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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VALETE DO CRIME / Alec Baurer
O VALETE DO CRIME / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Duas Coisas que Somem
O revólver do Signor Tomazelli sumiu na noite do dia 25 de outubro, depois de uma de suas habituais bebedeiras. Quando entrei na casa, às 7 horas da manhã do dia
26, ele estava de joelhos, rastejando de lá para cá pela sala de estar.
Os jovens devem tratar bem os de mais idade, foi o que me ensinaram. Mas ali, se arrastando pelo chão, Tomazelli tinha o ar mais desastrado do mundo. Logo suspeitei que estivesse procurando alguma coisa — o que não era nenhuma novidade. O que eu não sabia era que a busca dele ainda teria trágicas consequências para toda a semana seguinte.
— Problemas? — perguntei.
Ele levantou rapidamente a cabeça oblonga. Observei que, por trás dos óculos de aro de tartaruga, ele estava espantado comigo e com minha pergunta.
— Sim, sim, que azar, Srta. Carlile. Perdi minha arma… Deve ter caído por aí. Uma desgraça!
O comentário foi acompanhado por um movimento sutil no canto de sua boca.
— Ah, a arma. Pensei que eram algumas moedas ou a tabaqueira.

 


 


Eu estava sendo cínica. Tomazelli é meu senhorio, e nossa familiaridade me dava algumas licenças. Caçoar era uma delas, por exemplo. Ele ficou encabulado, o que considerei extremamente anormal.
— Quem dera que fosse. Mas não se preocupe… Armas não se perdem assim. Vou achá-la nem que vire tudo de ponta-cabeça.
— Se é o que está dizendo — dei de ombros. — Bom dia ao senhor.
Não correspondeu ao meu cumprimento. Impassível como uma pedra, Tomazelli voltou ao seu trabalho. Saí e fui até minha quitinete, a alguns metros no mesmo pátio.
Peguei minha bolsinha no aparador e me aprontei para sair. Fiquei retida por um instante com a fechadura da porta, tentando chaveá-la com duas voltas de chave. Não sou essencialmente especialista nisso, e não foi com surpresa que, após uma breve e irritante luta, desisti totalmente. Guardei meu molho de chaves, aborrecida, e virei-me para descer a varanda. Ventava, e percebi prontamente que a saia de veludo que usava não bastaria para conter o frio.
Na rua, virei à direita; eu precisava cuidar de meu primeiro compromisso do dia.
Cheguei à Haydhée Haus em cinco minutos. Entrei direto, sem bater na porta. Deixei do lado de fora uma névoa grossa, que insistia em se infiltrar em meu pulôver.
Juli, a empregada, apareceu da cozinha.
— Olá, Juli. Sua patroa já acordou?
— Sim, Srta. Carlile — respondeu a moça, torcendo o nariz. — Não gosto nada disso. A Sra. Gwenny-Ducker dorme tão pouco! Uma pessoa na idade dela… Eu já falei isso para a Sra. Gwenny-Ducker. Mas qual o quê! Sempre que digo alguma coisa, ela fica zangada comigo. O que eu digo não vale nada. “A pobre Juli é uma cabeça-de-vento!”
Oh, Senhor! Ela está tomando café. Eu acabei de levar a correspondência.
A boa e querida Juli! Tão sistemática... Eu diria que, se fosse por escolha sua, a patroa estaria usando uma coleira e aprendendo truques com a bola.
Transpus o bonito hall de entrada.
O cheiro de ovos mexidos e pão colonial invadiu as minhas narinas. Entrei na sala de jantar e vi Judith Gwenny-Ducker sentada à mesa, os ombros encurvados. Apesar de nossa diferença de idade (fiz 25 em agosto), éramos boas amigas.
Judith era viúva desde… bem, desde sempre, acho. Pelo menos, eu não tinha a menor recordação do Sr. Gwenny-Ducker. Diziam que ele era tísico, e que morreu numa sexta-feira
depois de uma queda feia do telhado. Isso tinha deixado Judith com uma lojinha para gerir, o que não foi lá grande problema — ela aprendeu logo a lidar com fornecedores
e clientes. Chegou até a comprar uma máquina para cartões de crédito, uma coisa que teria horrorizado o marido que, de tão conservador, ainda fazia as contas em
tabuinhas de argila. Ou quase.
Nesta manhã, Judith estava lendo uma carta, e seu rosto exprimia uma angústia indescritível. Fiquei parada na porta, observando-a por alguns segundos. Ao me avistar,
no entanto, largou o pedaço de papel e se esforçou para sorrir.
— Katrina, querida! Que maus modos… Assustar uma pobre senhora como eu.
— Eu sei. A pobre senhora estava tão entretida que achei que seria melhor voltar outra hora.
— Você não faria isso comigo, faria? Venha cá, me dê um abraço. Você não vem aqui há tanto tempo! Pensei que tivesse se esquecido de mim.
Abracei-a apertadamente. Era incrível como ela conseguia mudar de fisionomia com aquela rapidez. Em segundos, a sua agonia parecia ter se dissipado. Eu sentia uma
admiração secreta por ela, e nunca lhe ocultei isso.
Judith Gwenny-Ducker tinha seus 67 anos, e conservava uma dignidade majestosa, quase plástica. Claro que às vezes se torna abertamente implicante, mas eu aturo as
suas excentricidades. Afinal, é preciso reconhecer que um dia nós estaremos na mesma situação, e seremos gratos se outros puderem aguentar nossas bizarrices.
— Nunca pensei que a senhora fosse tão elétrica — disse eu. — Sete e meia e já está de pé.
Ela vestia um robe airoso, talvez escavado da tumba de Ramsés. Balançou a cabeça:
— Se você quer fazer algo, faça nas primeiras horas do dia. Papai sempre nos dizia isso. Ele era um homem muito prático. Tento seguir esse conselho até hoje. “Não
desperdice a vida dormindo.” Não é um belo lema? Mamãe era a antítese de papai. Se nenhum de nós fosse lá acordá-la, ela ficava na cama até meio-dia. Ela era tão
frágil! Vivia doente, com manchas pelo corpo.
Olhei para ela com interesse. Com um gesto quase inconsciente, ela dobrou a carta que estava lendo e pôs debaixo do pratinho.
— Más notícias? — insinuei.
— O quê? Não, não, a conta do verdureiro. Quando não anoto o que devo, acabo esquecendo. Depois me mandam recibos de coisas que nem sequer me lembro de ter comprado.
Memória fraca, querida, memória fraca. Juli! Uma xícara, por favor. — Abaixou a voz: — Ela é tão desatenta, não sei como é que pode. Passa o dia ouvindo música naquele…
— Smartphone — completei.
— Que seja. Na verdade, é uma cabeça-de-vento. Não existem mais arrumadeiras como antigamente!
— A senhora já disse isso a ela?
Judith balançou violentamente a cabeça, o que não me surpreendeu. Ela acha que as pessoas são muito previsíveis, e que nunca fazem o que se pede a elas.
— Juli não me ouviria. Você a conhece bem, Katrina. Ela odeia quando me meto em qualquer coisinha dela. Ela não tolera nada do que digo. No mínimo, julga que sou
uma desmiolada. Já lhe disse várias vezes que fosse mais cuidadosa com os ovos que compra. Ontem tinham um gosto horrível! Deviam ser ovos de uma granja contaminada.
Vivo dizendo a ela: “Cuide, Juli, na hora de fazer as compras. Você tem que selecionar os artigos, nunca pegue a primeira peça.” Você acha que ela me escuta? É como
se eu falasse com o abajur.
— De que granja são os ovos?
— Dos Büschler. Mas… Schh, aí está ela!
Juli entrou carregando uma bandeja de prata. Depois de colocá-la sobre uma mesinha baixa ao lado da lareira, olhou polidamente para nós.
— Mais alguma coisa, Madame?
— Não, Juli. Assim está bom. Pode ir, obrigada.
Juli vestia uma saia pregueada verde-escura com uma blusa estampada. Lançou um olhar fulminante para a patroa e saiu, batendo os saltos do sapato.
Judith revirou os olhos para o teto.
— Eu não disse, Katrina? Essa moça está cada vez pior.
Judith permaneceu um instante em silêncio e mudou de assunto.
— A propósito, ouvi dizer que você arranjou um trabalho extra, Katrina. Vai trabalhar para Stephan Ehrack. Fiquei sabendo que vai escrever a biografia dele.
A mudança de assunto me deixou desconfiada.
— É isso mesmo, vou trabalhar para o Sr. Ehrack — exclamei enquanto me servia de café. — Como é que soube?
— Vivemos num lugar pequeno, não é? Todos sabem de tudo. Disseram que ele foi ontem à sua casa falar com você.
— Agora já é demais! Como a senhora soube disso? Nós conversamos a sós. Não havia ninguém conosco. Ele pediu até que eu mantivesse segredo sobre isso.
— Alguém deve ter visto ele, sei lá. Os boatos correm, minha filha. Mas não importa. De qualquer maneira, você vai escrever a história da vida dele, ou coisa que
o valha.
Os olhinhos dela brilhavam de excitação.
— Sim, em partes — respondi vacilante. — A ideia é mais ou menos essa. Acho que vai valer à pena.
— É claro que vai. Se você cobrar bem…
— S-sim… Ele me propôs uma boa quantia.
— Menina, estou torcendo por você. É lógico que vai ser bem paga. Os Ehrack sempre nadaram no dinheiro. São filantropos só para mostrar que têm dinheiro.
A Sra. Gwenny-Ducker suspirou tão profundamente que tive que rir. Conversamos sobre mais algumas amenidades e por fim consultei meu relógio. Era hora de ir.
— Vim aqui pedir um empréstimo, se não for incômodo.
— É mesmo? Aposto que é um livro. Você sempre gostou tanto de ler; nunca saía aqui de casa. Ficava tão engraçadinha com aqueles cabelinhos curtos e um almanaque
no colo.
Previ que ela abriria a sessão naftalina. Antes que pudesse acrescentar qualquer coisa:
— Sim, como adivinhou? — respondi. — Estou fazendo algumas pesquisas sobre toxicologia. Lembro que a senhora tinha um índice com o nome de vários tipos de veneno.
Quero montar uma monografia.
A Sra. Gwenny-Ducker soltou uma exclamação. Olhou para mim com extrema apreensão. Notei que havia alguma coisa errada.
— Oh, o índice! Percebo. Mas, querida, você não sabia?
— O quê?
— Não tenho mais o índice — disse ela. — Foi tirado dali da estante. Nunca o devolveram. Alguém o roubou — acrescentou num gesto de muda indignação.
A Vila e os Moradores
Antes de prosseguir o relato, acho mais do que justo fazer uma descrição de nossa aldeia. Com cerca de três mil habitantes, Wetherburg fica localizada a aproximadamente
noventa quilômetros de Innsbruck. Esta é Wetherburg — na região do Tirol, o maior estado austríaco… num vale entre duas cordilheiras!
Não temos praias, nem dunas, nem pirâmides ou qualquer construção do tipo Visite Antes de Morrer. A extensão territorial de Wetherburg é pequena. O perímetro urbano,
junto com as propriedades agrícolas — principalmente do cultivo da maçã —, não perfazem uma região muito ampla. A economia tem sua base nos hotéis com águas termais,
o que produziu ao longo dos anos uma evolução promissora e gradativa. As opções de lazer, entretanto, não param nas águas termais. Nossos hotéis, em temporadas especiais,
gozam de preços promocionais em todos os apartamentos. A população, distribuída em gente da mais variada idade, é composta na grande maioria de jovens, que sonham
em obter uma graduação em alguma metrópole, e de velhos que se agarram firmemente a suas tradições rurais. Muitos são pastores e alpinistas. Conduzem os seus rebanhos
para o alto das montanhas no verão e para as áreas mais baixas no inverno.
Para resumir: Wetherburg é um balneário turístico às margens de um lago.
Há no distrito duas famílias que são donas de posses apreciáveis. A primeira é a família Kunsling, que ganha bastante dinheiro em sua sociedade num empreendimento
imobiliário. A outra, que não pode ser exatamente apontada como família-modelo, é o clã dos Ehrack.
Quem são eles? Os Ehrack são os ricaços da área. Eram os ricaços, para dizer a verdade. O certo é que Stephan Ehrack, remanescente homem dos Ehrack em nossa vila,
não diminuiu suas atividades no ramo da venda e revenda de maçãs. As maçãs não dão muito lucro, segundo consta, mas elas têm proporcionado a ele uma vida livre de
tribulações. Isso, por si só, já é um ponto positivo. Stephan Ehrack também é dono de um parque aquático, que no verão convida a um repouso suave em suas piscinas.
O pai dele, Jeremy Ehrack, foi advogado em Innsbruck; depois de se aposentar, veio para Wetherburg. E foi ali que se instalou.
Depois da morte do pai, que aconteceu no Hotel Três Empenas há dois anos — até hoje ninguém sabe se foi suicídio ou homicídio —, Stephan Ehrack teve a difícil responsabilidade
de assumir uma herança farta e generosa. Difícil responsabilidade! — vá se acostumando ao jogo de palavras! Quando alguém lhe pergunta se seu pai teve ou não uma
amante — um mexerico que volta e meia vem à tona — ele dá de ombros, como se isso não fizesse a menor diferença.
— Quanto a isso, não tenho nada a declarar.
Essa falta de boas maneiras não é muito aprovada, ainda mais porque o envenenamento de seu pai continua sem explicação até hoje.
Stephan Ehrack foi casado por doze anos com Margret Ebbington, mas a união matrimonial terminou há coisa de um ano e meio. Em vista disso, a justiça previdenciária
o obrigou a pagar mensalmente uma pensão polpuda à filha, Susie Ehrack, até a maioridade dela. O acordo evidentemente não causou a sua ruína; pelo contrário — no
embalo daqueles acontecimentos, o que o Sr. Ehrack fez? Começou um caso com a Sra. Anne Roselene Basknell, uma ex-namorada de sua juventude. Aquilo causou uma surpresa
geral; não que a união fosse ilícita, mas pela corajosa atitude da Sra. Basknell. Era ela que vivia frequentando a casa da Sra. Ebbington!
— Traição! Traição!
— Que nada… Uma pegou o que a outra não quis — responderam outros.
No início houve inúmeros rumores sobre o caso; alguns chegaram até a avaliar com ironia a real envergadura da amizade entre a Sra. Ebbington e a Sra. Basknell. Mas,
acima das fofocas, prevaleceu a vontade suprema do Sr. Ehrack que não se deixou abater e foi em frente com seu escandaloso flerte.
Susie Ehrack jamais emitiu qualquer opinião relacionada a isso. Ela é muito boa em contabilidade, por isso cuida da floricultura da família. Susie é uma moça quieta,
sisuda, medrosa demais para dizer qualquer coisa que possa causar uma inferência desagradável. Acanhada, vive com os olhos baixos, incapaz de encarar alguém com
a petulância de uma moça adulta. Um defeito moral que compromete sua boa fama, naturalmente. Creio que assim está bom — vamos continuar a narrativa.
Depois de sair da mansão Gwenny-Ducker, fui pelo caminho da Confeitaria Oeschler, doida para começar meu expediente matutino. Está bem, nem tão doida assim — eu
gosto de hipérboles… Na verdade queria chegar pontualmente, por isso apressei o passo, andando de modo a aquecer as articulações enregeladas.
Curioso como as pessoas têm amor pelos fuxicos! O Sr. Ehrack mal tinha me contratado para fazer um serviço particular e a cidade toda já falava a respeito. Não que
isso me aborrecesse. O que me impressionava era a velocidade com que certas informações corriam pelo vilarejo.
Fiquei tão absorvida com esse pensamento que me esqueci do trajeto. Quando contornei a terceira esquina, um cavalheiro esbarrou em mim. O esbarrão foi tão forte
que, literalmente, voei para o topo do muro.
— Liebe, Fräulein — exclamou ele, envergonhado. — Entsculdigen Sie mir… Eu não pretendia…
Joguei os braços para o alto, tentando recuperar o equilíbrio. Olhei para o homem parado na minha frente. Com a maior seriedade do mundo. Ele ficou muito vermelho
e pálido. Tinha uma fisionomia delgada, ridiculamente empoada por algum cosmético barato. Constrangido, ele pulou para trás, tão rápido como se quisesse se defender
da ponta de um florete. Alto e com o rosto impecavelmente escanhoado, tinha um ar solene e austero. O cabelo lambido de gel cintilava numa camada úmida e pegajosa.
Cheio de boa vontade, ele não permitiu que eu me abaixasse:
— Bitte, vou ajuntar sua bolsa — disse. A sua voz, esganiçada pela ansiedade, parecia vir de um lugar distante. — Não era minha intenção… Estou procurando um endereço…
Distraído… Tão distraído…
— Obrigada, não foi tão grave assim.
— Nein, nein, Fräulein. Peço desculpas! Eu fui desastrado… Deveria ter visto… eu… a senhorita… nós…
Disse aquilo com energia, como se fosse o mínimo que pudesse fazer para corrigir seu erro. Tive pena dele. Ele tinha um monóculo no olho direito, e um nariz aquilino!
Falei que estava tudo bem, mas ele não quis me ouvir. Complementou mais meia dúzia de desculpas totalmente dispensáveis. Por fim, pareceu se lembrar de uma coisa
muito importante.
— Mora aqui, liebchen? — perguntou ele.
— Por enquanto. Senhor, com licença, eu…
— Vejo que está com pressa. Sim, muita pressa. Só uma informação, bitte… Oh, estou sendo tão entediante! Peço que me perdoe… Tão entediante!
Começou a retorcer o casacão preto, cuja gola cobria suas orelhas, procurando por alguma coisa. Com uma careta, extraiu uma folha de papel do bolso, que logo segurou
diante dos olhos:
— Signor Tomazelli — leu. — A senhorita o conhece?
— Tomazelli? Ora, é o meu senhorio — respondi. — É para lá que está indo?
— É seu senhorio? Que bom, conhece o Signor Tomazelli. Sim, é para lá que estou indo. Que coincidência, eu esbarro na senhorita e voilá!… a senhorita sabe onde ele
mora!
Falei que sim, e expliquei a ele rapidamente onde ficava o endereço. Contendo a minha curiosidade (O que será que ele queria com o Signor Tomazelli?), fiz um aceno
e fui embora depressa. Tão depressa, aliás, que ele teve que engolir o resto de suas absolutamente esfarrapadas desculpas. Às vezes consigo ser bem durona!
Tive sorte na confeitaria e, como não havia muito movimento, meu atraso passou despercebido. Bem, quase despercebido, porque a Sra. Oeschler olhou para mim tão fixamente
que uma vala do tamanho do Grand Canyon se formou em sua testa. Felizmente vi o Sr. Stenzley numa das mesas e corri para anotar seu pedido.
Arthur Stenzley era um de nossos mais fiéis fregueses. Naquela manhã, ele estava reclinado na cadeira de carvalho, embrulhado num casaco de gabardine. Ele era disciplinado,
tinha cara de turco, e os seus cabelos eram ralos, cortados com capricho.
O Sr. Stenzley já foi meu patrão; trabalhei por algum tempo no hotel Três Empenas. Nosso relacionamento tinha sido bom, tecnicamente falando. Eu só saí do emprego
porque, em distância, a confeitaria ficava cinco quadras mais perto de minha casa. Cinco quadras e quinze metros, para ser exata.
Quando cheguei à mesa, ele segurou meu braço.
— Pode virar o rosto um pouco para a direita, por favor?
— O quê?
O Sr. Stenzley não queria conversa:
— Silêncio, Katrina. Vire o rosto! Mais… Sim, assim… Só um pouquinho.
— O que é? Algo errado com a minha maquiagem? — brinquei.
— Toda vez que vejo você, lembro-me de outra pessoa. Eu estudei em Jumet-Gohissart por dois anos; depois me transferi para a Suíça — disse o Sr. Stenzley. — Lá conheci
uma moça, sobrinha de um grande industrial de queijos. É incrível como vocês duas são idênticas. Uma garota tão boa e bonita! É lamentável — e aqui a voz dele ficou
mais grave — é lamentável que ela tenha morrido tão cedo. Sim, pobre menina… tão cheia de vida… morrer tão jovem!
A afirmação me deixou sem jeito. O Sr. Stenzley ficou ainda mais sem jeito quando viu o tamanho de sua indiscrição.
— Ops! Acho que me expressei mal. Ela morreu, mas isso não vai acontecer com você, não se preocupe. Eu só fiz uma comparação. Não me leve a sério.
— Não estou levando a sério… Sei o que o senhor quis dizer. — Tossi: — E quanto ao hotel? Muitos hóspedes, eu imagino.
— Dezenas, minha cara — disse o Sr. Stenzley mais animado. — Dezenas. É pena que aquele velho estúpido tenha decidido se matar logo num de nossos quartos!
— Resolveu se matar ou foi morto — corrigi. — Acho até que as pessoas estão empolgadas com essa história. Quem é que não gosta de um bom mistério? Entrar naquele
apartamento… ver o lugar… imaginar tudo o que aconteceu… Cada um de nós é um detetive, Sr. Stenzley. Gostamos de confrontar coisas que desafiam a nossa mente, de
falar sobre isso, de tentar achar uma explicação para as coisas que não entendemos.
— Hum…
— Além disso, a memória das pessoas é curta, Sr. Stenzley. Daqui a alguns anos ninguém vai se lembrar do caso. Tudo será esquecido. Vai virar pó.
O Sr. Stenzley deu uma violenta risada.
— Está certíssima, Katrina. Estou sendo ambicioso demais. Um bom negociante não pode ser assim. No fim das contas, só os modestos é que se dão bem.
— É assim que se fala.
Ele apertou novamente meu braço e apontou o balcão de atendimento:
— Ei, diga uma coisa. Aquele lá não é o Sr. Haggard?
— Haggard?
— É, o mordomo de Ehrack! O alemão…
De fato, o homem perto do balcão era Manfred Haggard. Ele tinha na cabeça o seu boné de oficial reformado. Trabalhava há muito tempo com o Sr. Ehrack. Eu não o conhecia
muito bem, mas sabia que ele era econômico nas palavras e muito leal a seu patrão.
Algo me dizia que Haggard estava ali por minha causa.
— Bom, Sr. Stenzley, com licença um minuto. Acho que ele está procurando por mim.
— Por você? Por quê?
— Outra hora eu conto, Sr. Stenzley. Outra hora eu conto.
O hoteleiro olhou para mim, surpreso. Fui em direção do balcão, tentando abrir o meu melhor sorriso.
— Olá, Sr. Haggard! Que bom vê-lo por aqui.
— Bom dia — respondeu o alemão, olhando por cima do nariz avantajado. Parecia ter certa dificuldade para me reconhecer.
— O senhor já foi atendido?
— Sim, já, senhorita.
— Tudo bem com seu patrão? — perguntei. — Ele esteve ontem em minha casa, o senhor sabia?
— Sim, ele me informou.
O homem estava um pouco confuso. Ele raramente entrava na confeitaria; isso praticamente confirmava as minhas suspeitas.
— O que foi, Sr. Haggard? Estou enganada, ou veio me trazer um recado do Sr. Ehrack?
Haggard era um homem prudente, de maxilar reto e bigode aparado. Tinha um rosto chupado e um par de sobrancelhas que pareciam cerdas de uma escova. Ninguém sabia
como é que ele, filho de um casal de alemães, tinha se tornado mordomo. Talvez por ter viajado em terras bretãs, quando jovem. Ou por ter feito um curso por correspondência.
Não, vou excluir essa parte. Ninguém aprende a ser tão fleumático num curso por correspondência.
— Sim, justamente — ele deu um pigarro, — justamente. Ele quer que a senhorita vá para lá hoje às seis e meia da tarde. Seis e meia. Basta empurrar a porta da sala
e subir as escadas. Ele vai aguardá-la no escritório.
Finalmente acertei o ponto certo do meu sorriso:
— No escritório? Está bem. Diga a ele que irei.
O Sr. Ehrack
Quando transpus a praça, já havia anoitecido. As luzes da pracinha estavam acesas, e numa das ruas o Sr. Bettwood acendia os lampiões assobiando baixinho. Uma névoa
fina descia sobre as casas dando uma cor fantástica à cidade.
Eu estava ciente da recomendação que o Sr. Haggard tinha feito — eu poderia entrar sem bater à porta. Mas não achei que isso fosse muito correto; apertei o botão
da campainha. Não queria ir entrando sem mais nem menos. Pouco depois o velho mordomo abriu a porta, num gesto que teve certo glamour misterioso.
— Chegou cedo, senhorita.
— Estava sem nada para fazer — justifiquei.
Haggard consultou discretamente o relógio, depois permitiu que eu entrasse no vestíbulo. Andava ligeiramente curvado e uma pequena corcunda aparecia no topo de suas
costas. Mesmo que quisesse, não conseguiria dissimular sua anterior profissão de jardineiro.
— Vou falar com o Sr. Ehrack. Aguarde ali na sala, Srta. Carlile.
Haggard largou o livro num console. Depois, arrastando-se na velocidade de rali, desapareceu escada acima, à direita do saguão. Entrei maquinalmente na sala, olhando
com admiração a limpeza dos móveis e demais artigos decorativos. O homem era zeloso no cumprimento de suas funções!
Havia ali duas velas de significado duvidoso… Elas davam ao lugar um ar quase excêntrico, sombrio. Mais além, no começo do corredor, ficava a porta divisória que
fora lacrada depois do divórcio dos Ehrack. A Sra. Ebbington morava do outro lado daquela porta.
Haggard não demorou a voltar.
— Tenha a bondade de subir, senhorita!
Agradeci. Comecei a subir os degraus. Estava indo praticamente às cegas àquele compromisso. Não tinha a menor ideia de como seria recebida pelo Sr. Ehrack. Apesar
de ser um homem polido, o estado de humor dele mudava constantemente. No dia anterior ele tinha sido atencioso comigo, mas… Tentei não pensar nisso.
No alto da escada, abri a porta. Olhei para dentro — o espaço no gabinete era amplo. Lambris na parede, uma cadeira de petit point diante da escrivaninha, bom estofamento
— o ambiente era calmo e atraente.
Uma voz fria disse:
— A gente conhece uma pessoa pela pontualidade dela. Seu caso, Srta. Carlile, não deveria ser exceção.
Ehrack tem uma testa lisa. Nada de rugas. Nenhumazinha. Os seus dedos são longos como varetas. Os olhos, de um azul forte, transmitem calma e vigor. Quando está
zangado, fechavam-se um pouco. Ele é um homem alto e que come talharim gratinado com a mesma avidez com que os porcos comem trufas.
— O senhor me desculpe — gaguejei. — Ansiedade…
Ele estava de pé, olhando pela janela. Ao ouvir minha resposta, virou-se para olhar para mim. Deu um ou dois passos e sentou-se na poltrona de tecido. Estava lendo
Ezra Pound. Legal, devia ser dia da literatura!
— Aproxime-se, senhorita. Sente-se ali.
Mesmo ouvindo o convite, continuei parada à porta, constrangida. Agora Ehrack mostrava uma expressão serena. Pôs os óculos, e olhou para mim por cima das lentes.
Fui para frente e sentei-me perto da escrivaninha.
Tive a atenção despertada por seu rosto severo, quase enrijecido.
— Está assustada, Srta. Carlile?
— Um pouco…
Ele pareceu cair em si. Cerrou os olhos, esfregou o peito e disse:
— Oh, fui eu… Sim, sim, quero que me perdoe. Eu não queria magoá-la. Foi só uma forma de falar. É que estou acostumado a lidar com os empregados… eles são tão teimosos,
tão burros!… Sustentar uma família sempre exigiu trabalho árduo, criatividade e energia. As incontáveis e longas noites de trabalho pesado! Acabei sendo rude. Sim,
estupidamente rude…
— Tudo bem — respondi.
O Sr. Ehrack fez uma pausa.
— Está certo, vou confessar o meu problema — disse após alguns segundos. — Na verdade, estou um pouco nervoso. Falar de certas coisas… Não vai ser fácil. Nunca imaginei
que um dia escreveria minha biografia. Por isso, não se surpreenda se ditar alguma coisa e depois pedir que apague. É uma experiência nova; mas vamos lá. Uma carga
é mais leve quando é bem suportada.
Aquela frase… Aquela gentileza e honestidade… Vi que íamos nos entender bem dali por diante.
Cabisbaixo, Stephan Ehrack completou:
— Sei que lhe falaram muitas coisas sobre mim. Sim, sei que lhe falaram. A senhorita deve ter ouvido poucas e boas a meu respeito. Sim, não precisa negar.
— Não devia se preocupar com isso, Sr. Ehrack — disse eu. — Não sou de ficar escutando o que se diz por aí.
— É muita conscienciosa. Que bom. Já reparei que é uma moça responsável. Em todo caso, posso lhe garantir que nem tudo o que disseram é verdade. Espero que compreenda
isso. A maioria das coisas é pura intriga e não tem nenhuma base.
— Como eu já disse, sou imune a fuxicos. Não precisa se preocupar comigo.
— Mas eu me preocupo! — disse ele. — Terá uma impressão distorcida sobre quem eu sou, como se eu fosse negligente… ou um idiota. Se isso acontecesse, eu não teria
mais ninguém para me ajudar.
— Terá o Sr. Haggard — enumerei.
— Está velho.
— A sua Anne Roselene…
— Ela não tem imaginação.
— … a sua filha.
Estendeu os pés sobre o banquinho. Cruzou os braços:
— Quem dera que a senhorita tivesse razão. Não tenho tido tanta sorte. Faz tempo que me aposentei, e ainda não desfrutei um só dia de paz. Primeiro, a maldita separação;
depois a divisão dos bens, a briga pelo capital. É terrível!
Fez um gesto de desgosto e então, lentamente, começou a ditar as histórias que queria ver editadas. Visto que o notebook já estava preparado, pude escrever com relativa
facilidade.
Fui dispensada às nove horas, depois de imprimir o relato na impressora. Ficou combinado que continuaríamos na noite seguinte. Ao sair vi que Ehrack, com lápis em
punho, revisava o texto datilografado.
Tomazelli não estava na sala quando entrei em sua casa. Fui diretamente para o quarto. Encontrei meu senhorio debaixo de uma montanha de colchas, um termômetro no
canto da boca.
— O que aconteceu? Que aparência é essa?
Quando ele ergueu os olhos e me viu, o seu mau humor explodiu como um vulcão.
— O que você acha? — respondeu ele secamente. — Será que um velho não pode veranear um pouco?
— Isso me parece pior que um veraneio. Deixe-me ver esse termômetro. Ih, está queimando de febre! Devia tomar um chá de mel e limão. Quer que eu prepare uma xícara
para o senhor?
Tomazelli soltou um gemido de contrariedade:
— Não diga tolices. Não estou tão mal assim. Amanhã já estarei melhor. Basta cobrir o corpo e suar bastante. Vamos, mexa-se! Jogue aqueles edredons aqui por cima.
Como sempre, ele era taxativo em suas respostas. O que eu menos queria era começar um bate-boca.
— Não é à toa que fica doente desse jeito. Fica andando de madrugada por aí, com aqueles seus amigos! Agradeça a Deus por ser apenas um resfriado. Se fosse pneumonia,
o senhor estaria encrencado.
— A senhorita acha que eu deveria ficar trancafiado em casa… Bah, que conselho feminista!
— Estou falando para seu próprio bem.
— Os homens sempre têm culpa em tudo. Ou bebem demais ou são um bando de irresponsáveis. Blá-blá… Falta só dizer que saio à noite para praticar algum crime.
— Vou ignorar isso, está bem? O senhor é muito birrento.
Ajudei-o a se cobrir e preparei-me para sair. Subitamente lembrei-me de uma coisa:
— Escute, havia um homem… de manhã… perguntando pelo endereço do senhor. Magro, bem vestido, com um monóculo. Quem é ele?
— Está se referindo a Fëll? — Gesticulou com vagar: — Ele saiu, disse que ia dar uma volta. Já falou com ele?
Então o homem com cara de pateta chamava-se Fëll? A sombra de um sorriso surgiu em meu rosto:
— Não só o vi como trombei com ele. Ele é um tanto… estabanado.
— Sim, mas não o subestime. Edmund Fëll é o homem mais perspicaz que conheço. Odiaria se você fizesse pouco caso de seus dotes cerebrais. Tem muita influência na
área criminal.
— É diplomata?
— No, bambina mia, um diplomata não. Mas é uma pessoa competente. Vai permanecer uns dias aqui; está de férias. Pedi que se instalasse no quarto dos hóspedes.
— Que coisa extraordinária. Por que não diz a seu amigo para visitar o Sr. Ehrack? Garanto que os dois se dariam perfeitamente bem.
Uma violenta alteração aconteceu em seu rosto. Entre dentes, sussurrou uma palavra não muito cortês.
— O que houve?
A minha sugestão tinha ofendido Tomazelli. Embora não quisesse esclarecer a causa de seu rubor, eu sabia o que o afligia. Era uma soma de alguns sacos de carvão,
que Ehrack lhe devia há anos.
— Canaglia! Se houvesse um pouco de dignidade nas pessoas! Não fale nesse canalha, capisci? Nunca mais…
— Não diga isso — respondi. — Se alguém ouvisse o senhor, pensaria que está tramando a morte dele. Acho que devia esquecer esse assunto. Se ele não paga o que deve
— fazer o quê? O melhor é deixar para lá. O que está precisando é de uma boa noite de sono. Amanhã vai estar tudo bem.
Antes que tivesse tempo de responder, saí do quarto e fui me recolher.
O Numismata
Aos sábados geralmente faço uma faxina na quitinete, ou durmo até mais tarde. Nesses dias fico torcendo para que nada me perturbe, pois, conforme o texto bíblico:
é melhor um punhado de descanso do que um punhado duplo de trabalho árduo.
Dessa vez, no entanto, nem eram 10 e meia e ouvi uma batida estrondosa à porta. Era Judith Gwenny-Ducker, transpirando um espírito humanitário e com uma bolsa na
mão.
— Entre — convidei. — Quem diria, a senhora me visitando em minha própria casa!
Judith sorriu gentilmente. Tinha olhinhos castanhos e simpáticos, a própria imagem da doçura. Aquela visita… Evidentemente tinha a ver com os últimos mexericos que
ainda não tinham sido devidamente discutidos. Fechei a porta com um suspiro; lá ia eu servir de protagonista na arena das conspirações!
— Oh, espero não estar atrapalhando! — disse a Sra. Gwenny-Ducker. — Não estou sendo inconveniente, estou? Eu estava lá sozinha. E Juli ia para lá e para cá, fingindo
varrer a sala. Fiquei chateada com a lentidão dela, mas, de qualquer modo, seria inútil dizer isso a ela. Falei para mim mesma: “Saia daqui, Ju. Você tem mais a
ganhar”.
Ela estava tentando se explicar, envergonhada. Fiz um gesto condescendente — talvez isso diminuísse a sua dor na consciência. Depois de sentar-se no sofá, Judith
retirou uma garrafa do pacote e a pôs na mesinha. Pela cor, pensei que era álcool e lhe dei um olhar de lado.
— É para Gerald — disse ela. — Eu soube que ele está resfriado. Tratei de passar no empório e comprar uma coisa que vai ajudar. Esses homens são tão descuidados.
Acham que nada os atinge… Eu iria entregar isto a ele pessoalmente, mas a porta estava chaveada.
— Isto é… conhaque? — perguntei cautelosamente.
A Sra. Gwenny-Ducker quase teve um ataque.
— Não, querida, é chá de eucalipto com mel. É bom contra dores e sinusite. Essa quantidade é mais do que suficiente. Vai ser tiro e queda… Mas diga a Gerald que
precisa tomar as doses regularmente, ouviu?
Não havia nada de dispersivo naquela mulher. Ela entendia de medicamentos, principalmente os fitoterápicos. Afirmei que eu mesma falaria com Tomazelli e lhe daria
a receita.
Judith hesitou, como se esperasse alguma coisa.
— E então? — perguntou subitamente. — O que achou de Stephan? Ele é mesmo tão exigente como dizem por aí?
Pronto, ali estava! É por isso que a fuinha tinha vindo. Pestanejei e fiz um ar indiferente.
— Para dizer a verdade, ele é muito profissional — respondi. — Não foi tão ruim assim.
— Que bom. O que mais?
— Pelo que percebi — acrescentei, — o Sr. Ehrack está com estafa. Se eu estivesse no lugar dele, tiraria férias pelo resto da eternidade. A morte do pai… o fim do
casamento — essas coisas devem ter abalado a saúde dele. Dá para sentir. Ele não disse isso diretamente, mas a gente nota que ele ainda não se recuperou de todo.
Judith empertigou-se. Concordou comigo:
— Jeremy estava maluco quando fez aquela bobagem. Ingerir arsênico, ou veneno para rato, ou algo assim! Uma estupidez. Você trabalhava no hotel quando tudo aconteceu,
não é? Deve se lembrar de todo o alarido. Aquela confusão de policiais e investigadores correndo atrás de todos que tivessem visto alguma coisa. Mas é engraçado.
Stephan nunca remexeu no passado. Por que resolveu fazer isso logo agora?
— Se Haggard não estivesse ficando surdo… Talvez ele pudesse dizer para nós o que aconteceu.
— É uma pena — suspirou a Sra. Gwenny-Ducker. — Sim, Manfred está ficando surdo. Velhos só servem para ter artrose e problemas de audição. Outro dia, ouvi Anne Roselene
reclamar que sofria de insônia. Não duvido. Ela sempre foi uma criatura tão delicada. Qualquer corrente de ar e… pum. E depois, ela fica de noite vagando por aí!
Ainda falamos um pouco da insônia da Sra. Basknell, e de outras doenças menos esportivas. Por fim, acompanhei Judith até a rua.
Ao voltar à pensão, avistei alguém sentado na edícula ao lado da casa de Tomazelli. Estava examinando atentamente alguma coisa com uma lupa. Parecia uma ave de rapina
pronta a alçar voo a qualquer momento. Quis lembrar-me de seu nome, mas já era tarde.
Quando me viu, o homem deu um salto patético e veio correndo para o portão. Seus olhos eram impertinentes. Usava um chapéu de feltro, numa cor que combinava com
sua roupa escura. Era alto, espigado. Quando cedeu seu braço para mim, ficou ainda mais burlesco.
— Fräulein, bitte. Kommen Sie rein.
— Sr. Fëll, é isso? — arrisquei.
— Ganz sicher. Foi muito azar o que aconteceu ontem de manhã. Eu quis pedir desculpas. Sim, eu não queria que me levasse a mal. Mas a senhorita sumiu, evaporou em
pleno ar.
Olhei para ele, tentando encontrar uma palavra que definisse aquele sujeito. Seria algum bávaro, que fizera um longo estágio entre os alemães? Ou um louco e desocupado
turista argelino?
— Lamento muito, Sr. Fëll. É que eu estava atrasada…
— Certamente, certamente — disse ele.
Recomeçou a falar, desta vez com um tom de voz menos declamatório:
— Gerald disse que a senhorita trabalha numa confeitaria. Bronzes polidos e banquetas aveludadas de azul, eu sei. Estive lá. Um ambiente muito limpo.
— Sem falar na parede de espelhos.
— Claro, precisamente. Que acha de fazermos o seguinte: vamos esquecer o que passou entre nós. Eu não quero que uma moça tão laboriosa fique de mal comigo. Nein,
nein! Isso me faria infeliz. Muito infeliz.
Aceitei essa frase como uma mostra de sua sinceridade. Entramos na construção e sentei-me na banqueta de mogno.
— Gostei de sua diplomacia. Gostei mesmo, Sr. Fell…
— Fell não… Fëll, senhorita.
Um caixeiro viajante? Ou, em última instância, um comerciante de óleo de peixe?
— Posso fazer uma pergunta? O que o senhor estava fazendo? Essa lupa…
— Estava dando uma olhada nesta moeda.
— Por quê? Deixe-me adivinhar… O senhor é um colecionador de moedas, acertei?
— Absolutamente certa, Fräulein — disse Fëll empolgado. — Como é que soube disso?
— Elementar — respondi e esfreguei as unhas na blusa. — Sou uma mestra na arte da dedução. Bom, já que descobri qual é seu passatempo, acho que mereço um bônus.
O senhor é do serviço secreto, acertei de novo?
— Não exatamente. Mas sempre evitei os penosos esforços braçais, essas coisas. Não planto couves, se é isso o que quer saber. Prefiro exercitar o músculo do cérebro.
— Foi o que Tomazelli disse. É filósofo?
— Tanto quanto o crime permite que eu seja.
Fez um gesto que, mesmo sem querer, foi bem cômico.
— É chefe de um cartel da máfia? Opção interessante.
— Warum meinen Sie sowas?— disse ele chocado. — A criminologia tem ângulos fascinantes, mas sob a ótica advocatícia só um deles interessa. Existem pessoas que enxergam
além das aparências. Que veem o que está detrás de certas ações, de algumas atitudes. É necessário sondar o que as pessoas estão escondendo, e por que estão escondendo.
Eu me dedico a esse ramo. Sou um detetive analista.
O tom com que Fëll pronunciou “sob a ótica advocatícia”! Ninguém poderia imitá-lo. Sob todos os efeitos, ele era um espécime pouco comum.
— Agora que já o conheço um pouco melhor — continuei —, pode me dizer por que veio para nossa modesta vila? Está aqui a trabalho, investigando algum assassinato?
— Até que não seria mal… Vim para descansar alguns dias, sem ter de prestar consultoria. Por outro lado, não podemos torcer para que um assassinato aconteça, não
é mesmo?
— Naturalmente — respondi rindo. — Em todo caso, se o senhor cobra honorários, está no lugar errado. Aqui tudo é tão calmo, tão pacato… O senhor ficaria em apuros
financeiros em menos de um mês.
O detetive franziu a testa.
— Acha mesmo? Está enganada, senhorita. É exatamente em lugares assim, longe de centros urbanos, que acontecem os maiores e mais sórdidos dramas. Além disso, não
foi isso o que eu ouvi dizer… Dizem que aqui há alguns mistérios esperando por uma solução. O desaparecimento do jogo de chá da viúva do merceeiro, que desde o mês
passado não foi localizado, por exemplo. A morte discutível da mulher do leiteiro. O estranho homicídio no Hotel Três Empenas… Não parece ser um lugar tão pacato
assim, senhorita.
Fiquei pensando naquelas palavras por alguns segundos. Senti-me um pouco aborrecida. Eu deveria ter visto que ele era mais esperto do que supunha a minha vã filosofia.
— Percebo… O Signor Tomazelli!
— Muito bem, Srta. Carlile. O meu amigo Tomazelli gosta de falar, o que é que eu posso fazer?
— Pois saiba que ele é um velho de língua ácida — respondi. — O senhor mencionou o roubo do jogo de chá de Samantha Edgeware?
— A viúva do merceeiro? Sim.
— Aquela sirigaita loura! Ninguém disse que ela é uma aproveitadora? Até Harrison já esteve caído de amores por ela.
— Não sei. O que eu sei é que havia uma trilha de pequenos furos na grama do quintal dela. O ladrão foi um pouco descuidado na hora de deixar a casa com o produto
do furto!
— Pequenos furos… E o que isso quer dizer?
— É cedo para dizer. Mas quanto à morte da mulher, pelo raciocínio meticuloso, o autor do crime é o próprio leiteiro.
Levantei a cabeça, escandalizada.
— O quê? Falar é fácil! A polícia fez investigações durante duas semanas, e agora, num zás, o senhor dá um veredito que… Isso é demais! Não existe qualquer lógica
nisso.
— Ah, gut, mas a verdade nem sempre é lógica. Às vezes temos que simplesmente olhar para os acontecimentos sem as lentes do preconceito. Faça isso, Srta. Carlile,
e muitas coisas se tornam relativamente simples, tão fáceis de descascar como um dente de alho.
Olhei de lado para Fëll. O seu ponto de vista era tacanho, evidentemente.
— Está bem — desafiei. — O senhor parece muito convencido de seus dons naturais, Sr. Fëll. Mas eu queria que surgisse um caso durante a sua permanência aqui. Seria
o fim de sua teoria do dente do alho.
Fëll sorriu com uma modéstia!…
Os olhos brilharam como duas gemas de vidro.
— Bist du das sicher, Fräulein? Veremos… Mas eu aviso logo que não faço apostas. É contra os meus princípios éticos…
Ergui as mãos, irritada. Como é que alguém conseguia ser tão ingênuo?
— Não estou falando literalmente… O que eu quero dizer é… Aliás, esqueça!
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, aprumei o corpo e me afastei. Dentes de alho e princípios éticos — era o cúmulo!
Antes do Crime
Cheguei à mansão às 6:25h.
— Boa noite, Sr. Haggard.
— Boa noite.
Dessa vez, o mordomo não consultou as horas. Ele simplesmente se virou e subiu a escadaria. Devia ser o protocolo — cada visita precisava ser previamente anunciada
ao Sr. Ehrack.
Como no dia anterior, permaneci na sala.
Olhei em volta. Fiquei pensando no significado das arandelas naquela casa modernista. Elas ficavam bem ao sopé da escada, mas a luz das velas era fraca, gótica e
estranha. Se ali fosse a residência de algum nobre do século dezessete, tudo bem. Daquele jeito ali… sei lá, dava um ar de Castelo da Transilvânia.
Escutei um estalido baixinho na porta. Pelo vidro eu vi que havia alguém parado lá fora, na semiescuridão.
Abri a porta. Era Susie Ehrack.
Susie olhou para mim. Comprimiu os dedos nos lábios.
— Oi, Katrina.
— Olá, Susie. Quer entrar?
— Não, não… Shh, não faça barulho!
A moça tinha uma pele saudável; era bonita, eu quase chegava a admitir. Tremia, talvez por causa do frio. Um pavor nítido e claro contorcia o seu rosto. Dois dias
antes eu a tinha convidado para vir comigo conversar com seu pai nesta noite de sábado. Quando a vi ali, a boca aberta e quase sem ar… Ih, pensei — fim de plano!
— Sinto muito, Katrina — gaguejou. — Eu sei que lhe prometi, mas… ah, oh, não posso ir com você.
Fingi ficar acabrunhada.
— Pode sim.
— Não, não posso e você sabe por quê. Na verdade, mamãe não quer que eu vá com você. Ela disse que papai pode ficar transtornado… Você sabe que eles ainda não fizeram
as pazes… Vivem de cara amarrada… coisas de adulto.
Bingo. Aquele pretexto não me abalou, em absoluto. Já imaginava isso, para ser sincera. Margret Ebbington era uma mulher completamente démodé. Dificilmente permitiria
que a filha fizesse uma loucura daquelas sem seu expresso consentimento.
Notei o fulgor dos olhos de Susie debaixo dos curvos cílios postiços. Estava esperando a minha resposta.
— Se é assim, caso resolvido — retruquei secamente. — Talvez numa oportunidade futura…
A face tensa de Susie relaxou, aliviada.
— Obrigada, Katrina. É tão meigo de sua parte…
Concordei com um aceno. Um arrastar de pés atrás de mim interrompeu a nossa conversa. Era Haggard.
Amedrontada, Susie se encolheu, afastando os cabelos da testa. Susie disse adeus e, com um incontido gesto de contentamento, apressou-se a sumir do saguão e, debaixo
do véu fino da garoa, contornou a mansão.
— A senhorita pode subir — disse o mordomo. — Ontem, o Sr. Ehrack ficou chateado com alguma coisa?
— Acho que não. Por que, o que aconteceu?
— É melhor que veja por si mesma.
Aquela frase produziu um mal-estar em mim. Ainda mais essa! Não me senti propriamente motivada a subir as escadas pulando de felicidade. Furtivo como uma sombra,
Haggard voltou para a cozinha, como se estivesse ocupado com um guisado de última hora.
O Sr. Ehrack… chateado? O que será que eu fiz?
Essas perguntas faziam voltas em minha cabeça.
Minha tortura durou pouco tempo. Assim que entrei no gabinete, vi que Stephan Ehrack estava mudado. Imediatamente tive a certeza de que algo não ia bem. Não havia
nele o menor fragmento de sua cortesia do dia anterior. Estava em pé diante do relógio de carrilhão. Virou-se como um robô quando atravessei o limiar da porta. Ali
estava o homem calculista e duro, de que tanto haviam me falado. Qualquer resquício de bondade ou benevolência tinha desaparecido.
Apertei a bolsa de vime contra o corpo, num gesto maquinal de proteção. Ele fixou os olhos em mim:
— Creio que está atrasada.
Estremeci. Acabara de receber uma de suas temidas bofetadas morais.
— Me desculpe — respondi educadamente. — Fiquei presa no trânsito.
Falei aquilo com o máximo de tato possível. Sei usar perfeitamente as armas femininas a meu favor, quando quero.
Ehrack hesitou; depois sorriu mais conformado.
À esquerda da porta, um chapéu panamá estava pendurado no cabide.
— Eu lamento. Serei mais cuidadosa da próxima vez.
O resultado dessas palavras finais foi decisivo. Inesperadamente os seus modos bruscos se abrandaram, como se achasse que seria bobagem insistir em seu comportamento
agressivo.
— Estou sendo grosseiro. Vamos por uma pedra nisso. Estou contrariado com outra coisa. Tenho o mau hábito de misturar a vida pessoal com meu trabalho. Tenho que
elogiá-la. Estive relendo tudo o que escreveu ontem, Srta. Carlile. Uma digitação fantástica! Sim, sim, é verdade… Não estou mentindo.
— Obrigada. Não é para tanto.
Acho que fiquei vermelha diante de seus elogios, pois senti o rosto formigar.
Ele iniciou o seu ditado e, por mais de uma hora, não parou de falar. Ehrack narrou episódios da classe Se Eu Pudesse Mudar Meu Passado. Para isso, usou algumas
anotações que tinha feito num bloco de papel. Meus dedos corriam velozmente no teclado do notebook.
Observei que uma estante de livros jurídicos cobria a parede. Havia também uma porta que conduzia ao quarto adjacente.
— Basta! — disse ele por fim. — Vamos continuar amanhã.
Levantou-se da poltrona e foi até a janela. Percebi que estava tentando trancá-la. Era uma dessas janelas de correr com persiana vertical. Ehrack voltou-se para
mim, e num tom estranho disse:
— Quero lhe perguntar uma coisa, e gostaria que a senhorita respondesse com o coração. Sabe por que lhe pedi para me ajudar a escrever a história de minha vida?
— Vou dar um chute. Acho que vai ser o seu legado para os netos.
— Legado, é? — Ele fez que não: — Que bom se fosse! Mas acho que meus netos nunca leriam nada parecido. Basta ver os jovens de hoje — vivem em outro planeta. Sou
um pessimista, que Deus me perdoe. Pela tendência, as coisas só vão piorar. Escute o que estou lhe dizendo.
Eu estava escutando. Senti que ele não tinha dito tudo o que queria dizer.
— Ainda há outra razão, não é, Sr. Ehrack?
Ele acenou de novo. Dessa vez mais vagarosamente. Sentou-se e olhou para a porta. Quando falou, a sua voz tinha um tom mais grave — como se viesse do fundo de um
frasco oco.
— Admiro a sua sinceridade, senhorita. As mulheres conseguem ver melhor essas coisas. O que eu sei é que em pouco tempo estarei… hum… morto. Pensei em aproveitar
os dias que me restam para fazer uma coisa que me desse prazer… bem, antes de ser tarde demais.
Olhei para ele com a mesma incredulidade de Júlio César quando viu o próprio filho com a adaga suja de sangue.
— Não estou entendendo. O senhor disse morto? O senhor está sendo ameaçado?
— Sim, de certa forma. Mas, no fundo, a culpa é minha. Eu deveria ter agido antes. Agora as coisas atingiram um estágio… bem, basta dizer que agora não há volta.
— Sr. Ehrack, isso é mau.
É, mau não é um qualificativo muito vigoroso. Admito, é tosco.
