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O VAGABUNDO - P.2 / Bernard Cornwell
O VAGABUNDO - P.2 / Bernard Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VAGABUNDO

Segunda Parte

 

Dirigiram-se para sul durante toda a manhã, até que avistaram terra. Ao largo e a leste, havia uma ilha pequena e outra maior, Guernsey, a oeste. E de ambas se erguiam colunas de fumo das cozinhas que prometiam abrigo e comida quente, mas embora essa promessa flutuasse no ar, o vento caiu, a maré mudou e foi preciso o resto do dia para que o Ursula chegasse ao porto, onde ancorou abrigado pelo castelo construído sobre a ilha rochosa. Thomas, Robbie e o padre Pascal foram levados para terra num barco a remos e puderam abrigar-se do vento frio numa taberna, onde ardia um fogo numa enorme lareira, junto à qual comeram um guisado de peixe e pão escuro, acompanhado por uma cerveja aguada. Dormiram em sacas de palha cheias de piolhos.

 

Passaram quatro dias antes que Peter, o Feio, cujo verdadeiro nome era Pierre Savon, entrasse no porto e outros dois antes de estar pronto para voltar a partir com uma carga de lã, sobre a qual não seriam cobrados impostos. Ficou satisfeito por levar passageiros, embora o preço desse a sensação a Robbie e a Thomas de estarem a ser roubados. O padre Pascal foi levado de graça, pois era normando e padre, o que significava, segundo Pierre, o Feio, que Deus o amava duas vezes mais e portanto era pouco provável que afundasse Lês Trois Frères com ele a bordo.

 

Deus devia realmente amar muito aquele padre pois enviou um suave vento de oeste, céu limpo e mar calmo, de modo que Lês Trois Frères pareceu voar todo o caminho até ao rio Orne. Subiram para Caen com a maré e chegaram de manhã e assim que chegaram a terra, o padre Pascal abençoou Thomas e Robbie, depois arregaçou o hábito coçado e começou a caminhar para leste em direcção a Paris. Thomas e Robbie, que carregavam os pesados fardos das malhas, armas, flechas e mudas de roupa, dirigiram-se para sul e atravessaram a cidade.

 

Caen não parecia melhor do que quando Thomas lá tinha estado no ano anterior, após a cidade ter sido devastada pelos arqueiros ingleses que, desrespeitando as ordens do seu rei para deterem o ataque, se tinham espalhado pelas margens do rio e levado à morte centenas de homens e mulheres. Robbie olhava abismado para a destruição da lie de St Jean, a parte mais recente de Caen, que sofrera o pior do saque inglês. Poucas das casas queimadas tinham sido reconstruídas e, na lama da margem do rio, quando da maré vazia, viam-se ossos de costelas, caveiras e tíbias. As lojas estavam praticamente nuas, embora algumas pessoas do campo se encontrassem na cidade a vender alimentos em carroças, nas quais Thomas comprou peixe seco, pão e queijo muito duro. Alguns olhavam de lado para o arco, mas assegurava-lhes que era escocês e por isso um aliado de França.

 

- Na Escócia há arcos como deve ser, não é verdade? - perguntou a Robbie.

 

- Claro que há.

 

- Então porque não os utilizaram em Durham?

 

- Não temos muitos - disse Robbie. - Além do mais preferimos matar-vos a vós, bastardos, de perto. Queremos ter a certeza de que estão mortos, entendeis? - Ficou de boca aberta a olhar para uma rapariga que transportava um balde de leite. - Estou apaixonado.

 

- Apaixonais-vos por tudo o que tem seios - disse Thomas. - Agora vinde - conduziu Robbie até casa de Sir Guillaume, o local onde tinha conhecido Eleanor, e embora os três falcões do brasão de Sir Guillaume, estivessem ainda gravados na pedra sobre a porta, havia um novo pendão a ondear sobre a casa: uma bandeira que mostrava um javali corcovado, com enormes presas. - De quem é aquela bandeira? - Thomas atravessara a pequena praça para falar com um tanoeiro que martelava um anel de ferro em redor de um novo barril.

 

- É o conde de Coutances - respondeu o tanoeiro. - E o bastardo já subiu as nossas rendas. Não me importa que estejais ao seu serviço - endireitou-se e franziu a testa ao ver o arco. - Sois inglês?

 

- Ecossais - disse Thomas.

 

- Ah! - o tanoeiro ficou intrigado e inclinou-se mais para Thomas. - Monsieur, é verdade que pintais as vossas faces de azul durante as batalhas?

 

- Sim - respondeu Thomas. - E também os nossos traseiros.

 

- formidable! - disse o tanoeiro impressionado.

 

- Que disse ele? - perguntou Robbie.

 

- Nada - Thomas apontou para o carvalho que crescia no centro da pequena praça. Algumas folhas engelhadas ainda se agarravam aos pequenos ramos. - Fui enforcado naquela árvore - disse a Robbie.

 

- Pois, e eu sou o papa de Avinhão - Robbie ergueu a sua trouxa. - Haveis-lhe perguntado onde podemos comprar cavalos.

 

- Os cavalos são coisas caras - disse Thomas - e pensei que nos podíamos poupar ao trabalho de os comprar.

 

- Agora somos salteadores de estradas?

 

- Pois somos - respondeu Thomas. Conduziu Robbie pela ilha, atravessando a ponte onde tantos arqueiros tinham morrido no violento ataque e depois percorreu com ele a antiga cidade. Esta tinha sido menos danificada do que a lie St Jean pois ninguém tentara defender as ruas estreitas, enquanto o castelo, que nunca caíra nas mãos dos ingleses, apenas sofrera os efeitos das balas dos canhões que pouco mais tinham feito do que rachar as pedras junto ao portão. Um pendão vermelho e amarelo esvoaçava nas ameias e homens-de-armas, trajando uma libré da mesma cor, desafiaram Thomas e Robbie quando estes abandonavam a cidade antiga. Thomas respondeu-lhes dizendo que eram soldados escoceses que procuravam trabalho junto do conde de Coutances. - Pensámos que ele estivesse cá - mentiu. - Mas já ouvimos dizer que se encontrava em Evecque.

 

- E não vai a lado nenhum - declarou o comandante da guarda, um homem barbudo cujo elmo com uma enorme racha mostrava que o tinha retirado de um cadáver. - Há dois meses que mija junto àquelas muralhas e não consegue nada, mas se quereis morrer em Evecque, rapazes, então boa sorte.

 

Passaram as muralhas da Abbaye aux Dames e Thomas teve de novo uma súbita visão de Jeanette. Fora sua amante, mas depois conhecera Eduardo de Woodstock, príncipe de Gales e, visto isso, que possibilidades teria Thomas? Fora ali, na Abbaye aux Dames, que Jeanette e o príncipe tinham vivido durante o breve cerco de Caen. Onde estaria agora Jeanette? Thomas gostaria de saber se teria voltado para a Bretanha, se teria continuado em busca do seu filho pequeno, se pensaria na sua pessoa. Lamentaria ter fugido ao príncipe de Gales, acreditando que a batalha da Picardia estava perdida?

 

Talvez agora já tivesse voltado a casar. Thomas suspeitava que levara consigo uma pequena fortuna em jóias quando fugira ao exército inglês, e uma viúva rica, com pouco mais de vinte anos, era uma noiva muito atraente.

 

- O que acontecerá se descobrirem que não sois escocês?

 

Thomas ergueu os dois dedos da mão direita com que puxava a corda do arco.

 

- Cortam-nos.

 

- Mais nada?

 

- São as primeiras coisas que cortam.

 

Caminharam para sul através de uma região com pequenas colinas, campos e bosques frondosos e vales profundos. Thomas nunca estivera em Evecque e, embora não ficasse longe de Caen, os camponeses a quem perguntavam não faziam ideia onde ficava; porém, quando Thomas lhes perguntou qual a direcção que os soldados tinham tomado naquele Inverno, todos apontavam para sul. Passaram a primeira noite numa choupana sem telhado, um local que fora evidentemente abandonado quando os ingleses tinham chegado no Verão e devastado a Normandia.

 

Acordaram de madrugada e Thomas disparou duas flechas contra uma árvore para não perder a prática. Arrancava as setas de aço do tronco quando Robbie pegou no arco.

 

- Podeis ensinar-me a usá-lo? - pediu.

 

- Aquilo que vos posso ensinar - disse Thomas - não leva mais que dez minutos. Mas para o resto é necessária toda uma vida. Já disparava flechas quando tinha sete anos e dez anos depois é que me comecei a aperfeiçoar.

 

- Não pode ser assim tão difícil - protestou Robbie. - Já matei um javali com um arco.

 

- Tratava-se de um arco de caça - disse Thomas. Deu a Robbie uma das flechas e apontou para um salgueiro que guardara teimosamente as suas folhas.

- Acertai no tronco.

 

Robbie riu-se.

 

- Não posso falhar! - O salgueiro estava a menos de trinta passos de distância.

 

- Então vá.

 

Robbie puxou o arco, olhando imediatamente para Thomas, ao aperceber-se da força que era precisa para dobrar a enorme arma de teixo. Era duas vezes mais rígido do que os pequenos arcos de caça que tinha usado na Escócia.

 

- Jesus - disse em voz baixa, enquanto puxava a corda até ao nariz e se apercebia de que o braço esquerdo tremia ligeiramente com a tensão da arma, mas espreitou por baixo da flecha para verificar o alvo e estava prestes a soltá-la quando Thomas ergueu a mão.

 

- Ainda não estais pronto.

 

- Ao diabo, que estou - declarou Robbie, embora as palavras fossem antes resmungos, pois o arco necessitava de uma imensa força para se manter em posição.

 

- Ainda não estais pronto - disse Thomas -, porque há quatro polegadas da arma a saírem pela frente do arco. Tendes de o puxar até que a cabeça da flecha toque na vossa mão esquerda.

 

- Oh, meu Jesus - disse Robbie, respirando fundo, firmando-se e puxando a corda até que esta lhe passasse do nariz e se aproximasse da orelha direita. A seta de aço tocou-lhe na mão esquerda, mas agora já lhe era impossível fazer pontaria olhando por baixo da vara da flecha. Franziu a testa, ao aperceber-se da dificuldade que o acto implicava, deslocando o arco para a direita para compensar. O braço esquerdo tremia com a tensão e, incapaz de manter a corda esticada, soltou-a e estremeceu quando o cordão de cânhamo lhe chicoteou o interior do antebraço esquerdo. As penas da flecha passaram como uma centelha branca a um pé do tronco do salgueiro. Robbie praguejou abismado e depois entregou o arco a Thomas.

 

- Então o truque é aprender a fazer pontaria? - perguntou.

 

- O truque - disse Thomas - é não fazer pontaria. É uma coisa que acontece por acaso. Olha-se para o alvo e deixa-se voar a flecha. - Havia certos arqueiros que puxavam a corda apenas até ao olho, o que os tornava muito precisos, porém as suas flechas tinham falta de força. Os bons, os que abateram exércitos e derrotaram reis de armaduras reluzentes, puxavam a corda até mais atrás. - Ensinei uma mulher a disparar no Verão passado

- disse Thomas, pegando no arco - e ela tinha muito jeito. Era mesmo muito boa. Caçou uma lebre a setenta passos.

 

- Uma mulher!

 

- Deixei-a usar um arco mais longo - disse Thomas - para que não precisasse de tanta força, mas mesmo assim era muito boa.

 

Recordou-se da satisfação de Jeanette quando a lebre tombara na relva, guinchando, com a flecha espetada nas costas. Jeanette. Porque estaria a pensar tanto nela?

 

Caminhavam por uma região orlada de geada branca. Os charcos tinham congelado e as sebes sem folhas estavam delineadas por uma camada de gelo que desaparecia à medida que o sol subia. Atravessaram dois ribeiros, depois subiram bosques de faias em direcção a um planalto e, quando lá chegaram, viram que se tratava de um local inóspito de turfa fina que nunca tinha sido cortado pelo arado. A erva misturava-se com alguns arbustos de tojo, mas, de contrário, a estrada corria através de uma simples planície por baixo de um céu vazio. Thomas pensara que a charneca seria apenas uma faixa estreita de terreno de altitude e que em breve começariam de novo a descer para os vales, porém a estrada estendia-se e ele sentia-se mais como uma lebre num planalto calcário sob o olhar de um bútio. Robbie sentia o mesmo, portanto deixaram a estrada para caminhar por um atalho onde o tojo lhes oferecia algum abrigo intermitente.

 

Thomas continuava a olhar para a frente e para trás. Era uma região boa para cavalgar, um planalto firme, coberto de erva, onde os cavaleiros podiam galopar rapidamente e onde não havia bosques nem valas onde dois caminhantes se pudessem esconder. O planalto parecia estender-se eternamente.

 

Ao meio-dia chegaram a um círculo de pedras erectas, cada uma delas com cerca da altura de um homem e pesadamente incrustadas com líquenes. O círculo tinha cerca de vinte jardas e uma das pedras jazia no chão. Descansaram encostados a elas enquanto tomavam uma refeição de pão e queijo.

 

- A festa de casamento do diabo, não é? - perguntou Robbie.

 

- Falais das pedras?

 

- Também as há na Escócia - Robbie voltou-se e retirou da pedra tombada fragmentos de cascas de caracóis. - São pessoas que foram transformadas em pedra pelo demónio.

 

- Em Dorset - disse Thomas - o povo diz que foi Deus que as transformou em pedra.

 

Robbie franziu o rosto.

 

- Porque haveria Deus de fazer tal coisa?

 

- Porque estavam a dançar no Sabat.

 

- Iriam apenas para o inferno por causa disso - disse Robbie e depois coçou distraidamente o calcanhar na erva. - Nós erguemos as pedras quando temos tempo. Procuramos ouro, entendeis?

 

- Alguma vez o haveis encontrado?

 

- Por vezes, nos montes funerários. Panelas, contas. Lixo, mais nada. A maior parte das vezes deitamo-lo fora. E claro que encontramos pedras dos elfos - referia-se às misteriosas cabeças de setas de pedra que eram supostamente lançadas dos arcos dos elfos. Espreguiçou-se, gozando o fraco calor do Sol que estava agora no seu ponto mais alto do céu de Inverno. - Tenho saudades da Escócia.

 

- Nunca lá estive.

 

- É um país maravilhoso - disse Robbie, impetuoso, e falava ainda das maravilhas da sua pátria, quando Thomas adormeceu. Dormitou, mas despertou logo que Robbie lhe deu um pontapé.

 

O escocês estava de pé sobre a pedra caída.

 

- Que se passa? - perguntou Thomas.

 

- Temos companhia.

 

Thomas ergueu-se, pôs-se ao lado dele e viu quatro cavaleiros a uma milha ou mais a norte. Baixou-se mais uma vez, puxou a sua trouxa e pegou num único molho de flechas, depois prendeu a corda nos encaixes do arco.

 

- Talvez não tenham reparado em nós - disse optimista.

 

- Deram - comentou Robbie e Thomas subiu de novo à pedra para ver que os cavaleiros haviam saído da estrada; tinham parado e um deles erguia-se nos estribos para conseguir uma melhor vista dos dois desconhecidos que se encontravam no círculo de pedras. Thomas percebeu que usavam cotas de malha sob as capas.

 

- Dou conta de três deles - disse dando umas pancadinhas no arco -, se vos encarregardes do quarto.

 

- Ah, sede bondoso para com um pobre escocês - disse Robbie, desembainhando a espada do tio. - Deixai-me dois. Lembrai-vos que preciso de dinheiro - poderia estar agora na Normandia, a ter de enfrentar um combate contra quatro cavaleiros, mas era ainda prisioneiro de Lorde Outhwaite e obrigado a pagar o resgate que fora estabelecido numas meras duzentas libras. O do tio eram dez mil e, na Escócia, o clã Douglas estava preocupado em como poderia consegui-lo.

 

Os cavaleiros continuavam a olhar para Thomas e Robbie, interrogando-se sem dúvida sobre quem e o que seriam. Não se mostrariam temerosos; afinal traziam cotas de malha, estavam armados e os dois desconhecidos estavam a pé e homens a pé eram certamente camponeses que não representavam uma ameaça para cavaleiros de armadura.

 

- Uma patrulha de Evecque? - interrogou-se Robbie em voz alta.

 

- Provavelmente.

 

O conde de Coutances teria mandado homens percorrer a região em busca de alimentos. Ou talvez fossem reforços para ajudar o conde, mas, quem quer que fossem, considerariam qualquer desconhecido naquela região uma presa para as suas armas.

 

- Lá vêm eles - disse Robbie, enquanto os quatro homens formavam em linha. Os cavaleiros deviam ter pensado que os dois desconhecidos tentariam escapar, por isso formavam para lhes armarem uma cilada. - Com que então os quatro cavaleiros, não é verdade? - disse Robbie. - Nunca me lembro do nome do quarto.

 

- Morte, guerra, peste e fome - respondeu Thomas, metendo a primeira flecha no arco.

 

- Esqueço-me sempre da fome - disse Robbie. Os quatro cavaleiros encontravam-se a meia milha de distância, empunhando as armas, cavalgando sobre a erva, fina e sólida. Thomas baixara o arco para que não estivessem à espera de flechas. Ouvia o ruído dos cascos e pensou nos quatro cavaleiros do Apocalipse, do terrível quarteto de cavaleiros cuja aparição pressagia o final dos tempos e o último grande combate entre o céu e o inferno. A guerra apareceria sobre um cavalo cor de sangue, a fome sobre um corcel negro, a peste devastaria o mundo sobre uma montada branca, enquanto a morte montaria o cavalo pálido. Thomas recordou-se subitamente do pai, sentado muito direito, com a cabeça para trás, entoando em latim: et ecce equus pallidus.

 

O padre Ralph costumava dizer estas palavras para aborrecer a sua governanta e amante, a mãe de Thomas, que, embora não soubesse latim, compreendia que as palavras tinham a ver com a morte e o inferno e pensava, afinal com toda a razão, que o seu amante padre estava a chamar a Hookton o inferno e a morte.

 

- Acautelai-vos com o cavalo pálido - disse Thomas. Robbie lançou-lhe um olhar intrigado. - ”Vi um cavalo pálido” - citou Thomas. - ”Era Morte o nome do seu cavaleiro, e o inferno seguia-o.”

 

- O inferno é outro dos cavaleiros? - perguntou Robbie.

 

- O inferno é o que vamos dar a estes patifes - disse Thomas e ergueu o arco, esticou a corda e, de repente, sentiu fúria e ódio pelos quatro homens; depois o arco vibrou, com uma nota áspera e profunda e, antes que o som tivesse desaparecido, já ele retirara uma segunda flecha da turfa onde espetara uma dúzia com a ponta para baixo. Puxou a corda para trás e fez pontaria para o cavaleiro da esquerda, enquanto todos os quatro continuavam a avançar para eles. Disparou, pegou numa terceira flecha e agora o som dos cascos sobre a turfa endurecida pela geada era tão alto como o dos tambores escoceses em Durham. O segundo homem da direita agitou-se rapidamente da esquerda para a direita e caiu para trás com uma flecha a sair-lhe do peito. O cavaleiro da esquerda estava deitado sobre o arção da sela e os outros dois, compreendendo finalmente o perigo que corriam, tentavam evitar a mira de Thomas. As patas dos cavalos lançavam bocados de terra e erva, quando se afastavam à pressa. Thomas pensou que se os dois cavaleiros que não tinham sido feridos fossem pessoas sensatas, afastar-se-iam como se levassem atrás de si o Inferno e a Morte, fugindo para o local de onde tinham vindo, desesperados por escapar às flechas. Mas, pelo contrário, com a raiva de quem é desafiado por um inimigo que considera inferior, deram meia volta em direcção à sua presa e Thomas disparou a terceira flecha. Os dois primeiros homens estavam já fora de combate, um caído da sela e o outro pendurado num cavalo que pastava na turfa pálida do Inverno. A terceira flecha voou com força, direita à sua vítima, mas o cavalo, a galope, abanou a cabeça, fazendo com que a flecha deslizasse e lhe atingisse o crânio de lado, saindo o sangue do pêlo escuro: o cavalo deu meia volta com a dor, e o cavaleiro, que não esperava tal movimento, desequilibrou-se. Porém, Thomas não teve tempo de o ver, pois o quarto cavaleiro estava dentro do círculo de pedras e aproximava-se dele. O homem tinha uma larga capa negra que flutuava atrás dele, ao mesmo tempo que obrigava o cavalo cinzento claro a dar a volta. Soltou um grito de desafio e estendeu a espada para meter a ponta, como se fosse uma lança, no peito de Thomas, só que este tinha já a quarta flecha na corda e o homem compreendeu que se demorara um instante a mais. ”Non!”, gritou e Thomas nem precisou de puxar completamente a corda que, mesmo assim, a flecha teve força suficiente para se enterrar na cabeça do inimigo, partindo-lhe a cana do nariz e enfiando-se-lhe profundamente no crânio. O homem estremeceu, baixando o braço com que [empunhava a espada, fazendo Thomas sentir a deslocação do ar quando o cavalo passou junto dele. Depois o cavaleiro caiu para trás sobre a garupa da montada.

 

O terceiro homem caíra do cavalo negro no centro do círculo de pedra e aproximava-se agora de Robbie. Thomas arrancou uma flecha da erva.

 

- Não! - exclamou Robbie. - É meu. Thomas relaxou a corda.

 

- Chien bâtard - disse o homem a Robbie. Era muito mais velho do que o escocês e devia tê-lo tomado por um mero rapazito, pois esboçou um fraco sorriso ao lançar-se para diante com a sua espada. Robbie recuou, aparou o golpe e as lâminas entrechocaram-se como sinos no ar límpido.

 

- Bâtard! - disse o homem com desprezo e atacou de novo.

 

Robbie recuou mais uma vez, cedendo terreno até quase chegar ao anel de pedras e a sua retirada preocupava Thomas que retesara novamente a corda do arco. Depois Robbie aparou o golpe com tanta rapidez e ripostou tão prontamente que o francês recuou com uma pressa súbita e desesperada.

 

- Bastardo inglês - exclamou Robbie, balançando a espada tão baixo que obrigou o homem a baixar também a sua para aparar o golpe. Robbie afastou-a com o pé e avançou com tanta força que a espada do tio se enfiou no pescoço do homem. - Bastardo, bastardo inglês - disse Robbie com desprezo, libertando a lâmina com um repuxo de sangue. - Maldito porco inglês!

 

- Libertou a espada e voltou a metê-la no que restava do pescoço do homem.

 

Thomas viu o homem cair. Havia sangue vivo sobre a erva.

 

- Não era inglês - disse Thomas.

 

- É um hábito meu, quando combato - disse Robbie. - Foi a maneira como o meu tio me treinou - avançou em direcção à vítima. - Está morto?

 

- Quase lhe haveis cortado o pescoço - disse Thomas. - Que esperáveis?

 

- Penso que vou ficar com o dinheiro dele - disse Robbie e ajoelhou junto ao morto.

 

O primeiro dos dois homens a ser atingido pelas setas de Thomas estava ainda vivo. A respiração borbulhava-lhe na garganta, trazendo-lhe aos lábios uma espuma rosada. Era o homem que pendia da sela e gemia quando Thomas o deixou cair no chão.

 

- Vai ficar vivo? - Robbie aproximou-se para ver o que Thomas fazia.

 

- Meu Deus, não - disse Thomas retirando a sua navalha.

 

- Jesus! - Robbie afastou-se ao ver Thomas cortar a garganta do homem. - Tendes de o fazer?

 

- Não quero que o conde de Coutances saiba que somos só dois - disse Thomas. - Quero que tenha um medo terrível de nós. Quero que pense que são os próprios cavaleiros do demónio que andam atrás dos seus homens.

 

Procuraram os quatro cadáveres e, depois de uma busca difícil, conseguiram recuperar os quatro cavalos. Dos cadáveres e dos alforges retiraram perto de dezoito libras de prata francesa de má qualidade, dois anéis, três boas adagas, quatro espadas e uma bela cota de malha que Robbie reclamou para substituir a sua, bem como uma corrente de ouro que dividiram ao meio com uma das espadas capturadas. Depois, Thomas usou as duas piores espadas para amarrar os cavalos no lado da estrada e sobre os cavalos atou dois dos cadáveres, de modo a que estes ficassem pendurados das selas, pendurados para o lado com os olhos vazios e a pele branca cheia de sangue. Os dois outros cadáveres, despidos das suas cotas de malha, foram colocados na estrada e em cada uma das suas bocas Thomas enfiou ramos de tojo. O gesto não tinha qualquer significado, mas a quem encontrasse os corpos, haveria de sugerir algo de estranho, até mesmo satânico.

 

- Há-de preocupar esses bastardos - explicou Thomas.

 

- Quatro homens mortos hão-de perturbá-los - disse Robbie.

 

- Ficarão aterrorizados se pensarem que o diabo anda à solta - disse Thomas. O conde de Coutances haveria de zombar, se soubesse que tinham chegado apenas dois jovens como reforços para Sir Guillaume cTEvecque, mas não poderá ignorar quatro cadáveres e a sugestão de rituais estranhos. Também não pode ignorar a morte.

 

No fim, depois de ter disposto os cadáveres, Thomas pegou na enorme capa negra, no dinheiro e nas armas, no melhor corcel e no cavalo pálido. Porque o cavalo pálido pertencia à Morte. E, assim, Thomas poderia fabricar pesadelos.

 

Soou um único trovão quando Thomas e Robbie se aproximaram de Evecque. Ignoravam se já estavam perto, mas, como cavalgavam por uma região onde todas as quintas e cabanas tinham sido destruídas, Thomas concluiu que deveriam ser aquelas as proximidades do solar. Ao ouvir o ruído, Robbie pareceu intrigado, pois o céu por cima deles estava limpo, embora, a sul, houvesse nuvens escuras.

 

- Está muito frio para haver uma trovoada - afirmou.

 

- Não será diferente em França?

 

Saíram da estrada e seguiram pelo caminho de uma quinta que serpenteava por entre os bosques e terminava junto a uma casa queimada, de onde ainda saía um leve fumo. Não fazia sentido queimar as quintas e Thomas duvidava que o conde de Coutances tivesse, de início, ordenado uma tal destruição; porém, o persistente desafio de Sir Guillaume e a crueldade da maioria dos soldados garantiriam, de qualquer forma, a pilhagem e os incêndios. Thomas já fizera o mesmo na Bretanha. Escutara os gritos e protestos das famílias que tinham de ver o seu lar ser queimado e depois pegara fogo ao colmo do telhado. Era a guerra. Os escoceses faziam-no aos ingleses, os ingleses aos escoceses e, aqui, o conde de Coutances fazia-o ao seu próprio vassalo.

 

Ao primeiro trovão juntou-se um segundo e, quando o eco morreu, Thomas viu no céu, a oriente, um enorme véu de fumo. Apontou nessa direcção e Robbie, reconhecendo o cheiro das fogueiras e apercebendo-se da necessidade de silêncio, limitou-se a acenar com a cabeça. Deixaram os cavalos presos numa moita de aveleiras e treparam por uma longa encosta arborizada. O Sol punha-se por trás deles, lançando longas sombras sobre as folhas mortas. Um pica-pau de cabeça vermelha e asas com listas brancas piava ruidosamente logo acima das suas cabeças enquanto atravessavam o cume para verem, do outro lado do monte, a aldeia e o solar de Evecque.

 

Thomas nunca antes tinha visto a casa senhorial de Sir Guillaume. Imaginara-a parecida com a casa grande de Sir Giles Marriott, com um único edifício grande parecido com um celeiro e outros pequenos com telhado de colmo. Porém, Evecque era muito mais parecido com um pequeno castelo.

 

Havia mesmo uma torre no canto mais próximo de Thomas; era uma torre quadrada, não muito alta, mas com ameias, onde ondulava o pendão com os três falcões, mostrando que Sir Guillaume não fora ainda derrotado. Porém, o que salvava o solar era o seu fosso, largo e coberto com uma escuma espessa e esverdeada. As altas paredes erguiam-se da água, tinham poucas janelas e mesmo essas pouco mais eram que seteiras. O telhado estava coberto de colmo e descia para o interior, para um pequeno pátio. Os sitiantes, cujas tendas e abrigos se encontravam na aldeia a norte do solar, tinham conseguido incendiar um determinado ponto do telhado, mas os poucos defensores de Sir Guillaume haviam certamente podido extinguir as chamas, já que apenas uma pequena porção do colmo ardera ou ficara chamuscada. Nenhum dos defensores estava visível naquele momento, embora alguns deles devessem espreitar através das seteiras que mais pareciam pequenas manchas negras na pedra cinzenta. Os únicos danos visíveis no solar eram algumas pedras quebradas ao canto da torre, onde uma gigantesca besta parecia ter comido a cantaria e que fora provavelmente obra da catapulta mencionada pelo padre Pascal. Contudo, a enorme besta ter-se-ia de novo e irremediavelmente quebrado, pois Thomas via-a em duas enormes peças, jazendo no campo junto à pequena igreja de pedra da aldeia. Poucos estragos tinha causado antes de se partir o eixo principal, mas Thomas perguntou a si próprio se a parte oriental do edifício, invisível para ele, não teria sido mais atingida. A entrada do solar deveria ser nesse lado oposto e Thomas suspeitava que aí estariam os principais sinais do cerco.

 

Apenas se viam uma dezena de sitiantes, a maioria limitando-se à ameaçadora actividade de se sentarem às portas das casas da aldeia, embora meia-dúzia de homens se tivesse reunido àquilo que parecia ser uma pequena mesa no adro da igreja. Nenhum dos homens do conde se aproximara do solar mais do que cento e cinquenta passos, o que significava que os sitiados tinham conseguido matar alguns inimigos com bestas e o resto aprendera a evitar a guarnição. A aldeia em si era pequena, não muito maior do que Down Mapperly, e, tal como essa localidade de Dorset, tinha uma azenha. A sul das habitações havia uma dúzia de tendas e mais de vinte pequenos abrigos de turfa; Thomas tentou calcular quantos homens se poderiam abrigar na aldeia, tendas e cabanas de turfa e chegou à conclusão de que o conde deveria ter cerca de 120 homens.

 

- Que fazemos? - perguntou Robbie.

 

- Por enquanto nada. Olhamos só.

 

Era uma vigília enfadonha, pois pouca actividade havia lá em baixo. Umas mulheres transportavam baldes de água da azenha, outras cozinhavam em fogueiras na rua, ou recolhiam a roupa que antes tinham posto a secar sobre os arbustos na orla dos campos. O pendão do conde de Coutances, mostrando o javali negro num campo branco, salpicado de flores azuis, ondulava num pau improvisado à porta da maior casa da aldeia. Havia mais seis pendões sobre os telhados de colmo, mostrando que outros fidalgos tinham vindo participar na pilhagem. Meia-dúzia de escudeiros ou pajens exercitava os corcéis de guerra no prado por trás do acampamento, mas, de contrário, os atacantes de Evecque pouco mais faziam do que esperar.

 

O cerco era um trabalho aborrecido. Thomas recordou-se dos dias de ócio às portas de La Roche-Derrien, embora essas longas horas tivessem sido interrompidas pelo terror e pela emoção de um assalto ocasional. Estes homens, incapazes de atacar as muralhas de Evecque, por causa do fosso, limitavam-se a esperar que a guarnição se rendesse pela fome, ou que se sentisse tentada a atacar, ripostando ao incêndio das quintas. Ou talvez aguardassem a chegada de uma comprida peça de madeira tratada, para repararem o braço partido da abandonada catapulta.

 

Depois, no momento em que Thomas acabara de decidir que já tinha visto que lhe bastasse, os homens que se tinham reunido àquilo que ele pensara ser uma mesa baixa no adro, correram rapidamente para a igreja.

- Em nome de Deus, o que é aquilo? - perguntou Robbie, e Thomas viu que afinal não se tinham reunido em redor de uma mesa, mas de um enorme pote colocado sobre uma pesada armação de madeira.

 

- É um canhão - disse Thomas, incapaz de esconder o seu assombro, e nesse momento, a arma disparou e o grande pote de metal e a sua enorme armação de madeira desapareceram dentro de um rebentamento de fumo escuro. Pelo canto do olho, Thomas viu um bocado de pedra voar do canto danificado do solar. Quando o trovão da pesada arma rolou monte abaixo e passou por ele, um milhar de pássaros voou das sebes, do colmo e das árvores. Fora aquele vasto estrondo que tinham ouvido ao princípio da tarde. O conde de Coutances conseguira uma arma e utilizava-a para ratar o exterior da grande casa. No Verão anterior os ingleses tinham utilizado canhões do exército em Caen, embora nem todos eles, nem os melhores esforços dos artilheiros italianos tivessem atingido o castelo desta cidade. De facto, à medida que o acampamento ficava limpo de fumo, Thomas via que o tiro pouco impacto tivera no solar. O barulho parecia mais violento do que o próprio projéctil, mas, mesmo assim, supunha que se os artilheiros do conde conseguissem lançar pedras suficientes e a cantaria mais cedo ou mais tarde acabaria por ceder para dentro do fosso, criando uma ponte de destroços sobre a água. Pedra a pedra, fragmento a fragmento, talvez com três ou quatro disparos por dia, os sitiantes conseguissem minar a torre e abrir um tosco caminho para Evecque.

 

Um homem fez rolar de dentro da igreja um pequeno barril, mas outro fez-lhe sinal e o barril foi levado para dentro. A igreja deveria ser o armazém de pólvora, pensou Thomas, e o homem fora mandado para trás porque os artilheiros tinham disparado o último projéctil do dia e não voltariam a carregar senão na manhã seguinte. Aquilo sugeriu-lhe uma ideia, que logo afastou por a julgar estúpida e impraticável.

 

- Haveis visto que baste? - perguntou a Robbie.

 

- Nunca antes tinha visto um canhão - disse Robbie, olhando para o pote distante, como que na esperança que fosse de novo disparado, porém Thomas sabia que seria pouco provável que os artilheiros o fizessem disparar de novo naquela noite. Era preciso muito tempo para carregar um canhão e, uma vez que a pólvora estivesse metida no bojo e o projéctil no gargalo, o canhão tinha de ser selado com argila húmida. A argila conteria a explosão que empurrava o projéctil e era preciso tempo para a secar antes de disparar o canhão. Assim, seria pouco provável que houvesse outro disparo até à manhã seguinte.

 

- Parece que dá muito trabalho e os resultados são poucos - disse Robbie irritado, quando Thomas lhe explicou. - Pensais que não voltarão a disparar?

 

- Vão esperar até de manhã.

 

- Então, já vi que bastasse - disse Robbie. Rastejaram por entre as faias, até ao outro lado do monte, depois desamarraram os cavalos e partiram em direcção à noite que caía. No céu, via-se uma meia-lua, fria e alta e a noite estava gelada, tão gelada que decidiram arriscar-se a acender uma fogueira, embora fizessem todos os possíveis por a esconderem, refugiando-se numa ravina profunda, com paredes de rocha, onde improvisaram um tecto de ramos cobertos de erva apressadamente cortada. O fogo cintilava pelos buracos desse tecto, iluminando as paredes de pedra com uma luz vermelha, mas Thomas duvidava que algum dos sitiantes viesse patrulhar os bosques na escuridão. Ninguém penetraria de bom grado no arvoredo durante a noite, pois todo o tipo de animais, monstros e fantasmas assombravam os bosques. Esse pensamento recordou a Thomas a viajem estival que fizera com Jeanette, quando tinham dormido, nas matas noite após noite. Tinham sido tempos felizes e a recordação fê-lo sentir pena de si próprio e depois, como sempre, com remorsos devido ao fim que Eleanor tivera, estendeu as mãos para a pequena fogueira.

 

- Existem homens verdes na Escócia? - perguntou a Robbie.

 

- Nos bosques? São os gnomos. São uns danados, isso sim - Robbie fez o sinal da cruz e, para o caso de não ser suficiente, inclinou-se e tocou no punho de metal da espada do tio.

 

Thomas pensava em gnomos e noutras criaturas, coisas que o aguardavam na noite dos bosques. Desejaria de facto voltar a Evecque naquela noite?

 

- Haveis reparado - perguntou a Robbie - que ninguém no acampamento de Coutances parecia preocupado por quatro cavaleiros não terem regressado? Não vimos ninguém partir em busca deles, pois não?

 

Robbie pensou um pouco, depois encolheu os ombros.

 

- Talvez os cavaleiros não pertencessem ao acampamento.

 

- Pertenciam - disse Thomas, com uma confiança que de facto não sentia e, por momentos, interrogou-se cheio de remorsos, se os quatro cavaleiros teriam de facto alguma coisa a ver com Evecque. Mas, logo a seguir, recordou-se que tinham sido eles a dar início à luta.

 

- Decerto que partiram de Evecque - afirmou. - E agora já lá devem estar preocupados.

 

- E então?

 

- Então, será que, esta noite, puseram mais sentinelas no acampamento?

 

Robbie encolheu os ombros.

 

- E isso importa?

 

- Estou a pensar - disse Thomas - que tenho de avisar Sir Guillaume de que estou aqui e não sei como o fazer senão com grande alarido.

 

- Podíeis escrever uma mensagem - sugeriu Robbie - e lançá-la com uma flecha.

 

Thomas olhou para ele.

 

- Não tenho pergaminho - disse pacientemente. - Nem tenho tinta, e já alguma vez haveis experimentado lançar uma flecha enrolada em pergaminho? Provavelmente voaria como um pássaro morto. E eu teria de a lançar de pé, junto ao fosso, pois seria mais fácil fazê-lo desse ponto.

 

Robbie encolheu os ombros.

 

- Então que fazemos?

 

- Barulho. Anunciamos a nossa presença. - Thomas fez uma pausa. E estou a pensar que o canhão acabará por danificar a torre se não fizermos nada.

 

- O canhão? - perguntou Robbie e depois olhou para Thomas. - Meu Jesus - disse algum tempo depois, enquanto pensava nas dificuldades. - Esta noite?

 

- Assim que Coutances e os seus homens souberem que aqui estamos disse Thomas - hão-de duplicar as sentinelas, mas aposto que, esta noite, os bastardos estão meio adormecidos.

 

- Sim e bem agasalhados para se aquecerem, se é que têm algum juízo

- disse Robbie. Franziu a testa. - Mas essa arma parecia um pote enorme e raro. Como diabo vamos parti-lo?

 

- Estava a pensar na pólvora negra que há dentro da igreja - respondeu Thomas.

 

- Pegamos-lhe fogo?

 

- Há muitas fogueiras na aldeia - disse Thomas e ficou a pensar o que aconteceria se fossem capturados no acampamento inimigo, mas não valia a pena preocupar-se com tal coisa. Se a arma fosse inutilizada, seria melhor atacar antes que o conde de Coutances se apercebesse de que um inimigo o tinha vindo assediar, o que transformaria aquela noite na oportunidade ideal.

 

- Não precisais de vir - disse Thomas a Robbie. - Não são os vossos amigos que estão dentro do solar.

 

- Poupai o fôlego - disse Robbie com desprezo. Franziu a testa. - O que acontecerá a seguir?

 

- A seguir? - Thomas reflectiu. - Depende de Sir Guillaume. Se não receber qualquer resposta do rei, vai querer irromper. Por isso tem de saber que aqui estamos.

 

- Porquê?

 

- Para o caso de precisar da nossa ajuda. Mandou-nos vir, não é verdade? Pelo menos, a mim. Assim vamos fazer barulho. Vamos tornar-nos incómodos. Vamos causar pesadelos ao conde de Coutances.

 

- Os dois?

 

- Vós e eu - respondeu Thomas e, ao dizer isto, apercebeu-se de que Robbie se tinha transformado num amigo. - Julgo que vós e eu poderemos ambos causar sarilhos - acrescentou com um sorriso.

 

E começariam naquela noite. Naquela noite gélida, por baixo da lua recortada iriam conjurar o primeiro dos seus pesadelos.

 

Partiram a pé, mas, apesar da Lua brilhante, estava escuro por entre as árvores e Thomas começou a sentir-se preocupado com os demónios, gnomos e espectros que assombravam aqueles bosques normandos. Jeanette dissera-lhe que na Bretanha havia nains e gorics a infestar a escuridão, enquanto em Dorset era o Homem Verde que batia com os pés e grunhia nas árvores por de trás de Lipp Hill, também os pescadores falavam das almas dos afogados que por vezes se arrastavam na costa a gemer pelas esposas que tinham deixado em terra. Na véspera do Dia de Finados, o diabo e os mortos dançavam em Maiden Castle e, nas outras noites, os fantasmas menores passeavam-se pela aldeia, subiam ao monte e à torre da igreja e por onde quer que um homem passasse. Era por isso que ninguém saía de casa à noite sem um bocadinho de ferro ou um raminho de azevinho ou, pelo menos, uma peça de pano que tivesse tocado a água benta. O pai de Thomas detestava essa superstição, mas, quando via o bocado de pano atado às mãos das pessoas que iam receber a comunhão, não era capaz de lhes recusar o sacramento.

 

Thomas tinha também as suas superstições. Pegava sempre no arco com a mão esquerda; tinha de bater três vezes na ripa com a primeira flecha que disparava de um arco com a corda recém-preparada, uma pelo Pai, outra pelo Filho e a terceira pelo Espírito Santo; não vestia roupas brancas e calçava a bota esquerda antes da direita. Durante muito tempo, usara ao pescoço uma pata de cão, que depois deitara fora, convencido de que lhe trazia má sorte, mas agora, após a morte de Eleanor, perguntava a si próprio se não a deveria ter guardado. Pensando em Eleanor, lembrou-se mais uma vez da beleza morena de Jeanette. Lembrar-se-ia dele? Depois tentou não se recordar, pois lembrar-se de um amor antigo podia trazer má sorte, o que o fez tocar no tronco de uma árvore para afastar o pensamento. Thomas procurava o brilho avermelhado das fogueiras mortiças atrás das árvores, que o avisassem da proximidade de Evecque, mas apenas se via a luz prateada da Lua que se envolvia nos ramos altos. Nains e gorics: o que seriam? Jeanette apenas lhe dissera que se tratavam de espíritos que assombravam a região. Ali na Normandia deveria haver uma coisa semelhante. Ou talvez tivessem bruxas. Tocou noutra árvore. A mãe dele acreditara firmemente em bruxas e o pai ensinara Thomas a rezar o seu padre-nosso se alguma vez se perdesse. O padre Ralph acreditava que as bruxas perseguiam as crianças perdidas e muito, muito mais tarde, o pai de Ralph dissera-lhe que elas começavam a sua invocação ao demónio dizendo o padre-nosso ao contrário. Claro que Thomas tentara fazer o mesmo, embora nunca se atrevesse a terminar a oração. Olam a son arebil dês, assim começava o padre-nosso ao contrário. Ainda o conseguira dizer, ultrapassando até as dificuldades de dizer as palavras temptationem e supersubstantialem ao contrário, mas tendo o cuidado de nunca terminar a oração no caso de sentir o cheiro a enxofre, o ruído do acender de uma chama e o terror do diabo a descer com asas negras e olhos de fogo.

 

- Que resmungais? - perguntou Robbie.

 

- Tento dizer supersubstantialem ao contrário - respondeu Thomas. Robbie soltou uma gargalhada.

 

- Sois uma pessoa muito estranha, Thomas.

 

- Melait nats bus repus - disse Thomas.

 

- Falais francês? - perguntou Robbie. - Porque eu tenho de aprender.

 

- Aprendereis - prometeu-lhe Thomas. Por fim, avistou as fogueiras entre as árvores e ambos se calaram, enquanto subiram a longa encosta até ao cume coberto de faias de onde Evecque se avistava.

 

Não se viam luzes no solar. Um luar límpido e frio cintilava no fosso coberto de escuma verde, que parecia tão liso como o gelo - e não seria gelo? -, a lua branca lançava uma sombra escura sobre o canto danificado da torre, enquanto o reflexo da fogueira, mostrava o lado oposto do solar, confirmando as suspeitas de Thomas de que havia um cerco oposto à entrada do edifício. Calculava que os homens do conde tivessem cavado trincheiras das quais poderiam atingir o portão de entrada com virotes de besta, enquanto outros tentassem cruzar o fosso no local onde faltava a ponte levadiça. Thomas, recordou-se de como os virotes de besta saltavam das muralhas de La Roche-Derrien e estremeceu. Estava um frio de rachar. Em breve, pensou Thomas o orvalho se transformaria em geada, prateando o mundo. Vestia, tal como Robbie, uma camisa de lã por baixo do gibão de pele e de uma cota de malha sobre a qual usava uma capa; mesmo assim tremia e desejava poder voltar para o abrigo da ravina, onde a fogueira ardia.

 

- Não vejo ninguém - disse Robbie.

 

Thomas também não via, mas continuava à procura de sentinelas. Talvez que o frio mantivesse toda a gente debaixo de tecto? Buscou as sombras perto das fogueiras rasas, atento a qualquer movimento na escuridão junto à igreja, mas não viu ninguém. Havia, sem dúvida, sentinelas no cerco junto à entrada do solar, mas decerto estariam atentas a algum defensor que tentasse esgueirar-se pelas traseiras. Mas quem nadaria no fosso numa noite tão fria? A esta hora, os sitiantes estariam certamente enfadados e o seu nível de vigilância seria muito baixo. Viu uma nuvem prateada passar mais perto da Lua.

 

- Quando a nuvem cobrir a Lua - disse a Robbie -, avançamos.

 

- E que Deus nos abençoe - disse Robbie com fervor, fazendo o sinal da cruz. A nuvem pareceu mover-se lentamente, velando por fim a Lua, e a paisagem brilhante esbateu-se passando a ser cinzenta e depois negra. Mesmo assim havia uma leve luminosidade, porém Thomas duvidava que a noite ficasse mais negra, por isso ergueu-se, sacudiu a capa e dirigiu-se à aldeia pelo atalho que fora aberto na encosta oriental do monte. Calculava que o caminho tivesse sido feito pelos porcos conduzidos para a engorda no tufo de faia dos bosques e recordou-se de como em Hookton estes animais se passeavam pela língua de terra comendo as cabeças de peixe e de como a mãe se queixava sempre de que o sabor ficava no toucinho. Toucinho de peixe, era como lhe chamava, comparando-o desfavoravelmente com o toucinho de Weald, no Kent, de onde era natural. Isso, dizia é que era toucinho como devia ser, de porcos alimentados nas faias a bolota, o melhor que havia. Thomas tropeçou num tufo de erva. Era difícil seguir o atalho, pois a noite parecia subitamente muito mais escura, talvez por se encontrarem em terreno mais baixo.

 

Enquanto pensava no toucinho, tinham-se aproximado da aldeia e Thomas sentiu-se amedrontado. Não vira sentinelas, mas e os cães? Uma cadela a ladrar na noite e ele e Robbie seriam homens mortos. Desejou, de súbito, ter trazido o arco que deixara para trás - mas também, o que poderia fazer com ele? Matar um cão? Ao menos o caminho estava agora visível pois era iluminado pelas fogueiras do acampamento e os dois homens caminhavam confiantes como se pertencessem à aldeia.

 

- Deveis fazer isto sempre - disse Thomas a Robbie em voz baixa.

 

- Isto?

 

- Quando ultrapassais a fronteira.

 

- Que raio! Nós ficamos em campo aberto. Vamos atrás de gado e de cavalos.

 

Estavam já entre os abrigos e deixaram de falar. De uma pequena cabana de turfa chegava-lhes um profundo ressonar e um cão invisível ganiu mas não ladrou. À entrada de uma tenda, estava um homem sentado numa cadeira, guardando presumivelmente quem lá estivesse dentro, mas ele próprio a dormir. Uma brisa leve agitava os ramos de um pomar junto à igreja e ouvia-se o ruído da água do ribeiro a correr sobre a pequena azenha. Uma mulher riu em surdina numa das casas, onde uns homens começaram a cantar. Thomas não conhecia a melodia e as vozes profundas abafaram o ruído do portão da igreja que chiou quando o abriu. A igreja tinha um pequeno campanário de madeira e Thomas escutou o vento a suspirar no sino.

 

- És tu, Georges? - perguntou um homem da entrada.

 

- Non - Thomas falou mais rispidamente do que tencionava, o que fez com que o homem saísse das sombras escuras da arcada e Thomas, pensando que poderia haver sarilhos, pôs a mão atrás das costas, sobre o punho da adaga.

 

- Perdão, Senhor - o homem tomara Thomas por um oficial, talvez mesmo por um Lorde. - Estava à espera de ser rendido, senhor.

 

- Provavelmente ele ainda está a dormir - disse Thomas. O homem espreguiçou-se, bocejando enormemente.

 

- Esse bastardo nunca acorda a horas - a sentinela pouco mais era que uma pequena sombra no escuro, mas Thomas teve a sensação de que se tratava de um homem corpulento. - E aqui está frio. Guy e os seus homens regressaram?

 

- Um dos cavalos perdeu a ferradura - disse Thomas.

 

- Então foi isso! E eu a pensar que tinham descoberto aquela cervejaria em Saint-Germain. Cristo e os anjos têm lá uma rapariga só com um olho. Já a haveis visto?

 

- Ainda não - respondeu Thomas. Continuava a segurar a adaga, uma das armas a que os arqueiros chamavam misericórdia, porque era usada para dar o golpe de misericórdia em homens-de-armas apeados ou feridos. A lâmina era esguia e suficientemente flexível para deslizar por entre as articulações da armadura e procurar a vida que havia sob ela, mas sentia-se relutante em usá-la. Aquela sentinela não desconfiava de nada e a sua única ofensa fora querer uma longa conversa.

 

- A igreja está aberta? - perguntou Thomas à sentinela.

- Claro. Porque não?

 

- Temos de rezar - disse Thomas.

 

- Talvez uma consciência pesada faça um homem rezar à noite, Senhoria, não? - A sentinela falava de um modo afável.

 

- Há muitas raparigas só com um olho - disse Thomas. Robbie, como não falava francês, ficara de lado a olhar para a enorme sombra do canhão.

 

- Um pecado digno de arrependimento - o homem soltou uma gargalhada e depois levantou-se. - Quereis esperar aqui enquanto acordo George? Não demoro um momento.

 

- Demorai o que vos aprouver - disse Thomas magnânimo. - Estaremos aqui até de madrugada. Podeis deixar George dormir se preferirdes. Nós os dois montaremos guarda.

 

- Sois um verdadeiro santo - disse o homem. Depois agarrou no cobertor antes de se afastar da entrada da igreja, com uma alegre despedida. Logo que o homem desapareceu, Thomas ultrapassou a entrada e deu imediatamente um pontapé num barril vazio que rolou com enorme estrondo. Praguejou e ficou em silêncio, mas ninguém se fez ouvir na aldeia para pedir explicações pelo barulho.

 

Robbie acocorou-se junto a ele. A escuridão era impenetrável, mas tactearam e descobriram meia-dúzia de barris vazios. Fediam a ovos podres, o que levou Thomas a calcular que tinham contido pólvora. Contou em surdina a Robbie um resumo da conversa que tivera com a sentinela.

 

- Mas o que eu não sei - continuou - é se ele vai ou não acordar o tal Georges. Não creio, mas não tenho a certeza.

 

- Quem pensa ele que somos?

 

- Provavelmente dois homens-de-armas - respondeu Thomas. Empurrou para o lado os barris vazios, depois levantou-se e agarrou a corda que levantava a tranca da porta da igreja. Encontrou-a e gemeu quando ouviu a chiadeira dos gonzos. Thomas não via nada, mas a igreja tinha o mesmo fedor dos barris vazios.

 

- Precisamos de luz - murmurou. Os seus olhos habituavam-se lentamente à escuridão e apercebeu-se de um leve vislumbre de claridade da janela oriental sobre o altar. Nem uma pequena chama ardia sobre o sacrário onde guardavam as hóstias, presumivelmente porque seria demasiado perigoso com a pólvora guardada na nave. Thomas encontrou-a facilmente, quando encalhou na pilha de barris arrumada à entrada da porta. Havia pelo menos duas dezenas deles, com o tamanho de um balde de água e Thomas calculou que o canhão usaria talvez um ou dois barris para cada disparo. Digamos que três ou quatro disparos por dia? Portanto talvez houvesse ali o fornecimento para duas semanas. - Precisamos de luz - repetiu, mas Robbie não lhe deu resposta. - Onde estais? - repetiu Thomas em tom sibilante, mas mais uma vez não obteve resposta. Ouviu então uma bota bater contra um dos barris vazios que estavam à entrada e viu a sombra de Robbie cintilar à luz da lua coberta de nuvens no adro da igreja.

 

Thomas aguardou. Havia uma fogueira quase extinta um pouco para lá da sebe de espinhos que mantinha o gado afastado das sepulturas da aldeia e viu que uma sombra se acocorava junto às brasas. Depois surgiu uma centelha de luz, como numa trovoada de Verão, Robbie recuou e Thomas, ofuscado e assustado pela luz, não conseguiu ver nada. Foi até à porta da igreja à espera de ouvir o grito de um dos homens da aldeia, mas em vez disso ouviu apenas o ranger do portão e os passos do escocês.

 

- Usei um barril vazio - disse Robbie -, só que não estava tão vazio como eu esperava. Ou então a pólvora entranha-se na madeira.

 

Ali estava ele, à entrada da igreja, com um barril nas mãos; usara-o para lá meter umas brasas. Os resíduos da pólvora tinham-se incendiado e tinham-lhe queimado as sobrancelhas ardendo agora dentro do barril.

- Que faço com isto? - perguntou.

 

- Valha-me Deus! - Thomas imaginou a igreja a explodir. - Dai-me isso - disse, e pegou no barril que estava quente ao toque, correu para dentro da igreja, com o caminho iluminado pelas chamas e atirou a madeira a arder para o meio de duas pilhas de barris. - Agora saiamos daqui - disse a Robbie.

 

- Haveis procurado a caixa das esmolas? - perguntou Robbie. - Como vamos fazer explodir a igreja, podemos muito bem levar a caixa das esmolas.

 

- Vinde! - Thomas pegou no braço de Robbie e arrastou-o para fora.

 

- É um desperdício deixá-la lá dentro - disse Robbie.

 

- Não há caixa de esmolas nenhuma - ripostou Thomas. - A aldeia está cheia de soldados, idiota!

 

Correram, escondendo-se por entre as sepulturas, passando pelo bulboso canhão, que se encontrava na sua base de madeira. Treparam a cancela de madeira que preenchia uma abertura na sebe de espinheiros, depois correram a toda a velocidade, passando pela sombra esguia da catapulta quebrada e pelos abrigos de turfa, sem se preocuparem com o barulho que pudessem fazer. Dois cães começaram a ladrar, depois um terceiro uivou e um homem levantou-se de um salto, surgindo da entrada de uma das tendas grandes. Qui vá lá? perguntou e começou a erguer a besta, mas Thomas e Robbie tinham já passado por ele e saído para o campo aberto onde tropeçaram na erva irregular. A Lua saiu de detrás da nuvem e Thomas viu o seu bafo como se fosse um nevoeiro.

 

- Halte! - gritou o homem.

 

Thomas e Robbie detiveram-se, não porque o homem lhes tivesse dado essa ordem, mas porque uma luz vermelha enchia o mundo. Voltaram-se para olhar, e a sentinela que os tinha interpelado esqueceu-se deles, pois a noite tornara-se escarlate.

 

Thomas não tinha a certeza do que havia de esperar. Uma lança de chamas a espetar o céu? Um enorme ruído de trovões? Pelo contrário, o ruído foi quase suave, como a inspiração de um gigante e o doce florescer de uma chama saiu das janelas da igreja como se os portões do inferno tivessem acabado de se abrir e os fogos da morte enchessem a nave; mas esse clarão vermelho durou apenas um instante antes que o telhado da igreja se erguesse no ar e Thomas visse distintamente as traves enegrecidas abrindo-se como costelas partidas.

 

- Valha-me Deus, Nosso Senhor - blasfemou.

 

- Deus que estais nos Céus - disse Robbie com os olhos muito abertos. Agora as chamas, o fumo e o ar ferviam sobre o caldeirão da igreja

 

destelhada e os barris continuavam a explodir, um após outro, cada um deles causando o latejar de uma onda de fogo e de fumo em direcção ao céu. Nem Thomas nem Robbie o sabiam, mas a pólvora precisava de ser agitada, pois o nitrato, que era mais pesado, descera ao fundo dos barris e o carvão, mais leve, ficara ao de cima, o que significava que demoraria muito tempo a incendiar-se. Porém, as explosões serviam para misturar o resto da pólvora que latejava brilhante e escarlate, cuspindo uma nuvem vermelha sobre a aldeia.

 

Todos os cães de Evecque ladravam ou uivavam e os homens, mulheres e crianças saíam das suas camas para fitarem o fogo do inferno. O estrondo das explosões rolava pelos prados e ecoava nas paredes do solar, assustando centenas de pássaros dos seus ninhos nos bosques. Os destroços foram parar ao fosso, soltando pontiagudos estilhaços de gelo, que reflectiam o fogo. Parecia que o solar estava rodeado por um lago de chamas cintilantes.

 

- Jesus - disse Robbie assombrado, depois correram ambos para junto das faias no lado oriental da pastagem.

 

Thomas começou a rir, enquanto subia, aos tropeções, o atalho até às árvores.

 

- Hei-de ir para o inferno por causa disto - disse, detendo-se por entre as faias e fazendo o sinal da cruz.

 

- Por queimares uma igreja? - Robbie sorria e os seus olhos reflectiam a luz do fogo. - Havíeis de ver o que fizemos aos Canhões Negros em Hexham! Jesus, por causa disso, metade da Escócia vai parar ao inferno.

 

Olharam para o fogo por mais uns momentos e depois regressaram à escuridão do bosque. Já faltava pouco para o amanhecer. Via-se uma luz a oriente, onde uma leve cor cinzenta, pálida como a morte, surgia no céu.

 

- Temos de nos introduzir mais na floresta - disse Thomas. - Precisamos de nos esconder.

 

A caça aos sabotadores estava prestes a começar e à primeira luz da manhã, enquanto o fumo cobria ainda Evecque, o conde de Coutances enviou vinte homens e uma matilha de cães em busca dos homens que tinham destruído o seu paiol de pólvora. Mas o dia frio e o chão duro da geada faziam com que o cheiro da caça desaparecesse rapidamente. No dia seguinte, com toda a petulância, o conde ordenou às suas forças que atacassem. Tinham preparado gabiões - enormes cestos entrançados com salgueiros que eram cheios de terra e pedras. O plano era encher o fosso de gabiões e depois passar sobre a ponte daí resultante para assaltar a muralha. A esta faltava a ponte levadiça que fora retirada no início do cerco para deixar aberta uma convidativa arcada, bloqueada apenas por uma baixa barricada de pedra.

 

Os conselheiros do conde disseram-lhe que não havia gabiões suficientes, que o fosso era mais profundo do que ele pensava, que a altura não era propícia, que Vénus estava em ascendente e Marte em declínio; resumindo: que deveria esperar até que as estrelas lhe sorrissem e a guarnição estivesse mais esfomeada e raivosa. Porém, como o conde se sentia ridicularizado, de todas as formas ordenara o assalto e os seus homens fizeram o melhor possível. Estavam protegidos, enquanto seguravam os gabiões, pois os cestos cheios de terra eram à prova de qualquer virote de besta, mas, uma vez que os gabiões fossem lançados ao fosso, ficariam expostos aos seis besteiros de Sir Guillaume que se abrigavam atrás da baixa muralha de pedra, construída à frente do arco do solar, onde antes existira a ponte levadiça. O conde tinha os seus próprios besteiros, protegidos por pavisos, escudos a toda a altura, transportados por um segundo homem, para proteger o besteiro que laboriosamente tinha de esticar a corda da besta. Mas os homens que lançavam os gabiões não tinham qualquer protecção, uma vez que as suas cargas fossem lançadas, de modo que morreram oito antes de o resto se ter apercebido de que o fosso era de facto demasiado profundo e que não havia gabiões suficientes. Dois homens que transportavam os pavisos e um besteiro ficaram gravemente feridos antes que o conde aceitasse que estava a desperdiçar tempo e chamou os atacantes. Depois, antes de se embebedar, amaldiçoou Sir Guillaume com os catorze demónios corcundas de São Candace.

 

Thomas e Robbie sobreviveram. No dia seguinte a terem queimado a pólvora do conde, Thomas matou um veado e, no outro, Robbie descobriu uma lebre a apodrecer numa sebe. Quando a retiraram de lá descobriram uma armadilha que devia ter sido colocada por um dos trabalhadores de Sir Guillaume, talvez morto ou feito prisioneiro pelos homens do conde. Robbie lavou a armadilha no ribeiro e colocou-a noutra sebe. Na manhã seguinte, encontraram lá uma lebre sufocada no laço.

