Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VIADUTO / David Whelton
O VIADUTO / David Whelton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VIADUTO

 

            O viaduto fora construido pela Companhia de Caminhos de Ferro Provinciais do Oriente e corria entre duas colinas verdes em oito enormes arcos suportados por esguios pilares de tijolo. Era muito alto, tão alto que, em determinadas condições atmosféricas, os carris ficavam escondidos pelas nuvens baixas e só os pilares eram visiveis. A cidade estava abaixo do viaduto, de tal modo que este fazia os edifícios parecerem pequenos, até mesmo a catedral, com a sua torre em espiral, e a câmara, com a sua cúpula de cobre. Era um mistério o motivo que levara a autorizar a construção do viaduto, a menos que, no século passado, a cidade tivesse cedido ao prestigio de ser um terminal ferroviário ao ponto de permitir que a Companhia de Caminhos de Ferro Provinciais do Oriente erigisse aquela espantosa estrutura. Talvez os cidadãos não se tivessem apercebido, aquando da concepção do terminal, da escala gigantesca do viaduto que agora lhes atravessava a cidade.

            O caminho de ferro que passava sobre o viaduto nunca fora um êxito financeiro e estava abandonado, mas o viaduto, agora totalmente redundante, continuava a dominar a cidade. Há muito que a natureza invadira o atalho aberto entre os seus parapeitos, e aí tinham criado raizes ervas e até algumas pequenas árvores, que, de certo modo, levavam a que o viaduto constituisse uma parte natural da paisagem, como se não tivesse sido o homem a fazê-lo, mas sim alguma estranha convulsão da terra.

            Estava um homem no viaduto, equipado para andar a pé, pois calçava botas pesadas, vestia umas calças e um casaco grossos e levava um volume ás costas. Mantinha-se em silêncio, ignorando o vento que, naquelas alturas, era forte e cantava entre os ferros do parapeito em ruínas, e olhava em frente, um olhar fixo na perspectiva infinita dos carris. Procurava ignorar a cidade a seus pés, uma coisa difícil, pois era domingo, cerca das onze da manhã, e as torres das igrejas da cidade tocavam os seus sinos em despique, fazendo com que ao viaduto chegasse um clamor metálico constante, se bem que confuso. O único sino que, em virtude da sua sonoridade profunda, conseguia manter a individualidade naquele mar de som era o sino-tenor da torre da catedral.

            O homem em cima do viaduto nem dava pelo som: estava ali parado, em silêncio, olhando em frente, mas de repente, levado por qualquer impulso interior, começou a andar, escolhendo o seu caminho entre as árvores e arbustos que cresciam no espaço sem pavimento entre os dois parapeitos.

            A meio do viaduto encontrou um homem que passeava com um cão, um labrador negro, ainda cachorro, que puxava pela trela.

            Era inevitável o encontro entre os dois homens e, por um momento, pareceu que iam passar um pelo outro sem se falarem. Olharam-se sem fazerem qualquer saudação, sem qualquer sinal de reconhecimento, e só depois de o homem do cão passar é que o outro falou.

            -           Desculpe.

            O homem do cão voltou-se, puxando pela trela do animal.

            -           Senta-te, Salomon! - O cão ignorou a ordem. - Senta-te, bicho preto! - Sorriu e fez um gesto na direcção do cão. - Só tem nove meses.

            O outro homem viu tudo isto com uns olhos castanhos e graves.

            -           Quando fechou o caminho de ferro? Ia apanhar um comboio no terminal.

            O homem do cão começou a rir e sacudiu a cabeça com perplexidade.

            -           Quando fechou? - Com um gesto mostrou as árvores que se espalhavam pelo leito dos carris. - Acho que há uns dez anos. É forasteiro, não é?

            -           Não, esta é a minha cidade. Nasci aqui.

            -           Está a gozar comigo? - A julgar pela sua expressão, o homem do cão decerto pensava que estava a falar com um louco. - Onde esteve todo este tempo?

            O outro homem sentou-se no parapeito, aparentemente sem consciencia do terrível precipício que havia do outro lado:

            -           Acho que não lhe será difícil adivinhar a resposta.

            E o homem do cão viu o corte de cabelo curto da prisão, a magreza, a agudeza dos olhos.

            Os dois homens observaram o cão. O dono, cansado de o puxar, inclinou-se e soltou a trela da coleira. O animal, solto, correu viaduto fora até um grupo de arbustos.

            -           Por aqui há coelhos - disse o dono do cão.

            -          É estranho - e o homem sentado no parapeito levantou-se e olhou para baixo, para a cidade, cuja visão diminuída pareceu não o perturbar; ao outro homem teria dado vertigens. - É estranho pensar em coelhos aqui, por cima da cidade. E estas árvores, este mato bravo. - Virou-se para o outro. - O viaduto é o seu passeio habitual?

            -           Não, não é. Nunca cá estive antes. Moro acolá em baixo... - e apontou para um amontoado anónimo de casas com terraços, não muito longe de uma igreja cujo galo do cata-vento rodava sem parar nas complexas correntes de vento criadas pelos arcos do viaduto. - Nunca tinha visto a minha casa aqui de cima.

            -           Nunca cá veio?

            -           Nunca, excepto, é claro, de comboio, quando era mais novo; lembro-me que das janelas das carruagens não se via a cidade. - Juntou-se ao ex-prisioneiro e ambos se inclinaram no parapeito. - Isto aqui em cima não parece muito seguro, não sei se fazem alguma manutenção.

            O homem libertado riu, um riso breve e involuntário.

            -           Está tão seguro aqui em cima como lá em baixo, acho eu. Se esta coisa cair será a mesma coisa.

            -           Não me refiro a isso, mas a esta altura, á altura disto, e ao facto de a cidade ser tão pequena; se atirarmos daqui uma pedra podemos acertar no telhado de uma dúzia de igrejas. Fez uma pausa. - Nunca tinha reparado que havia tantas igrejas na cidade.

            O homem libertado virou as coisas à ideia e tornou a sentar-se no parapeito.

            -           Aposto que daqui pode ver a minha casa.

            -           A casa onde vivia?

            -           Refiro-me á prisão. Daqui pode vê-la, posso até apontar o meu bloco. A janela estava virada para aqui, para o viaduto, e era tudo o que eu via. As pedras, os arcos, o sol a bater nas pedras. Costumava olhar de lá e sempre soube que a primeira coisa que faria seria atravessar este viaduto e afastar-me da cidade. - Havia uma certa tensão na sua voz. - E simpático da sua parte estar para aqui a escutar-me, poucos o fariam.

            -           Não me custa nada. - O dono do cão olhou para a perspectiva da via férrea. - Salomonl

            -           Compreende: o viaduto era a única coisa que eu via. Quando me deixaram sair, a primeira coisa que fiz foi ir até ao terminal para apanhar um comboio e sair da cidade.

            Meteu a mão num bolso à procura de um cachimbo e tirou um pequeno, de roseira, com uma boquilha de alumínio que devia ter comprado há pouco tempo porque a fornalha estava brilhante e nova e a boquilha não tinha qualquer mancha.

            -           Não sei bem se todas as famílias serão tão orgulhosas e condenatórias - prosseguiu. - A minha? Nunca mais me falaram. Tenho de me ir embora. Não posso viver aqui.

Acendeu o cachimbo e tossiu, olhando para a fornalha brilhante. - Vou levar algum tempo a habituar-me de novo a isto. - Tornou a meter o cachimbo no bolso. - É tão estranho que esta coisa onde agora estamos, este viaduto, já não tenha qualquer préstimo! Quero dizer: para mim, quando ali estava, significava muito, era tudo o que podia ver.

            -           Sendo assim, não vai para qualquer sítio em particular.

            -           Vou sair da cidade. Já estou a meio caminho. - Soltou outra das suas gargalhadas preocupadas, como se soubesse que estava meio a falar para si mesmo. - Ali estava mais longe dela do que jamais serei capaz de estar.

            -           Para onde vai?

            O homem libertado encolheu os ombros:

            -           Nunca pensei nisso. - Estava ciente do olhar do outro e o facto lançou-o em introspecção. - Suponho que gostaria que lhe dissesse porque estava ali.

            -           Nunca lhe faria essa pergunta.

            -           Não, mas gostaria de a fazer.

            -           Bem, tenho de ir. - Sorriu, um sorriso forçado. - O meu cão, não passa de um cachorro. - Olhou para os arbustos: - Salomon! Vem cá, meu porco negro!

            O homem libertado levantou-se:

            -           Aonde vai dar esta via?

            -           Vem cá, Salomonl - O dono do cão assobiou e o animal saltou de dentro dos arbustos, de língua pendente. Os olhos do animal eram traquinas e brilhantes. O dono fez barulho com a corrente da trela. - Vem cá! - Olhou para o outro homem. - Que perguntou?

            -           Aonde vai dar esta via?

            -           Não sei, não sou viajante. Não voltei a precisar de andar de comboio desde criança. Não sei - e acorrentou o cão, enquanto contemplava a cidade.

            -           Vou ter de descobrir por mim mesmo, nesse caso.

            O homem libertado começou a caminhar ao longo dos carris. Não olhou para trás, para o dono do cão, nem olhou para a cidade.

