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O VALE DAS BONECAS - P.2 / Jacqueline Susann
O VALE DAS BONECAS - P.2 / Jacqueline Susann

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VALE DAS BONECAS

Segunda Parte

 

                                                                           JENNIFER

 

                                           Maio, 1947

Jennifer estava sentada à beira da piscina, na sombra. Leu novamente a carta de Anne. Parecia que estava razoavelmente feliz — era a primeira carta em que não mencionava Lyon. Talvez tivesse superado a crise. Como podia morar em seu apartamento? Teria esperança ainda de que, num dia qualquer, ele estaria de volta? Depois de cinco meses? E sem ter recebido jamais uma palavra dele? Isso mostrava bem que a gente nunca pode saber o que um homem tem dentro da cabeça. Tomemos, por exemplo, as lindas fotografias dela e de Tony. Pareciam tão felizes — o perfeito jovem casal de Hollywood!

O sol penetrou por baixo do guarda-sol. Jennifer se inclinou para ajustá-lo, para se proteger. Imagine... uma moça alérgica ao sol acabava por ter de morar justamente na Califórnia. Olhou com raiva para o sol, que parecia agora uma enorme bola alaranjada. Sempre lá. Na Califórnia, o sol era uma das coisas com que se podia contar sempre. Às vezes, podia haver uma leve bruma pela manhã; inevitavelmente, porém, aparecia aquele enorme disco cor de limão, a princípio timidamente, depois lentamente clareando o céu, até ficar sozinho no infinito azul-da-china. Jennifer suspirou. Desde o dia em que chegou, janeiro, o tempo era de verão. Como é que dava tantas laranjas se nunca chovia? Maio em Nova York, a gente podia realmente apreciar o bom tempo, quando chegava. Começava com um perfume no ar. Todos penduravam os pesados casacos de inverno no guarda-roupa e sentavam-se no Central Park para tomar sol. E em Nova York se podia andar. Só quem vive na Califórnia sabe que andar é um privilégio. Em Nova York se pode andar até mesmo à noite pelas ruas. Se a gente não tem o que fazer, pode descer a Quinta Avenida a pé, olhar as vitrinas, ir ao cinema, ou então descer a Broadway e comer um cachorro-quente. Aqui, se a gente for dar uma volta pelo Beverly Drive à noite, logo algum carro tenta nos apanhar.

Bem, pelo menos Anne tinha Nova York. De acordo c°m suas cartas, saía bastante, embora nunca mencionasse o nome de alguém. Provavelmente estava ainda esperando por Lyon.

E ela, que estava esperando? Que mais um dia se passasse? Uma festa à noite. Não que isso a emocionasse, mas era melhor que jogar paciência com Tony. Nem nisso Míriam permitia que ele se concentrasse, ficava sempre ao lado dele,"indicando a carta que deveria jogar. Se ela ao menos o deixasse pensar sozinho, de vez em quando.

Tomou o resto do refresco; o gelo se derretera e a bebida ficou com gosto de laxativo. Sentia preguiça de entrar na casa para apanhar outra garrafa. Na verdade, tinha preguiça de fazer qualquer coisa. E, quanto à festa... não prometia ser nada divertida. Puro interesse. Tony pretendia ganhar o melhor papel num filme de Dick Meeker, por isso ela devia ser muito gentil com ele. "Gentil e agradável" — eram as palavras que Míriam não cansava de lhe repetir aos ouvidos. "Não tente bancar uma grande personalidade. Aqui você não é ninguém e toda a gente é importante. Por isso, seja apenas gentil e agradável."

Fazia o melhor que podia. Enfrentava as festas tal qual um cadáver sorridente. Não fizera ainda amizade com ninguém. Míriam tinha razão: beleza é o que havia de mais comum em Hollywood, milhares de belíssimas desconhecidas. As garotas que ficavam perto do Schwab eram lindas, e as que pediam carona nos carros também eram lindas. Surpreendentemente, porém, a maioria das grandes estrelas não eram belezas espetaculares. Jane Wyman era míope, Barbara Stanwyck só era muito elegante, Rosalind Russel também. Joan Crawford era espetacular. E durante todos esses anos ela achava que tinha algo de especial, por ter belos dentes, um belo perfil, um busto enorme. Mas um busto grande não estava nem na moda: Adrian e Ted Casablanca tinham criado a moda dos ombros largos.

Seria mais uma noite vazia. Não era ninguém, apenas a Sra. Polar, mulher de um novato que prometia. Sim, ele era também do rádio, alguém diria. Isso em Hollywood não significava nada. O importante era trabalhar em filmes, e uma esposa não significava nada. De fato, uma esposa tinha tanta importância quanto um roteirista: necessária, porém anónima. Mesmo as. estrelinhas ganhavam mais atenção nas festas. Elas estavam sempre disponíveis, prontas para qualquer tipo de ação. Conheciam todos os produtores e tinham sempre histórias engraçadas para contar, como aquela da ande estrela, que sempre gritava "mamãe" quando alcançava o clímax... Claro, as estrelinhas ganhavam todas as atenções nas festas. Uma esposa, entretanto, essa vivia no limbo. Devia ser respeitada, mas, ao mesmo tempo, era muito insignificante para que a respeitassem. Na maioria das festas, acabava no bar, conversando com os garçons, que, em sua maioria, vinham de Nova York e discutiam nostalgicamente o Sardi, ou o Lindy. Melhor do que falar com outras esposas, deslocadas, que só sabiam comentar sobre empregadas domésticas e ténis.

Não podia nem ao menos se permitir sair às compras como fazia quando era solteira. Só lhe permitiram comprar um único vestido de noite durante os cinco meses em que estava ali: "Você tem mais roupas do que qualquer loja" — dizia Míriam. Talvez tivesse, mas se cansava depressa delas. Será que Míriam não sabia que era agradável vestir roupa nova? Claro que não, ela só tinha três vestidos, e quase iguais; ia à festa com um vestido de renda azul de cinco anos de idade, e uns sapatos ortopédicos brancos!

Míriam permitia que gastasse cinquenta dólares por semana. Mandava tudo para a mãe, e ela continuava escrevendo que era muito pouco. Tentou falar com Tony a respeito de sua situação financeira, mas quase nunca o via. Ele estava, invariavelmente, gravando, ensaiando ou estudando novas canções. E, na hora do jantar, sempre Míriam. À noite, na enorme cama, voltava a ser o Tony dos outros tempos, ansiando por ela. Depois de satisfeito, porém, não podia mais ser alcançado. Tentara explicar que, se pudesse ajudá-lo na sua carreira, e fazer realmente parte de sua vida, não ficaria tão entediada; ele não compreendia: "Míriam toma conta dessa parte. Por que não fala com ela?"

Quando tratava de dinheiro, era a mesma coisa: "Fale com Míriam, ela lhe dará tudo que você precisar". Míriam, entretanto, tinha todas as respostas prontas: "Para que precisa de dinheiro? Pago a comida e tudo. Cinquenta dólares são mais que suficientes para o seu gasto pessoal".

Não podia continuar assim. Por quanto tempo, ainda suportaria sentar-se à beira da piscina? Tinha lido três livros durante a semana, e era apenas sexta-feira. O sol começou novamente a penetrar sob o guarda-sol. Jennifer se levantou. Precisava fazer alguma coisa, ir a algum lugar. Talvez Neely estivesse em casa. Acabara seu segundo filme e o estúdio lhe prometera um mês de férias. Entrou em casa e vestiu uma calça comprida. Estava feliz por Neely. Q primeiro filme dela fora um sucesso espetacular, e já vira algumas cenas do segundo, também muito bom. Quase nunca encontrava Neely. Às vezes, falavam por telefone. Mas Neely acabara de mudar o número novamente e Jennifer ainda não sabia o novo que não constava da lista.

Dirigiu o carro por oito quarteirões,.ninguém andava a pé na Califórnia. Se Neely não estivesse em casa, iria ao Schwab. Talvez Sidney Skolsky estivesse lá; eles poderiam sentar e conversar. Sidney amava Hollywood, mas podia compreender como ela se sentia.

Mel abriu a porta. Vestia calção de banho, engordara um pouco e o tostado da pele lhe dava uma aparência sadia. Conduziu Jennifer à beira da piscina.

— Quer almoçar? Estou justamente comendo um sanduíche.

Jennifer sacudiu a cabeça e sentou à sombra. A piscina deles era idêntica à dela. A mesma forma de rim, uma cabana, um campo de ténis e um barzinho. Olhou para as colinas distantes. Será que Mel também ficava o dia todo sentado à beira da piscina?

— Neely está no estúdio — explicou Mel — experimentando o novo guarda-roupa.

— Pensei que estivesse de férias.

— Sim, um mês antes de começar a rodar o novo filme. Mas isso significa um mês de provas de vestidos, provas de maquilagem e organização da publicidade. Deve voltar a qualquer momento. Soube que Ted Casablanca está desenhando as roupas dela?

— Então está no topo. Ted só desenha para as grandes estrelas.

Mel sacudiu os ombros magros.

— Só em Hollywood é que isso pode acontecer: mulheres quase desmaiam porque um afeminado se resigna desenhar para elas. Em qualquer outro lugar, se você tem dinheiro para pagar, obtém o que deseja. Em Nova York, por exemplo, acha que Saks se incomoda em saber se a cliente fará justiça à sua criação? Por aqui é tudo assim... Sabe que Neely está fazendo regime para emagrecer? Não é de se dar risada?

— Por quê? Engordou?

— Ela está pesando cinquenta e três quilos. Sempre pesou isso. Para a altura dela é o peso ideal. Esse Casablanca quer que ela emagreça sete quilos. Diz que seu rosto ficará mais interessante e que as roupas cairão melhor. Está tornando umas pílulas verdes e não come coisa alguma.

Neely chegou de repente, correndo e sem fôlego, como sempre. Ficou encantada de ver Jennifer.

— Você já soube? — perguntou ela. — Ted Casablanca está fazendo a minha roupa. Oh, Jennifer, ele é divino! Agora, para variar, vou ficar bonita. Ele está me fazendo alguns vestidos realmente fascinantes. Meu Deus, quando eu me lembro daquele vestido de tafetá cor de púrpura! Ted acha que deverei dar uma ideia de moleque travesso, mas chique. Afinal de contas, tenho dezoito anos agora; já é tempo.

— Ouvi dizer que você está fazendo regime.

— Claro. Mel, traga um copo de leite desnatado. Quer alguma coisa, Jennifer?

— Um refresco.

— Só temos club-soda. Não tenho em casa nada que engorde. Mel, faça uma limonada para Jen. Que tal?

Neely ficou olhando para Mel, que entrava na casa, os enormes olhos de criança cheios de preocupações.

— Oh, Jennifer, não sei o que fazer. Mel mudou de tal maneira... ele simplesmente não consegue se adaptar a isso. Tudo o que ele faz, faz malfeito.

— Eu não diria isso. Ele está arranjando muita publicidade. A história que saiu no Mundo do Cinema está ótima.

Neely sacudiu a cabeça.

— Foi o estúpido que fez aquilo. Disseram-lhe para sumir. Ele se intromete em tudo. Não o querem no palco de filmagem, acham que perco a naturalidade quando ele está lá. E Ted Casablanca me disse que Mel é a piada da cidade.

— Não acreditaria nisso. Você sabe como as bichas são maldosas.

— Bicha? — Os olhos de Neely faiscavam. — Não se atreva a chamá-lo assim! Oh, ele é maravilhoso! Tem trinta anos de idade e já ganhou três milhões de dólares. E não é bicha.

— Verdade?

— Claro. Que é que você acha que estive fazendo hoje? Experimentando vestidos? Isso foi o que eu disse a Mel. Nós fizemos foi outra coisa. De todas as maneiras possíveis. No seu maravilhoso estúdio, com ar condicionado. E deixe que eu lhe diga, ele não é... — Parou de falar quando viu que Mel chegava com as bebidas.

— Já perdi mais de dois quilos. — Depois, tirou da bolsa um frasco cheio de pílulas verdes e tomou uma. — E que invenção esta! São maravilhosas. Tiram realmente o apetite. O problema é que não me deixam dormir à noite.

— Tente Seconal — sugeriu Jennifer.

— Funciona mesmo?

— Espetacularmente. São pequenas cápsulas vermelhas, que a livram de todas as preocupações e lhe dão nove abençoadas horas de sono todas as noites.

— Sem brincadeira? Então vou tomá-las. Mel, chame o Dr. Holt e diga-lhe que me mande cem.

— Cem? — a voz de Jennifer mostrou surpresa. — Neely, não são aspirinas. A gente só toma uma à noite. Nenhum médico lhe dará mais que vinte e cinco.

— Acha que não? Quer apostar? O Dr. Holt é o médico do estúdio e me dará tudo o que eu pedir. Mel, cha-me-o agora mesmo. — Mel foi pacientemente até o telefone. — Uma só cada noite?

Jennifer fez que sim. Não tinha razão para dizer a Neely que, às vezes, chegava a tomar três. Uma bastaria para Neely. Além disso, pretendia diminuir a dose, logo que acertasse as coisas com Tony.

Mel entrou em casa e Neely ficou olhando até vê-lo desaparecer. Então, puxou a cadeira para perto de Jennifer.

— Preciso providenciar um novo diafragma. Por duas vezes, no mês passado, Mel tentou me engravidar... o filho da mãe.

— Sempre pensei que você quisesse ter filhos.

— Sim, mas não com Mel. Vou me livrar dele.

— Neely!

— Olhe, ele é um chato. Sinceramente, Jennifer, ele mudou completamente. Não tem incentivo. Já discuti o caso com O Chefe e ele concordou. Mel só faz se intrometer em tudo. Insistiu em dizer que eu não devia emagrecer, que estou ótima assim como estou. Agora, que estou perdendo peso, estão me dando o tratamento que se da:a uma estrela glamourosa. Mel é um desses tipos que ama a rotina. Jamais se adaptará ou mudará de temperamento. Só tenho de ser cuidadosa, pois aqui a lei da comunhão de bens poderá fazer com que metade de tudo que tenho vá para Mel.

— E o que pretende fazer?

— Já está tudo planejado. — Baixou a voz. — O Chefe vai providenciar para que Mel tenha uma ótima proposta de uma agência de publicidade de Nova York. Farei com que ele vá, e O Chefe se encarrega de apanhá-lo numa armadilha, você sabe, com uma garota... e eu obterei o divórcio.

— Neely, você não pode...

— Bem, que mais posso fazer? Na semana passada, insinuei que devíamos nos divorciar; sabe o que ele fez? Começou a chorar como um bebe. Disse que não podia viver sem mim. Não é um chato? Quero um homem que me diga o que devo fazer, em quem eu possa me apoiar, e não alguém que se apoie em mim.

— Como sabe que ele aceitará o emprego?

— Eu lhe direi que, se ele fizer sucesso e ficar com o emprego, irei a Nova York trabalhar na Broadway. Teremos um bebé e moraremos lá.

— E você fará isso?

Neely olhou para Jennifer com estranheza.

— Deixar a Califórnia? E tudo isso? Você está maluca? Aqui alcancei o sucesso. Depois do meu segundo filme, pode estar certa de que serei uma estrela de primeira grandeza!

— Você poderia ser uma estrela também em Nova York, na Broadway.

— Ora, uma estrela na Broadway... Isso é ninharia. Quando se é estrela de Hollywood, então a gente é estrela no mundo inteiro. Sabe que meu filme já está sendo exibido em Londres? Imagine! Todos me conhecem em Londres. Com um só filme já sou dez vezes mais conhecida do que Helen Lawson jamais será. Quando se é estrela de cinema somos tratadas como estrela. Eu me lembro de que Helen Lawson tinha de tomar o trem para New Haven, como todos nós, e mudar de roupa em camarins horríveis. Aqui fazem tudo pela gente. O meu banheiro no estúdio é mais espetacular que o camarim da melhor estrela da Broadway. Meu camarim é do tamanho do apartamento de Helen Lawson em Park Avenue. Quando você vale milhões, como estou valendo agora, fazem tudo para a gente. Eu simplesmente mencionei, no outro dia, em conversa com O Chefe, que é como chamamos H. C. Bean, um homem realmente maravilhoso... gentil, com quem se pode falar como a um pai, como ia dizendo, apenas mencionei que desejava perder algum peso, sabe o que ele fez? Mandou construir uma sala de banho a vapor, do lado do meu camarim, e contratou uma massagista particular. Pagam por tudo isso. E quando quero ir a uma estreia, por exemplo, mandam um carro, com motorista, me emprestam vestidos e peles. E se o meu próximo filme fizer o sucesso que fizeram os dois primeiros, O Chefe disse que me darão um novo contrato, com um enorme aumento de salário, talvez dois mil dólares por semana.

— Isso é muito dinheiro, Neely!

— Minha agência diz que estou valendo mais. Talvez eles concordem com uns dois mil e quinhentos por semana. Tudo o que tenho a fazer é estalar os dedos. O Chefe disse que no próximo ano devo abandonar esta casa alugada e comprar uma, em Beverly Hills, que tem mais classe.

— Por que não vai com calma e guarda um pouco de dinheiro?

— E para quê? Não tenho mais medo. E sabe por quê? Porque sei que tenho talento, Jen. Nunca tinha acreditado nisso, sempre achei que qualquer pessoa podia cantar e dançar. No meu segundo filme, porém, percebi que também sabia representar. Viu a cena do choro? Bem, aquilo não era glicerina. O diretor apenas me explicou a situação em que estava a moça, e eu a senti. E chorei realmente.

— Eu também chorei, quando assisti — disse Jennifer.

Neely se espreguiçou, braços abertos.

— Adoro esta cidade. Ela foi feita para mim.

Mel voltou.

— O Dr. Holt diz que foi uma boa ideia, que as pílulas estarão aqui a qualquer momento, Neely... Não quer ir ao cinema esta noite?

— Não posso. Preciso estar de pé às seis-da manhã. Teste de colorido.

Mel ficou olhando para a piscina.

— Eu, no entanto, não tenho de estar de pé hora nenhuma. Estou é quase maluco de ficar só por aqui, sentado...

Jennifer pensou em Mel quando voltava para casa. Será que Tony também achava que ela era um peso morto? Se Tony não conseguisse fazer o filme, insistiria para que voltassem a Nova York. Lá ele podia ter um programa de rádio; sabia, porém, que ele conseguiria o papel e tudo estaria na mesma. Dentro de pouco tempo, Tony poderia começar a achar dela o que Neely estava achando de Mel. Grandes estrelas trabalhariam com ele nos filmes, e as estrelinhas ficariam à sua disposição, fora dos filmes. Quanto tempo ainda aguentaria ficar sentada, só olhando? Perto dos vinte e sete anos, logo começaria a demonstrar a idade que tinha.

Quase passou um sinal vermelho quando pensou nisso. E não tinha pensado nisso antes: um filho! Ela teria um filho! Isto traria Tony para mais junto dela e a manteria ocupada. Oh, Deus, tinha de ser uma menina! Seriam tão amigas, iria amá-la tanto... seria uma mãe maravilhosa. Estava excitadíssima quando chegou à casa. Guardaria segredo do seu plano.

Vestiu-se cuidadosamente para a festa. Começaria seu novo projeto esta noite.

 

                                                   Setembro, 1947

Em agosto, não ficou menstruada. No começo, estava muito excitada para dizer qualquer coisa; mas em setembro já tinha certeza. Sua cintura tinha aumentado cinco centímetros. Foi a um médico, e ele confirmou o que imaginara e lhe deu os parabéns. Tony tinha uma gravação a fazer e ela não podia perturbá-lo. Tinha, porém, de contar a alguém, queria contar até ao guarda que dirigia o tráfego. Queria ir ao Schwab e contar a toda gente. Não seria justo, Tony gostaria de dar a notícia numa grande entrevista. Neely! Contaria a Neely. Eram quase cinco horas. Neely deveria estar terminando as filmagens do dia.

Dirigiu-se ao estúdio. O porteiro conferiu detidamente a sua identidade e conduziu-a ao bangalô de Neely. Ela estava se submetendo a uma massagem.

— Entre, entre — gritou-lhe. — Que coincidência! Eu ia justamente telefonar-lhe. Adivinhe o que aconteceu? Já está tudo combinado. Mel parte para Nova York amanhã.

— Ainda Ted?

— Claro. Quem pensa que sou? Alguma vadia? Sou mulher de um homem só. Ted e eu... — Parou de falar com Jennifer e se dirigiu à massagista: — Está bem, pode ir. Quero falar com a minha amiga em particular.

Quando a mulher saiu, Neely deixou cair a toalha que a cobria e perguntou:

— Que é que acha da nova Neely? Tenho cinquenta centímetros de cintura agora e peso quarenta e sete quilos.

— Ted gosta que você esteja tão magra?

— Se gosta! Gosta até do meu busto pequeno. Diminuiu ainda mais, mas ele diz que seios grandes lembravam-lhe vacas! E ficam péssimos com essa nova moda de ombros largos. Vamos nos casar assim que o assunto Mel estiver resolvido. E sabe do que mais? Vamos assinar um acordo de separação de bens; ideia do Chefe. Assim saberemos que estamos nos casando por amor e não pelo que temos.

Jennifer sorriu.

— Neely, sabe da última? Estou grávida de dois meses.

— Meu Deus! — Neely ficou imediatamente preocupada. — Bem, há um médico em Pasadena, dizem que é muito bom para isso. O Chefe manda para ele todas as garotas em dificuldades. Primeiro, tenta solucionar o caso com injeções, se não dá certo... o aborto é fácil. E faz tudo com anestesia.

— Neely, você não entendeu. Eu quero este filho. Eu o planejei. E estou felicíssima com ele.

— Oh, bem, então é maravilhoso! Sabe, já está começando a aparecer, agora que falou. Você até perdeu a sua maravilhosa cinturinha.

— Que me importa, se vou ter um maravilhoso bebé? — Jennifer imitou, rindo, o tom de Neely.

Neely sorriu com bom humor.

— Depois que ele nascer, eu lhe empresto algumas pílulas verdes para você recuperar a elegância.

:— Não há dúvida de que funcionaram muito bem com você.

— Sim, o problema é que a gente não pode deixá-las. No momento em que paro de tomá-las, como igual a uma maníaca. Mas dão uma energia impressionante. Parece que poderia dançar durante horas. E todas as noites eu lhe agradeço pelas pílulas vermelhas. Salvaram a minha vida. Ei, Jen, você já experimentou umas amarelas? Nembutal? Se a gente toma uma de cada, uma vermelha e uma amarela, menina, a gente dorme de verdade. Aprendi isso experimentando. As vermelhas fazem com que se adormeça rapidamente, seus efeitos duram apenas seis horas. As amarelas funcionam mais devagar, e os efeitos são mais prolongados. Por isso, pensei: por que não tomar as duas? Só faço isso nos fins de semana e, às vezes, chego a dormir doze horas seguidas.

— Agom que estou gravida não vou tomar mais nada. Não quero prejudicar o bebe.

— Sim, mas se você não dormir, fica abatida, não é?

— Pela primeira vez na vida, não estou preocupada com a minha beleza. Tudo o que desejo é ter um bebe perfeito. Se ficar acordada a noite inteira hão me importarei.

Neely sorriu.

— Parece que você ficou sentimental, mas acho que também ficarei assim. Depois de me casar com Ted, e depois de assinar o meu novo contrato, então poderei ficar grávida. Enquanto isso, benditas as bolinhas verdes, amarelas e vermelhas.

Jennifer fazia votos que Tony não tivesse nenhum compromisso para a noite. Queria ir com ele até o pequeno restaurante do vale — sem Míriam — e contar-lhe tudo. Quando chegou em casa, viu um carro estacionado à entrada. Era de Delia, a empregada eventual, que vinha quando havia necessidade. Bem, isso significava alguma reunião à noite.

Míriam esperava por ela.

— Tony assinou o contrato hoje! — O rosto dela estava radiante. — Bastou que vissem os testes coloridos. Tem um contrato de cinco anos com a Metro e começará a filmar em duas semanas. Vista-se como uma dama esta noite... O diretor vem jantar aqui com a esposa. Mais tarde, o regente da orquestra e alguns músicos passarão por aqui.

Jennifer se vestiu cuidadosamente. Muito bem, então daria a notícia na hora do jantar, publicamente. Quando teve de lutar com o fecho do vestido, percebeu que não poderia esperar muito mais tempo. De qualquer forma, Tony não tardaria a notar.

Tomou um martini antes do jantar. Míriam ficou olhando para ela, um tanto surpresa. Jennifer brilhava, conversou gentilmente com a mulher do diretor; passava os canapés; fazia papel da esposa perfeita. Esperou até que o vinho fosse servido ao jantar e então se levantou, o copo para cima. Evitou cuidadosamente o olhar hostil de Míriam e disse:

— Quero fazer um brinde a mim... ou melhor, ao que tenho dentro de mim. Tony e eu vamos ter um bebé.

Todos fizeram coro ao brinde, e Tony pulou da cadeira e abraçou-a. Jennifer, entretanto, não deixou de perceber profundo suspiro de Míriam e o rosto espantado da cunhada. Quando passou a excitação do momento, os olhos dela se encontraram de novo com os de Míriam, desta vez o seu rosto exibia um sorriso satisfeito.

Quando o último convidado se retirou, Míriam disse a Jennifer.

— Vá para cima, mãezinha. Você precisa de muito descanso. Quero discutir alguns detalhes do filme com Tony e então mandarei o futuro papai para cima.

No momento em que Jennifer desapareceu, ela gritou para o irmão:

— Já não lhe disse que usasse alguma coisa?

— Eu usei. — Tony sorria timidamente. — Acho que foi um acidente.

— Que quer dizer com acidente? Aqueles preservativos que eu lhe compro são os melhores que existem. Não rompem nunca.

— Bem, eu deixei de usá-los há alguns meses. Jennifer disse que não precisava, que ela estava usando diafragma.

— Eu lhe disse para não permitir nunca que uma garota o convencesse disso. Poderia até apanhar uma doença.

— De Jen? — Ele riu. — E depois, é bem melhor sem eles.

— Um bebé agora vai prendê-lo.

— Não acho. Além disso, agora teremos muito dinheiro. Com o filme e tudo... E eu quero um bebé, vai ser divertido.

Míriam percebeu que Jennifer descia as escadas; por isso continuou:

— Com um bebé é claro que terá de ficar mais tempo em casa.

Jennifer parou no meio da escada, ouvindo. Tony, de costas para a porta, não podia vê-la.

— Muito bem, então ficarei mais tempo em casa —-concordou Tony, sacudindo os ombros.

— E desistir daquela cantora ruiva?

— Quem lhe contou? — parecia aterrorizado.

— Saiba que não há nada que eu não perceba. Mas não tema. Não contarei a Jennifer.

— Contar a Jennifer o quê? — disse ela, entrando na sala.

Míriam fingiu surpresa. Tony parecia assustado.

— Não é nada, Jen. Míriam e suas ideias malucas. Só porque dou umas voltas com Betsy. Sabe, Betsy é a cantora do meu programa de rádio. Uma volta, isso é tudo.

— Umas voltas, e que voltas — interrompeu Míriam. — Três vezes por semana se encontram no camarim dele. Ele pode não estar usando os preservativos com você, mas eu lhe compro uma caixa por semana, e está sempre precisando de mais.

— Veja o que você fez agora — Tony se lamentou quando viu Jennifer sair correndo da sala.

— Tony, faça com que ela se livre desse bebé. Acredite em mim, Tony, não será bom para sua carreira. E há muitos médicos para fazer isso.

— Mas eu quero -— disse ele teimosamente.

— Tony... — ela agora tentava adulá-lo — pense na imagem que o público tem de você. Um rapaz novo, bonito. O estúdio vai dizer que você só tem vinte e quatro anos... um bebé arruinaria tudo.

— Nada disso. Sinatra tem filhos. Bing Crosby, também. Você não vai tirar esse bebé de nós. — Subiu a escada atrás de Jennifer.

Ela estava atravessada na cama, soluçando, quando Tony entrou no quarto. Sentou-se e começou a acariciar-lhe o pescoço.

— Querida. Não se importe com o que Míriam disse. Nós teremos o nosso bebé.

— Não me importar? Deixar que ela arruíne nossas vidas. Permitir que ela lhe compre preservativos! E durante todo esse tempo, enquanto fiquei aqui, sentada, me aborrecendo mortalmente, você estava se divertindo com uma cantora! E eu aqui, vendo Míriam ficar cada dia mais man-dona!

— O que é que quer que eu faça?

— Pode dizer-lhe que suma, que eu serei a dona da casa daqui por diante.

— Não posso fazer isso a Míriam. Para onde é que ela iria?

— A qualquer lugar! Para bem longe de nós. Não me importo que você dê a ela metade do que ganha, temos de viver a nossa vida, ser marido e mulher, e não duas crianças que moram com Míriam.

— Quem iria cuidar de tudo? Quem assinaria meus cheques e estudaria meus contratos?

— Mas, Tony, todos os artistas têm agentes que cuidam disso. Você também poderia ter um.

— Por que contratar um agente, que poderia me roubar? Ninguém cuidará melhor dos meus negócios do que minha irmã, nem defenderá meus interesses melhor que ela.

— Mas eu não posso mais viver com ela.

De repente, a voz dele ficou tensa:

— Você está realmente pedindo que eu a atire na rua?

— Tony — a voz dela era suplicante — que espécie de vida temos tido? Nunca damos uma festa que não seja necessária à sua carreira, pois Míriam acha que entreter os amigos é gastar dinheiro à toa. Agora ela começou a falar em comprar esta horrível casa. Jamais perguntou se me agradava. E só Deus sabe para que nos servirá esta enorme casa. Do jeito que vivemos, poderíamos morar em dois cómodos. Na verdade, não vivemos.

— Tenho de ensaiar três vezes por semana — gritou ele. — Tenho de preparar o meu programa de rádio. Tenho de ouvir novas músicas, estudá-las, cantar em festas de caridade, posar para fotografias de publicidade. Que quer que eu faça? Que fique em casa lhe fazendo companhia? Você sabia o que era a minha vida quando se casou comigo. E Míriam, que nunca sai? Não sai nem a metade do que nós saímos. Fomos a três festas sem ela no mês passado, e por acaso você a ouviu reclamar?

— Não, mas vi quando ela tentou, pelo telefone, durante horas, obter um convite a mais. Fomos sem ela porque o estúdio mandou apenas dois convites. Só me admiro de que ela não durma conosco também.

— Antes de conhecer você, ela me dedicou a sua vida inteira. Foi ela quem me criou. E nunca se queixa. Ela não tem nenhum egoísmo... tão boa... e você quer que eu a jogue na rua.

— Ou eu ou ela, Tony.

Por um momento, ficaram ambos sem falar. Então, ele rompeu num riso infantil.

— Não acredito que esteja falando sério, querida. Você vai ter esse bebé. Fui contra ela nisso, não fui? Agora, vamos dormir.

Tony se despiu e depois, no escuro, começou a abraçá-la.

— Não decidimos nada — disse Jennifer desanimada.

— Que é que há para decidir?

— Míriam.

— Míriam fica. Você também.

Ela começou a soluçar baixinho.

— Vamos, venha cá. Por que está chorando?

Soluçou mais ainda.

— Não venha me dizer que está zangada porque pego a Betsy de vez em quando?

Jennifer pulou da cama. Bom Deus, que espécie de homem era Tony, afinal?

Ele sentou na cama e acendeu a luz. Parecia confuso.

— Mas eu não amo Betsy...

Jennifer sentou-se numa cadeira.

— Então por que fez isso? — Ela soluçava.

— Porque ela estava lá, suponho.

— Eu estava sempre aqui.

— Mas eu não podia vir correndo para casa durante os ensaios, e ela estava sempre lá. Olhe, isso não significa absolutamente nada. Prometo-lhe que nunca mais farei isso com Betsy. Sabe de uma coisa? Vou mandar Míriam despedi-la amanhã. Que acha? Agora, venha para a cama.

— Não é só Betsy, Tony. É você. Não consigo compreendê-lo. O que pensa. O que sente.

— Quero você agora mesmo. Isso é o que sinto. Venha, querida.

Só porque não sabia o que fazer é que foi para a cama e se submeteu a seus braços. Quando se satisfez, virou para o outro lado e caiu imediatamente num sono profundo. Jennifer levantou e tomou três pílulas vermelhas. Já era dia quando conseguiu adormecer.

Na manhã seguinte, quando Tony e Míriam foram ao ensaio, telefonou para Henry Bellamy. Contou-lhe tudo.

— Parece que o melhor que tem a fazer é fugir daí para salvar sua vida — disse Henry— Ela ainda é capaz de fazer com que perca o bebé. Até por desgosto.

— Que é que faço?

— Depende. Que é que sente por esse brincalhão?

— Já não sei. Às vezes tenho pena dele, porque sei que Míriam fez nele uma lavagem cerebral. Outras vezes, como na noite passada, sinto verdadeiro asco. Tony, porém, tem uma certa docilidade, ele não é mau. Isso é que me intriga. Não há maldade alguma nele, apenas parece nunca ter crescido. A culpa é de Míriam, ela é que incutiu nele Que a única coisa que tem a fazer na vida é cantar. Acho que poderíamos ser felizes se nos livrássemos dela, porque não conseguirei fazer com que ela compreenda isso.

— Jennifer, você é muito moça. Aconselho-a a cuidar de sua vida enquanto é tempo.

— Não sou tão moça como você pensa, Henry. Eu lhe menti a respeito de minha idade.

— E daí? Você tem ainda toda uma vida pela frente. Pelo que me contou, imagino que se ficar aí e tiver o bebé Míriam vai mandar nele também.

— Não!

— Então venha para Nova York. Vamos ver se Tony é homem suficiente para vir buscá-la. Tentarei até convencê-lo de que posso cuidar dos negócios dele tão bem quanto Míriam. Vamos aposentar a velha dama e você poderá fazer dele um homem. Se ele não concordar, então você não terá perdido nada.

— Você tem razão, Henry. Assim não é possível continuar.

— Reservarei uma suite para você no Pierre. Deixe um bilhete dizendo que viajou para Nova York para concorrer a um papel numa peça. Deixe a maioria de suas roupas aí, para que Míriam não possa alegar abandono.

— Tony e Míriam sabem que não posso trabalhar no teatro se estou grávida.

— Claro que sabem, mas isso é apenas uma formalidade legal. E escreva um bilhete idêntico a Anne, para que possa ter uma prova em caso de necessidade. E me mande um telegrama, dizendo que aceita a proposta que lhe fiz.

Jennifer seguiu os conselhos de Henry. Para sua satisfação, Tony tomou um avião e foi a Nova York para convencê-la a voltar. Andava de um lado para o outro na suite de Jennifer, jurava que a amava, que faria qualquer coisa que ela quisesse, qualquer coisa, menos se livrar de Míriam.

— E é só isso o que eu lhe peço — insistiu ela.

— Ela toma conta do meu dinheiro e da minha carreira. Não posso confiar em ninguém, a não-ser nela.

— E eu? Não confia em mim?

— Não me provoque, Jen. Você é a melhor fêmea que eu já tive, mas...

— Fêmea? É tudo o que sou para você?

— O que mais, quer ser? Por Deus, Míriam tem razão. Você quer que eu lhe pertença, quer me sufocar. Eu dou tudo o que tenho pela minha carreira.

— E a mim, o que é que me dá?

— Meu sexo. E deve bastar.

Tony voltou para a Califórnia, Henry preparou um acordo temporário. Jennifer receberia quinhentos dólares semanais até que o bebé nascesse e, daí por diante, mil dólares. A gravidez ficaria em segredo, até quando fosse possível. Pediria o divórcio depois que o bebé nascesse.

A separação dos dois mereceu a primeira página de todos os jornais. Durante a primeira semana, enclausurou-se no hotel e, com a ajuda das pílulas, dormiu durante quase o tempo todo. Finalmente, Anne conseguiu convencê-la a ir morar com ela; forçava-a a ir ao teatro e quase sempre a convidava para almoçar; ela, entretanto, permanecia desanimada.

Só tinha alívio à noite, com as bolinhas vermelhas.

 

                                       Outubro, 1947

Jennifer estava no terceiro mês de gravidez quando Míriam chegou a Nova York. Chamou-a do aeroporto e disse que tinha de falar urgentemente com ela. Agora sentia o espírito fortalecido, Míriam já não a atemorizava. Talvez ela é que estivesse atemorizada. Sua voz parecera desesperada. Talvez Tony estivesse deprimido, não conseguisse cantar: teria vindo pedir uma reconciliação? Bem, aceitaria, sob as condições que pretendia impor: Míriam deveria deixá-los e Tony se desculpar com ela.

Não que ela o tivesse perdoado, mas ainda tinha esperança de que ele, longe de Míriam, poderia surgir como um homem adulto. E depois, o bebé, é claro, mudaria muita coisa. Queria que a sua menininha tivesse um pai, que não crescesse numa casa cheia de mulheres, como ela. Tony mudaria, ficaria mais maduro... afinal, ainda era bastante jovem.

Quando fez Míriam entrar no apartamento, tinha certeza de que a sua aparência estava ótima e de que o apartamento estava limpo e arrumado — dona da situação. Conseguiu até ensaiar um sorriso e dizer:

— Sente-se, Míriam. Aceita um pouco de café?

A mulher sentou, tensa e ereta, na beira de uma cadeira. Seus olhos se fixavam na cintura de Jennifer.

— Nada de café. Esqueçamos as delicadezas sociais e Vamos direto ao assunto.

Jennifer continuou sorrindo.

— De que assunto você está falando?

Os olhos de Míriam quase se fecharam.

— O bebé é mesmo de Tony?

— Espere até que o veja — Jennifer disse rispidamente. — Verá que será a imagem dele.

Míriam se levantou e começou a andar pela sala. Então voltou-se para Jennifer e perguntou:

— Quanto você quer para se livrar dele?

O olhar que Jennifer lhe lançou era de gelo.

— Vamos, se é dinheiro que você quer eu darei. Uma grande quantia, por escrito. E poderá ter também os mil dólares por semana, mesmo sem o bebé. Apenas lhe peço que se livre dele.

Jennifer parecia confusa.

— Tony sabe disto? É isto o que ele quer?

— Não, Tony não sabe que estou aqui. Eu lhe disse que ia a Chicago, para negociar com o patrocinador do seu programa. Estou aqui por minha conta, para me entender com você antes que entre no quarto mês e seja tarde demais.

A voz de Jennifer era baixa e tensa.

— Míriam, jamais eu a odiei realmente, até este momento. Sempre pensei que você era egoísta, mas em benefício de Tony. Agora vejo que você é má.

— E você, a típica mãe norte-americana — rugiu Míriam —, ansiando por passear no parque, empurrando um carrinho de nené, não é?

— Sim, eu quero esse bebé — disse Jennifer, com determinação. — Míriam, durante toda a minha vida, nunca tive realmente alguém que me quisesse de verdade. Minha mãe e minha avó sempre acharam que eu só dava prejuízo. Só ouvia dizer que comia demais, que gastava muito sapato, que crescia depressa demais e perdia logo as roupas; me apavorava quando os sapatos ficavam pequenos. Depois, quando cresci, se interessavam apenas pelo dinheiro que eu poderia lhes dar. Por isso, casei com o príncipe. Não foi um caso de amor, mas, pelo menos, vi a possibilidade de poder sustentar minha mãe e minha avó, e tive a intenção de ser uma boa esposa para ele. Ele nem se importou comigo, estava apenas me usando também. Depois, amei Tony. Tudo o que pedi foi que você me desse uma oportunidade de ser uma boa esposa. Você nunca me deu. Sempre passou por cima de mim, sempre tentou me diminuir. Agora vou ter o meu bebé, que vai me amar e vai ser meu. E eu trabalharei nara ele. Já estou economizando dinheiro, compro roupas agora. Depois que ele nascer, vou trabalhar como modelo e providenciar para que nunca lhe falte nada.

Por um momento, Míriam ficou silenciosamente olhando para os seus dedos grossos, e então disse:

— Jennifer, acho que a julguei muito mal. Eu lhe peço desculpas. Muito bem, volte para Tony, deixarei que você tome conta da casa, tentarei viver de acordo com você. Farei o que você quiser, mas não permita que esse bebé venha ao mundo.

— Míriam, saia! Não quero insultá-la; vou ter o bebé. E terei, também, Tony de volta, você vai ver. Quando ele souber que é pai, vai querer vê-lo. E então vai nos querer ao seu lado, a mim e ao filho. Você verá...

— Jennifer... — O tom de Míriam era quase bondoso. -— Ouça o que vou lhe dizer, e ouça bem. Você deixou Tony, e você era o grande amor da vida dele, certo? Por isso ele fez uma tentativa infantil para tê-la de volta. Isto é tudo. Desde então, ele tem estado cada noite com uma garota diferente. Esqueceu completamente de você em apenas três semanas.

— Por favor, vá embora! — Jennifer estava chorando. — Você já me magoou demais, por que continuar?

— Agora estou tentando ajudá-la. Se eu a detestasse, deixaria você fazer o que bem entendesse. Que é que eu tenho a perder? Do ponto de vista financeiro, já está tudo acertado e Tony terá de lhe pagar, por lei. Por isso, agora falo por você. Tentei que você se livrasse do bebé de todas as maneiras possíveis e ainda proteger Tony. Você é teimosa. Por que acha que lhe contei a respeito de Tony e das garotas? Para magoá-la? Não, apenas para impedir que fique mais magoada ainda. Porque nenhuma mulher aprende a sentir coisa alguma até o momento em que acalenta um filho. Torna-se uma parte da gente e a gente o ama de um modo que nunca julgaria possível. E se há alguma coisa de errado com ele, então nada mais pode causar o mesmo desespero que isto nos causa. Jennifer, você nunca achou que Tony é um tanto... infantil?

Jennifer olhou com estranheza para a cunhada, havia na voz dela algo que ela nunca notara.

— Sim, talvez seja um pouco infantil — admitiu. — Mas acho que a culpada é você.

— Jennifer, Tony é mental e emocionalmente urna criança.

— Porque você o protege demais.

— Não, esse é exatamente o motivo por que o protejo, e esse é o motivo por que você não deverá ter um filho dele. Para benefício seu e para benefício da criança.

— Não compreendo...

Míriam sentou-se ao lado dela.

— Jennifer, quando ele era criança teve convulsões alguma coisa errada dentro do seu cérebro. Os médicos do hospital tentaram me explicar, mas eu era uma menina para entender. Não acreditava que pudesse haver algo de realmente errado. Avisaram que ele nunca seria normal; tinha apenas um ano e era tão lindo... Recusei-me a compreender. Só quando ele tinha sete anos e não conseguia passar do primeiro ano é que comecei a admitir. Já era mais velha, então, e mandei que lhe fizessem toda espécie de testes. Aí pude ter uma ideia de tudo. Você nunca notou, Jen? Tony mal consegue se interessar por uma história em quadrinhos. Só sabe somar até cinquenta, mas nem desconfia de que não é como os outros, porque sempre tomei conta de tudo e fiz com que acreditasse que não sabe essas coisas porque não há necessidade de saber. Continuo dizendo a ele que a única coisa que deve fazer na vida é cantar.

— Se ele teve uma convulsão quando era criança, seu atraso é consequência dessa convulsão. Não há motivo para que o nosso bebé não seja perfeito — argumentou Jennifer.

— O mal de que ele sofre é hereditário. Os médicos não sabem muito a respeito; há uma possibilidade de que Tony perca completamente a razão por volta dos cinquenta anos. E seu filho herdará o mal. Com sorte, a criança poderá estacionar na idade mental de doze anos, ou mais cedo.

Míriam fez uma pausa e ficou pensativa. Depois, continuou:

— Jennifer, você não pode imaginar como é. Quando compreendi tudo, procurei conforto na religião. Rezava muito. Ia a qualquer igreja e sempre levava Tony comigo. Quando o inscrevi para cantar no coro de uma igreja, descobri que tinha uma boa voz. Vi que era a sua única possibilidade. Tudo o que eu ganhava era para as lições de Tony... mas isso foi há muito tempo. E agora, o bebé que você espera poderá herdar a voz dele, mas herdará, coro certeza, também a sua-doença.

— E você? — perguntou Jennifer. — Perderá também a razão?

Míriam sacudiu a cabeça.

— Somos filhos de pais diferentes. Tony nem sabe disso. Por favor, Jennifer, por você mesma, faça o que lhe pedi.

— Como posso saber que você está dizendo a verdade?

— Tenho todos os relatórios médicos aqui comigo — disse Míriam, tirando um grande envelope da bolsa. — Sabia que não iria acreditar em mim. E por que haveria de acreditar? Mostre isso a qualquer neurologista. Só lhe peço uma coisa, Jennifer. Não conte a ninguém, acabaria com a carreira de Tony, e com ele. Sei que vai acabar num hospital para doentes mentais algum dia, mas se esse fato se tornar público, irá para lá bem mais cedo. Por isso é que economizo. Você deve ter pensado que sou mesquinha; na verdade, fiz uma espécie de seguro e ponho nele cada centavo que posso. Não quero que Tony acabe num hospital de caridade depois que eu me for. Providenciarei para que tenha o que houver de melhor, daqui a uns quinze anos, espero.

Jennifer devolveu o envelope.

— Acredito em tudo o que me disse, Míriam. Ninguém inventaria uma história tão horrível.

Os olhos de Míriam estavam cheios de lágrimas.

— Jennifer... eu lhe desejo tudo de bom. Seja bem-vinda, se quiser voltar para Tony; acho, porém, que merece uma vida melhor. E por Deus, mantenha isso em segredo. Você haverá de encontrar outro rapaz... Por favor, seja boa para com Tony. Livre-se do bebé e esqueça-o.

Jennifer sentou e ficou olhando, imóvel, para o espaço, durante muitas horas, depois que Míriam foi embora. Então, levantou-se, tomou três pílulas vermelhas e foi dormir.

Jennifer nunca deu a Anne ou a Henry nenhuma explicação de sua súbita decisão. Ela mesma encontrou o médico, um homem simpático de Nova Jersey. Uma mesa de operações, uma enfermaria limpa e eficiente. Custou mil dólares. A enfermeira aplicou nela algo chamado sódio pen-total, que lhe proporcionou uma sensação ainda mais deliciosa do que o próprio Seconal. Quando acordou, tudo estava terminado. Duas semanas depois, parecia que nada havia acontecido. Sua cintura voltou à medida antiga e ela tomou um avião para o México, onde pediu o divórcio. Quando voltou, entrou na excitação das estreias de outono e num torvelinho de compras de novas roupas. Os vestidos agora estavam bem abaixo dos joelhos e toda a gente estava fascinada por uma pequena tela chamada televisão. Tudo o que se podia ver eram lutas romanas e jogos de beisebol mas todos diziam que iria matar o rádio.

Jennifer assinou um novo contrato com a Agência Longworth e recomeçou a posar. Em pouco tempo os armários de Anne estavam cheios de roupas que Jennifer punha de lado. O telefone não parava de tocar e Jennifer estava outra vez mergulhada em uma intensa vida social, arrastando Anne com ela. Conhecia muitos homens, dava preferência, porém, a Claude Chardot, produtor de cinema, francês, gentil e encantador. Anne não o apreciava, mas Jennifer se atirou a um violento romance com ele. Tinham almoços que duravam três horas, beija-mão, jantar e dança no St. Regis. Ele quase não falava inglês e Anne ficou surpresa ao ouvir o francês fluente que Jennifer falava. Na véspera do Natal, Anne e Jennifer fizeram uma pequena árvore. Claude e alguns amigos vieram comemorar.

— Ele parte dentro de dez dias — disse Jennifer, melancolicamente.

— Você gosta dele? Quero dizer, gosta de verdade? -— perguntou Anne.

Jennifer enrugou o nariz.

— Bem, ele é diferente. E você, o que acha dele? Seja sincera, Anne.

— Não posso dizer. Passo a metade do tempo sem entender o que ele diz, e a outra metade vocês ficam tagarelando em francês, enquanto eu procuro compreender o inglês truncado do amigo dele. Em todo caso, esse amigo dele, o François, me deu a entender que Claude tem uma esposa escondida em algum lugar.

— Naturalmente. E é provável que tenha também uma amante. Sempre que gosto de um homem, pode estar certa de que é um patife... Ele quer que eu vá a Paris.

— Você não está pensando em ir?

Jennifer encolheu os ombros.

—- Quer que eu seja estrela de seus filmes. Disse que farei furor com esta cara de americana falando tão bem o francês.

— Mas você sempre disse que não sabe representar.

— Ele quer que eu faça filmes sexy. Artísticos, mas deverei aparecer semi nua.

— O quê?

— Na Europa isso é comum, Arme. Uma porção de grandes atrizes fazem isso. Não são filmes pornográficos, são filmes comuns, com enredo e tudo. Só que quando a gente toma um banho, por exemplo, esse banho é filmado.

— E por que você iria fazer isso?

— E por que não? Que possibilidade acha que, eu tenho aqui? Fui a sensação da temporada no ano passado. Logo terei vinte e oito anos e já fiz dois maus casamentos. Não acredito que encontre nenhum bom partido por aqui, com a minha reputação. Imagine, casada primeiro com um príncipe e, depois, com um astro de cinema. A maioria dos homens vai achar que sou inacessível para eles. Talvez Paris seja a resposta. Sei que Claude é fingido e que está fazendo todo esse romance comigo só para que eu assine o contrato. Só espera ganhar muito dinheiro comigo. E daí? Que é que eu tenho a perder?

— Mas faz tão pouco tempo que está em Nova York... Por que não arrisca esperar um pouco?

— Sou conhecida demais. Nada de novo vai me acontecer aqui. Bem, eu poderia entrar em alguma peça, mas não teria nunca um bom papel. E depois? Como modelo não sou lá grande coisa. Tenho bastante dinheiro da minha pensão, mas já estou farta do Stork, do Morocco, e das mesmas caras de sempre. E você? Está ainda apaixonada por Nova York?

Anne sacudiu a cabeça.

— Não, fiquei meio sem graça depois que Lyon se foi. Li no Times que o seu livro vai sair no mês que vem. Ele agora deve estar trabalhando no segundo.

— Você foi para a cama com alguém depois disso?

— Não. Não pude. Sei que é bobagem, mas ainda amo Lyon.

 

                                                                                 ANNE

 

                                               Janeiro, 1948

Um almoço que durou três horas despediu Claude. Quando Anne chegou, a reunião já ia adiantada. Na mesa uma tigela de caviar iraniano e o inevitável balde de gelo com uma garrafa de champanha dentro. Jennifer, radiante entretinha Claude, seu amigo François e um homem que Anne não conhecia.

— Sou Kevin Gillmore — disse o estranho.

Jennifer sorriu.

— Anne, você já deve ter ouvido falar de Kevin Gillmore. É o dono dos cosméticos Gillian.

— Claro. Seus produtos são excelentes — respondeu Anne, servindo-se de caviar.

— Você também vai a Paris? — perguntou ele.

— Não, Jennifer é que será a nova sensação francesa.

— Ela vai conquistar a cidade de um golpe só — disse Claude, com seu sotaque pesado. — Por favor, Anne, depende de você que embarque logo. Deverá estar em Paris no fim do mês.

Jennifer sorriu alegremente e se aproximou de Claude.

— Estarei lá assim que conseguir meu passaporte e ajeitar algumas coisas.

— Não acha formidável? — disse Anne a Kevin, tentando disfarçar a sua falta de entusiasmo.

— Imagino que sim. Os seus dentes são naturais?

— O quê?

— Pergunto se são naturais ou se são postiços.

Anne sorriu, o modo dê ele ir direto ao assunto desarmou-a.

— São meus mesmo. Por quê?

— E o seu cabelo?

Sentiu que corava e respondeu vagarosamente:

— É natural, também. Por quê?

— Já tinha notado. Conheço o suficiente a respeito de tinturas para saber disso. Mas ele é todo seu, ou está usando meia-peruca?

— Usando o quê?

— Meia-peruca,'para dar mais volume.

— Acha que deveria usar?

Ele sorriu. Um sorriso que não combinava com as perguntas atrevidas que tinha feito, um sorriso humilde. Explicou:

— Bem, a maioria das moças precisa usar alguma coisa para ter essa aparência. Aí está a dificuldade em se achar a moça ideal. Ou elas têm bons cabelos e maus dentes, ou têm belos dentes, bonitos cabelos, mas um nariz feio. Acho que você é exatamente o que estamos procurando. O que eu quero dizer é que gostaria que você estudasse trabalhar para nós em uma base exclusiva.

— Trabalhar em quê? — Anne olhava para Jennifer, à procura de auxílio, mas ela estava sussurrando algo ao ouvido de Claude.

— Bem, como você sabe, a televisão logo estará por aí. Calculo que o rádio tem mais um ano de vida, pelo menos quanto aos grandes programas. O que eu quero é uma Garota Gillian. Essa moça será fotografada para anúncios de toda a nossa linha de produtos; para o cabelo, para as unhas, enfim, para tudo. Já vi muitas moças que serviriam para isso, mas todas são modelos muito conhecidos, ganham muito dinheiro para querer trabalhar exclusivamente para mim. Não quero que a Garota Gillian pose em modelos de Ted Casablanca para o Vogue, ou para os perfumes de Chanel no Harper's. Quero que seja identificada unicamente com os produtos Gillian. E, para começar, posso oferecer trezentos dólares por semana.

Anne bebeu o champanha lentamente, não sabia o que responder.

Kevin tomou o seu silêncio por uma recusa.

— Eu lhe darei contrato por um ano, com uma opção de quinhentos dólares por semana durante o segundo semestre. Se entrarmos na televisão, combinaremos outro ordenado.

Jennifer interrompeu:

— Que é que estou ouvindo?

— Estou dizendo à sua amiga que gostaria de transformá-la na Garota Gillian.

Os olhos de Jennifer se abriram muito.

— Que grande ideia! Anne é perfeita para isso.

— Também acho. Bonita, sem ser muito sexy. A típica garota americana — disse Kevin.

Claude levantou as mãos.

— Lá vêm vocês de novo com essa conversa. Vocês americanos não sabem simplesmente o que fazer com uma garota bonita. Querem sempre que todas se pareçam com a vizinha da frente. Se o público quisesse isso, então ninguém iria ao cinema. Tomemos o exemplo de Jennifer: sei que ela será um sucesso, justamente porque é diferente, isto é, é a garota com que todos os homens sonham.

— Concordo. Mas o mesmo não acontece com a propaganda — insistiu Kevin. — Claro que usamos o sexo também, mas de um modo sutil. Anne, por exemplo, é bonita. Agora, é um tipo de beleza com que quase todas as mulheres" podem se identificar. Uma estudante ou uma matrona podem imaginar que ficarão parecidas com Anne se usarem os nossos produtos, e nenhuma ousaria pensar que poderia ficar parecida com Jennifer. No cinema, você vende uma válvula de escape, eu preciso vender um produto. Anne é o tipo ideal para isso. Ninguém pensará que é a sua estrutura óssea que lhe dá essa beleza, o formato do seu rosto, a espessura de seus cílios. Todos pensarão que se usarem o produto que ela usa poderão ter a aparência que ela tem. A beleza de Anne não os assustará. A de Jennifer, sim.

— Bem, o que eu quero fazer é levar essa minha beleza perigosa a Paris — disse Jennifer. — Mas, Anne, acho que deveria aceitar a proposta de Kevin. Seria a mudança de que você precisa, como eu.

Anne enrugou a testa.

— Eu não sou modelo e estou muito feliz trabalhando para...

— Acho que é tempo de empoar nossos narizes — interrompeu Jennifer, levantando-se.

Quando seguia Anne até o toalete, Jennifer piscou para Kevin, que lhe mostrou os dedos trançados para dar sorte.

Sentaram diante do enorme espelho e Jennifer foi direto ao assunto.

— Muito bem, e por que não?

— Não sei nada a respeito de posar...

— Eu também não sei nada sobre cinema, e não é isso que vai me impedir de ir a Paris.

— Você se sairá bem...

— Não mude de assunto. Quanto é que você ganha com Henry, agora?

— Cento e cinquenta por semana. Isso não é o importante. Você sabe que vendi a casa por ótimo preço e Henry investiu o dinheiro para mim com muito lucro. Portanto, dinheiro é a última coisa de que preciso.

— Mas será excitante.

— Não posso deixar Henry.

— Henry? — Os olhos de Jennifer eram acusadores.

— Anne, você está falando comigo. Não quer deixar aquele escritório porque é uma espécie de elo que a prende a Lyon. Mas ele jamais voltará para você. Pare de sonhar que um dia ele vai aparecer para levá-la. Isso está acabado. Para sempre.

— Como é que você sabe? Na semana que vem o livro dele sai. Bem, acredito que ele virá para cá. Não é isso que faz a maioria dos escritores?

Jennifer brincou pensativamente com a alça de sua bolsa e depois disse:

— Anne, eu não ia lhe contar isso, mas acho que é melhor você saber. Lyon voltou para a Inglaterra.

— Voltou? Você quer dizer que ele esteve em Nova York?

Jennifer concordou solenemente.

— Por uma semana. Veio ver o editor. Reescreveu completamente o livro. Jogou fora tudo o que tinha escrito aqui, voltou à Inglaterra e escreveu tudo de novo. Por isso é que tem demorado tanto. Henry me disse que é um bom livro. Ele viu Lyon.

— Henry viu Lyon?

— Almoçaram juntos. Lyon começou a escrever o segundo livro. Conseguiu um bom adiantamento do editor. Pretende alugar um apartamento em Londres.

— Esteve com Henry, aqui... — Anne parou de falar quando as lágrimas começaram a correr por sua face.

Jennifer abraçou-a.

— Anne, não se martirize assim. Henry me contou que Lyon não pensa em nada a não ser em escrever. É a única coisa na vida que o interessa agora.

— Henry sabe como eu me sinto. Por que não me contou que Lyon estava aqui?

— Porque Henry é um homem, e os homens se defendem uns aos outros. Anne, você nada deve ao Henry. E precisa de uma mudança. Foi o destino que fez com que encontrasse Kevin. Claude não o convidou. Ele entrou no restaurante sozinho, depois é que se juntou a nós. Acho que tinha de acontecer.

—- Talvez você tenha razão — disse Anne lentamente. — Tenho mesmo de sair daquele escritório. Ele me parece um mausoléu.

— Agora, sim, você está sendo sensata. E saia daquele apartamento, também. Vamos, refaça a pintura. Não perca o emprego antes de consegui-lo.

A princípio, Henry ficou perturbado. Mas teve de admitir que a oferta de Gillian era excelente.

— Você é que deve ter arranjado isso — disse ele a Jennifer, que fora, com Anne, dar a notícia.

— Henry, você sabe que é melhor para ela — disse Jennifer candidamente. —- Afinal, por quanto tempo espera ter Anne aqui? Ela não é a Srta. Steinberg, você sabe.

— Está bem, mas traga o contrato aqui antes de assinar — grunhiu Henry. — Vamos ver se conseguimos mais alguma coisa. A televisão vai entrar forte dentro em pouco. Não se deve deixar nada para ser negociado mais tarde. Se ele a quer agora para os anúncios, então terá de concordar em usá-la também na televisão.

— Mas, Henry — protestou Anne — acho que desmaiaria na frente de uma câmara de televisão.

— Não é muito diferente de uma câmara fotográfica, e então você já terá um ano de experiência. Enquanto isso, vá ver Lil Cole. Contrate, pelo menos, duas aulas particulares por semana. É caro, mas você pode pagar.

— Quem é Lil Cole?

— A melhor professora de dicção que existe.

— E por que preciso dela?

— Porque, na televisão, você precisará disso. E precisa perder esse sotaque de Boston.

— Mas, Henry, eu serei modelo, não atriz.

— Ouça, Anne, se você vai fazer uma coisa, procure fazê-la cem por cento. Não existe meio-termo em nenhum emprego. Como secretária, você foi ótima. Agora, como Garota Gillian procure ser a melhor possível. Acho que estar ocupada é o melhor que tem a fazer agora.

De repente, ele pareceu muito velho e cansado, como se todas as suas forças o tivessem deixado de um momento para outro. Anne não resistiu e o abraçou.

— Henry, eu amo você.

Ele brincou para. esconder a emoção.

— Que é que diz a isso, Jennifer? Faz dois anos que sou louco por ela e agora que está indo embora é que diz que me ama.

— Henry, por favor, seja sempre meu amigo.

— Nunca se livrará de mim. Agora, desapareça. Vou já chamar a agência para pedir uma nova secretária. Quem sabe conseguirei uma nova Anne Welles?

— Não quer que eu fique até que arranje uma nova?

— Nada disso. Jennifer tem só mais alguns dias de Nova York. Vão cuidar de suas coisas. Por falar nisso, Jennifer, a sua pensão é de setecentos dólares por semana, deduzidos os impostos. Quer que eu lhe mande os cheques a Paris?

—- Não. Fique com o meu dinheiro aqui e aplique-o. Talvez eu consiga ser tão rica como Anne.

Henry sorriu.

— Vocês ainda vão ser duas Rockefellers. Quem é que falou que esse mundo é dos homens?

— Estou ganhando meu dinheiro da forma mais difícil — disse Jennifer melancolicamente.

— Claro. Não é fácil ficar sentada cinco meses à beira de uma piscina. É duro.

— Tem razão. Foi muito divertido.

— E agora Paris a espera para fazer de você a Lana Turner francesa. Mas, faça o favor de não gastar todo o seu dinheiro. Você já me deve dois mil, que descontarei da sua pensão. E não peça dinheiro; me dê a oportunidade de guardá-lo para você. Deus sabe que preciso de clientes como você.

— Isso me lembra uma coisa: preciso de mais mil, Henry — disse Jennifer docemente.

— Mas, Jennifer...

— Preciso de umas roupas. Afinal, tenho de fazer uma entrada triunfal em Paris.

 

                                         Fevereiro, 1948

Anne entrou apressada no 21 e se juntou a Henry, em sua mesa habitual.

— Desculpe o atraso, mas essa Lil Cole me mata — disse ela, sentando-se.

Henry notou que todos os homens tinham se voltado para olhá-la. Três semanas de retoque, a cargo dos maquiladores de Gillian, tinham processado uma mudança indefinível e perturbadora em Anne. Agora, era imediatamente notada, pintava os olhos, e o cabelo estava penteado de maneira a parecer mais volumoso e brilhante. Ainda parecia uma verdadeira dama; agora, porém, era mais atraente.

