Biblio "SEBO"
Quem ousava quebrar o repouso dos faraós, violando as pirâmides dos egípcios, tinha de enfrentar a maldição do Vale dos Reis. Uma jovem arqueóloga, Jenny Mowry, não se deixou amedrontar e foi participar de uma escavação com o fascinante cientista Peter Donas. O calor do deserto tomou logo conta do sangue de Jenny, que, loucamente apaixonada, ansiava pelos beijos de Peter, mais perigosos e quentes do que os raios do sol dos trópicos. Esse amor, porém, não trazia promessas de felicidade, trazia a antiga e sagrada maldição dos faraós!
CAPÍTULO I
— O "Bennu" — disse ele, referindo-se aos hieróglifos de uma garça com duas longas plumas erguendo-se de trás da cabeça.
O homem tinha entrado em silêncio na pequena alcova do primeiro andar do Museu Egípcio, no Cairo, onde Jenny estava. A moça admirava um alto-relevo em pedra que fora encontrado nos arredores de Abu Simbel, quando o Nilo fora desviado para a construção da multimilionária Saad al-Ali, a Alta Represa de Assuan.
Surpreendeu-se com a companhia. O museu ficava perto do hotel Nilo Hilton. Bem acessível a turistas, a maioria preferia ver o impressionante Tutancamon, que ficava no segundo andar, Jenny deixara para ver essa sala por último, do mesmo jeito que se deixa a saborosa sobremesa para o final da refeição. Achou que o homem era um turista; falava inglês perfeito, com sotaque mais britânico do que americano. Não teria prestado atenção nele se não tivesse entendido tão depressa a inscrição feita em hieróglifos. Jenny conhecia pouca gente, mesmo entre seus colegas em Arqueologia, capaz de ler uma inscrição com tanta rapidez.
— Sim. . . — começou a dizer, voltando-se, disposta a demonstrar que ele não era o único informado em egiptologia.
Apesar da parca iluminação, reconheceu o homem imediatamente.
— Isso não é bem uma garça — comentou ele, sem notar que a moça empalidecera. — Representa a fênix, um pássaro lendário que viveu quinhentos anos, transformando seu ninho numa pira, cremando a si mesma em suas chamas... — Ergueu a mão, prevendo a interrupção, sem saber que Jenny estava sem fala por ver quem ele era.
— Mas houve um final feliz: ela ressurgiu das próprias cinzas para viver outros quinhentos anos.
Sorriu e o sorriso dele era simpático. Se tivesse sorrido logo no começo, Jenny não o teria reconhecido, pois aparecia sempre sério e sombrio nas fotos. Tinha visto fotografias dele, várias vezes, nas revistas e jornais de Arqueologia. Vira fotografias num álbum que se iniciara em 1922, com fotos de seu avô, depois as do pai e, afinal, as fotos dele.
— Acho que vocês têm um lugar, nos Estados Unidos, chamado Fênix, não? — perguntou.
Jenny teve uma sensação estranha que a percorreu das raízes dos cabelos até as solas dos pés. Achava que ele a havia reconhecido, também. Mas se assim fosse, achava que ele não iria fingir que não reconhecera.
— Fica no Arizona, não? — indagou ele.
— Arizona? — disse Jenny, mais parecendo um papagaio.
— Phoenix, Arizona — explicou ele. — É uma cidade, não?
— Ah, sim! — disse ela, tentando desesperadamente pôr os pensamentos em ordem.
Jamais esperara encontrá-lo tão cedo. Havia chegado antes do tempo ao Egito para ter tempo de se preparar para o encontro que se daria em Hierakonpolis. Dissera a si mesma que precisava de uns dias para se preparar para a viagem de barco pelo Nilo até o local das escavações, mas na verdade queria era tempo para se acostumar com a ideia de encontrá-lo.
— Ela simboliza o sol surgindo ao amanhecer - disse ele.
Por instantes, Jenny não percebeu de que falava, depois compreendeu que estava lhe dando uma aula sobre a fênix. Achou a atitude dele emproada e um tanto insultante.
Ela sabia aquilo e muito mais!
— Foi concebida como o pássaro sagrado do rei-sol, Ra — continuou ele, sem perceber a irritação dela; se não, na certa pararia. — Representa o sol de hoje emergindo do velho sol de ontem, uma manifestação de Osiris, o símbolo da ressurreição e da luz. ... — e começou a citar um versículo de Jó, testemunho de que a lenda da fênix passara também para os judeus e cristãos: — "Então eu disse, eu posso morrer em meu ninho e eu posso multiplicar meus dias como a areia."
— "Quem esquecer todas as suas iniquidades, quem curar todas as suas doenças, quem satisfizer sua boca com boas coisas, terá sua juventude renovada como as águias..." — rebateu Jenny, feliz por ver que sua voz deixara de ser um guincho ridículo.
A sua era uma citação dos Salmos. Talvez a referência nada tivesse a ver com a fénix, se bem que o pássaro mitológico sempre fora representado por uma águia na arte greco-romano. Pelo menos, mostrara a ele que não era tão ignorante como supunha.
— Muito bem! — cumprimentou ele, com sincero entusiasmo, Jenny tinha impressão de que nem passava pela cabeça dele que ela poderia saber tanto quanto ele. Podia não ter sido educada em Oxford, mas também podia competir com ele, diploma por diploma. Algumas pessoas competentes tinham dito, depois do trabalho que ela realizara em Avaris — do lado oeste do delta do Nilo — que estava mais qualificada para trabalhar nas escavações de Hierakonpolis do que ele. Nesse momento, o homem disse:
— Meu nome é Peter. . . Peter Donas.
Automaticamente Jenny estendeu a mão, resultado da boa educação que recebera quando na verdade não queria fazê-lo. Teve vontade de retirar a mão quando ele a segurou, por mais tempo do que a etiqueta autorizava.
— E o seu? — indagou ele.
Jenny não respondeu, consciente do calor e da força da mão que segurava a dela. Sentia-se perdida, sem saber por que o encontro deles acontecera agora e não mais tarde, como planejara. Assim, estaria fria, calma e indiferente.
— Eu disse meu nome - explicou ele, rindo. — Peter Donas, lembra? Acho que devia me dizer o seu. Sei que é americana porque a ouvi perguntar ao guarda onde está a múmia de Ramsés II e percebi, pelo sotaque. Como falamos a mesma língua e estamos longe de casa, achei que podíamos fazer companhia um ao outro.
Afinal, ela encontrou forças para retirar a mão e o fez com uma brusquidão que surpreendeu Peter. Tinha que admitir que ele não perdia tempo!
— Pode crer — disse ele, com um sorriso amável —, que minhas intenções são as melhores. Não há nada mais sinistro em minha mente do que percorrermos juntos as salas do museu e, depois, tomarmos um chá quando voltarmos ao hotel. Será que por sorte você também está no Hilton?
Jenny estava uma fúria. Primeiro, empalidecera mortalmente ao vê-lo. Agora, estava vermelha como um pimentão. Ele deu um passo para trás, como para demonstrar que não pretendia atacá-la.
— Sou inocente - disse ele, segurando o riso. — Juro. Posso até morrer. Só quero andar, conversar e tomar um chá.
Pelo jeito, ele estava achando que ela o julgava um conquistador barato à caça de uma pobre jovem — afinal, vinte e nove anos não significavam velhice! — turista americana. Não era isso que perturbava Jenny, agora. Era o fato dele não a ter reconhecido. Esse era o problema. Ela o reconhecera no ato, mas ele ainda não a reconhecera!
O que queria dizer que ele pensava que ela não sabia distinguir o bennu de um ba — uma figura representando a alma egípcia com corpo de pássaro e cabeça de gente.
Não fora atoa que ele se surpreendera tanto com a citação bíblica que ela fizera. O pior é que se aproximara com uma conversa amigável, certo de que se tratava de uma turista-de-todos-os-dias que poderia lisonjear-lhe o ego, profissional, claro. Ele devia tê-la reconhecido. Ela era Jenny Mowry. O avô dele dera o fora na avó dela. Jenny e ele poderiam muito bem ser irmãos se Geraldine Fowler e Frederic Donas tivessem se casado.
Teve vontade de gritar: "Sou Jenny Mowry! Lembra do meu trabalho sobre Creta? Eu disse nele que Creta era tudo que restara da Atlântida destruída pelo vulcão e você veio a público, declarando que minha teoria, além de não ser nova, era a maior besteira do mundo!"
— Que audácia declarar que o trabalho de pesquisa de uma pessoa é besteira e não reconhecer essa pessoa quando a encontra cara a cara!
— Desculpe, preciso ir embora — disse Jenny, ouvindo a própria voz abafada, longínqua.
Imaginou se as pernas obedeceriam suas intenções: estavam trêmulas., moles. Começou a andar e ele insistiu:
— Vamos tomar um chá, então. Você vai voltar ao hotel, agora?
— Não — respondeu ela. — Eu não disse que ia.
— Humm — murmurou ele, parecendo decepcionado, perdido.
Ela pretendia ir embora: quando se encontrassem em Hierakonpolis, dali a alguns dias, ele a reconheceria! Em vez disso, disse:
— Chá?...
— Chá? — ecoou ele.
— Você me convidou para tomar chá, não? — estava se sentindo mais segura.
— Claro — confirmou ele. — Mas acho que você recusou.
— Nunca ouviu falar que as mulheres vivem mudando de ideia? disse Jenny. — Deve ser exagero, mas eu, agora, mudei de ideia, vou tomar chá com você.
O que ela queria era sair do sombrio museu com ele, para que o brilhante sol do Egito brilhasse em seus cabelos cor-de-mel que emolduravam o rosto oval como uma juba; que brilhasse nos olhos castanhos; mostrasse o narizinho arrebitado com cinco pequenas sardas, a boca cheia, mas não exageradamente sensual; as covinhas nas faces, a pele que, ao contrário da pele da maioria das loiras, bronzeava-se com perfeição. Aí, veria um brilho de reconhecimento nos olhos dourados dele. Sim, olhos dourados. De um ouro-escuro, profundo. Até então, Jenny só tinha visto olhos assim em aves de rapina. Não. Isso não era verdade. Os olhos das aves de rapina eram frios, ameaçadores. Os de Peter eram quentes, com uma expressão séria e cuidadosa, que atraía Jenny tanto quanto o forte rosto quadrado, o queixo com uma covinha que gostaria de sentir com os dedos... se a seriedade do olhar não a obrigasse a manter distância.
— Que ótimo! — exclamou ele.
Pegou-a pelo braço, como se achasse que iria se perder nos corredores do museu.
No entanto, ela se virara muito bem antes dele aparecer. E se alguém estava precisando de ajuda para enxergar melhor naquela semi-obscuridade era ele. Ela não tivera dificuldade em vê-lo. Dominou o impulso de retirar o braço. Afinal, era apenas cortesia da parte dele. Apesar de acreditar nos direitos iguais, pagamento igual e igual reconhecimento de qualificações, entre homens e mulheres, Jenny gostava que os homens lhe abrissem as portas e se erguessem quando entrava numa sala. Não podia dizer que ele estivesse fazendo algo errado, pois não estava. Mantinha a mão firme no braço dela. Mas essa mão transmitia perturbadoras vibrações para seu braço, seios e o resto, fazendo-lhe a garganta se apertar. Consolava-se achando que aquela mão se afastaria depressa, quando ele percebesse quem ela era.
Graças a Deus, luz do dia! Ali, diante deles, entrando pela enorme e maciça porta principal do museu. Agora não falta muito... Só alguns Degraus. . . Um, dois, três....
— Ohhh! — gemeu ela, quase não acreditando que tropeçara.
E não havia onde tropeçar! Estava, saindo aos tropeções do Museu do Cairo, dando razão a Peter Donas ao segurá-la pelo braço.
— Peguei! — anunciou ele, triunfante, envolvendo-a como se fosse um polvo.
Tinha braços longos e fortes. Muito fortes. E como era largo e duro aquele peito em que acabara se encostando completamente, para não cair!
— Tudo bem — disse. — Bem, mesmo. — Tentava agir como se não tivesse tropeçado na beira de um precipício apavorante.
— Eles precisam dar um jeito logo nessa escada - disse Peter, os braços fortes já não mais a envolvendo, o peito largo já se separando de seus seios arfantes e apenas, de novo, segurando-lhe um braço. — Pretendem fazer uma reforma no museu, com o dinheiro que entrar com a exibição de Tutancamon pelo mundo.
Mesmo à luz do dia, para decepção de Jenny, ele não a reconheceu. Pelo menos, não o demonstrou.
— O museu é muito escuro e frio — disse ele, enquanto paravam no pórtico de saída do pátio. — Aqui fora deve estar a mais de quarenta graus.
Com uma das mãos ele protegia os olhos dourados da forte luz do sol e continuava a segurar-lhe o braço, firme, com a outra. Como ele não a reconhecera na semi-escuridão do museu, nem à luz brilhante do sol, a última esperança era a iluminação bem dosada do hotel. Se bem que ela continuasse a não ter problemas para vê-lo.
Peter era mais alto do que Jenny imaginara. Ela media um metro e setenta e cinco centímetros; precisava erguer a cabeça para encará-lo, com seu um metro e oitenta e oito. Parecia mais jovem do que nas fotografias, talvez por estar sempre tão sério nelas. Os editores de publicações científicas têm inclinação para o sombrio, dando a impressão que no mundo científico tudo era fechado, triste, escuro. O que não é verdade.
Caminharam pela rua movimentada em direção ao hotel que se destacava do conglomerado de edifícios mais modernos entre os antigos. Ele continuava segurando Jenny com firmeza. Olhou-o. Era lindo, mas e daí? Desde que tinham nascido estavam destinados a ser inimigos. O encontro estava se prolongando porque Peter não sabia quem ela era. Como se sentisse o olhar de Jenny, Peter olhou-a e sorriu. Peter Donas sorrindo para Jenny Mowry era algo com que ela jamais sonhara. O sorriso era simpático, o olhar suave. No entanto, Jenny não se sentia a salvo.
Depois de atravessarem a rua, entre o tráfego maluco, dirigiram-se para a entrada do hotel e Peter suspirou:
— Vivos e inteiros, enfim!
Jenny sorriu ao ouvir aquilo, pensando na sensação de perigo que sentia. Sabia que era um perigo, um medo emocional e não físico. Devia ter pensado nisso quando aceitara ir trabalhar no Egito, sabendo que iria encontrar Peter Donas lá. Por isso quisera chegar uma semana antes da data marcada para o início dos trabalhos; para se preparar mentalmente para o encontro. Mas o encontro acontecera antes disso. Sentia-se vulnerável, principalmente por ter imaginado que quando se encontrassem, sentiriam a tragédia que os unia. Pois bem, o dia chegara, tinham se encontrado, ela o reconhecera e sentira os laços invisíveis. Mas ele não a reconhecera e, obviamente, nada sentira, o que fazia Jenny imaginar se não tinha vivido de ilusão. Talvez não existisse predestinação. Talvez a afinidade que sentia pela falecida avó nada tinha a ver com o presente. Talvez tudo não passasse de imaginação de criança que toda vez que olhava o retrato de Geraldine Fowler tinha impressão de estar se olhando num espelho. Geraldine, falecida aos trinta e quatro anos, no Egito, morrera como muitas outras pessoas tinham morrido, trabalhando sob a direção de Howard Cárter. Era o pessoal que penetrara no coração de Tebas, descobrindo a entrada para o túmulo do faraó Tutancamon. Mas ela não morrera por causa da maldição que caíra sobre os violadores do túmulo. Morrera porque o homem que amava — não o seu marido — casara-se com outra mulher, por causa do dote.
O avô de Peter não deveria ter parecido mais perigoso do que ele, agora, Jenny sabia disso porque tinha visto fotografias de Frederic Donas. Parecia jovem. . . Mas tinha sido jovem: dez anos mais novo do que Geraldine. Tinha sido bonito, mas não tanto quanto Peter. Tinha dito a Geraldine que a amava, depois fora embora, para se casar com a avó de Peter, na Inglaterra. Tinha que ser mais do que uma simples coincidência a neta de Geraldine Fowler e o neto de Frederic Donas estarem agora no Egito, ambos para trabalhar numa escavação arqueológica, não muito longe do local da tragédia ocorrida há tanto tempo.
No saguão do hotel, deram com um grupo de turistas alemães que na certa ali estavam para ver o tesouro de Tutancamon. De repente, Jenny lembrou que não vira a múmia do faraó, o rei-menino em seu sarcófago de ouro. Já estivera duas vezes, antes, no Egito e também nada vira. A primeira vez tinha sido quando fora visitar o pai na escavação de Saís e tivera que voar de volta a Greta no dia seguinte. A segunda vez fora quando tinha ido ajudar nas escavações de Avaris; encontrara o museu fechado quando roubara um dia do apertado programa de trabalho para ir ver o tesouro de Tutancamon. Nunca mais voltara ali até agora e de novo não vira o faraó porque Peter Donas a convidara para tomar chá! Não conseguia, ainda, acreditar naquilo e não sabia direito como tinha começado.
O grupo de turistas passou. Jenny e Peter entraram no hotel e ela teve de imediato a sensação que sempre tinha ao entrar no Hilton. Essa sensação, na certa, tinha algo a ver com uma coisa que seu pai dissera:
— Vedem meus olhos, ponham-me no saguão de um Hotel Hilton de qualquer parte do mundo, tirem a venda e pago o que quiserem se eu não for capaz de dizer em que país estou e, até mesmo, em que cidade!
Ele não teria dificuldade em descobrir a localização daquele Hilton, com aqueles homens vestindo longos galabias, usando manto na cabeça e sandálias.
Peter guiou-a ao salão de chá, escolhendo uma mesa junto da vidraça, de onde podiam ver o movimento intenso da rua. Largou-lhe o braço e ela surpreendeu-se ao ver que preferia continuar em contato com ele. Sentaram-se um diante do outro, ele pediu chá ao garçom.
— Agora, vai ser difícil a gente conversar sem eu saber seu nome — disse, voltando toda atenção para Jenny.
Cruzou uma perna sobre a outra. Usava botas pretas de montar, calças pretas e camisa com mangas curtas. Tinha as costas das mãos e os braços cabeludos. Ela via pouco do peito de Peter pelo "V" da camisa esporte, que realçava a pele morena. Não dava para imaginar se o peito forte era coberto por pelinhos escuros; musculoso dava para perceber que era.
— Ou será que devo chamá-la de senhorita "X" — dizia ele. — Ou será que é senhora "X"?
— Senhora "X"? — repetiu Jenny, pensando até que ponto ele se interessaria se era casada ou não e por quê, o avô dele não se importara por Geraldine Fowler ser casada, ter dois filhos, ter deixado o marido e os filhos para tentar ser feliz com ele. No fim, descobrira, tarde demais, que ele ia se casar com outra mulher. Por dinheiro. Quanto mais cedo aquela charada fosse resolvida, melhor. Para resolver, ele precisava de uma chave.
— Jenny — disse ela, dando a chave. — Meu nome é Jenny.
— Muito bem! — disse ele e ela percebeu que seu nome não fizera nenhuma campainha de alarme soar. — E o que Jenny está fazendo no Egito? Passando férias?
Ela era Jenny Mowry, designada para ser assistente dele nas escavações de Hierakonpolis. Era neta de Geraldine Fowler, que fora abandonada pelo avô dele. Na certa Peter conhecia a história. Por que um homem abandonaria uma mulher daquele jeito? Talvez tivesse sido uma atração provocada pelo romantismo de um amor proibido; ou a exaltação, em um jovem, de ver uma mulher casada deixar o marido e os filhos por ele. . . só que, abandonada, ela acabara morrendo certa manhã, em Tebas. Morrera de amor. De qualquer modo, o doutor ali presente não saberia diagnosticar aquele caso.
O chá chegou, Peter perguntou se queria o dela "branco" e adicionou leite quando Jenny disse que sim. Tomou o dele "preto". Notou que o rapaz lidava com as delicadas peças do serviço de chá com facilidade, apesar do tamanho de suas mãos.
— Que coisa mais linda! — exclamou ele.
Sobressaltada, arrancada dos pensamentos, Jenny não entendeu o que estava acontecendo. Quando conseguiu entrar em foco de novo, percebeu que ele não olhava para ela, mas sim para algo atrás dela.
— Com licença, um instante — pediu ele, levantando-se. Voltou-se para ver aonde ele ia. No saguão estava um árabe com uma grossa luva de couro que lhe cobria uma das mãos e parte do braço. Sobre ela pousava um falcão, com um pequeno capuz que lhe cobria a cabeça e os olhos. Jenny tornou a endireitar-se e começou a tomar o chá, indignada por ter sido trocada por uma ave de rapina. Aquilo era bem a atitude de um Donas!
Quando ele voltou, o chá já estava frio, mas Peter nem ligou para isso quando Jenny fez o comentário. Pôs chá quente sobre o frio, dizendo, animado:
— Que pássaro espetacular! É um gavião fêmea, que deve ter custado uma fortuna. É de um xeque do sul. . . o xeque Abdul Jerada.
Jenny não ligava a mínima para aquilo. Talvez ligasse se alguém pusesse um capuz na cabeça do sheik Abdul Jerada, uma corrente num dos tornozelos dele e passeasse com o homem pelo Nilo Hilton para ver se ele gostava, e seria bom se alguém fizesse isso com o homem que estava diante dela, também!
— É um costume bárbaro — disse Jenny, servindo-se de mais chá.
— Isso é coisa da Idade Média.
— É um esporte bastante antigo, mesmo — replicou ele, como se achasse que tudo que era velho era bom.
— Antigamente também queimavam bruxas informou Jenny.
— Você acha também esse costume antigo agradável?
— Não, claro! — respondeu Peter, como se fosse evidente que ambos sabiam que uma coisa nada tinha a ver com a outra.
— Caça muito com falcão, na Inglaterra? — indagou ela, não querendo deixar escapar o assunto, satisfeita em verificar que Peter Donas tinha algo pervertido e sádico, como o avô.
— Não — disse ele, desapontado. — Sempre tive vontade de praticar esse esporte, mas exige muito tempo e jamais fico na Inglaterra o bastante para escolher um bom falcão e treiná-lo.
— Mas caçaria, se tivesse tempo? — insistiu Jenny, imaginando-o deliciado, tirando falcõezinhos recém-nascidos do ninho, como o avô tirara sua avó do ninho dela.
— Eu nunca poderia ter um falcão como esse — comentou ele, apontando na direção do rapaz, que continuava de pé no saguão, esperando o xeque Jerada. — Pouca gente pode ter uma ave dessas. . .
— Bem, agora preciso ir, mesmo — disse Jenny, afastando a xícara e dando um sorriso que esperava fosse tão quente quanto um cubo de gelo. — É maravilhoso conversar sobre falcões, mas tenho que fazer muita coisa. Depois de amanhã vou subir o Nilo no barco Osiris...
Poderia ser mais específica e dizer que ia para Idfu, seguindo de lá para Hierakonpolis. Mas não o fez.
— Sim, mas vai fazer algumas refeições até depois de amanhã, não? — riu ele. — Por que não janta comigo hoje? Conheço um restaurante onde fazem um delicioso hamatna.
Jenny teve vontade de rir. Hamatna queria dizer pombo. A conversa deles fora da fênix ao pombo, passando pelo falcão.
— Sabe o que é hamama, Jenny?
Sim, ela sabia o que era hamama, o que era gambari - camarão jirakh - galinha - e gamoosa - carne de búfalo.
— É pombo — explicou ele, pois não lia pensamentos. — Muito apreciado no Egito. Há enormes criações de pombos nas margens do Nilo. Quando viajar por ele, repare na quantidade de pombais. Costumam comer pombos grelhados.
— Deve ser delicioso — disse Jenny, que já provara hamama e gostara. — Mas acho que. ..
— Não imagina o que vai perder! — interrompeu-a Peter.
Jenny teve impressão que ele se referia mais à própria companhia do que ao pombo grelhado. Era um convencido insuportável!
— Acho que posso adivinhar o que vou perder. — disse ela. — Você não pode ver uma pessoa, sem logo pensar em convertê-la à falconeria, ao hamama e à moz bi-laban.
Imaginou se ele iria notar que ela usara uma expressão árabe sem a ajuda de ninguém. Moz bi-laban era um suco de frutas local, feito com banana, leite e açúcar.
— Não digo uma só palavra sobre falconeria! — prometeu ele, enquanto o olhar brilhante passava de novo por cima dela a fim de fixar-se na magnífica fêmea de falcão no pulso do árabe.
— Está bem — concordou Jenny.
Imaginava como seria divertido quando Peter Donas visse que ela não era uma simples turista que jantara com ele no Cairo, mas sim a neta de Geraldine Fowler e sua assistente na escavação!
— Viva! — alegrou-se ele, dando-lhe alguma atenção: — Às oito?
— Encontro você aqui no saguão - disse ela, erguendo-se. — Até logo.
Ele levantou-se também e Jenny saiu da sala de chá, atravessando o saguão na direção dos elevadores. Não via a hora de chegar a Hierakonpolis e. . . Foi arrancada dos pensamentos ao chocar-se com um árabe moreno, alto, vestindo um galabia branco.
— Desculpe. . . - disse ele, num inglês agradável.
Devia estar na cara que ela era americana! E aquele homem devia ser educadíssimo com os estrangeiros, pois era evidente que a culpa do encontrão era toda dela.
— Eu é que tenho de pedir desculpa — disse Jenny. — Preciso prestar mais atenção por onde ando.
O homem tinha olhos de um negro aveludado, bigode e barbas cerrados, muito negros, também. Devia ter uns trinta anos e era um pouquinho mais alto do que Peter. Jenny gostaria de jantar com um homem assim, bonito e exótico! Afinal, estava no Egito, terra dos sheiks do deserto, dos haréns, das tendas forradas por tapetes tunisianos.
Não! Fora logo sentir-se atraída por um inglês que... Sim, tinha que admitir. A palavra "atraída" era a mais adequada. Mas isso podia ter acontecido só por causa do passado dos avós deles?
De repente, percebeu que estava parada no meio do saguão, diante do charmoso árabe. Não sabia o que estava acontecendo com ela e não se sentiu nada animada ao imaginar o que o homem podia estar pensando, pois os cantos dos lábios dele erguiam-se num sorriso divertido.
— Espero que me desculpe, mesmo. . . — murmurou, admirada ao perceber que corava.
Ele afastou-se de lado e Jenny continuou andando para os elevadores. Evidente: todos eles estavam em movimento, nenhum no térreo. Permaneceu de costas para o saguão, achando que o árabe devia estar pensando que os turistas americanos viviam de olhos fechados. Imaginou se Peter vira o encontrão. Se vira, na certa estava achando que fora resultado da excitação dela ao ver-se convidada para jantar com ele. A porta de um dos elevadores abriu-se. Jenny entrou, voltou-se e apertou o botão do décimo andar. Antes que a porta fechasse, teve chance de olhar para o saguão. Ficou desapontadíssima ao ver que nem o árabe, nem Peter estavam interessados nela.
Ambos estavam perto do rapaz com o falcão no braço. Pelas expressões fascinadas deles, percebeu que não falavam sobre ela, mas sim sobre o revoltante e sangrento esporte que, pelo jeito, era paixão de ambos.
CAPÍTULO II
Durante o período de experiências em escavações, que começara quando ela era criança, com visitas aos locais onde o pai trabalhava, Jenny nunca encontrara acomodações como achava que deviam ser. Já tendo trabalhado no Egito, na escavação de Avaris, não tinha esperança que a de Hierakonpolis fosse uma exceção à regra na pobreza das acomodações. Por isso, premiara-se de antemão ficando num dos apartamentos mais caros do Nilo Hilton. Achava que merecia algum conforto, antes de enfrentar o que estava por vir.
O quarto era amplo, decorado em tons de areia, marron e bege, com quadros na parede, a maioria mostrando o templo de Karnac. A janela dava para Korneish-al-Nil, a rua que corria paralela à artéria principal do país, tanto no passado quanto no presente: o rio Nilo. O rio era um longo espraiado de águas cinzentas, ladeado por árvores, arbustos, palmeiras, cujo verde brilhava mais ao sol egípcio. O banheiro tinha uma ducha excelente, peças, inclusive enorme banheira, em cerâmica lilás.
Jenny emergiu do banho de espuma, enxugou-se com enorme e felpuda toalha, pensando nas coisas maravilhosas da civilização. Depois, colocou a toalha no toalheiro e aproximou-se do espelho que cobria uma parede inteira. Examinou o próprio reflexo com olhar crítico. O corpo estava bronzeado como o rosto e a pele era macia, perfeita, dividida em três seções morenas por duas faixas horizontais brancas. Uma passava pelos seios e a outra pelos quadris, desenhando o biquini com que tomava sol habitualmente. O contraste entre o tom moreno e o branco cremoso não deixava de ser atraente, realçando os seios e os quadris. A cintura era fina, as pernas longas e bem-feitas. As longas caminhadas pelos campos de trabalho tinham tornado os músculos firmes.
— Até que não estou tão mal — disse a si mesma; depois franziu a testa: — Só que, evidente, não consigo ser melhor do que uma falcão fêmea!
Imediatamente riu da comparação absurda, imaginando por que ainda se ressentia por Peter ter ido quase correndo para o saguão ao ver o falcão. Era um pássaro, não uma mulher atraente. E, agora, acabara de se comparar com o falcão, como se fosse uma rival.
Como era possível pensar em competir com um falcão? Além disso, o que Jenny menos queria era se envolver com Peter Donas ou com outro homem qualquer. Não que fosse uma dessas mulheres que não gostam de homens. Jenny gostava de homens. Só que decidira, há muito tempo, não amar. Em geral, os homens quebravam corações. Não afirmava isso baseando-se apenas no que Frederic Donas fizera a Geraldine Fowler. Mais de uma das colegas de escola de Jenny havia se casado e divorciado. Até a mãe de Jenny.
Umas duas semanas antes do acidente que apagava a vida de seus pais, ela contara que os papéis do divórcio estavam quase prontos.
Tivera vários namorados, mas todos tinham se transformado em bons amigos. Jamais conhecera um rapaz que despertasse sentimento profundo o bastante para fazê-la pensar em trocar as satisfações da profissão pelas do casamento. Assim, não podia se gabar de ter uma vida sexual ativa. Apesar dos pensamentos modernos, de achar que a mulher tinha os mesmos direitos que o homem, permanecera um tantinho antiquada na filosofia de quando uma mulher deve ir para a cama com um homem. Não era defensora do "é-preciso-casar-antesde-fazer-isso", mas simplesmente não podia separar o amor da transa física. Amor e sexo tinham que estar juntos, por isso, aos vinte e nove anos, nunca tendo amado, ela continuava... Sacudiu a cabeça para clarear os pensamentos, perturbada pelo caminho que estavam tomando. Não sabia o que a estava fazendo revisar esse aspecto de sua vida, que fechara num cantinho da mente, há muitos anos.
Saiu do banheiro, achando que aqueles pensamentos tinham sido provocados pela morna umidade e que o frio agradável do ar-condicionado do quarto traria tudo ao normal.
Escolhera um caftã de seda branca, com um simples bordado dourado na gola. Não que tivesse muita escolha. A experiência a ensinara a viajar com menos bagagem possível.
As escavações não exigiam mais do que shorts e camisetas como traje. Como Hierakonpolis ficava a mais de oitenta quilômetros ao norte da civilização de Assuart, significava mais de oitenta quilómetros de calor, poeira e percevejos. O fato do Nilo ficar a pouca distância a leste do local não mudava nada. O prof. Charles Kenny, da Universidade de Chicago que exigira a presença dela e de Peter Donas na escavação avisara-a por carta que estava tentanto conseguir acomodações no vilarejo mais próximo e que o acampamento era tão acolhedor quanto um cemitério. E o professor não falara figuradamente. Essa escavação era em um cemitério. As várias equipes que tinham explorado a região nada tinham conseguido. A atual tropeçara com o túmulo de um dos últimos soberanos egípcios: o Rei Escorpião. Desconfiavam que a tumba desse rei devia ser por ali, pois ele estava associado à irrigação do vale do Nilo. O prof. Kenny era da teoria que o túmulo devia estar por ali e Jenny concordava com ele.
Peter Donas, claro, tinha outra opinião. Baseado em obscuras referências em papiros, Peter achava que o túmulo do Rei Escorpião fora construído mais ao norte, mais perto da moderna Luxor. Jenny adoraria ver a prova de que Peter Donas estava errado. Isso a recompensaria um pouco do fato dele ter dito que sua teoria Creta-Atlântida era besteira. Uma das razões principais dela ter aceitado esse trabalho, em vez de outro em Sibaris, era provar que Peter estava errado.
Como não esperava muito de vida social em Hierakonpolis, achara que o caftã e um par de sandálias de saltos altos, brancos, bastavam. Secou os cabelos com o secador, depois escovou-os. Olhava-se ao espelho quando algo, na mesa de cabeceira, chamou-lhe a atenção. Largou a escova e foi pegar o exemplar da Arqueologia Americana que comprara e lera no dia anterior. Voltou à penteadeira, sentou-se e folheou a revista até encontrar a fotografia do recente congresso da Associação Arqueológica das Três Américas, realizada em Nova York.
Procurou a si mesma na foto e olhou com mais atenção. Teve de reconhecer, ao olhar-se no espelho, que eram duas mulheres diferentes de fato, não pareciam a mesma.
A mulher da foto tinha os cabelo severamente puxados para trás e recolhidos num coque, usava uma indefinida roupa preta. A mulher junto da penteadeira tinha cabelos lindos, fartos, brilhantes, emoldurando-lhe o rosto como uma sedosa juba. Quando escolhera aquele corte de cabelos, Jenny não se interrogara por quê. Mas, agora, descobrira que fora pensando em encontrar Peter Donas em Hierakonpolis.
Que nada! Peter Donas nada tinha a ver com isso! Simplesmente, decidira que precisava mudar e parar de se sentir culpada por não ser "a mulher" na vida de um homem, parar de sentir complexos do jeito como se vestia há anos, achando que ninguém levaria sua profissão a sério se a visse como a mulher que de fato era.
Olhou melhor a legenda da foto: "J. Mowry". "J", não Jenny ou Jennifer. Até isso era concessão que ela fizera ao abrir caminho numa profissão eminentemente masculina.
Submetera seu primeiro trabalho para publicação — um ensaio sobre a possibilidade de Herculano na Itália, ter sido o primeiro porto de mar antes da erupção do Vesúvio, no ano 79 a.C. — assinado J. Mowry. Achara que se o sexo não ficasse evidente, o trabalho teria maior chance da aceitação pelo editor de ciências e seria mais lido pela comunidade científica. Conseguira ultrapassar essa sensação de inferioridade, mas certos hábitos, como assinar J. Mowry, usar os cabelos presos num coque e roupas sérias, sombrias, eram mais difíceis de quebrar.
Então, era bem explicável que Peter não a tivesse reconhecido no museu, por ser mal iluminado e por nunca tê-la visto pessoalmente. Não era raro dois profissionais do mesmo ramo, trabalhando em lados diferentes do mundo, nunca se conhecerem. Há alguns anos, Jenny ia assistir a um seminário em que Peter estava inscrito como conferencista, mas pouco antes do voo tivera um sério problema de infecção intestinal. Talvez o peixe que comera num restaurante na noite anterior. Continuara a acreditar nisso, apesar de o médico ter dito que não.
Vendo como estava diferente de como era na foto, ficou satisfeita. Ele não podia reconhecê-la. Peter devia ter visto a fotografia, mas era impossível ligar aquela mulher à que Jenny era agora. Prendeu os cabelos, como de hábito. Em vez do caftã branco, vestiu uma blusa e uma saia reta. Quando se olhou de novo ao espelho, sentiu-se novamente a "outra", a J. Mowry da revista científica. Agora, Peter na certa a reconheceria!
O único problema é que se preferia do outro jeito! Lembrava-se do dia em que comprara o caftã de seda, de quando o usara no chá oferecido ao dr. Winfield, na Universidade de Washington. Os homens todos a haviam olhado com evidente admiração. Sentira-se como o patinho feio virado em cisne, como a Cinderela no baile. A sensação tinha sido tão boa que nunca mais pensara em voltar a ser a velha J. Mowry, até agora.
Olhou o relógio. Sete e meia. Tinha meia hora para ir encontrar Peter lá embaixo. Começou a se despir. Tinha dado um passo à frente assumindo a própria feminilidade e recusava-se a dar dois passos para trás à esta altura da jogada. E não sabia qual seria sua reação se aparecesse diante de Peter Donas como J. Mowry e "Peter, mais uma vez, não reconhecesse a colega e a pessoa ligada a ele por um amor trágico que tivera vida há meio século.
— Pronto! — murmurou, soltando os cabelos e escovando-os; retocando a maquilagem. — Deu tempo e sobrou.
O caftã, com o corte arredondado junto ao pescoço, as mangas amplas, o delicado bordado com fio dourado, ficava muito bem para Jenny, destacando a pele morena e os cabelos cor-de-mel. Um simples bracelete de ouro deu o toque final.
Desceu e ficou contente por vê-lo à espera. Ficaria frustrada, mas não muito surpreendida, se ele chegasse tarde, com a desculpa de que estivera conversando sobre a alimentação, saúde e desempenho do falcão, por isso esquecera completamente dela. Estava muito bem com a camisa esporte, branca, de mangas compridas, calças pretas e botas de montar, também de couro preto.
— Sensacional! — disse ele, tomando-lhe ambas as mãos e erguendo-lhe os braços, enquanto a admirava de alto a baixo.
Aquele olhar poucos homens tinham dado a J. Mowry. Jenny iria sentir-se embaraçada, se não tivesse tido a experiência inicial na festa do dr. Winfield, há poucas semanas. Agiu como se tivesse certeza que ele não estava se referindo a ela.
— Estou dizendo que você é sensacional! - repetiu ele, sorrindo, os dentes brancos mais brancos em contraste com a pele morena, os olhos brilhando, fazendo-a sentir-se atraída por uma força sideral.
— Pensei que você tivesse descoberto um outro falcão... — disse Jenny, arrependendo-se imediatamente diante do olhar de desculpa dele.
— No momento, você é o pássaro mais encantador que há por aqui — disse Peter e ela percebeu que ele se referia à palavra que em gíria inglesa significava "boneca", "mina"; em seguida, ele continuou:
— Vai adorar o lugar que escolhi para irmos. — segurou-lhe um braço, despertando de novo sensações que Jenny preferiu ignorar. Pena que é muito procurado por turistas, mas quem vem ao Cairo precisa conhecê-lo. Será que já foi lá? Chama-se Filfila.
Ela fez que não com a cabeça, divertida ao ver como ele se alegrava por ser o primeiro a levá-la ao restaurante. Começou a se sentir contagiada pela animação de Peter.
— Infelizmente esse restaurante vive cheio, mas conheço um dos garçons e ele me garantiu a melhor mesa — disse ele.
O restaurante ficava na Hoda Sharawi, uma travessa da Sharia Talaat Harb. Ao entrar, passaram pela agitada cozinha — um salão amplo com um balcão para as pessoas que queriam comer depressa e ir embora. Sem dúvida, os aromas eram exóticos. Era um local movimentado e, nas circunstâncias, Jenny preferia aquilo a um restaurante íntimo a luz de velas. Algo assim iria criar uma atmosfera tensa, uma vez que Jenny ainda se recusava a acreditar que estava com o homem que se tornara fascinante para a jovem impressionada pelo trágico romance e a morte de Geraldine Fowler, em Tebas.
Assim que entraram, Peter perguntou pelo garçom com quem reservara a mesa e ele aproximou-se, levando-os para uma sala ao fundo, onde mesas, feitas de troncos de árvores, estavam quase todas ocupadas. Assim que se acomodou numa mesa bem localizada, de canto, Jenny olhou ao redor, percebendo palavras em inglês, francês e alemão no burburinho de vozes.
As duas paredes laterais do salão comprido eram envidraçadas e a parede do fundo exibia um painel com paisagem típica do Egito: tamareiras graciosas, camelos num oásis, músicos árabes. O cardápio apresentava várias especialidades locais e Jenny viu-se automaticamente procurando o hamama, se bem que não pretendesse de modo algum pedir pombo. Afinal, decidiu-se pelo molokhia, prato egípcio que já experimentara e do qual gostara muito. A base do prato era constituída por umas folhas que lembravam vagamente as de uva, mas o sabor parecia pertencer à família da hortelã.
Depois de ter certeza que o peixe do dia, samak, era do mar e não do rio, Peter o pediu. Era um peixe parecido com a solha. Peter sabia que esse peixe de rio, principalmente se pescado nas proximidades do Cairo, poderia estar contaminado. Para acompanhar, Peter pediu torshi: legumes num molho picante; wara einab, o "charuto" de folha de uva com arroz e carne; khalta, arroz com uvas passas, nozes, dadinhos de carne e de fígado. O pão, aish baladi, de forma ovalada, crocante. Os dois pediram shai bi-nana, um chá de hortelã delicioso. Ao contrário do hotel, que servia chá em bule, com açúcar opcional, ali o chá já vinha bem açucarado e em pequenos copos.
Ali pelo meio do jantar Jenny reconheceu que Peter era uma companhia agradável. . . mas logo disse a si mesma que talvez essa sensação viesse mais do local e da comida. No entanto, sabia que só uma pessoa agradável escolhia lugares e atividades agradáveis. O fato é que durante as duas horas e meia que passaram juntos fizeram Jenny desejar não ser Jenny Mowry, que Peter Donas não fosse "ele" e que não tivesse acontecido aquela tragédia de amor em suas famílias. Enquanto conversavam, Jenny fitava os olhos profundos, dourados de Peter, e tinha impressão de que mudar de identidade era tão fácil quanto mudar de estilo de penteado ou de vestir. Aquele olhar a deixava tão perturbada que, de repente, percebeu que não ouvira uma só palavra do que ele dissera sobre um prato com calamari — lulas que tinham pedido na mesa vizinha.
Enquanto Peter sugeria que podiam sair, ir andando por aí, e comer a sobremesa em outro lugar qualquer, Jenny já estava de novo pensando. Fora boba em misturar coisas acontecidas antes dos dois terem nascido com suas vidas de agora. Era ridículo achar que um romance vivido há sessenta anos podia influir no agora. Afinal, ela era Jenny Mowry e não Geraldine Fowler, se bem que dissessem que se parecia muito com a avó. Peter, a não ser pelos cabelos negros, não parecia com Frederic Donas. Frederic tinho sido uma criança, Peter era um homem; Frederic fora franzino, Peter era todo músculos; Frederic tinha sido. . .
— Uma piastra pelos seus pensamentos! — disse ele, arrancando-a do devaneio.
Piastra é uma moeda egípcia, equivalente a cerca de um cruzeiro.
Peter pagou a conta e saíram. A rua parecia quieta comparada com o falatório e agitação do Filfila.
— Eu estava pensando que a comida aí é ótima — disse ela.
— É, mesmo — concordou ele, como se o mérito da comida ter agradado a Jenny coubesse todo a ele. — Boa de verdade.
Mais uma vez Jenny pensou em dizer a ele quem era. Convencera se de que aquilo não devia ser tão importante, que transportara uma mágoa, um medo infantil, para a idade adulta. Estava até disposta a perdoar o que ele dissera sobre sua teoria a respeito de Creta e Atlântida. Discordância de opiniões profissionais não era motivo para ressentimento e vingança. Até que era uma coisa saudável, pois levava a discussões e esclarecimentos. Aliás, tinha certeza de que quando terminasse as escavações em Hierakonpolis ficaria provado que o túmulo do Rei Escorpião era lá e não em Luxor, como Peter afirmava. Sentia até pena dele por estar errado: nas últimas horas, mudara de opinião sobre ele.
Não. Não diria quem era, antegozando o instante da revelação. Já não iria demorar muito, agora. E ela não havia mentido: ele perguntara-lhe o nome e ela respondera, dando o diminutivo, que era o mais usado.
Andavam devagar, sem se sentirem incomodados pelo silêncio. Alguém dissera a Jenny, certa vez, que quando duas pessoas se sentiam bem juntas, até em silêncio, queria dizer que se entendiam perfeitamente.
Jenny ficou desapontada quando Peter chamou um táxi e a fez entrar no banco de trás, sentando-se ao lado dela. Não estava com pressa de voltar para o hotel; preferia caminhar, parar num café onde comessem mahallabiyya — um doce de creme de arroz com pistache —, onde pudessem olhar-se de frente e sorrir um para o outro.
Abafou um suspiro de alívio e contentamento quando ele disse ao motorista que seguisse para o Ku 26 de Julho, rua que atravessava o Nilo vários quarteirões depois do hotel.
Foram para um pequeno restaurante próximo do museu, onde não havia mahallabiyya. Jenny contentou-se com babousa — uma deliciosa torta de semolina com mel e avelãs.
Tinha medo que aquela noite acabasse. Sob o encanto da gloriosa noite egípcia, minimizava todos os defeitos de Peter. Menos o de ser fascinado por caça com falcões. A lua, enorme e incrivelmente linda, suspendia-se num céu de negror intenso, crivado de estrelas. Uma brisa suave movimentava de leve as folhas das tamareiras que sussurravam docemente.
Começou a cortar sua fatia de babousa em pedaços cada vez menores, tentando esticar aqueles momentos, pois lembrava de um princípio matemático que dizia que uma coisa jamais desaparece se for continuamente dividida. Mas ao ver os pedacinhos minúsculos, chegou a sentir-se ridícula.
Peter e ela devem ter compreendido ao mesmo tempo que bons momentos podem ser destruídos se a gente tentar esticá-los, pois ambos se ergueram ao mesmo tempo, sem dizer uma palavra. Enquanto andavam na rua, ele passou o braço pela citura de Jenny, que não reagiu. Gostava da sensação do braço dele, do leve sensualismo que a pressão do corpo forte despertava nela, ao caminharem.
Quando chegaram ao hotel, Jenny apanhou-se de novo pensando na avó, achando que devia ter sido fácil ela se apaixonar por um rapaz naquele ambiente com a lua enorme, palmeiras sussurrantes, barcos percorrendo as águas escuras do Nilo como faziam antes de Cristo, o exótico odor de limoeiros e laranjeiras flutuando no ar morno.
Tal pensamento á confundiu, avisando-a de que às vezes um lugar poderia ser até mais perigoso do que um homem. Juntos, o Egito e Peter podiam se tornar um afrodisíaco poderoso demais para Jenny resistir, por mais que se tivesse preparado para não cometer o erro que a avó cometera.
Mas ela não era Geraldine Fowler, repetiu de novo a si mesma. Não era casada. Não tinha dois filhos. E, ao que sabia, Peter Donas não estava cçmprometido com nenhuma mulher que tivesse uma grande conta em banco. Como estava ficando tonta! Uma noite não faz um romance! O encanto que flutuava ao redor deles, na certa, seria desfeito pela luz do dia e ela iria sentir pela ilusão prematura, principalmente por ser tão envolvente e linda.
Peter acompanhou-a até o apartamento, pegou a chave da mão dela, abriu a porta e devolveu-a. Jenny imaginou rapidamente como seria se o convidasse para entrar e, depois, ficasse olhando enquanto ele tirava a camisa, desnudando o peito forte.
— Muito obrigada pela noite maravilhosa — disse, torcendo para ele não perceber que ficara corada por causa do que pensara.
Não entendia o que estava lhe acontecendo, como podia imaginar tanta coisa sensual sobre um homem que conhecera naquela tarde.
— Que tal a gente se ver amanhã? — perguntou ele, ficando tão perto dela que de longe pareciam um só. — Quer almoçar comigo? Depois acrescentou, depressa, percebendo que ela se retraía: — Podemos dar uma volta para ver a paisagem, quem sabe ir de camelo até as pirâmides.
— Não queria que se incomodasse me levando a lugares que certamente já viu. — Aquele convite parecia ampliar a extensão do encantamento, deixando-a nervosa.
Convencera-se de que o encanto seria quebrado com o amanhecer e, além disso, já visitara as pirâmides montada em camelo.
Ele deu um passo de lado para deixar Jenny entrar no apartamento. Como ele retrocedera logo! Na certa sentira o temor dela, com sua experiência de falconeiro pudera perceber o nervosismo da presa recém-capturada. Ou, quem sabe, ele a via como um falcão: pássaro que precisa ser conquistado com tempo, calma e muita sedução. Os falcões não desistem facilmente da independência. É preciso muito tempo e paciência para dominá-los; por fim, deixavam de ser o que eram: esqueciam do que era liberdade e sempre voltavam para o braço do dono, quando poderiam ir embora na amplidão do céu.
— Os lugares podem mudar completamente, dependendo da companhia — disse ele, galante, com voz sedutora, com um olhar que a fazia ter vontade de diminuir de novo o espaço entre eles. — Em geral, as coisas partilhadas são melhores, não acha? — indagou. Não vai ser cruel, privando-me de aproveitar melhor as belezas do Cairo com você, vai? Afinal, trata-se de apenas um dia de sua vida. Depois você vai percorrer o Nilo e eu... — Sacudiu os ombros, como se não soubesse onde iria estar na próxima semana ou no outro mês.
Iria estar em Hierakonpolis com ela! Naquele momento ele a via como uma mulher que fazia parte da vida dele por uma noite, quem sabe faria parte por mais um dia, admirando as belezas do Egito com ele antes de desaparecer para sempre. Não teria sentido ele estar tão ansioso por passar as próximas horas com alguém que iria estar a seu lado por dois meses. Queria alguém com que dividir as lembranças; lembranças que seriam saboreadas quando estivesse sujo de terra, suado, exausto e com outras mulheres, exceto Jenny, a quilômetros de distância. Só que ele não sabia disso. . .
Ele deu um passo à frente, tomou-a nos braços, beijou-lhe a base do pescoço, as faces, a testa, a pontinha do nariz. Jenny sabia que devia protestar contra aquela ousadia, mas desejara profundamente o que ele estava fazendo. Sentia-se bem naqueles braços, como se tivesse sido feita para eles; excitava-se ao sentir a pressão do peito musculoso nos seios, das coxas fortes, os lábios famintos em seu rosto, queimando-lhe a pele com beijos exigentes.
Abriu os lábios à insistente pressão dos dele, sentindo que a fome dele a contagiara. Passou as mãos pelas costas dele, sentindo os músculos tensos, rijos; depois enfiou os dedos nos cabelos, sentindo-lhes a maciez. Colou mais o corpo ao dele, enquanto a boca de Peter separou-se um instante da dela, murmurante, depois voltou a aprisionar-lhe os lábios, mais ansiosa.
O contato com ele, o cheiro da colônia que usava, o som rouco de sua voz, cortou a respiração de Jenny, fazendo-a gemer. Seu coração batia tão forte que ela podia senti-lo no peito, nas têmporas, no cérebro.
