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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VELEIRO DE CRISTAL / José Mauro de Vasconcelos
O VELEIRO DE CRISTAL / José Mauro de Vasconcelos

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VELEIRO DE CRISTAL

 

"Monólogo da Solidão"

A Viagem

Anna abanou-se com o lenço e enxugou o suor dos bra­ços. Apesar da tarde estar começando e o sol tendendo a desaparecer, continuava o calor reinando dentro do carro. Toda a viagem fora sob o domínio do verão. As janelas arriadas deixavam penetrar um vento morno e abafadiço.

Eduardo, recostado no banco, olhava impassível o pes­coço de Nonato, o chofer. Ele nem parecia sentir o calor e sim fazer parte, ser uma continuação do volante.

Anna olhou os olhos semicerrados de Eduardo e sorriu, passando-lhe as mãos na testa úmida.

— Cansado, querido?

— Um pouco, titia. Mas estou mesmo gostando da via­gem.

— Com todo esse calor?

— Eu sempre gosto mais do verão.

Ela sorriu compreendendo:

— É. Você sempre gostou mais do verão.

Calou-se, pensando no sobrinho. No verão as suas per­nas não doíam. A sua cabeça parecia tornar-se mais leve e os seus olhos sempre sorriam de alegria. No inverno era aquela tristeza. Não queria levantar-se, ficava o dia enco­lhido na cama como se vegetasse, e gemia demais quando era preciso colocar os aparelhos em seus pés e pernas. Além disso, aquela dor de cabeça que lhe inchava os olhos. Tudo que falava parecia mais a continuação de um gemido.

— Você está precisando de alguma coisa?

— Não, titia. Muito obrigado.

Bem que estava. Sentia a bexiga tão cheia que incomo­dava. Mas na parada da viagem, quando todos desceram para o restaurante, ele negou-se a ir. Preferia deixar de fazer pipi a ser motivo de curiosidade e pena.

— Falta muito tempo ainda, titia?

— Quando descermos a serra, pegaremos a estrada. Cal­culo que mais ou menos uma hora. Está cansado, não, meu filho?

— Não muito.

— Quando a gente chegar à cidade, toma uma estrada particular que vai subindo; depois começa a descida e se avista a casa. Olhe, Edu, poucas vezes vi uma casa tão linda assim! Tem uma piscina entre as pedras. Com jeito, você pode até tomar banho.

— A senhora acha que vai adiantar alguma coisa?

— Sem dúvida, Edu, você vai ficar forte, corado, bron­zeado e...

— E o quê, titia?

— Ora, nada. Você vai ser muito feliz. E estou aqui para que todas as suas vontades sejam feitas. Isso não basta?

Desajeitadamente alisou a mão da tia num gesto de simpatia. Sabia o significado da reticência dela. Pobre tia Anna que ignorava metade do que ele descobrira. Mas também não iria afligi-la nunca.

A tarde refrescava agora, e até um vento friozinho pene­trava no automóvel. Fechou os olhos para pensar. Como seriam os caseiros, o jardineiro e o resto do pessoal? No­vamente tudo iria acontecer. Com o tempo logo se acos­tumariam com ele. Tinha certeza, e tia Anna prometera, que na casa haveria o mínimo de gente trabalhando. E quando tia Anna prometia, não podia duvidar.

Uma sonolência morna pesava-lhe. Devia ser o mar por perto. O vento, o ruído dos pneus na estrada, as curvas, tudo parecia concorrer para o seu amolecimento.

Quando abriu os olhos, sentiu de novo que a sua bexiga incomodava. Mas negou-se a pedir para pararem o carro. Seria um trabalho penoso. Sentia até o rosto esquentar e avermelhar-se pensando no incômodo que poderia causar. Um pouco mais de paciência e chegariam.

A noite agora imperava e os faróis do carro riscavam a estrada. As árvores circundantes adquiriam um aspecto sombrio e assustador. Se olhava para o céu, a noite estava vidrada de estrelas.

— Estamos chegando à cidade. Vou ajeitá-lo melhor no banco, quer?

— Não precisa, titia. Já estamos perto. O pior já passou.

— Mas você não quer ver a cidade?

— Eu posso ver como estou, titia.

A vontade era de chegar logo, sentir o vento do mar mais perto do seu corpo e do seu cansaço.

Respirou aliviado quando as luzes foram desaparecendo e sentiu que tomavam o rumo de uma nova estrada.

Agora o carro andava mais devagar e o asfalto desapa­recera, cedendo lugar a um caminho pedregoso e áspero.

— Estamos quase no alto da serra, não é, Nonato?

— Daqui a pouco vou parar e a senhora reverá a paisa­gem como da outra vez.

— Isso é bom. Assim Edu vai se encantar com a casa. O carro diminuía a marcha.

— Chegamos, Dona Anna.

Freou o veículo e desceu, vindo ajudar a senhora e o menino a descerem:

— Pronto, Edu. Eu dei ordem para que deixassem a casa toda iluminada. E obedeceram às minhas ordens. No­nato vai ajudá-lo.

Nonato o susteve nos braços, enquanto tia Anna apa­nhava as duas muletas para que se amparasse.

— Estou meio tonto.

— É natural. Você viajou muito tempo sentado. Eduardo suplicou:

— Titia, eu precisava ficar só um momento com Nonato.

Anna sorriu no escuro e afastou-se para baixo, na estra­da. Olhava o céu tão lindo e estrelado. Esperou paciente na sua contemplação até que ouvisse o pequeno ruído so­bre a areia. O menino deveria ter sofrido muito. Agora tudo estava terminado.

Sabia que podia retornar. Fê-lo calmamente.

— Vamos devagar até aquela parte mais alta. Apoiado pelas muletas, Eduardo caminhava com cuidado; mesmo assim, sentia-se amparado pelas mãos de Nonato em suas costas.

Agora o vento do mar jogava-se contra todos os rostos.

— Não é uma beleza, Edu?

Como se estivesse ancorada na escuridão, a casa aparecia toda iluminada.

— Na primeira vez, eu não tinha notado tanto, mas agora, com mais calma, vejo que ela parece um navio an­corado num cais.

Um sorriso rasgou o rosto de Eduardo. — Não, titia, não é um navio. É mais bonito que isso. Com todas as luzes acesas, ela parece mais um Veleiro de Cristal.

 

A Conquista do Veleiro

Anna cumprira a palavra. Depois que passara dois dias em repouso por causa da viagem, agora podia passear, mui­to embora com vagar, por qualquer canto da casa.

Quem a via pelo lado de fora nem podia imaginar toda sua beleza. Talvez até se decepcionasse vendo aquele gran­de paredão descascado mostrando pedras desalinhadas, guardando um pouco do antigo reboco e uma infinidade de nomes riscados. Eram nomes de casais, nomes de namo­rados, corações transpassados por uma seta... Nomes que também se desgastavam com a passagem do tempo.

— Por que não derrubaram também esse paredão, titia?

— Por causa da tradição. Aqui era um velho depósito de café do tempo dos escravos. Se não fosse ele a gente não teria a surpresa que tem.

E Anna estava com a razão. Porque quando se atingia o lado interior da moradia tudo se transformava num so­nho. Existia uma praia particular onde apareciam dois ranchos de pescadores. A casa se apoiava como se se sen­tasse sobre duas grandes pedras. Também algumas colu­nas apoiavam a parte da frente. Havia um jardim entre as pedras e um caminho feito pela mão do homem que ro­deava a casa e seguia contornando a serra do fundo. Por onde se olhasse, o mar batia e estraçalhava espumas.

— Onde eu acho mais bonito, titia, é a sala de refeições. Quando todas as cortinas são corridas a gente vê o mar por todo lado. Aí sim, dá mesmo a impressão de que se está num navio.

— Então quer dizer que você aprovou a escolha?

— Cem por cento.

Anna experimentava o seu tato.

— Você não se está cansando muito?

— Não, titia.

— Não seria melhor que mandássemos descer de São Paulo a cadeira de rodas?

— Por favor, titia. Eu estou bem. Descansei bastante. Dormi muito esses dias, não viu?

— Claro, querido. A aproximação do mar dá muito sono às pessoas.

— Então vamos dar uma volta na piscina mesmo que seja devagarzinho.

Ela susteve a sua mão.

— Mas a senhora prometeu que se eu viesse me faria todas as vontades. Eu quero ver de perto o tigre chinês.

— Está bem. Mas acabada a volta você vai ficar duas horas sentado.

— Prometo. Ficarei sentado até mais. Quero ver o en­tardecer ali no terraço da frente, onde o mar bate mais perto.

Apoiando-se com jeito na muleta, saíram do pátio in­terno e se encaminharam para a borda da piscina.

— Ele é muito lindo, não?

— É uma escultura chinesa.

Uma pedra grande avançava na piscina e sobre outra enorme e chata, um tigre de bronze parecia vivo, querendo atirar-se às águas.

A maresia dava-lhe manchas vermelho-esverdeadas no dorso e no pescoço. A maresia não respeitava nem sua grande beleza.

— Olhe os olhos dele, titia?

— Impressionantes, não?

— Ontem à noite eu estava lá no tombadilho superior e a luz dando direta nos olhos do tigre dava a impressão de faiscarem.

— Que tombadilho, Edu? Virou-se apontando.

— Aquele ali. Ao lado da escada que dá para o andar

de cima.

Riu-se da imagem.

— De todo jeito você está num navio e não numa casa,

não é?

— É melhor assim. Eu nunca viajei de navio. Só de trem e de automóvel.

— Se você quer assim está bem. Vamos fazer uma via­gem ao país dos sonhos.

 

Foi um custo tirá-lo dali.

— Vamos Edu, já é tarde.

— Só um pouquinho mais, titia. Eu vou ter muito tem­po para dormir na vida.

Sentara-se numa poltrona grande e ficara espiando o mar. Ali era a sala de jogos, mas ainda não sabia que nome ele havia dado ao local.

Ficava perdido no mar. As pedras embaixo da casa for­mavam um círculo penetrando no mar. As ondas vinham e se rebentavam com estrondo levantando torrentes de es­puma. A maresia vinha borrifar e umedecer as grandes pa­redes de vidro.

— Não parece mesmo, titia, que 'estamos no alto mar?

— Sim. Parece. Mas parece também que é hora de al­guém ir para a cama.

— Podemos ir agora.

Ajudou-o a colocar as muletas sob os seus braços e ca­minharam.

Ao sair da sala Edu falou para uma estante no fundo.

— Boa noite, linda dama!

— Com quem você fala?

— Com aquela linda coruja empalhada.

— Mas ela é horrenda!

— Isso porque a senhora não olhou em seu olhos bri­lhantes.

Entraram no quarto e Edu começou sua preparação para dormir.

Já debaixo das cobertas, porque a noite estava meio fria. Lembrou-se dos aparelhos mecânicos. Era duro a re­tirada deles.

— Vamos sair debaixo das cobertas. Precisamos tirá-los querido. Com jeito não dói e não demora muito.

Ele cedeu à voz do carinho.

— Pronto, agora pode se cobrir à vontade. Ele sorriu.

— Anna você é formidável!

Ela conhecia aquela forma de ternura.

— É. Agora eu sou Anna formidável, não é?

— Você sempre é formidável, Anna.

— Então posso apagar a luz?

—  Ainda não.

— Vai rezar?

— Não rezo mais, Anna.

— E por quê?

— Não sei. Não sinto que preciso. Estou vivendo numa felicidade grande.

— Então não se agradece isso?

— Não, titia. Deus está me dando isso porque quer. Acho até que ele está fazendo tanto porque a vida já me judiou bastante.

Anna engoliu em seco completamente emocionada. Mudou a direção da conversa.

— Você não está sentindo falta de Serginho e de Mar­celo?

— Nem um pouco. Acho que também eles não pensam em mim. Até que é bom porque lá eu estava sempre atra­palhando. Como se fosse um trambolho.

— Que bobagem, Edu.

— Sabe, Anna, eu acho lindo o jeito com que Serginho faz tudo. Ele é dois anos mais velho do que eu e está se transformando num rapazinho. A gente vê o orgulho com que papai o olha. Eu adoro o modo com que Marcelo pega o violão e toca tudo que quer. Eles são formidáveis também.

Aí sua voz se tornou rouca e emocionada.

— Não é que eu tenha inveja deles, mas gostaria de ser bonito como eles, de poder fazer pelo menos a metade da­quilo que eles fazem... Talvez assim Papai e Mamãe gos­tassem um pouco de mim.

— Não diga isso. Eles gostam muito de você.

— Só uma pessoa gosta de mim como eu sou. É você, Anna. Você não se incomoda que eu seja aleijado, que tenha essa cabeça grande assim. Você não se incomoda que minhas mãos às vezes tremam e eu derrame a comida no chão.

Anna encostou a cabeça do menino no seu peito.

— Não fale assim. Você tem o coração lindo demais. E acontece que pouca gente descobriu isso. Não fale mais assim, querido. Amanhã vamos ter um dia de viagem lindo. O sol promete e o tempo está gostoso. É o Verão de que tanto você gosta. Durma querido, durma.

Não sentia mais vontade de falar porque os olhos escor­riam lágrimas.

 

Gakusha, o Tigre

Abriu os olhos espantados. Nem pôde se conter e ex­clamou:

— Titia, como você está linda hoje!

Sempre Anna se vestia com cores escuras e tristes. Agora não. Trajava um leve vestido de verão, num tom amarelo com pequenas flores esbranquiçadas. Pela primeira vez, Edu a via de cabelos soltos, esvoaçando ao vento.

Ela se aproximou sorrindo.

— É o cabelo solto.

— Mas você não se vestia assim. Essa cor fica bonita para você.

— É. Saí fora dos meus hábitos. Vamos culpar o verão. Olhou o rosto de Eduardo e se tornou mais satisfeita.

O ar da praia e o sol trouxeram uma cor dourada à sua pele, longe da palidez que o menino ostentava na cidade.

— Sabe, querido, eu vou até à vila. Vou sair com Dona Magnólia. Compraremos uma porção de coisas que você vai adorar. Posso ir?

Uma pequena tristeza perpassou os olhos do menino. Adivinhava. Ele gostaria de ir também.