— Recebi uma longa carta de Jennifer esta manhã — disse ela, sem notar a excitação que provocara.

— E eu recebi outra, pedindo dinheiro. Como é que ela consegue gastá-lo tão depressa?

Anne sorriu e pediu uma salada.

— Não importa quanto ela ganhe, está sempre em débito. É uma compradora compulsiva. Não sei por que, nem ao menos aprecia as coisas que compra. Dá a maioria de suas roupas.

Henry sacudiu a cabeça.

— Espero que encontre algum bom sujeito por lá. Não acho que algum dia chegue a ser uma boa atriz, mas tem um rosto e um corpo que devia saber aproveitar. Quando perder isso, será o seu fim.

— Henry, será que você é como todo mundo, que julga Jennifer apenas pela estampa? Ela é uma moça maravilhosa, mas nenhum homem ainda se deu ao trabalho de descobrir isso. Pensei que você fosse diferente. Jennifer é uma ótima pessoa — ótima amiga — e muito boa. Uma das melhores moças que já conheci.

— Concordo. Só na superfície. Diga, Anne, qual é a profundidade dos sentimentos de Jennifer?

— Difícil de dizer. Não é pessoa que se abra. Sabe que eu nunca a ouvi falar mal de ninguém? Ela é muito boa para toda gente. Sei que boa é uma palavra engraçada de se usar falando-se de Jennifer, mas é a palavra adequada. Morei com ela e acho que sei. Já sobre Neely, todos pensam que ela é muito boa e doce, e não é. Neely é muito viva, não é boa. Jennifer é. Sabe que ela nunca fala nada contra o príncipe? Ou contra Tony e Míriam? Tudo o que diz é que não suportava o tédio da Califórnia. Ela é, essencialmente, uma solitária, sob aquela beleza toda, e tudo o que espera é que um homem a aprecie pelo que ela é como pessoa. Porque o que ela mais almeja é uma vida normal com marido e filhos.

— Como explica que ela tenha se livrado do bebé? Depois disso, diminuiu muito a meus olhos, sabe? Primeiro, me chamou da Califórnia porque Míriam queria que se livras-se da criança e ela não faria isso. Depois de eu ter lhe arranjado uma boa pensão, então não quis mais a criança. Acha que uma mãe e um filho não podem viver com mil dólares por semana?

— Ela nunca quis comentar o assunto, nem dar nenhuma explicação — disse Anne vagarosamente. — Alguma coisa deve ter acontecido para que ela, de repente, perdesse a coragem de criar o filho sozinha. Tenho certeza de que no dia em que encontrar o homem certo será uma esposa perfeita.

— E você?

— Tudo vai indo muito bem. Já terminei de fazer os testes. O primeiro anúncio sairá no começo da primavera, na semana que vem.

— Não é disso que estou falando. É do seu futuro. Você sabe, ser a Garota Gillian vai mudar muita coisa. Espere até que seu rosto esteja nas revistas e nos cartazes.

— Já passei por isso. Você se lembra? Há dois anos, a minha fotografia estava na primeira página de todos os jornais, como a Cinderela de Allen Cooper. E eu não mudei nada.

Henry disse lentamente:

— Pois eu acho que houve uma mudança. Você não quis se casar com Lyon Burke, não foi?

— Eu quis... Henry. Mais do que tudo no mundo. E ainda quero.

— Então por que não se casou quando houve oportunidade? Quando ele a pediu?

— Porque ele queria que vivêssemos em Lawrence-ville.

— É isso o que eu quero dizer. A moça que vi entrar no meu escritório teria ido até o fim do mundo pelo homem amado. Por isso a empreguei. Achei que era muito difícil de contentar e que não iria cair pelo primeiro bonitão que aparecesse. Eu não contava com a volta de Lyon. No momento em que ele chegou, pensei: "Adeus, Anne". Infelizmente, Lyon nunca foi capaz de se importar profundamente com alguém, homem ou mulher. Já eu e você somos do tipo que, quando gosta de alguém, transforma essa pessoa num deus.

— Tenho certeza de que Lyon me amava... — disse Anne, teimosamente.

— Não tanto quanto ama a si mesmo. Um homem que é capaz de cortar todos os laços, de um momento para o outro, é porque nunca considerou esses laços muito fortes Lyon e Jennifer são semelhantes neste ponto: podem apaixonar-se, mas são capazes de abandonar tudo sem que fique a mínima cicatriz. Isso porque o Número Um para eles são eles mesmos. Anne, você é muito jovem. Mantenha os olhos bem abertos, e quando surgir o sujeito certo, agarre-o e faça sua vida. Não prolongue demais as coisas.

— Não acredito que possa aparecer outro — disse Anne. — Lyon foi tudo.

— Lyon acabou — disse Henry rudemente. — De uma vez por todas.

— Compreendo muito bem. Isso, porém, não pode mudar o que eu sinto. Não posso simplesmente cair pelo primeiro homem que passar por mim. Claro que desejo me casar um dia, e ter filhos. Mas quero um homem que eu ame. E sei que nunca mais amarei outro homem como amei Lyon Burke.

— Ouça — disse Henry —, não acabe como eu. Eu também já amei uma só mulher em toda a minha vida: Helen Lawson. E sempre soube que ela não me amaria. Era incapaz de amar quem quer que fosse. Fiz dela uma estrela e nunca deixei de amá-la. E nunca me dei a oportunidade de achar uma outra garota. Olhe, como é que acabei? Sozinho.

— Quem sabe, você e Helen ainda poderiam...

— Está brincando?

— Você disse que a amava...

— Amei. Por aquilo que eu pensava que ela fosse, não por aquilo que ela é. Agora que vejo como ela é na realidade, estou velho demais para achar alguém. E ela está começando a ter a aparência do que realmente é: um velho couraçado. Eu mataria quem a chamasse assim na minha frente, mas posso dizê-lo a você. Claro que já não a amo; não posso, porém, romper com o hábito de pensar nela. Mesmo quando o amor se vai e prevalece a lógica, o hábito ainda está lá, pelo resto da vida. Por isso é que a aconselho a não começar nenhum hábito idiota aos vinte e dois anos. Lyon não perde um momento pensando em você, pode acreditar. Por isso pare de pensar nele.

Anne sorriu tristemente.

— Tentarei, prometo que tentarei...

 

                                                                           NEELY

 

                                                1950

Neely fechou a pasta com o argumento do filme. Não havia necessidade de relê-lo. Sabia tudo de cor. Espreguiçou-se na enorme cama e bebeu um pouco mais de uísque. Eram doze e meia e ela ainda estava completamente acordada. Talvez devesse tomar mais uma pílula... já tinha tomado duas. Devia estar no estúdio às seis da manhã. Foi ao banheiro e engoliu outra pílula vermelha. "Vamos, boneca, faça o seu trabalho direitinho" — pensou.

Caiu de novo na cama. Viu que sua agenda de compromissos estava aberta. Será que devia se lembrar de algo? As letras bailavam diante de seus olhos, reconheceu a letra de Ted: "Venha para casa cedo, hoje. É o primeiro aniversário de Bud e Jud".

Céus, era hoje! E ela nem tinha olhado no livro. Andava tão atordoada com as pílulas, que mal conseguia levantar da cama de manhã. E teve de tomar dois comprimidos de Dexedrina para acordar completamente. Agora tinha perdido a festa de aniversário! Malditas retomadas de cena! Saiu da cama e foi para o quarto das crianças, na ponta dos pés. Um orgulho selvagem tomou conta dela quando olhou as duas cabecinhas louras adormecidas. "Bud e Jud" — pensou. "Mamãe não veio ao seu aniversário, mas ela ama vocês. Deus, como ela os ama! Se mamãe tivesse visto a agenda teria vindo. Sinceramente."

Entrou novamente no seu quarto. Ted devia estar provavelmente louco de raiva, consolando-se em algum lugar. Por Deus, não fora culpa dela. Simplesmente não tinha visto a maldita agenda. Quem é que pode enxergar alguma coisa às cinco da manhã? Deve ter havido um bolo com uma velinha. E, possivelmente, Ted e a Srta. Sherman tinham cantado o Parabéns pra Você. Uma grossa lágrima desceu pelo rosto coberto de creme. "Mas, céus! Eram apenas bebés. Nem sabiam que era o aniversário deles. Não ficaram magoados."

Ted devia estar se vingando dela. Onde estaria? Provavelmente se divertindo com algum... filho da mãe. Lembrou da primeira vez que o apanhara em flagrante. Céus! Com os braços em volta daquele ator inglês, e mordendo o pescoço dele. Naquela noite, tomou um frasco inteiro de pílulas e tiveram de lhe fazer uma lavagem estomacal! Sorriu Nunca mais faria isso novamente.

Depois disso, Ted foi duplamente carinhoso. Na noite em que ela voltou, abraçou-a e explicou que tinha feito aquilo com o inglês só porque se sentia inseguro. Ter sido indicado dois anos seguidos para um Oscar, sem ganhá-lo fizera com que se sentisse menos homem, e inseguro. Foi nessa noite que ela concebeu os dois lourinhos que estavam dormindo. Eram seus. Sentiu uma onda de ternura percorrer o seu corpo. Tinha apenas vinte e dois anos... era a maior estrela da companhia... tinha uma casa em Beverly Hills. e gémeos.

As pílulas não estavam funcionando. Ficou imaginando se Jennifer chegara a tomar três também. Apostava que sim. Uma pessoa precisava tomar algo para fazer os filmes que Jennifer estava fazendo. O último causara verdadeira sensação. No La Jola, ficava-se na fila horas para assistir ao filme. E lá estava Jennifer, com os seios descobertos falando francês como uma francesa. Talvez em Paris ninguém ligasse para aquilo, mas um traseiro nu ainda não era arte em si. E aquela história no Life ou no Look, não se lembrava, mostrando Jennifer em seu apartamento de Paris. Deixara claro que estava vivendo com aquele produtor francês, Claude Chardot.

Ficou pensando no que Anne devia estar achando daquilo tudo. Céus, tinha de escrever a Anne, e agradecer pelo novo livro de Lyon, que ela mandou. Os críticos diziam que ele se tornara muito comercial e que estava fazendo concessões. Ora, pode ser que precisasse de dinheiro, afinal de contas. O primeiro livro fora considerado ótimo, mas não rendera um centavo. Será que Anne ainda o amava? Devia sentir algo por Lyon, se fazia questão que as amigas lessem os seus livros. E os mexericos, dizendo que ela era a garota de Kevin Gillmore? Céus! Anne, a Garota Gillian. Não se podia abrir uma revista sem encontrar uma fotografia dela. E agora, domingo à noite, estrearia na televisão. Não podia esquecer. Imaginem, Anne na televisão!

Televisão... Céus, a pequena caixa negra estava assestando toda a gente na Califórnia. Como se pudesse algum dia prejudicar a indústria dos filmes! Estavam todos em verdadeiro pânico. Uma porção de gente estava sendo despedida em todos os estúdios e não se falava mais em longos contratos. Só pequenos, para um filme, ou, no máximo, dois. A sorte dela é que ela era tão grande. Mas como tinham pulado para que assinasse por cinco anos! Cinco belos anos, com o dinheiro fluindo sem parar, cinquenta e duas semanas por ano.

Desejou que Ted viesse para casa. Precisava que ele fosse lutar por ela no dia seguinte. As sequências de dança estavam muito cansativas. Claro que ela podia dançar muito bem, mas eram ridículas. Pediria a Ted que lhes dissesse que as roupas não eram próprias para as danças e eles teriam de colocar danças mais fáceis. Sentira muita falta de ar durante o dia. Aquelas pílulas eram maravilhosas para manter a gente acordada e magra, mas impediam que se dançasse durante duas horas seguidas; o coração começava a palpitar como um louco. Talvez Ted estivesse no escritório. Pode ser que nem estivesse brabo com ela, apenas trabalhando • até tarde. Estendeu a mão para o telefone. Não, se ele não estava no escritório, preferia não saber. E se ele estivesse, o que é que isso provava? Podia estar lá se divertindo com algum cara. Como é que ela poderia amá-lo? Nem um verdadeiro homem ele era. E depois, Mel nunca fora muito másculo também. Por que é que ela se sentia atraída por homens assim? No começo, pareciam tão fortes, ajudavam-na, diziam-lhe o que devia fazer, pareciam realmente fortes. Depois, fugiam.

Olhou para o relógio. Meia-noite. As pílulas não estavam funcionando. Precisava tomar mais um copo de uísque para que funcionassem. O uísque está lá embaixo. Que sorte ter descoberto que o uísque ajudava as pílulas. Será que Jennifer descobrira isso também? Sem o uísque, as pílulas eram nada. Bem, teria mesmo de descer para apanhá-lo.

Desceu as escadas de mármore, descalça. Os empregados dormiam. As luzes do salão de estar estavam apagadas. Enquanto procurava o comutador, ouviu o som de alguém que se atirava na piscina. Foi até a porta que dava para o pátio. Quem estaria na piscina? As luzes da cabana estavam acesas e refletiam na piscina. Ted! Respirou aliviada. Que maluco! Nadando sem roupa àquela hora! Começou a tirar o pijama. Pularia também na piscina e o surpreenderia. Não, isso a acordaria de uma vez, e precisava estar cedo de pé. Ia chamá-lo quando viu a garota sair timidamente da cabana, uma toalha enrolada à volta do corpo.

— Vamos, tire a toalha. A água está morna — gritou Ted.

A moça olhou para a casa escura.

— E se ela acordar?

— Está brincando? Com o que ela toma, nem um terremoto a acordaria. Vamos, Carmem. Ou eu vou buscá-la

A moça deixou cair a toalha acanhadamente. Na meia escuridão, Neely podia ver que tinha um lindo corpo. Apertou os olhos. Já vira essa garota em algum lugar... Claro! Carmem Carver. Ganhara um concurso de beleza em algum lugar e o estúdio a estava testando.

Ted nadou até onde a moça estava. Ouviu-se um gritinho.

— Mas, Ted, na água, não! Não!

— Por que não? Já fizemos em todos os outros lugares.

Neely sentiu que o estômago dela se contraía. Isso não! Um rapaz ela conseguira aceitar, esporadicamente, até o psiquiatra explicara que não era propriamente uma infidelidade para com ela, era uma doença de que Ted sofria. Mas uma garota!

Pegou a garrafa de uísque e subiu correndo. Encheu o copo, tomou mais uma pílula e caiu na cama. Ted e aquela prostituta que fossem para o inferno! No dia seguinte, com uma tremenda ressaca, devia estar de pé às cinco da manhã. Um minuto depois, estava sentada na cama. Que aconteceria se não fosse ao estúdio? Em toda a sua vida jamais chegou cinco minutos atrasada para um ensaio, uma prova ou uma entrevista. E que ganhara com isso? Cinco mil dólares por semana. Que adiantava isso? A casa ainda não estava paga, o estúdio emprestara o dinheiro para comprá-la. O Dr. Mitchel dissera que a casa era importante para o seu senso de segurança, que faria desaparecer toda a instabilidade causada pela infância que tivera. Cada conselho desses custava vinte e cinco dólares. Amanhã, iria consultá-lo para que ele explicasse isso. Agora que começara a pensar, que é que Ted pagava em casa? Os empregados, o carro-,, o escritório, a comida e a bebida. Talvez tivesse errado em assumir um acordo pré-conjugal. O Vague o contratou há pouco, crescia a olhos vistos. E ela, que é que tinha? Desde que o estúdio deduzira mil dólares por semana, pelo empréstimo para a compra da casa, o agente, a secretária particular, o imposto de renda... Céus! Não conseguia economizar um centavo. Bem, dentro de três anos a casa estaria paga. Engoliu mais uísque. Um sentimento de euforia começou a dominá-la. Quando tudo estivesse pago, daria certo...

Certo? Santo Cristo! Ted lá embaixo com uma garota? Na piscina dela? Pulou da cama. Estava tonta, a cabeça pesava, precisava pôr aquela prostituta para fora de sua piscina. Segurou-se no corrimão, enquanto descia as escadas. Pôs a mão no comutador, e, triunfalmente, acendeu as luzes da piscina.

Ted e a moça saíram da piscina enquanto ela se aproximava com a garrafa de uísque na mão.

— Divertindo-se muito, crianças? Trepando na minha piscina? Não se esqueça de esvaziá-la, Ted. Não se esqueça de que seus filhos costumam brincar nela todas as manhãs.

A moça escondeu-se apavorada atrás de Ted. Neely esvaziou a garrafa de uísque dentro da piscina.

— Talvez isso a desinfete. — Depois, olhando para Ted, continuou:

— Muito bem, vejo que, pelo menos, desta vez é uma mulher, não um rapaz. Vamos ver se o Dr. Mitchel vai dizer que você precisa disso também.

Ted permaneceu silencioso, as mãos para trás, para proteger a moça. Este gesto deixou Neely ainda mais furiosa.

— Veja só quem você está protegendo, uma prostituta que contaminou a minha piscina. Minha querida, você não significa nada para ele. Sabe por quê? Ele costuma se divertir com rapazes. Por isso, das duas uma: ou você não tem seios, ou é lésbica.

A moça correu para a cabana. Ted permaneceu parado e, apesar de sua nudez, conseguiu manter uma atitude digna. Por uma fração de segundo, Neely desejou correr para ele, dizer que sentia muito, que o amava. Era tão alto e bonito... mas não podia perdoar isso tão facilmente.

— Muito bem, sua bicha. Comece a explicação.

Ted sorriu.

— Acho que você precisa usar óculos, ou então veria que ela não tem absolutamente o corpo de um rapaz. E depois, foi você quem me levou a isso.

— Eu?

— Sim, você quase me fez acreditar que era mesmo afeminado. Já tive experiências com rapazes. De algum modo maluco, achava que assim não estava sendo infiel. Ao mesmo tempo, você me fez acreditar que nenhuma mulher poderia me desejar. Quando foi a última vez que você me quis, Neely?

— Que quer dizer com isso? Você é meu marido. Claro que o quero sempre.

— Sim, me quer sempre perto de você, para que lute por você, desenhe seus vestidos, e a acompanhe às estreias. Como homem... você está sempre cansada para o sexo. Quando foi que nos unimos pela última vez?

— Vamos — gritou Neely. — Não vá agora torcer as coisas. Peguei-o em flagrante e é você quem está agora aí se refrescando na brisa, enquanto aquela vadia está na minha cabana. E ainda tem coragem de passar um sermão em mim! Quem é que está pagando por esta casa e por esta piscina?

— Quem é que quis esta casa? — perguntou Ted, enquanto amarrava despreocupadamente uma toalha à volta da cintura.

— Não podíamos viver no seu apartamento.

— Por que não? Só porque você precisa de um quarto de massagem, de uma sala de projeção, de toda esta ostentação?

— Eu nunca tive uma casa — Neely começou a soluçar. — Estava tão louca para ter uma, que na verdade não me importo de pagar por ela.

— Então, por que me atira isso ao rosto dez vezes por dia? E agora, quem está querendo torcer as coisas?

— Bem... — Neely quase não conseguia manter os olhos abertos. Parecia que a voz de Ted vinha de muito longe. Malditas pílulas, pensou, agora é que estavam começando a funcionar. Ficou olhando para Ted, que se sentara numa cadeira de praia. — Ted, eu chego do estúdio às seis. Esta noite não pude chegar antes das oito. Estou moída. Tenho de estudar as cenas do dia seguinte. Tenho de me submeter a massagens. Como é que, além de tudo isso, ainda posso pensar em sexo?

— Por que você assinou o novo contrato? — perguntou ele calmamente.

— Mas isso foi há seis meses... Será ,que ainda vai insistir no assunto?

— Neely, você agora é uma grande estrela. E eu estou ganhando muito dinheiro. Eu estava até disposto a anular o acordo financeiro que fizemos. E você poderia ter feito um contrato para apenas dois filmes por ano, com o estúdio que quisesse, e ainda lhe sobraria tempo para viver. Mesmo que você deixasse de trabalhar, posso ganhar o suficiente para nós. Sem me dizer nada, você resolveu e assinou aquele contrato por mais cinco anos.

— Devo ao estúdio o dinheiro para comprar a casa. E você sabe muito bem que, com todo esse pânico causado pela televisão, posso me considerar muito feliz por ter conseguido um contrato de longa duração. Quando a gente tem um contrato assim, pode se considerar garantida, com um estúdio inteiro a nos apoiar.

— Muito bem, então você tem a sua casa e o seu contrato. E eu acabo de reconquistar minha saúde mental. Nunca me senti um verdadeiro homem vivendo com você. De alguma forma, você sugou tudo o que havia de másculo em mim, Neely. Agora tudo isso acabou. Estou inteiramente recuperado.

— Com essa pequena prostituta?

— Ela faz com que eu me sinta um gigante.

— Ted, eu preciso de você.

— E quanto! Não como homem.

— Sexo! Sexo! É só nisso que você pensa? Eu gosto do sexo, mas no seu tempo.

— Claro, uma vez por mês, num domingo chuvoso? E nunca chove na Califórnia.

— Pare com isto! Aquela vadia ainda está lá. Mande-a embora.

— É o que vou fazer. — Ted levantou-se e se encaminhou para a cabana.

— E suba imediatamente. Quero falar com você.

Neely correu para dentro de casa, abriu uma nova garrafa, encheu um copo e foi para a cama. Talvez devesse passar por cima do que tinha acontecido. Talvez devesse agir com mais glamour. Cristo, ela o amava, adorava! Mas, depois de passar um dia inteiro num cenário de filmagem, como era possível ser sexy à noite? Olhou para o pijama que estava usando. Talvez devesse usar camisolas provocantes. Céus, o rosto dela estava coberto de creme e o cabelo eriçado de mil modos, todo gorduroso. É que lhe lavavam a cabeça todas as manhãs no estúdio e por isso tinha de cobri-lo de lanolina à noite. Tinha o cabelo grosso e forte, e se dormisse com o laque e o pó que lhe punham no estúdio, em pouco tempo ficaria careca. Tinha de escová-lo todas as noites e enchê-lo de óleo.

Pensou na moça nua na piscina. Levantou-se cambaleante e ficou olhando para a imagem que o enorme espelho refletia. Oh, Deus, pareço uma bruxa! Afinal, aquela moça tinha todos os motivos para ser atraente. Para começar, não tinha de se preocupar em ganhar cinco mil dólares por semana, não era um dos maiores nomes do cinema. Era apenas uma moça tentando a sorte. Se fosse uma estrela estaria na cama, como ela, às nove horas da noite, cheia de creme e de lanolina. As lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. Céus, durante toda a sua vida tinha sonhado com o que tinha agora. Uma grande casa, um homem que amasse, filhos. Tudo isso agora era seu, só que não tinha tempo para aproveitá-los.

Foi ao banheiro e tirou o creme do rosto. Seria bom se não tivesse tanto sono. Começou a remexer o armário. Onde estavam aquelas lindas camisolas? Muito bem, a amarela «serviria. Vestiu. Céus, e o cabelo? Achou um lenço de seda- amarelo e o amarrou à cabeça. Até que não ficou mal. Foi para a cama. Ted deveria estar de volta a qualquer momento. Ouviu o ruído do carro quando, partia. Bem, parece que a vadia foi embora, agora ele viria para ela, todo submisso. Deixaria que ele rastejasse um pouco e depois o surpreenderia, tomando-o nos braços e entre-gando-se a ele. E seria realmente boazinha, como nos velhos tempos, nos tempos em que não estava sempre cansada. Começou a ficar com muito sono... Deus, onde estará ele? Pulou da cama e correu escadas abaixo.

— Ted!

A piscina estava às escuras. Abriu a porta da frente e foi até a garagem. O carro não estava lá, talvez ele a tivesse levado para casa. M... se ela não tinha carro, poderia ter chamado um táxi. Diria umas coisas boas quando ele voltasse. Começou a soluçar. E se não voltasse? O que foi que fizera?

Neely lutou contra o divórcio durante três anos. Depois do incidente da piscina, Ted mandou buscar todas as suas roupas, e ela não foi ao estúdio durante uma semana. O estúdio ficara furioso. Ao diabo com todos, pensara Neely, enquanto se atirava a uma orgia de barbitúricos. Ao diabo com Ted! No começo quisera o divórcio, Ted não podia fazer isso com ela! Mas O Chefe se opusera. Seria muito mal para a imagem que o público tinha dela. Era a vizinha da frente de toda a gente, a namorada da América, mamãe de dois lindos gémeos. Tinham já preparado uma quantidade enorme de reportagens sobre a vida dela e de Ted, com os gémeos... o casamento perfeito. Não, divórcio não. O Chefe não queria saber o que se passava entre eles, contanto que o público os considerasse um casal perfeito. Ela devia tentar tudo para conservar essa imagem.

O Chefe conversara também com Ted. Ele estava sob contrato com o estúdio, por isso devia concordar. Tinha de escoltar Neely às estreias, posar com ela para fotografias, fazer tudo para que o público continuasse a ignorar a verdade. Foi um pesadelo que durou três anos. Um filme atrás do outro... as dietas... as pílulas... saber que Ted estava em algum lugar com a garota, que a devia estar sustentando, pois ela não trabalhava. Para acalmar Neely, o estúdio colocou-a na lista negra e nenhum outro a empregaria.

O prémio da Academia apressou tudo. Foi o maior momento da vida de Neely. Nunca ousara sonhar que o ganharia algum dia. Quando chamaram seu nome, virou-se para Ted com um suspiro. O sorriso dele demonstrava que estava realmente contente por ela. Quase correu para o palco. Posou para os fotógrafos, para os jornais cinematográficos, Ted ao lado, segurando-a pelo braço. Tudo iria dar certo agora, Ted a seu lado, e o Oscar que havia ganhado, e Ted, sorrindo para ela.

Ficou com ela até que a última câmara tirou a última fotografia e até que tivesse recebido todas as congratulações. Então, levou-a para casa e deixou-a à porta. A ela, a estrela premiada com um Oscar! Para ir para os braços daquela vadia. Muito bem, isso resolvia tudo.

Na manhã seguinte, mandou chamar O Chefe ao seu camarim. Agora estava por cima. Desta vez, ditaria os termos. Queria um divórcio imediatamente, e queria que o estúdio despedisse Ted Casablanca. O Chefe atendeu quase humildemente a todas as suas exigências. Céus, que força tinha um Oscar! Chegou também à conclusão de que não era caso de vida ou morte comparecer às filmagens todos os dias. Era a maior estrela de Hollywood e tinha um Oscar para provar isso. Se passasse mal à noite, que se ralassem. Era Neely O'Hara! E se engordasse alguns quilos de tanto comer caviar, e levasse uma semana 'para perdê-los que se ralassem. Os filmes dela davam uma fortuna...

Sentou no camarim, provido de ar refrigerado, a tremer. Era a terceira vez, em cinco semanas, que tinha saído do palco de filmagens. Maldito esse John Stykes. Podia ser o maior diretor do mundo, mas queria crucificá-la nesse filme. Arrancou os cílios postiços e começou a encher o rosto de creme.

— Senhorita, não faça isso — suplicou a criada particular. — Vão levar mais de uma hora para colocar a pintura novamente.

— Chega de trabalho por hoje — disse Neely sombriamente, enquanto retirava a maquilagem.

— Estamos atrasados com a filmagem...

— Estamos? Até você! Parece que toda gente por aqui se considera propriedade do cinema.

Alguém bateu à porta. John Stykes. Era um homem bonito, de uma beleza cansada.

— Vamos, Neely. Vamos continuar.

Percebeu o seu olhar de desespero quando viu que ela i já estava com o rosto limpo de pintura.

— Sim, meu caro. Nada mais de trabalho por hoje.

— Muito bem — sentou-se — já são três horas. En-cerraremos as filmagens por hoje, começaremos mais cedo amanhã.

— Só quando eu concordar com essa última cena — retrucou Neely.

— Que é que há de errado com ela?

— Você sabe muito bem. Todas as tomadas focalizam apenas os nossos pés.

— Neely, o estúdio está pagando cinquenta mil dólares para que Chuck Martin faça essa dança com você. Ele é um grande dançarino. Que acha que deveríamos filmar? As orelhas dele?

— Não, deviam filmar a mim! E não os meus pés, não sou tão boa dançarina como ele.

— Não posso acreditar no que ouço — disse ele em tom jocoso. — Quer dizer que você admite que ele tem mais talento que você?

— Ouça, Chuck Martin tem dançado na Broadway nos últimos trinta anos. E isso é tudo o que ele é capaz de fazer: dançar. Tem idade suficiente para ser meu pai. Eu tenho só vinte e cinco anos, mas posso cantar, dançar e interpretar. Posso enfrentar o melhor deles quando se trata de cantar e interpretar. Sei que ninguém se compara comigo quando se trata de cantar. Ninguém! Quanto a dançar, concordo que não sou nenhuma Ginger Rogers ou Eleanor Powel. Tudo o que Chuck Martin pode fazer é dançar. Acho-o quase tão bom quanto Fred Astaire. Mas isso é motivo para que me façam parecer péssima?

— Se você admite que ele seja tão bom, então por que não nos deixa dedicar cinco minutos aos seus pés?

— Porque o filme é meu, e aprendi, com a minha primeira peça na Broadway, de uma grande conhecedora do assunto, que ninguém vai fazer sucesso explorando o meu talento. E afinal, quem precisa de Chuck Martin? Em todos os meus filmes tenho dançado com bailarinos sem renome.

— Foi O Chefe quem escolheu Chuck, pessoalmente.

John Stykes apanhou um cigarro, Neely também. Ele o acendeu para ela, ao mesmo tempo que perguntava:

— Desde quando você começou a fumar?

— No dia em que meu divórcio terminou. Descobri que me impede de comer.

— Não é bom para a voz, Neely.

— Só fumo uns dez por dia. Bem, então está combinado?

O diretor olhou para a empregada,

— Neely, poderíamos falar a sós?

— Claro. — Neely fez um sinal para que a empregada se retirasse. — Pode ir embora, Shirley. Esteja aqui às sete da manhã.

John Stykes sorriu.

— Ainda bem que não planeja agravar mais a situação.

— E por que deveria? O que quero é que você simplesmente planeje, esta noite, uma maneira de filmar aquela cena de modo que a focalizada seja eu, não os pés de Chuck Martin.

— Neely, ainda não lhe ocorreu o motivo pelo qual O Chefe não quis utilizar um desconhecido para esse filme?

— Claro, claro, televisão. Todo mundo se apavora facilmente hoje em dia com essa palavra. Mas não é o meu caso. Se O Chefe acha que contratar Chuck Martin por cinquenta mil dólares vai arrasar a televisão, então isso é com ele. Apenas não admitirei que o faça passando por cima de mim.

— Neely, seus últimos dois filmes deram prejuízo.

— Ora, deixe de conversa. Li as revistas e vi os relatórios. Meu último filme rendeu bruto quatro milhões, e ainda não foi exibido na Europa.

— Acontece que custou mais de seis milhões.

— E daí? A revista Variedades diz que será o filme de maior renda do ano.

— Claro, e faria com que o estúdio ganhasse uma fortuna com ele, se tivesse custado os dois milhões e meio do orçamento. O estúdio mantém em segredo as verdadeiras cifras, ninguém, porém, fez jamais um filme que passasse tanto do orçamento. O Chefe teve receio de publicar os relatórios, pois os acionistas convocariam imediatamente uma reunião extraordinária. Por isso, seu novo filme deverá compensar tudo isso. Querida, não se sabe de nenhum filme que tenha custado seis milhões.

— Estive gripada. A gente não pode ter culpa por ficar doente.

— Neely, você faltou dez dias por estar dopada com pílulas para dormir.

— Sim, e depois tive gripe.

— Eu não dirigi aquele filme, mas sei o que houve. Você passou o tempo a comer e a tomar barbitúricos. Claro que perdeu a resistência e ficou doente. Depois que sarou, levaram três semanas para fazê-la perder peso, e mesmo assim você tinha dez quilos a mais e todo o seu guarda-roupa teve de ser refeito.

— Muito bem, naquela ocasião eu estava preocupada com o divórcio e com San Burns, meu camera-man favorito, doente. E não venha me dizer que eu ganhei peso, o péssimo corte daquelas roupas é que me fazia parecer pesada. E aí está outra coisa que exijo, já que estamos no assunto: eles têm de contratar um novo desenhista para minhas roupas. Ted jamais permitiria que eu vestisse esse lixo.

— Ellen Small é uma grande desenhista, já ganhou nove prémios da Academia.

— Muito bem, então ela que vista esses Oscars, não a mim.

— Neely, eu a aprecio muito, por isso é que estou falando a você e não diretamente com O Chefe. Não lhe direi que você largou as filmagens e foi embora. Claro que ele ouvirá mexericos a respeito de a gente largar às três horas hoje. Eu direi que terminamos a cena de hoje mais cedo do que esperávamos, e que já era muito tarde para começar a próxima. Mas quanto tempo você espera que ele vá suportar tudo isso?

— Isso?

— Essas suas explosões sentimentais.

— Escute aqui: não me sacrifiquei para chegar a estrela ainda ter de me preocupar com o que ele pensa. Quando é estrela, os outros é que devem se preocupar com a ente. Aprendi isso com Helen Lawson.

— Helen Lawson é algo que você não é: uma profissional consciente.

— E onde está ela agora?

— Ela pode estrelar uma peça na Broadway quando quiser.

— E o que é a Broadway? E o máximo que ela pode querer.

— E ela sabe muito bem disso. Helen Lawson, porém, nunca chegou um segundo atrasado na vida dela. E só tem uma coisa, uma grande voz, mas sabe disso. Pode tratar com pouco caso muita coisa, mas é uma mulher de negócios. É um monstro diferente de você, Neely.

— Monstro! Seu... seu...

Ele riu e apertou-lhe o nariz.

— Claro que você é um monstro — disse, com bom humor. — Todas as estrelas são. Helen é uma estrela mecânica, uma voz. Você, ao contrário, tem... bem, o que eu quero dizer é que você, às vezes, chega a ser quase um génio. Sente as coisas... até demais, às vezes. — Inclinou-se para ela e pegou suas mãos. -— Neely, uma artista como você não se encontra todos os dias. Os acionistas, entretanto, não estão interessados em arte. Querem saber de dólares e centavos. Ouça, menina, nós estamos com dez dias de atraso; se você cooperar, poderemos recuperar o tempo perdido. Poderemos filmar a cena da boate em um dia, em vez de três. Já preparei tudo para amanhã. Os extras foram chamados, sei que posso consegui-lo. Trabalharei à noite nas cenas de multidão e poderemos usar sua substituta para as cenas em que você aparece de costas. Neely, ainda poderemos conseguir acabar o filme a tempo.

Neely ficou um tempo indecisa; então, mostrou um sorriso metálico.

— Você quase conseguiu me comover, Johnny. Esta foi a maior conversa que já tentaram me passar. Como você disse, sou um monstro e os monstros conhecem tudo. Há sete anos, se alguém tivesse me falado assim, teria pulado e dito imediatamente: "Sim, senhor, sim, senhor" — e teria gastado o meu traseiro de tanto trabalhar, e faria uma verdadeira fortuna para o estúdio.

— E faria de você uma estrela.

— Sim, e o que eu ganho com isso? — perguntou Neely, enquanto ia ao barzinho e se servia de uísque. — Toma algo?

— Cerveja, se você tiver.

Tirou uma cerveja do pequeno refrigerador e continuou:

— Isso é o que ganhei; tenho a melhor cerveja do mundo e não posso tomá-la porque engordo. Tenho uma piscina, que também não posso usar, porque não devo tomar sol. Isso é mau para os filmes coloridos. Tenho dois armários cheios de roupas lindas, que não posso usar, porque devo ficar em casa à noite, a fim de estudar as cenas do dia seguinte. John... — Ajoelhou-se. — Como foi que aconteceu tudo isso?

Ele passou a mão pelos cabelos dela.

— É que tudo lhe aconteceu depressa demais.

— Não, essa não é a resposta. Trabalhei toda a minha vida em teatro de variedades. Não sou uma dessas garotas que ganham um concurso de beleza e a quem o estúdio tem de ensinar a falar, a andar e a representar. Fui contratada porque tenho talento. Claro, sempre me ensinaram alguma coisa. Tive de ler os livros certos, ou melhor, os que O Chefe achou adequados, para que eu não parecesse uma mentecapta durante as entrevistas. Mas tive de entrar com o meu talento. Tenho vinte e cinco anos e me sinto como se tivesse noventa. Já tive e perdi dois maridos. Tudo o que tenho a fazer é estudar textos, estudar canções, estudar novas danças, passar fome, tomar pílulas para dormir, depois tomar pílulas para ficar acordada... Deve haver uma outra maneira de viver.

— Acha que sua vida no teatro de variedades era mais divertida?

— Não, e detesto quem diz que tudo era lindo quando passava fome. Era detestável. Contratos por uma noite, viagens em trens sem aquecimento, público horrível... Mas havia algo que me ajudava a suportar tudo isso: a esperança. Tudo era tão horrível que eu sabia que só podia mudar para melhor, e sonhava com o sucesso e a segurança, e pensava em como seria maravilhoso conseguir um pouquinho que fosse disto tudo. E essa esperança mantinha a gente de tal forma que nada parecia muito mau. Quando me sento aqui e começo a pensar... céus, aqui estou eu... consegui tudo... e é tudo uma droga! E daí?

— Você" tem seus filhos, Neely. No momento, está ocupada em ser estrela, mas há de encontrar o sujeito certo então terá de escolher entre o amor do público e o amor de, um homem. E verá que também não é fácil renunciar ao amor da massa, principalmente quando se chegou até onde você chegou. Você terá de pesar tudo isso e perguntar se o amor do público, que consegue com o seu talento é suficiente para compensar a falta do outro.

— Não, não é. Quero dizer: o que é que esse talento proporcionou a mim? Tudo o que faço é dá-lo aos outros. Será que isso é tudo? Eu o tenho, mas devo continuar a dá-lo aos outros e fico sem nada. Não é uma loucura? Menino, espere até que eu apresente este problema ao Dr. Mitchel.

— É seu analista?

Neely confirmou com a cabeça.

— Não que precise de um, realmente. É outra maluquice. Ele era o analista de Ted. Imagine! Eu, a garota mais normal do mundo, acabar contando com um ajustador de parafusos! Fui consultá-lo, pela primeira vez, quando uma coisa horrível aconteceu com Ted, e acabei me acostumando a correr para ele todas as vezes que precisava de um conselho. A princípio, era sempre por causa de Ted, depois, ele começou a escarafunchar o meu passado, como se fosse minha culpa o fato de Ted ter problemas. Continuei, e acabei descobrindo uma porção de coisas a respeito de mim mesma. Sabe, John, nunca soube o que é ter o amor de uma mãe. Por isso, diz ele, é que considero tão importante ser uma estrela... porque necessito do amor das massas.

— Isso é besteira! — John estava furioso. — Ouça, há uma porção de estrelas de cinema que gostam de ser adoradas pelo público e que têm pais maravilhosos. Você é uma estrela porque tem talento, e não porque não teve amor materno. Eu já estou cansado de todos esses doutor-zinhos, que jogam todas as culpas sobre as pobres mães deste mundo. Muito bem, então sua mãe morreu muito cedo. Será que foi de propósito? Neely, acredite que você estaria bem mais sossegada se esquecesse toda essa conversa desse doutorzinho. Convença-se de que chegou até onde está por suas próprias qualidades.

— Mas eu sou neurótica, John. Descobri que tenho uma infinidade de neuroses.

— E~daí? Talvez por isso mesmo é que você é uma estrela. Talvez você deixe de ser o que é se ele lhe curar todas as neuroses. Eu também tenho as minhas esquisitices mas não é por isso que vou dar vinte e cinco dólares por hora a um camarada só para que ele me diga que o meu pai me maltratou e o que eu sinto é simplesmente falta de carinho da minha mãe. E se for verdade? Que é que poderei fazer para remediar? Ir a Minnesota, dar um soco no nariz do meu velho? Ele tem oitenta anos. Ou chamar uma call girl grisalha e fazer com que ela me acalente e me sirva uma mamadeira? Ouça uma coisa: tudo o que aconteceu é jornal de ontem. O que interessa é o dia de hoje e o dia de amanhã. Mais nada.

Neely suspirou.

— Tudo parece tão fácil do modo como você expõe as coisas. E quando se passa longas noites sozinha... por Deus, como as noites são horríveis! Sabe, John, um psiquiatra enxerga as coisas de todos os ângulos e a gente sente que é a única pessoa a quem podemos falar. Ele está lá para nos servir e para nos ajudar. É a única pessoa em quem posso confiar.

John levantou-se.

— Muito bem, então consulte-o esta noite. Mas, Neely, ouça o que eu digo e faça a si mesma um favor: vamos filmar amanhã a cena da boate e esqueça o que disse sobre o guarda-roupa. Aprenda as canções e ajude a terminar o filme logo.

Os olhos dela ficaram pequenos.

— Ah, então era isso toda essa conversa fiada? Só para me amaciar antes de ir para o matadouro?

O diretor bateu com o copo na mesa.

— Neely, você tem razão. Você precisa de um psicanalista. É isso então que o cinema conseguiu fazer de você? Desconfiada de tudo? Deixe-me dizer ainda: se lhe falei como um pai, foi porque sentirei muito se tiver de ver você e o seu talento irem esgoto abaixo.

— Por quê? Só porque não vou vestir umas roupas horríveis?

— Não, porque se você continuar a fazer filmes que dão prejuízo, nem todo o talento do mundo a ajudará neste negócio.

— Sou o maior sucesso de bilheteria do ano.

— Neely, quando os acionistas tomam conhecimento das cifras, não querem saber se os seus filmes levam filas à volta do Radio City, nem do sucesso que você faz nas revistas de cinema. De que lhes adianta seu êxito diante i público se não ganham dinheiro com isso?

— Não acredito que estejam perdendo dinheiro — disse teimosamente. — Devem estar tão preocupados com a televisão que acham que os meus filmes devem compensar por tudo. Claro, o que eu tenho a fazer é trabalhar como uma louca só para que O Chefe possa sentar-se em seu palácio ou ir à sua casa de praia e dormir com todas as estrelinhas. E quem é que tem de pagar por tudo isso? Eu e o meu talento.

— Neely, no ano passado, três filmes de segunda classe e sem grandes estrelas deram mais lucro do que seus dois últimos filmes. Um deles custou oitocentos mil dólares e rendeu quatro milhões. Se você ainda não acredita que os filmes deram prejuízos, então pergunte aos seus agentes.

— Quem é que confia neles? Eles têm de obedecer ao estúdio.

— Então tente, pelo menos, confiar em mim...

— Muito bem, digamos que confie em você. Agora, o que quer que eu faça? Que vá amanhã ao estúdio e que vista aquele vestido que me faz parecer um sorvete de creme?

— Neely, você fica bem com aquele vestido.

— Fico horrível — respondeu ela, servindo-se de mais bebida.

— Não, o que você quer são as roupas de Ted Casablanca. Como você não pode tê-las, nunca mais ficará satisfeita com nenhuma outra.

— Isso não é verdade. — Neely estava quase chorando. — Agora, parece que estou ouvindo o próprio Dr. Mitchel.

— Ah, então ele também já lhe disse?

Ela sorriu.

— Muito bem, talvez você tenha razão.

— Você é uma boa menina. Então, estamos combinados para amanhã?

Concordou. John beijou-a na face e saiu.

Neely sentou-se e tomou mais uísque. Eram quase seis horas, telefonara para o Dr. Mitchel, marcando uma consulta para as nove. Isso queria dizer que não estaria livre antes das dez. Chegaria em casa às onze, não iria para a cama antes de meia-noite. Assim, não teria tempo de aprender as letras das canções... ligou de novo para o Dr. Mit e cancelou a consulta.

Sentada na cama, com o jantar na bandeja a seu lado tentava decorar a letra das canções. Não devia ter tomado tanto uísque. Sua cabeça não queria funcionar. Talvez fosse melhor dormir e acordar mais cedo. Poderia estudar as letras das cinco às sete da manhã. Com oito horas de sono ficaria em forma.

Mandou embora o jantar sem tocá-lo. Melhor que fi. casse sem jantar, já estava pesando cinquenta quilos. Além disso, as pílulas sempre funcionavam melhor com o estômago vazio. Tomou duas vermelhas e uma amarela. E meio copo de uísque, por cima. Já estava começando a sentir aquela tontura deliciosa. Acabou de tomar a bebida e ficou esperando pela sensação de anestesia que as pílulas proporcionavam antes de adormecer. Mas a sensação tardava. A tontura só não era suficiente, ela ainda podia pensar. E invariavelmente punha-se a pensar na sua solidão, e em Ted e naquela garota. Não tinha ninguém. Estava tão só como quando fazia parte de Os Gaúchos, viajava com Char-lie e Dick, e dormia sozinha nos quartos de hotel, sem ninguém no mundo que se importasse com ela.

Começou a transpirar e sentiu o suor escorrer pelas costas. Levantou-se da cama e trocou de pijama. O Dr. Mitchel tinha razão: ela estava desenvolvendo uma tolerância para com as pílulas. Talvez se tomasse mais uma amarela... Não, isso faria com que ficasse tonta e de ressaca de manhã, e precisava aprender aquelas canções. Céus! Naquela manhã tomara três pílulas verdes para aguentar as filmagens. Tomou mais um copo de uísque. Quem sabe, se tomasse mais uma vermelha... Claro, o efeito vinha mais depressa. Engoliu-a rapidamente! E era melhor não tomar todo aquele uísque de uma vez, mas tomá-lo aos golinhos, ate que as pílulas fizessem efeito. Tentaria ler um pouco, isso sempre ajudava a adormecer. Anne mandara outro livro de Lyon. Esse era novamente um livro pouco comercial, mais literário, recebido com ótimas críticas. E daí? O fato é que o livro não estava vendendo.

Subitamente, desejou que Anne estivesse com ela. Anne sempre sabia o que fazer. Pena que tivesse obtido tanto sucesso na TV. Se não fosse isso, teria proposto que trabalhasse para ela como secretária particular. Céus, isso não seria o máximo? É claro que Anne deveria estar ganhando fortuna na televisão. Não se podia ligar o aparelho que se topasse com ela, fazendo propaganda de algum batom, de algum produto para o cabelo. E por que não? Especialmente se eram verdadeiros os mexericos sobre um romance com Gillmore. Mesmo assim, a verdade é que Anne tinha classe. Não era como Jennifer. Imagine, diziam que Hollywood^ mandara chamá-la e ela se recusava a vir. Jennifer dizendo não a Hollywood! Devia estar fazendo uma verdadeira fortuna com aqueles filmes franceses em que mostrava os seios e o traseiro. A queridinha dos filmes de arte! Filmes de arte, uma ova! Se tais filmes fossem feitos em Hollywood, todo mundo acharia que eram pornográficos. Pelo contrário, Hollywood agora estava ditando moral: nada de decotes ousados, de beijos prolongados, e havia cláusulas morais em todos os contratos. E essa Hollywood implorava a Jennifer que viesse filmar ali. Claro que pretendiam cobrir-lhe o traseiro e tudo. Mas ganharia tanto quanto uma grande estrela, só porque tinha permitido que um dia filmassem seus peitinhos!

Tomou outro grande gole de bebida. Não tinha sono. Só estava conseguindo ficar bêbada. E faminta! Por Deus, vivia passando fome! Desejou que não tivesse mandado o jantar embora. Havia caviar no refrigerador... Não, não devia. Maldito Ted, que a ensinara a gostar de caviar. As roupas que usaria no filme já estavam justas demais. Nunca comia nada, e se comesse agora, por cima de todas as pílulas e do uísque que tomara... engraçado, era justo com John... ele a tratara tão bem, hoje... engraçado, nunca tinha notado como os olhos dele eram azuis, em contraste com a pele queimada de sol. Devia ter uns cinquenta anos, mas era um homem muito bonito. John... se ele estivesse ali e a tomasse, nos braços, ela se sentiria protegida...

Olhou para o relógio. Dez e meia. Quem sabe John viria agora? Poderia dizer à mulher que tinha de discutir uma cena. Provavelmente estava agora preocupado com ela, pensando se iria chegar na hora, no dia seguinte. Sorriu. Não, não pediria que viesse naquela noite, já passara lanolina no cabelo. Amanhã trabalharia como louca, e o convidaria para jantar e trabalhar com ela à noite. Seria mais do que uma aventura momentânea. Faria com que ele ficasse e a tivesse nos braços, até que adormecesse. Talvez até viesse com frequência, se ela cooperasse para terminar o filme. Exigiria, daí por diante, que todos os seus filmes fossem dirigidos por ele. Os filhos dele já estavam crescidos, quem sabe, poderia estar sempre com ela? Telefonaria agora e diria que estava estudando. Seria um bom começo... pelo menos faria com que ele dormisse pensando nela.

Chamou o estúdio e pediu o número do telefone dele Discou e ficou esperando, até que uma voz de mulher atendeu. Neely murmurou:

— É a Sra. Stykes?

— Não, aqui é Charlotte, a empregada.

— O Sr. Stykes está?

— Não, madame. O senhor e a senhora saíram para jantar. Quer deixar recado?

— Não. — Desligou.

Saiu com a mulher. Devia, provavelmente, estar no Romannoff, dizendo a ela como conseguira enganar Neely O'Hara. Podia quase ouvi-lo... "Posso fazê-la comer na minha mão. Ela pode ser uma estrela, no fundo é uma irlandesinha suja, que está apavorada. É só saber como lidar com ela". Muito bem, ninguém manejaria Neely O'Hara! Podia ter nascido uma pobre irlandesinha, agora era uma grande estrela e podia fazer tudo o que quisesse.

Saiu da cama e desceu as escadas, na ponta dos pés. De repente, parou.

— Por que diabo estou andando na ponta dos pés? Afinal, esta é a minha casa.

Ninguém na cozinha. Foi até o refrigerador e abriu uma enorme lata de caviar. Pegou uma colher, começou a comer, enquanto dizia:

— Neely, vamos fazer uma farra!

Quando terminou, recomeçou a falar:

— E agora? Vamos, Neely, você pode ter tudo o que quiser... Porque você é uma grande estrela e um grande talento... Pode ter tudo. Vamos abrir mais uma lata de caviar? E por que não? Não fui eu que o comprei? Muito bem, e vamos levar esse patê para cima, no caso de querer comê-lo mais tarde. Nada é bom demais para Neely O'Hara.

Pegou uma nova garrafa de uísque e cambaleou escada acima. Pôs bebida no copo e entrou no banheiro.

— Vamos, Neely, que pílula vai tomar? Verde, amarela ou vermelha?

Decidiu-se por mais duas vermelhas. Engoliu-as, deitou na cama e telefonou para o mordomo:

— Ouça, Charlie, ligue para o estúdio amanhã e diga que Miss O'Hara tem larin... laringite. E não atendo ninguém. Vou dormir... e comer... e dormir... e comer... talvez por uma semana. E amanhã, quando acordar, quero uma montanha de panquecas com manteiga e quilos de geléia. Vou fazer uma orgia!

 

                                                    1956

Neely vestiu-se cuidadosamente. Calça comprida branca, um blusão que escondia o rolo de gordura que se formara à volta de sua cintura. Céus, fora difícil perder os cinco quilos desta vez. As provas de guarda-roupa para o próximo filme começariam dentro de uma semana e agora, de repente, O Chefe queria falar com ela. Ficou pensando o que seria.

Deram-lhe o recado na tarde do dia anterior. Edie Frank, um dos assistentes, dissera, casualmente:

— Srta. O'Hara, O Chefe gostaria que almoçasse com ele amanhã. Se puder.

Se puder? Essa é boa! Como se alguém tivesse coisa mais importante a fazer quando O Chefe chamava. Como essa gente tinha memória curta! Três anos atrás, quando ganhou o Oscar, O Chefe é que viera até ela. Muito bem, tinha certeza de que esse novo filme poria as coisas nos seus devidos lugares. Céus, que papel! E as canções! Na certa, seria indicada para mais um Oscar, se é que não ia ganhá-lo.

Sentou-se diante da enorme mesa colonial americana, tentando parecer jovem e bem disposta. Era assim que ele gostava de vê-la. Sempre achara que O Chefe devia ter nascido velho... nunca mudava... o cabelo branco em contraste com a pele eternamente bronzeada e cheia de manchas de fígado. Os olhos dele piscavam e suas pequenas mãos brincavam com os papéis que estavam sobre a mesa.

— Queridinha, sabe por que mandei chamá-la?

— Não, senhor, mas é sempre um prazer vê-lo. (Conhecia bem o protocolo adequado.)

— Leu os jornais de ontem?

(Oh, céus, aquele prémio: Miss Veneno 1956 — Neely O'Hara.)

— Não é muito agradável, concorda? — continuou o velho.

— Oh, o senhor sabe como são esses prémios distribuídos pela imprensa — falou Neely, com uma voz de menininha. — Claro que fiquei sentida ao saber. Toda a gente me disse que não significa nada. Os jornalistas se reúnem e cada ano escolhem um pato. No ano passado, escolheram Stewart Lane e, no entanto, ele continua a ser o maior da Twentieth.

— Não, não continua. — A voz ainda era suave e doce. — Ele nunca se recuperou. Todos os seus filmes deram prejuízo depois da Guerra. Mas é que o contrato dele ainda tem dois anos, por isso o estúdio está quieto.

— Os meus filmes todos são sucesso de bilheteria.

— Para a bilheteria, sim. Para nós, não.

Neely ficou aborrecida. Bem, de novo a velha conversa dos atrasos, do não-comparecimento aos ensaios etc.

— Esse novo filme será muito caro — declarou. — Os preços subiram demais. Estamos agora competindo com a televisão, e as pessoas não vão sair de casa para ver um filme qualquer. Agora têm diversão de graça em sua própria casa. A televisão não é mais apenas uma caixa de madeira. Está ficando boa, e vai ficar ainda melhor.

Neely começou a brincar com as unhas. Que diabo! Não fora ela quem inventara aquela coisa maldita! Ele que fosse gritar com o General Sarnoff!

— Estaremos pondo mais dinheiro em Vivamos esta Noite do que em qualquer filme que tenha sido feito até hoje. Qualquer atraso será nossa ruína. Sam Jackson já sabe que não poderá sair do planejamento.

— Sam é um dos meus produtores favoritos — disse Neely.

— Fiz um trato com Sam. Ele vai ganhar mil dólares por dia em que a filmagem estiver adiantada.

Então ia mesmo ser uma corrida de ratos.

— No primeiro dia de atraso, ele sai do filme.

— Você quer dizer que tirará Sam Jackson de um filme?

— Tirarei qualquer pessoa que não atender a minhas .exigências. Hollywood mudou muito, queridinha. O último artista que tínhamos sob longo contrato já se foi. O seu contrato tem ainda um ano, e quando terminar... se negociarmos outra vez, não será como antes.

Pode ter certeza que não será, pensou Neely. Formarei uma companhia e terei minhas ações... seu agente lhe explicará tudo.

— Não, queridinha — o velho suspirou —, tudo está mudando. Agora já não posso dizer aos acionistas que cuidem dos seus narizes. Agora tenho de dar a eles sempre uma resposta e a única resposta que aceitam é lucro.

Ela concordou com a cabeça e ficou imaginando se demoraria muito para terminar esta entrevista. Era apenas o sermão de rotina. Que coragem, chamá-la apenas para isto. E além do mais, estava com fome. Bem que ele poderia ao menos mandar buscar o almoço. Ainda não comera nada, só tinha tomado uma pílula.

— Por isso é que estou tirando você desse filme — disse ele.

Ela o olhou atónita.

— Queridinha, não posso me arriscar. Sam Jackson é facilmente substituível, se for necessário. Se você começa o filme, não poderei fazer o mesmo. Teria de começar tudo de novo.

— Você não pode me substituir antes que eu comece o filme... — gaguejou Neely.

— Por que não? Olhe-se bem. Está gorda novamente. As provas começarão na semana que vem e você não está em forma. Não, queridinha, seria um risco grande demais. Jannie Lord terá o papel.

— Jannie Lord! Mas ela está apenas começando! — Neely continuava a achar que O Chefe estava tentando assustá-la.

— Ela fez três filmes baratos, que acabaram dando ótimo lucro. Há reportagens sobre ela em todas as revistas de cinema deste mês. Esse filme fará dela uma grande estrela. E, para maior segurança, o galã do filme será Brick Nelson.

Neely achara esquisito que tivessem contratado Brick Nelson, um ator caro, para trabalhar no filme. Em geral, nos seus filmes, só havia ela de grande. Rememorou as cláusulas do seu contrato. Não, ele não estava brincando. Como podia tirá-la do filme se já anunciara que o papel era dela? Que motivo daria?

—- Não há nada que você possa fazer legalmente — disse ele, como se tivesse lido seus pensamentos. — Reescreveremos o argumento para adaptá-lo a uma garota mais jovem.

— Uma garota mais jovem! Ouça, eu tenho só vinte e oito anos, e isso não é propriamente meia-idade.

— Aparenta quarenta — disse ele, despreocupadamente.

— Estou sem maquilagem— defendeu-se. ela.

— Está com olheiras enormes... Tem um duplo queixo. Em suma: você está um bucho.

As lágrimas agora molhavam sua face sardenta. Uma semana de dieta e de sono e ela estaria completamente em forma. Ele sabia disso. Então, por que a tratava assim?

A secretária interrompeu para dizer que o chamado telefónico para Paris estava pronto. O Chefe levantou o fone com o rosto já transformado por um sorriso untuoso.

— Alô — gritou, como as pessoas gritam quando falam para distâncias enormes. — Sim, posso ouvi-lo muito bem. Maravilhoso, não? Sim, Sr. Chardot... Recebi sua carta esta manhã. Por isso resolvi telefonar-lhe. Os seus termos são, bem... impossível não é a palavra adequada. Claro que estou interessado em fazer um filme com a Srta. North, e estou mesmo disposto a aceitá-lo como co-produtor. Um contrato para um filme, dando-lhe cinquenta por cento dos direitos, não é possível. Além disso, vamos pôr roupa nessa estrela, e quem garante que ela exercerá a mesma atração sobre as plateias? Sim, sei que nos últimos três filmes ela não apareceu sem roupa. Mas, sejamos sinceros, Sr. Chardot, e concordemos em que ela não é nenhuma grande atriz. E se não concorda em me dar opção para um segundo filme, então, nada feito. Gastarei rios de dinheiro na propaganda dela, e depois „um outro estúdio a agarra e se aproveita de tudo para um segundo filme? Quero um contrato para três filmes, e saber suas condições. O dinheiro será depositado em um banco suíço. Quanto? Mas, meu caro senhor, onde arranjou essa cifra? Acredite, ninguém lhe pagará isso, Sr. Chardot.

Parou de falar por um instante, depois disse:

— Sr. Chardot, Louie Esterwald vai procurá-lo esta tarde... O quê? Ah, oito horas da noite aí? Nunca acerto com essa diferença de hora. Muito bem, então amanhã de manhã. Ele fará as negociações... fala francês... e podemos esperá-lo aqui em setembro? Bem, se esperarmos ate fevereiro já será 1957. Quero notificar a meus acionistas que temos um filme de Jennifer North programado para 1956 ainda. Como? Já começou a rodar o novo filme dela? Vai terminar dois até novembro? Por Deus que o invejo. Ficarei feliz se conseguir terminar um até lá. É que vocês não têm problemas de sindicatos e de televisão. Espere mais alguns anos e verá.

Encerrado o seu conta to com Chardot, pediu uma nova ligação internacional. Neely esperava pacientemente, ele brincava com um lápis. Bateu o fone com fúria, dizendo:

— Uma demora de vinte minutos!

De repente, pareceu lembrar-se dela.

— Muito bem, você pode ir.

— Pensei que íamos almoçar — disse ela, atónita.

— Você pode passar bem sem almoço. Com essa barrica, é melhor até. Eu diria que está grávida de quatro meses, se já não a tivesse visto assim várias vezes. Tenho de esperar a chamada para Louie Esterwald. Imagine, o trabalho que estou tendo só para que essa prostituta venha fazer um filme comigo. Dez anos atrás, a indústria a teria jogado fora. Agora, todos os estúdios lutam para tê-la. Alguma coisa de errado está acontecendo a este país. Estamos ficando imorais. A televisão é a culpada. Sempre fizemos filmes limpos, agora temos de lutar contra a televisão usando todas as armas possíveis: seios, traseiros, prostitutas francesas...

— Ela não é nenhuma prostituta francesa — disse Neely. — É uma garota americana, e ótima moça. Já moramos juntas.

Ele se interessou imediatamente.

— Você morou com Jennifer North?

— Há onze anos. Estivemos juntas em Tocando as Nuvens. Ela era apenas corista, depois casou com Tony Polar. Morou aqui na Califórnia.

— Eu me lembro! Ele era casado com uma Jennifer... — sacudiu a cabeça. — Não pode ser a mesma moça. Esta só tem vinte e três anos.

Neely riu amargamente.

— Todas têm vinte e três anos nos filmes franceses. Sei que é a mesma Jennifer com quem morei. Ela deve ter... Céus, não sei, eu tinha dezessete anos e ela dizia que tinha vinte e um...

— Se é assim, deve ter trinta e dois. — Estava surpreso.

— Certo. E você diz que estou velha aos vinte e oito.

— Essa moça deve saber se cuidar. E é digna de confiança. Vai terminar dois filmes até novembro. Acaba de ganhar um prémio qualquer, num festival de cinema, e agora pensa que é atriz... Falta de sorte a minha... Os franceses a tiveram quando ela andava nua, e eu vou tê-la agora que é atriz.

— E eu? Que faço? Fico sentada esperando? — perguntou Neely.

— Sente-se e emagreça. Continuará sendo paga todas as semanas.

— E quando será o meu próximo filme?

— Depois veremos.

Os olhos dela faiscaram de fúria,

— Quem você pensa que é para me tratar assim?

— O patrão. E você não passa de uma ordinária que eu transformei em estrela. Só que ultimamente você não tem correspondido. Por isso, vai apenas sentar e aprender uma grande lição. Observe o nascimento de novas estrelas, como Jannie Lord, por exemplo. Talvez isso ponha algum senso nessa sua cabeça. Agora desapareça, tenho coisas mais importantes a fazer.

