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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VERÃO ANTES DA QUEDA / Doris Lessing
O VERÃO ANTES DA QUEDA / Doris Lessing

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VERÃO ANTES DA QUEDA

 

Em casa

 

Uma mulher estava parada na escada dos fundos, os braços cruzados, esperando.

Pensando? Ela teria dito que não. Estava tentando apo­derar-se de alguma coisa, ou desnudá-la, de forma que pudesse olhá-la e defini-la; agora, já fazia algum tempo que vinha experimentando idéias, como se fossem diversos vestidos tirados de cabides. Deixava palavras e frases, batidas como cantigas de ninar, deslizarem suavemente pela língua: pois, com relação às experiências cruciais, a tradição atribui determinadas atitudes, e elas são bastante estereotipadas. Ah, sim, primeiro amor!... O crescimento é um processo quase sempre doloroso!... Meu primeiro filho, sabe... Mas eu estava apaixonada!... O ca­samento é um compromisso... Não sou mais tão jovem quan­to eu era antes. É claro que a escolha de uma dessas frases, respeitadas através dos tempos, em lugar de outra raramente tem relação com um sentimento pessoal, é mais provável que se ligue ao ambiente social de origem, ou às pessoas com quem se está numa determinada ocasião. Você terá de deduzir os sentimentos reais de uma pessoa com relação a uma coisa a partir de um sorriso, que ela não sabe que está em seu rosto, a partir da maneira como a amargura contrai os músculos no canto de uma boca, ou pela maneira como se permite que o ar deixe os pulmões depois de: Eu não gostaria de ser criança de novo! Essas frases têm tamanho poder, todas postas em circu­lação para serem usadas como se tivessem sido empregadas por uma campanha de publicidade especialmente eficiente, que é provável que muitos continuem repetindo A juventude é a melhor época de nossas vidas ou O amor é toda a existência de uma mulher, até que eles sé apanhem, casualmente, na frente de um espelho, enquanto estão dizendo alguma coisa desse gênero, ou sejam suficientemente rápidos para perceber a reação no rosto de um amigo.

A mulher estava parada no degrau da porta dos fundos de sua casa, os braços cruzados esperando que a água na chaleira fervesse.

Faltara luz durante a maior parte do dia, por causa da greve. Tim, o seu caçula, e Eileen, a filha, tinham ido cedo, de carro, até o campo, juntado lenha espalhada na floresta de Epping e — adorando cada minuto daquilo — tinham feito uma fogueira no cascalho da passagem e armado sobre a fo­gueira um tripé feito de pedaços de ferro, encontrados nos fundos dá garagem. Aquela fogueira, o cozinhar no seu fogo, o olhar para ela e as brincadeiras a respeito daquilo foram o foco de diversão da família durante o dia inteiro. Entretanto, a mulher tinha achado aquilo tudo bastante irritante. A chaleira levara vinte minutos apenas para atingir o ponto de asso­biar; ela não conseguia lembrar-se de ter ouvido uma chaleira assobiando há anos. A eletricidade fazia com que a água pas­sasse direto da imobilidade para o turbilhão e o assobio estava completamente ultrapassado...

Será que ela havia sido insensível? Talvez tanto Tim como Eileen — que afinal já estavam crescidos, com dezenove e vinte e dois anos — não se tivessem divertido tanto com as pequenas realizações do dia quanto parecera; será que estiveram fingindo por uma questão de aparência? O comportamento deles será que havia sido de fato o equivalente a uma daquelas velhas frases, uma convenção que as pessoas não sabiam como abandonar em favor da verdade — o que quer que aquilo fosse?

Exatamente como ela mesma.

A verdade era que ela estava ficando cada vez mais desagradavelmente consciente de que não apenas as coisas que ela dizia, mas também a grande maioria das coisas que pensava, eram tiradas de um cabide e experimentadas, mas que o que ela, de fato, sentia era uma outra coisa completamente diferente.

A mulher descruzou os braços, deu dois passos em dire­ção ao engenho absurdo no meio de seu caminho de cascalho, empurrou mais alguns gravetos para baixo da chaleira que estava pendurada num pedaço de arame vergado, preso no tripé, e escutou: será que o tom do assobio da chaleira mudara alguma coisa? Achou que sim. Se fosse haver um corte de eletricidade no dia seguinte, conforme ameaçavam, então seria sensato arranjar um fogareiro, ou alguma coisa parecida: aquela enge­nhoca de escoteiros estava indo muito bem, mas se chovesse... a greve provavelmente continuaria por algum tempo, diziam. Aquela série de cortes de eletricidade viera mesmo muito de­pressa, depois do último. Parecia realmente que as crises ener­géticas — aquecimento, eletricidade, combustível — estavam destinadas a se tornar mais freqüentes; será que seria prudente fazer um estoque? Talvez Tim e Eileen tivessem razão, um estoque de lenha poderia ser uma boa idéia.

A mulher voltou para a escada dos fundos, encostou-se contra a parede e, novamente, cruzou os braços.

Havia os acontecimentos públicos, ou da comunidade — guerras, greves, enchentes, terremotos; os que são considerados como "atos de Deus". Havia a impressão que se difundia, irracional ou não, de que aqueles acontecimentos, outrora vio­lentos e excepcionais (ou será que alguma vez realmente haviam ocorrido, será que aquilo era apenas falsa memória?), se esta­vam colocando em primeiro lugar na experiência de todo mun­do, como se um ar que outrora tivesse sido a atmosfera de uma estrela distante e cataclísmica tivesse decidido envolver o nosso pobre planeta. As experiências cruciais, quando se parava para pensar nelas, eram cada vez mais numerosas, envol­vendo uma quantidade maior de gente; invasão, guerra, guerra civil, epidemia, fome, enchente, tremor, envenenamento do solo, da comida e do ar. Para essas pessoas as atitudes determina­das ainda eram mais estereotipadas. Nenhuma ia muito além de: Nós devíamos fazer alguma coisa a respeito disso. Ou: Oh, ai de mim! Não há muitas nuanças possíveis para: Toda a mi­nha família morreu no campo de concentração, ou Quatro dos meus filhos morreram de fome, ou Minha irmã e seu filho foram mortos pelos soldados. Mas realmente parecia que os este­reótipos para os acontecimentos públicos eram mais honestos do que os pessoais. Oh, ai de mim! será que era isso?

Notou que a chaleira já não fazia tanto barulho, e estendeu o braço para o cômodo atrás dela, a cozinha, para apanhar um bule de café bem grande, de porcelana, já com o pó de café dentro. Ficou com aquilo na mão, perto da fogueira, esperando que o vapor começasse a chocalhar a tampa da chaleira.

Era um total absurdo ver as coisas em termos de auges e de crises: os acontecimentos pessoais, da mesma forma que os públicos, eram casos de longo prazo, afinal. Eles se vão desenvolvendo... É depois de pelo menos meses, mas geralmente anos, que uma pessoa dirá: Meu Deus, toda a minha vida se modificou, falando a respeito de lima paixão de amor ou de ódio, de um casamento, de uma experiência de trabalho exte­nuante. Minha vida se modificou porque eu me modifiquei.

Agora o vapor agia energicamente na tampa da chaleira e jorrava do bico.

Ela segurou a alça da chaleira com o pegador de panela e despejou a água sibilante e perigosa em cima do café. Colocou a chaleira no chão de um dos lados da fogueira, mas não sobre a grama, pois ela ficaria com uma mancha redonda amarelada, e afastou alguns gravetos parcialmente queimados do meio da fogueira; se chovesse, tinha de se lembrar de colocá-los, bem como a madeira que não fora usada, num lugar coberto. Ela não era nenhuma escoteira para saber acender uma fogueira com madeira molhada.

Apanhando a chaleira com uma das mãos e o bule de café com a outra, ela saiu do quintal em direção à cozinha.

Passei por uma provação terrível, fui triturado como um grão numa moenda... Estas coisas não eram ditas ou sentidas sem uma certa satisfação. Por acaso aquilo era um fato extraordinário? O sentimento de realização era uma coisa extraordi­nária? Pois, afinal, era sentido tanto pelas pessoas que faziam parte do grupo (relativamente pequeno) de habitantes do mundo que eram seguidores da máxima segundo a qual uma vida hu­mana não é nem um pouco mais importante do que a de um inseto como por aquelas que seguiam as velhas crenças, segundo as quais é importante o que fazemos porque somos importantes aos olhos de um deus. Ou deuses. Mas por que alguém se im­portaria com o fato de que ele, ela, tenha mudado, tenha apren­dido, amadurecido, crescido, se ele, ou ela, é um inseto, ainda que uma borboleta? Pois não há dúvida alguma mesmo de que, de fato, persiste o sentimento, e é provavelmente o mais pro­fundo que temos, de que o mais importante é que aprendemos à medida que vivemos. Será que este sentimento deveria ser atribuído ao hábito, algo que restou do passado, de tempos mais primitivos? Ao amor-próprio do inseto? Mas estava ali, quanto a isso não havia a menor dúvida. "Deus" tendo sido banido, declarado morto, ou não. A quem se espera que um inseto preste contas?

Nós somos o que aprendemos.

Freqüentemente, leva muito tempo e é muito doloroso.

Infelizmente, também não havia dúvida de que uma por­ção de tempo, uma porção de sofrimento se passavam para que se aprendesse muito pouco...

Ela estava realmente sentindo aquilo? Sim, estava.

Era porque ela estava deprimida? Estava deprimida? Provavelmente. Estava com alguma coisa, estava sentindo alguma coisa, bastante intensamente, que não conseguia definir...

A mulher pôs o bule numa bandeja, já preparada, com xícaras, pires, colheres, coador, e apanhou a bandeja; antes de levá-la para fora do cômodo, tornou a olhar para uma mesa onde os pratos sujos da refeição do meio-dia continuavam empilhados. Ali também havia louça do café da manhã. Será que ela devia pedir a Tim para tornar a acender a fogueira, pôr a chaleira para ferver de novo, e chamá-la quando houvesse água suficiente para lavar tudo? Não, era melhor não o fazer, não no estado de espírito em que ele se encontrava; seria me­lhor que ela fizesse tudo, ela mesma sozinha, mais tarde.

Uma mulher saiu por uma porta lateral dando para um gramado que precisava ser aparado, atraentemente salpicado de margaridas, e dirigiu-se a uma árvore de seu jardim. Esta mulher era Kate Brown; para ser exata, Catherine Brown ou a Sra. Michael Brown. Ela levava a bandeja com cuidado, e estava pensando na lavagem da louça enquanto continuava com o seu inventário pessoal, a sua contabilidade... ela desejava que, qualquer que fosse o estágio da vida em que estivesse naquele momento, pudesse ser ultrapassado depressa, pois lhe estava parecendo interminável. Se a vida tinha de ser encarada em termos de grandes momentos, ou de êxtase, então nada lhe havia acontecido há muito tempo; e ela não podia esperar por nada além de um afastamento gradual da totalidade das ati­vidades domésticas, enquanto envelhecia.

Às vezes, quando se tem sorte, um processo, ou um está­gio, de fato se acelera. E, para Kate, aquele verão iria fazer retornar uma dessas fases reduzidas, intensificadas e aceleradas.

Que experiência iria ela viver? Nada de muito mais do que, simplesmente, o seu envelhecimento: aquela herança e repetição da ação do crescimento. Acontece com todo mundo, é claro... Ah, puxa, o tempo voa!... Antes que a gente per­ceba, a vida já passou... A maturidade é tudo. E assim por diante. Mas no caso de Kate não seria de maneira alguma um processo que duraria uma década ou duas, quase despercebido enquanto se desenvolvia, exceto nas tentativas desesperadas para conter o turbilhão — pintar o cabelo, manter o peso baixo, seguir a moda com cuidado de forma a ser elegante, mas não um gato passando por lebre. O envelhecimento, para quase todo mundo a menos que provocado por uma desgraça, a terra desaparecendo sob os pés da gente, a água inundando uma cidade, bombas destruindo nossos filhos e fulminando o coração da gente a ponto de torná-lo indiferente à vida —, o envelhe­cimento é uma questão de anos. Você é jovem, e depois você é de meia-idade, mas é difícil determinar o momento da passa­gem de um estágio para o seguinte. Então você está velha, mas dificilmente sabe quando foi que isto aconteceu. Deram-se mudanças ah, sim, mudanças vitais nas suas atitudes para com as pessoas à sua volta, mas você mal se apercebe delas, porque o gelo avançou tão lentamente até lá embaixo no vale. É alguma coisa assim para a maioria das pessoas: Creio que já não sou mais tão jovem quanto antes. Mas Kate Brown ia acabar com a coisa toda em poucos meses. Porque, embora tudo parecesse tão pessoal, e dirigido para ela a sua paciência, o seu bom humor, o seu tempo —, na realidade, não seriam as pressões da outra esfera, da esfera pública, avançando sobre a sua vida simples que davam à experiência que ela viveu a sua premência? Por mais provável que pudesse ser, os acontecimentos do verão não seriam moldados por quaisquer virtudes ou qualidades que ela pudesse ter.

Quando tudo estivesse acabado, certamente ela não pre­feriria que tivesse sido de outra forma: entretanto, ela não poderia tê-lo escolhido por si mesma, por antecedência, pois não tinha a experiência necessária para escolher, nem a imaginação. Não, ela não podia querer o que lhe ia acontecer, embora de fato tivesse ficado de pé sob a sua árvore, a bandeja nas mãos, pensando: "Continua sempre a mesma coisa! É isto o que está errado: deve haver alguma coisa que eu poderia estar vendo agora, alguma coisa que eu poderia estar compreendendo agora, alguma linha de ação que eu pudesse escolher... Escolher? Quando por acaso eu escolho? Alguma vez na minha vida eu escolhi?"

Uma mulher estava de pé debaixo de uma árvore como ela poderia ter feito em qualquer época durante todas as últi­mas centenas de anos segurando uma bandeja cheia. Colo­cou a bandeja numa mesa de jardim, feita de algum material inventado na última década. A mesa parecia ser de ferro, mas era tão leve que poderia ser erguida com dois dedos, e balanceada de forma a não se virar, se um peso fosse posto só de um lado.

Ela não considerava a mesa uma escolha; tinha sido escolhida para ela, como as xícaras de plástico, tão parecidas com porcelana.

Caminhou de volta para o meio do gramado e, inspirando antes para gritar para as janelas superiores da casa, teve consciência do que seria visto quando o seu marido pusesse a cabeça para fora dizendo: "Já vou indo!"

Uma mulher de vestido branco, sapatos brancos, uma echarpe cor-de-rosa no pescoço, de pé na grama.

Agora ali havia uma margem de escolha, consciente, deliberada: a aparência dela era escolhida, um discernimento re­quintado, pois era apropriada para aquele bairro de classe média e para sua posição nele, como esposa do seu marido. E, é claro, como a mãe de seus filhos.

O vestido era de uma confecção chamada Jolie Madame, ficava-lhe bem e era discreto. Ela estava usando sapatos e meias. O cabelo — e agora chegamos ao ponto onde havia sido usada mais energia na escolha — estava penteado em ondas grandes e suaves em volta de um rosto onde havia permitido que ficassem à mostra umas poucas sardas no nariz e no alto das maçãs. Seu marido sempre dizia que gostava delas ali. O cabelo puxava para o ruivo — não um ruivo muito berrante. Ela era uma mulher bonita, sadia e útil.

Estava de pé no gramado, protegeu os olhos do sol, e gritou para o alto:

Michael! Michael! Café!

Um rosto indistinto, de trás das vidraças que ofuscavam, refletindo o sol, respondeu:

Já vou indo!

Uma mulher, vestida de maneira apropriada para uma tarde com a família, tornou a atravessar o gramado, mas com cuidado, de forma a impedir que a grama sujasse seus sapatos. Sua própria escolha teria sido ficar descalça, tirar as meias, e vestir alguma coisa como um mu-mu, ou um sari, ou um sarongue — alguma coisa nesse gênero —, com o cabelo liso até os ombros.

Ela não permitia que sua aparência florescesse, porque observara logo no início da adolescência dos filhos o quanto detestavam que ela desse rédeas a sua própria natureza. Mary Finchley, do outro lado, vestia-se como se não tivesse filhos e não fosse casada: seus filhos odiavam isso e o demonstravam de mil maneiras.

Embora Kate sempre concordasse com Mary quando ela dizia "Por que é que haveríamos de nos colocar numa posição de inferioridade? Não se deve permitir que as crianças sejam tiranas", na realidade ela sempre o fizera, sempre se colocara numa posição de inferioridade. Mas, pelo menos aparentemente, nem por isso seus filhos eram melhores do que os de Mary Finchley.

Kate sentou-se debaixo da árvore de forma que seu corpo ficou na sombra, e suas pernas estendidas sob o sol, como se estivesse sem meias. Ficou examinando sua grande casa quadrada no imenso jardim. Fazia aquilo como alguém que se estivesse despedindo, mas seria apenas porque ela e o marido ultimamente vinham dizendo que, agora que as crianças logo estariam adultas, não teria chegado a hora de começarem a pensar em comprar uma casa menor para eles? Um apartamento? Podiam comprar uma casa no campo e dividi-la com amigos talvez os Finchley.

Kate pensava nisso com freqüência, mas como se fosse uma coisa ainda muito remota.

No entanto já se estava no mês de maio, o verão inglês pálido e vacilante, e, já antecipando o outono, havia um hiato na vida da família, aquele organismo que pulsava tranqüila­mente na parte sul de Londres, Blackheath, para ser mais exata. Daquele subúrbio, todos os anos, cada vez mais, à medida que as crianças se iam tornando adultas era como se aquela unidade, ou criatura ou organismo, explodisse expandindo-se e espalhando-se cada vez para mais longe pelo globo. Era como uma exalação anual, que começava no fim da primavera com uma inspiração em setembro.

No ano passado, Michael, que era um neurologista bastan­te conceituado, tinha ido para os Estados Unidos em julho, para uma conferência, e aproveitara a oportunidade para tra­balhar, durante três meses, num hospital em Boston, só tendo voltado em outubro. Kate, que tinha ido com o marido para a conferência, voltara por motivos de família, indo visitá-lo, de novo, em setembro seus movimentos sempre de acordo com os das crianças, como, é claro, eles tinham de estar. Elas esta­vam indo, e vindo, para e de diversas partes da Europa, durante todo o verão.

Neste ano, Michael deveria visitar o mesmo hospital em Boston, durante quatro meses, fazendo intercâmbio com um colega de lá. O filho mais velho, Stephen, agora com vinte e três anos e no último ano da universidade, pretendia seguir numa viagem de quatro meses pelo Marrocos e a Argélia, com amigos. Eileen, de vinte e dois, acompanharia o pai, para visitar amigos que conhecera na Espanha numa excursão de camping, no ano retrasado. O segundo filho, James, fora convidado para visitar uma escavação arqueológica no Sudão, antes de começar a universidade naquele outono. Quanto a ela mesma, decidira não ir para os Estados Unidos de novo. Em parte, porque não queria tolher as atividades da filha, o que ela sabia que faria; por outro lado, seria tão dispendioso se três pessoas fossem, e também havia a questão de se ela não estaria perturbando as atividades do marido... para acompanhar esse pensamento havia um sorriso apropriado, quase uma careta, talvez con­veniente para as palavras: Em qualquer casamento, tem de haver o dar e o receber; ela estava plenamente consciente de que não se sentia inclinada a examinar aquela questão em profundidade.

Por outro lado, Tim, embora já com dezenove anos, e muito encorajado por todo mundo a ser independente, não tinha planos de viajar para lugar algum. Ele era, sempre tinha sido, o difícil ou o problemático. A casa na zona sul de Londres seria, portanto, mantida em funcionamento para o seu benefício. Ela, a mãe, a faria funcionar. Para ela, os próximos meses se esten­diam diante de si como o haviam feito durante muitos verões anteriores. Ela seria uma base para os membros da família, ou voltando da universidade para casa, ou aparecendo para passar um dia, ou uma semana, a caminho de algum outro lugar; faria os trabalhos domésticos para eles, seus amigos, e os amigos de seus amigos. Estaria disponível, à disposição de todo mundo.

Esperava por aquilo com ansiedade, não apenas a quan­tidade de gente, mas também o trabalho de cuidar de tudo, o estar consciente de sua eficiência; também esperava com ansiedade por um verão de trabalho de jardinagem muito especial. Quando eles — ela e Michael — de fato deixassem aquela casa, como um casal que se retira da vida ativa, não seria da casa que sentiria saudade, mas do jardim, que era tão encantador quanto um jardim inglês pode ser, depois de vinte anos ou mais de devoção. Não dava a impressão de que tivesse sido planejado pelo homem, mas sim de que ele tivesse decidido crescer em gramados e moitas de açucenas, caramanchões de roseiras e pequenos trechos de folhagens. Os passarinhos ali cantavam durante o ano inteiro. O vento soprava nele cari­nhosamente. Não havia um único pedacinho de terra que Kate não sentisse que conhecia pessoalmente, que não o tivesse feito — é claro que com a ajuda das minhocas e da umidade.

Ela ficou sentada, aspirando o perfume de rosas, lavanda, tomilho, e observou o marido sair da casa em companhia do convidado deles.

Era Alan Post, que nada tinha a ver com medicina, mas era um funcionário público da esfera internacional: trabalhava para uma das entidades associadas às Nações Unidas. Ele e o Dr. Michael Brown se tinham conhecido na sala de espera do aeroporto de Los Angeles, quando o avião de ambos atrasara por causa da neblina. Tinham jogado xadrez, bebido uísque, trocado convites. Uma semana atrás, os dois homens se haviam encontrado por acaso na Goodge Street, e então tinham almo­çado juntos. Michael convidara Alan para um almoço familiar de domingo.

Se não tivesse havido os cortes de eletricidade, os Brown teriam oferecido a refeição inglesa tradicional dos domingos, não por eles mesmos, uma vez que já não seguiam mais os padrões antigos, mas em benefício do convidado: com bastante freqüência a família havia feito brincadeiras com o fato de que, quando recebiam seus muitos amigos estrangeiros, serviam pratos tradicionais, como camponeses, na dependência do fluxo turístico. Mas, naquele dia, Eileen tinha feito a comida, com a ajuda de Tim, antes de sair correndo para algum lugar. Ela preparara uma sopa turca de pepino, fria, um shish kebahfeito na fogueira e um sorvete de abricó — a geladeira era a quero­sene. Eles tinham bebido muita sangria, cuja receita fora con­seguida pelo segundo filho, no ano passado, na Espanha.

Michael e Alan Post sentaram-se e continuaram a conversa que haviam mantido durante todo o almoço, e depois, lá em cima, no escritório. Ela serviu o café nas lindas xícaras de plástico que usava no jardim desde que o cachorro do vizinho havia saltado para o seu jardim, na perseguição de um outro cachorro, e destruído uma bandeja inteira cheia da sua melhor porcelana. Depois de lhes servir o café e os biscoitos de choco­late, ela fixou um sorriso atento no rosto, como uma sentinela, atrás do qual podia cultivar seus próprios pensamentos. Na realidade estava pensando no marido.

Sempre que o via daquela maneira, com um colega, especialmente os que eram estrangeiros, era como se ele se tivesse distanciado dela. Isto não ocorria porque ele fosse uma dessas pessoas cuja atitude se altera dependendo de com quem elas estão de maneira nenhuma, mas com Alan Post parecia que uma atmosfera maior, mais refinada, soprava em torno dele, que ele se estava expandindo, parecia que estava a ponto de alçar vôo... No ano anterior, nos Estados Unidos, quando ela estivera com ele, se sentira parte da expansão, do cresci­mento; sentira como se, durante todos aqueles anos de casa­mento, aquele homem estivesse mantendo na reserva algum potencial que nunca encontraria lugar para se desenvolver no seio da família: eles haviam discutido o que ela sentira, é claro. Ficara um pouco esperançosa de que ele pudesse dizer que, às vezes, havia sentido a mesma coisa a respeito dela, mas não disse. Naquele momento ela pensava que, naquele ano, ele estaria sem a esposa e apenas intermitentemente com a filha, durante quatro meses; o sorriso apropriado, seco, irô­nico, estava outra vez no rosto dela. Ela sabia que estava lá, tinha, como costumam dizer, "praticado" aquele sorriso, ou os sentimentos que ele representava. Se aquela tivesse sido a ocasião apropriada -— uma pergunta de uma mulher mais jovem, por exemplo (não de uma mulher da sua idade, ela sabia, não de Mary Finchley) —, ela poderia ter-se recostado na cadeira, permitido que seus olhos se velassem com ironia, e dito: "Talvez todas nós atribuamos importância demasiada a esse tipo de coisas, quando somos jovens. . . os pequenos casos, sabe, eles não têm importância alguma num casamento verdadeiro!" A autocongratulação acompanhava aquele sorriso que era quase uma careta, ela sabia disso; também alívio, aquele de uma pessoa ao livrar-se com sucesso de uma arma­dilha, de um elemento de perigo... Sentada sob a árvore estival, levantando o bule de café para mostrar aos homens que ainda havia bastante, sorrindo, ela se ouvia pensar: "Estou dizendo a mim mesma as mais terríveis mentiras! Horrível! Por que é que eu faço isso? Existe alguma coisa aqui que eu simplesmente não me permito ver. Às vezes, eu me aproximo de Mary, mas nunca de nenhuma outra pessoa. Agora, olhe para a coisa inteira, tente e apodere-se dela, não continue in­ventando todas essas atitudes, essas histórias pare de tirar os mesmos velhos vestidos do cabide..." Ela estava ouvindo, agora com atenção, o que os homens diziam. Parecia que lhe dizia respeito, de alguma maneira, que a conversa já lhe dizia respeito há alguns minutos, mas ela não estivera escutando.

A conferência, a que Alan Post viera a Londres assistir, estava em dificuldades. Ou melhor, um dos comitês da conferência: a organização, sob cujo patrocínio as "confabula­ções" e as reuniões dos comitês se estavam realizando, cha­mava-se Alimentação Mundial, e era sua função saber o que a humanidade comia. Ou não comia. Devido a uma série de infortúnios — gripe, uma bacia fraturada, a morte de um homem em Lisboa —, quando os membros do comitê já estavam sentados em volta da mesa, esperando para dar início às deliberações, descobriu-se que não havia tradutores. Ora, nada era mais fácil do que encontrar tradutores fluentes em francês, alemão, espanhol, mas era difícil encontrar pessoas que falas­sem português tão fluentemente como inglês e que fossem sufi­cientemente bem preparadas para aquele trabalho difícil. Tinha de ser português, pois aquele subcomitê trataria de café, e no Brasil, o maior produtor de café do mundo, falava-se portu­guês. O comitê suspendera suas atividades, até que tradutores de português fossem contratados. Dois já haviam sido encon­trados, precisava-se de mais dois: tanto Alan Post como Michael olhavam para Kate, esperando que ela dissesse que ficaria satisfeita em ser a terceira. Há três anos, Kate tinha datilogra­fado um livro para esclarecimento do público em geral, sobre o plantio e a comercialização do café, para fazer um favor a um amigo que escrevia mal a máquina. Por causa disso, ela possuía conhecimentos consideráveis a respeito daquela mer­cadoria. Além disso, ela sempre fora ótima em línguas. Seus conhecimentos de francês e italiano eram bons; seu português era perfeito, pois, por um lado, era descendente de portugueses. Acontecera que ela havia acabado a escola cedo, dada sua inte­ligência, tendo, porém, de esperar três anos até que pudesse ingressar na universidade — para onde, no final, acabou não indo, tendo em vez disso, decidido casar-se com Michael. Ela passara um ano em Lourenço Marques com o avô, que era um homem erudito. Lá, só se falava português. Sendo filha de João Ferreira, um português que se naturalizara inglês e que lecionava literatura portuguesa em Oxford, nunca havia sido mais do que agradecidamente cônscia de que a sua ascendência continha tesouros; seu avô é que os apresentara a ela, de forma que ficara impregnada de literatura portuguesa, de poesia por­tuguesa, impregnada do "espírito da língua".

Que mais ela havia aprendido durante aquele ano na cidade à beira do oceano Índico, um ano inteiramente devotado ao lazer? Para começar, seu avô era antiquado, e suas atitudes com relação às mulheres, muito severas. Kate jamais pensaria em brigar com um velho a quem amava; e, além disso, para que se incomodar? Ela só estava ali por um período tão curto! Mas durante aquele período nunca ficara sozinha com um homem, fora protegida de experiências desagradáveis, literárias ou reais, e havia experimentado uma atmosfera nada desagradável, com­posta de elementos tão estranhos a ela que tivera que identificar cada um separadamente. Era protegida e olhada com descon­fiança. Era considerada preciosa e desprezada. Ficara lisonjeada com a deferência demonstrada a cada desejo seu — mas sabia que ela, a coisa fêmea, ocupava uma posição inferior, cuidado­samente definida, na vida de seu avô, como a esposa dele havia ocupado, e as suas filhas. Sua imagem de si mesma durante aquele período: uma moça frágil como uma camélia, com uma pele muito branca e o cabelo vermelho-escuro, usando um ves­tido de linho branco bordado, desenhado com o objetivo de exibir e esconder o pescoço e os ombros, sentada numa varanda, numa cadeira de balanço, que ela empurrava lentamente para a frente e para trás, com um pé que, ela tomara consciência disso, era um objeto tão sensual que os rapazes presentes não podiam manter longe dele nem seus olhos nem suas fantasias. Ela se abanava com um leque de seda bordada, com um movi­mento do pulso que lhe fora ensinado pela velha babá, en­quanto aqueles rapazes, tendo cada um deles pedido ao seu avô permissão para poder falar com ela, se sentavam num semi­círculo, em cadeiras de palha, fazendo-lhe a corte. O ano era 1948. Ela foi um grande sucesso em Lourenço Marques, em parte porque, afinal, era inglesa e nem todas as suas boas intenções podiam mantê-la dentro dos limites que seu avô apro­vava; em parte porque a combinação de cabelo ruivo, curto, e olhos castanhos era rara, mesmo num país cheio de senhoritas; em parte porque a severidade do avô era excessiva, mesmo na­quela colônia, de forma que em mais de um aspecto o compor­tamento de Kate e suas atitudes pareciam uma encenação tea­tral deliberada ou extravagante, executada, provavelmente, com o intuito de ser provocante.

Quando voltou à Inglaterra, recordava um lugar esfumaçado, cheio de coisas semi-ocultas, uma delas o seu próprio desejo obscuro de ser parecida com sua avó, que — a menos que aquilo se devesse à memória pouco precisa do avô — poderia nunca ter deixado Portugal, pelo modo de vida que continuava a levar. Tinha sido uma mulher bonita, era o que todo mundo dizia, uma mãe maravilhosa, excelente cozinheira, um ser humano magnífico, toda ternura e gentileza, sem um defeito sequer — sim, bem... muito embora tudo aquilo pudesse ter sido verdade, a propaganda havia surtido o previsí­vel efeito inverso, e Kate voltou da África Oriental portuguesa mais do que nunca pronta para ir para a universidade, onde estudaria línguas neolatinas e literatura. Chegou, de fato, a ir para Oxford e a se instalar como residente. Então conheceu Michael, que, depois de dez anos de guerra e de treinamento intensivo, acabava de iniciar sua carreira. Ela se mudou para as acomodações dele, e deram início, de maneira encantadora, ao que chamavam de "fase 1".

Se ela não se tivesse casado, será que se teria tornado alguma coisa de especial no seu campo? Uma conferencista talvez? As mulheres não pareciam tornar-se professoras uni­versitárias com muita freqüência. Mas estes não eram pensa­mentos que tivesse comumente: ela não tinha achado as crian­ças entediantes. Além disso, não era como se, por exemplo, seu marido a mantivesse afastada dos negócios dele, de pessoas interessantes. Às vezes fazia traduções para ele, ou para seus colegas. Uma vez, até havia traduzido um romance português, que lhe rendera pouco dinheiro, mas muitos elogios. Conhecera gente de todas as partes do mundo, principalmente depois que as crianças começaram a crescer, e passaram a trazer para casa todos os seus amigos, espalhados pelo mundo inteiro.

Se ela não se tivesse casado — mas, bom Deus, teria sido louca se não se tivesse casado, louca se tivesse escolhido línguas neolatinas e literatura... Michael e Alan Post estavam se servindo de café e esperando por ela. O que sentia era uma espécie de pânico. O fato de sabê-lo tornava aquilo pior. Era idiota e irracional sentir medo. De quê? Isto não era uma coisa que ela pudesse ter contado a qualquer pessoa, nem mes­mo a Michael — o fato de que quando era realmente confron­tada com um trabalho, um trabalho de tipo bem comum, afinal, bem enquadrado dentro de suas capacidades e, obviamente, apenas por um período de curta duração, ela se sentia como uma prisioneira, que, após ter cumprido uma longa pena, sabe que terá de enfrentar a liberdade na manhã seguinte.

— Mas eu não sei se vou poder — disse ela. — Tim vai estar aqui, indo e vindo, durante o verão inteiro.

Ela observou a crispação da boca de seu marido: as dis­cussões freqüentes a respeito de Tim não haviam solucionado o desacordo. Michael achava que seu filho mais moço era superprotegido. Ela, embora concordasse até certo ponto, não podia acreditar que a maneira de corrigir as coisas fosse "bo­tá-lo para fora e não tomar mais conhecimento". Como botá-lo para fora? Para onde? E o que o garoto fazia não era tão terrível que ele precisasse de um tratamento assim drástico: ele ficava emburrado, ameaçava, odiava, mas todas as crianças haviam feito a mesma coisa, cada um à sua maneira. Kate achava que, se ela era mais indulgente com Tim, era porque seu marido era injusto com ele. Tinha consciência de que aquela situação envolvia sentimentos demais para ser abordada de maneira direta; tinha posições definidas a respeito dela, que eram conhecidas como sendo as suas, e que ela defendia, dentro e fora da família.

Mas as reuniões do comitê não durarão mais do que... quanto foi que você disse? perguntou Michael a Alan.

Naquela altura, Alan já compreendera que havia um problema entre marido e mulher, e ele disse, sem olhar para nenhum dos dois, e sim na direção da casa, de onde um rapa­zinho saía e vinha dirigindo-se para eles:

Não mais do que um mês, no máximo.

Aí está Tim disse Kate, querendo dizer: "Na frente das crianças, não".

Quando Tim chegou debaixo da árvore, ficou evidente que ele era mais velho do que sua constituição franzina e o caminhar ágil o faziam parecer, visto de longe. Naquele momento estava mal-humorado. Olhando sério para a mãe, ele disse:

Sinto muito, mãe, mas mudei de idéia. Os Ferguson me convidaram para ir para a Noruega. Eles vão fazer alpinismo, irei também, se não se incomodar.

Não, é claro que não, querido disse Kate automaticamente. É claro que você deve ir.

Estava encantada porque ele não' seria excluído dos pra­zeres do verão, tão satisfeita como se ela é que fosse para a Noruega; mas o rapaz já havia olhado para o pai, que assentiu com a cabeça para ele. Então ele sorriu, de maneira formal, para o convidado, parecendo, momentaneamente, uma pessoa completamente diferente; o homem responsável que se tornaria transformou-se novamente numa criança mal-humorada no seu olhar para a mãe, quando disse:

Se está tudo bem, vou começar a fazer as malas agora.

Partirei hoje à noite. E saiu correndo para a casa, como se estivesse fugindo.

Ela gritou para ele:

Tim, antes de você ir, veja se consegue fazer a chaleira ferver de novo, preciso de água quente para lavar a louça. Mas ou ele não ouviu, ou não quis ouvir.

Então, quando é que pode começar, Kate? pergun­tou Alan. Quando? Amanhã? Ah, por favor, pode?

Kate nada disse, mas estava sorrindo em sinal de concordância. Sabia que era capaz de explodir em lágrimas. Sentia como se todos os apoios tivessem sido arrancados de sob seus pés. Sentia para usar uma metáfora que já vinha utilizando, na realidade, desenvolvendo em seu próprio pensamento e agora já havia algum tempo como se, de repente, um vento muito frio tivesse começado a soprar, diretamente sobre ela, vindo do futuro.

É claro que eu gostaria. Posso lavar a louça primeiro? - disse ela finalmente.

Eles riram, ela riu. Então Alan disse:

Bem, será que alguma outra pessoa poderia lavar a louça enquanto você telefona?

Ele lhe deu um nome, o número de um telefone e a acompanhou até a casa, utilizando uma formalidade agradável, com uma intimidade que, de tão despreocupada, é quase impessoal; ela reconheceu naquilo a atmosfera do tipo de vida em que estava prestes a entrar. Aquela atitude dele era ao mesmo tempo protetora e relaxante; ele ficou ao lado dela enquanto telefonava, sugerindo-lhe as palavras que deveria usar pala­vras que não lhe teriam ocorrido com facilidade, porque tinham o toque característico dos comitês. Quando aquilo tudo acabou, ele a beijou nos dois lados do rosto e, com o braço em volta do ombro dela, acompanhou-a de volta até a árvore, no jardim. Era um homem bem-apessoado, mais ou menos da idade deles

a de Michael e a dela —, um homem dedicado à família, com uma esposa e filhos em crescimento ou já crescidos, um homem que ganhava muito dinheiro e passava a vida viajando de uma conferência para outra, para falar sobre alimentação com pessoas de dúzias de países. Gostava dele, estava pensando que, afinal, seria uma libertação e um alívio respirar aquela atmosfera despreocupada e impessoal durante algum tempo. Realmente, ela gostava de tudo nele, inclusive a maneira como se vestia e se apresentava: não lhe vinha agradando muito a maneira como seu marido se vestia ultimamente, tampouco a maneira como cortava o cabelo. Mas era melhor não pensar nisso, pois, afinal, não era importante.

A razão por que se sentia como se estivesse caindo através do ar era que, se Tim não ia ficar, não havia sentido algum em manter a casa aberta.

Novamente sob a árvore, a tarde quente de domingo foi prosseguindo na direção da noite, enquanto os homens conversavam a respeito de algum problema médico no Irã.

A hipótese de se alugar a casa fora abordada inúmeras vezes.

Em ocasiões passadas tinha havido grandes discussões sobre alugar ou não alugar a casa, todo mundo tendo opiniões inflamadas a respeito do assunto. Elas haviam durado dias, semanas.

Naquele momento ela disse:

Bem, nós nunca a alugamos antes, não é?

E qual é o problema? disse Michael. Alguma família passando uma temporada aqui a alugará e ficará sa­tisfeita por fazê-lo, mesmo se deixarmos algumas coisas nos armários.

Mas o que é que as crianças vão usar como base, se acontecer de voltarem a Londres a caminho de algum lugar?

Poderão usar a casa de alguém, pelo menos por esta vez, e já não é sem tempo, também.

Mas eu não acho realmente...

Vou telefonar para o corretor amanhã de manhã disse o Dr. Michael Brown, fazendo com que Kate ficasse envergonhada, uma vez que ele trabalhava de manhã à noite e não estaria menos ocupado do que ela no seu comitê.

Mas a questão era que ela estava se sentindo rejeitada, diminuída, porque o problema da casa estava sendo considerado de tão pouca importância.

E quando a reunião de seu comitê tivesse acabado, que é que ela faria? Estava decidido que ela se encaixaria em algum lugar quão extremamente flexível ela estava sendo, exatamente como sempre, desde que as crianças tinham nascido. Voltando atrás e rememorando quase um quarto de século, viu que aquela tinha sido a característica de sua vida: a passividade, a adaptabilidade aos outros. Seu primeiro filho tinha nascido quando ela estava com vinte e dois anos. O último nascera muito antes dos trinta anos. Quando contava esses fatos aos outros, muitos a invejavam; um grande número de pessoas, em diversos países, consideravam a família de Michael Brown como uma família digna de inveja.

O ventinho frio soprava de maneira muito determinada, se bem que ainda bastante suave: aquela era a primeira vez em sua vida em que ela não era querida. Ela era desnecessária. Que aquela fase de sua vida se estava aproximando, ela soubera muito bem, é claro, há muitos anos. Até fizera planos para ela estudaria isto, viajaria para lá, faria este ou aquele tipo de trabalho de assistência social. Não é possível, afinal, ser uma mulher com algum pingo de consciência, e não saber que, na meia-idade, na força plena de suas capacidades e energias, está destinada a se tornar aquele fenômeno tão bem documentado e tão estudado, o da mulher com os filhos já crescidos e sem o bastante que fazer, cujas energias têm de ser desviadas dos já citados filhos para alvos menos vulneráveis, pelo bem de todo mundo, o dela própria tanto quanto o deles. Assim, nada havia de surpreendente no que estava acontecendo. Tal­vez ela devesse ter esperado por aquilo antes, será?

Não havia esperado que acontecesse naquele verão. No próximo verão, ou no ano que o seguisse, sim, mas não agora. O que ela havia preparado para enfrentar estava no futuro. Mas era agora que estava acontecendo. Apenas temporariamen­te, é claro, pois a casa se tornaria novamente a casa da família deles em setembro. Tornar-se-ia outra vez a base acolhedora para aquelas crianças, todas agora em casa cada vez com menos freqüência. Mas havia o seu marido a ser considerado, um homem que apreciava muito o seu lar e tudo que fazia parte dele. Quando fora a última vez em que a família toda estivera reunida, com todo mundo de volta da universidade, ou das diversas férias e viagens e excursões, ao mesmo tempo? Já fazia muito tempo, quando se parava para pensar naquilo.

Mas a realidade era que ela, aquele pino-mestre, estaria sem ter o que fazer de junho até o fim de setembro. Sem nem ao menos um quarto que fosse seu. Aquela era uma sen­sação muito estranha, como se um agasalho quente tivesse sido arrancado de cima dela, como se ela fosse um animal sendo esfolado.

É claro que ela e Michael haviam discutido aquele pro­blema com relação ao futuro dela; tinham falado a respeito dos seus sentimentos, e dos dele. Conversar a respeito era a base fundamental e o arrimo do casamento deles. Acreditavam, sempre tinham acreditado, que as coisas que se deixavam sem serem ditas envenenavam o espírito, as coisas que se expunham às claras perdiam a sua força. O relacionamento deles se havia desenvolvido calcado neste princípio desde o início.

Muita introspecção inteligente fora feita para determinar a maneira como viam a si mesmos e aquele casamento. Eles não tinham errado com relação a muita coisa.

Por exemplo, no quarto onde dormiam, havia dois livros, lado a lado, um de Bertrand Russel, chamado A conquista da felicidade, e um de Van der Velde, O casamento ideal. De Kate para Michael Russell; e de Michael para Kate Van der Velde. Ambas as dedicatórias diziam: "Pela fase 1, com todo o meu amor". Aquilo comemorava a realidade de que uma fase havia terminado quando o delicioso caso deles tivera de acabar e eles se casaram. Tinham compreendido que as coi­sas têm de mudar, que o encanto teria de se enfraquecer, e suas longas conversas sobre aquilo tudo estavam resumidas naqueles livros afetuosos, "De Kate para Michael, De Michael para Kate, pela fase 1". Agora, pegando aqueles livros e abrindo-os na página da dedicatória, ambos poderiam ter sido apanhados numa careta irônica, tinham sido apanhados um pelo outro, o que resultara no riso franco e certamente saudável. (O riso é, por definição, saudável.) A questão era: por que a careta irônica, afinal? Tinham estado tão absolutamente certos a respeito do que estivera acabando e do que estava começando: o casamento sólido, exigente e satisfatório. Não havia lugar para uma careta irônica. Que é que havia de cômico ou que merecesse a ironia deles? E, de maneira semelhante, com outras determinadas longas discussões, francas e abertas, a respeito de mudanças e de pontos críticos. Nenhum dos dois teria renunciado a elas. Mas Kate certamente se havia apanhado pensando que talvez aqueles documentos de observação psico­lógica ou, se preferirem, manifestos que acompanhavam os estágios ou fases do casamento não fossem tudo que deve­riam ser.

A discussão, por exemplo, a respeito do vento frio vindo do futuro, que ocorrera há três anos: mas haviam acontecido coisas, desde então, que não tinham sido planejadas, ou lançadas nos extratos de contas... Pela nona — ou décima nona — fase.

O fato é que a boca de Michael se contraía quando Tim era mencionado, como ainda há pouco quando ele dissera: "Vou telefonar para o corretor amanhã de manhã". Pondo-a no seu devido lugar, deixando-a de lado. Ela o sentia desta maneira. Aquilo era o que ela vinha sentindo, a despeito daquela dúzia ou mais de atitudes mentais, roupas tiradas de um cabide, as palavras que usava para descrever sua situação.

Qualquer que fosse tal situação, o que quer que realmente fosse, no final daquela noite de verão uma centena de linhas na vida de Kate pareciam ter sido reunidas. Isto se exteriorizava nos diversos números de telefone garatujados em pedaços de papel, em endereços de todos os tipos, e num esforço cons­ciente para recuperar a lembrança de seu avô, sentado na va­randa de uma casa de pedras, num grande jardim, cheio de flamboyantse de açucenas: "Catherine! A maneira de se apren­der uma língua é inspirá-la. Impregnar-se dela! Vivê-la!"

Tendo de fazer face a uma entrevista para julgar a sua capacidade de traduzir com rapidez do inglês, francês e italiano para o português, e vice-versa, ela ficou acordada a noite inteira, após ter acabado com a desordem do dia, pratos sujos e restos de comida e gordura — afortunadamente a eletricidade voltou, por volta das dez da noite —, relendo o romance que ela mesma traduzira, revivendo em sua mente passeios, conversas e refei­ções com seu avô. Pela manhã sua imersão na outra língua era tamanha que, se ela tivesse esbarrado em alguém na rua, se teria desculpado em português.

Alimentação mundial

Mas tudo aquilo, e a sua ansiedade na escolha de um vestido adequado para a entrevista, a preocupação a respeito do cabelo realmente era muito provinciano, e ela o sabia —, seus ajustamentos de atitude interiores para ser algo além da Sra. Michael Brown, tudo aquilo, afinal, acabou por se tornar desnecessário. Quando ela entrou no gabinete de um tal Sr. Charlie Cooper, ele disse:

Sra. Brown? Graças a Deus que a senhora pôde en­contrar tempo. Vai começar hoje, não vai? Ótimo.

Ela fora descrita pelo amigo e intermediário, Alan Post, como a formidável e altamente qualificada "mãe de família dedicada", que fora duramente convencida a abandonar a citada família e a solucionar a dificuldade daquela grande orga­nização internacional. Desde o início, ela estava numa categoria especial, a de amadora, e o fato de estar ali, dera-se a entender, era como se estivesse fazendo um favor.

Parecia que, dos quatro substitutos para o grupo inicial de quatro tradutores profissionais, novamente dois haviam saído, por motivos de família e de saúde.

Este negócio todo está azarado, está amaldiçoado! exclamava Charlie Cooper. Mas tenho certeza de que nossa sorte vai virar com a senhora.

E ele a levou apressadamente por um corredor largo que cintilava, através das muitas janelas, até um elevador que era grande e tinha uma fotografia de uma mulher de pele escura, que sorria de maneira agradável, enquanto colhia os grãos de café de um arbusto muito verde, e por outro corredor de proporções impressionantes, passando por um comitê, que tra­tava de manteiga, e um outro, tratando de açúcar, até entrarem num grande salão retangular, no meio do qual havia uma mesa oval cintilante, daquele tamanho que faz com que a gente pense, imediatamente, que deve existir em algum lugar uma fábrica cujo único negócio é criar mesas imensas, retangulares, ovais ou redondas, para o uso das conferências internacionais.

Havia um comitê em reunião. Sobre a mesa, copos de água, lápis, canetas, folhas de papel com anotações e rabiscos. Mas as cadeiras estavam em desordem e vazias; os congressistas estavam todos lá embaixo, bebendo café, presumia-se —, e entretidos com a mais freqüente das conversas contemporâneas, aquela sobre a total ineficácia e incompetência de qualquer serviço público ou organização, conversa que, é claro, se tornará mais freqüente e mais mal-humorada à medida que o número de pessoas em toda parte se multiplica e os serviços, segundo a lei da inércia, ficam ainda mais aquém da demanda crescente. Só naquele momento, o diplomático Charlie Cooper disse a Kate que ela fora esperada naquela manhã às dez horas, para começar seu dia com o início da primeira sessão, e não ao meio-dia, que era naquele momento mas, é claro, não lhe haviam dito, não era culpa sua, as coisas eram sempre assim —, sim, ele podia acreditar naquilo, haviam-lhe dito para "aparecer a qualquer hora naquela manhã?" típico!

Mas será que ela poderia começar agora, sim, naquele exato momento, ou melhor, quando os delegados tivessem vol­tado do intervalo para o café imposto? Além dela mesma, havia ali, trabalhando naquele dia, exatamente um tradutor simultâneo para a língua portuguesa, devidamente qualificado.

Kate havia pensado que aquela seria apenas uma entre­vista preliminar, e dissera em casa que estaria de volta para preparar a comida para o almoço e separar as roupas a serem lavadas. Mas se ela pudesse dar um telefonema... O rosto de Charlie Cooper ficou agoniado os congressistas estariam ali em cima dentro de um minuto, eles tinham sido chamados de volta por causa de sua chegada, dela, Kate. Sob a ação de uma grande chave penetrante, os anos de condicionamento de Kate, de responsabilidade específica e minuciosa, lhe foram arranca­dos. Charlie Cooper telefonaria em seu lugar, quando anuncia­ria, simplesmente, que a Sra. Brown estava ocupada com outras coisas. Era a Eileen que aquele aviso seria dado; reprimindo um impulso de enviar à filha uma mensagem de carinho e apoio, Kate se permitiu ser entregue a uma moça que lhe iria dar instruções quanto às suas funções. Em cada um dos lugares em volta da mesa, havia aparelhos para receber a tradução de idiomas estrangeiros, passados para o próprio idioma de cada um: o som transformado durante a sua passagem do orador para o ouvinte. Por Kate, entre outros. Havia controles, cada um uma saída para uma língua estrangeira. Havia fones de ouvido. Em cubículos de vidro, em cada uma das extremidades do salão, havia mais controles, aparelhos de recepção, fones de ouvido. O trabalho de Kate seria sentar-se num daqueles cubí­culos, ouvir os discursos feitos em inglês, francês e italiano, e traduzi-los, à medida que os ouvia, para o português, que ela falaria em voz alta para um transmissor ligado aos ouvidos daqueles que falavam português — na sua maioria brasileiros, que não falavam inglês, ou que falavam, mas preferiam, não obstante, sua própria língua. Ela mesma seria uma espécie de máquina: para dentro dos seus ouvidos fluiria uma língua, e da sua boca sairia uma outra.

É claro que não ficaria sozinha dentro do seu cubículo o dia inteiro, mesmo com a escassez de tradutores. Haveria substituições freqüentes, descansos, e pausas para o reabastecimento das energias vitais, durante aquele trabalho extremamente des­gastante — Charlie Cooper enfatizava repetidamente que o era; pois ele já tinha voltado, após ter telefonado para a família dela, uma tarefa que considerava de tão pequena importância que nem havia comentado. Kate estava dentro do cubículo com ele; ajustara os fones, estava ligando e desligando os con­troles, com a ajuda dele. Enquanto lhe dava instruções, ele redigia uma mensagem num bloco de memorandos, em que dizia que a organização pedia desculpas sinceras pela falta de tradutores e implorava aos delegados que tivessem tolerância e paciência. Com aquilo na mão, ele saiu depressa, à procura de uma datilografa para copiá-la. Pelas vidraças do cubículo, Kate — agora sozinha, entregue a si mesma — pôde notar que o salão de conferências, visto dali de cima, era muito agra­dável. Tinha janelas altas. As paredes eram forradas de uma madeira cor de cobre, granulada, espiralada e desenhada, o chão coberto por espesso tapete azul-marinho.

Naquele salão eram decididos o destino e a prosperidade de milhares de pequenos povos, as safras que eles iriam plantar, o que iriam comer, e vestir... e pensar.

Enquanto Charlie Cooper ainda colocava uma folha de papel — o breve pedido de desculpas, miraculosamente multiplicado naquele minúsculo espaço de uns poucos minutos — em cada um dos lugares em volta da mesa, os delegados entra­ram, rindo e conversando. Que grupo extraordinariamente se­dutor eles formavam! Uma coleção como aquela de homens e mulheres bonitos, das mais diversas cores e das mais variadas nacionalidades, seria o que o produtor de um filme tentaria captar com suas câmaras para mostrar uma cena de algum qua­dro idealizado das Nações Unidas. Mas será que os atores seriam capazes de transmitir tamanha perfeição de autoridade des­contraída, tamanha segurança? Pois aquela era a impressão que eles causavam. A diferença entre eles e seus assistentes, secretários e os subordinados de várias espécies, podia ser vista através daquela única qualidade, por si só. Cada homem, ou mulher, dirigia-se para a sua cadeira, sentava-se, continuava a conversar e a rir com uma segurança que gritava uma única palavra: "poder". Todos os gestos, todos os olhares transmitiam a convicção de utilidade, o peso do que eles representavam.

Algumas das roupas usadas eram típicas: havia uma meia dúzia de homens e mulheres de algum lugar na África que fazia com que todos os outros parecessem membros de raças inferio­res, de tão altos, graciosos e majestosamente vestidos que eles eram: as pregas de suas vestes, os brincos, o virar da cabeça cada um conhecia o seu papel. E que autoridade até mesmo os vincos de um terno podem transmitir, quando usado por um homem cujas decisões têm importância para as pessoas, carre­gadas de sacas de café, numa encosta a milhares de quilômetros de distância.

Os debates da reunião haviam começado e Kate descobriu que seu cérebro, aquela máquina, estava executando o seu trabalho com facilidade. Uns poucos momentos de pânico, uma sensação de que a sua mente estava vazia e ficaria assim para sempre, haviam sido afastados ao ouvir suas próprias palavras saírem, bastante bem ordenadas, e ao observar os rostos das pessoas que ouviam. Ninguém parecia aborrecido com o que estava ouvindo; tudo estava como deveria estar.

E num espaço de tempo incrivelmente curto que afinal verificou ter sido de duas horas ela foi substituída por um colega. Mandaram que saísse para se descontrair e para... um bom almoço. Voltou para o seu cubículo cheia de confiança e, às cinco horas daquela tarde, já se sentia tanto uma parte daquela organização quanto da sua família, para a qual ela voltou, tarde demais para a refeição da noite, e descobriu que sua filha a havia preparado e que tudo estava correndo bastante bem.

No final daquela semana, Kate já havia sido iniciada nas complexidades daquela bebida amarga e perfumada que o mun- do tanto aprecia; mal podia pensar em qualquer outra coisa. E sua casa fora arrumada e estava pronta para ser alugada. Então havia sido alugada, até o fim de setembro, e a família partira para as suas várias destinações, sem nenhuma ajuda da parte dela. Tudo o que Kate havia dito fora, numa voz que há apenas uma semana teria sido preocupada, mas que agora estava indiferente: "Alguém terá de cuidar disso, porque eu não tenho tempo". Ela beijara o marido, os três filhos e a filha, despedindo-se, mas ainda não tivera tempo de sentir qualquer emoção especial.

Estava num quarto, num apartamento alugado por uma de suas colegas; uma mulher que tinha sido tradutora, mas que fora promovida: ela agora organizava conferências. Aquela mudança, da casa de Kate para aquele quarto, com todos os petrechos necessários para alguns meses, havia requerido meia hora e a atividade de enfiar algumas roupas numa mala.

De qualquer maneira, nenhuma das roupas servia para nada. Em algum momento, durante aquela semana, ela saiu apressadamente para comprar os vestidos que lhe permitiriam entrar, como um passaporte, naquela maneira de viver. Não se poderia dizer que a Sra. Michael Brown se vestia mal; mas não era a Sra. Michael Brown quem estava trabalhando para a Alimentação Mundial!

Antes de sair para as compras, perguntara a Charlie Cooper quanto iria ganhar. O rosto redondo, zombeteiro, cansado — aquela sua expressão permanente, por ser a babá masculina de tantos comitês — ficou angustiado e cheio de remorsos.

— Minha querida! — disse ele. — Aceite minhas des­culpas! Oh, não vejo como é que você pode... foi realmente terrível da minha parte! Eu deveria ter falado a respeito disso antes de qualquer outra coisa. Mas tem sido uma semana tão confusa... de fato, se você ao menos pudesse imaginar que dádiva de Deus você foi! — E ele mencionou uma soma ante a qual ela teve de se conter para não soltar uma exclamação. Era daquela maneira casual, positivamente cavalheiresca, como se o mundo dos sindicatos, de salários amargamente contestados, de pobreza e a angústia da fome não existissem, que os salários daqueles funcionários internacionais, aqueles indispensáveis afortunados, podiam ser arranjados.

Ela comprara os vestidos, uma meia dúzia deles, pensando que, no fim das duas semanas com a Alimentação Mundial, teria um guarda-roupa apropriado para umas férias elegantes em algum lugar. Mas seus planos eram apenas de, talvez, visitar uma velha amiga em Sussex, ou uma tia na Escócia. De fato, não havia pensado no que iria fazer.

A segunda semana foi menos tensa. O trabalho tornara-se algo que fazia com tanta facilidade como havia dirigido a casa por incrível que parecesse, há apenas uns poucos dias. Ela o fazia automaticamente. Nos intervalos das sessões nos cubículos, passava o seu tempo nas lanchonetes, observando. Era, apesar de tudo, uma estranha, não sentia que tivesse direito de se juntar àquele grupo privilegiado. Era uma migrante; estaria tudo terminado dentro de uma semana. Mas se sentava como se tivesse direito àquilo tudo os vestidos novos tornavam isso muito mais fácil; bebia o maravilhoso café, observava. Era como um mercado, ou como uma festa alegre que continuasse indefinidamente.

Uma mulher estava sentada numa sala de uma repartição pública, descontraída, mas atenta, uma funcionária numa orga­nização pública, vestida como uma funcionária, portando-se como uma, mas deixando que a sua vida ou as palavras que representavam seus pensamentos sobre a sua vida fluísse através de sua mente. Seria pelo fato de que durante vinte e cinco anos ela fora parte daquele bolo de tensões, a família, que havia esquecido que a vida comum, a vida daqueles que não fossem parte da família, era tão agradável, tão pouco exi­gente? Como todo mundo estava bem vestido! Como a pele de todo mundo tinha lustro e brilho! E como era fácil a maneira como um homem ou uma mulher podiam entrar ali, olhar em volta, encontrar sorrisos e olhares simpáticos esperando por eles, então acenar e se sentar sozinhos, com um gesto que dizia: "Preciso de um momento de solidão" desejo que era, é claro, respeitado. Ou, com naturalidade, quase que insolente­mente, olhar em volta pela sala, para ver a que grupo ele, ou ela, se reuniria. Não parecia haver nunca nem sinal da tensão que se encontraria, depois de cinco minutos, em qualquer rua, fora daquele lugar acolhedor. Em qualquer rua, ou loja, ou casa, as correntes fluíam, se cruzavam e formavam novas cor­rentes. Do lado de fora daquele grande prédio do governo, os conflitos continuavam. Mas e ali? Será que aquelas criaturas bem constituídas, cada uma lustrada e polida pelo dinheiro, alguma vez sofriam? Será que jamais choravam na escuridão? Jamais queriam alguma coisa que não poderiam ter? É claro que já o tinham feito, tinham de já ter feito isso — mas não havia sinal algum que o mostrasse. Será que alguma vez — mas talvez aquela não fosse a pergunta correta a fazer —, será que alguma vez já tinham sentido fome?

Não se poderia acreditar naquilo com facilidade. E os problemas, que porventura tivessem naquele momento, pareciam extremamente pequenos, quase ridículos, quando se re­cordava qual era o objetivo daquele prédio, a razão por que estava continuamente cheio de gente conferenciando entre si. Pois Kate se havia envolvido com aqueles problemas. As coisas já tinham mudado; ela não era mais "a mulher que tinha subs­tituído os tradutores que tinham sofrido aqueles acidentes ou ficado doentes". Ela era Kate Brown, cumprimentada nos cor­redores com breves sorrisos e rostos simpáticos; faziam-na pa­rar, com uma freqüência crescente, para pedir-lhe conselhos e informações. Onde comprar este ou aquele creme facial; ou aquele gênero alimentício especial; como encontrar o restauran­te, o hotel, uma loja de roupas, ou o lugar certo para comprar mercadorias de lã inglesa, ou uísque.

Na sua primeira semana, tivera apenas tempo de pensar, enquanto se deixava cair exausta na cama, que se tornara uma função, ela era a língua para umas duas dúzias de funcionários públicos internacionais. Naquela semana, deitada na cama, acor­dada, mais tarde, uma vez que não estava exausta, pensava que a sua função principal, a de ser um papagaio habilidoso, estava sendo suplantada, e muito depressa, por uma outra à qual ela estava habituada. Como é que se fazia isto ou aquilo, como se encontrava isto ou aquilo? — perguntavam eles a ela, a recém-chegada! Mas, é claro, ela já era uma veterana, uma vez que a maioria das pessoas adejava rapidamente, entrando e saindo da­quele prédio, passando apenas uns poucos dias de cada vez.

Tornara-se o que era: uma enfermeira, ou uma babá, como Charlie Cooper. Uma mãe. Não tinha importância, dentro de poucos dias estaria livre de tudo aquilo. Não seria mais um papagaio, com a habilidade de ser simpático com as pequenas obsessões sem importância; ela estaria livre... Kate notou que aquele pensamento trazia consigo um pequeno arrepio. Notou que reagia com: "Gostaria de ter ido com Michael para os Esta­dos Unidos". Ela se apanhou pensando: "Quando eu visitar Rose, poderei ajudá-la com as crianças". Rose era a amiga de Sussex, que ela talvez visitasse.

Mas não queria passar o verão numa outra família, aquilo era apenas covardia. No seu quarto, antes de ir dormir, olhava para a sua arrumação, via o quanto ele lhe era indiferente e pensava que, sim, aquilo era muito melhor do que sua grande casa de família, do que a casa de Rose, cheia, abarrotada, trans­bordando de objetos, cada um dos quais tinha associações, histórias, pertencia a esta ou àquela pessoa, tinha significação, era importante. Naquele quartinho minúsculo, que tinha ali dentro uma cama, uma cadeira, uma cômoda com gavetas, um espelho — sim, isto era o que ela escolheria, se pudesse escolher... ela sonhou. Mais tarde, quando o sonho daquela noite se havia encaixado no padrão e tornara-se o primeiro episódio da história ou jornada que ela seguiu em seu sonho, tentou lembrar-se de mais coisas dele, mais detalhes. Mas, en­quanto se sentia certa com relação à sua atmosfera, a sensação — que misturava ansiedade e alegria de uma maneira que nunca poderia acontecer na vida desperta —, os detalhes tinham desaparecido. De manhã, o sonho se tinha tornado — ela havia acordado na escuridão para tentar apanhar o sentido do sonho, antes que ele lhe escapulisse e desaparecesse — como o princípio de uma epopéia, simples e direto.

Ela vinha descendo uma encosta, numa paisagem nórdica, que lhe era desconhecida. Alguém dizia: "Olhe, o que é aquela coisa estranha? Olhe, uma coisa escura está caída ali". Ela pensava: "Uma bala? Certamente que não, nenhuma bala é tão grande assim". Mas era uma foca, encalhada e indefesa entre as rochas secas, no alto de uma encosta fria. Estava gemendo. Ela a pegou no colo. Era pesada. Perguntou se estava tudo bem e se podia ajudá-la. A foca gemeu, e ela soube que teria de levá-la até a água. Começou a carregar a foca nos braços pela colina abaixo.

No dia anterior àquele em que suas duas semanas chega­riam ao fim, foi convidada por Charlie Cooper para tomarem um café juntos. Ela aceitou e ele perguntou a ela se estaria livre para continuar o trabalho por mais um mês. Aquele determinado comitê estava acabando, mas havia um outro que deveria começar.

— Então me saí bem? — perguntou Kate.

Sabia que sim, pelo menos no que dizia respeito à tra­dução de fato; mas podia perceber, pela atitude cordial da­quele funcionário permanente, que havia mais coisas que ele gostaria de dizer. Ele era sem dúvida um homem encantador. Será que fora aquilo que lhe valera o emprego? Mas o encanto tinha de ser posto de lado, se se quisesse compreender o que ele realmente queria dizer, ou desejava.

Oh, minha querida Sra. Brown, eu diria que sim. Esta­mos absolutamente encantados por tê-la encontrado. Uma sorte para nós! E como foi gentil de sua parte nos ceder este tempo. (Que delicioso, aquele jogo, segundo o qual ela estava trabalhando para eles para fazer um favor, em vez de ser por um salário tão tremendamente generoso. Como era inesperado en­contrar aquele comportamento cortês, aquelas atitudes cava­lheirescas, ali, no mais recente dos desenvolvimentos modernos, os serviços públicos internacionais.) Realmente, acredite-me, Kate... mas agora já podemos nos chamar um ao outro de Kate e Charlie? Especialmente, uma vez que nos fará a gentileza de continuar trabalhando para nós por mais algum tempo... e seria por muito, muito tempo se fosse de acordo com a minha vontade. Mas quem sabe, não poderíamos discutir isto numa outra ocasião? Mas eu devo confessar que não é apenas a sua competência realmente notável no seu trabalho, notável mesmo, uma vez que você começou direto, imediatamente, enquanto algumas pessoas precisam de semanas de treinamento, antes de começar a fazê-lo, mas você, bem... é mais do que isso. Todo mundo está comentando como você tem sido maravilhosamente prestativa e útil de todas as maneiras. Estou falando sério. A Sra. Kingsmead, aquela senhora da delegação americana, co­mentava ainda hoje de manhã que não sabia como se teria arranjado sem todos os seus bons conselhos. Será que isto é porque você tem uma família grande? Alan Post me estava contando a respeito de todos aqueles jovens atraentes que são os seus filhos e de como tudo funciona sempre tão bem... mas, bem, esta não é a questão. Creio que, se uma pessoa é com­petente fazendo uma coisa, então ela também o será fazendo uma outra, mas se pudesse ficar conosco mais um mês, e passar para o setor de organização, seria a melhor das sortes para nós. Desperdiçar seus incríveis talentos como tradutora... é um crime. Mas as suas outras habilidades são tão boas quanto esta; de certa maneira é terrível pedir-lhe que pare de fazer uma coisa que faz tão bem. É claro que o seu salário será maior se aceitar. Um mês... será que poderíamos apenas contar com você por mais um mês?

