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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VALE DOS PERDIDOS / Emily Rodda
O VALE DOS PERDIDOS / Emily Rodda

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Lief, Barda e Jasmine partiram em uma grande busca pelas sete pedras preciosas do mágico Cinturão de Deltora. Escondidas em locais assustadores por todo o reino, elas devem ser recolocadas no Cinturão para que o legítimo herdeiro do trono possa ser encontrado e a tirania do Senhor das Sombras, derrotada.

Seis pedras já foram encontradas. O topázio, símbolo da lealdade, que tem o poder de contatar o mundo espiritual e de aclarar e estimular a mente; o rubi, símbolo da felicidade, cuja cor perde a intensidade na presença de ameaças, repele espíritos malignos e é um antídoto para venenos; a opala, pedra da esperança, que oferece vagas imagens do futuro; o lápis-lazúli, pedra celestial, que é um poderoso talismã; a esmeralda, símbolo da honra, perde o brilho na presença do mal; a ametista, símbolo da verdade, acalma e tranqüiliza.

Os companheiros descobriram um movimento secreto de resistência chefiado pelo misterioso Perdição. Outro membro da resistência, Dain, um jovem com a mesma idade de Lief, foi seqüestrado por piratas, e os pais de Lief foram aprisionados.

Sempre receosos dos Guardas Cinzentos que servem ao Senhor das Sombras e dos terríveis Ols, capazes de mudar de forma e aparência, os amigos precisam agora cruzar o rio Tor e partir para a sua última meta, o Vale dos Perdidos, onde se encontra a última pedra, o grande diamante.

 

 

 

 

 

 

Estava escuro e muito silencioso. Lief, barda e Jasmine deslizavam pela noite como sombras ao lado do Rio Tor, que também carregava os seus segredos.

Por motivos de segurança, eles decidiram não viajar de dia, mas a noite também encerrava seus perigos, pois a Lua encontrava-se oculta atrás das nuvens, e eles não ousavam acender uma tocha para iluminar o caminho. Da mesma forma que a escuridão lhes servia de esconderijo, ela também ocultava o inimigo à espreita.

E não era só isso que ela escondia, mas também buracos, pedras e valas, árvores, arbustos e pontos de referência. A cada passo que davam, iam rumo ao desconhecido.

Os companheiros sabiam que não muito distante dali havia uma ponte e, quando a atingissem, poderiam finalmente cruzar o rio que lhes causara tanto sofrimento. E, então, poderiam começar a jornada na direção do Vale dos Perdidos, onde se encontrava o grande diamante, a sétima pedra do Cinturão de Deltora.

Contudo, seria extremamente fácil passar pela ponte sem notá-la, de modo que, por mais que detestassem até mesmo pensar no rio Tor, eles o acompanhavam de perto, certos de que aquelas águas escuras acabariam por levá-los ao seu destino.

Lief agarrava o Cinturão de Deltora oculto sob as roupas com uma das mãos. Mas o Cinturão, apesar de todo o seu poder, não podia ajudá-lo enquanto ele se esforçava para tentar enxergar na escuridão que cercava os amigos.

— Já estamos perto — Jasmine sussurrou de repente.

Lief percebeu uma certa palidez quando ela virou o rosto em sua direção. Filli, encolhido em seu casaco, emitiu um vago som sonolento. Kree encontrava-se em silêncio e invisível no ombro dela, as penas pretas ocultas pela escuridão.

— Você consegue vê-la? — Barda indagou.

— Não, mas sinto o cheiro de pessoas e animais, e a ponte fica logo depois de uma vila, lembra?

O grupo seguiu adiante, esgueirando-se até chegar a um trecho de terreno sem vegetação. Lief teve a impressão de ver um muro escuro erguendo-se à esquerda.

Talvez houvesse habitantes armados do vilarejo atrás dele, em vigília, atentos a sinais de perigo. Talvez fosse esse o motivo pelo qual a vila ainda não tivesse sido destruída, apesar dos piratas que navegavam nas águas do Tor e dos bandidos que rondavam as suas margens.

Se ouvissem algum ruído, os guardas iriam averiguar. Atacariam de imediato, sem pena. Eles tinham aprendido com as tristes experiências testemunhadas ao longo do rio e sabiam que hesitar representava arriscar-se a perder tudo.

Os amigos prosseguiram andando com cuidado, contendo a respiração. Mal o grupo atingiu a segurança de um bosque além do muro, as nuvens que cobriam a Lua se espalharam e o chão foi inundado pela luz.

— Tivemos sorte — Jasmine comentou, prendendo a respiração. — Se isso tivesse acontecido somente alguns minutos antes...

Barda tocou o braço de Lief e apontou para a frente. Por entre as árvores, ele pôde ver a ponte. Ela estava muito perto e parecia tranqüila sob o luar. Um pequeno rebanho de cabras de pêlo longo amontoava-se ao seu redor, algumas em pé, outras repousando na grama.

A ponte era sólida e larga o bastante para permitir a passagem de carroças. A seu lado, havia uma grande placa com dizeres um pouco apagados, o que, porém, não impediu Lief de distinguir as palavras.

 

PONTE DO REI

Atravesse aqui para:

Tora

Onde as águas se Encontram

Rio Largo

 

O coração de Lief bateu mais forte. Tora! A grande cidade do Oeste, profundamente leal aos reis e rainhas de Deltora. O local ideal para esconder o herdeiro do trono.

Tora devia estar próxima, mas não havia nenhuma placa que indicasse a presença de uma cidade quando acompanharam o rio em direção à costa, apenas alguns dias antes. Na época, Lief não deu importância ao fato, pois tinha muitas outras coisas com que se preocupar. Agora, porém, aquilo lhe parecia muito estranho, pois certamente, segundo o nome indicava, Tora encontrava-se às margens do rio Tor.

— Tora deve estar é bem longe do rio — Barda comentou, mostrando que pensava no mesmo assunto. — Mas é estranho que nem ao menos a tenhamos visto a distância.

Lief assentiu, ainda refletindo sobre o mistério.

Talvez tenhamos passado por ela à noite, quando todas as luzes estavam apagadas. De qualquer forma, ainda podemos visitá-la quando estivermos a caminho do Vale dos Perdidos.

— Para falar a verdade, seria prudente não fazermos isso, pelo menos até que o Cinturão esteja completo — Jasmine murmurou. — Dain foi advertido...

Ela se interrompeu, mordeu o lábio, e Lief e Barda também ficaram em silêncio. Lembranças do garoto que tinham visto pela última vez amarrado e indefeso na caverna dos piratas invadiram a mente de todos.

Dain desejara ir a Tora. Agora ele nunca a veria. Naquele momento, os piratas certamente estavam navegando rio acima com ele. Em mais alguns dias, ele seria entregue aos Guardas Cinzentos. Embora Lief, Barda e Jasmine soubessem que não podiam salvá-lo, o seu olhar triste e assustado os perseguia.

O rapaz faria de tudo para escapar, mas que esperança ele teria contra uma gangue de rufiões armados, ávidos pelo ouro do Senhor das Sombras?

Jasmine sacudiu a cabeça como se quisesse afastar os pensamentos indesejáveis e voltou a atenção às cabras perto da ponte.

— Vamos ter que andar mais devagar para não assustar os animais — ela disse. — Se elas fizerem qualquer som, estaremos perdidos.

— Acho que elas estão acostumadas com as pessoas — disse Lief, observando as cabras, os pequenos chifres brilhantes, o pêlo longo e macio. — Mas devemos deixar que nos vejam agora que a Lua está brilhando. Se aparecermos diante delas no escuro, elas irão se assustar.

Ele deu um passo para a frente e parou abruptamente, os olhos arregalados. Havia algo de errado com uma das cabras! O corpo dela parecia se agitar e se encrespar como uma vela ao vento.

Lief piscou depressa. Que peça o luar estava lhe pregando? Ele olhou novamente, e o animal estava exatamente como antes. No entanto, ele sentiu Barda agarrar-lhe o braço e viu outra cabra se agitando e mudando: a cabeça se esticando para cima, o corpo estremecendo para depois retomar a forma anterior. E então ele soube. Acabara de ver o que Dain chamara de o Tremor.

— Ols! — ele sussurrou. — Elas não são cabras, mas Ols! — um frio percorreu-lhe a espinha ao se dar conta do quanto haviam estado perto de se misturar ao rebanho e encontrar a morte sem de nada desconfiar.

— Eles estão vigiando a ponte — Barda cerrou os dentes frustrado.

— O que vamos fazer?

— Um de nós terá de atraí-los para longe para que os outros dois consigam passar — Jasmine sugeriu. — Eu vou...

— Eles são muitos, e o seu truque não vai funcionar, Jasmine. — Barda discordou com veemência. — Alguns a seguirão, outros ficarão. E, pensando bem, havia muitos pássaros aquáticos empoleirados do outro lado da ponte quando passei a caminho da costa. Mais Ols, com certeza, embora eu não tivesse percebido isso na época. E tenho certeza de que eles ainda vão estar lá.

— Então, precisamos continuar — Lief murmurou. — Dar a volta na ponte para que eles não nos vejam e encontrar outro modo de atravessar o rio, mais adiante.

— Mas não há outro modo — protestou Jasmine. — Você sabe que eu não sei nadar. E, mesmo que soubesse, os vermes assassinos...

— Não podemos nadar, mas existem botes... — Barda interrompeu com calma. — Temos dinheiro para pagar uma travessia. Ou podemos construir uma balsa. Qualquer coisa é melhor do que enfrentar dezenas dessas criaturas.

Tão silenciosamente quanto haviam chegado, eles se afastaram e prosseguiram rio acima, descrevendo uma grande volta ao redor da ponte. Vez ou outra, por brechas entre as árvores, eles entreviam as cabras, ainda à espera, imóveis sob a luz da Lua.

Quando o dia nasceu e o sol lutava para abrir caminho entre as nuvens, a vila e a ponte haviam ficado para trás. Os amigos pararam para comer e descansar e se ajeitaram sob uma moita de arbustos de folhas ásperas. Kree levantou vôo a fim de caçar alguns insetos e esticar as asas enrijecidas.

Lief assumiu o primeiro turno da vigília. Ele enrolou-se no casaco e tentou ficar confortável. Seus olhos ardiam, mas ele não receou cair no sono, pois estava com os nervos à flor da pele.

As horas se arrastavam. Kree voltou e se empoleirou em um dos arbustos. As nuvens estavam baixas e se tornavam mais espessas a cada momento. "Vai chover", Lief pensou desanimado. Animais em fuga haviam criado trilhas estreitas entre a folhagem, mas naquele momento não havia nenhum à vista, e Lief sentiu-se grato por isso. Num lugar em que havia Ols em abundância, todos os seres vivos eram suspeitos.

E Perdição afirmara que havia Ols que podiam assumir a forma de objetos: os Ols de Grau Três, a perfeição da arte perversa do Senhor das Sombras. Se a história era verdadeira e tais seres realmente existiam, até mesmo o arbusto em que Kree se encontrava ou o pedregulho aos pés de Lief podia ser um inimigo secreto. A qualquer momento, uma transformação terrível poderia ocorrer e um espectro branco e bruxuleante com a marca do Senhor das Sombras em sua essência poderia surgir e dominá-los.

Nenhum lugar era seguro. Nada era confiável.

Lief molhou os lábios, lutou contra o medo que lhe apertava o peito, mas mesmo assim a sua carne parecia tremer sobre os ossos. Ele deslizou as mãos para debaixo da camisa e sentiu o Cinturão de Deltora que lhe pesava na cintura. Os seus dedos escorregaram até a sexta pedra, a ametista. Quando pousaram sobre ela, a sua magia percorreu-lhe o corpo, e o tremor desapareceu lentamente.

"Vamos encontrar um modo de achar um barco", ele disse a si mesmo. "Vamos atravessar o rio, a nossa busca irá continuar e vamos sobreviver."

Contudo, Lief não conseguiu livrar-se da sensação de que tinham sido apanhados numa rede. Uma rede que o Senhor das Sombras puxava para si muito lentamente.

 

O sol já ia alto quando Barda acordou para substituir Lief na vigília. O garoto acordou no meio da tarde e constatou que o céu estava cinzento e o ar, pesado. Uma dor de cabeça maçante se manifestou quando se sentou. Ele tivera um sono pesado, pontilhado de sonhos confusos e perturbadores.

Barda e Jasmine ajeitavam os seus pertences.

— Acho que devemos prosseguir, Lief, assim que você estiver pronto — Barda sugeriu. — Já está muito escuro e, se esperarmos a noite cair, a nossa jornada não vai render muito antes de a chuva cair.

— A vila que vimos quando fomos até a costa não pode estar muito longe — Jasmine acrescentou, virando-se para espiar os arredores por entre os arbustos. — Se chegarmos até lá antes do anoitecer, talvez possamos convencer alguém a nos levar para a outra margem do rio.

Lief sentiu uma onda de irritação. Seus amigos estiveram conversando enquanto ele dormia, fazendo planos sem consultá-lo. Certamente esperaram com impaciência que acordasse, considerando-o um dorminhoco. Eles não sabiam o quanto ele estava cansado? Ele dormira durante horas e, no entanto, ainda se sentia exausto... tão exausto que achava que uma semana de sono não o satisfaria.

Quase imediatamente, percebeu que o seu aborrecimento era resultado desse mesmo cansaço. Ele observou as pálpebras pesadas de Jasmine e as marcas escuras e profundas no rosto de Barda. Seus companheiros estavam tão exaustos quanto ele. Lief obrigou-se a sorrir, assentiu e começou a reunir os próprios pertences.

Quando chegaram ao próximo vilarejo, estava mais escuro ainda, apesar de a noite ainda não ter caído. Os companheiros atravessaram cautelosamente o portão aberto no muro.

O local estava em ruínas. Tudo que não era feito de pedra havia sido queimado e transformado em cinzas. Os conhecidos nomes "Finn", "Nak" e "Milne" estavam rabiscados nas paredes que permaneceram de pé.

— Eles escreveram seus nomes aqui num gesto de triunfo, pensando que são reis e não piratas, ladrões e assassinos — Jasmine murmurou enraivecida. — Estou feliz por eles terem morrido gritando.

— E eu também — Barda ajuntou com veemência.

Lief também desejou concordar. Houve uma época em que teria sido fácil fazê-lo, mas, ao pensar em como Milne, principalmente, fora ao encontro de seu terrível destino, tagarelando aterrorizado no Labirinto da Besta, algum motivo desconhecido o impediu. A vingança não mais lhe parecia doce. Tinha havido sofrimento demais.

Ele se virou e começou a procurar entre as ruínas, mas nada havia para encontrar. Não havia pessoas ou animais naquele lugar abandonado. Não havia abrigo.

E não havia barco.

Com os corações pesados, Lief, Barda e Jasmine prosseguiram devagar.

A chuva começou à meia-noite. Primeiro, ela caiu com força, golpeando-lhes as mãos e as faces, para depois se transformar em um fluxo constante que os encharcou e enregelou até os ossos. Kree permanecia empoleirado tristemente no ombro de Jasmine, e Filli molhado escondia a cabeça em seu casaco.

Eles caminhavam penosamente em meio à lama e à escuridão, tentando manter-se alertas, procurando qualquer coisa que os ajudasse a atravessar o rio. Mas não havia árvores, apenas arbustos baixos. Não havia troncos de árvore nem tábuas jogadas na praia pelas águas, e nada que encontravam servia para construir uma balsa.

Ao amanhecer, conseguiram repousar um pouco, abrigando-se como puderam embaixo de umas folhas que pingavam. No entanto, algumas horas depois, o lugar onde estavam deitados ficou encharcado, e eles tiveram que se levantar e recomeçar a caminhada.

E assim o tempo passou. No início da terceira noite de chuva, eles haviam parado de procurar um ponto onde cruzar o rio, agora inchado e com as margens alagadas. A chuva dificultava a visão da outra margem, mesmo durante o dia, mas Lief e Barda sabiam que já deviam ter atingido o lado oposto dos grandes canteiros de junco que haviam impedido que eles prosseguissem correnteza abaixo. De nada adiantaria atravessar naquele ponto, mesmo que encontrassem um meio de transporte. Eles sabiam, a partir da experiência amarga que tiveram, o que era chapinhar naquele lodaçal.

— Será que esse rio perverso vai barrar nossa passagem para sempre? — Jasmine resmungou, quando pararam para descansar mais uma vez. — E essa chuva não vai parar nunca?

— Se pudermos avançar mais um pouco, estaremos em frente ao local em que o rio Largo se une ao Tor — Barda afirmou. — Sei que lá, pelo menos, há árvores. Podemos construir um abrigo e descansar até que a chuva pare. Talvez até possamos acender uma fogueira.

E assim eles prosseguiram envoltos pela fria e úmida escuridão. Então, depois do que pareceu um tempo extremamente longo, Jasmine parou bruscamente.

— O que foi? — Lief sussurrou.

— Sshh! Escute! -Jasmine ordenou, agarrando a manga do casaco de Lief com a mão molhada.

Lief franziu o cenho, tentando se concentrar. No início, tudo que conseguiu ouvir foi o tamborilar da chuva e o correr do rio intumescido mas, finalmente, as vozes chegaram até ele. Vozes ásperas, zangadas e irritadas.

Os companheiros avançaram devagar. E, não muito longe, viram uma luz que piscava, antes oculta pelas árvores.

Árvores! Lief se deu conta de que finalmente haviam atingido o abrigo pelo qual procuravam. Mas outros o haviam encontrado antes deles. A luz vinha de uma lanterna pendurada em um galho, intermitente por causa dos vultos que se moviam à sua volta, bloqueando-lhe a claridade vez ou outra.

As vozes aumentaram de intensidade.

— Pois eu acho que devemos voltar! — um homem vociferou. -Quanto mais penso no assunto, mais me convenço disso. Não deveríamos ter concordado em deixar Nak e Finn sozinhos com o saque. Como sabemos que eles ainda estarão lá quando voltarmos?

Lief balançou a cabeça. Será que estava imaginando coisas? Tinha ouvido o homem dizer "Nak" e "Finn"? Seriam os vultos entre as árvores os piratas que haviam partido para levar Dain até os Guardas Cinzentos? Mas o que estariam fazendo ali? Ele pensava que eles estariam muito mais longe naquele momento.

— Nak e Finn vão estar esperando por nós, Gren — o outro pirata resmungou. — Pode ter certeza de que eles vão querer a parte do ouro que vamos receber por aquele insignificante membro da Resistência.

Eles falavam de Dain! Lief esforçou-se para enxergar melhor o rio além das árvores e achou ter vislumbrado parte das velas do navio pirata que certamente estava ancorado perto da margem. E Dain se encontrava nele!

— Você é um idiota que confia demais nas pessoas, Rabin! — gritou Gren. — Se eu estiver certo, Nak e Finn têm muito mais para pensar do que num punhado de moedas de ouro! Por que outro motivo teriam deixado que subíssemos o rio sozinhos? Você acredita mesmo que eles têm medo de Perdição? Ele não passa de mais um infeliz integrante da Resistência!

— Eles devem ter parado quando a chuva começou — Barda sussurrou. — Talvez a correnteza do rio tenha ficado forte demais para que pudessem enfrentá-la. E eles vieram até a terra firme em busca de abrigo.

— Então deve haver um bote a remo aqui, na beira do rio — deduziu Jasmine.

— Nak e Finn não iriam nos trair! — gritou uma mulher com voz estridente. — Você é que é um traidor por pensar nisso, Gren. Cuidado! Lembre-se do que aconteceu com Milne.

Outras vozes murmuraram zangadas.

— Não me ameace, sua bruxa! — disparou o homem. — Você não tem memória? Você não se lembra de quando um dos prisioneiros da caverna disse que Finn havia encontrado uma grande pedra preciosa? E se for verdade?

— Uma pedra encontrada no Labirinto da Besta? — Rabin zombou. — Ah, sim, tenho certeza de que isso é bem possível! Você está de miolo mole, Gren, se acredita nesses contos da carochinha!

— Cale essa boca horrível, Rabin! — Gren devolveu, a voz carregada de raiva.

— Cale a sua, gordo idiota!

E, então, ouviu-se um movimento repentino e violento, seguido de um gemido de dor.

— Ah, seu demônio! — a mulher gritou.

Alguma coisa atingiu a lanterna. A luz balançou descontrolada e apagou.

— Fique longe de mim! — Gren ordenou. — Ora, sua...

— Tire as mãos dela! — gritaram várias outras vozes furiosas.

