Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O VEREDITO
Agitada e doentia, 38 anos, Anya ainda conserva traços do antigo encanto. Entrevada agora numa cadeira de rodas, transformou-se numa mulher faladeira e queixosa, que não consegue evitar sentir-se um estorvo para o marido, o professor Karl Hendryk. Um dia, ela é encontrada morta em sua cadeira. Suicídio num momento de fraqueza ou desequilíbrio mental? Causa mortis: dose excessiva de stropatina. O veredicto permanece em aberto devido à insuficiência de dados quanto ao modo pelo qual a dose fatal teria sido ministrada. Agatha Christie cria um jogo diabólico de situações e tramas em que o leitor assiste fascinado, qual num teatro, à sua inimitável arte de inventar e solucionar mistérios.
Ato Um
Cena I
Cenário: Sala de estar do apartamento do Professor Hendryk, no bairro de Bloomsbury, em Londres.
O apartamento é o andar superior de uma das velhas casas de Bloomsbury. Trata-se de uma saía de belas proporções, com mobília confortável e antiquada. A característica que mais imediatamente chama a atenção é o número de livros: livros por toda parte, em estantes nas paredes, sobre as mesas, nas cadeiras, no sofá e empilhados no chão. Uma porta de duas folhas abre para um hall, onde a porta de entrada fica à da e um corredor à ea que leva à cozinha. Também á d fica a porta do quarto de Lisa. Nasala, a porta do quarto de Anya fica à db, e à ea uma porta de vidros de caixilho abre para um pequeno balcão, com grades envoltas em hera que dá para a rua embaixo e para um correr de casas em frente. A escrivaninha de Karl em frente à porta do balcão e tem uma cadeira em frente a ela. Está recoberta de livros, ao lado de um telefone, mata-borrão, agenda, etc. Abaixo da escrivaninha ha um pequeno armário para se guardar discos, cheio de discos, mais livros e folhas cobertas de anotações para aulas. Em cima do mesmo há um toca-discos. Nas paredes de ambos os lados da porta grande ao fundo há estantes; abaixo da do lado e fica a pequena mesa de trabalho de Anya. Entre a porta dupla e a estante da e há uma mesa redonda, de três andares, com livros nos dois de baixo e uma planta no do alto. De encontro à parede abaixo da porta à D há um pequeno consolo com uma planta em cima e livros empilhados embaixo. Pendurado na parede acima da porta à eb há um pequeno conjunto de prateleiras com mais livros e os remédios de Anya em um canto. Embaixo dessas prateleiras há um pequeno armário cheio com mais livros. O armário para louças fica embaixo. Em frente às prateleiras há uma escada de biblioteca. Um sofá fica à oc, com uma mesa redonda atrás dele. Há cadeiras acima eàEda mesa. Há livros sobre as três peças de mobiliário. Uma grande poltrona de couro vermelho fica à ec, com ainda mais livros em cima. À noite a sala é iluminada por uma arandela de cada lado da porta de vidro e por lâmpadas de pé sobre a mesa, na escrivaninha e no armário à d. Há comutadores à e da porta dupla. No hall de entrada há uma cadeira à D da porta do quarto.
Quando o pano se abre a porta dupla, ao fundo, está aberta e o palco às escuras. Ao acenderem as lutes Lester Cole está precariamente equilibrado na escada da biblioteca. É um rapaz desajeitado, mas simpático, com cerca de vinte e quatro anos. Suas roupas são surradas e pobres, e tem o cabelo despenteado. Há uma pilha de livros no alto da escada. Lester se estica para alcançar a prateleira de cima, vai pegando um livro aqui e ali, folheia-o, coloca-o na pilha da escada ou devolve-o à prateleira.
Sra. roper: (Fora DE do hall.) Muito bem, Srta. Koletzky, eu providencio antes de ir para casa. (A Sra. Roper entra vindo da e do hall. É a faxineira e tem um ar sonso e desagradável. Carrega suas roupas de rua e uma sacola de compras. Cruza para a D do hall, depois volta, muito sorrateiramente, entrando na sala com as costas de encontro à porta da d. Desliza até o lado B da escrivaninha, onde há um maço de cigarros. Está a ponto de roubá-lo quando Lester fecha um livro com ruído. A Sra. Roper, com tremendo susto, gira rapidamente.) Ora, Sr. Cole, eu não sabia que o senhor estava aí. (Lester vai devolver o livro àprateleira de cima e quase se desequilibra.) Tenha cuidado! (Deposita sua sacola no chão.) Essa coisa não é segura; mas não é, mesmo. (Coloca o chapéu.) Pode desabar a qualquer momento — e ai onde è que o senhor ia parar? (Veste o casaco.)
Lester: Quem sabe, não é? (As luzes começam a baixar com o crepúsculo.)
Sra. RopeR: Ainda ontem eu li no jornal que um senhor caiu de uma escada na biblioteca. Na hora, pensaram que não era nada — depois teve de ser levado a toda pressa para o hospital. (Põe a ècharpe em torno do pescoço.) Com uma costela quebrada que enfiou no pulmão. (Com grande satisfação.) E no dia seguinte — estava morto!
lester: Que jornais animadores a senhora lê, Sra. Roper. (Interessado em um livro, esquece a SRA. roper.)
SRA. roper: E vai acontecer o mesmo com o senhor se continuar a se esticar desse jeito. (Olha para os cigarros. Vendo que lester não está reparando nela, esgueira-se, cantarola baixinho e esvazia o maço de cigarros em seu bolso. Segurando o maço vazio.) Veja só! O professor está de novo sem cigarros. (Um relógio bate cinco horas.) é melhor eu ir comprar um maço novo, antes que a loja feche. Diga á Srta. Koletzky que não demoro para ir buscar a roupa lavada. (Pega sua sacola, vai para o hall.) Até logo! (Ela sai pela D. do hall. Ouve-se aporta da frente abrir e fechar.)
lester: (Sem tirar o nariz do livro.) Pode deixar que eu digo. (Bate a porta à E do hall, Lester dá um pulo, derruba a pilha de livros do alto da escada. Lisa Koletzky entra ao ca, da e. É uma mulher alta, bonita e morena, de 35 anos, de personalidade forte e um tanto enigmática. Carrega uma bolsa de água quente.) Desculpe, Srta. Koletzky; eu apanho. (Desce e junta os livros.)
LlSA: Não importa. Alguns livros a mais ou a menos, por aqui, não significam nada.
lester: é que a senhorita me assustou. Como está a Sra. Hendryk?
LISA: Como sempre. Queixa-se do frio. Estou levando outra bolsa.
lester: Ela está doente há muito tempo?
LISA: Cinco anos.
lester: Será que algum dia ela vai melhorar?
LISA: Ela tem dias bons e dias maus.
Lester: Eu sei; mas eu estava falando de melhorar mesmo. (Lisa sacode a cabeça.) Puxa, isso é duro, não é?
Lisa. (Com o ar pouco à vontade de uma estrangeira.) É como diz: "Puxa, isso é duro"...
LESTER: Os médicos não podem fazer nada?
Lisa. Não. Ela sofre de uma dessas doenças para as quais hoje em dia ainda não há cura. É possível que um dia ainda a encontrem. Nesse meio tempo... (dá de ombros) ela nunca vai conseguir melhorar. A cada mês, a cada ano, ela fica um pouco mais fraca. Mas pode durar ainda muitos e muitos anos.
lester: Sim, isso é duro. Duro para ele.
Lisa: é como diz, muito duro para ele.
lester: Ele é muito bom para ela, não é?
LISA: Ele gosta muito dela.
Lester: Como era ela, quando jovem?
Lisa: Muito bonita. Sim, uma menina linda, loura, de olhos azuis e sempre sorrindo.
Lester. (Perplexo.) Sabe, isso me assusta. Quero dizer — o que o tempo faz com a gente. Como as pessoas mudam. Quero dizer, é impossível saber o que é real e o que não é — ou se alguma coisa é real.
Lisa: Esta bolsa me parece muito real. (Sai, pela DB, deixando a porta aberta. Ouve-se Lisa conversando com Anya, porém não o suficiente para se compreender o que dizem. Lisa volta à db.)
LESTER: (Culpado.) O professor disse que eu podia pegar tudo o que quisesse.
Lisa: Naturalmente, se ele disse que sim.
Lester. Ele é maravilhoso, não é?
LISA: (Absorta com um livro.) Hmm?
Lester: O Professor. é maravilhoso. Nós todos achamos, todos. Todo mundo está muito entusiasmado. O jeito com que ele fala das coisas. Todo o passado parece ficar vivo, de novo. (Pausa.) Quero dizer, quando ele fala se percebe o que tudo aquilo quer dizer. Ele é bem fora do comum, não é?
Lisa: Ele tem um cérebro de primeira água.
LESTER: Que sorte a nossa ele ter de sair do país dele e ter vindo para cá. Mas não é só o cérebro, sabe? É uma outra coisa.
LISA: (Pega um volume de Walter Savage Landor.) Eu compreendo o que você quer dizer.
LESTER: É como se ele soubesse tudo a nosso respeito. Quero dizer, que ele sabe como tudo é dificil. Porque disso ninguém escapa — a vida é difícil, não é?
LISA: Não vejo por que haveria de ser.
LESTER: (Estupefato.) Perdão?
LISA: Eu não vejo por que é que você diz — e tanta gente diz — que a vida é difícil. Eu acho que a vida é muito simples.
LESTER: Ora, vamos — dificilmente eu diria simples.
LISA: Mas é claro. Ela tem um desenho, nitidamente delineado, muito fácil de ver.
LESTER: Pois eu acho que ela é uma confusão dos diabos. Será que você é Cientista Cristã, ou coisa no gênero?
LISA: (Rindo.) Não, não sou Cientista Cristã.
LESTER: Mas, acredita, realmente, que a vida seja fácil e feliz?
LiSA: Eu não disse que fosse fácil ou feliz. Disse que era simples.
LESTER: Eusei que você é muito boa... (encabulado)... quero dizer, basta ver como cuida da Sra. Hendryk, e tudo isso.
LISA: Eu cuido dela porque quero, não por questão de bondade.
LESTER: O que eu quero dizer é que você podia arranjar um emprego bem remunerado, se quisesse.
LISA: Sem dúvida eu poderia conseguir um emprego com muita facilidade. Eu sou formada em física.
LESTER: Não tinha a menor idéia! Mas, nesse caso, você devia arranjar um emprego, não devia?
LISA: O que é que você quer dizer com — devia?
LESTER: Bem, quero dizer que é um desperdício, se não trabalhar. Desperdício da sua capacidade, quero dizer.
LISA: Um desperdício do treinamento que tive, pode ser. Mas de capacidade — creio que faço bem o que estou fazendo, e gosto de fazê-lo.
LESTER: Eu sei, mas...
(Ouve-se a porta da entrada. Karl HENDRYK entra ao CA, vindo da D. É um homem viril e bonitão de quarenta e cinco anos. Carrega uma pasta e um pequeno ramo de flores primaveris. Acende as arandelas, a lâmpada sobre a mesa àDea lâmpada da mesa ao CD nos comutadores à E da porta. Sorri para LISA, e seu rosto se ilumina ao ver LESTER.)
KARL: Olá, Lisa.
LISA: Olá, Karl.
Karl: Veja só — primavera! (Entrega-lhe as flores.)
LlSA: Que lindas. (Pousa as flores, depois toma o sobretudo e o chapéu de Karl, saindo depois à E com os mesmos.)
karl: Então veio pegar mais livros? Ótimo. Deixe-me ver o que está levando. Ah, sim, Loschen é ótimo — muito sólido. E o Verthmer. Salzen — bem, vou avisá-lo — ele não é nada seguro.
LESTER: Então, talvez fosse melhor que eu não...
karl: Não, leve-o, leve-o. Leia-o. Eu o avisei baseado na minha experiência, porém você tem de julgar por você mesmo.
LESTER: Muito obrigado. Vou lembrar-me do que o senhor disse. Eu trouxe o Loftus de volta. Foi exatamente como o senhor disse — ele realmente nos faz pensar.
karl: Por que não fica para jantar conosco? (Acende a luz da escrivaninha.)
LESTER: (Colocando os livros em sua sacola.) Muito obrigado, mas eu já tenho um compromisso.
karl: Compreendo. Então, vejo-o na segunda-feira. Cuidado com os livros.
(Lisa entra ao CA da E.)
LESTER: (Enrubescendo, culpado.) É claro, é claro. Eu sinto muito — mas muito, mesmo — ter perdido aquele outro.
KARL: Não pense mais nisso. Eu também já perdi livros na vida. Acontece como todo mundo. LESTER: O senhor tem sido muito bondoso. Muito, mesmo. Há gente que nunca mais teria me emprestado um só livro.
KARL: Tcha! Isso seria uma grande tolice. Vai, vai, rapaz. (LESTER sai, pelo hall e para a D.) Como está Anya?
LISA: Esteve muito deprimida e inquieta esta tarde, mas agora conseguiu se aquietar e descansar. Espero que já esteja dormindo.
Karl: Se está dormindo, não vou acordá-la. Minha pobre querida; ela precisa de todo o repouso que puder conseguir.
LISA: Vou buscar água para as flores. (Pega um vaso na prateleira e sai pela E do ca.)
LESTER: (Entra apressado pela D do ca, certifica-se de que está sozinho com Karl.) Eu tenho de lhe contar. É preciso. Eu — eu não perdi aquele livro. (LlSA entra da E ao CA com as flores num vaso, que coloca sobre a mesa.) Eu — eu o vendi.
Karl: (Não realmente surpreendido.) Compreendo. Você o vendeu.
LESTER: Eu não queria contar para o senhor. E nem sei por que contei. Mas achei que o senhor tinha de saber Não sei o que o senhor vai pensar de mim.
karl: Você o vendeu. Por quanto?
LESTER: (Orgulhoso.) Consegui duas libras por ele. Duas libras.
karl: Precisava do dinheiro?
LESTER: É, sim, senhor. Precisava muito.
KARL: Para que queria o dinheiro?
LESTER: Bem, minha mãe tem andado doente ultimamente... Não, não vou mais mentir. Eu o queria para .... sabe, é uma moca. Eu queria levà-la a algum lugar..
karl: Ah! Queria o dinheiro para gastar com uma moça! Compreendo. Bem. Muito bem — mas realmente muito bem.
lester: Muito bem? Mas...
Karl: é tão natural. Bem, é claro que foi muito errado roubar meu livro, vendê-lo e me mentir a respeito. Mas quando se tem de fazer alguma coisa errada fico contente que seja por um bom motivo. E na sua idade não há nada melhor do que — sair com uma moça e divertir-se. é bonita, essa moça?
lester: Bem, naturalmente eu acho que sim. Na verdade, ela é maravilhosa.
karl: E vocês se divertiram, com as duas libras?
lester: é, mais ou menos. Quero dizer, eu comecei me divertindo muito. Mas — mas estava me sentindo meio sem jeito.
karl: Meio sem jeito — é; é muito interessante.
lester: Por favor, acredite que estou terrivelmente envergonhado, que lamento muito e que não acontecerá de novo. E digo mais. Vou juntar dinheiro e comprar o livro de volta para devolvê-lo.
karl: Então fará isso, se puder. Agora, alegre-se — está tudo acabado e esquecido. (Lester olha Karl com gratidão e sai pela D do hall.) Alegro-me que ele tenha vindo me contar tudo sozinho. Esperava que o fizesse, mas é claro que não podia ter certeza.
lisa: Quer dizer, então, que sabia que ele o havia roubado? karl: éclaro que sabia.
Lisa: Mas nunca deixou que ele soubesse que já sabia.
karl: Não.
lisa: Por quê?
Karl: Porque, como já disse, esperava que ele me dissesse sozinho.
lisa: (Pausa.) Era um livro valioso?
karl: Na verdade, impossível de encontrar. lisa: Oh, Karl.
karl: Pobre diabo — tão contente de ter conseguido duas libras por ele. O livreiro que o comprou provavelmente já o vendeu por quarenta ou cinqüenta, a esta altura.
lisa: De modo que ele não conseguirá tornar a comprá-lo? karl: Não.
lisa: Eu não o compreendo, Karl. (Perdendo a paciência.) Às vezes tenho a impressão de que você faz tudo para que os outros abusem de você — para deixar que roubem suas coisas, que o enganem...
KARL: (Delicadamente.) Mas, Lisa, eu não fui enganado...
lisa: Mas isso ainda é pior. Roubo é roubo. Do jeito que você age, está praticamente encorajando os outros a roubar.
karl: Estou mesmo? Será? Será? lisa: Você me deixa tão zangada! karl: Eu sei. Eu sempre a deixo zangada.
lisa: Aquele desgraçado rapaz...
karl: Aquele desgraçado rapaz tem um enorme potencial e pode tornar-se um estudioso de primeira — realmente de primeira. E isso é muito raro, sabe, Lisa. É muito raro. Há muitos rapazes e moças que são sérios e desejam aprender. Mas não os bons de verdade. Porém Lester Cole tem o estofo do qual são feitos os verdadeiros estudiosos. Você não faz idéia da diferença que um Lester Cole faz na vida de um professor.
lisa: Isso eu compreendo. Há tanta mediocridade por aí.
karl: Mediocridade ou ainda pior. Não importa gastar tempo com um pé-de-boi dedicado, mesmo que não seja muito inteligente; mas os que querem aprender apenas como uma forma de esnobismo intelectual, que experimentam o estudo como se experimenta uma jóia, que querem um verniz e apenas um verniz, que desejam que sua comida já venha mastigada, esses são os que eu não aturo. Ainda hoje recusei um.