 

Não se atreviam a dormir no mesmo local duas noites seguidas, mas os abrigos eram fáceis de encontrar nas quintas desertas e queimadas. Passaram quase todas as semanas seguintes na região a sul de Evecque, onde os vales eram mais profundos, os montes mais íngremes e os bosques mais frondosos. Havia aqui muitos lugares para se esconderem e foi nessa paisagem emaranhada que tornaram o pesadelo do conde ainda mais assustador. Pelo acampamento dos sitiantes, começaram a espalhar-se histórias de que quando aparecia um homem alto, vestido de preto, montado num cavalo pálido, alguém havia de morrer. A morte seria causada por uma flecha de arco, uma flecha inglesa, porém o cavaleiro não tinha arco, apenas um bordão com uma caveira de veado em cima e todos sabiam que criatura montava um cavalo pálido e o que significava uma caveira sobre um bordão. Os homens que tinham visto tal aparição contaram às suas mulheres no acampamento, estas falaram ao capelão do conde e o conde disse que estavam a sonhar; porém, os cadáveres eram reais. Quatro irmãos, chegados da distante Lyon para ganhar dinheiro a combater no cerco, arrumaram os seus pertences e partiram. Outros ameaçaram fazer o mesmo. A morte invadia Evecque.

 

O capelão do conde disse que o povo tinha sido tocado pela Lua e cavalgou pela perigosa região sul entoando ruidosos cânticos e aspergindo água benta. Como o capelão regressou incólume, o conde disse aos seus homens que eram tolos e que não havia Morte nenhuma montada num cavalo pálido, porém, no dia seguinte, morreram dois homens, mas a oriente. As histórias aumentaram. O cavaleiro estava agora acompanhado por cães gigantescos cujos olhos ardiam, e nem precisava de aparecer para explicar qualquer desgraça. Se um cavalo tropeçava, se um homem partia um osso, se uma mulher vomitava, se se partia a corda de uma besta, a culpa era do misterioso homem que montava o cavalo pálido.

 

A confiança dos sitiantes diminuía. Falava-se em desgraça e seis homens-de-armas partiram para o Sul em busca de trabalho na Gasconha. Os que ficaram, resmungavam que estavam a fazer a obra do diabo e nada que o conde de Coutances fizesse parecia recuperar o ânimo dos homens. Tentou cortar árvores para impedir que o misterioso arqueiro disparasse para o acampamento, mas eram demasiadas, não havia machados que bastassem e as flechas continuavam a chegar. Mandou uma mensagem ao bispo de Caen que escreveu uma bênção num bocado de pergaminho fino e a enviou, mas que não teve qualquer efeito sobre o cavaleiro de capa negra, cuja aparição pressagiava a morte, de modo que o conde, que acreditava fervorosamente estar a fazer o trabalho de Deus e temia falhar, caso incorresse na ira divina, apelou para Ele.

 

Escreveu para Paris.

 

Louis Bessières, cardeal arcebispo de Livorno, cidade que apenas vira uma vez quando viajara para Roma (no regresso, fizera um desvio para não ter de a ver pela segunda vez) percorria lentamente o Quai dês Orfèvres na íle de La Cite em Paris. Dois criados avançavam adiante dele, usando duas varas para abrir caminho ao cardeal que parecia não dar atenção ao padre magro e de rosto encovado que falava com ele com ar aflito. O cardeal ia observando a mercadoria exposta nas lojas dos ourives do cais, que recebera o nome desta profissão: cais dos ourives. Admirou um colar de rubis, pensando mesmo em comprá-lo, mas depois descobriu um defeito numa das pedras.

 

- Que pena - murmurou, e passou à loja seguinte. - Maravilhoso! - exclamou ao ver um saleiro de prata, com quatro painéis de esmalte em que estavam gravadas a azul, vermelho, amarelo e negro cenas da vida campestre.

 

No primeiro um homem arava, lançava as sementes à terra no segundo, uma mulher fazia a ceifa no terceiro e no último estavam os dois sentados à mesa admirando um belo pão. - Maravilhoso - exclamou o cardeal entusiasmado. - Não achais que é muito belo?

 

Bernard de Taillebourg mal lançou um olhar ao saleiro.

 

- O diabo trabalha contra nós, Eminência - disse, zangado.

 

- O diabo trabalha sempre contra nós, Bernard - disse o cardeal, com ar reprovador. - É isso o que tem de fazer. Se assim não fosse, haveria algo de errado neste mundo - acariciou o saleiro, passando os dedos sobre as delicadas curvas dos painéis, depois decidiu que a forma da base não estava correcta. Pensou que havia algo de imperfeito, uma desproporção no desenho e, lançando um sorriso ao lojista, colocou-o de novo na banca e seguiu em frente. O sol brilhava; havia mesmo algum calor no ar invernal e um brilho sobre o Sena. Um homem sem pernas, com tacos de madeira por baixo dos coutos, deslocava-se pela estrada com o auxílio de pequenas muletas e estendeu a mão suja em direcção ao cardeal. Os criados correram para ele com as varas.

 

- Não, não! - exclamou o cardeal e procurou na bolsa umas moedas. Deus te abençoe, meu filho - disse. O cardeal Bessières gostava de dar esmolas, gostava da gratidão emocionada no rosto dos pobres e especialmente do seu olhar de alívio quando impedia, no momento exacto, que os seus criados usassem as varas. Por vezes o cardeal fazia uma pausa demasiado longa e também gostava disso. Mas hoje o dia estava quente, iluminado pelo sol, roubado a um Inverno cinzento, portanto, sentia-se com um humor benevolente.

 

Uma vez passado o Sabot d’Or, uma taberna para tabeliães, voltou as costas ao rio e meteu-se por entre um emaranhado de ruelas que serpenteavam em redor dos labirínticos edifícios do palácio real. Era aqui que se reunia o Parlamento e os homens de leis invadiam os corredores escuros como ratazanas; porém, aqui e ali, por entre a escuridão, havia alegres edifícios a erguerem-se ao sol. O cardeal adorava aqueles becos e imaginava que as lojas desapareciam por magia durante a noite para serem substituídas por outras. Aquela lavandaria teria estado sempre ali? E porque nunca teria reparado na padaria? Certamente que sempre houvera uma loja de alaúdes junto ao balneário público. Um peleiro pendurava casacos de urso num varal e o cardeal deteve-se para apalpar as peles. Mal ouvia De Taillebourg que continuava a falar com ele.

 

Logo a seguir ao peleiro havia uma arcada guardada por homens de libré azul e dourada. Usavam couraças polidas, plumas nos elmos e lanças com lâminas cintilantes. Poucas pessoas passavam por eles, porém afastaram-se imediatamente e fizeram uma reverência quando o cardeal apareceu. Ele acenou-lhes com ar benevolente, sugerindo uma bênção e, depois, seguiu por um corredor húmido até um pátio. Estava agora em terreno real e os cortesãos faziam-lhe respeitosas reverências pois ele era mais do que um cardeal. Era também Legado Papal junto do trono de França. Era o embaixador de Deus e a Bessières o papel assentava-lhe perfeitamente, pois era alto e entroncado, suficientemente forte para parecer superior à maioria dos homens com vestes vermelhas. Tinha consciência de ser bem-parecido e era vaidoso, o que fingia não saber. Era ainda senhor de uma grande ambição que escondia do mundo, mas não de si próprio. Afinal, um cardeal arcebispo tinha apenas mais uma cadeira a subir, antes de chegar aos degraus de cristal do maior trono de todos e Bernard de Taillebourg parecia um instrumento pouco provável para oferecer a Louis de Bessières a coroa tripla que ambicionava para si. Por isso, o cardeal voltou com ar enfadado a sua atenção para o dominicano, quando os dois saíram do pátio e subiram as escadas para Sainte-Chapelle.

 

- Dizei, então - Bessières interrompeu fosse o que fosse que De Taillebourg estava a dizer -, acerca do vosso criado. Ele obedeceu-vos?

 

De Taillebourg, interrompido com tanta indelicadeza, levou uns segundos a ajustar os seus pensamentos e depois acenou afirmativamente.

 

- Obedeceu-me em todas as coisas.

 

- Mostrou humildade?

 

- Fez todos os possíveis para mostrar humildade.

 

- Ah, então ainda tem orgulho?

 

- Está arreigado na sua pessoa - respondeu De Taillebourg. - Mas combateu-o.

 

- E não vos desertou?

- Não, eminência.

 

- Então está de novo aqui em Paris?

 

- Claro - respondeu asperamente De Taillebourg, apercebendo-se depois do tom que usara. - Está no convento, Eminência - acrescentou humildemente.

 

- Gostaria de saber se lhe deveremos de novo mostrar a cripta - sugeriu o cardeal enquanto se encaminhava para o altar. Adorava a Sainte-Chapelle, a luz que dela emanava por entre os pilares altos e esguios. Pensava ser aquilo o mais que um homem se podia aproximar no céu, estando neste mundo; um local de leve beleza, brilho assombroso e encantadora graça. Desejava ter pedido cânticos, pois o som da voz dos eunucos ecoando no rendilhado das pedras da capela podia conduzir um homem quase ao êxtase. Os padres acorriam ao altar-mor, sabendo que era o que o cardeal viera ver. -Julgo que uns momentos na cripta obrigam um homem a procurar a graça de Deus.

 

De Taillebourg abanou a cabeça.

 

- Já lá esteve, Eminência.

 

- Levai-o lá de novo - havia agora dureza na voz do cardeal. - Mostrai-lhe os instrumentos. Mostrai-lhe como se sente uma alma na roda, ou sob o efeito do fogo. Deixai-o saber que o inferno não está confinado ao reino de Satanás. Mas fazei-lo hoje. Talvez tenhamos de vos mandar a ambos embora.

 

- Mandar-nos embora? - De Taillebourg pareceu surpreendido.

 

O cardeal não o esclareceu. Preferiu ajoelhar-se junto ao altar-mor e tirar da cabeça o chapéu escarlate. Raramente e só com relutância o retirava em público, pois sentia-se desconfortavelmente consciente de que estava a ficar careca. Mas agora era necessário em sinal de respeito, pois um dos padres abrira o sacrário por baixo do altar e retirara de lá a almofada de cor púrpura, com a cercadura de renda e as borlas douradas, que agora apresentava ao cardeal. Sobre a almofada estava a coroa. Era tão antiga, tão frágil, tão negra e tão quebradiça que o cardeal susteve o fôlego ao estender a mão para ela. O próprio movimento da terra pareceu deter-se, todos os sons se calaram, até o céu sossegou quando ele aproximou a mão, lhe tocou e depois ergueu a coroa que era tão leve que mais parecia não ter peso.

 

Era a coroa de espinhos.

 

Tratava-se da mesma coroa que fora colocada sobre a cabeça de Cristo, e que ficara impregnada com o seu suor e o seu sangue. Os olhos do cardeal encheram-se de lágrimas quando a ergueu aos lábios para a beijar ao de leve. Os raminhos de espinheiros de que tinha sido feita eram muito finos. Eram tão frágeis como pernas de carriça, porém, os espinhos estavam ainda aguçados, tão aguçados como no dia em que tinham sido colocados sobre a cabeça do Salvador para fazer jorrar o sangue da Sua preciosa face. O cardeal ergueu a coroa ao alto, maravilhando-se com a sua leveza, quando a baixou sobre o seu crânio quase calvo e aí a colocou. Depois, pôs as mãos e fitou o dourado crucifixo do altar.

 

Sabia que ao clero de Sainte-Chapelle desagradava que ali fosse e usasse a coroa de espinhos. Tinham-se queixado ao arcebispo de Paris que, por sua vez, se queixara ao rei, mas Bessières continuava a vir pois tinha poder para tal. Tinha o poder legado pelo Papa e a França precisava do apoio de Sua Santidade. A Inglaterra cercava Calais, a Flandres combatia a norte, toda a Gasconha prestava de novo vassalagem a Eduardo de Inglaterra e a Bretanha revoltara-se contra o legítimo duque francês e estava cheia de arqueiros ingleses. A França estava a ser atacada e apenas o Papa podia convencer as potências da Cristandade a virem em seu auxílio.

 

Certamente que o Papa o faria, pois o Santo Padre era francês. Clemente nascera em Limousin e fora chanceler de França antes de ter sido eleito para o trono de São Pedro e de se ter instalado no grande palácio papal em Avinhão. Aí, em Avinhão, Clemente ouvia os romanos que tentavam convencê-lo a devolver o papado à cidade eterna. Murmuravam e conspiravam, subornavam e murmuravam de novo e Bessières temia que um dia Clemente se deixasse convencer por essas vozes lisonjeiras.

 

Mas se Louis Bessières se tornasse Papa, então ninguém mais falaria em Roma. Roma era uma ruína, um esgoto pestilento rodeado de pequenos Estados sempre em guerra uns com os outros e o Vigário de Deus na terra nunca aí estaria a salvo. Mas apesar de Avinhão ser um bom refúgio para o Papado, não era perfeito, pois a cidade e o condado pertenciam ambos ao reino de Nápoles e o Papa, na opinião de Louis Bessières, não deveria ser um vassalo.

 

Também não deveria viver numa cidade da província. Roma já tinha governado o mundo, por isso o Papado estivera instalado em Roma, mas e em Avinhão? O cardeal, com os espinhos colocados ao de leve sobre a testa fitava o azul e o vermelho da janela da paixão, sobre o altar; sabia qual a cidade que merecia ter o papado. Apenas uma. E Louis Bessières tinha a certeza de que, assim que fosse Papa, conseguiria convencer o rei de França a ceder a íle de Ia Cite ao Santo Padre. Por isso, o cardeal Bessières levaria o Papado para norte e dar-lhe-ia um novo e glorioso refúgio. O palácio seria a sua morada, a Catedral de Notre Dame a nova Basílica de São Pedro e aquela gloriosa Sainte-Chapelle o seu santuário privado, onde a coroa de espinhos seria a sua própria relíquia. Pensou que talvez os espinhos devessem ser incorporados na tripla coroa papal. Gostava da ideia e imaginou-se a rezar aqui, na sua ilha privada. Ourives e pedintes, homens de leis e prostitutas, lavandarias e fabricantes de alaúdes seriam enviados pelas pontes para Paris, do outro lado do rio e a íle de Ia Cite tornar-se-ia um local sagrado. Depois, o vigário de Cristo teria o poder de França sempre a seu lado e, assim, o reino de Deus espalhar-se-ia e os infiéis seriam chacinados para voltar a haver paz na terra.

 

Mas como haveria de se tornar Papa? Havia pelo menos uma dúzia de homens que desejavam suceder a Clemente, embora, de todos esses rivais, Bessières apenas conhecesse os Vexilles e apenas sabia que já tinham possuído o Graal e que talvez ainda o possuíssem.

 

Era por isso que Bessières enviara De Taillebourg à Escócia. O dominicano regressara de mãos vazias, mas soubera algumas coisas.

 

- Julgais então que o Graal não se encontra em Inglaterra? - perguntava-lhe agora Bessières, em voz baixa para que os padres da Sainte-Chapelle não pudessem ouvir a pergunta.

 

- Pode lá estar escondido - De Taillebourg falava em tom lúgubre. - Mas não em Hookton. Guy Vexille fez uma busca completa ao local quando o atacou. Procurámos de novo e nada mais lá há que ruínas.

 

- Continuais a pensar que Sir Guillaume o levou para Evecque?

 

- Penso que é possível, Eminência - disse De Taillebourg. - Não é muito provável - acrescentou -, mas é possível - disse, modificando a resposta.

 

- O cerco está a correr mal. Enganei-me acerca de Coutances. Ofereci-lhe alguns anos a menos no Purgatório se capturasse Evecque até ao dia de São Timóteo, mas não tem vigor suficiente para entrar no solar. Falai-me desse tal filho bastardo.

 

De Taillebourg fez o gesto de quem rejeita a ideia.

 

- Nada é. Até duvida que o Graal exista. E quer ser soldado.

 

- Um arqueiro, foi o que me haveis dito?

 

- Um arqueiro - confirmou De Taillebourg.

 

- Julgo que vos enganais a respeito dele. Coutances escreveu-me a dizer que o seu trabalho tem sido dificultado por um arqueiro. Um arqueiro que dispara flechas longas do tipo inglês.

 

De Taillebourg nada disse.

 

- Um arqueiro - insistiu o cardeal - que provavelmente destruiu todo o armazenamento de pólvora de Coutances. Era o único abastecimento da Normandia! Se quisermos mais, teremos de o ir buscar a Paris.

 

O cardeal ergueu a coroa da cabeça e colocou-a sobre a almofada. Depois, lentamente, com toda a reverência encostou o indicador a um dos espinhos e os padres que o observavam inclinaram-se para diante. Receavam que ele tentasse roubar um dos espinhos, mas o cardeal apenas fizera sair sangue de um dedo. Estremeceu quando o espinho lhe picou a carne, depois levou o dedo à boca e chupou. Nesse dedo usava um pesado anel de ouro e, oculto sob o rubi, que habilmente se erguia, encontrava-se um espinho que roubara oito meses antes. Por vezes, na intimidade da sua câmara, arranhava a testa com o espinho e imaginava-se o enviado de Deus na terra. Guy Vexille era a chave para essa ambição.

 

- O que fareis - ordenou a De Taillebourg quando o sabor do sangue desapareceu - será mostrar a Guy Vexille aquilo que o espera se nos falhar. Depois ide com ele para Evecque.

 

- Enviareis Vexille a Evecque? - De Taillebourg não conseguia esconder a sua surpresa.

 

- É impiedoso e cruel - disse o cardeal, erguendo-se e pondo o chapéu. - E vós dizeis-me que é dos nossos. Gastaremos então dinheiro, dar-lhe-emos pólvora e homens para esmagar Evecque e trazer Sir Guillaume para a cripta - ficou a ver a coroa de espinhos ser devolvida ao seu relicário. E em breve, pensou, naquela capela, naquele local de luz e glória, teria uma recompensa ainda maior. Teria um tesouro que traria toda a Cristandade e as suas riquezas ao seu trono de ouro. Teria o Graal.

 

Thomas e Robbie estavam ambos muito sujos: tinham as roupas cobertas de lama, as cotas de malha cheias de ervas secas, folhas mortas e terra; o cabelo crescera-lhes, oleoso e desgrenhado. À noite tremiam, com o frio a penetrar-lhes a medula e a alma, mas, de dia, nunca se tinham sentido tão animados, pois jogavam um jogo de vida e de morte nos pequenos vales e bosques frondosos em redor de Evecque. Robbie, envolvido na capa negra e transportando a caveira no seu bordão, montado no cavalo branco, conduziu os homens de Coutances a uma emboscada em que Thomas os matou. Por vezes apenas os feria, mas raramente falhava pois disparava de perto, forçado pela frondosidade dos bosques; o jogo recordava-lhe as canções que os arqueiros gostavam de entoar e as histórias que as suas mulheres contavam em redor das fogueiras dos acampamentos. Eram canções e histórias de gente vulgar, nunca cantadas por trovadores, acerca de um fora-da-lei chamado Robin Hood. Era Hood ou Hude, Thomas não tinha a certeza, pois nunca vira o nome escrito, mas sabia que Hood era um herói inglês, que vivera cerca de duas centenas de anos atrás e que os seus inimigos tinham sido a nobreza normanda de Inglaterra. Hood combatera-os com uma arma inglesa, o arco de guerra, por isso a nobreza actual sem dúvida pensara que as histórias eram subversivas e era por isso que os trovadores não as cantavam nos grandes salões. Thomas pensava por vezes que poderia escrevê-las, só que ninguém escrevia em inglês. Todos os livros que Thomas já vira estavam em latim ou em francês. Mas porque não poderiam as canções de Hood ser metidas entre as capas? Por vezes, à noite, contava a Robbie as histórias de Robin Hood, enquanto os dois tremiam de frio em qualquer abrigo que tivessem encontrado, mas o escocês achava-as enfadonhas.

 

- Prefiro as histórias do rei Artur - disse.

 

- Também as conheceis na Escócia? - perguntou Thomas, surpreendido.

 

- Claro que sim! - disse Robbie. - Artur era escocês.

 

- Não sejais tolo! - exclamou Thomas, ofendido

 

- Era escocês - insistiu Robbie. - E matou os malditos ingleses.

 

- Era inglês - disse Thomas. - E provavelmente nunca ouviu falar dos malditos escoceses.

 

- Ide para o inferno - disse Robbie com desprezo.

 

- Já lá estareis quando eu chegar - vociferou Thomas, pensando que se alguma vez escrevesse as histórias de Robin Hood, obrigaria o arqueiro lendário a seguir para norte, só para acabar com uns quantos escoceses, utilizando as honestas flechas inglesas.

 

Na manhã seguinte, estavam ambos envergonhados do seu comportamento.

 

- É porque tenho fome - disse Robbie. - Fico sempre irritado quando tenho fome.

 

- E tendes sempre fome - afirmou Thomas.

 

Robbie riu-se, depois colocou a sela sobre o seu cavalo branco. O animal estremeceu. Nenhum dos cavalos tinha comido bem e estavam ambos fracos, de modo que Thomas e Robbie mostravam-se cautelosos, sem quererem ser apanhados em campo aberto, onde os melhores cavalos do conde ultrapassariam os dois estafados corcéis. Pelo menos o tempo estava agora menos frio, mas grandes nuvens chegavam do oceano a oeste e, durante uma semana, choveu torrencialmente, impedindo qualquer disparo de um arco. Sem dúvida que o conde de Coutances começaria a acreditar que a água benta do capelão teria afastado de Evecque o cavalo pálido e poupado os seus homens, mas os seus inimigos tinham igualmente sido poupados, pois não chegara mais pólvora para o canhão. Agora os prados em redor das ameias do solar estavam tão empapados que as trincheiras se tinham inundado e os sitiantes patinhavam na lama. Os cavalos tinham os cascos a apodrecer e os homens deixavam-se ficar nos seus abrigos, tremendo de febre.

 

Todas as madrugadas, Thomas e Robbie cavalgavam pelos bosques a sul de Evecque e aí, ao lado do solar, onde o conde não tinha trincheiras mas apenas um pequeno posto de guarda, deixavam-se ficar junto às árvores a acenar. Tinham recebido um aceno como resposta na terceira manhã em que tinham feito sinais à guarnição, mas, depois, nada mais houve até à semana de chuva. Na manhã após a discussão acerca do rei Artur, Thomas e Robbie acenaram para o solar e, dessa vez, viram um homem aparecer no telhado. Disparou um tiro de besta para o ar. O virote não se destinava ao posto de guarda e se os homens que aí se encontravam deram por ele, nada fizeram; porém Thomas viu-o cair na pastagem onde fez saltar a água de uma poça e deslizar pela relva molhada.

 

Nesse dia não cavalgaram. Preferiram esperar até à noite, até que ficasse escuro. Depois Thomas e Robbie rastejaram pela pastagem e procuraram por entre a espessa erva molhada e o estrume de vaca. Pareceu-lhes que tinham levado horas, mas, por fim, Robbie encontrou o virote e descobriu que havia um embrulho encerado preso à pequena vara.

 

- Estais a ver? - disse Robbie, quando voltaram para o abrigo e tremiam diante da pequena fogueira. - Pode fazer-se - apontou para a mensagem amarrada em volta do virote. Para fazer o virote voar, a mensagem fora amarrada à vara com fio de algodão que tinha encolhido e Thomas teve de o cortar e desenrolar o pergaminho encerado que segurou perto do fogo para poder ler a mensagem, escrita com carvão.

 

- É de Sir Guillaume - disse Thomas. - Pede-nos para irmos a Caen.

 

- A Caen?

 

- Para nos encontrarmos com... - Thomas franziu as sobrancelhas e segurou ainda mais junto às chamas a carta com a caligrafia retorcida - ... temos de nos encontrar com o comandante de um navio chamado Pierre Villeroy.

 

- Não será Peter, o Feio? - perguntou Robbie.

 

- Não - afirmou Thomas, espreitando o pergaminho, o navio deste homem chama-se o Pentecost e se não estiver lá, devemos procurar Jean Lapoullier ou Guy Vergon. - Thomas segurava a mensagem tão perto do fogo que esta começou a ficar castanha e a encaracolar, quando lia as últimas palavras em voz alta. ”Dizei a Villeroy que quero o Pentecost pronto no dia de São Clemente e que deve tomar as providências necessárias para transportar dez passageiros para Dunquerque. Esperai por ele e encontrar-nos-emos convosco em Caen. Acendei uma fogueira no bosque se tiverdes recebido isto.”

 

Nessa noite acenderam uma pequena fogueira nos bosques. Ardeu durante pouco tempo, depois veio a chuva e o fogo apagou-se. Thomas teve a certeza de que a guarnição vira as chamas.

 

E de madrugada, molhados, cansados e sujos, voltaram a Caen.

 

Thomas e Robbie procuraram pelos cais da cidade, mas não havia qualquer sinal de Pierre Villeroy ou do seu navio Pentecost; contudo, um taberneiro informou-os de que Villeroy não deveria andar muito longe.

 

- Levou um carregamento de pedra para Cabourg - disse o homem a Thomas - e calculava estar aqui de volta hoje ou amanhã, só que o tempo o deve ter retido - olhou de lado para o arco. - Isso é um arco? - referia-se a um arco inglês.

 

- É um arco de caça de Argentan - disse Thomas em tom descuidado e a mentira satisfez o taberneiro, pois havia alguns homens em todas as comunidades francesas que usavam um longo arco de caça, mas estes eram poucos, nunca suficientes para se reunirem no exército que pintava as colinas de vermelho com sangue dos nobres.

 

- Se Villeroy voltar hoje, à noite virá beber à minha taberna.

 

- Podeis indicar-me de quem se trata? - pediu Thomas.

 

- Não podeis enganar-vos - o homem soltou uma gargalhada. - É um gigante! Um gigante careca, com uma barba onde poderia criar ratos e pele bexigosa. Podeis reconhecê-lo sem mim.

 

Thomas calculou que Sir Guillaume tivesse pressa quando chegasse a Caen e não quisesse perder tempo a obrigar os cavalos a entrar no Pentecost, por isso passou o dia a regatear os preços dos dois corcéis e, nessa noite, cheio de dinheiro, ele e Robbie regressaram à taberna. Nem sinais do gigante barbudo e careca, mas chovia e, como estavam ambos gelados, resolveram esperar e encomendar um guisado de enguias, pão e vinho aromático. Um cego tocava harpa num canto da taberna, começando depois a cantar acerca de marinheiros, focas e estranhos animais marinhos que se erguiam do leito do oceano para uivar à lua em quarto crescente. Depois a comida chegou e, quando Thomas estava prestes a prová-la, um homem entroncado com o nariz partido atravessou a taberna e plantou-se diante dele com ar beligerante. Apontou para o arco e disse simplesmente.

 

- É um arco inglês.

 

- É um arco de caça de Argentan - redarguiu Thomas. Sabia que era perigoso andar com uma arma tão notória e, no ano anterior, quando ele e Jeanette tinham viajado a pé da Bretanha para a Normandia, disfarçara-o de bordão de peregrino. Porém nesta visita, estava a ser mais descuidado.

- É apenas uma arma de caça - repetiu com naturalidade, encolhendo-se porque o guisado de enguias estava tão quente.

 

- O que quer esse canalha? - perguntou Robbie. O homem ouviu-o.

 

- Sois inglês.

 

- Pareço um inglês a falar? - perguntou Thomas.

 

- Então e ele, parece o quê? - o homem apontava para Robbie. - Ou será que agora perdeu a língua?

 

- É escocês.

 

- Pois claro! E eu sou o duque da Normandia.

 

- O que vós sois, sim, é um terrível incómodo - disse Thomas e lançou a tigela de sopa para a cara do homem, dando a seguir o pontapé na mesa que o atingiu nas partes baixas.

 

- Saí daí - disse a Robbie.

 

- Meu Deus, como gosto de uma luta! - disse Robbie. Meia-dúzia de amigos do homem da cara queimada corriam já pela sala, mas Thomas lançou-lhes um banco às pernas, fazendo com que dois tropeçassem. Robbie brandiu a espada em direcção a outro homem.

 

- São ingleses! - gritava o homem queimado, estendido no chão. - São malditos!

 

Os ingleses eram odiados em Caen.

 

- Chamou-vos inglês - disse Thomas a Robbie.

 

- Vou-lhe mijar para a boca - exclamou este com desprezo, dando um pontapé na cabeça do homem queimado e batendo noutro com o punho da espada, enquanto lançava o seu grito de guerra escocês e avançava em direcção aos sobreviventes.

 

Thomas pegara já na bagagem e no arco e abria a porta.

 

- Vinde - gritou.

 

- Chamai-me inglês, idiotas! - desafiou Robbie. A sua espada mantinha os atacantes à distância, mas Thomas sabia que haveriam de arranjar coragem para investir e Robbie teria certamente de matar pelo menos um para poder fugir, o que provocaria uma enorme confusão. Teriam sorte se não acabassem pendurados numa corda das ameias do castelo, por isso arrastou Thomas e fê-lo recuar para a porta da taberna.

 

- Fugi!

 

- Estava a gostar - insistiu Robbie, tentando regressar à taberna, mas Thomas puxou-o com força e empurrou um homem que entrava no beco.

 

- Fugi! - gritou de novo Thomas, empurrando Robbie para o centro da íle. Entraram na ruela, atravessaram a correr uma pequena praça e deixaram-se cair no chão nas sombras da porta da Igreja de Saint Jean. Os perseguidores procuraram-nos mais alguns minutos, mas a noite estava fria e a paciência esgotou-se-lhes.

 

- Eram seis - disse Thomas.

 

- Estávamos a ganhar! - respondeu Robbie agressivo.

 

- Amanhã - continuou Thomas -, em vez de andarmos à procura de Pierre Villeroy ou um dos outros, preferíeis estar na cadeia de Caen?

 

- Não dou um murro num homem desde a luta em Durham - queixou-se Robbie. - Pelo menos como deve ser.

 

- E aquela vez em Dorchester?

 

- Essa não conta. Estávamos muito bêbados - começou a rir. - Afinal, vós haveis começado.

 

- Eu?

 

- Pois - disse Robbie. - Haveis lançado o guisado de enguias no rosto do homem. Todo o guisado.

 

- Apenas tentava salvar-vos a vida - afirmou Thomas. - Meu Deus, faláveis inglês! Aqui em Caen detestam os ingleses!

 

- E fazem muito bem - disse Robbie. - Mesmo muito bem, mas o que hei-de eu fazer? Estar sempre calado? Que raio! Também é a minha língua. Só Deus sabe porque lhe chamam inglês.

 

- Porque é inglês - respondeu Thomas. - E o rei Artur falava-a.

 

- Valha-me Deus - disse Robbie, soltando outra gargalhada. - Que diabo. Bati com tanta força num dos homens que não sei daqui a quantos dias acordará.

 

Encontraram abrigo numa das muitas casas abandonadas após a selvajaria do assalto inglês naquele Verão. Os donos ou estavam longe ou, o que seria mais provável, teriam os seus ossos enterrados na enorme vala comum do adro da igreja ou no lodo do leito do rio.

 

Na manhã seguinte, desceram de novo aos cais. Thomas recordou-se de nadar na forte corrente, enquanto os besteiros disparavam dos navios aportados. Os virotes tinham provocado pequenos repuxos de água e, porque não se atrevera a molhar o arco, não pudera responder-lhes. Agora ele e Robbie percorriam o cais e descobriram que o Pentecost tinha aparecido, como que por magia, durante a noite. Era um navio tão grande como aqueles que subiam o rio, um navio capaz de fazer a travessia para Inglaterra com uma dezena de homens e cavalos a bordo, mas agora estava em seco, pois a maré vazante deixara-o na lama. Thomas e Robbie atravessaram a cambalear a estreita prancha de embarque e ouviram um ressonar monstruoso que provinha de uma pequena cabina fétida à popa. Thomas imaginava que o próprio convés vibrava de cada vez que o homem inspirava e interrogou-se como reagiria uma criatura que emitia um tal som ao ser acordada. Neste momento uma rapariguinha, pálida como a bruma e esguia como uma flecha, saiu pela escotilha da cabina para se vestir no convés, ao mesmo tempo que levava um dedo aos lábios. Parecia muito frágil e, quando subiu o vestido para calçar as meias, mostrou umas pernas que mais pareciam pequenos ramos. Thomas duvidou que ela tivesse mais do que treze anos.

 

- Está a dormir - murmurou.

 

- Já ouvi - disse Thomas.

 

- Chiu! - levou de novo o dedo aos lábios e enfiou um grosso vestido de lã sobre a camisa de dormir, meteu os pés magros em botas enormes e envolveu-se num enorme casaco de couro. Enfiou um gorduroso gorro de lã sobre o cabelo louro e pegou num saco que parecia ser feito de pano de vela, velho e puído.

 

- Vou comprar comida - disse em voz baixa. - É preciso acender o lume à proa. Vão encontrar a pederneira e aço na prateleira. Não o acordem!

 

Com aquele aviso, saiu do navio em bicos de pés, enrolada no seu enorme casaco e com as enormes botas calçadas, e Thomas, assombrado com a profundidade e altura do som do ressonar, achou que a discrição era de facto o melhor. Dirigiu-se à proa, onde encontrou um fogareiro de ferro sobre uma laje. O braseiro já estava preparado e, depois de abrir o alçapão para servir de chaminé, fez as fagulhas com a pederneira. A acendalha estava húmida, mas, algum tempo depois, o lume pegou e ele lançou-lhe bocadinhos de madeira. Quando a jovem voltou, o braseiro já era respeitável.

 

- Chamo-me Yvette - disse ela, sem aparentemente se importar com quem seriam Thomas e Robbie. - A mulher de Pierre - explicou e pegou numa enorme frigideira enegrecida onde partiu uma dúzia de ovos. - Também querem comer? - perguntou a Thomas.

 

- Se puder ser.

 

- Podem comprar-me os ovos - disse, apontando para o saco feito de pano de vela - e aqui há presunto e pão. Ele gosta de presunto.

 

Thomas olhou para os ovos que cozinhavam ao lume.

 

- São todos para Pierre?

 

- De manhã tem muita fome - explicou ela. - Porque não cortais o presunto? Gosta dele grosso - o navio estalou subitamente e rolou um pouco sobre a lama. - Acordou - disse Yvette, tirando um prato de chumbo da prateleira. Ouviu-se um gemido no convés, logo seguido de passos. Thomas recuou e, quando se voltou, tinha na sua frente o maior homem que já vira.

 

Pierre Villeroy era mais alto um pé do que o arco de Thomas. O peito parecia um barril, tinha a cabeça lisa e calva, o rosto terrivelmente marcado pela varíola contraída quando criança, e uma barba onde uma lebre se perderia. Pestanejou ao ver Thomas.

 

- Viestes para trabalhar? - resmungou.

 

- Não. Trago-vos uma mensagem.

 

- Temos de começar logo - respondeu Villeroy numa voz que parecia retumbar numa caverna profunda.

 

- Uma mensagem de Sir Guillaume d’Evecque - explicou Thomas.

 

- Precisamos aproveitar a maré vazia, entendeis? - disse Villeroy. - Tenho três tinas de musgo no porão. Sempre usei o musgo. Tal como o meu pai. Há quem use corda desfiada, mas eu não gosto, não gosto mesmo nada. Não há nada melhor do que o musgo fresco. Pega, entendeis? E mistura-se melhor com o alcatrão - o seu rosto feroz iluminou-se subitamente num sorriso desdentado. - Mon caneton! - declarou quando Yvette lhe trouxe o prato com o monte de comida.

 

Yvette, a sua patinha, forneceu Thomas e Robbie com dois ovos cada um, depois entregou-lhes martelos e estranhos instrumentos metálicos que mais pareciam toscos cinzéis.

 

- Vamos calafetar as fendas - explicou Villeroy. - Eu aqueço o alcatrão e vós podeis meter o musgo entre as tábuas. - Com os dedos, meteu na boca uma massa de gema de ovo. - Temos de o fazer enquanto o navio está em seco, entre as marés.

 

- Mas trazemo-vos uma mensagem - insistiu Thomas.

 

- Já sei. De Sir Guillaume. O que significa que ele deseja que o Pentecost esteja pronto para uma viagem e aquilo que Sir Guillaume deseja consegue, pois foi muito bom para mim. Porém, se se afundar, o Pentecost não serve para ele, não é verdade? Não serve para nada, no fundo do mar, com todos os seus marinheiros afogados, pois não? Então, tem de ser calafetado. A minha querida e eu quase naufragámos ontem, não é verdade, minha patinha?

 

- Estava a meter água - concordou Yvette.

 

- Aos borbotões, diria eu - declarou Villeroy em voz alta. - Sempre, desde Cabourg até aqui, por isso se Sir Guillaume quer ir a algum lado, o melhor que fareis será começar a trabalhar! - Sorriu-lhes por cima da vasta barba, agora cheia de gema de ovo.

 

- Quer ir para Dunquerque - disse Thomas.

 

- Está a planear um ataque, não? - perguntou Villeroy em voz alta. - Vai passar por cima daquele fosso, a cavalo e fugir antes que o conde de Coutances saiba em que ano está.

 

- Porquê Dunquerque? - perguntou Yvette.

 

- Certamente porque se vai juntar aos ingleses - disse Villeroy, sem um único traço de ressentimento pelo que presumivelmente seria uma traição da parte de Sir Guillaume. - O seu Senhor voltou-se contra ele, os bispos mijaram-lhe em cima e dizem que o rei também tem culpas, portanto, pode muito bem mudar de lado. Dunquerque? Vai juntar-se ao cerco de Calais - enfiou mais ovos com presunto pela boca abaixo. - Quando quer Sir Guillaume partir?

 

- No dia de São Clemente - respondeu Thomas.

 

- Quando é isso?

 

Ninguém sabia. Thomas sabia sim em que dia do mês era a festa de São Clemente, mas não sabia quantos dias faltavam e essa ignorância deu-lhe uma desculpa para evitar aquilo que calculava que fosse um trabalho desagradavelmente sujo e húmido.

 

- Vou ver se descubro - disse. - E volto para vos ajudar.

 

- Vou convosco - ofereceu-se Robbie.

 

- Ficareis aqui - disse Thomas, sério. - Monsieur Villeroy tem trabalho para vós.

 

- Trabalho? - Robbie não compreendera a conversa anterior.

 

- Não é nada de especial - garantiu-lhe Thomas. - Vereis que vos agrada! Robbie estava desconfiado.

 

- E vós? Onde ides?

 

- À igreja, Robbie Douglas - disse Thomas. - Vou à igreja.

 

Os ingleses tinham capturado Caen no Verão anterior, tendo depois ocupado a cidade o tempo suficiente para violarem as mulheres e pilharem as suas riquezas. Tinham deixado a cidade destruída, ensanguentada e em estado de choque, mas Thomas ficara quando o exército de lá partira. Estava doente e o doutor Mordecai tratara-o na casa de Sir Guillaume, para mais tarde, quando se encontrara já capaz de caminhar o levar para a Abbaye aux Hommes e o apresentar ao Irmão Germain, o escrivão do mosteiro e o homem mais sábio que Thomas já conhecera. O Irmão Germain saberia certamente quando era o dia de São Clemente, mas não era essa a única razão pela qual Thomas ia à abadia. Tinha-se apercebido de que se algum homem podia compreender a estranha escrita do livro do pai seria o velho monge e a ideia de que talvez nessa manhã encontrasse uma resposta para o mistério do Graal causou a Thomas uma certa emoção. Aquilo surpreendeu-o. Quantas vezes não duvidara da existência do Graal e ainda mais vezes desejara que a taça nada tivesse a ver com ele. Mas agora, de súbito, sentia a emoção da caça. Mais ainda estava assombrado com a solenidade da busca, de tal forma que parou de caminhar para olhar para a luz cintilante reflectida no rio e tentou recordar a visão de fogo e ouro na noite do Norte de Inglaterra. Como era estúpido duvidar, pensou subitamente. Claro que o Graal existia! Só estava à espera que o descobrissem, para trazer a felicidade a este mundo doente.

 

- Atenção! - Thomas foi acordado do seu devaneio por um homem que empurrava um carrinho de mão carregado de cascas de ostras e que quase esbarrou nele. Atado ao carro seguia um pequeno cão que se atirou aos tornozelos de Thomas a ladrar, sem grande efeito pois a corda puxava-o para trás. Thomas mal reparou no homem ou no cão. Antes pelo contrário, estava a pensar que o Graal se deveria esconder dos indignos, fazendo-os duvidar. Então, para o encontrar, tudo o que teria de fazer seria acreditar e talvez solicitar uma pequena ajuda ao Irmão Germain.

 

Um porteiro fez parar Thomas às portas da abadia e, logo a seguir, sofreu um ataque de tosse. Dobrou-se sobre si próprio, ofegou, depois endireitou-se lentamente e assoou-se aos dedos.

 

- Tenho uma doença grave - disse ofegante -, é o que é, tenho uma doença grave. - Escarrou ruidosamente e lançou as mucosidades na direcção dos pedintes que estavam junto do portão. - O escritório é por ali - disse.

- Logo a seguir ao claustro.

 

Thomas encaminhou-se para a sala iluminada, onde uma dezena de monges se encontrava de pé, junto a mesas altas e inclinadas. Uma pequena fogueira ardia numa lareira central, para impedir que a tinta solidificasse, mas na sala de tecto alto havia ainda frio que bastasse para ver a bruma da respiração dos monges por cima dos pergaminhos. Todos eles copiavam livros e a câmara de pedra ecoava com o ranger e o arranhar das penas. Dois monges noviços empoavam a tinta numa mesa lateral, outro raspava uma pele de carneiro e um quarto aparava penas de ganso, todos nervosos, receando o Irmão Germain, sentado sobre um estrado e a trabalhar no seu próprio manuscrito. Germain era velho, baixo, frágil e curvado, com o cabelo branco e ralo, olhos leitosos e míopes e uma expressão mal-humorada. Tinha o rosto a apenas três polegadas do trabalho, até ouvir os passos de Thomas. Nessa altura levantou a cabeça e, embora não visse bem, pelo menos apercebeu-se de que o visitante tinha uma espada à cintura.

 

- Que vem um soldado fazer à casa de Deus? - perguntou rispidamente o Irmão Germain. - Haveis vindo para terminar a obra que os ingleses começaram no Verão passado?

 

- Tenho de falar convosco, Irmão - disse Thomas. O arranhar das penas terminara repentinamente e os monges tentavam ouvir a conversa.

 

- Ao trabalho! - vociferou o Irmão Germain para os monges. - Ao trabalho, porque ainda não haveis sido transladados para o céu! Tendes deveres, tratai de os cumprir! - As penas estalaram nos tinteiros e o arranhar, o bater, o raspar recomeçaram. O Irmão Germain pareceu receoso quando Thomas subiu ao estrado. - Eu conheço-vos? - perguntou em tom zangado.

 

- Conhecemo-nos no Verão passado. Sir Guillaume trouxe-me aqui para falar convosco.

 

- Sir Guillaume! - espantado, o Irmão Germain pôs a pena de lado. Sir Guillaume? Duvido que o voltemos a ver! Ah! Atacado por Coutances, segundo ouvi, e é bem feito. Sabeis o que fez?

 

- Coutances?

 

- Sir Guillaume, idiota! Voltou-se contra o rei na Picardia! Voltou-se contra o rei. Transformou-se num traidor. Sempre foi um tolo, sempre arriscou o pescoço, mas agora será uma sorte se não ficar sem cabeça. O que é isso?

 

Thomas desenrolara o livro e colocara-o sobre a mesa.

 

- Irmão, tinha esperança - disse humildemente - que me pudésseis ajudar a compreender isto...

 

- Quereis que o leia, não é? Nunca haveis estudado e agora pensais que eu não tenho nada melhor para fazer do que ler um disparate qualquer para poderdes avaliar o seu valor? - As pessoas que não sabiam ler entravam por vezes na posse de livros e traziam-nos ao mosteiro para serem avaliados, na esperança de que uma qualquer colectânea de piedosos conselhos fosse afinal um livro raro de teologia, astrologia ou filosofia. - Como haveis dito que vos chamáveis? - perguntou o Irmão Germain.

 

- Não disse - respondeu Thomas. - Mas o meu nome é Thomas. Aparentemente o nome não trouxe qualquer recordação ao espírito do Irmão Germain que, além do mais, não pareceu interessado, pois concentrou-se no livro murmurando as palavras em surdina, voltando as páginas com os longos dedos brancos, assombrado. Depois, voltou à primeira página e leu o latim em voz alta. ”Cálix meus inebrians.” Murmurou as palavras como se fossem sagradas, fez o sinal da cruz e passou para a página seguinte onde se encontrava a estranha escrita hebraica e ficou ainda mais emocionado.

 

- ”Para o meu filho” - disse em voz alta, traduzindo certamente. - ”Que é filho de Tirshatha e neto de Hachaliah” - voltou os olhos míopes para Thomas. - Sois vós?

 

- Eu?

 

- Sois neto de Hachaliah? - perguntou Germain e, apesar da sua falta de vista, deve ter detectado a confusão no rosto de Thomas. - Oh, não importa

- disse impaciente. - Sabeis do que trata este livro?

 

- São histórias - respondeu Thomas. - Histórias do Graal.

 

- Histórias! Histórias! Vós, os soldados, sois como crianças. Tontos, cruéis, pouco educados e desejosos de histórias. Sabeis o que é este escrito? Apontou com o dedo comprido para as estranhas letras, intercaladas com símbolos em forma de olho. - Sabeis o que é isto?

 

- É hebraico, não é verdade?

 

- ”É hebraico, não é verdade?” - troçou o Irmão Germain, imitando Thomas. - Claro que é hebraico. Até um louco educado na Universidade de Paris o saberia, mas trata-se da sua escrita mágica. São as letras que os judeus usam para os seus feitiços, para a sua magia negra - aproximou dos olhos uma das páginas. - Estais a ver? Abracadabra, o nome do diabo! franziu a testa por uns segundos. - O autor afirma que Abracadabra pode ser trazido a este mundo, se o seu nome for invocado sobre o Graal. Parece-me plausível - o Irmão Germain fez o sinal da cruz para afastar o demónio e depois olhou para Thomas. - Onde haveis arranjado isto? - fez a pergunta incisivamente, mas não esperou pela resposta. - Sois ele, não é verdade?

 

- Ele?

 

- O Vexille que Sir Guillaume me trouxe - disse o irmão Germain, em tom acusatório, fazendo de novo o sinal da cruz. - Sois inglês! - O tom piorou. - A quem levareis o livro?

 

- Primeiro quero compreendê-lo - disse Thomas, confundido pela pergunta.

 

- Compreendê-lo? Vós? - o Irmão Germain fez um gesto furioso. Não, não, meu rapaz, deveis deixá-lo comigo para que faça uma cópia e depois terá de ir para os Dominicanos em Paris. Mandaram cá um homem, perguntar por vós.

 

- Por mim? - Thomas estava ainda mais confundido.

 

- Pela família Vexille. Parece que um de vós combateu este Verão ao lado do rei e agora submeteu-se à Igreja. A Inquisição levou a cabo... - o Irmão Germain fez uma pausa para procurar a palavra certa - ... conversações com ele.

 

- Guy, porquê? - perguntou Thomas. Sabia que Guy era seu primo, sabia que ele tinha combatido pelo lado francês na Picardia e sabia que tinha sido ele quem tinha morto o seu pai em busca do Graal. Não sabia mais nada.

 

- Quem mais haveria de ser? E dizem agora que Guy Vexille se reconciliou com a Igreja - disse o Irmão Germain, enquanto voltava as páginas.

- Reconciliado com a Igreja! Será possível vestir um lobo com a pele de um cordeiro? Quem escreveu isto?

 

- O meu pai.

 

- Sois então o neto de Hachaliah - disse, com reverência, o Irmão Germain, colocando depois as suas mãos esguias sobre o livro. - Obrigado por mo haverdes trazido - disse.

 

- Podeis dizer-me o que está escrito nas passagens em hebraico? perguntou Thomas, espantado com as últimas palavras do Irmão Germain.

 

- Dizer-vos? Claro que posso dizer-vos, mas nada significarão. Sabeis quem era Hachaliah? Estais familiarizado com o Tirshatha? Claro que não. As respostas seriam desperdiçadas em vós! Mas agradeço o terdes trazido o livro até mim - pegou num bocado de pergaminho, tomou a pena e mergulhou-a em tinta. - Se levardes esta nota ao sacristão, ele dar-vos-á uma recompensa. Agora tenho que trabalhar. Assinou a nota e estendeu-a a Thomas.

 

Thomas estendeu a mão para o livro.

 

- Não o posso cá deixar - disse.

 

- Não o podeis cá deixar? Claro que podeis! Uma coisa destas pertence à Igreja. Além do mais tenho de fazer uma cópia - o Irmão Germain cruzou as mãos sobre o livro e inclinou-se sobre ele. - Deixá-lo-eis - sussurrou.

 

Thomas considerara o Irmão Germain um amigo, ou pelo menos não o considerara um inimigo e até mesmo as ásperas palavras acerca da traição de Sir Guillaume não lhe tinham modificado a opinião. Germain dissera que o livro teria de ir para os Dominicanos em Paris, mas percebia agora que o irmão era aliado dos homens da Inquisição que, por sua vez, tinham Guy Vexille do seu lado. E Thomas também sabia que essa formidável gente procurava o Graal com uma avidez que ele não tivera em conta até àquele momento e que o caminho para essa relíquia seria através dele e desse livro. Todos esses homens eram seus inimigos, o que significava que o Irmão Germain também o era e que fora um erro terrível ter trazido o livro à abadia. Sentiu um súbito receio ao estender a mão para ele.

 

- Tenho de partir - insistiu.

 

O Irmão Germain tentou agarrar o livro, mas os seus braços que mais pareciam pequenos ramos não podiam competir com os de Thomas, exercitados pelo arco. Mesmo assim, agarrou-se teimosamente a ele, ameaçando rasgar a fina cobertura de pele.

 

- Para onde ides? - perguntou o Irmão Germain, tentando enganar Thomas com uma falsa promessa. - Se o deixares comigo - disse -, farei uma cópia e enviar-vo-la-ei quando estiver pronta.

 

Thomas ia para norte, para Dunquerque, de modo que mentiu e nomeou outra terra na direcção oposta.

 

- Vou para La Roche-Derrien.

 

- Para uma guarnição inglesa? - o Irmão Germain continuava a tentar puxar o livro para si. Depois gritou quando Thomas lhe bateu nas mãos. Não podeis levar isso para os ingleses.

 

- Vou levá-lo para La Roche-Derrien - disse Thomas, recuperando finalmente o livro. Enrolou as folhas na fina capa de pele e depois quase sacou da espada porque alguns dos monges mais jovens pareciam querer levantar-se das cadeiras altas para o impedirem. Contudo a visão da arma dissuadiu-os de qualquer violência. Ficaram apenas a vê-lo partir.

 

O porteiro continuava a tossir, depois encostou-se à arcada, tentando recuperar o fôlego com as lágrimas nos olhos.

 

- Pelo menos não tenho lepra - conseguiu dizer a Thomas. - Sei que não é lepra. O meu irmão tinha lepra e não tossia. Pelo menos não tossia muito.

 

- Quando é o dia de São Clemente? - lembrou-se Thomas de perguntar.

 

- Depois de amanhã e espero que Deus me deixe viver até lá.

 

Ninguém seguiu Thomas mas, nessa tarde, enquanto ele e Robbie estavam metidos até às partes baixas na água fria do rio para calafetarem as tábuas do Pentecost com musgo espesso, uma patrulha de soldados de libré vermelha e amarela perguntou a Pierre Villeroy se este tinha visto um inglês com uma cota de malha e uma capa negra.

 

- Está ali em baixo - disse Villeroy, apontando para Thomas e depois desatando a rir. - Se eu visse um inglês - continuou - mijava-lhe em cima até que ele se afogasse.

 

- Em vez disso, levai-o ao castelo - disse o chefe da patrulha e depois levou os homens para interrogarem a tripulação do barco seguinte.

 

Villeroy esperou até os soldados já não o poderem ouvir.

 

- Por isto - disse a Thomas - deveis-me a calafetagem de mais umas tábuas.

 

- Jesus Cristo me valha! - praguejou Thomas.

 

- Lembrai-vos que Jesus era um hábil carpinteiro - observou Villeroy a comer um bocado de tarte de maçã feita por Yvette. - Mas também era filho de Deus, não é verdade? Por isso como não tinha de fazer trabalhos menores como a calafetagem de barcos, não vale a pena pedir-lhe ajuda. Martelai bem o musgo, meu rapaz, martelai-o bem.

 

Sir Guillaume defendera o solar dos seus atacantes por quase três meses e não duvidara que o poderia defender indefinidamente desde que o conde de Coutances não trouxesse mais pólvora para a aldeia; porém Sir Guillaume sabia que o seu tempo na Normandia tinha terminado. O conde de Coutances era seu suserano, Sir Guillaume detinha as suas terras, tal como o conde detinha as do rei e se um homem era declarado traidor pelo seu suserano e o rei apoiava esta declaração, esse homem não teria futuro, a menos que encontrasse outro senhor que devesse preito e menagem a um rei diferente. Sir Guillaume escrevera ao rei e apelara aos seus amigos que tinham influência na corte, mas não lhe chegara qualquer resposta. O cerco continuara e Sir Guillaume via-se obrigado a abandonar o solar, o que o entristecia, pois Evecque era o seu lar. Conhecia cada polegada daquelas pastagens, sabia onde encontrar os abrigos dos veados, onde as pequenas lebres se escondiam a tremer na erva alta, sabia onde os lúcios se criavam como demónios nos ribeiros mais profundos. Era a sua casa, mas um homem declarado traidor não tem casa e, por isso, na véspera de São Clemente, quando os sitiantes estavam imersos na profunda e húmida escuridão do Inverno, tratou de fugir.

 

Nunca duvidara da sua capacidade de fuga. O conde de Coutances era um homem de meia-idade, enfadonho e pouco imaginativo, cuja experiência de guerra sempre fora ao serviço de fidalgos mais importantes. O conde era contrário ao risco e dado a um temperamento jactante sempre que não percebia alguma coisa, o que acontecia com frequência. Certamente não compreendia por que razão os grandes senhores em Paris o encorajavam a cercar Evecque, mas como via a possibilidade de enriquecer, obedecia-lhes, muito embora receasse Sir Guillaume. Este tinha pouco mais de trinta anos e levara toda a sua vida a combater, geralmente por sua conta, e na Normandia era conhecido pelo senhor do mar e da terra, pois combatera em ambos os locais com entusiasmo e eficácia. Já fora bem-parecido, de rosto duro e cabelo loiro, mas Guy Vexille, conde de Astarac, tirara-lhe um olho e deixara-lhe cicatrizes que tornavam o rosto de Sir Guillaume ainda mais duro. Era um homem formidável, um lutador, mas na hierarquia de reis, príncipes, duques e condes era um ser menor e as suas terras tornavam-se uma tentação se fosse declarado traidor.

 

Havia doze homens, três mulheres e oito cavalos dentro do solar, o que significava que todos os cavalos, excepto um, tinham de transportar dois cavaleiros. Após o cair da noite, quando a chuva caía suavemente sobre os campos alagados, Sir Guillaume mandou vir pranchas que colocou sobre a abertura do local onde deveria estar a ponte levadiça; logo a seguir os cavalos, de olhos vendados, foram conduzidos, um a um, sobre essa perigosa ponte. Os sitiantes, agasalhados por causa do frio e da chuva, nada viram nem ouviram, embora as sentinelas dos postos mais avançados tivessem justamente aí sido colocadas para impedir uma tentativa de fuga.

 

As vendas dos cavalos foram retiradas, os fugitivos montaram e dirigiram-se para norte. Apenas uma vez foram invectivados por uma sentinela que lhes perguntou quem eram.

 

- Quem diabo pensais que somos? - retorquiu Sir Guillaume e a violência do seu tom de voz convenceu a sentinela a não fazer mais perguntas. De madrugada, estavam em Caen e o conde de Coutances ainda não se tinha dado conta. Foi apenas quando uma das sentinelas viu as pranchas sobre o fosso que os sitiantes se aperceberam de que o inimigo tinha partido e, mesmo nessa altura, o conde ainda perdeu tempo a revistar o castelo. Encontrou os móveis, palha e panelas da cozinha, mas nada de tesouros.

 

Uma hora depois, uma centena de homens de capas negras chegava a Evecque. O chefe não trazia qualquer pendão e os escudos não tinham qualquer insígnia. Pareciam endurecidos pelas batalhas, homens que ganhavam a vida alugando as suas lanças e espadas a quem lhes pagasse mais. Detiveram os cavalos junto à improvisada ponte sobre o fosso de Evecque e dois deles, um dos quais padre, atravessaram o pátio.

 

- O que levaram? - perguntou em tom ríspido.

 

O conde de Coutances voltou-se zangado para o homem que vestia o hábito dominicano.

 

- Quem sois?

 

- O que pilharam aqui os vossos homens? - perguntou de novo o padre magro e irado.

 

- Nada - garantiu o conde.

 

- Então, onde está a guarnição?

 

- A guarnição? Fugiu.

 

Bernard de Taillebourg explodiu de raiva. A seu lado, Guy Vexille olhou para o alto da torre onde agora ondulava o pendão do conde.

 

- Quando fugiram? - perguntou. - Para onde foram? O conde irritou-se com o tom de voz.

 

- Quem sois? - perguntou, pois Vexille não usava qualquer insígnia sobre a sua camisa negra.

 

- Um vosso igual - disse Vexille friamente. - E o rei, meu Senhor, vai querer saber para onde foram.

 

Ninguém o sabia, embora algumas perguntas acabassem por esclarecer que os sitiantes tinham tido consciência de que os cavaleiros se haviam dirigido para norte na noite fria, o que certamente significava que Sir Guillaume e os seus homens tinham partido para Caen. Se o Graal estivesse escondido em Evecque, teria também seguido para o norte. Assim, De Taillebourg ordenou aos seus homens que voltassem a montar os cavalos cansados.

 

Chegaram a Caen ao princípio da tarde, mas, nessa altura, já o Pentecost ia a meio do rio, em direcção ao mar, empurrado para norte por um vento caprichoso que por vezes se opunha ao fim da praia-mar. Pierre Villeroy resmungava contra a futilidade de tentar opor-se à maré, mas Sir Guillaume insistia pois esperava os seus inimigos a qualquer momento. Apenas tinha consigo dois homens-de-armas, já que o resto não quisera continuar fiel ao seu senhor. Até mesmo ele próprio sentia pouco entusiasmo por aquela forçada lealdade.

 

- Pensais que desejo combater ao lado de Eduardo de Inglaterra? resmungou para Thomas. - Mas que mais posso fazer? O meu Senhor voltou-se contra mim. Assim, jurarei preito e menagem ao vosso Eduardo e pelo menos ficarei vivo - era por isso que ia para Dunquerque, para poder fazer a pequena viagem até às linhas dos cercos ingleses junto de Calais e passar a obedecer ao rei Eduardo.

 

Os cavalos tiveram de ser abandonados no cais, por isso tudo o que Sir Guillaume levou para o Pentecost foi a sua armadura, alguma roupa e três sacos de couro com dinheiro que deixou cair no convés antes de dar um abraço a Thomas. Depois este voltou-se para o seu velho amigo Will Skeat, que o fitara sem o reconhecer e logo afastara o olhar. Thomas ia falar, mas deteve-se. Skeat usava um morrião e o seu cabelo, agora branco como a neve, pendia sob a velha aba de metal. Tinha o rosto mais magro que nunca, rugas profundas e um olhar vago, como se tivesse acabado de acordar e não soubesse onde se encontrava. Também parecia ter envelhecido. Não devia ter mais de quarenta e cinco anos, porém aparentava já sessenta, mas pelo menos estava vivo. Quando Thomas o vira pela última vez estava terrivelmente ferido com uma espada que lhe abrira o crânio e fora um milagre ter sobrevivido o tempo suficiente para chegar à Normandia e às atenções especializadas de Mordecai, o físico judeu que passava agora sobre a precária prancha de embarque.

 

Thomas deu mais um passo em direcção ao seu amigo que, mais uma vez, o olhou sem o reconhecer.

 

- Will? - perguntou Thomas, intrigado. - Will?

 

E, ao som da voz de Thomas, a luz entrou nos olhos de Will Skeat.

 

- Thomas! - exclamou! - Por Deus, és mesmo tu! - aproximou-se de Thomas, arrastando ligeiramente os pés e os dois homens abraçaram-se.

 

- Por Deus, Thomas, que bom que é ouvir uma voz inglesa. Durante todo o Inverno só tenho ouvido disparates numa língua estranha. Meu Deus, rapaz, pareces mais velho.

 

- Estou mais velho - disse Thomas. - Mas, e tu como estás, Will?

 

- Estou vivo, Tom, estou vivo, embora por vezes pergunte a mim mesmo se não teria sido mais fácil morrer. Estou fraco como um gatinho, é o que é - tinha a voz levemente arrastada, como se tivesse bebido de mais, mas estava nitidamente sóbrio.

 

- Agora já não te posso chamar só Will, não é verdade? - perguntou Thomas. - Agora és Sir William.