E, de repente, o bosque pareceu explodir em sons quando o resto da tripulação entrou na briga. Gritos e grunhidos, o tilintar do aço, o quebrar de galhos, passos pesados e gritos estridentes se sobressaíram em meio ao tamborilar da chuva.

— Para o rio! — Barda sussurrou. — Depressa!

 

O bote cheio de água até a altura dos tornozelos balançava na beira do rio. Sem dúvida, ele tinha sido empurrado para a terra seca quando o último dos piratas descera. Mas o rio havia subido e o fizera flutuar, se não estivesse amarrado a uma árvore, certamente teria sido levado pela correnteza.

Barda precisou de apenas alguns instantes para desamarrar a corda enquanto seus companheiros esgueiravam-se para dentro do barco seguidos por Kree, que esvoaçava acima deles. Quando o grande homem subiu e apanhou os remos, o grupo já avançava para águas mais fundas.

Gritos e brados vindos das árvores ainda se sobressaíam ao barulho da chuva. Não muito longe dali, o navio pirata puxava violentamente a âncora. Duas vigias na lateral cintilavam como olhos, fato que Lief não tinha notado antes. Freneticamente tirando água do fundo do bote, ele espiou para o convés procurando sinais de movimento.

Enquanto isso, Barda lutava com os remos. Contudo, essa era uma habilidade que ele não dominava, e as águas agitadas do rio erguiam-se ao redor do bote, resistindo a todos os movimentos dele e empurrando-os rio abaixo.

— A correnteza é forte demais para mim! Não sei se vou conseguir chegar até o navio — ele bradou, sacudindo a cabeça a fim de afastar os cabelos molhados da testa.

— Você precisa conseguir! — Jasmine insistiu. E somente então Lief se deu conta do quanto ela queria que Dain fosse salvo. Ela não tinha dito nada antes e parecera aceitar a perda do rapaz com a calma que sempre exibia diante de fatalidades. Contudo, naquele momento em que Dain se encontrava tão perto, ela não conseguia enfrentar o pensamento de deixá-lo para trás.

Cerrando os dentes, Lief largou o balde e engatinhou até o banco do remador.

— Passe para lá! — ele gritou, sentando-se ao lado de Barda e apanhando um remo. Ele nunca remara antes, mas vira os piratas fazê-lo alguns dias antes e acreditou poder imitá-los. Juntos, ele e Barda curvaram-se para a frente e para trás, incessantemente.

A força adicional nos remos começou a apresentar resultados. Devagar e com dificuldade, o bote se aproximou do navio pirata. Nesse momento, eles ouviram um grito, não vindo da praia, mas do próprio navio.

Lief olhou à sua volta. Um vulto parado no convés acenava freneticamente. Era Dain. Um vulto menor saltitava ao seu lado sacudindo violentamente uma lanterna. Lief percebeu que era a pequena criatura estranha e tratante que Dain chamara de polípano. Os piratas certamente o haviam deixado a bordo com Dain e este, de algum modo, convencera-o a libertá-lo.

Dain erguera um rolo de corda presa ao convés do navio e começou a balançá-la como se fosse jogá-la.

— Aqui! — Jasmine gritou. Ela se ergueu com dificuldade e estendeu as mãos. O bote jogava perigosamente.

— Sente-se! — Barda ordenou com rispidez. — Você vai fazer o bote virar. Lief, reme!

E, então, Jasmine soltou um grito, Kree gritou e o bote deu um solavanco e girou. Lief olhou novamente sobre o ombro. O contorno escuro do navio pirata com suas vigias semelhantes a dois olhos brilhantes que os contemplavam fixamente parecia muito próximo.

Dain atirou a corda. Jasmine a apanhou e, apesar de as suas fibras estalarem e se esticarem entre as duas embarcações dando a impressão de que iam se romper, isso não aconteceu.

— Não consigo segurar a corda! — Jasmine gritou. Ela já estava perigosamente inclinada sobre a borda, a água quase lhe cobrindo a cabeça. Filli choramingava assustado no ombro dela, incapaz de ajudar, apavorado com a possibilidade de cair. Kree esvoaçava ao lado deles, gritando aterrorizado.

Barda largou o remo e rastejou até eles, tomou a corda nas mãos fortes e puxou. O bote balançou e se agitou nas ondas. Lief agarrou ambos os remos e fez o que pôde para lutar sozinho contra a correnteza.

— Volte, Dain! — ele escutou Barda gritar. — Nós vamos subir a bordo. — Mais uma vez, Lief arriscou um olhar. Dain, acompanhado pelo polípano, descia freneticamente uma escada de corda que pendia da lateral do navio exatamente entre as vigias iluminadas. O polípano ainda segurava a lanterna que parecia ura terceiro olho com pouco brilho e oscilante.

Contudo, ao se esforçar para enxergar melhor através da chuva, notou que a luz das vigias também oscilava e, sem dúvida, parecia muito mais brilhante do que antes.

— Dain! — Barda vociferou. — Dain, esse bote é muito pequeno. Não podemos...

É possível que Dain tenha ouvido, mas não lhe deu atenção. Ele se virou e se preparou para saltar, segurando-se à escada com uma das mãos. Seu cabelo estava encharcado e grudado na cabeça. A expressão de seu rosto, reluzindo sob a luz da lanterna, parecia desesperada. Acima dele, o polípano tagarelava e balançava, sacudindo a escada apavorado.

Então, Lief sentiu o cheiro de fumaça e entendeu.

— Fogo! — ele gritou.

Assim que as palavras lhe saíram da boca, ouviu-se um estrondo vindo do interior do navio. As vigias se estilhaçaram e línguas de fogo saltaram para fora. Grandes fendas se abriram no casco do navio por onde se via o fogo queimar furiosamente. A água da chuva chiava e se transformava em vapor assim que tocava a madeira incandescente.

Dain e o polípano saltaram juntos e caíram dentro do bote. Este oscilou para o lado, formando uma grande onda que jogou Lief para trás e arrancou-lhe os remos das mãos.

O bote tornou a se endireitar, mas balançava ao sabor das ondas e rapidamente inclinou para um lado, pressionado para baixo pelo peso adicional de mais dois passageiros e da água que entrava. Atordoado pela queda, Dain ficou encostado ao banco, enquanto Jasmine tentava freneticamente tirar a água do fundo do bote, e Lief e Barda procuravam os remos. O polípano gritava agarrado à proa. Ele conhecia barcos e sabia muito bem o que podia acontecer com aquele bote.

Gritos furiosos atravessaram o ar vindos da margem do rio. Os piratas escutaram o barulho, descobriram a perda do bote e viram o fogo. Lief, ao mesmo tempo em que tentava bravamente manter o equilíbrio do bote, notou-lhes as sombras saltando à luz da lanterna que haviam tornado a acender. Mas aquele brilho tênue não era nada em comparação ao inferno em que o navio se transformara.

Parecia inacreditável que o fogo pudesse queimar apesar da chuva torrencial e da água que corria por baixo do navio. Mas o fogo começara abaixo do convés e engolia descontrolado as provisões.

— Foi o polípano! — Dain acusou, erguendo-se. — Ele jogou uma lanterna na cabine debaixo do convés, onde eram armazenados o óleo, a gordura e as tintas. A chuva e as batidas dos piratas o deixaram maluco!

"Assim como o desejo de mastigar a goma marrom de que ele tanto gosta", pensou Lief olhando para a figura de braços longos que se agarrava à proa, aos gritos. O polípano, certamente, desejava nunca ter deixado o Rainha do Rio.

— Precisamos nos afastar do navio — Barda gritou. — Se ele afundar, vai nos puxar com ele.

Barda e Lief curvaram-se outra vez sobre os remos, mas os seus esforços desajeitados foram inúteis. Nada parecia conseguir impedir o bote de ser perigosamente levado pela correnteza. E, quanto mais água Jasmine tirava do fundo, mais entrava pela borda.

O polípano soltava gritos estridentes, os olhos vidrados de pavor. Então, sem aviso, ele saltou repentinamente de onde se encontrava para junto de Lief e Barda, empurrando-os para o lado e apossando-se dos remos.

Blasfemando, Barda tentou tirá-los dele.

— Não! — Lief gritou. — Deixe-o! Ele sabe remar muito melhor do que nós. Ele pode nos salvar!

Com dois hábeis impulsos nos remos, o polípano virou o bote, então, inclinou-se para trás, contraiu os braços fortes e começou a remar. E, como se o bote reconhecesse que finalmente se encontrava nas mãos de um perito, começou a cortar as ondas com velocidade surpreendente. Alguns momentos depois, ele se afastara do navio em chamas e se dirigia para o outro lado do rio.

Jasmine continuava a tirar água do barco e, à medida que ela desaparecia devagar, a velocidade da embarcação aumentava. Logo o navio em chamas ficou para trás. Eles sabiam que adiante estavam as águas largas e tranqüilas do rio Largo e a ponte em arco que o cruzava. Mais adiante, também se encontrava o triste vilarejo de Onde as Águas se Encontram e o pequeno píer que exibia a placa Rainha do Rio.

Filli chiava, excitado, farejando o ar.

— Estamos muito próximos! — Jasmine exclamou. — Estamos quase na margem.

O polípano virou, mostrando os dentes marrons. Os seus braços não pararam de trabalhar nem por um momento, mas seus olhos pareciam pegar fogo enquanto perscrutavam a escuridão.

O rio estava agitado onde as águas dos dois rios se encontravam, mas o bote avançava depressa. "É como atravessar um redemoinho", Lief pensou agarrando-se ao banco. Se o polípano não estivesse remando, eles nunca sobreviveriam a essa turbulência.

No momento seguinte, porém, o polípano parou de remar. Ele deixou o seu lugar, abandonando os remos e correu para a proa, passou por Jasmine e Dain e saltou para a escuridão.

Os companheiros ouviram um baque e o som de passos apressados.

— O píer! — Jasmine gritou.

Desesperada, ela se inclinou para a frente, tentando agarrar os pilares do velho píer ou o poste que sustentava a placa Rainha do Rio. Contudo, as águas turbulentas puxaram o bote para longe antes que ela conseguisse o seu intento. O barco estava sendo arrastado rio abaixo, girando sem parar. Um dos remos afundou na água, soltou-se, girou na correnteza agitada e se perdeu.

Barda estendeu a mão para o outro, mas não foi rápido o bastante. Antes de poder apanhá-lo, ele seguiu o mesmo destino do primeiro.

E não havia nada que os companheiros pudessem fazer, além de agarrar-se às bordas da embarcação à deriva, enquanto as águas traiçoeiras os levavam para longe.

 

Tranqüilidade. Silêncio. Uma luz rosada através das pálpebras fechadas. Lief acordou confuso. Amedrontado, permaneceu deitado. A última coisa que lembrava era o bote se chocando contra algo, girando e depois prosseguindo a louca trajetória na escuridão.

"Será que eu adormeci?", ele pensou. "Como isso aconteceu?"

Mas ele tinha dormido ou perdido a consciência. Não havia dúvidas quanto a isso, pois ali se encontrava ele, despertando. A chuva tinha parado, a terrível noite tinha passado.

"Ou... será que eu morri? Esta luz, flutuando tranqüila... é assim que toda a luta termina?"

Lief abriu os olhos. O céu acima dele estava rosado. Estava amanhecendo.

Lentamente, ele se sentou. Diante dele, havia um lago imenso, liso como um espelho. Jasmine dormia ao seu lado, o rosto apoiado nas bordas duras de um banco, enquanto Kree permanecia ao lado dela, vigilante. Barda encontrava-se deitado não muito longe, respirando serenamente. E Dain... Dain estava sentado na proa, os olhos escuros repletos de admiração.

— Onde estamos? — Lief indagou com voz rouca, molhando os lábios. — O que aconteceu?

— Batemos em alguma coisa... talvez um banco de areia formado pelas águas — Dain respondeu devagar. — Acho que fomos conduzidos para um canal separado do rio principal. Devemos ter flutuado até este grande lago, em vez de sermos carregados correnteza abaixo.

— Mas não há nenhum lago ao lado do rio Tor! — Lief protestou. Ele sacudiu a cabeça incapaz de acreditar nos próprios olhos. No entanto, ele conseguiu ver, a distância, o largo braço do rio dirigindo-se para o mar.

— Parece que antigamente havia — Dain disse suavemente. — E, por causa da enchente, ele se formou outra vez. Você não está vendo? Isto aqui são os canteiros de junco que agora foram cobertos pelo lago, como era antigamente. E agora não há nenhuma neblina para esconder o que existe na beira do lago.

Ele apontou. Lief virou-se e ali, exatamente às suas costas, havia terra firme e uma extensão de luz resplandecente.

É Tora — Dain sussurrou. — Tora.

Lief apertou os olhos por causa do brilho atordoante e finalmente discerniu as formas cintilantes de torres, torreões e muros. Em meio ao seu assombro, ele primeiro pensou que os próprios edifícios cintilavam com um brilho vindo do seu interior por algum tipo de mágica. Depois, ele se deu conta de que o brilho era provocado pelos raios do sol da manhã batendo contra milhares de superfícies brancas e polidas.

Lief desviou o olhar e esfregou os olhos úmidos. Era impossível ver a cidade com clareza. Mesmo assim, ele tinha visto o suficiente para ficar surpreso e cheio de admiração diante de sua beleza silenciosa e intocada.

— Tora foi escavada numa montanha de mármore com o auxílio da magia — Dain contou. — Ela é perfeita. Um bloco único, sem nenhuma fenda ou emenda.

A voz do rapaz parecia mais forte e grave. Lief olhou para ele intrigado e viu que ele estava sentado com o corpo bem reto. Como já tinha acontecido uma outra vez, desde que Lief o conhecera, de repente ele parecia mais velho, orgulhoso e menos frágil. A boca estava firme, os olhos brilhavam. Era como se uma máscara tivesse caído de seu rosto, revelando-o.

Dain sentiu o olhar de Lief e virou o rosto rapidamente.

— Agora seria uma boa hora para entrar na cidade — ele disse com a voz habitual. — É muito cedo, e a maior parte das pessoas ainda deve estar dormindo.

Sem esperar uma resposta, ele rastejou para a extremidade do bote e saltou para a praia. O barco balançou levemente, e Jasmine e Barda abriram os olhos, sentando-se assustados.

— Está tudo bem... — Lief garantiu. — Estamos em segurança. A inundação tornou a encher um velho lago. E parece que chegamos a Tora.

Assim como Dain fizera, ele apontou para longe. E, como ele mesmo fizera momentos antes, Barda e Jasmine se viraram e piscaram diante das luzes exuberantes.

— Então Tora realmente fica perto do rio! — Jasmine exclamou.

— Ou, pelo menos, junto a um lago ao lado do rio.

— E Dain acha que podemos entrar calmamente na cidade sem sermos detidos? — Barda murmurou. — Tora é controlada pelo inimigo.

— Isso foi o que Perdição disse — Lief lembrou, franzido o cenho.

— Mas começo a me perguntar se ele estava dizendo a verdade. Não consigo ver a cidade com clareza, mas não parece haver Guardas Cinzentos no portão, marcas do Senhor das Sombras nas paredes, tampouco sinais de danos ou destruição, ou detritos. E ela tem uma aparência tão pacífica, Barda. Você já viu algum lugar ocupado pelos Guardas igual a esse?

Barda hesitou e depois passou a mão sobre a boca seca.

É possível — ele sussurrou. — Será que a magia dos toranos tem sido forte o bastante para repelir até a maldade do Senhor das Sombras? Nesse caso, Lief... nesse caso...

O coração de Lief acelerou excitado.

— Nesse caso, o herdeiro de Deltora pode estar aqui. Esperando por nós.

A cidade se descortinava diante deles silenciosa, à espera, envolta em luz. As margens do lago se estendiam vazias e convidativas diante deles. No entanto, assim que Lief pousou os pés em terra firme, o seu entusiasmo desapareceu e ele foi tomado pelo medo.

De cabeça baixa, ele seguiu Dain devagar, lutando contra o medo, tentando compreendê-lo. Seria aquela uma cautela natural, uma relutância em mergulhar meio às cegas num lugar em que, apesar das aparências, os inimigos poderiam estar à espreita? Seria medo da poderosa magia de Tora?

Ou seria porque, agora que o momento havia praticamente chegado, ele temia encontrar o herdeiro de Deltora?

Ele ergueu a cabeça e espantado viu que Dain já se encontrava no fim da praia. A figura solitária hesitou por uma fração de segundos, então, avançou para a luz atordoante e desapareceu. Lief piscou e esfregou os olhos que começaram a lacrimejar outra vez, toldando-lhe a visão.

Ele caminhou aos tropeços, puxando a capa ao redor do corpo a fim de ocultar a espada. "Não devemos parecer inimigos", ele pensou confuso. "Precisamos..."

— Lief! — ele escutou Barda chamá-lo ansioso e percebeu que os companheiros o haviam perdido de vista. Cada fio de sua capa reluzia, envolvendo-o em luz. Ele respondeu ao chamado e aguardou. Barda e Jasmine alcançaram-no rapidamente, os braços protegendo os olhos ofuscados.

Juntos, eles percorreram os últimos metros que os separavam dos muros da cidade. Aos poucos, acostumaram-se à luz, e ela não mais os cegou. Os companheiros chegaram ao final da praia. Tora erguia-se diante deles em todo o seu vasto esplendor.

Tora foi escavada numa montanha de mármore com o auxílio da magia. Ela é perfeita. Um bloco único, sem nenhuma fenda ou emenda.

Eles pararam por um momento impressionados. E, então, com as mãos estendidas diante deles, a fim de demonstrar que não desejavam causar nenhum mal, os amigos passaram pelo amplo arco branco que era a entrada da cidade.

No mesmo instante, foram percorridos por um profundo calafrio como se tivessem sido mergulhados num banho de água fria e límpida. Por um momento, o tempo parou, e Lief perdeu toda a noção de onde se encontrava ou do que deveria fazer. Quando voltou a si, percebeu que os seus olhos ofuscados o haviam enganado. Lief havia pensado que o arco era simplesmente uma passagem, mas ele era muito mais profundo do que imaginara. Em vez de caminhar diretamente para dentro da cidade, ele e os companheiros viram-se parados na sombra de um túnel reverberante. Um espaço branco, liso e arredondado os cercava.

Kree murmurava e grasnava, oscilando levemente no braço de Jasmine.

— O que foi isso? — Jasmine sussurrou. — Essa... sensação?

Lief balançou a cabeça, sem saber o que dizer. Mas ele não sentia medo. Na verdade, jamais se sentira tão tranqüilo em toda a vida.

Devagar, eles caminharam até o fim do túnel e, finalmente, saíram para a luz da cidade.

Nenhuma figura de túnica esperava por eles. Nenhum Guarda Cinzento saltou com ar zombeteiro, no caminho deles. O silêncio era sinistro. As botas deles ecoavam na rua ampla e reluzente.

Virando-se para um dos lados, Lief puxou a camisa e observou o Cinturão de Deltora. O rubi estava mais brilhante do que nunca, de modo que eles ainda não se encontravam em perigo. Mas... a esmeralda!

Lief olhou fixamente para a pedra preciosa. A esmeralda perdera toda a cor e estava completamente embaçada e sem vida como quando se encontrava em poder do monstro Gellick, na Montanha do Medo. O que aquilo significava? Estariam cercados por algo maligno? Ou... ele pareceu se lembrar de que algo mais era capaz de tirar o brilho da esmeralda. Mas o que era?

Ele e os companheiros continuaram a andar. Salões e casas, torres e palácios erguiam-se cintilantes de ambos os lados. Pelas janelas e portas abertas, viam-se cortinas suntuosas, tapetes de seda e móveis finos. Em todos os lugares, jardineiras floridas enfeitavam as janelas reluzentes e cercadas de abelhas. Árvores frutíferas cresciam vigorosamente em vasos imensos, arrumados ao redor de pátios nos quais mesas com comida e bebida se encontravam postas, e fontes espirravam água para o alto.

Contudo, não havia ninguém sentado junto das fontes, cuidando das árvores ou servindo-se da comida. Ninguém falava pelas ruas ou espiava das janelas das casas. Ninguém andava pelos tapetes de seda ou repousava nas refinadas poltronas. A cidade estava totalmente deserta.

É como Onde as Águas se Encontram — Jasmine sussurrou.

— Não — Barda murmurou sombrio. Lá, a cidade se encontrava em ruínas. Mas aqui... bem, parece que as pessoas acabaram de partir. Será que a mágica dos toranos é tão poderosa que eles podem ficar invisíveis? — ele indagou, olhando sobre o ombro. — E onde está Dain?