LISA: Quem foi?
karl: Uma mocinha muito mimada. Naturalmente ela poderá assistir às aulas e perder seu tempo. É um direito que lhe assiste. Mas ela queria atenção especial — aulas particulares.
LISA: E está disposta a pagar por elas?
karl: Foi o que ela sugeriu. Pelo que pude deduzir, o pai é muito rico e sempre comprou tudo o que a filha quis. Bem, ele não vai comprar as minhas aulas particulares para ela.
LISA: Nós bem que poderíamos usar o dinheiro.
karl: Eu sei. Eu sei, mas não é uma questão de dinheiro — é o tempo, compreende, Lisa? Eu realmente não tenho tempo. Há dois rapazes, Sydney Abrahamson — este você já conhece — e um outro. O filho de um mineiro. Ambos estão interessados. Muito interessados, e acredito que são bons. Mas ambos estão sendo prejudicados pela educação superficial que receberam. Eu tenho de dar aulas particulares a eles para que possam ter uma oportunidade. Eles valem o esforço, Lisa; valem mesmo. Você compreende?
LISA: Eu compreendo que ninguém consegue mudar você, Karl. Você não faz nada e sorri quando um aluno leva um livro precioso e recusa uma aluna rica em favor de outro, sem um níquel. Eu sei que isso é tudo muito nobre, mas a nobreza não paga o padeiro, nem o açougueiro, nem o armazém.
Karl: Mas, Lisa, não é possível que estejamos tão mal assim.
LISA: Não, ainda não estamos assim; mas sempre poderíamos aproveitar um pouco mais de dinheiro. Basta pensar no que poderíamos fazer nesta sala.
(Ouve-se batidas de uma bengala no chão.)
Ah! Anya acordou.
Karl: Pode deixar que eu vou.
(Karl sai pela db. Lisa sorri e sacode a cabeça, depois junta os livros. A música de um realejo é ouvida, fora. Lisa pega o Walter Savage Landor, senta-se e lê. A Sra. Roper entra no hall pela d com um embrulho de roupa lavada. Sai pela e do hall, deixa o pacote, depois entra na sala, com sua sacola de compras.
sra. roper: Eu fui buscar a roupa. Comprei cigarros para o professor — os dele tinham acabado de novo. Ih, as pessoas não ficam doidas quando ficam sem cigarro? Precisava ver o Sr. Freemantle, onde eu trabalhava. Gritava feito um doido quando não tinha cigarro. Ficava logo implicando com a mulher. Eles não se davam lá muito bem — ele tinha uma secretária. Sem-vergonha! Na hora do divórcio eu bem que podia ter contado umas coisinhas que andei vendo. E tinha ido dizer, mesmo, se não fosse pelo Sr. Roper. Eu achava que era direito, mas ele disse "não, senhora; não se cospe a barlavento". (A campainha da frente toca.) Quer que eu veja quem é?
Lisa: Por favor, Sra. Roper.
(A Sra. Roper sai à D do hall.)
doutor: (Fora.) Boa noite, Sra. Roper.
(A sra. Roper torna a entrar. O DR. Stoner segue-a. Ele é tipicamente o médico de família antiquado, com cerca de sessenta anos. E ali, efetivamente, ele se sente em casa.)
SRA. Roper.- é o doutor.
Doutor: Boa noite, Lisa, querida.
Lisa: Olá, Dr. Stoner.
Sra. roper: Bem, está na hora de ir. Ah, Srta. Koletzky, vou trazer outro pacote de chá amanhã de manhã. Tornou a acabar. Até amanhã! (Sai ao ca para o d.)
Doutor: Então, Lisa, como vão as coisas? (Lisa marca seu livro e fecha-o.) Karl andou comprando livros de novo ou é só impressão minha que ainda há mais, agora? (Afasta alguns livros para sentar-se no sofá.)
Lisa: Eu o proibi de comprar mais, doutor. Praticamente não há mais lugar para sentar.
Doutor: Você tem toda razão de reclamar, Lisa, mas não vai adiantar nada. Karl prefere jantar um livro do que um bife. Como vai Anya?
Lisa: Hoje ela esteve muito deprimida e inquieta. Ontem parecia um pouco melhor e mais animada.
doutor: É; é assim mesmo. (Suspira.) Karl está com ela? Lisa: Está.
Doutor: Ele nunca lhe falta. (Pára a música de realejo.) Você sabe não é, querida, que Karl é um homem extraordinário? As pessoas o sentem, sabe; são influenciadas por ele.
Lisa. Ele causa lá seus efeitos, sem dúvida.
Doutor: O que quer dizer com isso, minha jovem?
lisa: (Pegando o livro que estava lendo.) "Não há campos de amaranto do lado de cá da tumba."
Doutor: (Tomando-lhe o livro.) Hum. Walter Savage Landor. E o que queria dizer, Lisa, ao citá-lo?
Lisa: Apenas que o senhor e eu sabemos que não há campos de amaranto do lado de cá da tumba. Mas que Karl não sabe. Para ele os campos de amaranto estão aqui, agora, o que pode ser muito perigoso.
Doutor: Perigoso — para ele?
LISA: Não só para ele. Também para os outros, os que cuidam ou dependem dele. Os homens como Karl...
doutor: (Pausa.) Sim?
(Rumor de vozes fora na eb. Lisa vai para a mesa de trabalho à ea e coloca-a àDda poltrona. Karl entra à db empurrando Anya Hendryk em uma cadeira de rodas. Anya é uma mulher de cerca de 38 anos, agitada e doentia, com traços de seu antigo encanto. Outrora foi uma jovem bonita e coquete. Agora a maior parte do tempo é uma inválida faladeira e queixosa.)
Karl: Bem que pensei ter ouvido sua voz, Doutor.
Doutor: Boa noite, Anya. Você está com aparência ótima, hoje. (Karl empurra a cadeira para a D da mesa de costura.)
Anya: Posso parecer bem, Doutor, mas não é como me sinto. Como poderia sentir-me bem, trancada aqui o dia inteiro?
doutor: Mas você tem um terraço tão bonito no seu quarto. Lá você pode sentar-se e tomar ar puro e sol e ver tudo o que está acontecendo por ai.
anya: Como se houvesse alguma coisa em volta de mim que valesse a pena olhar. Só essas casas sem graça e essa gente sem graça que mora por aqui. Ora, quando me lembro de nossa casa linda e do nosso jardim e de toda a nossa mobília linda — tudo perdido. É demais, Doutor; é demais perder-se tudo o que se tinha.
doutor: Vamos, Anya; você ainda tem um marido ótimo e de valor.
(Lisa coloca as flores sobre a mesa de costura.)
anya: Mas nem ele é mais o marido que eu tinha... (Para Lysa.) não é? (Lisa ri e sai ao ca.) Você está todo curvo, Karl, e seu cabelo está grisalho.
karl: Sinto muito, mas você terá de me aturar assim como estou.
Anya- Sinto-me pior a cada dia, Doutor. Minhas costas doem e estou com um tremor no braço esquerdo. Acho que esse último remédio que me deu não me fez muito bem.
doutor: Então precisamos experimentar alguma outra coisa.
anya: As gotas são boas, aquelas para o coração, que Lisa me dá, quatro de cada vez. Ela disse que o senhor mandou que não desse mais do que isso. Mas eu acho que me acostumei com elas e que talvez fosse melhor tomar seis ou oito.
doutor: Lisa está cumprindo minhas ordens. É por isso que mandei que não as deixasse perto de você, para que não tomasse demais. Fique sabendo que elas são perigosas.
anya: Ainda bem que não ficam perto de mim. Estou certa de que, se deixassem, um dia eu tomava o vidro inteiro e acabava com tudo.
doutor: Ora, ora, querida. Mas é claro que não ia fazer uma coisa dessas.
Anya: E eu, de que valho, jogada aqui o tempo todo, doente e atrapalhando todo mundo? Ora, eu sei que são todos muito bondosos, mas devem sentir que eu sou uma carga insuportável.
karl: Você não é carga para mim, Anya.
anya: Eu sei que sou. Não é como se eu ainda fosse alegre e divertida, como costumava ser. Agora sou apenas uma inválida, inquieta e emburrada, sem nada de divertido para dizer.
karl: Nada disso, querida.
anya: Se ao menos eu estivesse morta e desaparecesse, Karl poderia se casar com uma mulher jovem que pudesse ajudá-lo em sua carreira.
karl: Você ficaria espantada se soubesse quantas carreiras foram arruinadas por causa de homens que se casaram com mulheres jovens quando eles mesmos já eram de meia-idade.
anya: Eu sei do que estou falando. Sou um peso para vocês.
doutor: (Escrevendo uma receita em um bloco.) Vamos experimentar um tônico. Um novo.
LISA: (Entra ao CA. Traz uma bandeja com café para quatro.) Já viu as suas flores, Anya? Karl trouxe-as para você. (Serve o café.)
anya: Não quero que me lembrem a primavera. Primavera, nesta cidade horrível. Você se lembra do bosque, quando nós saíamos para apanhar junquilhos? Naquele tempo a vida era tão feliz, tão fácil. Não sabíamos o que estava para vir. Agora o mundo é odioso, terrível, uma cinza-sujo, e nossos amigos estão todos dispersados, muitos deles mortos, e nós temos de viver em um país estranho.
doutor: (Recebendo sua xícara.) Obrigado, Lisa.
karl: Há coisas piores.
anya: Eu sei que você acha que eu me queixo o tempo todo, mas — se eu estivesse bem eu teria coragem e enfrentaria tudo.
(Anya estende a mão e Karl a beija. Lísa entrega a xícara de anya.)
Karl: Eu sei, minha querida, eu sei. Você tem muito o que agüentar.
anya: Você não sabe de nada. (A campainha da frente toca, Lisa sai pelo hall à d.) Você tem saúde e é forte. E Lisa também. O que foi que eu fiz para que isso acontecesse comigo?
karl: Querida — querida — eu compreendo.
LISA: (Fora.) Boa tarde.
helen: (Fora.) Por favor, eu poderia ver o Professor Hendryk?
LISA: (Fora.) Por favor, entre.
(Lisa entra ao ca pela d. Helen Rollander segue-a. Helen é uma moça bonita e segura de si, cerca de 23 anos.)
LISA: A Srta. Rollander quer vê-lo, Karl.
helen: (Segura de si e encantadora. lisa observa-a.) Espero que não se importe com minha intromissão. Consegui seu endereço com Lester Cole. (Lisa continua a servir o café.)
Karl: é claro que não me importo. Permita-me que apresente minha mulher — a Srta. Rollander. (lisa dá a xícara de Karl a ele.)
helen: Como está, Sra. Hendryk? anya: Como está? Como vê, sou inválida; não posso me levantar.
Helen: Sinto muito. Espero que não se importe de eu ter vindo, mas sou aluna de seu marido. Queria fazer uma consulta.
Karl: A Srta. Koletzky, o Dr. Stoner.
helen: (Para Lisa.) Como está? (Aperta a mão do doutor.) Como está?
doutor: Muito prazer.
HELEN: Então é aqui que o senhor mora. Livros, livros e mais livros.
doutor: A senhorita não sabe a sorte que tem em poder sentar-se. Há menos de cinco minutos é que eu tirei daí pilhas de livros.
helen: Eu sempre tenho sorte.
karl: Gostaria de tomar um café?
Helen: Não, obrigada. Professor Hendryk, será que eu poderia falar-lhe a sós por um momento?
karl: Infelizmente nossas acomodações são um tanto limitadas. Esta é nossa única sala.
Helen: Bem, creio que o senhor já sabe o que quero dizer. o senhor me disse hoje que seu tempo está tão tomado que não poderia aceitar mais nenhum aluno particular. Vim pedir-lhe que mude de idéia e faça uma exceção a meu favor.
KARL: Sinto muito, Srta. Rollander, mas meu tempo está inteiramente tomado.
Helen: o senhor não pode me alijar assim. Acontece que eu sei que depois de me recusar o senhor concordou em aceitar Sydney Abrahamson como aluno particular, de modo que o senhor tinha tempo. Preferiu-o a mim. Por quê?
karl: Se deseja uma resposta sincera...
helen: Desejo. Detesto gente que desconversa.
karl: Creio que Sydney tem mais possibilidades de aproveitar essas aulas do que a senhorita.
helen: Quer dizer que julga que o cérebro dele é superior ao meu?
Karl: Não, não diria isso; mas ele tem, digamos, um desejo maior de aprender.
helen: Ah, compreendo. Pensa que não encaro o estudo com seriedade? (karl não responde.) Mas não é assim. A verdade é que o senhor tem preconceitos. Porque eu sou rica, porque acabei de debutar e fiz todas as tolices que as debutantes fazem — julga que não tenho seriedade.
Anya: (Achando a fala de Helen demais; interrompendo.) Karl.
Helen: Mas acredite que tenho.
Anya: Ai, ai — será — Karl! KARL: O que é, minha querida?
Anya: Minha cabeça — não estou me sentindo muito bem. (Helen fica perturbada com a interrupção; tira cigarros e isqueiro da bolsa.) Sinto muito — er — Srta. Rollander, mas se me permite, voltarei para o meu quarto.
HELEN: (Um tanto aborrecida.) Mas é claro que compreendo.
(Karl empurra-a em direção da porta à db. O DOUTOR vai até a porta, abre-a e assume o controle da cadeira.)
ANYA: Meu coração — está muito esquisito esta noite. Doutor, será que o senhor não podia...?
DOUTOR: Claro, claro. Creio que podemos encontrar alguma coisa para aliviá-la. Karl, quer trazer minha maleta? (O DOUTOR sai pela porta à db. com ANYA. Karl pega a maleta do Doutor.)
Karl: (Para Helen.) Com licença. (Sai à db.)
HELEN: Pobre da Sra. Hendryk. Há muito tempo que é inválida?
LISA: Há cinco anos.
HELEN: Cinco anos! Pobre homem!
LISA: Pobre homem?
HELEN: Estava pensando nele a dar atenção a ela o tempo todo. Ela gosta que ele lhe dê atenção o tempo todo, não gosta?
LISA: Ele é marido dela.
HELEN: Ele é um homem muito bondoso, não é? Mas há pessoas boas demais. A piedade enfraquece, não acha? Temo não ser nada bondosa. Jamais sinto piedade de ninguém. Não consigo. Eu nasci assim. A senhorita também mora aqui?
LISA: Eu cuido da Sra. Hendrik e do apartamento.
helen: Ah, coitada; que coisa horrível.
LISA: Absolutamente. Eu gosto muito.
helen: (Com ar um tanto vago.) Mas não existem empregadas ao algo no gênero que vão para toda parte cuidando de inválidos? Tenho a impressão de que seria muito melhor se fizesse algum curso e arranjasse um emprego.
LISA: Não preciso fazer qualquer curso. Eu já sou física.
helen: Ora, mas então seria muito fácil arranjar um emprego.
LISA: Eu já tenho um emprego — aqui.
(Karl entra à db, pega um vidro de remédio e um copo na prateleira perto da porta, depois cruza para a estante à da. Lisa junta as xícaras e a bandeja e sai pelo ca.)
helen: Então, Professor Hendryk; o senhor me aceita?
Karl: Temo que a resposta seja não. (Ele põe água da jarra que está na estante no copo de remédio, depois cruza para a porta à db.)
Helen: O senhor não compreende. Eu quero aprender. Eu quero que me ensinem. Por favor, o senhor não pode me recusar.
Karl: Mas posso sim, sabe?
helen: Mas por quê? Por quê? Papai lhe pagaria um montão de dinheiro se o senhor me aceitasse. O dobro do preço normal. Eu sei que paga.
Karl: Tenho certeza de que seu pai fará tudo o que a senhorita desejar, mas não se trata de uma questão de dinheiro. (Lisa entra ao a. Para Lisa.) Lisa, dê um cálice de xerez à Srta. Rollander, por favor. Eu tenho de voltar para perto de Anya.
helen: Professor Hendryk!
karl: Minha mulher está em um de seus maus dias. Sei que me desculpará se eu voltar para perto dela agora.
(Karl sorri encantadoramente para Helen, depois sai à ob. Lisa pega uma garrafa de xerez no armário da estante à d. helen, após uma pausa, pega sua bolsa e luvas no sofá.)
helen: Não, obrigada. Nâo quero xerez. Já vou indo. (Pára junto à porta ao ca. O doutor entra pela porta à ob.) Eu vou conseguir o que quero, sabem? Eu sempre consigo. (Sai pelo ca.)
lisa: Aceita um xerez, Doutor? doutor: Obrigado. Aquela moça é muito decidida. lisa: (Servindo.) É. E naturalmente está apaixonada por Karl.
doutor: Imagino que isso acontece com bastante freqüência.
lisa: É claro. Eu me lembro que me apaixonei perdidamente por meu professor de matemática. Ele nem sequer olhava para mim. (Serve o doutor.)
doutor: Mas provavelmente você então era mais jovem do que ela.
lisa: Ah, sim; eu era mais jovem.
doutor: Acha que Karl possa compreender?
lisa: Nunca se sabe. Eu creio que não.
doutor: Quer dizer que ele já está acostumado?
