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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VELHO DA HORTA / Gil Vicente
O VELHO DA HORTA / Gil Vicente

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Gil Vicente

 

 

 

 

FIGURAS: UM VELHO (o proprietário da horta) UM PARVO (servo do Velho) MULHER (esposa do Velho) ALCOVITEIRA (Branca Gil) UMA MOÇA UM ALCAIDE (governador de castelo)  BELEGUINS (oficiais de justiça)
Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda. A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome. Era do Senhor de 1512.

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VELHO Pater noster criador,  Qui es in coelis, poderoso,  Santificetur, Senhor,  nomen tuum vencedor,  nos céu e terra piedoso.  Adveniat a tua graça,  regnum tuum sem mais guerra;  voluntas tua se faça  sicut in coelo et in terra. 
 
Panem nostrum, que comemos,  cotidianum teu é;  escusá-lo não podemos;  inda que o não mereceremos  tu da nobis hodie. Demtttimus qualquer error A os nossos devedores.
 
Et ne nos, Deus, te pedimos,  inducas, por nenhum modo,  in tentationem caímos  Porque fracos nos sentimos, Tornados de triste lodo.  Sed libera nossa fraqueza,  nos a malo nesta vida;  Amen, por tua graça,  e nos livre tua alteza  da tristeza sem medida. (Entra a Moça na horta e diz o Velho) Senhora, benza-vos Deus,
 
MOÇA Deus vos mantenha, senhor.
 
VELHO Onde se criou tal flor?  Eu diria que nos céus.
 
MOÇA Mas no chão.
 
VELHO Pois damas se acharão,  que não são vosso sapato!
 
MOÇA Ai! Como isso é tão vão,  e como as lisonjas são  de barato!
 
VELHO Que buscais vós cá, donzela,  senhora, meu coração?
 
MOÇA Vinha ao vosso hortelão,  por cheiros para a panela.
 
VELHO E a isso  vinde vós, meu paraíso.  Minha senhora, e não a aí?
 
MOÇA Vistes vós! Segundo isso,  nenhum velho não tem siso  Natural.
 
VELHO Ó meus olhinhos garridos,  mina rosa, meu arminho!
 
MOÇA Onde é vosso ratinho?  Não tem os cheiros colhidos?
 
VELHO Tão depressa vinde vós,  minha condessa,  meu amor, meu coração!
 
MOÇA Jesus! Jesus! Que coisa é essa?  E que prática tão avessa  da razão! 
 
Falai, falai doutra maneira!  Mandai-me dar a hortaliça.
 
VELHO Grão fogo de amor me atiça,  ó minha alma verdadeira!
 
MOÇA E essa tosse?  Amores de sobreposse  serão os da vossa idade;  o tempo vos tirou a posse.
 
VELHO Mas amo que se moço fosse  com a metade.
 
MOÇA E qual será a desastrada, que atende vosso amor?
 
VELHO Oh minha alma e minha dor,  quem vos tivesse furtada!
 
MOÇA Que prazer!  Quem vos isso ouvir dizer  cuidará que estais vivo,  ou que sois para viver!
 
VELHO Vivo não no quero ser,  mas cativo!
 
MOÇA Vossa alma não é lembrada  que vos despede esta vida?
 
VELHO Vós sois minha despedida,  minha morte antecipada.
 
MOÇA Que galante!  Que rosa! Que diamante!  Que preciosa perla fina!
 
VELHO Oh fortuna triunfante!  Quem meteu um velho amante  com menina! 
 
O maior risco da vida  e mais perigoso é amar,  que morrer é acabar  e amor não tem saída,  e pois penado,  ainda que amado,  vive qualquer amador;  que fará o desamado,  e sendo desesperado  de favor?
 
MOÇA Ora, dá-lhe lá favores!  Velhice, como te enganas!
 
VELHO Essas palavras ufanas  acendem mais os amores.
 
MOÇA Oh homem, estais às escuras!  Não vos vedes como estais?
 
VELHO Vós me cegais com tristuras,  mas vejo as desaventuras  que me dais.
 
MOÇA Não vedes que sois já morto  e andais contra a natura?
 
VELHO Oh flor da mor formosura!  Quem vos trouxe a este meu horto?  Ai de mim!  Porque assim como vos vi,  cegou minha alma e a vida, e está tão fora de si, que, em partindo daqui,  é partida.
 
MOÇA Já perto sois de morrer.  Donde nasce esta sandice  que, quanto mais na velhice,  amais os velhos viver?  E mais querida,  quando estais mais de partida,  é a vida que deixais?
 