— Posso sumir daqui e nunca mais aparecer. — Levantou-se.

Ele sorriu.

— Faça isso e nunca mais conseguirá trabalhar em lugar algum.

Neely soluçou durante toda a viagem de volta para casa, enquanto dirigia negligentemente pela estrada através das montanhas. Nada importava mais. Que faria? Iria para casa e, lá, ficaria sentada? Nem os gémeos precisavam dela realmente. Adoravam a babá e com ela iam à escola. Quando todos soubessem que fora substituída no filme, logo depois de ganhar o título de Miss Veneno, então estaria realmente só. Ninguém procura os derrotados. Céus, como é que as pessoas conseguem ser tão mesquinhas? Trabalhara tanto, lutara tão duramente, agora todos estavam prontos a crucificá-la.

Entrou em casa e apanhou uma garrafa de uísque no bar. Foi para seu quarto, baixou as persianas, desligou o telefone e engoliu cinco pílulas. Nem com cinco pílulas conseguia dormir ultimamente. Na noite passada, dormira três horas, à força de cinco pílulas vermelhas e duas amarelas. Tirou a roupa e deitou-se.

Devia ser meia-noite quando acordou. Abriu a janela, noite alta. Nada para fazer. Entrou no banheiro e, sem perceber, subiu na balança. Tinha perdido um quilo. Ei, quem sabe esse era o melhor método? Tomaria pílulas antes e dormiria o tempo todo, sem comer. Num instante perderia cinco quilos. Tomou um comprimido de vitamina, acreditava que isso lhe conservaria a saúde, tomou mais algumas pílulas vermelhas com um generoso gole de uísque, voltou para a cama.

Podia ver o sol escoar-se através da cortina quando acordou. Cambaleou até o banheiro. Estava completamente tonta, sem sono. Não, não subiria na balança. Melhor esperar mais para ter uma surpresa maior. Sentia-se vazia... melhor tomar duas vitaminas... Claro, continham tudo o que lhe era necessário. Encheu o rosto de creme, o cabelo de lanolina. Muito bem, esta seria também uma cura de beleza. Pareceria uma verdadeira boneca quando acordasse. Tomou cinco pílulas amarelas e duas vermelhas, estas apressavam o funcionamento das primeiras. E havia ainda um bom gole na garrafa.

Quando abriu os olhos, achou tudo muito branco e muito limpo. Que fazia essa maldita agulha no seu braço? E essa garrafa virada de cabeça para baixo? Cristo! Estava num quarto de hospital. Tentou sentar-se, uma enfermeira veio correndo.

— Descanse, Srta. O'Hara — disse a moça, com voz profissional.

— Que estou fazendo aqui? Que foi que aconteceu?

A enfermeira mostrou-lhe um jornal. Cristo! Na primeira página, sua fotografia, das primeiras que tirara no estúdio, juvenil e sorridente; ao lado, outra, carregada por dois homens, com a cabeça para trás, os pés descalços. Leu os títulos: Estrela toma dose excessiva de barbitúricos e o presidente do estúdio diz que foi acidente. Quando leu de que modo O Chefe correra em seu auxílio, sorriu levemente. Claro que devia estar assustado. Mas não declarara que ela não faria mais o filme. Continuou lendo, avidamente.

"A Srta. O'Hara e eu tivemos uma discussão há cinco dias" (Céus, cinco dias!) "e eu sugeri que talvez ela estivesse muito cansada para começar outro filme em seguida. Assegurou-me que não estava, e que tudo de que necessitava eram uns dias de repouso. Obviamente, era isso que ela estava tentando fazer. Ficar em forma para o filme. Se ela viver — um soluço sufocou a voz do Chefe (claro, ele podia derramar lágrimas melhor do que a maior das atrizes e devia estar apavorado, pensando que ela tivesse deixado uma carta de suicida.) ... Se ela viver, terá o maior papel de sua vida no maior filme que já fizemos. Não é verdade que a substituímos por Jannie Lord. Ninguém é capaz de substituir Neely O'Hara. Tínhamos considerado mudar o argumento no caso de a Srta. O'Hara achar que não devesse fazê-Io. Então, talvez Jannie Lord pudesse substituí-la. Entretanto, tudo o que queremos é que Neely O'Hara faça o papel. Uma vez em cada geração nasce uma atriz como ela."

Neely sentiu-se maravilhosamente bem. Havia uma porção de elogios a respeito dela, feitos por vários astros que tinham trabalhado com ela, e até por gente que mal conhecia. Era como se tivesse morrido e estivesse lendo os elogios fúnebres. Gostou da sensação. Céus, parece que esperavam mesmo que ela morresse. Devia ter chegado perto para que O Chefe se manifestasse como se manifestou. Agora tinha de dar o papel a ela.

— Estive muito mal? — perguntou à enfermeira.

— Mal? Até poucas horas não tínhamos mais esperanças. A senhora passou vinte e quatro horas numa tenda de oxigénio.

— Mas tomei só umas poucas pílulas. Tudo o que eu queria era dormir um' pouco.

— Sua sorte foi o mordomo ter chamado o médico imediatamente. Ele a encontrou respirando com muita dificuldade. Ficou preocupado, a senhora não tinha comido nada durante três dias.

Neely sorriu.

— Aposto que agora estou bonita e elegante.

A enfermeira virou-se bruscamente e saiu. Um momento depois, o médico entrava no quarto.

— Sou o Dr. Keegan. — Pelo nome, soube que era o médico particular do Chefe. — Muito bem, conseguimos — disse, animadamente.

Claro que conseguimos, pensou ela. Sabendo que O Chefe receberia um relatório detalhado, apressou-se a sorrir.

— Fez uma grande tolice, moça. Que é que ganhou com isso?

Ganhei o meu papel no filme, pensou. Mas continuou apenas sorrindo, e deixou que duas lágrimas rolassem pelo rosto, enquanto dizia:

— É que eu não queria mais viver... se não fizesse o filme.

— Ah, sim... o filme. Vamos ver isso mais tarde. Agora não posso dizer se poderá fazê-lo.

— Claro que vou fazê-lo — gritou, sentando-se na cama.

— Você passou muito mal. Se eu achar que não deve fazer o filme, direi ao estúdio. Não posso deixá-la ter uma recaída.

Então era assim! Essa era a maneira que ele encontrou para safar-se da confusão. Claro que o médico iria dizer que não estava em forma para as filmagens.

Sorriu docemente.

— Bem, esperemos que o senhor me ache em forma. Porque foi ideia do Chefe que eu perdesse peso. E quanto mais rápido, melhor. Foi ele, também, quem me iniciou nas pílulas verdes — quando eu só tinha dezoito anos — e para que eu perdesse o apetite. E, muitas vezes, trabalhei uma semana sem comer, sob as ordens dele. Por isso, é melhor que o senhor me ache em forma. Vejamos: as provas para o guarda-roupa começarão em poucos dias. Estou suficientemente magra para poder comparecer a elas. Depois, terei uma semana inteira para descansar antes das filmagens.

No dia seguinte, advogado e agente estavam a seu lado. Saíra vitoriosa. Depois das declarações que fizera aos jornais, O Chefe não podia tirá-la do filme. Eram melhores do que qualquer contrato. A simpatia do público também estava com ela. Ela, porém, que não perdesse nem um dia, nem mesmo uma hora de filmagem, senão estaria frita, dissera o agente. O Chefe estava furioso com ela, e se vingaria mesmo que tivesse de sacrificar o filme. Neely lhe passara a perna, e ele não gostava de perder.

Ficou nervosa no primeiro dia de filmagem. Sam Jack-son também lhe parecera muito nervoso. Na verdade, todos pareciam muito nervosos. Mas havia estudado muito bem a cena. Sabia tudo de cor.

— Ensaiaremos a cena uma vez e, em seguida, filmaremos — sugeriu Sam. — Vamos começar pela cena da boate, em que você pede silêncio ao público e depois canta. Extras! Cada um no seu lugar. Vamos começar.

A cena foi preparada, ela representou o seu papel. Foi tudo bem. Por que estariam todos tão nervosos? E por que estaria Sam evitando os seus olhos? Não costumava ser assim. Ou estaria nervoso por saber que qualquer atraso poria fora do filme? Afinal, todos sabiam que O Chefe era um filho da mãe... falaria com Sam, no fim das filmagens do dia.

Calada, ficou olhando enquanto as câmaras eram colocadas nos lugares. Será que Sam estava louco pelos mil dólares diários? Ninguém podia filmar definitivamente uma cena da primeira vez. Céus, todos sabiam que, se conseguissem filmar uma cena por dia, estariam fazendo muito.

As luzes iluminaram o palco, tudo ficou pronto para a filmagem... Céus, ela nunca tinha filmado uma cena depois de um único ensaio. Ninguém fazia isso.

Saiu-se razoavelmente. Esqueceu algumas palavras, mas, como primeira filmagem, estava bem. Talvez até pudessem aproveitar alguma coisa dessa tomada. Dirigiu-se sorrindo para Sam quando a cena terminou.

— Você se esqueceu da letra — disse ele.

Ela sacudiu os ombros.

— Duas linhas só. A trilha sonora já está gravada. Filmaremos outra vez.

— Está bem. Mas esta será a última.

Por Deus, devia estar doente. Não terminaria nunca o filme, apavorado daquela maneira. Muito bem, o funeral era dele.

Voltou ao palco de filmagem. Dessa vez, tropeçou nos fios do microfone que devia carregar na mão.

— Corte! — gritou Sam. — Você está se sentindo bem, Neely?

— Estou ótima. Calma, Sam. Não me diga que esperava uma tomada definitiva já na segunda vez.

— Não, esperava consegui-la da primeira.

— Sam, você está doido? Sei que a coisa vai mal para o seu lado. Mas não precisa entrar em pânico. Até mesmo O Chefe daria risada, se soubesse que você pretende filmar uma cena inteira logo da primeira vez.

Ele a ignorou completamente e se dirigiu ao resto do pessoal:

— Aprontem-se para a cena número três.

Neely começou a sair do palco e depois parou bruscamente. Por Deus, isso seria fazer exatamente o que O Chefe tinha planejado. Voltou,, ficou tremendo. Neely O'Hara tendo de suportar aquilo de um diretor apavorado. Sabia que todos a estavam olhando. Ninguém jamais a havia tratado assim.

Voltou ao seu lugar no palco. Ficou sob as luzes tremendo, enquanto a maquiladora refazia a sua pintura. Cena número três. Disse as palavras que devia. Cena quatro. Cena cinco. Cena seis...

No fim da tarde, estavam na cena número quinze. Aquilo era ridículo. Nunca fizera mais de oito tomadas num só dia. Sam a forçava àquilo; não podia se lembrar de mais nada, nem de que sua vida dependia daquilo.

— Hora de jantar — gritou Sam. — Todos de volta aqui às sete horas.

Pausa para o jantar! Há muito tempo que não trabalhava à noite, e ele nem a tinha consultado. Foi até Sam.

— Presumo que vai filmar as cenas em que não apareço.

— Não, vou filmar a mesma cena até que você me dê um desempenho decente.

— Eu não, meu caro! Cooperei o dia todo. Cheguei aqui na hora certa e saio na hora certa. Não vou arrebentar o meu traseiro a fim de que você ganhe mil dólares a mais por dia. — E saiu do palco.

— Se você se retirar, porei isso no meu relatório.

— Como quiser — gritou ela. — Tenho os meus direitos.

Todos voltaram ao palco às sete da noite. Esperaram até às dez. Chamaram Neely ao telefone, de sua casa disseram que tinha ido dormir e não atenderia mais ninguém naquela noite.

Sam Jackson dispensou todos:

— Não filmaremos amanhã. Até segunda ordem.

Entrou no carro e se dirigiu até uma pequena casa na praia. Buzinou. A porta se abriu. Uma moça belíssima, com um longo cabelo negro, vestindo roupão, apareceu à porta. Acenou para que ele entrasse.

— Bem, Jannie, o papel é seu.

A moça abriu a boca num sorriso que mostrou os seus dentes perfeitos.

— Oh, Sam. Você conseguiu. Estou tão contente.

Virou-se, então, para o homem de cabelos brancos, que estava sentado numa poltrona, fumando calmamente.

— Ouviu o que Sam disse?

O velho sorriu. Depois, levantou-se e abriu o roupão da moça, revelando um corpo perfeito. Então, ele, que mal chegava aos ombros da jovem deusa, acariciou-lhe os seios com a mão queimada de sol.

— Olhe bem, Sam. Olhe, mas não toque. Isso é meu.

— Sim, senhor — respondeu Sam.

— Só quero que saiba. Você é jovem, pode ter certas ideias...

A moça abraçou-se ao velho.

— Mas eu o amo... você sabe disso.

— Muito bem, Sam. Belo trabalho. Convoque todo mundo para depois de amanhã. E mande um telegrama a Neely dizendo que não compareça. Assine o meu nome.

O homem de cabelos brancos encarou sério a moça.

Sam concordou com a cabeça e foi embora.

— Muito bem, agora você será uma grande estrela, Jannie Lord. Só precisa se lembrar de uma coisa: você me pertence. Nunca esqueça isso.

— Sim, senhor.

E caiu de joelhos, enquanto começava a acariciá-lo.

 

                                                                           ANNE

 

                                                 1957

Anne pôs o fone no gancho pensativamente. Kevin Gillmore estendeu o braço e pegou sua mão.

— Neely, outra vez? Deite-se aqui, vamos discutir o assunto.

Anne recostou-se em sua própria cama.

— Não é tão simples, Kevin.

— Notei que você ficou aborrecida com o telefonema. Aposto que ela quer. vir morar com você.

Vendo que Anne continuava em silêncio, prosseguiu:

— Você, no fundo, continua sendo a puritana da Nova Inglaterra, não é? Por que não disse logo: "Claro, Neely, tenho duas camas, mas é que o meu fulano vem muitas vezes passar a noite comigo"?

Anne pegou o texto que estivera estudando e respondeu:

— Porque não tinha razão para dizer isso. Estou preocupada. Neely está em péssimo estado.

— Por quê? Por ficar sentada ganhando dinheiro sem fazer nada durante sete meses e porque não quiseram negociar sua opção depois disso? Hoje em dia não é desgraça ficar sem um contrato de longa duração. Nenhum estúdio faz mais isso.

— Ela parecia tão desesperada... disse que quer deixar Hollywood.

— No momento em que ela chegar aqui, todos os produtores da Broadway estarão atrás dela. Ela pode também fazer televisão. O que quiser.

— Mas eu ouvi uns mexericos... — Anne pegou um cigarro.

Kevin impediu que ela o acendesse.

— Venha aqui, para que a gente não precise gritar um para o outro.

Anne sorriu.....

— Kevin, quem vai gritar sou eu, se for para a frente das câmaras sem ter decorado este texto.

— Usará os cartões.

— É melhor quando não uso. Gosto de tê-los lá para segurança; sai muito melhor quando sei de cor o que estou falando.

— Anne, você gosta mesmo de mim? — perguntou Kevin.

— Gosto muito. — Pôs o texto na cama e esperou pacientemente. Sempre começava assim.

— Mas não está loucamente apaixonada por mim. Ela sorriu.

— Essa espécie de amor é para os mais jovens, e fica bem para o primeiro amor.

— Ainda está apaixonada por aquele escrevinhador?

— Há muitos anos que não vejo Lyon. Ouvi dizer que está escrevendo roteiros para o cinema, em Londres.

— Então, por que não se apaixonou por mim?

— Gosto de sua companhia, Kevin. — Apertou-lhe a mão. — Gosto de você na cama. Gosto de trabalhar para você. Talvez isso seja amor.

— Se eu pedisse que casasse comigo, gostaria mais de mim?

Anne mediu bem as palavras para responder.

— No começo isso teria significado muito. Não gostava de ser apontada como a "garota de Kevin". Agora o mal já está feito... — completou sem emoção; já tinham conversado sobre isso tantas vezes...

— Que mal é esse, afinal? Hoje você é famosa. É conhecida em toda a parte como a Garota Gillian.

— E, também, como a garota de Kevin. Agora não importa. Mas eu queria tanto um filho... na verdade, ainda quero.

— Anne — ele saiu da cama e começou a andar pelo quarto —, você tem agora trinta e um anos. Não acha que é um pouco tarde para começar a ter filhos?

— Conheço mulheres que tiveram o primeiro filho aos quarenta.

— Eu tenho cinquenta e sete. Tenho um filho adulto e uma filha casada, que me deu um neto, agora- com dois anos. Que achariam se me casasse com você e tivéssemos um filho, mais novo que meu neto?

— Muitos homens se casam tarde e começam família nova.

— Estive casado com Evelyn durante vinte e cinco anos. Que Deus a tenha em paz. E passei por tudo que se passa quando se tem filhos pequenos: babás, férias de verão, sarampo, fraldas, e não acho que terei paciência para passar tudo isso de novo. Agora que tenho mais liberdade e mais dinheiro do que posso gastar, quero ter uma vida fácil, sem responsabilidades, e uma mulher que esteja também livre para viajar comigo, divertir-se, enfim. Quando estive casado nunca pudemos nos divertir. Tudo era luta, então. Eu estava começando o meu negócio, Evelyn só cuidava de criar as crianças. Nunca viajamos além de um fim de semana em Atlantic City, de vez em quando, mesmo assim ela estava sempre preocupada com as crianças que deixara com a empregada. Quando as crianças cresceram, e eu prosperei nos negócios, era muito tarde, Evelyn já estava doente. Passei cinco anos vendo-a morrer cada dia um pouco. Quando fez um ano que ela tinha morrido, conheci você e soube imediatamente que era a mulher que eu queria.

Anne tentou sorrir.

— Estou contente por você ter me encontrado. Mas uma moça não sonha em ser a garota de alguém, apenas. Sonha também em ser esposa e mãe.

— Já pensei muito nisso, Anne. Sei que os meus filhos não aprovariam. — Sentando-se na beira da cama, junto a ela, continuou: — Além disso, acho que assim é melhor; uma vez casada, você ficará segura de mim e isso não é muito bom.

Kevin voltou à sua cama, e em poucos minutos estava perdido na consulta da página financeira do Times.

Anne voltou ao texto. Sabia que dentro de alguns meses ele voltaria novamente ao assunto, e tudo terminaria da mesma, forma. Kevin sentia-se culpado por não se casar com ela, mas, na verdade, ela já não se importava. Talvez fosse mesmo muito tarde para pensar em crianças. E uma certidão de casamento não proporcionava necessariamente a certeza ~de fidelidade ou de felicidade. Pensou em Jennifer e na pobre Neely.

Verdade que todos sabiam que era a garota de Kevin, era, também, a Garota Gillian, e ele é que fizera isso possível. Gostava do trabalho, mantinha-a ocupada e era lucrativo. Também gostava de Kevin. Não, era mais do que gostar. Talvez fosse amor. Não o amor que conhecera com Lyon... a união física com Kevin deixava-a absolutamente fria; muitas vezes se perguntou que atração poderia ele sentir por ela nessas circunstâncias. Quando se lembrava do selvagem abandono com que se entregava a Lyon, dos beijos profundos e dos abraços que se prolongavam noite adentro, então achava que sua relação com Kevin era absolutamente anti-séptica.

No começo, as relações de ambos tinham sido puramente comerciais. Gradualmente, viram-se envolvidos em um convívio social. Gostava da companhia dele e achara mais fácil aceitar os convites de um homem do que lutar contra o assédio de vários. Arme ajudara muito a sua indústria e Kevin tinha sido sempre muito paciente com sua inexperiência como modelo. Sem essa paciência, não teria conseguido o êxito que conseguiu. Ele estava sempre presente aos ensaios, conferia todas as luzes, ajudava-a quanto a entonação perfeita, auxiliava-a a escolher o vestido adequado. Em pouco tempo, dependia dos seus conselhos e do seu julgamento. Notava que um grande número de modelos praticamente se atirava aos braços dele, bem como belas divorciadas e estrelinhas de todo tipo, procurando subir. Sabia da paixão que lhe devotava uma ex-estrela de cinema, muito famosa, muito elegante. Kevin Gillmore poderia ter escolhido entre muitas, mas a queria. Conseguiu esquivar-se durante um ano e, como nesse tempo não tivesse encontrado ninguém que conseguisse sequer interessá-la, resolveu aceitar Kevin.

Lembrou-se da primeira vez que se uniram. Fora incapaz de fazer algo mais que se submeter. Permitiu que ele a tomasse, que se satisfizesse, nada mais. Ele nunca lhe pedira mais que isso. Às vezes, se esforçava para lhe dar uma resposta mais sentida e Kevin a aceitava como prova de paixão. Anne logo percebeu que, apesar de todo o cosmopolitanismo que o caracterizava, Kevin era um homem sem sofisticação alguma em relação ao ato do amor. Obviamente, se casara em estado de pureza e, certamente, a mulher devia ser igualmente casta e sem imaginação; com toda certeza, nunca tinham avançado ao limite de alguns beijos e do ato mecânico propriamente dito. Claro que depois da morte da mulher ele deve ter conhecido algumas garotas e, com certeza, algumas delas com muita experiência; ele, provavelmente, atribuía as outras formas de amor a mulheres de pouca moral. Anne era uma dama, assim como sua mulher. Por isso, aceitava a sua frigidez como o atributo normal de uma dama, e, como era cavalheiro, nunca ousara esperar mais do que isso.

Não, a vida com Kevin não tinha altos e baixos, e, provavelmente, era assim o verdadeiro amor adulto. Às vezes, Anne se julgava uma mulher de sorte. Havia muitas mulheres que passavam a vida sem jamais conhecer o amor que ela conhecera com Lyon Burke, e nunca conseguiram o amor sólido que experimentava com Kevin. Até o fato de não se ter casado com ele não era problema. Jamais o forçara a isso, e tinha certeza de que, se ameaçasse deixá-lo, ele a pediria imediatamente em casamento. Não, estava perfeitamente feliz com o estado das coisas, certa de que Kevin estaria sempre a seu lado.

Neely chegou na semana seguinte. Anne quase não conseguiu esconder o choque que lhe causou a transformação da amiga. Engordara muito, seu rosto estava fofo e, apesar de estar vestindo uma roupa muito cara, parecia desmazelada. O esmalte das suas unhas estava lascado, uma meia estava desfiada, e ela parecia toda amarrotada. Mais que tudo, parecia ter algo de morto em seu semblante. Neely não brilhava mais como antes. Seus olhos ficavam mortiços quando falava.

Foi uma ouvinte atenta; Neely contava as suas penas, os planos diabólicos do Chefe, os casamentos fracassados, os males de Hollywood... Anne falou muito pouco de si. Falou do seu trabalho e da sua amizade com Kevin; e quando Neely perguntou, com um vestígio de sua voz de menininha, se dormiam juntos, pareceu contente quando Anne respondeu afirmativamente.

Kevin foi um anfitrião perfeito. Se a presença de Neely interferiu em sua vida particular, soube esconder muito bem a irritação. Levou as duas moças a todos os espetáculos e boates da cidade. Neely sempre causava sensações nos lugares aonde iam. Parecia reviver com os aplausos. Deixou de beber, comprou novas roupas, perdeu cinco quilos em duas semanas, e raramente tomava mais de três pílulas para dormir. Seus olhos começaram a brilhar novamente e ela voltava a ser a garota cheia de vivacidade que Anne conhecia.

Numa noite de setembro, quando saíam de um teatro, uma enorme multidão cercou Neely, impedindo-a de entrar no táxi. Rindo e acenando para todos, ao mesmo tempo que assinava autógrafos, Neely estava sendo arrastada pelos fãs, quando Kevin, ajudado por um guarda, conseguiu abrir caminho até o táxi.

No táxi, Kevin passou o lenço pelo rosto e sacudiu a cabeça encantado.

— É fantástico! Se eles ficam tão loucos só para vê-la, o que não fariam se você cantasse!

— Desmaiariam em êxtase — riu-se Neely. — Na verdade, meu público sempre foi louco por mim. Havia filas enormes no Radio City para todos os meus filmes. O mal é que meus filmes sempre saíram caros demais. O público sempre gostou de mim.

Kevin continuou olhando para ela de um modo estranho e sua voz tremia quando disse:

— Você tem razão. Todos os seus filmes sempre tiveram grande êxito. O seu público ainda a adora e a quer. Neely... façamos um espetáculo para a televisão. Eu patrocinarei. Vou comprar uma hora inteira. Por Deus, tenho certeza de que será uma sensação.

— Você está brincando? Eu, fazendo televisão? Uma hora inteira... ao vivo, sem possibilidade de voltar atrás e filmar novamente se não sair bem?. Céus, eu morreria.

— Se você cantasse as canções que lançou não precisaria temer nada — insistia Kevin. — Nada mais que isso: você ali, parada, cantando as suas canções.

— Esqueça isso — respondeu Neely. — Já ouvi falar que essas câmaras de televisão fazem a gente parecer mais gorda e mais velha. E, afinal, para quê? Meus agentes estão negociando um contrato para três filmes com a Metro.

À medida que as aparições de Neely em público continuavam a gerar verdadeira onda de excitação, Kevin ia ficando obcecado com a ideia.

— Tente convencê-la :— pedia a Anne. — Ela poderá ensaiar durante quatro semanas. A companhia pretende introduzir um novo produto no mercado e essa publicidade valeria milhões para a Gillian.

— Mas não posso forçá-la, se ela está com medo — dizia Anne. — Se alguma coisa sair mal, eu me sentirei responsável.

— O que poderia sair mal? Afinal, ela não.- é uma dessas atrizinhas sem talento fabricadas por Hollywood. Neely cresceu dentro do teatro de variedade, trabalhou na Broadway, tem muita experiência. A televisão está cheia de gente sem talento algum, que da noite para o dia se transforma em grande astro só porque os verdadeiros artistas como Neely não se decidem a arriscar. E olhe, não estou pedindo uma série de programas, apenas um grande espetáculo. E isso será muito bom para ela também.

— Concordo, Kevin, mas você é quem deve lhe vender a ideia. Eu sou apenas amiga dela e quero continuar.

Kevin falou sobre o assunto muitas vezes mais e Neely sempre se negava com bom humor. Dizia que estava gozando suas primeiras férias na vida, seu primeiro contato com os fãs, uma compensação tardia dos longos anos em que esteve enclausurada, trabalhando nos estúdios. Kevin, entretanto, aproveitava todas as ocasiões para que Neely assistisse a espetáculos que a faziam recordar o seu passado. Comprou entradas para a estreia da nova peça de Helen Lawson, esperando que ao vê-la, no palco, Neely sentisse toda a excitação que representava trabalhar para uma audiência.

A estreia de Helen foi um grande acontecimento. Estivera desaparecida da Broadway durante um longo período, em que esteve novamente casada, desta vez com um rico fazendeiro da Jamaica. Na época do casamento, dera numerosas entrevistas e fizera solenes declarações de que havia, finalmente, encontrado "o verdadeiro amor de sua vida". Todos os jornais publicaram fotografias de Helen pendurada ao braço de um senhor grisalho. Ela ia vender seu apartamento em Nova York, e todos os móveis, para assumir o humilde posto de dona-de-casa na Jamaica. Essa vida maravilhosa não durou mais de seis anos. Helen voltou e foi, outra vez, assunto de primeira página. Aquilo não passava de "uma pequena cidadezinha tropical, repleta de gente rica, que não tinha o que fazer, e de pessoas sem importância". Toda gente cuidava de mexericos e de se embriagar. O "homem maravilhoso" não passava de um sujo que bebia demais e tinha ligações com inúmeras mulheres. Ela obteve um divórcio mexicano e foi, imediatamente, contratada para estrelar um novo musical.

Houve, ainda uma vez, uma típica estreia de Helen Lawson. Todas as pessoas certas estavam na audiência, ansiosas por aplaudir e dar as boas-vindas à "rainha". Os aplausos foram magníficos quando ela surgiu em cena; mas, após dez minutos de espetáculo, o ar parecia ter ficado "pesado" no teatro. Kevin olhava para Neely, sentada na beira da cadeira, examinando atentamente Helen. Perdeu as esperanças de vê-la entusiasmada quando Neely sussurrou:

— Céus, pensei que ela fosse velha quando a conheci; vendo-a agora posso dizer que ela era uma adolescente.

Kevin teve de admitir que Neely tinha razão. Helen não mais beirava a meia-idade; era definitivamente uma senhora de meia-idade. Tinha engordado muito, embora as pernas continuassem bonitas e ela mostrasse com elegância o cabelo negro.

— Meninos, ela praticamente andou mergulhando em potes de tintura — murmurou Neely. — Não que eu não goste de cabelo preto, mas essa cor de ébano está tão negra que até parece piada.

— Devia usar os produtos Gillian para pintura — comentou Kevin. — Pelo menos dão um ar mais natural.

— Nada mais pode ajudá-la — sussurrou Neely. — E, desta vez, nem o argumento da peça é bom. Por que será que aceitou fazer isso? Afinal, é uma mulher muito rica.

— Que mais poderia fazer? — disse Kevin cuidadosamente. — Uma atriz só está viva quando está representando.

— Ora — disse Neely, batendo-lhe com a mão —, não me venha com esses velhos clichés.

— A peça ainda pode melhorar — interrompeu Anne.

— Não, minha cara, é um fracasso e eu posso senti-lo — disse Neely.

Tinha razão. Anne chegou a simpatizar com a senhora de meia-idade que lutava valentemente para fazer o papel de mocinha romântica. Sua voz continuava forte, como sempre; percebia-se nela, porém, um leve tremor, à medida que a peça avançava. Helen pôs tanta energia em seu papel que parecia querer salvar a peça com a própria vida.

No final, foi chamada várias vezes ao palco. O público ainda fazia questão de homenagear a sua rainha. Todavia, os comentários ouvidos à saída foram bastante reais: "o primeiro fracasso de Helen...", "a culpa não foi dela, mas do texto...", "a direção foi péssima...", "a Helen de antigamente podia transformar qualquer texto em, sucesso. Lembram-se da Senhora do Sol? Muito bem, o texto não valia nada, a Helen salvou a peça...", "convenhamos, toda atriz tem direito a um fracasso...", "claro, não na idade dela, já é muito tarde para se refazer...", "procedem com mais cuidado com os cavalos de corrida, que, pelo menos, são postos a reproduzir...", "pelo que ouvi dizer, Helen não acharia a ideia má... ", "acredito, mas com quem? ...", "ainda acho que ela tem belas pernas e um cabelo lindíssimo...", "claro, alguma coisa devia sobrar...", "meu querido, eu estudei música no colégio, e posso dizer que havia um vibrato na voz dela...".

— Não posso ir cumprimentá-la — disse Neely. — Sei que ela deve saber que estou aqui, mas que é que posso lhe dizer? Que os cenários estavam muito bonitos?

— Vocês querem ir ao Sardi's? — perguntou Kevin. — É quase certo que ela irá lá receber as homenagens de costume.

— Quer apostar? — respondeu Neely. — Ouça, Helen sabe melhor do que ninguém que bomba foi essa estreia. E não pretende sentar-se no Sardi's à espera das edições matutinas do Times e do Tribune. Além disso, Franco Scalla vai estrear esta noite, no Persian Room. Foi uma sensação no Ciro; fui vê-lo todas as noites. Não perderia, por nada, sua estreia em Nova York.

Conformado, Kevin telefonou para a boate e reservou uma mesa. Quando chegaram lá, verificaram que o lugar estava lotado com a mesma gente e os mesmos colunistas que estiveram na estreia de Helen. Quando o maître viu Neely, mandou colocar apressadamente uma mesa, à frente de um grupo que tinha pago regiamente pelo lugar. Podia-se notar a excitação que tomou conta de todos quando Neely entrou.

Kevin pediu champanha, Neely mal tomou um gole. Anne ficou olhando para o público e pensando no novo anúncio que devia estudar para o dia seguinte. Era tarde, via-se que o espetáculo não ia começar na hora anunciada. No dia seguinte, teria de usar os "cartões". Olhou para as pessoas que se aglomeravam na porta. Nada mudava nas estreias desse género. Sempre as mesmas pessoas, impacientes por serem encaminhadas às mesas, oferecendo dinheiro, disfarçadamente dobrado, para obter melhores lugares; os mesmos empregados, que se apressavam a colocar novas mesas à volta da pista de dança, e que fingiam não ouvir o protesto dos ocupantes das mesas cuja visão era prejudicada. As mesas que, originalmente, faziam a primeira fila agora eram parte da terceira. A pista de danças não chegava a ter metade do seu tamanho primitivo. Quando parecia impossível colocar mais alguém na sala, Anne percebeu que colocavam mais uma mesa no lado oposto ao deles. .

Helen fez sua entrada, acompanhada de um esguio jovem. Era um dançarino da peça, de uma beleza feminina, idiotamente feliz por ser o centro da atenção geral. Helen devia saber que aquele rapaz tinha um "companheiro de quarto"; o rapaz, entretanto, representava, sem falhas, o papel de acompanhante perfeito. Segurava a mão dela, ouvia atentamente tudo o que ela dizia, ria no momento certo, e extasiava-se com as apresentações e cumprimentos que Helen distribuía entre os amigos. O maître respondia com uma paciência resignada às perguntas que Helen fazia em voz alta. Através da sala, Anne pôde ouvi-la dizer:

— Sei que este é um daqueles lugares que não servem nada durante os espetáculos; por isso, traga logo algumas garrafas antes que seja muito tarde.

Finalmente, as luzes diminuíram e Franco Scalla foi apresentado, um cantor de voz possante, principalmente quando cantava música italiana. Todos já tinham lido os elogios que a crítica lhe fizera e estavam ansiosos por fazer dele um astro consagrado. Forçaram-no a cantar novamente alguns números. Então, depois de um encantador discurso de agradecimento, que o seu sotaque fazia ainda mais atraente, ele se dirigiu a uma das mesas e, solenemente, introduziu a "gigante da comédia musical, a rainha das rainhas, a grande dama, a máxima estrela há muitas décadas... Helen Lawson".

Helen forçou um sorriso mecânico. Levantou-se e acenou bem-humorada para a audiência. Os aplausos foram muitos e prolongados, cheios de respeito. Em seguida, Franco voltou-se e apontou para Neely; todos seguiram o seu gesto. Quando falou, tinha a voz suave, cheia de admiração:

— E agora, a estrela que todos nós amamos... a cantora que as cantoras adoram... — Parou, como se não lhe ocorressem outros adjetivos adequados para Neely; sorriu e disse com simplicidade: — A Srta. Neely O'Hara.

O aplauso foi ensurdecedor. Algumas pessoas se levantaram e, de repente, todos estavam de pé, clamando, implorando, que ela cantasse uma canção. Kevin também se levantara. Anne não sabia o que fazer. Notou que Helen e o jovem dançarino continuavam sentados; batiam palmas displicentemente; o dançarino olhava para ela de modo idiota, esperando por uma ordem qualquer.

Neely, finalmente, se levantou e foi até o microfone. Agradeceu a todos e procurou se desculpar por não cantar. Quando a audiência recomeçou a aplaudir mais forte, virou-se para a orquestra graciosamente e, depois de uma breve confabulação a respeito do tom e do compasso, foi para o centro do palco e começou a cantar.

Neely brilhou. A voz dela era clara e alta e a audiência reagiu como se fosse uma seita de fanáticos assistindo a uma ressurreição. Cantou seis canções antes de poder deixar o palco. Voltou à mesa com os olhos estáticos, molhados de lágrimas de emoção. Colunistas vieram até a mesa para felicitá-la, senhoras ricamente vestidas pediram-lhe autógrafos "para minha filhinha". Neely, prazerosamente, assinou menus, cartões e pedaços de papel. Quando o dilúvio acabou, tomou todo um copo de champanha.

— Sabem de uma coisa. Sou bem capaz de vir a gostar disto.

— De cantar numa boate? — perguntou Kevin, esperançosamente.

— Não. De tomar champanha. É muito bom. Claro que é mais seguro tomar uísque ou vodca, mas esta noite é uma exceção. Só que é melhor não fazer disto um hábito, pois engorda demais. Olhem para o velho encouraçado do outro lado: tudo aquilo é resultado de sólidas vindimas.

— Neely, você esteve grande esta noite — comentou Kevin.

— Claro. É fácil ser grande com essas canções. Hoje em dia não escrevem mais disto.

— Mas é isso que você faria no meu espetáculo.

— Voltando sempre ao mesmo ponto, hem? — sorriu Neely.

— Neely, o público a adora...

— Claro. E adoram os meus filmes também. Será minha culpa se os sindicatos e a indústria fazem com que os filmes saiam tão caros?

— Dizem que não é só isso, Neely...

Os olhos dela se fecharam e ela perdeu um pouco do bom humor.

— E posso saber o que é que dizem exatamente, meu senhor?

— Dizem que você é que fazia os custos subirem... que você não tem muito senso de responsabilidade... que você perdeu a voz.

Anne se mexeu nervosamente na cadeira, tentando lançar um olhar de aviso a Kevin, que olhava firmemente para Neely.

— Muito bem, você acaba de me ouvir cantar. Está vendo que não se deve acreditar em tudo que os jornais dizem.

— Não acredito porque a ouvi esta noite, e nenhuma das pessoas que estão aqui acredita. Mas são poucas pessoas, Neely. O público, em geral, acredita naquilo que lê. E também os produtores de cinema.

O sorriso dela se desvaneceu.

— Ouça, estou tendo uma noite maravilhosa. Já me levantei e cantei para pagar o jantar. Que mais quer de mim?

— Um espetáculo na televisão.

— Lá vamos nós novamente — Neely suspirou.

— Estou falando sério, Neely. Você convenceu a todos nós esta noite de que ainda pode cantar como um anjo. Por que não convencer o mundo? Já imaginou quantas pessoas poderá alcançar com um grande programa de televisão? Eu lhe daria publicidade com semanas de antecedência. O país inteiro estaria assistindo...

— Esqueça isso — disse Neely, tomando mais champanha. — Ei, a garrafa está vazia. Não quer pedir mais?

Kevin fez sinal ao garçom para trazer mais uma garrafa, Anne olhou para o relógio. Neely pegou Anne pelo braço.

— Ora, vamos. Não seja desmancha-prazeres. Esta é a minha grande noite.

— Mas já é uma e meia, e eu tenho um ensaio amanhã muito cedo.

— E daí? — riu Neely. — Anne, afinal, são só anúncios. Não é como se você estivesse estrelando um filme de De Mille. Além disso, conheço o seu patrão e posso arrumar as coisas para você. — Piscou para Kevin, e continuou: — Vamos terminar esta outra garrafa, está bem? Primeiro vamos empoar nossos narizes.

Anne suspirou e seguiu Neely até o toalete. Neely aceitou, com modéstia, a adulação das mulheres que estavam na saleta, enquanto Anne ficou pacientemente esperando que todas fossem embora. Finalmente, ficaram sozinhas. Neely sentou-se diante de um espelho e começou a pentear os cabelos.

— Ouça, Anne. Tire Kevin de cima de mim. Acho que ele é um ótimo sujeito, e' tudo isso, mas ultimamente parece um disco quebrado. Diga-lhe, de uma vez para sempre, que não vou fazer espetáculo de televisão.

— Bem, você não pode culpá-lo por tentar — disse Anne.

— Certo. Agora já chega. Além disso...

A porta se abriu e Helen Lawson entrou. Por um longo momento, ela olhou friamente para Anne; depois, como que mudando de ideia, acenou, dizendo:

— Que bom vê-la de novo, Anne. Ouvi dizer que você agora é uma grande estrela de televisão.

Anne tentou sorrir e achar uma resposta adequada. Helen poupou-lhe o trabalho, sentou-se imediatamente ao lado de Neely e disse, batendo-lhe nas costas:

— Você esteve grande esta noite, garota. Quem me dera ter um Cole Porter ou um Irving Berlim naquela droga que eu fiz esta noite. Ouvi dizer que você estava no teatro. Por que não veio me cumprimentar?

— Bem, é que nós saímos para vir aqui... Você sabe como é difícil manter uma reserva — gaguejou Neely.

— Ora, não me venha com essa m... — disse Helen. — Com os diabos, é claro que ninguém gosta de ir aos bastidores depois de uma droga. Como é que fui deixar que me convencessem a fazer aquela porcaria... Enfim, esta é a história da minha vida. Tudo porque resolvi dar a dois compositores desconhecidos uma grande oportunidade.

O sorriso de Neely era amistoso.

— Bem, claro que alguém precisa ajudar os novos. E se você não consegue fazer deles um sucesso, quem é que pode?

— Eu sempre me arrisco. E é assim que nascem as estrelas, como você. Arrisquei quando me livrei de uma cantora de cabaré para dar oportunidade a uma garota; mas nunca recebi agradecimento por isso.

O rosto de Neely se anuviou.

— Não foi a sua peça que me levou a Hollywood, Helen. Foi o meu espetáculo na boate.

— E como é que foi parar lá? Você me usou como escada.

— Muito bem, Helen, eu me lembro de ter agradecido todas as noites, mas agradeço novamente. Obrigada, Helen. Anne, vamos embora.

— Não admito que me trate assim. Leio os jornais e sei que é hoje uma cantora sem contrato. Para a coitadinha a quem eu dei uma oportunidade, você até que foi bastante longe. Mas...

Neely voltou-se e olhou para Helen, com os olhos faiscantes de raiva. A atendente do toalete chegou mais perto, fascinada com a quebra da monotonia.

— Vamos, Neely — disse Anne rapidamente. — Kevin está esperando.

Neely não tomou conhecimento da amiga e perguntou a Helen:

— Do que foi que você me chamou?

Helen se levantou e lançou-lhe ao rosto:

—- Coitadinha! Que mais pensa que era? Uma atrizinha de terceira classe, uma vagabunda que nunca foi à escola. Fiquei até surpresa de que você fosse capaz de ler as letras das músicas. E só deixei que entrasse na minha peça por ser amiga de Anne.

— Você, amiga de Anne! Você só queria que ela fizesse o papel de alcoviteira para você.

— Pare de dizer asneiras. Anne e eu sempre fomos amigas. Tivemos um desentendimento, mas estava só querendo ser amiga dela quando quis impedi-la de se envolver com aquele bastardo inglês. Tudo o que fiz foi para o bem dela. — E falando com Anne: — No fim, demonstrou ser mesmo um bastardo. Não foi, Anne? Quer dizer que eu tinha razão. Sempre continuei achando que você é uma de minhas melhores amigas.

— Vamos, Anne — disse Neely. — Este rasgar de sedas está me deixando sensibilizada. Aqui... (e fez um gesto obsceno).

Helen ignorou Neely e mostrou o seu antigo sorriso para Anne.

— O que eu disse é verdade, Anne. Nunca tive uma verdadeira amiga. Sempre gostei de você, anjo, e estou tão emocionada com o seu sucesso. Agora que estou de volta, poderemos sair juntas, como nos velhos tempos.

— Vamos, Anne — interrompeu Neely.

— Para que tanta pressa? — perguntou Helen-inocentemente. — Aonde é que vai? Pelo que ouvi dizer, você dispõe de muito tempo, no momento.

— Depois que saírem as críticas de sua estreia de hoje, você também terá muito tempo livre — respondeu Neely.

Helen sacudiu os ombros.

— A minha peça poderá 'receber péssimas críticas, mas amanhã eu terei, no mínimo, meia dúzia de ofertas para estrelar novas peças. E você, o que é que tem na agenda? Mais alguns concertos gratuitos, como o desta noite?

— Com o vibrato que exibiu esta noite, dentro de pouco tempo você não poderá nem cantar de graça. E, além disso, não me lembro de ter ouvido alguém pedir que cantasse esta noite.

Um leve tom de vermelho subiu ao rosto de Helen. Quando falou, sua voz era aguda:

— O que é que uma vadiazinha acabada sabe sobre um vibrato? Tenho estado na crista da onda durante trinta anos e aí continuarei pelo tempo que desejar. Quanto a você, melhor mesmo que continue cantando de graça, pois é tudo que conseguirá. Claro que aplaudirão. Qualquer audiência aplaudirá qualquer número extra que não esteja pagando. Na verdade, você está acabada. E agora saia do meu caminho; você pode não ter para onde ir, eu tenho um cara esperando por mim ali fora.

— Um cara! — Neely riu. — É aquilo que você chama de cara? É melhor mesmo que você não o deixe esperando. De agora em diante, tudo o que você poderá conseguir para acompanhá-la a algum lugar será um desses afeminados, isto é, se você pagar as contas.

— Você deve conhecer tudo a respeito deles... esteve casada com um! E olhe que nem a ele você conseguiu conservar. Nem mesmo com os gémeos para ajudá-la. Por falar nisso, eles também são afeminados?

Levantou-se para sair, Neely bloqueou-lhe o caminho.

— O que foi que você disse a respeito dos meus filhos? — A voz de Neely tremia.

— O que é que há de errado em ter dois pequenos afeminados? Ouvi dizer que são muito bonzinhos para com as mamães. E agora, saia do meu caminho.

Tentou passar por Neely e alcançar a porta.

— Não vai sair assim, seu trapo velho. — Neely pulou atrás dela e a puxou pelos cabelos; ficou espantada com a coisa que tinha nas mãos, ao mesmo tempo que Helen levava as mãos à cabeça, horrorizada.

— Uma peruca! — gritava Neely, segurando os longos cabelos negros, à altura dos olhos de Anne. — Céus, o cabelo é tão falso quanto ela própria!

Helen tentou arrancar a peruca das mãos de Neely, que pulou para trás.

— Devolva o meu cabelo, sua vadia — gritava Helen. — Custou trezentos dólares.

Neely colocou a peruca na cabeça e começou a valsar pela sala.

— Ei, o que acham de mim morena? Helen corria atrás dela.

— Me dá isso, sua maldita!

— Fica muito mal em você, Helen. Acho ótimo esse corte de cabelo à escovinha.

Helen passava as mãos na cabeça e dizia:

— Aqueles cabeleireiros da Jamaica não sabiam trabalhar com tinturas; quando fiz uma permanente aqui, no outro dia, meu cabelo caiu todo. Agora, venha cá e devolva a minha peruca, Neely.

Neely correu para um dos reservados. Helen tentou impedi-la, mas a outra foi mais rápida e se fechou lá dentro. Daí a pouco, o barulho da descarga.

— O que está fazendo? — gritou Helen e voltou-se para Anne. — Veja, ela a jogou na privada. Vou matar essa vagabunda.

Helen gritava palavrões, Anne e a atendente tentavam fazer com que Neely raciocinasse. A única resposta que obtinham eram as descargas, uma atrás da outra. Helen batia na porta, Neely ria lá dentro. De repente, ouviram um borbulhar estranho, seguido de um barulho maior, e um rio de água começou a escorrer por debaixo da porta, inundando a sala.

Neely abriu a porta e saiu andando na ponta dos pés, rindo histericamente.

— Oh, que inferno! — ria. — Essa coisa ridícula nem ao menos some pelo encanamento.

— Está estragada — dizia Helen. — Que é que faço agora? Como posso voltar lá novamente? — Na mão da atendente, a peruca, completamente molhada, parecia um animalzinho ensopado.

Anne ficou olhando para ela, sem falar, enquanto a água escorria pelo chão.

A atendente quebrou o silêncio para dizer:

— Senhorita O'Hara, isso não foi bonito. A senhora arruinou o encanamento.

Neely riu.

— Mande a conta. Valeu a pena.

Depois pegou a bolsa, deu uma nota de cinco dólares para a mulher e disse a Anne:

— Vamos, deixemos a velha águia careca chorar em paz. Espero que o seu mancebo não congele aí fora sozinho.

Anne seguiu-a. Quando estavam fora, disse a Neely:

— Bem, não acho que foi justo o que você fez.

— Justo? Devia tê-la matado.

— De qualquer maneira, não acho certo. Ela não poderá sair de lá naquele estado, até que todos saiam.

— Muito bem, então perderá uma noite e amanhã poderá comprar outra peruca. Amanhã ainda me lembrarei das coisas que ela disse sobre os meus filhos. Então, quer dizer que estou fracassada, que só poderei cantar de graça, hem? Essa miserável... — Dirigiu-se diretamente à mesa e perguntou: — Kevin, você ainda quer fazer o tal programa?

O rosto de Kevin abriu-se num largo sorriso.

— Muito bem, você acaba de fechar um bom negócio — disse Neely, servindo-se de champanha. — Prepare o contrato e submeta-o à aprovação dos meus agentes e dos meus advogados.

— Amanhã, bem cedo, cuidarei disso — respondeu Kevin, feliz.

Enquanto falavam do espetáculo, a boate foi ficando vazia. Neely e Anne olhavam o rapaz que acompanhava Helen, com os olhos grudados na porta do toalete.

— Que será que aconteceu a Helen Lawson? — disse Kevin, enquanto pagava a conta. — Provavelmente está envolvida com algum de seus fãs.

— Vai ver que um deles arrancou os seus cabelos — disse Neely, inocentemente.

Quando passaram pela mesa de Helen, ao sair, Anne percebeu que o rapaz mexia freneticamente nos bolsos, para juntar dinheiro e pagar a conta que o garçom apresentava. Kevin apertou o braço de Anne e disse, dirigindo-se a Neely:

— Você não vai mudar de ideia a respeito do programa, não é, Neely?

Ela enfiou alegremente o braço no de Kevin.

— Claro que não. Vou arrebentar o meu coração de tanto cantar para você e o seu produtorzinho; só que você vai me pagar um monte de dinheiro por isso.

— Com o máximo prazer.

Kevin olhou para Anne com gratidão. As mulheres eram engraçadas. A gente podia pedir uma coisa até de joelhos e não conseguir nada; deixe que duas mulheres fiquem dez minutos empoando o nariz, e tudo pode acontecer.

Kevin inundou os jornais com a propaganda do espetáculo de Neely na televisão. Neely foi entrevistada pelas maiores revistas e os colunistas de televisão concordavam que seria o maior acontecimento do ano. A nova forma de entretenimento estava ficando adulta. Finalmente, os telespectadores entrariam agora em contato com um talento genuíno.

Kevin contratou um dos melhores coreógrafos, um grande diretor e um ótimo produtor. Apressou a fabricação dos novos produtos, que seriam lançados com o espetáculo, previsto para o princípio de novembro. Prometia ser algo sensacional.

Neely mudou-se para um hotel, instalou lá um piano e passou o mês de outubro ensaiando, fazendo regime para emagrecer, trabalhando com disciplina férrea. Estava disposta a mostrar a Hollywood quem era, e obrigar Helen Lawson a engolir suas palavras. Então estava acabada... não tinha responsabilidade, só conseguia cantar de graça? Gostaria de ter visto a cara de Helen lendo os jornais. Todos os jornais noticiaram que Neely iria ganhar o maior salário já pago em televisão. Também não se cansaram de aplaudir sua coragem de enfrentar o novo veículo.

Neely não tinha receios. Claro que não havia, como no cinema, a possibilidade de refilmagem, o espetáculo seria ao vivo. Melhor ainda, assim mostraria a Hollywood e a todos do que era capaz. Entretanto, nas entrevistas, fez questão de parecer nervosa e amedrontada, tal como a Neely adolescente... "Claro que sentia medo..." Secretamente, tinha o êxito como certo. Cantaria doze canções, seis das quais do seu repertório. Tudo o que teria de dizer estava escrito em enormes cartazes, colocados à sua frente. Céus, se o pessoal de Hollywood soubesse que era tão fácil, a televisão estaria cheia de ex-artistas de cinema. Essas opiniões, Neely guardou só para si; na véspera do grande dia, tomou três comprimidos de Seconal. A prova dos vestidos começaria às dez horas da manhã, e ela chegou à hora certa, bem disposta a descansada. A primeira hora foi gasta com testes de maquilagem. O ensaio começou às onze e meia. Neely se desincumbiu do diálogo introdutório com um entusiasmo juvenil. Começou então a primeira canção. Quando deu início ao terceiro compasso, o diretor gritou:

— Corte!

Saiu da cabina e se dirigiu ao cenário.

— Neely, você está cantando para a câmara errada.

— Não sei o que quer dizer — disse Neely. — O que me compete fazer é cantar. A câmara é problema de quem a está operando.

— A câmara 1 estava focalizando você na introdução. Quando começar a cantar, deve se virar para a câmara 2.

— E qual é a câmara 2?

— A que tem a luzinha vermelha. Você canta a primeira parte da canção virada para ela, e se volta para a câmara 3 na hora do coro. Depois, novamente para a câmara 2.

— Céus, para que tantas câmaras?

— Querida, parece mais difícil do que é realmente. Lembre-se apenas de que a câmara com a luzinha vermelha é a que está focalizando você. Não há possibilidade de engano.

Neely recomeçou a cantar, prestando atenção nas câmaras. Tudo foi bem, mas perdeu de vista os cartões. Da outra vez, concentrada nos cartões, esqueceu de olhar para a câmara 3.

— Não se preocupe com os cartões — implorava o diretor. — Eles a seguirão. Preste atenção apenas nas câmaras e siga-as.

— É que eu estou acostumada a ser seguida pelas câmaras — lamentou-se Neely.

O diretor era muito paciente.

— Você vai conseguir. Vamos tentar de novo.

Houve mais dois ensaios. O rosto do diretor começou a demonstrar desespero.

— Neely, você ficou fora do alcance das câmaras por duas vezes.

— Mas tenho de me movimentar quando canto.

— Certo, garota. Façamos marcas de giz no chão, assim posso planejar a posição das câmaras.

— Não posso. Eu me movimento intuitivamente e sempre de maneira diferente.

E assim continuaram, hora após hora, ensaiando diante das câmaras. A maquilagem de Neely começou a escorrer e o cabelo-a grudar na cabeça. Às cinco horas da tarde, não tinham terminado o ensaio. O diretor deu alguns minutos de pausa para o jantar. Chegou perto de Neely e abraçou-a pelos ombros.

— Às seis horas faremos um ensaio tal como deverá ser o espetáculo, sem parar. Se você se enganar, continue cantando, temos de marcar o tempo. Em seguida, eu lhe comunicarei todos os erros e os cortes que deverão ser feitos; você terá tempo para maquilar-se e tomar fôlego antes de ir para o ar.

O ensaio final com o vestido pareceu a Neely um verdadeiro pesadelo. A luz vermelha das câmaras parecia pular constantemente,, e os cartões com as letras das músicas ficavam confusos debaixo das fortíssimas luzes. Começava a cantar uma canção com sentimento, sabendo que a entonação estava perfeita. Fechava os olhos..., de repente, abria-os em pânico. Lembrava-se de que não havia a maravilhosa câmara de Hollywood que registrava todos os seus gestos e que ninguém iria escolher as melhores cenas e juntá-las para o filme. Não. Agora havia apenas aqueles monstros de olho vermelho, que precisava seguir, e os enormes cartões com as palavras que ela perdia de vista cada vez que fechava os olhos. Onde estavam agora? Pulou uma frase da música, o diretor dissera para continuar assim mesmo... Deus, onde estavam os cartões? Na da esquerda, com a luzinha vermelha. Graças a Deus, a canção tinha terminado. E agora? Que dizia o cartão? Ah, sim; era a hora de Anne apresentar o produto. Graças a Deus, Anne já estava falando e ela podia respirar um pouco. Não, já devia estar nos bastidores, trocando de roupa, aquela era a pausa de três minutos. Lá estava a criada, acenando desesperadamente. Apenas três minutos para mudar de vestido, e Anne já estava na metade do anúncio...

— Não posso! — gritou. — Não posso fazê-lo! Como posso sentir uma canção, se tenho de me preocupar também com marcas de giz, câmaras e troca de roupas? Se acho, que devo fechar os olhos, então tenho mesmo de fechá-los... Não posso, não posso!

Kevin estava na sala de controle. Correu ao encontro do diretor. Os dois tentaram acalmar Neely.

— Não posso continuar. Farei o papel de uma idiota.

— Neely, você é uma profissional — implorava o diretor. — Quando o teatro ficar cheio de gente e você ouvir os aplausos, mudará de ideia.

— Não — soluçava ela. — Preciso de uma semana de ensaio com as câmaras. Não posso seguir oito coisas ao mesmo tempo e ser perfeita. Não posso me preocupar com marcas de giz e, ao mesmo tempo, observar os cartões e as câmaras. Não posso.

— Neely. — Anne pegou-a pelo braço. — Você se lembra daquela vez em Filadélfia? Você representou seu papel em Tocando as Nuvens no mesmo instante em que foi notificada.

— Eu não tinha nada a perder então — chorava Neely. — E era uma criança. Agora sou uma estrela, e se não for perfeita estarei acabada.

— Você estará ótima — repetia o diretor.

— Não e não! Não vou fazer o espetáculo.

— Neely, você tem de fazê-lo — desta vez era Anne. — O horário já foi comprado... começará dentro de uma hora.

— Eu não posso — continuava soluçando Neely.

— Então nunca mais conseguirá trabalhar — disse o diretor.

— E quem é que quer? Se eu nunca mais pisar num estúdio de televisão, ficarei feliz.

— Não falo só de televisão. Falo também do cinema, do rádio, do teatro... de tudo.

— Quem disse?

— Se você desiste de um espetáculo como esse, estará quebrando um contrato. Todos os sindicatos estão unidos para isso.

— E o que aconteceria se eu caísse morta?

O diretor sorriu friamente.

— Infelizmente, não acredito que esse seja o caso.

— Você não podia simplesmente anunciar que fui atacada de laringite? — pediu Neely.

O diretor suspirou.

— Neely, o médico do estúdio teria de examiná-la e, como a estação participa dos anúncios, o prejuízo seria tremendo. Agora, Neely, você tem uma hora para descansar antes do espetáculo. Vá para o seu camarim e não pense em nada. Descontraia-se e descanse.

Neely obedeceu e chamou rapidamente o hotel. Dez minutos depois, um mensageiro lhe entregava' um frasco cheio de pílulas vermelhas.

— Agora, minhas bolinhas — disse Neely, olhando para as pílulas — façam o seu trabalho direitinho; desta vez não terão uísque para ajudá-las, para que não digam que eu estava embriagada. Engoliu rapidamente seis, enquanto se deitava e dizia baixinho: — Vamos, bolinhas. Hoje ainda não comi quase nada e vocês trabalham depressa num estômago vazio...

Em dez minutos, começou a sentir a cabeça leve, mas não achou suficiente. Assim ainda seriam capazes de acordá-la, com um café bem forte... Foi até o banheiro e tomou mais duas. Ouviu ainda os sons do público, que começava a encher o auditório, e da orquestra afinando os instrumentos. Engoliu mais duas. Ouviu alguém chamá-la pelo nome, ela já estava flutuando bem longe dali...

Tiveram de projetar um filme em lugar do espetáculo. Anunciaram que o show de Neely O'Hara não seria transmitido devido a dificuldades técnicas. Kevin não denunciou o procedimento de Neely, mas a estação se encarregou disso. Acharam que Neely deveria ser um exemplo, pois uma porção de grandes cartazes tinham sido contratados para a temporada e, se ela não fosse punida, outros desastres poderiam ocorrer. Por isso, recebeu uma suspensão de um ano. Durante esse período, não poderia trabalhar no cinema, no rádio, em teatro, boate ou televisão.

No começo não se importou. Voltou para a Califórnia e permaneceu à beira de sua piscina. Os jornalistas a atacavam sem piedade. Declararam que ela era uma temperamental, insinuaram que estivera bebendo, e todos concordavam em que a carreira dela estava encerrada.

Às vezes permanecia dias inteiros na cama, até que sua governanta fazia com que se levantasse e fosse à piscina. Às vezes, de madrugada, saía de carro, à procura de um bar, onde pudesse tomar cerveja e misturar-se às pessoas, com um lenço amarrado à cabeça, sem pintura, para que ninguém a reconhecesse. Não se importava, tinta bastante dinheiro e podia ficar um ano sem fazer nada. Quando passasse o período da suspensão, voltaria à forma-.antiga, e talvez fizesse um espetáculo na Broadway. Seria até divertido. Surpreenderia a todos. Enquanto isso, poderia comer tudo que quisesse... beber também. E havia sempre as maravilhosas bolinhas amarelas e vermelhas. Tomava até umas novas, de listras azuis.

Anne ficou terrivelmente chocada com o procedimento de Neely. Seu instinto lhe dizia que deveria tê-la seguido à Califórnia, pois não estava em condições de ser deixada sozinha. Entretanto, seus compromissos na televisão não podiam ser ignorados, nem sua lealdade para com Kevin. Sentiu-se pessoalmente culpada pela desistência de Neely, que custara uma pequena fortuna. Ele teve de pagar pelo horário, pelos anúncios, pelos músicos, por tudo.

À medida que as semanas foram passando, sua preocupação por Neely foi anulada pelas constantes crises na televisão. Fazia testes em cores e, algumas vezes, o calor dos holofotes era simplesmente insuportável. Mesmo assim, nunca pensara em deixar a televisão, pois na verdade não havia outra coisa que desejasse fazer. Algumas vezes apareciam notícias nos jornais a respeito de Neely; algumas falsas, outras verdadeiras. Parecia que todos estavam convictos de que Neely passava por uma fase de autodestruição deliberada, e Anne não conseguia mais associar a imagem da atual Neely, nervosa e torturada, com a garota viva e feliz com quem morara, na Rua Vinte e Dois. Aquela era a Neely verdadeira. O fantasma que Hollywood criara desapareceria um dia, e a antiga Neely retornaria.

Parecia impossível que um ambiente pudesse mudar tanto uma pessoa. Ela, ao contrário, sentia-se igual à que chegara a Nova York, dez anos atrás. Sabia, porém, que se analisasse as coisas profundamente não acharia Nova York um conto de fadas. A Quinta Avenida já não lhe despertava emoção alguma; nem mesmo a gigantesca árvore de Natal, erguida no Rockefeller Center, um espetáculo. Todas as estreias, nos teatros ou nas boates, contavam sempre com as mesmas pessoas. Ainda assim, era um mundo bem mais interessante que o de Lawrenceville. Lá as pessoas hibernavam, enquanto a vida passava por elas. Pelo menos ali estava em cena, tomando parte nas coisas que aconteciam. Mas faltava alguma coisa. Às vezes, olhava-se demoradamente no espelho, tentando ver-se objetivamente. Teria mudado? Agora usava mais maquilagem. Parecia incrível que tivesse ido ao Morocco usando apenas um pouco de pó e o batom. Agora sentia-se nua se não estivesse usando pintura, sombra nos olhos e lápis nas sobrancelhas. Quanto às roupas, ainda insistia que fossem simples e de cores neutras; as etiquetas, porém, eram de costureiros famosos. Há muito tempo trocara o casaco de vison de Jennifer por um outro, desenhado pelo mais famoso peleteiro de Nova York.