           Lá em baixo, o barulho dos sinos parara e a cidade estava silenciosa com um silêncio de domingo.

 

            Na cidade abaixo do viaduto as torres estavam silenciosas. O meio-dia dera lugar a uma tarde quente e esta a um anoitecer enevoado; as sombras estenderam-se sobre os telhados das igrejas, das casas e dos edifícios municipais, sobre os telhados vermelhos do bairro pobre e os telhados atorreados do palácio do bispo. Em poucas horas as sombras estender-se-iam até ao vale do rio e às terras pantanosas. Dentro de meia hora os sinos da cidade tocariam, mas naquele momento ainda permaneciam silenciosos.

            Uma mulher estava sentada num pequeno rectângulo onde o sol penetrava, o qual não media mais de seis metros, na sua maior dimensão, e era o pátio privado da casa onde ela morava. Não era visível de outras janelas que não as suas, e estas estavam abertas para permitir a entrada do ar fresco do Verão quente. A mulher sentara-se numa cadeira windsor, frente a uma pequena mesa, e era evidente que nenhum destes artigos de mobiliário se destinava a uso no exterior; talvez ela os tivesse ido buscar à cozinha para tirar proveito do ar de estio. A mulher era alta, vestia com simplicidade e achava-se descalça. Nada havia em cima da mesa, na sua frente, e ela olhava para a parede nua fronteira à cadeira. O seu rosto estava inexpressivo, relaxado e neutro, como se soubesse e apreciasse a privacidade do seu pátio.

            Dentro da casa, através dos vãos abertos, podia ver-se obscuramente a mobília, mas uma observação mais atenta do interior revelaria que a mulher sentada no jardim vivia sozinha, não era dada a divertimentos e tinha um gosto que se poderia chamar de ligeiramente fora de moda; talvez se sentisse satisfeita por morar numa casa mobilada pelos pais, ou pelos pais do marido. Havia também uma impressão de ordem e segurança.

            Os dois acontecimentos deram-se ao mesmo tempo. A sombra de um dos pilares do viaduto entrou no pátio com surpreendente rapidez, arrefecendo o lugar com igual rapidez, e, por coincidência, a campainha da porta tocou.

            A mulher levantou-se e olhou à volta, surpreendida por alguém estar a tocar àquela hora. Alisou o vestido, ainda descalça, percorreu o pátio até à porta e atravessou a cozinha. à sua frente estava a entrada. Viu as duas silhuetas recortadas na porta da frente e abriu a porta.

            -           Sim, conhece-me - disse o homem de feições grosseiras de pé no degrau da porta. - Reconhece-me do julgamento, vejo bem que sim. - Estivera a olhar o rosto da mulher; depois deixou-a e fez um gesto impaciente com a palma da mão direita, indicando que ela devia sair do seu caminho.

- É esta a casa - prosseguiu, virando-se para dois homens que continuavam atrás dele. Voltou a dirigir-se à mulher. - Onde está ele? - Deu um passo dentro da casa e a mulher recuou. - Poupar-te-á tempo e energia dizeres-me já onde se esconde: em que quarto, armário, guarda-roupa, tecto ou sótão... mas diz.

            A mulher recuou mais:

            -           Que quer?

            -           Apenas que me digas se ele está aqui.

            O homem de feições grosseiras falou com uma raiva simulada.

            -           Ele não está aqui.

            Não havia qualquer desafio na negação da mulher.

            -           Está bem. E eu devo acreditar nisso, não é? Esqueces-te de que te vi no banco das testemunhas dizendo mentiras após mentiras para o proteger.

            -           Para que o querem? Só hoje foi libertado.

            -           Sei disso tão bem como tu, mas há novas acusações. - Acendeu um cigarro. - Suponho que já o tenhas adivinhado. - Vendo que a mulher não dava resposta, entrou em casa. - Existem sempre acusações novas nestes casos de sedição.

            Parou na porta que dava para o pátio tranquilo.

            -           A casa é tua?

            A mulher acenou afirmativamente.

            -           Que quer? Porque está aqui? Que quer?

            O nervosismo na sua voz tornava difícil distinguir as palavras. O coração batia-lhe, acelerado, no peito.

            -           Podemos falar ali no pátio.

            O homem avançou até ao pátio, onde as clematites brilhavam na parede onde a sombra ainda não chegara.

            Em muitas coisas havia algo de perturbadoramente familiar no comportamento do homem de rosto grosseiro, na maneira como, por exemplo, tirou os papéis da pasta e os colocou sobre a mesa, fazendo dela a sua secretária. Sentou-se na única cadeira, de forma o mais natural possível, como se estivesse acostumado a fazer isso em todas as boas tardes da sua vida. Depois olhou para a mulher.

            -           Tens frio?

            -           Não.

            -           Bem.

            Rearrumou os papéis sobre a mesa e retirou mais algumas coisas oficiais da mala: um conjunto de carimbos de borracha, um pau de lacre, uma caneta e um frasco de tinta. Virou-se para um dos homens:

            -           Arranjem uma cadeira para ela. Depois façam uma busca na casa. Deixem-nos a sós. - Desabotoou o casaco e dirigiu-se à mulher: - Quando o encontraste pela primeira vez?

            O homem fez uma pausa, a caneta pronta a ser mergulhada no tinteiro.

            -           Sabe quando foi! Já lhe disse tudo no julgamento!

            -           Tenta manter-te calma. - A complacência aborrecida regressara à voz do homem. - Conheceste-o quando ele era um trabalhador itinerante?

            -           Sim.

            -           E tiveste relações sexuais com ele?

            A mulher começou a chorar e o homem observou-a numa atitude de paciência forçada, como se soubesse o segundo em que ela pararia de chorar e voltaria a falar.

            -           Não, não foi essa a razão de tudo - replicou ela com uma voz tão indistinta que o homem teve dificuldade em apanhar as palavras. Inclinou-se para a frente. - Diz isso de uma forma tão horrível, tão cruel.

            -           Mas tiveste relações sexuais com ele. Ele tinha dezoito anos e tu trinta, mas nessa altura não parecias preocupada, não estavas preocupada com o facto de os vizinhos o saberem. Eras viúva de fresca data. - Levantou-se, de rosto vermelho e irado, mas com uma falsidade calculada na sua raiva. - Não tens vergonha? Nem um bocadinho sequer? Em tão pouca conta tinhas a memória do teu marido que sais e trazes para a cama o primeiro trabalhador que encontras, para te satisfazer? Se eras uma mulher desse tipo nessa altura como podes ter mudado? Ou pensas que me amoleces com essa choradeira?

            Parou e, apesar da sua expressão carrancuda, era evidente que poderia também ter sorrido ao ver a mulher ali na sua frente.

            Uns segundos depois, estavam sentados em silêncio, o homem vigilante e observador, a mulher estremecendo com as lágrimas. Em torno deles o pátio escurecia, apenas a luz vinda da janela do primeiro andar traçava um quadrado no chão de lajes.

            O homem levantou-se pesadamente, aproximou-se da mulher e colocou-lhe uma mão sobre o ombro.

            -           Tudo bem. Talvez ele te tivesse enganado. Podes contar-mo; quero saber a verdade. - Inclinou-se e deu-lhe uma palmadinha no ombro. - Como aconteceu?

            -           Porque quer sabê-lo? Tornou o julgamento dele um tormento.

            -           O tormento foi ele quem o provocou. - Fez uma pausa. - Talvez tenha sido agora bruto de mais, mas tenho de pensar no meu dever e a sedição pode ser uma coisa horrível. O próprio facto de ele te ter levado à certa o demonstra. Não sei, talvez o tenhas feito com boa intenção. Julgas que não compreendo como estas coisas podem acontecer? És inteligente, vi isso no julgamento, mas, acredita, os inteligentes são tão enganados como os outros nestas questões. - Amaciou a voz. - Conta-me o que aconteceu.

            -           Estavam os três a trabalhar na estrada. Era um dia de muito calor... - a mulher deixou de falar.

            -           Era um dia de muito calor - e o homem, ciente de que a sua voz imitava a dela, repetiu as palavras num tom suave e solicito. - Era um dia muito quente e tu levaste-lhes cidra.

            -           Não, não foi cidra.

            -           Está bem, não interessa o que lhes levaste.

            -           Os três estavam cheios de calor e de sede. Dois dos homens eram mais velhos e, obviamente, trabalhadores, pois recordo ainda as suas mãos calejadas quando pegaram nos copos e a maneira como os seus olhos me observaram.

            -           Convidaste-os para virem até este pátio?

            -           Convidei; estava calor na rua, não havia pavimento e o tráfico era intenso, levantando uma poeira branca.

            -           E o terceiro? Era este homem, não era? - O homem retirou o braço do ombro dela. Inspirou fundo. - Sabes, não me estás a contar muita coisa, não me estás a dizer porque te atraiu ele tanto.

            -           Era muito calado.

            -           Uma coisa óbvia de dizer - comentou o homem com ar bem-humorado. - É uma banalidade afirmar que as mulheres acham sempre atraentes os homens calados?

            - Era calado e estava só, tornava-se evidente que os outros dois não gostavam da sua companhia. Sentaram-se juntos e falavam um com o outro. O Mexander estava quieto, não se mostrava distante por gosto de estar distante, compreende?