— Não... não! — disse, fracamente, quando conseguiu livrar os lábios da boca faminta.
— Sim — murmurou ele, tornando a beijar-lhe o rosto, a testa, as pálpebras. — Tenho certeza que você também sente, Jenny... Eu senti desde o começo, que há algo entre nós dois.. . Uma coisa muito especial. . .
Jenny sabia que tinha de arranjar forças para ele a soltar. Sabia bem a que "coisa especial" ele estava se referindo e permitira que Peter tirasse vantagem disso.
Um pensamento horrível passou-lhe pela cabeça: que ele sabia quem ela era, que preparara cuidadosamente aquele momento e que iria rir daquilo tudo, mais tarde.
— A avó dela deu em cima do meu avô, do mesmo jeito que ela deu em cima de mim! — imaginava-o dizendo.
— Não, Peter, não! — crispou os dedos nos cabelos dele, obrigando-o a afastar a cabeça; pôs as duas mãos no peito musculoso e empurrou-o para trás. — Por favor!
Então, ele a largou tão bruscamente que ela foi impulsionada de costas contra a parede. Sabia que a porta do apartamento estava aberta, que era só entrar e fechá-la.
Mas não se moveu. Sentia falta dele, do contato daquele corpo vibrante e faminto pressionando o dela.
— Desculpe. . . — disse ele, a voz rouca e entrecortada pela respiração ofegante. — Eu não sei como. . . Diabo, Jenny, desculpe! — voltou-se e foi embora.
Jenny ficou olhando-o afastar-se. Não o chamou porque não sabia o que dizer se ele voltasse. Entrou no apartamento e fechou a porta.
Não podia deixar de imaginar como teria sido se eles não fossem quem eram, se não tivesse ficado tão impressionada com a história de Geraldine e Frederic. Como teria sido fácil ceder à tentação se fosse uma turista como outra qualquer! Ao admitir isso ficou chocada, pois nunca tivera intenção de ceder a esse tipo de tentação, se bem que a atração era tão forte que até se parecia com amor.
Mas o amor não surgia tão depressa entre duas pessoas, por mais que dissessem isso nos romantes. Nos livros tudo acontecia fácil. E o amor jamais aconteceria tão depressa para Jenny Mowry! Pelo menos, não o amor com o neto do homem que causara tanto sofrimento a Geraldine Fowler.
CAPÍTULO III
Acordou sem entender logo o que estava acontecendo. Deixara a cortina aberta a fim de ser acordada pela luz do sol e imediatamente ver a paisagem, que incluía as distantes pirâmides de Giza.
Não estava vendo as pirâmides — e nem coisa alguma — na escuridão lá fora. Acendeu a luz de cabeceira e atendeu o telefone, que começara a tocar de novo. Deu uma olhada no relógio e viu que eram quatro e meia. Imaginou que catástrofe teria levado alguém a acordá-la àquela hora.
— Só quero saber se você fica pronta logo — disse a voz do outro lado do fio.
Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo todo. Confusamente, imaginou por que motivo Peter teria ligado. Ele não explicou:
— Estou esperando aqui embaixo. Você desce já?
Ainda estava atordoada de sono. Achava que não iria mais ver Peter até chegar a Hierakonpolis. Ficara triste: a noite anterior, que começara tão bem, terminara com uma nota negativa. Reagira de modo exagerado a um simples beijo, deixando que a lembrança da infelicidade da avó estragasse o que poderiam ser momentos bonitos.
Os homens sempre davam beijo de boa-noite na moça com quem saíam. Isso não queria dizer que tivessem que jurar amor, que iriam seduzi-la, que a pediriam em casamento e, depois, a abandonariam por causa de outra mulher endinheirada.
— Sabe que horas são? — perguntou ela, contente por ele ter telefonado, sem ligar por ser de madrugada.
— Sim e temos cerca de uma hora pela frente - respondeu Peter.
— Se você andar logo, vai dar tempo.
— Tempo para quê? — perguntou Jenny, confusa.
— Para ver o sol nascer do topo da pirâmide de Quéops — disse Peter, sem tentar esconder a excitação que sentia. — Acho que é a melhor maneira de começar nosso dia, não?
— Você é louco! — exclamou Jenny, se bem que estivesse achando a ideia formidável.
Só que desconfiava que não ia ser muito romântico. A tal pirâmide era feita com dois milhões e trezentos mil blocos, cada qual com mais ou menos noventa centímetros de altura. Subir aquilo tudo não era como voar para as estrelas. E, depois, havia a descida.
— Você tem quinze minutos — disse ele e desligou, antes que ela dissesse que era loucura sair da cama macia para tanto esforço.
Peter, elegante como sempre, esperava-a no saguão e levou-a até o carro que estava esperando. Depois que ela entrou, ele também entrou, sentando-se a seu lado, no assento de trás. O carro era pequeno e ficaram bem encostados um ao outro. O único jeito de evitar aquilo seria abrir a porta e sair pelo outro lado. Seguiram pela avenida de quatro pistas que, depois, afunilou-se em duas pistas. Mais adiante o motorista parou o carro, deixando o motor funcionando. Jenny olhou para Peter, intrigada, mas nesse momento um árabe surgiu da escuridão e entrou no carro, sentando-se ao lado do motorista. Movimentaram-se de novo, começando a subir uma colina.
— Mohammed é nosso guia — explicou Peter.
Apresentou Jenny ao cavalheiro moreno, que parecia idoso o bastante para ter trabalhado com Cárter nas escavações em Tebas. O rosto envelhecido enrugou-se mais ainda quando ele sorriu, mostrando gengivas sem um dente sequer.
— Em geral, Mohammed quebra o recorde de seis minutos para chegar ao topo, mas está disposto a ir mais devagar, hoje, por nossa causa. Eu expliquei que estamos meio fora de forma. Mas acho que agora, depois de ver você, ele deve estar pensando que sou maluco. Não é, Mohammed?
O velho fez que sim com a cabeça, mas parecia que não tinha entendido bem o que Peter dissera. Abriu mais o sorriso, fazendo o rosto moreno tornar-se ainda mais simpático e amigável.
Jenny já começara a ver as pirâmides: silhuetas impressionantes, levemente mais claras, contra o céu que começava a se tornar menos negro. Como sempre, sentiu-se emocionada ao ver as gigantescas estruturas que tinham resistido a mais de quinhentos anos de intempéries, quando a civilização que as produzira eclipsara-se diante de Roma ou da Grécia.
Quéops, a maior e mais importante pirâmide, que iriam subir, fora construída com seis milhões de toneladas de blocos de granito de forma geométrica, sem argamassa, cuja base ocupava uma área de 54.300 m2. Seus 146 metros de altura subiam altivos para o céu que amanhecia. Muitos achavam que se tratava de um monumento ao Rei-Deus. A pirâmide de Quéfrem parecia mais alta: quem a construíra, espertamente, tirara vantagem da inclinação dos degraus, assim como de uma base mais alta. Miquerinos, a terceira pirâmide, era modesta em comparação às outras duas.
Na planície de Gisé, onde se encontravam as pirâmides, havia também a Esfinge: um leão com cabeça de homem, talhado num rochedo, com 60 metros de comprimento e 17 de altura.
— É impressionante que a maioria das pessoas que vêm aqui ver as pirâmides vai embora sem ter a verdadeira noção destes monumentos e de seu significado histórico.
Ao ouvir a voz dele Jenny voltou-se sem entender o que Peter dizia, pois pensava na última vez que tinham estado tão perto, os braços dele apertando-a, o corpo musculoso contra o dela, os lábios ardentes e ansiosos...
— O quê? — perguntou, ao notar que ele esperava um comentário, uma resposta para o que dissera.
Ele sorriu, como se dissesse que sabia por onde os pensamentos dela andavam, como se tivesse lido na mente dela e se sentisse satisfeito por ver que Jenny o achava tão atraente.
— Está pronta? — indagou Peter, estendendo-lhe a mão.
— Estou — respondeu Jenny, ignorando o gesto.
Estava pronta para subir na pirâmide de Quéops, sim. Mas não estava pronta para qualquer outra coisa a que a indagação se referisse. Não estava pronta para ser beijada de novo. Não estava pronta para admitir que seus sentimentos por Peter iam além dos limites profissionais. Não estava pronta para admitir que desejava que ele a acariciasse, abraçasse e beijasse como tinha feito na noite anterior; que desejava que tudo fosse além das meras carícias de duas bocas famintas.
O guia já havia subido os primeiros degraus e estendia a mão para Jenny. Ela segurou-a, desejando que fosse a mão de Peter. Começaram a subir. Quando já não conseguia quase respirar, pararam e Jenny percebeu que ainda estavam na metade do caminho.
— Cansada? — perguntou Peter e ela se consolou, percebendo que a respiração dele também estava um pouco pesada.
— Acho que vou ficar esperando vocês aqui — disse Jenny, levando a mão à base da garganta, como se assim pudesse diminuir a aflição do cansaço, da maior necessidade de oxigênio, das aflitivas ondas de náuseas.
— Logo vai se sentir melhor — assegurou Peter. — Vou pedir a Mohammed que suba mais devagar.
Pouco depois recomeçaram a subida. O guia dando-lhe a mão, Peter de vez em quando ajudando-a ao segurá-la pela cintura e impulsioná-la para cima.
— Estamos quase chegando — disse ele, pouco depois; mas como dissera isso várias vezes, ela não se animou.
— Fui idiota entrando nesta! — disse ela, quando pararam de novo, mal conseguindo respirar.
De repente, viu-se nos braços dele, o rosto enterrado no peito firme, sentindo a combinação do cheiro da colônia e o cheiro dele mesmo. Imaginou se era hábito dele abraçar as mulheres exaustas no alto das pirâmides. Afastou-se, com medo de que o cansaço parecesse apenas uma desculpa para que Peter a amparasse. Cerrou os dentes e redobrou os esforços para chegar no topo.
Não conseguiu prestar atenção, de imediato, à paisagem. Em vez disso, foi para o centro do alto da pirâmide, que era plano, talvez por terem removido a pedra ângulo agudo do ápice. Ou quem sabe sempre tinha sido assim. Deixou-se cair sentada, abraçou as pernas encolhidas e encostou a cabeça nos joelhos.
— Me diga se não vale a pena. . . — desafiou Peter, afinal. — Venha, eu ajudo.
Sentia-se morta de cansaço, mas tinha que admitir que valia a pena. A paisagem que se descortinava dali era estonteante. Deserto de dois lados, o verde dos campos de uma fazenda do outro e a cidade, com o Nilo, do outro. Que grandiosidade!
Pôs-se de pé. Os joelhos ainda estavam um tanto trêmulos, mas achou que aquele era um preço pequeno pelo direito de ver o sol nascer ao lado de Peter, naquela paisagem de sonho.
De repente, surpreendeu-se ao ver que o guia sumira.
— Mohammed está ao alcance da nossa voz, garanto. . . — disse Peter, como se tivesse lido os pensamentos dela. — Se era nisso que estava pensando — acrescentou.
— Eu não estava pensando em nada — respondeu, sentindo culpa pela mentirinha.
Cairo parecia envolta num véu cinza-escuro. O deserto, além da cidade, por trás do qual o sol estava nascendo, era de um cinza mais claro. O céu, no horizonte, era uma mistura de cores incríveis e lindas. Acima da pirâmide Quéops o céu ainda estava negro, a não ser onde estrelas cintilavam, já com brilho mais fraco.
Quando o sol, como uma enorme laranja brilhante, começou a aparecer, o céu assumiu tons seivados de laranja, de vermelho, de amarelo deslumbrante, formando uma filigrana preciosa contra o azul-cinza. Jenny não pôde conter uma exclamação maravilhada.
— "Oh, Rei! Vós que sorris, alegremente. . ." — disse Peter, passando um braço pela cintura de Jenny, que não reagiu, querendo saborear com ele aqueles momentos únicos — "pondo delícias nos corações que partilham vosso paraíso! Os Antigos e aqueles que foram antes vos saúdam!"
Jenny reconheceu as palavras. Eram do livro egípcio Livro dos Mortos. Nesse momento o sol pareceu saltar para o céu, aparecendo inteiro no horizonte, fazendo Jenny proteger os olhos no ombro de Peter, enquanto o deserto tornava-se dourado, o céu negro, azul e o Cairo brilhou como um diadema na paisagem.
Os olhos de Peter eram como sóis dourados com centros profundos, marrons. Abraçou-a e manteve-a presa, levando-a, aos poucos, para um encantamento envolvente. Seus corpos se uniram e ele murmurou:
— "Minha felicidade é ela; quando a vejo, sou feliz. Quando ela abre os olhos, reencontro minha juventude; quando ela fala, recupero minhas forças; quando eu a beijo, ela expulsa o demônio de mim."
Era o poema de amor do Novo Reinado Egípcio, pontuado com beijos suaves que pareciam a Jenny como toques de pétalas de rosas. Ao terminar houve um beijo mais forte do que os outros, que obrigou Jenny a entreabrir os lábios. A sensação foi maravilhosa.
Jenny passou as mãos pelas costas dele, sentindo a firmeza dos músculos sob o pulôver. Teve vontade de sentir a pele nua em suas mãos e logo descobriu que isso era possível: era só enfiá-las por baixo da camisa dele. Os dedos dela percorreram-lhe as costas, ansiosos, acariciando, apertando, sentindo os músculos retesados.
— Jenny, Jenny — murmurou Peter, desabotoando-lhe a blusa, acariciando-lhe os seios com as mãos de pele grossa, mas que davam-lhe a sensação de mais macias e sensuais do que seda.
No entanto, havia limites que Jenny não estava preparada para ultrapassar, principalmente com o homem que não devia amar e que não podia amá-la de verdade. Mas naquele momento não importava ela, nem Peter, mas sim a natureza que parecia determinada a uni-los. No entanto, Jenny ainda estava lúcida e não queria ser seduzida. Estava dando certas liberdades a Peter, mas, por se sentir protegida pelo momento, pelo local e pela proximidade de Mohammed. Cedera momentaneamente à tentação para provar a si mesma que podia ir além de um beijo sem perder a cabeça. Já provara o que queria e conhecia o perigo de continuar. Afinal, era humana e sabia que ele a atraia.
Nunca sentira necessidade de tocar homem algum como acontecera com Peter.
— Escute, Peter — disse, enquanto o ardor dos lábios dele em seu pescoço a fazia ter pensamentos loucos. — Temos que ir embora daqui. Devem estar chegando os ônibus com turistas.
— Quero fazer amor com você — disse ele, rouco.
Jenny agradeceu a Deus: nesse momento Mohammed anunciou que se aproximava, assobiando. Não precisava responder. Peter não gostou da intrusão. Largou Jenny bruscamente e voltou-se para o guia, dizendo-lhe que sumisse dali. A moça sentiu-se embaraçada com o desalinho de suas roupas: começou a abotoar apressadamente os botões da blusa. Peter falara em árabe e Mohammed respondera no mesmo idioma, dizendo que talvez tivessem problemas por não participarem de nenhum grupo, com programa e horário.
— Tudo bem — disse Peter, irritado. — Eu cuido disso.
— Não precisa — interferiu Jenny, também em árabe, surpreendendo os dois homens. — Acho melhor descermos. — Não pôde deixar de rir, diante da cara de espanto de Peter. — Há excelentes cursos de idiomas estrangeiros nos Estados Unidos, sabe? — disse, imaginando se Peter achava que se aprendia árabe, sem ser na Arábia, apenas entre as respeitáveis paredes da Oxford.
— Bem, você tem que reconhecer que não é de se esperar que uma turista, uma garota em férias fale árabe — disse ele, persistindo na ideia errada, vendo-a como turista.
— De qualquer jeito, vamos descer — repetiu Jenny, terminando de se abotoar. — Não há motivo para procurar encrenca.
— Você não imagina como as encrencas se desvanecem diante de algumas moedas! — esclareceu Peter, mas ela já descobrira isso por si mesma.
— Pode ser — respondeu. — Só que há um ponto a esclarecer. Por mais romântico que seja fazer amor no topo de uma pirâmide, não pretendo fazê-lo com você. Um beijo é uma coisa. . .
— Foi bem mais do que um beijo — interrompeu ele.
— Você me parece um tanto. . . digamos, apressado — replicou Jenny, sentindo que corara e lutando por se manter fria. — Fazer amor é algo que tem de surgir do amor e parece-me que não falamos nisso, não é?
— Se você me deixasse expressar minha opinião, eu agradeceria — disse Peter, parecendo embaraçado, também.
— Pois não, Peter. Mas não me venha com um papo tipo amor à primeira vista — disse ela, com um olhar que demonstrava que não acreditaria nele se dissesse isso, mas que gostaria que tentasse.
— Como é que vou saber o que sinto por você? — indagou ele, surpreendendo Jenny. — Não temos tempo para namorar. Nos encontramos ontem e amanhã você vai subir o Nilo. É demais exigir que eu defina meus sentimentos nessas circunstâncias. Mas se ofendi sua sensibilidade, desculpe. Garanto que eu seria mais formal em demonstrar rneu interesse se tivéssemos mais do que quarenta e oito horas.
— Incomoda-o demais pensar em me pedir que fiquemos juntos por mais tempo? — indagou Jenny.
Peter ficou em silêncio por instantes, imaginando se ela mudaria seus planos todos para ficar com ele.
— Jenny, você está pensando em ficar mais alguns dias no Cairo? — pelo sarcasmo da voz dele, já devia imaginar a resposta.
— No Cairo, não — disse Jenny, disposta a atordoá-lo com a surpresa. — Mas o que acha se eu passar dois meses em Hierakonpolis? — perguntou, sorrindo, enquanto os olhos dele espelhavam o mais profundo espanto. — Talvez ajude se eu fizer uma apresentação formal - acrescentou, não perdendo o rosto do rapaz de vista. — Meu nome é Jenriifer Mowry, J. Mowry. Acho que fomos escalados para trabalhar na mesma escavação, não é?
— Você é J. Mowry? — perguntou ele, como se aquilo fosse inacreditável. — Não. . . — murmurou. — Não pode ser.
— Por que não? Você não encontrou J. Mowry antes, encontrou? — perguntou Jenny, sabendo muito bem que não encontrara.
— Vi a fotografia dela — disse ele, tentando lembrar de uma ou duas fotos de grupo que vira em revistas científicas.
— Bem, você poderá ter a comprovação logo — disse ela sorrindo luminosamente. — Quando nos encontrarmos de modo oficial.
— Por que não me disse antes quem era? — perguntou Peter, afinal achando que ela estava muito segura de si para não ser J. Mowry.
— Francamente, eu não quis estragar algo tão agradável. . .
— Estragar? Como? — ele quis saber.
Mas Jenny achou que não devia sair falando mal do avô dele.
— Isso de misturar deveres com prazeres. . . — disse. — Imaginei nossas conversas se transformando numa discussão sobre se Creta tem ou não algo a ver com a Atlântida.
— Ah, sim! Isso. . . — disse ele num tom que demonstrava que não mudara sua opinião sobre a teoria dela; depois, sorriu. — É. . . Acho que entendo o que você quis dizer com misturar deveres com prazeres.
— Bem, o guia está aí. . . Que tal começarmos a descer? — sugeriu Jenny, recebendo um agradecido olhar do aflito Mohammed.
— Acho que devo deixar uma coisa bem clara — disse Peter. — Ainda pretendo fazer amor com você.
Jenny sentiu um agradável calor no rosto. Gostava de ver que ele ainda a queria, mesmo sabendo que eram concorrentes. Pelo tempo que se conheciam, aquele desejo era mais vindo de instintos animais do que de sentimentos ternos, mas nem por isso menos envolvente. Afinal, Peter era um homem atraente, mais atraente do que todos que ela conhecera. Virou-lhe as costas, com medo que se refletisse em seu rosto o que estava pensando. Sentiu como que um choque elétrico quando ele pegou-a por um braço e a fez virar, não muito delicadamente, para encará-lo.
— Eu não saio por aí beijando toda mulher que encontro — disse, com um brilho zangado e sério nos olhos. - Muito menos costumo convidar as mulheres para entrarem na minha cama! — Largou-a, mas o calor de seus dedos continuaram no braço de Jenny.
Desceram a enorme escada, na maior parte do tempo usando os traseiros do que os pés, às vezes fazendo voltas para não pisar em lugares perigosos, o que significava uma queda mortal. Quando chegaram embaixo, Jenny precisou parar para descansar um pouco, antes de caminhar até o carro. Peter ficou mais para trás, tentando acalmar, não apenas Mohammed, mas um zangado guarda que surgira não se sabia de onde. Jenny achava que não podia criticar o guarda pela zanga. O local estava ficando cheio de turistas que na certa tinham percebido que dois homens e uma mulher haviam subido na pirâmide, contrariando a proibição por escrito, bem evidente, ali embaixo.
Mas confiava em Peter para resolver o problema.
Ainda estava pensando em Peter quando viu um homem e cavalos não muito longe do carro. Não que um homem e três cavalos fossem coisas raras de se ver por ali. Cavalos e camelos montados por turistas eram os primeiros a chegar ali, pela manhã, e os últimos a irem embora, à noite. Mas aqueles cavalos eram lindíssimos, mesmo num país onde o puro-sangue árabe era comum, e o homem não era desconhecido. O sorriso dele, brilhante no rosto moreno, realçado pela barba e o bigode negro, fascinou Jenny, que se dirigiu lentamente em sua direção, perguntando a si mesma se estava sendo atraída pelos animais ou pelo homem moreno.
Parou perto do primeiro animal, uma égua cinzenta, com olhos enormes, que pareciam de veludo negro.
— É uma dama adorável! — disse o homem, olhando para Jenny e não para a égua.
Fez um gesto com a cabeça, agradecendo o elogio. Passou a mão pelo pescoço do animal, acariciando a curta crina cinzenta e vendo que sua qualidade estava bem acima do que esperava, considerando os turistas que visitavam Gisé.
— Tenho impressão que está com vontade de cavalgar — disse o homem.
Jenny teve a impressão de já conhecer aquela voz, mas disse a si mesma que estava sonhando. Nunca estivera em Gisé e não se esqueria se tivesse encontrado aquele homem em outra de suas viagens.
— A égua é mansa — assegurou ele —, de excelente linhagem. Seus antecedentes levam direto à estrebaria do sultão da Turquia.
— Os meus eu não sei onde vão dar — disse Jenny, com um sorriso nervoso.
Aquele homem a perturbava. Não por ser indelicado, pois não o era. Não devido ao cumprimento ter sido de mau gosto, pois não fora. Também não se importava se ele estivesse mentindo sobre a linhagem da égua. Claro que os turistas se impressionavam em pensar que estavam montando um animal de puro-sangue, real, para dar uma volta pelo parque das pirâmides. Algo naquele cenário esplendoroso dava a Jenny a sensação de que havia alguma coisa fora do lugar, causando-lhe indefinível mal-estar.
— Quanto custa uma volta de uma hora? — perguntou Jenny, reparando que os olhos do homem eram mais escuros do que os da égua.
— Estou certo que não vai se contentar só com uma hora — disse o homem, parecendo mais um alugador de cavalos. — Eu conheço um lugar no deserto onde a senhora vai poder cavalgar à vontade, sem ter essa multidão e carros atrapalhando. Fica aqui perto, Peter aproximou-se naquele momento e ela voltou-se, surpreendendo-se com o que viu em seu rosto. E!e olhava para ela e o homem como quem tem ciúme.
— Eu não sabia que vocês se conheciam — disse com uma frieza que Jenny não conhecia.
Não era só isso: a insinuação de que ela conhecia aquele homem era idiota. Se bem que se sentisse lisonjeada com o ciúme dele, Peter não tinha direito de imaginar que estava interessada, num homem que certamente a via apenas como a primeira freguesa do dia.
— Esta senhora e eu ainda não nos conhecemos. . . oficialmente disse o homem e a voz dele de novo obrigou Jenny a olhá-lo atenta; ele sorria, os dentes branquíssimos brilhando. — Não quer corrigir isso, Peter, por favor?
— Pois não — respondeu Peter, com algo na voz que Jenny não conseguiu definir. — Sheik Abdul Jerada, apresento-lhe Jennifer Mowry.
De repente, ela entendeu porque tinha impressão de conhecer o sheik. Não apenas Peter dissera o nome dele, no hotel, por causa do falcão, mas era também o homem com quem se chocara ao atravessar o saguão!
— Muito prazer em conhecê-la, srta. Mowry — disse ele, sorrindo.
— É sempre um prazer ser atropelado pela senhora. . .
Jenny não conseguiu ficar séria e soltou uma gargalhada. Abdul riu, também. A estranha tensão que havia entre eles sumiu, mas Jenny percebeu que crescia de outro lado. Peter não ria. Nem sequer sorria. Olhava-os atenta e curiosamente, como um cientista examinando dois micróbios ao microscópio.
— Tomei a liberdade de trazer cavalos, Peter — disse Abdul. O pessoal do hotel me disse que você e srta. Mowry tinham vindo visitar a pirâmide. Então, achei que talvez me dessem o prazer de um passeio a cavalo e, depois, um almoço juntos.
— Eu não me lembro de ter dito a ninguém, no hotel, para onde vinha - disse Peter, de modo nada amigável.
— Sim, bem. . . — replicou Abdul, sacudindo os ombros. — Se o seu guia sabia, se o motorista sabia, se a guarda-turística sabia, pode ter certeza que todo mundo sabia, também.
— Sei. — murmurou Peter, deixando evidente que achava a presença do sheik uma intrusão.
— Então, vamos dar um passeio e depois almoçar? — perguntou Abdul, como se não tivesse reparado na atitude hostil de Peter.
— Infelizmente, estamos com o carro e o motorista aqui — pretextou Peter. sem contar com as soluções de Abdul.
— Uma pequena gratificação e voltam para a cidade juntos, sem nenhum problema, não acha? — disse Abdul, com um gesto que indicava que o dinheiro era graxa que fazia qualquer engrenagem funcionar. - Posso cuidar disso para você?
— Não se incomode — respondeu Peter. — Mas eu não sei se Jenny sabe andar a cavalo. . .
— Muito bem, não sei — disse ela. — Não como essas moças que fazem equitação regularmente. Mas sei o bastante para ir de um lugar a outro, desde que não se trate de longas distâncias.
— Bom, agora estou bem informado! — disse Peter, sorrindo, mas de Um jeito que indicava que achava a atitude de Jenny uma traição.
Jenny teve que admitir que realmente fizera uma traiçãozinha. Sua rapidez em esclarecer que sabia cavalgar demonstrava que preferia passar algumas horas em companhia do sheik. Não era bem isso. Achava divertida a ideia de andar a cavalo e estava animada com a perspectiva do almoço. A subida na pirâmide abrira-lhe o apetite. Só que um velho adágio popular dizia que três é demais.
— Pensando bem — disse —, acho melhor deixar para outra vez. vou me cansar demais, querendo fazer tudo ao mesmo tempo. Afinal, já não sou criança.
— Tenho impressão de que você é a saúde e a disposição em pessoa — comentou Abdul. — Mas acho que sabe o que lhe convém.
Peter pareceu satisfeito, Jenny compreendeu que, enfim, tinha agido certo. Não queria privá-lo, nem a si mesma, do tempo que lhes restava no Cairo. O último dia antes de começarem a trabalhar juntos era especial, considerando as opiniões contrárias que tinham sobre o valor da escavação num lugar que poderia ser o túmulo do Rei Escorpião. Iriam ser mais adversários do que amigos.
— Eu estava pensando em mostrar-lhes Hatshepsut em ação — comentou Abdul.
Pela expressão de Peter, Jenny entendeu que a referência de Abdul nada tinha a ver com a rainha faraó do Novo Reinado da oitava dinastia do Egito. Tratava-se da fêmea de falcão que o fascinara.
— Ela está sendo treinada no deserto de Saqqâra — acrescentou o sheik, com ar inocente. — Como vi que Peter gostou tanto dela. . .
— É. Uma pena. . . — disse Peter. — Mas Jenny tem razão. Não deve se cansar demais.
Mas o tom dele não convencia. Jenny vira seu rosto quando Abdul Jerada dissera o nome do falcão: naquele momento deixara de ser a coisa mais importante para Peter.
Ele esquecera as palavras bonitas que dissera, o que tinha acontecido entre os dois e o que poderia acontecer. Seus olhos voltaram-se, sonhadores, para o céu na direção de Saqqâra.
— Por outro lado, quando vou ter outra chance de cavalgar e almoçar num deserto exótico? — disse, achando que era mehor não perder a oportunidade, pois toda vez que Peter olhasse para ela iria pensar no falcão cortando o céu muito azul. — Tenho certeza que Peter nunca me perdoaria se o fizesse perder a chance de ver Hatshepsut em ação. Não é, Peter? — indagou imaginando se sua voz demonstrava a decepção que estava sentindo.
Ele ficou atrapalhado. Naquelas circunstâncias, pensou Jenny, era o máximo que ele podia fazer.
CAPÍTULO IV
Hatshepsut, o falcão fêmea que recebera o nome de antiga rainha do Egito era também uma rainha em seus domínios, cortando o céu do deserto. Havia em seus movimentos beleza e graça, poder e força, rapidez e estilo. Qualidades que tinham feito de sua espécie a preferida pelos falconeiros do leste, antes do esporte espalhar-se pela Europa e Grã-Bretanha. Nem mesmo Jenny podia deixar de admirar a elegância do pássaro. De certa maneira há uma beleza trágica no ato de matar, pois a natureza fez caça e caçadores, num equilíbrio ecológico. Mas o que acontecia ali era por interferência do homem. Hatshepsut, por mais livre que parecesse, estava presa aos homens por um cordão umbelical invisível que alterava a normalidade dos fatos. O pombo, vítima do falcão apanhada em pleno voo, não teria comparecido ao encontro fatal se não tivesse sido levado ali, numa gaiola, depois solto e obrigado a um voo assustado.
— Você não aprova isto — disse Abdul, percebendo que Jenny virava a cabeça para o outro lado, de novo, para não ver o pombo ser apanhado.
Estavam sentados à sombra do avanço de uma enorme tenda que tinha sido armada para o preparo do almoço e acomodação do sheik e seus convidados.
— Não posso deixar de me preocupar com os pássaros — disse Jenny, sabendo que não adiantaria dizer tudo que pensava.
A falconeria, como as touradas, tinha seus críticos e seus defensores, que jamais chegariam a um acordo.
— Quanto ao falcão, não precisa — retrucou Abdul, a atenção toda voltada para Jenny, esquecido da ave de rapina que voltava, triunfante, com a vítima nas garras.
— Tem todo cuidado, boa alimentação e nenhum dos problemas que teria se vivesse na natureza.
— E a única coisa que tem que dar por isso é a liberdade, não? indagou Jenny, sem conseguir esconder o sarcasmo. - Quando eu estudava, um dos professores dedicou uma aula inteira a construir um argumento lógico para a introdução do canibalismo controlado na sociedade do século XX. Entre outras coisas, ele alegou que a carne humana é uma fonte ideal de proteínas, garantida pela explosão demográfica do Terceiro Mundo. — Abdul franziu as sobrancelhas, não vendo nada comum entre falconeria e homens cozinhando uns aos outros em Canelões enormes. - O ponto dele não era que a gente podia sair por aí comendo amigos ao jantar - explicou Jenny, desapontada por ele não ter percebido o que queria dizer. — Mas sim que se pode racionalizar os maiores horrores usando uma infinidade de argumentos e desculpas.
— Ah, sim! — exclamou ele.
Mas Jenny percebeu que não o convencera a largar a falconeria, como jamais convenceria Peter, que estava lá fora, no calor do deserto, ao lado do treinador de Hatshepsut, que voltara para o braço dele antes de outra caçada.
— Quem sabe posso diverti-la de outro modo - disse Abdul, mudando de assunto. — Acho que já conhece Saqqâra. Se não se importar em voltar lá, podemos dar um passeio a cavalo antes do almoço.
— Lugares já conhecidos podem se tornar muito diferentes quando vistos em companhia de outra pessoa — disse Jenny, lembrando, com certa amargura, que Peter usara mais ou menos essas palavras para convencê-la a ir às pirâmides com ele. - Em geral, a gente lembra melhor do que viu em companhia de alguém — completou, como Peter completara, se bem que ele tivesse preferido ver um falcão caçar no deserto.
— Então, vamos — disse Abdul, erguendo-se. — Só mais um minuto — acrescentou. — Vou ver se Peter quer ir também.
— Acho que ele nem iria sentir a nossa falta — disse Jenny, torcendo para seu desapontamento não ser muito evidente.
— Acho que você está enganada — retrucou Abdul, com um sorriso encantador.
Protegeu os cabelos curtos, crespos e muito negros, com uma tira da galabia preta que usava e saiu da sombra do avanço da tenda. Jenny achava que Peter estava encantado demais com Hatshpsut para se preocupar de que modo ela e o sheik iam passar seu tempo. No entanto, enquanto observava Abdul aproximar-se, com largos passos, de Peter e do treinador do falcão que estavam a boa distância, Jenny não pôde evitar a esperança de que talvez ele preferisse ficar com ela, mesmo em companhia do anfitrião.
Afinal, ele já estava há mais de uma hora parado ao sol, vendo o falcão caçar! Seu coração bateu mais forte quando Peter voltou-se para falar com Abdul e depois olhou na direção dela. Ficou desapontada quando ele se voltou de novo para o falcão e Abdul tornou a caminhar sobre a areia, voltando.
— Ele disse para irmos, que nos alcança depois — disse Abdul, enquanto Jenny chegava a seu encontro, junto dos cavalos.
— Acho que vamos nos arranjar bem sem ele! — disse, decidida a não deixar que Peter lhe estragasse o dia.
Montaram e Jenny viu que, ao mesmo tempo, três homens montavam também. Eram os mesmos homens que tinham acompanhado os três, das pirâmides até ali.
— Daqui a pouco você se acostuma e esquece deles — disse Abdul, enquanto cavalgavam, notando que ela reparara nos homens.
Jenny duvidava que se acostumasse a ter sempre três guarda-costas nos calcanhares. A presença deles, mais do que guardas nas ruas do Cairo, dava impressão que a violência estava de tocaia.
— Acho que seus guarda-costas nunca têm nada a fazer — comentou, indicando os homens.
— infelizmente, sempre têm, sim — respondeu o sheik e Jenny olhou-o, rápida, para ver se estava brincando; ele estava sério. - Se bem que seja besteira achar que eles são infalíveis para impedir assassinatos, espero que continuem sendo ágeis e eficientes o bastante para cuidar de qualquer matador profissional e seu revólver, sua faca ou seja qual for a arma preferida dele.
Jenny estremeceu, imaginando por que alguém poderia querer matar Abdul. Sabia que ele tinha algo a ver com petróleo, porque ele dissera que acabara de chegar dos Estados Unidos, onde fechara negócio com uma companhia refinadora americana.
— Não precisa ficar tão assustada, Jenny — disse ele, sorrindo. — Muitas vezes agradeço aos inimigos as cicatrizes que tenho.
— Agradece?! — espantou-se Jenny, pois cicatrizes são coisas que ninguém gosta de ter.
— Tenho uma cicatriz de faca aqui. . . — disse ele, apontando o lado direito do corpo, depois indo até o centro do estômago. — Tenho uma cicatriz de bala aqui...
— Apontou o alto da coxa esquerda, junto da virilha. — Espero que ainda tenha oportunidade de vê-las de perto — brincou o sheik, mas ela não teve vontade de rir.
— Não imagina como as mulheres acham as cicatrizes de brigas eróticas! Por isso, tenho que agradecer por elas. . . — riu, indicando que era melhor Jenny encarar as coisas como ele, com bom humor. — Um dia a gente tem que morrer — continuou, com ar de consolo. — Simplesmente levamos a vida inteira preparando o fim.
Esse comentário sobre a inevitabilidade da morte iria parecer mais macabro do que era se nesse momento os cavalos não tivessem chegado ao topo de uma duna. Uma impressionante vista da necrópole Saqqâra estendia-se lá embaixo. Essa cidade da morte, construída em contraponto para a cidade dos vivos, Mênfis, era dominada pela pirâmide do Degrau, da qual havia uma foto no apartamento de Jenny, no Milton. Construída durante o reinado de Zozer, faraó da Terceira Dinastia, era a maior estrutura em granito conhecida até então.
— A maior parte das intormações que há sobre o passado da minha pátria vem da antiga preocupação dos egípcios com a morte, não? — indagou Abdul, quando o cavalo dele chegou ao pé da colina, parou e o de Jenny parou ao lado. — Não preciso dizer a você, uma arqueóloga, que os túmulos e templos egípcios só foram construídos para ser a morada dos deuses e dos imortais. Tudo o mais virou pó.
Jenny sabia que não era o assunto de morte que a deprimira. Estava acostumada a reconstituir o passado com o que achava em cemitérios. Os antigos egípcios consideravam a morte uma ocasião de alegria e não algo a ser evitado a todo custo. Sentiu-se mais deprimida ainda ao olhar por cima do ombro, para trás, e ver Peter acompanhando mais um voo caçador de Hatshepsut. O cavalo começou a descer e Jenny voltou a atenção para o caminho.
Percebendo o astral baixo da companheira e achando que era o culpado, Abdul tentou alegrar o ambiente contando duas piadas que ouvira recentemente. A falta de graça com que contou a primeira e o fato de esquecer justamente o final da segunda acabaram fazendo Jenny sorrir. A volta ao bom humor era também por Jenny ter descoberto que ficara triste por causa de Peter: decidiu que aquilo não ia abater seu moral. Se ele preferia a companhia de um falcão à dela, que ficasse com ele! Tinha um companheiro bastante agradável. Era charmoso, atencioso e poderoso. Não agitava o coração de Jenny como Peter agitara, desde o começo, mas isso talvez acontecesse, se ela lhe desse uma chance. Se Abdul gostava de falconeria, como Peter, era evidente que, no entanto, preferia a companhia dela!
Foram visitar o Serapeu e Jenny sentiu a mesma emoção que sentira na primeira vez que descera aquelas escadas, para penetrar na mais bizarra catacumba do Egito, se não do mundo inteiro. Como o nome indica, o Serapeu era dedicado a Serapis, adorado como deus da morte. Tinham existido vários templos no Egito, mas esse de Saqqâra era o único lugar funerário do sagrado boi Ápis, encarnação do deus Serapis na Terra. Se bem que os edifícios da superfície tivessem desabado, percebia-se que naquele local tinha havido um conjunto de construções, inclusive um enorme templo com colunas, dois jardins, um interno outro externo, e uma alameda de esfinges. Nos túmulos subterrâneos, onde Jenny e Abdul entraram, enquanto os guarda-costas ficavam de vigia na entrada, estavam as múmias dos bois Ápis desde o tempo do faraó Amenotep in, da décima-oitava dinastia até a era romana.
A galeria fora escavada na pedra recoberta de areia. A precária iluminação vinha de lâmpadas amareladas que pendiam do teto, a maior parte delas queimadas. Havia uma estranha sensação pairando no local, acentuada pelo murmúrio de visitantes ocultos nas sombras. Um outro túnel saía do lado direito do túnel em que estavam, fazendo Jenny pensar em Teseu no labirinto de Creta, habitado pelo ser meio boi, meio homem, o Minotauro. Mas tanto Abdul quanto Jenny, que já tinham estado ali antes, sabiam que havia pouca chance de alguém ficar perdido.
De espaço em espaço havia uma câmara cavada na rocha, cada uma com uma múmia do boi sagrado. Afinal, os dois pararam diante de uma câmara. Desceram os seis degraus até o soalho abaixo do nível. O enorme sarcófago fora encostado de um lado e um bloco de pedra podia ser usado como banco para quem quisesse olhar dentro dele. Sabendo que o sarcófago estava vazio, Jenny dedicou a atenção aos entalhes externos. Gostaria que Abdul tivesse trazido uma lanterna, para poder ver melhor.
Pouco depois, sentiu o olhar de Abdul fixo nela de tal maneira que sua atenção desviou-se do sarcófago. Voltou-se e encarou os olhos negros. Ele estava entre ela e a saída, enchendo completamente o espaço entre a parede e o sarcófago.
— Como você é linda! - sussurrou ele, com estranho tremor na voz. — Mas sabe disso, não é?
A indagação foi tão inesperada que Jenny não soube o que responder. Sentia-se lisonjeada por Abdul achá-la bonita e sem jeito por ele dizer isso tão depressa. Se bem que o cumprimento fosse parecido com o que ele fizera em Gisé, quando chegara com os cavalos, o de agora tivera mais impacto.
— Talvez eu esteja ultrapassando os limites, não? — indagou ele, aproximando-se.
Não havia ameaça nesse avanço, mas Jenny recuou. A atitude dominadora de Abdul era mais impressionante naquele subterrâneo obscuro. Seus olhos eram poços enormes de trevas, absorvendo toda luz, sem refleti-la.
— Talvez você já esteja comprometida. . . — sugeriu ele — com Peter?
— Com Peter? — ecoou Jenny.
Sem dúvida Abdul percebera que ela se sentia atraída por Peter e Jenny ficava sem jeito por ver que isso era tão evidente. Mas comprometida? Claro que não estava comprometida com ninguém!
— Peter e eu nos conhecemos ontem — disse, procurando manterse calma, não só para esconder a surpresa de ver que Abdul se interessava por ela, como também para esconder seu interesse por Peter.
— Fomos designados para trabalhar em Hierakonpolis, mas nosso encontro no Cairo foi casual.
— Eu desconfiava disso — comentou Abdul. — No entanto, achei melhor verificar. Não quero interferir entre vocês e provocar qualquer mal-entendido. No entanto, para ser franco, já estava pensando num plano para conquistar você, caso estivesse comprometida.
— Abdul, eu... — começou Jenny, mas não soube como continuar. Estava confusa com tudo que tinha acontecido até então.
— Posso enfrentar uma luta dessas em igualdade de condições — disse Abdul. — Afinal, não sou totalmente destituído de charme. . . — Sorriu e seus olhos brilharam. — Só queria ter certeza de não estar pisando nos pés de ninguém. Nos seus, nem nos de Peter.
— Com certeza Peter não liga para mim. . . desse jeito — disse Jenny, sentindo a boca secar diante desse reconhecimento do desinteresse de Peter. — Somos apenas colegas de trabalho — acrescentou, com a voz alterada pela emoção —, nada mais do que isso.
— Duvido que você seja boba o bastante para acreditar nisso. . . ou que me ache bobo o bastante para acreditar nisso. Mas vou fazer de conta que acredito.
Abdul pôs as mãos nos ombros de Jenny, que não teve a sensação de um choque elétrico, como o toque de Peter provocara. Ficou desapontada e satisfeita, ao mesmo tempo.
— Vou dizer porque acho que ganho essa batalha, agora que sei que posso lutar — murmurou Abdul, puxando-a para junto de si. - Porque a vitória sorri para os mais rápidos e Peter vai ficar para trás por vários motivos. Ele é muito lento em demonstrar emoções, ao passo que eu demonstro as minhas logo de começo. Amo você, Jenny Mowry ? — a voz era rouca e acariciante. — Amo você desde que a vi no saguão do hotel, quero você mais do que qualquer coisa no mundo. Isso deixa você assustada?
Jenny achava estranho ele se apaixonar daquele jeito sem conhecê-la. Falara com Peter sobre amor à primeira vista: não levava isso a sério. Abdul, o poderoso senhor do deserto, parecia decidir o que queria sem pensar demais e parecia acostumado a ter o que queria. Se Jenny quisesse aquele homem, teria que se assustar com a repentina declaração de amor. Mas não se assustou, se bem que gostaria que isso acontecesse: seria uma experiência maravilhosa, qualquer moça gostaria de ter um sheik a seus pés.
— Você não me parece assustada — disse ele, tomando o silêncio dela como uma resposta afirmativa. — Nós, sheiks, não somos os homens apaixonados e impulsivos que descrevem nos romances. Pelo menos, não tão brutais — explicou, sorrindo. — Garanto que não vou carregar você a força em meu camelo, a um oásis perdido no deserto e ensiná-la a me amar ou deixar que envelheça sem amar ninguém.
Jenny imaginou se não teria preferido o rapto, a corrida alucinada pelo deserto, a sedução sob sussurrantes palmeiras num romântico oásis. Isso simplificaria muito as coisas para ela, que não precisaria descobrir quais seus sentimentos exatos por Abdul e Peter.
— Acho que não estou pronta para um relacionamento amoroso, Abdul — disse, imaginando se isso era verdade.
Há algum tempo vinha sentindo um vazio em sua vida, que a profissão não conseguia preencher. Talvez fosse porque havia atingido uma excelente posição como arqueóloga e já não precisasse lutar tanto por um lugar na profissão. Era evidente que esse vazio tinha a ver com sua vida particular: a volta à obsessão infantil pela tragédia de sua avó provava isso. Agarrara a chance de ir para as escavações em Hierakonpolis, iludindo a si mesma ao dizer que Peter estaria lá porque o destino queria.
Estava se deixando levar perigosamente por indefiníveis anseios e fantasias. Fora envolvida nos braços de Peter, poucas horas antes, no topo da pirâmide, e não podia negar que correspondera aos beijos dele, como Geraldine correspondera aos beijos de seu amante. Mas ela não era Geraldine Fowler; Peter não era Frederic Donas e se não se controlasse logo, iria acabar num divã de psiquiatra ou com uma camisa de força.
— Isso nada tem a ver com você, pessoalmente, nem com algo que tenha dito — explicou ela a Abdul. — Apenas decidi me dedicar inteiramente ao trabalho e deixar minha vida particular para depois.
Abdul colocou a mão direita sobre os lábios dela, num gesto de quem pede silêncio, Jenny pensou que ele ouvira alguém chegando. Como Peter dissera que ia reunir-se a eles, olhou por cima do ombro de Abdul, esperando vê-lo. Peter não estava ali, mas o coração de Jenny continuou acelerado diante dessa possibilidade. Ele estava com Hatshepsut, pouco ligando se Jenny estava sob o encanto de Abdul ou de qualquer outro homem.
— Não diga nada agora. . . — disse Abdul. — Só prometa que vai pensar nisso.
— Está bem — concordou Jenny. — Vou pensar. . .
Afinal, Abdul falara em amor. Não insinuou apenas uma transa física, como Peter. Além disso, Abdul era paciente, não exigia nada, enquanto Peter esperara que Jenny correspondesse ao ardor dele com paixão imediata. O egípcio apaixonara-se por ela à primeira vista e era esperto o bastante para fazer o relacionamento entre eles se desenvolver, principalmente agora que ela dissera não estar comprometida. Considerava , Peter seu rival, porém Jenny achava que não. O que houve entre ela e Peter, se é que houve alguma coisa, tinha sido destruído por um falcão e o que acontecera entre seus avós, há meio século, em Tebas.
— Quero te beijar, Jenny — disse Abdul, passando suavemente os dedos pelos lábios dela, depois segurando-lhe o queixo e erguendo-lhe o rosto. — Quero muito te beijar.
Deixou-se beijar, esperando o turbilhão que não veio. Bem, turbilhões não eram tudo numa transa. . . Abdul era exótico, bonito, suave, atencioso e, parecia, muito saudável. Tinha tudo que uma mulher podia querer num marido ou num amante. . . Só que Jenny ainda não sabia direito o que queria.
— A desvantagem de Peter é que ele não tem o romantismo no sangue — disse Abdul. — A maioria dos homens perdeu a arte do romance, da conquista.
Jenny não concordava com ele. . . Peter também era romântico. Caminhara com ela numa noite perfumada do Cairo, o braço passado por sua cintura, enquanto as palmeiras sussurravam docemente e a lua enorme refletia-se nas águas do Nilo. Levara-a ao cimo da Pirâmide de Quéops, para ver o sol nascer, citara versos de um poeta romântico, dissera que queria fazer amor com ela. E o lugar que Peter escolhera para expressar seu desejo era bem mais romântico do que aquela sombria catacumba!
Sim, ela precisava pensar e não ali, ao lado de Abdul. Deixou-se beijar de novo, dessa vez porque ele a pegara desprevenida. Sentiu vontade de afastá-lo de si.
— Espero não estar atrapalhando. . . — disse Peter, sabendo que atrapalhava e muito.
Jenny afastou-se bruscamente de Abdul e olhou para o alto dos degraus, onde Peter estava com um dos guarda-costas. Sentiu-se como uma garotinha cujo pai tivesse apanhado aos beijos com o "bom" do bairro. Havia uma clara reprovação no olhar que Peter lhe deu um misto de sofrimento e desconfiança que a fez sentir mais culpa.
Mas logo sentiu raiva. Raiva não só de ter sido apanhada, como também de Peter, que poderia ter evitado aquilo tudo se tivesse ido com eles. . .
— Nós estávamos por voltar — disse Abdul, que parecia até satisfeito por suas intenções terem ficado claras. — Espero que estejam dispostos a almoçar bem, como eu estou.
A raiva de Jenny não diminuiu durante a volta: ao contrário, aumentava mais cada vez que Peter lhe lançava olhares críticos. Estava furiosa, pois se Jugava a menos culpada. Se ele não se assanhasse para ver o falcão massacrar pombos, teriam voltado para o Cairo, para visitar a Cidadela, a mesquita de Muhammad Ali, e Jenny não teria ficado sabendo o que o sheik Abdul Jerada sentia por ela. Mas, não! Ele quisera ver o falcão e, agora, nem sequer respeitava o direito dela de fazer o que bem quisesse. Achou que Peter era muito instável e sentia-se frustrada por não conseguir entendê-lo. Ele flutuava confusamente entre frio e quente. Agora, estava agindo como se o fato dela ter beijado Abdul lhe importasse muito, quando passara a maior parte da manhã sem ligar para ela, todo interessado no falcão. Se ele realmente se importasse com ela, devia ter ido com eles. Se ele se recusara a ir justamente para dar-lhes tempo e ver se os apanhava em falta, tinha que tomar cuidado.
Talvez o ressentimento dele fosse apenas resultado do orgulho ferido de um homem que perdera a chance de uma conquista. Nesse caso, não era digno de confiança.
Almoçaram no interior da grande tenda, onde uma mesinha baixa fora posta sobre enorme tapete. Os pratos eram variados e deliciosos, Jenny teve pena de estar sem apetite, pois via-se que alguém se esmerara ao prepará-los. Consolou-se um pouco ao ver que Peter também não rendia justiça ao excelente almoço. Já o apetite de Abdul, que era admirável, parecia não ter sido afetado por nada. Ele tentava animar a conversa, que acabava sempre caindo em longos silêncios. Peter respondia a tudo por monossílabos e calava-se.
— Como acho que vocês devem estar cansados — disse Abdul, terminado o almoço — que tal voltarem para o Cairo no conforto de um automóvel?