Intrigados, um frio percorrendo-lhes a espinha, eles prosseguiram pelas ruas de mármore vazias.

Finalmente, o grupo chegou a uma enorme praça no centro da cidade e ali pelo menos uma das perguntas de Barda foi respondida, pois encontraram Dain.

Grandes salões decorados com altas colunas cercavam a praça. O maior encontrava-se no alto de um majestoso lance de largos degraus. No último deles, havia uma caixa esculpida que parecia deslocada ali, como se tivesse sido levada para lá com um propósito e, depois, abandonada.

Dain, porém, não havia subido os degraus. Ele estava agachado aos pés de um imenso pedaço de mármore que se encontrava no centro da praça. Lief soube no mesmo instante que se tratava da pedra que o pai vira no quadro do palácio em Del. Contudo, não havia chamas verdes sendo lançadas do topo. E ela estava rachada de um lado a outro.

Dain não se moveu quando Lief, Barda e Jasmine caminharam em sua direção. Mesmo quando se aproximaram e o chamaram, ele pareceu não lhes notar a presença. Os seus olhos inexpressivos e desesperançados estavam fixos na pedra.

Havia palavras gravadas no mármore e a fenda irregular atravessava-o como uma ferida.

Nós, povo do Tora,

juramos lealdade a Adia, rei de Deltora,

e a todos de sou sangue que o sucederem.

Se algum dia esse juramento for quebrado,

que esta pedra, coração da cidade,

também se quebre e sejamos nós eliminados para

sempre para que lamentemos a nossa desonra.

 

Lief olhou para a pedra fosca e quebrada, o coração partido ao se lembrar, enfim, das palavras de o Cinturão de Deltora que descreviam os poderes da esmeralda.

 

A esmeralda, símbolo da honra, perde o brilho na presença do mal e quando um juramento é quebrado.

 

— Tora quebrou o seu juramento — Lief murmurou, sem necessidade de obter mais provas do que tinha ocorrido. — Mas por quê? Por quê?

Com um gemido de frustração e desapontamento, Barda se afastou. Lief e Jasmine, contudo, não conseguiram acompanhá-lo. Não ainda.

Lief pousou a mão no ombro de Dain.

— Levante-se, Dain — ele pediu baixinho. — Não há nada para você, aqui. E nada para nenhum de nós. Tora está vazia. Tudo está preservado por encantamento, mas está sem vida. E acho que já faz muito tempo. É por esse motivo que o lago secou, e a cidade foi separada do rio.

— Não pode ser — Dain murmurou tomado pela tristeza. — Esperei tanto tempo — a expressão de seu rosto denotava o seu sofrimento e perturbação. Todo o seu corpo tremia.

— Dain, por que você tinha que vir a Tora? — Jasmine perguntou, ajoelhando-se ao lado dele. — Conte-nos a verdade.

— Achei que os meus pais estariam aqui — ele respondeu com a voz muito baixa. — Minha mãe sempre me disse que, se algum dias fôssemos separados, eles me encontrariam em Tora. Ela disse que sua família vivia aqui e que eles nos abrigariam. Eu contei isso a Perdição, um ano atrás, quando ele me encontrou lá, largado para morrer pelos bandidos que atacaram a nossa fazenda — ele prosseguiu, os punhos fechados. — Ele disse para não contar isso a ninguém, pois meus pais poderiam correr perigo quando chegassem a Tora se alguém ficasse sabendo que o filho deles estava com a Resistência.

— Como alguém ficaria sabendo? — Lief indagou intrigado.

— Perdição teme que exista um espião entre nós. Pelo menos, foi isso o que ele me disse — Dain olhou a pedra destruída, o olhar sombrio. — Mas ele também me contou que Tora estava tomada por espiões, infestada de Guardas Cinzentos e Ols. Ele mentiu. O tempo todo em que ele me deteve com falsas promessas, ele sabia que a cidade estava deserta e que eu alimentava falsas esperanças — ele respirou fundo. — Nunca mais vou voltar para a fortaleza. Nunca mais.

Dain deixou pender a cabeça e não mais a ergueu. Lief o observou e percebeu, vagamente, que já ficara irritado antes porque Dain responsabilizava Perdição por todos os seus problemas, pois, afinal, o rapaz não era prisioneiro dele. Ele poderia ter deixado a Resistência a qualquer momento e viajado para Tora sozinho.

Mas naquele momento Lief não sentia irritação, somente uma profunda tristeza. E perguntou-se por que motivo estaria se sentindo daquele modo.

— Vejam, ali!

A voz de Barda tinha um som estranho. Lief ergueu o olhar e viu que o amigo tinha subido os degraus do grande salão. Atrás dele, elegantes colunas brancas erguiam-se na direção do céu, mas ele olhava para baixo, para a caixa esculpida e aberta que segurava nas mãos.

— Vá — disse Jasmine em voz baixa. — Vou esperar aqui.

Lief se ergueu, atravessou a praça e subiu as escadas. Barda estendeu a caixa para que ele a visse. Em seu interior, havia inúmeros rolos de pergaminho. Lief escolheu um e o desenrolou.

 

O Rei agradece a sua mensagem.

Ele vai atender ao seu pedido assim que possível.

Brandon

 

Lief remexeu na caixa, apanhou outros rolos e os leu. Todos eram iguais, exceto pelas assinaturas. Alguns estavam assinados pela rainha Lilia, outros pelo rei Alton, pai de Endon. Outros, ainda, exibiam a assinatura do próprio Endon.

— Essas mensagens são parecidas com as que meu pai me mostrou

— Lief comentou sem entusiasmo. — As mensagens que o povo de Del recebia quando enviava pedidos e reclamações ao rei.

— Parece que os toranos também enviavam esses mesmos tipos de mensagem e recebiam as mesmas respostas — Barda conjeturou.

— Imagino que, assim como o povo de Del, eles se sentiram abandonados. Assim, quando chegou a última mensagem... — ele estendeu dois pedaços de papel amassados para Lief. — Estes também estavam na caixa — ele disse carrancudo. — Em cima de todos os outros.

Os pedaços de papel eram as duas metades de um bilhete. Lief as reuniu e leu a mensagem escrita às pressas.

 

 

Povo de Tora:

O Cinturão de Deltora está perdido, o Senhor das Sombras retornou. Com a ajuda de um verdadeiro amigo, escapei com a rainha e nosso futuro filho. Eu lhes peço que nos ofereçam refúgio em honra de seu antigo juramento.

Enviar resposta pelo mensageiro.

Não percam tempo, eu lhes imploro.

Endon,

Rei de Deltora

 

— Mensageiro? — Lief indagou e olhou fixamente para o bilhete. — Que mensageiro? — balbuciou.

— Um pássaro, sem dúvida — Barda afirmou. — Um pássaro preto como Kree, é quase certo. Houve época em que havia muitos em Del e, antigamente, acreditava-se que eles eram pássaros reais, devido à sua inteligência. É por isso provavelmente que a feiticeira Thaegan os detestava tanto e gostava de comê-los.

— Os toranos rasgaram o bilhete — Lief sussurrou. — Eles se recusaram a ajudar e quebraram o juramento. Como puderam arriscar-se tanto?

Barda deu de ombros. O seu rosto estava sombrio e denotava a sua decepção.

— A pedra na praça data dos tempos de Adin. Talvez os toranos não acreditassem mais naquelas palavras, mas a antiga magia ainda era poderosa. Eles foram condenados no momento em que rasgaram o bilhete. O seu pai não contava com isso, Lief — Barda comentou, fitando a caixa esculpida nas mãos. — O rei e a rainha deixaram Del apressadamente, muito antes que qualquer resposta pudesse ter retornado de Tora. Sem dúvida, eles imaginaram que receberiam alguma mensagem durante a viagem e que a magia de Tora os ajudaria em seu trajeto. Mas o plano falhou.

— Isso quer dizer que durante todo esse tempo meu pai acreditou que o herdeiro se encontrava a salvo em Tora, esperando por nós — Lief murmurou. — Esse era o seu segredo. Ele pensou que nos encontraríamos aqui e também nos primeiros dias de nossa jornada. Você lembra? Segundo os planos dele, o Vale dos Perdidos seria a nossa primeira meta, não a última. Se fosse, certamente teríamos passado por Tora no caminho para o Labirinto da Besta.

Lief pousou as mãos no Cinturão em busca de coragem.

— O plano de se esconder em Tora pode ter falhado, mas de alguma forma Endon e Sharn encontraram outro lugar seguro — ele deduziu. — O Cinturão está intacto. O meu pai me disse que isso significa que o herdeiro está vivo, onde quer que esteja. Quando o Cinturão estiver completo, ele nos mostrará o caminho. Meu pai tem certeza disso e precisamos acreditar nele.

Lief tornou a guardar as duas metades do bilhete na caixa esculpida, fechou a tampa com firmeza e a recolocou na escada.

Quando levantou a cabeça, Barda exibia uma expressão séria e seu olhar esquadrinhava a grande praça e os prédios que a circundavam, as imensas colunas, as estátuas de pássaros e animais, as urnas esculpidas transbordantes de flores. Lief perguntou-se o que ele estaria fazendo. Exceto pela pedra quebrada, junto da qual Dain ainda se encontrava agachado, tomado pelo sofrimento e acompanhado por Jasmine, nada havia para ver.

— Se a cidade está vazia, por que tudo está tão perfeito e intacto, Lief? — Barda perguntou de repente. — Por que não foi destruída por saqueadores e animais? Os piratas, os bandidos... o que os impediu de pilhar este lugar à vontade?

Ele apontou a caixa.

— Até mesmo ela é uma obra de arte. Deve valer uma fortuna para um comerciante. E, sem dúvida, a cidade está repleta de objetos como este. E, no entanto, ninguém os roubou? Por quê?

Ele falava em voz baixa, mas mesmo assim a sua voz pareceu ecoar na praça.

— Você acha que Tora está... protegida? — Lief sussurrou, sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha.

— Lief! Barda! — Jasmine chamou.

Perplexos, ambos olharam para baixo. Jasmine ainda se encontrava agachada junto de Dain e acenava com insistência. Lief e Barda desceram os degraus correndo e atravessaram a praça na direção dela.

Dain não ergueu a cabeça, embora certamente tivesse ouvido a aproximação deles. Jasmine envolvera-o com um cobertor, mas mesmo assim ele tremia.

— Ele não se move — Jasmine sussurrou assustada. — Ele não consegue parar de tremer e não aceita nem mesmo um pouco de água. Estou com muito medo por ele.

— Levem-me embora daqui, eu imploro — Dain murmurou com os lábios descorados. — Não consigo suportar. Por favor, levem-me embora.

 

Os companheiros começaram a deixar a cidade. O olhar de Dain, que caminhava sustentado por Lief e Barda, era triste e inexpressivo. Ele se arrastava, aos tropeços. Sua testa estava molhada com um suor frio, e o corpo frágil ainda continua tomado por um intenso tremor.

Lief assistia com pesar ao sofrimento do rapaz, mas, em algum lugar, no fundo de sua mente, ele estranhava a prostração de Dain. Não tinha o garoto sido treinado por Perdição e pela Resistência durante um ano? Não tinha ele enfrentado Ols e outros perigos assustadores no dia-a-dia?

Dain esperara encontrar os pais em Tora, e isso não aconteceu. Entretanto, por que motivo o choque e desapontamento o haviam abalado tão profundamente? Era como se o coração dele tivesse se partido como a pedra de Tora, e a luz de seu espírito tivesse sido apagada como as chamas verdes.

O grupo prosseguiu e, com exceção de Dain, todos olhavam para as casas à medida que passavam. Através das janelas reluzentes, viam-se claramente os tristes sinais de uma vida que se fora: alimentos tão frescos quanto no dia em que haviam sido preparados, travessas e louças lindamente pintadas, almofadas e cortinas bordadas. Em quase todas as casas, havia teares dos quais pendiam tecidos de milagrosa delicadeza à espera de que o tecelão, há muito desaparecido, retornasse.

Os teares fizeram Lief lembrar-se da mãe. Quantas vezes a vira sentada tecendo tecidos para os seus trajes e artigos domésticos? Lief sabia que a mãe era muito habilidosa, pois outras pessoas a elogiavam. Mas os fios que ela era obrigada a usar eram ásperos e descorados, em nada parecidos com os de Tora que brilhavam como jóias.

A coisa mais fina que ela havia feito era a capa que ele usava agora. Sua mãe colocara toda a sua habilidade naquela peça e, segundo as palavras dela, também amor e lembranças.

Onde estaria a mãe naquele momento?

"Eu, entre todas as pessoas, deveria compreender o sofrimento de Dain", Lief pensou. "Sei o que é sentir a falta e temer pelo bem-estar de pais muito amados."

"Mas você não perdeu as esperanças", sussurrou uma voz no fundo de sua mente. "Você não se abandonou ao desespero, tampouco adoeceu de corpo e alma. E quanto a Jasmine, ela desistiu e morreu quando os pais foram levados? Barda se desesperou quando a mãe foi morta e seus amigos, assassinados?"

Lief sacudiu a cabeça para afastar a voz. "As pessoas têm diferentes forças e fraquezas", ele disse a si mesmo. "Eu não devo culpar..."

Os pensamentos dele tomaram outro rumo quando uma nova idéia surgiu em sua mente. Talvez houvesse outro fator que justificasse a prostração de Dain que ele ainda não compreendia. Todos os sinais indicavam que o rapaz não estava simplesmente tomado pelo sofrimento e pela decepção, mas sim profundamente chocado. Mais chocado do que seria razoável, se ele lhes contara toda a verdade.

A entrada do túnel encontrava-se diante deles. O grupo atravessou a sua sombra fresca e, mais uma vez, Lief sentiu o misterioso formi-gamento percorrer-lhe o corpo. Ele caminhou num sonho e lamentou passar para o espaço ensolarado.

Ele e Barda pousaram Dain no chão com delicadeza. O rapaz continuava tremendo como se estivesse com frio, os grandes olhos fitando o sol brilhante sem vê-lo.

— Dain, tente ser forte — Barda incentivou. — Assim você vai acabar ficando doente.

Ele repetiu essas palavras várias vezes até que, finalmente, Dain reagiu. Lentamente, o olhar vago recuperou o brilho. O garoto moveu-se e molhou os lábios secos.

— Sinto muito — ele murmurou. — Encontrar a cidade vazia foi um grande choque para mim. Mas isso não é desculpa.

Kree grasnou e bateu as asas num gesto de advertência.

— Alguém está se aproximando! -Jasmine exclamou, empunhando a adaga.

Lief olhou para o lago, mas este permanecia imóvel. Isso significava que o perigo se aproximava por terra, pelas colinas que se erguiam ao lado e atrás da cidade.

Kree voou para o alto, preparando-se para investigar.

— Não, Kree! — Jasmine ordenou. — Eles podem ter arcos e flechas. Fique conosco.

O pássaro pairou no ar por um instante e, então, com relutância, voltou para baixo.

— Jasmine, eles são muitos? — Barda perguntou preocupado. Como fizera tantas vezes antes, Jasmine se ajoelhou e colou o ouvido ao chão.

— Acho que são apenas dois — ela informou depois de um momento. — Ambos são altos, um mais pesado do que o outro.

Dain a observava com atenção, claramente impressionado. Lief percebeu que o tremor nos membros do rapaz havia diminuído. "Ter algo a mais em que pensar parece ser exatamente o que Dain precisa", Lief pensou. Mas, apesar da constatação, sentiu-se um tanto aborrecido.

"No entanto, por que não deveria Dain admirar Jasmine?", pensou dirigindo a irritação para si mesmo. "Qualquer um admiraria suas habilidades." Então lhe ocorreu que, se ainda estivesse no interior de Tora, não estaria zangado, mas sim bastante calmo.

"O encantamento da cidade está se esvaindo", pensou. "Estou voltando ao normal."

E, finalmente, compreendeu o que significava o formigamento que sentira no túnel. Ele compreendeu por que Tora permanecia perfeita e intocada após dezesseis anos de abandono.

— Lief! — Barda chamou insistente. — Depressa!

— Lief empunhou a espada e correu a reunir-se aos amigos. Estes encontravam-se parados, lado a lado, formando uma barreira entre Dain e dois vultos altos que se aproximavam, vindos das colinas. Os recém-chegados pareciam brilhar na ofuscante luz do sol.

Seriam bandidos? Ols?

— Tora está protegida por magia — Lief disse rapidamente. — Uma magia que age sobre corações e mentes. O túnel afasta todo o mal. Se voltarmos para lá, nada poderá nos prejudicar.

Barda olhou rapidamente para ele e depois para os muros reluzentes da cidade. Lief percebeu que ele media mentalmente a distância e tentava decidir se deveriam arriscar-se a voltar e correr para a segurança. Mas era tarde demais. Os estranhos já os tinham visto e apressavam o passo.

Inquieto, Dain apoiava o peso do corpo ora num pé, ora no outro.

— Dain, volte para Tora — Barda ordenou.

Mas Dain negou com um gesto obstinado ao mesmo tempo em que procurava sua adaga.

— Dain! — Jasmine exclamou. — Vá!

— Se eles forem Ols, posso ajudar — Dain retrucou entre dentes. — Ou fico com vocês, ou morro. Estou cansado de demonstrar fraqueza.

Ele se postou ao lado dela e mostrou uma expressão carrancuda para os estranhos que se aproximavam. De repente, o seu olhar ficou mais atento, e a sua boca se transformou numa linha dura.

— Perdição! — ele balbuciou, virando-se.

Perplexos, Lief, Barda e Jasmine se deram conta de que ele estava certo. Agora eles podiam ver que o mais alto dos estranhos era quem se intitulara Perdição das Colinas. Perdição, que tinham visto pela última vez na fortaleza da Resistência e que os mantivera prisioneiros durante três dias.

Para sua surpresa, constataram que Neridah, a Veloz, o acompanhava. Por que a escolhera como companheira? À medida que se aproximavam, Lief notou que Neridah sorria, ao passo que a expressão de Perdição continuava séria.

— Não relaxem! — Barda murmurou. — Eles podem ser Ols tentando nos enganar.

Era evidente que Dain e Lief não compartilhavam da mesma opinião, mas mesmo assim suas mãos apertaram-se sobre o punho da espada. À sua maneira, Perdição tinha provado ser tão perigoso quanto, qualquer Ol e que não era confiável.

Quando a dupla se aproximou, Perdição não perdeu tempo com cumprimentos.

— Então, Dain — ele grunhiu —, você está onde queria. Está satisfeito?

— Você sabia! — Dain explodiu. — Você sabia o tempo todo o que aconteceu aqui, Perdição. Você mentiu para mim!

— Claro! — Perdição retrucou com frieza. — O que mais o mantinha forte além da esperança? Constatar que você alimentava falsas esperanças o fez sentir-se melhor ou pior?

O rosto de Dain mostrava claramente a resposta. Perdição assentiu com amargura.

— Tenho procurado seus pais desde que o levei à fortaleza, Dain. Eu esperava ter êxito antes que você descobrisse que eles não estavam em Tora. Mas você não conseguiu esperar.

— Não, não consegui! — Dain gritou desafiador. — Mas não é minha culpa. Eu não conhecia os verdadeiros acontecimentos. Não sou uma criança que precisa ser protegida e alimentada com contos de fadas! Foi me enganando que você me levou a fazer o que fiz.

Perdição fitou-o durante um longo momento. Então, para surpresa de todos, a sua expressão se descontraiu e ele quase exibiu um sorriso.

— Houve uma época em que você não teria falado com os mais velhos dessa maneira — ele começou. — Quando o conheci, você era uma criança educada e obediente.

— Não sou uma criança! — Dain gritou furioso.

— Não, parece que não. Talvez... — Perdição pareceu refletir. — Talvez eu tenha me enganado. Isso não acontece com freqüência — ele admitiu contrariado. — Mas é possível. Será que pode me perdoar e voltar para a fortaleza conosco? Sentimos muito a sua falta.

Dain hesitou.

Barda, Lief e Jasmine entreolharam-se. Em pensamento, todos concordavam com o fato de que muitos problemas se resolveriam se Dain partisse com Perdição. Mas eles não tinham certeza de que o rapaz estaria em segurança.

— Desde a última vez em que o vimos, aprendemos que não devemos confiar nas aparências — Lief disse com calma, dando um passo à frente. — Antes que Dain decida o que pretende fazer, gostaríamos que você e Neridah também entrassem em Tora.

Os olhos escuros de Perdição, então frios e destituídos de humor, voltaram-se para ele.