LiSA: Não exatamente com esse tipo de moça. A maioria das estudantes é um bando bem pouco atraente, porém esta tem beleza, charme e dinheiro — e ela o quer muito, mesmo.
doutor: Então você está com medo.
lisa: Não, não estou com medo; não por Karl. Eu sei como ele é. Sei o que Anya significa para ele e sempre significará. Se eu estiver com medo... (Hesita.)
doutor: Então?
LISA: Ora, o que importa? (Karl entra à db.) Karl: Então a minha jovem importuna já foi. (Lisa serve-o.)
Doutor: Uma jovem muito bonita. Há muitas estudantes assim, Karl?
Karl: Felizmente, não; de outro modo teríamos ainda mais problemas do que temos agora. Doutor: Você precisa ter cuidado, meu velho. Karl-. Mas eu tenho. Preciso ter.
Doutor: e se você der aulas particulares a ela, é melhor fazer Lisa ficar presente, de pau de cabeleira. Boa noite, Lisa,
Lisa: Boa noite, Doutor. (O Doutor sai ao CA. LISA serve Karl. Pausa.) é melhor eu ir ver Anya.
karl: Não. Ela disse que queria ficar sozinha para descansar um pouco. (Pausa.) Acho que o aparecimento daquela moça aqui a perturbou.
Lisa: é, eu sei.
Karl: é o contraste entre a vida dela — e a outra. E diz ela que também fica com ciúmes. Anya sempre esteve convencida de que eu ainda vou me apaixonar por uma de minhas alunas.
Lisa: E é possível que sim.
Karl: Você é capaz de dizer isso?
LISA; Podia acontecer.
karl: Nunca. E você sabe que não. (Pausa constrangida.)
Por que você fica aqui conosco? (LISA não responde. Pausa.) Por que você fica aqui conosco? Lisa: Você sabe muito bem por que eu fico. Karl: Eu acho que não é bom para você. Acho que talvez você devesse voltar. LISA: Voltar? Voltar para onde?
Karl: Não há, e nem houve, nada contra você. Você poderia voltar para sua antiga função. Eles dariam tudo para tê-la de volta.
LISA: É possível, mas eu não quero ir.
karl: Mas talvez você devesse ir.
LlSA: Devesse ir? Devesse? O que é que você quer dizer?
Karl: Isso não è vida para você.
LlSA: É a vida que eu escolhi.
Karl: Mas é má para você. Volte. Vá embora. Tenha sua própria vida.
lisa: Eu tenho minha própria vida.
karl: Você sabe o que eu quero dizer. Casar. Ter filhos.
lisa: Não acredito que possa me casar. karl: Não se ficar aqui; mas se for embora...
Lisa: Você quer que eu vá? (Pausa.) Responda: você quer que eu vá?
Karl: (Com dificuldade.) Não; eu não quero que você vá.
Lisa: Então não falemos mais nisso.
Karl: Você se lembra do concerto no Kursaal, naquele dia? Era agosto e estava muito quente. Uma soprano imensa de gorda cantou a Liebestod. E nem ao menos cantava bem. Nenhum de nós dois ficou impressionado. Você usava uma saia e um casaco verdes e um chapeuzinho engraçado. É esquisito, não é, como certas coisas não se esquece jamais, e se continuará a não esquecer? Eu não sei o que aconteceu na véspera daquele dia, ou no dia seguinte, mas lembro-me claramente daquela tarde. As cadeiras douradas na plataforma, os músicos limpando o suor da testa e a cantora gorda agradecendo e jogando beijos com a mão. E depois eles tocaram o concerto para piano e orquestra de Rachmaninoff. Você se lembra, Lisa?
LISA: É claro que sim.
karl: (Cantarolando o tema do concerto.) Ainda posso ouvi-lo. (A campainha da frente toca.) Ora essa, quem poderia ser?
(Lisa sai ao ca para d.)
Rollander: (Fora.) Boa noite. O Professor Hendryk está? LISA: Está. Quer entrar, por favor?
(Sir William Rollander entra ao ca, da D. É um homem alto e grisalho, de forte personalidade. LISA entra atrás dele.)
Rollander: Professor Hendryk? Meu nome é Rollander. Karl: Como está? Esta è a Srta. Koletzky.
RollandeR: Muito prazer. lisa: Muito prazer.
Rollander: Eu tenho uma filha que estuda com o senhor, Professor Hendryk.
Karl: Sim, è verdade.
RollandeR: Ela julga que freqüentar suas aulas não é suficiente para ela. E gostaria que o senhor lhe desse, também, aulas particulares.
karl: Temo que isso não seja possível.
Rollander: Sim, eu sei que ela jà lhe falou sobre o assunto e que o senhor recusou. Porém, se me permite, eu gostaria de reabrir a questão.
Karl: Certamente, Sir William, mas não acredito que o senhor possa alterar a minha decisão.
Rollander: Primeiramente eu gostaria de compreender as razões de sua recusa. Elas não me ficaram muito claras.
Karl: São muito simples. Por favor, sente-se. Sua filha é encantadora e inteligente, mas não tem, na minha opinião, a estrutura da qual os verdadeiros estudiosos são feitos.
Rollander: Essa decisão não é um tanto arbitrária?
Karl: Creio que o senhor aceita a crença popular de que o saber é uma coisa que pode ser empurrada para dentro das pessoas assim como se recheia um pato. Talvez fosse mais fácil o senhor compreender se se tratasse de música. Se sua filha tivesse uma voz bonita e afinada e o senhor a levasse a um professor de canto para que ela se transformasse em cantora de óperas, um professor consciencioso e honesto dir-lhe-ia francamente que a voz dela não era adequada, a despeito de qualquer tipo de treinamento a que fosse submetida.
Rollander: Bem, o senhor é o especialista. Suponho que devo, no caso, curvar-me ante o seu julgamento.
Karl: O senhor, pessoalmente, acredita que sua filha queira abraçar uma carreira acadêmica?
Rollander: Não, para ser franco, não acredito. Mas ela pensa que sim, Professor Hendryk. Então, coloquemos as coisas em termos muito simples: eu quero que minha filha obtenha o que deseja.
karl: Uma fraqueza paterna muito comum.
Rollander: Como diz, uma fraqueza paterna muito comum. A minha posição, no entanto, é muito menos comum do que a da maioria dos pais. Eu sou, não sei se sabe, e para dizê-lo nos termos mais diretos — um homem rico.
Karl: Tenho plena consciência disso, Sir William. Creio que há alguns dias atrás li a descrição do exótico equipamento de um carro de luxo, especialmente desenhado, que o senhor encomendou para sua filha, como presente.
Rollander: Ah, aquilo? Provavelmente parecerá tolice e ostentação. As razões por trás dele, deixe-me que lhe diga, são fundamentalmente comerciais. Helen nem sequer está muito interessada no carro. Sua mente, no momento, está voltada para assuntos sérios. Devo dizer que isso é novidade, pela qual estou grato. Durante uns dois anos ela andou com um grupo que me desagradava bastante. Agora parece que ela quer estudar seriamente e por isso estou cem por cento do lado dela.
Karl: Compreendo muito bem seu pontode vista, porém...
Rollander: Dir-lhe-ei um pouco mais, Professor Hendryk. Helen é tudo o que tenho. A mãe dela morreu quando ela tinha sete anos. Eu amava minha mulher e jamais tornei a me casar. Tudo o que me resta dela é Helen. Eu sempre dei a Helen tudo — tudo — o que ela quis neste mundo.
Karl: Estou certo que isso foi muito natural; mas terá sido certo?
Rollander: Provavelmente não, mas agora já se tornou meu modo de vida. E Helen é uma ótima moça, Professor Hendryk. Estou certo de que ela já cometeu er ros e tolices, porém na vida só se aprende com a experiência. Os espanhóis têm um provérbio: "Tome o que quiser e pague depois, disse Deus." E isso é sensato, Professor Hendryk, muito sensato. karl: o preço pode ser muito alto.
rollander: Helen quer aulas particulares com o senhor. Eu quero que ela as tenha. Estou disposto a pagar o seu preço.
karl: Não é uma questão de preço, Sir William. Não estou no mercado para ser vendido pelo preço mais alto. Tenho responsabilidades para com a minha profissão. Meu tempo e energia são limitados. Tenho dois bons alunos particulares, homens pobres, mas que, a meu ver, merecem prioridade acima da sua filha. Desculpe-me por lhe falar tão francamente.
Rollander: Aprecio seu ponto de vista, e não sou tão insensível quanto possa pensar. Compreendo perfeitamente que não se trata de dinheiro. Mas acredito, Professor Hendryk — e sou um homem de negócios — que todo homem tem seu preço.
Karl: Tem direito à sua opinião.
Rollander: A sua esposa, creio eu, está sofrendo de esclerose generalizada.
karl: É verdade. Mas como — como o senhor...?
Rollander: Quando enfrento um problema investigo-o exaustivamente sob todos os ângulos. Essa doença, Professor Hendryk, é muito pouco conhecida. Atenua-se com paliativos, mas não há cura conhecida e, muito embora o paciente possa viver muitos anos, qualquer cura total está inteiramente fora de questão. Creio que, falando em termos não médicos, o que eu disse é correto?
Karl: Sim, é correto.
Rollander: Mas o senhor deve ter ouvido falar de um sensacional tratamento novo que começaram na América e que tem despertado grandes esperanças. Não finjo estar falando com qualquer precisão ou conhecimento médico, porém acredito que um antibiótico novo, muito caro, foi descoberto e tem alcançado efeitos consideráveis sobre o curso da doença. No momento ele não pode ser comprado na Inglaterra, mas uma pequena quantidade da droga — ou sei lá como a chamam — foi mandada para cá e será usada para alguns casos especiais. Tenho influência bastante para isso, Professor Hendryk. O Instituto Franklin, onde a pesquisa será realizada, aceitará sua esposa como um desses pacientes se eu usar de minha influência junto a ele.
karl: (Baixinho.) Suborno e corrupção.
rollander: (Nada ofendido.) Ah, sim; é exatamente como diz. Suborno e corrupção. Não suborno pessoal, isso não funcionaria em seu caso. O senhor recusaria qualquer oferta financeira que eu lhe fizesse. Mas será que pode se dar ao luxo de recusar uma oportunidade de sua esposa recuperar a saúde? (Pausa.)
karl: O senhor tem toda razão, Sir William. Aceitarei sua filha como aluna. Dar-lhe-ei aulas particulares e o mesmo cuidado e atenção que daria ao meu melhor aluno. Isso o satisfaz?
rollander: Satisfará a ela. é o tipo de moça que não aceita um "não". Bem; o senhor tem a minha palavra de que, quando o Instituto Franklin estiver pronto para começar, sua esposa será aceita como paciente. Isso acontecerá, provavelmente, dentro de dois meses. (Lisa vai abrir a porta do fundo.) Só me resta esperar que o tratamento seja tão bem-sucedido quanto os casos nos Estados Unidos parecem ter sido e que, dentro de um ano, eu possa congratular-me com o senhor pela recuperação da saúde e das forças de sua esposa. Boa noite, Professor Hendryk. (Vai sair, mas volta.) Acontece que minha filha está lá embaixo, no carro, aguardando a resposta da minha missão. Importar-se-ia se ela subisse por um momento? Estou certo de que ela gostaria de agradecer-lhe pessoalmente.
karl: Sem dúvida, Sir William.
(Rollander sai ao ca para a d. Lisa acompanha-o.) rollander: (Fora.) Boa noite.
LISA: (Fora.) Boa noite, Sir William. (LISA volta.) Então a moça ganhou.
KARL: Acha que eu deveria ter recusado?
LISA: Não.
KARL: Eu já fiz Anya sofrer demais. Por ficar excessivamente preso a meus princípios fui expulso da universidade, em casa. Anya jamais compreendeu realmente por quê. Jamais compreendeu meu ponto de vista. Pareceu-lhe que meu comportamento foi tolo e quixotesco. Mas sofreu muito mais do que eu por meu gesto. (Pausa.) De modo que agora há esta oportunidade de ela se recuperar e eu tenho de agarrá-la.
LISA: E os outros dois estudantes? Um deles não terá de ser sacrificado?
KARL: Claro que não. Encontrarei o tempo. Posso fazer meu próprio trabalho tarde da noite.
Lisa: Você já não é mais tão jovem, Karl. E está trabalhando demais.
KARL: Aqueles dois rapazes não podem sofrer por isso.
LISA: Se você tiver um colapso, todos irão sofrer.
KARL: Então eu não posso ter nenhum colapso. É uma sorte não haver, no caso, nenhuma questão de princípios.
LISA: Uma sorte imensa — para Anya.
KARL: O que você quer dizer com isso, Lisa?
LISA: Nada, na verdade.
Karl: Eu não compreendo. Sou um homem muito simples. LISA: Eu sei. E é isso que assusta tanto, em você.
(Ouve-se a batida da bengala de an va.)
KARL: Anya está acordada.
LISA: Não; eu vou. Sua nova aluna vai querer vê-lo.
Karl: Você acha que eu agi certo? (Helen entra ao CA à d.)
LISA: E o que é certo? Como podemos saber antes de ver os resultados? (Sai à db.)
helen: A porta estava aberta, de modo que eu fui entrando. Não fiz mal?
Karl: Absolutamente.
Helen: Espero que não esteja zangado. Aposto que não tem muito boa opinião de mim como estudante. Mas deve compreender que nunca recebi o treinamento adequado. Só uma educação tola, de coisas que estão na moda. Mas vou trabalhar muito a sério, pode estar certo.
karl: (Voltando à realidade.) Ótimo. (Faz algumas anotações em uma folha de papel.) Vamos começar uma vida de estudo sério. Poderei emprestar-lhe alguns livros. Irá levá-los consigo, lê-los, depois virá em hora marcada e eu lhe farei certas perguntas a respeito das conclusões que tirará deles. Compreendeu?
helen: Compreendi. Poderia levar os livros agora? Papai está me esperando no carro.
karl: É uma boa idéia. Terá de comprar estes aqui. (Entrega-lhe a lista que escreveu.) Agora, vejamos. (Vai até a estante e pega dois volumes grandes, resmungando enquanto o faz. Ele fala quase que como para si mesmo.) Tem de ler Lecomte, naturalmente; ah, sim, e possivelmente Wertfor. Você lê alemão?
helen: Só sei um pouco de alemão de hotel.
karl: Terá de estudar alemão. Será impossível fazer o que quer que seja sem bom conhecimento de alemão e francês. Deverá estudar gramática e composição alemãs três vezes por semana. (Helen faz uma ligeira careta, ele lhe lança um olhar severo e entrega-lhe os livros.) Temo que os livros sejam um pouco pesados.
helen: Ai! Se são!! Parece bastante difícil. (Inclina-se ligeiramente sobre o ombro de Karl enquanto olha os livros.) Quer que eu leia tudo isso?
karl: Quero que leia o livro todo com especial atenção para o capítulo 4 e o capítulo 8.
helen: (Quase que se encostando toda nele.) Compreendo.
karl: Digamos a próxima quarta-feira às quatro horas?
helen: Aqui?
KARL: Não; na minha sala na universidade.
Helen: Oh, muito obrigada, Professor Hendryk. Estou realmente muito grata. Realmente, e vou tentar o melhor que puder. Por favor, não fique contra mim.
KARL: Eu não estou contra a senhorita.
HELEN: Está, sim. Acha que eu e meu pai o obrigamos a me aceitar. Mas o senhor ainda se orgulhará de mim. Prometo.
KARL: Então, estamos entendidos. Não há mais nada a dizer.
Helen: O senhor foi um amor. Um amor. Estou muito grata. (Dá um repentino beijo no rosto de Karl. Depois se afasta, pega os livros.) Quarta. Às quatro.
(HELEN sai ao CA à d. Karl, surpreso, põe a mão no rosto e descobre que ficou manchado de batom. Limpa o rosto com um lenço, sorri e sacode a cabeça. Vai até o gramofone, põe o disco Concerto No 2 para piano e orquestra de Rachmaninoff, depois vai sentar-se, começa a trabalhar, pára a fim de ouvir a música.
LISA: vira à db. Fica um momento ouvindo, e observando Karl, porém ele não tem consciência da presença dela. Ela cobre o rosto com as mãos, tentando recobrar seu autodomínio. Porém, repentinamente, se descontrola, corre para o sofá e se atira ao lado dele.
LISA: Não. Não. Tire esse disco.
KARL: É Rachmaninoff, Lisa. Você e eu sempre gostamos tanto dele.
LISA: Eu sei. E é por isso que, no momento, não posso suportá-lo. Tire-o!
KARL: Você sabe, Lisa. Você sempre soube.
Lisa: Não! Nós nunca dissemos absolutamente nada.
KARL: Mas sabíamos, não é?
Lisa: (Em voz diferente, prática.) Anya está chamando por você.
Karl: (Como que saindo de um sonho.) Claro, claro. Eu já vou lá.
(Karl sai à db. Lisa fica olhando para ele, depois para a porta, em atitude de desespero.)
Lisa: Karl. (Esmurrando o sofá.) Karl. Oh, Karl.
(Ela desaba, no auge da infelicidade, sobre o lado d do sofá enquanto as luzes se apagam e...)
(CAI O PANO)
Cena II
Cenário: O mesmo. Duas semanas mais tarde. De tarde.
Quando o pano se abre as luzes sobem. A folha da direita da porta grande está aberta. Anya está em sua cadeira de rodas ao c com sua mesa de costura à e. Está tricotando. Karl, sentado à escrivaninha, toma notas de vários livros. A Sra. Roper espana as prateleiras da estante à d. Seu aspirador está abaixo do sofá. Lisa entra, vindo de seu quarto, e vai pegar sua bolsa na poltrona. Está vestida para sair.