Jenny não pedia coisa melhor. A cavalgada até ali fora pontilhada de interessadas indagações de Peter sobre luvas protetoras e sininhos — que eram colocados numa pata do falcão —-, métodos de criação, custos, gaiolas. E Abdul respondera com detalhes. Não estava a fim de fazer a viagem de volta ouvindo conversa de falcões, de novo, sacudida no dorso de um cavalo!
— Vou mandar que levem vocês de jipe até a estrada de Saqqâra, onde meu carro está esperando. Nem sei como agradecer o prazer que me deram com sua companhia... — Talvez o agradecimento incluísse também Peter, mas ele olhava só para Jenny.
— O prazer foi todo nosso, pode crer — respondeu Jenny, afastan do a almofada sobre a qual estava reclinada, e levantou-se.
— Podemos repetir isto mais vezes — disse Abdul, sorrindo — se você não fosse sair no Osiris amanhã cedo, Jenny.
— Sim. . . — respondeu a moça, pensando que gostaria de ter aqueles dias só para si. — Tenho que estar na escavação dia 27.
— Então, podemos nos encontrar lá. . . — tornou Abdul. — Tenho negócios que exigem que vá para aquela região de vez em quando. Posso telefonar?
Peter, que se levantara e estava caminhando para a saída da tenda, parou. Jenny sabia que ele queria ouvir a resposta.
— Sim, pode. — Sem uma palavra, Peter recomeçou a andar para deixar os dois a sós e Jenny completou: — Mas é bom que leve Hatshepsut, se quiser despertar a atenção de Peter. . . — Esforçara-se para disfarçar, mas percebia-se o despeito na voz dela.
— Tenho uma enorme gaiola em minha propriedade, em Assuan. . . — disse Abdul, sorrindo. Explicou: — Chamamos "gaiola" também as acomodações para os falconeiros, em criações de falcões. Gostaria que Peter fosse até lá.
— O jipe vem vindo — avisou Peter, enfiando a cabeça dentro da tenda.
Jenny achou que ele pensara que ia pegar Abdul e ela num abraço apaixonado. Enganara-se! E Jenny tratou de sair, antes que o anfitrião começasse a ter ideias. Já fora beijo demais para um dia!
Foram até a beira do avanço, mantendo-se na sombra, pois o calor aumentava assustadoramente, para sumir de repente com o cair da noite. A terra, ao contrário da água, não retém o calor; por isso, a gente pode estar suando num instante e tremendo de frio no instante seguinte, assim que o sol se esconde.
O jipe aproximava-se por entre as dunas que separavam o local do acampamento de Saqqâra, Voltaram-se todos para olhá-lo, intrigados ao ver que não diminuía a velocidade.
De repente, começou-se a ouvir como um seco crepitar. Alguém está atirando em nós, do jipe!, foi o último pensamento que passou pela cabeça de Jenny. Graças a Deus ali havia gente com reflexos mais rápidos do que ela!
Peter agarrou-a por um braço e derrubou-a, fazendo-a deitar-se ao lado dele. Houve outra rajada de tiros. Peter espiou, cauteloso, levantou-se e tomou-a nos braços, levando-a para dentro da tenda, jogando-a no chão em seguida, sem cerimónia.
— Fique aí dentro, deitada, Jenny! — ordenou e saiu, antes dela entender o que estava acontecendo.
Um dos guarda-costas de Abdul tinha feito o veículo parar do melhor modo à mão no momento: enfiando o cavalo diante dele. A força do impacto matou o animal na hora, que voou longe, atirando o cavaleiro no chão. O jipe tombou de lado, atirando os três ocupantes fora, e lá ficou, imóvel, mas o motor funcionando.
Abdul estava caído, atingido na cabeça. Não estava morto, mas Peter compreendeu que logo estaria, se ficasse ali exposto.
— Peter, volte aqui! — gritou Jenny, ao perceber que ele voltara para a paisagem que se tornara viva demais com o barulho e o perigo dos tiros.
Teve senso bastante para entender que era melhor permanecer deitada, pois o tecido da tenda não segurava balas e qualquer um podia se tornar o alvo. Estava preocupada demais com Peter e esqueceu de si na ansiedade de ver se ele continuava vivo. Quando chegou à entrada da tenda, o. que viu fez o coração subir-lhe à garganta. Peter tinha posto o corpo inerte de Abdul num ombro e voltava para a tenda, quando Jenny ajoelhou-se para espiar. Viu várias balas enterrarem-se na areia, perto dos pés de Peter. Ele deu dois passos para dentro, antes de cair de joelhos.
— Peter!. . . Meu Deus, Peter! — exclamou Jenny, certa que ele fora ferido de morte e determinada a matar os culpados daquilo com as próprias mãos.
Ergueu-se e ia sair da tenda quando Peter segurou-a por um pé, ainda com Abdul no ombro.
— Pare, Jenny! — gritou. — Deite aí!. . .
O que disse a seguir perdeu-se na rajada de tiros. Mais uma vez Jenny teve a terrível certeza-que uma bala o atingira. Mas dessa vez os tiros partiam do acampamento pafão jipe, para proteger a retirada de Peter com Abdul. Peter entrou mais na tenda, depois sucumbiu sob o peso que carregava. Jenny viu, com horror, que o peito dele estava empapado de sangue. Trémula, à beira da histeria, correu para ele e, nervosa, ergueu-lhe a camisa. Não sabia o que fazer se desse com um buraco de bala; só sabia que precisava estancar o sangue. Viu o torso forte, musculoso, moreno, e não pôde deixar de lembrar como o acariciara naquela madrugada.
— Jenny, que diabo está fazendo?! — disse Peter segurando-a pelos pulsos e afastando-a de si.
Ela falou algo como bala, a necessidade de um curativo, de maneira alucinada, mas ele entendeu.
— Eu não estou ferido — disse, enquanto mais tiros soavam. É Abdul que está!
Jenny não acreditou. Aquilo era sangue! Já ouvira dizer que muitas pessoas feridas a tiros não sentiam nada e, por fim, morriam sem saber o que tinha havido. Levara vinte e nove anos para encontrar aquele homem e recusava-se a deixar que ele fosse embora um dia depois, sem lhe dar chance para conhecê-lo melhor. Não podia admitir que aquele homem morresse vítima de uma bala que não fora endereçada a ele!
— Você está ferido! — disse, zangada por ele tê-la afastado. — Está ferido, sim!
— Estou bem, — insistiu ele, sempre segurando-lhe os pulsos com firmeza, a voz calma, apesar do assobio de uma bala que passara pertinho deles. — Está ouvindo, Jenny?
Estou bem. . . — Depois, percebeu que ela não acreditava por causa da camisa ensanguentada. — Se você se acalmar, eu mostro que não estou machucado, está bem? — Sacudiu-a com delicadeza, para fazê-la voltar a si. — Está bem, agora, Jenny? Vou mostrar. . . — largou-a e tirou a camisa, enquanto um suspiro de alívio saía por entre os lábios pálidos de Jenny, ao ver que o peito moreno, não muito peludo, estava intato. — É Abdul que está ferido, Jenny — repetiu ele.
De repente, ela se sentiu culpada ao perceber que nem pensara em Abdul. Ajoelhou-se junto dele, aflita.
— Está vivo — disse Peter, que já auscultara o pulso do sheik. Dizia à moça que era preciso socorrer o homem ferido depressa, quando uma rajada de metralhadora atingiu o tanque de gasolina do jipe tombado, transformando-o num inferno de chamas.
CAPÍTULO V
Uma acha de lenha estalou na fogueira, fazendo Jenny dar um pulo. A lenha fora trazida com os pertences do acampamento, pois não havia sequer um arbusto por ali.
Ficou de olhos fixos nas chamas, pensando no jipe ainda fumegante, nos três homens mortos e nos dois feridos, sem contar Abdul, que no momento estava na tenda, com um médico.
— Olhe, pegue... — disse Peter, oferecendo-lhe uma xícara de café quente, sentando-se ao lado dela, junto da fogueira. — Dá impressão que você sempre usou isto.
Referia-se a um manto que os árabes usavam para agasalhar-se. Jenny estava com um e ele também; vestira-o por cima da camisa ensanguentada. Um dos homens de Abdul, ao ver que tão cedo não iriam sair dali, arranjara os agasalhos. A polícia já estivera ali e fizera uma porção de perguntas; mais ainda perguntara um major do Exército egípcio, que chegara num helicóptero e que tinha ido embora há poucos minutos, levando os três homens mortos.
— Se Abdul estivesse correndo perigo de vida, acho que o médico nos diria... — disse Jenny.
— É, acho que sim... — concordou Peter. — Ferimentos na cabeça parecem piores do que são. Acho que o tiro pegou só de raspão — acrescentou, sabendo que seus conhecimentos sobre ferimentos a tiro não eram o bastante para afirmar nada.
— Está frio aqui fora! — disse Jenny, estremecendo violentamente, tomando café para se aquecer e desejando que Peter a abraçasse para lhe transmitir um pouco de seu calor.
Em outras circunstâncias, a beleza da noite chamaria mais a atenção dela do que o frio. O céu era uma vasta abóbada negra pontilhada por estrelas refulgentes; uma enorme lua dourada erguia-se no horizonte.
Jenny ergueu a cabeça à aproximação de Zeid Talai. Zeid era um dos homens de Abdul que haviam sido feridos. Exibia o braço na tipóia como uma condecoração.
— Acompanhem-me, por favor — pediu ele, numa voz que Jenny definiria de sussurro conspiratório.
Ao entrar na tenda, esperara ver Abdul inerte, deitado, aos cuidados do médico que aparecera não se sabia de onde logo depois da explosão do jipe. Agora, sumira como aparecera. Abdul estava de pé e tão bem que Jenny piscou várias vezes para ter certeza de que não estava vendo coisas. A bandagem que lhe envolvia a cabeça estava manchada de sangue na têmpora esquerda e não era mais larga do que a tira que Jenny usava para jogar tênis.
— Ah, aí estão vocês! — disse ele, animado, os enormes olhos negros brilhando. — Eu não pensei que nosso almoço fosse ter essa atração extra! — acrescentou, com evidente bom humor.
— Como você se sente? — indagou Jenny, ainda sem acreditar que ele estava à sua frente, de pé.
— Ele parece muito bem — comentou Peter.
— Ferimentos na cabeça parecem piores do que são — disse Abdul, parecendo eco das palavras de Peter. — Acho que vou sair dessa apenas com mais uma cicatriz de briga.
— E acrescentou, divertido, referindo-se ao que já dissera a Jenny: — Só que esta vai ser menos impressionante do que as outras e está mal localizada. . .
— Parece que isto lhe acontece com frequência, não? — indagou Peter. — E acho que vê nesses ataques uma excitação difícil de compreender.
Abdul riu, levando-os para a mesa que agora estava deslocada para um lado da tenda, posta com serviço para café.
— Sentem-se, por favor — disse. — Infelizmente vai haver uma demora, dessa vez não muito longa, em vocês voltarem para casa. Achei que devia pôr o carro à disposição de um de meus homens que precisava de cuidados imediatos num hospital, no Cairo. Café? — Serviu sem esperar resposta, depois voltou à pergunta de Peter. — Não.
Ultimamente não tem acontecido muito em seguida. O último atentado que sofri, antes deste, foi há quase dois anos.
— Quem está querendo matar você? — perguntou Peter.
— Oh. . . Todos nós temos inimigos, não é? — respondeu Abdul.
— Bom, eu não posso imaginar um colega, cuja teoria eu tenha criticado, me procurando com uma metralhadora. . . — disse Peter.
Por instantes, Jenny achou que ele estava se referindo aos contras que ele dera às suas tentativas arqueológicas de ligar Creta com a Atlântida.
— A natureza dos meus negócios faz com que eu tenha inimigos mais ativos do que os seus — explicou Abdul, tomando o café.
— Petróleo, não? — indagou Peter.
Como Jenny, ele evitara o assunto, antes, achando que falar nisso deveria partir de Abdul, se ele quisesse. Mas depois do acontecido, devia achar que tinha direito a saber mais. Jenny estremeceu de novo, ao lembrar como Peter tinha se arriscado para salvar Abdul e o horror que sentira ao pensar que ele estava mortalmente ferido.
— Sim — admitiu Abdul, mas ficou evidente que não iria adiante sem um empurrãozinho.
— Acho que não estou entendendo direito. . . — comentou Peter.
— Será que pode explicar melhor?
— Infelizmente, a maior parte do contexto é considerada altamente secreta. . . — replicou Abdul. — Mas acho que posso expor alguns fatos sem prejudicar a segurança nacional — acrescentou, com um gesto de mão que indicava que ele às vezes sentia-se fora das regras e que as ordens governamentais que regiam seu atual negócio eram bastante incomodativas. — Sei que muita gente acha que todos os árabes estão boiando num mar de petróleo. Não é bem esse o caso do Egito. Não vou aborrecer vocês com resultados de levantamentos, com estatísticas, mas nosso vizinho do leste, a Arábia Saudita, extrai vários barris para cada um que extraímos aqui. Sou uma das pessoas que quer que a fatia do bolo para o Egito seja um pouco maior. Nem precisava dizer isso: quem é que não quer?
— Por que os sauditas querem que você morra? — perguntou Jenny, achando que tinha de haver uma conclusão lógica para o que ele acabara de dizer.
— Francamente, não se sabe o que há por trás deste último atentado — admitiu Abdul. — Mas não há dúvida que é coisa dos sauditas. Vocês conhecem a complexidade social, política e económica desta parte do mundo. Basta dizer que eu quero ver a produção de petróleo do Egito aumentar e outros não querem isso. Suponho que vocês vão dizer que homens poderosos têm inimigos poderosos. Não que eu queira me valorizar. . . mas meus inimigos são muitos e fortíssimos.
— E matando você a produção de petróleo do Egito vai cair?
— Não sou tão poderoso assim! Está me dando mais importância do que mereço — disse Abdul, modesto. — Simplesmente, sou um dos pilares de sustentação da estrutura.
No entanto, me eliminando eles iriam abalar um pouco a estrutura... se bem que não para sempre.
— Abalar, como? — indagou Peter e Jenny ficou contente: gostaria de saber, mas provavelmente não teria coragem de perguntar.
— Sou um bom organizador — explicou Abdul. — Tenho uma boa posição, família importante, ligaçãocom políticos e dinheiro. Tenho contatos em todos os cantos do mundo, que fiz durante meus tempos de estudo e por viajar muito. Conheço gente que tem muito dinheiro para investir em negócios seguros. Conheço gente que tem capacidade para examinar uma amostra de terreno e dizer se há, e quanto, petróleo por ali. Conheço a gente que tem esses terrenos. E, enfim, conheço gente capacitada para extrair esse petróleo. Simplesmente, por acaso, sou o ponto central que faz dessa gente toda uma. . . digamos, uma família feliz. E o problema está aí. Os inimigos têm medo do que essa gente unida pode conseguir, liderada pela pessoa que os une. Eu sou essa pessoa. Uma vez morto, seria o caos, pois os demais iriam querer "mandar", e quando um grupo começa a lutar entre si, não realiza nada de construtivo. Concorda?
— Deve dar uma sensação terrível isso de ser um alvo vivo! observou Jenny, certa de que não conseguiria viver nessa tensão.
— Até que não é — contradisse Abdul. — E faz cada minuto da minha vida mais vibrante e intenso. A gente só consegue dar o devido valor à vida quando esteve a ponto de perdê-la.
Ouviram o jipe chegando. Abdul pôs sua xícara na mesa.
— Se não se importa, Jenny, preciso falar com Peter em particular. Quer fazer o favor de ir dizer ao motorista que vocês já vão?
— Pois não... — disse ela, curiosa por saber o que ele teria a dizer para Peter.
Por instantes, pensou que o ferimento de Abdul talvez fosse mais sério do que se pensava e ele queria falar disso com Peter. Descartou logo a ideia: ele estava bem-disposto demais para ser isso.
— Espero encontrá-lo em Hierakonpolis — disse, levantando-se mas sem metralhadoras, de preferência!
Achava que Abdul queria agradecer a Peter por lhe ter salvo a vida.
— Se for a vontade de Alá!... — respondeu Abdul, com um sorriso, observou-a sair e, depois, começou a falar baixinho com Peter.
O motorista do jipe saiu para fumar um cigarro, enquanto esperavam Peter. Ela acomodou-se no veículo, sentindo muito frio. Lembrou do outro, jipe aproximando-se, trazendo a morte. Parecia pesadelo.
Rememorou tudo, inclusive os sentimentos que tivera. Estava perturbada, sim, mas não tanto pela surpresa, terror e excitação do atentado. Era mais pelos sentimentos que tivera, primeiro, quando Peter voltara lá fora para salvar Abdul; depois, quando pensara que ele estava ferido de morte e, afinal, quando viu que estava vivo e bem. Por mais que quisesse se convencer que se tratara de ansiedade natural por uma pessoa com a vida ameaçada, não acreditava nisso. A raiva, o desespero e a sensação de desamparo que tivera em pensar na morte de Peter haviam sido de uma intensidade incrível. Só sentira aquilo ao receber a notícia da morte dos pais.
Amara muito os pais. Mesmo se recusando a acreditar que amava Peter, tinha que reconhecer que algo estava acontecendo dentro dela, algo que era melhor eliminar já, antes que crescesse e se enraizasse. Lembrou a si mesma que Peter podia muito bem ser a reencarnação de Frederic Donas e capaz de trair um amor; que a maioria das mulheres da família Fowler fora infeliz em amor: sua avó, que morrera por amor em Tebas; sua mãe, que estava por se divorciar quando morrera com o marido; várias primas cujos casamentos tinham fracassado. Lembrou a si mesma que, há anos, determinara-se a não ter qualquer envolvimento profundo com homens e a dedicar-se completamente à sua carreira. Portanto, o que sentia por Peter devia ser encarado como algo prejudicial para a vida que escolhera.
— Então, até logo — disse Abdul, saindo da tenda com Peter. Creio que vamos nos ver de novo.
— É, acho que sim — concordou Peter, sem muito entusiasmo. Murmurou alguns agradecimentos e entrou no jipe, sentando-se ao lado do motorista e não atrás, com Jenny. Logo estavam a caminho da estrada de Saqqâra, seguindo as marcas deixadas pelo outro jipe. Depois que haviam passado do jipe para o Mercedes, também com um motorista a postos, Peter, afinal, falou:
— Como é? Não está curiosa?
O Mercedes era bem mais confortável e nele não se sentia tanto frio. Jenny percebeu manchas de sangue no estofamento e lembrou que o carro servira como ambulância pouco antes. Tratou de afastar os pensamentos mórbidos. Estremeceu. Graças a Deus não era sangue de Peter. Ele podia ter morrido ou ficado seriamente ferido por causa daquele ato de heroísmo. . . Mas estava vivo, sentado a seu lado.
— Curiosa sobre o quê? — perguntou, toda inocência, sabendo perfeitamente do que se tratava.
— Sobre o que Abdul queria me dizer em particular — disse Peter, sorrindo, mas não havia alegria alguma em seu olhar.
— Não. Não estou curiosa — mentiu Jenny, achando que era mau gosto de Peter tocar naquele assunto.
— Por quê? Por achar que Abdul queria apenas me agradecer por tê-lo arrancado das garras da morte? — perguntou Peter.
Estavam passando por Menfis, a antiga cidade que fora capital do Egito por quatrocentos anos.
— Sim. Era isso mesmo que ele queria — continuou Peter. — Me agradecer.
— Você merece também meus agradecimentos — disse Jenny, decidida a tornar bem clara a falta de modéstia dele. — Foi muito corajoso e agiu com heroísmo.
— Abdul também acha — disse Peter, enquanto o carro virava para o norte, em direção ao Cairo. — Tanto que achou que eu devia ter uma recompensa, apesar de eu afirmar que não fizer nada demais, que fora apenas uma reação normal.
— Não desmereça o que fez! — insistiu Jenny.
Ressentira-se com a tendência inicial dele de se vangloriar e ressentia-se por, agora, dizer que nada fizera demais. Poucos homens iriam se arriscar para salvar Abdul, como ele fizera.
— Ele queria me recompensar. . . — disse Peter. — Quero dizer, nós dois sabemos que salvei a vida de um homem muito rico e importante, não? Sabemos, porque ele nos disse - Jenny ia lembrá-lo que Abdul não dera aquela informação por vontade própria, que fora preciso pressioná-lo, mas Peter não a deixou falar.
Então, é claro que eu ia esperar toda espécie de oferecimentos de riqueza e poder, não é? Quem sabe um saco de libras esterlinas?
— Estou achando essa conversa de péssimo gosto — declarou Jenny. — Acho que você devia manter o generoso oferecimento de Abdul entre vocês, como ele fez.
— Para começar, ele me ofereceu um bom dinheiro como recompensa por meu heroísmo — continuou Peter, ignorando o comentário dela, enquanto Jenny virava a cabeça para a janela, determinada a não lhe dar atenção. - Se eu não tivesse nada, se precisasse de dinheiro, teria sido uma oferta tentadora. Mas como minha família ainda conserva a maior parte de seus bens, que não eram poucos, pude responder que minha recompensa era a satisfação de ter salvo a vida dele, de ter feito uma boa ação.
Peter calou-se e Jenny pensou que desistira de falar. Ainda bem: estava começando a se tornar odioso. À direita deles, o Nilo corria para o mar. Jenny achou que não era assim tão romântico, com aquelas duas monstruosas barcaças escuras, deslizando, pesadas.
— Me diga, Jenny — recomeçou Peter, para aflição dela. — Você sabia que minha família é rica, não? E a sua?
— Existe uma regra elementar de boa educação que nos ensina a não cometer a grosseria de comentar as finanças da família dos outros. . . — retrucou Jenny, voltando-se para ele.
Claro que sabia que a família dele era rica! E sabia, também, como ficara rica. Não tinha sido com um ou dois antepassados trabalhando honestamente, suando e se esforçando. Não! A primeira riqueza dos Donas tinha se originado do comércio de escravos: transporte de mercadoria humana, nas mais primitivas e sujas condições, entre a África e os mercados do Novo Mundo. Dinheiro sofrido, aquele! Depois de abolida a escravatura, os Donas haviam investido na produção de borracha na América do Sul; a descoberta e produção de borracha sintética iniciara a destruição das finanças da família. A fortuna anterior era apenas uma lembrança quando Frederic Donas fez o milagre de reerguer as finanças familiares. Mas não o fez, também, com o suor do rosto e sim casando-se. Casando com Caroline Byner, cujo pai, que lidava com mineração, tinha dinheiro bastante para a família dele e a dos Donas.
— Só mencionei isso para você poder apreciar melhor a recompensa que, afinal, Abdul achou que seria tentadora para um homem que tem tudo. . . — disse Peter, com uma risada sarcástica, — Mas ele estava enganadíssimo. Não sei por que, em primeiro lugar, ele achou que eu estava interessado em você.
Havia um tom brincalhão na voz dele, mas Jenny exclamou, atônita:
— Em mim?!
— Foi essa, exatamente, a minha reação — disse Peter. Calou-se e olhou para fora, como se agora estivesse disposto a parar de falar. Mas é claro que sabia perfeitamente que Jenny não ia deixar as coisas como estavam.
— O que quer dizer com isso dele pensar que você estava interessado em mim? — indagou ela, sem conseguir perceber qual era o jogo dele, mas disposta a descobrir.
— Bem, o fato é que nós dois sabemos que ele está interessado em você, não, Jenny? — disse Peter, voltando-se e encarando-a. — E viceversa...
Jenny não sabia se ele estava brincando ou tentando irritá-la.
— Isso não é da sua conta! — retrucou, furiosa.
— De fato! — replicou Peter, num tom gelado. — As inclinações românticas suas e de Abdul Jerada não são da minha conta... e justamente por isso é que contei do primeiro oferecimento dele.
As pirâmides de Gisé estavam aparecendo à distância, designadas por letreiros em néon. Todas as noites, durante o verão, um letreiro "A História Começou Aqui!" acendia-se, pondo clarões estranhos nos monumentos.
— Quer fazer o favor de se explicar logo?! — zangou-se Jenny.
— Ele ofereceu desistir da caçada... — disse Peter.
— Que caçada? — ela nem lembrava mais de discrição ou boa educação: queria saber de tudo, agora.
— A caçada de você, claro — explicou Peter.
Jenny tentou descobrir algo no rosto dele, mas a obscuridade do interior do carro e o tumulto de sensações e pensamentos que a dominavam não ajudaram.
— Me deixe ver. . . — disse ela, a voz controlada não demonstrando o que sentia. — Como recompensa por você ter salvo a vida dele, Abdul disse que ia desistir de... de me caçar? — Ela riu, esperando que esse riso demonstrasse a idiotice do que tinha dito.
— Muito generoso aquele homem, não acha? — indagou Peter, a voz repassada de cortante sarcasmo. — Quero dizer, não é qualquer homem que, por gratidão, sacrifica seu grande amor e felicidade desse jeito!
— Você está mentindo! — acusou Jenny, furiosa.
— Não se preocupe. . . — replicou Peter, com certa amargura. Não pretendo interferir no desenrolar de um verdadeiro romance. Eu disse a ele que não era preciso fazer tal sacrifício, uma vez que a mulher em questão já havia feito sua escolha e, claro, o escolhido não tinha sido eu... — Viu que suas palavras tinham deixado Jenny sufocada, sem fala, e continuou: — Não sou masoquista a ponto de ficar batendo com a cabeça na parede. Afinal de contas, você tem todo direito de escolher a quem quer beijar e de quem conter os avanços ou não...
— E foi bem difícil eu conter os seus avanços! — explodiu Jenny, sem conseguir mais se controlar, enquanto o motorista, discretíssimo, nem sequer tentara olhar para trás, apesar da discussão. - Um homem decente não se atreve tanto num segundo encontro com uma mulher, a não ser que seja uma vagabunda qualquer!
— E até onde você teria deixado Abdul Jerada ir, se eu não tivesse atrapalhado? — perguntou ele.
Jenny deu-lhe uma bofetada no rosto.
— Você. . . — disse, com voz trémula, a palma da mão ardendo.
—- Você é nojento! Abdul Jerada é um cavalheiro que tem a decência de reconhecer que o amor é importante. Talvez ele tenha cometido o erro de ter se declarado muito cedo, mas não tem medo da palavra amor! — E tratou de esclarecer, para que ele não entendesse mal: O que é muito diferente de querer possuir alguém, como você pretendia comigo.
— Eu nunca disse que queria "possuir" você. . . — declarou Peter, depressa. — Eu disse que queria fazer amor com você, o que é diferente, pois o amor para ser bom tem que ser a dois, vir dos dois.
Jenny ficou momentaneamente sem ação. Lembrava-se de tudo que acontecera no topo da pirâmide com clareza: a atração tinha sido mútua, as palavras dele não tinham sido agressivas, nem desrespeitosas.
Tinha a vaga sensação que estava reagindo um tanto histericamente àquilo tudo, mas não entendia por quê. Talvez fosse por achar que Peter não tinha verdadeiro interesse nela.
— Abdul não tem medo do amor — afirmou, sem ter nada a dizer, achando insuportável o silêncio pesado que se fizera entre eles.
— Como sabe disso? — perguntou Peter. — Porque ele disse que a ama?
Já fazia algum tempo que o carro entrara na cidade e aproximava se de Ku al-Tahrir. A luz vinda dos postes mostrava os traços viris do rosto de Peter, que continuou:
— Acha que um homem a ama só porque ele diz isso? Eu amo você, Jenny Mowry! Isso é verdade?
— Não — adimitiu ela, achando muito cruel da parte dele caçoar de sua necessidade de um sentimento honesto.
O carro virou à esquerda na Korneish al-Nil, o Hilton aparecendo em frente com todo seu esplendor.
— Não? — indagou Peter. — Não? — repetiu, convidando-a a se contradizer. — Aconselho, Jenny Mowry, que você aprenda a diferenciar uma mentira de uma verdade dita por alguém que realmente gosta de você, para não cometer o maior erro da sua vida!
O Mercedes tinha parado diante da entrada do hotel. Peter abriu a porta, desceu e entrou no prédio, sem olhar para trás.
Jenny começou a chorar. Disse a si mesma que tinha mesmo que chorar, depois de tanta tensão vir crescendo em seu íntimo, o dia inteiro. Aquele homem era um bruto: insinuar que entre ela e Abdul havia mais do que houvera, na verdade. Claro que não deixaria as coisas irem mais longe no Serapeu, como não deixara que fossem, no alto da pirâmide. E estava preparada para impedir que isso acontecesse. Não era um objeto para ser agarrado por qualquer homem que o desejasse. Sempre acreditara que a paixão física só era válida se acompanhada por outros sentimentos. Abdul parecia incapaz de fazer amor sem um sentimento mais profundo; já Peter, não tinha certeza. A insinuação que ela poderia ter ido mais adiante com Abdul a-enraivecera. Não devia ter esperado muito de Peter, uma vez que era neto de Freedric Donas!
Teve que admitir, angustiada, que tivera esperança que ele fosse diferente do avô. Era romântica o bastante para ter aspirado, secretamente, um Romeu para seu papel de Julieta. bom, a vida não é um romance de Shakespeare, em que duas famílias inimigas fazem as pazes por causa de dois jovens amantes. E tinha que reconhecer que era melhor assim, pois a história de Romeu e Julieta não tinha tido um final feliz.
Estava grata ao motorista por não apressá-la para sair do carro: seria terrível atravessar o saguão do hotel com as lágrimas correndo pelo rosto. Felizmente, tinha dois lenços de papel no bolso. Peter não merecia uma lágrima sequer, se bem que chorar tinha lhe feito bem.
O porteiro uniformizado do hotel foi menos discreto do que o motorista do Mercedes, provavelmente porque desconfiar fazia parte de seu trabalho. Não era sempre que um homem e uma mulher brigavam à entrada do Hilton e a mulher acabava desfazendo-se em lágrimas. Olhou atentamente para a bolsa de Jenny, certamente achando que podia estar pensando em atacar o amante a tiros ou com uma bomba, que sempre tinha na bolsa com os trocados, para o caso de precisar.
O recepcionista, ao entregar-lhe a chave do apartamento indagou, solícito, se tudo estava bem. As três turistas com que subiu no elevador tiveram o bom senso de fingir que não tinham percebido que ela havia chorado.
Quando olhou-se no espelho do banheiro, constatou que tinha um ar zangado, furioso. Não havia sido àtoa que o porteiro desconfiara de suas intenções. No entanto, o mal não fora tão devastador, que um bom banho quente e uma boa escovadela nos cabelos loiros não pudessem reparar.
Pediu o jantar no quarto, mal tocando nas duas costeletas de cabrito, na salada de alface e na meia garrafa de vinho local. Depois, foi para a cama achando que estava mais do que pronta para dormir e descansar. Estava errada; não conseguiu dormir, por mais que tentasse. Culpou o barulho do tráfego, se bem que não fosse maior do que na noite anterior. O verdadeiro problema era Peter Donas, que não lhe saía da cabeça. Revivia e tornava a reviver os acontecimentos do dia: Peter falando com ela pelo telefone; Peter, quando ela parara, exausta, durante a subida da pirâmide e descansara com a cabeça apoiada no ombro dele; Peter, quando tinham apreciado o nascer do sol, recitando versos românticos, beijando-a, querendo fazer amor com ela; Peter, mais interessado no falcão do que em passar o dia com ela; Peter, quando pegara ela e Abdul se beijando; Peter, quando se desesperara, achando que ele ia morrer; e, afinal, Peter e as acusações injustas durante a volta ao hotel.
Estava contente por ter alguns dias a sós consigo. Precisava disso para conseguir pôr pensamentos e sentimentos em ordem. Esperava que quando desembarcasse, num ponto do alto Nilo, já tivesse ideia de quanto aquilo tudo havia afetado sua vida. Se é que ia afetar. Sentia falta do tempo em que tudo era tão claro, quando sabia exatamente quem era — Jenny Mowry, arqueóloga —, com uma posição respeitável na comunidade ientífica. Sentiu vontade de voltar aos "bons velhos tempos", sabendo, no entanto, que a saudade costumava fazer as boas lembranças se acentuarem e esmaecer as ruins.
Fosse verdade ou não o fato dela ser feliz com a vida que levava, antes de saber que Peter Donas estaria em Hierakonpolis, isto era certo: naquele momento era infeliz.
Deitada, lembrava como Peter olhara Hatshepsut, como se o falcão jamais pudesse errar, se bem que um pombo conseguira escapar. Em troca, não hesitara em condená-la por um simples beijo! Como o do falcão, o erro dela tinha sido de tempo. Ao pensar naquilo, seu coração apertou-se. Peter não era homem para entrar na vida dela.
Tinha errado em deixar as coisas se adiantarem até aquele ponto. Peter Donas estava ligado demais às fantasias infantis e juvenis de Jenny para que conseguisse passar pelo mundo dele sem ser atingida. Ele era a chama, ela a mariposa atraída por acontecimentos ocorridos em Tebas, antes de ambos nascerem. Se não tomasse cuidado, o círculo poderia fechar-se e, sem a sorte da fénix da fábula, ela poderia não sobreviver ao sacrifício. . . como Geraldine Eowler não sobrevivera ao encontro com Frederic Donas.
Se bem que não acreditasse em reencarnação, sem dúvida era filha de sua mãe, assim como sua mãe fora filha de Geraldine Fowler. Sem dúvida os genes tinham passado de uma geração à outra. Geraldine tinha começado a pasta de recortes sobre Frederic Donas. A mãe de Jenny continuara, acrescentando fotos e recortes do clã Donas e Jenny continuara o trabalho como um ritual. Agora, estava no Egito, como uma andorinha que tivesse voltado ao lar. . . uma geração depois.
— Não sou Geraldine Fowler! — disse, jogando as cobertas de lado e saindo da cama.
Começou a arrumar as malas, na necessidade de ocupar a mente. Infelizmente, tinha muita prática nisso e logo havia terminado. De novo na cama. Pensando, pensando, pensando.
Quando, afinal, dormiu sonhou com Peter, ora beijando-a na noite fria do deserto, ora pedindo-lhe que fizesse amor com ele. E Jenny, queria fazer amor com ele, teria feito amor com ele se aquele falcão muito parecido com Hatshpsut, só que mil vezes maior, não tivesse descido do céu como um raio, apanhando Peter e levado embora, deixando Jenny triste e aliviada ao mesmo tempo. Triste porque Peter fora levado para um fim incerto; aliviada porque fora salva de fazer amor com um homem que não a amava realmente.
CAPÍTULO VI
— Bem-vinda ao Osiris, srta. Mowry — disse o homem no alto da passarela, ao pegar a passagem de Jenny. — Se houver algo que eu possa fazer para tornar sua viagem mais agradável, disponha, por favor.
— Obrigada — respondeu ela, pegando na bolsa algum dinheiro para dar ao rapaz que o oficial chamara para levar as malas até a cabina.
Era difícil dizer, ao primeiro olhar, se a cabina era confortável. Não muito grande, parecia menor ainda pela profusão de flores que continha. Estavam por todo canto: na cama, no chão, na prateleira. Havia flores até mesmo no banheiro e sobre o vaso sanitário. Gladíolos brancos, que eram as flores mais caras no Egito. O camareiro ficou sem saber onde pôr as malas. Jenny puxou dois dos enormes arranjos para um lado, estragando mais de uma flor, e disse ao rapaz que pusesse as malas no lugar que fizera. Quando ele saiu, fechando a porta, ela teve impressão de estar numa floricultura. Não podia ficar com as flores ali, se bem que se sentisse relutante em mandar tirá-las. Eram lindas e deviam ter custado uma fortuna.
Pensara imediatamente em Peter, achando que ele percebera como tinha sido detestável e resolvera pedir desculpas. Por mais que ele fizesse, Jenny não sabia se era o suficiente. Sentimentos feridos nem mpre podiam ser curados com um enorme gasto numa floricultura, que agradava, mesmo, ao dono dela!
"Estou ansioso pelos poucos dias que vamos passar juntos", dizia o cartão que, afinal, Jenny encontrara num dos arranjos florais. Leu de novo, compreendendo que as flores não eram apenas um pedido de paz: Peter pretendia viajar no Osiris com ela! Estremeceu. A sensação não era completamente desagradável. Era a mesma que tinha quando andava na montanha-russa: ansiedade, temor e, ao mesmo tempo, exaltação, prazer. Aquele homem vivia fazendo surpresas. Primeiro, aparecera daquele jeito no Museu do Cairo, agora ali no navio. Nas duas vezes ela sentira necessidade de tempo para verificar seus sentimentos. Se não conseguira deixar de encontrar Peter numa cidade com milhões de habitantes, tinha pouquíssima esperança de consegui-lo naquele barco, com menos de duzentos passageiros. Ainda estava perdida nesses pensamentos tumultuados quando bateram à porta. Abriu e viu Peter.
— Oi. . . — disse ele, manso sem-jeito e rindo. — Eu trouxe uma oferenda de paz — disse, estendendo o pequeno vaso de cristal com um botão de rosa. — Fui muito grosseiro e achei que não devia deixar que levasse esses dias pensando em como agi mal, já que vamos trabalhar juntos por dois meses. Por isso, tenha piedade desse pobre infeliz, sim? Simplesmente, ele agiu como um louco ciumento e não tinha nenhum direito de fazer isso. . . — Mexeu os pés, desajeitado, e deu um sorriso que enterneceria o próprio diabo. — O botão de rosa me lembra o nascer do sol... — disse, apontando o vaso já nas mãos de Jenny. — E todas as auroras vão me lembrar você. . . Sem dúvida,aquele pedido de desculpa superava qualquer quantidade de flores: ele se definira como um louco ciumento e fora um prazer ouvir aquilo. — Então? — continuou Peter. — Que me diz?
— Pode me dar um minuto para pensar? — pediu ela, charmosa, levando o botão de rosa até o nariz a fim de aspirar o perfume.
— Será que posso passar esse minuto na sua cabine, para livrar o caminho aqui no corredor? — sugeriu ele, enquanto duas pessoas que passavam o obrigavam a aproximar-se mais dela para dar passagem. — Durante embarques e desembarques os corredores de um barco ficam muito movimentados - comentou e Jenny riu. — Juro que fico com as mãos quietas! - prometeu ele, rindo também.
— Oh, eu acredito. . . — replicou ela, com um sorriso que parecia desmentir isso: afinal, ele era um homem de sangue quente e ela uma mulher bonita. — Mas tenho medo que a cabine seja pequena para mim, imagine para nós dois. . . — brincou, dando um passo para trás e abrindo completamente a porta.
Ele viu as flores. Jenny percebeu, pela expressão de Peter, que fizera a coisa mais errada. Sem querer, estragara um momento lindo. Apertou o vaso do botão de rosa com tanta força que teve impressão que o cristal ia estilhaçar.
— Me deixe adivinhar — começou, fingindo uma animação que já i não sentia. — Você não é o Papai Noel que desceu pela minha chaminé...
— Eu vim pedir desculpas, não afundar o Titanic com flores — respondeu Peter, com o mesmo tom de voz áspero da véspera.
— Muito bem! Uma agradável reunião! — disse Abdul, ao entrui no corredor e ver Peter à porta da cabine de Jenny.
— Papai Noel vem vindo aí! — disse Peter, voltando-se para Jen ny depois de cumprimentar Abdul secamente.
O olhar que deu a ela tornara-se indefinível, subitamente coberta pela imponderável cortina que caíra entre eles.
— Que ótimo! — disse Abdul, aproximando-se deles; a bandagem na cabeça era mais estreita do que a do dia anterior. — Então, Pete, decidiu viajar conosco? - perguntou, sorrindo, estendendo a mão. que Peter apertou com má vontade.
— Quer dizer que também vai subir o rio? — indagou Peter, oa lábios apertados numa linha tensa.
— Minha cabine é ali adiante. . . — respondeu Abdul, com excelente humor para quem escapara de ser assassinado no dia anterior — Achei que não seria de bom gosto pegar uma cabine contígua a esta... e espero que você tenha sido assim discreto, também, Peter.
— Essa decisão de viajar pelo Nilo foi um tanto repentina, não? perguntou Peter. Depois voltou-se para Jenny e acrescentou: — Ou não?
Ela entendeu a insinuação e magoou-se. Não tinha nada a ver com aquela decisão de Abdul e doía ver que ele pensava assim dela.
Se estava ansiando por encontrar alguém naqueles dias, era ele, Peter. No entanto, era evidente que ele não iria acreditar, se lhe dissesse. E não queria correr o risco de ser humilhada.
— Eu disse que tinha negócios na região do alto Nilo, não disse? — esclareceu Abdul. — A oportunidade de ter ótima companhia tornou mais do que lógica a minha escolha de como ir para lá. . . Quero dizer, nós três vamos ter uma viagem muito agradável.
— Sei que isto vai deixar você muito triste e aborrecido, Abdul — disse Peter, com profunda ironia —, mas não vou neste barco.
— Não? — indagou Abdul como se jamais tivesse imaginado isso. — Acho que tirei uma conclusão errada, então, por saber que íamos todos para o mesmo local. . .
— Pois é: concluiu errado, sim! — interrompeu Peter. — Vou ficar mais alguns dias no Cairo, depois sigo para lá de trem.
— Se é porque não conseguiu passagem, cabine... eu acho que posso dar um jeito... — ofereceu Abdul, magnânimo.
— Se eu quisesse ir, teria me arranjado sozinho, obrigado — retrucou Peter, sem tentar disfarçar a frieza.
— Claro! — disse Abdul. — Eu só pensei que. . .
— Sei o que você pensou — interrompeu Peter, de novo. — E, por favor, pare de se demonstrar tão ansioso por me dar chance para disputar Jenny esportivamente! Não preciso disso. Não tenho a menor intenção de atrapalhar a viagenzinha amorosa que vocês dois planejaram. Boa viagem!
— Até daqui a alguns dias, então! — disse Abdul a Peter, que já estava quase no fim do corredor; depois voltou-se para Jenny, que se sentia furiosa e angustiada.
— Gosto muito dele, mas acho que Peter não acredita nisso. . . Gosto dele sem levar em conta o fato de ter salvo minha vida.
Peter não era o único a duvidar da sinceridade de Abdul, naquelas circunstâncias, mas Jenny resolveu passar por cima.
— Você acha, mesmo, que ele reservou passagem neste barco? - perguntou.
— Por que duvida? — indagou ele em troca. — Era a única coisa lógica a fazer, não era? Quero dizer, eu me apressei a arranjar uma passagem neste barco, quando soube que você ia nele... e não posso subestimar meu rival!
— Olhe aqui, não sou um osso a ser disputado por dois cães! explodiu Jenny, zangada por Peter ter feito de novo suposições ofensivas, por ter ido embora como um menininho ofendido e por Abdul ter aparecido, atrapalhando tudo. - E não sei porque você vive chamando Peter de seu rival, quando é evidente que ele não liga para mim!
— Não?. . . — disse Abdul, passando a mão pelo botão de rosa qui ela segurava. — Eu ouvi um homem muito confiante dizer que não precisava da chance de disputar você esportivãmente... — Tocou com um dedo, delicadamente, o macio botão. — Muito delicado o gesto de ofertar este botão de rosa, não? Eu devia ter pensado em algo assim, em vez do que fiz — Fez um gesto indicando a profusão de gladíolos brancos. — Esqueci que estas cabines são tão pequenas... mas Peter não esqueceu. Viu como não devo subestimá-lo?
Se Abdul parasse de falar, ela explicaria que aquele botão era um pedido para fazer as pazes, depois das agressões de Peter na noite anterior. Agressões que se tinham repetido, poucos momentos depois da oferenda de paz. . .
— Quando perguntei a ele — continuou Abdul —, ficou bastante claro que ele quer você, se bem que parece haver um problema de entendimento, de comunicação entre vocês dois.
— Perguntou a ele? — indagou Jenny, sem poder acreditar.
— Você não teria perguntado? — rebateu Abdul. — Eu sempre achei que perguntas e respostas claras, diretas, evitam perda de tempo em adivinhações. Aliás, parece-me que vocês dois estão bastante confusos com os dados que têm para adivinhar. . .
Um camareiro ia passando pelo corredor e Abdul segurou-o por um braço, fazendo-o entrar, com delicadeza, na cabine de Jenny, ao mesmo tempo que punha algum dinheiro na mão do rapaz.
— Quer me fazer o favor de retirar estas flores da cabine desta senhora, senão ela não vai poder usá-la? — disse e, depois, voltandose para Jenny: — Enquanto isso, por que não abandona o adorável botão de rosa de Peter apenas o tempo de uma breve conversa no convés? Acho que seria bom esclarecermos tudo entre nós antes de começar a viagem. Eu não gostaria de passar os próximos dias entre maus pensamentos. O que acha?
Ela concordou, subindo com ele ao convés. Passageiros, na maioria turistas de meia-idade, estavam sentados junto das janelas, do lado da margem. Abdul preferiu a,
relativa intimidade das mesinhas do outro lado do salão. Fez Jenny sentar-se e sentou-se também. Imediatamente um garçom aproximou-se e perguntou o que iriam beber.
Abdul pediu chá.
— Estou me preparando para a peregrinação à Meca — explicou, quando Jenny disse que também queria chá —, por isso não devo tomar álcool, conforme exige o islamismo.
Você pode tomar o que quiser.
— Chá está bem — confirmou Jenny, achando que era muito cedo para bebidas, se bem que a maioria do pessoal não pensasse assim.
Depois que o garçom serviu o chá, Ahdul observou:
— Você está preocupada, aborrecida... — Tomou um gole do chá. — Peter contou o que conversamos ontem — afirmou. — Você compreende: eu não podia fazer outra coisa se não propor desistir de você, não acha?
— Não sei o que achar. . . — respondeu Jenny. Como Abdul podia se oferecer para desistir de algo que nem sabia se era dele?
— Peter me salvou a vida - disse Abdul, como se isso explicasse tudo. — Se estiver em meu poder retribuir, devo fazê-lo. Como ele recusou dinheiro, me vi na obrigação de oferecer o que quisesse.
— Mas Peter recusou seu gentil oferecimento — completou Jenny.
— Claro que recusou — admitiu Abdul, surpreendendo Jenny. Um homem de verdade não aceita nada que lhe ofereçam numa bandeja! — Tomou outro gole de chá e continuou:
— O valor das coisas aumentam quanto mais se luta por elas!
Jenny pôs a xícara no pires, cruzou os braços e encarou Abdul por cima da pequena mesa que os separava:
— Por que toda vez que conversamos eu me sinto como um prémio, ou, pior ainda,como um trofeu de guerra?
— Porque a vida é um jogo — respondeu Abdul, sem hesitar. A vida é guerra. Competir é algo que faz parte da natureza do homem. Você não deve se aborrecer por ser objeto de competição. Afinal, seria o caso até de- se sentir lisonjeada.
— Acontece — retrucou Jenny —, que eu prefiro não me sentir lisonjeada e ficar fora de competições. E duvido que esteja havendo alguma, neste caso.
— Acho que vai ser impossível você ficar fora da competição, Jenny — observou ele. — Gostaria que não precisasse estar nela e acho que Peter também. Não é muito agradável para um homem descobrir que algo. . . como a atração por uma mulher, por exemplo. . . torna-o menos dono de si mesmo. De repente, a gente descobre que quer alguém, que gosta de alguém e que não se pode fazer nada para essi alguém retribuir na mesma medida. Seria tão mais fácil se pudesse!
— Não é possível Peter estar apaixonado por mim — disse Jenny baixando a voz para ninguém ouvir.
— Jenny, Jenny. .. — murmurou Abdul, sacudindo a cabeça. Você está determinada a não ver os fatos que me fizeram pensar que já havia perdido a luta antes de iniciá-la...
Eu não estaria falandc em luta se as intenções de Peter não fossem tão claras quanto as minhas.
— Não existem fatos e Peter não tem intenção alguma a meu respeito! - insistiu Jenny.
— Você não tem nenhuma necessidade de fugir disso, Jenny disse Abdul, com um sorriso encorajador.
— Não estou fugindo de nada — retrucou Jenny sorrindo de um modo que, acreditava, demonstrava como aquilo era ridículo e afastou a xícara, tentando esconder o tremor das mãos. — Bem, acho que vou até minha cabine. . .
— Hum... É essa a mulher que não está fugindo de nada? — indagou Abdul com leve ironia, o que fez Jenny puxar de novo a xícara e tomar outro gole de chá. — Quando eu digo que Peter está apaixonado por você, não falo à-toa, mas sim baseado numa profunda experiência em amor, que permite reconhecer os sintomas nos demais homens.
— É evidente que tenho muita experiência amorosa... — Percebeu a sombra de um sorriso nos lábios de Jenny e reagiu: — Eu nunca afirmei que era virgem, afirmei? — E sorriu também. — Jamais insultaria sua inteligência tentando convencê-la de um absurdo desses. Foi justamente a profunda experiência com mulheres da sua e da minha cultura que me ensinou a preferir qualidade à quantidade e a reconhecer a alta qualidade, quando a encontro. — Jenny não era completamente imune ao encanto daquele homem atraente; fez um aceno com a cabeça, agradecendo o cumprimento. — Assim, a experiência logo me fez perceber que havia algo entre Peter e você.
— Isso é absurdo — disse Jenny.
Sua xícara estava vazia, mas sentia-se insegura e nervosa para tentar enchê-la. Abdul, atento, serviu-lhe mais chá, dizendo:
— Mencionei a possibilidade de uma atração entre vocês quando Peter foi conversar comigo sobre Hatshepsut, no Hilton. Fiquei surpreso quando ele riu, dizendo que se tinham conhecido naquela tarde, no museu, e indagando se eu era ingénuo o bastante para acreditar nisso de amor à primeira vista.
Jenny sentiu-se desapontada. Tinha sido idiota em ficar sentada ali, tensa, esperando que Abdul lhe revelasse o profundo amor de Peter!
Mais idiota, ainda, porque devia ter pensado no falcão: presente nos acontecimentos o tempo todo. A loucura de Peter por aquela ave significava exclusão de qualquer sentimento por uma simples mulher!
— Notei, imediatamente — continuava Abdul —, que você não havia percebido nada. . .
— Pois eu percebi tudo — disse íenny. — Se Peter estivesse interessado em mim como você diz, tenho certeza de que não precisaria da sua ajuda para se explicar. E se você está interessado em mim como diz, devia esquecer Peter Donas e tratar da sua própria vida!
— Os jogos, principalmente do amor, podem se tornar desesperadoramente complicados, confusos, mesmo quando se conhece as regras. . . — comentou Abdul.
— Não estamos jogando nada! — rebateu Jenny, com raiva, perdendo a paciência e falando alto, fazendo várias pessoas virarem-se para eles. — Desculpe.. . — murmurou ela, erguendo-se.