— Você está bem, não está?

Afirmou com a cabeça, mas em silêncio.

— Não vou demorar nada. Primeiro você toma um lanche. Já mandei preparar. Vamos... agora sorria.

Da sala de refeições acompanhou as duas mulheres su­bindo o caminho da serra. Só quando elas desapareceram é que se animou a terminar sua merenda. De nada adian­tava ficar triste. Com isso iria estragar a beleza da viagem.

Apanhou as muletas e colocou-as na sua posição. Até que agora se sentia mais forte e conseguia preparar-se sem a ajuda de ninguém.

Saiu lentamente do salão e foi procurar o vento do ter­raço. A sombra da tarde se alastrava sobre as águas paradas da piscina. Estava ali o que buscava. A imensa figura do tigre se refletia sublime na água. E não era só o tigre, o céu também com suas nuvens brancas.

Veio se aproximando mais da estátua. Impressionante, as manchas vermelhas do cobre devorado, de perto pare­ciam aumentar.

Só então pareceu crescer no seu peito aquela sensação de estar sozinho, sozinho. O tigre também devia sentir o mesmo.

Sentou-se na pedra que lhe servia de base e encostou-se no tigre. Com dificuldade manejou a muleta, riscando a água para que o pobre do tigre se movimentasse um pouco e se libertasse da sua paralisia.

De repente todo o seu corpo estremeceu. Estaria fican­do maluco ou sonhando. Retirou o ouvido apressado do corpo do tigre. Respirou mais forte para afastar o susto. Porém a curiosidade o obrigava a repetir o gesto.

Agora que o medo se fora, não se enganava. Algo batia compassadamente no peito do tigre. Tornou a descolar o ouvido e a recolocá-lo. O tique-taque permanecia. E antes que pudesse se afastar, se postar nas muletas, uma voz saiu bem mansa.

— Não tenha medo. É o meu coração mesmo que bate. Gaguejando criou ânimo de perguntar:

— Mas você vive?

— Como você.

— E fala?

— E por que não?

Olhou amedrontado o tigre que parecia crescer na sua paralisia.

— Estou sonhando. Não é possível.

— Isso é bom. Nem todos podem sonhar. Desde que você chegou que eu o tenho observado. Só uma coisa não me foi possível distinguir. O seu nome.

— Eu me chamo Eduardo. Mas Anna me chama de Edu. Você pode me chamar assim.

— Anna é aquela senhora? É sua mãe?

— É o mesmo que ser. É minha tia.

Fizeram um silêncio e Eduardo tratou de rompê-lo logo.

— Você vai falar sempre? Ou só é agora?

— Toda vez que você encostar o seu ouvido no meu co­ração eu falarei.

— Você nunca tinha falado antes?

— Nunca ninguém encostou o ouvido no meu coração.

— Isso é bom. Toda vez que eu puder venho vê-lo.

— Mas é preciso que guarde segredo. Se guardar eu pro­meto mostrar coisas lindíssimas a você.

— Você sabe do meu nome. Eu suponho que você tam­bém tenha um.

— Apesar de Chinês o meu amo me batizou Gakusha que em japonês significa sábio.

— Como é mesmo?

— Gakusha.

Sentiu-se desorientado. O tigre compreendeu o seu em­baraço.

— Fica muito difícil pra você?

— Nem tudo eu posso falar com facilidade.

— Então pode me chamar como quiser.

— Que tal Gabriel? Começa pela mesma letra e é uma história de anjo que tia Anna me contou.

Gakusha sorriu.

— Tá bem. Vá lá. Gabriel é um belo nome.

— Sabe Gabriel, lá em casa o pessoal pensa que eu sou lelé da cuca porque falo com as coisas.

— Então porque você se espantou quando me viu falar?

— Porque foi diferente dessa vez. Eu falava com as coi­sas e era eu quem respondia por elas. Você não, foi fa­lando.

— Pois aqui nesse navio você pode falar com o que bem entender.

— Você falou navio? Você acha assim?

— E você?

— Ora, eu pensava mais num veleiro.

— Pois veleiro ou navio acaba dando no mesmo.

— Quer dizer que eu vou falando com o que quiser? Com as paredes, com o mar, com os talheres...

— Também não é assim. Precisa saber escolher. Nem tudo tem esse dom mágico. Apesar do veleiro ser uma verdadeira fantasia.

— Agora você me deixou atrapalhado. Se você é meu amigo bem poderia indicar. Assim eu não perderia tempo. Quem mais pode conversar comigo?

— Está bem. Eu não sou egoísta. Lá em cima no salão de jogo, tem um armário. Não tem?

— Já sei: A coruja empalhada.

— Certo, mas não a chame de empalhada que ela não gosta.

— E outra coisa?

— Todos os dias as seis e quinze, perto da escada, sai um sapinho loiro que se chama Bolitrô.

— Onde ele arranjou esse nome? Bolitrô?

— A isso não sei. Só sei que ele adora esse nome e você pode pronunciá-lo, não vai haver nenhuma dificuldade.

— Ele sai todas as tardes?

— Quase todas. Mas por aqui não tem aparecido faz muito tempo.

— Vou ficar de olho. Falar nisso Gabriel olhe o mar como está lindo, como está verde, as ondas riscam suas costas de branco.

— Ah! O mar. O mar. Na China um poeta disse uma coisa muito linda sobre o mar. Quer ouvir?

Edu confirmou com a cabeça.

— Pois bem: "O mar só tem dois tamanhos. O tama­nho que a gente imagina e o tamanho que ele quer ter".

Eduardo sentiu-se avermelhado e confessou:

— Não entendi muito bem.

— É simples. Ninguém pode saber o tamanho do mar ao certo.

— Quer repetir?

Gabriel obedeceu.

— É bonito mesmo. Qualquer hora dessas vou tomar nota e vou mostrar a tia Anna.

Gabriel emburrou e nada mais disse.

— O que foi que eu fiz?

Silêncio. Só o mar batendo nas pedras...

— Ora Gabriel, somos amigos há tão pouco e ainda não é tempo de brigar. Vamos fazer as pazes?

— Você prometeu que não contaria nada a ninguém.

— É verdade. Desculpe. Não falarei nunca o que con­versarmos.

O tigre olhou-o com mais amistosidade.

— Se você merecer mesmo a minha confiança uma noite dessas levo-o a passear.

Eduardo arregalou os olhos.

— Mas como? Você pode sair daqui?

— Todas as vezes que quiser. Mas só o faço durante a noite. Assim que houver uma noite estrelada a gente pode ir passear.

Eduardo caiu na realidade. Ficou entristecido.

— Mas eu não posso andar com essas pernas assim.

— Ora bobo, não se preocupe. Comigo você pode e eu darei um jeito.

Ouviram o ruído de um carro chegando.

— Agora, Edu, você precisa ir embora. Sua tia chegou e a qualquer momento conversaremos de novo.

Fez um gesto pedindo silêncio e discrição. Aprumou-se nas muletas.

— Tchau, Gabriel.

— Tchau, Edu.

Andou devagar para o terraço e virou-se para a piscina. Gakusha parecia de novo inanimado contemplando as águas frescas e transparentes.

Quando se aproximou da escada olhou o bueiro por onde, segundo Gabriel, aparecia o sapinho, segredou para dentro:

— Tou doido para conhecer você, Bolitrô.

Nesse momento Anna apareceu suada e com a pele in­vadida de um vermelho dourado.

— Que é isso Edu? Estava falando sozinho novamente. Ele riu e sentiu as mãos sobre os seus cabelos.

— Nunca falo sozinho, titia.

—Demorei muito, meu filho?

— Um pouco. Mas eu não fiquei nem um pouco infe­liz. O veleiro é esplêndido. Tudo nele é uma maravilha.

 

A Dama das Sombras

Durante dois dias o sol se fora e uma tempestade mari­nha assolara a região. O mar enfurecido se arremetia doi­damente contra as pedras e a espuma, a maresia, chega­vam a passar por cima da casa. Os vidros precisavam ser limpos para que se avistasse algo lá fora. A noite de tre­menda escuridão fazia medo. Os botes que vinham da pes­caria dos camarões eram ancorados com mais firmeza. Quando voltasse o sol e a calmaria, bonito se tornava es­perar a chegada de todos os pescadores. As gaivotas e os gaivotões seguiam a sua rota de espuma e a todo momento mergulhavam à cata de camarões miúdos ou estragados. Edu se postava sentado no salão, vendo pelas vidraças a rebeldia do mar. Vinha um vento úmido que o forçava a puxar mais as cobertas sobre o corpo. Ficaria ali o tempo que pudesse quase sem se mexer olhando o bravio da na­tureza.

Jantara em cima porque Anna não permitira que des­cesse as escadas molhadas e escorregadias. A piscina trans­bordava e quando podia enxergar Gakusha ele aparecia luminoso de tanta água.

— Está tudo bem, Edu?

— Tudo, titia. Eu gosto de ficar vendo o mar, as ondas, ouvir o barulho que ele faz.

— Quer mais alguma coisa?

— Não, titia. Pode descer e assistir sua novela. Pode fi­car o tempo que quiser.

— Vai ficar quietinho aí, sonhando, sonhando...

— Claro. O veleiro precisava viajar também em dia de temporal. Sem isso a viagem ficaria monótona.

Sorriu, abaixou-se e beijou o menino.

— Sonhe que faz bem.

Eduardo ficou sozinho e sem saber porque relembrou os irmãos e a casa. Já fazia mais de uma semana que se en­contrava ali e nem sequer a mãe telefonara para saber a seu respeito. Entretanto não queria entristecer-se e já pla­nejava mudar de pensamentos quando uma voz o inter­rompeu.

— Ei menino, você está no mundo da lua? Já falei três vezes com você e nada de resposta.

— Desculpe, Dona Maria Jurandir. Eu estava longe mesmo.

A coruja voou até a mesa próxima e ficou olhando o menino.

— Que foi que a senhora falou comigo?

— Como senhora bem educada dei-lhe boa noite.

— Então pronto, boa noite.

— Já estava ficando nervosa.

Com o bico começou a alisar suas penas desarrumadas.

— Primeiro porque esse tempo está insuportável e mar com chuva é o fim da picada. Segundo por causa de sua tia.

— Que é que tem minha tia com isso?

— Nada demais. É que ela estava demorando a descer, já vinha chegando a minha hora e nada.

— Que hora, Dona Maria Jurandir?

— Puxa, menino! Você não sabe que hoje é quinta-feira? E que eu me desencanto terças, quintas e sábados?

— Tinha esquecido completamente.

— Aí é que está. Eu doida da vida para me movimentar e sua tia nada de descer para as malditas novelas.

— Dona Maria Jurandir, a senhora hoje está muito reclamadeira. Vamos conversar que é melhor. Por que a se­nhora não atrasa a hora de se desencantar? Por que a se­nhora não faz isso exatamente às oito horas?

— Não posso. Tem de ser quinze para as oito. Quinze minutos para mim faz muita diferença.

— Então não sei. Só se a estação adiantar quinze mi­nutos.

A coruja muxoxeou aborrecida e continuou alisando suas penas.

— Ora Dona Maria Jurandir, vamos conversar que é melhor. A noite está boa para um bom papo.

— Que está, está. Mas vamos conversar a meu modo, certo?

— Certo.

— Você tem estado com o Gakusha?

— Gabriel, Dona Maria Jurandir.

— Pois bem, seja Gabriel.

— Com esse tempo molhado nem posso sair. Se escor­rego uma muleta estou perdido.

— Olhe, menino, você não vá muito na conversa dele. Ele tem uma mania de nobreza e outros que tais que enchem.

— Isso não me importa muito.

— Estou só avisando. Só avisando. Então vamos conver­sar. Hoje você vai me contar toda a sua vidinha. Do co­meço ao fim. E não me venha com histórias alegres que eu não gosto. É da minha natureza adorar coisas tristes.

— Conto sim. Mesmo porque minha vida nunca deixou de ser triste. Mas a senhora também, na próxima vez que desencantar vai me contar tudo sobre sua vida até chegar aqui, feito?

— Correto.

— Então vou começar pelo começo, tá?

Eduardo sentiu o coração ficar aflito. Sempre que pen­sava na sua vida a tristeza se abrigava nele como se fosse uma grande muralha cinzenta.

— Quando eu nasci, tia Anna disse que eu era um bebezinho lindo. Gorducho e corado.

— Ela falou se você demorou a nascer? Se foi um parto fácil ou difícil?

— Ah! isso nunca perguntei.

— Espero que tenha sido difícil, porque parto fácil não tem interesse algum.

— Está certo. Mas quando nasci já estava condenado a sofrer.

Maria Jurandir arrepiou as penas deliciada.

— Minha beleza vinha estragada. Nasci com a espinha separada. De tanto me contarem isso, sei essa história de cor. Espinha separada tem um nome em medicina: Spinabifida.

— Que nome lindo! Mas o que é isso?

— A gente nasce com a espinha separada. Com dois me­ses fiz uma operação para ligar a espinha. Com cinco meses a minha cabeça começou a crescer e os médicos re­solveram fazer um canal de ligação por dentro do meu cérebro. Agora não me peça para explicar isso porque não sei...

— Esplêndido! Esplêndido!

— Esplêndido porque não foi na senhora.

— Desculpe, menino, não estou caçoando da sua des­graça. Mas é que a minha natureza mórbida se extravasa com certos conteúdos.

Estranha Dona Maria Jurandir! Como é que uma pessoa só podia gostar de coisas tristes. Aquela certeza constran­geu o coração de Eduardo.

— Por que parou? Sua história está interessantíssima.

— Estou pensando como continuar. Bem, minha vida foi sempre uma coisa sem importância. Cresci cercado de muito cuidado. Quando cheguei aos seis anos as coisas se modificaram em mim. As trocas de aparelhos mecânicos nas pernas. Os remédios tomados sem parar. Então, eu co­mecei a notar a diferença existente entre meus irmãos e a minha saúde retalhada. Eles eram sadios, podiam brincar, podiam correr, iam ao colégio. E eu? Fiquei com Titia Anna em casa. Aprendendo tudo com ela. E me tornando sempre uma criatura que precisava do seu apoio e do seu carinho. Fui me tornando um menino arredio e calado. Comecei sem querer a me sentir culpado das minhas dores e aleijão. Titia me dizia que eu era mais inteligente que os outros, que aprendia com mais facilidade. Que a doença aumentava a minha sensibilidade e capacidade de apren­der.