            -           Acho que sim.

            -           E era tão novo, havia algo nele que me dizia que tinha qualquer perplexidade interior. Admito que o observei da janela e vi que passara por alguma experiência terrível, mas que nada diria. Convidei-o aqui para casa e ele ficou ali, de pé, na sala, olhando a mobília. Era um dia de calor e não tinha camisa, estava nu da cintura para cima, facto que o embaraçava.

            -           Pensaste que se encontrava ferido e tiveste compaixão dele? Foi isso?

            -           Ele estava ferido, mas só muito mais tarde me apercebi da extensão das suas feridas. Só quando aprendeu que podia confiar em mim.

            -           E acreditaste em tudo o que ele te disse?

            A mulher ergueu o olhar.

            -           Sim - respondeu ela, simplesmente -, tinha de acreditar nele. Não era do tipo que gostasse de impingir uma história; nunca dava o primeiro passo. Era respeitoso, envergonhado. Desejei ajudá-lo e acho que, ao princípio, sentia suspeitas a meu respeito.

            -           E ele mudou-se para aqui e fez de ti a sua amante?

            A mulher mostrou os primeiros sinais de ira.

            -           Saia da minha casa! Saia já da minha casa e diga aos seus homens que saiam também.

            O homem riu baixinho.

            -           Com que então ele não regressou quando esta manhã o soltaram?

            -           Não, não regressou. - A mulher caminhara até à porta, a ira evaporando-se sob aquela pergunta suave. - E, se está interessado em saber, recusou-se a ver-me quando eu lá ia nos dias de visita.

            -           Mandou-te à fava, não foi?

            -           Quer saber a resposta a isso?

            -           A tua resposta ou a verdade? Não te esqueças de que sei que és uma mulher crédula. Nunca te esqueças disso.

            -           Ele recusou-se a ver-me porque estava envergonhado. Orgulhoso e envergonhado.

            -           Orgulhoso! Um condenado! Um homem que enfrenta novas acusações no momento em que é solto!

            O homem riu-se, como se tivesse dito uma boa piada, e sobre as suas cabeças ouviu-se o barulho de uma janela.

            O homem olhou na direcção do som.

            -           Já agora diz-me - disse ele ainda a olhar para cima -, antes de eu me ir embora - e havia uma certa satisfação no tom da sua voz - se ele escreveu tudo aquilo aqui?

            -           Sim, na secretária do meu marido.

            -           Percebo.

            -           Li aquilo que ele escreveu. Tinha de ler para o compreender.

            -           Leste e caíste na sua sedição, foi isso?

            A mulher abriu a porta da casa.

            -           Encorajei-o de todas as formas, acreditava nele.

            -           Acreditavas nele? Um sedicioso! Quando se está na minha posição descobre-se que cada sedicioso tem sempre um mouco que acredita nele. - Deu um passo a trás, ainda a

olhar para a janela, e havia preocupação na sua voz. - Por vezes é difícil de distinguir entre a criminalidade comum e a devida a uma espécie de doença mental perversa. Acredita nisto que te digo.

            A janela foi aberta e uma cabeça surgiu, hesitante, como se aguardasse instruções.

            -           Que é?

            O homem de rosto grosseiro olhou para a janela aberta e a voz do outro debruçado à janela seguiu-se instantaneamente à pergunta:

            -           Descobrimos um arquivo. Há um guarda-roupa, no quarto do sótão, com uma moldura de mogno, uma folha de madeira pregada há pouco tempo; arrancámo-la e descobrimos o arquivo.

            O homem de rosto grosseiro virou-se para a mulher:

            -           Presumo que soubesses que estava ali aquilo?

            -           Sim, sabia.

            -           Há na tua voz um certo desafio. - Voltou a olhar para a janela. - Que contém o arquivo?

            -           Páginas à máquina, numeradas.

            O homem que estava no pátio entrou na casa e, num à parte para a mulher, observou:

            -           Não tarda que me estejas a dizer que tu própria dactilografaste a sedição dele.

            Passou rente à mulher sem lhe dirigir mais uma só palavra. Entrou na sala da frente, observando a janela, ainda não coberta, a cristaleira, a mesa, a secretária. Viu a máquina de escrever, tapada, numa prateleira.

            -           Mais tarde poderemos verificar a identidade dos tipos.

-           Olhou para as escadas. - Tragam esse arquivo cá para baixo.

            Levantou a voz, já não havia necessidade de um tom particular; a ordem era uma ordem.

            Pegou na caixa, abriu-a e leu algumas linhas de uma página. Tirou para fora o monte de papéis, mas ao fazê-lo olhou para a mulher encostada à ombreira da porta; por um instante pareceu ir dizer qualquer coisa, porque abriu a boca, mas palavra alguma foi pronunciada, nem era necessário qualquer comentário ou explicação.

            A sua expressão não era de triunfo, era mais a de um homem que completara uma tarefa e estava satisfeito. E quando os três homens saíram da casa, como que por coincidência, os sinos das igrejas da cidade e os grandes sinos da catedral começaram a tocar.

 

            Ainda antes de A. ter alcançado o fim do grande viaduto que dominava a cidade já se apercebera dos perseguidores.

            Começou a correr, à maneira de um homem acossado, se bem que tivesse a certeza de que as figuras que vinham atrás dele o estavam de facto a perseguir. Alcançou o fim do viaduto, onde a via férrea corria num curto espaço plano antes de mergulhar numa pequena mas profunda depressão. Continuou a correr na sombra, mas as plantas dificultavam-lhe a corrida e, pouco depois de começar a descer, desapertou o volume que trazia às costas. Apesar de saber o pouco valor das coisas que continha, durante uns segundos manteve-o nas mãos, mas depois atirou-o para uns arbustos existentes à beira da via férrea.

            Agora corria com maior ligeireza, pois já nada mais tinha que as roupas que vestia e as poucas coisas que existiam nos seus bolsos. Olhou em volta e viu os seus perseguidores. Não pareciam fazer maiores progressos - ele até correra mais depressa, pois agora não passavam de pequenas figuras intermitentemente avistadas entre as árvores finas. Diminuiu o passo.

            Teria imaginado a perseguição? Estariam os três homens no seu encalço? Olhou para trás e viu as três figuras.

            Estava leve enquanto eles se sentiam pesados dentro dos uniformes. Viu um reflexo metálico numa das figuras, talvez o brilho de um fecho polido, e não descortinou qualquer sinal de que estivessem armados.

            Confiando na sua vantagem parou para recuperar o fôlego e, olhando em volta, observou a densa vegetação que o rodeava. A luz era ali fraca e indistinta e o cimo da depressão ficava cerca de quinze metros ou mais lá em cima. O muro que a ladeava estava cheio de ervas e musgos e reparou que, mais adiante, as árvores finas e as plantas se tornavam mais densas. Tinha de continuar, não lhe restava outra alternativa, pois os lados daquela espécie de cova eram impossíveis de escalar. Mergulhou na vegetação e quase de imediato sentiu que algo afiado lhe cortava a mão. Olhou e viu o seu próprio sangue, vermelho-escuro na luz atenuada e esverdeada que se filtrava pela folhagem das árvores novas.

            Magoara a mão num arame farpado que, coberto por bons-dias, passava despercebido, e viu-o então estendido, atravessado na via férrea, preso a alguns postes.

            Saltou sobre o fio - vendo que as farpas eram compridas e frequentes, como se o arame fosse destinado a uso militar e não agrícola - e fugiu pela jovem floresta de árvores estioladas.

            Ficou em silêncio. Havia naquela depressão húmida uma sensação de decadência, apesar de todas aquelas árvores novas que o cobriam. As altas paredes da cova proibiam a entrada da luz e o céu não passava de uma banda de azul sobre o reticulado das folhas. Olhando para trás, viu que as figuras estavam agora mais próximas e, além disso, que eram em maior número. Aos seus perseguidores iniciais haviam-se juntado cavaleiros, pois ouviu o som distante de cascos antes mesmo de ver quem os montava. Teve a certeza de que era uma perseguição e começou a correr, atabalhoadamente, porque os pés tocavam incertos no chão irregular do leito da via. Alguns metros depois deparou-se-lhe uma pequena corrente de água e, levantando o olhar, viu que um fio de água corria da pedra de um dos lados da depressão. O barulho dos insectos era ali alto e o som dos cascos dos seus perseguidores chegava-lhe estranhamente abafado. O caminho em frente parecia, para o seu espírito dominado pelo medo, impenetrável, e os lados da cova eram até mais altos. De qualquer modo, começou a escalar o terreno íngreme, cheio de pedras cobertas por musgo espesso que atingia os tornozelos, o mesmo que quase tapava os troncos esguios das árvores.

            Tão ansioso estava por escapar que só deu pelo homem, de pé num banco feito de pedras, quando este lhe dirigiu a palavra.

            - Não precisa de correr, já atravessou a fronteira. Eles não passarão dali.

  1. olhou para o homem, distinguindo-o com dificuldade, pois o seu fato de belbutina verde confundia-se com a decadência verde do musgo e das árvores. Era um homem alto, magro, e tinha os braços abertos, de palmas para fora, uma expressão que talvez pretendesse mostrar a ausência de armas ou a presença de boas intenções.