É claro que aceitaria. Para começar havia o dinheiro: não conseguia acreditar. Kate não conseguira deixar de se sentir culpada porque o padrão, segundo o qual vinha sendo paga paraser um papagaio extremamente inteligente e fluente, com incli­nações maternais, quase alcançava o que seu marido, um médico com tantos anos de treinamento e outros mais de experiência, ganhava como especialista em neurologia. (Na Inglaterra, não nos Estados Unidos, é claro, lá ele ganhava muito mais.) Mas agora ainda pareceria muito pior; era ridículo, e ela simplesmen­te tinha de aceitar o fato de que as regras, os valores e os pa­drões comuns não se aplicavam àquele mundo. Quanto a deixar de lado suas aptidões especiais, seus sentimentos a respeito disso eram contraditórios. O que, realmente, ela iria fazer?

Bem, estava fazendo quase exatamente o que costumava fazer em sua casa. Começou a organizar as coisas, a passar muito tempo ao telefone, a providenciar para que as pessoas, os lugares e as coisas coincidissem nas horas certas... então, de repente, houve um obstáculo. O receio de uma epidemia de febre tifóide. O conflito habitual entre as necessidades do turis­mo e as da saúde pública confundiram tudo durante alguns dias; houve uma ameaça de que todas as viagens desnecessárias, para dentro ou para fora das ilhas, seriam suspensas por completo. A epidemia foi controlada, mas quase que imediatamente em seguida houve uma greve no aeroporto. Seria uma longa greve, diziam os jornais. Então descobriu-se que, devido a vários des­cuides, os quartos nos hotéis não haviam sido reservados com a antecedência necessária para os quarenta delegados que esta­vam para chegar — ali estava mais um exemplo da inevitável incompetência que todo mundo adora criticar. Houve discussões agitadas e nervosas nos altos escalões: chamadas telefônicas e telegramas de e para Nova York, Londres, Austrália, Cana­dá... estava sendo decidido que não havia lei alguma que estabelecesse que aquela conferência teria de se realizar em Londres. Deveria ser uma conferência geral, sobre o tema en­dêmico de como tirar alimentos dos lugares onde havia de sobra e levá-los para os lugares onde havia de menos. Havia diversas cidades atraentes e convenientes. Paris? Não, não, na loucura de julho, cheia até não poder mais... as dificuldades na orga­nização daquela conferência estavam adiando a data do início; já se estava na metade do mês de junho. Uma cidade européia após outra era sugerida, examinada e rejeitada: Roma, Barcelo­na, Zurique. Kate ficava pensando, como uma dona-de-casa, nas contas do telefone, por todos aqueles adiamentos, sugestões e j mudanças. Só o que estava sendo gasto com telefonemas seria suficiente para alimentar milhares de pessoas durante semanas; mas não estava sendo paga para pensar como uma dona-de-casa, era algo menos que isso o que lhe estava sendo pedido. O que era? Ela parecia passar uma quantidade excessiva de tempo falando sobre aqueles problemas, com Charlie Cooper e outros funcionários. Tinha a impressão de que estava atolada em algu­ma coisa, um pântano burocrático; nada se movia, tudo se atra­sava e perdia-se tempo. Ela falava. Eles falavam. Estavam cons­tantemente telefonando para pessoas em outros países... era assim que as grandes organizações sempre agiam? Se era, não era de espantar que... Por que é que se deveriam restringir à Europa?, perguntava-se. Afinal, aqueles delegados itinerantes, aqueles delegados que viajavam quase que permanentemente, que passavam suas vidas conferenciando em torno de mesas ovais ou redondas, em salas claras e arejadas, com as mais diversas cidades como pano de fundo, além dos janelões, aque­las pessoas não podiam se importar muito se encontrassem suas folhas de papel, os lápis, as canetas, os copos de água e as secretárias permanentes em Beirute ou em Nairobi, em vez de Roma ou Londres. África do Norte? Não, estaria quente demais. Então talvez devessem dirigir-se para o norte. Esto­colmo? Aquela era uma cidade com a atmosfera certa para discussões calmas, desapaixonadas. Oslo? Não, a Escandinávia ficava longe demais, para o norte; era melhor encontrar um lugar mais central. O Mediterrâneo, sim; mas não o Líbano ou a Síria, não um país árabe, ou um que fizesse parte daquele beco sem saída, Israel e os árabes. Turquia? Sim, aquilo era melhor. Istambul? É claro! Mas era quente; seria exatamente tão quente quanto a África do Norte ou Roma. Sim, mas era tão atraente, e não era muito usada para conferências, ofereceria um banquete tão opulento de passeios turísticos — arqueoló­gicos, religiosos, culturais, sociais — para delegados exaustos de confabulações. Como era ilógico recusar tantas cidades pelo fato de estarem cheias demais, bem como serem quentes demais, e então dizer sim para Istambul! Era verdade. Será que, afinal, não seria melhor ficar em Londres? Mas e a greve? Bem, as pessoas podiam ir para a França e depois virem de barco, não podiam? Os barcos e os trens tinham funcionado perfeitamente bem antes da invenção do avião, não tinham? Sim, mas... ti­nha-se de admitir que os aviões e as conferências internacionais andavam sempre juntos, eles se encaixavam.

O surto de febre tifóide ressurgiu subitamente. Charlie Cooper e Kate Brown armaram-se do telefone para organizar uma conferência com a duração de três semanas, sob o patrocínio da Alimentação Mundial, em Istambul. Os delegados, todos ainda em seus países, foram informados por telefone, com gastos inacreditáveis, de que a Turquia deveria ter a honra de acolhê-los, e não Londres.

O verão vazio de Kate agora estava ocupado até o meio de julho; se as coisas ainda se atrasassem mais, talvez fosse até além. Ela sentia que não deveria ter deixado que aquilo acontecesse. Deveria estar pensando, talvez, sobre o seu estado, sobre o vento frio. Deveria estar examinando as violentas e incontroláveis oscilações nos seus sentimentos com relação ao marido e aos filhos — especialmente com relação ao marido. Pois agora que tinha tanto tempo, tinha a impressão de que nada estava fazendo, ou muito pouco; seus dias eram mais vazios do que haviam sido durante anos. Tinha consciência de que seu sistema emocional estava funcionando e fluindo para um vácuo: os objetos de seus sentimentos estavam todos em outros lugares, não estavam presentes para reagir com ela ou contra ela. Qual era o sentido de amar, odiar, querer, ressentir-se, precisar, rejeitar — e às vezes tudo no espaço de uma hora — quando ela estava ali, livre; era como falar sozinha, era lou­cura... Afinal, até que era bom que ela voltasse a ficar ocu­pada. Pelo menos por mais um mês. Saiu e comprou mais alguns vestidos. Depois, comprou os acessórios para acompa­nhá-los. Não, não era que aqueles artigos fossem tão diferentes assim dos que usava normalmente. Era mais, na realidade, a maneira como os usaria. "O espírito da coisa", como teria dito seu avô.

Uma mulher ficou parada diante de grandes espelhos em várias lojas, olhando com uma curiosidade fria, não muito amistosa, para uma mulher de seus quarenta anos, que ainda estava com o mesmo corpo que tivera durante toda a sua vida adulta, a não ser por uns centímetros a mais ou a menos, ou coisa assim; que tinha o cabelo ruivo bonito — pintado, é claro, porque os cabelos grisalhos estavam aparecendo depressa. Uma curiosidade fria, mas que logo se tornou uma conspiração de olhares, de mulher para mulher, prima em primeiro grau daquela careta irônica tão terrivelmente solapadora, solapadora porque parecia eliminar a sua visão oficial, ou diurna, de si mesma. Sim, era melhor evitar os longos intercâmbios de pres­sões de olhares, que ameaçavam o tempo todo dar início a um acesso de riso; sim, sabia que aquilo que esperava por ela era uma gargalhada obscena por todo o maldito negócio... o tipo de riso que ela e Mary Finchley apreciavam (se permitiam? usavam como preservativo?) nas ocasiões em que estavam jun­tas, a sós, sem maridos, famílias, convidados.

Não, tinha de voltar atrás, olhar para si mesma como um todo e confirmar que estava ali, de pé, na sua frente, uma mulher elegante e de aparência agradável, à beira da meia-idade. Ainda à beira — ela não havia decidido entrar naquele estágio. Podia dizer, enquanto olhava serenamente para a sua própria imagem, que o seu corpo, seus atributos, membros, cintura, seios, boca, cabelo, pescoço, não estavam diferentes do conjunto de atributos com os quais havia atraído uma dúzia de rapazes há quase um quarto de século, com os quais se havia casado com o seu marido. Não estavam diferentes; talvez até estivessem melhores, uma vez que tantos produtos químicos, medicamen­tos, dietas e cuidados com o cabelo, dentes e olhos haviam sido gastos com aquele artefato — que aparência ela teria agora se, por exemplo, tivesse nascido numa favela, no Brasil?

O que estava diferente era... nada que fosse tangível. De novo, tratava-se de uma questão de atmosfera, alguma coisa que ela trazia consigo, de maneira invisível. A razão por que, quando jovem, aquele mesmo conjunto de acessórios, dentes, olhos, quadris, e por aí afora, haviam atraído, ao passo que agora não atraíam, pelo menos não mais do que qualquer outra mulher da sua idade (da minoria que não se havia retirado da atividade de atrair bastante cedo com relação à idade, e devido a uma variedade de razões, sendo a pobreza a primeira delas), era aquele problema delicado de "o espírito". Certamente a palavra errada; mas qual era a certa? Estado? Estágio? Pre­sença? Ela não andava envolta, como o tênue e quase invisível invólucro da chama de uma vela, por aquela emanação da atratividade: Eu estou disponível, venha, cheire e saboreie. No caso dela, era porque era, e tinha sido durante tanto tempo, uma pessoa e uma mãe que não estivera interessada — ou não com freqüência, e nessas ocasiões não por muito tempo — em atrair outros homens a não ser o seu marido.

Tudo aquilo, é claro, fora discutido longa e francamente entre marido e mulher. Tinha de ter sido. Pois eles haviam esquematizado desde o início aquela fase do casamento, tão difí­cil, perigosa e agressiva, num plano resumido. E tudo fora mantido em dia, não se havia permitido que se desatualizas­se. .. Não obstante, Kate tinha consciência de que o que era tido como certo entre ela e Mary Finchley, nos encontros que descreviam como "sessões femininas", contradizia, em tudo, os dados do plano marital. Por que estava pensando tanto em Mary? Na realidade, ficara aborrecida com a reação da velha amiga às notícias daquele novo emprego. Tinha sido a gargalhada alegre, que sempre parecera grosseira a Kate, e "bem, agradeçamos a Deus por isso. E também já não era sem tempo".

De qualquer maneira, agora estava bem que ela se enca­rasse em tantos espelhos diferentes e acendesse uma chama, que pusesse em movimento certas correntes. Não, não como fizera nas breves ocasiões de atração incontrolável durante o seu casamento (descritas criticamente por Mary como "o mundo bem perdido pela luxúria"), quando ela havia sido levada na direção de um determinado homem. Agora estava fazendo uma coisa completamente diferente. Exatamente como uma mocinha faz, repentinamente consciente de seus poderes de atrativos generalizados, a mesma coisa agora acontecia com Kate: um termostato interno estava ajustado de maneira diferente, não dizendo "Você aí, sim, você, venha me apanhar!", mas sim "Ah, como vocês todos são infinitamente desejáveis; se eu quisesse, eu poderia estar disponível, mas isso dependerá de vocês e, para falar a verdade, é muito mais divertido ficar assim, flutuando nessa atmosfera de admiração e aprovação geral; seria terrivelmente entediante limitar-me a uma pessoa só!"

Isso é uma coisa que nenhuma mulher casada faz. (Ex­ceto Mary!) Mas vejam o que a família dela passou por causa disso... Não, ela não deveria ser invejada, nem imitada. Provavelmente não deveria nem ser ouvida, quanto mais ser apre­ciada em sessões de gargalhadas estrondosas e de conversas de mulheres. Melhor não pensar em Mary. Nenhuma mulher casada de verdade ajusta o termostato para Tom, Dick e Harry. (Nas discussões a respeito daquele assunto com Michael, ambos eram bastante categóricos quanto ao que ser casada de verdade sig­nificava.) Não, se se quer continuar casada. (Ou então tem importância ser como Mary, cuja vida, durante os quinze anos em que Kate a conhecia, tinha sido como uma farsa de costumes francesa — sintonizada, é claro, com os ares amenos da zona sul de Londres.) Pois o que Kate sabia, realmente sabia mesmo, era que nem todos os casamentos eram casamentos de verdade, e que estes estavam ficando cada vez mais raros. Tinha sorte com o seu. Se se quiser usar palavras como "sorte", em vez de conceder a si mesma o crédito por ter sido, e continuar a ser (a despeito de Mary), a espécie de mulher que está realmente casada com um marido de verdade. Ser consorte neste tipo de casamento significa que só se pode ajustar o termostato de uma maneira. A não ser, é claro, por aquelas breves e insigni­ficantes ocasiões que Mary ridicularizava tanto, porque dizia que forneciam a quantidade máxima de infelicidade, com o mínimo de prazer... Se não era capaz de pensar seriamente a respeito de seu casamento, sem que Mary Finchley se intrometesse a todo momento, então era melhor parar de pensar de uma vez.

Antes de considerar a reforma completa de si mesma, ela foi a um cabeleireiro muito caro, que deixou as mãos descan­sarem simpaticamente nos ombros de Kate, enquanto olhava por sobre sua cabeça para a imagem refletida no espelho, exatamente como ela estava fazendo. Olhavam para a matéria-prima que ele utilizava em sua arte; e então ele perguntou se o cabelo dela sempre tivera aquele tom de vermelho. É claro que ele estava certo, mas ela havia temido que o vermelho muito escuro, que era o seu natural, fosse espalhafatoso demais para uma mulher da sua idade. Ante aquilo ele disse "besteira" e a man­dou embora com o cabelo vermelho bem escuro, cortado de tal forma que caía como uma massa de seda pesada, balançando de encontro às maçãs do seu rosto, quando virava a cabeça. Como, lembrava-se muito bem, havia feito sempre, antigamente.

Era perturbadora aquela evocação de si mesma quando jovem. Sentiu-se emotiva demais. Desejou que o seu Michael estivesse ali para admirá-la; depois, com a mesma violência, ficou feliz por ele estar bem longe, em Boston. Que eram aquelas reviravoltas de sentimentos, o que as causava? No decorrer de uma única hora, seus pensamentos com relação a Michael foram tão contraditórios quanto os de uma louca. Por quê? Certamente a verdade não podia ser que ela fora sempre assim e que só agora estivesse começando a perceber! Bem, pelo menos podia ter certeza de que estava satisfeita porque seus filhos não podiam vê-la — oh, não, nenhum jovem gosta de ver a querida mãe toda lustrosa, cintilante e sedosa.

Mas àquela altura eles estavam espalhados pelo mundo afora, na Noruega e no Sudão, no Marrocos e na Nova Ingla­terra; exatamente como os delegados de quem estivera cuidando há tão pouco tempo, como os delegados que estavam, naquele exato momento, em tantos países diferentes, fazendo malas e se despedindo das esposas e dos filhos e, em alguns poucos casos, dos maridos.

Ainda restavam três dias antes que tivesse de voar para a Turquia se a greve das companhias aéreas acabasse a tempo, pois, do contrário, teria de ir de trem. Três dias. Nada havia para fazer até que a conferência começasse. O sentimento de culpa por não estar fazendo nada, enquanto era tão bem remu­nerada, a fez sugerir a Charlie Cooper que ela poderia talvez realizar um outro trabalho durante aquele período; poderia aju­dar os tradutores, por exemplo. Pela primeira vez, viu Charlie Cooper irritado. Repetiu seus diversos comentários a respeito do valor dela... e, no entanto, que é que ela estava fazendo? To­mava um bocado de café com ele, no gabinete; conversava com ele; duas vezes por dia, reunia-se com ele e com o homem que era o chefe do departamento deles, para discutir as providên­cias. Isto era trabalho? Bom Deus, se pudesse fazer a reorgani­zação daquele departamento... mais, daquele prédio, com as suas multidões incríveis, altamente remuneradas, de... tinha que parar com aquilo e, além disso, nada tinha a ver com ela. Suas críticas eram provavelmente devidas ao fato de que lhe faltava a experiência para... Besteira, era tudo besteira; toda aquela maldita organização, com os seus comitês, suas conferên­cias, suas eternas discussões, discussões, discussões, era um gigantesco engodo; era um mecanismo para obter incríveis somas de dinheiro para umas centenas de homens e de mulheres.

Não adiantava nada ficar pensando a respeito daquilo, da­quele jeito; se estava sendo paga para se sentar em lanchonetes e ficar pensando, então se sentaria e ficaria pensando. Afinal, quantos anos já haviam passado desde que ela havia tido tempo para pensar pela última vez? Quase vinte e cinco anos. De fato, a última vez em que tivera a oportunidade de sentar-se descon­traída, toda bonitinha para ser admirada, sorridente, tinha sido naquele ano em que visitara o avô. Naquela ocasião, também, no vestido branco espantosamente sedutor, um dos pés pen­dendo solto para um lado, como a asa quebrada de um passari­nho, enquanto o outro, impulsionando-a de maneira rítmica, na cadeira de balanço, lançava ondas de atração sexual em todas as direções... Naquela ocasião, também, ela havia pensado, refletido; permitira que as palavras, que representavam seus próprios conceitos a respeito de sua vida, fluíssem através de sua mente, enquanto as examinava... Será que naquela época tinha sido submetida àquele vaivém de sentimentos contraditó­rios? Se assim fora, não se lembrava. Talvez o vestido branco, que nunca conseguira usar sem se sentir dissimulada, desonesta, superexcitada, tivesse visivelmente representado um dos pratos da balança; e o que ela havia estado pensando fora o outro? Pensamento não era a palavra correta? O que vira mover-se através de sua mente fora um bocado violento, sim, ela se lem­brava, tinha sido crítica, um turbilhão de impaciência por trás daquele sorriso doce e lento, pelo qual havia sido, e ainda era, tão freqüentemente elogiada.

Charlie Cooper, para citar um exemplo. Ela havia trazido consigo, para aquela organização, a atmosfera de simpatia cari­nhosa que era a força motriz de sua atuação em casa. Será que havia feito isso — inconscientemente, é claro — por causa do vento frio? Temera ser apenas uma tradutora competente, che­gando às nove e meia, indo embora às cinco horas, e nesse período fazendo exatamente o que era paga para fazer? Será que havia sentido que aquilo não era o bastante? Era o bastante para os outros tradutores, quatro homens e uma mulher. Mas eles ainda estavam fazendo o mesmo, traduzindo, enquanto ela, Kate, tinha sido promovida: porque permitira que emanasse dela uma atmosfera de disponibilidade simpática, que fora captada pela burocracia da organização? Será que eles tinham consciência da razão pela qual a tinham escolhido para ser uma mãe do grupo na Turquia? "Uma personalidade carinhosa", é o que diziam. "Simpática." Simpática.

Aquele grande salão de repartição pública, cheio de mesas — mas não atravancado, havia espaço de sobra —, era o melhor dos lugares para se sentar tranqüilamente; como era extraordi­nário que um lugar tão fervilhante de atividade pudesse ser tão reservado. Muito mais que seu quarto no apartamento da Burke Street, onde sua colega queria conversar à noite, quando ela chegava, e preparava chá com torradas, todas as manhãs. Em suma, sentia-se solitária. Ela também achava Kate Brown simpática.

Mas ali, é claro, a sua privacidade já estava diminuindo, pois o lugar começava a revelar rotinas, muitas rotinas. No início, entrar ali apressadamente entre as sessões de tradução, parando um instante para comer um sanduíche, sentindo neces­sidade de tomar um café, ou de comida, tudo aquilo lhe pare­cera como se fosse por acaso. A razão disso era que ela se des­lumbrara com tudo. Mas agora, que se estava tornando um hábito, era difícil não se sentar ali e flutuar na contemplação gratificante da atratividade daquela nova classe, a dos funcionários internacionais, todos jovens, ou parecendo jovens, ou, se de meia-idade, de meia-idade à moderna, a velhice como um inimigo mantido bem a distância. Era fácil interessar-se ao admi­rar as roupas, os cosméticos, o contraste dramático de tantas peles negras, brancas e amarelas. Como era harmonioso! Como tudo aquilo era consolador: certamente era assim que o futuro seria, assembléias de seres altamente civilizados, todos amisto­sos e não combativos, amavelmente atenciosos uns com os outros mesmo que, durante as sessões propriamente ditas, em volta das mesas dos comitês, estivessem empenhados em com­bates nacionais.

As rotinas sexuais eram, é claro, as mais fáceis de se ver — como sempre; as ligações casuais e as amizades que fazem parte das conferências internacionais e dos comitês.

As moças que trabalhavam naquele lugar eram de classe média ou da alta classe média — "jovens debutantes", como se costuma dizer, ou como se costumava dizer, para ser mais exata. "Temos todas essas jovens debutantes", dizia Charlie Cooper. "São todas uns amores, que é que faríamos sem elas?" Estavam ali, não para arranjar maridos — Deus nos livre, elas se casariam com gente da sua própria classe, quando chegasse a hora —, mas para apreciar um "trabalho interessante". Aqui­lo significava a companhia de homens interessantes, e de mu­lheres interessantes, é claro, vindos de dúzias de países dife­rentes, e a possibilidade de ser convidada para trabalhar num ou mais de um desses países. Como Charlie Cooper costumava queixar-se amavelmente: "Para falar a verdade, eu às vezes penso que o que estamos dirigindo aqui é uma agência de em­pregos de alta categoria". Significava ter pares constantes, dig­nos de inveja, quando não eram verdadeiras ligações amorosas. Quanto aos delegados que fluíam através daquele prédio em marés previsíveis e altamente organizadas, aquelas moças ofe­reciam a possibilidade do melhor tipo de companhia para jantar e ir ao teatro, ligações amorosas sem obrigações, a escolha de secretárias do tipo mais invejável, para levar para casa (por pouco tempo, antes que Emma ou Jane decidissem que estava na hora de fazer uma reaclimatação), para seus escritórios em Nova York ou Lagos, ou em Buenos Aires.

Ficar sentada ali, tranqüilamente, tão invisível quanto ela se podia fazer, era como estar no teatro.

Um novo comitê estava previsto para dar início às reuniões do dia seguinte: Gêneros Alimentícios Sintéticos para o Ter­ceiro Mundo. Deveria ser, de modo geral, um evento mais mo­desto do que a grande conferência na Turquia, mas os delegados estavam chegando em todos os barcos que vinham do continente. Mas, veja só, às onze horas da manhã, todas as secretá­rias e recepcionistas estavam a postos, espalhadas pela sala, sozinhas ou em pares, sem olhar para as portas por onde entra­riam seus parceiros para relações sexuais ou de simples amizade, para o mês seguinte ou coisa assim. Os delegados, de todos os tamanhos, cores, formas e graus de atrativos físicos, chegaram — vinham sozinhos, na maioria. Os dois times (era difícil' não os considerar como times desportivos — tomem suas posições, preparem-se, já!) se observaram mutuamente. Era um procedi­mento de precisão, aquele; idade, grau de aptidão física, bom gosto no vestir, provável capacidade sexual, tudo avaliado em alguns poucos olhares. Depois, começava o processo de mistura e combinação.

Posso sentar-me aqui? Sou Fred Wanaker, de Nova York.

Senhorita Hanover? Sou Hesukia, de Gana.

No final do primeiro dia, os casais já estavam separados, ou pelo menos já era possível ver como é que eles se formariam.

Era tão bom como no teatro, melhor ainda, uma vez que ela era um dos atores.

Muito embora ela não quisesse ser, pois ia partir para Istambul, onde estaria trabalhando demais para ter tempo para pensar; e não queria, agora, ter sua atenção distraída — agora ela sabia, estava quase certa de que deveria ter dito não a Charlie Cooper e a todo o dinheiro, e ter dado um jeito de ficar em Londres, num quarto, tranqüilamente, sozinha. Absolutamente sozinha.

Nesse ínterim, embora o seu termostato estivesse ajustado na posição baixo, ela driblava as propostas. A freqüência com que alguns homens, negros, mulatos, de pele cor de oliva ou rosada, se ofereciam com "este assento está livre?" a fazia lançar um olhar sobre si mesma, do outro lado da sala, como aqueles homens a viam. Kate via, como o havia feito em tantos espelhos, uma mulher com os cabelos de um ruivo surpreen­dente, uma pele muito branca e os olhos simpáticos de um cocker spanielcarinhoso. (A aversão à sua necessidade de amar e de dar fazia com que chamasse a si mesma de cachorro, ou escrava; tinha consciência de que aquilo era uma coisa nova para ela ou pensava que era.) No entanto, aquela mulher, de quem tantos homens se aproximavam, era vinte anos mais ve­lha que algumas das moças. Isso significava que, à primeira vista (do outro lado de um salão e com tantas idas e vindas de gente pelo meio), ela não aparentava os seus quarenta e tantos anos. Estava naquele estado de eterna juventude, para cuja obtenção uma parte tão grande do tempo e dos esforços da maioria das mulheres é dirigida.

(Na verdade, as mulheres estavam ficando obcecadas em não parecerem ter mais de trinta anos.) Se observasse com cuidado, sem se deixar cegar por vaidade pessoal ou por precon­ceito, poderia perceber que aquele homem que se aproximava, qualquer que fosse a idade dele, hesitara, quase que imperceptivelmente, quando vira que ela não era (o que ela devia parecer, vista de longe) uma jovem de trinta anos. Mas, tendo hesitado, tendo feito aquele exame perito e profissional (como o de uma prostituta ou o de um fotógrafo), com o qual nos avaliamos mutuamente nesses encontros do mercado sexual e profissional, ele sempre se sentava e parecia bastante satisfeito com o que encontrava: uma companheira agradável para a mesa de café. Assim, parecia que afinal o seu termostato interno estava obe­decendo às suas ordens.

Mas ela não estava ali para aquele tipo de amenidades, embora certamente fosse agradável. Queria sentar-se tranqüila­mente, descontrair-se, pensar... Tinha de fazer mais do que regular a chama, de forma que os homens, se tendo juntado a ela, a achassem apenas uma companheira. Mas o quê? Certa­mente não teria de deixar de usar maquilagem, e passar a usar roupas de velha, e se fazer feia. Ou sim? (Kate estava passan­do por uma versão daquele dilema feminino que é exemplifica­do, em seu extremo máximo, pela mocinha que encurtou a saia até a altura da coxa, deixou a blusa toda aberta, exceto por dois botões, e passou duas horas se maquilando: "Aquele ho­mem horroroso fica me encarando, quem ele pensa que é?" Ou pela mulher elegante, que aprofundou o decote até a cintura e deixou as costas nuas; ela lança um olhar frio ao homem que examina seus atrativos. "Você é um grosso", declaram seus cílios.

Bem, é claro que era ridículo esperar que ela, Kate, se transformasse numa velha só porque... Logo ela descobriu que, se quisesse ficar sozinha, devia sentar-se de maneira dese­legante, numa postura relaxada ou desanimada, e deixar que as pernas descaíssem de forma desgraciosa. Se fizesse isso, os ho­mens não a notariam. Podia jurar que não. Sentando elegante­mente, ereta, com as pernas suavemente ajustadas, ela fazia um sinal. Encurvando-se e parecendo alquebrada, só quando todos os lugares na lanchonete estivessem tomados é que alguém viria sentar-se perto dela. Ocasião em que seria suficiente deixar o rosto cabisbaixo e murcho, para recuperar novamente sua pri­vacidade, e bem depressa.

Era realmente extraordinário! Ali estava ela sentada, Kate Brown, exatamente como sempre havia sido, ela mesma, a sua mente, a sua consciência, observando o mundo por trás de uma fachada apenas um pouquinho diferente da que ela havia man­tido, desde os dezesseis anos. Era apenas uma questão de má postura, permitir que os seios descaíssem, e fazer um olhar desinteressado, e as pessoas não a veriam. Aquilo lhe dava uma sensação estranha, como se alguma coisa tivesse saído do ali­nhamento. Pois ela estava consciente, muito consciente mesmo, tão atenta àquilo como se fosse o fato mais importante de sua vida, de que a pessoa que estava sentada ali, observando, evita­da ou ignorada pelos homens, que se não fosse por aquilo te­riam sido atraídos por ela, não era de maneira alguma diferente da pessoa que podia trazê-los todos, de novo, na sua direção, apenas pelo ato de ajustar o retrato de si mesma lábios, um conjunto de músculos faciais, movimentos de olhos, ângulo das costas e dos ombros. É assim que deve ser quando se é um ator ou uma atriz... Como isso deve ser terrivelmente exausti­vo, uma sensação do desaparecimento de si mesma atrás de tantos fantasmas diferentes.

A uma grande distância ela via Kate Ferreira, no seu ves­tido fino de linho bordado, de pé, recostada na coluna de uma varanda, cheia de vasos de açucenas brancas. Aquela moça sor­ria para alguns rapazes. Ela sorria para os rostos deles, mas os olhos deles lhe examinavam o corpo todo. Pelas janelas da sala, que se abriam para a varanda, podia ver a velha Maria, a governanta da casa de seu avô, sentada fazendo croché, numa posição que lhe permitia vigiar Kate e os rapazes. Naquele dia ela lhe dissera: "Você não deve sentar-se com a saia puxada tão para cima". A saia havia escorregado acima de seu joelho. No dia anterior, Kate usara shorts vermelhos para jogar tênis e Maria havia dito que ela estava com uma aparência adorável. No verão anterior, Kate observara esta cena com a própria filha: Eileen estivera usando uma saia curta durante o dia inteiro, que lhe ficava pelo meio das coxas. À noite usou um vestido comprido, que lhe batia nos tornozelos. Quando se sentou no chão, percebeu que um homem olhava para seus tornozelos: instintivamente puxou a saia para baixo, cobrindo os tornozelos, e lançou um olhar ressentido para o homem.

A moça na varanda, será que tinha sido "simpática", "uma personalidade carinhosa"?

Provavelmente não. Será que aquelas qualidades não ha­viam sido criadas pelas intermináveis disciplinas de ser esposa, mãe, dona-de-casa?

Quando ela estivesse na Turquia, se fosse comportar-se como invisível, não apenas com o termostato ajustado para o baixo, mas também com a sua simpatia desligada, se se re­cusasse a ser uma mãe tribal, então que é que aconteceria? E, no entanto, a coisa realmente interessante era ser capaz de jurar que as pessoas que a haviam contratado não tinham idéia alguma de por que a estavam contratando, por que estavam tão tremendamente determinados a conservá-la. Isto, embora Charlie Cooper, um homem, tivesse exatamente a mesma qua­lidade. Será que isso significava que ele não sabia por que estava naquele emprego?

Um dos tradutores, cuja partida provocara a crise que havia trazido a ela, Kate, para se sentar ali, era uma mulher de meia-idade que, segundo Charlie Cooper, valia "o seu peso em ouro". Tentando elucidar quais eram exatamente as suas qualidades, Kate só conseguiu arrancar dele que "mulheres mais velhas têm muito mais paciência do que as mais jovens".

Do comitê para o qual Kate trabalhara como tradutora, participara um delegado do sexo feminino, uma mulher negra, da África do Norte. Ela era alta, elegante, alinhada, chique, altiva, distinta. Suas roupas às vezes eram vestes típicas de seu país, que lhe davam a aparência de um pássaro maravilhoso, e, às vezes, roupas vindas de Paris: ela era diferente de Kate; ambas teriam dito que nada tinham em comum. No entanto, podia-se perceber que, quando ela estava ausente do comitê, as coisas não corriam bem. Sua atitude tão indiferente, tão seca, tão sorridente e, ao mesmo tempo, antipática e de forma alguma disposta a pôr panos quentes não teria alguma coisa a ver com isso? Ela havia fornecido àquele comitê o mesmo tipo de caráter que Kate dera à sua organização e problemas periféricos.

Se ela, Kate Brown, se tornasse uma funcionária permanente daquela organização, qual seria sua verdadeira função? Bem, é claro que para começar ela teria de passar um longo espaço de tempo falando com Charlie Cooper, tomando café com ele e em conferências com homens falando a respeito de como organizar isto ou aquilo. Trabalhando.

Se ela realmente ficasse, provavelmente herdaria a função de Charlie, enquanto ele, como parecia ser de praxe, seria promovido para uma função superior. Ela se encaixaria bem na função dele; mas ele, numa posição superior, provavelmente se sentiria desconfortável, sem saber o que fazer. Sentir-se-ia deslocado, um peixe fora d'água, mas nunca saberia por que estava assim.

Seu forte era emanar algum tipo de fluido invisível, como uma formiga-rainha, cujo espírito (ou alguma palavra assim — eletricidade) enchia o ninho, formando um todo de indivíduos que não podiam ter qualquer outra conexão.

Isto é o que as mulheres faziam nas famílias — era o pa­pel de Kate na vida. E ela desempenhara aquela função para o comitê que agora se encerrava. Iria novamente desempenhar aquela função na Turquia. Era um hábito que adquirira. Estava começando a ver que era capaz de aceitar um emprego naquela organização ou em outra parecida, por nenhuma razão a não ser o fato de ser incapaz de se desligar da função de emanadora de segurança invisível, consolo, ternura, simpatia. Não que ela precisasse de um emprego ou que quisesse um. Tinha sido posta em funcionamento pelos vinte e poucos anos de esposa e mãe.

No canto de uma sala agitada e barulhenta estava sentada uma figura serena de mulher, segurando nas mãos bem-tratadas, mas supercompetentes, o jornal daquele dia, os olhos baixos, os ombros bastante inclinados: estavam em posição para supor­tar a espécie de frio que um animal deve sentir se sua pele lhe é arrancada, ou o frio que um cordeiro novo sente ao emergir do calor úmido do ventre materno, para cair no chão gelado pelo vento cortante.

Seria fácil manter do lado de fora o vento frio, é claro: podia fazê-lo indefinidamente. Ainda seria fácil durante anos. Tudo o que tinha de fazer era dizer à sua família — notícia que eles receberiam com alívio, ela sabia — que havia decidido arranjar um emprego. E então encontrar o tipo certo de empre­go. Ali, provavelmente, por que não? Que poderia ser mais útil do que trabalhar para a Alimentação Mundial? Então ela nutriria e alimentaria em si mesma, que era toda calor e charme, aquela personalidade que nada tinha a ver com ela, nada a ver com o que ela realmente era, o indivíduo que estava sentado olhando e observando as coisas por trás dos olhos castanhos, carinhosos, da pele bem-cuidada, das ondas largas do cabelo vermelho-escuro.

Mas durante três semanas, um mês, ela estaria ocupada demais para pensar nessas coisas: estaria se preocupando com os outros. E por esta hora, no dia seguinte ela refletia assim na véspera de sua partida para Istambul —, o que estava sentindo e pensando agora, o resultado de três dias de solidão cuidadosamente mantida, pareceria bastante remoto. O melhor que poderia fazer ali, provavelmente, seria lembrar que tinha chegado àquelas conclusões, conclusões essenciais, e agarrar-se a elas. Mesmo que não pudesse lembrar-se daquilo por mais do que uns minutos roubados em todo o dia sobrecarregado.

Naquela noite, o sonho apareceu novamente em seu sono a continuação do sonho sobre a foca. Agora, porque aconte­cera duas vezes, estava anunciando a sua importância para ela. Tinha quase esquecido a primeira parte; agora teria de lembrar- se dela... era o que estava tentando fazer, mesmo com a segunda parte ainda oculta.

A foca era pesada e escorregadia. Era difícil mantê-la nos braços. Ela estava cambaleando em meio às rochas pontiagudas. Onde estava a água, onde estava o mar? Como podia assegu­rar-se de estar indo na direção certa? O pavor de que aquela não fosse a direção certa a fez desviar-se para a direita, seguin­do ao longo de um ponto mais baixo na encosta. Seguiu por ali por algum tempo, mas a foca começou a fazer movimentos inquietos e ela percebeu que tinha estado na direção certa, no início. Tornou a seguir para o norte. A pobre foca tinha feridas nos lados: havia se arrastado pela terra, tentando alcançar o mar, e esfolara-se nas pedras e no solo rochoso. Estava pre­ocupada porque não tinha um ungüento para passar naqueles ferimentos, alguns deles recentes e ainda sangrando. Também havia muitas cicatrizes, de velhos ferimentos. Talvez alguns dos arbustos amargos que cresciam nas rochas tivessem proprieda­des medicinais. Ela colocou a foca no chão cuidadosamente e o animal pousou a cabeça sobre seus pés, longe das pedras; ela estendeu a mão para baixo, lateralmente, e arrancou as pon­tas de algumas folhagens de um arbusto. Não havia jeito de amassar aquela folhagem, assim ela a mastigou e cuspiu o líquido de sua boca sobre os ferimentos da foca. Pareceu-lhe que estes já estavam ficando curados, mas não podia parar para fazer mais, e assim tornou a pegar a foca no colo e continuou a lutar para seguir adiante com ela.

Kate sabia, é claro, que estava prestes a ser passada de uma organização suave e impessoal para outra, dentro de uma questão de horas, através de uma suave e impessoal companhia aérea. Ela conhecia, como todos nós, através do rádio, televisão e cinema, o serviço de aviação civil internacional e a sua ma­neira de ser. Mas as coisas não aconteciam daquela maneira. Na véspera de sua partida a greve foi definitivamente dada por encerrada e seu vôo foi confirmado; na manhã seguinte, ha­via outra greve: a do pessoal administrativo. Kate tomou o trem para Paris, onde esperava tomar um avião para Roma. Em Paris disseram-lhe que as estradas para o aeroporto estavam bloqueadas naquele dia por uma manifestação de trabalhadores estrangeiros, a maioria espanhóis e italianos. Era improvável que saísse de terra naquele dia. Tomou o trem para Roma. Lá, era uma questão de deixar um circuito de engrenagens, estradas de ferro, para entrar num outro, o das viagens aéreas. Houve engarrafamentos, confusões, todo tipo de atrasos, mas ela conseguiu, afinal, completar o circuito, se bem que tarde.

Na Turquia, encontrou o que já esperava: um carro silen­cioso veio buscá-la, e sozinha, em meio a pessoas que nunca poderiam esperar sentar-se num carro daqueles, a menos que o seu trabalho fosse dirigi-lo ou cuidar de sua manutenção, e pro­tegida do meio ambiente de todas as maneiras, exceto por seus olhos, ela conversou em francês com o motorista. O hotel era, em espírito e estilo, parecido com o prédio da Alimentação Mundial. O quarto de Kate era como a caixa despersonalizada que ela havia deixado. Mas os vários atrasos fizeram-na chegar ao mesmo tempo que os delegados — e uma infinidade de coisinhas necessárias não tinham sido providenciadas, e esta­vam com falta de um tradutor. Verificou apenas a chegada da sua bagagem ao quarto e então se apresentou: a irritação geral focalizou-se sobre ela, agora personificando o espírito da inefi­ciência, do qual, em todo aquele vasto hotel, os delegados re­clamavam, exatamente como ela fizera ontem e no dia anterior, em Londres, Paris e Roma.

Um andar inteiro fora destinado à conferência. O grande salão, onde as deliberações seriam tomadas, era parecido com o que havia acabado de deixar e no qual estava quase pensando como "casa". Era fulgurante, de madeira, do teto ao chão, que, entretanto, não era de carpete espesso, mas de cerâmica, cujo padrão era copiado de uma mesquita. No meio deste salão via-se uma grande mesa, desta vez retangular, aparelhada com fones, controles e botões. Agora era sua tarefa verificar se cada lugar estava equipado com papel para rascunho e anotações, para os ataques de tédio, quando os delegados falassem dema­siado, e com lápis, canetas e água. Ou melhor, não era ela que devia fazer isso: devia assegurar-se de que o funcionário do hotel, responsável pelo setor, não havia esquecido. Ahmed, o funcionário, era um jovem um pouco gordo, inapelavelmente agradável e sorridente; seu companheiro, aliado, seu irmão. Ele falava francês, alemão e inglês; estava satisfeito porque ela acrescentava o que lhe faltava: italiano e português. Sabia tudo a respeito do negócio de hotéis, mas nunca havia assistido a uma conferência antes, ou melhor, embora conhecesse o ramo das conferências, esperava que aquela fosse diferente. Eles confabularam neste e naquele idioma. Quando um mensageiro de túnica, com galões e botões, se aproximou de Ahmed, Kate ouviu ordens dadas e recebidas em turco. Ela ainda não tinha ouvido aquela língua ser falada desde que chegara ao país. Sentada e conversando com Ahmed, de pé e conversando, andando e conversando, fazendo planos para o conforto de outras pessoas, ela ouviu turco, como se, de passagem pelos seus ouvidos, fossem ruídos de fora do palco, nada mais. Por toda parte à sua volta, fora daquele hotel, havia um mundo onde seus ouvidos, quando estivessem realmente atentos à lín­gua, ficariam, de repente, embotados e ignorantes: a língua que ela não conhecia estava a sua volta como vidraças de janelas mal limpas, opaca, difícil; seus ouvidos, como que agredidos, se esforçariam para compreender a troca de palavras de duas criadas num corredor — eles sentiam que deveriam compreen­der e, se não conseguissem, a culpa era deles... sem Ahmed, ela seria como uma peça inútil na engrenagem.

Ele sabia tudo sobre a vida noturna, restaurantes, dançari­nas, mesquitas, igrejas e viagens curtas pelos arredores de Istambul. A cidade, vista a centenas de metros de altitude na sua atmosfera, mas em breves relances, era toda um brilho sedutor de telhados e de água prateada, e ruas, que eram como a própria língua turca, distantes e vigorosas, com uma vida que, ela sentia, estava querendo ver de perto, compreender... Um passarinho passou voando no seu campo de visão, enquanto ela estava parada junto de uma janela. Era de uma espécie que nunca vira antes. Kate sentiu que estava sendo apresentada a um mundo desconhecido, e observou o passarinho que cruzava a água alimentada pelo mar Negro em direção a pináculos e abóbadas numa outra praia, enquanto Ahmed esperava a seu lado por uma resposta a uma pergunta sobre preferências alimentares.

Quando o último delegado desceu dos céus, divertimentos, excursões, distrações culturais de todos os tipos, para não falar em grandes pratos de uma dúzia de nações, estavam à espera. E, já sendo experimentados, aqueles homens e mulheres pareciam pouquíssimo fatigados. De tão veteranos que todos eles eram naquele negócio de atravessar continentes, chegavam adoravelmente vestidos e despreocupados, conversando uns com os outros, numa variedade de línguas. Era evidente que aquela ia ser uma conferência bem-humorada e amena. Eles estavam gostando uns dos outros. Afinal sempre gostavam, aqueles administradores, aqueles antagonistas tão suaves, aqueles intér­pretes dos interesses nacionais cheios de tato. Pois não impor­tava o quanto eles expressassem desacordo quando sentados em torno das grandes mesas e quão veementemente apresentassem as alegações de seus países, ou mesmo as acusações de jogo du­plo de uns com os outros (Era a nação x que tinha posto praga nas colheitas daquela estação para arruinar o mercado! — Não, ê óbvio para o mundo inteiro que a sua colheita teve praga porque não estava sendo plantada corretamente. — Você não permitiria a ninguém, senão ao seu próprio país, que se beneficiasse. — Vocês sempre bloqueiam tudo! — Ao contrário, nós queremos ajudar nossos irmãos desafortunados nos paí­ses pobres), sim, exatamente como tantas crianças brigando; mas não importava como nem com quanta freqüência aquilo acontecia. Depois, nos salões de descanso e nos bares, salões de chá e restaurantes, para não mencionar as camas, tudo era com­preensão e fraternidade. É claro, pois todos faziam o mesmo trabalho, passavam a vida exatamente da mesma maneira tinham tudo em comum.

Naquela noite, Kate juntou-se a um grupo de excursionis­tas daquela gente que, embora tão viajada, ainda não fora suficientemente afortunada para ter visto Istambul antes. No momento em que deixou o hotel, encontrou-se numa cidade de lenda, mistério e romance, exatamente como os folhetins de turismo a descreviam em todas as línguas que ela falava, em muitas que ela desconhecia. O grupo era composto por Mme Phiri, uma senhora bonita e muito francesa de Serra Leoa, pelo Sr. Daniel, do Brasil, e pelo Sr. Ferrugia, da Itália. Jantaram num restaurante turco, pois era o mínimo que se esperava deles, visitaram duas boates, onde viram dançarinas do ventre e engolidores de espadas, e concordaram em que, muito breve, os mesmos quatro iriam visitar um vilarejo situado a setenta e cinco quilômetros da cidade, onde havia algumas antiguidades interessantes, recentemente descobertas. Tinha sido, todos con­cordaram, quando se separaram no hall do hotel naquela noite, uma noite especialmente agradável: falavam como connaisseurs que eram. Então foram para a cama cedo, isto é, antes de uma da manhã, uma vez que a conferência começava no dia seguinte.

Antes de dormir, Kate teve tempo de pensar no seu Michael, que estava, ela achava, em Chicago, onde passava alguns dias com um velho amigo que havia emigrado para os Estados Unidos. Pensou também nos seus quatro filhos. Notou que a aflição que veio com a lembrança deles foi logo abrandada: ela sabia que -já estava florescendo, se expandindo, aumentando ela era querida, necessária. Ia ser necessária durante o dia intei­ro e a maior parte da noite.

E agora, durante os poucos minutos que tinha livres todos os dias, notou o crescimento lento de sua euforia, fato que ela observou com bastante secura. E, uma vez que estava ocupada demais para pensar por muito tempo, podia permitir que os pensamentos entrassem onde teria sido doloroso demais se houvesse tempo para que eles se instalassem: como a sua famí­lia tinha ficado encantada quando ela dissera que estaria ocupa­da com a conferência em Londres e que não teria tempo para fazer malas, organizar e arranjar as coisas... E havia alívio na voz de Tim, quando ela lhe dissera: "Oh, querido, você está com tudo pronto para ir para a Noruega? Sinto muito, estou simplesmente ocupada demais para..."

O fato era que o retrato ou imagem de si mesma como centro cálido da família, a fonte de emanações invisíveis como formiga-rainha, estava fora de moda há uns dois ou três anos. (Será que havia alguma coisa errada com a sua memória? Era alguma coisa mais, como se ela tivesse diversos conjuntos de memória, cada um contradizendo os outros.) A verdade era que ela estava faminta há dois anos, três, mais... De qualquer ma­neira, desde que as crianças tinham crescido. O fato de que isto levara algum tempo, de que tinha sido um processo, de que nunca tinKa havido um momento em que ela tivesse podido dizer "agora eles estão crescidos", acabara... Será que era por isso que suas memórias se estavam tornando mentirosas? É cla­ro que não tinha sido a verdadeira Kate quem estivera faminta. Aquela personagem havia permanecido como sempre ou pelo menos em seus melhores momentos — tranqüilamente fora de cena, e observando, o que era mais freqüente, se bem que nada divertido. Mas fora bastante dolorosa aquela privação; com freqüência, ela se havia sentado sozinha em seu quarto, diante da consciência de uma intolerável injustiça. Injustiça, a sua dor estivera esperando por ela durante todos aqueles últimos anos. Mas ela não se havia permitido senti-la, ou pelo menos não por muito tempo. Em vez disso, conservara cuidadosamente a ima­gem do casamento (será que poderia ser chamado, talvez, de "fase 10"? "fase 15"?), que era o resultado de discussões inte­ligentes com ou sem o marido. Ela não se havia permitido che­gar muito mais perto do que estivera sentindo do que com a careta divertida. Seria insuportável deixar que tudo aquilo a tomasse de assalto agora. Algum dia terei de fazê-lo! Mas agora, felizmente, estava ocupada demais; lisonjeiramente ocupada. Ei-la, aqui, recebendo sorrisos de camareiras e garçons, do ge­rente do hotel e dos encarregados dos andares, de motoristas de táxis e de intérpretes. E sobretudo de Ahmed, que a adorava. O relacionamento deles era o de dois eunucos num harém. Ele a apoiava, compreendia tudo, providenciava tudo. Ela, infalivel­mente, era a única pessoa capaz de lidar com todos os problemas e necessidades dessas crianças difíceis, talentosas, mimadas, acostumadas a serem o centro das atenções, os administradores internacionais, a nova elite: ela, com o seu gênio, Ahmed. Enquanto prosseguia a conferência, ela permanecia num apo­sento próximo, esperando o momento de ser útil. Quando ne­cessário, ocupava sua pequena cabina, pronta a, por um simples gesto, passar do francês, italiano, inglês, para o português todos os oradores de língua portuguesa cumprimentando-a por sua absoluta fidelidade ao espírito de seu idioma. Durante as pausas para café e drinques, durante as refeições, em toda parte, a qualquer momento do dia ou da noite, lá estava ela, a sempre disponível, sempre bem-humorada, a popular Kate Brown.

No verão anterior, dúrante sua visita aos Estados Unidos, ela observara a sua situação atual...

Por toda a extensão daquele continente, repetem-se ver­sões de um edifício que parece uma pequena cidade, mas conti- da sob um único teto, que às vezes se estende por quilômetros e é subdividido em setores, cada um constituindo uma unidade completa a serviço de uma determinada empresa aérea. Algumas das grandes companhias de aviação empregam moças que pare­cem as balizas usadas em convenções e carnavais. Essas garotas, vestidas de modo extravagante e em cores berrantes, patrulham a área ao longo dos balcões de sua empresa aérea. Supõe-se que lá estejam para fornecer informações e orientação, e prestam, na realidade, tais serviços. Não é essa, porém, sua função, e sim a de, simplesmente, associar àquela determinada companhia aérea a idéia de sexo fácil, ao alcance de todos e isento de culpa. Não se trata de uma sexualidade desafiante ou difícil, complexa ou misteriosa. De modo algum. As garotas são atraen­tes, mas não muito sexy. Foram escolhidas por sua sexualidade amistosamente petulante e óbvia, e lá estão elas, sozinhas, aos pares ou em grupos de três, de um lado para outro, sorrindo, sorrindo, sorrindo e, à medida que você as observa (enquanto se passam as horas se, por exemplo, a partida do seu avião estiver atrasada), elas se vão inflando lentamente, de um ar quente que se expande. Estão intoxicadas — literalmente, na verdade — por sua própria atração e pelo fato de estarem em público, vestidas e dispostas em local propicio para atrair tan­tos olhares, e por sua utilidade. Sorriem, sorriem e sorriem, tanto que em pouco tempo se tem a impressão de que essas garotas vão levitar uma a uma, erguidas pela expansão dos gases de sua própria boa vontade, constantemente reabastecidos pelo excesso de atenção. Sim, flutuarão através das janelas do aero­porto, balançando sorridentes pelo céu como balões atmosféri­cos, entre os aviões que decolam e aterrissam. E dentro do avião existem garotas em situação idêntica, as aeromoças, cada uma intoxicada por sua condição de benfeitora pública, fornecedora de amor. Isso não se aplica às grandes empresas, às linhas inter­nacionais, nas quais as moças trabalham arduamente, fornecen­do atenção e amor sob a forma de comida para os usuários. Por todos os Estados Unidos, porém, as pequenas e rápidas aerona­ves adejam dia e noite, cheias de garotas sem muito que fazer. Elas oferecem drinques. Dispõem à sua frente bandejas de re­feições acondicionadas, com ternura e sorrisos de intimidade. Enviam pelo intercom mensagens de amor: "Nós gostamos de vocês, precisamos de vocês, por favor, voltem, por favor, gos­tem de nós". E andam para cima e para baixo, para cima e para baixo, sorrindo, sorrindo, admiradas por homens e mu­lheres. A função delas é serem admiradas. À medida que se movimentam, exibindo-se, a febre aumenta. No início de cada vôo, a moça está saudável e radiante de afabilidade geral, mas logo parece tornar-se prestes a explodir com as forças de aten­ção que absorve. Está inflada pelas mesmas; provavelmente está com febre, pelo menos o aparenta, com as faces coradas e os olhos vidrados de excitação.

E ela sorri. Ela sorri. Ela sorri.

Pode-se supor que, ao retornar a seu quarto após um vôo, esteja inquieta, não possa sentar-se, não possa dormir, não con­siga parar de sorrir, não consiga comer. Está excitada demais, não pode desligar-se. Caso tenha um homem, que poderá ser o amor desse pobre joão-ninguém, em comparação com o que ela passou o dia inteiro recebendo de dezenas de homens? E ima­gine o que acontece quando essa vítima se casa! Coisa que, evidentemente, deverá acontecer muito em breve — o índice de casamentos é muito elevado na profissão, tal como o índice de divórcios. Mas por um ano, dois anos, três anos, no máximo seis, aquela garota esteve à mostra, foco de centenas de pares de olhos, o dia inteiro; cada minuto de seu horário de trabalho, um receptáculo para admiração, desejo e inveja, geradora de calor, conforto, atenção. Então, ela se casa. Deve ser como descer de um palco, onde mil pessoas estão aplaudindo, e entrar num pequeno quarto escuro. É muito provável que ela não faça a menor idéia do que a faz sentir-se como um pião que foi gira­do e girado e deixado lá, girando para sempre. Não se trata de uma moça introspectiva ou autoconsciente, pois esse tipo de moça tem de ser, necessariamente, uma ingênua, para que possa chegar a ser preparada para tal trabalho. Nunca, em toda a sua vida, tal pensamento passou por ela: a monstruosidade de pre­parar uma moça para servir de alvo ao amor público — baliza, anúncio de empresa aérea, aeromoça — durante meses, ou anos. Ela se casa porque casar cedo é fator de auto-afirmação; então, deve ser como se ela tivesse dentro de si um órgão capaz de absorver e fornecer milhares de watts de amor, de atenção, de lisonja, e esse órgão funcionou com força total, mas não pode ser desligado. Qual é o problema? A garota não tem a menor idéia. Por que se sente tão irritável, por que não consegue relaxar-se, descansar, dormir? É como uma criança que os adul­tos admiraram, mas da qual agora se cansaram, se afastaram, começaram a conversar e esqueceram-na. Não importa o quanto dance e sorria e faça pose e grite: "Olhem pra mim! Olhem pra mim!" Eles parecem não ouvir. E, finalmente, dizem: "Fique quieta. Vá brincar".

Ela sente dores de cabeça. É frígida e então faz amor freneticamente, com um homem que se sente como se tivesse um rival. Logo vem o divórcio. É provável que a moça procure seu antigo emprego, mas está velha demais. Perdeu sua vitalidade fácil de cadela jovem e seu lugar foi ocupado por uma garota recém-saída do colégio.

Em breve seria meados de julho. A conferência termina­ria dentro de uns dois dias, quando então os delegados se dispersariam enquanto chegariam outros: o hotel seria sede de uma conferência sobre cólera.

Kate sorria, sorria, sob o foco da admiração das outras pes­soas, orientando o facho de sua própria presteza em direção a todo mundo; a idéia de que dentro em breve estaria só tornava exageradas suas reações. Ela conhecia a sensação. Era pânico. O facho do sorriso era forte demais. Ou talvez não fosse isso: ela oferecia aquilo de que dispunha, como fizera desde o início da conferência, mas agora era excessivo, numa situação em que todos só pensavam em fazer malas e partir. Ela se via, através das reações de Ahmed, como uma mulher eficiente, de grande capacidade, sorridente, mas que girava sem parar em torno de si mesma, como um aparelho que alguém deveria ter desligado. Ahmed lhe oferecia cápsulas contra dor de cabeça, confessava que também estava sofrendo — ao fim de um acontecimento desse tipo, não conseguia dormir e sua esposa reclamava. Kate lhe mostrou os retratos de sua família; ele fez o mesmo e Kate viu a fotografia de uma mulher tranqüila e bem-arrumada, com uma garotinha sentada rígida no colo; Kate podia perceber que tirar aquela fotografia havia constituído uma ocasião especial. Essa cena teve lugar num intervalo do trabalho no topo de umas escadas, de pé, junto de uma janela, pois Ahmed não po­dia sentar-se, como um hóspede, como ela podia; da mesma for­ma como ela acompanhava os delegados a todos os lugares para as refeições e excursões, mas é claro que Ahmed não podia. Assim, agora ela estava ali, com Ahmed à seu lado, e ouviu a preleção de como, se ela se fosse deitar cedo naquela noite, tendo tomado aquele remédio, estaria menos nervosa pela manhã.

Kate achou que aquilo não se realizaria: o que esperava por ela, no momento em que lhe desse uma oportunidade, não seria abrandado e afastado, até desaparecer, por sedativos. Teria de voltar para Londres, para ficar sozinha, em algum lugar, durante dois meses, e encarar, em completa solidão, sua própria vida. É claro, recebera convite para visitar vários países, de diversos homens e mulheres de quem se havia tornado uma boa amiga — amizade de acordo com aquele estilo de vida, ca­sual, sem qualquer tipo de exigências, tolerante, uma amizade que era, na realidade, toda em termos de negação. Não fazia críticas. Não fazia exigências. Não dava a menor importância a diferenças de nacionalidade ou raça que, dentro daqueles cír­culos mágicos, pareciam existir apenas para propósitos de agra­dável excitação. E era democrática sexualmente. Corações não eram partidos. É claro que não, as carreiras eram mais impor­tantes que o amor ou o sexo; provavelmente aquela era a se­xualidade do futuro; o amor romântico, o desejo, desesperos de qualquer espécie seriam banidos para um passado neurótico. Amigos desse tipo, antigos amantes ou futuros amantes desse tipo podiam separar-se em Buenos Aires, após um contato diário intenso, não trocar mais nem uma única palavra durante meses ou anos, ou mesmo nem pensar um no outro; e se encontrarem de novo em Reykjavik, com prazer discreto e cuidadosamente medido, para uma outra rodada de intimidade bem ajustada, bastante parecidos com os atores e atrizes numa peça que so­frem ou gozam de uma proximidade tão intensa por um breve período de tempo e depois se dispersam, para novamente se encontrarem, usando fantasias diferentes, dez anos depois.

Será que ela deveria ir para Serra Leoa com a atraente Mme. Phiri? Por que não? Ou podia ficar ali, na Turquia, pois não tinha feito muito mais do que comer excelentes comidas em diversos restaurantes e visitar duas mesquitas e uma igreja. Mas a Turquia não é um lugar para uma mulher sozinha. Se fosse em Paris ou em Roma, então talvez... Ali, ela não poderia ir de carro sozinha, para cidades do interior, ou melhor, ela não podia, equipada com seu tipo de personalidade, a de mulher casada há muito tempo, sem um homem a seu lado.

Estava no hall do hotel esperando por Mme. Phiri, que lhe havia pedido que lhe marcasse uma hora num cabeleireiro. O pessoal do hotel podia ter feito, devia ter providenciado isso, é claro; mas a querida Kate era tão eficiente para fazer as coisas!

Ficou parada esperando, enquanto as pessoas passavam por ela cumprimentando com um movimento de cabeça e sorrindo. "Cara Kate. ChèreKatherine. Doce Katya, Katinka, e Kitty. Querida Katy, a minha Cationa. Adorável Katlyn, Caterline,

Kit e Catherine. E Katerina, meu amor; meu anjo, Katy. Karen, não sei o que eu vou fazer sem você. Eu sentirei a sua falta, Sra. Brown."

Ela estava sorrindo, sorrindo, enquanto cantarolava, silenciosamente, dentro de si mesma, não sem histeria:

"Eu sentirei a sua falta, Sra. Brown!

Como sentirei a sua falta, Sra. Brown!

A senhora me alimentou, me guiou,

A senhora me deu tudo que eu queria,

Mas agora a senhora está suplantada

E eu sentirei a sua falta, Sra. Brown..."

Estava esperando, consideravelmente muito mais tempo do que imaginara, por Mme Phiri, que se despedia de alguém, diversos andares acima, quando reparou num homem, cujo rosto reconheceu, vindo em sua direção. Antes que ela soubes­se, ele a estava convidando para uma viagem até Konia, no dia seguinte. Ele havia alugado um carro.

Eles se haviam visto, pela primeira vez, há uma semana, do lado de fora daquele hotel, na calçada. Ele, um rapaz levemente amorenado, num terno de verão, estava de costas para o fluxo pesado do tráfego, olhando de alto a baixo o prédio do hotel, como se o estivesse medindo. Sua aparência era a de um delegado, pois sua elegância no terno claro o situava além da massa de turistas de verão, vestidos descontraidamente. Depois, ela o vira num café. Ele se encontrava na mesa vizinha, com um grupo de pessoas jovens, e haviam trocado algumas palavras numa conversa. Agora, ele se vestia como turista e parecia estar com calor. O cabelo escuro, que era cortado para ser penteado para trás, liso e brilhante, caía em mechas soltas. Ele lhe dizia que era americano, que não estava, de maneira alguma, visitando a Europa pela primeira vez, e que planejava dentro em breve ir para a Espanha, onde sempre se sentia em casa. Ela podia acreditar, ele parecia espanhol e em qualquer país latino passaria por um nativo.

Não estava hospedado naquele hotel, que, conforme ele disse, ficava além, muito além de suas posses. Assim, o convite para que ela fosse com ele, no dia seguinte, não podia ser um ato impulsivo, mas algo planejado.

Ele estava dizendo que, depois de tê-la visto no café, adivinhara — afinal, aquilo não era assim tão difícil! — onde provavelmente ela estaria e, após algumas perguntas, ali estava ele. Ao mesmo tempo, oferecia sua impulsividade descontraída:

Seria tão maravilhoso se você realmente tivesse tem­po, seria mesmo uma pena desperdiçar o lugar livre no carro os olhos dele prenderam os seus com uma expressão de zombaria, quanto à situação, quanto a si mesmo, e não estavam nem um pouco ansiosos. Pois é claro que só haveria eles dois no carro. Suas obrigações de trabalho acabariam naquela noi­te... pelo menos, formalmente. Ela não tinha dúvidas de que a manteriam ocupada até o último minuto, se o permitisse. Disse que gostaria de ir com ele, muito embora a imagem de Mary Finchley tivesse lhe surgido de repente para dizer que ela devia estar louca. Para obedecer a Mary, estava prestes a estabelecer limites às suas relações pessoais com aquele rapaz, não tão jovem quanto parecia, exatamente como ela não apa­rentava ser tão velha quanto era, mas ali vinha Mme Phiri, caminhando rapidamente em direção a eles, seu corpo um todo de membros esguios, longos e castanhos, e dedos incrivelmente longos cobertos de jóias, adejando nas desculpas fervorosas por ter feito Kate esperar.

Kate viu o exame meticuloso a que o rapaz submeteu a bela mulher. Não era disfarçado, apologético ou envergonhado de si mesmo; não era agressivo, mas sim uma apreciação ho­nesta, que ela agradeceu com o mais leve dos movimentos de cabeça, com um sorriso divertido, antes que se afastasse rapida­mente e saísse do vestíbulo: "Kate, querida, vou chegar tão atrasada".

Muito bem disse Kate. E eu ainda não sei o seu nome.

Era Jeffrey. E ele disse que lhe telefonaria naquela noite, dando um passo adiante com relação a ter direitos sobre ela, com a mesma declaração honesta e franca de suas intenções, ou pelo menos desejos, se fosse dada a oportunidade, com a qual ganhara um sorriso de Mme Phiri.

Eles nunca chegaram a Konia. A viagem (quente, desconfortável e longa, porque o carro enguiçou duas vezes antes de parar definitivamente) fez com que aquelas duas pessoas ficas­sem "próximas", como se costuma dizer, muito depressa, pre­cisamente por causa da falta de conforto e, depois, por não saberem se tomavam um ônibus e continuavam ou se alugavam um outro carro. Tais contratempos, ou algo parecido, é claro que o rapaz havia previsto e esperara que também ela, quando sugerira a viagem. Ele não se importava com o fato de não che­gar a Konia. Ela se importava, mas não muito. Realmente fazia muito calor e havia muita poeira. Eles se sentaram no banco de trás, conversando, enquanto o motorista saiu para providenciar um outro transporte.

Falaram a respeito dele. Trabalhava com propaganda e publicidade, em Nova York. Nascera em Boston. Era bem-apes- soado, inteligente, divertido, educado. Também tinha os atrati­vos do não-conformismo: há quatro anos, decidira abandonar o que ele mesmo era o primeiro a ridicularizar, chamando de "o espírito da cobiça da propaganda", promovendo-se, assim, duas vezes, uma vez por fazer parte do espírito da cobiça, e outra por lhe ter dado as costas, coisa que fizera depois de apenas três anos, ainda que muitíssimo bem-sucedidos. Era o sucesso, a sua facilidade, que o havia aterrorizado mais do que qualquer coisa. Assim, ele tinha "caído fora". Não para a indi­gência e "hippismo", já bastante comuns, pois se considerava velho demais para isso. E tinha pais ricos. Mas dera as costas a uma carreira e a um estilo de vida. Desde então havia passado a maior parte do tempo viajando de carona e acampando pela Europa. Agora estava com trinta e dois anos.

Era evidente para Kate, que o ouvia como a um de seus filhos, que ele estava cheio de dúvidas e conflitos. O "cair fora" não fora uma decisão definitiva. Suas decisões ainda esta­vam adiante dele. Tudo muito bem quando se "cai fora" com vinte ou vinte e cinco anos. Tudo muito bem enquanto vivesse com uma moça que lhe agradasse ou a quem ele agradasse du­rante um verão em Mount Shasta ele fizera isso; ou em Vermont ele fizera isso. Tudo muito bem enquanto vivia com o dinheiro da sua avó morta; ele se apressou em sublinhar que era dinheiro "dele" e não de seus pais. Mas agora ele estava com mais de trinta anos. Não sabia como queria viver: isso era a essência de tudo. Como só Deus sabia, quantos mi­lhões de jovens, que não incluíam, graças a Deus, nenhum dos filhos dela, ou pelo menos não por enquanto, a menos que Tim se tornasse um deles, não sabiam o que fazer consigo mesmos. Jovens dos países desenvolvidos, os ricos do Terceiro Mundo. Os jovens do mundo subdesenvolvido, do mundo faminto, não tinham escolha. Tinham de tomar à força, roubar e passar fome para viver. Não saber como viver era um privilégio da juven­tude rica do mundo.

Todas aquelas coisas ele abordara no seu estilo seco e divertido, durante a viagem para Konia, e depois no banco de trás do carro, enquanto observavam o fluxo do tráfego rápido para Konia, e por fim enquanto se sentavam na beira da estrada, pois estava quente demais dentro do carro. Foi só no meio da tarde que o motorista conseguiu uma carona que os levasse de volta a Istambul, num táxi dirigido por um amigo seu. O táxi era muito velho. Saltava e sacolejava. Foram prosseguindo atra­vés de uma nuvem constante de poeira amarela que incendiava um pôr-do-sol já, por si só, maravilhoso. Ele falou. Então, foram para um restaurante. Tinha de ser um que fosse barato, uma vez que era ele quem convidava, e, atualmente, estava desem­pregado. Depois do restaurante, foram a uma boate, onde ele, ignorando dançarinas do ventre e cantoras, falou, falou e falou. Kate ouviu. Acima de tudo ela era uma ouvinte habilidosa. Enquanto ele falava, perguntou a si mesma se iria decidir-se a ir ou não para a cama com ele. Em sua imaginação, trocou comentários obscenos com Mary. Ela sabia que o homem que se teria aproximado de Mary, se ela tivesse estado lá, não seria, de maneira alguma, parecido com esse rapaz. Mary não teria certamente ela diria isso com uma impaciência rude olhado para Jeffrey. "Aí vai você de novo, Kate", imaginou a amiga dizendo. "Que é que há de errado com você? Pelo amor de Deus, se está querendo se foder, então vá em frente!"