— Vamos esquecer o que dissemos até agora? — sugeriu Abdul, os olhos negros, aveludados, implorando que ela fosse razoável. Apesar do que você pensa, isso tinha que ser discutido.
— Vou tirar as roupas das malas — desconversou Jenny, mas lembrou-se de agradecer pelas flores, antes de ir para a cabina.
Sentada na cama, olhou os gladíolos que tinham ficado na cabina e, de repente, sobressaltou-se com medo de que o camareiro tivesse levado o botão de rosa. Suspirou ao vê-lo na prateleira sob a vigia. Colocou a flor num lugar mais evidente, imaginando como reagiria se Peter tivesse confessado amor por ela, em vez de responder à indagação de Abdul com um comentário irónico sobre amor à primeira vista. Apesar de não haver o que discutir sobre o que não existia, ela se perturbava com a insistência de Abdul em falar no envolvimento emocional de Peter. Talvez o árabe necessitasse da sensação de triunfo sobre outro homem para entrar no que chamava de jogo do amor. Se era isso, seria melhor ela dizer-lhe logo que desistisse, pois jamais conseguiria ver o amor como um jogo. Para Jenny, amor era muito, mas muito mais do que isso.
Ficou ali, sentada, até o barco sair. Tinha a indefinível sensação de estar numa prisão com um homem que preferia que tivesse ficado no Cairo. O confinamento da pequena cabine iria deixá-la louca, Se continuasse ali dentro. Vestiu um maio, pôs a saída de banho por cima pegou um exemplar do Archaeological American, que ainda não ter minara de ler, e foi para o convés, a fim de tomar sol.
— Posso ficar aqui? — perguntou Abdul, chegando ao convés, com maio e um roupão.
O curativo na fronte, agora, resumia-se numa simples atadura. Esperou a resposta dela, antes de se esticar na espreguiçadeira ao lado. Jenny murmurou algo e voltou a ler sua revista. Não conseguiu ler mais. Estava percorrendo com os olhos, pela sexta vez, o mesmo para grafo, com a certeza de que ele a fitava fixamente. Ergueu os olhos. Ele sorriu. Ela suspirou, fechou a revista, recostou-se e cerrou os olhos
— Você está mesmo decidido a dizer o que acha que deve dizer, não? — indagou.
— Bem, eu acho que há coisas que devem ser discutidas — afirmou ele.
— E vai insistir, mesmo que eu repita que não quero falar a respeito? — Como não houvesse resposta, abriu os olhos e encarou-o. Então? — desafiou.
— É preciso falar — decretou ele, com a expressão de uma criança que se via obrigada a tomar um remédio que detestava.
— Não quero passar os próximos dias fugindo e procurando buracos para me esconder. . . — disse Jenny, fechando os olhos de novo. Mas não espere que eu lhe agradeça, quando terminar de falar.
— Não acha que teria sido muito mais fácil para Peter ter negado que se interessava porvocê, simplesmente? - indagou Abdul, indo direto ao assunto; Jenny gemeu baixinho. — Em vez disso, ele preferiu fazer comentários sobre o modo que tinha conhecido você, responder com uma outra pergunta, querendo saber se eu acreditava em amor à primeira vista. A verdade é que ele acredita. Sabe o que ele me disse quando falei que ia desistir de você se a amasse?
Jenny cerrou os lábios, recusando-se a dar a Abdul a satisfação de dizer que estava morrendo por saber. E ele falou assim mesmo:
— Ele disse que podia cuidar de seu próprio amor sem precisar da minha ajuda.
— Conheço mais alguém que está tentando dizer-lhe a mesma coisa — disse Jenny, encarando-o de novo. — Era melhor você aprender a aceitar suaves sugestões, do que insistir até lhe abrirem a cabeça!
— E ele começou uma conversa fiada sobre porque você iria me preferir a ele — continuou Abdul — e isso já disse tudo! Respondi que tudo aquilo que alegara não queria dizer nada, mas ele continuou teimando.
— O que não prova nada — retrucou Jenny. — Talvez ele tenha achado que isso não era da sua conta e resolveu agir de modo a lhe mostrar que não devia ter metido o nariz na vida dele — continuou, ansiosa por uma prova de que não era bem aquilo.
— Você acha que Peter ficou satisfeito quando apareci nas pirâmides e convidei vocês para almoçar? — rebateu Abdul.
— Quando você falou no falcão, os olhos dele brilharam como lâmpadas de árvore de Natal. . . — lembrou Jenny, ficando triste.
— Estou falando de antes de mencionar o falcão — disse Abdul —, quando ele nos viu conversando. Pode afirmar que ele ficou contente em me ver? — Não esperou pela resposta. — Tudo, menos isso! Ele chegou até a insinuar que eu tinha feito trapaça para me aproximar de você. . . — Riu. — E é verdade, fiz, mesmo.
— Mas ele mudou de ideia logo que você disse que Hatshepsut estava no deserto, esperando por ele! — disse jenny, sem conseguir disfarçar a ansiedade.
— Segundo me lembro, ele não mudou de ideia — contradisse Abdul. — Quem mudou foi você. .. disse até algo como quando iria ter de novo chance de cavalgar e almoçar num deserto exótico. . .
— Está querendo me dizer que Peter não estava ansioso por ver o seu falcão caçando? — perguntou, desafiadora, jogando as pernas para um lado e sentando-se para encará-lo, querendo ver se ele tentaria impingir-lhe aquela mentira.
— Eu simplesmente notei que, diante do impasse de tomar uma decisão, ele escolheu você e não o falcão — lembrou Abdul. — Você é que torceu essa decisão. Depois que deu a enteder que gostaria da minha companhia, ele se manteve afastado e mais ainda depois que nos encontrou aos beijos, no Serapeu. A atitude dele não era a de uma Pessoa comipletamente satisfeita com a minha companhia e a do falcão, não acha?
— Isso não quer dizer nada — replicou Jenny, querendo acreditar em cada palavra que ele dissera. — Não passam de suposições.
— Ele ter vindo aqui com um botão de rosa é muito mais do qUe mera suposição... — insistiu Abdul. —- Não queira me dizer que ele gostou da minha intromissão, deste vez, principalmente quando dei a entender que nós dois tínhamos combinado esta viagem. . .
Jenny riu, nervosa. Sabia que estava ouvindo o que queria ouvir Assustava-se diante da possibilidade disso lhe dar desculpas para meter-se numa eventual e terrível aventura.
— Olhe, Jenny — disse Abdul e o tom profundo de sua voz fez Jenny sentir um intenso calor, que nada tinha a ver com o sol do Egito. — Eu não tenho medo de competir, seja em amor ou em qualquer outro campo. Na verdade, até gosto de competição — Mais uma vez ela imaginou se Abdul não estaria tentando fazer de Petet um rival pelo amor dela, muito maior do que de fato era. — O que não quero é uma vitória fácil e que, um dia, você olhe para trás e pense em como teria sido. . . se correspondesse a Peter de modo diferente, se tivesse prestado mais atenção nos indícios que ele está dando, se tivesse dado a você e a ele uma chance maior. Eu confio em que posso vencer Peter agora. O que não quero é ter que lutar com a lembrança dele mais tarde, porque as lembranças voltam como armas que homem nenhum em carne e osso, é capaz de vencer. Fale por uma amarga experiência própria. — Jenny ficou curiosa ao ouvir isso, mas ele não explicou. — Entende o que estou querendo dizer? — perguntou Abdul.
— Se eu perder, perdi. Não seria a primeira vez, se bem que seria a minha mais dolorosa derrota. Mas se ganhar, quero que seja por eu ser, mesmo, o homem realmente desejado. Por isso. não posso sossegar enquanto você insistir em manter a cabeça enfiada na areia, como um avestruz, no que se refere aos sentimentos de Peter.
— Acho que você está enganado nisso - disse Jenny, tentando convencer a si mesma que era verdade. — Mas prometo que vou pensar seriamente no caso. Contente?
— É tudo o que peço — disse Abdul, com um sorriso cansado. Tirou o roupão e deitou-se na espreguiçadeira ao lado da dela. Era musculoso. O maio, de alaranjado brilhante, contrastava com o bronzeado natural da pele. Os músculos do peito eram bem desenvolvidos, mais do que os de Peter. Fartos e sedosos pêlos negros cobriam o alto do peito e iam descendo, afunilando-se, até formar uma faixa vertical estreita que sumia sob o maio. O torso de Peter era imberbe, ein comparação. A pele de Abdul estava marcada com cicatrizes em vários lugares; a pele de Peter não apresentara uma mancha sequer, quando ele tirara a camisa, na tenda.
— Ah! Dei uma jogada errada, não? — perguntou Abdul, fazendo Jenny pensar que se referia ao relacionamento entre Peter e ela. Usei meu trunfo antes da hora. — explicou, com ar de quem tinha cometido a maior besteira. — Eu só faço isto depois de ter levado a encantadora mulher para meu quarto pela primeira vez.
— Está falando nas suas cicatrizes? — indagou Jenny, num instante de divertida lucidez, ao mesmo tempo que percebia que não sentia repulsa, como pensara que iria sentir. As cicatrizes pareciam fazer parte daquele corpo forte.
— Uma bala. . . — disse Abdul ajeitando a perna para que ela visse o pequeno círculo no interior da coxa e, do outro lado, a cicatriz como um grande asterisco, onde a bala saíra, rompendo a carne. Uma faca... — disse, passando um dedo pela cicatriz que ia do flanco direito até a altura do estômago.
— Outra faca? — perguntou Jenny, apontando para uma cicatriz não muito grande, no quadril direito.
Em vez de tocar nele, no local a que se referia, Jenny mostrou o ponto da cicatriz em si mesma.
— Acidente de esqui, em Saint Moritz — respondeu ele; passou os dedos pela faixa de pêlos, logo acima do maio, fazendo aparecer uma cicactriz oculta. — Acidente de carro em Lê Mans.
— Devo achar que você é destinado a sofrer acidentes? — perguntou Jenny, rindo, depois dele citar várias outras cicatrizes não visíveis. — Será que é por ser um homem muito em evidência?
— Não. É porque eu vou até o limite extremo em tudo que faço respondeu Abdul. Sinto uma exaltação quando vou até onde é possível ir, ou quando levo um carro ou um animal a dar o máximo que podem. Acontece que, infelizmente, de vez em quando eu erro. — O sorriso dele era atraente, os dentes excepcionalmente brancos e brilhantes contrastando com a barba e o bigode negros.
Jenny notou uma outra cicatriz, em forma de lua, no alto do pescoço.
Ia perguntar a origem dela quando ele inclinou o corpo, chamando a atenção dela para outro ponto.
— Esta eu consegui em Maracaibo — disse, os dedos percorrendo suavemente uma cicatriz escura no alto do ombro esquerdo —, lutando contra incêndio em poço de petróleo, três poços, para ser mais exato.
— Você. . . lutando contra incêndio em Maracaibo? — perguntou Jenny, imaginando se teria ouvido direito. — Na Venezuela?
— Isso mesmo — assentiu Abdul. — Andei apagando incêndios com Darrel Crane, o melhor lutador contra as chamas do inferno. Apagar incêndios em campos de petróleo é trabalho duro - comentou, esfregando a cicatriz como se estivesse sentindo o ardor do fogo. Como eu já estava no campo do petróleo, achei que seria interessamconhecer essa parte. Darrel concordou em me deixar acompanhá-lo para observar. Ele foi chamado para o inferno de fogo que explodira em Maracaibo. Fui para lá com ele. . . — Os olhos negros assumiram expressão sonhadora e Jenny percebeu que Abdul, naquele momento, estava longe, em outro continente. — Chegamos à noite... Podia-se ver o clarão do fogo a quilómetros de distância, como se o inferno tivesse subido para a superfície da Terra. Achei que seria impossível apagar aquele fogo, mas Darrel enfrentou-o como um desafio não maior do que outros que já tivera. E acho que não era, mesmo. Ele abafou os incêndios nos poços, um a um, usando bastões de nitro glicerina... — Se bem que estivesse olhando para Jenny, Abdul pá recia não vê-la; estava imerso profundamente nas lembranças, olhando através dela. — Cada vez que a nitroglicerina explodia, o fogo espa lhava-se.até uns novecentos metros de altura e uns seiscentos ao redor dissolvendo-se e deixando em seu lugar um jorro de petróleo.
— E a cicatriz? — indagou Jenny, percebendo que Abdul parecia estar querendo afastar-se do assunto.
— Depois que o último poço foi apagado, eu me aproximei sem a roupa protetora — contou Abdul, com expressão que demonstrava que aquela era uma recordação dolorosa.
— De repente, alguém gritou que estava acendendo de novo e eu mal tive tempo de me virar para correr. Não senti nada. Depois, fiquei sabendo que a força da reignição me fizera voar como um super-homem. Fui cair, inconsciente, a mais de trezentos metros do local. As queimaduras foram nada per to das costelas quebradas.
— Não entendo como o fogo recomeçou, depois de apagado — comentou Jenny.
— Deve ter havido alguma coisa. . . Uma faísca, provocada por alguém com alguma ferramenta, talvez até a eletricidade estática de alguém passando a mão pelos cabelos. Tudo que sei é que o fogo recomeçou e que fui acordar num hospital e Darrel não estava muito ansioso em me trazer de volta. Eu estava começando a me tornar importante no mundo do petróleo e ele não queria ficar com a fama de me ter transformado numa bola de fogo.
— Posso compreender o coitado! — exclamou Jenny. — Você nunca mais voltou a um campo de petróleo em chamas, não?
— Claro que voltei! — replicou Abdul, estranhando que ela pudesse imaginar o contrário. — Não imagina como é empolgante. O espetáculo é de uma beleza que não existe, todo aquele fogo vermelho e alaranjado... O barulho é como o de cem canhões disparando ao mesmo tempo.
— Pois eu acho que queimaduras e costelas quebradas são um preço muito alto para qualquer espetáculo — disse Jenny.
— Quando ouvi alguém gritar que havia fogo de novo, me senti mais perto da morte do que nunca e, ao mesmo tempo, mais do que nunca vivo. Nunca senti isso nem mesmo quando levei a facada, quando levei o tiro, quando me acidentei no carro de corridas, na França!
— Claro. . . — disse Jenny.
Mas não era nada claro. Por mais que ele explicasse, nunca entenderia que impulso pode levar um homem a admirar, a ver alguma beleza, na catástrofe que ele descrevera.
Abdul sorriu, acomodou-se mais deitado na espreguiçadeira e fechou os olhos, para gozar do calor do sol, que devia ser bem mais agradádável do que o de um campo de petróleo em chamas.
Jenny abriu a revista, mas não conseguiu ler. Fechou-a e observou o homem a seu lado. Ao vê-lo todo vestido, achara Abdul um dos homens mais lindos que encontrara.
Agora, vendo-o quase nu, confirmava essa opinião. Era de uma beleza rústica, que as cicatrizes tornavam mais máscula. O corpo de Abdul tinha a beleza masculina clássica, porém o físico de Peter era mais atraente, excitante. Ficou surpresa ao apanhar-se de novo comparando todo homem que via con Peter Donas. Mas não pôde evitar de pensar se o corpo de Peter era perfeito também onde não tinha visto...
Adormeceu. A coisa seguinte de que teve consciência foi um es tridente som de metal. Abriu os olhos e teve que protegê-los depressa do sol. Abdul estava acordado, olhando-a com ternura.
— Acho que o barulho que ouviu quer dizer que o almoço vai ser servido — disse ele. — É o equivalente aos agradáveis sons de gongos que deve ter ouvido nos navios oceânicos. Fome?
— Um pouco — admitiu ela, pegando a saída de banho e deixando que ele a ajudasse a vesti-la. Comera pouquíssimo na noite anterior e apenas um pãozinho e uma xícara de café naquela manhã. — E você?
— Faminto! — respondeu ele, envolvendo-a com um olhar guloso e estalando os lábios, fazendo-a rir. — Espero que não se importe por eu ter mandado preparar uma mesa para nós dois... — continuou, com jeito de quem pede perdão pelo atrevimento.
— Não me importo... — respondeu ela, levantando-se.
Sentia-se bem melhor. Talvez devido ao que Abdul tinha dito. Estivera certo ao resolver esclarecer tudo. Estava certo numa porção de coisas, principalmente em que ela lutava contra o que sentia por Peter e recusava-se a aceitar qualquer possibilidade dele sentir o mesmo por ela. Talvez se tratasse, mesmo, de amor à primeira vista. Abdul a convencera de que era melhor viver, aproveitar as oportunidades, em vez de recuar e deixar a vida passar ao lado. Sentia-se um tanto culpada por seus sentimentos por Peter, diante da honestidade sem medo de Abdul. Mas achava que Abdul entenderia. Ele jogava muito bem e Jenny achava que devia ser um bom perdedor, também.
— Encontro com você na sala de refeições, daqui a dez minutos. — disse.
Foi para a cabina. Tirou a saída, o maio e, então, o botão de rosa chamou-lhe a atenção, entre a brancura dos gladíolos. Tirou-o do vaso, sentindo a frescura da água e vendo-a formar uma gota na extremidade da haste. Levou-o ao nariz e aspirou o delicioso perfume, enquanto lembrava de Peter parado diante dela, na porta, tão bonito, oferecendo-lhe uma rosa como pedido de desculpa. Esqueceu da retirada zangada dele. Esqueceu de tudo, até mesmo que era neto de Frederic Donas.
Ergueu o botão de rosa, com cuidado, passando-o pelas faces afogueadas.
— Peter... — murmurou, sentindo prazer em dizer aquele nome, em ouvi-lo.
Desceu o botão de rosa pelo queixo, pela garganta. . .
— Peter. . . - repetiu, fechando os olhos, enquanto a flor acariciante descia até o seio redondo, macio, e era apertada à altura do coração pelos dedos trêmulos.
CAPÍTULO VII
Luxor, Karnak, Tebas: três locais principais da arqueologia do alto Egito, que incluem as ruínas dos mais gigantescos monumentos, desde a décima-terceira até a trigésima dinastia.
No convés do Osiris, lenny apreciava a paisagem de Tebas. O verde dos jardins e das plantações; a elegância das tamareiras. Mais ao longe, o deserto com formações rochosas. Visto ao calor do meio-dia, o deserto apresentava uma distorção de brancos, amarelos, ocres marrons, sem qualquer sinal de sombras.
— Sabe que isso é uma loucura. .. — disse Abdul, chegando por trás dela, com um copo de suco de laranja gelado, que Jenny pegou, agradecendo, e logo tomou alguns goles que lhe refrescaram a gargantíta ressecada. — Os ônibus ficam cheios de turistas suarentos. . . parecem fornalhas, principalmente à esta hora do dia.
— Garanto que não vou morrer... — disse Jenny, sabendo que seu metabolismo adaptava-se bem tanto ao frio quanto ao calor extremo.
— Tem certeza de que não quer companhia? Pode ser que se sinta mal com o calor. . . — insistiu Abdul.
A companhia dele fora muito agradável quando o navio ancorara em Tell al-Amarna, capital do faraó herético Akhenaton, que se cara com Nefertiti — "Á Mais Linda das Lindas" — e fora sucedido no trono por Tutancamon, o rei-menino, depois da fracassada tentativa de substituir os deuses egípcios por um único deus, Aton, a manifestação do Sol.
— Não, obrigada — recusou, sorrindo para suavizar a recusa. — há coisas que é melhor a gente fazer sozinha, sem companhia de ninguem, nem mesmo de um grande amigo.
Já usara a palavra "amigo" várias vezes em relação a ambos, esperando preparar Abdul para o que acontecesse quando ela encontrasse com Peter no alto Nilo. Apesar da simpática companhia e dos bons momentos passados com Abdul durante a viagem, Jenny pensava cada vez mais em Peter. Até guardara as pétalas da rosa que ele lhe dera, quando o camareiro retirara os gladíolos murchos da cabine. Imaginara mil vezes o encontro com ele em Hierakonpolis, achando que o tempo estava custando demais a passar.
— Bem, eu acho que vou indo — disse, ao terminar o suco de laranja, pondo o coo vazio numa mesinha.
— Um beijo de despedida? — pediu Abdul e ela atendeu. Existem beijos de amigos e beijos de amantes. Ela confiava que Abdul, homem experiente, sabia diferenciar um do outro.
Desceu para o salão e o frescor do ar-condicionado aumentou o contraste quando abriu a porta e saiu. O calor era sufocante. Quando chegou ao alto da escada que dava para o cais, parou e olhou para Abdul que permanecia imóvel, observando-a. Acenou e ele respondeu. Desceu a escada e pegou o caminho para as ruas estreitas, interpelada pelos cocheiros de charretes surpresos ao verem uma turista aventurar-se por ali nos momentos de calor mais intenso. As charretes serviam para ir até Luxor ou Karnak, que ficavam perto. Mas Jenny queria ir para Tebas, do outro lado do Nilo. Pegou a balsa e, depois, um táxi. O motorista também ficou surpreso, mas não hesitou em atendê-la. Seguiram por entre a vegetação que se estendia ao longo do al-Fadleva Canal. De repente a vegetação terminou e começou o árido deserto. Passaram pelo Colosso de Memnon, erguido pelos gregos em honra a seu mítico herói. Mais adiante a estrada virou bruscamente para a direita e apareceram as ruínas do templo de Minepat; do templo de Tutmés e, afinal, o Ramseu, templo funéreo do megalómano Ramsés II. Uma estradinha secundária levava ao templo fuléreo da rainha Hatshepsut.
Jenny recusou-se a deixar os pensamentos se fixarem de novo no falcão de Abdul — como acontecera tantas vezes —, tratando de lembrar que, como ele dissera, Peter preferira ela e não Hatshepsut.
O carro virou à esquerda, passou o Bibân al-Moluk — o "portão do rei" —, depois entrou por um caminho estreito que corria por um labirinto de rochas e terminava numa depressão. O local pareceria o fim do mundo se não fosse a imponente presença de um edifício para descanso, feito pelo governo, com salas arejadas, frescas, onde se podia tomar refrescos. Jenny disse ao motorista que a esperasse lá e saiu pelos caminhos pedregosos, ao sol, enquanto turistas que estavam no abrigo espantavam-se com a coragem dela em enfrentar o tremendo calor.
Parou diante da tumba número 62 do Vale dos Reis. Não era un túmulo dos mais impressionantes, principalmente em comparação com o de Set I e o de Ramsés VI. No entanto, era um dos mais famosos do Egito. Dezesseis degraus levavam a um pequeno vestíbulo que se abria na câmara mortuária de seis metros e meio por quatro metros flanqueada por dois quartos. Era ali que repousava o menino-rei Tutancamon. E fora na escavação daquele local, em 1922, que Geraldinf Fowler e Frederic Donas se haviam encontrado.
Tinham se conhecido ali, em Tebas. Tinham se amado ali. E ali Geraldine morrera, com o coração partido.
Ia entrar, mas hesitou, ao ouvir sons vindos lá de dentro. Como não queria companhia, esperou, apesar da inclemência do sol. Começou a transpirar, sob a blusa de mangas compridas e saia, que vestira para se proteger do sol. Estava corada. Esperou com paciência e, por fim, um jovem barbudo e uma garota magrinha saíram do túmulo, seguindo o guia árabe. Só então Jenny entrou.
À medida que descia a temperatura caía. Atravessou o vestíbulo e foi direto para a câmara mortuária, aproximando-se da grade que separava o público do sarcófago de pedra recoberto por um tampo de vidro, que continha o caixão de ouro em que a múmia repousava. Despojado da maior parte de seus tesouros - inclusive a máscara mortuária de ouro e os dois outros cafxões de ouro que o tinham contido, como um daqueles quebra-cabeças chineses — Tutancamon ainda era o melhor dos faraós sepultado nas necrópoles locais.
Jenny?...
Voltou-se ao ouvir a voz de Peter. Como se os sessenta anos entre a abertura daquele túmulo e o momento presente não existissem, Jenny sentiu o mesmo que Geraldine Fowler sentira ao encontrar seu amante. Como Geraldine Fowler, Jenny deslizou sobre o chão de pedra. Como prederic Donas, Peter apertou-a nos braços, fitou-lhe os olhos como se toda fortuna do Egito não se comparasse à beleza deles e beijou-a. Como era maravilhoso o contato dele, o gosto dele, o cheiro dele!
Jenny entregou-se inteiramente às sensações, desejando apenas que aquele instante se tornasse a eternidade.
— Eu sabia que você vinha! - murmurou, quando seus lábios se separaram um pouquinho.
Ouviu a própria voz como se fosse a de Geraldine Fowler, além da morte, ao encontrar Frederic Donas no cenário de sua maior felicidade e da fatal infelicidade.
— Jenny, Jenny, Jenny... — disse ele, baixinho, como numa litania pagã para acender labaredas no corpo dela.
Jenny inclinou a cabeça para trás, enquanto Peter beijava-lhe ardentemente faces, garganta, pescoço. Segurou-a pelos quadris,.as mãos fortes pressionando, firmes, apertando-a tanto contra si que Jenny perdeu a noção de tudo mais que não fosse a ardente virilidade e o desejo imperioso de Peter.
— Eu te amo. . . — disse Jenny, enfiando os dedos entre os fartos cabelos negros.
Até então Jenny negara tal sentimento, dizendo que a atração que sentia por Peter era resultado apenas de imaginação infantil. Mas, agora, era obrigada a admitir a existência e a força desse amor. Estava determinada a ultrapassar barreiras, a se deixar queimar pelas chamas do inferno desde que, consumindo-a, essas chamas lhe dessem a chance de amar como jamais pensara ser possível. Abdul a convencera de que a vida não vale a pena ser vivida só por cima. Claro, não era capaz de apagar chamas de um poço de petróleo com nitroglicerina, mas sentia-se capaz de viver intensamente, como jamais vivera até agora. Imaginação e fantasia a parte, o fato de Peter ter ido ao encontro dela, em Tebas, provava que o destino queria aquele amor. Algo levara Peter até ali, assim como ela decidira, intuitivamente, ir para ali sozinha.
Passou as mãos trêmulas pelas costas de Peter, temerosa de que aquilo tudo fosse um sonho, uma ilusão. Não. Era real. Fantasma nenhum poderia ter aqueles músculos firmes, vibrantes, que estavam sob seus dedos; aqueles lábios ardentes, exigentes, que lhe percorrian o colo, a pele suave dos seios que o decote em "V" da blusa deixava exposta.
Voltando a mergulhar os dedos no suave negror dos cabelos de Peter, Jenny puxou-lhe delicadamente a cabeça para trás. Queria ver lhe o rosto, que demonstrava a ansiedade de tornar a beijá-la toda.
— Você pode me amar? — perguntou, lembrando que Abdul lhe dissera algo sobre nada ser melhor do que perguntas e respostas diretas. — Eu preciso saber, Peter. Você pode me amar?
— Será que ainda não percebeu essa resposta? — murmurou ele, ofegante. — Não estou demonstrando isso?
— Eu quero ouvir você dizer — pediu Jenny, segurando os cabelos com mais força, com medo de outros beijos que lhe tirassem a força para falar, de perguntar o que queria saber. — Por favor, Peter. . . É muito importante para mim ouvir você dizer isso.
— Eu posso te amar, sim, Jenny Mowry... — disse ele. — Na verdade, eu tenho que te amar, por incrível que pareça. Nunca me apaixonei tão depressa. Estes últimos dias foram uma tortura para mim. Eu precisava tanto de você!
Ao ouvir aquilo Jenny estremeceu de prazer, sentiu as pernas amolecerem e a respiração lhe faltou.
— Eu disse que a amava e você não acreditou. . . Lembra? — continuou Peter e Jenny fez que sim. — Então, repito, esperando que você saiba perceber a mentira e a verdade... — Os olhos dele eram como dois pequenos sóis. — Eu te amo. .. te amo. . . eu te amo! E como agora sei que tenho chance de ser correspondido, não vou mais te deixar escapar, como aconteceu nesses últimos dias!
— Pensei que soubesse o que sinto por você — disse Jenny, esquecendo-se que até pouco tempo ela mesma não sabia o que sentia.
— Pensei que você quisesse Abdul Jerada — disse ele, sentindo imperiosa vontade de beijar aquele ponto do pescoço dela que pulsava; baixou a cabeça e beijou-a, a língua movimentou-se, ardente, pela pele macia. — Eu. . . eu achei que não ia ter a menor chance! — gemeu, como se a lembrança desse sofrimento pudesse empanar a emoção e beleza daqueles momentos.
— Abdul é só um amigo — disse Jenny, trêmula, ofegante.
A proximidade dele, as roupas leves que separavam os corpos famintos, a sensação da pele dele na sua, quando lhe tomou o rosto entre as mãos, produziam uma excitação dolorosa em Jenny.
— É só o que ele pode ser, . . porque é você que eu amo! — sussurrou ela.
— Oh, Jenny — abraçou-a como se nunca mais fosse soltá-la. — Jenny, Jenny, Jenny. . . — suspirou, sem conseguir dizer mais nada.
Ela estava contente por ele ter vindo. Sabia que aquele era o momento certo para definirem e firmarem seu relacionamento. Antes teria sido cedo demais. Depois de Tebas, pensou, talvez fosse tarde demais. Eram tão radicalmente opostas nas opiniões sobre o significado de Hierakonpolis como possível local do túmulo do Rei Escorpião que esse atrito, combinado com o desentendimento que tinham tido, poderia estragar tudo entre eles, para sempre.
— Sabe como você me faz sentir? — perguntou Peter, com um sorriso levemente divertido. - Você me faz sentir como um garoto que acaba de descobrir o sexo e que está a fim de fazer amor numa praia, num saco-de-dormir, numa mesa de cozinha. . . e até na tumba do faraó Tutancamon!
Nesse momento ouviram passos, separaram-se nervosamente e viram entrar na câmara um guarda. Os maiores monumentos históricos daquele país tinham sido depredados por cristãos que achavam que podiam aniquilar os deuses pagãos acabando com eles. Os turistas também depredavam, achando que conseguiriam, também, uma certa imortalidade gravando seus nomes ao lado do nome dos faraós. Por isso, havia um destacamento de vigilância sempre a postos no Vale dos Reis, para evitar que os túmulos fossem estragados e saqueados.
— Vamos — disse Peter, pegando-a por uma mão e dirigindo-se para a porta da câmara mortuária.
Imediatamente o guarda foi examinar o local perto de onde estavam, para ver se tinham feito algum estrago.
— Parece que ele acha que vamos sair daqui carregando Tutancamon, com sarcófago e tudo, não? — disse Jenny, enquanto saíam para o calor sufocante do deserto.
— Olhe... — disse Peter parando, segurando também a outra mão de Jenny e acariciando-lhe os dedos. — Entre você e o sol, é quentura demais para mim. Vamos para um lugar fresco e sossegado...
— Para o pavilhão de descanso? — sugeriu ela, uma vez que o único local próximo, que oferecesse proteção contra o sol, era esse.
— Eu estava pensando no meu hotel — respondeu Peter, encarando-a com os olhos faiscantes, dourados, ao sol, sobressaindo no rosto moreno. — Aluguei um quarto no Etapa — disse. Jenny conhecia o hotel; ficava numa rua em frente do cais. — Posso chamar meu motorista? — indagou, com uma expressão que pedia desesperadamente uma resposta afirmativa.
— Está bem... — disse Jenny, com um sorriso que traía felicidade e também nervosismo.
Estava dando mais um passo comprometedor e desejava que o tra jeto até o hotel fosse mais curto. Teria sido mais fácil deixar as coisas continuarem em seu curso normal no túmulo; não teria tempo de racionalizar, o que quer que acontecesse naqueles momentos em que o ardor da paixão deixara os dois fora de controle e ela se deixara levar pelas sensações. Tinha certeza de que havia algo mais do que paixão, atração física, naquilo tudo. E, agora, tinha consciência de que havia tempo para uma manobra de retirada. . . se é que quisesse se retirar.
— Como você soube que eu vinha a Tebas? — perguntou, depois dele ter dispensado o motorista dela e de se terem acomodado no banco traseiro do táxi em que Peter fora para lá.
— Abdul me disse — respondeu ele, passando o braço pelos ombros dela e fitando-a amorosamente.
Jenny teve uma sensação de culpa em relação a Abdul, achando que, de certo modo, o haviam traído com mais facilidade do que ele os trairia. Sentiu, também, que seria agradecida a ele até o fim da vida. Sem a ajuda de Abdul e de seu-raciocínio frio, franco, ela jamais estaria indo com Peter para um hotel.
— Ele me disse, também, que você queria estar sozinha, mas respondi que meu motivo para estar com você não podia esperar — acrescentou Peter.
— Estou contente por você não ter esperado — disse Jenny, pondo a mão direita sobre a coxa esquerda dele.
Sentia a firmeza dos músculos sob o brim surrado e foi invadida pelo desejo de ter aquele corpo de novo colado ao dela. Era um desejo que ardia, tão imperioso quanto o que sentira no topo da pirâmide e na tumba de Tutancamon.
— Eu te amo... — A voz dele soou como uma carícia, num suspirro bem junto ao ouvido dela. — Acredita nisso, não?
— Sim. . . — respondeu Jenny, feliz.
— Jamais quero fazer algo que possa te magoar, Jenny... — murmurou ele.
— Sei que você não quer me magoar — assentiu ela. — Confio em você. — Seus dedos apertaram nervosamente a perna dele. — Confio, mesmo.
Peter não reparou quando o táxi passou pelo Deir-al-Bahari da rainha Hatshepsut. Jenny ficou contente por ele não comentar nada. Não queria que nada estragasse aqueles momentos, nem mesmo uma vaga referência à rainha egípcia morta, cujo nome fora dado a um falcão. Ela achava ridículo continuar sentindo ciúme de uma ave, principalmente depois de Peter ter preferido a sua companhia, mas notara a atração que ele sentira pelo falcão e achava que essa atração ainda existia.
Apoiou a cabeça no ombro dele, a arqueóloga totalmenfe apagada pela mulher, ignorando templos funerários sendo destruídos pelos séculos, por terremotos. Na balsa, sentada ao lado de Peter na mesma posição que no carro, nem ligou para as nuvens de fumaça de óleo diesel que saía do motor que a impelia para o outro lado do rio.
O Hotel Etapa era insignificante por fora. No entanto, seu interior surpreendia pelos salões espaçosos, assoalho de madeira de lei e escadaria de mármore. Jenny e Peter sentaram-se nas cómodas cadeiras de palha do bar do hotel. Ela pediu carcadet frio - um chá vermelho feito com pétalas secas de uma flor. Ele pediu gin-tônica.
— Diabo! Não consigo acreditar! — exclamou Peter, parecendo bem à vontade.
Jenny achou simpática a mudança: já não existia aquele ar arrogante, cheio de autoconfiança e às vezes muito frio, no rosto bonito de Peter.
— Não acredita em quê? — indagou ela, decidida a não dizer que ele estava muito mais atraente sem suas defesas.
— Que estou nervoso como o diabo, me sentindo como um adolescente no primeiro encontro, sem saber o que fazer.
— Já pensou em, simplesmente, fazer uma pergunta clara e direta? — sugeriu Jenny, rindo faceira e sentindo-se excitada por estar representando um papel totalmente estranho. - Certa vez, um bom amigo me disse que perguntas diretas evitam uma tremenda perda de tempo.
— Então, está bem... — disse Peter, os olhos dourados fitando-intensamente. — Quer ir para o meu quarto, comigo?
— Quero. . . — respondeu ela, a voz num fio, quase sem conseguir falar.
— Bom... — murmurou ele, passando a mão por dentro do braço dela, num gesto suave e provocante ao mesmo tempo; o olhar dele estava pesado de sensualidade; respirou profundamente, quase um suspiro. — Tive medo que você dissesse não — disse, por fim.
— Mesmo? — indagou Jenny, sorrindo emocionada. — Pensei que tivesse deixado bem clara minha posição em Tebas.
— Jenny. . . — disse Peter. — Não pode imaginar como me sinto feliz!
— Eu também estou feliz — murmurou Jenny, inclinando-se e beijando-o nos lábios, de leve.
De mãos dadas, ergueram-se e saíram da mesa, esquecidos do pedido que tinham feito.
Quando entraram no quarto, Jenny foi para a janela aberta. Admirou o contraste do cinza-aço do Nilo com o verde brilhante das margens e os tons de bege, amarelo e marron das terras mortas mais adiante. Estava contente por terem voltado para Luxor. Não apenas por que assim tivera tempo para decidir o que realmente queria, como também consagrariam seu amor à margem leste do Nilo, que era dedicada à vida, enquanto que o outro lado era dedicado à morte, E não havia nada de morto no que Jenny sentia por Peter. Seus sentimentos eram vivos, vibrantes.
— Amo você, muito, Jenny Mowry... — disse ele, parando atrás dela.
O som da voz de Peter fez Jenny estremecer, como se a tivesse tocado. com a mão esquerda, ele afastou os cabelos, depois beijou delicadamente o ouvido dela, descendo os lábios pelo pescoço, até o ombro. Uma corrente elétrica pareceu percorrer-lhe o corpo todo. Peter abraçou-a pela cintura e continuou a beijá-la, sem parar.
Foi impossível conter o gemido que lhe subiu aos lábios quando Peter mordiscou-lhe a pontinha da orelha. Sua respiração acelerou-se, o coração palpitou, enlouquecido.
Ajudou-o a desabotoar a blusa, pois, de repente, as mãos dele pareceram tornar-se inábeis, inseguras. Jenny parecia calma e segura de si, apenas porque estava fazendo esforços incríveis para tentar acalmar a excitação que a tornara elétrica. Devagar, ele retirou a blusa e contemplou-a.
— Como você é linda! — murmurou, a voz rouca fazendo-a ficar arrepiada.
As mãos grandes, as palmas calejadas, sensualmente rústicas, acariciaram os seios delicados, sem pressa, a delicadeza de movimentos intensificando o prazer que vibrava na pele sensível. Os bicos dos seios tornaram-se duros sob as palmas das mãos carinhosas, a paixão debateu-se dentro dela, como um pássaro alucinado querendo escapar da gaiola.
Ele a fez voltar-se, apertando-a tanto que os seios esmagaram-se contra o peito musculoso. Os beijos tornaram-se mais intensos, os movimentos aceleraram-se, com delicada impaciência.
— Oh, Jenny... Jenny... — sussurrou ele, antes de baixar a cabeça e roçar um mamilo com os lábios ardentes.
— Peter! — gemeu ela, as mãos acariciando-lhe a nuca, os dedos enfiando-se nos cabelos.
Repetiu o nome, apenas para ouvi-lo, saboreá-lo, estremecendo ao estranho prazer que isso lhe dava.
Descendo as mãos ao longo das costas dela, Peter ajoelhou-se. Seus beijos esvoaçaram como borboletas de fogo entre os seios, sobre o estômago. Enfiou os dedos no cós elástico da saia e das calcinhas, puxou-as para baixo, deixando Jenny adoravelmente nua.
Beijou a parte interna da coxa direita dela, que sentiu como que um violento choque elétrico, tendo que agarrar-se aos ombros dele para se manter de pé. Peter retirou as roupas que tinham caído ao redor dos pés dela, depois, delicado, a fez ajoelhar-se também, de modo a ficarem frente a frente.
Acariciou-a com as mãos, com os lábios, com a língua, a ponto de Jenny ter impressão que ia morrer. Depois, ergueu-se, erguendo-a também, enquanto ela segurava-se ao pescoço forte com as mãos trêmulas. Pegou-a no colo, carregou-a e deitou-a na cama. Beijou-a, suavemente, em toda extensão do corpo vibrante.
Afastou-se para tirar as botas e as meias. Não tirava os olhos dela. Desabotoou a camisa rapidamente. Quando a retirou, a visão do peito moreno, amplo e forte fez Jenny sentir um calor ainda mais intenso do que o provocado pelas ardentes carícias.Parou de respirar quando ele soltou o cinto e abriu o zíper da calça de brim.
Estava com uma sunga, que retirou também, enquanto Jenny virava o rosto para outro lado, ela mesma surpresa com a súbita ver gonha. Ele reparou nisso e inclinou-se, segurando-lhe o queixo e fa zendo-a olhá-lo, com gentileza. A força física de Peter era muito maior do que ela imaginara, uma perfeição de máscula virilidade que a atordoou. Deitou-se ao lado dela. Só o contato daquele corpo vigoroso já era um profundo prazer, que se ampliou quando Peter a apertou contra si, enquanto as mãos lhe percorriam o corpo em carícia contínua.
Não havia pressa, nem ansiedade, no modo de Peter fazer amor, nem mesmo quando ele percebeu que era a primeira vez para Jenny, que ela fora para ele completamente inocente dos prazeres do sexo. Jenny esperara por aquele momento com uma esquisita mistura de alegria e medo. Alegria por dar a si mesma àquele homem; medo por achar que ele podia se aborrecer, imaginando que o fato dela ser virgem traria desconforto e até mesmo alguma dor. No entanto, ele parou por um instante, gemeu o nome dela, depois beijou-a mais profunda e ardorosamente, em agradável surpresa. Jenny sentiu um momentâneo e vago desconforto antes que toda resistência desaparecesse e ela se visse profunda e completamente unida a Peter. Se houve dor — que graças à delicadeza dele fora surpreendentemente fraca — Jenny achou que era um preço pequeno pela descoberta daquele novo mundo de sensações que Peter lhe revelava.
Uniu-se a ele naquele ritual que tinha mais séculos do que os antiquíssimos monumentos ao longo do rio Nilo. A deliciosa sensualidade deles tinha ecos de um passado quando o ser humano não tinha a menor ideia da civilização. E quando alcançaram o êxtase, Jenny soube que Peter estava lhe ofertando algo tão precioso quanto o dom que ela lhe fizera. Unidos no intenso prazer final, abraçaram-se desesperadamente.
— Oh, Jenny. . . Jenny! — gemeu Peter, mergulhando o rosto na macia curva entre o ombro e o pescoço de Jenny.
— Peter. . . — murmurou ela e esse nome pareceu-lhe a palavra mais importante do mundo.
Ele a abraçou, beijou-a, acariciou-a e repetiu mil vezes que a amava. Depois, ergueu-se sobre um cotovelo, deitado de lado junto dela.
Observou com aquele profundo olhar dourado o rostinho corado e feliz de Jenny, depois perguntou-lhe por que não dissera que ia ser a primeira vez.
— Se eu dissesse, você teria acreditado? — perguntou ela, de modo solto e brincalhão provocado pela nova intimidade que havia entre eles, mas era uma pergunta séria.
— Provavelmente, não — admitiu Peter. — Você é uma mulher linda demais para ter se conservado virgem até agora.
— Foi só porque eu estava esperando o homem certo — explicou Jenny, profundamente feliz. — Ele demorou para aparecer!
— E você ainda não viu nada! — disse Peter, rindo como um rapazinho fanfarrão, mas com motivo para se valorizar.
Depois, devagar, com paciência e muita suavidade, levou-a de novo para aquele alucinante mundo de sensações ardentes que tinham acabado de descobrir juntos.
E ela juntou-se prazeirosamente a ele nas chamas.
CAPITULO VIII
Abdul levantou-se, afastando-se da mesa a que estava sentado. Era evidente sua surpresa ao ver Jenny. No convés do barco, ele parecia só e vulnerável. Jenny desejou não ter que magoá-lo. Mas, infelizmente, a vida não é como os contos de fadas, em que tudo termina bem para os bons. Sabia que Abdul tinha capacidade para compreender que o relacionamento deles não tinha futuro. Afinal, conheciam-se há tão pouco tempo! Sentiu-se esquisita, ao lembrar que não conhecia Peter há muito mais tempo do que conhecia Abdul. No entanto, tinha a sensação de que era ligada a Peter por laços muito anteriores aos formados nas últimas horas. Havia algo como marca de destino no amor deles, algo que os levara para Tebas, exatamente no local daquele trágico amor de há sessenta anos.
— Quem está esperando? — perguntou Jenny, sorrindo, enquanto sentava na cadeira afastada pelo garçom. — Se não me engano, esta é a minha mesa, não?
— Eu pensei. . . — começou ele, mas não terminou.
Ela sabia o que Abdul estava pensando. Separar-se de Peter fora muito difícil, mas achara que não podia sumir sem dar uma explicação a ele.
— Que tal está o frango? — perguntou, notando a comida quase intocada no prato dele.
Abdul fez um gesto indicando "mais ou menos". Acostumado aos pratos refinados, a cozinha do barco, mais tipo americana, não o agradava muito. Mas Jenny gostava, se bem que preferisse não estar ali para comê-la. No entanto, só poderia desembarcar e seguir de carro para Assuan, na próxima parada, em Idfu.
— Peter a encontrou? — indagou Abdul, lidando laboriosamente com o frango, a fim de esconder a expressão ansiosa.
— Encontrou, sim. Obrigada por ter dito a ele onde eu estava.
— Disse, também, que você queria ficar só. Mas ele insistiu, dizendo que precisava falar com você. Pelo jeito, parece que a companhia dele não a desagradou.. .
O frango que Jenny pedira chegou e ela pareceu prestar muita atenção nele, como Abdul.
— Ele me ama, Abdul — disse ela, tentando minimizar a alegria que sentia.
— E isso é novidade? — indagou ele, com uma ponta de amargura.
— Eu já tinha dito, não?
— É — admitiu ela. — E também acertou sobre meus sentimentos.
— Sei. . . — murmurou ele, perdedor civilizado demais para demonstrar o que estava sentindo.
— Fico contente por você ter percebido o que estava acontecendo entre mim e Peter, por ter visto que seria um erro profundo qualquer relacionamento comprometedor entre nós.
— Sim, claro. — disse Abdul, depois explicou ao garçom, que se aproximara, que o frango estava ótimo, mas não tinha apetite.
— Você é um homem maravilhoso — disse ela. — É bonito, atraente, inteligente, espirituoso e tem muito dinheiro! — Abdul riu, ao ouvir aquilo. — Tem tudo que uma mulher pode querer de um homem. . . só que eu não sou essa mulher.
— Nunca tive muita sorte ao escolher as mulheres que eu realmente queria — disse Abdul, sinceramente triste.
— Mas nós podemos continuar amigos, não é? — perguntou Jenny. Gostava de Abdul e não gostaria que ele sumisse repentinamente, apesar de compreender caso ele achasse que era melhor um corte sumário de relações. Para ela era mais fácil, pois sempre soubera que entre eles dois só poderia haver amizade.
— Na verdade, eu não quero você apenas como amiga — respondeu Abdul, baixando os olhos para o prato, depois ergueu-os e tentou sorrir. — Mas eu acho que é a única coisa que pode me oferecer então, aceito.
— Fico contente com isso! — disse Jenny, suspirando aliviada.
— Afinal, somos civilizados, .não? — disse Abdul. — Formamos um triângulo por algum tempo, mas isso não quer dizer que não podemos continuar amigos.
— Quê bom, Abdul! — exclamou ela, inclinando-se sobre a mesa para apertar a mão dele.
— Quer acredite ou não, sinto-me feliz por você. Não há nada mais lindo do que amar e ser correspondido. . . — Sorriu, triste. — Pelo menos, é o que, sempre ouvi dizer. Espero, um dia, conhecer essa sensação pessoalmente. . . — O sorriso congelou-se enquanto ele fitava Jenny intensamente. — Não quero que pense que estou agindo como a raposa e as uvas... achando que estavam verdes, por isso pouco importava não poder alcançá-las... Sei que as coisas acontecem entre duas pessoas e que uma terceira pessoa envolvida não pode se ofender por não ser ela a escolhida. vou me sentir tão feliz como seu amigo, Jenny, quanto seria em ser seu marido ou amante.
Será que Peter está confiante o bastante em sua posição para aceitar minha presença ou será melhor eu desaparecer da vida de vocês?
— Acho que Peter quer você fora da nossa vida tanto quanto eu! — respondeu ela. — Afinal, vocês dois têm muito em comum. . . Estava se sentindo magnânima a ponto de esquecer que um desses pontos em comum era a falconeria.
— É, acho que você tem razão — concordou Abdul. — Gosto muito dele. Já disse isso. E acho que não posso deixar de gostar. Preferia que ele fosse um canalha, assim podia me vingar. , Jenny riu do tom dramático de Abdul.
— Não consigo ver você jogando sujo com ninguém... — disse, sabendo que ele era cavalheiro demais para fazer isso.
— Alguém que quero muito bem me disse que o amor não é um jogo — comentou Abdul. — Acho que devo fazer força para acreditar nisso. . . — Afastou a cadeira. — Não tenho fome, mesmo. E você?
— Também não — disse Jenny, que nem tocara na comida.
— Vamos até minha cabine? A não ser que — ele sorriu —, tenha medo que eu faça coisas terríveis para me vingar por Peter ter tirado você de mim!
— Está planejando fazer essas coisas terríveis? — perguntou Jenny, levantando-se também.
— Não. . . Tenho uma coisa para lhe dar — respondeu ele. — prefiro fazer isso em particular, mas também pode ser aqui no convés, se Você preferir.
— Amigos não passam a vida inteira encontrando-se apenas em lugares públicos, não é? — disse Jenny.
— Não — admitiu ele.
— Acho que ia ficar muito complicado se tivermos que tomar esse cuidado a vida inteira — Saíram do salão e pararam no vestíbulo que dava para uma butique. — Mas acho que não deve me dar presentes.
— Amigos não dão presentes? — indagou Abdul, num desafio, sem lhe dar tempo para responder. — Trata-se de algo pequenino, que quero lhe oferecer como amigo. Acho que é uma coisa especial para você, por isso ficaria muito triste se não aceitasse.
Jenny segurou as mãos de Abdul:
— Você é um amor, Abdul! — disse, com sinceridade. — Sem você eu não seria a mulher feliz que sou hoje. Se, por acaso, por um momento for pensar com tristeza na minha felicidade, que existe anulando a sua, lembre que o presente que já me deu é mais valioso do que qualquer outro que possa me oferecer!
— Não vou ficar triste com a sua felicidade, Jenny — disse ele, os olhos como dois poços negros, profundos. — Palavra! Você me quer como amigo, então serei o amigo que você quer. Amigo seu e de Peter. E se um dia. . . um dia. . . você precisar do conforto ou conselho de um amigo, pode contar comigo. Porque prometo ser seu amigo, para sempre.
Jenny teve vontade de chorar. Vivera vinte e nove anos sem encontrar um homem que realmente se preocupasse por ela, a não ser seu pai. Agora, de repente, haviam surgido dois homens em sua vida. O amigo e o amor. Seus sentimentos eram intensos, tanto por um quanto por outro. Teria chorado se uma senhora não saísse naquele instante do salão e parasse, embaraçada ao dar com os dois em atitude tão terna, ali, parados, A expressão da senhora fez Abdul rir e Jenny acompanhou-o, caindo numa gargalhada, enquanto a mulher, mais embaraçada ainda, tratava de ir embora.