            -           Não me ouviu?

  1. que estava demasiado exausto para responder, deixou-se ficar ali, arquejando como um cão, o suor a escorrer-lhe pelo rosto.

            -           Já fez tudo o que precisava de fazer - disse o homem do fato de belbutina, sem se mexer e metendo as mãos nos bolsos. - Se quiser pode correr, mas não lhe será de qualquer utilidade. Eles não passam a fronteira, já vi tantas vezes a cena que o posso assegurar.

            -           Que fronteira?

  1. soltou as palavras numa voz arquejante, baixa, mas o homem deve tê-lo ouvido.

            -           Viu o arame, não viu?

            - Cortei-me nele - e levantou a mão que sangrava.

            O homem inclinou a cabeça para um lado e sorriu. Moveu-se pela primeira vez, descendo com cuidado mas facilmente do banco de pedras até ficar a poucos passos de A.

            -           Já passou tudo. Deve ter o coração a bater como um tambor.

            -           Os cavalos! Estou a ouvir os cavalos! - A. olhou para trás. - Para onde posso ir?

            -          Já lhe disse que eles não ultrapassam a fronteira. - O homem de verde encolheu os ombros. - Tem de acreditar em mim. Não lhe fará qualquer bem não o fazer.

            O som dos cavalos estava agora mais perto e os gritos dos perseguidores eram claros e distintos, evocando estranhos ecos no espaço confinado da depressão.

            A., pensando que a única forma de escapar residia em esconder-se atrás do homem de verde, correu para ele, tocando-lhe nas roupas ao passar, de cabeça baixa, de pés incertos no chão traiçoeiro. De passagem, ouviu-o murmurar:

            -           Nunca vi tanto medo num homem. - Depois o homem de verde olhou para A. - Volte-se, volte-se e olhe.

            A., apesar do que sentia, virou-se, olhou para trás e, ao ver o sorriso no rosto do homem alto, olhou ainda mais para trás.

            Os cavaleiros tinham parado no centro da via, presumivelmente junto do arame farpado, e um deles estava a desmontar. A luz do sol brilhou fugazmente no seu capacete e viam-se distintamente o uniforme azul e os galões.

            O homem alto juntara-se a A., em poucas passadas compridas e esgalgadas, os braços balançando dos lados do corpo.

            - Eu disse-lhe que parariam.

            - Que vão eles fazer?

            - Vão ficar por ali um bocado. Já vi o mesmo doutras vezes. Limitam-se a falar, não podem avançar mais.

            - O que os faz parar?

            Os cavaleiros avistaram A., um deles apontou-o e todos os rostos se viraram na direcção sugerida pela mão; um dos rostos distínguia-se facilmente pelo seu bigode preto.

            -           Reconheço aquele homem - disse A.

            -           Duvido - replicou o outro. - São todos muito parecidos.

            -           Reconheço-o, sim.

            -           Se calhar é um amigo seu?

  1. olhou atentamente para o homem alto, que se limitou a erguer o sobrolho.

            -           Disse-me que se cortou no arame da fronteira.

            -           Cortei, mas não é um golpe fundo.

            -           Afirmam que é bom sinal alguém cortar-se no arame. Existem montes de superstições sobre o arame da fronteira, apesar de não ser lá grande coisa, e disseram-me que os cavaleiros têm também as suas. Talvez seja por isso que não a atravessam. Não sei, são coisas que se dizem.

            -           Quanto tempo vão ali ficar?

            -           Depende daquilo que você era e do motivo que o levou a fugir. - O homem alto olhou mais de perto para A. - Como se chama?

            Ele disse o seu nome.

            -           É um nome razoável, bastante ortodoxo, e obviamente que não sofre do crime do seu nome de família. - O homem sorriu devagar e A. reparou, pela primeira vez, que os olhos dele tinham uma coloração invulgar, mais profunda junto da íris que junto da pupila, a qual lhe dava ao olhar uma curiosa concentração e fixidez. - Penso que posso dizer que o ajudei

- e sem esperar resposta prosseguiu - e tenho o direito de lhe perguntar porque era perseguido e porque estava tão ansioso em escapar.

            -           Fui libertado hoje.

            -           Isso torna-se óbvio pelas suas roupas. E, se estavam a tentar recapturá-lo, tal deve significar que cometeu um crime político na cidade; eles nunca mais largam esses homens. - Olhou para A. com o seu ar concentrado. - Que fez?

            -           Escrevi um livro, e fui suficientemente doído para tentar que o publicassem.

            -           Anonimamente? Na imprensa clandestina?

            -           Não, às claras, queria ser honesto. - A. continuava a olhar para os cavaleiros, agora todos desmontados e a olhá-lo fixamente em silêncio. - Nessa época estava doido.

            -           Talvez não, talvez não, pelo menos era honesto. Eu nunca respeito nada que venha anonimamente da cidade. O homem alto contemplava agora os cavaleiros desmontados. - Ouvem-se tantas deturpações. Qual o assunto sobre que escreveu?

            - A minha vida.

            - Escreveu sobre a sua vida. - Falou com uma tolerância fácil. - E havia nela algum crime? Que fez para os perturbar tanto?

            - A minha vida foi ortodoxa. O meu único crime foi escrever sobre ela e, acho, ter tentado publicar o que escrevi.

            - Que usaram contra si no julgamento? - E então o homem alto apercebeu-se da fraqueza de A. - Vamos sair daqui, já teve que lhe chegue, noto-o bem. Além disso, os cavaleiros, se bem que não atravessem a fronteira, têm o hábito de ficar a olhar, e outra das superstições locais é a de que o olhar deles pode fazer uma pessoa desmaiar. Já reparou como é fixo, como se estivessem drogados? - Não esperou pela resposta de A., pois este estava à beira da exaustão. - É um facto estranho.

            A., talvez sugestionável naquele momento de súbita consciência, pensou que via uma razão para esta superstição.

 

Era óbvio que uma depressão tão profunda e inclinada conduziria a um túnel, cuja boca redonda, que soltava exalações húmidas, estivera, na época dos Caminhos de Ferro Provinciais do Oriente, provida de uma fachada imponente, rodeada por duas altas colunas de pedra. Na verdade, a própria boca fora construída para impressionar, pois era muito mais alta que qualquer locomotiva ou vagão que por ali poderia passar. A proporção do conjunto era espectacular e mesmo agora, em decadência, o arco do túnel e as suas colunas davam uma impressão grandiosa mais compatível com a arquitectura clássica do que com a industrial. O túnel poderia muito bem ter sido a entrada de um túmulo em vez de uma simples passagem por debaixo de uma colina.

            A natureza da entrada do túnel mostrava as ambições da companhia, pois decerto que nenhum mortal, para lá dos que cuidavam do traçado, a poderia ter visto numa perspectiva total durante toda a vida activa da via férrea. Com efeito, os passageiros, devido à velocidade, não poderiam ver, da janela da carruagem, as suas delicadas proporções.

            Foi para este túnel que o homem magro de fato de belbutina conduziu A., mas o espírito do homem perseguido continuava inquieto com pensamentos acerca da perseguição e do olhar fixo dos cavaleiros parados no arame da fronteira.

 

            Dois homens haviam instalado o seu acampamento no túnel, perto da boca. O pavimento era relativamente seco, mas o vento húmido que soprava do túnel transportava a humidade do interior. A luz na entrada do túnel era atenuada e verde devido à folhagem que emoldurava a pedra e que cobria já a maior parte da entrada. O homem alto de fato de belbutina verde, que era um desses dois, estava agora de pé à boca do túnel, olhando em direcção do viaduto, a várias milhas de distância. Dali podia, sem ser visto, certificar-se, se bem que com grande dificuldade, de que os cavaleiros ainda permaneciam ou não na fronteira, e tentar perceber para onde estavam a olhar, porque pareciam focados, como um só homem, na parte de cima da depressão.

            O seu companheiro estava a seu lado, um pouco atrás, arquejando como se acabasse de fazer qualquer exercício. Este recém-chegado era magro, tal como o primeiro, mas a sua magreza era menos exagerada porque era baixo. Vestia uma camisa branca mais gasta que suja, a qual tinha um folho à frente em vez de colarinho, como se houvesse feito, em tempos, parte de um traje de cerimónia. Sobre ela usava um casaco de cabedal, mais comprido que o habitual, que lhe chegava a meio das coxas, e segurava qualquer coisa nas mãos.

            - Que trouxeste desta vez? - O homem alto falou e olhou para o outro com o seu ar concentrado. - Estás sempre a trazer coisas, és um coleccionador de lixo. De que se trata agora?

            O homem mais pequeno colocou a carga no chão e sorriu subservientemente, o que tornava claro, depois do comentário do homem mais alto e do sorriso do recém-chegado, quem era o líder e quem era o seguidor.

            - Vi tudo - contou o homem do casaco de cabedal. - Vi o teu homem - e apontou para A., que, enquanto mexia uma panela de guisado sobre um fogão portátil, tarefa de que o encarregara o primeiro homem que encontrara, o olhava.

-           Vi tudo cá do cimo, viu-o caminhar pela via e começar a correr quando se deu conta da perseguição. Foi difícil manter-me a par dele, apesar de ser mais fácil correr lá em cima que cá em baixo, na via. Baixei-me quando os cavaleiros passaram. - Tornou a olhar para A. - Viu-o atirar fora o volume.