Se Mary tivesse estado naquele hotel, uma noite bem tarde, teria aparecido no quarto dela um porteiro ou um outro hóspede; eles se teriam notado, um ao outro, num corredor, num elevador, num vestíbulo; sinais teriam sido trocados, rapidamente. Depois de uma noite que Mary classificaria favo­ravelmente seus instintos eram infalíveis —, ela não pensaria nele outra vez. Ou:

"Houve aquele homem que eu vi na praia em Hastings", poderia ela dizer. "Eu lhe disse, não disse? Bem, ele era bom!"

Kate estava concordando com o fantasma de Mary; ela já sabia que este amante, se ela decidisse levar as coisas para aque­le rumo, havia escolhido... uma ouvinte.

Aquele era o momento para pensar num assunto que ela não costumava considerar com muita freqüência. . . mas ali estava uma mentira, uma outra. Falsa memória de novo. Ela devia levar em consideração, honestamente, o lugar que a infidelidade tinha tido no casamento satisfatório e bem-sucedido do casal Michael Brown.

Os registros das conversas deles, que haviam estabelecido definições, se tinham, de fato, encaixado nas realidades... bem, até um certo ponto. A pequena careta irônica nada tinha a ver com a lacuna que existia entre a fórmula e o que havia acontecido. Ou será que tinha? Kate sentia que era como se um esquema de memória estivesse empurrando um outro para fora de sua mente; nesse ínterim, ela persistia com aquele com que estava habituada. O seu era um casamento feliz e satisfatório, porque tanto ela como Michael haviam compreendido, e muito no seu início, que o âmago do descontentamento, ou da ânsia insatisfeita, se preferirem, que é, infalivelmente, parte de todo casamento moderno de tudo, essa era a questão —, nada tinha a ver com qualquer dos cônjuges. Ou com o casa­mento. Era alimentada e engrandecida por aquilo que as pessoas eram educadas para esperar do casamento, que era mesmo muita coisa, porque a textura da vida cotidiana (Será que isso não era uma nova frase feita? Será que tinha suplantado uma outra, mais antiga? Que é que eles estavam habituados a dizer, que a vida era um vale de lágrimas?) era inconsistente e insatisfató­ria. O casamento tinha sido, ajustado sobre si, uma carga que não era capaz de sustentar. Tudo isso fora discutido exaustivamente bem lá atrás, no princípio. Não, não exatamente na fase 1, dedicada ao encanto, nem talvez na fase 2... estava dimi­nuindo tanto a si quanto a ele, quando zombava das ingenuida­des juvenis de ambos; eles não haviam alcançado a fase 3, muito menos as fases 10 ou 15 — abandonaram esse tipo de soleni­dade bastante depressa. Então, muito bem, mas havia sido mui­to tempo depois do casamento, crédito a ser atribuído a ambos, que tinham concordado em não se culparem um ao outro por não sentirem ânsias profundas. Por quê, então, eles ansiavam? Não sabiam. Estavam sempre ocupados demais para perguntarem a si mesmos.

A crise acontecera quando Michael se apaixonou perdidamente por uma colega mais jovem, no hospital. Naquela oca­sião, o casamento já havia absorvido muitas e muitas tensões e surpresas. Já tinha dez anos. As crianças já eram nascidas. Aquele caso foi tão perturbador para os sentimentos de Michael e de Kate se bem que não para suas inteligências, que com­preendiam tudo o que estava acontecendo com facilidade —, que não se repetiu. Ou melhor, não daquela forma. Mais tarde, ela compreendeu ele lhe havia permitido que compreendesse que estava tendo, ocasional e discretamente, e com todos os cuidados para com ela, a esposa e a sua dignidade, casos com mulheres mais jovens que não sofreriam por causa deles: casos do tipo dos que floresciam entre os delegados e as engrenagens das conferências nas grandes organizações do mundo. Ela o ha­via aceitado com um sofrimento tolerável. O sofrimento era talvez mais daquela parte dela que acreditava que não devia aprovar aquela determinada situação. Mas o casamento continuara bastante bem. Para surpresa de ambos, uma vez que esta­vam rodeados por casais que se divorciavam, casamentos que não tinham sido capazes de suportar uma infidelidade... nesse ponto, o padrão de pensamentos de Kate, ou lembranças, quase que simplesmente se dissolvia. Parte daquilo era verdade: ha­viam acertado se assegurar de que não esperariam demais um do outro, nem do casamento. Mas quanto ao resto... a verdade era que ela havia perdido o respeito pelo marido. Por que, se ele não estava fazendo mais do que o que "todo mundo" fazia, os homens na situação dele? Mas ela sentia por ele, já vinha sentindo há algum tempo, quase que como se ele tivesse um fraco por comer doces e não o controlasse. Ele se diminuindo; quanto a isso não havia dúvida. Ela se sentia maternal com re­lação ao marido. Antes, não era assim. Ter-se apaixonado, e dolorosamente isso podia compreender, por experiência pró­pria. Mas organizar sua vida consciente e propositadamente, como ele fizera, e, enquanto o fazia, "acomodando-a" com ela, é claro, de forma que pudesse ter uma série infinita de relacio­namentos sexuais amistosos e casuais com qualquer mulher que aparecesse... aquilo fazia com que ele lhe parecesse vulgar. E a maneira como se vinha vestindo e penteando o cabelo... Quando ele voltou de algum lugar no exterior, pela primeira vez, tendo tentado fazer o relógio voltar atrás, pelo menos, uns quinze anos, ela sofrera um ataque de nervos de raiva e des­gosto. Logo, é claro, tinha sido persuadida nem tanto pelo que Michael dizia, mas pelo que ele dava a entender de que ela estava com inveja: era mesquinho de sua parte.

Mas, desde a época em que compreendera o que ele estava fazendo, e que aquilo era o que poderia esperar, até que a velhice tomasse conta dele, a menos que como uma velhota que tingisse os cabelos e usasse saias curtas para que as pessoas pudessem admirar suas pernas, ainda intocadas ele conti­nuasse assim até morrer, sentia que o seu próprio valor, até mesmo a sua integridade haviam sido violados. Não havia explicação para isto, mas era uma realidade. Porque o seu mari­do que era, de todas as maneiras possíveis, um marido bom e responsável — havia decidido experimentar um número infi­nito de "casos" que eram por definição irresponsáveis, e não teriam em si outro objetivo senão sexo, ela, Kate, se sentia diminuída. Teria preferido que ele confessasse, ou melhor, sus­tentasse, como era seu direito, um sentimento verdadeiro, uma ligação verdadeira com alguma mulher, até mesmo duas ou três mulheres, que se aprofundaria e duraria e exigiria lealdade... dela mesma, também. Isso não teria feito com que sentisse como se uma ferida tivesse sido aberta em seu corpo, por onde a solidez e a força se esvaíam, enquanto ficava sentada em casa, no sul de Londres, sabendo que ele estava (só nos interva­los do trabalho, dos seus interesses verdadeiros, é claro) perse­guindo esta ou aquela atração sexual. Sentia por ele — contra todo bom senso e o que os registros lhe diziam que podia sentir — como se ele se tivesse perdido, tivesse perdido o sentido.

Era idiotice sentir isso. Era desumano, ingênuo, mesqui­nho. Ela sabia o que Mary diria se lhe contasse: que não tinha importância. Mas realmente se sentia assim. Não ia fingir que sentia algo diferente. Há alguns dias, ela teria dito que quaisquer sentimentos, ou pensamentos ou novos registros de ver­dades estavam a postos fora do palco, esperando pela oportuni­dade para entrar, uma vez que decidira não mais ocupar-se tanto em pajear outras pessoas, falando, sorrindo, sorrindo, sorrindo, e, agora que resolvera ocupar-se com as encostas de um caso de amor que ela já sentia que tinha de escalar, como a espécie de pico de montanha que todo mundo, que tenha qualquer interesse em alpinismo, tem de escalar — quaisquer que fossem essas verdades (e ela estava fazendo todo o possível para não ter de as encarar), certamente não podiam ter nada a ver com o fato de que o seu Michael tinha dúzias de casinhos vulgares com todo mundo que lhe desse oportunidade, não é? Aquela perda havia ocorrido anos atrás. Mas talvez devesse começar ali (quando se desse tempo para isso!) o seu sentimento infantil, irracional, mas absolutamente inegável, de que por causa de Michael ela se sentia como uma boneca cujo enchimento estava escapulindo, esvaindo-se lentamente.

Sentia-se assim naquele momento, enquanto observava o rapaz sentado à sua frente, inclinado em sua direção, na neces­sidade desesperada de receber dela — de qualquer pessoa que o desse — o que quer que fosse que o mantinha falando, falan­do, e sem vê-la de todo; afinal, ela já tinha feito aquela escalada, mulher mais velha, homem mais moço!

A sabedoria popular afirma que este tipo específico de caso de amor é o mais pungente, terno, poético, intenso que existe, tudo incluído, o melhor do menu. Com a possível exce­ção do seu inverso, homem mais velho e uma moça. (Se ela ia ter esse caso, o que estava na sua frente, o que estava no seu prato, será que era por causa de Michael? Seu comportamento apático, vago, sendo incapaz de dizer não, incapaz de fazer o que ela gostaria, será que se devia ao fato de que fora posta em funcionamento, como uma máquina, por Michael?) A sabedoria popular estava certa. Mas ela já o havia feito. Os ingre­dientes foram perfeitos: na ocasião ela estava com trinta e cinco anos, ele com vinte. E tinha sido secreto; ninguém soubera. Tinha sido maravilhosamente frustrado pelas circunstâncias, agridoce, condenado... tudo.

Foi Goethe, ou melhor, Goethe como era interpretado por seu alter ego Thomas Mann, que disse que o beijo era a essência do amor. Ele havia feito muitas conquistas, na sua época, dizia; mas era o beijo que era o importante.

A gente tem de ser uma mulher casada, de trinta e cinco anos, com um marido e filhos à espreita, em volta, todos os minutos do dia e da noite, para obter as circunstâncias em que um beijo tem de ser o suficiente. Não, de fato tinha havido um fim de semana delicioso, alcançado à custa de Deus sabe quanta organização e combinações e mentiras, mas, recordando, certamente o sexo não fora o mais importante. Pois, indepen­dentemente de todo o resto, nenhuma mulher em sã consciência procura um garoto por causa de sexo, um setor em que o ama­durecimento é tudo: sua vida sexual com Michael era tudo que a fantasia pudesse imaginar. Ou tinha sido... O que era agora, então? Admirável fisicamente, é claro. Emocionalmente? Mas por que isso deveria ter importância? Mary teria morrido de rir ante a sugestão de que deveria. (Agora estava pensando mais em Mary do que na época em que morava defronte a ela.) A verdade era que as relações sexuais com o marido, naquela época, agora que ela sabia que as realidades sexuais dele esta­vam nas aventuras, tão cuidadosamente planejadas, com garotas, eram uma coisa que... não que a entediassem, não, mas certa­mente ela as mantinha cada vez com maior relutância. Era como estar diante de uma refeição pesada quando não se tem fome... Não que seus apetites sexuais fossem menores, ou será que eram? Se fossem, por que ela sentia que admiti-lo seria como confessar o fracasso? Mas a coisa para a qual sentia apetite era algo no passado, daquela época em que ela e o casamento — o que ele ainda encontrava no casamento e no relacionamento se­xual de casado — haviam sido a necessidade dele, o objetivo dele: o que naquela época ele se estava assegurando de que obteria, a despeito das crianças, do peso do cuidado, do sustento e da organização de uma casa, a despeito de tudo. Uma vez, outrora, ela soubera que a vida de seu marido havia sido susten­tada por ela, pelo que eles encontravam juntos, e o centro da­quilo era a cama.

Este caso que a encarava certamente não seria uma questão de emoções delicadas e de angústia extremada. Aquele jovem era velho demais. Era mundano demais. Autocrítico demais.

Mas ela gostava dele. E ele era tão tremendamente diver­tido, especialmente quando estava sendo conscientemente atormentado pela multiplicidade de suas escolhas de estilos de vida, pela trama da vida cotidiana, pelo seu vale de lágrimas.

Mas naquela noite eles se separaram por mútuo consentimento: o pedido dele de subir para o quarto dela estava sendo adiado para a noite seguinte.

Foi para a cama sozinha, pensando que em todos os quar­tos que a cercavam os delegados se estavam despedindo, depois de semanas de agradáveis relacionamentos sexuais ou de outros tipos: despedidas adoráveis, sem dúvida, como ela também esta­ria tendo, se tivesse sido como Mary... Jeffrey era jovem de­mais para ela; não, velho demais; de qualquer maneira, ele não tinha a idade certa. De vinte a vinte e cinco... sim, ele ainda seria um "rapaz jovem", comparado com a sua condição crepuscular. De trinta e cinco anos em diante, estaria se apro­ximando do seu status"amadurecido", no jargão dele. Mas trin­ta e dois... será que a gente devia julgar as pessoas pelas atitudes que se esperam delas em virtude dos anos que viveram, a fase ou estágio delas, como mamíferos, ou como artigos na sociedade? Bem, é assim que a maior parte das pessoas tem de ser julgada; só umas poucas são mais do que isso. Ele, com trinta e dois anos, de acordo com as leis da sua sociedade, deve­ria estar obsedado com "abrir o seu caminho no mundo", com fazer um casamento satisfatório, se ainda não o tivesse feito, em criar família. Não estava fazendo qualquer dessas coisas, mas não estava livre do que se esperava dele. E via aquilo como uma escolha pura e simples; ou isto ou aquilo: "Ou eu arranjo um emprego decente e me caso, construo um lar e tenho filhos, ou continuo vagueando por aí. A metade dos meus amigos tem empregos, esposas e filhos; os outros não têm quaisquer responsabilidades e se recusam a assumi-las. Qual deles eu serei?" Liberdade ou os alçapões e armadilhas do dever... havia algu­ma coisa de démodéa respeito dele, a respeito do seu dilema. Isto ocorria porque ele podia ter um emprego se quisesse: não tinha de estar entre as legiões dos desempregados. E ainda tinha uma renda particular.

Mas realmente gostava dele...

Ela devia voltar direto para a Inglaterra, pedir um quarto na casa de um amigo... ou alugar um quarto sozinha — é claro, era isso, em casas de amigos estaria novamente ocupa­da, todos os minutos do seu tempo, ajudando e cuidando de crianças — e poderia ficar sentada tranqüilamente, deixando o vento frio soprar tão forte quanto quisesse.

Sentia-se arrastada à força, como pelo recuo das ondas numa ressaca. Isso tinha alguma coisa a ver com o seu marido, mas por que culpá-lo? Não podia continuar a culpá-lo pelo que ela era, por aquilo em que se transformara... Não devia ir para a Espanha com Jeffrey, não devia ir para a cama com ele. Ela já sabia que, quando se recordasse de Jeffrey Merton, ele lhe pareceria todo secura e repetição. Mas não se sentia capaz de reunir forças para voltar a Londres, encontrar um quarto, e ficar lá, tranqüilamente, sozinha.

Sonhou assim que adormeceu. Estava sentada num cinema. Assistia a um filme que já havia visto antes. Tinha, na vida real, assistido ao filme duas vezes. Estava vendo aquela seqüên­cia da pobre tartaruga que, na ilha do Pacífico, havia sido bom­bardeada pela bomba atômica, perdera o senso de direção e, em vez de voltar para o mar depois de ter posto seus ovos, como a natureza normalmente ordenava, dirigia-se para o inte­rior, para uma terra estéril onde morreria. Ficou sentada na escuridão do cinema e observou o pobre animal a arrastar-se lentamente, afastando-se do mar, em direção à morte, e pensou: "Ah, a foca, minha pobre foca, aquilo é minha responsabilidade, aquilo é o que tenho de fazer, onde está a foca?" Enquanto pensava, sabia que estava sonhando e, no sonho, procurou por todo lado, assim mesmo, pelo outro sonho, o sonho da foca; pois enquanto nada podia fazer pela tartaruga que ia morrer, tinha de salvar a foca, mas, exatamente como se ela se tivesse desviado, entrando no aposento errado numa casa, estava no sonho errado, e não podia abrir a porta para o certo... Onde estava a foca? Jazia abandonada entre as rochas secas esperando por ela, procurando por ela com seus olhos escuros?

Passou o dia seguinte ajudando delegados nas atividades de volta a suas famílias; ela realmente não tinha obrigação de fazer isso. Seu período de trabalho estava acabado, mas sua maneira de ser ordenava que o fizesse. À noite, depois que todo mundo se havia espalhado pelo mundo afora, juntou-se àquela classe de hóspedes de hotel que se esgueiram de seus quartos para os quartos dos outros voltando discretamente antes que o sol se levante e que os corredores recebam empregadas para o trabalho.

Passou a noite com Jeffrey e concordou em ir com ele para a Espanha, para passar o mês de agosto; mas, no entanto, era uma loucura fazer qualquer viagem pela Europa em agosto. Pessoas sensatas faziam suas viagens nos meses adjacentes. Mas seria fácil ir para o interior da Espanha, evitando a costa. Lá, eles encontrariam, à espera, a verdadeira Espanha, que era indestrutível, de acordo com Jeffrey, que a conhecia bem.

 

As Férias

 

No dia 31 de julho, ela saiu daquele hotel alto, cintilante e multinacional, em Istambul, deixando assim, com um passo, o mundo da organização e planejamento internacional, das conferências, das grandes organizações — a atmosfera do dinheiro, invisível, mas tão opulenta que não tem importância. O café e os doces, que ela havia comido antes de deixar o hotel, tinham custado duas libras, mas ela jamais pensara em perguntar qual era o preço. Na calçada, já estava numa enérgica altercação, em três idiomas, com o motorista do táxi, que demonstrava sinais de querer cobrar-lhe alguns centavos a mais.

Carregava sua única mala. Era adepta de utilizar pequenos espaços, porque tinha passado anos e anos fazendo compras e malas para quatro crianças daquela classe de pessoas que têm o melhor de tudo, e de todas as partes do mundo, à sua disposição nos balcões das lojas das ruas principais de sua cidade. Dera alguns dos seus vestidos novos e elegantes para que Ahmed levasse para sua mulher, tendo-se assegurado de que vestiam o mesmo manequim: pela incredulidade trêmula com que manuseou aquelas roupas, misturada com ressentimento apenas controlado — não contra ela, esperava, mas contra as cir­cunstâncias —, ela viu quanto tato e autocontrole haviam sido gastos durante o trabalho de Ahmed com ela, no mês anterior.

Entrou no avião usando um vestido rosa-choque, que destoava harmoniosamente com seu cabelo vermelho-escuro e com uma pele branca que não podia bronzear-se — já provocante, num lugar em que todo mundo era moreno por natureza, ou estava ficando moreno o mais rápido possível. Ela levava o Paris Match, Oggi, The Guardian, Time, Le Monde,Jeffrey tinha The Paris Trihune, The International Times, The Chris­tian Science Monitor.

Quando cada um acabou de ler os próprios jornais e os do outro, já estavam em Gibraltar e, umas duas horas depois, em Málaga, bebericando aperitivos.

Outra vez os ouvidos de Kate foram dolorosamente agre­didos, pelo espanhol muito mais do que pelo turco, já que ela conhecia a língua mais próxima dele. Por todos os lados a sua volta eram faladas línguas que encontravam facilmente o caminho para sua compreensão: fora daquele palco central de convivas e de garçons estava o espanhol, mas em murmúrios de bastidores de novo; os espanhóis eram extras e atores de pequenos papéis nas suas próprias costas.

Desde o princípio de junho aquela costa ensolarada se vi­nha enchendo. Agora estava tão cheia que era fácil imaginar que, vista do ar, a península devia parecer pressionada para baixo, as águas subindo em torno dela o azul do Mediterrâ­neo de um lado, o cinza do Atlântico do outro. Logo aqueles milhares de pessoas submergiriam com suas roupas coloridas, seus guarda-sóis, seus óculos escuros, seus hotéis, boates e restaurantes.

Numa mesa entre um alto arbusto de hibisco e algumas dentelárias, que estavam acinzentadas e não azuis sob a luz artificial, um casal que estava de costas para a multidão e demonstrando a sua preferência em não tomar conhecimento dela de vez em quando se tocava nas mãos, até ficava de mãos dadas. Uma vez ou duas, eles até se beijaram; mas suavemente, até zombeteiramente, sempre com decoro. Eles poderiam ter sido observados, também, lançando muitos olhares, na realidade lon­gos olhares para longe um do outro, não para o ajuntamento de gente, do qual faziam parte, mas para longe e para baixo, para uma praia onde brincavam bandos de jovens de várias nacionali­dades. Não dentro do mar, não; aquilo, infelizmente, se havia tornado um prazer muito problemático; as águas que cintilavam tão apropriadamente ao luar abrigavam perguntas demais. A carne estava sendo sonegada a elas. Ou quase. Um ou dois nadavam realmente, fazendo sua declaração de confiança, ou de indiferença: submeter o próprio corpo às águas daquelas costas se havia tornado um manifesto; podia-se deduzir a atitude das pessoas com relação ao futuro pelo que elas escolhiam num menu, ou pelo fato de elas se decidirem a nadar, ou deixarem as crianças porem os pés no mar. Num restaurante, um homem pediria um prato de peixe da região, com exatamente a mesma grandeza de atitude e um olhar que envolvia a sala: Estou me sentindo temerário esta noite, que outrora teria acompanhado um pedido de champanha num restaurante onde certamente não se tomava champanha. Uma moça que entrasse no mar numa manhã quente atrairia olhares, caretas e vários dar de ombros: Ela não está com medo, aquela ali. Eu não. Eu não me arriscaria. Mas se corpos estavam sendo sonegados àquelas águas cálidas onde outrora as pessoas haviam nadado e se divertido durante a metade da noite, agora a juventude de uma dúzia de países dançava ao som de violões por centenas de quilômetros ao longo de suas praias.

Os olhares daquele casal eram definitivamente desejosos; ele, porque desejava fazer parte daquele grupo, ela, porque pensava em seus filhos. Ela também observava o homem, da maneira como se observa o ansiar de alguém — pronta para, a qualquer momento, oferecer um paliativo e consolo, se sentisse que aquilo podia ajudar.

Ele era um rapaz de compleição esguia, bem-apessoado, mas não de chamar a atenção, pois sua tez o classificava entre os nativos daquela costa, olhos castanhos, cabelo escuro e liso, pele morena. Isto é, até que ele falasse.

A mulher, mais velha que ele, era quem chamava mais atenção, porque ele se encaixava discretamente no cenário. Ela pertencia à categoria ruiva. Tinha a pele branquíssima. Os olhos eram castanhos como uvas ou passas. O rosto era zombeteiro e agradável e, em torno dele, o cabelo, que estava bem cortado, tratado e penteado, caía numa onda sólida, esculpida, tão espes­so que olhar para ele punha um peso de sensação reminiscente nas palmas da mão da gente. Ou melhor, isto é o que o galanteador poderia ter sentido; os garçons sabiam quanto aquele corte tinha custado, quanto as roupas dela tinham custado, e estavam, automaticamente, aumentando suas expectativas de uma boa gorjeta.

Aquele casal poderia ter sido observado... aquele casal realmente estava sendo observado, cuidadosa e habilmente. Fo­ram minuciosamente observados no aeroporto, quando desceram do avião, e depois no pequeno ônibus, onde se tinham sentado entre os outros passageiros companheiros de viagem, e depois desde o momento em que se registraram no hotel. O quarto de­les fora reservado por telefone, da Turquia, pela Alimentação Mundial. Haviam sido examinados, etiquetados, categorizados, julgados por peritos cuja atividade durante o verão se resumia exclusivamente em observar e avaliar os seus visitantes.

Tais visitantes se dividiam, grosso modo, em três cate­gorias.

Primeiro, vinham as excursões organizadas por agências de turismo, os grupos que haviam sido reunidos em seus países de origem — Inglaterra, Holanda, França, Alemanha, Finlândia —, que tinham viajado como um todo, de trem ou de avião, que viviam como um todo enquanto estivessem ali, e que volta­riam como um embrulho. Estes eram os mais previsíveis, finan­ceira e pessoalmente. Para um gerente de hotel ou garçom era suficiente dar a um desses grupos cinco minutos de atenção bem-treinada, para compreender e situar cada indivíduo que fizesse parte dele.

Depois, vinha a categoria juventude internacional, que subia e descia pela costa em rebanhos e bandos, como pássaros ou animais, numa atmosfera de auto-suficiência feroz, de auto- aprovação. Estes eram decorativos, sempre provocando emoções violentas — inveja, desaprovação, admiração, e assim por dian­te —, mas, no todo, bastante ingratos do ponto de vista finan­ceiro: podia-se, entretanto, ter certeza de que eles envelhece­riam e se juntariam aos grupos 1 ou 3.

A terceira, e menor, era aquela de que outrora todos os viajantes haviam feito parte: os lobos solitários, casais ou famí­lias, que viajam juntos tomando suas próprias providências, suas providências apaixonadamente individuais. Estes, para aqueles peritos da indústria do turismo com o temperamento de filósofos ou de jogadores, eram os mais gratificantes, porque po­diam acabar demonstrando ser qualquer coisa, rico ou pobre, excêntrico, criminoso ou solitário. Era entre estes, é claro, que se encontrava a maioria dos casais de amantes — isto é, se se descontasse a juventude que, por definição, estava fadada a estar sempre num estado de ligação amorosa ou sexual qualquer. E, é claro, os casais que viajavam juntos sem serem casados eram mais numerosos do que antes. Exatamente como, há não muito mais do que cinco ou dez anos, os biquínis ou mesmo joelhos de fora ou ombros nus haviam sido proibidos e, atrás de avisos e ordens públicas, para não haver dúvidas, mesmo nas praias e nos terraços — a guardia civile marchava por todos os cantos para garantir que aquelas ordens fossem obedecidas —, e agora todos aqueles não faça e não pode e proibições se haviam derretido sob a pressão do dinheiro, assim também se havia dissol­vido aquele não silencioso que tornava difícil para casais, que não fossem casados e viajavam juntos, o simples entrar num hotel e pedir um quarto. Havia sido possível; tinha sido feito, mas com muita discrição e, com freqüência, fingimento por par­te dos não-casados. Agora, de cima a baixo, naquela costa tórrida, durante os meses de bacanais, enquanto as crianças galho­favam e se amavam nas areias — ou, se fossem jogadores por temperamento, nas águas cálidas e traiçoeiras, cada vez mais fedorentas, às vezes copulando tão abertamente como cães e gatos —, tornara-se normal para um gerente de hotel, um bom católico e um bom chefe de família, que em sua própria vida e por sua própria escolha se recusaria a falar com uma mulher suspeita de tal crime e poria para fora de casa a própria filha se ela o desonrasse por ter relações sexuais sem ser casada; mas esse homem recebia em seu estabelecimento limpo, honra­do, suas camas, seus bares, mulheres com homens que não eram seus maridos, sorrindo, fazendo reverências, conversando, desejando-lhes bom apetite sem ter nunca uma inflexão de desapro­vação, nem uma sombra de censura. Bem, talvez apenas a mais leve das sombras, um soupçon, suficiente para sugerir que as pressões da economia o obrigavam a aceitar aquilo, mas pelo menos ele (o gerente) ainda se dava conta de que era uma imo­ralidade, ainda que o estivesse abrigando e alimentando. Ainda lhe restavam aquela honradez e decência — tudo isso ele pode­ria transmitir, em nuanças tão suaves que o casal podia preferir apenas não tomar conhecimento.

Este casal fora classificado como um casal imoral por aque­les peritos das categorias sociais.

Também haviam sido classificados como aquele par reverenciado através dos tempos, mulher mais velha, homem mais moço. O funcionário do registro do hotel ficara surpreendido com a grande diferença de idades, quando examinara os passa­portes para preencher os detalhes para os arquivos da polícia. Não era um casal frívolo ou embaraçoso, comportavam-se com bom gosto e discrição. Mas existem convenções no amor, e uma delas é de que esta subclassificação específica — mulher mais velha, homem mais moço — deve ser desesperada e romântica. Ou pelo menos ternamente dolorosa. Talvez — assim dispõem aqueles valores não escritos, mas tirânicos, do código senti­mental — uma angústia apaixonada possa ser a única justifica­tiva para tal relacionamento, que é, socialmente, tão estéril. Será que poderia, de alguma maneira, ser tolerado naquela for­ma, que era quase casual, positivamente irônica, como se aque­les dois estivessem rindo deles mesmos? Será que eram indi­ferentes um ao outro? Decerto que não! Pois a dignidade deles devia-se a muito mais do que simples boas maneiras, assim decidiram aqueles peritos, cujos olhos estavam enrugados com as experiências de uma dúzia de verões, tornando-os capazes de lançar um rápido olhar sobre um casal como aquele, apenas uma vez, e absorver todos os detalhes de classe, temperamento sexual, dinheiro. Será que afinal aquele casal talvez não fosse um par de amantes? Não podiam ser mãe e filho... não, im­possível. Irmão e irmã? Não, não se podia acreditar que um único ventre pudesse ter produzido dois tipos físicos tão dife­rentes. Será que eram um daqueles casamentos improváveis? Não, ao ato de estarem juntos faltava a congruência de estado de espírito e de movimento através da qual se reconhecem os casados. Além disso, havia os documentos, na recepção do hotel. Não sobrava mais nada, eles tinham de ser amantes.             

Assim, eles foram julgados como pertencentes a uma categoria que exigia o máximo em termos de tolerância daquele país, cujos padrões ainda eram tão rígidos — os homens ainda senhores da sexualidade das mulheres, e excêntricos com relação àquela categoria. Eles pareciam ser amantes não apaixonados, embora de fato parecessem render homenagens à sua pró­pria condição, ficando de mãos dadas, ou beijando-se suave­mente. Era isto que causava a leve frieza, a censura dos garçons que não percebiam, é claro, que demonstravam essas reações), coisa que extraía dos amantes gorjetas muito maiores do que o necessário.    

Jeffrey estivera na Espanha antes em três ocasiões. Uma vez, aos vinte anos, vagueando ao longo da costa, como agora o faziam as crianças, que ele observava com tamanha avidez, que, ela, aquela mãe com um quarto de século de sintonização com os estados de espírito de outras pessoas, sentia quase como se fossem suas. Ela o via observar as moças muito jovens, todas bonitas, ou parecendo sê-lo por causa da luz mágica e do cenário de vegetação muito colorida, o mar que ressoava, visível como j um cintilar sólido em movimento sob o luar; toda a atmosfera da costa de verão, que era mais pungente por causa do senti­mento generalizado de que a vida daquela costa — as migrações, a adoração ao sol, o gosto de mar — estava condenada, logo acabaria, e definitivamente. Ela o observou enquanto ele ansiava pelo que tinha perdido, a liberdade dos jovens, a sua irrespon­sabilidade, e sentiu as pressões do dilema dele em si mesma. Ele não podia mais ser um deles. No verão anterior, havia sido... na Holanda. Mas no verão anterior ele já se sentiradeslocado, do lado de fora. Por causa do verão passado, ele sabia que não podia descer, sair daquele terraço e aproximar-se do grupo que cantava e dançava como outrora, "quando ele era jovem", como já descrevia a situação, embora, é claro, ridicularizando-se e gracejando enquanto o fazia. Mas ele ansiava por fazê-lo, por se dissolver naquele todo amistoso, onde tão poucas exigências são feitas. Pensava e dizia, do seu jeito ironicamente autodemolidor que estava começando a se tornar doloroso, que talvez devesse resolver ser um "hippie de meia-idade". Por que não? Estava condenado a ser ridículo, a estar deslocado, não importa o que fizesse; assim, por que não ser um desajustado de uma maneira que lhe daria prazer? Mas é claro que não lhe daria prazer. A maneira como fora criado faria com que não desse.

Meu condicionamento, maldito seja, me está enfor­cando.

Aos vinte e cinco anos ele viera para a Espanha, depois de ter terminado a universidade, e vivera, mais acima na costa, durante os longos meses quentes, de maio a novembro, com uma moça chamada Stephanie. Foram no início muito felizes, depois menos felizes, então, finalmente, ela partiu com um rapaz alemão que conhecera na praia, e lhe escrevera dizendo que ele era irresponsável, egoísta, indiferente, conservador. De­pois disso, ela se casara com um funcionário do escritório de advocacia de seu pai, em Cedar Rapids, Iowa.

Ele viera àquele país, há dois anos, para passar um verão, e tinha ficado todo o tempo em Córdoba e Sevilha, ouvindo e vendo flamenco, pelo qual tinha paixão. Sonhara tornar-se um dançarino de flamenco, como algumas pessoas sonham em se tornar toureiros. Algumas se tornam, realmente, toureiros; ele tinha a compleição e estava convencido o temperamento de flamenco. Mas um senso de ridículo ou do apropriado (ou seu condicionamento, que poderia ser descrito, especialmente por ele, nos maus momentos, como covardia) o detivera.

Posso imaginar direitinho meus pais! Eles apareceriam e pediriam para ser levados até os ciganos mais próximos. "Leve-me até os ciganos... eles roubaram o meu garotinho!"

E agora estava ali, pela quarta vez, e em agosto o que era suficiente, por si só, para fazer com que ele se sentisse um estrangeiro, um principiante. Pois, como todo mundo que já passou mais de um mês num país, entregue à própria sorte e sem muito dinheiro, ele se sentia como um nativo do país; e era humilhante para ele estar ali, numa época em que todos os nativos, com toda a razão, é claro, tinham apenas um pensa­mento, o de que o seu país não era deles, que havia sido ven­dido temporariamente ao turismo.

O país estava corrompido, arruinado, aviltado, comparado com a primeira vez em que ele estivera ali.

Discutiam aquilo exaustivamente, enquanto observavam os rapazes e as moças dourados a se divertirem à beira do mar poluído.

Quando ele viera pela primeira vez, no início da década de 60, havia orgulho, dignidade; existia uma boa disposição para prestar pequenos serviços, sem que se pedisse, sem querer dinheiro; existia uma dimensão nos espanhóis, mesmo nas costas já exploradas, que ia muito além do comercialismo. Havia uma humanidade em... uma estrutura... uma profundidade... Ele começou a rir de si mesmo, quando ela riu. Havia lágrimas nos olhos dele, certamente não pelos espanhóis.

Quanto a ela, tinha vindo de carro com o marido e as quatro crianças, para umas férias prolongadas de camping — ela achou difícil de dizer, mas se obrigou — há cerca de quase vinte anos. Eles fizeram parte das primeiras marés de turistas. Ao longo daquela costa, agora cheia de hotéis e de acampamen­tos de férias, não havia nada... nada mesmo. Areia, onde uma grama rala crescia, se estendia de um promontório a outro. Acampados sob os pinheiros, eles não tinham visto ninguém, durante dias, numa ocasião. Também tinha lembrança de todo tipo de gentilezas espontâneas do povo da região — ela era mais do que capaz de fazer jus às palavras dele: — dignidade, orgulho, e assim por diante e etc. e tal.

Começou a contar como, naquela época, quando era raro um carro estrangeiro entrar numa cidade, um exército de rapa­zes e de meninos brigava para ganhar alguns centavos para guardar o carro, vigiando-o a noite inteira; como, quando os Brown faziam suas refeições bastante frugais em restaurantes, havia uma dúzia de rostos famintos colada no vidro, de modo que as crianças da família Brown tinham seus contos de fadas ilustra­dos para elas — aqueles eram os olhares do garotinho pobre para os ricos, mas ele é percebido, e é trazido para dentro pela família gentil, ou compensado por uma madrinha encantada, às vezes sendo levado, embora definitivamente, daquelas ruas po­bres para o céu. Ela estava falando a respeito das crianças ves­tidas de trapos e sem sapatos, crianças com feridas e moscas que se arrastavam em seus rostos, e para dentro de seus olhos, crianças com as barrigas inchadas por causa da subnutrição. Mas, enquanto falava, ela estava pensando em como, uma vez, e não há muito tempo, aquelas coisas tinham parecido sintomas superficiais, que logo seriam corrigidos pelo uso do bom senso geral, elas ainda não se haviam apresentado como a condição genérica dos homens, que logo seria agravada e acentuada em toda parte. Estava pensando em como, numa outra época, uma conversa daquele tipo soara quase que como um registro para um mundo melhor, ou como uma declaração de interesse. Agora soava como imaturidade. Dentro de instantes eles dois, Jeffrey e ela, estariam sobrepujando-se um ao outro no mais comum dos jogos verbais da classe média: qual deles adquirira maior graça por estar próximo do sofrimento de outras pessoas.

Aquele pensamento não era dela mesma, era de seu filho, James. Ele ficava furioso sempre que gente pobre fosse mencionada — geralmente por Eileen, ou por Tim, que se dedi­cavam a serviços sociais de tipos diferentes. James via a solução simples assim: uma revolução. Qualquer coisa que fosse menos que isso era um insulto aos pobres sofredores, e uma perda de tempo. A revolução clássica — como a de Castro.

Mas os quatro filhos tinham todos, desenvolvido suas pró­prias posições, muito diferentes umas das outras. Eles também desenvolveram opiniões individuais com relação ao turismo, com relação às maneiras de viajar tão infatigavelmente por tan­tos países.

Stephen, o mais velho, estava à frente — era uma maneira de ver as coisas — de todos eles. Sua opinião de que todos os governos eram igualmente reacionários o deixava livre para viajar para qualquer lugar, exatamente como os egoístas e os indiferentes, a quem ele passava tanto tempo atacando. Eileen, que não se interessava por política, viajava sem escrúpulos de consciência, como Stephen. James tinha mais dificuldades do que qualquer um: por exemplo, ele se recusava a visitar a Gré­cia, mas havia visitado a Espanha, no ano passado, porque esta­va, segundo ele, aperfeiçoando sua educação política. Conside­rava Israel fascista demais para entrar lá, mas viajara com equa­nimidade pelas ditaduras militares do Oriente Próximo e Mé­dio. Tim acreditava que o fim da civilização estava próximo, e que dentro de pouco tempo estaríamos recordando a época presente, imersos num barbarismo de extensões mundiais, sob a forma de uma burocracia mundial, e que daquele lugar terrí­vel o presente pareceria uma idade de ouro desaparecida: ele fazia viagens como alguém que está provando a última garrafa de uma safra rara.

Quanto à mãe deles, ali estava ela, sentada com (não havia nenhuma outra palavra para descrevê-lo, pensava ela) um jovem amante, tomando aperitivos num terraço na Espanha: eles iriam assistir a uma tourada no dia seguinte porque ele as ado­rava. Por motivos estéticos.

Antes de os dois irem para o quarto, desceram até a praia por trilhas que recendiam a deandro, loção de bronzear e urina, e se deixaram ficar no mesmo nível que a multidão de jovens, os pés na areia batida. Já tarde, a lua em quarto crescente pairando alta sobre o mar, e os grupos já muito menores ao longo dos terraços, alguns dos jovens se haviam acomodado para dor­mir e estavam deitados, abraçados, em qualquer lugar, num abrigo de uma rocha, numa toalha estendida, em camas de campanha. Esteiras de palha haviam sido estendidas na areia e sobre elas alguns ainda dançavam, os cabelos esvoaçantes, os olhos brilhantes e sonolentos. Perto da água, um grupo cantava acompanhando um violão tocado por uma moça que estava sentada numa pedra, como uma sereia.

Agora Kate estava tomando cuidado para não olhar para o companheiro; sabia que certamente, dado o estado de sensibilidade emocional em que se encontrava, ele se ressentiria dis­so: ela já estava fazendo comparações com as reações de seus filhos. Mas se lembrava... não de sua juventude, que aquilo estava distante demais, era diferente demais para ser compa­rada com aquele contexto. Estava pensando naquela época, há dez anos, quando estivera apaixonada por aquele rapaz. Aquela dor, um anseio por algo além de uma carreira de tempo, era comparável com o que ele sentia naquele momento. Ela vivenciara aquilo tudo e saíra alcançando o outro lado... bem, não tivera alternativa. Assim, é claro, ele o faria. Mas a despeito do que as pessoas diziam sobre a pungência daquela espécie de experiência, e o que ela mesma dizia, não gostava de recordar aquela época. Tinha sido uma falsa memória, outra vez, ela enfeitara tudo aquilo em sua mente, tornando-o alguma coisa de apresentável, para se encaixar na convenção "mulher mais velha, homem mais moço". Mas, realmente, fora humilhante. Sim, olhando para todas aquelas criaturas jovens e bonitas, todas se movendo ou indolentemente recostadas ou dormindo em suas posturas de graça natural, ela dizia a si mesma que aquela época havia sido horrivelmente humilhante. A razão havia sido simples, e porque o velho Goethe (ou Mann) falara em "dar calor àquilo". Um longo tempo de casamento, um lon­go tempo de uma relação sexual gratificante, havia absorvido o anseio sexual, o anseio sexual físico, tornando-o a expressão comum e fácil de emoção, uma linguagem de sentimento. Mas o garoto não tivera praticamente nenhuma experiência sexual, compreendera apenas a fantasia, a fantasia romântica. A sexua­lidade dela para ele fora aterrorizante... ou teria sido; ela a tinha sufocado, é claro, aprendendo que a linguagem da carne era para os amadurecidos, descobrindo, com os primeiros leves sintomas de mal-estar, a sua dependência daquele longo tempo de conversa marital. Sentira, quando estava com ele, como se ela tivesse um segredo ou uma ferida que tinha de esconder. Jovem, como aquela moça de vestido branco (uma outra con­venção, como um retrato fora de moda: Moça de vestido branco com açucenas), um beijo havia parecido um portão de entrada para um mundo que havia, na realidade, se tornado tudo que ela imaginara até que ela tivesse de olhar para ele através dos olhos de uma pessoa de vinte anos de idade, da escola pública e da universidade inglesa, uma virgem, no que dizia res­peito às mulheres.

Ela sabia que não devia aumentar o desespero selvagem de seu companheiro, que estava misturando com tanta vergonha animal, como a sua com aquele rapaz, deixando que ele soubesse com quanta facilidade ela era capaz de partilhar o que ele sentia.

Enquanto ficavam ali a menos de vinte passos dos jovens, mas absolutamente separados deles, uma moça passou sorrindo e arrastando os pés nus na areia pelo simples prazer da sensação. Ela olhou para Jeffrey. O sorriso foi obscurecido enquanto ela lhe apresentava um rosto inexpressivo, e depois continuou, sor­rindo. Kate reconheceu aquele rosto: era o que se mostra a alguém estranho ao bando, ao grupo da gente. Tentou colocar-se no lugar da moça tinha cerca de dezessete anos, com os braços e pernas finos e morenos, o cabelo negro comprido e o que parecia uma absoluta auto-suficiência para poder ver Jeffrey como um homem suficientemente velho para poder ser olhado daquela maneira. Conseguiu fazê-lo com dificuldade. Então fora assim que ela mesma olhara para homens de mais de vinte e cinco anos quando tinha aquela idade. Ela podia apenas lembrar-se de que aquelas criaturas divinas tinham tido, acima de tudo, o encanto da responsabilidade, ou do poder no mundo adulto. Fazendo-se retornar ao seu próprio estágio ou camada social na comunidade humana, podia ver apenas um rapaz, cuja força estava toda se esvaindo no reconhecimento de suas próprias fraquezas e não sendo derrubada sob o peso delas. Ele se virou para ela e disse:

— É bom que você esteja aqui ou eu seria arrastado de volta para esse negócio outra vez.

Diante daquela declaração da maior franqueza, de qual a razão por que ela estava ali, com ele, seu coração, de fato, deu um salto obrigatório, ou fez uma careta de dor, mas nada de mais, pois estava realmente muito ocupado com reminiscências dolorosas para se interessar por pequenas considerações: as memórias formais de todos os tipos se estavam desgastando, tornando-se tênues, quase transparentes. Se lhe tivessem per­guntado, digamos, no final de maio, naquela tarde em que o convidado do marido, conhecido de maneira tão casual, viera ao seu jardim (quando a série de oportunidades que a trouxera até ali havia começado?), se lhe tivessem perguntado naquela ocasião que grupo ou conjunto de circunstâncias seria mais bem calculado para fazê-la tomar conhecimento de uma situação, de um estágio na vida que ela tinha de reconhecer, não impor­tando quão doloroso fosse, então poderia ter escolhido aquele: estar de pé à beira de um quilômetro de areia suja e desgastada, sob um luar banal, observando cerca de uma centena de jovens, alguns mais jovens que seus próprios filhos, ao lado de um rapaz que — não adiantava fingir que fosse diferente — a fazia sentir-se maternal. Ela quase poderia ter dito: "Calma, calma, logo vai melhorar", e tê-lo abraçado. Na realidade, ela estava pensando como mãe: "Então, ande, vá em frente, você terá de passar por isso, e será muito melhor se eu não estiver em lugar nenhum por perto; só que, é claro, tenho de ficar obser­vando e guiando de algum lugar que não esteja à vista..."

O hotel deles não ficava na faixa cintilante ao longo da parte luxuosa da cidadezinha. Ficava atrás, na parte mais velha, que em meses normais só era habitada por espanhóis. Mas eles entraram num vestíbulo iluminado e cheio de atividade como se fosse dia, pois aquele mês era de férias e o sono podia ser adiado. Casais de todas as nações estavam sentados por ali, bebendo. O restaurante estava aberto, e muitos ainda estavam jantando. Era mais de uma hora. O funcionário da recepção entregou a chave ao Sr. Jeffrey Merton e Sra. Catherine Brown sem nenhum empalidecimento de seu sorriso, mas seu corpo expressou desaprovação ofendida, sem saber que o fazia.

Subiram para um quarto que não era o melhor do hotel: ela estava com muito dinheiro, graças ao trabalho muito bem remunerado, mas descera proporcionalmente ao nível dele, que procurava assegurar-se de que o dinheiro da avó continuaria a preservar sua independência nenhuma parte dele estava investida, ele insistira em convertê-lo em jóias e quadros que estavam sob a guarda de um banco. Era o tipo do hotel que ela e sua família poderiam ter escolhido: despretensioso, anti­quado. O quarto tinha um balcão que dava para uma pequena praça pública; dali, vinha uma música alegre e bem-ritmada, o som de vozes. Ela foi para o balcão. Ele a seguiu. Beijaram-se, amantes experimentados. Ele saiu para ir ao banheiro. Lá em­baixo, na rua empalidecida pela lua, as pessoas se sentavam nos degraus das portas, conversando. As crianças, mesmo as peque­nas, estavam sentadas junto com elas ou brincavam por perto. A temperatura era cálida e suave, e a pequena música isolada intensificava a quietude geral. Aquela gente dormira a tarde inteira e não iria para a cama até que o céu clareasse. A cidade parecia estar mais desperta, mais florescente e alerta do que jamais estivera durante o dia. Nas cidades do sul da Espanha, a noite, no verão escaldante, acorda uma outra vitalidade, reu­nindo numa teia de sociabilidade, que corre de rua para rua, para travessas e para jardins, os gritos de crianças, o latido de um cachorro, música, mexericos. Este é o momento para se sentar e observar, para conversar, para viver. De todas as partes na escuridão tranqüila, dos focos de luz onde a rua estava iluminada, subiam vozes.

Jeffrey tinha voltado para o quarto. Ela saiu do balcão e foi em direção à cama para descobri-la quando ele se lançou sobre ela, de borco. De início, sua feminilidade animou-se e gritou que aquilo era um insulto: eles só tinham feito amor uma vez e supunha que fossem amantes. Em seguida, ela se viu pousando dois dedos sobre o pulso dele e uma mão sobre o ombro, para avaliar qual era o estado e a temperatura dele. A pele estava quente, mas, se fosse por isso, o ar também estava. Parecia exausto. O que ela podia ver do rosto dele estava purpúreo e suado. O pulso lento. Usou toda a sua força para virá-lo, para colocá-lo na cama, para cobri-lo com o lençol. A vermelhidão desaparecia do rosto dele rapidamente: agora estava pálido, com aspecto doentio. Poderia não estar com febre, mas certamente não estava bem.

Enquanto sua feminilidade continuava a gritar, ou melhor, a fazer queixa formal de que estava ultrajada, e de que devia sentir-se insultada, ela voltou para o balcão, no fundo aliviada. Apanhou uma cadeira de encosto reto do quarto, que parecia abafado bem como morbidamente escuro, comparado com aque­la noite suave e arejada sobre uma rua que ainda se movimen­tava e ria. Pôs a cadeira no canto do balcão, e se sentou ali. Usava um robe de algodão branco que lhe deixava braços e pescoço nus para receber as brisas. Ali estava sentada, naquela situação que era a mais familiar de todas as situações, alerta, vigilante, enquanto um ser humano que era mais jovem do que ela dormia. O foco intenso do luar sobre o balcão logo mudou de posição. Ela deslocou a cadeira de tal maneira que suas pernas e braços pudessem ficar na luz, mas que a cabeça ficasse na sombra — exatamente como se a lua fosse o sol.

A cerca de uns cinco metros abaixo, na calçada do outro lado da rua, dois homens conversavam. Eram dois pais, ho­mens robustos, de ternos leves de verão, amarrotados, que dali pareciam estonteantes como a areia na praia sob o luar. As dobras apareciam negras. Mais além, ramagens se ondulavam: a praça onde a música havia parado. Vez por outra passavam carros, fazendo barulho, demonstrando que a música estivera mais alta do que parecera. Nos intervalos entre as aceleradas e o som das buzinas podia ouvir as vozes dos homens com bastan­te clareza. O espanhol entrava em seus ouvidos em massas informes ou blocos maciços inassimilável. Era uma cortina entre ela e a Espanha que ela não conseguia levantar. Mas era uma cortina quase transparente, diferente do turco de até aque­la manhã, apenas. Tinha momentos de transparência. O por­tuguês que estava nela, como uma porta aberta para a metade daquela península, uma grande parte da África e uma grande parte da América do Sul, às vezes se encaixava nos sons que ela estava ouvindo, às vezes não. Uma língua da qual ela nada sou­besse, como o alemão, era toda espessa e impenetrável. Mas ouvir o espanhol era como ver alguma coisa através das árvores afastadas de uma estrada que se está percorrendo em velocidade. A conversa quase compreensível importunava. Quando ela se debruçou bem sobre o balcão, recebendo o luar sobre todo o cor­po, num jato frio de brancura, de uma forma que se sentiu tão exibicionista que não conseguiu impedir-se de olhar para um lado e outro ao longo da fachada daquele hotel (não, ela era a única pessoa do lado de fora nos balcões), quando ela se debruçou bem, de forma a poder ver os gestos, as posturas, as posições dos dois corpos imponentes, então pôde compreender muito mais. Uma inclinação dos ombros gordos ou um abrir de mão violento completavam as mensagens enviadas pela entona­ção — ela estava quase entendendo espanhol. Eles falavam sobre negócios, isto era claro. Entretanto, não ouvira uma pa­lavra que lhe dissesse isso. Suas vozes eram as de homens que falam a respeito de dinheiro; seus corpos falavam de risco e lucro. O guinchar de um carro engoliu a conversa, (depois) a cuspiu de novo: era uma quase inteligibilidade, como janelas envidraçadas com folhas de quartzo em vez de vidro. As vozes se calaram. Um cheiro de tabaco. Ela olhou e os viu acendendo charutos. A fumaça flutuou no ar, afastando-se como tênues neblinas, e mergulhou entre as folhas. Um homem gordo foi embora; o outro ficou, olhando em volta como se a noite lhe pudesse oferecer um adiamento para o sono; depois, ele também se foi. Dentro de poucos minutos eles estariam empilhados no chão de ladrilhos de um banheiro, prontos para serem apanhados por suas esposas e postos para lavar. Os homens estariam se enfiando na cama, ao lado de duas mulheres gordas e pálidas.

Querido! Chêri! Caríssimo! Caro!

Ela examinou o quarto, tão escuro por causa daquele esplendor de luz fria lá fora. Na cama, o seu amante jazia com o corpo relaxado. Podia ouvir-lhe a respiração. Não gostou da maneira como soava. Se fosse um de seus filhos, estaria pensando em chamar o médico no dia seguinte... Tinha de parar com aquilo imediatamente!

Já eram quase quatro horas. Afinal as ruas começaram a se esvaziar, embora na praça as pessoas ainda se reclinassem nos bancos, inspirando a noite, sonhando, fumando. Agora os degraus da escadaria abaixo estavam vazios. Mas duas crianças brincavam sem fazer barulho, encostadas na parede do hotel, enquanto o pai se deixava ficar sentado num banco junto delas, as costas contra os tijolos, que provavelmente ainda estavam quentes. A mãe saiu e disse que as crianças deveriam ir para a cama e elas começaram a choramingar, protestando. Não se precisava de espanhol para compreender o que todo mundo esta­va dizendo. Enquanto papai se mostrava severo, mamãe, exclamatória, as crianças se agarravam à vida que seus pais queriam enterrar no sono. Então mamãe trouxe uma cadeira para fora e sentou-se junto do marido; uma criança se sentou no colo dela, a outra no dele. As crianças estavam cabeceando de sono. Os pais conversavam baixinho: empregados do hotel, talvez da cozinha? Agora os carros eram poucos. A cidade estava tão quieta quanto era possível, naqueles meses frenéticos dos turistas.

Kate estava longe de ter sono.

Sentia-se tentada a deslizar para dentro da grande cama e dormir, apenas para evitar... o que teria de fazer, em algum momento.

Além disso, ainda era capaz de saborear momentos como aqueles, sem pressões de qualquer espécie, depois dos anos de vida dentro do horário das necessidades de outras pessoas. Ainda podia acalentar o pensamento: "Se eu não for para a cama até o sol raiar, não tem importância. Não preciso levantar- me antes do meio-dia se eu não quiser".

Fazia apenas três anos que recuperara aquela liberdade — é claro, era para isto que teria de olhar, na época do crescimento das crianças. Mas ela poderia ter reclamado o direito à liberdade antes. Anos antes. Mary Finchley, por exemplo? Se ela estivesse com vontade de ficar na cama até o meio da tarde, ficava, e gritava para as crianças lhe trazerem a comida ou um chá. Nesse meio tempo, entre Kate, a moça que se casara com Michael, e a Kate de três anos atrás, que foi quando ela se havia conscientizado do fato de que havia alguma coisa a exa­minar, a putrefação havia começado.

O momento que caracterizou o clímax de três anos atrás havia sido quando Tini, na época nos seus dezesseis anos tumul­tuados, se voltara contra ela na mesa do jantar e gritara que ela o estava sufocando. Aquilo lhe fora arrancado das entranhas, era fácil de ver. Toda a família estava presente, todo mundo havia ficado chocado — oh, sim, eles tinham compreendido que aquele era o evento de uma nova fase, destrutivo, que anunciava uma ameaça àquela unidade que eles compunham; todos haviam mergulhado no tato, amenizando aquele momento de desespero e medo verdadeiros, tanto para ela como para o garoto. Pois aquilo havia sido arrancado à força dele, e ele estava chocado com o ódio que havia mostrado. Normalmente, naquela família bem-humorada (era assim que eles pensavam deles mesmos), bem-ajustada, com o esforço de todos para mantê-la assim, tais conflitos eram sempre expostos, discutidos, postos de lado. Às vezes de maneira brutal. Podia-se dizer que o espírito da fase 2 do jovem casal — discussões para suavizar os limites dolo­rosos da fase 1 — havia sido posto em funcionamento pela sua família em crescimento, anos depois. Ninguém poderia ter dito — quem? Kate estava imaginando uma espécie qualquer de crítico, talvez um assistente social — que aquela era uma famí­lia na qual as coisas eram sufocadas, escondidas, e tinham de ocultar-se na clandestinidade.

Entretanto o fato de o garoto ter de explodir e se abrir daquela maneira, diante de todos eles, e sob pressão, mostrava que talvez todo o gracejo, o psicologismo e a crítica não fossem a franqueza terapêutica e saudável que ela imaginara, que todos eles haviam imaginado, mas uma forma de enganar a si mesmos. Uma folie familiar, como a loucura que encolhe os amantes que se destroem a si mesmos. Se existe uma folie à deux,então com certeza que existe uma folie à... tantos quantos se quiser!

Recordando uma típica cena familiar, durante a adoles­cência dos quatro filhos, ela viu a si mesma numa extremidade da mesa, terna e estofada, com a pressão assustadora de quatro egos em luta e em expansão, que estavam todos, de uma maneira ou de outra, em conflito ou confluência com ela, um foco, um ponto de equilíbrio; e o marido na outra extremidade, tolerante, irônico... um pouco cansado. Mas não realmente implicado, não envolvido, pois ele trabalhava tanto que tinha pouca energia emocional de sobra para dar à família, às quatro crianças... monstros. Cinco monstros: ela estivera tão envol­vida com o crescimento, as crises constantes, o impulso delas para cima e para fora dela mesma, com todos os sentimentos, que afinal achara difícil separar-se delas. Ainda achava. No entanto a pressão dos monstros sobre ela, as exigências insis­tentes haviam terminado. Bem, quase, exceto pelo mais moço, Tim.

Naquela determinada ocasião retirara-se da mesa tão logo pôde, sem que parecesse uma garotinha fugindo para fazer birra ou para chorar. Mesmo assim estivera como um gato ou um cachorro que foi chutado inadvertidamente por um amigo. Ela sabia enquanto ia. Estava consciente de cinco pares de olhos não olhando para ela deliberadamente. Tinha ido para o quarto enquanto o garoto fugia, com vergonha, porque havia gritado, tendo mantido a cabeça baixa sobre o prato para acabar de comer o pudim.

No quarto, ela se havia sentado e pensado, tentado pensar, enquanto as emoções turbilhonavam. Sentira-se quase enlouquecida sob a pressão do velho sentimento: "Não é justo, que é que eles esperam que eu faça?"

Era culpa dela que Tim fosse muito duro consigo mesmo, com os outros... com ela? Os outros três haviam passado, imperceptivelmente, de crianças a adolescentes. Todos tempes­tuosos e problemáticos, certamente, mas a explosão de Tim para a adolescência abalara todo mundo. Todo mundo discutira, compreendera. Havia muita manifestação verbal entre aquelas espertas crianças modernas. Tim era julgado por todos eles como mais monstruoso que qualquer um; e Kate como a sua vítima. Mas a única coisa que não havia acontecido — tinha de voltar àquele ponto outra vez — fora evasão, segredo. Durante aqueles anos em que se sentira como se estivesse trancada para sempre, numa grande caixa, com quatro egos explodindo per­petuamente, havia consolado a si mesma com o "mas nada está sendo escondido, tudo está sendo dito". E havia comparado sua família com outras — não com os Finchley, eles estavam além de comparações, tinham suas próprias leis — e todas as famílias com adolescentes eram assim. No centro de cada uma havia uma mãe, uma mulher, fagulhas saltando para fora dela em todas as direções enquanto as psiques se desgastavam umas nas outras como seixos numa praia, sob uma tempestade. Havia ficado hiper ansiosa por ser dominadora, controladora, por mantê-los mais infantis do que deveriam ser? Ficara ansiosa da mesma forma por lhes dar liberdade demais, tratá-los como adultos cedo demais, mas talvez este fosse o erro, e Mary esti­vesse com a razão, ela que nunca dispensava um segundo de pensamento sobre como ela deveria se comportar — simples­mente seguia o seu estado de espírito. Mas não era uma questão de dominação ou não, tudo tinha a ver com envolvimento. Será que estivera envolvida demais com tudo, mergulhara em si mesma, fundo demais, de forma que as crianças não haviam tido algum ponto fixo forte em que se apoiar? Mas certamente o homem, o pai, não deveria sê-lo? Talvez, afinal, Michael tivesse estado com a razão o tempo todo, ela estivera errada em criti­cá-lo: seu grau de envolvimento havia sido o certo. Pois por que haveria de ser necessário que uma mãe tivesse de estar ali como rebolo no centro de tudo? Recordando, parecia que ela estivera à disposição de todo mundo, sempre disponível, sempre criti­cada, sempre sendo sangrada para alimentar aqueles... mons­tros. Recordando sua própria adolescência, nada conseguia ver de semelhante. É claro que tivera uma intimidade forte, muito forte, com sua mãe até que ela morresse, no ano anterior à viagem para Lourenço Marques. E seu pai estivera fora durante a maior parte da guerra, deixando as duas, mãe e filha, juntas. Mas não podia acreditar que tivesse sido a mesma coisa de maneira nenhuma.

Mas de que é que adiantava estar sentada ali, pesando e analisando... criando desculpas? Pois Tim havia explodido, gritando que ela o sufocava, que o tratava como a um bebê, e o fato de que aquilo não fora apenas "conversa de amor" de rotina a denominação dada pela família às suas críticas de cada um foi demonstrado pelas reações de todo mundo.

Muito bem, então ela fora dominadora demais com ele.

Mas o notável era que bem naquele instante, sentada ali naquele balcão iluminado pelo luar, ela estava bastante cônscia da sua presente situação, de pé como se estivesse num penhasco, com o vento norte soprando direto sobre o seu rosto, que a desnudaria de carne, forma e cor. Naquela ocasião também percebera desde o início o perigo para o caçula de uma família quando ele estivesse amadurecendo. Evidentemente, não era suficiente saber uma coisa, senão ele não teria berrado: "Pelo amor de Deus, me deixa em paz, você está me sufocando!"

Tudo que ela havia feito fora dizer-lhe para não esquecer alguma coisa, agora não conseguia lembrar o que —- será que aquilo fora a questão, havia sido o quê e não o como da coisa? Mas não conseguia lembrar-se, aquilo se havia perdido. Perde­ra-se porque ela não queria lembrar-se, havia organizado o incidente de forma que pudesse tomar o seu lugar entre as memórias formais, memórias que haviam estado em sua mente durante dez, quinze anos, um quarto de século? Mas realmente tinha havido uma moça que era toda energia vital e individuali­dade, e com experiência muito mais ampla do que a maioria (por exemplo, o ano, na África oriental portuguesa, passado consciente, se não teatralmente, como uma jeune filie); uma moça com o temperamento que combina com o ser ruiva (ela havia recebido cumprimentos por ter aquele temperamento desde a sua infância mais remota, e disto conseguia lembrar-se muito bem); uma moça que se destacava, que se tinha desta­cado, onde quer que estivesse, entre outras, não apenas em vir­tude daquele colorido dramático, mas também por sua per­sonalidade e atitude. Bem, será que algo daquilo não fora verdadeiro? Será que estava enganando a si mesma com aquela descrição? Pensava que não. Aquela moça, muito cortejada por uma variedade de homens, se casara com o seu Michael. De­pois de inicialmente terem vivido juntos durante um ano (fase 1), eles se haviam tornado um casal jovem, atraente e um cen­tro para outros ainda não casados, ou que logo se casariam, ou casados mas a quem faltava o charme deles. Ou a personali­dade? Entretanto, aquele casamento havia sido oferecido como um sacrifício quase que extravagante às convenções; eles haviam continuado a se comportar como um casal que vive junto, apai­xonados, amando, dignos de amor. O primeiro bebê alterara aquilo, mas não muito. O bebê (agora Stephen) fora encaixado na vida de um jovem casal atraente, que fazia coisas com bas­tante mais vitalidade que os outros. O bebê os acompanhara nas festas, viajara com eles, não a impedira de assistir a um curso de conferências sobre a influência sarracena na poesia proven­çal. Era verdade que continuar vivendo como se não tivesse havido nenhuma mudança, com o acordar durante todas as noi­tes, e o ter de levantar-se cedo, e o sempre estar presa ao horário da criança, fora difícil. Mas, na época, aquela torção de seus hábitos não parecera — como ocorreu depois — a coisa importante que foi. Quando aquele primeiro bebê fez um ano, ela estava grávida. Nas mentes de ambos os pais estava a idéia de que poderiam continuar vivendo daquela maneira com duas crianças.

Qualquer um poderia ter-lhes dito que era absurdo.

A mudança verdadeiramente profunda não veio com o primeiro, mas com o segundo bebê (agora uma moça chamada Eileen). Com um bebê, continuaram a ser um jovem casal, ain­da pagando radiantemente um tributo não-obrigatório às con­venções, às exigências sociais. Com o segundo, a ênfase deslo­cou-se de posição violentamente. Vendo como a vida deles se tornara diferente, decidiram ter o terceiro "para acabar logo com isso", um espírito muito diferente; e logo eles tinham uma casa, uma hipoteca, um carro pequeno, uma arrumadeira regu­lar, uma vida metódica, tudo para o bem das crianças. Era ex­traordinário ver durante quanto tempo aquele casal continuou a pensar em todos aqueles objetos estranhos, carro, casa e assim por diante, como coisas que nada tinham a ver com eles pes­soalmente — não para o bem deles, de maneira alguma, mas apenas por causa de seus filhos.

Quanto a Kate, ela estava adquirindo virtudes difíceis de serem encontradas, autodisciplinas. Recordando, agora, a moça bonita, mimada pela mãe, com aquela deferência muito levemente zombeteira, que é oferecida às moças, e comparando-a com a mesma jovem mulher de apenas cinco anos depois, ela se sentiu tentada a gritar que tudo aquilo tinha sido uma arti­manha gigantesca e suja, o mais monstruoso dos cinismos. Re­cordando, podia ver-se apenas como uma espécie de ganso branco na engorda. Nada na homenagem que seu avô prestava à feminilidade, ou na maneira como sua mãe a tratava, a havia preparado para o que ela ia ter de aprender, e logo.

Com três crianças pequenas, e depois quatro, ela tivera de lutar para adquirir qualidades que não haviam nem estado no seu vocabulário. Paciência. Autodisciplina. Autocontrole. Auto-abnegação. Castidade. Adaptabilidade com relação aos outros acima de tudo. Isto sempre. Essas virtudes, necessárias para se criar uma família de quatro crianças, com uma renda limitada, ela realmente adquiriu lentamente. Havia ad­quirido as qualidades antes de ter pensado em lhes dar nomes. Podia lembrar-se com muita clareza do dia em que, lendo certas palavras que pareciam fora de moda, num romance antigo, ha­via pensado: "Bem, é isto que isso é: levantar-se várias vezes a noite inteira, durante meses seguidos, e sempre de bom hu­mor; e é isto o que isto é: não ter relações com Michael quando uma das crianças estava doente. E quanto a ser uma esponja para absorver pequenos desejos, de forma que tudo que não fosse uma criança parecia um horizonte distante demais para jamais ser alcançado de novo... qual era a palavra para aqui­lo? Ela havia achado divertidas as grandes palavras para expri­mir o que se espera que toda mãe se torne. Mas virtudes? Realmente? Realmente virtudes? Se fosse assim, eles a haviam traído, haviam-se tornado inimigos. Olhando para trás, a partir da posição de ser uma mulher casada, quase de meia-idade e mãe, para a sua posição quando moça, quando vivia com Mi­chael, parecia-lhe que não eram virtudes o que havia adquirido, mas uma forma de demência.