 

- Eu? Sir William? - Skeat riu-se. - Como sempre, só dizes coisas dessas. Sempre foste demasiado inteligente para teu bem, não é verdade, Tom? - Skeat não se recordava da Batalha da Picardia, nem de o rei o ter armado cavaleiro, antes da primeira carga francesa. Por vezes, Thomas interrogara-se se não se teria tratado de um acto desesperado, para levantar o moral dos arqueiros, pois o rei olhara certamente para o seu exército pequeno e doente e nunca teria acreditado que os seus homens poderiam sobreviver. Mas sobreviveram e venceram, embora, para Skeat, o custo dessa vitória tivesse sido terrível. Tirou o morrião para coçar a cabeça e um lado do crânio revelou, em todo o seu horror, uma cicatriz saliente, rosada e branca. - Estou fraco como um gatinho - repetiu Skeat. - E há várias semanas que não disparo um arco.

 

Mordecai insistira para que Skeat descansasse. Depois saudou Thomas enquanto Villeroy soltava as amarras e usava um remo comprido para meter o Pentecost na corrente do rio. Mordecai resmungou acerca do frio, das privações do cerco e dos horrores de se encontrar a bordo de um navio, mas depois esboçou o seu velho e sábio sorriso.

 

- Estais com bom aspecto, Thomas. Para um homem que já foi enforcado, pareceis indecentemente bem. Como está a vossa urina?

 

- Límpida e doce.

 

- O vosso amigo, agora Sir William - Mordecai indicou com a cabeça a cabina de proa onde Skeat se tinha deitado, sobre um monte de peles de carneiro -, tem a urina muito turva. Receio que não me haveis feito um favor quando mo enviastes.

 

- Está vivo.

 

- Não sei como.

 

- Enviei-o para vós porque sois o melhor.

 

- Lisonjeais-me - Mordecai gaguejou um pouco, pois o navio balançara sobre uma pequena onda do rio em que mais ninguém reparara e parecia assustado; se fosse cristão ter-se-ia, sem dúvida, precavido do perigo eminente fazendo o sinal da cruz. Como não o era, olhou com ar preocupado para a vela esfarrapada, como se receasse que esta caísse e o sufocasse.

 

- Detesto navios - queixou-se. - São coisas pouco naturais. Pobre Skeat. Admito que parece estar a melhorar, mas não posso gabar-me de ter feito mais do que lavar a ferida e impedir que as pessoas lhe pusessem talismãs, pão bolorento e água benta sobre o couro cabeludo. Acho que a religião e a medicina não se misturam bem. Julgo que Skeat ainda está vivo porque a pobre Eleanor fez o que era devido quando ele foi ferido. - Eleanor colocara o bocado de crânio fracturado sobre o cérebro exposto, cobrira-o com uma cataplasma de musgo e teias de aranha e ligara a ferida. - Lamento o que se passou com ela.

 

- Eu também - disse Thomas. - Estava grávida, íamos casar. - Era um amor, um amor.

- Sir Guillaume deve estar muito zangado.

 

Mordecai abanou a cabeça com veemência, de um lado para o outro.

 

- Quando recebeu a vossa carta? Foi antes do cerco, claro - franziu a testa, tentando recordar-se. - Zangado? Não creio. Resmungou, mais nada. Sem dúvida que gostava de Eleanor, mas ela era filha de uma criada, não...

 

- fez uma pausa. - Bom, é muito triste. Mas, conforme dizíeis, o vosso amigo Sir William sobreviveu. O cérebro é uma coisa estranha, Thomas. Ele compreende, penso eu, embora não consiga recordar-se. Tem a fala arrastada, o que seria de esperar, mas o mais estranho de tudo é que não reconhece ninguém com os olhos. Entro no quarto e parece que não me vê; falo e sabe quem sou. Habituámo-nos todos a falar quando nos aproximamos dele. Haveis de vos habituar - Mordecai sorriu. - Mas é bom ver-vos.

 

- Vindes então até Calais connosco? - perguntou Thomas.

 

- Valha-me Deus, não! Calais! - estremeceu. - Mas não podia ficar na Normandia. Suspeito que o conde de Coutances, enganado por Sir Guillaume, adoraria transformar um judeu num exemplo. Portanto, de Dunquerque, viajarei de novo para sul. Primeiro até Montpellier. O meu filho está lá a estudar Medicina. E depois de Montpellier? Posso ir para Avinhão.

 

- Avinhão?

 

- O Papa é muito hospitaleiro para os judeus - disse Mordecai, agarrando-se à amurada, quando o Pentecost estremeceu por acção de uma leve rajada de vento. - E nós precisamos de hospitalidade.

 

Mordecai sugerira que a reacção de Sir Guillaume à morte de Eleanor fora quase indiferente, mas não fora bem assim quando falara com Thomas da sua falecida filha, enquanto o Pentecost passava a foz do rio e as ondas frias se estendiam até ao horizonte cinzento. Sir Guillaume tinha o rosto arrasado, duro e triste, parecendo perto das lágrimas, ao ouvir como Eleanor tinha morrido.

 

- Sabeis mais alguma coisa acerca dos homens que a mataram? - perguntou, assim que Thomas terminou a sua história. Este apenas podia repetir aquilo que Lorde Outhwaite lhe dissera, depois da batalha, acerca de um padre francês chamado De Taillebourg e do seu estranho criado.

 

- De Taillebourg - disse simplesmente Sir Guillaume. - Outro homem a abater, não? - fez o sinal da cruz. - Ela era ilegítima - disse de Eleanor, não para Thomas, mas talvez para o vento. - Mas era uma menina muito doce. Agora todos os meus filhos estão mortos - olhou para o oceano, com o longo cabelo louro ondulando ao vento. - Temos tantos homens para matar, vós e eu - falava agora para Thomas. - E temos de encontrar o Graal.

 

- Há outros que o buscam - disse Thomas.

 

- Temos então de o encontrar antes deles - vociferou Sir Guillaume. Mas, primeiro, vamos a Calais, para prestar vassalagem a Eduardo e depois combatermos. Por Deus, Thomas, combatermos - voltou-se e olhou com ar severo para os seus dois homens-de-armas como se reflectisse como a sua fortuna e os seus seguidores tinham diminuído por acção do destino, depois viu Robbie e sorriu. - Gosto do vosso escocês.

 

- Ele sabe lutar - disse Thomas.

 

- É por isso que gosto dele. E ele também quer matar De Taillebourg?

 

- Já somos três a querer matá-lo.

 

- Então que Deus ajude esse canalha, porque vamos dar as suas tripas a comer aos cães - vociferou Sir Guillaume. - Mas ele vai ter de saber que estais nas linhas de Calais, não é verdade? Se queremos que venha procurar-nos terá de saber onde nos encontramos.

 

Para chegar a Calais o Pentecost precisava seguir para oriente e para norte, mas, assim que se afastou de terra, o barco passou a chafurdar em vez de velejar. Um leve vento de sudoeste afastara-o da foz do rio, mas depois, muito antes de estar longe da costa normanda, a brisa desapareceu e a enorme vela esfarrapada bateu com força no mastro. O navio rolou como um barril numa onda longa e cinzenta que chegou de oeste, onde as nuvens negras se amontoavam como uma cordilheira na escuridão. O dia invernoso desaparecia rapidamente, transformando-se o resto da sua luz fria num raio lúgubre por baixo das nuvens. Na terra escura viam-se pontos de fogo.

 

- A maré far-nos-á subir o canal - disse lugubremente Villeroy - e depois descer de novo. E assim ficaremos até Deus ou São Nicolau nos enviarem vento.

 

A maré fê-los subir no canal da Mancha, tal como Villeroy tinha previsto e depois pô-los de novo à deriva, obrigando-os a descer. Thomas, Robbie e os dois homens-de-armas de Sir Guillaume revezavam-se para descer ao porão cheio de pedras e tirar dele baldes de água.

 

- É claro que mete água - disse Villeroy ao preocupado Mordecai. Todos os navios metem água. E pareceria um crivo se eu não o calafetasse de poucos em poucos meses. Meto-lhe musgo nas fendas e rezo a São Nicolau. Não deixa que nos afoguemos.

 

A noite estava negra. As poucas luzes em terra cintilavam numa bruma húmida. O mar batia ao de leve de encontro ao casco e a vela pendia inútil. Durante algum tempo, um barco de pesca andou lá próximo, com um candeeiro aceso no convés. Thomas escutou o canto baixo dos homens que içavam as redes; depois pegaram nos remos e dirigiram-se para oriente até a sua breve luz se desvanecer na bruma.

 

- Vai chegar um vento de oeste - disse Villeroy. - É o que sempre acontece. Vento oeste das terras perdidas.

 

- Terras perdidas? - perguntou Thomas.

 

- Além - Villeroy apontou, na escuridão, para oeste. - Se velejássemos o mais que fosse possível em direcção a oeste, encontraríamos as terras perdidas e veríeis uma montanha mais alta que o céu onde dorme Artur e os seus cavaleiros - Villeroy fez o sinal da cruz. - E no alto dos rochedos, por baixo dessas montanhas, podeis ver as almas dos marinheiros afogados que chamam pelas suas mulheres. Lá está frio, sempre frio, frio e nevoeiro.

 

- Uma vez o meu pai esteve nessas terras - afirmou Yvette.

 

- Ele dizia que sim - comentou Villeroy. - Mas bebia como ninguém.

 

- Dizia que o mar estava cheio de peixe - continuou Yvette, como se o marido nada tivesse dito. - E que as árvores eram muito pequenas.

 

- Bebia cidra - afirmou Villeroy. - Engoliu verdadeiros pomares de maçãs. Mas, bêbado ou sóbrio, o teu pai era um homem do mar.

 

Thomas fitava a escuridão a ocidente, imaginando uma viagem à terra onde o rei Artur e os seus cavaleiros dormiam escondidos no nevoeiro e onde as almas dos afogados chamavam os seus amores perdidos.

 

- É tempo de esvaziar o navio - disse-lhe Villeroy e Thomas desceu ao porão, para retirar os baldes de água até os braços lhe doerem de cansaço; depois, dirigiu-se à proa e dormiu num casulo de peles de carneiro que Villeroy aí guardava pois, segundo dizia, estava mais frio no mar do que em terra e um homem devia afogar-se quente.

 

A manhã nasceu lentamente, surgindo a oriente como uma mancha cinzenta. O leme gemia nas suas cordas, sem nada fazer, enquanto o navio balançava nas ondas sem vento. A costa normanda continuava à vista, uma fenda cinzento-esverdeada a sul e, à medida que a luz do Inverno aumentava, Thomas viu três barcos a remos saírem da costa. Todos três subiram o canal até se encontrarem a oriente do Pentecost; Thomas concluiu que se tratavam de barcos de pesca e desejou que o barco de Villeroy também tivesse remos para fazer progressos, naquela imobilidade frustrante. Havia dois remos enormes no convés, mas Yvette disse-lhe que só eram úteis quando chegavam a um porto.

 

- É demasiado pesado para se remar durante muito tempo - disse. Principalmente quando está cheio.

 

- Cheio?

 

- Transportamos carga - disse Yvette. O marido dormia na cabina de [popa e o ruído do seu ressonar parecia vibrar por todo o navio. - Subimos e descemos a costa - disse Yvette. - Levamos lã, vinho, bronze e ferro, pedra e peles.

- Gostais desta vida?

 

- Adoro - sorriu e, quando o fez, o seu jovem rosto, que era estranhamente angular, tornou-se belo. - Sabei que a minha mãe me ia pôr ao serviço do bispo. A limpar e a lavar, a limpar e a lavar até as minhas mãos estarem gastas pelo trabalho, mas Pierre disse-me que eu podia viver livre como um pássaro no seu barco e é o que fazemos, é o que fazemos.

 

- Os dois sozinhos? - O Pentecost parecia um navio grande de mais para apenas duas pessoas, mesmo que uma delas fosse um gigante.

 

- Ninguém mais quer navegar connosco - disse Yvette. - Traz má sorte ter uma mulher num barco. O meu pai dizia-o sempre.

 

- Era pescador?

 

- E muito bom - disse Yvette. - Mas, mesmo assim, afogou-se. Foi apanhado pelos Caixões numa noite má - olhou muito séria para Thomas.

- Podeis ter a certeza de que viu as terras perdidas.

 

- Acredito.

 

- Navegou lá muito para norte e depois para ocidente e disse que os homens das terras do Norte conheciam bem os bancos de pesca das terras perdidas e que havia tanto peixe que nem se podia imaginar. Dizia que até se podia caminhar sobre a água de tanto peixe que havia. Um dia, navegava por entre um terrível nevoeiro e viu terra e árvores que mais pareciam arbustos, bem como as almas perdidas nas margens. Disse que eram escuras, como se tivessem sido queimadas pelo fogo do inferno, por isso assustou-se, deu meia volta e navegou para casa. Tinha levado dois meses para lá chegar e um mês e meio para voltar. Todo o seu peixe se estragou, porque não foi a terra fumá-lo.

 

- Acredito - repetiu Thomas, embora não tivesse a certeza.

 

- Julgo que, se me afogar - disse Yvette -, eu e Pierre iremos juntos para as terras perdidas e ele não terá de se sentar nos rochedos a chamar por mim - falava naturalmente e depois foi preparar o pequeno-almoço para o seu homem que naquele momento deixara de ressonar.

 

Sir Guillaume saíra da cabina de proa. Pestanejava à luz da manhã. Depois dirigiu-se para a popa e urinou sobre a murada, fitando os três barcos que tinham saído do rio e que se encontravam agora mais ou menos a uma milha a leste do Pentecost.

 

- Haveis então visto o Irmão Germain? - perguntou a Thomas.

- Quem me dera não o ter feito.

 

- É um erudito - disse Sir Guillaume puxando as calças e tentando apertar a fita da cintura. - Isso quer dizer que não tem tomates. Também não precisa deles. Mas é inteligente, atenção, inteligente e nunca esteve do nosso lado, Thomas.

 

- Julguei que fosse vosso amigo.

 

- Quando eu tinha poder e dinheiro, Thomas, tinha muitos amigos respondeu Sir Guillaume. - Porém, o Irmão Germain nunca foi um deles. Sempre foi um bom filho da Igreja a quem eu nunca vos deveria ter apresentado, Thomas.

 

- Porque não?

 

- Porque assim que soube que éreis um Vexille, relatou a nossa conversa ao bispo e o bispo contou ao arcebispo e o arcebispo contou ao cardeal e o cardeal falou a quem manda nele e, de repente, toda a Igreja ficou entusiasmada com os Vexilles e com o facto de a vossa família já ter possuído o Graal. E foi mais ou menos nessa altura que Guy Vexille apareceu e que a Inquisição o apanhou - fez uma pausa, olhando para o horizonte e fazendo o sinal da cruz. - Aposto a minha vida que foi isso que o vosso De Taillebourg cá veio fazer. É um dominicano e a maioria dos inquisidores são cães de Deus voltou para Thomas o seu único olho. - Porque lhes chamam os cães de Deus?

 

- É uma piada em latim - explicou Thomas. - Domini canis: o cão de Deus.

 

- Não lhe acho muita graça - disse lugubremente Sir Guillaume. - Se um desses canalhas se apropria de uma pessoa são logo ferros em brasa nos olhos e gritos na noite. Ouvi dizer que tinham apanhado Guy Vexille; espero que lhe façam mal.

 

- Então Guy Vexille é prisioneiro deles? - Thomas ficou surpreendido. O Irmão Germain dissera que o primo se tinha reconciliado com a Igreja.

 

- Foi o que ouvi dizer. Disseram-me que entoou os salmos na roda da Inquisição. Sem dúvida lhes disse que o vosso pai possuía o Graal, que tinha ido a Hookton para o encontrar e que não tinha conseguido. Mas quem mais foi a Hookton? Eu, claro, por isso, julgo que ordenaram a Coutances que me apanhasse, prendesse e arrastasse para Paris. Entretanto enviaram homens a Inglaterra para descobrirem tudo o que fosse possível.

 

- E para matarem Eleanor - disse Thomas, tristemente.

 

- Por isso hão-de pagar - respondeu Sir Guillaume.

 

- E agora enviaram homens para cá - continuou Thomas.

 

- O quê? - perguntou Sir Guillaume inquieto.

 

Thomas apontou para os três barcos de pesca que seguiam directamente na direcção do Pentecost. Estavam demasiado longe para que ele visse de quem se tratava, ou o que estava a bordo, mas algo naquela aproximação deliberada o alarmou. Yvette que vinha da popa com o pão, o presunto e o queijo, viu Thomas e Sir Guillaume a olharem e juntou-se a eles, soltando depois uma praga que só a filha de um pescador poderia ter aprendido, para logo correr para a cabina de popa e soltar um grito para que o seu homem viesse ao convés.

 

Os olhos de Yvette estavam habituados ao mar e sabia que aqueles barcos não eram de pesca. Para começar, havia demasiados homens a bordo e, algum tempo depois, o próprio Thomas conseguiu vê-los e os seus olhos, que estavam mais acostumados a buscar os inimigos entre as folhas verdes, viram que alguns deles vestiam cotas de malha. Sabia que nenhum homem saía para o mar de cota de malha, a não ser que a sua intenção fosse matar.

 

- Decerto hão-de ter bestas - Villeroy estava já no convés, atando ao pescoço os cordões de uma envolvente capa de pele e olhando primeiro para os barcos que se aproximavam e depois para as nuvens, como se pudesse ver um sopro de vento a chegar do céu. O mar continuava a erguer-se em grandes ondas, mas a água era suave como metal batido e não se viam carneirinhos causados pelo vento ao longo da crista das ondas. - Bestas - repetiu tristemente Villeroy.

 

- Quereis que me renda? - perguntou Sir Guillaume a Villeroy. Falava num tom de voz amargo, sugerindo que a pergunta era sarcástica.

 

- Quem sou eu para dizer o que Vossa Senhoria há-de fazer? - redarguiu Villeroy no mesmo tom. - Porém, os vossos homens podem tirar algumas das pedras maiores que estão no porão.

 

- E o que ganharemos com isso? - perguntou Sir Guillaume.

 

- Deixamo-las cair sobre esses canalhas quando tentarem entrar a bordo. Esses barquinhos? Uma pedra atravessa-lhes o fundo, os bastardos hão-de tentar nadar com as cotas de malha agarradas ao corpo - Villeroy sorria. - É difícil nadar embrulhado em ferro.

 

As pedras foram trazidas e Thomas aprontou as flechas e o arco. Robbie vestira a cota de malha e tinha à cintura a espada do tio. Os dois homens-de-armas-de Sir Guillaume estavam com ele no centro do barco, o local onde a abordagem seria tentada pois era aí que a amurada estava mais próxima do mar. Thomas foi para a proa, onde Will Skeat se lhe juntou e embora não reconhecesse Thomas, viu um arco e estendeu a mão.

 

- Sou eu, Will - disse Thomas.

 

- Bem sei que és tu - disse Skeat. Mentira por se sentir embaraçado.

- Deixa-me experimentar o arco, rapaz.

 

Thomas entregou-lhe a enorme ripa negra e ficou a ver com grande tristeza que Skeat não conseguia puxar a corda nem até metade. Este entregou a arma a Thomas com ar envergonhado.

 

- Já não sou o que era - murmurou.

 

- Vais voltar a sê-lo, Will. Skeat cuspiu sobre a muralha.

 

- É verdade que o rei me armou cavaleiro?

 

- É verdade.

 

- Por vezes penso que me recordo da batalha, Tom, mas depois desvanece-se como um nevoeiro. - Skeat olhava para os três barcos que se aproximavam e que se tinham formado em linha. Os remadores esforçavam-se o mais possível e Thomas via os besteiros à proa e à popa de cada uma das embarcações.

 

- Já alguma vez disparaste uma flecha de um barco? - perguntou Skeat.

 

- Nunca.

 

- Tu moves-te e eles também. Torna-se difícil. Mas vai devagar, rapaz, devagar.

 

Um homem gritou do barco mais próximo, mas os perseguidores estavam ainda demasiado longe e o que quer que o homem tenha dito perdeu-se no ar.

 

- São Nicolau e Santa Úrsula - rezou Villeroy. - Enviai-nos vento. Muito vento.

 

- Vai investir - disse Skeat, porque um besteiro na proa do barco central erguera a arma. Parecera erguê-la bem alto no ar, depois disparou e o virote bateu com uma força espantosa por baixo da popa do Pentecost. Sir Guillaume, ignorando a ameaça, subiu à amurada e agarrou-se aos estais para se equilibrar.

 

- São os homens de Coutances - disse a Thomas e este viu que alguns dos soldados da embarcação mais próxima envergavam a libré verde e negra que servira de uniforme aos sitiantes de Evecque. Ouviu-se o entrechocar metálico de mais bestas e dois virotes bateram nas tábuas da popa, enquanto dois outros passaram junto a Sir Guillaume para irem bater na vela impotente. Mas a maioria deles caía na água. Mesmo com calmaria era difícil para os besteiros acertaram com as suas armas a partir dos pequenos barcos.

 

E os três barcos atacantes eram realmente pequenos. Cada um deles transportava entre oito a dez remadores e cerca do mesmo número de homens-de-armas. As três embarcações tinham sido escolhidas pela sua velocidade quando movidas a remos, mas pareciam diminutas junto ao Pentecost, o que tornava perigosa qualquer tentativa de abordagem. Mesmo assim, um dos três barcos parecia decidido a acompanhar o navio de Villeroy.

 

- Vão fazer com que aqueles dois barcos nos mandem uma chuva de virotes - disse Sir Guillaume. - Enquanto este bastardo - apontou para o barco que mais se esforçava por se aproximar do Pentecost - põe os seus homens a bordo.

 

Mais projécteis de besta batiam no casco. Espetaram-se outros dois virotes na vela e mais um atingiu o mastro, logo acima de um crucifixo danificado pelo mau tempo que estava pregado na madeira enfarruscada. A figura de Cristo, branca como a neve, perdera o braço direito e Thomas pensou que aquilo talvez fosse um mau presságio, mas logo tentou esquecer o assunto, enquanto puxava a corda do enorme arco e disparava uma flecha. Apenas lhe tinham sobrado trinta e quatro, mas não era altura de as poupar, por isso, enquanto a primeira subia no ar, soltou a segunda. Os besteiros ainda não tinham terminado de puxar as cordas quando a primeira flecha atingiu o braço de um remador e a segunda arrancou um bocado de madeira à proa do barco; a seguir a terceira assobiou sobre as cabeças dos remadores para cair no mar. Estes baixaram as cabeças, depois um suspirou e caiu para a frente com uma flecha nas costas, enquanto no instante seguinte, um homem-de-armas foi atingido na coxa e caiu sobre dois remadores. Daqui resultou um súbito caos a bordo do barco, que começou a girar e a afastar-se com os remos a baterem uns nos outros. Thomas baixou o grande arco.

 

- Ensinei-te bem - disse Will Skeat em tom fervoroso. - Ah Tom, sempre foste um bastardo perigoso.

 

O barco afastou-se. As flechas de Thomas tinham sido muito mais certeiras do que os virotes das bestas, pois disparara de um navio maior e mais estável do que os estreitos e sobrecarregados barcos a remos. Apenas um dos homens a bordo dessas pequenas embarcações fora morto, mas a frequência das primeiras flechas de Thomas tinham levado o temor de Deus aos remadores que não viam de onde partiam os projécteis, limitando-se a escutar o assobiar das penas e os gritos dos feridos. Nesse momento os outros dois barcos ultrapassaram o terceiro e os besteiros ergueram as armas.

 

Thomas retirou uma flecha da bolsa, preocupado com o que poderia acontecer quando elas se acabassem, mas, nesse momento, um turbilhão nas ondas mostrou que o vento se aproximava sobre a água. Um vento leste, ainda por cima, o menos provável naqueles mares, mas vinha de leste, sim, e a grande vela castanha do Pentecost enfunou-se, esvaziou-se, depois enfunou-se de novo e, de súbito, a grande embarcação voltou as costas aos seus perseguidores, com a água a gorgolejar junto ao casco. Os homens de Coutances remavam com toda a força.

 

- Para baixo! - ordenou Sir Guillaume e Thomas deixou-se cair atrás da amurada ao mesmo tempo que uma revoada de virotes atingia o casco do Pentecost ou voava alto espetando a vela esfarrapada. Villeroy gritou para Yvette que manejasse a cana do leme e alou a vela principal antes de descer à cabina de popa para ir buscar uma besta enorme e muito antiga com uma enorme alavanca de ferro. Carregou-a com um enorme virote que lançou ao perseguidor mais próximo.

 

- Canalhas - vociferou. - Filhos de umas cabras! Cabras e prostitutas! As vossas mães são cabras, prostitutas e bexigosas! Canalhas! - Preparou de novo a arma, armando-a com outro virote corroído e disparou-a, mas o projéctil mergulhou no mar. O Pentecost ganhara velocidade e já saíra do alcance das bestas.

 

O vento aumentou e o Pentecost afastou-se mais dos perseguidores. Os três barcos a remos tinham subido o canal em primeiro lugar, na esperança de que a enchente e um possível vento oeste lhes devolvessem o Pentecost, mas com vento leste, os remadores não conseguiam manter o ritmo e assim os três barcos ficavam para trás, abandonando, por fim, a caça. Mas, justamente quando tinham acabado de o fazer, dois novos perseguidores apareceram na foz do rio Orne. Dois navios, ambos grandes e equipados com enormes velas quadradas, como a vela principal do Pentecost, saíam para o mar.

 

- O que vem à frente é o Saint-Esprit - disse Villeroy. Mesmo àquela distância da foz do rio conseguia distinguir os dois barcos. - O outro é o Marie. Esse navega como uma porca grávida, mas o Saint-Esprit vai apanhar-nos.

 

- O Saint-Esprit? - Sir Guillaume parecia espantado. - Jean Lapoullier?

 

- Quem mais?

 

- Pensei que fosse meu amigo!

 

- Era vosso amigo enquanto haveis tido terras e dinheiro - disse Villeroy. - Mas agora o que tendes?

 

Durante algum tempo, Sir Guillaume reflectiu sobre a sensatez daquela pergunta.

 

- Mas e vós? Porque me ajudais?

 

- Porque sou um tolo - disse Villeroy alegremente. - E porque me pagais muito bem.

 

Sir Guillaume resmungou perante aquela verdade tão evidente.

 

- Mas não se navegarmos na direcção errada - acrescentou algum tempo depois.

 

- A direcção certa - afirmou Villeroy - é a que for contrária ao Saint-Esprit e a favor do vento, por isso vamos continuar para oeste.

 

Foi assim que navegaram durante todo o dia. Deslocavam-se a boa velocidade mas, mesmo assim, o grande Saint-Esprit cobria lentamente a distância que separava os dois barcos. De manhã fora uma pequena mancha no horizonte; ao meio-dia, Thomas conseguia ver a pequena plataforma do mastro onde, segundo Villeroy, os besteiros estariam posicionados; a meio da tarde podia ver os olhos brancos e pretos pintados no casco. O vento leste aumentara durante todo o dia e soprava forte e frio, chicoteando os cimos das ondas e transformando-os em pequenas bandeirolas. Sir Guillaume sugeriu que se dirigissem para norte até à costa inglesa, mas Villeroy afirmou não conhecer essas paragens e disse que não tinha a certeza de se poder abrigar aí, se o tempo piorasse.

 

- E nesta altura do ano é mais instável que o humor de uma mulher

- acrescentou Villeroy. Como que para lhe dar razão, atravessaram uma tempestade de granizo, que assobiou sobre o mar, agitou o navio e cortou a visibilidade para algumas jardas. Mais uma vez, Sir Guillaume insistiu numa rota para norte, sugerindo que voltassem enquanto o navio estivesse escondido na tempestade, mas Villeroy recusou teimosamente e Thomas calculou que o gigante receasse ser acostado por navios ingleses que o que mais apreciavam era capturar barcos franceses.

 

Nova tempestade caiu sobre eles, com a chuva a saltar no convés e o granizo a fazer uma cobertura branca e escorregadia no flanco oriental de todas as adriças e panos. Villeroy receava que a vela se soltasse, mas não se atrevia a encurtar o pano, pois sempre que as tempestades passavam, deixando o mar branco e agitado, o Saint Esprit continuava à vista e sempre um pouco mais perto.

 

- É muito rápido - resmungou Villeroy - e Lapoullier sabe manobrá-lo.

 

Porém, o curto dia de Inverno estava a chegar ao fim e a noite ofereceria ao Pentecost uma oportunidade para escapar. Os perseguidores sabiam-no e deviam ter estado a rezar para que o seu navio conseguisse um pouco mais de velocidade; à medida que a noite caía, encurtava polegada a polegada a distância entre eles, mas, mesmo assim, o Pentecost mantinha vantagem. Estavam agora fora da vista de terra, dois navios num oceano escuro e agitado e, depois, quando a noite parecia ter caído completamente, a primeira flecha incendiada saiu da proa do Saint Esprit.

 

Era um tiro de besta. As chamas atravessaram a noite, descrevendo um arco e mergulhando logo a seguir na esteira do Pentecost.

 

- Respondei-lhe com uma flecha - vociferou Sir Guillaume.

 

- Demasiado longe - respondeu Thomas. Uma boa besta teria sempre mais alcance do que um arco de teixo. Mesmo assim, o tempo que levava a ser carregada de novo dava para que o arqueiro percorresse a diferença da distância e disparasse meia-dúzia de flechas. Contudo, Thomas não o poderia fazer naquela escuridão cada vez maior e nem se atreveria a desperdiçar flechas. Limitou-se a aguardar, vigilante e, quando um novo virote atravessou o céu em direcção às nuvens, também este não acertou.

 

- Também não voam bem - disse Will Skeat.

 

- Que se passa, Will? - Thomas não tinha ouvido claramente.

 

- Embrulham as varas em pano e isso torna-as mais lentas. Alguma vez lançaste uma flecha incendiária, Thomas?

 

- Nunca.

 

- São necessários cinquenta passos de distância do alvo - disse Skeat, vendo uma terceira flecha mergulhar no mar - e uma pontaria dos diabos.

 

- Esta quase acertou - disse Sir Guillaume.

 

Villeroy tinha colocado um barril no convés e enchia-o de água salgada. Entretanto, Yvette tinha subido agilmente ao mastro para se inclinar sobre as travessas onde a verga pendia da cabeça do mastro e içava baldes de lona cheios de água, que usava para molhar a vela.

 

- Não podemos usar flechas incendiárias? - perguntou Sir Guillaume. - Aquela coisa deve ter alcance suficiente - apontou para a monstruosa besta de Villeroy. Thomas traduziu a pergunta para Will Skeat cujo francês era ainda rudimentar.

 

- Flechas incendiárias? - O rosto de Skeat enrugou-se. - É preciso alcatrão, Thomas - disse duvidoso. - E é preciso embebê-lo em lã, depois enrolar a flecha no pano de lã, ficando esta muito apertada e desgastar um pouco as extremidades para conseguir que o fogo pegue bem. O fogo tem de incendiar bem o pano, não apenas a extremidade, pois de contrário não dura e, quando está a arder bastante, é necessário lançar a flecha rapidamente, antes que o fogo consuma a haste.

 

- Não - traduziu Thomas para Sir Guillaume. - Não podemos.

 

Sir Guillaume praguejou e voltou as costas quando o primeiro virote atingiu o Pentecost por baixo da proa, mas tão em baixo que a onda seguinte apagou as chamas com um audível assobio.

 

- Decerto poderemos fazer alguma coisa! - exclamou Sir Guillaume, furioso.

 

- Podemos ter paciência - disse Villeroy, que se encontrava ao leme.

 

- Posso usar o vosso arco? - perguntou Sir Guillaume ao enorme marinheiro e, quando Villeroy assentiu, Sir Guillaume armou a enorme besta e lançou um virote para o Saint-Esprit. Gemeu ao puxar a alavanca para armar de novo a besta, assombrado com a força que era necessária. As bestas armadas por alavancas eram geralmente mais fracas do que as armadas por porca e parafuso, mas o arco de Villeroy era imponente. Os virotes de Sir Guillaume deviam ter atingido o navio, mas a noite estava demasiado escura para se poderem observar os estragos. Thomas duvidava, pois a proa do Saint-Esprit era alta e a amurada forte. Sir Guillaume lançara meramente metal contra as tábuas, mas os projécteis incendiários vindos do Saint-Esprit começavam agora a ameaçar o Pentcost. Três ou quatro bestas inimigas disparavam e Thomas e Robbie atarefavam-se a extinguir com água os virotes inflamados; logo outro atingiu a vela e o fogo começou a crepitar na lona, mas Yvette conseguiu apagá-lo ao mesmo tempo que Villeroy dava a volta ao leme. Thomas ouviu o seu longo gemido sob a pressão e apercebeu-se de que o navio abanava e se voltava para sul.

 

- O Saint-Esprit nunca foi tão rápido com vento - afirmou Villeroy. E detém-se no mar cruzado.

 

- E nós somos mais rápidos? - perguntou Thomas.

 

- Vamos lá ver - disse Villeroy.

 

- Porque não haveis tentado saber antes? - perguntou Sir Guillaume em tom raivoso.

 

- Porque não tínhamos espaço - respondeu placidamente Villeroy, ao mesmo tempo que um virote em chamas passava pelo convés de proa como um meteoro. - Mas agora estamos suficientemente afastados do cabo.

 

Significava aquilo que estavam suficientemente afastados para oeste da península da Normandia e para sul encontravam-se os mares rochosos entre a Normandia e a Bretanha. A volta significava que o alcance se encurtaria repentinamente, pois o Saint-Esprit seguiria para ocidente e Thomas lançou um molho de flechas para os homens armados na esteira do navio perseguidor. Yvette descera para o convés, puxava as cordas e, quando ficou satisfeita com a nova posição da vela, voltou a subir para o seu cesto de gávea, no momento em que mais dois virotes incendiários batiam na lona. Thomas viu o fogo lamber a vela, enquanto Yvette fazia subir dois baldes de água. Thomas lançou outra flecha na noite, para a ver mergulhar no convés do inimigo e Sir Guillaume disparou os virotes da besta mais pesada o mais depressa que podia, contudo, nenhum deles foi recompensado com um grito de dor. Depois a distância aumentou de novo e Thomas disparou o arco. O Saint-Esprit dava a volta para seguir o Pentecost para sul e, por alguns instantes, pareceu desaparecer no escuro. Contudo, logo outra flecha incendiária subiu do seu convés e naquela súbita luz, Thomas viu que o outro navio já tinha dado a volta e seguia de novo na esteira do Pentecost. A vela de Villeroy continuava a arder, oferecendo ao Saint-Esprit uma indicação que não poderia deixar de seguir. Os arqueiros perseguidores enviaram três flechas ao mesmo tempo, com as chamas a crepitar ávidas na noite. Yvette fazia desesperadamente subir baldes de água, mas a vela ardia agora completamente e o navio seguia mais lento, pois a lona perdera a sua força. Logo a seguir, como que por milagre, ouviu-se um assobio e uma tempestade açoitou o mar vinda de leste.

 

O granizo caiu com uma extraordinária violência, batendo na vela queimada e tamborilando no convés. Thomas pensou que duraria para sempre, mas parou tão subitamente como começara e todos a bordo do Pentecost olharam para a popa aguardando que a seguinte flecha incendiada fosse lançada do Saint-Esprit. Porém, quando por fim a chama se ergueu no céu, estava muito distante, demasiado distante para que a sua luz iluminasse o Pentecost.

- Pensaram que íamos voltar a oeste durante a tempestade - vociferou Villeroy divertido. - Mas são espertos de mais, o que não foi muito bom para eles.

 

O Saint-Esprit tinha tentado ultrapassar o Pentecost, pensando que Villeroy virasse de novo o navio na direcção do vento, mas tinham-se enganado e encontravam-se agora muito distantes, a norte e a oeste da sua caça.

 

Mais cinco flechas arderam no escuro, lançadas agora em todas as direcções, na esperança de que a ténue luz de uma delas indicasse o reflexo do casco do Pentecost. Porém, o navio de Villeroy afastava-se cada vez mais, movido pelos restos da sua vela queimada. Se não tivesse sido a tempestade, pensou Thomas, certamente teriam sido abordados e capturados, o que o fez perguntar a si mesmo se a mão de Deus não o teria abrigado porque possuía o livro sobre o Graal. Depois sentiu-se assaltado pelos remorsos, pelos remorsos de ter duvidado da existência do Graal; de ter gasto o dinheiro de Lorde Outhwaite em vez de o utilizar na busca da relíquia; depois pelos remorsos ainda maiores e o desgosto que sentia pelas mortes desnecessárias de Eleanor e do padre Hobbe. Por isso, deixou-se cair de joelhos no convés e fitou o crucifixo de um só braço. Perdoai-me senhor, rezou. Perdoai-me.

 

- As velas custam dinheiro - disse Villeroy.

 

- Tereis uma nova vela, Pierre - prometeu Sir Guillaume.

 

- Rezemos para que o que resta desta nos leve a algum lugar - disse amargamente Villeroy.

 

Mais a norte, uma última flecha pintou de vermelho a noite escura, mas depois não se viu mais luz, apenas a escuridão infinita do mar agitado no qual o Pentecost sobrevivia sob a sua vela esfarrapada.

 

A madrugada encontrou-os no meio da bruma e uma brisa caprichosa fazia ondular a vela, tão fraca que Villeroy e Yvette a dobraram sobre si própria para que o vento não tivesse apenas de soprar através de buracos queimados. Quando voltaram a colocá-la o Pentecost dirigiu-se com dificuldade para sul e para oeste, e todos a bordo agradeceram a Deus pela bruma porque esta os escondia dos piratas que assolavam o golfo entre a Normandia e a Bretanha. Villeroy não tinha a certeza de onde se encontravam, embora soubesse que a costa normanda ficava para leste e que toda a terra naquela direcção prestava vassalagem ao conde de Coutances. Por isso mantiveram a rota para sul e para oeste com Yvette pendurada à proa para procurar os recifes frequentes.

 

- Nestas águas, nascem rochas - resmungou Villeroy.

 

- Passai então para águas mais profundas - sugeriu Sir Guillaume. O gigante cuspiu sobre a amurada.

 

- Nas águas mais profundas nascem piratas ingleses que saem das ilhas. Seguiram para sul, com o vento a cair e o mar mais calmo. Ainda estava frio, mas já não caía granizo e, quando um sol fraco começou a queimar as brumas esfarrapadas, Thomas sentou-se à proa, ao lado de Mordecai.

 

- Tenho uma pergunta a fazer-vos - disse.

 

- O meu pai disse-me para nunca entrar num navio - respondeu Mordecai. O seu rosto comprido estava pálido e a barba, que geralmente escovava com tanto cuidado, emaranhada. Tremia de frio, não obstante a improvisada capa de peles de carneiro. - Sabeis - continuou - que os marinheiros flamengos afirmam poder acalmar uma tempestade lançando um judeu ao mar?

 

- E é verdade?

 

- Foi o que me disseram - disse. - Mas se eu estivesse a bordo de um navio flamengo talvez preferisse afogar-me como alternativa à minha existência. O que é isso?

 

Thomas desembrulhou o livro que o pai lhe deixara.

 

- A minha pergunta - prosseguiu, ignorando a pergunta de Mordecai é quem é Hachaliah?

 

- Hachaliah? - Mordecai repetiu o nome e depois abanou a cabeça. Pensais que os flamengos levam os judeus a bordo dos navios por precaução? Seria uma coisa sensata para fazer, embora cruel. Porquê morrer, quando pode morrer um judeu?

 

Thomas abriu o livro na primeira página de escrita hebraica, onde o irmão Germain decifrara o nome Hachaliah.

 

- Aqui - disse, passando o livro ao físico. - Hachaliah. Mordecai olhou para a página.

 

- Neto de Hachaliah - traduziu em voz alta. - E filho do Tirshatha. Claro, é uma confusão acerca de Jonas e da baleia.

 

- Hachaliah? - perguntou Thomas, fitando a página com a estranha escrita.

 

- Não, meu rapaz! - disse Mordecai. - A superstição acerca dos judeus e das tempestades é uma confusão acerca de Jonas, uma mera confusão de ignorantes - voltou a olhar para a página. - Sois filho do Tirshatha?

 

- Sou o filho bastardo de um padre - disse Thomas.

 

- E foi o vosso pai que escreveu isto?

 

- Sim.

 

- Para vós?

 

Thomas acenou com a cabeça.

 

- Julgo que sim.

 

- Então, sois o filho do Tirshatha e o neto de Hachaliah - disse Mordecai a sorrir. - Ah, pois claro! Nehemiah. A minha memória está quase tão má como a do pobre Skeat, não é verdade? Imagine-se que me esquecia que Hachaliah era o pai de Nehemiah.

 

Thomas continuava sem perceber.

 

- Nehemiah?

 

- E ele era o Tirshatha, claro. É extraordinário, não é verdade, como nós os judeus prosperamos nos Estados estrangeiros e logo, quando se cansam de nós, culpam-nos por todos os pequenos acidentes. Depois o tempo passa e regressamos aos nossos respectivos postos. O Tirshatha, Thomas era o governador da Judeia no tempo dos Persas. Nehemiah era o Tirshatha, não o rei, claro, apenas o governador, durante algum tempo, no reinado de Artaxerxes - a erudição de Mordecai era impressionante, mas pouco esclarecedora. Porque se teria o padre Ralph identificado com Nehemiah que deveria ter vivido centenas de anos antes de Cristo, antes do Graal? A única resposta que Thomas conseguia encontrar era a habitual. A loucura do seu pai. Mordecai voltava as páginas de pergaminho e estremeceu quando uma delas estalou.

 

- Como as pessoas anseiam por milagres - disse. Apontou para uma página com um dedo manchado por todos os remédios que tinha triturado e agitado. - ”Uma taça dourada na mão do Senhor que embriaga a terra”, mas o que quer isto dizer?

 

- Está a falar do Graal - disse Thomas.

 

- Isso já eu percebi, Thomas - disse Mordecai num leve tom de censura. - Porém, estas palavras não foram escritas acerca do Graal. Referem-se à Babilónia. Fazem parte das Lamentações de Jeremias - voltou outra página.

- As pessoas gostam de mistérios. Não querem nada explicado, porque quando as coisas estão explicadas então já não resta qualquer esperança. Já vi gente moribunda que, sabendo que nada mais havia a fazer, me pediam que me retirasse porque em breve chegaria um padre com a sua taça coberta por um pano e todos rezavam para que houvesse um milagre. Mas nunca houve. A pessoa morre e a culpa é minha, não de Deus ou do padre, mas minha! - Deixou o livro cair-lhe no colo, onde as páginas ondularam na brisa ligeira. - São apenas histórias do Graal e algumas estranhas escrituras que a elas se podem referir. É de facto, um livro de meditações franziu a testa. - O vosso pai acreditava realmente na existência do Graal?

 

Thomas esteve prestes a afirmá-lo sem a mínima dúvida, mas fez uma pausa, recordando-se. Grande parte do tempo o pai fora um homem engraçado, divertido e inteligente, mas houvera alturas em que se apresentara uma criatura violenta e vociferante, lutando contra Deus e desesperado para que os mistérios divinos fizessem sentido.

 

- Penso que acreditava no Graal - disse cautelosamente.

 

- Claro que acreditava - disse de súbito Mordecai. - Que estupidez! Claro que o vosso pai acreditava no Graal, pois pensava possui-lo!

 

- Ah, sim? - perguntou Thomas. Sentia-se agora completamente confuso.

 

- Nehemiah era mais do que o Tirshatha da Judeia - disse o físico. Era o guardião da taça de Artaxerxes. Assim o diz no princípio dos seus escritos. ”Fui o guardião da taça do rei.” São as palavras do vosso pai, Thomas, retiradas da história de Nehemiah.

 

Thomas olhou para os escritos e percebeu que Mordecai tinha razão. Aquele era o testemunho do pai. Fora o guardião da taça do maior de todos os reis, do próprio Deus, de Cristo e a frase confirmava os sonhos de Thomas. O padre Ralph fora o guardião da taça. Possuíra o Graal. Existia. Thomas estremeceu.

 

- Penso - disse gentilmente Mordecai - que o vosso pai acreditava possuir o Graal, mas parece-me pouco provável.

 

- Pouco provável! - protestou Thomas.

 

- Não passo de um judeu - disse Mordecai delicadamente. - Que sei eu do salvador da humanidade? E há quem diga que eu nem deveria falar destas coisas, mas tanto quanto sei, Jesus não era rico. Não é assim?

 

- Jesus era pobre - concordou Thomas.

 

- Então tenho razão, não era um homem rico e, no fim da sua vida, assistiu a um seder.

 

- Um seder?

 

- Uma festa pascal, Thomas. E nesse seder comeu pão e bebeu vinho e o Graal, dizei-me se estou enganado, ou era um prato de pão ou uma taça de vinho, não é verdade?

 

- Sim.

 

- Sim - repetiu Mordecai e olhou para a sua esquerda onde um pequeno barco de pesca cavalgava as ondas. Durante toda a manhã não houvera sinais do Saint-Esprit e nenhum dos pequenos barcos que passavam tinham mostrado qualquer interesse no Pentecost. - Porém, se Jesus era pobre - disse Mordecai -, que tipo de prato usaria no seder1. Feito de ouro? Com jóias incrustadas? Ou uma peça de cerâmica vulgar?

 

- Deus poderia transformar o que quer que ele usasse - respondeu Thomas.

 

- Ah, claro, já me esquecia - disse Mordecai. Parecia desapontado, mas depois sorriu e entregou o livro a Thomas. - Quando chegarmos ao tal sítio para onde vamos - disse -, posso escrever a tradução do hebraico e espero que vos ajude.

 

- Thomas! - gritou Sir Guillaume da proa. - Precisamos de braços para esgotar a água.

 

A calafetagem não fora terminada e o Pentecost metia água a um ritmo alarmante, por isso Thomas desceu ao porão para entregar os baldes cheios a Robbie que lançava a água pela murada. Sir Guillaume pressionava Villeroy para seguir para norte e de novo para leste, numa tentativa de passar Caen e chegar a Dunquerque, mas Villeroy não estava satisfeito com a sua pequena vela e ainda menos feliz com o porão que metia água.

 

- Em breve terei de aportar - resmungou. - E tereis de me comprar uma vela.

 

Não se atreviam a aportar na Normandia. Sabia-se em toda a província que Sir Guillaume fora declarado traidor e se o Pentecost fosse revistado

- o que seria muito provável naquela costa de contrabandistas - então Sir Guillaume seria descoberto. Restava-lhes a Bretanha e Sir Guillaume estava desejoso de chegar a Saint-Malo ou a Saint-Brieuc, mas Thomas protestou do porão que ele e Will Skeat seriam considerados inimigos pelas autoridades bretãs que, nessas cidades, eram fiéis ao duque Carlos que combatia contra os rebeldes apoiados pelos ingleses que, por sua vez, consideravam o duque Jean o verdadeiro governante da Bretanha.

 

- Mas então para onde ireis? - perguntou Sir Guillaume. - Para Inglaterra?

 

- Nunca chegaremos a Inglaterra - disse Villeroy com ar infeliz, olhando para a vela.

 

- Para as ilhas? - sugeriu Thomas, pensando Guernsey ou Jersey.

 

- Para as ilhas! - a ideia pareceu agradar a Sir Guillaume. Dessa vez foi Villeroy que se opôs.

 

- Não posso - disse, agressivo, e explicou que o Pentecost era um barco de Guernsey e que fora ele um dos homens que ajudara a capturá-lo. - Se o levar para as ilhas - explicou, ficam com ele e comigo também.

 

- Por amor de Deus! - exclamou Sir Guillaume irritado. - Então para onde vamos?

 

- Não poderíamos ir para Tréguier? - perguntou Will Skeat e todos ficaram tão espantados por ele ter falado que, por alguns momentos, ninguém lhe respondeu.

 

- Tréguier? - perguntou Villeroy pouco depois e, logo a seguir, acenou afirmativamente. - E porque não?

 

- Ouvi dizer que estava nas mãos dos ingleses - respondeu Skeat.

 

- Ainda está - respondeu Villeroy.

 

- E temos amigos lá - continuou Skeat.

 

E inimigos também, pensou Thomas. Tréguier não era apenas o porto bretão mais perto na mão dos ingleses, mas também o porto mais próximo de La Roche-Derríen, para onde Sir Geoffrey Carr, o Espantalho, tinha ido. E Thomas dissera ao Irmão Germain que se dirigiria para essa pequena cidade, o que certamente quereria dizer que De Taillebourg saberia e o seguiria. Mas talvez Jeanette também lá estivesse. De súbito, embora Thomas andasse a dizer havia semanas que não voltaria, percebia que estava desejoso de regressar a La Roche-Derrien.

 

Porque era ali, na Bretanha, que tinha amigos, antigas amantes e inimigos que queria matar.

 

                             Bretanha, Primavera de 1347

                             O guardião da Taça do Rei

Jeanette Chenier, condessa de Armorique, perdera tudo, o marido, os pais, a fortuna, a casa, o filho e o amante real, tudo antes de fazer vinte anos.

 

O marido, morto por uma flecha inglesa, agonizara, chorando como uma criança.

 

Os pais tinham morrido de disenteria e as suas roupas da cama haviam sido queimadas perto do altar da Igreja de São Renano. Tinham deixado a Jeanette, sua filha única, uma pequena fortuna em ouro, um negócio de vinhos e uma grande casa comercial junto ao rio em La Roche-Derrien.

 

Jeanette gastara grande parte da fortuna a equipar os navios e os homens para lutar contra os odiados ingleses que lhe haviam matado o marido, mas estes tinham vencido e assim desaparecera a sua fortuna.

 

Jeanette implorara o auxílio de Charles de Blois, duque da Bretanha e parente do seu defunto marido, e fora assim que perdera o filho. Charles, que recebera o nome do duque, fora-lhe arrancado com três anos de idade. Ela fora considerada prostituta, por ser filha de um mercador, e, portanto, indigna de pertencer à aristocracia, e Charles de Blois, para mostrar o muito que desprezava Jeanette, tinha-a violado. O filho, agora conde de Armorica, estava a ser educado por um dos leais seguidores de Charles de Blois para se assegurar de que as extensas terras do rapaz continuavam leais à sua casa.

 

Assim, Jeanette, que perdera a sua fortuna numa tentativa de transformar o duque Charles no indiscutível governante da Bretanha, criara um novo ódio e arranjara um novo amante, Thomas de Hookton. Fugira com ele para norte, para o exército inglês na Normandia e aí chamara a atenção de Eduardo de Woodstock, príncipe de Gales. Por ele, Jeanette abandonara Thomas. Mas, depois, receando que os ingleses fossem esmagados pelos franceses na Picardia e que os vitoriosos franceses a castigassem pelo amante que escolhera, fugira de novo. Enganara-se acerca do desfecho da batalha, os ingleses tinham vencido, mas ela não podia voltar atrás. Reis e filhos de reis não recompensavam a inconstância e, por isso, Jeanette Chenier, condessa viúva de Armorica, voltara para La Roche-Derrien e descobrira que tinha perdido a sua casa.

 

Quando saíra de La Roche-Derrien estava fortemente endividada e Monsieur Belas, um homem de leis, ficara-lhe com a casa para pagar essas dívidas. No seu regresso, Jeanette tinha dinheiro suficiente para pagar tudo o que devia, pois o príncipe de Gales fora generoso com as jóias que lhe oferecera, mas Belas não quis desocupar a casa. A lei estava do seu lado. Alguns ingleses que se encontravam em La Roche-Derrien mostraram simpatia por Jeanette, mas não interferiram na decisão do tribunal, o que, de qualquer forma, teria sido inútil, pois toda a gente sabia que os ingleses não poderiam ficar muito tempo na pequena cidade. O duque Carlos estava a reunir um novo exército em Rennes e La Roche-Derrien era o mais isolado e remoto bastião inglês na Bretanha; quando ele se apoderasse da cidade, recompensaria Monsieur Belas, seu agente, e desprezaria Jeanette Chenier a quem chamara prostituta por não ser de nascimento nobre.

 

Assim, Jeanette, incapaz de reclamar a casa, arranjou outra, muito mais pequena, junto à porta sul de La Roche-Derrien e confessou os seus pecados ao prior de São Renano, que afirmou que ela tinha sido pecadora para além da medida do homem e também talvez da medida de Deus; o padre prometeu-lhe a absolvição se também pecasse com ele, ergueu as suas vestes e estendeu a mão para a agarrar, mas soltou um grito quando Jeanette o agrediu com um pontapé. Ela continuou a ir à missa a São Renano, pois era a igreja da sua infância e os seus pais estavam sepultados sob o quadro de Cristo a erguer-se do túmulo com uma luz dourada em redor da cabeça. O padre não se atreveu a recusar-lhe a comunhão, nem a olhá-la directamente.

 

Jeanette perdera os seus criados quando fugira para Norte com Thomas, mas contratou uma rapariga de catorze anos como sua cozinheira e o irmão idiota para ir buscar água e acender o lume. Jeanette calculava que as jóias do príncipe durariam um ano e, até lá, alguma coisa aconteceria. Era jovem, verdadeiramente bela, cheia de raiva porque o filho continuava como refém e sentia-se inspirada pelo ódio. Na cidade, havia quem receasse que ela estivesse louca, pois tinha emagrecido muito desde que saíra de La Roche-Derrien. Porém, o seu cabelo continuava cor de asa de corvo, a pele macia como a seda, que apenas os mais ricos se davam ao luxo de poder comprar, e os seus olhos eram grandes e brilhantes. Os homens vinham pedir-lhe favores, mas era-lhes dito que não voltassem a falar com ela a menos que lhe trouxessem o coração esmagado de Belas, o homem de leis, e a pila encolhida de Charles de Blois. ”Trazei-os ambos em relicários”, dizia-lhes, ”e trazei também o meu filho vivo.” A sua raiva repelia os homens e, alguns deles espalhavam a história de que estava aluada e de que talvez fosse bruxa. O padre de São Renano confiou ao resto do clero da cidade que Jeanette quisera tentá-lo e ameaçou trazer a Inquisição, porém, os ingleses nunca o permitiriam, pois o rei de Inglaterra recusava-se a deixar que os carrascos de Deus executassem as suas negras artes dentro do seu território.

 

- Já há bastante descontentamento - disse Dick Totesham, comandante da guarnição inglesa em La Roche-Derrien - sem que estes malditos frades venham causar mais problemas.

 

Totesham e a sua guarnição sabiam que Charles de Blois estava a reunir um exército para atacar La Roche-Derrien antes de marchar em direcção a outros bastiões ingleses na Bretanha, por isso todos trabalhavam com afinco para tornar mais altas as muralhas da cidade e para construir outras que protegessem por fora as mais antigas. Os trabalhadores agrícolas da terra eram também obrigados a ajudar. Tinham de transportar carradas de barro e pedra, enfiar tábuas de madeira na terra para fazer paliçadas e cavar fossos. Odiavam ser obrigados a trabalhar pelos ingleses que não lhes pagavam, mas estes não se importavam pois tinham de se defender. Totesham implorou para Westminster que lhe enviassem mais homens e, na festa de São Félix, a meio de Janeiro, uma tropa de arqueiros galeses chegou a Tréguier, o pequeno porto que ficava hora e meia a pé a montante de La Roche-Derrien. Porém, os restantes reforços da guarnição eram alguns cavaleiros e homens-de-armas com falta de sorte que tinham vindo até à pequena cidade na esperança de pilhagem e prisioneiros. Alguns desses cavaleiros vinham até da Flandres, atraídos por falsos rumores de riquezas que se encontravam na Bretanha. Os últimos reforços para La Roche-Derrien, antes de o Pentecost alcançar o rio foram seis homens-de-armas que tinham chegado do Norte de Inglaterra, cheios de má vontade, conduzidos por um homem malévolo e mal-encarado, empunhando um chicote.

 

A guarnição de La Roche-Derrien era pequena, mas o exército do duque Charles era grande e ainda aumentou. Espiões ao serviço dos ingleses falavam de besteiros genoveses que chegavam a Rennes na companhia de cem homens e em homens-de-armas que vinham de França prestar juramento a Charles de Blois. O seu exército engrossava e o rei de Inglaterra, aparentemente descuidado das suas guarnições na Bretanha, não lhes enviava qualquer auxílio. Isto significava que La Roche-Derrien, a mais pequena das cidades fortificadas inglesas na Bretanha e a mais próxima do inimigo, se encontrava condenada.

 

Thomas sentia-se estranhamente inquieto enquanto o Pentecost deslizava por entre os baixos afloramentos rochosos que marcavam a foz do rio Jaudy. Seria um erro estar de volta àquela pequena cidade, interrogava-se. Ou tê-lo-ia Deus enviado porque era aqui que os inimigos do Graal o viriam procurar? Era assim que Thomas considerava o misterioso De Taillebourg e o seu criado. Ou talvez, disse para consigo, estivesse apenas nervoso por ir de novo ver Jeanette. A história de ambos era um autêntico emaranhado de ódio e amor, mas, mesmo assim, queria vê-la e sentia-se preocupado com a possibilidade de que ela não o quisesse ver. Tentou em vão recordar-se do seu rosto, enquanto a praia-mar transportava o Pentecost para a foz do rio, onde os mergulhões abriam as asas negras para as secarem sobre as rochas cobertas de espuma branca. Uma foca ergueu a sua cabeça brilhante, fitou Thomas com ar indignado e depois voltou para as profundezas. As margens aproximavam-se, trazendo o cheiro da terra. Apareciam os pedregulhos, a erva pálida e as pequenas árvores dobradas pelo vento, enquanto nos baixios, se viam armadilhas sinuosas para os peixes, feitas de ramos de salgueiro entrelaçado. Uma menina, que talvez nem tivesse seis anos, usava uma pedra para retirar lapas das rochas.

 

- É um jantar pouco substancial - comentou Will Skeat.

 

- Pois é, Will, pois é.

 

- Ah, Tom! - Skeat sorriu reconhecendo-lhe a voz. - Nunca comeste lapas à ceia!

 

- Comi! - protestou Thomas. - E ao pequeno-almoço, também.

 

- Um homem que fala latim e francês? A comer lapas? - Skeat sorriu. - Sabes escrever, não sabes, Tom?

 

- Tão bem como um padre, Will.

 

- Penso que deveríamos enviar uma carta a Sua Senhoria - disse Skeat referindo-se ao conde de Northampton -, para lhe pedirmos que envie para cá os meus homens, só que não o fará sem dinheiro, não é verdade, Tom?

 

- Ele deve-te dinheiro - respondeu Thomas. Skeat olhou-o de testa franzida.

 

- Deve?

 

- Os teus homens têm estado ao seu serviço nestes últimos meses. Tem de to pagar.

 

Skeat abanou a cabeça.

 

- O conde nunca se atrasou a pagar os bons soldados. Aposto que lhes tem mantido as bolsas cheias e, se eu os quiser aqui, terei de o convencer a deixá-los vir e tenho também de lhes pagar as passagens. - Os homens de Skeat tinham sido contratados para combater pelo conde de Northampton que, depois da campanha na Bretanha, se juntara ao rei da Normandia e agora serviam-no perto de Calais. - Terei de pagar as passagens dos homens e dos cavalos, Thomas - continuou Skeat. - E a menos que as coisas tenham mudado, desde que me bateram na cabeça, não será barato. Não será barato. E porque haveria o conde de querer que eles partissem de Calais? Na Primavera terão muito que combater.

 

A pergunta era perfeitamente razoável, pensou Thomas, pois certamente haveria um combate feroz perto de Calais quando o Inverno terminasse. Tanto quanto Thomas sabia, a cidade não tinha caído, mas os ingleses cercavam-na e dizia-se que o rei francês reunia um exército enorme para, na Primavera, atacar os sitiantes.

 

- Na Primavera terão muito onde combater - disse Thomas, apontando com a cabeça para a margem do rio, que estava agora muito próxima. Os campos por trás dela estavam de pousio, mas, pelo menos, os celeiros e as quintas ainda se aguentavam e alimentavam a guarnição de La Roche-Derrien, tendo poupado assim a pilhagem, as violações e os incêndios que haviam assolado o resto do ducado.

 

- Aqui vai haver combates - concordou Skeat. - Mas será pior em Calais. Talvez tu e eu devêssemos ir para lá, Tom.

 

Thomas nada disse. Receava que Skeat já não pudesse comandar um bando de homens-de-armas e arqueiros. O seu velho amigo era agora atreito a esquecimentos, a pensamentos vagos e melancólicos, e cujos ataques pioravam em alturas em que Skeat mais parecia o seu antigo eu - só que nunca mais fora o antigo Will Skeat, tão rápido na guerra, violento nas decisões e inteligente na batalha. Agora, repetia para consigo, tornara-se confuso e frequentemente perplexo - como o estava agora quando um barco da guarda que ostentava a cruz vermelha de Inglaterra, descia o rio em direcção ao Pentecost. Skeat franziu a testa, olhando para a pequena embarcação.

 

- Será um inimigo?

 

- Tem a nossa bandeira, Will.

 

- Ah, sim?

 

Um homem de cota de malha ergueu-se dentro do barco a remos e gritou para o Pentecost:

 

- Quem sois?