A voz de Eduardo ia se enfraquecendo. Falava mais de­vagar como se as palavras também doessem.

Maria Jurandir parecia petrificada de expectativa.

— E daí?

— Daí. O tempo passava e eu percebia cada dia a dife­rença entre mim e meus irmãos. Fui ficando mais triste. No jantar, não gostava de olhar para Papai e para Mamãe. Se por acaso ele me encarava, vinha aquele nervoso e mi­nhas mãos não acertavam em trazer a colher à boca. A co­mida caía pelo meu queixo ou se derramava sobre a toa­lha. Aí Papai ficava desesperado. Com jeito Anna conven­ceu-o que eu deveria comer em horário diferente. E foi bom, porque eu achava papai tão bonito, queria ser cari­nhoso com ele, mas não havia oportunidade para tanto. Minha cabeça tinha crescido um pouco mais e minhas per­nas pareciam cada vez menores, Começaram a me esconder dos outros, das visitas. Só Anna sabia que eu percebia tudo e sofria terrivelmente.

Calou-se um pouco, mas não podia vencer a emoção da história. Muito embora a contasse tantas vezes para sua tristeza, sua história era aquela, só aquela.

— Anna sempre foi tudo em minha vida. Anna sabe de tudo. Muitas vezes quando as noites eram estreladas ela me mostrava o céu e tentava fazer-me ver as constelações, o desenho das constelações. Aquela ali é Escorpião. Aquela lá é Órion. Está vendo aquela estrela grandona que não brilha? Pois bem, aquela é Júpiter. É um planeta. Planeta não brilha. Era Anna que lia para mim histórias de via­gens, de aventuras. Foi Anna que me deu para ler as his­tórias de Tarzan. E eu sonhava ser Tarzan.

Aí Maria Jurandir olhou para ele penalizada.

— Claro que eu podia ser Tarzan melhor que os outros. Por exemplo, meu irmão Marcelo nadava muito bem e fazia o que queria. Não tinha necessidade de ser Tarzan. Eu sim.

— Você tem quantos irmãos? Somos três. Eu sou o do meio. Sérgio tem 14 anos, eu vou fazer treze e Marcelo tem onze. Só queria que você visse como eles são lindos. Papai tem verdadeira adoração por eles. Só chama Serginho de meu Peixinho. Só chama Marcelo de Filhote ou queridão.

— E você como ele chama?

Eduardo gaguejou um pouco se confundindo todo. Mas tinha que contar.

— Ele nunca me chama de nada. Quando é obrigado a falar comigo só diz: Eduardo.

Engoliu em seco desanimado. Até a coruja estava emo­cionada.

— Se você não acabar de contar logo, acaba a novela, sua tia volta e eu retorno à minha estante. Porque mesmo não sou tonta de sair com um tempo nojento desses.

— Daí a minha vida foi se tornando um jogo de escon­de-esconde. Piorou quando Mamãe fez um jogo em casa durante uma tarde. Eu estava sentado numa saleta vendo uma revista, quando chegaram umas visitas. Não sabiam da minha presença ali. Elas comentaram as coisas mais do­lorosas a meu respeito.

— Que foi que disseram?

— Só coisas feias. Que não gostavam de vir à minha casa com medo de encontrar o monstrinho. Que a minha feiúra fazia medo. E que eu parecia Toulouse-Lautrec.

— Quem é?

— Foi muito difícil para descobrir com Anna quem era Toulouse-Lautrec. No fim fiquei ciente da realidade. Tou­louse-Lautrec era um pintor francês que tinha as pernas aleijadas e uma enorme cabeça. Ele morreu de tanto be­ber. Daí em diante eu fui ficando mais calado e mais tris­te. Comecei a querer deixar de rezar para Deus, como Anna me ensinara. Fui ficando triste, cada vez mais triste...

Aí Eduardo prorrompeu num pranto comovente.

Maria Jurandir tentava consolá-lo, mas era em vão. Edu deixara pender a grande cabeça sobre o peito e soluçava perdidamente.

A luz abriu-se violentamente e Anna correu em socorro da criança.

— Que é isso meu filho? Por que não me chamou? Fi­cou com medo? Por que? Ora, Anna está aqui. Não tema nada. O que foi?

Ficou soluçando sobre o peito de Anna por uns segun­dos.

— Conte para mim, filhinho. Conte, vá. Agora tudo passou e eu estou aqui.

Com os olhos molhados e falando daquela maneira desequilibrada como acontecia quando ficava muito nervoso, ele comentou entre soluços:

— Mamãe, Anna. A gente está aqui a mais de uma se­mana e ela não telefonou nenhuma vez...

Recomeçou os soluços cada vez mais enfraquecidos con­tra a ternura quase impotente de Anna.

 

Conversas nas Tardes sem Importância

Das vidraças do tombadilho como ele chamava, Anna acompanhava o seu caminhar desengonçado se encami­nhando para a piscina. Não havia dúvida que o menino não se entregava. Procurava fazer tudo sozinho sem inco­modar os outros. A pele do seu rosto perdera aquela palidez da cidade e escurecia aos poucos tomando um tom sazonado.

Dera ordem para que sempre deixassem uma cadeira longa nos lugares onde Edu preferia ficar. E ali, na pis­cina junto do tigre que ele batizara de Gabriel, ele se pos­tava até a noite cobrir o mar. Quando ia buscá-lo para jantar ele parecia despertar de um longo sonho. Agora conseguia com o próprio esforço subir as escadas largas que levavam à sua cadeira de sonho.

Uma sensação opressiva apertou o peito de Anna. Será que ele teria forças, agüentaria a operação? Resolveu banir os pensamentos tristes porque a tarde se alastrava linda e um vento saboroso chegava do lado das praias. Era melhor molhar o jardim do lado da casa, porque o dia fora de muito sol e calor. Mais tarde voltaria junto do menino para tentar ajudá-lo a levantar-se. Até isso ele agora con­seguia, agarrando-se fortemente na cadeira e erguendo o corpo com cuidado.

 

— Eu, mesmo com o barulho da chuva, conseguia ouvir você chorando. E para o meu desespero nada podia fazer.

— Eu entendo, Gabriel. Muito obrigado. Você é amigo de verdade.

— Mas por que ela fez você chorar tanto?

— Não foi sua culpa: eu que resolvi contar a minha história. E com muita calma, vencendo todos os momentos de angústia e depressão Edu relatou tudo para Gabriel. Ao acabar, o Tigre se encontrava pensativo e murmurava quase incrédulo.

— Mas quem sabe se sua mãe não tentou telefonar al­gumas vezes?

— Não acredito não.

— Ora você viu que com o temporal até a luz elétrica falha às vezes.

— Pode ser. Mas se ela quisesse teria telefonado. Ora você não conhece Mamãe. Ela consegue tudo o que quer. A única coisa que falhou na vida dela, fui eu.

— Não repita isso que é muito triste.

— Na verdade não telefonou porque não quis.

— Ela sabe que você está muito bem e que tudo corre às mil maravilhas. Mesmo porque você está acompanhado dessa criatura maravilhosa que é a sua tia Anna.

Eduardo abanou a cabeça desanimado.

— Você não quer é entender. Quer saber de uma coisa? Não faz muito tempo ela esteve na Argentina, em Buenos Aires. E sabe o que ela fazia todas as manhãs? Telefonava para acordar Marcelo e Serginho. Isso todos os dias.

— E você?

— Ora eu. Eu na certa ela achava que estava dormindo.

— Vamos mudar de assunto porque você não pode ficar triste nem aborrecido que faz mal ao coração. Você sabe bem disso.

Calaram-se e vendo que Edu não tinha ânimo de reco­meçar o bate-papo arriscou uma observação.

— Você não devia estar sempre tagarelando conversas trágicas com a coruja.

— É o feitio dela.

— Eu sei e foi por isso que passei a evitar a sua com­panhia.

— Inda bem que eu não contei pra ela a coisa mais triste da minha vida.

— Fez muito bem.

— Mas eu quero contar para você.

— Não faça isso. Já avisei que tudo que dói faz mal ao seu coração.

— Você é meu amigo ou não é?

— Você sabe a verdade.

— Pois bem, eu preciso lhe contar. E contar com calma. Porque cada vez que eu for contando, vou me acostu­mando com a coisa e perdendo a emoção. Você entende? Que de tanto falar da minha vida, a qualquer hora dessas não sofrerei mais.

— Pois se você acha que alivia, ouvirei o que quiser. Eduardo se concentrou em seus pensamentos e foi bus­car no seu pequeno passado aquilo que mais o torturava.

Então Eduardo fechou os olhos para não enxergar toda a beleza do mar nem todo o azul do céu. O que iria re­petir não possuía sons, músicas ou qualquer sinônimo de beleza.

— Quando em meu coração cresceu a certeza de que não era como os outros, que minha presença causava nojo ou mal-estar, comecei a me retirar dos outros e a me es­conder mais comigo mesmo. Perdi a vontade de comer, de sorrir e de viver. Gostava de me afastar me trancando no quarto ou procurando lugares sem luz, me abrigando na sombra, fugindo dos outros e da sua irritação ou piedade...

E Eduardo foi falando baixo como se contasse para si mesmo. E Gabriel escutava entristecido.

Contou como seu novo modo de agir irritava mais os outros. Como o seu silêncio desesperava a todos. Mesmo Anna não compreendia tamanha modificação. Por mais que sua paciência e resignação quisessem compreender não podia explicar o meu desinteresse pelos estudos ou por tudo que me cercava. Falava-me, exortava-me e nada. Che­garam a conclusão que uma tendência à demência me ata­cava. Papai já nem tinha olhos para reprovar-me. Mamãe continuava cada vez a afastar-me das visitas.

Sabia, pois comentavam sempre, que consultavam a opi­nião de vários médicos e alguns vieram me falar. O meu desinteresse afundava mais meus pequenos olhos dentro das órbitas e a luz que deveria haver neles tendia sempre a desaparecer.

Um dia Anna me apareceu com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Querido, você precisa tentar melhorar. Os soluços entrecortavam seus suspiros.

— Tente compreender, querido. Se você não faz um es­forço, será levado para um internato de meninos excep­cionais. E não é o seu caso. Você sabe que não é o seu caso.

Edu silenciou e Gabriel perguntou aflito:

— Você quer me contar mesmo isso, Edu?

— Preciso.

E uma manhã arrumaram tudo que era seu e teve que partir. A seu lado no carro, encontrava-se Anna, encolhida, que só se interrompia, só vencia a sua angústia para levar o lenço fino aos olhos. No começo, pegava-me as mãos e me olhava nos olhos; e se murmurava alguma coisa não passava de um "pobrezinho" ou algo parecido que sua voz trêmula confundia. A emoção confundia agora a fala de Eduardo.

— Por favor, Edu, é melhor parar. Você está trêmulo, pálido e sua testa está porejando muito suor.

— Ah! Gabriel. O lugar que eu estive era horrível e cruel. Todas as crianças eram loucas ou retardadas. Os ges­tos, os rostos, os olhos, o desequilíbrio a cada fala. Era um inundo de retardados. Um mundo que ria sem motivo. Como se até a dor fosse engraçada. Cada movimento pen­dia para a loucura ou para a inexpressividade de um mun­do nojento e perdido. Ali havia um número de duzentos enfermos. Sessenta, que as mães tinham vergonha deles e só os buscavam já de noite, quando ninguém pudesse ve­rificar os seus infortúnios. Os outros cento e quarenta eram de outras mães que não queriam mais saber da monstruo­sidade dos seus filhos. Uma tristeza. A manutenção da So­ciedade era garantida por um dinheiro insuficiente. Assim no começo do mês a gente tinha carne, batata, feijão e arroz. Os dias se passavam e acabava-se a carne, logo em seguida a batata. E depois dos quinze dias a gente ficava comendo feijão puro com farinha. Até que chegasse a nova verba. Fui ficando cada vez mais minado de tristeza. Não que tratassem mal a gente. Mas tratavam os doentes como se eles fossem bichinhos que não sentissem. Nada faziam de especial por mim, muito embora Anna tivesse trazido recomendações que ela mesma implorara. Ali eu era ou­tro bichinho que não acertava os movimentos e que dei­xava cair menos a comida, ou virava a vasilha d'água. Pior eram os sorrisos nos rostos disformes. Eram sorrisos doen­tios, feios, horríveis. De nada adiantava eu dizer que não era como eles. Passavam a mão nos meus cabelos e comen­tavam qualquer coisa sem importância. De noite dormía­mos todos no mesmo ambiente. Alguns sujavam na cama e o cheiro ficava toda a noite grudado pelas paredes. Uns choravam desajeitados, outros riam sem saber do quê e por quê. Eu sentia falta do meu quarto, de minha cama macia cheirando a limpo sempre. Chegava a chorar e pen­sar em Anna. Onde andaria ela agora? Também fora obri­gada a me esquecer? Não me acostumaria nunca a trocar os rostos bonitos dos meus irmãos pelas faces desgoverna­das de emoções daqueles meninos.

Gabriel não se conteve e interrompeu a narrativa.

— Mas isso é monstruoso.

— Se era. Ninguém desconfiava que eu era um menino mentalmente mais desenvolvido que os outros. Que minha paralisia desenvolvia com mais intensidade o meu racio­cínio. Mas tia Anna veio em meu socorro. Quando me levaram para casa eu estava um trapo. A fraqueza era tanta que meu pescoço quase não sustentava a cabeça. Foi por isso que começou a coisa:

— Que coisa?

— O coração.

— Que tem o seu coração?

— Até aquele momento nada tinha. Mas depois veio um enfraquecimento sei lá, um desvio. Nunca mais pude ter um coração forte. E foi por isso que vim para cá.

— Não entendo.

— É fácil. Vim para cá por dois motivos: primeiro para ficar escondido dos outros. Segundo, porque o ar do mar iria fortificar-me e então eu poderei fazer a operação.