— O vacilo foi meu. Se tivesse procurado extirpar o problema meses atrás… Agora minha vida está em perigo e não há nada que se possa fazer. Eu vou ser morto e meu
assassino nem será punido por isso.
Neste instante, após pedir licença, Manfred Haggard entrou obsequiosamente no gabinete. Numa mão trazia uma bandeja com dois pratinhos de doce de pudim, uma cereja
na ponta de cada um, e na outra, um copo de uísque.
— Onde eu coloco, senhor?
— Na mesa.
Com um susto, notei que o semblante de Ehrack tinha se anuviado, e ele mordia a dobra do lábio. Tentei descobrir o que causara aquela agitação interior, mas inutilmente.
O mordomo, sem a menor cerimônia, deu para mim um dos pratinhos com o doce. Deixou a bandeja na mesa de centro e silenciosamente voltou a se retirar.
Ehrack ficou ali de pé, sem reação. Fez um comentário pouco otimista:
— Para quem tem tão pouco tempo de vida, sou um homem bem servido. É bom que tenha trazido uma capa de chuva, Srta. Carlile. Parece que a chuva está engrossando.
— Eu trouxe, está lá embaixo.
Fez um sinal com as mãos. Falando muito baixo, acrescentou:
— Não tome ao pé da letra o que acabei de lhe dizer. Acho que estou estressado. Talvez a ameaça não seja tão imediata. Talvez eu esteja exagerando os riscos.
Fez uma pausa. Provei o pudim, que estava com um gosto adorável. Concluí que ele bem que poderia ter uma chance.
— Está frio aqui dentro, não?
Ele sorriu.
— Sim, tem razão. Está frio. Eu nem tinha percebido. Espere, vou regular o ar-condicionado. Quer ficar para assistir ao noticiário?
— Não posso, mas obrigada — declinei.
— Em todo caso, pode ficar comigo alguns minutos, Srta. Carlile? Quero tratar de um assunto… acho que… um pouco constrangedor.
Um brilho metálico chamou minha atenção no braço da poltrona em que Ehrack estava sentado. Tive a impressão de que era um revólver, mas não pude confirmar isso.
O vento chacoalhava as folhas da janela.
— Um assunto constrangedor? — perguntei. — O que é?
Sem pressa, o homem explicou. Enquanto ele falava, o espanto foi crescendo, crescendo, dentro de mim. Oh… as coisas que Ehrack disse! Principalmente sobre Susie!
Também sobre mim! A sua cólera mal contida… A voz melíflua com que tentou justificar sua decisão…
— Só lhe peço isso, senhorita: fique longe de minha filha por um tempo.
Minha vista começou a turvar-se. Sentia a boca ressequida.
— Tudo bem, Sr. Ehrack! — respondi finalmente. — Se é isso o que o senhor quer…
— Ótimo, estou feliz que tenhamos nos entendido.
Ao descer para o térreo, quinze ou vinte minutos depois, meus olhos estavam rasos d’água. Tive que me esforçar para conter as lágrimas. Meu espírito doía de vergonha
e humilhação.
Além disso, uma frase ainda ecoava em minha mente. Para quem tem tão pouco tempo de vida! Como é que uma ideia dessas poderia assombrar o mundo daquele ditador que,
em outros aspectos, era quase invulnerável? Chegava a ser irônico…
Haggard não estava na sala. Ninguém no sofá. Ouvi estouros de escapamento de um carro que vinham da garagem. Ele tinha um Maverick, pelo que eu sabia. Talvez estivesse
testando o arranque ou regulando o motor. Por simples curiosidade, dei uma espiada na cozinha.
No momento exato em que saí pela porta da frente, o relógio da torre central bateu oito horas. Sentia-me exausta e minhas têmporas pulsavam com a dor de cabeça.
Iluminada pela lâmpada externa, uma trilha de palmeirinhas cruzava o jardim até o portão.
Alguma coisa rangeu e tirou-me de meus devaneios. Foi um ruído bem alto — um sapato pisando em pedrinhas soltas, talvez. Olhei em volta, apreensiva, mas não consegui
enxergar ninguém.
De alguma maneira, experimentava a sensação de não estar só.
Sem respirar, apurei os ouvidos e tentei captar o mais leve ruído. Mordi os lábios, indecisa sobre o que fazer.
Acelerando o passo, segui pela aleia, a névoa cada vez mais espessa e revolta em torno de mim. À minha esquerda, as peperômias cresciam abundantes em meio à vegetação
rasteira. Apesar de tudo, era impossível descobrir a causa do barulho. Teria sido Susie? Nesse caso, por que não dava um passo à frente, ainda mais se sabia que
era eu quem saía da casa?
Passei pelo portão e, por coincidência, quase me choquei com alguém na calçada. Não consegui identificar quem era a pessoa. Estava com uma capa de chuva e, para
evitar a umidade da rua, usava um par de galochas. Ela disse um “Desculpe, eu não queria…”, e seguiu apressadamente seu caminho, sem se virar. Fiquei irritada. Felizmente
fiz o resto do percurso até a pensão sem cruzar com mais ninguém.
Abri o portão, firmemente agarrada ao meu guarda-chuva, que teimava em se curvar ao sabor do vento. Meus sapatos de camurça estavam encharcados. Enquanto me aproximava
de minha quitinete, a figura de Edmund Fëll apareceu por trás da vidraça da casa de Tomazelli. Tentei me esquivar de seu olhar, mas ele me reconheceu e acenou vivamente.
Correspondi ao gesto dele sem muita vontade.
Mas o pior estava por vir. Quando cheguei à porta e tentei tirar a chave de minha bolsa, o ar escapou de meus pulmões. Incrédula, fiquei ali parada, praguejando
contra mim mesma. Eu tinha esquecido a bolsa no escritório de Ehrack.
Um Corpo no Gabinete
Eram vinte e duas e quarenta quando ouvi que chamavam meu nome.
— O que foi? — perguntei, entreabrindo a porta.
— Uma emergência, senhorita — disse o homenzinho parado lá fora. — Precisa vir comigo.
— Eu… ir com o senhor? Sabe que horas são?
— Sei… sei sim. Ordens do inspetor Radke. Venha… Ele vai lhe explicar tudo.
E diante dos protestos de minha parte:
— Não sei de mais nada, senhorita. Estou aqui a mando da polícia. Acho que encontraram alguém morto.
Morto? Completamente melindrada com as suas palavras, e ainda cambaleante de sono, apressei-me em calçar as meias. Comecei a sentir uma dor no baço. Aquela história
não me seduzia nem um pouco.
Um táxi esperava por mim na rua. Abrigando-me da chuva, embarquei com um pulo. Com um solavanco, o homenzinho partiu a toda velocidade. Sumimos na noite, e tive
a impressão de que treinávamos para garantir vaga numa corrida de bigas. Os motoristas da Empresa Gilting têm uma eficiência a toda prova!
Em poucos minutos estávamos na Rua B (é assim que vou chamá-la para facilitar o relato). O táxi continuou seu roteiro e paramos na Rua A, diante da mansão dos Ehrack.
Tentei pela segunda vez interrogar o chofer, mas não obtive resposta. Ele me acompanhou até o saguão de entrada. Fiquei zangada com toda aquela encenação.
Corri pela alameda, enquanto as árvores balançavam lugubremente ao meu redor. A chuva não dava sinais de que iria parar, nem mesmo diminuir. No vestíbulo encontrei
outro homem, que reconheci imediatamente — era um dos médicos da vila. O Dr. Ritterbuch. Tinha um corpanzil cheio e gordo, sinal claro de que não dava qualquer atenção
a tabelas de colesterol.
Assim que me viu, Ritterbuch precipitou-se ao meu encontro. Puxou-me pelo braço com tanta força que quase deslocou minha clavícula. Como se tivesse um segredo milenar
a compartilhar comigo.
— Por gentileza, sim?
Antes que eu pudesse me recobrar, introduziu-me na sala de visitas. Havia ali um barzinho com bancada de mármore. Haggard estava sentado numa das banquetas, tremendo
convulsivamente. Parecia dominado por um pânico esmagador.
— Posso saber o que houve?
— A senhorita logo vai saber, acalme-se. — O médico voltou-se para o taxista, que havia vindo docilmente atrás de mim. — Pode se retirar… O que está fazendo aqui
dentro?
— Doutor, eu… — murmurou o homem. Retorcia as mãos com certo nervosismo, alternando ritmicamente o peso de uma perna com o da outra.
Houve um ligeiro jogo de olhares e, após um ligeiro momento de hesitação, o Dr. Ritterbuch inseriu a mão no bolso e extraiu dali uma nota em dinheiro. Com uma mesura,
o taxista pegou a nota e saiu cantarolando.
— Que sujeito audacioso! — comentou o doutor. Virou-se para mim: — A senhorita me perguntou o que tinha acontecido. É meio complicado. Acho que não posso responder
essa pergunta.
— Por acaso há alguém que possa?
— Eu, Srta. Carlile — disse o rapaz que estava descendo a escada. — Conforme o doutor disse, deve ser paciente. Vamos esclarecer tudo, mas cada coisa ao seu tempo.
Era um homem magro, por isso seu casaco, por cima do colete de forro de tafetá, sacudia como uma capa enquanto andava. Encarou-me com olhos vivos e especuladores;
notou logo o quanto eu estava desorientada.
— Sou o inspetor Radke. Siga-me… Quero que verifique uma coisa.
O tom do inspetor era neutro, profissional. Tamborilou o corrimão com a ponta do indicador e voltou a calcar os degraus. Fui atrás dele. Haggard ficou sozinho, contemplando
fixamente a vidraça. Um pouco atrás de nós, esfregando ansiosamente as mãos, o médico fechava o cortejo.
A luz no gabinete de Ehrack fazia parte de um mundo de fantasia. Paramos à soleira da porta. Antes de entrar vi que havia alguém caído lá dentro, junto à poltrona.
— Esse aí é… é o Sr. Ehrack — exclamei.
— Ele mesmo.
— O que significa isto?
— Significa, senhorita, que temos três hipóteses — respondeu Radke pensativamente. Enumerando nos dedos, disse: — Acidente, suicídio ou homicídio. Ainda vamos periciar
a cena para estabelecer essa questão. Por favor, não toque nele. É conveniente que os vestígios no corpo não sejam apagados e nem adulterados. Até mesmo tecidos
epiteliais podem ser importantes. Uma gota de suor já levou ladrões à prisão.
— Ele… ele está morto? — perguntei transtornada.
— Está sim — disse o doutor com frieza. — Penetrou poucos centímetros acima da região glútea. O pulmão direito, parcialmente furado. Morte por hemorragia alveolar,
eu diria. Portanto, morte instantânea.
— Foi… pelas costas?
— Exatamente — acrescentou o inspetor. — Foi tudo muito rápido. Nenhum sinal de arranhão ou lesão na cabeça, típico de luta corporal. Também não encontramos traços
de pólvora nas mãos. Como o doutor disse, o pulmão foi atingido. Perfuração de entrada por trás do hemotórax esquerdo. É um local sensível, poucos sobrevivem. Sem
dúvida foi um acidente muito sério.
— Acidente? Estão dizendo que…
— Não estamos dizendo nem sugerindo nada — respondeu Radke calmamente. Possuía um talento especial para impor sua autoridade. — O que sabemos é que o Sr. Ehrack
morreu por causa de um disparo feito à queima-roupa. Numa distância de dez a quinze centímetros, no máximo.
— Meu Deus, que crueldade!
O doutor balançou a cabeça:
— Salvo por algum fator externo, está morto no mínimo há duas horas. Pelo menos é o que indica a coloração da pele. Não acho que tenha oposto alguma resistência
ao assassino.
Radke dirigiu-lhe um olhar reprovador.
— Não temos nenhuma prova de que haja sido assassinato, doutor.
— Mas isto é horrível! — repliquei. — Está querendo me dizer que o Sr. Ehrack se suicidou? Ora, inspetor!
— É porque a senhorita vem tentando acreditar naquilo que deseja acreditar. O apego afetivo distorce a noção das coisas. — Sorriu amargamente: — Posso garantir-lhe,
no entanto, que vou trabalhar a tese de suicídio. Quer vocês concordem ou não.
Nervosa, dei um passo para frente.
— Isto é totalmente impossível! — exclamei.
— Não creio que esse adjetivo se adeque ao presente caso. Tudo é possível, até mesmo…
— Estou me referindo à janela — disse eu, atalhando sua explicação. Fui para lá: — Estava aberta quando chegaram?
— S-sim. Como sabe?
— O chão está molhado.
— Ah… a chuva! Pensamento bastante lógico. Mas o que há de errado?
— O que há de errado? O Sr. Ehrack fechou a janela um pouco antes de eu sair.
Ambos ficaram alertas.
— Reconhece, portanto, que esteve aqui até às sete e meia desta noite?
— Fiquei com ele até às oito horas — corrigi. — Ouvi o relógio da torre central dando as horas quando saí.
— Fabuloso, fabuloso — aplaudiu o inspetor. — Dizia que o homem fechou a janela.
— Sim. Ele levantou da poltrona e veio para cá. Ouvi quando engatou essa lingueta. Lembro-me bem disso porque, logo depois, ele disse que iria regular o ar-condicionado.
— E regulou?
— Sim.
Ritterbuch euforicamente bateu na coxa.
— Precisamente. Tudo isso confere com o que eu mesmo constatei.
— Não vamos nos afobar, doutor — disse Radke lentamente e de maneira enfática. — A televisão estava ligada quando a senhorita saiu?
— Não.
— Está certa disso? — insistiu.
— Ehrack sugeriu que, se eu quisesse, poderia assistir ao noticiário com ele.
— E…?
— Eu recusei.
Radke aquiesceu. As minhas respostas estavam sendo objetivas e esclarecedoras.
— E a sobremesa? Foi trazida pelo mordomo?
— Foi, sim.
— Dois pratinhos. Esse era seu, senhorita?
— Exatamente.
— Pelo jeito, o Sr. Ehrack não comeu o pudim — disse Radke.
Vi que era verdade. O pratinho de Ehrack permanecera intocado. Talvez ele não gostasse de pudins, pensei com meus botões.
O inspetor suspendeu o revólver calibre 38 contra a luz.
— Arma inteiramente convencional. Nenhum sinal característico. O fecho de segurança, violado. O pente, com resquícios de pólvora, e um cartucho com a bala deflagrada.
Tudo incrivelmente simples.
— Isso confirma a minha tese de homicídio — interveio Ritterbuch.
— Ao contrário.
— Ainda acha que foi suicídio? Lorotas.
Radke ficou indignado com a afirmação pouco cortês do médico.
— Lorotas? — retrucou ele. — Veja, não há nenhuma pegada no perímetro deste recinto. Se alguém tivesse entrado, haveria uma quantidade substancial de sujeira ou
lama.
Interrompendo, respondi:
— Acho que está esquecendo um detalhe, inspetor. Lá embaixo, no saguão, há um capacho para limpar os pés.
Radke ficou imóvel por uma fração de segundos.
— Parece muito bem informada, Srta. Carlile. Então me diga… Também acha que foi um crime premeditado?
— Isso eu não sei. Só sei dizer que Ehrack, hoje à noite, estava com medo de ser morto.
— Ele lhe disse isso?
— Sim.
Radke lançou um olhar intenso para mim.
— Ele usou essas palavras? — perguntou. — Que estava com medo de ser morto?
— Não dei muita atenção, mas receio que sim. Bem da verdade, ele tinha uns costumes meio estranhos. Julguei que fosse mais um deles.
— Perfeito. Vocês dois defendem a tese de que tenha havido um crime. Vamos considerar então essa possibilidade. Se tivéssemos um arsenal high tech conosco, ou qualquer
software especializado, as coisas seriam bem simples. Mas como não temos, vamos ouvir as opiniões. Doutor, por que acha que foi assassinato?
— Para mim, está tudo claro como cristal. Dificilmente o Sr. Ehrack teria conseguido virar tanto o braço a ponto de acertar as próprias costas.
Não se podia discordar daquilo. No ponto de entrada da bala, o sangue sujara o branco-azulado da camisa de flanela. Em volta do buraco o tecido fora chamuscado.
O inspetor cravou os olhos em mim.
— Sabe alguma coisa sobre quem são os herdeiros do Sr. Ehrack, Srta. Carlile?
Fiz que não.
— Nunca falamos sobre isso.
— Foi o que imaginei. Bom, talvez Haggard possa nos ajudar nisso. Julgo que…
Radke calou-se.
— Ora essa, o que temos aqui? — Foi para junto do cabide: — Um guarda-chuva! É seu, senhorita?
— Absolutamente não.
— Não é seu? Muito interessante! Ainda está úmido, o que significa que foi usado recentemente.
Ele franziu a testa, como que questionando aquele fato novo. Por fim, desistiu de se torturar e sacudiu a cabeça.
— Bem, não importa. Vamos descer. É melhor não conspurcar a cena do crime.
Descemos.
De volta à sala de estar, vimos que, além de Haggard, havia mais alguém presente. Era Susie Ehrack, que se levantou com a chegada de nossa comitiva. Ao trocarmos
olhares, percebi que havia uma máscara de apreensão em seu rosto. Seu autodomínio não parecia muito convincente.
— Katrina, você… Que bom vê-la aqui!— Calma, Susie. Vai ficar tudo bem.
— Por Deus, o que aconteceu? Papai está bem?
— Eu…
— Katrina… Katrina…
Achei que ela fosse desmaiar. Segurei-a gentilmente e virei-me para o inspetor com olhos suplicantes.
— Doutor — disse Radke imediatamente. — Por favor, fale com a moça. Conte-lhe tudo, mas com cuidado…
— Susie, me ouça — falei para minha amiga. — Esse homem vai lhe explicar tudo, você entendeu?
— Explicar? O que foi… o que aconteceu?
Ritterbuch coçou a cabeça, perplexo com aquela comissão. Pegou o braço de Susie e, com a destreza de um domador de cavalos selvagens, puxou-a para um canto. Começou
a falar com ela em voz baixa, como se quisesse prepará-la para a real gravidade da situação. Ela limitou-se a escutar, os olhos muito abertos.
— Venha comigo, senhorita — disse o inspetor para mim.
Fui atrás dele. Detendo-se no saguão, Radke sacudiu o polegar sobre os ombros em direção a Haggard:
— Estou pensando em interrogá-lo agora mesmo. O que acha?
— Acho que ele não sabe lá muita coisa. Mas não custa tentar, não é?
O aspecto do alemão inspirava clemência. Pedi licença a Radke e ofereci-me para apanhar um copo de água com açúcar. Talvez isso restituísse um pouco de cor ao mordomo.
A cozinha fica à esquerda, para quem olha do hall. Além da porta que dá para a sala, existe outra. Esta segunda porta da cozinha vai para o pátio, e permite que
se vá da casa até o depósito de ferramentas e a garagem.
Achei o açúcar no armário por cima da pia.
Eu estava profundamente preocupada. A presença do inspetor mostrava a seriedade do caso. Havia em suas feições uma grande determinação, um alto grau de altruísmo.
Parecia um desses mastins que não descansam antes de pegar e abocanhar a sua presa.
Haggard fez-me um aceno de agradecimento quando lhe entreguei o copo. Forcei um vago sorriso.
Radke ergueu-se da poltrona onde havia se instalado:
— Está com sono, Srta. Carlile. Quero que me desculpe por tê-la tirado da cama.
— Tudo bem, inspetor.
— Colaborou muito conosco. Continuaremos amanhã. Já telefonei aos técnicos. Agora é a vez de eles virem fazer a coleta de dados, processar e documentar tudo e recolher
quaisquer provas físicas que existam.
Polidamente, levou-me até a porta.
Antes de sair, olhei para trás; vi que, na sala, Susie Ehrack olhava um ponto qualquer do espaço. Chorava. Mas era um choro sem soluços, contido e silencioso. Pobre
garota! Ali estávamos nós, enquanto que lá em cima estava o pai dela, morto no escritório.
Como é que isso pôde acontecer?, pensei tristemente. Quem é que foi o louco que fez uma coisa dessas? Quem?
— Boa noite, inspetor!
— Boa noite, senhorita. Agradeço que tenha vindo. Se eu precisar de seu depoimento, vou mandar chamá-la.
Radke fechou a porta, e eu saí a pé direto para a pensão. Escoltada por uma legião de pensamentos sombrios e confusos.
Meu interrogatório
Acordei com o corpo todo moído, mergulhada numa austera sensação de melancolia. Tanto assim que, mal pus os pés em seu quarto, Tomazelli leu prontamente as linhas
de tristeza estampadas em meu semblante.
— Parece que alguém andou dormindo mal essa noite. Deve ser o efeito retardado da morte daquele peixe visguento. Anime-se, Srta. Carlile. É um Ehrack a menos no
mundo.
Esse era um dos atributos de meu senhorio — era plenamente autêntico, mesmo que isso significasse espezinhar o bom nome dos cidadãos de Wetherburg.
— Quem contou?
— A empregada do Dr. Ritterbuch. Não fique tão surpresa com isso! Estou neste mundo há bem mais tempo que a senhorita. Não existe nada que segure uma empregadinha
que gosta de tagarelar na banca de jornal! Metade da vila já sabe, por quê?
Assim que ele parou de falar, notei que havia outra pessoa ali presente. Era Edmund Fëll, reclinado confortavelmente na cadeira. Tomava uma xícara de café. Estava
contrito e estudou o meu rosto com ar dissimulado. Subitamente me tornei o centro das atenções deles.
— A senhorita esteve lá tarde da noite — disse Fëll. — Vi o táxi… Imagino que foi intimada pela polícia.
— Sim. Eles acharam que eu poderia ajudar nas investigações.
A próxima pergunta de Fëll foi franca, embora a sua expressão facial permanecesse enigmática e séria.
— E a senhorita conseguiu ajudá-los?
— Acho que bateram na porta errada. Afinal, o que é que eu poderia dizer a eles? Não vi nada do que aconteceu. Acho que o inspetor ficou meio desapontado… Ele me
dispensou logo depois.
Uma linha de compreensão modelou os seus lábios.
— Nunca gostei muito daquela raça — interveio Tomazelli. — É isso mesmo, por que mentir? Para mim, nenhum deles prestava nada. Primeiro foi aquele velho insosso,
que tomou uns tragos de veneno. Está certo, não fiquei feliz, mas também não digo que tive pesadelos. Lamento que Ehrack tenha resolvido seguir o mau exemplo do
velho. Sim, lamento sinceramente. Que coisa ridícula — atirar em si mesmo sem dó nem piedade!
Mesmo hesitante, fiquei curiosa com a sua observação.
— Atirar em si mesmo? O que está querendo dizer?
— Ora — disse Tomazelli. Estava agora apoiado no cotovelo. — Não é essa a teoria da polícia? Suicídio.
Fiquei olhando para meu senhorio. Tive a impressão de que estava sendo posta à prova. Lembrei que o Dr. Ritterbuch desde o início falara em assassinato. A empregada
dificilmente teria mencionado uma hipótese diferente.
Eu ia dar uma resposta, mas Fëll inclinou-se para frente:
— Diga-me só uma coisa… Faltava alguma folha de papel, por ocasião da chegada da polícia ao escritório?
— Folha de papel?
— Julgo que vocês, ontem à noite, escreveram alguma coisa. Julgo também que a senhorita deva ter imprimido o que escreveram em algumas folhas de papel de ofício.
Alguma delas estava faltando do calhamaço que o seu patrão guardou numa pasta?
Fiquei boquiaberta. Notei que o detetive talvez não fosse tão burro quanto eu tinha imaginado. Um ignorante com certeza não teria feito uma pergunta como aquela.
Esquadrinhei seus olhos luzidios, mas não encontrei neles nada além de um interesse puramente casual.
— Não… ou seja, não sei. Por quê?
— Por nada — voltou a se reclinar. — Por nada.
Tentei perceber a profundidade de sua dúvida, mas em vão. Tinha reassumido uma pose totalmente inexpressiva, que me impedia de tirar uma conclusão.
— Não há, pelo visto, nenhuma evidência alusiva que explique o caso.
— É o que parece, Signor Tomazelli — respondi. — Vou resumir o que eu vi. Quem me recepcionou na porta do hall de entrada foi o Dr. Ritterbuch. É um homenzinho meio
patusco — ele quase se esqueceu de pagar meu táxi. Havia também um inspetor, fazendo perguntas, com uma japona que voava para os lados como um paraquedas. Ele foi
muito cordial e levou-me para cima, queria que eu visse o gabinete ou o morto… ou as duas coisas, pouco importa. O Sr. Ehrack estava lá, caído, com um borrão de
sangue nas costas. O médico e o inspetor não estavam de acordo sobre as causas da morte: o doutor dizia que, pela dinâmica do caso, foi assassinato. Radke, o inspetor,
respondia que não, que foi suicídio. Eu não sou muito boa em psicanálise, mas acho que Radke dizia aquilo só para contrariar o Sr. Ritterbuch. Uma rivalidade boba.
Depois, o inspetor olhou o corpo, verificou alguns detalhes do gabinete, andou para lá e para cá… Nada muito jocoso. Creio que o ponto alto da noite foi quando ouviu
meu depoimento. Ah, sim… Ele afirmou que a equipe técnica viria hoje de manhã.
— Equipe técnica?
— Para fazer a perícia do local. Coletar os dados que vão compor o inquérito, esse gênero de coisas.
— Jawohl — disse Fëll. — A comida no estômago e a concentração de potássio no globo ocular podem indicar a hora da morte. Vão recolher também material genético.
Com isso é possível extrair dados da origem geográfica e étnica de uma pessoa. A ciência forense atual se baseia irrestritamente na computação.
— Estou entendendo — disse Tomazelli, embora não tivesse entendido nada. — E você acha que aqui em Wetherburg existe essa tecnologia?
— Provavelmente não. Aqui será feito o seguinte: a triagem de todas as pistas e a recolha de materiais. A análise acontecerá num centro maior. Embora eu duvide que
as coisas cheguem a esse ponto.
— Acho que será perda de tempo — respondi para interromper o fluxo de explicações criminais. — Aposto que o Signor Tomazelli já tem um palpite sobre quem baleou
Ehrack.
— Eu, bambina? Por que deveria ter? Eu já dei minha opinião sobre o caso.
— O que equivale a quase nada.
— Conforme eu disse, eles prejudicaram muitas pessoas. Quando alguém faz isso, e não tenta resolver os problemas… Tenho certeza que estão colhendo as consequências.
Entrar naquela casa, subir até o escritório e dar um tiro exige um plano antecipado. Ninguém daria passos tão ousados por impulso.
Tomazelli nunca se dava por vencido.
Edmund Fëll ficou olhando para mim, como se estivesse verificando minhas reações. Calculei que era hora de sair, antes que a discussão tomasse um vulto maior. Repeti
as recomendações sobre correntes de ar a meu senhorio e me retirei.
Parei para tomar fôlego na varanda. A bisbilhotice dos dois homens tinha me deixado exausta. Minha pausa foi interrompida por uma visita inesperada. Numa estranha
agitação, a Sra. Gwenny-Ducker veio da rua, as orelhas em fogo.
— Ué, que cara é essa? Parece que fugiu de um bando de ursos esfomeados.
— A coisa mais extraordinária — disse Judith sem ar.
— Sente-se… Respire primeiro!
Ela quase desabou no banco.
— Katrina… Se você tivesse visto! Uma coisa cinematográfica, querida.
Minha amiga tinha um ar convulso, se é que isso existe! Tinha vindo como um redemoinho (os dedos estavam crispados pela excitação), e, ali na minha frente, arquejava
como um fole diante da lareira.
— Respire fundo. Isso!… Não sei, mas acho que não devia ficar correndo por aí.
Fiquei abanando.
— E daí? A senhora disse que viu uma coisa cinematográfica…
— Você é tão boazinha, Katrina! Fui à mercearia esta manhã, comprar banha. Prefiro banha a óleo de soja — dizem que é mais natural. Imagine só quem estava diante
do caixa, pagando a conta! Ela mesma — Anne Roselene Basknell, namorada do Sr. Ehrack! Normalmente o atendente é tão calado, o pobrezinho. Deve ser um mal hereditário,
o pai dele também era tímido como uma coruja. Mas hoje ele estava inquieto. Ficou com os olhos assim, fitando Anne Roselene. Ela chegou a dizer: “Está assustado
comigo, Joel? Parece que virei uma assombração!” Ele ficou lá, com uma cara de quem não sabe o que vai dizer. Por fim, meio bobo, ele respondeu: “Não é isso, senhora!
Mas eu imaginei… bem… que a senhora já soubesse!” E ela: “Soubesse — do quê? Fale logo. Não posso ficar o dia todo aqui!” O rapaz lutou com as palavras: “O Sr. Ehrack…
a noite passada… Ele foi assassinado.” Dessa vez foi Anne Roselene que ficou ali, olhando para ele, perplexa. “Está brincando comigo, Joel? Não deveria fazer isso,
posso ter um infarto”, disse, numa voz brincalhona. Mas o atendente fez um aceno tão compungido, tão trágico — queria que você visse! Rígida como um pau, a mulher
continuou ali de pé, digerindo a notícia. Todos nós olhamos para ela, um mais atrapalhado do que o outro. Então ela riu histericamente: “Não, eu não acredito nisso.
Eu o vi… ainda ontem. Isso é impossível!” Katrina, você deveria ter estado lá! Coitadinha… Acho que nunca vi Anne Roselene tão amargurada. Alguns tentaram falar
com ela, mas qual o quê! Quem disse que ela queria ser consolada? Saí de lá com o coração apertado.
— Que engraçado, como é que o inspetor se esqueceu de informar a Sra. Basknell? Acho que ela deveria ter recebido a notícia ontem à noite.
— Concordo com você.
— Mas e a senhora? — perguntei.
Judith fez um gesto malicioso, que combinou bem com o seu caráter libertino.
— Juli me contou tudo. As empregadas sempre sabem das novidades. Acho que elas têm uma rede secreta de informantes.
— Juli também falou da Sra. Ebbington? Estou curiosa. Como será que ela está?
— Mal, como é que você queria que ela estivesse? Dizem que estão tratando de Margret à base de sedativos. Afinal, um crime é uma coisa que assusta a gente.
— E o velório?
— Não sei — suspirou. — Juli não sabia. Pelo que ela disse, um inspetor andou pressionando Haggard. Queria saber se Ehrack aguardava alguém para às sete horas da
noite de ontem. Manfred respondeu que não, que seu patrão não estava esperando ninguém. Mas Juli acha que o policial não engoliu a história.
— Talvez o inspetor estivesse falando de Anne Roselene — sugeri. — A amante sempre é a suspeita número um em casos de homicídio.
— Ela nunca ia lá à noite, Katrina. Ela mesma contou para mim que preferia ir de manhã — e sempre depois das dez horas. Para fugir de falatórios, você sabe. Além
disso, se ela tivesse ido ontem à noite, por alguma razão extraordinária, Manfred teria visto.
— Teria visto, é? A senhora está se esquecendo de um pequeno detalhe: ninguém tranca as portas naquela casa. Eu mesma fui lá duas vezes. Disseram-me que eu poderia
entrar direto…
Judith hesitou.
— Você quer dizer que qualquer um poderia ter entrado sem ser notado?
— Mais ou menos. A não ser, lógico, que o mordomo estivesse no hall, ou nas imediações.
Meu argumento era imbatível e causou um momentâneo silêncio de ambas as partes.
A Sra. Gwenny-Ducker se remexeu no banco. Eu a conhecia bem — era um indício de que pretendia me fazer uma confidência. Pensei em lhe dar um estímulo:
— Ih, a senhora sabe de alguma coisa. Então, o que é?
— Eu vi uma coisa ontem à noite.
— Onde?
— Perto da mansão de Stephan. Eu estava na rua, voltando da casa dos Grommer. Eles moram na segunda quadra depois dali. A filha está constipada, eles me chamaram.
Devia ser umas oito e dez da noite.
Fitei o rosto miúdo dela com interesse.
— Estava na rua a essa hora? Surpreendente. Reconheceu quem era?
— Não. Eu passava pela calçada em frente. A iluminação não é muito boa naquele lado da casa. Só consegui notar que alguém estava carregando uma escada de mão.
— Alguém? Escada de mão? Espere aí, vá mais devagar. Está dizendo que, naquele horário, havia uma pessoa no terreno do Sr. Ehrack? Que loucura! Está certa disso?
— Estou sim. Ele estava no lado esquerdo da casa.
— Ele? Era um homem, então?
— Sim. — Judith pensou um pouco melhor: — Bom, eu não enxergo muito bem de longe. Mas achei que era um homem. A escada era comprida e pesada — uma mulher não teria
conseguido carregar… acho eu.
O ponto de vista dela era razoável. Ainda mais — o seu relato explicava aqueles rangidos de sapato.
— Acha que eu devo falar com a polícia, Katrina? Pelo jeito, eles estão ansiosos para obter informações.
— Deixe isso comigo, Sra. Apressadinha. Vou contar a eles o que a senhora viu. Também tenho uma coisa a declarar. Já aproveito e falo tudo de uma vez.
— Eu tenho pena de Susie — acrescentou Judith após uma pausa. — A perda do pai vai ser avassaladora para ela. Ele sempre mimou tanto a filha. Em contrapartida, Margret
nunca foi uma boa mãe. Susie já sofreu nas mãos dela. Uma mãe que não sabe educar um filho? É como armar uma bomba-relógio dentro de casa. Depois que passam a adolescência,
os filhos geralmente se vingam disso. Passam a fazer o que bem entendem, sem ligar a mínima para o que os pais dizem. A mãe de Susie é uma louca, essa é a verdade.
Vive comprando aqueles livros de farmacêutica e toxicologia. Margret não regula bem, é o que digo.
A Sra. Gwenny-Ducker saiu e eu fiquei ali plantada, com uma expressão compenetrada. O que ela dissera era muito curioso. Alguém estivera rondando o pátio de Ehrack!
Quem teria sido? Por mais que remoesse o cérebro, não consegui elaborar qualquer teoria convincente. Era difícil achar uma solução para o enigma.
Uma viatura estacionou no meio-fio da rua. O inspetor Radke apeou, a fisionomia dura e sem emoções. Empurrou o portão e veio na minha direção.
— Olá, inspetor.
— Srta. Carlile!
— E aí, como vai a investigação?
— As coisas deram em nada — disse Radke acabrunhado. — Não há nenhum laço solto no caso. É a segunda vez que me meto numa encrenca dessas.
Aquele fracasso melindroso incomodava seu amor-próprio. Pela sua personalidade, Radke não era um homem que se preocupasse à toa. Mas saber que suas deduções tinham
ido pelo ralo… Ah, isso devia ser um tormento para ele! Talvez aspirasse a alguma promoção, que estava tardando a vir.
De repente, o seu rosto se encrespou, contrariado.
— Vamos, inspetor, pode falar comigo sem papas na língua. Precisa de mim de novo, não é?
— Não… quer dizer, sim. A senhorita não me deixou nem respirar. Admito — preciso de sua ajuda. Pode fazer isso por mim? O local do crime — existem coisas nele que
preciso passar a pente fino.
— Desde que seja só isso, por que não?
— Ótimo. Aliás, o seu vizinho… recebi uma chamada em meu celular… irá conosco. Será que ele está pronto?
Olhei para o inspetor, estupefata:
— Meu vizinho irá conosco? Quem?
In Loco
Embarcamos na viatura e nos dirigimos para a mansão Ehrack. A nossa matilha estava longe de ser o Trio Alegria! Notei que Radke havia saudado Edmund Fëll com uma
frieza doméstica, como se aquele peso excedente não o agradasse. Mas o detetive, o monóculo reluzente ajeitado no nariz, suportou tudo com verdadeiro heroísmo.
— O senhor é natural de Viena? — perguntou Radke rispidamente.
— Nein, nein, sou de Bad Hofgastein. Eu exerci minha profissão em Viena.
— De detetive?
— Era criminalista. Examinava as provas materiais para refazer a cena do crime. Pode ser uma peça de roupa, um toco de cigarro ou manchas de sangue. Tudo isso é
usado para encontrar um elo que ligue o suspeito e a vítima. Sofri um ferimento e, oficialmente, me aposentei.
Fiquei um pouco desapontada. Um conterrâneo! Em definitivo, a minha capacidade de julgar as pessoas estava em baixa.
Bem da verdade, retornar ao local do crime não me encheu de animação. Teria mil vezes recusado o convite se — bem, se o inspetor não tivesse aqueles olhos de buldogue
que fraturou a sua pata.
— Cá estamos nós. Conforme pedi, o Sr. Haggard não mexeu em nada. Os peritos vieram bem cedo, e já fizeram o exame preliminar. Embora, em minha modesta opinião pessoal,
não houvesse muita coisa para coletar.
Descontraidamente, o inspetor pendurou seu casaco esvoaçante no cabide. Às escondidas, lançou um olhar para mim, numa consulta silenciosa sobre nosso companheiro.
Estreitei os ombros: o que é que eu podia dizer? Eu não conhecia o histórico de Fëll, e não tinha a mínima ideia sobre suas intenções ao vir até ali.
Fëll não perdeu tempo e começou estudando o escritório. Hirto como um mastro de navio, parou no centro do recinto, passeando os olhos à sua volta.
— Exceto pela remoção do corpo, tudo continua no mesmo lugar?
— Creio que foi isso o que eu disse.
Radke estava abespinhado. Fëll não se alterou com o tom brusco da resposta.
— Para onde conduz aquela porta ali?
Antes que o inspetor tivesse um novo arroubo de mau humor, dei um passo à frente:
— Para os aposentos do Sr. Ehrack — respondi. — É ali que ele dormia.
Fëll foi até lá e, por um breve período, inspecionou com cuidado a guarnição e a ombreira da porta. Fiquei impressionada com sua vitalidade — pelo jeito, ele não
tinha vindo conosco só por descontração.
— Não foi forçada — fungou. — Isso põe por terra uma pista promissora. Aquela janela tem sacada?
— Não.
Fëll fez uma nova inspeção, com uma cautela caracteristicamente ultrajante. Sem ação, Radke ficou contemplando o espetáculo.
— Qual é a teoria vigente, inspetor? Assassinato?
— Besteira. Não há nenhuma certeza disso. Além disso, existe uma objeção insuperável contra isso. O fato é que as pessoas falam demais.
O habilidoso Fëll virou-se para nós; deu um sorriso malicioso.
— Não só as pessoas. O médico parece ter a mesma opinião.
A afirmação foi muito bem formulada. Radke não conseguiu refutá-la e sacudiu a cabeça:
— Ah, é? O que mais ele acha?
— O suficiente, eu diria. O suficiente para formar um panorama coerente do que aconteceu aqui. Para onde estava caída a cabeça do Sr. Ehrack quando foi encontrado?
— Para próximo da poltrona.
— Esta aqui, portanto. Exatamente — disse Fëll, abrindo amplamente os braços. — Mas o doutor está equivocado numa coisa. De acordo com a empregada, ele presume que
o assassino tenha entrado pela janela. Sim, a lingueta da janela está torta e é frágil; isto confere. Mas há um erro de julgamento — ele acha que o disparo foi feito
daqui. Coisa que é totalmente inverossímil.
— Por causa da trajetória da bala?
Fëll fez um gesto de cabeça meramente por conveniência.
— Exatamente, Fräulein. O tiro, segundo os vestígios, foi dado de muito perto. Isso teria lançado o corpo em direção à porta, e não, conforme aconteceu aqui, da
poltrona.
— Por que não acreditar, nesse caso — disse o inspetor —, que o responsável pelo ato haja entrado no escritório e arrastado o corpo para uma posição falsa?
— Porque, se repararmos bem, não existe nenhuma pegada no assoalho. Isso é altamente incongruente, ainda mais se levarmos em conta a quantidade de chuva que caiu
ontem.
A petulância daquelas constatações! Achei que Radke devia estar doido de raiva. Mas, por algum motivo que fugiu ao meu alcance, ele não se pronunciou dessa vez.
— Que horas a senhorita declara que saiu daqui?
— Oito horas, dois ou três minutos depois, talvez.
— Quando saiu, o Sr. Ehrack fez algum comentário, wie man sagt, estranho?
— Ele não fez nenhum comentário — respondi com segurança. — Ele apenas disse que estava frio aqui dentro.
— Ele chegou a ligar o ar condicionado?
— Sim.
Narrei rapidamente todos os acontecimentos da noite anterior. Ocasionalmente, Fëll alçava os cílios para me direcionar ao que era mais importante. Falei docilmente
a fim de ser o mais precisa possível em minhas declarações.
Quando mencionei que tinha ouvido os rateios do Maverick quando estava descendo para o térreo, Fëll me fez parar.
— Bitte, os ruídos vinham da garagem?
— Acreditei que era Haggard, mexendo no motor.
— Por quê?
— Ele não estava na copa quando desci — justifiquei. — Achei que ele estivesse consertando o automóvel.
— Estava?
— Eu o interroguei, e ele me disse que sim — interveio Radke, que gradualmente ia se interessando nos métodos de Fëll. — Afirmou que havia um problema na ignição.
Edmund Fëll fez um “hum-hum” complacente com aquela informação. Examinava o peitoril da janela; insistiu para que eu continuasse o meu relato.
— Dei só uma olhada superficial na sala. Saí logo em seguida. Garoava de fininho, por isso tive que abrir meu guarda-chuva. E… ei, é isso! — exclamei. — Lembrei
que tenho uma coisa para lhe contar, inspetor. Assim que saí, mas antes de seguir pela alameda, eu ouvi um rangido.
— Que espécie de rangido?
— O som de um sapato… com sola de borracha. Parecia que havia alguém ali perto… pisando no saibro.
— Wunderbar — murmurou Fëll. — Se escutou, também deve ter visto alguma coisa.
— Lamento, não vi nada. Havia toda aquela neblina… Eu olhei ao redor, mas não vi ninguém.
Novamente aquele “hum-hum”, quase paternal.
— Não viu ninguém… E depois?
— Depois caminhei até o portão.
— Perfeitamente.
— Lá, por pouco não esbarrei numa pessoa que vinha pela calçada da Rua A. Por causa do susto, não consegui reconhecer quem era. Pela silhueta, achei que era a Sra.
Basknell.
— Sra. Basknell… quem é ela?
— É a mulher com quem Stephan Ehrack — disse Radke — mantinha um affair. Fiz umas anotações sobre isso.
Fëll abaixou suavemente a cabeça e esfregou delicadamente os dedos da mão direita sobre a testa. Fiquei um pouco incomodada com a implicação do gesto.
— Sr. Fëll, se está conjeturando que a Sra. Basknell…
— Langsam, jawohl? Não estou conjeturando nada. Sem precipitações, Srta. Carlile. Muitas peculiaridades vieram à tona até agora. O que nós precisamos fazer a partir
disso é formar um raciocínio sólido. Depois que tivermos feito isso, vamos tornar esse raciocínio compatível com o incidente. Além dessa senhora, viu mais alguém?
Respondi negativamente. Fëll foi até a mesa de centro, e avaliou os objetos dispostos nela.
— Este pratinho de pudim… Quem o trouxe para cá?
— Foi o mordomo.
— Ninguém tocou nele. E do lado, um copo com uísque. — Perscrutou o conteúdo: — Também não foi tocado. Ao trazê-los, o Sr. Haggard demonstrou algum tipo de nervosismo?
— Não.
— Nenhum tique?
— Nada.
— Certo. Tenho que lhe pedir um pequeno favor, senhorita. Poderia simular a entrada dele, e o modo como pousou a bandeja na mesa?
Pisquei os olhos, confusa com a solicitação. Obedeci, no início um tanto relutante. Fëll acomodou-se na cadeira diante da escrivaninha e, com calma, fez um meneio
aprovativo quando fui até a porta de dois batentes e saí. As suas feições permaneceram cínicas e os olhos desprovidos de emoção. No cume da escada, respirei fundo,
tentando não me intimidar com o que faria. A seguir, torci o trinco e avancei, fingindo que trazia uma bandeja na minha frente.
— Wunderschöen! — disse Fëll, empolgado. — Entre, entre… Finja que é o mordomo! Vou fingir que sou o Sr. Ehrack… O que eu digo?
— O que o senhor diz?
— É, é… O Sr. Ehrack deve ter dito alguma coisa quando viu o criado. Consegue se recordar o que foi?
— Acho que ele disse: “Ponha na mesa!”.
— Wie klar! Vamos adiante… Então eu estou aqui sentado. Ouço a porta se abrindo e vejo o mordomo com uma bandeja. Ele diz: “Com licença, senhor. Trouxe a sobremesa.”
Eu respondo: “Ponha na mesa.” Foi essa a entonação?
Concordei, ainda que um pouco a contragosto:
— Igualzinho…
Fëll esfregou as mãos, muito gabola. Radke girou o dedo perto da têmpora; fechou a cara e apenas resmungou com incredulidade alguma coisa que não consegui ouvir.
Permaneci séria e continuei meu ato de dramaturgia.
Ao fim daquela reconstituição funesta, Fëll aplaudiu-me, louvando bastante a lealdade com que eu imitara os movimentos do mordomo.
— Das freut mich sehr! Es war schöen. Outra coisa, ele desceu logo depois, ou…
— Ele ficou pouco tempo, pelo que lembro.
Não disse qual tinha sido o propósito daquela experiência. Estava imbuído de um propósito obscuro, pois, antes que eu pudesse me recuperar, fez outra pergunta:
— Quando a senhorita foi embora, o Sr. Ehrack chaveou essa porta?
— Não ouvi estalido nenhum. Acho que não.
— Mas não tem certeza.
— Não.
Fëll limitou-se a dizer:
— Bom, isso pode ter dois significados: ou ele a trancou mais tarde, ou ela ficou apenas encostada.
Fëll andou até o local onde o cadáver fora achado. Esfregou o dedo no chão lustroso, com habilidade, mas sem sucesso. Tudo estava limpo, e a não ser por alguns resquícios
de sangue, o assoalho parecia impecável.
A maneira glacial com que Radke cerceara o austríaco vinha sumindo. A sua atitude voluntariosa foi sendo substituída por uma indisfarçada curiosidade. Radke reconhecia
que talvez… sim, talvez… aquele homem não fosse tão idiota assim. Bem, se não era idiota, isso dava o que pensar, não dava?
Radke sacou um bloco de notas e folheou as páginas; disse:
— Apurei dois fatos interessantes. — Devagar e deliberadamente, sacudiu a cabeça: — O mordomo disse que, ontem de manhã, o Sr. Ehrack reclamou que tinha ouvido alguém
mexendo no barzinho da copa. Acho que ele escutou o tinir de vidro ou de copos, algo assim. Mas que, quando desceu para ver quem era, não viu ninguém.
— Alguém mexendo no barzinho da copa… E o outro fato?
— Ontem à tarde, Harrison DeCourse foi expulso desta casa pelo Sr. Ehrack. Ainda não consegui localizá-lo, mas achei que talvez houvesse aí um motivo para um assassinato.
— Quem é Harrison DeCourse?
— É o sobrinho. Trabalha como carteiro da vila. Cursa uma escola de engenharia ou arquitetura… Pelo que dizem, é um rapaz carismático, hipersensível e rápido no
raciocínio.
— Por que o tio o expulsou?
— Um desentendimento frívolo. Parece que o rapaz estava bisbilhotando alguns papéis na mesinha da sala de visitas. Foi pego em flagrante. Ehrack julgou melhor coibir
essas liberdades e acabou dizendo algumas coisas bem duras a ele. Harrison não revidou, mas, ao sair, parecia inexoravelmente mal-humorado e nervoso.
— Ótimo, inspetor. Coloque-o no alto da lista dos suspeitos. Brigas em família geralmente se tornam estopim de fortes acessos de ira... e, vez por outra, de coisas
piores.
Radke fez um gesto afirmativo.
— Outro ponto que anotei: havia um guarda-chuva úmido no cabide ali. Pelos depoimentos que colhi até agora, não consegui apurar a quem pertença.
— Não era do Sr. Ehrack? — sugeri.
— Não, não era. Ele possuía um guarda-chuva, mas este ficava guardado no quarto da bagunça lá embaixo.
— Pode ser emprestado — teimei. — Ontem à noite, o Sr. Ehrack talvez tenha dado uma saída por alguns minutos. Isso explicaria o pano úmido.
— A senhorita raciocina depressa, mas não, não. Ehrack não saiu daqui ontem à noite. Não havia nenhuma filigrana de barro, nem nada assim, nos sapatos.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Fëll ergueu-se, intervindo na palestra:
— Devo alertar que está cometendo um grandessíssimo erro, Srta. Carlile. Uma declaração como a sua poderia influenciar unilateralmente a opinião pública. Para chegar
à verdade, o investigador nunca deve induzir os fatos. Uma teoria sem base não tem qualquer valor prático. — Voltando-se para Radke, perguntou: — E quanto a pegadas
em geral? Ora, vamos, inspetor, não diga que não existia nenhuma. Eu tomaria isso como uma tentativa de manter pistas importantes em sigilo.
— Bem — disse Radke em tom hesitante e com a voz embargada. — Para ser franco, havia uma marca. Mas uma única. Ali! — Indicou um minúsculo semicírculo de lama no
chão diante da janela.
Fëll mudou seu grunhido para um “eh-eh” satisfeito.
— Suponho que o Dr. Ritterbuch não tenha visto esta marca!
— É lógico que não. Prefiro ser prudente nessas coisas. O doutor pode ser muito bom em sua área, mas é um pouco, digamos, tagarela. Mal entrou aqui e já foi alardeando
a quem quisesse ouvir que havia sido homicídio. Calma lá, temos que primeiro analisar as provas. Se nós juntarmos tudo, dá a impressão que o assassino veio de fora
escalando uma escada apoiada no peitoril da janela. Isso seria possível? Sim, seria, já que a lingueta da janela está quebrada. No entanto, isso não esclarece por
que o corpo ficou arriado naquela posição. Além do mais, só há esta pegada…
Essa menção fez tilintar um alarme dentro de mim.
— Esperem, e se a chave para o enigma estiver aí? Judith me disse que viu alguém carregando uma escada ontem à noite.
— Quem é Judith?
— A Sra. Gwenny-Ducker. É uma espécie de ajudadora das pessoas doentes. Ela tinha ido visitar uma família a algumas quadras daqui. Ela diz que, ao voltar para casa,
viu um homem com uma escada de mão lá embaixo, no jardim.
— Jawohl? — fungou Fëll. — Ela viu um homem?
— Sim. Há uma lâmpada lá fora, à esquerda da casa. Passava das oito horas…
— Talvez tenha sido Haggard — disse Radke com um aceno significativo. — Ele me disse que andou limpando as calhas ontem à tarde. Pode ter se esquecido de guardar
a escada no depósito, e fez isso à noitinha.
— Es kann sein, warscheinlich — Fëll balançou a cabeça. Olhando para mim, prosseguiu: — Bem, veremos isso mais tarde. Peço efusivamente que responda com toda a sinceridade
a uma pergunta, Srta. Carlile. Enquanto digitava o texto que era ditado, ficou sentada nesta cadeira?
— Sim. Quando cheguei, já estava tudo preparado. Assim que terminei o trabalho, imprimi as folhas e as deixei na escrivaninha. O Sr. Ehrack era muito metódico; ele
gostava de revisar, uma por uma, todas as laudas. Não para encontrar erros datilográficos, mas para suprimir incoerências de continuidade, essas coisas.
— Estas folhas contêm o trabalho de ontem à noite?
— Deixe-me ver… Sim.
— Do que se trata?
— De memórias da juventude e de alguns arrependimentos pessoais. Pode ler se quiser.
— Depois eu leio. A arma, inspetor, estava caída perto do corpo?
— Ao lado da mão direita. Para complicar, as únicas digitais que encontramos no exame inicial eram do Sr. Ehrack. Quem atirou nele foi muito cuidadoso.
— Qual a procedência da arma?
— Estamos investigando…
Bati a mão na testa, irritada comigo mesma.
