerdote acenou para si mesmo. Sentia-se feliz por saber que o seu jovem amigo era mais do que capaz de desempenhar o cargo que lhe fora confiado. Não era como tantos outros funcionários, sempre em busca de algum dinheiro extra que pudesse extrair por intermédio de impostos injustos. Aquele homem era honesto e justo. Clifford estava demasiado consciente da extorsão e corrupção prevalecentes nos outros condados, e agradava-lhe saber que, pelo menos em Lydford, as pessoas comuns iriam ser protegidas.
- Então, Simon, quando partes para Lydford? - perguntou, depois de uma pausa.
- Partimos amanhã. Vamos precisar de alguns dias para fazer a viagem com todas as coisas que a Margaret quer levar connosco e já tivemos de contratar dois carros de bois.
- Então, deves lá estar dentro de uma semana?
- Sim, espero que sim. Ficaremos um ou dois dias em Oakhampton para nos apresentarmos ao almoxarife local, e depois continuaremos.
- Compreendo. - Clifford serviu-se de um pouco mais de vinho, levantou uma sobrancelha interrogativa para o amigo, que abanou a cabeça e pousou o jarro na lareira. - Lamento aquela história com os Carters... e com o Roger Ulton. Quem vê caras não vê corações... mas nunca pensei que pudesse ser um assassino.
- Pois não. Não parecia má pessoa. Não vai haver problemas com os Carters, que só são culpados de terem actuado de uma maneira estúpida e porque as suas ofensas são pouco importantes quando comparadas com as do Ulton.
- Sim, ou comparadas com as dos fora-da-lei. Graças a Deus que já estão na cadeia! É menos um horror para as pessoas daqui, em especial depois de terem morto o abade daquele modo!
- Pois é... - confirmou Simon, evitando os olhos do sacerdote. - De certeza que vão ser considerados culpados quando forem julgados, e o assunto fica arrumado. Muito em breve, tanto o Roger como eles irão pagar os seus crimes na forca.
- Pois é...
O sacerdote franziu a testa ao de leve e acenou, numa perplexidade divertida, como se estivesse confuso pela disparidade entre as palavras do almoxarife e a sua aparência. Inclinou-se para a frente, pousou cuidadosamente a caneca a seu lado e olhou para o amigo.
- Simon, estás a querer esconder-me qualquer coisa, não estás? O almoxarife levantou os olhos com uma expressão de inocência indiferente.
- Eu? Por que haveria de esconder fosse o que fosse?
- Simon! - exclamou o sacerdote, com uma mistura de firmeza e de bom humor.
- Oh, pronto, está bem... mas quero que consideres isto como um segredo de confessionário...
O sacerdote fez uma pequena careta mas acenou uma confirmação.
- Tens a minha palavra.
O almoxarife sorriu mas Clifford apercebeu-se de que o amigo estava perturbado, como se algo lhe pesasse há algum tempo e se sentisse aliviado por poder falar com outra pessoa a respeito do seu problema.
- Vamos supor... - começou Simon - que houve um assassínio, ou outro crime. Vamos supor que alguns homens foram apanhados por esse crime mas não eram os culpados. O culpado era outra pessoa qualquer. Há provas que revelam quem foi o verdadeiro culpado, mas o responsável é um homem justo e honrado, que pode vir a ser muito útil para a área onde vive. Os homens que se presume terem sido os culpados são na verdade culpados de muitos outros crimes e ninguém dará pela falta deles se forem punidos. Se forem apresentadas novas provas... irão destruir um bom homem. Achas que faria bem em reter essas provas? Que pensas disso?
O sacerdote deixou escapar o ar dos pulmões baixo.
- Terias de estar absolutamente certo de teres algo certo para dizer. No fim de contas, podias cometer um erro por deixar que o culpado continuasse em liberdade apenas por te ter confundido e atirado poeira para os olhos. Por que razão haverias de acreditar nele?
O almoxarife remexeu-se, com uma sensação de culpa, como se fosse ele próprio o tema da conversa. Pareceu pensar na questão com cuidado antes de responder, mas quando falou fê-lo com convicção.
- Não. Estou certo de que tenho razão. Sei quem o fez e estou seguro a respeito dos seus motivos. A minha única preocupação está em saber se faço bem em reter as provas.
- Bom, se estás tão certo como parece de que esse homem é bom e útil, então diria que fazes bem em reter as provas. Há tantos crimes... Para que serviria punir mais um homem que pode vir a ser útil para o povo? Por outro lado, como dizes, se os outros que vão ser punidos forem realmente culpados de muitos crimes, presumo que isso significa que acabarão por morrer. Portanto, que diferença fará isso, para eles? Se achas que tens de esconder algo para que um permaneça em liberdade... então não vejo qualquer problema.
- Óptimo. Foi o que pensei. Obrigado, meu velho amigo.
- De qualquer modo, conseguiste um grande êxito.
- Que queres dizer?