Gabriel estava estupefato e nada dizia.

Edu meneou a cabeça e sorriu meio desanimado.

— Não vai adiantar nada. Foi por isso que aceitei fazer essa viagem. Porque longe não incomodaria ninguém com a minha feia presença. E porque queria pelo menos na vida ser feliz, como eu via nos livros de aventuras. Nos livros que falavam em veleiros e viagens maravilhosas.

— E o que pensa Anna de tudo isso?

— Ela acredita que ficarei bom. A ternura do seu gran­de coração convenceu de que eu sou tudo na vida dela pra mim é muito, mas para uma criatura como Anna é pedir pouco da vida. Sabe de uma coisa, Gabriel?

— Conte.

— Anna lutou tanto por mim, para que me tirassem de lá que ninguém pode imaginar. Ameaçou até de ir aos jornais, à televisão. Por fim conseguiu. Mas conseguiu o quê? Trazer-me de volta para um lar que ficou cada vez menos meu. Minha feiúra com os maus tratos doíam a vista de qualquer um. Eu estava tão feio que a minha fi­gura fazia até mal ao espelho. Ela, me levou a especialistas. E todos concordaram com a minha operação. Daí Anna começou a sair comigo, a me tratar. Cumprindo a pro­messa de que pouco me deixaria permanecer em casa. Essa é a última viagem.

— Não será se Deus quiser.

— Ora, Gabriel, você notou uma coisa?

— Diga.

— O meu nervoso passou, já não transpiro na testa nem estou pálido. Isso significa que estou me livrando dos meus pesadelos e de mim mesmo.

— Certamente. Mas eu estava pensando numa coisa todo o tempo em que você me contava a sua história. A diferença de nós, as feras e os homens.

— Por que?

— Nós somos mais rígidos e mais lógicos em certas coi­sas. Quando nasce uma cria defeituosa nós a destruímos sem que ela sofra. Abreviamos cedo o grande sofrimento que ela teria de suportar mais tarde.

— Correto. Mas eu não gostaria de ter perdido toda essa beleza da vida que os meus olhos me trouxeram até hoje. Apesar de tudo a vida é uma verdadeira beleza.

— Bonito mesmo você vai ver quando eu o levar para passear. Quando a lua estiver enorme e a noite dormir o seu sonho de mansidão.

— E quando vai ser, Gabriel?

— Logo que você fique mais forte. Sua viagem assim terá um aspecto que você nunca poderia imaginar.

 

O Cavaleiro Bolitrô

anna suspendeu o corpo e respirou fundo. Com as cos­tas da mão colocou no lugar uma mecha de cabelo que teimava em cair-lhe sobre os olhos. Perdeu-se um momento ia paisagem. No mar calmo e translúcido os homens fa­ziam a pesca do camarão ao longe.

Voltou a olhar a mulher do jardineiro que a ajudava no tratamento do jardim.

— Olhe, Maria. Olhe ali naquela árvore como tem cigarra morta, grudada no tronco.

— É o cemitério delas, Dona Anna. Elas vão ali e can­tam. Cantam até rachar as costas. Depois ficam ali até fi­carem sequinhas, sequinhas.

— Mundo estranho o nosso.

Parou novamente e preocupou-se com Eduardo. Maria pareceu ler-lhe os pensamentos.

— A senhora gosta muito do menino, não, Dona Anna?

— O pobrezinho tão doente, tão frágil, tão desamparado. Se fosse meu filho não poderia garantir que gostasse mais.

Sentou-se na amurada do jardim, virou as costas para as ondas que lambiam as pedras sem violência, sem mesmo se importar com as baratinhas que caminhavam nas pe­dras do muro. Sentiu sem saber como, vontade de falar.

— Antigamente eu era uma moça muito bonita. Bonita, rica e caprichosa.

Maria interrompeu sorrindo.

— Mas a senhora ainda é tão bonita, Dona Anna. Assim corada, sem pintura, com esses olhos azuis que parecem saídos do céu...

— Bobagem, Maria. Antigamente sim. Eu nem sabia o que significava tristeza na vida. Gostava de pintar. Fui passar dois anos em Paris. Lá, nem gosto de lembrar, tive a maior desilusão da minha vida.

Calou-se e Maria não perguntou, mas tinha certeza que fora um caso de amor.

— Voltei para o Brasil. Fui morar com a minha família em São Paulo. Pensei que nunca me interessaria por mais nada nessa vida. Foi quando apareceu ele, Edu. Foi ele que recuperou-me inteiramente. Foi esse menino doentinho que me tornou, que me devolveu a chance de ainda encontrar amor pelo próximo. Justamente essa criaturinha tão frágil e tão triste.

Anna tornou a recolocar a mecha rebelde no lugar.

— O que me dói mais, Maria, é a certeza de que esse menino não é uma criança comum. Pouca gente sabe dis­so. Eu que lido com ele todo tempo posso lhe garantir. Ele é um homenzinho. Pensa como gente grande. Talvez a sua doença tenha desenvolvido demais nele o senso de compreensão. Muitas vezes eu me surpreendo com a matu­ridade dos seus julgamentos. Ele aprende e apreende as conversas mais difíceis. Mas precisa confiar demais nas pes­soas para que se manifeste em toda a sua inteligência. Do contrário se fecha como um caracolzinho e sofre em silên­cio sem reclamar contra nada. Até mesmo com as maiores injustiças que fazem contra a sua vida.

— A senhora acha que a operação vai adiantar? Anna suspirou.

— Esperamos que sim. Tenho tentado me esquecer dis­so. Mas o tempo está passando e a realidade se aproxima a passos curtos.

Tornou a olhar o mar ao longe e os homens continua­vam na pescaria dos camarões. Viam-se as redes ser sus­pensas para dentro do barco e as gaivotas alucinadas gri­tando em volta deles. Dando mergulho do alto, desapare­cendo no mar e logo reaparecendo com a presa.

— Cada vez mais sinto vontade de ficar perto de Edu. Contento-me vendo que ele reage bem, recobrando a con­fiança perdida. Ele mesmo tenta se ajudar. Já sobe as es­cadas com mais segurança e consegue passear em todos os cantos da casa e do jardim.

Riu para Maria.

— Sabe como ele chama essa casa? Maria esperou a explicação.

— De navio. De veleiro. Para ele a casa debruçada so­bre o mar e as ondas batendo à sua volta fazem parte da sua viagem. Ele não crê em férias. Ou melhor essas suas férias não passam de uma linda viagem de sonhos.

— Os pescadores estão voltando Dona Anna.

— Daqui há pouco vou procurar por ele. Deve estar sonhando em alguma parte.

 

Conseguiu aprumar-se nas muletas e respirou profun­damente. Estava se tornando cada vez mais fácil aquele gesto.

— Hoje vou realizar aquela caminhada que há tanto tempo desejo. Vou atravessar aquele pedaço do jardim, o gramado longo e chegarei até aquelas duas grandes árvo­res que misturaram a raiz por dentro do muro. Experimentou andar e sentiu-se calmo.

— Nem vai ser preciso chamar Anna para que me ajude.

O vento vindo do mar acariciava-lhe os cabelos e o sol bastante quente ainda reinava sobre a sua caminhada lenta.

— Isso, ventinho amigo que vem lá do mar. Obrigado. Nem iria se aproximar de Gakusha porque na certa com sua fala suave iria recriminá-lo.

— Cuidado, Edu. É melhor chamar a sua tia.

Lindo amigo e tão fiel. Mas dessa vez não escutaria o seu conselho. Súbito um sorriso iluminou-lhe a face. E fa­lou em voz alta para os seus sonhos.

— Ainda bem que Gabriel fala como gente. Imagine se ele fizesse como via nos filmes. Morreria de medo. Tam­bém se ele falasse linguagem de tigre como iria com­preendê-lo.

Pronto. Tinha deixado toda a zona da piscina onde o terreiro era todo calçado de pedras mineiras. Toda a casa era calçada com aquelas pedras. Elas sempre chegavam até a amurada ou até o grande murão que protegia a casa das furiosas ondas de temporal.

Agora, precisava caminhar com mais cuidado, porque a grama macia afundava os bicos de suas muletas. Levantou a vista e deu com as grandes árvores onde os pássaros fa­ziam algazarra. Que lindo muro. Lindo mesmo. Como é que a natureza fazia as raízes viverem bem no meio das pedras do muro?

Andou mais e descobriu uma coisa curiosa. Uma por­ção de cordas esticadas no chão. Estavam amarradas nas extremidades por paus encravados na terra. E eram mui­tas e seguiam a mesma direção. Parecia uma escada deitada na areia. Por certo o jardineiro iria fazer alguma mureta ou plantar flores obedecendo uma linha certa. Aquilo iria dificultar a sua chegada ao muro. Mas experimentaria com paciência. Já que tinha resolvido a vir, nada o deteria. Achegou-se à primeira fila. Com dificuldade transpôs uma muleta e uma perna. Depois descobriu que era difícil pu­xar a outra muleta e a outra perna. Se era difícil ir para frente, para traz na certa se tornaria quase impossível. Ia tentar. Não podia. Ainda bem que era só a primeira fila de corda. Poderia recuar e desistir do passeio. Viria outra vez com Anna. Era melhor. Mesmo porque o vento do mar fresquinho não chegava até aquele ponto e o sol estava esquentando demais as suas costas e cabeça. Não. Melhor seria continuar; porque voltar o corpo não ajudava e os seus braços não teriam forças para tanto. Incrível ficar pa­ralisado por causa de uma cordinha inútil e fina. Contro­lou-se porque não queria se irritar. Com violência as con­seqüências seriam piores. Calma, Edu. Com um pouqui­nho de paciência a coisa vai. Respirou forte e procurou trazer a muleta à frente. A ponta da muleta com o esforço feito cavara um sulco mais profundo e ajudava a dificultar o seu desejo. "Se eu conseguisse andar para o lado, talvez eu conseguiria chegar até aquela estaca. Talvez eu a der­rube empurrando a muleta contra ela. Caindo, a corda fica frouxa e eu poderei pelo menos voltar. Para a direita, em­bora tentasse, não adiantava. Todos os seus movimentos para a direita se tornavam sempre difíceis."

— Ah! Cordinha, Cordinha! Por que você está fazendo isso comigo? Eu só queria dar um passeiozinho até o muro. Não é proibido nem nada.

Agora os braços estavam molhados de suor e as mãos es­corregavam no apoio. Conseguiu chegar até onde se pro­pusera mas com a maldita corda entre suas pernas e suas muletas. Entretanto o esforço da caminhada diminuía a força dos seus braços. Queria empurrar a muleta contra a estaca mas o corpo não atendia à sua vontade. Meus Deus! Que poderei fazer? Mesmo que eu grite o barulho do mar e o vento não deixarão que a minha voz possa fazer alguma coisa. Desanimado, ergueu os olhos para o céu. E o céu azul quase sem nuvens nem se importava com o seu fra­casso.

— Voltarei ao centro. Ali a corda é mais baixa. Foi ali que eu me encrenquei. Quem sabe se não é ali o lugar onde poderei escapar?

Mais cansado ainda retornou quase de costas. Agora, sim. O peito até doía de exaustão. E precisava de muita calma. Se caísse se machucaria muito porque as pernas fracas e a carne ficariam uma machucadura só contra os aparelhos ortopédicos.

Veio aparecendo um desespero terrível e quis xingar. Mas xingar duro, feio. A língua se empastava na boca e nenhum palavrão escapava da sua garganta. Mal pôde olhar para o céu e estremunhar a única palavra que con­seguia pronunciar.

— Bunda... Bun...da.

Engoliu em pedaços o desespero e tentou se acalmar.

— Pelo menos se pudesse me abaixar como qualquer menino. Era tão fácil.

Uma mísera cordinha o prendia tanto como a maior cor­rente do mundo.

Tentou controlar-se para tentar um novo movimento de suspensão da perna. Ia indo, ia indo.

Aí soltou um uivo de dor. A corda com o esforço pene­trara no aparelho ortopédico. Estava cada vez mais preso. Nada mais podia fazer. Só esperar. O sol esquentava o seu corpo franzino e empapava de suor as suas costas. Os olhos quase ardiam com a claridade. Começou a fungar de man­sinho como se naquilo procurasse um pouco de calma. Pre­cisava fingir que não sentia as axilas queimando com o apoio da muleta. Tanto esforço. Tanto desejo de fazer ape­nas um pequeno passeio que terminava ridiculamente da­quela forma. Começou a soluçar. Mesmo que gritar qui­sesse não acharia mais voz. Precisava poupar-se. Apertar um braço contra o outro para suportar a dor da muleta.

Assim embora se machucasse um pouco evitaria que seu corpo perdesse o equilíbrio. Até chorar ele fazia baixinho para não se cansar. E as lágrimas desciam pelo seu rosto alcançando a gola da camisa.

E foi assim que Anna o encontrou bem tarde.

— Não meu filho, acho melhor não descer mais hoje.

Anna tinha levado o seu corpo dolorido para cima. De­ra-lhe um banho e o enchera de talco debaixo do braço. Auscultara o seu coração cheia de medo. Mas ele já se recompusera.

— Estou bem, titia. Eu só queria ter chegado perto da­quelas árvores.

— Eu sei, querido. Eu sei. Você não fez nada demais. Qualquer dia desses Anna o levará até lá. Mas hoje, você vai ficar quietinho. Não vou colocar mais os seus apare­lhos. Certo?

Eduardo fez uma expressão de tristeza perdida.

— Mas você prometeu.

— O que foi que prometi?

— Que faria todas as minhas vontades e eu não estou pedindo muito. Só quero ficar naquela cadeira de lona sentadinho. Fico lá. Não me mexo. É aquela cadeira perto da escada. Eu gosto de me sentar ali e ver a noite chegar.

Anna ainda não parecia muito convencida.

— Puxa, Anna, eu pensei...

Anna sentiu os olhos se umedecerem.

— Não fale assim que dói.

— Se você não acredita. Tire as minhas muletas de perto de mim e eu não poderei me mexer.

A conversa continuava. Sabia que ia ceder.