Anya: (Irritada, quase chorando.) Perdi outra malha. Duas malhas. Que horror!
lisa: Eu as pego em um instante. (Pega o tricô.)
anya: Não adianta eu querer fazer tricô. Olhe para minhas mãos. Não ficam paradas. Não adianta.
Sra. Roper: Bem que dizem que nossa vida é um vale de lágrimas. Viram aquilo que saiu no jornal, hoje? Duas menininhas afogadas. Lindas, as duas. Falar nisso, Srta. Koletzky, o chá tornou a acabar.
(SRA. ROPER sai pela DB. lisa já consertou o tricô de Anya e devolve-o.)
LISA: Pronto. Já está tudo certo.
Anya: Será que algum dia eu vou ficar boa de novo? (A SRA. ROPER volta pela OB, torna a pegar o espanador que deixou na mesa, Am a fala com doçura e nostalgia.) Eu queria tanto ficar boa.
SRA. ROPER: Mas é claro que vai ficar, queridinha; claro que vai. Ninguém deve desistir. O mais velho da minha Joyce tem cada ataque de dar medo. Diz o médico que depois ele fica bom, mas eu não sei, não. Agora eu vou arrumar o quarto, está bem? Para ficar tudo arrumadinho quando o doutor chegar.
LISA: Por favor, Sra. Roper. (Esta sai à OB, deixando a porta aberta.)
ANYA: É melhor você ir, Lisa; senão se atrasa.
LISA: Se prefere que eu fique...
ANYA: Claro que não. Seus amigos estão aqui só por um dia. É óbvio que tem de ir vê-los. Já basta eu ser uma inválida inútil sem ter de sentir que estou estragando o divertimento dos outros.
(A SRA. ROPER. de fora, quebra a calma do ambiente com o ruído de seu aspirador e com sua interpretação de uma velha canção com voz rouquenha.)
KARL: Ora, por favor!
LISA: (À porta à DB.) Sra. Roper! Sra. Roper! (Cessa o ruído do aspirador e da canção.) Será que não se importa? O Professor está tentando trabalhar.
SRA. ROPER: (Fora.) Desculpe.
(lisa pega sua bolsa. Achou o incidente divertido e Karl e Anya também se divertem. Karl enche sua pasta com livros e papéis.)
Anya: Você se lembra da nossa pequena Mitzi?
lisa: Ah, Mitzi; é mesmo.
Anya: Uma empregadinha tão simpática, tão trabalhadora. Sempre rindo. E com muito bons modos. E fazia tortas maravilhosas.
lisa: é mesmo.
Karl: Enfim! Agora já está tudo pronto para a minha aula.
lisa: Eu volto assim que puder, Anya. Até logo.
anya: Divirta-se.
lisa: Até logo, Karl.
Karl: Até logo, Lisa. (Lisa sai ao ca à d.) Um dia, querida, você ficará boa e forte.
Anya: Não, nunca. Você fala comigo como se eu fosse uma criança imbecil. Eu estou doente. Muito doente e ficando cada vez pior. E você finge ficar alegre e animado. Não imagina como é irritante.
karl: Desculpe. Sim, compreendo que ás vezes deve ser muito irritante.
anya: E eu te irrito e te canso.
karl: Mas é claro que não.
anya: é claro que sim. Você é muito bom e muito paciente, mas na realidade deve ansiar para que eu morra e você fique livre.
Karl: Anya, Anya, não diga isso. Você sabe que não é verdade.
anya: Ninguém jamais pensa em mim. Ninguém me leva em consideração. Foi a mesma coisa quando você perdeu sua Cadeira na Universidade. Por que foi que você teve de abrigar os Schultzes?
karl: Eles eram nossos amigos, Anya.
anya: Você jamais gostou realmente de Schultz, nem nunca concordou com os pontos de vista dele. Quando ele se meteu em encrencas com a polícia nós devíamos tê-lo evitado de uma vez por todas. Era a única coisa segura a fazer.
Karl: A mulher e os filhos dele não tiveram culpa, e foram deixados na miséria. Alguém tinha de ajudá-los.
ANYA: Mas não precisava que fôssemos nós.
karl: Mas eram nossos amigos, Anya. Não se pode abandonar os amigos quando eles estão em perigo.
Anya: Você não pode; disso eu sei. Mas não pensou em mim. O resultado foi você ter de pedir demissão e nós termos de deixar nossa casa e nossos amigos e vir para este país frio, cinzento e horrível.
karl: Ora vamos, Anya; não é tão ruim assim.
Anya: Para você, pode ser que não. Deram-lhe um lugar na universidade em Londres e para você tanto fez como tanto faz, desde que tenha seus livros e seus estudos. Mas eu estou doente.
karl: Eu sei, minha querida.
Anya: E aqui eu não tenho amigos. Fico deitada dias inteiros sem ninguém para conversar, sem ouvir nada de interessante, nem sequer um mexerico. Faço tricô e perco as malhas.
karl: Ora, vamos...
Anya: Você não compreende. Você não compreende nada.
Não é possível que você realmente goste de mim, pois se gostasse, compreenderia. karl: Anya, Anya.
Anya: Na verdade você é egoísta, egoísta mesmo, e duro.
Você não se importa com ninguém a não ser com você mesmo. karl: Minha pobre Anya.
Anya: É muito fácil dizer "pobre Anya". Mas ninguém realmente se importa comigo, ninguém gosta mesmo de mim.
karl: Eu penso em você. Eu me lembro da primeira vez em que a vi. Com um casaquinho todo bordado de lã de cores alegres. Nós fomos a um piquenique nas montanhas. Os narcisos estavam em flor. Você tirou os sapatos e caminhou pelo capim. Lembra-se? Sapatinhos tão bonitos e pezinhos tão bonitos.
Anya: (Com repentino sorriso de prazer.) Meus pés sempre foram pequeninos.
Karl: Os mais bonitos do mundo. E a moça mais bonita.
Anya: E agora eu murchei, estou velha e doente. Não sirvo
para mais nada. Karl: Para mim você é a mesma Anya. Sempre a mesma.
(A campainha da frente toca.) Deve ser o Dr. Stoner.
Sra. roper: (Entrando da porta à db.) Querem que eu vá abrir? (Sai ao ca à d. Ruído de vozes fora. A Sra. Roper volta, seguida por Helen, que carrega os dois livros que levara emprestados.) é uma moça que quer falar com o senhor.
helen: Trouxe de volta alguns de seus livros. Pensei que talvez precisasse deles. (Pára quando vê Anya, e seu rosto perde a animação. A Sra. Roper sai à db.)
karl: Querida, você se lembra da Srta. Rollander?
helen: Como está, Sra. Hendryk? Sente-se melhor?
Anya: Eu nunca me sinto melhor.
helen: (Sem emoção.) Sinto muito. (A campainha torna a tocar, Karl pousa os livros na escrivaninha e sobe para ca.)
karl: Agora deve ser o Dr. Stoner.
(Karl sai aoCAàoea Sra. Roper entra da db, carregando uma cesta de papéis. Pega um cinzeiro na prateleira perto da estante e esvazia-o na cesta. Helen olha distraída um livro sobre a mesa ao cd.)
sra. roper: Eu acabo o quarto mais tarde. é melhor ir comprar chá antes que a loja feche.
karl: (Fora.) Olá, Doutor. Entre.
doutor: (Fora.) Olá, Karl. O dia está lindo. (Karl vem aoCAàDe faz entrar o doutor.)
Karl: Eu gostaria de ter uma palavra com o senhor sozinho, Doutor.
(A sra. Roper sai ao ca à e. deixando a porta aberta.)
doutor: Naturalmente. Então, Anya, está um lindo dia de primavera.
anva: É mesmo?
Karl: Poderiam dar-nos licença um momento?
helen: É claro.
doutor: Boa tarde, Srta. Rollander. helen: Boa tarde, Doutor.
(Karl e o Doutor saem pela porta à db. A Sra. roper entra ao ca d e, carregando seu casaco e sacola de compras. Pousa a sacola enquanto veste o casaco.)
Sra. roper: Está muito quente para esta época do ano — e esse tempo sempre me faz doer as juntas. Hoje de manhã eu estava tão emperrada que mal conseguia sair da cama. Eu volto logo com o chá, Sra. Hendryk. Devo comprar meia libra?
anya: Como quiser, como quiser.
Sra. roper: Então, até loguinho. (Sai ao ca d d.)
anya: Quem toma o chá é ela. Fica sempre dizendo que precisamos de mais chá, mas nós praticamente não o tomamos. Preferimos café.
helen: Acho que essas mulheres sempre levam uma coisa ou outra, não é?
anya: E pensam que nós somos estrangeiros e por isso não vamos perceber. Temo que seja muito maçante, Srta. Rollander, ficar aqui só comigo para conversar. Os inválidos não são boa companhia.
(helen examina os livros na estante.)
helen: Eu só vim para devolver aqueles livros.
anya: Karl tem livros demais. Olhe só esta sala — é livro para todo lado. Os estudantes vêm aqui e pedem livros emprestados, e lêem, e deixam tudo espalhado, e ainda perdem muitos dos que levam. É de enlouquecer — realmente de enlouquecer.
helen: Não deve ser muito divertido para a senhora.
anya: Eu queria morrer.
helen: a senhora não deve dizer uma coisa dessas.
Anya: Mas é verdade. Eu incomodo e aborreço todo mundo. Minha prima Lisa e meu marido. Pensa que é agradável saber que se é um peso para os outros?
helen: E a senhora pensa isso?
Anya: Morta eu estaria melhor. Muito melhor. Às vezes acho que vou acabar com tudo isso. Seria muito fácil. Basta uma dose um pouco mais forte do meu remédio do coração e aí todos ficam contentes e livres e eu fico em paz. Por que continuar a sofrer?
helen: (Obviamente entediada.) Deve ser terrível para a senhora.
Anya: Nem imagina. A senhorita nem pode compreender. É jovem, bonita, rica e tem tudo o que deseja. E aqui estou eu, infeliz, desamparada, sempre sofrendo, e ninguém se importa. Ninguém se importa, realmente.
(doutor entra pela os. karl segue-o.)
doutor: Bem, Anya, Karl me disse que dentro de duas semanas você já deverá ir para a clínica.
ANYA: Não vai adiantar nada. Eu sei.
doutor: Ora, ora, não diga isso. Eu estive lendo um artigo muito interessante em uma revista médica, no outro dia, que tratava do assunto. Apenas um trabalho de apresentação, porém muito interessante. É claro que aqui nós estamos encarando o novo tratamento com muita cautela. Temos medo de assumir compromissos. Nossos primos americanos são mais precipitados, mas não há dúvida de que parece ter boas probabilidades de sucesso.
Anya: Eu realmente não acredito nele; não vai adiantar nada.
doutor: Ora, Anya, deixe de ser pessimista. (Empurra a cadeira para a porta à DB, que Karl apressa-se em abrir.) Vamos fazer nosso exame semanal para eu saber se posso usá-la para mostrar como sou bom médico.
Anya: Eu não consigo mais fazer tricô. Minhas mãos tremem tanto que eu perco as malhas a toda hora. (Karl tira a cadeira do Doutor e vai empurrando-a para a porta.)
Karl: Isso não quer dizer nada, não é, Doutor?
doutor: Absolutamente nada.
(Karl sai com Anya pela porta à DB. O doutor sai atrás deles. Karl volta e fecha a porta. Ignora helen.)
Karl: Desculpe, mas eu tenho de sair. Tenho de dar uma aula às quatro e meia.
helen: O senhor está zangado por que eu vim?
Karl: Claro que não. Foi muita bondade sua devolver os livros.
helen: O senhor está zangado. Ultimamente tem sido tão brusco — tão ríspido. O que foi que eu fiz para o senhor se zangar? Ontem o senhor estava realmente irritado.
Karl: Naturalmente que estava. A senhorita diz que quer aprender, que quer estudar e tirar seu diploma, mas não estuda.
helen: Bem, eu tenho andado muito ocupada ultimamente — tem acontecido tanta coisa... KARL: A senhorita não é estúpida, tem muita inteligência e massa cinzenta, mas não se esforça. Como andam suas lições de alemão?
helen: Ainda não providenciei.
Karl: Mas é preciso, é preciso. É essencial que possa ler alemão. Os livros que lhe dou para ler a senhorita não lê direito. Eu faço perguntas e suas respostas são superficiais.
HELEN: Mas tudo isso é tão maçante.
KARL: Mas a senhorita estava ansiosa por estudar, por obter seu diploma.
HELEN: No que me diz respeito o diploma pode ir para o diabo que o carregue!
KARL: (Deixando cair a pasta, de tão perplexo.) Então eu não compreendo. Obriga-me a aceitá-la como aluna, obriga seu pai a vir pedir-me...
HELEN: Eu queria vê-lo, estar perto de você. Será que está cego, Karl? Eu estou apaixonada por você.
KARL: (Atônito.) O quê? Mas, menina...
HELEN: Será que não gosta nem um pouquinho de mim?
KARL: Sabe que é uma moça muito atraente, mas é preciso que se esqueça de toda essa bobagem.
HELEN: Não é bobagem. Estou dizendo que o amo. Por que não podemos enfrentar o fato de forma simples e natural? Eu quero você e você me quer. Você sabe que sim — você é o tipo de homem com quem eu quero me casar. E por que não? Sua mulher não serve de nada para você.
KARL: Como você compreende pouco as coisas. Fala como uma criança. Eu amo minha mulher.
Helen: Ora, eu sei. Você é uma pessoa tremendamente bondosa. Toma conta dela e lhe dá xícaras de chá e não sei o que, sem dúvida. Mas isso não é amor.
KARL: Será que não? Eu acredito que seja.
HELEN: É claro que você tem de tomar providências para que ela tenha todo o cuidado necessário, mas isso não precisa interferir em sua vida de homem. Se nós tivermos um caso, sua mulher não precisa saber.
KARL: Minha cara menina, nós não vamos ter um caso.
Helen.- Ai, eu não sabia que você era tão preconceituoso. (Vem-lhe repentinamente uma idéia.) Eu não sou virgem, se é isso que o preocupa. Já tive muitas experiências.
KARL: Helen, não se iluda. Eu não estou apaixonado por você.
HELEN: Pode continuar a dizer isso até ficar roxo que eu vou continuar a não acreditar.
KARL: Porque não quer acreditar. Mas é a verdade. Eu amo minha mulher. Ela me é mais cara do que qualquer outra coisa neste mundo.
helen: (Como uma criança confusa.) Por quê? Por quê? Quero dizer, o que é, neste mundo, que ela pode lhe dar? Eu poderia dar tudo a você. Dinheiro para pesquisas ou sei lá...
Karl: Mas mesmo assim você nâo seria Anya. Ouça...
helen: é possível que ela tenha sido muito bonita, mas agora não é mais.
Karl: é, sim. Ninguém muda. A mesma Anya continua a existir nela. A vida faz coisas com a gente. Doenças, desapontamentos, exilio, todas essas coisas formam uma crosta que cobre o ser verdadeiro. Mas esse ser verdadeiro continua a existir para sempre.
Helen: Eu acho que você está dizendo asneiras. Se fosse um casamento de verdade — mas nâo é. Nâo pode ser, nessas circunstâncias.
Karl.- é um casamento de verdade.
helen: Ora, você é impossível!
Karl: Sabe, você ainda é uma criança. Não compreende.
helen: (Começando a perder a paciência.) Você é que é criança, vivendo em uma nuvem de sentimentalismos e mentiras. Você mente aié para você mesmo. Se você tivesse coragem — mas eu tenho coragem e sou muito realista. Não tenho medo de olhar para as coisas e chamá-las por seus nomes certos.
karl: Você é uma criança que não cresceu.
helen: (Exasperada.) Oh!
doutor: (Entra pela DB. empurrando a cadeira de anya para sua posição rotineira ao c.) Tudo muito satisfatório.
Anya: é o que ele diz. Todo médico é mentiroso.
Doutor: Bem, já tenho de ir. Tenho um cliente às quatro e meia. Adeus, Anya. Boa tarde, Srta. Rollander. Eu vou para o seu lado, Karl. Se quiser eu lhe dou uma carona.
Karl: Muito obrigado, Doutor.
doutor: Eu o espero no carro. (Sai ao ca à D.)
anya: Karl, me perdoe, Karl.
KARL: Perdoar o quê, minha querida? O que há para perdoar?
ANYA: Tudo. Meu mau humor, minhas queixas. Mas não sou eu, de verdade, Karl. É sò a doença. Você compreende?
KARL: (Com o braço passado afetuosamente em torno de seus ombros.) Compreendo. (Helen olha-os, franze o cenho, depois volta-se para a janela.) Nada do que você diz jamais poderá ferir-me porque eu conheço o seu coração. (Ele afaga a mão de Anya e ela beija a mão dele.)
ANYA: Karl, você vai se atrasar para a aula. Precisa ir logo.
KARL: Eu não queria deixar você sozinha.
ANYA: ASra. Roper volta aqualquer momento e fica comigo até Lisa chegar.
HELEN: Eu não tenho nada de especial para fazer; posso ficar com a Sra. Hendryk até a Srta. Koletzky voltar.
KARL: Poderia mesmo, Helen?
HELEN: Mas è claro.
KARL: É muita bondade sua. (Poro Anya.) Aié logo, querida.
ANYA: Adeus.