 

- Sir William Skeat! - gritou Thomas, utilizando o nome que seria mais bem aceite na Bretanha.

 

Houve uma pausa, talvez de incredulidade.

 

- Sir William Skeat? - respondeu o homem. - Falais de Will Skeat?

 

- O rei armou-o cavaleiro - disse Thomas ao homem.

 

- Até eu me esqueço disso - disse Skeat.

 

Os remadores do lado do porto batiam na água para que o barco se voltasse ao lado do Pentecost.

 

- Que trazeis?

 

- Vimos vazios! - gritou Thomas.

 

O homem olhou para cima, para a vela esfarrapada, dobrada e ardida.

 

- Haveis tido problemas?

 

- Ao largo da Normandia.

 

- Já era tempo de matarmos esses canalhas de uma vez por todas - resmungou o outro, apontando depois para jusante, onde as casas de Tréguier manchavam o céu com o seu fumo de lenha. - Aportai junto ao Edward ordenou. - Tereis de pagar uma taxa portuária. Seis xelins.

 

- Seis xelins? - explodiu Villeroy, quando lho disseram. - Seis malditos xelins? Pensam que as redes trazem dinheiro do fundo do mar?

 

Foi assim que Thomas e Will Slceat voltaram a Tréguier, onde a catedral tinha perdido a torre depois de os bretões que apoiavam Charles de Blois terem lançado virotes aos ingleses a partir do seu cimo. Em retaliação, os ingleses tinham deitado a torre abaixo e embarcado a pedra para Londres. A pequena cidade portuária estava agora esparsamente povoada, pois não tinha muralhas e, por vezes, os homens de Charles de Blois assolavam os armazéns por de trás do cais. Os pequenos navios podiam subir o rio até La Roche-Derrien, mas o Pentecost metia demasiada água, portanto amarrou ao lado do barco inglês. Logo uma dúzia de homens de saiotes ostentando a cruz vermelha subiram a bordo para receberem a taxa portuária e procurarem contrabando, ou então um bom suborno que os levasse a ignorar o que tinham podido descobrir. Contudo não encontraram nem mercadoria nem suborno. O comandante, um homem gordo com uma ferida purulenta na testa, confirmou que Richard Totesham ainda comandava La Roche-Derrien.

 

- Ele está lá - disse o homem gordo. - E Sir Thomas Dagworth comanda em Brest.

 

- Dagworth! - Skeat parecia satisfeito. - É muito bom. Com que então, Dick Totesham - acrescentou para Thomas, depois pareceu estranhar quando viu Sir Guillaume sair da cabina de proa.

 

- É Sir Guillaume - disse Thomas, em voz baixa.

 

- Claro que é - disse Skeat.

 

Sir Guillaume deixou cair os sacos da sela no convés e o tilintar das moedas provocou um olhar ansioso no homem gordo. Sir Guillaume fitou-o e levou a mão à espada.

 

- Parece que me vou retirar - disse o homem gordo.

 

- Parece-me que sim - disse Skeat, soltando uma gargalhada. Robbie subiu a bagagem para o convés e depois olhou para lá do Edward para onde quatro raparigas esventravam arenques, lançando os restos ao ar para as gaivotas os apanharem ainda em voo. As raparigas enfiavam o peixe sem tripas em longos paus que seriam colocados nos fumeiros no extremo do cais.

 

- São todas assim tão bonitas? - perguntou Robbie.

 

- Ainda mais - respondeu Thomas, sem saber como conseguiria o escocês ver a cara das raparigas por baixo das suas toucas.

 

- Vou gostar da Bretanha - disse Robbie.

 

Havia dívidas a saldar antes de poderem partir. Sir Guillaume pagou a Villeroy, acrescentando dinheiro suficiente para comprar uma vela nova.

 

- Faríeis bem em evitar Caen durante algum tempo - aconselhou ao gigante.

 

- Iremos até à Gasconha - disse Villeroy. - Lá há sempre comércio. Talvez até cheguemos a Portugal.

 

- Talvez eu pudesse acompanhar-vos - disse timidamente Mordecai.

 

- Vós? - Sir Guillaume voltou-se para o médico. - Mas odiais os malditos barcos.

 

- Tenho de ir para sul - respondeu Mordecai, cansado. - Primeiro que tudo a Montpellier. Quanto mais a sul, mais simpáticas são as pessoas. Prefiro sofrer um mês no mar, ao frio, do que encontrar-me com os homens do duque Charles.

 

- Uma passagem para a Gasconha, para este meu amigo. - Sir Guillaume ofereceu a Villeroy uma moeda de ouro.

 

Villeroy olhou para Yvette que encolheu os ombros, o que bastou para convencer o gigante.

 

- Sois bem-vindo, doutor - disse.

 

Assim se despediram de Mordecai e depois Thomas e Robbie, Will Skeat, Sir Guillaume e os seus dois homens-de-armas foram para terra. Mais tarde, nesse mesmo dia, haveria um barco para subir o rio até La Roche-Derrien. Assim, os dois homens-de-armas ficaram a guardar a bagagem, enquanto Thomas conduziu os outros pelo estreito caminho que seguia a margem oeste do rio. Vestiam cotas de malha e transportavam as armas, pois os aldeãos não eram muito simpáticos para os ingleses, apenas passaram por uma dúzia de lentos trabalhadores que enchiam duas carroças de estrume. Os homens fizeram uma pausa para olhar para os soldados, mas nada disseram.

 

- Amanhã, por estas horas - comentou Thomas -, Charles de Blois saberá que cá estamos.

 

- Vai apanhar um susto - disse Skeat com um sorriso.

 

Quando chegaram à ponte que os levaria a La Roche-Derrien, tinha começado a chover e Thomas abrigou-se sob o arco da protectora barbacã na margem oposta à cidade e apontou para montante, para o cais em mau estado, de onde ele, Skeat e outros arqueiros se tinham esgueirado para La Roche-Derrien, na noite em que caíra pela primeira vez na mão dos ingleses.

 

- Lembras-te daquele sítio, Will? - perguntou.

 

- Claro que me lembro - disse Skeat, embora tivesse um ar vago. Thomas nada mais disse.

 

Atravessaram a ponte de pedra e apressaram-se a descer a rua até à casa junto à taberna, que sempre servira de quartel-general a Richard Totesham. No preciso momento em que chegaram, ele próprio deslizava da sela. Voltou-se e fez um gesto de aborrecimento ao ver os recém-chegados, depois reconheceu Will Skeat e olhou para o seu velho amigo como se tivesse visto um fantasma. Skeat devolveu-lhe o olhar sem perceber nada e o facto de não ter sido reconhecido perturbou Totesham.

 

- Will? - perguntou o comandante da guarnição. - Will? És tu, Will?

 

Uma expressão de animado prazer iluminou o rosto de Skeat.

 

- Dick Totesham! Logo te vou encontrar aqui!

 

Totesham ficou intrigado por Skeat se mostrar surpreendido em o encontrar numa guarnição comandada por si, mas, depois, viu o vazio dos olhos do amigo e franziu a testa.

 

- Estás bem, Will?

 

- Levei uma pancada na cabeça - disse Skeat. - Mas um físico coseu-me tudo outra vez. De vez em quando as coisas ficam baralhadas. Só baralhadas.

 

Apertaram ambos as mãos. Eram ambos homens que tinham nascido sem vintém e que se tinham tornado soldados, para logo ganharem a confiança dos seus superiores e os lucros dos resgates dos prisioneiros e da pilhagem das propriedades até serem suficientemente ricos para criarem o seu próprio bando de homens que alugavam ao rei ou a um nobre. Assim se tornaram ainda mais ricos, à medida que devastavam as terras inimigas. Quando os trovadores cantavam as batalhas, referiam-se ao rei como herói e enalteciam as explorações dos duques, condes, barões e cavaleiros, porém, eram homens como Totesham e Skeat que levavam a cabo a maioria dos combates em Inglaterra.

 

Totesham deu uma palmada bem-humorada no ombro de Skeat.

 

- Diz-me que trouxeste os teus homens, Will.

 

- Só Deus sabe onde estarão - disse Skeat. - Há meses que não lhes ponho a vista em cima.

 

- Estão à entrada de Calais - afirmou Thomas.

 

- Valha-me Deus - Totesham fez o sinal da cruz. Era um homem atarracado, de cabelo grisalho e com um rosto grande, que mantinha o moral da guarnição de La Roche-Derrien com a sua força de carácter, mas sabia que tinha poucos homens. Muito poucos homens. - Tenho cento e trinta e dois homens sob as minhas ordens - disse a Skeat. - Metade está doente. Depois há cinquenta ou sessenta mercenários que podem ou não ficar até à chegada de Charles de Blois. Claro que as pessoas da cidade combaterão pelo nosso lado, pelo menos alguns deles.

 

- Sim? - interrompeu Thomas, espantado com tal afirmação. Quando os ingleses tinham capturado a cidade no ano anterior, os seus habitantes tinham combatido esforçadamente para defender as muralhas e, ao perderem, tinham sido sujeitos a violações e a pilhagens. Iriam apoiar a guarnição?

 

- O comércio é bom - explicou Totesham. - Nunca foram tão ricos! Navios para a Gasconha, para Portugal, para a Flandres e para Inglaterra. Estão a fazer dinheiro. Não querem que partamos, portanto sim, alguns combaterão pelo nosso lado, o que vai ajudar. Mas não é o mesmo do que ter homens treinados.

 

As outras tropas inglesas na Bretanha estavam muito longe, para oeste, por isso, quando Charles de Blois chegasse com o seu exército, Totesham teria de manter a pequena cidade durante duas ou três semanas antes de poder esperar qualquer rendição e, mesmo com a ajuda dos habitantes, duvidava que o pudesse fazer. Enviara uma petição ao rei em Calais, implorando-lhe que mandasse mais homens para La Roche-Derrien.

 

- Estamos longe de qualquer auxílio - escrevera o secretário segundo o que Totesham lhe ditara. - E os nossos inimigos aproximam-se.

 

Ao ver Will Skeat, Totesham concluíra que os homens de Skeat tinham chegado em resposta à sua petição e não conseguiu esconder o seu desapontamento.

 

- Escreverás tu mesmo ao rei? - perguntou Totesham a Will.

 

- Tom poderá escrever por mim.

 

- Pede para enviarem homens - insistiu Totesham. - Preciso de mais trezentos ou quatrocentos arqueiros, mas os teus cinquenta ou sessenta já ajudavam.

 

- Tommy Dagworth não te pode mandar nenhuns? - perguntou Skeat.

 

- Está tão aflito quanto eu. É terra de mais para manter, os homens são poucos e o rei não quer ouvir falar em rendermos um palmo de terreno que seja a Charles de Blois

 

- Então porque não envia reforços? - perguntou Sir Guillaume.

 

- Porque não tem homens para desperdiçar - disse Totesham. - Embora não seja razão para não os pedirmos.

 

Totesham levou-os para dentro da sua casa, onde ardia uma fogueira na enorme lareira e os seus criados trouxeram jarros de vinho aromático e pratos de pão e carne de porco fria. Junto ao fogo havia um bebé num berço de madeira e Totesham corou ao admitir que era seu.

 

- Casei há pouco - disse a Skeat e depois pediu a uma jovem que levasse dali o bebé antes que começasse a chorar. Estremeceu quando Skeat tirou o chapéu para revelar a cicatriz saliente que tinha no crânio e depois insistiu em ouvir a história dele. Quando esta terminou, agradeceu a Sir Guillaume a ajuda que o francês prestara ao seu amigo. Thomas e Robbie foram recebidos mais friamente, o último por ser escocês e o primeiro porque Totesham se recordava de Thomas do ano anterior.

 

- Haveis causado muitos problemas - disse Totesham sem rodeios. - Vós e a condessa de Armorica.

 

- Ela está cá? - perguntou Thomas.

 

- Voltou, sim - respondeu Totesham cauteloso.

 

- Podemos voltar a casa dela, Will - disse Thomas a Skeat.

 

- Não, não podem - disse firmemente Totesham. - Ela perdeu a casa. Foi vendida para pagar as dívidas e, desde aí, que se tem andado a queixar, mas foi vendida legalmente. O homem de leis que a comprou pagou-nos uma quitação para ser deixado em paz e não quero que o perturbem, portanto poderão ambos encontrar alojamento nas Duas Raposas. Depois, vinde cá cear. - Este convite dirigia-se abertamente para Will Skeat e Sir Guillaume e como era evidente, não a Thomas ou a Robbie.

 

Thomas não se importou. Ele e Robbie encontraram um quarto para ambos na taberna que se chamava as Duas Raposas e, depois, enquanto Robbie provou o seu primeiro trago de cerveja bretã, Thomas foi à igreja de São Renano, que era uma das mais pequenas em La Roche-Derrien, mas também uma das mais ricas, pois o pai de Jeanette tinha-a dotado. Construíra-lhe um campanário e pagara para mandar pintar belos frescos nas suas paredes; porém, quando lá chegou estava demasiado escuro para ver o Salvador caminhar sobre as águas da Galileia ou as almas a caírem no fogo do inferno. A única luz da igreja provinha de velas acesas no altar, onde um relicário de prata continha a língua de São Renano, porém, Thomas sabia que, por baixo, havia outro tesouro, uma coisa quase tão rara como a silenciosa língua de um santo e ele queria consultá-lo. Tratava-se de um livro, uma oferta do pai de Jeanette que Thomas lá encontrara espantado, não só porque o livro sobrevivera à queda da cidade - embora, na verdade, poucos soldados procurassem um livro no meio da pilhagem -, mas porque não havia livros nas pequenas igrejas das cidades bretãs. Os livros eram raros e aquele era o tesouro de São Renano: uma bíblia. Faltava-lhe grande parte do Novo Testamento, evidentemente, porque os soldados lhe tinham arrancado as páginas para usar nas latrinas, mas restara todo o Antigo Testamento. Thomas percorreu o seu caminho por entre as idosas senhoras vestidas de negro que estavam ajoelhadas a rezar na nave e encontrou o livro por baixo do altar. Soprou o pó e as teias de aranha e, depois, colocou-o ao lado das velas. Uma das mulheres sussurrou que ele estava a ser ímpio, mas Thomas fingiu não a ouvir.

 

Folheou as páginas rígidas, detendo-se por vezes para admirar a letra de uma iluminura. Havia uma bíblia na Igreja de São Pedro, em Dorchester, e o pai possuíra também uma. Thomas devia ter visto uma dúzia delas em Oxford, mas poucas mais, e, enquanto procurava as páginas, maravilhava-se com o tempo que deveria ter levado a copiar um livro tão grande. Outras mulheres protestaram contra a sua ocupação do altar e assim, para as acalmar, afastou-se uns passos e sentou-se com as pernas cruzadas, com o pesado livro no colo. Estava agora demasiado longe das velas e era-lhe difícil ler a caligrafia, que em grande parte estava mal feita. As letras grandes eram bonitas, sugerindo ter sido feitas por uma mão hábil, mas o resto da escrita era difícil de decifrar e a tarefa não se tornava mais fácil devido à sua ignorância de onde procurar no enorme livro. Começou pelo fim do Antigo Testamento, mas não encontrou e por isso voltou atrás, ouvindo as páginas estalar à medida que as folheava. Sabia que o que procurava não se encontrava nos Salmos, de modo que passou rapidamente as páginas. Depois prosseguiu mais lentamente, procurando as palavras na má caligrafia e, de repente, os nomes saltaram-lhe à vista. Neemias Athersatha filius Achdai: ”Nehemiah, governador, filho de Hachaliah”. Leu a passagem completa, mas não encontrou aquilo que procurava, portanto, voltou atrás página rígida a página rígida, sabendo que estava perto, e por fim, encontrou.

 

Ego enim eram pincerna regis.

 

Olhou para a frase e depois leu-a em voz alta. Ego enim eram pincerna regis.

 

”Porque eu fui o guardião da taça do rei.”

 

Mordecai pensara que o livro do padre Ralph era uma súplica a Deus para tornar o Graal verdadeiro, mas Thomas não concordava. O pai não quisera ser o guardião da taça. Não. O livro era um modo de se confessar e de esconder a verdade. O pai deixara-lhe uma pista para seguir. Ir de Hachaliah ao Tirshatha e perceber que o governador era também o guardião da taça: ego enim eram pincerna regis. ”Era”, pensou Thomas. Significaria aquilo que o pai perdera o Graal? Era mais provável que soubesse que Thomas apenas leria o livro após a sua morte: contudo, Thomas tinha a certeza de uma coisa: as palavras confirmavam a existência do Graal e que o pai fora o seu relutante guardião. Fui o guardião da taça do rei, deixai que esta taça saia das minhas mãos; a taça embriaga-me. A taça existia e Thomas sentiu um arrepio passar-lhe pelo corpo. Fitou as velas no altar e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Eleanor estivera certa. O Graal existia e estava à espera de ser encontrado para melhorar o mundo e para trazer Deus ao homem, o homem a Deus e a paz ao mundo. Existia. Era o Graal.

 

- O meu pai - disse uma mulher - ofereceu esse livro à igreja.

 

- Eu sei que sim - disse Thomas, depois fechou a bíblia e voltou-se para olhar para Jeanette; quase receou vê-la menos bela do que se lembrava, ou talvez temesse que a sua visão criasse nele um ódio por ela o ter abandonado. Porém, sentiu as lágrimas nos olhos ao ver-lhe o rosto.

 

- Merle - disse em voz baixa, utilizando a sua antiga alcunha. Significava melro.

 

- Thomas - a voz dela era átona, depois voltou a cabeça para uma velha vestida de negro e com um véu da mesma cor. - A Madame Verlon, que é muito nervosa, disse que um soldado inglês estava a roubar a bíblia.

 

- Vieste então lutar contra o soldado? - perguntou Thomas. Uma vela gotejava à sua direita, com a chama cintilando como o coração de um passarinho.

 

Jeanette encolheu os ombros.

 

- O padre daqui é um cobarde e nunca se oporia a um arqueiro inglês, por isso quem mais haveria de vir?

 

- A Madame Verlon pode estar descansada - disse Thomas, colocando de novo a Bíblia por baixo do altar.

 

- Ela também disse - a voz de Jeanette estremeceu - que o homem que estava a roubar a Bíblia tinha um enorme arco negro. - Afinal viera ela própria em vez de pedir auxílio, porque calculara tratar-se de Thomas.

 

- Pelo menos não tiveste de ir muito longe - disse Thomas apontando para a porta lateral que conduzia ao pátio da casa do pai de Jeanette. Fingia não saber que ela tinha perdido a casa.

 

Ela voltou a cabeça para trás com violência.

 

- Já não vivo ali - disse, em tom ríspido. - Agora já não. Algumas mulheres estavam à escuta e recuaram nervosamente quando Thomas se aproximou delas.

 

- Então talvez Madame - disse para Jeanette - me autorize a acompanhá-la a casa?

 

Ela fez um brusco aceno. Tinha os olhos enormes e brilhantes à luz das velas. Estava mais magra, pensou Thomas, ou talvez fosse a escuridão da igreja que lhe sombreava as faces. Tinha uma touca atada sob o queixo e uma enorme capa negra que varria as lajes enquanto o seguia pela porta oeste.

 

- Lembras-te de Belas? - perguntou.

 

- Lembro-me do nome dele - disse Thomas. - Não era um homem de leis?

 

- É um homem de leis - disse Jeanette. - Um homem bilioso, uma criatura viscosa, um aldrabão. Qual era a palavra que me tinhas ensinado? Um beberrão. Quando cá cheguei já tinha comprado a casa, dizendo que a tinha vendido para saldar as minhas dívidas! Prometera olhar pelas minhas coisas, mas esperou que eu partisse e ficou com a minha casa. Agora que regressei não me deixa pagar aquilo que devo. Diz que está pago. Disse-lhe que lhe voltava a comprar a casa por mais do que ele tinha pago, mas riu-se na minha cara.

 

Thomas segurou a porta para a deixar passar. Lá fora, a chuva caía.

 

- Não vais precisar da casa se Charles de Blois voltar - disse-lhe. - Deverias ir-te embora antes!

 

- Continuas a dizer-me o que hei-de fazer, Thomas? - perguntou-lhe, mas, depois, como que para suavizar a dureza das suas palavras, deu-lhe o braço. Ou talvez lhe tenha agarrado apenas o cotovelo porque a rua era íngreme e escorregadia. - Julgo que vou ficar aqui.

 

- Se não tivesses fugido dele, Charles ter-te-ia casado com um dos seus homens-de-armas - disse Thomas. - Se te encontrar aqui é o que certamente fará. Ou ainda pior.

 

- Já tem o meu filho. Já me violou. Que mais poderá fazer? Não - agarrou-se com força o braço de Thomas - Vou ficar na minha casinha junto à porta sul e, quando ele entrar na cidade, meto-lhe no ventre um virote de besta.

 

- Estou espantado que ainda não o tenhas feito a Belas.

 

- Pensas que quero ser enforcada pela morte de um advogado? - perguntou Jeanette, soltando uma curta gargalhada. - Não. Vou poupar a minha morte para quando tirar a vida a Charles de Blois e toda a Bretanha e a França souberem que esse feito foi obra de uma mulher.

 

- A menos que devolva o teu filho?

 

- Não devolve - respondeu ela irada. - Não responde a qualquer apelo. - Thomas tinha a certeza de que ela se referia ao príncipe de Gales e talvez mesmo até ao rei que já tinham escrito a Charles de Blois, mas os apelos tinham sido em vão, e porque não haveriam de o ser? A Inglaterra era o pior inimigo de Charles. - Tudo não passa de propriedade, Thomas - disse ela, tristemente. - Propriedade e dinheiro. - Isto significava que o filho, de três anos de idade era o conde de Armorica, herdeiro por direito próprio de grandes extensões de terra na Bretanha Ocidental, presentemente sob ocupação inglesa. Se a criança prestasse vassalagem ao duque Jean, o candidato de Eduardo de Inglaterra para governar a Bretanha, então a pretensão de Charles de Blois ao governo do ducado seria seriamente enfraquecida; por isso este levara a criança, para a manter consigo até que esta tivesse idade para lhe prestar vassalagem.

 

- Onde se encontra Charles? - perguntou Thomas. Uma das ironias da vida de Jeanette era o filho ter recebido o nome do tio-avô na esperança que este lhe aportasse alguns favores.

 

- Está na Torre de Roncelets - respondeu Jeanette. - Fica a sul de Rennes. - Está a ser educado pelo senhor de Roncelets - voltou-se para Thomas. - Há quase um ano que não o vejo!

 

- Na Torre de Roncelets? - disse Thomas. - É um castelo?

 

- Nunca a vi. Suponho que seja uma torre. Sim, um castelo.

 

- Tens a certeza de que lá está?

 

- Não tenho a certeza de nada - disse Jeanette cansada. - Contudo, recebi uma carta a dizer que Charles lá estava e não tenho razão para duvidar.

 

- Quem escreveu a carta?

 

- Não sei, não estava assinada. - Caminhou em silêncio durante mais uns passos, com a mão quente pousada no braço dele. - Foi Belas - disse, por fim. - Não tenho a certeza, mas deve ter sido. Estava a provocar-me e a atormentar-me. Não lhe basta ter a minha casa e que Charles de Blois tenha o meu filho, Belas quer que eu sofra. Ou melhor, quer que eu vá a Roncelets, sabendo que eu seria de novo entregue a Charles de Blois. Tenho a certeza de que foi Belas. Odeia-me.

 

- Porquê?

 

- Que pensas tu? - disse ela, com desprezo. - Tenho uma coisa que ele quer, uma coisa que todos os homens querem, mas eu não lhe dou.

 

Caminharam pelas ruas escuras. Em algumas tabernas ouvia-se cantar e, algures, uma mulher gritou para um homem. Um cão ladrou e foi mandado calar. A chuva batia no colmo, escorria dos beirais e tornava escorregadia a rua lamacenta. Por cima, surgia lentamente uma aura vermelha que aumentava à medida que Thomas via as chamas de dois braseiros que aqueciam os guardas na entrada sul e recordou-se de como ele, Jake e Sam tinham aberto aquela porta para deixarem entrar o exército inglês.

 

- Uma vez prometi-te que iria buscar Charles - disse a Jeanette.

 

- Tu e eu fizemos demasiadas promessas, Tom - continuava a falar em tom triste.

 

- Deveria começar a cumprir algumas das minhas - disse Thomas. - Mas para chegar a Roncelets preciso de cavalos.

 

- Posso pagar os cavalos - disse Jeanette, detendo-se na soleira de uma porta escura. - Moro aqui - prosseguiu ela, olhando-lhe para o rosto. Ele era um homem alto, mas ela era quase da mesma altura. - O conde de Roncelets é famoso como guerreiro. Não deves morrer por quereres cumprir uma promessa que nunca deverias ter feito.

 

- Mas fiz - disse Thomas. Ela acenou afirmativamente.

 

- Isso é verdade.

 

Houve uma longa pausa. Thomas ouvia os passos das sentinelas sobre a muralha.

 

- Eu... - começou ele.

 

- Não - disse ela apressadamente.

- Eu não...

 

- Fica para a outra vez. Tenho de me habituar a que estás aqui. Estou cansada dos homens, Thomas. Desde a Picardia... - fez uma pausa e Thomas pensou que ela nada mais dissesse, mas depois viu-a encolher os ombros. - Desde a Picardia que tenho vivido como uma freira.

 

Ele beijou-a na testa.

 

- Amo-te - disse, com sinceridade, mas ao mesmo tempo surpreendido por o ter pronunciado em voz alta.

 

Ela ficou por momentos em silêncio. A luz reflectida das duas braseiras cintilou-lhe avermelhada nos olhos.

 

- O que aconteceu àquela jovem? - perguntou. - Àquela menina pálida que tanto te protegia?

 

- Não consegui protegê-la e ela morreu - respondeu Thomas.

 

- Os homens são uns trastes - disse ela, voltando-se para puxar a corda que erguia o fecho da porta. Fez uma pequena pausa. - Mas sinto-me feliz por estares aqui - disse, sem olhar para trás. Depois fechou a porta, a tranca deslizou e ela desapareceu.

 

Sir Geoffrey Carr tinha começado a pensar que a sua viagem à Bretanha fora um erro. Durante muito tempo não houvera qualquer sinal de Thomas de Hookton e assim que o arqueiro chegara não fizera o mínimo esforço por descobrir qualquer tesouro. Era misterioso e, para mais ajuda, as dívidas de Sir Geoffrey cresciam. Mas, por fim, o Espantalho descobriu os planos de Thomas de Hookton. E, ao inteirar-se deles, dirigiu-se a casa de Maìtre Belas.

 

Chuva torrencial caía em La Roche-Derrien. Era um dos Invernos mais húmidos de que havia memória. A vala por detrás da muralha reforçada da cidade transbordava como um fosso e muitos dos prados do rio Jaudy pareciam lagos. As ruas da cidade estavam pegajosas com a lama que também cobria as botas dos homens. As mulheres iam ao mercado com uns desajeitados tamancos de madeira que escorregavam perigosamente nas ruas mais inclinadas e, mesmo assim, a lama agarrava-se à bainha dos seus vestidos e capas. A única coisa boa dessa chuva era a protecção que oferecia em relação ao fogo e, para os ingleses, o saberem que qualquer cerco à cidade seria difícil. As máquinas de guerra, utilizadas nos cercos, quer fossem catapultas, trabuquetes ou canhões precisavam de uma base sólida e não de um canteiro de terra mole, de modo que os homens não podiam fazer o assalto através de um pântano. Dizia-se que Richard Totesham rezava a pedir mais chuva e que, todas as manhãs, dava graças pelo tempo cinzento pesado e húmido.

 

- Um Inverno muito molhado, sir Geoffrey - disse Belas ao receber o Espantalho, inspeccionando disfarçadamente o seu visitante. Um rosto rude e feio, pensou e, embora as roupas de Sir Geoffrey fossem de boa qualidade, tinham sido feitas para um homem muito mais gordo, o que sugeria que, ou o inglês tinha recentemente perdido peso ou, o mais provável, que as roupas tinham sido roubadas a um homem morto numa batalha. Usava à cintura um chicote enrolado, o que parecia um estranho ornamento, mas o homem advogado nunca presumira entender os soldados. - Um Inverno muito molhado - prosseguiu Belas apontando uma cadeira ao Espantalho.

 

- Está um Inverno molhado como o mijo - rosnou Sir Geoffrey para disfarçar o seu nervosismo. - Nada mais do que chuva, frio e frieiras.

 

Sentia-se nervoso, pois não sabia se aquele advogado magro e atento era tão fiel a Charles de Blois como sugerira o rumor que escutara na taberna, e também porque se vira obrigado a deixar Beggar e Dickon no pátio lá em baixo, sentindo-se assim mais vulnerável sem os seus protectores. Ainda para mais, o advogado tinha um criado enorme, com um gibão de pele e uma comprida espada à cintura.

 

- Pierre protege-me - disse Belas, ao ver que Sir Geoffrey olhava para o homem. - Protege-me dos inimigos que fazem todos os honestos homens de leis. Por favor, Sir Geoffrey, sentai-vos - apontou de novo para a cadeira.

 

Na lareira ardia um pequeno lume e o fumo desaparecia por uma chaminé recém-feita. O advogado tinha o rosto esquálido como o de uma doninha e pálido como o ventre de uma cobra. Usava uma veste negra e uma capa debruada a pele negra, bem como um chapéu também negro com palas que lhe cobriam as orelhas. Tinha erguido uma das palas, de forma a poder ouvir a voz do Espantalho.

 

- Parlez-vousfrançais? -perguntou.

 

- Não.

 

- Brezoneg a ouzit? - inquiriu o advogado e, quando viu a ignorância estampada no rosto do Espantalho, encolheu os ombros. - Não falais bretão?

 

- Não vos disse já? Não falo francês.

 

- O francês e o bretão não são a mesma língua, Sir Geoffrey.

 

- Mas não são inglês, raios - disse Sir Geoffrey beligerante.

 

- Não, de facto, não são. Ai de mim, não falo muito bem inglês, mas aprendo depressa. Afinal é a língua dos nossos novos senhores.

 

- Senhores? - perguntou o Espantalho. - Ou inimigos? Belas encolheu os ombros.

 

- Sou um homem de... como dizeis vós? De negócios. Um homem de negócios. Não é possível, julgo eu, sê-lo sem fazer inimigos. - Encolheu de novo os ombros, como se falasse de trivialidades e depois recostou-se de novo na cadeira. - Vindes em negócios, Sir Geoffrey? Talvez tenhais propriedades a ceder? Um contrato para redigir?

 

- Jeanette Chenier, condessa de Armorica - disse bruscamente Sir Geoffrey. Belas ficou surpreendido, mas não o revelou. Mesmo assim manteve-se

 

alerta. Sabia muito bem que Jeanette queria vingar-se e estava sempre vigilante às suas maquinações, mas agora fingiu-se indiferente.

 

- Conheço essa senhora - admitiu.

 

- Ela conhece-vos e não gosta de vós, Monsieur Belas - disse Sir Geoffrey fazendo com que a pronúncia do nome lhe saísse num tom cínico. - Não gosta mesmo nada de vós. Gostaria de vos cortar às tiras e assar num espeto por baixo de um lume bastante forte.

 

Belas voltou-se para os papéis que tinha sobre a secretária, como se o visitante o estivesse a aborrecer de morte.

 

- Sir Geoffrey, eu já vos disse que é inevitável que um homem de leis faça inimigos. Não me preocupa. A lei protege-me.

 

- Mijai sobre a lei, Belas - disse Sir Geoffrey, imediatamente. Os seus olhos, curiosamente pálidos, observavam o advogado, que se fingia ocupado a afiar uma pena. - Suponde que a dama recupera o filho? - continuou o Espantalho. - Suponde que a dama leva o filho a Eduardo de Inglaterra e faz com que o rapaz preste vassalagem ao duque Jean? A lei não vai impedir que eles vos façam em tiras, pois não? Um, dois, snip, snip, advogado para o lume.

 

- Uma tal eventualidade - disse Belas com aparente enfado - nunca se repercutiria sobre mim.

 

- Afinal, o vosso inglês não é assim tão mau, pois não? - perguntou cinicamente Sir Geoffrey. - Eu não finjo ser conhecedor da lei, monsieur, mas conheço o povo. Se a condessa conseguir reaver o filho irá para Calais para ser recebida pelo rei.

 

- E então? - perguntou Belas, fingindo ainda indiferença.

 

- Três meses. - Sir Geoffrey ergueu três dedos. - Talvez quatro, antes que o vosso Charles de Blois cá possa chegar. E ela pode estar em Calais daqui a quatro semanas e voltar com um bocado de pergaminho do rei no prazo de oito semanas e nessa altura será valiosa. O filho dela tem aquilo que o rei deseja e ela há-de cortar-vos às tiras. Há-de trincar-vos com os seus dentinhos brancos e depois esfolar-vos vivo, monsieur mas a lei não vos ajudará. Pelo menos contra o rei.

 

Até ali, Belas fingira ler um pergaminho, que agora soltava fazendo-o enrolar com um estalo. Olhou para o Espantalho e depois encolheu os ombros.

 

- Duvido que tal possa acontecer, Sir Geoffrey. O filho da condessa não está cá.

 

- Mas suponde, monsieur, suponde apenas, que um grupo de homens se prepara para ir a Roncelets buscar o horrorzinho?

 

Belas fez uma pausa. Ouvira um boato que esse assalto estava a ser planeado, mas duvidava que fosse verdadeiro, pois tais histórias tinham sido contadas dezenas de vezes, sem qualquer resultado. Porém, qualquer coisa no tom de Sir Geoffrey lhe disse que, desta vez, poderia haver algo de verdade no assunto.

 

- Um grupo de homens - disse simplesmente Belas.

 

- Um grupo de homens - confirmou o Espantalho - planeia partir para Roncelets e ficar de vigia até que o queridinho saia para fazer a sua mijinha matinal. Depois agarram-no, trazem-no para aqui e põem os vossos escalopes na frigideira.

 

Belas desenrolou o pergaminho e fingiu lê-lo de novo.

 

- Não me surpreende que Madame Chenier conspire para o regresso do filho, Sir Geoffrey - disse em tom indiferente. - É de esperar. Mas porque me vindes incomodar com isso? Que mal me poderá fazer? - mergulhou a pena recém aparada no tinteiro. - E como sabeis que essa incursão está a ser planeada?

 

- Porque faço as perguntas correctas, não é verdade? - respondeu o Espantalho.

 

Na verdade, o Espantalho ouvira rumores de que Thomas planeava um assalto a Rostrenen, mas havia homens na cidade que diziam que Rostrenen tinha sido atacada tantas vezes que até um pardal lá morreria de fome. Então o que iria Thomas lá fazer realmente, interrogava-se. Sir Geoffrey tinha a certeza de que ele lá ia buscar o tesouro, o mesmo tesouro que o levara a Durham, mas porque estaria em Rostrenen? O que existiria lá? Sir Geoffrey tinha metido conversa com um dos homens de Richard Totesham, pagara-lhe uma cerveja e fizera-lhe perguntas acerca de Rostrenen. O homem rira-se e abanara a cabeça.

 

- Não deveis acreditar nesses disparates - disse a Sir Geoffrey.

 

- Disparates?

 

- Não vão para Rostrenen. Vão para Roncelets. Bom, não temos a certeza absoluta - continuara o homem. - Mas a bela condessa de Armorica está metida até ao pescoço nesse assunto, portanto, quer dizer que tem de ser Roncelets. E se quereis o meu conselho, Sir Geoffrey, mantende-vos fora do assunto. Não é em vão que chamam a Roncelets o ninho de vespas.

 

Sir Geoffrey, mais confuso que nunca, fez mais perguntas e chegou lentamente à conclusão que o thesaurus que Thomas buscava não era constituído por enormes moedas de ouro, nem por sacos de couro cheios de jóias, mas que se tratava de terra: os Estados bretões do conde de Armorica e, se o filho pequeno de Jeanette prestasse vassalagem ao duque Jean, então a causa inglesa na Bretanha avançaria. Seria um tesouro a seu modo, um tesouro político: não tão satisfatório como o ouro, mas, mesmo assim, de grande valor. O Espantalho não conseguia entender de modo algum o que a terra tinha a ver com Durham. Talvez Thomas lá tivesse ido buscar um documento. Ou uma concessão feita pelo anterior duque? Uma qualquer tolice de advogados e isso não importava: o que importava era que Thomas ia partir para arrebatar um rapazinho que podia oferecer força política ao rei de Inglaterra e Sir Geoffrey, começara a pensar como poderia tirar benefícios dessa criança. Durante algum tempo, brincou com a ideia de a raptar e de a levar ele próprio para Calais, mas, depois, apercebera-se de que havia um lucro simplesmente muito mais seguro que poderia conseguir, traindo Thomas. Era por isso que ali estava, e suspeitava que Belas ficasse interessado, mas o advogado fingia também que nada tinha a ver com o assalto a Roncelets, de modo que o Espantalho achou que era altura de apertar com ele. Levantou-se e baixou o gibão encharcado.

 

- Não estais, então, interessado, monsieur? - perguntou. - Muito bem. Vós sabeis das vossas coisas melhor que eu, mas eu sei quantos vão para Roncelets, quem os comanda e, posso até dizer-vos, quando partem - a pena já não se movia e, sem que Belas reparasse, enquanto ouvia a voz áspera do Espantalho, os pingos de tinta caíam do bico, manchando o pergaminho.

- Claro que não iriam informar o senhor Totesham sobre o que iam fazer, já que, oficialmente, ele teria ou não de reprovar, não sei, o facto é que pensa que vão queimar umas quintas perto de Rostrenen, o que pode ou não ser verdade mas, seja o que for que digam e aquilo em que Master Totesham possa acreditar, tenho a certeza de que vão para Roncelets.

 

- Como o sabeis? - perguntou Belas em voz baixa.

 

- Sei! - exclamou asperamente Sir Geoffrey.

Belas poisou a pena.

 

- Sentai-vos - ordenou ao Espantalho. - Dizei-me então o que pretendeis.

 

- Duas coisas - disse Sir Geoffrey sentando-se de novo. - Vim até esta maldita cidade para fazer dinheiro, mas temos conseguido muito pouco, mesmo muito pouco.

 

Muito pouco pois as tropas inglesas tinham pilhado a Bretanha durante meses e não havia quintas a menos de um dia de distância a cavalo que não tivessem sido queimadas ou roubadas, ao passo que, cavalgar para mais longe, seria arriscar um encontro com as fortes patrulhas inimigas. Para além das muralhas das suas fortalezas a Bretanha era um terreno de emboscadas, perigos e ruínas, e o Espantalho descobrira rapidamente que seria uma paisagem difícil para se fazer fortuna.

 

- Então, a primeira coisa que quereis é dinheiro? - disse Belas acidamente. - E a segunda?

 

- Abrigo - respondeu Sir Geoffrey.

 

- Abrigo?

 

- Quando Charles de Blois tomar a cidade - disse o Espantalho. - Nessa altura quero estar no vosso pátio.

 

- Não percebo porquê - disse Belas secamente. - Mas claro que sereis bem-vindo. E quanto a dinheiro? - passou a língua pelos lábios. - Primeiro vejamos quanto valem as vossas informações.

 

- E se forem boas? - perguntou o Espantalho. Belas reflectiu por um momento.

 

- Setenta écus? - sugeriu. - Talvez oitenta?

 

- Setenta écus? - O Espantalho fez uma pausa para fazer a conversão em libras e depois cuspiu. - dez libras apenas? Não! Quero cem libras e quero-as em moeda cunhada inglesa.

 

Ficaram-se por sessenta libras inglesas a serem pagas quando Belas tivesse provas de que Sir Geoffrey estava a dizer a verdade e que a verdade era que Thomas de Hookton ia conduzir os homens a Roncelets na véspera da festa de São Valentim, para a qual faltavam duas semanas.

 

- Porquê daqui a tanto tempo? - quis saber Belas.

 

- Quer mais homens. Agora só tem meia-dúzia e está a tentar convencer outros a irem com ele. Anda a dizer-lhes que há ouro em Roncelets.

 

- Se quereis dinheiro - perguntou Belas com azedume -, porque não ides com ele?

 

- Porque prefiro estar convosco - respondeu Sir Geoffrey.

 

Belas recostou-se na cadeira e uniu as pontas dos dedos longos e pálidos.

 

- É então tudo o que desejais? - perguntou ao inglês. - Algum dinheiro e abrigo?

 

O Espantalho ergueu-se, inclinando a cabeça sob as traves baixas da sala.

 

- Se me pagardes uma vez - disse -, pagar-me-eis de novo.

 

- Talvez - respondeu Belas em tom evasivo.

 

- Dar-vos-ei aquilo que desejais - disse Sir Geoffrey - e pagar-me-eis dirigiu-se à porta, mas depois deteve-se, pois Belas chamara-o.

 

- Haveis dito Thomas de Hookton? - perguntou Belas com um inegável interesse na voz.

 

- Thomas de Hookton - confirmou o Espantalho.

 

- Obrigado - disse Belas e baixou os olhos para um rolo que acabara de abrir e onde parecia ter encontrado o nome de Thomas, pois apontou com o dedo e sorriu. - Obrigado - repetiu. E, para espanto de Sir Geoffrey, o advogado retirou uma pequena bolsa de uma arca ao lado da secretária e empurrou-a na direcção do Espantalho. - Agradeço-vos muito essas novidades, Sir Geoffrey.

 

Sir Geoffrey, de novo no pátio, descobriu que lhe tinha dado dez libras de ouro inglês. Dez libras apenas por mencionar o nome de Thomas? Suspeitou que houvesse muito mais a saber acerca dos planos de Thomas, mas pelo menos tinha agora dinheiro no bolso. Assim, a visita ao advogado tinha sido proveitosa e havia a promessa de mais ouro que poderia chegar desses lados.

 

Mas a maldita chuva continuava a cair.

 

Thomas convenceu Richard Totesham a que, em vez de escrever uma nova súplica ao rei, apelasse ao conde de Northampton, que estava agora entre os chefes dos exércitos que cercavam Calais. A carta recordava a Sua Senhoria a grande vitória que fora a captura de La Roche-Derrien e acentuava que esse feito se poderia perder se a guarnição não recebesse reforços. Richard Totesham ditou a maioria das palavras e Will Skeat colocou uma cruz ao lado do seu nome no final de uma missiva que afirmava, com alguma verdade, que Charles de Blois juntava um exército forte e novo em Rennes.

 

”Master Totesham”, escreveu Thomas, ”que envia a Vossa Senhoria as suas humildes saudações, calcula que o exército de Charles já tenha cerca de mil homens-de-armas, duas vezes esse número em besteiros e outros soldados, enquanto na nossa guarnição mal temos cem homens saudáveis, ao passo que o vosso parente, Sir Thomas Dagworth, que se encontra a uma semana de marcha daqui não consegue juntar mais do que seiscentos ou setecentos homens.”

 

Sir Thomas Dagworth, o comandante inglês na Bretanha, era casado com a irmã do conde de Northampton, portanto Totesham tinha esperança que apenas o orgulho de família convencesse o conde a evitar uma derrota na Bretanha e, se Northampton enviasse os arqueiros de Skeat, apenas os arqueiros e não os homens-de-armas, duplicaria o número de arqueiros nas muralhas de La Roche-Derrien e ofereceria a Totesham uma possibilidade de resistir ao cerco. Enviai arqueiros, implorava a carta, com os seus arcos, as suas flechas, mas sem os cavalos e Totesham devolvê-los-ia a Calais quando Charles de Blois fosse repelido.

 

- Ele não vai acreditar - resmungou Totesham. - Perceberá que quero mantê-los cá, de modo que assegurai-vos de que ele perceba que estou a fazer uma promessa solene. Dizei-lhe que juro por Nossa Senhora e por São Jorge que os arqueiros regressarão.

 

A descrição do exército de Charles de Blois era de facto real. Os espiões pagos pelos ingleses, enviavam notícias que, na verdade, Charles desejava que os seus inimigos recebessem, pois quanto mais a guarnição de La Roche-Derrien fosse ultrapassada, mais baixas seriam as esperanças. Charles tinha já perto de quatro mil homens e mais chegavam todas as semanas. Os seus comandantes tinham contratado nove enormes máquinas de cerco para lançar pedregulhos contra as muralhas das cidades e fortalezas inglesas do seu ducado. La Roche-Derrien seria a primeira a ser atacada e alguns homens tinham já perdido a esperança que durasse mais do que um mês.

 

- Espero que não seja verdade - disse Totesham com azedume a Thomas depois de este escrever a carta - que estejais com ideias acerca de Roncelets?

 

- Acerca de Roncelets? - Thomas fingiu nunca ter ouvido falar do local. - Roncelets não, senhor, Rostrenen.

 

Totesham olhou para Thomas com desagrado.

 

- Não há nada em Rostrenen - garantiu o comandante da guarnição em tom gelado.

 

- Ouvi dizer que lá havia de comer, senhor - respondeu Thomas.

 

- No entanto - continuou Totesham como se Thomas não tivesse falado -, diz-se que o filho da condessa de Armorica está detido em Roncelets.

 

- Está, senhor? - perguntou Thomas dissimulado.

 

- E se desejais copular - continuou Totesham, ignorando as mentiras de Thomas -, posso recomendar-vos o bordel por trás da capela de Saint Brieuc.

 

- Iremos a Rostrenen - insistiu Thomas.

 

- Nenhum dos meus homens vos acompanhará - disse Totesham, referindo-se àqueles que eram pagos por si, embora restassem ainda os mercenários.

 

Sir Guillaume concordara em acompanhar Thomas, embora não se sentisse muito satisfeito com as possibilidades de êxito. Tinha comprado cavalos para si e para os seus homens, mas calculava que fossem de má qualidade.

 

- Se tivermos de fugir de Roncelets - disse -, seremos derrotados. Portanto levai bastantes homens para lutarmos como deve ser.

 

O primeiro instinto de Thomas fora cavalgar com poucos homens, mas, poucos homens, juntamente com os cavalos de má qualidade, seriam uma presa fácil. Se mais homens os acompanhassem, a expedição seria mais segura.

 

- Mas, afinal, por que vamos? - perguntou Sir Guillaume. - Só para vos meterdes debaixo das saias da viúva?

 

- Porque lhe fiz uma promessa - respondeu Thomas, o que era verdade, embora a opinião de Sir Guillaume fosse mais razoável. - E porque - continuou Thomas - preciso que os nossos inimigos saibam que estou aqui.

 

- Falais de De Taillebourg? - perguntou Sir Guillaume. - Já sabe.

 

- Pensais que sim?

 

- O Irmão Germain já o deve ter informado - disse confidencialmente Sir Guillaume. - Portanto, julgo que o vosso dominicano já esteja em Rennes. A seu tempo virá ter convosco.

 

- Se eu assaltar Roncelets, ouvirão falar de mim - disse Thomas. - Depois, tenho a certeza de que virão.

 

Na Candelária já sabia que poderia contar com Robbie, com Sir Guillaume e com os seus dois homens-de-armas e encontrara mais sete homens que se sentiam atraídos pelas riquezas de Roncelets ou pela perspectiva de que Jeanette ficasse com boa opinião a respeito deles. Robbie queria partir imediatamente, mas Will Skeat, tal como Sir Guillaume, aconselhou Thomas a levar um grupo maior.

 

- Isto não é como o Norte de Inglaterra - disse Skeat. - Não podemos fugir para a fronteira. Aqui somos apanhados, portanto é preciso uma dúzia de homens que saibam usar o escudo e partir cabeças. Penso que devo ir contigo.

 

- Não - recusou apressadamente Thomas. Skeat tinha os seus momentos lúcidos, mas muitas vezes mostrava-se vago e esquecido, embora naquele momento tentasse ajudar Thomas, recomendando que outros homens deviam participar no assalto. A maioria recusou o convite: a Torre de Roncelets ficava demasiado longe, diziam, ou o senhor de Roncelets era demasiado poderoso e os atacantes tinham poucas possibilidades. Alguns receavam ofender Totesham que, temendo perder homens da sua guarnição, decretara que os assaltos nunca deveriam distanciar a mais de um dia de viagem a cavalo da cidade. As suas cautelas significavam que havia poucas possibilidades de pilhagem, e eram apenas os mercenários mais pobres que, desesperados por arranjar qualquer coisa que pudessem transformar em dinheiro, se ofereciam para acompanhar Thomas.

 

- Bastam doze homens - insistiu Robbie. - Meu Deus, tomei parte em bastantes assaltos em Inglaterra. Uma vez, o meu irmão e eu tomámos um rebanho do castelo de Lorde Percy apenas com mais três homens e Percy pôs metade do condado à nossa procura. Entra-se rapidamente e sai-se ainda mais depressa. Doze homens bastam.

 

Thomas quase se deixou convencer pelas palavras fervorosas de Robbie, mas preocupava-o que as possibilidades ainda estivessem demasiado desequilibradas e os cavalos em más condições, para lhes permitirem uma entrada apressada e uma saída ainda mais rápida.

 

- Quero mais homens - disse a Robbie.

 

- Se hesitais muito, o inimigo ouvirá falar de nós - disse-lhe Robbie.

 

- Estarão à nossa espera.

 

- Não saberão onde nos esperar - disse Thomas - nem o que pensar. Espalhara dezenas de rumores acerca do objectivo do assalto na esperança de confundir completamente o inimigo.

 

- Em breve partiremos - prometeu a Robbie.

 

- Meu doce Jesus, mas a quem mais poderemos chamar? - perguntou Robbie. - Vamos partir já.

 

Mas, nesse mesmo dia, chegou um navio a Tréguier com mais três homens-de-armas flamengos. Thomas falou com eles nessa noite numa taberna junto ao rio. Queixaram-se os três que tinham estado nas linhas inglesas de Calais, mas poucos combates havia aí e, portanto, poucas perspectivas de prisioneiros ricos. Queriam tentar a sorte na Bretanha, por isso tinham vindo para La Roche-Derrien. Thomas falou com o chefe, um homem magro com a boca torta e falta de dois dedos na mão direita, que o escutou, resmungou que compreendia e disse que ia pensar no assunto. Na manhã seguinte, os três flamengos chegaram à taberna das Três Raposas e disseram que estavam dispostos a partir.

 

- Viemos para cá para combater - disse o chefe que se chamava Lodewijk. - Por isso, vamos.

 

- Partamos, então! - Robbie insistiu com Thomas.

 

Thomas gostaria de recrutar ainda mais homens, mas sabia que já tinha esperado tempo suficiente.

 

- Vamos, então - disse a Robbie. Foi depois ter com Will Skeat e fez com que o amigo lhe prometesse que vigiaria Jeanette. Ela gostava e confiava em Skeat, e Thomas sabia poder deixar à guarda dela o livro do pai.

 

- Voltaremos dentro de seis ou sete dias - garantiu-lhe.

 

- Deus vos traga em bem - disse Jeanette. Agarrou-se a Thomas por um instante. - Deus te traga em bem - repetiu. - Traz-me o meu filho.

 

Na madrugada seguinte, numa bruma que perlava as longas cotas de malha, os quinze cavaleiros partiram.

 

Lodewijk - insistia em que se chamava Sir Lodewijk, embora os seus dois companheiros soltassem risinhos sempre que o fazia recusava-se a falar francês, afirmando que ao fazê-lo ficava com a língua áspera.

 

- É um povo nojento - afirmou Lodewijk -, os franceses. Nojentos. A palavra está certa, já? Nojentos?

 

- A palavra está certa - concordou Thomas.

 

Jan e Pieter, companheiros de Sir Lodewijk, falavam apenas um flamengo gutural apimentado por uma mão-cheia de impropérios ingleses, sem dúvida aprendidos por eles, perto de Calais.

 

- Que se passa em Calais? - perguntou Thomas a Sir Lodewijk quando se dirigiam para sul.

 

- Nada. A cidade está... como dizer...? - Sir Lodewijk fez um movimento circular com a mão.

 

- Cercada.

 

- Já, a maldita cidade está cercada. Pelos ingleses, já? E pelos... - fez uma pausa, sem saber que palavra usar, mas depois apontou para uma faixa de terreno empapado a leste da estrada. - Por esses.

 

- Pântanos.

 

- Já. Malditos pântanos. E pelos malditos franceses, estão... - mais uma vez, não sabia que palavras usar, de modo que apontou para o céu com o dedo coberto pela luva de malha.

 

- Em terreno mais alto? - arriscou Thomas.

 

- Já. No maldito terreno mais alto. Não é assim tão alto, acho eu, mas é mais alto. E eles... - pôs a mão em pala sobre os olhos, como se os quisesse proteger.

 

- Olham em frente?

 

- Já! Olham uns para os outros. Por isso nada acontece, mas ficam encharcados eles e nós. Encharcados, todos, já?

 

Mais tarde, nessa manhã, ficaram de facto encharcados quando a chuva começou a cair vinda do oceano. Enormes cortinas cinzentas varriam as quintas desertas e charnecas do planalto, onde as árvores se curvavam permanentemente em direcção a leste. Na primeira vez que Thomas viera à Bretanha, encontrara uma terra fértil de quintas, pomares, moinhos e pastagens, mas agora parecia imensamente vazia. As árvores de fruto, desprezadas, estavam cheias de piscos, os campos, sufocados pelas ervas daninhas, e as pastagens cheias de grama. Aqui e ali, algumas pessoas tentavam ganhar a vida, mas eram constantemente obrigadas a ir para La Roche-Derrien trabalhar nas ameias, de modo que as patrulhas inglesas lhes roubavam constantemente as colheitas e o gado. Se esses bretões souberam da passagem dos quinze cavaleiros, tiveram o cuidado de se esconder, de modo que Thomas e os seus companheiros pareciam cavalgar por uma região deserta.

 

Seguiam com um cavalo sobresselente. Deveriam levar mais, pois apenas os três flamengos montavam bons corcéis. As viagens marítimas tinham quase sempre efeitos prejudiciais sobre os cavalos, mas Sir Lodewijk afirmou imediatamente que a viagem fora invulgarmente rápida.

 

- Malditos ventos, já? - agitou a mão e fez um ruído para sugerir a força dos ventos que tinham empurrado tão beneficamente os corcéis. - Rápidos, rápidos como um raio!

 

Os flamengos estavam não só bem montados, como também bem equipados. Jan e Pieter tinham belas lorigas de malha, enquanto Sir Lodewijk tinha o peito, ambas as coxas e um braço protegidos por bom metal, preso com correias sobre uma loriga de malha com costas de couro. Os três usavam túnicas negras, com uma larga risca branca à frente, atrás e todos tinham escudos não decorados, embora o caparazão do cavalo de Sir Lodewijk exibisse um emblema com uma faca a pingar sangue. Tentou explicar a figura, mas o seu inglês não lhe era suficiente e Thomas ficou com a vaga impressão de que se tratava do emblema de uma guilda de Bruges.

 

- Carniceiros? - sugeriu a Robbie. - Foi o que ele disse? Carniceiros?

 

- Os malditos carniceiros não entram em guerras. Excepto com porcos - disse Robbie. Estava de óptimo humor. Os assaltos estavam-lhe no sangue e ouvira histórias nas tabernas de La Roche-Derrien acerca da pilhagem que poderia ser roubada, se um homem estivesse disposto a quebrar as regras de Richard Totesham e se afastasse para mais de um dia de viagem da cidade.

 

- O problema, no Norte de Inglaterra - disse a Thomas -, é que o que vale a pena roubar está por trás das muralhas. Arranjamos algum gado de vez em quando, e há um ano roubei um belo cavalo do meu Lorde Percy, mas nada de ouro ou prata. Nada a que se possa chamar um verdadeiro saque. As taças das igrejas são feitas de madeira, chumbo ou barro e as caixas das esmolas são mais pobres que os pobres. Quando se cavalga muito para sul, os canalhas estão à nossa espera no regresso. Odeio os malditos arqueiros ingleses.

 

- Eu sou um maldito arqueiro inglês.

 

- Sois diferente - disse Robbie, e dizia-o com sinceridade, porque Thomas o intrigava. A maioria dos arqueiros nascera no campo, eram filhos de pequenos agricultores, ferreiros ou beleguins, alguns eram filhos de trabalhadores rurais, mas, segundo a experiência de Robbie, nenhum deles era bem-nascido, ao contrário de Thomas, que, sem sombra de dúvida, o era pois falava latim e francês, mostrava-se à vontade na companhia de fidalgos e os outros arqueiros mostravam-lhe respeito. Robbie poderia parecer um violento guerreiro escocês, mas era filho de um fidalgo e sobrinho do Cavaleiro de Liddesdale, portanto, via os arqueiros como seres inferiores que, num universo apropriadamente arranjado, podiam ser atropelados e mortos como peças de caça. Porém, gostava de Thomas.

 

- Sois completamente diferente - disse. - Olhai, quando o meu resgate for pago e eu estiver descansado e em casa, volto para vos matar.

 

Thomas riu-se, mas com um riso forçado. Sentia-se nervoso. Atribuiu o nervosismo ao facto de se encontrar na posição pouco familiar de comandar um assalto. A ideia fora sua e fora ele quem fizera as promessas que tinham trazido a maioria daqueles homens para uma cavalgada tão distante. Afirmara que Roncelets, estando tão longe de qualquer bastião inglês, ficava numa região não saqueada. Arrebatassem a criança, prometera-lhes, e poderiam pilhar a cidade enquanto o desejassem, ou até que o inimigo acordasse e organizasse a busca; a promessa tinha persuadido os homens a seguirem-no e essa responsabilidade pesava sobre Thomas. Não lhe agradava sentir-se preocupado. Afinal a sua ambição sempre fora ser chefe de um bando guerreiro como o de Will Skeat, antes de este ter sofrido o seu grave ferimento e que esperanças poderia ter de o ser se ficava aflito com um pequeno assalto como aquele? Sim, estava aflito e preocupava-se principalmente por poder não ter previsto tudo aquilo que pudesse correr mal; os homens que se lhe tinham juntado pouco consolo lhe davam, pois, excepto os amigos e os recém-chegados flamengos, eram os mais pobres e os mais mal equipados de todos os aventureiros que tinham chegado a La Roche-Derrien em busca de riqueza. Um deles, um homem-de-armas quezilento da Bretanha Ocidental, embebedou-se no primeiro dia e Thomas descobriu que trazia consigo dois odres de água cheios de uma forte aguardente de maçã. Rasgou os dois odres, o que fez com que o enraivecido bretão puxasse da espada e atacasse Thomas, mas como estava demasiado bêbado para ver bem, uma joelhada nas partes baixas e uma pancada na cabeça deitaram-no abaixo. Thomas levou o cavalo e deixou o homem a gemer na lama, o que significou que ficava reduzido a catorze homens.

 

- Bela ajuda - disse Sir Guillaume em tom alegre. Thomas nada disse. Pensou que merecia a troça.

 

- Não, estou a falar verdade! Hoje haveis deitado abaixo um homem e podeis fazê-lo de novo. Sabeis porque alguns homens são maus chefes?

 

- Porquê?

 

- Porque querem ser amados.

 

- E isso é mau? - perguntou Thomas.

 

- Os homens querem admirar os seus chefes, querem temê-los e sobretudo querem que eles sejam bem-sucedidos. O que tem isto a ver com o ser-se amado? Se o chefe é um bom homem será amado e se não for não o será, mas se for bom homem e mau chefe o melhor é que morra. Entendeis? Sou muito sábio - disse Sir Guillaume a rir. Poderia estar com falta de sorte, ter perdido as suas propriedades e a fortuna, mas preparava-se para um assalto, o que o entusiasmava. - O que esta chuva tem de bom - disse - é que o inimigo não espera que andemos por aí a cavalo. Está tempo para se ficar em casa.

 

- Saberão que saímos de La Roche-Derrien - disse Thomas. Estava certo de que Charles de Blois tinha vários espiões na cidade, da mesma forma que os ingleses tinham em Rennes.

 

- Ainda não o deve saber, pois viajamos mais depressa do que qualquer mensagem - disse Sir Guillaume. - Seja como for, quando se aperceberem de que saímos de La Roche-Derrien não saberão para onde fomos.

 

Dirigiram-se para sul na esperança de que o inimigo pensasse que planeavam pilhar as quintas perto de Guingamp em busca de comida, depois, ao fim do primeiro dia, voltaram para oriente e subiram a um terreno alto e vazio. As aveleiras estavam em flor e as gralhas chamavam-nos do cimo dos ulmeiros nus, sinal de que o ano se afastava já do Inverno.

 

Acamparam numa quinta deserta, abrigada por baixas paredes de pedra queimada e, antes de o Sol se pôr completamente, tiveram um bom augúrio quando Robbíe, que escavava por entre as ruínas do celeiro, descobriu um saco de couro meio enterrado num muro desfeito. A chuva torrencial varrera a terra de cima do saco que continha uma pequena placa de prata e três punhados de moedas. Quem quer que tivesse enterrado o dinheiro deveria ter pensado que as moedas eram demasiado pesadas para transportar, ou então receara ser roubado durante o seu exílio, longe de casa.

 

- Nós, como dizeis...? - Sir Lodewijk fez um movimento de cortar com a mão como se cortasse um empadão.