VELHO Tanto sois mais homicida,  que, quando amo mais a vida,  ma tirais. 
 
Porque meu tempo d’agora  vai vinte anos dos passados;  que os moços namorados  a mocidade os escora. 
 
Mas um velho,  em idade de conselho,  de menina namorado...   Oh minha alma e meu espelho!
 
MOÇA Oh miolo de coelho  mal assado!
 
VELHO Quanto for mais avisado  quem de amor vive penando,  terá menos siso amando,  porque é mais namorado.  Em conclusão:  que amor não quer razão,  nem contrato, nem cautela,  nem preito, nem condição,  mas penar de coração  sem querela.
 
MOÇA Onde há desses namorados?  A terra está livre deles!  Olho mau se meteu neles! Namorados de cruzados,  isso si!...
 
VELHO Senhora, eis-me eu aqui,  que não sei senão amar.  Oh meu rosto de alfeni!  Que em hora má eu vos vi Neste pomar!
 
MOÇA Que velho tão sem sossego!
 
VELHO Que garridice me viste?
 
MOÇA Mas dizei, que me sentiste,  remelado, meio cego?
 
VELHO Mas de todo,  por mui namorado modo,  me tendes,  minha senhora,  já cego de todo em todo.
 
MOÇA Bem está, quando tal lodo  se namora.
 
VELHO Quanto mais estais avessa,  mais certo vos quero bem.
 
MOÇA O vosso hortelão não vem?  Quero-me ir, que estou com pressa.
 
VELHO Oh fermosa!  Toda a minha horta é vossa.
 
MOÇA Não quero tanta franqueza.
 
VELHO Não pra me serdes piedosa,  porque, quanto mais graciosa,  sois crueza. 
 
Cortai tudo, sem partido,  senhora, se sois servida.  Seja a horta destruída,  pois seu dono é destruído.
 
MOÇA Mana minha!  Achastes vos a daninha, Porque não posso esperar. Colherei alguma coisinha,  somente por ir asinha  e não tardar.
 
VELHO Colhei, rosa, dessas rosas!  Minhas flores, colhei flores!  Quisera que esses amores  foram perlas preciosas  e de rubis  o caminho por onde is,  e a horta de ouro tal,  com lavores mui sutis,  pois que Deus fazer-vos quis  angelical.  Ditoso é o jardim  que está em vosso poder.  Podeis, senhora, fazer  dele o que fazeis de mim.
 
MOÇA Que folgura!  Que pomar e que verdura!  Que fonte tão esmerada!
 
VELHO N’água olhai vossa figura: 
 
vereis minha sepultura  ser chegada.
 
MOÇA (canta) “Cual es la niña  que coge las flores  sino tiene amores.
 
Cogia la niña  la rosa florida: El hortelanico  prendas le pedia  sino tienes amores.” (Assim cantando, colheu a MOÇA da horta o que vinha buscar e, acabado, diz) Eis aqui o que colhi;  vede o que vos hei de dar.
 
VELHO Que me haveis vós de pagar,  pois que me levais a mi?  Oh coitado!  Que amor me tem entregado  e em vosso poder me fino,  porque sou de vós tratado como pássaro em mão dado  de um menino!
 
MOÇA Senhor, com vossa mercê.
 
VELHO Por eu não ficar sem a vossa,  queria de vós uma rosa.
 
MOÇA Uma rosa? Para quê?
 
VELHO Porque são  colhidas de vossa mão,  deixar-me-eis alguma vida,  não isente de paixão  mas será consolação  na partida.
 
MOÇA Isso é por me deter: Ora tomai, e acabar! (Tomou o Velho a mão) Jesus! E quereis brincar?  Que galante e que prazer!
 
VELHO Já me deixais?  Eu não vos esqueço mais  e nem fico só comigo.  Oh martírios infernais!  Não sei por que me matais,  nem o que digo.
 
(Vem um Parvo, criado do Velho, e diz)
 
PARVO Dono, dizia minha dona  que fazeis vós cá té à noite?
 
VELHO Vai-te daí!  Queres que t’açoite?  Oh! Dou ao demo a intrujona  sem saber!
 
PARVO Diz que fosseis vós comer  e não demoreis aqui.
 
VELHO  Não quero comer, nem beber.
 
PARVO  Pois que haver cá de fazer?
 
VELHO  Vai-te daí!
 