— Que estupidez a minha! O revólver — como é que pude esquecer isso? Que tolice a minha!
— O que foi? — perguntou Fëll, intrigado com o meu comportamento. — Alguma outra lembrança?
— O revólver que matou Ehrack estava aqui quando saí. Bem ali, no braço da poltrona.
— Como? Mostre.
— Reparei nele por pura casualidade. Vi um reflexo fugaz. Era um revólver, vi que era. A única diferença é que a poltrona não estava aqui, atrás da cadeira… como
agora. Ela estava ali do lado, entre a escrivaninha e a porta. Eu conseguia olhar para o Sr. Ehrack enquanto ele ditava.
— Das kümmert uns sehr — disse Fëll. — Então esta poltrona estava ali e arma jazia no braço dela. Os agentes mexeram na disposição dos móveis, inspetor?
— Não! Jamais. Eu sou muito meticuloso nessas coisas. Tudo estava exatamente assim quando vim para cá.
— Tem certeza?
— Plena certeza.
— Alguém então mexeu na poltrona. Mas quem, e por quê? Vamos fazer o seguinte: temos que descobrir se Ehrack tinha porte de arma e, se não tinha, de onde apareceu
o revólver. Ele por acaso disse que teria visitas depois das oito, Mädchen?
— Não.
Eu ia bater na testa outra vez… mas aí já seria apelação demais! Dei um toque suave à voz e falei:
— Mas ele disse outra coisa…
— O quê?
— Ele disse que tinha medo de ser morto.
— Medo de ser morto? Continue, continue…
— Na hora até achei que fosse brincadeira. Pensando bem, talvez o Sr. Ehrack estivesse emitindo um grito de socorro, não é? Estudo psiquiatria, sabiam? Existem pessoas
que dizem determinadas coisas só para chamar a atenção. Geralmente sofrem de alguma neurose, de algum fenômeno psiquiátrico observável. Já fui a simpósios onde…
Fëll gesticulou com impaciência. Não queria ouvir minha preleção sobre patologias clínicas.
— Sim, sim, já entendemos. O que precisamos é olhar a coisa sobre todos os prismas. Não quero ferir seu orgulho, senhorita, mas poderia repetir as palavras exatas
dele?
— Claro, se acha que é importante. Isso aconteceu um pouco antes de eu ir embora. Ele disse: “Pensei em aproveitar meus dias para fazer uma coisa que me desse prazer.”
Fez uma pausa e finalizou: “Antes que seja tarde demais!”.
— A frase foi essa: “Antes que seja tarde demais”?
— Sim. No meu entender ele havia recebido alguma ameaça e, por algum motivo, queria que eu soubesse disso. Eu o questionei sobre aquilo, mas nesse momento a nossa
conversa foi interrompida pela entrada súbita do mordomo.
— Gut, é tarde para chorar o leite derramado — respondeu Fëll, resignado. Apontou para o banquinho de carvalho: — Que papéis são estes?
— São anotações. Acho que foram feitas pelo Sr. Ehrack.
— Posso ler, inspetor?
Radke, na falta de uma resposta melhor, concordou. Não sei se tinha notado as folhas esparsas, jogadas à toa no banquinho. Eu quase chegaria a apostar que não. Fëll,
sem maiores cerimônias, pegou o maço de papéis e o enfiou descaradamente no bolso. Com a cara mais inocente, virou-se para nós.
— Que horas a Sra. Gwenny-Ducker alega ter visto o homem carregando a escada?
— Depois das oito.
— Talvez Haggard possa nos contar alguma coisa. A senhorita pode chamá-lo para nós, bitte?
O empregado veio com a humildade de um cordeirinho. Parou discretamente no aposento, os ombros curvados, à espera do que queriam com ele.
Jogo de Busca de Pistas
Haggard devia ter envelhecido vinte anos nas últimas horas. A sua fragilidade… Seu olhar… Os ombros caídos… Parecia um homem esmagado pela amargura.
— Limpou as calhas ontem, não foi, meu bom velho?
— Sim, senhor.
— Onde guardou a escada? No depósito?
— Sim… não. Eu esqueci, senhor.
— Eh-eh, wie schön! Esqueceu, hein? Por acaso, não se lembrou de guardá-la, digamos, à noite?
— Lembrei, senhor. Fui lá fora, mas não a encontrei. Imaginei que a Sra. Ebbington… que ela tivesse recolhido a escada.
— Quem é a Sra. Ebbington?
— A ex-mulher do Sr. Ehrack — expliquei.
— Ela alguma vez fez isso?
— Sim.
Fëll moveu a cabeça com amabilidade.
— A Sra. Ebbington falava com frequência com o ex-marido?
— Não.
— Warum nicht?
— S-senhor — o velho gaguejou.
— Acho que sei por quê — disse o inspetor. — Dizem que o divórcio foi muito polêmico. Muito dinheiro envolvido… partilha de bens… Isso causou um desgaste, e logicamente
as feridas ficaram abertas. Dizem que até a filha tinha pouco contato com o pai.
— Uma proibição materna, certamente — disse Fëll. — Continue, Haggard.
O mordomo engoliu em seco
— O Sr. Ehrack sempre foi um homem ocupado, senhor. Ele não era um bom pai, não era mesmo.
— Razão?
— Estava sempre viajando; era um vai e vem, muitas vezes para o exterior. Que exemplo poderia dar? Antes de abrir firma própria, foi assessor do pai dele. Advogavam
juntos. O Sr. Ehrack nunca ajudou a criar a Srta. Susie. Esse mundo é muito injusto, senhor. Ver os próprios pais negligenciando a criação de seus filhos! Que esperança
resta, senhor?
Edmund Fëll acenou afirmativamente:
— Fale sobre ontem à noite. Trouxe o uísque e o pudim para seu patrão. Mas ele nem os tocou.
— Ele sofria de enxaqueca. Tinha crises terríveis. O Sr. Ehrack tomava medicação controlada, senhor.
— Isso basta. Pode ir, Haggard. Ah, uma última pergunta. Esta poltrona aqui. Dizem que estava ali, perto da porta. Moveu a poltrona para cá, hoje de manhã?
— Sim. Ali, atrás da porta, atrapalhava a entrada.
Radke balançou a cabeça, consternado. Ouvir que tinham tirado as coisas do lugar… e sem a sua aprovação…
Após a saída do mordomo, Fëll disse:
— Não é tão surdo quanto dá a entender. Aliás, o que acham sairmos um pouco? Es ist ein strahlender Morgen heute.
Descemos até o térreo em silêncio. Depois da chuva, a manhã estava realmente límpida e azul. O austríaco, seguindo sua intuição, saiu da mansão com invulgar velocidade.
Parecia mesmo disposto a debelar um inimigo oculto.
— É pena — cochichou o inspetor para mim. — Nosso companheiro é louco. Lá em cima quase cheguei a acreditar nele. Agora sai correndo que nem uma lebre em pânico.
Marchando diante de nós, Fëll caminhou para a esquerda. Parou na alameda de saibros; remoía alguma coisa consigo mesmo. Notei que calculava a altura entre a janela
do escritório, no primeiro andar, até o chão de terra.
Repentinamente, Fëll ficou de cócoras.
— Sowas muss man ausfschreiben, nicht wahr?
— Encontrou alguma coisa?
Fëll revolveu o solo de um canteiro de azaleias. Soltava uns grunhidos tão audíveis que tive que sorrir. Quando se ergueu, havia uma expressão de desapontamento
em seu rosto.
— Não, infelizmente. Nem sempre se consegue cultivar lentilhas com pouco adubo.
O choro de um elefante teria sido menos enigmático. Aquela frase! Evitei olhar para Radke, que devia estar sofrendo um ataque de apoplexia.
Ouvimos um grito desesperado. Numa mistura de ódio e urgência. Ficamos gelados, à espreita de um perigo iminente e próximo. Da direita, da outra esquina da casa,
uma mulher vinha a toda pressa ao nosso encontro. Era Margret Ebbington, levantando e baixando os braços como se estivesse passando mal.
— Viram minha filha? Por Deus, alguém a viu? Onde — onde está Susie? Ela desapareceu… Minha filha!
Entreolhamo-nos, surpresos.
Gorda e de membros maciços, Margret é uma mulher que causa impacto. Todos dizem que, em grande parte, seu casamento terminou por causa de sua atitude dominadora.
Na época, levava o pobre Ehrack com a rédea bem curta. Era sabido por todos que, por muitos anos, ele fora obrigado a descrever toda a sua rotina para aplacar o
ciúme exagerado dela. A separação fora apenas uma consequência tardia dessas manias. De carne flácida, ela ainda conserva traços de sua beleza juvenil. Os cabelos
têm um tom castanho-claro, e são fixos com laquê. Arrisco a dizer que, secretamente, a Sra. Ebbington sempre sonhou em ser designer ou estilista. Mas agora, no crepúsculo
de sua vida, é tarde para ter esses sonhos. Resta-lhe levar seus dias cuidando do lar e de suas módicas despesas caseiras.
— Já telefonei… para todo mundo! — exclamou Margret. Soluçava e sacudia as mãos, num ataque de pânico total. — Ninguém viu a coitadinha… Susie, oh Deus! O que será
que houve com minha filhinha?
Aquilo exigia uma ação imediata.
— Inspetor — disse Fëll. — Sua vez de entrar em cena.
Com voz mansa, Radke tocou no braço da Sra. Ebbington.
— Venha comigo, minha senhora.
— O senhor sabe… sabe onde Susie está?
— Não, senhora. Mas ela não deve ter ido longe. Venha…
Ela retorcia as mãos, num frenesi que dava dó; acompanhou o rapaz sem reclamar, aliviada por ver que ele se preocupava com seu problema aflitivo.
— Calma, minha senhora. Conte-me tudo bem devagar, ouviu?
Fëll balançou a cabeça.
— O afeto possessivo dos pais. Controlam tanto os filhos que, quando eles somem por um minuto, ficam sem saber o que fazer. Aposto que a Srta. Susie está com alguma
amiga, tentando lidar com a perda que sofreu. Quer vir comigo, senhorita? Participaria de um modesto jogo de busca de pistas?
Jogo de busca de pistas? Essa frase me soou de extremo mau gosto. Achei que não devíamos nos exceder naquele tipo de brincadeiras. Mas havia alternativa? Aceitei.
Houve um lampejo de contentamento em suas pupilas. Foi como se eu o tivesse remetido a seu habitat.
— Comecemos pelos caminhos que o assassino pode ter usado para invadir a casa — prosseguiu Fëll, encerrando o assunto. — São três os caminhos. Temos a porta da frente,
que serve como entrada principal. Há a porta que vai da cozinha para o pátio interno do terreno. E há também, como última possibilidade, essa janela ali, e aqui
em baixo, a marca de um sapato. Se analisarmos com método esses três pontos, logo conseguiremos coordenar o nosso palácio mental.
Voltamos pela mesma trilha de terra batida, que circundava a casa. Em vez de entrar pela porta da frente, continuamos nosso passeio. Depois da segunda esquina, vimos
o depósito de ferramentas a alguns metros. Atrás dessa primeira construção ficava a garagem, onde outra estradinha se esticava num risco torto até a porta que irrompia
da cozinha.
O detetive avançou por ali.
— Vamos confirmar a história da escada.
— Acha que Haggard se enganou?
— Dificilmente — disse ele.
A porta do depósito estava fechada. Sem qualquer pingo de remorso, Fëll arremessou o corpo contra a porta, que se abriu com um chiado das dobradiças. Espiando para
dentro, não demorou a constatar:
— Veja, os ganchos na parede. Estão vazios!
— Isso significa que Judith Gwenny-Ducker tem razão. Alguém carregou a escada.
— É muito sagaz — elogiou Fëll. — Já percebeu que a residência tem calhas só num dos lados. O lado direito. Sim, temos que levar isso em consideração. Resta saber
se esse homem, descrito por sua amiga, achou a escada por acaso ou se sabia que estava lá.
Confesso que tudo aquilo começava a mexer com minhas emoções. Aquele assassinato tinha virado um caldo de confusões. Fëll franzia a testa. Existia nele essa singularidade;
embora suas buscas fossem um pouco ostensivas, eu sabia que tudo tinha importância para ele, desde os rastros maiores até a menor partícula de pó.
Refizemos o nosso trajeto. Desta vez, fomos pela trilha que ia até o portão da rua. Farejando o ar, o austríaco virou-se e inspecionou a fachada da casa. Depois
olhou as redondezas, para gravar na memória a geografia do terreno. Apesar de minha curiosidade, não fez nenhum comentário sobre a necessidade daquilo.
Perto da alameda havia um chafariz que, a intervalos, lançava jatos d’água para o ar. Fëll olhou aquilo por um tempo e, num impulso louco, foi para lá atravessando
o gramado. Verificou o tanque do chafariz e, apoiando a perna na amurada, mergulhou a mão na água. Quando a retirou e abriu novamente, um objeto dourado cintilava
entre seus dedos.
— Und jetzt, wem ist das? De quem será isto?
Pude ver que era um relógio de bolso, desses com tampa e pino com correntinha.
— Abra a tampa. Algumas pessoas imprimem suas iniciais lá dentro.
Ele apertou o pino e examinou o interior do relógio.
— Aqui diz… “S. E.” O que acha que significa?
— Que foi dado de presente. A alguém cujas iniciais são S. E..
— Denkst du sowas?
Atrás de nós, uma voz disse:
— Que bom! Vocês encontraram. Então foi aí que meu relógio caiu!
A uma pequena distância, um rapaz de cabelo moreno e de boa aparência sorriu para nós. Tinha uma mão no bolso, e uma serenidade incrível no olhar. Era Harrison DeCourse.
— Que sorte! Vocês apareceram na hora certa. Um artigo desses custa uma fortuna.
Bisbilhotando
Harrison tinha vindo pela trilha da garagem. Não estava nem um pouco afetado conosco. Eu o conhecia bem… Ele olhou para mim com autossuficiência e sorriu pela segunda
vez.
Calmamente, Harrison perguntou:
— Vocês vieram com o inspetor, certo? Um homem experiente, eu diria. E que terá um desafio e tanto. Como se não bastasse a embrulhada dessa noite, Susie ainda resolveu
sumir.
Fëll adiantou-se e fitou o jovem. Estudou-o dos pés a cabeça, como se estivesse avaliando uma folha de cardápio escrita em chinês.
— Quem é o senhor?
— Harrison DeCourse. Prazer!
— DeCourse… O sobrinho do Sr. Ehrack, imagino.
— Digamos que sim. É, Stephan Ehrack era meu tio. Entrego cartas na vila. Mas, na formação, sou arquiteto. Enquanto não arrumo um emprego fixo, faço uns extras por
fora.
— Não parece muito preocupado com os últimos acontecimentos, Sr. DeCourse.
— Não estou, por que negar? — respondeu Harrison com voz serena. — Susie já não é criança. Ela sabe se cuidar.
— Eu estava me referindo ao assassinato de seu tio. Pelo que eu entendo, as pessoas normalmente ficam consternadas com a morte de um parente tão achegado.
— Incrível, não é? Mas, para dizer a verdade, eu e titio não éramos nem um pouco achegados. Ele era babaca com ares de príncipe. O senhor não acredita? Pois pergunte
à Srta. Carlile; ela vai lhe falar a mesma coisa. Eu sei que não deveria estar propalando minha opinião aos quatro ventos, mas é que cansei de fingir, sabe? Vamos
jogar as máscaras fora, vamos ser o que nós somos. Fui um fantoche durante anos, mas finalmente chega! Eu sou livre, e não tenho medo de dizer o que penso.
— Como quiser, Sr. DeCourse. A liberdade é sua, apenas faça bom uso dela. Acabou de falar da Srta. Susie Ehrack… Sabe aonde ela foi?
— Para um lugar seguro.
— A troco do quê?
— Como é que eu vou saber? Possivelmente ela cismou que corria perigo e fugiu.
— Uma teoria ousada — murmurou Fëll.
— Chama isso de ousadia? — Harrison riu cinicamente. — O senhor esquece que um sujeito atirou em meu tio. Como se ele fosse um animal. Uma bala, um tombo e acabou.
— Pode ter sido o senhor.
— Desde que vocês provem.
— Dizem que houve uma discussão ontem. Seu tio o recriminou e o senhor saiu chutando as pedras. Quer nos falar sobre esse episódio?
— Oh, aquilo — o rapaz fez um gesto de descaso. — É admirável como a polícia anota essas coisas. Quem é que nunca teve uma pendenga familiar? Eu simplesmente lhe
disse que devia viajar mais, conhecer os Cárpatos, a Islândia ou a Amazônia. Titio era muito parado, uma pena. Um homem com tanta grana para gastar. Óbvio, ele não
gostou e me expulsou da sala.
— E quanto aos papéis.
— Que papéis?
— Os que o senhor tinha na mão e que geraram a fúria de seu tio.
— Para ser sincero, não me lembro disso. Acho que eram memorandos ou algumas apólices. Nada a ver com o bate-boca que tivemos.
Uma afirmação com mais furos do que uma peneira, pensei comigo mesma. Mas, estranho como fosse, Fëll entregou-lhe o relógio.
— Tome! Acabou de dizer que é seu.
— É meu sim. Obrigado…
— Deve saber, Sr. DeCourse, que a investigação está apenas começando. Terá que prestar depoimento mais tarde.
Harrison agradeceu e sorriu novamente. Murmurou alguma coisa sobre flores para o velório e saiu para a rua.
— Diese Jugend! — disse o austríaco. Piscou para mim: — Estamos progredindo, hein? Vejamos agora o que aconteceu no jardim. Venha, e veja aqui.
Fëll voltou para o canteiro que já tínhamos examinado, abaixo da janela do escritório.
— Creio que alguém andou amassando a camada superficial da terra. É órfã, senhorita?
A brusca guinada no rumo de sua conversa me desnorteou. Agachado, Fëll mexia como que distraído os talos de margarida.
— Sim, sou — respondi reticente.
— Se o inspetor estivesse disponível… Ele deveria ver estas marcas. De que modo os perdeu?
— Perdi?
— Seus pais. Como morreram?
— Que maneira horrível de falar! Minha mãe contraiu tuberculose. E papai, dizem, teve febre tifoide.
— Que profissão exercia?
— Papai era grande conhecedor de artes. Estudou os estragos de uma bomba causados na catedral de Stephanson. Foi um homem brilhante. Visitou Viena e todas as capitais
da Ásia.
Fëll empertigou-se e olhou para mim em silêncio. Percebeu que eu estava blefando. Dando um pulo, ele projetou-se para a moita de arbustos junto ao muro. Vitorioso,
soltou uma exclamação. Abaixou-se e resgatou, dentre a vegetação de peperômias, uma escada de mão.
— Voilá. De alumínio. Comprida, leve e resistente.
Radke voltou nesse momento. Estava visivelmente exausto.
— A escada… Vocês tiveram sucesso, que bom.
— É um misteriozinho a menos — disse Fëll. Saiu do meio das moitas: — Acharam a filha?
— E mais essa — lamentou-se o inspetor. — Que nada! Ela desapareceu mesmo. Ou fugiu ou foi raptada. É como se tivesse evaporado. Vou pedir licença, tenho que cuidar
desse caso. Informem-me se conseguirem mais alguma coisa.
— Wir werden es bestimmt tun, Inspektor.
— Bom dia!
Com um suspiro, Radke afastou-se a passos largos, atrás de mais aquela tarefa penosa. Quando chegou ao portão, a Sra. Gwenny-Ducker cruzou por ele; muito serelepe,
ela soltou um gritinho feliz quando nos viu. Pronto, agora sim é que não teremos sossego, suspirei desolada.
Judith veio ao nosso encontro como um passarinho saltitante.
— Quem é ela? — perguntou Fëll.
— É Judith, a amiga que citei.
A Sra. Gwenny-Ducker fingia uma compenetração fora do normal; mas, por baixo de sua carapaça, eu sabia que devia estar ardendo de febre por novidades.
Encarei a velhinha com a maior seriedade. Eu não queria que ela se empolgasse demais, por isso tentei cortar suas asas desde o início. Mas, para meu espanto, Fëll
ficou radiante com a chegada dela. E o espanto virou pesadelo quando, além de lhe sorrir, ele fez uma mesura de boas-vindas.
— Guten Morgen, madame.
— Oh — exclamou Judith. — O senhor é o detetive! Luiggi me contou que o senhor está hospedado na casa dele. É muito bom que esteja aqui. O Sr. Flannagan disse que
vai comprar um ganso para servir de guardião da propriedade. Um ganso, o senhor vê! Que homenzinho desconcertante… Espero que a coisa não vá tão longe, mas todos
têm medo de que haja outras mortes.
Judith enfiou o cotovelo em minhas costelas.
— Como é o nome dele, querida? — perguntou com o canto da boca.
— Fëll — respondi de má vontade. — Sr. Fëll, a Sra. Gwenny-Ducker!
— Oh, muito prazer, Sr. Fëll.
— Madame, dizem que a senhora viu um homem neste jardim ontem à noite. Precisamos de sua ajuda, está bem?
Judith se sentiu no ar com aquela pergunta tão direta. Se você quer alegrar uma mulher que gosta de bisbilhotar, diga-lhe que precisa de sua ajuda. Ela entrará em
transe.
— Exato, eu vi, Sr. Fëll. Eu tinha visitado uma família na outra rua. A menina… tão fraquinha… está constipada. Eles são pobres, não tinham a quem recorrer. Mas
— o senhor me desculpe —, já não tenho tanta certeza de que era um homem. Apenas achei isso porque, de longe, a pessoa parecia forte e alta.
— Entendo. A senhora está falando da relação entre causa e efeito. Um objeto pesado só poderia ser carregado por alguém forte. No caso, uma pessoa do sexo masculino.
— S-sim — gaguejou Judith, aturdida. — Já tem algum suspeito?
— É cedo para afirmar — disse Fëll, com uma modéstia fora de série. — Não deseja nos acompanhar? Queremos que veja a configuração das coisas por si mesma. A opinião
de terceiros geralmente é muito útil.
A Sra. Gwenny-Ducker levou um choque. “Oh, é mesmo?”, murmurou. Aquele convite estava superando todas as suas expectativas. É claro que ela nos acompanharia! Por
outro lado, eu conheço o medo que ela tem de lugares mórbidos e bizarros.
— Bem feito — cochichei. — Você se meteu onde não devia. Se tiver pavor de sangue, dá tempo de desistir.
— Tenha paciência comigo, querida. Não é toda hora que temos um crime. Isso é tão excitante!
Olhei para ela diante daquele disparate. Excitante!
Voltamos ao gabinete de Ehrack. Judith entrou com a máxima reverência, enquanto Fëll se ocupava com uma nova inspeção pelo recinto.
— Ele estava ali? Que barbárie! Quem poderia matar assim, com tanta crueldade e sem nenhum motivo?
— Não, madame. É um equívoco o que acabou de dizer. Sempre há um motivo. Temos que descobri-lo, depois tudo ficará mais fácil.
— O senhor acha? Que tolice a minha. Um detetive deve saber dessas coisas.
— Como a senhora definiria o Sr. Ehrack?
Ela quase teve um chilique. Além de poder ingressar ali, ainda era interrogada sobre os complexos da vítima. Era o auge, the most of most.
— Ultimamente ele vivia fechado em casa. As pessoas falavam que ele era arrogante, egoísta. No fundo, acho que Stephan sofria de outra coisa. Um tipo de depressão,
ou distúrbio bipolar. A pessoa não tem vontade de sair, nem vontade de visitar ninguém — nada! Prefere ficar o todo dia trancado no quarto, longe de todos. Uma multidão
de gente reunida causa um sentimento de horror. Mas Stephan Ehrack pegou essa mania depois da morte do pai. Creio que deva ter sido um abalo muito grande.
— Diria que ele nutria algum receio de ser morto?
— Por Deus, claro que não! Ele se achava indestrutível. A menos que haja recebido uma denúncia anônima. Mesmo assim, nunca ouvi falar nisso. Tudo isso é tão irreal!
Não entendo… Quem é que iria querer a morte dele?
— Qualquer um, em tese — disse Fëll com calma. — O ódio é uma coisa traiçoeira. Pode fermentar no coração de alguém por meses, ou anos, até que um belo dia, por
uma razão qualquer, vem à tona e faz com que a pessoa aja de uma maneira que ninguém espera. Para essas pessoas, a violência física não só é tolerada, como ensinada
e estimulada como forma de se impor na sociedade.
A Sra. Gwenny-Ducker ouvia fascinada a explicação. Apontou a mesa, após uma breve pausa:
— O que é isso? Martini?
— Martini? — perguntei rindo. — Isso é uísque. Dá para ver pela cor.
— Uma família de viciados em álcool. A própria Margret bebia. O que era uma coisa muito feia! Stephan pediu a ela várias vezes que parasse de beber, mas era tudo
hipocrisia. Como é que ele poderia exigir isso dela se dava aquele mau exemplo.
— Ele dava mau exemplo… Quer dizer que ele também bebia?
— Como um bode velho. Chegava a cair desmaiado de tanto beber. Não gosto nem de falar nisso! Acho que devíamos jogar isto fora. Para que não seja uma tentação para
ninguém.
Olhou tão significativamente para Fëll que me segurei para não dar uma gargalhada, dividida entre a irritação e o divertimento. Com decisão, Judith pegou o copo
e, atravessando o recinto, jogou o líquido pela janela.
— Ainda bem que Radke não está conosco. Ele ficaria uma fera se visse isso — comentei.
— Bobagem, ele nem vai notar. Temos que também tirar esse doce daqui. Desse jeito vai acabar atraindo insetos. As pessoas não têm higiene e, depois que adoecem,
reclamam da assistência hospitalar!
— Já foi enfermeira, madame?
— Não, graças a Deus — disse a Sra. Gwenny-Ducker. — Não tenho estômago para essas coisas; mal consigo fazer um curativo, e olhe lá. Oh! Eu morreria se visse um
braço necrosado. Nasci com essa fraqueza… Minha irmã sim é que tinha vocação. Ela cuidava de qualquer machucado, de qualquer ferida. Madeline era tão solidária,
a pobrezinha!
— Vamos — disse Fëll com bondade. — Isso não é fraqueza; apenas prova que cada pessoa tem suas próprias aptidões.
— Bravo! — elogiei. — O senhor resumiu muito bem. Judith não tem defeitos; somos nós que estamos errados. É uma questão de caráter…
— Querida, não precisa ser tão sarcástica — disse a Sra. Gwenny-Ducker. — Venha, Katrina, ajude-me aqui… Vamos levar essas coisas lá para baixo.
— Claro, madame. Pois não, madame.
É claro que eu era um pouco temperamental. Mas, como eu já devo ter dito antes, nada me aborrece mais do que uma assembleia de pessoas que gostam de bisbilhotar.
E Fëll e Judith se enquadravam perfeitamente na categoria.
— Wunderschön! — arrematou o detetive, olhando em volta. — Acho que terminamos por aqui…
Depois de fechar a porta, descemos para a sala de visitas.
A Amante
A rigor, não pude aproveitar a minha merecida sesta após o almoço. Às duas e quinze o celular tocou e acabou definitivamente com a minha paz.
— Alô? Quem é?
— Alô, Katrina?
— Sim? — perguntei.
— Sou eu… Anne Roselene. Pode vir aqui uns minutos?… Sim, é urgente. Tenho que falar com você. Lamento, não pode ser por telefone!
Era a Sra. Basknell. Tentei imaginar o que ela poderia querer de mim. Respondi que eu iria e desliguei.
Vou fazer uma descrição da visita que fiz naquela tarde à Sra. Basknell.
Imagine uma atmosfera pesada, e cristais de gelo por toda parte. As macieiras em flor no pátio, e um perfume tênue na antessala. Uma mesinha de carnaúba e nela,
um tabuleiro de chá. Em meu agasalho, flocos de neve e neles, o reflexo de uma vela marroquina acesa no aparador.
Está bem… não havia vela marroquina e nem gelo.
Você já viu aquelas mulheres com modos masculinos, os lábios retos e dentes grandes? Junte a isso um vestido florido, cafona, e um daqueles colares de continhas
ao pescoço. Esse é, basicamente, o retrato da Sra. Anne Roselene Basknell. A natureza não fora pródiga com ela; nunca tivera uma beleza excepcional — ela se assemelha
mais a uma foca bípede gigante.
Anne Roselene é filha de um inglês que lutou nas Malvinas. Particularmente, simpatizo com ela. Alguns diriam que tenho bom coração, mas a realidade é que eu sou
esforçada.
— Entre, Katrina, não precisa tirar os calçados. — Ela deu um soluço lancinante: — Katrina, o que foi que fizeram com Stephan… meu Stephan? Todos estavam contra
ele. Mataram-no como se fosse um bicho.
Balancei a cabeça sem saber o que dizer. Fiz o ar mais triste e categórico do mundo e, de forma quase mecânica, suspirei:
— Esse sistema não tem jeito. Por mais bem sucedido que alguém seja no plano econômico, familiar, afetivo, social, cultural, etc. ele ainda assim é um ser humano,
sujeito a morrer ou a ser morto.
— Aquele grã-fino esnobe é o culpado disso. Eu sei que ele fez dívidas por aí. É nisso que dá! A história se repete em todo lugar onde as pessoas tornam o dinheiro
como a coisa mais importante do mundo. Agora os credores estão cobrando com juros.
— Harrison sempre foi um jovem impulsivo — afirmei.
— Um mau-caráter, isso sim — replicou Anne Roselene. — Stephan vivia me dizendo para não ter pena dele. Aquelas maneiras elegantes… pois sim, aquele lá é esperto
como um réptil.
Dei uma tossida.
— Foi por isso que me chamou? Acusar o sobrinho pela morte de Ehrack?
— Não, o caso é outro — disse ela, largando o lenço e servindo-me uma xícara de chá. — Ouvi dizer que a mídia em geral e os jornalistas em particular estão tendo
um papel pouco claro nas investigações. Mas a polícia está fazendo interrogatórios. E isso bastou para que eu falasse com meus botões: “Anne Roselene, tome logo
uma ação! É melhor do que correr atrás do prejuízo. Eles vão concluir coisas erradas. Aja antes que forem longe demais.” Você chegou a dizer a eles que me viu?
Havia uma súplica muda em seus olhos marejados de lágrimas.
— Refere-se ao esbarrão na rua, ontem à noite? — perguntei. — Desculpe, mas o que é que eu poderia fazer? Eles insistiram e eu contei… Achei que não houvesse nenhuma
razão para esconder alguma coisa.
A Sra. Basknell gemeu baixinho. Como se sentisse uma dor interior intraduzível em palavras.
— Era o que eu temia… Mas é lógico, você está certa. Você não tinha razão para… se calar.
— Acha que fiz mal em contar a eles?
— Filha, você agiu bem, não se preocupe. O problema é que esses investigadores são curiosos. Se você tem um álibi, tudo bem, eles a liberam. Se não tem, eles começam
a se encher de suspeitas. Vão fuçando e cavando até que você, deliberadamente, acabe assinando uma confissão de coisas que nunca sequer fez. Pois saiba que é exatamente
isso o que eles fazem. Eu sei como essa gente trabalha.
— Acho que está sendo um pouco extremista. Convenhamos, a senhora parecia um espectro na chuva. Na rua solitária, uma mulher caminhando desacompanhada… Achei tão
estranho que, quando me pediram que dissesse o que vi, falei tudo de que me lembrava. Quanto a isso, porém, creio que a senhora possa ficar tranquila.
— Você não conhece as pessoas, Katrina — declarou a Sra. Basknell, aflita. — Tem gente que seria capaz de arranjar mil e um pretextos para me envolver nessa história.
Estou numa péssima posição. Margret não é má, mas todo mundo sabe que ela já andava insatisfeita há tempos. Tinha ciúme de mim e de Stephan… juntos.
— Isso é compreensível. Eles foram casados por uns bons quarenta anos.
— “Foram”, você disse bem. Não havia mais vínculo algum entre eles. Estavam separados, cada um vivendo sua vida. O pior é que Margret achava que eu estivesse fazendo
isso por interesse. Eu, nesta idade, caçando um homem por causa de seu dinheiro! Que besteira!
Anne Roselene fez um esforço para se controlar.
— Eu devia ter falado logo com você, Katrina. Você poderia ter se esquivado da pergunta e nem sequer ter mencionado que havia me visto. Mas eu fiquei tão deslocada
quando soube do assassinato! Agora não tem volta. Tenho que dar uma boa explicação para meu passeio. Você chegou a ver… o cadáver?
A veloz mudança de assuntos me obrigava a um constante exercício mental.
— Infelizmente…
— A morte foi instantânea?
— O médico sustenta que sim.
— Havia muito sangue?
— O disparo partiu de uma arma de calibre médio. Julgo que o ferimento não sangrou tanto assim.
Com um gemido, Anne Roselene deixou-se afundar no sofá.
— Menos mal. Tem gente que sofre horrores quando é alvejada com um tiro. Eu ficaria tão consternada se soubesse que ele agonizou e… sofreu! Estar ali jogado, enquanto
o corpo perde gradualmente a sensibilidade. Oh! Teria sido terrível!
Eu tenho uma mente sã, mas discutir a anatomia de um crime não é meu exercício predileto.
— Você estava ajudando Stephan a datilografar alguma coisa? — perguntou a Sra. Basknell francamente. — Eu a respeito muito, Katrina. Não precisa responder se isso
a constrange.
— De modo algum. Nós estávamos montando uma biografia ou algo do tipo. Eu sei que fui lá por duas noites e escrevi uma boa quantidade de páginas. Pelo que o Sr.
Ehrack dizia, ele queria deixar um registro de suas memórias.
— Sobre os negócios ou a vida pessoal?
Desmanchei-me em desculpas e afirmei que não queria dizer nada por enquanto. Que tudo seria revelado oportunamente. Ela não ocultou sua decepção.
— Obrigada por vir, Katrina. De qualquer forma, sou grata por sua ajuda. Ainda tenho que ir até a funerária, acertar os detalhes referentes ao velório.
Cheguei a minha casa aproximadamente às cinco horas da tarde. Haviam se passado quase duas horas, talvez mais, desde o momento em que recebera a ligação. Todo o
meu ser ansiava por um descanso. Tinha dormido pouco à noite e o dia fora cheio de correria. Finalmente iria esticar as pernas e relaxar…
Enganei-me redondamente!
Duas pessoas esperavam-me em minha própria sala, entretidas num feroz diálogo de comadres. Xinguei a mim mesma por ter saído sem trancar devidamente a porta.
Assim que ouviu o som de meus passos, Edmund Fëll virou-se para mim com os olhos semicerrados, deliciado. O brilho do gel nos cabelos ofuscava a visão. Parecia estar
bebendo alguma coisa. O que seria? Uma xícara de inseticida ou pó de gafanhoto?
Havia mais outra criatura presente, no outro sofá. Era Judith Gwenny-Ducker, que corou com indizível prazer quando empurrei a porta. Somente podia concluir que os
dois estavam querendo me enlouquecer.
— Olá, Fräulein! — cumprimentou o detetive. — Fizemos um cafezinho, se não se importa. Estávamos falando do caso da Srta. Susie…
— Que é isso! Fiquem à vontade… Não querem umas bolachas ou uns croissants?
Olhei fixamente para a Sra. Gwenny-Ducker. Notei que ela usava um vestido de poliamida, enquanto as mechas grisalhas estavam amarradas com uma fita azul. Olhou para
mim cordialmente, se bem que com ligeiro embaraço.
— Venha, Katrina. Estamos parlamentando sobre o desaparecimento de Susie.
E agora mais essa — minha sala-de-estar virara o palco de atuações da Interpol!
— Ah! Estão parlamentando sobre o desaparecimento de Susie? Desculpem a interrupção. Continuem… continuem…
— Todos estão tão preocupados! — disse Judith. — Ela ainda não deu nenhuma notícia, nem ninguém confirma tê-la visto em parte alguma. A morte do pai deve ter sido
um golpe muito doído, pobrezinha!
— Não há mesmo nenhum indício? — interveio Fëll. — A Srta. Susie não deixou um bilhete, ou uma nota de esclarecimento?
— Nada. Perguntaram para os Christofoletti… e os Königburg… Ninguém deu alojamento a ela. A polícia verificou até o horário de saída dos trens. Ninguém com as suas
características foi vista tomando os comboios.
— A não ser que Susie tenha ido clandestinamente num dos vagões — falei despretensiosamente.
— Tentaram as centrais de transporte rodoviário? Ela pode ter ido de ônibus.
— Há poucos passageiros aos domingos, e alguém teria visto o embarque.
Fëll concordou. Incansável, Judith prosseguiu:
— O inspetor, hoje de manhã, foi tão imprudente! Aconselhou Margret a tomar um chá de boldo para se acalmar. Falei-lhe que, se ela queria um bom calmante, deveria
ferver um chá de capim-limão. Chá de boldo!
— Ela não tem comprimidos?
— Muito mais prático, não é? Mas ela estava tão histérica que nem se deu conta. Olhei em sua caixa de medicamentos. Havia comprimidos para dor no estômago, ricina
e uma cartela de calmantes. Ela tremia tanto, a pobre mulher!
Judith é muito certinha no que se relaciona a saúde alheia. Sua observação soou imensamente irrelevante — tão irrelevante que nem me dei ao trabalho de responder.
Fingi-me de ignorante:
— Quem é que descobriu o corpo?
— Não lhe disseram? Minha criança, foi Manfred.
— Sempre o criado… Por que ele não avisou a Sra. Ebbington? Ela só ficou sabendo esta manhã, não foi?
— Disse-me que não queria que a Sra. Ehrack (é como ele a chama) sofresse algum choque. Ela já sofreu tanto!
— A luz estava acesa no escritório?
Aconteceu uma coisa que, até ali, me parecia impossível. Judith travou. Travou!
— Não sei. Isso faz alguma diferença?
— Não, nenhuma. Era só um palpite.
Fui ingênua em pensar que aquilo a sossegaria. Até Edmund Fëll se remexeu, as orelhas inclinadas para nossa conversa. Sentei-me na roda e resolvi fazer um pequeno
resumo sobre meu palpite.
— Pelo que se observou no gabinete, existe uma pegada de barro no assoalho. Seria tolice imaginar que o responsável pelo disparo tenha deixado uma evidência tão
clara no local do crime com a luz ligada. Ele faria de tudo para limpá-la. Portanto, a conclusão mais lógica é que a lâmpada estava desligada.
— Que opinião mais imaginativa — retrucou a velha. — Pois eu acho que o assassino não notaria uma coisa dessas.
— Ah, é? E quanto às digitais que foram apagadas do revólver? — completei com teimosia. — Acha que isso foi coincidência?
Ela não se deu por vencida.
— Estou certa de que as coisas são bem mais simples. As provas que a polícia coletou já devem bastar para incriminar o suspeito.
— E já há algum suspeito?
— É claro, querida. O Sr. Fëll está participando da investigação. Ele já tem as suas teorias, mesmo que não nos diga quais sejam elas.
— Sim, ele participa. Mas não oficialmente.
— Oh, eu supus… Estávamos ambos fazendo um relatório do caso — disse Judith com certo pesar. — Poderíamos falar com o investigador Radke… Ele é muito bonzinho. Poderíamos
falar com ele para obter alguma informação.
— Eu, se fosse vocês, me pouparia desse trabalho. Pelo que sei, nem mesmo a polícia descobriu nada. Nenhum fato foi estabelecido.
— Minha filha, não se engane com as aparências. Nenhum fato foi estabelecido! Um crime desses não tem muitos mistérios. Ou ele tem relação com uma herança ou uma
rixa por empréstimo de dinheiro.
— Herança? Do fundo de seu coração, a senhora acredita nisso?
Fiz a pergunta com tanta admiração que seus olhinhos faiscaram. Senhoras bicentenárias gostam quando você aprecia o que elas dizem, e quando você expressa isso em
voz alta, elas vão às nuvens! Ela acrescentou:
— Por que não? É fácil ter uma impressão errada das pessoas. Você se lembra de Tim, o padeiro, que atendia todo santo dia na mercearia? Um bom sujeito, diziam, e
batiam nas costas dele; ele ficava sorrindo com aquela boca torta, como se fizesse jus aos elogios. Depois, ele enfiou a cabeça da mulher no fogão a gás, num surto
de ciúme doentio. E aquela mulherzinha rameira da casa geminada perto da peixaria? Miudinha, ninguém dava nada por ela. Até o dia em que arremessou um vaso contra
o marido, e com tanta raiva que rachou o crânio dele. Agora pense na injustiça que fizeram com Haggard. Todos o rejeitavam, diziam que nunca largaria o vinho, viam
nele um homem irrecuperável. Olha no que deu — um tratamento na clínica por alguns meses… Não parece outro homem?
Parou para retomar o fôlego, numa exultante nota de satisfação. O austríaco acenou afirmativamente:
— A senhora disse muito bem. O nosso coração é um péssimo juiz, Carlile. Normalmente a gente generaliza as virtudes das pessoas. Ou as falhas. Além disso, as pessoas
mudam. Em nuances, lentamente, ao longo dos anos. O que hoje é assim, amanhã pode ser diferente.
Era fabuloso! Os dois, pelo jeito, falavam a mesma língua. Engoli uma leve pontinha de inveja. Jamais havia tido uma sensação como aquela com tanto realismo.
Lamentei as palavras de Judith. Segundo o meu conceito, a verdade estava a quilômetros de distância do que ela dissera. Para mim, a gente diferencia uma pessoa de
bom trato e um assassino pelos traços fisionômicos. As pessoas são o que são. Não existem meias medidas.
Como eu estava enganada!…
Judith levantou-se para ir embora, mas não antes de olhar ostensivamente para os meus pés.
— Não devia calçar sapatos de salto com essa altura, Katrina. Podem provocar problemas na coluna, especialmente em jovens em fase de crescimento. Botinhas sem salto
cairiam melhor em você.
O conselho era inofensivo. Fiquei refletindo nele, no entanto, ligando-o a uma coisa de que lembrei.
Fëll não disse uma frase sequer ao sair. Nem grunhiu. Nada. Acompanhei-o até o jardim e, enquanto ele tomava assento num dos bancos, entrei na casa para averiguar
a convalescença de Tomazelli.
Uma alegria artificial cintilou nos olhos vivos de meu senhorio. Devia estar agoniado com sua reclusão involuntária.
Notifiquei-o disto:
— Que bom, está melhor. Ou se sente feliz com o que aconteceu a Ehrack? — perguntei maliciosamente.
— Dios mio — exclamou, fazendo a cama chiar.
— Não vai dizer agora que gostava dele?
— Nunca me dei bem com ele — disse Tomazelli —, mas disto até comemorar a sua morte… Não, não sou tão insensível assim! Meia dúzia de sacos de carvão a mais ou a
menos… Non fa nulla! Que ele durma em paz.
Esse epitáfio… Seu proferimento… Tomazelli teve um ataque de espirros. Resmungou e depois fez uma expressão misteriosa.
— Você sabia que atiraram nele entre oito e quinze e oito e quarenta e cinco da noite? Bem na hora em que chovia e que ecoavam os trovões.
— Entre oito e quinze e oito e quarenta e cinco da noite? — murmurei. — Quem lhe revelou o horário?
Ele viu a minha palidez. Abaixou a ponta do cobertor e me encarou com a maior clemência:
— O que houve? Estão todos comentando, como sempre. Ou você crê que isso ficaria em segredo num lugarejo como o nosso? Santa ingenuità, ragazza! Santa ingenuità…
O Hoteleiro
Na manhã seguinte, com as ocorrências da véspera ainda bem frescas em minha mente, fiz meu trabalho na confeitaria pensando nas possibilidades que haviam sido aventadas
até ali. De repente, dei-me conta de que elas poderiam mesmo ter alguma base. Nesse caso, o melhor a fazer seria adotar uma estratégia defensiva e ficar de sobreaviso.
Naquela manhã, o que realmente chamou minha atenção foi a atitude esquiva do Sr. Stenzley. Eu acabara de lhe servir o café e a torta de geleia de damasco. Ali sentado,
a careca reluzindo sob a luz das lâmpadas, o hoteleiro, após mencionar o funeral, baixou os olhos e citou o crime.
— Foi para lá, senhorita?
— Lá onde?
— Investigar o homicídio. Contaram que virou a escudeira-mor do inspetor.
— Sim, tive o privilégio de ir com ele. Quase me tornei testemunha ocular dos fatos. Para ser sincera, estão me tratando como uma verdadeira celebridade. Achei que
seria legal se aproveitasse os meus quinze minutos de fama!
— Já descobriram o que aconteceu?
— Por ora, nada de sensacional — respondi. — Um médico-legista e um técnico criminalista estiveram no local do crime. Apesar disso, o senhor sabe como é… A nossa
polícia não tem lá aquela eficiência! São incapazes de realizar uma investigação cabal. Falta estrutura, acho.
Intuí, pela expressão do Sr. Stenzley, que seu interesse no caso era genuíno. Vi-o se reclinar, aliviado (?) expansivo (?). Por dois ou três segundos, ele hesitou.
— E aquele Sr. Fëll? — voltou à carga. — É algum detetive? Ouvi dizer que ele é bastante inteligente.
— É criminalista, segundo ele disse. Pelo que observei, tem alguns dotes que dão para o gasto. Não chegam a ser lá muito consideráveis! No princípio foi muito ativo,
mas, depois de algum tempo, ele meio que se acomodou. Quando foi conosco ver o escritório, saltitou para lá e para cá como uma pipoca na frigideira. Fuçou todos
os nichos, interrogou Deus e o mundo e ficou lá, coletando provas. De tarde foi ainda pior! Se desapontamento matasse, eu teria morrido vendo aquilo. Nunca achei
que um detetive fosse assim: estagnado como uma poça d’água, e metido a jogar conversa fora com as velhinhas artríticas.
O Sr. Stenzley deslizou a mão pela calva lisa.
— É uma pena que tenha acontecido toda essa desgraça. Mesmo não sendo muito confiável, Stephan não deixava de ser uma boa pessoa. O velho Jeremy… esse não; esse
homem não tinha a menor indulgência!
— Jeremy Ehrack não gostava muito do senhor.
A piada não agradou ao Sr. Stenzley.
— Sugeri a ele que fizéssemos uma sociedade, com divisão de lucros. Seria ótimo para os dois. Ele estava com a vida ganha, curtindo o ócio da velhice. Contratei
um engenheiro para desenhar a planta do nosso empreendimento. Mas, na hora H, o velho recuou. Era direito dele, sim. O que me doeu foi ter me empenhado, ter pagado
todas as taxas da prefeitura e, no fim, receber um não tão indiferente.
— Bom para o senhor. O seu negócio prospera a olhos vistos. Se tivesse sócios, teria que dividir os ganhos.
— Prospera, mas com dinheiro de agiotas — disse. — Sou um idealista. A cooperação de Jeremy teria sido providencial.
— E foi devido ao não dele que o senhor o matou.
Arthur Stenzley se encolheu.
— Isso é o que os jornais disseram. Mas eu nem estava lá no dia. Há quem diga que o corpo ainda estava quente quando entraram no apartamento. Besteira! O homem já
estava morto há horas. A arrumadeira, que testemunhou no inquérito, esteve presente desde o começo e viu tudo. A senhorita sabe que a extensa investigação policial
que se seguiu conduziu a um suspeito, mas as provas foram consideradas insuficientes para abrir um processo.
Em síntese, o semanário tinha mesmo noticiado o caso. Fora a arrumadeira que, ao passar pelo corredor, vira uma fímbria de luz e, ao bater na porta, descobrira que
ela estava trancada. O cadáver jazia na cama, um espasmo de terror retorcendo as linhas do rosto descorado. Nenhum suspeito havia surgido, mas, por causa de suas
dissensões com a vítima, Arthur Stenzley fora intimado a se apresentar.
— O que sei é que Jeremy aguardava alguém para essa noite. Um tal de Sr. Pickwick. Pediu a meu filho que, assim que ele chegasse, fosse logo trazido ao seu quarto.
— O quê? O senhor nunca citou esse nome.
— Fácil, a senhorita conhece alguém com um nome desses? Essa é boa! Como se existisse uma família Pickwick em nossa vila. O velho falava de uma pessoa real, mas
usando um pseudônimo, é o que vivo dizendo. Minha casa tem prestígio e não posso manchar o bom nome dela com coisas desse tipo. Pickwick! — repetiu. — Que fantasia!
Não é boa?
Nesse momento ouvimos o som de pneus, e um táxi da Gilting Co. estacionou diante da Confeitaria Oeschler. Edmund Fëll apeou e entrou em nosso estabelecimento, o
casaco e o chapéu pingando água. Constatei que chegou fazendo um detalhado reconhecimento do ambiente, como que tentando se situar. Olhou para mim, depois se sentou
a uma mesa.
Tenho que admitir que a presença de Fëll no povoado atiçara o meu instinto aventureiro. É provável que isso se devesse à monotonia… à minha vida muito parada. A
oportunidade de arriscar-me estava começando a me seduzir.
— Com licença, Sr. Stenzley. O dever me chama.
De longe, tentei sondar o que Fëll poderia querer comigo. Era evidente que não viera ali apenas atrás do café da manhã.
— Vocês possuem um comércio muito chamativo — elogiou sorridente. — Nada de puritanismos.
— Já vi que o senhor gostou daqui.
— Sim, warum nicht sagen? Tudo é muito limpo e bem personalizado.
— Bem — atalhei. — Tenho a sensação de que o senhor quer alguma coisa… Tem a ver comigo?
— É uma moça prática, o que é uma grande qualidade. Vim perguntar se Ehrack tinha um advogado.
— O único que ia a casa era Fadeschi — esclareci surpresa com a questão. — Ele tem uma firma de consultoria e um currículo no ramo da advocacia.
— Esse Fadeschi cuidava da parte testamentária?
— Não sei dizer.
Fëll respirou profundamente e, arreganhando maliciosamente os dentes, diminuiu seu tom de voz:
— Quero que se lembre de uma coisa. Do que falava o último capítulo que Ehrack ditou ontem à noite?
Escrutinei seu rosto, buscando alguma espécie de armadilha na pergunta. Frustrada, não consegui saber direito qual o seu interesse nisso. Torci os dedos, nervosa
com as suas elaborações.
— Se não me engano, ele mencionou alguns erros que dizia ter cometido anos atrás. De uma desavença qualquer e algumas frases ditas impensadamente, das quais acabou
se arrependendo. Uma briga a respeito de um par de canarinhos belgas. Ah sim, houve também umas linhas sobre o Sr. Stenzley… É aquele homem sentado ali.
Pensei que o austríaco pediria mais referências do hoteleiro, que, de seu canto, olhava para nós pensativamente. Mas não; em vez disso, sacou uma agenda e a folheou:
— Tem uma mente fantástica, Fräulein. Devia cultivar essa habilidade. A propósito das anotações do Sr. Ehrack, eu encontrei trechos bem interessantes. Além da oscilação
dos valores cambiais, há citações das taxas de juros do mercado.
— Ele vendia maçãs. Acho que ele se interessava por assuntos econômicos.
— Exatamente, das ist wahr. Hoje vou verificar o resto das folhas; talvez haja alguma anotação mais reveladora. Também descobri que Harrison DeCourse mora na mesma
rua, a três quadras dali. E que na referida noite, das 7 às 11 e meia, o jovem não esteve em casa.
— Falou com Helene, a irmã dele?
— Uma jovem esperta. Logo viu que não adiantaria negar nada, pois no fim tudo seria descoberto, de um modo ou de outro.
— Como foi o interrogatório?
— Interrogatório? — exclamou Fëll, escandalizado. — Eu não seria tão cruel, posso lhe garantir. Simplesmente emprestei dela um vidro de compota. Ela é uma moça muito
cortês.
— Quer dizer que Helene abriu o jogo.
— Com meios apropriados, consegue-se fazer milagres. Pelo que ela disse, ultimamente Harrison está muito estranho.