Certa vez, por um rápido momento, o tempo parecera não ter passado, a julgar pela expressão com que a olhara Allen Cooper. Encontraram-se acidentalmente no Colonial. Ela estava com Kevin e Allen lhes apresentou a esposa, uma jovem muito bonita, que usava um anel idêntico ao que Allen lhe dera um dia. Naquele momento, chegou até a pensar que o rapaz devia ter uma gaveta cheia deles, um para cada ocasião. Muitas vezes tinha imaginado o que faria, ou o que sentiria, se subitamente encontrasse Allen. E tal como acontece com as coisas longamente antecipadas, quando o encontro se deu, foi tudo natural e sem dramaticidade. Allen estava perdendo o cabelo, mas ainda usava gravata listrada e se fazia acompanhar por Gino. Este, sim, envelhecera muito, e ganhara um certo aspecto de fragilidade que algumas pessoas adquirem com a idade. Parecia estar sumindo a olhos vistos.

Sabia que Allen gostaria de parecer diferente; a velha admiração, entretanto, estava mais do que nunca presente em seu olhar.

— Anne... você está maravilhosa!

— Você também está ótimo, Allen.

— Nós sempre a vemos na televisão, não é, Gino?

— Claro, claro — respondeu Gino.

Houve uma pausa. Por Deus, será que depois de dez anos não havia nada mais a dizer?

— Allen sempre comenta a seu respeito quando vemos seus comerciais — disse a mulher de Allen.

— Fico contente em saber que me assistem; a maioria das pessoas aproveita para ir ao refrigerador buscar cerveja quando apareço.

— Não, sempre vejo os anúncios, embora não use os produtos Gillian, pois o meu maquilador diz que... — Parou subitamente, alertada pela pressão de Allen no seu braço.

Kevin veio em seu auxílio dizendo:

— Tenho certeza de que alguém tão jovem e bonita como a senhora não necessita do auxílio de cosméticos.

A moça enrubesceu com o elogio e sorriu.

— Que é que há com a nossa mesa? — reclamou Gino, impaciente. — Se tivéssemos ido ao El Morocco, em vez deste lugar, não estaríamos esperando aqui de pé.

O maître fez sinal a Kevin de que sua mesa estava pronta. Houve as despedidas de praxe, Anne e Kevin foram saindo, enquanto Gino continuava a falar sobre o péssimo atendimento e sobre a excelência do El Morocco.

Anne ficou um pouco triste. As pessoas se separavam, os anos passavam, encontravam-se novamente, e o encontro não era uma reunião, não propiciava lembranças alegres, unicamente a triste constatação de que as coisas já não eram tão boas como antes. Ficou contente por saber que Lyon continuava na Inglaterra. Detestaria encontrá-lo assim e verificar que perdia cabelo, e que-a moça que o acompanhava era jovem demais e insípida demais. O melhor era conservar intactas as boas recordações.

Pensou em Jennifer. Estaria com medo de voltar? No último momento, recusara a proposta da Century, resolvendo ficar na Europa. Estaria com medo de Hollywood? Por quê? Era uma das maiores estrelas da Europa e seus filmes faziam enorme sucesso nos Estados Unidos. Aparecia belíssima nas telas, se bem que Anne conhecesse todos os truques que se podia fazer com a iluminação; Jennifer tinha trinta e sete anos, apesar de toda a propaganda, que dava a ela dez anos menos. Talvez estivesse certa, Neely era um exemplo vivo de como Hollywood podia se tornar ameaçadora.

 

                                                                           JENNIFER

 

                                          1957

Sim, Jennifer tinha medo de Hollywood. Um medo mortal. Meio vidro de Seconal e uma lavagem de estômago convenceram Claude a não assinar o contrato no ano anterior. Entretanto, a oferta que chegara este ano era tão fantasticamente enorme, que simplesmente não podia ser rejeitada. Um milhão de dólares depositados num banco suíço, livres de impostos, por três filmes. Claro que a metade seria de Claude. Mesmo assim, meio milhão de dólares era uma grande quantia. Aos trinta e sete anos, a beleza dela ainda estava intacta, e as finas linhas que iam surgindo no seu rosto eram facilmente disfarçadas, com uma iluminação adequada. Claude daria a palavra final em tudo e providenciaria para que as câmaras fossem cobertas por lenços de seda, e que a iluminação fosse suave. Claro, haveria o perigo das fotografias. Os repórteres estariam no aeroporto, em Nova York, e uma grande recepção em Hollywood. O maior perigo eram as câmaras com flashes. Claude, entretanto, acharia um modo de evitá-las. Talvez fizesse uma entrada à La Garbo, escondendo-se dos fotógrafos.

Uma semana depois de ter assinado o contrato, Claude apareceu no apartamento de Jennifer, de manhã cedo.

— Recebi um telegrama dizendo que o dinheiro está depositado.

— Em contas separadas? — perguntou Jennifer.

— Sim. Aqui está o número da sua. Guarde-o num cofre. Já guardei o meu.

Ela se espreguiçou na cama, feliz.

— Não é maravilhoso? Posso ter férias de três meses antes de partir. Talvez vá a Capri, depois a Nova York. Usarei uma peruca preta e assistirei, com Anne, a todos os espetáculos. Afinal, poderei me divertir um pouco. Ah, será bom falar inglês novamente.

Claude puxou as cobertas da cama e pediu que ela se levantasse. Abriu então a janela e deixou que a luz do dia penetrasse no quarto.

— Você está maluco?

— Fique assim como está, perto da janela. Jennifer estremeceu. Estavam em setembro; o sol, fraco, esforçava-se por romper as nuvens que toldavam o céu de Paris.

— Sim, temos de fazer — suspirou Claude.

— O quê?

— Uma operação plástica.

— Você está mesmo maluco — disse ela, vestindo o roupão.

Ele a arrastou até o espelho.

— Muito bem, olhe-se aqui, à luz do dia. Não, não levante a cabeça nem sorria. Quero que se olhe em repouso.

— Claude, estarei sempre maquilada, e conheço bem os meus melhores ângulos. Ninguém terá oportunidade de me ver assim.

— Que me diz dos maquiladores, das cabeleireiras do estúdio... as notícias correm.

— Não acho que esteja parecendo exatamente uma bruxa. Na verdade, estou muito bem para os meus trinta e sete anos.

— Mas não aparenta vinte e sete.

Jennifer estudou a imagem que se refletia no espelho. Bem, uma pequena flacidez debaixo do queixo, não muito grande, na verdade, e desaparecia se ela levantasse o queixo; de outra forma era visível. Sim, percebia o que Claude queria dizer. Percebia-se aquela leve frouxidão da pele, que indica se estamos nos vinte e poucos... ou nos trinta e poucos. Não propriamente rugas ou linhas, era algo que dizia que o frescor da mocidade tinha passado. Não se notava isso num local com iluminação adequada, mas, enfim, a coisa estava lá. Talvez Claude tivesse razão. Mas, por Deus, uma operação de levantamento da face aos trinta e sete anos! Sempre tinha pensado em mulheres de caras lívidas e sessenta anos de idade quando ouvia falar em levantamento da face! Lembrou-se das vezes em que encontrara alguma monstruosidade de sessenta anos de idade, de rosto branco e esticado, e alguém murmurando: "Ela tem sessenta e cinco anos e fez operação plástica, mas não ajudou nada". Não, o risco era grande demais.

— Claude, não permita que Hollywood o deixe em pânico. Eu já vivi lá. Não é tão horrível quanto você pensa. Todo mundo lá tem medo de todo mundo. Eu me arranjarei.

— Não quero que você simplesmente se arranje — vociferou Claude. — Você é a causa do sexo na Europa, e toda a gente de Hollywood está esperando conhecê-la para compará-la com seus próprios símbolos do sexo. La Monroe, Elizabeth Taylor e outras são jovens.

— Eu não sou Liz Taylor nem Marilyn Monroe... Sou Jennifer North. Sou eu.

— E o que pensa que você é? Apenas uma face e um busto bonitos. Isso é o que você é. Isso é o que você sempre foi.

— Não apareci nua nos meus últimos sete filmes.

— Não foi preciso, a imagem já estava criada. Você pode vestir até um saco de estopa, todos saberão o que há por debaixo dele. Conhecem de cor cada polegada do seu corpo e podem imaginá-lo, não importa o que você vista. Nunca pense que você tem qualquer outra coisa para oferecer.

-— Se é assim, essa imagem existe também nos Estados Unidos, pois todos viram os meus filmes lá.

— Jennifer, você então não confia no meu julgamento? — Agora se mostrava mais gentil. — Claro que você tem algo diferente. Há muitas estrelas nuas no cinema europeu, nenhuma delas pode sequer se comparar a você, porque você tem um ingrediente extra, isto é, uma doçura juvenil que nenhuma garota francesa parece ter. Elas podem ser picantes, travessas, ingénuas, só você tem o frescor da garota americana. Mas esse frescor só pode ser possível com muita juventude, e com o rosto jovem. A despeito do seu cabelo platinado e do seu busto sensual, existe alguma coisa em você que dá a impressão de inocência e até de infantilidade... quase de pureza. No momento, nenhum problema com o seu corpo, ainda é esplêndido. Mas você terá de perder cinco quilos.

— Isso não! Veja o que aconteceu com Neely. Agora estou tomando de três a quatro pílulas para dormir, quero me manter sem olheiras, e não vou começar a tomar pílulas para reduzir o apetite. Meço um metro e setenta e estou pesando cinquenta e sete quilos. Não acha que estou suficientemente magra?

— Para as cenas de nu, sim. Não para o guarda-roupa de alta-costura com que pretendem vesti-la. Não vai tomar pílula nenhuma para emagrecer; irá para a Suíça, para uma cura de sono.

— Essa cura de sono não é para esgotamento nervoso?

— Para emagrecer, também. Já os informei de que você deseja perder cinco quilos. Para isso, terá de dormir durante oito dias; quando acordar, estará descansada, magra e linda. Depois disso, haverá provavelmente mais flacidez em sua face; então, pensaremos na operação plástica.

Viajando através das montanhas de Lausanne, Jennifer pensava em Maria. Tudo parecia ter acontecido há tanto tempo e, no entanto, ela se lembrava com muita clareza.

A clínica era belíssima. Registrou-se com um nome suposto e apenas algumas pessoas de confiança conheciam sua verdadeira identidade.

— Você não deve absolutamente se preocupar — dissera o médico-chefe. — Você dormirá, mas nós faremos com que se levante para as refeições, e uma enfermeira estará ao seu lado durante todo o tempo. Vai comer sem perceber, passeará pelo quarto e será levada ao banheiro, e não saberá nada disso. Um pouco de exercício é necessário para o bom funcionamento dos pulmões. A enfermeira mudará a posição do seu corpo a cada hora. Quando acordar, terá perdido quilos.

Jennifer sorriu.

— E terei também perdido uma semana da minha vida. Sabe, sempre imaginei que essas curas de sono só eram usadas para distúrbios emocionais.

— É verdade. Claro que não pode curar perturbações que tenham raízes profundas, que levaram anos para se formar. Para isso, existe a terapia psiquiátrica e até o eletro-choque. Mas a cura do sono é ótima para depressões. Vou lhe dar um exemplo. Temos aqui uma senhora, casada com um grande diretor de cinema de Hollywood. Um de seus filhos menores caiu na piscina e morreu afogado. Ela está inconsolável, incapaz de encarar o futuro. Seu marido e os amigos têm sido muito compreensivos e ela mesma sabe que o tempo acabará cicatrizando a ferida; no momento não pode suportar essa ideia. Sente que não será capaz de viver durante os meses e mesmo anos que serão necessários para diminuir a intensidade da dor que experimenta agora. Aí é que uma cura de sono pode ajudar. Façamos de conta que o nosso cérebro é composto de vários nichos e que cada nicho carrega um pensamento ou uma lembrança. Se nós começamos a pensar unicamente em determinada coisa, então o pensamento ficará gravado indelevelmente, e quando o pensamento cessa, o nicho correspondente começa a se esvaziar e com o tempo é eliminado. A enorme tragédia da perda do filho está profundamente gravada na mente dessa senhora. Com três semanas de sono, essa ferida começará a cicatrizar. Quando acordar, terá consciência de que perdeu um filho, mas a dor insuportável passou. O alívio que viria durante uns cinco anos será conseguido em apenas três semanas, e isto livrará a pobre mulher de anos de angústia. Jennifer sorriu.

— Muito bem, se algum dia eu me transformar numa gorducha infeliz, farei a cura das três semanas. No momento, quero apenas perder cinco quilos.

— Em oito dias terá conseguido isso.

Tudo foi muito simples. Uma enfermeira sorridente trouxe-lhe uma taça de champanha para ajudá-la "a ter bons pensamentos e a dormir". Enquanto bebia, apareceu um jovem médico. Mediu sua pressão e conferiu seu pulso, antes de aplicar-lhe uma injeção. Jennifer largou o copo. Nunca havia experimentado uma sensação como aquela. Começava na ponta dos pés e ia subindo pelas pernas, pelas cadeiras e, subitamente, sentiu-se no ar, flutuando; depois, não sentiu mais nada.

Devia ter dormido a noite toda, pensou. O sol entrava no quarto quando abriu os olhos. A enfermeira apareceu, carregando a bandeja do café. Jennifer sorriu.

— Me disseram que eu dormiria durante as refeições, mas estou completamente acordada.

— Acontece que você dormiu durante as refeições — disse a enfermeira sorrindo.

— Então por quanto tempo dormi?

— Oito dias.

— Então quer dizer... — Sentou-se na cama, espantada.

A enfermeira concordou.

— Sim, a senhorita perdeu cinco quilos.

— Que coisa divina! — exclamou Jennifer. — Deus, que invenção esta!

Voltou a Paris e Claude estava radiante.

— Já combinei a operação de levantamento da face.

Desta vez ela não discutiu. A rápida perda de peso deixou-a um tanto encovada. De repente, Claude disse:

— Dispa-se.

Ela o olhou surpreendida.

— Claude, isto está morto entre nós há muitos anos.

— Não é nada do que você está pensando — disse ele irritado. — Só quero verificar se a perda de peso causou algum dano ao seu corpo.

Jennifer tirou a roupa.

— Acho que não. Além disso, que diferença pode haver? Não vou mesmo fazer filmes sem roupas em Hollywood.

Claude inspecionava clinicamente o seu busto.

— Já combinei também algumas injeções de hormônio para os seus seios, para conservar sua firmeza. Essas injeções serão dadas enquanto você convalescer da operação plástica.

— E onde terá lugar todo esse espetáculo?

— Não é fácil, mas consegui. Você irá à Clínica Plástica amanhã, usando nome suposto.

Claude tinha razão. Não foi fácil. Uma operação bastante desagradável e um período de convalescença que exigiu tudo dela. Seis semanas de isolamento, olhando para o rosto inchado e cheio de manchas, os olhos injetados de sangue, e os horríveis pontos negros atrás das orelhas. Preocupou-se o tempo todo, imaginando se algum dia voltaria ao normal, se cometera algum erro. Aos poucos, contudo, os pontos foram sendo retirados e as cicatrizes passaram de um vermelho vivo a um rosa suave, que empalidecia dia a dia. O inchaço desapareceu e o ânimo de Jennifer ressurgiu. Claude tinha razão. A operação foi um enorme sucesso. Ela mesma não se lembrava de ter um rosto tão perfeito aos vinte anos. Não que parecesse ter vinte anos agora, mas estava linda. Nenhuma linha em seu rosto, e a pele esticada estava impecável. Tinha certeza de que poderia passar pelo exame mais minucioso que lhe fizessem em Hollywood.

Chegou ao aeroporto de Nova York num claro dia de dezembro. Agradeceu mentalmente a Claude, quando os repórteres começaram a espocar os flashes em seu rosto. Notou que vários jornalistas a examinavam detidamente, e ela sorria confiante. Não sentia medo da luz do sol ou dos olhares minuciosos, sabia que a sua aparência estava perfeita. Os jornalistas também acharam isso, todos comentaram que, em pessoa, ela era ainda mais bonita do que nos filmes.

Insistiu em permanecer em Nova York uma semana, para estar com Anne. Falaram durante horas sobre os inúmeros romances de Jennifer. Por fim, Anne contou o seu caso com Kevin.

Jennifer suspirou.

— Não me importa que você diga que ele é formidável, eu o considero um patife por não se casar com você.

— Isso não tem a menor importância — insistia Anne. — Não estou apaixonada por ele, e assim é melhor.

— Vejo que você ainda procura o amor romântico, não é? — perguntou Jennifer. — Sabe, Anne, cheguei à conclusão de que uma mulher pode amar ou ser amada, mas dificilmente as duas coisas ao mesmo tempo.

— Por quê?

— Não sei. Tudo me faz acreditar que as coisas são assim. Você, por exemplo: Allen a amava e queria casar com você. E Kevin a ama. Mesmo assim você pode abandonar qualquer um deles sem sentir nada. Mas você amava Lyon... e ele foi capaz de abandoná-la.

— Não... eu fui a culpada de tudo... Se você soubesse quantas noites, mesmo agora, permaneço acordada, imaginando o que deveria ter feito para que desse tudo certo.

— Teria concordado em ficar em Lawrenceville?

— Claro. Não seria para sempre. A carreira de Lyon como escritor teria sido a mesma. Seu primeiro livro fez grande sucesso e obteve boa crítica, mas não fez dinheiro. Então, teria escrito aquele horrível livro comercial, depois mais alguns e, finalmente, escreveria enredos para o cinema. É isso o que ele faz em Londres agora. O mesmo aconteceria aqui, só que ele estaria em Nova York, escrevendo para a televisão, ou em Hollywood. De qualquer maneira, estaríamos juntos. Mas eu entrei em pânico; se tivesse tido tempo para pensar...

— Um homem que pode ir embora assim... Anne, não acredito que ele se importasse muito com você.

Anne disse firmemente:

— Ele me amava. Tenho absoluta certeza.

— Claro, da mesma forma que Allen pensava que você o amava. Da mesma forma que Kevin imagina que você o ama. Esse, então, tem tanta certeza de você que acha, que não precisa pedi-la em casamento. Anne, se você acha mesmo que Kevin a ama, deve fazer com que ele se case com você. Ser amada é uma coisa bastante rara. A mim, nunca aconteceu.

— Ora, Jen. A Europa toda a ama. E agora você terá também a América.

— Amam meu rosto e meu corpo, não a mim. Há uma diferença tão grande nisso, Anne.

— Eu, por exemplo, Jen, a amo.

— Pena não sermos "diferentes". Faríamos um belo casal.

Anne riu.

— Se fôssemos, talvez não desse resultado, você mesma disse: um ama e o outro é amado. Ou talvez seja diferente com as lésbicas.

Jennifer olhou para longe... Não, mesmo entre elas, uma ama e a outra é amada.

— Muito bem, você tem Kevin, eu tenho Hollywood.

— Mas você está adorando o seu sucesso, não está? — perguntou Anne.

Jennifer sacudiu os ombros.

— Às vezes. Mas odeio o trabalho. Nunca fui uma mulher de carreira. Não sou uma atriz dedicada. E sempre tive a minha porção de publicidade, primeiro com o príncipe, depois com Tony. No fim, vejo que tudo se resume nisso: não fui eu realmente quem conseguiu o príncipe, Tony ou a minha carreira. Meu corpo e meu rosto fizeram isso por mim. Por Deus, daria a minha vida por alguém que me amasse pelo que eu sou.

— Se é isso que deseja, Jennifer, você vai consegui-lo. Tenho certeza disso.

Jennifer agarrou a mão de Anne.

— Reze para que isso aconteça, Anne. Desejo sair dessa corrida de ratos. Quero um homem que me ame,' e quero um filho. Não é tarde demais. Reze para que eu encontre o homem certo e possa mandar Claude e todo o resto para o inferno.

 

                                                                               ANNE

 

                                         1960

Kevin Gillmore sofreu um grave ataque de coração na primavera de 1960. Durante duas semanas, teve de permanecer inerte dentro de uma tenda de oxigénio. No momento em que se sentiu mais forte, pegou na mão de Anne e perguntou:

— Anne, acha que escaparei?

Ficou mais sossegado quando ela apertou sua mão e concordou com a cabeça.

— Prometa-me uma coisa — sussurrou ele. — Se escapar, você se casa comigo?

Ela forçou um sorriso não comprometedor.

— Não fale, Kevin. Apenas descanse e fique bom logo.

Lágrimas vieram aos olhos dele.

— Por favor, Anne. Tenho medo. Não posso encarar o futuro sozinho. Por favor... sei que só vou ficar bom se souber que você se casará comigo, que estará sempre ao meu lado.

— Kevin, você vai ficar bom, mas precisa descansar.

— Sei que é muito tarde para os filhos que queria ter, Anne. Eu lhe darei todo o resto, venderei a fábrica e viajaremos ... Mas diga que se casará comigo.

Anne sorriu.

— Muito bem, Kevin. Prometo.

Anne permaneceu ao lado de sua cama durante seis semanas. À medida que ele se sentia mais forte, falava no casamento, nas coisas que fariam, e como ele a compensaria por tudo. Anne se resignou. Por que não se casar com Kevin? Que mais poderia esperar? Tinha agora trinta e cinco anos. Bom Deus, trinta e cinco anos! Como é que isso aconteceu? Ela se sentia sempre a mesma por .dentro; de repente, porém, verificava que fizera trinta e cinco anos e que o tempo corria. Um ano se diluía no outro, tanta coisa tinha acontecido, e todavia tão pouco. Perdera sua chance para o grande amor e para os filhos. Mas havia outras compensações: era rica e independente. Seu investimento original se multiplicara várias vezes, Henry empregara o dinheiro em vários negócios, sempre com êxito. Todos os anos, Kevin lhe dava ações da companhia, que duplicavam de valor. Não, nenhum problema de dinheiro. Mesmo que nunca mais trabalhasse, poderia viver muito bem, era uma mulher rica.

Aliás, dinheiro nunca fora o seu problema. Mesmo no começo, guardava cinco mil dólares no banco. Nunca era como Jen, que precisava mandar dinheiro para a mãe; Jennifer precisava se sair bem, custasse o que custasse. Anne estava muito feliz com o sucesso da amiga em Hollywood: estrelara cinco filmes maravilhosos, todos coloridos. As cenas de canto eram dubladas, as de dança, a distância, também; era o rosto de Jennifer, porém, que aparecia nas tomadas a curta distância. O nome dela fora ligado ao de um diretor e ao de um ator, e diziam que sua última conquista era um produtor. Pelas cartas e pelos telefonemas, Anne sabia que ela ainda estava procurando.

Quando sua estada no hospital chegava ao fim, Kevin começou a programar a lua-de-mel.

— Você tem certeza de que não se importará em deixar o seu trabalho? — perguntava ansiosamente.

— Meu trabalho? — Anne riu. — Kevin, você sabe muito bem que recebi tudo de você numa salva de prata.

— Não é verdade. Eu a ensinei a posar, você fez o resto. Você sempre foi ótima. Deu grande lucro à companhia.

— Bem, acho que a companhia sobreviverá se eu me retirar.

Apertou a mão dela.

— Eu a amo, Anne. Venderei a companhia e... — Anne concordou.

— Agora, descanse. Planeje nossa lua-de-mel enquanto eu não estiver aqui.

Ele apertou mais forte a mão dela.

— Você tem de ir?

— Ainda estou trabalhando para você. E temos um espetáculo esta noite.

— Anne, não sei se você sabe... Não poderá haver nada de sexo entre nós por enquanto, ou talvez nunca mais.

— Não se preocupe com isso, Kevin.

Começou a soluçar.

— Vou perdê-la. Sei que vou.

Anne sentiu quase repulsa por esse homem a quem a doença roubara a dignidade. Bateu no seu ombro gentilmente.

— Estarei sempre com você, Kevin. Prometo.

Kevin voltou novamente ao seu escritório no mês de agosto, cheio de vitalidade. Os dias terríveis passados na tenda de oxigénio não eram agora mais que uma lembrança. Muito bem, a doença não o derrubara. Sentia-se melhor do que nunca. O repouso lhe fizera bem, ia se casar com Anne. Ficar sozinho assustava-o, às vezes. Digamos que alguma coisa acontecesse durante o sono?

— Estou me esforçando para fazer o melhor negócio possível com a companhia — dissera a Anne. — Quero doze milhões de dólares e a presidência honorária. Preciso ter certeza de que a companhia manterá a mesma classe de sempre; afinal, tem o meu nome. Penso que poderei resolver tudo no começo do próximo ano; em fevereiro no máximo. Mas, se você quiser, poderemos nos casar imediatamente...

— Já que esperamos tanto tempo — Anne sorriu —, vamos fazer tudo direito. Quero me casar e sair para a lua-de-mel.

— Então, fevereiro. Casamos e saímos para uma longa lua-de-mel ao redor do mundo.

— Ao redor do mundo? Não apenas Londres, Paris, Roma? Também o Oriente, a índia, a Grécia, a Espanha?

— Claro. Notei que você falou na Espanha. Muito bem, vamos virar a Espanha de pernas para o ar e achar Neely. Prometo.

Anne se preocupava constantemente com Neely. Depois do vexame na televisão, Neely ficou parada durante o ano que durou sua suspensão. Então, com enorme campanha publicitária, foi contratada para fazer um grande filme colorido para um dos principais estúdios cinematográficos. Estava magra, elegante, exuberante. A volta de Neely O'Hara foi um grande acontecimento. Após algumas semanas de filmagem, entretanto, começaram a circular boatos, pelas colunas dos jornais, os rumores de costume: Neely estava atrasando a filmagem, Neely estava adoentada, Neely tinha laringite. No fim, estourou a bomba: o filme seria suspenso, com um prejuízo de meio milhão de dólares! Mais uma vez, foi chamada de irresponsável. Houve até boatos de que ela perdera a voz.

Dez dias depois, sem qualquer aviso, apareceu no apartamento de Anne. Sem um tostão, mas seus advogados estavam providenciando a venda da casa, o que lhe renderia muito dinheiro. Anne consentiu que viesse morar com ela, apesar de saber das dificuldades que ia lhe causar. A televisão obrigara Anne a uma vida muito regrada: hora certa para estudar os textos, hora certa para os ensaios e sempre reservava algumas horas para um completo descanso antes de enfrentar as câmaras.

Neely se intrometeu como um ciclone. O telefone não parava de tocar e um fluxo constante de jornalistas exigia entrevistas exclusivas. Grande número de admiradores fazia cerco constante ao edifício. Anne, porém, sabia que Neely precisava muito dela e que ela ficaria por poucas semanas. As poucas semanas acabaram se transformando em meses, e o apartamento estava sempre em completa desordem. Anne perdeu três empregadas, Neely quebrou um abajur e uma mesinha, caminhando meio inconsciente pela sala. Anne vivia constantemente esvaziando vidros e mais vidros de pílulas, enquanto Neely parecia ter um estoque sem fim e lugares incríveis para escondê-las. Quando não estava dormindo, sob o efeito de sedativos, andava descalça pelo apartamento, com uma garrafa de uísque na mão, amaldiçoando Hollywood.

Kevin insistiu para que se mudasse e ela foi para a suite de um hotel às expensas dele. Kevin deixou bem claro que ela poderia ficar lá durante o tempo que quisesse.

Quando recebeu o dinheiro da venda da casa, Neely saiu misteriosamente do hotel. Algumas semanas depois, contudo, ressurgiu numa delegacia de polícia de Greenwich Village, onde foi acusada de perturbar o sossego público com as festas que dava em seu apartamento. Estava irreconhecível nas fotografias dos jornais: gorda, inchada, os olhos injetados, o cabelo caindo sobre os olhos.

Anne correu para ela. Neely estava instalada num luxuoso apartamento da Quinta Avenida, mas o lugar parecia um quarto barato; repleto de garrafas de uísque vazias, a maior parte dos móveis estava quebrada, manchada ou queimada por pontas de cigarro. A roupa de cama estava tão amarrotada que parecia não ter sido mudada desde que Neely ocupara o lugar.

— Me deixe morar com você, Anne — balbuciava Neely. — Tenho muito dinheiro, mas não suporto ficar sozinha. Por isso é que dou festas. Veja o que fizeram do meu apartamento. Este lugar era lindo quando o aluguei. A dona do apartamento está me processando pelos danos, e eu tenho de sair daqui...

— Neely, você tem de tomar juízo. Falei com seus agentes, eles acham que você é ainda um grande nome, que poderia estrelar um espetáculo na Broadway.

— Não, lembre-se de que sou irresponsável. Ninguém confiaria em mim.

— Se você resolvesse fazer o espetáculo e provar que não é irresponsável, todos mudariam de opinião.

— Não posso cantar, Anne. Perdi a voz.

— Ninguém conseguiria cantar, vivendo como você vive. Você não devia fumar, Neely, está fumando muito, mais do que eu. Escute: por que não procura se internar por alguns dias num hospital... ?

— Não, isso não! É o que o meu novo psiquiatra, o Dr. Gold, quer que eu faça. Insiste para que eu vá passar uns tempos numa fazenda de repouso, em Connecticut, a mil dólares por mês. Acontece que não estou maluca. Sou apenas muito infeliz.

— Muito bem, então por que não em um hospital comum, como o Monte Sinai ou o Doctors? Deixe que eles a desintoxiquem dessas pílulas, que regulem sua vida.

— Não. Quero morar com você. Prometo que não tomarei nenhuma pílula. Juro.

Anne já ouvira as mesmas promessas outras vezes, mas prometeu pensar no assunto. Mais tarde, telefonou para o médico de Neely. O homem estava preocupadíssimo com o estado dela. Concordou em que algumas semanas num hospital ajudariam, mas não era a solução. Neely precisava de tratamento psiquiátrico urgentemente.

Nessa noite, Neely desapareceu. Com certeza, ficou apavorada com a perspectiva de se ver confinada. Ninguém soube. Tinha em seu poder mais de cem mil dólares, mas, do jeito que gastava, até essa quantia não duraria muito tempo. Surgiu de repente em Londres e os jornais noticiaram sua chegada nas primeiras páginas, dando-lhe as boas-vindas. Compareceu a várias festas e foi contratada para o Palladium; no último momento, cancelou a apresentação. Surgiram então várias histórias sobre sua presença na Espanha, onde parece que ficou residindo. Fez um filme lá, que recebeu muita publicidade, e nunca foi exibido. Seu nome foi, aos poucos, desaparecendo dos jornais. As cartas que Anne escrevera foram devolvidas com o carimbo de "endereço desconhecido". Neely parecia ter se evaporado.

 

                                                                             JENNIFER

 

                                               1960

Jennifer chegou a Nova York no fim de novembro, sem publicidade alguma. Anne ficou surpreendida com o telefonema da amiga.

— Preciso falar com você, Anne — disse Jennifer alegremente. — Estou hospedada no Sherry.

— Estarei aí num minuto. Aconteceu algo de errado?

— Não, tudo está perfeito. Divino! Anne, soube que Kevin está vendendo a companhia. Quando será o casamento?

— Marcamos para 15 de fevereiro.

— Ótimo. Talvez possamos fazer uma cerimónia dupla.

— O que foi que disse, Jen?

— Venha para cá. Olhe que estou falando de um hotel.

Jennifer estava impaciente quando Anne chegou.

— Já mandei preparar uns sanduíches e uns refrescos. Vamos ter um bate-papo comprido, como antigamente. Você tem tempo?

— A tarde inteira, Jen. Quem é ele?

Os olhos de Jennifer brilharam.

— Anne, estou tão feliz! Até não me importo de fazer quarenta anos na próxima sexta-feira. Ainda posso ter filhos, e, francamente, ter quarenta anos não tem a menor importância agora.

Quarenta! A palavra foi um choque para Anne. Jennifer com quarenta anos de idade! A aparência dela era maravilhosa! Lembrou-se de como Helen Lawson parecia velha aos quarenta anos e de como sua própria mãe parecia acabada aos quarenta e dois. Jennifer ainda tinha um corpo perfeito e a pele lisa. Parecia ter vinte e cinco anos.

— Você se lembra quando assisti ao comício do Partido Republicano, pouco antes da convenção? perguntou Jennifer.

— Se me lembro. Kevin até disse que você foi a culpada da adesão de alguns democratas. — Anne riu.

— Muito bem, isso tudo foi publicidade que o estúdio arranjou. Eu disse que faria qualquer coisa se eles conseguissem me libertar de Claude. Custou um bocado caro, mas conseguiram. Não imagina como eu estava farta de vê-lo me tratar como se fosse apenas uma coisa que rendia dinheiro. Não que o estúdio seja diferente, mas eles fazem as coisas com mais delicadeza. Fingem até que eu tenho talento, imagine. — Jennifer não conteve uma risada.

— Ora, Jen, você esteve ótima em seu último filme.

— Também achei que não estava tão mal. Foi o meu primeiro filme sério. Mas está dando prejuízo.

— Isso não significa nada. Todas as grandes estrelas fazem, de vez em quando, um filme que dá prejuízo. O seu nome estava no terceiro lugar na lista dos maiores sucessos de bilheteria no mês passado.

Jennifer sacudiu os ombros.

— Ouça, se eu não tivesse encontrado quem encontrei, então estaria em estado de choque nesse momento. O pessoal do estúdio está histérico, imaginando que isso tenha consequências no filme que farei em seguida. Todos estão correndo para contratar o melhor roteirista, o melhor dire-tor, os melhores escritores. Eu poderia estar me importando menos. Esta manhã, descobri duas pequenas rugas sob os meus olhos e nem isso conseguiu me preocupar.

— Quem é ele? — insistiu Anne.

Jennifer empurrou o sanduíche que mal havia tocado, e começou a tomar o refresco.

— Bem, você se lembra daquele grande baile em Washington? Ele estava lá. Nós nos encontramos em todas as recepções e coquetéis. Sempre foi muito gentil comigo, mas não caiu logo por mim, como acontece com os outros. Ficava sempre a certa distância, mas...

Anne estava ficando exasperada:

— Quem é ele, Jen?

Os olhos de Jennifer quase se fecharam; ela ficou observando a reação de Anne quando murmurou:

— Winston Adams.

Anne quase explodiu.

— Você quer dizer, o senador?

Jennifer fez que sim.

— Você... e Winston Adams!

Jennifer se levantou de um pulo e deu a volta no quarto.

— Sim! Winston Adams: senador, membro do Registro Social, e milionário. É milionário há várias gerações. Mesmo que ele não tivesse um centavo, não teria a menor importância. Eu o amo!

Anne recostou-se. Winston Adams! Cinquenta anos, muito atraente, brilhante e imensamente popular.

— Mas, Jen, ouvi dizer que ele é a grande esperança dos republicanos para concorrer à Presidência...

— Sim, e renunciou a isso tudo por mim.

— Como foi que aconteceu?

Os olhos de Jennifer tomaram uma expressão suave.

— Bem, como eu disse, nós nos conhecemos. Conheci dúzias de senadores e tirei fotografias ao lado de todos eles. Com exceção de Winston Adams. Ele se recusou a ser fotografado ao meu lado.

— Muito inteligente — retrucou Anne. — Ótima maneira de atrair a sua atenção.

Jennifer sacudiu a cabeça.

— Não, ele foi sincero nisso também. Na véspera do dia em que devia partir, ele telefonou e me convidou para jantar, queria falar comigo. Nessa noite, fui ao seu apartamento pensando que havia uma grande festa — o jantar era só para nós dois.

— O coração dele é democrata — sorriu Anne.

— Não, não aconteceu nada. Nem ele tentou. Havia lá um empregado durante o tempo todo. Foi quando me explicou que não teve a intenção de ser grosseiro quando se recusou a posar comigo, que simplesmente não era do feitio dele. Começamos a conversar e ele me perguntou uma infinidade de coisas, e ouviu tudo o que eu dizia com grande interesse. Falamos sobre Paris. Ele frequentara a Sorbonne, na juventude, e queria saber as mudanças que a cidade sofrera desde a guerra.

— Por que fizeram tanto segredo? — perguntou Anne. — Ele não é casado.

Jennifer sorriu.

— Não será mais segredo agora. Na semana passada, fez dois anos que a mulher dele morreu, achava que não ficaria bem dar a notícia antes disso.

— Está bem. Ouvi dizer que eram muito dedicados um ao outro.

— Só na aparência. Foi um desses casamentos arranjados, como seria o seu se tivesse ficado em Lawrenceville. Ambos de ótimas famílias, com muito dinheiro. Claro, ele achou que a amava quando casaram. Mas ela era de temperamento muito frio e odiava o sexo. Não que isso seja a coisa mais importante entre nós — disse Jennifer rapidamente. — Ele saiu comigo durante dois meses sem ao menos tentar. Nós nos encontramos em lugares pouco concorridos, Kansas City, Chicago... e eu usava uma peruca negra. Aí, ele veio passar uma semana na Califórnia e... aconteceu. Anne, ele é divino! Tão delicado e gentil. E me ama pelo que sou. Ficou pasmado quando viu meu busto. Pensou sempre que era postiço. E nunca assistiu a nenhum dos meus filmes feitos na Europa. Anne, é o primeiro homem que se apaixona por mim, e não pelo meu corpo. No começo, era tão tímido que hesitava em me tocar. Agora...

— Descobriu o sexo — disse Anne sorrindo.

— Age como se o tivesse inventado. O melhor de tudo é que ficou atraído por mim sem isso. E depois, Anne, quer ter filhos. A mulher dele era um daqueles tipos equinos de Maryland, de peito achatado, nunca teve filhes.

— Mas, Jen, ele não é bem um jovem, e o que a faz tão certa de que terá filhos?

— Olhe, eu já fiz sete abortos. Todos os meus órgãos são perfeitos; quando eu disse a Win que queria largar a carreira e ter filhos, ficou tão feliz que chorou. Chorou de verdade, Anne. Sempre achou que a vida passou por ele sem lhe dar aquilo que ele realmente queria, isto é, uma mulher que pudesse amar, e filhos. Por isso é que se afogava em trabalho. Agora não se importa se o nosso casamento destruir a sua carreira. Diz que os republicanos não elegerão um presidente nos próximos oito anos, e não podem cassar o seu mandato de senador só porque vai se casar com uma estrela de cinema. Tudo o que ele quer é o que eu quero: um lar e filhos.

— Ele sabe sua verdadeira idade?

Jennifer sacudiu a cabeça concordando.

— Ficou encantado. Claro que não lhe contei sobre a operação plástica. Melhor não assustá-lo. Achou bom eu não estar na casa dos vinte, pois então poderia achá-lo velho demais. Uma vez, quando fui visitá-lo em sua fazenda, passei o fim de semana usando rabo de cavalo e nenhuma pintura — ele me achou maravilhosa. Oh, Anne, é tudo tão divino! Na semana que vem, irei a Hollywood jogar a bomba. Terminarei meu próximo filme, pois já filmaram os exteriores, já provei o guarda-roupa, e direi a eles que isso é tudo, mesmo que gritem muito. Nunca mais trabalharei no cinema, e não me importo.

— Quando será o casamento?

— Bem, a partir dessa noite sairemos juntos em público. Vamos ao teatro e depois a um jantar no 21, com o Senador Belson e senhora. Provavelmente estaremos em todos os jornais amanhã, e Win vai timidamente declarar que estamos noivos.

Anne sorriu.

— Então nos veremos lá, nós também vamos ao 21 para cear. Provavelmente você estará lá quando chegarmos. Vamos com algumas das pessoas que estão comprando a companhia de Kevin.

Jennifer apertou a mão da amiga.

— Oh, Anne, não acha maravilhoso? Nós vencemos! Conseguimos sucesso, segurança, e um homem que nos ama e respeita.

Anne sorriu, mas sentiu um nó na garganta.

Quando se encontraram, nessa noite, no 21, Jennifer resplandecia e Anne teve de admitir que o Senador Winston Adams tinha uma aparência imponente. Bem alto, cabelos grisalhos, um porte atlético que sugeria ginástica diária. Jennifer veio à mesa deles para as apresentações costumeiras, com o senador fazendo questão de ser gentil com Anne:

— Sinto como se já a conhecesse. Além de vê-la sempre na televisão, Jennifer fala muito de você.

Anne ficou observando Jennifer durante muito tempo. Os olhos da amiga quase não deixavam a face do senador. Havia adoração neles, e demonstravam um amor genuíno. Anne sentiu inveja dela quando olhou para Kevin. Graças a Deus, ele tinha se recuperado. Era tão bom e generoso e, no entanto, não conseguia sentir nada por ele. Do contrário, poderiam estar casados há muito tempo. Com Lyon fora diferente; ela até se oferecera para sustentá-lo. Queria ficar com ele durante todos os segundos de sua vida, adivinhar seus pensamentos... Mas, por Deus, por que ainda pensava nele? Como dizia sempre Henry, continuava "apaixonada por uma imagem.

No dia seguinte, Jennifer estava na primeira página dos jornais. O Senador Adams declarou que se casariam no começo de 1961. Em grande estado de agitação e felicidade, Jennifer voltou a Hollywood, para fazer seu último filme.

 

                                               1961

Jennifer retornou a Nova York na primeira semana de janeiro. O Senador Adams ficou em Washington por alguns dias e Anne ajudou a amiga na compra do enxoval.

— Quero tudo diferente — insistia Jennifer. — Tudo lindo, mas que não chame a atenção. Você tem de me ajudar, Anne.

Estavam na cabina de provas da Bergdorf, quando, de repente, Jennifer encostou-se à parede, perguntando:

— Anne, você tem uma aspirina? — Estava terrivelmente pálida, com os olhos dilatados. A vendedora correu em busca da aspirina enquanto Jennifer sentava-se. — Pare de fazer essa cara horrorizante, Anne. Toda essa agitação fez com que o meu período se adiantasse, sinto dores terríveis.

Anne voltou ao normal e disse:

— Você me assustou mortalmente.

— A dor já passou. Tenho a impressão de que é isso que a gente sente para dar à luz. Pela amostra, acho que vou procurar um médico adepto do parto sem dor para ter meus filhos.

A vendedora apareceu com a aspirina, acompanhada da gerente da casa, visivelmente preocupada.

— Também sofro disso — disse a mulher. — Às vezes quase subo pelas paredes. Ainda bem que é só uma vez por mês.

— Você tem sorte — disse Jennifer. — Ultimamente, tenho passado por isso cada duas ou três semanas.

Jennifer escolheu três vestidos. A vendedora agradeceu, pediu um autógrafo para a sobrinha e lhe desejou boa sorte.

Mais tarde, quando estavam na Palm Court, tomando uma bebida, Anne perguntou casualmente:

— Quando foi que você se submeteu a um exame médico completo pela última vez, Jen?

Jennifer ficou pensando um pouco:

— Deixe-me ver: meu último aborto foi há quatro anos, na Suécia, onde é legal. O doutor me disse, na ocasião, que eu tinha uma saúde de ferro.

— Bem, acho que deveria fazer um exame. O meu médico é ótimo.

— Sim, talvez eu faça isso.

O Dr. Galen estava muito calmo enquanto preenchia a ficha de Jennifer. O exame interno terminara e ela estava sentada defronte à mesa do médico.

— Há quanto tempo vem acontecendo isso?

— Há alguns meses. Não liguei importância, mas Anne insistiu tanto para que eu viesse consultá-lo. Como vou me casar na próxima semana, achei bom saber se tudo estava em ordem; pretendo começar a ter filhos imediatamente após o casamento.

— O senador está na cidade?

— Não, no momento está em Washington; estará aqui na semana que vem.

— Muito bem, então a senhora poderá internar-se no hospital esta noite.

— Esta noite? — perguntou Jennifer amassando o cigarro. — Há algo de errado?

— Nada de errado. Se a senhora não estivesse planejando se casar na semana que vem, então aconselharia a esperar até o próximo período. O que tem são pólipos no útero, coisa muito comum. Entrará no hospital esta noite, faremos uma raspagem amanhã; poderá sair no dia seguinte. Estará perfeitamente bem no dia do casamento.

Quando Anne soube, ficou alarmada e telefonou ao médico. Confirmou o que dissera a Jennifer. Anne ajudou a amiga a fazer a mala e a acompanhou até o hospital. Ficou no quarto enquanto Jennifer era levada para cima. Que bom que não era nada sério; Jennifer queria tanto um filho...

Que coisa engraçada, mesmo sendo tão amigas, Jennifer nunca lhe dissera por que não quis que o filho de Tony nascesse.

Depois de uma hora, o Dr. Galen desceu. Anne sentiu que alguma coisa não estava bem.

— Ela continua sob o efeito da anestesia — disse ele.

— Que foi que houve? — inquiriu Anne. Vejo que não foi tão simples como pensou.

— Eram apenas pólipos, como eu disse. E não há nada de errado com ela ginecologicamente. Mas, enquanto o anestesista conferia as batidas do coração com o estetoscópio, percebeu que havia um Caroço no seio, do tamanho de uma noz. Ela deve ter percebido isso.

Anne empalideceu.

— Acredito que a maioria desses caroços não significa nada de grave, não é?

— Retirei o caroço — disse o médico vagarosamente — com uma pequena incisão que não deixará marca, e mandei imediatamente fazer a biópsia. É um tumor maligno e o seio terá de ser removido, imediatamente.

Anne ficou horrorizada.

— Meu Deus, por que foi acontecer isso com Jenni-fer, justamente agora? — Sentiu que as lágrimas corriam pelo seu rosto. — O senhor falará com ela — soluçou. — Eu não posso.

Jennifer abriu os olhos lutando por acordar. Sorriu para a enfermeira, que estava ao lado dela.

— Está tudo bem? — perguntou.

— O Dr. Galen está aqui — disse a enfermeira alegremente.

O médico pôs a mão na testa dela com suavidade.

— Então, já acordou?

— Sim... era o que o senhor disse? Pólipos?

— Sim, nessa parte tudo está perfeito. Jennifer, por que não me disse que tem um caroço no seio?

Instintivamente, ela levou a mão ao seio e sentiu o pedaço de esparadrapo.

— Retiramos o caroço. Há quanto tempo notou?

— Não sei... — Estava novamente sonolenta. — Há um ano, mais ou menos.

— Agora durma. Falaremos a respeito mais tarde.

Através da sonolência, causada pela anestesia, sentiu o pânico crescer dentro dela. Agarrou o braço do médico.

— Falaremos a respeito de quê?

— Acho que deveremos fazer uma nova operação em seu seio amanhã.

— Que operação?

— Uma mastectomia. O Dr. Richards se encarregará disso. É um dos melhores cirurgiões de seio.

— O que é uma mas... como é a palavra?

— Teremos de remover o seio, Jennifer. O tumor é maligno.

Ela lutou para sentar-se.

— Não! — gritou. — Isso nunca! — Caiu para trás e alguma coisa foi injetada no seu braço.

Dormiu algum tempo; quando acordou, agarrou o braço da enfermeira, perguntando:

— Diga, foi um sonho, não foi? Efeito da anestesia, não é? Não é verdade o que ele disse sobre meu seio, é? Diga...

— Vamos, vamos, descanse um pouco — disse a enfermeira docemente.

Viu piedade no rosto dela. Então não fora um sonho. Era verdade.

Anne correu para o escritório de Kevin e lhe contou a história entre soluços. Ele ouviu tudo em silêncio, depois perguntou:

— Qual foi o prognóstico do Dr. Galen? Há esperança?

Anne replicou impacientemente:

— Esperança? Então você não entendeu uma palavra do que eu disse?

— Entendi muito bem. Um seio deverá ser removido. É terrível, mas não é o fim do mundo. Anne, você sabe que há inúmeras mulheres que vivem toda uma vida útil e feliz depois de uma operação dessas? A questão é fazê-la a tempo.

Anne olhou para ele agradecida. Sim, isso era bem de Kevin. Sempre achando o melhor lado de todas as coisas. Chamou o Dr. Galen ao telefone, e ouviu dele que tinha todos os motivos para um prognóstico otimista; aliás, o Dr. Richards manifestara a mesma opinião. O tumor não era grande e a média de sobrevivência a uma operação dessas era atualmente bastante alta. Se não houver metástase, o prognóstico é excelente; isso, entretanto, só poderia ser conhecido depois da operação e do exame das glândulas linfáticas.

Já acalmada pela atitude decidida de Kevin, Anne voltou ao hospital. Jennifer estava completamente acordada e estranhamente calma. Estendeu o braço e apertou a mão de Anne, dizendo:

— O Dr. Galen telefonará a Win. Ele deverá chegar a qualquer momento.

— Ele já lhe contou?

Jennifer sacudiu a cabeça.

— Não, eu lhe pedi para não dizer uma palavra. Acho que eu devo dar a notícia. — Depois, virando-se para a enfermeira, disse sorrindo: — Eu estou bem. Posso falar um pouco com minha amiga em particular?

— Não deixe que ela tome nenhum líquido, pelo menos por duas horas — disse a enfermeira. — A senhora quer pedir uma enfermeira especial para esta noite?

— Não, a operação será amanhã e o Dr. Galen já providenciou enfermeiras para todo o tempo. Eu estou muito bem, apenas nos deixe sozinhas.

Esperou que a enfermeira saísse e então pulou da cama.

— Que é que está fazendo? — perguntou Anne alarmada.

— Saindo daqui imediatamente.

— Jennifer, você está doida? — disse Anne agarrando-a pelo braço.

— Ouça, não vou permitir que me desfigurem. Como teria Win a coragem de se aproximar de mim depois disso?

— Você mesma disse que ele se apaixonou por você, não pelo seu corpo. Agora, deixe de ser ridícula.

Jennifer, porém, já estava tirando as roupas do armário.

— Vou sair daqui. Resolvi enfrentar o risco. Já retiraram o câncer e não vou deixar que removam o meu seio.

— Jennifer, é a única maneira de se ter certeza. Outra parte do seio pode estar afetada.

— Não me importo. Já é terrível que eu não possa dar a Win nenhum filho, e não vou para ele deformada.

— Sair daqui é o mesmo que se suicidar. Além disso, acha que é justo para com Win? Casar-se com ele e, talvez depois de um ano, fazer com que ele passe por isto? A mulher dele era doente. E o que isso tem a ver com filhos? Você poderá tê-los, o Dr. Galen me disse que ginecologicamente você está perfeita.

— Mas não devo engravidar, foi o que ele disse. Uma gravidez poderia precipitar algum tumor maligno nos ovários. Há uma conexão direta entre os seios e os ovários. Na verdade, ele disse que depois da operação pretende me submeter a um tratamento de raios X, para me esterilizar. O que eu teria então para oferecer a Win? Uma vida sem filhos e um corpo mutilado.

— Você ofereceria você! Isso é tudo o que ele quer. Você mesma disse que estava cansada de ser apenas um corpo. Agora chegou a hora de provar isso. E se quer filhos, pode adotá-los.

Vagarosamente, Jennifer voltou à cama.

Anne continuou:

— Ninguém precisará saber de nada. Só você e Win. Ele a ama e não vai se importar de não ter filhos. Disso eu tenho certeza. E se você adotar um filho, você o amará como se fosse seu. E a operação não significará nada. Sinceramente, Jen, com as drogas que existem hoje para evitar a dor, e com os maravilhosos seios falsos que se podem comprar, francamente não será o fim do mundo.

Jennifer ficou olhando para o teto.

— Sabe, acontece uma coisa engraçada. Durante toda a minha vida, a palavra câncer significava a morte, o terror, algo de tão terrível que me fazia encolher de medo. E agora eu tenho um. E o mais engraçado de tudo é que não estou nem um pouco apavorada com o câncer em si, mesmo que ele signifique uma sentença de morte. Só me importa na medida em que ele prejudicará minha vida com Win, me impedirá de lhe dar filhos e me deixará desfigurada para ele.

— Ninguém notará, Jen. Há pessoas que sofrem acidentes de automóvel, que têm o rosto desfigurado; algumas mulheres são completamente destituídas de seios e se arranjam. Sempre a ouvi dizer que não valia a pena ser apenas um corpo. Muito bem, tenha coragem, acredite em você mesma e comece a provar tudo isso que sempre disse. E comece a acreditar em Win.

Jennifer conseguiu sorrir fracamente.

— Muito bem, então é melhor que eu mude esta camisola de hospital. Quero os meus trecos de maquilagem. Quero estar o mais bonita possível quando lhe contar.

Sentou-se na cama e começou a pentear o cabelo. Quando acabou de vestir uma camisola espetacular, olhou para o seio doente e murmurou:

— Adeus, meu caro. Você ainda não sabe, mas não vai estar aí por muito tempo.

Kevin juntou-se a Anne no hospital. Os dois lá estavam quando Winston Adams chegou. Anne arrumou as luzes de tal modo que Jennifer parecia exatamente uma estrela de cinema, e ela mesma estava quase feliz. Depois de alguns minutos, Kevin e Anne se retiraram.

No momento em que a porta se fechou, ele correu para a cama e tomou Jennifer nos braços.

— Por Deus, quase morri de susto. O médico me pareceu tão estranho ao telefone. Disse que você precisava se submeter a uma operação, e até insinuou que o casamento devia ser adiado. Mas agora que a vejo tão linda... que operação é essa, minha querida?

Jennifer olhou-o firmemente.

— Bem, será uma operação bastante grave. Haverá uma cicatriz e eu não poderei lhe dar filhos. Ficarei...

— Não, não quero ouvir uma palavra — disse ele, olhando-a com adoração. — Posso lhe dizer uma coisa? Eu concordei em ter filhos só por sua causa. Na minha idade, realmente não faço questão de tê-los. Mas eu queria agradá-la e fazer sua vontade, por isso fingi que seria muito importante para mim. Tudo o que me importa é você, compreende?

Ela o apertou mais contra o seu corpo, enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto.

— Oh, Win — sussurrou.

— Você teve medo de me perder? Minha querida, você jamais me perderá. Não se convenceu ainda que comecei a viver quando a conheci? — disse, beijando-lhe o busto através da camisola. — Você é tudo o que eu quero. Não me importo com bebés... Você é a única mulher que despertou alguma coisa em mim. Antes de conhecê-la, cheguei até a pensar que era diferente. Pobre Eleanor... ela não tinha culpa, mas nunca conseguiu me excitar e, provavelmente, eu a deixaria fria também. Com você... a princípio eu a evitei, você se lembra?

Jennifer concordou e fez com que ele encostasse a cabeça no seu peito.

— Você me transformou — continuou — e eu percebi que não fugia de você, mas de mim. No momento em que você entrou no meu apartamento, fiquei sabendo: tudo poderia ser diferente. Jennifer, você me ensinou a amar. Jamais viverei sem você. — E acariciou-lhe os seios. — Estes são os bebés que eu quero, enterrar meu rosto em sua perfeição, todas as noites. — Quando percebeu o curativo num dos seios, alarmou-se. — Que é isto? O que lhe fizeram.

— Não é nada... um pequeno cisto — respondeu Jennifer, com um sorriso petrificado.

— Será que não vai ficar uma cicatriz? — Ele estava genuinamente horrorizado.

— Não, Winston, não haverá cicatriz alguma, pode ter certeza.

— Isto é o que importa. Deixemos que retirem os seus ovários, o que quiserem, que não faz diferença alguma. Contanto que jamais toquem neles. — Continuou acariciando-a. — Por que o médico me pareceu tão misterioso ao telefone? Não quis dizer uma palavra sobre o seu estado, só disse para vir imediatamente.

— Bem... é que ele sabia que eu queria ter filhos e...

— Então por que não disse simplesmente que você precisava de uma histerectomia? Esses médicos... Enfim, estou muito feliz por ter vindo. Agora posso voltar pensando em você. Não poderei estar aqui antes de sexta-feira. — Escreveu um número de telefone num papel e disse:— Peça a Anne que me telefone assim que a operação estiver terminada. Se eu não estiver, saberão onde me encontrar.

Ficou parado à porta, olhando-a como se nunca a tivesse visto antes.

— Eu a amo, Jennifer. Só a você. Você acredita nisso, não é?

— Sim, Win. Eu sei. — E sorriu.

Muito tempo depois, Jennifer ainda conservava o sorriso nos lábios. O Dr. Galen passou por seu quarto à meia-noite:

— Vamos operar às oito horas da manhã — disse ele alegremente. — Fique descansada que tudo sairá bem.

— Tenho certeza disso.

Eram três horas da manhã quando Jennifer se levantou da cama. Abriu silenciosamente a porta. O corredor estava fracamente iluminado; ela percebeu uma enfermeira perto do elevador. Fechou a porta e começou a se vestir. Por sorte, tinha vindo de calças compridas e casaco militar, para despistar os fotógrafos. Pôs um turbante na cabeça e saiu para o corredor na ponta dos pés.

Andou grudada à parede e escondeu-se na saliência que abrigava o refrigerador de água. A enfermeira estava sentada sob uma luz intensa, fazendo anotações num livro. Não tinha possibilidade de alcançar o elevador sem passar por ela. Teve de ficar ali parada, rezando para que durante a noite acontecesse alguma coisa que tirasse a enfermeira dali. Rezava, também, para que ninguém a encontrasse.

O enorme relógio continuava a tiquetaquear, e a enfermeira escrevia. Sentiu que o suor escorria pelo pescoço. De repente, ouviu uma campainha tocar. Graças a Deus! Alguma paciente estava chamando. Mas a enfermeira continuava escrevendo. Será que era surda? A campainha tocou novamente, com mais insistência. A enfermeira se levantou preguiçosamente, olhou para ver o número do quarto que estava chamando e, calmamente, saiu para o corredor.

Jennifer esperou até que ela entrasse num quarto e, então, correu para o elevador. Não... demoraria demais esperar até que o elevador subisse e o barulho seria grande. Melhor ir pelas escadas. Desceu oito lances de escadas até chegar à entrada, quase sem fôlego. Olhou à volta, preocupada. Ninguém a notara. O ascensorista estava fumando e conversando com o caixa. Foi para a rua e andou alguns quarteirões, até encontrar um táxi. Chegou ao hotel às quatro horas da manhã.

Quando a enfermeira encontrou o quarto vazio, na manhã seguinte, notificou imediatamente o Dr. Galen. O médico ligou para o hotel onde Jennifer se hospedava. Não obtendo resposta do quarto, insistiu para que o gerente arrombasse a porta.

Ela estava deitada na cama, com o mais belo vestido do seu guarda-roupa e perfeitamente maquilada. Ao lado, um vidro vazio de pílulas para dormir, e dois bilhetes:

"Anne: nenhum maquilador funerário faria melhor trabalho que eu mesma. Graças a Deus, tinha as pílulas. Só sinto não poder ficar para o seu casamento. Sinceramente,

]en."

 

                     O bilhete para Winston Adams dizia:

"Querido Win: tive de ir para salvar seus bebés. -Muito obrigada por ter quase realizado meu sonho.

                             Jennifer."

 

O Senador Adams não deu a ninguém explicação pelo bilhete. Quando os jornalistas o assediaram, respondeu simplesmente: "Sem comentários". Anne conservou o mesmo mutismo. O Dr. Galen se recusou a discutir a doença de Jennifer. Declarou apenas que ela havia sofrido uma ligeira operação no dia anterior e não podia acrescentar mais nada.

O funeral foi um pesadelo. Uma enorme multidão, reunida em frente à igreja, fez parar o tráfego na Quinta Avenida. A polícia montada foi requisitada para restabelecer a ordem e o tráfego. Os jornais publicaram a história da vida de Jennifer e a fotografia de Anne estava nas primeiras páginas. Para aumentar a confusão, a mãe de Jennifer chegou à cidade, concedendo entrevistas com a maior boa vontade a qualquer repórter disposto a ouvi-la, soluçando na hora certa, e exigindo um inventário completo de todas as roupas e jóias da filha.

Anne teria sido capaz de atender à mãe de Jennifer, mas a súbita aparição de Claude Chardot causou novas complicações. Ele apresentou um testamento que o fazia herdeiro de tudo. Enquanto isso, Henry Bellamy procurava freneticamente um testamento com data posterior, para anular o do francês. Como se tudo isso fosse pouco, Neely apareceu.

Estava desolada por ter perdido o funeral. Estivera na Espanha, mudou-se para o apartamento de Anne e passou a ser o centro da atenção dos jornalistas, depois que a história de Jennifer começou a perder o interesse. Neely estava muito elegante e atraente, pronta para trabalhar, não antes de se recuperar da morte de Jennifer.

Anne conseguiu fazer bem os seus programas de televisão, apesar de tudo. Os anúncios eram realizados agora em videoteipe e os novos donos da empresa imploravam que ficasse com eles, oferecendo-lhe um enorme aumento de salário. A publicidade que tivera com a morte de Jennifer fez com que a sua cotação ficasse ainda mais alta. Mas a tragédia de Jennifer adiou o casamento de Anne e Kevin, marcado agora para o mês de abril.

Depois de três semanas, o nome de Jennifer deixou de ser mencionado pelos jornais. Foi então que surgiram novos cabeçalhos: o Senador Adams renunciara ao mandato, depois de sofrer um esgotamento nervoso; pretendia viajar durante um ano.

O suicídio de Jennifer causou novas especulações. O Dr. Galen declarou que só o senador, na qualidade de noivo, tinha direito de conhecer a natureza da doença de Jennifer. Só ele, não os jornalistas.

Anne preparou vários anúncios e voou para Palm Beach. Neely estava perfeita. Parecia que tudo pegara fogo: desde a voz aos enormes olhos que brilhavam. Neely já não era mais uma criança, mas seu jeitinho travesso era o mesmo de sempre. O lábio que tremia, o risinho nervoso, o esforço infantil de agradar, tudo sempre igual. Parecia impossível, mas ela estava melhor do que nunca. Mais uma vez, foi considerada "um génio", "uma legenda viva". Teve um retorno espetacular. Assinou, em seguida, um contrato para fazer um filme em Hollywood.

Estava novamente na crista da onda.

 

                                                                         NEELY

 

                                            1961

Neely jogava descuidadamente roupas dentro de uma mala e dizia:

— Vou comprar roupas novas lá. Céus, deixei uma quantidade enorme na Espanha. Será que posso deixar alguma coisa aqui com você?