PARVO  Dono, veio lá meu tio,  estava minha dona, então ela,  Foi-se-lhe o lume pela panela  Senão acertá-lo acario.
 
VELHO  Oh Senhora!  Como sei que estais agora  sem saber minha saudade! Oh!  Senhora matadora,  meu coração vos adora  de vontade!
 
PARVO Raivou tanto rosmear! Oh pesar ora da vida!  Está a panela cozida,  minha dona quer jantar.  Não quereis?
 
VELHO  Não hei de comer desta vez,  nem quero comer bocado.
 
PARVO  E se vós, dono, morreis?  Então depois não falareis  senão finado.  Então na terra nego jazer,  então, finar dono, estendido.
 
VELHO  Antes não fora eu nascido,  ou acabasse de viver!
 
PARVO  Assim, por Deus!  Então tanta pulga em vós,  tanta bichoca nos olhos,  ali, c'os finado, sós,   e comer-vos-ão a vós  os piolhos.  Comer-vos-ão as cigarras  e os sapos! Morrei! Morrei!
 
VELHO  Deus me faz já mercê  de me soltar as amaras.  Vai saltando!  Aqui te fico esperando;  Traze a viola, e veremos.
 
PARVO  Ah! Corpo de São FERNANDO! Estão os outros jantando,  e cantaremos?!...
 
VELHO  Fora eu do teu teor,  por não se sentir esta praga  de fogo, que não se apaga,  nem abranda tanta dor...  Hei de morrer.
 
PARVO  Minha dona quer comer;  Vinde, infeliz, que ela brada!  Olhai! Eu fui lhe dizer dessa rosa  e do tanger,  e está raivada!
 
VELHO  Vai tu, filho Joane,  e dize que logo vou,  que não há tempo que cá estou.
 
PARVO  Ireis vós para o Sanhoane!  Pelo céu sagrado,  que meu dono está danado!  Viu ele o demo no ramo.  Se ele fosse namorado,  logo eu vou buscar outro amo.
 
(Vem a Mulher do Velho e diz)
 
MULHER Hui! Que sina desastrada!  Fernandeanes, que é isto?
 
VELHO Oh pesar do anticristo.  Oh velha destemperada!  Vistes ora?
 
MULHER  E esta dama onde mora?  Hui! Infeliz dos meus dias! 
 
Vinde jantar em má hora:  por que vos meter agora  em musiquias?
 
VELHO Pelo corpo de São Roque,  vai para o demo a gulosa!
 
MULHER  Quem vos pôs aí essa rosa?  Má forca que vos enforque!
 
VELHO Não maçar!  Fareis bem de vos tornar  porque estou tão sem sentido;  não cureis de me falar,  que não se pode escusar  ser perdido!
 
MULHER  Agora com ervas novas  vos tornastes garanhão!...
 
VELHO Não sei que é, nem que não,  que hei de vir a fazer trovas.
 
MULHER  Que peçonha!  Havei, infeliz, vergonha  ao cabo de sessenta anos,  que sondes vós carantonha.
 
VELHO Amores de quem me sonha  tantos danos!
 
MULHER  Já vós estais em idade  de mudardes os costumes.
 
VELHO Pois que me pedis ciúmes,  eu vo-los farei de verdade.
 
MULHER  Olhai a peça!
 
VELHO Que o demo em nada me empeça,  senão morrer de namorado.
 
MULHER  Está a cair da tripeça  e tem rosa na cabeça  e embeiçado!...
 
VELHO Deixar-me ser namorado,  porque o sou muito em extremo!
 
MULHER  Mas vos tome inda o demo,  se vos já não tem tomado!
 
VELHO Dona torta,  acertar por esta porta,  Velha mal-aventurada! Saia, infeliz , desta horta!
 
MULHER  Hui, meu Deus, que serei morta,  ou espancada!
 
VELHO Estas velhas são pecados, Santa Maria vai com a praga!  Quanto mais homem as afaga, tanto mais são endiabradas! (Canta) “Volvido nos han volvido, volvido nos han: por uma vecina mala meu amor tolheu-lhe a fala volvido nos han.”
 
(Entra Branca Gil, alcoviteira, e diz)
 
ALCOVITEIRA Mantenha Deus vossa Mercê.
 
VELHO Olá! Venhais em boa hora!  Ah! Santa Maria! Senhora.  Como logo Deus provê!
 
ALCOVITEIRA  Certo, oh fadas!  Mas venho por misturadas,  e muito depressa ainda.
 