— Vamos — disse Jenny. — Eu adoro surpresas. Só que não estava preparada para aquela surpresa.
— Não posso aceitar isso! — disse, quando recuperou a voz. Antes tivera que sentar, como se o peso da jóia fosse demais para suas forças. com esforço, desviou os olhos do magnífico colar no estojo de veludo e, sacudindo a cabeça, encarou Abdul.
— Não posso aceitar, mesmo, Abdul! — repetiu.
— Por quê? — indagou ele. — Não gosta?
— Como ia não gostar?! — perguntou Jenny.
Era ridículo achar que qualquer mulher podia não gostar do adoravel colar que tinha no colo. Eram lápis-lazúli unidas entre si por delicada filigrana de ouro; cada pedra grande era separada por duas pequeninas e uma safira negra; no centro, um belíssimo desenho em filigrana de ouro, safiras e lápis-lazúli descia em "V".
— Isto deve valer uma fortuna. . . — murmurou ela, engasgada.
— Uma fortuna, comparada com o dinheiro de quem? — indagou Abdul. — Um homem das ruas sujas do Cairo, que fica feliz quando tem dinheiro para comprar um pouco de comida, ou um homem como eu, para quem o preço desse colar não significa nada?
— É caro demais para mim — disse Jenny, sem conseguir aceitar que aquilo era o "presentinho," que ele mencionara. — É caro demais para um simples presente de amigo.
— Então — disse Abdul, sério —, receba-o como presente do casamento de você e Peter. . .
Só então Jenny percebeu que ninguém havia falado em casamento. Apenas ela e Abdul pareciam achar que casamento era o resultado lógico entre duas pessoas que se amavam.
— Ou considere o colar como seu dote — sugeriu Abdul e ela estremeceu, ao lembrar que Frederic Donas deixara Geraldine Fowler para casar com uma mulher que tinha dote. — É costume toda noiva egípcia ter um dote — acrescentou ele.
— Não sou uma egípcia! — rebateu Jenny, como se fosse uma ofensa ser considerada uma mulher egípcia, por causa do dote. Quero dizer. . . sou americana, Abdul! — explicou, tentando minimizar a violenta reação. — Entre nós esse hábito de dote desapareceu há muito tempo, a não ser, às vezes, entre gente riquíssima.
A família Donas, no entanto, considerara a riqueza acima de qualquer outra coisa. . . Quem sabe estava determinado que Peter Donas devia se casar com uma mulher rica. Amor e dinheiro pareciam sempre estar em choque nas decisões práticas da família Donas.
— Jenny. . . — chamou Abdul, percebendo que o pensamento dela estava longe.
— Seja qual for seu argumento, não posso aceitar — disse ela, afastando a tentação. — Estou orgulhosa por você me considerar merecedora de um presente assim... — Pôs o estojo em cima do beliche e levantou-se.
— Pode deixar o colar aqui ou onde bem entender — disse Abdul, teimoso — mas ele é seu.
— Não... — replicou Jenny, imaginando o que dizer para ele entender.
Talvez ele não avaliasse o que era por ser muito rico. Mas de uma coisa estava certa: Peter não iria gostar que aceitasse um presente daqueles de um homem que mal conhecia.
Abdul chamou-a quando já estava na porta e ela voltou-se, preparada para recusar definitivamente o colar.
— Eu queria agradecer por você ter voltado aqui e me dar pessoalmente a notícia sobre Peter. . . — disse Abdul. — Aqueles bilhetinhos tipo "Querido John. . ." são horríveis.
— Não precisa agradecer. . . — respondeu ela, pensando em como se sentira tentada em ficar com Peter em Luxor e seguirem de lá para Hierakonpolis juntos, de carro.
Isso lhes daria mais um dia sozinhos. Mas achara que Abdul merecia mais do que um simples bilhete, que um dia não era nada para ela e Peter, que iam passar a vida toda juntos.
— Eu gostaria, mesmo, de poder amar você... — disse a Abdul e ele sorriu, sabendo encarar bem a derrota.
Saiu para o corredor, fechando a porta. O brilho da felicidade se empanara um pouco pela conscientização que Peter não falara em casamento. Tinha ido para a cama com um homem que conhecia há dias porque o amava e acreditava que ele a amasse. Na certa sua avó tinha demorado mais tempo em ceder aos avanços de Frederic Donas.
Mais uma vez teve medo: será que se deixara envolver pela magia do trágico amor vivido ali, há sessenta anos? Se a felicidade que sentia agora se transformasse em sofrimento, não poderia culpar ninguém a não ser ela mesma. Começara aquilo ao fitar o retrato da avó e achar que se parecia demais com ela. Integrara-se à tragédia lendo tudo que aparecia sobre o Egito, Tutancamon e Peter Donas. Tornara-se arqueóloga ao saber que ele escolhera essa profissão, traçando um paralelo entre suas vidas. Agarrara a chance de ir para Hierakonpolis porque sabia que Peter ia para lá. A pergunta surgia: quem seduzira quem, A verdade é que vinha preparando aquele encontro há anos. Mas nunca pensara, conscientemente, em seduzi-lo e abandoná-lo, como o avô dele fizera com sua avó. Caíra na armadilha que havia preprado.
Amava Peter. Sim, amava Peter!
Não conseguiu dormir naquela noite. Em vez de recordar os momentos bons que passara com Peter, remoera a dúvida que surgira.
Ele nada tinha dito sobre o futuro.
Ao amanhecer, era a única passageira já de pé, no convés. Pouco depois, resolveu ir tomar o café da manhã, não porque estivesse com fome, mas porque Abdul poderia preocupar-se com sua ausência. Depois do café, como o navio chegaria a Idfu depois do almoço, deu a desculpa de ir arrumar as malas e foi para a cabine. Lá estava há alguns minutos, o tempo de pôr algumas coisas na mala, inclusive a caixinha com as pétalas secas de rosa, quando Abdul chegou.
— Alguma coisa errada, Jenny? Algum problema? — indagou.
— Não dormi direito esta noite - respondeu ela. — Acho qui fiquei um tanto agitada com tudo que aconteceu.
— Ah, o amor! — exclamou ele e se havia sarcasmo em sua voz não deu para perceber.
— Estou um pouco preocupada com os trabalhos na nova escavação — explicou ela, ansiosa por justificar o nervosismo, não querendo confessar nem a si que estava começando a ter dúvidas sobre o que houvera entre ela e Peter. — Sempre se conhece gente nova, é preciso se adaptar ao esquema do trabalho.. . E há muita coisa que fazer no pouco tempo que vamos passar em Hierakonpolis.
— Por que não ficam mais tempo? — perguntou Abdul, que entrara na cabine e sentara perto da vigia.
— O tempo é determinado pelo Governo — respondeu, olhando a paisagem lá fora e notando que o verde das margens do Nilo, até a represa de Assuan, fora substituído por solo seco e rochas. - Há uma porção de trabalhos que devem ser feitos, há outros grupos com temporada marcada para escavações, inclusive jovens estudantes, que só vêm trabalhar por aqui na época das férias. . .
Continuaram conversando até a hora do almoço. Almoçaram juntos e a preocupação de Jenny não diminuiu, nem mesmo quando chegaram e encontraram Peter à espera dela, no cais. Ele a beijou e ecebeu os cumprimentos de Abdul com bom humor. Mas havia uma certa reserva no modo de agir dele, um certo afastamento que permaneceu quando já estava sozinho com Jenny no jipe, que se afastava de Abdul e do Osiris numa nuvem de poeira.
A estrada para Hierakonpolis não era boa. O jipe sacudia, saltava no meio do pó. Outros carros passavam em direção contrária, parecendo fantasmas saindo da poeira.
— Podíamos ir mais depressa, mas o câmbio não está muito bom disse Peter, passando por uma série de buracos que fizeram o jipe pular tanto que os dentes de Jenny se entrechocaram. — Os amortecedores também não estão lá grande coisa. . . — acrescentou, a voz soando um tanto alterada.
Jenny sabia que a viagem não pareceria tão ruim se não estivesse tão tensa. O nervosismo não a deixava acompanhar os balanços do carro. As costas e o pescoço mantinham-se dolorosamente duros, o nariz e a boca estavam secos. Tinha impressão de ter comido pedregulhos. Depois de passarem entre um carro e uma carroça carregada de cana, puxada por um camelo, Peter falou de novo:
— Nosso grupo vai ficar numa casa perto da escavação. Assim ninguém vai precisar fazer este caminho por dois meses.
Era uma boa notícia, mas não bem do tipo que Jenny queria ouvir. Queria ouvir alguma coisa que acabasse com suas dúvidas. Por que Peter estava tão frio, agindo de modo tão profissional? Por que só falava no trabalho, em vez da alegria de estarem juntos de novo?
— Abdul parece ter aceitado bem a coisa - disse, parecendo sentir o que Jenny pensava.
Por um momento o Nilo apareceu à direita deles, entre as bananeiras e as touceiras de cana. Depois desapareceu e a faixa de vegetação entre a estrada e o deserto estreitou-se.
— Aceitou bem o quê? — perguntou Jenny, sabendo a resposta, mas querendo que ele falasse no que tinha havido.
Não podia acreditar que tinha vivido um breve interlúdio ocasionado apenas por desejo.
— Você sabe — respondeu Peter, com um sorrisozinho que não deu a menor segurança a Jenny. —- Fiquei pensando se você saberia lidar com ele. . .
— Eu também — disse Jenny, num fio de voz, enquanto ele prestava atenção para ultrapassar uma caminhonete carregada de móveis velhos.
— Ainda bem que ele não me desafiou para o equivalente egípcio de um atinquado duelo — disse Peter, querendo fazer humor, mas ela não teve vontade de rir, imaginando que um duelo demonstraria até que ponto Peter estava apegado a ela. — Eu não gostaria de ter que derrotar Abdul mais uma vez — acrescentou. — Quero dizer gostava muito dele antes de ficar evidente que estava interessado em você. — Deu um sorriso que pareceu um tanto forçado.
— E ainda gosta dele? — indagou Jenny, imaginando se era possível qualquer homem gostar de seu rival.
— Como não gostar de um perdedor tão digno? — rebateu Peter.
— Impressionante o domínio, a civilidade dele, se quer saber. Jenny teria preferido que Abdul fosse um pouco menos civilizado e desafiasse Peter. De certo modo, aliás, ele tentara mostrar-lhe que podia oferecer muito mais do que Peter. Dissera que a amava, enquanto Peter não achara necessário chegar até esse ponto. Dissera que gostaria de casar com ela, enquanto Peter nem tocara nesse assunto. Fora um cavalheiro, enquanto Peter fora logo falando em fazer sexo no primeiro verdadeiro encontro. E, afinal, dera uma ideia do que seria sua vida com ele ao oferecer-lhe o colar que valia uma pequena fortuna. Que mais podia querer que ele fizesse?
— É bem conveniente para você continuar amigo dele, não? — comentou Jenny e Peter olhou-a demonstrando que não entendera. A criação de falcões de Abdul fica em Assuan.
— Tenho certeza que você vai poder deixar a escavação, de vez emquando, para ver Hatshepsut, já que não vamos ficar tão longe assim, não?
— Eu nem tinha pensado nisso — disse Peter e ela não gostou da insinuação de que se não tivesse tocado no assunto, ele não lembraria.
— Tem certeza de que não se importa se eu for lá? — perguntou, como se até então estivesse em guarda.
Jenny tinha que admitir que seu humor e seu modo de agir não era bem o de uma mulher apaixonada ao reencontrar o homem amado. Mas também não havia nenhuma solicitude especial da parte dele. Jenny teve medo ao pensar que talvez o que havia sido uma experiência maravilhosa para ela não passasse da possibilidade, para Peter, de tornar mais agradáveis aqueles dois meses na escavação.
— Por que eu teria que me importar com o que você faz ou não? — perguntou, amarga, e ele parou o jipe.
Ficaram por momentos envoltos em poeira, depois dirigiu o carro, devagar, até o outro lado e parou de novo, bloqueando o caminho no sentido contrário.
— Muito bem. Que diabo está acontecendo, jenny! — perguntou.
Era menos uma pergunta do que uma ordem para ela explicar a atitude inimiga e uma oportunidade para que dissesse o que a estava perturbando. Mas ela recuou, pois sabia que poderia ofendê-lo demonstrando que estava duvidando do amor dele. De repente, viu que uma caminhonete vinha vindo.
— Peter, cuidado! — gritou, certa de que a caminhonete ia bater neles.
Peter esperou até o último instante para dar partida no jipe e tirá-lo do caminho. Foi para sua mão na estrada e, onde deu, entrou na estreita faixa de vegetação.
Parou de novo. Inclinou-se para a frente, apoiando a testa no volante, como se estivesse muito cansado. Depois, com um profundo suspiro, voltou-se para encarar Jenny.
— Você está querendo me dizer que já sabe, não é? — disse, baixinho.
Essa pergunta abalou Jenny como uma bola atirada contra o vidro de uma cristaleira. Fez que sim, já que não conseguia falar, tentando, desse jeito, manter a dignidade inteira.
— O que posso dizer, então? — indagou ele. — Pedir desculpas por algo que eu não podia controlar?
Jenny quase não acreditava: ele estava tentando dar a desculpa clássica de quando duas pessoas vão para a cama sem se amar. Ele havia perdido o controle! Imaginou quantas vezes Peter teria usado aquela desculpa. Não queria ouvir mais nada. Tinha muita vontade de chorar. Mas obrigou os olhos a permanecerem secos enquanto o encarava e a voz soava fria, sem emoções.
— Não precisa se desculpar — disse, como se estivesse representando um papel. — Se, por acaso, dei impressão de estar esperando que me pedisse desculpa pelo que aconteceu entre nós, sinto muito. Já não tem importância. . . uma vez que nenhum de nós pode se dizer mais ou menos culpado. Milhares de casais fazem amor sem compromisso, hoje em dia.
— O quê?! — indagou ele, parecendo profundamente chocado.
Jenny ficou contente por tê-lo atingido. Na certa ele achava que ser solicitado, implorado, como neto de Federic Donas que era.
Pois bem, era um idiota! Ela não ia lhe dar a satisfação de saber o que estava sentindo. Já lhe dera satisfação demais!
— Simplesmente, passamos bons momentos juntos e isso é válido não? — disse, rezando para ele não notar como sua voz estava tensa fazendo um esforço tremendo para não demonstrar o que sentia, para não dizer o que pensava dele.
Não queria, de modo algum, que soubesse como tomara conta de todo seu ser, em tão poucos dias. Continuou:
— Se tivermos oportunidade, podemos repetir a dose, se não... Sacudiu os ombros! mas na verdade estava determinada a nunca mais permitir que aquele homem se aproximasse dela.
— Isso. . . isso é grande! — disse ele e Jenny surpreendeu-se com a raiva que vibrava na voz. — Você, sua maldita mentirosa! Afinal de contas, você estava só se divertindo comigo! — Jenny quis dizer que ambos tinham se divertido, mas ele não deixou. — O que aconteceu, hein? — indagou, sombrio. — Cansou de ser virgem e pegou o primeiro homem que encontrou para livrá-la dessa chatice?
— Você não tem direito de... — começou ela, mas não terminou; Peter a agarrou pelos ombros, mergulhou os olhos nos dela.
— Não venha me falar em direito! — berrou, largando-a com tanta violência que ela foi bater contra do jipe. — Fui ingênuo e bobo o bastante para acreditar em você a ponto de telefonar para minha família e dizer que tinha encontrado uma mulher maravilhosa, que ia me casar com ela.
Jenny não pôde acreditar no que ouvia.
— Você nunca falou em casamento... — murmurou, confusa.
— Não sei o que duas pessoas que se amam fazem, na sua terra disse ele, o rosto vermelho, transtornado pela raiva -, mas na minha elas se casam!
Abriu a porta do jipe e saiu, batendo-a com tanta força que o carro balançou.
— Você é que é um mentiroso! — acusou Jenny, baixinho, enquanto ele entrava entre as touceiras de cana, na beira da estrada.
Disse a si mesma para não chorar, mas as lágrimas corriam.
— Você é que é um maldito mentiroso! — soluçou.
CAPITULO IX
Jenny tratou de dominar as emoções quando viu o estado em que se encontrava. Parecia estar perdendo o juízo. Achava que devia ter corrido atrás dele, jogando-se em seus braços, pedindo que a desculpasse por duvidar. Depois, achou que se fizesse isso seria doida, mesmo... como Geraldine. Não podia acreditar naquela conversa de Peter de pretender casar com ela. Era tão verdade quanto era palpável o perfume de uma rosa. Por pensar em rosa, tinha que jogar fora as pétalas que havia guardado.
Já nada representavam a não ser uma ferramenta do homem que a usara como o avô dele tinha usado sua avó. Teria pegado a caixinha na mala se naquele momento, por
acaso, não visse o rosto no espelhinho retrovisor. Estava coberto de poeira escura, com riscos claros feitos pelas lágrimas. Tentou dar um jeito com a ponta do lenço, umedecida com saliva, mas não deu. Estava precisando de um banho e resolveu que ia conseguir. Nada melhor para pôr os pensamentos em ordem do que um bom chuveiro quente, para lavar corpo e alma.
Saiu do jipe e avaliou a situação. Carros passavam na estrada, levantando poeira. Tinha que decidir se voltava ou ia em frente. Não devia estar muito longe do local da escavação, imaginou, não apenas pelo tempo que tinham viajado,mas também pela saída intempestiva de Peter. Ele não teria lançado mão daquela retirada teatral se houvesse o menor perigo de ficar perdido no canavial. Era esperto demais mais para isso. Não havia levado a chave do jipe. Estava no contato. Se Jenny soubesse dirigir, era só ligar e ir embora. Seu problema era saber onde estava e para onde ir.
— Oi! — disse Bárbara Temple, surgindo do canavial.
Foi logo se apresentando: tinha dezoito anos, estudava na Universidade do Nordeste, estava no penúltimo ano de arqueologia e estava na escavação por um arranjo conseguido pela noiva do pai dela. falava rapidamente, mal respirando. Contou que era noiva de Timothy Journer, um arqueólogo escalado para trabalhar ali, também. Jenny desejou intimamente que o romance de Bárbara com Timothy tivesse um fim mais feliz do que o dela com Peter. A garota acabou co fessando que estava falando demais por estar nervosa e estava nervosa por ter encontrado Jenny. . . que era seu ídolo. Tinha lido tudo que J. Mowry publicara e achava que ela podia ser comparada, no campo da arqueologia, com Margareth Mead, a antropóloga.
Jenny teve vontade de rir ao imaginar a aparência do "ídolo" de Bárbara. Lembrava-se bem de sua cara no espelho. Não devia estar nada bem, principalmente se comparada com a moça. A blusa de Bárbara parecia ter sido lavada e passada naquele momento; a calça, dessas com bolsos ao longo das pernas, estava impecável. Os sapatos esporte não eram novos, mas estavam bem engraxados. Tinha cabelos castanhos, curtos; o rosto era suave, simpático, com grandes olhos castanhos, nariz arrebitado e boca bem feita, tudo valorizado por leve maquilagem. Devia ser daquelas moças que estão sempre arrumadinhas, mesmo numa escavação arqueológica.
— Não estou muito apresentável — disse Jenny, com ar de desculpa. — Mas você imagina porquê.
Bárbara não podia imaginar nada, a não ser que tivesse ouvido a discussão, escondida no canavial. Mas não era provável.
— A viagem de Idfu é um tanto poeirenta — continuou Jenny e explicou: — Um cisco entrou no meu olho.
— Quer que eu tire?
— Acabei de tirar — respondeu Jenny. — Eu queria é que me levasse até o chuveiro mais próximo.
— A senhora só tem essas duas malas? — perguntou Bárbara, olhando a parte de trás do jipe; Jenny fez que sim. — Então dá pra gente levar. É aqui pertinho.
— Deve ser mais perto ainda de carro. Se a gente for de jipe. . .
— Ele está funcionando? — indagou Bárbara.
Jenny entendeu: a moça concluíra que o jipe enguiçara, se não por que ela estaria parada na estrada?
— Pensei que estivesse encrencado — continuou Bárbara. — Quando o prof. Donas. . . quero dizer, Peter, chegou em casa a pé e me disse para. vir ver se precisava de ajuda, achei que o câmbio do jipe tinha emperrado de novo.
— Ele parou de repente — disse Jenny, apontando para o veículo e se justificando que não era mentira completa. — Mas eu tentei, agorinha mesmo, e o motor funcionou.
— Felizmente Bárbara era ingênua — ou discreta — o bastante para não querer entrar em detalhes. Sentou-se ao volante, ligou e o motor começou a funcionar. Jenny subiu também, acomodando-se ao lado dela, e o jipe saiu pela estrada. Logo chegaram a um vilarejo que se erguia exatamente onde a vegetação terminava e começava o deserto.
À distância percebia-se elevações de areia e rochas, único sinal de que aquele lugar poderia ter algum interesse a mais do que o restante do deserto. Aquela ruína solitária, chamada Forte de Khasekhemui, datada da Segunda Dinastia dos faraós não impressionava muito, principalmente depois de se ver as grandiosidades da planície de Gisé e as cidades ao longo do Nilo. Era uma estrutura retangular mais estragada pelo tempo do que parecia nas fotos que Jenny vira, em Seattle. O desgaste devia-se mais às mudanças climáticas causadas pela construção do lago Nasser, pela barragem de Assuan. A evaporação da água provocara chuvas num local onde não chovera durante cinquenta anos. A construção era de tijolo cru e sofrera com isso. Haviam tentado preservar o que era, certamente, a mais antiga construção do Egito, mas com o tempo se tornaria um monte de pó. Depois, os interesses de preservação tinham se voltado mais para a atração turística exercida pelos monumentos de Gisé, Karnak, Luxor e Idfu. O abandono acelerara a ação do tempo.
— Estamos em casa! — exclamou Bárbara, ao entrarem no vilarejo que antes se chamava Nekhen, cidade do deus com cabeça de falcão, Horus.
Entraram numa casa enorme que ficava no fim do vilarejo. Fora alugada para o grupo por uma família árabe, riquíssima, que costu mava passar o verão no clima mais suave de Alexandria. Em vários lugares da imensa construção de tijolo cru, o estuque caíra, deixar a estrutura à vista. Bárbara levou Jenny para um quarto no segundo andar, com balcão. Uma das paredes apresentava enorme rachadura que se dividia em mil pequenas outras, formando um estranho mapa por trás das duas camas de solteiro.
— Espero que não se importe em me ter como companheira de quarto — disse Bárbara, pondo a mala que havia carregado em cima de uma mesa. — Aqui há bastante lugar, mas eu fiz questão de ficar com a senhora.
Jenny sentia-se um pouquinho melhor e achou que ia melhorar mais depois do banho. Era agradável encontrar alguém que admirava a gente, principalmente na profissão.
— Já estive com mais três mulheres, e alguns escorpiões, numa tenda pouco maior do que esta cama! — disse Jenny.
— Esta é a minha primeira escavação — contou Bárbara. — Pensei que fosse tudo mais confortável.
— Aproveite o conforto, é coisa rara na profissão! — avisou Jenny.
— Vai sentir falta disto quando estiver numa barraca. Agora, me diga qual dessas deliciosas camas é a minha e me mostre a torneira mais próxima. . . assim eu provo para você que Jenny Mowry está embaixo desta poeira toda!
— Acho a senhora incrível assim mesmo! — disse Bárbara e Jenny agradeceu, com um sorriso.
— Minha cama?. . . — perguntou Jenny de novo.
— A que a senhora preferir.
— Primeiro, nada de "senhora". Só você e Jenny. . . — Barbara fez que sim, toda animada por ter o privilégio de se tornar tão íntima.
— Segundo — continuou Jenny —, não comece a me dar muito mimo, se não eu vou me sentir tentada em tirar vantagem, tá? Como você já estava aqui e eu cheguei agora.
— Esperou que Bárbara mostrasse qual das camas estava usando e colocou a mala sobre a outra. — Ótimo! O banheiro?
— É lá embaixo, no hall — disse Bárbara. — É um só, usado por todas as mulheres. Os homens usam o banheiro do primeiro andar, que é menor. Tim acha muito antiquado isso de pôr os homens num andar e as mulheres em outro, mas eu disse que não iria dormir com ninguém nem que fosse permitido. Não que eu seja uma puritana — explicou. — mas viemos aqui para trabalhar!
— E está muito certa! — apoiou Jenny, achando que teria sido melhor se ela tivesse seguido essa filosofia em relação a Peter. ce continuar pensando assim, na certa vai conseguir tudo que quer.
Depois, com medo de começar a falar demais e dali a pouco estar se lamentando do que lhe acontecera, foi para o banheiro. Apesar da vontade de desabafar com alguém, se falasse com Bárbara ela poderia, intencionalmente ou não, comentar o caso com Timothy Journer e Jenny não queria sua vida particular sendo comentada.
Tinha razão quanto ao banho. Sentiu-se muito melhor depois. Foi para o quarto a fim de se arrumar. Encontrou Bárbara de pé no balcão.
— Difícil a gente acreditar que isto aqui foi uma cidade com centenas de moradores — comentou Bárbara, enquanto Jenny vestia calças compridas e uma blusa de seda.
— Quero dizer, que antigamente aqui chovia normalmente, havia água à vontade, mato, grama, árvores, gazelas e antílopes; as pessoas faziam suas casas, caçavam, casavam, tinham filhos...
Jenny, não estava com disposição de falar em casamento e filhos.
— Acho que preciso me apresentar ao prof. Kenny — disse, sentando-se na cama para calçar as botas velhas e confortáveis. — Ele deve estar pensando por que ainda não fui cumprimentá-lo. . .
Percebeu que havia algo errado quando ergueu os olhos e viu a expressão de Bárbara.
— O prof. Kenny voltou para Chicago há três dias — disse.
— Voltou para Chicago? — surpreendeu-se Jenny. — Por quê?
— Ele teve um problema de saúde — contou Bárbara. — Pensei que você soubesse.
— Saber, como? Eu acabei de chegar.
— Pensei que Peter tivesse dito. Esquisito ele não ter contado... — disse Bárbara, pensativa. — Todos nós pensamos que ele tivesse ido a Tebas para isso. Ele e o prof. Kenny discutiram sobre quem ficaria no lugar do professor.
— Peter achava que devia ser você. Mas o prof. Kenny não concordou: insistiu que devia ser o Peter a assumir a diretoria. Achei a atitude do professor machista, mas ninguém pediu minha opinião.
— Peter achou que eu devia ficar no lugar do prof. Kenny? — perguntou Jenny, não querendo pensar nas implicações daquilo.
Se Peter tinha ido a Tebas por motivos práticos, e não por algum misterioso impulso do destino, havia parado na estrada para lhe contar sobre o professor, para dizer que ele estava no lugar de Kenny, já qUe nada tinha dito antes.
— Claro que achava! — confirmou Bárbara. — E insistiu tanto nisso, falou tanto, que um dos rapazes acabou dizendo a ele que iria fazer o professor ter outra crise cardíaca se continuasse teimando.
— Oh, não! — gemeu Jenny, enquanto todo bem-estar proporcionado pelo banho de chuveiro sumia.
Agora entendia a confusão que ambos tinham feito. Ele estava chateado por ter assumido a chefia e quando perguntara se ela "já sabia", ao vê-la tão amarga e mal-humorada, referia-se a isso, não ao que acontecera entre os dois em Tebas. Estragara tudo!
— Oh, não... não... — rompeu num choro desesperado, escondendo o rosto na cama.
— É... Imagino como se sente — Bárbara tentou confortá-la, sem poder imaginar o verdadeiro motivo de tanto sofrimento. — Mas Tim me disse que os árabes que trabalham na escavação nunca iriam aceitar ordens de uma mulher... Tim também achava que devia ser você a chefe.. . eu nunca me daria bem com um homem machista. Mas por aqui esse negócio de direitos iguais não existe. Me contaram que até há poucos anos um homem podia se divorciar da esposa simplesmente indo a uma esquina e dizendo-me divorcio dela três vezes!
— Onde está Peter? — perguntou Jenny.
Precisava explicar tudo a ele. Como Peter devia estar sentindo ódio dela! Tinha agido de um modo estranho, sem sentimentos, como se fosse uma mulher que se determinara a usá-lo, quando na verdade estivera tentando se proteger do sofrimento de ser usada por ele!
— Onde ele está, Bárbara — insistiu. — Preciso falar com ele.
— Ele tentou persuadir o professor, mesmo! — repetiu Bárbara, pensando que Jenny estava com o orgulho profissional ferido; poderia até estar, mas aquilo não era a coisa mais importante para ela. Como Peter prometeu ao professor que assumia a chefia, acho que não vai poder faltar com a palavra. . .
— Eu só quero esclarecer umas coisas entre nós — disse Jenny, lembrando do conselho de Abdul de falar claro. — A culpa não é de peter se o professor o escolheu.
— Isso mesmo! — animou-se Bárbara, vendo que Jenny não pretendia criar caso. — Não sei por que ele não lhe contou. Decerto achou melhor você saber por outra pessoa.
— É... Ele deve ter seus motivos — concordou Jenny.
Conhecia bem os motivos, mas não podia contar a Bárbara. A relutância em dar a má notícia, fizera com que ele não falasse logo, em Tebas. Depois, não quisera estragar aqueles maravilhosos momentos com o que Jenny poderia achar uma ofensa profissional. Ele devia saber do problema havido entre ela e o prof. Klenick Maxwell, em Avris.
Na ocasião, o professor lhe dissera:
— Entenda, Jenny! Realmente, não posso fazer nada. . . Roger é que tem de ser nomeado.
Roger Daugan acabara de se formar, enquanto Jenny já estava no campo profissional há dois anos.
— É uma questão de tradição... — explicara o professor. — Ninguém aceita ordens de uma mulher, a não ser que haja um homem acima dela, apoiando. . . Entende?
Jenny não entendera. Arrumara suas coisas e fora embora de Avris. O prof. Maxwell dissera que sentia muito, mas mantivera Roger na posição de direção.O caso fora muito comentado entre os arqueólogos e todos sabiam que depois disso o relacionamento entre Jenny e o prof. Maxwell esfriara. Conhecendo o fato, era natural que Peter esperasse uma reação parecida diante da atitude do prof. Kenny. E Jenny reconhecia que seria capaz de largar tudo, se o amor de Peter não fosse tão importante para ela. Confundira tudo! Peter só tentara não ferir a sensibilidade dela.
Jenny tinha medo de que suas ações estivessem sendo influenciadas por forças que não podia controlar. Forças que a fariam destruir ter Donas, como o avô dele destruíra Geraldine Fowler. Achou que, no íntimo, confiava na sinceridade dele, mas que agira impulsionada por inconsciente desejo de vingança. Não. Ela era ela mesmo! Não podia viver sob o peso do que acontecera com um homem e uma mulher mortos há anos. Tinha que corrigir o erro. Amava Peter. Amava-o tanto que a mágoa que causara doía mais nela, talvez, do que nele.
— É melhor falar com Peter quando voltar... — disse Bárbara. Ele pegou o outro jipe e foi ver as novas galerias.
— Novas? — indagou Jenny, o interesse profissional sobrepujando a angústia. — Pensei que fôssemos trabalhar nas galerias abertas há três anos.
Era esse o tempo que o prof. Kenny tinha de trabalho ali. O início de uma escavação é feito para se realizar testes que indiquem o potencial arqueológico do local. Depois, começa-se as galerias, que geralmente têm cerca de oitenta centímetros de altura e de largura, irradiando-se em várias direções e alturas do terreno a explorar.
— Peter resolveu largar as galerias velhas e cavar outras, mais profundas, num local que acha mais provável — explicou Bárbara, estranhando Jenny estar tão mal-informada, quando Peter tivera tanto tempo, em Tebas, para contar o que estavam fazendo.
— Abandonaram o local do túmulo do Rei Escorpião? — indagou Jenny.
Se bem que isso não diminuísse o amor que sentia, Jenny reprovava Peter por ter abandonado o local de escavação determinado pelo grupo inicial de trabalho. E sabia o porquê. Ao perceber que o Rei Escorpião não tinha sido enterrado em Hierakonpolis, ele decidira parar a escavação naquela exata área a fim de não ficar provado que sua teoria estava errada.
— Acho que ele está chegando — disse Bárbara, percebendo poeira ao longe.
— Vou falar com ele — disse Jenny, levantando-se depressa. Peter não pareceu satisfeito ao vê-la.
— Estou muito ocupado, agora, srta. Mowry! — disse, brusco, chamando a atenção do pessoal que chegara com ele.
— Eu acho que é muito importante... — disse Jenny. — É, mesmo, se não eu não ia insistir.
Se ele insistisse na recusa, seria impossível ela ficar ali. Se ele não quisesse ouvi-la, não havia esperança para eles e seria melhor ir esconder o sofrimento longe dali, pensou Jenny.
— Vamos para a biblioteca — decidiu Peter, entrando na casa. Abriu a primeira porta à esquerda. Entraram numa sala enorme, cheia de estantes com livros. Peter dirigiu-se para a mesa que servia de escrivaninha, sentou-se e, com ar autoritário, indicou a Jenny as várias cadeiras que poderia pegar o que ela tinha vontade, mesmo, era de refugiar-se nos braços dele e pedir perdão. Mas teve medo de ser repelida por ele, antes que pudesse explicar.
Olhou nervosamente ao redor, tentando reunir coragem para dizer tudo que queria que ele soubesse.
— Bem, como parece relutante em começar a falar sobre o assunto que considera tão importante, deixe-me ver se adivinho o que é disse Peter, inclinando-se para trás até seus ombros quase tocarem a parede rachada atrás dele; Jenny ressentiu-se pela falta de sensibilidade dele, que não percebia o quanto estava angustiada. — Primeiro, você teve a confirmação, por Bárbara, que sou seu chefe? — começou. — Segundo, ficou sabendo que abandonei a escavação do que se supunha o túmulo do Rei Escorpião. Certo? — Não esperou confirmação. — Quanto à primeira parte, só posso dizer que o prof. Kenny achou que eu era o único que podia substituí-lo. Quanto à segunda, não agi assim por ter medo que a escavação demonstrasse que era apenas o túmulo de qualquer faraó, acabando com minha teoria. Nem fiz isso por causa de vocês, sabendo que você e o prof. Kenny não concordam muito com minha teoria. Se bem que você não tenha direito de questionar minhas decisões, uma vez que fui indicado para dirigir a escavação, vou fazer uma exceção, desta vez, e explicar por que resolvi mudar de lugar.
Jenny nada disse. Queria ver que desculpa ele ia dar e aproveitar o tempo para reunir coragem e forças para enfrentá-lo.
— Fiz isso porque se essa primeira escavação trouxer algo de importante, o prof. Kenny é que deve estar aqui quando isso se revelar, recebendo os méritos. Não você, nem eu.
— Mas ele teve um enfarte! — disse Jenny, confirmando a impressão de Peter que o procurara para conversar sobre trabalho.
— Isso não está confirmado — retrucou Peter. —Só vamos saber ao certo depois dele ser examinado e fazer testes, nos Estados Unidos. Mas mesmo que ele tenha tido um enfarte, talvez nada impeça que volte para cá, depois de um bom tratamento, descanso e exercícios apropriados. Hoje em dia é difícil um enfarte deixar alguém inválido.
— Eu não quis insinuar isso! — replicou Jenny, revoltada por ele achar que sua ambição profissional chegava a ponto de fazê-la subestimar as possibilidades de recuperação do professor.
— Se o professor quisesse que a escavação da busca do túmulo do Rei Escorpião continuasse, teria nomeado você no lugar dele — declarou Peter. — Mesmo que Bárbara tenha dito o contrário, a decisão dele não foi ditada por machismo, mas sim por medo que guém agisse pressionado pela ansiedade de conseguir confirmação profissional. . .
— Não acredito nisso! — revoltou-se Jenny.
— Então, por que ele me escolheu? — desafiou Peter.
— Porque sabe que os trabalhadores árabes não recebem ordens de mulheres — respondeu Jenny, consciente de que Peter a estava afastando cada vez mais do motivo daquela conversa.
— Claro. Foi esse o pretexto — admitiu Peter, com uma risada amarga. — Mas achei, por sua reação na escavação de Avris, que você não ia aceitar esse motivo. — Então, ele sabia do caso com Maxwell! — Eu acho, no entanto — continuou ele —, que a escolha do prof. Kenny baseou-se em saber que eu iria dirigir as escavações para áreas que não apresentassem maiores interesses... — Ergueu a mão, para impedir a contestação que esperava. — Você ainda é jovem e pode perder um ano de vida numa escavação sem resultado. Francamente, estou decepcionado com sua curiosidade... ou o que quer que a leve a tentar conseguir um mérito que pertence ao homem que trabalhou duro para consegui-lo. Afinal, onde você estava, enquanto o velho professor passava duros verões no deserto, cavando arduamente, até que chegou aqui? Se, por acaso, o prof. Kenny não puder voltar ao trabalho, no ano que vem, tenho certeza de que você será recompensada pelo atraso de agora.
— Acho que você já deixou esse ponto bem claro — disse Jenny, lutando para conter a raiva e a vontade de expor os seus motivos de ser contra a mudança do local da escavação. — Depois voltamos a falar nisso, porque não foi por esse motivo que pedi para falar com você.
— Pois eu acho que era a única coisa sobre o que tínhamos a falar — retrucou Peter, empurrando a cadeira para trás e erguendo-se, pois sabia qual era o outro motivo e não queria sofrer mais. - Desculpe, mas sou um homem muito ocupado.
— Está com medo, Peter?! — gritou Jenny de maneira que qualquer pessoa que estivesse perto da porta fechada poderia ouvir, mas nem estava ligando para isso. — Está com medo de ouvir minha explicação porque ela pode ser válida o bastante para obrigar você a ficar na posição de ter que reafirmar que me ama!
— Não tente jogar a culpa do que aconteceu em cima de mim! — berrou Peter, a raiva alterando o rosto bonito. - Entrei nisso com a maior boa fé e fui recompensado com uma facada nas costas. Não estou querendo ouvir a sua chamada "explicação" porque acho que um modo de você revolver a faca na ferida, me machucando ainda nais!
— Eu te amo, Peter!... - disse ela e, por momentos, ele ficou sem fala.
— Você está invertendo tudo, não é, Jenny? — murmurou Peter, afinal. — Se bem me lembro, eu é que amava você. Você apenas me escolheu como um bom parceiro na cama. — A voz dele tornou-se rouca. — O que fizemos nada mais foi do que uma porção de casais que se encontram por acaso fazem. . . não é?
— Eu nunca pensei, mesmo, nessas coisas horríveis que disse — explicou Jenny, num fio de voz. — Foi um enorme engano.
— Um engano? — repetiu ele, como se tivesse ouvido mal. — Você quer dizer que se enganou? Eu é que me enganei, que errei, me apaixonando por você assim que a vi!
Ele parecia tão magoado, tão sofrido, tão vulnerável que o coração de Jenny contraiu-se, dolorido. Mal podia controlar o impulso de correr para ele. Queria abraçá-lo, acariciá-lo, explicar que o desentendimento que havia entre os dois era culpa dela e fazer sarar o ferimento que havia nos corações dos dois. No entanto, Peter não parecia disposto a tornar as coisas fáceis para ela.
— Não se aproxime! — disse, percebendo o que ela queria fazer e não querendo que sua defesa caísse completamente com o prazer de apertá-la de novo entre os braços. — Se você insistir, palavra, eu vou embora desta sala, vou embora de Hierakonpolis, vou embora do Egito. . . para esquecer que talvez exista uma explicação que faça reviver o que havia entre nós e você destruiu!
— Há uma explicação! — afirmou Jenny, rezando para ele acreditar. — Há, mesmo. Por que não quer acreditar?
— Não quero acreditar? — indagou ele, incrédulo. — É a minha desesperada necessidade de acreditar que me mantém aqui, parado como um bobo, quando já devia ter saído desta sala e mandado você para o inferno! É a minha vontade de acreditar que faz temer a louca esperança de que você possa me dizer alguma coisa que, de fato, acabe com este meu terrível sofrimento!
Então, ela contou sobre o avô dele e Geraldine Fowler e confirmou-se o que Jenny sempre pensara: Peter nunca ouvira falar naquilo.
A tragédia que desempenhara papel tão importante na formação do cará ter de Jenny não queria dizer absolutamente nada para ele. . . até aquele momento.
— Quer dizer que decidiu me castigar por uma coisa que meu avô fez há sessenta anos? — perguntou Peter, atordoado. — Bem, você conseguiu, com perfeição! — acrescentou e Jenny percebeu que ele não pegara o ponto principal de tudo aquilo.
— Não entende? — perguntou, aflita, pois Peter estava encarando os fatos como mais uma prova de que ela o usara. — Eu pensei que você estivesse me usando! — disse, tentando fazê-lo compreender. — Eu pensei que estivesse acontecendo o que aconteceu há sessenta anos. Você, eu. . . Frederic, Geraldine. . . Tutancamom, Tebas.
— Como pôde pensar em coisa tão ridícula? — perguntou Peter, dando esperanças a Jenny de que começava a entender.
— Quando você parou o jipe, depois de todo aquele tempo agindo de modo esquisito, pensei que fosse dizer que não me amava. . . — explicou Jenny, ansiando que Peter a abraçasse e dissesse que perdoava. — Eu estava sofrendo, com medo, e não queria que você percebesse que tinha conseguido me fazer te amar tanto. Então, agi de modo a poder conservar um pouquinho da dignidade que você tinha destruído em mim!
— Sua maluquinha! — murmurou Peter, sacudindo a cabeça, dando mais esperança a Jenny. — Você é uma boba. . . uma maluquinha!
Seria o final de um romance. Feliz. Ela correria para os braços dele que a apertaria contra o peito forte, murmurando palavras de amor, de perdão. Mas a única coisa que aconteceu foi a porta se abrir, depois de rápida batida que fez ambos ficarem imóveis.
— Desculpe atrapalhar — disse Bárbara, a atmosfera reinante na sala tornando-a consciente de que atrapalhava e muito. — Mas há um homem aí insistindo para falar com Jenny.
Jenny achou que devia ser Abdul, mas em seguida imaginou o que ele poderia estar fazendo ali... O visitante não era Abdul, mas sua presença era tão prejudicial quanto a dele. Jenny nunca tinha visto aquele homem, mas ela reconheceu de imediato o estojo que ele trazia nas mãos.
— Vim trazer isto para a senhora. . . — disse ele.
Se Jenny tivesse pegado o estojo no ato, talvez teria sido melhor. mas ficou paralisada, dolorosamente consciente de que aquela intromissão iria destruir o que tivera tanta dificuldade em refazer!
— O sheik Jerada mandou que entregasse apenas nas mãos da senhora —- continuou o mensageiro.
— Não quero isso — gemeu Jenny.
Todos permaneceram imóveis, olhando para ela, por tempo que pareceu uma eternidade. Não havia jeito. Jenny pegou o estojo, mas todos continuaram esperando, olhos firmes nela, até que Peter falou:
— Ele quer que você verifique se está tudo em ordem. Como uma sonâmbula, ela abriu o estojo.
— Meu Deus, que coisa mais linda! — gaguejou Bárbara. Jenny achou que não prestara a devida atenção no colar.
— Pelo jeito, consegue manter seus amantes correndo atrás de você, não, Jenny? — indagou Peter, irônico. — Acho que eu devia me orgulhar por você ter tentado me evitar esse esforço!
Saiu da sala e, em seguida, saiu da casa, perdendo-se na tarde que morria.
CAPÍTULO X
— O quê? — perguntou Abdul.
— Um escorpião — repetiu Jenny.
— Um escorpião?! — duvidou Abdul.
— Isso mesmo — confirmou Jenny, acompanhando com um dedo a figura desenhada na rocha há centenas de anos. — Veja aqui o corpo se curva, formando a cauda.
— Escorpião bem estilizado, não? — indagou Abdul. — Tipo chamada arte abstrata.
Na verdade, a figura podia muito bem ser de outro bicho e muitos cientistas afirmavam que era, que ali só enxergava um escorpião quem quisesse muito. Jenny concordava com o prof. Kenny, achando que se tratava de um escorpião. Fora um sinal que fizera Cárter procurar a tumba de Tutancamon no Vale dos Reis, enquanto muitos cientistas riam de seus esforços.
Abdul estava mais impressionado com o desenho na pedra do que com a possibilidade daquele ter sido o túmulo do Rei Escorpião.
— Tanto esforço e confusão para isso? — disse.
O buraco retangular ainda estava parcialmente cheio de entulho que havia caído quando, anos atrás, os ladrões de tumbas haviam esburacado o teto para entrar, levando o que havia. O sarcófago com a múmia também tinham desaparecido, mas o receptáculo de rocha que o contivera ainda estava ali e o fato de terem escavado a rocha para abrigar uma múmia, indicava que era de personagem importante.
— Não sei por que, sempre imagino os arqueólogos quebrando o selo de túmulos, com a inscrição "A morte cobrirá com suas asas todos que perturbarem o sono do faraó"... — comentou Abdul. — No entanto, não passam de um grupo que fica fuçando na areia e explode em alegria ao encontrar alguns grãos de trigo, ossos de animais e fezes ressecadas!
Jenny passara a manhã mostrando a escavação para Abdul, até chegarem ao túmulo vazio de Rei Escorpião. A observação dele era bem própria de leigos, que de arqueologia só sabiam o que tinham visto em filmes.
— Bem, não é sempre que se está descobrindo tumbas de faraós, muito menos do tipo que Cárter descobriu em Tebas. Mas a maioria dos arqueólogos tem preocupação maior do que encontrar tesouros. O principal é encontrar indícios, peças de valor histórico, como um simples grão de trigo. Um grão de trigo pode dizer muito sobre a agricultura de um povo primitivo; ossos podem indicar quais os animais de criação e, acredite ou não, as fezes secas podem revelar muito sobre o que comiam... - disse Jenny, achando que Abdul não estava muito interessado. — Há pessoas que só se entusiasmam com pedaços de ouro, esquecendo que uma ferramenta, um vaso, um utensílio, podem ser muito mais valiosos, compreende?
— Hummm... Compreendo respondeu Abdul. — Mas no momento estou interessado na época atual, nas pessoas de hoje. Mais exatamente: em você e no que está errado em seu mundo. - Jenny começou a negar, a dizer que tudo estava bem, mas ele insistiu: Vamos, Jenny! Uma serpente conseguiu alterar a paz em seu paraíso?
Como estava mesmo precisando desabafar, Jenny contou tudo a Abdul: desde que soubera do caso de amor infeliz da avó, até a chegada do colar. De imediato, Abdul pediu desculpas.
— O colar não teve culpa de nada — disse Jenny, não querendo que ele pensasse que culpava alguém além de si mesma. — Se eu não tivesse bancado a boba no jipe, Peter nem ia ligar para o colar. Do jjeito que as coisas estavam, ele tirou suas conclusões. — Então, tiveram uma briguinha de namorados. — disse Abdul, filosófico. — Não podiam passar sem isso, não?
— Talvez não... — concordou Jenny.
— Não faça besteira de novo, Jenny — avisou Abdul, sentando, numa rocha ao lado dela.
Estavam no único lugar que tinha sombra. O sol estava a pino, provavelmente o pessoal tinha voltado para casa, pois o trabalho começara bem antes do sol nascer, para aproveitarem as horas mais frescas do dia.
— Está claro que você ainda o ama e tudo indica que Peter não deixou de amar você.
— Acha isso, mesmo? — indagou Jenny, ansiosa.
— Palavra que acho! — confirmou Abdul. — Ele a ama. Aliás, fui eu o primeiro a dizer que ele a amava, não fui? Pode dizer que errei? Por acaso ele disse que não a ama? — Jenny fez que não. — Então, o problema é idêntico ao de antes. Ele tem uma tendência incrível a só falar pressionado, a saca-rolhas! Também tem uma confiança enorme em si mesmo, em conseguir o que quer. E tem razão, o que me deixa com um ciúme dos diabos. Você iria correndo se ele abrisse os fortes braços, perdoando, não? — Jenny não respondeu e nem precisava. — Então, veja: eu sei disso, você sabe e na certa ele também sabe. Acho que está querendo que você sofra um pouco até se dignar a recebê-la. Acontece que você exagerou no paralelo entre vocês dois e os seus avôs...
Jenny achava que não podia, de jeito algum culpar Frederic Donas e Geraldine Fowler pelos problemas que estava tendo, mas tinha que reconhecer que fora muitíssimo influenciada pela tragédia ocorrida há sessenta anos.
— Apesar de tudo — continuou Abdul —, eu sinto mais simpatia por Jenny Mowry do que por Peter Donas. .. Você é capaz de dizer por quê?
— Não sei — respondeu Jenny, sabendo muito bem; passou a mão pela cintura dele, num gesto amigo. — De qualquer modo, estou contente por você estar aqui!
Depois, de repente, olhando ao redor para ver se Peter não estava por perto, pois ele podia interpretar mal aquele gesto de afeto amigável, retirou o braço com uma pressa que fez Abdul rir.
— Jenny, Jenny, Jenny... — disse, com voz divertida.
Isso fez com que Jenny imediatamente lembrasse o modo que Peter gemia o nome dela, enquanto faziam amor. Como de hábito, a lembrança despertou o desespero de imaginar que aqueles momentos maravilhosos nunca mais iriam se repetir.
— O que você devia fazer, agora — disse Abdul, num sussurro confidencial —, uma vez que tem certeza que Peter está nos observando para ter certeza das acusações, é ir adiante de uma vez, sem hesitar. Confirme as suspeitas dele, me dando um beijo!
Jenny ficou embaraçada: Abdul percebera que ela estava quase para nóica, sentindo-se vigiada por Peter.
— É que eu o conheço bem. . . — disse, querendo se desculpar.
— Mas o quer de volta, não? — perguntou Abdul, achando incrível ainda existir uma mulher tão ingénua a ponto de não saber entrar no jogo!
Então, lembrou que ela declarara firmemente que o amor era algo muito sério. . . Não um jogo! E decidiu nem tocar nisso.
— Claro que quero Peter de volta! — respondeu Jenny, achando que Abdul ficara calado não para pensar, mas que estava esperando a resposta dela.
— Pois quero ser o primeiro a assegurar que você está no caminho certo para a reconciliação — disse Abdul, saboreando a própria habilidade em fazer Jenny se sentir feliz, mesmo bancando o casamenteiro.
— Percebi isso no momento que vi a cara de Peter quando você lhe disse que ia ocupar a manhã me mostrando a escavação. Você não notou que imediatamente ele começou a responder por monossílabos, seco, como quando surpreendeu nosso beijo, no Serapeu?
— Acha, mesmo, que ele está com ciúme? — perguntou Jenny, imaginando se não estava parecendo desesperada, mas querendo acreditar nisso.