— Você não precisa ficar mais do que alguns instantes — Lief continuou, recusando-se a ser intimidado. — O túnel de Tora revela o mal muito mais depressa do que a sua sala de teste.

— Então... vocês descobriram o segredo de Tora! — Perdição resmungou. — Parabéns! Mas o que vai acontecer se eu me recusar a atender ao seu pedido?

 

Neridah deu um passo e se postou ao lado de Perdição. Barda e Jasmine colocaram-se ao lado de Lief. Ambas as partes se entreolharam. E então Barda falou.

— Se você se recusar a entrar em Tora, temos o direito de pressupor que vocês são Ols e tomar as medidas necessárias.

Perdição agarrou a espada no mesmo instante.

— Não! — Dain gritou, atirando-se na frente de Barda. — Vocês não devem lutar! Vocês não são inimigos, vocês estão do mesmo lado.

— Ainda não tenho certeza disso — Perdição afirmou, a expressão carrancuda.

— Nós também não — Jasmine replicou. — Pois, se você é realmente Perdição, tratou-nos muito mal e não confiamos em você. E, se você é um OI que assumiu a aparência de Perdição, representa um perigo para todos nós.

Os olhos de Perdição cintilaram. Era evidente que ele podia perceber que as palavras de Jasmine estavam repletas de bom senso. No entanto, ele não baixou a espada.

— Que mal pode haver em provar ser o que parece? — Lief murmurou, deliberadamente mantendo a voz baixa e regular.

— Não temos que provar nada a vocês! — Neridah gritou zangada.

— Perdição e eu estamos juntos desde que deixamos a fortaleza. Podemos jurar...

— O que podemos jurar não significa nada — Perdição disse, estendendo a mão para calá-la. — Ols geralmente viajam aos pares, não é mesmo?

E, então, como se a interrupção de Neridah de certa forma o tivesse ajudado a tomar uma decisão, ele deu de ombros, guardou a espada e começou a caminhar na direção da luz cintilante da cidade. Neridah, claramente surpresa e zangada, hesitou por um instante e depois se virou e o seguiu com passos firmes.

Os amigos os seguiram. Ao atingirem o túnel, aguardaram enquanto Perdição e Neridah prosseguiam sozinhos. Lief também se viu tentado a entrar no túnel, mas algo lhe dizia que essa não seria uma atitude sensata. Ele não podia permitir que todas as suas emoções se dissipassem naquele momento. Um pouco de ira servia para mantê-lo alerta e nunca era demais ficar atento quando se lidava com alguém como Perdição.

Assim sendo, ele ficou e observou, e viu o que de outra forma não teria visto. Quando os dois vultos caminharam pelo túnel, o ar começou a se encher de faíscas coloridas que giravam no ar como grãos de poeira iluminados pelo sol.

— Não vi nada parecido quando atravessamos — Jasmine comentou.

— Eu só... senti.

— Talvez elas sejam invisíveis para quem está lá dentro — Barda esfregou os olhos atordoados com a mão e se virou.

Perdição e Neridah desapareceram em questão de segundos numa nuvem de luz em movimento, mas tornaram a aparecer apenas alguns momentos depois, voltando lentamente pelo caminho que haviam percorrido.

Ambos pareciam aturdidos quando saíram novamente para a luz do sol. Os seus rostos estavam tranqüilos e estranhamente imóveis.

— Então... estão satisfeitos agora? — Perdição indagou. Suas palavras, porém, não continham sarcasmo e o seu olhar parecia perdido. Gemendo, ele se sentou com as costas recostadas aos muros da cidade.

Neridah, Dain e os outros fitaram-no confusos. Fatigado, ele ergueu os olhos.

— Depois que a raiva, o ódio e a amargura deixaram um homem que tem pouco incentivo para viver, o que resta para ele além do vazio? — ele perguntou com um leve sorriso. — É por esse motivo que não gosto de visitar Tora. Eu estive aqui somente uma vez e foi suficiente.

— Quem é você, Perdição? — Lief perguntou de repente.

Por um instante, acreditou que o homem não iria responder. E então Perdição deixou cair os ombros e fechou os olhos, como se não tivesse forças para recusar.

— Não sei quem sou — ele disse. — Não sei o que perdi, além de meu nome. Minhas lembranças começam nas Terras das Sombras. Eu lutava contra um Vraal na Arena das Sombras e fui ferido. Tudo o que aconteceu antes disso está na escuridão.

A sua mão moveu-se lentamente até a cicatriz recortada que trazia no rosto.

— Mas você escapou? — Lief continuou. Talvez fosse cruel usar a atual fraqueza de Perdição para descobrir mais a seu respeito, mas era uma oportunidade que não iria se repetir.

— Escapei da Arena das Sombras — Perdição prosseguiu. — Eles não esperavam por isso. Eles pensaram que eu estava acabado. Fugi pelas montanhas, perseguido e sem ter noção de nada além de que Deltora era o meu lar. Na Montanha do Medo, enfrentei meus perseguidores. Escapei mais uma vez, mas o preço que paguei foi muito alto.

Perdição soltou um profundo suspiro.

— Continuei minha jornada, mais morto do que vivo. Finalmente, um bom homem me encontrou, deu-me abrigo e cuidou de meus ferimentos.

— Um homem que vivia num lugar chamado Kinrest — Jasmine murmurou.

Perdição lançou-lhe um olhar rápido e sorriu mais uma vez, embora os seus olhos estivessem tomados pela tristeza.

— Então vocês viram o seu túmulo e sabem que assumi o seu nome — ele disse. — Ele me salvou, mas eu provoquei a sua morte. Os Guardas Cinzentos que não morreram na Montanha do Medo me perseguiram até a caverna que ele ocupava. Perdição era um homem pacífico e não teve a menor chance contra eles. Mas, graças a ele, eu tinha recuperado as minhas forças. Matei todos os Guardas e espalhei os seus ossos pela floresta.

Vestígios da antiga selvageria tomaram conta de sua voz quando ele proferiu essas últimas palavras. Lief se deu conta de que o efeito tranqüilizador do túnel de Tora se dissipava gradativamente. Perdição ficou em silêncio por um momento e, quando tornou a sorrir, esse sorriso não passava de uma amarga contração dos lábios.

— Acho que vocês se aproveitaram de mim — ele constatou, erguendo-se. — Espero que tenha satisfeito a sua curiosidade — sua boca endureceu, seu olhar tornou-se sombrio. A conhecida máscara impiedosa voltou a cobrir seu rosto.

— Perdição, sei que você passou por maus bocados — Neridah murmurou. — Mas eu não tinha idéia... — ela se calou quando Perdição disparou-lhe um olhar frio. Estava claro que ele não queria sua solidariedade ou admiração. Neridah corou, mas logo sacudiu a cabeça num gesto irritado e se afastou deles.

— Não me meti em seus assuntos por pura curiosidade, Perdição

— Lief explicou em voz baixa.

— Não? — o homem fitou-o longamente e então virou-se para Dain.

— Combinei com Steven, o mascate, para encontrá-lo dentro de alguns dias — ele comunicou simplesmente. — Ele tem novos suprimentos para nós. Você vai me acompanhar? Ou prefere ficar com seus novos amigos?

— Ele não tem escolha, Perdição. Dain precisa ir com você — Barda ajuntou rapidamente. — Temos uma longa e difícil jornada à nossa espera.

— Não quero ser uma carga para ninguém — Dain respondeu aborrecido corando. — Vou com você, Perdição, para encontrar Steven.

Perdição assentiu com um leve gesto de cabeça. E então, como se tivesse ficado ressentido por ver Dain ser deixado de lado com tanta facilidade, ergueu uma sobrancelha e disse:

— E que lugar é esse que torna a jornada de vocês tão difícil? — ele quis saber.

Mesmo muito tempo depois, Lief não soube explicar a resposta que dera a Perdição naquele momento. Ele seguira um impulso, talvez por querer dar a ele alguma informação como sinal de confiança. Ou talvez estivesse simplesmente cansado de mentiras.

— Nós vamos para o Vale dos Perdidos — ele disse claramente. Barda e Jasmine viraram-se para ele surpresos por vê-lo falar tão francamente. Dain pareceu curioso, mas Perdição apenas assentiu, a expressão sombria.

— Imaginei que iriam para lá. E aconselho, do fundo do coração, que desistam desse plano. O Vale não é para gente como vocês.

— O que você sabe? — Barda indagou irritado.

Perdição olhou para onde Neridah se encontrava sentada, observando a água do lago, e baixou a voz.

É um lugar maligno. Um lugar de sofrimento e de almas perdidas. Sei de muitos que lá entraram em busca da grande jóia, o prêmio de seu Guardião.

Lief olhou rapidamente para Barda e Jasmine. Ambos pareciam perplexos e atentos. Ele molhou os lábios.

— Uma grande jóia? — ele perguntou cauteloso. Perdição fitou-o com um quê de sarcasmo.

— Não me insultem tentando fingir que nada sabem. Eu sei que essa é a sua meta. Dizem que se trata de um diamante maior e mais poderoso do que qualquer outro já visto. Maravilhoso. Puro. Sem preço. Isso não é segredo por essas bandas. A sua fama atraiu muitos antes de vocês para as garras do Guardião. Todos entraram esperançosos no Vale. Todos desejaram amargamente nunca tê-lo visto.

 

Lief sentiu uma pontada de medo, mas endireitou os ombros. Barda estava parado como uma rocha, a mão pousada na espada. Mas Jasmine atirou os cabelos para trás e ergueu o queixo.

— Mesmo assim, precisamos ir — ela disse desafiadora. Perdição estendeu as mãos e agarrou-a pelos ombros.

— Você não precisa! — ele falou entre os dentes cerrados. — Escute o que estou dizendo! A busca de vocês já está perdida. Se insistirem, também se perderão. E para quê? Por causa de um sonho. Por nada!

Jasmine soltou-se com um safanão e deu um passo para trás, colocando-se ao lado dos amigos. Perdição fitou-os por um momento, ergueu as mãos, mas logo as deixou cair novamente, num gesto de derrota.

— Fiz o que pude — ele murmurou. — Não há nada mais que eu possa fazer. Mas é um desperdício. Vocês já têm muitos seguidores. Juntos, poderíamos ter incitado o povo. Poderíamos ter nos unido para combater o Senhor das Sombras. Poderíamos ter salvado Deltora.

É verdade que, por ora, devemos seguir caminhos separados — Barda afirmou. — Mas, no momento certo, iremos nos unir e lutar juntos.

— No momento certo... — Perdição repetiu, virando-se. — Temo que esse momento nunca chegue para vocês, amigos. Não agora.

Com uma expressão sombria, ele jogou a mochila sobre os ombros e fez um sinal para Dain.

— Diga a Neridah que estamos partindo — ele ordenou. — Já perdi muito tempo aqui, e Steven não vai esperar.

Com um último olhar para Lief, Barda e Jasmine, Dain caminhou vacilante até a beira da água.

— Você sabe mais do que está nos contando, Perdição! — Jasmine exclamou. — Se puder nos ajudar, faça-o!

— Vocês recusaram a única ajuda que posso lhes oferecer — ele murmurou. — Vocês não têm o direito de pedir mais do que isso.

Ele fitou-a carrancudo, e Jasmine devolveu-lhe o olhar, seus olhos verdes tomados pela raiva. E então, inesperadamente, ele soltou uma breve risada.

— Há uma coisa que posso fazer por vocês — ele disse condescendente. Perdição puxou um gorro de lã preta do bolso e jogou-o para ela. Você e o pássaro fazem com que o seu grupo seja reconhecido. Cubra os seus cabelos com isso. Você já está vestida como um garoto, bem esfarrapado, para falar a verdade. É o seu cabelo que a denuncia.

Jasmine fitou-o longamente, como se não tivesse certeza de aceitar o presente, mas finalmente o bom senso superou o orgulho. Ela ergueu os cabelos e ajeitou-os sob o gorro, cobrindo as orelhas com ele. A transformação foi instantânea. Foi como se um garoto mal-humorado estivesse parado diante deles.

Kree gritou, numa evidente demonstração de que a mudança não lhe agradara. Perdição, contudo, fez um gesto de aprovação.

— Assim está melhor — ele elogiou.

Ele se voltou assim que Dain se aproximou e exibiu uma expressão carrancuda ao notar que o garoto vinha sozinho.

— Por que Neridah não está com você? — ele disparou.

— Ela... ela não vai conosco — Dain balbuciou. — Ela disse que vai continuar a viagem até a casa dela.

— Então foi por isso que ela insistiu em me acompanhar — Perdição resmungou zangado. Tenho certeza de que ela nunca teve a intenção de voltar. A vida na fortaleza não agrada a ela. É muito difícil e perigosa e não há dinheiro para gastar com os luxos aos quais uma atleta mimada se acostumou.

— Mas... ela não tem medo de que os Guardas Cinzentos a sigam? — Lief se espantou.

— Certamente ela pensa que será capaz de persuadir você a acompanhá-la em pelo menos parte do trajeto. E ela está convencida de que vai estar em segurança quando chegar em casa — Perdição disse com certa ironia. — Ela é tola. Mais uma que insiste em não ouvir conselhos.

Sem dizer mais nada, ele se virou a começou a se afastar na direção das colinas. Dain hesitou por um momento, depois murmurou uma despedida apressada e correu atrás dele.

Como Perdição havia previsto, Neridah fez o que pôde para convencer os amigos a permitir que ela os acompanhasse. No fim, ela não resistiu e chorou nos braços de Barda, alegando que deixara a Resistência apenas porque Perdição lhe partira o coração.

— Eu o amo — ela soluçou. — Mas ele é cruel e não liga para mim. Não vou ficar onde posso vê-lo todos os dias. É impossível.

Barda deu-lhe tapinhas desajeitados no ombro, mas Jasmine a observava com uma surpresa fria e Lief... Lief conhecia muito bem as manobras enganosas de Neridah para acreditar que as lágrimas dela fossem verdadeiras.

Finalmente, cedendo à insistência de Barda, eles concordaram em deixá-la viajar com o grupo por um ou dois dias.

— Mas, depois disso, precisamos nos separar, Neridah — Barda avisou com gentileza. — Nosso destino é um local assustador e perigoso.

— O Vale dos Perdidos — ela sussurrou. — Eu sei. Eu ouvi o nome enquanto vocês conversavam com Perdição. Vocês são tão corajosos... muito mais do que ele imagina.

Mais uma vez, Lief se perguntou o que significava a atitude dela. Ela não dera nenhum sinal de que ouvira o que haviam falado com Perdição. Ela ficara sentada, bastante quieta, fitando o lago como que perdida em pensamentos. E durante todo o tempo ela estivera ouvindo. Ela ouvira o nome do Vale dos Perdidos. O que mais teria escutado?

Ela é astuciosa, Lief concluiu. Precisamos ter cuidado.

No final, Neridah viajou com o grupo cerca de uma semana. Ela protestou com veemência quanto a viajar à noite e foi uma companheira mal-humorada e irritada. Contudo, embora passassem por várias estradas que levavam à casa dela, ela se recusou a segui-las. Sempre que Lief, Barda e Jasmine tentavam separar-se dela, ela chorava e corria atrás deles. Ela grudava neles como mel e acabou por perder até a simpatia de Barda.

— Estou começando a achar que ela não está sendo sincera conosco — ele sussurrou certo dia, depois que Neridah enfiou-se amuada sob seu cobertor. — Ela disse que queria ir para casa. Por que não faz isso?

— Não sei — Lief sussurrou em resposta. — Mas precisamos dar um jeito nela depressa. Eu não confio nela e não a quero conosco quando chegarmos ao Vale dos Perdidos. Segundo o mapa e os nossos cálculos, ele não fica longe daqui.

— Uma coisa é certa: de bom grado, ela não vai deixar que continuemos sem ela — Jasmine afirmou aborrecida. — Portanto, temos duas opções. Ou batemos na cabeça dela e corremos, ou esperamos até que ela esteja profundamente adormecida e nos afastamos pé ante pé.

Ela pareceu um tanto desapontada quando Lief e Barda escolheram a segunda opção.

Algumas horas depois, eles puseram o plano em prática, esgueirando-se para longe do acampamento como ladrões. Caminharam depressa o dia todo, tentando não ser vistos e, quando o sol se pôs, chegaram a uma cadeia de montanhas escarpadas e densamente arborizadas.

— O Vale fica nessa cadeia, tenho certeza — Barda afirmou.

— Vai ser uma escalada longa e difícil — Lief suspirou, analisando as montanhas. — E perigosa também, pois a floresta é muito densa e escura. A Lua está em seu quarto minguante e amanhã não poderemos contar com a luz do luar.

— Não consigo escutar nada com essa lã grossa cobrindo os ouvidos — Jasmine reclamou impaciente, arrancando o gorro e sacudindo os cabelos aliviada. — E então, o que você estava falando? Que vai estar escuro de noite? E que a floresta é muito densa? É verdade. Que tal dormirmos a noite toda desta vez, já que podemos escalar durante o dia escondidos pelas árvores?

O plano parecia excelente e eles fizeram exatamente o que Jasmine sugeriu. Assim sendo, foi somente no final do dia seguinte que os amigos atingiram o cume da montanha escarpada e conseguiram ver a enorme fenda na terra que era o Vale dos Perdidos.

 

Uma névoa espessa arrastava-se taciturna no fundo do vale. Agitada pelos lentos movimentos de vultos quase invisíveis que se aglomeravam nas profundezas, ela recobria o topo das árvores. Um calor leve e úmido cheirando a folhas e madeira em decomposição e vidas sufocadas roçou o rosto dos amigos como um eco enviado pela névoa.

Jasmine estava irrequieta. Filli choramingava em seu ouvido, e Kree, após um leve e único pio, sentou-se imóvel em seu braço.

— Eles não gostam do Vale — ela murmurou.

— Eu também não posso dizer que estou maravilhado — Barda devolveu secamente.

Jasmine curvou os ombros e estremeceu. E então, sem dizer nada, virou-se e voltou para a maior das árvores que circundavam a beira do penhasco. Surpresos, Lief e Barda observaram quando ela ergueu Filli e o colocou no galho mais alto que pôde alcançar. Kree voou e pousou ao lado dele.

— Sei que vocês vão cuidar um do outro — Jasmine disse. — Tomem cuidado.

Ela se virou e, sem olhar para trás, voltou para a companhia de Lief e Barda, e encontrou seus olhares interrogativos.

— Eu disse... Kree e Filli não gostam do Vale. Eles não podem descer até lá.

— Por quê? — Lief indagou, intrigado. Ele olhou para o galho em que Kree e Filli encontravam-se pousados, olhando desamparados para Jasmine.

— Se eles descerem, morrerão — Jasmine explicou simplesmente, dando de ombros. — E qualquer outra criatura. A névoa os matará.

Um calafrio percorreu o corpo de Lief.

— E quanto a nós? — ele indagou bruscamente.

— Há pessoas lá embaixo. Posso ver suas sombras em meio à neblina Jasmine contou. — E, se elas podem sobreviver, nós também podemos. Vamos descer até onde a névoa começa. Lá, decidiremos o que fazer.

Bruscamente, ela se virou e ergueu a mão para Kree e Filli. Então se voltou novamente, ajeitou o gorro com firmeza sobre as orelhas e caminhou até a beirada do penhasco.

Lief e Barda a seguiram. O chão sob seus pés era íngreme, traiçoeiro, escorregadio e coberto de pedras soltas. Andando e escorregando, sempre se arriscando a cair, eles desciam cada vez mais. Depois de apenas alguns minutos, Lief perdeu a noção de que estava caminhando por sua livre vontade. As pedras escorregadias e o declive fortemente inclinado faziam o trabalho por ele. Visto da beira do penhasco, o Vale tinha parecido muito distante. Agora ele se aproximava rapidamente.

Uma vez ele olhou para trás. O cume do penhasco assomava alto sobre eles. Impossivelmente alto e distante. Era difícil acreditar que ele e os amigos haviam estado lá em cima, que tinham tido a opção de descer, ficar onde se encontravam ou até dar as costas ao Vale e partir.

Parecia que, naquele momento, não havia escolha. Quanto mais se aproximavam da pesada neblina, mais ela parecia atraí-los e mais íngreme se tornava o declive. Era preciso muito mais energia para parar do que para prosseguir. Os companheiros apoiavam-se uns nos outros para não cair, mas pouco podiam fazer para se ajudar mutuamente.

E, antes que se dessem conta, estavam envolvidos pela névoa. Era como se ela tivesse se erguido para encontrá-los, roçando-lhes os rostos com dedos quentes e úmidos, turvando-lhes os olhos. Lentamente, ela se insinuou em seus narizes e bocas, enchendo-os com seu cheiro exageradamente adocicado e seu sabor de deterioração.