KARL: Obrigado, Helen. (Sai ao ca à D, fecha a porta. A tarde começa a cair.)
HELEN: A Srta. Koletzky é sua parenta?
ANYA: É; é minha prima-irmã. Veio para a Inglaterra conosco e desde então ficou em nossa companhia. Ela foi ver uns amigos de passagem por Londres. No Hotel Russell, que não fica muito longe. É muito raro encontrarmos amigos de nosso país.
HELEN: A senhora gostaria de voltar para lá?
ANYA: Nós não podemos voltar. Um amigo de meu marido, professor também, caiu em desgraça por causa de sua posição política — ele foi preso.
HELEN: E por que razão isso afeta o Professor Hendryk? ANYA: A mulher e os filhos dele, compreenda, ficaram absolutamente desamparados. O Professor Hendryk insistiu para que nós os abrigássemos. Quando as autoridades souberam, ele foi obrigado a pedir demissão.
Helen: Ora, não parece que valesse muito a pena; parece?
anya: é o que eu achava, e aliás jamais gostei de Maria Schultz. Era uma mulher muito ranzinza, sempre se queixando, criticando e choramingando a respeito de alguma coisa. E as crianças eram mal-educadas e quebravam tudo. é muito triste ter deixado nossa casa, tão bonita, e vir para cá praticamente como refugiados. Isso aqui jamais será um lar.
Helen: Parece que não foi muito fácil para a senhora.
anya: Os homens não pensam nessas coisas. Só pensam em suas idéias do que é certo e errado, ou então no dever.
Helen: Eu sei. é um cansaço. Mas os homens não são realistas, como nós.
(Pausa. Helen acende um cigarro que tirou da bolsa. Um relógio bate quatro horas.)
anya: Lisa não me deu meu remédio antes de sair. Às vezes ela me irrita com essa história de se esquecer das coisas.
helen: Posso fazer alguma coisa?
anya: (Apontando para a prateleira na parede à db.) Está naquela prateleirinha ali. O vidro pequeno. São quatro gotas em um pouco de água. (Helen apaga o cigarro no cinzeiro da estante, pega o vidro de remédio e um copo na prateleira.) é para o coração, sabe. Aí há um copo e um conta-gotas. (Helen cruza para a estante à d.) Tenha muito cuidado, porque é muito forte. é por isso que guardam fora do meu alcance. Às vezes me sinto tão deprimida que ameaço me matar e eles acham que se o remédio estivesse perto talvez eu cedesse à tentação e tomasse uma dose excessiva.
helen: (Abrindo o vidro.) E isso lhe acontece muitas vezes, não é?
anya: Ah, sim. Tantas vezes que seria melhor morrer de vez.
helen: Eu sei; eu compreendo.
ANYA: Mas, afinal, é preciso ter coragem e continuar em frente.
(HELEN está de costas para ANYA e lança um rápido olhar por sobre o ombro. Anya, tricotando, não está olhando para ela. HELEN inclina o vidro e derrama todo o conteúdo no copo, junta um pouco de água e vai dar o copo a Anya.)
HELEN: Pronto. Aqui está.
ANYA: Obrigada, meu bem. (Pega o copo e experimenta.) O gosto está um pouco forte.
helen: A senhora não disse quatro gotas?
Anya: Isso mesmo. (Engole tudo de uma vez, depois recosta-se e pousa o copo na mesa de costura. Helen, tensa, observa-a.) O Professor trabalha demais, sabe. Aceita mais alunos do que devia. Eu queria — queria que ele tivesse uma vida mais fácil.
HELEN: É possível que ainda tenha.
Anya: Duvido. (Com um sorriso terno.) Ele é tão bom para todos. Tão cheio de bondade. Tão bom para mim, tão paciente. (Tem um espasmo de respiração.) Ah!
Helen: O que foi?
ANYA: é só — que parece que não consigo respirar direito. Tem certeza de que não me deu remédio demais?
Helen: Eu lhe dei a dose certa.
Anya: Tenho certeza — certeza que sim. Eu não queria dizer — não queria... (Suas palavras tornam-se mais lentas e ela recosta na cadeira quase como se adormecesse. Sua mão sobe lentamente na direção de seu coração.) Que estranho — mui — estranho. (Sua cabeça cai para um lado no travesseiro. HELEN observa-a. Agora parece assustada. Sua mão sobe a seu rosto, depois cai de novo.)
HELEN: (Em voz baixa.) Sra. Hendryk. (Silêncio. Mais alto.) Sra. Hendryk!
(Helen toma o pulso de Anya; guando constata que parou leva um susto e atira a mão para baixo, aterrorizada. Depois se afasta, anda um pouco em volta, sempre olhando para Anya. Depois sacode-se para voltar à realidade. Vê o copo na mesa, pega-o e limpa-o com seu lenço, depois inclina-se e coloca-o cuidadosamente na mão esquerda de anya. Depois ela se encosta, exausta, no braço do sofá. Novamente controla-se, vai até a estante epega o vidro de remédio e o conta-gotas. Limpa suas impressões do vidro e cruza para a D de An ya. Delicadamente fecha os dedos de Anya em torno do vidro, depois coloca-o na mesa de costura, tira o conta-gotas e coloca-o ao lado do vidro. Cruza um pouco para o alto, olha em volta, depois vai depressa pegar sua bolsa e suas luvas no sofá e corre para a porta ao ca. Pára repentinamente e corre para a prateleira para pegar o jarro de água, limpando-o com seu lenço enquanto cruza para a mesa de costura, onde o coloca. Novamente cruza para a porta ao ca. Ouve-se fora o som de um realejo. Helen sai no hall para a d. Ouve-se a porta da frente bater. Há uma longa pausa, depois ouve-se a porta da frente abrir e fechar. A Sra. roper mete a cabeça pela porta àDno ca.)
sra. roper: Comprei o chá. (Desaparece. Volta, tirando o chapéu e o casaco, que pendura em um cabide invisível do lado d.) E comprei o bacon e uma dúzia de caixas de fósforos. As coisas andam tão caras, hoje em dia! Eu quis comprar uns rins para o jantar da pequena Muriel, mas o preço estava enorme e os rins pequenininhos. Vai ter que comer o que os outros comem e olhe lá. Eu sempre digo a ela que dinheiro não nasce em árvore. (Sai à db. Longa pausa, depois a porta da frente abre e fecha. lisa entra à Ddo ca, guardando sua chave na bolsa ao entrar.)
usa: (Ao entrar.) Demorei muito? (Olhapara ANYA, julga que está dormindo e sorri. Tira o chapéu. Depois volta-se para Anya e começa a compreender que talvez ela não esteja apenas dormindo.) Anya? (Corre até a o de Anya e levanta-lhe a cabeça. Vê o vidro na mesa de costura, vai até a mesa e pega o vidro, depois o copo. A sra. roper entra quando lisa está segurando o vidro.)
Sra. Roper: (Assustada.) Eu não ouvi a senhora entrar.
lisa: (Pousando o vidro com/orça, assustada com o aparecimento repentino da outra.) Eu não sabia que a senhora estava aqui.
Sra. roper: Alguma coisa errada?
lisa: A Sra. Hendryk — eu acho que a Sra. Hendryk está morta. (Ela vai até o telefone, e disca.)
(A sra. roper cruza lentamente para a D de anya. vê o vidro, depois lentamente se vira para olhar para lisa, que espera impacientemente que alguém atenda a seu chamado. lisa, de costas para a sra. roper, não percebe o seu olhar. As luzes se apagam enquanto...)
(CAI O PANO)
Ato Dois
Cena I
cenário: O mesmo. Quatro dias mais tarde. Cerca do meio-dia.
Quando o pano se abre as luzes sobem. A sala está vazia. A única diferença é a ausência da cadeira de rodas de Anya. As portas estão todas fechadas. Após um instante Karl entra ao ca, pousa um momento o olhar no antigo lugar da cadeira de rodas, depois senta-se na poltrona. LISA entra ao CA e dirige-se à escrivaninha. O DOUTOR entra pelo CA, olha para os outros, depois cruza para baixo do sofá. Lester entra ao ca e fica em pé, bastante sem jeito. Todos entram muito lentamente e muito deprimidos.
DOUTOR: Bem, terminou.
Lisa: Eu nunca tinha visto um inquérito antes, aqui neste país. São sempre assim? DOUTOR: Bem, variam, sabe; variam. (Senta-se no lado D do sofá.)
LISA: Tudo tão prático, tão frio.
DOUTOR: Bem, é claro que não gostamos muito de coisas emocionais. Afinal é apenas um caso, uma rotina, nada mais.
LESTER: Não foi um veredicto um tanto estranho? Eles disseram que ela morreu de uma dose excessiva de stropatina, mas não disseram como ela foi ministrada. Creio que deveriam ter dito suicídio em momento de desequilíbrio mental e liquidar o assunto.
karl: Não acredito que Anya tenha se suicidado.
LISA: Eu também diria que não.
Lester: No entanto, as provas eram bem claras. Suas impressões digitais estavam no vidro e no copo.
Karl: Deve ser sido um acidente. A mão dela tremia muito, sabe? Ela deve ter pingado muito mais do que pensava. O curioso é que eu não me lembro de ter posto o vidro e o copo perto dela; porém devo ter posto.
LISA: A culpa foi minha. Eu devia ter-lhe dado as gotas antes de sair.
DOUTOR: Não foi culpa de ninguém. Não há nada tão inútil quanto essas auto-acusações por se ter ou não ter feito alguma coisa. Essas coisas acontecem e são muito tristes. E é melhor deixá-las por isso mesmo — (Muito baixinho e não para os outros.) Se pudermos.
Karl: O senhor não acredita que Anya tenha tomado uma dose excessiva deliberadamente, acredita, Doutor?
DOUTOR: Eu diria que não.
LESTER: Ela falava muito nisso, não é? Quero dizer, quando estava deprimida.
DOUTOR: Ora, quase todo inválido crônico fala de suicídio. Porém muito raramente chegam a suicidar-se.
Lester: (Encabulado.) Por favor, espero que não achem que eu estou me intrometendo. Acho que preferem ficar sozinhas. Eu não devia...
KARL: O que é isso, meu filho? Foi muita bondade sua.
LESTER: Pensei que talvez pudesse fazer alguma coisa. Eu faria qualquer coisa... (Lança olhar de devotamento a Karl) se ao menos fosse alguma coisa que pudesse ajudar.
Karl: Sua solidariedade ajuda. Anya gostava muito de você, Lester.
(A sra. Roper entra ao ca. Usa um vestido preto surrado e chapéu. Traz uma bandeja com café para quatro e um prato de sanduíches.)
SRA. ROPER: (Em tom devidamente suave.) Fiz um pouco de café e uns sanduíches. (Pousa a bandeja na mesa.)
Achei que o senhor precisava de alguma coisa para levantar as forças, Professor. (Lisa vai servir o café.)
Karl: Obrigado, Sra. Roper.
Sra. Roper: (Cônscia de suas virtudes.) Voltei do inquérito o mais rápido possível — para já estar tudo pronto quando o senhor chegasse.
Karl: (Reparando nos trajes da Sra. Roper.) Então a senhora foi ao inquérito?
Sra. roper: Claro que fui. Com muito interesse. Pobre senhora. Sempre por baixo, não é? Resolvi ir em sinal de respeito, se não por qualquer outra razão. Mas devo dizer que não tem sido nada agradável essa história da policia por aqui a fazer perguntas.
(Os outros evitam olhar para ela, na esperança que ela pare de falar e vá embora, porém ela insiste em entabular conversa, sucessivamente, com todos.)
doutor: Essas investigações de rotina têm de ser realizadas. (Serve café a Karl.)
Sra. roper: Naturalmente.
doutor: Toda vez que não se pode emitir um atestado de óbito o inquérito médico-legal é obrigatório.
Sra. roper: Ora, sem dúvida. Estou certa de que está tudo como deve ser, mas mesmo assim não é nada agradável. Isso é que eu digo. (O doutor se serve de café.) Não estou acostumada com essas coisas. Meu marido não vai gostar de me ver envolvida em uma coisa dessas.
Lisa: Mas eu não vejo de que modo a senhora pode ficar envolvida.
sra. rope: (Para Lisa.) Bem, eles me fizeram perguntas, não fizeram, se ela andava deprimida ou se ela costumava falar em fazer alguma coisa como a que houve. (Para Karl.) Ah, sim; eles me perguntaram muita coisa.
Karl: Mas agora acabou, Sra. Roper. Creio que não precisa se incomodar com mais nada, agora.
SRA. Roper: Acho que não. Obrigada, Professor. (Sai pelo ca à D.)
DOUTOR: Essas mulheres parecem um bando de vampiros. Só gostam de doenças, mortes e enterros. Parece que um inquérito é como um prêmio de bom comportamento.
lisa: Lester — café?
LESTER: Muito obrigado. (Serve-se, depois esquece tudo lendo um livro.)
Karl: Deve ter sido alguma espécie de acidente; deve ter sido.
DOUTOR: Eu não sei. O café não é igual ao seu, minha querida Lisa.
lisa: Ela deve tê-lo deixado ferver pelo menos meia hora. karl: A intenção era boa. Lisa. Será que era? (Sai à DB.) DOUTOR: Quer um sanduíche?
karl: Não, muito obrigado.
Doutor: (Para Lester.) Acabe com eles, meu filho. Na sua idade sempre se tem fome.
(Lester, inteiramente envolvido com o livro, nem levanta os olhos, porém automaticamente sé serve de um sanduíche.)
Lester: Até que não é má idéia. lisa: (Defora.) Karl!
karl: Com licença, um momento. Já vou. (Sai à DB.) LESTER: Ele está arrasado, não é, Doutor? DOUTOR: Está.
LESTER: É uma coisa de certo modo esquisita, eu não quero dizer esquisita, porque, suponho — bem, quero dizer, é tão difícil compreender o que os outros sentem.
DOUTOR: O que você está querendo dizer, rapaz?
LESTER: Bem, quer o dizer, que com a pobre da Sra. Hendryk sendo inválida e tudo isso, seria de pensar, não ê, que ele fosse um pouco impaciente com ela, ou que se sentisse muito preso. Seria possível imaginar até que, na verdade, là no fundo, ele ficasse contente por se libertar. Mas não foi assim. Ele a amava. Ele realmente a amava.
Doutor: o amor não é apenas sofisticação ou desejo, ou pura atração sexual — todas essas coisas nas quais os jovens acreditam tanto. Isso é só o modo pelo qual a natureza começa todo o processo. Podemos dizer que tudo isso é a flor esplendorosa. Mas o amor é a raiz. Dentro da terra, fora da vista, nada de muito espetacular, mas é onde está a vida.
Lester: é, suponho que sim. Mas a paixão não dura; não é?
Doutor: Deus me ajude! Vocês, jovens, não entendem dessas coisas. Vocês lêem nos jornais a respeito de divórcios e intrigas amorosas com muito sexo no meio de tudo. Por que de vez em quando não lêem os anúncios de morte, só para variar? Encontrariam uma grande quantidade de registros de que Emily disto ou John daquilo, ao morrerem com 74 anos, eram a bem-amada esposa de fulano ou o bem-amado marido de sicrana. São registros bem pouco espetaculares de vidas passadas juntas, sustentadas por essa raiz da qual eu estava falando e que continua a produzir suas folhas e flores. Talvez não mais flores esplendorosas, mas, mesmo assim, flores.
Lester: Acho que tem razão. Eu nunca tinha pensado nisso. Sempre pensei que casar era arriscar um pouco, a não ser, é claro, que se conheça a moça que....
doutor: Isso — tudo de acordo com o figurino. Você conhece uma moça — ou talvez jã a tenha conhecido — que é diferente.
lester: Mas ela édiferente, Doutor.
Doutor: Já vi tudo. Bem, boa sorte, meu rapaz.
(Karl entra à db, carregando um pequeno pendentife.)
Karl: Quer fazer o favor de dar isto à sua filha, Doutor?
Era de Anya e eu creio que ela gostaria que ficasse para Margaret. (Entrega a jóia.)
doutor: (Comovido.) Obrigado, Karl. Sei que Margaret ficará muito grata por recebê-lo. Bem, está na hora de ir. Não posso deixar os pacientes esperando no consultório.
Lester: (Para Karl.) Eu também vou, se tem certeza de que não há mais nada que eu possa fazer.
KARL: Para falar a verdade, há sim. (LESTER fica encantado.) Lisa está fazendo uns embrulhos com roupas e coisas assim — vai mandá-las para uma instituição de caridade. Se pudesse ajudá-la a carregá-los até o correio...
lester: Mas é claro que posso. (Sai à db.)
(O Doutor sai ao ca. Lester entra à db, carregando uma caixa grande embrulhada em papel pardo, que leva até a escrivaninha, onde a fecha com fita adesiva. Lisa entra à db. Carrega um embrulho de papel pardo e uma pequena gaveta que contém papéis, cartas, etc., e uma caixinha de jóias.)
lisa: Se você pudesse examinar isto aqui, Karl. Sente-se ai e passe os olhos em tudo, sozinho e tranqüilo. Tem de ser feito, e quanto mais cedo melhor.
karl: Como você é equilibrada, Lisa. Começa-se a adiar essas coisas e fica-se com medo de fazê-las. Com medo do quanto vai doer. Mas, como disse, é melhor acabar logo com elas.
Lisa. Eu não me demoro. Vamos, Lester.