            - Porque o trouxe? Que o levou a pensar que eu estava interessado nele?

            Foi isto a primeira coisa que A. disse desde a chegada do homem mais pequeno.

            - Porquê? - O homem pequeno riu e as feições do seu rosto inexpressivo mostraram apenas uma inata boa natureza. - Vi que só lhe restava escolher entre avançar leve e conservar isto. Desci pela parede da cova depois de os cavaleiros desaparecerem - eu digo que desci, mas você bem sabe como aquilo é inclinado. Já vi homens perseguidos a tentarem subir e pode imaginar como se tornam alvos fáceis para os cavaleiros. - Fez uma pausa e colocou o volume no chão. - É pesado em relação ao que habitualmente vos dão quando saem da prisão. - Apreciou o embrulho. - Deve ter tido tempo para recolher as coisas que escondera antes de ser metido lá dentro.

            O homem alto, que aparentemente não escutara a conversa, virou-se para A.

            - Como se vai desembaraçando com essa comida? Espero que não seja de má boca.

            -           Não.

            O mais pequeno dos dois homens debruçou-se sobre o embrulho.

            - Que tem cá dentro deste volume, sem serem as coisas habituais?

            -           O cartão de identidade, o livro de provisões e a declaração do governador. As coisas habituais, tal como disse.

            -           Sim, não duvido, mas porque está tão pesado? Olhou para A. com ar interrogativo. - Disse que o deitou fora porque não o queria ou foi só para ficar mais leve?

            -           Não o quero.

            O homem pequeno acenou com a cabeça, em silêncio.

            -           Nesse caso não se importa...

            -           Abra-o, não é nada meu.

            O homem alto olhou para o guisado que A. estava a mexer.

            - Pelo menos vai precisar do prato esmaltado e da faca para comer. Metem-nos sempre nesses pacotes.

            O homem pequeno desapertava as correias.

            -           Que é isto? - Tirou um monte de papéis metidos numa pasta de pano. - Para quê todo este papel?

            O homem alto tirou-lhe a pasta das mãos.

            -           Ele disse-me que era um sedicioso e provavelmente isto é a sua sedição. - Mirou a primeira página. - Ou uma cópia, isto é uma cópia a papel químico.

            - Fui buscá-la aonde a tinha escondido - disse A. - Coloquei-a no cimo das coisas que me deram à saída.

            -           E quer deitá-la fora? Não faz sentido.

            O homem pequeno, que de algum modo dava a impressão de ser iletrado, e por isso incapaz de ter em consideração qualquer coisa escrita, inclinou a cabeça de lado.

  1. deixou de mexer o guisado, mas o homem alto fez um gesto na direcção da panela e ele recomeçou a mexer.

            -           Não - disse A. - Já deixou de ser assim, tudo mudou. Quando o escrevi havia em mim uma espécie de fogo, não

consegui parar enquanto não escrevi o que queria, mas agora tudo está diferente. De certo modo falta aí qualquer coisa.

Olhou para os dois homens, ciente de que falara predominantemente para o mais alto e, mesmo assim, sem qualquer grau de clareza. - Julgo que posso dizer de outra maneira. - Fez uma pausa para remexer a panela. - Não quero falar nisso. Sobre tudo o mais, está bem, tenho de confiar em vós - mais uma vez se dirigiu ao homem alto - e preciso da vossa ajuda.

-           Encolheu os ombros. - Estou perdido. Que mais posso fazer?

            O homem alto, ignorando o apelo de ajuda, virou-se para o companheiro.

            - Ele diz que estava a escrever a própria biografia.

Sorriu e mais uma vez A. notou a proeminência dos seus olhos com aquelas íris de estranha coloração. - Deve ser uma coisa de valor para o terem perseguido só por tentar publicá-la. - Inclinou-se e foi buscar um par de pratos à caixa cor de laranja que estava ao seu lado. - Faz-nos pensar sobre o que lhe fizeram na cidade. - Tirou a colher a A., encheu liberalmente um dos pratos e, sem uma pausa sequer, pegou num garfo e começou a comer, soprando com a boca aberta porque o fraco guisado estava a ferver. - Desligue o fogão, é nessa pequena válvula no fundo.

            O fogão assobiou, a chama apagou-se e o túnel ficou em silêncio. Os Outros dois homens começaram a comer. A. descobriu que a sua porção de guisado era pequena e quase não tinha carne, mas mesmo assim, quando a estava a colocar no seu prato, o mais alto, que comera a sua parte com sofreguidão, olhava a panela como se pretendesse rapar alguma carne que porventura lá tivesse ficado. O homem alto agachou-se então perto de A., que sentia a sua fome, e o mais baixo puxou de metade de uma pequena fatia de pão de dentro da caixa cor de laranja, um pão seco e castanho, e ofereceu-o ao Outro, que pegou nele sem uma palavra.

            Mantiveram-se em silêncio enquanto comiam.

            Os três homens comiam conforme as suas características e a maneira como o faziam dava uma ideia do seu modo de pensar. O homem alto, o do fato de belbu tina, comia como se tomasse a refeição como direito seu, e até ficara com a melhor parte da fatia de pão castanho e duro, cortando-a com os seus compridos e brancos dentes, enquanto o mais baixo aplicava toda a sua concentração de olhos postos no prato. O facto de ele olhar para baixo era, de certo modo, significativo e contrastava muito com a atitude do seu companheiro, pois este último, embora comendo com uma rapidez que revelava uma fome extrema, de quando em quando olhava de relance para o mundo lá fora, para lá da boca do túnel. E o terceiro dos três homens, A., reavera a pasta que continha a cópia do seu escrito. A pasta era delgada, o que se devia ao facto de a cópia ser feita sobre o mais fino dos papéis, aquele em que são impressas as escrituras, e ia virando as páginas à medida que comia.

            O homem alto olhou-o:

            -           Então?

  1. olhou para ele, sem saber bem o que dizer. Sentia-se demasiado nas mãos daquelas duas pessoas e, no entanto, incapaz de fazer uma só pergunta.

            - Eu percebo - disse o homem baixo -, ele não sabe o que dizer. - Regressou à sua refeição. - Eu sei, estive lá, sei muito bem. Quando nos metem dentro, ensinam-nos, e é a primeira coisa que nos dizem, que não devemos fazer perguntas. Imagine-se! É como ter um cachorro e dar-lhe uma palmada na cabeça apenas por uma atitude dele que não nos agradou. Nisto é a mesma coisa. Fazemos uma pergunta, mesmo que nada queiramos significar com ela, pode ser até uma brincadeira. Como sucedeu comigo uma vez, "está a chover lá fora?" - e levantou o garfo acima do prato para reforçar as suas palavras -, mas depressa aprendemos que

não existe qualquer pergunta, por mais simples, cuja resposta não seja uma punição física.

            - Claro - concordou o homem alto -, todos nós sabemos disso, já o disseste mais vezes. É por isso que ele está ali sentado comendo o que lhe dão, é por isso que faz aquilo que lhe mandam. - Encolheu os ombros e olhou para A. - Escuta, sei o teu nome, sei porque estás aqui e sei que, por causa das tuas anteriores experiências, nunca confiarás em nós.

Vira qualquer coisa a mexer-se do lado de fora do túnel mas não ligou, a cena era-lhe familiar, reconhecia a presença de cada um dos animais selvagens da cova. - Sei tudo isso, sei muito bem, e no entanto, quando apontei para o fogão e disse "mexe essa panela", obedeceu à minha ordem como se ela fosse proveniente da sua própria mente, reparei até que pegou na colher no exacto momento em que eu a apontei. Agachou-se e lançou o seu olhar perscrutador sobre os outros dois homens. - Tenho uma desvantagem em relação a vocês:

nunca estive na prisão da cidade - virou-se, sabendo que não receberia qualquer observação ou resposta -, apenas ouço os comentários do que sofreram lá. - Apontou para o homem pequeno. - Então, que dizes?

            - Sim, é verdade.

            Olhou para A.

            -           E você? Como o transformaram?

  1. ergueu o olhar do seu livro, terminara já a pequena porção do guisado e continuava com fome. Poderia mostrar relutância, mas os olhos do homem alto induziam-no a falar.

            - Que posso eu dizer? Não sei o que tem acontecido, não sei.

            - Você era novo quando foi encarcerado. Que tem sucedido desde então? - O homem alto voltou a levantar-se e regressou à sua observação da boca do túnel. - Quando era novo sentiu a necessidade de escrever qualquer coisa que eles acharam sedicioso e, pelo que me diz, já o andavam a vigiar há algum tempo. - Meteu as mãos nos bolsos do casaco, possivelmente à procura de qualquer coisa para fumar. Tirou uma beata, observou-a e voltou a enfiá-la no bolso. - Porque sentiu a necessidade de escrever? E que escreveu? E porque deitou a sua carga fora com tanta liberalidade? E porque sente tão pouco por uma coisa que lhe custou tudo, desde a reputação até à liberdade?