 

- Dividimos?

 

- Ja! Dividimos?

 

- Não - disse Thomas. Não fora esse o acordo. Teria preferido dividir, pois fora sempre assim que Will Skeat tratara os despojos, mas os homens que o acompanhavam queriam guardar tudo o que encontrassem.

 

Sir Lodewijk irritou-se.

 

- É assim que fazemos, já? Dividimos.

 

- Não dividimos - contrapôs asperamente Sir Guillaume. - Foi isso o acordado. - Falou francês e Sir Lodewijk reagiu como se ficasse espantado, mas percebeu muito bem e afastou-se.

 

- Dizei ao vosso amigo escocês para tomar cuidado - disse Sir Guillaume a Thomas.

 

- Lodewijk não é assim tão mau - disse Thomas. - Não gostais dele por ser flamengo.

 

- Odeio os flamengos - concordou Sir Guillaume. - São preguiçosos e estúpidos. Como os ingleses.

 

O pequeno desentendimento com os flamengos não teve mais repercussões. Na manhã seguinte, Sir Lodewijk e os seus companheiros estavam com ar alegre e, como os cavalos estavam mais frescos e eram mais fortes que os outros, ofereceram-se, por meio de muitas frases num inglês entrecortado e linguagem gestual a cavalgarem adiante como batedores. Durante todo o dia as suas camisas pretas e brancas apareciam e desapareciam ao longe, avisando o resto do grupo que não havia perigo. Quanto mais se internavam em território inimigo, maior era o risco, mas a vigilância dos flamengos significava que faziam bons progressos. Serpenteavam, descrevendo um caminho de ambos os lados da estrada principal, que corria a oriente e a ocidente da espinha da Bretanha, uma estrada ladeada por bosques frondosos, que escondiam os cavaleiros da pouca gente que nela viajava. Viram apenas duas pessoas com o seu magro gado e um padre que conduzia um grupo de peregrinos descalços a agitar ramos e a cantar uma ladainha. Nada que se pudesse aproveitar.

 

No dia seguinte seguiram de novo para sul. Entravam agora numa região em que as quintas haviam escapado aos atacantes ingleses e, por isso, as pessoas não receavam os cavaleiros e as pastagens estavam cheias de ovelhas com os seus cordeiros recém-nascidos, muitos deles transformados em retalhos ensanguentados porque os bretões, demasiado ocupados em caçar-se uns aos outros, se tinham esquecido das raposas que medravam, enquanto os cordeiros morriam. Os cães pastores ladravam aos homens cobertos de malha cinzenta. Thomas já não queria os flamengos à frente, preferindo conduzir ele e Sir Guillaume os cavaleiros. Se alguém os interrogava, respondiam em francês, afirmando ser apoiantes de Charles de Blois. ”Onde fica Roncelets?”, perguntavam constantemente e, a princípio, não encontraram ninguém que o soubesse, mas, à medida que a manhã avançava, descobriram um homem que pelo menos tinha ouvido falar do local, depois outro que disse que o pai já lá tinha estado e que pensava que fosse do outro lado do cimo do monte, depois da floresta e do rio e um terceiro que lhes deu indicações mais precisas. A torre, disse, não ficava a mais de meio-dia de viagem, no extremo oposto de um longo cume arborizado entre dois rios. Mostrou-lhes onde atravessarem a vau o curso de água mais próximo, disse-lhes que seguissem o cume do monte em direcção a sul e, a seguir, inclinou a cabeça agradecendo a moeda que Thomas lhe ofereceu.

 

Atravessaram o rio, subiram o monte e cavalgaram para sul. Thomas sabia que deveriam estar perto de Roncelets quando pararam na terceira noite, mas não insistiu pois calculou ser melhor chegar à torre de madrugada; assim acamparam sob as faias, tremendo de frio, pois não se atreviam a acender uma fogueira. Thomas dormiu mal, porque escutou coisas estranhas, estalos e restolhar no interior do bosque e receou que aqueles ruídos pudessem ser feitos pelas patrulhas enviadas pelo senhor de Roncelets. Porém nenhuma patrulha os encontrou. Thomas duvidava que existissem excepto na sua imaginação, mas, mesmo assim, não conseguia adormecer. Então, muito cedo, enquanto os outros ainda ressonavam, andou aos tropeções por entre as árvores até onde o flanco do monte caía abruptamente e ficou a olhar a noite, na esperança de ver o cintilar de uma luz escondida nas ameias da Torre de Roncelets. Nada viu, mas ouviu as ovelhas a balir que dava dó e pensou que andasse uma raposa entre os cordeiros, para os dizimar.

 

- O pastor não está a fazer o que lhe compete - disse alguém em francês e Thomas voltou-se, pensando que se tratava de um dos homens-de-armas de Sir Guillaume, vendo afinal, à fraca luz da lua, que se tratava de Sir Lodewijk.

 

- Pensei que não sabíeis falar francês - disse Thomas.

 

- Há alturas em que sei - respondeu Sir Lodewijk e veio postar-se junto de Thomas, para, sorrindo, enfiar um pau improvisado no estômago de Thomas. Quando este tentou recuperar o fôlego e se dobrou, o flamengo bateu-lhe com o ramo quebrado sobre a cabeça, para depois lhe dar um pontapé no peito. O ataque foi súbito, inesperado e avassalador. Thomas esforçava-se por respirar, dobrado sobre si mesmo, cambaleando e, quando tentou erguer-se e meter os dedos nos olhos de Sir Lodewijk, o pau bateu-lhe com uma pancada que lhe ressoou no lado da cabeça. Thomas caiu.

 

Os três cavalos dos flamengos estavam atados às árvores a alguma distância dos outros. Ninguém tal achara estranho e ninguém reparara que os animais tinham ficado selados, bem como ninguém acordou quando os cavalos foram desamarrados e levados dali. Apenas Sir Guillaume se mexeu, quando Sir Lodewijk apanhou as peças da sua armadura de metal.

 

- Já é de manhã? - perguntou.

 

- Ainda não - respondeu Sir Lodewijk, em francês e em voz baixa, levando a seguir a sua armadura e armas até à saída do bosque, onde Jan e Pieter atavam os pulsos e os tornozelos de Thomas. Atiraram-no de barriga para baixo por cima da sela do cavalo, ataram-no à correia da cilha do animal e depois levaram-no para leste.

 

Sir Guillaume acordou completamente vinte minutos depois. Os pássaros enchiam as árvores de canções e o sol era um mero raio de luz no oriente cheio de bruma.

 

Thomas tinha desaparecido. A sua cota de malha, o seu saco das flechas, a sua espada, o elmo, a capa, a sela e o enorme arco negro estavam ali, porém Thomas e os três flamengos tinham partido.

 

Thomas foi levado para a Torre de Roncelets, uma fortaleza quadrada, sem adornos, erguida num afloramento de rocha, muito acima da curva de um rio. Uma ponte, feita da mesma pedra cinzenta que a torre, fazia passar sobre o rio a estrada para Nantes e os mercadores não a podiam atravessar com as suas mercadorias sem pagarem direitos ao senhor de Roncelets, cujo pendão com dois chaveirões negros num campo amarelo voava sobre as altas ameias da torre. Os seus homens usavam uma libré com riscas amarelas e negras e eram inevitavelmente chamados guêpes, vespas. Naquela longínqua ponta da Bretanha falava-se francês e a torre recebera o nome de Guêpier, ninho de vespas, embora naquela manhã de finais de Inverno a maioria dos soldados da aldeia vestisse simples librés negras e não as riscas do senhor de Roncelets. Os recém-chegados foram abrigados nas pequenas casas entre o Guêpier e a ponte e foi numa delas que Sir Lodewijk e os seus dois companheiros se juntaram aos seus camaradas.

 

- Ele está lá em cima no castelo - Sir Lodewijk apontou com a cabeça na direcção da torre. - Que Deus o ajude.

 

- Não houve problema? - perguntou um dos homens.

 

- Nenhum - respondeu Sir Lodewijk. Sacara de uma faca e cortava agora as riscas brancas que tinham sido cosidas sobre a sua camisa. - Tornou as coisas muito fáceis para nós. Um inglês completamente idiota, não?

 

- Então, porque o querem?

 

- Só Deus sabe. E não interessa? O que importa é que já o têm e, em breve, o entregarão ao diabo. - Sir Lodewijk soltou um enorme bocejo. Há mais uma dúzia deles no bosque por isso vamos buscá-los.

 

Cinquenta cavaleiros afastaram-se para leste da aldeia. Ouviu-se o enorme ruído dos cascos, das correntes dos freios e os estalos do couro das armaduras, que rapidamente se desvaneceu ao entrarem nos frondosos bosques do monte. Um casal de pica-peixes, azul-cintilantes, ergueu-se do rio e desapareceu nas sombras. Longas algas ondeavam na corrente, onde uma luz prateada mostrava que os salmões estavam de regresso. Uma rapariga transportava um balde de leite pela rua da aldeia e chorava porque nessa noite tinha sido violada por um dos soldados de libré negra, sabendo que seria inútil queixar-se, pois ninguém a protegeria ou apresentaria sequer um protesto em seu favor. O padre da aldeia viu-a, compreendeu a razão do seu choro e deu meia volta para não ter de a enfrentar. A bandeira negra e amarela nas ameias do Guêpier bateu com uma pequena rajada de vento e depois caiu. Dois jovens, com falcões de cabeça coberta poisados nos braços, saíram a cavalo da torre em direcção a sul. A enorme porta gradeada fechou-se atrás deles e o som da sua pesada tranca de ferro a cair nos suportes ouviu-se por toda a aldeia.

 

Thomas também a ouviu. O som fez estremecer a pedra com a qual o Guêpier era construído, e reverberou pela escada de caracol até ao aposento nu e comprido para onde o tinham levado. A câmara estava iluminada por duas janelas, mas a parede era tão grossa e as seteiras tão profundas que Thomas, acorrentado entre as janelas, não conseguia ver através de nenhuma delas. Uma lareira vazia encontrava-se na parede oposta, com as pedras da chaminé manchadas de negro. As largas tábuas de madeira do chão estavam marcadas e gastas por muitas botas cardadas, o que fez com que Thomas pensasse que o aposento tinha sido uma caserna. Provavelmente ainda o seria, mas agora era necessário para ser a sua prisão, portanto os homens-de-armas tinham recebido ordens para sair e para Thomas entrar manietado a um anel de ferro metido na parede entre as duas janelas. As grilhetas que lhe prendiam os pulsos atrás das costas estavam ligadas ao anel de ferro da parede por três pés de corrente. Experimentara o anel, para ver se o podia fazer mudar de posição ou, pelo menos, partir um elo da cadeia, mas apenas conseguiu magoar os pulsos. Uma mulher riu-se algures dentro da torre. Soaram passos nas escadas de caracol, do lado de fora da porta, mas ninguém entrou no aposento e o barulho desapareceu.

 

Thomas perguntou a si próprio porque teria o anel de ferro sido cimentado à parede. Parecia uma coisa estranha para ter numa torre tão alta, onde um cavalo nunca precisaria de ser preso. Talvez lá tivesse sido colocado aquando da construção do castelo. Uma vez vira homens içarem pedras até ao cimo da torre de uma igreja, usando uma roldana presa a um anel como aquele. Seria melhor pensar no anel, nas pedras e nos pedreiros que tinham construído a torre do que reflectir na idiotice de ter sido tão facilmente capturado, ou interrogar-se sobre o que lhe iria acontecer em breve, embora fizesse tudo isso e a resposta da sua imaginação não fosse de modo algum reconfortante. Puxou de novo o anel, na esperança de que ali estivesse há muito tempo e que o cimento que lá o mantinha tivesse enfraquecido. Porém, tudo o que conseguiu foi ferir a pele dos pulsos nas bordas aguçadas das grilhetas. A mulher riu-se de novo e soou a voz de uma criança.

 

Um pássaro entrou por uma das janelas, bateu as asas durante algum tempo e depois desapareceu de novo, rejeitando certamente o aposento como local para fazer o ninho. Thomas fechou os olhos e recitou em voz baixa a oração do Graal, a mesma que Cristo murmurara no jardim de Gétsémani: ”Pater, si vis, transfer calicem istum a me.” Pai, peço-vos, afastai de mim este cálice. Thomas repetiu a prece uma e outra vez, suspeitando que estava a gastar fôlego em vão. Deus não tinha poupado ao seu próprio filho a agonia do Gólgota, porque haveria de poupar a de Thomas? Porém, que esperança poderia ter sem a oração? Queria chorar a sua ingenuidade, ao pensar que poderia vir até aqui e arrebatar uma criança daquele bastião que cheirava a fumo de lenha, esterco de cavalo e gordura rançosa. Tudo tinha sido tão estúpido, ainda por cima por saber que não o fizera pelo Graal, mas para impressionar Jeanette. Fora um idiota, um perfeito idiota e como um idiota tinha caído na armadilha estendida pelo inimigo e não seria resgatado. Que valor teria ele? Então, porque estaria ainda vivo? Porque queriam dele alguma coisa. Neste momento a porta abriu-se e Thomas abriu os olhos.

 

Um homem com um hábito negro de monge entrou no aposento com dois cavaletes. Não tinha o cabelo tonsurado, o que levava a crer que era um criado leigo de um mosteiro.

 

- Quem sois? - perguntou Thomas.

 

O homem, que era baixo e coxeava ligeiramente, não respondeu, limitando-se a colocar os dois cavaletes no centro do aposento, e momentos depois entrou com cinco tábuas que colocou atravessadas sobre os cavaletes para fazer uma mesa. Um segundo homem não tonsurado, igualmente vestido de negro, entrou no aposento e olhou para Thomas.

 

- Quem sois? - perguntou de novo Thomas, mas o segundo homem ficou tão silencioso como o primeiro. Era um homem alto, com uma testa saliente sobre os olhos e faces encovadas. Inspeccionou Thomas como se olha para um boi à entrada do matadouro.

 

- Ides acender a fogueira? - perguntou o primeiro.

 

- Daqui a pouco - respondeu o segundo homem, desembainhando uma faca de lâmina curta do cinto e encaminhando-se para junto de Thomas.

 

- Se não vos moverdes, não vos magoarei - resmungou.

 

- Quem sois?

 

- Ninguém que conheçais ou que possais vir a conhecer - respondeu o homem, agarrando o colarinho do gibão de lã que Thomas tinha vestido e, rasgando-o à frente com um golpe violento. A lâmina tocou, mas não feriu, a pele de Thomas. Este encolheu-se, mas o homem foi atrás, rasgando e puxando-lhe a roupa, até que o peito de Thomas ficou descoberto. Depois puxou as mangas e despiu-lhe o gibão, deixando-o nu da cintura para cima. A seguir o homem apontou para o pé direito de Thomas.

 

- Erguei-o - ordenou. Thomas hesitou e o homem soltou um suspiro.

 

- Posso obrigar-vos - disse. - Vou magoar-vos, ou podeis fazê-lo sozinho e nada sofrereis.

 

Descalçou-lhe as duas botas e depois cortou-lhe o cós das calças.

 

- Não - protestou Thomas.

 

- Não gasteis o vosso fôlego - disse o homem e abriu, puxou e cortou com a faca até ter rasgado as calças de modo a poder retirá-las para deixar Thomas nu e a tremer de frio. O homem pegou nas botas e nas roupas rasgadas e saiu do aposento.

 

O outro homem entrava com coisas que ia colocando sobre a mesa. Um livro, um frasco, possivelmente de tinta, pois o homem colocara duas penas de ganso ao lado do livro e uma pequena faca de cabo de marfim para afiar as penas. Depois poisou um crucifixo sobre a mesa, duas velas enormes, como as que adornam os altares das igrejas, três atiçadores, um par de pinças e um curioso instrumento que Thomas não conseguia ver bem. Por fim, colocou duas cadeiras atrás da mesa e um balde de madeira ao alcance de Thomas.

 

- Sabeis para que serve, não é verdade? - perguntou, empurrando o balde com o pé.

 

- Por favor! Quem sois?

 

- Não queremos que sujeis o chão.

 

O homem mais alto voltou ao aposento com acendalhas e um cesto com troncos.

 

- Pelo menos estareis quente - disse para Thomas com evidente divertimento. Tinha uma pequena panela de barro cheia de brasas que usou para pôr a arder as acendalhas, depois empilhou os troncos mais pequenos e estendeu as mãos para as chamas que, a pouco e pouco, aumentavam.

 

- Que calor agradável - disse. - Uma bênção neste Inverno. Nunca vi outro igual! Tanta chuva! Deveríamos construir uma arca.

 

Ao longe, um sino tocou duas vezes. O lume começou a crepitar e algum fumo saiu para o aposento, talvez porque a chaminé estivesse fria.

 

- O que ele de facto gosta - disse o homem grande que acendera o lume - é de uma braseira.

 

- Quem? - perguntou Thomas.

 

- Gosta sempre de uma braseira, mas eu disse-lhe que num chão de madeira não podia ser.

 

- Quem? - perguntou Thomas.

 

- Não quero queimar isto tudo! Uma braseira não, disse-lhe eu. No chão de madeira não pode ser, portanto usamos a lareira. - O homem grande olhou o fogo durante algum tempo. - Parece-me que já está a arder bem, não parece? - Amontoou mais meia-dúzia de troncos maiores no lume e depois afastou-se. Lançou a Thomas um olhar natural, abanou a cabeça como se nada mais se pudesse fazer ao prisioneiro e, depois, os dois homens abandonaram o aposento.

 

A lenha estava seca, portanto as chamas erguiam-se muito altas, rápidas e violentas. Entrou mais fumo no aposento, para logo sair pelas janelas. Thomas num súbito gesto de raiva, puxou pelas grilhetas, servindo-se de toda a sua força de arqueiro para arrancar o anel de ferro da parede, mas apenas conseguiu inserir ainda mais as grilhetas de ferro nos seus pulsos ensanguentados. Olhou para o tecto formado por simples tábuas de madeira, presumivelmente o chão do quarto que ficava por cima. Não ouvira passos, mas depois sentiu alguém do lado de lá da porta e recuou para junto da parede.

 

Entraram uma mulher e uma criança. Thomas encolheu-se para esconder a sua nudez e a mulher troçou da sua modéstia. A criança também riu e Thomas levou alguns segundos a aperceber-se de que se tratava de Charles, filho de Jeanette, que o olhava com interesse e curiosidade, mas que não o reconhecera. A mulher era alta, loura, muito bonita e pesadamente grávida. Trajava um vestido azul-pálido, apertado por cima do ventre inchado, enfeitado com renda branca e pequenas argolas de pérolas. Na cabeça trazia uma pirâmide azul com um pequeno véu, que afastou dos olhos para melhor poder ver Thomas. Este ergueu os joelhos para se esconder, mas a mulher atravessou descaradamente o aposento para olhar para ele.

 

- Que pena - disse.

 

- Pena? - perguntou Thomas. Ela não explicou.

 

- Sois realmente inglês? - perguntou e pareceu irritada por ele não ter respondido. - Estão a fazer uma roda lá em baixo, inglês. Manivelas e cordas para vos esticarem. Já haveis visto um homem depois de ter estado na roda? Fica descaído. É divertido, mas julgo que não para o próprio homem.

 

Thomas fingiu não a ouvir, preferindo olhar o menino que tinha um rosto redondo, cabelo negro e os olhos negros e brilhantes de Jeanette, sua mãe.

 

- Charles, lembras-te de mim? - perguntou Thomas, mas o rapazinho limitou-se a olhar para ele sem perceber. - A tua mãe manda-te saudades

- disse Thomas e viu a surpresa estampada no rosto do rapaz.

 

- Mamã? - perguntou Charles, que tinha quase quatro anos.

 

A mulher pegou na mão de Charles e arrastou-o dali, como se Thomas tivesse alguma doença.

 

- Quem sois? - perguntou zangada.

 

- A tua mãe adora-te, Charles - disse Thomas ao rapazinho que tinha os olhos muito abertos.

 

- Quem sois? - insistiu a mulher, que logo se voltou quando alguém empurrou a porta e a abriu.

 

Um padre dominicano entrou. Era muito magro e alto, com cabelo curto e grisalho, e um rosto feroz. Franziu a testa ao ver a mulher e a criança.

 

- Não devíeis estar aqui, Senhora - disse asperamente.

 

- Esqueceis-vos de quem manda aqui, padre - retorquiu a mulher grávida.

 

- O vosso esposo - disse o padre, com firmeza. - E ele não há-de querer-vos aqui, por isso ide-vos embora. - O padre manteve a porta aberta e a mulher, que Thomas calculou ser a Senhora de Roncelets hesitou por um instante e depois saiu. Charles olhou de novo para trás, mas foi arrastado do aposento justamente no momento em que outro dominicano entrou, este mais jovem, mais baixo e calvo, com uma toalha dobrada sobre um braço e uma tigela com água nas mãos. Seguiam-no dois criados envergando hábito que se dirigiram de mãos postas e olhos baixos para junto do fogo. O primeiro padre, o magro, fechou a porta e, depois, ele e o seu companheiro dirigiram-se à mesa.

 

- Quem sois? - perguntou Thomas ao padre magro, embora suspeitasse de qual seria a resposta. Tentava recordar-se daquela manhã de neblina em Durham quando vira De Taillebourg lutar contra o irmão de Robbie. Pensava que fosse o mesmo homem que assassinara Eleanor ou que ordenara a sua morte, mas não estava completamente certo.

 

Os dois padres ignoraram-no. O homem mais baixo poisou a água e a toalha sobre a mesa e depois ajoelharam-se ambos.

 

- Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo - disse o padre mais velho, fazendo o sinal da cruz. - Ámen. - Levantou-se, abriu os olhos e fitou Thomas, que continuava agachado sobre as tábuas picadas. - Sois Thomas de Hookton, filho bastardo do padre Ralph, prior dessa paróquia? - perguntou formalmente.

 

- Quem sois?

 

- Respondei, por favor - disse o dominicano.

 

Thomas fitou o padre nos olhos e reconheceu neles uma força terrível, à qual percebeu que não se atreveria a ceder. Tinha de resistir desde o início, de modo que nada disse.

 

O padre suspirou com aquela mostra de mesquinha obstinação.

 

- Sois Thomas de Hookton - declarou. - Lodewijk assim o disse. Nesse caso, as minhas saudações, Thomas. Chamo-me Bernard de Taillebourg e sou frade da Ordem de São Domingos e, pela graça de Deus e às ordens do Santo Padre, Inquisidor da Fé. O meu irmão em Cristo - aqui De Taillebourg apontou para o padre mais novo, que se tinha instalado à mesa, onde abriu um livro, logo pegando numa das penas - é o padre Cailloux, que é também Inquisidor da Fé.

 

- Sois um canalha - disse Thomas, olhando para De Taillebourg. - Sois um canalha assassino.

 

Bem poderia ter poupado o fôlego, pois De Taillebourg não mostrou qualquer reacção.

 

- Levantai-vos, por favor - exigiu o padre.

 

- Sois um bastardo assassino e sem mãe - disse Thomas, sem se mexer. De Taillebourg fez um pequeno gesto e os dois criados aproximaram-se

 

rapidamente, pegaram em Thomas pelos braços e puseram-no de pé à força, quando ele ameaçou deixar-se cair. Depois, o mais alto esbofeteou-o com força, magoando ainda mais a nódoa negra deixada pela pancada desferida por Sir Lodewijk antes de o Sol nascer. De Taillebourg esperou até que os homens voltassem para junto do fogo.

 

- Fui encarregado pelo cardeal Bessières - disse em voz átona -, de descobrir o paradeiro de uma relíquia e fomos informados que nos podeis ajudar nesse assunto; como tal é considerado da maior importância sermos empossados pela Igreja e por Deus Todo-Poderoso para termos a certeza de que nos dizeis a verdade. Compreendeis o que vos digo, Thomas?

 

- Haveis matado a minha mulher - disse Thomas. - Um dia, padre, ireis arder no Inferno e os demónios dançarão sobre o vosso engelhado traseiro.

 

Mais uma vez, De Taillebourg não mostrou qualquer reacção. Não ocupava a sua cadeira, deixando-se ficar de pé, alto e direito como uma flecha por trás da mesa sobre a qual poisara a ponta dos dedos longos e pálidos.

 

- Sabemos - disse - que o vosso pai talvez tenha possuído o Graal e sabemos que vos entregou um livro no qual escreveu um relato dessa relíquia tão preciosa. Digo-vos que sabemos destes assuntos, por isso não desperdiceis o nosso tempo ou a vossa dor negando os factos. Porém, precisamos de saber mais e é por isso que aqui estamos. Compreendeis, Thomas?

 

- O demónio há-de urinar dentro da vossa boca, padre e defecar nas vossas narinas.

 

De Taillebourg pareceu levemente ofendido, como se a crueza de Thomas fosse enfadonha.

 

- A Igreja confere-me a autoridade de vos questionar, Thomas - continuou em voz doce. - Mas na sua infinita misericórdia também nos ordena que não derramemos sangue. Podemos usar dor, é mesmo nosso dever usá-la, mas tem de ser dor sem derramamento de sangue. Significa que podemos usar o fogo - os seus longos dedos pálidos tocaram um dos atiçadores sobre a mesa - e podemos esmagar-vos e esticar-vos e Deus perdoar-nos-á, pois tudo isto será feito em Seu nome e ao Seu divino serviço.

 

- Ámen - disse o irmão Cailloux e, tal como os dois criados, fez o sinal da cruz. De Taillebourg empurrou os três atiçadores para a beira da mesa e o criado mais baixo atravessou o aposento, pegou nos ferros e enfiou-os no lume.

 

- Não empregamos dor de ânimo leve ou sem justificação - disse De Taillebourg. - Mas com uma tristeza devota, piedade e uma triste preocupação pela vossa alma imortal.

 

- Sois um assassino - disse Thomas - e a vossa alma arderá no Inferno.

 

- Bom - continuou De Taillebourg, aparentemente indiferente aos insultos de Thomas. - Vamos começar pelo livro. Em Caen haveis dito ao Irmão Germain que o vosso pai o escreveu. É verdade?

 

E foi assim que começou. Um leve questionário a princípio, ao qual Thomas não deu resposta, pois estava consumido pelo ódio que tinha a De Taillebourg, um ódio alimentado pela recordação do corpo pálido e ensanguentado de Eleanor; mas o questionário tornou-se mais insistente e incessante e a ameaça de uma dor horrorosa mantinha-se nos três atiçadores que aqueciam ao fogo. Por isso Thomas convenceu-se de que De Taillebourg sabia algumas coisas e pouco mal faria dizer-lhe as outras. Além do mais, o dominicano parecia tão razoável e paciente. Suportou a ira de Thomas, ignorou as ofensas, exprimiu uma e outra vez a sua pouca vontade em usar a tortura e disse que apenas queria a verdade, por muito inadequada que ela fosse. Assim, uma hora depois, Thomas começou a responder. Porquê sofrer, perguntou a si próprio, quando não possuía aquilo que o dominicano queria? Não sabia onde se encontrava o Graal, nem sequer tinha a certeza da sua existência e, por isso, a princípio hesitante e depois mais disposto, falou. Havia um livro, sim, e escrito em grande parte em línguas e em escritas estranhas; Thomas afirmou desconhecer o significado dessas misteriosas passagens. Quanto ao resto, admitiu saber latim e afirmou ter lido essas partes do livro, mas considerou-as vagas, repetitivas e inúteis.

 

- Eram apenas histórias - disse.

 

- Que tipo de histórias?

 

- Um homem recebeu de novo o dom da vista depois de olhar para o Graal, mas depois, desapontado com o seu desaparecimento, voltou a perdê-la.

 

- Deus seja louvado - exclamou o padre Cailloux, mergulhando seguidamente a pena em tinta e assentando a ocorrência do milagre.

 

- Que mais? - perguntou De Taillebourg.

 

- Histórias de soldados que venciam batalhas por causa do Graal, histórias de curas - disse Thomas.

 

- Acreditais nelas?

 

- Nas histórias? - Thomas fingiu pensar, depois acenou afirmativamente. - Se Deus nos deu o Graal, padre - disse -, ele certamente operará milagres.

 

- O vosso pai possuía o Graal?

 

- Não sei.

 

Então, De Taillebourg perguntou-lhe acerca do padre Ralph, e Thomas contou-lhe como o pai caminhara sobre a pedregosa praia de Hookton lamentando os seus pecados e por vezes pregando para os animais selvagens do mar e do céu.

 

- Quereis dizer que estava louco? - perguntou De Taillebourg.

 

- Estava louco com Deus - respondeu Thomas.

 

- Louco com Deus - repetiu De Taillebourg, como se as palavras o intrigassem. - Sugeris que ele fosse um santo? - perguntou De Taillebourg?

 

- Julgo que muitos santos tenham sido como ele - replicou Thomas, cautelosamente. - Mas troçava muito das superstições.

 

- Que quereis dizer com isso?

 

- Gostava muito de São Guinefort - disse Thomas. - Invocava-o sempre que acontecia qualquer problema sem importância.

 

- E isso é troça? - perguntou De Taillebourg.

 

- São Guinefort era um cão - disse Thomas.

 

- Eu sei quem era São Guinefort - disse De Taillebourg teimosamente. - Quereis então dizer que Deus não poderia usar um cão para levar a cabo as suas divinas intenções?

 

- Digo-vos que o meu pai não acreditava que um cão pudesse ser santo, por isso troçava dele

 

- Troçou do Graal?

 

- Nunca - respondeu sinceramente Thomas. - Nem uma única vez.

 

- E no seu livro dizia como tinha entrado na posse do Graal? - perguntou De Taillebourg, revertendo para um assunto anterior.

 

Nos últimos momentos, Thomas tivera consciência de que havia alguém, de pé, do outro lado da porta. De Taillebourg fechara-a, mas a tranca fora silenciosamente erguida e a porta empurrada e entreaberta. Alguém estava ali à escuta e Thomas concluiu que se trataria da Senhora de Roncelets.

 

- Nunca afirmou que o Graal tivesse estado na sua posse - ripostou. Mas sim que já pertencera à sua família.

 

- Já pertencera - disse simplesmente De Taillebourg. - Aos Vexilles.

 

- Sim - replicou Thomas e teve a certeza de que a porta se movera uma nesga.

 

A pena do padre Cailloux raspava no pergaminho. Tudo o que Thomas dizia estava a ser escrito, o que o fez recordar-se de um pregador franciscano que vagueava pela feira de Dorchester gritando para as pessoas que cada pecado que tivessem cometido seria escrito num grande livro no céu, e quando morressem e fossem julgados diante de Deus o livro seria aberto e os seus pecados lidos; então George Adyn fizera toda a gente rir gritando que não havia tinta suficiente na Cristandade para escrever o que o irmão andava a fazer com Dorcas Churchill em Puddletown. O franciscano respondera irado que os pecados eram gravados com letras de fogo, o mesmo fogo que assaria os adúlteros nas profundezas do inferno.

 

- E quem é Hachaliah? - perguntou De Taillebourg.

 

Thomas ficou surpreendido pela pergunta e hesitou. Depois tentou fazer-se desentendido.

 

- Quem?

 

- Hachaliah - repetiu pacientemente De Taillebourg.

 

- Não sei - disse Thomas.

 

- Julgo que sabeis - declarou De Taillebourg em voz baixa. Thomas olhou para o rosto forte e ossudo do padre. Recordou-lhe o rosto do pai, pois tinha a mesma feroz determinação, uma dura interioridade, que indicava que aquele homem não se preocuparia com o que os outros pudessem pensar do seu comportamento, porque apenas daria justificações a Deus.

 

- O Irmão Germain falou nesse nome - disse cautelosamente Thomas. Mas ignoro o que significa.

 

- Não acredito - insistiu De Taillebourg.

 

- Padre - redarguiu Thomas com firmeza -, não sei o que significa. Perguntei ao Irmão Germain e ele recusou-se a dizer-me. Disse que estava para além do entendimento de uma pessoa de pouca inteligência, como eu.

 

De Taillebourg olhou para Thomas em silêncio. O fogo rugia ferozmente na lareira e o criado alto mudou a posição dos atiçadores pois um dos troncos caíra.

 

- O prisioneiro diz que não sabe - ditou De Taillebourg ao padre Cailloux, sem desviar o olhar de Thomas. Os criados puseram mais troncos no fogo e De Taillebourg deixou que Thomas fitasse os atiçadores e se preocupasse com eles por uns momentos antes de retomar o seu questionário.

 

- Então - perguntou o dominicano -, onde está agora o livro?

 

- Em La Roche-Derrien - disse Thomas imediatamente.

 

- Em La Roche-Derrien, onde?

 

- Juntamente com a minha bagagem - disse Thomas -, que deixei com o meu velho amigo Will Skeat. - Era mentira. Deixara o livro à guarda de Jeanette, mas não queria expô-la ao perigo. Will Skeat, mesmo com a memória perturbada, podia tomar conta de si melhor do que o Melro. - Sir William Skeat - acrescentou Thomas.

 

- Sir William conhece o conteúdo do livro? - perguntou De Taillebourg.

 

- Nem sequer sabe ler! Não, não conhece.

 

Houve outras perguntas, dezenas delas. De Taillebourg queria saber a história da vida de Thomas, por que razão tinha abandonado Oxford, porque se tinha tornado arqueiro, quando se tinha confessado pela última vez, o que tinha estado a fazer em Durham? Que sabia o rei de Inglaterra acerca do Graal? Que sabia o bispo de Durham? As perguntas continuaram até Thomas se sentir enfraquecido pela fome e por estar de pé, porém, De Taillebourg parecia infatigável. A noite chegou, a luz das duas janelas empalideceu e escureceu, mas, mesmo assim, ele insistia. Os dois criados, há muito pareciam contrariados, enquanto o padre Cailloux continuava a franzir a testa e a olhar pelas janelas como que para sugerir que havia passado há muito a hora de tomarem uma refeição, mas De Taillebourg não conhecia a fome. Insistia e voltava a insistir. Com quem viajara Thomas para Londres? Que tinha feito em Dorset? Tinha procurado o Graal em Hookton?

 

O irmão Cailloux enchia página após página com as respostas de Thomas e, à medida que a noite avançava, teve de acender as velas para poder ver enquanto escrevia. As chamas da lareira lançavam as sombras das pernas da mesa e Thomas oscilava de fadiga quando, por fim, De Taillebourg acenou afirmativamente.

 

- Reflectirei e rezarei acerca das vossas respostas esta noite, Thomas. Prosseguiremos de manhã.

 

- Água - implorou Thomas em voz rouca. - Preciso beber água.

 

- Dar-vos-emos de comer e de beber - disse De Taillebourg.

 

Um dos criados retirou os atiçadores do fogo. O padre Cailloux fechou o livro e lançou a Thomas um olhar que parecia ter laivos de compaixão. Trouxeram um cobertor e, ao mesmo tempo, uma refeição de peixe fumado, feijão, pão e água, tendo-lhe soltado uma das mãos para que pudesse comer. Dois guardas, com simples camisas negras, vigiaram-no enquanto comia e, quando terminou, voltaram a fechar-lhe as grilhetas nos pulsos. Thomas sentiu um prego passar no fecho para que não se pudessem abrir. Aquilo deu-lhe esperança e, quando ficou sozinho, tentou chegar ao prego com os dedos, mas as algemas eram tão grossas que não conseguiu chegar. Estava encurralado.

 

Encostou-se à parede, enrolado no cobertor, a olhar para o fogo que esmorecia. O calor não atravessava o aposento e Thomas tremia descontroladamente. Torceu os dedos, tentando chegar ao fecho das algemas, mas foi impossível e, de súbito, gemeu involuntariamente de dor antecipada. Naquele dia fora poupado à tortura, mas significaria que tinha escapado? Pensou que o merecia, pois quase dissera a verdade. Dissera a De Taillebourg que não sabia onde estava o Graal, que nem sequer tinha a certeza de que a relíquia existia, de que raramente tinha ouvido o pai falar dele e que preferira ser arqueiro no exército do rei de Inglaterra a andar em busca do Graal. Sentiu de novo a terrível vergonha por ter sido tão facilmente capturado. Naquele momento deveria estar já de volta a La Roche-Derrien, regressando a casa, às tabernas, ao riso, à cerveja e à fácil companhia dos soldados. Tinha as lágrimas nos olhos e também estava envergonhado disso. Soavam gargalhadas vindas do fundo do castelo e pensou ouvir o som do tocar de uma harpa.

 

Depois a porta abriu-se.

 

Viu apenas que um homem entrara no aposento. O visitante trajava uma envolvente capa negra que o fazia parecer uma sombra sinistra quando se aproximou da mesa, onde se deteve a olhar para Thomas. As brasas quase apagadas estavam por trás dele, recortando a vermelho a sua alta figura, mas iluminando Thomas.

 

- Disseram-me que hoje ele não vos queimou - disse o homem. Thomas nada disse e agasalhou-se mais no cobertor.

 

- Gosta de queimar as pessoas - disse o visitante. - Gosta mesmo. Já o vi. Estremece enquanto vê a pele empolar - dirigiu-se ao lume, pegou num dos escuros atiçadores e lançou-o para o meio das brasas antes de empilhar mais troncos sobre as chamas já fracas. A madeira seca ardeu rapidamente e, à luz brilhante, Thomas pôde ver o homem pela primeira vez. Tinha o rosto estreito e amarelado, nariz comprido, queixo forte e cabelo negro, afastado da testa alta. Era um belo rosto, inteligente e duro, mas ficou na sombra quando o homem voltou as costas ao lume.

 

- Sou vosso primo - disse.

 

Uma punhalada de ódio invadiu o corpo de Thomas.

 

- Sois Guy Vexille?

 

- Sou o conde de Astarac - respondeu Vexille. Dirigiu-se lentamente a Thomas. - Haveis estado na batalha junto à floresta de Crécy?

 

- Sim.

 

- Arqueiro?

 

- Sim.

 

- E, no final da batalha - disse Guy Vexille -, haveis gritado palavras em latim?

 

- Cálix meus inebriam - disse Thomas.

 

Guy Vexille sentou-se sobre a ponta da mesa e ficou a olhar para Thomas durante muito tempo. O seu rosto estava na sombra, de modo que Thomas não conseguia ver-lhe a expressão, apenas o breve brilho dos olhos.

 

- Cálix meus inebrians é a divisa secreta da nossa família - disse por fim Vexille. - Não a que mostramos no brasão. Sabeis qual é?

 

- Não.

 

- Pie repone te - disse Guy Vexille.

 

- Em piedosa confiança - traduziu Thomas.

 

- Sois estranhamente cultivado para um arqueiro - disse Vexille. Endireitou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro no aposento, enquanto falava.

 

- Mostramos pie repone te, mas a nossa verdadeira divisa é cálix meus inebrians. Somos os secretos guardiães do Graal. A nossa família guardou-o durante gerações, Deus confiou-no-lo e o teu pai roubou-o.

 

- Vós havei-lo matado.

 

- E estou muito orgulhoso de o ter feito - disse Guy Vexille. Depois, deteve-se subitamente e voltou-se para Thomas. - Éreis vós o arqueiro naquele dia no monte?

 

- Sim.

 

- Disparais bem, Thomas.

 

- Foi nesse dia que matei um homem pela primeira vez - disse Thomas. - E foi um erro.

 

- Um erro?

 

- Matei o homem errado.

 

Guy Vexille sorriu, depois voltou para junto do fogo e retirou o atiçador para ver que tinha a ponta de um vermelho incandescente. Voltou a metê-lo no lume.

 

- Matei o vosso pai - disse. - Matei a vossa mulher em Durham e o padre que decerto era vosso amigo.

 

- Éreis então o criado de De Taillebourg? - perguntou Thomas espantado. Odiara Guy Vexille devido à morte de seu pai. Tinha agora mais duas lortes a acrescentar a esse ódio.

 

- Era, de facto o seu criado - confirmou Vexille. - Foi a penitência que De Taillebourg me exigiu, um castigo pela humilhação. Mas, agora, voltei a ser soldado e fui encarregado de recuperar o Graal.

 

Thomas abraçou os joelhos por baixo do cobertor.

 

- Se o Graal tem tanto poder - perguntou -, porque é a nossa família tão impotente?

 

Guy Vexille pensou algum tempo na pergunta e depois encolheu os ombros.

 

- Porque o questionámos - disse. - Porque fomos pecadores, porque não fomos dignos. Mas mudaremos isso, Thomas. Haveremos de recuperar a nossa força e a nossa virtude. - Guy Vexille inclinou-se para o fogo e retirou o atiçador das chamas, brandiu-o como uma espada para que zumbisse e a sua ponta incandescente descrevesse um arco de luz no aposento escuro.

 

- Já haveis pensado em me ajudar, Thomas? - perguntou.

 

- Ajudar-vos?

 

Vexille andava de um lado para o outro junto de Thomas. Continuava a agitar o atiçador em enormes movimentos de foice de modo que a luz deixava um traço de estrela cadente e farrapos de fumo no aposento escuro.

 

- O vosso pai era o irmão mais velho - continuou. - Sabíeis? Se fôsseis legítimo, seríeis conde de Astarac - baixou a ponta do atiçador tão próximo do rosto de Thomas que este sentiu o calor ardente. - Juntai-vos a mim disse Guy Vexille emocionado. - Dizei-me o que sabeis, ajudai-me a recuperar o livro e vinde comigo em busca do Graal - acocorou-se de modo que o seu rosto ficou ao mesmo nível do de Thomas. - Trazei a glória à nossa família, Thomas - disse em voz baixa. - Uma tal glória que poderemos ambos governar a Cristandade e, com o poder do Graal, conduzir uma cruzada contra os infiéis, deixando-os numa profunda agonia. Vós e eu, Thomas! Somos os ungidos pelo Senhor, os guardiães do Graal e, se dermos as mãos, os homens falarão de nós por muitas gerações como os maiores santos guerreiros que a Igreja jamais conheceu - falava em voz profunda, quase musical. - Quereis ajudar-me, Thomas?

 

- Não - respondeu Thomas.

 

O atiçador chegou perto do olho direito de Thomas, tão perto que lhe pareceu um enorme Sol pouco brilhante, mas Thomas não estremeceu. Nunca pensou que o primo lhe enfiasse o atiçador no olho, mas sim que o quisesse ver estremecer, por isso se manteve imóvel.

 

- Os vossos amigos escaparam hoje - disse Vexille. - Cinquenta dos nossos saíram para os apanhar, mas, não sei como, conseguiram evitar-nos. Internaram-se na floresta.

 

- Ainda bem.

 

- Mas nada mais poderão fazer do que se retirarem para La Roche-Derrien e aí serão apanhados. Atrevei-vos, Thomas. Conseguiremos os dois.

 

Thomas nada disse. O atiçador arrefecera e ficara de novo escuro, de modo que atrevera-se de novo a pestanejar.

 

- Como todos os Vexilles, sois tão corajoso quanto tolo - disse Guy, retirando o atiçador e pondo-se de pé. - Sabeis onde está o Graal?

 

- Não.

 

Guy Vexille olhou para ele, ponderando a resposta. Depois encolheu os ombros.

 

- Acreditais na existência do Graal, Thomas?

 

Thomas fez uma pausa, mas, depois, deu a resposta que negara a De Taillebourg durante todo aquele longo dia.

 

- Sim.

 

- Tendes razão - disse Vexille. - Tendes razão. Existe. Tínhamo-lo e o vosso pai roubou-o. Sois a chave para o descobrirmos.

 

- Nada sei a esse respeito! - protestou Thomas.

 

- Mas De Taillebourg não acredita nisso - disse Vexille, deixando cair o atiçador sobre a mesa. - De Taillebourg quer o Graal como um homem esfomeado quer pão. Sonha com ele. Geme durante o sono e chora por ele.

- Vexille fez uma pausa e depois sorriu. - Quando a dor for superior às vossas forças, Thomas, e há-de ser, e quando desejardes estar morto, e haveis de o desejar, dizei a De Taillebourg que estais arrependido e tornai-vos meu aliado. A dor terminará e sobrevivereis.

 

Thomas apercebeu-se de que fora Vexille que estivera à escuta fora da porta. No dia seguinte voltaria a escutar. Thomas fechou os olhos. Pater, rezou, si vis, transfer calicem istem a me. Abriu de novo os olhos.

 

- Porque haveis matado Eleanor? - perguntou.

 

- Porque não?

 

- É uma resposta ridícula - disse Thomas em tom cínico. Vexille voltou bruscamente a cabeça como se lhe tivessem batido.

 

- Porque ela tinha conhecimento da nossa existência - disse. - Foi por isso.

 

- Existência?

 

- Sabia que estávamos em Inglaterra, sabia aquilo que queríamos - disse Guy Vexille. - Sabia que havíamos falado com o Irmão Collimore. Se o rei de Inglaterra soubesse que procurávamos o Graal no seu reino ter-nos-ia detido. Ter-nos-ia mandado prender. Ter-nos-ia feito aquilo que vos estamos a fazer.

 

- Pensais então que Eleanor vos poderia trair ao rei? - perguntou Thomas, incrédulo.

 

- Penso que foi melhor ninguém saber que lá estávamos - disse Guy Vexille. - Mas sabeis uma coisa, Thomas? Aquele velho monge nada nos pôde dizer, excepto que vós existíeis. Todo aquele esforço, a longa viagem, as mortes, o mau tempo da Escócia, só para saber de vós. Ignorava onde está o Graal, não imaginava onde o vosso pai o poderia ter escondido, mas sabia da vossa existência, e é desde aí que vos procuramos. O padre De Taillebourg quer interrogar-vos, Thomas, quer fazer-vos chorar de dor até que lhe digais aquilo que suspeito que não lhe podeis dizer, mas não quero a vossa dor. Quero a vossa amizade.

 

- E eu quero-vos morto - disse Thomas.

 

Vexille abanou tristemente a cabeça, depois inclinou-se para ficar junto de Thomas.

 

- Primo - disse em voz baixa -, um dia haveis de vos ajoelhar perante mim. Um dia haveis de colocar as vossas mãos nas minhas e prestar-me vassalagem e trocaremos o beijo de senhor e suserano e, assim, vos tornareis meu vassalo e cavalgaremos juntos para a glória, debaixo da Cruz. Seremos como irmãos, prometo-vos - beijou as pontas dos dedos e poisou-as sobre a face de Thomas, num toque que mais pareceu uma carícia. - Prometo-vos, irmão - murmurou Vexille. - Agora, boa-noite.

 

- Maldito sejais, Guy Vexille - rosnou Thomas.

 

- Cálix meus inebrians - respondeu Guy Vexille e saiu.

 

Durante a madrugada, Thomas deixou-se ficar deitado a tremer de frio. Cada passo que se ouvia no castelo o fazia estremecer. Do lado de fora das fundas janelas os galos cantavam, os pássaros piavam e ele tinha a impressão, sem saber porquê, de que havia um bosque frondoso em redor da Torre de Roncelets, ao mesmo tempo que se interrogava se alguma vez voltaria a ver folhas verdes. Um criado mal-encarado trouxe-lhe um pequeno-almoço de pão, queijo duro e água, e enquanto comia, um soldado de libré de vespa retirou-lhe as algemas e ficou a olhá-lo, para voltar a fechar as algemas logo que acabou de comer. O balde foi levado para o esvaziarem e outro deixado no seu lugar.

 

Bernard de Taillebourg chegou pouco tempo depois e, enquanto os criados espevitavam o fogo e o padre Cailloux se instalava à mesa improvisada, o dominicano alto saudou educadamente Thomas.

 

- Haveis dormido bem? O pequeno-almoço foi do vosso agrado? Hoje está mais frio, não é verdade? Nunca vi um Inverno tão chuvoso. Pela primeira vez o rio transbordou em Rennes! Todos aqueles celeiros debaixo de água.

 

Thomas, com frio e assustado, não respondeu, mas De Taillebourg não quis ofender-se. Esperou que o padre Cailloux mergulhasse a pena na tinta e, depois, ordenou ao criado mais alto que levasse o cobertor de Thomas.

 

- Bom, vamos ao trabalho - disse, quando viu o prisioneiro nu. - Vamos falar do livro do vosso pai. Quem mais sabe da existência desse livro?

 

- Ninguém - respondeu Thomas. - Excepto o Irmão Germain e bem sabeis o que lhe aconteceu.

 

De Taillebourg franziu a testa.

 

- Mas, Thomas, alguém o fez chegar às vossas mãos! E essa pessoa deve certamente saber do que se trata! Quem foi?

 

- Um advogado de Dorchester - mentiu Thomas, sem hesitar.

 

- Um nome, por favor, dai-me um nome.

 

- John Rowley - disse Thomas, inventando o nome.

 

- Soletrai por favor - pediu De Taillebourg, e depois de Thomas lhe ter obedecido andou de um lado para o outro aparentemente frustrado.

- Esse Rowley deveria estar ao facto do conteúdo do livro, não é verdade?

 

- Estava embrulhado numa capa que tinha pertencido ao meu pai, dentro de uma trouxa de roupa velha. Não viu.

 

- Pode ter visto.

 

- John Rowley é velho e gordo - disse Thomas, compondo a sua invenção. - Não quererá partir em busca do Graal. Além do mais, considerava o meu pai um louco, portanto, porque se interessaria por um livro dele? Apenas se interessa por cerveja e outras bebidas, e empadões de carneiro.

 

Os três atiçadores estavam de novo ao lume. Começara a chover e, por vezes, as rajadas de vento frio lançavam as gotas pelas janelas abertas. Thomas recordou-se do aviso que o primo lhe fizera na noite anterior de que De Taillebourg gostava de infligir dor, porém, a voz do dominicano era doce e razoável e Thomas tinha a sensação de ter sobrevivido ao pior. Suportara um dia de interrogatório de De Taillebourg e as suas respostas pareciam ter satisfeito o severo dominicano que ficava agora reduzido a preencher as lacunas da história de Thomas. Queria saber da lança de São Jorge e Thomas disse-lhe que a arma tinha estado pendurada na igreja de Hookton, que tinha sido roubada e como ele a levara de volta na batalha que tivera lugar à entrada da floresta de Crécy. Thomas acreditava que era a verdadeira lança, perguntou De Taillebourg, e Thomas abanou a cabeça.

 

- Não sei - disse. - Mas o meu pai acreditava que sim.

 

- E o vosso primo roubou a lança da igreja de Hookton?

 

- Sim.

 

- Provavelmente para que ninguém se apercebesse que ele fora a Inglaterra em busca do Graal - alvitrou De Taillebourg. - A lança era um disfarce. - Ficou a pensar e Thomas, pensando que um comentário seria dispensável, nada disse. - A espada tinha lâmina? - perguntou De Taillebourg.

 

- Tinha. E muito comprida.

 

- Decerto, pois se era a lança que matou o dragão... - observou De Taillebourg. - A lança ter-se-ia derretido no sangue do animal?

 

- Verdade? - perguntou Thomas.

 

- Claro que sim - insistiu De Taillebourg, olhando para Thomas como se ele tivesse enlouquecido. - O sangue do dragão é metal fundido! Fundido e em chamas. - Encolheu os ombros como se quisesse afirmar que a lança era irrelevante para a sua busca.

 

A pena do padre Cailloux resvalava, enquanto tentava acompanhar o interrogatório e os dois criados mantinham-se junto ao fogo, mal se incomodando em ocultar o seu enfado, enquanto De Taillebourg procurava novo assunto para explorar. Sabe-se lá porquê, escolheu Will Skeat e fez perguntas sobre a sua ferida e lapsos de memória. Thomas tinha a certeza absoluta de que Skeat não sabia ler?

 

- Não sabe ler! - afirmou Thomas. Parecia agora querer tranquilizar De Taillebourg, o que era sinal de que se sentia confiante. Começara o dia anterior com insultos e ódio, mas agora ajudava ansiosamente o dominicano para poder chegar ao fim do interrogatório. Tinha sobrevivido.

 

- Skeat não sabe ler - disse De Taillebourg, andando de um lado para o outro. - Julgo que não seja de espantar. Por isso não olhará para o livro que haveis deixado à sua guarda?

 

- Será uma sorte se não utilizar as suas páginas para limpar o traseiro. É o único uso que Will Skeat tem para o papel ou para o pergaminho.

 

De Taillebourg esboçou um sorriso duvidoso e olhou depois para o tecto. Ficou em silêncio durante muito tempo mas, por fim, lançou a Thomas um olhar intrigado.

 

- Quem é Hachaliah?

 

A pergunta apanhou Thomas de surpresa, o que deve ter sido evidente.

 

- Não sei - conseguiu dizer após uma pausa.

 

De Taillebourg observou Thomas. O aposento ficara subitamente tenso, os criados despertaram completamente e o padre Cailloux já não escrevia, olhando agora Thomas. De Taillebourg sorriu.

 

- Vou dar-vos mais uma oportunidade, Thomas - disse na sua voz profunda. - Quem é Hachaliah?

 

Thomas sabia que devia ser descarado. Se ultrapassasse aquilo, pensou, o interrogatório estaria terminado.

 

- Nunca ouvi falar dele antes de o Irmão Germain ter pronunciado o seu nome - disse, fazendo os possíveis por parecer inocente.

 

A razão pela qual De Taillebourg pegara no nome de Hachaliah como sendo o ponto fraco das defesas de Thomas era um mistério, mas seria um golpe inteligente se o dominicano fosse capaz de provar que Thomas sabia de quem se tratava, pois assim poderia provar que Thomas tinha traduzido pelo menos uma das passagens em hebraico. Poderia provar que Thomas tinha mentido durante todo o interrogatório, o que lhe abriria novas áreas de revelação. Assim De Taillebourg insistiu muito e, quando Thomas continuou a negar, o padre fez sinal aos criados. O padre Cailloux estremeceu.

 

- Já vos disse - disse Thomas. - É verdade que não sei quem é Hachaliah.

 

- Mas o meu dever perante Deus - disse De Taillebourg, pegando no primeiro atiçador incandescente que lhe estendia o criado mais alto - é certificar-me de que não me estais a mentir. - Olhou para Thomas com o que parecia ser compaixão. - Não quero fazer-vos sofrer, Thomas, apenas quero a verdade. Dizei-me, quem é Hachaliah?

 

Thomas engoliu em seco.

 

- Não sei - disse e repetiu depois em voz mais alta. - Não sei!

 

- Julgo que sabeis - disse De Taillebourg, e a dor começou. - Em nome do Pai - rezou De Taillebourg, enquanto encostava o ferro à pele nua da perna de Thomas -, do Filho e do Espírito Santo.

 

Os dois criados seguravam Thomas e a dor era pior do que ele podia acreditar. Tentava escapar-lhe, mas não se podia mexer e tinha as narinas cheias do fedor da carne queimada. Mesmo assim não respondeu à pergunta, pois pensou que, ao revelar as mentiras, provocaria um castigo ainda maior. Algures no seu espírito enlouquecido percebeu que se insistisse na mentira, De Taillebourg teria de acreditar nele e deixaria de usar o fogo, mas, numa competição que exigia paciência entre torturador e prisioneiro, este último não tinha possibilidades. Um segundo atiçador fora aquecido e a ponta tocava as costelas de Thomas.

 

- Quem é Hachaliah? - perguntou De Taillebourg.

 

- Já vos disse...

 

O ferro em brasa foi encostado ao seu peito e puxado até ao ventre para deixar uma linha de carne queimada, empolada, ferida, mas imediatamente cauterizada, de modo a não derramar sangue. O grito de Thomas ecoou no tecto alto. O terceiro atiçador aguardava já e o primeiro voltara a ser aquecido para que a dor não parasse. Depois Thomas foi voltado de barriga para baixo e o estranho instrumento que não conseguira reconhecer, quando o tinham pela primeira vez pousado sobre a mesa, foi colocado sobre um dedo da sua mão esquerda. Soube então que era um torno de ferro, um parafuso que De Taillebourg apertou, obrigando Thomas a estremecer e a gritar de novo. Perdeu a consciência, mas o padre Cailloux reanimou-o com uma toalha e água fria.

 

- Quem é Hachaliah? - perguntou De Taillebourg.

 

Que pergunta tão estúpida. Como se a resposta fosse importante!

 

- Não sei! - gemeu as palavras e rezou para que De Taillebourg acreditasse nele, mas a dor chegou de novo e os melhores momentos, senão os de puro esquecimento, eram aqueles em que Thomas perdia e recuperava a consciência e lhe parecia que a dor era um sonho - um sonho mau, mas apenas um sonho -, e os piores momentos eram aqueles em que se apercebia que não era assim e que o seu mundo fora reduzido a uma agonia, a uma pura agonia e que De Taillebourg lhe aplicaria mais dor, ou apertando o torno para lhe partir o dedo ou encostando-lhe à pele o ferro em brasa.

 

- Dizei-me, Thomas - disse suavemente o dominicano. - Dizei-me e a dor terminará. Terminará se o disseres. Por favor, Thomas, pensais que tenho algum prazer nisto? Em nome de Deus, detesto-o, por isso, por favor, dizei-mo.

 

E Thomas disse-o. Hachaliah era o pai de Tirshatha e Tirshatha era o pai de Nehemiah

 

- E Nehemiah? - perguntou De Taillebourg. - Era o quê?

 

- Era o guardião da taça do rei - soluçou Thomas.

 

- Porque mentem os homens a Deus? - perguntou De Taillebourg. Voltara a pousar sobre a mesa o aparelho de torcer os dedos e os três atiçadores estavam agora no fogo. - Porquê? - perguntou. - A verdade é sempre descoberta. Deus assegura-se disso. Por isso, Thomas, afinal sabíeis mais do que haveis afirmado e teremos de descobrir as outras mentiras, mas vamos primeiro conversar acerca de Hachaliah. Pensais que essa citação do livro de Esdras foi o modo como o vosso pai proclamou a posse do Graal?

 

- Sim - disse Thomas. - Sim, sim, sim. - Estava encolhido de encontro à parede, com as mãos magoadas algemadas atrás das costas, o corpo uma massa de dor, que talvez ficasse por ali, se confessasse tudo.

 

- Mas o Irmão Germain disse-me que as linhas acerca de Hachaliah no livro do vosso pai estavam escritas em hebraico - afirmou De Taillebourg. - Sabeis hebraico, Thomas?

 

- Não.

 

- Então, quem vos traduziu essas linhas?

 

- O Irmão Germain.

 

- E o Irmão Germain disse-vos quem era Hachaliah - perguntou De Taillebourg.

 

- Não - gemeu Thomas. Não valia a pena mentir, pois, sem dúvida, o dominicano verificaria tudo com o velho monge, mas a resposta abriu uma nova questão, que, por sua vez, revelaria outras mentiras de Thomas. Thomas sabia que, agora, era tarde de mais para resistir.

 

- Então quem vos disse? - perguntou De Taillebourg.

 

- Um doutor - respondeu Thomas em voz baixa.

 

- Um doutor - repetiu De Taillebourg. - Isso não ajuda muito, Thomas. Quereis que use de novo o fogo? Que doutor? Um doutor em teologia? Um físico? E se haveis pedido a esse misterioso doutor que vos explicasse o significado das linhas do livro, ele não se mostrou curioso das razões porque o queríeis saber?

 

Thomas confessou então que se tratara de Mordecai e admitiu que Mordecai olhara para o livro, levando De Taillebourg a desferir um soco na mesa, o primeiro sinal de irritação que tinha mostrado nas longas horas de interrogatório.

 

- Haveis mostrado o livro a um judeu? - fez a pergunta em tom sibilante e incrédulo. - A um judeu? Em nome de Deus e de todos os preciosos Santos, em que estáveis a pensar? A um judeu! A um homem da raça que matou o nosso amado Salvador? E se os judeus encontram o Graal, louco, erguerão dele o Anticristo! Sofrereis por essa traição! Tereis de sofrer! - Atravessou o aposento, arrancou do fogo um atiçador e trouxe-o para junto de Thomas que se acocorara contra a parede. - A um judeu! - gritou De Taillebourg e encostou a ponta incandescente do atiçador à perna de Thomas. - Coisa nojenta! - exclamava em tom de desprezo sobre os gritos de Thomas. - Sois um traidor a Deus, um traidor a Cristo, um traidor à Igreja! Não sois melhor que Judas Escariote!

 

A dor continuou. As horas passaram. A Thomas parecia restar-lhe apenas a dor. Mentira quando não houvera dor e, agora, todas as suas respostas anteriores estavam a ser verificadas contra uma medida de agonia que conseguia suportar sem perder a consciência.

 

- Então, onde está o Graal? - perguntou De Taillebourg.

 

- Não sei - disse Thomas. - Não sei! - repetiu mais alto, gritando só à vista do ferro em brasa, que ainda não lhe tinha tocado na pele.

 

Os gritos de nada serviram, porque a tortura continuou por muito tempo. Thomas falou, contou tudo o que sabia e sentiu-se mesmo tentado a fazer o que Guy Vexille sugerira e a pedir a De Taillebourg que o deixasse jurar vassalagem ao primo. Mas, depois, algures no horror avermelhado do seu tormento, pensou em Eleanor e manteve-se em silêncio.