(Lisa e Lester saem ao ca. Karl pega a cesta de papéis junto à escrivaninha, senta-se no sofá, pousa a cesta perto de si, coloca a gaveta sobre os joelhos e começa a ler as cartas.)
karl: Há tanto tempo. Tanto tempo. (A campainha da frente toca.) Ora, vá-se embora, seja lá quem for.
sra. roper: (Fora.) Quer fazer o favor de entrar? (Sra. Roper entra ao ca, da d, afasta-se para um lado.) é a Srta. Rollander, Professor.
(Helen entra ao ca, da d. Karl levanta-se e pousa a gaveta sobre a mesa à dc. A Sra. roper sai ao ca à e, deixando a porta aberta.)
Helen: Espero que não pense que estou sendo inoportuna. Mas, sabe, eu fui ao inquérito e depois achei que devia vir aqui para conversar. Mas se prefere que eu vá embora. .. (A Sra. Roper entra ao ca, vestindo seu casaco.)
karl: Não, não, a senhorita não está incomodando.
Sra. Roper: Vou sair só um instantinho para comprar mais chá, antes que eles fechem. Tornou a acabar.
karl: (Manuseando as cartas da gaveta, muito longe de tudo.) Claro, Sra. Roper.
Sra. roper: Ah, já estou vendo que o senhor está fazendo, Professor. E é uma tarefa muito triste. A minha irmã, sabe, é viúva. Guardou todas as cartas que o marido escreveu para ela do Oriente Médio. E volta e meia, pega aquela pilha toda e chora que só vendo. (Helen, impaciente, caminha pela sala.) O coração não esquece. Professor; é o que eu sempre digo. O coração não esquece.
Karl: E é como diz, Sra. Roper.
SRA. Roper: Deve ter sido um choque terrível para o senhor, não é? Ou o senhor já estava esperando?
Karl: Não, não estava esperando.
Sra. Roper: Não sei como é que ela foi fazer uma coisa dessas. (Olha, hipnotizada, para o lugar onde ficava a cadeira de Anya.) Não parece direito; não, senhor, não parece direito, mesmo.
Karl: A senhora não disse que ia comprar chá?
Sra. Roper: Isso mesmo, Professor — e tenho de me apressar porque o armazém fecha às doze e trinta. (Sai ao ca.)
helen: Eu senti muito ouvir... Karl: Muito obrigado.
helen: É claro que já fazia muito tempo que ela estava doente, não é? Ela devia sentir-se tremendamente deprimida.
Karl.- Ela lhe disse alguma coisa antes que fosse embora, naquele dia?
helen: Não. Eu — eu acho que não. Nada em particular.
karl: Mas será que ela estava deprimida? Sem ânimo?
helen: (Agarrándose à possibilidade.) Estava. Sim, estava sim.
Karl: Você foi embora e a deixou — sozinha — antes de Lisa voltar!
helen: Sinto muito. Temo que isso não me tenha ocorrido. Quero dizer, ela estava perfeitamente bem e insistiu para que eu não ficasse, e — bem, para falar a verdade, eu — eu tive a impressão de que ela queria que eu fosse embora — de modo que eu fui. É claro que agora...
Karl: Não, não. Eu compreendo. Percebo que a minha pobre Anya devia estar com aquela idéia em mente e por isso pediu-lhe que se fosse.
Helen: E, de certo modo, na verdade, era o melhor que poderia acontecer, não era?
karl: (Com raiva.) O que quer dizer — o melhor que poderia acontecer?
Helen: Quero dizer para você. E para ela, também. Ela queria se libertar de tudo isso... pois bem, agora conseguiu.
Karl: É muito difícil para mim acreditar que ela quisesse se libertar de tudo isto.
Helen: Mas ela dizia que sim — afinal, ela não podia ser muito feliz, podia?
Karl: Às vezes ela era muito feliz.
Helen: Mas não podia, sabendo que era um peso para você.
karl: (Começando a perder a paciência.) Ela jamais foi um peso para mim.
Helen. Ora, por que razão você tem de ser tão hipócrita a respeito dessa história toda? Eu sei que você era solícito e bondoso para com ela, mas è preciso enfrentar a verdade. Ser amarrado a uma inválida tagarela deve ser uma cruz para qualquer homem. Agora você está livre. Pode seguir seu caminho. Pode fazer qualquer coisa — qualquer coisa. Será que não tem ambição?
karl: Creio que não.
Helen. Mas tem de ter; claro que tem. Eu tenho ouvido os outros falarem a seu respeito; já ouvi dizer que seu livro foi o mais brilhante do século.
Karl: Isso é que é elogio...
helen: Mas era gente que sabia das coisas. Você teve ofertas, também, de ir para os Estados Unidos, para uma porção de lugares. Não ê verdade? E rejeitou-as por causa de sua mulher, a quem não podia deixar e que não podia viajar. Há tanto tempo que você está amarrado que não sabe nem direito o que é ser livre. Acorde, Karl; acorde. Seja você mesmo. Você fez tudo o que podia por Anya. Pois bem, agora acabou. Pode começar a divertir-se, a viver a vida como ela realmente deve ser vivida.
Karl: Isto é algum sermão que você me está pregando, Helen?
helen: Só o presente e o futuro è que importam.
Karl: O presente e o futuro são feitos do passado.
helen: Você está livre. Por que haveríamos de continuar a
fingir que não nos amamos?
Karl: (Firme e quase grosseiro.) Eu não a amo, Helen; é preciso que meta isso em sua cabeça. Eu não a amo.
Você está vivendo uma fantasia fabricada na sua própria cabeça.
Helen: Não estou, não.
Karl: Está, sim, Detesto ser brutal, porém tenho de dizer-lhe que não tenho em relação a você qualquer sentimento do gênero que imagina.
HELEN: Mas tem de ter. Tem de ter. Depoi do que eu fiz por você. Há gente que não teria tido a coragem, mas eu tive. Eu o amava tanto que não agüentava vê-lo agarrado àquela mulher tagarela e inútil. Você não sabe do que eu estou falando, sabe? Eu a matei. Agora, está compreendendo? Eu a matei.
karl: (Completamente estarrecido.) Você matou...Eu não sei que você está falando.
HELEN: Eu matei a sua mulher. Não tenho vergonha do que fiz. Gente doente, gasta e inútil deve ser alijada para dar lugar aos que importam.
Karl: (Afastando-se dela; apavorado.) Você matou Anya?
helen: Ela pediu o remédio. Eu o dei a ela. Dei o vidro inteiro.
karl: Você — você...
helen: Não se preocupe. Ninguém jamais saberá. Eu pensei em tudo. (Fala como uma criança confiante, contente consigo mesma.) Limpei todas as impressões digitais — e consegui botar as próprias impressões dela no vidro e no copo. De modo que isso está tudo certo, compreendeu? Eu não ia contar nada a você, mas de repente não suportei que houvesse qualquer segredo entre nós. (Põe as mãos no peito de Karl.)
Karl: (Empurrando-a.) Você matou Anya.
helen: Se você se acostumar com a idéia...
Karl: Você — matou — Anya. (Cada vez que repete essas palavras cresce sua consciência do ato dela e seu tom se torna mais ameaçador. Ele a pega repentinamente pelos ombros e a sacode como um bicho, depois empurra-a para longe.) Sua desgraçada imatura — o que foi que você fez? Falando aí feito uma matraca a respeito de sua coragem e de sua esperteza. Você matou minha mulher — minha Anya. Será que compreende o que fez? Falando de coisas que não compreende, sem consciência, sem piedade. Eu poderia agarrá-la pelo pescoço e estrangulá-la agorinha mesmo. (Agarra-a pelo pescoço e começa a estrangulá-la. Helen é forçada contra as costas do sofá. Involuntariamente, Karl atira-a para longe e ela cai sobre o braço do sofá, lutando para respirar.) Saia daqui. Saia daqui antes que eu faça com você o que você fez com Anya.
(Helen ainda luta para recuperar a respiração, soluçando ao mesmo tempo.)
Helen: (Desesperada.) Karl.
Karl: Saia. (Gritando.) Eu disse para sair.
(Helen, ainda soluçando, arrasta-se até a poltrona, pega a bolsa e as luvas e, como em transe, sai àD do ca. Karl cai na cadeira da escrivaninha e enterra o rosto nas mãos. Pausa. Lisa entra pela d do ca.)
Lisa: (Chamando.) Já voltei, Karl. (Vai para seu quarto.)
Karl: Minha pobre Anya.
(Pausa. Lisa entra. Está pondo um avental.)
Lisa: Encontrei Helen na escada. Parecia tão esquisita.
Passou por mim como se não me tivesse visto. (Vi Karl.) Karl, o que foi que aconteceu? Karl: Ela matou Anya.
LISA: O quê?
Karl: Ela matou Anya. Anya pediu o remédio e aquela menina desgraçada deliberadamente lhe deu uma dose excessiva.
LISA: Mas as impressões de Anya estavam no copo.
karl: Helen botou-as lá depois que ela morreu.
LISA: (Objetiva.) Compreendo — ela pensou em tudo.
Karl: Eu sabia. Eu sempre soube que Anya nâo se mataria.
Lisa: é óbvio que ela está apaixonada por você.
karl: é isso. Porém eu jamais lhe dei a menor razão para acreditar que me importasse com ela. Jamais, Lisa. Eu juro que não.
lisa: E nem imagino isso. Ela é do tipo de pessoa que acha que tudo tem de ser exatamente como ela quer.
Karl. Minha pobre e brava Anya. (Longapausa.)
lisa: O que é que você pretende fazer?
Karl: Fazer?
lisa: Não vai dar parte à polícia?
Karl: Dar parte à polícia?
lisa: Bem, è assassinato, sabe?
Karl: É. Foi assassinato.
lisa: Bem, então você tem de dizer à polícia tudo o que ela disse.
Karl: Mas eu não posso fazer isso.
lisa: Por que não? Você aprova assassinatos?
Karl: Mas não posso deixar aquela menina...
lisa: (Controlando-se.) Nós viemos, por livre e espontânea vontade, como refugiados, para este país, sob a proteção de cujas leis vivemos. Creio que devemos respeitar essas leis, a despeito do que possam ser nossos sentimentos pessoais em relação a qualquer assunto.
karl: Você julga, seriamente, que eu deveria chamar a polícia?
lisa: Sim.
karl: Por quê?
lisa: a mim parece ser apenas uma questão de bom senso. karl: Bom senso! Bom senso! E será possível guiarmos nossas vidas sempre pelo bom senso?
Lisa. Eu sei que você não guia. Jamais guiou. Tem o coração mole, Karl. Mas eu não tenho.
karl: É errado sentir piedade? A misericórdia poderá ser um erro?
LISA: Ela pode levar a muita infelicidade.
karl: É preciso viver disposto a sofrer pelos princípios em que acreditamos.
LISA: É possível. Isso é problema seu. Mas os outros também sofrem por eles. Anya sofreu por eles.
Karl: Eu sei, eu sei. Mas você não compreende.
LISA: (Encara Karl.) Eu compreendo muito bem.
karl: O que é que você quer que eu faça?
Lisa: Já lhe disse. Dê parte à polícia. Anya foi assassinada. Aquela moça confessou tê-la assassinado. A polícia tem de ser informada.
Karl: Você não pensou bem, Lisa. Ela é tão jovem. Só tem 23 anos.
Lisa: Enquanto que Anya tinha 38.
Karl: Se ela for julgada e condenada — de que vai adiantar? Isso pode trazer Anya de volta? Não compreende, Lisa, que a vingança não pode trazer Anya de volta?
LISA: Não. Anya está morta.
Karl: Eu queria que você visse tudo como eu vejo.
LISA: Mas não posso, Karl. Eu amava Anya. Éramos primas e amigas. Andávamos juntas quando éramos meninas. Cuidei dela quando ficou doente. Vi como tentou ter coragem, como tentou não se queixar. Eu sei o quanto a vida foi difícil para ela.
Karl: Dar parte à polícia não trará Anya de volta. E, além do mais, Lisa, é impossível eu deixar de me sentir responsável. De algum modo eu devo ter encorajado essa menina.
LISA: Você não a encorajou. Sejamos francos, Karl. Ela fez todo o possível para seduzi-lo e não o conseguiu.
karl: Não importa você colocar os fatos nesses termos. Continuo responsável. Seu amor por mim foi o motivo que a levou a fazer o que fez.
lisa: O motivo que a impeliu foi a necessidade de conseguir o que queria, do mesmo modo que sempre obteve tudo o que quis na vida.
Karl: E essa tem sido a tragédia dela. Nunca teve a menor chance.
lisa: E é jovem e bonita.
KARL: O que quer dizer com isso?
LISA: Eu me pergunto se você seria tão sensível e generoso se se tratasse de uma de suas alunas feias.
karl: Você não pode imaginar...
LISA: Não posso imaginar o quê?
Karl: Que eu queira aquela menina...
Lisa: E por que não? Não se sente atraído por ela? Seja honesto consigo mesmo. Tem certeza de que não está um pouquinho apaixonado por ela?
Karl: Como pode dizer isso? Você? Quando sabe — quando sempre soube...? É a você que eu amo. Você. Passo noites em claro pensando em você, querendo você. Lisa, Lisa...
(Karl toma Lisa em seu braços. Abraçam-se apaixonadamente. Uma silhueta indefinida é vista junto à porta ao ca. Após uma pausa a porta é fechada, violentamente. Isso faz com que Karl e LISA se separem e olhem na direção da porta. Não vêem quem foi e o público também é deixado em dúvida a respeito da identidade do bisbilhoteiro. As luzes se apagam enquanto...
(CAI O PANO)
Cena II
Cenário: O mesmo. Seis horas mais tarde. É noite.
Quando o pano se abre as luzes sobem um pouco, deixando a maior parte da sala na escuridão. Lisa está sentada no sofá, fumando. Está quase invisível. Ouve-se a porta da frente abrir e fechar e o som de vozes na entrada. Karl entra ao ca: traz um jornal no bolso do sobretudo. O Doutor entra logo atrás dele.
karl: Não há ninguém em casa. Será...
DOUTOR: Lisa! O que está fazendo aqui, no escuro?
LlSA: Estava só pensando.
doutor: Encontrei Karl na esquina e, então, viemos juntos. Sabe o que eu receitaria para você, Karl? Um pouquinho de álcool. Um conhaque bem forte. Que tal, Lisa? (lisa faz um gesto vago.) Deixe estar; eu conheço bem a casa. (Pega uma garrafa de conhaque e um cálice, serve uma dose grande.) Ele teve um choque, sabe. Um grande choque.
karl: Eu contei a ele a respeito de Helen.
Doutor: é, contou.
lisa: Deve ter sido um choque para o senhor, também?
doutor: Sabe, eu tenho andado meio preocupado. Anya não me parecia ser um tipo suicida e não conseguia conceber a possibilidade de um acidente. (Dá o conhaque a Karl.) E, além disso, o inquérito provocou minhas suspeitas. Não havia dúvida de que a polícia estava por trás do veredicto. é, tudo estava cheirando mal. A polícia me interrogou muito detalhadamente, porém eu não conseguia atinar com o que estavam querendo. é claro que eles nunca chegaram a dizer absolutamente nada.
lisa: Quer dizer, então, que não ficou surpreendido?
doutor: Não, não realmente. Aquela moça acha que pode fazer sempre tudo o que quiser, e pronto. Até mesmo assassinato. Pois bem, estava enganada.
karl: Eu me sinto responsável.
Doutor: Karl, vá por mim. Você não teve qualquer tipo de responsabilidade. Comparado com aquela moça você tem a inocência de um recém-nascido. Seja como for, agora a coisa toda está fora de suas mãos.
lisa: Acha que ele deve dar parte à polícia?
DOUTOR: Acho.
karl: Não.
doutor: Por que insiste em sentir-se parcialmente responsável? Você é sensível demais.
karl: é uma pobre criança desgraçada.
doutor: Uma cadelinha empedernida e assassina! Essa é que é a verdade. E não precisa se preocupar antes do tempo. Aposto dez contra um que jamais será presa. Presumivelmente ela negará tudo — e são necessárias provas, como sabe. A polícia pode saber com certeza quem e o autor de um crime e não conseguir armar o caso. O pai da moça é muito importante. Um dos homens mais ricos da Inglaterra. Isso pesa muito.
karl: Nisso, creio que se engana.
doutor: Ora, não estou falando mal da polícia. Se eles conseguirem armar o caso contra ela, irão em frente, sem medo ou idéias preconcebidas. Só o que digo é que terão de examinar as provas com cuidado ainda maior do que o de costume. E, à primeira vista, não pode realmente haver muitas provas. A não ser, é claro, que ela não resista e confesse tudo. E minha impressão é que ela é dura demais para isso.
karl: Ela confessou a mim.
doutor: Isso ê muito diferente. Muito embora, para falar a verdade, não compreenda por que o fez. Parece-me uma tolice sem nome.
Lisa. Porque se orgulhava do que fez.
doutor: Acha que é isso?
Karl. É verdade. E é isso que torna tudo tão terrível. (A campainha da frente toca.) Quem poderá ser?
doutor: Na certa um de seus alunos. Eu irei livrá-lo dele. (Sai ao ca.)
ogden: (Fora.) Por favor, eu poderia ver o Professor Hendryk?
doutor: (Fora.) Por aqui, por favor. (O doutor entra ao ca e afasta-se para dar passagem.) é o Inspetor Ogden.