— O senhor mencionou o relógio?
— Sim, ela disse que é dele.
— E as iniciais “S. E.”? São de quem?
— Geduld, está indo depressa demais. Ela não sabe… Mas supõe que se refiram ao nome de uma mulher.
— Acredita que Susie… bem, que podem ser de Susie?
— É uma possibilidade. Temos que conferir. Por falar nisso, aonde acha que ela foi?
— Não faço a mínima ideia. Todo mundo já fez suas pesquisas e ninguém encontrou nada. É um sumiço inexplicável. Sem bilhete, sem qualquer notificação para a mãe.
Recordo que Susie estava tensa, no sábado à noite. Mas quem é que vai saber por quê. Talvez imaginasse que haveria um assassinato, sei lá.
— Sugere que ela, por sua omissão, foi cúmplice do crime?
— Não digo cúmplice. Ela pode ter ouvido rumores.
— Mas, se ouviu rumores, por menores que fossem, por que não fez nada?
— Insegurança, talvez — respondi, com uma convicção que estava longe de sentir. — Susie nunca soube tomar qualquer decisão inteligente, de se comportar de modo responsável,
ter autocontrole ou dar muitos sinais de maturidade. Talvez ela soubesse de algum perigo que punha a vida de seu pai em risco. Talvez tenha até pensado em agir,
em fazer alguma coisa. Mas, indecisa como é, o que ela faz? Ela dá no pé, com receio de alguma represália.
Fëll meneou a cabeça, aprovando minha teoria:
— Es kann só gewesen sein. Continue.
— Eu vejo as coisas dessa forma: por que Susie fugiria assim, sem dizer nada a ninguém? Ninguém até agora apresentou qualquer pista. Por que ela fez isso? Para expiar
a sua culpa sobre o que sabe a respeito do crime. Não é uma dedução genial?
— Não é má, concordo. Vou anotar sua dedução genial. Talvez venha a ser útil.
Pedindo delicadamente desculpas, ele ergueu-se para sair. Conforme eu tinha presumido, viera só para me consultar sobre o assassinato. Pronto, lá ia eu ouvir as
censuras da Sra. Oeschler! Mas, para meu alívio, Fëll foi ao balcão e comprou alguma coisa. Salva pelo gongo, pensei comigo mesma.
— Nos vemos à noite, senhorita — disse Fëll, ao passar por mim. — Vão ler o testamento, e gostaria que estivesse presente. Quero que faça um servicinho, se possível.
Antes que pudesse questioná-lo sobre o servicinho, ele fez uma continência e se foi.
A Viúva
As solenidades do enterro foram às três horas da tarde. O espetáculo proporcionou aos moradores da cidade uma oportunidade para comparecer em massa ao funeral. A
despeito do ódio que haviam tributado a Ehrack em vida, muitos tiveram a honradez de fazer sua homenagem, mesmo que tardia, ao “exemplar e bondoso homem”.
Às cinco horas tudo havia terminado, e eu me dispus a acompanhar Margret Ebbington até em casa. Passamos perto do depósito de ferramentas e, seguindo a trilha à
direita, cruzamos a ponte de troncos construída sobre o lago. Ela, aproveitando o declínio do dia, falava de sua anterior vida conjugal.
— Nosso primeiro mês juntos foi estressante, sob todos os aspectos! Tivemos dificuldades em nos ajustar à rotina do casamento; demorou mais de ano até que conseguíssemos
regularizar as coisas. Stephan e eu nos amávamos. Éramos loucos um pelo outro. Ele tinha tanta elegância e finesse! Eu gostava de sua gentileza… de sua brandura…
de tudo, enfim, que ele fazia. Stephan exerceu a advocacia por algum tempo, mas acabou escolhendo uma vida mais confortável como dono de seu próprio negócio na área
agrícola. Pena que, com o passar dos anos, haja se tornado tão exigente… tão arredio! Ficava aborrecido com qualquer coisa que lhe dissessem, seja lá o que fosse.
Toda a sua brandura, e delicadeza, se evaporaram no ar, como se jamais houvessem existido. Certo dia, Stephan chegou em casa e me encontrou jogando talheres de prata
pela sala num acesso de fúria. “Você não se importa comigo!” explodi choramingando. “Você vem para casa e passa seu tempo no jardim. Eu preciso de ajuda! Se você
acha que está fazendo tudo sozinho, então pare e calcule quanto lhe custaria contratar um agente de compras, uma cozinheira, uma lavadora de pratos, uma arrumadeira,
uma decoradora, uma babá!” Continuamos levando nossa vida assim por algum tempo, até que por fim entrei com uma ação de divórcio. Stephan contestou a ação, mas sem
sucesso. Tive que dizer a mim mesma para ficar calma e ser forte, já que eu não tinha razão para pensar que não viveria para ver minha filha crescer e para conhecer
meus netos.
Discretamente, Margret enxugou uma lágrima. Em seguida, resoluta, fez um gesto brusco para espantar os fantasmas do passado.
— Não importa, por que falar nisso? Tenho uma boa notícia para dar, Katrina. Susie mandou uma carta. Achei-a esta tarde na caixinha do correio.
Estremeci. Naquele momento, senti um inesperado desconforto; lá se iam todos os meus formidáveis dons detetivescos por água abaixo! Tomei o envelope que ela, sem
ocultar a felicidade, estendeu para mim. Li:
“Mãe,
Estou em segurança. Ficarei bem.
Susie”
— Que bom — disse eu, sem muita empolgação. — Isso vai poupar os nossos bravos investigadores de mais outra canseira.
— Sim, sim. Ah! Fico tão contente que ela tenha escrito. A morte de Stephan já foi uma prova duríssima para mim. Perder, também, minha Susie seria doloroso demais.
Olhei para Margret. Tendo alegado que, nos tempos atuais, seguir certos costumes é coisa ultrapassada, ela dispensara vestir luto. Daí o fato de Margret ser uma
mulher para lá de anacrônica. Pinta os cílios e sobrancelhas, e toma banho de sais. Mas, em contrapartida, despreza pulseiras, leques e broches. O que explica que
visual seja um tanto miscigenado.
— A senhora alguma vez imaginou que uma coisa dessas pudesse acontecer? Que o Sr. Ehrack fosse morrer dessa forma, quero dizer.
— Para dizer a verdade, Stephan nunca deu muita sorte. Vivia arrumando encrenca com todo mundo! A raiz de todo mal era aquela personalidade!… Tudo tinha que ser
feito do seu jeito. As pessoas não gostam de velhos rabugentos. Algumas não ligam, mas muitas se ofendem. Não gostam de ter ninguém lhes dando ordens. Basta um agravo
e já partem para a briga.
— Como Harrison, por exemplo.
— Por que está dizendo isso, Katrina?
— Haggard disse que os dois se desentenderam sábado à tarde.
— Foi uma coisa infantil. Harrison teve uma criação muito folgada. Tornou-se um jovem independente, com ares de intocável. Mas não acho que chegaria a esse ponto.
Atirar no próprio tio? Faltaria coragem. Venha, vamos sentar. Minhas pernas doem.
Havia um banco e sentamos nele, contemplando os gansos no lago. Margret ficou olhando para a frente, as mãos trêmulas sobre seu colo.
Ouvimos uma pessoa cantarolando, para além da moita, o que quebrou o mágico silêncio.
— Que falta de consideração — sussurrei. — Quem será?
Logo surgiu Edmund Fëll, entretido num trololó musical. Fazendo bastante barulho, avançou marchando como um soldadinho de chumbo. Parou na ponte, apreciando as belezas
do parque, e depois embicou para o nosso lado.
— Schliesslich, Srta. Carlile. Por que não me esperou? Deixou o velório como uma flecha.
— Eu o vi conversando com uma simpática velhinha com artrite. Não queria interrompê-los.
Ele cumprimentou-nos e, com um sutil toque recriminador, estudou minha expressão irônica.
Em grande júbilo, Margret Ebbington disse:
— Olhe isto, Sr. Fëll. Susie escreveu.
Margret tentava parecer segura, mas sua voz estava fraca e alterada pelo nervosismo.
Fëll pegou o envelope. Depois de averiguar o nome do remetente, leu a carta, admirado e incrédulo.
— Letra feminina. Papel colorido. Um leve odor de jasmim. Mais uma questão sanada. Ela deve ter deixado a vila.
— Deve ter ido de carona — ajuntei. — Se não usou o ônibus, nem a estação ferroviária…
— É, é — disse Fëll, distraído. — Deve ter ido de carona. — Envelopou novamente o papel: — Onde, Sra. Ebbington, sua filha estava no sábado à noite?
— Ela e a prima dela, Helene, vieram para cá à tarde. Elas apreciam muito este parque. Passam horas juntas, naquelas conversas de adolescente. Rapazes. Festinhas.
Sempre foram duas meninas apegadas. Susie entrou em casa por volta das 6 e dez. Tomou um banho, depois foi para o quarto, mexer no tablet, acho eu.
— Onde fica o quarto dela?
— Em frente à cozinha, à direita da entrada.
— Quantas portas há na casa?
— Duas. A porta comum e outra, lateral.
— Até quando Susie ficou no quarto?
— Eram cerca das oito horas quando veio para a sala.
— Umas cinco para às oito, digamos.
— Sim.
— E a senhora? O que fazia?
— Não lembro bem… Acho que limpei o aquário antes das oito. Depois dei uma ajeitada na despensa. Estava procrastinando isso há semanas.
— Quanto tempo demorou lá?
— Uma hora e meia, um pouco mais. Mexer em entulhos é uma tarefa entediante.
— Ou seja, das oito a umas nove e trinta, a senhora ficou retida em sua limpeza.
— Aproximadamente.
— Podia ver o quarto da filha?
Margret, que falava sem se atrapalhar, hesitou. O detetive tinha olhos atentos, que pareciam penetrar em sua mente, lendo todos os seus pensamentos.
— Bom, depende… — disse Margret.
— Que quer dizer?
— As duas peças são próximas entre si, mas as portas não estão em ângulo reto. A porta do quarto fica a dois metros da porta lateral da casa.
— O que significa, Sra. Ebbington, que Susie poderia sair de casa sem ser vista da despensa?
O sangue se esvaiu da pele da mulher. Margret arriscou uma olhada rápida para Fëll, mas, vendo que os olhos castanhos a encaravam, baixou o rosto novamente.
— Creio que sim. Se ela quisesse…
— Eu compreendo — murmurou Fëll. — Compreendo perfeitamente. É um caso perigoso. — Adiantou-se para o lago: — Agora, uma pergunta mais pessoal. O seu ex-marido vinha
agindo, por assim dizer, de um modo estranho nos últimos tempos?
— Não que eu saiba. Para dizer a verdade, não nos víamos com muita frequência. Stephan viajou para a capital na semana passada; ele ficou alguns dias por lá, fazendo
uma bateria de exames. Tinha algumas complicações no baço… ou era no pâncreas?… e não estava suficientemente bem para fazer outra de suas viagens intermináveis.
Ele se queixava de dores, é tudo o que sei. Acho que foi tudo bem no check-up. Pelo menos, eu não o ouvi dizer que não tivesse sido.
— Complicações no baço ou no pâncreas? — perguntou Fëll. — Isto é curioso!
— Se o senhor quiser saber mais, indague ao Dr. Beryl. Ele o estava medicando e cuidou do encaminhamento de Stephan.
Fëll sacou um caderninho e anotou o nome; depois sacudiu a cabeça, e apontou o lago:
— Pescam às vezes aqui, senhora?
A pergunta era cortês, e não escondia segundas intenções. Margret Ebbington tentou recobrar a calma.
— Vez e outra. Foi Stephan quem comprou os alevinos. Mas ele não pescava com a gente. Vinha de noite, tanto que instalou o poste de luz. Susie e Helene gostam de
jogar o anzol da ponte. Da última vez, Helene pôs os brincos no parapeito e depois, quando quis pegá-los, tinham caído na água. Eram brincos divinos… Dois cachinhos
de uva. Ela chorou tanto.
— Eu avisei para guardá-los — esclareci. — Mas Harrison disse que não, que ali estavam seguros. Alguém encostou neles e … catchapum!…
— Psch! Alguém está vindo para cá.
Fëll dera o aviso. Tinha se virado, os olhos de pantera fixos nos arbustos ao longo da trilha. Logo vimos uma pessoa saindo do bosque.
Era Helene DeCourse.
Os cabelos de Helene são cacheados, e fazem pensar que usa uma peruca. É um desses tipos felinos que atraem o olhar dos homens. Com curvas generosas, tem um corpo
longilíneo, bem proporcionado.
Ela e o irmão, Harrison, estão órfãos há quatros anos. Os pais morreram num acidente no Nepal, deixando um parco seguro de vida que mal cobria as despesas mensais.
Sem outros parentes no mundo, os dois irmãos vieram de sua cidade-natal e alugaram uma casinha humílima em nossa vila.
Helene fez um curso de veterinária básica e defende encarniçadamente o bem-estar animal, quer sejam gatos, cães ou doninhas. Perto dela, o irmão não passa de um
protótipo, uma cópia menor com ar de idiota.
A cerca de cinco metros de nós, Helene parou. Saudou-nos com um ‘oi’ anasalado. Ela sabia muito bem como empregar a arma infalível de sua feminilidade e beleza.
De tão empinado que o mantinha, receei que Helene batesse o narizinho de porcelana num dos pinheiros.
— Falando mal de meu irmão, Katrina? Que coisa maldosa! Eu sei que você tem uma queda por ele. Se ele não quis você, devia resignar-se. Não é bonito atraiçoá-lo
pelas costas dessa maneira.
Não me movi, atônita. O atrevimento dela… Onde é que eles guardam o arsenal químico numa hora dessas?
— Que injustiça, Helene — censurou-a Margret. — Devia se envergonhar. Por que você é tão rude?
— Que otimismo, titia!
— Helene!
Qual o quê! Minha antagonista tem um coração de alabastro. Não deu a mínima atenção à repreensão da tia. Com um charme impagável, soprou seu hálito venenoso sobre
o detetive.
— Que bom revê-lo, Sr. Fëll. O senhor já provou a compota de ameixas?
— Após o almoço, Liebchen — disse ele, todo polido. — Sie waren wundergut! O seu irmão adoeceu? Achei que estava um pouco anêmico. O que aconteceu?
— Um vírus banal. Ele é fraco dos pulmões, sabe. Qualquer gripezinha o derruba. Nem permiti que trabalhasse hoje. A agência que se vire. Liguei e pedi que dessem
licença a ele.
— Então foi um vírus — alfinetei. — Talvez isso o ensine a não ficar na rua até altas horas.
Era um laço, armado para ver a reação dela. Helene fez uma pose, o rosto despreocupado e sem nuvens.
— Queria que fosse — disse. — Mas há homens que não se consegue corrigir. Apenas a morte soluciona certas coisas.
— Estávamos falando de seu tio, Srta. DeCourse — disse Fëll. — Talvez possa cooperar conosco.
— É mesmo? — perguntou ela sem muito entusiasmo. Hesitou um instante, arrancando pedacinhos de folhas da grande e velha faia ao seu lado. — Cooperar no quê?
— Poderia nos dizer se vocês se davam bem. Ou se havia alguma divergência entre vocês.
— Divergência? Não, embora…
— Sim?
A voz de Helene se fez ouvir líquida e aborrecida:
— Embora titio não gostasse muito de nós. Tinha uma cisma e tanto com Harrison! Dizia que Harrison era preguiçoso e que vivia a adulá-lo atrás de dinheiro. Era só
meia-verdade. Harry falou uma única vez com ele sobre um empréstimo. Quando recebeu um não como resposta, ficou muito chateado. Titio era extremamente pão-duro;
achava que as pessoas só vinham procurá-lo quando precisavam de um favor. Não se pode mudar alguém irredutível e que não aceita ajuda. Eu disse para Harry deixar
isso de lado — nós temos nosso próprio rendimento e não precisamos viver da caridade alheia.
— Um pensamento bastante sensato… E sobre sábado. Seu irmão parece ter se desentendido com o Sr. Ehrack.
— Ele me contou alguma coisa. Mas creio que não foi nada sério. Harry disse que estava no escritório e que titio o acusou de haver mexido em seus papéis.
— E?
— E mais nada. Daí houve uma discussão e Harry saiu.
— Se ele lhe contou isso, creio que seu irmão suavizou um pouco as reais dimensões da briga. Há testemunhas que dizem que os dois quase entraram em luta corporal.
— Oh, isso é uma difamação. Harry tem sangue quente, mas se há uma coisa que ele nunca faria seria agredir alguém.
— Mesmo se esse alguém o insultasse?
— Mesmo assim, não.
— É interessante que confie nele tão incondicionalmente — disse Fëll, sorrindo.
— Confio, sim. Eu daria minha vida por meu irmão.
— E também mataria por ele?
— Mataria, Sr. Fëll. Mataria. Se fosse preciso.
Helene falou isso tão friamente que todos nós nos entreolhamos. Ela parecia muito consciente de seu próprio valor, e a vaidade que a dominava atingia limites incomuns.
Soltando um grasnado, os gansos deram um breve voo pelo lago.
É uma lei simples — as najas, quando se empinam e dilatam o capelo, causam pavor em todo o reino animal.
O Papel no Cofre
Sete e meia da noite.
Fadeschi leu devagar todas as cláusulas. Ressaltou algumas, que tinham sido vagas demais, e desmistificou outras. Resumindo, foi disposto o seguinte pelo testamento:
um terço do capital total coube a Sra. Ebbington e à filha. Outro um terço seria depositado no banco, para usufruto futuro de Susie, no dia de seu casamento. O resto
do montante seria dividido, em partilha de três décimos, entre o fiel Haggard, a creche e o hospital locais. O décimo final reverteria imediatamente a Helene DeCourse.
— A legalidade de todos os parágrafos entrará em vigor a partir da semana que vem. O Sr. Ehrack quis dar tempo a fim de que, nesse intervalo, todas as reclamações
sejam respondidas satisfatoriamente.
Silêncio. Arquejando, Fadeschi guardou o testamento, com uma lentidão antológica, e pôs-se de pé. Estava pronto para retirar-se.
Senti a pressão da mão de Fëll no meu braço.
— O que foi?
— Detenha o homem. Pergunte-lhe em que dia lavrou o documento. Precisamos da data.
Um calafrio subiu pela minha espinha. Senti-me a própria encarnação da impotência. Eu tinha me tornado uma marionete — todos agora me mandavam de um lado para o
outro como uma idiota. Quis recusar terminantemente. Mas Fëll afastou-se de mim, deixando-me à mercê. Parecia ter assuntos inadiáveis para tratar com o inspetor
Radke.
— Vamos, mexa-se — disse comigo mesma, a fim de clarear a mente. — Sr. Fadeschi, só um minuto. — Alcancei-o já à porta: — Esse documento que o senhor leu é bem categórico,
não?
— Documento bem categórico? — repetiu. — Temo não entendê-la, Srta…
— Carlile. Desculpe por perguntar, mas esse testamento foi feito há muito tempo ou é recente?
— Tem algum interesse nisso, Srta. Carlile?
— Não, nenhum. Esse trecho sobre a sobrinha… Achei que o Sr. Ehrack foi generoso por incluir a Srta. DeCourse.
O advogado balançou a cabeça.
— É curioso que a senhorita fale especialmente desse trecho. O testamento, no todo, tem cerca de dois anos. Mas essa menção sobre a sobrinha foi acrescentada no
último sábado. O Sr. Ehrack queria fazer uma partilha que agradasse a todos. Para acabar com mágoas que ficaram abertas por anos. Foi no sábado de manhã que expressou
sua última vontade. Por esse codicilo, ele poderia legar móveis, ou joias, ou qualquer outro bem. Há tempo que vinha dizendo que queria dar uma parte do dinheiro
à Srta. DeCourse. Disse que isso cobriria um erro recente da filha, a Srta. Susie.
— Um erro de Susie? Que erro?
— Ignoro. Suponho que era secretária dele, Srta. Carlile?
Respondi que sim. Fadeschi ficou piscando os olhinhos sob o pincenê, depois saiu.
Dei uns giros pela sala de estar. No geral, ninguém ficara exaltado — a receptividade dos termos redigidos fora boa. Os ânimos estavam aplacados, o que era bom.
Fiz um aceno para Radke, que ele correspondeu reservadamente. Tinha a nobre tarefa de acompanhar a reunião, para ver se conseguiria, pela fria perspicácia, suscitar
as pistas que faltavam para esclarecer o homicídio.
— E então? — perguntou Fëll, dando-me um susto. — Quando?
— Aproximadamente há dois anos. Exceto a parte que fala da sobrinha. Isso foi escrito no sábado passado.
— De tarde?
— Não, manhã.
— Danke. Prima. A briga com o Sr. DeCourse se deu depois do meio-dia. Isso significa que os dois acontecimentos não têm relação entre si. — Fëll pensou um pouco.
Disse: — Venha comigo, Carlile.
A sala de estar de Margret Ebbington, onde ocorrera a leitura do testamento, era espaçosa. À direita, às escuras, a porta lateral. Ninguém zanzava por ali. O austríaco
seguiu o corredor, enquanto eu lhe fazia companhia.
— Aqui, a despensa. E logo em seguida, o quarto da filha. Para a garagem, Srta. Carlile. Temos que revistar a ignição do Maverick. Eu trouxe minha própria lanterna.
— E as chaves?
— Estão aqui. Tive que persuadir Haggard a entregá-las para mim… Vamos.
Fomos a passos largos pela trilha de um solo seco e argiloso. Havia uma pressa incontida em sua conduta, e fiquei para trás. Só consegui emparelhar com ele à porta
da garagem, prestes a penetrar no galpão de aspecto rudimentar.
Finquei o pé, contrariada, quando senti o forte cheiro de mofo. Já meu companheiro, cheio de empolgação, adiantou-se imperativamente.
— Agora, vamos fazer o teste — comandou Fëll. — Os rateios que diz ter escutado… Eram mais ou menos esses?
Ele virou a chave no contato.
— Eram — respondi. — Exatamente assim.
Fëll finalizou o experimento. Subitamente, soltou uma leve praga. Desvencilhando-se do volante, saltou para fora, o beiço esticado umas cinco polegadas. Olhava as
chaves com pena.
— Que tremenda trapalhada — gemeu.
À meia luz verifiquei que, por azar, tinha quebrado uma das chaves. Estava envergonhado e, por alguns segundos, não se mexeu, pensativo. Meu primeiro impulso foi
dizer-lhe que, da próxima vez, tivesse mais cuidado, mas me contive.
Refizemos o trajeto pela estradinha de volta a casa, mudos. Era como se houvéssemos cometido um pecado. Um pecado mortal e inconfessável.
— O Sr. Gobbo é um excelente chaveiro — comecei. — Podemos fazer uma cópia…
Fëll não respondeu. Viramos para a direita, e fomos até a outra ponta da edificação. Fëll apagou a lanterna e apertou o botão da campainha.
O criado abriu quase a seguir. Já devia estar à nossa espera, conjeturei. Avançamos pelo vestíbulo deserto.
— Muito bem, meu bom Haggard. Por que me chamou?
— Obrigado por vir, senhor. Por aqui.
Percebi que os dois tinham combinado aquela visita. Andamos até a biblioteca, pouco adiante. Era um recinto modesto. Livros, uma mesa comprida e cadeiras com estofamento
caro.
— É este cofre, senhor.
Fëll, tendo analisado o cofre, perguntou:
— O que contém?
— Contratos e promissórias. E também…
A voz de Haggard chiava ao falar. Estava branco como um lençol. Suspeitei que quisesse dizer mais alguma coisa, e se reprimia. Uma reação que não pude decifrar.
Olhou por alguns segundos para nós, sem fazer o menor gesto.
— Also… Und was noch?
— Entrei aqui hoje, e encontrei o cofre destrancado. Quando o abri, vi uma coisa curiosa. Achei que iria lhe interessar. É uma charada, ou um troço parecido. Nunca
li nada tão esquisito. Acredito que o senhor vai se impressionar.
A tal charada constava num papel que Haggard pegou no cofre. Consistia em algumas frases lacônicas:
Hotel Três Empenas
1. Quarto 303
2. Ricina, dose fatal
3. 6h da tarde
4. Abriu falência
5. Pickwick identificado
Fëll leu o papel, interessado. Quando terminou, bateu os dedos na coxa:
— Faszinierend! Acrescentamos mais um pedaço de tecido à nossa colcha de enigmas. Reconhece essa letra?
— Sim. É dele.
— Por que crê que tenha algum significado para nós? Ou, vou reformular a pergunta: O que lhe sugere que tem ligação com o caso do assassinato de seu patrão?
— Assim, de cara, senhor, não tem importância. Mas… deveria falar com o inspetor. Ele vai lhe esclarecer do que se trata.
— Quer que eu fale com Radke? Sem problema. Só isso?
— Tem mais uma coisa, senhor. Não acho que tem conexão com esse papel, mas, ao limpar uma das gavetas esta tarde, encontrei isto.
O mordomo manuseou uma caixinha marrom e extraiu dela um embrulho pardo. Era um pano enrolado, um barbante ao redor.
— Abra, senhor.
Fëll obedeceu, com uma paciência de Jó. De dentro resgatou um objeto que se parecia a cacos de vidro reluzentes. Ergueu-os contra a luz:
— Um par de brincos. Em forma de cachos de uva.
— São os brincos de Helene — disse eu, emocionada. — Os que ela perdeu. Como vieram parar aí?
— Estes mesmos?
— Claro. Mas se caíram no lago, quem os recuperou? A água sob a ponte é profunda.
— A senhorita os viu cair?
— Escutamos uma coisa mergulhando na água e logo Susie deu pela falta deles. É claro que pensamos que tivessem caído.
— É possível que seja isso o que alguém queria que pensassem. Uma pedra produz um som semelhante. A incógnita agora é: quem os pôs na gaveta de Ehrack? Como? Por
quê? São indagações demais, por ora. Uma página com anotações, joias que somem e reaparecem. O horizonte está se tornando tenebroso. — O semblante de Fëll se anuviou:
— Há detalhes nessa história que precisam de elucidação. Quando tivermos tudo desvendado, o resto virá por si mesmo. Vamos descer, quero fazer uma checagem.
Descemos para o térreo. Com um ímpeto de cão de caça, Fëll parou e indicou a portinhola abaixo da escadaria.
— O que há aí dentro?
— Calçados, senhor. E outras tralhas.
Sem pedir permissão, Fëll abriu o cubículo e, conforme Haggard dissera, havia sapatos e roupas velhas. Tudo jogado desordenadamente. Ele se abaixou e, com uns cacarejos,
remexeu a bagunça. De repente ergueu-se, um sapato na mão; exultante, apontou a biqueira, que estava manchada com uma camada de barro.
— Estão vendo? Lama apenas na ponta; o sapato em si está limpo. Era o que eu imaginava. Alguém achou que era esperto o bastante para lograr a polícia.
Repôs cuidadosamente o calçado no lugar e, sem explicar o significado de suas palavras, aprumou o corpo, feliz com os resultados. Misericórdia, que falta de decoro!
Eu quis exigir que me dissesse qual era o teor de sua descoberta, mas nisso uma lembrança o assaltou.
— A Sra. Basknell… Quase ia me esquecendo dela. Temos que lhe falar urgentemente.
— Ela ainda estava lá quando saímos.
— Esplêndido, senhorita. Rápido.
Nós dois, com a audácia digna de visitantes indesejáveis, retornamos à sala de visitas da Sra. Ebbington. Depois de localizar Anne Roselene, Fëll a salvou do torvelinho
de senhoras e a trouxe para o outro lado da sala.
— Tenha a bondade, Sra. Basknell — disse, apontando-lhe uma poltrona. — Está abafado aqui, não acha?
Ela analisou toda a boa educação dele e concordou, sem muita certeza.
— É a lareira. A ventilação aqui dentro é péssima. Margret sempre foi amiga de saunas.
— Genau, é o que eu dizia à Srta. Carlile. Um ambiente pouco ventilado. Quando não há passagem de ar, as flores tendem a murchar, as samambaias perdem logo a graciosidade.
Sem falar nas pessoas, que começam a suar como gado. Talvez a frase não seja muito formal, mas a verdade tem que ser dita, não é mesmo? “Pois eu discordo do senhor”,
disse a Srta. Carlile. “Para mim, a temperatura está de acordo com as exigências do mês de julho”. Eu quis replicar a isso, mas foi inútil! As moças hoje são irreformáveis.
Elas sempre sabem mais do que nós. E eu sou totalmente incapaz de argumentar com elas!
Fez uma pausa, todo ele irradiando uma decepção patética. O que será que esperava alcançar?
— O senhor está absolutamente certo, Sr. Fëll — respondeu Anne Roselene. — A geração atual possui uma mentalidade diferente da nossa. Aulas de informática, cursos
de modelo — já nascem fazendo de tudo. Éramos tão ingênuos. Os jovens agora não são como nós éramos; sondam os eventos e querem as respostas para tudo.
— A senhora tem toda razão. Sim, toda razão. Mas não concordo que os velhos sejam tão cegos assim. Pense em sábado à noite, para exemplificar. Se a senhora não enxergasse
bem, teria colidido de frente com a Srta. Carlile.
— Bem, eu não falava desse gênero de cegueira…
Ela hesitou.
— E supor que, naquela hora, Stephan estava sendo traiçoeiramente alvejado pelo assassino. Não consigo me conformar com isso.
— Julga que foi nesse horário?
— Não sei. Havia tantos sons… tanta barulheira… As gotas de chuva batendo no calçamento; o vento na folhagem; o som do arranque de um carro. Quem é que pode assegurar
que, em meio a essa cacofonia, não houve uma detonação de arma? Pelo que fiquei sabendo, a arma não tinha silenciador, tinha?
— Vocês duas não viram, por assim dizer, nenhuma sombra dali da calçada, uma sombra contra a vidraça ao sopé da escada interna da casa?
— Está querendo dizer, a silhueta do assassino? — perguntou Anne Roselene. — Ora, estou entendendo. Sim, é possível. Mas não… Estávamos muito longe, não dava para
enxergar muita coisa. Tudo estava difuso. Além disso, a sala do térreo é iluminada por duas arandelas. Não dava para ver ninguém lá de fora. E havia também a neblina…
— Muito densa?
— Não, nem tanto. Mas em vista da distância, o senhor sabe…
Fëll despistou-a com talento, retomando o fio de sua reclamação sobre o calor residual.
Mantive-os ali, trocando amenidades fingidas, e saí para arejar a cabeça. O dia fora atribulado, e eu precisava refletir.
Após o portão, desemboquei na rua sem saída. Eu estava agoniada — tinham acontecido algumas coisas que eu não previra. Coisas que poderiam me afetar mais adiante.
— Boa noite, Katrina.
Encostado no muro, as mãos no bolso do casaco, Harrison DeCourse sorriu. A luz do poste lhe dava uma aura assustadora.
— Harry! O que está fazendo?
— Nada, apenas esperando Helene. Está indo para casa? Posso acompanhá-la, se permitir.
Gaguejei um “tudo bem”, o coração petrificado. Ele instintivamente notou meu desalento.
— Você está mal, Katrina. Deve ser uma barra lidar com aqueles fregueses enfadonhos.
— Não é tão difícil depois que você se acostuma — respondi. — Em todo caso, têm dias em que… Esqueça, não quero enjoá-lo falando de meu trabalho.
— Não me enjoo, fique sossegada. Você está certíssima. Às vezes esse lugarejo cansa.
Andava sem pressa. Podia ser um pouco presunçoso, mas não era imbecil. Modestamente falando, existia nele uma beleza suave, lapidada e cativante. Não é a toa que
Susie gostava dele.
— Fico imaginando o que você está pensando, Katrina — disse ele sem aviso.
— Estou pensando no relógio no tanque do chafariz.
— Ah, o relógio — Harrison riu. — Você ficou surpresa por vê-lo lá?
— E como!
— Você acreditaria se eu lhe dissesse que sei como ele foi parar no tanque?
— Harry… — olhei para ele com desconfiança. — Você o atirou lá?
— Não.
— Oh, Harry, diga a verdade! Susie tem alguma coisa a ver com isso?
— Prefiro não dizer nada.
— Você a viu no sábado?
Harrison continuou se recusando a responder.
— De uma coisa pode ter certeza, porém. Eu sei o que vocês duas fizeram, Katrina!
Semicerrei as pálpebras. Eu sei o que vocês duas fizeram? Tentei adivinhar o que aquelas palavras significavam.
— Harry, eu posso lhe explicar…
— Pare, não estou cobrando nada de você. Quis apenas que você ficasse a par da situação. Fosse o que fosse, quisesse o que quisesse, Susie já me explicou tudo. —
Emendou: — Corrija-me se eu estiver errado, Katrina, mas o Sr. Fëll falou com Helene hoje bem cedinho… Opa, o que foi?
— Torci o tornozelo. Pisei num ressalto.
— Está doendo?
— Só uma pontada. Vamos prosseguir.
Ele segurou-me pelo cotovelo, preocupado.
— Você os ouviu? — perguntei, após avançarmos uma quadra.
— Vi que ele pediu emprestado um vidro.
— Um vidro de ameixas.
— Justamente. Eu queria saber o que eles conversaram.
— Sinto muito. Ainda não terminei meu curso de telepatia. Acha que era coisa importante?
— Talvez.
A sua relutância era meio suspeita. Coçou a têmpora:
— Lembrei-me disso agora, por casualidade. Bom, aqui estamos. Durma bem, Katrina.
Fiquei olhando-o se afastar pela calçada. Soquei o pé no chão e depois, sem mancar, entrei em casa.
Quem fez o Quê
O expediente da manhã acabou comigo, no pleno sentido da palavra. Gemi de cansaço quando empurrei o portão da rua; o que eu mais desejava era espichar as pernas
e…
Uma figura solitária se empertigou no banco do jardim. Era Fëll, as faces extremamente coradas. Fiquei maquinalmente no limiar entre rir e chorar. Lenta e deliberadamente
fui em direção do detetive.
— O senhor parece muito satisfeito — disse eu. — Acho que nunca teve férias tão movimentadas.
— Não posso me queixar. Pelo menos tenho uma distração.
— Estou vendo. Nunca vi uma pessoa com aspecto tão saudável. Quais são as novidades?
Sentei perto dele, e com diplomacia esperei que ele falasse. Tinha muito que dizer e, com meu complacente estímulo, não se fez de rogado:
— Você tem amigas, Carlile, com uma agilidade mental incrível. Conseguem formar uma opinião em poucos instantes, com uma facilidade exemplar.
— Fala de Anne Roselene?
— Quem? — perguntou Fëll. — Estou falando da Sra. Gwenny-Ducker, a boa alma dos chás. Ela sabe analisar os fatos com muita propriedade.
A boa alma dos chás! Sinistro…
— Fico feliz que vocês tenham se entendido. Vi que ficou conversando com Anne Roselene, ontem… Ela lhe disse alguma coisa?
— Obviamente. Mas o que ela disse ainda precisa de investigações. O inspetor também acha isso. Por outro lado, o bom homem mostrou que está devotado ao caso. Ele
fez uma tabelinha de horários. Veja como ficou:
Haggard (mordomo): das 8:15 às 8:50 da noite, na sala de estar, lendo (ninguém pode confirmar.)
Margret Ebbington (ex-mulher): das 8:00 às 9:35, limpando a despensa (seu álibi não se justifica, pois Susie ainda não testemunhou.)
Srta. Susie Ehrack (filha desaparecida): das 6:10 às 7:55, no quarto (testemunhado pela Sra. Ebbington)
Srta. Carlile: das 8:00 às 8:05, afirma ter deixado a mansão; esbarra na sra, Basknell (ela o confirma);
às 8:20, é vista por Edmund Fëll (ele o atesta); depois, até às 10:40, sem álibis.
Anne R. Basknell (affair do Sr. Ehrack): 8:05, na calçada da rua A (confirmado pela Srta. Carlile); após isso, sem provas.
A Sra. Gwenny-Ducker (amiga da Srta. Carlile): às 8:10, vê um homem nas proximidades da mansão; vinha da casa dos Grommer (eles confirmaram.)
— Nada mal — elogiei.
— Fiz um ou dois complementos — disse Fëll, levantando o dedo. — Achei que faltava um motivo para a presença da Sra. Gwenny-Ducker na rua A. Tive que ir atrás disso
e descobri que, de fato, ela esteve na casa dos Grommer naquela noite. Outra coisa que faltou foi investigar Harrison DeCourse, que também teria razões para o assassinato.
Não podemos desprezar nenhuma minúcia. Foi dito que Harrison remexeu nos papéis de Ehrack. A questão é: por que fez isso? O que estava procurando?
— E o senhor sabe onde Harrison esteve sábado à noite?
— Sim.
— Com quem falou, dessa vez? Com Bettwood, o homem que acende os lampiões?
Fëll sorriu com uma pose altiva.
— Ich muss dich congratulieren! Fiz exatamente isso. Falei com Bettwood, que por toda vida acende os lampiões.
O sorriso dele… O triunfo na voz… Movi os ombros resignadamente.
— O que ele contou?
— Contou que, sábado, Harrison estava parado na praça, esperando alguém.
As respostas de Fëll eram irretocáveis. Acenei com a cabeça. Olhei novamente a tabela.
— Estou vendo que omitiram o nome de uma pessoa. Vocês deveriam incluir o nome de Stenzley, o dono do hotel.
— Ja, sicher. Mas essa omissão é fácil de justificar. Até agora, ninguém disse que o viu na vizinhança na hora do crime. Se tivéssemos uma testemunha, pelo menos…
— E os ruídos que ouvi? Alguém pisou no saibro, estou lhes dizendo isso desde o início. Pode ter sido Stenzley.
— Esses ruídos são imprecisos demais, Carlile. Não podemos acusar ninguém com base nisso.
— Mas ele tinha motivos. Todo mundo sabe que Ehrack sempre foi uma pedra no sapato de Stenzley. O hoteleiro perdeu vários prospectivos sócios por causa dele. Ele
mesmo me disse que sobrevive à custa do dinheiro de agiotas.
Febrilmente, como quem não pode desistir sem perder sua dignidade, acrescentei:
— E quanto à morte de Jeremy Ehrack? E se Stenzley sabia de alguma coisa que incriminava Stephan Ehrack naquilo?
— Sim, é uma hipótese — disse o detetive. — Pelo que sabemos, o filho se opunha ao pai em certos assuntos familiares. Essa oposição depõe contra ele. Também sabemos
que o pai era teimoso, e não admitia ser questionado. Daí que só restaria uma saída ao filho — o veneno. A herança que lhe coube sustenta isso. Todavia, temos que
ressaltar mais coisas: a Sra. Ebbington permitia o flerte entre o ex-marido e a Sra. Basknell. Essa atitude permissivista não lhe parece um pouco irreal?
— Acho que não há problema aqui. As duas sempre se deram bem. Elas iam para a escola juntas. Nunca houve nenhum rancor declarado entre as duas.
— Camuflar sentimentos, senhorita, é um hábito milenar — disse Fëll docemente. — E a respeito de Haggard? Ele tem um comportamento notável, apesar de tudo. Mas e
se, debaixo da sua capa de serenidade, o velho oculta algum remorso ou ódio mal curado? Note aqui o que o mordomo estava fazendo no sábado à noite: “Das 8:15h às
8:50h, na sala de estar, lendo”. Meio-surdo, senil e ancião. São deficiências demais favorecendo um só homem.
Lembrei-me que no primeiro dia, ao abrir-me a porta de entrada, Haggard tinha mesmo um livro na mão. Não dava isto um toque veraz a seu testemunho acerca do que
fazia na noite seguinte?
— Abrir a janela, pôr o guarda-chuva no cabide — citou o austríaco. — Atos simples, feitos unicamente para despistar. Tudo leva a crer que Ehrack estava aguardando
a visita de alguém para aquela noite. Foi esse visitante que o matou.
Notei que o faro de perdigueiro de Fëll tinha seus pontos fracos.
— Acho que o senhor está exagerando. Se ele estivesse esperando alguém, teria deixado escapar alguma coisa. Eu estive lá — Ehrack não me disse nada.
Tirou algumas partículas de fuligem do chapéu. Uma amostra grátis de sua afeição por limpezas rigorosas?
— Acompanhe o que vou dizer. Várias pessoas confundem as coisas porque não sabem calcular a média do preço de um produto.
— Meu Deus — respondi. — O senhor vai me dar uma lição de matemática?
— Em absoluto. Se analisar bem, verá que às 8:20, quando provavelmente ocorreu o crime, Ehrack ainda não tinha tocado na sobremesa à sua disposição. O que podemos
deduzir disso? Que ele se sentou para ler as laudas recém-impressas. Mas sentou-se onde? Só poderia ser junto da escrivaninha, pois na mesa não ficou nenhuma folha
remanescente. Aqui entra o cálculo do valor médio. Vamos supor agora que ele não estivesse lendo. Imediatamente a coisa muda de figura. Suponhamos que ele estava
ansioso, andando sem parar de um lado para o outro do escritório. Perfeito. Mas — em que sentido ele caminhava? Da poltrona até o cabide, ou da escrivaninha até
a porta de seu quarto, isto é, a extensão do aposento? A questão, que pode gerar confusão dependendo da resposta que lhe dermos, parece sem solução. É então que
um minúsculo fato vem em nosso socorro. A cabeça dele caiu em direção da poltrona. E logo atrás da poltrona existe o quê? A janela. Está respondida, portanto, a
nossa interrogação: Ehrack andava de lá para cá pelo recinto em sentido diagonal. Ou seja, ora indo para a janela ora voltando para a porta, as duas únicas vias
de acesso ao local. Porta-janela, está percebendo, Carlile? Quem quer que fosse o visitante, teria que entrar necessariamente por um dos dois pontos. O pudim que
permaneceu intocado, e a televisão ligada, confirmam isso. Ehrack marcara um encontro, e preparava-se para receber condignamente a pessoa. Enquanto isso, ficou caminhando
pelo escritório, talvez preocupado, ainda não sabemos. Então cometeu um descuido tolo: deixou a arma ali, na poltrona, à vista do assassino. O assassino, ao notar
aquele fato invulgar, deu um passo para frente e, vendo que não podia perder a ocasião, se apossou da arma e: O TIRO.
Emiti um grunhido aprovativo; sua explicação era racional e razoável.
— E a hipótese de suicídio? — arrisquei.
— Fora de cogitação. Prepare-se, Carlile. Teremos companhia.
Apontou a rua. O inspetor Radke aproximava-se pela calçada. Homem sazonado, o rosto queimado de sol, entrou diretamente pelo portão. Tudo fazia crer que queria mesmo
falar conosco.
— Olá, posso participar da reunião?
— Com prazer. Precisamos que nos ajude — disse Fëll. — Temos um enigma.
Radke sentou-se, acenando amistosamente. Como que se desculpou:
— O senhor e seus enigmas! Sem problemas. Mas posso lhe pedir um favor? Tenho que fazer uma pergunta à Srta. Carlile. Embora não goste de incomodá-la, o testamento
gerou uma série de dúvidas. Nós queríamos a cooperação de Fadeschi, mas ele diz que existem impossibilidades jurídicas. Respeito essa restrição.
— Vou preveni-lo desde já, inspetor — avisei. — Não sei nada sobre o testamento. Fui só secretária de Ehrack por duas noites, nada mais.
— Eu entendo. Dificilmente ele a informaria sobre seus últimos desejos caso morresse. A senhorita declara que falou com a Srta. Susie no dia do homicídio. Por volta
das 6h.
— Sim.
— Disse também que a Srta. Susie estava aflita. Pois bem, acha que ela estava inquieta por que se sentia culpada, de algum modo?
— Como — se sentia culpada?
— Remorso por alguma coisa que faria mais tarde naquela noite.
— Inspetor, eu tinha convidado Susie para vir comigo rever o pai. Mas, lá com seus botões, ela concluiu que, se fizesse isso, desapontaria a mãe. Ela estava dividida
entre o amor pela mãe e o intuito secreto de agradar o pai. Quando soube que o pai fora assassinado, deve ter se apavorado. Vocês veem no sumiço de Susie uma razão
para suspeitar dela. Eu acho que vocês estão errados.
— Está sugerindo que ela fugiu por que, por enquanto, não quer ver nem ouvir ninguém?
— Estou sim.
— Tantos questionamentos — disse Radke, coçando a cabeça. — Estivemos fazendo algumas pesquisas. Harrison é um naipe fora do baralho. Só por um lance de sorte conseguiremos
encaixá-lo nessa história. Se pelo menos Haggard tivesse sido mais vigilante! Ele diz que das 8:15 às 8:50 ficou lendo no térreo e só depois disso subiu para recolher
a louça. Isso quer dizer que o assassino não pode ter saído pela porta da frente. A poltrona da sala abrange a visão do vestíbulo. Se houvesse alguma fraqueza nesse
depoimento, tudo ficaria mais fácil. Mas onde?
— E se o criminoso já estava na casa às 8:15? — insinuei.
— Não confere. A pegada de lama é taxativa nesse respeito. A não ser que alguém tenha vindo pela janela, e após atirar, voltou a sair por ali. Nesse caso, ainda
teríamos que acreditar que Ehrack conseguiu se arrastar até a posição em que foi achado. Descobrimos quem tem o registro da arma.
— Ótimo trabalho, chefe — disse Fëll. — Ja, das könnte uns helfen.
— O certificado está no nome de Luigi Tomazelli. Foi registrada há cinco anos.
— Tomazelli… Tem certeza? Mas é o nome de meu amigo! Onde estou hospedado…
— É, isso é meio estranho, não?
Houve uma breve pausa. Tomazelli… meu senhorio… incriminado naquele caso?
Katrina, pense, pense… Tem que haver outra explicação.
— Esperem um pouco, acho que sei o que aconteceu — respondi com vivacidade. — Tomazelli disse, na sexta de manhã, que havia perdido o revólver.
— Isso significa que Ehrack o roubou dele? — perguntou Radke, intrigado. — Eu como meu chapéu se isso faz algum sentido.
— Bem, temos que escrutinar isso mais tarde — disse Fëll. — Haggard encontrou esta folha no cofre da biblioteca. Afirmou que você sabe do que se trata.
Radke franziu a testa, enquanto analisava o papel. E meio hesitante:
— O caso do Hotel Três Empenas… Um morto — Jeremy Ehrack, conhecido advogado que, cansado de tudo, resolveu encurtar a vida. Um velho irascível, brigão, com um humor
que mudava constantemente e, por conta disso, exigente em suas preferências. Ao contrário do filho, que foi um homem mais pasteurizado.
— Qual foi o laudo?
— Envenenamento. Mais precisamente, ricina. Foi um ato proposital, pelo que constatamos. Uma pessoa pode ser envenenada pelo pó ou ao digerir um alimento ou uma
bebida que contenha a substância. Doses inaladas ou injetadas de ricina podem causar a morte. Mas no caso de Jeremy Ehrack, os grânulos do veneno estavam na taça
de vinho seco. Um brinde mortal. A senhorita deve lembrar bem daquilo, pois se não estou enganado, trabalhava no hotel naquele ano.
— S-sim… — respondi, embaraçada.
— Wirklich? — perguntou Fëll. — Isso é fabuloso! Se trabalhava lá, Carlile, então deve ter dado o seu depoimento…
— Eu não tinha muito a dizer. Eu não vi nada. Foi a arrumadeira que viu… e correu para a portaria toda assustada.
— Mas isso não importa, não é mesmo? Você esteve lá, presenciou tudo de primeira mão, e isso não tem preço. Temos que falar mais a respeito disso, Liebling.
— Claro, se o senhor acha que vá ser de alguma ajuda.
— Warscheinlich… No ponto em que estamos não podemos deixar escapar nada. Uma pista pequena pode ser um grande passo para…
Antes que ele pudesse terminar a frase, meu celular tocou. Olhei o identificador de chamadas.
— É a Sra. Basknell… Desculpem, vou ter que atender.
— Sim, lógico.
— Alô?
— É você, Katrina? Oh, que bom… Preciso falar com você, tem algum problema?
— Quer que eu vá até aí?
— Se não houver nenhum inconveniente — disse a Sra. Basknell. — Não quero incomodá-la… Venha apenas se estiver livre.
— Tudo bem, eu não estou muito ocupada.
— Que bom… Pode me fazer um favor? Traga aquele detetive que está de férias na casa de Luigi. Pretendo falar com ele, por via das dúvidas.
Assenti, disse que já iria e desliguei.
— O que ela queria? — perguntou Radke. — Ficou com uma cara tão amarela, senhorita.
— Ela quer que eu vá até lá, e que leve o Sr. Fëll.
— Oh! Eu entendo…
Pude notar a decepção na voz do investigador.
— Vão, podem ir. Depois conversamos sobre isso.
— Muito bem — disse Fëll. — Vamos, Carlile. As coisas estão começando a tomar um rumo, não podemos ficar para trás.
Análises
Anne Roselene Basknell estava perto do portão, esperando por nós. Havia uma gravidade impressionante estampada no rosto, como se o Armagedom estivesse prestes a
irromper.
— Oi, quem bom que vieram — disse ela, com alívio.
Fëll fez um aceno de cabeça com educação. É óbvio que estava contente com o chamado de Anne Roselene. Havia sempre a perspectiva de uma descoberta que poderia nos
pôr na pista certa para desvendar o crime.
— Entrem, antes que nos vejam! Não quero nenhum vizinho fofocando pelas minhas costas.
Dirigimo-nos para a sala de estar. Ela tinha preparado café para três; serviu uma xícara para cada um, e esperou que tomássemos lugar no picadeiro. Sem saber direito
por onde começar, disse:
— Eu queria conversar com você a sós, Katrina. Mas então eu me lembrei de que o Sr. Fëll está sempre às voltas com a lei. “Sim, talvez ele possa me aconselhar”,
disse eu comigo mesma. O senhor vê, uma mulher na minha idade… Os jovens não; para eles tudo é muito simples. Vão a uma lan house e fazem uma pesquisa de poucos
minutos e pronto — já têm tudo respondido, sabem de tudo num piscar de olhos. Mas nós, velhos, temos tantas limitações, tantas dificuldades.
Fëll concordou radiante. Estava cheio de humildade:
— Es ist leicht zu verstehen…
Anne Roselene remexeu-se no puff, mais à vontade com a resposta compreensiva do detetive. Aguentei calada aquela condescendência entre os dois. As sobrancelhas brancas
da mulher expressavam uma paciência apavorante. Era uma senhora de poucos sentimentos, supostamente. Ela ajeitou as mãos no colo. Pelo que se via, tinha suplantado
a maior parte do choque que o assassinato causara nela.
— Para ser franca, o que quero é ser o mais direta possível. — Olhou para mim com energia: — Stephan não lhe falou, Katrina, de algum complemento que fez ao testamento?
Um complemento que… digamos… não queria tornar público?
— Não. Se ele fez isso, não me disse.
O desapontamento transpareceu nas linhas ossudas de seu queixo. Imaginei que ela deveria ter jogado todas as suas fichas nessa pergunta.
— Nada mesmo?
— Nada.
— Ele tinha prometido à senhora que faria isso? — perguntou Fëll com delicadeza.
Ele estava inclinado para a direita, e vigiava as reações dela como uma raposa vigiando um coelho gordo.
— Eu tinha esperanças… — disse ela com sinceridade. — Não consigo imaginar como Stephan pôde legar toda a sua fortuna para Margret. É um absurdo! Depois de tantos
conflitos, de tantas brigas… Ninguém faria uma coisa dessas. É incrível demais para acreditar.
— Receio que a senhora está enganada. A maior beneficiária não foi a Sra. Ebbington. O que Ehrack fez visava primeiramente o bem-estar da filha.