            - Não sei. - A. deitou-se na palha que se encontrava espalhada, provavelmente com o intuito de servir de cama, na entrada do túnel. - Estive a dar uma olhadela ao que escrevi

- apontou para a pasta - e sei que não presta e que também nunca voltaria a escrever isto, se me fosse dada a mesma oportunidade. Tudo mudou e as coisas que então eram importantes deixaram de o ser.

            Fez uma pausa, fitando a palha entre os pés, reparou que o homem pequeno olhou para o outro e viu também, embora pelo canto do olho, que esse olhar não teve reciprocidade. Pensou que deveria continuar a falar, que eles poderiam estar interessados em qualquer coisa que dissesse. Olhou então para o homem alto, com o fato de belbutina, e interrogou-se, incongruentemente, acerca donde teria vindo o fato. Fitou a pasta que continha as folhas dactilografadas e prosseguiu:

            - Estou perdido, estas coisas são-me agora estranhas. Não sei qual foi a razão que me levou a escrevê-las, pois nada significam.

            - Está a exagerar - comentou o homem alto, num tom que tanto podia indicar preocupação como aborrecimento.

            - Não, não estou.

            O homem alto olhou para baixo.

            - Sente tudo isto profundamente. - Voltou a olhar para a depressão. - Para nós é lisonjeiro que confie em nós, a menos que esteja a falar consigo próprio para aliviar o espírito. Se for este o caso, não só nos achará maus ouvintes como seremos totalmente dispensáveis.

            Mantinha o prato ainda na mão e olhou em volta como se pudesse haver mais qualquer coisa para comer.

            - Não. - A. levantou-se. - Não sei quem são, nada sei sobre vocês, e como poderia saber? Pouco me perguntaram, mas aqui estou com um manuscrito meu, que mal percebo agora.

            O homem pequeno inclinou-se para a frente e tocou o bordo da pasta com um ar que sugeria reverência, um gesto que reforçou a crença de A. de que ele era iletrado. Depois torceu o nariz e mirou A.

            - Foi tudo causado pela prisão? - perguntou. - Decerto que pode compreender o que escreveu, não é?

            A boca do túnel tornara-se subitamente um lugar silencioso, mas este silêncio foi quebrado pelo homem alto, que riu, um riso breve e abstracto.

            - Sobrestimas o poder da prisão - observou. - Foi apenas uma maior maturidade que causou a alteração na mente do nosso amigo.

            - Há algo de verdade nisso - concordou A.

            O homem alto avançou até junto dele.

            - Será a verdade? Talvez se esteja a rebaixar - e, sorrindo, estendeu a mão para a pasta.

  1. estava relutante em deixar que ele lhe tocasse e aqui, fora da cidade, desejava nunca ter recolhido o volume do sítio onde o escondera.

            - É um homem que gosta de se apagar, mas provavelmente está certo em tudo aquilo que diz - disse o homem do fato de belbutina verde. - Sendo esse o caso, por que razão um trabalho escrito o sentenciou a ser julgado pela cidade? Que disse de mal? - Segurou a pasta com as duas mãos e leu a primeira página, fazendo-o como um homem que lê uma coisa depressa porque sabe que o tempo é limitado. Virou a página e olhou para A. - Cometeu vários erros gramaticais.

- Folheou a pasta. - Disto tudo, o que deu motivo a que o condenassem?

            -           Eu era diferente na cidade.

            O homem alto devolveu o manuscrito.

            -           Sim, acho que o era - e depois acrescentou algo de surpreendente: - Nunca estive pessoalmente na vossa cidade.

            -           É estranho.

            -           Não, não é. Viajei no caminho de ferro e passei por cima da cidade, no viaduto. Olhei para baixo e acho que é esquisita. - Encostou-se ao arco da boca do túnel, só era visível como uma silhueta. - Certo? - Fitou o companheiro.

            O homem baixo pôs-se imediatamente de pé:

            -           Sim?

            Neste breve acto entre os dois homens, houve algo que despertou na mente de A. a relação entre um inferior e o seu senhor.

            -           Agora somos três - disse o homem alto - e sugiro que amanhã prossigamos o nosso caminho. - Virou-se de repente para A. - Tudo bem, faz bem em viajar connosco. - Aproximou-se do homem. - Só Deus sabe: você avaliou-nos e nós avaliámo-lo. - Sorriu. - Todos nós os três apresentámos as nossas conclusões de uma ou doutra forma. - Avançou alguns passos, talvez para ver o pôr do Sol. Virou-se de repente para trás e apontou para A. - Confie em si mesmo

-           recomendou, e depois abanou a cabeça. - Talvez tenha sido uma atitude ajuizada essa de deitar fora o pacote. Talvez se tenha poupado a uma busca interior. É sempre difícil compreender, em retrospectiva, as coisas que fizemos em novos.

            A tarde estava já bem cheia de escuridão. A depressão, prematuramente escura, era um vale de negridão, enquanto as árvores, nas suas partes superiores, ainda brilhavam com cor.

            -           Agora somos três - repetiu o homem alto.

            -           Porque repete isso? - A. estava deitado de lado sobre a palha.

            O homem alto olhou-o.

            -           Três é seguro - observou. - Uma velha superstição.

Devemos apressar-nos amanhã, precisaremos de segurança.

-           Apontou um polegar na direcção do túnel negro. - Suponho que nunca passou por ali?

            -           Não, nunca estive aqui. Talvez em criança, no comboio, mas não me lembro de nada.

            -           Talvez seja verdade, mas agora está tudo mudado. É difícil saber o que se vai encontrar, as aldeias dali têm uma reputação de falta de cordialidade e hospitalidade.

            Fez uma pausa, foi sentar-se ao lado dele e A., vendo o seu rosto de perfil, em silhueta contra o céu, descobriu que estava a observá-lo. O homem tinha umas feições tão características que era possível imaginá-lo como um homem distinto, pois o rosto era idiossincrático ao ponto de ser único. Ele virou-se de novo para A.:

            -           Talvez os diversos viajantes que fizeram a viagem por esta via os tenham tornado pouco hospitaleiros.

            -           Lembro-me de que uma vez... - interveio o homem mais baixo, mas o outro cortou-lhe a palavra e ele ficou imediatamente silencioso. Não havia qualquer censura nisto e mais uma vez A. verificou o contraste existente entre os dois homens.

            -           Há muitos que tomam esta via, é muito directa. É possível, na via férrea, uma pessoa sentar-se no telhado de qualquer edifício deserto e ver passar cem ou mais pessoas num só dia. Viajam todas na mesma direcção.

            -           Para onde vão?

            -           Como poderei saber? Quando se está aqui, ao fim de algum tempo já ninguém se preocupa com os outros, a menos que eles mostrem primeiro algum interesse ou simpatia. É fácil viajar durante vinte milhas com um companheiro de ocasião e nunca inquirir sobre as suas origens, ou ele sobre as nossas. - Colocou as mãos nos joelhos e olhou para os pés delicados. - Aprende-se a aceitar as pessoas tal como as encontramos.

            -           Mas ajudou-me quando eu procurava escapar dos cavaleiros.

            O homem alto sorriu.

            -           É verdade, mas nesse caso eu tinha de fazer qualquer coisa. Pela sua expressão percebera tudo, era fácil ver o seu medo, e tinha de fazer o que estava ao meu alcance; mesmo assim, se bem me lembro, você parecia desconfiado. Contudo, normalmente, ninguém interroga outro homem. Como se poderá saber se ele diz a verdade? Encontram-se homens com aventuras incríveis, ouvem-se muitas histórias de bravura, reais ou falsas. É assim, mas acho que se ganha calo com a idade e com as viagens e agora nunca daria dinheiro a um pedinte que me contasse uma história de pedinte profissional. Há pedintes - e apontou para o homem mais pequeno - que podem contar uma boa história. Este é um deles, consegue reconhecer uma possível presa a cem jardas. Não é?

            Tocou no homem do casaco de couro com a ponta de uma das suas botas.

            -           Se assim o dizes - concordou o outro.

            -           E é um ladrão completo.

            Sorriu benevolentemente e A. pensou se não estaria a ouvir um gracejo privado entre os dois homens.

            -           Se assim o dizes - repetiu o mais pequeno dos dois, com uma curiosa inflexão na voz. Havia uma complacência fácil na própria forma como se sentava.

            -           E já que estamos a falar disso - disse o mais alto com voz vibrante. - Onde está a garrafa?

            -           Já estranhava que não perguntasses.

            O homem pequeno meteu a mão num dos bolsos do casaco de cabedal, que devia ter pertencido a algum caçador furtivo, tirou uma garrafa de vidro escuro com a forma de um frasco de bolso de grandes dimensões e passou-a ao companheiro, que a observou em contraluz.

            -           O nível da aguardente desceu desde hoje de manhã - observou. Desarolhou a garrafa e acrescentou: - Suponho que me vais dizer que estavas com sede no cimo da depressão.

            -           Sim, tive sede lá em cima.

            O homem alto encolheu os ombros, como se o comentário não lhe interessasse, e olhou para a garrafa aberta. Bebeu dois goles - bebia de uma forma inteiramente silenciosa -, recolocou a rolha no gargalo e devolveu a garrafa ao outro homem.

            -           Amanhã podemos então partir.

            A., que assistira á passagem da garrafa, enfrentou o olhar do homem:

            -           Como sabe que sigo na mesma direcção?