Na manhã seguinte à explosão do seu caçula, aconteceu casualmente que estava na rua com uma cesta de compras na High Street, e que ficou presa num pequeno engarrafamento de trânsito. Observou uma mulher bem jovem, seguindo rua acima, com um bebê num carrinho. Aquela moça, de talvez dezenove anos mais ou menos a sua idade quando tivera o primeiro filho —, usava uma saia curta, tinha o cabelo vermelho-escuro rebelde, olhos verdes, uma energia calma. Entre­tanto, parecia uma garotinha brincando de ser mamãe. Empur­rava o carrinho com uma das mãos enquanto carregava uma grande sacola de verduras na outra. Ia andando como uma mulher viking. Kate desviou sua atenção daquela moça para as outras. Era como se, de repente, a rua se tivesse enchido de moças, moças solteiras, ou moças com bebês, e todas elas se moviam sim, era ali que se podia vê-lo, na maneira como se moviam com um balanço gracioso, tranqüilo, com liber­dade. Era autoconfiança. Era tudo que ela, Kate, havia perdido pelo excesso de consciência de si mesma, pela percepção das conseqüências do que ela fazia.

Depois, tendo absorvido da maneira mais consciente pos­sível a verdade daquelas moças era dolorosa, a comparação de si mesma com elas —, observou os movimentos, os rostos de suas contemporâneas. Vinte anos faziam a diferença, isso era tudo o que era necessário para transformar aqueles rostos bravos em rostos cautelosos e desconfiados. Elas tinham um bom temperamento idiota, o bom temperamento da vítima, uma horrenda gentileza indefesa como a risada fraca que soa como se fosse baixar até se dissolver em lágrimas. Elas caminhavam como se seus membros tivessem freado porque tinham medo de ser apanhados numa armadilha por alguma coisa, medo de bater em alguma coisa; elas se moviam como se estivessem rodeadas por inimigos invisíveis.

Kate passara a manhã andando, devagar, para baixo e para cima, por aquela longa rua cheia de gente, absorvendo aquela verdade, de que os rostos e os movimentos da maioria das mulheres de meia-idade são idênticos aos dos prisioneiros ou dos escravos.

Numa extremidade de uma longa experiência, totalmente envolvente, caminha uma moça jovem, confiante e corajosa; na outra, uma mulher de meia-idade... ela mesma.

Então Kate tinha ido para casa, e passado semanas observando-se andar, falar, agir, mas desse outro ponto de vista, e tinha concluído, muito simplesmente, que ela havia enlouque­cido. Estava obsedada, de manhã à noite, com arrumação, com organização, com ver como as coisas deveriam ser, com os resultados de não agir desta maneira ou de agir daquela. Obser­vando-se a si mesma, ouvindo-se a si mesma, voltou sua aten­ção para as mulheres da sua idade, que eram suas amigas. Todas tiveram uma extensa educação a respeito de apenas uma coisa: inquietar-se à toa. (Não Mary Finchley, é claro. Não Mary. Mas ia ter de compreender o que Mary significava para ela, o que era que ela defendia. Obviamente não se podia, sim­plesmente, excluí-la de todas as categorias normais e deixar as coisas assim. Aquilo era ao que todos aqueles anos de adqui­rir virtudes haviam levado: ela e suas contemporâneas eram máquinas, programadas para uma função, para dirigir e arrumar e ajustar e prever e ordenar e se incomodar e se preocupar e organizar. Para se inquietar à toa.

Sua família, ela via agora, estava perfeitamente consciente disso. Estava sendo tratada por aqueles indivíduos independen­tes — marido e jovens apenas recentemente libertados das tira­nias das emoções da adolescência e, portanto, muito mais into­lerantes com as fraquezas de outras pessoas — como uma coisa que tivesse de ser suportada. Mamãe era uma quantidade incer­ta. Era como uma velha governanta que tivesse dado seus anos de vida à família e agora tivesse de ser suportada. As virtudes se haviam transformado em vícios, em importunar e em opri­mir as outras pessoas. Uma jovem criatura destemida fora transformada, através do longo e triturante processo de sempre — estar sempre à disposição das outras pessoas, sempre ter de dar atenção ao mínimo detalhe, aos minúsculos desejos, exigências, necessidades, acontecimentos, crises —, numa ma­níaca obcecada. Obcecada pelo que não tinha absolutamente importância alguma.

Aquela conscientização surgira há três anos. Enquanto continuava a dirigir a casa grande e trabalhosa, dirigindo o que, ela sentia, se tinha transformado num hotel ou numa casa de repouso para a família e os amigos e amigos dos amigos, ela tentara retrair-se. Fora um retraimento íntimo, uma vez que dificilmente seria possível anunciar seu plano de fazê-lo sem aumentar a irritação da família, o sentimento deles de terem obrigações para com ela, a criada que mantinha tudo aquilo em funcionamento. Foi tornado mais difícil porque seus esforços não haviam sido notados. Seu marido estivera particularmente ocupado, e ela pôde compreender que ele próprio estava dando um jeito para assim continuar, pois na posição dele ela apro­veitaria qualquer oportunidade para se expandir, para sair e se afastar da aproximação opressiva da meia-idade — ele era mais velho do que ela sete anos. As crianças, muito natural­mente, não estavam nem um pouco mais envolvidas com ela e seus problemas do que quaisquer jovens adultos saudáveis estão com os problemas de seus pais. Mas ela descobriu que eles sempre usavam mecanismos de defesa contra ela em situa­ções em que estivera tentando torná-los desnecessários. Ela havia sido continuamente arrastada de volta aos — já ultrapas­sados, ela havia tido esperanças — padrões de comportamento por pessoas que ainda os esperavam de sua parte.

Mas por que não deveria ela anunciar à família que ia mudar, que estava no processo de mudança? Não podia. Eles o veriam como um apelo à atenção, à compaixão deles. Como ela teria feito se estivesse em seus lugares — a questão era, e aqui estava voltando a ela de novo, que tudo não passava de uma idiotice, a discussão aberta e franca e a conversa, e os re­gistros de dados e a tomada de decisões para se comportar desta ou daquela maneira. (Não era assim que as pessoas mudavam; elas não se modificavam: você foi modificada por ter sido obri­gada a passar por alguma coisa, e então você descobre que se modificou.) Mas se todos aqueles anos de "conversa de amor" tinham sido de alguma utilidade, qualquer que fosse, ela agora poderia tê-los usado, poderia ter dito: "E agora, basta. Sou como uma aleijada ou uma inválida depois de ter sido durante anos criada de vocês, capacho de vocês. Agora, ajudem-me. Preciso da ajuda de vocês". Mas ela não podia dizer isso.

Pouco tempo depois do incidente do grito de Tim na mesa, havia saído, sozinha, para visitar velhos amigos. Deixou a filha tomando conta de tudo. Procurou prolongar a visita, usando todos os tipos de pretextos. Pensou que, se pudesse mantê-la suficientemente longa, o padrão seria rompido, a jau­la seria aberta. Teve de voltar para casa mais cedo do que planejara porque Eileen havia decidido sair para visitar amigos.

Ainda que tivesse, quase que de imediato, voltado diretamente para aquilo de que estivera fugindo, foi capaz de olhar para si mesma, a mulher preocupada com quem o garoto havia gritado, como uma criatura que havia estado realmente louca. Maluca.

Aquele verão, a cena na mesa do jantar, a sua saída ha­viam motivado o que estava acontecendo, pois sem eles ela não teria aceitado a proposta de Alan Post, nem mesmo com a ajuda do marido... Sim, a irritação dele por não ter agarrado a oportunidade havia sido por isso. É sempre um problema, quando se está num beco sem saída, numa armadilha, ver o que existe como possibilidade, é preciso que se esteja atento.

Mas o que a impedira de dizer que queria alugar um quarto sozinha, em algum lugar em Londres, para os meses de verão? Nada, exceto que era inconcebível! Teria sido uma coisa tão exagerada de se exigir que ela não teria pensado em fazê-lo; entretanto, era o que, provavelmente, ela deveria ter feito.

Ela precisara de um trampolim.

Agora, estava sentada num balcão, do qual o luar já se havia afastado, olhando para cima, para um céu onde estrelas recuavam para um cinzento frio, olhando para baixo, em direção a uma rua que agora estava realmente vazia, afinal. Agora, se estivesse sozinha, realmente sozinha, naquele país, podendo satisfazer a si mesma... sim, aquilo era o que poderia ter ar­ranjado para si mesma; nunca lhe havia passado pela cabeça, é claro.

Poderia ter-se sentado ali enquanto a madrugada surgia, dormido o dia inteiro se quisesse, depois andado ao léu por aquela cidade, que era, afinal, um porto do Mediterrâneo, tanto quanto um sustentáculo do turismo. Poderia ter vagado como lhe aprouvesse, e voltado para casa dali a dois meses, sozinha, tendo realmente estado sozinha, isto é, uma pessoa operando a partir de suas próprias escolhas.

Mas agora estava sentada numa madrugada fresca, pen­sando que deveria ir para a cama, porque ele se levantaria descansado, justamente quando ela estivesse pronta para desfalecer no sono. E, a menos que estivesse muitíssimo enganada, teria diante de si um homem na defensiva, porque ele havia des­maiado na noite anterior e dormido sem levá-la para a cama, como as circunstâncias e as convenções exigiam. Era quase capaz de esperar que ele estivesse um pouco doente... não muito, só um pouco.

Na extremidade da rua um homem entrou no seu raio de visão. Era louro, um nórdico, um turista como ela. Será que havia estado na praia com os jovens? Bebendo? Dançando? Teria estado num café, conversando? Num dos bares frescos parecidos com porões? Ele alcançou o ponto onde ficava o seu balcão quando as luzes da rua se apagaram. Ela o viu como um vulto da noite apanhado fora de seu tempo pela madrugada: o céu estava começando a ficar levemente rosado e com tonalidades mutantes. Ele olhava para cima, para o céu. Não era bastante jovem para ter estado com os outros na praia. Era de compleição pesada, bem de meia-idade, e seu rosto estava marcado por rugas. Não, ele era mais velho, o cabelo era mesmo branco, não era louro. Era um espanhol, provavelmente havia apenas acabado algum trabalho noturno. Foi abrindo seu ca­minho, através dos oleandros, e parou junto de uma fonte para passar água nas mãos e no rosto. Bebeu um pouco uma ou duas vezes, dirigindo o fluxo da água com a beira da palma da mão direto para dentro da boca. Então moveu a mão de forma que o jato de água se dirigisse para a sua cabeça abaixada. Sacudiu a cabeça energicamente, foi andando até um banco e deitou-se ali, o rosto virado para o encosto, de costas para a rua e para os observadores. Seria ele um indigente? Sem casa? Ela teve consciência de uma ânsia de preocupação. Aquele pe­queno jorro de emoção era como o jato contínuo da fonte. Zombeteiramente, ela se observou a pensar, ou sentir, que deveria descer até a praça, tocar o ombro dele com cuidado, é claro, de maneira a não o assustar e perguntar-lhe se precisava de alguma coisa, oferecer-lhe ajuda. Em que língua? Tinha de aprender espanhol!

O frágil fluxo de emoção era igual àquele que a levara, no inverno anterior, depois daquela cena dramática com Tim, a abrigar um gato abandonado. Seus sentimentos com relação àquele gato enquanto duraram tinham sido fortes. Ela não teria sido o produto de anos de "conversa de amor" se não tivesse sido capaz de dizer a si mesma: "O gato me repre­senta, sou eu mesma. Estou cuidando desse pobre gato porque sinto que alguém deveria cuidar de mim. Mas quem? Minha família, é claro! Que não precisa mais de mim e que me acha insuportável".

A família tivera consciência do papel do gato, e de seus pensamentos a respeito dele; consciência do seu papel naquilo, de seus sentimentos. "Ora, vamos, você abrigou esse gato velho, fedorento, só porque não estamos sendo bonzinhos com você!"

"Ele está machucado na cabeça, mãe. Você só nos está mostrando isso, é tudo."

Sentada ali naquele balcão, a centenas de quilômetros de distância e mais de dois anos depois, queria saltar de pé e gritar a sua raiva e amargura para eles. Na ocasião havia sorrido, é claro, havia sido irônica.Agora desejava ter batido neles com força, na sua adorável Eileen, no seu atraente Michael, em Tim... em todos eles.

Gostaria de haver batido neles — ouviu-se murmurar. Gostaria, eu gostaria de haver batido em todos eles.

Presenciara Mary Finchley a berrar insultos ao marido, aos filhos: depois ela caía na gargalhada. Fazia o que tinha vontade de fazer, no momento em que tinha vontade de fazê-lo.

A família tratara Kate como uma inválida, e o gato, como um remédio.

"A coisa certa para a menopausa", ouvira Tim dizer para Eileen.

Ela ainda não havia entrado na menopausa, mas nada teria adiantado dizê-lo: aparentemente, fora útil para a mito­logia da família ter uma mãe na menopausa. Às vezes se sentira como um pássaro ferido, sendo bicado até a morte pelos pássaros saudáveis. Ou como um animal atormentado por crian­ças cruéis. E, é claro, sentia que o merecia, por detestar-se tanto a si mesma. Oh, aquela havia sido uma primavera terrí­vel, depois de um inverno ruim; tivera medo de que realmente estivesse louca, passava a maior parte do tempo zangada. Então os dois mais velhos começaram a dedicar-se inteiramente à universidade, aos amigos, e ela ficou encantada. Absolutamente encantada, embora, é claro, na ocasião se sentisse culpada por estar encantada. Sentir-se culpada parece quase uma definição da maternidade nessa época esclarecida da atualidade. Era um monte de besteira sem sentido, tudo um monte de lixo, tudo aquilo... Em algum lugar no caminho eles se haviam enga­nado... Quem? Ela mesma? Não as crianças, é claro que não! A sociedade? Mas por que tanta tensão e antagonismo e ressen­timento?... Entretanto já havia acabado. Eileen estava ocupa­da com homens. Só havia Tim que ainda tinha oportunidade de olhá-la era assim que sentia. O período ruim havia pas­sado. Ela o recordava. . . mas, se realmente fosse assim, por que estava ali naquele momento, com aquele rapaz que Mary Finchley pelo menos teria percebido, à primeira vista, iria oferecer-lhe o que ela já sabia, o que ela não queria... Não saiu do balcão até que o aro do sol começou a lançar raios quentes sobre o mar e para dentro do quarto. Estava realmente can­sada. Dentro do quarto um negrume lhe encheu os olhos que estavam ajustados ao dia. Quando seus olhos se desanuviaram, viu que Jeffrey estava deitado e olhava para ela. Sorriu e se preparou para falar viu que ele não estava realmente acordado. Ele se levantou com dificuldade, agachado na cama, olhou fixo, como um animal surpreendido, seus membros de dança­rino expressando o sonho em que ainda deveria estar, o rosto atento, desconfiado, pronto para se desviar. Ela disse cuida- ciosamente "Jeffrey!", mas ele emitiu um som confuso e impe­rativo de negação, e correu para o banheiro. Ela o ouviu vomi­tar. Continuou de pé onde estava, perguntando-se se ele estaria acordado quando voltasse. Voltou para o quarto apoiando-se primeiro no batente da porta, depois na quina de uma cômoda. Ele devia estar se sentindo sozinho, então: ele a viu, atirou-se para a frente, alcançou a ponta da cama e olhou. Ela estava, compreendia agora, delineada contra a porta do balcão já res­plandecente de luz. Devia parecer-lhe um vulto escuro, à es­preita. Afinal ele sorriu: sabia que deveria saber quem ela era. Foi um esforço, porque estava mais dormindo do que acordado, mas era uma pessoa polida, fora educado para agradar, para oferecer cortesia. O sorriso era uma cortesia oferecida a uma situação que a exigia e não se animou numa expressão de prazer. Moveu-se com esforço, enfiando-se na cama, e caiu inerte, voltando a adormecer imediatamente.

Ela sentou-se ao lado dele, vestida com o robe branco de babados, que tinha em si o doce frescor do ar da noite que ela havia trazido para dentro, para longe do calor daquele dia. Estava jurando a si mesma que quando acordasse não seria maternal, não sugeriria que chamassem um médico, não se preocuparia. Deitada ao lado daquele rapaz, que ela sabia que no mínimo estava "com cores deficientes", se é que não estava doente, tentou colocar-se no estado de espírito de uma mulher que tivesse vindo para ali para estar com ele por amor. Supon­do que ela ainda fosse uma "mulher amorosa" — era assim que o designava — e não uma mulher maternal, como resulta­do de um quarto de século de trabalho de babá, se ela fosse essa "mulher amorosa", então como se estaria sentindo? Era fácil, tinha apenas de se lembrar de Michael. Estaria acordando Jeffrey para se amarem... ela e o marido haviam gostado de se amar quando ela, mas especialmente ele, estava com febre. Ele tinha a tendência de ter febre pelas mínimas coisas e du­rante anos aproveitaram ao máximo aquele condimento para o erotismo... ou assim haviam acreditado. Mas não podia con­ceber aproximar-se de Jeffrey eroticamente. Para começar (como, é claro, livros e toda espécie de peritos, conselheiros matrimoniais e congêneres poderiam ter-lhe dito), se uma mu­lher está ligada numa correspondência boa e sincera com um determinado homem, então uma nova relação com um outro não ocorre assim tão facilmente. (Razão por que ela nunca fora capaz de acreditar no prazer simples de trocas de par entre casais e no adultério cordial.) E afinal sua experiência sexual havia sido com Michael e, de segunda mão, através de Mary.

É claro, se estivesse perdidamente apaixonada como a ocasião exigia, ainda que mesmo num sentido estético, um sentido do apropriado que é exigido, não estaria deitada ali tentando imaginar-se num comportamento erótico.

Apoiou-se no cotovelo e o examinou com todo o cuidado de uma mãe com uma criança doente. Ele conseguia sugerir, mesmo enquanto sua pele emanava calor, que estava com frio. Um suor cobria-lhe a testa. Tinha um aspecto doentio. Não, nem mesmo uma mulher perdidamente apaixonada poderia es­colher aquele momento para abordá-lo. Havia alguma coisa em seu estado atual que repelia o sexo.

É claro que era possível, realmente provável, que ele não fosse sexualmente atraente pelo menos no seu estado de es­pírito atual de preocupação quanto ao futuro, ou, pelo menos, para ela... o grau do seu não-envolvimento com ele era con­firmado pela sua frieza no momento em que chegou àquela conclusão.

Kate adormeceu e imediatamente estava numa encosta rochosa. Sim, lá estava a sua pobre foca, movendo-se lenta e dolorosamente em direção ao oceano distante e invisível. Ela tomou nos braços o animal escorregadio. Oh, ela não devia tê-la deixado ali. Estava mais fraca; seus olhos escuros a censuravam. A pele estava muito seca; tinha de arranjar um pouco de água para ela. A distância havia uma casa. Cambaleou na­quela direção. Era uma casa de madeira, o teto bem inclinado para a neve que ela sabia logo cairia, pois já era outono. Não se via ninguém na casa, mas havia gente morando lá, porque numa minúscula lareira estavam as cinzas quentes das brasas que se apagavam. Ela deitou a foca na pedra diante da lareira e tentou reacender o fogo. Não havia muita madeira, mas afinal conseguiu fazer com que o fogo voltasse a arder. A foca estava quieta, os lados se erguendo dolorosamente com a res­piração. Mantinha os olhos fechados. Precisava desesperada­mente de água. Carregou a foca até o banheiro e derramou sobre ela água das tinas de madeira que se encontravam ao longo das paredes de madeira. O sabor do sonho ainda era, cada vez mais, o de uma outra era; um mito ou uma velha história. Os olhos do animal se abriram e pareceu reanimar-se. Ela pensou que havia muitas coisas que tinha de fazer: limpar a casa, apanhar lenha para a lareira antes que a neve de inverno caísse, comprar comida, tirar roupas quentes das arcas e deixá-las preparadas para ela mesma e para as pessoas da casa que, ela sabia, eram a sua família, mas transformadas e transfigu­radas em criaturas místicas maiores que elas mesmas, represen­tando mais do que eram na vida cotidiana. Num quarto no andar de cima da casa ela viu um rapaz louro e alto de olhos azuis. Ela o conhecia. Era o seu amante. Sempre tinha sido. Eles se amaram. Tinham estado esperando há anos e, através da espera e do querer, tornaram aquele ato perfeito... Ela se lembrou da foca. A foca precisava dela, jazia abandonada no chão do banheiro, esperando por ela. Deixou o rapaz louro, que era um nobre de alguma espécie, talvez um príncipe, di­zendo: "Sinto muito, quero ficar com você, mas primeiro tenho de levar a foca até o mar".

Acordou sendo atacada simultaneamente pela luz intensa do sol e por Jeffrey, que a estava amando como se fosse um guri de dez anos, desafiado pelo seu grupo a escalar um muro alto, ou como um trabalhador de uma fábrica soviética sobrepujando um limite estabelecido. Embora sua experiência limitada, como já foi dito não incluísse o sexo com um americano, é claro que a literatura já a havia familiarizado com as sensitividades americanas nesse campo. Além disso, Mary Finchley uma vez tinha passado quinze dias com um piloto de aviação civil americano, e fizera um relatório... em deta­lhe, é claro. (Não havia necessidade nenhuma de ouvir, Kate se repreendera com freqüência.) Mas a situação da noite ante­rior exigira sexo; ele havia falhado em cumpri-lo; agora a sua masculinidade estava em questão.

Ela pensou em fazer uma ou duas brincadeiras a respeito de condicionamento como ele costumava fazer continuamente —, mas compreendeu, pelos seus olhos vermelhos e irri­tados e pelo corpo inchado, que brincadeiras sobre aquele as­sunto não eram possíveis. Eram seis horas, tinha dormido por menos de uma hora. Agora que a agressão dele se havia esgo­tado, era evidente que estava doente: eles deviam, como pes­soas sensatas, despedir-se amistosamente e seguir os seus caminhos separados pelo mundo.

Deitada numa confusão de babados brancos, agora amarrotados, o quadro exato de uma mulher sedutoramente posta em desalinho, ela observou um rapaz mal-humorado de dezoito anos que, se tivesse algum vestígio de bom senso, iria ao médico.

Um esforço de vontade suficiente para impulsionar um foguete lunar de tamanho decente a impediu de sugerir que procurassem um médico.

Eles se tinham vestido e tomavam café no terraço, que já estava cheio, animado por múltiplos idiomas, quando, tendo de ir ao banheiro três vezes, ele confessou que estava com diarréia de turista e que iria até a farmácia.

Ela ficou sentada sozinha e observou um homem de mais ou menos uns cinqüenta anos sentado contra um fundo de dentelárias com uma moça de uns vinte anos. Ele, como Michael, usava o cabelo cortado por igual em volta do pescoço e do rosto, sem repartido, crescendo de um ponto central na parte de trás do topo da cabeça. Quando usado por mulheres aquele corte fora conhecido como corte "rapazinho". Kate o usara, mas há algum tempo. O rosto moreno, perturbadoramente bonito, do homem que mantinha a expressão irônica por motivos de auto-respeito cortejava a frescura compungente da moça; ela estava lisonjeada e bastante entediada. O homem parecia inteligente; pequenos retalhos de conversa — dessa vez em inglês — fizeram com que Kate dissesse a si mesma: "Bem, pelo menos o meu não é burro". Será que ela achava que deveria sentir-se envergonhada? Mon semblable, ela se dirigia a ele em silêncio, enquanto se lembrava de que, há não mais de vinte e quatro horas, dissera adeus a Ahmed, o servidor do mundo, uma outra faceta de si mesma a quem ela também se dirigira, mas em segredo, como irmão. Em algum lugar nos Estados Unidos o seu Michael — com aquele corte de cabelo, o rosto magro atraente, experiência — provavel­mente se estava protegendo com ironia enquanto a juventude em pessoa, num invólucro de carne deliciosa, se sentava do outro lado, sendo lisonjeada e entediada. Se fosse assim, Kate não o conhecia: ela nunca o conhecera cortês, irônico... vulnerável. Nem a sua companheira tinha de ser muito jovem; Kate não sabia realmente o que ele procurava. É claro, Eileen estava por perto, o que significava que ele não estaria livre para fazer o que quisesse. Talvez a moça sentada defronte fosse filha dele, e ele estivesse olhando orgulhoso e enternecido, como os homens de meia-idade costumam fazer com suas filhas. Se havia uma coisa de que tinha certeza era que quando Mary fize­ra aquilo — o caso mulher mais velha, homem mais moço — não tinha havido qualquer indisposição misteriosa ou encontros agridoces como reflexos num espelho em terraços sulistas ensolarados, com cavalheiros de meia-idade e suas namo- radinhas. Estranho. É claro que não. Por cerca de quatro anos Mary havia mantido intermitentemente um caso com um gar­çom de um restaurante grego. Ele tinha cerca de vinte e três anos quando começaram, era bonito e "tão apaixonado", como dizia Mary. Ele a tinha adorado. Estava disposto a casar-se com ela, e queria ir morar com ela e tornar-se o pai de seus três filhos. Como Mary não tivesse concordado, haviam manti­do uma relação notável pelo seu bom humor, pela sua doce racionalidade e pelo seu gostar mútuo até que ele voltara para a Grécia.

Foi quando Mary chorou. Aquela foi a única vez em que Kate soube que Mary tivesse chorado. Assim, até Mary pagava tributos à alta qualidade daquela espécie de caso amoroso. Jeffrey vinha movendo-se vagarosa e cuidadosamente entre as mesas repletas, sobrecarregado de embrulhos: comprimidos de todos os tipos. Eles conversaram durante alguns minutos sobre os vários planos possíveis, mas ele olhava criticamente o cenário de férias à sua volta e logo disse que queria ir para o interior, para a "verdadeira" Espanha.

A questão do dinheiro agora os confrontava. Ele não tinha dinheiro para ir para o interior de avião, nem para alugar um carro. Ônibus e trem eram o que estava dentro de suas possibilidades e ao que ela, também, estava limitada. Além disso, teria prazer em viajar neles.

Além do terraço, a praia ainda estava vazia, sulcada pela noite anterior. Dois homens com enormes ancinhos aplainavam a areia pronta para acomodar os jovens, que ainda deviam estar todos na cama, embora alguns estivessem deitados dormindo ao longo das extremidades da praia onde a areia se encontrava com o muro do terraço. Ela sabia que eles não teriam problemas com relação a dinheiro; partilhavam o que tinham. O fato de Jeffrey não conseguir aceitar dinheiro sem senti-lo como ele mesmo dizia nas entranhas o teria afastado da compa­nhia "das crianças", se nenhuma outra razão o fizesse.

Há um lugar barato mais acima, na costa disse ele. E lá não há turistas. A gente pode conseguir um quarto por um dólar por noite.

Estava sentado reclinado para trás, na sombra magra dos oleandros, a mão no peito, como se o estivesse protegendo, os olhos semicerrados. Sob a mão, seu peito subia e descia muito devagar, como o de um homem durante o sono. Repetidamente permanecia em silêncio por longos períodos, enquanto a outra mão ficava frouxa sobre a mesa, até se contrair um pouco ele estava caindo no sono, meio adormecido, obrigando-se a acordar de novo. Uma vespa pousou num minúsculo pedacinho de presunto no seu dedo indicador. Ele a observou por algum tempo, então afastou o inseto com um movimento capaz de assustar um elefante.

Acho que você devia voltar para a cama e ficar lá até melhorar. Essas palavras escapuliram da boca de Kate e ele ergueu a cabeça de repelão e a olhou fixa e furiosamente.

Por quê? perguntou, num tom frio.

Menos de vinte e quatro horas depois da chegada deles à Espanha, estavam novamente num ônibus, subindo pela costa, em direção ao norte, e contra as marés que inundavam o sul. Estavam a caminho do vilarejo que não havia sido estragado. Nem mesmo chegava a ser um vilarejo, disse ele, meia dúzia de casas de pescadores cujas esposas ficavam felizes em acolher viajantes e tinham de ser persuadidas a aceitar dinheiro. Che­garam ao lugar no fim da tarde, para encontrar um grande hotel novo, e a praia cheia de gente.

Jeffrey, que tinha dormido durante toda a viagem, a cabe­ça no ombro dela o que ela tomou cuidado para que ele não percebesse —, observou aquele cenário sem tecer comentários e voltou para o ônibus.

Mas, para onde estamos indo?

Mais acima na costa. Há um outro lugar.

Não deveríamos jantar primeiro? Ou talvez continuar amanhã de manhã?

Não, não, não, é bem perto daqui, só trinta quilôme­tros, vamos!

Ele tornou a entrar no velho ônibus, agora quase vazio, pois já tinha despejado o seu carregamento de trabalhadores que voltavam para suas casas do outro lado dos campos.

Eles seguiram adiante. Bem lá embaixo, à direita deles, o azul do Mediterrâneo se arqueava e se ondulava de encontro à costa acastanhada, de encontro às praias pálidas, que quilômetro após quilômetro estavam cheias de corpos.

Às vezes uma mulher, que tinha ido a algum lugar para visitar um parente ou para fazer compras, entrava com uma cesta carregada. Entraram crianças numa cidadezinha, e salta­ram uma hora depois numa encosta onde não havia uma casa sequer ou uma luz que se pudesse ver. Saíram correndo, de mãos dadas, para a escuridão, trocando comentários ou informações em voz alta — as palavras espanholas, como pássaros desconhecidos, voavam sobre o mar.

Jeffrey dormia. À meia-noite chegaram ao fim da linha do ônibus. Estavam além de Alméria, numa cidadezinha pequena, a pouco mais de um quilômetro da costa. Havia um hotel que não tinha sido reformado para o fluxo de turistas. O ho­mem atrás do balcão os observou enquanto se registravam, mas não fez comentários, e então os levou até a sala de refeições, onde viajantes da região, não-turistas, ainda jantavam. Jeffrey pediu um prato forte depois do outro. Franzia o cenho enquan­to levantava o garfo, numa tentativa de levar a comida até a boca, mas, quando o cheiro dela lhe alcançava as narinas, bai­xava o garfo. Era como se ele nunca tivesse ouvido falar de doença, ou do estado de se estar nauseado. Parecia preocupado: por que era que sua mão, como se tivesse uma vontade pró­pria, ficava pondo de volta no prato o garfo cheio? Quando veio a sobremesa, comeu alguns pêssegos e pediu mais. Ela, tendo comido bem aquela sua primeira refeição naquele dia, o observou a engolir o quinto pêssego e então sair correndo da sala de refeições.

Kate o encontrou caído na cama, a luz acesa brilhando sobre seu rosto. A mão lhe cobria os olhos como se ele esti­vesse sob a luz do sol. Ao vê-la, franziu mais o cenho. Ela viu a si mesma num vestido verde que deixava à mostra os braços e as pernas brancas, viu o ondular pesado do cabelo ruivo, os ternos olhos castanhos. Sem mover a mão, ele fran­ziu o cenho para a estranha que estava ali sorrindo, ao pé da sua cama.

Jeffrey!

Que é que você quer?

Você precisa de um médico.

Ele virou o rosto para um lado, como um soldado que recebeu a ordem de Olhar à direita, e ficou deitado com os braços ao lado do corpo, rígido. Então virou o corpo, puxan­do ao mesmo tempo o lençol sobre si. Ainda estava comple­tamente vestido, até de sapatos. Quanto a ela, adormeceu imediatamente, tendo dormido tão pouco na noite anterior.

Acordou cedo. Ele estava de pé, metendo na boca um punhado dos comprimidos que o farmacêutico lhe receitara. Às sete horas, viu-se confrontada por um rapaz eficiente que disse:

Vamos para o interior, para Granada. Estamos perto.

Ela concordou, é claro.

Mas, enquanto ela tomava café, comia broas e observava as vespas trabalhando na geléia de abricó, ele evitava a sala de refeições. Estava de pé com um copo de soda na mão e confabulava com a Recepção. Nenhum ônibus saía direto dali para Granada. Teriam de voltar a Alméria e pegar um outro ônibus. Seria necessário um dia inteiro para a viagem.

Ele chegou até a porta da sala de refeições para chamá-la: ele estava, podia ver, protegendo todos os seus sentidos da presença de comida. Decidira continuar subindo pela costa. Havia um lugar agradável mais adiante; ele se lembrava bem de lá. Obviamente, o esforço de voltar a Alméria num ônibus, e então ficar vagueando por lá para esperar por um outro, era demasiado. Entretanto ele tinha de estar em movimento. Daquilo era que ele precisava, ela podia ver.

Iremos a Granada depois disse ele, e carregou sua mala e a dela até o ônibus que esperava para seguir para o norte, subir até Alicante, cidade que alcançariam por volta das três da tarde. Mas eles não iriam realmente até Alicante, pois o vilarejo de que ele se lembrava ficava antes de Alicante.

Aquele ônibus estava cheio de habitantes da região, não de turistas, embora houvesse um ou dois jovens da costa, viajando da maneira mais barata. Era um grupo de passageiros alegre e simpático. As pessoas conversavam e trocavam notícias, embora, é claro, ela não compreendesse. Não compreendia nada. Era realmente a mais estranha das experiências, ainda mais estranha que a situação absurda em que se encontrava com aquele rapaz, a quem não podia deixar porque estava doente, ou com estafa ou algo semelhante, e que obviamente estava decidido a ir seguindo para o norte indefinidamente, por aquela costa engrinaldada de verão. Durante semanas, um período que acabara há dois dias, conforme tinha de ficar lembrando a si mesma, uma vez que parecia ter sido há tanto tempo, ela havia sido como uma máquina multilíngiie, e todas as línguas, ou a maioria delas, faladas a sua volta foram como portas ou janelas de vidro. Antes de ter chegado à Espanha, até imaginara que a competência do mundo dos congressos a seguiria, a teria impregnado de alguma maneira, de forma que ela se descobriria falando espanhol sem qualquer esforço; mas estava como alguém que acordasse de um sonho no qual tivesse estado voando, incapaz de acreditar que na realidade não pudesse simplesmente entrar no ar e elevar-se e sair voando. Parecia quase como se ela de fato compreendesse; como se em uma outra época tivesse compreendido e estivesse sofrendo de uma amnésia temporária. Diante de um sorriso de uma mulher no banco do lado oposto do ônibus, ou quando o motorista passava para cobrar a passagem, ela abria a boca para falar seu cérebro rebuscava as expressões de outros idiomas procurando encontrar uma que fosse útil. Sua língua permanecia inútil em sua boca. Tinha de esticar os músculos que moviam os lábios formando um sorriso para comunicar a disposição para amar e partilhar. E ela continuara sentada ali, ouvindo os sons pesados que se recusavam a revelar o seu significado, até que se virara para olhar, apreendendo facilmente o significado a partir de um gesto e da postura de uma cabeça, de um ombro. Nesse meio tempo, enquanto ela estava sentada ali como uma pessoa invisível no meio daquela multidão que conversava e ria, Jeffrey, que tinha adormecido imediatamente, escorregou na ca­deira e encostou-se pesadamente contra ela.

Ao meio-dia, o ônibus fez uma parada mais longa do que a habitual, de forma que os passageiros pudessem beber alguma coisa ou comer um sanduíche. Ela o deixou deitado ali, tomou uma limonada, fumou um cigarro, e voltou para encontrar o motorista examinando o rapaz adormecido. Ele apontou para o rapaz, indicando sua aparência doentia. Ela concordou com a cabeça e sorriu, a língua paralisada, os ouvidos quase receben­do. Com uma sacudidela final da cabeça o motorista voltou para o seu lugar e deu partida ao ônibus. Estava abominavel­mente quente agora. Tudo cintilava e brilhava, e tanto ela quan­to Jeffrey estavam ensopados. O suor dele tinha um cheiro doentio, e ele estava muito pálido, com uma coloração ama­relada. Icterícia? Mas, com a tez que ele tinha, obrigatoria­mente ficaria com um aspecto amarelado quando estivesse doente.

Chegaram a Alicante no meio da tarde e Jeffrey acordou. Estava molhado de suor e tremendo. Mas estava decidido a continuar em direção ao norte. Ela o segurou pelos ombros e disse:

Você está doente. Está me ouvindo? Você está doen­te. Você tem de me deixar pôr você numa cama e arranjar um médico.

Ele se soltou, afastando-se, como se ela fosse uma teia de aranha em que ele tivesse entrado. Foi andando até um ônibus que estava parado ali perto e entrou nele, sem olhar para ver para onde ia. Ela ficou ali se perguntando se deveria pedir ajuda. A quem? À polícia?

Em vez disso, apanhou as duas malas que agora estavam na esquina, pois o motorista do ônibus havia manobrado para voltar pelo trajeto por onde viera, e as carregou para o segundo ônibus. O fato de que aquele americano superpolido tivesse deixado que ela carregasse malas pesadas e nem mesmo o tivesse percebido dizia tudo a respeito do estado dele.

O ônibus tinha uma placa com um nome escrito. Ela não tinha idéia de para onde estava indo, ou qual seria a distância. Mas isso importava? Comprou água mineral no bar e levou até o ônibus. Jeffrey bebeu o líquido, mas da maneira, agora já familiar, de alguém com uma conexão presa no cérebro, como um animal ao mesmo tempo faminto e condicionado a achar a comida desagradável ou perigosa. Repetidamente levava o copo aos lábios de maneira frenética e sedenta, engolindo sem pensar, mantendo a água na boca com uma expressão de desconfiança agoniada. Engolia a água como se estivesse tentando lembrar-se do que lhe haviam dito sobre ela... alguma coisa terrível! Então sua mão novamente levava o copo até os lábios, depressa, desesperadamente. Desta maneira a água mineral foi bebida, e ele não a pôs para fora. Assim ele não morreria de desidratação, isso já era alguma coisa. Afundou-se outra vez no assento. Ago­ra, estava mais quente ainda. As ruas estavam vazias, pois era a hora da sesta. Os cafés e os bancos em volta de uma praça em­poeirada estavam cheios de gente sonolenta. A cidade estava esmagada pelo peso do calor, e, quando o ônibus saiu, estava quase vazio.

Jeffrey estava sentado com o corpo frouxo, sacudindo e escorregando-se com os movimentos do ônibus. O ônibus tomou um trajeto em direção ao norte, mas, depois de meia hora, virou para o interior, afastando-se da costa. Parecia que ele não havia percebido que o Mediterrâneo não os acompanhava mais. Mas depois de algum tempo ele comentou com um sorriso satisfeito: "Oh, sim, é este o caminho. Eu me lembro, o vilarejo é aqui". O ônibus seguia através de morros baixos. Agora, que estavam mais alto, o mar surgia atrás deles, uma planície azul, distante. Então desapareceu, os morros o esconderam. Estavam numa estrada tosca de terreno irregular, na encosta de um morro, subindo em espiral. Jeffrey continuava sentado, se sacudindo, balançando, dormindo. Ela conservava o braço em torno dele para mantê-lo erguido. Uma vez ele acordou, não com a perso­nalidade mal-humorada de um homem doente, mas tendo volta­do no sono a uma anterior, a que a havia escolhido para com­panheira. Sorriu encantadoramente para ela e disse:

Kate! Isto não é simplesmente fantástico? Não é maravilhoso? Não é simplesmente. . . — Mas ele tornou a cair no sono.

O sol estava entrando pela frente do ônibus. Os passa­geiros que havia passaram para a parte de trás, e o motorista tentava manter a cabeça protegida, erguendo-a e inclinando-a para trás na sombra sob o teto, o queixo para cima: parecia que o estava estendendo para receber um golpe.

O sol desapareceu atrás de uma cadeia de montanhas, muito mais altas do que aquelas por onde iam. Já era de noitinha. Num vilarejo que pela aparência poderia estar no norte da África casas de aspecto pobre, gente de aspecto pobre o ônibus parou, deixou uma jaula de metal com algumas aves enlouquecidas de sede, um barril de sardinhas em conserva no azeite, um caixote de laranjas. Apanhou duas freiras que pa­reciam doentes de cansaço, por causa do calor, e esperou que Kate voltasse do bar com mais água mineral para Jeffrey. Então prosseguiu para o interior.

Agora, Kate estava bastante passiva. Dentro em pouco, era evidente, aquela terrível viagem terminaria. Não porque Jeffrey quisesse que terminasse: ele precisava estar em movimento, indo para algum lugar, estar viajando ela podia sentir aquilo, compreendê-lo. Mas naquela altura ele já estava um pouco despreocupado: acordava repetidamente em momen­tos de euforia, tagarelava, ria, então abruptamente adormecia. Até ele logo seria obrigado a ver que estava doente e que tinha de parar. Ou algum motorista se recusaria a levá-los mais adiante. Às oito da noite, com uma lua quase cheia inundando tudo de luar, pararam numa praça de um vilarejo. Era um po­voado pequeno. Havia uma fonte de onde a água escorria de­vagar e desanimadamente numa bacia que tinha uma xícara de porcelana branca, lascada, sobre a beirada. Havia algumas árvores empoeiradas. Um prédio do outro lado da praça tinha a aparência de um bar; tinha uma janela grande coberta por dentro por algum material, para tapar o sol, e havia duas mesas do lado de fora onde homens estavam sentados, bebendo. Também havia um prédio de aspecto sólido e antiquado que dizia que era um hotel. Ela encontrou a cidade no mapa. Esta­vam a cerca de setenta quilômetros no interior.

Deixou Jeffrey sentado no ônibus, nem dormindo nem acordado, e entrou no hotel. O gerente saiu da sala de refeições onde se encontrava. Ela explicou em várias línguas que estava viajando com o marido que estava doente. O francês a salvou, e o Senor Martinez foi com ela até o ônibus e a ajudou a trazer Jeffrey para fora. Era como tirar uma porção de roupas molhadas da máquina de lavar: ele estava tão molhado que tinha as mãos escorregadias e o cabelo ensopado, grudado na cabeça. Eles o carregaram para cima não havia elevador e o deitaram numa cama pequena num quarto do tipo que é comum em toda parte na Europa: uma cama de casal para mamãe e papai, e três camas menores para as crianças.

O Senor Martinez saiu e voltou logo depois com uma garrafa de água mineral: como bom chefe de família não pre­cisava que lhe dissessem que aquele rapaz corria perigo de desidratar-se. Ele levantou Jeffrey e ela levou um copo após outro até os seus lábios. Ele bebeu com avidez, mas com uma expressão de furioso desagrado.

O Senor Martinez saiu dizendo que tentaria providenciar um médico.

Mas é preciso que compreenda, madame, il faut que vous comprenez, oui?Essa cidade é pequena, é um lugar sem recursos, não temos um médico aqui, pas de mêdecin, oui?, ele vem de um lugar a trinta quilômetros de distância e talvez esteja de férias, não sei. Mas vou fazer o melhor que puder.

Desceu para o escritório e ela se sentou numa cadeira dura junto de uma janela, onde novamente ficou observando, de um quarto quente e barato, o grande céu estrelado e os tetos e árvores empalidecidos de luar. Jeffrey falou num tom severo da necessidade de tomarem um outro ônibus imediata­mente, então riu de alguma coisa engraçada de que se lembrou da viagem de ônibus daquele dia, mas que não conseguiu contar a ela antes de adormecer de novo. O Senor Martinez voltou para dizer que a tia do médico dissera que ele voltaria dentro de três dias: se o caso fosse urgente, seria melhor entrar em contato com as freiras.

Esta é uma cidadezinha pequena, compreende? São pessoas pobres. Quando o médico vem é para um caso grave. As freiras no convento cuidam das pequenas doenças.

Ficaram um de cada lado da cama e olharam para o doente, cujas roupas estavam grudadas no corpo, o crânio emol­durado por mechas de cabelo molhado.

O Senor Martinez, o espanhol, com seus cinqüenta anos ou coisa assim, era como Jeffrey ficaria naquela idade. Estava todo cheio de inclinações e proeminências, crânio careca proemi­nente, ombros estreitos inclinados, um estômago flácido e pen­durado por falta de exercício. Jeffrey, o americano de pais alemães imigrantes, devia ter um gene ou dois vindos daquelas praias, pois o Senor Martinez facilmente passaria por seu pai.

Mas qual era a gravidade da doença dele?

Kate estava pensando que, se fosse seu filho, ela não estaria nem um pouco preocupada, diagnosticaria aquele estado de semi-inconsciência como uma febre ou uma gripe ou uma diminuição de vitalidade que merece uma visita de um médico e alguns dias na cama, principalmente alguns dias na cama. Ora, ela mesma usava aquela fuga, bastante consciente quando a vida tomava demasiado de alguma coisa boa. É um estado de coisas como o inverno para a terra: a sensação é como se todo o calor tivesse recuado para o interior, o fogo, escondido bem fundo sob uma rocha, o sol, longe demais. A gente fica deitada, enco­lhida ou esparramada, cada um de acordo com o seu tem­peramento, longe, atrás de superfícies de carne, cabelo, olhos que não parecem ter muito a ver com a gente, como um cachor­ro deitado no sol para obter o calor do inverno.

O Senor Martinez, pai de família, não parecia estar mais perturbado do que ela. No entanto, à primeira vista, Jeffrey estava suficientemente doente para não os ver. Olhava fixo para além deles ou através deles, e tremia convulsivamente em grandes espasmos que pareciam constrangedoramente dra­máticos. O Senor Martinez, os olhos escuros, vivos, cheios de solidariedade e simpatia, disse:

— Alors, ça va mieux demain, oui, oui, madame, j'en suis certain[1] — como se fosse um médico e ela uma mãe preocupada.

Saiu dizendo que ela encontraria uma refeição na sala de refeições, mas é claro que aquele não era um hotel elegante como aqueles a que estavam habituados; ela teria de aceitar o que encontrasse.

A sala de refeições não era maior do que uma sala de jantar de uma família burguesa, o que provavelmente havia sido outrora. Havia uma mobília pesada e escura, toalhas brancas pesadas. A refeição era uma sopa grossa, um pedaço de carne frita e frutas. Kate foi servida por uma mocinha, que limpava os quartos, servia as mesas e ajudava na cozinha. Aque­le hotel era usado por funcionários do governo em visitas, pela polícia, cujo quartel-general da região ficava a alguns qui­lômetros de distância, e pelos padres que vinham confessar as freiras e lhes administrar os sacramentos.

Ela foi para a cama com tranqüilidade. Aquele era o pri­meiro lugar silencioso desde que deixara o seu jardim em Blackheath. As costas espanholas, Istambul, a Alimentação Mundial em Londres todos haviam tocado, martelado, gritado ou tagarelado com ruído. Ali, por volta da meia-noite, acordou para ouvir apenas um cavalo ou uma mula passando sob as janelas. Mas Jeffrey também foi acordado, e exatamente como se não tivesse estado desacordado por tantas horas, ausen­te da vida cotidiana. Sentou-se na cama e perguntou numa voz normal o que poderia comer... e onde estavam.

Ela explicou. Eles gozaram de um momento normal de reunião no hotel silencioso, na cidadezinha onde agora nada se movia. Ele disse:

Então devo ter estado doente, não é?

Ela confirmou e desceu de robe, como se estivesse em sua própria casa, para ver se conseguia arranjar alguma coisa para comer na sala de refeições, pois sabia que a empregada e o Senor Martinez cuja esposa e filhos estavam fora, visi­tando parentes em Barcelona estavam na cama e dormindo. Encontrou uma bisnaga e um pouco de manteiga, coberta por causa das moscas, no grande guarda-louças, e levou para cima, para o quarto, fatias de pão com manteiga e algumas frutas. E lá estava Jeffrey, que naquele intervalo tomara um banho, se penteara e se vestira, exigindo que eles saíssem e procurassem um bar ou um restaurante. Ele parecia cheio de energia de maneira até suspeitável. Sua extrema irritação e agitação eram uma advertência. Ela explicou mais uma vez que naquele vilarejo àquela hora todo mundo deveria estar dormindo; que estavam longe da região turística; que pela manhã poderiam ir embora. Ele devorou a comida como se a odiasse, e enjoou de novo, no exato momento em que exigia que saíssem para dar um passeio e admirar o luar.

Segurou-se no pé da cama, oscilando, o rosto amarelo, dizendo que já estava perfeitamente recuperado. Arrastou-se de volta para a cama, deitou-se, dormiu.

Provavelmente estaria melhor pela manhã.

De fato, ele acordou cedo, e desceram juntos para a sala de refeições do hotel, onde o Senor Martinez estava tomando café. Ela confessou o seu roubo da noite anterior. Claro que ele já tinha percebido e compreendia. Ele era encantador, mas Kate percebeu a mudança em sua atitude. Havia deixado os passaportes na recepção do hotel na noite anterior: a preocupação com a doença de Jeffrey havia impedido que o Senor Martinez anotasse as informações para os seus registros. Naquela manhã, ele o fizera. Na noite anterior ela e o Senor Martinez foram como pais, confabulando em volta da cama de uma criança doente; agora, ele tinha de pensar que seus hóspedes estavam em alguma espécie de relação escandalosa. Ele transpirava reprovação, tristeza. Como se fosse uma censura filosófica. Enquanto seus olhos bonitos e gentis pousavam sobre os amantes, era como se ele dissesse: "Nós aqui somos pes­soas pobres. Não podemos nos permitir esse tipo de coisas".

Mas ele fez a mocinha trazer-lhes café fresco e pão tostado à moda inglesa sabia tudo a respeito daquele costume, oh, sim, pois seu irmão mais moço fora garçom num restaurante em Manchester; e ficou repetindo uma vez após a outra, como uma pessoa nervosa se repete, que sentia muito o fato de não haver ônibus até o dia seguinte. Seu nervosismo, se é que era isso, demonstrava o que ele era polido demais para dizer, que queria que a pecaminosidade e a irregularidade deles fossem logo afastadas do seu hotel.

O que a sua cortesia dizia era que ele lamentava os recursos limitados daquele lugar: pois era evidente que aqueles dois estavam de férias, e era uma infelicidade que pessoas tão expe­rientes e viajadas estivessem confinadas a um vilarejo que tinha tão pouco a oferecer das coisas a que estavam habituados.

E assim ele continuou, enquanto Kate permanecia em silêncio, sabendo que estava pondo aquele homem gentil numa posição falsa, mas esperando que a obscuridade da sala esti­vesse escondendo o seu embaraço. O Senor Martinez continuou a falar francês, e com ela. Naquela altura, ele sabia que Jeffrey compreendia algumas palavras de espanhol, mas o estava igno­rando. Então sua desaprovação era dirigida ao homem? Não sentia nenhuma com relação à mulher? Ele não gostava deJeffrey, mas será que gostava de Kate a despeito da sua imo­ralidade?

Quando a refeição acabou, saíram e foram até a pracinha. Estava vazia. Um cachorro estava deitado na sombra. Já quente como estaria ao meio-dia, o sol de agosto branqueava o céu. Da fonte escorria água, sem fazer ruído. O grande retângulo de vidro coberto, do outro lado, os atraiu em sua direção; a porta estava aberta para deixar entrar ar. Era um bar, mas só funcio­nava à noite: ninguém ali tinha tempo para sentar-se sem fazer nada durante o dia. Não havia ninguém no bar, nem mesmo um garçom. Foram andando por uma rua que saía da praça, passan­do por um ferreiro e por uma loja. Aquela era a loja da cidade. Vendia cebolas, lingüiça de qualidade inferior, azeite de oliva em barris, sardinhas que, esmagadas, tinham perdido toda a individualidade, recobertas por crostas de sal, grandes tomates vermelho-esverdeados que cheiravam forte ao vinho e aos campos, enormes bisnagas de pão claro, pimentões verdes. Ha­via, talvez, umas cem famílias no vilarejo; e depois de alguns metros começavam os campos onde o milho amarelava entre oliveiras e pedras.

Voltaram em silêncio para a praça. O Senor Martinez, que lhes observava as tentativas de obter as amenidades do bar, tinha posto uma mesa de madeira sob uma árvore do lado de fora da porta principal do hotel. Acenou para eles em dire­ção à mesa, e lhes trouxe copos de água mineral com pedaci­nhos de limão. Sentaram-se ali, e sabiam que estavam sendo observados. As poucas casas daquele vilarejo tinham janelas de postigo, e os postigos, olhos atrás deles. Uma ou duas vezes um fazendeiro ou um operário passou andando pela praça, desejando-lhes um bom dia. Esses homens eram cheios de dignida­de e reserva. Exatamente como Jeffrey se lembrava. Ali estava o que ele estivera procurando, na reprovação discreta do Senor Martinez que, não obstante isso, naquele momento estava na cozinha confabulando com a cozinheira para preparar uma refeição mais no estilo dos visitantes do que no do vilarejo e das mulheres que estavam sentadas ou de pé atrás das janelas, sem se mostrarem, e dos homens que, à medida que a manhã ia passando, vinham beber uma caneca de água na fonte.

Era como um castigo estar sentada ali, exposta.

Estavam cercados por uma pobreza tão profunda que até suas roupas, bastante comuns, de acordo com os padrões de seus países, estavam fora das possibilidades de qualquer pessoa ali; a bolsa dela — não achara nada demais nela até aquele momento, enquanto agora não conseguia parar de olhar para a coisa elegante e brilhante sobre a madeira limpa da mesa — provavelmente custava o salário de um mês daquela gente. Ha­via comprado a bolsa como um presente para si mesma, na loja do hotel em Istambul. Mas aquilo não era importante, não era a questão, pois ela sabia que ninguém passando por ali ou olhando das janelas invejava as roupas, a bolsa, os sapatos. O que parecia intolerável era o que eles significavam, ela e Jeffrey, a viagem casual deles, a diversão indolente, a facilidade de movimentos, os relacionamentos casuais.

Só estavam a setenta quilômetros da costa; na costa o que eles eram era o padrão. Lá, todo mundo, ou pelo menos os visitantes, ia de um país para o outro de carro, de trem, de avião, de ônibus, a pé, atravessava continentes para assistir a um festival de música ou até para ir a um restaurante, tinha liber­dade nas amizades, no amor, no sexo, o que para as pessoas daquela cidadezinha devia ser realmente inimaginável.

Ficaram sentados ali, Kate Brown, de quarenta e cinco anos, mãe de quatro filhos, esposa de um médico conceituado que naquele exato momento provavelmente estaria fazendo uma exposição em alguma conferência sobre um estado perigoso do sistema nervoso, e Jeffrey, que quase certamente, nessa altura do ano seguinte, estaria trabalhando, insatisfeito, mas como era o seu dever, no escritório de advocacia de seu tio, em Washing­ton, amantes, e com tão pouca perturbação emocional que, quando recordassem aquela experiência que haviam partilhado, o amor seria o último de seus ingredientes. Não havia uma mulher ou uma moça naquele lugar que estivesse a cem anos de distância de uma tamanha liberdade. Madame Bovary ainda seria o modelo que descreveria os seus excessos; e se os homens, como o irmão do Senor Martinez, de fato iam para Manchester para serem garçons, podia-se ter certeza de que as atitudes e os costumes daquela cidade muitíssimo sofisticada não seriam tra­zidos de volta para cá. Mas os homens eram na sua maioria camponeses, trabalhavam a terra. Plantavam milho e faziam farinha dele. Plantavam azeitonas e vendiam parte delas. Plan­tavam tomates. Trabalhavam na propriedade do nobre rico que passava a maior parte do ano em Madri ou na sua villana costa, como o seu pai e o seu avô haviam feito; e os salários desses homens mantinham o vilarejo pobre e ressecado.

Ao meio-dia, o sol penetrava através da folhagem da ár­vore de forma que parecia uma renda acima deles; voltaram para o hotel e Jeffrey desmaiou e caiu no chão. Novamente ela e o Senor Martinez o carregaram para cima e o puseram numa cama.

E novamente Jeffrey se tinha recolhido atrás de olhos cegos que alternavam expressões de indignação e de espanto. "Por que estão esperando tanta vitalidade de mim?", pergunta­vam eles, quer olhassem para o teto, para as paredes, para o quadrado de luz ofuscante da janela, ou para o Senor Martinez. Ele estava outra vez banhado de suor. Então o Senor Martinez, com um pedido de desculpas, levantou as pálpebras do rapaz: na parte de dentro a carne estava amarelada. E ele apontou silenciosamente para a pele dos braços, que se destacavam ama­relados na brancura da colcha. Sacudindo a cabeça, ele desceu depressa para telefonar para a tia do médico.

Esta disse que, quando o médico desse o seu telefonema habitual para receber o seu relatório, ela lhe diria que havia um jovem americano com febre, suando muito, e com os olhos e a pele amarelos. Segundo ela, disse o Senor Martinez, era um caso de febre amarela: havia um parente dela na América do Sul que tinha morrido disso. Ele encolheu os ombros: era claro que a boa mulher não deveria ser levada a sério.

Ela subiu para o quarto e viu que Jeffrey estava como que destruído por dentro. Estava deitado de barriga para cima, tão frouxo e descontraído que, quando ela lhe ergueu o braço, este escorregou para a cama com uma pancada. Dava a impressão de que os ossos na sua carne haviam sido des­truídos ou tinham encolhido. Os olhos se mantinham meio abertos. Sua aparência era cadavérica, mas ela continuava repe­tindo para si mesma — em silêncio, é claro, como se faz com crianças ou com as pessoas que preferemdeliberadamente colo­car uma distância entre elas e o mundo de imperativos: "Sim, mas ele tem de escolher uma coisa ou a outra, tem de ser um advogado ou um vagabundo, quanto mais não seja, para que pelo menos o veja como uma escolha". Pois, se não o fizesse, não estaria deitado ali com febre, com a pele amarela, mas não doente, não, não doente como alguém com cólera ou até com sarampo.

No entanto, era evidente que Jeffrey estava doente, real­mente doente, ainda que, se fosse um trabalhador espanhol ou um pequeno fazendeiro para quem um dia de trabalho constitui a diferença entre comer e não comer, ele não estaria doente de

maneira alguma. Não, é claro que ela não poderia guardar rancor contra ele! Não guardava, ainda que preferisse que ele tivesse ido para casa, para os Estados Unidos, para gozar a sua crise espiritual. O que, é claro, era aquilo... Quanto a ela, estava resmungando obscenidades para consigo mesma, uma vez fora das vistas do Senor Martinez, pois estava ali por motivos físicos. Era aquilo o que ela havia contratado: o corpo, os prazeres da carne; desejar que houvesse alguém com quem pudesse partilhar a brincadeira. Umedeceu a testa de Jeffrey com uma esponja e o levantou para que bebesse.

Na sala de jantar havia um homem gordo, de uniforme, com uma arma no cinto. Era um uniforme militar. A arma controlou a refeição, enquanto a moça servia uma sopa grossa gelada e carne fria, salada e pão.

Kate voltou para o quarto, encontrou Jeffrey exatamente onde o havia deixado, deu-lhe mais água, e então deitou-se e dormiu. E dormiu e dormiu, ouvindo como se fosse uma coisa quase que no limite da audição; o tutor interior estava querendo que ela compreendesse alguma coisa, mas estava sendo burra demais para compreender. Estava sonhando com a foca, ou tinha sonhado com ela, pois podia sentir o peso do animal, que ainda estava úmido por causa da água que havia jogado sobre ele. Atrás dela, um sol baixo e sombrio se havia movido num arco riscado atravessando talvez um quarto do horizonte. Era um sol pequeno, não tinha calor, tudo estava ficando muito escuro; ela parecia estar caminhando sem parar num permanente crepúsculo frio.         

Na manhã seguinte, quando a luz do sol deixou de entrarno quarto, foi como se tivesse deixado uma mancha de cor na pele de Jeffrey. Ela procurou o Senor Martinez e perguntou se poderia fazer uma outra tentativa de falar com o médico. Mas a tia não estava respondendo ao telefone: parecia que suas manhãs eram passadas em devoções na igreja do convento. Aconteceu que, quando Kate e o Senor Martinez trocavam idéias sobre o que fazer, junto da janela, um caminhão parou na praça. Era um velho Ford já muito usado, e o motorista estava enchendo o radiador com água da fonte. Ao mesmo tempo surgiu na praça um cavalo puxando uma carroça de um tipo que devia ser visto na Espanha há muitos séculos. O cavalo estava com sede, pois foi direto para a fonte e bebeu enquanto o motorista do caminhão enchia a lata de óleo vazia bem debaixo do seu focinho.      

O cenho franzido do Senor Martinez desapareceu; ele correu para fora, falou com o motorista do caminhão e voltou para dizer que aquele homem — era um trabalhador rodoviário — levaria Jeffrey até o convento para ser tratado, se o aprontassem depressa.

Kate e o Senor Martinez tentaram vestir o paciente, que não opôs resistência, mas estava com os membros tão pesados que desistiram e o enrolaram em cobertores. Carregaram-no para baixo, nu, mas envolto em cobertores, e o puseram na ca­bina alta do caminhão. O Senor Martinez foi junto com Jeffrey, pois as freiras não falavam língua alguma que não fosse o espanhol. Não tendo sido capazes de lembrar a palavra em francês que significava "icterícia", concordaram em usar "la maladie jaune", diagnóstico de leigo que seria transmitido ao convento.

O caminhão saiu sacolejando da praça, Jeffrey recostado como um homem ferido entre o dono do hotel e o motorista.

Aquilo foi às dez da manhã.

O Senor Martinez, que havia comunicado a concordância das freiras em receber e cuidar de Jeffrey, telefonou para lá às cinco horas da tarde a pedido de Kate, e disseram-lhe que ele estava dormindo, que o achavam muito doente, mas que esperavam a chegada de um médico de Alicante, que vinha atendê-las em casos de maior gravidade.

Embora nada houvesse que pudesse fazer lá, Kate decidiu ir andando até o convento. O caminho levava a uma rua cuja existência não notara antes: era mais uma travessa ou uma alameda do que uma rua, muito pobre, com quartos nos dois lados, cada quarto para uma família. O degrau da porta da frente dos quartos dava para uma travessa, a porta dos fundos, para outra. As portas estavam abertas e cada quarto abrigava crianças de todos os tamanhos e as mães das crianças provavel­mente da idade de Kate ou mais jovens, mas com aparência de velhas. Na travessa havia também muita gente idosa sentada em cadeiras, entre galinhas e cabras. Nenhum homem jovem ou de meia-idade. Deviam estar fora, no trabalho. Kate foi andando por aquela rua, sorrindo. Sentia-se envergonhada, e nenhuma forma de racionalização, por mais profunda que fosse, seria capaz de afastar aquele sentimento. Repetiu a si mesma, inú­meras vezes que a setenta quilômetros de distância, na costa, estaria absorvida e imperceptível numa torrente humana, um ponto de moralidade entre centenas de milhares — na realidade, naquele mês, milhões de pessoas da sua espécie. Mas não adiantava. Os sorrisos e cumprimentos daquelas mulheres po­bres, em suas roupas pretas miseráveis e gastas, os enxames de crianças, a miséria mortal, desesperada e profunda, eram acusa­ções gritadas contra ela, que tão simpaticamente andava por ali com seu vestido branco alinhado, o cabelo vermelho-escuro elegante (que no repartido, entretanto, já estava deixando à mostra uma faixa de cinza), a bolsa elegante, os membros bran­cos como creme e bem-tratados.

Alcançou o fim da travessa cem metros depois do começo, num declive rochoso coberto de oliveiras, entre as quais seguia uma trilha para cavalos o caminhão havia sacolejado naquela direção, aquela manhã. Olhou para trás e viu a rua cheia, lotada, um mar sólido de mulheres vestidas de preto e crianças descalças observando-a.

Continuou andando, o rosto ardendo, entre as oliveiras e depois o milharal, até que virou depois de passar por um eucalipto que espalhava seu perfume seco ainda com mais força que as oliveiras. Lá estava o convento. Um muro alto de pedras encurvava-se para trás dos dois lados dos portões de ferro, e dentro dos portões viam-se um jardim muito limpo e cuidado, com arbustos em flor, e um prédio caiado de dois andares. Quando atravessava o jardim, um outro grande portão o principal, era óbvio, o portão por onde passara devia ser uma entrada secundária deixava à mostra a igreja, que dominava tudo: o prédio do convento, o muro, os portões trabalhados, oliveiras, campos, terra rochosa. Sua cúpula cintilava ao fogo do crepúsculo. Kate bateu no que agora via que deveria ser uma porta dos fundos, e foi atendida com sorrisos, recebeu as boas-vindas, primeiro por uma mulher de hábito preto, depois duas, três, e então um pequeno rebanho. Todas sabiam a respeito dela e que deveria ter vindo ver o paciente. Foi acompanhada até um quartinho, que dava para um pátio, onde Jeffrey estava deitado numa cama de ferro sob um quadro brilhante do Coração Ima­culado. Havia um crucifixo numa mesa baixa e uma cruz de marfim na parede caiada.

Desde aquela manhã um remédio qualquer havia levado Jeffrey para mais longe ainda. Estava absolutamente imóvel, frio e úmido, a pele parecia ter sido pintada. Ela poderia muito bem não ter vindo, mas sentou-se por algum tempo numa ca­deira com assento de junco, enquanto as freiras lhe traziam café e bolo, e depois um copo de vinho, sempre sorrindo, en­cantadas com o fato de ela estar ali, dando-lhes uma oportuni­dade de servir a Deus. Afinal, agradeceu-lhes e foi embora. En­trou na igreja. Estava tranqüila e cheirava a incenso, e teria gostado de sentar-se um pouco e pensar, ou até, talvez, imaginar uma oração qualquer, mas não adiantava, havia ouro e pedras preciosas numa quantidade suficiente para alimentar e curar milhares de pessoas, naquela pequena manifestação da igreja sem importância e obscura. Este pensamento, ali, poderia ter muito pouca força para sustentar-se: era um pensamento estra­nho, tinha em si a inutilidade obstinada da causa perdida, mas ela o manteve na mente com rebeldia e deixou a igreja para voltar, andando, para o vilarejo num anoitecer perfumado, cálido e agradável.

Na travessa das muitas famílias, os homens tinham voltado dos campos, e ela ficou satisfeita com o escurecer, acentuado pelo clarão ofuscante de luzes que vinham de cada quarto. Era boa noite, boa noite, buenas tardes, buenas tardes, o tempo todo, enquanto as crianças corriam com ela em bandos, em meio à poeira, até que entrou no hotel, onde foram afastadas, como passarinhos que se desviassem de um obstáculo, e fugiram correndo, gritando na escuridão.