— Está bem, querido. Eu vou chamar o jardineiro para carregar você. Subir com o seu peso ainda posso, mas des­cer as escadas é muito perigoso. Mas não colocarei os apa­relhos, está bem?

Edu sorriu aliviado. Mesmo depois de uma noite de des­canso os aparelhos doíam muito. Agora então que inchara os membros com a falida caminhada se tornaria pior.

Puxou desajeitadamente o rosto de Anna e o beijou.

— Eu dou muito trabalho para você, não é Anna?

Ela desvencilhou-se dos seus braços e alisou demoradamente os seus cabelos.

— Não meu querido, não é isso.

Os belos olhos azuis de Anna se encheram d'água.

— Não é nada disso. Apenas na vida a gente não vale muito.

 

O sapinho veio saindo do buraco ao lado da grande es­cada. Os olhos de Edu se extasiaram. Mas era um sapo lindo. Não daqueles coscorudos cheios de montanhas ris­cadas nas costas. Era um sapo louro, esguio e de grandes olhos verdes. Os olhos pareciam ainda maiores porque usava uns óculos ovais na ponta do nariz. Também na gar­ganta trazia um cachecol enrolado. Um cachecol de lã com cores bastante agradáveis. Azul-claro, branco e amarelo.

Veio saltitando e parou junto à cadeira de Edu, analisando-o.

— Por certo você é o Bolitrô?

— Exatamente meu rapaz. Maria Jurandir já me havia falado a seu respeito. Eu estava para sair e vir conhecê-lo há bastante tempo.

A voz ainda guardava um tom roufenho.

— Mas veja você, a gripe me pegou. E a maldita gar­ganta ardeu o que quis, muito embora Dona Janirana me enchesse de remédios e cuidados.

— Quem é Dona Janirana.

— Uma cobra muito minha amiga. Uma cobra-freira.

— Espere aí Bolitrô que você me confunde. Falou cobra?

— Exatamente.

— Mas cobra não come sapo?

— São lendas. Nem toda cobra come sapo.

— Sei. Mas por que cobra-freira?

— Porque ela vive na clausura. Abandonou as glórias do mundo e resolveu servir à pobreza lá de baixo. É uma santa. Quase nunca sai do seu esconderijo. E das vezes ao entardecer que vem olhar o céu é para desejar em suas preces, o bem dos outros.

— Mas isso é lindo. Poucos homens se ocupam dos ou­tros pelo que eu sei.

— Pois Dona Janirana é diferente dos seus. Vive lá no porão a pensar na tristeza e solidão de todos.

— Mas você falou porão?

— E não é?

— É?

— Pelo que me contou Dona Maria Jurandir você mes­mo batizou isso aqui de veleiro. E se é veleiro, aqui em cima é tombadilho e lá embaixo, porão.

— Mas isso é fabuloso.

— Sempre que alguma coisa faz parte de um sonho, é fabuloso.

Edu estava encantado.

— Ainda bem que o senhor veio. Aliás aqui no veleiro, quando chega assim pelas cinco, cinco e meia, seis horas, basta que eu feche os olhos e uma porção de coisa mara­vilhosa acontece.

— Não é com todo mundo que isso se dá.

— Ainda bem que eu posso ter alguma coisa de dife­rente dos outros.

O sapinho procurou uma posição melhor para acomo­dar-se.

— O senhor é Bolitrô de nascença ou alguém o batizou com esse nome?

— Não é bem assim. Minha mãe me chamou de Inocêncio. Mas não gostei do nome. Minha mãe era vidrada num romance que leu chamado Inocência. Eu fiquei Inocêncio até que aconteceu uma coisa. Você conhece o dono dessa casa?

— Nunca ouvi falar dele.

— Pois num tempo atrás o dono era prefeito daqui. E vinha muita gente politicar por aqui. A maioria era para pegar a bóia, podes crer. Bem um dia apareceu um senhor ministro que se chamava Bolitreau. Mas como se escreve em francês. Fiquei tarado pelo nome e resolvi adotá-lo em cartório. Foi aquela dificuldade e acabaram me registrando de Bolitrô em português.

— Quer dizer que você tem o nome de um ministro? Bolitrô adquiriu um ar de desprezo.

— Acho que não. O ministro é que tem nome de sapo. Pense bem.

Eduardo calculou mentalmente e ficou com a opinião do sapo. De fato, muito embora nunca tinha visto a cara do ministro, o sapo tinha mais jeito de Bolitrô.

— Sabe que você tem razão.

— E não sou eu só. Quer saber de um segredo? Mas não vá dizer que eu lhe contei; muita gente aqui no veleiro detesta o nome com que foi batizado.

Abaixou a voz e falou quase num sussurro.

— Dona Maria Jurandir não é o nome dela não.

— Verdade?

— Juro. O nome dela é Mintaka.

— Como é?

— Min-ta-ka.

— Isso é nome em língua de coruja?

— Não, bobo, a mãe dela tinha mania de astronomia. Mintaka é uma das estrelas da constelação de Órion. É uma daquelas que o povo chama de Três Marias.

— Sei sim. Titia Anna também tem uma mania dessas. Conhece tudo quanto é raio de estrela. Uma pena, por­que Mintaka é um nome lindíssimo. Quanto a Maria Ju­randir, fica meio esquisito para uma coruja.

— Ela leu num jornal. A história de um crime, onde urna mulher com esse nome levou mil setecentas e cin­qüenta e duas facadas. Achou lindo e pronto.

— Quantas facadas você falou?

— Mil setecentas e cinqüenta e duas facadas.

— Mas não há corpo que agüente tanta facada.

— Todos nós sabemos. Mas sabemos também como Dona Maria Jurandir é trágica. No máximo a mulher deve ter recebido umas sete, mas de tanto contar e aumentar chegou a esse número.

Edu concordou com a lógica. Olhou novamente para o sapo e ficou analisando todo o seu porte. Era muito sim­pático o Bolitrô, mas de todos os seres encantados quem levava a palma ainda era Gabriel. Dificilmente encontra­ria um ser mais fantástico do que o tigre. Lembrou-se de uma coisa.

— Escute, Bolitrô, como é que a gente pode fazer para conhecer Dona Janirana?

— Vai ser difícil. Você não pode entrar no porão. Edu ficou arrepiado com a idéia de andar naquele mun­do sombrio, úmido e asfixiante.

— Ela também não sai da sua clausura. Fica por lá a vida inteira. Acho que não vai haver jeito não.

— É uma pena. De onde tirou ela esse nome?

— Isso não sei mesmo.

— Eu mais ou menos tiro as minhas conclusões. Ela é boa assim porque tem o nome de Anna no final. Anna também tem alma de freira. Você sabe Bolitrô, que nunca nunca na vida, Anna brigou comigo ou perdeu a paciência?

— Isso é bonito. Mas difícil de acontecer na espécie humana.

Deu um pigarro e lembrou-se de uma coisa. Enfiou a mão no bolso do velho paletó desbotado e retirou uma caixinha de pastilhas Valda. Abriu-a e ofereceu uma.

— É bom?

— Pra minha laringite é tiro e queda.

— Eu conheço um amigo de minha tia chamado Dr. Marins que é vidrado por essas pastilhas.

— Comigo se dá o mesmo. Agora se me permite vou mariscar um pouco. Debaixo daquela luz acesa, lá perto do nicho, aparecem umas pernilongas divinas. Quando eu melhorar da minha garganta aparecerei muitas vezes mais para conversarmos. Que você tenha uma bela noite e cheia de lindos sonhos.

Saiu aos pulinhos ritmados em direção à sua caçada.

Edu ficou olhando fascinado a sua gentil figurinha. Co­mo era encantador e gentil o cavalheiro Bolitrô.

Fechou os olhos e a voz do sapinho repercutia em seus ouvidos:

— "Que você tenha uma noite de lindos sonhos!"

 

Gabriel, a Lua e o Lago

Edu colocou a cabeça sobre os braços. A cama tão macia e gostosa fazia esquecer a angústia porque passara aquele dia. Até o ardor das pernas desaparecera. Os olhos come­çavam a pesar anunciando o sono que viria logo.

Bocejou e sorriu lembrando-se da frase de Bolitrô:

— Que você tenha uma noite de lindos sonhos!

Era essa mais ou menos a frase. Mas faltava um pedaço. Fez um esforço de memória. Ah, agora me lembro: — "que você tenha uma bela noite e cheia de lindos sonhos"...

Pensou em Anna. Bolitrô não lhe tinha pedido segredo. Viu os olhos de Anna tão azuis sorrindo bondade. As mãos finas de Anna esquecendo a sua cabeça disforme e pas­sando as mãos em seus cabelos.

Suspirou mais forte e adormeceu.

Se dormira muito não podia calcular. Mas agora estava atento e tinha certeza de que uma pancada de leve batera na sua porta. Escutou mais. Sentou-se feliz. Além da ba­tida uma voz sussurrava do lado de fora.

— Eduardo!... Edu!... Você está dormindo? Conhecia aquela voz inconfundível. Gabriel o estava chamando.

— Entre.

A maçaneta da porta abriu-se e ouviu o caminhar de Gabriel para junto da sua cama.

— Você fechou a porta?

— Encostei só. Não tem perigo. Ninguém vai nos ouvir. Mas Edu começou a ficar desconfiado.

— Então por que você me chamou tão baixinho. Gabriel sorriu compreensivamente.

— Ora, bobinho, eu não queria assustá-lo.

— Se é assim está bem. Mas como você veio até aqui?

— Já deu meia-noite. Depois da última pancada essa casa é obrigada a adormecer. Então começa a magia do nosso desencantar. Passe a mão na minha cabeça.

Edu obedeceu.

— Mas são pêlos macios como se fosse um gato.

— Todo tigre é um gatão.

— E como você conseguiu perder aquela dureza de cobre?

— Não perdi. Aquela dureza ficou lá no outro. Eu sou uma espécie de alma dele.

Edu ainda estava espantado.

— E se Anna acordar?

— Não tem perigo algum. Antes de chegar aqui passei pela porta do seu quarto e fiz um passe mágico. E não se assuste mais porque embaixo no veleiro toda a tripulação dorme. A noite é totalmente nossa.

— Foi por isso que Bolitrô me desejou uma linda noite de sonhos.

— Claro. Mas você está acordado.

— É verdade.

— Agora vamos depressa, amiguinho. Não temos tempo a perder.

— Mas eu não posso.

— Pode sim. Você vai montar no meu dorso e eu vou lhe mostrar a lindeza da noite que tanto lhe prometi.

— Mas eu sozinho não posso colocar meus aparelhos. É muito difícil.

— Eu já lhe dei um toque mágico também. Levante-se. Amedrontado Eduardo não conseguia obedecer.

— Acredite em mim, amigo. Se duvida passe as mãos na sua perna.

Obedeceu e sentiu-se normal, com as pernas recupera­das. Será que saberia andar com aquelas pernas. Gakusha adivinhou os seus pensamentos.

— Experimente sem receio algum.

Desceu da cama e caminhou com o coração aos pulos. Ficou com os olhos cheios d'água. Ajoelhou-se junto de Gabriel e apertou o seu pescoço soluçando.

— Sabe, Gabriel. Tanto eu pedi a Deus que pelo menos uma vez antes de morrer eu gostaria de andar como um menino sadio. E agora, você, Gabriel, faz esse milagre.

— Vamos, vamos, que isso não é tudo. Hoje vai ser uma noite maravilhosa para você.

Saíram sem fazer barulho. Atravessaram o grande corre­dor envidraçado e a noite apareceu em toda a sua magni­tude. A lua clareava o mar e as árvores. Desceram a escada e Edu lembrou-se que na certa Bolitrô se encontrava já adormecido na sua noite de lindos sonhos também.

— Agora use esse quepe de capitão. Você saiu da cama com o corpo quente e eu não quero que pegue um resfriado ou uma pneumonia.

Eduardo segurou o quepe na mão desanimado. Era tão pequeno, não ia caber. Comunicou sua duvida a Gabriel.

— Passe a mão na sua cabeça e veja porque estou lhe i oferecendo o quepe.

Obedeceu e suas mãos seguraram maciamente a sua ca­beça. E ela tinha diminuído também. Colocou o quepe com prazer. Estancou um momento e Gabriel o admoestou.

— O que foi agora, Edu?

— Me deu uma vontade estranha, Gabriel. Uma von­tade de entrar naquele banheiro e olhar-me no espelho.

— Isso nunca. Você teria que acender a luz. E depois o espelho é o maior inimigo das ilusões e dos sonhos.

Tentou esquecer aquele desejo no coração. Bem que gostaria de se ver perfeito. Refletido no espelho com a sua cabeça normal e suas pernas perfeitas. Pena também que Anna não o visse assim transformado.

Quando chegaram no terraço de fora Gabriel ordenou:

— Agora monte sobre o meu dorso e segure na pequena juba do meu pescoço.

À luz da lua Gabriel parecia ter crescido, se agigantado. Os grandes músculos das pernas e do dorso, estavam em contínuo movimento. Muito mais lindo do que a bela es­tátua. Suas listras brancas e amareladas se confundiam com outras negras sedosas e com o vermelho queimado do seu pêlo.

Falou com brandura:

— O que você está esperando, Edu? Não quer ir?

— Não é isso. Estava observando você. Você de carne e osso é tão mais imponente do que o tigre de bronze.

Ele riu e apontou.

— Pois eu ou ele está lá. E a luz da lua reflete o corpo de bronze nas águas da piscina. Pode-se dizer que ele é a minha casa.

— Então, estou pronto.

— Segure-se bem. Porque você vai ver uma outra mara­vilha. Mas tem que esperar pelo menos meia hora até que eu recupere todas as minhas forças, por enquanto é muito cedo para a surpresa.

Caminharam pelos terraços de pedra e procuraram o caminho da serra.

— Foi ali que eu fiquei preso outro dia.

— Proíbo de você pensar em coisas desagradáveis. O que vou lhe mostrar nenhum ser humano conseguiu avistar.

Agora as grandes pedras que circundavam a casa iam ficando maiores à luz da lua. O mar gemia lá embaixo tão de manso que nem parecia o mar bravo quando existia o sol.

— Por que o mar está tão calmo, Gabriel?