VELHO Misturadas preparadas,  que hão de fazer bem guisadas  vossa vinda! 
 
Justamente nestes dias,  em tempo contra a razão,  veio amor, sem intenção,  e fez de mim outro Macias  tão penado,  que de muito namorado  creio que culpareis  porque tomei tal cuidado;  e do velho destampado  zombareis.
 
ALCOVITEIRA  Mas, antes, senhor agora  na velhice anda o amor;  o de idade de amador  por acaso se namora;  e na corte  nenhum mancebo de sorte não ama como soía.  Tudo vai em zombaria!  Nunca morrem desta morte  nenhum dia. 
 
E folgo ora de ver  vossa mercê namorado,  que o homem bem criado  até à morte o há de ser,  por direito.  Não por modo contrafeito,  mas firme, sem ir atrás,  que a todo homem perfeito  mandou Deus no seu preceito:  Amarás.
 
VELHO Isso é o que sempre brado,  Branca Gil, e não me vai,  que eu não daria um real  por homem desnamorado.  Porém, amiga,  se nesta minha fadiga  vós não sois medianeira,  não sei que maneira siga,  nem que faça, nem que diga,  nem que queira.
 
ALCOVITEIRA  Ando agora tão ditosa  louvores a Virgem Maria! que logro mais do que queria  pela minha vida e vossa.  De antemão,  faço uma esconjuração  c’um  dente de negra morta  até que entre pela porta  que a exorta. qualquer duro coração. Dizede-me: quem é ela?
 
VELHO Vive junto com a Sé.
 
ALCOVITEIRA  Já! Já! Já! Bem sei quem é!  É bonita como estrela,  uma rosinha de abril,  uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil!...
 
VELHO Acudi-me Branca Gil,  que desmaio.
 
(Esmorece o Velho e a Alcoviteira começa a ladainha)
 
ALCOVITEIRA Ó precioso Santo Areliano,  mártir bem- aventurado, 
 
Tu que foste marteirado  neste mundo cento e um ano;  Ó São Garcia Moniz,  tu que hoje em dia  Fazes milagres dobrados,  dá-lhe esforço e alegria, Pois que és da companhia  dos penados!
 
Ó Apóstolo São João Fogaça,  tu que sabes a verdade,  Pela tua piedade,  que tanto mal não se faça!  Ó Senhor  Tristão da Cunha, confessor,  Ó mártir Simão de Sousa,  pelo vosso santo amor.  Livrai o velho pecador  de tal cousa! 
 
Ó Santo Martim Afonso de Melo,  tão namorado.  Dá remédio a este coitado, e eu te direi um responso com devoção! Eu prometo uma oração,  todo dia, em quatro meses, Por que lhe deis coração,  meu senhor São Dom João de Meneses!
 
Ó mártir Santo Amador  Gonçalo da Silva, vós,  que sois o melhor de nós,  Porfioso em amador  Apressurado,  chamai o martirizado  Dom Jorge de Eça a conselho!
 
Dois casados num cuidado,  socorrei a este coitado  deste velho!
 
Arcanjo São Comendador  Mor de Avis, mui inflamado, Que antes que fosseis nado,  fostes santo no amor! E não fique  o precioso Dom Anrique,  outro Mor de Santiago;  Socorrei-lhe muito a pique,  antes que demo repique  com tal pago.
 
Glorioso São Dom Martinho,  apóstolo e Evangelista,  passai o fato em revista,  Porque leva mau caminho, e dai-lhe espírito! Ó Santo Barão de Alvito,  Serafim do deus Cupido,  consolai o velho aflito,  Porque, inda que contrito,  vai perdido!
 
Todos santos marteirados,  socorrei ao marteirado,  que morre de namorado,  Pois morreis de namorados. Para o livrar,  as virgens quero chamar, Que lhe queiram socorrer, ajudar e consolar,  Que está já para acabar  de morrer.
 
Ó Santa Dona Maria 
Ó Anriques tão preciosa, Queirais-lhe ser piedosa,  por vossa santa alegria!  E vossa vista,  que todo o mundo conquista,  Esforce seu coração,  porque à sua dor resista,  Por vossa graça e benquista  condição. 
 
Ó Santa Dona Joana  de Mendonça, tão fermosa,  Preciosa e mui lustrosa  mui querida e mui ufana!  Dai-lhe vida  com outra santa escolhida  que tenho em voluntas mea;  Seja de vós socorrida  como de Deus foi ouvida  a Cananea. 
 