"Não era esse o plano", Lief pensou confuso. Ele tentou parar em meio a um passo, escorregou e caiu, rolando cegamente ofegante, debatendo-se nas pedras. Ele ouviu Barda e Jasmine chamá-lo assustados, mas não conseguiu interromper a queda.

Quando finalmente parou, percebeu que se encontrava no fundo do Vale. A névoa espessa o circundava. Árvores espectrais, cobertas de musgo denso, repletas de trepadeiras que pendiam de seus galhos estendiam-se sobre sua cabeça. Grandes porções de um fungo vermelho escuro e reluzente saíam salientes das raízes retorcidas ao lado de seu rosto. Samambaias viçosas arqueavam-se ao seu redor, tocando-lhe o rosto e as mãos enquanto ele se esforçava para erguer-se ofegante.

E em toda a sua volta ouvia-se um suave suspirar, como uma leve brisa soprando entre as árvores. Mas não havia vento. O som parecia vir de todos os lados, do interior do espaço cinzento e inquietante onde sombras ainda mais escuras deslizavam, contorciam-se e se aproximavam.

— Barda! Jasmine! — Lief chamou tomado por repentino pavor. Contudo, a névoa abafou-lhe a voz, e ela lhe pareceu fina e estridente. E, quando seus amigos responderam, as vozes deles pareceram estar muito, muito distantes.

Lief tornou a chamá-los. Ele imaginou ter ouvido um grito de dor e sentiu o peito apertar. Mas então viu os amigos saídos da escuridão, aproximando-se aos tropeços. Ele se inclinou para a frente, agarrando-lhes os braços, agradecido.

— Bem, pelo menos ainda estamos vivos — Barda resmungou. — A névoa ainda não nos matou.

Jasmine, porém, nada disse. Ela havia empunhado a adaga e se encontrava parada, muito quieta, todos os músculos tensos.

O som murmurante e plangente estava mais alto. A névoa que os cercava girava e crescia, e as sombras escureciam e se aproximavam.

— Afastem-se! — Jasmine gritou, erguendo a adaga num gesto ameaçador.

As sombras vacilaram por um momento para logo em seguida avançarem novamente. E então Lief pôde ver que eram pessoas, multidões de homens, mulheres e crianças atravessando a neblina, vindas de todas as direções.

Elas não pareciam inamistosas. Na verdade, à medida que se aproximavam devagar, os seus rostos pálidos pareciam acolhedores e tomados por uma ansiedade tímida, enquanto as mãos longas e finas se estendiam na direção dos companheiros. Os dedos eram de um cinza-claro, quase transparentes, assim como as roupas compridas que esvoaçavam ao redor delas. Os cabelos pendiam escorridos pelas costas. Não era de surpreender que parecessem fazer parte da névoa.

Elas sussurravam enquanto se moviam, o som de suas vozes era semelhante ao de folhas secas farfalhando ao vento, mas Lief não compreendia nada do que diziam. Ainda assim, ele não se sentiu ameaçado. Mesmo quando elas chegaram muito perto e a primeira delas tocou-lhe o rosto, as roupas e os cabelos com dedos ressecados e leves como asas de uma mariposa, ele não sentiu medo, somente uma repugnância que o fez retrair-se.

E ainda mais e mais pessoas chegaram. Os trapos descorados que usavam cobriam membros que pareciam apenas pele e osso. As suas formas davam a impressão de se misturar e se unir, e de se sobrepor à medida que avançavam, cada mão movendo-se em cima de dezenas de outras, tocando, apertando...

Barda e Lief estavam rigidamente imóveis, enquanto Jasmine tremia, a boca apertada e os olhos fortemente cerrados.

— Não posso suportar isto — ela sussurrou. — Quem são eles? O que há de errado com eles? — ela segurava a adaga frouxamente na mão e não fez menção de usá-la. Estava muito claro que aquelas pessoas eram totalmente inofensivas e que passavam por terríveis dificuldades.

Houve uma agitação em meio à multidão. Ela se inclinou e estremeceu como um pasto verdejante varrido pelo vento. E então as mãos irrequietas foram se retraindo, as pessoas se afastaram, sussurrando em meio à névoa, os olhos cinzentos tomados por um anseio desesperançado.

O medo pairava no ar. Lief podia senti-lo, até quase cheirá-lo. E então ele viu quem o provocava. Uma sombra alta e escura, perfurada por dois pontos vermelhos de luz que brilhavam como carvões incandescentes, atravessava a neblina na direção deles.

Lief tentou colocar a mão sobre a espada, mas não conseguiu movê-la. Ele procurou recuar, porém os seus pés não obedeceram. Um simples olhar o avisou de que Barda e Jasmine estavam igualmente enfeitiçados.

A sombra tomou forma, e Lief pôde constatar que os carvões incandescentes eram olhos, olhos que queimavam no rosto devastado de um homem alto e barbado que vestia uma túnica longa e escura. Ele segurava, em cada uma das mãos, duas correias grossas e cinzentas que desapareciam na névoa atrás dele como se estivessem presas a alguma coisa, mas parecia ignorar-lhes a existência. O seu olhar penetrante estava fixo em Lief, Barda e Jasmine.

Os amigos lutaram para se libertar, e os lábios finos do recém-chegado curvaram-se num sorriso maldoso.

— Não desperdicem as suas forças — ele disse num tom satisfeito. — Vocês não podem fazer nada, a menos que eu permita. É uma lição que vocês logo aprenderão. Sejam bem-vindos ao meu vale. Há muito não tenho o prazer de receber visitantes e agora tenho a felicidade de receber quatro.

Ele observou com vivo prazer quando Lief, Barda e Jasmine se entreolharam surpresos. Quatro visitantes? Do que ele estava falando?

— Talvez vocês tenham pensado em me enganar ao se dividirem em grupos, não é? — ele perguntou. — Ah, como gosto disto. Visitantes que apreciam jogar. Isso fará com que tudo seja mais agradável para todos nós.

Ele curvou um dedo magro e, para surpresa dos companheiros, do meio da névoa saiu Neridah aos tropeços, a expressão desnorteada, ferida e sangrando.

Obstinada, ela os seguira, apesar de tudo que haviam feito, e agora tinham, além de si mesmos, mais uma pessoa com que se preocupar. Rangendo os dentes e enraivecido, Lief lembrou o grito que ouvira. Sem dúvida, Neridah tropeçara ao descer sozinha o íngreme declive.

Ele olhou para a mulher com irritação inútil, quando ela parou ao seu lado. Mas Neridah não lhe devolveu o olhar. Ela olhava para a frente, os olhos cheios de medo e confusão.

O homem que os torturava esfregou as mãos.

— Quem é você? — Lief indagou. O homem sorriu zombeteira.

— Eu? — ele replicou sarcástico. — Ora, vocês não adivinharam? Eu sou o Guardião.

Com um movimento esvoaçante das túnicas, ele se virou e afastou-se para dentro de névoa. Exatamente quando os companheiros iam perdê-lo de vista, ele fez um gesto indiferente com uma das mãos e curvou o dedo indicador.

E, incapazes de impedir, os pés se arrastando como se lutassem para resistir à ordem, Neridah, Lief, Jasmine e Barda o seguiram desajeitadamente.

 

A névoa girava ao redor deles enquanto caminhavam. Samambaias e trepadeiras roçavam-lhe braços e pernas. Sombras tremeluzentes eram percebidas com o canto dos olhos. O povo do vale observava, mas não ousava se aproximar.

O Guardião caminhava diante deles alto, as costas eretas.

— Se o Guardião está nos levando para a sua caverna, cabana ou onde quer que more, melhor para nós — Jasmine sussurrou. — Pois é lá que ele guarda...

Ela se interrompeu olhando para Neridah, que virou a cabeça zangada.

— Eu sei sobre o grande diamante — ela disse em voz alta. — Por que acha que os segui até aqui? Por causa da excelente companhia? — ela lançou um olhar assustado para o Guardião. — Eu achei que vocês tinham condições de obter êxito, não importa quem tivesse falhado — continuou com voz trêmula. — Nunca imaginei que vocês nos levariam a ser capturados assim que pisássemos no Vale!

— Já fomos capturados antes e escapamos — Jasmine sussurrou.

— E vamos conseguir outra vez. Ainda temos as nossas armas.

— Ele falou de jogos — Lief ajuntou devagar. — Ele gosta de jogos. O que será que ele quer dizer?

— Nada agradável, imagino — Barda respondeu com uma careta. — Mas, pelo menos, isso prova que ele é um homem e não um Ol ou qualquer outro animal com forma humana. São os seres humanos que gostam de jogos.

— E, se ele é somente um homem, podemos derrotá-lo, apesar de toda a mágica que usar — Jasmine completou. — Derrotá-lo e tomar-lhe a pedra. Só temos que esperar e descobrir qual é o seu ponto fraco.

Lief hesitou. Ele também acreditava que o Guardião sob a aparência do poder mágico era um ser humano. Mas não tinha certeza de que esse fato facilitaria a tarefa deles. E alguma coisa ainda o estava incomodando na sua memória. Algo que fazia com que ele se arrepiasse cada vez que pensava no diamante.

O grupo caminhou durante um tempo que pareceu longo, cruzou um riacho fundo e, finalmente, chegou a uma clareira. Bruscamente, o Guardião parou e ergueu a mão. Luzes começaram a brilhar através da névoa. Quando os companheiros se aproximaram, viram que as luzes brilhavam no interior de um palácio de vidro em forma de domo.

A neblina girava fora das paredes de vidro, refletindo a luz e emitindo um brilho sinistro. Centenas de vultos cinzentos envoltos em sombras moviam-se na névoa. Dentro do palácio, porém, cores vivas reluziam. Os diversos aposentos eram decorados com móveis refinados, tapetes e quadros coloridos, estátuas de prata e ouro, almofadas e cortinas de seda. Todo o local brilhava como uma jóia.

O Guardião deu um passo para o lado para que os prisioneiros tivessem uma visão melhor das maravilhas do palácio. Ele sorria orgulhoso ao ver os rostos perplexos.

— Vocês hão de concordar que é uma morada digna de um rei — ele disse.

Como ninguém lhe respondeu, o sorriso desapareceu de seu rosto e foi substituído por uma expressão de escárnio.

— Nós vamos entrar. Talvez isso solte as suas línguas e torne vocês mais agradáveis — ele puxou as correias que segurava nas mãos e quatro vultos surgiram de trás dele, saídos da névoa.

Lief percebeu que Neridah reprimia um grito e, na verdade, ele mesmo mal se conteve quando viu as criaturas que emergiram da neblina cinzenta.

Calvos, grosseiros, deformados, cobertos por chagas e abscessos, os braços retorcidos pendendo quase até o chão, os monstros sorriam e babavam enquanto fitavam os prisioneiros. As correias flexíveis que os prendiam ao seu mestre saíam de pontos inchados e vermelhos na parte posterior de suas nucas. Repugnado, Lief se deu conta de que as correias faziam parte deles. Carne de sua carne.

— Esses são os meus bichos de estimação... meus companheiros — o Guardião apresentou. — Eu os mantive escondidos até agora para não assustá-los. Mas vocês aprenderão a amá-los, assim como eu. Talvez já gostem deles, apesar de não saber. Eles são monstros bons e fortes, não é mesmo? Eles me protegem e me fazem companhia. Eles se chamam Vaidade, Egoísmo, Rancor e Ganância.

Enquanto falava, deu uma leve pancadinha na cabeça de cada um. No momento em que sentiram o toque do mestre, as criaturas se inclinaram e deixaram escapar um gemido de prazer.

— Seus nomes são uma pequena brincadeira que inventei — ele disse, sorrindo. — Pois cada um tem uma das imperfeições que mencionei, mas nenhum recebeu o nome daquela que apresenta. Ganância não é ganancioso, Vaidade não é vaidoso, Egoísmo não é egoísta. Rancor também não é invejoso, de jeito nenhum. E, o que é mais importante, ele nunca sentiu rancor em toda a vida. Vocês não acham isso divertido?

Novamente sem resposta, ele se virou e caminhou até uma porta instalada numa das paredes do palácio. A porta se abriu e ele recuou.

Lief, Barda, Jasmine e Neridah caminharam até a entrada ao mesmo tempo. Logo depois, estavam no interior do palácio seguidos pelo Guardião. Os monstros amontoaram-se atrás dele, grunhindo, as correias balançando terrivelmente em seus pescoços. Ao se chocarem, três deles começaram a rosnar e mostrar as garras uns aos outros.

O mestre gritou uma ordem zangada, chutando-os com selvageria. Quando eles finalmente se aquietaram, ele voltou a atenção aos prisioneiros.

— Assim como ocorre com crianças, às vezes os meus bichinhos discordam e precisam de uma mão firme — ele disse com suavidade. — O egoísta e o vaidoso têm muito medo de Ganância. Mas eles lutam, se for preciso, pois, afinal, eles estão presos uns aos outros e não podem escapar.

A porta se fechou com um suave clique.

Lief olhou ao redor, piscando na luz brilhante. O aposento em que haviam entrado era amplo e luxuosamente decorado. No centro, uma fonte jorrava e cintilava. Almofadas de veludo formavam pilhas sobre o piso reluzente. Uma música suave pairava no ar, embora Lief não pudesse constatar de onde o som vinha.

Numa extremidade do aposento, havia uma longa mesa coberta por uma toalha branca que reluzia com baixelas de prata e copos de cristal. Longas velas brancas queimavam em castiçais sofisticados entre travessas repletas de pratos fumegantes e cheirosos.

Cinco lugares haviam sido postos. Dois em cada lado da mesa e um na cabeceira.

O Guardião esfregou as mãos com um som seco e irritante.

— Bem, agora estamos a sós — ele disse. — Agora podemos aproveitar a companhia uns dos outros. Boa comida e bebida. Música. Conversa. E, depois, talvez, o jogo.

A aparência e o aroma da comida eram ótimos, mas para os companheiros o seu sabor lembrava poeira e cinzas, e eles pouco comeram. Eles falaram pouco, também, pois ficara claro desde o início que o anfitrião não buscava uma conversação, mas sim um público.

A voz do Guardião continuou ininterrupta, quando ele se sentou à cabeceira da mesa, suas terríveis criaturas agachadas atrás de sua cadeira.

Lief notou que as correias eram atadas aos punhos do Guardião certamente por tiras ocultas debaixo das mangas. Dessa forma, as mãos dele ficavam livres enquanto os monstros continuavam sob seu controle.

— Nasci em meio a grandes riquezas, mas, devido à maldade e à inveja de terceiros, perdi tudo — ele contou, despejando um vinho dourado num cálice de cristal. — Fui expulso de minha casa. Ninguém ergueu um dedo para me ajudar. Sozinho, sofrendo, desesperado e desprezado, refugiei-me neste vale. No início, os meus únicos companheiros eram os pássaros e outras pequenas criaturas. Mas...

— Não há pássaros ou pequenas criaturas neste vale — Jasmine interrompeu. — Pelo menos que eu tenha visto.

O Guardião fitou-a por sob as sobrancelhas, claramente aborrecido com a interrupção.

— Eles foram embora — ele disparou irritado. — Não havia mais lugar para eles, aqui, depois que eu me transformei e este se tornou o Vale dos Perdidos — ele se inclinou para a frente, os olhos vermelhos emitindo um brilho quente sob a luz das velas. — Vocês não querem saber como esse milagre aconteceu? — ele perguntou. — Vocês não querem saber como eu, um pária, reuni novas riquezas, um novo reino e poderes milhares de vezes mais fortes do que aqueles que perdi?

Ele não esperou a resposta e prosseguiu como se não tivesse havido nenhuma interrupção.

— Um voz me falou quando eu estava mergulhado no sofrimento. Ela sussurrava palavras nos meus ouvidos, dia e noite. Ela me lembrava de como eu tinha sido enganado. De como fora traído. Do que eu tinha perdido. Primeiro, pensei que iria ficar louco. Mas então...

Os olhos brilhantes assumiram um ar vidrado. E, quando ele tornou a falar, foi como se tivesse se esquecido dos visitantes que estavam em sua companhia, como se estivesse contanto a história para si mesmo, uma história que ele contara muitas e muitas vezes antes.

— Então, eu vi a resposta — ele murmurou. — Vi que a luz havia me traído, mas que a escuridão iria dar-me força. Vi que durante toda a vida eu vinha trilhando o caminho errado. Vi que o mal teria êxito onde o bem tinha fracassado. E, então, aceitei o mal. Acolhi-o em meu coração e, assim, renasci como o Guardião.

Bruscamente, os seus olhos perderam o ar vidrado e se concentraram nos estranhos ao redor da mesa. Ele notou os rostos rígidos e sérios, os pratos quase intocados.

— Por que não comem? — ele indagou irritado. — Vocês desejam me insultar?

Lief olhou através da parede mais próxima à mesa. Meio escondido na névoa, um grupo de rostos ansiosos e abatidos colava-se ao vidro.

— Não ligue para eles — o Guardião recomendou sorrindo, fazendo um aceno casual para a multidão. — Os meus súditos não comem nem bebem. Eles estão acima das necessidades comuns da carne. É a sua vida calorosa que eles desejam ardentemente.

Jasmine, Barda e Neridah ficaram ainda mais rígidos. Lief molhou os lábios, estremecendo interiormente ao lembrar os dedos secos e cinzentos que o acariciaram.

— Você quer dizer que eles são espíritos dos mortos? — ele indagou confuso.

O Guardião pareceu indignado e, atrás dele, os monstros se mexeram e grunhiram.

— Espíritos dos mortos? — ele vociferou. — Você acha que eu governaria um reino de mortos? Os meus súditos estão muito vivos, ah, estão, sim, e assim ficarão até o final dos tempos. Eles definham, enfraquecem, mas não envelhecem nem morrem. Irão viver aqui, em meus domínios, para sempre. Essa é a sua recompensa.

— Recompensa! — Neridah explodiu. As mãos dela tremiam ao empurrar o prato para longe.

O Guardião assentiu, alisando a barba Pensativamente.

— Uma ótima recompensa, não é mesmo? — ele murmurou. Embora eu tema que eles sejam ingratos. Eles não sabem apreciar a boa sorte que têm.

— Como eles conquistaram essa recompensa? — Lief obrigou-se a perguntar.

— Ah... — o Guardião esticou-se satisfeito — na verdade, essa é a pergunta pela qual eu estava esperando. A grande maioria de meus primeiros súditos chegou até mim trazida por uma forte ventania, o orgulho que causara a sua queda ainda forte dentro deles — ele murmurou. — Outros, como vocês, cheios de inveja e cobiça chegaram depois para tentar me tomar o meu tesouro mais precioso. O símbolo de meu poder. O grande diamante do Cinturão de Deltora.

 

Lief não ousou fitar os amigos ou Neridah. Ele agarrou os braços da cadeira com força numa tentativa de não revelar seus sentimentos.

Contudo, era evidente que o Guardião não se deixara enganar. Ele sorriu para os presentes na mesa, os olhos vermelhos assimilando avidamente as expressões dos rostos de seus convidados. Então, ele raspou as últimas migalhas do prato e jogou-as ao chão com indiferença. Os quatro monstros lutaram pela comida, cada qual brigando com selvageria por seu quinhão, enquanto o mestre os observava com um sorriso.

— Certa vez, Egoísmo quase matou o ganancioso num jantar como este — ele comentou indolente, enquanto o tumulto finalmente chegava ao fim. — Ah, bem...

Devagar, ele empurrou a cadeira e se levantou, as criaturas desfiguradas movendo-se desajeitadamente e babando atrás dele.

— E agora é hora de jogar — ele anunciou. — É o momento de que gosto mais. Acompanhem-me.

Ele não precisou pedir. Os pés deles o seguiam, quer quisessem ou não, enquanto ele passava de um aposento reluzente a outro acompanhado de perto pelos monstros.

Finalmente, o grupo chegou a um aposento que mostrava claramente que era onde ele passava a maior parte do tempo. Cortinas vermelho-escuras cobriam as paredes, ocultando a neblina e os demais aposentos. Belos quadros e desenhos e um enorme espelho dentro de uma moldura esculpida decoravam o ambiente.

No chão, havia um tapete com uma rica estampa de flores, frutas e pássaros e um humilde eremita em cada extremidade. "Uma das brincadeiras do Guardião", Lief pensou. Em nenhum outro lugar deste vale, seriam encontrados seres vivos, belos e simples. Sobre o tapete, em frente a um sofá coberto de almofadas, havia uma mesa baixa na qual se empilhavam vários livros. Centenas de outros volumes lotavam estantes que se erguiam ao redor das paredes.