Na sala de refeições, ela comeu na companhia de um padre idoso que, ela veio a saber, não era outro senão o médico esperado no convento —• uma sopa grossa, quente, ovos fritos, pimentões e tomates, e marmelos cozidos. Pediu ao padre que lhe telefonasse depois que tivesse examinado o "seu marido", recebeu sua atenção, que, embora fria, ela acreditava ser sem censuras, e subiu para o quarto, onde aguardaria o telefonema. O padre deveria ir a pé até o convento, como ela havia feito, e então, é claro, conversaria com as mulheres alegres e simpá­ticas nos seus hábitos pretos abafados, depois examinaria Jeffrey. Já passava de meia-noite quando a campainha do telefone tocou estridente lá embaixo, e o Senor Martinez subiu para comunicar que o Padre Juan achava que o rapaz estava com icterícia, mas que havia certos sintomas no caso que contra­diziam aquele diagnóstico. Provavelmente haveria algo de mais definido dentro de três dias, quando o médico da região fizesse sua visita habitual ao convento.

Kate foi para a cama e dormiu um sono leve, logo abaixo da superfície do despertar, num lago raso de sonhos, onde sombras de idéias se moviam frescas e leves como peixes, um lugar muito distante do escuro país do norte onde ela e a foca faziam a dolorosa jornada. Acordou cedo, quando o dia ainda estava acinzentado, fresco, fluindo através da escuridão. Sentou-se junto à janela para observar o despertar do vilarejo.

Logo um homem veio até a fonte, estendeu a mão para dirigir a água num jato sobre o rosto, inclinou a cabeça para o fluxo, bebendo de lado, a luz fraca do sol colorindo seu rosto moreno.

Um cavalo preto surgiu, vagueando, vindo de uma rua la­teral, e ficou com a cabeça baixa, piscando para afastar as moscas dos olhos.

Uma mulher saiu pela porta de sua casa e ajeitou uma cadeira de madeira no chão empoeirado. Voltou para dentro e tornou a sair com uma faca, um prato de metal esmaltado cheio de pimentões verdes e uma bacia de plástico. Usava as roupas pretas gastas das mulheres pobres da Europa. Sentou-se na cadeira com cuidado, como se o ato de sentar-se pudesse machucá-la, e pôs a bacia entre os joelhos. Mantendo o prato equilibrado na dobra do cotovelo, foi picando os pimentões na bacia. Era velha, uma mulher velha e cansada, com o cabelo grisalho bem puxado para trás. Exatamente como Kate estava pensando. "Não, provavelmente não, provavelmente descobrirei que ela não é nada velha, vai me atingir de novo." A mulher olhou direto para cima, para Kate, que estava sentada com seus babados brancos na janela. A mulher sorriu, Kate também, sabendo que não podia competir com aquele sorriso: e, é claro, a mulher não era mais velha do que Kate, mas estava gasta como um cavalo.

Kate saiu da janela e se vestiu. Chegou uma bandeja com café, broas açucaradas e geléia. Agora o sol batia em cheio no quarto. Fechou os postigos para impedir o clarão e, nada tendo para ler senão as revistas de quase uma semana atrás, que pareciam todas tão falsas e idiotas como esperava que pareces­sem ali, naquele vilarejo, ficou sentada sem nada fazer a manhã inteira até que pudesse comer. Adormeceu de novo, e depois foi andando até o convento. Jeffrey continuava deitado em seu claustro caiado, cujo chão estava cheio de poças de água perfu­mada. As freiras jogavam água perfumada no chão várias vezes por dia, para diminuir a secura do ar e para fazer descer a poeira que se erguia em torno do convento como pano desbotado.

Voltou, andando novamente, obrigando-se a fazê-lo, em meio à gente pobre, ficou sentada no quarto até a hora do jantar, às dez, e depois desejou que pudesse ir ao bar, que naquela hora estava cheio de gente. Mas é claro que não podia, estava cheio de homens. Mesmo com Jeffrey teria sido impos­sível ou desagradável, pois eles estariam incomodando pessoas que iam ali toda noite, para quem o bar era um prolongamento de suas vidas familiares.

Desejava que pudesse encontrar alguma atividade para acabar com o que há muito vinha dizendo a si mesma que pre­cisava: tempo para pensar. Mas não estava pensando, estava sentindo. Estava querendo a sua casa, sua vida nela que era o passado, é claro. Mas era como se estivesse construindo um futuro em sua mente, e o esforço contínuo de se reprimir, de dizer "isso acabou, isso está terminado" provocava ataques de sentimentos que não conseguia controlar.

Sentia falta do marido.

Seu estado na ocasião em que saíra de casa em maio as reviravoltas constantes de sentimentos contraditórios, de carência de amor para irritação contra a sua carência, de desejo de ter mais liberdade para a necessidade covarde de estar presa se havia transformado agora numa paixão de desejo que, entretanto, estava sendo adiada até o futuro... o outono. Ansiava pelo corpo do marido, como outrora, anos atrás, quando ainda era uma garota, ansiara por um amante; mas, é claro, esse anseio de agora era mil vezes mais intenso, uma vez que havia acumulado tantas lembranças para alimentá-lo. Enquanto estava ocupada em passar o dia inteiro, a metade da noite, expondo seu casamento à luz, entre o indicador e o polegar, para analisá-lo, um pequeno objeto de contornos nítidos que mesmo naquele momento podia desprezar por com­pleto, os ritmos da sua carne, a sua memória haviam marcado um encontro com o seu marido. A quem a sua inteligência con­siderava com frieza, como alguém que tinha feito uma escolha consciente de gozar os prazeres da carne enquanto durassem... Com frieza, mas de maneira bastante cansada, num esforço para com a decência, quase que no espírito de eu não concordo com o que ele pensa, mas lutarei até a morte pelo seu direito... De quem seus sentimentos zombavam porque o viam um garotinho que se estava entupindo de doces.

A sua sexualidade, num vácuo, sem ser apoiada pelo que pensava, pelo que sentia, pelo que esperava do futuro, era uma traidora da sua convicção de que agora, naquele momento, ela só tinha um dever: pensar no que sua vida se havia transfor­mado, no que teria de ser. Isto, entretanto, não era a fome de alguém que estava tendo de passar sem comida. Ela não estava atormentada ou carente, pois seu apetite sexual, exceto pela estranha pontada, como uma contração da boca quando sente o cheiro de comida ou vê chocolate num balcão, estava como que adiado. Para o outono. Para o futuro que não se realizaria, ou não da maneira como seu marido, ela mesma, seus filhos o visualizavam, até aquela famosa tarde de maio, quando tudo havia mudado. O futuro não ia ser uma continuação do passado imediato, com aquele verão parecendo, em retrospectiva, um hiato sem importância. Não, o futuro continuaria a partir de onde ela havia saído como uma criança. Pois parecia-lhe cada vez mais (por causa daquela sexualidade, algo deslocado; como um órgão retirado do seu corpo e posto do seu lado para ser olhado, como uma criança deformada sem função, futuro ou propósito) que era como se ela estivesse acabando de sair de um período de loucura, que havia durado todos os anos desde aquele ponto no início da adolescência, quando a natureza exi­gira que arranjasse um homem (naquela ocasião ela encarava o fato romanticamente, é claro), até recentemente, quando a droga começara a perder a força. Todos aqueles anos agora pareciam como que uma traição ao que ela era realmente. En­quanto seu corpo, suas necessidades, seus sentimentos toda ela giraram como um girassol atrás de um homem, todo aquele tempo ela estivera segurando uma outra coisa nas mãos, a coisa preciosa, oferecendo-a em vão ao marido, aos filhos, a todo mundo que conhecia, mas nunca fora aceita, não fora notada. Mas essa coisa que ela havia oferecido, sem saber que o fazia, que fora ignorada por ela mesma e por todas as outras pessoas, era o que havia de verdadeiro nela.

Mesmo agora, com todas as pressões tendo sido tiradas de cima dela, sozinha, no estado que tão freqüentemente, durante seus anos de imersão na família, parecera fora de alcance, não era capaz de descansar, e de pensar, de compreender, de absorver, pois continuamente se sentia correr em direção ao futuro, para os braços do marido, para um mar de intimidade que incluía o seu passado. Coisa que a sua mente julgava como sendo uma espécie de loucura. Ansiava pelo passado, estava obcecada por ele. Sentada sozinha no quarto de hotel, uma febre de querer a transportou para o seu quarto em casa, para os braços do marido, ouvindo as folhas que eram varridas em volta da casa por um vento frio, mas envoltos pelo calor da casa: o passado.

Ficou sentada junto à janela até que se tornou a última pessoa acordada: todas as luzes do vilarejo estavam apagadas. O aglomerado de luzes lá em cima, na encosta, que o Senor Martinez dissera ser um outro convento, se havia tornado um cintilar distante através de quilômetros de distância. Mas aquele bruxulear era causado pela oscilação das folhas contra a única luz no portão do convento. Descobriu isso quando foi andar pelos caminhos da encosta na manhã seguinte: havia um pequeno prédio branco, isolado, entre as laranjeiras, onde as galinhas ciscavam. Uma freira estava cavando com a enxada entre as laranjeiras, as mangas pretas puxadas para cima deixando à mostra os pulsos, a poeira assentando na saia preta.

Aquela noiva de Cristo sorriu para Kate, que retribuiu o sorriso. "Loucos", estava pensando. "Todos nós, o nosso maldito bando inteiro, a coisa toda, malucos, tanto homens como mulheres, estamos todos loucos, e não sabemos." Ali estava aquela mulher, na prisão que escolhera para si mesma, ali estava ela, uma prisioneira de suas lembranças; e ali estava Michael, ocupado em...nem tanto em comer, mas em experimentar de uma caixa de chocolates, dar uma mordida num, engolir um outro, jogar fora um terceiro, sem experimentá-lo.

A lanterna no portão era de ferro, e parecia velha. Provavelmente feita deliberadamente para parecer antiga. As fo­lhas que faziam a luz tremer à noite eram de uma velha oliveira.

De volta ao hotel, o Senor Martinez disse que ela não devia andar muito, quando o calor fosse mais intenso, e que lamentava, porque não havia um lugar onde ela pudesse divertir-se, mas talvez ela gostasse de usar o pátio do hotel, que não estava aberto para hóspedes comuns, mas poderia ser para ela.

O pátio tinha um lugarzinho onde se podiam ver peixes dourados, com dificuldade, através de uma cortina de poeira, e muitas plantas aquáticas, cujas folhas estavam cheias de bolhas. Do outro lado do pátio, num canto de sombra, estava sentada uma mulher idosa, tia do Senor Martinez. Ora lia a Bíblia, ora tricotava uma roupa preta.

No fim da tarde, Kate foi novamente visitar Jeffrey. Ainda não tinha dito uma palavra a ninguém, disseram as freiras. Na­quele instante, porém, abriu os olhos, pareceu reconhecê-la, e disse numa voz normal:

Oh, olá, oi, como é que vai? Em seguida, tornou a cair no seu sono ou estupor.

Naquela noite, o médico da região foi ao convento, e as freiras telefonaram para o Senor Martinez para dizer que Jeffrey podia estar com febre tifóide, era uma possibilidade, mas que ninguém devia preocupar-se.

Na manhã seguinte, a possibilidade de febre tifóide foi afastada, sem contudo confirmar-se a icterícia. Passaram-se um dia e mais um outro. Ela visitava Jeffrey, ficava sentada no quarto com ele, ia a pé pelas ruas e travessas pobres e pelos campos de oliveiras até o convento. Sentava-se no pátio, lutava contra seus sentimentos numa fúria de irritação para consigo mesma, e sonhava com a foca. Estava ficando envolvida pela atmosfera do sonho, de forma que mesmo quando acordada percebia momentos, lampejos de sentimento se é que esta era a palavra que vinham do sonho, da foca. Sempre tivera boas relações com seus sonhos, sempre estivera alerta para aprender com eles. Desde pequena, com cinco ou seis anos, conseguia estender a mão para o interior do mundo atrás do mundo ilumi­nado pela luz do dia, tocar um objeto que vivia ali, ou caminhar através dele com facilidade, sem espanto, sem medo. Também não estava surpresa com um sonho que se desenvolvia como uma fábula ou um mito. Abrigava vários daqueles sonhos que se desenvolviam com o correr do tempo e, quando um novo estágio de desenvolvimento de um tema familiar lhe era apre­sentado, ficava deitada, acordada pelo maior espaço de tempo que pudesse, antes de permitir que vissem que estava acordada, pensando nas idéias que se formavam dentro dela, e que não podia ver senão naquelas reflexões, como sombras iluminadas pelo fogo, nas paredes do seu sono.

Mas aquele sonho, o sonho da foca, era de uma espécie diferente de todos que conhecera. Não porque parecesse tão realmuitos de seus sonhos eram assim, reais como a vida acordada. Não, era por causa da sua atmosfera, tão particularmente sua que podia entrar nele mesmo quando a foca não estava lá...quando estava, assim como se estivesse fora de cena por aquele período, ocupada em algum outro lugar, com seus assuntos pessoais, ela podia entrar no local do sonho e saber que ele era o sonho da foca. Dormir e entrar naquele sonho era tanto uma ocupação para ela, durante aquele período de sua vida, como estar naquele hotel na cidadezinha pobre e poeirenta, num agosto abrasador, como ir visitar Jeffrey e esperar pela sua recuperação, como lutar com o seu ego emo­cional, que parecia um traidor que tivesse vindo à vida dentro dela. A coisa com que estava envolvida era o sonho, que se ia desenvolvendo dentro dela.

Uma tarde quente, na hora da sesta, ela estava numa arena com a foca: na paisagem do norte havia um anfiteatro romano. Estava no nível do solo, lá embaixo, no chão da arena. De repente, animais selvagens saltaram das jaulas que foram abertas nas paredes da arena. Leões, leopardos, lobos, tigres. Correu com a foca e subiu tão alto quanto pôde nos degraus das arquibancadas, enquanto os animais vinham atrás das duas. Fez um esforço e subiu pela beira da arena, uma cerca frágil, de madeira, que tremia sob o seu peso e o da foca. Ela se agar­rou ali, pondo as pernas para cima, tentando levantar a foca e afastá-la de presas e garras. Era terrível o som de rosnados e grunhidos. Pensou que não teria força para manter-se ali, para manter a foca a salvo por muito tempo. Sua força estava desapa­recendo e os animais saltavam no ar, tentando abocanhá-la, gru­nhindo junto a seus pés, apenas a poucos centímetros da cauda marcada de cicatrizes da foca. Então o saltar frenético se tornou menor e logo ela e sua carga estavam muito longe dos animais que se foram encolhendo, murchando até que desapareceram.

Fazia uma semana que Jeffrey fora levado para o convento. Não era absolutamente certo que não tivera febre tifóide, embora o convento e as autoridades tivessem passado umas qua­renta e oito horas terríveis. Mas agora não achavam também que fosse icterícia, não obstante o amarelo da pele. O amarelo havia desaparecido por completo, e ele continuava tendo febres bastante altas. A única certeza era de que estava doente e fraco demais para viajar.

Kate o visitava diariamente, às vezes duas vezes por dia. Agora ele a reconhecia, e falavam, não muito, mas eram amáveis e agradáveis um para com o outro, como haviam sido no início, em Istambul. A febre dele continuava com as mesmas caracte­rísticas: subia de repente e depois ia cedendo. Ele dizia que estava feliz de estar onde estava. Estar deitado naquele quarto austero, olhando para fora, para a luz do sol que permitia que visse uma árvore e um canteiro de petúnias, algum jasmim, era o de que estivera precisando... não sabia por quanto tempo. Não acreditava que estivera em semi-inconsciência e não sabia que passara inconsciente muitos dias. Via a sua estada no con­vento da seguinte maneira: deitado tranqüilamente numa cama, num quarto branco, olhando para fora, para as folhagens e flores.

Quando não estava no convento, Kate ficava horas sentada no pátio do hotel. À noite, sentava-se junto à janela, uma região de vigilância alerta, contra a traição das lembranças, desejos, falsas esperanças, e observava a lua cheia.

Uma tarde, a caminhada até o convento foi impossível para ela. Fazia um calor insuportável, tinha dormido tempo demais na hora da sesta, sentia-se um pouco enjoada com toda aquela comida pesada e inadequada, achava que na noite ante­rior devia estar amanhecendo quando afinal conseguiu deixar a janela enluarada, as estrelas, a luz do convento que bruxuleava lá embaixo na encosta da montanha através da sua tela móvel. Pediu ao Senor Martinez que telefonasse ao convento e dissesse a Jeffrey que não iria lá naquela tarde, e voltou para a cama. Não desceu para o jantar, devolveu a bandeja do café intacta e, quando o Senor Martinez foi ao seu quarto para saber como ia passando, viu pela expressão no rosto dele que, como Jeffrey, estava doente.

Oh, então aquilo era apenas isso? Vinha se sentindo da­quela maneira... não sabia como descrevê-lo, mas que lhe dis­sessem que podia estar ficando com icterícia, ou o que quer que fosse que Jeffrey tinha, era reconfortante. Permanecera deitada na cama a noite passada inteira — sentar-se junto à janela estivera além de suas possibilidades —, observando o movimento da lua através do quadro de estrelas. Andou também em direção ao norte, com a foca nos braços... Acreditava que em algum lugar, mais adiante, devia estar o mar, pois, se não estivesse, tanto ela como a foca morreriam. A neve come­çou a cair suavemente, flutuando para dentro das concavidades e reentrâncias das rochas negras, pontiagudas. Ela estremeceu e ficou satisfeita de que o corpo da foca estivesse contra o seu, protegendo-o. A foca conservava a cabeça encostada no seu ombro e podia sentir os fios macios da sua pele no rosto. A vida da foca estava por um fio, ela sabia disso. Sabia que ao caminhar no inverno que tinha pela frente estava levando também a sua vida, além da vida da foca, como se estivesse estendendo a mão aberta para um vento frio, com uma única folha seca na palma da mão.

O Senor Martinez disse que ela devia autorizá-lo a tele­fonar para a tia do médico, que diria a ele que viesse e a examinasse. Kate viu que estava no início de um processo que poderia levá-la a ficar deitada numa cela caiada ao lado daquela em que Jeffrey se encontrava. Se estava doente, ou ia ficar doente, então devia ir para casa. Embora até aquele minuto lhe tivesse parecido impossível deixar Jeffrey ali, sozi­nho, o que seria um ato de frieza ou de irresponsabilidade, naquele momento dizia a si mesma que afinal ele era um homem de trinta anos, que continuaria vivendo e provavelmente melhoraria, mesmo se ela não estivesse esperando no hotel para sentar-se a seu lado uma ou duas vezes por dia — coisa que, de qualquer maneira, não podia mais fazer. Era capaz de deixá-lo. Enviou-lhe recados telefônicos através do Senor Martinez e das freiras, e com o papel que o Senor Martinez lhe dera — o hotel não tinha o seu próprio papel — escreveu para ele. Era uma carta pequena, zombeteira e pesarosa, cheia das ironias da situação. Ao escrevê-la, compreendeu que estava doente, pois o esforço foi enorme. Nó devido tempo, ele lhe escreveria uma outra parecida. Nessa ocasião, aquele vilarejo e as experiências tão diferentes deles dois ter-se-iam transportado para o passado como filmes que, entretanto, começavam com a mesma seqüên­cia: um homem e uma mulher sentados lado a lado num ônibus do campo, que tinha parado em algum lugar. Estavam olhando para fora, para um luar muito claro. Era a praça de um vilarejo. Na borda de uma fontezinha lascada, brilhava uma xícara de porcelana branca. Havia homens sentados bebendo, do lado de fora de um bar. Havia algumas árvores que não tinham boa aparência. Estariam doentes? Não, estavam cobertas de poeira.

Ela ficou de pé junto da fonte, com a bagagem, tendo pagado a conta inacreditavelmente modesta, e o Senor Martinez apertou suas mãos nas dele e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela sentiu lágrimas nos seus também. E ficou embaraçada de novo, pois, embora o Senor Martinez gostasse dela, oh, sim, realmente gostava muito dela, e compreendesse por que aquele capaz, desafortunadamente doente, haveria de tê-la escolhido, embora tão mais velha do que ele (passaportes dizem tudo), mesmo assim estava chocado, ainda assim estava cho­cado, se bem que pesarosamente: ele sabia que, hoje em dia, o mundo abrigava inúmeras relações como aquela, mas não achava que o mundo estivesse melhor por isso. Tudo isso e muito mais exprimiu com a pressão de suas mãos, o lacrimejar dos olhos vivos e bonitos, enquanto o ônibus estremecia suavemente no sol de um princípio de manhã, esperando por duas passageiras, Kate e uma mocinha, que o Senor Martinez disse que era filha de um homem que plantava tomates num campo por onde ela passava a caminho do convento. A mocinha ia trabalhar como camareira num hotel, naquela costa lucrativa, por um mês, antes de voltar para ajudar a mãe com as seis crianças menores.

O Senor Martinez pôs a mala no ônibus e disse ao moto­rista que a senora não estava bem e que deveria ser tratada com cuidados especiais. Como, de fato, ela precisou ser: a jor­nada até a costa foi toda náuseas e calor; e o clarão da costa, quando chegou lá, a deixou estonteada. Era meio-dia. Sua ca­beça doía, e devia estar na cama, mas agora estava decidida a fazer uma coisa: voltar para Londres o mais rápido que pudesse.

Na costa, encontrou um outro ônibus e logo estava numa cidade suficientemente grande para ter uma agência de informação para turistas e, às cinco daquela tarde, entrara em con­tato com um médico. No interior, entre aquelas pessoas muito pobres, arranjar um médico significara dias de espera e inter­venção da religião.

O médico ouviu tudo que ela tinha a dizer sobre icterícia e febre tifóide. Examinou-a e disse que em sua opinião ela estava anêmica. Aconselhou-a a consultar o seu médico em Londres, embora acreditasse que logo ela estaria muito bem. Receitou um sedativo e cobrou-lhe algo correspondente a cinco libras. É claro, na "época da maré cheia", quando jorravam rios de ouro acima e abaixo nas costas, e uma vez que a senora, obviamente, era rica — olhe o vestido dela, a bolsa, os sapatos! —, o que poderia ser mais justo?

A senora, reconhecendo no médico a sua própria atitude com relação a Jeffrey, cuja doença pelo menos no começo fora mais uma doença do espírito, mesmo assim se sentia fraca demais para ônibus e trens, e tornou a entrar no mundo dos ricos alugando um carro para levá-la até o aeroporto.

Lá ela cochilou numa cadeira, à espera de um cancela­mento. À medida que o tempo passava, acabou deitando-se num banco comprido, alheia à curiosidade ou à desaprovação dos outros passageiros. Estava submergida na náusea fria que caracterizava aquela doença, o que quer que fosse, e quando afinal, mas só na manhã seguinte, entrou num avião, percebeu a enorme dimensão do erro que fora estar ali. Tinha certeza de que ia morrer, esperava que fosse morrer mesmo e, quando chegou a Londres, foi sustentada apenas pelo pensamento da sua própria cama, no seu quarto, com as cortinas floridas, além das quais podiam-se ver os galhos de verão filtrando a luz do sol, ou a luz de nuvens, ou luar... Oh, não via a hora de estar novamente em sua própria casa, possivelmente com uma das crianças, de volta de algum lugar, para ajudá-la. Já tinha dado o endereço ao motorista do táxi quando lembrou que não tinha direito àquilo: sua casa estava cheia de estranhos. Pediu-lhe que esperasse enquanto refletia. Ele o fez, e o relógio foi mar­cando a sua dificuldade, enquanto pensava que obter um quarto de hotel em Londres, em agosto, era loucura. Mas não queria procurar amigos, e especialmente não Mary, que ela sabia a receberia com entusiasmo. Se, é claro, não estivesse ocupada com um caso amoroso qualquer... os filhos dela também esta­vam fora.

Afinal confiou ao motorista de táxi o seu problema e deu a entender que o interesse dele pelas suas dificuldades seria bem recompensado. Ele a levou para Londres, virando-se para examiná-la ocasionalmente, para ver o quanto estava doente e se deveria levá-la antes para um hospital. Depois, foi seguindo de hotel em hotel, deixando-a enquanto ia expor o seu problema para um, dois, três, quatro recepcionistas. Finalmente, num hotel em Bloomsbury, que era muito mais caro do que qualquer hotel que a Sra. Michael Brown teria procurado, veio dizer que, se pudesse esperar uma hora mais ou menos, vagaria um quarto duplo com banheiro: o preço a assustou, mas não tinha escolha.

 

O Hotel

 

Pagou e despediu o motorista do táxi, que a deixou no hotel, onde lhe perguntaram se estava em condições de sentar-se e esperar no vestíbulo. A pergunta, a solicitude eram deliciosas, mas é claro que tinha de concordar e sentar-se ali, a menos que fosse para um hospital, alternativa que fora posta de lado pelo motorista de táxi e pela recepção do hotel em suas confabulações — que certamente se realizaram — sobre infecções, epidemias e coisas assim. Não, a recepção do hotel, o motorista do táxi e ela mesma haviam chegado à conclusão de que ela estava mais indisposta do que doente. Sentou-se debilmente no vestíbulo, tentando fazer com que sua mente se equilibrasse, concentran­do-se no cenário que a rodeava. Visto de um ponto geográfico favorável — com um par de binóculos especialmente fortes no topo dos Alpes, por exemplo? — pareceria certamente que em agosto toda a Europa faz um intercâmbio de populações, troca blocos de população. Naquele vestíbulo, ornamentado com vasos de flores — artificiais, mas imitando a natureza com tamanha perfeição que flores verdadeiras teriam parecido insignificantes e deslocadas —, os uniformes dos muitos empre­gados, as roupas de férias dos visitantes de início dissimulavam o fato realmente importante: que provavelmente ela era a úni­ca pessoa inglesa ali. Os mensageiros e carregadores que corriam de um lado para outro, as babás, do tipo que ela mesma fora recentemente, sorridentes e simpáticas atrás de suas mesas, os garçons vinham de todos os pontos da Europa. Poderia muito bem ainda estar em Istambul, poderia estar em Málaga ou Alicante... poderia estar em qualquer lugar, embora não, é claro, na cidadezinha que deixara na véspera. E seus ouvidos ainda estavam tentando tornar acessíveis blocos de som para os quais ela não tinha a chave, enquanto absorviam outras seqüências de som que eram facilmente compreendidas pelo seu cérebro. Um casal jovem, perto dela, falava alemão. Eles se viraram para olhar para ela, e Kate se perguntou por que o faziam. Mantive­ram um olhar fixo, bastante amistoso, mas atento. Eram muito atraentes e, obviamente, ricos. Embora fosse um dia quente e úmido, de verão londrino, ele usava um casaco comprido de uma pele que parecia fustão de algodão, num tom malva suave. Ou talvez fosse uma camurça muito macia. Estava todo abo­toado, com exceção do colarinho, deixando à mostra um vis­lumbre de seda branca. Os olhos eram escuros e carinhosos, o cabelo cortado à pajem, em cachos negros, macios. A moça era igual a ele, como se fosse uma cópia. O cabelo era escuro e cortado como o dele. Os olhos e o sorriso eram igualmente encantadores. Estava com um vestido branco longo, de crepe da China, que era fechado com pares de minúsculos botões forrados, ao longo das mangas e até em cima, na frente. Usava colares compridos de cristal cintilante, e botas brancas atadas com cordões. As mãos deles, que pareciam capazes, rápidas e inteligentes, tinham anéis em todos os dedos. Mesmo naquele grupo de gente bem-nutrida e bem-ajustada, aqueles dois so­bressaíam, irradiando uma harmonia de realização sexual. Bas­tava apenas que entrassem num aposento, aqueles dois, e todo mundo saberia logo que a alimentação, as relações sexuais, as conversas e o sono deles deviam ser um banquete. Pela aparência deles, era como se durante suas vidas inteiras tivessem sido todos lambidos por línguas invisíveis, molhadas no mel... Kate era a única que os observava. É claro que era por isso que olhavam para ela: "Sim, estamos habituados a ser observados, sabemos que é o preço que temos de pagar por estarmos tão bem vestidos, por sermos tão bonitos, mas chega, chega!" Kate desviou o olhar para outro lugar e, em vez disso, ouviu o alemão que falavam. Não, agora usavam o francês, e estavam decidindo se alugariam um automóvel para ir visitar amigos que moravam no campo em Wiltshire, ou se almoçariam antes... num res­taurante, não ali naquele hotel, onde, era óbvio, não se podia esperar muito da comida... Os sons pareciam que se afastavam e se aproximavam, como se a estivessem abanando. Sua testa estava fria e úmida: uma moça sorridente com um uniforme alegre, preto e branco, estava inclinada sobre ela e a convidava num inglês com sotaque a acompanhá-la. Enquanto Kate olhava fixo, o convite foi repetido.

— Sinto muito — disse Kate. — É que não estou bem. — Tentou levantar-se, cambaleou e foi segurada pela moça.

Simpatia e preocupação já se derramavam sobre Kate; oh, sim, a moça conhecia o seu trabalho, quem reconheceria isso melhor do que Kate, que o fizera ela mesma, e tão recen­temente?

Não se preocupe com isso, eles me disseram que não estava bem, e não parece mesmo, mas deixe-me levá-la até o seu quarto, a senhora certamente deveria estar na cama.

Tinha-se de esperar pela atenção, pela qual se pagava tão caro... Era o meio do verão, era agosto, mas, quando a atenção era ligada, mostrava-se da mais alta qualidade.

Num casulo de amor e ternura, logo Kate estava em seu quarto, e a moça, Anya, da Áustria, ali na Inglaterra para os toques finais de um treinamento, obviamente admirável, de gerente de hotel, a pôs na cama, fechou as cortinas para obter uma obscuridade suave, ligou para o serviço do andar mandando trazer chá de limão e biscoitos sem gordura, recomendou repou­so, paz, silêncio, e foi embora, tendo entregado Kate aos cui­dados de uma outra moça, da Itália, igualmente encantadora e solícita, que se encontrava ali para aperfeiçoar o seu inglês e aprimorar seu treinamento... embora não estivesse tão adian­tada para a gerência como sua colega Anya. Pois, enquanto a simpatia carinhosa e a dedicação de Anya se espalhavam por todos os andares do hotel, as de Silvia eram apenas para aquele andar.

Ela se retirou, sorrindo, tendo oferecido a Kate seus servi­ços quando quer que Kate decidisse apertar o botão certo.

Kate se viu deitada num quarto do tamanho do menor quarto de sua casa. Era projetado e equipado como uma caixa de costura. A cama onde estava uma cama de solteiro era do tamanho da que ela e seu marido partilhavam nos primeiros anos, quando só podiam pagar o menor tamanho de camas de casal. A de casal estava à distância de um braço esticado, ainda coberta pela colcha cinza-chumbo, na qual foram atirados displicentemente dois travesseiros cor-de-rosa para su­gerir um lar, conforto. Nada mais havia no quarto que não fosse funcional. As cortinas eram pesadas, de um tom rosado, facil­mente laváveis numa máquina de lavar, não precisariam ser passadas a ferro... De que adiantava estar num hotel se você trazia com você a dona-de-casa? Entretanto ela continuou com o seu inventário: o tapete era cinza-escuro, não mostraria a sujeira. As paredes, concluiu, não haviam sido inteligentemente tratadas: brancas, forradas com um material enrugado, que acu­mulava poeira com facilidade. Aquelas paredes provavelmente precisariam ser limpas com aspirador de pó pelo menos uma ouduas vezes por semana. Havia uma televisão, um rádio e um painel atrás da cama cheio de botões e interruptores para apertar e virar.

Mas não era silencioso, não: o tráfego rugia e praguejava abaixo das janelas, que, é claro, tinham de permanecer abertas naquele calor. E, não muito longe, mais abaixo, no corredor, devia haver uma oficina qualquer, pelo barulho e som de risadas que vinham daquela direção. Ela podia ter escuridão, imobili­dade, descanso... mas não teria tranqüilidade.

Deveria, no entanto, entregar-se ao sono até que a doença, qualquer que fosse, tivesse passado. Icterícia? Não, ela não estava nem um pouco amarela. Nem estava com a pele fria. Ao contrário, ardia, como se o calor seco da Espanha ainda continuasse em seu corpo. Sentia-se como se estivesse com febre, e a cabeça doía. Entretanto estava enjoada, como se estivesse muito fria por dentro, gelada, a despeito do exterior ardente. Dava-se conta de como tinha sido horrível aquela longa viagem em ônibus sacolejantes, e no ar, e então novamente no táxi... um pesadelo de calor e movimento enjoativo que tinha em si uma náusea fria.

Precisava vomitar. Vomitou. E outra vez... Segurando-se numa pia com as duas mãos, viu no espelho um rosto branco- esverdeado com manchas vermelho-escarlate nas maçãs, e me­chas escorridas de cabelo ruivo, embaraçado, caindo sobre ele. O cabelo grisalho estava crescendo e rapidamente começava a aparecer. Os ossos do rosto estavam proeminentes, a pele, enrugada e maltratada. Se este rosto tivesse andado pelo vilarejo as mulheres teriam reconhecido uma carne familiar. Voltou cambaleando para a cama, e cochilou. Teve consciência de uma batida discreta na porta, da entrada de Silvia, e do rosto sorri­dente inclinado sobre ela. Mas Kate não se moveu. Seguiu-se um período longo, lento e mortiço, num quarto que mostrava que era noite ou dia por ser ou como uma caverna escura e barulhenta, que tinha faixas verticais de luz dolorosamente bri­lhantes, às quais tinha que virar as costas, ou como uma caverna escura, iluminada por uma faixa de luz horizontal, perto do chão, contra a qual tinha também de cobrir os olhos. Silvia aparecia com freqüência, com um refresco de limão, com clara de ovo batida, que seu treinamento prescrevia como sendo adequado ao estado de Kate. Era delicioso, e Kate bebia cada í copo assim que chegava junto dela... e vomitava depois que Silvia saía. Pois sabia que Silvia era uma espiã enviada pela gerência para se assegurar de que não estava com alguma doen­ça capaz de fazer com que o hotel recebesse uma condenação por parte de autoridades ainda mais importantes: Silvia estava fazendo relatórios sobre Kate — como, é claro, Kate teria feito em seu lugar; não culpava Silvia, ao contrário, apenas tomava cuidado para esconder como eram freqüentes e violentos os vômitos, e que o barulho era um tormento pior do que a náu­sea. Pois Kate, que ficava deitada, nem dormindo nem acor­dada, sentia o barulho a correr como ondas sobre todo o seu corpo, sentia-o estourar sobre ele, fazendo com que seus ossos doessem; um guinchar de freios vindo da rua feria-lhe a coluna, e as vozes, em muitos idiomas, vindas do corredor, o bater de pés faziam tremer e sacudiam um lago de sensibilidade que lhe enchia a cabeça.

Diversas vezes ouvia um ruído de um rolamento pesado e, aparentemente, perguntara a Silvia o que era, pois a informação em sua mente era de que se tratava de um carrinho de transportar material de limpeza para os quartos, e que havia outros, que levavam refeições, bebidas e cigarros, e que esses carrinhos andavam para cima e para baixo, por todo lado, o dia inteiro e a maior parte da noite. Eles retiniam, chocalhavam e sacolejavam, e as paredes finas tremiam enquanto as janelas vibravam com o tráfego.

Ela devia ter tido outras conversas com a sempre gentil e delicada Silvia. Por exemplo, sabia que Silvia vinha do interior, nas proximidades de Veneza, onde "meu pai tem uma estalagem, a família toda trabalha no negócio". Silvia traba­lhara em todas as funções na estalagem da família, como garço­nete, camareira e cozinheira, até como substituta de seu pai quando este saíra de férias com a mãe e fora à Suécia, no ano anterior. No próximo ano, ela iria para Lyon, trabalhar num hotel onde teria a função que Anya tinha agora: teria subido um degrau. E no ano depois daquele? Casar-se-ia com o seu noivo, que, naquele verão, estava em Zurique, estudando o negócio de vinhos. Arranjariam um emprego num mesmo hotel, de preferência na Itália, mas não obrigatoriamente. Poderia ser na França, na Alemanha, ou até mesmo ali, na Inglaterra. Afi­nal, na nossa época, podia ser em qualquer lugar, não era? Ela se via como a gerente, ele como gerente, e num bom hotel, é claro, algo da mesma classe daquele em que estavam ou até melhor. Aquele hotel era muito bom, sim, ficara muito bem impressionada, mas no devido tempo gostaria de um hotel no campo, como o de seu pai, só que de nível mais alto, para gente muito rica, que pudesse pagar a simplicidade perfeita, a tran­qüilidade perfeita, o máximo em tudo e, não era preciso dizer, atenção da mais alta qualidade. Nessa altura, é claro, não seria Silvia, pessoalmente, quem permitiria que simpatia e amor fluíssem quando quer que fosse necessário; outras pessoas se­riam empregadas para aquela função.

Nesse ínterim, porém, ela era tão maravilhosamente boa no que fazia que seu rosto, inclinado sobre Kate no quarto escurecido, se tornara um símbolo de reconforto, de gentileza

ridículo, absurdo, sim, é claro, mesmo doente Kate sabia disso, mas intensamente agradável. E não era de espantar que aquele casal de pele macia como seda, vestido em crepe da China branco com centenas de botõezinhos minúsculos, cada um forrado separadamente numa seda de uma textura um pouco diferente da do crepe, de forma que se tinha de olhar e olhar de novo para ver se um tecido diferente havia, de fato, sido usado para que os minúsculos botões, mais brilhantes do que o vestido, parecessem, à primeira vista, marfim ou osso polido - não era de espantar que fossem tão confiantes, tão seguros de si, tão facilmente no domínio de si mesmos: a auto-imolação de Silvia e de um milhar de moças como ela os havia tornado assim. Onde estariam agora? Na Suíça? Na Grécia? Mas não teriam de se restringir à Europa, já poderiam estar na América do Sul ou na Islândia.

Kate viu-se acordada, e num silêncio absoluto. Nada ro­lava pelos corredores, e o tráfego era inexistente. Estava com fome. Telefonando, descobriu que eram quatro horas da manhã; mas decidiu que, se estava num hotel daqueles, podia muito bem tirar proveito disso. O serviço de atendimento lhe trouxe uma refeição de pratos frios e um vinho agradável, mas era cedo demais. Comeu um pouco e vomitou de novo, mas conti­nuou com a mente clara, e pronta para começar a viver. O dia começou com seu ruído contínuo, a luz fulgurava e ofuscava. Levantou-se e se vestiu. As roupas dançavam no seu corpo; tinha perdido, a balança dizia, dois quilos e setecentos gramas. Em quanto tempo? Tentou lembrar-se, mas só pôde concluir que devia estar no princípio de setembro.

Ficou diante de um espelho de corpo inteiro, as cortinas finalmente abertas, deixando à mostra a praça abarrotada com o brilho quente do tráfego, e a carga pesada e úmida de folhagens acima. Viu uma mulher que era só pele, osso e grandes cotovelos, com enormes joelhos acima das pernas magras; tinha olhos pequenos, escuros e ansiosos, num rosto pálido e frouxo, em torno do qual havia um emaranhado áspero de cabelo aco­breado. A faixa grisalha no repartido tinha três dedos de largu­ra. Ela não se parecia nada com a mulher bem-tratada da casa na zona sul de Londres; e as pessoas que ficaram tão contentes em ver Kate gentil, sorridente e elegante na Alimentação Mun­dial e em Istambul não a teriam reconhecido.

Era o cabelo, o cabelo acima de tudo, mas nada mais fácil de consertar que isso. Telefonou marcando hora no salão de cabeleireiro do hotel. Soube que teria de esperar até o fim da tarde, e descobriu também que não tinha energias suficientes para fazer o que planejara e que a fizera levantar-se da cama e vestir-se: andar a distância de um quilômetro mais ou menos que separava o hotel onde estava da Alimentação Mundial para apanhar as cartas que deveriam estar lá à sua espera. Na reali­dade, ela desmaiou, voltou a si no chão, com um ombro ma­chucado, foi para a cama e pediu ao pessoal do hotel que mandasse um mensageiro apanhar a sua correspondência. A correspondência chegou; não havia muita coisa. Era pelas cartas de seu marido que ansiava. Havia-lhe enviado muitos postais e uma carta de verdade de Istambul, dizendo que planejava "dar um pulo" até a Espanha, sabendo que ele certamente pensaria que ela havia encontrado companhia atraente, mas decidiu que seria melhor dizê-lo de uma vez naquele momento, de forma que ele teria tempo para digeri-lo. Havia duas cartas de Michael, ternas, divertidas, cheias de informações sobre tudo, inclusive sobre as atividades da filha deles, que estava hospedada em casa de amigos na Filadélfia e que talvez estivesse seriamente apaixonada. Essas cartas anularam todos os pensamentos críti­cos que então tivera sobre a sua situação e sobre o seu casa­mento. Ficou deitada na cama, sentindo-se novamente muito mal, mas sentindo falta do marido, da familiaridade do conheci­mento mútuo deles, da intimidade que gozavam. Agora, parecia- lhe que havia sido infantil até por ter-se ressentido com os casos dele. Eles não podiam ter importância comparados com aqui­lo... se ela estendesse a mão para ele, ou ele para ela, naquele gesto havia um quarto de século de união. A cama vazia à distância de um braço estendido a degradava; o simples fato de estar ali, tendo deixado, ainda que por um momento, o padrão em que sua vida estava moldada parecia um erro praticado por uma louca. A violência daquelas reações, a relutância de sair da cama outra vez, a necessidade de chorar, a necessidade de mandar um telegrama para Michael, pedindo-lhe para vir para casa... tudo isso lhe dizia que ainda estava doente, e que talvez até fosse sensato chamar um médico. Mas após decidir que era o que faria, mergulhou em si mesma e afastou-se do seu eu desperto, a ponto de perder não só a terrível necessidade em relação ao marido como em relação a tudo, e sonhou que estava num campo onde pinheiros e abetos se espalhavam a sua volta, cobertos por uma neve espessa e limpa. O céu estava cinzento, sem sol. Aproximou-se de uma cidadezinha toda cons­truída de madeira, e as pessoas vieram saindo em sua direção; entre elas — mais alto que elas, dominando-as — o jovem rei, aquele que encontrara na casa de madeira onde deixara a foca enquanto eles se amavam. Era louro, tinha um rosto ossudo, bonito, mas envelhecera desde que o vira pela última vez. Inclinou-se para beijá-la, apossando-se dela, e então saiu girando com ela numa dança. O povo da cidadezinha estava todo dan­çando, velhos e moços, homens e mulheres, de mãos dadas e girando num balanço, ou com as mãos em torno da cintura um do outro. Ele e ela, o jovem rei e Kate, dançavam numa plata­forma elevada de madeira, de forma que as pessoas da cidade­zinha pudessem vê-los com clareza, pois enquanto dançavam mantinham os olhos no rei e nela, a consorte escolhida por ele, e sorriam e riam por causa do prazer que sentiam por ela estar ali com o rei. A música estava alta, e não conseguia ver de onde vinha. Então o rei desceu da plataforma, deixando-a sem lhe dar nem ao menos um olhar, e, tomando pelas mãos uma moça, que estivera dançando com um rapaz que parecia ser seu irmão, levou-a sorrindo até a plataforma e começou a dançar com ela. As longas tranças douradas, cada uma presa com uma fita vermelha, saltavam no ar enquanto ela girava de um lado para outro, guiada pelas mãos dele na sua cintura, e ela ria para o rosto sorridente que se inclinava para ela, aproximando-se para um beijo. Kate estava fugindo, numa desolação de dor. O povo do vilarejo veio atrás dela, gritando: ela se havia torna­do uma inimiga, porque tinha sido posta de lado. Eles a apanharam e a seguraram; enquanto isso, o rei os ignorava e a ignorava, enquanto dançava com a moça. Eles a puseram num poço, cercado de madeira, de forma que ficou rodeada por tábuas e não podia sair dali: seus olhos ficavam acima da borda do poço, e podia ver o rei dançando com a moça na plataforma. Gritou que estava presa injustamente, que a tratavam injusta- mente, e o rei, cujo rosto passou de repente de uma expressão sorridente para uma de raiva, aproximou-se andando depressa pela neve, puxando a companheira pela mão. Parando na borda do poço repreendeu-a por sua falta de generosidade, seu espírito mesquinho e crítico, sua falta de sentimentos comunais, e acima de tudo por sua falta de compreensão das leis que governavam a vida: era necessário que o rei dançasse com uma mulher e uma moça depois da outra, até que todas elas tivessem sido escolhi­das, e tivessem dançado com o rei na plataforma elevada, diante dos olhos do povo da cidadezinha. A dança continuava, a música alta, a cantoria, o riso, os beijos. Acima, os pinheiros balança­vam, sibilavam e, à medida que um vento frio soprava mais forte, começaram a gemer e a guinchar. Kate tinha de sair do poço, sabia disso. Em algum lugar, não muito longe, estava a foca, sozinha; e, mais uma vez, tentava dolorosamente seguir seu caminho pelo chão em direção ao mar. Acreditava que ela a havia abandonado.

Acordou com muito frio. Tentando sair da cama para se olhar, para ver se estava amarela ou vermelha ou de uma cor qualquer que fosse um diagnóstico, tornou a cair na cama e tocou a campainha para chamar Silvia. Apareceu uma moça que não tinha visto antes. Era morena, gorducha, com um vestido branco muito curto. Tinha um rosto rechonchudo e olhos negros simpáticos. A boca sorria; acima dela havia um buço infantil que esboçava a mulher bonita e dominadora que ela se tornaria. Movia-se num centro de autoconfiança e apreço por si mesma, e isso era provocado, em Silvia e em Anya, pelo fato de que sabiam que estavam fazendo bem o seu trabalho. Inclinou-se sor­rindo para Kate, pôs a mão fresca sobre a de Kate e perguntou como ela se sentia naquele dia. Sentou-se na cama de Kate e segurou-lhe a mão, disse que ela também era suíça, e da parte de língua francesa, e estava fazendo treinamento de hotelaria, ela também tinha um noivo que estudava o negócio de vinhos; estava no lugar de Silvia enquanto Silvia substituía Anya, pois esta estava na gerência por quinze dias, enquanto a gerente ia visitar a mãe que adoecera de repente. O nome dela era Marie, e sorria e ria, e dizia que madame não estava com febre, mas talvez estivesse preocupada com alguma coisa. Aquilo fez Kate rir, e as duas riram, o riso de Kate terminando num gemido cheio de lágrimas que era como um pedido de amor imediato. Nada havia de errado com ela; ambas pensavam assim. Entre­tanto estava tonta, enjoada, e a pele coberta de suor. Marie trouxe um pouco de sopa, que Kate vomitou imediatamente; a moça estava no quarto e pôde ajudar Kate a ir até o banheiro a tempo. Agora parecia a ambas que a ação ritual de chamar um médico devia ser executada. Veio um médico e, como o da Espanha, estava cheio de negativas. Kate não estava com icterícia. Não, não estava anêmica, ou, se estava, só um pouquinho. Provavelmente estava com gripe, numa de suas muitas manifes­tações, e devia ficar na cama e tomar aqueles comprimidos... Kate dormiu de novo.

Longe, atrás dela, o sol subia de lado, deslizando sobre um horizonte de montanhas escuras e ameaçadoras onde o gelo nunca se derretia, e depois de uma pequena corrida, muito baixo, poucos centímetros acima dos picos, tornou a cair atrás das montanhas, deixando aquela terra escura para as sombras frias. Era um crepúsculo sombrio e ela mal conseguia ver as elevações de terra seca por entre as quais ia caminhando com cuidado. A foca estava inerte em seus braços, a cabeça sobre o seu ombro, e ia escorregando enquanto ela andava, pois estava em coma, ou morrendo. Podia ouvir-lhe a respiração ofegante, seca e irregular. Devia molhar novamente a pele da foca. Mas tudo estava gelado, e a foca precisava de água salgada na pele seca. Deitou o animal na neve e procurou no escuro alguma coisa que a ajudasse. Encontrou uma rocha negra gretada de cristais de sal. Num buraco entre aquela rocha e uma outra viu gelo e quebrou a superfície. Havia um pouco de água congelando ali. Quebrou os cristais naquela água e fez uma solução salina. Car­regou a foca semimorta até junto daquela poça que já estava quase se congelando na superfície, a despeito do sal, e molhou o animal com o líquido, ainda mais depressa e freneticamente à medida que a superfície da poça se congelava e a água desapa­recia. Mas, antes que o gelo estivesse sólido, conseguira passar água por todo o corpo da foca, sobre a pobre pele seca, o rosto e as pálpebras. Os olhos se abriram e a foca gemeu baixinho, mas num cumprimento. Agora ela estava viva e salva, pelo menos por enquanto. Devia pegá-la no colo e andar em direção ao norte, sempre norte, para longe do sol, que estava tão longe, lá embaixo, no sul, no seu dia eterno. A escuridão em volta dela era pesada. Estava nevando de novo. Ela levantou a foca, cujo peso agora era mais fácil de carregar, porque estava respirando e viva, e seguiu no seu caminho para o norte.

Já era meados de setembro quando se arrastou para fora da cama. Tinha emagrecido mais, o cabelo espalhava-se embaraçado em volta de um rosto que era só pele e osso, compacto e ondulado, com faixas cor de laranja, as raízes grisalhas. Não conseguia passar a escova nele. É claro que bastava um pouqui­nho de paciência para ir ao cabeleireiro, e em duas horas pode­ria transformá-lo de novo na massa sedosa, espessa e lustrosa que era o seu estilo. Ou havia sido, durante três meses. Entre­tanto, quando regressasse para casa, teria de voltar ao seu estilo anterior àquele verão, ondas bonitas e discretas, uma ausência total de provocação. Qual era o sentido de fazer qualquer dos dois, quando seu corpo era só pele e ossos; este pensamento, uma vez analisado, acabou por revelar que ela não conseguiria suportar ficar sentada debaixo do secador.

Puxou o cabelo para trás e o prendeu: era juvenil para ela, mas descobriu que não tinha energias para fazer qualquer outra coisa. Passou pela recepção do hotel, barulhenta e com um cheiro tão forte de perfumes que se sentiu enjoada, saiu para a rua, onde todo o rosto era o de um turista atarefado, em busca de sensações. As pessoas ficavam olhando para ela. Vendo-se na vitrina de uma loja, compreendeu por quê. Viu que deveria ter posto um lenço na cabeça, e um outro para marcar a cintura em volta do bolo de fazenda que descia de seu ombro. Entrou na primeira loja que os vendia, comprou um chapelão ao acaso, e o puxou bem para baixo cobrindo o rosto. Agora sentia-se pro­tegida de olhares e de críticas.

Tomou um ônibus, subiu para a parte de cima com dificuldade e sentou-se um pouco trêmula de fraqueza enquanto ia sendo levada através dos muitos quilômetros para o sul, em direção à sua casa. Queria olhar a casa. Não, não para entrar, mas apenas para vê-la. Nunca olhara para aquela casa como olharia agora, quando habitada por outras pessoas. Seria como olhar a sua própria vida.

Saltou do ônibus, tomou um outro, e chegou ao fim da sua rua. Era larga, com fileiras de árvores dos dois lados. Não havia ninguém à vista. O cocker spanieldo Sr. Jasper estava sentado na calçada, ofegante. Ele a reconheceu, mas não se mo­veu. Estava com a língua de fora pingando grandes gotas de calor. Vendo o cachorro bufando de calor na sua massa de pêlo, compreendeu que estava muito quente e que ela estava suando.

Foi descendo a rua, andando devagar. Sentia como se ape­nas naquele momento tivesse realmente voltado para a Ingla­terra, vinda do exterior. Agora estava realmente em casa. Havia deixado a cosmópole. A Sra. Hatch estava no jardim da frente.

cavando em volta da sua roseira branca. A moça olhou para cima, por um instante, para Kate, que ia andando, passando defronte ao seu jardim, olhou outra vez e, quando Kate estava prestes a cumprimentá-la, perdeu o interesse por aquela mulher estranha e continuou a cavar.

Kate parou sob os plátanos na beira do seu jardim, examinando. O prédio grande e sólido estava em silêncio sob o sol da manhã. O céu estava claro e o jardim parecia exposto de­mais, um pouco débil. As coisas precisavam ser regadas. Um pombo arrulhava na árvore sob a qual eles se haviam sentado naquela tarde decisiva. O gramado estava precisando de um corte: os inquilinos provavelmente o cortariam, na correria de último minuto quando esperavam que eles, a família de verda­de, voltassem. Uma espreguiçadeira estava caída de lado, na grama, dando uma impressão de desolação.

Kate continuou de pé ali, na sombra. Talvez alguém saísse. Mas nada aconteceu. Será que a Sra. Enders estava cozinhando? Será que tinha saído para fazer compras? Mas aquilo não era da conta de Kate. Era assim que a sua casa, seu lar, ficaria muito breve, quando Michael e ela a tivessem deixado para ir morar num apartamento, num lugar qualquer. A gente diz "mi­nha casa", "meu lar". Besteira. As pessoas passam pelas casas, que continuam as mesmas, apenas se adaptando um pouco aos seus ocupantes. E Kate não estava sentindo nada mesmo por aquela casa onde vivera durante quase um quarto de século. De fato, sentia-se bastante distante e leve, como se fosse capaz de levantar vôo para algum lugar através da falta de consistên­cia. Decerto era uma loucura ter saído da cama de maneira tão brusca, depois de ter estado de cama por três semanas e sem comer durante todo esse período, ter atravessado quase a me­tade de Londres. Voltaria para a cama naquele dia. Deixou o abrigo da árvore e, do outro lado da rua, na calçada, viu Mary. Mary estava de chapéu e de luvas. Ela detestava os dois; rara­mente os usava; de que evento poderia ela possivelmente estar voltando? A boca de Kate se distendeu num sorriso, para o momento em que Mary fosse olhar para ela. Mas o olhar de desagrado não se modificou. Como íris Hatch, ela lançou um olhar rápido para aquela mulher, de pé, ali, tornou a olhar por causa da excentricidade da pessoa o que era que uma va­gabunda estava fazendo ali, naquela rua respeitável? e con­tinuou andando.

E naquele momento Kate realmente sentiu as emoções de maneira violenta. Uma foi medo, outra, ressentimento. Como Mary tinha podido olhar para ela como se não a tivesse visto? Elas não tinham sido amigas íntimas durante anos e anos? Ora, Mary devia estar bêbada ou coisa assim! Haviam partilhado crises, domésticas e pessoais, os filhos das duas... talvez os maridos? Kate sabia que Mary, numa determinada época, se tinha sentido atraída por Michael, e Mary, sendo como era, o havia dito. E Kate sabia que Michael achava Mary atraente... bem, como os homens o faziam, mesmo que nada quisessem, mesmo quando a desaprovavam. Coisa que Michael fazia. Kate tinha até ficado com um pouco de ciúmes. Que droga, estava fazendo aquilo de novo, utilizando falsa memória: a verdade era que ficara louca de ciúmes, doente de ciúmes. A intensidade do seu relacionamento com Mary datava daquela época. Não era uma lembrança de que pudesse orgulhar-se, era o mínimo que se podia dizer.

Kate observou as costas de Mary que se afastava, costas retas e competentes, sob um chapéu elegante e bem colocado: nada do que via naquele momento era realmente de Mary, que estava disfarçada.

Percebeu que estava aliviada pelo fato de Mary não a ter reconhecido. Mais: estava exultante, como se tivesse sido liber­tada de alguma coisa. Rapidamente, deixou a sombra das árvo­res e foi caminhando pelas manchas escuras de sombra ao longo da calçada brilhante. Viu que Mary já tinha tirado o chapéu, as luvas e os sapatos, e estava de pé, descalça, no gramado de sua casa, as pernas separadas, as mãos nos quadris, os seios balan­çando dentro do vestido. Seu rosto estava franzido por causa da intensidade do sol e estava olhando fixo para o outro lado, para a casa de Kate.

Os olhos apertados davam-lhe um ar de perplexidade: aquilo era característico. Freqüentemente Mary enfrentava si­tuações difíceis com aquele olhar de alguém que precisa de um intérprete.

Por exemplo, as ocasiões às quais elas se referiam como "sessões femininas". Na realidade, houvera apenas uma ou duas delas. A primeira fora há cerca de um ano, após uma visita do professor do filho de dez anos, que viera para comunicar a Mary que havia alguma coisa de que o menino estava precisando e que não estava recebendo do que ele descrevia como "seu am­biente familiar".

Por acaso, aconteceu que Michael estava fora naquele fim de semana, e o marido de Mary trabalhando, os filhos de Kate e de Mary ocupados em diferentes tarefas. Tendo exclamado várias vezes como era notável que ambas se encontrassem sozi­nhas ao mesmo tempo, descobriram que haviam criado a atmos­fera para uma ocasião especial, e foram para o quarto de Mary, onde primeiro ficaram tomando café, depois uísque.

Mary estava contando a Kate, detalhe por detalhe, com seu jeito presunçoso, mas que era o resultado da sua perplexi­dade, as recomendações do professor para a "melhor integra­ção" da criança. Os termos característicos do jargão se seguiam uns após outros: "bem-ajustado", "típico", "normal", "inte­grado", "seguro", "normativo"; e logo estavam sorrindo, en­quanto crescia dentro delas uma alegria que era devida em parte à perspectiva de dois dias de perfeita liberdade, e em parte ao scotch.

Kate, fazendo a sua contribuição, contou a Mary como, uma vez, uma conselheira viera para executar uma missão semelhante com relação a Eileen, que na época estava sendo "difícil", por uma razão qualquer que agora já estava esquecida.

— Ela disse — contou Kate — que os problemas de Eileen seriam facilmente suportados e resolvidos numa unidade familiar bem-estruturada como a nossa. — Mary, de repente, deu uma gargalhada. — Uma unidade — disse Kate. — Sim, uma unidade, foi o que ela disse que éramos. Não apenas isso, uma unidade nuclear.

Elas riram. Começaram a rir como loucas, convulsivamen­te, contorcendo-se, às gargalhadas, Mary rolando na cama, Kate na cadeira. Outras ocasiões foram lembradas, cada uma apresentando a sua safra de palavras irresistíveis. E a cada uma, elas rolavam de rir como na primeira. Estavam procurando, delibe­radamente, as palavras capazes de provocar o riso e, logo, pala­vras bastante comuns o faziam, não o jargão como "confronta­ção de pais e filhos", "síndrome", "momento de tensão", mas até "correto", "organizado", "saudável" e assim por diante. E depois estavam tendo acessos de riso diante de "família" e "lar" e "mãe" e "pai".

Mas Kate estava começando a se sentir pouco à vontade; e o seu desconforto — os instintos de Mary eram aguçados — se comunicou; e o rosto assumiu a expressão familiar de curiosidade, de disposição para ser esclarecida: por que Kate estava agora reagindo com uma espécie de desaprovação, ao passo que não o havia feito até pouco antes?

Alguns dias depois, na cozinha de Mary, esperando que a comida ficasse pronta, começaram a rir de novo, por causa de uma palavra que tinha, sem que Kate tivesse intenção, saído do seu lugar numa frase e adquirido ênfase. Estivera dizendo que tinha entrado na sala de sua casa e visto seus filhos e seu marido jo­gando cartas; mas a palavra "marido" se tinha isolado e elas tiveram de rir. Não conseguiam parar. Começaram a improvisar, contando anedotas ou descrevendo situações nas quais certas pa­lavras, obrigatoriamente, tinham que surgir: "esposa", "mari­do", "homem", "mulher"... elas riam e riam. "O pai dos meus filhos", diria uma mulher; "o que provê o sustento da família", diria uma outra, e elas riam cada vez mais alto.

Era um ritual, como as reuniões exclusivamente masculinas dos homens suburbanos, onde tudo a que dedicavam suas vidas normais para preservar era aviltado, insultado e inferiorizado.

Foi o sentimento de culpa de Kate, não é preciso dizer, que acabou com aquela ocasião também; e Mary se controlou, de muito boa vontade e prontamente, quando Kate o fez, acendeu um cigarro e sentou-se fumando, espalhando cinza por todo lado, e sorrindo na sua maneira habitual: "Bem, então paramos de fazer aquilo, não paramos? Provavelmente ultrapassamos o limite, não é? Que limite? Diga-me, explique-me".

Bastante depressa os dois incidentes que não foram repetidos se tinham transformado em passado e Mary se refe­ria a eles assim: "Lembra-se de quando morríamos de rir, Kate? Quando tínhamos aquelas 'sessões femininas' ". E a expressão em seu rosto era a mesma que tinha naquele momento, enquan­to olhava fixo para a casa defronte a sua, o sol fazendo com que apertasse os músculos dos olhos" "Eu não compreendo, mas, se você diz que é assim, creio que terei de aceitá-lo, estou fazendo o possível para me adaptar às suas idéias. Eu sempre faço".

Mary estava de pé entre espreguiçadeiras, um escorregador de crianças que já estavam grandes demais para ele, bicicletas, uma mesa de jardim, uma banheira de passarinhos, hortênsias, um irrigador de aspersão de jardim, dois gatos, um regador, e um pequeno amontoado colorido sobre a grama, que. era consti­tuído pela sua bolsa, o chapéu, as luvas e os sapatos.

Kate passou pelo cocker spaniel que estava deitado, estica­do sobre a barriga, a língua cor-de-rosa acumulando cascalho, o rabo abanando preguiçosamente numa saudação.

No ônibus, ela ficou pensando repetidamente: "Mary não me reconheceu. Aquela moça, íris Hatch, não me reconheceu".

Porque era meio-dia e o tráfego estava pesado, foi neces­sário mais de uma hora pára voltar para o centro de Londres, e durante todo o caminho Kate continuou pensando: "Elas não me reconheceram, elas me vêem todos os dias de suas vidas, mas não me reconheceram. Só o cachorro me reconheceu".

Subindo com dificuldade os degraus da escadaria do hotel, tentando fazer-se invisível na recepção, apoiando-se contra a pa­rede do elevador estonteante, desabando sobre a cama no quarto barulhento, ela repetia: "Elas olharam para mim como se não me estivessem vendo. Elas não me reconheceram". Longe de estar entristecida por aquilo, estava exultante, sentia-se mesmo embriagada de alívio pelo fato de a amizade, os laços, o conhe­cer as pessoas serem algo tão superficial, refutado com tanta facilidade.

Dormiu durante toda uma tarde quente, acordando para dizer à solícita Silvia — de volta àquele andar — que depois do sono se sentia muito melhor, sim, ela se sentia bem, sim, provavelmente já estava curada. Embora fosse uma loucura levantar-se de novo — ainda não conseguia fazer parar nada no estômago —, pediu ao hotel que lhe comprasse uma entrada para o teatro.

Não lhe importava qual a peça. Queria ver pessoas envergando personalidades que não eram as suas, isso era tudo. Suas amigas mais íntimas não a tinham reconhecido: a perda de peso, um chapéu posto de qualquer maneira, um andar provavelmente arrastado, o fato de que Mary imaginava que ela estivesse em algum lugar na costa do Mediterrâneo — essas coisinhas haviam sido o suficiente para que Mary não reconhecesse uma mulher que tinha visto todos os dias de sua vida durante anos. Bastou somente que Kate representasse um papel muito pouco dife­rente do seu habitual.

As pessoas da recepção do hotel estavam orgulhosas por lhe terem conseguido uma entrada para A month in the country: eram infalivelmente capazes de fazer a escolha certa para ela; era disso que se orgulhavam.

Às oito horas, estava na sua poltrona na primeira fila da platéia. O teatro estava lotado. Normalmente, aquela peça estaria num teatro menor, para uma platéia mais selecionada, mas era setembro, um mês quase tão pródigo em dinheiro quanto agosto. Dólares. A platéia era constituída, em sua maioria, por americanos. Tinham vindo para ver a atriz principal, um nome famoso, numa peça famosa. Aquela era uma experiência cultural importante e de alta classe; a atmosfera estava pesada demais, por causa da quantidade de respeito que tinha de carregar.

A month in the country é uma peça engraçada à sua ma­neira. Engraçada em termos de alta classe e semelhança com a vida, uma lágrima atrás de cada segundo ou terceiro sorriso forçado. Entretanto, é preciso que se esteja no estado de espírito certo. Na realidade, no estado de espírito em que Kate estava, da última vez que havia estado ali, há quatro anos: tinha saído, lembrava-se, como se tivesse comido uma refeição especialmente bem preparada.

Kate e Michael iam freqüentemente ao teatro. Se deixa­vam que se passasse algum tempo sem ir, sentiam-se culpados, como se não estivessem cumprindo com um dever para com eles mesmos. Geralmente iam só os dois ou com amigos, porque seus filhos preferiam o cinema. Iam assistir com a mesma faci­lidade ao novo tipo de peças em que a audiência e os atores se misturavam, as pessoas não usavam roupas ou os atores insulta­vam a audiência, ou peças antigas, como as de Shakespeare, vi­radas de cabeça para baixo para ilustrar o enfoque pessoal de um diretor qualquer, como assistiam a peças como aquela, que eram como ouvir poemas muito conhecidos magnificamente de­clamados. No ato de avaliar a experiência, esta foi bastante boa, aquela não foi muito boa, o que fazia o julgamento era a sensa­ção de ter comido bem ou não, de ter sido completamente sa­ciado, sustentado, apoiado, ou de ter sido deixado com fome e carente de uma espécie qualquer de comprovação. Comprova­ção de quê? Mas era esse tipo de peça que Kate sempre achara das mais saciadoras. Ibsen, Tchékhov, Turguêniev o tipo de peça em que se observavam pessoas como a gente em situações pessoais reconhecíveis.

Tão caracteristicamente russo murmuravam pessoas em volta.

O que faziam revelava que aquela era uma audiência de nível bastante baixo na escala da sofisticação, ou estariam di­zendo: "Exatamente como nós, não é?"

E, de fato, Kate estava pensando que a família e a casa de Natália Petrovna eram muito parecidas com as suas. Ou melhor, aquilo fora o que havia pensado na última vez em que vira a peça. Não seria, talvez, um erro vir ao teatro, quando tinha acabado de passar tanto tempo na cama?

Uma mulher estava sentada de maneira conspícua na fileira da frente da platéia, uma mulher que as outras pessoas observavam. Alguns olhavam para ela tanto quanto olhavam para a peça. Ela parecia bastante deslocada ali, excêntrica a ponto de parecer estar fantasiada, com o vestido rosa largo parecendo um saco, ajustado abruptamente na cintura por um lenço amarelo, a massa de cabelos em múltiplos tons, o rosto emaciado que es­tava amarelo e era só pele e osso, e olhos ardentes, zangados. Ela murmurava, enquanto se remexia e se contorcia na cadeira:

Oh, que idiotice! Russo é o traseiro da minha avó! Que besteira!

Natália Petrovna dizia:

E o que estou esperando? Diga-me! Ó Deus, não per­mita que eu despreze a mim mesma!

E aquela criatura lamentável, que não obstante deveria ser rica, para poder permitir-se pagar um preço daqueles pela entrada, disse em voz alta, falando diretamente para os atores, num tom aflito, e de intimidade mesmo:

Que besteira, besteira, por que é que você diz isso?