— Está dormindo. De manhã e de tarde ele se agita tan­to, gasta tanta energia que de noite dorme pesado esque­cendo até de olhar as estrelas e a lua.

Chegaram até pertinho de umas pedras rentes ao mar. E as pedras estavam cercadas por uma saia de branca es­puma. Dava até para ver as baratinhas e os siris cami­nhando entre as algas.

Um cheiro de lírio-do-vale enchia a noite de prazer.

— Vamos atravessar um vale cheio desses lírios. Agora segure-se bem que vamos saltar de pedra em pedra.

Os saltos de Gakusha faziam sombras moverem-se sobre a lisura das pedras.

— Ai que maravilha, Gabriel! Quando você salta eu sinto todos os seus músculos se movimentarem sob as mi­nhas pernas. Seu coração parece até bater mais violento pelo esforço. Parece que estamos voando e a vida dança em nossa volta.

— Você está se revelando um poetazinho em potencial. Agora vai ser mais difícil a caminhada porque estamos chegando no sopé da serra.

E quando iniciaram a subida, um mundo diferente apa­receu. No começo eram túneis de bananeiras selvagens, ba­naneiras bravas que uniam as suas folhas alongadas. De­pois o caminho ficava menor e se transformava numa tri­lha minúscula. Somente os olhos e a prática de Gabriel podiam fazê-lo andar sem perigo. Não tocavam em nada. Não roçavam sequer nas folhas dos arbustos. As grandes patas de veludo do tigre conheciam palmo a palmo toda aquela pequena selva.

Depois de algum tempo de viagem na escuridão das ár­vores e das folhagens, tudo se abriu como por milagre. Tinham desembocado na parte arredondada do morro.

Eduardo saltou do dorso de Gabriel e bateu palmas de alegria. Sobre sua cabeça a noite se mostrava varada de estrelas e ainda a lua dominava tudo, redonda, redonda.

— É lindo o céu, não Edu? Mas olhe para baixo, para a terra dos homens para aquele mar adormecido riscado de brilhos de luar. E olhe ali.

Eduardo obedeceu cada vez mais extasiado. A direção onde ele indicava dava até arrepios de beleza. O veleiro apagado parecia balançar dentro d'água e toda a água es­tava iluminada de lua. Ali dormia Anna, dormia Maria Jurandir, dormia Bolitrô e dormiam também todos os seus mistérios.

— Bem, agora vou fazer o que lhe prometi. Já recupe­rei todas as minhas forças. Você precisa tornar a montar-me e esquecer de uma coisa que se chama medo. Promete.

— Perto de você não temo nada e nada poderá fazer-me mal.

— Assim, sim. É melhor.

Eduardo obedeceu e montou em Gabriel.

— Para que você não vá se assustar, aviso-o. Nós vamos voar. Essa era a surpresa que eu lhe reservava.

— E você pode?

— Tão bem como se caminhasse. Até cansa menos. Pronto?

— Pronto.

Gabriel correu até a beira da serra e deu um salto. O corpo retesou-se e os músculos dele pareciam de aço. Fi­cou assim por um segundo até alcançar o equilíbrio per­feito no espaço.

— Pronto. Agora pode falar. Iremos aonde você desejar.

— Circularemos primeiro o veleiro?

— Como você quiser.

A casa adormecida se aproximava rapidamente. E Ga­briel desviava-se das árvores e das pedras.

— Que coisa mais linda e mais gostosa, meu Deus. Obri­gado por ter-me dado essa oportunidade de ver mais bela­mente as coisas que você criou.

Rodearam a casa diversas vezes e Edu passou perto da janela de seu quarto. Junto da de Anna, teve vontade de chamar pelo seu nome. Se ela ao menos pudesse estar co­migo agora. Amanhã não poderia contar o que acontecera porque jurara segredo a Gabriel. Mas mesmo que pudesse contar os olhos de Anna fingiriam acreditar e acabaria por ouvir: — sonhe o quanto puder, meu filho.

Voaram bem perto dos barcos ancorados dos pescadores. Aproximaram-se dos ranchos e dava até para ver as redes estendidas para secarem com a brisa da noite.

— Gabriel, a gente podia ir um pouco mar adentro?

— Muito não, tá? Porque ainda quero mostrar uma coisa muito linda para você.

Voltaram-se para o mar e ele apenas respirava na sua grandiosidade.

— Bem pertinho dele, Gabriel.

Voavam até sentindo a frialdade do mar e o seu cheiro de maresia.

— Posso me abaixar e tocar com o dedo, com a mão nas suas águas?

— É só você querer.

— Não há perigo?

— Nenhum.

Então Eduardo pode fazer uma coisa linda, uma das coi­sas mais lindas do mundo.

Enfiava a mão na água, criava rosas branquíssimas de espumas e atirava-as para o alto como se oferecesse flores para a lua.

Já haviam retornado ao ponto de início do vôo. Edu não podia acreditar em tantas maravilhas. Gabriel deitara-se de comprido e levantava as narinas para o alto res­pirando fortemente. Na certa o esforço do vôo desgastara as suas energias.

— Ainda não acabou o passeio, não?

— Ainda estamos na metade. Temos muita coisa bonita ainda para ver. Só preciso recuperar um pouco de fôlego e continuaremos a subir a serra.

— Vamos tornar a voar? Gabriel sorriu com brandura.

— Você gostou, não foi?

— Nunca pensei que voar fosse tão fácil. Acreditava que para os pássaros e para os anjos isso seria uma coisa co­mum. Mas a gente...

— É. Porém agora só poderemos atingir o alto da serra caminhando. Voltaremos a sentir o cheiro do mato e os perfumes das flores da noite.

Tornou a respirar mais fortemente e parecia tomar uma decisão.

— Já se sente descansado, Edu?

— Mas eu não me cansei, Gabriel. Você foi quem fez toda a força. Eu apenas engoli beleza todo o tempo.

— Então vamos. Torne a montar e segurar fortemente em meu pescoço.

Era tão macio andar montado no tigre que os olhos fe­chavam-se de prazer. Sentia toda a caminhada de olhos fechados. Sabia que alcançávamos a maior altitude da serra e que caminhávamos na sombra das grandes árvores. Ali raramente um raio de lua poderia transpor o fechamento da vegetação. Só entreabriu os olhos quando começou a sentir o odor dos lírios-do-vale que na noite parecia se multiplicar.

— Está sentindo, Edu?

— O perfume dos lírios?

— Outra coisa?

— O cheiro da água próxima.

Aí então Gabriel caiu na realidade. O menino não era como ele e não poderia se aperceber dessas coisas. Disfar­çou logo o seu engano.

— São as águas do lago. Não vá pensar que é um gran­de lago. Na verdade é uma pequenina lagoa onde existe a reserva de água do Veleiro. Explicando melhor, não passa de uma grande água cercada por pedras muito bonitas. Eu o chamo de meu lago, porque apesar de pequeno dá para refletir a nudez branca da lua e os brilhos de todas as estrelas.

Saíram da mata e o pequeno lago apareceu. Edu bateu palmas de encantamento.

— Mas é maior do que eu esperava.

— Gentileza sua, meu menino. Vamos para aquela parte mais alta. Dali a gente avista toda a grandiosidade do mar e a paisagem se torna mais bela de qualquer ângulo que se espie.

Sentaram-se lado a lado e a lua refletindo no mar ofere­cia um panorama inexplicável. Agora dava para ver o vulto encolhido do Veleiro dormindo na noite. Dentro dele, sem desconfiar de nada dormia Anna. O que era bo­nito mesmo era ver a lua refletida no lago. E as estrelas também a mirarem-se nas águas calmas.

— Sabe o que eu pensava das estrelas antigamente quando havia noite de tempestade, Gabriel?

— Diga.

— Eu tinha um medo danado de que o vento desarru­masse tudo e misturasse as constelações. Assim como se uma estrela saísse do seu lugar e penetrasse noutro dese­nho do céu. Anna que me explicou que as estrelas não eram aqueles pontos pequenininhos que a gente via. Que eram mundos maiores e mais pesados que o nosso. Por isso se viesse o maior vento do mundo não conseguiria abalá-las.

— Que inocência!...

Ficaram uma porção de tempo parados para absorver em silêncio aquela belezura toda. Entretanto o êxtase foi abalado por um bater de grandes asas. A alegria tomou conta de Edu. Pousada em um galho próximo Dona Maria Jurandir viera também apreciar o esplendor selvagem da noite.

— Ora viva! Que vocês estão fazendo por aqui? Meio contrariado com a intrusão de Mintaka respondeu com certa secura:

— Quis mostrar o lago para Eduardo numa noite de lua.

Dona Maria Jurandir sem dúvida era sempre muito sardônica.

— Que lago, Gakusha?

Gabriel entendeu o veneno mas não se sentia disposto a qualquer discussão.

— Ora, Mintaka... Pelo menos o seu mau humor não vai dizer que a noite não está bela.

Ela deu um muxoxo roufenho e desabafou.

— É uma noite razoável. Nada de maravilhosa, mas dá para encantar.

Gabriel perdeu a paciência.

— Sabe de uma coisa Mintaka. Não estrague a nossa alegria. Nós, nós dois estamos fascinados por esse mo­mento.

— Está bem. Está bem. Vou tratar da minha vida. Não quero prejudicar a felicidade de ninguém. Até logo.

Afastou-se num vôo lindo em forma de círculo. Gabriel resmungou entre dentes.

— Deus do céu! Que desagradável criatura! Edu penalizou-se.

— Ela não tem mau coração. É o seu jeito de ser assim.

— Está certo. Mas nunca vi uma criaturinha com uma vontade constante de estragar os prazeres dos outros.

— Vamos esquecer que ela apareceu aqui. Na realidade a vida é um contínuo encantamento.

Voltaram ao silêncio anterior para melhor escutarem a música da vida e do silêncio. Até o vento parecia agitar-se sem fazer barulho.

Edu deitou-se no chão e apoiou a cabeça nas mãos. A relva macia nem machucava o corpo. Queria naquela po­sição apreciar mais as estrelas do céu de Anna. As contí­nuas modificações mostravam que as estrelas viajavam muito. Senão porque elas subiam, depois iam baixando, baixando até desaparecerem. Uma viagem numa estrela deveria ser mais bonita do que em qualquer veleiro. Pena que elas estivessem tão altas. Porque naquela altitude não poderiam tocar na maciez do mar como ele o fizera voando com Gabriel.

Subitamente foi tomado por uma idéia.

— Gabriel quem é você?

— Ora que pergunta.

— Eu gostaria que você me contasse sua história.

— Meu amigo, não é grande coisa. Até que a minha vida não teve assim tamanha importância. Um tigre real não passa de uma figura decorativa.

— Sim, mas eu li histórias, vi fotografias de tigres como você fazendo o terror na selva.

— Pouco conheço de selva e assim mesmo por ouvir contar. Por participar de comentários de outros tigres amigos. O que aprendi sobre caçadas de tigre foi somente por escutar. Os caçadores montados em elefantes, os bate­dores acuando as feras com os nativos ensurdecendo tudo com os tambores, E os tigres acuados até que chegasse o tiro de misericórdia. Depois os caçadores levavam a caça como troféu. Uma coisa sem a menor conseqüência.

— Tudo isso eu já li, Gabriel. Mas eu queria uma coisa diferente.

— Pois então. Os livros são muito mais sábios que qualquer tigre.

— Não, amigo, eu não quero ofendê-lo. Só estou me in­teressando por você que em matéria de tigre foi o mais formidável que me apareceu.

Gabriel riu da lisonja.

— Mas o que vou contar para você da minha vida? Ficou se concentrando no passado enquanto a vista per­corria o céu iluminado.

— Pensando bem, eu não gosto de mentir. Nunca fui um tigre terrível e violento. Não era de me encolerizar. Nada disso. Portanto só posso lhe contar a verdade a meu respeito. Fui retirado da selva com poucos dias de nascido. Fui criado num palácio com outros tigres reais que tam­bém não sabiam fazer nada. Nossa vida era um eterno passeio pelos jardins do palácio. Nem sequer sabíamos ca­çar. Se isso fosse obrigado a nos acontecer, creio que mor­reríamos de fome. Nós nascemos só para sermos belos e decorar as festas, as danças, para esparramar a nossa indo­lência pelos grandes salões. Para escorregarmos as nossas patas pelas escadarias de mármore e tapetes orientais. Éra­mos tratados como deuses. E como nada nos era recusado não havia com que nos aborrecer. Talvez por isso cada ti­gre real tinha a capacidade de ter um bom coração.

Parou um pouco a narrativa e olhou meigamente o me­nino.

— Eu evitei contar-lhe a minha história para não decep­cioná-lo. Não foi uma vida de grande aventura e sim de enorme comodidade.

— Mesmo assim, Gabriel, sua vida é uma sensação.

— Pode ser. Mas eu prefiro agora o momento que atra­vesso. Logo que descobri o desencantar, minha vida me­lhorou. Se bem que não possa me afastar do outro tigre de bronze. Mas tendo esse meu lago e todo esse céu me quedo satisfeito. Na realidade, isso aqui é muito mais poé­tico do que a vida num palácio chinês ou oriental como queira.

Lambeu as patas caprichando na limpeza delas. Queria retirar qualquer mato ou galhinho que se intrometera nas unhas durante a caminhada.

Os olhos de Edu começaram a se fechar. Queria lutar contra o sono e não adquiria resistência. No alto as estre­las dançavam. Tentava abaixar a vista para as águas do lago e elas ainda dançavam mais. Estava confundindo as constelações. Sorria de leve porque nunca a natureza tinha sido tão amiga e tão bela para ele. Foi fechando as pálpebras devagarzinho e rolou a cabeça para o lado.

Gabriel ao lado observava tudo. A sua luta impotente contra o Sono.

— Durma, meu filho. Felizes os que têm o adormecer tão calmo. Que deste seu dormir até o momento do Grande Sono, a paz esteja sempre em sua alma.

 

Conversas, Simples Conversas

- Não sei como você pode perder tanto tempo conver­sando com um sapo tão entojado e sem interesse.

— Pode ser. Mas comigo ele se porta como um verda­deiro cavalheiro.