O Guardião não parou, atravessou o aposento e puxou a cortina a fim de revelar uma porta de vidro numa das paredes. Ele não a abriu, mas deu um passo para o lado e, com um gesto do braço, convidou os visitantes a observar o espaço que se descortinava do outro lado.

Era um pequeno quarto que continha apenas uma mesa de vidro colocada exatamente no centro. Sobre ela, havia um porta-jóias dourado.

— A pedra que procuram está no porta-jóias — o Guardião informou com voz trêmula. Era evidente que ele mal conseguia conter a alegre excitação. — Aquele que competir comigo e vencer poderá entrar no quarto e apanhar o prêmio.

Lief colou-se à porta de vidro. O Cinturão de Deltora aqueceu levemente, o que provava que o Guardião dizia a verdade. O grande diamante estava no aposento. O Cinturão podia senti-lo.

Barda empurrou a porta com o ombro, mas ela não se moveu.

— Não há força que destranque esta porta — riu o Guardião. Ela está selada por mágica e assim permanecerá até que vocês conquistem o direito de abri-la. E, então, querem jogar?

— Temos escolha? — Jasmine murmurou.

— Ora, é claro que sim! — o Guardião exclamou, erguendo as sobrancelhas. — Se vocês quiserem, podem sair daqui, agora, de mãos vazias. Dêem as costas para a pedra que vieram buscar. Voltem para o lugar de onde vieram. Eu não os impedirei.

Lief, Barda e Jasmine se entreolharam.

— Se ganharmos o jogo e entrarmos no quarto, o diamante será nosso para sempre? — Lief queria ter certeza absoluta. — Você permitirá que deixemos o Vale levando o prêmio conosco? Você dá a sua palavra?

— Certamente! — garantiu o Guardião. — Essa é a regra. O prêmio será seu para sempre.

— E se perdermos? — Barda perguntou bruscamente. — O que vai acontecer?

O Guardião estendeu as mãos. As correias carnosas saltaram livres de seus pulsos e os monstros mexeram-se atrás dele.

— Então... bem, então vocês serão meus para sempre. E vocês permanecerão aqui como todos os outros que escolheram competir comigo. Vocês passarão a fazer parte do Vale dos Perdidos. Para sempre.

Os companheiros ficaram imóveis ao lado da porta. Do lado de fora do pequeno quarto em que se encontrava o porta-jóias, mãos cinzentas e desesperadas roçavam o vidro através da névoa espessa.

— Vão aceitar o desafio? — o Guardião murmurou. Os seus olhos queimavam como carvões incandescentes enquanto esperava pela resposta.

— Precisamos saber mais detalhes antes de decidir — Barda replicou devagar.

— Eu não preciso saber de mais nada! — Neridah exclamou. — Eu já decidi. Esses três podem fazer o que quiserem, mas eu não vou participar de nenhum jogo.

O Guardião se curvou, embora a sua expressão denotasse sarcasmo.

— Então, senhora, pode partir — ele respondeu, fazendo um gesto indiferente com o braço.

Neridah cambaleou como se o feitiço que a envolvia tivesse sido quebrado. Ela recuou, virou-se e correu do aposento sem olhar para trás.

— Uma pena — o Guardião suspirou. — Pensei que ela, de todos vocês, achasse impossível resistir à atração do diamante. Talvez, mesmo agora, ela mude de idéia e volte. Ela carrega um cheiro de ganância e inveja muito forte.

Ele se voltou para as criaturas aos seus calcanhares e afagou-as, uma a uma.

— Vocês perceberam isso, não é mesmo, meus queridos? — ele cantarolou. Os monstros grunhiram em concordância, esfregando as caras inchadas contra as mãos de seu mestre num gesto de adoração.

Sem se incomodar em virar, ele estalou os dedos na direção dos visitantes. Com alívio, eles sentiram os laços invisíveis que os prendiam afrouxar. De repente, podiam mover-se livremente.

O Guardião caminhou até o espelho e começou a se examinar com admiração, alisando a barba e sorrindo. Os dedos de Lief ansiavam por apanhar a espada e atacar. Mas ele sabia, assim como Barda e Jasmine, que seria inútil. Rancor, Ganância, Vaidade e Egoísmo os observavam, os dentes à mostra. A um único som de alerta, o Guardião se viraria e lançaria outro feitiço, talvez ainda mais poderoso que o anterior.

É hora de dormir — ele disse por fim, afastando-se do espelho com um bocejo. — Ao contrário de meus súditos, ainda tenho essas necessidades humanas. O que mais querem saber?

"Ele tem certeza de que queremos o diamante", Lief pensou. "Ele sentiu a nossa necessidade quando olhamos para o porta-jóias. Por outro lado, a necessidade dele também é grande. Ele finge não se importar, mas ele realmente quer que participemos do jogo. O orgulho faz com que ele queira provar ser mais poderoso e inteligente do que nós, nos subjugar e derrotar. Esse é o seu ponto fraco."

— Só poderemos decidir se vamos jogar ou não se soubermos mais sobre o jogo — Jasmine disse em voz alta. — Que jogo é esse? Como se joga?

O Guardião franziu o cenho hesitante.

— Você quer que joguemos, ou não? — Lief insistiu. — E nós... nós queremos o diamante, eu confesso. Mas nós seríamos tolos em arriscar a nossa liberdade cegamente. Precisamos saber se é possível vencer.

É claro que é possível — o Guardião disparou, fitando-os atentamente. — Estão me acusando de trapacear?

— Não — Lief garantiu —, mas alguns jogos dependem de sorte e oportunidade. Talvez o seu seja um desses. E, se for assim...

— O meu não é um jogo de sorte! — o Guardião vociferou. — É uma batalha de inteligência.

— Então prove — Barda pediu com calma. — Diga o que precisamos fazer.

O Guardião refletiu por um momento e então sorriu.

— Parece que vocês serão oponentes respeitáveis — ele comentou. — Muito bem. Eu lhes direi. Tudo que precisam fazer é descobrir uma palavra. A palavra que irá destrancar a porta. E essa palavra é... o meu verdadeiro nome.

Os companheiros fitaram-no em silêncio. De todas as coisas que esperavam, essa era a menos provável.

O Guardião assentiu satisfeito, contente com a surpresa dos amigos.

— As pistas para a charada estão neste palácio — ele ajuntou provocador. — E a primeira está escondida neste aposento.

— Agradeceríamos se pudéssemos ficar um pouco sozinhos, a fim de tomar a nossa decisão, senhor — Barda pediu, endireitando os ombros e usando um tom o mais educado e formal possível.

— Certamente! — O Guardião fez uma mesura. — Sou um homem muito justo e vou lhes conceder essa cortesia. Mas peço que não abusem de minha paciência. Voltarei dentro de instantes, e vocês deverão ter a resposta.

Ele tomou as correias de suas criaturas nas mãos, virou-se e os deixou.

 

Assim que ficaram a sós, Jasmine correu até a porta de vidro e olhou para o quarto mais uma vez.

— Há outra porta aí dentro! — ela sussurrou. — Uma porta que leva para fora. Está vendo? Ali, no canto.

— E daí? Qual é o seu plano? — Barda indagou desconfiado.

É simples — Jasmine começou, os olhos brilhando. — Diremos ao Guardião que jogaremos o estúpido jogo. E então, enquanto ele estiver dormindo, encontraremos um modo de entrar no quarto. Podemos roubar a pedra, sair pela outra porta e escapar do Vale antes que ele acorde.

— Não! — Lief exclamou impulsivo.

— Você está com medo? — Jasmine retrucou, fitando-o aborrecida. — Com medo da magia dele?

Lief hesitou. Não era bem isso, mas algo diferente. Era a lembrança que insistia em não deixar a sua mente. Um aviso. Algo sobre o diamante...

— Seria tolice não ter medo, Jasmine — Barda concordou. — O homem tem grandes poderes e é totalmente louco. Seja lá quem for que ele tenha sido algum dia, o Senhor das Sombras apoderou-se de seu corpo e alma.

Ele se encontrava inclinado sobre a mesinha dando uma rápida olhada nos livros que ali se encontravam. Lief percebeu que Barda, prático como sempre, estava verificando se o nome do Guardião ou parte dele estava rabiscado na capa de um dos volumes e se aproximou para ajudá-lo.

— Vocês nunca vão descobrir o nome dele desse jeito! — Jasmine murmurou furiosa. — Se fosse simples assim, aquelas pobres almas lá fora, na janela, teriam...

O grito sufocado de Lief interrompeu as palavras de Jasmine. No fundo de uma das pilhas de livros, ele se deparou com algo familiar. Um pequeno volume azul descorado. Ele o apanhou e o abriu.

Como esperava, e ao mesmo tempo temia, era O Cinturão de Deltora, o livro que tantas vezes estudara em sua casa, em Del. O livro que vira pela última vez na masmorra em que o pai se encontrava acorrentado e indefeso.

E agora estava ali. Ali, no Vale dos Perdidos! Com o coração aos pulos, ele estendeu o livro para que Barda e Jasmine vissem. Barda franziu o cenho.

— O fato de o Guardião ter uma cópia do livro não significa nada — ele comentou. — Certamente, há vários exemplares, não apenas um. Eles devem estar espalhados por vários lugares esquecidos, em todo o reino.

— Pelo que o Guardião nos contou, podemos ter certeza de que ele é um servo do Senhor das Sombras — Lief argumentou. — E, se ele tem estudado este livro, é porque está obedecendo a ordens de seu mestre. O Guardião finge acreditar que somos estranhos comuns que querem o diamante por simples ganância. Mas, talvez, ele saiba que nosso objetivo é outro.

— Então por que se importar com essa história de jogo? — Jasmine replicou. — Ele pode nos matar quando desejar.

— Talvez ele esteja apenas se divertindo — Lief conjeturou, estremecendo. — Brincando conosco como os gatos brincam com os ratos.

É possível — Barda refletiu. — Mas talvez não. Ele não sabia quando viríamos. E, se ele foi avisado sobre a chegada de um garoto, um homem e uma garota acompanhada de um pássaro preto, ele pode não ter se dado conta de que somos nós. Kree não está conosco, Jasmine está usando roupas de homem e chegamos aqui com Neridah.

— Pelo menos, nesse momento ela foi útil — Jasmine resmungou.

Lief folheava freneticamente o pequeno livro. Em cada página, havia palavras e frases das quais se lembrava muito bem, mas ele procurava somente uma coisa. A passagem sobre os poderes do diamante.

E, finalmente, ele a encontrou.

 

O diamante é o símbolo da inocência, da pureza e da força. Diamantes obtidos com nobreza e com coração puro são uma poderosa força para o bem. Eles conferem coragem e força, protegem contra influências malignas e ajudam nas causas movidas pelo verdadeiro amor. Mas fique atento a este conselho: diamantes conseguidos através de perfídia ou violência ou desejados por inveja ou ganância representam presságios malignos e trazem má sorte. Aqueles que os obtêm sem honra serão vítimas de indizível perversidade.

 

— Era isso o que eu tentava lembrar — Lief disse rapidamente, mostrando a passagens aos companheiros. É por isso que não podemos roubar o diamante!

Os amigos olharam para o livro e depois um para o outro.

— Esse aviso não é para nós — Jasmine protestou. — Afinal, não queremos a pedra por ganância ou inveja. Nós a estaríamos roubando por uma boa causa. Nós a estaríamos resgatando das mãos do mal e devolvendo-a ao seu lugar de direito!

— As palavras são claras — Lief discordou. — O diamante deve ser obtido sem o uso da força ou de trapaças. Do contrário, ele só nos trará o mal, assim como trouxe ao Guardião.

— E então... — Barda murmurou.

Lief suspirou, fechando o livro e recolocando-o em seu lugar na mesa.

— O Guardião deve dá-lo para nós voluntariamente. E há somente uma maneira de obrigá-lo a fazer isso. O orgulho é sua fraqueza, e esse jogo é importante para alimentar esse orgulho. Acho que, se pudermos vencê-lo, ele será forçado a...

Nesse momento, ouviram o som de passos. O Guardião retornava. Ele entrou no aposento, seus animais de estimação rastejando atrás dele.

— E então? — ele perguntou. — Tomaram uma decisão?

Lief e Barda olharam rapidamente para Jasmine. Ela parou, fez uma careta e, depois, um leve gesto de assentimento. Barda deu um passo à frente.

— Sim — respondeu com firmeza. — Vamos jogar.

Os monstros gemeram e puxaram as correias excitados. Os olhos do Guardião pareciam queimar.

— Excelente! — ele disparou e apontou para uma vela comprida e apagada que se encontrava na mesa sob o espelho e uma bruxuleante chama amarela se acendeu.

— A vida dessa vela será o tempo de que vocês irão dispor para abrir a porta para o aposento que encerra o porta-jóias — ele avisou. — Se a porta ainda estiver fechada quando ela se apagar, vocês admitirão a derrota e serão meus. Concordam?

— Concordamos — os companheiros responderam em uníssono, sem hesitar.

— Então eu lhes desejo uma boa noite — o Guardião devolveu, esfregando as mãos. — Investiguem à vontade. Como eu disse, a primeira pista está neste aposento. De certo modo, ela está escondida e, de outro, está embaixo do nariz de vocês.

Ele atravessou a porta, mas antes de sair virou-se novamente.

— Permitam-me dar-lhes um conselho. Vocês têm somente uma oportunidade de abrir a porta. Não a desperdicem com um palpite — o Guardião sorriu levemente. — Eu os verei pela manhã... para reclamar a minha vitória.

Com essas palavras, ele deixou o aposento, seguido de suas criaturas. Assim que desapareceu, ouviu-se a sua gargalhada triunfante que ecoou pelas paredes de vidro do palácio como se fossem centenas de vozes e desapareceu lentamente à medida que ele se afastava.

Os amigos examinaram o aposento durante uma hora à procura de qualquer sinal, por menor que fosse, que lhes desse uma pista para o nome do Guardião.

Os livros nas prateleiras eram inúteis. Eles se transformavam em pó assim que Barda os tirava do lugar. Os papéis nas gavetas dos armários estavam amarelados e quebradiços. Eles, também, se desfaziam e esfarelavam ao toque. Os quadros não revelavam nenhum indício e, atrás das cortinas, não havia nada além de vidro e névoa.

— Ele acha que tem tudo... mas não tem nada! — Jasmine exclamou. — A sua comida maravilhosa são cinzas, os livros fantásticos são pó. Seus companheiros são bestas repugnantes. O seu reinado é um lugar de sofrimento. Como ele pode ser tão cego?

— Nós é que somos cegos — Barda disse entre os dentes cerrados, o olhar pousado na vela que queimava lentamente. — Ele disse que havia uma pista nesta sala e tenho certeza de que ele falou a verdade. Mas que pista? Onde?

— Ele disse que há uma pista escondida nesta sala! — Lief repetiu, enterrando o rosto nas mãos, tentando se concentrar. — Procuramos embaixo, atrás e dentro de tudo. Portanto, isso significa que está escondido de outra forma.

— Escondida por magia! — Jasmine olhou ao redor do aposento desesperada. — E isso faz com que o que ele disse tenha sentido: que a pista está escondida, mas ao mesmo tempo está tão visível quanto o nariz em nosso rosto.

— O nariz no nosso rosto! Mas claro! — Barda vociferou, erguendo-se de um salto. Enquanto seus companheiros o observavam atônitos, ele atravessou a sala e olhou no espelho. Por um momento, os outros viram o seu rosto, estranhamente suavizado e jovial, refletido no vidro. Então, a imagem desapareceu e foi substituída por palavras que emitiam um brilho esbranquiçado sob a luz tremeluzente da vela.

 

O meu nome secreto aguarda no interior.

A minha primeira, a primeira do grande pecado da Vaidade.

A minha segunda e a última começam com a soma dos pecados dos gêmeos.

A minha terceira começa com uma faísca brilhante — O puro tesouro?

O ponto de luz?

A minha quanrta, a soma da felicidade daqueles que tentam

o meu nome adivinhar.

 

— Mas isso não faz sentido! — Jasmine gritou desanimada. — Nenhum sentido!

— Faz, sim — Barda retrucou. — Já vi coisas parecidas antes. É uma charada.

— Os versos nos dizem quantas letras há no nome do Guardião — Lief começou devagar. — Eles nos dizem como descobrir que letras são essas. Mas é muito mais difícil do que qualquer outra charada que resolvi.

Ele agarrou o Cinturão de Deltora, desejando de todo o coração que o topázio estivesse com a sua força total. Muitas vezes, antes, a pedra havia aclarado e aguçado a sua mente. Mas o seu poder aumentava durante a Lua cheia e diminuía no quarto minguante. Naquela noite, não havia Lua alguma.

Se ele e os companheiros quisessem resolver o enigma, teriam que fazê-lo sozinhos.

 

Após copiar as palavras do espelho em um pedaço de papel que jasmine encontrou entre seus tesouros, os companheiros sentaram-se para conversar.

— O primeiro verso significa simplesmente que o nome pode ser encontrado a partir de pistas existentes no palácio — Lief disse. — Vocês concordam?

— Até eu posso ver isso — Jasmine exclamou, quando Barda assentiu. — Mas e o resto?

— O verso seguinte diz que a primeira letra do nome que procuramos é o mesmo que a primeira letra do grande pecado da vaidade.

— Bem, isso também parece simples — Barda disse. — A primeira letra de Vaidade é V

— Mas que enigma é esse, então? — Jasmine objetou. — É claro que não pode ser tão simples.

— E não é — Lief concluiu desanimado. — Você não percebe, Barda. "Vaidade" está escrito com letra maiúscula. É um nome. O nome de um dos bichos do Guardião.

— E ele nos disse que nenhuma de suas criaturas tem o nome da imperfeição que apresentam. — Jasmine lembrou. — O pecado de Vaidade deve ser o egoísmo, a ganância ou o rancor. Ah... começo a entender como essa charada funciona. A primeira letra do nome do Guardião deve ser E, G ou R.

— Mas como saberemos qual é? — Barda explodiu. — Eu nem consigo lembrar a diferença entre as criaturas. O Guardião não está sendo justo, apesar do que ele disse.

— Tenho certeza de que está, sim — Lief replicou, batendo o lápis no papel. — Do contrário, a vitória não teria significado para ele. Em algum lugar do palácio, deve haver outra pista.

É melhor que a encontremos, e depressa! — Jasmine exclamou, erguendo-se de um salto, olhando nervosamente para a vela que queimava assustadoramente depressa.

O medo que ela sentia era contagioso. Lief sentiu o coração começar a bater mais depressa. Ele se obrigou a ficar tranqüilo e pousou a mão no Cinturão de Deltora. Os seus dedos encontraram a ametista; quando a apertaram, o seu coração desacelerou e uma suave calma o invadiu. Ele respirou fundo.

— Não podemos entrar em pânico e começar a correr por aí sem um plano — ele disse devagar. — O pânico é nosso inimigo e não vai nos deixar pensar com calma.

— O tempo também é nosso inimigo, Lief — Barda lembrou irritado. — Já estamos há horas pensando nessa pista e não saímos do lugar.

É claro que saímos — Lief discordou. — Sabemos que o nome do Guardião tem cinco letras, porque os versos falam da "minha primeira", "minha segunda", "minha terceira", "minha quarta" e "minha última". Sabemos que a primeira letra é E, G ou R e que a segunda e última são iguais.

— Como sabemos disso? — Jasmine indagou irrequieta, ansiosa para sair dali.

— Os versos nos dizem isso. — Lief leu as palavras em voz alta. A minha segunda e última começam com a soma dos erros dos gêmeos.

Quando Jasmine assentiu aflita, Lief releu o resto dos versos e, de repente, deu-se conta de outro detalhe.

— E acho que sei qual é a quarta letra! — ele exclamou. Outra vez, ele leu em voz alta.

A minha quarta, a soma da felicidade daqueles que tentam o meu nome adivinhar.

Quanta felicidade atingiu os que tentaram adivinhar o nome do Guardião? — ele perguntou.

— Nenhuma, pelo que sabemos — Barda tornou, sombrio.

— Exatamente, e, como a palavra "soma" é usada, acho que o Guardião está usando uma pequena artimanha aqui. A quarta letra é, na verdade, um número. Zero que, escrito, é igual a O.

Enquanto os amigos o observavam, ele começou a rabiscar sob os versos. Quanto terminou, ele virou o papel para que eles pudessem ver o que tinha feito.