— Sim, o senhor está certo. Susie era o xodó dele. Ele a amava muito. Susie sempre foi muito boazinha. O divórcio dos pais foi um golpe doído para ela. Acho justo
que ela tenha se tornado a principal herdeira. Mas o que eu pergunto é: Por que ele foi tão generoso assim? Por que dar tanto dinheiro a uma moça tão jovem, que
nem sabe o que quer da vida?
— Jawohl, é muito dinheiro. Mas eu creio que não há contrassenso. Ele era pai, pretendia zelar pelo futuro da família.
Notei que Anne Roselene hesitou; estava pronta para dizer alguma coisa. Desistiu no último instante; em vez disso, baixou os olhos e acrescentou:
— Ouça… Sobre o testamento. Existe algum meio legal pelo qual se possa anulá-lo? Tenho procurado saber, e todos me dizem que é impossível. O que o senhor tem a dizer?
— Infelizmente, é verdade. Não há como contornar a lei nesse ponto. O papel é válido. O que foi escrito não pode ser anulado.
— Entendo.
Ela fez uma pausa. Falamos sobre outras trivialidades, apenas para preencher o tempo. Depois, eu e Fëll nos despedimos; ela voltou a agradecer por termos vindo,
sem muita convicção.
— O que achou disso, Carlile? — perguntou o detetive quando estávamos na calçada. — A Sra. Basknell quis me refutar, você percebeu? Fico me perguntando por que ela
se calou.
— Talvez ela tenha visto que seria inútil debater com o senhor.
Fëll olhou para mim; deve ter achado que eu estivesse pilheriando. Mas o fato é que eu andava devagar, pensando em outras coisas.
— Está falando sério?
Não sei por que, mas nessa hora uma onda de calor me invadiu. Pensei em lhe armar uma pequena armadilha. Respondi que sim, que estava falando sério.
— Por que diz isso?
A fim de puxar o laço, acrescentei:
— Durante uma investigação, o senhor não fica calado e só fala depois que tudo esteja resolvido? Pois é isso o que eu farei. Vou lhe dizer por que Roselene deve
ter achado que seria inútil discutir. Mas outra hora.
O meu tom de voz foi totalmente inofensivo. Mas Fëll não viu as coisas desse jeito. Ele limitou-se a baixar a cabeça, ressentido, como se tivesse sido derrotado
em seu próprio campo de batalha. Eu tinha cravado minhas unhas profundamente em seu ego.
Toda a brincadeira foi um grande erro…
Durante o resto do caminho até a mansão Ehrack, o austríaco passou o tempo divagando consigo mesmo. Ele tinha um espírito muito vivaz, inquieto. Por várias vezes
murmurou algumas sílabas; depois chegou a murmurar palavras, como num exercício de trava-línguas.
Fizemos uma nova visita ao palco da tragédia. Era a trigésima segunda, suspirei desanimada. Chovia, o que pareceu favorecer os planos de Fëll.
Para mim, o progresso feito nas investigações era ridículo. Nada de concreto havia sido apurado; o homicídio continuava um pleno mistério. Edmund Fëll sabia disso,
e por isso munia-se de uma cautela quase ofensiva.
Perguntei o que ele queria fazer ali no escritório.
— Não posso dizer — respondeu, com uma bem calculada reserva. — Antes de ter resolvido o caso, não posso falar nada.
Xeque! Mordisquei o lábio. Ali estava o resultado de minha provocação. Um homem encardido de mágoas.
— Temos que fazer uma experiência… Espere aqui um minutinho!
Fëll começou a fungar, olhando o cômodo. Andou até a porta. Saiu. Ouvi os seus passos descendo os degraus da escadaria. É o que digo: aqueles estratagemas me deixavam
com os nervos à flor da pele.
Fui para a poltrona e sentei-me distraidamente. Permaneci fiel e lealmente instalada em meu posto. O ambiente era tão calmo… Tão solitário…
Dessa posição, o cabide ao lado da porta ficava um pouco à minha esquerda. A mesa, por sua vez, estava agora diretamente diante de mim. Deslizei os olhos casualmente
pelo cabide, como que analisando seu belo design. Como é que tinha aparecido nele o guarda-chuva úmido, essa fora a pergunta do inspetor. Era uma coisa que eu também
gostaria de saber.
— Tudo certo, senhorita — disse Fëll, ao voltar. — Vamos realizar o nosso pequeno experimento.
— Quinze minutos! — reclamei. — Por que a demora?
— Ouça! Ouça!
Tinha levantado o dedo, a testa franzida. Estava concentrado num ronco de trovão que vinha de muito longe.
— Deve ser o carro de Haggard — expliquei. — Acho que ele gosta de testá-lo toda noite… Espere, mas como?
— Sim, Fräulein?
— A chave! O senhor quebrou a chave ontem à noite!
Um largo sorriso aflorou em seu rosto. Senti-me um inseto insignificante sendo esmagado pelos pés de um nefilim.
— Não devia confiar em tudo o que dizem, Carlile.
Retomando sua seriedade, ficou novamente atento.
— Escute só, os ruídos do escapamento são bem audíveis aqui em cima. Encobririam com perfeição a explosão de um tiro de revólver. Margret Ebbington disse o seguinte:
“Das 8:00h às 9:35h estive limpando a despensa!” Se isso for verdade, ela dificilmente teria ouvido o estampido da arma.
— Essa eu não entendi. Se o assassinato foi cometido por volta das 8:20h, Haggard não mexia mais no carro. Ele disse que às 8:10h já estava no sofá, lendo.
— Hmm, não deixa de ser uma ótima observação. Tudo leva a crer, portanto, que há erros nos depoimentos. Alguém deve estar mentindo. Vamos ouvir uma opinião feminina…
Quem você julga que mentiu?
— Quem mentiu? Não sei. Se Susie não tivesse ido embora… Ela poderia nos dar essa resposta.
— Susie! Está vendo como tudo se inter-relaciona? O testemunho da mãe não isenta a moça de algumas suspeitas. “Das 6:10h às 7:55h, ficou no quarto.” Resta saber
o que ela fez depois desse horário.
Lá na garagem, o motor foi desligado. O experimento do detetive estava concluído.
— Vamos descer. Não há mais nada a averiguar aqui.
Descemos. Vi logo que havia gente na sala.
Era Judith. Ela se levantou do sofá, e Fëll foi para lá cumprimentá-la vigorosamente.
— Sra. Gwenny-Ducker!
— Olá, Sr. Fëll! — Ela sorriu para mim: — Olá, Katrina! Parece que você se tornou uma corajosa combatente do crime.
Abracei-a. Apesar de tudo, era bom vê-la ali; dava-me uma sensação de conforto.
Haggard tinha vindo da garagem e tirava pingos d’água do casaco de gabardine.
— Fez um ótimo serviço, bom homem — disse Fëll. Virando-se para Judith, fez uma pirueta com a mão: — É um prazer tê-la aqui conosco, senhora. Espero não ter chamado
numa hora imprópria.
Os olhinhos acinzentados de Judith brilharam.
— Esqueça isso — disse, com um gesto excitado. —Se vim até aqui é porque tenho tempo de sobra.
— Fico-lhe muito grato.
Adivinhei que queriam conversar a sós, por isso me afastei até as prateleiras. Houve um cochicho entre os dois durante uns quatro ou cinco minutos. Fëll deu habilmente
algumas orientações; ao que parecia, o Conselho de Chefes de Estado-Maior estava deliberando um ataque.
Finalmente o detetive veio para junto de mim. Judith, por sua vez, aproximou-se de Haggard, que fora se esquentar diante da lareira. Ela começou a falar com ele,
a boca rente à sua orelha. O rosto do mordomo se crispou, quase em agonia.
— Belas peças de louça de barro — disse Fëll, alegremente. — Veja, esses traços exigem muita técnica, não acha, Carlile?
Fiquei aturdida. A prateleira comportava algumas peças de louça de barro vidrada e esmaltada, criadas a partir da arte de fàenza. Mas eu não era tola para achar
que ele estivesse mesmo interessado naquilo.
— Qual é a tática? — perguntei baixinho.
— Tática?
— Sim, tática. O que está acontecendo?
— Vamos esperar, minha cara. Não foi você mesma quem disse que havia um problema com os horários? Aí está, eu também percebi. A sua amiga sabe lidar com o mordomo;
talvez ele nos elucide alguma coisa.
A parlamentação de Judith com Haggard durou quase quinze minutos. Ele manteve a cabeça baixa, um pouco perturbado, mas sempre atento.
Então a luta acabou. Discretamente, a velha se aproximou de nós; não estava muito animada:
— Ufa, como esses homens são teimosos! Manfred concedeu cinco minutos… Quando veio da garagem naquela noite e sentou-se no sofá, ele diz que no máximo eram 8:20h.
Mais tarde, não. Será que isso ajuda?
— Ganz sicher!… Se diminuirmos alguns minutos do horário do crime e, ao mesmo tempo, acrescentarmos estes mesmos minutos ao horário em que Haggard entrou nesta sala…
Que glória!
— Vai interrogá-lo novamente?
— Interrogar quem?
— Manfred. Seja cuidadoso, sim? Ele é sensível.
— Esteja certa que serei cuidadoso. Se for inocente, não terá nada a temer.
— Não acho que ele tenha alguma coisa a temer.
— Nunca se sabe — declarou Fëll.
A discussão tinha chegado numa encruzilhada. O rosto de Judith mostrava certa contrariedade. Resolvi intervir, e peguei-a pelo braço:
— Olhe isto, a senhora já viu a coleção de barro do Sr. Ehrack? Veio lá do oriente. Não é fantástico?
Ela sorriu com cumplicidade.
— Oh, sim! Claro que é fantástico — aprovou. — Já vi esta louça uma centena de vezes, e sempre descubro detalhes novos nela. As linhas… estas aqui, veja, são perfeitas!
Os chineses são um povo tão caprichoso!
Fëll ficou ali perto de nós, neutralizado. Consultou o relógio, indeciso.
— Não quero interromper a análise artística, senhoras, mas seria bom se nos apressássemos. Acho que a reunião familiar com o advogado Fadeschi já começou.
O Testamento
Ao transpor o hall de entrada da casa da Sra. Ebbington vi que na sala estavam Fadeschi, a Sra. Basknell e o inspetor, aglomerados num grupinho à parte. No outro
extremo do cômodo tinham se ajuntado Harrison e Helene DeCourse e a Sra. Ebbington. O detetive foi na direção deles, o que fez Harrison revirar os olhos, uma expressão
de sarcasmo no rosto.
— Uma convocação extraordinária — dizia Margret Ebbington, contrariada. — O que Anne Roselene pensa que está fazendo? O que é que ela quer com esse teatro? Se há
algum problema deveria ter vindo falar comigo. Por que envolver outras pessoas nisso?
Fëll deu um grunhido de aprovação e ajeitou melhor o monóculo.
Fadeschi adiantou-se com o seu andar cerimonioso. Depois de pedir silêncio, articulou as primeiras palavras, expressando-se muito bem, com um vocabulário preciso,
bem escolhido, praticamente livre do repulsivo juridiquês:
— Em nome da Sra. Basknell, desejo salientar que ela não pretende, com a presente reunião, ferir as suscetibilidades de ninguém. A lei lhe dá direitos que não podem
ser descriminados. Ela espera que todos entendam isso.
Todos nós olhamos para a requerente. O semblante da Sra. Basknell, nessa hora, lembrava uma escultura, firme como a carapaça de um besouro.
— Was für eine Frau! — murmurou Fëll. — Corajosa! Impávida! Decidida…
— Os exames pos-mortem ainda não mostraram qual a causa da morte do Sr. Ehrack. Sabe-se que a bala era de médio calibre. Segundo a Sra. Basknell, Stephan Ehrack
havia lhe prometido que, caso ocorresse uma fatalidade, ela seria herdeira de uma soma parcial de bens. Todavia, no sábado, quando revogou o documento anterior,
o Sr. Ehrack não sugeriu o seu nome para o novo testamento que mandou lavrar. A assinatura de duas testemunhas teria sido suficiente.
Mantendo o autocontrole a custo, a Sra. Ebbington ergueu-se encolerizada. Como se tivessem pisado em sua cauda, gritou:
— É uma calúnia! Uma calúnia deslavada. Anne Roselene está ficando louca. Ela mal consegue enxergar além do tédio de sua própria vida. Não posso consentir que vá
adiante nisso, Sr. Fadeschi. Não no meu lar, debaixo do meu teto.
A Sra. Basknell moveu a cabeça com pesar. Os seus olhos mostravam-se um tanto vagos.
— Vamos, Margret. Você sabia qual era a vontade de Stephan.
— Que atrevimento! Eu não sabia de coisa alguma. Não me acuse de algo tão horrível.
— Por favor, senhoras — interveio o advogado. — É preciso calma. Talvez o Sr. Haggard possa nos ajudar. Aproxime-se, meu velho.
— Hein?
Voltamo-nos a tempo de observar que o mordomo tinha nos seguido. Pôs a mão em forma de concha atrás da orelha.
— Seu patrão falou-lhe que pretendia tornar a Sra. Basknell uma das herdeiras dele?
— Não, senhor.
— Srta. Carlile?
— Seguramente não — respondi.
— Já é o bastante. Como vê, senhora, não foi possível alcançar êxito em sua questão. Assim, devo pedir-lhe que encerre esse assunto…
— Eine Minute! — disse Edmund Fëll. — Permita-me fazer uma pergunta, senhora. Deve existir uma razão para suas esperanças. Foi o Sr. Ehrack quem lhe falou a respeito
da herança, ou ele usou outro meio para lhe dizer isso?
Ela empinou o corpo, não muito segura de si.
— Sr. Fëll, o que está tentando insinuar?
— Não estou tentando insinuar nada, Sr. Fadeschi. Poderia nos esclarecer uma coisa, bitte? Qual foi, em substância, a principal mudança feita no segundo testamento?
Fadeschi hesitou alguns segundos, refletindo nas consequências de sua resposta; em seguida, disse:
— O Sr. Harrison DeCourse foi deserdado, senhor. Essa foi, creio eu, a maior mudança que…
— Estão vendo? — bramiu Harrison em voz alta. — Aquela maldita víbora! Eu deveria tê-lo matado quando tive chance… Eu não lhe disse, Helene, que ele faria isso?
Eu lhe avisei!
— Harrison!
— Me solte! Não quero ficar aqui nem mais um minuto! O ar está irrespirável! Espero que estejam felizes… Todos vocês!
Como um bicho, Harrison caminhou até a porta, as veias da garganta intumescidas de raiva. Houve um baque e ele sumiu na neblina fora de casa.
— Harrison! Volte aqui…
A voz da irmã soou como um soluço. O lindo rostinho… Ah, estava mais enrugado do que um pergaminho.
— Hmm — disse Fëll, um pouco embaraçado. — Acho que isso foi esclarecido… Uma última pergunta: o nome da Sra. Basknell não constava no testamento anterior?
— Certamente que não.
— Por que não, Sr. Fadeschi?
— Como?
— A Sra. Basknell… Por que não foi incluída na distribuição do espólio?
— Julgo que está perguntando para a pessoa errada. Legalmente, não sou responsável pelas decisões pessoais de meus clientes.
— Um autêntico tiro no escuro — disse o inspetor Radke, ao término da sessão. — Nunca gostei de advogados, pelas barbas do profeta! O que faremos agora, Sr. Fëll?
Algo me diz que o assassino está rindo de nossa cara…
— Pois deixe que ria.
O austríaco olhou em volta, sem dar muita atenção à insatisfação de Radke. Depois de pescar alguns papéis do bolso, foi entregá-los à nossa anfitriã, que estava
sentada pensativamente no sofá.
— O que é isto? — perguntou a Sra. Ebbington, espantada.
— Algumas páginas da biografia de seu ex-marido, senhora. Eu estive dando uma olhada.
— Ahn, obrigada.
— Quero lhe perguntar uma coisa, Sra. Ebbington. Há um trecho aqui… Talvez a senhora possa me ajudar a esclarecê-lo. A partir daqui, leia!
Fëll apontou alguns parágrafos, que diziam:
Fiz muitas coisas em minha vida das quais me arrependo. Não posso me redimir disso, e nem mesmo exigir que as pessoas me perdoem. O que foi feito, foi feito. Quero
apenas retratar-me… Sim, talvez com isso eu consiga expurgar um pouco do mal que causei.
Trabalhei com meu pai por algum tempo.
A advocacia, assim como outras áreas, tem seus pontos bons… e também seus pontos ruins. Quando falta a lisura, muitas injustiças são cometidas contra pessoas de
bem.
Lembro-me do caso do homem que tinha a haver de um comerciante. Ele nos contratou, mas aceitamos uma proposta melhor e… acabamos dizendo ao pobre diabo que a sua
causa era inapelável. Inapelável… Papai sabia mentir sem a menor contemplação! Também teve aquele jovem polonês que devia para Deus e para o mundo. Papai foi o promotor
do caso e falou a favor dos credores… Ainda posso ouvir os soluços do polonês… ele prometia que iria quitar as dívidas.. Ou aquela moça, tão bonita e corajosa, que
tinha aquela loja de tecidos… A loja estava em concordata por causa de empréstimos não pagos. Meu pai… e digo isso com vergonha… pediu que o patrimônio fosse vendido
e que a dívida bancária fosse quitada. A humilhação… a falência… foram demais para a jovem; ela se enforcou e tudo virou um grande fiasco…
— Hmm — disse a Sra. Ebbington. — Casos muito tristes, bem ao estilo de meu sogro. O que o senhor quer de mim, Sr. Fëll?
— Esses relatos… A senhora sabe da história por trás deles?
— Não, eu lamento. Stephan não gostava que eu lhe fizesse perguntas sobre seus negócios. Sempre fui ciumenta, o senhor já deve saber. Eu fazia de tudo para me controlar…
Prevaleci apenas nisso: nunca me intrometi na área profissional de meu ex-marido.
— Eu entendo — disse Fëll. — Tome, é seu, senhora.
— Obrigada. Também tenho uma coisa para o senhor. Quero que leia isto.
A Sra. Ebbington extraiu um envelope debaixo da bandeja de chá. Era uma carta. Vi a letra em garranchos — logo imaginei que era de Susie. A escrita dela nunca fora
muito legível.
Havia uma folha de papel dentro do envelope. Fëll estudou-a com circunspecção, mas sem sucesso.
— Quando recebeu isto?
— Há pouco…
— Estava na caixinha de correspondências?
— Sim.
Expressando-se de forma articulada, Fëll disse:
— Hum… Nenhum carimbo de postagem, nem data. Aqui diz: “Agi pensando no bem de todos vocês… Não quero magoar a senhora… Dizem que as nêsperas estão florindo”, etc.
etc. É uma mensagem trivial. Srta. DeCourse, pode fazer a gentileza de vir aqui um momento?
Helene olhou para nós, desconfiada. Uma película de apreensão parecia querer mantê-la afastada do detetive. Aproximando-se com uma elegante seriedade, perguntou:
— Pois não?
— Seu irmão trabalhou hoje no correio?
— Sem ofender, mas qual é o motivo da pergunta?
— Apenas queremos uma confirmação.
— O senhor é engraçado! — disse Helene. — Que espécie de confirmação?
— Da seguinte espécie: se ele trabalhou ou não trabalhou hoje no correio. Acho que não dá para ser mais claro do que isso, não é?
Foi como uma pedrada em vespeiro! Mantendo o queixo provocativamente em riste, a moça acabou por responder:
— Digamos que sim.
— Ótimo, não foi tão difícil assim, foi? Sabe se ele trouxe uma carta para a tia?
— Que impertinência! Não, Harrison não trouxe nenhuma carta para ninguém. Aliás, quem é que ainda escreve cartas? Hoje em dia as pessoas usam uma coisinha chamada
celular. Basta uma ligação e pronto! Resolve-se tudo na hora, além de custar bem menos.
— E ontem… Havia alguma correspondência?
— Ontem meu irmão ficou de molho em casa. Ele não quis, mas eu o obriguei, de qualquer jeito.
— Por quê?
— Harry estava resfriado.
— Alguém fez o itinerário?
— Ninguém, não senhor. Quando não há carnês ou tarifas urgentes, o serviço é leve. Harrison recupera o atraso ao longo da semana.
— Isso é interessante — disse o austríaco. — Está dizendo que não houve nenhuma correspondência para a Sra. Ebbington esta semana?
— Exatamente.
— No entanto, os fatos dizem o contrário. Duas cartas foram entregues. Ambas escritas com grafia diferente e nenhuma com selo e carimbo. Qual delas supõe que seja
de sua prima?
— Deixe-me ver… A outra não sei, mas esta aqui com certeza tem a letra de Susie. O estilo… As letras maiúsculas… Sim, esta é dela.
— Susie! Pobrezinha… — murmurou a Sra. Ebbington. — Estou… estou tão desnorteada!
Com olhar esgazeado, enclavinhou os dedos, angustiada, o sangue subitamente sumindo de suas faces.
— Eu sinto que, de certa maneira, Susie quer dizer alguma coisa. — Ela fez uma pausa e, com voz incisiva, acrescentou: — Só não consigo ver o que é.
“Dizem que as nêsperas estão florindo”! Sim, a resposta para o paradeiro de Susie estava incontestavelmente naquela frase. À vista de todos, mas apenas visível aos
que conhecessem o código.
Radke olhava para mim, como se quisesse saber os motivos de minha distração. Eu quis falar com ele, mas fui arrastada por um redemoinho chamado Helene DeCourse,
que me puxou para um canto da sala.
— Olhe ali, Katrina! — exclamou, apontando um cachepô. — Oh, não é lindo?
O comentário dela era completamente irrelevante. Percebi que havia uma intenção por trás daquilo. Apertando meu cotovelo, Helene baixou a voz:
— Que detetive chato! Mesmo alguém como ele deveria ter mais escrúpulos. Ficou lá me pressionando sobre o que Harrison fez ou o que não fez. Eu concordo que foi
horroroso o que fizeram com titio. Um ato covarde. Como as pessoas são más! Quem é que em sã consciência consegue matar alguém assim, dessa forma? Só um assassino
empedernido seria tão calculista. Mas daí a desconfiar de nós — espere aí, nós não temos nada a ver com isso! Eu nem sei por que a polícia está aqui…
Ela não era repulsiva o tempo todo. Ali de pé, com o corpo tremendo de indignação — digamos que sua beleza lançava um poder hipnótico. Eu quase cheguei a simpatizar
com ela.
— Quem matou titio deve ser um maníaco — prosseguiu Helene, puxando a túnica de crepe para o ombro. — Tia Margret nunca teria essa coragem. Cometer um crime, quero
dizer. Ela não tem temperamento para uma coisa dessas. É uma criatura tão frágil. Tão parecida com Harrison. Meu irmão é um imbecil. Não consegue nem matar uma mosca.
Às vezes sinto pena de pessoas assim. São todas tão tolas, fáceis de comandar. Pode apostar nisso, amiga. Não foi tia Margret quem matou o ex-marido. Não foi.
Disse a última frase quase aos sussurros. Então, sem qualquer acréscimo, Helene afastou-se de mim. Aquilo me pareceu tão irreal e distante que, por dois ou três
segundos, fiquei parada imóvel, tonta e deslocada.
Radke aproximou-se, um sorriso matreiro nos lábios.
— Ela deixou você preocupada, não foi? Sobre o que estavam conversando?
Fiz um resumo do que Helene tinha mencionado para mim. Radke ouviu com interesse; por fim, perguntou:
— Não foi tia Margret quem matou o ex-marido… O que acha disso, senhorita?
— Acho que Helene tem um gênio muito ativo.
— E a carta, de quem é?
— Também é de Susie.
— Como assim também?
— As duas cartas são dela. A carta de ontem apenas tem outro secretário, uma pessoa que escreveu por ela. Mas a remetente foi Susie, estou convicta disso.
— Já é um passo — disse Radke aprovativamente. — Ela falou do crime?
— Nenhuma linha.
— Já era de se prever. E quanto ao esconderijo — alguma pista?
Fiz uma lenta negativa.
— Não, inspetor — neguei. Decidi abrir apenas parte do jogo: — Em todo caso, conheço um endereço… É um lugar perto daqui. Vou ver amanhã se minhas suposições estão
certas.
Susie
Pulando para a plataforma de desembarque, tive a esquiva suspeita de que o passageiro do quarto vagão me vigiava por trás do jornal. Tentei enxergar seu rosto, mas
em vão.
Depois de uma caminhada de quinze minutos, entrei numa rua vazia àquela hora. O aroma de nêsperas estava por toda parte. Apertei uma campainha escondida entre as
trepadeiras.
Foi Susie Ehrack quem entreabriu a porta da casa. As bochechas rosadas e o cabelo louro caído na testa intensificavam o rubor de sua fisionomia.
— Você?
O choque dela foi imenso. Antes que Susie fizesse qualquer coisa, eu empurrei a porta resolutamente. Logo estávamos na sala, face a face como dois gladiadores antes
do massacre.
— Eu devia dar-lhe uma boa sova, queridinha. Você me jogou no fogo em brasa. Atirou-me bem nas garras do leão. Nunca imaginei que você fosse tão ruim. O seu pai…
Que homem direto! Notei na primeira noite que aquela biografia dele era só um pretexto. Ele me contou tudo, explicou o que queria que eu fizesse. Sou uma mocinha
obediente, estive a ponto de fazer tudo o que ele me pediu. Mas você está enganada, sua doida. Não fui eu quem atirou nele. Você deveria pensar mais em sua mãe.
Os cálculos biliares e aquela coisa toda…
— Você acha que eu não sei? Eu escrevi as cartas… O Sr. Reusfeld mandou o chofer entregá-las. Mamãe não as recebeu?
— Recebeu, e daí? Ela quase morreu.
— Fique longe de mim, Katrina. Estou avisando a você, fique longe. Papai descobriu tudo, foi ele mesmo quem disse. Ele queria que nós mantivéssemos distância uma
da outra por uns tempos.
— Ele está morto, sua desmiolada. Quem é que está se lixando para o que ele disse? Você fugiu porque achou que eu tinha atirado nele, admita. Muito obrigada!
Enquanto eu falava isso, Susie rangia os dentes. Lágrimas afloraram de seus olhos translúcidos. Um quadro de cortar o coração!
Ouvimos o tilintar da campainha. Nós duas nos entreolhamos. Fiz uma pausa em minhas estocadas verbais e fui para o saguão.
— Olá — exclamou o novo visitante. — É a Srta. Carlile, suponho. Um lindo dia, não?
Murmurando um apressado “bitte!”, ele foi entrando. Perplexa, eu quis detê-lo. Fëll tratou de antecipar-se, o jornal debaixo do braço. Diante de seu sorriso, fiquei
momentaneamente sem ação.
— Oh! Srta. Ehrack, prazer em conhecê-la.
Fëll disse aquilo como se estivesse milagrosamente entrosado com o ambiente. Uma adaptação milagrosa?
Susie olhou para ele, admirada. Depois, caindo em si, deu um gritinho de júbilo.
— Ei, o senhor não é o detetive que mamãe contratou? A Sra. Reusfeld falou sobre o senhor. Sente-se, por favor. Quer um conhaque?
Fëll lançou-me um olhar zombeteiro, que mal pude decifrar. Eu, por minha vez, permaneci completamente estática.
— Um cappuccino, se tiver — disse, voltando-se para Susie. — Mas primeiro uma correção: não fui contratado por sua mãe. Envolvi-me no caso de livre e espontânea
vontade.
— Ótimo — disse a larva saindo de seu casulo. Foi para a cozinha e trouxe um bule e uma bandeja com xícaras. — Açúcar? Adoçante?
— Açúcar, danke.
— Que bom que o senhor veio. Sinto um grande alívio em meu coração por vê-lo aqui, agora, na minha frente. Quero relatar-lhe tudo o que eu sei. Em verdade, eu não
queria ter feito nada do que fiz desde o início. Mas estava me sentindo tão mal! Parecia que alguém tinha colocado uma pedra nas minhas costas. Oh, Sr. Fëll! Não
quero ser implicada no assassinato de papai! Não fui eu, o senhor entende? Posso depor agora mesmo? Sim, estou agoniada com toda essa situação. Por onde quer que
eu comece?
Fëll virou-se para mim com uma suave expressão de deboche. Parecia que as pessoas nutriam um irresistível prazer em se jogar a seus pés, prontas para fazer qualquer
confissão.
— Ich mag es! Fale-nos do que fez naquela noite, senhorita.
— Está bem.
Olhei bem para Susie. Ela sentou-se bem reta, como se precisasse olhar para dentro de si mesma para lembrar daquilo.
— Acho que… se não me engano… eram dez para as oito quando saí de meu quarto.
— Dez? Sua mãe nos disse que eram cinco para as oito.
— Ah, sim? Mamãe estava passando o aspirador de pó. Não achei que tivesse me notado. Você tinha feito um convite para mim, Katrina… Querendo que eu falasse com papai
— oh, você sempre foi boa tão comigo! (Susie lançou um olhar ingênuo para o meu lado!) Eu sei que deveria ter ido com você, me desculpe, e estava decepcionada comigo
mesma. Eu tinha sido covarde, e isso doía dentro de mim como um espinho. Havia muita neblina, mas mesmo assim dei um jeito e fui até a floricultura. Tenho uma chave
da porta, e é ali que costumo ir quando estou deprimida. Fiquei bastante tempo sozinha; eram cerca das 10 e meia quando voltei de lá. Vi de longe que havia uma movimentação
fora do comum em nossa casa. Alguns homens estavam de pé na porta da frente; reconheci que um deles era o doutor Ritterbuch. Caminhei mais alguns metros, trêmula
de terror. Entrei na casa; depois você, Katrina, apareceu… e aquele inspetor, cujo nome não consigo me lembrar. Quando o doutor me contou o que havia acontecido
perdi inteiramente o controle. A última coisa de que lembro é que de madrugada eu estava aqui, pedindo asilo aos Reusfeld. Felizmente eles foram muito gentis comigo
e prometeram não notificar minha presença aqui nem para a polícia e nem para ninguém.
— Saiu com o guarda-chuva naquela noite, senhorita?
— Não. Cobri-me apenas com uma capa. — Mexendo o café, Susie divagou: — E imaginar que vovô teve a mesma morte terrível! Algumas pessoas chegaram a culpar papai
por aquilo. Mas vovô era meio maluco, sabe? Ele tinha uma amante. Mas quem? Ninguém jamais soube. Meu pai foi muito ríspido com ele; disse-lhe para parar com aquela
criancice. Fez muito bem, pois eu teria feito a mesma coisa.
Susie ainda falou mais, mas nada que precise ser registrado. Seu depoimento, aliás, foi prestado de forma tão espontânea e franca que não se podia duvidar de sua
sinceridade.
Depois que terminamos, ela foi conosco até a estação. Quando nos despedimos na plataforma, chorou pela segunda vez. Uma atriz de marca maior, que tal?
— Poderia me satisfazer uma curiosidade, Sr. Fëll? — perguntei finalmente. — Por que me seguiu?
— Não se ofenda comigo, liebchen — disse o detetive, sem pressa. — Aquela frase sobre as nêsperas… Era incoerente. É lógico que possuía um duplo sentido. Se a Sra.
Ehrack soubesse o que significava aquilo, não me teria dado a correspondência. Mas quem então saberia? Foi o seu embaraço, senhorita, quem a denunciou.
— Meu embaraço! Está tirando conclusões erradas, se me permite dizer. Eu fiquei encabulada com as coisas que Helene falou para mim, não com o conteúdo da carta.
— Que coisas?
— Não é algo que vá interessá-lo — espreguicei-me na poltrona.
— É claro que vai me interessar. O que foi que a Srta. DeCourse lhe disse?
— Helene disse que não foi a Sra. Ebbington quem matou o Sr. Ehrack. Ocorre que ela mencionou isso de um modo muito esquisito. Se ela e o irmão não fossem tão comportados,
até que daria para desconfiar deles.
O austríaco fez um veemente movimento com a cabeça:
— Sehr interessant… Essa opinião da moça não condiz com o perfil do caso. Ou será que estamos tomando a direção errada, Carlile? Será?
Permaneceu o resto da viagem falando consigo mesmo. Um monólogo cheio de gestos e murmúrios. Enfim, eu estava mesmo cercada de paranoicos…
Jogo de Damas
Além do jogo de bilhar, o outro passatempo muito prestigiado pelas mulheres da aldeia é o jogo-de-damas. O tabuleiro exerce um fascínio irrecusável sobre nós, e
volta e meia estamos envolvidas em alguma pacífica partida noturna.
Nessa noite estavam presentes a Sra. Basknell, a nossa melhor jogadora; a bem arrumada Helene DeCourse, linda em seu suéter damasco; a Sra. Gwenny-Ducker, de todas,
a pior no jogo; Haggard, sempre quieto e concentrado; e, além de mim, a Sra. Ebbington, nossa anfitriã da vez.
Cada jogador tem seu estilo particular, não importa a cultura, raça ou educação. Conosco não é exceção. Por exemplo, a Sra. Basknell costuma intercalar um lance
e outro com opiniões pessoais. Uma mania que nunca foi muito apreciada.
— Se eu mexesse essa dama… Hm, não, eu logo a perderia. Tenho que mover esta peça! Ora… Aqui também não. Puxa, estou ficando sem opções. Talvez eu devesse jogar
aquela outra…
Era de enlouquecer!
Helene, que dividia o tabuleiro com Haggard, seu adversário, mexia os botões em silêncio. Não era de comentar suas jogadas. Um monge se morderia de inveja diante
da autodisciplina dela. Ocasionalmente ela sorria quando Haggard a congratulava por um movimento de peças bem feito.
Jogando contra Judith Gwenny-Ducker, eu tendia a cometer alguns erros voluntários. Ela armava mal os seus lances — para ser honesta, minha amiga jogava tão mal que
até um guaxinim ganharia dela.
— Você fez uma besteira agora, Katrina — dizia ela, indulgente. — O que deu em você? Você acaba de perder duas damas! Está aérea no jogo, querida?
— Sou mesmo uma tonta! Duas damas perdidas… Onde estou com a cabeça?
— Devia ser mais cuidadosa — a Sra. Basknell achava tempo para me advertir. — Todo ponto ganho é um passo para a coroação.
Eu evitava discutir as diretrizes da coroação. Pouco depois, voltava a incorrer em outro descuido.
Entre nós, essas reuniões sociais têm sempre um toque peculiar, e é normal que se sirva algum prato antes de seu início. Dessa vez tínhamos comido doce de leite,
e um aroma penetrante de café pairava na sala.
Trazendo outro bule da copa, a Sra. Ebbington pôs a bandeja no centro da mesa. Tocou os óculos mansamente, e examinou o tabuleiro, checando a posição de suas peças.
Foi ela quem primeiro falou da filha.
— Estou tão feliz que Susie esteja bem. Tenho certeza de que ela voltaria para casa se eu lhe pedisse.
— Ela não lhe comunicou o paradeiro?
— Nada, Anne Roselene. Susie pensa que já é adulta. Acha que sabe tudo da vida. É uma tolice, claro, mas não quero forçá-la. Ela tem que aprender a tomar as próprias
decisões.
Anne Roselene soltou uma interjeição:
— Oh! Mexi o botão errado. Posso repetir o lance?
Apesar de ferir os regulamentos, a Sra. Ebbington consentiu que ‘ela repetisse o lance’.
— Obrigada. Mas o que é que você dizia, Margret? A sua filha devia vir, sim. Ela tem uma herança para receber.
— Isso ainda será ajeitado. O Sr. Fadeschi só homologará o testamento quando Susie vier. Isto se certas pessoas não quiserem embargar o caso outra vez.
Esta indireta fez a Sra. Basknell erguer o queixo:
— Ei, não pode me recriminar pelo que fiz. Eu estava apenas recorrendo à lei para receber a minha parte.
— E acabou ficando sem nada. Poderia ter-se poupado desse vexame.
A animosidade se tornou visível entre as duas. Por um segundo ou dois, o clima na sala ficou pesado.
— E com mais isto — anunciei —, terei comido sua última dama, Sra. Judith. Xeque-mate. Creio que não joguei tão mal para uma principiante.
Meu grito foi providencial. Lentamente o mal-estar entre as duas competidoras degelou, e se desfez.
Comecei a reposicionar meus valentes peões em suas casas. Com a terceira vitória seguida, sentia-me um samurai invencível.
— A Sra. Ramozzi já lhe devolveu o livro sobre toxicologia, Sra. Ebbington? Disseram-me que faz semanas que ela emprestou o livro da senhora.
Queria ter filmado a cena! De repente todos os corpos ao redor da mesa ficaram paralisados. Fincaram em mim os olhares mais diversos, que iam do horror a mais pura
perplexidade. Margret Ebbington olhou para mim como se eu tivesse acabado de abrir o Mar Vermelho.
— O que é? Foi a senhora mesma quem falou a respeito do livro. Tenho que fazer algumas pesquisas relacionadas ao tema.
— Está sendo indelicada, Katrina — disse a Sra. Gwenny-Ducker.
— Ué, por quê?
— Por nada. Mas em se tratando do modo como Jeremy morreu…
A Sra. Basknell também esquadrinhou meu rosto. Ao contrário dos outros, porém, estava exultante:
— Até que enfim um ponto fraco, Margret. Sempre achei que você estivesse acima de qualquer suspeita.
— Não seja cínica! Você é que está distorcendo as coisas. É evidente que Katrina não quis insinuar nada.
— Justamente — respondi com uma inocência mais que convincente. — Não estou insinuando nada. É que aprecio matérias sobre tóxicos, apenas isso.
— Mais precisamente, venenos — zombou Anne Roselene. — Ora, não estamos julgando ninguém. Cada um com seus hobbies.
— Pare, Anne, por favor. Você é uma perfeita criadora de casos. É melhor continuarmos o jogo.
Ela estava muito pálida. Resolvi não insistir em meu pedido.
Haggard sugeriu a Helene um intervalo de alguns minutos. Disse que as vistas ardiam, e que não estava conseguindo enxergar as peças.
— Está bem — ronronou ela, solícita. — Vamos fazer uma pausa. Também preciso de um pouco de ar puro.
Helene esbanjava carisma falando daquela forma. Os homens deviam morrer de amores ao vê-la gesticular com tal desembaraço! Mesmo durante o jogo todas nós tomávamos
nossa bebida, salvo Helene que alegou que não queria se entupir de glicose. Coisa de nutricionista!
Depois que a confusão entre as duas amigas serenou, a noite perdeu a graça para mim. Recordando tudo o que eu escutara, deixei brechas enormes em cada jogada, o
que facilitou a primeira vitória da Sra. Gwenny-Ducker. A derrota piorou minha atuação. Quando entramos na sétima partida, meus erros tornaram-se flagrantemente
pecaminosos.
— Mil desculpas, Margret. Posso colocar o botão em outra casa?
— Ponha o botão em outra casa, Anne. Arre!
Fui salva de meu tédio pela chegada de Edmund Fëll. Após pendurar o paletó no cabide do hall, ele entrou na sala esfregando os dedos rijos de frio. Compenetrado,
Fëll fez um meticuloso reconhecimento da área. Fiquei imaginando o que poderia representar aquele olhar. Debaixo de seus cílios curtos e sedosos, os olhinhos correram
por cima do nosso grupo. Aproximando-se de nós como uma águia prestes a dar o bote, tirou respeitosamente o chapéu. O cabelo empapado de gel formava um capacete
úmido e compacto…
Encarei-o ali de pé, os olhos claros e amendoados fixos em nós.
— Guten Abend — cumprimentou.
— Boa noite! — dissemos todos num só coro.
A Sra. Ebbington levantou-se e foi buscar uma xícara.
— Quer se sentar conosco, Sr. Fëll? — perguntou a Sra. Basknell num tom solene. — Creio que nenhuma de nós tem a menor possibilidade de ganhar do senhor, mas seria
estimulante vê-lo jogar.
Talvez por se compadecer de meros mortais, o austríaco declinou a oferta. Andou ao longo da mesa como se estivesse executando um plano preestabelecido. Praticamente
sem querer, notei que todos estavam tesos na cadeira, esquecidos do jogo, contemplando a marcha do detetive.
— Herr und Damen — fez uma segunda saudação e parou à cabeceira da mesa. — Ao entrar aqui, notei que estavam se divertindo esplendidamente. A diversão faz parte
da vida do ser humano. Algumas pessoas encontram entretenimento fácil em jogos de gamão, bilhar e por aí vai. Há um prazer mundial em apostar dinheiro em jogos de
azar. No entanto, eu tenho uma ocupação diferente. Gosto de caçar os mentirosos, os que persistentemente põem empecilhos no caminho que conduz à verdade.
Essa era a sua especialidade — encher os ouvintes de pavor. Ele pestanejou, impassível. Aguardamos que acrescentasse alguma coisa, a voz cortante e afiada como um
punhal.
Fëll virou-se para Haggard.
— A quem o Sr. Ehrack esperava na noite de sábado, meu velho?
— Ninguém.
— Pois aí está. O senhor está mentindo. Todos aqui, aliás, devem para mim. Nenhum dos relatos foi apresentado de forma exata. Há partes que não se encaixam no que
disseram. Isso não me alegra nada. Fico muito inconformado quando as pessoas tripudiam do meu trabalho. Posso ver a sua despensa, Sra. Ebbington?
A mulher estremeceu diante da requisição. Apontou a porta à direita, sem saber se devia guiá-lo até lá ou não.
— Claro. É ali.
Fëll saiu na direção indicada. Atrás de si, sua acusação ficou pairando no ar.
— Parece que estão chegando cada vez mais próximos — disse a Sra. Basknell num murmúrio.
— Vamos, deixe de bobagens, Anne. Você está insuportável hoje.
— Eu, Margret? Insuportável? Só estou dizendo o que vejo.
— Pois não diga — retrucou a Sra. Ebbington. — Essa história já foi longe demais. Fico pensando o que ele pode querer entrando em minha despensa.
— Querida, não escutou o que ele disse? Todas nós estamos ocultando alguma coisa. O homem quer que a gente decida falar tudo o que sabemos. Simples. Ele só nos deu
um prazo para que acabemos cooperando com a investigação.
— Vá lá então e lhe diga no que foi que você mentiu. Não vou aceitar que me ridicularizem. Isso não!
Havia certa histeria na voz de Margret Ebbington. Sem esboçar nenhuma palavra, Haggard ficou de pé e tocou-lhe candidamente os músculos do braço. Ela deu-lhe um
olhar grato e respirou um pouco mais aliviada.
— Fique tranquila, Margret — disse a Sra. Gwenny-Ducker com equilíbrio. — Eles não vão atribuir nenhuma culpa a ninguém. Eu confio na polícia.
— A polícia, Sra. Judith, também comete enganos. Será que isso não basta para vocês? Ou acham que eles nunca falham quando estão atrás de provas contra alguém? Santa
ignorância!
Dando um discreto pigarro, Helene mencionou que iria se recolher. Afirmou que o irmão ainda poderia estar acordado e que talvez estivesse preocupado com ela. Helene
desfilou até a porta e dali, com uma força que me espantou, lançou um olhar glacial para a Sra. Basknell. Aflição… Raiva… Desprezo… Que sentimentos teriam causado
aquele gesto hostil?
— Acho que fui muito severa — disse a Sra. Ehrack depois que a sobrinha se foi. — Eu conheço Helene… Ela ficou magoada. Eu sei que ficou.
— Esqueça isso, Margret. Ela é uma garota inteligente. Ela deve compreender o seu sofrimento.
As frases de consolo da Sra. Basknell precederam a volta de Fëll. Como quer que fosse, ele percebeu que havia alguém a menos entre nós.
— A Srta. DeCourse já partiu, é pena. Estava com pressa? Não faz mal, noutra hora conversarei pessoalmente com ela. Depois do que eu lhes disse, é razoável conferir
a fim de ver o que vocês têm a responder. Mas suspeito que ninguém tenha nada a dizer. Portanto, farei uma coisa melhor — dar-lhes-ei um prazo até amanhã para me
procurar. Quero que pensem bem no que cada um de vocês vem escondendo. Terão tempo de sobra. Irá comigo, Srta. Carlile? Estou indo à pensão.
— Irei — acenei maquinalmente. — Irei.
Saímos depois de nos despedir das mulheres e do mordomo. Eu estava ansiosa para ouvir o relatório de Fëll a respeito da despensa.
— Então? O que encontrou?
— Uma janela de guilhotina de vidro — murmurou evasivamente. — Creio que isso é bastante sugestivo, Srta. Carlile.
— Bastante sugestivo? Não entendi…
— O que é elementar, já que a senhorita não parece muito disposta a explorar o caso. Se tivesse um pouco de boa vontade veria que a estrela d’alva já está brilhando
e que logo o dia estará firmemente estabelecido.
A sua resposta foi mais gelada do que a garoa que penetrava em nossos agasalhos. Uma neblina densa e branca cobria a vila. Os lampiões dos postes lançavam uma luz
difusa quando dobramos a esquina.
Não gostei de seu senso de humor. Afirmei-lhe que, se não quisesse, não precisava enumerar para mim todas as pistas que coletara até ali. Ninguém tinha o direito
de usurpar isso dele. Muito menos eu.
Fëll grunhiu, aparentemente aprovando o meu comentário. O que foi um bom sinal, sob todos os efeitos.
— O que importa — acrescentei — é que o senhor fez muito bem o seu ensaio teatral.
— Não foi um ensaio teatral, senhorita. Mas creio que deve servir ao meu propósito. Já é uma grande conquista, meinst du nicht?
Tentei sondá-lo sobre aquilo, mas ele manteve a gola da capa levantada e seguiu em frente, o chapéu de feltro sobre a testa.
Inquéritos
Quando uma longa e tediosa investigação é feita em torno de um crime, geralmente surgem muitas pistas entre o material investigado, mas, em relação ao assassinato
do Sr. Ehrack, não existia nenhuma pista sequer.
Minhas lembranças daqueles dias envolvem a visita que fizemos a Harrison e Helene DeCourse, um episódio que teve um requinte todo pessoal. Foi ali que eu percebi
que, para o austríaco, era obrigatório averiguar e levar em conta todas as hipóteses, por menores que fossem.
A casinha com chaminé, despojada de qualquer luxo, era rodeada de palmeiras-reais. Dali se via a estação de esqui e as pequenas rampas de neve, logo além dos telhados
pontudos da aldeia.
Topamos com o inspetor Radke que vinha a pé pela alameda. Ele não tinha uma expressão muito satisfeita. Até certo ponto, seu rosto estava tenso, descontente e aborrecido.
— Ei, dois aventureiros destemidos! — exclamou sem nenhum entusiasmo. — Terão pouca sorte hoje. O homem está enfezado.
A frustração de Radke fez Fëll irradiar uma excelência fora do comum.
— Então ele foi mal-educado! Veremos, veremos. Pode ser que não tenhamos vindo de graça, afinal de contas.
Com passos vigorosos seguiu pela trilha, como se a notícia o enchesse de uma forte convicção interior.
Radke deu de ombros e juntou-se à nossa cavalaria.
— É um sujeito determinado, o seu colega — cochichou para mim. — Mas acho que não vai adiantar. Nunca vi homem mais arrogante do que o Sr. DeCourse.
Encontramos o temível personagem na varanda da casa. Harrison usava sapatos sujos, gastos, de bico largo. Os olhos eram petulantes e inexpressivos.
— Já trouxe a intimação, inspetor? — perguntou Harrison, indo logo à raiz da questão. — Isso sim é que é competência!
Radke o encarou, enquanto pensava se responderia ou não àquela provocação.
— Outra hora, meu rapaz. Outra hora.
A ironia de Harrison não se dissipou.
— Pois bem, em que posso ajudá-los agora? Por que voltou trazendo essa gente? Vocês sabem que não podem me obrigar a depor.
— Temos provas que apontam que o senhor foi visto andando na rua, sábado à noite — disse Fëll, ignorando os cumprimentos. — Nada de estranho nisso, se não fosse
por um detalhe. Dizem que o senhor estava na rua perto do horário em que aconteceu o crime. Poderia nos falar sobre isso?
— Foi o velho Bettwood, não foi?
— Entschuldigung?…
— Uma ova que não. Eu sei que foi ele. Apenas aquele velho estúpido poderia dizer uma besteira dessas. Acender lampiões agora é trabalho de espiões! Eu lamento muito,
senhores, mas de mim vocês não arrancarão mais nada.
Respirei fundo e dei um passo para frente.
— Esperem um pouco. Não quero tomar o lado de ninguém. Mas acho que você deve uma explicação, Harrison. Havia um cofre na biblioteca de seu tio. Lá achamos os brincos
que Susie julgava ter perdido. Você estava lá conosco no dia em que ela deu pela falta deles, na ponte. Nós pensávamos que os brincos tivessem caído na água, mas
eu sinceramente nunca acreditei nessa versão. Você sabe qual foi minha suspeita desde o início?
— Que papo é esse? — retrucou Harrison, irritado. — Fale você, Sra. Sabe-Tudo!
— Oh, Harrison, eu sinto muito… Eu sempre acreditei que você os tinha roubado — continuei. Meus lábios tremiam de emoção. — Sim, você… Harrison, por favor, me desculpe!
Eu tenho que contar a verdade… Você é… oh, por Deus… você é o ladrão!
— Qual é, Katrina! Você está ficando louca?
— Não, não estou. Eu me lembro de tudo… Você teve a chance, você esteve do lado de Susie e foi você quem disse que tinha ouvido alguma coisa batendo na água. Foi
tudo invenção… oh, que coisa terrível!
O rapaz fulminou-me com um olhar incrédulo. Toda a sua malícia tinha sumido. A artéria do pescoço engrossou debaixo da pele.
— Katrina! Que calúnia é essa? Não posso… Vocês não vão acreditar nela, vão?
Ah! Como Radke foi eficiente nessa hora.
— Isso o que está dizendo é verdade, senhorita? — perguntou.
— Infelizmente…
— Assim sendo, Sr. DeCourse, acho que não tenho outra opção. Queira vir comigo… Temos que ouvir o seu depoimento. Esse caso precisa mesmo de uma injeção de informações
novas.
Estimulado pelo inspetor, Harrison tomou a dianteira. Havia um desdém enorme em sua cara. Os dois se afastaram pela trilha.
Fëll me observava pensativamente. No fundo, eu me senti muito orgulhosa de minha própria astúcia. Fëll limitou-se a acenar, na dúvida. Será que ficara ressentido?
Conclui que sim. Minha atuação devia tê-lo enchido de inveja. Um grande sentimento de paz me invadiu.
Devagar, voltamos para a pensão. Fëll caminhava automaticamente — parecia um boneco de cera ambulante. Quando entramos no quarto de Tomazelli, não respondeu ao ‘olá!’
jovial do italiano.
— Ué, que cara de enterro é essa?
— Nada demais — respondi. — Prenderam Harrison.
— É mesmo? — Tomazelli remexeu-se na cama. — O que ele aprontou dessa vez?
— Andou furtando umas coisas que não devia.
— E daí? Por que mio fratello Fëll ficou assim… afetado?
Dei de ombros. Fëll tinha se sentado e continuava cochichando. Parecia sonhador, ausente. Tomazelli sorriu e inclinou-se para frente. Fingindo cumplicidade, comentou:
— Tome cuidado, bambina. Você não devia ficar se associando com esses europeus de meia idade.
— Tenha dó — respondi no mesmo tom humorado. — O Sr. Fëll não tem cara de meia idade.
— Mais do que avisar eu não posso! Estou apenas tentando alertá-la.
O italiano viu que o detetive não lhe deu resposta. Virou-se para mim; pelo visto, sua provocação não dera nenhum resultado. Lembrou-se de outro assunto:
— Dizem que o Sr. Stenzley fez uns comentários estranhos esta manhã. Chega a ser cômico. Acho que ele citou até o livro de Provérbios: “Quanto aos maus, serão decepados
da própria terra”, ou outro versículo qualquer. Dizem ainda que ele falou o nome de uma Srta. “não-sei-o-quê”. Aquela que morreu vítima de um estrangulador psicopata.