Estava pensando que deveria haver alguma coisa errada

com a maneira como estava vendo as coisas. Pois, embora estivesse tão perto do palco, parecia-lhe que estava muito longe; e continuava tentando obrigar-se a um outro tipo de atenção, ou participação, pois podia lembrar-se do seu estado de espírito habitual quando estava num teatro, e sabia que o seu estado naquele momento era muito diferente. Realmente, era mesmo como se estivesse olhando para as pessoas no palco através de um telescópio, tão extraordinárias e remotas lhe pareciam na sua distância da realidade. E, no entanto, na última vez em que se havia sentado ali, ela disse de Natália Petrovna: "Sou eu". Havia pensado: "Que pessoa, em qualquer lugar do mun­do, não a reconheceria imediatamente?"

Bem, para começar, não as pessoas da cidadezinha na Espanha, onde há pouco tempo estivera com o seu amante, Jeffrey. Elas não. O que aquelas mulheres tinham em comum com Natália Petrovna era teoricamente a idade: vinte e nove anos. Pelo menos era o que Turguêniev dizia, mas estava se comportando e pensando como uma mulher de cinqüenta anos. — Quem desempenhava o seu papel era uma mulher também de cinqüenta anos. — Uma mulher que pensava em si mesma ficando velha, agarrando-se à juventude. Obviamente, o século XIX, como a vida das pessoas pobres, envelhecia as mulheres depressa. Hoje em dia não se podia imaginar uma mulher de vinte e nove anos comportando-se daquela maneira: ela não consideraria o fato de se apaixonar por um estudante como uma perda de moral, longe disso.

Nesse caso, que é que todos eles estavam fazendo ali? Bem, o quê? Besteira, era tudo besteira... Não o desempenho, não a maneira como a coisa estava sendo feita, era tudo maravilhoso, maravilhoso.

Vocês são maravilhosos gritou para os atores, sen­tindo como se seus pensamentos violentamente críticos pu­dessem tê-los prejudicado, mas eles continuaram indiferentes, não dando atenção à mulher louca, à distância de alguns metros.

Sim, maravilhoso; e há quatro anos ela havia sofrido, sentira-se pessoalmente criticada. Ficara constrangida com rela­ção aos auto-enganos e à vaidade da adorável senhora, o espelho de todas as mulheres na platéia que já tivessem sido o centro de atenções e que de repente vissem o seu poder escorregar- lhes das mãos.

Mas não importava como ela gritasse "maravilhoso!" ou sentisse que devia fazê-lo e se contivesse, pois as pessoas estavam olhando para ela com expressões furiosas e dizendo-lhe que se calasse... Não havia dúvida de que o negócio pelo qual estava pagando um bocado de dinheiro para assistir parecia ser (era o estado de espírito em que estava, devia ser isso) a execução de um jogo ou um ritual particular por um bando de maníacos de boa família, e ninguém lhes dissera ainda que estavam malucos. Era uma farsa, de maneira nenhuma uma comédia de classe e sentimentos, cheia de verdades sobre a na­tureza humana. A realidade era que as coisas que estavam acontecendo no mundo, o colapso de tudo, estavam dando gol­pes violentos à forma dos acontecimentos naquela peça e nos outros que fossem iguais a eles, fazendo com que se tornassem ridículos. Uma piada. Como a sua própria vida. Ridícula.

Mas iriam para casa, todas aquelas pessoas ali, cruzando todos aqueles milhares de quilômetros de oceano e de ar, e diriam aos amigos que tinham visto A month in the country, e guardariam o programa da peça numa caixa cheia de lembranças preciosas.

Cale a boca! alguém estava dizendo. Para ela.

Então ela ainda estava expressando em voz alta seus sentimentos? Que terrível falta de educação de sua parte. Talvez devesse ir embora discretamente e voltar para a cama.

Estou de pé à beira de um precipício, salvem-me! — exclamou Natália Petrovna, e a platéia vibrou com sua emoção.

Agora Kate estava com os lábios cerrados, de forma que nada pudesse sair deles; e pensava: "Ela é louca. Maluca. Lu­nática. Permitem-lhe que seja. Mais, era encorajada a sê-lo. Devia ser internada. E aqui estamos nós, sentados e olhando para ela. Deveríamos estar atirando frutas podres neles. Em nós. Sim, era isso, se tivesse uma ou duas maçãs ou uma banana, podres, se possível... mas pelo amor de Deus, não pense em comida. Nem olhe para o palco, é muito melhor não o fazer".

Olhou para as pessoas que a rodeavam, sabendo que o fazia com uma expressão insolente, agressiva e dissimulada nos olhos, como se esperasse que elas fossem censurá-la com um: "Não fique olhando!" Mas olhe para eles, todos aqueles turistas, exatamente iguais a ela mesma até uma semana atrás ou coisa assim, com roupas de boa qualidade, o corpo bem nutrido, a elegância, os rostos cuidadosamente maquilados e o cabelo... Bom Deus, olhe para as cabeças em volta dela, havia lugares no mundo onde uma família podia sobreviver com cinqüenta pence por semana. Algumas cabeças ali sustentariam uma dúzia de famílias durante meses. Aquela era uma maneira de pensar ridícula, porque não era mais do que o que o povo vinha pensando durante os últimos duzentos anos. A Revolução Francesa. Dois mil anos. A cristandade. Provavel­mente milhares de anos antes disso, quem sabe. Durante mi­lhares de anos, o povo havia olhado para cabeças com penteados caros e pensado em quanto de comida e abrigo elas represen­tavam, de forma que, obviamente, era um pensamento sem nenhuma utilidade, portanto para que se importar com isso? Mas pensamentos daquele tipo de fato continuavam surgindo, fossem eles inúteis ou não. A mulher sentada ao seu lado era uma massa velha e gorda com o cabelo todo branco, cuidadosa­mente eriçado e cacheado de forma a esconder o couro cabe­ludo rosado e brilhante. A sua carcaça com seus brilhantes e peles alimentariam centenas de famílias durante anos e anos. Como o povo provavelmente jamais deixara de pensar. Mas que coisa notável era aquilo, aquela sala, cheia de gente, ou me­lhor, animais, todos olhando numa direção, para outros animais fantasiados, erguidos mais acima para representar num palco, animais cobertos com pano e pedaços de pele, enfeitados com pedras, os rostos e as garras pintados com cores diferentes. Cada um deles havia acabado de comer um animal qualquer; e as peles que se viam por todo lado, a despeito da noite quente, eram de animais que tinham vivido, brincado e fornicado em florestas e campos, e o que cobria os pés de cada um deles era a pele de um animal, e 0 cabelo deles — não, tinha-se de voltar àquilo novamente, era impossível não o fazer —, o cabe­lo era pior: emaranhados e jubas e perucas de cabelos encres­pados, cacheados, alisados, encompridados, encurtados e mani­pulados, cabelos tingidos de todas as cores, perfumados, bri­lhantes de óleo e duros de laquê. Era uma sala cheia de animais, cães, gatos, lobos e raposas — que se haviam erguido sobre as patas traseiras, posto laços de fita e escovado o pêlo. Este era um pensamento ainda mais inútil, se possível. Tinha havido um caricaturista — não tinha? — que desenhava as pessoas como animais; mas qual tinha sido o objetivo de pensar daquele jeito, ele não havia alcançado nada com aquilo, porque conti­nuava do. mesmo jeito através dos tempos.

Natália Petrovna dizia com coquetismo estudado:

Bem, se a palavra "mórbido" não lhe agrada, então direi que somos ambos velhos, velhos como as montanhas.

"Oh, pelo amor de Deus", pensou Kate e, infelizmente, também o dissera, pois uma mulher várias cadeiras adiante se inclinou para a frente e lançou-lhe um olhar de desprezo. A mulher parecia um gato, um gatinho velho que ficou gordo e preguiçoso; mas agora chega, pare com isso, ela devia manter a atenção bem distante do palco, uma vez que não conseguia comportar-se direito. Na realidade, por que seria que ninguém além dela podia ver, será que ninguém podia ver que aquilo a que todos assistiam era o comportamento de maníacos? Uma paródia de alguma coisa? Na realidade, todos eles deviam estar caindo pelos cantos, rolando de rir, em vez de sentirem uma simpatia intelectual por aqueles problemas absurdos, ridículos e sem sentido.

Mulher infeliz, pela primeira vez em sua vida você está realmente apaixonada!

E logo saiu toda a audiência, esbarrando, empurrando e dando trancos, para tomar um copo de alguma coisa qualquer, e Kate foi ao toalete, onde não ficou surpresa ao ver que um macaco a encarava no espelho. A camareira era uma velha gor­da, e as mulheres que entravam para lavar as mãos ou para urinar eram gatas e cadelas. Uma era uma raposinha bonita, o nariz pontudo e olhos observadores, brilhantes. Voltando à platéia, agora acomodando-se desconfortavelmente em suas poltronas, Kate viu que eles se haviam transformado todos no que poucos minutos antes imaginara que pudessem ser: estava numa sala cheia de animais, cada um vestido de maneira mais ridícula que o outro. Teria sido assim que aquele velho artista sempre vira a humanidade? Não teria sido fantasia dele, ou realmente ele sempre vivera no estado em que ela estava agora? Será que ele havia sido atendido por porcos e macacos nas lojas, amado mulheres com caras de gatas e cadelinhas, fugido dos lobos, olhado para os espelhos com a esperança de que um dia, final­mente, um rosto humano fosse aparecer ali, dissolvendo a más­cara animal que sempre o encarava, não importando quando ou como ele se esgueirasse até o espelho, tentando apanhar-se de surpresa, esperando que a luz de uma madrugada, ou uma interrupção do seu sono, ou uma virada repentina, dando as costas ao cavalete ou ao bloco de desenho, fosse permitir-lhe ver o rosto de um homem com os olhos de um homem a encará-lo?

E ele teria pensado que talvez um dia, quando aquilo acontecesse, as máscaras animais se dissolveriam todas, de todas as pessoas à sua volta, e então... bem, o quê?

Então o leão se deitaria com o carneiro, sem dúvida, e todos esses pensamentos ridículos não mais surgiriam na ca­beça das pessoas, os velhos pensamentos "progressistas", "libe­rais", "inteligentes" — ou socialistas ou o que quiserem —, porque eram inúteis, nada mudavam, aquele grupo ali no palco havia sido varrido para longe por uma revolução, e o que adiantara? Ali estavam eles ainda, continuando, e nada havia mudado, e os mesmos pensamentos continuavam girando em círculos ou seus encaixes nas cabeças das pessoas, e logo esta­riam ressoando muito alto pelo que eram, como um monte de discos velhos de gramofone, porque as pessoas achariam que o que se estava remoendo sem parar em suas cabeças era intolerável por causa da sua falta de sentido repetitiva. Acabariam com aquilo. Não teriam escolha.

Natália Petrovna, num vestido verde elegante — o ter­ceiro naquela noite —, estava a ponto de se desculpar em lágrimas. Lágrimas eram vistas com simpatia pelos olhos de Kate.

Para fazer aquilo tão bem, representar um comportamento ridículo, vergonhoso, que todo mundo deveria estar vaiando e condenando, homens e mulheres da mais alta inteligência e talento passavam anos de aspiração, trabalho duro, devoção, estudo, humilhação, vivendo de esperança ou de uns míseros

centavos nas companhias de teatro provincianas. Suavam e so­friam por aquilo, o momento de grande arte, quando Natália Petrovna arrasta as saias lânguidas pelas tábuas sujas e diz a uma moça que gosta do mesmo rapaz:

— Quando se pensa que o nosso segredo, inteiramente por minha culpa, eu sei, que o nosso segredo já é conhecido aqui nessa casa por dois homens, em vez de nos ficarmos mortificando uma à outra, não deveríamos estar tentando salvar-nos de uma situação insustentável? Já esqueceu quem sou, qual a minha posição nessa casa?

Ah, sim, aquele era o tipo de conversa que as pessoas deveriam fazer peregrinações para ouvir.

Bem, o que estava pensando ia ter de ser varrido de sua mente; porque quem era ela para achar uma grande porcaria o que o resto das pessoas achava maravilhoso e que, de qual­quer maneira, ela sempre achara maravilhoso no passado? Assim era presumível que o fizesse de novo, uma vez que a normalidade se tivesse instalado, e o hábito, e ela tivesse voltado para a sua família, arrastando as saias por todo lado e abrindo a elegante sombrinha de renda com um movimento dos pulsos.

Um último esforço e estarei livre. Liberdade e paz, como ansiei por vocês duas, e logo todo mundo se levantou para aplaudir sem parar, da maneira como fazemos no nosso teatro, como se a necessidade dos atores de serem aprovados, a ne­cessidade dos espectadores de aprovar, criasse uma ação — palmas batendo juntas repetidamente numa fuzilaria de ruído que é um comentário completamente separado e distinto de qualquer coisa que tenha acontecido no palco, sem nada a ver com o fato de os acontecimentos mostrados terem sido desagradáveis, bonitos, admiráveis ou coisa semelhante, mas é mais uma espécie de confirmação ritual de auto-aprovação por parte da platéia e dos atores por terem ido ao teatro e por representarem nele. Um ritual fantástico. No todo, um negócio fantástico.

Kate aplaudiu com os outros, e gritou "Bravo!", como alguns entusiastas estavam fazendo nas fileiras de trás e na galeria, fez uma careta para a mulher com a cara de gato que a olhava com terrível expressão de desaprovação presumi­velmente porque agora ela estava fazendo ruídos de aprova­ção, enquanto antes havia criticado e foi varrida até a calçada por pessoas que tinham perdido suas máscaras anima­lescas e eram novamente homens e mulheres.

Esperou obstinadamente por um táxi, observando que mais de um preferira não parar para ela, a figura maluca na beira da calçada. Finalmente, um táxi parou, e o motorista disse:

Mas isso só fica a uns duzentos metros daqui!

Sim, eu sei que sim. Mas estive doente explicou ela.

Assim, foi levada até o hotel e atravessou o vestíbulo como

uma criminosa, esperando que ninguém reparasse nela. Mas é claro que o fizeram, cabeças viravam-se à medida que passava. Chegou ao quarto, apanhou o espelho de mão ela certamente não poderia ter encontrado energias para sentar-se ereta nem por mais um momento —, caiu na cama e olhou para o rosto.

Desde aquela manhã, a massa seca acobreada e ondulada de cabelo tinha ficado pior, e seu rosto era o de uma velha. Natália Petrovna não teria ido à cena com aquele rosto nem por um momento. Ela podia ser imaginada sentada diante de um espelho, num delicioso vestido branco, próprio para a manhã, passando, com suavidade, creme frio feito de pepinos os russos eram muito bons com pepinos na carne irri­tada sob os olhos penetrantes, acuados e vermelhos, e dizendo: "Estou de pé à beira de um precipício, salvem-me!" Ou, enquanto a criada desabotoava as centenas de botõezinhos forra­dos nas suas costas: "Será que alguém pôde algum dia ter sido tão infeliz?"

Há muito tempo, uma moça estivera deitada na cama, com um espelho de mão bem próximo do rosto, e pensando: "Isto é o que ele vai ver".

O que ele de fato viu, muito pouco tempo depois, foi um rosto que só podia ser descrito como "travesso" ou "picante", a despeito dos olhos de uma profundidade castanha que não poderiam ser de nada exceto os de um cocker spaniel.

Durante anos Kate, que passava a quantidade de tempo requerida diante de muitos espelhos diferentes, fora capaz de ver exatamente o que ele estava vendo, quando seu rosto estava bem perto do dela. Oh, era tudo tão cansativo, tão humilhan­te... será que ela havia realmente passado tantos anos de sua vida quase que certamente somaria anos! —- diante de um espelho? Exatamente como todas as mulheres. Anos gastos em adormecimento, ou transe. Será que uma mulher o escolhia, ou se permitia ser escolhida por ele, porque ele admirava aquele rosto ao qual ela dispensara tantos cuidados, e tocara, e virara desse jeito ou daquele... Não ficaria surpreendida, não ficaria nem um pouco surpreendida mesmo! Pois a sua vida inteira, ou desde os dezesseis anos sim, a moça amando seu próprio rosto tinha aquela idade —, havia olhado para espelhos e visto através do que as outras pessoas a julgariam. E agora o reflexo se havia enrolado e se atirado para um canto, deixando atrás de si o rosto de um macaco doente.

Aqueles atores estavam absolutamente certos. Não se permitiam estar fechados dentro de um conjunto de traços, um penteado, um jeito de andar ou de falar, não, eles iam mudando, nunca eram os mesmos. Mas ela, Kate Brown, esposa de Michael, se permitira ser apenas uma ruiva esguia, de olhos castanhos e simpáticos, durante trinta anos.

Agora, Kate careteava para o espelho de mão, experimentando diferentes expressões, como uma atriz... havia centenas que nunca havia pensado em usar! Estivera restringindo-se a um assustadoramente pequeno limite delas; a maioria, é claro, honrosas para ela e agradáveis, ou não-provocantes para os outros; mas que fazer com o que estava acontecendo dentro dela naquele momento, quando estava doente (a pele ardia de novo, uma concha de calor sobre o lago frio de enjôo), quando fervilhava e se revolvia como um exército de formigas numa carcaça? Mas ainda tinha algumas semanas, tinha um longo período de liberdade diante de si... Quanto tempo? Revirou tudo procurando as cartas de Michael, que haviam mandado embora todos os sentimentos, exceto um: a saudade dele, do prazer de estar com ele, com a família, de estar em sua casa. Naquele momento, viu que ele escrevera que não estaria de volta antes do fim de outubro, possivelmente até meados de novembro... se ela não se importasse... Não aceitaria o con­vite de estender sua visita se ela preferisse que não. Concluíra pela sua carta que ela também estava achando o verão inte­ressante... bem, boa sorte, estava muito satisfeito, já era mais do que tempo para que ela tivesse um descanso. Ele a veria no outono se não recebesse uma resposta imediata. Mas é claro que não havia recebido, porque Kate não havia compreendido aquela parte da carta dele: agora, para confirmar, enviou um telegrama para dizer-lhe que fizesse como lhe aprouvesse.

Tão logo clareou, tomou um banho, pôs um vestido que dançava em seu corpo, escovou o cabelo para um lado e para outro, sem conseguir ajeitá-lo, amarrou o cabelo com um lenço, pediu, mas não conseguiu comer, um farto café ao estilo euro­peu, e deixou o hotel sem saber para onde estava indo.

A conta do hotel havia deixado suas finanças bastante baixas. Baixas, isto é, para Kate Brown do mundo das confe­rências, mas altas para uma mulher comum que tinha algumas semanas livres, esperando que a sua família voltasse.

 

O Apartamento de Maureen

 

Tomou um ônibus e ficou sentada ali até que viu um cintilar de água — um canal — e a palavra, escarlate sobre um fundo pintado numa tinta muito branca, que brilhava sob a luz pesada do sol de setembro: "ristorante". O resto da rua era tudo Londres, a Londres básica, e ela saltou e viu um quadro de anúncios ao lado de uma tabacaria. Quando se apro­ximava, viu que o proprietário da loja, um velho baixinho de, sobretudo, e um rapaz estavam juntos colocando um outro anúncio no quadro. O velho levantou o polegar num gesto que, em alguns países, significa "bom, assim está ótimo, é aí mesmo", mas na dobra da mão tinha uma tacha, e a enfiou, apertando com força, no centro da parte superior do quadrado branco. O rapaz tinha cabelos compridos como um Jesus Cristo, e os pés descalços. O rosto era doce, infantil e franco. Depois que o velho voltou para o interior da loja, ficou olhando para as centenas de quadrados de cartolina branca, entre os quais agora o seu estava perdido.

O anúncio dizia: "Aluga-se quarto em apartamento par­ticular até o fim de outubro, cinco libras por semana, cozinha e banheiro em comum".

Kate perguntou ao rapaz:

Onde fica o quarto?

Dobrando a esquina.

É seu?

Ele sorriu, polidamente, mas com um gesto de assenti­mento que deixava implícito um pequeno "O que é que você acha? É óbvio", um sorriso que estava fazendo uma declaração, que ela deveria compreender, pois ele o seguiu com:

Meu?

Tendo assim ficado claro que, como toda a sua geração, ela pensava em termos de propriedade particular, enquanto ele, tendo a idade que tinha, era livre; seu sorriso ficou espontâneo, e ele o seguiu com:

-— Entre outros.

Se eu alugasse o quarto disse Kate, usando o tom irônico e adaptável, que lhe vinha com facilidade depois de anos de uso com "as crianças" —, ele seria meu, ou eu teria de dividi-lo?

Diante disso ele se permitiu uma risada, e disse:

Oh, não, seria seu. Vou ficar fora algum tempo, e a maioria de nós estará fora.

Então poderia vê-lo?

Ele a examinou. O que estava vendo, é claro, era uma velha. O fato de que estava doente, ou estivera, estava sendo incorporado a "uma velha". Então virou-se para se colocar ao lado dela, indicando assim que ela era viável, e caminharam juntos pela calçada à beira do canal. Ele lhe lançava olhares que ela interpretou como se dizendo: "Mas nós não queríamos uma velha no apartamento".

Sou limpa, cuidadosa e sei cuidar de uma casa disse ela.

Ele riu, de novo, na sua maneira de tornar claro que era depois de um exame cuidadoso, e disse:

Não estou grilado com isso. Depois, traduzindo: Não me importo com o que você faça. Mas há uma pessoa no apartamento que...

Eu tenho de ser aprovada, é isso?

O apartamento era no andar térreo e bastante escuro, depois do clarão amarelado de setembro. O rapaz foi na sua frente por um amplo vestíbulo mobiliado com almofadas e alguns posters. Havia o cheiro seco de marijuana. Kate o seguiu pensando que o quarto a ser alugado lhe seria mostrado, mas foi levada a uma sala grande que tinha janelas de batente, que se abriam para um patiozinho, cheio de plantas de todas as espécies. Numa cadeira dura sob o sol, junto das janelas, estava sentada uma moça. Os pés nus estavam pousados lado a lado num tapete de palha. Uma cortina de cabelo louro, espesso, caía-lhe em volta do rosto, ou melhor, sobre o rosto, de forma que só quando ela levantou a cabeça foi que Kate viu um rosto moreno, sadio, com olhos azuis arredondados e cândidos. Não estava fazendo nada. Fumava.

Ela examinou Kate, então olhou para o rapaz.

Ele disse para Kate:

Não lhe perguntei o seu nome.

Kate Brown.

Esta é Kate — disse ele para a moça. Para Kate, disse, com a formalidade que devia ter vindo de sua educação, que incluía um pequeno movimento rijo da cabeça, como uma reve­rência reduzida: — Esta é Maureen. — Tornando a virar-se para a moça, disse com o embaraço ingênuo de suas atitudes recém-adquiridas: — Preguei o anúncio e ela estava lá e per­guntou se podia vir junto.

Ah! — disse Maureen. Empurrou o cabelo para trás, saltou da cadeira como se tivesse intenção de fazer alguma coisa, mas depois se sentou novamente, com a descontração imediata de um gato. Usava uma saia marrom muito curta e uma blusa xadrez azul, como a moça que a gente vê numa fotografia, fazendo anúncio de leite ou de ovos.

Afinal ela sorriu e disse:

Gostaria de vê-lo?

Sim — respondeu Kate.

Você acha que com ela está tudo bem, acha? — per­guntou o rapaz à moça... namorada dele? Aquilo pareceu rude à sua formação, e ele até corou um pouco, enquanto expli­cava a Kate: — Sabe, eu gostaria de me assegurar de que Maureen estivesse bem antes de partir.

As pálpebras de Maureen desceram abruptamente; duas meias-luas nas maçãs do rosto moreno. Kate achou que ela havia reprimido um sorriso.

Estou bem, Jerry. Eu lhe disse — observou Maureen.

Bem, nesse caso eu só vou...

Sim, vá.

Jerry cumprimentou Kate com a cabeça, lançou um olhar longo e firme para Maureen, que tinha como objetivo fazê-la compreender alguma coisa, que Kate não conseguiu captar, e saiu da sala. E aquela foi a última vez que Kate o viu.

Maureen refletiu. Talvez se estivesse perguntando se de­veria inquirir a respeito das qualificações de Kate para pagar. Tudo o que disse foi:

É o quarto no fim do corredor, à esquerda. É de Jerry, mas ele vai para a Turquia.

Ela não foi junto com Kate. Ficou sentada, enraizada na sua cadeira, envolta numa nuvem de fumaça que cheirava a outros Estados e climas. Os círculos, anéis e ondas azuladas agitavam-se em torno dela como se estivesse sentada numa água ensolarada.

O quarto era pequeno e tinha uma cama estreita e um armário. Era bem mais frio que a parte da frente do apartamento, que ficava do lado sul. Aquele quarto tinha uma frieza que se comunicava com o frio que envolvia permanentemente o estômago de Kate. Mas serviria.

Voltou para onde estava a moça e disse que o quarto ser­via e que ficaria com ele até o fim de outubro. Ao se ouvir dizer isso, percebeu que tinha tomado decisões que a sua parte consciente ignorava por completo.

Como Maureen nada dissesse a respeito de dinheiro, Kate pôs cinco notas de uma libra sobre uma almofada vermelha que estava junto dos pés da moça.

Diante disso Maureen permitiu que um sorriso aparecesse por trás da cortina de cabelos louros.

Obrigada disse ela. Mas pode ser quando quiser.

E a chave? perguntou Kate.

Ah, sim. Está em algum lugar, acho. Sim, já me lem­bro. — Levantou-se com um salto, ficando ereta na perpen­dicular num só movimento, inclinou-se sem dobrar os joelhos, num outro movimento rápido, e foi levantando as almofadas ao acaso. Debaixo de uma delas havia uma chave. Ela a entregou a Kate. Não tinha se erguido, e então, cruzando as pernas graciosamente, saltou caindo sentada na mesma almofada.

Você é dançarina? perguntou Kate.

Não, não sou dançarina. Eu danço. Estaria fran­zindo o cenho, perdida entre as categorias rígidas dos velhos?

A caminho da saída, Kate parou diante de um grande es­pelho antigo no vestíbulo. Viu uma mulher magra parecida com um macaco, com um bom vestido amarelo, o cabelo amar­rado num bolo atrás da cabeça. Tirou fora o lenço e o cabelo ficou onde estava, espigado e espesso. Percebeu que estava sob o domínio de uma necessidade de fazer alguma coisa por si mesma, arrumar o cabelo, comprar um vestido que lhe servisse. Isto era por causa da moça, com sua carne jovem e saudável e suas roupas limpas. Percebeu também que aquele impulso tinha algo a ver com a sua filha: Maureen tinha mais ou menos a mesma idade que Eileen. Viu que o momento de voltar para sua família iria ser um momento dramático quer naquela altura já tivesse recuperado o controle sobre si mesma, em outras pala­vras, tivesse voltado à concepção que eles tinham dela, quer tivesse decidido não o fazer... Certamente não poderia conti­nuar como estava. Poderia? Que idéia interessante! Mas a fa­mília teria, como se dizia, um ataque. A idéia estava fazendo com que ela formigasse de maneira agradável, exatamente como se tivesse engolido um bocado grande demais de gelo derretido, e a sua boca e a garganta estivessem sendo paralisadas pelo gelo... Como se sentira no dia anterior, quando Mary Finchley não a reconhecera, e como se havia sentido enquanto observava com ironia Natália Petrovna em suas artimanhas de auto-engodo.

Aquela sensação agradável foi desaparecendo e deixou uma outra, nem de perto tão agradável. Agora estava nova­mente sob o domínio da vaidade. Se ela fosse voltar para casa com a aparência que tinha agora, tudo que seu marido e os quatro filhos diriam seria que não parecia ser ela mesma, pois eles sabiam como ela podia ser. Mas Maureen, aquela moça sentada na almofada vermelha, sonhando nas nuvens azuis de odor pungente que giravam, nunca a vira com nenhu­ma outra aparência senão aquela de um macaco doente... não havia dúvida de que estava maluca. Que importância tinha para a moça, ou para si mesma, a sua aparência? Ou, uma vez que se falava nisso, o que ela era? Se ela, ou se uma outra pessoa qualquer, soubesse o que era aquilo... Ela, Kate, tinha alugado um quarto de Maureen, era tudo. Era uma inversão clara de uma situação recente para Kate, que, anteriormente naquele ano, deixara que se hospedasse em sua casa uma moça que era uma amiga belga do melhor amigo de James: a moça queria aprender inglês. A coisa com que Kate se havia impor­tado era que a moça se integrasse no ambiente da família, inclusive contribuindo positivamente por causa de seu gênio simpático e bem-humorado, que também era um pouco esnobe e cheio de nove-horas — sua educação havia sido muito convencional —, mas não perturbando muito o ambiente. Isto ela poderia ter feito, apaixonando-se pelo seu marido... Não que Kate tivesse pensado que seu marido se teria apaixonado pela moça... aqui Kate se conteve rispidamente e gritou para si mesma: "Não comece com isso de novo, lembre-se da gover­nanta Monique, houve uma confusão dos diabos porque você pensou que Michael estivesse caído por ela".

Kate terminou a lista de requisitos que tinha para a moça belga como se estivesse fazendo um glossário: que ela não deveria apaixonar-se muito por nenhum dos três filhos, a menos que o filho em questão se apaixonasse por ela da mesma ma­neira. Que não deveria ficar grávida, pedindo que ela, Kate, cuidasse do problema... como Monique, cujo aborto fora pago pelos Brown, uma vez que o pai do feto, um jovem francês, conhecido numa aula de inglês, não tinha dinheiro. Que não deveria tomar drogas, como Rosalie, uma outra governanta anterior, vinda de Frankfurt... Isto é, estaria tudo bem se ela fumasse maconha, mas nada mais forte. Que não deveria ouvir a vitrola alto demais. Que não deveria... mas de acordo com o seu estado naquele momento, Kate resumiu tudo: que ela não deveria fazer nada além de se acomodar confortavel­mente a ela, Kate, ao seu estilo de vida, porque, embora ficasse implícito que Kate não exigiria quaisquer virtudes especiais para o estilo de vida como tal, ela também não queria sofrer o aborrecimento de ser incomodada.

Maureen tinha vindo até o vestíbulo, como a ordenhadora de uma cantiga de ninar, descalça. Vendo Kate de pé diante do espelho, na semi-obscuridade, acendeu a luz, e foi andando silenciosamente, com seu jeito ágil e enérgico, pelo corredor, até ficar bem atrás de Kate, refletida no mesmo espelho.

Maureen empurrou para trás o cabelo louro, olhou para si mesma e depois para Kate. Franziu o cenho. O cenho fran­zido seria resultado de perplexidade, a necessidade de compre­ender a situação?

Maureen sorriu encantadoramente, dentes brancos, lábios vermelhos, e começou a dançar. Era uma espécie de dança de saltos e pulos enérgicos. Pôs-se a mirar-se no espelho, como uma criança que se observa ao fazer uma coisa pela primeira vez. Resolveu ficar deliciada com a sua dança, sorriu. Então, atirando a cabeça para trás, levantando o braço, começou a rodar sem parar, batendo com os pés num sapateado, até ficar tonta, quando caiu escorregando de encontro a uma parede, rindo.

Tudo isso fora executado com concentração, quase que um espetáculo particular. Mas naquele momento ela se levan­tou, afastando-se da parede, usando o ombro como apoio, e foi ficar de pé ao lado de Kate. Kate surpreendeu o sorriso no próprio rosto; era um sorriso de meia-idade, um pouco triste, irônico, perspicaz, paciente. Teria sido aquele sorriso o motivo daquela dança insolente e provocante?

Maureen inclinou-se para a frente e se olhou cuidadosa­mente por sobre o ombro de Kate. Ela mostrou a língua para Kate. Aquilo era provocado por ressentimento, por auto-afir­mação. Então, sentindo o mesmo desagrado, pôs a língua para fora outra vez, mas para si mesma. Depois, com um falso sorriso alegre para Kate, voltou rapidamente para a sala en­solarada.

Kate sentiu-se agredida. Não importava como a sua mente dissesse que aquilo fora simpático, o partilhar de alguma coisa — a moça viera compartilhar o seu momento no espelho —, ela o sentia como uma agressão, e isso se devia, simplesmente, à maravilhosa segurança da juventude da moça. À sua coragem de fazer o que tinha vontade de fazer. Sim, era isso, aquilo era o que ela, Kate, havia perdido.

Mas não adiantava continuar de pé ali, naquele grande vestíbulo cheio de almofadas, todas amontoadas e desarrumadas, como se alguém tivesse dormido nelas na noite anterior, simplesmente porque não queria sair e ir para a rua, para expor a sua fraqueza. E tinha de descansar dentro de pouco tempo. Devia começar a comer.

Saiu novamente para a rua ensolarada, subindo os degraus de cimento. Ficou parada sob as árvores grandes que ladeavam o canal, estava a dois passos do ristorante. Chegara à conclusão de que deveria estar com fome, ou, pelo menos, que as exigências das semanas seguintes significavam que deveria estar alimentada. Mas por que, sem nada para fazer, sem ter obrigações a cumprir, pensava ela em exigências, obrigações, tensão? Iria até lá e comeria bem, manteria a comida no estômago, apreciaria a refeição, se fosse possível... Foi andando em direção ao ristorante, que tinha pequenos canteiros ladeando a porta. Através da vidraça da fachada, podia ver um garçom inclinando-se atenciosamente para uma mulher mais ou menos da sua idade, que estava absorvendo a deferência lisonjeira do garçom e sorrindo, "como uma velha idiota", pensou Kate. Na porta, ficou pensando que, antes da sua incursão pela elite internacional, teria ido a um restaurante como aquele em oca­siões especiais; que teria posto de lado aquele lugar e procurado um outro mais barato, tão automaticamente como naquele mo­mento escolhera aquele como sendo o único possível naquela rua. Agora, enquanto se virava e se afastava dele, o fazia com um sentimento real de perda. Cem metros adiante, entrou num restaurante do tipo que se encontra em todas as ruas de Londres em intervalos de alguns metros. Estava quase vazio. O movimen­to da hora do almoço ainda não tinha começado. Sentou-se sozi­nha e esperou que a atendessem. Na sua frente estava o inva­riável cardápio britânico. Na outra extremidade da sala, uma garçonete falava com um cliente, um senhor idoso. Não tinha pressa de vir atendê-la.

Quando veio, não olhou para Kate, mas anotou o pedido apressadamente num bloquinho, e voltou para continuar a conversa com o cliente, antes de gritar o pedido por um postigo que dava para a cozinha. Pareceu passar muito tempo até que a comida viesse. Kate continuou sentada, aparentemente invi­sível para a garçonete e para os outros clientes: agora o restau­rante estava ficando cheio. Ela tremia de fome, impaciente, tinha vontade de chorar. A impressão de que ninguém podia vê-la a fez ter vontade de gritar: "Olhem, estou aqui, não po­dem me ver?" Não estava muito longe do estado em que uma criança pequena é chamada de manhosa. Foi reprimida pela chegada de uma travessa com fígado, batatas fritas e repolho com água demais, posta na sua frente pela garçonete, que ainda não tinha olhado para ela. Kate não conseguiu comer. Sentia-se como uma criancinha a quem se mandou sentar num canto e comer a comida, porque se estava comportando mal, e que então foi esquecida. Ela estava fora de si com emoções que detinham qualquer pensamento sensato. Dizendo a si mesma que estivera doente, e que não tinha culpa, derrubou um copo de água. Esperava que a garçonete viesse, até que ficasse zan­gada com ela, mas a garçonete não percebeu. Kate levantou-se, atravessou a sala até a garçonete, que agora conversava com um outro cliente, e disse:

Sinto muito, mas derramei o meu copo de água. Sua voz estava trêmula.

Naquele momento a garçonete olhou para ela o tempo suficiente para ver que ali estava uma mulher difícil de lidar. Respondeu:

Irei até lá daqui a dois minutos, querida. E saiu para pôr uma mesa.

Quando veio, lançou um olhar indiferente para a mancha encharcada na toalha, e disse:

Se puder dar um jeito, troco a toalha quando tiver acabado de comer.

E foi embora.

"Que poderia ser mais sensato?", pensou a dona-de-casa em Kate. Uma toalha com um canto molhado não a feriria. Mas, depois de um minuto, pediu a conta e percebeu que, quando ia saindo do restaurante, deu um safanão impaciente na saia, que podia jurar que nunca havia feito antes. Era como o torcer de nariz de uma mulher que quer dar a entender: "Bem, não me importo! Por que é que acha que me importo que seja assim ou não?"

Meio-dia em Edgware Road. A mais viva das paisagens, especialmente num dia de verão, especialmente com todo mun­do entrando e saindo de cafés e lanchonetes, onde eram co­nhecidos, para almoçar, para tomar uma xícara de chá, para sentar-se um pouco. Kate foi andando lentamente, atravessando a rua em direção ao ristorante, e olhou para dentro, através da musselina fina. Se tivesse estado lá dentro, com aquele rapaz atencioso inclinando-se para atendê-la, não teria vontade de chorar, de fazer gestos mesquinhos... não teria derramado o copo de água!

Bem, tanto tempo naquele hotel, recebendo os cuidados de Silvia e de Marie, não lhe tinha feito bem algum. Havia sido mandada de volta à infância, precisava contar com a atenção lisonjeira de alguém o tempo todo.

Desceu as escadas, saindo do dia ensolarado e frondoso, para a sombra do apartamento. No chão do vestíbulo, deitado sobre as almofadas, estava um rapaz, o rosto virado para baixo, os braços estendidos. Estava dormindo. Maureen não parecia estar por ali.

Kate foi para o seu quarto, viu que não havia lençóis na cama, encontrou um armário no vestíbulo onde estavam os lençóis e as toalhas, tirou o que precisava sem perturbar o rapaz, que não dormia há um bom tempo, a julgar pelo sono profundo em que estava imerso, e foi deitar-se. Na cama, fez uma coisa que normalmente não se permitia fazer. Chorou, por muito tempo e deliberadamente. Uma válvula de segurança? Isso também, mas era mais o reconhecimento de que havia alguma coisa por que chorar. Estava sendo assaltada por todos os lados, e do seu íntimo também, pela solidão. Como uma crian­ça pequena chora ao saber que vai ser mandada embora para um colégio interno, ou que seus pais vão partir numa longa viagem e vão deixá-la com estranhos.

Mas enquanto seu corpo ofegava e produzia lágrimas, ela estava pensando, com bastante frieza, no fato de ter vindo para ali, para um quarto alugado onde ninguém a conhecia. Era a primeira vez em sua vida que ficava sozinha e fora de um casulo de conforto e proteção, o apoio do reconhecimento de outras pessoas pelo que ela havia escolhido representar. Mas ali nin­guém esperava nada, ninguém sabia de nada sobre os seus apoios, seu casulo. Agora recordava com prazer a pequena cena no vestíbulo, quando Maureen viera até o espelho: Maureen estivera reagindo diretamente a Kate, ao que Kate era, ao que Maureen via de Kate que era um sorriso seco, estranho, cauteloso.

Acabou de chorar, adormeceu, acordou num quarto estra­nho, que estava frio, mas tinha um longo raio de sol: desde aquela manhã, o sol se havia movido de um lado do aparta­mento para o outro.

Tinha de comprar comida. Agora, as almofadas no vestí­bulo estavam vazias; e não mais viu o rapaz.

Na cozinha, Maureen estava sentada sozinha, comendo, com uma colher de chá, pudim de abricó com ameixas. Havia uma fileira de latas de comida de bebê numa prateleira, todas de sobremesa.

Maureen estava com uma jardineira vermelha enfeitada com babados e o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Parecia uma garotinha de dez anos.

Acho que encontrará tudo que quiser em algum lugar por aí disse ela, e levantou-se com um salto, ainda lam­bendo a colher. Jogou a lata vazia na lixeira e a colher na pia, onde caiu fazendo um ruído metálico. Saiu dançando.

Kate puxou para si um carrinho de compras e uma grande cesta de palha, e estava na porta da rua quando se lembrou de que não ia fazer compras para um grupo de seis a dezesseis pessoas, mas apenas para si mesma. Voltou e subiu a escada, saindo para a rua ensolarada com uma sacola plástica. A tarde já ia chegando ao fim, e as lojas iam fechar dentro de pouco tempo. Havia muitas lojas que eram duplicatas do restau­rante em que tinha almoçado, ou melhor, em que não tinha almoçado. Eram todas pequenas, e estavam abarrotadas de alimentos enlatados e congelados. Naquela rua não havia lojas como as que freqüentava habitualmente no subúrbio de classe média de Blackheath. Havia blocos de arranha-céus por toda parte e, no meio, velhas casas cujos habitantes tinham vivido ali suas vidas inteiras: eram essas as pessoas que se serviam das lojas, que não vendiam nada que Kate normalmente pensaria em comprar. Numa delas comprou uma bisnaga de pão muito branco, duzentos gramas de uma manteiga tingida de amarelo, um pacote de queijo fundido e um vidro de uma geléia de mo­rango que, em casa, ela se consideraria criminosa só de pensar em comprá-la. Percebeu que seus sentimentos com relação à compra daqueles produtos de segunda categoria eram realmente muito fortes. O que estava sentindo seria apropriado para uma situação em que tivesse acabado de saber que ia ser mandada para uma prisão por um ano: pois, durante toda a sua vida de casada, uma grande parte de suas energias fora gasta em clas­sificações de qualidades como aquela. Também estava pensando que o povo do vilarejo na Espanha provavelmente nunca vira uma comida tão ruim como aquela, embora fossem mais pobres do que qualquer pessoa que por acaso houvesse entrado naquela loja, que estava cheia do que é conhecido como gente comum, ou seja, a classe trabalhadora da Inglaterra, que freqüentava os horríveis restaurantes, aquelas lojas horríveis... E daí, que é que havia de errado com ela, que importância tinha, estava a ponto de explodir em lágrimas, podia muito bem bater o pé e se enfurecer e gritar por quê? Enquanto isso milhões de pessoas estavam morrendo em todas as regiões pobres do mundo, porque nada tinham que comer, milhões de crianças nunca seriam normais porque alimentos como os que tinha posto na bonita sacola plástica, estampada com margaridas laranja e cor-de-rosa, nunca apareciam no caminho delas... No balcão da máquina registradora, estava furiosa, com um ressentimento infantil e com lágrimas nos olhos. Por quê? O homem não tinha olhado para ela, não tinha sorrido e dito "Sra. Brown, oh, Kate, oh, Catherine, que prazer em vê-la"... isso era tudo. A atitude dele, estava sentindo, era fria. Ela estava maluca, não havia dúvida quanto a isso assim dizia a sua inteligência, enquanto os seus sentimentos e emoções eram os de uma criança pequena.

Foi andando em direção a Marble Arch. Havia uma feira livre, quase na hora de acabar. Então seria sábado? Nunca houvera um período em sua vida em que não tivesse sabido as horas, quanto mais o dia da semana.

Na sua frente havia um balcão de madeira sobre o qual se encontravam alguns tomates entre pés de alface amassados, os restos arruinados das verduras frescas expostas naquela manhã. Um batente de madeira desceu na sua frente. Como uma porta fechando... um pânico de privação a fez correr, dando a volta pelo lado da barraca, e quase gritar... mas estava sorrindo; podia sentir o esticar desesperado e caricato de seus lábios:

Quer me ver uns tomates, meio quilo de tomates?

Mostrando desagrado, o homem disse:

Estou fechando. Já passei da hora.

Oh, por favor arquejou ela, e ouviu a sua voz fa­zendo daquilo um caso de vida ou morte.

Naquele momento, o homem a olhou, deliberadamente, de alto a baixo. Então, com a mesma deliberação, ele se virou e olhou para uma fileira de barracas abertas, onde ainda estavam expostas desordenadamente algumas frutas e verduras. Depois ele lhe deu as costas e puxou a coberta lateral da barraca. Proferiu para os céus o veredicto que ela merecia, de maneira tão formal quanto os rituais de um tribunal de justiça:

Existem mães que realmente os têm.

Kate foi para uma barraca próxima, entrou na fila, e ouviu a mulher na sua frente uma mulher como a Kate normal, ou melhor, a Kate de antigamente, com um carrinho de compras, carregadores e sacolas de feira, fazendo compras da semana para uma família grande.

Ela foi embora, as costas curvadas, carregada, uma escrava, seus ombros dizendo como era satisfatório carregar fardos para outras pessoas. Uma vez que Kate tinha a atenção voltada para aquela mulher, perdeu o seu lugar na fila, e aquele complexo de emoções que faz parte dos rituais de filas foi posto em mo­vimento. A mulher que tomou seu lugar era agressiva e virou o rosto na direção de Kate com uma expressão inflexível e farisaica, enquanto dizia para a mulher do outro lado:

Eu não tenho tempo para ficar aqui o dia inteiro, como ela tem.

Kate comprou, de um vendedor que não olhou para ela, dois limões e um pimentão verde, tendo suprimido o reflexo de comprar uma dúzia de limões e um quilo de pimentões verdes.

Voltou para o apartamento, sabendo que não tinha come­çado a compreender o que tinha de enfrentar. Não tivera noção do que fosse, antes daquele dia. Se não estivesse com pouca vitalidade, se não estivesse doente, não teria tido aquelas reações excessivamente fortes. É claro que não. Mas como deveria estar satisfeita por aquilo estar acontecendo não fosse assim, cada uma daquelas emoções violentas teria sido um pequeno impulso, minúsculas erupções de mesquinharia. Ela poderia facilmente não ter sabido o que eram, poderia ter sido capaz de fingir que não as sentia.

Mas o que iria fazer com aquele monstro dentro do qual estava aprisionada, um bebê monstruoso, que tinha que ser reconfortado, receber sorrisos e atenção quando exigisse: a mulher que durante anos esteve dizendo, implicitamente, é claro: "Esqueceu quem eu sou, qual a minha posição nesta casa?" Natália Petrovna o dizia francamente; o fato de Kate Brown sentir vergonha de dizê-lo em voz alta mostraria que tinha havido algum progresso?

Do lado de fora do apartamento, num muro baixo, estava sentada uma jovem lânguida, com um grande chignon louro, os olhos pintados de azul, a boca de boneca, pintada de um rosa vivo. Usava um vestido preto de noite, antigo, de renda e cetim.

O rosto altivo da jovem desapareceu num largo sorriso, e Maureen disse:

Por que está tão magra?

Porque perdi peso.

Faz sentido.

Não para mim... ainda disse Kate, e desceu a escada até o apartamento.

E então, como alguém tentando manejar uma máquina com defeito, talvez um motor a que faltasse óleo, dedicou-se à tarefa de preparar uma refeição que pudesse comer. Tinha de comer. Precisava de energias. Tinha de criar energias para derrotar o monstro que havia engolido o seu âmago.

Fez torradas com pão ordinário, passou manteiga e queijo e sentou-se na mesa da cozinha para comer. Mas cada mordida transformou-se numa massa que não conseguia engolir. Maureen entrou na cozinha, o vestido de renda batendo nos torno­zelos e nos pés nus.

Esteve doente? perguntou.

Um pouco.

Maureen apanhou na prateleira um vidro de comida de bebê, em que estava escrito "Ameixa e semolina", e, levantando o vestido, sentou-se na ponta da mesa e começou a comer. Vendo Kate mastigar, acenou com a mão para a comida de bebê e disse:

Não quer tentar isso? Eu nunca como outra coisa.

Vai ficar com deficiência de vitaminas disse Kate automaticamente, e ficou lutando com as lágrimas enquanto Maureen se balançava com gargalhadas zombeteiras.

Maureen lhe estendeu um vidro de purê de maçã e Kate conseguiu engolir aquilo.

Eu gosto de ficar doente disse Maureen. É melhor do que haxixe.

Haxixe não fez efeito nenhum em mim, quando experimentei.

Você não continuou tentando, não é? disse Maureen.

Naquele momento entrou um rapaz com o cabelo cortado no estilo Rei Carlos, jeans e uma camisa de seda com babados. Cumprimentou Kate com um movimento de cabeça, passou por ela indo até Maureen, tirou-a de cima da mesa e disse:

Temos de ir. Começa daqui a cinco minutos.

Maureen calçou um par de sapatos brancos de criança,

atados com cordões, e colocou sobre os ombros nus um xale espanhol muito bonito, mas cheio de buracos de traça.

Os dois saíram, inclinando a cabeça para Kate, que sentiu uma violenta onda de angústia, apropriada para a despedida de pessoas queridas, que partissem para ficar longe por muitos anos. Estava cheia de um sentimento de perda porque aquela inconsequência adorável e impiedosa lhe havia sido tomada, ainda que por uma noite. Seus filhos eram muito mais formais, nem de perto tão descuidados... Era culpa sua que fossem assim? Deveria ter...

Ela se conteve, de certo modo suplicando à culpa e à dor para que se afastassem até que tivesse força para suportá-las.

Kate estendeu os cobertores na cama e se enfiou debaixo deles. Dormiu. Estava procurando o sonho da foca, mas não conseguiu encontrá-lo. Outros sonhos a capturaram e a mantiveram presa, sonhos menores e menos importantes; no seu sono sentia-se como alguém a poucos metros do centro de um labirinto, mas, por mais que se virasse e tentasse, não conseguia alcançá-lo. A foca estava... estava sendo carregada para o norte por ela cuja tarefa era fazê-lo, mas isso estava acontecendo numa parte de si mesma toldada por sonhos semelhantes a um monte de embrulhos que tinha de equilibrar e segurar.

Ela acordou. A atmosfera fluía, trazendo uma música multicolorida. Era uma atmosfera pesada, úmida, mas cheia da memória de irresponsabilidade, de alegria, de gente se mistu­rando e se movimentando: era a atmosfera daquele verão. Uma correnteza de noite de sábado de verão zunia pelo rosto de Kate numa leve obscuridade com sombras de folhas estampadas vin­das dà janela: havia um lampião de rua na calçada lá fora. Uma das melodias da música vinha do interior do apartamento.

Kate achou que estava muito melhor: as violências do dia pareciam ter ido embora. Era porque, afinal, comera algu- ma coisa... iria comer de novo. Ficou satisfeita ao pensar que provavelmente tornaria a encontrar Maureen. Vestiu uma saída de praia amarela, saiu e foi até o vestíbulo. Estava vazio. Ela se viu no espelho: nada havia a fazer senão rir do que via. Não tinha importância, seria só Maureen. A porta da cozinha estava fechada. Abriu-a, sorrindo deparou com uma cena que a deixou confusa, como uma agressão gratuita.

Cinco jovens estavam em volta da mesa da cozinha, sobre a qual havia pratos de comida e copos de vinho. Uma moça morena tocava um violão. Kate percebeu que o sorriso que ostentava era um hábito daquela outra casa, da sua casa: ao entrar num aposento onde se encontravam seus filhos, seus amigos, seria com aquele sorriso, que esperava boas-vindas, mesmo se as boas-vindas tivessem que ser dentro da convenção familiar de aborrecimentos, a "conversa de amor".

"Ohhh, olhe só quem chegou!"

"Imagino que vem nos dizer que está na hora de comer."

"Essa é a minha mãe, é sim! Eu lhe disse, ela até que não é tão má assim, acho."

Aquilo era de antes, da época da adolescência, uma zom­baria rouca que era bastante amistosa de fato, que era cheia de dependência, que sabia que ela, mãe, estaria ali, entraria sempre com aquele sorriso, não diria mais que: "Obrigada pelo elogio. Sim, o jantar está pronto".

Agora, era polidez adulta, muito mais difícil de aceitar:

"Entre, mamãe. Este é o meu (minha) amigo (a) da Escó­cia. Penzance. Espanha. Estados Unidos. Ele (ela) pode passar uns tempos aqui? Comprei um saco de dormir novo. Não pre­cisa se incomodar em fazer muito mais comida, por favor".

Parecia-lhe, naquele momento, que os cinco rostos, um deles o de Maureen, se estavam virando para ela com o mesmo movimento lento, estudado para parecer indiferente, indiferença que, é claro, era fingida, mas necessária para eles, como uma proteção contra... o quê?

Cinco rostos olhavam fixo para um esqueleto de robe amarelo-berrante, o cabelo numa massa seca em torno de um rosto preocupado.

Ela fugiu correndo do que lhe parecia um olhar furioso de hostilidade, gaguejando:

— Sinto muito...

No quarto, percebeu que o seu sentimento de rejeição total estava fora dos limites de qualquer coisa de racional; podia apenas observá-lo. Vestiu apressadamente um dos boni­tos vestidos de verão, ossos dentro de uma tenda, tentou as­sentar o cabelo e desistiu, então saiu para a rua. Sob os postes de luz havia grupos de rapazes, reunidos à espera de que alguma coisa acontecesse: os bares deviam ter acabado de fechar.

Pensou: "Eu não posso, eu não vou conseguir passar por eles", pois cada grupo de homens, mesmo um par de garotos sozinhos, parecia ameaçar. Mas ela se obrigou, um castigo auto-infligido à necessidade de correr de volta para o apartamento, puxar os cobertores sobre a cabeça e ficar lá. A rua parecia larga, interminável, cada objeto nela personificava o perigo. Ela parecia a si mesma um todo de superfícies vulneráveis. Foi andando, com os olhos fixos à sua frente, como faria na Itália ou na Espanha, onde fazem com que as mulheres se sintam mais vulneráveis e expostas, isolada como um gra­mado municipal: "Passagem proibida".

Ninguém prestou a menor atenção. Recebeu olhares indiferentes, que se desviavam dela rapidamente, à procura de estímulo.

Mais uma vez, era como se fosse invisível.

Toda a sua superfície, os escuros de seus olhos fixos, inexpressivos, seu corpo, até os pés bem alinhados, haviam sido dispostos para receber atenções, como uma garota adolescente que passou três horas se maquilando e que arriscou tudo no que aconteceria quando ela se apresentasse diante das fileiras de olhos penetrantes e interessados. Kate se sentia leve, flutuan­do, sem lastro. Sua cabeça estava um caos, os sentimentos entor­pecidos pela perplexidade. Estava reprimindo impulsos tão dis­tantes de qualquer coisa que jamais experimentara ou poderia imaginar como sendo seus, que estava chocada com eles como se estivesse lendo a respeito deles num jornal: sabia que se não tomasse cuidado andaria até um daqueles grupos de homens desocupados e levantaria as saias para se expor: "Aqui, olhem para isso, estou aqui, não estão vendo? Por que é que não olham para mim?"

Um barzinho, servindo exatamente a mesma comida que o restaurante onde estivera para almoçar, ainda estava aberto. Mas, além do cardápio, havia um encarte mais fino, quase apologético, que indicava o parentesco grego do lugar. Ofereciam um arca­bouço reduzido do cardápio grego no exterior: humus taramasalata, shish kebah. Estava cheio de gente jovem, moradores dos apartamentos dos arranha-céus, que não queriam ir para a cama ainda, embora os cinemas e os bares estivessem fechados. Nin­guém prestou atenção nela, embora se tivesse enrijecido para enfrentar críticas. Agora sabia, tinha de saber finalmente, que durante toda a sua vida fora sustentada e mantida de pé por um fluido invisível: a atenção das outras pessoas. Mas o fluido se havia esgotado. Ela cambaleou, teve de sentar-se apressa­damente numa mesa onde se encontravam um jovem casal e uma moça a irmã, ao que parecia, da esposa. A irmã estava de mau humor por causa de alguma coisa, mas de maneira divertida. A jovem esposa mostrava-se ansiosa para voltar para casa e cuidar do seu bebê, porque a vizinha que estava tomando conta dele devia estar querendo ir dormir. O rapaz olhava em volta observando o restaurante e comparando a sua prisão atual com a liberdade anterior.

O grego que serviu o shish kebah estava tentando fazer com que a garota de dezesseis anos olhasse para ele e, assim, Kate não perguntou por que não tinham posto nenhum tempero na comida, não disse que nem todos os paladares ingleses gostavam de temperos suaves, não sugeriu que podiam cozinhar para ela como faziam para eles mesmos. "Especialmente para mim" foram as palavras que encontrou na ponta da língua.

Comeu depressa e saiu do ambiente barulhento e simpá­tico que parecia, à medida que a hora de fechar se aproximava, estar subindo, engrossando, como um líquido em ebulição que transbordaria por todos os lados para a rua.

Kate estava se congratulando por não haver, quando pagou a conta, chamado a atenção apresentando um sorriso enfá­tico que enviava a mensagem: "Estou acostumada a receber atenção".

No apartamento, a porta da cozinha se encontrava aberta, e Maureen estava encostada na parede perto da porta, junto de um rapaz que Kate não tinha visto antes. Maureen viu Kate e disse:

Por que não entrou na cozinha naquela hora? Pode fazer, sempre que quiser. Não deve incomodar-se com o que estivermos fazendo.

Antes mesmo que a moça tivesse acabado, o ego senti­mental de Kate estava fraco de gratidão.

Este é Philip disse Maureen, e, soltando a mão e dando um pequeno empurrão no rapaz, em direção a Kate: esta é Kate. É uma amiga.

Philip obedeceu a Maureen fazendo uma pequena reverência e sorrindo para Kate, e então saiu pelo vestíbulo em direção à porta dizendo:

Então está certo, amanhã.

Havia alguma coisa de admoestador na maneira como falou, como se fosse um ultimato. Maureen reagiu com um encolhimento de ombros e um olhar de cansaço.

Está bem — disse ela. — Prometo. Mas realmente acho besteira. Mas você é tão exigente com tudo...

É claro que sou. Eu sei o que quero — disse Philip, e, sem olhar em volta, saiu e foi embora.

Maureen deu um grande suspiro, querendo que se visse que um grande fardo lhe fora tirado, e foi para a cozinha. Na meia hora que se passara desde que Kate estivera ali, a cena se havia modificado bastante. O grupo de jovens havia desaparecido, não havia mais pratos, nem copos, nem comida na mesa. Só a moça do violão ainda continuava ali, o cabelo e as mãos roçando nas cordas. Ela não tomou conhecimento da presença de Kate.

Maureen examinava Kate abertamente e com um olhar crítico. Observou a massa de cabelos ondulados, com a faixa larga cinzenta, no meio. Olhou para o vestido de Kate, andando, ou dando pequenos passos rápidos em volta de Kate para fazê-lo.

Espere — disse e saiu por um minuto.

Voltou com alguns vestidos, e os colocou, um a um, diante de Kate, franzindo o cenho. As duas mulheres começaram a rir. O riso foi crescendo e ficou tão alto que a moça do violão ergueu o olhar para ver o que era tão engraçado. Ao ver um vestido fino de babados estendido diante de Kate, ela sorriu de leve e voltou para a sua música.

Um dos vestidos era de corte reto e simples, verde-escuro, e Kate tirou o que estava usando e o experimentou.

Maureen ficou encantada ao ver que servia.

É melhor ficar com esse. Não, use-o até voltar ao seu peso de novo. Não, falando sério, você fica parecendo tanto uma pobre-coitada, desengonçada, com esses seus vestidos metidos a chique. Acho que você deve ser rica.

Grandes ondas de auto-piedade envolveram Kate. Nunca imaginara que poderia ser chamada de pobre-coitada, desengonçada. Mas era a gentileza da moça que provocava lágrimas. Para escondê-las, ela fez chá, ficando de costas para ela, e, quando voltou à mesa, com a xícara, a moça do violão saiu.

Maureen, espalhando os seus babados de renda preta que deixavam separados os saltos dos sapatos brancos de amarrar com cordão, tinha sentado e olhava para Kate com o cenho franzido.

Você usa aliança?

Sim.

É divorciada?

Não.

Kate receou que usando aqueles monossílabos a moça pu­desse sentir-se rejeitada e retirasse sua simpatia, mas depois de algum tempo Maureen perguntou:

Você lamenta ter casado?

Diante disso Kate primeiro deu uma pequena risada, quase um resmungo, que declarava ter sido provocada por uma pergunta indiscreta; então surpreendeu-se a si mesma sentando-se e rindo de verdade. Descontroladamente. Tinha de parar, de­pois estava começando a chorar. Enquanto isso, Maureen apoiou o queixo nos antebraços, apoiados no espaldar de uma cadeira, usando-a como o portão de um pasto onde se apoiava para observar cavalos, ou de qualquer forma uma espécie qualquer de animal, e olhava fixo para Kate com um olhar firme, obsti­nado e azul.

Ela o manteve quando Kate parou de rir, de forma que Kate teve de explicar:

É engraçado que alguém pergunte isso à gente, sabe? Quero dizer, depois de se ter sido casada desde garota.

Não vejo por que seja engraçado disse Maureen.

Mas eu tenho filhos. Quatro. O mais moço tem deze­nove anos.

Maureen não modificou nem a atitude nem o olhar firme durante alguns momentos depois daquilo. Então, levantou-se e afastou da cabeça o que obviamente considerava um desapontamento com um encolher de ombros. Depois, começou a fazer um cigarro no qual havia um pouco de fumo de cheiro acre, cuidadosamente desfibrado. Saiu andando com passos largos na direção de onde vinha a música, sem dizer nem até logo, nem boa-noite.

Kate foi para a cama. Era meio-dia quando acordou. Ficou deitada, olhando pela janela para o muro branco no qual estavam presos vasos com plantas e, além do muro, as árvores, folhagem, tudo sob o sol forte. Não havia o menor ruído no apartamento. Sem encontrar ninguém, ela tomou banho e foi para a cozinha. Ninguém estivera ali desde a noite anterior.

O telefone começou a tocar no vestíbulo. Maureen atendeu, e então veio e parou na soleira da porta. Onde Kate havia parado na noite anterior, olhando para os cinco rostos, todos virados para examiná-la. Agora, Maureen estava ali, olhando para Kate. Usava pijamas brancos, e o cabelo repartido em duas tranças, uma sobre cada ombro, amarradas com laços brancos.

Ela entrou, cortou um pedaço de pão da bisnaga de Kate, passou geléia e sentou-se para comer.

Você vai pintar o cabelo de novo?

Ainda não sei. Tenho quase seis semanas antes de precisar resolver.

De que cor era quando você era jovem?

Dessa cor. — Kate viu uma ponta de um ruivo opaco no ombro direito. — Não, era vermelho-escuro.

Você deve ter sido bonita — disse Maureen.

Obrigada.

Se eu fosse embora e deixasse você no apartamento, tomaria conta dele? Quero dizer, não haveria toda essa gente entrando e saindo, só você.

Diante dessa inversão das condições de vida, Kate não pôde deixar de rir.

Então você não toparia? — perguntou Maureen.

Não. — Com um esforço, Kate se impediu de dizer "mas se você quiser, é claro que o farei". Disse: — Você compreende, não é com freqüência que tenho a oportunidade de estar absolutamente livre, e sem ter de fazer coisas, cuidar de coisas. Não sei quando terei outra.

Quanto tempo faz?

O quê?

Há quanto tempo você tem essa oportunidade, há quanto tempo você está livre?

Essa é a primeira vez na minha vida inteira que tive essa oportunidade. — Kate podia ouvir o desespero irritado em sua voz, a afirmação: "Não é possível, não consigo acreditar em mim mesma".

Maureen lançou-lhe um olhar que parecia hostil e então Kate percebeu que era porque ela estava com medo. Maureen levantou-se, acendeu um cigarro — um cigarro comum — e começou a andar, ou melhor, a sapatear com leveza pela cozinha, seguindo um esquema invisível que ia fazendo à medida que prosseguia.

Nunca? perguntou afinal.

Nunca.

Você se casou cedo?

Sim.

Uma outra longa tomada de fôlego, de medo, de apreen­são: a moça parou a sua dança de sapateado, que parecia com o saltitar de um passarinho numa praia, e perguntou:

Mas você lamenta? Se arrepende? Lamenta?

Como é que posso responder a isso? Você não vê que não posso?

Não. Por que é que não pode?

Você está pensando em se casar?

É possível.

Ela continuou com a sua dança... Era como o andar que uma garotinha, criada com muita severidade, inventa para si mesma: estava saltando sobre barras invisíveis, barreiras e riscas invisíveis no chão. Então viu que o seu desvio cuidadoso dessas riscas estava criando um outro padrão. Franziu o cenho, irritada, desanimada. Na outra extremidade do aposento a luz do sol formava um quadrado amarelo no chão. Começou a andar em volta do quadrado de sol na ponta dos pés, como um soldado, um, dois, um, dois.

Se eu fosse embora, iria encontrar-me com Jerry, na Turquia.

Para se casar com ele?

Não. Ele não quer se casar comigo. Mas Philip quer.

Você quer dizer que quer fugir para junto de Jerry porque tem medo de se casar com Philip. Diante disso Maureen riu, mas continuou com o seu andar rápido nas pontas dos pés, em volta do quadrado. E se não tomar cuidado, vou começar a me sentir culpada por me recusar a cuidar do apartamento, dessa maneira forçando você a se casar com Philip.

Maureen riu de novo, e de repente se sentou à mesa.

Você tem filhas?

Uma.

Ela é casada?

Não.

Ela quer se casar?

Às vezes quer e outras vezes não.

Que é que você deseja para ela?

Você não vê que não posso responder a isso?

— Não. — Ela gritou a palavra. — Não, não, não, não. Não vejo por quê. Por que é que você não pode? — E saiu correndo da cozinha, as tranças esvoaçando.

A Sra. Brown passeou pelo parque a tarde inteira. De início não se tinha dado conta de que era novamente a Sra. Brown, mas então percebeu olhares, atenção. Será que era porque usava o vestido de Maureen, que lhe caía bem, sendo do tamanho certo, de um verde-escuro levemente brilhante, porque tinha penteado o cabelo prendendo-o no alto da cabeça, num penteado que combinava com seus traços "picantes", porque estava, como se dizia, "em recuperação", e as linhas de seu corpo e de seu rosto se tinham ajustado?

Um homem veio sentar-se perto dela num banco e a convidou para jantar.

Foi andando para casa num crepúsculo de domingo de verão, em meio às possibilidades oferecidas pelos olhos mas­culinos.

Kate parou diante do grande espelho, olhando para a mulher esbelta e atraente — a magreza de seu rosto tinha, por assim dizer, sido absorvida pela impressão global de um encanto ameno —, e tirou fora o vestido, pôs um daqueles que ficavam frouxos e caídos, soltou o cabelo e o sacudiu deixando-o armado, e saiu para andar na rua ao anoitecer. E mais uma vez era como se fosse invisível.

Entretanto bastava pôr o outro vestido, arrumar o cabelo daquele jeito, e estaria atraindo olhares e anseios a cada um de seus passos.

Os sentimentos maternais de uma mulher são despertados, dizem, por uma certa curva pungente da cabeça do bebê: a natureza ardilosa fez com que assim fosse. Um ganso acabado de sair do seu ovo segue uma forma ou som que fica marcada para todo o sempre como sendo "mãe" — o que quer que aquela forma ou som tenha por acaso sido num determinado momento crucial de sua existência.