 

No quarto dia, quando todo ele tremia, quando bastava um gesto da mão de De Taillebourg para o obrigar a gemer e a pedir misericórdia, o Senhor de Roncelets entrou no aposento. Era um homem alto, de cabelo curto, negro e espetado, nariz partido e sem dois dentes à frente. Vestia a sua libré cor de vespa com os dois chaveirões negros num campo amarelo e olhou com ar de desprezo para o corpo de Thomas, magoado e cheio de cicatrizes.

 

- Não haveis trazido a roda cá para cima, padre - parecia desapontado.

 

- Não foi necessário - disse De Taillebourg.

 

O Senhor de Roncelets empurrou Thomas com o pé coberto de malha.

 

- Dizíeis que o bastardo é um arqueiro inglês?

 

- É.

 

- Cortai-lhe então os dedos que usa para disparar o arco - disse selvaticamente Roncelets.

 

- Não posso derramar sangue - disse De Taillebourg.

 

- Por Deus, mas eu posso! - Roncelets arrancou a faca do cinto.

 

- Está a meu cargo! - disse rispidamente De Taillebourg. - Está nas mãos de Deus e não podeis tocar-lhe. Não derramareis o seu sangue!

 

- Este castelo é meu, padre! - rosnou Roncelets.

 

- E a vossa alma está nas minhas mãos - retorquiu De Taillebourg.

 

- É um arqueiro! Um arqueiro inglês! Veio aqui para arrebatar o pequeno Chenier! Isso é comigo!

 

- Parti-lhe os dedos com o torno - disse De Taillebourg. - Já não é arqueiro.

 

Roncelets acalmou-se ao ouvir a novidade. Empurrou de novo Thomas com o pé.

 

- Não passa de mijo, padre, de mijo sem préstimo - cuspiu sobre Thomas, não por o detestar especialmente, mas porque odiava todos os arqueiros em geral, que tinham destronado os cavaleiros do seu lugar de reis do campo de batalha. - Que fareis com ele? - perguntou.

 

- Orar pela sua alma - disse laconicamente De Taillebourg e, quando o Senhor de Roncelets partiu, foi exactamente isso que fez. Era evidente que tinha terminado o seu interrogatório, pois fizera aparecer um pequeno frasco, contendo os santos óleos e deu a Thomas os últimos sacramentos da Igreja, ungindo-lhe a testa, o peito queimado e dizendo depois as preces para os moribundos.

 

- Sana me, Domine - entoou, tocando ao de leve com os dedos na testa de Thomas - qucmiam conturbata sunt ossa mea. - Curai-me, senhor, pois os meus ossos estão retorcidos de dor.

 

Depois de o fazer, Thomas foi levado pelas escadas do castelo para uma masmorra escavada na rocha em que o Guêpier estava construído. O chão era de pedra negra e nua, húmido e frio. Retiraram-lhe as algemas, quando foi trancado na cela, deixando-o a pensar que enlouquecera. O seu corpo nada mais era que dor, tinha os dedos partidos, já não era arqueiro, como poderia agora disparar com as mãos naquele estado. Depois veio a febre e chorou enquanto tremia e suava e, à noite, meio adormecido, dizia coisas sem nexo nos seus pesadelos; quando acordou voltou a chorar por não ter resistido à tortura e ter confessado tudo a De Taillebourg. Falhara e estava agora perdido na escuridão, moribundo.

 

Depois, um dia, não sabia quantos tinham passado depois de ter sido metido nas caves do Guêpier, os dois criados de De Taillebourg vieram buscá-lo. Enfiaram-lhe pela cabeça uma grossa camisa de lã, vestiram-lhe umas calças de lã sobre as pernas sujas, transportaram-no para o pátio do castelo e lançaram-no para a parte de trás de uma carroça de esterco vazia. O portão da torre rangeu e, acompanhado por uma dezena de homens-de-armas com a libré do senhor de Roncelets e ofuscado pela pálida luz do Sol, Thomas abandonou o Guêpier. Mal tinha consciência do que lhe estava a acontecer, deixou-se ficar sobre as tábuas sujas, curvado de dor, com o mau cheiro da carga habitual da carroça entranhado nas narinas, desejando morrer. A febre não tinha desaparecido e tremia de fraqueza.

 

- Onde me levais? - perguntou, mas ninguém lhe respondeu. Talvez até ninguém o ouvisse, pois tinha a voz muito fraca. Chovia. O carro trovejava para norte, os aldeãos faziam o sinal da cruz e Thomas entrava e saía num estado de estupor. Supôs estar moribundo e que o levassem para o cemitério, de modo que tentara chamar a atenção do condutor do carro e dizer-lhe que ainda estava vivo, mas afinal foi o Irmão Germain que lhe respondeu em voz lamurienta dizendo que lhe deveria ter entregue o livro em Caen.

 

- A culpa foi vossa - disse o monge e Thomas concluiu que deveria estar a sonhar.

 

A seguir teve consciência do som de uma trompeta. A carroça parou e ouviu o bater de um pano. Ergueu os olhos e viu um cavaleiro com uma bandeira branca. Thomas perguntou a si próprio se seria a sua mortalha.

 

Enfaixavam um bebé quando chegava ao mundo e um cadáver quando partia. Soluçou porque não queria ser enterrado, mas, depois, ouviu vozes inglesas e soube que estava a sonhar, enquanto as mãos fortes o erguiam dos restos do esterco. Queria gritar, mas sentia-se demasiado fraco e depois os sentidos abandonaram-no e ficou inconsciente.

 

Quando acordou estava escuro e encontrava-se dentro de outra carroça, desta vez limpa, tapado com cobertores e deitado sobre um colchão de palha. A carroça tinha uma cobertura de couro sobre aros de madeira para evitar a chuva e o sol.

 

- Ides enterrar-me agora? - perguntou Thomas.

 

- Não digais tolices - disse um homem e Thomas reconheceu a voz de Robbie.

 

- Robbie?

 

- Sim, sou eu.

 

- Robbie?

 

- Pobre traste - disse Robbie e afagou a testa de Thomas. - Pobre, pobre traste.

 

- Onde estou?

 

- Ides para casa, Thomas - disse Robbie. - Ides para casa, para La Roche-Derrien.

 

Fora resgatado. Uma semana depois do seu desaparecimento e dois dias depois do resto do grupo de assalto ter regressado a La Roche-Derrien, chegou um mensageiro à guarnição, ao abrigo de uma bandeira de tréguas. Trazia uma carta de Bernard de Taillebourg dirigida a Sir William Skeat. Entregai o livro do padre Ralph, dizia a carta, e Thomas de Hookton será devolvido aos seus amigos. Will Skeat mandou que lhe lessem e traduzissem a mensagem, mas nada sabia acerca do livro que o padre queria e Sir Guillaume falou com Robbie que, por sua vez falou com Jeanette, e no dia seguinte foi enviada uma resposta a Roncelets.

 

Seguiu-se uma demora de duas semanas, porque o Irmão Germaín teve de ser trazido da Normandia para Rennes. De Taillebourg insistiu nessa precaução, já que o Irmão Germain havia visto o livro e poderia confirmar se aquele que iria servir de moeda de troca à pessoa de Thomas, era de facto o livro do padre Ralph.

 

- E assim foi - disse Robbie.

 

Thomas olhou para o tecto. Sentia vagamente que estava errado ter sido trocado pelo livro, mesmo estando grato por estar vivo, por estar em casa e entre os amigos.

 

- Foi o livro certo, mas acrescentámos-lhe alguma coisa - disse Robbie com uma satisfação pouco decente. - Copiámo-lo todo primeiro, claro, e depois acrescentámos uns disparates para os confundir. Para os confundir, entendeis? E aquele monge engelhado não se apercebeu de nada; agarrou-se ao livro como um cão a quem tivessem dado um osso.

 

Thomas estremeceu. Sentia-se despido de todo o orgulho, de toda a virilidade. Fora completamente humilhado, reduzido a um ser trémulo, gemebundo e nervoso. Corriam-lhe as lágrimas pela face, embora não soltasse qualquer som. Doíam-lhe as mãos, o corpo, tudo. Nem sabia onde estava, apenas que fora trazido de volta para La Roche-Derrien, que fora transportado por um pequeno lanço de escadas até àquele pequeno aposento, debaixo de um tecto de traves inclinadas, com paredes mal rebocadas e um crucifixo à cabeceira da cama. Uma janela coberta de osso opaco deixava entrar uma suja luz acastanhada.

 

Robbie continuou a falar das linhas falsas que tinham acrescentado ao livro do padre Ralph. Fora ideia sua, disse, e Jeanette copiara primeiro o livro, mas depois Robbie deixara correr a imaginação à vontade.

 

- Também lá meti os escoceses - alardeou. - Disse que o Graal estava verdadeiramente na Escócia. Pode ser que os canalhas o vão procurar pelas charnecas - riu-se, mas percebeu que Thomas não o estava a escutar. Mesmo assim continuou a falar, até que outra pessoa entrou no aposento e limpou as lágrimas do rosto de Thomas. Era Jeanette.

 

- Thomas? - perguntou ela. - Thomas?

 

Ele queria dizer-lhe que tinha visto e falado com o filho, mas não encontrou palavras. Guy Vexille dissera que Thomas desejaria morrer enquanto estava a ser torturado e fora verdade. Mas Thomas estava surpreendido por ver que ainda assim continuava. Retirava-se o orgulho a um homem e ele ficava sem nada. A pior recordação não era a dor, nem a humilhação de pedir para que a dor terminasse, mas era sim a gratidão que sentira para com De Taillebourg quando essa dor terminara. Era o mais vergonhoso de tudo.

 

- Thomas? - perguntou de novo Jeanette. Ajoelhou-se junto à cama e afagou-lhe o rosto. - Já passou - disse em voz baixa. - Já estás em segurança. Estás na minha casa. Aqui ninguém te faz mal.

 

- Eu posso ainda fazer-lhe mal - disse uma nova voz e Thomas estremeceu de medo. Depois voltou-se e viu que fora Mordecai quem falara. Mordecai? O velho médico deveria estar algures no cálido sul. - Posso ter de repor no lugar os ossos dos vossos dedos das mãos e dos pés - disse o físico.

- Pode ser doloroso. - Poisou a mala no chão. - Olá, Thomas. Odeio barcos. Esperámos pela vela nova e, depois, quando acabaram de a coser, decidiram que a calafetagem não era suficiente entre as tábuas. Quando isso foi corrigido decidiram que o cordoame precisava de reparações, por isso o maldito barco ainda aí está. Marinheiros! Não fazem mais nada senão falar do mar. Mesmo assim, não me posso queixar, porque me deu tempo a fabricar material novo para o livro do vosso pai e deu-me um grande prazer fazê-lo! Soube agora que precisais de mim. Meu caro Thomas, o que vos fizeram?

 

- Fizeram-me mal - disse Thomas e foram essas as primeiras palavras que pronunciou desde que chegara a casa de Jeanette.

 

- Então teremos de vos curar - disse muito calmamente Mordecai. Retirou o cobertor de cima do corpo ferido de Thomas e, apesar de Jeanette estremecer, Mordecai sorriu. - Já vi muito pior feito pelos dominicanos disse. - Muito pior.

 

Assim, Thomas foi mais uma vez tratado por Mordecai, e começou a medir o tempo pelas nuvens que passavam do outro lado da janela opaca e pelo Sol que subia cada vez mais alto no céu e pelo barulho dos pássaros que arrancavam as palhas do telhado de colmo para construir os seus ninhos. Houve dois dias de dores horríveis quando Mordecai trouxe um instrumento para voltar a partir os dedos das mãos e dos pés de Thomas, mas a dor passou ao fim de uma semana, as queimaduras curaram-se e a febre desapareceu. Dia após dia, Mordecai espreitava a sua urina e declarava que estava mais límpida.

 

- Tendes a força de um boi, Thomas.

 

- A estupidez de um boi, isso sim - respondeu Thomas.

 

- Apenas a imprudência. A imprudência e a juventude.

 

- Quando eles... - começou Thomas, e estremeceu ao recordar-se do que De Taillebourg lhe tinha feito. - Quando eles falaram comigo - continuou, então -, eu disse-lhes que havíeis visto o meu livro.

 

- De certo que não gostaram nada - disse Mordecai, tirando um rolo de cordel do bolso da sua veste e enrolando uma ponta desse fio a um espigão de madeira que saía de uma trave não aparada. - Não devem ter gostado nada da ideia de um judeu se sentir curioso acerca do Graal. Sem dúvida pensaram que o quereria usar como penico.

 

Apesar da heresia, Thomas não pôde deixar de sorrir.

 

- Perdoai-me, Mordecai.

 

- Por haverdes mencionado a minha pessoa? Que outra escolha teríeis? Os homens falam sempre sob tortura, Thomas, é por isso que ela é tão útil. É por isso que a tortura será usada enquanto o Sol continuar a girar à volta da terra. Pensais então que agora corro mais riscos do que antes? Sou judeu, Thomas, judeu. Que hei-de fazer com isto? - Estava a falar do cordel que pendia agora da trave e que desejava prender ao chão, sem encontrar qualquer ponto de apoio.

 

- O que é isso? - perguntou Thomas.

 

- Um remédio - disse Mordecai, olhando impotente para o cordel e depois para o chão. - Nunca me entendi bem com coisas destas. Que tal um prego e um martelo?

 

- Um grampo - sugeriu Thomas.

 

O criado idiota de Jeanette foi enviado com cuidadosas instruções e conseguiu encontrar um grampo que Mordecai pediu a Thomas para pregar nas tábuas do chão, mas Thomas estendeu a mão direita com os dedos enclavinhados como garras e disse que não o podia fazer. Então, Mordecai martelou ele próprio desajeitadamente o grampo, depois endireitou o cordel e prendeu-o de modo a que ficasse esticado do chão até ao tecto.

 

- O que deveis fazer - disse, admirando a sua obra de arte - é puxá-lo como se fosse a corda de um arco.

 

- Não posso - disse Thomas em pânico, erguendo de novo as mãos enclavinhadas.

 

- O que sois? - perguntou Mordecai.

 

- O que sou?

 

- Poupai-me às respostas evidentes. Sei que sois inglês e presumo que cristão, mas o que sois?

 

- Era arqueiro - disse amargamente Thomas.

 

- E ainda o sois - disse asperamente Mordecai. - E se não sois arqueiro, não sois nada. Puxai então essa corda! E continuai a puxá-la até conseguirdes fechar os vossos dedos sobre ela. Praticai. Praticai. Que mais podereis fazer com o vosso tempo?

 

Thomas praticou então e, uma semana depois, conseguia endireitar os dois dedos opostos ao polegar e fazer com que a corda reverberasse, como a de uma harpa; na semana a seguir a essa conseguia dobrar os dedos de ambas as mãos, apertar a corda e puxá-la com tanta força que finalmente se partiu sob essa tensão. Voltava-lhe a força, as queimaduras tinham-se curado, deixando marcas salientes na pele, onde o atiçador o tinha tocado, mas o mesmo não tinha acontecido com as feridas da sua recordação. Não queria falar do que lhe tinham feito, pois não desejava recordar-se e preferia praticar puxar a corda até a conseguir soltar. Depois aprendeu a agarrar no pau e a ensaiar lutas no pátio da casa com Robbie. E, como os dias estavam mais compridos, ia passear por trás da cidade. Havia um moinho numa pequena colina que não ficava longe da porta oriental; a princípio, mal conseguia subir a encosta, porque lhe tinham partido os dedos dos pés com o torno e estes mais pareciam massas disformes, mas, quando Abril encheu os prados de florzinhas brancas, já caminhava com segurança. Muitas vezes, Will Skeat acompanhava-o e embora o amigo mais velho nunca dissesse grande coisa, fazia boa companhia. Se falava era para resmungar acerca do tempo, para se queixar porque a comida era esquisita ou, o que era mais provável, porque nada soubera acerca do conde de Northampton.

 

- Pensas que devemos escrever outra carta a Sua Senhoria, Tom?

 

- Achas que não recebeu a primeira?

 

- Nunca gostei de coisas escritas - disse Skeat. - Não é natural. Podes escrever-lhe?

 

- Posso tentar - disse Thomas, mas, embora conseguisse puxar a corda do arco e pegar num pau ou mesmo empunhar uma espada, não conseguia manejar a pena. Tentou, mas as letras saíam mal feitas e descontroladas, e, por fim, foi um dos secretários de Totesham quem lhe escreveu a carta, apesar de, segundo a opinião deste último, a mensagem não servisse para alguma coisa.

 

- Charles de Blois estará aqui antes que recebamos quaisquer reforços - disse. Totesham não se sentia à vontade com Thomas, que lhe desobedecera ao partir para Roncelets, mas o castigo sofrido pelo arqueiro fora maior do que aquele que Totesham poderia ter desejado, e portanto sentia pena dele. - Quereis levar a carta ao conde? - perguntou a Thomas.

 

Thomas sabia que ele lhe estava a oferecer uma oportunidade de fuga, mas abanou a cabeça.

 

- Vou ficar - disse, e a carta foi confiada ao capitão de um navio que partia no dia seguinte.

 

A carta era um gesto fútil e Totesham sabia-o, pois tinha quase a certeza que a sua guarnição estava condenada. Todos os dias tinha notícias de reforços que chegavam a Charles de Blois e os grupos de assalto do inimigo aproximavam-se agora das muralhas de La Roche-Derrien, atacando os soldados que partiam para o campo em busca de gado, cabras e ovelhas que pudessem ser levadas para a cidade para serem mortas e salgadas. Sir Guillaume gostava dessa actividade. Desde que perdera Evecque que se tornara fatalista e tão violento que até o inimigo aprendera a ter cautela à vista da túnica azul com os três falcões amarelos. Porém, uma noite, ao voltar para casa depois de um longo dia que apenas lhe rendera duas cabras, sorriu ao avistar Thomas.

 

- O meu inimigo juntou-se a Charles - disse. - O conde de Coutances, maldita seja a sua alma. Esta manhã matei um dos seus homens e quem me dera que tivesse sido o próprio conde.

 

- Porque está ele aqui? - perguntou Thomas. - Não é um bretão.

 

- Filipe de França enviou homens para ajudarem o sobrinho - disse Sir Guillaume. - Não sei porque é que o rei de Inglaterra não manda homens para se lhes oporem. Pensa que Calais é mais importante?

 

- Sim.

 

- Calais é a cloaca de França - disse Sir Guillaume com desagrado, enquanto tirava um bocado de carne de entre os dentes. - E os vossos amigos saíram hoje a cavalo - continuou.

 

- Os meus amigos?

 

- As vespas.

 

- Roncelets - disse Thomas.

 

- Combatemos contra meia-dúzia de canalhas numa abençoada aldeia disse Sir Guillaume. - Enfiei uma lança directamente numa barriga negra. Depois ficou a tossir.

 

- A tossir?

 

- É este tempo de chuva, Thomas - explicou Sir Guillaume. - Faz as pessoas tossirem. Por isso deixei-o em paz, matei outro canalha, voltei e curei-o da tosse. Cortei-lhe a cabeça.

 

Robbie cavalgava com Sir Guillaume e, tal como ele, juntava as moedas retiradas às patrulhas inimigas, embora o escocês saísse também na esperança de encontrar Guy Vexille. Sabia agora o seu nome, porque Thomas lhe dissera que fora Guy Vexille quem lhe matara o irmão, antes da batalha, à entrada de Durham, e Robbie tinha ido à Igreja de São Renano, posto a mão na cruz do altar e jurado vingança.

 

- Matarei Guy Vexille e De Taillebourg - prometeu.

 

- São meus - insistiu Thomas.

 

- Só se eu não conseguir chegar a eles primeiro.

 

Robbie conhecera uma rapariga bretã de olhos castanhos, chamada Oana, que não gostava de sair de perto dele e que o acompanhava sempre que ele caminhava com Thomas. Um dia, quando partiam para o moinho, apareceu com o grande arco negro de Thomas.

 

- Não posso usar isso - disse Thomas, assustado.

 

- Então que serventia tendes? - perguntou Robbie, e encorajou-o pacientemente a puxar a corda do arco, elogiando-o ao ver que recuperava as forças. Levavam os três o arco para o moinho e Thomas fazia pontaria com as flechas para a torre de madeira. A princípio os disparos eram fracos e ele mal conseguia puxar a corda até meia distância, mas, quanto mais força exercia, mais traiçoeiros pareciam ser os seus dedos e mais certeira a sua pontaria. Quando as andorinhas e os gaivões tinham magicamente aparecido sobre os telhados da cidade, já conseguia puxar completamente a corda até à orelha e fazer entrar uma flecha através de uma das pulseiras de madeira de Oana a uma centena de passos.

 

- Estais curado - afirmou Mordecai, quando Thomas lhe deu a novidade.

 

- Obrigado - disse Thomas, embora soubesse que para além de Mordecai, a amizade de Will Skeat, de Sir Guillaume e de Robbie Douglas o tinham ajudado a recuperar.

 

Bernard de Taillebourg ferira Thomas, mas essas feridas exangues de Deus não tinham sido unicamente feitas no corpo, mas também à sua alma, e foi numa escura noite de Primavera, quando a luz cintilava a oriente, que Jeanette subiu ao sótão. Não deixou Thomas até os galos da manhã saudarem o novo dia e, se Mordecai compreendeu a razão do sorriso de Thomas no dia seguinte, nada disse. Porém, reparou que a partir desse momento a recuperação de Thomas foi rápida.

 

A partir daí, Jeanette e Thomas conversavam todas as noites. Ele contara-lhe que estivera com Charles e do olhar do menino quando Thomas lhe falara da mãe; Jeanette queria saber tudo acerca desse olhar, preocupada que ele nada significasse e de que o filho a tivesse esquecido, mas, por fim, acreditou em Thomas quando ele lhe disse que o menino quase chorara ao ouvir falar dela.

 

- Disseste-lhe que eu o amava? - perguntou.

 

- Sim - respondeu Thomas e Jeanette ficou em silêncio, com as lágrimas nos olhos, enquanto Thomas tentava tranquilizá-la, mas abanava a cabeça como se nada do que ele lhe dissesse a pudesse consolar.

 

- Perdoa-me - pediu ele.

 

- Bem tentaste - disse Jeanette.

 

Interrogavam-se como teria o inimigo sabido o que Thomas pensava fazer e Jeanette disse que tinha a certeza de que Belas, o advogado, estava metido no caso.

 

- Sei que escreve a Charles de Blois - disse ela -, e aquele homem horroroso, como foi que lhe chamaste? Épouvantail?

 

- O Espantalho.

 

- Exactamente - confirmou Jeanette -, o Épouvantail. Fala com Belas.

 

- O Espantalho fala com Belas? - perguntou Thomas surpreendido.

 

- Agora mora lá em casa. Ele e os seus homens vivem nos armazéns - fez uma pausa. - Mas porque será que fica na cidade? - Os outros mercenários já tinham partido para arranjar trabalho onde houvesse possibilidades de vitória em vez de ficarem para aguentar a derrota de que Charles de Blois os ameaçava.

 

- Não pode voltar a casa porque tem muitas dívidas - disse Thomas. Enquanto aqui estiver está protegido dos credores.

 

- Mas porquê em La Roche-Derrien?

 

- Porque eu estou cá - disse Thomas. - Pensa que eu o posso conduzir ao tesouro.

 

- Ao Graal?

 

- Isso, ele não sabe - disse Thomas, mas enganou-se, porque, na manhã seguinte, enquanto se encontrava só no moinho a disparar flechas em direcção a uma vara, que plantara no chão a cento e cinquenta passos de distância, o Espantalho e os seus seis homens-de-armas, saíram a cavalo pela porta oriental. Afastaram-se da estrada de Pontrieux, meteram-se por um buraco na sebe e subiram a baixa encosta em direcção ao moinho. Todos eles envergavam cotas de malha e traziam espadas, excepto Beggar que, muito maior que o cavalo, transportava um mangual.

 

Sír Geoffrey puxou as rédeas do cavalo junto de Thomas, que fingiu não o ver para disparar uma flecha que mal tocou na vara. O Espantalho desenrolou o chicote, deixando-o cair até ao chão.

 

- Olhai para mim - ordenou a Thomas.

 

Este continuou a ignorá-lo. Retirou uma flecha do cinto e meteu-a na corda, depois desviou rapidamente o rosto ao ver o chicote serpentear na sua direcção. A ponta de metal tocou-lhe no cabelo, mas não causou qualquer dano.

 

- Disse que olhásseis para mim - repetiu Sir Geoffrey, em tom de desprezo.

 

- Quereis que vos meta uma flecha no rosto? - perguntou-lhe Thomas. Sir Geoffrey inclinou-se para diante agarrado ao arção da sela, com o rosto vermelho, contorcido num espasmo de raiva.

 

- Sois um arqueiro - apontou o punho do chicote para Thomas. - Eu sou um cavaleiro. Se eu vos cortar ao meio não há juiz no mundo que me possa condenar.

 

- E se eu vos meter uma flecha num olho - ripostou Thomas - o demónio haverá de me agradecer por lhe ter mandado companhia.

 

Beggar rosnou e avançou com o cavalo, mas o Espantalho fez sinal para que o gigante se afastasse.

 

- Sei o que quereis - disse a Thomas.

 

Thomas puxou a corda, corrigiu instintivamente a posição devido ao ondular da erva do prado e soltou a flecha que fez com que a vara abanasse.

 

- Não tendes a mínima ideia daquilo que eu quero - disse a Sir Geoffrey.

 

- Pensei que fosse ouro - disse o Espantalho. - Depois pensei que fosse terra, mas nunca percebi porque o ouro ou a terra vos fariam ir a Durham

- fez uma pausa, enquanto Thomas disparou outra flecha que sibilou muito perto da varinha distante. - Mas agora já sei - terminou. - Por fim, já sei.

 

- Sabeis o quê? - perguntou Thomas em tom irónico.

 

- Sei que haveis ido a Durham para falar com os homens da igreja porque procurais o maior tesouro da Cristandade. Procurais o Graal.

 

Thomas soltou a corda do arco e depois olhou para Sir Geoffrey.

 

- Andamos todos em busca do Graal - prosseguiu no mesmo tom de ironia.

 

- Onde está? - rosnou Sir Geoffrey.

 

Thomas riu-se. Ficou surpreendido porque o Espantalho sabia da existência do Graal, mas supôs que provavelmente a má-língua na guarnição a dera a conhecer a toda a gente.

 

- Os melhores inquisidores da Igreja perguntaram-mo - disse ele, mostrando a mão enclavinhada. - Eu não lhes disse. Pensais que vo-lo direi?

 

- Penso - disse o Espantalho - que um homem que procura o Graal não se fecha numa guarnição que tem apenas um mês de vida.

 

- Então talvez eu não ande em busca do Graal - disse Thomas e disparou outra flecha na direcção da vara, mas a haste estava empenada e a flecha voou para longe. Sobre ele as grandes velas do moinho enfunadas nas suas canas e presas por cordas rangeram quando uma rajada de vento as tentou mover.

 

Sir Geoffrey enrolou o chicote.

 

- Haveis falhado o vosso último assalto. O que vai acontecer se saíres de novo? Que acontecerá se tentardes encontrar o Graal? E tendes de partir em breve, antes que Charles de Blois cá chegue. Quando partirdes precisareis de ajuda - incrédulo, Thomas apercebeu-se de que o Espantalho lhe viera oferecer ajuda ou que, pelo menos, Sir Geoffrey lha estava a pedir. Encontrava-se em La Roche-Derrien por uma única razão, dinheiro, e não estava mais próximo dele do que quando intersectara Thomas à entrada de Durham.

- Não vos atrevereis a falhar de novo - continuou o Espantalho. - Por isso, da próxima vez, levai convosco verdadeiros guerreiros.

 

- Pensais que vos levaria? - perguntou Thomas espantado.

 

- Sou inglês - respondeu o Espantalho indignado. - Se o Graal existe, quero-o em Inglaterra. Não num altar qualquer do estrangeiro.

 

O som de uma espada a raspar na bainha fez com que o Espantalho e os seus homens se voltassem nas selas. Jeanette e Robbie tinham vindo até ao prado com Oana ao lado de Robbie; Jeanette tinha a besta erguida e Robbie, como se não tivesse preocupações neste mundo, cortava o cimo dos cactos com a espada do tio.

 

- De certo não precisais de um maldito escocês - disse irado. - Nem de uma cabra francesa. Se quereis procurar o Graal, arqueiro, procurai-o com ingleses leais! É o que o rei desejaria, não é verdade?

 

Mais uma vez, Thomas não lhe respondeu. Sir Geoffrey prendeu o chicote a um gancho, que tinha preso à cintura, e, depois, pegou nas rédeas. Os sete homens passaram a trote por Robbie como que a desafiá-lo para que os atacasse, mas este fingiu não os ver.

 

- O que queria esse canalha?

 

Thomas disparou para a vara, tocando-a com as penas da flecha.

 

- Julgo que queria ajudar-me a encontrar o Graal.

 

- Ajudar-vos! - exclamou Robbie. - Ajudar-vos a encontrar o Graal? O diabo! Queria roubá-lo. Esse bastardo seria capaz de roubar leite dos seios da Virgem Maria.

 

- Robbie! - disse Jeanette, chocada e logo apontou a besta para a vara.

 

- Olhai para ela - disse Thomas a Robbie. - Fecha os olhos quando dispara. Faz sempre isso.

 

- Maldição - disse então Jeanette e, incapaz de o evitar, fechou os olhos ao disparar. O virote saiu da ranhura e miraculosamente atingiu as seis polegadas superiores da varinha. Jeanette olhou para Thomas com ar triunfante.

 

- Consigo disparar melhor que tu com os olhos fechados.

 

Robbie estivera nas muralhas e vira o Espantalho dirigir-se a Thomas, de modo que o viera ajudar, mas agora que Sir Geoffrey partira, sentaram-se ao sol encostados à aba de madeira do moinho. Jeanette olhava para a muralha da cidade que ainda mostrava as cicatrizes onde a brecha feita pelos ingleses fora reparada com pedra de cor mais clara.

 

- És realmente de família nobre? - perguntou a Thomas.

 

- Mas nasci bastardo - respondeu ele.

 

- Mas de um pai nobre?

 

- Era o conde de Astarac - disse Thomas, e depois riu-se porque era estranho pensar que o padre Ralph, o louco padre Ralph que pregara às gaivotas na praia de Hookton, tivesse sido conde.

 

- Qual é o distintivo de Astarac? - perguntou Jeanette.

 

- Um yale segurando uma taça - disse-lhe Thomas e mostrou-lhe a placa de prata já apagada no seu arco negro, gravada com a estranha criatura que tinha chifres, cascos fendidos, garras, presas e cauda de leão.

 

- Vou mandar fazer-vos um pendão - disse Jeanette.

 

- Um pendão? Para quê?

 

- Um homem deve mostrar o seu pendão - disse Jeanette.

 

- E tu deverias sair de La Roche-Derrien - retorquiu Thomas. Continuava a tentar persuadi-la a abandonar a cidade, mas ela insistia em ficar. Já duvidava que alguma vez conseguisse reaver o filho, portanto estava decidida a matar Charles de Blois com um dos seus virotes de besta, feitos de densa madeira de teixo, com ponta de ferro e empenados, não com penas, mas com duros bocados de couro inseridos em fendas, cortadas perpendicularmente no teixo e depois ligadas com cordão e cola. Praticava tão assiduamente para ter a possibilidade de matar o homem que a violara e lhe arrebatara o filho.

 

A Páscoa chegou antes do inimigo. Agora o tempo estava quente. As sebes estavam cheias de ninhos e, nos prados, ecoava o grito das perdizes. No dia a seguir à Páscoa, quando as pessoas comiam os restos da festa que quebrara o jejum da Quaresma, chegaram finalmente as más notícias de Rennes.

 

Charles de Blois iniciara a sua marcha.

 

Mais de quatro mil homens saíram de Rennes sob o pendão de arminho branco do duque da Bretanha. Dois mil eram arqueiros, a maioria envergando a libré verde e vermelha de Génova e mostrando no braço direito a insígnia do Santo Graal pertencente à cidade. Eram mercenários, contratados e muito bem pagos pela sua perícia. Mil soldados de infantaria marchavam junto a eles, para cavarem trincheiras e assaltarem as muralhas quase destruídas das fortificações inglesas. Depois havia mais de mil cavaleiros ou homens-de-armas, a maioria francesa, que formavam o cerne fortemente armado do exército do duque Charles. Marchavam em direcção a La Roche-Derrien, mas o verdadeiro objectivo da campanha não era capturar a cidade, mas sim atrair Sir Thomas Dagworth e o seu pequeno exército para uma batalha cerrada, na qual os cavaleiros e homens-de-armas, montados nos seus enormes corcéis com armaduras, fossem soltos para esmagar pelo caminho as fileiras inglesas.

 

Um comboio de pesadas carroças transportava nove máquinas de cerco, a necessitarem das atenções de mais de cem soldados de engenharia que soubessem montar e fazer funcionar os gigantescos aparelhos para que lançassem pedregulhos do tamanho de barris de cerveja, mais longe do que um arco conseguia lançar uma flecha. Um fabricante de canhões florentino oferecera seis dessas estranhas máquinas a Charles, mas o duque recusara-as. Os canhões eram raros, dispendiosos e, na sua opinião, temperamentais, enquanto os antigos aparelhos mecânicos funcionavam bastante bem se fossem convenientemente oleados com sebo. Charles não via qualquer razão para os abandonar.

 

Mais de quatro mil homens saíram de Rennes, mas muitos mais chegaram aos campos dos arredores de La Roche-Derrien. Os camponeses que odiavam os ingleses juntaram-se ao exército para tirarem vingança de todo o gado, colheitas, propriedade e virgindade das suas mulheres que tinham perdido para os estrangeiros. Alguns estavam armados apenas com picaretas ou machados, mas, quando chegasse a altura de assaltar a cidade, esses homens furiosos seriam úteis.

 

O exército chegou a La Roche-Derríen e Charles de Blois ouviu os portões da cidade fecharem-se com estrondo. Enviou um mensageiro, para ordenar à guarnição que se rendesse, sabendo que tal pedido seria inútil e, enquanto as suas tendas eram armadas, ordenou a outros cavaleiros que patrulhassem para oeste nas estradas que conduziam a Finisterra, que diziam ser o fim do mundo. Estavam ali para o avisar de que o exército de Sir Thomas Dagworth marchava para render as tropas da cidade, se conseguisse marchar. Os espiões de Charles tinham-lhe dito que ele não fora sequer capaz de arranjar um milhar de homens.

 

- E quantos arqueiros? - perguntou.

 

- Saiba, Vossa Graça, que, no máximo, são quinhentos. - O homem que respondeu era um padre, um dos muitos que serviam no séquito de Charles. O duque era conhecido por ser um homem piedoso e gostava de utilizar padres como conselheiros, secretários e, como era o caso, espiões. - No máximo quinhentos - repetiu o padre. - Mas, na verdade, Vossa Graça, são muito menos.

 

- Muito menos? Como assim?

 

- Há febres em Finisterra - respondeu o padre, esboçando um leve sorriso. - Deus é bom para nós.

 

- Ámen. Então, quantos arqueiros estão agora na guarnição?

 

- Saiba, Vossa Graça, que são sessenta homens saudáveis - o padre tinha os últimos números de Belas. - Apenas sessenta.

 

Charles fez uma careta. Já fora derrotado por arqueiros ingleses, mesmo quando os seus homens eram tão mais numerosos que a derrota parecera impossível e, como resultado, receava as longas flechas; mas era também um homem inteligente e pensara muito no problema do arco de guerra inglês. Era possível derrotar tal arma, pensou, e, naquela campanha, mostraria como tal poderia ser feito. Inteligência, a mais desprezada das qualidades militares, triunfaria e Charles de Blois, conhecido pelos franceses como duque e governador da Bretanha, era inegavelmente um homem inteligente. Sabia ler e escrever em seis línguas, falava latim melhor que a maioria dos padres e era um mestre de retórica. Tinha mesmo um ar judicioso com os seus olhos de um azul intenso, barba e bigode louros. Quase toda a sua vida adulta combatera pelo ducado contra os seus rivais e, por fim, tinha conseguido ascendência. O rei de Inglaterra, que cercava Calais, não reforçava as suas guarnições na Bretanha, enquanto o rei de França, tio de Charles, fora generoso com homens, o que significava que o duque Carlos tinha pelo menos mais homens do que os seus inimigos. No final do Verão, pensou, comandaria todos os seus domínios ancestrais, mas logo se acautelou contra a excessiva confiança.

- Mesmo quinhentos arqueiros - observou. - Mesmo quinhentos e sessenta arqueiros podem ser perigosos - tinha uma voz precisa, autoritária e seca e os padres do seu séquito pensavam que, por vezes, ele próprio também parecia um sacerdote. - Os genoveses atacá-los-ão com virotes, Vossa Graça - garantiu um padre.

 

- Deus permita que sim - disse Charles, piedosamente, embora pensasse que Deus havia de precisar de alguma ajuda por parte da inteligência humana.

 

Na manhã seguinte, sob um sol do fim da Primavera, Charles cavalgou em redor de La Roche-Derrien, mantendo-se suficientemente afastado para que nenhuma flecha inglesa o atingisse. Os sitiados tinham pendurado pendões nas muralhas da cidade. Algumas bandeiras exibiam a cruz inglesa de São Jorge, outras a insígnia do arminho branco pertencente ao duque de Monforte, tão semelhante à de Charles. Muitas bandeiras tinham inscritos nelas insultos destinados ao duque. Uma mostrava o seu arminho com uma flecha espetada no seu ventre ensanguentado e outra era sem dúvida um retrato do próprio Charles a ser pisado por um enorme cavalo negro; porém, a maioria das bandeiras exibiam exortações piedosas, implorando a ajuda de Deus ou mostrando uma cruz para indicar aos atacantes onde deveriam estar as simpatias do céu. A maioria das cidades cercadas teria também mostrado os pendões dos seus nobres residentes, mas La Roche-Derrien tinha poucos, ou pelo menos poucos que quisessem exibir as suas insígnias e nenhum que se pudesse comparar com as fileiras dos aristocratas do exército de Charles. Os três falcões de Evecque apareciam na parede, mas todos sabiam que Sir Guillaume fora deposto e não tinha mais do que três ou quatro seguidores. Uma bandeira mostrava um coração vermelho num canto acinzentado e um padre do séquito de Charles pensou que seria a insígnia da família Douglas da Escócia, o que era um absurdo, pois nenhum escocês lutaria ao lado dos ingleses. Junto ao coração vermelho, encontrava-se uma insígnia mais colorida, mostrando um mar com ondas azuis e brancas.

 

- Será... - começou Charles a perguntar, mas depois fez uma pausa, com o rosto franzido.

 

- A insígnia de Armorica, Senhor - respondeu o Senhor de Roncelets. Naquele dia, enquanto o duque Charles dava a volta à cidade era acompanhado pelos grandes fidalgos, para que os sitiados vissem os seus pendões e ficassem impressionados. Muitos deles eram senhores da Bretanha; o visconde de Ruão e o visconde Morgat cavalgavam imediatamente a seguir ao duque, logo seguidos dos senhores de Châteaubriant e de Roncelets, Lavai, Guingamp, Rougé, Dinan, Redon e Malestroit, todos eles montando altos corcéis, enquanto, da Normandia, o conde de Coutances e os senhores de Valognes e Carteret tinham trazido os seus apoiantes para combater pelo sobrinho do rei.

 

- Pensei que Armorica tinha morrido - comentou um dos senhores normandos.

 

- Tem um filho - respondeu Roncelets.

 

- É uma viúva - acrescentou o conde de Guingamp. - Foi essa cabra traidora que mandou colocar a bandeira.

 

- Mesmo assim, uma cabra traidora muito bonita - disse o visconde de Ruão, e os fidalgos soltaram uma gargalhada, pois todos sabiam como tratar viúvas insubmissas e belas.

 

Charles fez uma careta ao ouvir as impróprias gargalhadas.

 

- Quando tomarmos a cidade - ordenou friamente -, a condessa viúva de Armorica não será molestada. Será trazida perante mim. - Violara Jeanette uma vez e violá-la-ia de novo, e, quando esse prazer terminasse, casá-la-ia com um dos seus homens-de-armas que lhe ensinaria a ter maneiras e a dobrar a língua. Puxou as rédeas do cavalo para o deter e observar os pendões que estavam a ser estendidos sobre as ameias, todos eles com insultos à sua pessoa e à sua casa.

 

- Uma guarnição atarefada - disse secamente.

 

- Cidadãos atarefados - disse cinicamente o visconde de Ruão. - Malditos traidores.

 

- Cidadãos? - Charles parecia intrigado. - Porque haveriam os cidadãos de apoiar os ingleses?

 

- Comércio - respondeu rispidamente Roncelets.

 

- Comércio?

 

- Estão a enriquecer - resmungou Roncelets. - E agrada-lhes muito.

 

- O suficiente para combaterem contra o seu Senhor? - perguntou Charles incrédulo.

 

- Uma populaça desleal - concluiu Roncelets.

 

- Uma populaça que teremos de empobrecer - disse Charles, picando o cavalo para apenas voltar a parar quando viu outro pendão nobre, este mostrando um yale segurando um cálice. Até ali não vira um único pendão que prometesse um grande resgate, se o seu Senhor fosse capturado, mas aquele era um mistério. - De quem é? - perguntou.

 

Ninguém sabia, mas, por fim, um jovem magro num alto cavalo negro respondeu do fundo do séquito do duque.

 

- É a insígnia de Astarac, Vossa Graça, e pertence a um impostor - o homem que respondera viera de França com uma centena de cavaleiros de aspecto ameaçador e librés negras, acompanhados por um terrível dominicano. Charles de Blois estava satisfeito por ter os homens da libré negra no seu exército, pois todos eles eram soldados duros e experimentados, mas sentia-se um pouco nervoso com aquela presença. Pareciam-lhe demasiado duros, demasiado experimentados.

 

- Um impostor? - repetiu e picou o cavalo. - Então não precisamos de nos preocupar com ele.

 

Havia três portas do lado do campo e uma quarta que se abria para a ponte, em frente ao rio. Charles planeava cercar cada uma delas, de modo a que a guarnição ficasse encurralada como raposas nas suas tocas.

 

- O exército será dividido em quatro partes, cada uma de frente para cada porta - decretou quando os fidalgos regressaram à tenda ducal, erguida junto ao moinho situado na pequena encosta a oriente da cidade. Os fidalgos escutavam e um padre copiava o discurso, para que a história tivesse um verdadeiro relato do génio marcial do duque.

 

Cada uma das quatro divisões do exército de Charles tinha um número superior de homens a qualquer tropa de reforços que Sir Thomas Dagworth pudesse reunir, mas, para ter ainda mais certezas, Charles ordenou que os quatro acampamentos ficassem também rodeados por fortificações, para que os ingleses se vissem obrigados a atacar através de fossos, elevações, paliçadas e sebes de espinheiros. Esses obstáculos ocultariam os homens de Charles e dariam cobertura aos seus besteiros genoveses enquanto estes carregassem as suas armas. O solo entre os quatro acampamentos deveria ser limpo de sebes e outros obstáculos para ficar um pântano nu, coberto de erva.

 

- O arqueiro inglês não luta frente a frente - disse Charles aos seus fidalgos. - Mata à distância e esconde-se atrás das sebes, frustrando assim os nossos cavalos. Reverteremos essa táctica.

 

A tenda era grande, branca e arejada, e lá dentro cheirava a erva pisada e a suor masculino. Por detrás das paredes de lona vinha o som de um surdo martelar, enquanto os soldados de engenharia usavam maços de madeira para montar a maior das máquinas de cerco.

 

- Os nossos homens manter-se-ão dentro das suas próprias defesas acrescentou Charles. - Faremos assim quatro fortalezas para as quatro portas da cidade e, se os ingleses enviarem reforços, então esses homens terão de as atacar. Os arqueiros não podem matar os homens que não conseguem ver. - Fez uma pausa para se certificar de que essas simples palavras eram compreendidas. - Lembrai-vos disso! As nossas bestas ficarão por trás de elevações de terra, ficaremos ocultos pelas sebes e escondidos por paliçadas, enquanto o inimigo ficará em campo aberto onde poderá ser derrubado.

 

Houve resmungos de assentimento, pois o duque tinha razão. Os arqueiros não podiam matar homens invisíveis. Até mesmo o rosto feroz do dominicano, que viera com os soldados vestidos de negro, parecia impressionado.

 

Os sinos da cidade tocaram o meio-dia. Um, o mais ruidoso, estava rachado e soltou uma nota desafinada.

 

- La Roche-Derrien não importa - prosseguiu o duque. - Quer caia ou não as consequências não terão importância. O que importa é que o exército do inimigo saia de lá para nos atacar. Dagworth virá provavelmente proteger La Roche-Derrien. Quando chegar, esmagá-lo-emos e, uma vez abatido, deixaremos apenas as guarnições inglesas e tomá-las-emos uma a uma até ao final do Verão e toda a Bretanha será nossa - falava lentamente e com simplicidade, sabendo que seria melhor esmiuçar a campanha para aqueles homens que, embora fossem fortes como aríetes, não eram famosos pensadores. - E, quando a Bretanha for nossa - prosseguiu -, haverá prémios de terra, solares e bastiões. - Subiu no ar um grito muito mais ruidoso de aprovação e os homens que o escutavam sorriam, porque haveria mais do que terra, solares e castelos como recompensa da vitória. Haveria ouro, prata e mulheres. Muitas mulheres. O ruído transformou-se em riso, à medida que os homens se apercebiam que todos estavam a pensar na mesma coisa.

 

- Mas é aqui que temos de tornar a nossa vitória possível - a voz de Charles chamou à ordem os seus ouvintes. - E fá-lo-emos negando-nos a servir de alvo dos arqueiros ingleses. Um arqueiro não pode matar homens que não vê! - Fez nova pausa, olhando para os ouvintes, e viu-os acenar afirmativamente enquanto a simples verdade daquela afirmação lhes penetrara, por fim, nos crânios. - Estaremos todos nas nossas fortalezas, numa das nossas quatro fortalezas, e quando o exército inglês vier render as tropas cercadas, atacará uma dessas fortalezas. Esse exército inglês há-de ser pequeno. Terá menos de mil homens! Suponde então que começará por atacar o forte que eu aqui vou construir. Que fareis vós?

 

Aguardou uma resposta e, algum tempo depois, o Senhor de Roncelets, tão hesitante como um rapazinho perante o seu mestre, franziu a testa e sugeriu:

 

- Vimos ajudar, Vossa Graça?

 

Os outros fidalgos acenaram afirmativamente e sorriram, assentindo.

 

- Não! - disse Charles zangado. - Não! Não e não! - Aguardou para se certificar de que ninguém tinha percebido uma única palavra. - Se abandonais a vossa fortaleza - explicou - estais a oferecer um alvo ao arqueiro inglês. É isso que ele quer! Quer tentar-nos por trás dos nossos muros para nos cortar com as suas flechas. Que fazemos, então? Ficamos por trás dos nossos muros. Ficamos por trás dos nossos muros. - Teriam compreendido? Era aquela a chave da vitória. Manter os homens escondidos para que os ingleses perdessem. O exército de Sir Thomas Dagworth seria forçado a assaltar muros de terra e sebes de espinhos e os besteiros cuspiriam virotes sobre eles. Quando os ingleses estivessem tão debilitados que apenas algumas centenas se conseguissem manter de pé, o duque soltaria os seus homens-de-armas para darem cabo do resto. - Não deixeis as vossas fortalezas insistiu. - Qualquer homem que o faça pode esquecer a minha generosidade. - Aquela ameaça acalmou os ouvintes do duque. - Se um único homem que seja, abandonar o santuário dessas paredes - continuou Charles -, assegurar-nos-emos de que não partilhareis da distribuição de terra no fim da campanha. Estamos entendidos, meus senhores? Estamos entendidos?

 

Estavam entendidos. Era simples.

 

Charles de Blois construiria quatro fortificações opostas às quatro portas da cidade, e os ingleses, quando chegassem, seriam forçados a assaltar esses muros recém-feitos. Até o mais pequeno dos quatro fortes do duque teria mais sitiados do que os ingleses tinham de atacantes e esses sitiados estariam abrigados, as suas armas seriam mortíferas e os ingleses morreriam. Assim a Bretanha passaria a pertencer à Casa de Blois.

 

Inteligência. Vencia guerras e criava reputações. E uma vez que Charles tivesse mostrado como derrotar os ingleses ali, derrotá-los-ia em toda a França.

 

Porque Charles sonhava com uma coroa mais pesada do que a do ducado da Bretanha. Sonhava com a França, mas teria de começar ali, nos campos inundados de La Roche-Derrien, onde o arqueiro inglês aprenderia qual era o seu lugar.

 

No inferno.

 

As nove máquinas de cerco eram, todas elas, enormes trabuquetes, capazes de lançar uma pedra com duas vezes o peso de um homem adulto a quase trezentos passos. As nove tinham sido feitas em Regensburg, na Baviera, e os soldados de engenharia mais velhos que acompanharam as máquinas escuras eram todos bávaros, entendidos nas complicações daquelas armas. As duas maiores tinham traves para fazer os lançamentos com mais de cinquenta pés e até as duas mais pequenas, colocadas na margem oposta do Jaudy para ameaçarem a ponte e a sua barbacã, tinham trinta e seis pés de comprimento.

 

As duas maiores chamavam-se Hellgiver e Widowmaker e estavam colocadas no sopé do monte onde ficava o moinho de vento. Cada uma delas era, essencialmente, uma máquina simples, unicamente uma trave longa montada sobre um eixo, como se fosse o balanço de um gigante ou o baloiço de uma criança, só que uma ponta do baloiço era três vezes maior que a outra. O extremo mais curto estava carregado com uma enorme caixa de madeira cheia de pesos de chumbo, enquanto o extremo mais longo, que lançava de facto o projéctil, estava ligado a um enorme molinete que o puxava para o chão, e, assim, erguia as dez toneladas de chumbo que serviam de contrapeso. O projéctil de pedra era colocado numa funda de couro com cerca de quinze pés de comprimento, ligada ao braço mais comprido. Quando a trave se soltava para que o contrapeso baixasse, o extremo mais comprido girava no céu e a funda girava ainda mais depressa, para que o pedregulho fosse lançado do cinto de couro da funda, descrevesse uma curva no céu e se esmagasse no seu alvo. Até aqui era simples. O difícil era manter o mecanismo oleado com sebo para formar um guincho suficientemente forte que baixasse a trave longa até ao chão e fizesse bater nele um recipiente também suficientemente forte para não soltar dez toneladas de chumbo. Ainda mais difícil era criar um instrumento suficientemente forte que segurasse a enorme trave contra o peso de chumbo, conseguindo, ainda assim, soltá-lo em segurança. Era nestes assuntos que os bávaros eram exímios, sendo, por isso, generosamente pagos.

 

Havia quem dissesse que a destreza dos bávaros era inútil. Os canhões eram muito mais pequenos e lançavam os seus projécteis com uma força mais potente, mas o duque Charles aplicara a sua inteligência a fazer as devidas comparações e decidira-se pela tecnologia mais antiga. Os canhões eram lentos e dados a explosões que matavam os seus dispendiosos artilheiros. Eram também dolorosamente lentos porque a abertura entre o projéctil e a boca do canhão tinha de ser selada para conter a força da pólvora, sendo assim necessário encher o corpo do canhão com barro molhado. Depois este precisava de tempo para secar, antes que a pólvora pudesse inflamar-se e até o mais hábil dos artilheiros de Itália não conseguiria disparar uma arma daquelas mais do que três ou quatro vezes por dia, e ainda quando um canhão disparava, a bala pesava apenas algumas libras. Embora fosse certo que a pequena bola voasse com uma velocidade tão grande que nem podia ser vista, os trabuquetes mais antigos conseguiam lançar um míssil com vinte ou trinta vezes esse peso, três ou quatro vezes por hora. O duque concluiu que La Roche-Derrien seria castigada à maneira antiga e, por isso, rodeou a pequena cidade de nove trabuquetes. Tal como o Hellgiver e o Widowmaker havia também o Stone-Hurler, Crusher, o Gravedigger, o Stonewhip, o Spiteful, o Destwyer e o Hand of God.

 

Todos os trabuquetes estavam construídos sobre uma plataforma feita de tábuas de madeira e protegidos por uma paliçada suficientemente alta e forte para impedir qualquer flecha. Alguns camponeses que se tinham juntado ao exército haviam sido treinados para ficar junto das paliçadas, prontos a lançarem água sobre as flechas incendiárias que os ingleses pudessem utilizar para fazerem arder as defesas e exporem os soldados encarregues dos trabuquetes. Outros camponeses cavavam trincheiras e formavam com a terra as elevações que constituíam as quatro fortalezas do duque. Onde era possível, utilizavam os fossos já existentes ou incorporavam nas defesas as frondosas sebes de espinheiros. Faziam barreiras de paus aguçados e cavavam poços para partirem as pernas dos cavalos. As quatro partes do exército do duque cercavam-se com essas defesas e, dia após dia, à medida que as paredes subiam e os trabuquetes tomavam forma a partir das peças transportadas nas carroças, o duque mandou que os homens praticassem a formação em linha de batalha. Os besteiros genoveses guardavam os muros por terminar, enquanto, por trás deles, os cavaleiros e os homens-de-armas desfilavam a pé. Alguns homens resmungavam que tais práticas eram uma perda de tempo, mas outros percebiam como o duque tencionava combater e aprovavam. Os arqueiros ingleses ver-se-iam sufocados pelos muros, fossos e paliçadas e as bestas caçá-los-iam um a um. Por fim, o inimigo seria forçado a atacar do outro lado dos muros de terra e dos fossos inundados e seria esquartejado pelos homens-de-armas que lá os guardavam.

 

Depois de uma semana de trabalho insano, os trabuquetes estavam montados e as caixas de contrapeso cheias de enormes barras de chumbo. Os soldados de engenharia tinham de demonstrar uma arte ainda mais subtil, a de deixar cair pedras enormes, uma após outra, exactamente no mesmo local do muro de modo que as muralhas iriam sendo destruídas e assim se abriria caminho para a cidade. Depois, assim que o exército auxiliar tivesse sido derrotado, os homens do duque poderiam assaltar La Roche-Derrien e passar a fio da espada os seus traiçoeiros habitantes.

 

Os soldados de engenharia bávaros seleccionaram cuidadosamente as primeiras pedras, depois mediram bem o comprimento das fundas para aperfeiçoar o alcance das máquinas. Estava uma bela manhã de Primavera. Os peneireiros levantavam voo, as campainhas pontilhavam os campos, as trutas erguiam-se para chegar às libelinhas, o alho silvestre mostrava as suas flores brancas e os pássaros voavam pelas folhas novas dos bosques verdejantes. Era a época mais bonita do ano e o duque Charles, cujos espiões lhe haviam dito que o exército inglês de Sir Thomas Dagworth ainda não tinha saído da Bretanha Ocidental, antecipava o triunfo.

 

- Os bávaros podem começar - disse a um dos padres que o serviam.

 

O trabuquete de nome Hellgiver foi o primeiro a disparar. A alavanca foi puxada para extrair uma grossa cavilha de metal de um encaixe ligado ao longo braço da trave do Hellgiver. Dez toneladas de chumbo caíram com um estrondo que se conseguiu ouvir em Tréguier, o braço longo saltou e a funda rodopiou na extremidade do braço com o som de uma súbita rajada de vento. Um pedregulho subiu e pareceu manter-se no céu por um momento, como uma enorme massa de pedra por entre os pássaros; depois, como uma bola de fogo, caiu.

 

Tinha começado a matança.

 

A primeira pedra, lançada pelo Hellgiver, esmagou-se contra o telhado da casa de um tintureiro e cortou a cabeça à mulher deste e a um homem-de-armas inglês. Passou uma graçola por entre a guarnição dizendo que os dois corpos estavam tão juntos que os mortos seguiriam acasalados para a eternidade. A pedra que os matou era quase do tamanho de um barril e, por milagre, não tinha atingido por vinte pés as ameias orientais. Os soldados de engenharia bávaros fizeram os ajustamentos na funda para que a pedra seguinte caísse a pouca distância da muralha, cuspindo sujidade e dejectos da fossa. O terceiro pedregulho atingiu a muralha na vertical e, depois, uma pancada monstruosa anunciou que o Widowmaker acabara de lançar o seu primeiro projéctil. Logo, um a seguir ao outro, o Stone-hurler, o Crusher, o Gravedigger, o Stonewhip, o Spiteful e o Hand of God acrescentaram as suas contribuições.

 

Richard Totesham fez o melhor possível para aparar o ataque dos trabuquetes. Era-lhe evidente que Charles tentava fazer quatro brechas, uma de cada lado da cidade, portanto ordenou que fossem feitos sacos enormes, que se enchessem de palha e se almofadassem as muralhas para serem seguidamente protegidas por toros de madeira. Essas precauções serviam para tornar mais lento o processo das brechas, mas os bávaros enviavam alguns dos projécteis directamente para o centro da cidade e nada podia ser feito para proteger as casas dos enormes pedregulhos. Havia na cidade quem alvitrasse que Totesham deveria construir um trabuquete e tentar destruir as máquinas do inimigo, mas este duvidava que houvesse tempo para tal e preferiu montar uma enorme besta com os mastros dos navios que tinham sido trazidos de Tréguier, antes de o cerco começar. Tréguier estava agora deserta pois, sem muralhas, os seus habitantes tinham vindo ou para La Roche-Derrien em busca de abrigo ou haviam fugido para o mar nos seus navios, ou ainda partido para o acampamento de Charles.

 

A besta de Totesham tinha trinta pés de largura e lançava um virote de oito pés de comprimento, por meio de uma corda feita de couro entrançado. Fora erguida por meio do molinete de um navio. Levaram quatro dias a fabricar a arma, e da primeira vez que a tentaram usar, o braço do mastro quebrou-se. Foi um mau agoiro e houve outro ainda pior, quando um cavalo a puxar uma carroça de excrementos humanos se soltou dos arneses e deu um coice na cabeça de uma criança. A criança morreu. Mais tarde, nesse dia, uma pedra de um dos trabuquetes mais pequenos situados do outro lado do riu atingiu a casa de Richard Totesham, fazendo cair metade do andar superior e quase lhe matando o bebé. Mais de uma dezena de mercenários tentaram desertar da guarnição nessa noite e alguns deveriam tê-lo conseguido, juntando-se ao exército de Charles, e um, que levava uma mensagem para Sir Thomas Dagworth escondida numa bota, foi apanhado e decapitado. Na manhã seguinte, a sua cabeça decepada, com a carta entre os dentes, foi atirada para dentro da cidade por meio do trabuquete chamado Hand ofGod e o moral da guarnição ainda ficou mais em baixo.

 

- Não tenho a certeza se devemos ou não confiar nos maus presságios - disse Mordecai a Thomas.

 

- Claro que devemos.

 

- Gostaria de escutar as vossas razões. Mostrai-me a vossa urina.

 

- Haveis dito que eu estava curado - protestou Thomas.

 

- A eterna vigilância é o preço da saúde, meu caro Thomas. Urinai para mim.

 

Thomas obedeceu, Mordecai segurou o recipiente de encontro ao sol, depois mergulhou um dedo no conteúdo e tocou-o com a ponta da língua.

 

- Esplêndida! - declarou. - Límpida, pura e não demasiado salina. É um bom presságio, não credes?

 

- É um sintoma - disse Thomas. - Não é um presságio.

 

- Ah - Mordecai sorriu com a correcção. Estavam todos no pequeno pátio atrás da cozinha de Jeanette onde o doutor observava os pássaros que levavam lama para os seus ninhos, por baixo dos beirais. - Thomas, esclarecei-me em relação aos presságios - disse com um novo sorriso.

 

- Quando Nosso Senhor foi crucificado - disse Thomas -, houve trevas durante o dia e uma cortina do templo foi rasgada ao meio.

 

- Dizeis-me então que os presságios estão ocultos no próprio interior da vossa fé?

 

- E será que os vossos não? - perguntou Thomas.

 

Mordecai estremeceu quando um pedregulho se esmagou algures na cidade. O som reverberou, depois houve outro estrondo estilhaçante ao mesmo tempo que um chão mais fraco cedeu. Os cães uivaram e uma mulher gritou.

 

- Estão a fazê-lo deliberadamente - disse Mordecai.

 

- Claro - afirmou Thomas.

 

O inimigo não só enviava os pedregulhos para que caíssem nas pequenas casas da cidade, mas usavam por vezes os trabuquetes para lançarem cadáveres apodrecidos do gado, dos porcos ou das cabras e assim espalhar sua sujidade e mau cheiro pelas ruas.

 

Mordecai aguardou que a mulher deixasse de gritar.

 

- Creio que não acredito em maus presságios - disse. - Sofremos alguma falta de sorte na cidade e toda a gente acredita que estamos condenados, mas como saberemos se o inimigo não estará a ter também falta de sorte?

 

Thomas nada disse. Os pássaros cantavam sobre os telhados de colmo, sem reparar que um gato os espreitava logo ali no beiral.

 

- Que quereis, Thomas? - perguntou Mordecai.