— Srta. “não-sei-o-quê”? Está falando da sobrinha daquele industrial de Belmont-sur-Lausanne? O Sr. Stenzley vive dizendo que me pareço com ela. Ela foi morta por
estrangulamento? Pensei que tivesse sido insuficiência cardíaca.
— Sim, é isto mesmo. Mas ele repetiu isso muitas vezes! Todo mundo ficou chocado. Creio que toda essa loucura está mexendo com os nervos dele.
Meu senhorio tinha uma queda por aquelas fofocas. Deixei que ele falasse à vontade; logo seria a minha vez de falar, e era provável que — aí sim — as coisas se complicassem.
Quando Tomazelli terminou o assunto sobre o Sr. Stenzley, fiz uma pausa bastante longa; depois, com cautela, comecei:
— Não quero que o senhor se zangue comigo, mas já soube de quem é a arma que matou o Sr. Ehrack?
— Não, caspita! Ninguém me comunicou nada…
— A polícia consultou os registros e… bem, eles descobriram que a arma pertence…
Ouvi um forte acesso de tosse perto de mim.
— Creio que isso não seja importante, por ora — disse Fëll, saindo de seu torpor. — Sugiro que a senhorita não fale de descobertas extraoficiais. Antes de tirarmos
qualquer conclusão, precisamos rever as provas…
— Descobertas extraoficiais? — perguntou Tomazelli. — Aspetta um attimo! O que significa isso? Ah, não… Vocês não estão dizendo que… O revólver… Eu procurei o meu
por toda a casa… Foi com ele que o crime foi cometido?
Fëll olhou para mim com ar de censura.
— Creio, Carlile, que acabou de cometer o segundo engano do dia. Há algumas coisas que tem que ser analisadas duas vezes antes que se possa emitir um julgamento.
— Francamente, acho que o senhor está me rebaixando. Foi o próprio inspetor quem nos falou a respeito disso. E que história é essa de segundo engano? Qual foi o
primeiro?
Evidentemente eu estava zangada. Não gosto de ver as pessoas tripudiando de mim. Mas o austríaco não deixou por menos:
— O primeiro, senhorita, foi acusar um homem inocente de ser um ladrão de bijuterias. Isso, por si só, já é uma coisa grotesca. Qualquer um pode ver que aquele par
de brincos não valia mais que alguns centavos. E você disse que foi Harrison quem os surrupiou. Por quê? Para vendê-los? Isso não faz o menor sentido. Ou será que
ele pretendia dar um susto na irmã, por isso os pegou e sumiu com eles? É uma hipótese aceitável. Mas novamente surge a pergunta. Por que ele faria uma coisa dessas?
Por divertimento? Bullying? Tudo isso é perfeitamente possível. Mas por que essa bijuteria, sem nenhum valor comercial, apareceria lacrada no cofre do Sr. Ehrack?
Deve haver uma explicação melhor para isso. E posso lhe garantir que o roubo não faz parte dessa explicação. Pelo menos, não pelas mãos desse rapaz. Espero que a
senhorita medite nisso antes de sair por aí fazendo acusações sem o menor fundamento.
Fiquei impressionada com seu discurso.
Eu bem que tentei, mas Fëll não me deu oportunidades de responder. Como um pavão, dirigiu-se para a porta. Veloz como um raio, saiu do quarto.
Confidências
Eu acabara de fazer uma cova de uns quinze centímetros na grama quando escutei o farfalhar de passos atrás de mim; levantei a cabeça e vi o Sr. Stenzley se aproximando
do caramanchão. Apoiei-me na pá e esperei que ele chegasse mais perto. Confesso que nunca vira ninguém tão compenetrado e caminhando com passos tão lentos e inseguros!
Notei que ele vinha falando consigo mesmo.
— Que desgraça! Toda a culpa é minha… Mea culpa!
— Boa tarde, Sr. Stenzley.
Walter Stenzley parou a alguns metros de distância. Com algumas gordurinhas em excesso, era um tipo robusto, de braços peludos. Os lábios estavam arreganhados, e
uma cartola se inclinava sobre o crânio bem formado.
Espalmando os dedos no peito, revelou em poucas palavras o motivo de sua aflição. Não entendi bem o caso, mas era qualquer coisa relacionada à Harrison.
— É verdade que ele foi preso?
— Que eu saiba, não. Pelo que me consta, Harrison foi levado para prestar depoimento. Nada mais.
— Que homem desgraçado que eu sou! — suspirou o Sr. Stenzley. — Eu não devia ter falado com ele tão rispidamente. Acho que me tornei responsável por um crime, Srta.
Carlile. Sim, eu me tornei responsável por um crime.
Joguei a pá no chão. Ele tentou me impedir:
— Enterre primeiro os seus papéis, senhorita. Enterre-os. Estou aqui tomando seu tempo…
— São diários velhos — afirmei. — Estavam atravancando minha gaveta. O senhor falou em crime?
— Sim. O assassinato… Lamento dizer, mas estou começando a acreditar que sou o culpado por ele.
— Está querendo dizer que foi o senhor…
— Não, não fui eu, felizmente. O que estou tentando dizer é que posso ter uma participação indireta naquilo. Pelas coisas duras que falei para Harrison, você entende?
Eu nunca deveria ter feito o que fiz. Acho que as coisas que eu lhe joguei na cara…
— Está sendo muito evasivo, Sr. Stenzley.
— Tudo foi assim. Tive uma conversa séria com Harrison. Falei-lhe que eu tinha enviado bilhetes anônimos ao Sr. Ehrack. Bilhetes, senhorita, em que eu delatava os
atos homicidas dele.
— Atos homicidas?
— Há anos que sei de todos os fatos — disse o hoteleiro com tristeza. — Os DeCourse e eu morávamos na mesma cidade. Já narrei para a senhorita a história daquela
moça que morreu. A moça que foi estrangulada, lembra? Pois é, foi ele.
Senti uma corrente elétrica percorrer meu corpo.
— Foi ele, como assim? Quer dizer… foi Harrison? Não diga!
— Sim, se alguém me dissesse, eu também ficaria ressabiado. Mas essa não é a pior parte. Eu não tenho evidências para provar o que sei. Nunca pude pegar o homem
e botá-lo sob os gáudios da justiça. Tive que ficar apenas vigiando. Ao menor sinal de que saíra da linha, lá estaria eu, pronto para denunciá-lo… Todos esses anos,
entretanto, me amoleceram. Acabei perdendo a paciência. Resolvi falar com ele pessoalmente, e lhe afiancei que pretendia vê-lo atrás das grades. Ele riu. Respondi
que eu já havia remetido uma carta ao Sr. Ehrack, contando tudo a respeito dos atos criminosos de seu querido sobrinho. Vi que minha ameaça o assustou. É claro que
deve ter pensado nas consequências que lhe sobreviriam se o tio soubesse de tudo. “Se o Sr. Ehrack for justo”, acrescentei, “vai querer averiguar as coisas que você
fez. Aposto que ele vai querer saber toda a verdade. Você estará frito, meu rapaz.” Depois de lhe dizer isso, afastei-me dele sem ouvir a sua resposta. Só quando
eu soube do acontecimento é que compreendi que… Senhorita, fui eu que causei a morte do Sr. Ehrack!
— Sr. Stenzley, não seja tão melodramático — atalhei.
Embora ele não percebesse, eu estava exultante com a sua narrativa.
— O senhor acabou de solucionar um mistério. Aí está a razão por que Harrison remexeu na papelada sobre a escrivaninha do tio. Ele estava procurando a carta que
o senhor alegou ter escrito.
Com tato, não mencionei o fato de que não fora por causa do assassinato que tinham detido o carteiro. Por outro lado, Stenzley não pediu maiores esclarecimentos.
Estava mais calmo depois de seu desabafo.
— O pior é que não enviei o bilhete — deu um suspiro, antes de ir. — Se eu soubesse que um mero blefe trouxesse tanta desgraça, jamais teria dito o que eu disse.
Depois de ficar sozinha, joguei as coisas na cova, cobri tudo com terra e saí à procura de Edmund Fëll, ansiosa para compartilhar imediatamente os subsídios daquela
nova teoria. Mal, porém, havia andado trezentos metros quando, dobrando a esquina, um homem cruzou inesperadamente ao meu lado.
— Olá, Sr. Haggard! — cumprimentei.
O homem parou bruscamente. Virou-se e olhou para mim, os olhos franzidos. Finalmente sacudiu a cabeça e murmurou:
— Ah! Srta. Carlile…
As palavras saíram picotadas, profundamente convulsionadas. Percebi que minha abordagem havia mexido com ele. Uma ideia extravagante me ocorreu. Seria possível que
meu súbito aparecimento assustara o pobre mordomo?
— Dando um passeio? — perguntei.
Haggard se recompôs imediatamente.
— Sim, senhorita.
Fiz uma pausa deliberada. Observei o homem. Com infinita atenção, ele olhou fixamente para mim. Constrangido, revirou os olhos nas órbitas e, por fim, acabou confessando:
— Vou visitar a Sra. Gwenny-Ducker.
— Um chazinho é sempre bom, não é?
Dei um sorriso brejeiro. A isso, Haggard foi ficando muito pálido. Houve um tremor indelével em sua voz quando respondeu:
— Srta. Carlile, a senhorita é uma moça leal. Posso confiar na senhorita?
Fiquei um tanto confusa. Ele pousou a sua mão sobre meu braço e, num sussurro, acrescentou:
— Eu sei quem matou o Sr. Ehrack.
Por alguns instantes senti a garganta seca e o corpo paralisado. Esperei, contendo a respiração. Depois disso, tive uma reação da qual me arrependi amargamente mais
tarde. Em vez de fazer uma pergunta adicional ou adotar uma estratégia persuasória, fiz a última coisa que uma pessoa de bom senso faria: eu ri.
— Ora, Sr. Haggard, não brinque!
Ele balançou a cabeça em desagrado. Inclinando-se incisivamente para mim, fez uma careta bem feia.
— Eu jamais brinco, senhorita!
Não houve tempo para mais nada. Sem se importar com meus protestos, Haggard girou sobre si mesmo e, tomando o caminho que passava pelo parque, continuou sua marcha
rumo à casa da Sra. Gwenny-Ducker. Pela primeira vez, engoli em seco, furiosa. Com a partida do mordomo, senti-me dominada por uma sensação de frustração. Não tinha
a menor ideia do que fazer agora. Um sentimento de vaga inquietação tomou conta de mim. Por um minuto, tive a premonição de que eu havia acabado de deixar escapar
uma promissora pista para o prosseguimento de nossa investigação.
Encontrei Edmund Fëll na varanda da casa de Tomazelli, sentado entre as orquídeas. Sentei-me na outra poltrona, em silêncio. Eu sabia que havia uma ferida aberta
entre nós; a nossa última conversa fora tensa demais para que agíssemos como se nada tivesse acontecido. Fëll estava manipulando uma moeda e olhava alguma ranhura
invisível com a lupa! Esperei.
Grandessíssimo erro! Passaram-se vinte minutos e — antes que eu desse por mim — uma figura solitária abriu o portão do jardim. Por entre as flores, vi um chapéu
de cambraia branco vindo em nossa direção pela trilha de pedras. Toda corada por causa do calor, a Sra. Gwenny-Ducker fechou a sombrinha e sorriu muito satisfeita.
— Oh, vocês estão aí! — exclamou. — Pensei que teria uma tarde entediante, mas acho que me enganei. Oi, Katrina. Como vai? Sr. Fëll!
— Entre, entre — disse Fëll cordialmente. — Que bom que a senhora veio. Bitte, tome essa cadeira! Eu precisava mesmo falar com alguém.
Extraordinário, pensei comigo mesma. Ele precisava falar com alguém… Não é hilário?
Primeiro assunto: a reclamação da Sra. Basknell sobre sua exclusão na herança de Stephan Ehrack.
Judith fez que sim entusiasticamente.
— Para dizer a verdade, Anne Roselene é meio tantã. Brigar judicialmente por uma coisa que não é dela… Pobre Margret! Ficou tão abalada com tudo aquilo.
— Muito bom, Sra. Gwenny-Ducker — disse Fëll. — Anos atrás, quando morei na Maxingstrasse, em Viena…
— … o senhor elucidou o caso das caçarolas de alumínio do príncipe da Boêmia — atalhei, manifestando-me pela primeira vez desde que me sentara ali. — Eu sei que
não é educado o que vou dizer, mas a sua investigação está indo muito devagar, Sr. Fëll. Se o senhor quisesse seguir o clichê dos livros policiais, já deveria ter
reunido todos os suspeitos na sala de jantar e estar lá, dizendo quem é quem e o que cada um fez. Um detetive que se preza já teria feito isso!
Uma ligeira expressão de perplexidade transpareceu no rosto do austríaco.
— Querida, não seja tão maldosa! — disse Judith com um leve tom de censura. — O Sr. Fëll está fazendo tudo o que pode. Seja uma boa menina, sim? — Em seguida, ela
virou-se para Fëll: — O senhor sabia que quase adotei Katrina quando ela era desse tamanho assim?
— Eu… ah… hum… Wirklich?
— Sim. Depois que o pai dela morreu, arrumei um lugar para ela no orfanato. No início, eles não quiseram aceitá-la. Tive que ser firme, e disse: “Temos que entrar
num acordo. Não podemos deixar a situação rolar por dias ou semanas. Façam alguma coisa por essa menina!” O senhor compreende, as pessoas às vezes precisam de um
empurrãozinho para que se conscientizem de qual é seu papel na sociedade. Nós duas sempre fomos muito apegadas, não é, minha filha?
— Ahh! — exclamou Fëll. Refletiu um instante e então perguntou: — Por que a senhora não a adotou?
Judith inclinou a cabeça.
— Eu até que queria, mas Leonard se opôs. Katrina era uma fofurinha com aqueles bracinhos… e aquelas perninhas tão roliças!
— Ora, já chega! — protestei, passando os olhos nela para pedir que se calasse.
— E eu por acaso estou mentindo? As pessoas ficavam tão encantadas com você, Katrina! Fiz tudo o que a lei exigia, mas, no fim, Leonard não permitiu que eu fosse
adiante com o processo de adoção. Oh! Ele era um homem tão doce e, ao mesmo tempo, tão possessivo!
— Quem é Leonard? — perguntou Fëll, com rapidez.
Judith hesitou. Fëll olhava para ela com muita curiosidade e, para ser sincera, eu também.
— Era meu filho — balbuciou Judith, se perdendo em seus pensamentos. — Era um rapaz muito bonito. Particularmente, acho que ele tinha medo de dividir a mãe com uma
irmãzinha mais nova. Meu… meu pobre Leonard!
— A senhora fala como se algo tivesse acontecido a ele. O que foi? Ele saiu do país?
— Quem dera, Sr. Fëll! Meu querido filho… — Judith hesitou pela segunda vez e então declarou: — Meu querido Leonard… se matou.
Pessoalmente, soltei um assobio de espanto diante dessa revelação. Penso que, inconscientemente, o detetive também se espantou, mas, devido aos seus anos de contato
com casos semelhantes, ele conseguisse controlar melhor as suas reações fisionômicas.
— Se matou? O que a senhora quer dizer?
— Foi há muitos anos. Leonard estava vivendo o pior período de sua vida. Começou a emagrecer alarmantemente. Não conseguia superar a perda da esposa. Ficou deprimido…
Uma morte tão precoce, tão estúpida. Com um tiro de pistola.
Havia lágrimas nos olhos de Judith. Com um gemido, ela deixou-se afundar na cadeira. Fëll aproximou-se e ficou ao lado dela.
— Dou-lhe minhas condolências, minha senhora — disse em tom consternado.
O ar faltava em meus pulmões. Então, devagar e deliberadamente, sacudi a cabeça e murmurei:
— Agora que já abrimos o túnel do tempo, posso interrompê-los um pouco? Se me permitem, quero contar o que o Sr. Stenzley acabou de confessar para mim.
— Sicher, sicher…
Em poucas palavras, expus o que o hoteleiro havia conversado comigo. Terminei com a seguinte sentença:
— Pelo que vi até aqui, a Sra. Basknell está no alto da lista de suspeitos do senhor. Mas agora, com o que o Sr. Stenzley disse, as coisas mudam de figura, não é
mesmo?
Houve alguns segundos de silêncio entorpecedor.
— Quem disse que a Sra. Basknell está no alto de minha lista de suspeitos?
— Ora, eu tenho um cérebro… que, por sinal, funciona muito bem.
— Pois recomendo fortemente que a senhorita passe uma borracha nessa sua opinião — cortou Fëll, com voz agitada. — Venha o que vier, sou contra o aparecimento de
boatos mentirosos. Se quiser mesmo saber, a pergunta principal que eu me tenho feito tem a ver com a Srta. Helene DeCourse. Só com ela e ninguém mais.
— De que pergunta o senhor está falando?
— Por que a Srta. DeCourse disse ter certeza que a Sra. Margret Ebbington não é a culpada pelo crime?
— E daí que Helene tenha dito isso? Não sei por que razão o senhor dá crédito ao que essa falsa diz por aí! Helene é…
Eu quis acrescentar mais alguma coisa, mas, nessa hora, Fëll começou a folhear um caderninho de capa marrom, consultando com cuidado as suas anotações. Devia ser
muito organizado, pois, do meu lugar, notei que cada folhinha escalonava detalhes diferentes do caso.
Por alguns segundos, ficamos todos lá sentados, mudos.
— Alô! — eu disse, quebrando o incômodo silêncio. — O Sr. Haggard foi à sua casa, não foi, Judith querida? Estou desapontada com ele. Quando esbarrei nele, ainda
há pouco, ele me garantiu que tinha uma questão de máxima gravidade a tratar com a senhora. Mas, pelo visto, a coisa não foi assim tão importante. A senhora nem
sequer tocou no assunto até agora!
— O que está dizendo? — perguntou a Sra. Gwenny-Ducker. Havia um tom estranho na voz dela. — Manfred Haggard foi à minha casa?
— Sim. Encontrei com ele uns cinquenta minutos atrás.
— Onde?
— Perto do parque. Devo dizer que me admirei ao vê-lo todo arqueado, aquela corcunda nas costas como uma corcova de camelo. Que espetáculo! — e fiz uma descrição
do diálogo que eu havia mantido com o mordomo. — Seus olhos se estreitaram sombriamente e ele acrescentou: “Eu sei quem matou o Sr. Ehrack”. Bem assim! Oh! Foi muito
assustador…
— O quê? — Fëll olhou para mim com os olhos saltados. — O Sr. Haggard conversou com a senhorita? Cinquenta minutos atrás? E a senhorita não me disse nada? Por que
não me contou? Por quê?
Percebi instintivamente que havia algo de inusitado em sua reação. Comecei a sentir um gosto amargo na boca.
— Eu quis lhe contar — justifiquei —, mas o senhor estava aí, examinando o seu bendito denário!
— Bendito denário! Fora com o bendito denário! Quer dizer que o Sr. Haggard faz uma declaração… uma declaração de máxima importância… e a senhorita não me diz nada
porque, de acordo com os seus ultrapassados padrões femininos, não se deve interromper, em hipótese alguma, um homem entregue a seus hobbies, por mais imbecis que
esses hobbies sejam? Carlile, a senhorita não percebe? Isso não faz sentido… Não faz nenhum sentido!
Fëll parecia profundamente perturbado, o rosto completamente desfigurado. Notei que eu havia sido imprudente por não ter-lhe narrado logo tudo o que sabia. Nossos
olhares se cruzaram. A lente de seu monóculo chamejava como uma brasa.
Tomando uma decisão, virei-me esperançosamente para Judith:
— O Sr. Haggard falou com a senhora, não falou?
— Minha filha, eu não estava em casa — respondeu ela. — Acabo de vir do orquidário público. Oh! Adoro orquídeas. Com aquelas formas e cores variadas… Azuis, brancas…
Tão delicadas e tão belas!
— Então, a senhora não o viu?
Ela balançou a cabeça em negativa:
— Não.
— Das ist doch unglaublich! — exclamou Fëll, andando de um lado para o outro, num absoluto frenesi. — Tenho certeza que, o que quer que seja que o Sr. Haggard queira
com a senhora, está alinhado com nossos objetivos, afinal, trata-se de um assunto que se conecta fortemente com o caso.
“Uh-uh!” piou ele. Depois de sapatear freneticamente, virou-se para nós e deu o seguinte grito de comando:
— Los! Schnell! Temos que ir até lá imediatamente. E rápido.
A segunda morte
A sua ordem, aliada ao profundo desapontamento produzido por minha revelação tardia, além da inequívoca insatisfação estampada em seu olhar, foram minha maior chateação
daquele dia.
De pronto, o austríaco saiu andando em largas passadas. Juntei-me a Judith e, amparando-a pelo braço, seguimos o exaltado detetive que, com interjeições de estímulo
para nós, tomou nossa dianteira até Haydhée Haus. Chegados lá, Fëll irrompeu pelo portão, olhando logo de um lado para o outro, a fim de ver se Haggard estava nas
redondezas.
— A porta da casa está destrancada? — perguntou, inclinando as costas muito para frente.
— Não — bufou Judith, assim que o alcançamos. — Eu a tranquei… quando saí.
— Está certa disso?
— Mas é claro — respondeu ela um tanto impetuosamente.
Fëll mexeu a cabeça, pensativo. Olhou em volta. Os lábios ondularam. Olhei para ele, tentando perscrutar o seu rosto, tentando entender o que se passava nos recessos
de sua mente. Parecia que seu ímpeto inicial havia sofrido um duro revés com a resposta de Judith. Mas, em vez de se render às circunstâncias, e admitir que Haggard
talvez não estivesse mais ali, seus olhos miraram o cascalho, à procura de qualquer indício invisível que pudesse existir ali.
— Deve haver algo mais — murmurou baixinho. — O homem vem aqui… disposto a desabafar com alguém. Sim, disposto a se abrir com alguém. Ele entra… mas não encontra
ninguém. O que ele faz a seguir? Vai embora? Não, não… Se fosse eu, ficaria em algum lugar. Se fosse eu, esperaria até que a pessoa voltasse. Huh! — o berro saiu
quase espontaneamente de sua boca. — Sra. Gwenny-Ducker, há alguma outra entrada na casa?
A urgência desesperada do momento dava um poder maior à sua voz.
— S-sim… A porta lá de trás.
— Huh!
— O que está havendo? — perguntei.
Vi o brilho temível nos olhos de Fëll, mas senti-me aliviada quando este respondeu em tom amável:
— Não sei, não sei.
— Então por que todo esse alarde?
Como uma lebre, ele saiu pulando e, seguindo a trilha de cascalho, circundou a construção. Com ar que me parecia próximo à afetação, Fëll fitou o chão com expressão
absorta, depois o jardim, a casa e a cerca viva que delimitava os fundos do terreno. Terminada a sua inspeção, ele parou em frente à segunda porta da casa.
— O que está acontecendo, Katrina? — perguntou Judith, soltando um gemido abafado. — O que está acontecendo?
A pergunta era mais do que justa. Até para mim, era difícil reconhecer um padrão identificável no comportamento do detetive.
— Fique calma… — sussurrei eu, temendo que ela acabasse tendo um faniquito.
Fëll empurrou o ferrolho da porta, que se abriu para dentro. Um som alto e distante das dobradiças, quase ridiculamente estridente, foi ouvido. Ele sacudiu a cabeça
e, em seguida, entrou. Ainda segurando Judith, fomos atrás dele.
Um corredor curto, de assoalho de tábuas corridas, levava à cozinha e às dependências de serviço. Havia duas portas, uma à direita e outra à direita. Uma das portas
dava para a sala de jantar; a outra, para um aposento onde havia uma lareira. Entramos por ela e então, sem aviso, encontramos o velho Haggard.
O mordomo estava sentado no sofá rente à parede. Ele tinha as mãos crispadas e os braços abertos, mas as pernas estavam esticadas. Fëll chegou perto do homem e,
ajoelhando-se, examinou-o atentamente. Ele ergueu as sobrancelhas. Teve de esforçar-se para reprimir uma ideia que lhe esvoaçava pela cabeça.
— Está morto — anunciou Fëll secamente.
Quando ele pronunciou essa sentença, senti uma pontada de dor rasgando meu peito. Não! Aquilo não era possível.
— Como assim… morto? — perguntei, quase sem conseguir falar.
— Morto, senhorita — disse Fëll com naturalidade. — Veja, alguém desferiu uma pancada aqui… Na parte mais sensível da nuca. A julgar pela marca roxa na pele, foi
um golpe único, fatal. Creio que não resta dúvida de que este aqui é o móvel do crime: o atiçador de fogo.
Os fatos pareciam bastante eloquentes.
A janela de vidro deixava penetrar uma claridade ofuscante e certeira, que emprestava a tudo uma tonalidade amarelada, acentuada pela asseada limpeza feita semanalmente
por Juli no aposento. Através desta janela, o sol batia em cheio no corpo. Havia um ferimento na nuca do homem, um hematoma circular e em carne viva. As evidências
falavam por si mesmas — alguém andara batendo no pobre mordomo, mas com tanta força que acabara por matá-lo. Haggard estava inclinado ligeiramente para o lado, e
quem o observasse de longe acharia que ele estivesse dormindo tranquilamente.
Judith tremia incontrolavelmente, em estado de choque. Balbuciava qualquer coisa, como uma criança apavorada. Fiquei parada ao seu lado, segurando-a gentilmente
pelo braço.
— Mas como? Por Deus! Quem fez essa monstruosidade? Quem? E por quê?
— Está aí o que eu também gostaria de saber — disse Fëll. — Talvez a chave do mistério esteja naquilo que a Srta. Carlile acabou de revelar para nós. Possuo algumas
suspeitas, mas por enquanto não tenho elementos para sustentá-las. E… ah! Was abscheuliches! O que temos aqui?
Fëll pinicou até a porta indicada e analisou a fechadura. Ou pelo menos foi essa a impressão que tive! Violentamente inflamado, ele chacoalhou a cabeça e acrescentou:
— Jawohl! Tudo deve ter acontecido como eu imaginei. Por favor, se aproximem, não há por que ter medo. Estão vendo aqui? Este vidro já estava trincado, Sra. Gwenny-Ducker?
— N-não, acho que não…
— Pois agora está trincado.
— O que o senhor quer dizer?
— Não conseguem adivinhar? Tudo é muito cristalino. Cristalino como água. Acompanhem meu raciocínio… Esta tarde, Haggard está cuidando das tarefas, talvez limpando
a cristaleira ou os livros da biblioteca da casa. Então, num súbito assomo de inspiração, ele se lembra de alguma coisa que viu ou ouviu em algum lugar. Alguma coisa
de máxima importância. Haggard reflete naquilo. O que ele pode ter visto? Ou ouvido? Talvez tenha sido um gesto que alguma pessoa fez, ou alguma palavra que alguém
disse, ou uma atitude de uma mulher ou um olhar que certo homem deu. Na hora tudo parecera muito normal, mas agora, pensando melhor… Haggard fica remoendo aquilo
consigo mesmo. É provável que ele estivesse dizendo: “Sim! Como é que eu não pensei nisso antes?” Deve ter sido nesse instante que ele descobriu quem era o assassino
do Sr. Ehrack. Assim, é lógico que só havia uma coisa a fazer. Era preciso expor as suas suspeitas para a polícia. Mas então um obstáculo se interpõe: será que acreditariam
nele? Que prova poderia apresentar em favor de seu depoimento? Ele não tinha provas. Haggard percebe que precisa de ajuda, e existe apenas uma pessoa em quem ele
deposita inteira confiança — na Sra. Gwenny-Ducker. Deve ter sido uma decisão difícil, mas por fim o bom senso prevalece. Ele larga tudo e vem para cá, atrás de
um conselho maduro e ponderado a respeito do seu drama interior. Chegando aqui, porém, ele vê que a senhora não está em casa. Não sabemos a sequência dos acontecimentos,
mas pode ter sido nessa hora que uma pessoa passa pela calçada. Haggard fica surpreso — é exatamente essa a pessoa que ele sabe que é a culpada pela morte de seu
patrão! O céu desaba: a pessoa K, ali à sua frente, foi quem matou o Sr. Ehrack! O que ele deve fazer? Existem duas opções: ou ele fica quieto, e espera para falar
com a Sra. Gwenny-Ducker mais tarde, ou, no cúmulo da coragem, ele pode enfrentar K e tirar vantagem das coisas que sabe. O mordomo escolhe a segunda opção; sacando
o celular, ele faz a ligação para a senhora. Enquanto K está de pé ao seu lado, Haggard diz em voz alta que sabe quem é o assassino de Stephan Ehrack. Estão percebendo?
Essa é uma autêntica jogada de chantagista. O que o mordomo quer com isso? Ele quer que K ouça a sua declaração e, se conseguir amedrontá-lo, talvez exigir em troca
de seu silêncio uma quantia em dinheiro. Dinheiro para não delatá-lo, para não ir à polícia com o que sabe. Mas algo sai errado. Em vez de se acovardar, K age com
fria determinação. Em vez de se reprimir, K sela o destino de Haggard. Fingindo que aceita esperar na sala pela vinda da senhora, o assassino entra na casa com o
mordomo. Sem hesitar, ele agarra o atiçador de fogo e golpeia o homem com extrema violência. Depois, talvez admirado com a própria audácia, K se desespera e sai
rapidamente daqui. Na pressa, bate desajeitadamente a porta, o que explica o vidro partido. Em suma, esses devem ter sido os eventos principais.
— Não quero contradizê-lo, Sr. Fëll — respondi teimosamente. — A sua reconstrução dos fatos é muito verossímil, e tenho que lhe dar os parabéns. Mas dizer que o
velho quis chantagear o criminoso… Não, aí o senhor está extrapolando!
Ele me dirigiu um olhar de mais completa piedade.
— A ganância é a mãe da corrupção e do suborno, senhorita.
— Mesmo assim, eu…
— Isso não importa, por enquanto — atalhou o austríaco. — Depois vamos reexaminar tudo. Ligue para o inspetor Radke, Srta. Carlile. Diga-lhe que venha o quanto antes.
Sim, que ele traga um médico… Precisamos de uma opinião abalizada sobre esse assassinato.
Para mim, Fëll estava agindo sem um destino definido. Mesmo assim, saquei meu celular. Quando Radke atendeu e eu consegui explicar o que havia acontecido, a linha
ficou muda do outro lado. Achei até que a ligação tivesse caído.
— Alô?…
— Continue, Srta. Carlile.
— Ah, que bom! O Sr. Fëll me pediu que o senhor trouxesse um médico… Ele crê que já sabe como o crime aconteceu, mas diz que pretende ouvir uma segunda opinião.
— Lógico, lógico… Já estou indo. Cuidem para que nenhuma prova seja retirada e que a cena não seja alterada. Quanto mais o local estiver igual ao momento em que
aconteceu o crime, mais fácil será o trabalho da perícia, que é fundamental para a comprovação de como ocorreu o crime e buscar provas que levem ao seu autor, ouviu?
Uma partícula de pó fora do lugar pode comprometer toda a nossa busca.
— Entendido… Não mexer em nada. Tchau.
Desliguei, aliviada.
— Und? Was hat er gesagt?
— A mesma prédica de sempre! Disse que já vem, e que nós isolássemos todo o perímetro.
Imaginei que o austríaco se ofendesse com essa orientação. Em vez disso:
— Muito sensato — concordou. Deu uma fungada: — Cuide de sua amiga, Carlile. Acho que devia levá-la daqui. Veja se tem algum tranquilizante na cozinha. Ficarei aqui,
tomando conta do lugar.
Fëll piscou o olho para mim, brejeiramente. Bolas! Estava mentindo descaradamente.
Conduzi Judith para a cozinha, atrás de algum medicamento para a sua tremedeira. Puxei-lhe uma cadeira e ela sentou-se, desolada, tentando estancar as lágrimas enquanto
balbuciava algo incompreensível.
— Manfred… Manfred… — gemeu Judith. — Ele sempre foi tão inofensivo… Quem seria tão cruel a ponto de abrir a cabeça dele?
— Ninguém abriu a cabeça dele, querida. Foi só um golpe de sorte. Literalmente. Alguém acertou bem onde não deveria. Há algum remédio aqui?
— Olhe a porta do meio… Katrina, um home foi morto na minha sala de visitas! Deve ter sido aquele marginal que fez isso.
— Que marginal?
— Harrison. Aquele rapaz conviveu com a dor, todas aquelas tragédias na família, ficou órfão muito cedo, sofreu tantas coisas. A dor e o sofrimento, a miséria e
a pobreza… Agora ele está aí, punindo as pessoas por isso.
— Acha que Harrison é mau porque perdeu os pais na infância e se criou solto pelo mundo, sem quaisquer responsabilidades? É claro que não! E quanto a mim? Eu também
sou órfã. Eu nunca cunhei nada. Nunca fui solidária com ninguém. Toda vida não passei de uma covarde! No entanto, não saio por aí matando as pessoas de que não gosto.
Tome!
— Obrigada… Odeio essas pílulas! Tem gosto de pistache. Eu sei por que está defendendo esse rapaz, Katrina. Você sabe que Susie gosta dele. Ela sempre foi apaixonada
por ele. Ela sempre teve uma paixão louca e doentia por ele.
— Fique quieta! Não quero que o Sr. Fëll a ouça… Ele pode acabar acreditando em suas alucinações.
— E não deveria? Acha que não sou uma boa juíza? Ah, minha doce Katrina…
Judith sabia mesmo me constranger! Dei uma desculpa qualquer e, saindo de fininho, voltei para a sala. Fëll tinha saído para o jardim e colhia indícios na área externa
da mansão. Como uma fuinha, ia de um lado para o outro, remexendo o saibro com os pés. Pela cara de desânimo, não devia estar tendo muito êxito.
— Nada?
Fëll teve um sobressalto e se virou.
— Nein, Carlile. Quem perpetrou o crime foi inteligente o bastante para apagar todos os vestígios de sua passagem.
— Que pena, hein? Teria sido melhor se o assassino tivesse deixado cair um cartão de identificação ou um lenço perfumado com Chanel n. 5.
Radke surgiu no canto do caminho. Aproximou-se de nós, arquejante. Devia ter vindo numa velocidade supersônica para estar ali tão depressa.
— Aí estão vocês! Eu bem que achei que tinha ouvido vozes… Pois bem, quer dizer que foi a vez do mordomo? Já avisei o doutor Ritterbuch; ele virá daqui a pouco.
Onde está o corpo?
— Lá dentro… Escute, inspetor. — Fëll hesitou, depois disse: — Quando tivermos terminado aqui, temos que descobrir onde estiveram as seguintes pessoas esta tarde.
O Sr. e a Srta. DeCourse, a Sra. Basknell, a Sra. Ebbington e o Sr. Stenzley. Vamos examinar os álibis, ver se alguma delas fez algo secreto, clandestino. Creio
que aí esteja a resposta para nossas interrogações.
— Conte comigo — respondeu Radke. — Mas diga, acha que uma delas eliminou o velho Haggard? O que exatamente aconteceu aqui esta tarde?
Fëll contou tudo, sem omitir nenhum detalhe. Radke ouviu até o final, depois perguntou para mim:
— A senhorita confirma a sequência dos fatos?
— Sim.
— Ótimo. O nosso ponto de partida, portanto, é descobrir quem estava com Haggard quando ele entrou na casa?
— Basicamente isso.
— Entendo… Acho que devíamos interrogar os vizinhos. Se bem que, como veem, talvez seja inútil. Cerca viva alta, arbustos, uma sebe… É, vai ser difícil. Mesmo que
tenha havido uma movimentação estranha no jardim, é pouco provável que alguém tenha chegado a ver alguma coisa. Por outro lado, qualquer tentativa é válida. Bem,
posso ver a vítima?
Radke se limitou a fazer uma análise visual da cena do crime. Ciscou, deu alguns grunhidos, olhou cuidadosamente o atiçador de fogo. Por fim, disse:
— Eu temo que tenha razão, Sr. Fëll. Foi uma queima de arquivo. Algo feito sem planejamento. Oportunismo, frieza… Obra de alguém que parece ter se habituado a matar
impunemente. E que sabe agir quando deve. Temos que encontrar uma solução para essa patuscada, e quanto mais rápido melhor.
O Dr. Ritterbuch chegou pouco depois. Enérgico, disse:
— Boa tarde! Até que enfim, o tempo abriu. Depois de tanta chuva, até que estávamos precisando de um pouco de sol, não?
Tocou no mordomo como um açougueiro que estivesse inspecionando um pedaço de alcatra bovina. Seus olhos sombrios não mostravam a menor emoção. Quando falou, seu
veredito foi totalmente impessoal.
— Uma concussão na nuca… Causada por um objeto duro, possivelmente de ferro. O homem não ofereceu qualquer defesa… Hum, pela temperatura corporal, não está morto
há muito tempo.
— Que gênio! — sussurrou Radke.
Havia um atrito de personalidades entre Ritterbuch e o inspetor. Ambos divergiam sistematicamente em quase tudo.
— Vou fazer a autópsia e depois enviarei o boletim ao seu departamento, inspetor — disse Ritterbuch. — Se a coisa continuar nesse ritmo, teremos uma morte atrás
da outra na vila. É de se rir… Sim, é de se morrer de rir…
— Acha isso engraçado, doutor? Nunca pensei que o senhor diria uma coisa dessas.
— Não, inspetor, você não está me entendendo. Eu não estou me referindo aos assassinatos… Eu me refiro aos comentários que as pessoas fazem por aí. Elas estão ficando
zangadas com a polícia, dizem que toda a investigação acabará dando em nada. Imagine que hoje de manhã tive uma visita em meu consultório… Uma visita muito ilustre,
sim senhor. Foi traumático, para dizer o mínimo.
— Ah, é? Quem é que esteve lá?
— O Sr. Stenzley. Ele é um homem bem falastrão, como vocês sabem.
— Stenzley? O proprietário do Três Empenas, suponho. O que ele queria?
— Ele disse que ia passando e decidiu entrar. Fiz de conta que acreditei nele. Vi pela cara dele que estava chateado com alguma coisa. Perguntei se estava com algum
problema — não sou homem de fazer muitos rodeios! “Eh, raça desprezível!”, respondeu Stenzley. “Imagine o senhor que, no passado, nunca fui importunado por ninguém.
Agora parece que virei alvo da polícia. Todo dia, de manhã ou à tarde, estão lá no hotel. Eles já vêm fazendo perguntas, assustando os meus funcionários, exigindo
que respondam coisas de que nunca ouviram falar. Que corja!” Foi essa a expressão que ele usou — corja! “O que esses investigadores querem é se autopromover. Acho
até que virei suspeito desses assassinatos. Bah, que comédia! Como se eu fosse capaz de assassinar alguém!” Calculem o meu espanto ao ver aquele homenzinho pulando
pelo consultório como um esquilo! Quase caí na gargalhada…
— Para mim, esse homem é maluco — resmungou Radke. Detestava ouvir qualquer referência negativa contra a classe policial. — Se Stenzley tivesse a consciência leve
não ficaria tão incomodado conosco. Podemos remover o corpo agora, doutor?
— Sim, sim… Eu mesmo cuido disso.
— Outra coisa. Dê uma assistência para a Sra. Gwenny-Ducker. Vi que ela ficou um pouco transtornada com esse acontecimento horroroso. Talvez devesse receitar um
calmante…
— Está bem… Vou providenciar tudo.
Ritterbuch se afastou para dar um telefonema.
— Obrigada, inspetor — disse Judith. Estava de pé atrás de nós, e evitava olhar para o sofá. — Pobre Manfred… A vida toda esteve a serviço dos Ehrack. Eu lhes rogo!
Vocês têm que fazer alguma coisa… Têm que fazer!
— Nós faremos, minha senhora. Se me dá licença, vou deixar o doutor cuidando do resto das coisas. Alguém quer vir comigo? Agora que já vimos o que havia para ver,
acho que nossa presença aqui é dispensável. Poderíamos nos ocupar com o inquérito propriamente dito.
— Wunderschön! — disse Fëll. — Eu irei.
— Eu também — respondi.
— É assim que se fala! Vamos, temos um emaranhado de nós para desatar.
Despedi-me de Judith, que me garantiu que ficaria bem, e me juntei aos dois homens que saíam. Tive pena de minha amiga, tão minúscula naquela mansão. Ainda mais
agora, depois da tragédia em sua sala de estar!
Balancei a cabeça para espantar os maus pensamentos. “Cada um deve levar a sua própria carga”, argumentei comigo mesma. “Uns levam mais peso, outros menos.”
Na rua, Radke dirigiu-se para o austríaco:
— Sr. Fëll, pelo que percebi o senhor está bem inteirado do caso. Embora não seja um procedimento regular, vou tomá-lo como meu consultor particular. O que propõe
que façamos por primeiro?
— Pois muito bem — disse Fëll, lisonjeado. — Vou aceitar a sua proposta. Sugiro que, inicialmente, falemos com os irmãos DeCourse. Dependendo do que eles nos disserem,
veremos quais serão nossos passos seguintes.
Os DeCourse
— Vocês deveriam receber um troféu! Ontem me arrastaram porque acharam que eu havia roubado o diamante da Rainha da Hungria. O que é que descobriram? Absolutamente
nada! Puderam provar que eu faço parte de uma rede de contrabando internacional? Não puderam. Cheguei a pensar… pobre de mim!… que teria um pouco de espaço hoje.
Mas quando olho para fora, o que é que eu vejo? Vocês outra vez aqui! Isso está ficando pior do que perseguição.
Harrison andava pela sala, os braços levantados, inconsolável. Tinha o cabelo desgrenhado, mas mesmo assim os traços de seu rosto continuavam tão belos, tão naturais!
Ele olhou venenosamente para mim:
— A culpa é toda sua, Katrina. Foi você quem me meteu nessa roubada.
— Eu, Harrison? Como é que você pode dizer isso? Eu jamais faria qualquer coisa que pudesse feri-lo. Você sabe disso!
— E acha que devo acreditar nisso?
Fëll balançou a cabeça. Não estava muito a fim de ouvir aquelas explosões de insatisfação do rapaz:
— Pois eu sugiro que acredite nela. Carlile não tem nada a ver com a nossa vinda para cá. Viemos por outro motivo.
— Outro motivo… E qual seria? Não, deixe-me adivinhar! Morreu mais alguém, é isso? Quem foi dessa vez? A Sra. Basknell? A Sra. Gwenny-Ducker? Até que seria interessante!
— Sim, morreu. Mas não foi nenhum deles. Foi Haggard, o mordomo de seu tio, Sr. DeCourse.
Harrison parou, e olhou fixamente para o detetive.
— Sr. Fëll!
Por alguns segundos, pensei que ele estivesse fraquejando.
— Acabamos de encontrá-lo. Alguém o agrediu com um pedaço de ferro. O golpe foi forte o bastante para quebrar-lhe o pescoço. Morte no ato.
O rapaz engoliu em seco, subitamente mais manso.
— Mas isso é ridículo! Por que alguém mataria o velho?
— É essa a nossa pergunta, meu jovem.
— Vocês estão de sacanagem… Acho que vieram falar com a pessoa errada. O que é que eu posso responder a vocês? Eu nunca soube o que se passava naquela casa. Titio
era um déspota, um imperador sentado no alto de seu trono de glória. Deve ter feito uma porção de inimigos. Praticamente qualquer um poderia ter planejado a morte
dele.
— Dele sim — disse Fëll, complacente. — Mas eu lhe proponho outra questão, Sr. DeCourse. Mesmo que seu tio tivesse um inimigo ardoroso (o que seria normal em seu
ramo de negócios), por que Haggard foi morto esta tarde? Isso nos leva a apenas uma conclusão: quem intencionou e executou os crimes é alguém muito próximo da família.
Alguém que seria preso com facilidade caso as provas arroladas fossem entregues para a polícia.
— Começo a entender. Deixe-me traduzir o que vocês estão dizendo. O que vocês estão dizendo é que eu, por ser parente do soberano Sr. Ehrack, posso muito bem ser
o responsável pela sua morte súbita e lamentável! É mais ou menos isso?
— Jawohl, ganz so ist es.
Radke se remexeu, pouco à vontade. Não gostava daquele estilo de perguntas. Acho que era mais conservador; preferia não ser tão direto em suas abordagens.
Para nossa surpresa, Harrison não se irritou com a resposta de Fëll. Fechou as mãos e tomou a poltrona do centro.
— É justo… Sim, muito justo. Muito bem, prossigam.
— Tenho que elogiá-lo por sua sensatez, Sr. DeCourse. Um espírito altruísta sempre é melhor do que a obstinação. Vamos começar pelo início, como se diz: o que o
senhor fez esta tarde?
— Deixe-me ver… Depois do almoço, até às 3 horas, estive no correio. Não havia entregas, apenas o trabalho de catalogar as correspondências e despachar as remessas.
Depois vim para casa, mas vi que Helene não estava aqui. Lembrei-me que, dias atrás, havia levado meu disc player para a eletrônica. Fui para lá, mas dei bobeira,
pois o técnico disse que o aparelho não estava pronto, que faltava vir uma peça não sei de onde — aquela enrolação de sempre! Saí de lá, andei um pouco para ver
as vitrines, e vim para cá. Resumindo, acho que foi isso.
— Foi para a eletrônica? É uma indicação um tanto vaga, meu jovem!
— Vaga ou não, essa é a verdade. Perguntem ao atendente. Ele é meio sonso, mas garanto que se lembra de mim.
— Perfeitamente, perfeitamente. Agora vamos falar de sábado à noite. Conforme já sabe, o senhor foi visto lá na praça. A quem precisamente estava esperando?
— Deduza o senhor mesmo — respondeu Harrison rapidamente. — Os peões estão todos na mesa. Creio que não preciso dar nenhuma pista…
— Está apelando para minha habilidade de dedução? — perguntou Fëll. — Pois muito bem, não vou fugir de seu desafio. Era Susie.
— Era Susie o quê?
— A pessoa que você estava esperando. Para ser sincero, tal constatação me deixa um pouco triste. Isso significa que a moça mentiu para nós. Ela disse que, naquela
noite, havia ido passar algum tempo na floricultura. O fato é que ela esteve com o senhor, Sr. DeCourse.
— Ela disse que havia ido para a floricultura? Quer dizer que vocês conversaram com ela… Quando?
— Vamos com calma… Somos nós que estamos fazendo as perguntas. Se disser o que vocês dois tramaram no sábado, talvez possamos revelar quando foi que estivemos com
ela.
Harrison sorriu.
— Eu chamo isso de chantagem, mas tudo bem. Nós não tramamos nada. Ela tinha ouvido a minha discussão com titio, aquele psicótico! Ligou para mim e disse que queria
falar comigo. Achei uma bobagem, mas não encontrei uma justificativa para recusar.
— Poderia nos dizer qual foi o assunto em pauta?
— Por que não? Ela apenas me pediu que eu tivesse paciência.
— Paciência… Por quê?
— Não sei. Acho que ela quis me consolar, sei lá.
— Vamos recapitular essa parte. Susie lhe pediu que você tivesse paciência. Julga que isso quer dizer que ela pretendia, de alguma forma, matar o pai dela?
— Não, não! Longe de mim. Minha prima é meio doida, mas não é nenhuma assassina.
— Depois disso, o que vocês fizeram?
— Nos separamos. Cada um tomou o seu rumo.
Fëll fez um aceno.
— Se me permite, gostaria de saber outra coisa. O relógio que encontramos no chafariz… Ele era mesmo seu, ou você fingiu por algum motivo particular?
— O senhor parece um carrapato, Sr. Fëll. Quando acerta uma veia, suga até exaurir a vítima.
— Dies ist ein gutes Beispiel! Agora vamos ver se a resposta é tão boa quanto a ilustração.
— Eu penso que o senhor desconfiou de mim por causa das iniciais. Eu me rendo!
Nunca saberemos qual seria a alegação de Harrison. Subitamente ouvimos uma voz feminina lá fora e, antes que o inspetor conseguisse chegar à porta, Helene entrou
precipitadamente na sala, os braços carregados de compras. Quando nos viu, parou em seco:
— Oh, desculpem… Eu não sabia que tinha gente!
— Srta. Helene! — disse Fëll com ar de alegria. — Que prazer em revê-la. Precisa de uma ajuda?
— Deixem que eu faça isso — disse Harrison. Levantou-se: — É para essas coisas que servem os irmãos. Ainda mais quando eles têm uma irmãzinha que gosta de esbanjar
dinheiro no bazar.
— Harrison! — exclamou Helene com irritação. Jogou-se na poltrona como se tivesse acabado de cruzar a Via Ápia. — Que jeito de falar… Você parece um troglodita!
Ufa… Ir a pé acaba com a gente. Eu por mim já teria comprado um automóvel há tempo. Uma mulher de classe como eu não merece essa canseira! Outro dia encontrei varizes
em minhas pernas, vocês acreditam nisso? Que horror! Eu, nessa idade, com varizes… Olhem, aqui estão! Não é o cúmulo?
Sem o menor pudor, ela suspendeu a barra da saia e mostrou a perna direita. Apontou um lugar indefinível na pele, muito senhora de si.
O rosto de Fëll ficou rijo. Achei que dessa vez ele iria surtar.
— Creio que poderíamos deixar o strip-tease para outra hora, Srta. DeCourse — disse Fëll envergonhado. — Temos coisas mais urgentes para tratar.
— Certamente, certamente. Eu só estava… Bem, é melhor deixar isso de lado. O que vocês vieram falar com meu irmão?
— O fato é que tivemos outro assassinato, senhorita. Estamos atrás de indícios, se é que a senhorita me entende.
— Outro assassinato? Quem… Quando…
Os olhos de Helene ficaram lacrimosos. Ou ela estava mesmo surpresa ou era realmente uma boa atriz.
Fëll fez um novo relato dos acontecimentos da tarde. Depois justificou:
— Estamos aqui para obter qualquer informação que puder nos dar, senhorita. Talvez tenha visto alguma coisa que queira compartilhar conosco, ou tenha ouvido uma
revelação da boca de outra pessoa.
— Deve me perdoar, Sr. Fëll, mas acho que não vão poder contar comigo. Fui às compras, é verdade, mas não fui pela rua da mansão de titio. Se alguém entrou lá, eu
não sou a pessoa ideal para falar disso.
Fëll inclinou-se em sua direção, procurando ler os traços de seu rosto.
— Senhorita, acho que está havendo um mal-entendido. O crime não ocorreu na casa dos Ehrack. Tudo aconteceu na mansão da Sra. Gwenny-Ducker, durante a ausência da
dona da casa. A caminho do centro a senhorita passou ali perto, não foi?
— Que coisa sensacional! Eu sou mesmo uma perfeita idiota. Eu vi Haggard indo para lá… quer dizer, na hora eu achei que o homem que vi tinha certa semelhança com
ele. Agora que o senhor citou esse incidente… Sim, era ele mesmo. Caminhava todo torto, com o corpo encurvado para frente.
— Ele também a viu?
— Não. Ele estava de costas, e mesmo assim só o vi de relance.
— Posso saber o que pesa sobre nós? Vocês não parecem muito convencidos de nossa inocência — disse Harrison.
— E não estamos — respondeu Fëll. — O que me deixa encucado são as imprecisões nesse caso. Por exemplo, por que seu tio lhe deu a furiosa repreensão naquele dia,
Sr. DeCourse? O que você remexia na escrivaninha dele para causar aquela explosão de raiva? E por que ele o suprimiu de seu testamento?
— Olha, como é que o senhor quer que eu saiba? Ele estava ficando gagá… Achou que eu não devia figurar entre os herdeiros, que eu não era bom o bastante, e ele fez
o que fez.
— É uma explicação muito simplista. Deve haver um motivo maior por trás disso.
Harrison estava sentado comportadamente ao lado da irmã. Pensei no que Stenzley me dissera horas antes. Seria esse rapaz (bonito e simpático) um homicida? Teria
ele matado aquela moça?