Um famoso caçador africano descreve a maneira como, numa caçada, ao manter o contorno do antílope ou do veado em algum lugar por trás de seus olhos, este molde pessoal se encaixava nos animais camuflados que eram tão difíceis de ver em meio aos seus padrões de luz e sombra: mas daquela maneira ele de fato os via com facilidade.

Uma mulher andando com um vestido largo, num andar pesado, e o cabelo — isto acima de tudo — não ajustado aos moldes criados pela moda não está preparada para atrair o sexo masculino. A mesma mulher, com um vestido cortado desta ou daquela maneira, caminhando com o seu termostato interior ligado bem assim... e clique... ela se encaixa no padrão.

A atenção dos homens é estimulada por sinais que não são mais complicados do que o que conduz o ganso recém- nascido; e durante toda a sua vida adulta, toda a sua vida sexual, digamos, dos doze anos em diante, ela estivera ajustando-se, contorcendo-se como uma marionete presa àqueles cor­dões...

No dia seguinte, Maureen não estava em nenhum lugar que se visse será que ela tinha ido para a Turquia? e Kate usou o vestido verde-escuro e foi a Sra. Michael Brown durante o dia inteiro, pois com a máscara, com a charada, a adaptação de si mesma ao padrão, vinha a velha atitude, a meiga e adorável Sra. Kate Brown, a quem os vendedores das lojas atendiam com um sorriso, e os garçons gostavam de se inclinar com atenção.

O mar de lágrimas dentro de Kate, que estivera amea­çando transbordar ante a menor sugestão de indiferença, acal­mou-se um pouco, o tom de queixume desapareceu de sua voz, e ela não derramou copos de água.

No dia seguinte àquele, Kate estava numa quitanda quan­do viu diante da caixa registradora, na sua frente, uma mu­lher de meia-idade com o cabelo seco e cor de cobre a tintura não ficara nada boa —, sapatos de salto alto, saia justa. Estava parada bem na frente do vendedor, sorrindo e tagare­lando e enfatizando a sua presença, enquanto ele dizia "Sim?" e "É mesmo?" e "Imagine só!"

E ela continuou, sem parar, a mulher solitária, os olhos cheios de uma vivacidade forçada, a voz cheia de um encanto forçado, até que o vendedor se virou, deliberadamente, para Kate e a fez parar.

O rosto da outra mulher descaiu numa expressão desesperançada. Ela sorriu pateticamente, enquanto as lágrimas lhe subiam aos olhos. Levantou o queixo com esforço e saiu para a rua com um pequeno movimento impaciente de desdém.

Kate a seguiu. Kate estava seguindo a si mesma lenta­mente, ao longo da Edgware Road, observando como ela olhava longamente para cada rosto que se aproximava, masculino ou feminino, para ver como estava sendo vista, como ela se estava encaixando na expectativa que havia sido estabelecida naquela outra pessoa pelos costumes daquela época, ela via a sua apa­rência nas vitrinas de lojas de roupas, examinando vestidos mais apropriados para Maureen, ou a sua Eileen; como ela repetida­mente cedia ao cansaço, pois os seus saltos eram terríveis, e então se endireitava com esforço, lançando olhares para todos os lados, que eram, ao mesmo tempo, agressivos e suplicantes.

Kate voltou para o apartamento e encontrou Maureen deitada nas almofadas do vestíbulo, o olhar fixo no teto. Estava com um vestido comprido de linho vermelho, tipo camisolão, com botas vermelhas e o cabelo solto. Parecia uma boneca.

Pensei que você tivesse ido para se casar disse Kate.

Não brinque com isso!

Kate foi para o quarto, tirou o vestido que lhe caía bem, tornou a pôr um dos seus e soltou o cabelo.

Maureen olhou para ela, de onde estava deitada, e disse:

Por quê?

Estou vendo uma coisa. Tenho de compreender uma coisa.

Uma fumaça azulada subia em círculos fumaça comum, não tinha o cheiro forte e seco de fumo. Maureen estava deitada sob a fumaça, como se estivesse se afogando nela. Sua interro­gação muda fez com que Kate dissesse:

Quem esteve casada todo esse tempo.

Compreendo.

Não, você não compreende. Ou melhor, não creio que compreenda.

Você me trata como criança disse Maureen.

Como é que posso deixar de fazê-lo? As perguntas que você me faz... não há nenhum peso atrás delas. Não o peso da experiência, sabe?

E isso é tudo? A maturidade é tudo?

Se é o meu tudo... o que mais posso dizer? Nada tenho a oferecer. Nunca fiz nada de forma que pudesse di­zer... mas não sei a que você dá valor. Não viajei pelo ca­minho dourado para Katmandu, nem fiz trabalho de assistência social para os velhos, nem escrevi tese. Apenas criei uma família... — Ela parou por causa da amargura em sua voz. Sentou-se bruscamente numa cadeira e acrescentou: Oh, meu Deus... ouça, você ouviu isso?

Mas Maureen se levantou com um salto, enquanto a fuma­ça azul pairava no ar, na altura da cintura, e começou a gritar:

Você não compreende. Por que não compreende?

Quando digo o que sinto você diz que a estou tratando como uma criança.

Ah, fodam-se todos!

Maureen saiu e foi para a cozinha. Kate retirou-se para seu quarto. Poucos minutos depois, Maureen entrou sem bater e encontrou Kate sentada na cadeira de espaldar reto, com o olhar fixo para a janela, onde, ao longo da metade superior, pernas de pessoas se moviam como tesouras: um filme tinha saído do enquadramento e a metade superior de um quadro — plantas num muro com sol batendo — aparecia com a metade inferior de um outro, pernas sem troncos.

Philip quer muito se casar comigo. Ele diz: "Por fa­vor, case-se comigo. Eu amo você. Vou lhe dar uma casa, um carro e três filhos".

Bem?

Estou surpreendida por você não ter perguntado: "Você o ama?"

É isso o que sua mãe diz?

Ah, a minha mãe! Mas sim, é o que ela diz. E eu também.

Que é que há de errado com sua mãe?

Nada.

Sim, há sim. Que é?

Ela é um tremendo fracasso. É uma...

Uma pobre-coitada?

Sim. Quem quereria ficar assim? Por que é que você não pode... mas eu não vou falar nisso, seja o que quiser, não me importo. Mas o que é que você acha?

Seja o que você quiser. Não posso ajudar você.

Então de que adianta toda aquela maturidade?

Nada, acho.

Ele vem jantar aqui hoje. Você gostaria de conhecê-lo?

Quanta formalidade.

Ele é formal. Por princípio.

Ah, é? — Pois havia mais por trás daquilo.

Ele é um desses novos... os fascistas, é assim que são chamados. Compreende?

Não conheci nenhum ainda. Mas meu filho mais moço foi a uma reunião e disse que achou que eles estavam sendo difamados. Ele me pareceu tentado.

Ah, mas é realmente tentador. A lei e a ordem. Valo­res. E, é claro, faz com que a gente se sinta absolutamente reles... O que poderia ser mais atraente?

Está bem, gostaria de conhecê-lo.

Maureen saiu dizendo:

Oito horas.

A mesa da cozinha estava coberta por uma toalha, posta para três pessoas. Havia uma garrafa de vinho que já estava aberta.

Kate preocupara-se em apresentar-se com uma aparência respeitável. Maureen, por outro lado, para se auto-afirmar, fora às raias do absurdo com um vestido que tinha todos os padrões e estamparias concebíveis, de listras a xadrez, misturados. Era uma obra de execução muito habilidosa aquele vestido, de for­ma que os olhos não resistiam e eram sempre atraídos a voltar para ele, para descobrir como tinha sido feito. Era decotado na frente, um corpete de renda bege até a cintura, deixando à mostra os seios, cujos bicos tinham sido pintados como se fossem olhos. O próprio rosto de Maureen estava invisível atrás de uma máscara de maquilagem.

Philip vestia o que era, obviamente, o novo uniforme, uma evolução do estilo antigo. O que era diferente não eram as roupas, mas a maneira de ele usá-las. Os blue jeans não eram desbotados, mas novos. A camisa de algodão era azul-marinho, e lhe caía bem. A jaqueta era de corte militar, também azul-marinho, com botões e palas pespontadas. Usava uma gravata preta, estreita. O cabelo não era curto atrás e dos lados, mas quase. Era o corte francês novamente, o cabelo num compri­mento médio, penteado para a frente a partir do centro da ca­beça, sem repartido. Tinha o efeito de absolvê-lo de responsa­bilidade: dava vontade de afagá-lo com os dedos; fazia com que parecesse um garotinho. Podia-se presumir que aquele estilo breve seria substituído por algo mais severo. Mas criava uma impressão geral de asseio, de leveza, uma agradável dispo­sição para assumir responsabilidade. Isto, entretanto, não pare­cia ser atributo dele, mas sim o resultado de uma atitude de determinação... a atitude de determinação coletiva. Olhando-se para o rapaz bem barbeado, seu rosto de repente corado, um pouco redondo demais, de camponês, via-se logo que seus olhos, transbordantes de necessidade de se impor, gritavam que sua maneira de ser era outra. Mas, acima de tudo, era nisso que estava o aspecto importante, ele tinha a confiança de que ele era a nova força, a onda que se levantava. Ele sabia que sua presença era o suficiente para fazer com que todos os Jerry, os Tom e os Dick e os Harry parecessem gastos; de repente todos os rapazes de cabelos compridos, os rapazes de roupas extrava­gantes, os anarquistas, os dissidentes que tão recentemente ti­nham estampada em si a aprovação da época, todos eles parece­riam fracos, maltrapilhos e como se fossem transparentes. Como fantasmas, iriam ter de desaparecer. A presença de Philip seria o suficiente para que se visse isso.

Bem, exatamente como há tantos anos uma geração inteira de jovens (não os seus filhos, eram muito pequenos ainda e tiveram de se ajustar ao padrão à medida que iam crescendo) havia começado a existir, ao que parecera da noite para o dia, com vocabulário, atitudes, roupas, idéias políticas e sociais idên­ticas, milhões deles, exatamente iguais uns aos outros; agora era obviamente o momento para uma outra metamorfose. E será que Philip o era? Não, era provável que fosse um tipo de transição. Ele seria ultrapassado, substituído. Nesse ínterim, a atração que ele exercia era grande: era aquela atração da abso­luta autoconfiança. Não precisava dizer com detalhes que o que oferecia era milhares de vezes melhor do que a anarquia e a imundície dos outros jovens que — era assim que se devia vê-los, comparados com ele — andavam relaxadamente e desliza­vam pela sua vida.

Maureen estava servindo patê com torradas. Tudo muito correto. Por causa de Philip, os três se estayamcomportando como gente de classe média numa mesa de jantar.

Mas ele não era de classe média. Era filho do dono de uma gráfica, e tinha até interrompido os estudos. Mas voltara de novo e fizera os exames e agora estava num emprego que parecia, tanto quanto se podia ver, seguro. Era funcionário municipal, e o seu trabalho se relacionava com crianças abando­nadas. Tinha toda a experiência atraente da dissidência, de ter recusado o que "o sistema" oferecia. Usava a expressão "o sistema" como a geração anterior à sua havia feito, mas o via como alguma coisa que precisava ser reformada, fortalecida, que precisava tornar-se mais autoritária, não rejeitada. Era, em suma, o mais recente dos modelos da figura da autoridade, o assistente social, cujo poder não derivava de "faça isso porque há uma lei que todos nós concordamos em instituir, somos parte de uma democracia, não somos?" ou "faça isso porque o partido assim o ordena", mas sim "faça isso porque você é pobre, tem fome, não tem educação e está desesperado: você não tem alternativa".

Ele também pertencia a uma organização chamada A Bri­gada Jovem, que por sua vez era filiada a uma outra, formada apenas muito recentemente, chamada A Liga Britânica de Ação.

E o que é que aquilo tudo significava?, perguntou Kate. Enquanto isso Maureen brincava com fatias de torrada, observando Katé entretida na conversa com Philip. Será que ela estava tentando descobrir quais eram as suas próprias reações, ou quais deveriam ser? Quais seriam, provavelmente, as reações de sua mãe? De qualquer maneira Maureen se mantinha em segundo plano, deixando que Kate assumisse o comando. Kate estava de volta à situação de ter que ser responsável; estava aceitando aquilo: tinha de fazê-lo.

Bem, Sra. Brown, não é preciso que eu lhe diga... todo mundo pode ver a confusão generalizada em que estão todas as coisas.

É claro.

Nós temos de endireitar tudo.

É claro. Mas como?

Somos adeptos da responsabilidade. Não de todas essas censuras, críticas e denúncias que não dão em nada. Não, nós fazemos as coisas. Vamos fazer com que as coisas sejam feitas. Não nos incomodamos de ter de sujar as mãos. — Estava comendo com a mesma rapidez com que falava. Ele comia e falava, olhando para Kate e para o seu amor por Maureen, que mordiscava indolentemente uma torrada, enquanto seus olhos pintados pareciam estar muito distantes dele, preocupados ape­nas consigo mesma. — Sim, não tenho vergonha de dizê-lo, é decência que queremos, já tivemos mais do que o necessário de denúncias apenas pelo prazer de fazer denúncias, agora pre­cisamos de regras.

Para ajudar o quê? — perguntou Maureen de repente.

A voz dela estava trêmula. Sob toda aquela maquilagem,

rendas e babados, ela passava por um violento conflito, Kate podia senti-lo. Bem, Philip era atraente. Se estivesse no lugar de Maureen, tendo Jerry e o resto como alternativas, ela sabia a quem estaria correspondendo... e estaria sentindo medo da sua reação.

Bem, olhe só para você, Maureen — disse ele, num tom franco e amável que soava forçado: a verdade era que ele estava tentando manter-se calmo e firme dentro do campo de força de atração que ela criava. Mal podia olhar para ela, por causa da força de seu amor e do seu ódio. Ficava lançando olhares temerosos para os seus seios quase nus, e então disse num tom irritado: — Quanto é que você diria que gasta por semana? Com roupas, maquilagem, cabelo?

Não tanto quanto você imagina — disse Maureen, levantando-se para tirar os pratos, a manteiga, um resto de patê. — Compro roupas de segunda mão, na maioria das vezes. E costuro para mim. Não sou nenhuma boba. Não gasto muito.

Mas isso é tudo que você faz, é como você gasta o seu tempo.

E milhões de pessoas estão passando fome? Milhões de pessoas estão morrendo enquanto estamos sentados aqui?

A voz dela deixava transparecer que estava confusa, enquanto tentava zombar não do significado das palavras, mas das reivindicações dele para consigo mesmo.

Sim — disse ele com suavidade, obrigando-se a le­vantar-se e olhar para ela, tentando fazer com que o encarasse. Ela não olhou para ele, suspirou, e se virou levando a bandeja cheia para a pia.

Sim — insistiu ele —, isto é tudo que você fará, sem­pre, trocar de roupa o dia inteiro e pintar a cara. — Lançou um outro olhar angustiado para o busto dela e estendeu a mão para apanhar uma maçã. Ele se lembrou de que ainda não haviam chegado ao estágio das frutas da refeição, e sentou-se imóvel, as mãos cerradas sobre a toalha.

Não — disse ela, depois de uma pausa bastante longa.

Isso não é verdade. Não é como passo meu tempo. É apenas como parece.

Você e todo esse seu grupo — insistiu ele, asperamen­te e com dificuldade, porque ela tinha sido positiva, tinha feito uma afirmação definida.

Meu grupo? — perguntou ela, rindo.

Sim — disse ele, dissociando-se da geração anterior com aquela palavra.

Maureen tirou uma travessa de cozido de carne com ervi­lhas do forno e veio andando graciosamente até a mesa.

Você é tão bestamente seguro de si — reclamou.

Sim, de certa maneira sou. Não estou dizendo que nós temos todas as respostas.

Este seu "nós"... — disse Kate.

Estamos recebendo um bocado de apoio.

Isso não é um argumento por si só.

Ele não deu atenção ao seu comentário.

O que Kate está dizendo — disse Maureen, tomando a iniciativa — é que o que você está afirmando não é nada de novo. E isso na melhor das perspectivas.

Sim, na melhor das perspectivas — disse Kate.

Ele olhou de uma para a outra, piscando um pouco. Exatamente como quando a última geração tomara posição como um conjunto num palco, as vozes e a maneira de ver idênticas, eles não se viam como uma repetição da geração anterior — não em termos de aparência ou de crenças, mas na conformidade delas umas para com as outras — o mesmo ocorria agora com Philip: ele se via como algo de novo, recém-inventado pela história.

Eles nos chamam de "fascistas" — disse Philip de re­pente. Estava irritado, ressentido. Toda a sua autoconfiança havia desaparecido naquele momento. — Bem, pauladas e pe­dradas nos podem machucar, mas palavras não.

Sim, mas o que é que vocês vão fazer? — disse Kate. — Você não diz.

Não, ele nunca diz — reclamou Maureen.

A primeira coisa é nos reunirmos, para então che­garmos a um acordo quanto ao que deve ser feito.

Você fala como se fosse fácil. Não será.

Sim, absolutamente fácil — disse ele, usando uma arrogância que fez Maureen suspirar de novo. — Primeiro, temos de concordar a respeito de uma única coisa muito simples: de que tudo está numa terrível confusão, começando a fugir do controle. E, então, endireitar as coisas. Não pode haver muita discussão quanto a qual seja a causa da confusão, pois não tem havido regras e padrões há muito tempo. Precisamos voltar para os antigos valores. Isto é tudo. E eliminar o que apodreceu.

Eu — murmurou Maureen, servindo o cozido de carne com ervilhas nas tigelas com uma concha. Ela apoiou o queixo numa das mãos enquanto o fazia, os longos cílios vermelhos sobre as maçãs do rosto de um rosa-vibrante. Estava, por assim dizer, afastando-se aos poucos, até sair por completo do seu papel de anfitrioa correta, cedendo ao peso de tudo.

Sim — disse Philip. — Como você está agora, sim.

Então por que você quer casar-se comigo?

Ele enrubesceu violentamente, a despeito de si mesmo, olhou para Maureen com uma fascinação cheia de ressentimento,

lançou um olhar suplicante para Kate: ele a via in loco parentis[2]. Controlou-se com esforço, e disse, corajosamente, pois obviamente era-lhe difícil prosseguir:

Eu não quero me casar com o que você é agora. Mas posso ver o que você é realmente. Posso mesmo. Você não é o que deliberadamente aparenta ser. Você não é apenas uma tola, mimada... — Começou a comer apressadamente o co­zido de carne com ervilhas, esquecendo-se das boas maneiras, agora. Todos os três haviam abandonado o formalismo do início da refeição. Estavam perturbados.

Esse negócio de se livrar do que apodreceu disse Kate.

Sim concordou Maureen.

Ele disse com firmeza, pela primeira vez na história:

Não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos.

Acabaram de comer em silêncio.

Maureen ainda conservava o queixo na mão enquanto comia. Ela estava irritando tanto Kate quanto Philip. A moça se mantinha deliberadamente distante, como se nada fosse da sua conta. E Kate se sentia como uma anfitrioa: ela devia estar sustentando a conversa, pondo Philip à vontade, restabelecendo um tom de formalidade por força da ocasião. Ela reprimiu e ignorou tudo isso, e comeu em silêncio.

Afinal Philip fez uma tentativa, dizendo:

É uma questão de organização, de organizar as coisas da maneira certa.

As mulheres nada disseram.

É preciso que se assuma o controle das coisas... que não se permita que sigam de mal a pior insistiu ele.

O suspiro de Maureen não foi deliberado: fez com que Philip se calasse.

Kate estava pensando que provavelmente um, ou até mais que um, de seus filhos iria aderir a essa Brigada Jovem ou coisa parecida. Quem, Tim? Não, ele não era material para organizações. Por que tinha tanta certeza? As pessoas mudam, podem tornar-se qualquer coisa sob pressão. Stephen? Mas certamente alguém que achava que tudo estava tão podre e corrupto estaria a salvo de tomar posições nesta ou naquela

plataforma, não? Talvez. James? Fora de cogitações ele era socialista demais, um idealista. Bem, já havia acontecido antes. Eileen? Ela queria casar-se mais do que qualquer outra coisa: era assim que se via o futuro dela.

Mas pensar assim era debilitar insidiosamente, era degradante. Cada vez mais as atitudes políticas pareciam o comporta­mento de marionetes, ou pequenos brinquedos de corda. Dava-se a corda toda e continuavam a fazer seus pequenos gestos enquanto estavam sendo atirados para lá e para cá, e despeda­çados em todas as direções.

Entretanto os Brown eram politicamente conscientes, como todas as pessoas iguais a eles. Politicamente conscientes como seus pais tinham sido religiosos. Durante toda a sua vida adulta, desde a guerra que os formara, estiveram no controle, mantendo-se firmes em termos de respeito próprio, com palavras como liberdade, direito, democracia. Eram todos socialistas em graus variados, ou liberais. Quem ela conhecia que não o fosse? Entre­tanto, a verdade era que estava pensando, e sabia que Michael pensava, cada vez mais, que tudo aquilo era besteira. Mas não podiam suportar esse pensamento.

Sua reação violenta a Philip... aquilo era medo. Mas provavelmente todas as atitudes dele acabariam por definir um comportamento de marionete, tal como o de todo o resto. Suas brigadas e ligas não seriam grande coisa: apenas palavras!

Pondo de lado as palavras, o que era mesmo que Michael lhe oferecera quando se casaram? Isto! Não, é claro que ele nunca teria usado palavras como decência, responsabilidade, organização ele teria ficado constrangido demais. Expressões como aquelas tinham, naquela época, traços do que a guerra recentemente acabada lutara para exterminar para sempre. Não teriam, naquela ocasião, o som de belas verdades recém-inventadas, que supunha deviam ter para os jovens, depois de uma década ou coisa assim do que aquele rapaz chamava de "anar­quia, licenciosidade e comodismo". Mas a vida que tivera com Michael fora, na realidade, aquela típica vida ordenada e "res­ponsável" de classe média em qualquer lugar, obediente às necessidades do trabalho e da família. Exatamente aquilo em que este rapaz acreditava e que queria que Maureen partilhasse com ele. Assim, que importância tinham os slogans? Exceto que nem ela, nem o seu Michael, nem ninguém que eles conheciam, se pensassem bem no assunto, teria falado ou pensado em "se livrar do que ficou podre". Bem, aqui estava de novo, as coisas novamente haviam completado o círculo, sempre acontecia.

Philip — disse ela —, quando você fala em "se livrar do que apodreceu", isto não lhe recorda um refrão muito antigo? Já não ouviu isso antes em algum lugar?

Bem, tudo já foi dito antes — concordou ele.

Entretanto havia uma expressão de culpa em seu rosto.

Ocorreu-lhe que talvez aquela noite tivesse sido a primeira vez em que ele pensara daquela maneira, transformando o pensa­mento em palavras: mas havia saído, ele tinha ouvido o que estivera pensando, talvez sem que soubesse. E soava bem, soava muito bem! Agora seria parte do seu novo programa, o manifesto da Brigada Jovem, ou o que quer que fosse.

Você é um dos líderes desse seu movimento?

Creio que se poderia dizer que sim. Entre outros. Eu não o comecei. Mas as pessoas que o começaram eram... — parou, lembrando-se de que eram pessoas de fora.

Eram um bando de liberais tolos e fracos, mas agora você está botando um bocado de coragem de verdade neles — disse ela. — Pode-se tomar como certo — continuou Kate, com doçura — que isto foi o que aconteceu. E acontecerá.

Ela quase disse: "Agora é sua vez". Ocorreu-lhe que a sua fúria de revolta contra ele deveria ser dirigida contra a história, não contra um jovem mais ou menos da idade de seu segundo filho. Tentou sufocar a raiva; além disso, de que adian­tava? O que estava sentindo era medo, é claro.

Acho que vou ser uma das pessoas que vocês terão de eliminar.

Oh, não — disse ele chocado. — A senhora me com­preendeu mal. Não são pessoas que terão de ser eliminadas. É a maneira de as pessoas pensarem que tem de mudar. Tem mesmo. Isso tinha de acontecer. Há todo tipo de coisas que são possíveis agora. Por exemplo, pesquisas recentes dizem que podemos modificar o comportamento... comportamento anti­social, é claro, apenas o que é perigoso para as outras pessoas, com certas drogas. É claro que isto seria um pouco complicado, mas há possibilidades que não havia antes.

Maureen levantou-se, tirou os pratos, trouxe uma traves­sa de queijo numa das mãos, uma bisnaga na outra. Largou pesadamente a travessa com o queijo e deixou a bisnaga cair sobre a mesa de um altura de mais ou menos meio metro. Então sentou-se, reclinada bem para trás na cadeira, as pernas abertas sob o vestido fantasmagórico, fincou os saltos no chão, como se fossem de botas mas eram sapatos de noite, de saltos altos que ficaram curvados —, cruzou os braços sobre o peito, e olhou fixo para a extremidade da cozinha.

Philip corou novamente, começou a dizer alguma coisa que pareceu ser o início de um discurso ou de uma declaração, então olhou rapidamente para Kate, pedindo ajuda. Ela se recusava a dar, baixou os olhos.

Philip levantou-se. Era visível que tentava controlar algu­ma coisa no seu íntimo.

Um momento depois, havia conseguido. No tom leve e bem-humorado que provavelmente fora parte da sua atitude anterior à sua recente reencarnação como salvador da nação, disse:

Você não me dá uma oportunidade, Maureen, não é? Ele se colocou atrás da moça e pôs as mãos sobre os ombros dela. Kate viu como ela se retraiu um pouco, depois cedeu, fi­cando tensa. Oh, sim, Maureen se sentia muito atraída por ele, muito. Quer gostasse, quer não gostasse.

Eu vou ser um bom marido declarou ele, já con­fiante de novo, rindo dela, de si mesmo. Eu amo você. Só Deus sabe por quê! Você seria louca se não se casasse comigo. Nunca vai encontrar outro como eu.

Nunca terei um momento de tédio disse Maureen ressentida, mas achando graça ao mesmo tempo.

Não. E não estou desempregado. Nem é provável que venha a ficar. Isto certamente é alguma coisa, não é?

Ele estava brincando, mas falou com orgulho verdadeiro, e não tinha vergonha disso: uma revolução havia sido completada!

Estive procurando isso a minha vida inteira disse Maureen.

Mas, no entanto, ela riu. Ele se inclinou sobre ela olhan­do para o seu rosto cor de pôr-do-sol e, além dele, para os seios ornamentados.

Ela não se moveu.

Vou embora, se você quiser disse ele, novamente irritado. Como ela não respondesse, ele acrescentou: Então está bem.

Não disse Maureen. Não.

Sem olhar para Kate, ela se levantou, e os dois saíram juntos em direção ao quarto dela, "boa noite", "boa noite", enquanto iam.

Era meia-noite. Kate foi andando devagar até Marble Arch ,e depois voltou, recebendo olhares, convites e cumprimentos sussurrados, os olhares de ódio torturante que o sexo frágil recebe dos seus prisioneiros. Estava tão preeminente como uma cadela no cio naquela hora, naquela rua. E, durante todo o caminho de ida e de volta, pensou que com o seu outro disfarce ninguém a teria visto, teria sido literalmente invisível, e no entanto, no íntimo, a maneira como se sentia não teria sido nada diferente, ela era a mesma, a despeito das máscaras. Teria passado por dúzias de homens de família sérios, rapazes res­peitáveis, bons pais, avôs, irmãos e maridos, teria caminhado quilômetros pelas calçadas de Londres e nunca teria sabido que o sexo era uma mercadoria muito comercializada. Depois de uma certa idade e apresentada de uma certa maneira, uma mu­lher tem a impressão de que as ruas foram trocadas por uma varinha mágica: para onde é que foram todos os caçadores? Magicamente levados à respeitabilidade, todos eles.

Que monte de besteira, que grande mentira era aquilo tudo, que incrível desperdício de tempo.

Estava tudo às escuras no apartamento, quando voltou. No quarto que durante o dia era cheio de luz, trazendo o canto de passarinhos e o cheiro de grama dos muitos quintais daque­la rua agradável, Maureen estava deitada nos braços de Philip. Estava deitada num casulo de doce ternura. Estava deitada, sentindo-se segura e embalada. Estava deitada entre braços que mantinham a distância qualquer ameaça. Entre aqueles braços, Maureen estava deitada. Dormindo? É claro, é claro: lembra-se do sono cálido, seguro e doce que é o sonho de voar quando se é jovem e solitária, que é a realização de todas as suas fan­tasias de um só momento?

No dia seguinte Kate acordou tarde. Havia um bilhete de Maureen sobre a mesa da cozinha: "Fomos para a costa para passar dois ou três dias. Até a volta. Beijos de Maureen".

Kate notou que a palavrinha convencional "beijos" dispa­rou nela um cálido fluxo de emoções. Rasgou o bilhete e disse: "Que vá à merda!", usando a palavra que seus filhos usavam, e Maureen usava, mas que ela nunca tinha usado. Apoderou-se dela, sentindo que era um direito seu: "Que grande mentira! Que porcaria de jogo infame e estúpido! Que monte de merda!"

Usar aquela palavra era como entrar num território proi­bido — auto-proibido, autocensura, até mesmo uma forma de tato, como o fato de não ter ido para os Estados Unidos na mesma ocasião em que sua filha fora, pois talvez estragasse as coisas para ela. "Foda" foi uma palavra assim. Podia lembrar-se de discussões com seus contemporâneos a respeito de lin­guagem permissiva. Naquela ocasião, "maldito", "infame", diziam, houve época em que eram palavras bastante violentas... Mas "foda" eles não ousavam, não conseguiam obrigar-se a dizê-lo: pois só para começar era denegridor do sexo, e portanto deplorável. Numa determinada época havia sentido e pensado assim: mas logo "foda" vinha às suas línguas com tanta facilidade quanto "maldito" ou "infame". Mas não "merda", não, ela se sentia com relação àquela palavra como outrora a respei­to de "foda".

Todos os seus filhos diziam "merda" como conjugavam um verbo, em todas as frases, como o operário dizia "foda", "fodendo", "fodido".

Naquele momento dissera "merda" sem saber que iria dizê-lo.

Chega de palavras!

Saiu para fazer compras com as roupas velhas, o cabelo solto, andou de uma ponta à outra pela feira e, enquanto fazia isso, observou a Sra. Michael Brown, andando — graciosamen­te, era a palavra — para cima e para baixo pelas lojas e ruas do seu bairro, enquanto todo mundo sorria, e cumprimentava e reconhecia, e ela sorria, gozava o carinho e se ia inflando sutilmente e ficando feliz por causa de toda a atenção que lhe era dada, a atraente Sra. Brown, que tinha vivido tanto tempo na Byron Park Road e que tinha comprado — e pago — tantas centenas de libras de comida e verduras de todos aqueles ven­dedores carinhosos e simpáticos, a Sra. Brown, a mãe de tantos consumidores de comida, viagens, livros e equipamentos espor­tivos e...

Estava de fato sozinha no apartamento. Vários jovens vie­ram perguntar por Maureen. Uma noite, uma moça mal-humorada dormiu nas almofadas no vestíbulo, exigindo que a dei­xasse entrar dizendo que era seu direito — ela "sempre" tinha dormido ali —, e se recusou a dizer bom-dia ou adeus a Kate, apenas olhou para ela como se somente a visse, com uma indife­rença decorrente de total desagrado. Desapareceu sem dizer uma palavra.

Kate percebeu que não se importava de que não gostas­sem dela, e no entanto, há uma semana, poderia facilmente ter chorado.

Voltou a alimentar-se bem. O ter-se entregado à doença já parecia coisa do passado. Estava ficando irrequieta. Começou a fazer coisas no apartamento, arear a pia, limpar um armário. Ao se apanhar fazendo isso, acabou o que havia começado — seu treinamento era forte demais para permitir que deixasse por terminar — e então se conteve para não passar o aspirador no chão. Se ia fazer tudo aquilo, podia muito bem voltar para casa.

Quem iria voltar para casa? Mas ela ainda não tinha de tomar decisões. Ainda faltava um mês para que chegasse o fim de outubro.

Recebeu uma carta de Maureen. Kate a leu com desprezo fatalista: Oh, bem, de que adianta? O que é que se pode esperar? A carta era irônica, resignada e cheia de piadinhas.

Ela dizia que tinha "mais ou menos" decidido casar-se com Philip. "Afinal..." "...o que mais havia a fazer..." "...quem diria que ela, Maureen..." "Bem, creio que não há meios de resistir..."

Kate jogou a carta na lata do lixo, saiu andando pela rua sem se lembrar de verificar qual das suas máscaras temporárias estava usando — estava respeitável; tomou um ônibus, foi até a Alimentação Mundial, e encontrou cartas para a Sra. Brown.

Voltou para o apartamento antes de abri-las.

Seu marido sentia muito a sua falta, mas ainda assim es­tava se divertindo muito. Estava pensando em fazer a mesma coisa no ano seguinte. Ela também devia vir junto, "que tal, querida?" Estaria de volta uma semana, ou coisa assim, antes do planejado. Se a casa ainda estivesse alugada — não conse­guia lembrar-se da data exata em que voltaria a ser deles —, arranjaria uma cama no hospital por alguns dias.

Kate sabia até em que minuto a casa voltaria a ser deles.

Stephen. A Argélia era maravilhosa. O governo era uma merda. Estaria de volta na época prevista.

Eileen. Os Estados Unidos eram incríveis. Tudo era uma confusão, mas era assim em todos os lugares, não era?

James. O Sudão era fantástico. As pessoas na Grã-Bretanha não tinham idéia do que se passava no resto do mundo, a retração e a limitação de compreensão não bastavam para descrevê-lo, estaria de volta dentro em breve.

Tim. Tinha apanhado uma espécie de vírus qualquer, não sabia o que era. Tinha estado bastante doente, mas não escrevera para dizê-lo antes porque não queria estragar as férias dos outros, mas voltaria para casa três semanas antes do pre­visto e, como lhe haviam recomendado repouso, achava que seria melhor se...

A Sra. Brown ressurgiu das cinzas, a mão estendida para o telefone. Telefonou para casa e falou com a Sra. Enders, que disse que era engraçado a Sra. Brown ter telefonado bem naquele momento, em que ela estava pensando que, de fato, lhes seria conveniente voltar antes para os Estados Unidos.

Kate poderia tomar posse da sua casa dentro de três dias.

Ficou parada junto do telefone, sua mente girando nos encaixes de rotina. Precisava enviar telegramas para várias pes­soas, e então telefonar para a loja que entregava as verduras... Não, primeiro era melhor chamar a companhia de limpeza para arrumar a bagunça que os Enders com certeza deixariam, e então fazer a encomenda das verduras. Seria uma medida sen­sata se... ela sabia que estava sorrindo, que cada movimento que fazia era cheio de energia, convicção, decisão. Seria melhor se Tim ficasse no quarto de hóspedes, no segundo andar, onde batia sol o dia inteiro; pela carta dele parecia estar bastante deprimido, e ele precisaria de um ambiente alegre.

Pegou o telefone.

É da Companhia de Limpeza Imediata? começou e viu que Maureen estava na porta, olhando para ela.

Philip estava atrás de Maureen, com as mãos na cintura dela, como se a estivesse exibindo para Kate. Exibindo alguma coisa que tivesse criado? Maureen estava diferente. A fantasia tinha desaparecido da sua aparência. Usava um conjunto de saia e blusa bem-comportado e o cabelo estava preso em tran­ças nos lados da cabeça.

Kate lhes lançou um sorriso, querendo dizer "estou ocupa­da, mais tarde", e continuou com os telefonemas. Entraram na cozinha e se sentaram. Em silêncio. Estavam observando Kate. Ou melhor, Maureen estava; Philip observava Maureen por causa da intensidade de sua preocupação com Kate.

Kate, porém, estava por demais envolvida na sua organi­zação habilidosa para se lembrar de que Maureen e Philip esta­vam ali. Fez um pouco de chá para tomar uma xícara, num intervalo, e se virou para lhes oferecer o bule, só então notando que não mais se encontravam ali, mas no quarto. Estavam bri­gando. Enquanto telefonava para Mary Finchley para pedir-lhe que avisasse o limpador de janelas, que trabalhava para as duas, de que seria necessária uma visita especial, virou-se e viu Maureen, de olhos vermelhos, o rosto inchado, sentada à mesa. Es­tava olhando fixamente para ela.

Não chore! — disse de maneira despreocupada e viu o rosto da moça contrair-se numa expressão de ódio.

Não fale assim comigo — disse Maureen, e Kate ficou quase chocada.

Não exatamente: ainda estava nos pináculos do prazer diante de suas capacidades, que vinham sendo usadas, sentia, há décadas, não semanas. Mas ficou olhando para Maureen, enquanto ouvia o telefone tocar em casa de Mary. Mary tinha saído. Kate desligou o telefone, e viu que o rosto de Maureen tinha ficado triste com a intensidade de qualquer que fosse o infortúnio que tivesse sofrido. Era o rosto de uma garotinha, e olhava para Kate com medo.

Que é que há de errado? — perguntou Kate e, quando ouviu sua própria voz, compreendeu que havia nela tudo que não tinha havido quando dissera mecanicamente: "Não chore!"

Os membros de Kate começavam a compreender que ti­nham estado com alguma espécie de febre, que agora estava cedendo. Já tinham perdido o prazer que encontravam em tomar decisões. De repente Kate se sentiu cansada, e compreendeu que estivera, durante os últimos minutos, um pouco louca. Olhou para Maureen. Maureen olhava para ela.

Mas o que é que há de errado, Maureen?

Acabei de dizer a Philip que não vou me casar com ele — disse Maureen. Naquilo havia tanto de acusação que Kate soube que tudo o que tinha organizado com o objetivo de voltar para casa teria de ser desfeito. Ela se sentou na mesa da cozinha.

Por quê?

Eu faria qualquer coisa. Preferiria viver sozinha para sempre a me transformar naquilo.

Kate, em silêncio, naquele momento olhou para aquilo, para o seu eu de alguns minutos antes.

É minha culpa, sei que é — disse ela tentando fazer uma acusação seca, mas zombeteira, mas não ia conseguir escapar impune.

Maureen retorquiu:

Horrível. Horroroso. Horrível. Você não tem idéia...

será que não vê? Se ao menos você se pudesse ver. — Ela baixou a cabeça entre os braços e começou a chorar.

Pode ser que seja assim, mas você não estava feliz com a idéia de se casar com Philip, e alguma coisa a teria feito mudar de idéia, se eu não o tivesse feito — disse Kate.

Maureen fez um pequeno movimento com a cabeça que significava "Não é isto o que importa". Finalmente, conseguiu dizer:

Mudar de idéia com relação a me casar com qualquer pessoa. — E continuou chorando. Alto.

Kate sentou-se e conservou-se em silêncio. Estava pen­sando que, de fato, empreendera uma longa jornada durante os últimos meses. Antes disso, não teria podido ficar sentada em silêncio, enquanto uma moça da idade de sua filha chorava com desespero por sua causa, por causa do poder de Kate de tornar triste e escuro o seu futuro. Kate, na outra extre­midade do que, de repente, sentia como sendo uma longa jor­nada interior, teria sido "sensata", teria feito comentários equilibrados de qualquer espécie, teria tentado consolar, porque ainda teria acreditado que o consolo podia ser dado. Sim, era aí que havia mudado. Observou:

O ponto em que acho que você pode estar errada é que você parece estar pensando que, se decidir não se tornar uma determinada coisa, a outra coisa que você se tornará terá de ser melhor.

Maureen concordou movendo a cabeça, sem levantá-la. Mas parou de chorar e, depois de algum tempo, se endireitou, dizendo:

Apesar de tudo, quando eu tinha uns dez anos, dava uma olhadela para aquilo e dizia que faria qualquer coisa. Preferia morrer a ser aquilo. É horrível.

Foi nisso que eu me tornei uma ótima especialista.

O dia inteiro, ocupada, ocupada, ocupada... com quê?

Kate disse com secura:

Em criar e educar você.

Ah, não, não faça isso, não atire a culpa em cima de mim — gritou ela... para a sua mãe, obviamente.

Você está me dizendo isso porque nunca pôde dizê-lo a sua mãe. — Ela riu, e acrescentou: — Provavelmente, neste momento, em algum lugar nos Estados Unidos, Eileen está gri­tando com alguma pobre mulher porque nunca gritou comigo. Ela apenas...

O quê?

Ficou emburrada. Resmungou. Quebrou pratos. Bateu portas. Fingiu que estava grávida, de maneira que a casa inteira ficou em suspense durante semanas... todo esse tipo de coisas. Você sabe.

Você está enganada. Eu disse tudo isso. Eu disse cen­tenas de vezes. Mas aquele bando, eles são impenetráveis. O que eles são é o que têm de ser. E o que eles são está certo. Não consigo imaginar minha mãe, nem por um minuto, parando para se perguntar se poderia estar errada. Toda a sua vida de merda, sem fazer nada, se preocupando e se preocupando e se preocupando com detalhes, detalhes.

Em criar você e não fazer disso uma tarefa malfeita — insistiu Kate.

Oh, não, eu já disse. Não, isso não me convence.

De qualquer maneira — Kate se sentia agradavelmente carregada por ondas de raiva —, não vou aceitar o peso da responsabilidade pelo seu rompimento com Philip.

Quem disse que você é responsável? — gritou Maureen. — Quem? Eu não. Por que tem de ser sua a responsabili­dade? Por quê? Por que tem de ser, sempre? Não serei como você... é minha responsabilidade dizer que não. Não serei como minha mãe. Vocês são maníacas. São loucas.

Sim — disse Kate. — Eu sei disso. E então você não será. Muito boa sorte para você. E em vez disso o que é que você vai ser?

As lágrimas voltaram à voz da moça e ela ficou quieta tentando afastá-las.

Que é que vamos fazer? O quê? O que é importante é que eu acho que amo Philip. — Kate devia ter estado olhan­do para alguma coisa de que não se dera conta, pois Maureen insistiu: — Sim. Não é a primeira vez que amo alguém. Já estive apaixonada antes. É isso mesmo. Amor. É por isso que as pessoas se casam. Estive apaixonada antes e sei. Também não quis casar-me com ele. Não vou fazer parte daquele bando.

Qual? — perguntou Kate, tendo uma boa noção do que era.

Para começar, o apartamento: Maureen pagava o aluguel, e Maureen não trabalhava para ganhar dinheiro. E tinha aquela confiança descuidada, quase insensível, em si mesma, que é atributo de uma classe. Por outro lado, uma maneira de falar e aquela mesma confiança em si mesma podem ser representadas, e com bastante sucesso, por vagabundos e aventureiros.

A aristocracia disse Maureen. Não, não a minha família. A minha família é apenas uma boa família, sabe, nada de especial. Mas fui pedida em casamento pelo filho mais moço de uma família aristocrata, William. Uma ótima pessoa. Tão bom quanto Philip, quando não está sendo tão idiota... oh, entenda-me, digo idiota porque não quero saber, mas idiota não é a palavra para o que Philip será quando realmente tomar impulso. Sei disso. Mas o que ele se tornou, de repente, você sabe, essa história de omeletes-e-ovos, isso é coisa bem re­cente. Antes, ele era exatamente como todo mundo, mas uma pessoa em quem se podia confiar, não-engajado. É aterrori­zante gemeu ela, as lágrimas escorrendo. O que é que acontece com eles? Mas eu teria sido rica e tudo com William, e eu o recusei por causa daquele grupo dele, sabe, eles nunca vêem nada do que acontece fora do pequeno paddock deles. São apenas agradáveis e gentis dentro do paddock. Assim, não vou me casar com Philip depois de ter recusado William. Mas eu os amo, amo sim, amo sim, amo sim. Quando me apaixonei por William, pensei: "Ora, isso é estranho... então você quer um homem forte, é?" Mas agora eu sei. Primeiro, William, e agora, Philip. Não amo Jerry. Não amo os outros. Não consigo levá-los a sério. Quero dizer, o meu consciente consegue, mas alguma coisa em mim não. É verdade, não é? As mulheres podem dizer o que quiserem, mas... Jerry tem sido meu companheiro há anos. Ele é um outro igual a mim, sabe? É filho de um general, acredite se quiser. Abandonou tudo aquilo, como eu. É um vagabundo e faz meditação. Sabe como é. Com ele isso é um emprego de tempo integral. O álibi perfeito de tempo integral. Oh... ele é muito bacana, muito bacana; por que o critico? Por acaso sou melhor do que ele? Não faço nada, e vivo à custa do meu pai. Mas, se tiver de escolher entre Jerry e Philip, será sempre Philip. Mas não tenho de escolher. Isto já é alguma coisa.

De qualquer maneira disse Kate —, tenho coisas a fazer. E voltou para o telefone, cancelando compromissos, dizendo aos vizinhos que os planos haviam mudado, e suspendendo a encomenda de verduras que certamente já haviam saído das prateleiras, a mais rápida das eficiências, fazendo com que voltassem para lá.

Maureen ficou sentada em silêncio, apoiando a cabeça, que obviamente doía, na parede. Observava Kate.

Kate enviou o seguinte telegrama para os Estados Unidos: "Sinto muito. Já tinha planos feitos voltar fim de outubro". Ia acrescentando: "Sugiro Eileen assuma comando", mas viu Mau­reen sorrir. Terminou com "Todo o meu amor, Kate", acredi­tando que provavelmente isso seria sincero, no fim de outubro.

Para Tim, telegrafou dizendo: "Sinto muito, impedida cuidar de você, casa aberta a partir depois de amanhã".

Para os Enders o telegrama dizia: "Deixar chaves Mary Finchley, meu planos mudaram".

O dia foi passando. Volta e meia uma ou outra fazia um pouco de chá, ou de café. A campainha da porta tocou, o tele­fone tocou, elas não tomaram conhecimento.

Num determinado momento Kate disse:

Acabei de me lembrar, sonhei com você uma noite dessas. Sonhei que você era um passarinho amarelo-brilhante, voando por esse apartamento, que era uma espécie de gaiola, e você ficava entrando e saindo de cantos escuros onde raios de luz ofuscante caíam. Então as duas olharam para os focos empoeirados dos pontos baços onde o sol batia, aqui e ali no ar subterrâneo daquele cômodo, e riram. E você repetia sem parar: "Não, não, não, não, oh, não, eu não vou".

Continuaram a rir. Começaram a ficar histéricas, agitando-se nas cadeiras enquanto as lágrimas escorriam.

Temos de parar com isso disse Kate.

Sim. Daqui a um minuto.

Tenho um sonho contínuo... não sei como explicar. É um sonho com episódios, continuação do anterior, sabe?

Oh, sim, eu gosto desses.

Sim. Bem. Quer que eu lhe conte? Acho que talvez isso seja o que estou fazendo, o que realmente estou fazendo nesse momento. Sabe, nesse momento da minha vida, desde o princípio do verão. Então houve um silêncio prolongado, durante o qual Maureen esperou, atenta. Simdisse Kate afinal. Relembrando... aquele período, sabe, desde aquela tarde, a tarde em que tudo mudou... foi como um ribombar de trovão ou um aviso ou coisa assim, eu saí, saí da minha vida, desde então o que acho que realmente tem acontecido é o meu sonho. Não têm sido, de forma alguma, as outras coisas. Ou se têm... — Ela parou de novo, esperando que o pensamento se completasse. Se têm sido, todas as coisas que aconteceram no mundo exterior, o trabalho que fiz, e as viagens, e o caso... tive um caso amoroso, se é que se pode chamá-lo assim, foi realmente muito idiota... bem, tudo aquilo, sim­plesmente. . . alimentou o sonho. Sim. Era o sonho que esta­va... alimentando-se da minha vida diária. Como um feto. Só agora foi que vi isso.

Então continue, conte-me.

Kate contou-lhe tudo a respeito da foca, começando como um conto de fadas ou uma fábula: "Uma mulher estava em uma encosta rochosa escura, num país do norte, e viu alguma coisa estendida entre as rochas. Pensou que fosse um projétil, um projétil grande e maligno. Viu então que era uma foca quase adulta, e que estava tentando arrastar-se e erguer-se atravessando todas aquelas rochas. Em direção ao mar. Tinha de alcançar o mar, aquilo é que era importante". Ela parou. Havia uma coisa falsa. Era porque estava querendo fugir de alguma coisa, contando o sonho na terceira pessoa. Estava tentando proteger-se da força do sonho através do uso de uma mulher...ela...

E então eu vi que a pele da pobre foca estava completamente seca e áspera e que os bigodes estavam quebrados e espigados, e derramei água...

À medida que ia falando, deu-se conta de que noite após noite sonhava com a sua jornada com a foca, e que acordava com freqüência, todas as noites, após estágios do sonho, mas que os esquecia quando a manhã chegava. O sonho havia recentemente não conseguia pensar numa maneira melhor de dizê-lo tornado a voltar para a escuridão, além do seu alcan­ce, exceto por lampejos. Por quê? Por causa do tormento da­quele estágio da história? Ou porque a sua vida acordada na­quele momento, naquele apartamento com Maureen, estava errada, não estava alimentando o sonho com uma força que lhe permitiria lembrar-se? De qualquer maneira, o que ela de fato se lembrava era da solidão e da dificuldade da sua luta para seguir em direção ao norte na escuridão fria. Noite após noite, ela arrastava e puxava aquele pobre animal de olhos pacientes através de um frio terrível que penetrava e consumia ambas. Tempestades de neve, cheias de pedaços pontudos e cortantes de gelo, caíam sobre elas. Em volta de seus pés e roçando o rabo e as nadadeiras da foca, que ela não era bastante alta para manter fora do chão, rochas pontiagudas entalhavam a neve, e as pontas de gelo quebrado cortavam como facas. Embora não estivesse completamente escuro, ela nada conseguia ver. Às vezes sentia o que parecia ser uma pressão ou presença perto dela, e sabia que eram árvores. Várias vezes fora de encontro à resistência de galhos pesados, que se agitavam a sua volta, arranhando-lhe o rosto, tentando alcançar seus olhos e os olhos da foca, soltando seus chuveiros gelados de neve. Não sentia mais os pés. Suas mãos agarravam a foca que escorrega­va e deslizava.

Não sei a que distância o mar está. Ou se há um mar. Estou cheia de medo de no fim estar andando em direção errada. Talvez nunca encontre o mar aberto de que a foca precisa. Talvez seja tudo gelo e neve e escuridão sempre, para sempre, e não haja fim para tudo... talvez eu e a foca caiamos na neve para nunca mais nos levantarmos. Mas por que eu haveria de estar sonhando tudo isso? Qual seria o objetivo de um sonho que tivesse de acabar comigo e a foca morrendo, apenas morrendo, depois de todo aquele esforço?

Quando Kate acabou, e se sentou em silêncio, Maureen, que estivera ouvindo como se estivesse ouvindo uma história antiga, levantou-se de um salto, dizendo:

Sabe de uma coisa? Acho que deveríamos comer al­guma coisa. E também tratar de nos arrumarmos um pouco. Olhe só para nós. Estamos as duas uma coisa horrível.

Cortou pão e passou manteiga, trouxe um prato de frutas e outro de queijo, apanhou uns dois vidros de comida de bebê. Fizeram a refeição em silêncio. Assim que terminaram, Maureen disse:

Acho que o que você tem de fazer é acabar o seu sonho.

Sim, mas eu não posso fazê-lo acontecer.

O que eu quis dizer é que você tem de acabar o sonho antes de voltar para a sua família. Não deve voltar antes que tenha terminado.

Depois, ela tomou banho, penteou o cabelo, se vestiu. Kate fez o mesmo, finalmente amarrando o cabelo, sem jeito e intratável, para trás com uma fita, como uma colegial, mas pelo menos não lhe caía no rosto. A faixa grisalha lhe dividia a cabeça em duas partes do alto do crânio até a testa. "Oh, não", Kate se ouviu murmurar, enquanto olhava para o grisalho, encorajando-o a crescer depressa, a se espalhar, a banir a tintura com a verdade... "Oh, não, não, nunca mais, eu devo ter estada maluca."

No meio da tarde a campainha da porta tocou durante tanto tempo que Maureen atendeu. Lá estava Philip. Todo ênfase silenciosa, mas aparentemente sem recriminações, ele ficou de pé no vestíbulo, olhando para Maureen e, para além de Maureen, para Kate, na cozinha.

Quero que vocês duas venham comigo. Quero que vejam uma coisa.

Para quê?

Por favor. Não é pedir muito. — A atitude dele, de início, não parecia muito acusadora porque o fato de estar ali era uma recriminação. Aquilo já estava claro. Estava de pé bem diante de Maureen, cheio de determinação, as mãos soltas ao longo do corpo, os olhos pressionando os dela. Com as roupas com feitio de uniforme, parecia um soldado.

Maureen estava sendo atraída em direção a ele, por causa do seu domínio deliberado. Ao mesmo tempo, sentia repulsa: ficou ali, cheia de indecisão, pálida, quase doente. Afinal se virou para olhar para Kate, que sacudiu a cabeça. Mas Philip ordenou imediatamente:

— A senhora também. Vamos, Sra. Brown. Há uma coisa que quero que vocês duas vejam.

Maureen encolheu os ombros e obedeceu. Kate a seguiu. A porta aberta deixava à mostra folhas que se deixavam levar por um vento poeirento. As duas subiram a escada e dirigiram-se para o carro, que era um Mini-Cooper. Tinha decalques por todos os lados: Compre produtos ingleses. Apoie o seu país. Seu país precisa do seu apoio. Apóie a Inglaterra, não o caos. Faça o que puder. Seja inglês.

O carro parecia ter sido ornamentado para um cortejo, ou talvez para um musical sobre os anos 30 — mas a respeito de que tinha sido o negócio todo naquela época, Japão, não era? Hong Kong?

Philip abriu a porta de passageiro, da frente, mas Mau­reen tentou passar para o banco de trás. Philip segurou-a pelo ombro e disse-lhe:

Não, quero que você se sente ao meu lado. — O tom da voz dele era suave e autoritário, mas isso e a sua atitude compunham uma caricatura de uma atitude autoritária suavizada pela autoconfiança.

A cena, o carro, tudo estava se tornando gradualmente uma charada ou um happeninge, quando se acomodou ao seu lado, Maureen disse:

Mas isto é tão idiota. Que é que estou fazendo aqui? Por que foi que viemos, Kate?

Confie em mim — disse Philip, numa voz radiante de sinceridade. — Confie em mim, Maureen.

Oh, pelo amor de Deus! — disse Maureen, mas ape­sar de tudo as duas estavam no carro, e Philip dirigia, des­cendo para Edgware Road.

Um tráfego comum os rodeou até atingirem o Hyde Park Corner, onde se tornou visível uma mudança. Havia carros com decalques como o de Philip por toda parte, e grupos de pessoas de todas as idades, sob grandes bandeiras da Liga Britânica de Ação, erguiam cartazes e slogans daquele mesmo gênero. As pessoas nos carros faziam sinais com o polegar para cima e, num deles, uma mulher gritou para um cartaz sobre a calçada, que dizia "Apóie o nosso país":

É uma demonstração fantástica, continuem assim.

Prosseguiram, passando pelo Palácio de Buckingham, onde a multidão habitual vagava despreocupadamente, apenas para respirar o seu ar, e dali seguiram para o Embankment. Ali, por toda a extensão das calçadas formavam-se longas filas; centenas, milhares de pessoas. Havia o mesmo número de cartazes que de pessoas, mas eram feitos em casa, amadorísticos. A única bandeira daquele tipo feita por profissionais, especialmente con­feccionada para definir uma causa ou um evento para o público, dizia: "Dê de comer aos que têm fome à sua porta. Alimente o povo do seu país". Mas em quadrados de cartolina, até em pe­daços de papel comum para datilografia, havia um milhar de apelos individuais diferentes, garatujados com crayonse tintas coloridas... e até batidos a máquina: "Querem que morramos de fome em silêncio? Fora das vistas, fora da consciência!... Nós não comemos hoje. E você?... Acabou de fazer uma boa refeição? Você tem sorte... Você tem emprego? Eu não tenho".

Philip volta e meia lançava olhares furtivos para Maureen, e parecia satisfeito consigo mesmo. Ia dirigindo tão devagar quanto podia.

À primeira vista as pessoas que esperavam não pareciam estar morrendo de fome. Pois esses eram os pobres que não morriam de fome, ou não dramaticamente. Viviam nos limites da fome, mantinham-se vivos com pensões, rendas e comida distribuída gratuitamente, que nunca eram, na realidade, o su­ficiente, e das visitas dos furgões do Fundo do Socorro Social do Governo. Mas, se se olhasse bem de perto, a indiferença, a apatia da penúria tornavam-se aparentes. Estes eram sintomas, é claro, familiares por causa das imagens da televisão, mas sinto­mas facilmente associáveis com outros países.

Homens, mulheres, crianças espalhavam-se por ali, sob as árvores que se iam amarelando, enquanto as folhas esvoaçavam em volta deles. E, como se tinha de perguntar o que havia de diferente a respeito daquela demonstração, a resposta vinha — não com facilidade, pois já fazia muito tempo desde que aquele fenômeno fora visto — e a diferença era que os grupos eram de famílias, mãe, pai e seus filhos, não sindicatos, partidos políticos ou grupos de pressão. As famílias tinham saído de mi­lhares de casas de Londres, e agora estavam ali, numa acusação silenciosa, pelas ruas, retribuindo os olhares dos bem-alimentados e dos que estavam — pelo menos por enquanto — em se­gurança, que olhavam para eles. Mas os observadores não demonstravam nem confiança nem superioridade, longe disso, í uma vez que todos sabiam como era fácil dar o passo que levava para o outro lado, para aquelas fileiras de desesperados. Havia muita gente na calçada do outro lado da rua, olhando. Chegava mais gente a cada minuto. A notícia se tinha espalhado pelas ruas próximas e as pessoas estavam vindo para ver seus pró­prios medos personificados ali.

Philip continuava dirigindo o mais devagar possível. Esta­va ficando inebriado com o que lhes mostrava: parecia brilhar. Maureen, por seu lado, ora empalidecia, ora corava violentamente, e se inclinava para a frente a fim de olhar para as pes­soas famintas e em seguida para ele, com incredulidade, raiva, ódio... e, é claro, atração.

Certo — disse ela. — Muito bem. Cá estamos nós. Ótimo. E agora, que é que você quer que eu faça? Que saia e distribua os meus trocados? Que faça o milagre da multi­plicação dos pães e dos peixes? O quê?

Eu queria que você visse — disse Philip.

Ele estava até tremendo de exaltação, de determinação. O corpo bastante sólido e os olhos firmes e honestos haviam desaparecido, dando lugar ao aspecto campesino dele, com as maçãs rosadas do rosto, tudo absorvido pela sua transformação. Aquilo que estava ficando mais forte a cada minuto, sua necessidade de que Maureen estivesse do seu lado e que o apoiasse, podia ser sentido à medida que a ia envolvendo. Ela também estava tremendo, mas afastou-se dele o máximo que podia, encolhendo-se no canto do banco. Philip percebeu e disse:

Está bem, não pense que não compreendi, você não me quer, não sou burro, não pense que sou, só queria que você visse.

Aquelas frases, como as palavras da mulher do carro que tinha gritado "É uma demonstração fantástica, continuem assim!", soavam como os slogans nos cartazes.

Haviam percorrido meio quilômetro, através das longas filas de gente desesperada, e diante de calçadas repletas de espectadores hipnotizados.

Que é que há com você? — perguntou Maureen. — Bem, o que é? — Ela também parecia falar como se estivesse manufaturando palavras cujo destino era serem garatujadas num cartaz ou coladas numa janela de automóvel. — Isso tudo simplesmente acabou de lhe ocorrer ou coisa assim? Milhões de pessoas têm morrido de fome todos os anos, há anos. Mi­lhões e milhões de pessoas. Milhões de crianças crescem con­denadas a serem idiotas, abobalhadas ou mentalmente retar­dadas porque não tiveram a alimentação correta. Todo mundo sabe disso. Assim, por que, de repente, nos obriga a vir até aqui? Não se pode ligar a televisão sem ver algo desse gênero acontecendo em algum lugar. Estamos resolvendo nossos pro­blemas de superpopulação deixando que as pessoas morram... Que se fodam, de que adianta? — concluiu ela furiosa e exas­perada, oprimida pelo aspecto propagandístico e demagógico de suas próprias palavras.

É aqui — disse Philip, que ouvia enquanto seu rosto se contorcia numa expressão de nobreza e dedicação. — É aqui no nosso país. Não num outro lugar qualquer. Não me importo com os outros lugares. Mas me importo com o meu país. Com a Grã-Bretanha.

Oh, merda — disse Maureen dando as costas para as intermináveis filas de pessoas. Agora, porém, não tinha outro lugar para olhar senão para os espectadores. Assim, desviou também o olhar da direção deles, fixando-o à sua frente. Conti­nuaram seguindo, entre os carros que iam todos a pouca veloci­dade, cheios de gente que observava.

Havia carros da polícia dispostos em pontos estratégicos. Mas os policiais não saíam dos carros. Ficavam sentados onde estavam, espectadores junto com o resto da população que ainda estava empregada ou tinha fortuna particular. Ou jóias, ou quadros, ou terras.

Nós não queremos caridade, queremos trabalho. Queremos que nos dêem trabalho. Queremos aquilo a que temos direito. Trabalho e comida.

Um homem de rosto emaciado saiu do meio da multidão de gente com cartazes e começou a fazer um discurso:

Enquanto morrermos de fome em silêncio atrás de quatro paredes, estará tudo bem, não é? Vocês não se inco­modam com isso! Mas estamos aqui, e aqui vamos ficar.

Dois policiais saltaram de uma camioneta, fechando as portas rapidamente. Atravessaram a rua, indo até o orador, e começaram a sacudir a cabeça e a agitar o indicador como babás a uma criança malcomportada: parecia que discursos não eram permitidos.

Mas o homem saltou para os ombros de dois de seus amigos que levantaram as mãos para apoiá-lo enquanto ele se equilibrava com as pernas separadas: por um momento pareceu que aquilo ia ser o início de algum espetáculo circense uma pirâmide humana. Ele gritou:

Aqui estamos. E passaremos fome em público, não às escondidas. Até morrermos, se preciso for. Foi por isso que viemos. Passaremos fome até morrermos onde vocês nos possam ver.

Os policiais ficaram ombro a ombro, irresolutos, olhando para cima, para o orador. Suas simpatias pessoais estavam inteiramente com os manifestantes: lançavam olhares e sorrisos para a multidão.

Uma camioneta de televisão apareceu e estacionou. Ho­mens saltaram depressa e saíram correndo pela rua em meio ao tráfego, com as câmaras erguidas diante de si. As notí­cias daquela noite estavam passando pelo processo de serem manufaturadas.

Certamente não vão permitir que fiquem aí, vão? perguntou Maureen. Estava furiosa, como se quisesse varrer os manifestantes para fora de vista, ou que a polícia o fizesse para ela. Agora, seu rosto tinha uma expressão de raiva e estava avermelhado: as lágrimas escorriam pelas superfícies inchadas das maçãs do rosto. Suas lágrimas davam satisfação a Philip. Sabia disso e lutava para controlá-las. Quanto mais lutava contra o que sentia, o que quer que fosse, principalmente raiva ao que parecia, mais ela se afogava na emoção. Mas agora parecia que

Philip estava satisfeito, e manobrou o carro na direção oposta ao Embankment, tomando o caminho de casa.

Maureen deu as costas para ele e ficou olhando por uma janela onde agora não se via um vestígio sequer de fome ou problemas semelhantes. Philip sorria. Parecia sentir, ele mesmo, que aquela não era uma reação digna de admiração, mas cada vez que lançava um olhar para Maureen não conseguia controlar-se: o sorriso vitorioso tornava a surgir e tinha de lutar para afastá-lo.

Muito bem disse Kate. Agora, diga-nos o que você se propõe a fazer a respeito de tudo isso.

Oh, não seja idiota, Kate, você pode ver muito bem que ele não tem idéia, exatamente como todo mundo.

Nós vamos colocar este país em primeiro lugar, para variar um pouco.

Oh, mas como é que você pode ser tão medíocre?

Aquela palavra o ofendeu, e ele retorquiu num tom ir­ritado:

Nós saberemos como agir, você verá.

É incrível disse Maureen, rindo, chorando, batendo com o punho no encosto do banco. Parecia ter enlouquecido. Tudo que ele diz é incrível. Inacreditável. Mas vocês as dizem, Philip. Todos vocês, não é só você. Vocês todos dizem umas porcarias de umas coisas tão idiotas. Eu realmente não consigo acreditar que estejam falando sério.

Kate, aquela que punha panos quentes, a mediadora, a confortadora da família para todas as finalidades, comentou:

Você nunca diz algo de realmente concreto, Philip, é isso que aborrece Maureen.

Lógico, é claro que não diz gritou Maureen. Seu idiota de merda gritou para ele. Será que não con­segue ver o que está diante dos seus olhos? Não, não consegue. É claro que não.

Temos de pôr nossa casa em ordem disse Philip prontamente, e com determinação.

Era evidente que aqueles dois continuariam, uma histé­rica, o outro estupidamente confiante, enquanto estivessem juntos, capazes de repetir apenas chavões de decalques de janelas ou incoerências.

Mas por sorte chegaram à avenida arborizada, ao canal com seus barquinhos agradáveis, ao apartamento de Maureen. Ele parou o carro.

Não vou descer — disse.

Maureen saltou. Kate a seguiu. Maureen ficou parada olhando com expressão de desamparo para Philip, que a olhava fixamente. Ondas de atração fluíam de um lado para outro. Então Maureen disse:

Que se dane — e correu para casa, tropeçando nos saltos altos.

Adeus, Sra. Brown — disse Philip, formal, correto, triunfante, e deu partida no carro.

No apartamento, Maureen ligou a televisão. Esperaram juntas pelo noticiário. Tinha havido um outro terremoto na Turquia. Uma conferência sobre detritos atômicos. Um relatório sobre as deliberações de um comitê da Alimentação Mundial, no Chile. Então, um breve relato sobre a manifestação no Embankment. A câmara percorreu as fileiras de gente, mas bas­tante depressa, mostrando as bandeiras e cartazes, detendo-se sobre: "Vocês não se incomodam se nós morrermos de fome onde não puderem ver". Um furgão distribuía sopa e pão entre os manifestantes. Um orador — o mesmo homem de rosto emaciado e furioso — gritava: "Não aceitem, não aceitem... é apenas para fazer com que nos calemos, é só". Mas as freiras se inclinavam sobre as crianças, que eram levadas a formar filas ordenadas por seus pais, entregando canecas de plástico com sopa, e pão. Apareceu um outro furgão do Fundo de Socorro Social do Governo. Os grupos se dissolviam e se reorganizavam, fazendo filas para receber a comida. O orador foi levado embora por dois policiais, uma prisão feita com gentileza, a câmara mostrou os rostos cheios de compaixão dos policiais, que puxa­vam os braços do homem para trás, enquanto ele gritava: "Morram de fome... resistam... é melhor resistirem e morre­rem de fome aqui, na cara de todo mundo, do que atrás de portas fechadas, como animais..." Os policiais o ajudaram a subir os degraus do furgão da polícia, a porta foi fechada, o carro se afastou.