— Deverei estar casada antes da sua volta, Neely, e, como planejamos viajar, talvez eu alugue o apartamento.

— Bem, então vou levar tudo. Pareço uma cigana, com coisas esparramadas por toda parte. É bom que tenha acontecido isso, eu já estava me sentindo entediada. Anne, o que foi que aconteceu ao dinheiro de Jennifer?

— Vai todo para a mãe dela. Henry descobriu que o testamento apresentado por Claude era falso; assim mesmo ele ganhará cinquenta por cento na reapresentação de qualquer filme que Jennifer tenha feito com ele. O resto será da mãe dela, na maior parte peles e jóias. Não havia muito dinheiro.

Neely sacudiu os ombros.

— Bem, para uma garota sem talento, até que ela se saiu muito bem. Por que motivo você acha que ela se suicidou?

— Já lhe disse que não sei, Neely.

— Bem, não acho que Jennifer tivesse qualquer doença, como muita gente imagina. Alguns acham que estava tuberculosa e já ouvi até boatos de que tinha um câncer incurável. Acho que a verdadeira razão do seu suicídio foi porque ela estava começando a envelhecer.

— Isso é ridículo! Jennifer estava mais linda do que nunca.

— Mas seu último filme foi uma bomba. Claro que vai fazer dinheiro, por causa da publicidade "que obteve agora. Ela estava decadente, essa é a verdade.

— Neely, ela tinha decidido abandonar o cinema depois de se casar.

— Sim, li todas essas lorotas na Espanha, sobre como ela encontrou o verdadeiro amor, etc, etc. Cá para nós, o senador não é exatamente um Rock Hudson. Quando era jovem, e casada com Tony, aborreceu-se de ficar o dia todo sentada à beira de uma piscina. Não, o que eu acho é que não teve forças para enfrentar a realidade. Estava envelhecendo e sabia que a sua beleza não duraria muito, e que não se conformaria em se dedicar apenas ao senador. Por isso, fez o que fez. Já o meu caso é diferente, pois eu tenho talento e tanto faz que esteja gorda ou magra, bonita ou feia. Olhe para Helen Lawson; agora que já não tem mais voz, vai trabalhar em filmes para a televisão. Mesmo sem voz, sobreviverá, porque tem talento.

— Helen sobreviverá — disse Anne vagarosamente — porque é incapaz de ter qualquer emoção. A infelicidade que sente é como a infelicidade de uma criança, que pode ser remediada com um brinquedo novo. Mas quem tem voz, mesmo você, deve cuidar dela.

Três semanas depois, Neely voltou. Estava em um estado bem próximo ao colapso.

— Anne, minha voz! No terceiro dia da gravação sumiu. Não posso mais cantar!

Anne tentou acalmá-la. Coisas assim aconteciam a todos os cantores. Depois, havia ótimos médicos de garganta.

— Não, estou acabada. Fui examinada por uma infinidade de médicos. Eles dizem que não tenho nada, que a causa é psicológica, que são os meus nervos. Mas não é isso. Deus está me punindo por ter falado de Jennifer daquela maneira. Tiveram de cancelar o filme. Agora é mesmo o fim.

-— Deus não age dessa maneira — disse Anne pacientemente. — Se há alguém punindo alguém é você mesma.

-— Claro, isso mesmo foi o que disse o meu último psicanalista. Diz que tenho complexo de autodestruição e estou tentando me punir por alguma coisa imaginária. Tudo isso é besteira. Nunca fiz nada de errado.

Neely descobriu um novo psiquiatra, muito bem recomendado, o Dr. Massinger. Desta vez foi Anne quem insistiu para que Neely morasse com ela. Estava convencida de que uma intensa terapia, associada ao apoio que ela pudesse lhe dar, curaria Neely.

Neely se esforçou para não desarrumar o apartamento, só que nunca dormia. Saía à noite, com alguns músicos e, quando voltava, sentava-se no sofá da sala até de manhã, engolindo pílulas para dormir e ouvindo os seus antigos discos.

Certa manhã, Anne se levantou e viu Neely sentada, com lágrimas no rosto.

— Estou acabada, Anne. Tentei cantar junto com os meus discos e não consegui.

— Mas o Dr. Massinger diz que são apenas os seus nervos, Neely, que sua voz vai voltar.

— Ele diz que Hollywood me deixa nervosa, Anne. Por isso é que tentei cantar essa noite, pela primeira vez, sozinha, sem câmaras ou luzes. E a minha garganta se apertou, Anne. Não posso mais cantar.

— Dê tempo ao tempo, Neely. Afinal, só se passaram algumas semanas.

Neely se levantou, foi ao banheiro e engoliu mais uma pílula.

— Você tem algum uísque, Anne? Já não funcionam sem ele.

Anne lhe deu uma garrafa, e percebeu que este seria mais um daqueles dias terríveis, em que Neely ficava num estado de semi-inconsciência pela quantidade de pílulas que tomava. Era domingo e tinha planejado ficar em casa. Convidara Kevin para o almoço e pretendia fazer o único prato de que era capaz: caçarola de caranguejos. Neely ficaria dormindo o dia todo. Por isso, telefonou a Kevin, dizendo que passaria o dia no apartamento dele, e depois poderiam comer no Lúchow.

Neely ouviu quando a porta se fechou. Não estava dormindo, mas achou mais fácil fingir. Anne ficava tão nervosa quando ela passava o dia bebendo e tomando pílulas, temendo que ela ateasse fogo em si própria. Sentou-se e se serviu de mais um uísque. Acendeu um cigarro e percebeu que era o último. Tinha certeza de que Anne escondera os outros por motivos de segurança. Bem, cairia logo no sono.

Encheu o copo novamente e achou que estava bebendo depressa demais. Melhor sorver o uísque devagar, com mais algumas pílulas. Procurou as três pílulas que deixara sob o travesseiro. Engoliu-as e começou a tomar o uísque bem devagar. Começou a se sentir letárgica, mas não conseguia adormecer. Encheu de novo o copo. "Diabo, a garrafa está quase vazia." Sem cigarros. Quem sabe, se tomasse mais algumas pílulas... Tomara tantas que achava perigoso. O Dr. Massinger já a prevenira de que qualquer dia a sua tolerância poderia não ser muito grande. E daí? Sem voz, por que não? Tinha dez mil dólares ainda. Céus, não, não tinha. Mandara um cheque de mil e duzentos para pagar a escola dos gémeos, pagara vinte e cinco dólares diários ao psicanalista por três semanas a fio, gastara algumas centenas com a viagem. E, ultimamente, assinara uma quantidade enorme de cheques. Talvez não tivesse mais do que cinco mil dólares. Quanto tempo duraria essa quantia? Não poderia ficar com Anne eternamente, ela se casaria no mês seguinte. Céus, onde é que ia conseguir dinheiro? A casa fora vendida, não tinha nenhum seguro... Talvez o melhor fosse engolir o vidro inteiro de pílulas. Ted tomaria conta das crianças; os gémeos não se importavam realmente com ela. Quando esteve a última vez com eles, só os ouvira dizer: "Me dê, compre pra mim..."

Ninguém que realmente se importasse se ela morresse. Ninguém, a não ser, talvez, Deus.

— Ei, Deus, você está mesmo aí em cima? Você tem mesmo um longo cabelo branco e barba? Você entende o que eu digo? Pode me dizer o que é que há de errado comigo? Céus, nunca pedi muito. Tudo o que eu queria era um apartamento e um sujeito que me amasse. E eu tentei, mas você sempre estragou tudo. Por que me deu uma voz bonita se não quis que eu me tornasse grande? E por que a tirou de mim?

Tomou o resto do uísque e colocou a garrafa sobre o tapete.

— Ei, Jen, você está aí em cima também? Sei que você não tem um par de asas para ficar voando por aí, mas talvez você esteja em algum lugar de onde possa me ouvir. Será que você se sentiu como eu estou me sentindo? Céus, bem que gostaria de estar com você... Pelo menos tem que ser melhor do que aqui. O que é que me resta? Mais um dia, mais uma noite, ir ao Jilly com uns sujeitos que não representam nada e que querem apenas ser vistos comigo, isto é, enquanto eu pago a despesa. Céus, estou com trinta e dois anos, e isso não é ser jovem. Deve haver alguma espécie de céu... Não aquelas bobagens de anjos e harpas, mas talvez um lugar como a Terra, e onde não haja problemas. Sim, deve haver. Senão, vejamos as pessoas que acreditam nisso, como o Presidente e Clare Boothe Luce. Talvez eu deva me tornar católica. Acho que nasci católica, mas nunca fui a igreja. Só que ainda acho que deve haver um céu, Jen, senão para onde irão, por exemplo, aquelas criancinhas mortas por Hitler? Um Deus que olhe para as pessoas que nascem cegas e surdas como Hellen Keller. Se não houver alguma coisa depois desta vida, então Deus seria injusto. Por que motivo, então, uma mulher como Hellen Keller nasce privada da vista e da audição e alguém como você, Jen, tem tudo perfeito, se não há uma compensação depois desta vida? Claro que deve haver um céu. É só olhar para minha irmã, vivendo em Astória, com aquele idiota do Charlie, enquanto eu obtive todo o sucesso. Ei, Jen, a gente sofre para morrer? Você tem medo? Fique comigo, Jen... Vou engolir mais algumas pílulas e me juntar a você.

Correu para o banheiro à procura do vidro que escondera atrás dos sais de banho. Restavam apenas seis! Engoliu-as rapidamente. Seis eram pouco, mas, e se ela tomasse um vidro cheio de aspirinas por cima? M..., só cinco aspirinas no vidro! Engoliu as aspirinas. Não havia mais uísque, mas Anne tinha um pouco de Bourbon guardado para Kevin. Isso, por cima do uísque. Ao sair do banheiro, cambaleou e deixou cair o copo que tinha na mão. Céus, Anne ficava tão furiosa quando ela quebrava coisas. Parou, tentando pegar os cacos, era um simples copo de bar; conhecendo Anne como conhecia, devia ser de cristal, provavelmente, ou coisa parecida. Apanhou um pedaço bem grande. Sim, isso resolveria tudo, um corte profundo no pulso, e um funeral como o de Jennifer. Será que ela também causaria briga depois de morta? Ted Casablanca insistiria para que fosse enterrada em Hollywood, ou sua irmã surgiria em cena para reclamar o corpo? Céus, imagine ser enterrada em algum cemitério nojento de Astória. Anne lutaria para que tudo fosse feito com dignidade, queria ter o maior funeral... ainda maior que o de Jennifer. Bem maior que o de Jennifer. Seria difícil. Muito bem, então tão grande quanto o de Jennifer. E se não existissem nem céu nem Deus? Então estaria morta e não poderia ver nada? Mas e se estivesse quase morta? Então haveria a mesma confusão, e tudo seria como daquela vez em Hollywood, com todo mundo pedindo para que ela voltasse e toda a gente se desculpando. Aí, se melhorasse dos nervos, talvez pudesse cantar novamente e tudo seria maravilhoso outra vez.

— Bem, então vamos tomar primeiro um pouco de Bourbon — disse ela, indo até o bar.

Achou a garrafa e um copo, que começou a encher. Ainda com o caco de vidro na mão, foi para o quarto de dormir. Deitou na cama, tomou um grande gole de bebida e estudou o pulso. Se ela cortasse as veias que ficavam do lado, sem cortar a grande, que poderia significar morte certa... Enfiou o vidro profundamente no pulso, evitando a veia mais grossa. Muito bem, o sangue já começava a escorrer. Céus, era uma grande quantidade de sangue, e estava correndo bem depressa. Talvez tivesse cortado alguma coisa importante. Meu Deus, não parava mais! Pegou freneticamente o telefone. Onde estaria Anne? O sangue escorria rapidamente e agora aquelas malditas pílulas começavam a funcionar. Foi o Bourbon.

Chamou a telefonista. Uma voz impessoal respondeu.

— Eu sou Neely O'Hara — murmurou. — E estou morrendo...

— Qual é o seu número? — perguntou a telefonista.

— Meu número? — Olhou para o telefone. Tudo estava começando a ficar confuso. — Não sei... não está na lista... não posso me lembrar... ajude-me, por favor... cortei meu pulso... o sangue...

— Qual é o endereço?

— Rua Sessenta e Dois, Oeste. O apartamento pertence a Anne Welles.

— A estrela de televisão? — A voz já não era mais impessoal.

— Claro, claro... — Neely deixou o telefone cair e seus olhos começaram a se fechar. Esforçou-se para abri-los. Deus, arruinara os lençóis de Anne, o braço estava dependurado sobre o tapete dourado, manchado. Céus, nunca mais Anne permitiria que morasse com ela.

— Por favor, telefonista, corra... — Todo aquele sangue e ninguém aparecia... mas ela não iria morrer. Não se morre quando se pode raciocinar tão claramente... Estou com sono... não estou morrendo... estou com sono... malditas pílulas... Agora é que começaram a funcionar.

Neely abriu e fechou os olhos rapidamente. O cheiro era de hospital. Isso queria dizer que ela estava viva. A sirena da ambulância... abriu os olhos de novo. Anne estava sentada do outro lado do quarto, ao lado de Kevin. Levantou-se e veio para perto dela.

— Neely, graças a Deus, você acordou.

Neely sorriu levemente.

— Sinto muito pelo apartamento...

— Esqueça-se disso.

— Onde estou?

— No Hospital Park North.

Neely franziu o nariz.

— Por que não me levaram ao Doctor? Ouvi dizer que é divino.

Kevin atravessou o quarto e a interrompeu:

— Ouça aqui, mocinha. Você tem muita sorte de estar aqui. Sabe para onde queriam levá-la quando chegamos ao apartamento? Ao Bellevue.

— Só faltava isso! — disse Neely, lutando para sen-tar-se.

— Foi sorte que tivéssemos resolvido ir até o apartamento de Anne; ela queria ver se você estava bem. Quando chegamos lá, encontramos uma ambulância e a polícia. E estavam prontos para levá-la ao Bellevue; há uma lei que os obriga a levar para lá todos os que tentam o suicídio. Depois, essas pessoas são mantidas lá durante um certo tempo, para ficar sob observação.

— Céus!

— Foi Kevin quem salvou a situação — disse Anne. — Apontou para o copo quebrado e insistiu para que considerassem tudo um acidente.

— Sim, e tive de fazer uma distribuição de notas de vinte dólares, para que concordassem comigo. E não tivemos tempo de escolher um hospital; veio para o mais próximo, seu estado era crítico.

— Eu não queria me suicidar — disse Neely. — Os jornais noticiaram alguma coisa?

— Na primeira página — respondeu Anne, sentando-se numa cadeira perto da cama. — Neely, nós temos que fazer alguma coisa sobre a sua vida.

Os olhos de Neely se encheram de lágrimas.

— Fazer o quê? Já não posso cantar.

— Está tudo aqui — disse Kevin, apontando para a própria cabeça. — Não há nada de errado com a, sua garganta.

— Então diga isso à minha garganta. Eu quero cantar, estou pronta para cantar, mas não posso.

— Muito bem: dentro de alguns dias você poderá sair deste hospital. E depois? — perguntou Kevin.

— Não voltarei para o apartamento de Anne, não se preocupe. Vou morar num hotel — disse Neely, os olhos cheios de lágrimas.

— Mas não pode continuar assim, Neely, vivendo de pílulas e de bebida. Talvez da próxima vez não tenha tanta sorte.

Neely espreguiçou-se.

— Se eu pudesse dormir... mas dormir de verdade, digamos, por uma semana. Aí tenho certeza de que ficaria completamente boa. Nunca consigo dormir mais do que algumas horas. Faz tanto tempo que não tenho realmente uma noite de sono...

— A cura pelo sono — disse Anne de repente.

Kevin e Neely ficaram olhando para ela interrogativamente.

— Sim, a cura pelo sono. — E explicou como Jennifer se submetera a ela para perder peso, e que era também usada para curar distúrbios emocionais.

Neely ficou entusiasmada.

— Uma semana de sono! Tenho certeza de que depois disso poderia cantar. Mas... na Suíça, aposto que deve custar uma fortuna.

— Se é um tratamento legítimo, então tenho certeza de que existe aqui também — declarou Kevin.

— O Dr. Massinger foi contrário a tal tratamento. Sim, conhecia a cura pelo sono; achava, porém, que as perturbações emocionais de Neely estavam tão enraizadas que, em sua opinião, precisava ser internada pelo menos um ano em um sanatório.

— A depressão dela não é causada por uma circunstância específica; é bem mais profunda, e é evidente, pelo histórico de sua ficha, que ela já apresentava tendências suicidas dez anos atrás. Recomendei-lhe um sanatório na primeira vez em que a examinei, mas ela se recusou a seguir meu conselho. Tem vivido unicamente de pílulas desde então; agora não tem outra alternativa. Ela deve ser internada.

O médico recomendou vários sanatórios; Neely, entretanto, se recusou terminantemente a internar-se.

— Eu, viver no meio de doidos? Não, meu caro. Eu quero o tratamento suave, como Jennifer. Champanha para começar, uma enfermeira simpática, uma agulha salvadora... e o sono, um sono maravilhoso.

Depois de muita procura, Kevin, finalmente, encontrou um grande sanatório particular no Estado de Nova York. Faziam a cura pelo sono, e teriam prazer em receber a Srta. O'Hara para esse tratamento. Tudo seria feito com a maior discrição e jamais isso chegaria ao conhecimento dos jornais.

Num belo domingo de março, Kevin e Anne levaram Nelly a Haven Manor. Anne sentiu-se mais confiante quando viu os imensos e bonitos gramados que circundavam os prédios. Neely tomou algumas pílulas a fim de ganhar coragem.

Entraram num grande prédio estilo Tudor, foram introduzidos em um salão em cujas paredes havia vários quadros, que representavam alguns benfeitores já falecidos. Foram atendidos pelo Dr. Hall, chefe do corpo médico. Ele apertou a mão de Neely, dizendo-lhe:

— Sou um grande admirador seu, Srta. O'Hara.

Neely sorriu levemente.

— Agora, queira por favor preencher estes formulários. Neely assinou seu nome em várias folhas de papel.

— Muito bem, então vamos a essa cura pelo sono — disse alegremente.

O médico apertou um botão e apareceu uma senhora de branco, que lhes foi apresentada pelo Dr. Hall.

— Esta é a Dra. Archer, minha assistente, que encaminhará a Srta. O'Hara ao seu quarto.

Neely apertou a mão de Anne dizendo:

— Não sei como lhe agradecer. Virá então me buscar daqui a uma semana?

Anne concordou e Neely virou-se para Kevin:

— Sei que você está arcando com todas as despesas. Muito obrigada.

— Não, não estou. Eu me ofereci para isto. Anne, porém, insistiu em pagar tudo ela mesma.

Neely olhou para Anne com um sorriso encabulado:

— Você sempre a postos, não é? Obrigada.

— Só quero que fique boa — respondeu Anne.

— Tudo o que quero é dormir por muito tempo...

Saiu da sala apoiada no braço da Dra. Archer.

Quando Anne se levantou, o Dr. Hall apressou-se a dizer:

— Srta. Welles, Sr. Gillmore... podemos falar um pouco?

— Claro — disse Anne sentando-se novamente.

— Falei pelo telefone com o Dr. Massinger e tenho aqui comigo todo o histórico da Srta. O'Hara. Sabemos que a cura do sono não será a solução para o caso dela.

— Mas, o senhor disse... — começou Anne embaraçada.

— Sim, eu disse que estávamos aptos a aplicar a cura pelo sono, mas eu não tinha visto a ficha da paciente nem falado com o médico dela. Por isso, agora mesmo eu hesitaria em recomendá-la. Não há dúvidas de que haveria uma grande melhora aparente, que poderia durar algumas semanas, talvez um mês. Então começaria a voltar aos antigos hábitos e, eventualmente, poderia se suicidar. Ela é um grande talento, devemos fazer o possível para salvá-la.

— Como? — perguntou Anne.

— Certamente, não com curas de sono e pílulas. Esta moça é agora uma viciada. O vício das pílulas é tão sério quanto qualquer outro vício, e muito mais difícil de curar, porque infelizmente é muito fácil para um viciado consegui-las. É bem mais difícil, por exemplo, conseguir heroína, cocaína, ou morfina. Sabem que no dia em que tentou se suicidar, a Srta. O'Hara tomou cinquenta pílulas de dormir? Conferimos com o farmacêutico e este confirmou que aviara a receita na noite anterior. E o Dr. Massinger nunca as receitou; cada receita era assinada por um médico diferente. O vidro de pílulas estava vazio quando ela foi encontrada e também algumas garrafas de bebida, o que é uma combinação altamente perigosa. Ainda assim, cortou as veias, pois a sua tolerância é a tolerância de um viciado.

— O que é que o senhor recomenda? — perguntou Kevin.

— Gostaria de tentar uma terapia psiquiátrica profunda, ainda não o eletrochoque. Esperamos que não venha a precisar dele. Acredito firmemente que, com algum trabalho, poderemos devolver ao mundo uma grande cantora.

— Quanto demoraria isso? — interrogou Anne.

— No mínimo, um ano.

— O senhor não conhece Neely. Ela sairá imediatamente do hospital se não lhe administrarem a cura pelo sono.

O sorriso do Dr. Hall era cansado.

— Mas ela assinou estes papéis. Quando assinou, pensava que estava apenas assinando o registro de admissão; Isto, na verdade, é uma autorização para um confinamento de, no mínimo, trinta dias.

— Trinta dias — disse Anne pensativa. — Se eu conheço Neely bem, o senhor jamais conseguirá mantê-la aqui por mais tempo.

— Não, mas a senhora pode fazer isto.

— Eu? Nunca!

— Então seremos obrigados a apresentar o caso a um tribunal.

— Como assim?

— Se os nossos médicos concordarem que ela precisa de um tratamento prolongado, poderemos apresentar o caso num tribunal. Três psiquiatras de fora serão chamados. Se a opinião deles coincidir com a nossa, o tribunal dará uma ordem de confinamento por três meses, que é automaticamente renovada depois desse prazo. Fazemos isso muitas vezes, para eliminar o sentimento de culpa de parentes e amigos do doente.

— Mas nós prometemos buscá-la em uma semana...

— Srta. Welles, admiro profundamente o talento da Srta. Neely O'Hara. Cobramos mil e quinhentos dólares por mês de internação e temos centenas de pessoas à espera de uma vaga. Aceitamos a Srta. O'Hara sem demora, porque achamos que devemos isso ao seu talento. Peça-lhe que nos proporcione a oportunidade para curá-la.

— Ela tem horror a sanatório.

— Ela não está em condições de decidir coisa alguma em relação ao seu futuro. Na verdade, se ela for abandonada a si mesma, não terá futuro algum.

Kevin resolveu dar sua opinião:

— Acho que o Dr. Hall sabe o que diz. Vamos, pelo menos, tentar.

Anne concordou e perguntou:

— Quando poderemos vê-la?

— Não antes de duas semanas. Mas a senhora pode me telefonar diariamente e eu a manterei informada. Garanto que a encontrará muito melhor quando vier visitá-la.

Anne ficou silenciosa durante a viagem de volta. Kevin resolveu quebrar o silêncio:

— Mil e quinhentos dólares por mês durante um ano? Acho melhor, Anne, que você me deixe cuidar disto.

— Não, essa responsabilidade é minha. Kevin, estive pensando... se assinasse aquele contrato com a Gillian... Eles me ofereceram dois mil dólares por semana.

— E o nosso casamento? A nossa viagem?

— Se esperamos até agora, não acha que mais alguns meses não farão diferença? Além disso, não poderia ficar muito tempo ausente com Neely em Haven Manor. Terei de visitá-la.

— Você não quer se casar comigo, quer, Anne?

— Eu quero, mas...

— Não, não quer. Por isso está pagando as contas de Neely. Para não me dever nenhum favor.

— Kevin, esperei muitos anos até que você decidisse que estava apto a se casar comigo. Acho que podemos dedicar alguns meses a Neely.

— Bem, poderíamos deixar de viajar alguns meses até Neely melhorar. Posso concordar com isso. Mas por que não podemos nos casar? E por que você insiste em continuar trabalhando?

— Porque, se tiver de pagar o tratamento de Neely, terei que continuar trabalhando. Falei com Henry Bellamy no outro dia e fiquei sabendo que tenho perto de um milhão de dólares, parte em ações e parte em dinheiro. Contudo, não poderia pagar as despesas de Neely no sanatório sem tocar no meu capital ou vender algumas ações. Henry não quer que eu faça isso. Se eu assinar o contrato com a Gillian, por vinte e seis semanas, então poderei pagar por Neely. Isso adiaria nosso casamento para outubro e acredito que, nessa altura, Neely já estaria perto da recuperação total. Então poderíamos viajar, e é o que faremos, eu lhe prometo.

Kevin ficou olhando para o espaço. Tinha de concordar. Maldita Neely, cada vez que aparecia era só para lhe causar transtornos.

Anne suspirou.

— Pobre Neely! Creio que agora ela já deve ter sido informada de tudo. Imagino como ficou furiosa.

A princípio, Neely foi muito paciente. Sentou-se no consultório da Dra. Archer, respondendo a todas as perguntas que a médica lhe fazia, fumando um cigarro atrás do outro e ansiando pela agulha que faria com que dormisse uma semana. O telefone da Dra. Archer tocou. Neely imaginou que fosse o Dr. Hall dando ordens, pois a médica respondeu:

— Sim, doutor. Claro. Fico muito satisfeita com isso e concordo inteiramente.

Neely bocejou. Muito bem, então concordaram. Seria bom que se apressassem. A Dra. Archer apertou um botão e Neely ficou olhando para os seus sapatos ortopédicos. Por que não faziam esses sapatos um pouco mais bonitos? Então, viu entrar na sala um novo par de sapatos brancos, e um uniforme também branco.

— Esta é a Srta. O'Hara — disse a doutora. — Leve-a para q Edifício n.° 4.

— É lá que fazem a cura do sono? — perguntou Neely, com bom humor, enquanto seguia a enfermeira. Esta apenas sorriu e a conduziu por uma série de corredores subterrâneos. À entrada de cada um, retirava um molho de chaves do bolso e abria a porta, que fechava imediatamente após terem atravessado.

— Ei, onde é esse lugar? Em Nova Jersey? Acho que já andamos bem uma milha.

— Haven Manor tem vinte prédios, sem incluir o ginásio e o edifício de terapia ocupacional. Os prédios são separados, mas há uma passagem subterrânea que os liga uns aos outros. Nós saímos do Edifício da Administração, passamos pelos Edifícios n.°s 2 e 3 e estamos agora nos aproximando do Edifício n.° 4. — Havia quase uma nota de orgulho cívico em sua voz.

O Edifício n.° 4 parecia uma casa particular. Neely viu mulheres de várias idades, assistindo à televisão, numa sala grande. Todas pareciam perfeitamente normais, pensou. Céus, o tamanho dos quartos! O quarto que ela ocupava, na Rua Cinquenta e Dois, era três vezes maior. Cada quarto tinha uma cama, uma mesa, uma cadeira e uma janela. Talvez a estivessem conduzindo a uma suite de luxo no andar superior, ou coisa semelhante. Claro que aquele não era o departamento onde administravam a cura do sono.

A enfermeira parou à porta de um cubículo, no fim do corredor.

— Este será o seu quarto.

Neely ia protestar mas pensou: ora, que diabo, que diferença fazia se não tinha uma vista panorâmica? Afinal, ficaria dormindo o tempo todo. Sentou-se na cama e disse à enfermeira:

— Muito bem, pode trazer a agulha.

A enfermeira saiu e os minutos foram passando. Neely olhou para o relógio. Onde, diabo, estavam todos? Chamou alto pela enfermeira e apareceram duas.

— Quer alguma coisa, Srta. O'Hara?

— Acertou. Estou esperando que me ponham a dormir.

As enfermeiras trocaram um olhar indagador.

— Estou aqui para me submeter à cura pelo sono — repetiu Neely.

— A senhora está no Edifício n.° 4, e este é destinado aos ajustamentos.

— Ajustamentos?

— Todos os novos pacientes ficam aqui alguns dias, para avaliarmos o problema de cada um. Ao fim desse tempo, são enviados para o edifício mais adequado a cada caso.

Neely caminhou até a mesa e abriu a bolsa, de onde tirou um cigarro.

— Chamem o Dr. Hall, deve haver um engano.

Uma das enfermeiras apanhou rapidamente os fósforos.

— O que é que está fazendo? — gritou Neely.

— Não admitimos fósforos aqui.

— Então como vou acender os cigarros?

A enfermeira tomou a sua bolsa e disse:

— A senhora não pode fumar. Isso só lhe será permitido em certas horas, e sob supervisão.

Neely tentou arrancar-lhe a bolsa das mãos, mas eram duas contra uma. Por fim, gritou:

— Chamem o Dr. Hall!

— São ordens dele. Agora, vamos, Srta. O'Hara. Às cinco horas terá direito a dois cigarros. Vamos sair e conhecer as outras clientes.

— O quê? Esperam que eu conviva com doidas? Eu sou Neely O'Hara, e escolho meus próprios amigos. Chamem imediatamente Kevin Gillmore ou Anne Welles. Isso é ridículo. Vou sair imediatamente.

Dirigiu-se à porta; uma das enfermeiras, porém, interceptou-a.

— Ela ainda tem o relógio de pulso — disse uma das enfermeiras, enquanto o retirava sob a violenta reação de Neely.

— Ei, esse relógio custou mil dólares — gritou.

— Será guardado no cofre e a senhora o receberá de volta, juntamente com os outros objetos pessoais, quando deixar o sanatório.

Neely começou a sentir um verdadeiro pânico. Jamais sentira um medo tão desesperado em toda a sua vida.

— Por favor, chame Anne Welles. Ela vai esclarecer tudo.

Meia hora depois, as duas pílulas que tomara já haviam perdido o efeito e ela estava mais acordada do que nunca. Neely sentia-se, às vezes, furiosa, às vezes, apavorada. E aterrorizada também. Tocou a campainha. Apareceu uma enfermeira muito gentil, mas muito evasiva. A Srta. O'Hara poderia fumar um cigarro imediatamente se tivesse a bondade de se dirigir ao salão. Na verdade, era bom que se apressasse, pois se perdesse a vez só poderia fumar novamente às nove horas.

— Quem, diabo, é você para me dizer a que horas posso fumar? — gritou. — Isto não é um hospital de caridade. Este lugar custa muito dinheiro e exijo que me tratem com respeito.

— Nós a respeitamos, Srta. O'Hara, e em troca esperamos que respeite o regulamento de Haven Manor.

— Não sigo nenhum regulamento. Eu é que os faço! Sou Neely O'Hara!

— Sabemos disso. Todos nós admiramos muito o seu trabalho.

— Então faça o que eu digo — insistiu Neely.

— Só atendemos às ordens do Dr. Hall e da Dra. Archer.

— Muito bem, então chame o Dr. Hall.

Voltou as costas à enfermeira e sentiu-se ainda mais amedrontada. Talvez esse Dr. Hall a tivesse atraído para uma armadilha. Não, ele não podia se atrever a tanto. Ela é que estava tão amedrontada que imaginava coisas. Se Anne e Kevin souberem disso, ele vai pagar caro. Mas tudo não deve passar de um mal-entendido.

A enfermeira voltou depois de dez minutos para lhe dizer que, se quisesse fumar antes do jantar, devia sair imediatamente, pois só dispunha de dez minutos para isso.

— Não vou me juntar às doidas!

A enfermeira desapareceu e Neely começou a andar pelo quarto. Sim, bem que ela precisava dessa cura pelo sono. E também de algumas pílulas, pois suas mãos estavam começando a tremer. Céus, ultimamente precisava tomar uma média de duas pílulas a cada hora, "apenas para se manter calma. Talvez a cura pelo sono acabasse com aquele hábito. Céus, depois da Espanha, vinte a trinta bolinhas por dia! Por outro lado, foi uma sorte ela ter saído de lá, antes de se tornar uma viciada irrecuperável. Maldito aquele Dr. Madera, que me dera a primeira injeção de Demerol... Céus, que sensação maravilhosa! Todo o medo desaparecia. Depois da injeção, permanecera na cama durante seis horas, com um sentimento de felicidade e bem-estar que jamais conhecera. Sentia que poderia cantar melhor do que nunca, alcançar notas jamais alcançadas e permanecer magra, sem precisar tomar as pílulas verdes.

Claro que, quando terminava o efeito, ela se sentia miserável. Como poderia encarar mais um dia, mais um amante, mais uma festa? Sempre havia, porém, o Dr. Madera para isso. Aprendera em Hollywood que uma boa desculpa era se queixar de "dor nas costas". Não havia aparelho de raios X que pudesse desmentir isso e nenhum médico poderia ter certeza de que não era verdade. Uma queixa assim sempre proporcionava alguns dias de descanso. Funcionou muito bem com o Dr. Madera, que resolveu contribuir com o Demerol. Em Hollywood, entretanto, não seria possível consegui-lo. E o Dr. Madera fora tão generoso que lhe dera três injeções por dia durante um ano inteiro.

Depois de algum tempo, ela não ficava apenas deitada quando tomava o Demerol. Conseguia sair, ir a boates e cantar. Nunca cantara melhor em sua vida. Se o filme que estrelara na Espanha fosse liberado nos Estados Unidos, o sucesso seria enorme. Alcançara o pináculo com ele; estava magra e elegante, não tinha vontade de comer quando tomava Demerol. E os olhos pareciam dois carvões de tão negros — a droga fazia aumentar as pupilas. A sua voz, porém, era clara e pura.

Foi quando Ted lhe telegrafou da Califórnia, dizendo que reclamaria a custódia dos gémeos se ela não voltasse para cuidar deles. Como se ela fosse permitir que seus filhos vivessem em companhia daquela vadia! Para cúmulo de tudo, o suicídio de Jennifer. Teve de abandonar a Espanha e o Demerol. As pílulas ajudavam, mas precisava de tantas, ultimamente! Pelo menos trinta por dia. E hoje tomara apenas seis, sendo que as duas últimas há duas horas. Onde, diabo, estaria o Dr. Hall? Quando é que iriam começar?

Uma enfermeira apareceu para dizer que o jantar ia ser servido. Será que poderia fazer o favor de vir à sala de jantar? Não, não iria.

— Não, o que eu quero é um cigarro e algumas pílulas de Seconal para esperar o Dr. Hall. Traga pelo menos seis.

Pulou para a cama. Sentia a garganta arder. Céus, se pudesse tomar alguma coisa... qualquer coisa. Aquele quarto, que mais parecia uma gaiola, estava começando a deprimi-la. Se não acontecesse alguma coisa imediatamente, iria embora. E ninguém poderia impedi-la; afinal, não estava numa prisão. Ouviu passos. Sentou-se. Quem sabe iriam começar a agir agora? Apareceu uma enfermeira, carregando uma bandeja com o jantar.

— Srta. O'Hara, se prefere comer em seu quarto...

A enfermeira não teve oportunidade de terminar a frase. A paciência de Neely estava esgotada. Pegou a bandeja e a atirou longe. A enfermeira desviou-se, uma outra chegou correndo. Neely então explodiu:

— Eu não quero comer e não pretendo confraternizar. Tudo o que eu quero é dormir. Agora, tragam o meu cigarro e comecem essa cura pelo sono imediatamente; de outra forma, vou embora. Já aguentei demais.

A enfermeira, que parecia ser a chefe, tomou a palavra:

— Srta. O'Hara, não haverá nenhuma cura pelo sono.

— O que é que está dizendo?

— Falei com o Dr. Hall. Não haverá cura pelo sono nem barbitúricos. A senhorita vai sarar com psiquiatria e terapia.

— Vou embora! — Neely dirigiu-se à porta mas foi impedida por quatro braços que a agarraram.

— Tirem essas mãos imundas de cima de mim — gritou. — Quero ficar sozinha.

Avançou para as enfermeiras, com os punhos cerrados, e uma delas começou a dar ordens.

— Levem-na para Hawthorne.

Apareceram mais algumas enfermeiras, que arrastaram Neely pelo corredor. Aquilo não podia estar acontecendo! Ela, Neely O'Hara, empurrada por quatro enfermeiras! E aquele grito selvagem estava saindo de sua própria garganta! Ela não estava tendo um acesso, estava só furiosa com a traição que lhe fizeram.

Lutou e gritou durante todo o percurso, enquanto portas eram abertas e fechadas, até chegarem à entrada do outro prédio. Apareceram mais duas enfermeiras. Foi arrastada a outro corredor e jogada em outro cubículo; mesmo em sua fúria, notou a diferença: ali não havia tapete, nem cortinas, nem mesa. Apenas uma cama, tal qual numa cela. Foi colocada na cama. Arrancaram-lhe a calça comprida, rasgando-a. Ainda bem que trouxera mais uma.

Uma jovem enfermeira apareceu e sentou-se ao lado dela.

— Vamos, Srta. O'Hara, precisa comer alguma coisa.

— Quero ir para casa — gritou Neely.

— Vamos jantar, vamos conhecer as outras pacientes.

— Quero dormir. — Neely começou a soluçar. Caíra numa armadilha. Olhou para a janela e viu que não tinha grades. Apenas uma tela. E as telas podiam ser cortadas... Mas com quê? Saiu correndo do quarto e chegou a uma grande sala. Viu muitas pacientes sentadas, assistindo calmamente a um programa de televisão. Olhou à volta com um olhar selvagem. Com que poderia cortar a tela? Olhou para a estante de livros. Estava cheia de livros e quebra-cabeças... e, também, um jogo de xadrez. Agarrou um peão. A cabeça dele era pequena e, quem sabe, se ela batesse com bastante força, conseguiria romper a tela. Saiu correndo para o quarto com o peão na mão.

A enfermeira continuava sentada na cama, olhando calmamente. Deixe que ela olhe, pensou Neely; sou mais forte que ela e não poderá impedir que eu fuja. Abriu a janela. A enfermeira continuou imóvel. Começou a bater na tela com a peça de xadrez, sem parar de soluçar. Deve haver um ponto fraco nesta tela, por onde poderei começar a rasgar, pensou. Deve haver...

— Essa tela é feita de aço — disse a enfermeira calmamente. — E, mesmo que conseguisse fugir, não sairia da propriedade. A área total é de vinte e cinco acres e os portões estão fechados.

Neely deixou cair o peão e sentou na beira da cama, soluçando. A enfermeira tentou acalmá-la, mas os soluços se tornavam cada vez mais violentos. Pensou em Anne e Kevin. Já deviam estar em Nova York, imaginando provavelmente que ela estivesse dormindo. Pensou no apartamento de Anne. Por que não tinha ficado lá? Ao menos, poderia fumar quando quisesse, tomar pílulas, beber uísque... Pensou em Hollywood. O Chefe... a quem estaria agora controlando? E Ted... Era mais cedo na Califórnia, talvez três horas... E devia estar fazendo sol. Ted provavelmente estava à beira da piscina com a mulher. E ela, a grande Neely O'Hara, presa numa fazenda de doídos! Soluçou mais alto ainda.

Deve ter ficado mais de uma hora assim, pois quando olhou para a janela viu que já estava escuro. A enfermeira-chefe apareceu. Em um broche, no seu avental, se lia: "Srta. Schmidt". Neely achou-a com cara de touro.

— Srta. O'Hara, a menos que consiga se acalmar, teremos de fazer alguma coisa.

Muito bem, então, apesar de tudo o que lhe disseram, podia conseguir alguns barbitúricos ali. Ela lhes mostraria se não era capaz de quebrar o regulamento. Neely O'Hara mudaria tudo. Começou a gritar bem alto.

Imediatamente, a enfermeira reapareceu.

— Vamos, precisa parar com isso, está incomodando as outras pacientes.

— Elas que vão à m... — berrava Neely. Seus gritos ficavam cada vez mais altos e mais agudos.

A enfermeira fez um sinal com a cabeça para outras duas enfermeiras, que agarraram Neely pelos braços e a arrastaram pelo corredor abaixo. Ela gritava, lutava, dava pontapés, mas as enfermeiras eram muitas. Levaram-na para um banheiro enorme. A Srta. Schmidt e as outras duas pedi-ram-lhe que tirasse a roupa.

— Não vou lhes dar este espetáculo — gritou Neely.

A Srta. Schmidt fez outro sinal para as duas enfermeiras, que despiram Neely à força. Nua, tremendo, foi forçada a se deitar numa banheira coberta por uma tela, que lhe deixava apenas a cabeça de fora. Puseram depois um travesseiro sob a sua cabeça. Uma das enfermeiras sentou-se a uma mesa próxima, munida de um lápis e de um caderno de notas.

Neely continuava a gritar, embora achando que o banho estava muito bom. Sempre gostou de longos banhos de imersão, e este até que era bastante especial. A água tépida entrava de um lado da banheira, saindo por outro, sempre borbulhando à sua volta, o que lhe dava uma sensação de relaxamento. Pensava em tudo isto, enquanto continuava a gritar.

A Srta. Schmidt voltou e se ajoelhou ao lado dela. Seus olhos demonstravam bondade.

— Srta. O'Hara, por que não tenta relaxar e ajudar o banho a fazer o seu trabalho?

— Quero sair daqui — gritava Neely.

— A senhorita ficará nesta banheira até 'parar de gritar ou até adormecer.

— Fique sabendo que não há água suficiente em todo esse maldito Estado que me consiga fazer dormir — berrou Neely no rosto da enfermeira.

— Já houve pacientes que ficaram quinze horas nesta banheira — respondeu a Srta. Schmidt, levantando-se. — Voltarei daqui a uma hora; talvez a senhorita esteja mais calma então.

Uma hora! E já estava começando a ficar rouca. A garganta doía. Queria deitar-se para trás e descansar, mas era exatamente isso que queriam que ela fizesse. Estava com fome, queria fumar um cigarro e tomar umas pílulas. Recomeçou a gritar, amaldiçoando o Dr. Hall, o hospital, as enfermeiras... até começar a soluçar. Notou que a enfermeira parava de escrever quando ela parava de falar e apenas soluçava. Então, era isso. Escreviam todas as palavras ditas pelas pacientes, para que o Dr. Hall pudesse ler. Não, não iria parar, e ninguém descansaria enquanto Neely O'Hara estivesse ali.

Gritou novamente. Usou a pior linguagem possível e notou que a enfermeira corava enquanto escrevia as obscenidades que dizia. Em alguma parte da sua mente, sentiu compaixão pela enfermeira. Era uma jovem, de uns dezenove anos, e não era culpa dela... afinal, não foi ela que fez o regulamento. Assim mesmo, continuou a gritar todas as obscenidades que já ouvira na vida. Enquanto isso, batia na tela com os joelhos, já arranhados. De repente, conseguiu passar a cabeça pelo buraco da tela e mergulhar na banheira. A enfermeira pulou, puxou-a para fora e tocou uma campainha. Outras enfermeiras vieram e tornaram a abertura, para a cabeça, menor. Neely continuava gritando, a enfermeira escrevendo.

Quando mergulhou, pôde notar um pequeno furo na tela, bem perto do dedão do pé. Sempre gritando, enquanto a enfermeira escrevia, Neely começou a enfiar o pé pelo furo, que se tornava cada vez maior. A fim de distrair a enfermeira, continuava a blasfemar e a xingar, enquanto ia lentamente aumentando o tamanho do buraco na tela. Então, com um esforço sobre-humano, enfiou o pé inteiro pelo buraco da tela, e dobrou violentamente a perna, de modo que o joelho bateu contra o seu peito. Houve o forte ruído de uma coisa que se rasga e a tela se abriu. Neely pulou para fora da banheira. Uma avalancha de enfermeiras chegou correndo, liderada pela Srta. Schmidt. Uma nova tela foi colocada sobre a banheira, enquanto Neely tinha uma pequena satisfação, ao ouvir uma das enfermeiras murmurar:

— Jamais alguém rasgou a tela da banheira!

Devia ter gritado durante uma eternidade. Trocaram a enfermeira, esta também era bastante jovem, mas as blasfémias de Neely a deixavam completamente impassível. Neely, rouca, exausta — as costas doíam... os joelhos doíam... o dedão do pé parecia ter quebrado com o esforço de rasgar a tela — continuava a gritar. A porta se abriu. Um médico entrou. Puxou uma cadeira e sentou-se ao pé da banheira.

— Boa noite. Eu sou o Dr. Clements. Estou fazendo a ronda da noite.

Notou que eram nove horas no relógio do médico. Devia estar naquela banheira há umas três horas.

— Posso ajudá-la?

Eu não estou doida, eles é que estão, pensou. Aqui está ele sentado, calmamente, e eu só com a cabeça do lado de fora desta banheira, e simplesmente me pergunta se pode me ajudar.

— Há algo que eu possa fazer?

Neely olhou para ele e as lágrimas começaram a correr pelo seu rosto.

— Que espécie de psiquiatra é você? Ainda pergunta se pode me ajudar? Por Deus, todos os médicos deste lugar sabem por que estou aqui. Todos vocês sabem que fui enganada. Prometeram uma cura de sono e só porque estou reclamando, porque tenho direito, me enfiaram nesta banheira.

— Uma cura pelo sono? — A surpresa dele não era fingida.

— Sim, por isso é que vim para cá. Para dormir durante oito dias. Foi o que me prometeu aquele maldito Dr. Hall. No momento, porém, em que meus amigos foram embora, tudo mudou.

O médico olhou para a enfermeira, que sacudiu os ombros. Olhou, então, de novo para Neely.

— Estou aqui apenas fazendo a ronda, pois é minha noite de plantão. Nada sei a respeito do seu caso. Mencionarei isso no meu relatório amanhã e tenho certeza de que tudo ficará acertado.

— Tão fácil, não é? — Desta vez Neely não estava gritando, porque percebera uma preocupação autêntica nos olhos do homem. Quem sabe ela poderia convencê-lo? — O senhor está aqui para me ajudar. Acha que desta maneira está me ajudando? Foi- para isso que estudou? Para fazer um apontamento a meu respeito e depois ir para casa dormir sua própria cama, enquanto eu fico aqui dentro da água? Se o senhor fosse um ser humano realmente, me daria um cigarro, algo para comer, algumas pílulas de Seconal... e não apenas uma anotação no seu caderno.

O medico saiu da sala; Neely renovou esforços para começar a gritar. A garganta doía, e ela se sentia muito cansada. Se pudesse parar de gritar... A água permanecia sempre na mesma temperatura, bem que poderia adormecer ali mesmo... Mas isto seria dar a. eles uma vitória. Toda a gente ficava na banheira até dormir... menos Neely O'Hara! Se perdesse essa primeira batalha por certo perderia as outras. Recomeçou a gritar tão alto quanto possível. .

Uma hora depois, o médico voltou acompanhado da Srta. Schmidt. Abriu uma pasta, despejou alguma coisa em um copo, que entregou à enfermeira.

— Falei com o Dr. Hall pelo telefone. Ele concorda em que a coisa mais importante no momento é fazê-la dormir. Pelo menos esta noite.

A enfermeira segurou o copo na altura dos lábios de Neely, para que ela bebesse.

— Não farei nada antes que me tirem daqui — disse Neely, virando o rosto para o outro lado.

— Tome isto — disse a Srta. Schmidt suavemente. — Você dormirá imediatamente e nós a tiraremos daqui. Eu prometo.

Neely compreendeu. Tinham dito que não a tirariam dali antes de ela dormir; no fim, tiveram de lhe dar alguma coisa para dormir. A vitória era sua. Então, nada de barbitúricos, hem? Que diabo seria aquele líquido turvo que lhe ofereciam? Permitiu que a enfermeira a fizesse beber até a última gota.

Jesus! Aquilo sim é que valia a pena! O efeito foi instantâneo. Era maravilhoso! Parou de gritar e a mais incrível das sensações tomou conta dela. Sentiu que retiravam a tela e que alguém esfregava o seu corpo com uma toalha... ajudavam-na a vestir uma camisola.

— Não temos nenhum quarto particular vago neste,., edifício, Srta. O'Hara — dizia a enfermeira. — A senhorita pode me ouvir? Teremos que levá-la a um dormitório coletivo.

Ainda estava escuro quando acordou. Onde, diabo, estava ela? Num comprido dormitório cheio de camas... Céus! A fazenda de doidos! Que horas seriam?. Pulou para fora da cama. A enfermeira, sentada do lado de fora, pulou:

— Sim, Srta. O'Hara.

— Que horas são?

— Quatro horas da manhã.

— Estou com fome.

Ofereceram-lhe uma bandeja com biscoitos e leite. Deixaram que sentasse no banco do hall, para não acordar as outras pacientes. Acabou de tomar o leite. Poderia fumar um cigarro? Não, não podia. Eram gentis, mas não podiam ^ dar o cigarro. Muito bem, que fariam agora? Não tinha mais sono, e além disso, alguém roncava no dormitório. A enfermeira se desculpou dizendo que um apartamento particular ficaria vago dentro de alguns dias.

Neely voltou à cama. Dentro de alguns dias! Sairia dali assim que clareasse o dia. Teriam de lhe permitir telefonar para Anne.

Devia ter dormido novamente porque, quando percebeu, havia grande atividade à sua volta. Toda a gente estava de pé e uma nova enfermeira apareceu.

— Bom dia, Srta. O'Hara. Levante-se e arrume a cama. O banheiro é no fim do corredor.

— Arrumar a cama? — disse Neely bruscamente. — Não com o preço que cobram, irmã. Há quinze anos que eu não faço a minha cama e não é agora que vou recomeçar.

— Eu a arrumarei para você — disse uma bonita jovem de cabelo cor de areia. — Meu nome é Carole.

— Por que faria isso para mim? — perguntou Neely, enquanto observava a moça pôr os lençóis em ordem.

Ela sorriu.

— Você ganhará uma nota negra se não fizer a cama. Hoje é seu primeiro dia, mas vai se acostumar.

— Por que é que eu deveria me incomodar com uma nota negra? — perguntou Neely.

— Bem, você não pretende ficar no Pavilhão Hawthorne a vida toda, pretende? Vai querer mudar para o Fir, depois para o Elm, para o Ash, e daí para a clínica dos não residentes, não é?

— Até parece uma escola.

— E de certo modo é. Este é o pavilhão para as mais perturbadas. Eu já estava prontinha para ir para o Elm, mas... explodi. Já faz dois meses que vim para cá. Espero ser transferida para o Fir em breve.

Neely seguiu Carole até um enorme banheiro, onde umas vinte mulheres escovavam os dentes e conversavam. Eram de todas as idades, algumas estavam em seus quarenta e poucos; havia uma simpática senhora, de uns setenta anos; Carole devia ter vinte e cinco; umas sete ou oito de sua idade, e algumas mais novas que ela. Falavam como estudantes num dormitório de escola. Neely ganhou uma escova de dentes e uma funcionária apareceu, carregando uma grande caixa.

— Muito bem, garotas, aqui estão os seus batons.

Neely não podia acreditar no que via. Na caixa, vinte batons, cada um com uma etiqueta, onde estava escrito o nome da dona. Viu o seu próprio, que deviam ter tirado de sua bolsa e etiquetado. Passou-o nos lábios e o devolveu à funcionária.

Entrou então na fila para pegar a roupa. Uma funcionária entregou-lhe um soutien, uma calcinha, um par de sandálias, uma blusa e uma saia. Para seu espanto, eram as suas próprias roupas, todas com o nome na etiqueta. E ela não as trouxera. Portanto, Anne devia ter enviado essas roupas por mensageiro, durante a noite.

Isso significava que Anne sabia que ela não estava sendo submetida à cura pelo sono. O medo que sentiu a desnorteou. Vestiu-se devagar, tentando pôr em ordem os pensamentos. Seguiu Carole até o salão de recreação. O sol entrava pela janela dando uma falsa impressão de alegria. Olhou para o relógio. Céus, eram apenas sete e meia! Como suportaria passar aquele dia que apenas começava?

A Srta. Schmidt foi substituída pela enfermeira do dia. Parecia-se com a superior, e as outras cinco ou seis enfermeiras pulavam quando ela dava ordens. Neely reuniu-se às companheiras para o café. A sala era grande e alegre, e elas ficavam quatro em cada mesa. Decidira que não comeria, mas o prato de ovos com bacon lembrou-lhe que estava faminta. Comeu fartamente e voltou com as outras para a sala de recreação.

Achou as companheiras bem-educadas. Sabia que a haviam reconhecido, olhavam-na e sorriam gentilmente, como que para evitar que ela se sentisse acanhada. A aparência dela devia estar péssima. O cinto da sua saia fora retirado. Tinha o cabelo todo encaracolado e os joelhos arranhados, lembrança da noite passada na banheira. Desejou participar da camaradagem e do bom humor das companheiras. Todas agiam como se gostassem muito daquele lugar.

Carole apresentou-a a todas. Céus, mas elas pareciam perfeitamente normais e saudáveis! Sentou-se, imaginando o que aconteceria em seguida. Uma enfermeira entrou e todas as mulheres se puseram alegremente à sua volta; abriu uma caixa e foi chamando cada uma pelo nome, até mesmo "Miss O'Hara". Neely foi até lá. Céus, como eram organizados! Até seu maço de cigarros estava etiquetado. Cada uma das mulheres ganhou dois cigarros e uma outra enfermeira pôs-se ao lado da primeira, para acendê-los. Neely aspirou profundamente a fumaça do primeiro cigarro que fumava em doze horas! A primeira baforada a deixou tonta, a segunda, satisfeita, a terceira desanuviou-lhe a cabeça. Imaginem, ficar sem fumar um cigarro desde a tarde anterior, ela, que chegava a fumar dois maços por dia! Levantou-se lentamente e se dirigiu à mesa onde estava sentada a Srta. Weston.

— Gostaria de dar um telefonema — disse Neely. — Que devo fazer?

— Telefonemas não são permitidos — disse a moça alegremente.

— Bem, então como posso me comunicar com os meus amigos?

— A senhora tem permissão para escrever cartas.

— Onde posso obter papel e caneta?

A enfermeira olhou para o relógio e disse:

— Acho melhor esperar um pouco; está na hora da sua consulta médica.

— Com o Dr. Hall?

— Não, com o Dr. Feldmann. É apenas uma consulta de rotina.

Era um clínico-geral, não um psiquiatra. Tirou um pouco de sangue do dedo e do braço e ouviu o seu coração.

Neely pediu a uma enfermeira que lhe acendesse o segundo cigarro. Uma moça bonita, de cabelos escuros, aproximou-se dela.

— Não se importe com o exame médico. Fazem isso para controlar a saúde geral. Seria embaraçoso para eles que alguma de nós morresse de câncer, ou de outra coisa qualquer, enquanto estivesse tratando apenas da cabeça.

Neely olhou para a moça e ficou imaginando como ficaria linda com uma maquilagem apropriada. A estrutura óssea do rosto era perfeita e os olhos brilhavam. Devia ter tido um corpo bonito, se bem que agora estivesse um tanto gorda, feria talvez uns trinta anos.

— Sou Mary Jane — disse, enquanto se sentava, segurando uma caixa no colo. — Deixe que eu a inicie na vida aqui. Quando você for ao ginásio, compre uma caixa de papel de cartas. Custa apenas um dólar.

— Eu não tenho dinheiro.

— Você pode mandar pôr tudo na sua conta.

Ela abriu a caixa e Neely viu que continha papel de carta e um maço de cigarros.

— Onde foi que você conseguiu... ?

A moça silenciou-a com um gesto rápido.

— Nos dias de visitas, a gente tem permissão para fumar com as visitas. Faça com que lhe tragam um pacote de cigarros quando a visitarem. Você então esconde os cigarros e, na hora de fumar, poderá fumar até uma dúzia.

— Mas a enfermeira que acende os cigarros notará se a gente acender mais de dois.

— Você poderá acender o seu cigarro no de uma companheira. Isso é permitido. Só não nos permitem ter fósforos. Na verdade, as enfermeiras não se importam com a quantidade que fumamos. Acho que reconhecem termos direito a algum prazer na vida, afinal.

Neely sorriu.

— Você parece normal. Por que está aqui?

— Fiz isso para me vingar do meu marido, mas o tiro saiu pela culatra. Aquele bastardo tem montes de dinheiro e arranjou outra mulher. Pediu que eu lhe desse o divórcio e então eu fingi ter um colapso nervoso. Foi o maior erro de minha vida.

— Por quê?

— Tomei três pílulas e escrevi uma carta suicida. Quando acordei estava no Bellevue. Menina, lá é que a gente é capaz de ficar louca de verdade. Loucas por toda parte, gritando e tendo acessos. O meu medo foi tanto que comecei a gritar também; então, me puseram uma camisa-de-força. Depois, porque meu marido tem dinheiro, me internaram aqui. Quando quis sair, meu marido providenciou para que tal não acontecesse. Já estou aqui há cinco meses. Eu estava no Edifício Elm, onde permitem que se fume à vontade e onde podemos usar cintos e maquilagem. Quando soube que ele conseguira me manter internada indefinidamente, tive uma crise histérica, e eles me mandaram para cá. Por isso, aconselho-a a fazer direitinho tudo que lhe mandarem, não como eu, que me recusava a comer e a cooperar. Como resultado, passei praticamente três semanas naquela maldita banheira. Convença-se desde já que só existe uma maneira de sair daqui: a deles. Tenho me comportado como um anjo, e em breve serei transferida para o Fir. Depois de algum tempo, irei para o Elm, depois para o Ash, em seguida, para o bangalô dos semi-internos... depois, fora daqui para sempre.

Neely gelou de medo.

— Isso me parece que vai levar alguns meses...

— Mais ou menos um ano — disse Mary Jane alegremente.

— E você não se incomoda?

— Claro que me incomodo. Tanto me incomodo que passei uma semana a gritar. Mas a verdade é que não se pode com eles. Mostram a sua ficha a seu médico, ao advogado, ou a quem é responsável por você. A coisa parece bem pior quando está em letras de forma: A paciente teve um ataque histérico. Teve de ser contida. Passou doze horas na banheira". Aí, eles dizem ao seu advogado: "Agora, assine aqui para que ela permaneça no sanatório mais três meses. O senhor, certamente, deseja fazer tudo para que uma mulher saudável e normal seja restituída à sociedade, não é verdade?" Claro que pelo preço que cobram, não se importam com a demora. Por isso, resolvi não lutar mais. Além disso, que é que perco, afinal? Não tenho lugar para onde ir. Hank, meu marido, está com a tal garota, e, pelo menos, não pode se casar com ela. E tem que gastar comigo mil e quinhentos dólares por mês.

— Mas é que eu vim para cá esperando ficar oito dias, para fazer a cura pelo sono.

— Para fazer o quê? — Mary Jane olhou-a com estranheza.

Neely explicou-lhe o que era a cura pelo sono, e Mary sorriu:

— Não acredito que façam isso por aqui. Na verdade, não nos dão nem uma aspirina.

— A mim deram alguma coisa na noite passada — disse Neely orgulhosamente.

Mary Jane sorriu.

— Menina, é verdade que você rasgou a tela? Todas só falam disso.

Neely fez que sim com a cabeça.

— É também vou sair daqui, pode estar certa.

Mary Jane continuou a sorrir.

— Muito bem, fico torcendo. Mas conte como é que vai fazer. Olhe para a Peggy; fizeram uma lavagem cerebral no marido dela.

Peggy aproximou-se delas. Era loura atraente, uns vinte e cinco anos de idade.

— Contando a ela todas as nossas histórias tenebrosas? — perguntou.

— Por que é que você está aqui? — Neely se dirigiu à loura.

— Porque era completamente maluca — respondeu a moça alegremente.

— Não, não era — disse Mary Jane. — É que ela perdeu dois bebés em seguida, que nasceram mortos. Qualquer uma ficaria deprimida.

— Tudo o que sei — Peggy conseguiu sorrir — é que começava a chorar à vista de simples bonecas numa vitrina. Quando cheguei aqui, ainda foi pior. Recebi quarenta choques elétricos. Só agora estou começando a me sentir humana novamente.

Neely sentiu a garganta apertada pelo terror. Tratamento de choques! Mary Jane parece que leu os seus pensamentos e apressou-se a dizer:

— Não se preocupe. Ainda que achem que você precise de tal tratamento, têm de obter permissão de quem é responsável pela gente para administrá-lo.

— Anne nunca dará permissão para isso — disse Neely, sossegada.

— A menos que eles lhe façam uma lavagem cerebral, como fizeram ao marido de Peggy. Quando a Dra. Archer e o Dr. Hall começam a trabalhar as pessoas, elas acabam concordando com tudo. O marido de Peggy, por exemplo, apareceu no primeiro dia de visitação. Peggy estava ótima, queria apenas sair daqui. O marido ficou contentíssimo e foi ao escritório, para as formalidades de retirada do paciente. Só voltou a vê-lo duas semanas depois e, no dia seguinte, começaram o tratamento de choques com ela.

— Por quê?

— Não culpo Jim — começou Peggy. — No começo, eu o culpava, agora compreendo. Mostraram-lhe a minha ficha. Davam-me como deprimida, não dormia, chorava o tempo todo, enfim, tinha todos os sintomas de uma maníaca-depressiva. Mas quem não choraria, perdendo duas crianças, e, ainda por cima, ficando aqui, confinada? Conseguiram convencer Jim; se eu fosse para casa, talvez ficasse pior e até incurável. Claro que Jim quer uma mulher feliz; por isso, assinou os papéis para o meu confinamento.

Neely ouviu muitas histórias semelhantes. Ninguém era maluca. Na verdade, todas pareciam mais normais do que muita gente que Neely conheceu lá fora. No meio da sétima história que lhe estava sendo contada, a enfermeira interrompeu:

— Vamos, minhas senhoras!

— E agora? — perguntou Neely.

— Ginásio de esportes — explicou Mary Jane.

Seguiram a enfermeira, formando filas duplas. Passaram por corredores onde as portas eram abertas e trancadas novamente. Finalmente, chegaram a um grande ginásio. Havia uma quadra de badminton,2 mesas de pingue-pongue, e outros jogos. Um grupo saía quando elas entraram; Mary Jane acenou para algumas das moças e explicou a Neely:

— Aquele grupo é do Fir. Usam o ginásio das oito às oito e trinta. Aquelas moças que eu cumprimentei foram promovidas na semana passada do Hawthorne para o Fir.