- Bom, apanhaste os assassinos do abade, do Brewer e dos mercadores. Foi um bom começo para o teu novo cargo em Lydford, não foi?
Simon só regressou a casa ao fim da tarde. Atirou as rédeas do cavalo a Hugh, que as aceitou com a sua habitual expressão taciturna, e encaminhou-se para a sala.
Parecia-lhe estranho ver a casa naquele estado, com muitas das suas posses guardadas em caixotes e prontas para serem levadas, de manhã, para a viagem até Lydford. Pisou o soalho na direcção da esposa, pareceu-lhe que todo o edifício ecoava com os seus passos e compreendeu que tinha de se habituar ao som do vazio, uma vez que o castelo iria ser igualmente silencioso na ausência do seu senhor, Lorde de Courtenay.
- Como está o Peter? - perguntou Margaret quando Simon a beijou.
- Oh, está óptimo. Desejou-nos felicidades em Lydford, abençoado seja. Vou sentir a sua falta quando nos formos embora.
- Tenho a certeza de que irá visitar-nos frequentemente, meu amor. Queres um pouco de vinho?
Sentou-se e aceitou, com gratidão, a caneca que a mulher lhe entregou. Parecia-lhe que se passara tanta coisa desde o seu regresso de Taunton que ainda não se sentia completamente descontraído. Por outro lado, sabia que não iria conseguir recuperar enquanto não se encontrasse na nova casa e não tivesse tomado posse do cargo. Contudo, falara com Peter Clifford, e também sabia que tomara a decisão correcta.
Estava a pensar nesse assunto quando Hugh apareceu para lhe anunciar uma visita.
- Sir Baldwin Furnshill.
O cavaleiro entrou, com Edgar um pouco atrás como de costume. Os seus pés ressoaram no soalho e os dois homens fizeram leves vénias a Margaret e Simon.
- Bem-vindos, meus amigos. Sentem-se, por favor. Um pouco de vinho?
Conversaram durante alguns minutos sobre temas gerais, até que Baldwin pediu a Simon para o acompanhar ao exterior da casa para ver um novo cavalo. Simon sorriu para si mesmo, acompanhou o cavaleiro e deram a volta à casa, na direcção dos estábulos.
- É uma beleza, não é? - perguntou o cavaleiro, afagando o pescoço da sua égua branca, de puro-sangue árabe.
- É, sim... - concordou Simon, bebericando o vinho enquanto olhava para o animal. A égua era toda fogo e espírito. Parecia ser uma daquelas criaturas construídas para a velocidade e agilidade, que se agitava e rolava os olhos, nervosa, sob as miradas dos dois homens.
Baldwin continuou a observar o cavalo e não olhou para o almoxarife quando declarou, num tom muito baixo:
- Não sei como te agradecer, meu amigo.
Simon encolheu os ombros, embaraçado.
- Então, não agradeças. Não acredito que sejas uma má pessoa, embora tenhas morto o abade. Foi um acto de vingança, nada mais, e creio que nenhum homem te condenaria com facilidade por teres posto fim a uma vida tão cheia de crimes. De qualquer modo, para que serviria a tua morte? De certeza que há por aí muita gente preparada para te ver enforcado por teres morto o abade, mas para que serviria? Como disseste, parece-me uma coincidência notável que o abade tenha aparecido aqui precisamente quando já tinhas desistido da vingança. Não tenho a certeza, mas o que me deteve talvez fosse a ideia de que se tratou realmente da vontade de Deus... ou por não saber se me teria conseguido conter se tudo isso se tivesse passado comigo. Fosse como fosse, a consciência não me incomoda.
- Mesmo assim, terias toda a razão se me levasses a julgamento.
- Sim, eu sei.... - O almoxarife agitou-se, inseguro - e talvez devesse fazê-lo. No entanto, não estou a ver para que serviria. Bom, é verdade que o tribunal teria o homem que desejava ver o abade morto, mas isso iria trazê-lo de volta? Se fosses enviado para o tribunal, a tua condenação seria útil para alguém? Não te parece?
- Mas... sou um Templário. Devia estar na prisão mais que não fosse só por causa disso.
- Já me informei a esse respeito. Foram muito poucos os Templários presos neste país... e foi-lhes dada a oportunidade, a todos eles, de desaparecerem. Por que haverias de ser diferente? Acreditei em ti quando descreveste o que os Templários costumavam ser. Lembro-me do meu pai falar neles, sempre com respeito, por se tratar de uma Ordem tão honrada como qualquer outra.
- E se condenarem os fora-da-lei pelo assassínio do abade?
- Não o farão. As provas de Godwen demonstram que o Rodney, o homem da égua cinzenta, andava sozinho dias antes de ter encontrado os fora-da-lei. Certifiquei-me de que serão julgados pelos seus crimes principais, os que cometeram em Oakhampton, ou sejam, os que tiveram lugar antes de Rodney se lhes juntar. Como nem sequer os negam, só serão julgados por isso. O julgamento irá ser rápido. Claro que algumas pessoas vão acreditar que Rodney de Hungerford era culpado da morte do abade, mas a culpa não será minha, pois não? Não fiz nem declarei nada que pudesse confirmar que os fora-da-lei tiveram alguma coisa a ver com a morte do abade.