Ó Santa Dona Joana Manuel,  pois que podeis,  e sabeis, e mereceis  Ser angélica e humana,  socorrei!  E vós, senhora, por mercê,  Ó Santa Dona Maria  de Calataúd,  Por que vossa perfeição lhe dê  alegria. 
 
Santa Dona Catarina  de Figueiró, a Real, Por vossa graça especial  que os mais altos inclina!  E ajudará  Santa Dona Beatriz de Sá: Daí-lhe, senhora, conforto, porque está seu corpo já  quase morto.
 
Santa Dona Beatriz da Silva,  que sois aquela  mais estrela que donzela,  Como todo o mundo diz! E vós, sentida  Santa Dona Margarida de Sousa, lhe socorrei,  Se lhe puderdes dar vida,  porque está já de partida  sem porquê!
 
Santa Dona Violante de Lima,  de grande estima,  Mui subida, muito acima  de estimar nenhum galante! Peço-vos eu,  e a Dona Isabel de Abreu,  c’o siso que Deus vos deu,  Que não morra de sandeu  em tal idade!...
 
Ó Santa Dona Maria de Ataíde,  fresca rosa,  nascida em hora ditosa,  Quando Júpiter se ria! E, se ajudar  Santa Dona Ana, sem par, D’Eça, bem aventurada,  Podei-lo ressuscitar,  que sua vida vejo estar  desesperada.
 
Santas virgens, conservadas  em mui santo e limpo estado, Socorrei ao namorado, que vos vejais namoradas!
 
VELHO Oh! Coitado! Ai triste desatinado! Ainda torno a viver? Cuidei que já era livrado. ALCOVITEIRA  Que esforço de namorado  e que prazer!  Que hora foi aquela!
 
VELHO Que remédio me dais vós?
 
ALCOVITEIRA  Vivereis, prazendo a Deus,  e casar-vos-ei com ela.
 
VELHO É vento isso!
 
ALCOVITEIRA  Assim seja o paraíso.  Que isso não é tão extremo!  Não curedes vós de riso,  que eu farei tão de improviso  como o demo. 
 
E também doutra maneira  se eu me quiser trabalhar.
 
VELHO Ide-lhe, logo, falar  e fazei com que me queira,  pois pereço;  e dizei-lhe que lhe peço  se lembre que tal fiquei  estimado em pouco preço,  e, se tanto mal mereço,  não no sei! 
 
E, se tenho esta vontade,  que não se deve enojar;  mas antes muito folgar  matar o de qualquer idade.  E, se me aborrece Dizei-lhe que mal desama, porque minh’alma, que a ama não envelhece.
 
ALCOVITEIRA  Sus! Nome de Jesus Cristo!  Olhai-me pela cestinha.
 
VELHO Tornai logo, fada minha,  que eu pagarei bem isto.
 
(Vai-se a Alcoviteira, e fica o Velho tangendo e cantando a cantiga seguinte)
 
Pues tengo razón, señora, Razón es que me laa oiga!
 
(Vem a Alcoviteira e diz o Velho)
 
Venhais em boa hora, amiga!
 
ALCOVITEIRA  Já ela fica de bom jeito;  mas, para isto andar direito,  é razão que vo-lo diga:  eu já, senhor meu, não posso, vencer uma moça tal sem gastardes bem do vosso.
 
VELHO Eu lhe pagarei em grosso.
 
ALCOVITEIRA  Aí está o feito nosso,  e não em tal. 
 
Perca-se toda a fazenda,  por salvardes vossa vida!
 
VELHO Seja ela disso servida,  que escusada é mais contenda.
 
ALCOVITEIRA  Deus vos ajude,  e vos dê mais saúde,  que assim o haveis de fazer,  que viola nem alaúde  nem quantos amores pude  não quer ver. 
 
Falou-me lá num brial  de seda e uns trocados...
 
VELHO Eis aqui trinta cruzados,  Que lhe façam mui real!
 
(Enquanto a Alcoviteira vai, o Velho torna a prosseguir o seu cantar e tanger e, acabado, torna ela e diz)
 
ALCOVITEIRA Está tão saudosa de vós  que se perde a coitadinha!  Há mister uma vasquinha e três onças de retrós.
 
VELHO Tomai.
 
ALCOVITEIRA  A benção de vosso pai.  (Bom namorado é o tal!)  pois gastais, descansai.  Namorados de al! Ai!  Não são papa nem são sal.
 