Neely sentou-se num banco, enquanto as outras escolhiam lugar para os jogos. Comprou uma caixa de papel de cartas, mas se recusou a experimentar sapatos para os esportes, alegando que não ficaria muito tempo. Tinha de escrever para Anne, sem demonstrar pânico. Mary Jane lhe dissera que, se o demonstrasse, isso seria usado contra ela.

Saíram do ginásio às nove e meia, quando entrava um novo grupo. Foram levadas a um outro edifício, de terapia ocupacional. Todas as mulheres se dirigiram aos seus trabalhos e uma professora explicou a Neely que ela poderia trabalhar com mosaicos, tricô, ou qualquer outra coisa que lhe agradasse. Não queria fazer coisa alguma, sentou-se a um canto. Por Deus, como foi que isto aconteceu? Olhou pela janela, A grama começava a ficar verde; um coelho atravessava o jardim. Pelo menos ele podia ir aonde quisesse. Era livre, Neely não podia suportar a clausura. Ficou olhando para a professora, que pacientemente ensinava suas companheiras. .Claro, às cinco da tarde, a professora ficaria livre para ir aonde quisesse. E ela precisava de um cigarro. E precisava de uma pílula. Por Deus, daria qualquer coisa por uma pílula. Sentiu que começava a transpirar na base do pescoço. Seu cabelo estava úmido e sentia uma dor terrível nas costas. Ia desmaiar. A professora veio correndo até ela.

— Minhas costas — queixou-se Neely.

— Feriu-se no ginásio? — A professora era toda atenção.

— Não, sempre sofri das costas. Estão doendo novamente.

A instrutora perdeu imediatamente o interesse.

— Tem uma sessão com o seu psiquiatra às duas horas da tarde. Poderá contar a ele.

E assim foi passando o dia. Pelas duas horas, quando falava com o médico, tinha vontade de gritar. Era um homem magro, de face avermelhada, chamado Dr. Seale, que escrevia enquanto ela falava. Desabafou a sua ira. Falou da injustiça, da traição que lhe fizeram, da cura pelo sono que lhe prometeram, da forma como estava sendo empurrada de um lado para o outro. Fumava um cigarro atrás do outro, o que era permitido durante as consultas ao psiquiatra.

— Tenho novamente uma dor terrível nas costas — lamentava-se Neely. — Por favor, dê-me alguns comprimidos de Seconal.

O médico continuou escrevendo, e perguntou:

— Há quanto tempo a senhora vem tomando Seconal?

Neely perdeu a paciência.

— Ora, vamos! Não queira fazer disto um caso de polícia. Se todas as pessoas que tomam Seconal estivessem num sanatório, o senhor teria aqui a metade de Hollywood e toda a Avenida Madison e a Broadway.

— A senhora acha normal tomar pílulas para dormir durante o dia, para aliviar a dor nas costas?

— Não, claro que preferiria uma injeção de Demerol — disse Neely, divertida com a surpresa estampada na face do médico. — Sim, Demerol. Na Espanha eu tomava isso todo o tempo. E funcionava muito bem. Cheguei até a fazer um filme. Por aí, pode ver que duas simples pílulas de Seconal são apenas um aperitivo para mim. Agora, vamos, me dê algumas. Se pudesse tomar duas a cada hora, talvez suportasse isto aqui.

— Fale-me sobre sua mãe, Srta. O'Hara.

— Ora bolas! Não me diga que vamos começar com essas besteiras de Freud. Olhe, já exploraram toda essa parte da minha vida, na Califórnia. Levei cinco anos e gastei vinte mil dólares para convencer os psiquiatras de que nunca conheci minha mãe, e que não me lembro dela. Se vou começar tudo de novo, estarei velha quando sair daqui.

— Então mandarei buscar as suas fichas na Califórnia — disse o médico.

— Não ficarei aqui durante tanto tempo. Vou escrever à minha amiga esta noite mesmo.

— Ficará, pelo menos, trinta dias.

— Trinta dias?

O médico explicou a respeito dos papéis que ela havia assinado, e Neely sacudiu a cabeça.

— Que armadilha! Pensam em tudo aqui.

— Voltarei a vê-la amanhã, a esta mesma hora — disse o médico, levantando-se.

— Muito bem, talvez eu possa me divertir durante esses trinta dias. Mas, depois disso, poderei sair, não é?

— Veremos — disse o médico vagamente.

— Veremos? Como assim?

— Ao fim de um mês, nós avaliaremos o seu estado, e se acharmos que está apta...

— Nós? Que quer dizer com isso? Eu é que resolverei se quero sair ou não. Quem é que poderá me impedir?

— Srta. O'Hara, se insistir em sair daqui sem que concordemos com isso, então teremos que expor o caso a quem é responsável, isto é, a Srta. Welles. Pediremos a ela que a deixe por mais três meses, se não resolver ficar por si mesma.

— Suponhamos que Anne recuse?

— Então submeteremos o seu caso a uma junta imparcial.

Neely retesou-se de medo.

— Sim, senhor, vocês têm uma bela armadilha.

— Não se trata de uma armadilha, Srta. O'Hara. Tudo o que queremos é curar as pessoas. Se deixássemos sair alguém que não estivesse curado, e essa pessoa se suicidasse algum tempo depois, ou então ferisse alguém... bem, isso não nos daria uma boa reputação. Se se submetesse a uma operação num hospital, e quisesse sair antes que o corte cicatrizasse, o seu médico teria todo o direito de impedi-la de fazer isso. Aqui em Haven Manor, quando damos alta a uma pessoa, pode crer que ela estará apta a retomar seu lugar na sociedade.

— Claro, no asilo para velhos.

O médico sorriu.

— Acredito que ainda tem uma lógica e produtiva vida à sua frente. Não creio que um ano ou dois aqui farão muita diferença.

— Um ano ou dois?! — Neely começou a tremer. — Ouça, concordo em ficar durante os trinta dias, já que não há outro remédio. Mas nem um dia a mais.

— Faremos o seu teste de Rorschach agora. Conheceremos novas coisas por ele.

— Ouça, doutor — disse Neely segurando-o pelo braço. — Não sei nada a respeito desses testes, mas, talvez, através deles o senhor constate que eu sofro de alguma espécie de loucura. É claro que não posso ser normal. As pessoas normais não chegam nunca a ser estrelas, nem chegam aonde cheguei. Se o senhor pegar os frequentadores do Sardi's e do Chasens e lhes aplicar esse tal de teste verá que todos deveriam estar num sanatório por alguns anos. Ò senhor não percebe que são exatamente as nossas esquisitices que nos fazem ser o que somos?

— Concordo com isso, e acho essas esquisitices ótimas quando trabalham a favor do artista. Só que, quando começam a levá-lo para o caminho da autodestruição, então a nossa intervenção é necessária.

— Não é o meu caso. Apenas as coisas não deram certo comigo. Ouça: quando a gente tem um estúdio que nos trata, durante anos, como se a gente fosse Jesus Cristo, é claro que ele acaba tomando a forma de uma mãe bondosa. Eles fazem tudo pela gente: arranjam passagens de avião, escrevem os nossos discursos, tomam conta das entrevistas com os jornais, pagam até nossas multas de tráfego. A gente vai gradualmente ficando na inteira dependência deles, e achando que eles estão se incomodando com a gente, que estão nos protegendo. Aí, quando nos atiram à nossa própria sorte, sentimo-nos como se fôssemos um rebotalho. E isso nos magoa e nos marca. Eu me senti como se fosse, novamente, apenas Neely.

— E quem é apenas Neely?

— Ethel Agnes O'Neil, a garota que devia fazer seu próprio trabalho sujo, lavar suas roupas de baixo, e abrir seu próprio caminho. Neely O'Hara tinha quem fizesse tudo por ela, o respeito das pessoas. E é assim que deve ser, se a gente tem verdadeiro talento, para que a gente possa se concentrar no trabalho. Por isso é que perdi a voz. Não podia fazer tudo sozinha.

— Mas Ethel Agnes O'Neil fazia tudo sozinha — disse o médico.

— Claro, aos dezessete anos, podemos fazer qualquer coisa. Não se tem nada a perder. Quando a gente não tem nada, pode tentar tudo. Ultimamente não tenho trabalhado, mas ainda sou uma legenda viva. Não posso arriscar a minha reputação artística. Por isso é que fiquei apavorada com aquele filme em Hollywood. O contrato era para apenas um filme, e não havia nenhum estúdio por trás de mim, poupando-me o futuro. Estavam apenas servindo-se de mim para ganhar rapidamente dinheiro à custa do meu nome. Sabia que o filme era péssimo, e eles também sabiam disso; ainda assim daria dinheiro. Foi quando perdi a voz e perdi de verdade. O Dr. Massinger me explicou isso; o estúdio, entretanto, me chamou de irresponsável, e isso resolveu o assunto deles.

— Mas acabou de dizer que o estúdio era como uma segunda mãe.

— Isso já não acontece. A televisão mudou tudo. Até mesmo O Chefe já tem de obter a aprovação dos acionistas para tudo. Ouvi dizer que estão tentando demiti-lo. Tudo está mudado.

— Então a senhora tem de mudar também, adaptar-se às novas circunstâncias.

— Talvez, só que isso não pode significar que tenha de andar por aí amedrontada. Sou uma estrela e tenho de agir como tal, aconteça o que acontecer.

— Conversaremos amanhã — disse o médico, levando-a à porta.

— Quando poderei ver Anne?

— Dentro de duas semanas.

Duas semanas! Neely voltou à sala de recepção. Conseguiu esconder seis cigarros dentro da caixa de papel de cartas e devolveu o maço à enfermeira. Não tinha fósforos, daria um jeito.

Houve, em seguida, uma hora de recreio, quando todas as internas escreviam cartas ou jogavam baralho. Depois, a hora de fumar, e parecia que todas fumavam um cigarro atrás do outro. Neely escreveu uma longa carta a Anne, em que extravasava toda a sua ira; terminou exigindo que ela a retirasse imediatamente dali. Dobrou a carta e a enfiou no envelope. Quando ia fechá-la, a enfermeira pediu' que não o fizesse.

— Escreva apenas o nome do seu- médico, no lugar do selo. Ele lerá a carta e, se achar que deve ser mandada, porá no correio.

— A senhora quer dizer que o Dr. Seale vai ler tudo o que escrevi?

— É o regulamento.

— Mas isto não está certo. Uma pessoa deve ter um pouco de intimidade.

— Isso é feito para proteger o paciente.

— Para proteger essa corja nojenta, isso sim.

— Não, Srta. O'Hara. Às vezes, acontece que um paciente está deprimido, e descarrega sua hostilidade justamente sobre a pessoa a quem mais ama. Digamos, por exemplo, que uma mulher é enviada para cá pelo marido. Ela pode ter sido sempre uma esposa fiel e devotada, mas, enquanto está sob tratamento, pode sofrer alucinações que a levem a escrever ao marido que ela o odeia, que lhe foi infiel, e é até capaz de mencionar nomes de amigos do casal, dizendo que foram seus amantes. Nada disso é verdade; agora, como é que o marido pode ter certeza? Só por isso é que o médico lê as cartas antes de serem enviadas. Se a senhora escreveu que odeia o sanatório, ou então coisas pouco elogiosas em relação ao Dr. Seale, não tenha receio, a carta será enviada. A ele interessa apenas proteger o paciente.

Neely entregou-lhe a carta, pensando que, afinal, o Dr. Seale iria saber a opinião dela a seu respeito, e que o achava com cara de berinjela. Sentou-se, com o rosto apoiado nas mãos. Por Deus, tinha de sair dali, pensou.

Mary Jane deu-lhe um tapinha nos ombros e disse:

— Não se sente nessa posição. Tomarão nota de que você está em estado de depressão.

Neely riu alto e amargamente.

— Não ria assim — insistiu Mary Jane —, consideram isso histeria. Se tem vontade de rir, ria normalmente. E não evite a companhia das outras, ou anotarão que você é anti-social...

— Ora, pare com isso! — exclamou Neely. — É demais!

— Mas é verdade. Senão, por que haveriam de manter seis enfermeiras para cada grupo de vinte pacientes? Estamos sempre sob O. C, isto é, Observação Constante. Duas vezes por semana, as enfermeiras se reúnem com os médicos e lhes apresentam relatórios a nosso respeito: a instrutora de terapia ocupacional, a instrutora do ginásio de esportes, todos. Você já tem duas anotações prejudiciais: ficou amuada no ginásio e não cooperou na terapia ocupacional. Não concordou em fazer nenhum dos lindos cinzeiros de cerâmica. Lembre-se: há sempre um par de olhos a observar a gente em toda parte.

Durante a sessão da tarde de terapia ocupacional, Neely resolveu fazer uma cigarreira de madeira. Sempre apontarei para ela dizendo que essa é a minha cigarreira de mil e quinhentos dólares, pensou. Trabalhou freneticamente com a lixa na madeira, suavizando as asperezas. Tinha a esperança de que a instrutora a estivesse observando.

Às cinco, foram levadas à sala de massagem: chuveiro, massagem, ducha escocesa. Poderia ter sido divertido, mas ela odiou cada minuto do ritual. Invejou as companheiras, que se entregavam à rotina como se estivessem se divertindo numa colónia de férias. Talvez para algumas delas o sanatório não passasse de uma agradável quebra de monotonia numa vida desinteressante, o que não era o seu caso. As costas doíam horrivelmente, suas mãos tremiam. Se não conseguisse uma pílula imediatamente, começaria a gritar. Ondas de náuseas começaram a invadi-la. Não devia vomitar, isto seria anotado contra ela. Apertou os dentes, correu para o banheiro e vomitou em segredo. Voltou e tomou uma ducha escocesa. Muito bem, faria o jogo deles, pelo menos até a visita de Anne. Aí, então, convenceria Anne de que estava boa. Devia fazer tudo para sair dali passados os trinta dias. Por Deus, um ano naquele lugar, jogando badminton e fazendo trabalhos artísticos e manuais, a deixaria realmente doida.

Às seis horas da tarde, voltaram ao pavilhão Hawthorne. Sentaram-se no salão e se ofereceram bombons umas às outras. Não era de estranhar que todas fossem gordas. Mary Jane contou que engordara oito quilos em cinco semanas. De repente, Carole, a moça que lhe arrumara a cama, levantou-se da cadeira e começou a gritar.

— Você me insultou! — gritava para a moça que estava a seu lado.

— Carole, eu estava lendo e não disse uma palavra — respondeu a outra, demonstrando surpresa.

— Você disse que eu era uma homossexual latente — gritou Carole. — Vou matá-la por isso. — E correu para da.

Duas enfermeiras conseguiram separá-las imediatamente. Carole dava pontapés e lutava comas enfermeiras, berrando insultos e ameaças, enquanto era arrastada para fora da sala.

— Dois dias na banheira vão acalmá-la — comentou Mary Jane.

— Será que a moça disse alguma coisa? — perguntou Neely.

— Não. Carole é paranóica, apesar de ser uma criatura ótima. Às vezes, passa semanas se comportando divinamente, até que um dia, sem motivo algum, começa a imaginar coisas. Não acredito que sare. Já está aqui há dois anos.

Dois anos! Qualquer pessoa ficaria doida depois de passar dois anos neste lugar. O terror de Neely agora era total. As costas doíam insuportavelmente, a garganta queimava, mas tinha de suportar. Tinha de suportar! Estaria sonhando ou seria realidade? Por Deus, a gente sempre lia a respeito de atrizes que faziam uma porção de maluquices e que eram internadas em sanatórios. Tudo parecia tão fácil, tão agradável, até. Teriam elas também sido colhidas numa armadilha e sentido alguma vez o terror que sentia agora? Teria sido ela a única a cair em tal armadilha? Ouça, Nelly — disse a si mesma —, você vai conseguir. Você começou do nada e chegou a ser a estrela que foi. Você vai sair daqui, aguente tudo com ânimo forte.

O jantar foi servido às seis e meia. Depois, todas tomaram banho de chuveiro e sentaram-se no salão, vestindo pijamas e roupões. Algumas assistiam a um filme de televisão, Neely lembrou-se de ter tido uma ligeira aventura com o artista que aparecia nele. Meu Deus, quanta gente feliz lá fora. Se algum dia saísse dali, seria novamente uma grande artista. Nada de cenas, nada de explosões temperamentais, e só duas pílulas por noite. Precisava de um cigarro, já fumara os que havia guardado. Mary Jane deu-lhe um punhado. Algumas moças começaram a contar-lhe a história de suas vidas e ela fazia esforço para parecer interessada. Nenhuma delas era louca, todas estavam ali por engano.

Às dez horas da noite, a cama. Deitada, depois de alguns minutos, ouviu a respiração regular de suas companheiras, o que indicava que já estavam dormindo. Como podia alguém adormecer àquela hora? De meia em meia hora, entrava uma enfermeira, lanterna na mão, iluminando cada cama. Neely fechava os olhos e fingia dormir, pois concluiriam que estava perturbada se não conseguisse dormir. Ouviu o relógio bater meia-noite, e depois uma hora. Ficou pensando nos pequenos luxos que todas as pessoas podiam desfrutar e que lhe eram vedados: acender um abajur ao lado da cama e ler, acender um cigarro. Se pudesse ter isso, nem se importaria de não ter pílulas ou uísque; ficar deitada assim, porém, era simplesmente ridículo. Céus, se conseguisse sobreviver àquela noite, teria uma prova de que era realmente forte. Nada mais poderia vencê-la.

Duas horas! Tinha de ir ao banheiro. Será que anotariam isso como um ato neurótico? Céus, fazer xixi era normal. Levantou-se e saiu para o corredor. Duas enfermeiras se colocaram imediatamente ao seu lado, perguntando;

— Algum incómodo, Srta. O'Hara?

— Não, quero apenas fazer xixi. De vez em quando, tenho vontade de fazer xixi, à noite.

Foi ao banheiro comum, enquanto uma enfermeira ficou junto à porta, do lado de fora. Meu Deus, nem aquilo podia fazer à vontade.

 

                                                                            ANNE

 

                                               1961

Anne estava sentada à janela fumando. A visita fora deprimente. Neely implorando e soluçando, pedindo que a livrasse. O Dr. Hall, a Dra. Archer e o Dr. Seale, lendo relatórios, demonstrando que Neely estava absolutamente perturbada, que tinha um esgotamento nervoso de ambulatório com tendências suicidas, e que tirá-la do sanatório seria o mesmo que assinar o seu atestado de óbito. Antes de falar com os médicos, prometera a Neely retirá-la imediatamente do hospital; depois que ouviu os relatórios, achou-os mais impressionantes que as lágrimas de Neely.

Como poderia enfrentar os olhos da amiga e lhe dizer que teria que ficar internada, pelo menos, por mais três meses? Resolveu assinar a autorização. Kevin insistira nisso. Teria feito a coisa mais acertada? Os médicos afirmavam que Neely devia estar num sanatório há muito tempo, que hoje em dia isto não estigmatizava ninguém, e que quando Neely se recuperasse faria coisas ainda mais notáveis do que fizera até agora. Claro que seria duro para Neely, mas, considerando os resultados, valia a pena. Além disso, não estaria num lugar qualquer, mas num hospital que, antes de tudo, era belíssimo. Bem, por mil e quinhentos dólares por mês, tinha mesmo que ser lindo. Os olhos de Neely, entretanto, continuavam a atormentar a sua consciência; estar encarcerada assim devia ser horrível, não importa em que lugar. Visitaria Neely novamente dentro de duas semanas. Talvez a encontrasse mais conformada.

Na próxima visita, Anne achou Neely de muito bom humor. Fora transferida para o Pavilhão Fir.

— Fui promovida — disse ela quando Anne entrou. — Já posso usar lápis de sobrancelhas e tenho um armário. Ganho um maço de cigarros, dia sim, dia não. Você trouxe o pacote que lhe pedi? Ótimo. Ainda não tenho permissão para acendê-los, mas a enfermeira da noite é minha fã. A noite passada, me levou para o quarto dela, para que eu assistisse a um velho filme meu pela televisão. E fumamos feito doidas.

Neely engordara, mas tinha boa aparência. As costas ainda doíam, dizia ela, e não conseguia dormir. Mas conseguiria suportar tudo aquilo por mais três meses. Ela até compreendia que tinham feito uma espécie de lavagem cerebral em Anne. Era o que faziam com toda a gente. Neely odiava o lugar; as companheiras, porém, eram agradáveis. Apenas não eram tão normais como pareciam. Mary Jane era alcoólatra, e Pat Toomey, a moça da alta sociedade, que dizia estar lá só porque seu marido queria ficar com os filhos, afinal nem tinha filhos! Desde os dezesseis anos vivia entrando e saindo de sanatórios.

— Comparada com essas gatas, sou mais normal que uma torta de maçãs. E aparentemente todas são normais — disse Neely.

Em maio, Neely teve uma recaída. Aproveitando-se da amizade com a enfermeira da noite, que fora despedida imediatamente, conseguiu roubar um vidro de Nembutal. Acharam o vidro pela metade, debaixo do seu colchão. Ela lutou violentamente quando lhe tomaram as pílulas e teve um acesso de fúria que só foi acalmado depois de dez horas de banheira. Voltou para o Edifício Hawthorne. Quando Anne a visitou, Neely estava de mau humor e calada.

Anne continuou a visitá-la todas as semanas. Tinha assinado um novo contrato com a Gillian. Kevin vendera a companhia, mas sua constante presença no estúdio era pior que um protesto. Secretamente, Kevin culpava Neely por tudo. Estava certo da devoção de Anne, pois ela lhe pertencia com ou sem casamento. Senão, não teria ficado com ele durante todos os anos em que era contra o casamento. Sabia que não devia estar sempre no estúdio, pois os novos donos tomavam conta de tudo e a companhia ia muito bem. Mas ele não tinha com o que ocupar o tempo. Uma visita ocasional aos corretores, a ida diária ao barbeiro, um almoço com o advogado... isso não conseguia ocupar o seu dia. Por isso, acabava todos os dias no estúdio, para ver Anne fazer os comerciais. E cada vez que ia prometia a si mesmo que essa seria a última vez.

Acabava de prometer isso novamente. O dia estava frio e chuvoso, como se não fosse junho. Ficou sentado no átrio enquanto Anne ensaiava no estúdio. Bem, dentro de três semanas, a série sairia do ar; Anne prometera que tirariam férias juntos nessa ocasião. Provavelmente, escolheria algum lugar perto de Dunne Deck para poder visitar Neely todas as semanas. Jerry Richardson, o diretor, aproximou-se com um estranho.

— Kevin, quero apresentar-lhe um velho amigo meu, que esteve comigo na guerra. Kevin Gillmore, Lyon Burke.

Kevin sentiu o sangue gelar quando ouviu o nome. Devia ser o mesmo, o nome não era comum. A aparência dele era mais de ator que de escritor. Tinha um belo porte, também, e a pele tostada. Kevin sentiu-se subitamente muito pálida e muito velho. Ficou também consciente de quanto o seu cabelo era ralo. Os cabelos de Burke eram negros e espessos, com alguns fios prateados nas têmporas. E que sorriso tinha o filho da mãe... Kevin sorriu nervosamente e apertou a mão de Lyon.

— Vai juntar-se à companhia? — perguntou Kevin.

— Não, cheguei há alguns dias e, ao almoçar com Jerry, ele me contou que está trabalhando aqui uma velha amiga minha, Anne Welles. Vim cumprimentá-la.

— Vou ver se ela está livre — disse Kevin rapidamente. — Fui eu quem a descobriu, quem a transformou na Garota Gillian. Vamos, ela está no estúdio.

Tomou o braço de Lyon. Tinha de estar presente ao encontro dos dois, para ver a reação de Anne.

Ela estava fazendo a última prova de roupa; por isso, Kevin e Lyon sentaram-se no auditório. Kevin sabia que Anne não podia vê-los, por causa dos fortes refletores; por isso, desviou a atenção para as reações de Lyon. Ele estava olhando o ensaio com interesse.

— Mas ela é ótima! — disse, virando-se para Kevin, como se estivesse fazendo uma descoberta surpreendente.

— Ela foi ótima desde o começo — disse Kevin com cuidado.

— É a primeira vez que a vejo trabalhar. Estive muito tempo na Europa.

— Haverá uma pausa agora. Quer vir falar com ela? — Kevin se esforçou para dar um tom despreocupado à voz.

— É claro! — disse Lyon, levantando-se imediatamente, seguindo Kevin.

Anne discutia algumas mudanças quando os dois homens apareceram. Ela olhou para Kevin e sorriu, ao mesmo tempo em que piscava o olho, de um jeito que queria dizer "Estarei com você num minuto". Seu olhar passou por Lyon e voltou imediatamente, como que não acreditando no que via.

— Sou eu mesmo — disse Lyon num sorriso amplo, tomando-lhe ambas as mãos.

Anne sorriu fracamente. Sentiu que os lábios tremiam. Lyon, mais atraente do que nunca... De algum modo, conseguiu balbuciar que tinha prazer em revê-lo.

— Podemos sentar um pouco? — perguntou ele. — Estas luzes são infernalmente quentes. Ou será que você tem de continuar o ensaio?

— Não, na verdade, estou livre até a hora de gravar.

— Tenho de resolver alguns assuntos no escritório — disse Kevin. — Por que é que vocês dois não vão conversar um pouco? Devem ter muita coisa a falar.

Dizendo isso, afastou-se. Anne sabia que essa era uma das atitudes mais dolorosas que Kevin já tomara em sua vida. A dor que sentia ao fazer essa exibição de orgulho e dignidade era revelada pela rigidez de seus ombros enquanto se afastava. O coração de Anne voou para ele. Kevin estava apavorado; esforçava-se, entretanto, para mostrar coragem. O mesmo acontecia com ela, enquanto conduzia Lyon ao seu camarim. Então, de repente, ele está de volta. E devo esquecer quinze anos de silêncio e abrir-lhe os braços — pensou Anne. Ainda assim, é isso justamente o que desejaria fazer. Mal posso olhá-lo sem querer estender a mão e tocá-lo. Mas agora há Kevin em minha vida... Onde estaria eu agora sem ele? E onde estava Lyon, durante todos esses anos?

Chegando ao camarim, sentaram-se. Anne deixou que ele acendesse um cigarro e esperou deliberadamente que ele falasse primeiro.

— Bem, afinal, parece que você tinha razão — disse ele.

— A respeito de quê?

— De Nova York, do seu verdadeiro amor — disse Lyon com um amplo movimento dos braços. — Você gosta disto aqui, e você venceu. Estou muito orgulhoso de você, Anne.

— Você também venceu, Lyon.

— Não, em termos de dólares e de sucesso de alto estilo, mas a gente pode dizer que venci, porque afinal estou fazendo aquilo que realmente sempre desejei fazer. E acredito que você ainda seja a moça que disse, uma vez, que todos nós temos a obrigação de proporcionar uma oportunidade a nós mesmos..

— Que está fazendo em Nova York?

— Estamos terrivelmente fascinados com o lado comercial da televisão de vocês e com a rapidez com que os artistas se convertem a ela. Um jornal me contratou para escrever uma série de artigos sobre todos os aspectos dessa televisão: das cantoras, que ganham milhões gravando um único disco, sucesso pela televisão; dos vaqueiros da televisão, que acabam donos de grandes fábricas, e das garotas que ficam milionárias, anunciando uma marca de esmalte para as unhas.

— Vocês ainda não têm disso por lá? — perguntou Anne sorrindo.

— Ainda não. Imagino que teremos tudo isso com o tempo, pois estamos com uns dez anos de atraso em relação a vocês. Poderei, portanto, preparar as Ilhas Britânicas para essa invasão, que chegará lá algum dia. Claro que está longe daquilo que pretendia fazer, mas foi uma surpresa agradável. Pelo menos me dá a oportunidade de visitar os Estados Unidos novamente.

— Quanto tempo pretende ficar?

— Umas seis semanas, mais ou menos.

— Já esteve com Henry?

— Almoçamos juntos ontem. Ele me disse que está cansado, que pretende vender a agência. George Bellows está tentando obter dinheiro para a compra, e, se ele não conseguir, a Johnson Harris comprará a parte de Henry. Estive com George, também. Não há dúvida de que a aparência dele é bastante próspera, mas não o invejo. É sempre a mesma corrida de ratos — acrescentou Lyon, acendendo um cigarro.

— Não se consegue nada facilmente, Lyon.

— Não, nem mesmo este trabalho jornalístico que pretendo fazer. Há uma porção de cifras que deverão ser anotadas e conferidas, e alguma pesquisa. Mas é divertido.

Debruçou-se sobre a mesinha e pegou as mãos de Anne.

— E você? Nem casamento, nem filhos; Henry me disse que ainda está solteira.

Anne virou o rosto e intimamente torceu para que a pesada maquilagem disfarçasse o seu rubor. Lyon continuava a segurar suas mãos e a falar:

— Eu também ainda estou na estaca zero, e esta é a minha única queixa. Nunca mais houve alguém como você, Anne. Nem poderia haver. — Fez uma pausa, depois continuou. — Gostaria de vê-la enquanto estiver em Nova York, Anne. Se você não puder, compreenderei, pois Henry insinuou que você e Kevin Gillmore...

— Claro que poderemos nos ver, Lyon.

— Ótimo! Quando?

— Amanhã à noite, se você quiser.

— Onde posso encontrá-la?

— Deixe que eu o chame — disse Anne rapidamente. — Estarei fora o dia todo amanhã.

Lyon anotou o seu endereço e o telefone num pedaço de papel. Anne notou que o hotel ficava a três quarteirões do seu apartamento. Sorriu e disse que o chamaria por volta das seis no dia seguinte.

— Muito bem, então jantaremos juntos — disse Lyon, alegremente, enquanto se levantava. — Agora, preciso ir, pois sei que você gostará de descansar um pouco antes de aparecer diante daquelas câmaras. Estou tão orgulhoso de você, Anne... Então, até amanhã.

Anne permaneceu sentada durante longo tempo, sem se mexer. Então, Lyon voltara. Nada havia mudado. Nada? Ela já não tinha vinte anos e esse tempo provocara mudanças. Agora havia Kevin, que lhe dera amor, confiança em si mesma e a carreira. Kevin precisa tanto de mim, pensou, mas é só aparecer Lyon que começo a agir como uma idiota, pronta a esquecer todos estes anos de silêncio sem uma palavra. Amanhã vou telefonar a ele e dizer que estou ocupada. Talvez nem o chame. Talvez o deixe esperando, tal como o esperei durante anos.

Mas sabia que voltaria a vê-lo.

Kevin não tocou no assunto até o fim do jantar. Perguntou, então, despreocupadamente, o que fazia Lyon em Nova York. Ela contou e Kevin ouviu-a atentamente, enquanto olhava para o copo de conhaque que tinha nas mãos. Depois, disse:

— Bem, agora que o conheci, compreendo .perfeitamente que uma moça de vinte anos se sinta atraída por ele. Claro que o achei um pouco vistoso demais, bonito mesmo, e, ainda por cima, aquele afetado sotaque inglês. Acredito que uma mulher, jovem e impressionável, o ache irresistível.

— Sim — disse Anne, tomando a sua bebida. — Acontece que parte do seu encanto é devido à inconsciência que ele tem de sua boa aparência.

— Ora, não queira enganar a si mesma. — A voz de Kevin demonstrava um leve traço de irritação. — Aquele pássaro conhece a força que tem e se aproveita de sua estampa. Não faz o mínimo gesto em vão. E sabe, também, como agradar os homens. Até eu teria simpatizado com ele se não fosse o seu Lyon Burke.

Anne sorriu e apanhou um cigarro.

— Anne — o tom de voz dele mudara —, diga alguma coisa. Não vê que estou apenas tentando parecer calmo, tal como nos filmes de cinema? Pelo amor de Deus, diga alguma coisa que me ajude, alguma coisa à qual eu possa me agarrar... diga que ele a deixou indiferente.

— Não, Kevin. Mentiria se dissesse isso.

— Pretende vê-lo novamente?

— Se você me pedir que não o veja, não o verei.

— Mas você gostaria de vê-lo? —- A voz dele implorava uma negativa.

— Talvez seja melhor para nós dois que eu o veja. Talvez agora descubra que tudo o que me atraiu nele não existe na realidade. Como você mesmo disse, a aparência dele impressiona a gente; na verdade, agora não sei quem é Lyon Burke. Talvez nunca o tivesse conhecido realmente, e tivesse me apaixonado pela ideia que fazia dele. Henry me preveniu a respeito disso. Mas, se eu e você pretendemos ainda ser felizes juntos, então tenho que conhecer a verdade.

— Você quer dizer que tudo entre nós poderá terminar, só porque esse filho da mãe recebeu a incumbência de fazer uma reportagem? Você bem sabe que, se não fosse por isso, jamais se teriam encontrado novamente.

— Sei disso, Kevin. E quero dizer que gosto de você e que nada poderá apagar todos os anos em que estivemos juntos. Mas Lyon foi um marco tão profundo na minha vida que, afinal, agora eu gostaria de saber se valeu a pena.

— Não, não o veja. — Seu tom era áspero.

— Kevin, por favor. — Anne olhou à volta, pouco à vontade.

— Anne... — Agarrou a mão dela, quase derrubando um copo de água. — Anne, você é a minha vida. Sei que não posso viver sem você.

— Você não terá de viver sem mim, Kevin.

— É uma promessa? — Ela viu os olhos dele marejados de lágrimas, fixos nos seus.

— Sim, é uma promessa — respondeu Anne arrasada.

Anne foi incapaz de chegar a uma decisão no dia seguinte. Pegou uma dúzia de vezes o telefone para cancelar o compromisso com Lyon e não chegou a completar a ligação. Talvez não valesse a pena e pudesse voltar-lhe as costas, feliz e aliviada. Isso resolveria tudo. Tinha prometido a Kevin que não o abandonaria; não lhe prometera, entretanto, que não veria Lyon. E ela simplesmente precisava ver Lyon.

Encontraram-se no Little Club às sete. Ele estava sentado no bar quando Anne entrou; foi ao encontro dela para conduzi-la até uma mesa.

— Você não é o tipo que fica bem sentada num bar — disse Lyon, olhando para ela firmemente, enquanto esperava o aperitivo. — Anne, você está linda. Não mudou nada. Não, não é verdade. Está bem mais bonita agora.

— Você também não mudou muito.

— Sabe, muitas vezes pensei em você — continuou Lyon. — Às vezes, quando ansiava por você, ficava imaginando loucas fantasias... Dizia a mim mesmo que provavelmente a esta altura você devia estar transformada numa gorda matrona, com cinco ou seis pirralhos dependurados na saia. Pelo menos, assim, podia voltar a trabalhar.

— Oh, Lyon... também cheguei a imaginar que, provavelmente, você devia estar careca — disse Anne, rindo.

Depois disso, o diálogo se desenvolveu com naturalidade. Anne contou-lhe a respeito de Jennifer, omitindo, porém, a verdade. De alguma forma, Anne sentia que a imagem de Jennifer devia permanecer bela para sempre na memória de todos, e não enodoada pela ideia de um câncer. Discutiram, depois, a respeito de Neely. Henry já lhe contara a história, e Lyon não podia acreditar que aquilo pudesse acontecer à garota inocente e viva que tinha conhecido.

— O talento dela é incontestável. É incrivelmente popular na Inglaterra. Os filmes dela eram de ótima qualidade para o padrão de Hollywood. Apesar de toda a artificialidade com que a rodearam, conseguiu sempre destacar o seu enorme talento. Acha que ela se recuperará?

Os olhos de Anne mostravam tristeza.

— Bem, dizem que a tendência que ela tem para a autodestruição não poderá ser nunca totalmente curada. Com muito tratamento, poderá ter uma vida normal novamente, mas sempre haverá essa tendência no seu subconsciente. Pelo menos, é a opinião dos médicos.

— Talvez por isso eu nunca tenha realmente alcançado o topo — disse Lyon. — Às vezes, acho que todos os verdadeiros artistas são um pouquinho anormais. E eu sou normal até demais. Consigo dormir no momento em que a cabeça toca o travesseiro, não bebo em excesso e nunca tomo uma simples aspirina.

— Acho que eu também sou uma artista de segunda classe. Talvez fume um pouco demais, mas nunca tomo mais de um aperitivo e, embora não goste de admiti-lo, às vezes caio no sono no meio do filme a que estou assistindo.

Lyon riu e continuou:

— Não, Anne, não é verdade. Você é de primeiríssima classe, e não há outra como você. Sinceramente, Anne. Até hoje, todas as mulheres que encontrei não conseguiram sobreviver à sua lembrança.

Continuaram conversando a respeito de Nova York, e das mudanças que Lyon notara na cidade. Tomaram café irlandês, que Anne achou ótimo, e ainda estava a elogiá-lo quando Lyon a olhou nos olhos e disse:

— Anne, nada mudou. Estou louco para tomá-la nos braços, neste momento. Sinto como se nunca nos tivéssemos separado.

— E eu gostaria de estar em seus braços, Lyon.

Lyon sorriu.

— Melhor pagar a conta e sair voando daqui.

Era inacreditável. Estar deitada ao lado dele, olhando a fumaça desvanecer-se na luz da mesinha-de-cabeceira... Não houve hesitações nem obstáculos a vencer; uniram-se numa perfeita fusão de amor e desejo. Foi uma realização completa. Quando o apertou nos braços, soube, mais uma vez, que era muito mais importante amar do que ser amada... e sabia que teria de tomar uma decisão. Sabia que Lyon a amava à sua maneira. Seria suficiente? Sentiria falta da devoção total de Kevin? Sabia que com Lyon esse papel seria dela. Estaria ela apta a oferecer-lhe essa espécie de amor, depois de tanto tempo?

Lyon acariciou-lhe as costas.

— Anne, foi maravilhoso. Sempre foi.

— Para mim também, Lyon. Só com você.

— Anne, acontece que Kevin Gillmore existe — disse ele calmamente. Sentiu que ela se retesava. Acariciou-lhe os cabelos e continuou: — Toda a gente sabe disso, querida. E sabem, também, que ele quer casar com você. Você sabe que não apareci ontem no estúdio por acaso, não é? Fiz questão de me encontrar com Jerry Richardson e queria encontrar com Kevin Gillmore... e você.

Anne se desprendeu dele e sentou-se.

— Que é que queria que eu fizesse? Que ficasse sentada todos esses anos, simplesmente rezando para que você voltasse? Lyon... nunca uma carta, uma palavra... nada.

Lyon pôs os dedos sobre os seus lábios, para impedi-la de falar.

— Claro que eu compreendo. Eu queria escrever. Meu Deus, quantia cartas cheguei a escrever... mas este maldito orgulho! Sempre esperava que cada novo livro trouxesse o grande sucesso, que me faria voltar como um herói, para arrancar a mulher amada dos braços de quem quer que fosse. Acontece que não sou nenhum herói e, bem... Kevin Gillmore é um bom homem, e, pelo que ouvi, apaixonadíssimo por você.

Anne permaneceu silenciosa.

— Se eu tivesse um pouco de caráter, não a veria mais depois desta noite — disse ele.

— Lyon! — Havia medo na voz de Anne.

Ele riu.

— Eu disse se tivesse caráter. Desconfio que nunca tive muito e, vendo-a novamente agora, o resto se desvaneceu. — E, muito sério, acrescentou: — Anne, estarei sempre aqui. É só me chamar e estarei a seu lado. Mas isso é tudo.

— Que quer dizer com isso?

— Que voltarei a Londres, assim que terminar a reportagem. Já tenho o esboço feito para um novo livro.

— Não poderia escrever aqui?

— Talvez. Mas não poderia viver tão bem quanto vivo lá. Tenho um bom apartamento e ganho um bom dinheiro, com alguns artigos que escrevo. É uma vida bem diferente desta, mas me agrada. O que ganho dá muito bem para dedicar horas, várias horas por dia, a escrever aquilo que realmente gosto de escrever. É uma existência um tanto solitária; sempre tenho, porém, a esperança de que o próximo livro será "o tal". Acredito no que estou fazendo, e agradeço a você por isso. Sei que a perdi por causa disto, mas talvez não desse certo nem da outra maneira.

— Por que é que não? — perguntou Anne teimosamente. — Se, naquele almoço no Barberry, eu não abrisse a boca para insistir com você para que tentasse escrever, então, talvez, você fosse o maior agente teatral da cidade, estaríamos casados, teríamos filhos, e...

— E estaríamos nos odiando mutuamente. Não, Anne. Não acredito que haja lugar para o casamento quando se está lutando pelo êxito. E também não creio que tivesse dado certo, se você concordasse com aquela minha ideia louca de morar em Lawrenceville. Acredito simplesmente que nasci para viver sozinho, apesar de. estar feliz em tê-la novamente comigo. Abençoarei cada minuto que estivermos juntos e a lembrança deles estará comigo nas noites solitárias e frias que me esperam na Inglaterra.

Tomou-a novamente nos braços e toda a dor que ela sentira, ao ouvir estas últimas palavras, se desvaneceu no milagre do amor que sentia por aquele homem.

Era quase dia quando Anne chegou ao seu apartamento. Quando enfiou a chave na fechadura, percebeu uma luz acesa no interior.

— Como conseguiu voltar tão cedo? Ainda nem é dia. — Kevin estava sentado na sala, fumando.

Ela caminhou para ele e tirou o cigarro de sua boca.

— Você não fumou mais desde o ataque cardíaco. Que é que está tentando provar?

— Por que essa preocupação repentina com a minha saúde? Parece que não me resta muito futuro depois desta noite.

— Kevin, por que é que veio aqui?

— Porque sabia que estava com ele. Conte tudo. Será que ele conseguiu libertá-la de todas as suas inibições?

— Pare com isso. Sabe que lhe faz mal exaltar-se assim. Vamos, se quiser passar a noite aqui, é melhor se deitar.

— E você? Iria para a cama comigo esta noite? Se fosse, há uma boa palavra para uma mulher assim. Bem, você iria?

— Kevin... não houve sexo entre nós desde seu ataque cardíaco. Não que eu me importe com isso, pois compreendo que se trata de sua saúde, e...

— E da minha idade, vamos, não tenha medo de dizer.

— Tudo o que aconteceu esta noite diz apenas respeito a Lyon e a mim. Nada tem a ver com os sentimentos que dedico a você.

— Eu tenho de aceitar isso? Deixar que Lyon seja o garanhão, enquanto eu banco o pobre arrimo fiel?

— Você é meu amigo, é parte de minha vida... alguém a quem quero muito. Lyon é... algo diferente.

— Muito bem, então terá de escolher.

— Se você me força a isso... Agarrou-lhe a mão.

— Não! Não! Anne, não me deixe.

Ela teve vontade de recuar; em vez disso, acariciou-lhe a cabeça quando ele começou a soluçar. Meu Deus, que coisa terrível ver um homem desintegrar-se. A culpa era dela, ou seria da doença e da idade dele?

— Kevin, não pretendo deixá-lo.

— Mas sei que pretende continuar a vê-lo. Como poderei suportar que venha para mim depois de ter estado nos braços dele?

— Kevin, nós dois sabemos que eu estive com Lyon. Ele vai voltar para a Inglaterra e sabe tudo a nosso respeito. Disse mesmo que achou você um bom sujeito.

— Disse isso movido pelo que há de inglês nele. Então você não sabe que todos os ingleses são decadentes? Provavelmente, acha muito excitante dividi-la comigo.

Anne suspirou pacientemente. Aquele não era o verdadeiro Kevin. Falava movido unicamente pelo medo de perdê-la.

— Kevin, eu ficarei com você.

— Por quê? Então ele não a quer?

Anne voltou-se e foi para o quarto, onde começou a se despir. Inacreditável que tudo se repetisse. Kevin fizera-a lembrar-se de Allen Cooper. A mesma expressão desolada, a mesma fúria infantil. É mais uma vez Lyon entrava em cena, sem pedir nada, sem prometer nada, enquanto ela se sentia dividida ao meio. Qual seria, na realidade, a dívida dela com Kevin? As relações de ambos estavam bem longe de ser excitantes. Ainda assim, jamais lhe dera motivos para ter ciúmes ou preocupações. Houve muitas tentativas de homens bem mais jovens e atraentes que Kevin, e ela as ignorou. Ela lhe dera quatorze anos de felicidade. Será que isso não pagava qualquer obrigação que porventura, lhe devesse? Ainda assim, sabia que ele precisava dela. Ficara ali sentado a noite inteira, fumando, esperando. E ela sabia muito bem o que era sentar e esperar por alguém. De repente, sentiu uma onda de piedade por Kevin. Oh, meu Deus! Como parecera 'velho e vulnerável de repente. Não, não podia feri-lo.

Anne voltou à sala e o viu ainda sentado, olhando para o espaço, encolhido, vencido. Abriu-lhe os braços, dizendo:

— Kevin, eu amo você. Vamos, vá dormir um pouco. Já é tão tarde. Eu estou aqui, sempre estarei, enquanto você me quiser.

— Promete que não o verá nunca mais? Promete?

— Prometo, Kevin, nunca mais o verei.

Durante duas semanas, lutou contra o desejo de telefonar a Lyon. Tentou não pensar nele. Embora ele não a tivesse chamado, Anne sabia que ele estava lá; esperando que o chamasse. Anne reuniu todas as suas reservas de autodisciplina e conseguiu suportar. Houve noites em que esteve sozinha, obcecada pela necessidade de falar com ele, de telefonar, de correr os três quarteirões que separavam o seu apartamento do hotel dele. Ficou parada no terraço do apartamento, a respirar o ar perfumado da noite, e a olhar para as estrelas. Uma noite como esta tinha sido feita para o amor, para estar com Lyon, e não para ficar assim sozinha. Invariavelmente, vinha sempre um telefonema de Kevin, como para se certificar de que ela estava em casa. Nunca tinha feito isso; agora, porém, dera para lhe telefonar nas horas mais estranhas. Muitas vezes se despedia dela dizendo:

— Bem, minha pequena, então lá vou eu para o meu reino de solteiro. Esta noite, o seu velho deseja apenas tomar um banho morno e ir para a cama.

Três horas depois, chegava silenciosamente ao apartamento dela, dizendo:

— Não pude dormir, será que posso passar a noite aqui?

Anne então sorria e sentia piedade, vendo-o feliz e aliviado ao verificar que ela estava em casa sozinha.

Uma noite estava com Kevin e um dos novos proprietários da Gillian no 21 quando Lyon entrou. Era no fim de junho, uma noite muito quente. Anne estava cansada, trabalhara o dia todo gravando comerciais para a televisão. De repente, levantou os olhos e viu Lyon, entrar, acompanhado de uma moça, que Kevin disse ser um peixão. Ele não a viu e o maître apressou-se a conduzi-los para o outro lado do salão. De onde estava, podia vê-lo sem ser vista. A moça devia ter uns dezenove anos, longos cabelos pretos, a pele bronzeada, e era evidente que tivera algum trabalho para conseguir aquele tom. Um belo rosto, e o vestido branco e justo que usava fazia sobressair as formas jovens do seu corpo. A mão com suas longas unhas prateadas permanecia na mão de Lyon o tempo todo. Ele parecia fascinado pelo que ela dizia. A certa altura, ela disse alguma coisa que fez com que Lyon se inclinasse para trás e desse aquela sua risada característica. Depois, curvando-se para a frente, depositou um rápido beijo na ponta do nariz da garota. Anne sentiu-se fisicamente doente. Quantas noites passara com moças como aquela, enquanto ela, acordada, desejava estar com ele, pensava nele, pensava que ele também estivesse sozinho, esperando apenas que ela o chamasse...

Foi sua pior noite em muitos anos. A enormidade do seu desespero a assustava. Nunca mais tinha se sentido tão infeliz, desde que Lyon a deixara. De repente, sentiu que todas as suas emoções, que ela julgara mortas, estavam agora mais presentes do que nunca. E que tinham estado apenas adormecidas, à espera de serem ativadas novamente. Continuou com os olhos pregados em Lyon e na moça, agradecida por Kevin ter começado uma acirrada discussão a respeito de ações e opções.

Finalmente, o jantar interminável chegava ao fim. Ao sair, lançou um último olhar a Lyon. Ele prestava a máxima atenção a uma história que a companheira contava.

Disse a Kevin que sentia dor de cabeça, mas, mesmo assim, ele insistiu em subir. No momento em que entraram, ele disse, com calma:

— Eu também os vi.

— Quem?

— Seu amante e a bela dama. E vi você lá sentada, engolindo o próprio coração. Agora talvez saiba como eu tenho me sentido. — O tom da voz de Kevin era grosseiro.

— Kevin, estou cansada...

— Ela poderia ser sua filha, Anne.

— Ora, Kevin, tenho apenas trinta e seis anos.

— Muitas mulheres têm filhos aos dezessete anos. Sim, minha querida, não há dúvida que ela poderia ser sua filha. Ouça, boneca, o seu Lyon ainda está na ativa. Ainda pode escolher o que quiser. Alguma vez lhe ocorreu que ele tivesse dormido com você apenas "em memória aos velhos tempos"? Por piedade, tal como você faz comigo. Muito bem, agora somos iguais, em certo sentido, você e eu. Dois rejeitados. E saiba que eu também começo a ter pena de você. Com certeza, deve estar ainda sonhando com aquela noite de amor. Agora sei que deve ter sido apenas uma noite que ele se dignou a oferecer, talvez movido pela piedade e por algum sentimento de culpa.

A raiva que ele sentia cresceu quando percebeu que os olhos de Anne escureciam de sofrimento.

— Claro que foi apenas isso. Pediu-lhe, por acaso, que me deixasse para se casar com ele? Aposto que não. Se ele se casar algum dia, será com um peixão. O seu tempo passou, querida. Sim, ainda é uma bela mulher, que se aproxima dos quarenta. Mas ele gostou de você quando tinha vinte anos, e mesmo então teve coragem para deixá-la. E foi o velho Kevin que recolheu os pedaços e a fez rica e famosa.

Foi até a porta mas voltou para acrescentar:

— Sabe de uma coisa? Eu mesmo poderia arranjar uma garota de vinte anos, se quisesse. Não se preocupe, acho que vou ficar com você mesmo. Só que daqui por diante eu tomarei as decisões. Amanhã você vai pedir demissão; não estou mais disposto a andar por aí enquanto você trabalha. E faremos aquela viagem ao redor do mundo que planejamos, só que agora não sei se há motivos para casarmos primeiro. Pensarei a respeito disso.

Anne não tirou o olhar de Kevin durante todo o tempo em que ele falou.

— Kevin, sei que você realmente não quis dizer uma palavra do que disse. Você não é isso.

— Sim, minha cara. Finalmente, recuperei minha sanidade mental. Durante todos esses anos eu me sentia tão grato por ter os seus favores! Sim, só até esta noite. Meu Deus, o que o ciúme pode fazer a uma pessoa. Você simplesmente, se desintegrou diante dos meus olhos. De repente, você me pareceu completamente acabada em comparação àquele peixão. As rugas de ansiedade que apareceram em seu rosto... minha deusa caía do pedestal. Vi uma loura acabada olhando com inveja para uma bela garota que lhe roubara o macho.

— Kevin, por favor, saia. Sei que não pensa nada disso.

— Não queira mais bancar a grande dama comigo. Isto acabou. Você não passa agora de um refugo. Quer que prove o que digo? Eles devem estar no hotel dele agora. Claro que ele não podia esperar muito tempo. Você tem coragem de lhe telefonar? Telefone e diga que quer vê-lo agora. Quero cronometrar o tempo que levará para tomar o maior fora de sua vida.

Anne voltou-se e caminhou para o quarto; ele foi atrás e fez com que se voltasse.

— Ainda não acabei de falar, e terá de me ouvir até o fim. Já não lhe disse para acabar com essas atitudes de grande dama?

— Kevin, você realmente me odeia tanto?

— Não, tenho apenas pena de você. Assim como você sempre teve de mim".

— Então, pode ir embora, Kevin. E para sempre.

— Não, minha cara, agora não. Só depois de vê-la descer pelo esgoto abaixo. Vamos, chame-o — dizia, com o telefone na mão. — Você já deve saber o número de cor. Se você não o chamar, eu o farei. Direi que você nem conseguiu jantar, por ter ficado doente de ciúmes. Sim, eu também sei o número dele de cor. Afinal, eu e você passamos duas semanas inteiras pensando nele, não foi?

Começou a discar. Anne agarrou o fone, Kevin o tomou novamente, e continuou a discar.

— Muito bem, agora fale com ele, ou então eu falarei.

A telefonista já havia ligado para o quarto de Lyon.

Anne rezava para que ele não estivesse. Aquilo não podia estar acontecendo. Devia ser um pesadelo. Ouviu o ruído...

— Alô? — Era a voz de Lyon.

— Lyon? — Anne mal podia falar.

— Anne?

— Vamos, continue — sussurrou Kevin. — Diga-lhe que você quer ir ao hotel dele.

— Lyon... gostaria de ir até aí...

— Quando?

— Já.

Houve uma pequena pausa. Então, numa voz clara e alegre, ele disse:

— Preciso de dez minutos para organizar as coisas; venha em seguida.

— Obrigada, Lyon. Estarei aí.

Desligou o telefone e olhou para Kevin. O rosto dele estava pálido.

— Claro, eu devia ter desconfiado. Será uma bacanal a três. Não lhe disse que os ingleses estavam decadentes? E você vai assim mesmo, porque não tem outra escolha.

— Oh, Kevin... por que fizemos uma coisa destas, um ao outro?

— Eu apenas acabo de constatar que dediquei um enorme número de anos a uma vagabunda. Uma vagabunda que se faz passar por dama.

Kevin saiu batendo a porta. Por um momento, Anne permaneceu parada, e a raiva que sentira foi lentamente se transformando em alívio e tristeza. Kevin tivera a decisão. Deus, que coisa terrível era o ciúme. Era capaz de transformar um homem forte como Kevin em um aleijado emocional. Não sentia, porém, nenhuma animosidade contra ele. Sentia-se aliviada, acima de qualquer coisa; como se lhe tivessem tirado um enorme peso das costas. Não importa o que acontecesse entre ela e Lyon, ela nunca mais teria de se casar com Kevin. Aquilo terminara... e para sempre. Era livre agora.

Renovou a maquilagem e caminhou apressadamente pelos três quarteirões que a separavam de Lyon.

A porta se abriu e Lyon abriu-lhe os braços.

— Eu já estava quase perdendo as esperanças. Os olhos dela percorreram rapidamente o quarto.

— Ela já foi embora — disse ele calmamente.

Anne fingiu não compreender.

— Eu a vi quando saía do 21. A minha deliciosa companheira ficou excitada. "Oh, aquela não é Anne Welles? Eu a adoro na televisão."

— Eu também vi você, Lyon.

— Bem, pelo menos isso a trouxe para mim, outra vez. Ele atravessou o quarto e preparou dois aperitivos, numa mesinha que servia de bar.

— Sabe de uma coisa? Hoje em dia o mundo dos espetáculos está completamente mudado, confesso que não consigo compreendê-lo. Essa Connie Masters, por exemplo, vendeu seus dois últimos discos aos milhões e o público inglês a adora. Por isso me incumbiram de escrever sobre a excitante vida que ela leva.

-— E quem é Connie Masters?

— A sensação com quem estive esta noite. Não me disse que nunca ouviu falar dela?

Anne sacudiu a cabeça negativamente, ele sorriu.

— Já vi que eu e você somos parte da geração perdi-Pensamos logo em Ella, Dinah, ou Neely, quando alguém começa a falar de cantores. Mas a sensação atual é Connie Masters. Tem dezenove anos e todas as companhias cinematográficas estão atrás dela para contratá-la. Eu não suporto ouvir qualquer dos seus discos sem antes tomar um uísque duplo.

— Sei — disse Anne. — Todos os dias se ouve falar de gente nova. Acho que os adolescentes são os grandes responsáveis por esses cartazes.

— Bem, posso dizer que cumpri minha missão para com a imprensa inglesa e para com os amantes da música. E o seu telefonema me salvou justamente de me exceder na missão.

— Quer dizer que você pretendia...

— E por que não? A gente se sente muito solitário, esperando por um telefonema que não vem nunca. Não que eu não compreenda... isso não. Acontece que ela estava aí, toda enroscadinha nessa cadeira, justamente contando que adora homens de certa idade. Que queria que eu fizesse? Que abrisse a porta e a mandasse embora?

— Ora, Lyon, não acredito que você se sinta tão indefeso assim. — Riu Anne.

Ele atravessou o quarto e fez com que ela se levantasse.

— Sinto-me bem mais seguro com você, apesar de achá-la encantadora e perigosa. — Beijou-a e a apertou fortemente. O abraço foi interrompido pelo tilintar do telefone.

— Deve ser ela — sorriu Anne.

Lyon atendeu e ela notou que seus olhos se estreitavam. Finalmente, disse com voz gelada:

— Sugiro que o senhor mesmo fale com a dama. — Estendeu-lhe o telefone: — Kevin Gillmore.

— Não quero falar com ele — disse Anne, voltando-se de costas.

— Sugiro que fale — disse Lyon.

Anne notou que ele não teve a preocupação de colocar a mão no fone, para que Kevin não os ouvisse. Ela apanhou o fone.

— Kevin?

— Anne! Anne, perdoe-me! Acabo de dizer a Lyon que algo estranho me aconteceu esta noite. Fiquei louco, Anne. Façamos de conta que esta noite nunca existiu. Não quis dizer uma palavra do que disse. Anne, você está me ouvindo?

— Kevin, não adianta. Está tudo terminado.

— Anne, por favor! Volte para casa. Tudo o que eu falei não é verdade. Você pode continuar a trabalhar... pode fazer tudo o que quiser. — A voz dele parecia sufocada. — Eu me caso com você amanhã, ou quando quiser. Estarei sempre ao seu lado. Farei tudo o que quiser. Tudo. Por favor. Quando eu a vi infeliz, só parque ele estava com aquela garota, fiquei doido, você nunca ficou assim por mim. Queria feri-la tanto quanto você me feriu. Por favor, Anne... — Agora soluçava. — Sei que sou velho. Se você quiser se encontrar com Lyon Burke, eu também compreenderei. Apenas peço que não me conte. Você pode fazer tudo o que quiser, só lhe peço que me perdoe e que não me abandone...

— Kevin... você está bem? — perguntou Anne, percebendo que ele sufocava.

— Sim. Apenas andei depressa demais. Estou no seu apartamento. Corri até aqui. Anne... por favor. Para Lyon, você é mais uma fêmea, para mim você é a vida.

— Kevin... amanhã conversaremos.

— Anne, não poderei dormir pensando que você está aí nos braços dele. Anne, por favor. Esta noite, não. Volte apenas esta noite... E deixe que eu durma na outra cama. De agora em diante, juro que não a vigiarei mais. Fique comigo esta noite. Por favor, Anne. Não posso lutar contra ele. Sei que não sou tão jovem nem tão saudável... por favor...

— Está bem, Kevin.

— Então você vem? — A esperança que a voz demonstrava era ainda mais patética que as lágrimas.

— Sim, imediatamente — disse Anne desligando e virando-se para Lyon.

— Outra vez entre dois fogos? — perguntou ele.

— Lyon, que é que eu devo fazer?

— Eu diria que é uma questão de resolver a quem é que você quer agradar: a você ou à sua consciência? Que é que procura, afinal? A felicidade ou a paz de espírito?

— Mas, Lyon, não é a mesma coisa?

— Não. A paz de espírito não vem sempre junto com o amor. Tenho certeza de que, se voltar para Gillmore, você terá paz de espírito e a consciência tranquila. Comigo, você terá que lutar com a sua consciência. Acontece que quase sempre o amor é uma espécie de luta.

— Está tentando dizer que me ama?

— Bom Deus, devo escrever isso em letreiros luminosos para que me acredite? Claro que a amo.

— Como posso acreditar, se durante estas duas semanas você nem tentou me convencer?

— Estou falando de amor, não do verbo esmolar. O amor não deve transformar a gente em mendigos. E eu não quero o amor, se tiver de pedir por ele. E eu desprezaria alguém que suplicasse o meu amor. O amor é algo que deve ser dado, algo que não pode ser comprado com palavras ou com piedade, ou mesmo com a razão. Eu nunca lhe suplicarei nada, Anne. Eu a amo, e você deve saber disso. E sempre a amarei.

— Lyon, você também sabe que eu sempre o amei e que sempre o amarei.

— Então, por que estamos aqui parados a discutir o óbvio? Você está aqui, e eu quero que continue aqui — disse, sem fazer um movimento para se aproximar dela.

— Mas você disse que vai voltar para a Inglaterra...

— E Kevin está aqui. Eu falava de amor, enquanto você pensava em geografia. De alguma forma, esta conversa me parece bastante familiar...

— Mas o amor significa estar juntos, fazer planos juntos...

— O amor é um sentimento. Para você, é um contrato estampilhado e sujeito a determinadas regras.

Lyon foi até onde ela estava e pegou suas mãos.

— Anne, é tarde demais para isto. Sim, voltarei a Londres onde já me acostumei a viver. Você tem tudo isto. Talvez seja melhor para você se voltar para Kevin, ele se encaixa direitinho no seu estilo de vida. Tudo o que tenho para oferecer são apenas mais algumas semanas.

— Você nunca pensou que eu poderia gostar de Londres, Lyon?

— Anne, sou escritor. Talvez não dos melhores, mas me esforço para sê-lo. Você já não é mais a garota de vinte anos, cheia de entusiasmo e disposição para datilografar meus manuscritos. Com o tempo, isso a aborreceria e você acabaria odiando tudo.

Anne virou-lhe as costas e saiu quase correndo do quarto; chegou ao elevador e apertou o botão. Talvez ele viesse correndo atrás dela. O elevador chegou e ela ainda lançou um olhar esperançoso na direção da porta fechada do quarto. Em seguida, entrou no elevador e desceu.

Caminhou lentamente em direção ao seu prédio. Quando lá chegou, atravessou vagarosamente o saguão. Tinha de pensar rapidamente. Lyon a amava, mas não lhe oferecia nenhum futuro. Kevin precisava dela, e lhe oferecia toda uma vida de devoção. Kevin poria tudo num contrato, com as cláusulas que ela quisesse... Mas de que valeria um contrato que lhe daria, em troca, uma devoção que não queria? Ela estava sempre tentando forçar Lyon a fazer alguma coisa. Que importância tinha se ele não a convidasse para ir a Londres? Podia simplesmente ir atrás dele. Londres não ficava no fim do mundo... isso, entretanto, seria suplicar, e Lyon não gostava de súplicas. "O amor deve ser dado, não caçado."