            -           Que mais lhe resta que seguir a via férrea? - O homem alto deitou-se confortavelmente e prosseguiu. - Não é viagem para um solitário, a menos que ele seja dos bons. Mas trataremos disso amanhã, quando sairmos do túnel. É uma paisagem que lhe fará bem ver: a terra é plana, ao que dizem, uma planície com talvez umas vinte milhas de largura e com uma fila de colinas tão baixas que quase se confundem com nuvens. E a via é tão recta... tão recta como... - Não se incomodou em terminar a frase. - É muito fácil falar. Vem connosco, passa aqui a noite e atravessa o túnel connosco. Depois pode tratar da sua vida. - Fez uma pausa. - Não confia em nós?

            - Que razão tenho para confiar? Nada sei a seu respeito, só o vi aqui. - A. olhou para o perfil marcado do outro. - Quanto ao seu amigo, ignoro tudo acerca dele, excepto aquilo que você me disse.

            -           É verdade - concordou o homem alto, apertando as mãos sobre o peito. - Acho que disse, e não há muito tempo, que essas são perguntas indesejadas. Os viajantes da estrada quase nem falam das suas origens, porque sabem que o que disserem será sempre recebido com descrença. É um hábito que se cria, este cinismo do viajante, mas é também uma coisa em que raramente penso.

            -           Mas teve uma boa educação. - A. podia escutar a sua respiração suave. - Deve querer chegar a algum lado, viajar com uma finalidade.

            -           Claro, nem por um momento sequer poria isso em dúvida.

            -           Para onde viaja então?

            -           Verá a fila de colinas quando chegarmos ao outro lado do túnel, se o tempo se mantiver como está.

  1. ia formular outra pergunta: inclinou-se para a frente, abriu a boca para falar, mas o homem alto segurou-o por um braço.

            -           Solte-me - disse ele, erguendo a voz; ressentia-se do toque da mão do homem.

            -           Quero dizer-lhe uma coisa - e o homem alto falou com

uma repentina urgência. - É novo nestas bandas, não possui

a maturidade de um velho viajante, o que nada tem a ver com

a idade, claro.

            -           Que me quer dizer?

            -           Ia fazer uma pergunta.

            -           E então?

            -           Não faça perguntas. Para começar não o ajudam; que auxílio pode esperar de meias verdades? E não estamos aqui para passar tempo. - Soltou, devagar, o braço de A. - Todos carregamos connosco o nosso passado, da mesma forma que transporta esse saco de papéis. Com o tempo aprendemos, todos nós, que não existe mortal algum interessado no que temos para dizer. O passado de cada um de nós não passa de uma meia verdade. Testemunhou a forma precipitada como olhei para o seu manuscrito e, de facto, não quero lê-lo. Na estrada encontrará gente que diz exercer certas profissões e que são os que menos confiança merecem: os falsos doutores, os advogados ilegais e todos os outros. Uma vez encontrei um homem esfarrapado que se gabava de ser o consultor financeiro de um grande banco. Era um tipo estranho, tinha a cabeça cheia de números, andava com um bloco de notas e, ao anoitecer, entretinha-nos com proezas de aritmética mental.

            -           Ainda me lembro - disse o homem baixo. - à noite sentávamo-nos todos à volta da fogueira, passávamos o tempo a dizer números, de cinco algarismos, e ele multiplicava-os, dividia-os, tirava médias.

            -           Porque vestia farrapos?

  1. olhou para a escuridão onde o perfil do homem alto continuava distinto.

            -           Que havia de fazer? Era igual a todos os outros, tentava ganhar a vida. Para ele as coisas corriam bem no Verão, a estação das colheitas. Contou-nos que uma vez pedira emprestado um bom fato, mas o mais certo é tê-lo roubado, e se candidatou ao lugar de director financeiro de uma empresa fruteira. Disse que esteve um ano nesse posto antes de eles descobrirem que era um trabalhador.

            -           Como descobriram?

            -           Essas suas perguntas! Não conhece ainda as coisas que estão inevitavelmente estampadas na face de um viajante? Que constituem os seus maneirismos? Que o tornam estranho?

            -           Que quer dizer com isso?

            O homem magro suspirou.

            -           Temos de nos levantar de madrugada, pois a luz entrará no túnel. - Fez uma pausa e debruçou-se para falar com o colega. - Amanhã levantas-te primeiro para arrumar as coisas?

            -           Sim, depois acordo-te.

            Adormeceram gradualmente e A. permaneceu muito tempo incapaz de dormir. Chegou mesmo a levantar-se e a caminhar alguns metros pela depressão. O ar da noite estava agradável e o vento soprava agora para dentro do túnel, trazendo o odor das flores nocturnas em vez dos miasmas húmidos do túnel.

                        Adormeceu e, durante o sono, não sonhou. A palha que fora estendida sobre o chão do túnel ferroviário não era mais dura que a enxerga da prisão. E, claro, estava livre e nada tinha a recear da sua cidade de origem nem dos homens que a vigiavam. Não acordou durante a noite.

 

                        Permaneceram de pé na boca do túnel, enfrentando a madrugada. Arrumar as coisas não levara mais de dez minutos e mais uma meia hora para o atravessar. Nenhum deles falara ainda e os três sabiam que não o fariam ao ver a luz do leste.

                        O espectáculo na sua frente era verdadeiramente magnífico: o túnel emergia, cego, a meia altura de uma colina e a via férrea cruzava um profundo vale por meio de um viaduto de três amplos arcos, estendendo-se depois pela planície sobre um aterro alto.

                        Esta teria vinte ou mais quilómetros de extensão, mas com aquela luz as distâncias eram enganadoras. As colinas distantes, remotas e arredondadas, formadas pela glaciação, davam ao horizonte uma claridade difusa, e as suas sombras, definidas e curvas, desciam até aos vales que as separavam e á planície, a qual estava dividida em férteis campos por sebes largas de olmos. Era audível o barulho das quintas - o som matinal dos galos, dos cavalos, das vacas e de outros animais mal identificados - e ouviam-se também sons de origem humana - o bater da porta de uma casa, o guinchar das dobradiças de um portão invisível, o ruido surdo de máquinas.

                        E, para lá das quintas, as aldeias. Um observador com uma boa vista poderia contar uma dúzia de torres de igreja, mas um telescópio confirmaria a presença de outra dúzia, e também de outras coisas que facilmente se podiam deduzir de uma observação atenta do vale. O lugar era rico, a terra era boa. Decerto que a gente da planície não era pobre - o tal telescópio mostraria sinais de uma lavoura rica e fácil. As margens eram velhas e cheias de arbustos, os lagos não estavam limpos e as sebes pareciam espessas, maciças, negligenciadas, tudo apontava, enfim, para uma prosperidade preguiçosa.

            O homem alto olhou para baixo.

            A., que o estivera a observar, viu evidentes sinais de compaixão no seu rosto, e tentou imaginar o motivo. O homem alto parecera-lhe, na noite anterior, frio, mas agora contemplava a planície como se sentisse por ela uma espécie de pena.

  1. pensou se não estaria a interpretar mal a razão que estava por detrás da emoção e, ao tentar seguir o olhar do homem, descobriu que estava fixo não no vale, mas na longínqua cadeia de colinas. Tocou-lhe no braço.

            -           É ali o seu lar, não é?

            -           É.

  1. não se espantou com a prontidão da resposta.

            -           Já há muito tempo que de lá saiu, não foi?

            -           Porque pergunta isso?

            -           Olhava com pena.

            -           Oh, não é nada. Fica-se assim nestes dias. - Mudou o apoio dos pés. - No fim é tudo a mesma coisa.

            O homem mais pequeno, que estivera a escutar a conversa dos outros dois, acenou vigorosamente a cabeça, com os olhos a brilharem-lhe nas órbitas. Apontou para o companheiro alto e falou para A.

            -           Não precisa de se preocupar com ele, tem este feitio, ás vezes até parece outra pessoa. Ontem... - Encolheu os ombros, como se o gesto pudesse explicar o que ia dizer, e como A. nada retorquísse continuou: - Ontem estava de bom humor, mas já a descer. Sei destas coisas, já ontem eu podia dizer que ele ia passar uns dias antipáticos.

            Falou como se o companheiro não estivesse presente, e este esboçou um sorriso raro e replicou:

            -           É muito franco, diz sempre o que lhe apetece e muitas vezes tem razão. É uma das vantagens de se ser simples, de possuir um instinto animal, seguro. - Suspirou e o breve sorriso desapareceu. - Sim, ele tem razão, já sabia que iria ter uma mudança de humor, há sempre uma espécie de depressão a preceder tais mudanças.

           Começou a caminhar, olhando para a via num ponto imaginário, três ou quatro metros à sua frente. Era como se naquele momento a planície e as colinas não existissem para ele, só via a linha e esta podia até ser infinita.

            Observaram-no em silêncio e A. achou nos passos do homem uma certa resignação, como se ele andasse meramente por ir a caminho em vez de desejar chegar ao fim da jornada. Virou-se para o homem mais baixo.

            -           Ontem à noite ele disse qualquer coisa sobre a expressão que se forma na face de um viajante. - Fez uma pausa. -          Estava a falar da que mesmo tem agora?