— Claro que está! — confirmou Abdul. — E tem que estar. Quero dizer, repare que o encantador, distante e atraente personagem desapareceu de repente de cena! Na certa ele passou a manhã inteira achando que perdeu tempo demais em representar a magnânima cena do perdão. Enquanto ele tinha o monopólio masculino local, enquanto era o único varão por aqui, podia manter a pobre donzela em gelado afastamento. Mas tinha que ter mudado de atitude assim que o shelk do deserto chegou, cavalgando na imensidão de areia. Lembra como ele correu para Tebas, ao achar que errara em deixar você sozinha comigo no barco?
— Ele foi para lá porque precisava me dar a notícia que ficara no lugar do prof. Kenny. . . — disse Jenny, torcendo para ele argumentár o contrário.
— Sim. Essa seria a atitude racional — exclamou Abdul, como um mágico revelando os mistérios de Oz ao aprendiz. — E ele disse alguma coisa, em Tebas, além de que a amava?
Sabendo que Abdul descobrira, de modo intuitivo, o que realmente acontecera em Tebas entre ela e Peter, Jenny se sentia um tanto culpada por não poder retribuir a dedicação daquele homem a não ser com amizade. Seria muito mais fácil se ela tivesse se apaixonado por ele e não por Peter!
— Claro que ele não disse nada sobre o professor — declarou Abdul. — Por quê? Primeiro, porque ele não foi a Tebas por causa disso, na verdade. Segundo, sabia que se falasse você era capaz de ir embora do Egito se não houvesse laços mais fortes unindo os dois. Ele achou que estaria a salvo dando a notícia depois de ter trazido você para cá, pois ninguém em seu juízo perfeito iria arriscar a vida voltando a Idfu nessa coisa que chamam de estrada. . . Sei que estou facilitando tudo para ele...
Ao ouvir a queixa, Jenny não pôde deixar de rir. Sentia-se bem mais animada, como não se sentia há tempo. E sabia porquê. Abdul lhe fazia bem. Ele sempre a deixava alegre enquanto que entre ela e Peter pairava sempre um ambiente pesado, tenso. Estava por afirmar a si mesma que preferia o astral de Abdul quando lembrou dos turbilhões de prazer que percorrera com Peter.
— Estou muito contente por você ter vindo! — disse, beijando-o na face, sem se importar com Peter, sem pensar que ele poderia surgir das rochas e dizer que a apanhara de novo com Abdul.
Pela expressão que Peter tivera ao ver o colar, sabia que ele ainda desconfiava de algo entre os dois. Pois bem, já havia sofrido muito e pedido desculpa por seus erros. De agora em diante, a coisa ia ser diferente.
— Estou mesmo muito contente! — repetiu, com ênfase.
— Se você está contente, eu também estou — respondeu Abdul. Agora, quer voltar para almoçar com-você-sabe-quem ou quer provocar comentários e fofocas indo almoçar comigo e meus guarda-costas no deserto?
Jenny estremeceu, ao lembrar do modo terrível como o outro almoço terminara. Ele pareceu ler-lhe os pensamentos.
Só que não posso garantir que vá ter os divertimentos extras que teve da última vez - disse.
— Se é assim, que mulher em seu juízo perfeito iria recusar o convite de um fascinante sheik do deserto? — indagou, dizendo mais ou menos o que dissera quando se tinham conhecido em Gisé. — Aliás, estou morrendo de fome! O que há no cesto de piquenique?
— Vinho branco gelado, frango e peru frios, salada de aspargos, queijo e suco de tangerinas — enumerou Abdul, segurando-lhe um braço enquanto andavam entre as rochas para chegar ao jipe. Não havia eletricidade no toque dele — que sempre estremecia quando a mão de Peter encostava nela —, mas Jenny não ligou. Em compensação, Abdul era a mais agradável companhia para aqueles momentos.
Se não estivesse esperando, Jenny morreria de medo ao ver os três homens armados com metralhadora surgirem das rochas, quando estavam chegando à caminhonete. Como sabia quem eram, simplesmente pediu a Deus que não deixasse que acontecessem aquelas coisas impressionantes que tinham acontecido no deserto de Saqqâra. Seritou-se na frente, ao lado de Abdul, enquanto os três homens espremiam-se atrás. com delicadeza, tocou na fronte de Abdul. Era coisa que quisera fazer a manhã toda, mas evitara, com medo que Peter visse e fizesse suposições.
— Parece que sarou completamente — disse, falando do ferimento a bala.
— É. Não foi nada espetacular como os outros — comentou Abdul, pondo o carro em movimento.
— Isso é verdade. . . — concordou Jenny, lembrando das fundas cicatrizes que marcavam o corpo de Abdul e, depois, do corpo perfeito de Peter, nu diante dela no hotel do outro lado do Nilo, em frente a Tebas. . .
Entraram bastante no deserto e, afinal, pararam num lugar que não parecia diferente de qualquer outro. Mas Abdul o reconheceu.
— Chegamos! — disse, sorrindo e abrindo a porta e saindo; Jenny gaiu também. — Vamos dar um passeio enquanto eles ajeitam tudo para nosso almoço - sugeriu ele. -
Quero lhe mostrar uma coisa.
Enquanto se afastavam, Jenny notou que um dos guarda-costas os Acompanhava, mantendo certa distância.
— Quem diria que um dia houve água nesta desolação?... — comentou Abdul, num gesto que abrangia a extensão infinda da areia.
— As chuvas fizeram desta zona algo especial no Egito — concordou Jenny. — Havia vegetação ao longo do curso do Nilo e aqui estendia-se uma faixa de terra fértil..
— Você quer dizer que chovia o bastante para haver vida? — indagou Abdul fazendo Jenny ficar confusa. — Ah, sim! Entendi! exclamou. — Você pensou que eu estava falando de chuva, mas era de água. Eu estava me referindo ao mar. Havia alguns milhões de anos entre nossas referências.
— Será que você não confundiu arqueologia com geologia? — sugeriu Jenny, de bom humor.
— Não. Você é arqueóloga, eu sou geólogo.
— É, mesmo? — surpreendeu-se Jenny.
— Sou, se bem que haja gente bem melhor do que eu nesse campo. Aliás, estou ligado a um grupo que está estudando o potencial desta área.
— Potencial? — indagou Jenny, ainda confusa, depois lembrou. — Ah, sim! Você está falando de petróleo.
— Isso mesmo — concordou Abdul. — O ouro negro que transforma nações pobres em nações riquíssimas de um dia para outro. Gente que entende disso acha que há um enorme lençol de petróleo aqui.
— Aqui? — perguntou Jenny, ciente de que Abdul sabia muito mais do que ela a respeito.
— Cerca de quinhentos milhões de anos atrás aqui havia um oceano — começou Abdul —, com todas as criaturas que vivem no mar. Criaturas que, quando morreram, ficaram sepultadas na areia do fundo e ainda estão aí. Os restos da vida marinha e dos vegetais eventualmente trazidos pelos rios, toda matéria viva que ficou sepultada aqui entrou na formação do petróleo.
Chegaram ao alto de uma duna e ele apontou uma torre de poço de petróleo que se erguia na depressão em frente. Jenny estava atónita. A última coisa que esperava encontrar por ali, mesmo com tudo que se falava de petróleo, era esse símbolo do século XX erguido ali.
— Eu vim para cá a fim de verificar os vários pontos de exploração de petróleo que existem entre Luxor e Assuan. Imagine minha surpresa ao saber que havia um aqui, bem perto da sua escavação.
De repente a atenção de Jenny foi chamada por uma pedra. Pegou-a e verificou que se tratava da figura de um animal pré-dinástico, uma ave - talvez um falcão - rústica, esculpida por mãos humanas algumas centenas de anos. Aquela pedra parecia mais em seu ambiente do que a torre de petróleo.
— Alguma coisa do passado? — perguntou Abdul, pegando a pequena pedra e examinando; depois devolveu-a. — Mexer com o passado é um luxo que o Egito não pode ter — disse. — Um país quase nada tem a ver com gente que viveu e morreu há tanto tempo, quando existem milhares de seres vivos no Cairo que irão morrer amanhã se não tiverem possibilidade de viver melhor. E o petróleo pode proporcionar isso, Jenny. O petróleo tem que proporcionar isso a essa gente, Jenny. Você olha essa torre como um absurdo, uma intrusão. . . Não negue: leio isso em seu rosto. Quando fitou essa figurinha de pedra perguntou a si mesma quantas delas, quantos utensílios da época prédinástica, quantos ossos pré-históricos e quantos montes de fezes secas esses poço de petróleo em funcionamento não irão destruir no instante em que ele se fundir e jorrar. Que muitos mais serão destruídos quando centenas de pessoas vierem, erigindo mais poços, usando tratores, guindastes, patrolas e caminhões para construir refinarias.
— É... Acho que você tem razão — admitiu Jenny. — Foi o que pensei.
— Eu sei. Pensa assim por ser arqueóloga, por ter devotado sua vida ao passado e não gosta da intrusão do século XX no que considera sua propriedade particular. Outra coisa: você é de um país cuja riqueza garante o bem-estar presente e futuro, por isso pode se dar ao luxo de estudar o passado de outros países. Mas qual foi o uso prático que o Egito de hoje teve de todo aquele ouro do túmulo de Tutancamon que sua avó e o avô de Peter ajudaram a trazer à luz? — Jenny ficou sem saber como responder àquela pergunta, apesar de duvidar que ele falasse sério. — Quero dizer: o valor daquele ouro não é nada comparado ao dinheiro que um poço de petróleo pode render — explicou Abdul. — Tenha certeza de que o dinheiro do petróleo irá beneficiar o Egito muito mais do que o ouro do faraó.
— Acho que você está confundindo riqueza com dólares! — acusou Jenny.
— Não é riqueza histórica, mas sim riqueza em dólares que vai salvar o Egito da fome — respondeu Abdul.
— Mas o passado de um país é sua maior herança — insistiu Jenny.
— Não se come o ouro dos faraós — lembrou Abdul.
Jenny achou aquela atitude não apenas cínica, como também perturbadora, vinda de um egípcio de alta classe. Se tivesse partido de uma pessoa daquelas multidões de famintos que ela vira, não seria tão chocante. Os pobres de hoje não eram diferentes dos que haviam vivido antigamente, dos que tinham invadido à noite o Vale dos Reis para saquear os túmulos. Havia tantos ladrões de túmulos durante a Vigésima Dinastia que Ramsés in tinha mandado construir três túmulos para ver se sua múmia sagrada ficava em paz num deles. Cerca de trinta múmias reais tinham sido destruídas na tumba da rainha Inhapi, para roubo; outras tantas no túmulo de Amenófis II e outras no túmulo da rainha Hatshepsut. Se homens famintos chegavam a desrespeitar os despojos de seres considerados deuses, o que esperar dos pobres do Egito atual? No entanto, Jenny esperava mais compreensão de Abdul.
— Não se come petróleo, também — lembrou, por sua vez.
— Sim, mas é mais fácil convertê-lo em comida.
— Está tentando me convencer que isso — e Jenny apontou para a torre - é para matar a fome dos pobres do Egito e não para encher mais os bolsos dos ricos?
— Como os meus bolsos, você quer dizer? — indagou Abdul.
— Bom, se a carapuça servir... — retrucou Jenny, dizendo a si mesma que não estava zangada, mas sabendo que estava.
— É claro que estou esperando ganhar também com isto — admitiu Abdul — e meus sócios também. Mas outras pessoas vão ser beneficiadas. É conveniente que a gente mantenha a fortuna que tem. Os pobres de hoje respeitam os ricos, como os pobres de ontem respeitavam os ricos faraós.
Jenny ia dizer alguma coisa, .mas se distraiu ao ver um jipe sair de um dos edifícios que havia atrás da torre. Voltou-se e viu que Abdul olhava o relógio.
— A segurança deles não é grande coisa — comentou. — Estamos há muito tempo aqui e só agora tomaram uma providência. Se fosse o caso, podíamos ter feito um bom estrago com uma bomba... — De repente, lembrou que não precisava assustar Jenny falando em sabotagem. — Se bem que é pouco provável que alguém resolvesse atacar um campo de perfuração exploratória, eles deviam ter vindo antes.
O guarda-costas que os acompanhara aproximou-se ao ver o jipe, mas manteve ã metralhadora abaixada.
— Galai Baseeli — disse Abdul, apresentando um dos três homens do jipe a Jenny. — É o encarregado da segurança. Estou mostrando o poço para a srta. Mowry — explicou. — Ela é uma arqueóloga que está trabalhando nesta área.
Galai cumprimentou com um aceno de cabeça. Tinha uma cicatriz no rosto, que ia desde o olho direito até o queixo, e os olhos negros mais gelados que Jenny já vira.
O jipe ficou ali parado, com os três ocupantes com armas pesadas em punho, enquanto Abdul levou-a de volta para a caminhonete.
— Estou com fome — disse. — E você?
Almoçaram sob um enorme toldo armado sobre quatro tubos de metal, onde cabiam perfeitamente Jenny, Abdul e os três guarda-costas, que comeram a mesma coisa que eles.
— Vai conhecer minha casa em Assuan logo? — perguntou Abdul, enquanto os três homens desmontavam tudo e guardavam na caminhonete. — Vou convidar Peter, também. Assim vocês têm uma chance de verem lugares mais românticos do que essas galerias poeirentas.
— Duvido que ele vá — disse Jenny, achando que uma mudança de ambiente faria bem a eles.
Os comentários dele sobre o colar e a saída dramática devia ter causado comentários sobre o relacionamento de ambos, que devia ser mais do que ligação profissional, apesar de Bárbara não ter dito uma palavra a respeito. A constante atitude gelada de Peter devia alimentar ainda mais os falatórios.
— Se você for, ele vai — garantiu Abdul, ligando o motor quando os homens terminaram de guardar tudo.
A volta demorou bem menos do que Jenny esperava. O grupo todo, inclusive Peter, estava na varanda da casa quando chegaram.
— Procure não agir como se estivéssemos por enfrentar seus pais, furiosos por chegarmos de madrugada, sim? — brincou Abdul, com uma careta, enquanto saíam da caminhonete e enfrentavam os rostos curiosos. -Está bem fazer Peter ficar um pouco enciumado, mas não pretendo ganhar um maxilar deslocado como prémio de boa representação!
— Psiiuuu! — fez Jenny, com medo que alguém ouvisse, mas só se ouviu o psiu dela e todos desejaram saber o que Abdul dissera.
— Ei, vocês dois! — chamou Bárbara. — Não querem ver se ficou alguma coisa do almoço para comerem?
— Já comemos, obrigada — respondeu Jenny querendo saber porque ficara corada ao dizer isso.
— Comeram numa lanchonete no deserto? — perguntou Peter, com evidente ironia.
Jenny não olhou para ele, com medo de não ver os sinais de ciúme que tanto esperava.
— Eu preciso ir embora — disse Abdul.
— Já? — indagou Jenny, ficando ainda mais vermelha ao pensar em como aquele "já" podia soar.
Apenas se sentia segura quando Abdul estava por perto e gostaria de ter o apoio dele por mais tempo.
— Você devia ser grata ao sheik Jerada por ter perdido boa parte de seu precioso tempo vindo nos visitar — observou Peter e Jenny olhou-o, rapidamente demais para perceber qual era sua expressão. Está sempre muito ocupado, não é, sheik?
— Você sabe... "primeiro a obrigação, depois a devoção". . . — replicou Abdul, bem-humorado.
— Isso mesmo! — concordou Peter, sabendo muito bem a que "diversão" Abdul se referia.
— Por falar em trabalho — disse o sheik, que era o único a manter o controle —, eu estava pensando se você e Jenny podiam arranjar uma folga para ir à minha casa em Assuan.
— Como é gentil em estender o convite a mim! — disse Peter, demonstrando que não achava aquilo gentileza alguma. — Mas temos muito trabalho para fazer em apenas dois meses. Talvez Jenny consiga algum tempo livre. Mas eu, como diretor dos trabalhos — e ele deu a maior ênfase ao "diretor" —, não tenho essa sorte.
— Deve ter outro meio-dia livre, como hoje — insistiu Abdul.
— Sim, mas em geral aproveito para descansar — rebateu Peter. E não seria descanso dirigir daqui a Idfu e de lá até Assuan.
— Mando meu helicóptero buscá-los — ofereceu o sheik, magnânimo conseguindo uma exclamação de Bárbara, impressionadíssima.
— Muita bondade sua. . . — disse Peter, algum tempo depois da exclamação de Bárbara, o que indicava que ele já estava hesitando.
— Pense nisso — pediu Abdul. — Tenho alguns falcões lá e os treinadores estão ansiosos por mostrar a habilidade deles.
— Vou ver se dá... — disse Peter, com ar de inveja.
Não queria aparecer como um amante enciumado, principalmente com Abdul insistindo em uma reunião a três.
— Ótimo! — exclamou Abdul, contente por ter conseguido. — Eu passo por aqui de novo e vamos combinar. — Cumprimentou todos e estendeu a mão para Jenny. — Você vai comigo até o carro? — perguntou, sorrindo como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Jenny não queria dar a mão a ele, mas não teve jeito de evitar. Sentiu que ele apertava-lhe suavemente a mão, para dar-lhe segurança. Quando não podiam mais ser ouvidos pelos outros, Abdul disse:
— Vai ver. . . Vocês vão gostar mais de Assuan do que daqui.
— Se ele for, vai ser apenas por causa desses malditos falcões que você atiça diante do nariz dele, como isca! — exclamou Jenny, de novo com ciúme das aves.
— Ah! — disse Abdul. — Essa é a desculpa que ele na certa vai dar a si mesmo, mas nós sabemos que é outra coisa, não?
— Sabemos, é? — indagou Jenny, imaginando como Abdul podia ter tanta segurança, enquanto ela se perdia em dúvidas.
— Acredite em mim! — pediu Abdul, confiante; abriu a porta da caminhonete e entrou, voltando-se para ela pela janelinha aberta. Acredita em mim, não é? Ele já não agiu assim, antes?
— Acredito em você! — concordou Jenny, incapaz de ficar séria diante do bom humor dele, ansiosa por acreditar, mesmo.
— Ótimo! — riu Abdul. — Agora, me dê um beijinho de despedida.
— Abdul, eu... — começou ela, sabendo que todos estavam olhando para eles dois.
Abdul insistiu, fazendo uma cara triste:
— E um beijo de amizade, mas também poderia ser de outra coisa... — Ela aproximou-se e deu-lhe um beijinho rápido na face, fazendo-o rir. — Nunca pense em representar, Jenny — disse, rindo.
— Você não tem o menor jeito para fingir!
Deu a partida. Jenny ficou olhando até a caminhonete sumir ao longe. Obrigou-se, então, a voltar-se, sabendo que teria de encarar Peter. Ficou desapontada ao ver que ele já havia entrado na casa.
CAPÍTULO XI
Sorte e morte: em Tebas, 1922, quando depois de hesitar muito, de planejar muito, Howard Cárter decidira passar mais aquele inverno na escavação no Vale dos Reis e localizara o túmulo de Tutancamon pouco antes de morrer; em Tebas, quando depois de dois meses de trabalho inútil, um dos homens que trabalhavam na escavação de H. E. Winbock, no túmulo do Rei Meket, percebera lascas de pedra entre o entulho e descobrira vinte e quatro pinturas antigas que registravam a vida no antigo Egito; em Hierakonpolis, em 1897, quando logo depois de ter chegado James Qibell fora com um de seus homens iniciar a escavação e descobrira uma estátua de cobre de um rei da Sexta Dinastia, Pepy I; em Hierakonpolis quando, sem estar procurando exatamente aquilo, Jenny relanceara os olhos pelo chão e vira o pedaço de pedra calcárea, branca, que era parte da cabeça do bastão de cerimónias da Primeira Dinastia.
Teve que olhar duas vezes para acreditar que aquilo estava, mesmo, ali. Achou que o sol refletindo-se na torre do poço de petróleo poderia estar lhe pregando peças.
No entanto, a peça branca permanecia no chão. Ajoelhou-se junto dela. Os guardas de segurança tinham se aproximado assim que ela chegara, o que indicava que Abdul tinha fido a prometida conversinha com Galai Baseeli. Ao reconhecer a mulher que estivera ali com Abdul, Galai a fitara com os frios olhos negros, desconfiados, enquanto Jenny dizia que viera para ver se havia por ali alguma peça arqueológica interessante, trazida para a sllperfície pelo revolvimento da terra provocado por escavadeiras e tratores. Na verdade, não esperava encontrar nada e nem sabia direito por que fora para lá, talvez por causa da pedrinha com formato de falcão.
Suas mãos tremiam ao limpar a terra que grudara no calcáreo. Era o pedaço de um todo, mas o conhecimento de Jenny permitia que a reconhecesse. A gravação na pedra repetia uma parte de uma gravação encontrada por QuibelI em Hierakonpolis, em 1898. A imagem gravada que QuibelI descobrira mostrava o rei da protodinastia do Escorpião, usando a coroa branca do Egito, no ritual de abrir o chão para um canal de irrigação, com os componentes da corte assistindo. O pedaço de calcáreo que Jenny tinha na mão continha apenas um detalhe da cena total: nada mais do que uma parte das pernas do faraó, uma parte do cesto que continha as oferendas e uma parte da ferramenta usada nas escavações. O restante da gravação devia estar por ali. Jenny examinou ansiosamente o terreno ao redor, na esperança de encontrar mais algum fragmento, mas foi iúntil. Como o terreno havia sido revolvido por máquinas, poderia ter ficado totalmente moído. Marcou o local da descoberta enfiando o lenço debaixo de uma pedra, para futuras buscas, imaginando o que o pessoal da segurança estaria pensando da sua atitude. Depois, guardou o fragmento que encontrara e, tentando parecer o mais despreocupada possível, foi para o jipe. Sabia onde Peter estava e dirigiu diretamente para lá. Ele havia saído bem cedo, para verificar um local onde possivelmente fariam uma escavação. Tinham combinado que Jenny o apanharia mais tarde e iriam para casa a fim de esperar o helicóptero que os levaria para a casa de Abdul, em Assuan. Ao chegar, buzinou e continuou buzinando até Peter aparecer detrás de umas pedras. Ele parecia descontente. Olhou acintosamente para o relógio para demonstrar que não estava ansioso como ela para ir ao encontro de Abdul. Sem dizer nada, ela mostrou o pedaço de calcáreo e a expressão de Peter mudou no mesmo instante.
— Meu Deus! Onde arranjou isto? — perguntou, examinando a pedra gravada com mais atenção. — Não é o que estou pensando, é?
— O que você está pensando que é? — indagou Jenny de volta tentando não demostrar toda excitação que sentia.
— Parece um pedaço da cena de uma outra pedra gravada, muito parecida com a cerimónia do Escorpião, não é? — Ergueu os olhos para ela. — Isto é fantástico!
— Você acha, mesmo? — insistiu Jenny, sabendo que aquele fragmento e a pedra em forma de escorpião podiam indicar seguramente que o rei protodinástico do Egito vivera e fora enterrado ali.
Era uma possibilidade que iria contradizer a teoria de Peter de que o Rei Escorpião fora sepultado mais para o norte. Por isso ela estava surpresa pelo fato de Peter parecer tão animado ao ver mais um indício dessa possibilidade.
— Por que se espanta? Como achou que eu ia reagir? — indagou Peter com a voz carregada de desafio, o que prenunciava mais um choque entre os dois.
— Vamos com calma, sim? — pediu. — O jeito que achei que você ia reagir é esse mesmo. Por que não pára de descobrir coisas que não existem em tudo que eu digo e faço?
— Tem certeza de que não me trouxe este fragmento apenas para me gozar? — indagou Peter, os olhos dourados soltando faíscas. Você pode muito bem dizer: "Olha aí, velho: mais uma evidência para provar que suas teorias sobre o Rei Escorpião são puras besteiras"!
— Eu trouxe este fragmento para você porque acontece que é o diretor das escavações! — respondeu Jenny, esperando que ele acreditasse na verdade, que quisera dividir com ele a excitação do achado e não demonstrar superioridade profissional. — Me diga para quem mais eu poderia levar isto!
— Desculpe... — disse ele. — Eu ficaria muito aborrecido se você, ou qualquer outra pessoa, pensasse que não sou flexível o bastante para revisar minhas teorias quando aparecem provas contrárias.
— Está desculpado. . . — respondeu Jenny, sentindo-se um tanto culpada.
Realmente, pensara que Peter fosse bem menos flexível do que era. Pelo jeito julgara aquele homem de maneira completamente errada e tinha medo que todos os preconceitos que formara continuassem a distorcer a verdadeira imagem de Peter.
— Então, vamos até o lugar onde você encontrou isto — sugeriu peter, indo para o jipe.
— O terreno lá foi tão remexido que não dá para imaginar onde a placa gravada estava — explicou Jenny não querendo que ele pensasse que ela fizera como muitos arqueólogos faziam: sair correndo com o tesouro encontrado sem verificar a área onde estava.
— Nunca duvidei da sua competência profissional — disse Peter.
— Se fiz alguma crítica no passado foi por achar que se tratava de crítica construtiva. Ser criticado faz com que a gente volte atrás, olhe as coisas de outro modo, redimensione e revise ideias, perceba pontos que porventura tenham ficado esquecidos ou despercebidos.
Jenny sabia que ele estava se referindo às críticas que fizera às teorias dela sobre Creta-Atlântida. Ficou embaraçada ao constatar que recebera como afronta pessoal uma crítica meramente construtiva, feita por um profissional que simplesmente pretendia um repasse atento para verificar a solidez das hipóteses apresentadas. Vendo o modo com que ele aceitava uma nova prova da possível permanência do Rei Escorpião naquele local, imaginou se ela faria o mesmo, estando no lugar dele.
Quando chegaram ao local, o pessoal da segurança impediu que se aproximassem. Galai Baseeli mantinha-se inflexível, como se estivesse arrependido por ter deixado Jenny remexer por ali sem a companhia de sheik Jerada. Estava determinado a não deixar que um estranho se aproximasse do poço com ela. Eles insistiram, dizendo da importância do faraó protodinástico, cuja vida fora um laço entre a história conhecida e a desconhecida da humanidade. Ele parecia surdo. Declarou, um tanto secamente, que o trabalho deles era arqueologia, porém o dele era segurança.
— Era a obrigação dele — comentou Jenny, enquanto voltavam para casa. — E acho que não íamos encontrar nada, mesmo, à flor da terra. As escavadeiras e tratores devem ter moído tudo que podia haver. Esse fragmento escapou por pura sorte.
— É uma descoberta muito importante! — disse Peter, sua raiva agora não dirigida a ela, felizmente! — É neste país que se encontram as raízes da história da humanidade! Espero que Abdul nos ajude!
Jenny achou melhor não falar da teoria de Abdul sobre o Egito antigo e o novo Egito. Pelo que conversara com ele, achava que o sheik também iria antepor a importância do petróleo à da arqueologia.
E a desconfiança dela confirmou-se quando conversaram a respeito com Abdul, nesse mesmo dia, mais tarde.
— Deixe-me ver isso direito — disse Abdul, segurando o pedaço de calcáreo e olhando-o como se Jenny tivesse dito que era ouro.
— Trata-se de algo. . . parece-me que não estou avaliando quanto. muito importante? - Devolveu a pedra, preferindo o carcadet gelado que a criada lhe oferecia.
Estavam na varanda da casa. O Nilo, a ilha Elefantina e a moderna cidade de Assuan estavam à vista além do parapeito da varanda que ficava sobre a margem do rio.
Era uma paisagem lindíssima, mesmo à intensidade do sol da tarde, pouco antes do crepúsculo.
— É muito importante! — exclamou Jenny. — É o primeiro pequeno passo para provar que Hierakonpolis era uma das primeiras capitais, se não a primeira, do Egito. Acredita-se que o Rei Escorpião foi o predecessor imediato do faraó Menes-Narmer ou, quem sabe, ele mesmo. Imagine o que significa provar que foi em Hierakonpolis que a Primeira Dinastia começou, realmente!
— E o que significa? — perguntou Abdul, encarando Jenny por cima da borda do copo. — Por que esse fato justificaria a interrupção de uma prospecção de petróleo?
— E por que duas pessoas examinando a terra iriam interromper, ou atrapalhar, uma prospecção de petróleo? - indagou Jenny, sem reconhecer a lógica de Abdul. — Não vamos chegar tão perto assim da perfuração. Queremos só dar uma espiada nos arredores.
— E se vocês descobrirem alguma coisa nos arredores, o que acontece? — perguntou Abdul. — A coisa pára aí ou vocês vão querer ir em frente e fazer uma escavação?
Peter ainda não engolira o amargo da frustração de ter tentado argumentar com o chefe de segurança da perfuração, que não tinha a menor noção do que poderia significar aquele pedaço de calcáreo gravado. Era pior ainda a sensação de ter que argumentar com um homem instruído, que deveria perceber essa importância imediatamnte. Procurou manter-se calmo, quando começou a falar:
— Olhe. . . É possível que ainda exista alguma prova de que a civilização de hoje tenha começado em qualquer lugar de Hierakonpolis. Você não se interessa em saber como foi esse primeiro faraó, o que ele era? Um homem à frente de um feroz agrupamento. . . ou um simples pescador.. . talvez um pacato agricultor? Enfim, não se interessa por saber quem era esse chefe que nós, simples caçadores de pedras riscadas, de indícios, acreditamos ligado intimamente ao poderoso império que ergueu as pirâmides de Gisé há apenas três dinastias?
— Nesse ponto você tem razão — anuiu Abdul, mas Jenny achou que se tratava apenas da saída de um homem cansado do assunto.
— Por que não me dá tempo para Ver o que posso fazer?
— Nós agradecemos tudo que você possa fazer. . . — disse Peter, tendo conseguido mais do que Jenny.
— Mas não espere nenhum milagre! — avisou Abdul, suavizando em seguida as palavras ásperas com um sorriso. — Pelo menos, não de imediato. Tem havido uma verdadeira paranóia por aqui sobre isso de poços de petróleo destruírem preciosos indícios do passado que porventura estariam nos locais de perfurações. Algumas minas, possivelmente colocadas por facções contrárias a nós, andaram explodindo a menos de quatro quilómetros de um poço de petróleo perto de Luxor. Talvez não haja nenhuma conexão entre os fatos, mas. . . Uma criada interrompeu, para avisar que o jantar estava servido; Abdul ergueu-se, imitado por Jenny e Peter. — Não quero que vocês esperem demais de mim, no sentido de ajudar em buscas nas proximidades da torre de perfuração. . . — concluiu Abdul, num tom que deixava evidente sua esperança em terminar ali a discussão de um assunto que evidentemente não o agradava.
Jenny guardou o fragmento de calcáreo na bolsa. A sala de jantar, com paredes inteiras de vidraça de dois lados, oferecia duas vistas contrastantes, mas de beleza igual. Sentada de frente para o Nilo, Jenny via as colinas tingidas de rosa-brilhante além das quais a cidade aninhava-se. O Nilo, primeiro, apresentava uma série de cataratas e corredeiras, movimentando-se entre as várias ilhas, a maior delas chamada ilha Elefantina. O tamanho dessa ilha, antigamente, não apenas fora utilizado para se constituir uma medida padrão chamada nilômetro - com que mediam a altura da água e também a altura das cataratas - mas também fora usada por Erastóstenes, no ano 123 a.C. para calcular o diâmetro da Terra. Mais perto da casa, começava o deserto, de terra marrom, seca, depois clareando, as dunas subindo à esquerda para o mausoléu do Aga Khan e, à direita, para a escarpa onde ficavam os túmulos dos nobres.
A mesa, enorme, era de carvalho. Havia um arranjo de centro, com gladíolos brancos, vermelhos e cor-de-rosa. Shorbât - Unia sopa de lentilhas vermelhas — estava servida numa sopeira de prata. Havia camarões enormes, chamados bamia, com ouriços do mar. Havia sefrito - pernil de cordeiro assado — e belehat, linguiça de carne de vitela. E mais: abobrinha recheada, dadinhos de creme de tutano, arroz com açafrão, salada de rabanete, beterraba, pepino e cebolas.
Assim que entrou na sala, a atenção de Jenny foi chamada pelo bonito arranjo da mesa. Depois, reparou na enorme lareira de mármore preto, de duas faces, que separava a sala de jantar da sala de estar. Para surpresa deles, a lareira estava acesa e as chamas vermelhas, amarelas e alaranjadas dançavam, alegres.
— Minha mulher fez questão da lareira, para lembrar sempre dos nossos dias na Universidade de Princeton... — disse Abdul. — No inverno faz muito frio em New Jersey.
Como naquela época do ano o calor era ainda mais intenso no Egito, a temperatura ambiente era mantida num nível agradável com uma incongruência: aparelho de ar-condicionado funcionando. Depois de alguns minutos, Jenny conformou-se com a situação antagónica e saboreou o crepitar da lenha e a dança das chamas:
— Eu não sabia que você era casado - disse Jenny, depois de se sentarem à mesa.
Fora difícil conter o comentário tanto tempo e ela não pôde deixar de notar o sorriso insinuante de Peter.
— Divorciado — explicou Abdul, o que fez o sorriso de Peter desaparecer no ato.
Pelo jeito, aquele assunto não agradava Abdul, que o desviou imediatamente, falando do último falcão que comprara. Quando ficou claro que aquele tema poderia distrair Peter infinitamente, mas nunca Jenny, ele diplomaticamente passou a falar em outras coisas, culminando por comentários sobre os enormes e saborosos morangos com creme servidos à sobremesa.
Jenny achou esquisito Abdul nunca ter falado no divórcio. Era estranho um homem estar cortejando uma mulher... com quem parecia ter intenções de casar. . . lutando contra um rival, sem dizer nada sobre seu casamento anterior.
— Agora, eis uma sobremesa especial para Jenny! — anunciou Abdul, de modo teatral, enquanto ela mastigava o último morango.
Uma criada aproximou-se com uma bandeja de prata, recoberta por um tampo redondo, também de prata. Abdul retirou o tampo, num gesto floreado.
— Por favor. . . não me diga que é o que eu estou pensando! — disse Jenny, com um gemido.
— Você vai acabar dilapidando sua enorme fortuna, Abdul, se continuar cobrindo Jenny com jóias desse jeito! - comentou Peter, com ironia, ao ver o estojo de veludo muito parecido com o outro que vira e que continha o colar.
— É a mesma jóia — explicou Abdul, voltando-se para ele. Sabe quantas vezes essa moça já recusou o meu presente? Duas. E eu continuo insistindo, na esperança de que ela mude de ideia. Não é, Jenny? — completou, dirigindo-se a ela.
— É caro demais — disse Jenny, sem fazer um só gesto para pegar o estojo e a criada estava sem saber o que fazer.
— Quem sabe você consegue fazer Jenny aceitar o meu presente, Peter — sugeriu Abdul, pedindo a ajuda de Peter. — Comprei esse colar especialmente para ela e não vou poder usá-lo. . . Ia ficar engraçado se saísse por aí com um colar de lapis-lazúli e safiras.
— Por que não aceita Jenny? — perguntou Peter, como se quissesse, mesmo, ouvir a resposta dela.
Jenny percebeu que ele estava perturbado diante da situação que se montara. Evidentemente, não tinha a menor ideia de que ela devolvera o colar a Abdul, no dia seguinte ao que havia chegado ao local de escavação.
— Já disse a vocês dois - repetiu ela, com um suspiro. — É caro demais.
— Acho que o único jeito de fazer Jenny aceitar este colar é deixando-o em testamento — comentou Adbul. — Ela não poderia se negar a satisfazer minha última vontade.
— Sem esperar qualquer comentário, Abdul tapou de novo o estojo e mandou que a criada o levasse de volta.
Jenny teve vontade de beijar o árabe. Afinal, compreendera o que ele quisera fazer. Percebendo que a chegada do colar naquele dia provocara a raiva e a zanga de Peter, decidira mostrar a ele que Jenny já recusara duas vezes o régio presente.
— Agora, espero que vocês se divirtam sem mim por umas duas horas. Tenho que providenciar um negócio urgente. Peter, se você quiser, pode ver alguns dos meus falcões caçarem, agora ao cair da noite. Se não, poderá deixar para amanhã cedo.
Então, Jenny sentiu vontade de matar Abdul! Ficara agradecidíssima por ele ter colocado Peter na posição de ter que lhe pedir desculpa e dado um jeito para os dois ficarem sozinhos. Mas, agora, acabava de estragar tudo! A última coisa que Jenny poderia querer era Abdul fora da jogada e ela sozinha, com Peter todo animado lidando com falcões!
— Vamos deixar isso para amanhã — respondeu Peter.
Jenny suspirou tão profundamente que ficou perturbada, achando que os dois tinham ouvido o suspiro.
Abdul olhou-a com ar de viu-como-não-tinha-nada-a-temer e disselhes que chamassem Sadid se quisessem alguma coisa. Sadid era a criada que estava tirando a mesa nesse momento e que se pôs imediatamente à disposição deles.
— Que tal tomarmos algo gelado na varanda? — propôs Peter.
— Vou dizer a Sadid que sirva champanhe para vocês lá — disse Abdul, erguendo a mão para sustar os protestos. - Vocês me fazem um grande favor tomando esse champanhe.
É francês, mesmo, muito bom e constitui uma tremenda tentação para quem, como eu, não pode tomar álcool.
— Bem, se é assim... — concordou Peter, aceitando.
— Vejo que é mais fácil me livrar do champanhe do que do colar. . . — gracejou Abdul, rindo.
Deu instruções a Sadid para servir o champanhe e despediu-se dos hóspedes., saindo da sala.
Jenny e Peter foram para a varanda. Logo depois Sadid chegou com o champanhe, os copos e serviu, retirando-se em seguida. O champanhe descia deliciosamente gelado, refrescando a garganta. Jenny aproximou-se do parapeito, olhando ao longo do Nilo, para Assuan e as colinas, que assumiam um tom levemente violeta. O barco de Abdul estava chegando na outra margem, no entanto Jenny estava muito mais interessado no homem atrás dela do que na paisagem e no que acontecia lá embaixo. Esperava que ele dissesse alguma coisa.
— Por que não me disse que tinha devolvido o colar? — indagou Peter.
Pelo som da voz, Jenny pôde calcular a que distância ele, estava. Queria que estivesse mais perto, tão perto que sua respiração he roçasse a nuca quando ele falasse.
— Você ia acreditar? — perguntou ela.
Um barco estava saindo do cais na direção da ilha Elefantina. Não era o Osiris, nem seu irmão Isis.
— Provavelmente não — admitiu Peter.
— Caso encerrado, então — disse Jenny, olhando o jogo bonito de cores que os veleiros punham na água.
— Assim mesmo, eu ia me sentir confortado, mesmo achando que era mentira — disse Peter. — E só Deus sabe o quanto eu estava precisando de conforto, Jenny! Estava com ciúme de Abdul, sabia? Estava, estou e acho que sempre vou sentir ciúme dele.
Jenny virou as costas para a paisagem, preferindo a vista mais querida. Não havia nada mais no mundo para que gostasse de olhar sem ser Peter Donas. E ele estava ainda mais lindo agora, de pé, com a camisa branca aberta no peito bronzeado, calças justas, marrom. , - Não precisa ter ciúme de Abdul - disse ela, desejando desesperadamente que Peter se aproximasse, que largasse o copo de champanhe e a apertasse nos braços. — Ele é apenas um amigo.
— Verdade? — indagou Peter, querendo acreditar.
— Eu nunca minto para você, Peter — murmurou Jenny. — Nem quando digo que Abdul é um amigo.. . nem quando digo que o amo.
Então, ele se aproximou, despertando ainda mais os sentidos dela com o movimento felino, com o odor seco de sua água-de-colônia, com o toque de suas mãos, o ardor dos lábios, o som da voz ao ouvido dela:
— E eu também não minto, nunca menti para você, Jenny... — sussurrou, o rosto enfiado na curva entre o ombro e o pescoço dela.
Virando um pouquinho a cabeça, Jenny pôde sentir a carícia macia dos cabelos negros na face.
— Você telefonou para sua casa, mesmo, para falar de mim? - perguntou, com medo de falar a palavra casamento, medo que ele pensasse que era a única coisa que a estava interessando.
— Telefonei, sim. . . — respondeu ele, entre pequeninos beijos no pescoço de Jenny, o corpo colando-se ao dela.
— E o que ele disse, quando soube? — indagou Jenny, sabendo que Peter tinha apenas um tio e que os pais dele tinham morrido, como os dela.
— Tio George está doente — disse Peter, afastando-se apenas o suficiente para passar a mão no rosto dela, abrindo os dedos de modo que o polegar acariciou de leve os lábios. — Ele ficou surpreendido com a notícia. A doença tornou tio George mal-humorado e pouco romântico.
— Então, ele não gostou da ideia de você me levar para casa, não é? — perguntou Jenny, sentindo-se perturbada com essa ideia.
— Meu tio e eu nunca fomos muito ligados — respondeu Peter, dizendo a ela que não se preocupasse. — Meu telefonema foi apenas uma atenção para com um velho que está longe de imaginar o que é amar como eu te amo. Não preciso da aprovação, nem da bênção dele. Não preciso da aprovação de ninguém para me casar com a mulher que amo.
— Casar? — ecoou Jenny ao ouvir a palavra que esperara tanto.
— Quer se casar comigo, não quer, Jenny? — perguntou Peter, o corpo tão unido ao dela quanto eram unidas duas pedras da pirâmide de Quéops.
— Sim, quero... — respondeu ela, a voz tão presa à garganta e as palavras foram mais um gemido de amor do que som.
Passou os braços pelo pescoço de Peter, sabendo que queria aquele homem mais do que quisera alguma coisa ou alguém no mundo.
Peter beijou-a profunda e demoradamente, movimentando os lábios e a língua, num ardor faminto que deixou Jenny atordoada. Quando se separaram, havia um acordo tácito entre ambos. Jenny não queria abusar da hospitalidade de Abdul, fazendo amor com Peter sob o teto daquela casa. Era evidente que o sheik a amava, principalmente agora que ficara claro que ele punha a felicidade dela acima da dele. Ela não tinha coragem de exibir a imensa felicidade que sentia diante daquele homem que não podia estar se sentindo feliz. Como o Abdul não chegasse, Sadid levou-os para quartos separados.
Logo Jenny compreendeu que estava excitada demais para dormir.
Cerca de duas horas da madrugada ouviu o barco de Abdul chegando.
Como às três ainda não tivesse ouvido ele subir as escadas e ir para o quarto, vestiu o penhoar e resolveu descer para agradecer a Abdul a felicidade que lhe proporcionara.
À primeira vista, as salas no primeiro andar estavam vazias. Tanto que Jenny começou a achar que se enganara, pensando ouvir o barco chegar. De repente, começou a sentir uns arrepios que nada tinham a ver com os arrepios que sentira quando Peter a apertara nos braços. A sensação de agora não era agradável e trazia-lhe à lembrança as imagens de um jipe vindo em sua direção, na areia do deserto, de balas zunindo junto de seu rosto, de Abdul ferido, caído diante da tenda. Recusava-se a acreditar nisso, mas os inimigos de Abdul poderiam ter entrado na casa. Quem sabe ele não tomara as precauções suficientes para...
Voltou-se rapidamente ao perceber um som atrás de si, os nervos tensos provocando um gemido que ia se transformar num terrível grito se Abdul não aparecesse imediatamente atrás do estranho homem que estava no umbral.
— Jenny? — perguntou Abdul, surpreendido ao vê-la.
Jenny estava com toda atenção dirigida para o homem que parecia tê-la cravado na parede com o olhar malévolo. Aquele olhar sombrio e cruel parecia dizer que a vontade dele era envolver o pescoço de Jenny com as mãos descarnadas e apertá-lo até que ela deixasse de respirar.
— Ela! — o velho murmurou, com voz rouca, apontando para Jenny com ênfase.
O rosto dele era como uma bola murcha, enrugada, como uma enorme maçã seca, dessas que a gente usa para fazer cabeça de bonecas de trapo. A cabeça parecia pequena demais para sustentar o enorme turbante azul que a envolvia. Os braços e mãos, que apareciam saindo das amplas mangas da galabia que usava, eram magros, as unhas longas e recurvadas.
— Ela! — repetiu o homem. — Ela vai ser uma das causas do seu sacrifício!
Movimentou-se com tal rapidez que Jenny achou que ia saltar sobre ela. Sentiu-se pregada ao chão, apesar da sensação de alarme que crescia em seu íntimo, exortando-a a fugir. Se bem que na realidade era muito mais forte do que o velho, sentiu-se incapaz de se defender e foi enorme seu alívio quando ele apenas se virou e sumiu na sala atrás dele.
— Meu Deus! — gemeu Jenny, sentindo um gelado arrepio de medo percorrer-lhe o corpo.
— Não ligue para o Rashid — disse Abdul, tentando acalmá-la. Ele adora lances dramáticos, teatrais. Isso é muito comum na profissão dele.
— Qual é a profissão dele? — perguntou Jenny, não recusando o braço de Abdul para chegar até uma cadeira e sentar-se, enquanto ele lhe servia uma dose de conhaque. — Apavorar mulheres e crianças?
— Se eu disser, na certa você vai achar engraçado, poderá querer experimentar e a conversa agradável que poderíamos ter talvez se transforme em algo preocupante, aborrecido. . . — profetizou Abdul, sentando-se ao lado dela. — No entanto, como acho que merece uma explicação, aqui está ela. Rashid al-Hidda é meu astrólogo.
Ao chegar, encontrei-o à minha espera, para me avisar que os astros uniram-se, na vastidão do Universo, numa posição que terá desagradáveis consequências para mim se. . . repito, se. . . eu não tomar muito cuidado- Disse que o fogo representa um perigo fatal para mim. . .
Abdul tentava parecer despreocupado, mas Jenny sabia que os árabes dão importância grande ao ocultismo e que ele na certa levava Rashid mais a sério do que demonstrava.
O fato dele ter estudado com europeus poderia ter suavizado sua crença na astrologia, mas dificilmente teria acabado com ela.
— E ele me achava responsável por isso? — perguntou, lembrando do olhar de ódio do homem ao acusá-la.
— Refere-se a você ser a responsável pelo meu sacrifício? Não ligue. Abdul não gosta de nenhuma mulher ocidental. Acha que são de má influência para o mundo árabe. Desconfio que, de surpresa, ao ver você, ele pensou que era Regina de volta. Deve ser isso, pois há uma leve semelhança entre vocês. — Ele riu, nervoso.
— Regina era sua mulher? — perguntou Jenny, percebendo logo que fizera uma pergunta desnecessária.
— Era. E era muito bonita, também. Eu me apaixonei por ela no primeiro instante em que a vi, na biblioteca de Princeton. Decidi que ia ser minha. Pouco me importou saber que estava noiva de um rapaz que na época estudava advocacia. Eu era convencido, jovem e acho que tão teimoso quanto sou agora. . . - Levantou-se, foi até as portas abertas para a varanda; olhou Assuan, às escuras, menos uma rua que bordejava o Nilo; voltou-se para ela e sorriu. - Mas acho que estou aborrecendo você com essa história.
— De jeito nenhum! — replicou Jenny.
— Eu era exótico, atraente e rico. . . — disse Abdul, com um sorriso, para pedir desculpa pela falta de modéstia. — O noivo dela era um colega desde o primeiro grau da escola, um americano, ótimo jOgador de beisebol, pobre como o proverbial rato de igreja. . . e eu já sabia ser persuasivo e encantador, quando queria.
— É, eu sei. .. — disse Jenny, sorrindo.
— Mas você só conhece o método aperfeiçoado. . . — brincou Abdul. — Agora estou escolado com os erros que cometi, se não você teria dificuldade em me manter longe.
— E assim mesmo errei de novo. Você não aceitou um simples colar, enquanto Regina aceitou uma pequena fortuna em jóias até chegarmos a um compromisso. Não que eu esteja criticando. Regina, como o noivo, tinha chegado até a Universidade com sacrifícios. Não pense, também, que estou querendo fazer minha ex-mulher passar por uma cavadora de ouro. . . Quando terminamos, ela deixou tudo que eu tinha dado. Foi embora apenas com as roupas do corpo. Assim como não tivera pejo em aceitar presentes do homem com quem ia casar, não quis levar nada quando decidiu que, afinal de contas, não conseguia se vender.. .
— Sinto muito — murmurou Jenny. — Muito, mesmo.
— É muito mais duro do que você pode imaginar, mesmo para um árabe do século XX... — disse Abdul. — Principalmente quando se trata de um árabe que ainda pertence por alma ao velho Egito. Por mais ocidentalizado que a gente esteja, o país de que fazemos parte não se modernizou, continua muito oriental. Talvez por isso mesmo eu esteja tão ansioso por descobrir petróleo que leve todo Egito para o século XX. Por enquanto, não vejo possibilidade disso. Estou cansado da atitude de homens como Rashid al-Hidda que não querem vir para o presente e que, entre outras coisas, ainda consideram as esposas mera propriedade, não companheiras. Não foi fácil para Regina quando nos casamos e viemos morar aqui, apesar do luxo desta casa, apesar de eu lhe dar todo carinho e proteção. Não é fácil para uma ocidental suportar a transição entre o presente e o passado. E eu errei ao achar que poderia fazer de Regina um exemplo para as mulheres egípcias. . . assim como também acho que errei ao julgar que você reagiria do mesmo modo que Regina aos presentes que eu oferecesse. Às vezes é muito difícil para mim seguir minha cabeça em vez do coração, por mais esforços que faça.
— Você age muito bem. . . — disse Jenny, baixinho.
— Espero não decepcionar você.. . — comentou Abdul, pensativo.
— Eu iria sofrer muito se descobrisse que perdi a mulher capaz de ultrapassar todos os obstáculos por medo de errar, submetendo-a a pressão exagerada, como fiz com Regina.
— Não. Você tem agido certo, Abdul. Pode crer! — disse Jenny sabendo que seria tão difícil para ela, quanto fora para Regina, assumir o papel de mulher dele.
Duas vezes na vida ela sentira a revolta de ter sido preterida na profissão por causa da posição arcaica dos árabes em relação aos direitos das mulheres. Uma vez fora na escavação de Avris, quando Rogef Daugan tinha ocupado o lugar que deveria ser dela; agora em Hirakonpolis, quando Peter entrara no lugar do dr. Kenny.
— Quer saber o fim de minha história com Regina, não é? — indagou Abdul. — Ela voltou para o homem que, na verdade, sempre havia amado e descobriu que ele se casara, que tinha um filho e outro a caminho. Os dois acabaram mantendo um relacionamento adúltero por mais de um ano. Isso acabou num divórcio e numa feia disputa pela custódia dos filhos. Ele não conseguiu as crianças, mas casou-se com Regina. Um ano e meio depois, divorciaram-se. Desde então ela não tem feito outra coisa se não descer cada vez mais baixo e achar que nada, a não ser meu dinheiro, pode impedir que caia de vez.