 

- Que quero?

 

- Que quereis?

 

Thomas fez uma careta e estendeu a mão direita com os dedos enclavinhados.

 

- Quero endireitá-los.

 

- E eu quero voltar a ser jovem - disse Mordecai impaciente. - Os vossos dedos estão curados. Estão deformados, mas curados. Agora dizei-me o que desejais.

 

- O que eu desejo - disse Thomas - é matar os homens que acabaram com a vida de Eleanor. É trazer de volta o filho de Jeanette. Depois ser arqueiro. Apenas isso. Ser arqueiro.

 

Também queria o Graal, mas não gostava de falar a esse respeito com Mordecai.

 

Mordecai puxou a barba.

 

- Matar o homem que acabou com a vida de Eleanor? - interrogou-se em voz alta. - Penso que o fareis. O filho de Jeanette? Talvez, mas não entendo por que razão desejais agradar-lhe. Não quereis casar com Jeanette, pois não?

 

- Casar com ela! - Thomas riu-se. - Não.

 

- Ainda bem.

 

- Ainda bem? - Thomas parecia agora ofendido.

 

- Sempre gostei de conversar com alquimistas - disse Mordecai - e muitas vezes os vi misturar enxofre com mercúrio. Há uma teoria que diz que todos os metais são compostos destas duas substâncias, sabíeis? As proporções variam, claro, mas em minha opinião, caro Thomas, se se deitar enxofre e mercúrio num recipiente e se aquecer, o resultado é quase sempre uma calamidade - imitou uma explosão com ambas as mãos. - Julgo que sejais vós e Jeanette. Além do mais não a estou a ver casada com um arqueiro. Com um rei? Sim. Com um duque? Talvez. Com um conde ou outro fidalgo? Certamente. Mas com um arqueiro? - abanou a cabeça. - Não há nada de mal em se ser arqueiro, Thomas. É uma arte útil, neste mundo cruel - ficou em silêncio durante algum tempo. - O meu filho está a estudar para ser físico.

 

Thomas sorriu.

 

- Sinto que não concordais.

 

- Que não concordo?

 

- O vosso filho irá curar pessoas. Eu mato-as. Mordecai abanou a cabeça.

 

- Benjamin está a estudar para ser físico, mas preferia ser soldado. Quer matar.

 

- Então porquê... - Thomas deteve-se, porque a resposta era óbvia.

 

- Os judeus não podem andar armados - disse Mordecai. - É por isso. Não, não o reprovo. Penso que, no que diz respeito a soldados, Thomas, sois um bom homem - fez uma pausa e franziu a testa porque outra pedra de um dos enormes trabuquetes embateu numa casa ali perto e, enquanto o estrondo ecoou, esperou pelos gritos. Não os ouviu. - O vosso amigo Will é também um bom homem - continuou Mordecai. - Mas receio que já não seja arqueiro.

 

Thomas acenou com a cabeça. Will Skeat estava curado, mas não recuperado.

 

- Por vezes penso que teria sido melhor... - começou Thomas.

 

- Se tivesse morrido? - Mordecai terminou o pensamento. - Nunca desejeis a morte a uma pessoa, Thomas, porque ela vem sempre cedo de mais sem precisar de ser desejada. Sem dúvida que Sir William voltará para Inglaterra e o vosso conde olhará por ele.

 

É o destino de todos os velhos soldados, pensou Thomas. Regressarem e morrerem à caridade da família que haviam servido.

 

- Então irei para o cerco de Calais quando tudo isto terminar - disse Thomas. - Vou ver se os arqueiros de Will precisam de um novo chefe.

 

Mordecai sorriu.

 

- Não ireis procurar o Graal?

 

- Não sei onde está - disse Thomas.

 

- E o livro do vosso pai? - perguntou Mordecai. - Não vos ajuda? Thomas andava a ler a cópia que Jeanette havia feito, mas o pai devia ter utilizado uma espécie de código, pois por muito que o lesse era incapaz de perceber o seu funcionamento. Ou então nas suas incoerências, o livro era um mero sintoma da mente perturbada do padre Ralph. Mesmo assim, Thomas estava certo de uma coisa. O pai acreditava que tinha possuído o Graal.

 

- Procurei o Graal - disse Thomas -, mas por vezes penso que a única maneira de o procurar é não o procurar - ergueu os olhos, espantado e ouviu um súbito restolhar no telhado. O gato dera uma corrida e quase perdeu o equilíbrio, enquanto os pássaros levantavam voo.

 

- Outro presságio? - perguntou Mordecai, olhando para os pássaros que tinham escapado. - Mas este foi bom.

 

- Dizei-me - pediu Thomas. - Que sabeis do Graal?

 

- Sou judeu. Que sei eu seja do que for? - perguntou inocentemente Mordecai. - Que acontecerá, Thomas, se encontrardes o Graal? - não aguardou resposta. - Pensais que o mundo se transformará num lugar melhor?

 

Pensais que é apenas a falta do Graal? Mais nada? - continuava a não haver resposta. - É uma coisa como Abracadabra, é isso? - perguntou tristemente Mordecai.

 

- O diabo? - perguntou Thomas chocado.

 

- Abracadabra não é o diabo! - respondeu Mordecai, igualmente chocado. - É um simples feitiço. Há judeus idiotas que pensam que se escreverem a palavra em forma de triângulo e a pendurarem ao pescoço estão ao abrigo das sezões! Que idiotice! A única cura para as sezões é uma cataplasma quente de estrume de vaca, mas as pessoas confiam mais em feitiços e, receio bem, também em presságios. Porém, não creio que Deus aja através dos primeiros ou Se revele por meio dos últimos.

 

- O vosso Deus - disse Thomas - está muito, muito distante.

 

- Receio bem que sim.

 

- O meu está próximo - disse Thomas. - E mostra-se.

 

- Então, sois afortunado - disse Mordecai. A roca e o fuso de Jeanette estavam a seu lado sobre um banco. O judeu meteu a roca debaixo do braço e tentou em vão fiar alguma lã da parte superior. - Sois afortunado - repetiu. - Só espero que, quando as tropas de Charles cá entrarem, o vosso Deus se mantenha próximo. Suponho que as pessoas como eu estarão condenadas.

 

- Se as tropas entrarem - disse Thomas -, o melhor será refugiar-vos na igreja ou tentardes fugir pelo rio.

 

- Não sei nadar.

 

- Então a igreja será a vossa esperança.

 

- Duvido - disse Mordecai, poisando a roca. - Totesham deveria render-se - disse tristemente. - Deixar-nos sair.

 

- Não o fará.

 

Mordecai encolheu os ombros.

 

- Então teremos de morrer.

 

Porém, no dia seguinte, conseguiu fugir quando Totesham disse que quem não quisesse sofrer as privações do cerco deveria sair da cidade pela porta sul, mas logo que esta foi aberta uma força de homens-de-armas de Charles, todos eles de cotas de malha, com o rosto escondido pelas viseiras cinzentas bloquearam a saída. Apenas cem pessoas tinham decidido partir, todas elas mulheres e crianças, mas os homens de Charles encontravam-se ali para dizer que não permitiriam que abandonassem La Roche-Derrien. Não era do interesse dos sitiantes ter mais algumas bocas a alimentar na guarnição, de modo que os homens cinzentos barraram a estrada e os soldados de Totesham fecharam a porta da cidade. As mulheres e crianças andaram todo o dia à deriva.

 

Nesse dia, ao fim da tarde, os trabuquetes não trabalharam pela primeira vez, desde que a pedra tinha matado a mulher do tintureiro e o seu amante, e, naquele estranho silêncio, chegou um mensageiro ao acampamento de Charles. Uma trombeta e uma bandeira branca anunciavam o desejo de tréguas e Totesham ordenou ao trombeteiro inglês que respondesse ao bretão e que uma bandeira branca ondulasse sobre o portão sul. O mensageiro bretão aguardou até que um graduado chegou às muralhas e depois apontou para as mulheres e crianças.

 

- Não podemos permitir que esta gente passe pelas nossas linhas. Aqui vão morrer de fome.

 

- É essa a compaixão que o vosso amo mostra por estas pessoas? - respondeu o enviado de Totesham. Era um padre inglês que falava bretão e francês.

 

- Tem tanta piedade deles - respondeu o mensageiro - que os libertaria das cadeias inglesas. Dizei ao vosso amo que tem um prazo para entregar a cidade até ao Angelus desta noite. Se assim o fizer, poderá sair com as suas armas, pendões, cavalos, famílias, criados e posses.

 

Era uma oferta generosa, mas o padre nem sequer a teve em consideração.

 

- Dir-lhe-ei - ripostou o padre. - Mas apenas se disserdes a vosso amo que temos alimentos para um ano e armas suficientes para vos matarmos a todos duas vezes.

 

O mensageiro inclinou-se, o padre retribuiu a saudação e as conversações deram-se por terminadas. Os trabuquetes recomeçaram o seu trabalho e, ao cair da noite, Totesham ordenou que se abrissem as portas da cidade e que os fugitivos regressassem perante a zombaria daqueles que não tinham querido sair.

 

Thomas, como todos os homens de La Roche-Derrien, fazia turnos nas ameias. Era um trabalho entediante, pois Charles de Blois assegurava-se que nenhum elemento das suas forças se colocasse ao alcance dos arqueiros ingleses, mas havia alguma diversão em observar as enormes máquinas. Eram armadas tão lentamente, que mais parecia que as enormes traves não se moviam, porém, gradualmente, quase sem se notar, a grande caixa de madeira com os seus pesos de chumbo erguia-se por trás da paliçada protectora e o longo braço mergulhava fora da vista. Depois, quando o braço comprido tinha baixado o mais que lhe era possível, nada acontecia durante algum tempo, provavelmente porque os soldados de engenharia estavam a carregar a funda. A seguir, justamente quando parecia que tudo ficaria imóvel, o contrapeso caía, a paliçada estremecia, os pássaros assustados voavam da relva e o longo braço batia, trepidava, a funda saltava e uma pedra descrevia um arco no ar. O som chegaria então, o estalo monstruoso do cair de um contrapeso, seguido, um segundo depois do bater da pedra nas ameias quebradas. Mais sacos cheios de palha seriam lançados contra a brecha cada vez maior, mas os projécteis continuavam a fazer os seus estragos e, por isso, Totesham ordenou aos homens que começassem a fazer novos muros por trás das brechas.

 

Alguns deles, incluindo Thomas e Robbie, queriam fazer uma surtida. Juntar sessenta homens, sugeriam, deixá-los sair da cidade ao nascer do dia. Podiam facilmente ultrapassar um ou dois dos trabuquetes, encharcar as máquinas com azeite e alcatrão e lançar archotes em chamas para o emaranhado de cordas e madeira. Mas Totesham recusou-se. A sua guarnição era demasiado pequena, dizia, e não queria perder nem sequer meia-dúzia de homens, antes de ter de lutar nas brechas contra os soldados de Charles.

 

Afinal, perdeu-os. Na terceira semana de cerco, Charles de Blois tinha terminado os seus trabalhos de defesa e as quatro partes do seu exército estavam, todas elas, protegidas atrás de muros de terra, sebes, paliçadas e fossos. Tinha limpo de quaisquer obstáculos a terra entre os seus acampamentos, para que, quando chegassem os reforços, os seus arqueiros não tivessem onde se esconder. Agora, com os acampamentos fortificados e os trabuquetes a atacar os buracos cada vez maiores das muralhas de La Roche-Derrien, fez avançar os seus besteiros para fustigarem as ameias. Vinham em pares, um homem com a besta e um companheiro empunhando um paviso, um escudo tão alto e forte que protegia ambos. Os pavisos estavam pintados, alguns com frases sagradas, mas na sua maioria, com insultos em francês, inglês e, nalguns casos, em italiano, porque os besteiros eram genoveses. Os virotes danificavam o muro, assobiavam em redor da cabeça dos sitiados e batiam nos telhados de colmo das casas para lá das muralhas. Por vezes os genoveses lançavam setas incendiárias e Totesham tinha seis esquadrões de homens que nada mais faziam do que apagar as chamas, retirando água do rio Jaudy e encharcando os telhados mais próximos das ameias, em maior perigo de serem atingidos pelos besteiros.

 

Os arqueiros ingleses ripostavam, mas os besteiros estavam geralmente ocultos pelos pavisos e, quando disparavam, expunham-se apenas por um breve instante. Mesmo assim, alguns morriam, mas também deitavam por terra os arqueiros das muralhas da cidade. Muitas vezes Jeanette juntava-se a Thomas nas ameias do lado sul e disparava os seus virotes da seteira que havia sobre a porta. Uma besta podia ser disparada de joelhos, de modo que não expunha grandemente o corpo ao perigo, enquanto Thomas tinha de se pôr de pé para soltar uma flecha.

 

- Não deverias estar aqui - dizia-lhe sempre e ela repetia já as palavras dele enquanto recarregava a arma.

 

- Lembras-te do primeiro cerco? - perguntou-lhe ela.

 

- Quando disparavas contra mim?

 

- Espero agora ser mais certeira - disse apoiando o arco na parede, fazendo pontaria e soltando o gatilho. O virote bateu num paviso onde já estavam espetadas flechas inglesas.

 

Por trás dos besteiros via-se o muro de terra do acampamento mais próximo sobre o qual surgiam as pouco graciosas traves dos dois trabuquetes e, por trás, as coloridas bandeiras de alguns dos fidalgos de Charles. Jeanette reconheceu os pendões de De Ruão, Lavai, Malestroit e Roncelets e a primeira visão da bandeira cor de vespa de tal forma a encheu de raiva que chorou ao pensar que o filho estava naquela torre distante.

 

- Quem me dera que atacassem agora - disse -, para eu poder enfiar um virote em Roncelets e em Blois.

 

- Não atacarão enquanto não derrotarem Dagworth - disse Thomas.

 

- Pensais que ele vem?

 

- Penso que é por isso que aqui estão - disse Thomas, apontando com a cabeça para o inimigo. Depois pôs-se de pé, puxou o arco e lançou uma flecha em direcção ao besteiro que saíra de detrás do seu escudo. O homem escondeu-se de novo um instante antes de a flecha de Thomas ter assobiado junto dele. Thomas baixou-se de novo. - Charles sabe que nos pode apanhar quando desejar - disse. - Mas o que verdadeiramente deseja é esmagar Dagworth.

 

Porque quando Sir Thomas Dagworth ali fosse derrubado, não haveria qualquer exército inglês na Bretanha e as fortalezas cairiam inevitavelmente uma a uma, conseguindo assim Charles obter o seu ducado.

 

Depois, um mês após a sua chegada, quando as sebes em redor das quatro fortalezas estavam brancas das flores dos espinheiros, as pétalas voavam das macieiras, as margens do rio se encontravam cobertas de íris e as papoilas eram de um vermelho-brilhante no centeio maduro, avistou-se uma coluna de fumo no céu a sudoeste. Os vigias das muralhas de La Roche-Derrien viram os batedores a cavalgar, vindos do acampamento inimigo e perceberam que o fumo deveria vir de fogueiras, o que significava que um exército estava para chegar. Alguns temiam que pudessem ser reforços para o inimigo, mas foram tranquilizados por outros que afirmavam, com certezas, que só tropas amigas se poderiam aproximar vindas de sudoeste. Aquilo que Richard Totesham e os outros que sabiam a verdade não revelaram, era que quaisquer reforços seriam pouco numerosos, muito menos numerosos do que o exército de Charles. E vinha na direcção da armadilha que este lhe estendera. Porque o plano de Charles funcionara e Sir Thomas Dagworth tinha mordido o isco.

 

Charles de Blois reuniu os seus fidalgos e comandantes na tenda grande, junto ao moinho. Era sábado e a força inimiga estava agora a uma curta distância, o que significava a inevitável existência de algumas cabeças quentes nas suas fileiras, dispostas a envergar as armaduras de metal, erguer as lanças e cavalgar a toda a brida para morrer às mãos dos arqueiros ingleses.

 

Abundavam os loucos, pensava Charles, e teve de lhes cortar as esperanças, tornando bem claro que ninguém, excepto os batedores, deveria sair de qualquer dos quatro acampamentos.

 

- Ninguém! - bateu com o punho na mesa, quase entornando o tinteiro do escrivão que lhe copiava as palavras. - Ninguém poderá daqui sair! Entendeis? - Olhou para todos os rostos e pensou de novo em como os seus fidalgos eram loucos. - Ficamos por trás das nossas trincheiras - disse. Eles virão ter connosco e serão mortos.

 

Alguns dos fidalgos pareceram descontentes, pois pouca glória havia em lutar por trás de muros de terra e fossos com pouca água quando podiam cavalgar um corcel; mas Charles de Blois foi firme e mesmo o mais rico dos seus fidalgos temeu a ameaça de que quem lhe desobedecesse não tomaria parte na distribuição das terras e das riquezas que se seguiria à conquista da Bretanha.

 

Charles pegou num bocado de pergaminho.

 

- Os nossos batedores cavalgaram até junto da coluna de Sir Thomas Dagworth - disse em voz precisa. - Temos agora uma estimativa apurada dos seus números. - Sabendo que cada um dos homens que se encontrava dentro da tenda queria inteirar-se da força do inimigo, fez uma pausa, porque queria revestir de drama aquela declaração, mas não pôde deixar de sorrir quando revelou os números. - Os nossos inimigos - disse - ameaçam-nos com trezentos homens-de-armas e quatrocentos arqueiros.

 

Houve uma pausa até os números serem entendidos, seguindo-se depois uma explosão de risos. Até mesmo Charles, geralmente tão sóbrio, firme e rígido, se lhes juntou. Era ridículo! Era de facto impertinente! Corajoso, talvez, mas uma completa loucura. Charles de Blois tinha quatro mil homens e centenas de camponeses voluntários em que podia confiar para auxiliarem no massacre do inimigo, mesmo não estando eles realmente acampados dentro dos terrenos. Tinha dois mil dos melhores besteiros da Europa, tinha mil cavaleiros armados, muitos deles campeões em grandes torneios e Sir Thomas Dagworth vinha com setecentos homens? A cidade poderia contribuir com outros cem ou duzentos, mas, no máximo, os ingleses nunca seriam mais do que mil e Charles tinha quatro vezes esse número.

 

- Hão-de chegar, senhores - disse aos seus excitados fidalgos. - E aqui hão-de morrer.

 

Poder-se-iam aproximar por uma de duas estradas. A primeira vinha de oeste e era a mais directa, mas levava ao lado oposto do rio Jaudy e Charles não pensava que Dagworth a fosse utilizar. A outra serpenteava em redor da cidade cercada, para se aproximar vinda de sudeste e levava directamente ao maior dos quatro acampamentos de Charles, o oriental, que ele comandava pessoalmente e cujos maiores trabuquetes disparavam contra as muralhas de La Roche-Derrien.

 

- Deixai que vos diga, Senhores - Charles silenciou o divertimento dos seus comandantes -, aquilo que julgo que Sir Thomas tenciona fazer, aquilo que eu faria se tivesse a infelicidade de estar no seu lugar. Julgo que enviará uma pequena mas ruidosa força de homens para nos abordarem na estrada de Lannion - era a estrada que vinha de oeste, a estrada directa. Enviá-los-á durante a noite, para nos tentar fazer crer que atacará o nosso acampamento do outro lado do rio. Esperará que reforcemos esse acampamento e depois, de madrugada, o verdadeiro ataque virá de leste. Espera que a maior parte do nosso exército esteja espalhado do outro lado do rio e que pode vir de manhã destruir os três acampamentos desta margem. Isso, meus senhores, será aquilo que muito provavelmente tentará e vai falhar. Vai falhar porque nós vamos manter uma regra muito clara e dura que não pode ser quebrada! Ninguém sai do acampamento! Ninguém! Ficai por detrás dos vossos muros! Lutaremos a pé, faremos as nossas linhas de batalha e deixá-los-emos vir ter connosco. Os nossos besteiros cortarão os seus arqueiros e depois, meus Senhores, destruiremos os seus homens-de-armas. Mas ninguém sai dos acampamentos! Ninguém. Não nos transformaremos em alvos para os seus arcos. Compreendeis?

 

O senhor de Châteaubriant quis saber o que deveria fazer se estivesse no seu acampamento a sul e houvesse uma luta dentro de um outro forte.

 

- Fico apenas a olhar? - perguntou, incrédulo.

 

- Ficareis apenas a olhar - disse o duque Charles em voz cortante. - Não quero que deixeis o acampamento. Compreendeis? Os arqueiros não podem matar aquilo que não podem ver! Ficai escondidos!

 

O senhor de Roncelets fez notar que os céus estavam claros e a Lua quase cheia.

 

- Dagworth não é louco - disse - e há-de saber que fizemos estas fortificações e limpámos a terra para lhes negar cobertura. Porque não atacará então durante a noite?

 

- Durante a noite? - perguntou Charles.

 

- Desse modo os nossos besteiros não poderão ver os seus alvos, mas os ingleses terão luar suficiente para ver o caminho em direcção às nossas trincheiras.

 

Era uma boa razão que Charles reconheceu acenando bruscamente com a cabeça.

 

- Fogueiras - disse.

 

- Fogueiras? - perguntou um homem.

 

- Fazei já fogueiras! Grandes fogueiras! Quando eles chegarem acendam fogueiras! Transformem a noite em dia!

 

Os homens riram-se, tendo gostado da ideia. Não era a combater a pé que os fidalgos e os cavaleiros faziam as suas reputações, mas todos compreendiam que Charles pensava em como derrotar os temidos arqueiros ingleses e as suas ideias faziam sentido embora oferecessem poucas possibilidades de glória. Depois Charles ofereceu-lhes algum consolo.

 

- Hão-de quebrar, meus Senhores - disse -, e, quando isso acontecer, vou mandar soar sete toques de trombeta. Sete! E, quando ouvirdes a trombeta, podeis sair dos vossos acampamentos e dar início à perseguição ouviram-se resmungos de aprovação, pois os sete toques de trombeta libertariam os homens de armadura e os seus enormes cavalos para poderem esquartejar os restos da força de Dagworth.

 

- Recordai! - Charles bateu na mesa mais uma vez para conseguir a atenção dos homens. - Recordai! Não deixeis o vosso acampamento até ouvirdes o som das trombetas! Ficai atrás das trincheiras, atrás dos muros, deixai vir o inimigo e venceremos - acenou com a cabeça para mostrar que tinha terminado. - E agora, Senhores, os nossos padres ouvirão as vossas confissões. Vamos limpar as nossas almas, para que Deus nos possa recompensar com a vitória.

 

A quatro léguas de distância, num refeitório sem telhado de um mosteiro pilhado e abandonado, reunia-se um grupo muito menor de homens. O comandante era um homem grisalho do Suffolk, forte e rude, que sabia que teria de enfrentar um desafio formidável se quisesse libertar La Roche-Derrien. Sir Thomas Dagworth escutou um cavaleiro bretão contar o que os seus batedores tinham descoberto: que os homens de Charles de Blois estavam ainda posicionados nos quatro acampamentos diante das quatro portas da cidade. O maior deles todos, sobre o qual ondulava ao vento o enorme pendão do arminho branco de Charles de Blois, fora montado a leste.

 

- Foi montado junto de um moinho de vento - relatou o cavaleiro.

 

- Recordo-me desse moinho - disse Sir Thomas. Passou os dedos pela sua curta barba grisalha, hábito que tinha quando estava a pensar. - É aí que devemos atacar - disse em voz tão baixa que poderia estar a falar consigo próprio.

 

- É aí que são mais fortes - avisou-o um dos homens.

 

- Então, distraí-los-emos. - Sir Thomas acordou do seu sonho. - John disse, voltando-se para um homem com uma velha cota de malha -, reúne todos os criados do acampamento. Os cozinheiros, os escrivães, os palafreneiros, todos os que não sejam combatentes. Depois junta todas as carroças e todos os cavalos de carga e faz uma aproximação à estrada de Lannion. Sabes qual é?

 

- Consigo encontrá-la.

 

- Sai antes do cair da noite. Faz muito barulho, John! Podes levar o meu trombeteiro e alguns tambores. Fá-los pensar que todo o exército se aproxima vindo de oeste. Quero-os a enviarem homens para o acampamento oeste, muito antes do nascer do dia.

 

- E nós? - perguntou o cavaleiro bretão.

 

- Nós marchamos à meia-noite - disse Sir Thomas - e seguimos para leste até chegarmos à estrada de Guingamp. - Essa estrada chegava a La Roche-Derrien vinda de sueste. Como a pequena força de Sir Thomas marchava de oeste, esperava que Charles nunca pensasse que iria usar a estrada de Guingamp. - Será uma marcha silenciosa - ordenou. - E iremos todos a pé, todos! Arqueiros à frente, homens-de-armas atrás, atacaremos o seu forte oriental na escuridão. - Ao atacar no escuro, Sir Thomas pensava poder afastar os besteiros dos seus alvos e, ainda melhor, apanhar o inimigo a dormir.

 

E foram estes os seus planos: um falso assalto a oeste e outro verdadeiro vindo de leste. E era exactamente isso que Charles de Blois esperava que ele fizesse.

 

A noite caiu. Os ingleses marchavam, os homens de Charles armaram-se e a cidade esperou.

 

Thomas ouvia os armeiros no acampamento de Charles. Ouvia os martelos fechando os rebites das armaduras de metal e o afiar das espadas nas pedras. As fogueiras dos quatro acampamentos não se apagaram como de costume, mas foram alimentadas para se manterem altas e brilhantes de modo que a luz reflectia nas tiras de ferro que ligavam as estruturas dos grandes trabuquetes, recortadas no brilho do fogo.

 

Das ameias, Thomas via os homens movimentarem-se no acampamento inimigo mais próximo. De minuto a minuto o fogo brilhava ainda mais pois os armeiros usavam foles para espevitar as chamas.

 

Uma criança chorou numa casa próxima. Um cão ganiu. A maioria dos homens da pequena guarnição de Totesham encontrava-se nas ameias tal como muitos dos habitantes da cidade. Ninguém conhecia exactamente a razão por que ali estava, pois o exército que os vinha socorrer ainda deveria estar a uma grande distância, porém poucas pessoas queriam ir deitar-se. Esperavam que alguma coisa acontecesse e queriam ver o que era. Seria assim o dia do juízo, pensou Thomas, os homens e as mulheres à espera que os céus se abrissem, que os anjos descessem à terra, e que, das sepulturas, os virtuosos defuntos subissem aos céus. Recordava-se que o pai sempre quisera ser sepultado voltado para oeste para que, quando se erguesse dos mortos, estivesse de frente para os seus paroquianos, quando estes se levantassem da terra. ”Precisarão de ser conduzidos por mim”, dissera o padre Ralph, e Thomas assegurara-se de que os seus desejos tivessem sido cumpridos. Os paroquianos de Hookton, enterrados de modo a que se se sentassem, ficariam a olhar para leste, para a glória da segunda vinda de Cristo, encontrariam o seu padre diante deles, para os tranquilizar.

 

Thomas também precisava de ser tranquilizado naquela noite. Estava com Sir Guillaume e os seus dois homens-de-armas e todos eles assistiam aos preparativos do inimigo desde um bastião do canto sueste da cidade, perto do local onde a torre da Igreja de São Barnabé oferecia um ponto de observação. Os restos da gigantesca catapulta de Totesham tinham sido utilizados para fazer uma frágil ponte entre o bastião e uma janela da torre da igreja e, depois de passada a janela, havia uma escada que subia e entrava por um enorme buraco feito por uma pedra do VJidowmaker no parapeito da torre. Thomas devia ter feito a viagem meia-dúzia de vezes antes da meia-noite, porque do parapeito era possível ver por cima da paliçada o interior do maior acampamento de Charles. Foi quando estava na torre que Robbie surgiu nas ameias por baixo dele.

 

- Quero que olheis para isto - disse-lhe Robbie, voltando-se para cima, empunhando um escudo recém-pintado. - Gostais?

 

Thomas espreitou e, ao luar, viu uma coisa vermelha.

 

- O que é? - perguntou. - Uma mancha de sangue?

 

- Sois um inglês bastardo e completamente cego - disse Robbie. - É o coração vermelho dos Douglas!

 

- Ah! Visto daqui parece que uma coisa morreu esborrachada contra o escudo.

 

Todavia, Robbie sentia orgulho no seu escudo. Admirou-o ao luar.

 

- Estava um homem a pintar um novo demónio na parede da Igreja de São Goran - disse. - Por isso paguei-lhe para que me fizesse isto.

 

- Espero que não lhe haveis pago demasiado - disse Thomas.

 

- Tendes inveja - Robbie encostou o escudo ao parapeito antes de se abeirar da improvisada ponte. Desapareceu pela janela e voltou para o lado de Thomas.

 

- Que estão eles a fazer? - perguntou olhando para oriente.

 

- Jesus! - blasfemou, porque, por fim, alguma coisa estava a acontecer. Para lá das enormes sombras do Hellgiver e do Widowmaker, no acampamento oriental, centenas de homens formavam uma linha de batalha. Thomas concluíra que a luta só começaria de madrugada, porém agora parecia que Charles de Blois se preparava para combater no negro coração da noite.

 

- Meu doce Jesus! - Sir Guillaume, mandado chamar ao cimo da torre, fez eco da surpresa de Thomas.

 

- Os canalhas estão à espera do combate - disse Robbie, pois os homens de Charles alinhavam ombro a ombro. Tinham as costas voltadas para a cidade e o luar reflectia-se sobre as espaldeiras que cobriam os ombros dos cavaleiros e tocava de branco as lâminas das lanças e dos machados.

 

- Dagworth deve estar a chegar - disse Sir Guillaume.

 

- Durante a noite? - perguntou Robbie.

 

- Porque não? - retorquiu Sir Guillaume e logo gritou para um dos seus homens-de-armas que fosse avisar Totesham do que se estava a passar.

- Acordai-o - vociferou, quando o homem perguntou o que haveria de fazer se o comandante da guarnição estivesse a dormir. - Claro que não está a dormir - acrescentou para Thomas. - Totesham pode ser um maldito inglês, mas é bom soldado.

 

Totesham não estava a dormir, não que já se tivesse apercebido de que o inimigo estava formado para a batalha, mas depois de ter passado a precária ponte para a Igreja de São Barnabé, olhou para as tropas de Charles com a sua habitual expressão de azedume.

 

- Parece-me que teremos de dar uma ajuda - disse.

 

- Julguei que não aprováveis as saídas para além da muralha - observou Sir Guillaume que se tinha irritado contra aquela restrição.

 

- É esta a batalha que nos pode salvar - replicou Totesham. - Se perdemos esta luta, a cidade cai, portanto, teremos de fazer os possíveis para a vencer - parecia lúgubre, depois encolheu os ombros e voltou-se para a escada da torre. - Deus nos ajude - disse em voz baixa, enquanto subia nas sombras. Sabia que o exército de Sir Thomas Dagworth seria pequeno e receava que fosse ainda mais pequeno do que o que se atrevia a imaginar, mas, quando atacasse o acampamento inimigo, a guarnição teria de estar preparada para ajudar. Não queria alertar o inimigo com uma surtida a partir das portas da cidade, por isso não fez soar os sinos para reunir as suas tropas, preferindo enviar os homens para juntar arqueiros e homens-de-armas na praça do mercado perto da Igreja de São Brieuc. Thomas voltou para casa de Jeanette e vestiu a sua loriga de malha, que Robbie recuperara após o assalto a Roncelets, prendeu o cinto da espada, fechando a fivela com alguma dificuldade, já que os seus dedos deformados o impediam de executar movimentos complicados, colocou ao ombro esquerdo a bolsa das setas, retirou o arco da sua cobertura de linho, meteu no morrião uma corda de reserva e enfiou-o na cabeça. Estava pronto.

 

E, segundo viu, Jeanette também. Tinha vestido uma loriga e um morrião e Thomas ficou a olhar para ela de boca aberta.

 

- Não podes tomar parte na surtida! - disse.

 

- Tomar parte na surtida? - parecia surpreendida. - Se todos vão sair da cidade, quem guardará as muralhas?

 

- Oh! - sentiu-se um tolo. Ela sorriu e deu-lhe um beijo.

 

- Agora vai - disse. - E que Deus te acompanhe.

 

Thomas dirigiu-se à praça do mercado. A guarnição estava aí reunida, mas o número de homens era desesperadamente reduzido. Um taberneiro fez rolar para a praça um barril de cerveja, abriu-o e deixou que os homens

se servissem à vontade. Um ferreiro afiava as espadas e os machados à luz de um archote que ardia à entrada de São Brieuc e a pedra de amolar soava sobre as longas lâminas de aço, com um som estranhamente triste a cortar a noite. Estava calor. Os morcegos esvoaçavam em redor da igreja, mergulhando nas emaranhadas sombras que o luar lançava sobre uma casa arruinada pelo tiro certeiro de um trabuquete. As mulheres traziam comida aos soldados e Thomas recordava-se agora de, como no ano anterior, aquelas mesmas mulheres tinham gritado contra a entrada dos ingleses na cidade. Fora uma noite de violações, roubos e assassínios, mas agora as gentes da cidade não queriam que os ocupantes partissem e a praça do mercado estava cada vez mais cheia, enquanto os homens da cidade traziam armas improvisadas para ajudar na refrega. A maioria estava armada com machados que usavam para cortar lenha, embora alguns tivessem espadas e lanças e houvesse mesmo quem possuísse uma armadura de couro ou de malha. Eram em muito maior número do que a guarnição e fariam pelo menos com que a surtida parecesse formidável.

 

- Cristo Jesus - disse uma voz azeda por trás de Thomas. - Em nome de Cristo, o que se passa aqui?

 

Thomas voltou-se e viu a figura esguia de Sir Geoffrey Carr a olhar para o escudo de Robbie, encostado aos degraus de uma cruz de pedra no centro da praça do mercado. Robbie também se voltou para olhar para o Espantalho que conduzia os seus seis homens.

 

- Parece um monte de excrementos esmagado - disse o Espantalho. Tinha a voz arrastada e era evidente que passara a noite numa das muitas tabernas da cidade.

 

- É meu - disse Robbie.

 

Sir Geoffrey deu um pontapé no escudo.

 

- É o maldito coração dos Douglas, rapaz?

 

- É a minha insígnia - disse Robbie, exagerando o seu sotaque escocês. - Se é disto que estais a falar. - Em redor, os homens tinham parado para os ouvir.

 

- Sabia que éreis escocês - disse o Espantalho, parecendo ainda mais embriagado. - Mas não sabia que fôsseis um maldito Douglas. E que raio está um Douglas a fazer aqui? - O Espantalho ergueu a voz para os homens reunidos. - De que lado está a maldita Escócia, ha? De que lado? E os malditos Douglas combatem-nos desde que foram lançados da cloaca do demónio! - O Espantalho cambaleou e depois puxou o chicote do cinto, deixando-o desenrolar-se. - Meu Jesus - gritou. - Essa maldita família empobreceu nobres ingleses. São ladrões malditos! Espiões!

 

Robbie sacou a espada e o chicote vibrou, mas Sir Guillaume puxou Robbie para o lado antes que o chicote o atingisse no rosto. Depois puxou da espada e ele e Thomas ladearam Robbie nos degraus da cruz.

 

- Robbie Douglas é meu amigo - gritou Sir Guillaume.

 

- E meu - disse Thomas.

 

- Basta! - furioso, Richard Totesham abriu caminho por entre a multidão. - Basta!

 

O Espantalho apelou para Totesham.

 

- É um maldito escocês!

 

- Valha-me Deus, homem - vociferou Totesham. - Temos nesta guarnição franceses, galeses, flamengos, irlandeses e bretões. Que diferença faz?

 

- É um Douglas! - insistiu o Espantalho com a voz arrastada. - É um inimigo!

 

- É meu amigo! - gritou Thomas, convidando à luta quem quer que desejasse pôr-se do lado de Sir Geoffrey.

 

- Basta! - A ira de Totesham era suficientemente grande para encher toda a praça do mercado. - Já combatemos o suficiente com as nossas mãos sem nos comportarmos como crianças! Respondeis por ele? - perguntou a Thomas.

 

- Respondo eu por ele - fora Will Skeat quem falara. Abrira caminho por entre a multidão e passou um braço pelos ombros de Robbie. - Respondo eu por ele, Dick.

 

- Então, seja ou não um Douglas - disse Totesham -, não é meu inimigo. - Deu meia volta e afastou-se.

 

- Meu Jesus! - O Espantalho estava ainda zangado. A casa de Douglas empobrecera-o e pobre continuava. Os riscos que correra ao seguir Thomas não tinham dado resultado, pois este não encontrara qualquer tesouro e agora todos os inimigos pareciam reunir-se em redor de Thomas e Robbie. Cambaleou de novo, cuspiu na direcção de Robbie. - Queimo os homens que usam o coração dos Douglas - disse. - Queimo-os.

 

- Queima-os mesmo - disse Thomas em voz baixa.

 

- Queima-os? - perguntou Robbie.

 

- Em Durham - disse Robbie, olhando Sir Geoffrey nos olhos - queimou três prisioneiros.

 

- Haveis feito o quê? - perguntou Robbie.

 

Apesar de embriagado, o Espantalho teve subitamente consciência da raiva de Robbie e também de que não tinha ganho a simpatia dos homens reunidos na praça do mercado que preferiam a opinião de Will Skeat à sua. Recolheu o chicote, cuspiu em direcção a Robbie e afastou-se com passo incerto.

 

Agora era Robbie que queria lutar.

 

- Vinde cá! - gritou.

 

- Deixai! - disse Thomas. - Esta noite não, Robbie.

 

- Queimou três homens? - perguntou Robbie.

 

- Esta noite não - repetiu Thomas e empurrou Robbie para trás, de modo que o escocês se sentou nos degraus da cruz.

 

Robbie ficou a olhar o Espantalho, que se afastava.

 

- É um homem morto - disse furioso. - Digo-vos, Thomas, aquele bastardo é um homem morto.

 

- Somos todos homens mortos - disse Sir Guillaume em voz baixa, pois o inimigo estava pronto para os atacar em número avassalador.

 

E Sir Thomas Dagworth aproximava-se da sua armadilha.

 

John Hammond, delegado de Sir Thomas Dagworth, conduziu o falso exército, que vinha de oeste, ao longo da estrada de Lannion. Tinha sessenta homens, outras tantas mulheres, uma dúzia de carroças e trinta cavalos e usou-os para fazer o máximo de barulho possível, uma vez que ficaram à vista do acampamento mais a oeste do duque Charles.

 

As fogueiras iluminavam as fortificações e a luz saía pelas pequenas fendas entre as madeiras da paliçada. Parecia haver muitas no acampamento e ainda foram acesas mais quando a pequena força de Hammond começou a bater com tachos, panelas e paus contra as árvores e a tocar as trombetas. Os tambores batiam freneticamente, mas não havia pânico por trás dos montes de terra. Alguns soldados inimigos apareceram, a observar ao luar a estrada onde os homens e as mulheres de Hammond eram sombras sob as árvores, mas depois foram-se embora. Hammond ordenou à sua gente que fizesse ainda mais barulho e seis arqueiros, os únicos verdadeiros soldados naquela força fingida, aproximaram-se do acampamento e lançaram as setas sobre as paliçadas, mas sem conseguir qualquer reacção imediata. Hammond esperava ver os homens espalhados junto ao rio que os espiões de Sir Thomas tinham informado estar cheios de barcos, mas ninguém parecia mexer-se por entre os acampamentos inimigos. Parecia que o falso ataque não surtira efeito.

 

- Se ficarmos aqui, estes malditos crucificam-nos - disse um homem.

 

- Com toda a certeza - concordou fervorosamente Hammond. - Vamos descer um pouco a estrada - disse. - Só um pouco. Voltemos para as sombras mais profundas.

 

A noite começara mal, com o fracasso do ataque falso, mas os homens de Sir Thomas, os verdadeiros atacantes, tinham feito melhores progressos do que o esperado e chegavam ao flanco oriental do acampamento do duque Charles, pouco tempo depois de o falso grupo começar a sua ruidosa manobra de diversão três milhas para oeste. Os homens de Sir Thomas acocoraram-se junto à sebe da entrada de um bosque para observarem as fortificações para além da terra alisada. A estrada, pálida ao luar, mostrava-se vazia até um enorme portão de madeira, onde era engolida por um forte improvisado.

 

Sir Thomas dividira os seus homens em dois grupos que atacariam de ambos os lados do portão de madeira. Nada haveria de subtil naquele assalto, apenas uma corrida pelo escuro e um ataque repentino sobre o muro de terra, para matar quem quer que se encontrasse do outro lado. ”Deus vos dê alento!”, disse Sir Thomas aos seus homens enquanto descia a linha, depois puxou da espada e acenou ao grupo para que o seguisse. Aproximar-se-iam o mais silenciosamente possível, pois Sir Thomas tinha ainda esperanças de se poder servir do factor surpresa, mas a luz das fogueiras do outro lado das defesas parecia-lhe forte de mais para ser natural e tinha um mau pressentimento de que o inimigo o esperava. Porém, ninguém se encontrava junto ao declive e não zumbiam virotes de besta no escuro. Assim, atreveu-se a ter esperanças e meteu-se no fosso para atravessar o seu fundo lamacento. Tinha arqueiros à esquerda e à direita, todos eles subindo a margem para chegar à paliçada. Mesmo assim não foram lançados virotes, não soaram trombetas e os inimigos não se mostraram. Os arqueiros estavam agora na sebe que mostrava ser mais frágil do que parecia pois os troncos não estavam profundamente enterrados e podiam ser afastados com um pontapé, sem muito esforço. As defesas não eram formidáveis e nem sequer estavam protegidas, pois o inimigo não os provocou enquanto os homens-de-armas de Sir Thomas atravessavam o fosso, com as espadas brilhando ao luar. Os arqueiros terminaram de demolir a paliçada, Sir Thomas passou por cima das traves caídas e correu pelo declive para o acampamento de Charles. Mas o duque não se encontrava no acampamento e sim num enorme sspaço aberto que levava a outro declive, a outro fosso, a outra paliçada. O lugar era um labirinto! Mesmo assim não havia virotes no escuro e os seus arqueiros avançavam a correr, alguns a praguejar, enquanto tropeçavam nos buracos iscavados para fazerem cair os cavalos. As fogueiras ardiam por trás da paliçada seguinte. Onde estavam as sentinelas? Sir Thomas elevou o escudo com uma espiga de trigo e olhou para a esquerda, para ver que o segundo grupo atravessava o primeiro talude e corria pela erva em direcção ao segundo. Os arqueiros puxaram a nova paliçada que, como a primeira, caiu facilmente. Ninguém falava, ninguém gritava ordens, ninguém pedia ajuda a São Jorge, estavam apenas a cumprir o seu dever, mas certamente o inimigo haveria de ter escutado a madeira a cair. A segunda paliçada caiu e Sir Thomas e os arqueiros entraram aos encontrões por essa nova brecha. Lá por trás, havia um prado com uma sebe e por trás da sebe estavam as tendas dos inimigos e o alto moinho de velas enroladas, bem como as duas formas monstruosas dos dois maiores trabuquetes, tudo isto iluminado por enormes fogueiras. Tudo tão próximo! Sir Thomas sentiu uma feroz onda de alegria pois tinha conseguido a surpresa e o inimigo era certamente seu; mas foi nesse momento que bestas soaram.

 

Os virotes choviam do seu flanco direito, vindos de um declive de barro que corria entre a segunda trincheira e a sebe. Os arqueiros caíam, praguejando. Sir Thomas voltou-se para os besteiros que estavam escondidos e mais virotes eram lançados da frondosa sebe em frente. Soube então que não surpreendera ninguém e que o inimigo o aguardava. Os seus homens gritavam, mas, pelo menos, os primeiros arqueiros ripostavam. As longas flechas inglesas cintilavam ao luar, mas Sir Thomas não via os alvos e apercebeu-se de que os arqueiros disparavam às cegas.

 

- A mim! - gritou. - Dagworth! Dagworth! Escudos!

 

Talvez uma dúzia de homens-de-armas o tivesse ouvido e lhe tivesse obedecido, vindo formar uma protecção sobrepondo os escudos e correndo depois quase às cegas em direcção à sebe. Se conseguissem atravessar, pensou Sir Thomas, pelo menos alguns dos besteiros seriam visíveis. Os arqueiros disparavam para a frente e para os lados, confundidos pelos virotes do inimigo. Sir Thomas lançou um olhar para a estrada e viu que os seus restantes homens estavam a ser atacados do mesmo modo.

 

- Temos de atravessar a sebe - gritou. - Atravessai a sebe! Arqueiros! Atravessai a sebe! - Um virote de besta bateu-lhe no escudo, quase o derrubando. Outro zumbiu-lhe sobre a cabeça. Um arqueiro estrebuchava na erva com um virote a espetar-lhe o ventre.

 

Havia outros homens a gritar. Uns chamavam por São Jorge, outros amaldiçoavam o demónio, outros ainda gritavam pelas mulheres e pelas mães. O inimigo juntara as bestas e lançava virotes na escuridão. Um arqueiro caiu para trás com um virote metido no ombro. Outro, atingido no baixo-ventre gritava que dava dó. Um homem-de-armas caiu de joelhos a chamar por Jesus e agora Sir Thomas ouvia o inimigo a gritar ordens e insultos.

 

- A sebe! - vociferou. É preciso atravessar a sebe, pensou, e talvez que, por fim, os seus arqueiros conseguissem ver claramente os alvos. - Atravessai a sebe! - vociferou e alguns arqueiros encontraram uma fenda fechada apenas por tapumes. Derrubaram com os pés as barreiras mais fracas e passaram para o outro lado. A noite parecia viva e feroz com os virotes, um homem gritou e Sir Thomas olhou para trás. Voltou-se e viu que o inimigo tinha enviado dezenas de besteiros para lhes cortarem a retirada e que uma força nova empurrava os seus homens para o interior do acampamento. Fora uma armadilha, pensou, uma armadilha. Charles quisera chamá-lo para o seu acampamento, tinha-o obrigado a entrar e agora os seus soldados cercavam-no. Luta! Disse para consigo. Luta!

 

- Atravessem a sebe! - vociferou Sir Thomas. - Atravessem a maldita sebe! - Esquivou-se entre os corpos dos seus homens, enfiou-se pela fenda e procurou um inimigo que pudesse matar, mas apenas viu os homens-de-armas de Charles formados em linha de batalha, todos armados, com as viseiras descidas e os escudos erguidos. Alguns arqueiros disparavam agora contra eles, as longas flechas batendo-lhes nos escudos, nos ventres, nos peitos e nas pernas, mas os arqueiros eram muito poucos e os besteiros, ainda escondidos pelas sebes, muros ou pavisos, matavam os arqueiros ingleses. – Ataquem o moinho! - gritou Sir Thomas pois era esse o marco mais proeminente. Queria recolher os seus homens, formá-los em fileiras e começar a combater devidamente, mas as bestas fechavam-se sobre ele, às centenas, e os seus homens, assustados, escondiam-se nas tendas e nos abrigos.

 

Sir Thomas praguejou de pura frustração. Os sobreviventes do outro grupo de assalto estavam agora com ele, mas todos os homens se emaranhavam nas tendas, tropeçavam nas cordas e, mesmo assim, os virotes das bestas vibravam no escuro, rasgando a lona, enquanto embatiam contra a força moribunda de Sir Thomas.

 

- Formai aqui! Formai aqui! - gritava ele, escolhendo um espaço aberto entre três tendas e talvez vinte ou trinta homens acorreram, mas os besteiros viram-nos e despejaram os virotes pelas ruelas escuras, formadas pelas tendas, e depois chegaram os homens-de-armas do inimigo com os escudos levantados e os arqueiros ingleses fugiam de novo tentando encontrar um ponto onde pudessem recuperar o fôlego, encontrar alguma protecção e procurar o alvo. Os enormes pendões dos fidalgos franceses e bretões avançavam agora e Sir Thomas, sabendo que tinha caído naquela armadilha e estava logicamente derrotado, sentiu apenas uma onda de raiva.

 

- Matai esses canalhas! - berrou e conduziu os homens contra o inimigo que estava mais próximo, as espadas entrechocaram-se no escuro e pelo menos agora que era corpo a corpo, os besteiros não podiam disparar contra os homens-de-armas ingleses. Os genoveses perseguiam os arqueiros ingleses, mas alguns deles tinham encontrado um recinto com carroças e, ao abrigo dos veículos, conseguiam, por fim, ripostar.

 

Porém Sir Thomas não conseguia nem abrigo nem vantagem, tinha uma pequena força e a do inimigo era grande, os seus homens eram obrigados a recuar pela simples pressão dos números. Os escudos batiam nos escudos, as espadas martelavam nos elmos, as lanças surgiam por debaixo dos escudos e rasgavam as botas dos homens, um bretão brandiu um machado e abateu dois ingleses, deixando entrar um grupo de homens com a insígnia do arminho branco que soltaram um grito de triunfo e passaram a fio de espada ainda mais homens. Um homem-de-armas gritou ao sentir os machados atingirem-lhe as pernas através da cota de malha, depois outro machado esmagou-lhe o elmo, e ficou em silêncio. Sir Thomas recuou cambaleando, enquanto aparava o golpe de uma espada, e viu que alguns dos seus homens corriam a procurar refúgio nos espaços escuros, por entre as tendas. Tinham as viseiras fechadas e mal conseguiam ver onde iam, ou o inimigo que os vinha matar. Brandiu a sua espada contra um homem que usava um capacete com o feitio de focinho de porco. Recuou para atingir um escudo às riscas negras e amarelas, mais um passo atrás para arranjar espaço para desferir outro golpe e depois enrolou os pés nas cordas de uma tenda e caiu de costas de encontro à lona.

 

O cavaleiro com o elmo de focinho de porco avançou sobre Sir Thomas, com a cota de malha a brilhar à luz da Lua, apontando-lhe a espada à garganta.

 

- Rendo-me - disse apressadamente Sir Thomas, repetindo imediatamente em francês a sua rendição.

 

- Quem sois? - perguntou o cavaleiro.

 

- Sir Thomas Dagworth - respondeu amargamente Sir Thomas, entregando a espada ao inimigo que a recebeu e depois empurrou a viseira em forma de focinho de porco.

 

- Sou o visconde Morgat - disse o cavaleiro. - Aceito a vossa rendição fez uma reverência a Sir Thomas, devolveu-lhe a espada e estendeu a mão para ajudar a erguer o inglês. A luta continuava ainda, agora já de modo esporádico, pois os franceses e os bretões perseguiam os sobreviventes, matavam os feridos, pelos quais não valia a pena pedir resgate, e enchiam as suas próprias carroças com virotes de besta para matar os arqueiros ingleses que ainda aí se abrigavam.

 

O visconde Morgat escoltou Sir Thomas até ao moinho de vento onde o apresentou a Charles de Blois. Uma enorme fogueira ardia a algumas jardas de distância e à sua luz encontrava-se Charles por baixo das velas enroladas, com o saiote manchado de sangue, pois ajudara a derrotar o bando de homens-de-armas de Sir Thomas. Embainhou a espada, ainda ensanguentada, retirou o seu elmo enfeitado com plumas e olhou para o prisioneiro que já duas vezes o derrotara em combate.

 

- Lamento - disse friamente.

 

- Felicito Vossa Graça - disse Sir Thomas.

 

- A vitória pertence a Deus - disse Charles. - Não a mim. - No entanto sentia um súbito entusiasmo porque o conseguira! Derrotara o exército de campo inglês na Bretanha e agora, tão certo como a abençoada manhã se segue à noite mais escura, o ducado viria parar às suas mãos. - A vitória pertence só a Deus - disse piedosamente e recordou-se que já era madrugada de domingo. Voltou-se então para um padre para lhe dizer que mandasse cantar um Te Deum em acção de graças pela sua grande vitória.

 

O padre acenou afirmativamente, com os olhos muito abertos, embora o duque ainda não tivesse falado e depois gemeu sem fôlego. Charles viu que havia uma flecha extremamente longa no ventre do homem, depois outra empenada a branco bateu no flanco do moinho e um rugido rouco quase bestial suou vindo do escuro.

 

Porque embora Sir Thomas tivesse sido capturado e o seu exército estivesse completamente derrotado, parecia que a batalha ainda não havia terminado.

 

Do cimo da torre da porta oriental, Richard Totesham observava a luta entre os homens de Sir Thomas e as forças de Charles. Não via grande coisa desse ponto de vigia, pois as paliçadas sobre as trincheiras, os dois grandes trabuquetes e o moinho de vento obscureciam grande parte da batalha, mas era perfeitamente claro que ninguém saíra dos outros três acampamentos franceses para ajudar Charles na sua maior fortaleza.

 

- Deveriam ajudar-se uns aos outros - disse para Will Skeat, que se encontrava junto dele.

 

- És tu, Dick! - exclamou Will Skeat.

 

- Sim, sou eu, Will - disse Totesham pacientemente. Viu que Skeat tinha envergado uma cota de malha e trazia uma espada à cintura. Poisou a mão no ombro do amigo. - Esta noite não vais combater, Will, pois não?

 

- Se houver uma luta - disse Skeat. - Gostava de ajudar.

 

- Deixa isso para os mais jovens, Will - insistiu Totesham. - Deixa isso para os mais jovens. Fica e guarda-me a cidade. Importas-te?

 

Skeat acenou afirmativamente e Totesham voltou-se para olhar o acampamento inimigo. Era impossível dizer quem eram os vencedores, pois as únicas tropas que via pertenciam ao inimigo e tinham as costas voltadas para ele, embora, de vez em quando, uma flecha voasse reflectindo a luz das fogueiras como prova de que os homens de Sir Thomas ainda lutavam. Porém, na opinião de Totesham era mau sinal que não viessem tropas das outras fortalezas para ajudar Charles de Blois. Sugeria que ele não precisava de ajuda, o que, por sua vez sugeria que Sir Thomas Dagworth precisava dela; Totesham inclinou-se então sobre o parapeito interior.

 

- Abri o portão! - gritou.

 

Estava ainda escuro. Faltavam talvez mais de duas horas para a madrugada, porém, a lua brilhava e as fogueiras do acampamento inimigo lançavam uma luz colorida. Totesham apressou-se a descer a escada das ameias enquanto os homens afastavam os baldes cheios de pedras que tinham formado uma barricada dentro da parte interior da porta, e levantavam depois a grande tranca que havia um mês não mudava de lugar. As portas rangeram e ouviu uma ovação da parte dos homens que o aguardavam. Totesham teria preferido que se mantivessem em silêncio, pois não queria alertar o inimigo de que a guarnição ia sair, mas era demasiado tarde. Assim encontrou o seu grupo de homens-de-armas e conduziu-os para que se juntassem à fila de soldados e habitantes da cidade que entravam pela porta.

 

Thomas entrou no ataque juntamente com Robbie, Sir Guillaume e os seus dois homens. Will Skeat, apesar da promessa que fizera a Totesham, quisera ir com eles, mas Thomas empurrara-o para as ameias e dissera-lhe que ficasse a ver a luta desde aí.

 

- Não estás em condições, Will - insistiu Thomas.

 

- Se assim o dizes, Tom - concordou Will em voz fraca, enquanto subia a escada. Uma vez passada a porta, Thomas voltou-se para trás e viu Skeat na torre do portão. Ergueu a mão, mas Skeat não o viu ou, se o viu, não o conseguiu reconhecer.

 

Pareceu-lhe estranho estar do lado de fora dos portões há tanto tempo fechados. O ar era mais fresco, faltando-lhe o fedor dos esgotos da cidade. Os atacantes seguiam a estrada que corria direita durante trezentos passos antes de desaparecer por baixo da paliçada que protegia os estrados de madeira onde estavam montados o Hellgiver e o Widowmaker. Essa paliçada era mais alta que um homem de grande porte e alguns arqueiros traziam escadas para ultrapassar o obstáculo, mas Thomas calculava que as paliçadas tivessem sido feitas apressadamente e que provavelmente cairiam com um bom abanão. Correu, um pouco desajeitado, devido a ter ainda os dedos dos pés deformados. Esperava que as bestas começassem a disparar a qualquer momento, mas não surgiram virotes das trincheiras de Charles; Thomas calculou que o inimigo estivesse ocupado com os homens de Dagworth.

 

Depois, os primeiros arqueiros de Totesham chegaram à paliçada e lançaram as escadas, mas tal como Thomas calculara, uma enorme porção da comprida sebe cedeu com estrondo, quando os homens empurraram as escadas com o seu peso. Os declives e as paliçadas não tinham sido construídos para manter os homens à distância, mas sim para abrigar os besteiros. Porém, esses besteiros não sabiam que da cidade vinha um grupo de assalto e os declives não estavam defendidos.

 

Quatrocentos ou quinhentos homens atravessavam a paliçada caída. A maioria não eram soldados treinados, mas sim habitantes, enraivecidos porque os projécteis do inimigo lhes tinham atingido as casas. As mulheres e os filhos tinham ficado aleijados ou sido mortos pelos trabuquetes e os homens de La Roche-Derrien queriam vingar-se, e ao mesmo tempo manter a prosperidade trazida pela ocupação inglesa, de modo que soltaram uma ovação quando se viram em campo inimigo.

 

- Arqueiros! - vociferou Totesham numa voz trovejante. - A mim, arqueiros! Arqueiros!

 

Sessenta ou setenta arqueiros correram a obedecer-lhe, formando uma linha a sul dos estrados onde estavam colocados os dois maiores trabuquetes. O resto dos homens carregava contra o inimigo que já não estava formado em linha de batalha, mas que se tinha espalhado em pequenos grupos, tão preocupados em completar a vitória sobre Sir Thomas Dagworth, que nem tinham olhado para o que vinha atrás. Voltavam-se agora, alarmados, quando o rugido feroz anunciou a chegada da guarnição.

 

- Matai os canalhas! - gritou em bretão um habitante da cidade.

 

- Matai! - rugiu uma voz em inglês.

 

- Nada de prisioneiros! - bradou uma terceira voz, e embora Totesham, temendo perder os resgates, avisasse que deveriam ser feitos prisioneiros, ninguém o ouvia no bramido selvagem feito pelos atacantes.

 

Os homens-de-armas de Charles formaram instintivamente uma linha, mas Totesham, já pronto para isso, reunira os seus arqueiros e ordenara-lhes que disparassem: os arcos começavam a sua música diabólica e as flechas sibilavam no escuro para se enterrarem na malha, na carne e no osso. Os arqueiros eram poucos, mas disparavam de perto, não podiam falhar e os homens de Charles escondiam-se nos seus escudos pois os projécteis passavam perto; como as flechas facilmente perfuravam os escudos, os homens-de-armas separaram-se e correram a esconder-se nas tendas.

 

- Persegui-os! Persegui-os! - Totesham deu ordem aos seus arqueiros para atacarem.

 

Menos de uma centena de homens de Sir Thomas Dagworth lutava ainda e a maioria eram arqueiros que se tinham escondido no recinto das carroças. Outros tinham sido feitos prisioneiros e havia muitos mortos, enquanto a maior parte tentava fugir pelas trincheiras e paliçadas, mas esses homens, escutando o grande rugido atrás deles, voltaram para trás. Os homens de Charles estavam espalhados; muitos deles procurando ainda os restos do primeiro ataque e aqueles que tinham tentado resistir ao assalto de Totesham estavam ou mortos ou escapavam por entre as sombras. Os homens de Totesham atacavam agora o interior do acampamento com a violência de uma tempestade. Os habitantes da cidade estavam furiosos. Não havia qualquer subtileza no seu ataque, apenas um prazer de vingança enquanto passavam pelos dois enormes trabuquetes. As primeiras cabanas que encontraram eram os abrigos dos soldados bávaros que, não desejando tomar parte na batalha corpo a corpo para acabar com os sobreviventes do assalto de Sir Thomas Dagworth, tinham ficado junto às suas casernas e aí morriam. Os habitantes da cidade não faziam a mínima ideia de quem eram as suas vítimas, apenas de que eram inimigos, por isso rachavam-nos com machados, sachos e martelos. O comandante dos soldados de engenharia tentou proteger o filho de onze anos, mas morreram juntos sob uma chuva de golpes e, entretanto, os homens-de-armas ingleses e flamengos passavam continuamente por ali.

 

Thomas disparara o seu arco juntamente com os outros arqueiros, mas agora procurava Robbie, que vira pela última vez entre os dois grandes trabuquetes. De madrugada, o Widowmaker fora descido e estava preparado para disparar o primeiro projéctil. Thomas tropeçou sobre um forte espigão de metal a pouca distância da trave que servia de apoio à funda. Praguejou, porque o metal lhe magoara as canelas, depois trepou à estrutura do trabuquete e disparou uma flecha sobre as cabeças dos homens que matavam os bávaros. Fizera pontaria para o inimigo que continuava agrupado junto ao moinho de vento e viu um homem cair aí, antes que se erguessem os coloridos escudos. Disparou mais uma vez e apercebeu-se de que as suas mãos deformadas faziam aquilo que sempre fizeram e faziam-no bem. Retirou então uma terceira flecha da bolsa e lançou-a à luz da fogueira, contra um escudo com a insígnia do arminho branco, depois os homens-de-armas ingleses e os seus aliados subiam o monte e obscureciam-lhe o alvo; assim saltou do trabuquete e retomou a sua busca por Robbie.