Mintaka silenciou um momento. E Edu pôde observar que os seus momentos de mau humor continuavam mais uma vez.

— Mintaka como é que você pode escutar a minha con­versa com Bolitrô? A distância é muito grande.

— Por favor, Mintaka, não. Meu nome legalizado é Ma­ria Jurandir.

Edu riu deliciado. Se fosse ele a coruja, preferiria muito mais ter o nome de uma estrela do que uma mulher assas­sinada com mil e tantas facadas.

— Está bem, Dona Maria Jurandir.

— No mínimo ele contou sobre a sua nobreza. Falou que nasceu em berço de ouro e outras bobagens que tais, não?

— Nada disso. Conversamos coisas sem importância é verdade, mas se a senhora diz que escutou tudo. Não deve ignorar o conteúdo da nossa conversa.

— Também não tem a menor importância. Uma pequena irritação a constrangeu.

— Por acaso, menino, você sabe como nasce um sapo?

— Mais ou menos.

— Não, quero uma resposta mais exata. Edu sentiu-se embaraçado.

— Pois olhe essa aqui, quando morava na selva vi muito nascimento de sapo. E de sapo de todas as espécies. Princi­palmente os grandões e de raça. Não um sapinho anêmico qualquer como esse janota.

Edu estremeceu de prazer.

— Agora sim, Dona Maria Jurandir. A senhora tocou num assunto que me fascina: a selva. A senhora nasceu mesmo na selva?

Estufou as penas do peito com orgulho.

— É natural. Não sabia?

— Bem. Faz muitos dias que a senhora me promete contar a sua história e depois tira o corpo fora.

— Se eu fosse você não insistia. Minha história é muito boba. Boba demais até.

Mintaka concentrou-se e seus brilhantes olhos parece­ram percorrer um passado distante.

— Foi assim. Primeiro é preciso que se corrija um tre­mendo erro a meu respeito. Eu não sou uma coruja como todos esses ignorantões daqui me chamam. Eu sou da raça dos jacurutus. Daí você vê que a minha estatura suplanta qualquer outra coruja comum. Mas veja bem. Minha plumagem se divide principalmente em dois tons. Sou toda dividida em pedaços pretos e brancos. Antigamente exis­tiam uns frades dominicanos que possuíam um hábito parecido com o meu corpo. Mas isso foi antigamente. Porque com a evolução é difícil a gente distinguir qualquer reli­gioso de outra pessoa.

Pigarreou ainda meio mal humorada. Edu pensava co­mo devia ser difícil uma criatura tão complicada conviver com os outros.

— Tinha acabado a época das grandes chuvas. Os rios enormes começavam a baixar e todo canto foi invadido de praias alvas e brilhantes. A selva depois de tanta chuva esbanjava uma beleza luminosa em todo seu verdor. Desde que as grossas chuvas sumiram. Que os grandes temporais se afastaram no meio dos seus raios e dos seus estrondos, a natureza reviveu música e alegria. Mamãe tinha feito um ninho confortável no topo de uma frondosa mirindiba.

Edu extasiado interrompeu:

Como é mesmo o nome? — Mirindiba. Uma árvore portentosa da selva.

— De que lugar?

— Ora da selva de Goiás. No braço direito do Rio Ara­guaia que os brancos batizaram de Javaé.

— Sei.

— Dos três ovos chocados só nasceram dois pintos. Meu irmão e eu. Como você sabe, minha mãe tinha mania dos astros. Por isso me batizou com o horrendo nome de Min­taka e meu irmão com o pavoroso, bárbaro, estúpido no­me de Canopus.

Edu ficou perplexo. Canopus feio? Se Anna soubesse disso nunca iria perdoar a língua de Maria Jurandir.

— Já estávamos bastante emplumadinhos quando come­çaram a chegar as visitas. Todos queriam cumprimentar Mamãe e desejar-lhe felicidades.

Primeiro chegou um jaburu moleque e desajeitado mi­rou-nos um a um. Não soube esconder a sua decepção.

— Mas não é por nada, falou ele em sua franqueza, mas os seus bichinhos são feios de fazer dó.

Mamãe olhou-nos com um olhar coruja e comentou:

— No começo é assim mesmo. Depois de emplumados ficarão dois lindíssimos jacurutus.

E a semana inteira foi assim. Ouvíamos o batido de asas. Os galhos da mirindiba balançavam com o peso e lá vinham os comentários.

— Horrorosinhos!

— Se a gente visse essas bruxinhas de noite perdia o sono.

— Credo! Abriram a porteira da feiúra.

— Podia bem alugar esses monstrinhos para espantalhos.

— E foi assim nesse clima que crescemos. Depois come­çaram os vôos de instrução de mamãe. Ela tinha uma pa­ciência incrível com o nosso desajeitamento. Era-nos difí­cil os primeiros controles das asas e das penas da cauda. Se a gente confundia tudo era cada vácuo, cada trambolhão no espaço que humilhava. Se não fosse a grande paciência de mamãe eu até que desistia.

Pensou uma coisa e interrompeu a sua conversa.

— Dona Maria Jurandir a senhora nunca se casou? Ela ficou espantada.

— Que pressa danada, menino. Pois eu ainda nem aprendera a voar. Mas vou já adiantando. Não casei não. Não deu tempo.

Foi a primeira vez que Edu viu a coruja meio emocio­nada. Estranho, Mintaka devia ser como Anna. Anna nun­ca tinha casado e se não possuía o gênio rabugento da co­ruja, em compensação possuía uma dose igual de solidão.

— Onde é que eu fiquei mesmo?

— No pedaço que não deu tempo.

— Ah sei. Mas você embaralhou tudo com as suas per­guntas. Nem tem paciência de esperar os acontecimentos normais da vida.

— Porque foi que não deu tempo, Dona Maria Ju­randir?

— Por que um dia um caçador...

Ouviram passos no corredor. Anna ou enjoara da no­vela ou sentira qualquer coisa. Podia até ser saudades suas.

— Lá vem ela.

Maria Jurandir levantou vôo assustada e foi procurar o seu lugar na estante. Antes falou apressada.

— Mais tarde eu acabo de contar o resto.

— Está bem. Muito obrigado. Anna entrou no ambiente.

— Tudo bem, meu filho?

— Tudo.

— Estranho, eu tive a impressão de que ouvi barulho de pássaro voando.

Edu desconversou.

— Aqui?

— Sim. Por aqui. Um ruflar de grandes asas.

— Que é que é ruflar?

Na estante Maria Jurandir devia estar chamando-o de cínico, de espertalhão.

— Ruflar é bater de asas.

— Mas na história que você contou era batida de tambor.

Anna sorriu e passou a mão em suas faces.

— Bobinho. Rufar é de tambores. Ruflar é bater de asas.

Só então ela tomou conhecimento porque subira antes da novela acabar. Precisava falar ao menino. Doía, mas precisava falar a verdade. Pena que ele estava tão feliz, tão contente da vida nessa temporada.

— Edu, é dolorido, mas eu preciso falar uma coisa. Pelo silêncio Anna sabia que ele tinha adivinhado.

— Sobre a viagem, não é?

— Exatamente. Nossos dias foram maravilhosos, não foram?

— Foram sim.

— Mas as coisas boas não demoram muito.

Edu completou a frase resolutamente. Porque se demorasse a tomar uma atitude aquilo iria doer na certa.

— A nossa viagem está chegando ao fim, Anna.

— É isso, querido. Dentro de poucos dias começaremos a arrumar a bagagem, porque o veleiro está chegando ao ponto da nossa partida.

 

Ao Cair das Velas

— É uma pena dona Maria Jurandir. Amanhã cedo, bem cedinho a gente vai embora.

Os olhos vidrados da coruja dormiam em outros mundos.

— Mas não é uma pena só por isso. Pena porque vou sem poder falar com a senhora. Sem saber o que foi que lhe aconteceu com a chegada do caçador.

E como o silêncio respondia à sua tentativa de dialogo, comentou:

— Garanto que vou sentir saudades da senhora. Que a sua conversa muito embora às vezes triste, era bastante agradável. Hoje é quarta-feira, não é? Eu sei que somente terças, quintas e sábados a senhora pode desencantar. Mas em todo caso vim dizer o meu adeus amigo. O veleiro atracou, amanhã abaixará todas as velas. Todas as velas mestras: o traquete, a vela grande, a gávea  e o velacho.

Elas serão enrodilhadas e amarradas com cordas e só sairão daquela posição quando o veleiro reiniciar a viagem. Mas que importa outra viagem se eu não estarei à bordo dele? Ou estarei?

Mexeu-se nas suas muletas e caminhou até a mesa de jogo. Com certa facilidade até, sentou-se numa cadeira para de lá observar a figura impassível do jacurutu. Riu. Sim jacurutu era como gostava de ser chamada. Era como dizia estar legalizada nos papéis. Pobre dona Maria Juran­dir. Não fora os olhos redondos, brilhantes e muito aber­tos, dir-se-ía que estava dormindo.

Edu não ignorava o que estava fazendo. No seu pequeno mundo de poucos acontecimentos gostava de decorar as melhores coisas. Decorar na saudade para depois lem­brar-se devagarzinho e com ternura.

— ...porque um caçador...

E o resto? O resto procuraria adivinhar porque jamais na vida tinha certeza de encontrar dona Maria Jurandir.

O resto? Bem ela dissera que não dera tempo. Aquele tempo deveria se referir ao tempo de vida. Então ela fora um jacurutu que morrera bem cedo. Então o caçador de­veria na certa ser um turista. O caçador levara-a para a ci­dade e mandara que a empalhasse de uma maneira que parecesse viva. Era isso. Na certa depois fizera um presente dela a um amigo. Se não fosse isso pelo menos a história estava bem contada.

Tornou a esforçar-se para se levantar. Estava realmente mais forte e decidido. Anna tinha razão. Aquela casa lhe fizera um bem enorme. Postado nas suas muletas arras­tou-se para a porta do salão porque de nada adiantava fi­car conversando sem eco com o jacurutu.

Foi aí que a tristeza cortou bem fundo os seus pensa­mentos.

— É a vez dele.

Referia-se a Gakusha ou Gabriel. Com ele sim a coisa iria doer muito. Porque com ele deixava metade de sua alma, dos seus anseios e das suas confissões. Nunca a es­cadaria lhe pareceu tão longa para descer. A cada muleta colocada procurando o degrau, naquela lentidão cuidadosa parecia estar caminhando sobre a insignificância do pró­prio corpo.

 

Virou rapidamente a cabeça e deparou com Anna co­lada ao vidro. Observando os seus olhos, se não fosse de tão longe diria que Anna chorava. Na certa estaria se preo­cupando com o que viria breve, logo que acabassem a via­gem. Preocupava-se com a operação. "Anna querida. Eu nem penso nisso. Não se amedronte que enfrentarei tudo com muita coragem. Nem sei bem o que vão fazer com o meu coração. Sei que descobriram um desvio ou coisa parecida. Se me operarem, pelo menos não me cansarei tanto, não é isso, Anna?"

Amparou-se bem nas muletas e soltou uma das mãos como se quisesse enviar-lhe um beijo. Sorriu e dessa vez, Anna não chorava, sorria.

E agora, meu Deus? A vontade amolecia quando pro­curava aproximar-se de Gabriel. Talvez fosse melhor vol­tar. Deixá-lo sem dizer o menor adeus. Talvez assim doesse menos para ambos. Mas isso não passava de uma grande covardia. Afinal Gabriel o acolhera como se fosse um ir­mão. Mais irmão do que Serginho e Marcelo. O que se tornava cruel era não poder revê-lo na partida num mo­mento de desencantamento. Falaria com o tigre de bronze mas não com o maravilhoso Gakusha. Nem sequer pode­ria alisar o seu pêlo luzidio. Voltou os pensamentos para Bolitrô. Com ele seria diferente. Ao entardecer poderia conversar com ele, apertar-lhe a mão com amizade. Com Gabriel e Mintaka, não conseguiria mais. Talvez que quando fosse saindo o adeus do coração alcançasse lhes dizer alguma coisa.

Criou coragem e caminhou para junto da estátua. Não teria muitas palavras, porque a emoção iria estragar tudo.

Os olhos ficaram nublados e o seu silêncio permanecia.

— Não fique assim, meu amigo.

— Como posso não ficar? É difícil Gabriel. Amanhã cedo estarei partindo. Hoje à noite você não poderá apa­recer no meu quarto porque Anna estará arrumando tudo para nossa viagem.

— Eu sei.

— E isso não é terrível?

— Concordo, mas faz parte dessa coisa chamada vida. Os bons e os maus momentos. Só quero que não se emocione muito. Porque seu coração está bastante forte. Mesmo você. Adquiriu uma cor sadia tão diferente daquele menininho pálido que aqui apareceu pela primeira vez.

— Vou sentir muito a sua falta, Gabriel.

— Eu também. Acredite que as minhas próximas noi­tes vão ficar muito vazias.

— Em compensação vou levar o meu coração cheio de tantos momentos de beleza e fantasia. Gabriel eu tenho que dizer adeus. Não posso demorar-me porque titia virá logo me buscar. Ficarei aqui até o momento que ela apa­reça. E então não poderemos falar mais.

— Só lhe peço uma coisa. Que nunca se esqueça da gente. Agora o mais importante é uma promessa que você me fará: nunca ter medo de nada, de nada que surgir à sua frente.

— Você se refere a minha operação?

— Principalmente isso. Edu tornou a se emocionar.

— Gabriel, você acha que a minha operação vai dar certo?

— E por que não? Não será coisa de tanto perigo e só o fato de você poder viver se cansando o mínimo já é uma maravilha.

— Não sei.

Silenciaram um instante e Edu perguntou desanimado:

— Gabriel, será que nunca mais vou ver você?

— Um dia a gente se encontrará. Quem sabe se sua tia não trará você de volta mais tarde?

— É duro dizer adeus.

Com dificuldade passou a mão sobre o dorso de Gabriel.

— Sabe de uma coisa, Edu? Um dia eu prometo que irei buscá-lo para uma viagem linda. E o veleiro será diferente porque poderá voar até.

— Você fala seriamente?

— Por que mentir a um amigo?