— Isso me deixa muito triste, Abdul... — disse Jenny.
— Não. Seja apenas feliz, Jenny — replicou ele, levantando-se, embaraçado por ter demonstrado suas emoções: ele também apegava-se a imagens estereotipadas. — Seja feliz por nós dois.
Jenny foi para o quarto, mas não conseguiu dormir. Continuava acordada, bem mais tarde, quando uma criada bateu à porta de seu quarto e perguntou se queria ir assistir ao treino dos falcões com os homens. Jenny disse que não, achando irónico não conseguir descansar, quando não tinha horário para levantar, como todos os dias, a fim de ir para a escavação. Levantou, tomou café e passou a manhã na varanda, folheando revistas que Abdul mandava vir da América e Europa. Pouco antes do meio-dia Abdul chegou e ela ficou desapontada ao ver que Peter não viera.
— Ele ficou no pavilhão — explicou Abdul, referindo-se ao edifício especialmente construído para abrigar os falcões e todo equipamento de falconeria. — Vim ver se você quer ir dar uma espiada na nova aquisição dele.
— Como é? — perguntou Jenny, achando que não entendera, zangada por Peter ter de novo preferido a companhia dos falcões. Ofereci um falcão selvagem a ele — disse Abdul. — Lembrase que tinha falado numa fêmea? Ela foi apanhada aqui em.
Jenny compreendeu o que Abdu fizera- Ele sabia muito bem que ela queria ficar com Peter; sabia, também, que o interesse de Peter nor falcões era quase uma fraqueza de carater. — Como pôde fazer isso? — perguntou, sentindo-se traída com vontade de chorar. — Como fez isso comigo, depois de ser tão bom?
—Jenny, Jenny — disse ele, baixinho. — Não estou sendo mau! Você é uma mulher inteligente, mas tem muita coisa para aprender no que se refere à paciência e controle.
Um homem como Peter tem muitos interesses na vida. Você é o maior deles, tenho certeza. Mas não pode querer impedir que ele faça o que gosta. Não pode se sentir diminuída cada vez que ele segue um desses interesses.
— Está insinuando que sinto ciúme desses malditos falcões? — perguntou Jenny, com um sorriso, pretendendo fazer a ideia parecer ridícula.
— E não sente? — insistiu Abdul.
— Não — afirmou ela, incapaz de aguentar o pensamento de Peter feliz com qualquer outra coisa que não fosse ela. - Não,
Jenny esse problema não vai se resolver simplesmente Peter se afastando dos falcões — avisou Abdul — Se você não souber aceitar isso, pode ter uma série de dificudades.
Estou mesmo sendo uma boba!, admitiu Jenny para si mesma. Reconhecia que queria Peter junto de si sempre, tanto, que tinha ciúme até do vento do deserto que brincava com os cabelos dele. Queria que apenas seus dedos despenteassem Peter. Mais nada.
CAPÍTULO XII
Alguém, Jenny já não lembrava se fora Peter ou Abdul, lhe dissera que um falconeiro que experimentasse caçar com um falcão -selvagem, nunca mais se satisfaria com outro falcão, por melhor que fosse. O falcão criado em cativeiro era diferente. Apanhado já adulto, o selvagem conhecia o gosto da liberdade e nem sempre voltava para o pulso do dono.
Quando vira o falcão selvagem que Abdul, Peter e os treinadores insistiam em dominar, impondo-lhe suas vontades, Jenny não conseguira sentir raiva da ave que lhe roubara as atenções de Peter. O falcão parecia irmão gémeo de Hapshetsut, só que ela fora apanhada pequena e não conhecia a liberdade. Fénix - assim Peter balizara o falcão fêmea selvagem, em homenagem à primeira conversa que tivera com Jenny, no Museu do Cairo - demonstrava claramente que preferia ser livre. Sem querer, ela se comparava com o falcão. Estava presa a Peter pelo amor. Fora livre como Fénix, sempre adorara o milagre da liberdade. Mas algo lhe dominara a vontade. Percebia que se sentia tão inquieta quanto o falcão ansioso por recuperar a liberdade. O falcão resistira e continuava resistindo, Jenny resistira, mas acabara dominada a ponto de se sentir grata por qualquer instante de atenção que Peter lhe dava. Observando os esforços de Peter para dominar a vontade do falcão selvagem, Jenny lembrara do que ouvira dizer de homens que gostavam de caçadas: tudo perdia a graça depois da presa capturada.
Era isso. Peter a capturara e, agora, estava interessado em outro desafio. Restava-lhe o pequeno consolo de Peter repetir que a amava, de beijá-la sempre, de ter dito ao pessoal da escavação, assim que tinham voltado da casa de Abdul, que iam se casar. No entanto, continuava amargurada por Peter preferir a companhia do falcão.
— Será que você pode fazer o favor de me explicar uma coisa? — disse Jenny, sabendo-se levada pelo ciúme, talvez estragando um dos preciosos momentos que Peter lhe dedicava.
— Se eu puder... — respondeu ele, voltando-se para ela, na varanda da casa, onde estavam sentados.
O sol começava a perder seu esplendor, dando lugar à chegada da noite antes da lua nascer. Estrelas já brilhavam no céu, acima do forte Kasekhemui, cuja silhueta escura se recortava ao longe.
— Por que se zangou tanto diante da possibilidade de eu aceitar o colar que Abdul queria me dar e aceitou o falcão? — perguntou.
— Não é a mesma coisa Jenny — respondeu Peter.
— Por quê? — pressionou ela. — Você não pode pendurar o falcão no pescoço, mas pendura no pulso. E Abdul lhe deu mais coisas, como o barracão para ele ficar, já que não pode ficar no seu quarto. . . mas acho que você era até capaz de dormir com ele!
— Não tem graça! — retorquiu Peter, impaciente.
— Outra coisa: Abdul cedeu um treinador, para cuidar do falcão quando seu trabalho na escavação interferir no treinamento — acrescentou Jenny.
— O barracão, o treinador e o falcão só foram emprestados para mim — explicou Peter.
— Emprestados? — insistiu Jenny. — No dia que deu o falcão para você, Abdul não me disse que estava emprestando. Perguntou se eu não queria ir ver sua nova aquisição. A palavra aquisição significa propriedade, não?
— Não me venha com semântica, agora! — irritou-se Peter, — Todo mundo sabe que não posso levar o falcão para a Inglaterra.
— Não há mais ninguém que tenha que saber isso — contradisse Jenny. — Será que eu sou "todo mundo"? Pois acho que pode levar.
— Se soubesse o que diz que sabe sobre falconeria, tinha que saber que um falcão peregrino como Fénix precisa de amplos epaços com caça à disposição.
— Você tem uma propriedade na Inglaterra, de muitos acres não? — rebateu Jenny, já sem saber se estava tentando convencer Peter ou a ela mesmo, vendo ele se desculpando na noite de núpcias por ter de ir cuidar do falcão que estava com problemas. — Quanto à caça, você pode comprar pombos e soltá-los para o falcão caçar como Abdul faz.
— Olhe, Jenny, é menos um caso de espaço e caça do que de tempo — corrigiu Peter. — Falcões peregrinos têm que ser treinados todos os dias para manterem a forma.
— Então, leve o treinador para a Inglaterra — disse Jenny, resolvendo tudo, apesar de que detestaria se Peter levasse o falcão.
— Ele vai ficar melhor aqui — decidiu Peter, depois de ficar calado por uns instantes. — Aqui há bastante espaço, sem o perigo dele levar tiros de algum fazendeiro preocupado com a proteção de suas galinhas. Abdul tem mais facilidades para cuidar dele e treiná-lo,
— Você só pensa no falcão, não é? — desafiou Jenny.
— O falcão merece ser bem-cuidado — disse Peter, com um suspiro. - Não pode ficar com uma pessoa que só pode lhe dedicar metade de seu tempo. — E o que você está fazendo agora? Não está dando metade de seu tempo para o falcão e a outra metade para o trabalho de diretor da escavação, se bem que não tenha tempo suficiente para fazer as duas coisas bem feitas? — agrediu Jenny.
Peter ficou sem fala por alguns momentos. Ela se referia ao fato de Peter ter dedicado algumas horas do dia, que deviam ser dedicadas à escavação, e algumas horas da noite, que deviam ser dedicadas a ela, tentando manter o falcão em seu pulso protegido pela luva. A ave, nervosa, várias vezes havia tentado voar para longe, ir embora, mas sempre fora impedida pela corrente que a prendia. Fénix era digna de pena, a cabeça baixa, as asas batendo, enquanto Peter a manttinha presa ao pulso.
O processo era ensinar a ave a sempre voltar para o pulso do dono, até que ela adquirisse tanta confiança que se tornava capaz de dormir no pulso do homem que a dominara. E Fénix só chegaria a esse ponto quando aprendesse a confiar em Peter e a se sentir protegida por ele.
— Está me acusando de faltar com meu dever como diretor da escavação? — perguntou ele, por fim.
Jenny tinha que reconhecer que o trabalho estava se desenvolvendo perfeitamente, como fora programado. Mas não era com isso que estava preocupada no momento.
— Vamos esquecer a escavação e falar de nós? — revidou.
— Eu acho que é melhor parar esta discussão antes de começarmos a dizer coisas que não devem ser ditas — sugeriu Peter, zangado.
— Eu atingi o nervo da questão, não? — perguntou Jenny, erguendo mais a cabeça. — Está bem, só que antes eu quero dizer que acho isto um simples caso de profundo egoísmo.
— Pare com isso, Jenny — ordenou Peter, levantando-se. — Pare!
— Claro, você vai embora para não ouvir — espicaçou ela. Era o que eu pensava que ia fazer. O que não vê, em seu egoísmo, é que mais do que dedicação, esta ave merece a devoção do homem que lhe roubou a liberdade! — disse Jenny, disposta a aproveitar a indecisão de Peter para derramar toda bile, toda raiva que acumulara naqueles dias. — Acha bom dedicar tanto esforço para conseguir um relacionamento de confiança e amor com o falcão, quando acaba de dizer que vai embora no fim do mês, deixando-o aqui? Na certa está fazendo isso para satisfazer um desejo seu, infantil, de ser falcoineiro, Peter. Mas por pouco tempo, não é? Você não liga para nada, ave ou mulher, fazendo com que gostem de você, para depois deixá-las, em busca de outros interesses. Acontece que o amor é apenas uma brincadeira, um jogo para você. Não se envolve em nada, se não ficaria preocupado, sabendo que nada vai restar para elas, nem mesmo a liberdade que tinham antes de você surgir!
— Eu não tirei a liberdade dela — tentou racionalizar Peter. Quando apareci em cena, Fénix já tinha sido capturada.
— Mas é você que está, agora, entre ela e a liberdade! — disse Jenny, que já não estava falando do falcão, mas sim dela mesma e de Peter. — Não sei o que você acha, mas eu prefiro a liberdade a um amor temporário.
— Você sabe o que está fazendo, Jenny? — perguntou Peter.
— Claro que sei! — respondeu Jenny, — Estou estabelecendo alguns pontos de respeito à vida.
— Não! — contradisse Peter. — Não é nada disso. Você está regredindo no tempo e olhando a vida nos termos de Frederic Donas e Geraldine Fowler. É isso que está fazendo!
— Você está louco! — defendeu-se Jenny, sentindo com certo medo que aquilo podia ser verdade.
— É isso, sim. . . — insistiu Peter. — Está tão envolvida por u caso acontecido há sessenta anos que não pode ver mais nada, a não ser a repetição dele. Você questiona meu amor porque me vê indo em bora, abandonando você, apesar de tudo que digo em contrário. Você me vê como Frederic Donas com um pássaro que confunde com Geraldine Fowler. Fazer Fénix me amar e depois abandoná-la, não foi o que disse? Bem, talvez eu tenha trazido Fénix para cá sabendo que estava sonhando um pouco; mas também fiz isso preparado para renunciar a esse sonho quando o tempo de sonhar acabasse, a fim de voltar à realidade. Mas você está tão envolvida com o que aconteceu com nossos avós em Tebas que eu acho que nunca vai poder se livrar.
— Isso não é verdade! — protestou Jenny, fracamente, pois Peter pusera em palavras o que ela estava pensando e sentindo há tempo. — isso não é verdade!
— Bom, pense um pouco nisso, Jenny — insistiu Peter. — Eu estou começando a imaginar se você não ficaria mais feliz se eu fosse embora, deixando-a me esperando no altar. . . — O gemido de Jenny foi audível. — Aí, você teria a satisfação de ter dado mais um passo para ser Geraldine Fowler. . . que é o que acho que você está querendo.
— Isso é loucura! — acusou Jenny, com o coração batendo tão descompassadamente e forte que tinha impressão de tambores ecoando no cérebro.
— Claro que é! — concordou Peter. — E quanto antes você compreender que é uma loucura, vai ser melhor para você, para mim e para qualquer pessoa que esteja envolvida nesse seu mórbido fascínio pelo passado. Isso tem que ser esquecido!
Dessa vez Jenny não esperou que ele desse uma saída estratégica. Ela é que o fez. Levantou-se e entrou na casa, sem mais um olhar ou uma palavra. Bárbara viu-a entrando e diplomaticamente evitou uma colisão entrando na biblioteca. Jenny nem notou. Não confiara seus problemas a Bárbara, pois não via sentido em preocupar a moça. Estava sem nenhum ombro para chorar. Nem pensou em Abdul como conforto, não porque ele não quisesse, mas porque o via como causa do problema atual. Se ele não tivesse dado - ou emprestado o falcão a Peter, nada disso teria acontecido. E se Abdul estava pensando em tirar alguma vantagem dessa catástrofe, estava muito enganado. Jenny não queria nem saber dos dois homens que estavam complicando sua vida, naquele momento.
Foi para o quarto e jogou-se na cama. Ficou de olhos fechados, tentando controlar as batidas do coração. Quando abriu os olhos, viu a parede toda rachada e teve a sensação de que a casa estava se desfazendo. Tudo no Egito parecia estar se desintegrando. Aquele, provavelmente, era o lugar errado para achar que um romance nasceria sem se desfazer também.
Sentiu-se miserável. Nunca se sentira pior. Peter a acusara de estar querendo ser Geraldine Fowler. Isso não era verdade. Ela queria ser Jenny, não uma mulher que morrera há sessenta anos. Queria Peter, não o avô dele.
— Oh Peter, Peter! — gemeu, desesperada.
Levantou-se e foi até a janela, desejando que jamais tivessem existido uma mulher chamada Geraldine Fowler e um homem chamado Frederic Donas. Desejou ter encontrado Peter em qualquer outro lugar que não fosse o Egito, para amá-lo, casar com ele, ter seus filhos, tudo sem estar lembrando constantemente dos dois fantasmas do passado.
Viu o pequeno barracão que fora erguido entre a casa e o deserto. Não era uma construção sólida e a luz passava pelas aberturas do teto feito com folhas de tamareira.
Seu coração apertava-se por saber que Peter agora estava lá, alisando as penas do peito do falcão, falando suavemente com ele.
— O que está acontecendo conosco, Peter? — murmurou, a voz arranhando a garganta.
Apoiou-se na mesa ao lado. Pouco estável, a mesa balançou sob seu peso. Tudo que estava sobre ela caiu, fazendo barulho. Dois livros e uma escova para cabelos.
Recolheu tudo, depressa, esperando que ninguém subisse para ver o que havia. Ouviu atentamente, e ficou aliviada por não perceber passos. Precisaria muito mais para atrair alguém. Aparentemente, o pessoal tinha decidido que era melhor não se meter nos problemas pessoais de Peter e Jenny. E ela achava que ficariam do lado de Peter, se fossem obrigados a escolher. Pôs os livros e a escova de novo em cima da mesa, arrumando-os de várias maneiras, pois nunca achava que estavam bem. Desconfou que aquilo era para evitar de pensar em Peter. De repente, percebeu por que parecia nunca dar certo.
Faltava alguma coisa. Procurou que faltava, perto da janela, embaixo da cama. Ao cair, o pedaç de calcáreo faria um barulho diferente do que os livros e a escova tinham feito e teria deixado um pouco de pó no local da batida.
O pedaço de calcáreo que achara perto do poço de petróleo tinha sumido. Ficou confusa. Em seguida chegou à conclusão de que não estava na mesa, senão ela o teria encontrado. Peter devia tê-lo pegado e largado em algum lugar. Era uma boa desculpa para ir procurá-lo. Fingia que queria saber do calcáreo e confessava o ciúme que tinha do falcão. Peter confessara o ciúme de Abdul e Jenny o tranquilizara. Agora, queria ser tranquilizada, também.
Saiu da casa pensando que tudo se ajustaria entre ela e Peter se fizesse um pequeno esforço. Quando estava chegando ao barracão ouviu sons e palavras carinhosas.
Era a voz de um homem tentando conquistar e tranquilizar o falcão. Era o que Jenny precisava...
Abriu a porta bruscamente e o falcão saltou do poleiro. Jenny sabia o que isso significava: interromper o voo ao chocar-se com o teto, depois cair, em seguida voar, debatendo-se, completamente desorientado. Enfim, o pavor e a ave acuada num canto. O falcão já passara por isso, durante as tentativas de Peter de fazê-lo pousar em seu pulso. Jenny sentiu-se culpada pelo sofrimento inútil do pássaro. Depois, a sensação de culpa transformou-se em surpresa quando viu que o homem diante dela não era Peter. Era o treinador.
Dedos de ferro seguraram-na pelos ombros e a fizeram voltar-se. A raiva que se espelhava no rosto de Peter era tanta que Jenny sentiu as pernas amolecerem.
— O que veio fazer aqui?! — Pareceu mais interessado no que estava acontecendo ali do que na resposta. — Khalil, cuidado com Fénix! — disse ao treinador, que estava tão atarantado quanto a ave.
Peter levou Jenny para fora do barracão e bateu a porta com tanta força que o falcão debateu-se, em pânico.
— Nunca mais faça essa cretinice! — ordenou, o rosto lívido à claridade que a lua, surgindo no horizonte, começava a espalhar. Ouviu? Nunca mais!
Jenny sentiu raiva, não por estar sendo repreendida, pois sabia que fora imprudente, mas pelo jeito que Peter estava falando com ela. Ele bem que podia perceber que ela agira daquele modo por amá-lo demais. Se não amasse, não estaria ali, disposta a pedir desculpa pela atitude agressiva que tomara.
— O que você fez com o fragmento da cena dos canais do Rei Escorpião? — perguntou, seca, interrompendo os comentários dele a respeito do que ela fizera.
— Como, o que eu fiz?! — espantou-se Peter, largando o ombro dela como se tivesse tomado um choque ele elétricô.
— É isso mesmo — insistiu Jenny, consciente de que não era aquilo que havia planejado. — O que fez com ele? Desapareceu.
— Desapareceu? — perguntou Peter. — Do seu quarto? Da casa? Do Egito? Da Terra? Saiu do nosso planeta e está flutuando no espaço?
— Sumiu do meu quarto — disse Jenny, irritada com a ironia.
— E você logo concluiu que eu o roubei? — desafiou ele.
— Eu não disse que foi roubado — disse Jenny, tentando manter a calma, mas furiosa por ele estar colocando palavras em sua boca.
— Simplesmente não sei onde foi parar.
Pelo som agitado de asas batendo no interior do barracão era evidente que a discussão deles estava perturbando o falcão. Peter andou para longe do barracão e esperou que Jenny o seguisse. A raiva dela aumentou, ao ver os cuidados de Peter com o falcão. Teve vontade de ficar onde estava e de começar a gritar com ele. Não fez isso porque não gostava de lavar roupa suja em público.
— Agora, vamos ver... — disse Peter, quando ela chegou perto, querendo que ele a abraçasse; pelo jeito, ele nem pensava nisso. Por acaso perguntou a Betty se não pegou o fragmento para desenhá-lo? — perguntou.
Betty Anuke era a artista do grupo: desenhava e fotografava. Era muito competente e entrara para o grupo através de alguém que o pai dela conhecia na Universidade de Chicago.
— Desculpe... — disse Jenny, contente pela saída. — Eu não sabia que estava com a Betfy.
— Eu também não sei se está com ela — explicou Peter. — Mas é uma possibilidade. Você nem pensou nisso apesar de ser mais fácil falar com a Betty, que está em casa. — Jenny teve vontade de dizer que era com ele que queria falar e não com Betty. — Que tal essa ideia como alternativa? — indagou ele, sarcástico, parecendo determinado a magoar. — O que acha de alguma outra pessoa do grupo ter pego o fragmento, para estudá-lo?
Parou para perguntar a alguém se o tinha visto? Não. Veio diretamente para mim, achando que era o único "culpado". Você me acha tão canalha, capaz de sumir com uma prova de que o Rei Escorpião está sepultado onde vocês acharam que estava? Acha que prefiro aparecer como infalível do que ser um cientista honesto?
— Eu nunca insinuei uma coisa dessas! — protestou Jenny. — Não torça minhas palavras!
— Você não teve coragem de dizer isso na minha cara, mas suas ações são mais claras do que palavras, moça! — replicou ele, sem dar chance para Jenny retrucar. — Mas antes de espalhar por aí que sou tão inflexível com minhas teorias, que sou capaz de fazer sumir provas contrárias, é melhor parar e pensar o desaparecimento do fragmento não beneficia outra pessoa. .. senão o sheik Abdul Jerada.
— Abdul? — indagou Jenny, surpresa, pois ele nem ligara para a peça.
— Nem pensou nele, não é? —- perguntou Peter, triunfante. — Não precisa responder. Sei que não pensou. Me diga: quem levaria maior vantagem com o sumiço do fragmento? Eu, que teria nele a prova de que minhas teorias estão erradas, ou Abdul, que viu no fragmento uma séria ameaça à sua exploração de petróleo em Hierakonpolis?
— Por que seria uma ameaça à exploração de petróleo? — perguntou Jenny com medo da resposta, pois não queria desconfiar de Abdul.
— Nós dissemos a ele que era muito importante, não? — lembrou Peter. — E não tínhamos nenhum motivo para achar que não devíamos dizer-lhe a verdade. Pessoalmente ele não dá valor à peça, mas deve ter pensado bem e concluído que o Departamento de Antiguidades do Cairo poderá ficar muito interessado. O pessoal do Departamento acha que descobertas arqueológicas são mais importantes que tudo!
— Não posso acreditar nisso! — exclamou Jenny.
— Claro que não pode — disse Peter, agastado. — Tem certeza de que eu sou o culpado.
— Eu nunca achei você culpado de nada a não ser de levar o fragmento de um cômodo da casa para outro! — replicou jenny, querendo saber por que ele interpretava mal tudo que ela dizia.
— E eu, srta. Mowry, não acredito nisso! Não acredito, apesar de desejar com a alma que isso seja verdade. — Virou as costas e foi embora, deixando-a com raiva e angustiada.
Parece que ambos só viviam deixando um ao outro angustiados e com raiva. Era como se forças estranhas controlassem seus atos, impedindo-os de serem felizes. Talvez fossem vítimas do passado, talvez a maldição de Tutancamon atingia os descendentes dos violadores de seu túmulo. Jenny lera que vinte e duas das pessoas direta ou indiretamente envolvidas no caso tinham morrido prematuramente. Lembrava bem do número, pois Geraldine Fowler era mencionada como uma das vítimas.
— Não acho que você roubou o fragmento, Peter. . . — disse, baixinho. — Não acho, mesmo! E te amo, Peter. . . Te amo!
Tarde demais, pareceu sussurrar uma voz vinda do passado, fazendo seu corpo inteiro arrepiar-se ao sentir um frio penetrante.
Era tarde demais. . . pelo menos por enquanto. Peter, que desaparecera na noite, não a ouvira.
CAPÍTULO XIII
Nessa noite teve pesadelos tão terríveis que a acordavam; tão malucos que os esquecia assim que acordava. Levantou-se e já estava pronta quando o despertador de Bárbara tocou. A moça espreguiçou-se, relutante em levantar, como sempre.
— Você nunca dorme, é? — perguntou, bocejando.
Sempre perguntava isso ao acordar e encontrar Jenny pronta. E perguntava por perguntar, pois antes de tomar o café da manhã não entendia nada que por acaso alguém lhe dissesse.
Jenny não costumava tomar café. Em geral não tinha fome muito cedo. Ficou no quarto e surpreendeu-se ao ver Bárbara voltar pouco depois de ter descido.
— Peter disse aonde ia? — perguntou a moça.
— Aonde ia? — repetiu Jenny.
Pôs o livro que estava lendo de lado. Na realidade, em vez de ler estava imaginando onde teria ido parar o fragmento de calcáreo que desaparecera. Perguntara a todos do grupo e ninguém sabia dele. Mas, agora, o fato de Peter também ter sumido era preocupante.
— Ele não está aqui — disse Bárbara. — Uma das caminhonetes também desapareceu e Tim disse que ouviu um motor de madrugada.
— Isso quer dizer que é melhor eu descer, não? — disse Jenny.
O grupo tinha sido dividido em dois, cada qual trabalhando num cemitério pré-dinástico. Em geral, Peter saía mais cedo com seu grupo, pois tinham mais que fazer.
Jenny saía pouco depois dele. No entanto, "se Peter tinha ido embora com um dos carros, Jenny tinha que dar um jeito para levar os dois grupos para o trabalho.
— Diga para o pessoal que já vou — pediu Jenny a Bárbara. Na certa Peter resolveu dar uma espiada mais cuidadosa numa das escavações e esqHéceu de me avisar.
Era uma desculpa. Todo mundo sabia que Peter não ia esquecer uma coisa dessas. Deviam é estar achando que ela estava ruim de memória, mas Jenny não ligou. Estava preocupada, achando que Peter podia ter voltado para a Inglaterra sem lhe dizer nada. Frederic Donas deixara Geraldine Fowler no Egito e nunca mais tinha voltado.
Jenny pegou um suéter que seria posto de lado assim que o sol nascesse. Disse a si mesma que Peter não devia ter voltado para a Inglaterra sem avisá-la. Devia ter delegado o cargo de diretor a alguém, que provavelmente não seria Jenny, apesar da capacidade, por ser mulher. Pelo jeito, como ela, ninguém sabia onde Peter estava.
Deixou o primeiro grupo tomando café e fez o primeiro ajeitar-se na caminhonete que ficara. Como Peter pegara o jipe que costumava enguiçar, Jenny preocupou-se.
Talvez ele tivesse resolvido ir dar uma volta no deserto. O carro encrencara e ele podia estar em algum lugar muito longe, para voltar a pé sob o sol quente. Havia provisões de emergência nos carros e Peter devia saber o suficiente sobre o deserto para não se aventurar a pé, no calor do dia.
Quando Jenny estava levando o segundo grupo para o trabalho, Timothy percebeu o jipe ao longe, no alto de uma duna. Peter estava fora dele, com o falcão no pulso.
Jenny seguiu direto para a escavação, percebendo que Peter não precisava de ajuda. O alívio em saber que ele estava bem foi contrabalançado pela raiva de ver que ele negligenciara as obrigações de diretor - além de deixá-la preocupada - para treinar o falcão nas horas mais frescas da madrugada. Verificou se todos estavam trabalhando como deviam e pensou em ir falar com Peter. Sentia que estava perdendo o homem que amava e não queria que isso acontecesse.
Sua resolução foi adiada pela chegada de um inspetor do Governo, encarregado de verificar se tudo que era descoberto nas escavações estava sendo anotado. Mamud Said ia verificar os trabalhos com bastante regularidade. Hierakonpolis costumava apresentar muitas surpresas e o Governo não queria que ladrões depredassem tumbas e levassem objetos de valor das múmias.
Jenny vira o inspetor duas vezes, por alguns minutos. Lamentou o tempo que iria perder com ele agora, achando ridícula a desconfiança que o homem manifestara ao ver que Peter não estava em nenhuma das duas escavações.
— Eu garanto que ele não está em nenhuma tumba de faraó descoberta agora — disse Jenny, percebendo a preocupação do homem.
— Ele tirou o dia de hoje para treinar um dos falcões do sheik Jerada.
— Treinar o falcão, aqui? — perguntou Mamud, bem-educado. Era evidente que não acreditava nisso. Os olhos enormes e negros faziam parte da expressão que pedia a Jenny, por favor, que não tentasse enganá-lo. Para ele era natural desconfiar, uma vez que os tesouros egípcios tinham sido desfalcados por gregos, romanos, turcos, franceses e ingleses antes que, enfim, o Governo tomasse providências para impedir outros roubos. Hierakonpolis parecia estar esgotada como fonte de riquezas, mas havia uma remota chance de se encontrar ainda alguma coisa e Mâmud era responsável pela segurança do que houvesse. Ele não vira o fragmento da gravação do Rei Escorpião, o que Jenny achava bom, uma vez que a peça tinha desaparecido. Mas mesmo que a tivesse visto, na certa não ficaria tão entusiasmado quanto o grupo. Ele só se entusiasmaria com uma grande descoberta declarada, o que era difícil acontecer ali em Hierakonpolis.
— Se o senhor quiser, eu o levo onde ele está treinando o falcão — disse Jenny, imaginando o que diria ao inspetor se não soubesse onde Peter estava. — A não ser que o senhor queira ficar aqui, para acompanhar nosso trabalho.
Mamud não queria, de modo algum! Estava é louco para ir embora, pois os homens trabalhando com pás e picaretas erguiam uma poeira infernal, que já estava começando a cobrir o finíssimo terno que ele usava. Jenny foi na caminhonete e Mamud seguia-a em seu jipe.
Peter estava numas rochas, sentado, com o falcão no pulso, Jenny acenou, mas ele não respondeu.
— Quer ir até lá comigo? — perguntou Jenny, torcendo para ele não ir. — Prometi a Peter que viria fazer um relatório, assim que o grupo engrenasse no trabalho. — Diga a ele que desejo bom treino com o falcão — disse Mamud, os olhos brilhando de inveja.
Jenny jamais imaginaria que ele gostava de falconeria! Olhou-o quanto ia embora, depois voltou-se e enfrentou as rochas que provavam que um deserto não é feito apenas de areia. Enquanto subia bom dificuldade, Jenny imaginava como Peter teria feito para subir bom o falcão no pulso, pois já escorregara várias vezes e tivera que se apoiar nas mãos para não cair.
O alto das rochas corria paralelo ao Nilo distante, antes de se desintegrar dos dois lados. Peter não se voltou para cumprimentá-la, não fez um gesto sequer para ajudar quando ela escorregou mais de duas vezes antes de chegar perto dele. Nem Jenny esperava isso, pois ajudá-la significaria perturbar o falcão! Respirou fundo, lembrando a si mesma que esse tipo de pensamento não ia ajudá-la a aproximar-se de Peter. . . nos dois sentidos da palavra. Tinha vindo para fazer tudo que pudesse a fim de eliminar a brecha que se abrira entre eles, mesmo que tivesse que dividi-lo com. o falcão.
Sentou-se ao lado de Peter, com cuidado para não perturbar a ave, que estava com a cabeça completamente coberta pelo pequeno capuz, enfeitado por uma pena de galo, verde e brilhante. Jenny sentia-se satisfeita pelo capuz ter substituído o antigo costume da índia, que era costurar as pálpebras dos falcões cativos.
— Veio trazer os cumprimentos do inspetor do Governo? — perguntou Peter.
A mão esquerda, o pulso e o braço de Peter, onde o falcão se agarrava, estavam protegidos por uma luva de couro muito grossa. Se não, as garras do falcão poderiam provocar profundos ferimentos.
— O sr. Said ficou furioso em saber por que você não estava na escavação — disse Jenny, observando a mão direita de Peter acariciando o peito do falcão e preferindo que acariciasse o peito dela. — Eu disse que você trabalhou muito, ontem, até tarde, e que tirou o dia de hoje de folga.
— Não disse, também, que tive que trabalhar tanto porque estou fazendo dois trabalhos ao mesmo tempo?
— Eu não vim para brigar, Peter — disse Jenny, rezando para ele não tornar as coisas mais difíceis.
— Então, o que quer, Jenny? — perguntou ele, sem olhar para ela, concentrando a atenção no dedo indicador que passava pelas penas das costas do falcão.
— Quero você — disse ela, desejando que ás palavras tivessem sido mais do que um fraco sussurro; sabia que precisava falar mais e que não ia ser fácil. — Quero você e estou com um medo terrível de perdê-lo. . . — disse e o falcão movimentou a cabeça ao ouvir-lhe a voz. — Quero pedir desculpa se, por um momento que seja, pensei que você fosse o responsável pelo sumiço do calcáreo, ontem.
— Então, sumiu, mesmo? — perguntou Peter, parecendo interessado, mas ainda sem olhar para ela.
— Acho que Abdul pegou-o — disse Jenny. — Ou mandou alguém pegá-lo para ele.
— Ele é que lhe disse isso? — indagou Peter, fitando-a, afinal, fazendo-a sentir-se derreter sob seu olhar dourado.
— Não vi Abdul — retrucou Jenny. — Como você, não consigo pensar em mais ninguém que tenha um motivo.
— E o que aconteceu com o meu motivo? — perguntou Peter, sem conseguir deixar de ser sarcástico.
— Nunca desconfiei de você — disse Jenny. — Você é que falou nisso, lembra? Pensei que você tivesse pegado a peça por acaso. E não teria ido perguntar nada se não estivesse procurando uma desculpa para falar com você. Eu estava com ciúme. . .
— Ciúme? De quem? Do falcão? — perguntou Peter, custando a acreditar que Jenny havia confessado.
Ele riu e Fénix abriu as asas, nervosa, como se fosse voar. Jenny esperou até ela fechar as asas e se acalmar.
— É... Engraçado, não? — comentou Jenny, sem achar engraçado.
— É engraçado só porque não consigo imaginar você sentindo ciúme de um pássaro — disse Peter, parecendo intrigado, mesmo. — Um pássaro, Jenny! Um pássaro?
— Você gasta com esse falcão um tempo que eu queria que gastasse comigo — disse Jenny, encolhendo as pernas e passando os braços pelos joelhos.
Olhou em frente, as pedras dando lugar à areia, a areia dando lugar à vegetação, a vegefação avançando para o rio cinzento, mais vegetação na outra margem, depois areia, depois rochas. Parecia que a paisagem do lado de cá refletia-se num enorme espelho. Tanto que ela tinha impressão de ver duas pessoas e um falcão nas rochas do outro lado do rio.
— Eu sabia que o falcão tinha alguma coisa a ver, mas pensei que você o estivesse usando como desculpa para criticar meu desempenho como diretor. . . — confessou Peter, sacudindo a cabeça, custando a crer na confusão que tinham feito. — Achei que estava fazendo birra, como uma criança, por não darem o cargo a você.
— E ainda acho que esse cargo devia ser neu — disse Jenny para deixar tudo bem claro. — Mas o fato do dr. Kenny nomear você e não eu, não modificou meus sentimentos.
— Então, ainda quer se casar comigo? — indagou peter.
— Peter, como você é bobo! Claro que ainda quero! — disse Jenny doida para se atirar nos braços dele, mas dominando-se, pois sabia que isso iria assustar o falcão. — Casar com você é meu sonho, desde que descobri que o amo. — Roubando a minha ideia, hein?! — exclamou Peter com um amplo sorriso.
O vento agitou-lhe os cabelos fazendo Jenny ter vontade de enfiar os dedos na negra massa sedosa. Mas se conteve.
— Bom. . . — começou, feliz e achando que era bom ir embora antes que algo viesse perturbar aquele momento perfeito — Então, vou deixar vocês dois em paz e voltar para a escavação. Eles podem descobrir alguma coisa importante na minha ausência.
— Não vá, Jenny! — pediu Peter. — Por favor. . . — Levantou-se e o falcão agitou as asas, para recuperar o equilíbrio perdido com o movimento súbito. — Participe deste momento comigo, sim?
E Ela compreendeu que ele ia fazer o falcão voa pois retirou-lhe o capuz. A ave piscou os olhos enormes, tentando acostumar-se com a claridade. Olhou Jenny e Peter antes de olhar o panorama que conhecera em plena liberdade.
— Quero que a nossa vida seja um constante partilhar de tudo explicou Peter — como acontece agora...
Ergueu o braço esquerdo de repente, depois desceu-o bruscamente, obrigando o falcão a soltar-se. O pássaro começou a voar, muito alto, provavelmente imaginando por que seu voo ainda não tinha sido interrompido bruscamente pela corrente que deveria estar Presa a uma de suas patas. Peter tirou a luva e deixou-a cair no chão, junto com o pequeno capuz. Aproximou-se de Jenny, passou um braço pela cintura dela e puxou-a para si. Ficaram olhando Fênix que subia cada vez mais, em espirais, aproveitando as correntes de af produzidas pelo calor do sol que aquecia as pedras.
— Este é o lugar dela, não é? — disse Peter, por entre os cabelos de Jenny. — Assim como seu lugar é nos meus braços. — Apertou-a mais contra si, enquanto o falcão subia mais e mais alto.
Jenny esperava pelos sons dissonantes dos sininhos, mas nada ouviu. Não havia sininhos, nem a limitante tira de couro nas patas de Fénix.
— Ela não tinha sido solta para ser chamada de volta para o pulso do dono. Ela fora solta para a liberdade. Peter devolvera a ave ao céu, ao vento, ao sol. Ele fizera isso rendendo-se à evidência de que ela ia interferir entre Jenny e ele. Peter retirara a tira de couro e os sininhos antes de Jenny chegar, o que demonstrava que ele resolvera ficar sem o falcão, de que gostava tanto, mesmo quando pensava que a implicância de Jenny com ele era apenas um disfarce do despeito dela por não ter sido nomeada diretora.
— Peter, eu.. . — disse, mexendo-se nos braços dele.
Peter calou-a com um beijo, enquanto a apertava com os dois braços, unindo-se estreitamente a ela.
— Você estava certa, Jenny — murmurou. — Eu não devia ter aceitado o falcão. Pssiuuu! — fez, ao ver que ela ia protestar. — Não devia ter aceitado porque já empenhei meu tempo e meu amor. . . por isso não podia dar-lhe nada. Meu tempo pertence à minha profissão e meu amor pertence todo a você.
— Peter, Peter! — disse Jenny, beijando o peito quente pela abertura da camisa.
Acima deles o falcão nada mais era do que um pequeno ponto escuro no azul luminoso do céu.
— Eu devolvi a liberdade ao falcão. . . — disse Peter, apertando-a tanto que Jenny mal podia respirar. — Mas nunca vou devolver a sua liberdade, Jenny Mowry. Nunca!
— Nunca! — concordou ela, feliz.
— Um pássaro precisa da liberdade — murmurou Peter, junto ao ouvido dela. — Eu preciso de você.
— E eu de você, amor! — respondeu Jenny, que desde que começara a amar Peter nunca tinha se sentido tão feliz. — Oh, Peter, como te amo! — Agarrou-se a ele, como se tivesse medo que desaparecesse como o falcão que há minutos estava ali com eles. — Te amo, te amo, te amo. . . muito, muito!
Devagar, Peter desabotou-lhe a blusa, expondo os seios firmes à luz do sol, cujo calor não era maior do que o do corpo de Jenny, com delicadeza, ele beijou os mamilos, o colo, o pescoço, o queixo e, por fim, os lábios de Jenny. A boca de Peter solicitava a dela, que correspondia, lábios e línguas tocando-se, ansiosos.
Os seios túrgidos esmagavam-se contra o peito forte e os mamilos tornaram-se duros como pedra ao esbarrarem na pele nua de Peter, pela abertura da camisa. Os dedos nervosos de Jenny insinuaram-se entre os dois corpos, desabotoando a camisa de Peter e abrindo-a. Uma corrente elétrica pareceu percorrê-los inteiros quando seios macios e peito musculoso uniram-se, livres de tecido. Peter continuava a beijá-la, faminto, no rosto, lábios e garganta.
— Eu quero você, Jenny! — murmurou, a respiração ardente acariciando-lhe a orelha.
Ela também o queria, nunca iria deixar de querê-lo.
Usaram as roupas para ajeitar um ninho onde se deitar. A dura aspereza da pedra sob a fina camada de pano nem foi sentida. O ardor do desejo que os consumia transformaria uma cama de espinhos num leito de pétalas de rosa.
O magnífico corpo de Peter era o sol, era calor, era ouro. Jenny extasiava-se ao senti-lo contra seu corpo, gozando seu gosto, seu cheiro. Ele era força amaciada pelo carinho. Era sal e colônia-limão. Oferecia-se a ela em toda sua nudez, assim como ela oferecia a própria nudez a ele. Pertenciam-se, eram um do outro, Jenny estremecendo de prazer ao toque das mãos e dos lábios de Peter em seus ombros. Acariciava-o com ardor. Seus dedos enfiavam-se nos cabelos de Peter, depois percorriam-lhe as costas amplas, sentindo-o tenso e quente. Parecia que a vida que animava o corpo de Peter fluía dos dedos e das mãos carinhosas de Jenny. Quando a carícia se estendia pelas coxas firmes, pelos quadris musculosos e enxutos, Peter gemia apaixonadamente. As mãos e os lábios dele percorriam o corpo todo de Jenny, enquanto ondas de calor e prazer faziam cada centímetro de pele e nervos vibrar profundamente. Beijou-a em pontos do corpo macio que só ele conhecia. Jenny beijou-o entre o ombro e a orelha, fazendo-o arder ainda mais no fogo violento do desejo. Maravilhada, Jenny sentiu de novo o gosto de Peter, o exótico e forte sabor de sua pele. Cada beijo, cada toque de mãos acrescentava mais lenha na fogueira que ardia dentro dela.
— Me ame, Peter. . . — murmurou, no leito de pedra, sob o céu muito azul do Egito. — Me ame. . . me ame!
— Eu te amo., vou te amar sempre — jurou Peter, mergulhando inteiro na carne suave, as coxas de Jenny abrindo-se para ele.
O peso do corpo forte era uma pressão doce e urgente sobre o corpo macio dela. Jenny passou um braço trémulo pelo pescoço musculoso, os dedos crispados, a outra mão aberta sobre a pedra, como se pudesse transmitir o intenso prazer ao granito, recebendo a bênção da natureza. No momento em que Peter ia completar seu prazer, Jenny parou de tremer, como se estivesse esperando, como se todo seu corpo estivesse concentrado num profundo, silencioso sim. E ele, percebendo a intensidade da pausa, imobilizou-se, ambos flutuando na antecipação do gozo total. Quando Peter tornou a se movimentar, já não foi com brusquidão e violência, como nos instantes ansiosos do princípio do amor, como se o prazer adiado e prestes a ser atingido o tornasse quase que temeroso. Amava-a com suavidade, com profunda ternura oferecendo uma nova excitação, profunda, intensa. Ele se controlava, contendo a pressa que nos tempos pré-históricos tornavam a união de um homem e uma mulher algo que nada tinha a ver com o que sentia por Jenny e ela sentia por ele. Era capaz de conter a impaciência porque não era um animal procurando a fêmea apenas por desejo físico.
Estava dando a Jenny algo que não dera a mulher alguma antes dela. O mecanismo não era diferente do que agia em milhares de uniões entre homens e mulheres, todos os dias. Mas o resultado, o conjunto, era único porque o amor sempre leva a níveis de prazer altíssimos, desconhecidos para quem faz amor sem ternura e carinho verdadeiros.
— Peter — rnurmurou ela, enfiando-lhe os dedos nos cabelos, ofegando junto ao pescoço dele. — Eu te amo. . .
Ele ergueu a cgça, os cabelos negros caindo sobre a testa, os olhos brilhando ao sol do Egito, os lábios entreabertos, o pescoço tenso.
— Jenny. . . —. esse nome, dito pela voz rouca, emocionada, significava tudo que ela pudesse querer ouvir.
De novo os lábios dele apoderaram-se dos dela, todo o corpo de Peter beijou o corpo de Jenny, as mãos dele percorreram-lhe as costas, levantando-a um Pouco do leito de pedra. Desceu as mãos, segurando-a firmemente pelos quadris, apertando-a mais contra si.
Jenny ofegava, enquanto ele a levava para mundos que só Peter conhecia. Ele a levava devagar, um passo depois do outro, jamais correndo, para que ela o acompanhasse. Levou-a para o alto de pequenas colinas, fez com que descesse para vales aprazíveis, antes de voltar para colinas mais altas, depois para vales mais profundos, até que divisaram a meta final: uma altíssima montanha que só podia ser escalada por pessoas preparadas.
Ele parara de vez em quando, pelo caminho, a fim de que ela pudesse estar sempre junto com ele e esses momentos de pausa tinham sido preciosos para Jenny. Sentira profundamente o silêncio pontuado apenas por suas respirações. Recebia prazer, simplesmente, por serem um só. . . O corpo de Peter e o dela eram apenas um. Tinha a sensação distante de que haviam se separado, um dia, mas que isso nunca mais iria acontecer.
— Jenny, Jenny! — sussurrou ele, encaminhando-se para o alto da montanha.
As mãos dele punham fogo em sua carne, os lábios dele faziam os dela deixarem escapar gemidos de profundo prazer.
Jenny passou as mãos pelas costas de Peter sentindo os músculos duros, correndo firmes sob a pele macia. Abriu-se mais para ele: uma rosa abrindo as pétalas para o calor do sol. Sentia o ardor do fogo do alto da montanha, enquanto Peter movimentava-se, fazendo o corpo esguio de Jenny arquear-se, estremecer. Homem nenhum poderia dar a uma mulher o que Peter estava dando, queria dar, a Jenny.
— Amor!... — gemeu ele, os lábios junto do ouvido dela, a voz num crescendo rouco. — Meu querido amor!... — Ergueu-se de modo a poder olhá-la.
Nunca o rosto de Peter estivera tão bonito, refletindo a paixão que ardia dentro dele. Os cabelos estavam revoltos, o rosto corado, os lábios sensualmente tensos, os olhos como dois sóis dourados.
— Peter! — gritou Jenny, sabendo que ele atingira o topo da montanha e a levara consigo.
Tudo mais deixou de existir para eles, a não ser o brilho radioso do êxtase. Beijaram-se, mergulharam nas densas ondas de prazer que os levavam para paragens longínquas, distantes, onde só existiam seus corpos dissolvidos em intensa luminosidade colorida.
CAPÍTULO XIV
Pânico. Era o que Jenny estava sentindo. Puro, simples, cem por cento pânico. Não adiantava querer esconder. Peter sabia o que ela estava sentindo e pensando.
— Não vai ser a mesma coisa, Jenny — afirmou.
Ela ouvira o bastante da conversa telefónica dele para saber que ele tinha que voltar à Inglaterra, como Frederic Donas tivera que voltar, por causa de uma "crise em família".
— Jenny — repetiu Peter, surdamente.
Vendo que ela não reagia, aproximou-se e abraçou-a. Foi pior ainda, dando a sensação a Jenny que ele ia sair da vida dela para sempre.
— Diga que sabe que não vai ser a mesma coisa — pediu ele, acariciando-lhe os cabelos, abraçando-a com mais força.
— Não vai ser a mesma coisa — disse Jenny, imaginando se ele realmente acreditava nisso.
Por mais que ele falasse, a história se repetia. Não tinham saída. Ela ia perdê-lo e nada podia fazer. Fora loucura pensar que poderiam unir suas vidas.
— Para começar, talvez eu nem precise ir — encorajou-a Peter.
— Tio George já foi internado várias vezes e logo saiu do hospital.
Ele teria que ir. Ela sabia. Como Frederic Donas tivera que ir.
Ele estava lhe dando um pequeno prazo antes do inevitável.
— Olhe para mim, Jenny - disse Peter, afastando-a de si, pegando-lhe no queixo e erguendo-lhe o rosto.
— Quer que eu jure que não rou deixar você, mesmo que tenha de ir para a Inglaterra antes? Sabe que não vou correr atrás de nenhuma mulher rica. Se eu for. . . repare, eu disse se. . . é apenas para estar com meu tio nos últimos momentos de vida dele. Apesar de nunca termos sido muito ligados, tenho que fazer isso por ele.
— É. Claro que tem — concordou ela, desejando que isso não fosse verdade.
Desde o dia em que se tinham amado sobre as rochas, Jenny tinha tirado Geraldine Fowler e Frederic Donas da cabeça. Esquecera-se deles completamente. Que loucura pensar que havia se livrado! O destino não iria mudar só porque ela queria.
— O que acha de tirarmos uma folga hoje e sair por aí? — sugeriu Peter. — Que tal irmos até Assuan, visitar Abdul? Desde que o fragmento de pedra gravada sumiu ele não apareceu mais. Seria divertido ir dar uma espiada, para ver como vão indo os poços de petróleo dele. Pode ser que Abdul queira comparar a história que o treinador contou sobre a fuga do falcão com a minha. . .
— E se telefonarem do hospital? — perguntou Jenny, que preferia ficar por ali.
Peter estava oferecendo mais alguns momentos juntos, finais. Jenny tinha medo que isso tornasse a separação mais dura, quando chegasse a hora.
— Eles só vão telefonar depois de fazerem uma série de exames. . . — disse Peter. — Não vai adiantar nada para tio George, nem para mim, passar o dia tomando conta do telefone, esperando más notícias que talvez não cheguem. A gente diz onde vai estar e se houver alguma coisa, eles avisam. O que acha?
— Eles podem precisar da caminhonete aqui — disse Jenny, com medo de ficar por causa do telefonema, com medo de ir porque o tio de Peter podia piorar de repente e ele não o encontrar com vida por causa do egoísmo dela.
— Podem se arranjar muito bem com o jipe — insistiu Peter. — Você sabe disso, ontem fez tudo que era preciso só com o jipe.
— Acho que Betty pode ficar em casa — decidiu Jenny, querendo passar o dia com ele. — Pode ficar desenhando aqui. Assim, a gente telefona de Kom Ombo, depois de Assuan, para saber se há alguma novidade.
— Então, vou avisá-los — disse Peter. — Os chefes vão ter outro dia de folga. Afinal, uma das vantagens da gente ser chefe é poder fazer o que quiser, não? — brincou.
— É. ... — concordou Jenny, dizendo a si mesma que, afinal, nada havia acontecido.
Peter não viera dizer, de repente, que o tio estava doente. Já falara nisso antes. Lembrava-se também de ter lido alguma coisa a respeito antes de vir para o Egito.
Passou os braços pelo pescoço de Peter e uniu-se a ele, com medo que o telefone tocasse antes de irem embora.
— Eu te amo, muito! — disse.
— Não mais do que eu te amo, garanto! — murmurou ele, beijando-lhe carinhoso a pontinha do nariz. — Vamos avisar o pessoal.