(O detetive inspetor ogden e O sargento de Polícia Pearce entram pela d do ca. Ogden tem modos agradáveis e rosto totalmente inexpressivo. O Sargento fecha a porta e fica de pé, acima da mesa ao cd.)
ogden: Espero que não o esteja perturbando, Professor.
Karl: De modo algum.
Ogden: Boa noite, Srta. Koletzky. Creio que não esperavam tornar a verme — porém temos algumas perguntas a fazer. O veredicto ficou em aberto, como sabem. Insuficiência de dados quanto ao modo pelo qual a morta chegou a tomar a dose fatal.
karl: Eu sei.
ogden: O senhor mudou de idéia quanto a isso, Professor, desde a primeira vez em que falamos do assunto?
(Karl lança rápido olhar a Lisa. Ogden e o Sargento notam o olhar e eles mesmos trocam olhares. Pausa.)
Karl: (Deliberadamente.) Não, não mudei. Continuo a pensar que deve ter sido algum tipo de — acidente.
(Lisa afasta-se. O Doutor quase que grunhe e vira-se para outro lado.)
ogden: Porém definitivamente não um suicídio.
Karl: Definitivamente não suicídio.
odgen: Bem, quanto a isso o senhor tem toda razão. Não foi suicídio. LISA: Como é que o senhor sabe?
Ogden: Por provas que não foram apresentadas no inquérito. Provas quanto às impressões digitais encontradas no vidro que continha a droga fatal — e no copo, também.
karl: O senhor quer dizer..., mas as impressões digitais eram as da minha mulher, não eram?
ogden: Ah, sim; as impressões digitais eram as da sua mulher. Porém não foram feitas por ela.
Karl: O que quer dizer?
Ogden: é o tipo de coisa que o criminoso amador pensa que é muito simples. Pegar a mão de uma pessoa e apertá-la em torno de uma arma ou de um copo, ou sejá, lá do que for. Mas na verdade isso não ê tão fácil de fazer. A posição das impressões digitais é tal que jamais poderiam ter sido deixadas por uma mulher viva segurando um vidro. Isso significa que outra pessoa pegou a mão de sua mulher a fim de dar a impressão de que ela se suicidara. Um raciocínio um tanto infantil e feito por alguém muito confiante da própria capacidade. Além disso, devia haver muitas outras impressões digitais no vidro, mas não havia — ele foi inteiramente limpo antes das impressões digitais de sua mulher serem colocadas. Percebe o que isso significa?
KARL: Compreendo.
OGDEN: Não haveria razão para que isso fosse feito caso se tratasse de acidente. O que só deixa uma possibilidade.
KARL: Sei.
OGDEN: Eu me pergunto se sabe, Professor. Tudo isso significa — uma palavra feia — assassinato.
KARL: Assassinato.
OGDEN: Isso não lhe parece muito inacreditável, Professor?
KARL: Não imagina quão inacreditável. Minha mulher era muito suave e delicada. Para mim parecerá sempre tão horrível quanto inacreditável a idéia de que alguém a pudesse ter — matado.
OGDEN: O senhor, mesmo...
KARL: O senhor está me acusando?
OGDEN: Mas é claro que não, Professor. Se eu tivesse qualquer suspeita a seu respeito ter-lhe-ia feito a advertência de lei. Não, Professor Hendryk, já verificamos sua história e temos contas de cada minuto de seu tempo. O senhor saiu daqui na companhia do Dr. Stoner e ele afirma que não havia nem vidro nem copo na mesa de costura de sua mulher quando saíram. Entre o momento em que o senhor saiu e a hora que a Srta. Ko-letzky diz ter chegado aqui e encontrado sua mulher morta, sabemos onde o senhor estava a cada minuto. Estava dando aula a um grupo de estudantes na universidade. Não, não há qualquer indicação de que o senhor tenha sido a pessoa que deixou as impressões digitais de sua mulher no copo. O que lhe estou perguntando, Professor, é se o senhor tem, pessoalmente, alguma idéia de quem o poderia ter feito.
Karl: (Finalmente.) Eu — não posso ajudá-lo.
(ogden levanta-se e troca olhares com o sargento.)
ogden: O senhor compreende, naturalmente, que isso muda as coisas. Será que eu poderia examinar o apartamento, principalmente o quarto da Sra. Hendryk? Eu posso obter um mandado de busca, se for necessário, mas...
karl: Mas é claro. Veja tudo o que quiser. o quarto de minha mulher —é ali. ogden: Obrigado.
Karl: A Srta. Koletzky esteve separando as coisas dela.
(Lisa cruza até a porta àDBe abre-a. Ogden e o Sargento saem à db. lisa olha para karl, depois sai também àDBe fecha a porta.)
doutor: Já o conheço há tempo suficiente, Karl, para lhe dizer que está agindo como um idiota.
Karl: Não posso ser eu a apontar o caminho até ela. Mesmo sem mim vão descobri-la muito breve.
Doutor: Não tenho tanta certeza assim. E tudo isso é uma grande asneira.
Karl: Ela não sabia o que estava fazendo.
doutor: Sabia perfeitamente.
Karl. Não sabia o que estava fazendo porque a vida ainda não lhe ensinou o que é a compreensão ou a compaixão. (lisa entra e fecha a porta.)
LISA: Conseguiu botar algum senso na cabeça dele?
doutor: Ainda não. Você está toda fria.
lisa: Não, não é frio. é medo. Vou fazer um pouco de café. (Sai ao ca à e.)
karl: Eu só queria que você e Lisa compreendessem que a vingança não devolve a vida de Anya.
DOUTOR: E suponhamos que a nossa belezinha continue a dispor de todas as esposas que encontre em seu caminho?
karl: Eu não acredito nisso.
(O Sargento e Ogden entram à db.)
Ogden: Pelo que vejo as roupas e objetos de sua esposa já foram destinados a vários fins?
karl: Já. Foram mandados, creio, para a Missão do Leste de Londres.
odgen: E quanto a papéis e cartas?
Karl. Eu comecei a examiná-los hoje de manhã. Mas não imagino o que possa querer encontrar...
OGDEN: (Vago.) Nunca se sabe. Alguma anotação, algum bilhete...
Karl. Duvido muito. Mesmo assim, naturalmente, reviste tudo. Não creio que encontre... (Pega um pacote de cartas amarradas com uma fita.) Será que vai precisar destas? São as cartas que escrevi à minha mulher há muitos anos.
ogden: Sinto muito, mas infelizmente terei de lê-las também.
karl: Estarei na cozinha se quiser me ver, Inspetor.
(Karl sai ao ca para a e. O doutor sai atrás dele, fechando a porta atrás de si.)
sargento: o senhor acha que ele estava metido na coisa?
ogden: Não. (Examina os papéis na gaveta.) Não de início. Eu diria que ele não tinha a menor idéia. Mas agora ele sabe — e ficou profundamente chocado.
Sargento.- Mas pelo visto ele não vai dizer nada.
OGDEN: Bem, isso já seria esperar demais. Não parece haver muita coisa aqui. Nem seria de esperar que houvesse, dadas as circunstâncias.
sargento: Se houvesse, a Sra. Varre-tudo já saberia. Eu diria que mete o nariz em todo lugar. Aquele tipo sempre sabe as sujeiras. E como se divertiu em contar!
ogden: Uma mulher muito desagradável.
Sargento: Vai servir muito no banco das testemunhas.
Ogden: A não ser que exagere. Bem, nada de novo aqui. É melhor continuar com o trabalho. (Ao ca.) Queiram fazer o favor de vir aqui.
(Lisa entra ao ca e desce até cb. O doutor desce até db do sofá. Karl entra e fica à E do sofá. O Sargento vai até a porta ao ca, fecha-a e fica de pé à frente dela.)
Ogden: Srta. Koletzky, tenho mais algumas perguntas a lhe fazer. Deve compreender que não é obrigada a responder nada a não ser que assim o deseje.
lisa: Não desejo responder a nenhuma pergunta.
Ogden: Talvez esteja agindo bem. Lisa Koletzky, está presa sob a acusação de ter ministrado veneno a Anya Hendryk no dia 5 de março — e é do meu dever adverti-la de que qualquer coisa que disser será anotada e poderá ser usada como prova.
karl: O que é isso? O que está dizendo? O que está fazendo?
Ogden: Por favor, Professor; nada de cenas.
karl: (Cruzando para trás de Lisa e envolvendo-a em seus braços.) Mas o senhor não pode prender Lisa; não pode, não pode. Ela não fez nada.
Lisa: (Delicadamente afastando Karl, com voz clara e calma.) Eu não assassinei minha prima.
Ogden: Mais tarde a senhora terá a oportunidade de dizer tudo o que quiser.
(Karl avança para o Inspetor, porém o Doutor segura-lhe o braço.)
karl: (Empurrando o Doutor, quase aos gritos.) Não pode fazer isso. Não pode.
Ogden: (Para Lisa.) Se precisa de um casaco ou chapéu... Lisa: Não preciso de nada.
(Lisa olha para Karl por um momento, depois o Sargento abre a porta. lisa sai ao ca. Ogden e o sargento seguem-na. Karl toma uma resolução súbita e corre atrás deles.)
Karl: Inspetor Ogden! Volte aqui. Preciso falar com o senhor.
Ogden: (Fora.) Espere no vestíbulo, Sargento.
Sargento: (Fora.) Sim, senhor. (Ogden entra ao ca.)
ogden: Pois não, Professor Hendryk?
karl: Tenho uma coisa a dizer-lhe. Eu sei quem matou minha mulher. Não foi a Srta. Koletzky.
Ogden: (Polido.) Então, quem foi?
Karl: Foi uma moça chamada Helen Rollander. É uma de minhas alunas. Ela — ela apegou-se a mim de forma um tanto infeliz. Ela estava sozinha com minha mulher no dia em questão e deu-lhe uma dose excessiva do remédio para o coração.
ogden: E como sabe disso, Professor?
karl: Ela me disse tudo, hoje de manhã.
Ogden: Verdade? E há alguma testemunha?
Karl: Não; porém eu estou lhe dizendo a verdade.
ogden: Helen — Rollander. Quer dizer a filha de Sir William Rollander?
Karl: Sim. O pai dela é Sir William Rollander. Ele é um homem muito importante. Isso faz alguma diferença?
ogden: Não, não faria qualquer diferença — se sua história fosse verdadeira.
karl: (Levanta-se.) Eu lhe juro que é verdadeira.
ogden: o senhor é profundamente devotado à Srta. Koletzky, não é?
KARL: E o senhor acha que eu inventaria uma história só para protegê-la?
ogden: Creio que é perfeitamente possível — o senhor tem relações íntimas com a Srta. Koletzky, não tem?
karl: (Estarrecido.) O que o senhor quer dizer?
Ogden: Deixe que eu lhe diga, Professor, que a sua empregada, a Sra. Roper, foi à polícia hoje de manhã e fez uma declaração.
KARL: Então foi a Sra. Roper quem...
Ocden: É em parte graças a essa declaração que a Srta. Koletzky foi presa.
Karl: (Para o Doutor, buscando apoio.) o senhor acredita que Lisa e eu...
Ogden: Sua esposa era uma inválida. A Srta. Koletzky é uma jovem atraente. Conviviam quase que forçadamente.
Karl: E o senhor pensa que nós planejamos juntos matar Anya.
Ogden: Não, não creio que o senhor tenha planejado. Pode ser que esteja enganado, naturalmente. Acredito que o planejamento tenha sido feito pela Srta. Koletzky. Havia uma perspectiva de sua mulher recobrar a saúde, graças a um novo tratamento. Acredito que a Srta. Koletzky não queria correr o risco de ver tal coisa acontecer.
karl: Mas eu estou lhe dizendo que foi Helen Rollander.
Ogden: Está dizendo, eu sei. Porém é uma história muito pouco plausível. Acha plausível que uma moça como a Srta. Rollander, que tem o mundo a seus pés e mal o conhece, fizesse uma coisa dessas? Esse tipo de acusação não depõe nada a seu favor, professor — fabricada, assim, de uma hora para outra, só porque acha que não será possível contradizê-lo.
Karl: Escute. Vá procurar a Srta. Rollander. Diga-lhe que uma outra mulher está presa pelo assassinato. Diga-lhe — por mim — que eu sei que — apesar de todos os seus defeitos — ela é decente e honesta. Eu juro que ela confirmará o que eu lhe disse.
ogden: o senhor está sendo muito esperto, não é?
karl: o que quer dizer com isso?
ogden: Exatamente o que eu disse. Mas não há ninguém
para confirmar a sua história. karl: Só a própria Helen. ogden: Exatamente. karl: E o Dr. Stoner. Eu contei a ele. ogden: Ele só sabe porque o senhor lhe contou.
doutor: Eu acredito que seja verdade. Inspetor. Se se lembra, eu mencionei que, ao deixarmos a Sra. Hendryk, naquele dia, a Srta. Rollander permaneceu aqui para fazer-lhe companhia.
Ocden: Um oferecimento muito bondoso da parte dela. Nós interrogamos a Srta. Rollander naquela ocasião e não vejo razões para duvidar do que nos contou. Ela ficou aqui pouco tempo e depois a Sra. Hendryk pediu-lhe que fosse embora, já que se sentia cansada.
KARL: Vá procurar Helen agora. Diga-lhe o que aconteceu. Diga-lhe o que eu pedi que ela lhe contasse.
Ogden: Exatamente quando o Professor Hendryk lhe contou que a Srta. Rollander havia matado sua esposa? Agora, se não me engano.
DOUTOR: Isso mesmo.
KARL: Nós nos encontramos na rua.
Ogden: Não lhe pareceu que se fosse verdade ele nos teria procurado tão logo ela lhe confessasse o que havia feito?
DOUTOR: Ele não é esse tipo de homem.
Ogden: Eu não creio que o senhor realmente saiba que tipo de homem ele é. E ele tem um raciocínio rápido e vivo; e não é muito escrupuloso. (Karl vira-se para o Inspetor, mas o Doutor o segura.) Este é seu sobretudo e este é o seu jornal, pelo que vejo. (Tira o jornal do bolso.)
karl: Sim; eu comprei na banca da esquina, antes de entrar. Ainda não o li.
Ogden: Tem certeza?
karl: Tenho — tenho absoluta certeza.
Ogden: Pois creio que já o leu. (Lê o jornal) "A filha única de Sir William Rollander, Helen Rollander, foi vitima de um lamentável acidente hoje pela manhã. Ao cruzar a rua ela foi atropelada por um caminhão. o motorista do caminhão afirma que a Srta. Rollander não lhe deu tempo de frear. Ela avançou para a rua, sem olhar para a direita ou esquerda, e foi morta instantaneamente." (Karl cai no sofá, arrasado.) Creio que ao ler esse parágrafo, Professor, vislumbrou um meio de salvar sua amante, acusando uma jovem que jamais poderia negar o que diz — porque estava morta.
As luzes apagam-se enquanto...
CAI O PANO
Cena III
CENÁRIO: O mesmo. Três meses mais tarde. Final de tarde.
Quando o pano se abre as luzes se acendem. KARL está sentado rio sofá. O DOUTOR, encostado à mesa da DC, lê o Walter Savage Landor. LESTER anda de um lado para outro, á EC. O telefone toca. Todos se assustam. LESTER atende.
Karl: Eu queria ter ficado no tribunal. Por que não me deixaram ficar?
doutor: Lisa pediu, muito particularmente, que você não estivesse lá quando fosse lido o veredicto. Temos de respeitar seus desejos.
KARL: Você poderia ter ficado.
DOUTOR: Ela queria que eu ficasse com você. Os advogados nos informarão imediatamente...
karl: Não podem julgá-la culpada. Não podem.
LESTER: Se o senhor quiser que eu volte para lá...
DOUTOR: Fique aqui, Lester.
LESTER: Se eu puder ajudar. Se puder fazer alguma coisa... DOUTOR: Pode ficar atendendo o raio do telefone que não pára de tocar.
Karl: Isso, meu rapaz. Fique aqui. Sua presença me ajuda.
LESTER: É mesmo? Ajuda mesmo?
KARL: Ela tem de ser, ela será absolvida. Não acredito que a inocência possa passar sem ser reconhecida.
Doutor: Não? Pois eu sim. Vê-se isso a toda hora. E você também já o viu, Karl, muitas e muitas vezes. Diga-se de passagem que eu creio que ela causou ótima impressão ao júri.
LESTER: Mas as provas são terríveis. É aquela desgraçada daquela Roper. As coisas que disse.
DOUTOR: Era claro que acreditava no que estava dizendo. Isso é o que tornou seu depoimento tão inabalável. Foi um dado particularmente azarado ela ter visto você e Lisa abraçados no dia do inquérito. Imagino que deve ter visto mesmo.
KARL: Sim, deve ter visto. É verdade. Foi a primeira vez na vida que eu beijei Lisa.
DOUTOR: Em um momento realmente infeliz. É uma pena que aquela metida jamais tenha visto ou ouvido nada do que se passou entre você e Helen. "Uma moça muito boazinha" — foi só o que ela conseguiu dizer.
KARL: É tão estranho dizer a verdade e não ser acreditado.
DOUTOR: Só o que você conseguiu foi que todos ficassem com ódio de você por haver inventado uma história sórdida a respeito de uma moça que está morta.
KARL: Se ao menos eu tivesse ido à polícia imediatamente, na hora em que ela me contou...