“Susie tem uma paixão louca e doentia por ele!”, tinha falado Judith. Seria mesmo? O que eu devia fazer? Contar ao inspetor e a Fëll a acusação feita pelo hoteleiro?
Ou não?
Gemi no íntimo.
— Tudo bem, Carlile? Ficou tão branca de repente.
— N-não é nada. Foi só uma pequena vertigem. Já passou.
Fëll fez uma pausa. Fitou-me demoradamente, depois se ergueu, dando por encerrado o interrogatório:
— Queremos agradecer aos dois. Gostaria de propor só mais uma questão: o que fez sábado à noite, Srta. DeCourse?
— Essa é demais! O senhor não está achando… Não, como é que pode? Desde quando comecei a integrar a lista negra de vocês?
— Devíamos excluí-la?
— Que pergunta! É claro que sim.
— Algum álibi?
— Eu estive aqui o tempo todo… Harrison pode testemunhar a meu favor.
— O que seu irmão disser não vale como álibi. Ele saiu naquela noite, portanto não pode falar em sua defesa.
Não pude conter certo regozijo quando percebi Helene revirar os olhos, contrariada. Por causa de seus encantos físicos as pessoas geralmente se prostravam diante
dela. Mas Fëll não ligava a mínima para isso. Lei era lei — não havia complacência para ninguém.
— Bem, nesse caso acho que nossa conversa termina aqui, senhores… Se o que Harrison tem a dizer não tem nenhuma serventia, por que ficar nesse chove não molha? Peço
que me deem licença, vou trocar de roupa.
— Sem problema, senhorita. Guten Tag!
Harrison acompanhou-nos até a porta. Estava um pouco ruborizado, talvez com vergonha das palavras bruscas da irmã. Saímos.
— Que dupla de espertalhões! — disse Radke. — Vêm de fora, se instalam numa casinha de bonecas, assediam o Sr. Ehrack com pedidos de empréstimo de dinheiro… Dois
autênticos piolhos da sociedade.
— Eh, eh… Que amargura é essa, inspetor?
— Eu sinto ódio dessas coisas, Srta. Carlile. Uma pessoa que nasce em berço de ouro devia dar exemplo, não esse show de promiscuidade e preguiça.
— É, faz sentido. A única coisa de que não gostei foi da pele de Helene. Aquela perna dela… Branca como manteiga. Coitada, ela devia ir mais vezes à praia.
Caminhando a alguns metros de nós, Fëll não se interessou pela coloração da pele da Srta. DeCourse. Estava com o espírito muito longe dali. No que estaria refletindo?
Radke acelerou o passo e emparelhou com o austríaco.
— Creio que tivemos um fracasso retumbante com os DeCourse, Sr. Fëll. Eu já imaginava algo assim… Ainda não são seis horas. Se quiser, podemos prosseguir o inquérito.
Há mais alguém que poderíamos visitar?
— Há, sim. Gostaria de falar com a Sra. Basknell, se não se importa.
— Por certo que não.
— Srta. Carlile, mostre-nos o caminho, jawohl?
Acenei docilmente e tomei a dianteira do grupo.
O depoimento da Sra. Basknell
— Judith não tem uma empregada? Suponho que ela deva ter visto alguma coisa!
Havia um tom de revolta na afirmação de Anne Roselene. E, empertigando-se de orgulho, franziu a testa, exaltada.
— Juli só trabalha de manhã — respondi. — Judith acha desnecessário manter uma diarista por tempo integral.
— Que velha tola! Haggard morreu… instantaneamente?
— Julgamos que sim, Sra. Basknell — disse Fëll com sinceridade.
— Mas por que o mataram? Ele sempre foi tão calado, tão discreto. Quem é que seria tão estúpido a ponto de agredi-lo com essa brutalidade?
— Suspeitamos que ele soubesse de alguma coisa que poderia incriminar o assassino do Sr. Ehrack. Assim, para que não desse com a língua nos dentes, a solução foi
eliminá-lo de uma vez por todas.
— Ou porque tentou chantagear o assassino — acrescentei.
Fëll concordou com a cabeça.
— As teorias variam. Em todo caso, estamos averiguando cuidadosamente todas as possibilidades. Por isso, gostaríamos de lhe perguntar o que fez esta tarde, Sra.
Basknell. Se não tiver nenhuma objeção, evidentemente.
A mulher se assustou. Tremeu como se uma corrente elétrica atravessasse seu corpo avantajado.
— Por que querem saber o que é que eu fiz esta tarde? Estão achando… Inspetor, eu exijo que o senhor me dê uma satisfação. Vocês estão me acusando desse assassinato?
— De jeito nenhum, Sra. Basknell — disse Radke com vigor. — Estamos apenas fazendo o nosso trabalho. Ninguém está acusando a senhora de nada.
— Eu não sou psicóloga, mas se há uma coisa que consigo discernir muito bem é quando as pessoas tentam mentir para mim. E eu digo que vocês estão mentindo. Vocês
não viriam aqui se não suspeitassem de alguma coisa! Até você, Katrina! Por que você está com essa gente? Também acredita que eu seja uma criminosa?
Aquilo doeu como uma chicotada. Eu senti um calafrio subir pela minha espinha.
— Conforme disse o inspetor, ninguém está dizendo isso, Anne Roselene. Estou com essa gente porque eles me convidaram. Além disso, estou envolvida neste caso desde
o início. Afinal, fui a última pessoa a ver o Sr. Ehrack com vida.
— E daí, Katrina?! Você devia dizer a eles que eu seria incapaz de matar alguém. Você devia estar do meu lado, escutou?
— Pelo menos não estou contra, se isso a consola.
Fëll juntou a ponta dos dedos, e estalou os lábios. O ruído foi tão inusitado que todos nós nos viramos para ele.
— Compreendemos, senhora, compreendemos como se sente. Essa é uma reação perfeitamente humana. A senhora acha que estamos aqui porque desconfiamos da senhora e que,
a qualquer momento, vamos levá-la conosco para prestar declarações diante de um tribunal. Permita-me esclarecer uma coisa. Imagine a seguinte situação, Sra. Basknell.
Numa certa vila reside um homem que detém uma verdadeira fortuna. Ele vive cercado de gente — há dois sobrinhos, a mulher de quem ele se divorciou, a filha e também
uma mulher com quem ele mantém um romance (um affair que é considerado tabu pelos mais conservadores). Há ainda uma mocinha que o assiste como secretária e datilógrafa
e um mordomo que, mesmo decrépito, serve como pau para toda obra. Pois bem, suponha que todas essas pessoas levem uma vida normal — menos o nosso homem, que, de
alguma forma, começa a ter o pressentimento de que alguém está arquitetando o mal contra ele. Sim, ele pressente um perigo real se avolumando ao seu redor. E, por
mais improvável que pareça, essa hipótese explicaria um bocado de coisas. Daí, numa certa noite, ele expõe os seus receios à secretária. Conta a ela a razão de seus
temores e diz que, no íntimo, suspeita que alguém esteja tramando a sua morte. Mesmo desconcertada, a moça ouve o discurso. Ela sabe que aquilo que ele diz pode
ser verdade, mas há também a chance de que tudo não passe de medo infundado, fruto de uma mente carregada de culpa pelos erros do passado. Mas os temores se confirmam.
Enquanto está a sós, o homem é atacado e, sem dó, é morto implacavelmente. Esse é o primeiro ato da tragédia. Muitas coisas chamam a atenção no aposento do crime.
Há a marca de lama no assoalho, a poltrona alta, o guarda-chuva úmido no cabide, o revólver (que não pertencia à vítima), a janela desaferrolhada e, não menos importante,
o pratinho de doce de pudim na mesa. Inequivocamente todos esses indícios básicos são os componentes do assassinato. Mas como é que eles se relacionam entre si?
Qual é o significado de cada um deles? Simplesmente não dá para saber, es ist unmöglich! É preciso ir ao campo, interrogar todos os envolvidos. Ganância? Acerto
de contas? Crime passional? Muitos motivos podem ter concorrido para a execução do crime. Então de repente aparece uma pista. Na biblioteca, dentro de um cofre,
o inspetor-chefe encontra um papel com algumas inscrições feitas à caneta. Parece ser um tipo de código, embora a sua interpretação seja um tanto obscura. O que
está escrito ali tem conexão com a morte de outra pessoa, que ocorreu em circunstâncias misteriosas num resort local anos antes. “Puxa”, pensa o inspetor. “E agora?”
Ele decide interrogar os funcionários do resort — talvez a camareira ou o recepcionista saibam de alguma coisa, mesmo que não se deem conta disso. O rol de suspeitos
cresce: o dono do estabelecimento se recusa a colaborar. Aí acontece o segundo ato do drama — o mordomo é assassinado. Outra vez, o mesmo por quê? Talvez ele soubesse
de algo que poderia arruinar o assassino, ou pode ter elaborado uma chantagem que acabou não dando certo, ou engalfinhou-se com um oponente que era maior ou mais
forte, ou pode ser que ele fosse…
— Já entendi, já entendi — interrompeu Anne Roselene. Passou as unhas no cabelo e, depois de dar um suspiro, disse: — Fiquei na horta uma boa parte da tarde. Tem
um maldito fungo nas hortaliças! É a terceira vez que eu planto as beterrabas e o agrião este ano. Depois tratei os porcos e passei na quitanda para encomendar o
gás.
— A senhora diria que a sua amiga, a Sra. Ebbington, seria capaz de… como é que nós diríamos?…
— … de praticar um crime deliberado? Garanto-lhe que não, Sr. Fëll. Se vocês conhecessem Margret! Margret é muito certinha, muito cheia de não-me-toques! Chega a
ser irritante! Quando nós éramos jovens, ela nunca saía de casa sem um gorro de lã ou sem primeiro se agasalhar muito bem. Quer fizesse frio quer não. E se nós não
tivéssemos uma proteção, era ela quem ia e nos emprestava alguma coisa. A família dela sempre foi muito pobre. Minha mãe não gostava muito deles. “Ai, não sei como
vocês têm coragem! Aquela gente deve ter catapora… Se vocês continuarem andando juntas, Anne, logo logo você vai ter o corpo cheio de pústulas!” Mamãe sempre teve
um pouco de preconceito, sabem? Era uma mulher sofrida, e queria evitar que passássemos pelas mesmas dificuldades que ela havia passado. Ficamos perplexas quando
ouvimos dizer que Margret e Stephan estavam namorando. “Aquela menina raquítica e feia? Namorando aquele filhinho de papai? Misericórdia!…” Mamãe só acreditou quando
ela mesma viu os dois juntos e de mãos dadas! Eu gostava de Stephan, não nego. Com seus vinte e poucos anos, era um rapaz muito bonito. Eu ficava doida quando ele
passava na nossa rua. Mas Margret teve mais sorte do que eu… E assim os dois se casaram, ela mudou de guarda-roupa, passou a ter modos mais requintados — foi uma
transformação realmente comovente!
— O casamento deles… Considera que tenha sido feliz?
— Sim, acho que sim. Eles tiveram uma vida razoavelmente feliz. Mas… como todos já previam… Stephan acabou estragando tudo. Processos civis, contas de corretagem…
toda aquela correria! Ele estava ficando mais intratável a cada ano. Incompatibilidade de gênios… divergência de ideias… disputas familiares… essas coisas. Margret
não aguentou e entrou com a ação de divórcio. Admito ter ficado muito admirada com a decisão dela. O que eu não daria para ser como ela! Valente, corajosa, combativa…
Eu nunca fui assim. Foi aí que Stephan veio falar comigo, começou a relembrar os velhos tempos e de como tudo tinha sido bom. Depois desse dia, passamos a nos encontrar
com frequência. Não tivemos um namoro no uso convencional da palavra. Não era nada tão… carnal. Gostávamos de ficar juntos, ouvir a voz um do outro, sentir a presença
um do outro. Dois velhos lambendo suas feridas. Eu particularmente nunca achei Stephan uma má pessoa. Ele era áspero, às vezes. Mas eu não o culpava por isso. O
pai dele nunca lhes havia dado um exemplo digno de ser seguido…
— O Sr. Jeremy Ehrack? — perguntou Fëll.
— Sim.
— Pode nos falar sobre ele, Sra. Basknell?
— Eu não sei por quê!… Aquele megalomaníaco está morto e bem enterrado.
— Eu insisto, Sra. Basknell.
Anne Roselene retorceu as mãos no colo. Fez silêncio por alguns segundos, como se quisesse entender a razão do pedido do austríaco.
— Bem, já que o senhor insiste… O velho Jeremy não era um bom homem. Pelo menos eu não o definiria assim. Oh, sim, ele era um bom advogado, conhecia a legislação
e ganhava a maioria das causas. Mas eu estou falando dele como ser humano. Não, não… Ninguém gostava dele, em absoluto. Para mim, ele era inescrupuloso, muitas vezes
agia de má-fé e quase sempre deixava alguém na mendicância.
— Na mendicância, senhora?
— Ora, o senhor deve conhecer gente assim. Quando tem condições para isso, arrancam até a pele do coitado que cai em suas mãos. Ele extorquia dinheiro, Sr. Fëll.
Extorquia dinheiro!
Quando deixamos a casa, a expressão de Radke era tudo menos triunfal. Estava visivelmente perturbado com a conversa que acabáramos de ter com Anne Roselene.
— Algum problema, inspetor? — perguntou Fëll. — Posso ajudá-lo nalguma coisa?
— Problema? — bufou Radke. — Vários, Sr. Fëll. Vários. A começar, que história é essa de cofre, de papelzinho e código? Quero crer que o senhor estava falando figurativamente
quando disse aquilo!
— Nein, nein. Eu estava falando literalmente.
— Mas como? Não me lembro de ter sido informado a esse respeito.
— Peço desculpas, mein Freund, o erro foi meu. Eu me esqueci de lhe contar… Desde o começo achei que existia uma ligação entre as mortes de Ehrack Pai e Ehrack Júnior.
Eu tinha certeza que o assassinato de Stephan Ehrack era uma consequência do envenenamento do pai dele, há dois anos.
— Posso até aceitar a sua teoria. Contanto que o senhor demonstre que elo é esse que liga os dois acontecimentos. Há algo em sua investigação que lhe permita determinar
essa possibilidade? Pois, para sua conveniência, eu também já tentei relacionar os fatos! A conclusão foi decepcionante!
— Ah, hast du es gesehen? Tudo é uma questão de aplicar o método certo. Ninguém chega a Roma sem um mapa ou uma bússola… Creio que falta um elemento essencial em
seu exercício dedutivo, inspetor. Isto aqui!
Fëll apresentou o famoso rascunho.
— Por Deus do céu! — exclamou Radke, torcendo e retorcendo o papel. — É impressionante! Custo a acreditar numa coisa dessas.
Soltando uma gostosa gargalhada, Fëll deu uma palmadinha em seu ombro.
— Muito melhor agora hein, inspetor?
Radke olhou para ele, desconfiado:
— Poderiam dizer-me, por favor, por que vocês foram procurar na biblioteca?
— Digamos que tivemos uma pequena ajuda externa. Olhe para esta compilação... Há alguma coisa aí que lhe venha à mente quando lê estas frases?
— Aqui diz Hotel Três Empenas…
— Enumere o primeiro ponto.
— Um: Quarto 303…
— Eu sei que é difícil, mas consegue se lembrar de quem era o hóspede do quarto 303?
— Deixe-me ver… No primeiro andar havia um casal de argentinos. Estavam numa viagem de veraneio, acho eu… Tinha ainda um italiano, reformado do exército. Não, não,
o italiano havia ficado no térreo. Vivia com medo de que uma bomba caísse no hotel, ou coisa assim. Um disparate!… E, sim… como era mesmo o nome?… havia um tal de
Herr Fritzen… Ei, lembrei! Sim, esse Herr Fritzen estava no quarto 303!
— Pode descrevê-lo para mim, inspetor?
— Um cara comum… Magro, narigudo, com uma cor anêmica. Tinha os olhos meios desalinhados, se entende o que quero dizer! Aliás, ele estava resfriado. Ficou espirrando
o tempo todo, o desgraçado.
— Morador daqui?
— Não, era de fora. Tinha um sotaque germânico. Um sotaque chato… Sim, muito chato!
— Jawohl?
— S-sim…
Radke percebeu, muito tarde, a dimensão de sua gafe. Corou até a raiz do cabelo. Mas Fëll estava ocupado com seus pensamentos e continuou andando impavidamente.
— E o outro trecho, inspetor? O que acha que significa?
— Dois: Ricina, dose fatal… Isso se refere ao veneno. Três: 6h da tarde… Esse foi o horário aproximado da morte, pelo que apuramos. Quatro: Abriu falência… Confesso
que não faço a menor ideia sobre o significado disso. Cinco: Pickwick identificado… Pickwick? Ora, mas que coincidência! Pickwick não é o nome de um dos personagens
de Dickens? Quem foi o lunático que o incluiu nessa relação?
— Muito provavelmente alguém que conhecia o contexto dos fatos que estava descrevendo.
— Espere… Não quero forçar a barra, mas a Srta. Carlile era funcionária do hotel na época. Ela talvez possa nos esclarecer esse ponto.
— Nada feito, senhores — respondi. — Eu trabalhava na lavanderia e cuidava do almoxarifado. Ninguém me falou nada a respeito desse nome.
— Não faz mal — interveio Fëll. — Veremos isso outra hora. Julgo que já é tarde… Se não se opõe, inspetor, podemos continuar a investigação amanhã de manhã.
— Eu concordo. Com quem pretende falar?
— A Sra. Ebbington. Vai voltar para a pensão, Carlile? Se quiser, posso acompanhá-la até lá.
— N-não, eu agradeço. Tenho um compromisso.
Fëll fez um gesto afirmativo e foi embora.
— Um sujeitinho intrigante — disse Radke. — Um pouco pomposo, mas que tem lá seus méritos. O que estou me perguntando é quando ele queria mostrar-me este papel.
Quando, Srta. Carlile?
Uma leve aragem soprava pela rua.
Olhei para Radke:
— Talvez nunca, inspetor — respondi. — Talvez nunca.
Um retrospecto
Acordei na manhã seguinte com o corpo entorpecido. Fui para a confeitaria, mas a Sra. Oeschler barrou a minha entrada:
— Você não vai trabalhar, minha filha. Vá fazer uma consulta, Katrina. Sim, sim, vá. Você merece umas férias. Pobrezinha, praticamente viu o Sr. Haggard morrer na
sua frente! Tome uns dias de descanso… Vá, cuide de sua saúde!
Falava num tom maternal que eu nunca tinha visto nela. Notei que ela achava que eu estava com estresse pós-traumático.
— Quem… quem vai me substituir?
— Vou colocar Lili no seu lugar. Vá, Katrina. Dê meus pêsames para Margret.
Apertei a capa de chuva e me afastei. Amanhecia. Uma garoa cinza e morta pintava a rua e as casas.
Pensei em Fëll. As coisas que ele tinha dito começavam a aguilhoar a minha curiosidade. Havia um mistério incomensurável na morte de Ehrack. Pistas tinham sido vasculhadas.
Era uma coisa que me causava desconforto — uma ameaça que ia crescendo, crescendo, ao meu redor.
Por intuição, eu sabia que precisava tomar algumas medidas preventivas.
Tomazelli ergueu a cabeça quando entrei em seu quarto.
— Olá! Como está o nosso convalescente?
— Cosí, cosí! Ontem planejei fazer uma caminhada esta manhã. Olhe só esse tempo! Cáspita!
— Por falar em tempo ruim… O Sr. Fëll ainda está em casa?
— Ele saiu cedo.
— Disse aonde ia?
— Não. Acho que tinha um encontro marcado com o inspetor.
— A esta hora? Não acredito.
Meu senhorio mexeu os ombros. Levantou-se da cama, cambaleante. Havia uma coisa em suas pupilas… um brilho… que não me enganava. Parecia um cão pronto para morder
o osso.
— Quer que eu o ajude a chegar à sala? — perguntei.
— Não, grazie! Ficar lá ou aqui… Já lhe disseram que o enterro de Haggard será às quatro da tarde?
— Por que tão cedo?
— Irá ao funeral, senhorita?
— Eu não tenho parentesco com ele. Por que iria?
— Mau sinal… Se nenhum de nós for, quem é que irá?
A eterna prosa de Tomazelli! Pressenti que as insinuações dele visavam só uma coisa: obter notícias. Hora de me mandar! Verifiquei se ele estava bem instalado e
saí voando.
Onde estaria o detetive? Com Margret Ebbington? Radke?
Refleti naquele monóculo… bisbilhotando… olhando a sujeira debaixo do tapete… estudando… estudando…
Dei sorte. Pendurei a capa no cabide e entrei na sala de estar da Sra. Gwenny-Ducker. Ali estavam eles, diante da lareira, tomando uma xícara de cappuccino. Conversavam
como duas maritacas! Eram coisas assim que abalavam minha esperança na humanidade…
— Oi!
— Carlile!
— Estou interrompendo?
— Katrina — disse Judith alegremente. — Sente-se conosco. O Sr. Fëll acha que vi uma coisa que pode ajudar a solucionar o caso.
— É? O que você viu? A cara do assassino?
— Quem dera! Não é nada disso. Diga a ela, Sr. Fëll! O senhor tem mais jeito com isso.
— O fato é que a Sra. Gwenny-Ducker viu Helene DeCourse lançar um olhar de ódio declarado contra a Sra. Basknell. Ao fim do jogo de damas… Sabe alguma coisa a respeito
disso, Carlile?
— Talvez — respondi.
— Isso significa que sim. Por que não disse nada?
— Não julguei que fosse necessário.
— Posso lhe afiançar que é — afirmou Fëll. — Uma gravata torta, uma caixinha de pó-de-arroz sem tampa, um cano de chumbo perto do corpo da vítima… Quando corretamente
averiguado, tudo pode ser exponencialmente revelador.
— Sei, sei… Podemos pular a parte dos sermões? Vocês estavam falando de Helene…
— Katrina, não seja tão durona! Helene deve ter uma razão para odiar Anne Roselene. O Sr. Fëll acha que ela está mentindo sobre o que fez sábado à noite.
Voltei-me para o detetive. Ele estava olhando fixamente para mim, como se quisesse perscrutar o fundo de minha alma. Resolvi enfrentá-lo a céu aberto:
— Ela está mentindo? Pelo que me lembro, essa é a afirmação mais recorrente do Sr. Fëll. Estou errada ou o senhor realmente não confia em ninguém?
— Confio, por que não? Mas é preciso sempre ter em conta que as pessoas, quando são pressionadas, normalmente tecem uma intrincada teia de mentiras. Autopreservação!
Está escondendo alguma coisa que gostaria de contar para nós, Carlile?
Instintivamente eu quis responder que não. Mas, como que por encanto, lembrei-me da visita que Stenzley tinha feito para mim na véspera. Será que… Sim, nada me impedia
de tocar novamente no assunto.
Mencionei discretamente o fato.
— Deixe-me ver, fiz algumas anotações sobre isso — disse Fëll, folheando seu caderninho. — Aqui! A senhorita falou do hoteleiro e de suas acusações contra Harrison…
do suposto assassinato cometido por Harrison… de sua fuga… da carta fictícia que Stenzley dissera ter escrito… e que existe a suspeita de que Harrison pode ter atirado
em Ehrack…
— O senhor vai denunciá-lo à polícia?
— Se o Sr. Stenzley está tão convicto do que diz, ele vai se encarregar disso. O que vale registrar é que existe um lado oculto do Sr. DeCourse que temos que conhecer
melhor. Se ele já matou antes, matar uma segunda vez não constituiria problema. Talvez tenha sido mesmo ele sim quem atirou em Ehrack!
— Isso é tão emocionante! — exclamou Judith. — Esse jovem nunca me enganou! Tão educado, tão atencioso… Quem é que imaginaria que fosse capaz de cometer esses atos
cruéis? Estou lhe dizendo, Katrina, que ele não presta. Não mesmo!
Fiz um “tsc, tsc” com os lábios, desaprovando a empolgação dela.
— Emocionante? Olha só quem fala! A senhora sequer se recuperou do trauma de ontem… Agora já quer dar uma de Inspetora Maigret!
— Querida, a medicina atual opera maravilhas! O dr. Ritterbuch me entupiu de sedativos. Ainda estou toda zonza…
— Carlile, Carlile — disse Fëll. — Advirto-a de que a sua atitude crítica é muito contraproducente. Temos que manter o foco. Se não, logo acabaremos tendo outro
crime, e essa ciranda de mistério nunca terá fim.
— Outro sermão! — suspirei. — Está bem, o que o senhor propõe? A prisão de Harrison? Fazer uma acareação com a Helene?
— Podemos considerar essas opções depois… Nesse ínterim, vamos falar com a Sra. Ebbington. O inspetor já deve estar lá. Irá conosco, Sra. Gwenny-Ducker?
— Eu bem que gostaria, mas não posso. O doutor me recomendou repouso por alguns dias. E Juli é muito ciosa! Ela ficaria louca comigo se eu saísse com vocês.
Fizemos o caminho até a mansão a pé. A chuva tinha diminuído. Vi que Fëll segurava o guarda-chuva com negligência. Estava boiando num delírio de frases e palavras
sem nexo, e não parecia nem um pouco inclinado a falar comigo. Ele andava com a longanimidade de um guru tibetano.
Se tivesse ficado na confeitaria, eu estaria atendendo sofrivelmente a freguesia. Meus sentidos estavam tão embotados!
Pensei em mostrar ao garboso Fëll que também tinha faro investigativo. Bons neurônios não me faltavam. Aos poucos, um vislumbre quase apagado de uma coisa escondida
se tornava nítido em minha mente! Era algo a respeito do termo veneno e suas variantes. Eu ainda não conseguia ver o que era, embora soubesse que ali existia um
detalhe que merecia ser analisado mais de perto.
Por entre as brumas da rua vimos o inspetor Radke parado na esquina. Tinha os botões do casaco fechados até a gola.
— Bom-dia! Friozinho, hein?
— Guten Morgen! — disse Fëll. E sem qualquer preâmbulo, acrescentou: — Tenho uma coisa que gostaria que me respondesse, inspetor. Por que a Srta. Helene olharia
a Sra. Basknell com aversão se, pelo que sabemos, as duas nunca tiveram nada uma contra a outra?
Radke ficou meio desorientado com a pergunta.
— Quem disse isso?
— Uma informante. Ela acha que houve uma raiva muito específica no olhar da Srta. DeCourse. É uma coisa que não consigo enquadrar no panorama geral do caso.
— Bem, eu não sei. Julgo que seria melhor apurar os fatos antes de emitir uma opinião.
— A irritação do Sr. Stenzley… O que me diz disso?
— Se isso o deixa feliz, ele pode nos chamar de abelhudos o quanto quiser. O que esse homem precisa é de um bom advogado. O seu pescoço está por um fio.
— Vão por o nome dele no inquérito?
— Já o incluímos. Ele que trate de arrumar um álibi!
A determinação na voz de Radke foi um bálsamo para os ouvidos de Fëll. Ele apreciava pessoas que agarravam a presa com unhas e dentes, por assim dizer. Impreterivelmente,
o inspetor tinha acabado de subir em seu conceito.
Margret Ebbington nos recebeu na porta. Foi logo dizendo que já esperava pela morte de Haggard.
— Manfred era um fofoqueiro. Todos diziam: “Oh, que homem discreto! Austero, quieto, confiável…” Se eles soubessem! Ele nunca foi nada disso. Manfred não falava
as coisas abertamente, mas, quando você virava as costas, ele ficava resmungando daquele jeito… Vocês entendem, daquele jeito que a pessoa tem quando concorda com
o que você lhe pede mas depois faz exatamente o contrário. Eu vivia pisando em ovos quando vivia naquela parte da casa. Não, não fiquei nem um pouco consternada
com a morte dele.
Ela enxugou as mãos no avental. A sala de visitas estava abafada — como sempre, aliás. Os dois homens tomaram assento no sofá; fiquei perto da estante. Corri os
olhos casualmente pela lombada dos livros. Veneno… O termo continuava pululando em minha cabeça.
— Sra. Ebbington — disse Radke. — Vou deixar de lado toda a parte burocrática… Ontem à tarde, quem lhe falou sobre o assassinato do mordomo?
— Acho que eu estava na farmácia — respondeu Margret lentamente. — Não, isso foi antes. Eu tinha ido ao açougue e… sim, lembro-me de que achei o preço do filé duplo
absurdamente alto. Alguém passou por mim na rua e gritou que tinha havido outro crime. “Que besteira” pensei comigo mesma. “Outro crime… Sem chance!” Só mais tarde
é que fiquei sabendo de tudo. Antes que vocês comecem, posso lhes perguntar uma coisa? O que Manfred estava fazendo na casa de Judith?
— Imaginamos que ele tivesse suspeitas sobre… sobre quem seria o assassino de seu ex-marido, Sra. Ebbington. Aparentemente ele foi falar com a Sra. Gwenny-Ducker
antes de comunicar as suspeitas às autoridades.
— Deus me livre! Manfred… Eu o vi sair para a rua. Ele caminhava devagar e mexia a cabeça como se estivesse preocupado com alguma coisa.
— Isso confere com o que a Srta. DeCourse disse.
— Mas por que ele fez isso? Em vez de sair por aí, por que não veio falar comigo?
— Talvez Haggard não tenha vindo — disse Fëll — porque achava que a senhora era a culpada.
— Eu? Por que eu haveria de matar meu ex-marido? Que lucro eu teria com isso?
— Acalme-se, senhora — interveio Radke. — Estamos apenas investigando.
— Então é por isso — disse Margret com os olhos escancarados. — Vocês… essa entrevista… Vocês pensam que fui eu!
— Volto a repetir, acalme-se! Não viemos aqui para lhe imputar nada. Estamos investigando e queremos que as pessoas nos ajudem a chegar ao porto seguro das respostas
que convençam um júri. Nada mais.
— Eu sei de quem é a culpa de todos esses crimes! É uma maldição de família. Ninguém pode impedir esse horror. Ninguém pode fazer nada.
— Maldição de família? O que a senhora quer dizer?
— Quero dizer que todos nós estamos pagando pelos erros de nossos antepassados. Não há como fugir disso. Todos nós vamos ser mortos!
Pobre Margret!
Fëll ergueu bruscamente a mão:
— Sra. Ebbington! Não é um fenômeno sobrenatural que está ceifando a vida dos Ehrack. A senhora é inteligente… O que aconteceu aqui não tem relação com sortilégios
e encantamentos. Não, foi uma pessoa… tão real quanto nós somos… que fez isso! É essa pessoa que temos que agarrar.
— Ai!
— O que foi, Carlile? Um cisco no olho?
— N-não. — Menti: — Acho que senti outra vertigem.
— Gut, gut — disse Fëll estalando os dedos. — Acho que podemos encerrar por aqui — acrescentou, falando com Margret. — Se quiser fazer qualquer notificação, a senhora
já sabe aonde deve ir.
— Susie voltará hoje para casa — disse Margret quando estávamos à porta. — Santo Deus, que bom! Eu já não cabia em mim de ansiedade.
— Ela lhe ligou?
— Sim. Pouco antes de vocês virem.
— Wunderschön! Susie é uma boa moça. Ela vai lhe fazer companhia, Sra. Ebbington. Guten Tag!
Radke saiu conosco a contragosto. Talvez quisesse fazer mais perguntas… ou uma inspeção nas dependências da casa.
— Tudo bem, inspetor? — perguntou Fëll.
— Realmente não! Puxa, acho que deveríamos ter investido todas as fichas nessa mulher. Ela sabe de mais coisas do que deixa transparecer. Com um pouco de insistência
ela teria aberto o jogo.
— Eu não creio. Bater na carcaça não faz com que a tartaruga venha para fora. A experiência diz o contrário. Quanto mais pancadas a gente dá, mais as pessoas se
encolhem e ficam fora de alcance. Qual foi o resultado da autópsia?
— Nada de novo. Tudo aconteceu conforme o senhor disse. Alguém apagou o mordomo com o atiçador de fogo. Chega quase a ser um trocadilho!
— Algo mais?
Radke fez um aceno negativo. Estava amuado e com o ego ferido. Mas subitamente Radke pareceu voltar atrás.
— Bom, na verdade estou esquecendo uma coisa. Quando o médico despiu o corpo, ele encontrou uma coisa interessante no bolso da calça. Trouxe-a comigo. Talvez o senhor
queira vê-la.
Radke estendeu a mão e mostrou um pequeno papel quadrado. Era uma espécie de…
— Um rótulo. De uma marca cara de uísque, para ser mais exato.
— Dewar’s — leu Fëll, pensativamente. — Um rótulo de uma garrafa de bebida importada. Pelo que consta, Haggard era abstêmio. Pelo menos ultimamente. Portanto, deve
haver uma razão para portar isto. Me permite, inspetor?
— Oh, sim. Pode ficar. Acho que tudo não passa de uma coincidência, mas talvez o senhor descubra alguma coisa que me passou despercebido.
— Danke. — Fëll guardou o rótulo no bolso. — Quanto a você, Carlile… Por que deu aquele grito na sala da Sra. Ebbington?
— Já lhe disse, senti uma vertigem. Sofro de pressão baixa. Brr, que frio! Esta bendita garoa bem que poderia dar uma trégua!
— Nein, eu quero que diga a verdade, Mädelein. Não foi vertigem. A senhorita estava olhando a estante. Tenho uma boa visão periférica… O que viu? Algum livro que
não devia estar lá, eu suponho.
— Como é que o senhor sabe disso?
— A Sra. Gwenny-Ducker me contou.
— E o que mais ela lhe falou?
— Que dias atrás a senhorita estava querendo o empréstimo de um compêndio raro.
— É isso mesmo… Judith me garantiu que o tinham roubado da casa dela. Ontem vocês falaram de ricina para cá e de ricina para lá. Acordei hoje com a sensação de que
tinha ouvido falar desse termo esta semana. Alguém viu essa substância entre as coisas da caixinha de remédios de Margret Ebbington. Há pouco, quando entramos na
sala dela, pensei em dar uma verificada em seus hábitos de leitura. E uh-lalá — o Volume dos Venenos e seus Efeitos estava lá! Vão me dar os parabéns por isso, não
vão?
Fëll estacou em seco. Pareceu-me que seu cérebro privilegiado (ou psicótico) acabara de ter um clique. Sorri comigo mesma. Minha declaração deveria tê-lo surpreendido!
Em vez disso, ele perguntou:
— Carlile, a senhorita disse que está com frio, não é?
— É-é, acho que sim.
— A temperatura… Mas isso soluciona tudo! A temperatura! E agora, mais esse rótulo… Duas coisas que se ajustam na engrenagem. Como é que eu não vi isso antes?
Xingando a si mesmo, Fëll sapateou no calçamento. Frustração, desapontamento, raiva — um misto de emoções fluía e refluía em seu rosto.
— Agora as coisas estão ficando no prumo. Wie konnte ich nur so Dumm sein! Inspetor, dê-me algumas horas… Tenho que averiguar alguns fatos. À tarde… Voltarei a me
comunicar com o senhor à tarde.
Aproximou-se de mim e apertou meu braço:
— Preciso que me faça um favor, senhorita. Convoque todos para uma pequena assembleia para hoje à noite, às 18 horas, na sala de visitas do Sr. Ehrack. Dará conta
disso?
— Uma assembleia para hoje à noite? Mas por quê?
— Só diga isso: dará conta ou não? — perguntou Fëll com impaciência.
— Plenamente. O que devo dizer?
— Nada em especial. Apenas mencione que o caso promete chegar ao fim. É essencial evitar que haja contratempos. No atual estágio das coisas não queremos nenhum atraso.
Temos que ser discretos e pontuais. Exija, bitte, que o Sr. Stenzley esteja presente. Para que tudo transcorra bem, a maioria das testemunhas deve comparecer.
Compreendi que seria inútil questioná-lo. Aquelas solicitações meticulosas eram inescrutáveis, e ficariam assim, não importa o que eu lhe perguntasse. O austríaco
tinha um propósito que nós, à parte de tudo, não víamos em todos os contornos.
Inclinando-se respeitosamente diante de nós, Fëll saiu em disparada. Radke e eu ficamos ali, desconsolados. Aquilo já estava virando um déjà vu.
— Que falta de bons modos. É a segunda vez que ele nos deixa à deriva, senhorita. O que acha que foi dessa vez?
— Acho que o Sr. Fëll está em vias de revelar o nome do assassino — respondi um pouco espantada.
O inspetor sorriu com a brandura de um jogador que não se envergonha de ser superado pelo competidor:
— Um mestre e tanto — disse. — Um mestre em jogar areia no olho dos outros. Adeus sossego!
Convites
O detetive deu sinal de vida depois do almoço. Por uma mensagem de texto! Ela dizia o seguinte:
“Carlile,
Mudança de planos: o inspetor fará a convocação das pessoas interessadas no caso. Está dispensada da tarefa! Fale apenas com a Sra. Ebbington e o Sr. Stenzley…
F.”
Confesso que fiquei grata por isso. Em teoria, o trabalho pesado sobrara para Radke. Para mim coubera só uma parte menor naquela aventura misteriosa.
Pois muito bem — se meu encargo era falar com a Sra. Ebbington, era com a Sra. Ebbington que eu falaria.
Fui depois do almoço. Entrei pelos fundos da propriedade dos Ehrack. Uma trilha agreste percorria a mata até chegar ao alto de uma colina. Do topo da colina dava
para descortinar toda a área circunvizinha. Foi de lá que eu vi Susie Ehrack.
A moça estava na estradinha que ia até a garagem dos Ehrack. Tinha os cabelos bem penteados, e transpirava uma alegria incomum.
Desci da colina para cumprimentá-la.
— Olá, Susie! Que bom que você voltou!
— Já era tempo! — respondeu ela, ao fim de nosso prolongado abraço. — Ah, Katrina, agradeci tanto à Sra. Reusfeld por ter me acolhido. Ela afirmou que eu poderia
ficar o quanto quisesse. Ui, que mulher gentil!
— Sua mãe deve estar radiante!
— Você sabe que ela tem um coração de ouro. Fica emocionada por qualquer coisinha. Senti tanta saudade daqui! Eu não poderia ficar longe para sempre.
— Você fez muito bem, Susie. O seu pai deixou uma pequena herança para as duas. Acho que sua mãe ficou com medo de que teria que cuidar de tudo sem você.
Andávamos pela alameda de barro. Susie disse:
— Aposto, Katrina, que houve alguns mal-entendidos! Quer dizer, as pessoas devem ter falado de mim.
— E como!
— Não posso consertar o mal que causei…
— Desde que você partiu, sabe de tudo o que aconteceu?
— Sim. Muitos acham que sou mentalmente lerda, mas não é difícil conseguir informações quando há uma empregada tagarela na casa.
Em vez de dissecar o assunto, ela entrou numa conversa totalmente doméstica. Falamos do pomar, do riacho… Um debate pueril e banal. Como um vírus que se apodera
gradualmente de um organismo, o desagrado foi se intensificando dentro de mim.
Aproveitei uma brecha e falei do plano de Fëll para a noite.
— Ele quer fazer uma reunião às 18h. Creio que você está convidada, Susie.
— Onde?
— Na sala de estar de seu pai.
— Eu gostaria de entender esse homem — disse Susie. Uma ruga se formou em sua testa. — Sinto que ele ainda trará alguma desgraça para nossa família.
— Acho pouco provável. Eu também passei por essa fase. Fëll é meio megalomaníaco. Mas se há alguém que pode desenrolar esse novelo de enigmas, é ele.
— Quanto otimismo, Katrina! Então me deixe fazer uma pergunta. Será que ele já decifrou o código do papel encontrado no cofre de papai? Ora, querida, me poupe!
— Acho que a linha investigativa dele é outra — deliberei.
— Quem é que garante isso? Quem?
Havia uma malícia… um ardor quase religioso… nas palavras de Susie. Seria uma insinuação? Mas do quê?
— Pense o que você quiser! Quer fazer uma gentileza para mim? Avise a sua mãe sobre a reunião. Creio que haverá uma reviravolta surpreendente no desfecho desse caso.
— O Sr. Fëll ligou para mim, Katrina — disse Susie repentinamente. — Me interrogou por dez minutos.
— Quando?
— Ontem à noite. De algum modo, ele sabia que eu estaria de volta em casa.
— E mais essa! Que patife! — gritei, indignada.
— Ele fez algumas perguntas genéricas. Oh, Katrina, não posso falar com você sobre isso. Eu prometi a ele que não contaria nada a ninguém.
— Incluindo a mim? Poxa, que amiga você me saiu! Diga-me só uma coisa: ele sabe sobre… nós duas?
Uma frieza instantânea caiu sobre seu rosto, enquanto uma lágrima rolava de seus olhos.
— Não me pressione, Katrina. Perdoe-me se isso parece rude para você. Eu devia me controlar… dominar os meus sentimentos. Mas… oh… sempre fui uma pessoa tão complicada!
Não fique chateada comigo.
É claro que eu estava chateada! Disse isso a ela com todas as letras do alfabeto. Depois tratei de sair dali. Nada melhor do que uma decente retirada estratégica!
Para encurtar a distância, cruzei a trilha que ia até o portão da rua. Agora restava o Sr. Stenzley! Eu conhecia de cor a aspereza do homem! A voz hostil… As críticas…
Com a resignação de um carneiro que vê a faca mirando a sua veia jugular, fui para o Três Empenas.
Bati a sineta no balcão de recepção.
Um rapaz simpático e bem trajado levou-me ao escritório do hotel. Confesso que estava um pouco apreensiva ao abrir a porta.
É impressionante como as pessoas se comovem com a minha chegada! Não só isso — como mexo com as emoções mais profundas delas… Basta meia dúzia de palavras!
— O quê? Isso é inadmissível! — vociferou Stenzley. — Que convite é esse? O que eles querem que eu diga? Eu já depus em tantos inquéritos que até perdi a conta.
Estão loucos! O que eles acham que eu sou? Um palhaço?
Comecei a gaguejar, surpreso com a reação dele.
— O Sr. Fëll disse que…
— Não importa o que aquele sujeitinho com o cabelo melecado tenha dito. Que bisbilhoteiro descarado! Pessoalmente, não ponho nenhuma fé nele, Srta. Carlile. O Sr.
Fëll pode ser um estudioso, pode ser gabaritado seja lá no que for. Eu é que não confio nele! Ele não tem o menor direito de legislar sobre as minhas preferências,
nem sobre o que eu devo ou não devo fazer.
Imediatamente, percebi que me encontrava numa situação embaraçosa.
— Pelo que consta — acrescentei de mansinho —, dizem que já participou de alguns casos bem famosos. O inspetor Radke, apesar de sua natural apatia, também o elogiou.
Acho que deve ser peixe graúdo.
— Peixe graúdo alguém que é especialista em esconder o jogo? Eu conheço essa laia. O que o Sr. Fëll gosta mesmo é de causar estardalhaço. Igual a um tropel de búfalos.
Pan, pan, pan… Ah, essa gente ama a notoriedade, ama o reconhecimento. Eles gostam de manter todo mundo intrigado até o último minuto, até o minuto em que ninguém
mais esteja aguentando de impaciência, quando então apresentam a solução final do caso! É assim, Srta. Carlile, que essa gente consolida a própria reputação. Reunindo
todo mundo em sessão fechada, sessão na qual, sem a menor vergonha, saem acusando um por um, indistintamente, até finalmente revelarem o nome do assassino.
— Até agora tudo tem corrido muito bem.
— Tem corrido bem porque o Sr. Fëll é uma cascavel sabida. Ele sabe quais os limites que não podem ser ultrapassados.
Stenzley fez uma pausa. Passou a mão pela testa e contemplou a palma, molhada de suor. Sem proferir outras palavras para dar vazão à sua revolta, olhou para mim
com cautela.
— Quero que me desculpe — exclamou, suspirando. — Devo estar falando bobagens…
— Vou fingir que não ouvi nada — disse eu com cordialidade. — Errar é uma virtude humana, não é o que dizem por aí? Vim só lhe dar o recado, Sr. Stenzley; não precisa
ir, se não quiser.
— Sim, sim, a senhorita não tem nada com isso. O fato é que não consigo me conformar com certas coisas. Eu já fui interrogado trocentas vezes! Acho até que um dia
vão me condecorar com a medalha de maior depoente do país.
Ele balançou a cabeça e voltou a sentar-se atrás da escrivaninha.
— Como eu disse, o senhor não é obrigado a ir, Sr. Stenzley. Mas, na minha modesta opinião, o senhor deveria ir sim. Acho que deveria mostrar a eles que é um homem
de integridade moral. Se não for, é quase certo que a polícia voltará a importuná-lo… e o senhor sabe que esse tipo de publicidade não convém nada ao seu tipo de
empreendimento.
O hoteleiro refletiu por alguns instantes, encarando-me nos olhos. O meu argumento não era de todo ruim. Depois de alisar a careca resplandecente, fez um expressivo
gesto de rendição.
— Não prometo nada…
Compreendi, nas entrelinhas, que minha mediação acabara de ter um sucesso arrebatador. Repeti as instruções sobre o local e o horário estipulados e saí do escritório.
Fiquei visivelmente chocada quando vi quem estava ali, no vestíbulo.
— Sr. Fëll!
— Carlile! — disse o austríaco afavelmente. Ele veio até mim com um quê de mistério. — Vejo que está se desincumbindo bem da tarefa que designei para a senhorita.
— O que está fazendo aqui?
Ele sacudiu a cabeça.
— Estou investigando alguns pontos obscuros de nossa saga. E todos convergem para este lugar.
— Está tendo êxito?
— Relativamente. Acho que, nessa altura do campeonato, as coisas estão se descascando por si mesmas.
— O eterno dente de alho, hein? O que veio ver aqui, precisamente?
— Ah, ficou curiosa! Solicitei à camareira que me mostrasse o quarto em que morreu o Sr. Ehrack Pai.
— Foi bom?
— Ajudou a abrir a última trava que se interpunha em meu caminho, Carlile. Pretendo ir agora ao fórum.
— O fórum… O que é que tem lá?
— O obituário. Eu notei, senhorita, que os três crimes têm alguma coisa a ver com um acontecimento perdido no passado dessa vila. Um acontecimento doloroso que privou
o nosso assassino de uma coisa que ele estimava muito. Uma coisa pela qual ele jurou se vingar… Se vingar para apaziguar o ódio que abrasava o seu espírito.
— Está querendo dizer que uma vingança… nada mais do que isso… é a mola propulsora de todo o nosso caso?
— Sim, Fräulein. É por isso que lhe enviei a mensagem desta tarde, Carlile. Há nesses assassinatos um segredo que, quando for revelado, poderá abalá-la significativamente.
Julguei melhor comissionar o inspetor para substitui-la.
Ah! Aí estava a explicação que eu queria ouvir. Minha confiança nele, que havia estado em baixa, readquiriu novo fôlego.
— É assim tão — perguntei — apavorante?
Um toldo cobriu o seu rosto.
— Creio que seja — disse Fëll. — Quando Pickwick for exposto, acho que teremos uma gritante decepção. — Devagar, repetiu: — Uma gritante decepção…
Primeiras Revelações
Acontece que me comprometi a recepcionar os convidados. Eu os pegava à porta e os introduzia educadamente na sala. Fëll tinha estabelecido um lugar para cada um
deles — minha obrigação era dirigi-los até lá. Alguns vinham descalçando as luvas, falando do tempo chuvoso; outros entravam com a cara fechada, menos dispersivos,
tesos como palitos de fósforos.
Harrison ironizou o detetive:
— É um aventureiro… No mínimo quer aparecer nos jornais como salvador da pátria.
— Se bem me lembro — respondi —, nenhum repórter foi convidado para vir aqui. Se ele quisesse mesmo isso, não obteria muita coisa.
— Sabe-se lá… Esses estrangeiros tem o miolo mole.
Harrison era uma exceção; os outros não tinham a mesma vontade de rir de Fëll. Eles não o cobririam de honrarias, mas também não achavam prudente ridicularizá-lo.
A personificação da simpatia, Edmund Fëll cuidava dos preparativos fora do palco. Com amabilidade, ele conversava com a Sra. Basknell.
— Das ist erstaunlich, a senhora tem uma bela bolsinha! Tão pequena e prática. Esmalte, ruge, remédios… Quantas coisas cabem aí, não é mesmo? Nada substitui uma
bolsa de grife, é o que eu sempre digo.
A Sra. Basknell parecia meio atordoada com os elogios.
— A Santa Inquisição já começou? — resmungou Stenzley com azedume. Deu um olhar pela sala. — Onde estão os carrascos?
— Está falando daqueles ali?
— Ah, bom, eles mesmos! Eu quero que compreenda, senhorita, que não decaiu em minha estima. Afinal, a culpa disso tudo não é sua.
— Sim, Sr. Stenzley… Obrigada. Venha por aqui! Vou levá-lo a sua cadeira.
Radke, de vigia ao lado da porta, olhou para o hoteleiro. Por um momento avaliou as suas reações. O inspetor fora comissionado a ficar ali, e não escondia de ninguém
a seriedade com que cumpria o seu ofício.
Fui repor o carvão na lareira. Tomazelli (que estranhamente também tinha sido intimado a vir) lançou um olhar de desprezo para o fogo.
— Estão todos bem instalados? — perguntou Fëll, presidindo a reunião. — Vejamos… Mein Freund Tomazelli, a Sra. Gwenny-Ducker (seja bem-vinda!), Sr. Stenzley, Sra.
Basknell, Harrison e Helene DeCourse, Fadeschi, Sra. Ebbington e Susie Ehrack. Perfeito, todo mundo presente.
— Julgo que se esqueceu de mim — comentei com um sussurro. — Ou será que eu não conto?
— Ao contrário, a senhorita é um elemento valioso. Sim, temos conosco a Srta. Carlile. — Depois acrescentou: — Ganz gut, eu me inclino a crer que não é necessário
esclarecer as razões por que estamos aqui. Estamos aqui com um único propósito — saber quem matou o Sr. Ehrack e seu mordomo, o Sr. Haggard, e por quê?
Stenzley fungou e alçou o dedo:
— Desculpe a minha impertinência… Por tudo o que é mais sagrado, o que é que eu tenho a ver com esses crimes?
— Mas, ah, tudo tem um motivo. O senhor tem, no mínimo, respostas que serão muito úteis para nós. Jetzt weiter! Bom, vamos recapitular o que aconteceu no sábado,
das oito horas da noite em diante. Mais precisamente, a partir do instante em que a Srta. Carlile deixou o Sr. Ehrack só, depois de finalizar seu trabalho de digitação.
Em seu depoimento, a Srta. Carlile disse claramente que o relógio da torre bateu as horas quando ela saiu da casa — e que, nessa ocasião, o Sr. Ehrack ainda estava
bem. No entanto, há uma falha crassa no depoimento dela! Não quero aqui dizer que a Srta. Carlile quis nos enganar… Mas eu pensei muito no que ela falou, e concluí
que ela entendeu mal as últimas palavras do Sr. Ehrack naquela noite. Segundo as afirmações dela, ele lhe teria dito que a vida dele estava em risco, e que alguém
supostamente estaria tramando a sua morte. Se isso fosse verdade, as suspeitas do Sr. Ehrack teriam sido terrivelmente proféticas — quartos de hora depois ele realmente
foi morto, de modo furtivo e covarde! Posso lhe garantir, porém, que a senhorita perverteu o sentido das coisas que ele disse. A semântica das palavras… A semântica
é tudo, e julgo que esse caso é um exemplo ímpar disso. Bom, mas é evidente que isso não importa agora… Podemos voltar a esse assunto mais tarde.
“Partindo dessa premissa, vamos falar do número de entradas que há nesta casa. Existe a janela do gabinete, no andar de cima. A Sra. Gwenny-Ducker disse que, da
rua, viu uma pessoa (presumivelmente do sexo masculino) no jardim, aproximadamente às 8:10h, carregando uma escada de mão.”