Ainda era cedo quando saíram para Assuan. Jenny tinha medo que houvesse alguma coisa com o carro, que encrencasse, deixando-os incomunicáveis enquanto os médicos se afligiam na Inglaterra, tentanto localizar Peter para avisar que o tio dele estava morrendo. Esse medo, por mais forte que fosse, era sobrepujado por outro que a aconselhava a reunir o maior número de coisas boas para lembrar. Isso poderia ajudá-la muito no futuro.
Peter dirigia com cuidado na estrada poeirenta de Hierakonpolis para Idfu.
— E se Abdul não estiver em casa? — disse Jenny, gritando para superar o barulho do motor. — E se ele estiver verificando algum poço. .. talvez até o de Hierakonpolis?
— A gente ouve o helicóptero, quando ele chega — lembrou Peter.
— Se ele não estiver em casa, a gente espera. Palavra que não recuso uma boa bebida gelada e acomodações confortáveis!
Atravessaram o Nilo na balsa, em Idfu, depois continuaram para o sul. A estrada parecia muito boa em comparação com a que tinham acabado de deixar.
— Se Abdul não voltar hoje, afinal vou ter a chance de ficar uma noite com você... — comentou Peter. - Não tem sido fácil para mim manter a nossa reputação, morando na mesma casa com você e tendo que dormir em quartos separados!
— É verdade. . . — concordou Jenny, dando-lhe um rápido beijo no rosto. — Mas como somos os mais velhos da turma, supostamente os que devem dar o bom exemplo, não vejo outra saída. Se dormíssemos juntos, Tim iria querer fazer o mesmo com Bárbara e ela não ia resistir muito tempo à tentação, por mais que negue! E, se não me engano, Gary e Pam também parecem estar se entendendo. .. Ia haver uma porção de pais e mães ouriçados, se a escavação científica em Hierakonpolis virasse uma comunidade de amor livre!
— Isso é mesmo — anuiu Peter, de bom humor. — Eu não vejo a hora de terminar a escavação, para nós dois podermos dormir no mesmo quarto sem ameaça de escândalo.
— Ia ser tão bom, Peter! — disse Jenny, pensando que talvez isso nunca iria acontecer se ele fosse para a Inglaterra sem ela.
Cerca de uma hora depois estavam entrando na primeira estrada asfaltada entre Idfu e Assuan. Uma fileira de tambores de óleo obrigava o tráfego a afunilar. Os carros iam ficando em fila e tinham que parar; soldados examinavam os documentos dos motoristas. Ao se aproximarem da barreira, um guarda, que parecia cansadíssimo dando impressão que passara a noite em claro, fez sinal para Peter e Jenny passarem direto. Os companheiros dele, empunhando metralhadoras, também pareciam exaustos.
O sol estava se erguendo no céu, como uma enorme laranja. Poeira e areia pairavam no ar, empanando-lhe um pouco o brilho. Algumas estrelas ainda brilhavam no horizonte, do lado contrário ao nascer do sol.
— Você acha que a gente deve perguntar diretamente sobre o fragmento de calcáreo para Abdul? — indagou Jenny, olhando um grupo de falcões que voavam ao longe, imaginando se um deles seria Fénix.
— Bem, eu acho que ele não vai admitir que está com a peça, mesmo que esteja — respondeu Peter. — Por que iria admitir? Não há prova alguma de que ele é o ladrão. . . e garanto que não vai querer ficar mal diante da mulher que ama.
Se Abdul não tivesse nada a ver com o sumiço da peça, Jenny ficaria aborrecida de estragar a amizade demonstrando desconfiança. Ele fora um bom amigo desde o começo.
Até mesmo o presente que fizera a Peter, o falcão, acabara dando certo. Devia agradecer a Abdul e não acusá-lo de ter roubado um pedaço de argila que não lhe despertara o menor interesse.
— Eu acho que não devemos dizer nada — propôs Peter, concordando com os pensamentos de Jenny — só que viemos para visitá-lo. Quem sabe o fragmento ainda aparece lá em casa, em algum lugar.
Na verdade, nenhum dos dois acreditava nisso. O grupo inteiro revirara a casa, procurando a peça perdida.
— É melhor esquecer isso — sugeriu Jenny.
Gostaria de encontrar o fragmento. A peça iria merecer alguns parágrafos numa revista de arqueologia. Sem ela, não adiantava dizer nada, pois não podia provar que era algo real e não um produto da sua imaginação. Por mais que o pessoal do grupo testemunhasse, jurasse que vira a peça, não ia adiantar.
Pararam em Kom Ombo, para esticar as pernas e telefonar para Hierakonpolis. Peter foi telefonar num pequeno restaurante, enquanto Jenny esperava na caminhonete.
Ela rezava para não haver nenhuma novidade, a não ser que fosse boa. Mas tinha a sensação que podia rezar quanto quisesse que nada ia mudar: Peter iria embora do Egito, como Frederic fora, deixando Geraldine. Tinha certeza disso e não se animou nem mesmo quando ele voltou sorrindo.
— Nenhuma novidade! — disse Peter, entrando na caminhonete. Jenny pensou, com um aperto no coração, que era apenas mais um adiamento.
Meia hora depois estavam em Assuan, o rio à direita deles, a cidade subindo pelas colinas, à esquerda. Passaram pelo Cataract Hotel, que durante meio século fora o preferido da nobreza europeia, com sua vista maravilhosa para o Nilo.
Barcos que pouco tinham mudado desde o tempo de Cristo, com enormes velas triangulares, navegavam nas águas calmas do rio. A lancha do Hotel Oberoí estava chegando da ilha Elefantina. Peter foi falar com vários proprietários de veleiros, feliz por saber o idioma da terra e ter uma ideia dos preços por ali. Em geral, turistas desprevenidos pagam muito mais para dar uma volta num daqueles barquinhos do que por um longo passeio de gôndola em Veneza.
— Eu pedi a ele para dar uma volta entre as ilhas, antes de atracar do outro lado — disse Peter, enquanto levava Jenny para o barco que alugara e a ajudava a entrar nele.
Minutos depois estavam velejando, numa paz maravilhosa. Se Jenny conseguisse parar de pensar que talvez um telefonema os estivesse esperando, na casa de Abdul, poderia aproveitar esses momentos ao lado de Peter. Era agradável deslizar no rio sem barulho de motor, levados pelo vento que enfunava a vela. Passaram pela ilha Elefantina, a maior delas, depois pela ilha de Amum, com suas lindas tamareiras, e pela ilha Kitchener, que recebera seu nome de um lorde inglês que tivera seu feito de glória um pouco mais ao sul, em Khartoum. Quando estavam chegando ao atracadouro da casa de Abdul, Jenny estremeceu, imaginando o que os esperava. Pensando que ela estava sentindo frio, por causa da brisa fresca da manhã, Peter abraçou-a, tentando transmitir-lhe seu calor. O barco aproximou-se do pontão jogando precariamente. Peter riu dos esforços de Jenny para escapar da água que espirrava para dentro do barco. Ficou tão bonito rindo que o coração de Jenny apertou-se à ideia de viver sem aquele sorriso, sem aquele amor. Depois, agarrou-se mais a ele, dizendo a si mesma para aproveitar os bons momentos e não se preocupar com o destino, que ninguém pode controlar.
Abdul, que estivera assistindo à aproximação do barco da varanda, fora para o cais quando viu que ia atracar em sua casa.
— Que surpresa agradável! — disse, estendendo a mão para Jenny e ajudando-a a sair do barco. — Eu estava pensando em vocês, hoje.
— Apertou a mão de Peter e encaminhou-se para a escada que ia dar lá em cima, na casa.
— Resolvemos pegar o dia de folga e passamos por aqui, na esperança de encontrar você em casa — disse Jenny, imaginando se não preferia que ele não estivesse.
Havia uma porção de hotéis em Assuan. Tratou de afastar esses pensamentos da cabeça. Ir para a cama com Peter mais uma vez não iria resolver nada, não iria segurá-lo perto dela mais tempo. Ao contrário, talvez isso tornasse pior a situação quando ela ficasse sozinha.
— Várias vezes quis ir visitar vocês, mas toda vez que fui até lá fiquei ocupado até muito tarde — disse Abdul, depois que já estavam lá em cima, acomodados na varanda.
— Vimos seu helicóptero passar algumas vezes, em Hierakonpolis, acenamos.. . — comentou Peter, contente por Abdul não ter caído do céu todas aquelas vezes.
Apesar do sheik manter a devida distância de Jenny, respeitando a posição de Peter, era evidente que tinha grande interesse nela. Um interesse muito maior que o de simples amigo. Se Jenny pudera sentir um ridículo ciúme de um falcão, Peter sentia-se no direito de ter aquela sensação desagradável em relação ao homem que, tinha certeza, não era o tipo de rival que sai do páreo com facilidade.
— Pedi que sirvam carcadet quente — disse Abdul, referindo-se ao chá que tinham tomado gelado da outra vez. — Mas temos café e chá preto, se preferirem. Suco de frutas, também. . .
Preferiram carcadet. Abdul perguntou se tinham ido lá para mostrar alguma nova monumental descoberta, como aquela última. Fez a pergunta de modo tão casual que Jenny não perdeu a oportunidade de contar que sua "monumental" descoberta havia sumido. Peter percebeu a intenção dela e esperou a resposta. Mas foram interrompidos pela criada, que serviu o carcadet.
— Acho que soube que soltei o falcão — disse Peter, ao ver que Abdul não ia mesmo dizer nada. — Espero que não tenha se aborrecido por isso...
— Claro que não — replicou Abdul, com um sorriso cheio de compreensão. — Eu sabia que ia acabar soltando o pássaro. . . com Jenny teimando em representar o papel de Pai Tomaz... — Riu abertamente, indicando a ela que sabia o que estava por trás daquilo e ,que se sentia feliz por ter acertado desde o começo. — Aquele falcão não parecia muito disposto a aceitar o cativeiro. Esse é meu grande problema com os falcões selvagens. Aliás, isso me lembrou - disse Abdul, pondo a xícara sobre o pires — que tenho uma coisa para lhe dar, Jenny.
— Por favor! Não me diga que o colar, agora, está no bule de carcadet! — exclamou Jenny, com um olhar que fez os homens rirem.
— Você vai ter que esperar o meu testamento ser aberto para ter aquele colar, agora — disse Abdul, com um brilho nos olhos negros.
— Pode crer, o que vou dar, você vai aceitar logo. . . — Saiu e voltou apenas no tempo de Jenny lançar um olhar cheio de curiosidade para Peter; estendeu o fragmento de calcáreo para Jenny. — Acho que não consegui nada de bom nos meus contatos no Cairo explicou Abdul; se percebera a surpresa deles, não demonstrou. Os burocratas não dão valor a nada que não brilhe como ouro. Aí, sim, eles se interessam. Mas acredito que esta peça pode ser uma base sólida para vocês conseguirem seus propósitos. E acho, também, que aquela gente vai ouvir mais vocês do que eu. Afinal, vocês são profissionais. Eu fiquei perdido quando me perguntaram: "Sheik lerada, este fragmento oferece alguma prova das invasões pré-dinásticas do Vale do Nilo?" Vocês podem avaliar, não é?
— Essa pergunta refere-se mais à paleta de Narmer do que a gravação do Rei Escorpião na pedra — disse Jenny, tentando pôr os pensamentos em ordem enquanto falava automaticamente; não esperava que Abdul entregasse a peça desaparecida com tanta naturalidade. — A paleta de Narmer foi encontrada pela mesma expedição que ocalizou a gravação — continuou. — Foram encontradas quase ao mesmo tempo. A preponderância de figuras de animais do mesmo tipo existentes nas artes da Suméria e de Elam, assim como na paleta e em várias peças encontradas nesses locais quase ao mesmo tempo, fez com que alguns estudiosos aventassem a hipótese de que o Egito, em seus princípios, foi invadido por povos mais civilizados do platô iraniano e da Mesopotâmia.
— Está vendo? — entusiasmou-se Abdul, como se Jenny tivesse esclarecido um mistério que o havia preocupado até então. — Eu jamais poderia supor isso. Acho que vocês devem levar essa peça ao dr. Ramin Abuseer, no Departamento de Tesouros Arqueológicos do Cairo. Se conseguirem convencê-lo da importância dela, ele pode conseguir ordem para vocês fazerem escavações no local que acharem certo.
— Ótimo. Mas, por enquanto, estamos contentes por ver a peça — disse Peter que, ficando fora da conversa, percebera que Jenny estava se afastando do ponto principal.
— Nós pensamos que ela tivesse sido roubada.
— Roubada? — indagou Abdul, profundamente surpreso. — Pensaram que tinha sido roubada, por quê? Karoon não falou com vocês?
— Nenhum de nós viu esse Karoon — rebateu Peter, querendo ouvir a explicação de Abdul, apesar de já ter ideia formada sobre o desaparecimento da peça.
— Quer dizer que ele simplesmente foi lá e pegou-a, sem permissão de vocês? — perguntou Abdul, parecendo muito chocado.
— É, parece que foi assim — assentiu Jenny, sem saber o que pensar.
— Isso é imperdoável! — exclamou Abdul. — Eu pensei que. . . bom, é óbvio o que pensei, não? Eu chamaria Karoon aqui, agora, se ele não tivesse ido ao Cairo, a negócios. Podem ficar sossegados, que vou falar com ele e repreendê-lo pelo que foi, na certa, uma falha de comunicação.
— É. . . Deve ter sido uma falha de comunicação, sim. . . — disse Peter, imaginando se deveria ou não dizer o que pensava.
— O importante é que vocês estão com o fragmento, não? — concluiu Abdul, tratando de servir mais carcadet.
— O que acho que o sheik está querendo nos dizer, realmente começou Peter, achando que quem tenta não consegue nada —, é que uma escavação arqueológica em Hierakonpolis iria atrapalhar a prospecção de petróleo. Portanto, que podemos levar o fragmento a qualquer autoridade competente, expor os mais concludentes argumentos sobre a importância de outras peças como esta que possam estar lá, mas não vamos conseguir licença para trabalhar naquela área.
Depois de encher as xícaras das visitas, Abdul encheu a dele, pegou-a com o pires, recostou-se na cadeira. Tomou um gole, olhou para Peter, depois para Jenny e sorriu.
Disse:
— Medidas de segurança têm garantido meus últimos sucessos na implantação de poços de petróleo.
Parecia que ele ia continuar a falar, e Peter também parecia ter o que dizer, mas foram interrompidos. Jenny reconheceu o olhar cortante e frio. Percebeu a presença do homem antes de Peter e Abdul.
— Ah! Parece que hoje é dia das visitas inesperadas! — exclamou Abdul, seguindo o olhar de Jenny e vendo Rashid al-Hidda.
Rashid continuava com o mesmo jeito de anão maldoso que Jenny notara ao encontrá-lo naquela madrugada.
— Dêem-me licença por uns momentos — disse Abdul, desculpando-se e levantando-se. — Sem dúvida meu astrólogo veio me avisar que há catástrofe — se acumulando em meu horizonte! — Entrou na casa e Rashid foi atrás dele.
— Se olhar matasse! — disse Peter, quase para si mesmo, tendo percebido que Rashid não esperava encontrar tanta gente na varanda.
— É mesmo! — concordou Jenny, sentindo o arrepio que sentira na madrugada que conhecera o velho. — Ele não suporta mulheres ocidentais — contou, tentando sorrir.
— Acha que elas, em geral. . . mas em primeiro lugar a mulher de Abdul, depois eu. . . têm má influência sobre os árabes em geral. . . e sobre Abdul mais ainda.
— Ainda bem que os olhares dele não eram para mim! - comentou Peter, rindo. - E, se eu fosse você, não gostaria de me encontrar num corredor escuro com o sr. Rashid al-Hidda! — acrescentou num sussurro confidencial, brincalhão, mas não conseguiu fazer Jenny rir.
Ela tomou outro gole de carcadet, achando que já chegava de Rashid. Mudou para assunto que achava mais interessante:
— Acha, mesmo, que eles encontraram petróleo em Hierakonpolis?
— Claro que encontraram — respondeu Peter, mais convencido do que antes. — Por isso, não temos a menor chance de permitirem alguma escavação por perto de poço. Mesmo que tivéssemos encontrado uma peça de ouro puro, acho que não iriam deixar a gente trabalhar naquela área. Ninguém vai nos querer por perto de um poço que está produzindo petróleo. Abdul agiu de maneira lógica, mas oportunista. Achei incrível ele sumir de Hierakonpolis, como se estivesse respeitando nosso direito de ficarmos sozinhos.
Mas agora ficou claro que a delicadeza não foi o único motivo do afastamento dele.
— Tem certeza que não é o ciúme que está fazendo você dizer isso? — perguntou Jenny, chocada com o sarcasmo na voz de Peter.
— Sim, eu acho que estou com ciúme — admitiu ele. — Mas não é isso. Agora estou conseguindo ver com clareza como Abdul é. Diabo! Ele mandou seu homem ir até lá e pegar o fragmento de calcáreo sem falar com ninguém! Se não fosse assim, Abdul cairia em cima dele como um falcão sobre a presa. Não faz nenhuma diferença se aquele homem agora está no Cairo ou não!
Jenny recostou-se na cadeira, com a xícara e o pires na mão.
— Engraçado... Quer saber? Nada disso me faz gostar menos de Abdul. . . — disse. — Como amigo, claro. Ele tem seus motivos... E lembrou que Abdul queria, desesperadamente, que o Egito estivesse no século XX.
— Meu problema é, também, não deixar de gostar dele — confessou Peter. — Eu bem que queria não gostar desse sem-vergonha!
Jenny riu. Achava um bom sinal estar pondo a amizade de Abdul acima do desaponto por não poder fazer escavações no lugar onde encontrara o calcáreo gravado. Se fosse provado que o Rei Escorpião vivera e fora enterrado naquela área, a partir do achado dela, subiria muito na carreira. Considerou, num suspiro, que sua carreira profissional estava sendo condicionada por dois homens: o amigo e o amado. Não era mais a Jenny Mowry que encontrara o simpático Peter Donas numa alcova do Museu do Cairo. . . Quando Abdul voltou estava tenso, apesar de sorrir.
— Bem, onde é que estávamos, mesmo? — perguntou.
— Que desgraça Rashid al-Hidda veio anunciar, desta vez? — perguntou Jenny em troca. — Ele insiste no fogo?
— Sim. Insiste que devo tomar cuidado com fogo — assentiu Abdul, com um sorriso; depois, lembrando que Peter não sabia do que se tratava: — Meu astrólogo vive predizendo que vou correr sérios perigos com fogo. Como as dos velhos oráculos, as predições dele têm várias interpretações. Perguntei-lhe que tipo de fogo se tratava: "fogo" de revólver, de metralhadora? Fogo do sol ardente do deserto? Fogo da febre de uma grave doença? Fogo que pode transformar esta casa e eu em cinzas? Ele respondeu: "Se eu pudesse, diria.. . Os astros não estão sendo muito claros". Imagine, os astros dando informações, como se fossem membros de uma cabala universal! Estrelas e planetas não têm um cérebro, não se inclinam para o bem, nem para o mal. São simples corpos do espaço; não têm nada a ver com a nossa vida!
— Também acho! — concordou Jenny, depressa.
— Quando eu tinha oito anos — contou Abdul, pensativo Rashid al-Hidda avisou que devia tomar cuidado com cobras. Imagine! As únicas cobras que há no Egito são as usadas por faquires e dançarinos. Antes eram tão numerosas aqui que se tornaram o símbolo do Baixo Egito e havia uma cobra, junto com o abutre, na coroa dos faraós.
O abutre é o símbolo do Alto Egito. As cobras foram desaparecendo e já não existiam por aqui quando eu era criança. Duas noites depois do aviso de Rashid, o criado que ele mandou até meu quarto para velar meu sono matou uma cobra que estava a poucos centímetros da minha cama. . . — Olhou para Jenny.
— Será que não foi o criado que levou a cobra? — sugeriu ela.
— Tenho certeza que foi — respondeu Abdul, com um sorriso forçado, querendo aliviar a tensão, sem conseguir. — Mas naquele tempo acreditei. Tinha só oito anos. Mais tarde achei que Rashid tinha montado aquela cena para receber de meu pai a recompensa por ter salvo o herdeiro do sheik.. .
Abdul não explicou porque, se não acreditava no astrólogo, mantinha Rashid sempre à mão. Mudou de assunto, perguntando para quando devia esperar o convite do casamento deles. Um criado entrou antes de Peter começar a responder.
— Agora não, Sadid! — impacientou-se Abdul, fazendo sinal para o criado ir embora. — Seja o que for, pode esperar até eu passar algum tempo sossegado com meus amigos! — É um telefonema para o sr. Donas. . . — disse Sadid. Jenny sentiu a varanda rodar. Se não estivesse sentada, teria perdido o equilíbrio e caído. Suas mãos agarraram com tanta força os braços da cadeira que as juntas ficaram brancas. Não tinha ouvido o telefone tocar.
— Bem, se é assim... Leve o sr. Peter até o telefone. Peter estava olhando para Jenny. Colocou a mão sobre a dela, que estava gelada. Tentou fazê-la largar o braço da cadeira, mas não conseguiu.
— Não seja como um astrólogo que vê desgraça em tudo! — disse, levantando-se para acompanhar Sadid.
Abdul, curioso em saber por que ambos tinham reagido de modo tão estranho a um telefonema, disse:
— Jenny?...
— Está acontecendo de novo — disse Jenny, voltando para ele o rosto pálido, tenso.
— O quê? — perguntou Abdul e quando ela contou o que a apavorava, riu, deixando-a furiosa. — Desculpe rir de uma coisa que parece terrível para você — disse, ainda sorrindo. — Mas chega a ser irónico uma mulher bonita, culta, inteligente, que acaba de questionar a validade das predições de um astrólogo, acreditar que espíritos estão controlando sua vida! Que chance tenho eu de escapar da superstição se você, cuja cultura é muito mais adiantada do que a minha, acredita numa coisa dessas?
— Ele vai me deixar, Abdul — insistiu Jenny, aflita.
— Vá com ele para a Inglaterra — sugeriu Abdul, simplesmente.
— Ele não me disse para ir. . . — respondeu Jenny, sombria. — Ele não pediu... — repetiu, num murmúrio.
— E nem devia! — rebateu Abdul. — Homem nenhum teria a ideia de exigir que a noiva fosse assistir à morte de um parente dele, ainda mais não conhecendo o doente!
Enquanto falava, Abdul imaginava por que não aproveitava mais essa brecha no relacionamento dos dois, usando a paranóia de Jenny em seu benefício. Se a amasse menos, pensaria mais na própria felicidade do que na dela.. .
— Mesmo que ele pedisse, eu não poderia ir — confessou Jenny relutante. — O grupo já ficou sem o chefe principal e agora vai ficar sem o segundo. Sou apenas uma mulher. . . mas também sou a única pessoa formada e credenciada do grupo. Seja qual for o rapaz que Peter escolher para deixar na chefia, ele vai precisar do apoio de alguém mais experiente.
— Então, por que essa confusão toda, Jenny? — surpreendeu-se Abdul. — É claro que Peter sabe que a ética profissional não admite que afaste você de um projeto que pararia sem a sua presença.
— Eu sei disso — insistiu Jenny. — Mas é que ele nem pensou em me levar, em me dar a oportunidade da escolha.
Abdul sacudiu a cabeça, não conseguindo entender. Mas para Jenny tudo estava claro: queria, desesperadamente, um sinal de que Peter a levaria com ele, se fosse possível.
— Escute aqui, Jenny — começou Abdul. — O tempo de duração de um relacionamento depende principalmente da confiança. Quando uma pessoa não confia em alguém, não adianta a gente morrer de falar, que ela não se convence. E você não confia em Peter. Por isso, não vou perder tempo e energia enumerando as qualidades dele, dizendo que você vem subestimando o amor dele desde o começo. Não que eu ache que Peter não merece meu esforço.. . mas é porque acho que você vai acabar destruindo o que existeentre vocês dois.
— Eu amo Peter! — protestou Jenny, chocada.
— Então, vai ver que amor não chega — insistiu Abdul, tentando sacudi-la mais. — Talvez ele seja apenas uma parte do todo e se complete com amizade, entendimento, paixão. Se for assim, Jenny, compreenda que é melhor ele ir embora! O que está acontecendo com Jenny Mowry e Peter Donas nada tem a ver com o que aconteceu, há sessenta anos, com Geraldine Fowler e Frederic Donas, Jenny! Cuidado, porque com uma decisão errada você pode estragar a sua vida, a de Peter. .. e a minha.
— Meu tio está me chamando, Jenny — disse Peter, voltando à varanda e dando voz aos temores dela.
— Então, você precisa ir — respondeu ela, surpresa com a facilidade com que falara diante do fato consumado.
— Vou mandar meu helicóptero levá-lo até o Cairo — disse Abdul.
Percebeu o olhar magoado de Jenny, pois assim ele a privava de ter a companhia de Peter mais um pouco, indo de caminhonete até o aeroporto de Assuan. Mas um dia ela iria agradecer-lhe, se conseIguisse cair em si. Não que Abdul condenasse o mórbido fascínio que Jenny sentia pelo passado, pois sabia que era isso que a tornava uma boa arqueóloga. . . Ele também acreditava no destino, revelado pelos astros, por exemplo.
— Vou deixar vocês sossegados, agora — disse, diplomaticamente. — O helicóptero fica pronto logo.
Jenny ergueu-se, voltando-se para Peter, dizendo a si mesma que não ia ser um adeus. Ele ia para a Inglaterra e voltaria para ela. - Oh, Peter! - murmurou, lágrimas subindo aos olhos. Ele se aproximou, abraçou-a com força, beijou-lhe o rosto, enxugando as lágrimas, dizendo que tudo ia dar certo. Ia ser um inferno para ele, também, ficar longe dela uns dias. Mas uns dias não era ara sempre.
— Olhe — disse ele, de repente —, por que não vem comigo? — Jenny chorou ainda mais, ao ouvir o que queria. — É isso mesmo! — entusiasmou-se ele. — A gente telefona para o pessoal, avisando que trata de um caso grave na família. Agora, minha família é sua, também, não? Ou logo vai ser.
— Obrigada por me pedir para ir. . . — disse Jenny, tentando se controlar, procurando um lenço no bolso para enxugar as lágrimas.
— Mas não podemos sair juntos da escavação. Alguém tem de ficar para tocar as coisas. Muito dinheiro foi empregado nesse projeto. . . — Ele não disse nada; ambos sabiam que essa era a decisão certa e Jenny o decepcionaria se agisse de outro modo. — Quem você vai deixar na chefia? — perguntou ela.
— Tim me parece o melhor deles. . .
— Vou deixar você na chefia — respondeu Peter, como se isso fosse óbvio. — Você já devia ter assumido o cargo de diretor quando o prof. Kenny foi embora.
— Os trabalhadores árabes não vão gostar disso... — lembrou Jenny, contente com a decisão dele, mas preparada para admitir certos fatos que antes não admitira, por orgulho profissional.
— Vou deixar as escavações nas suas mãos porque você é a pessoa mais qualificada para dirigi-las — disse Peter, definitivo. — Se surgir algum problema, você vai saber resolver da maneira melhor para o trabalho. E por que pensar em complicações antes de aparecerem?
Não se referia às dificuldades que ela poderia ter com os trabalhadores árabes, mas sim no relacionamento deles.
— Eu te amo, Jenny Mowry — disse, beijando-a, enquanto o helicóptero chegava ao heliporto ao lado da casa. — E eu vou voltar, pode crer!
— Fico esperando. . . — respondeu Jenny, apertando-se mais contra ele e beijando-o ainda uma vez antes de Abdul vir chamá-lo.
Jenny ficou na varanda, não querendo prolongar mais a despedida dolorosa. Quando o helicóptero levantou voo, tornando-se visível da varanda, Jenny não olhou para ele. Mantinha os olhos fixos no Nilo, em Assuan, nas colinas rosadas que se erguiam suaves. Olhar para o lado que o helicóptero ia seria olhar para o norte, para Tebas. . . para o que acontecera entre Geraldine Fowler e Frederic Donas. .. para o lugar onde eles se haviam encontrado e amado, há sessenta anos.
CAPÍTULO XV
O som vibrou abafado, como um trovão.
Jenny largou a pequena escova e o bisturi que estava usando para limpar os ossos do esqueleto que encontrara no dia anterior. Alguns ossos tinham sido expostos pela erosão do vento e Jenny resolvera recuperá-los sozinha, sem tirar ninguém do trabalho que faziam nas duas escavações e que estavam indo bem. Não estava longe demais de um dos grupos. Subindo a duna próxima podia ver o pessoal trabalhando.
Ao ouvir aquele ruído estranho ficara arrepiada. Não havia explicação lógica para ele. Limpou o suor da testa, conseguindo sujá-la com uma combinação de umidade e pó. Trabalhara muito ultimamente, dedicando-se de modo total ao cargo de diretora das escavações. Era um jeito de diminuir o sofrimento pela ausência de Peter.
Sentia-se mais confortada pela exaustão depois de um dia duro de trabalho do que pelos dois telefonemas que Peter fizera. Um para dizer que o tio ainda estava- vivo.
O outro para contar que ele morrera. Ao receber a segunda notícia Jenny sentira-se alegre, depois tivera vergonha de se alegrar com a morte de alguém. É que isso queria dizer que Peter logo estaria de novo com ela. Mas não fora assim. O tio morrera, mas Peter não voltara da Inglaterra.
— Ficou tudo na maior confusão, querida — tentara explicar Peter, durante um telefonema dificultado por terrível estática.
— Eu preciso ficar aqui até pôr tudo em ordem. — Por quanto tempo, ele não sabia. — Volto o mais depressa possível — prometera. Diante do terror contínuo de ser abandonada por Peter, por mais que ele tivesse afirmado o contrário, Jenny enfronhara-se no trabalho. Logo nos primeiros dias, os trabalhadores árabes tinham abandonado a escavação, ao ver que uma mulher ia mandar neles. Pedida a ajuda de Abdul, ele fizera os homens voltar, mas precisara assumir a chefia aparente. Caso contrário, eles não trabalhariam.
Abdul ia constantemente às escavações, dizendo que era para controlar os homens, mas na verdade era mais para ver Jenny. Aliás, estava quase todos os dias por lá e, como Peter, Jenny tinha quase absoluta certeza que tinham descoberto petróleo no poço de Hierakonpolis. Abdul não ia dar-se tanto trabalho por um poço inútil, seco. Naquela manhã, pouco depois do helicóptero dele passar, barulhento, Abdul chegara à escavação e dera uma espiada nos homens.
— Será que aceita jantar comigo, hoje? — perguntara a Jenny, antes de ir para o poço.
E ela aceitara o convite, contente por ter uma diversão diferente do livro lido à noite. Aliás ler estava se tornando cada vez mais difícil: já não a ajudava a manter o pensamento longe da ideia do abandono de Peter. A cada dia que passava, era mais difícil para Jenny acreditar que ele voltaria.
De novo o estranho trovão! Num céu limpo, sem nuvens. Num lugar onde não chovia há mais de quinze anos.
— Oh, meu Deus! — exclamou, de repente, largando escova, bisturi e correndo para o jipe.
Algo parecera explodir em sua cabeça naquele instante. Aquilo não era trovão, mas sim explosão. . . Explosões e tiros! Dirigiu o jipe quase às cegas, tal seu nervosismo.
Não tinha a menor noção do que iria fazer quando chegasse ao poço. Só sabia que Abdul estava em perigo e que não podia ficar longe, sem fazer nada! O que sentia por Abdul estava muito longe do amor que sentia por Peter, mas isso não tornava o árabe menos importante e precioso para ela.
Viu a fumaça. Subia em densos e negros rolos para o céu muito azul, saindo de chamas enormes, que rugiam. Não era apenas o poço de petróleo que estava ardendo: todas as construções que havia no local estavam incendiadas. O helicóptero estava em chamas: uma fénix de metal sendo consumida sem esperança de ressurreição. Homens mortos e feridos jaziam sobre a areia, gritos angustiantes às vezes elevavam-se acima do rugido constante do fogo.
Jenny não conseguia tirar os olhos da cena dantesca. Não percebeu os homens chegando. A porta do jipe foi aberta com violência e obrigaram-na a sair do veículo, arrancando-a de dentro e jogando-a no chão. Erguendo os olhos, não pôde ver mais do que as silhuetas de homens contra o sol brilhante. -Tomou consciência, então, que o objeto duro e quente quê sentia na base do pescoço era o cano de uma metralhadora. A ideia de que estava por morrer, que nunca mais iria ver Peter, provocou a súbita reação.
— Levem-me para o sheik Jerada! — disse, em árabe, sabendo que se aqueles homens fossem inimigos do sheik acabara de assinar a própria sentença de morte. — Ele é meu amigo! — acrescentou. Ouvi as explosões, por isso vim até aqui... — O cano da metralhadora desencostou do rosto dela, mas continuou apontando. — Levem me até Baseeli, então! — disse, numa outra tentativa. — Pelo amor de Deus, me levem para Galai Baseeli!
— Levante! — Ao mesmo tempo que a voz áspera soou, um par de mãos grosseiras agarraram-na e a puseram de pé. Fizeram-na entrar no banco de trás do jipe, junto com um dos homens, que cheirava a suor, sangue e medo. Os outros dois sentaram-se na frente. O jipe desceu, sacudindo terrivelmente, para a planície onde ficava o poço de petróleo. Era o próprio inferno! Divisaram Galai no meio de um grupo de homens. O que estava ao volante do jipe desceu e foi falar com ele, que olhou rapidamente na direção de Jenny. O homem voltou e dirigiu o jipe para uma formação rochosa à direita, enquanto novas rajadas de tiros indicavam que a batalha não terminara.
Fizeram-na sair do jipe. Um dos homens ficou com ela, enquanto os outros dois voltavam ao combate. Olhando o helicóptero em chamas, Jenny estremeceu, pensando que Abdul poderia estar nele quando fora atingido. Lembrou da recomendação de Rashi al-Hidda: "Cuidado com fogo!" E ali havia fogo para incinerar até o diabo. Estremeceu, apesar do calor. Afinal, os tiros pararam, mas o fogo continuou. Afinal, Galai Baseeli aproximou-se. Sem dizer uma palavra, pegou-a por um braço e levou-a para um dos pequenos edifícios. O teto havia sido destruído pelo fogo e as paredes estavam enegrecidas pela fumaça. Pararam e, apontando para um cobertor em lugar da porta, Gala disse:
— Ele está aí — E, para o guarda armado que guardava a entrada — É amiga dele.
Antes de Jenny entrar, Galai pôs a mão num ombro dela, fazendo-a voltar-se. Não disse nada, mas o olhar onde já não havia aquela frieza arrepiante dizia tudo. Jenny afastou o cobertor e entrou.
Abdul estava numa cama improvisada, num canto, junto da parede de tijolos aparentes. Um homem, de joelhos perto dele, cobriu-o até o queixo, olhou para Jenny, levantou-se e fez-lhe sinal que se aproximasse.
— Abdul?. . . — murmurou Jenny, ao ver o rosto bonito horrivelmente queimado.
Pensou que ele estivesse morto.
— Abdul... É Jenny... — disse, a voz apertada na garganta. As pálpebras dele tremeram, depois abriram-se mostrando os enormes olhos negros que ela conhecia tão bem.
— Jenny? — indagou, parecendo temer que fosse ilusão.
— Sim, Abdul. . . — respondeu, vendo que ele afastava o cobertor, para libertar mãos e braços. — Estou aqui.
— Eu amo você, Jenny — disse, pegando as mãos dela e apertando-as de leve. — Sabe disso, não é?
— Sei, sim... — disse Jenny, sentindo um aperto na garganta, querendo poder dizer àquele homem que também o amava. — Abdul, eu. . . — começou e calou-se, pois os dedos dele tocaram-lhe os lábios, pedindo silêncio.
— Você nunca mentiu para mim, Jenny — murmurou, deixando as mãos caírem, cansadas, sobre o peito. — Não seria bom se mentisse agora. E mesmo que fosse verdade que você me amava, imagine que grande e inútil dor de cabeça isso ia me dar. . . por saber que tinha conseguido o que mais queria no mundo para deixá-la para sempre.
— Você vai ficar bom — disse Jenny. — Vai, sim!
— Essa mentira eu perdoo — sussurrou Abdul, tentando sorrir, em vão. — Lembre que eu vivi intensamente. .. brinquei com fogo muitas vezes, pensando nos que nunca tinham feito isso, que não viveram. Que vida mais sem graça a deles!. ..
Jenny começou a chorar. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto, caindo sobre o cobertor que cobria Abdul.
— Tivemos coisas preciosas em conjunto, Jenny. . . — continuou ele. — Não nos amamos, mas amamos as mesmas coisas: as noites do deserto; os dias quentes, azuis; as águas eternas do Nilo; as tamafreiras, sentinelas silenciosas do deserto. Nós nos unimos no amor ao Egito. E fomos amigos. No fim, sua amizade foi mais preciosa para mim do que você pode imaginar, Jenny. Eu vou morrer depois de ter tido muitos, muitos amores, mesmo. . . mas poucos amigos verdadeiros.
Levou a mão de Jenny aos lábios e beijou-a.
— "Eu acredito que a inquisição pode ser feita com Direito e que a Igualdade pode florescer como um lindo jardim de amarantos". . . — murmurou ele.
Era um trecho do Livro dos Mortos egípcio. Estava tudo acabado, para o sheik Abdul Jerada. O amigo de Jenny acabara de morrer.
CAPÍTULO XVI
— Sinto muito, srta. Mowry — disse, longínqua, a voz com acento inglês. — O sr. Donas está com Dylana Cárter. A senhorita quer o número de lá?
Ela não queria. Seria demais ouvir a voz de Dylana Cárter chamando Peter, que podia estar debaixo do chuveiro, para atender ao telefone. Preferiu deixar o recado.
— Diga a ele que o sheik Abdul Jerada morreu. — Agradeceu e desligou o telefone.
Telefonaria para ele do Cairo ou dos Estados Unidos. De Londres, não, porque não iria para lá. Geraldine Fowler cprrera atrás de Frederic Donas, até Londres, e veja o que acontecera com ela!
Deixou o telefone para Bárbara, que queria avisar os pais da mudança dos planos, por causa da sabotagem no poço de petróleo e o assassinato do sheik Abdul Jerada.
A escavação fora proibida pelo Governo, que mandara isolar a área toda. Jenny achara que era como apagar o fogo depois de todo leite derramado, mas nada dissera, ocupada como estava tentando equilibrar-se no seu mundo abalado, agora que os dois únicos homens importantes para ela estavam longe. Procurara ajeitar os objetos que tinham encontrado nas escavações, que seriam concluídas dali a duas semanas. O tempo era pouco para pôr tudo em ordem e tentara conseguir uma ordem para ficar mais uns dias, mas o coronel encarregado dissera ser impossível: ela teria que levar tudo para o Cairo e terminar a classificação das peças lá. A área de escavações em Hierakonpolis estava oficialmente fechada, sacrificada pelas mesmas chamas que destruíra o poço de petróleo e a vida de Abdul Jerada.
Nas últimas agitadas horas mantivera os pensamentos longe da morte de Abdul e de Peter nos braços de outra mulher. Mas quando tudo ficou pronto e estava, com o grupo, na estação de Idfu esperando o trem que faria uma parada especial ali para levá-los ao Cairo, Jenny voltou a pensar naquelas coisas tristes.
— Jenny, tem certeza de que está bem, mesmo? — perguntou Bárbara, preocupada.
— Não estou — confessou Jenny, com um sorriso triste —, mas acho que vou sobreviver. Se você me fizer essa mesma pergunta daqui a um mês, garanto que dou uma resposta mais otimista. . . — Bárbara quis saber se ela falara com Peter. — Ele não estava em casa respondeu, sem dizer que achava que Peter estava com outra mulher.
— Jenny está ali — ouviu Tim dizer. Voltou-se e viu um árabe dirigindo-se para ela.
— Srta. Jennifer Mowry? — indagou o homem, sem saber a qual das duas mulheres interpelar. — Meu nome é Banir Ranshar.
— Em que posso atendê-lo? — perguntou Jenny, com esperança que o homem dissesse que poderia ficar em Hierakonpolis.
Apesar da oportunidade de ir encontrar com Peter em Londres, ela teimava em continuar comparando sua vida com a de Geraldine Fowler. Elas duas tinham ido para o Egito trabalhar em escavações arqueológicas e lá haviam encontrado um Donas, aos quais haviam amado. Geraldine tinha ido a Londres para saber que fora traída. Jenny não queria passar por isso.
— Tenho uma coisa para entregar à senhora — disse o homem, pondo a maleta que trazia sobre um banco, abrindo-a e tirando um estojo de dentro.
Jenny pegou o estojo e abriu, não porque não soubesse o que havia dentro, mas por que o sr. Ranshar iria pedir que verificasse o conteúdo. Imediatamente as lágrimas subiram-lhe aos olhos. Fechou o estojo. O colar estava lá dentro. Um dia poderia olhar para ele sem chorar. Nesse dia, não. Abdul tivera razão ao dizer que daquela vez ela não recusaria. Pegou também o papel que lhe permitiria passar o colar na alfândega. Guardou tudo na frasqueira. Assinou um recibo que o árabe lhe apresentou e ele foi embora. Bárbara foi para junto de Tim, a fim de deixar Jenny à vontade.
Pouco depois estavam no trem, indo para o Cairo, que ficava na mesma direção de Tebas. Bárbara ficara no mesmo compartimento que Jenny, mas passava a maior parte do tempo no compartimento vizinho, ocupado por Tim e tom Banker. Jenny permanecia sozinha, olhando pela janela, imaginando Geraldine no trem para o Cairo, depois no navio para a Inglaterra. Se tivesse que seguir o mesmo itinerário, Jenny iria de avião. Mas o meio de transporte não iria mudar nada.
Quando o trem parou em Luxor, todos se surpreenderam quando Jenny pediu a Tim para dar suas malas a um bagageiro. Ia descer. Disse que tinha que resolver umas coisas no Egito, depois seguiria. Havia decidido ir dizer adeus a Tebas, do outro lado do rio, achando que nunca mais voltaria ali, ao contrário de Geraldine, que voltara para morrer de amor.
Pegou um táxi para o Hotel Etap. Pensara em ir para outro, mas acabara achando que era melhor enfrentar as lembranças de uma vez, boas e más, de cabeça erguida.
Enfrentando-as, esperava sofrer menos, apesar daquele local fazê-la pensar dolorosamente em Geraldine, em Frederic, no amor trágico, em Abdul no Osiris e, agora, em Peter em Londres, com Dylana Cárter.
— Peter, Peter... — murmurou, lembrando o profundo prazer que sentia ao dizer esse nome, há tão pouco tempo.
Amava Peter, ainda o queria. Uma parte dela recusava-se a enfrentar o destino, indo procurá-lo em Londres, como Geraldine procurara Frederic. Rashid al-Hidda previra a morte de Abdul, demonstrando que as forças do universo podem controlar o destino humano e que, portanto, era possível a tragédia de há sessenta anos repetir-se. Outra parte dela queria ir em busca da felicidade.
Fechou a cortina do quarto, para não ver a paisagem. Já enfrentara muita coisa nesse dia e no dia seguinte iria enfrentar Tebas, do outro lado do rio. Mas só dois dias depois teve coragem de sair do hotel, na mesma hora quente do dia, como fizera da outra vez. Atravessou o Nilo na balsa, pegou um táxi e foi para o Vale dos Reis. Disse ao motorista que a esperasse no pavilhão de descanso e saiu andando entre os túmulos, no calor opressivo. Desceu os dezesseis degraus da câmara mortuária dê Tutancamon e ficou olhando o sarcófago de ouro que continha a múmia do faraó. Esperava ouvir a voz de Peter dizendo seu nome, como da outra vez. Sentiu-se endurecida e fria, enquanto esperava. Um guarda apareceu, para dar a entender que aquela demora era suspeita. Então, Jenny saiu. Peter não estava lá. Não ia chegar. Estava em Londres com outra.
O motorista devia ter pensado que ela era louca, quando mandou que a levasse até o túmulo da Rainha Hatshepsut. Lá não havia pavilhão de descanso e não poderiam abrigar-se do sol. Jenny prometeu uma boa gorjeta e ele acabou concordando.
O impressionante edifício construído sobre pedras douradas dava uma sensação incrível de força. Força que nada tinha a ver com o aperto doloroso que Jenny sentiu no peito ao associar aquela construção com o falcão de Abdul. Era uma construção ordenada por uma rainha que triunfara numa sociedade dominada por homens, uma mulher que sempre seria lembrada, quando muitos dos homens que tinham vivido no tempo dela estavam esquecidos. Tudo é possível se uma mulher pudera dominar o Egito como faraó. Tudo, até mesmo Jenny sobreviver à morte do amigo e a abandono do amante.
Voltou-se para leste, depois de ter subido as duas rampas que levavam ao segundo andar do templo. Estava dizendo adeus ao Egito, a Tebas, a Tutancamon, a Geraldine Fowler, a Frederic Donas, aos sonhos de criança e à amizade de Abdul Jerada. Mas ainda não estava pronta para dizer adeus a Peter Donas.
A rainha Hatshepsut não teria conseguido o que conseguiu se não enfrentasse a adversidade, se não lutasse com unhas e dentes para conseguir o que queria. Mas Jenny estava prestes a desistir de Peter por medo que a história se repetisse. Jenny era livre, nada a prendia. Geraldine tinha marido e dois filhos. Seria impossível para Frederic e Geraldine se casarem. Isso não era impossível para Jenny e Peter. . . ao contrário!
Abdul dissera que ela subestimava o amor de Peter. Ele devia estar preso em Londres pelos problemas surgidos com a morte do tio. Dylana Cárter devia ser uma advogada.
Jenny estava sempre tirando conclusões apressadas. Geraldine Fowler não tinha feito isso. Só perdera as esperanças depois de verificar todas as alternativas. O que Jenny tinha que decidir era se estava saboreando o amargo prazer de ser vítima de uma tragédia ou se queria aceitar a possibilidade de um casamento feliz para sempre. A escolha não era bem uma escolha!
— Adeus, Tebas! Já vou indo, Londres! — disse, dando, um olhar de despedida à paisagem ao redor.
Pela primeira vez deixou de se sentir angustiada.
De repente, apareceu uma nuvem de poeira na estradinha que ia dar no templo. Alguém tão maluco quanto Jenny enfrentava o calor do meio-dia para visitar túmulos antigos.
O carro chegou junto da construção, parou e um homem saiu dele. Ficou imóvel, cabeça erguida para ela, depois começou a andar. O coração de Jenny saltou como que alucinado, a cabeça girou, os olhos piscaram, tentando livrar-se da miragem.
— Jenny! Jenny! — chamou ele, enquanto subia as rampas correndo. — Jenny! Jenny. ..
— Peter? — murmurou ela, dando dois passos na direção. de Peter e teria caído se ele não a abraçasse. — Você veio. . . Você veio, mesmo! — disse, como num sonho.
Jenny havia chegado à certeza de que não repetiriam a tragédia de seus avós e estava contente ao ver que era isso mesmo. Frederic Donas não voltaria a Tebas, para Geraldine Fowíer.
— Acho que nós dois temos algo a ver com aquilo de Maomé indo à montanha. . . assim que Tim e Bárbara me telefonaram do Cairo para dizer que você não ia para Londres.
— Mas eu ia, sim! — disse Jenny, querendo que ele soubesse que tinha decidido ir antes que ele chegasse. — Eu ia.
— Bom, eu não podia esperar — disse Peter, passando a mão pelos cabelos sedosos dela. — Eu já tinha sido obrigado a esperar demais ... e também — continuou Peter, tirando uma caixinha do bolso da calça — queria dar isto para você em Tebas. Fiquei aflito quando cheguei no túmulo de Tutancamon e não encontrei você lá. Tive a sorte de ver um táxi parado aqui, quando ia voltar para o hotel, em Luxor. E pensei, quem mais senão Jenny pode estar ali com este calor?
— É que o panorama visto daqui é lindíssimo — disse ela, não olhando a paisagem, mas sim a caixinha na mão de Peter.
— Tome — disse ele. — Pegue. É sua.
Ela pegou e viu as iniciais em ouro na tampa do pequeno estojo.
— D.. . C.. . — murmurou. — Dylana Cárter?
— Você conhece? — perguntou Peter, surpreso.
— Quem? — indagou Jenny de volta, confusa. Peter olhou-a com atenção e um brilho divertido surgiu nos olhos dourados.
— Você não pensou que... que fosse... — parou, malicioso,depois continuou: — Que fosse uma mulher, pensou?
Jenny ficou vermelha, mas confessou:
— Acabei me convencendo de que era uma velha advogada ocupada com os problemas de inventário do seu tio.
— Pois são dois velhos! Teddy Dylana e John Cárter. Eles têm uma joalheria chamada Dylana Cárter, do sobrenome dos dois — explicou Peter. — Sempre que preciso consertar ou limpar uma jóial de valor, vou lá. Só confio neles.
— Me sinto tão idiota! — gemeu Jenny, sentindo-se, também, profundamente feliz.
— Bom, eu não vim até aqui para fazer você se sentir idiota,! Jenny Mowry. — Apertou-a contra o peito forte, dando aquele sorriso maravilhoso que a fazia derreter por dentro. - Vim para fazer você ficar fervendo por mim! Agora, abra a caixinha e me diga se não sou um maluco! Vir até o Egito para provar a uma bobinha que nós dois nada temos a ver com a tragédia que aconteceu em Tebas, muito antes da gente nascer!
Ela abriu a caixinha e um diamante solitário faiscou, como se o sol estivesse dentro dele.
— Foi de minha mãe — disse ele —, da mãe dela, antes. Teria sido de Geraldine Fowler se as coisas tivessem sido diferentes com meu avô.
— Oh, Peter, é lindo! — exclamou Jenny, só conseguindo tirar os olhos do anel para fitar o olhar feliz de Peter.
Ele pegou o anel e colocou no dedo dela.
— Nada é lindo demais para minha futura esposa — murmurou. Abraçou-a e beijou-a, o Egito aos pés deles.
Estavam completamente esquecidos do calor que atormentava os motoristas dos táxis, enquanto comentavam a loucura de turistas que se arriscavam a apanhar uma insolação beijando-se no terraço do Deir al-Bahari da rainha Hapshetsut ao sol do meio-dia.
— Eu te amo, Jenny Mowry — disse Peter, os lábios nos dela, roçando-os sensualmente ao falar.
— Eu te amo, Peter Donas — respondeu ela, sentindo-se parte de um mundo que Peter criara para ela.
Lá no alto voava um falcão, banhando-se no azul do céu, embriagado de uma liberdade que Peter e Jenny não queriam, em troca das doces correntes do cativeiro do amor, que os prendia firmemente um ao outro.
Willa Lambert
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