 

O inimigo defendia o moinho com todas as forças e a maioria dos homens de Totesham tinha-se dirigido às tendas onde havia mais esperanças de conseguir uma boa pilhagem. Depois de matarem os seus carrascos bávaros, os habitantes da cidade também para lá seguiram com os seus machados ensanguentados. Um homem de armadura de metal, saiu detrás da tenda e enfiou uma espada no ventre de outro, obrigando-o a dobrar-se. Sem pensar, Thomas meteu uma flecha na corda, puxou-a e disparou. A flecha penetrou na fenda da viseira do inimigo, tão bem como quando Thomas praticava na sua terra, apontando aos barris, e o sangue iluminado pelo luar, cintilante como uma jóia, jorrou das fendas da viseira, enquanto o homem caía para trás, de encontro à lona.

 

Thomas continuou a correr, saltando por cima dos cadáveres, evitando as tendas quase derrubadas. Não havia espaço para um arco, estava tudo demasiado apertado, por isso pôs ao ombro a haste de teixo e empunhou a espada. Baixou-se e entrou numa tenda, passou por cima de um ramo caído, ouviu um grito e voltou-se para ver uma mulher deitada no chão meio escondida, que lhe abanou a cabeça. Aí a deixou, saindo para a noite iluminada por fogueiras e viu o inimigo empunhando uma besta apontada para os homens-de-armas ingleses que atacavam o moinho. Deu dois passos e apunhalou o homem nos rins de modo que a vítima arqueou a espinha, voltou-se e estremeceu. Thomas, soltando a espada ficou tão espantado pelo ruído que o moribundo emitiu que lhe enfiou várias vezes a lâmina, cortando o homem caído, para o silenciar.

 

- Está morto! Deus do Céu, esse homem está morto! - gritou-lhe Robbie, puxando pela manga de Thomas e empurrando-o em direcção ao moinho; Thomas retirou o arco do ombro e matou dois homens que traziam nos saiotes a insígnia do arminho branco. Tinham tentado escapar, correndo pelo outro lado do monte. Um cão atravessava a parte superior da encosta, com uma coisa vermelha a gotejar entre os dentes. Havia duas enormes fogueiras no monte, dos lados do moinho e um homem-de-armas caiu dentro de uma delas, por ter sido atingido pelo golpe de uma flecha inglesa. Quando caiu as fagulhas explodiram em direcção ao céu e ele começou a gritar, sentindo a carne a assar dentro da armadura. Tentou fugir das chamas, mas um dos habitantes da cidade empurrou-o de novo com o cabo da lança e riu-se dos seus gritos desesperados. O entrechocar das espadas, dos escudos e dos machados era enorme, enchia a noite, mas no estranho caos, havia uma zona de paz por trás do moinho de vento. Robbie vira um homem baixar-se e entrar por uma pequena porta e puxou Thomas pelo mesmo caminho.

 

- Ou se está a esconder ou vai fugir - gritou Robbie. - Deve ter dinheiro! Thomas não tinha a certeza daquilo de que Robbie estava a falar, mas,

 

de qualquer modo, seguiu-o; apenas teve tempo de armar de novo o arco e de sacar da espada uma segunda vez antes que Robbie esmagasse a porta com o seu ombro coberto pela cota de malha e mergulhasse na escuridão.

 

- Vem, canalha inglês! - gritou.

 

- Quereis morrer? - vociferou Thomas. - Estais a lutar pelo lado dos malditos ingleses.

 

Robbie praguejou ao recordar-se, depois Thomas viu uma sombra à direita, apenas uma sombra e agitou a espada nessa direcção. Bateu contra outra e ouviu Robbie gritar na escuridão poeirenta, enquanto o homem gritava para eles em francês; Thomas recuou, mas Robbie avançou com a espada uma vez, depois duas e a lâmina cortou osso e carne, houve um choque e um homem de armadura caiu sobre a mó superior.

 

- Que diabo me estava ele a dizer? - perguntou Robbie.

 

- Tentava render-se - disse uma voz do outro lado do moinho, e Thomas e Robbie voltaram-se os dois em direcção ao som, com as espadas erguidas contra um emaranhado de vigas, traves, rodas dentadas e eixos e depois o homem invisível falou de novo.

 

- Alto aí, rapazes, alto aí. Sou inglês - ouviu-se o bater de uma flecha na parede exterior. As velas enroladas puxavam as cordas que as prendiam e faziam a maquinaria de madeira gemer e estremecer. Batiam mais flechas nas tábuas. - Sou um prisioneiro - disse o homem. - Agora já não o sois - disse Thomas.

 

- Julgo que não - o outro trepou pelas mós, abriu a porta e Thomas viu que se tratava de um homem grisalho e de meia-idade.

 

- Que se está a passar? - perguntou o homem.

 

- Estamos a dar cabo desses demónios - disse Robbie.

 

- Queira Deus que sim - o homem voltou-se e ofereceu a mão a Robbie.

- Sou Sir Thomas Dagworth e agradeço a ambos - sacou da espada e saiu para a noite luarenta, enquanto Robbie ficava a olhar para Thomas.

 

- Ouviste aquilo?

 

- Disse obrigado - respondeu Thomas.

 

- Sim. Mas afirmou ser Sir Thomas Dagworth!

 

- Então talvez o seja.

 

- Mas que diabo estava ele a fazer aqui? - perguntou Robbie, antes de se ocupar do homem que acabara de matar e, com grande esforço e entrechocar da armadura contra a pedra e a madeira, arrastou-o até à entrada que era mais visível à luz da fogueira. O homem tinha tirado o capacete, e a espada de Robbie arrancara-lhe a cabeça, mas sob a armadura havia a cintilação do ouro e Robbie conseguiu arrancar-lhe uma corrente por baixo da couraça. - Devia ser um homem importante - disse Robbie admirando a corrente de oiro e depois sorrindo para Thomas. - Mais tarde dividimo-la, sim?

 

- Dividimo-la?

 

- Somos amigos, não é verdade? - perguntou Robbie, guardando o ouro por baixo da couraça antes de atirar de novo com o cadáver para dentro do moinho. - Que armadura valiosa - disse. - Voltamos quando tudo estiver acabado, na esperança de que ninguém a roube.

 

No acampamento havia agora uma confusão horrível e sanguinária. Os sobreviventes do ataque de Sir Thomas Dagworth continuavam a combater, principalmente os arqueiros no recinto das carroças, mas quando a guarnição da cidade passou pelas tendas, libertou os prisioneiros ou retirou outros sobreviventes de locais escuros onde se tinham escondido. Os besteiros de Charles, que podiam ter contido o ataque da guarnição, combatiam agora contra os arqueiros ingleses no recinto das carroças. Os genoveses abrigavam-se nos seus enormes pavisos, mas os novos atacantes vinham por trás e os besteiros não tinham onde se esconder, enquanto as longas flechas zumbiam na noite. Os arcos de guerra cantavam a sua diabólica melodia, dez flechas para cada disparo de virote e os besteiros não conseguiam conter a matança. Fugiram.

 

Os vitoriosos arqueiros, reforçados agora pelos homens que tinham estado entre as carroças, voltavam-se para os abrigos e tendas onde tinha lugar um perigoso jogo de escondidas, nas escuras avenidas entre as paredes de lona. Depois, um arqueiro galês descobriu que o inimigo poderia ser posto em fuga se se incendiassem as tendas e, em breve, estas vomitavam fumo e chamas por todo o acampamento. Os soldados inimigos corriam do fogo para as setas e espadas dos incendiários.

 

Charles de Blois recuara do moinho, calculando que a sua posição no monte lhe dava demasiada visibilidade e tentara reunir alguns cavaleiros diante da sua sumptuosa tenda. Todavia uma espantosa onda de habitantes da cidade derrubara esses cavaleiros e Charles assistiu assombrado a como carniceiros, tanoeiros, fabricantes de rodas e colimadores massacravam quem lhes era superior com machados, cutelos e foices. Retirou-se apressadamente para a sua tenda, mas agora um dos seus homens puxava-o sem cerimónias para a entrada das traseiras.

 

- Queira Vossa Graça vir por aqui. Charles sacudiu a mão do homem.

 

- Onde poderemos ir? - perguntou em tom queixoso.

 

- Vamos para o acampamento sul, senhor, buscar homens que nos possam ajudar.

 

Charles acenou afirmativamente, reflectindo que já o deveria ter feito e lamentando a insistência para que nenhum dos seus homens saísse dos acampamentos. Mais de metade do seu exército encontrava-se nos outros três campos, todos os homens próximos e desejosos de combater. Eram mais do que capazes de varrer aquela horda desorganizada, porém, obedeciam a ordens e mantinham-se imóveis enquanto o primeiro acampamento era passado a fio de espada.

 

- Onde está o meu trombeteiro? - perguntou.

 

- Estou aqui, Vossa Graça! Estou aqui - o trombeteiro sobrevivera miraculosamente e mantivera-se junto do seu senhor.

 

- Fazei soar os sete toques - ordenou Charles.

 

- Aqui não! - disse bruscamente um padre e, quando Charles se ofendeu, deu uma explicação rápida. - Poderá atrair o inimigo, Vossa Graça. Bastarão dois toques e virão atrás de nós como cães de caça!

 

Charles reconheceu a sabedoria do conselho com um breve aceno de cabeça. Tinha consigo uma dúzia de cavaleiros e constituíam uma força formidável naquela noite de batalha desigual. Um deles espreitou para fora da tenda e viu as chamas a chegar ao céu. Soube que, em breve, as tendas do duque seriam incendiadas.

 

- Temos de partir, Vossa Graça - insistiu. - Temos de ir à procura dos nossos cavalos.

 

Saíram da tenda, apressando-se a percorrer o caminho de erva pisada, onde geralmente se encontravam as sentinelas do duque. Depois uma flecha cintilou no escuro e iluminou uma couraça. Imediatamente se ouviram enormes gritos e, da direita, surgiu uma onda de homens que obrigou Charles a retirar para a esquerda e a subir de novo a encosta do monte em direcção ao moinho iluminado. Depois, um grito anunciou que tinha sido visto e as primeiras flechas cortaram o monte.

 

- Trombeteiro! - gritou Charles. - Sete toques! Sete toques! Charles e os seus homens impedidos de chegarem aos cavalos, tinham agora as costas voltadas para a estrutura do moinho onde estavam espetadas dezenas de flechas empenadas a branco. Outra flecha atingiu um homem na cintura, penetrou a malha e espetou-lhe o ventre, bem como a malha das costas que ficou presa às tábuas do moinho. Depois, uma voz ordenou em inglês que deixassem de disparar.

 

- É o duque! Queremo-lo vivo! Não disparem mais! Baixem os arcos!

 

A notícia de que Charles de Blois estava encurralado no moinho provocou um uivo da parte dos atacantes. As flechas deixaram de voar e os homens-de-armas de Charles feridos e ensanguentados que defendiam o monte olhavam encosta abaixo e viam contra a luz das duas fogueiras do acampamento uma massa de negras criaturas, movendo-se como lobos.

 

- Que Deus nos ajude - exclamou um padre em voz assustada.

 

- Trombeteiro - exclamou subitamente Charles de Blois.

 

- Senhor - respondeu o trombeteiro. Encontrara o bocal do seu instrumento misteriosamente enterrado na terra. Devia ter caído, embora ele não se lembrasse de tal ter acontecido. Limpou a terra do bocal de prata, levou a trombeta à boca e o primeiro toque soou doce e elevado no meio da noite. O duque sacou da espada. Tinha apenas de defender o moinho o tempo suficiente para que chegassem os reforços dos outros acampamentos e varressem a populaça até ao inferno. Soou a segunda nota da trombeta.

 

Thomas escutou os toques, voltou-se e viu um raio prateado junto ao moinho, seguido do ondular luminoso do instrumento, quando o trombeteiro o ergueu à lua pela terceira vez. Thomas não ouvira qualquer ordem para deixar de disparar as flechas, de modo que puxou de novo a corda do arco, voltou um pouco a mão esquerda e disparou. A flecha passou por cima das cabeças dos homens-de-armas ingleses e atingiu trombeteiro, justamente quando este tomava fôlego para o terceiro toque; o ar assobiou e borbulhou no seu pulmão perfurado, enquanto o homem caía para o lado na relva. As figuras negras na base do monte viram um homem cair e, subitamente, dispararam.

 

Não chegou qualquer auxílio para Charles vindo dos outros três campos. Tinham ouvido dois toques de trombeta, mas apenas dois, e calculavam que Charles estivesse a ganhar; além do mais, tinham tido ordens rigorosas e constantemente repetidas para se manterem onde estivessem, sob pena de ficarem a perder quando as terras conquistadas fossem distribuídas pelos vencedores. Por isso ficaram mesmo, vendo o fumo erguer-se das chamas e interrogando-se sobre o que teria acontecido no enorme acampamento oriental.

 

Era o caos. Na opinião de Thomas, aquela luta parecia-se com o ataque de Caen: sem plano, desordenada e completamente brutal. Os ingleses e os seus aliados tinham-se sentido encurralados, nervosos à espera da derrota

- afinal tinham conseguido uma vitória imediata -, mas agora o nervosismo inglês transformara-se num assalto enlouquecido, sanguinário, malvado, e os franceses e bretões conduzidos ao terror. Um estrondo entrecortado soou quando os homens-de-armas ingleses se defrontaram com os soldados de Charles que defendiam o moinho de vento. Thomas queria juntar-se a esse combate, mas Robbie puxou-lhe subitamente a manga da cota de malha.

 

- Olhai! - Robbie apontava para as tendas em chamas.

 

Robbie tinha visto três cavaleiros com três simples camisas negras e, junto a eles, a pé, um dominicano. Thomas viu o hábito branco e negro e seguiu Robbie por entre as tendas, tropeçando sobre um emaranhado de lona branca e azul de um estandarte caído, correu por entre duas fogueiras e depois atravessou um espaço aberto onde girava o fumo e restos enegrecidos de pano queimado. Uma mulher com um vestido meio queimado gritava e atravessou-se-lhes no caminho e um homem espalhava o fogo com as botas perseguindo-a até uma cabana com telhado de turfa. Por uns instantes perderam o padre de vista, mas logo Robbie voltou a ver as vestes negras e brancas: o dominicano tentava montar um cavalo sem sela que os homens de camisa negra lhe seguravam. Thomas puxou do arco, deixou voar a flecha e viu as penas enterrarem-se no peito do cavalo; o animal empinou-se, com os cascos negros a cintilar e o dominicano caiu para trás. Os homens das camisas negras fugiram a galope sob a ameaça do arco e o padre, abandonado, voltou-se e viu os seus perseguidores. Nesse momento Thomas reconheceu De Taillebourg, o carrasco divino. Thomas lançou-lhe um grito de desafio e puxou de novo a corda do arco, mas De Taillebourg correu na direcção de algumas tendas que ainda restavam. Apareceu de repente um besteiro genovês, viu-os, ergueu a arma e Thomas soltou a corda. A flecha penetrou na garganta do homem, salpicando de sangue a sua túnica vermelha e verde. A mulher gritou dentro do abrigo, para logo ser silenciada e Thomas seguiu Robbie na mesma direcção em que o Inquisidor tinha desaparecido por entre as tendas. O pano da porta de uma delas agitava-se ainda quando Robbie empunhou a espada, empurrou a lona para o lado e meteu a cabeça naquilo que afinal era uma capela.

 

De Taillebourg estava de pé, junto ao altar coberto pelo seu imaculado frontal da Páscoa. Sobre o altar havia um crucifixo entre duas velas tremeluzentes. Lá fora, o acampamento era um caos de gritos, dor e flechas, de cavalos relinchando e de homens a gritar, mas, dentro da improvisada capela, tudo estava extraordinariamente calmo.

 

- Bastardo! - disse Thomas empunhando a espada e avançando para o dominicano. - Sua maldita bosta de padre fedorento.

 

Bernard de Taillebourg tinha uma das mãos sobre o altar. Ergueu a outra para fazer o sinal da cruz.

 

- Dominus vobiscum - disse em voz profunda. Uma flecha raspou o tecto da tenda com um som agudo e outra bateu de lado e girou por trás do altar.

 

- Vexille está convosco? - perguntou Thomas.

 

- Deus vos abençoe, Thomas - disse De Taillebourg. Tinha o rosto feroz, rígido, os olhos duros e fez o sinal da cruz; depois recuou quando o viu erguer a espada.

 

- Vexille está convosco? - perguntou de novo Thomas.

 

- Estais a vê-lo? - perguntou o dominicano, olhando a sorrir em redor da capela. - Não, Thomas, não está aqui. Partiu na noite. Foi buscar ajuda e não podeis matar-me.

 

- Dai-me uma razão - disse Robbie. - Para haverdes morto o meu irmão, canalha.

 

De Taillebourg olhou para o escocês. Não reconheceu Robbie, mas viu a raiva e ofereceu-lhe a mesma bênção que oferecera a Thomas.

 

- Não podeis matar-me - disse depois de ter feito o sinal da cruz. - Sou um padre, meu filho, sou ungido de Deus e a vossa alma seria amaldiçoada através dos tempos se vos atrevêsseis a tocar-me.

 

A reacção de Thomas foi a de encostar a espada ao ventre de De Taillebourg, obrigando o padre a recuar até ao altar. Lá fora um homem gritou, o som entrecortado desapareceu, terminando num soluço. Uma criança chorava desconsoladamente, quase sem fôlego e um cão ladrava freneticamente. A luz das tendas incendiadas reflectia-se nas paredes de lona da capela.

 

- Sois um canalha - disse Thomas. - Não me importo de vos tirar a vida por aquilo que me haveis feito.

 

- O que vos fiz! - A raiva de De Taillebourg cintilou como as fogueiras lá de fora. - Não vos fiz nada! - falava agora em francês. - Vosso primo pediu-me que vos poupasse o pior e assim foi. Um dia, disse ele, haveis de estar a seu lado! Um dia, haveis de passar para o lado do Graal! Um dia estareis do lado de Deus e por isso vos poupei, Thomas. Deixei-vos os olhos! Não vos queimei os olhos!

 

- Como vou desfrutar da vossa morte - disse Thomas, embora na verdade se sentisse nervoso por ir matar um padre. O céu estaria a observá-lo e a pena dos anjos gravaria a sua acção a letras de fogo no grande livro.

 

- Deus ama-vos, meu filho - disse amavelmente De Taillebourg. - Deus ama-vos. E Deus castiga aqueles que ama.

 

- Que diz ele? - interrompeu Robbie.

 

- Diz que se o matarmos - respondeu Thomas -, as nossas almas serão amaldiçoadas.

 

- Até que outro padre lhes retire a maldição - disse Robbie. - Não existe um pecado na terra que um padre não absolva se o preço for suficiente. Portanto deixai de falar com esse canalha e matai-o - avançou para De Taillebourg com a espada erguida, mas Thomas afastou-o.

 

- Onde está o livro do meu pai? - perguntou Thomas ao padre.

 

- É o vosso primo que o tem - replicou De Taillebourg. - Garanto-vos que é o vosso primo que o tem.

 

- Então, onde está meu primo?

 

- Já vos disse que foi em busca de socorro - disse De Taillebourg. -

e também vós deveis ir, Thomas. Deveis deixar-me aqui para rezar.

 

Thomas quase obedeceu, mas logo se lembrou da patética gratidão que sentira quando aquele homem deixara de o torturar e a recordação era tão vergonhosa, tão dolorosa, que o fez estremecer e, quase sem pensar, brandiu a espada em direcção ao padre.

 

- Não! - gritou este, com o braço esquerdo cortado até ao osso por se tentar defender da espada de Thomas.

 

- Sim - disse Thomas, a raiva a consumi-lo, a enchê-lo, obrigando-o a cortar de novo; Robbie apareceu junto a ele, espetou-o com a espada e Thomas ergueu a sua, mas com tanta força que a lâmina ficou presa do tecto da tenda.

 

De Taillebourg cambaleava agora.

 

- Não podeis matar-me - gritou. - Sou padre!

 

Berrou a última palavra e continuou a gritar enquanto Robbie lhe metia na garganta a espada de Sir William Douglas. Thomas soltou a sua arma. De Taillebourg, com a parte da frente das suas vestes encharcada em sangue, olhava-o com espanto, depois tentou falar, mas não conseguiu e o sangue espalhou-se pelo tecido com uma incrível rapidez. Caiu de joelhos, continuando a tentar falar com Thomas, mas a espada deste atingiu-o do outro lado do pescoço e mais sangue jorrou para manchar o frontal branco do altar. De Taillebourg ergueu os olhos, desta vez com uma expressão de assombro e, depois, um último golpe de Robbie matou o dominicano, retirando-lhe a traqueia de dentro do pescoço.

 

Robbie teve de se afastar para evitar que o sangue espirrasse sobre ele. O padre estrebuchou e, no sofrimento da morte, a mão esquerda arrancou do altar o frontal manchado de sangue, fazendo cair as velas e a cruz. Produziu um ruído áspero, estremeceu e ficou imóvel.

 

- Soube-me muito bem - disse Robbie no escuro que subitamente se fez quando as velas se apagaram. - Odeio padres, sempre quis matar um.

 

- Tive um amigo padre - disse Thomas fazendo o sinal da cruz. - Mas foi morto pelo meu primo ou por este canalha - empurrou com o pé o corpo de De Taillebourg, depois inclinou-se e limpou a lâmina da espada na bainha das vestes do sacerdote.

 

Robbie foi até à porta.

 

- O meu pai diz que o inferno está cheio de padres - disse.

 

- Então, lá vai mais um a caminho - disse Thomas. Pegou no arco e ele e Robbie voltaram para o escuro, para onde os gritos e as setas cortavam a noite. Tantas tendas e cabanas estavam incendiadas que mais poderia ser dia e, na luz pálida, Thomas viu um besteiro ajoelhado entre dois cavalos presos e assustados. O virote destinava-se ao monte onde tantos ingleses lutavam. Thomas meteu uma seta na corda, puxou-a e, no último segundo, exactamente quando estava prestes a metê-la na espinha do besteiro, reconheceu o padrão ondulado branco e azul do saiote e evitou o alvo para que a seta atingisse a besta de modo a retirá-la das mãos de Jeanette.

 

- Ainda te matam! - gritou-lhe zangado.

 

- É Charles! - apontou para o monte, igualmente zangada com ele.

 

- Só os inimigos têm bestas - disse-lhe ele. - Queres que um arqueiro te mate? - apanhou a besta pela parte curva e atirou-a para as sombras. E que raio estás a fazer aqui?

 

- Vim matá-lo! - disse apontando de novo para Charles de Blois que, com os seus seguidores, tentava um assalto desesperado. Tinha consigo oito cavaleiros e todos combatiam selvaticamente, apesar de serem em muito menor número e de todos eles estarem feridos. Thomas conduziu Jeanette pela encosta a tempo de ver um enorme homem-de-armas atacar Charles que aparou o golpe com o escudo e fez deslizar a sua espada por baixo dele para ferir o inglês na coxa. Outro homem o atacou e foi abatido por um machado, um terceiro puxou um dos seguidores de Charles do moinho e bateu-lhe sobre o elmo. Parecia que uma dezena de ingleses tentava chegar a Charles, esmagando os escudos nas armas dos seus homens, erguendo as espadas e cortando o ar com enormes machados de guerra.

 

- Dai-lhe espaço! - gritou uma voz autoritária. - Dai-lhe espaço! Para trás! Para trás! Deixai que se renda!

 

Os atacantes afastaram-se relutantes. Charles tinha a viseira erguida, havia sangue no seu rosto pálido e também na sua espada. Junto a ele ajoelhara-se um padre.

 

- Rendei-vos - gritou um homem para o duque que pareceu compreender, porque abanou impulsivamente a cabeça numa recusa, mas logo Thomas enfiou uma flecha na corda, puxou-a e apontou-lha ao rosto. Charles viu a ameaça e hesitou.

 

- Rendei-vos! - gritou outro homem.

 

- Só perante um homem de linhagem! - gritou Charles em francês.

 

- Quem é aqui de linhagem? - perguntou Thomas em inglês e, de novo, em francês. Um dos restantes homens-de-armas de Charles caiu lentamente, primeiro de joelhos, depois de bruços, com um estrondo provocado pelo metal da armadura.

 

Saiu um cavaleiro das fileiras inglesas. Era bretão, um dos delegados de Totesham, e declinou o seu nome para provar a Charles que era um homem de alta estirpe. Ergueu a mão e Charles de Blois, sobrinho do rei de França e pretendente do ducado da Bretanha, avançou em passo desajeitado e entregou a espada. Subiu no ar uma enorme ovação e depois, os homens que se encontravam no monte abriram alas para deixar passar o duque e o seu captor. Charles esperava que lhe devolvessem a espada e pareceu surpreendido quando o bretão não se mostrou disposto a fazer essa oferta; depois, o duque derrotado desceu a encosta muito direito, ignorando o inglês triunfante, mas, de súbito, reparou que uma figura de cabelo negro se metera no seu caminho.

 

Era Jeanette.

 

- Lembrais-vos de mim? - perguntou.

 

Charles olhou-a de cima a baixo e estremeceu como se tivesse sido atingido ao reconhecer a insígnia do seu saiote. Depois, estremeceu mais uma vez, quando lhe leu a ira no olhar. Não disse nada.

 

Jeanette sorriu.

 

- Violador - disse, e cuspiu pela viseira aberta. O duque lançou a cabeça para trás, mas foi demasiado tarde e Jeanette cuspiu-lhe de novo sobre o rosto. Charles tremeu de raiva. Jeanette desafiava-o a atacá-la, mas ele controlou-se, e Jeanette, incapaz de fazer o mesmo, cuspiu sobre ele pela terceira vez.

 

- Ver - disse em tom de desprezo e afastou-se no meio de uma irónica ovação.

 

- Que significa ver? - perguntou Robbie.

 

- Verme - respondeu Thomas, sorrindo para Jeanette. - Muito bem, Senhora.

 

- Ia dar-lhe um pontapé nos malditos tomates - disse ela. - Mas recordei-me de que envergava uma armadura.

 

Thomas riu-se e afastou-se para o lado, enquanto Richard Totesham ordenava a meia-dúzia de homens-de-armas que escoltassem Charles de volta para La Roche-Derrien. Já que não capturavam o rei de França, aquele seria um bom prisioneiro de guerra. Thomas viu-o afastar-se. Charles de Blois juntar-se-ia agora ao rei da Escócia e ambos teriam de pagar uma fortuna se quisessem ser resgatados.

 

- Não acabou! - gritou Totesham. Vira que a multidão seguira aos gritos o duque capturado e apressava-se a afastá-los. - Não acabou. Terminem o trabalho!

 

- Cavalos! - gritou Sir Thomas Dagworth. - Capturai os cavalos!

 

A luta no acampamento de Charles fora vencida mas não terminada. O assalto vindo da cidade tinha surgido como uma tempestade e levado a cabo através do centro da linha de batalha cuidadosamente preparada pelo duque Charles; o que restava da sua força estava agora dividido em dois pequenos grupos. Havia dezenas de mortos, outros fugiam na escuridão. Soou um grito: ”Arqueiros! Arqueiros a mim!” Os arqueiros correram às dúzias para o fundo do acampamento, onde os franceses e os bretões fugitivos tentavam chegar às outras fortificações e os arcos atingiam impiedosamente os fugitivos.

 

- Acabai com eles! - gritou Totesham -, acabai com eles! - uma espécie de organização surgira no campo de batalha, enquanto a guarnição e os habitantes da cidade, juntamente com os sobreviventes da força de Sir Thomas Dagworth, percorriam o acampamento em chamas para empurrarem os sobreviventes para o local onde os arqueiros os aguardavam. Era um trabalho lento, não porque o inimigo oferecesse qualquer resistência, mas porque os homens paravam constantemente para pilhar as tendas e os abrigos. Mulheres e crianças eram arrastadas ao luar para assistirem à morte dos seus homens. Prisioneiros que valiam um enorme resgate eram mortos na confusão e no escuro. O visconde de Ruão foi esquartejado, tal como os senhores de Lavai e Châteaubriant, de Dinan e de Redon.

 

Uma luz pálida, o primeiro indício da madrugada, surgia a oriente. Ouviam-se gemidos no campo queimado.

 

- Haveis acabado com eles? - por fim, Richard Totesham tinha-se encontrado com Sir Thomas Dagworth. Os dois homens estavam nas trincheiras do acampamento, de onde observavam a fortificação sul do inimigo.

 

- Não podemos deixá-los ali sentados - disse Sir Thomas, erguendo a mão. - Obrigado, Dick.

 

- Por cumprir o meu dever? - respondeu Totesham embaraçado. E se puséssemos então esses canalhas a andar dos outros acampamentos?

 

Uma trombeta tocou a reunir para os ingleses.

 

Charles de Blois dissera aos seus homens que um arqueiro não conseguia atingir um homem que não podia ver, e tinha razão, mas os homens do acampamento sul que formavam a segunda maior porção do exército de Charles reuniam-se na trincheira exterior num esforço para ver o que se estava a passar no acampamento oriental em redor do moinho. Tinham acendido fogueiras para iluminar os seus besteiros, mas essas fogueiras apenas serviam para os delinear no declive oriental, que não tinha qualquer paliçada e os arqueiros ingleses não podiam falhar um alvo assim. Esses arqueiros encontravam-se no terreno que fora limpo entre os acampamentos sombreados pelas longas fortificações e as suas flechas cintilavam na noite para atingir os franceses e os bretões. Os besteiros tentavam retribuir, mas eram alvos fáceis, pois a maior parte deles usava cotas de malha; depois, com um rugido, os homens-de-armas ingleses carregavam sobre as defesas e a matança recomeçou. Os habitantes da cidade, ávidos de pilhagem, seguiram a carga e os arqueiros, vendo que as trincheiras não estavam a ser defendidas, correram para lá.

 

Thomas fez uma pausa na trincheira para lançar uma dúzia de flechas em direcção ao inimigo em pânico que tinha montado aquele acampamento no mesmo local do cerco inglês do ano anterior. Perdera Sir Guillaume de vista e, embora tivesse ordenado a Jeanette que regressasse à cidade, ela ainda se encontrava ali com ele, armada agora com uma espada que retirara a um Bretão morto.

 

- Não deverias estar aqui! - vociferou.

 

- Vespas! - exclamou ela como resposta e apontou para uma dúzia de homens-de-armas, envergando as camisas negras e amarelas do Senhor de Roncelets.

 

Aqui o inimigo oferecia pouca resistência. Não tinha tido consciência do desastre sofrido por Charles, pois fora surpreendido por um súbito assalto vindo das trevas. Os besteiros sobreviventes retiravam-se agora em pânico para as tendas e, de novo, os ingleses arrebatavam archotes das enormes fogueiras e atiravam-nos para os telhados de lona que iluminaram a escuridão antes da madrugada. Os arqueiros ingleses e galeses tinham posto os arcos ao ombro e, implacáveis, abriam caminho através das tendas com machados, espadas e paus. Foi outra carnificina instigada pela perspectiva do saque e alguns dos franceses e bretões, em vez de enfrentarem a ruidosa massa de homens enlouquecidos, montaram nos seus cavalos e partiram para oriente em direcção à breve luz acinzentada, agora com um toque de vermelho desenhado no horizonte.

 

Thomas e Robbie dirigiram-se para os homens que usavam as riscas de vespa de Roncelets. Esses homens tinham tentado deter-se ao lado do trabuquete que tinha o nome de Stonewhip pintado na sua enorme estrutura, mas tinham sido flanqueados por arqueiros e agora tentavam escapar e, naquele caos, não sabiam para onde se dirigir. Dois deles correram em direcção a Thomas que deu cabo de um com a sua espada, enquanto Robbie atordoou o outro com uma enorme pancada no elmo. A seguir, um grupo de arqueiros varreu os homens de negro e amarelo e Thomas embainhou a sua espada suja de sangue e retirou o arco do ombro antes de correr para uma enorme tenda que ainda não tinha ardido e que se encontrava ao lado de um pau, onde ondulava um pendão negro e amarelo e aí, entre uma cama e uma arca aberta, estava o próprio Senhor de Roncelets. Ele e um escudeiro retiravam moedas da arca para pequenos sacos e voltaram-se quando Thomas e Robbie entraram. O Senhor de Roncelets arrebatou a espada de cima da cama, justamente no momento em que Thomas puxava a corda do arco. O escudeiro atacou Robbie, mas Thomas já lançara a flecha e o escudeiro caiu para trás como se tivesse sido puxado por uma enorme corda. O sangue jorrou-lhe da ferida da testa e manchou o tecto da tenda. O escudeiro estrebuchou algumas vezes e logo se imobilizou. O Senhor de Roncelets mantinha-se a três passos de Thomas quando este colocou uma segunda flecha no arco.

 

- Então, Senhor - disse Thomas. - Dai-me uma razão para vos enviar para o diabo.

 

O Senhor de Roncelets tinha ar de lutador. Cabelo curto e crespo, nariz partido e falta de dentes, mas naquele momento não havia nele qualquer beligerância. Ouvia em seu redor os gritos da derrota, sentia o cheiro da carne queimada dos homens apanhados dentro das tendas e via também que a flecha do arco de Thomas estava apontada ao seu rosto. Assim, ergueu simplesmente a espada para se render imediatamente.

 

- Sois de estirpe? - perguntou a Robbie. Não reconhecera Thomas mas, de qualquer modo, concluiu que um homem armado com um arco teria de ser do povo.

 

Robbie não compreendeu a pergunta que fora feita em francês, de modo que Thomas respondeu por ele.

 

- É um fidalgo escocês - disse Thomas exagerando o estatuto de Robbie.

 

- Então rendo-me a ele - disse Roncelets zangado, lançando a espada aos pés de Robbie.

 

- Meu Deus - disse Robbie, sem compreender o desafio. - Assustou-se depressa!

 

Thomas soltou suavemente a tensão da corda e ergueu os dedos tortos da sua mão direita.

 

- Ainda bem que vos haveis rendido - disse a Roncelets. - Lembrais-vos quando quisestes cortá-los? - não pôde deixar de sorrir, quando primeiro o reconhecimento e depois um medo abjecto surgiram no rosto de Roncelets.

 

- Jeanette! - gritou Thomas depois de ter conseguido aquela primeira vitória. - Jeanette! - Jeanette entrou pelo pano da tenda e com ela vinha justamente Will Skeat. - Que diabo estás a fazer aqui? - perguntou Thomas zangado.

 

- Não ias afastar um velho amigo da boa luta, pois não, Thomas? - perguntou Skeat, com um sorriso e Thomas pensou estar a ver naquele sorriso o verdadeiro carácter do seu amigo.

 

- És um velho louco - resmungou Thomas, depois pegou na espada do Senhor de Roncelets e entregou-a a Jeanette. - É nosso prisioneiro - disse.

- Teu também.

 

- Nosso? - Jeanette estava confundida.

 

- É o Senhor de Roncelets - disse Thomas e não pôde evitar outro sorriso. - Não tenho dúvida de que poderemos conseguir dele um resgate. E não estou a falar de dinheiro - apontou para a arca aberta. - Esse de qualquer modo já é nosso.

 

Jeanette olhou para Roncelets e apercebeu-se lentamente de que, se o Senhor de Roncelets era seu prisioneiro, o filho ser-lhe-ia certamente devolvido. Riu-se subitamente e depois beijou Thomas.

 

- Manténs sempre as promessas, Thomas.

 

- Vigia-o bem - disse Thomas -, porque o seu resgate vai fazer-nos ricos a todos. A Robbie, a ti, a mim e a Will. Vamos ser muito ricos - sorriu para Skeat. - Ficas com ela, Will? Tomas conta dele?

 

- Fico - concordou Will.

 

- Quem é ela? - perguntou a Thomas o Senhor de Roncelets.

 

- A condessa de Armorica - Jeanette respondeu por ele, e riu mais uma vez quando lhe viu no rosto a expressão chocada.

 

- Levai-o de volta para a cidade - disse-lhes Thomas e baixou a cabeça para sair da tenda. Lá fora encontrou dois habitantes da cidade em busca de pilhagem entre as duas tendas mais próximas. - Vós! - chamou-os.

- Ides guardar um prisioneiro. Levai-o até à cidade e sereis bem recompensados. Guardai-o bem! - Thomas puxou os dois homens para dentro da tenda. Calculava que o Senhor de Roncelets não poderia escapar se Jeanette, Skeat e os dois homens o vigiassem.

 

- Guardai-o - disse-lhes - e levai-o para a vossa antiga casa - disse estas últimas palavras para Jeanette.

 

- Para a minha antiga casa? - ela parecia confusa.

 

- Querias matar alguém esta noite - disse Thomas. - Todavia não podes matar Charles de Blois. Porque não matas então Belas? - riu-se ao ver a expressão no rosto dela. Depois ele e Robbie fecharam com força a tampa da arca e cobriram-na com cobertores retirados da cama na esperança de a esconderem por alguns momentos. A seguir voltaram ao combate.

 

Durante toda a refrega iluminada pelas fogueiras Thomas avistara homens de simples camisas negras e sabia que Guy Vexille deveria estar por perto, mas ainda não o vira. Ouvia agora gritos e o entrechocar das espadas vindo do extremo sul do acampamento; Thomas e Robbie correram para ver a razão de tanto alarido. Viram um grupo de cavaleiros de camisas negras a combater contra uma dezena de homens-de-armas ingleses.

 

- Vexille! - gritou Thomas. - Vexille!

 

- É ele? - perguntou Robbie.

 

- São pelo menos os seus homens - disse Thomas. Julgava que o primo estivesse no acampamento oriental com De Taillebourg e que viera para ali na esperança de socorrer Charles, mas fora tarde de mais e agora os seus homens combatiam na retaguarda para proteger outros homens que fugiam.

 

- Onde está ele? - perguntou Robbie. Thomas não conseguia ver o primo.

 

- Vexille! Vexille! - gritou de novo.

 

Ali estava ele. O Harlequin, conde de Astarac, de armadura de metal, com a viseira erguida, montando um corcel negro e tendo na mão um simples escudo negro. Viu Thomas e ergueu a espada numa saudação trocista. Thomas retirou o arco do ombro, mas Guy Vexille percebeu a ameaça, voltou-lhe as costas e os seus cavaleiros rodearam-no para o protegerem.

 

- Vexille! - gritou Thomas e correu em direcção ao primo. Robbie lançou-lhe um aviso e Thomas baixou a cabeça no momento em que um cavaleiro o tentava atingir com a espada. Depois deitou-se sobre o cavalo sentindo o cheiro a couro e a suor, quando outro cavaleiro lhe bateu, quase o derrubando. - Vexille! - berrou. Via de novo Guy Vexille, só que agora o primo voltava-se, picando o cavalo na sua direcção e Thomas puxou a corda do arco. Porém Vexille ergueu a mão direita para mostrar que tinha embainhado a espada e o gesto fez com que Thomas baixasse o arco negro.

 

Guy Vexille ergueu a viseira e sorriu com o seu belo rosto iluminado pela luz das fogueiras.

 

- Eu tenho o livro, Thomas.

 

Thomas nada disse, limitando-se a erguer de novo o arco. Guy Vexille abanou a cabeça em sinal de reprovação.

 

- Não é necessário, Thomas, juntai-vos a mim!

 

- Só no inferno, canalha - disse Thomas. Aquele era o homem que lhe tinha morto o pai, que matara Eleanor e o padre Hobbe, por isso Thomas puxou completamente a corda do arco, mas Vexille retirou uma pequena faca que tinha escondida na mão com que segurava o escudo, inclinou-se calmamente para diante e cortou a corda do arco. A corda partida fez com que o arco saltasse violentamente na mão de Thomas e a flecha voou sem provocar qualquer estrago. A corda fora cortada com tanta rapidez que Thomas nem tivera tempo de reagir.

 

- Um dia juntar-vos-eis a mim, Thomas - disse Vexille, depois vendo que, por fim, os arqueiros ingleses se tinham dado conta da sua presença e começavam a apontar, voltou o cavalo, gritou aos seus homens que retirassem e partiu esporeando o cavalo.

 

- Jesus! - blasfemou Thomas frustrado.

 

- Cálix meus inebrians! - gritou Guy Vexille, logo se perdendo no meio dos seus homens em direcção a sul. Foi seguido por uma chuva de flechas inglesas, mas nenhuma o atingiu.

 

- Canalha! - Robbie praguejou em direcção ao homem que se retirava. Os gritos de uma mulher soavam, vindos das tendas em chamas.

 

- Que foi que ele vos disse? - perguntou Robbie.

 

- Queria que me juntasse a ele - disse Thomas amargamente. Deitou fora a corda cortada e retirou a sobressalente de debaixo do morrião. Foi difícil prendê-la com os dedos defeituosos, mas conseguiu fazê-lo à segunda tentativa. - E disse-me que tem o livro.

 

- Pois que lhe faça muito bom proveito - comentou Robbie. A luta acalmara e ele ajoelhara junto a um cadáver vestido de negro para procurar moedas. Sir Thomas Dagworth gritava aos homens que se reunissem no extremo ocidental do acampamento para assaltar a fortaleza seguinte onde alguns sitiados, apercebendo-se de que tinham perdido a batalha, já batiam em retirada. Os sinos tocavam em La Roche-Derrien para celebrar o facto de Charles de Blois ter entrado na cidade como prisioneiro.

 

Thomas ficou a olhar depois de o primo partir. Sentia-se envergonhado porque, no fundo, muito lá no fundo, sentira a traiçoeira tentação de aceitar a oferta. Juntar-se ao primo, voltar à família, procurar o Graal e aproveitar o seu poder. A vergonha era amarga, tal como a vergonha da gratidão que sentira por De Taillebourg quando este deixara de o torturar.

 

- Canalha! - gritou inutilmente. - Canalha!

 

- Canalha! - era a voz de Sir Guillaume que Thomas ouvia agora e que, com os seus dois homens-de-armas, picava um prisioneiro nas costas para o empurrar. O cativo usava uma armadura de metal e a espada raspava nela a cada toque. - Canalha! - vociferava de novo Sir Guillaume, mas depois viu Thomas. - É Coutances! Coutances! - Retirou o elmo ao prisioneiro. - Vede!

 

O conde de Coutances era um homem de ar melancólico, calvo como um ovo, que fazia o seu melhor para manter um ar digno. Sir Guillaume falou mais uma vez:

 

- Digo-vos, Thomas - falou em francês -, a esposa e as filhas deste bastardo vão ter de se prostituir para pagar o seu resgate! Vão ter de copular com todos os homens da Normandia para ter de volta este desgraçado! picou de novo o conde. - Vou esmagar-vos! - vociferou Sir Guillaume e, depois, exultante, empurrou o prisioneiro para diante.

 

A mulher gritou de novo.

 

Naquela noite muitas mulheres gritaram, mas qualquer coisa naquele grito alertou Thomas, que se voltou assustado. O grito soou pela terceira vez e ele começou a correr.

 

- Robbie! - gritou. - A mim!

 

Thomas correu por entre os restos de uma tenda incendiada, com as botas a lançar fagulhas ao pisar o lume. Rodeou um braseiro fumegante, quase tropeçou num homem ferido que vomitava para dentro de um elmo voltado ao contrário, percorreu uma ruela entre cabanas de armeiros, onde as bigornas, foles, martelos, tenazes e barris cheios de rebites e aros de malha se tinham espalhado sobre a erva. Um homem com um avental de ferrador com sangue a correr-lhe de uma ferida na testa cambaleava interpondo-se-lhe no caminho, mas Thomas empurrou-o de encontro ao estandarte negro e amarelo que ainda ondulava no exterior da tenda ardida do Senhor de Roncelets.

 

- Jeanette! - gritou. - Jeanette!

 

Mas Jeanette fora aprisionada. Segurava-a um homem enorme que lhe encostara a espinha ao guincho do trabuquete que tinha o nome de Stonewhip e se encontrava exactamente atrás da tenda do Senhor de Roncelets. O homem ouvira Thomas gritar e olhava-o a sorrir. Era Beggar, todo ele barba e dentes podres, que abanava Jeanette com toda a força enquanto ela lhe tentava escapar.

 

- Segura-a, Beggar! - ordenou Sir Geoffrey Carr. - Segura essa cabra!

 

- A bonita não sai daqui - disse Beggar. - Não sais daqui, querida disse, tentando levantar-lhe a cota de malha, mas esta era demasiado pesada e desajeitada e Jeanette debatia-se freneticamente.

 

Ainda sem a sua espada, o Senhor de Roncelets estava sentado sobre a estrutura do Stonewhip. Tinha no rosto uma marca vermelha que sugeria que lhe tinham batido e Sir Geoffrey Carr estava junto a ele com mais cinco homens-de-armas. O Espantalho olhava para Thomas em ar de desafio.

 

- É meu prisioneiro! - insistiu.

 

- Pertence-nos - respondeu Thomas. - Fomos nós que o apanhámos.

 

- Escutai, meu rapaz - disse o Espantalho com a voz arrastada pela bebida. - Sou um cavaleiro e vós sois uma bosta. Compreendeis? - cambaleou ligeiramente e aproximou-se de Thomas. - Sou um cavaleiro - repetiu em voz mais alta. - Vós nada sois! - o seu rosto avermelhado, agora lívido à luz das chamas, parecia contraído de desprezo. - Nada sois! - gritou de novo, batendo com o chicote para se assegurar de que os seus homens guardavam o Senhor de Roncelets. Um prisioneiro tão valioso resolveria todos os problemas de Sir Geoffrey e este estava decidido a ficar com ele e a ficar com o resgate para si. - Ela não pode fazer um prisioneiro - disse, apontando a espada para Jeanette -, porque tem mamas, e vós não podeis também, porque sois uma bosta. Mas eu sou um cavaleiro! Um cavaleiro! - Pronunciava a palavra como se cuspisse na direcção de Thomas, que, instigado pelos insultos, pegou no arco. A corda nova era um pouco longa de mais e, por essa razão, ele sentia a falta de força na haste negra. Porém, calculava que esta fosse suficiente para os seus intentos.

 

- Beggar! - gritou o Espantalho -, se ele soltar o arco, mata a cabra!

 

- Mato a bonita - disse Beggar. Babava-se e a saliva escorria-lhe pela barba, enquanto passava os anéis da cota de malha sobre os seios de Jeanette. Esta continuava a debater-se, mas ele dobrara-a dolorosamente sobre o guincho e ela mal se podia mexer.

 

Thomas mantinha esticada a corda do arco. Viu que a longa haste do trabuquete tinha sido puxada até ao chão embora os soldados de engenharia devessem ter sido interrompidos antes de poderem carregar a pedra, porque a enorme funda de couro estava vazia. Um monte de pedras encontrava-se à direita e um súbito movimento fez com que Thomas visse que havia um ferido encostado às enormes pedras. O homem tentava pôr-se de pé, mas não conseguia. Tinha sangue no rosto.

 

- Will - perguntou Thomas.

 

- Tom! - Will Skeat tentou pôr-se de novo em pé. - És tu, Tom!

 

- Que aconteceu? - perguntou Thomas.

 

- Já não sou o que era, Tom - disse Skeat. Os dois habitantes da cidade que tinham ajudado a guardar o Senhor de Roncelets estavam mortos aos pés de Skeat e este parecia moribundo. Tinha o rosto pálido, estava fraco e fazia um imenso esforço para respirar. As lágrimas corriam-lhe pela face.

- Tentei lutar - disse desconsoladamente. - Tentei o mais que pude, mas já não sou o que era.

 

- Quem te atacou? - perguntou Thomas, mas Skeat foi incapaz de responder.

 

- Will tentava proteger-me - gritou Jeanette, logo soltando um berro porque Beggar abanou-a com tanta força que ela se viu deitada sobre o guincho e Beggar conseguiu puxar-lhe para cima a cota de malha. Pairava animadamente, enquanto Sir Geoffrey vociferava irado.

 

- É o bastardo do Douglas!

 

Thomas soltou a corda. Gostava de disparar algumas flechas com as cordas novas para descobrir como se comportaria o novo cânhamo, mas naquele instante não teve tempo para tais frivolidades. Limitou-se a disparar, de modo a que a flecha se perdeu no emaranhado da barba de Beggar, enfiou-se-lhe na garganta e, com a sua enorme cabeça, cortou-lhe a traqueia com espantosa precisão, tal como se fosse a faca de um carniceiro. Jeanette soltou um grito quando o sangue lhe espirrou sobre a camisa e para o rosto. O Espantalho vociferou raivoso e correu para Thomas que lhe bateu na cara avermelhada com a haste do arco com pontas de osso e depois deixou a arma cair enquanto sacava da espada. Robbie passou por ele a correr e enfiou a espada do tio no ventre do Espantalho, mas mesmo embriagado Sir Geoffrey foi rápido e conseguiu aparar o golpe e retribuir. Dois dos seus homens-de-armas correram a ajudá-lo - os outros guardavam o Senhor de Roncelets mas Thomas viu-os vir. Dirigiu-se para a esquerda, na esperança de conseguir pôr a enorme estrutura do Stonewhip entre si e os homens que usavam a insígnia do machado negro pertencente a Sir Geoffrey, mas Sir Geoffrey quase o derrubou. Thomas lançou um golpe desesperado com a espada que acabara de desembainhar e bateu com ela contra a lâmina do Espantalho, com tal força que sentiu o braço dormente. O golpe fez recuar o inimigo que logo saltou para diante, obrigando Thomas a defender-se desesperadamente enquanto o Espantalho desferia sobre ele uma chuva de golpes. Thomas não combatia bem com a espada, estava a ser derrotado e via-se obrigado a ajoelhar e Robbie não o podia ajudar pois defendia-se dos dois homens de Sir Geoffrey. A seguir ouviu-se um enorme estrondo, de tal forma que parecia que se tinham aberto as portas do inferno e o chão estremeceu enquanto o Espantalho gritava na mais profunda agonia. O seu urro, ensanguentado, chegava ao céu.

 

Jeanette puxara a alavanca que soltava a trave longa. Dez toneladas de contrapeso tinham caído no solo e a grossa cavilha de metal que mantinha a funda metera-se entre as pernas de Sir Geoffrey e abrira um buraco ensanguentado entre as suas partes baixas e o ventre. Deveria ir a meio caminho da cidade, lançado pela trave do trabuquete, mas, como a cavilha ficara presa nas suas entranhas, fora apanhado pela ponta da trave onde estrebuchava de agonia, com o sangue a escorrer para o chão.

 

Os seus homens, ao verem o amo moribundo, recuaram. Porquê lutar por um homem que não poderia oferecer-lhes recompensa? Robbie abriu a boca de espanto enquanto o Espantalho estremecia e abanava e mesmo assim conseguia soltar-se da enorme vara de ferro para cair, com os intestinos de fora e jorrando sangue. Bateu no chão com uma pancada seca, balançou ensanguentado, mas ainda vivo. Tinha os olhos revirados e a boca arrepanhada num esgar.

 

- Maldito Douglas - conseguiu dizer o Espantalho, ofegante, antes de Robbie se aproximar dele, erguer a espada do tio e meter-lha por entre os olhos.

 

O Senhor de Roncelets vira tudo acontecer com estupefacção. Jeanette segurava-lhe agora a espada de encontro ao rosto, desafiando-o a fugir e ele abanou a cabeça sem pronunciar palavra, mostrando que não fazia a mínima intenção de arriscar a vida, entre homens embriagados aos gritos e violentos, saídos da noite para destruir o maior exército que o duque da Bretanha alguma vez conseguira reunir.

 

Thomas aproximou-se de Sir William Skeat, mas o amigo estava morto. Fora ferido no pescoço e sangrara até à morte sobre as pedras. Parecia estranhamente tranquilo. O primeiro raio de sol do novo dia atravessou o mundo para iluminar o sangue brilhante sobre a trave do Stoneivhip, enquanto Thomas fechava os olhos do seu mentor.

 

- Quem matou Will Skeat? - perguntou Thomas aos homens de Sir Geoffrey, e Dickon, o mais jovem, apontou para o amontoado de malha, carne, entranhas e osso que fora o Espantalho.

 

Thomas inspeccionou as mossas na lâmina da sua espada. Tinha de aprender a usá-la, pensou, de contrário morreria pelo golpe de uma delas; depois ergueu os olhos para os homens de Sir Geoffrey.

 

- Ide ajudar no ataque ao outro forte - disse-lhes. Eles ficaram a olhar.

 

- Ide! - disse rispidamente e, sobressaltados, os homens correram para ocidente.

 

Thomas apontou a sua espada para o Senhor de Roncelets.

 

- Levai-o para a cidade - disse a Robbie. - E guardai-o bem.

 

- E vós? - perguntou Robbie.

 

- Vou enterrar Will - disse Thomas. - Era meu amigo. - Pensou que haveria de verter lágrimas por Will, mas tinha os olhos secos. Também não era altura para lamentações. Embainhou a espada e depois sorriu a Robbie.

 

- Já podeis voltar para casa, Robbie.

 

- Posso? - Robbie parecia confuso.

 

- De Taillebourg está morto. Roncelets pagará o vosso resgate a Lorde Outhwaite. Podeis ir para Eskdale, para casa, voltar a matar ingleses.

 

Robbie abanou a cabeça.

 

- Guy Vexille está vivo.

 

- Eu quero matá-lo.

 

- Eu também - disse Robbie. - Haveis esquecido que ele matou o meu irmão. Vou ficar até que ele esteja morto.

 

- Se conseguirdes encontrá-lo - disse Jeanette suavemente.

 

O sol iluminava o fumo dos acampamentos incendiados e lançava longas sombras no chão, onde o resto do exército de Charles abandonava as trincheiras para fugir em direcção a Rennes. Tinham chegado no seu grande esplendor e agora fugiam na mais abjecta derrota.

 

Thomas dirigiu-se às tendas dos soldados de engenharia, encontrou uma picareta, uma enxada e uma pá. Cavou uma sepultura junto ao Stonewhip e meteu Skeat na terra húmida. Depois tentou dizer uma oração, mas não foi capaz de se lembrar de nenhuma, recordando-se logo a seguir da moeda para o barqueiro; foi então à tenda do Senhor de Roncelets, afastou da arca a lona queimada, pegou numa peça de ouro e voltou para junto da sepultura. Saltou para dentro, para junto do amigo e meteu a moeda sob a língua de Skeat. O barqueiro encontrá-la-ia e saberia que Sir William Skeat era um homem especial.

 

- Deus te abençoe, Will - disse Thomas, para logo saltar da sepultura e a encher de terra, embora constantemente se detivesse na esperança de que os olhos de Will se abrissem, mas claro que tal não aconteceu e Thomas acabou por lançar terra para o rosto do amigo. Quando terminou já o Sol ia alto e as mulheres e as crianças saíam da cidade em busca da pilhagem. Um francelho levantou voo e Thomas sentou-se na arca das moedas à espera que Robbie regressasse da cidade.

 

Iria para sul, pensou. Para Astarac. Iria descobrir o livro do pai e resolver o seu mistério. Os sinos de La Roche-Derrien tocavam a comemorar a vitória, a enorme vitória, e Thomas sentou-se entre os mortos e soube que não conseguiria ter paz enquanto não conseguisse encontrar o fardo do seu pai. Cálix meus inebrians. Transfer calicem istem a me. Ego enim eram pincerna regis.

 

Quer quisesse quer não cumprir aquela tarefa, era o guardião da taça do rei e partiria para sul.

 

 

Nota Histórica

O romance começa com a Batalha de Neville’s Cross. O nome da batalha provém da cruz de pedra que Lorde Neville aí ergueu para comemorar a vitória, embora seja possível que já houvesse outra cruz naquele local e esta tenha sido substituída pelo memorial de Lorde Neville. A batalha em que combateram um enorme exército escocês contra uma pequena força apressadamente reunida pelo arcebispo de Iorque e os fidalgos do Norte foi um desastre para os escoceses. O rei, David II, foi feito prisioneiro conforme é descrito em O Vagabundo, capturado debaixo de uma ponte. Conseguiu partir alguns dentes ao seu captor, mas acabou por ser apanhado. Passou muito tempo no Castelo de Bamburgh, para recuperar da sua ferida facial e depois foi levado para Londres e metido na Torre juntamente com outros fidalgos escoceses capturados nesse dia, incluindo Sir William Douglas, Cavaleiro de Liddesdale. Os dois condes escoceses que tinham anteriormente jurado fidelidade a Eduardo foram decapitados, depois esquartejados e as partes dos seus corpos exibidas pelo reino como aviso contra a traição. Mais tarde, Charles de Blois, sobrinho do rei de França e futuro duque da Bretanha, juntou-se a David II na Torre de Londres. Foi uma notável dupla captura feita pelos ingleses à qual, numa outra década, seria acrescentada a do próprio rei de França.

Os escoceses invadiram a Inglaterra a pedido dos franceses, de quem eram aliados, e é provável que David II acreditasse verdadeiramente que o exército de Inglaterra estivesse todo no Norte de França. Mas a Inglaterra tinha previsto este tipo de problema e certos fidalgos do Norte tinham sido encarregados de ficar no país, prontos para reunir forças se os escoceses alguma vez iniciassem a marcha. A espinha dorsal destas forças era, evidentemente, o arqueiro e é esta a grande época do arco inglês (e, até certo ponto, do gaulês). A arma utilizada era o arco longo (um nome que só muito mais tarde começou a ser utilizado) feito de teixo com, pelo menos, um metro e oitenta centímetros de comprimento e um peso superior a cinquenta quilos (mais do dobro do peso dos modernos arcos de competição): é ainda um mistério a razão pela qual apenas os ingleses podiam apresentar em campo perigosos arqueiros que se tornaram de facto reis do campo de batalha inglês, mas o mais provável é que o domínio do arco longo derivasse de um entusiasmo inglês pela sua prática como desporto em centenas de aldeias. Por fim, surgiram leis que tornaram obrigatória a prática do arco, provavelmente porque o entusiasmo estava a desaparecer. Era, certamente, uma arma extraordinariamente difícil de usar, requerendo uma força enorme, e os franceses, embora tentassem introduzi-la nas suas fileiras, nunca a dominaram. Os escoceses estavam habituados a esses arqueiros e tinham aprendido a nunca os atacar a cavalo, mas, na verdade, não houve resposta para o arco longo até que as armas de fogo surgiram no campo de batalha.

Os prisioneiros eram importantes. Um homem importante como Sir William Douglas seria apenas libertado depois do pagamento de um grande resgate, embora tivesse ficado em liberdade condicional para ajudar a negociar o resgate do rei da Escócia. Porém, como não teve sucesso, regressou obedientemente para o seu cativeiro na Torre de Londres. Os resgates de homens como Charles de Blois e o rei David II eram enormes e poderiam levar anos a negociar e a conseguir. No caso de David, o resgate era de 66 000 libras, uma soma que tem de ser multiplicada pelo menos por trezentos para se conseguir uma aproximação do valor em termos actuais. Os escoceses podiam pagá-lo em dez prestações e vinte nobres tiveram de se render como reféns pelo seu pagamento antes que David fosse libertado em 1357, altura em que, ironicamente, as suas simpatias tinham passado a ser inteiramente pró-inglesas. Sir Thomas Dagworth foi oficialmente o captor de Charles de Blois e vendeu-o a Eduardo III pela soma muito inferior de 3500 libras, pois sem dúvida seria melhor ter esse dinheiro na mão do que esperar enquanto o dinheiro de um resgate muito maior era reunido em França e na Bretanha. O captor do rei David fora um inglês chamado John Coupland, que também vendeu este prisioneiro a Eduardo, no caso de Coupland por um grau de Cavalaria e por terra.

A derrota de Charles em La Roche-Derrien é um dos grandiosos e não cantados triunfos ingleses desta época. Charles já antes tinha enfrentado arqueiros e conseguira vencê-los, e por isso sabia que o modo de os derrotar era obrigá-los a atacar posições bem defendidas. Aquilo que o arqueiro não via não podia matar. A táctica funcionara bem com o assalto de Sir Thomas Dagworth, mas depois surgiu Richard Totesham, numa surtida vinda da cidade e, como Charles insistira que as quatro partes do seu exército ficassem atrás das suas trincheiras protectoras, foi dominado e as outras partes do seu exército foram por sua vez derrotadas. Essa derrota e a sua captura foram um choque imenso para os seus aliados franceses que não conseguiram fazer levantar o cerco de Calais.

Tenho de deixar aqui gravada a minha dívida para com Jonathan Sumption, cujo livro, Trial by Battle, o primeiro volume da sua soberba história da Guerra dos Cem Anos me foi de particular utilidade. Os erros no romance são inteiramente meus, claro, embora, com a intenção de diminuir o peso do meu saco de correio, gostasse de fazer notar que a Catedral de Durham possuía apenas duas torres em 1347 e que coloquei a referência de Hachaliah no Livro de Esdras e não no de Nehemiah, porque usei a Vulgata e não a Bíblia do rei Jaime.

 

                                                                                Bernard Cornwell  

 

                      

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