Foi andando até a saída do prédio. Kevin estava lá em cima e precisava dela. Como é que podia magoá-lo tanto por causa de algumas semanas de felicidade? De repente, vieram-lhe à mente todos os anos que perdera com ele, e todos os anos perdidos que a esperavam, depois que Lyon se fosse... E Lyon estava ali agora, e ela podia estar com ele. Sim, isso era tudo. Aproveitar as semanas que Lyon lhe oferecia e aceitar o fim, quando ele chegasse. Aí, então, se Kevin a quisesse ainda, os dois seriam o que ele mesmo dissera: dois refugos. Agora, porém, havia Lyon. E ela ficaria com ele todos os minutos que pudesse. Começou a andar depressa; depois, correu, até alcançar o hotel. A subida do elevador foi angustiante. Lyon «abriu a porta e abraçou-a. Ela agarrou-se a ele.

— Enquanto você estiver aqui, Lyon, estarei com você. Nada de perguntas. Nada de amanhãs. Só importa todos os segundos que pudermos estar juntos. Eu o amo.

Ele segurou seu rosto entre as mãos e, olhando-a bem nos olhos, disse baixinho:

— Transformaremos cada segundo em horas. Eu a amo, Anne.

Encontrou Kevin no dia seguinte. Estava desfigurado. Tentou explicar que tinha de ver Lyon... e que quando ele se fosse, se Kevin não a quisesse mais, compreenderia.

Kevin ficou olhando para ela em silêncio, o rosto cheio de manchas avermelhadas. Finalmente, disse:

— Você é tão decadente quanto o seu macho inglês. E vai me pagar toda essa humilhação. — Saiu batendo violentamente a porta.

Desta vez Kevin não telefonou chorando. Nos dias que se seguiram, ele se esforçou infantilmente para aparecer nos lugares da moda com uma variedade assombrosa de garotas famosas. Kevin, que detestava boates, ia todas as noites a elas, acompanhado das mais espetaculares mulheres que chegavam à cidade. Inventaram até uma piada, dizendo que ele provavelmente esperava essas celebridades à porta do avião, para conseguir logo um encontro.

Seu último ato contra Anne foi tentar cancelar o seu contrato com a Gillian. Como ainda fazia parte da direto-ria, insistiu em dizer que tinha todo o direito de proteger a imagem da companhia que ele criara. Dizia que Anne já estava ultrapassada e que a Garota Gillian devia ser mais jovem, mais atraente, um novo rosto afinal.

Isso motivou uma reunião de diretoria para decidir a questão. Kevin foi derrotado por maioria absoluta e Anne recebeu novo contrato, por mais dois anos, e um aumento de dez mil dólares. O novo contrato era exclusivamente para televisão, pelo que Anne vinha lutando há muito tempo, cansada de posar, também, para jornais e revistas. Soube da atitude de Kevin contra ela, mas não chegou a odiá-lo por isso. Sentia apenas piedade dele e muita tristeza por terem acabado em inimizade.

Nas semanas seguintes, a excitação por sua nova ligação com Lyon excedeu a tudo o que Anne já conhecera na vida, Lyon admirava-a, inclusive por sua celebridade, quando era reconhecida pelos fãs; e Anne procurava se concentrar a fim de conseguir fazer o seu trabalho. Interessava-se por saber como estava saindo a série de reportagens em que Lyon trabalhava e gostava de ouvi-lo falar a respeito da maneira como apresentaria as suas ideias. Não pretendia tomar propriamente uma posição contra a televisão americana, mas expor com franqueza suas ideias. Anne lia os rascunhos e, frequentemente, ajudava-o com valiosas sugestões.

Ainda que tivessem residências separadas, Lyon passava todas as noites no apartamento de Anne. Uma noite disse:

— Virei buscá-la às sete; primeiro preciso passar no meu armário para mudar de roupa.

Daí por diante, sempre se referiam ao seu quarto de hotel como o armário. À medida que as semanas passavam, Anne ia ficando cada vez mais consciente de que o fim se aproximava. Ele ainda não falara na partida, mas ela sabia que não tardaria. Começou, então, a sentir um desespero que a oprimia progressivamente. De repente, porém, numa noite de julho, Anne sentiu um fio de esperança. Estavam jantando num restaurante ao ar livre, do Village, quando Lyon disse, olhando para o céu:

— Esta foi uma sugestão maravilhosa. Em Londres sinto muito a falta desse clima maravilhoso de Nova York. A gente nunca pode contar com uma noite como esta. Quase sempre a chuva é inevitável.

— É a primeira vez que o ouço dizer alguma coisa agradável sobre Nova York — disse Anne, tentando dar um tom casual à voz.

— É que meu amor por você me faz ver as melhores coisas que existem na cidade. Você gosta de chuva? Em Londres chove sempre.

Então estava acontecendo! Ele já não estava querendo separar-se dela. Devia tomar muito cuidado para não forçar coisa alguma. Dele devia partir a ideia. Anne olhou para a cinza do cigarro e disse:

— Nunca estive em Londres.

— Pense a respeito disso, então — foi tudo o que disse.

Desse dia em diante, Anne não conseguiu pensar em outra coisa. Discutiu o assunto com Henry.

— Nunca daria certo — insistia Henry. — Estive no apartamento dele, quando fui à Inglaterra, no ano passado. Ele o acha um palácio, mas não tem aquecimento central, Anne. E só quatro cómodos.

— Eu tenho muito dinheiro, Henry. Poderemos ter o apartamento que quisermos.

— Você ainda não aprendeu a lição? Ninguém jamais pagará coisa alguma a Lyon, se ele não puder pagá-la. Vocês dois teriam de viver do ordenado dele.

— Pois então viveremos — disse Anne com determinação. — Viverei onde ele quiser, só não posso viver sem ele, Henry. Eu serei feliz com ele em qualquer lugar. Até mesmo em Lawrenceville.

— E o seu contrato com a Gillian? Se você o romper nunca mais poderá trabalhar para a televisão.

— Henry, quanto dinheiro eu tenho?

— Mais de um milhão de dólares.

— Então, por que motivo deveria trabalhar?

— E o que pretende fazer em Londres?

— Estar com Lyon.

— Ouça, Anne. Você já não é uma garota para mudar assim completamente de vida. Nem Lyon. Ele já está estabelecido lá, com seu método de vida. Você não terá amigos e ele ficará sentado atrás da máquina de escrever o tempo todo. Que é que você fará?

— Não sei. Sei apenas que não poderei mais viver sem ele.

Henry ficou pensativo por alguns momentos, depois disse-.

— Só vejo uma solução satisfatória. Você terá que fazer com que ele fique em Nova York.

— Como? Ele já terminou o trabalho que o trouxe aqui, e, além disso, gosta de viver em Londres.

— Tente ganhar tempo. Cada dia que ele ficar em Nova York vai deixá-lo mais habituado com a cidade. Enquanto isto, deixe-me pensar algo. Vou falar com alguns amigos da Editora Barter; tentarei fazer com que eles o contratem para escrever artigos para as suas revistas. Só que tudo deverá parecer pura coincidência.

— E que adiantará isso?

— Ficará mais algum tempo em Nova York, e o tempo se encarregará de outras coisas.

Foi Neely quem, casualmente, veio com uma ideia. Anne fazia a costumeira visita semanal e elas estavam sentadas no jardim do sanatório conversando. O calor era sufocante, mas Neely preferia ficar fora. Bem gorda, sua aparência demonstrava que estava perto da recuperação total. Chegara ao Pavilhão Ash, a apenas um degrau da clínica dos não-residentes.

— Então, poderei ir a Nova York nos fins de semana — disse Neely alegremente.

— Neely, acha isso prudente?

— Claro, é assim que funciona. Afinal, não se pode ficar aqui presa durante seis meses e depois solta sem mais nem menos. Eles fazem a coisa gradualmente. Primeiro, colocam a gente durante um mês no edifício dos não-residentes. Uma vez lá, a gente pode sair algumas noites, para ir ao cinema da cidadezinha local, ou então ao cabeleireiro. Se tudo sair bem, permitem que a gente passe um fim de semana em Nova York. Na segunda-feira, quando a paciente volta, é examinada cuidadosamente, para verificarem se está perturbada de alguma forma. Depois de algum tempo, permitem que a gente fique em casa uma semana. Depois, dão a alta, mas a gente deve consultar diariamente um psiquiatra indicado por eles. É a tensão lá de fora que os preocupa.

— Você quer dizer o trabalho?

— Não, qualquer tensão. Aqui não existe tal coisa. Se consigo dormir, durmo. Se não, que importa? O pior que poderá acontecer é não conseguir fazer um bonito cinzeiro no dia seguinte, na aula de terapia ocupacional, ou então não poder jogar uma partida de badminto. E posso comer -o que quiser. Céus, estou pesando quase oitenta quilos! Mas que importa isso? O mais importante de tudo é que posso cantar. E estou cantando que mais pareço um canário.

— Oh, Neely, estou tão contente! Eu sabia que você, conseguiria.

— Aconteceu assim: uma vez por mês, há um baile aqui, com os doidos do sexo masculino. Eles se arrumam e se vestem todos bonitinhos e nós também fazemos o mesmo; vamos todos para o ginásio, sob supervisão, é claro. Eu vou porque não tenho outra escolha e porque, se recusar, terei má nota na ficha. Há uma pequena orquestra, e numa dessas noites eu me levantei e comecei a cantar. Não foi grande coisa, porque o pianista é um professor da cidadezinha. Mas cantei assim mesmo, até que um dos loucos, de cabelos brancos e olhar esgazeado, se aproximou. É um doente crónico, para o qual não há esperança, e eu nunca o vira antes. Ficará aqui a vida inteira, sob custódia, e para isso é preciso ser um doido realmente rico. O Edifício Eva abriga as mulheres incuráveis, e o Edifício Adão abriga os homens. Estão separados de nós por doze acres e nós nunca os vemos, a não ser nesses bailes. Quando ele se aproximou de mim, a enfermeira quis impedi-lo, mas o Dr. Hall estava lá e fez sinal para que ela o deixasse. Soube depois que esse homem não falava há dois anos e, por isso, o médico queria ver o que é que ele faria. Eu estava cantando um dos velhos números de Helen Lawson e ele ficou me olhando, sem fazer nada.

"Continuei a cantar, e, quando comecei uma das minhas canções, ele, de repente, cantou comigo, na maior harmonia que se pode imaginar. Foi tão maravilhoso que quase morri de emoção! Anne, esse sujeito era realmente um cantor fantástico. E, além disso, o rosto dele era familiar. Cantamos durante uma hora inteira e, no final, todos bateram palmas, até o Dr. Hall e a Dra. Archer. Quando terminamos, o doido afagou minha face com a mão, dizendo:

"Neely, você sempre foi grande. Aliás, nós dois sempre fomos". Virou-se e foi embora. Eu fiquei parada, até que ouvi a voz do Dr. Hall ao meu lado: "Faz dois anos que ele está aqui, sempre piorando. Mantemos sigilo absoluto a respeito; vejo, porém, que vocês se conhecem. Por favor, não diga nada a ninguém; nós o chamamos de Sr. Jones".

Neely confessou a Anne que não sabia quem era o homem, mas que pretendia descobrir e, por isso, disse ao Dr. Hall.

— E eu, como deverei chamá-lo, se ele me chama de Neely?

— Bem, pode chamá-lo de Tony, Tony Jones.

— Tony? — Anne não compreendia.

— Tony Polar! — exclamou Neely. — Ele tinha uma espécie de doença mental inata. Por sorte, ele e Jennifer não tiveram filhos, pois teriam ficado doidos como Tony.

O aborto de Jennifer. Então, ela sabia! E guardou segredo para sempre. Os olhos de Anne se encheram de lágrimas.

— Neely — disse —, Jennifer nunca contou isso a ninguém e eu tenho certeza de que ela sabia. Por favor, não conte nada a quem quer que seja.

— Por quê? Afinal, não está mais casado com Jen. Ela morreu, você se lembra?

— Mas morreu sem nunca ter contado isso a ninguém. Queria que fosse segredo. Por ela, e também por ele... Por favor, sim, Neely?

— Está bem; afinal, quem se importaria com isso agora?

— Bem, ainda pode dar muitos mexericos. Melhor que pensem todos que Tony simplesmente se retirou da cena. Houve boatos de que ele estava na Europa. Ninguém sabe a verdade, e deixemos que assim seja.

— Está bem, mas a meu respeito não há segredos. Já recebi uma oferta para escrever artigos sobre a minha vida para uma revista. George Bellows está procurando um escritor-fantasma para escrevê-la.

— George Bellows? Como é que ele sabe onde você está?

— Bem, você deve estar lendo os colunistas. Estão sempre escrevendo que estou gorda, e não tenho mais voz, ou, então, que estou magra e também não tenho voz. Por isso escrevi a um deles dizendo que estavam certos, isto é: que estou gorda e que nunca cantei melhor em minha vida. Pedi, então, ao Dr. Hall que me deixasse gravar uma fita aqui, e a enviei ao Henry Bellamy, para que ele a tocasse para a imprensa. Ele deve ter incumbido George disso, pois logo recebi a sua visita. Ele conseguiu esta oferta e quer ser meu agente quando eu sair daqui. Está tentando levantar dinheiro para comprar a parte de Henry, você sabe.

— Lyon me disse que a Johnson Harris quer comprar a companhia de Henry.

— Se George conseguir o dinheiro, ele é quem vai comprar a parte de Henry. E conseguirá se puder convencer a bêbada da mulher dele a abrir mão do dinheiro. Ela é riquíssima, você sabe?

— Que mulher bêbada? Então George é casado?

— George é muito sabido. Está casado com essa mulher há vinte anos. Casou por interesse, é claro. Pensou que ela não duraria muito; apesar de tudo, o fígado dela está aguentando bem, e ela ainda controla o dinheiro. Acho que o único meio de George conseguir o dinheiro é abreviar a vida dela de alguma forma, coisa de que ele é bem capaz, na minha opinião. Sempre detestei aquele sujeito.

— Pelo menos, conseguiu esta oferta.

— Bem, ele terá uma comissão. Eu lhe disse que tinha onde usar os vinte mil; você tem me sustentado aqui, no sanatório, e eu terei de lhe devolver o dinheiro. E também precisarei de dinheiro quando sair. Mesmo assim, não gostaria de ver George tomar conta do escritório de Henry. Tenho arrepios só de pensar nisso.

A ideia começou a tomar forma na mente de Anne enquanto dirigia de volta a Nova York. Quando chegou, tinha todos os planos esboçados. Levou o carro à garagem e telefonou a Henry, dizendo que jantariam juntos, queria falar com ele. Encontraram-se num pequeno restaurante da Rua Cinquenta e Três.

— E por que não? — disse Henry, depois que ela expôs o plano. — Lyon é a pessoa mais indicada para escrever a história da, vida de Neely. Conheceu-a desde o começo, e isso faria com que ele ficasse, pelo menos, mais um mês em Nova York.

— Mas você é que vai vender a ideia ao George, e ele é que deve falar com Lyon, para que ele jamais saiba que eu tive algo a ver com isso.

Lyon gostou da oferta de George, mas não queria visitar Neely. Achava que devia se lembrar dela como quando a conheceu, com o rosto de adolescente. Falou com ela pelo telefone, enviou o esboço para que o lesse e Neely ficou maravilhada com o estilo de Lyon. No fim de setembro, Lyon estava' pronto para escrever a reportagem na forma definitiva.

No começo de outubro, Henry foi urgentemente intimado por Anne a almoçar com ela no 21. Os olhos dela brilhavam enquanto apresentava seu novo plano a Henry. Ele a ouviu atentamente e, quando ela terminou, declarou, levantando as mãos:

— Você é pior do que uma divisão Panzer, mas não acho que dará certo.

— E por que não?

— Porque ele não quer ser dono de uma agência. O que Lyon gosta é de escrever.

— Henry, você pode tentar. Diga a ele que não lhe agrada a ideia de que o trabalho de sua vida seja agora comprado pela Johnson Harris. Por favor, Henry, tente.

— Mas, Anne, ainda que eu diga que lhe emprestei o dinheiro, ele descobrirá a verdade.

— Cuidarei disso quando o momento chegar. Agora, Henry, não há um minuto a perder.

Lyon tomou lentamente sua xícara de café e declarou:

— Fico muito lisonjeado com sua oferta, Henry, mas... acho que não sou o homem certo.

O garçom encheu novamente a xícara de café de Henry e ele esperou até que o homem se retirasse para .responder.

— Ouça, Lyon. Dediquei toda a minha vida à firma. O escritório da Johnson Harris não merece-' ficar com as grandes estrelas que eu ajudei a criar. George Bellows não merece grande coisa também. Claro que a Johnson pretende ficar com ele, fazê-lo vice-presidente, ou coisa que o valha, contanto que a sua posição seja tão pouco importante que ele seja obrigado a pedir demissão. Não tenho dormido à noite, pensando em como resolver esta situação. Por isso é que lhe ofereço um empréstimo, para que você compre a agência com George.

— E por que eu? Por que não empresta o dinheiro a George?

— Por que acha que George não foi capaz de levantar o dinheiro ainda?

— Porque deve ser muito dinheiro, creio.

— Não, é porque todo mundo sabe que ele será incapaz de dirigir a firma sozinho. George é um grande administrador, mas não tem tato para lidar com gente. A metade dos clientes abandonará a agência. Se eu apontar você para me substituir, e se o fizer com a publicidade certa... podemos começar com boatos nas colunas teatrais, dizendo que mandei chamá-lo em Londres... deixaremos os boatos crescerem... Lyon, pode crer que muita gente ainda se lembra de você por aqui.

Lyon sacudiu a cabeça.

— Agradeço-lhe muito, Henry, mas não vou aceitar. Estou muito feliz em Londres. E não desejo agora me submeter à tremenda pressão de uma agência. Odeio essa corrida de ratos, e adoro escrever.

— E a respeito de Anne?

Lyon estudou o cigarro.

— Ela sabe de sua oferta?

— Não. — Henry esperava que a sua voz estivesse convincente. — E é melhor assim, pois ela não gostaria que você decidisse sob pressão.

— Mas é um empréstimo tremendo, Henry.

— Não preciso de dinheiro. Tudo o que quero é me aposentar. O último eletrocardiograma me convenceu disso, e eu gostaria de ver a continuação do que realizei. Você poderá pagar um pouco cada ano. Não me preocupo com dinheiro.

— Você ficaria muito sentido se eu recusasse?

— Sim, ficaria. Já me abandonou uma vez, Lyon, quando eu precisava muito de você. E agora preciso novamente de você, para cuidar da agência com George.

 

                                           1962

No dia 2 de janeiro de 1962, Bellamy & Bellows passou a chamar-se Bellamy, Bellows & Burke. George era presidente, Lyon era vice-presidente e Henry se aposentou. Lyon, entretanto, fez questão de conservar o nome dele na firma. O coquetel para a imprensa e os clientes se transformou em festa de noivado quando Lyon anunciou que ele e Anne se casariam no dia seguinte.

Quando a festa transcorria bem animada, Henry tomou Anne pelo braço e ninguém chegou a notar a breve conferência em particular.

— Ele terá de saber a verdade no ano que vem — sussurrou Henry.

— Por quê?

— Anne, no próximo ano, vocês terão de fazer a declaração de renda em conjunto. Então ele saberá que você lhe emprestou dinheiro para comprar a firma. Como sabe, ele lhe estará pagando os juros do dinheiro, e isso você terá de declarar.

— Mas você não poderia emprestar esse dinheiro a ele, e eu o emprestaria a você, e...

— E todos nós nos veríamos encrencados com o imposto de renda. Anne, a verdade é que eu não tenho tanto dinheiro quanto você. Nunca cheguei a ganhar dois mil dólares líquidos por semana, nem fui presenteado com sólidas ações da Gillian. E não tive nenhum Henry Bellamy investindo esse dinheiro para mim durante anos, até que fosse praticamente dobrado. Anne, em suma, não poderei usar o meu dinheiro para vender a minha própria firma. Por falar nisso, vendi suas ações da Gillian. Triplicaram de valor, mas sabemos que vão sofrer uma grande queda. Tive, também, de vender algumas outras ações. Portanto, já vê que não se trata de uma simples brincadeira. Quase todo o seu dinheiro está investido na firma; por mo espero que George e Lyon tenham muito sucesso.

— Como será que Lyon vai reagir quando souber de tudo no ano que vem? — perguntou Anne.

— Depende. Se estiver feliz com o seu trabalho e obtendo grande sucesso, acredito que dará boas, risadas ao saber. Afinal, como é que alguém pode achar ruim se a mulher que amamos nos empresta secretamente dinheiro para podermos casar com ela?

— Só me preocupo com a tremenda gratidão que ele lhe devota por tudo isso. Não pára de falar que precisa se esforçar ao máximo para corresponder à confiança que você deposita nele. Diz que na verdade só aceitou sua proposta por isso.

— Bobagem. Ele não perdeu tempo em pedi-la em casamento. Portanto, acho que esse foi o fator principal.

— Talvez. Pelo menos tenho um ano antes que os problemas surjam. E, mesmo assim, talvez não haja problemas; a verdade é que não posso viver sem ele, Henry. Tentei isso durante quinze anos, e não posso chamar aquilo de vida. Farei tudo para ter Lyon: mentir, fingir, tudo, enfim. Apenas reze por mim, para que tudo corra bem quando o segredo for descoberto.

— Se eu a conheço bem, a essa altura você estará 'esperando um filho, a firma irá de vento em popa, e Lyon ficará secretamente feliz por você ter tomado uma atitude que lhes propiciou serem felizes juntos.

Casaram-se no dia seguinte, no apartamento de Henry. O juiz Wellman, grande amigo de Henry, oficiou o ato, e George e a mulher foram os padrinhos. Anne e Lyon voaram para uma lua-de-mel de quatro dias em Palm Beach. Tinham concordado em viver no apartamento de Anne. George e Lyon retirariam setecentos dólares por semana da firma, mais as despesas; os lucros ficariam na firma e os dividendos seriam distribuídos ao fim de cada ano fiscal.

Em dois meses apenas, Lyon conseguira que os maiores artistas ingleses assinassem contrato com a firma. Conseguira, também, atrair alguns clientes de outras agências e queria abrir um escritório na Califórnia. George era mais cauteloso.

— Vamos planejar tudo cuidadosamente — dizia ele. — Sei que temos uma grande quantidade de clientes, mas o melhor negócio agora é vender programas de televisão. Precisamos de uma Carol Burnett, de um Danny Thomas, de uma Judy Garland...

— Concordo — disse Lyon prontamente. — Acontece que esses já têm ótimos agentes. Além disso, esse é o caminho mais fácil. Acho que nós é que temos que criar os nossos cartazes. Esse é que é o papel do verdadeiro agente. Henry criou Helen Lawson. Se nós fizermos uma estrela, também, então todas as estrelas vão querer que trabalhemos para elas.

George conferiu uma lista que tinha na mão e disse:

— Não vejo aqui nenhum cartaz em potencial. Lyon ficou pensativo. Depois, disse:

— Se o filme de Peter Shay com a Metro for bom, então poderemos conseguir para ele um contrato para três filmes. Talvez consigamos...

George sacudiu a cabeça.

— Não. Ele é um ator característico. Nós precisamos é de um tipo romântico, ou um grande cómico, ou uma mulher. Além disso, Peter vai querer trabalhar também na Inglaterra, e você sabe como são os ingleses. Não quero insultá-lo — corrigiu George —, mas, não importa quão bem eles estejam aqui, estão sempre voltando para a ilha deles com o dinheiro que ganharam conosco.

Lyon sorriu e disse:

— Saiba que aquela pequena ilha pode ser o paraíso. A gente pode até ser feliz lá.

— Claro. O lar é onde está o coração. Isso, porém, não nos ajuda nada. Espere... tive uma ideia. Há alguém que nós poderíamos conseguir. E, se conseguirmos fazer dela novamente um cartaz, então estamos feitos. Falo de Neely O'Hara.

— Não vale a pena. Além disso, está ainda no sanatório; e cá para nós, George, acho que está acabada.

— Uma artista como Neely nunca está acabada. O público gosta de sofrer a tragédia de seus ídolos, de se identificar com eles. Ela tentou se destruir no auge da carreira. Todos falam a respeito dela como se tivesse morrido, e ninguém acredita que ela consiga se recuperar e voltar ao que era. Tudo isso é bom para nós, porque se nós conseguirmos trazê-la de volta, para o topo, teremos feito o impossível. Então veremos as grandes estrelas passarem todas para nós. Pensarão: "Se eles fizeram isso com Neely O'Hara, o que não farão comigo?" Os atores são muito engraçados: não conhecem o significado da palavra gratidão quando se trata de seus interesses.

— Com Neely não estaremos tratando propriamente com uma fracassada, mas com uma mulher emocionalmente doente, e que poderá se desfazer em pedaços a qualquer momento. Anne diz que está gordíssima, e além disso já não tem dezoito anos.

— Tem trinta e três anos e eu concordo com tudo o que você disse. Só que ela é um dos maiores talentos que temos. Tenho algumas gravações em fita que ela fez na semana passada. Ela é uma paciente não-residente e passou o último fim de semana comigo e com minha mulher. De fato, está gorda como uma leitoa, mas canta como um passarinho.

— Talvez leve um ano para emagrecer e poderá desintegrar-se emocionalmente, como já aconteceu antes.

— Não lhe pediremos para emagrecer. Esse é o seu ponto. Poderá ficar gorda, contanto que cante. E isso é tudo que importa.

— E o que faremos com uma cantora gorda?

— Conseguiremos contratos para concertos. Você sabe quanto poderá ganhar em concertos pelo país inteiro? Lena Horne, Judy Garland, Liberace, todos eles ganharam fortunas. Toda a gente vai querer vê-la, pelo menos, por curiosidade. Em um ano ganharemos tanto com os seus concertos como todos os nossos outros artistas juntos. Se conseguirmos fazer com que Neely funcione durante um ano, todas as estrelas virão para nós.

— Se você quer arriscar, concordo — disse Lyon. — O filho é seu. Tomarei conta do escritório enquanto você toma conta do lançamento da nova Namorada da América.

— Não pense que é fácil assim — disse George lentamente. — Ela não é exatamente louca por mim, e minha mulher é péssima influência para Neely. Minha mulher é alcoólatra, como você deve saber. Neely gosta de você e deve obrigações a Anne.

— Um momento — disse Lyon abruptamente. — Anne trabalha duramente, e a última coisa de que precisamos em nossa vida é Neely O'Hara.

— Tudo o que lhe peço é que a convença a assinar um contrato conosco e eu farei o trabalho sujo. Cuidarei da publicidade e providenciarei os contratos. Viajarei com ela. Tudo o que você tem a fazer é conseguir que ela aceite a nossa oferta. Ela pode deixar o sanatório quando quiser, e nós lhe conseguiremos uma suite de hotel. Pagaremos tudo, incluindo a preparação, os ensaios, tudo. Contrataremos uma pessoa para lhe fazer companhia, noite e dia, para vigiá-la; e eu conheço a pessoa indicada: uma massagista dinamarquesa, forte como um touro. Manteremos uma escrita de tudo o que gastarmos com ela. Quando ela começar a trabalhar, descontaremos o que nos deve de cada recital até que tenhamos de volta todo o dinheiro. Se não der certo, sempre poderemos declarar a despesa no imposto de renda.

— Será uma grande cartada.

— Temos pouco a perder e a publicidade que teremos valerá o investimento de alguns milhares de dólares. Se ela tiver sucesso, poderá pagar a dívida que tem com Anne, que deve passar dos vinte mil dólares.

— Não estou gostando muito da ideia, mas, se você quer tentar, eu concordo. Estamos entendidos: farei apenas a oferta inicial; em seguida, passarei a bola para você.

— Você verá que mandarei o nosso pequeno foguete à Lua, e ele nos levará junto.

Anne entrou no apartamento e ligou imediatamente o condicionador-de-ar. Era o dia de folga da empregada e uma tremenda onda de calor se abatera sobre a cidade. Correu ao banheiro para vomitar, e colocou uma toalha úmida na testa. Em geral, as outras mulheres enjoavam de manhã; com ela era diferente: enjoava à noitinha. Tinha certeza agora de que estava grávida. Dez dias de atraso. Bem, não estava absolutamente certa, porque em fevereiro já lhe acontecera um atraso de duas semanas nas regras e ela e Lyon haviam até comemorado. Depois, o sonho se desvanecera. Desta vez não disse nada a Lyon e, no dia anterior, começara a ficar nauseada. Deus queira que seja verdade. Tudo era tão maravilhoso, e agora teriam um filho. Queria uma menina, e que fosse parecida com Lyon.

Era tão feliz que estava com medo. Ninguém tinha o direito de ser tão feliz assim. A única coisa que manchava a sua felicidade era o pensamento de que se aproximava o tempo de fazer a declaração de renda, quando Lyon saberia da verdade sobre a transação com a firma. Mas os negócios iam bem e, àquela altura, já teria o filho. Henry achava que Lyon a perdoaria; nunca, entretanto, se podia prever, com segurança, as reações dele.

Juntos foram visitar Neely e Lyon mal pôde disfarçar o choque que sentira ao vê-la. Estava deformada pela gordura, os olhos quase invisíveis, enterrados pelas bochechas, e não se via mais sinal do pescoço. Apesar disso, o mesmo entusiasmo da Neely adolescente. Curiosa aquela disposição quase infantil, emergindo daquela montanha de gordura.

Neely concordou imediatamente em assinar o contrato. Franziu o nariz quando Lyon mencionou que o dono da ideia era George. Disse que não gostava de George, mas, uma vez que Lyon era sócio dele e Anne, sua melhor amiga, tinha todo o prazer em assinar. Na mesma semana, já estava hospedada em um pequeno hotel no centro da cidade, com Christine, a massagista e guardiã dinamarquesa. Christine não era gorda, apenas imensa. Parecia capaz de atravessar a nado o Canal da Mancha. E tinha prometido que poria Neely em forma.

— Neely não precisa emagrecer — disse Anne. — Nem deve sofrer qualquer pressão nesse sentido. A aparência dela não é o mais importante. Tudo o que deve fazer é se concentrar no canto.

Christine foi prevenida a respeito de pílulas e bebidas alcoólicas; prometeu ficar vigilante durante as vinte e quatro horas do dia, a duzentos dólares por semana.

Anne saiu do banheiro e acendeu as luzes da sala. Ser-viu-se de uma dose de conhaque, na esperança de que isso melhorasse sua náusea. Neely estava trabalhando duro, ensaiando quatro horas por dia, e George já concluíra todos os planos para a publicidade. O primeiro concerto de Neely seria em Toronto, de modo que as críticas locais não alcançassem Nova York se algo não saísse bem.

Anne olhou à sua volta, pensativa. O apartamento era bonito; agora, porém, que ia ter um bebé, devia se mudar. E seria liberada do contrato com a Gillian. Teria então tempo de procurar e decorar um novo apartamento. Como decoraria o quarto do bebé? A excitação a deixou tonta. Oh, Deus, tomara que seja verdade.

Duas semanas depois, suas esperanças foram confirmadas. A princípio, as emoções de Lyon foram dúbias. Ele estava contente, mas sabia que o fato revolucionaria a vida que levavam. Anne deixaria o trabalho em junho, o bebé era esperado para janeiro. Sua cintura tinha aumentado alguns centímetros. Anne convenceu Lyon de que tudo seria mais fácil do que ele imaginava, e isso fez com que o entusiasmo dele ressurgisse.

Em meados de junho, voaram para Toronto, para assistir ao concerto de Neely. Anne sentou-se na plateia, temendo pela amiga. Tanta coisa dependia do sucesso daquela estreia! George e Lyon pensavam no investimento, Anne no que significava para a vida de Neely. Ela estivera calma nos bastidores. Rira muito dizendo que, afinal, não tinha nada a perder, e sempre poderia voltar para o sanatório, para fazer cinzeiros. George, porém, apertava as mãos nervosamente e Lyon mostrava os olhos cheios de ansiedade.

As luzes se apagaram e a orquestra atacou um tema que Neely fizera famoso em um de seus filmes. A pesada cortina se abriu e Neely apareceu sozinha no palco. Vestia um simples vestido preto, curto. Suas pernas ainda eram bonitas, e o vestido escondia um pouco o ventre volumoso. Houve um murmúrio de admiração na plateia — todos ainda conservavam a imagem de Neely dos filmes. Ela percebeu isso e sorriu.

— Estou gordíssima — disse sorrindo —, mas uma porção de cantoras de ópera também são gordas. Só que eu não vou lhes oferecer ópera. Estou aqui apenas para cantar do fundo do meu coração, e, se o meu coração estiver grande e gordo também, então, vamos ter muita música.

O aplauso foi ensurdecedor. Neely conquistara a plateia antes mesmo de começar. Sua voz estava clara e belíssima. A audiência parecia hipnotizada. Acolheram-na imediatamente em seus corações. Anne nunca ouvira aplausos iguais.

O mesmo aconteceu em Montreal. Quebrou todos os recordes de bilheteria. Em Detroit, as entradas foram todas vendidas muitas semanas antes de sua chegada. A essa altura, os jornais de Nova York estavam cheios de notícias a respeito de sua volta, mas George insistia em mantê-la viajando por mais algum tempo. Viajou com ela até setembro, enquanto Lyon ficara tomando conta do escritório em Nova York. Anne fora liberada do seu contrato e usava todo o tempo de que dispunha para decorar o grande apartamento que encontrara. Sua gravidez era agora evidente e cada movimento do pequeno ser dentro dela aumentava a sua felicidade. A Gillian lhe oferecera uma licença, mas ela insistira em se desligar definitivamente. Anne sentiu uma pequena satisfação ao ver que usavam uma moça diferente todas as semanas, pois não encontraram nenhuma que a substituísse.

Finalmente, George chegou à conclusão de que Neely estava pronta para cantar em Nova York. A estreia foi marcada para novembro, num grande teatro; dois espetáculos por dia, Neely seria a única atração. Uma semana antes da estreia já estavam vendidas as entradas para as,três semanas programadas.

A estreia de Neely em Nova York foi"'um tremendo sucesso artístico e sentimental. .A plateia aplaudia histericamente a volta de sua órfã querida. Anne notou que o corpo de Neely ia, lentamente, tomando forma outra vez. Estava ainda gorda, mas já não era grotesca. Christine conseguira, com sua massagem, reduzir uns quinze quilos do seu peso. O pescoço começava a aparecer, apesar dos dois queixos. Depois da primeira canção, entretanto, a magia de sua voz fez com que toda a gente esquecesse o resto.

As dificuldades começaram durante a segunda semana em Nova York. George e Lyon estudavam as melhores ofertas para novos concertos. Havia propostas para programas de televisão, para várias peças na Broadway, e Lyon insistia para que continuassem com os concertos.

— Pelo menos durante mais um ano — dizia ele. — Talvez a gente consiga fazer com que ela emagreça mais uns dez quilos. Não creio que volte a ter o corpo de uma sílfide novamente, mas a dureza do trabalho e as massagens de Christine podem fazer maravilhas. Aí poderemos pensar em filmes e em televisão.

— Acho que teremos de aceitar uma peça na Broadway, ou, então, um filme, pois ela se recusa terminantemente a continuar viajando — disse George.

— Mas acabamos de assinar contratos para concertos em Los Angeles, São Francisco e o Palladium de Londres — respondeu Lyon.

— Tivemos uma bela discussão ontem à noite, Neely e eu. Ela sabe que está novamente na crista da onda e a velha doença do estrelismo acaba de voltar. Não há mais lugar para a gratidão, apenas para explosões temperamentais. Disse que quer ficar parada num lugar e desconfio que isso quer dizer que a nossa garota quer um homem.

— Meu Deus! Quem é que vai querê-la? — perguntou Lyon.

George sorriu.

— Ouça, isso está me dando dor de cabeça durante todos esses meses. Esquecemos que ela, afinal, é um ser humano. Talvez lhe tivessem dado salitre no sanatório, mas só lhe posso dizer é que ela está louca por um homem. Por algum tempo, andou com um saxofonista que, certamente, sofria da vista. Ele a manteve feliz até deixar a orquestra. Deixar? Acho que fugiu para salvar a pele. Arranjou vários companheiros de uma noite, mas disse que estava farta disto e que queria ter um apartamento e um sujeito firme, que estivesse à mão. Desconfio, também, que a agência Johnson Harris deve estar por trás disso, e devem ter enviado algum sujeito, com tipo de galã, para elogiá-la e beijar sua mão. Estou sentindo que ela quer escapar, também.

— Deixe que ela se vá — respondeu Lyon com um sorriso. — Se a agência Johnson Harris quer comprar o contrato, nós o venderemos... por meio milhão de dólares.

— Eu também pensei nisso — respondeu George. — Só que não devemos jogar fora a isca quando os peixes estão fisgando. Amanhã vou almoçar com Paul Elsom.

Lyon assobiou, admirado.

— Bem, isso com certeza começará a avalancha.

— Seus dois últimos filmes bateram todos os recordes de bilheteria. Se a gente conseguir que assine conosco, então teremos a metade dos astros de Hollywood. Neely é a nossa isca. Vamos fazer tudo para conservá-la.

— Muito bem, então comece a trabalhá-la.

— Já tentei, Lyon, mas vamos encarar a realidade: ela jamais gostou de mim; no começo, não tinha outra escolha. Agora, ela pode se dar ao luxo de não querer trabalhar mais comigo. A noite passada, me chamou de porco. Imagine, aquela vaca me chamando de porco. Não, Lyon, agora é a sua vez.

Lyon estava sentado no camarim de Neely. A vesperal chegava ao fim e ele olhava os telegramas enfiados atrás do espelho. Todos os grandes cartazes tinham enviado congratulações e votos de sucesso. De longe, Lyon podia ouvir a orquestra atacando o tema principal e os aplausos da plateia. Retesou-se à espera da batalha que viria.

Neely ficou agradavelmente surpreendida quando o encontrou à sua espera.

— Graças a Deus, aquele porco do seu sócio ficou longe de mim. Tivemos uma discussão tremenda na noite passada.

Aceitou um copo de cerveja, que Christine lhe ofereceu, e continuou:

— Que beleza! Era disso que eu precisava. Quer um copo, Lyon?

— Não, obrigado. Quer jantar comigo, hoje?,

— Claro. Anne também vai?

— Não, só nós dois.

— Então George resolveu mandar o primeiro time, hem? Não tenha ilusões de que vou continuar viajando, mas aceito o jantar. Sabe onde poderemos comer alguns escargots decentes?

— Vamos ao Louise's. Ela é capaz de fazer qualquer coisa.

— Ótimo, quero comer uma montanha de manteiga temperada com alho, e torradas de pão preto, com cerveja por cima. Esta é a parte agradável de fazer um espetáculo sozinha. Não há um galã para fazer cara feia com o meu hálito. E também não tenho um sujeito com que me preocupar depois do espetáculo — acrescentou, com um tom triste.

— Isso virá mais cedo do que você pensa — respondeu Lyon. — Você tem Nova York a seus pés.

— Sim, mas não tenho ninguém em meus braços. Quero ter alguém, e pretendo escolher agora. Sei que não estou esbelta, mas, também, não sou nenhum monstro. E não quero alguém apenas para dormir comigo. Quero alguém que se incomode comigo, que eu possa respeitar... e amar.

— Vamos falar nisso depois de pedir os escargots — sugeriu Lyon.

Neely pediu duas dúzias. Lyon contentou-se com seis e continuou a ouvir suas reclamações. Teve de admitir que ela tinha razão: sua vida se resumia apenas ao trabalho.

— Neely — disse Lyon, segurando-lhe a mão —, creia que eu posso compreender perfeitamente o seu ponto de vista. Mas concorde em fazer apenas Hollywood, São Francisco e Londres. Depois você ficará em Nova York e talvez façamos um filme, ou uma peça na Broadway. Farei as sondagens necessárias. Se encontrarmos algo conveniente, poderemos marcar a estreia para o outono. Acho que uma peça teatral seria o melhor para você.

— Quem irá comigo à Califórnia e a Londres?

— George, naturalmente.

— Então esqueçamos isso — disse ela com determinação.

— Ora, Neely, você e George podem ter os seus desentendimentos; na verdade, ele não é tão mau assim. Lembre-se de que todo o plano para o seu retorno foi elaborado por ele.

—- E não teria sucesso se não fosse o meu talento — disse ela, mal-humorada.

— Sim, mas George soube prever isso, e soube acreditar em você.

— E você não acreditou?

— Para ser franco, não. Confesso que tinha as minhas dúvidas.

— Pensou, então, que eu estava acabada?

— Nunca duvidei do seu talento. Eu temia o mau resultado sobre os seus nervos, se tivesse de fazer regime para emagrecer. Foi George que insistiu em dizer que o público a aceitaria tal como você estava. E ele tinha razão.

Neely largou o pedaço de pão que estava prestes a mergulhar na manteiga e empurrou 6 prato para longe.

— Você fala de mim como se eu fosse algum monstro.

— Ora, Neely. Você sabe o que eu quero dizer. Acho que você é maravilhosa: um enorme talento e uma grande personalidade.

— E uma gorda desajeitada, não é?

— Isso também não. Na realidade, algo diferente do que você era nos filmes.

— Acredito que nenhum homem se apaixonaria por mim agora. Percebi que até meus filhos ficaram olhando para mim com estranheza, quando me visitaram em Detroit. Por Deus, como são bonitos! Estou contente que estejam com Ted. Quase morri quando Ted obteve a custódia deles, agora parece que foi melhor. Ainda acho que ele é meio tarado, mas os meninos não sabem disso. Nunca esquecerei a cara que fizeram quando me viram. O mais alto, Bud, me disse: "Mamãe, vimos um filme seu na televisão, mas agora a senhora está bem diferente".

— Você não tem necessidade de ser magra — insistiu Lyon.

— Poderia ser, se tivesse um bom motivo para isso — disse Neely. — Sei que não posso emagrecer unicamente porque um estúdio exige isso de mim, mas poderei emagrecer por amor. Quando encontrei Ted, ele me pediu que emagrecesse seis quilos, e foi facílimo. Só porque eu queria fazer, porque queria agradar a Ted. Por isso é que eu quero ficar aqui, Lyon. Quero encontrar um cara, me apaixonar por ele. Odeio me olhar no espelho.

— Neely, é a sua voz e a sua personalidade que fazem de você uma estrela, não a medida da sua cintura — insistiu Lyon.

— Eu adoro vestidos bonitos. Não queto continuar a vestir um simples vestido preto no palco, como agora. Acontece que não tenho incentivo para emagrecer. Se eu me apaixonar, aí, sim, gostarei novamente de mim e poderei emagrecer.

— Faça Hollywood, São Francisco e Londres. O resto virá por si.

Por um momento, Neely ficou pensativa, depois disse:

— Muito bem, aceito; só se você for comigo.

— Neely, como é que eu posso?

— Ouça, Lyon, não suporto George. Se tiver de olhar para aquele cara-de-lua todos os dias, vomito. Ele não é nem capaz de jogar baralho. Você joga baralho?

— Neely, não posso me ausentar agora. Anne está no fim da gravidez. O bebé deverá nascer em seis semanas.

— Ah... eu tinha esquecido. — De repente, seu rosto se iluminou e ela acrescentou: — Por que então não transfere os meus concertos para depois do nascimento do bebé? De qualquer forma, um descanso me faria bem.

— E eu não poderia deixar Anne, então, com um bebé pequeno.

— Anne viria junto. Ouça, Lyon, eu tive gémeos, sei como é isso. Nos primeiros meses, tudo o que eles precisam é de uma boa enfermeira. Até os três meses de idade os bebés nem enxergam.

— Pensarei a respeito — respondeu Lyon.

Não foi difícil adiar o espetáculo do Palladium. Nova data foi marcada para meados de fevereiro. Todavia, foi impossível mudar as datas de Los Angeles e São Francisco. Neely deveria cantar nessas cidades entre o Natal e o Ano-novo. Lyon tentou esconder o problema de Anne; Neely contou. Ela fora ver o novo apartamento deles. Tudo estava finalmente em ordem. Anne, que parecia quase não ter engordado na gravidez, mostrava cada peça com orgulho de dona-de-casa, principalmente o quarto do bebé. Sentaram-se a um canto, Anne tomava um sherry, Neely, cerveja. A neve tinha começado a cair e Anne acendeu a lareira.

— É a primeira vez que acendemos a lareira, Neely. Faça um voto.

— Por quê?

— A gente sempre deve formular um desejo quando faz uma coisa pela primeira vez.

— Então desejo que você tenha o bebé esta noite.

— Por quê? Não deverá nascer antes de um mês.

— Eu sei. Mas não irei a Los Angeles a menos que Lyon vá, e ele não irá antes do bebé nascer e de você poder ir.

Anne sabia dos atritos entre George e Neely; esta, porém, era a primeira vez que ouvia falar em adiamento de concertos.

— Eu não irei a Londres nem mesmo em fevereiro — Anne falou. — Como poderei deixar o bebe sozinho?

— Claro que poderá — respondeu Neely. — Nessa altura, ele não será um ser humano ainda.

— Para mim agora já é um ser humano — disse Anne' com ardor.

— Ora, Anne, ele não tem noção de coisa alguma nos primeiros meses. Toda essa conversa de que sorriem para a gente-é besteira. Meu médico me contou que eles só têm noção de luzes e de manchas. Não conseguem focalizar a imagem da gente até a idade de três meses. Qualquer enfermeira poderá tomar conta do bebe melhor do que você.

— Esperei muito tempo por este bebé, Neely. E valeu a pena, por ser fruto do amor entre mim e Lyon. Jamais abandonarei o nosso bebé.

— Suponha que Lyon tenha que viajar. A-final, você não pode esperar que ele nunca saia de Nova York.

— Então viajaremos juntos, os três.

— Muito bem, mas eu não irei à Califórnia sem ele.

— Neely... por favor. Não posso passar o Natal sem Lyon. E é muito arriscado para mim viajar agora.

— E eu? — perguntou Neely. — Será que tudo tem que ser feito para a sua conveniência? Você tem tudo. Sempre teve. Tem dinheiro, o homem que ama e o bebé que deseja. E eu? Eu não tenho nada. Apenas o meu trabalho. Consegui me reabilitar, isso é tudo. E estou trabalhando para pagar o que lhe devo.

— Neely, eu nunca lhe pedi o dinheiro — protestou Anne.

— Eu sei. Mas já disse a George e Lyon que quero lhe devolver tudo o que devo. Depois do concerto na Califórnia terei pago tudo. Além disso, estou fazendo muito dinheiro para a agência de seu marido, e indiretamente isto vem em seu próprio benefício também. Vivo num hotel, com aquele touro da Christine, que vive me vigiando, e tudo o que peço é que Lyon vá comigo à Califórnia, por dez miseráveis dias, pois não conseguirei suportar Hollywood sozinha. Será a primeira^ vez que voltarei àquela cidade. Acha que será fácil para mim enfrentar aquela gente, que ficara me olhando e sussurrando: "Veja como ela está gorda...” E eu tenho que sorrir e ganhar a sua simpatia? Sei que o meu talento vai conquistá-los, como sempre, mas é esse primeiro minuto que me apavora. Preciso de alguém nos bastidores, que me anime antes de entrar no palco. Preciso, Anne. Se não há uma face amiga para me animar, tenho certeza de que tomarei uma pílula ou uma bebida. E não com cerveja. Seria o meu fim. No sanatório, me disseram que quando eu' tomar uma única pílula, ou um único uísque, será o começo do fim.

— Então se Lyon quiser ir eu concordo — disse Anne.

— Você sabe muito bem que, se você diz a coisa assim, ele não irá.

— Não, Neely, estou sendo sincera. Se ele resolver ir, não o impedirei.

— Tem de ser mais que isso. Você tem que obrigá-lo a ir. De outra forma, juro que não darei o concerto. Sempre posso ter um ataque de laringite ou coisa que o valha.

Lyon se recusou terminantemente a deixar Anne sozinha e ficou ressentidíssimo com a tática de chantagista usada por Neely.

— Essa leitoa gorda não vai ditar a nossa vida — disse Lyon furioso. — Ela pode ser importante para a agência, mas não tanto quanto pensa.

— Lyon, vocês estão a ponto de conseguir as maiores estrelas para a agência. George me contou que as coisas estão fervendo, e que tudo poderá ir por água abaixo se Neely abandonar vocês. E é bem possível que ela o faça, espalhando o boato de que vocês lhe recusaram assistência pessoal no momento em que ela mais precisava.

— Então é melhor que ela nos deixe logo. Se eu e George tivermos que planejar todo o nosso futuro sobre aquele montículo de banha, então é porque temos muito pouca fé em nós mesmos. Não sei como George se sente a respeito, sei que estou cansado de ouvir dizer quão desesperadamente precisamos de Neely para conseguir outros contratos. Talvez ele não ache que tenha muito a oferecer a um cliente; acontece que Henry acreditou em mim a ponto de me oferecer praticamente a agência de mão beijada. Henry Bellamy jamais permitiria a uma Neely O'Hara controlar a sua vida.

— Helen Lawson fez sua parte — lembrou Anne.

— Acontece que ele amava Helen, e aí está toda a diferença. Nós, no entanto, ressuscitamos Neely e isto nos deixa quites com ela. O fato de que Henry confiou cegamente em mim me dá coragem para deixar que Neely se-vá. Não pretendo depender de ninguém.

No dia seguinte, Lyon voltou pata casa mais cedo que de costume, os olhos gelados por uma fúria incontida. Tirou o casaco e ficou olhando de modo estranho para Anne. Ela levantou o seu volumoso corpo da cadeira em que estava e começou a lhe preparar uma bebida. Sentia a crise... Alguma coisa acontecera no escritório. Lyon pegou o copo em silêncio.

— Dificuldades com George? — perguntou Anne.

Lyon sentou-se e tomou um grande gole. Continuou

olhando-a insistentemente.

— Anne, me diga uma coisa. Você acha que devo ir à Califórnia com Neely?

— Eu não espero o bebé antes de meados de janeiro. Claro que não gostaria de passar o Natal sem você, mas estou tentando ser objetiva.

— Então me diga o que devo fazer, Anne — continuou Lyon naquele mesmo tom estranho.

— Você deve decidir — respondeu ela. — Saberei compreender qualquer que seja a sua decisão.

— Não. Você vai decidir. Tal como decidiu tudo o mais. Diga: quanto pesará o nosso bebé? Já sei que vai ser uma menina, você já decidiu isso. Existirá alguma coisa que você não controle?

— Lyon, o que está tentando dizer?

— Você sabe. Por Deus, eu devo ser a piada da cidade. Fui comprado por Anne Welles. Aposto que toda gente sabia, menos eu. Soube por acaso, por Neely.

— Neely? Como podia ela saber? — Anne estava apavorada. Nunca tinha visto aquela expressão nos olhos de Lyon.

— Eu sei, deveria ser um segredo. Foi o que Henry lhe disse. Mas eu não tardaria em saber, de qualquer forma. Todos os cheques que enviei semanalmente a Henry voltavam a você. Tudo isso aparecerá em nossa declaração de renda.

— Como é que Neely soube?

— Henry. Neely foi falar com ele na esperançar de que convencesse você a me deixar viajar. Então Henry lhe contou. Disse-lhe que tinha certeza que você tomaria a atitude que fosse melhor para a agência; afinal, o dinheiro era seu. Neely mal pôde esperar chegar ao escritório para me contar. Claro que George fingiu não saber de nada. Agora, diga: todos já sabiam há muito tempo, não é?

— Lyon, ninguém sabia. Henry não devia ter contado a Neely. Eu mesma queria lhe contar tudo, quando chegasse a hora. Só fiz isso porque o amo e porque não suportaria vê-lo voltar à Inglaterra.

— E conseguiu. Você pode comprar tudo o que quiser. Foi isso o que aprendeu com Kevin Gillmore? Tudo tem o seu preço, é só descobri-lo.

— Mas o meu dinheiro é seu também — disse Anne, lutando contra o pânico que se apoderava dela. — Fiz isso apenas por amor a você. Queria me casar com você e ter um filho seu. Não consegue compreender?

— Não. Tudo o que posso compreender é que George ficou parado, sorrindo, para dizer: "Ânimo, Lyon. Estamos no mesmo barco. As nossas esposas são as donas do negócio". Acontece que eu não sou nenhum George Bellows. E, por Deus, eu juro que, de agora em diante, os negócios virão em primeiro lugar. Trata-se do seu dinheiro, e eu vou devolvê-lo até o último centavo. Há, entretanto, alguma coisa mais importante que o dinheiro: meu orgulho e meu amor-próprio. Só conseguirei tê-los novamente quando conseguir dobrar o seu maldito investimento.

— Lyon! — Anne atirou-se a ele e o abraçou. — Você não entende que fiz tudo por amá-lo?

— Agora só compreendo uma coisa: a agência Bella-my, Bellows & Burke será a maior da cidade. Da cidade, não, do mundo! Você a comprou para mim, minha cara, e vai ter um lucro fantástico com ela. Vou lhe mostrar. E a primeira coisa que vou fazer é reservar as passagens para levar a nossa leitoa a Los Angeles. O Natal que vá para o inferno. Nós vamos para a frente e a toda velocidade.

 

                                       1963

Jennifer Burke nasceu no dia de Ano-novo. Veio ao mundo com duas semanas de antecedência e proporcionou uma passagem de Ano-novo aflitiva para Anne e o médico. O trabalho de parto durou quinze horas. Quando finalmente chegou, vermelha e enrugada, a mãe só conseguiu ver nela a realização de um milagre de beleza.

Anne sentiu-se muito solitária quando Burke partiu. Embora ele telefonasse todos os dias da Califórnia, podia sentir o abismo que havia entre eles agora. Sentia-o até nas eventuais frases de carinho. Quando o bebé chegou, parecia que uma ponte fora lançada. Depois de acordar da anestesia, Lyon telefonou e ela disse, quase em tom de desculpa:

— Bem, é uma menina.

— Estou contente. Sou muito velho para jogar futebol com um garoto, e acho que me divertirei muito mais ensinando uma filha,adolescente a dançar.

Chamava-a de duas a três vezes por dia, enquanto ela estava no hospital. O sucesso de Neely em Los Angeles quebrara recordes. Ela se preparava para ir agora a São Francisco. Anne se importaria? Mais três semanas?

— Claro que não — disse Anne rapidamente, ansiosa por evitar qualquer discussão sobre a firma ou sobre o trabalho de Neely, agora que tudo ia bem novamente. — Jennifer Burke será uma senhora quando você a conhecer, mas tentarei manter viva a sua lembrança até lá.

— George me disse que vai tirar umas fotos dela. Mande-as para mim quando estiverem prontas.

— Já lhe mandei as que ele tirou no hospital. Ela parece um velho gnomo mas sei que vai ser linda. O pouco cabelo que ela tem é bem preto.

Lyon chegou a Nova York no fim do mês. Jennifer pesava quase cinco quilos e tinha perdido as rugas. Era toda cor-de-rosa e branca, e Lyon estava muito feliz. Sorria enquanto estudava a fisionomia da filha.

— Temo muito que vá ficar parecida comigo. — Fez uma careta. — Anne, você devia ter se concentrado melhor; eu queria uma cópia de você.

— Acontece que eu queria que ela se parecesse com você.

Lyon viera correndo do aeroporto para casa e agora iria para o escritório.

— Vamos comemorar o nascimento da herdeira com um jantar hoje à noite — disse, antes de sair.

À noite, a Srta. Cuzins, enfermeira do 'bebé, ajudou Anne a entrar numa cinta; não era muito confortável, mas, após tantos meses, queria que Lyon a achasse elegante outra vez. Não estava de todo mal, pensou, estudando-se diante do espelho. Seu peso voltara ao normal, apenas a cintura... a cinta ajudava. Depois", fazia apenas um mês e poderia dormir com Lyon naquela noite. Fazia tanto tempo já... pobre Lyon. O médico tinha prevenido que poderia ser doloroso no princípio, mas tudo o que lhe importava era ter novamente Lyon em seus braços.

A secretária dele telefonou às seis horas. Lyon estava em conferência e pedia que o encontrasse no Danny, às sete horas. Desligou o telefone, ligeiramente desapontada. Planejara tomarem o aperitivo em casa, e depois um jantar em algum lugar sossegado, onde não houvesse perigo de encontrar gente conhecida. Gostava do Danny, mas um jantar lá significava dezenas de pessoas parando à mesa deles para discutir negócios. Normalmente, Anne não se importava com isso; aquela noite, porém, devia ser muito especial.

Sentou-se a uma mesa perto do bar e esperou. Eram quinze para as oito, estava no segundo uísque quando, finalmente, Lyon apareceu. Ele correu para ela e a beijou na face.

— Perdoe-me, estávamos assistindo a um vídeo-teipe na NBC. A máquina enguiçou e tudo teve de ser feito novamente. Querida, você lembra de Jim Handly e de Buddy Hoff? E, é claro, conhece o Bill.

Sentaram-se todos a uma grande mesa e continuaram a discutir, o vídeo-teipe a que tinham assistido. Pela conversa, Anne deduziu que o tape pertencia a Bill Mack, que procurava negociá-lo com os Três B, como eram agora conhecidos Bellamy, Bellows & Burke. Lyon estava entusiasmado. Tinha certeza de que poderia oferecê-lo à CBS ou à ABC, e talvez pudessem refazer tudo com Joey Kling, o comediante que acabara de assinar contrato com a agência. Ele era o comediante do ano.

— Vai se apresentar no Palladium, com Neely — explicou Lyon. — Deverá aparecer a qualquer momento, ficou de vir me buscar aqui.

— Buscá-lo? — Anne perguntou, surpresa.

— Meu anjo, tudo isso foi resolvido há apenas três horas. Joey vai a Washington tratar de sua estreia.

— Você não vai com ele, vai?

— Sou absolutamente obrigado a ir. Neely pensa que fará um concerto individual lá amanhã, e eu tenho de lhe explicar como será importante para Joey deixá-lo trabalhar com ela amanhã.

— Não o invejo — disse Bud Hoff.

Lyon sorriu.

— Neely já sabe que haverá outros artistas nos espetáculos que fizer em Londres; mas, aqui nos Estados Unidos, isso é novo para ela. Até agora, sempre trabalhou sozinha. Tenho certeza de que, quando eu lhe explicar que acabamos de contratar Joey... ela compreenderá. Neely compreende as coisas quando a gente se dá ao trabalho de lhe explicar tudo direitinho.

Lyon viajaria naquela mesma noite! Anne não conseguia mais pensar em qualquer outra coisa. Naquela mesma noite!

— Quando estará de volta? — perguntou.

— Dentro de duas semanas. Amanhã cedo telefonarei. Talvez você possa voar para lá no fim de semana. Acha que Jennifer pode ficar dois dias sem você?

— Você tem de ir mesmo esta noite, Lyon?

— Sim. Pretendia ir amanhã, mas preciso tratar da publicidade de Joey e é melhor estar lá bem cedo.

Então havia planejado ficar com ela apenas uma noite!

De repente, ouviu a voz de Joey Kling:

— Vamos, Lyon, o carro está esperando, estacionado em lugar proibido.

Lyon pulou da cadeira e ainda pôde dizer:

— Ponha a despesa na conta da agência, Bud. Boa noite, meu anjo, telefono amanhã. Bud, por favor, leve Anne para casa, sim?

Anne não foi passar o fim de semana em Washington. A Srta. Cuzins não fizera nenhuma objeção; Lyon, entretanto, nunca mais tocou no assunto. Na sexta-feira, disse apenas:

— Amanhã telefono à mesma hora.

— Por que não vai até ele e pergunta o que é que há de errado? — perguntou Henry.

Anne continuou olhando para a xícara de café, como . se ela pudesse dar uma resposta miraculosa.

— Porque, basicamente, nada está errado. É q»e existe apenas essa intangível indiferença.

Henry Bellamy suspirou. Anne estava pálida e muito magra. Tinha parecido desesperada quando lhe telefonou e pediu que jantasse com ela. Temera pelas perguntas que ela, fatalmente, faria.

— Henry, o bebé .já tem três meses e Lyon passou, exatamente quatro dias com ele. Um dia entre Califórnia e Washington, e três dias entre Washington e Londres. Faz agora um mês que está em Londres. Neely está sendo um sucesso. Sei que insistem para que ela fique mais tempo por lá; não vejo, porém, motivo para que Lyon fique também.

— Que diz George?

— Sempre a mesma coisa. Neely não ficaria em Londres sozinha. Que Lyon é um verdadeiro deus para ela; e a única pessoa a quem ela obedece. E que ela está trazendo muito dinheiro para a agência.

O sorriso de Henry era triste.

— Isso é o que recebe um agente de sucesso. A esposa sempre sofre.

— Agora eles têm uma porção de grandes astros. Tudo vai indo maravilhosamente bem. Por quanto tempo ainda pretende bancar a ama-seca de Neely? Ela me parece estar muito bem agora. Acho que já possa se sustentar sobre os seus próprios pés.

— Eles estão no negócio há pouco tempo, Anne. Todos estão de olhos neles. George é um grande administrador, mas é a personalidade de Lyon que conta. E sempre haverá uma estrela precisando de uma ama-seca. É melhor que aceite essa verdade.

— Você quer dizer que passarei a vida assim?

— Com o tempo você se acostumará — respondeu Henry.

— Não, eu não.

Henry ficou silencioso algum tempo, depois disse:

— Anne, a gente não pode ter tudo o que quer. Estive no seu apartamento e devo convir que um lugar daqueles custa algum dinheiro. E Lyon será sempre o tipo que paga suas próprias despesas.

— Henry, por que acha que ele não me pede para que eu vá a Londres?

— Você nunca esteve lá, Anne. Talvez ele ache que devia mostrar-lhe a cidade, e acontece que está preso o dia inteiro naquele teatro. Não creio que você gostaria de ficar lá nessas condições.

— Se ele me explicasse as coisas assim eu compreenderia. Poderia sair sozinha... assistir a algumas peças... contanto que eu o visse de vez em quando.

— Não se preocupe. Ele deve voltar logo.