— Não é porque você está com pena de mim?... com pena porque vou fazer essa operação?...

— Nada disso. Estou lhe falando porque sou seu amigo e mesmo de longe sempre estarei pedindo À Vida por você...

— Ela vem vindo. Adeus Gabriel.

— Adeus, meu filho que a ternura faça ninho no seu coração.

— E a viagem?

— Está prometida. Espere com todas as esperanças e fé na alma.

— Adeus, Gabriel.

— Adeus.

 

Veleiro de Cristal, Veleiro das Estrelas

Entreabriu os olhos e observou espantado o ambiente totalmente branco.

Murmurou fracamente.

— Anna.

As mãos de Anna seguravam a sua mão.

— Estou aqui, Edu.

Aos poucos percebia onde se encontrava. Ah! O hospi­tal, a operação. Um tubo de oxigênio subindo pela sua narina.

— Dói, meu filho? A voz vinha fraca.

— Não dói. Só que sinto cansaço. Sinto um peso no meu peito.

— São as faixas, as gases, as ataduras. É natural que você sinta cansaço. Fez uma operação muito grave. Agora feche os olhos e tente dormir.

Em vez de obedecer seus olhos adquiriram um brilho febril.

— Mamãe veio, Anna?

— Claro que veio. Veio muitas vezes. Ficou aí perto da sua cabeceira três noites. Mas você dormia. O médico não deixou que acordassem você. Agora ela foi até em casa e vai voltar depois. Agora durma.

Ficou passando a mão na sua testa febricitante.

— Mas você promete Anna, que quando Mamãe voltar você me chama...

— Prometo sim. Mas agora durma.

 

Acordou e viu que era dia. Fazia sol lá fora e o céu es­tava muito azul.

Anna aproximou-se pressurosa. Anna sabia a verdade. Não havia mais esperança, a operação fora até bem suce­dida, mas os médicos abanaram a cabeça quando após três dias a febre o assaltava abrasadoramente.

— Pneumonia. Era o que menos desejávamos.

E a febre e os arrepios se sucediam. O peito proibido de tossir gerava gemidos e frases incompreensíveis.

Nada mais havia a fazer. O que era necessário não se tinha negado. Nem mesmo um milagre...

Anna gelada ouvindo a frieza da condenação.

— Anna!

Sua voz adquirira uma força inesperada.

— Anna eu estou bom. Anna eu tenho até vontade de andar.

— Que bom, meu filho. Que bom.

Mas na alma aquilo se assemelhava a uma punhalada cruel. Era o que chamavam da "visita da saúde".

— Suspenda o meu travesseiro, Anna. Quero ver tudo.

Girou a manivela da cama. O desespero se apossava dela. Tinha vontade de sair correndo pelo corredor como se fosse louca. E gritaria alucinadamente pedindo socorro ao mundo. Mas conteve-se.

— Anna, quando a gente sair daqui para onde vamos?

— Espere um pouco, querido. Vou lhe trazer um pou­quinho de água fresca.

— Mas eu não tenho sede, Anna.

— Mas beba que faz bem.

Queria poupar o tempo. Queria ver se chegava alguém para ajudá-la.

— Anna, Mamãe voltou?

Queria rezar, queria afastar para longe o seu desespero. Por que ela não vinha, pelo menos uma vez? Uma só vez, meu Deus?

Tornou a mentir.

— Ela telefonou há pouco tempo que viria para cá. Ele fez um gesto de tristeza.

— Não faz mal. Mas você não respondeu para onde iria me levar?

Forçou a memória e lembrou-se da casa à beira-mar de um amigo onde por diversas vezes passara temporada.

— Onde vamos? Ora imagine. Antes de você vir para o hospital, não se lembra? Eu saí um dia inteirinho com Nonato. Pois bem, fomos ver uma casa linda. Lá você vai poder se recuperar. E garanto que vai gostar muito.

— Você não me contou nada.

— Como iria contar se era surpresa.

— E como é a casa?

— Você nem imagina. É uma lindeza. A gente viaja o dia inteiro para lá chegar. Sobe-se uma serra e do alto, a gente pára o carro e a casa toda iluminada aparece...

— Eu sei, Anna.

— Como pode saber? Ele riu feliz.

— Essa casa eu conheço bem. Do alto, na noite, essa casa parece um navio iluminado.

Anna sentiu um arrepio horrível passar por todo o seu corpo.

— Mas para mim não é bem um navio, é um Veleiro de Cristal.

Estranho que da primeira vez ela sentira a mesma sen­sação. Queria dizer alguma coisa mas a voz estava sem po­der articular-se. Ele prosseguia na descrição.

— A gente desce um caminho e sai numa praia de pes­cadores. Tem dois ranchos. A casa por fora não quer dizer nada. É feita de um velho paredão de um antigo depósito parece que de café. Quando se entra pelo jardim a casa fica mais linda. Todas as paredes são de vidro. Da sala de refeição quando as cortinas estão entreabertas pode-se ver o mar de todos os lados.

— A casa fica sentada sobre duas pedras enormes, não é, Anna?

Mal podia balbuciar uma resposta. Nunca falara a Eduardo sobre essa casa. E nunca também ninguém da fa­mília estivera lá. E na verdade ele conhecia tudo.

Começou a morrer também. O que aquilo significava? Uma monstruosidade de coincidência? Quem poderia des­vendar todos os mistérios e que mistérios havia entre o céu e a terra.

— Quer que eu conte o resto, Anna?

Confirmou com a cabeça. Queria fazer o possível para que o rosto não traísse o seu desespero e espanto.

— Pois bem. Existe um jardim entre as pedras. E todas as pedras mineiras vão dos terraços até o mar. Tem uma piscina e um grande tigre chinês de cobre. Não se lembra, Anna?

Sua memória ia visualizando tudo. Sua narrativa não falhava.

A gente sobe uma enorme e larga escadaria. Tem um terraço grande também todo de vidro como se fosse o tombadilho de um navio. Ali vão ter os quartos. Agora na frente, a coisa mais linda da casa é um grande salão também de vidraças enormes de onde se pode ver o mar ba­tendo nas pedras como se fossem as ondas batendo na proa de um navio. Você se lembra bem do que tem na estante? Queria recordar-se mas a brutalidade daquela revelação deixava-a bastante aturdida.

— Ora Anna. Uma coruja empalhada.

Anna tomou-lhe as mãos tremulamente.

— Diga Eduardo, por amor de Deus, como foi que você esteve lá?

— Você se esqueceu. Nós estivemos lá juntinhos. Fomos fazer a viagem no veleiro. Uma viagem de sonhos. Eu fiz camaradagem com o tigre. Ele tinha um nome japonês muito difícil. Então batizei-o de Gabriel. A coruja pos­suía um nome que não gostava. Um nome da constelação de Órion: Mintaka. Ela preferia chamar-se Maria Jurandir. Um nome um pouco bobo para uma coruja da selva, não?

Parou e começou a respirar com um pouco de dificul­dade.

— Anna, estou ficando muito cansado. Por favor comece a baixar a minha cama. Preciso de mais ar.

Anna ligou o oxigênio.

— Vou chamar o enfermeiro. Mas Edu suplicou:

— Por favor, Anna, não adianta. Esse momento é só meu e seu.

— Você cansou-se, falou demais.

— Ainda não acabei, Anna. Chegue-se mais perto de mim. Eu preciso contar tudo para você, porque na vida somente você pode me compreender e me amar. Anna, eu vou fazer uma viagem novamente nesse veleiro. Agora ire­mos visitar todas as estrelas.

— Quem vai com você?

— Dessa vez Anna você não pode fazer essa viagem co­migo. A primeira que fizemos juntos foi a coisa mais bo­nita do mundo. Gabriel disse que virá me buscar assim que o veleiro estivesse pronto para desatracar. Que lindo a gente viajar pelo céu, não Anna?

As lágrimas começaram a cair devagarzinho dos seus olhos. A sua voz quase desaparecia.

— Mas você vai no meu coração.

Encostou a face na mãozinha febril. As lágrimas escor­reram sobre ela.

— Sabe, Anna, já estou sentindo o mar molhando as mi­nhas mãos.

Um soluço mais forte, agitou o seu corpo.

— Anna, Anna, onde é que você está?

— Aqui, querido, bem pertinho de você. Anna está aqui. A dor era tanta que a voz não parecia sua.

— Anna, vai ser bom. Assim não precisaremos mais vi­ver fugindo ou escondidos de tudo.

Ofegava como se o ar se extinguisse do seu peito.

— Anna, Anna. Por favor abra a janela que eu quero ver a noite. Na noite está o meu veleiro de cristal espe­rando para partir. Adeus, Anna.

A cabeça caiu para o lado e a mão fraca começou a tom­bar molemente sobre o lençol.

 

O Grito de Anna

De que adiantava enxugar os olhos tão ardidos? Nem se­quer podia sentir a sua pequenez tal o tamanho da sua dor. Sentia sim um frio que lhe enregelava os braços. E se pusesse a mão sobre o peito contaria cada pancada seca do seu coração.

Sem saber como, foi se aproximando da janela. Por so­bre a sombra das grandes árvores negras o céu oferecia o mundo das estrelas. O mundo das suas estrelas. Antares, Sirius, Canopus, Arturus. Que mundo tão longe, o mundo de Deus!...

A voz dele ressoava aos seus ouvidos.

— Assim não precisaremos mais viver fugindo ou escon­didos de todos.

As lágrimas corriam de novo.

— Essa viagem você não vai comigo, Anna. Mas você estará em meu coração por onde quer que eu esteja.

As estrelas reluziam indiferentes.

— Mamãe tornou a vir?

Aí o seu abatimento se multiplicava. Sós, ele e ela. So­mente os dois no momento da passagem. Sempre os dois sozinhos. E agora ela ficaria cada vez mais só.

Vergou as pernas e ajoelhou-se apoiando a cabeça na janela como uma criança desprotegida. E seus lábios se entreabriram numa ânsia de desejos e prece.

— Siga, meu filho a sua viagem linda. Siga no seu Ve­leiro de Cristal, no seu veleiro de estrelas, para um mundo de silêncio e paz!

— Agora eu sei que você está indo, meu filho!

— Acompanhado do seu tigre, do seu sapo, da coruja e de tantos bichinhos como você e que sempre o seu coração amou.

— Que longe você já está. São mais lindas as estrelas quando estão mais próximas?

O peito quase rebentou e novas lágrimas escorriam pe­los braços alçando a janela. Foi então que ela repetiu doloridamente a sua condenação.

— Olhe por mim, meu filho. Meus braços morreram de abandono. Meu coração está vazio de amor. Meu querido, meu querido. Em cada estrela que você estiver olhe por mim.

Deitou-se desamparada sem querer olhar para a cama. Sem desejar enxergar o corpo enrijecido e pálido.

Veio uma vontade de sorrir, sorrir da humanidade oca. Daqueles que mais tarde iriam lhe dizer... como se isso consolasse... — "Foi melhor assim. Foi melhor assim." Que saberiam eles do que sentia? Que adiantavam as palavras se nada encontraria mais eco no seu coração, no luto da sua alma?

Melhor era olhar de novo o céu. Que lindo. Quantas estrelas! E o veleiro de cristal, o veleiro de estrelas se afas­tava cada vez mais na sua ânsia de infinito. Pela última vez juntou as mãos e suplicou: — Querido, quando você atingir a beleza das estrelas, quando você tocar no brilho de todas elas, não se esque­ça... Mande uma gota de ternura, um clarão de amor, para que meus braços não afaguem o abandono e o meu cora­ção deixe de caminhar para sempre na desesperança!...

Fim Cotia, 72/73

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SOBRE O AUTOR

 

 

José Mauro de Vasconcelos tem nas veias sangue de índia e português. Nasceu em Bangu, Rio de Janeiro, a 26 de fevereiro de 1920. Passou a infância em Natal, onde foi criado com muito sol e... água. Aos nove anos de idade aprendeu a nadar, e com prazer ele hoje rememora os dias de contentamento, quando se atirava às águas do Potengi, quase na boca do mar, a fim de treinar para as provas de grande distância. Com freqüência ia mar adentro, protegido por uma canoa porque a barra de Natal está sempre infestada de tubarões. Ganhou vários campeonatos de natação e, como todo garoto, gostava de futebol e de trepar em árvores.

Mas o esporte, não constituía sua única preocupação. Depois do primário, aos 10 anos de idade já cursava o primeiro ano do curso ginasial, que terminou cinco anos mais tarde. Então, gos­tava dos romances de Graciliano Ramos, Paulo Setúbal e José Lins do Rego.

Depois do ginásio, os estudos de José Mauro como autodidata foram sempre feitos à base de trabalho. Seu primeiro emprego, dos dezesseis aos dezessete anos, foi o de treinador de peso-pluma; recebia 100 cruzeiros (velhos) por luta no Rio de Ja­neiro, pois aos quinze anos saíra de Natal para ganhar o mundo. No Estado do Rio, trabalhou numa fazenda em Mazomba, perto de Itaguaí, carregando banana. Depois, foi viver como pescador no litoral fluminense, onde não se demorou muito, partindo em seguida para o Recife. Ali, exerceu o cargo de professor primá­rio num núcleo de pescadores.

Da capital pernambucana, José Mauro saiu para começar in­cessante vaivém, do Norte ao Sul, e vice-versa, permanecendo um pouco em cada lugar, para em seguida enveredar pelo sertão e viver entre os índios.

Dotado de prodigiosa capacidade inata de contar histórias, pos­suindo fabulosa memória, candente imaginação e com uma volu­mosa experiência humana, José Mauro de Vasconcelos não quis ser escritor, foi obrigado a sê-lo. Os seus romances, como lavas de um vulcão, foram lançados para fora, porque dentro dele o "eu" estava transbordando de emoções. Ele tinha de escrever e de contar coisas.

Apesar do sucesso no cinema e TV, José Mauro não está satis­feito. Para ele, a melhor coisa do mundo é servir de enfermeiro para os índios.

"Não vejo a hora de meter o peito no mato", diz o escritor, que reside em São Paulo, mas todo ano vai matar as saudades da selva.

 

                                                                      José Mauro de Vasconcelos

 

                      

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