DOUTOR: Se tivesse... Mas foi realmente um azar você só contar a história depois de ter comprado o jornal que trazia a notícia da morte dela. E suas razões para não ir imediatamente à polícia não davam para ninguém acreditar. Claro que eu acredito, porque sei que idiota completo você é. Mas as circunstâncias são todas as mais terrivelmente condenatórias. Aquela tal Roper encontrar Lisa perto do corpo, segurando o vidro de remédio com a mão enluvada. Toda a coisa se entrosou da maneira mais diabólica... (O telefone toca.)
KARL: É...? Pode ser...?
(Há uma angustiada pausa, depois o DOUTOR faz um gesto para LESTER, que vai até o telefone e atende.)
LESTER: Alô?... Alô... Vá para o diabo! (Bate com o telefone, desligando-o.)
Doutor: Vampiros, isso é o que eles são. Uns vampiros.
KARL: Se a considerarem culpada, se...
DOUTOR: Bem, sempre poderemos recorrer, sabe.
Karl. Mas por que haveria ela de ter de passar por tudo isso? Por que haveria ela de sofrer? Eu gostaria de estar no lugar dela.
DOUTOR: Sim; sempre é mais fácil quando somos nós mesmos.
KARL: Afinal, eu sou parcialmente responsável pelo que
aconteceu....
DOUTOR: Eu já lhe disse que isso é asneira.
Karl: Mas Lisa não fez nada. Nada.
DOUTOR: (Pausa. Para Lester.) Vá fazer um pouco de café, rapaz, se é que sabe.
Lester: Mas é claro que sei... (Toca o telefone. Lester vai
atender, Karl o impede.)
KARL: Não responda.
(O telefone continua a tocar. Lester hesita, mas sai ao ca. pela e. O telefone continua a tocar sem parar. Karl corre para atender.)
Karl: Deixem-me em paz, está bem? Deixem-me em paz. (Bate com o telefone.) Eu não agüento. Eu não agüento.
DOUTOR: Paciência, Karl. Coragem.
KARL: E de que — adianta dizer-me isso?
DOUTOR: Não muito; mas não há o que dizer, há? Não há nada que o possa ajudar, agora, a não ser coragem.
KARL: Eu fico pensando em Lisa. No que ela deve estar sofrendo.
DOUTOR: Eu sei. Eu sei.
KARL: Ela é tão corajosa. Tão maravilhosamente corajosa.
doutor: Lisa é uma pessoa maravilhosa. Eu sempre soube disso.
Karl: Eu a amo. Você sabia que eu a amava?
doutor: É claro que sabia. Já faz muito tempo que você a ama.
karl: É. Nenhum de nós dois o admitia, mas nós sabíamos. Isso não quer dizer que eu não amasse Anya. Eu amava Anya. Eu sempre a amarei. Não queria que ela morresse.
Doutor: Eu sei, eu sei. Jamais duvidei disso.
Karl: Talvez pareça estranho, mas é possível amar duas mulheres ao mesmo tempo.
doutor: Não é nada estranho. Acontece muitas vezes. E você sabe o que Anya costumava dizer-me? "Quando eu me for, Karl precisa casar com Lisa." Era isso que ela dizia. "O senhor precisa obrigá-lo a casar com ela, Doutor", dizia ela. "Lisa cuidará dele e será boa para ele. Se ele não pensar nisso, é preciso que o senhor meta essa idéia na cabeça dele." Era isso que ela costumava me dizer e eu prometi que o faria.
karl: Diga-me de verdade, Doutor. Acredita que eles a absolvam? Acredita?
doutor: Eu creio — que você deveria preparar-se para...
Karl: Nem sequer o advogado acreditou em mim, não é? É claro que fingiu que sim, mas não acreditou.
Doutor: Não, acho que não acreditou, mas há uma ou duas pessoas de bom senso no júri — penso. Aquela mulher gorda com o chapéu engraçado prestou atenção em tudo o que você disse a respeito de Helen, e notei que acenava a cabeça concordando com tudo. Talvez o marido dela tenha saído dos trilhos por alguma mocinha. Nunca se sabe que tipo de coisa esquisita pode influenciar as pessoas. (O telefone toca.)
karl: Desta vez deve ser.
doutor: (Ao telefone.) Alô?...
(lester entra da e do ca, carregando uma bandeja com três xícaras de café.)
karl: Então?
lester: É...? (Pousa a bandeja na mesa.)
doutor: Não...Não, temo que não possa. (Desliga.) Outro vampiro.
karl: Mas o que esperam conseguir com isso?
doutor: Creio que um aumento na circulação dos jornais.
lester: (Servindo café a Karl.) Espero que esteja bom.
Eu custei até achar tudo. Karl: Obrigado.
(Lester serve-se de café e dá uma xícara ao doutor. Pausa enquanto tomam café.)
Doutor: Algum dia você jà viu garças voando baixo ao longo da margem de um rio? lester: Nâo, acho que não. Por quê? doutor: Por nada.
lester: Por que lhe veio essa idéia à cabeça?
doutor: Não sei. Imagino que apenas o desejo de que nada disto fosse verdade e eu estivesse em qualquer outro lugar.
lester: Ah, compreendo. É tão horrível não poder fazer nada.
doutor: Não hà nada pior do que esperar.
lester: (Pausa.) Sabe, eu tenho a impressão de que nunca vi uma garça. doutor: São pássaros muito graciosos.
Karl: Doutor, eu quero que faça uma coisa para mim. doutor: Sim? O quê?
Karl: Quero que volte ao tribunal. doutor: Não, Karl.
Karl: Sim, eu sei que prometeu. Mas eu quero que volte. doutor: Karl —Lisa...
karl: Se acontecer o pior, eu gostaria que Lisa pudesse vê-lo lá. E se não for o pior — bem, então ela precisará de que alguém cuide dela, que a tire de lã e a traga para casa. Eu sei que estou com a razão.
DOUTOR: Muito bem.
LESTER: (Para o DOUTOR.) Eu posso ficar e...
(Karl olha para o Doutor e sacode ligeiramente a cabeça. O Doutor capta a sugestão.)
DOUTOR: Não, você vem comigo, Lester. Há momentos em que um homem tem de ficar sozinho. é isso, não é Karl?
Karl. Não se preocupem comigo. Eu quero ficar aqui, quieto, com Anya.
DOUTOR: O que foi que disse? Com Anya?
KARL: Foi isso que eu disse? é o que parece. Deixem-me aqui. Não atenderei o telefone. Esperarei até que voltem. (O Doutor e Lester saem ao ca à d. Karl recosta-se em sua poltrona. O relógio bate seis horas.)
"Enquanto dure a luz eu me lembrarei E nem na escuridão esquecerei".
(Pausa. Depois o telefone toca. Karl levanta-se, ignora o telefone, e sai levando as xícaras pelo ca à e. Enquanto está fora o telefone pára de tocar. Karl volta e vai pegar o disco de Rachmaninoff. Vai até a escrivaninha e senta-se, pousando o disco na mesma, em frente a ele. Lisa repentinamente entra do ca à d, fecha a porta atrás de si e se encosta nela. Karl levanta-se e vira-se.)
Karl: Lisa! (Sem acreditar no que vê.) é verdade? é mesmo?
LISA: Eles me absolveram.
KARL: (Tentando tomá-la em seus braços.) Oh, minha querida. Como estou grato. Ninguém há de magoá-la de novo, Lisa.
Lisa: (Empurrando-opara longe de si.) Não.
Karl: (Finalmente percebendo a frieza e a distância dela.) O que quer dizer?
LiSA: Eu vim buscar as minhas coisas.
karl: O que quer dizer — suas coisas?
LISA: Só algumas coisas de que preciso. Depois eu vou embora.
karl: O que quer dizer — vai embora?
LISA: Vou sair daqui.
karl: Mas, fora de brincadeira — isso é ridículo! Não quer dizer que se importa com o que os outros dizem? Será que isso importa, agora?
LISA: Você não compreende. Eu vou embora para sempre.
karl: Embora — para onde?
Lisa: O que importa? Algum lugar. Eu posso arranjar um emprego. Não haverá dificuldades quanto a isso. Vou para o exterior ou fico na Inglaterra, não sei. Seja onde for, é para começar uma nova vida.
Karl: Uma vida nova? Quer dizer — sem mim?
LISA: É. É, Karl. É exatamente isso que quero dizer. Sem você.
Karl: Mas por quê? Por quê?
LISA: Porque para mim, basta.
Karl. Eu não compreendo.
LlSA: Não fomos feitos para nos compreendermos. Nós não encaramos as coisas do mesmo modo e eu tenho medo de você.
Karl: Como é que você pode ter medo de mim?
LISA: Porque você é o tipo de homem que sempre causa sofrimento.
Karl: Não.
LISA: É verdade.
Karl: Não.
Lisa: Eu vejo as pessoas como elas são. Sem malícia, sem julgá-las, mas também sem ilusões. Não espero que as pessoas sejam maravilhosas, ou que a vida seja maravilhosa, e nem eu desejo, particularmente, ser maravilhosa. Se existem campos de amaranto — no que me diz respeito eles só podem existir do oulro lado do túmulo.
Karl: Campos de amaranto? Do que está falando?
LISA: Estou falando de você, Karl. Você põe suas idéias em primeiro lugar, não as pessoas. Idéias sobre lealdade e amizade e piedade. E por isso as pessoas que estão perto de você sofrem. Você sabia que perderia seu emprego se abrigasse os Schultzes. E sabia, tinha de saber, que infelicidade de vida isso seria para Anya. Mas não se importou com Anya. Só se importou com suas idéias e com o que estava certo. Mas as pessoas são importantes, Karl. Tão importantes quanto as idéias. Anya era importante, eu sou importante. Por causa das suas idéias, por causa de sua misericórdia e compaixão para com a moça que matou sua mulher, você me sacrificou. Fui eu quem pagou pela sua compaixão. Mas não estou mais disposta a fazer esse tipo de coisa. Eu o amo, porém isso não basta. Você tem mais coisas em comum com Helen do que comigo. Ela era como você — implacável, ia até o fim para obter o que queria. Não se importava com as pessoas, desde que saíssem do caminho dela.
Karl: Lisa, você não pode querer dizer o que está dizendo. Não pode.
LISA: Quero, sim. Na verdade eu já venho pensando nisso há muito tempo. Pensei nisso em todos aqueles dias no tribunal. Eu realmente não esperava que me absolvessem. Nem sei por que o fizeram. O juiz não parecia ter sequer a menor sombra de dúvida. Mas parece que alguns dos jurados acreditaram em mim. Havia um homem que ficava me olhando, assim como se estivesse me avaliando. Apenas um homem comum, sem nada de extraordinário — mas ele olhou para mim e achou que eu não tinha feito aquilo — ou pode ser que ele tenha pensado que eu fosse o tipo de mulher que ele gostaria de levar para a cama e por isso não queria que eu sofresse. Não sei o que pensou — mas — era uma pessoa olhando para outra e ficou do meu lado e pode ser que tenha conseguido persuadir os outros. E, então, estou livre. A mim foi dada uma segunda oportunidade na vida. E eu vou começar de novo — sozinha. (Sai à DB.)
Karl: Lisa. Você não pode querer dizer isso. Não pode ser tão cruel. Você tem de me ouvir, Lisa. Eu lhe imploro.
(Lisa volta à db. Traz uma pequena moldura de prata com uma fotografia.)
Lisa: Não, Karl. O que acontece às mulheres que amam você? Anya o amava e morreu. Helen o amava e morreu. Eu — estive muito perto da morte. Para mim basta. Quero me livrar de você — para sempre.
Karl: Mas para onde você irá?
Lisa: Você me disse para ir embora e ter filhos. É possível que faça isso. Se acontecer, vou encontrar alguém como aquele homem do júri, alguém que seja humano, uma pessoa, como eu. (Grita repentinamente.) Basta! Eu o amei durante anos e fiquei liquidada. Eu vou-me embora e não quero vê-lo nunca mais. Nunca!
Karl: Lisa!
Lisa: Nunca!
(Ouve-se repentinamente a voz do doutor, chamando, da entrada.)
doutor: (Fora, chamando.) Karl! Karl! (Entra sem ver Lisa.) Está tudo bem, rapaz. Ela foi absolvida. Compreendeu? Ela foi absolvida. (Vê Lisa e cruza para ela de braços abertos.) Lisa. Minha querida Lisa. Graças a Deus você se salvou. é maravilhoso! Maravilhoso!
Lisa: (Tentando corresponder.) Sim, é maravilhoso.
Doutor: (Examinando-a.) Como vai você? Um pouquinho tensa — mais magra — o que é muito natural, com tudo o que passou. Mas nós vamos compensar tudo isso. Vamos cuidar de você. Quanto ao Karl, aqui, você nem pode imaginar em que estado ele ficou. Bem, graças a Deus agora está tudo acabado. (Para Karl.) Que me diz — vamos sair para comemorar? Uma garrafa de champanhe?
LISA: (Forçando um sorriso.) Não, Doutor — hoje não.
doutor: Ora, mas que idiota eu sou. Claro que não. Você precisa descansar.
Lisa: Eu estou bem. Só preciso ir apanhar umas coisas minhas.
doutor: Coisas?
lisa: Eu não — eu não vou ficar aqui.
doutor: Mas... Ah, percebi — bem, talvez seja sensato, com gente como a tal Roper solta por aí, com suas mentes e línguas imundas. Mas vai para onde? Para um hotel? É melhor ir lá para casa. Margaret ficará encantada. Só temos um quartinho pequenino, mas cuidaremos muito bem de você.
LISA: Quanta bondade sua. Mas já fiz meus planos. Diga — diga a Margaret que muito breve eu irei visitá-la.
(Lisa sai para o seu quarto. O doutor começa a perceber que nem tudo está bem.)
doutor: Karl, há qualquer coisa errada?
Karl: O que poderia estar errado?
doutor: (Aliviado.) Ela passou por uma experiência terrível. Leva algum tempo para — para voltar ao normal. Quando me lembro como estávamos sentados aqui — esperando — com aquele raio daquele telefone tocando sem parar — esperando — temendo — e que agora... acabou tudo.
karl: Sim, acabou tudo.
doutor: Nenhum júri decente poderia condená-la! Eu disse. Karl, você ainda está meio estonteado. Será que ainda não acreditou? (Abraça Karl.) Karl, acabe com isso. Estamos com a nossa Lisa de volta. Eu sei que sou desajeitado — eu sei que leva algum tempo para se ficar acostumado com a alegria.
(Lisa entra, vinda de seu quarto. Carrega uma sacola, que pousa no chão. Evita olhar para Karl.)
Lisa: Agora eu vou.
doutor: Vou chamar um táxi para você.
lisa: Não — por favor — prefiro ficar sozinha. (O doutor fica perplexo, mas cede. Ela vai até o doutor, põe as mãos sobre seus ombros.) Obrigada — por sua bondade — por tudo o que fez por Anya — sempre foi um bom amigo — jamais me esquecerei. (Beija o doutor, pega a sacola e sai ao ca à d, sem olhar para Karl uma única vez.)
doutor: Karl — o que quer dizer isso? Há qualquer coisa errada.
karl: Lisa vai embora.
Doutor: Sim, por uns tempos. Mas — vai voltar. KaRL: Não, ela não vai voltar.
Doutor; O que é que você quer dizer com isso? karl: Ela — não — vai — voltar.
Doutor: O que quer dizer? Vocês se separaram?
Karl. Você viu como ela foi embora. Aquela foi nossa despedida.
Doutor: Mas, por quê?
Karl. Ela disse que para ela já bastava.
DOUTOR: Fale direito, homem.
Karl: é muito simples. Ela sofreu. Ela não quer sofrer mais.
Doutor: Mas por que razão haveria ela de sofrer?
KARL: Parece — que eu sou um homem — que traz sofrimento aos que o amam.
Doutor: Mas que asneira!
Karl: Será? Anya me amava e morreu. Helen me amava e morreu.
Doutor. Lisa disse isso a você?
Karl: Disse. Será que sou assim? Eu só trago sofrimento a quem me ama? O que ela queria dizer quando falou em campos de amaranto?
Doutor: Campos de amaranto. (Pensa um momento e depois pega o Walter Savage Landor na mesa à dc.) Foi aqui que eu li. (Aponta a passagem.)
Karl: Por favor, deixe-me.
Doutor: Eu gostaria de ficar.
KARL: Eu preciso me acostumar a ficar sozinho.
DOUTOR: (Hesitando.) Você não acha...
Karl: Ela não voltará. (O doutor, relutante, sai ao ca. à d. Karl se levanta, vai até a escrivaninha, acende a luz, fecha as cortinas, senta-se e começa a ler.) "Não há campos de amaranto deste lado do túmulo. Não há vozes, oh Rodope, que não se calem logo, por melódicas que sejam: não há nome, por mais apaixonadamente que seja repetido, do qual o eco afinal não esvaia"... (Ele pousa o livro sobre a escrivaninha, levanta-se, pega o disco, vai até o gramofone, liga-o e depois, vagarosamente, vai cair sentado na poltrona.) Lisa — Lisa — como poderei viver sem você? (Deixa cair a cabeça entre as mãos. A porta ao ca abre-se lentamente. Lisa entra, cruza Karl e pousa delicadamente a mão sobre o ombro dele. Ele olha para ela.) Lisa? Você voltou! Por quê?
LISA: (Ajoelhando-se ao lado dele.) Porque sou uma idiota.
(Lisa apoia a cabeça no colo de Karl, ele encosta sua cabeça na dela e a música sobe enquanto...)
(CAI O PANO)
Agatha Christie
O melhor da literatura para todos os gostos e idades