— Aí está — Lief mostrou. — Agora podemos começar a preencher os espaços vazios.

Ele se ergueu, desejando sentir a mesma confiança que as suas palavras transmitiam.

— Vamos procurar no palácio, quarto por quarto — ele sugeriu. — Vamos procurar coisas que correspondam aos versos em todos os lugares em que entrarmos.

Os amigos deixaram a sala juntos e começaram a busca. Os aposentos visitados não apresentaram nenhuma pista, embora eles examinassem com cuidado todos os móveis, tapetes e enfeites.

O palácio era amplo. Eles prosseguiram incansáveis, acompanhados pela alegre melodia, tentando manter-se calmos e atentos. Por alguns instantes, eles ouviram sons de movimentos que não os deles: sons distantes como passos suaves e de portas se abrindo e se fechando. Mas, finalmente, a música parou, com os demais ruídos.

Os companheiros passaram a trabalhar em completo silêncio. Era difícil não se apressar, não começar a correr e realizar uma busca imperfeita. Nas mentes de todos, estava a imagem da vela, pingando, pingando, queimando, implacável.

Finalmente, eles chegaram a um aposento que, como o gabinete do Guardião, estava cercado por cortinas e fechado por uma porta de madeira. Uma luz suave brilhava atrás da pequena janela de vidro colorido e decorado.

Lief girou a maçaneta devagar e olhou no interior do aposento. Apesar da vela que queimava num pedestal ao lado da porta, a sala estava envolta na penumbra e ele precisou de alguns momentos para distinguir uma imensa pilha de almofadas em um canto.

O Guardião encontrava-se deitado ali, adormecido. Mas ele não estava só. Os seus quatro animais de estimação partilhavam o seu leito, as correias carnosas emaranhadas ao redor deles como pálidas serpentes. E as criaturas estavam acordadas. Elas viraram as terríveis cabeças na direção da porta. Os seus dentes reluziram quando soltaram longos e baixos grunhidos.

Rapidamente, Lief recuou e fechou a porta.

— Não podemos entrar aí — ele sussurrou. — É o quarto dele. E as criaturas estão com ele.

— Vamos ter que enfrentá-las, cedo ou tarde — Barda sussurrou de volta. — De que outro jeito podemos ter esperança de descobrir qual é o defeito de Vaidade?

O grupo ficou parado indeciso, fitando a porta fechada. E, de repente, Jasmine, a expressão surpresa, apontou para a janela de vidro colorido.

— Acabo de perceber que há algo estranho aqui — ela murmurou. — Olhem!

— Realmente, é esquisito. Há um diamante ou uma estrela em todos os quadrados, menos no último — Barda constatou, examinando o vidro.

— Sim! — Jasmine arrancou o papel da mão de Lief e leu dois versos: A minha terceira começa com uma faísca brilhante — O puro tesouro? O ponto de luz?

Ela olhou para cima ansiosa para ver se eles tinham entendido.

— Diamantes e estrelas são faíscas brilhantes — ela disse. — Os versos estão nos perguntando qual deles deve ser colocado no último quadrado. O diamante, que é um tesouro. Ou uma estrela, que é um ponto de luz.

— Então, a terceira letra do nome do Guardião é a primeira letra de um desses dois. Um D ou um E — Lief apanhou o papel e fez uma anotação em seu diagrama, mordendo o lábio, tentando controlar a excitação.

Eles olharam os painéis de vidro colorido até que o desenho se tornou uma mancha desfocada diante de seus olhos, mas sem resultado.

— Isso não faz nenhum sentido! — Barda deixou escapar, afinal. — Há dezesseis quadrados ao todo, mas eles parecem estar arranjados aleatoriamente de acordo com o gosto de alguém.

Lief concordou. E Jasmine, agora que seu entusiasmo arrefecera, ficava cada vez mais inquieta.

— Talvez o mistério tenha algo a ver com o número dezesseis — Barda murmurou, recusando-se a ser derrotado. — Dezesseis é um número útil, pois pode facilmente ser dividido em partes menores e iguais. Havia dezesseis pelotões no palácio. Muitas vezes, quando marchávamos em formação, começávamos juntos e então nos dividíamos em grupos de oito, de quatro e...

Barda parou de falar, devagar. Ele estava boquiaberto, olhando fixamente para a janela.

— Vejam! — ele disse com voz rouca.

Com a ponta do dedo, ele traçou uma cruz no centro da janela, dividindo-a em quatro partes iguais.

— O todo não faz sentido, mas se, em vez de enxergarmos a janela como um grande quadrado composto de dezesseis quadrados menores, observarmos quatro quadrados, cada um com quatro painéis menores, o que acontece?

Lief olhou e foi como se ele visse a janela com novos olhos. Agora ele via quatro blocos, dois na parte superior e dois, na inferior.

No primeiro bloco, havia três estrelas e um diamante. No bloco ao lado, duas estrelas e dois diamantes. No terceiro, diretamente abaixo do primeiro, havia uma estrela e três diamantes. E no último, o que continha o quadrado vazio...

— Um diamante é acrescentado em cada um — Barda murmurou, os olhos brilhantes de alívio — e uma estrela é retirada. Assim, o último quadrado deve conter nenhuma estrela e... quatro diamantes!

— Sim! — Lief mal podia acreditar que fosse tão simples. Mas parecera complicado até que Barda conseguiu decifrá-lo. "E tudo porque ele se lembrou de seus dias como guarda do palácio", Lief pensou escrevendo um D no terceiro espaço no papel.

Barda observava satisfeito.

— Descobrimos duas letras! — ele disse. -Agora... vamos enfrentar as criaturas?

 

Os companheiros abriram a porta mais uma vez com delicadeza. O guardião não se movera, mas os monstros estavam espalhados sobre ele. Ao escutar os intrusos, todos ergueram a cabeça e rosnaram ameaçadores.

— Isso é impossível — Barda sussurrou. — Eles não vão permitir que a gente se aproxime dele. Como poderemos descobrir alguma coisa sobre eles daqui?

— Talvez possamos chamá-los pelo nome — Jasmine sugeriu. — Um de cada vez.

— Bem, não chame Ganância primeiro, isso é tudo que peço — Lief murmurou.

— Por quê? — Jasmine quis saber.

Lief ficou muito quieto. Ele falara sem pensar e deixara escapar o pedido em tom de brincadeira por algo que não percebera que sabia.

— Porque... — ele começou, o coração acelerando — porque, quando chegamos ao palácio, o Guardião nos disse que o monstro vaidoso e o egoísta tinham medo de Ganância. Portanto, Ganância não pode ser egoísta nem vaidoso. E também sabemos que Ganância não é ganancioso, pois nenhum dos monstros recebeu o nome por causa de seu defeito.

Assim, isso significa que Ganância deve ser o mais perigoso, o que está tomado pelo rancor.

Lief pôde sentir que seus amigos tentavam se lembrar de outros detalhes que o Guardião oferecera. Coisas que não tinham considerado importantes quando foram ditas, mas que agora eram realmente cruciais.

Sem nada dizer, recuaram para fora do aposento pela segunda vez e fecharam a porta.

— Ele nos forneceu pistas e não percebemos! — Jasmine sussurrou.

— O que mais ele disse?

— Ele disse que, certa vez, Egoísmo quase matou o ganancioso, numa briga por restos de comida — Barda lembrou com certeza.

— Se Egoísmo tentou matar o ganancioso, então ele mesmo não é ganancioso — Lief concluiu. — E sabemos que ele não é egoísta...

— E não está cheio de rancor! — exclamou Jasmine. — Pois já descobrimos que é Ganância que está tomado pelo rancor. Portanto, Egoísmo... deve ser o vaidoso.

O grupo se afastava da porta e entrava em outro aposento com a certeza de que não precisava enfrentar os monstros. Os três já sabiam o bastante para decifrar a charada.

— O que mais o Guardião nos contou? — Lief perguntou em voz baixa, esforçando-se para lembrar. — Ele disse...

— Ele disse que Rancor não é egoísta! — Jasmine disse triunfante.

— Ele nos contou esse detalhe quando vimos as criaturas pela primeira vez.

— Sim! — Lief recordou — e que Rancor não é rancoroso. E não é vaidoso, pois o vaidoso é Egoísmo. Assim, Rancor deve ser ganancioso.

— O que nos deixa somente um defeito para Vaidade — tornou Barda devagar. — Vaidade é egoísta.

Sem nada dizer, Lief escreveu E no primeiro espaço do papel.

E agora restava somente uma letra a ser descoberta, pois os versos diziam que a segunda e a última letras do nome eram iguais. Barda repetiu a pista: Minha segunda e última começam com a soma dos erros dos gêmeos...

Não tenho a menor idéia do que isso quer dizer — Jasmine confessou. — Eu me sinto uma boba, mas...

— Se você é boba, então também sou — resmungou Barda. — Para mim, isso tem sido um mistério desde o começo.

E Lief também não conseguiu atinar com o que os estranhos versos poderiam significar. Tudo que sabia era que, em algum lugar daquele labirinto de paredes de vidro, se encontrava a última pista, e eles precisavam achá-la.

Tomados por uma energia desesperada, os amigos correram de um aposento reluzente a outro, procurando em todos os cantos algum sinal que os ajudasse a resolver a charada. Mas eles nada encontraram. Nada além de um suntuoso vazio.

Finalmente, eles viraram uma esquina e Jasmine soltou um gemido.

— Mas nós já estivemos aqui! — ela exclamou. — Nós já procuramos nesta sala.

Lief e Barda olharam ao redor e perceberam que ela tinha razão.

— Não há mais lugares em que procurar! — o rosto de Barda mostrava o quanto estava exausto e desesperado.

Do outro lado das janelas, a névoa movia-se na escuridão, vultos envoltos pela sombra vagavam, dedos deslizavam sobre o vidro, olhares fantasmagóricos os encaravam. Quanto tempo tinha se passado? Lief se deu conta de que não sabia. Ele segurou o Cinturão sob a camisa quando sentiu o pânico se apossando dele mais uma vez.

— A pista está em algum outro lugar. Nós sabemos disso — ele afirmou, conseguindo manter a voz calma, a ametista sob os dedos.

— Vamos recomeçar a busca.

Os companheiros avançaram, verificando novamente todos os cantos até chegarem ao gabinete coberto por cortinas onde tinham começado.

— Examinamos esta sala do teto ao chão — Barda murmurou.

— Certamente não tem sentido...

Mas eles tinham que entrar no gabinete. Nenhum deles conseguia resistir ao desejo de espiar a vela, de saber quanto tempo lhes restava.

Lief havia se preparado para o que poderia encontrar, mas até ele não conseguiu evitar um grito de horror quando constatou o quanto a vela tinha queimado. Ela se transformara num simples toco, quase coberta por uma grossa massa de cera endurecida. Ela não duraria muito tempo mais.

— Não podemos continuar com isso — Jasmine apelou insistente. — Precisamos quebrar a porta de vidro, pegar o diamante e correr, não importa o que você diga, Lief. Precisamos fazer isso já!

— Sinto, Lief, mas acho que ela tem razão — Barda concordou, o olhar fixo na chama.

Lief sacudiu a cabeça desesperado. Ele sabia que aquilo seria um erro terrível. No entanto, que escolha tinham? Era evidente que não havia tempo a perder, nem para reiniciar a busca ou para pensar...

Jasmine começara a disparar pelo aposento, à procura de um objeto pesado que pudesse usar para estilhaçar o vidro. Na falta de algo melhor, ela tirou os livros de cima da mesinha e começou a arrastá-la em direção da porta com determinação.

— Não! — Lief gritou. — Não faça isso!

— Eu preciso! — Jasmine respondeu, virando-se furiosa. — Você não entende, Lief? O que está acontecendo com você? Agora, é tarde demais para se preocupar com os conselhos de um livro velho. Não podemos conquistar o diamante. Os versos do Guardião, com suas palavras confusas sobre gêmeos que não existem, nos derrotou. Essa é a única maneira!

Ela se virou novamente e continuou a empurrar a mesa. Após uma breve hesitação, Barda decidiu ajudá-la. Ele empurrou-a para o lado, ergueu a mesa e carregou-a até a porta de vidro.

Lief pulou em cima dele, puxando-lhe o braço insistente. Mas ele não tinha como vencer a força de Barda. O homenzarrão se livrou dele com rudeza, jogando-o ao chão.

— Afaste-se! — Barda disse zangado. — O vidro vai se despedaçar. Cubra os olhos.

Lief se pôs de joelhos, a cabeça girando. Barda já segurava a mesa para trás, preparando-se para jogá-la. Lief abaixou a cabeça. O tapete, com suas flores, frutas e pássaros, era macio sob suas mãos. Os dois eremitas o fitavam solenemente. Dois pares de olhos. Duas barbas. Duas túnicas compridas e simples, amarradas à cintura...

Lief observou o desenho. O sangue subiu-lhe ao rosto.

— Gêmeos! — ele gritou, erguendo-se com dificuldade. — Pare, Barda! Os gêmeos. Eu os encontrei.

Ele apontou desesperadamente para o tapete enquanto Barda abaixava a mesa devagar e Jasmine batia os pés frustrada e zangada.

— Eles estavam aqui o tempo todo — Lief balbuciou. — Nós mal os notamos porque estavam debaixo da mesa e de nossos pés. Mas agora podemos vê-los claramente. Os eremitas são exatamente iguais. Eles parecem gêmeos. Mas não são iguais, de modo algum.

Barda e Jasmine já se encontravam ao seu lado, examinando o tapete. Lief apanhou o pedaço de papel que enfiara no bolso.

— A soma dos erros nos gêmeos — ele leu. — Isso deve significar a quantidade de diferenças entre os dois eremitas.

— Existem diferenças? — Jasmine indagou, olhando preocupada sobre o ombro para a chama enfraquecida da vela. — Onde?

— Veja o cordão ao redor da cintura — Lief indicou. — Numa das figuras o nó fica do lado esquerdo; na outra, do direito.

— E o pássaro! — Barda exclamou. — Somente um deles tem uma crista.

— Há mais abelhas saindo da colméia neste lado — Jasmine acrescentou envolvida na procura, apesar do que sentia. — E, veja, uma das árvores tem frutos, e a outra tem flores.

— Os cogumelos deste lado têm manchas, e os outros são lisos — Barda mostrou.

— Até agora são cinco diferenças — Lief disse. — E há outra. Uma das árvores tem um galho cheio de folhas no alto do canto esquerdo, o que não acontece do outro lado. Seis diferenças.

— Numa das figuras, o eremita está segurando três galhos, enquanto o outro tem apenas dois! Sete! — Jasmine sussurrou.

Eles observaram com atenção, mas nada mais encontraram.

— O número é sete — Barda murmurou, a voz rouca de alívio. — A letra que procuramos é S.

— Não! — Jasmine apontava para o tapete. — Espere, estou vendo mais uma coisa. O saco ao lado do homem. Um deles tem um laço, o outro não.

— Você tem razão! — Lief exclamou. — Oito! Isso quer dizer que a letra que procuramos, a segunda letra do nome do Guardião e a última, não é S, mas O.

— Já temos um O — Jasmine reafirmou.

— Ah, ele é esperto! — Barda resmungou. — Ele pensou que iria nos enganar e quase conseguiu.

Lief rabiscou no diagrama e mostrou-o aos amigos.

— Eodoo. O nome é Eodoo — Jasmine jogou-se no sofá atrás dele. — Puxa, nós conseguimos!

No silêncio repleto de alívio que se seguiu, Lief repentinamente se deu conta de que a música suave que haviam ouvido na noite anterior recomeçara. Isso, sem dúvida, significava que o Guardião tinha acordado.

Ele observou a vela. O pavio queimava vacilante, nadando numa piscina de cera derretida. A chama estava prestes a se apagar, mas isso não tinha mais importância.

Os eremitas do tapete o fitaram com um olhar triste. "Não há motivo para tristeza, amigos", ele pensou. "Nós quase..."

E então ele viu.

Um dos braços de um dos eremitas, aquele sobre o qual um pássaro estava pousado, estava posicionado acima do nó da túnica, o que não acontecia com o outro.

Lief olhou confusamente para o papel que tinha nas mãos. Ele sentiu o coração se apertar no peito e respirar tornou-se uma tarefa difícil.

— Lief, o que aconteceu? — Jasmine indagou intrigada. Mas Lief não conseguiu responder. Ele caminhou até a porta de vidro com passos incertos.

— Fale! — Barda gritou. — Diga, Eodoo!

— O nome não é Eodoo — Lief informou com voz rouca, molhando os lábios. — As diferenças são nove e não oito. A letra que faltava é N. O nome... o nome secreto do Guardião é... Endon.

 

A porta se abriu em silêncio. A mesa de vidro e o porta-jóias dourado encontravam-se à espera. Mas Lief, Barda e Jasmine ficaram parados tomados pelo pavor.

— Não pode ser! — Jasmine sussurrou. — O Guardião é velho demais para ser o rei Endon! Ele parece ter séculos...

— Ele viveu como servo do mal durante dezesseis anos — Lief comentou melancólico. — A perversidade o consumiu por dentro. Até mesmo o meu pai não o reconheceria agora — o coração dele doía ao imaginar como o pai se sentiria se soubesse no que o amigo se transformara.

— Jarred sempre disse que Endon era fraco — Barda grunhiu. — Tolo e fraco. Protegido do mundo e acostumado ao poder e à bajulação. Mesmo assim, ele o amava e tentou protegê-lo. Ele salvou Endon do Palácio e da morte certa. E para quê? Para isso!

— Como o meu pai poderia adivinhar que Tora iria recusar ajuda? — Lief gritou. — Como ele poderia saber que Endon se voltaria para o mal a fim de recuperar o que tinha perdido?

— Não o chame de Endon — Barda murmurou. — Ele não é mais Endon, mas sim o Guardião. E ele não recuperou nada! Ele foi enganado e usado. Ele está só e não tem quem o ame...

— Ele está só — Jasmine repetiu, os olhos muito abertos e atentos.

— Só! Onde está a rainha? Onde está o herdeiro?

Os outros ficaram em silêncio. O choque afastara por um momento todos os outros pensamentos de suas mentes. Só agora eles se davam conta de que Jasmine tocara num ponto realmente importante.

— Meu pai disse que a rainha Sharn era forte — Lief contou. — Forte e corajosa. Ela não tinha nada da boneca mimada e fútil que parecia ser. Talvez ela tenha se recusado a ficar com Endon depois que ele passou a dar ouvidos ao Senhor das Sombras, quando ele começou a se transformar no Guardião. Talvez ela tenha fugido com a criança.

— E, se isso for verdade, se Sharn e o herdeiro estão vivendo em segurança em algum outro lugar, não tem a menor importância no que Endon se transformou — ele prosseguiu, voltando-se para os amigos.

É o herdeiro que precisamos encontrar.

Naquele momento, de algum lugar do palácio, veio o som de passos e grunhidos baixos que se aproximavam. A pele de Lief se arrepiou.

— Depressa! — ele murmurou.

Ele correu para o pequeno aposento seguido de perto por Barda e Jasmine. Juntos, ele se aproximaram da mesa e ficaram parados diante dela.

Contudo, antes que Lief pudesse erguer a mão, eles ouviram um ruído na porta. O Guardião estava lá parado, o rosto envelhecido e marcado retorcido por perplexidade, fúria, orgulho e frustração. Atrás dele, os monstros rosnavam.

— Então — o Guardião disparou — vocês descobriram o meu nome. Ficaram surpresos?

— Um pouco — Barda respondeu devagar.

O Guardião sorriu zombeteiro, mas Lief imaginou ter visto, no fundo dos olhos vermelhos, um brilho de respeito relutante.

— Somente uma outra pessoa conseguiu igualar o seu feito — ele contou —, mas considerou a verdade dura demais para ser aceita e se recusou a entrar neste aposento e reclamar o seu prêmio. Ele deixou o Vale, amaldiçoando-me e afirmando que ele e a sua causa, seja ela qual for, não queriam ter nada a ver com algo que tivesse sido contaminado por minhas mãos.

Com um sobressalto, Lief percebeu quem poderia ser essa pessoa. O homem que viajara grandes distâncias e atravessara Deltora à procura de aliados para a sua causa e dinheiro para armas e suprimentos. O homem que os advertira com tanta convicção sobre a ida ao Vale dos Perdidos. Que sempre dissera, com tanta amargura, que a batalha por Deltora deveria ser enfrentada sem o rei, sem mágica. Que lhes dissera que a busca deles não tinha sentido.

— Perdição — ele murmurou e sentiu Barda e Jasmine enrijecerem ao lado dele.