O cavaleiro deixou de olhar para a égua e encarou-o.
- Deves estar satisfeito por a loucura desta última semana já ter chegado ao fim. A morte do Brewer foi esclarecida, o assassino foi apanhado, a morte do abade foi explicada e os fora-da-lei foram apanhados. Agora, podes seguir para a tua nova casa e as coisas, por aqui, vão regressar ao normal.
- Sim. Ter-me-ia sido impossível partir sem resolver tudo. Sabias que encontraram o filho do Brewer?
- Não. Ninguém me disse nada.
- Sim, o Morgan Brewer foi encontrado em Exeter. É um mercador, aparentemente rico. Era aí que o pai costumava arranjar o dinheiro. O filho mandava-lho de vez em quando, para o ajudar a manter-se.
- Ah, estou a ver! Vai regressar?
- Não. Aparentemente, tinha tanto ódio pelo pai como quase toda a gente. Afirmou que permanecerá em Exeter e continuará a ser mercador. O único motivo que o levava a enviar dinheiro ao pai era para que este não o seguisse e se mantivesse aqui.
- Não estou a perceber... Se o odiava assim tanto, por que enviava dinheiro ao pai?
- Ora, é simples. Morgan Brewer tem uma boa vida na cidade, é bem conhecido e as pessoas gostam dele. Não queria que um agricultor velho e conflituoso lá aparecesse para lhe dar cabo da vida. Concordou em enviar dinheiro sempre que o pai precisasse, e o preço para o manter afastado nem sequer era muito elevado. A quinta tinha poucas despesas, era lucrativa, e o velho quase só precisava de dinheiro para a cerveja.
Baldwin olhou-o, pensativo.
- Nesse caso, por que se gabava tanto junto dos Carters e do Ulton? Se vivia das esmolas do filho... por que se gabava a respeito da sua própria fortuna?
- Não sei. Talvez encarasse o êxito do filho como também sendo dele? - Simon encolheu os ombros. - Também é possível que as velhas histórias sejam verdadeiras e tenha voltado da guerra com dinheiro. Talvez encontres uma arca cheia de ouro se escavares o chão da casa dele... Não sei. De qualquer modo, é uma tristeza. - Os olhos de Simon tornaram-se meditativos. - É triste pensar que o Brewer morreu e não há ninguém para o chorar. Parece que ninguém se rala com a sua morte, nem sequer o filho...
Baldwin virou-se e agarrou o antebraço do almoxarife.
- Meu amigo... - disse, num tom baixo e sério - os problemas dele terminaram e o fim miserável que sofreu foi por sua própria culpa. Viveu a fazer os outros infelizes, foi por isso que o mataram, foi por isso que o filho o deixou e não há ninguém para o chorar. Fizeste mais do que o suficiente por muitos outros. Olha, enquanto estamos sós... deixa que eu te agradeça. Poderás morrer em paz sabendo que me deste uma nova hipótese... mesmo que nunca mais consigas fazer uma boa acção durante todo o resto da tua vida! - Pousou os olhos em Simon por um instante e acrescentou: - Fica a saber que te ajudarei sempre que precisares de mim.
Simon riu-se e deu-lhe uma palmada num ombro, com a expressão sombria a apagar-se momentaneamente.
- Podes vir a lamentar o que acabaste de dizer! Já pensei numa maneira de poderes vir a ser útil!
As sobrancelhas de Baldwin ergueram-se de surpresa enquanto o seu rosto reflectia uma vaga surpresa.
- Eu?! Como?
- Não olhes para mim desse modo! Juro-te que não irás sofrer muito! - protestou Simon, rindo-se. - Esta área está sem um magistrado, um guardião da paz, desde a morte do teu irmão. Sabia que gostarias de ajudar como pudesses... pelo que propus o teu nome e creio que vais ser o novo magistrado de Crediton.
O rosto de Baldwin revelou um horror absoluto.
- O quê? Eu, um guardião da paz do Rei?! Mas... para isso... terei de...
- Sim, não poderás andar a caçar todo o dia. Vais ter de te sentar à secretária e trabalhar para ganhar a vida.
- Mas, Simon, nunca fiz uma coisa dessas. Como...?
- Creio que aprenderás depressa. Agora, já chega. Vamos para casa. Vamos ver o que foi que a Margaret nos preparou! Caminharam de volta à frente da casa. Baldwin parou à porta e olhou para a paisagem, pensativo.
- Simon... - começou, num tom baixo, mas o almoxarife abanou a cabeça.
- Não, meu amigo, és um homem de posição. É tudo o que interessa e o que as pessoas precisam de saber. Vem daí, vamos comer.
Entraram e fecharam a porta por trás deles.
Michael Jecks
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