— Deverá estar aqui dentro de uma semana... e daí? Quem sabe onde Neely dará o próximo espetáculo? E lá irá ele novamente!

— Cuide dos problemas à medida que surgirem — aconselhou-a Henry.

Lyon voltou dez dias depois. Só poderia ficar uma semana. Neely faria um filme na Europa, com um elenco de primeira. As filmagens seriam feitas na França e na Itália.

— Não vai ganhar uma fortuna com esse filme — explicou Lyon. — Mas, pelo menos, provará a Hollywood que agora tem senso de responsabilidade, e eu pretendo fazer o impossível para terminar o filme bem antes da data prevista.

— Lyon, deixe-me ir com você — disse Anne de repente.

— Não daria certo.

— Por que não?

— Neely pode ser um monstro, às vezes, você sabe. O sucesso dela em Londres foi arrasador. Você não pode imaginar o que é cair no gosto daquela gente. A lealdade deles para com seus ídolos é inacreditável. Gritam o seu nome quando ela passa pela rua e formam filas durante horas só para vê-la. Dois caras da Johnson Harris foram até lá, com uma tremenda oferta da televisão; todas as agências estão tentando arrebatá-la de nós. E tudo isso está lhe subindo à cabeça.

— Ela deve ser grata a você e a George. Foram vocês que a colocaram onde está.

— Neely já pagou toda a dívida que tinha com você e com a agência. Agora, está fazendo muito dinheiro para nós. Ela acha que os papéis se inverteram e que nós é que lhe devemos lealdade e gratidão.

— Mas o que é que tudo isso tem a ver com a minha viagem à Europa?

— Será uma distração do trabalho. E Neely sentiria isso.

— Como poderia? Afinal, sou uma mulher. E sou a melhor amiga dela. Como poderia ela se prejudicar?

— Ela é uma grande força agora. E tem plena consciência disso. Não se esqueça de que quando ela concordou em fazer um espetáculo em conjunto, com Joey Kling, nós conseguimos um grande contrato para ele na televisão. Esse contrato prevê cento e cinquenta mil dólares por semana, e nós ganharemos grande parte disso, ou seja, quinze mil dólares por semana durante trinta e nove semanas. E Neely foi diretamente responsável por tudo isso. No próximo ano, conseguiremos para Neely um programa mensal de televisão, a duzentos mil dólares cada um. Portanto, você vê, pelo menos agora, tudo gira em torno de Neely. Se você estiver lá, eu, naturalmente, terei de dividir o meu tempo. "Vou querer lhe mostrar Paris, Roma e, naturalmente, estarei muito tempo a seu lado. Não há dúvida, então, de que negligenciarei Neely. Por favor, minha querida, compreenda. Dentro de mais um ano estarei apto a pagar o empréstimo que me fez. No momento, Neely é ainda a espinha dorsal dos Três B e deve ser tratada com o máximo cuidado.

— Tenho certeza de que Neely não se importaria. Foi ela quem primeiro sugeriu que eu viajasse e deixasse o bebé aqui.

— Mas, Neely... bem, ela está bem diferente agora. Tudo o que ela consegue pensar é Neely. Você tem de compreender isso, Anne. Você não a viu nunca nos tempos de sucesso. Ela só corria para você quando as coisas iam mal. Então, era humana. Agora é insuportável. Tenho de vigiá-la durante todo o tempo, para evitar que ela deixe as outras pessoas doidas, e para que chegue a tempo ao teatro. Ela recuperou a velha força, e começou a ter explosões temperamentais. Por sorte, posso sempre controlar essas explosões, só espero que continue assim. Tenho, porém, de devotar a ela todo o meu tempo.

Os três meses seguintes foram verdadeiramente insuportáveis para Anne. Ficava tanto tempo com Jennifer, que a enfermeira reclamou de não ter o que fazer. Continuavam a chegar notícias do fantástico sucesso de Neely na Europa. Lyon escrevia esporadicamente e telefonava uma vez por semana. O filme ia muito bem, embora tivessem sido obrigados a refilmar o começo porque Neely emagrecera muito. Dizia que estaria de volta no fim de junho. Depois, passou-se uma semana sem que Anne recebesse qualquer notícia dele.

Por isso, resolveu telefonar-lhe no dia 4 de julho, imas a telefonista do hotel em Paris disse que Lyon deixara o hotel há uma semana, sem comunicar novo endereço. A telefonista pensava que ele voltara para os Estados Unidos. Sim, a Srta. O'Hara também tinha deixado o hotel no mesmo dia.

Anne estava espantada. Será que Lyon viajara de navio? Por quê, se dizia estar louco para vê-la e à filha? Telefonou a George Bellows e ele lhe pareceu muito evasivo. Sim, Lyon e Neely deviam voltar a qualquer momento. Não, não tinha se comunicado com eles nos últimos cinco dias.

Nessa noite, Anne foi para a cama e tentou assistir à televisão. Não conseguia prestar atenção a nenhum programa. Começou a ler os jornais da manhã. De repente, uma notícia na coluna teatral parecia escrita em néon:

Quem sabe quem é a estrela cantora, que fez um retorno espetacular e que atribui o seu sucesso e a sua recuperada elegância a seu novo amor? Acontece que essa história de amor talvez não tenha um final feliz. O seu amor é o próprio agente, que está muitíssimo bem casado com uma conhecida beleza da televisão.

O estômago de Anne se revoltou. Não podia ser verdade! Sim, Lyon tinha contado que Neely emagrecera muito. Sentiu que ia desmaiar. Não, disse a si mesma. Muito bem, podia ser verdade que Neely tivesse se apaixonado por Lyon. Não era muito difícil. Isso, entretanto, não queria dizer que Lyon estivesse também apaixonado por ela. Lyon podia, muito bem, estar mantendo Neely a distância. Talvez até, tivesse previsto tudo. Por isso, não concordou que ela fosse à Europa. Estava tentando protegê-la. Talvez estivesse passando por momentos realmente difíceis... Mas, onde estaria agora?

Num súbito impulso, levantou o fone do gancho e pediu uma ligação para a Califórnia, para o Beverly Hills Hotel. Rezou para que suas suspeitas não se confirmassem. Ouviu a voz da telefonista do outro lado do fio. Sim, o Sr. Burke estava no hotel há três dias. Sim, a Srta. O'Hara também. Não, não estavam no momento. Eram apenas nove horas na Califórnia. Gostaria de tentar mais tarde? Anne cancelou o telefonema e caiu sobre o travesseiro. Lyon já estava na Califórnia há três dias e não lhe telefonara. Vestiu apressadamente uma calça comprida e saiu para a rua.

Parecia que Henry tinha demorado séculos para abrir a porta.

— Meu Deus, que foi que houve? — disse ele, sonolentamente.

Amarrou o robe na cintura e fez com que ela entrasse no apartamento. Acendendo as luzes, fez um sinal para que sentasse.

— Sente-se, Anne. Que foi que aconteceu?

Anne estava histérica.

— Você também leu — disse, apontando para os jornais que estavam espalhados pelo chão. — Henry, não banque o desentendido comigo. Acabo de descobrir que Lyon está nos Estados Unidos há vários dias e que está na Califórnia com Neely, agora. E nem se deu ao trabalho de me telefonar.

— Vamos tomar alguma coisa — sugeriu Henry.

— Henry... ajude-me. — Soluçou Anne, afundando numa poltrona.

Henry preparou calmamente um uísque e o colocou na mão dela.

— Agora vamos deixar a histeria e encarar os fatos como eles são. Você quer salvar o seu casamento, não quer?

— Então, você acredita nisso?

— Sei disso há algum tempo.

Anne não conseguia falar. Olhava para Henry, com o ar de quem perdeu o último amigo que tinha sobre a Terra.

— Você não é a primeira mulher cujo marido dá uma escapadela, e não será a última. Deve apenas escolher entre Lyon e o seu orgulho.

— Mas nunca mais será a mesma coisa.

— Não, não será. A poeira das estrelas terá ido embora e você o terá. E, se eu a conheço bem, vai concordar que ter um pouco de Lyon será melhor do que não ter Lyon nenhum.

— Henry, como poderá ele me respeitar se souber que aceitei isso?

— Aí é que está. Ele jamais deverá saber que você sabe. Do contrário, você terá que pedir a sua liberdade. E é isso que Neely está esperando. Ouça, acredito que Lyon entrou nisso inocentemente. Mas bancar o Svengali não é tão fácil, e tudo contribuiu para que acontecesse o que aconteceu. Lyon precisava de algo assim, para o seu ego. Ele tem espírito criativo, Anne, e sentiu que você o comprou e o impediu de continuar a carreira que escolhera. Tudo isso é besteira, pois, se ele tivesse um enorme talento mesmo, nada o impediria de escrever. Agora ele está novamente criando alguma coisa. De uma massa informe de gordura, ele acabou criando uma estrela elegante e atraente, que depende dele até para respirar. Agora, ele já não é apenas um agente, é, também, um criador. Sente-se um semideus e nenhum homem consegue resistir a isso. Neely representa a sua parte, bancando a pobre desamparada. Naturalmente, é tão desamparada quanto uma serpente, embora não pareça assim aos olhos dele. Para Lyon, você é que é a forte, o seu Svengali. Na realidade, você não tem nem a metade da força de Neely, pois as Neelys deste mundo são indestrutíveis. E você, com o seu ar de auto-suficiência, você faz com que Lyon se sinta menos homem, ao contrário do que acontece quando ele está com Neely. Provavelmente, ele sente que foi castrado por você, e duas vezes: uma, quando você preferiu a cidade a ele; agora, porque lhe comprou a agência.

— Se ao menos você não tivesse contado isso a Neely.

— Foi no fim de dezembro. Você e Lyon estavam felizes, e Neely era sua melhor amiga, pelo menos foi o que pensei. Ela veio falar comigo, porque sabia que você me daria ouvidos. Queria que eu a convencesse a viajar depois que o bebé nascesse. Soluçou, jurou que nunca iria sem Lyon, ameaçou... Disse que você não se importava com a agência por ser milionária, e que, provavelmente, gostaria que Lyon se aposentasse. Por isso, contei a ela que não era verdade, que, na realidade, se tratava do seu dinheiro. Como é que poderia imaginar que justamente Neely iria usar isso contra você? Sabe quantas vezes ela me disse que devia a própria vida a você? Foi você quem a colocou em Tocando as Nuvens, com a ajuda de Lyon. Foi você quem falou com Gill Case, para que ela substituísse Terry King. Você foi quem pagou o seu tratamento no sanatório. Jamais poderia imaginar que justamente Neely iria se voltar contra você, como rival em seu amor por Lyon. Foi um grande erro da minha parte, que eu cometi com a melhor das intenções. Agora, a única coisa que você tem a fazer é encarar os fatos. Com você, Lyon deixou de se sentir um grande homem. Surgiu então Neely, e o elevou às alturas. Tudo o que você tem a fazer é esperar que ele caia. em si.

— Como? — A voz de Anne quase implorava.

— Deixando de querer bancar Deus, sendo mulher por algum tempo. Espere até que a serpente que existe em Neely se revele. Lyon não é nenhum idiota. Sempre achei que o seu caso com Lyon estava errado desde o começo. Você o queria e o conseguiu. E já sofreu demais para simplesmente passar uma esponja no passado. Seu único recurso, agora, é agir como se não soubesse de nada. Sei que vai ser muito difícil, quase impossível. Tudo indica que as coisas vão ficar bem mais quentes com Neely antes de esfriar. Se você, porém, conseguir suportar isso, então o ciclo passará por uma reversão, ele acabará por odiar Neely. Ela vai tentar castrá-lo, como fez com outros homens. Você devia ouvir Ted Casablanca falar dela. Ela é toda mel e açúcar no coração; mas, como todas as estrelas, é aço puro por baixo. Com o tempo, e se você fizer bem o seu papel, você será a pobre mulher que ele enganou e ele se sentirá culpado e desejoso de protegê-la. O casamento estará um pouco trincado e, talvez, você nem queira mais Lyon; se quiser, você o terá. Será uma grande batalha de nervos, mas acredito que você conseguirá ganhá-la.

— Tentarei... Henry. O meu mundo sofreu um colapso. Acho que esta noite tomarei uma pílula pela primeira vez.

— Vamos, Anne, aja como adulta. Isso tinha de acontecer. Você tem várias alternativas. Uma delas é abandonar tudo e salvar o seu orgulho. A outra é esta: se você o ama realmente, e tem estômago para isso, atravesse a crise até que ele volte para você.

— Não posso viver sem Lyon — soluçava.

— Então comece a se controlar. Faça uma cena com ele e o estará atirando diretamente nos braços de Neely.

— Ela está gorda e horrorosa. Não é possível que ele a queira.

— Já não está. Acabo de voltar da Califórnia e os vi juntos no Chasens. Está maravilhosa e não deve pesar nem cinquenta quilos.

— Neely?

— O amor é capaz disso, imagino. Ela perdeu uns cinco quilos na primeira viagem a Los Angeles, talvez outro tanto em São Francisco e em Washington, e os três meses na Europa fizeram o resto. Não come coisa alguma, e a gente tem a impressão de que, a qualquer momento, vai começar a flutuar. Está absolutamente desvairada por Lyon. Não tira os olhos dele nem por um momento.

Anne enterrou o rosto nas mãos.

— Henry, por favor, pare com isso. Que é que está tentando fazer? Quer me matar?

— Não, estou tentando apresentar-lhe a verdade. Uma vez que você a conheça, poderá lutar contra ela. A surpresa poderia derrotá-la, Anne. Por isso, é melhor que saiba de tudo. E agora,-o pior de tudo: Lyon não está propriamente se esquivando dela.

— Não, não... — gemeu Anne.

— Agora, pare de gemer e vamos esboçar um plano. Anne olhou para Henry não acreditando no que ouvia.

— Henry, você deve estar louco. Está tudo acabado... tudo!

— Muito bem, então cuidarei do divórcio. Lyon lhe pagará uma pensão e o sustento da criança. Tenho certeza de que concordará com tudo.

Ela começou a soluçar.

— Não, não desistirei dele assim...

— Então trate de se compor, tome o seu uísque, e comecemos a planejar.

— Prefiro um Seconal — sorriu Anne, fracamente. — Jennifer e Neely costumavam chamá-lo de bolinha. Nunca tomei uma pílula em minha vida. Acho que nesta noite mereço uma. Onde poderei consegui-la?

Henry foi até o armário de remédios e voltou com um frasco.

— Tome, aqui há um suprimento para dois meses. Tirei algumas para mim.

— Você também?

— Faz vinte anos. É o equipamento-padrão para a nossa espécie de trabalho. Tome uma e vá para a cama. E não fume. Se você nunca tomou uma, vai agir bem depressa.

Anne pegou o vidrinho e foi embora. Durante a corrida de táxi, dezenas de visões de Neely e Lyon passaram por sua mente. Em casa, ficou por alguns momentos olhando para o vidrinho de pílulas que tinha na mão. Eram vermelhas e brilhantes. Tirou todas do vidro e as contou. Sessenta e cinco. Sem dúvida, Henry confiava nela. E por que não? Ela não iria entregar os pontos assim. Tinha uma filha, que precisava dela, e um marido que ela devia reconquistar. Tudo o que precisava era de algumas horas de evasão, pata esquecer, por uma noite, o pesadelo em que subitamente se transformara a sua vida. Engoliu uma pílula.

— Muito bem, bolinha, vamos ver se merece a fama que tem.

Foi para a cama e recolheu do chão os jornais da manhã. Começou a ler. Em dez minutos, as letras começaram a se misturar. Fantástico... a cabeça estava leve... os olhos queriam se fechar... ia dormir. Amanhã pensaria em tudo novamente.

Lyon chegou uma semana depois. Disse que tinham feito a rota polar e passado uma semana na Califórnia. Anne fingiu surpresa e ele a olhou de um modo estranho.

— Quer dizer que você não sabia que eu estava na Califórnia?

— Como poderia saber? Pensei que você estivesse retido na Europa.

Lyon virou as costas, não tão depressa que ela não pudesse ver a surpresa em seus olhos. Ele estava preparado para lhe dar uma porção de explicações e elas não lhe foram exigidas. Jantaram no Colony e, depois, passaram sua primeira noite juntos depois de muito tempo. Anne se mostrou terna e amorosa com ele. Foi difícil, tinha vontade de arranhá-lo, para deixar evidência de que ele lhe pertencia. Sentiu-se torturada ao imaginar Neely e Lyon na cama; conseguiu, porém, afastar esses pensamentos e correspondeu aos abraços dele com verdadeira paixão.

Passaram cinco maravilhosos dias juntos. Anne quase começava a acreditar que tudo estava bem, que qualquer desentendimento entre eles pertencia agora ao passado. Então, Neely chegou. Tinha sido contratada para fazer dez espetáculos para a televisão, que iriam ao ar uma vez por mês. A gravação dos programas começaria em agosto, o primeiro seria apresentado em setembro e ela estaria livre durante a segunda metade de julho. Por isso, viera a Nova York, em busca de divertimentos.

Era uma terça-feira. Anne não sabia que Neely ia chegar. Tinha combinado ir ao teatro com Lyon; depois, iriam ao Copa encontrar-se com o agente de um cantor. Parecia que todos os agentes estavam tentando obter uma ponta no espetáculo de televisão de Neely para seus clientes.

A secretária de Lyon chamou-a às cinco horas. O Sr. Burke fora convidado para uma reunião com os patrocinadores e não lhe seria possível ir ao teatro com ela. Pedira a Bud Hoff que a acompanhasse ao teatro e os encontraria mais tarde no Copa.

Anne não pensou em nada errado. Brincou com a filhinha, tomou um banho demorado e se vestiu. Bud foi buscá-la na hora certa e a levou ao teatro. Foram depois ao Copa, onde já os esperava o agente. Anne explicou que Lyon fora retido pela reunião, que não deveria tardar. O agente concordou e disse:

— Eu já previa que ele talvez se atrasasse: Neely acaba de chegar a Nova York.

Anne sentia que corava; conseguiu, entretanto, exibir um sorriso impassível.

— Ah, sim... e, por falar nisso, a que horas Neely chegou, Bud?

Bud pareceu não se sentir à vontade quando respondeu:

— Ao meio-dia, acho. Pelo menos foi a essa hora que recebemos o seu primeiro telefonema.

Anne pediu um aperitivo.

— Pobre Lyon, pensou que ela ficaria algum tempo no Arizona com os filhos.

Houve uma ligeira troca de olhares aflitos entre o agente e Bud, ou era imaginação dela? Quantas pessoas saberiam de toda a verdade?

Anne continuou a fazer comentários favoráveis ao espetáculo e ao cantor. A cadeira vazia de Lyon parecia zombar dela. Esforçava-se por conservar um sorriso nos lábios enquanto procurava desculpas para a ausência de Lyon. Percebeu que o agente estava desapontado, não tanto quanto ela.

— Provavelmente, houve alguma dificuldade com o espetáculo de Neely na televisão. Vocês sabem... ela depende muito de Lyon. Tenho certeza de que ele vai ficar sentido de perder este espetáculo; Bud se encarregará de lhe contar tudo, não é?

Claro que Bud contaria. Mais uma vez, juraria que viu uma significativa troca de olhares entre os dois.

Eram três horas da manhã quando Bud a deixou à porta do apartamento. Sabia que Lyon não estaria em casa. Entrou na ponta dos pés, foi até o berço da filha, beijou-a e a cobriu. Queridinha, querida Jennifer, com o mesmo cabelo do pai e os olhos azuis. Era tão linda! Anne sentiu que as lágrimas queriam brotar de seus olhos, à medida que a garganta se apertava. Não, devia permanecer calma até a chegada de Lyon. Nada de lágrimas. Precisava engolir a história que ele contasse.

Às cinco horas, foi novamente à sala, na ponta dos pés. Talvez ele tivesse chegado e resolvido dormir na saleta, para não perturbá-la. Mas a sala e a saleta estavam vazias. Oh, Lyon, por quê? E Neely, como podia fazer uma coisa daquelas? Foi até o banheiro e engoliu uma pílula vermelha. Tomava uma todas as noites, até o dia em que Lyon chegou. Tinha a impressão de que foram as pílulas que salvaram sua sanidade mental. Não tomara nenhuma depois que ele voltara, mas lá vamos nós, novamente, bolinhas. Pelo menos, faziam as noites mais suportáveis; os dias eram mais fáceis, havia Jennifer e, muitas vezes, almoçava com Henry ou outras pessoas conhecidas.

Conhecia muitas mulheres que almoçavam no 21 e no Little Club, que estavam sempre lutando para encher seus dias; eram casadas com assistentes de Lyon, com diretores e clientes. Nunca mais conseguira ter amizade íntima com mulher alguma depois de Neely e de Jennifer. As amizades devem começar cedo na vida, depois dos trinta é mais difícil fazer novas amigas. Nessa idade, há menos esperanças, menos aspirações e menos sonhos para serem divididos. Ainda assim, sempre conseguia companhia para um almoço ou uma tarde de compras. E a noite? Muito depois de Jen e a Srta. Cuzins estarem dormindo, ainda estava bem desperta, pensando em Lyon, vendo seu rosto, seu sorriso, imaginando-o com Neely. Quando não conseguia suportar mais, procurava alívio nas pequenas pílulas vermelhas. Em poucos minutos, a imagem de Neely e Lyon era substituída por um sono sem sonhos. E assim foi durante toda aquela semana.

E agora tudo começava outra vez. Na cama, imaginava quanto tempo Neely pretendia ficar. Talvez fossem apenas alguns dias. O quarto parecia estar sumindo... graças a Deus, a pílula funcionou.

Não soube quanto tempo estivera dormindo, estava vagamente consciente da presença de Lyon, e de seus movimentos silenciosos no quarto. Esforçou-se por abrir, os olhos... já era dia. Viu Lyon no banheiro.

— Lyon? — Sentou-se na cama. Olhou para o relógio e viu que eram oito horas. Teria voltado agora? Viu sua roupa na cadeira.

Ele saiu do banheiro em cuecas, sorrindo.

— Desculpe tê-la acordado.

— Que horas são?

— Oito. Estou me vestindo.

Sentou-se rapidamente na cama, para esconder o frescor dos lençóis. Então resolveu fingir que dormira em casa.

— A que horas você foi dormir? — perguntou ele, casualmente, enquanto amarrava os sapatos.

— Às três — mentiu Anne. (Malditas pílulas, que a deixavam tão tonta).

— Eu cheguei às quatro e você estava dormindo profundamente — disse Lyon, com despreocupação.

Anne deixou a cabeça cair sobre o travesseiro.

— Neely chegou à cidade — disse ele, enquanto vestia uma camisa limpa.

— Sim, Bud me contou.

Anne sabia que ele estava prestando atenção em suas reações. Fechou os olhos.

— Ela foi à reunião com os patrocinadores. Há alguns detalhes que deseja modificar no programa, e alguns pequenos problemas que têm de ser resolvidos. Exige mais instrumentos na orquestra e quer que eles paguem por isso, e insiste para que a estação pague pelas despesas menores. Levamos horas para decidir.

Até às oito da manhã? Anne continuava com os olhos fechados.

— Depois fomos cear com os patrocinadores... e você sabe como Ted Kelly gosta de beber. Não, você não o conhece ainda; ele acaba de entrar para a agência. Estive com ele no PJ, tentando acalmá-lo. Quase lhe telefonei para o Copa, mas ele, com certeza, insistiria em ir também, por isso, achei que o melhor era bancar a ama-seca até o fim. Ainda bem que o PJ fecha às quatro. Vim direto para casa.

Meu Deus! Não posso suportar isso! Tenho de gritar! Apenas mordeu os lábios e permaneceu em silêncio.

— Você está acordada, querida?

Quando Anne concordou fracamente, Lyon continuou:

— Você também deve ter bebido um pouco demais, para estar assim tão quebrada. Por falar nisso, faça um programa com uma de suas amigas esta noite, terei de ir com Neely e uns sujeitos da agência até o Village, para preparar alguns atos.

Agora estava completamente acordada.

— Posso ir com vocês?

— Você odiaria — disse rapidamente. — E é puro trabalho. Nenhum deles vai levar a esposa. Se você for, dará um ar diferente ao encontro. Da próxima vez, todos vão levar as esposas e a gente faz um acontecimento social. E depois não se pode visitar uma porção de lugares com um enorme entourage.

— Neely estará lá. — disse Anne.

— Mas é claro. O espetáculo é dela. E ela deve aprovar qualquer ato que a gente queira introduzir. — Fez uma pausa, sorriu e continuou: — Estou ouvindo a voz de Jenni-fer. Juraria que ela está dizendo: papá. Tomarei o meu café em companhia da nossa beldade. E você volte a dormir, sim?

Anne não o viu nas cinco noites seguintes; ouvia-o, entretanto, todas as manhãs, quando trocava de roupa. Algumas vezes acordava, e fingia acreditar que ele acabava de acordar. Tinha o cuidado de desarrumar a cama, e sempre uma desculpa apropriada: "Mais espetáculos, que fora obrigado a ver, reunião na agência, gravação de uma cena com Neely, a escolha de novas canções para um novo álbum de músicas". E todas as noites a generosa pílula vermelha, para mergulhá-la no abismo do nada.

No sexto dia, uma nova crise. Lyon acabara de sair, depois de lhe dizer que tinha passado a noite com Ted Kelly outra vez. Só os dois. Anne havia fingido que acreditava e agora estava recostada no travesseiro. Mas não conseguiu dormir novamente. Foi ao banheiro e tomou mais uma pílula.

Era uma hora da tarde quando acordou. Chamou a criada e lhe disse que não estava se sentindo bem, que tomaria café com torradas na cama. A criada trouxe a bandeja e os jornais da tarde. Abriu, despreocupadamente, um deles e ficou chocada com a fotografia que viu. Era de Neely e Lyon. A legenda dizia: "A Srta. O'Hara, dançando no El Morocco, com seu agente pessoal, Lyon Burke".

Neely parecia ótima. De repente, Anne se deu conta de que não via Neely há muito tempo... talvez há oito ou nove meses. Agora, Neely nem se dava ao trabalho de esconder sua aventura com Lyon. Não, quando tinha o cinismo de olhá-lo assim nos olhos, radiante, sorrindo... E Lyon também parecia muito feliz. Meu Deus, continuavam! Agora Lyon fora apanhado em uma mentira. Se ao menos não tivesse contado aquela de Ted Kelly. Discou para Henry.

— Jogue fora o jornal — disse ele. — Não ouse confrontá-lo com a fotografia. Deixe que acredite que você não a viu.

— Henry, não posso mais continuar... — soluçou Anne. — Não posso...

— Venha para cá, Anne — pediu Henry. — Vamos discutir o caso.

Henry ficou andando de um lado para o outro enquanto falava.

— Admito que é duro — disse ele. — Não pensei que ele se tornasse tão imprudente. Imaginei que se contentasse com as viagens. Imaginei que você jamais tivesse de suportar que eles, praticamente, fossem para a cama sob o seu nariz.

— Que é que eu posso fazer? Sou motivo de riso para muita gente. Nem posso almoçar fora. Ontem mesmo, eu disse a três amigas, durante o almoço, que Lyon estava ansioso para que Neely voltasse à Califórnia, porque estava cansado de bancar a sua ama-seca; notei que as três ficaram sem saber o que dizer. Agora não poderia mais encará-las.

— Acha que seria bom eu falar com Lyon? Falar como amigo, sem que ele soubesse que você esteve aqui.

Anne sacudiu a cabeça.

— Não, Lyon saberia. Ele sabe que você é a única pessoa em quem confio.

De repente, Henry levantou o telefone.

— Que é que você vai fazer?

— Vou chamar Neely, então. Direi que estou lhe oferecendo meu conselho de amigo, coisa de que ela precisa muito. Vá ao quarto e ouça a conversa na extensão.

Anne ficou ainda na sala, e ouviu Henry cumprimentar Neely por sua elegância e seus muitos êxitos. Depois, disse:

— Neely, acabo de ler os jornais da tarde. Que diabo é isso entre Lyon e você?

Anne não gostou da expressão de Henry quando ouviu a resposta. Foi então para o quarto e levou, vagarosamente, o telefone ao ouvido.

Neely estava falando:

— Ouça, Henry, adoro você, mas desapareça.

— Neely — disse Henry, calmamente —, não me interessa saber como você se sente. Mesmo que você não sinta gratidão para com Anne, ainda assim precisa pensar em sua imagem perante o público. Toda gente sabe que Lyon é casado com Anne. Até agora, houve apenas algumas insinuações veladas dos colunistas, mas, isto... afinal, os patrocinadores não gostariam de um escândalo e... Lyon está vivendo com Anne.

— Com os diabos! Só vai para casa trocar de roupa, de manhã. Está ansioso para que Anne descubra, mas ela está sempre dormindo.

— Talvez você esteja apenas imaginando que ele quer ser apanhado em flagrante, Neely.

— Não seja idiota! Ele tem passado todas as noites comigo. Quando bateram aquela foto no El Morocco, na noite passada, ele até disse: "Talvez seja melhor assim. Se a foto for publicada, talvez tudo venha à luz". Foi isso exata-mente o que ele disse. Apenas teme contar tudo a Anne, teme que não suporte... e, na verdade, ele adora aquele bebe que eles têm.

— Neely, você terá que pagar por tudo isso um dia. Você não pode estender a mão e agarrar o que bem entende, sem pensar no sentimento das outras pessoas. Todos pagam pelos seus erros.

— Eu não sou todos! — gritou Neely. — E já é tempo de eu ter tudo que quero. Sabe por quê? Porque durante toda a minha vida eu só dei, entende? Mesmo quando criança... aqueles Gaúchos não sabiam dançar nem nada, e era eu quem levava o ato para diante. Meu cunhado é conferente no Macy's agora. Nunca mais conseguiu apresentar um ato depois que eu os deixei. Fiz dinheiro para o estúdio; no fim, me deram um pontapé. Nada conseguirá me destruir, você sabe muito bem que não há ninguém como eu. E não tenho de viver pelas regras feitas para as pessoas comuns, porque não sou uma pessoa comum. Nada pode me destruir, eu lhe garanto: nem pílulas, nem Demerol, nem sanatórios, nem a obesidade, nada. E eu nem preciso comer quando estou com Lyon. Posso beber, tomar pílulas para emagrecer, pílulas para dormir, tudo está bem. Henry, o meu talento faz o mundo feliz, E Lyon me faz feliz. Não tenho o direito de ser feliz? Para isso preciso de Lyon. E quem, diabo, é essa Anne?

— Apenas a maior amiga que você já teve na vida.

— Sim, claro. Ouça, ela foi feliz porque eu lhe dediquei algum tempo. Por que é que ela não gostaria de ser minha amiga? Eu sou uma estrela, uma personalidade. E quem é ela, afinal, se quisermos falar a verdade? Mesmo quando eu era criança, tinha mais talento do que ela. Sim, ela tem boas maneiras, tem pose, isso é tudo. Quem é ela agora? Uma loura magricela, que anunciava esmalte para unhas na televisão, e que dormiu com um velho bastardo durante anos. Depois usou o dinheiro que ele lhe deu para comprar Lyon, e agora quer bancar a Virgem Maria com o Menino. Muito bem, eu não ganhei o meu dinheiro porque era fotogênica, ganhei porque tinha talento. Ela já conseguiu tudo o que queria com aquela pseudoclasse que tem. Ela tem trinta e oito anos agora, eu tenho trinta e quatro, acontece que a minha aparência não tem importância alguma. Nunca teve. Se você é amigo de Anne, diga-lhe para dar liberdade a Lyon. Aí, ela pode fazer uma operação plástica e, quem sabe, algum Kevin Gillmore, ou qualquer outro idiota, fique com ela. Ela sempre foi boa para atrair milionários.

Com um ruído violento, Neely desligou o telefone.

Anne colocou o fone no gancho outra vez e foi até o espelho. As rugas sob os seus olhos estavam mais fundas e havia rugas evidentes em volta da boca. Engraçado, nunca tinha pensado na sua aparência em relação a Lyon, mas...

— Saia da frente desse espelho — disse Henry, entrando no quarto. — Aquele monstrinho tem olheiras que vão até o queixo. E folgo em saber que ela pensa que pode beber agora. O fígado dela está arruinado.

Anne começou a tremer. Henry se aproximou dela e abraçou-a.

— Ora, você sabe que ela estava falando apenas para me impressionar e para que eu falasse com você.

— Talvez ela tenha razão, Henry; talvez Lyon queira a liberdade.

— Lyon não falou uma palavra, e você me disse que ele desarruma a cama. Pelo menos ainda mente a você e procura se desculpar.

— Devo agradecer pelos pequenos favores... — soluçou ela.

— Aguente firme, Anne. Neely disse que nada poderá destruí-la e ao seu talento. Nada, a não ser ela mesma. E é o que vai acontecer, pode acreditar.

Anne sacudiu a cabeça.

— Não. Isto é o fim da linha. Não posso mais continuar.

— Sim, você pode. E vai fazê-lo. Você tem classe, e pode ser tão forte e dura quanto aquela serpente.

Lyon nem ao menos telefonou para se desculpar naquela noite. Simplesmente não apareceu. Anne estava para tomar a pílula, à meia-noite, quando ouviu a filha chorar. Jen era um bebé ótimo, que geralmente dormia a noite toda. Devia haver algo errado. E era a folga da Srta. Cuzins. Correu para o quarto da filha, que estava com o rosto vermelho e gritando. Anne levantou-a e procurou algum alfinete que a estivesse machucando. Jen estava molhada, mas não havia nenhum alfinete. Trocou-lhe. a fralda, ofereceu-lhe água e ela continuava a chorar, ainda mais alto. Estava febril, seriam os dentes? Anne esfregou-lhe um remédio nas gengivas, muito recomendado pela Srta. Cuzins; Jen, porém, continuava inquieta e soluçante. Resolveu tomar sua temperatura. Quarenta graus! Com o bebe no colo, correu até o quarto da criada e bateu na porta. A mulher saiu sonolenta, amarrando o roupão; segurou o bebé enquanto Anne procurava telefonar para o médico.

Era uma sexta-feira e ele saíra da cidade para o fim de semana. Deram-lhe o número de um outro médico. Disseram-lhe que estaria só dentro de uma hora. Oh, Deus, o que é que iria fazer? Onde estava Lyon? Chamou Henry, ninguém respondeu. Sim, sua casa ficava em Westporte. Será que todos tinham ido embora?

Resolutamente, discou para o hotel onde Neely estava hospedada. Disse seu nome à telefonista e, depois de algum tempo, Neely respondeu.

— Alô, Neely — disse Anne, numa voz que se esforçava por ser natural. — Lyon está aí?

— Não.

— Tenho de encontrá-lo. É urgente.

— Bem... — Neely estava bocejando. — Se ele me chamar eu lhe direi.

— Neely, Jen está doente.

— Chame um médico.

— Já chamei, ele está fora. Jen está com quarenta graus de febre.

— Não se aflija. Os bebes frequentemente têm febre alta e não é nada. Dê-lhe meia aspirina.

— Mas, se Lyon chamar, por favor, diga a ele.

— Claro, claro. Agora, boa noite. Tenho uma gravação amanhã, e preciso dormir. Meus gémeos sempre tinham febre. Isso não é nada.

E desligou.

Acreditou em Neely. Nem Neely poderia ser tão insensível. Então, onde estaria Lyon?

Neely pegou o telefone e deixou uma ordem para que não a perturbassem. Onde diabo estava Lyon? Ah, sim, no Hotel Victoria, com os arranjadores, escrevendo novos versos para o seu tema musical. Disse que ficaria lá até as duas, e que depois viria ter com ela. Será que devia chamá-lo e contar a respeito da filha? Ora, não era nada. Os bebés sempre têm, febre. Isso era coisa de Anne, usando a única arma que ainda tinha contra ela. Até que ponto podia chegar! Muito bem, não iria cair nessa. Estaria dormindo quando Lyon chegasse. Deixaria um bilhete no travesseiro, dizendo que tinha tomado pílulas à meia-noite. Vejamos, agora era uma hora e quinze. Se dissesse que tomara pílula à meia-noite, seria natural esquecer o chamado de Anne. Ele, provavelmente, iria dormir em casa com sua horrível mulher, se ela estivesse dormindo quando ele chegasse. Tomou então três pílulas e um copo de uísque. Muito bem, então ele que fosse para casa uma noite. Ela o teria para si todas as outras noites. Já meio tonta, desejou que o novo tema fosse bom. O nome dela apareceria como compositora, um truque imaginado por Lyon. Todos os compositores estavam atrás dela, para que ela gravasse suas músicas ou as cantasse na televisão. Agora, ganharia como co-autora dessas músicas. Sorriu feliz quando as pílulas começaram a funcionar. Finalmente, dormiu.

Jen foi levada ao hospital às duas da manhã. O médico chegara, pensou que fosse pólio, depois viu que era pneumonia. Quando Lyon chegou, e viu que Neely estava dormindo, foi para casa. Para seu espanto, as luzes estavam acesas, mas não havia sinal de Anne. A criada, chorosa, contou-lhe o que acontecera. Saiu correndo do apartamento e voou para o hospital. Anne estava sentada na sala de espera, apavorada. Mal olhou para ele.

— Que foi que aconteceu com ela?

— Está numa tenda de oxigénio agora. Duas enfermeiras estão com ela. Não me deixam entrar.

— Estive trabalhando com os compositores no novo tema musical de Neely. Trabalhamos até tarde, e, quando cheguei em casa, vi que você não estava...

— Chamei Neely há algumas horas — disse Anne inexpressivamente.

— Eu não estava com ela — disse Lyon, justificando-se. — Por que teve a ideia de chamá-la?

— Porque pensei que ela talvez soubesse onde você estava. Faz uma semana que você não aparece, tratando dos negócios dela, suponho.

Lyon olhou-a cuidadosamente:

— Há uma enormidade de trabalho na preparação de um espetáculo de televisão. Decidimos que ela deverá ter um novo tema musical que a identifique.

— Lyon, se você não se importa, preferia não falar a respeito do espetáculo de Neely agora. Estou doente de medo a respeito de Jen.

Lyon estendeu a mão e pegou a mão tremula de Anne. Foi um gesto inconsciente e natural, que apanhou Anne desprevenida. Teriam eles, algum dia, sido íntimos? Teria esse maravilhoso estranho lhe pertencido algum dia realmente? Era um estranho agora, amarrado a ela pela lei, pertencendo a outra pessoa. E ainda assim o amava. Era uma constatação chocante. Queria odiá-lo; mas, se isso era possível, desejava-o ainda mais. Decididamente, não tinha orgulho... Nunca o deixaria ir-se... a menos que ele lhe pedisse. Deus, não deixe que isso aconteça! E que coisa terrível ser necessária uma tragédia para trazê-lo a seu lado.

Parecia ter passado uma eternidade até o médico aparecer. Ambos suspenderam a respiração. O médico estava sorrindo. Tudo estava bem. Sim, a febre baixara. Graças à penicilina e à tremenda força que tinham os bebés.

Lyon vinha ao hospital todas as noites às sete horas. Anne, em um quarto, pegado ao do bebé, passava todo o tempo no hospital. Ele chegava, brincava, fazia caretas para Jen. Insistia em levar Anne para jantar, todas as noites, no restaurante do hospital. Ficava, no mínimo, duas horas. Pelo menos isso interferia com os planos de Neely, pensou Anne.

Dez dias depois, levaram Jennifer para casa. Lyon encheu o apartamento de flores. Jantaram em casa e ele brincou com a filha. Nessa noite, amaram-se pela primeira vez em muitas semanas e dormiram abraçados.

Eram quatro horas da manhã quando o telefone tocou. Anne foi a primeira a acordar. Estendeu o braço e atendeu. Era Neely. Anne percebeu que ela devia estar dopada pelas pílulas.

— Ponha esse filho da mãe ao telefone — berrou.

— Ele está dormindo, Neely.

— Acorde-o.

— Não farei isso.

— Você ouviu o que eu disse? Acorde-o ou vou eu mesma aí e faço isso.

Lyon abriu os olhos. Anne murmurou que era Neely, e ele pegou o telefone.

— Que foi que houve, Neely? — Precisava estender o braço sobre Anne para atender, e ela podia ouvir a voz aguda de Neely.

— Estive esperando a noite toda por você — gritava ela.

— O bebé saiu do hospital esta noite.

— E daí? Ela não vai para a cama às sete horas?

— Era a primeira noite dela em casa.

Anne fechou os olhos. Ele estava se desculpando por ter passado uma noite com a própria mulher!

— Bem, então venha para cá.

— Neely, são quatro horas da manhã.

— É melhor que venha já. Tomei sete pílulas e se não vier tomarei mais dez.

— Neely, você vai dar uma entrevista ao Life amanhã.

— Mande-os à m... Eu não darei entrevista a menos que você venha para cá.

— Está bem, Neely. Vou já para aí.

Anne ficou olhando-o, enquanto ele se levantava. Preciso suportar isto, pensava. Na verdade, ele não queria ir lá naquela noite. Ela o forçou. Se eu conseguir suportar, esta será a minha primeira vitória. Anne deitou a cabeça no travesseiro e viu quando ele se aproximou, já vestido.

— Anne... você compreende?

— Sei que você não quer ir, Lyon.

— Anne... isso tem sido terrível para você. Acho que teremos de fazer algo a respeito.

A vitória se desvaneceu. Teria ele coragem de trocá-la, e à filha, por Neely?

— Não podemos continuar assim, nem: você, nem Neely, nem eu — disse ele.

— Eu posso, porque sei que não será sempre assim, Lyon. Você está enredado nisso.

— Neely precisa de mim. É um grande talento, Anne, sem disciplina alguma. -Tem de ser levada pela mão. Você, no entanto, é forte, Anne.

Lágrimas encheram seus olhos quando disse:

— Não sou forte, Lyon. A única coisa que existe em mim é o meu amor por você.

Lyon deu-lhe as costas e deixou rapidamente o quarto.

Quando a nova temporada de televisão começou, Anne voltou ao trabalho. Henry apresentou-a ao produtor de um programa, que a contratou imediatamente. O programa ia ao ar todos os dias e a mantinha ocupada. Ajudava-a a suportar o fato de que Lyon passava cada vez mais tempo com Neely.

No fim de setembro, Neely e Lyon foram à Califórnia para gravar o primeiro programa, que foi uma sensação. Neely estava entre os dez melhores na cotação e Lyon era apontado como o realizador de tudo. Anne espantou-se com o prestígio de Neely; imediatamente, uma infinidade de grandes estrelas assinaram contrato com Lyon e George. A revista Variety publicou uma reportagem sobre os Três B, a maior agência de Nova York. Tudo isso conseguido através de Neely.

Lyon fez algumas breves viagens a Nova York. Às vezes, durante essas visitas, Anne chegou a achar que ainda havia uma chance. À noite, quando ele a apertava nos braços, quase esquecia que fazia o mesmo com Neely. Havia sempre os chamados da Califórnia, para lembrá-la de que Neely vinha em primeiro lugar.

Lyon veio a Nova York, alguns dias depois do Natal, carregado de brinquedos para Jennifer e com uma belíssima jóia para ela. Anne estava bem consciente de que ele se repartia novamente: Natal com Neely, depois, Nova York, para comemorá-lo com elas também, embora mais tarde.

Três dias depois, Neely chamou-o, exigindo que voltasse imediatamente. Anne estava sentada na saleta, ouvindo a conversa na extensão do telefone.

— Estarei logo aí — disse Lyon, com uma leve exasperação na voz.

— Esta noite — retrucou Neely. — Você sabe que dia é amanhã? Véspera de Ano-novo!

— E dia 1.° de janeiro é o primeiro aniversário da minha filha — respondeu ele com firmeza.

— M..., comemore-o hoje. A garotinha não notará a diferença.

— Eu notarei. Agora, seja uma boa moça. Você é convidada a uma porção de festas, e um dos rapazes da agência poderá escoltá-la. Estarei aí no dia 5, o mais tardar. Tenho de ficar aqui para assistir à estreia de Minha Doce Beldade.

— Essa Margie Parks vai ser apenas um zero.

— Eu a vi em Anjo Azul, no ano passado — disse Lyon. — Tem ótimas qualidades.

— Terão de usar microfone com ela — insistiu Neely. — Ela canta muito bem, sou a primeira a admitir quando alguém é bom. Sabe. usar a voz como se fosse um instrumento. Ouvi dizer, porém, que quase foi substituída nas representações fora da cidade. Ela canta com a garganta e não vai durar muito. Ficará queimada em poucos anos, e isso também teria me acontecido, se eu não tivesse tido a ajuda de Zeke Whyte.

— Bem, como estamos interessados em que assine contrato conosco, terei de ir à estreia.

— Você quer dizer que perderá seu tempo trabalhando com ela? — O tom de voz de Neely era perigoso.

— Claro que não. Nem George, tampouco. Ela tem apenas dezenove anos e Bud Hoff vai tomar conta dela. As mulheres o adoram e ele será uma ótima ama-seca.

— Bud Hoff é um... — disse Neely. — Vive como se fosse uma dádiva de Deus às mulheres. Ele e seus ternos e gravatas escuros. Céus, todos os seus rapazes parecem usar uniforme. Bem, acho que precisam de sujeitos assim... — Neely bocejou. — As malditas pílulas estão, finalmente, começando a funcionar. Quando diz que estará aqui?

— No dia 5, o mais tardar — prometeu ele.

— Você me ama?

— Você sabe que sim — disse Lyon rapidamente.

— Quanto?

— Terrivelmente.

— Mais do que Anne e o bebé?

— Assim parece. Agora, Neely, preciso desligar. Anne está em casa e pode querer telefonar.

—- Espero que nos tenha ouvido.

— Você se diverte magoando as pessoas?

— Não, mas se ela soubesse talvez lhe desse a liberdade.

— Talvez ela saiba, Neely.

— Você lhe contou?

— Não, mas Anne não é insensível nem estúpida. E os boatos circulam rápido nesta cidade.

— Então, por que ela não o deixa livre?

Lyon ficou em silêncio.

— Bem, então vou telefonar-lhe e contar tudo. Aí ela terá de deixá-lo. O orgulho dela não lhe dará outra alternativa.

— Não faça isso — disse Lyon.

— Eu vou...

— Não faça isso. Nem adiantaria, porque já falamos no assunto.

— Quando? Você não me contou.

— A noite passada.

Anne esperou que seu suspiro não tivesse sido ouvido. Nunca estiveram tão unidos como na noite passada.

— O que aconteceu? — perguntou Neely.

— Nada. Disse que já sabia de tudo e que fecharia os olhos. Jamais me dará o divórcio.

— Muito bem, então vou armar um escândalo em público, para obrigá-la.

— Você já tentou isso, Neely. Os jornalistas gostam de você e nunca publicam tudo o que vêem.

— Darei uma entrevista coletiva. Direi que você quer se casar comigo e que sua mulher não lhe dá o divórcio.

— E você sabe o que acontecerá ao seu espetáculo? Há uma cláusula moral no contrato. O seu patrocinador vende comida. Cancelariam seu contrato tão depressa que...

— Que me importa? Iríamos à Europa, eu faria um novo filme.

— Neely, tenho um sócio e isso prejudicaria a agência. Não posso pensar unicamente em mim.

— Você e essa m... de agência. Muito bem, quando eu tiver um milhão de dólares, você fará um acordo com George e eu o terei noite e dia comigo, todos os segundos...

— Vejo-a no dia 5, Neely. — E riu.

— Essa não. Telefone amanhã ao meio-dia, hora daqui.

— Farei isso.

— Você me ama?

— Adoro.

E todos os três desligaram.

 

                                                1964

Minha Doce Beldade foi o maior sucesso da temporada. Anne viu a pequena e magra mocinha de sorriso torto enfeitiçar a plateia. Andava pelos dezenove anos e, mesmo inexperiente, tinha aquele algo que marca uma estrela.

— Tivemos muita sorte — sussurrou George a Anne. —- Lyon insistiu em assinar o contrato com ela ontem. Todas as agências estarão atrás dela depois desta noite.

— Esta vai ser a sua dor de cabeça exclusiva — respondeu Lyon, debruçando-se sobre Anne.

— Está brincando? Ela ficará muito feliz sendo servida por Bud, ou por Ken Mitchell, ou qualquer dos outros rapazes do escritório:

O pensamento de Anne voou para aquela noite do passado, há tantos anos, quando sentara ao lado de Lyon para assistir à estreia de Neely. Era, também, uma boa garota, sem explosões temperamentais. Há dezenove anos... Ela amava Lyon, então, e o amava agora. Ouvindo as conversas telefónicas dele com Neely estava consciente de que vencera a batalha. Mas, por mais estranho que parecesse, a vitória não tinha sabor algum. Agora Lyon mentia para Neely, dizendo que pedira o divórcio. Na verdade, ele não queria se divorciar, não queria ficar preso a Neely, agora que a serpente que havia dentro dela estava começando a se mostrar. Amanhã era dia 5, Lyon, entretanto, não fizera qualquer referência à viagem. Até falava de uma estreia que não queria perder, no dia 8. Teria ela realmente vencido, ou se tratava de uma trégua? Neely ainda estava presente, e talvez sempre estivesse, daí por diante. Teria Lyon apreciado o corpo de Neely? Acharia que, com Neely, era a mesma coisa que com ela? Nunca saberia.

Até os bastidores pareciam os mesmos. Margie Parks parecia muito jovem e muito vulnerável, embaraçada pela presença de seus novos e brilhantes agentes e pelas celebridades que se congratulavam com ela.

Anne sentou-se entre Lyon e George durante a festa que comemorou a estreia, depois do espetáculo. A certa altura, quando Lyon deixou a mesa, para falar com algumas pessoas, Margie se aproximou e sentou-se no lugar dele.

— Quero que saiba, Sra. Welles, que sempre fui grande admiradora sua.

— Na televisão? Ora, aquilo não é nada.

— Eu a adoro no seu programa atual. Quando a senhora era a garota Gillian, eu quase desmaiava. Lembro-me que tinha dez anos de idade quando roubei um dólar de minha mãe para comprar um batom Gillian. Eu queria me parece com a senhora.

Anne sorriu. De repente, compreendeu como é que Helen Lawson se sentia. Era tão maravilhoso ser jovem; pensar que a gente seria eternamente jovem. Ainda assim sabia que era o símbolo do sucesso para Margie Parks. Era lisonjeada, casada com um homem importante, e uma mulher de sucesso em sua carreira. Margie não era bonita, vestia um vestido verde que não melhorava em nada a sua aparência. O casaco que usava era de seda preta, parecido com o que ela comprara em Bloodmingdale. Notara o olhar que Margie pôs no seu casaco de vison. Será que Margie imaginava que seu farto cabelo devia agora ser pintado? Ou que as rugas, debaixo de seus olhos, tinham que ser disfarçadas com maquilagem apropriada? Num ambiente de luzes suaves, como o daquela noite, sabia que chamava a atenção. Muitas cabeças ainda se voltavam quando ela entrava nutria sala. Aparecia bem na televisão e sabia que, com maquilagem e luzes apropriadas, poderia continuar ainda por quinze anos. Nunca, porém, fingiria ser mais jovem do que era. Toda gente sabia quantos anos tinha.

Margie falava sem parar. Lyon estava visivelmente aborrecido e eles a deixaram aos cuidados de George uma hora mais tarde. Nesta noite, Lyon lhe parecera muito cansado. Em casa, havia uma porção de recados de Neely. Lyon n§o se esforçava por esconder suas conversas de Anne, e nelas mantinha uma atitude impessoal e reservada. Sim, tinham contratado Margie Parks. Claro que ela não era um grande talento. Sim, estaria lá dentro de alguns dias.

Mas o sucesso de Margie foi enorme. O álbum das canções da peça vendera espetacularmente bem, e os compactos que gravara estavam entre os dez mais vendidos. Em abril; George conseguiu-lhe um contrato na televisão, com um programa semanal. Os Três B representavam esses programas.

Lyon continuou a viajar frequentemente para a Califórnia. Os espetáculos de Neely iam bem, ela assinara contrato para a próxima temporada. Os Três B abriram uma nova agência na Califórnia e muita gente de Johnson Harris veio trabalhar para eles.

Neely era líder dos acontecimentos sociais de Holly. wood. Alugara uma casa enorme e empregara criadagem completa, suas grandes festas eram frequentadas por todas as pessoas importantes da cidade. Estava gravando o último espetáculo da temporada quando George pediu a Lyon que viesse a Nova York. Os patrocinadores queriam um esboço do que seria o programa de Margie Parks da próxima temporada.

— Você é o criador, meu caro — disse-lhe George. — Eu vendi o programa, agora -você terá de organizá-lo.

Lyon saiu da Califórnia às escondidas. Deixou uma nota para Neely, dizendo que voltaria em quarenta e oito horas. Esperava evitar uma cena e sentia-se despreocupado em fazer isso — dois terços do último espetáculo de Neely já estavam gravados em vídeo-teipe.

Lyon reuniu-se com os diretores e patrocinadores. Tudo estava indo bem. O diretor telefonou-lhe da Califórnia, dizendo que Neely estava furiosa, mas, por enquanto, cooperava. Lyon sossegou e resolveu não voltar à Califórnia. Levou Anne ao teatro e a pequena Jennifer para o seu primeiro passeio de pónei no Central Park.

Estavam na cama, assistindo ao último programa de televisão, quando este foi interrompido para uma notícia: "Neely O'Hara foi conduzida ao hospital em estado grave".

Alguns instantes depois, George estava ao telefone: já tinha telefonado para o hospital e Neely estava fora de perigo. Tomara todo o conteúdo de um frasco de pílulas. Lyon vestiu-se, enquanto Anne arrumava sua mala. Havia um avião que saía à uma e meia para a Califórnia, e ele poderia tomá-lo. O programa de Neely não estava todo gravado ainda, mas Joey Kling iria para lá e faria o resto. De qualquer maneira, dariam um jeito até a hora de o programa ir para o ar.

Neely estava de olhos fundos e sentia-se fraca quando Lyon chegou ao seu quarto no hospital. Ela sobreviveria. Estendeu os braços para Lyon.

— Oh, Lyon, quando eu soube, pensei que seria o fim. Só queria morrer.

—- Quando soube do quê? — perguntou Lyon, passando-lhe a mão pelos cabelos.

— Li a notícia no estúdio. Dizia que você tinha sido chamado para proporcionar a Margie Parks o "tratamento de estrela".

— E por isso você tentou... — Sua voz traduzia espanto.

— Ouça, Lyon. Concordaria em que você veja sua mulher de vez em quando, e, talvez, até lhe perdoe alguma escapadela com outra garota, jamais, porém, permitirei que você faça uma nova estrela enquanto trabalha para mim.

— Neely, nossa firma não foi planejada para agenciar apenas uma estrela.

— Eu fiz a sua porca agência e posso desfazê-la também. Lembre-se sempre disso. Se eu me desligo dela, a metade de seus clientes sairá comigo. Você precisa, de mim, meu caro, portanto, de hoje em diante, quando eu estalar os dedos esteja aqui.

Lyon levantou-se e saiu calmamente do quarto.

— Lyon! Volte aqui! — berrou Neely.

Lyon voltou a Nova York no avião seguinte. Convocou George para uma reunião imediatamente.

— George, você já pagou a sua mulher?

George sorriu.

— Não, e nem pretendo.

— Eu acabo de assinar meu último cheque para Anne. Não lhe devo mais nada. De agora em diante, todos os riscos que eu assumir serão por minha conta. Não devo mais nada a ninguém...

— Não se esqueça de que é meu sócio.

— Claro que não. Mesmo assim, cheguei à conclusão de que teremos de desistir de Neely. Não vale a pena a agonia. Não precisamos mais dela.

— Não acha que isto vai nos prejudicar? — perguntou George.

— De modo algum. O espetáculo de Margie Parks vai nos trazer o dobro do lucro, ir ao ar semanalmente. E, depois, temos Joey Kling. Neely entra em decadência dentro de pouco tempo, talvez não neste ano, ou no próximo, mas decairá. Nós não devemos estar ligados a ela nessa ocasião. Nós a ressuscitamos e todos sabem disso. Vamos deixá-la enquanto está na crista da onda.

— Que é que o faz pensar que Neely não terá êxitos cada vez maiores? Aquela estada no sanatório fez maravilhas com ela...

Lyon sorriu.

— Quanto acha que alguém pode durar, tomando duas injeções de Demerol por dia?

— Ela disse que eram injeções de vitamina — retrucou George.

— E que vitamina! George, estamos formando uma ótima equipe com os rapazes e nós dois somos uma boa combinação. Ninguém chega a seus pés quando se trata de vender, e eu tenho me saído bastante bem na parte criativa, com os clientes e com o nosso pessoal. Não podemos esbanjar metade das nossas forças viajando pelo país, para bancar ama-seca e amante desse polvo. Por Deus, George, ela engole vivas as pessoas! Só Deus sabe como foi que Anne conseguiu sobreviver a isso. Terminemos com Neely agora. Soube que Abe Kingman, da Johnson Harris, foi à Califórnia para falar com ela. Que fique com eles.

— Muito bem, telegrafe a ela você mesmo. Acho que merece essa pequena satisfação — disse George sorrindo.

Neely assinou contrato com a Johnson Harris e se fartou de falar da ineficiência de seus ex-agentes. Os Três B, entretanto, não ficaram prejudicados com isso; em setembro, o programa de Margie Parks foi lançado ao ar com enorme sucesso.

Neely, por sua vez, começou a nova temporada muito bem. Três agentes da Johnson Harris se revezavam ao lado dela, durante as vinte e quatro horas do dia.

— Você acha que ela estará bem? — perguntou Anne. Lyon sacudiu a cabeça.

— Por algum tempo, sim. Mas ela tem a mania da autodestruição. Assumiu compromissos grandes demais: uma casa enorme, muitos empregados, muitas recepções. Ela é novamente uma grande estrela e isso já quase acabou com ela uma vez.

— Se tem uma recaída... — Anne não podia deixar de se preocupar. A tendência autodestrutiva de Neely era tão pateticamente mórbida...

— Isto acontecerá um dia destes — respondeu Lyon.

— E o que acontecerá depois?

— Fará uma nova volta triunfante, e outra, e outra, tantas quantas o seu físico aguentar. É uma guerra civil em miniatura essa luta entre suas emoções e seu talento e a força física. Um dos lados terá de ser vencido. Alguma coisa terá de ser destruída.

 

                                               1965

Anne estava pensando que não devia ter permitido que a convencessem a dar aquela festa de Ano-novo. Olhava para o fluxo interminável de convidados que entravam e saíam, juntavam-se diante do elevador e aglomeravam-se perto do bar. George e Lyon insistiram para que desse a festa; na verdade, dar uma festa não era tão simples como ir a uma festa. A gente podia sempre se retirar de qualquer outra, mas, na festa da gente, tinha que suportar tudo até o fim.

A gente famosa que trabalhava na Broadway começou a chegar. Passava de uma hora, e ela não vira Lyon desde o rápido beijo que trocaram à meia-noite. Já era 1º de janeiro, segundo aniversário de Jennifer. Desvencilhou-se dos convidados por um momento e foi até o quarto da filha. A fraca luz noturna desenhava a silhueta da criança que dormia.

— Feliz Ano-novo, meu anjo — murmurou Anne. — Eu a amo, queridinha, por Deus, como eu a amo!

Abaixou-se, beijou-a na testa e saiu silenciosamente do quarto. A sala estava cheia de gente e barulho. A saleta e o bar também. Anne entrou no quarto e fechou a porta. Não, aquilo não estava certo. A anfitriã não podia agir daquele jeito. Além disso, se ela fechasse a porta, alguém poderia bater. Não era delicado. Abriu então a porta e apagou a luz. Melhor assim. Se abrisse a porta e apagasse as luzes, ninguém a veria. Desejou que ninguém entrasse no quarto. Sua cabeça latejava.

Deitou-se na cama. Os risos e as vozes pareciam vir de longe... e a música... ouviu um copo quebrar-se... mais risos... De repente, ouviu passos. Meu Deus, alguém se aproximava. Sim, duas silhuetas entraram no quarto. Continuou deitada, esperando que saíssem logo.

— Fechemos a porta — murmurou a moça.

— Isso chamaria atenção.

Era a voz de Lyon... mas não conseguiu distinguir quem era a moça.

— Eu o amo, Lyon. — A voz parecia familiar.

— Ora, você é apenas um bebé.

— Não importa. Sei que o amo. Meu programa na semana passada foi o melhor de todos, porque você supervisionou tudo pessoalmente.

Foi silenciada com um beijo.

— Lyon, você estará lá todas as semanas?

— Tentarei.

— Tentar, não. Esteja lá. — A voz era insistente. — Lyon, sou uma das maiores estrelas da agência agora...

— Margie, você está tentando fazer chantagem com o meu amor? — perguntou Lyon docemente.

— Foi isso o que Neely O'Hara fez?

— Nunca houve nada entre mim e Neely.

— Ah! De qualquer maneira, vai haver alguma coisa entre mim e você. Céus, estou louca por você.

Lyon beijou-a novamente.

— Agora seja uma boa moça, e voltemos à festa antes que notem a nossa ausência.

Anne continuou deitada até que saíssem. Depois, levantou-se e ajeitou o vestido. Foi ao banheiro e tomou uma pílula vermelha. Estranhou não sentir pânico algum. Agora era Margie Parks... Engraçado, não doía tanto desta vez. Ainda amava Lyon, mas o amava menos. Depois de romper com Neely, ele esteve mais devotado que nunca. E ela não tivera nenhuma sensação de triunfo. Alguma coisa dela tinha ido juntamente com Neely. Agora sabia que sempre haveria uma Neely, ou uma Margie... e cada vez isso a magoaria menos, e ela amaria Lyon menos, até que um dia não existiria mais nada — nem mágoa, nem amor.

Escovou o cabelo e retocou a maquilagem. Estava muito bem. Tinha Lyon, o belo apartamento, a filhinha, uma bela carreira, tinha Nova York, enfim, todas as coisas que um dia desejara. De agora em diante, nunca mais ficaria seriamente magoada. Estaria sempre muito ocupada durante o dia e, à noite, isto é, nas noites solitárias, teria sempre as bolinhas vermelhas para lhe fazer companhia. Naquela noite, tomaria duas. Por que não? Afinal, era véspera de Ano-Novo.

 

                                                                                Jacqueline Susann  

 

                      

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