Ui! Tal fora, se me fora!  Sabeis vós que me esquecia?  Uma amiga me vendia  um broche de uma senhora.  Com um rubi  para o colo, de marfim,  lavrado de mil lavores,  por cem cruzados. 
 
VELHO Ei-los aí! 
 
ALCOVITEIRA Isto, má hora, isto si  são amores! (Vai-se o Velho torna a prosseguir a sua música e, acabada, torna a Alcoviteira e diz) Dei, má-hora, uma topada.  Trago as sapatas rompidas  destas vindas, destas idas, e enfim não ganho nada.
 
VELHO Eis aqui  dez cruzados para ti.
 
ALCOVITEIRA  (Começo com boa estreia!)
 
(Vem um Alcaide com quatro beleguins, e diz)
 
ALCAIDE Dona, levantai-vos daí!
 
ALCOVITEIRA  Que me quereis vós assim?
 
ALCAIDE  À cadeia!
 
VELHO Senhores, homens de bem,  escutem vossas senhorias.
 
ALCAIDE  Deixai essas cortesias!
 
ALCOVITEIRA  Não hei medo de ninguém,  viste ora!
 
ALCAIDE  Levantai-vos daí, senhora,  daí ao demo esse rezar!  Quem vos dez tão rezadora?
 
ALCOVITEIRA  Deixar-me ora,  na má-hora, aqui acabar.
 
ALCAIDE  Vinde da parte de el-Rei!
 
ALCOVITEIRA  Muita vida seja a sua.  Não me leveis pela rua;  deixar-me vós, que eu me irei. BELEGUINS  Sus! Andar!
 
ALCOVITEIRA  Onde me quereis levar,  ou quem me manda prender?  Nunca haverdes de acabar  de me prender e soltar?  Não há poder!
 
ALCAIDE  Nada se pode fazer.
 
ALCOVITEIRA  Está já a carocha aviada?!...  Três vezes fui já açoitada,  e, enfim, hei de viver.
 
(Levam-na presa e fica o Velho dizendo)
 
VELHO Oh! Que má- hora!  Ah! Santa Maria! Senhora!  Já não posso livrar bem.  Cada passo se empiora!  Oh! Triste quem se namora  de alguém!
 
(Vem uma Mocinha à horta e diz)
 
MOÇA Vedes aqui o dinheiro?  Manda-me cá minha tia,  que, assim como no outro dia,  lhe mandeis a couve e o cheiro.  Está pasmado?
 
VELHO Mas estou desatinado.
 
MOÇA  Estais doente, ou que haveis?
 
VELHO Ai! Não sei! Desconsolado,  que nasci desventurado!
 
MOCINHA  Não choreis!  Mais mal fadada vai aquela!
 
VELHO Quem?
 
MOÇA  Branca Gil.
 
VELHO Como?
 
MOÇA  Com cem açoites no lombo,  uma carocha por capela,  e atenção! 
 
Leva tão bom coração, como se fosse em folia.  Que pancadas que lhe dão! 
 
VELHO E o triste do pregão  Por que dizia:
 
MOÇA “Por mui grande alcoviteira  e para sempre degredada”,  vai tão desavergonhada,  como ia a feiticeira.  E, quando estava,  uma moça que passava  na rua, para ir casar,  e a coitada que chegava  a folia começava  de cantar:
 
ua moça tão fermosa  que vivia ali à Sé...
 
VELHO Oh coitado! A minha é!
 
MOÇA Agora, má hora e vossa!  Vossa é a treva.  Mas ela o noivo leva.  Vai tão leda, tão contente,  uns cabelos como Eva;  por certo que não se atreva  toda a gente! 
 
O Noivo, moço polido,  não tirava os olhos dela,  e ela dele. Oh que estrela!  É ele um par bem escolhido!
 
VELHO Oh roubado,  da vaidade enganado,  da vida e da fazenda!  Oh velho, siso enleado!  Quem te meteu desastrado  em tal contenda?  Se os jovens amores,  os mais têm fins desastrados,  que farão as cãs lançadas  no conto dos amadores?  Que sentias,  triste velho, em fim dos dias?  Se a ti mesmo contemplaras,  souberas que não vias,  e acertaras. 
 
Quero-me ir buscar a morte,  pois que tanto mal busquei.  Quatro filhas que criei  eu as pus em pobre sorte.  Vou morrer.  Elas hão de padecer,  porque não lhe deixo nada;  da quantia riqueza e haver  fui sem razão despender,  mal gastada.

 

 

                                                                  Gil Vicente

 

 

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