— Eu nunca soube o nome dele — o Guardião riu sarcástico — embora ele, no final, tenha descoberto o meu. É uma pena que ele não tenha ficado. O rancor e o ódio que havia dentro dele aqueceram o meu coração e deixaram as minhas criaturas felizes — ele afagou a barba e fitou os companheiros com astúcia. — Vocês vão seguir o exemplo dele e correr?

— Não, de jeito nenhum — Barda respondeu audacioso. — Vamos ficar com o nosso prêmio.

Lief pousou as mãos no porta-jóias e sentiu a nuca em fogo quando os olhos vermelhos o fitaram da porta. O Guardião. Endon, amigo de seu pai, terrivelmente mudado.

"Perdição sabia de tudo", ele pensou zangado. "E, no entanto, guardou o segredo para si, assim como fazia com tudo, sem confiar em ninguém, além de si mesmo. A qualquer custo."

As bestas que se encontravam na porta choramingaram e grunhiram. Lief soube que elas podiam sentir-lhe a ira. Ela os alimentava e saciava a sua sede. Mas aquele não era o momento de pensar em detalhes insignificantes. Ele apertou o fecho e a tampa do porta-jóias se abriu.

Dentro dele, aninhado numa almofada de veludo negro, brilhava um grande diamante.

Lief apanhou a pedra e se virou, agarrando-a com força.

— Saiam! — O Guardião grunhiu. — Peguem o seu prêmio e sumam!

A porta que conduzia ao Vale se abriu. A névoa penetrou no aposento misturada ao som de vozes suaves e sussurrantes.

— Lief! — Barda insistiu, tentando empurrar o amigo para fora. Mas Lief recusava-se a andar, sentindo o sangue subir-lhe ao rosto.

— Por que fica? — o Guardião rosnou. — Ter vencido não é suficiente? Precisa zombar de mim, também?

— Você nos enganou! — com a voz trêmula de raiva, Lief mostrava a jóia que reluzia na palma de sua mão. — Esta pedra pode ser um diamante, mas não é o diamante do Cinturão de Deltora!

— Nunca lhes prometi mais do que havia no porta-jóias — o Guardião vociferou. — Eu lhes disse claramente "vocês podem pegar o seu prêmio e partir". Isso é tudo.

— Você nos disse que o seu tesouro era o diamante do Cinturão de Deltora — Lief insistiu. — E a verdadeira pedra estava aqui, quando você nos mostrou esta sala. Mas agora ela se foi.

Ele deu um passo na direção do homem, ignorando os rosnados dos monstros.

— Você a tirou daqui, Guardião, assim que ficamos fora de seu caminho, procurando em outras partes do seu palácio para que, mesmo que vencêssemos o jogo, seu verdadeiro tesouro não estivesse perdido.

— Como você sabe disso? — o Guardião disparou, os olhos semicerrados.

— Não importa como sei — Lief bradou. — O que importa é que você mentiu e trapaceou. Você, que faz tanta questão da obediência às regras.

— E vocês seguiram as regras? — o Guardião zombou. — Sim! Eu tirei minha jóia da caixa e a escondi na neblina. A pedra que coloquei em seu lugar deveria satisfazer a sua ganância.

Ofegante e irado, ele avançou na direção deles, as suas criaturas rugindo em volta de seus pés.

— Mas quem estava me vigiando? — ele disparou. — Quem roubou o diamante de seu esconderijo, assim que virei as costas? O quarto integrante de seu grupo. O que se recusou a jogar e que fingiu partir do Vale!

— Neridah? — Lief se espantou. — Mas... não sabemos nada sobre isso!

— Isso é o que você diz — o Guardião retrucou.

É claro que não sabemos! — Jasmine já se encontrava na porta quase oculta pela neblina. — Se soubéssemos, acha que teríamos desperdiçado o nosso tempo com o seu jogo estúpido? Onde ela está? Para que lado ela foi?

— Não importa a vocês — o Guardião deu de ombros. — Vocês têm o seu prêmio.

Lief adiantou-se de punhos cerrados. Os monstros rosnaram.

— Lief, não! — Barda chamou. — Esqueça isso. Precisamos tentar encontrar as pegadas de Neridah. Mas agora ela já deve estar horas à nossa frente.

Lief, porém, não lhe deu atenção. Os seus olhos estavam presos no Guardião.

— Onde está Neridah? — ele perguntou em voz baixa. — Ela não deixou o Vale, não é mesmo? Você sabe onde ela e o diamante estão.

— Se eu soubesse — devolveu o Guardião com a mesma suavidade —, eu não contaria a você. Você acha mesmo que eu lhe daria a coisa mais importante de minha vida? O objeto que simboliza a proteção do meu mestre? Que me deu poder e riquezas?

— Ele lhe trouxe pó e cinzas, Guardião — Lief disparou. — Ele o cercou de sofrimento. Você os conquistou com astúcia, trapaças, roubo e violência. A sua maldição está sobre a sua cabeça. E, no fundo de seu coração, você sabe que é verdade.

— Quem são vocês? — o Guardião murmurou, um brilho estranho nos olhos vermelhos. — Quem são vocês, que sabem tanto?

— Eu li O Cinturão de Deltora, que está em seu poder.

— Acho que é mais do que isso — o homem respondeu. — Acho que vocês são aqueles de quem me falaram — ele fez um gesto na direção de Jasmine que relutante ergueu a mão e puxou o gorro da cabeça. Seus cabelos negros caíram embaraçados nos ombros.

— E assim vocês me enganaram — o Guardião sorriu sombriamente. — O pássaro preto, naturalmente, ficou fora da neblina. E o quarto membro do grupo, a ladra, apenas os estava seguindo para lucrar com a sua inteligência. Ah... vocês não me escaparam por pouco.

Mais uma vez, seus olhos vermelhos voltaram-se para Lief.

— Entregue-o para mim — ele ordenou. — Entregue-me o Cinturão de Deltora!

Lief sentiu as mãos deslizarem para a cintura. Os seus dedos encontraram o fecho do Cinturão. Com a testa porejada de suor, ele se obrigou a afastar os dedos, empurrando-os com determinação por sobre as pedras encravadas nos medalhões. A sua mão escorregou sobre o topázio, o rubi, a opala... e descansaram sobre o lápis-lazúli, a pedra celestial, o talismã. Ele curvou os dedos sobre a pedra e segurou-a com firmeza.

— Isso não irá protegê-lo — o Guardião rosnou e avançou para a frente com Egoísmo, Ganância, Rancor e Vaidade grunhindo e babando ao redor de seus pés. Ele estendeu as mãos que se prenderam ao Cinturão como garras.

Os olhos dele brilharam triunfantes e, de repente, arregalaram-se, queimando como brasas. Olhando para eles, paralisado de terror, Lief pareceu ver milhares de figuras saltando nas chamas.

O Cinturão, porém, estava frio como gelo.

A boca do Guardião abriu-se num grito de agonia. E os monstros... os monstros pulavam ao redor dele, erguendo as cabeças e uivando, puxando as correias, tentando se afastar dele.

Lief cambaleou. Ele estava livre do encantamento. O Guardião caiu de joelhos, atirou a cabeça para trás, ainda agarrado ao Cinturão como se não conseguisse soltá-lo. Egoísmo, Ganância, Rancor e Vaidade viraram-se para ele exaltados, as bocas espumando, os terríveis dentes puxando e rasgando o antigo mestre, fazendo a túnica em tiras, perfurando a carne cinzenta e engelhada.

E, então, com um estremecimento de terror, Lief notou o que estava oculto sob a túnica. Ele viu os quatro nódulos imensos e gotejantes no peito do Guardião. Ele viu as correias carnosas e pulsantes que nasciam deles, retorcendo-se e serpeando pela mangas até os pescoços inchados das bestas selvagens e violentas. O Guardião havia dito que Rancor, Ganância, Egoísmo e Vaidade eram seus animais de estimação, mas eles eram parte dele. Produtos vis de seu próprio corpo.

— Libertem-me! — gritava o Guardião. — Estou sendo comido vivo! Cortem as correias! Por favor, eu imploro!

Lief empunhava a espada. Trêmulo, os ouvidos mal suportando os gritos estridentes do homem e os rugidos das bestas, além dos gritos de horror dos companheiros, ele atacou os cordões de carne e cortou-os.

Um líquido amarelo-esverdeado esguichou dos ferimentos. Os cordões retorceram-se, as extremidades cortadas saltando horrivelmente no chão. Os monstros balançaram e, por fim, caíram. Por um instante, eles permaneceram contorcendo-se no solo e, finalmente, ficaram imóveis.

Os dedos do Guardião abriram-se. O seu rosto ressequido voltou-se para Lief. Nos olhos vermelhos, o fogo se extinguia.

— O diamante — ele disse com voz rouca. — Pegue-o! Ele está com ela, onde caiu. No riacho...

O Guardião se encolheu e caiu para trás. Lief, Jasmine e Barda viraram-se e correram.

 

Neridah encontrava-se no riacho, de costas, a água correndo lentamente sobre os olhos fechados, enquanto os seus cabelos moviam-se sobre a pedra em que tinha batido a cabeça. Sobre a palma aberta da mão fria, encontrava-se um imenso diamante.

— Parece que o Guardião não a matou — Jasmine murmurou, refletindo. — Ela só teve a má sorte de tropeçar enquanto atravessava o riacho. Má sorte que a fez bater a cabeça e se afogar.

Percebendo o que acabara de dizer, ela olhou para Lief e mordeu o lábio.

— Desculpe — ela murmurou. — Se eu tivesse feito o que pretendia, certamente nós mesmos estaríamos deitados ali ou algo parecido. A maldição é muito forte.

— Forte o bastante para que o Guardião soubesse que não precisava temer um roubo — Barda acrescentou sombrio. — Ele acreditava que o diamante agiria antes que o ladrão escapasse do Vale.

— Cuidado! — Jasmine gritou quando Lief colocou a mão na água.

— Não temos que ter medo de nada — Lief disse confiante. — O Cinturão aqueceu-se em sua cintura quando ele ergueu a enorme pedra preciosa da água.

A névoa movia-se ao redor dele repleta de sombras e sussurros, quando ele tirou o Cinturão e pousou-o no chão. As seis pedras reluziam em seus medalhões de aço, e o último aguardava para ser preenchido.

Lief pressionou o grande diamante para baixo e com um leve clique ele deslizou para o seu lugar. O lugar ao qual pertencia. O Cinturão estava completo.

Seguiu-se um momento de silêncio ansioso. Logo depois, os sussurros recomeçaram cada vez mais altos. A névoa flutuava, aglomerando-se em colunas e espirais, erguendo-se do chão e subindo ao céu entre as árvores como se tivesse vida. E, enquanto subia, vultos eram deixados, piscando, no ar límpido. Homens, mulheres e crianças fitavam-se alegres e desnorteados, as mãos que se aqueciam, as túnicas que se coloriam devagar.

Então, ouviu-se um forte estrondo, um estilhaçar, como se vidros estivessem se quebrando. Em poucos instantes, o Vale foi inundado de cores e por uma luz ofuscante.

Assim, quando Lief, Barda e Jasmine tornaram a olhar, havia centenas, milhares de pessoas regozijando-se entre as árvores sob o céu azul. Elas não eram mais seres cinzentos e errantes de faces encovadas, mas sim cobertos de cores, calor e vida.

A maioria eram pessoas altas e magras, com rostos compridos, olhos escuros que reluziam sob sobrancelhas bem formadas. Cabelos negros e sedosos caíam-lhes sobre as costas, as mangas largas das túnicas arrastando-se no chão. Ao fitá-las, maravilhado, mal conseguindo aceitar os fatos que se apresentavam diante dos próprios olhos, Lief lembrou-se das palavras do Guardião.

A grande maioria de meus primeiros súditos chegou até mim trazida por uma forte ventania, o orgulho que causara a sua queda ainda forte dentro deles...

E então ele soube. Aquele era o povo perdido de Tora.

Os amigos caminharam em meio à multidão, e por toda a parte as mãos se estendiam em sua direção. Mas elas, agora, estavam abertas, cheias de vida e gratidão.

O povo de Tora vagara pelo Vale dos Perdidos desde o nascimento de Lief e, no entanto, não tinha envelhecido ou mudado. Os velhos, os de meia-idade e os jovens permaneceram exatamente como no dia em que haviam quebrado o juramento. Lief, Barda e Jasmine andavam entre eles, ouvindo a história de sua queda repetidas vezes.

A magia do túnel tinha protegido Tora do mal por tanto tempo que os toranos passaram a acreditar que eles e a sua cidade haviam chegado à perfeição e que qualquer decisão que tomassem seria a acertada. Quando a mensagem de Endon chegou, eles a consideraram como consideravam a tudo: sem paixão, sem ódio, sem ira, mas também sem calor, amor ou compaixão.

— A decisão não pareceu uma traição da confiança — murmurou um jovem que segurava a mão de uma criancinha. — Ela pareceu sensata e justa. Pois, para nós, o rei era um estranho. Mesmo os toranos que tinham ido a Del com Adin e os que seguiram depois, haviam se tornado parte da vida do palácio há muito tempo. Eles deixaram de ser uma ponte entre as duas cidades.

— Mas nosso orgulho nos fez esquecer a magia em que se baseava nosso poder — suspirou uma velha mulher, alta e ereta em sua túnica escarlate. — O antigo juramento e a maldição que o acompanhava era ainda tão forte como sempre fora. Não contávamos com isso, pois, naquele tempo, olhávamos para o futuro, nunca para o passado. Aprendemos uma grande lição.

Os companheiros caminharam por entre as árvores até a clareira diante do palácio seguidos em silêncio pela multidão. À medida que se aproximavam da clareira, Lief foi assaltado pela sensação de que estava vivendo um sonho. Ele poderia despertar a qualquer momento e ver o palácio reluzente como uma jóia e o Guardião com os olhos vermelhos fixos nele, acenando entre a névoa em movimento.

Mas o palácio se fora como se nunca tivesse existido. Em seu lugar, havia uma pequena cabana de madeira. Flores e capim cresciam à sua volta e, diante de sua porta, encontrava-se um homem com uma longa barba que vestia uma túnica rústica, amarrada à cintura com um cordão. Seus olhos tristes encontraram os de Lief. Ele lhe parecia muito familiar.

Pousado em seu braço, encontrava-se um pássaro preto. Sentado em sua mão, um montículo de pêlo cinzento.

Antes que Lief pudesse dizer algo, Jasmine correu até o homem com um grito de alegria. Kree voou até ela e Filli saltou, guinchando para encontrá-la. Eles haviam descido da beira do precipício no momento em que a névoa se desvanecera. Eles haviam esperado pacientemente por ela com o novo amigo. Mas, agora que viram Jasmine, não esperariam mais.

Juntos mais uma vez, os companheiros foram ao encontro do estranho.

— Você é o eremita... o eremita do desenho do tapete — Lief reconheceu.

O homem assentiu.

— E você é o Guardião.

O homem pôs a mão no peito, junto do coração, como se procurasse um ponto sensível.

— Não mais. Graças a vocês — ele concluiu em voz baixa.

— Mas... você não é Endon, ou é? — Lief já sabia a resposta, mas queria ouvi-la em voz alta.

— Não, não sou — o homem respondeu sorrindo. Eu me chamo Fardeep. Fui um homem rico, é verdade. Um homem respeitado e muito satisfeito. Mas não fui rei, apenas o dono de uma pousada num lugar chamado Rithmere, longe daqui. A cidade foi invadida por bandidos, minha família foi morta e a pousada me foi tomada. Parece que o Senhor das Sombras tinha um objetivo diferente para ela.

— O senhor estaria se referindo à Pousada Campeão? — Barda indagou depois de trocar olhares com os amigos.

— Vocês a conhecem? — Fardeep perguntou. — Sim. A Pousada Campeão foi minha. Eu sempre gostei de jogos.

A expressão dele demonstrou arrependimento quando os companheiros estremeceram.

— Ouvi dizer que agora os jogos são diferentes em Rithmere — ele disse. — E que a pousada está muito maior e gerenciada segundo outras normas e por diferentes motivos — ele soltou um profundo suspiro. — Mas naqueles tempos eu desconhecia os planos do Senhor das Sombras. Tudo aconteceu muito antes de ele tomar posse de Deltora. Antes até de Endon ser coroado rei. Eu não sabia de nada e também não me importava com nada que pudesse acontecer no futuro. Escapei de Rithmere e me escondi neste vale à procura de refúgio e paz.

O homem curvou a cabeça.

— Mas a paz me foi negada. O meu sofrimento e a minha ira foram sentidos e usados por aquele que sabe usá-los como ninguém. No início, eu não sabia que fora ele que causara os meus problemas. Depois, à medida que recebia incontáveis presentes, isso pareceu não ter mais importância. Eu lhe contei como as coisas aconteceram. Orgulho, egoísmo, ódio e ganância cresceram dentro de mim. E, à medida que o tempo passava, eu me transformei... no que vocês viram.

Mais uma vez, a sua mão pousou sobre o coração.

— Mas por que o seu jogo, o jogo do Guardião, nos fez pensar que o seu nome era Endon? — Jasmine quis saber. — Por que esse nome abriu a porta?

— Foi um desejo do Senhor das Sombras — Fardeep disse simplesmente. — Desde o início, ele quis que todos que viessem até aqui atrás do diamante fossem enganados. Que pensassem que o rei Endon tinha se tornado uma criatura do mal e se transformado em seu servo. Como Guardião, eu achei a idéia... divertida. E, como lhes disse, sempre gostei de jogos. Essa minha característica não mudou.

Ele ergueu o rosto, a expressão sombria.

— Até vocês chegarem, somente o homem com a cicatriz no rosto, Perdição, tinha conseguido decifrar a charada. E o efeito que o resultado causou nele foi exatamente o que o meu mestre esperava.

Ele lançou um olhar para onde os toranos haviam se reunido, murmurando entre si. O velho endireitou os ombros e foi falar com eles.

— Aqui nós aprendemos uma lição importante — Jasmine disse assim que ficaram a sós. — Descobrimos que o Senhor das Sombras desconhece o fato de que não é Endon que é importante, mas sim o seu herdeiro.

— Ou, se sabe, ignora o fato de que nós também temos conhecimento desse detalhe — Lief respondeu pensativo.

Fardeep e o povo aproximavam-se deles.

— Esperamos que vocês fiquem conosco para descansar o tempo que puderem — Fardeep convidou um tanto constrangido, adiantando-se. — Não podemos oferecer muito luxo, mas há bastante comida para todos agora no Vale. E amizade em abundância.

— Isso é luxo suficiente — Barda afirmou sorrindo. — E nos sentiremos felizes em ficar... por algum tempo. Precisamos enterrar a nossa companheira Neridah. E temos muito sobre o que conversar.

Todo o corpo de Fardeep relaxou num suspiro trêmulo de alívio.

— Eu não os teria censurado se detestassem a simples idéia de ficar — ele disse. O homem olhou sobre o ombro para a multidão. — Eles também me perdoaram — ele confidenciou em voz baixa. — Isso é mais do que eu esperava. E muito mais do que merecia.

— Nós o perdoamos de coração — disse em voz alta uma mulher corpulenta vestida de azul que se encontrava entre a multidão. — A sua única culpa foi a cegueira, assim como a nossa. Vamos ficar aqui durante o tempo que você permitir. E lhe somos gratos, pois não temos para onde ir.

— Tora é o lugar perfeito, como sempre foi — disse Barda. — Ela está esperando por vocês.

— Nunca poderemos voltar — a mulher de azul respondeu tristemente. — A pedra que se encontra no coração da cidade está quebrada e o seu fogo se extinguiu. O juramento foi quebrado e o mal nunca poderá ser desfeito.

"Podem sim", Lief pensou com certeza.

E ele acreditava saber como desfazer aquele mal. Mas ainda não era o momento. Primeiro, o herdeiro de Deltora tinha que ser encontrado.

Mas onde? Onde, em todo aquele vasto reino, estaria o esconderijo que mantivera Endon, Sharn e seu filho em segurança por tanto tempo? Como ele e seus companheiros poderiam encontrá-los, se não tinham idéia de onde procurar ou por onde começar?

Por um instante, ele sentiu o coração tomado pelo desânimo, mas então tocou o Cinturão, novamente, pesado ao redor da cintura.

"Encontraremos o esconderijo", ele disse a si mesmo. "Esteja onde estiver, não importa a que distância, pois agora temos a orientação do Cinturão. Ele está completo e vai nos mostrar o caminho."

 

 

                                                                                                    Emily Rodda

 

 

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