"E agora a previsão do tempo..."

Assim que o noticiário acabou, Maureen tomou banho e trocou de roupa, pondo um vestido sério, de linho castanho- escuro — o correspondente feminino da roupa de Philip. Ela, após examinar-se no espelho do vestíbulo, disse a Kate:

Eu quero um uniforme, não? Provavelmente estou louca por um. Bem, não vou sair! — Correu para o quarto e, quando voltou, estava com um conjunto de roupas e jóias postas ao acaso. Disse para Kate: Vou fazer um jantar para você.

Passaram-se umas duas horas antes que chamasse Kate para a cozinha, onde preparara corações de alcachofra e aba­cate, como entrada, depois vitela recheada e espinafre, além de uma salada, queijo, um pudim. Tinha saído para comprar os ingredientes, tendo tomado um táxi para ir até o mercado que estava aberto. Tinha gasto muito dinheiro. E também ha­via vinho branco, que ela colocara no gelo.

As duas comeram devagar, saboreando a refeição, pen­sando nas pessoas lá no Embankment, e nos milhões que elas representavam.

No dia seguinte, Maureen disse que queria comprar um vestido: tinha as roupas atiradas em montes espalhados por todo o quarto. Saiu atrás das lentes muito escuras de um par de óculos, à procura de uma nova identidade, ou máscara. Ou um uniforme? Era capaz de voltar com qualquer coisa que quisesse: tanto poderia estar vestindo um hábito de freira como uma roupa de dança do ventre... inveja, oh, sim, aquilo era inveja, sim. Maureen podia escolher como lhe aprouvesse, vestir-se de cigana ou como um rapazinho, ou como uma matrona por um dia: era uma espécie de liberdade. Será que Maureen teria ficado sentada numa varanda, durante um ano, fazendo o papel da mulher submissa do Mediterrâneo, com o avô como um tirano carinhoso e uma velha como ama, ainda que sendo uma submissão perante os outros, movida apenas pelo tato, ou mesmo não passando, em parte, de uma brincadei­ra, mas que acabara demonstrando não ser brincadeira nenhuma, pois desde então a sua vida a vida de Kate não havia provado aquilo? Não, Maureen não o faria, ela não podia; havia ultrapassado até a simulação de submissão; sua natureza, o que ela era, o proibiria. Será que aquilo era verdade? Mesmo? Quando usava um vestido de noite preto de renda, dos idos de 30, saído de um baú, decotado até a cintura nas costas, com os lábios pintados de vermelho e cachos nos cabelos, ou, de manhã, um vestido estilo Jane Austen, com mangas justas com ombrei­ras, que mal lhe permitiam os movimentos, será que aquilo não era provocado por uma certa nostalgia? Se era, não du­rava mais que uma noite ou a metade de um dia. Assim, se a garota vestia as roupas das mulheres oprimidas do pas­sado, por necessidade de ser como elas porque ser ela mesma era um esforço grande demais? —, então nunca era por muito tempo, e ela se permitia, logo a seguir, uma outra mudança de estado de espírito. Por que ela, Kate, usava palavras como se permitia: por que durante anos as suas fantasias pessoais tiveram de ser postas em surdina de acordo com o que a família podia suportar nela? Nada havia no mundo que a impedisse de sair imediatamente, e comprar as suas fantasias, e usá-las ali, no apartamento de Maureen. Decidiu que era o que faria.

Mais abaixo na rua, um prédio de esquina estava sendo construído em direção ao céu, em linhas arrojadas. A parte inferior desse edifício estava pronta: encaixava-se com exatidão nos limites do terreno, sem nenhum espaço livre. Quatro ou cinco andares já estavam como seriam, exceto pelo fato de que as janelas tinham rabiscos feitos com giz. Daí para cima come­çava a desordem: era como se naquele ponto a construção tives­se sido interrompida. Homens andavam em plataformas sus­pensas lá no alto, balançando baldes, empunhando trolhas, manipulando caixotes. Também havia homens trabalhando ao nível do chão, preparando as coisas que seriam içadas. Kate se deu conta de que estava parada imóvel, observando, e de que já havia alguns minutos que estava assim. Os homens não tomaram conhecimento da sua presença.

O fato de não o fazerem, de repente, a fez ficar com raiva. Afastou-se até ficar fora de vista, e ali tirou o casaco de Maureen —, exibindo o vestido escuro que lhe ficava bem. Prendeu o cabelo de maneira extravagante, com um lenço. Então voltou, passando diante dos operários, os quadris conscientes de si mesmos. Uma tempestade de assovios, gritos, convites. Fora de vista novamente, na direção oposta, fez a sua pequena transformação, e voltou por onde viera: os homens lhe lançaram olhares distraídos, não a viram. Estava tremendo de raiva. Era uma fúria, parecia-lhe, que fora reprimida durante toda a sua vida. E era o início de algo pior, uma sordidez à qual não queria responder, pois estava repetindo sem parar: "Isto é o que você tem feito durante anos e anos".

Ela tornou a fazer o trajeto, como objetivo sexual, e viu que uma moça, vestida como uma boneca holandesa, estava parada numa esquina do outro lado, observando. Amplas saias amarelas, uma jaqueta vermelha bem justa, o cabelo louro ondulado, uma mancha de um rosa-vibrante em cada maçã do rosto, grandes olhos azuis.

Kate chegou ao lado de Maureen e disse:

E é nisto que se resume tudo.

Maureen piscou ós olhos, erguendo e baixando os cílios negros, espessos sobre as maçãs do rosto, e submeteu-se à provocação enquanto os homens gritavam e assoviavam. Do outro lado, fora do ângulo de visão de Kate, esperou. Kate fez o trajeto sob a forma invisível. Enquanto o fazia, percebeu que estava, mais uma vez, cheia de uma vontade louca de levantar a saia e mostrar-lhes o traseiro, como as mulheres tchecas tinham feito para insultar as tropas russas durante a invasão. Teria gostado de escarrar na cara deles, ou de urinar, em público, como uma vaca, na frente de todos eles. Tudo isso nada tinha a ver com o que estava pensando, que eram os seus pensamen­tos habituais de compaixão cuidadosamente comedidos por homens que faziam aquela espécie de trabalho, e tinham de ficar satisfeitos por conseguirem obtê-lo. Pensava, também, que um animal, quando deixa o traseiro exposto a um outro, está ofe­recendo subserviência, derrota, obediência, que era, provavel­mente, o que as mulheres tchecas estavam fazendo, sem sabe­rem que o faziam. Na realidade, tinham estado dizendo: "Será demais para nós?"

Maureen, ao ver o seu rósto, tomou-lhe o braço: estava tremendo. Em seguida, disse-lhe num tom de repreensão hesitante, bem-humorado:

Não, não fique assim, não faça isso, não é do seu feitio.

Não? É nisso que se resume tudo. É só isso. Anos e anos disso.

Voltaram para o apartamento. Maureen ofereceu chá, mas Kate sacudiu a cabeça, indo depressa para o seu quartinho frio debaixo da terra. Enfiou-se debaixo de um monte de cobertas e ficou deitada, toda encolhida em silêncio, olhando para a parede. Dormiu e sonhou, mas não alcançou o sonho da foca, o sonho foi todo com Maureen, o passarinho amarelo-vivo, que estava numa gaiola cantando: "Não, não, não".

Estava escuro quando acordou. As luzes estavam acesas no apartamento inteiro. Maureen, sentada na cozinha, não mais parecia uma boneca, mas sim uma garotinha numa linda cami­sola vitoriana, toda trabalhada em nervuras, babados, rendas e bordados. Estava comendo flocos de milho com creme. Preparou um prato idêntico para Kate, em silêncio.

Mais tarde, foram para o quarto de Maureen, que ligou a vitrola, mas diminuiu o volume em atenção a Kate. Senta­ram-se nas almofadas e Maureen pintou as unhas dos pés e das mãos com um esmalte rosa-berrante. Kate bebeu um pouco de vinho. Maureen fumou um pouco de maconha, e nada fizeram. Parecia que estavam esperando. Que Kate acabasse o sonho?

Os dias começaram a passar muito mais depressa, um após outro, todos iguais. Do outro lado de Londres, a casa de Kate estava aberta novamente, sua família já havia voltado, sua vida continuava, mas ela não estava lá. Como haviam feito tão freqüentemente com ela, enviava-lhes breves mensagens: "Sinto muitíssimo, muito ocupada, avisarei antes de chegar". E, uma vez, um telegrama: "Estou me divertindo muito. Breve estarei com vocês". Ela se sentia infantil e má quando enviava tais mensagens, mas era uma coisa que tinha de fazer.

O telefone quase não tocava mais. A campainha da porta, entretanto, soava um bocado. Uma vez, um rapaz chegou à porta no momento exato em que Maureen ia saindo, e ela lhe disse:

Sinto muito, Stanley, volte numa outra ocasião. Eu tenho de ir tratar de um negócio.

Maureen falou a respeito de Stanley. Ela o classificava como estando mais na categoria de Philip e William do que na de Jerry: trabalhava numa organização qualquer que tratava de gente pobre e com más condições de habitação, era de esquerda, à moda antiga, que agora parecia tão irrelevante, provavelmente quereria casar-se com Maureen, se ela lhe desse tempo de ver os atrativos da idéia. Tinham dormido juntos, satisfatoriamente. Mas não estava apaixonada.

Que é que há de errado comigo? O que é? É simples­mente que sinto o tempo todo que é tão terrivelmente irre­levante. Quero dizer todo esse trabalho de assistência social, a salvação da humanidade... tudo isso. Sei que sou insensível. Sou má. Já me disseram isso com bastante freqüência. Mas não adianta, não consigo sentir que seja importante. William ainda se sente obrigado para com os foreiros... não que eles sejam muitos, mas para com os poucos que restam. Ele esbanja dinheiro com caridade. E há Philip... bem, ele vai quebrar ovos, se é que já não começou, mas como é que ele pode acreditar nisso, como é que pode? Eu acho que ele é louco, mas talvez eu é que seja. Stanley. Ele é o melhor deles, do ponto de vista de trabalho. O que ele faz é bom. O tempo todo. Mas, quando estou com ele, penso: "Isto não é a coisa importante, não é o que é importante, não é". Então, está bem, você consegue dar moradia a trezentas pessoas... e nesse ínterim? Ele não consegue compreender isso de maneira nenhuma, e prova­velmente está certo. Que é que vou fazer, Kate? Por que é que sou assim? Philip diz que fui criada para não pensar em nin­guém a não ser em mim mesma. Mas isso não é verdade. Passei um ano inteiro trabalhando com Stanley, sabia? Pois é, passei. Dividi um apartamentozinho imundo com outras cinco pessoas e trabalhava noite e dia para arranjar tetos para gente pobre. Durante todo o tempo eu estava pensando: "Mas isso não é o importante. O que é?"

Não sei, como é que eu vou saber?

Kate começou a contar coisas do seu passado. Não con­seguia lembrar-se de como haviam começado com aquilo, mas logo era assim que passavam os dias. Suas lembranças não eram do tipo de coisas que a tivessem impressionado antes como sendo importantes ou mesmo interessantes: estava avaliando-as agora através das reações de Maureen. Parecia quase que se lembrava das coisas por causa do interesse de Maureen — da necessidade de Maureen? Era Maureen quem estava fazendo a escolha?

Por exemplo, uma vez, há muito tempo, quando só tinha duas crianças, Stephen e Eileen, duas coisinhas de cerca de quatro e dois anos, Michael tinha viajado para algum lugar, e ela os levara de carro para o campo. Não conseguia lembrar-se para onde, mas...

Era o campo, de verdade, sabe, disso eu me lembro, não vi ninguém o dia inteiro. Estava numa floresta e havia um riacho.

Sentara-se na margem com as duas crianças e tinham feito pequenas coisas durante o dia inteiro: examinado folhas, observado borboletas, visto a água ondular-se sobre os seixos. As crianças gritavam e riam enquanto o sol, penetrante através das folhagens espessas que se agitavam na brisa, fazia uma renda dourada sobre os seus corpos nus.

Maureen queria ouvir cada pequeno detalhe daquele dia longínquo, que tinha felicidade, de forma que mesmo agora o seu encanto ainda era forte o bastante para iluminar aquele apartamento escuro. Pois o outono estava chegando, um outono úmido, e era chuva e não sol o que se via do lado de fora das janelas de Maureen.

E Maureen pediu que repetisse a narrativa, de forma que Kate começou ainda mais para trás naquele dia; contando como tinha acordado cedo e vestido as crianças — Eileen usava um vestido amarelo de algodão, com margaridas bordadas — e como tinha dirigido através do tráfego, mas logo alcançara a floresta, e já tinham feito isso e aquilo, e assim por diante, momento por momento. Kate se lembrava melhor à medida que contava e contava de novo.

E houve a ocasião em que a mãe de Michael viera ficar com as crianças. Quantos eram então? Três? Já tinham nascido todos? Mas, de qualquer maneira, ela e Michael foram passar o fim de semana fora, o primeiro que passavam sozinhos desde que as crianças tinham nascido. Ficaram num hotel na costa de Norfolk. Foi um fim de semana chuvoso, mas o hotel era antiquado, com grandes lareiras. Fizeram longos passeios a pé, sob a chuva. Sentaram-se diante das lareiras e jogaram dardos no pub com gente da região. E se amaram.

Desse tipo de reminiscências, Maureen nunca se cansava, e dizia, tão logo tivessem acabado de comer a comida de criança, pão com manteiga, purê de maçã, ou o que quer que fosse:

Conte-me uma história, Kate, conte-me uma história. — E se deixava cair nas almofadas e ouvia sorrindo, enquanto Kate se lembrava.

Conte a respeito daquela noite em que você e Mi­chael acordaram e pensaram que houvesse um ladrão e então descobriram que era o garoto, e vocês se sentaram na cozinha e fizeram um banquete e então Stephen acordou e se juntou a vocês.

Maureen falava isso cantando, como se fosse uma música, fazendo pausas à medida que ia falando, de forma que Kate pudesse encontrar o fio da meada e continuasse a partir daí. E Kate começava:

E depois estávamos todos lá, exceto Tim, e nós, isto é, Michael e eu, ficávamos dizendo que não fizessem barulho porque, você compreende, ele era tão mais jovem do que os outros, mas Stephen disse que não era justo. Como sempre tomava conta de Tim, Stephen sempre o defendia. E ele subiu até o quarto e tirou Tim da cama e disse: "Depressa, depressa, nossos pais estão dando uma festa e nos convidaram também". E Tim desceu... Stephen o carregou. Tim estava com uns três anos, era pequenininho, e repetia: "Depressa, depressa, tem uma festa".

E então vocês se sentaram na cozinha e comeram bolo e chocolate e, quando olharam de repente, o sol estava raiando. E decidiram que estava uma manhã tão bonita que era besteira ir para a cama. Entraram todos no carro e foram para a costa. E o mar não estava muito frio, embora fosse abril, assim toma­ram banho de mar e ficaram na praia o dia inteiro.

Mas as crianças tinham de descansar depois do almoço, é claro. Assim, deitaram-se na praia, enrolados em toalhas, na sombra de um quebra-mar, e dormiram; depois todos nós tomamos chá numa confeitaria. Comemos ovos com presunto e torrada. Depois que passou a hora do rush, voltamos para casa. As crianças ainda falam a respeito daquele dia. Ou falavam, até há bem pouco tempo.

Enquanto seus dias eram passados assim, revolvendo memórias em busca de momentos de felicidade, durante o sono Kate procurava a foca, em busca do sonho. Mas, embora sou­besse que penetrava naquele sonho com freqüência, ele lhe escapulia quando acordava. Tinha medo de que a causa por que não conseguia lembrar-se do sonho fosse que a foca tivesse morrido. Aquele estágio do sono era muito triste, cheio de um sentimento de perda, de dor. Acordava pensando que seus pés tinham sido cortados, pois os sentia gelados e doloridos, mas não era assim, estavam bastante aquecidos. Acordava sentindo os braços doloridos por causa do peso da foca. Será que estava mais pesada do que antes? Ou será que estava pesada porque tinha morrido? Muito longe, atrás dela, longe, abaixo do hori­zonte, sabia que o sol ainda brilhava. Mas nunca nascia, há dias que não raiava durante o seu sono, há semanas. Ainda estava viajando rumo ao norte, para longe do sol. Na sua frente, o inverno, gelo, uma escuridão interminável.

Conte-me uma história, Kate. Você e Michael foram a uma festa, e estavam de mau humor, tinham brigado dias antes, mas então descobriram que gostavam mais um do outro do que de qualquer outra pessoa ali, e se apaixonaram pela segunda vez.

Ou talvez eu pudesse falar-lhe a respeito de Mary Finchley. Levei muito tempo para compreender que Mary era realmente muito diferente de mim. De qualquer mulher que eu tenha conhecido. As pessoas dizem "uma mulher indomável", sabe, um homem diz "você é uma mulher indomável", e ele tem um pouco de medo, mas admira você por causa disso. E você se sente um bocado lisonjeada, e até brinca de ser indomável durante algum tempo. Mas não é verdade. Não, Maureen, você está pensando: "Sim, eu sou indomável, não estou domesticada!" Mas está. Mary não. Alguma coisa ficou faltando nela. É como aquele tipo de cachorro que um homem passou meses treinando, e então chega à conclusão de que não adianta, aquele não aceita treinamento. Nada adiantou com Mary. Ela não tem qualquer sentimento de culpa, isto é que é o importante. Todos nós estamos presos a correntes invisíveis, culpa; devíamos fazer isso, não devemos fazer aquilo, isto é prejudicial para as crianças, é injusto para com o marido. Mary não está presa, isto simplesmente não existe nela. Mas, pelo menos aparentemente, ela teve uma educação comum. Nunca consegui descobrir o que é que lhe faltava. Talvez nada faltasse... não existia nela.

"Mary casou-se bastante jovem", continuou Kate. "A primeira vez que me surpreendi com Mary foi quando ela disse: 'Escolhi Bill porque ele tinha um emprego melhor do que os outros'. Não, espere, muitas mulheres podem pensar ou agir assim, mas diriam: 'Porque eu o amava ou porque eu o admirava ou porque ele era sexy'. Mary não. Foi por isso que ela o escolheu. Os pais dela não tinham muito dinheiro. Ele a adorava. Ainda adora. Davam-se muito bem sexualmente. Ainda se dão. Mas ela foi infiel desde o início. Lembro-me do choque que levei. Um dia estava costurando junto da janela, e, olhando para fora, vi o homem que entregava as compras entrar na casa de Mary. Ficou lá dentro muito tempo. Não pensei que fosse algo de mais. Achei que estivesse tomando uma xícara de chá. No dia seguinte, toquei no assunto e Mary disse: 'Aquele cara é bom de cama'. De início, achei que estivesse brincando. Depois, pensei que estivesse contando vantagens. Não. É assim que ela é. Se vai fazer compras e um homem lhe agrada e há uma oportunidade, pronto. Nunca torna a pensar no assunto. Em qualquer ocasião, mesmo quando estava grá­vida, quando estava amamentando. Quando lhe pergunto a res­peito disso ela diz: 'Eu não posso limitar-me a fazê-lo só com um homem! Você fica bastante embaraçada, mas é porque você é um pouco idiota'. Uma vez me apaixonei por um outro homem... Fui muito besta, o negócio todo, mas foi quando realmente compreendi que Mary era bem diferente. Nunca se apaixonou em sua vida. Não conseguia compreender de que eu estava falando. De início, pensei, como de hábito, que estivesse brincando. Mas ela pensou que eu estava inventando aquilo. Sim, é verdade, ela realmente acreditava que a maneira como todo mundo age com relação ao amor, a estar apaixonado, é alguma espécie de conspiração, como o imperador que não tem roupas. Foi mais ou menos nessa época que descobri que era incapaz de ver o que quer que fosse, ou de assistir a uma peça na televisão ou qualquer coisa assim. Ela diz: 'É tudo a res­peito de gente se torturando por coisas que não existem'. Lê histórias de detetives, livros de aventuras para meninos, e livros sobre animais. Eu até pensei durante algum tempo que ela fosse muito masculina. Não. Amor... tudo a respeito disso, o amor romântico, a droga do negócio inteiro... sabe, séculos da nossa civilização, foi deixado de fora nela. Acha que somos todos malucos. Um homem lhe agrada, você agrada a ele, pron­to, trepam até que um ou outro se canse, e então adeus, sem ressentimentos..."

E o marido dela?

Você vê, você não é indomável, cruel, você não é como ela. Esteve sentada aí, pensando: "E o marido dela, e os filhos dela?" Sim. Bem. Ela ia para a cama com outros homens quase que desde o início, mas ela era tão indiferente com relação àquilo que levou algum tempo até que Bill acre­ditasse que realmente estava acontecendo. Ele a pressionou com perguntas e ela disse: "Sim, mas eu sou assim". Ficou embaraçada por ele,porque ele não era daquele jeito. Ele começou a arranjar casos. Quando o fazia, ela ficava triste e infeliz. Por que toda aquela confusão? Aquilo era o que o deixava constrangido, sabe, a atitude dela. Não se sentia culpada. Então vieram os três filhos. Mary dizia que filhos eram uma coisa maravilhosa, "mas tolhem os movimentos da gente". Eles não a tolhiam muito. Um dia, Bill chegou a casa e encon­trou Mary na cama com um homem qualquer, cujo nome ela nem sabia. O bebê estava no berço no mesmo quarto, e o garotinho, Cedric, que é um amor, brincava no chão. Bill pediu o divórcio. Estava de coração amargurado. Ela também. Ele obteve o divórcio e a custódia dos filhos. Mary não contestou a ação, de qualquer maneira não podia. Cerca de um ano depois do divórcio, juntaram-se de novo. Ele não conseguia amar ne­nhuma outra mulher. Disse para as mais diversas pessoas que depois de Mary não conseguia ligar-se realmente a nenhuma outra mulher: "Ela é muito imoral, mas é maravilhosa se não se levar isso em consideração".

"Creio que o importante", continuou Kate, "é que o fato de ela ser infiel não faz com que ele se sinta agredido, não é uma crítica contra ele. E quando ele é infiel a Mary, ela grita com ele um pouco e depois... vão para a cama. Bem, sexo.

Durante o ano em que estiveram divorciados, os dois ficaram bastante desorientados, agindo a partir de dois conceitos de leis diferentes. Bill se havia divorciado da má esposa, depravada, que estava corrompendo os filhos, mas ela era a vítima de um homem louco. "Bem, o que é que há com você?", dizia ela repe­tidamente. "Nós nos damos bem." Quando se casaram de novo, ele impôs todo tipo de condições, por uma questão de orgulho, é claro. Devia saber muito bem que ela não cederia. E não se teria casado com ela novamente se ela não o fizesse feliz. E é assim que vivem. Agora, as crianças estão na adolescência e, de acordo com todas as regras, deveriam ser umas vítimas. Mas não são nada piores que a maioria. E é bem verdade que Mary acha que é tudo um pouco de exagero. Diz que toda vez que tem um caso, o negócio inteiro é discutido por todo mundo quanto ao significado que possa ter tido. Ela diz que ninguém nunca compreende o cerne da questão... que não há signi­ficado algum. Ela tem vontade de dar umas trepadas e vai e dá. Se as crianças percebem, ela de fato tenta ser um pouco discreta, às vezes, então discutem o caso e dão o veredicto, por assim dizer. Ela diz: "Oh, pelo amor de Deus, deixem-me em paz, todos esses por-que-razão e porquês de vocês me cansam. Eu gosto de trepar". Os filhos dela vivem entrando e saindo da minha casa, são mais jovens que os meus, mas são unidos assim como se fossem todos de uma só família. Meus quatro filhos debateram esse assunto de Mary a vida inteira. Gostam dela. Todo mundo gosta dela. Eles a compreenderam muito antes de mim. Levei anos. Compreenderam que ela não era como as outras mulheres. Não mesmo. Uma ocasião ela seduziu o meu marido. Se é que essa é a palavra apropriada. Não, ela se sentiu atraída por ele, e assim o teve. Eu estava vivendo uma vida infernal, achando que tinha sido traída e Deus sabe o que mais. Na vez seguinte que tomamos um café na cozinha da casa dela, disse-me: "Michael é bom, é mesmo. Foi ótimo, realmente gostei muito".

E daí? disse Maureen, a voz com um tom de desa­fio. Que é que quer que eu conclua de tudo isso?

Nunca fui capaz de concluir coisa alguma, exceto que ela é muito diferente de mim. Isto é tudo. Toda vez que faço alguma coisa, ou não faço, isso é mais verdadeiro, gosto do aspecto físico de um homem e penso que bem que gostaria de ter alguma coisa com ele, mas é claro que nunca faria nada nesse sentido, penso em Mary. Durante algum tempo, pensar em Mary era uma espécie de consolo e apoio. Eu pensava que era uma pessoa muito melhor, de melhores sentimentos e mais sensível do que aquela criatura irresponsável. Mas agora estou em dúvida. Realmente tenho dúvidas. Sento-me num teatro e vejo pessoas se arrebentando em pedaços por causa de amor, e de repente lá está Mary, e ela literalmente não consegue compreender por que toda aquela confusão. Ou vou a um cinema... Fui algumas vezes com Mary, e é assim... Depois ela diz: "Quanta baboseira!" No início, sabe, quando ela dizia coisas desse tipo, eu achava que era uma defesa, como todos nós fazemos, mas se você está com alguém que realmente acha que é uma piada, mas mesmo, de coração, se é que essa é uma palavra que se possa associar a Mary, então é estranho, modifica a sua perspectiva. Há ocasiões em que sei que há uma espécie de inversão na maneira como vejo as coisas... tudo, a minha vida inteira desde garota... e pareço a mim mesma uma louca desvairada. Amor, dever, estar ou não estar apaixonada e amando, e me comportar bem, e você deve ou não deve pedir, e você deve ou não deve fazer. É uma doença. Bem, às vezes eu penso que não passa disso.

Uma ocasião pensei que minha mãe estivesse apai­xonada por um outro homem. Ainda não sei até hoje qual era a seriedade do caso. Aquilo me abalou — disse Maureen. — Abalou mesmo. Pensei que ela nos fosse deixar, a papai e a mim. Desde então, nunca mais olhei para ela da mesma maneira. Sei que é idiota. Foi a pior coisa da minha infância.

Os filhos de Mary e os meus discutem os casos dela como se fossem os sintomas de uma doença que devem ser tolerados.

Quando Kate falou a Maureen sobre Mary, não havia percebido que estava pondo um fim ao: "Conte-me uma história, por favor, conte uma história, Kate!"

Mas foi assim.

Kate tornou a sonhar com a foca, ou melhor, sonhou e se lembrou. A foca havia feito movimentos inquietos em seus braços; queria que ela desse atenção a alguma coisa. Parou, enquanto a neve caía silenciosamente, diretamente para baixo, em torno dela. Podia ver a neve: será que o ar estava mais leve do que estivera? Bem na sua frente havia uma luz fraca, como a luz de uma vela, e ali, sozinha no meio da neve, estava uma cerejeira rosa, prateada, em flor. Kate foi andando com dificuldade, através da neve, até a árvore, arrancou um broto em flor e o apertou entre os dedos gelados enquanto prosseguia, deixando a árvore para trás e penetrando na escuridão que se estendia adiante.

Contou aquele novo estágio do seu sonho a Maureen e ela disse:

Bem, creio que agora não vai demorar muito.

Disse aquilo com um ar infeliz, se bem que inconscientemente. Kate percebeu que a moça estava triste, desatenta. Tinha perdido toda a vivacidade. Kate sentou-se junto dela, envolveu-a, abraçando-a como se fosse sua filha. Maureen encos­tou a cabeça no ombro de Kate e se permitiu ser abraçada e afagada. Elas dormiram.

Quando Kate acordou, Maureen estava sentada bem ereta, de pernas cruzadas, numa almofada, na sua frente. O que ela estava vendo fez com que Kate se sentasse sobressaltada, olhas­se outra vez, e se esforçasse para despertar por completo. O rosto de Maureen não era o mesmo, era um rosto novo, pelo menos para Kate.

Sabe que quando acordei estava com o polegar na boca? — disse a moça.

Maureen deixara-se ficar ali, sentada em silêncio, na sua almofada, esperando que Kate acordasse de forma que pudesse atirar-lhe aquela acusação. Agora, depois de tê-lo feito, Maureen levantou-se e foi para a cozinha. Kate não a seguiu. Estava, é claro, sentindo-se culpada, errada. Ficou sentada perguntando-se onde teria errado, o que teria feito de errado.

Uma hora depois, ao encontrar Maureen comendo comida de bebê, sentou-se, querendo saber qual era o veredicto. Maureen disse:

Você percebe? As suas histórias. Nós gostamos de coisas diferentes. Você gosta é de falar de seus filhos quando eram pequenos. É disso que se lembra melhor. Era isso que você me queria contar. Quando quis que você falasse a respeito de como foi feliz com Michael, teve de me falar a respeito de Mary.

Foi por isso?

Sim. E foi uma coisa destrutiva que você fez. É isso que eu acho. Sim, é isso. Que utilidade Mary pode ter para mim ou para você? Ela nada ajuda.

Maureen acabou de comer, lavou a louça e arrumou a cozinha, enquanto Kate continuou sentada, olhando. Então en­fiou uma bolsa a tiracolo no ombro e saiu.

Voltou de noitinha e procurou Kate imediatamente, de forma que pudesse dizer:

Fui ao jardim zoológico. Estava visivelmente transtornada. Estava furiosa. Com Kate? Será que ela era a causa? Por que será que a moça viera direto para aquele quartinho sombrio à sua procura? Sim, passei o dia inteiro lá.

A culpa não é minha disse Kate, tentando fazer graça.

Quem se importa de quem seja a culpa? Isso não é o que interessa, é? Estava de saída, já na porta, quando se virou e acrescentou: Por que foi que você disse isso? Por que tem de ser sua culpa? Isso não passa de megalomania. É isso o que você é, uma megalomaníaca. — Kate nada conse­guiu dizer. Então, Maureen disse: Oh, sinto muito, desculpe-me. Mas está tudo muito bem para você, não é? E saiu correndo do quarto, chorando barulhentamente, da sua maneira habitual, sem qualquer inibição, como uma criança que levou um tapa, mas que sabe que as lágrimas fazem parte da coisa, que não se dará nenhuma atenção a elas.

O que ela queria dizer era: "Você já passou por tudo, bem ou mal você já o fez, mas eu tenho de decidir se o farei ou não".

A sua preocupação com Maureen lhe dizia que as acusa­ções dela eram bem justas. Maureen se tinha tornado uma filha sua: sentia por ela o mesmo que sentia por seus filhos. Mais ainda, disse a si mesma, com a determinação que signi­fica que se está defendendo alguma coisa a que não se tinha direito sobre a qual não se tinha adquirido o direito—, as últimas semanas tinham sido cheias de encanto por causa de uma relação de companheirismo com uma pessoa jovem, relação que ela não tivera com seus próprios filhos, durante... quase ia pensando anos, mas o exagero a conteve. A família sempre tivera períodos de prazer em estar reunida (recordando tais momentos, Kate ansiava voltar para casa naquele mesmo instan­te), e aquilo era verdadeiro mesmo nas ocasiões em que houvera antagonismo entre os jovens e os pais, pois Michael também tinha as suas dificuldades, não havia até então se lembrado disso; não havia sido uma atitude deliberada de sua parte esque­cer, durante algum tempo, que Michael e seus filhos brigavam, se desentendiam entre si, e que Michael se preocupava com isso. Aquilo tudo se resumia no fato de que, porque a vida em família às vezes era difícil (como, é claro, qualquer estrutura de autoridade, a experiência por si só afirmava que não podia ser de outra forma); porque Kate desempenhava o papel que tinha de desempenhar, o de uma mãe a quem se tinha de opor resistência, contra quem se tinha de lutar, reagir; porque não era sempre amada e admirada, tinha de mandar tudo para o inferno, ver tudo como uma coisa negativa, má... será que suas reações dos últimos meses não haviam passado disso? Não tinha sido suficientemente amada, não tinha recebido atenção suficiente, não tinha sido paparicada e afagada o suficiente? Será que tudo não passava disso?

Estava a ponto de sentir que era assim, e aquilo constituía tanto uma inversão na sua maneira de se ver quanto a anterior — aquela fora uma inversão gradual —, quando acabara por considerar a si mesma, a família e seu marido como uma teia de terríveis auto-enganos.

O que pensasse a respeito daquilo provavelmente não tinha qualquer importância.

O estado de espírito em que estivesse quando tornasse a entrar pela porta da frente de sua casa seria irrelevante: isso é que era o importante, era a verdade. Passamos nossas vidas avaliando, equilibrando, pesando o que pensamos, o que sentimos... é tudo besteira. Muito tempo depois, uma experiência, que na ocasião foi vivida e devidamente julgada como este ou aquele tipo de pensamento ou sentimento, é vista de maneira bastante diferente. Era isto o que estava acontecendo, você pensará: e o que você pensou ou sentiu a respeito daquilo, na ocasião, parece risível, insípido.

Como o verão longe da família lhe pareceria dentro de um ano ou coisa assim? Podia ter certeza de que não seria nada semelhante ao que lhe parecia naquele momento. Assim, por que avaliar e pesar, dizendo que isto é o que estou pensando, e, portanto, devo fazer isso ou aquilo, ou vai acontecer isso ou aquilo?... nesse ponto das deliberações de Kate (pois ela estava, é claro, fazendo aquilo que acabara de concluir não ter sentido), Maureen entrou, e disse:

Kate, quer saber de uma coisa? Não tem a menor importância, é isso aí. Não consigo sentir que tenha a menor importância. O que quer que eu decida fazer. — Ela tornou a sair rapidamente.

Na manhã seguinte, pediu a Kate que fosse fazer compras com ela. No caminho, viram vindo na direção delas uma moça mais ou menos da idade de Maureen, empurrando um carrinho de aspecto frágil onde uma criança pequena estava sentada, bem segura com tiras. Ela trazia um outro menino pela mão. A crian­ça no carrinho tinha o rosto manchado de lágrimas e demons­trava desconforto, pois a mãe pusera um embrulho no descanso dos pés de maneira que as perninhas tinham de ficar esticadas por cima do embrulho. A um olhar casual era apenas um garotinho num carrinho; então, a sua perplexidade, a sua infeli­cidade pareciam berrar para a rua, gritando em busca de ajuda contra as tiras apertadas demais, e o embrulho incômodo, o barulho do tráfego que fluía estridente, o sol ofuscante sobre seu rosto. A mãe, meio enlouquecida por causa da irritação das duas crianças, empurrava o carrinho aos arrancos, enquanto era puxada para o lado pelo outro menino, que tentava soltar-se aos puxões da mão dela. Esse menino estava emburrado e com raiva porque levara um tapa. Um dos lados de seu rosto estava vermelho.

Vamos disse a moça. Vamos andando senão você vai apanhar de novo.

O menino continuou puxando a mão para trás, porque a sua raiva havia mobilizado todas as suas energias, não porque ele quisesse.

A moça soltou-lhe a mão, e lhe deu um tapa no rosto com a palma da mão, e um outro com as costas da mão e novamente com a palma. O menino ficou imóvel e olhou para ela. Lentamente as lágrimas lhe foram enchendo os olhos e escorrendo pelo rosto que ia ficando cada vez mais vermelho.

Ande logo gritou a moça, fora de si. Tornou a agarrar a mão dele e o arrastou. Ele perdeu o equilíbrio e caiu em cima dela, agarrando-se ao seu vestido, tentando apoiar-se e acabou caindo de quatro na calçada. Levantou o rosto verme­lho, enquanto abria a boca, soluçando, e o catarro lhe escorria do nariz.

E agora olhe só para o meu vestido gritou a moça. Ele tinha deixado manchas por todo lado, de gordura, suor, lágrimas e açúcar do pirulito que estivera segurando na outra mão e que agora estava em pedaços na calçada.

Se você não se levantar já e começar a andar vou dar-lhe uma surra que você vai ficar sem poder se sentar disse ela, inclinando-se para dizer isso baixinho, os olhos cheios de ódio.

Ele se levantou devagar. Ela tornou a agarrá-lo pela mão. O bebê no carrinho começou a chorar. Era de mal-estar, não de raiva ou de manha. Aquilo fez com que o outro começasse a chorar também, com o mesmo desamparo. Ele corria desesperado atrás da mãe, que voava com largas passadas rua acima, empurrando uma criança na sua frente e arrastando a outra. Seu rosto, quando ela chegou perto de Kate e Maureen, estava tão infeliz quanto o das crianças. Viu as duas olhando para ela e lhes lançou olhares de desafio e de "vá-tratar-da-sua-vida".

Ela examinou Maureen, naquela manhã com um vestido tipo camisolão — branco bordado com flores em tons de azul — e o cabelo louro em duas tranças que lhe caíam sobre os ombros. O olhar da moça para Maureen dizia tudo a respeito do que ela havia perdido quando se tornara mãe de duas crianças. As lágrimas lhe encheram os olhos e os três seguiram pela rua, agora um pouco mais devagar, os três em prantos.

Você nunca se lembra de uma coisa assim — disse Maureen. — Por quê?

Kate ia responder: "Porque nunca aconteceu algo semelhante". Mas continuou andando em silêncio, tentando lembrar-se se tinha acontecido. Então Maureen disse:

Se eu me casasse com William, não precisaria preo­cupar-me, não é? Babás e governantas estariam por perto o tempo todo. Bem, talvez isto seja o que vou escolher, afinal. Estaria seguindo o curso tradicional, não é? Alguns anos no grande mundo e então de volta ao paddockde casa.

Maureen estava pálida; parecia estar doente. Estava muito longe da moça que deveria estar vestindo a alegre insolência do vestido. Tão logo chegaram a casa, Maureen saiu correndo, pu­xando o vestido por sobre a cabeça. Voltou com um vestido escuro, sério. Sentou-se, encostou a cabeça na parede da cozinha e fechou os olhos. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Logo enxugou o rosto com um lenço de papel, de maneira casual, passou água nos olhos e saiu.

Kate arrumou-se e saiu do apartamento, ou melhor, toca, pois era um espaço escavado na terra e emparedado com tijolos. Era uma toca, não importando como quisessem chamá-lo. Este pensamento a levou até o ponto onde podia pegar um ônibus para o zoológico.

Assim que entrou no zoológico viu Maureen mais adiante, ou melhor, viu duas tranças brilhantes sobre musselina escura.

Era um dia de semana, não havia muita gente. O sol estava cheio de uma luz forte e úmida. Kate não tinha vindo para observar Maureen, assim escolheu o seu caminho. Viu um car­taz onde estava escrito "Leões-marinhos" e ficou parada junto do tanque onde ficavam e, cuidadosamente, pôs uma moeda na máquina que fornecia informações. Enquanto observava os leões-marinhos, maiores e mais desajeitados do que o animal cujo peso agora podia sentir em seus braços o tempo todo, mesmo durante o dia, soube que aqueles animais não eram real­mente focas, porque tinham orelhas pequenas e conseguiam mover-se com facilidade sobre as rochas e a terra. Não, a sua foca não tinha essa mobilidade. Foi andando até o tanque redondo onde se encontravam as focas, e ali se inclinou, observando as duas que havia. Nadavam de um lado para outro como peixes-vermelhos num aquário. Para quebrar o tédio do cativeiro elas inventavam brincadeiras. Nadavam de barriga para cima, durante metade do circuito, e então se viravam. Entravam e saíam no jato de água que se erguia na base do tanque. Nadavam cruzando uma com a outra, uma debaixo da outra, sem parar.

Kate sentiu que Maureen estava do seu lado: virou-se e a viu. Observaram as focas durante algum tempo, e então, sem falar, se afastaram.

Mais adiante estava uma menina que parecia irmã de Maureen, com cerca de treze anos. Tinha o cabelo preso só na frente, e estava de jeans com uma blusa alegre. Era um pouco rechonchuda: aquele estágio do crescimento em que o corpo das meninas e as roupas não combinam. As calças estavam justas demais; a blusa parecia ter saído do armário da mãe. Era uma menina bonita, uma menina de Renoir, toda roliça e enso­larada, mas seu rosto tinha uma expressão desesperada. Corria atrás de um menino de uns quinze anos. Era um menino alto, esguio, de rosto muito atraente. Tudo nele era atraente, cha­mava a atenção, e as duas compreenderam por que a menina tinha de segui-lo. Mas ele também estava desesperado, muito perturbado com alguma coisa. Maureen seguiu o casal. Kate foi com ela. Os quatro seguiram em meio às poucas pessoas que ali se encontravam.

Junto da jaula de um macaco, o menino parou e ficou olhando, com o cenho franzido. A menina estava bem atrás dele.

A comida tinha acabado de ser servida, através de uma portinhola, e via-se um macaquinho deitado de costas numa prancha, relaxadamente refestelado, comendo um bom pedaço de repolho fresco. O macaco era um retrato perfeito de satis­fação indolente, e o menino sorriu. Não era um sorriso cons­ciente, ele não sabia que tinha sido enfeitiçado pelo macaco. As três mulheres observavam o menino e o macaco, e a ansie­dade que ele as fizera sentir havia desaparecido, como se tives­sem podido abraçá-lo. Enquanto o macaco ficava recostado ali, comendo, um segundo, numa prancha do outro lado da jaula, se sentou e o viu: o prazer do companheiro perturbou o segundo animal, que saltou no ar para alcançar a outra prancha. Apa­rentemente, o macaco deitado nada tinha visto, mas, enquanto o que saltava ainda se encontrava no ar, ele se levantou e pulou em direção a uma terceira prancha. O macaco que tinha posto o outro para fora começou a remexer os pedaços de repolho, cenoura e laranja, mas não estava com fome. Simplesmente ficara com inveja da satisfação do outro, não da comida. Este, o invejoso, teve uma ereção: um longo espigão vermelho saltou para fora. O que tivera de abandonar o seu conforto observou o usurpador, e, à medida que o observava, o seu próprio pênis foi crescendo, até que começou a se masturbar. O menino agora ficou de cenho franzido e empalideceu. Não parecera ter-se apercebido da presença da garota, mas se virou bruscamente e a levou embora, desaprovando que ela visse o macaco se mas­turbando. A menina virou a cabeça uma vez, para olhar o que não lhe era permitido ver. Então, obedientemente, lançou-lhe olhares carinhosos sob os cílios dourados. Mas o menino já se esquecera dela, seu braço se tinha soltado, e logo depois se afastou, seguindo adiante. A menina o acompanhou. Em seguida vinham Kate e Maureen.

Mais adiante, ele parou junto a um cercado onde se encontravam três gnus. Tinha amendoins nos bolsos e, ignorando o aviso que proibia que se alimentassem os animais, estendeu a mão cheia de amendoins para o menor dos três gnus. Imedia­tamente um dos maiores empurrou o outro para longe e comeu os amendoins na mão do menino. O menino esperou, paciente e resignadamente, até que os grandes se afastassem. Tornou a oferecer alguns amendoins ao gnu menor. Aconteceu a mesma coisa. Várias vezes seguidas o menino tirou amendoins do bolso e tentou dá-los ao animal menor, mas repetidamente os fortes o afastavam e pegavam a comida. O menino ficou furioso e desapontado, mas persistiu. Os dois animais maiores comeram todos os amendoins, e o menor nada. Agachou-se então e, en­costado na grade do cercado, ficou olhando para o gnu pequeno com pena e vontade de protegê-lo. As mulheres sabiam que, se não fosse a grade, ele teria abraçado o gnu, teria sido capaz até de ter encostado o rosto no pêlo áspero do animal e chorado. Àquela altura Maureen e Kate também o amavam, tanto quanto a menina, que estava atormentada pela intensidade do seu amor. Não conseguia tirar os olhos de cima dele, e estava parada bem atrás dele, louca de vontade de que ele lhe desse atenção, e acreditasse na sua vontade de ajudá-lo no esforço inútil para que o animal menor pudesse comer os amendoins.

O menino não lhe deu atenção. Libertou-se de sua frus­tração, afastando-se com passos largos. A menina seguiu atrás dele. Ele começou a correr... será que era para livrar-se dela? Ela também correu. Ele foi na direção de um viveiro de pás­saros e entrou. Quando chegaram lá, ele examinava uma gaiola pouco menor que uma caixa de embalagem, onde se via um pássaro de cores vivas, e havia uma plaqueta que dizia que a ave fora doada ao zoológico em 1925. Agora, seu rosto estava todo avermelhado e inchado, como o rosto do garotinho que havia apanhado, caído na calçada. Foi olhando de gaiola em gaiola, lendo as plaquetas que davam detalhes sobre os pássaros. Um homem, que devia ser tratador ou empregado de limpeza, entrou e o menino se dirigiu a ele.

Aquele papagaio, vocês nunca o deixam sair da gaiola? — perguntou.

Ora, não poderíamos deixá-lo sair voando e fugir, não é? — respondeu o homem.

Mas nunca? Eles nunca saem da gaiola?

O homem reagiu à emoção dele e foi embora dizendo:

Não, eles ficam onde estão.

Mas o senhor já se deu conta de que aquele pássaro está naquela gaiola há meio século? Cinqüenta anos? — disse ele, se descontrolando e puxando a manga do uniforme do homem.

Essa é a vida deles, não é? — disse o homem. Pegou a vassoura que estava encostada na parede e começou a varrer o chão, dando as costas para o menino.

Este estava numa agonia terrível. A menina foi ficar à seu lado, sem ousar tocá-lo, e lhe lançou sorrisos que diziam que poderiam acabar com toda a dor do mundo. Mas o menino estava doente com o que sentia, o rosto extenuado, contraído e sombrio. Toda a firmeza havia desaparecido.

Você entende, Jane? Alguns desses pássaros estão aqui há anos! Décadas!  Há mais tempo do que nossos pais estão vivos.

O rosto dela não lhe oferecia nada senão consolo, ele a empurrou e saiu.

Num canto da alameda via-se uma máquina qualquer, talvez de cortar grama.

Estava abandonada, largada ali. O menino parou, examinando-a. Atrás dele estava Jane, que o amava. Atrás dela, Maureen. Kate se colocou mais para o lado. Observava os três — ela os via assim, um conjunto composto pelos três, ela excluída. O belo menino infeliz, que não conseguia aceitar o mundo, a menina bonita, que sabia que ele era exagerado com tudo, mas que superaria aquilo, a bela moça que examinava o seu futuro.

O menino tirou um saquinho transparente cheio de amendoins do bolso de trás e o ofereceu à máquina. Quando — na sua imaginação — a máquina tentou apanhá-lo, ele puxou o bra­ço para trás, com um sorriso gaiato.

Aquela encenação fez com que Kate se perguntasse se ele tinha visto Maureen, se sabia que mais de uma mulher o seguia.

Mas não parecia que fosse assim.

Tornou a estender a mão, oferecendo o saquinho, através do qual se podiam ver os amendoins tentadores: quando a máquina reagiu, novamente ele o afastou para trás.

Agora ele estava rindo, de maneira teatral, de forma que Kate ficou sabendo que deveria ter notado pelo menos a pre­sença de Maureen, e isso logo ficou provado, pois ele se virou e ofereceu o saquinho fechado a Maureen, como fizera com a máquina, rindo para ela de maneira agressiva. Maureen não recuou, nem sorriu, nem franziu o cenho. Ficou parada olhando para ele, que se foi acalmando. Só então ele a viu, uma jovem bonita, com as tranças douradas sobressaindo em contraste com o vestido escuro. Estava estonteante sob a luz forte do sol. O rosto dele, que estivera contraído pela dor de ter de admitir a sua juventude, começou a suavizar-se. Rasgou a parte de cima do saquinho e o ofereceu a Maureen. Ela estendeu o braço, a mão aberta bem perto dele, que teve de encolher o braço para deixar cair os amendoins na palma da mão de Maureen; parecia que ele estava sacudindo os amendoins para fora, de dentro do próprio peito. Ele riu. Ela sorriu e jogou os amendoins na boca, os dentes brancos brilhando. Os dois começaram a andar lado a lado. Atrás deles seguia a meni­na desolada. Atrás da menina, a mulher de meia-idade.

As duas que seguiam não podiam ver as expressões do rosto do casal. Pareciam felizes. Pareciam estar rindo. Foram seguindo adiante, passaram pelo serpentário e entraram no prédio onde ficavam os peixes e plantas marinhas.

Jane entrou atrás deles, depois, Kate.

Os quatro foram seguindo na semi-obscuridade do cor­redor, ao longo das paredes de vidro bem-iluminadas, atrás das quais se via uma quantidade de peixes. Os dois que se­guiam na frente estavam em silêncio. Andavam devagar, ao que parecia dando a mesma atenção a cada tanque por onde passavam. Mas pararam por muito tempo diante de uma parede de água borbulhante. Ali na água acidula havia uma arraia. Estava brincando. Mantinha-se na corrente fresca e se agitava e se ondulava, parecendo dançar: estava inebriada com o ar que vinha do mundo do lado de fora do tanque.

Maureen beijou o menino e riu.

Ele a beijou com ardor.

De mãos dadas, seguiram adiante.

Atrás deles ia Jane, olhando para eles, só para eles, não vendo mais nada, nem os peixes, nem a arraia a brincar na água borbulhante.

Kate saiu dali disposta a ir embora, mas, como Jane, tinha de ver, tinha de presenciar aquela morte, tinha de ser pregada na sua cruz. Esperou. Então viu Maureen sair, ainda de mãos dadas com o menino. Atrás deles, Jane.

Maureen, rindo de novo, beijou o menino, num triunfo cruel, um desafio a tudo, um tapa na cara do mundo. Ela viu Kate e o fez outra vez. Foi então que o menino se afastou dela; sentia-se usado. Ficou parado, vendo Maureen ir embora. Depois, embora parecesse que não tinha visto Jane, aproximou-se dela e pôs o braço em seu ombro, dizendo num tom irritado, mas paciente:

Jane, não, não fique assim, por que é que você tem de ficar sempre aborrecida?

Não posso fazer nada! Ela começou a chorar e encostou o rosto no ombro dele. Ele a abraçou, mergulhando o rosto nos seus cabelos. Mas continuava olhando Maureen, que se afastava.

Kate foi juntar-se a Maureen, que disse:

Então muito bem, vou casar-me com Philip.

Por que não?

Por que não? Stanley? Eles se importam, não se im­portam? Com animais, pássaros e peixes. Isso para não falar das pessoas.

Oh, não seja tão terrivelmente... — Kate estava fu­riosa. Possessa de raiva. Foi andando depressa, afastando-se de Maureen, que veio atrás dela e disse:

Desculpe-me, Kate.

Depois de alguns instantes, Kate se acalmou e disse:

Não há razão, eu é que peço desculpas. Sua voz lhe pareceu pretensiosa.

Quando chegaram a casa, Maureen disse:

Nós estamos sempre pedindo desculpas uma à outra.

Sim, como as pessoas nas famílias.

Exato.

Bem, agora não vai ser mais assim muito tempo.

Naquela noite Kate sonhou assim que adormeceu. A es­curidão ainda estava densa e fria. Agora a foca estava tão pesada que nada podia fazer a não ser arrastá-la pela neve. Não estava mais preocupada com a foca, nem que pudesse estar morta ou à beira da morte; sabia que estava cheia de vida, e, como ela mesma, cheia de esperança.

Uma rajada violenta de ar salgado a envolveu; respirava o ar salgado do mar. A neve parara de cair. Os toques leves que sentia no rosto não eram neve, mas uma brisa fresca e cálida.

Viu que a neve tinha desaparecido no chão, estava an­dando sobre a grama primaveril, uma grama verde, tão rala que permitia que se visse a terra escura e úmida. O chão estava coberto de flores em botão. Mais adiante, o terreno se elevava abruptamente. Ela subiu a elevação e parou com a foca nos braços, no topo de um pequeno promontório, e ficou olhan­do para o mar lá embaixo, que refletia um céu ensolarado, muito azul. Nos rochedos, focas se aqueciam ao sol.

Empregando o que restava de suas forças, tirou a foca do chão, de forma que o rabo não ficasse machucado por ser arrastado, e desceu, com dificuldade, por um caminho estreito que ia até a beira do mar. Ali, numa rocha achatada, deixou que a foca deslizasse para dentro da água. Ela mergulhou, desaparecendo, em seguida subiu até a superfície e pousou a cabeça na beira da rocha pela última vez. Os meigos olhos escuros voltaram-se para ela. Fechou as narinas e mergulhou. O mar estava cheio de focas, nadando uma ao lado da outra, virando-se para nadar de costas, revirando-se e mergulhando, brincando. Uma foca passou por ela, nadando. Tinha cicatrizes nas costas e nos flancos, e Kate pensou que aquela devia ser a sua foca, a que tinha carregado em meio a tantos perigos. Mas a foca não olhou para ela naquele momento.

A jornada chegara ao fim.

Viu que o sol estava na sua frente, não lá longe, bem para trás, além da curva da terra, onde estivera por tanto tempo. Olhou para o sol, um grande sol claro e brilhante, exuberante e alegre, que parecia cantar.

Ela se virou, sabendo que tinha acabado o sonho. Acordou.

Contou a Maureen, que disse:

— Então está tudo bem, não é?

Acho que sim.

Quis dizer, está tudo bem para você.

Maureen estava sentada na mesa da cozinha e a sua voz tinha um tom de crítica.

Você acha que os sonhos são só para as pessoas que os têm? Quem sabe não são?

Não fui eu que sonhei isso — disse Maureen. — Fui?

Acho que não.

Não é o tipo de coisa que eu sonhe. Gaiolas e estar presa numa gaiola fazem muito mais meu gênero, você estava certa.

Não disse mais uma palavra. Assim, Kate foi até o tele­fone e ligou para casa para avisar que voltaria no dia seguinte. Foi com Eileen que falou. Eileen estivera tomando conta da casa durante todo aquele tempo.

Oh, está tudo bem, mamãe, temos nos arranjado perfeitamente bem.

Kate voltou para a cozinha e disse:

Sabe de uma coisa? Estou desempregada! Nada tenho para fazer. Que é que você me aconselha? Assistência social? Instituições públicas de beneficência? A Alimentação Mundial... creio que isso é uma instituição pública de beneficência.

Maureen fez um gesto de irritação e Kate tornou a deixá-la.

Mais tarde, ela entrou no quarto de Kate para dizer:

Vou dar uma festa.

Por que é que você está falando desse jeito?

É uma frivolidade dar uma festa, não é o que você diria, Kate? Cruel? Mesquinho?

Quando?

Hoje à noite. Por favor, venha. Realmente gostaria que você viesse, gostaria mesmo.

Passou o resto da tarde no telefone, enquanto os entre­gadores chegavam, uns após os outros, com comida e bebida.

Entrou no quarto onde Kate estava deitada, como uma viajante, pronta para partir, as malas feitas, suas coisas todas arrumadas e guardadas, e disse:

Não importa droga nenhuma o que você faça. Ou o que eu faça. É nisso que se resume tudo. É isso o que ninguém tem coragem de enfrentar.

Não acredito nisso...

Não me interessa se você acredita ou não. — Ela saiu e voltou. — A sua foca está salva, não está? Foi salva e está em segurança.

Eu não a via como sendo a minha foca.

Sim. De maneira que, se você morresse amanhã, não teria importância, não é?

Ela estava histérica. Kate se deteve no meio do pensa­mento de que devia fazer alguma coisa a respeito daquilo — o quê? Oferecer aspirina? Bons conselhos? Uma xícara de chá? O telefone começou a tocar de novo e Maureen saiu, dizendo:

O que quer que exista de importante, se o for, se alguma coisa puder ser, então ninguém me falou ainda a res­peito disso.

Kate ficou em suspenso, esperando que o telefonema acabasse. Várias seqüências de palavras surgiram em sua mente, provavelmente vindas de artigos de fundo de jornais ou pro­gramas religiosos de televisão. Por exemplo: "O mundo já esteve em má situação com freqüência, e as pessoas se deses­peraram". "Não adianta ceder à morbidez."

Depois havia o que ela mesma estava pensando: "Milhões de pessoas estão morrendo, morrerão, talvez você e eu este­jamos entre elas, mas tem de haver algumas por aí para man­terem a cabeça fria e seguirem adiante". "Mas a história desse planeta nunca foi outra coisa senão catástrofes, guerras, misé­ria; está um pouco pior dessa vez." "O que você está realmente procurando é um homem que tenha todas as respostas e que diga 'Faça isso, faça aquilo'. Não existe tal espécie."

Ouviu Maureen dizer: "Sim, uma festa. É de última hora, só tive a idéia hoje. Sim, venha, ótimo". Ela estava dando ênfase à maneira de falar de sua educação formal.

Kate nada podia fazer por Maureen. Mas tinha filhos: seria agradável levar-lhes presentes quando voltasse para casa, ainda tinha um bocado de dinheiro da Alimentação Mundial. Fez compras. Examinou-se nas vitrinas; seu corpo havia readquirido o aspecto normal. O rosto envelhecera. De maneira bastante evidente. Eles dificilmente poderiam deixar de per­ceber. Que é que diriam? Fingiriam que nada tinha acontecido: "Você está maravilhosa, mãe!" A luz que constitui o desejo de acabar também havia desaparecido. E já não era sem tem­po... O cabelo... bem, ninguém podia deixar de reparar nisso!

Suas experiências nos últimos meses, suas descobertas, sua autodefinição; o que esperava que agora fossem forças estavam concentradas ali ela ia entrar em casa com o cabelo como estava, amarrado para trás de maneira prática, áspero e espiga­do, e com a faixa cinzenta que se alargava à mostra, como uma afirmação, uma declaração de realidade. Era como se o resto dela corpo, pés, até o rosto, que estava envelhecido, mas afável pertencesse a todo mundo. Mas o cabelo... Não! Ninguém iria pôr as mãos naquilo. Durante toda a sua vida adulta, para ser mais precisa, desde que deixara a casa de seu avô, em Lourenço Marques, estivera num ambiente onde tudo era dito: pensamentos, impulsos, sentimentos eram coisas que tinham de ser rapidamente reconhecidas tanto por ela como pelos outros adiamentos ou ambigüidade sendo, aqui, possi­velmente perigosos e então classificados, catalogados e colo­cados em seus devidos lugares nas prateleiras. Ou, se preferirem, num computador. Tinha vivido entre palavras e pessoas criadas para usarem e serem usadas por palavras. Mas agora que era importante para ela, uma questão de autopreservação, que fosse capaz de fazer uma declaração; que era importante que fosse compreendida, ia fazer, e não ia fazer, certas coisas com o cabelo: substância cremosa lentamente espremida para fora de um tubo sobre o seu couro cabeludo, como espaguete saindo de uma máquina, a única parte dela que nada sentia se fosse alisada, apertada ou manipulada. As roupas, o penteado, as boas maneiras, a postura, a voz da Sra. Brown (ou de Jolie Madame, como se dizia no comércio) tinham sido uma repro­dução, da qual o menor dos desvios lhe causara tanto descon­forto quanto o que o rato do cientista sente quando as alavancas certas são empurradas. Mas agora estava dizendo: "Não, não, não, não..." Não: uma declaração que estaria concentrada no seu cabelo.

Encontrou Maureen sentada na sua cama (a de Kate), sem fazer nada. Já eram sete horas. Os preparativos para a festa tinham sido feitos, mas Maureen ainda não se tinha arrumado. Maureen não se levantou da cama. Será que a estava querendo de volta para si, para seus amigos? Kate disse:

Fiz uma descoberta. Encontrei a maneira como vou fazer declarações e afirmações, ao voltar para casa, embora não tenha certeza a respeito de quê. Mas a minha zona de escolha... sabe o que quero dizer?... bem, está limitada à manei­ra como arrumo o meu cabelo. Não é incrível?

Maureen encolheu os ombros.

Estava pensando — continuou ela. — Eu disse absolutamente tudo o que eu sentia para você. A respeito de tudo. Mas durante anos tenho estado distribuindo o que pensava e sentia em pequenas rações. Digo a mim mesma que não devo dizer isso a fulano de tal, posso dizer isso a Eileen, mas não para Tim. Mary não vai compreender isso: por exemplo, nunca poderia falar com Mary sobre a foca. Mas poderia falar com Tim. É claro que digo as coisas a Michael, mas é como se ele estivesse ouvindo uma coisa tão distante que nada tivesse a ver com ele. Gostaria de saber se ele sente que é assim que ouço o que ele me diz. É claro que ele não sonha, diz ele. Tudo que lhe acontece é sempre vindo do exterior. Será que é possí­vel que eu esteja tão distante dele? Nós que vivemos juntos há tanto tempo? Não que ele fosse ficar chocado ou surpreen­dido com qualquer coisa que eu fosse dizer, mas é bastante evidente que ele está sempre ouvindo notícias vindas de um outro continente. E ele nunca o visitou nem pretende fazê-lo. Mas me parece assim como se houvesse pedacinhos de mim distribuídos pela minha família, o pedacinho de Tim, o peda­cinho de Michael, o pedacinho de Eileen... e assim por diante. Ou melhor, tivessem estado distribuídos. Tivessem estado. Isso acabou. Mas para você eu posso dizer qualquer coisa.

Navios que passam — disse Maureen. — Como pes­soas que se encontram em viagens. Provavelmente nunca mais nos encontraremos.

Ela saiu e fechou a porta.

Uma hora depois, o silêncio ainda era absoluto no apartamento. Kate procurou por ela. Tinha posto o vestido de noite estilo 1930, daquele tipo que é cortado enviesado e que fica bem justo. Era decotado nas costas, com alças bem estreitas cruzadas. Era de cetim preto. Tinha cortado o cabelo. Cortara reto na altura do lóbulo da orelha. Estava penteado para baixo bem liso e com as pontas viradas para dentro. Mas, se ela estava o retrato perfeito de uma ninfa até o pescoço, sua cabeça parecia a de uma mulher que tivesse acabado de sair da prisão ou de um colégio interno.

Estava sentada numa almofada no vestíbulo, fazendo al­guma coisa com os pedaços do cabelo cortado. Ela ergueu o objeto. Seus olhos preferiram não enfrentar os de Kate. Ela dera nós no cabelo fazendo uma bonequinha, como um fetiche das festas pagãs da colheita, uma boneca de milho.

Kate ficou chocada como, é claro, se esperava que ficasse.

Vai ser uma festa daquelas — disse ela.

É isso mesmo.

A campainha tocou. Os convidados estavam chegando.

Oi.

Oi.

Alô.

Oi. — Beijos.

Que é isso aí na sua mão, Maureen?

É o meu cabelo. Não está vendo? É o meu bebê. — Maureen começou a dançar diante deles, sem fitá-los, mas levan­do a bonequinha que estava pendurada no seu pulso: um frágil fantoche dourado.

Logo a casa ficou cheia. As várias pessoas, os muitos rapazes que seguiam o corpo de cetim preto de Maureen com os olhos, e entre eles Stanley, Philip, e um homem bastante mais velho que os outros, robusto, autoritário, que não podia ser outro senão William — o passaporte que a levaria de volta para o seu meio, se quisesse usá-lo —, todo o grupo de múltiplos rostos parecia um ser, um mapa ou uma afirmação da riqueza da vida de Maureen, cheia de possibilidades. Mas seus convidados foram recebidos pela bonequinha de cabelo, não por ela. Não parecia ser capaz de olhar para eles, de ficar com ninguém por tempo suficiente para uma conversa; movimentava-se rapidamente, indo de um grupo para o outro, ou dançava um passo ou dois com algum rapaz e se esgueirava afastando-se dele; ou se ausentava cuidando das bebidas e da comida.

Kate se perguntou por que não voltava para casa naquele momento, naquele minuto, naquela noite. Não havia necessidade de esperar até o dia seguinte.

Deixou um bilhete para Maureen com um vidro de perfu­me, uma vez que não conseguia pensar em nada melhor, nada que fosse apropriado.

Parou no vestíbulo com a mala na mão e procurou Maureen.

Maureen estava nos braços de William. Ele estava recli­nado, as costas contra a parede, os pés firmes no chão, seguran­do Maureen com as duas mãos em torno de sua cintura.

Ela estava encostada nele languidamente, uma das mãos revirando o chumaço de cabelo que estava pendurado no seu pulso, o cenho franzido, sem olhar para ele.

Você sabe muito bem que no fim vai acabar se casando comigo; assim, por que não agora, logo de uma vez?

Eu sei disso? Não creio que saiba disse Maureen, girando a bonequinha em círculos.

Dê-me esse negócio, não gosto disso.

Mas ameaçar as fortificações não era de maneira alguma a coisa certa a fazer, pois ela segurou o fantoche e disse:

E não é para gostar mesmo.

Ela falava com petulância, será que era de bom augúrio para as suas chances?

Podia-se facilmente imaginá-los juntos numa casa grande em Wiltshire ou em outro lugar qualquer, rodeados por uma quantidade de cavalos, crianças e cachorros, tudo de acordo com os padrões, inclusive comentários irônicos deles a respeito da­quilo.

Atrás de William, na porta da cozinha, apareceu Philip, uniformizado como de hábito, acompanhado por uma moça bo­nitinha, tipicamente inglesa, a sua feminilidade violentamente subjugada pela responsabilidade, dever, trabalho... a ladainha toda. À primeira vista, uma "fazedora de omeletes", uma viga sustentadora voluntária de fardos e escolhas desagradáveis. Usa­va um vestido que parecia tanto com uma farda como a roupa de Philip, de crepe azul-marinho, com uma golinha branca e um broche, que parecia uma medalha, na parte superior do seio esquerdo firmemente achatado. Aqueles dois formavam um par perfeito, e ela estava com a mão no cotovelo dele; mas Philip não conseguiu impedir-se de olhar com um misto de fúria e desejo para Maureen, lânguida e desajeitada ali nos braços do seu William.

Simplesmente não vou admitir essas suas idiotices disse William, experimentando bancar o irmão mais velho e tentando arrancar o chumaço amarelo do pulso dela.

Não, não gritou ela. Pare com isso. Mas con­tinuou onde estava.

E lá estava Philip, observando os dois, e a moça observan­do Philip, enciumada.

Ninguém viu Kate com a sua mala. Ela a apanhou, saiu do apartamento sem ser observada, e foi andando na direção do ponto do ônibus, para casa.



 

[1] "Amanhã estará melhor, sim, sim, madame, eu estou certo." Em francês no original. (N. do E.)

[2] "Em lugar de um dos pais; como se fosse a mãe." Em latim no origi­nal. (N. do T.)

 

                                                                                            Doris Lessing

 

 

                      

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