— Sim, foi isso mesmo — disse Judith olhando para os outros. — Ai, eu fico toda arrepiada só de pensar!
— E no assoalho do gabinete, logo abaixo da janela, havia uma mancha de barro, o que poderia significar que, de fato, houvera uma invasão por ali. O assassino, antes
de dar o tiro, poderia ter apoiado o pé no chão a fim de ajustar a mira. Essa é uma das teorias — dentre várias.
“Mas temos outras duas entradas. Uma delas é a porta do vestíbulo; a outra, a porta da cozinha que dá para a trilha que vai para a garagem. Qualquer uma delas poderia
ser usada por quem quisesse entrar na casa e chegar até a escadaria central.
“O maior entrave para a elucidação desse crime foi, desde o princípio, descobrir os reais motivos do assassino. Um desentendimento familiar? Vingança? Uma tentativa
de extorsão que não deu certo? Achei que se estabelecêssemos a origem da arma estaríamos mais perto da resposta a essa pergunta. Foi aí que as coisas começaram a
complicar. Quando consultou os registros, o inspetor Radke descobriu que o revólver que matou Ehrack pertencia ao Signor Tomazelli.
— Ladrões! — disse Tomazelli olhando venenosamente para os outros. — O revólver, mio amico… que eu perdi…
— Langsam, eu estou só mostrando o resultado de nossas primeiras pesquisas. Sim, a arma é sua, mas será que meu amigo Tomazelli seria o autor do disparo? Ah, eu
sabia que não tinha sido ele! Eu posso afirmar isso, porque na hora do assassinato o Signor Tomazelli estava no quarto dele, doente e com febre. Portanto, a pergunta
natural era: como é que o revólver foi parar nas mãos do assassino? A chave está no que a Srta. Carlile viu naquela noite no gabinete de Ehrack. Ela viu, pouco antes
de sair de lá, um objeto faiscante no braço do sofá, um objeto que tinha os vagos contornos de uma arma. Isso sugere que o assassino, ao entrar no gabinete, percebeu
o revólver e, aproveitando a oportunidade, deve tê-lo pego e, sem hesitar, disparou instintivamente contra o homem antes que ele pudesse se defender.
Harrison DeCourse deu um bocejo.
— Eu não quero atrapalhar o senhor, mas nunca ouvi uma coisa tão incoerente. Quer dizer que o revólver não era do meu tio. Como é que, então, ele estava no sofá
dele?
— Aí está, meu rapaz. Você acertou o ponto nevrálgico da questão. Acho que a resposta é uma só: o seu tio deve tê-lo pego na casa do Signor Tomazelli quando, dois
dias antes, passou por lá para falar com a Srta. Carlile.
— É a minha vez de dizer “o quê?” — atalhou a Sra. Basknell muito nervosa. — O senhor perdeu a noção das coisas? Stephan não era um ladrão!
— Talvez não um ladrão, madame. Talvez tenha sido… digamos… uma peraltice. Sim, uma peraltice inocente, mas enfim uma peraltice. Enquanto esperava pela moça, ele
pode ter visto o revólver no armário e resolveu fazer uma pequena arte.
— Ouçam essa… Titio roubou um revólver porque queria se divertir um pouco! — ironizou Harrison. — Ho, ho, ho!
Fëll ignorou a interrupção.
— Uma coisa que durante todo o tempo julguei inquestionável era a seguinte: Ehrack devia saber que ia receber uma visita sábado à noite! Quem seria o/a visitante?
A Sra. Basknell? Ou — levando em conta o horário do homicídio — o próprio assassino, que veio para cá com o único intuito de destruir a sua vida? A nossa investigação
estava fadada a empacar se não obtivéssemos uma resposta para isso. Foi aí que Haggard nos levou a um papel trancado na biblioteca, e nele achamos o fio da meada
que me ajudaria a resolver o mistério. No papel constavam algumas coisas que tinham a ver com o Hotel Três Empenas e a morte de Jeremy Ehrack, há dois anos. Seis
particularidades do caso tinham sido anotadas ali: a hora da morte, a causa (intoxicação), o número de um apartamento…
— Maravilha! — disse Harrison. — Estamos fazendo uma viagem no tempo.
— Eu vou lhe pedir, meu jovem, que guarde os seus comentários para si mesmo. — Fëll estava irritado: — Não é uma viagem no tempo. Esse é o ponto crucial que soluciona
o assassinato de seu tio. Na época, o laudo pericial falava em suicídio — e todas essas coisas que nós já sabemos. Mas Stephan Ehrack nunca acreditou nessa versão
dos fatos — ele sabia… ou melhor… ele sentia que seu pai não tinha se matado. Assim, ele decidiu investigar o assunto por conta própria. Finalmente, na semana passada,
Ehrack alcançou o que queria e viu que as suas previsões se confirmavam: seu pai tinha sido envenenado — e por alguém que ele conhecia pessoalmente. Alguém que está
aqui nesta sala!
— Está dizendo que o assassino está aqui conosco? — perguntou Helene se abanando com a mão. — Que horror!
— É um horror, senhorita, mas que nós devemos enfrentar. Todas as coisas se casam com uma exatidão milimétrica. Assim que Ehrack percebeu que tinha descoberto a
verdade, ele deve ter pensado o seguinte: “Eu sei quem envenenou meu pai. Mas, do ponto de vista forense, eu não tenho nada que prove isso.” Posso vê-lo em seu escritório,
os dedos crispados, sem saber o que fazer com o seu conhecimento. Cheio de emoções contraditórias, ele fez a única coisa que não deveria ter feito em sua situação
— de alguma forma comunicou-se com o assassino e expôs-lhe que sabia de tudo o que tinha acontecido. Esse erro lhe custaria muito caro…
“Mentalmente, vamos voltar até o momento em que a Srta. Carlile se despediu do Sr. Ehrack. Tentem visualizar a cena. Ela desce os degraus da escadaria, vai até a
cozinha e nota que Haggard não está lá, já que ele tinha ido à garagem. Fora de casa, ela ouve o rangido de passos no saibro, o que significa que havia uma pessoa
à espreita perto dali. Há só uma explicação plausível — era o assassino que, assim que avistou a silhueta dela por causa da luz das arandelas, tratou de sair momentaneamente
de cena. Depois de a senhorita ter passado, ele usa a porta lateral, galga a escada e entra no gabinete. Reparem no fato interessantíssimo dessa hipótese: o assassino
está diante do homem que pretende eliminar, tem-no a sua disposição, consegue ver até mesmo o brilho de resignação em seus olhos, mas, incrivelmente, não tem qualquer
móvel para executar o seu ato criminoso! Tanto isso é verdade que, como opção que lhe resta, ele é forçado a recorrer ao recurso infame de catar uma arma que não
era sua, engatilhá-la e atirar sem sequer saber se a arma estava devidamente carregada. A pergunta que proponho é essa: como é que isso é possível?
“Quais as chances, por exemplo, de Susie Ehrack ter cometido o crime? Ela diz que foi à floricultura às 20:00h de sábado! Mas o Sr. DeCourse contou outra história
— que, naquela hora, estava falando com a moça na praça. Vamos considerar primeiramente essa versão. Por que os dois jovens iriam para a praça, e de forma tão velada,
para conversar entre si? A resposta a isso está na vinda do Sr. DeCourse e de sua irmã, a Srta. Helene, para esta vila anos atrás. Ambos eram órfãos, privados de
qualquer meio de subsistência. Mas eles sabiam que tinham um tio rico e que, se viessem morar perto dele, ele não lhes negaria ajuda financeira em caso de urgência.
Vieram; apenas não contaram com uma coisa: o tio logo se revela avarento e pão-duro, um homem pouco disposto a ajudar quem quer que seja. Como se isso não bastasse,
uma outra ameaça surge logo depois — o Sr. Stenzley, conterrâneo dos dois, reconhece Harrison DeCourse. O Sr. Stenzley se lembra que o rapaz é culpado da morte de
uma mulher. Da própria mulher.
— Eu não matei Lucy! — reclamou Harrison. Estava zangado: — O senhor está passando dos limites.
— Pois eu não acho! — disse Stenzley muito nervoso. — Quem está passando dos limites é você, meu rapaz. Você a asfixiou… Foi você que a matou! Eu-sei-de-tudo!
Os olhos de Susie estavam esbugalhados. Pobre Susie e suas fantasias românticas!
— Seu velho asqueroso! — bramiu Harrison.
— Senhores! — disse Fëll. — Assim não progredimos, also! Um acusa e o outro nega… Poderíamos ficar nesse duelo até amanhã. Felizmente pedi uma pesquisa dos fatos,
para ver se tinham alguma consistência. Inspetor!
Radke postou-se ao lado do detetive.
— Quando o Sr. Fëll fez a requisição, entrei nos arquivos do caso. Consultei os autos e registros. E…
— Malditos cretinos! — disse o rapaz, jogando as mãos para cima. — Se vão me prender, vamos logo com isso.
— Não vamos apressar as coisas — disse Fëll. — Temos, por ora, outros assassinatos para desvendar. Tudo a seu tempo. Como eu dizia, o Sr. Stenzley inventa aquela
história sobre uma carta imaginária que expunha ao Sr. Ehrack os crimes do sobrinho. O Sr. DeCourse se sente acuado e, após entrar no gabinete do tio, começa a vasculhar
tudo desesperadamente. O Sr. Ehrack o pega em flagrante e grita com ele; diz até mesmo que já o removeu da lista de seus herdeiros. O Sr. DeCourse vai para casa,
arrasado, e fala com a irmã. Para todos os efeitos, eles não sabem que a suposta carta de denúncia não existe. Para a dupla de irmãos, ela é bem real e pode comprometer
toda a futura liberdade deles. Eles elaboram um plano B: coagir a Srta. Susie a reaver a carta; fazer com que ela entre no escritório de seu pai e, de alguma forma,
subtraia a carta de lá. Mas como poderiam convencer a Srta. Susie a embarcar naquela aventura? Ah, o Sr. DeCourse tem um trunfo que a convencerá! Ciente desse trunfo,
a Srta. Helene faz a primeira jogada. No sábado à tarde, ela visita a prima e diz à Srta. Susie que, à noite, o senhor precisava falar com ela.
“Até aqui está tudo muito bem esclarecido? Assim sendo, vamos abrir um hiato e falar da Srta. Carlile. Sim, afinal, a Srta. Carlile tem um pequeno segredo que não
ousou repartir com ninguém, não é isso, Liebchen?
Olhei para o detetive, perplexa. Ele tinha pronunciado o meu nome? Assim do nada?
— A Srta. Carlile disse que, ao sair de lá, deixou o Sr. Ehrack bem vivo e com saúde. Mas o que ela omitiu é que, meia hora depois de sair, ela voltou à mansão para
buscar a bolsa que tinha esquecido. Como é que eu sei disso? Há pouco vi que a Sra. Basknell tem uma bolsinha com alça. Entretanto, a Srta. Carlile tem uma bolsa
sem alça. Percebam, sem alça. Mas quando eu a vi ir para a sua quitinete, naquela noite, ela tinha só o guarda-chuva na mão. Ora, se não levava a bolsa, também não
levava a chave. Sem a chave, não poderia entrar em casa. O que significa que, mesmo que eu não tenha visto isso, ela teve que vir novamente para cá.
“Podemos estabelecer, portanto, que ela voltou aos aposentos do Sr. Ehrack. Mas será que a Srta. Carlile, nessa hora, já o encontrou morto, ou foi ela mesma quem
o matou? Ela tinha os meios, o raio de ação e a sagacidade para isso.”
Todos se viraram para mim. Gozado, comecei a me sentir a boneca do bolo da festa temática!
— Talvez haja alguns aqui que achem um desperdício de tempo notificá-los dessas coisas — disse Fëll sem se abalar. — Possivelmente dirão que os estou submetendo
a uma provação injustificada. Pois saibam que há mais. Vamos girar o microscópio, enfim, para a Sra. Basknell. Ela foi vista andando nas proximidades da mansão naquela
noite; e também foi ela quem, depois da leitura das disposições testamentárias, ficou desapontada por ver que não fora nomeada beneficiária do espólio do Sr. Ehrack.
Não foi apenas a Srta. Carlile quem avistou a Sra. Basknell em seu passeio noturno. Houve também outra jovem, que acabou alimentando a mesma desconfiança. Foi essa
jovem quem deu aquele olhar perigoso e frio para a Sra. Basknell na noite do jogo-de-damas. A saber, a Srta. Helene DeCourse.
Helene apurou a audição e despertou de sua apatia.
— O que quer dizer? — perguntou.
— Quero dizer que a senhorita também viu a Sra. Basknell na rua naquela noite. Havia um detalhe que indicava isso — a sua declaração de que a Sra. Ebbington era
inocente do assassinato. Eu me questionei vigorosamente sobre esse detalhe — como é que a sua afirmação poderia ser tão assertiva? Achei que isso levava a uma só
conclusão: que a senhorita, depois que seu irmão saiu para se encontrar com a prima na praça, foi até a casa da Sra. Ebbington. Durante a ida, viu a Sra. Basknell,
com suas galochas e capa impermeável, andando na chuva. É evidente que, naquela hora, aquilo não lhe parecera tão incomum. Mas depois que soube do assassinato, a
senhorita deve ter pensado naquela mulher, tão solitária e enigmática — ali, perto do local do crime!
Houve um rápido corre-corre para acudir a Miss Beleza que tivera um princípio de desmaio. Judith ficou batendo nas bochechas dela com os dedos.
— Helene! Acorde! Helene… Tragam água, rápido!
— Acho que a coisa melou de vez — rosnou Stenzley.
— Engana-se, engana-se — respondeu Fëll. — Viemos agora à parte mais instigante. Fiquem conosco, eu peço. Srta. Carlile, acompanhe-me. Temos que realizar uma pequena
palestra confidencial. Por aqui, schnell, schnell.
Obedeci. Entramos na biblioteca e Fëll fechou a porta.
A luz clareia mais e mais
— Eu agradeço a sua consideração, mas não estou entendendo… O senhor acabou de dizer que eu menti e agora me chama para cá. O que vai fazer? O teste do polígrafo?
— É só uma parada técnica. Vamos esperar as coisas se acalmarem.
Perscrutei o semblante de Edmund Fëll. Havia algo ali… algo que não se poderia medir. Era uma coisa que apontava para uma gama infinita de possibilidades. Nada era
óbvio, exceto… sim, exceto… a severidade que acentuava a cor de seus olhos castanhos.
Fiquei brincando com o tecido xadrez do lenço.
— Uma sessão muito proveitosa, não acha, Srta. Carlile? É pena que na vida real o uso excessivo da tecnologia tenha substituído o romantismo. Os detetives visam
mais a fama, os gordos honorários e o glamour.
— O senhor deve ter tirado isso de algum romance policial — respondi. — Aquele enredo com ambientes europeus, o fog, os mordomos educados e impecáveis…
— Já li essas novelas, umas poucas, eu admito. O suspense bem dosado é algo fascinante. Num texto, não importa se o personagem é perverso ou amável. A versatilidade
do autor ao amarrar todas as pontas, isso é o que atrai a nossa atenção. O modo de atuar do protagonista, as suas ações, e até (por que não dizer?) os seus defeitos
— todos esses acréscimos são sempre bem-vindos. O escritor é quem tem a narrativa na mão; é ele que tem a responsabilidade de cortá-la, lustrá-la e torná-la aceitável.
Apenas ele. O modo como descreve a camareira dando corda no relógio; ou a habilidade com que fala da sobrinha que pede um sherry à tia pomposa, ou da infância do
filho do marechal — essas coisas é que dão luz, brilho e esplendor aos fatos! Vou dar um exemplo. Se a senhorita julga que há uma atmosfera pesada aqui, está certíssima.
Tenho noventa por cento do caso já pronto. Veja, temos o cenário, os fatos e um drama. Ingredientes para despertar o gosto de um leitor é o que não faltam! Existem
vários fios cruzados no crime — outro ponto positivo. Mas muitos romancistas — especialmente os ingleses — possuem uma vantagem a mais: eles têm, em seu país, as
charnecas, os castelos e casarões — coisas que, quando bem descritas, dão um tom misteriosamente adequado a um bom thriller de investigação. Por isso alguns dizem
que muitos lugares por aí nunca seriam um bom pano de fundo para uma boa novela de investigação. Bobagem! Mesmo sem as clássicas casas de campo, com boudoirs trancados
a chave, e criados que andam de lá para cá, e ladys e miladys de todas as categorias, vamos ser sinceros… O que não existe, se improvisa!
Fëll girou sobre si mesmo.
— Eu quero que pense no que aconteceu aqui, Srta. Carlile. A questão não é tanto quem fez, mas sim por que fez.
— Isso significa o quê?
— Minha brava assistente, para disparar um revólver calibre 38 é preciso prática. E o assassino, apesar de suas limitações, conseguiu fazer isso. Não foi um disparo
acidental, a senhorita percebe? Isso não é incrível?
Eu não estava vendo nada de incrível naquilo. Aqui entre nós, eu não estava vendo absolutamente nada!
— Fim da pausa — disse Fëll. — Vamos lá!
“Oh, não!” suspirei. “Lá vamos nós de novo.”
Helene tinha se recuperado, mas a cara dela continuava tão incolor como sempre.
— Ótimo! — disse Harrison ao nos ver. —Alguém acenda os holofotes! Vieram para acabar de matar minha irmã.
Fëll ajeitou o monóculo e mostrou os dentes. Depois olhou para seu auditório.
— Então, Sra. Gwenny-Ducker? A moça está bem?
— Oh, sim — disse Judith sacudindo a cabeça. — Não foi nada. Temos uma jovem muito forte aqui!
— Nesse caso, acho que podemos prosseguir e terminar o que estávamos fazendo. Como eu dizia, a Srta. Helene saiu de casa naquela noite para ir à casa da Sra. Ebbington.
No caminho de ida, ela viu a Sra. Basknell — o que, mais tarde, despertou nela todas aquelas suspeitas e tudo o resto que já foi dito. Em seu depoimento, a Sra.
Ebbington disse que, das 8:00h às 9:35h, limpou o aquário e a despensa. Isso não soa um pouco desarrazoado? Quem é que, em plena noite de fim-de-semana, faria esse
tipo de faxina em seu próprio lar? Não, essa alegação da Sra. Ebbington não procedia. Fui lá outra noite e conferi eu mesmo a despensa — não achei que tivesse sido
limpa no último mês! Mas por que a Sra. Ebbington tentaria nos impingir essa mentira? Qual seria seu interesse nisso? Dessa vez, não precisamos ir muito longe para
conhecer o motivo. Como sabemos, a Srta. Helene estava lá com ela. Até hoje, nem a sobrinha nem a tia disseram qual foi o tópico da conversa entre elas. Mas, pelo
contexto, acho que não é necessário ouvi-las sobre isso; podemos respeitar a intimidade familiar da Sra. Ebbington nessa questão.
— Obrigada, Sr. Fëll — disse Margret. Lutava para conter as lágrimas. — Helene é como se fosse minha segunda filha… Perdeu os pais quando era tão novinha! Prometi
a mim mesma que sempre olharia por ela… Sempre!
— O que importa é que isso responde a nossa pergunta de antes. A Srta. Helene testemunhou a favor de sua tia com tanta veemência porque ela esteve lá, e viu que
a Sra. Ebbington não poderia ter cometido o assassinato do Sr. Ehrack. Agora, vamos a outro ponto. Srta. Carlile, preciso que me diga uma coisa. O Sr. Haggard estava
mesmo na sala, lendo, quando a senhorita voltou para pegar a sua bolsa, no sábado à noite?
— Não. Ele não estava.
— Das war mein Verdacht! Quando o mordomo falou conosco, ele disse que ficou até às 8:50h naquele sofá ali. Aonde terá ido, se a senhorita diz que não o viu? “Ele
tinha saído”, vocês me dirão. Mas por que sairia, eu lhes pergunto? A coisa é mais simples do que isso. Na verdade, quando a senhorita subiu pela segunda vez ao
andar de cima, o Sr. Haggard estava na cozinha. Como podem ver, a porta da cozinha não pode ser vista do vestíbulo. Isso explica por que o mordomo nunca falou que
viu alguém subir os lanços da escada naquela hora.
“Não vou me estender sobre conjeturas e mais conjeturas. Basta dizer que minha investigação estava nesse pé, sem ir para frente nem para trás, quando, esta manhã,
dois comentários alargaram o horizonte: (1) O inspetor disse que havia um rótulo de uísque no bolso de Haggard, ontem, quando ele morreu; e (2) a Srta. Carlile mencionou
que o dia hoje estava frio — em contraste com o calor que fez ontem.
“Estão percebendo onde quero chegar? Não, pois observem que todo tempo a solução dos crimes dependia desses pormenores. O guarda-chuva úmido (que foi deixado propositalmente
na cena do crime), a pegada de barro (também feita com o intuito de despistar a polícia), todas essas coisas apontam para a mesma pessoa. O que significava que,
após um lapso de dois anos, o assassino voltara a agir, e com a mesma coragem e astúcia. E só há uma pessoa nesta sala que poderia ter dado o bote tão friamente.
É alguém que conhecia esta mansão, e que podia olhar para a porcelana fàenza e dizer: “Já vi este material uma centena de vezes.” Alguém que, no sábado de manhã,
esteve aqui e trocou a garrafa de bebida do Sr. Ehrack — foi nesse instante que ele ouviu o tinido de vidro e copos na bancada do barzinho, inspetor. Alguém que
sabia que a escada de mão estava entre as moitas porque a viu ali horas antes. É uma pessoa que, quando entrou no gabinete, achou que o Sr. Ehrack já estaria morto
por causa do uísque (que continha ricina numa quantidade letal). E que, quando viu que não, pegou a arma que estava providencialmente ali à sua mão e atirou sem
a menor hesitação. Uma pessoa que participou ativamente de minha investigação e que, com genialidade, fingiu ter vindo do orquidário quando, na verdade, estava vindo
de casa, local onde, uns vinte minutos antes, havia dado conta de matar o Sr. Haggard. Ou preciso corrigir alguma coisa, Sra. Gwenny-Ducker?
O mundo parou. Poder-se-ia ter ouvido a cinza se amontoando no fundo de um cinzeiro. Por uma eternidade, ninguém se mexeu.
Todos olharam para Fëll — para ver se ele estava gracejando. Tudo indicava que não. Depois os olhos se viraram para Judith.
Judith devolveu o olhar e, sem nenhuma inquietação, tocou na haste dos óculos.
— Não precisa corrigir coisa alguma, Sr. Fëll — respondeu placidamente. — Tenho minhas falhas, mas a hipocrisia não é uma delas.
— Ela? — perguntou Stenzley.
— Lamento dizer que sim — a voz de Fëll tinha uma nota triste. — Eu comecei a respeitar a senhora, a sua inteligência vivaz e o modo como ponderava sobre o crime.
Mas aos poucos fui vendo que muitas coisas… alguns fatos dos três assassinatos… estavam interligados. Pensei primeiro no dono do Três Empenas — ele poderia ter envenenado
facilmente o Sr. Ehrack Pai. Havia apenas um empecilho para tudo isso: um motivo sólido e coerente. Ninguém cometeria três crimes tão complexos e audaciosos sem
uma forte motivação. Considerei então o Sr. DeCourse (havia vários indícios contra ele, incluindo seu perfil violento), a Sra. Ebbington (que, como ex-mulher, era
um candidata em potencial), a Sra. Basknell (que talvez cobiçasse a fortuna de seu namorado), e a Srta. Carlile (que teve todas as oportunidades para isso). Por
último, pensei na Srta. Susie, que tivera a ideia imprópria de fugir para um lugar em que não pudesse ser localizada. Daí, o acaso me ajudou a ver as coisas por
um prisma diferente. Quando o inspetor falou do rótulo de uísque, eu me lembrei de uma coisa. Na manhã seguinte ao crime, a Sra. Gwenny-Ducker estivera conosco no
gabinete do Sr. Ehrack. Num dado momento, ela tinha visto o copo com uísque e, num súbito impulso, jogara o uísque pela janela a fora. Na hora aquilo parecera normal.
Ora, havia sido só um copo de bebida. Mas agora, de repente, aquele acontecimento assumia outras formas. E se aquele gesto não tivesse sido meramente impulsivo?
Suponhamos que ela tivesse feito aquilo de propósito! Se tivesse feito de propósito, toda aquela cena acabava tendo um significado mais rebuscado. Houvera uma razão
por trás daquilo, um por quê. E o porquê poderia ter relação com o assassinato da véspera. Sim, as coisas estavam clareando mais e mais.
“Quando a Sra. Gwenny-Ducker subiu ao escritório naquela noite, e atirou no Sr. Ehrack, sua primeira reação foi criar a impressão de que o assassino entrara no local
subindo por uma escada de mão pelo lado de fora da mansão — uma peripécia que ela, em sua idade, não poderia ter feito. Foi tudo muito engenhoso, mas um pequeno
erro ofuscou a sua encenação. O assassino não poderia ter entrado por ali porque a Srta. Carlile, um pouco antes de sair, viu o Sr. Ehrack trancar a lingueta da
veneziana. Mas o equívoco da Sra. Gwenny-Ducker tem uma explicação: ela, como eu já disse, julgava que a droga na bebida tivesse surtido o efeito desejado. Por azar,
o Sr. Ehrack estava com enxaqueca e não bebeu sua dose costumeira naquela noite. Depois de atirar é que ela armou toda aquela mixórdia de pistas falsas. É claro
que, na pressa — todos cometem falhas.”
— Isso é tão cruel! — exclamou Margret Ebbington. — Eu não consigo entender…
— Lembra-se do trecho de texto que eu lhe mostrei na outra noite, Sra. Ebbington? Nele, o Sr. Ehrack contava algumas coisas de si mesmo e citava duas ou três pessoas
que foram lesadas pelas práticas espertas do próprio pai. Havia ali a menção de uma moça que precisou desmantelar a loja de tecidos para pagar alguns empréstimos
e que, por causa disso, acabou cometendo suicídio. Lembrei-me que a Sra. Gwenny-Ducker disse que o filho dela tinha cometido suicídio… depois da morte trágica da
esposa. Hoje de manhã, depois de ouvir o inspetor, fui procurar detalhes sobre esse caso. Descobri uma espantosa ligação entre os dois fatos: a dona da loja, mencionada
naquele papel, era a nora da Sra. Gwenny-Ducker. Ou seja, fora a nora que tinha se enforcado e fora o próprio filho da Sra. Gwenny-Ducker que, esmagado pela dor,
acabara tirando a própria vida. E de quem fora a culpa por aquela sucessão de fatalidades? De Jeremy Ehrack, o advogado responsável pela derrocada da empresa da
família.
“Uma mãe com o coração ferido… eu até diria, com o coração estraçalhado… pode ter uma reação arrasadora, dependendo das circunstâncias.”
— Ninguém pode imaginar a dor — disse Judith com a voz embargada. — Perder um filho… daquela forma… por causa da inconsequência de um velho gagá. Eu prometi a mim
mesma que faria alguma coisa… E o senhor também teria feito, se estivesse no meu lugar.
— Sem querer, a senhora acaba de corroborar alguns boatos que corriam pela vila. O Sr. Ehrack Pai tinha uma amante, ou melhor, uma pseudoamante, pois foi a senhora
quem se aproximou dele e, furtivamente, marcou um encontro com ele no Três Empenas naquela tarde. Foi a senhora quem entrou no apartamento do advogado e…
— Eu protesto! — atalhou Stenzley. — Ninguém viu essa mulher em meu hotel… não naquela hora!
— Ah, o senhor tocou no xis da questão. Ninguém a viu naquela hora porque ela passou pela recepção do hotel muito tempo antes das 18h. O senhor deve saber que havia
um hóspede doente no 303, Sr. Stenzley.
— Aquele alemão, que ficou tossindo que nem um… er… condenado?
— E o senhor também deve saber que a Sra. Gwenny-Ducker costuma ajudar as pessoas que aprovam tratamentos fitoterápicos. Sob o pretexto de assistir ao alemão “que
ficou tossindo como um condenado”, ela entrou duas ou três horas antes do horário em que Pickwick supostamente chegaria. Daí veio toda aquela confusão que…
— O senhor está dizendo — interrompeu Radke — que Pickwick e ela… são a mesma pessoa?
— Exatamente isso. E a coisa funcionou, não foi? Embora simples, a tática a ajudou a sair ilesa do caso; creio até que a Sra. Gwenny-Ducker achou que estaria a salvo
e que ninguém lhe causaria embaraços. Mas o Sr. Ehrack Júnior fez uma coisa que poucos fariam — começou uma investigação a fim de descobrir, por conta própria, o
que exatamente havia acontecido ao pai. E, até eu tenho que dizer, ele foi muito bem-sucedido em vários momentos. Foi tão bem-sucedido, aliás, que, depois de reconstituir
todos os acontecimentos daquele dia, ele conseguiu o nome do provável assassino de seu pai. Mas saber disso era uma coisa; provar era outra bem mais difícil.
“O que vou falar agora não passa de especulação. Pensem nisso… O Sr. Ehrack havia descoberto a identidade do assassino, mas, de qualquer modo, estava de mãos atadas.
Faltavam provas — provas fundamentais. Assim sendo, o que ele resolve fazer? Ele faz o que lhe parece mais apropriado: comunica-se com a própria Sra. Gwenny-Ducker
e lhe diz que sabe de tudo! Talvez o Sr. Ehrack quisesse causar pânico — isso, por sua vez, talvez acabasse gerando uma admissão de culpa. Mas o tiro sai pela culatra…
e a partir dali a sua sentença de morte está automaticamente assinada.
— Sim… — concordei. — Na sexta de manhã… eu mesma vi! Judith estava lendo um bilhete na sala de jantar. Ela disse que eram contas, mas o seu rosto estava tão contrito,
tão perturbado… O bilhete era do Sr. Ehrack!
— Wie schöen! — exclamou o detetive. — Isso confirma as minhas suposições. Foi, portanto, na sexta-feira que o assassinato começou a tomar forma.
“O truque da Gwenny-Ducker em querer alterar o depoimento de Haggard em cinco minutos foi ardiloso, uma jogada de mestre. E foi também a Sra. Gwenny-Ducker quem
disse que, na caixa de medicamentos da Sra. Ebbington, havia — entre outras coisas — ricina. A senhora colocou o produto ali, assim como também colocou na estante
dela o compêndio sobre Veneno e seus Efeitos. A senhora sabe que essas coisas, quase imperceptíveis, têm um alto poder de sugestão sobre um investigador desatento.
Um poder de sugestão tão grande que pode influenciar decisivamente os rumos de um inquérito em andamento.”
Não me envergonho de dizer — ao ouvir tudo aquilo, eu começara a chorar baixinho. Judith… minha amiga… uma assassina?
— Não pode ser — objetei, secando os olhos. — E quanto à morte de Haggard? Eu estava lá, Sr. Fëll. Ela… eu mesma vi… veio da esquerda, a direção em que fica o orquidário!
— Não, Srta. Carlile, isso foi o que ela quis que nós pensássemos. O que ela fez foi dar uma volta na quadra — intencionalmente. Tente se lembrar do que aconteceu.
Imagine a Sra. Gwenny-Ducker aparecendo na nossa frente, dizendo de onde supostamente estava vindo — e nós dois mordendo a isca direitinho! Eu me forço a achar que
foi nesse exato dia em que Haggard viu que alguma coisa estava errada com a garrafa de uísque. Dúvidas devem ter surgido em sua mente: Quem teria feito a troca?
Por quê? Depois de arrancar o rótulo, ele foi para a casa da Sra. Gwenny-Ducker. Ele pode ter ido até lá apenas para falar com ela — ou é possível que tivesse uma
pequena desconfiança de que ela estivesse implicada naquilo. Não importa… A Sra. Gwenny-Ducker permite a sua entrada e, já no sofá, ele começa a expor as suas preocupações.
Ela ouve o que o mordomo diz e, aos poucos, começa a ficar assustada. Aquele homem sabia demais! Aquele homem tinha que ser calado! Assim, por instinto, ela toma
dissimuladamente a peça de ferro e, na hora certa, bate nele com tamanha força que fratura a sua coluna. Pronto, isso eliminava o seu problema. Mas, esperem, agora
havia um corpo — e o corpo estava dentro da casa dela! Tirá-lo dali estava fora de cogitação. Era preciso camuflar o crime, de qualquer jeito. Pensando com rapidez,
ela encontra uma solução: fazer com que as pessoas achem que o assassinato aconteceu enquanto ela mesma estava fora de casa. Ou seja, era preciso criar a ilusão
de que ela, na hora do crime, estava em outro lugar qualquer. Bastava apenas achar algum tolo que caísse na história de carochinha dela. E o tolo fui eu — eu, Edmund
Fëll, que deveria ter visto que tudo aquilo era um embuste! A Sra. Gwenny-Ducker põe o plano em ação: depois de trincar a vidraça da porta dos fundos (o que reforçará
a impressão de que o assassino saiu da mansão por ali), ela vai para a casa da Srta. Carlile. Lá, faz toda aquela encenação e nós, como um bando de patos, corremos
para a casa dela. Aqui entra o detalhe da temperatura que citei há pouco; o cadáver de Haggard ficou no sofá durante todo esse tempo, exposto ao sol. Com isso, ficou
mais difícil apurar a hora da morte — o toque de Midas para um plano espontâneo, mas bem executado.
— Ela é doente — disse a Sra. Ebbington. — Totalmente doente.
— Eles tinham que morrer — revidou a Sra. Gwenny-Ducker. — E eu os matei. Eu fiz justiça. Por Bernard e por mim. Eu fiz!
Ela se retirou na companhia de um dos policiais. Judith… Era doído demais para aceitar aquilo!
— Acho que devo me desculpar — disse Stenzley com a voz mais branda. — Sou uma pessoa terrivelmente incrédula. Não pensei que… Bem, o senhor provou que eu estava
equivocado.
— Machen Sie sich keine Sorgen — Fëll fez um gesto magnânimo.
— E quanto a mim? — perguntou Harrison indócil. — Também vou ser autuado?
— É inevitável — respondeu Radke. — Vai ser julgado e terá uma sentença proporcional ao que fez.
— Que um raio fulmine a todos vocês! Principalmente o senhor, seu suíço intrometido!
Fëll deu de ombros, cansado.
— Não sou supersticioso, meine Junge. E mesmo que fosse, cada um de nós é dono de seus próprios atos. Crime é crime. Que isso sirva de lição a todos.
Epílogo
É sexta-feira. É quase noite e lá fora continua garoando. Estou no escritório do Sr. Ehrack, digitando esse epílogo. O inspetor Radke veio comigo — acho que ele
tem uma pequena queda por mim! Percebi isso enquanto eu limpava os pés no capacho lá embaixo. O sorriso dele… meio bobo. Mas nem ele sabe por que pedi para ficar
só por alguns instantes.
Eu quase fui presa hoje e…
Deixe-me explicar melhor. Vou contar tudo desde o começo.
Ontem de tarde, Susie passou em minha casa. Vi que ela estava eufórica, as faces num vermelho cor de fogo; adivinhei que tinha acontecido alguma coisa.
— Então? — perguntei. — Você confessou, Susie?
— Que jeito de falar, Katrina? Eu não confessei nada. Aquele detetive… que homem infame!… disse que se sentou e simplesmente deduziu tudo.
— Deduziu? Ora, não venha com essa! — comecei a me irritar. — Você queria o quê? Você foge no dia em que seu pai é assassinado e ainda quer que isso abafe o caso?
Susie, você é uma doida varrida!
Esse insulto mexeu mesmo com ela!
— Pois saiba que você também é culpada — disse muito brava. — Essa sua mania de usar esses saltos ridículos! Você vai ver… Foi isso que nos delatou.
— Meus saltos? Só faltava essa! O que é que meus sapatos têm a ver com isso?
— Você vai ver, eu já disse. Nós duas fomos intimadas, Katrina. Amanhã de manhã o Sr. Fëll irá embora daqui.
— E daí?
— Daí que ele me pediu que eu dissesse a você que fôssemos nos despedir dele. Isso não lhe diz nada, sua sabichona?
— Permaneço no escuro.
— Acontece que o inspetor da polícia também estará lá. Satisfeita agora?
O inspetor… Susie e eu… e Fëll? Isso era mau. Mau não. Péssimo.
Tentei confortar Susie — talvez fosse tudo coincidência. Mas nem eu estava muito convicta disso.
Havia alguma coisa no ar.
Dormi mal. Pensei em não ir. Eu contrapartida, se eu não fosse estaria servindo minha cabeça numa bandeja de prata. Judith fora desmascarada; eu me lembrava de seus
olhos — cruéis e sem emoção. E eu nunca tinha desconfiado dela!
Chegara a minha hora de encarar o patíbulo.
Às nove horas da manhã fui para a estação ferroviária. É lá que se daria o adeus. Encontrei um grupo de pessoas na plataforma; entre elas, Edmund Fëll, bem asseado,
com uma mala com fivelas prateadas.
— Carlile! — exclamou Fëll. Estava feliz por me ver. — Venha, estávamos esperando que viesse.
Ele tinha se levantado para me cumprimentar. Sorri lisonjeada. Notei que o trem já resfolegava, soltando fumaça.
Susie e Radke também apertaram minha mão. E, certo, Tomazelli, que me deu um sorriso brejeiro.
— Não foi trabalhar hoje, Srta. Carlile? — perguntou.
— A Sra. Oeschler adiantou as minhas férias. Ela acha que ainda estou exausta. Pensei em dar uma passada aqui.
— Fez muito bem, Fräulein — disse o austríaco. — Fez muito bem.
Radke ficou de costas para nós, aparentando um ar triste, como se não quisesse olhar para mim. Tive um baque — minhas previsões estavam certas! Minha hora havia
chegado.
— Então o senhor vai partir — tentei ganhar tempo. — Deve estar orgulhoso, depois da semana cheia de atividades.
— Katrina! — disse Susie.
Havia uma súplica na voz dela. Ela estava de pé, o corpo reto, e uma nódoa de receio no rosto. Mordi o lábio e me calei.
— Danke, Srta. Ehrack! — disse Fëll. Era como se uma mortalha cobrisse seus traços fisionômicos, tornando-o irreconhecível. — Sim, estou partindo, Carlile. Mas antes
temos alguns assuntos para liquidar. O trem… às dez horas… meia hora, acho que dá tempo.
— Meia hora… por quê? O que estamos fazendo aqui?
— Ficaram algumas coisas por esclarecer — acrescentou o detetive. — Pedi ao inspetor para vir e julgar o caso por si mesmo.
— Que coisas?
— Por exemplo, o que Harrison DeCourse conversou com a Srta. Ehrack na noite fatídica, na praça? E também: o que o Sr. Ehrack tinha a tratar com a senhorita naquelas
sessões de datilografia. Acho que, em suma, é isso. A senhorita, no outro dia, acusou Harrison de um roubo — que ele, comprovadamente, não cometeu. Fiquei me perguntando
qual teria sido sua motivação ao fazer aquilo. A senhorita estava querendo se safar e tentou desviar as nossas suspeitas para outra pessoa, não é, Carlile?
— Não sei do que está falando!
— Ah, sabe sim. A senhorita e a Srta. Ehrack são cleptomaníacas, não é mesmo?
Senti o chão rodopiar.
— A começar, temos o roubo do jogo de chá de Samantha Edgeware — enumerou Fëll. — Havia furos bem característicos na terra argilosa do quintal dela. Furos de sapatos
de salto, estão percebendo? Lembro-me de que já lhe sugeriram que usasse sapatos com saltos menores, não foi? Vamos a um segundo fato: a Sra. Ebbington disse que,
tempos atrás, os brincos de Helene DeCourse sumiram sob circunstâncias um tanto, digamos, duvidosas. Aparentemente, eles tinham caído na água, mas esta semana voltamos
a achá-los num cofre, bem longe do local do suposto acidente. Havia quatro pessoas na pontezinha, o local do sumiço: Carlile, a Srta. Ehrack e os irmãos DeCourse.
Descartando automaticamente a Srta. Helene, qual dos outros três poderia tê-los furtado?
“Havia outra peça desse mecanismo que não me saía da cabeça. Por que a Srta. Carlile, depois de ler um trecho da carta recebida pela Sra. Ebbington, fora sozinha
atrás de sua colega até a casa dos Reusfeld? Tive que segui-la para chegar até lá! Isso só podia ter um significado: que havia alguma coisa nessa história que elas
queriam ocultar… ou que precisava ser ocultada. Alguma cumplicidade no assassinato do Sr. Ehrack? Era improvável. Havia mil e outras possibilidades, e estava visto
que esse acontecimento isolado não seria de muita ajuda. Mas o fato — quando pensei nele mais tarde — levou-me de novo ao triângulo Carlile/ Srta. Ehrack/ Sr. DeCourse.
“Não vou aborrecê-los com firulas técnicas e descrições de minha metodologia de trabalho. Basta dizer que, depois de refletir em todos os fatos, organizei a sequência
de eventos do seguinte modo. Vamos recuar no tempo até o último sábado, depois do meio-dia. O Sr. DeCourse entra no escritório do tio atrás das cartas fictícias
do Sr. Stenzley. Ele não as encontra, mas subitamente ele vê um relógio de prata. Transtornado, o rapaz o toma na mão e olha mais de perto. Fora ele que comprara
aquele relógio! Fora ele que o dera de presente à Sra. Samantha Edgeware, por quem estivera apaixonado! As iniciais S.E. estão ali, impressas nele… Como é que aquele
objeto tão íntimo viera parar ali? Nesse instante, porém, o seu tio entra e… acontece toda aquela discussão doméstica que nós já conhecemos.
“Creio que, ao sair da mansão, o rapaz desconfiava seriamente do Sr. Ehrack. O seu tio — um ladrão? A Srta. Helene, ao ouvir o seu relato, deve ter ficado tão atônita
quanto ele. Mas, como mulher, ela logo se revelou mais prudente que o irmão. Ela sugere que, em vez de ir para a polícia, falem com alguém sobre o caso. Alguém influenciável
e que possa ajudá-los a, quem sabe, chantagear o tio. Os DeCourse precisavam de dinheiro; eles sabiam que seus fundos de poupança não durariam para sempre. Pode
contar para nós o que aconteceu naquele dia, Srta. Ehrack? Parece que escolheram a senhorita para ser pivô da chantagem.”
— De tarde, minha prima falou comigo e disse que sabia de uma coisa escandalosa sobre papai — disse Susie. — Helene estava muito emocionada, mas acho que ela só
queria me impressionar. Quando eu encontrei Harrison de noite, ele foi curto e grosso; disse que papai estava envolvido em alguns furtos e que, se dependesse dele,
não iria denunciá-lo… mas que isso teria o seu preço. Eu lhe respondi: “Harry, que coisa sórdida! Não acredito que papai… ele nunca roubaria nada de ninguém.” Ele
riu e tirou um relógio do bolso. “Você sabe o que é isso, Susie? Esse é o presente que fiz sob encomenda para Samantha. E seu pai… aquele porco ordinário… o roubou
dela. Sim, isto estava lá no gabinete dele.” Fiquei com as pernas bambas. “Oh, querido, você está enganado. Não foi papai…” “Ora, pare de choramingar, Susie. Se
você não expuser as minhas condições, vou direto para a delegacia.” Continuei falando: “Não, Harry, está havendo um engano. Não foi meu pai quem pegou isto da casa
da Sra. Edgeware. Fui eu! Eu e Katrina… Fomos nós duas!” Harrison hesitou: “Você e Katrina?” “Você gosta daquela sirigaita, Harry. Ela é rica, Harry. Falava nela
como se fosse a rainha de Sabá. Oh, Harry! Eu sempre amei você. Eu — eu é que amo você! Você nunca reparou em mim. Harry, por quê? Por que não?” Ele deu um passo
atrás. “Então… seu pai… como?” “Eu não sei como, mas ele ficou sabendo do nosso furto. Harry, tive que lhe entregar tudo… As jóias, as xícaras… Papai fez-me prometer
que eu ficaria longe de Katrina. Oh, eu quis morrer!” Harrison estava mudo. “Foram vocês!… Samantha, meu amor… Samantha!” Com asco de mim, ele se afastou e sumiu
na noite. Fui para casa, Sr. Fëll, totalmente danificada. Quando cheguei lá, como já lhe falei, vi toda aquela movimentação de gente. O Dr. Ritterbuch… as coisas
que ele disse para me reconfortar… Lembro que atirei o relógio no chafariz… e não sei nada do que aconteceu depois.
— Está bom assim, Srta. Ehrack — disse o austríaco. — Esta versão é melhor do que a outra que nos apresentou. Danke! Agora, Srta. Carlile… Poderia nos contar qual
foi o teor da conversa que teve com o Sr. Ehrack naquela mesma noite?
Dei um suspiro. Os soluços de Susie… o chiar rouco do trem… tudo me atordoava.
— Na sexta de noite, tudo foi muito bem. Eu escrevi, ele conferiu, elogiou… toda aquela coisa. Mas no sábado, um pouco antes de eu sair, o homem disse que queria
me fazer um pedido. Assenti, e fiquei sentada, esperando. Ele começou a falar e à medida que foi falando, eu fui ficando cada vez mais admirada. “Senhorita, eu lamento
ser tão franco… Tenho que lhe dizer, porém, que Susie abriu o jogo. Ela disse que, com a sua conivência e ajuda, roubou algumas coisas de uma pessoa. Acho que a
senhorita compreende a minha posição de pai. Vou fazer de tudo para que isso não transpire… Mas vou lhe solicitar que, pelo menos por umas semanas, não tenha associação
com minha filha. Sim, é um castigo… Não vai doer nada. Ela já me deu alguns objetos… vou tentar devolvê-los sem levantar suspeitas sobre vocês duas.” Eu ouvia, tentando
discernir onde ele queria chegar. “No fundo, achei que Susie teve muita coragem. Ela — que sempre foi tão quietinha — lesou uma mulher porque estava com ciúmes dela!
Ciúmes… Mas a lei não tem atenuantes para essas coisas. Os brincos que ela subtraiu de Helene também estão comigo… Só lhe peço isso, senhorita: fique longe de minha
filha por um tempo. Nenhuma de vocês é má — mas as duas juntas são uma má influência uma para a outra.” “Tudo bem, Sr. Ehrack! Se é isso o que o senhor quer…” “Ótimo,
estou feliz que tenhamos nos entendido.” Eu estava em prantos quando saí, e meus pensamentos não eram nada animadores. Fui para casa e lá, como o senhor disse ontem,
notei que tinha esquecido a bolsa com as chaves. Voltei para o escritório e, ao chegar lá, encontrei o Sr. Ehrack morto. A arma, o corpo, a janela batendo com o
vento… Fiquei horrorizada com aquele cenário. Na hora, pensei que ele tivesse se matado.
Fëll sacudiu a cabeça em agradecimento.
— Exatamente o que eu presumi. Isso esclarece porque o Sr. Fadeschi, o advogado, disse que o Sr. Ehrack nomeou a Srta. Helene uma de suas herdeiras: ele queria compensá-la
de um erro recente cometido por sua filha. De um modo ou outro, ele ficou sabendo do roubo dos brincos (uma pequena malvadeza da Srta. Susie) e achou que seria apropriado
reparar a injustiça concedendo à sobrinha uma parte de seu dinheiro. Além disso, conforme deve ter visto, Carlile, a senhorita foi contratada por uma razão específica.
Seu trabalho como secretária era apenas um engodo. O Sr. Ehrack precisava de um pretexto para lhe falar sobre um assunto melindroso. E conseguiu, depois de angariar
a sua amizade. Eu receio, porém, que a senhorita enterrou parte da louça que tiraram da casa da Sra. Edgeware.
— Compreendo… O Sr. Stenzley!
— Sim. Quando estive no hotel, ontem à tarde, ele disse que a viu enterrando alguns diários velhos. Pensei nisso e julguei que enterrar diários não combinava muito
com seu perfil, Carlile. Fui lá, esta manhã cedo, cavoucar o solo com a pá e… Zás! Achei as peças da prataria.
— Não somos cleptomaníacas, Sr. Fëll — disse Susie corajosamente. — Foi uma infantilidade…
— Gut so, senhorita, não vou mais mencionar esse adjetivo.
Pleno de excitação, Radke perguntou:
— Quer dizer que toda aquela lengalenga de biografia era só um subterfúgio?
— Em partes, sim. Mas havia mais uma razão. Dizem que a perspicácia é a capacidade de ver além da superfície de acontecimentos que, apesar de tudo, parecem triviais.
Esse caso é um bom exemplo disso. Lembram que ontem, durante minhas declarações, eu disse que a Srta. Carlile tinha interpretado mal algumas palavras do Sr. Ehrack?
—Vagamente. O senhor falou alguma coisa sobre semântica.
— Exato, das ist es. Quando ele mencionou que tinha pouco tempo de vida, o Sr. Ehrack não quis dizer que receava que alguém estava intencionando matá-lo. Foi a Srta.
Carlile que entendeu isso. Não, longe disso. A Sra. Ebbington, sem querer, revelou para nós que o ex-marido tinha feito uma viagem à capital. Deliberei ontem com
o Dr. Beryl; ele acabou dizendo que o Sr. Ehrack apresentava recorrentes problemas no baço. E, infelizmente na capital, o diagnóstico confirmou o laudo preliminar.
O câncer estava em fase terminal.
Susie tinha ficado pálida:
— Papai… com câncer — murmurou muito branca. — Por que ele nunca contou nada?
— Acredito que ele queria poupá-las… Segundo o médico, seu pai dispensou a quimioterapia. A biografia foi composta, portanto, por esta segunda razão. Era um modo
de fazê-lo esquecer do fim ominoso que, a cada dia, se aproximava inexoravelmente mais.
Radke tentou dar uma guinada no assunto.
— Quanto ao caso Edgeware…
— … está solucionado — disse Fëll. — Foram essas duas moças… Mas eu lhe peço, inspetor, que seja clemente. Foi um roubo sem maiores consequências. Acho até que elas
já se arrependeram do que fizeram. Não é mesmo, Misses?
Susie e eu abanamos simultaneamente a cabeça.
O condutor do trem passou por nós:
— Senhores passageiros, embarquem, por favor.
O austríaco lançou um olhar para a sua valise.
— Deixe comigo — adiantou-se o inspetor. Num gesto de cordialidade até então inédito, disse: — Eu levo a bagagem.
— Wunderbar, Herr Inspektor. Agradeço também ao meu amigo Tomazelli. Foi uma semana realmente revigorante…
— Venha quando puder, mio amicci. Talvez eu consiga mais moedas para sua coleção.
— Aufwiedersehen!
Fëll subiu e, quando o trem se pôs em marcha, ele acenou de uma das cabinas. Radke se virou para meu senhorio.
— Naquela mala — perguntou — havia moedas?
— Ah, o senhor estranhou o peso? — Tomazelli piscou um olho. Ele tinha um sorriso maroto, que emoldurava o tom de voz suave. — Antes de morrer, pensei em fazer uma
boa ação, capisce?
Creio que essa cena termina a minha narrativa. Bem a tempo. São nove horas. Ouço passos nos degraus da escadaria. A porta range… Meu valente inspetor espia pelo
vão semiaberto.
— Já acabou, senhorita?
— Sim — respondo. — Já acabei.
— Que bom — diz ele. — Podemos ir. Não sou medroso, mas esta mansão…
Digo que sinto a mesma coisa. Faço uma última pergunta:
— Herr Inspektor, sobre a morte da mulher do leiteiro… Acha que o marido pode estar implicado no crime?
Radke aperta os olhos, desconfiado:
— Estamos analisando todas as evidências. Por quê? Sugere que ele esteja implicado?
É exatamente em lugares assim, longe de centros urbanos, que acontecem os maiores e mais sórdidos dramas. Ouço a frase de Fëll ressoando em meus ouvidos.
— Quem sabe — digo misteriosamente. — Quem sabe…

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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