            Olhou para o homem alto, que, de cabeça baixa, caminhava sem pensar, seguindo o leito pedregoso da via.

            -           Não conhece ainda as coisas que estão inevitavelmente estampadas na face de um viajante, que constituem os seus maneirismos?

            O homem pequeno pronunciou estas palavras sem usar a própria entoação; o som da sua voz era uma cópia fiel da do seu colega e, no entanto, nada havia de intencional nem de mímica naquela sua cópia das palavras do outro.

  1. mirou-o com curiosidade.

            -           Recorda-se de tudo aquilo que ele disse, não é?

            -           De quase tudo. - O homem pequeno, voltando a encolher os ombros, fez sinal para que A. o seguisse. - Sim, tenho um certo ouvido para recordar as coisas que as pessoas dizem, sobretudo quando usam palavras bonitas e compridas. Repare na última que lhe disse: "inevitavelmente"?

            -           Sim.

            -           Bem, quando ouvi esta palavra acordei. Estava a pensar com os meus botões, mas ouvi-a e depois lembrei as que a rodeavam e recuperei a frase. É das boas, soa bem, desliza na língua. Um homem vulgar como eu nunca a usaria. Diga uma coisa destas na minha aldeia natal e meter-se-á numa briga, quer queira quer não, mas, dita por ele, soa bem. - O homem baixo apontou com um dedo para a figura que caminhava devagar. - De quando em quando esqueço-me de palavras e acho que me esqueci de uma agora, o que ele na verdade disse foi: "Essas suas perguntas! Não conhece ainda as coisas que estão inevitavelmente estampadas na face de um viajante, que constituem os seus maneirismos?"

  1. começou a andar.

            -           Porque se preocupa com essas coisas?

            Esta arte de alguém se recordar de frases em segunda mão só por gostar da sua eufonia, e não pelo contexto ou pelo significado, escapava-lhe. Achava difícil compreender o homem pequeno, pois era óbvio que as frases em si poderiam não ter qualquer significado.

            -           Não é preocupação. Gosto de ouvir as pessoas falarem bem.

            -           Você fala bem.

            O rosto do homem pequeno brilhou imediatamente de prazer e A. apercebeu-se de que ele considerara as suas palavras como um grande cumprimento, pois caminhava a seu lado, tentando, sem o conseguir, esconder a sua satisfação. Negou com a cabeça.

            -           Está a ser honesto quando afirma iSSO? Genuíno?

            -           Claro. Porque não havia de estar?

            -           Lá isso é verdade.

            O homem pequeno voltou a sorrir e principiou a andar mais depressa, talvez quisesse alcançar o mais rapidamente possível o homem alto, talvez lhe quisesse falar do grande cumprimento que recebera. Enquanto avançava começou a

falar rapidamente para A. e a sua voz adquirira de repente um tom ligeiramente empolado, como se sentisse sob observação. Olhou para A.:

            -           Devia ter-me ouvido quando andava sozinho, antes de o encontrar. Era tão envergonhado que preferia esconder-me a falar. Envergonhado? Costumava viajar sozinho, de noite, nessa altura sentia-me bem. Passava pelos pequenos acampamentos montados pelos outros viajantes, via-os dormir á luz das fogueiras, os rostos mostrando uma paz infantil, e adorava ver os reflexos das chamas nos seus rostos. Os velhos eram crianças quando dormiam e até mesmo as crianças e os jovens arrogantes - homens mais novos que eu - estavam despojados de qualquer elemento de vaidade. Não existia presunção nos rostos adormecidos, como se neles houvesse um vazio.

            -           Está de novo a citá-lo, não está?

            -           Não integralmente. - O homem pequeno levantou o indicador. - Estou a usar as palavras que aprendi com ele, para ser mais preciso, mas para dizer o que quero exprimir.

- Olhou para A., como se necessitasse da permissão deste para continuar, e quando ele acenou prosseguiu. - Sim, viajava sozinho, e sentava-se junto das fogueiras dos viajantes, enquanto eles dormiam, fazendo de conta que seguia com eles, que era um dos do seu grupo, por mais humilde que fosse a minha posição hierárquica. Mas a madrugada chegava sempre depressa de mais, os primeiros viajantes espreguiçavam-se, o galo cantava e não me restava outra opção que esgueirar-me para o mato e continuar só a minha viagem. Sabia que me perguntariam donde vinha.

            -           Como o conheceu?

  1. apontou na direcção do homem alto e o mais pequeno acenou a cabeça com vigor, corado de prazer. A. sabia que ele o olhara enquanto estivera a falar, talvez para ter uma ideia do tipo de reacção que a sua história provocava, e era evidente que os olhos de A. tinham mostrado a expressão correcta.

            - Ele seguia só e nessa altura o seu fato de belbutína verde ainda era razoavelmente novo, mas assentava-lhe pior do que agora. Bem, ele seguia o seu caminho, eu ia atrás dele e só vagamente o via. Não o perseguia, mas avançávamos com a mesma velocidade. Estava quase a amanhecer e percebi que ele também passara a noite a caminhar. Quando a madrugada chegou, escolheu um sítio para dormir, ao sol, e, logo que adormeceu, fui sentar-me ao pé dele, o mais próximo de que era capaz para me sentir acompanhado.

            "Contei-lhe há bocadinho que costumava sentar-me no acampamento dos viajantes adormecidos e observar os rostos dos homens. Foi o que disse então, mas podia ter dito mais coisas se não fosse pensar que me poderia considerar louco e estúpido. Contudo, tenho de dizer, e não abona lá muito em meu favor, que era tão envergonhado, sentia tão desesperadamente necessidade de companhia, que contemplava os homens adormecidos e deduzia os seus caracteres, o que dá um certo trabalho. Então, naquela luz bruxuleante, iniciava, em pensamento, uma conversa entre os dorminhocos e eu. Imaginava que um deles, por exemplo, um velho, que me conhecera na vida real e fora um grande amigo meu, estava a falar comigo e com os outros. Tinha um objectivo: puxava da minha garrafa, bebia um gole e depois, na minha imaginação, passava-lhe a garrafa para ele beber, era o que costumava fazer.

            "Bem, voltemos ao nosso homem. Pensei que ele estava a dormir e sentei-me perto, observando o seu rosto. Era tão inocente como o de qualquer outro adormecido e comecei então a adivinhar donde viria. "Tem um bom fato de belbutina", disse eu em pensamento, para mim mesmo, mas de uma forma vivida, em tom de conversa. Imaginei que ele me fitava, sorria e fazia um comentário qualquer.

           "E foi então que o olhei com atenção e vi a realidade do seu rosto. Estava tanto a dormir quanto eu, deitara-se de costas, naquela posição descuidada de um viajante, mas tinha os olhos abertos, fitando o céu como se nada vissem. O seu rosto, que me parecera tão tranquilo, reflectia horror e medo (sei que só consegui ver tudo isto porque praticara muito no rosto de outros homens), e li nele desespero, um desespero real. Apercebi-me de que ele me vira pelo canto do olho, mas que a minha presença nada significava comparada com aquela, fosse qual fosse, que tanto o amedrontava. Vi que tremia de medo e percebi que ele estivera a falar alto, assustando-me, pois o seu medo era terrivelmente contagioso. Olhei para trás mais do que uma vez, como se eles estivessem ali perto para nos massacrarem.

            -           Quem eram "eles"?

            -           Nunca o soube. Não sei como parti do princípio de que ele estava com medo de um grupo de pessoas. Não havia qualquer motivo para esta presunção excepto que era um homem apto (apercebera-me disso pela velocidade com que ele andava) e os homens assim só morrem quando são mortos. De modo algum parecia doente, e nenhum desastre natural o poderia atingir naquele instante. Sendo assim, aquele medo só podia ser receio de gente, de homens de um certo tipo, se preferir.

  1. teve um pequeno sorriso mistificador.

            -           Não poderia ser um medo interior?

            Era por demais evidente que o homem pequeno nunca pensara nisto de uma forma abstracta.

            -           Achei-o demasiado sensível para estar meio morto de medo por causa do inferno ou de coisa parecida - respondeu ele - e eu não sabia o que fazer, por isso sentei-me ao seu lado. Estava a suar, tinha o rosto frio e ainda pensei que talvez tivesse tomado qualquer droga ou coisa parecida, mas nesse instante ficou inconsciente. - O homem pequeno começou a mimar as suas próprias acções. - Fui até um ribeiro, trouxe água fria, molhei-lhe o rosto e depois diluí um pouco de conhaque e coloquei-lho nos lábios. Estava com uma respiração pesada, tinha os membros com uma rigidez estranha e percorridos por um leve tremor. O meu espírito relembrou todas as velhas histórias sobre possessões do demónio e coisas assim, mas ele foi recuperando lentamente a consciência. Olhou-me como se estivesse meio drogado ou acabasse de acordar de uma bebedeira, apontou para a água e eu dei-lhe o púcaro de esmalte. Bebeu então até à última gota, olhando em volta, ligeiramente surpreendido por descobrir onde estava. Mais tarde disse-me que sofria de uma espécie de epilepsia - o homem baixo fez uma referência fiel ao comentário do outro - e que o neurologista diagnosticara epilepsia do lobo temporal.

            -           Percebo - disse A., que nunca ouvira falar de tal doença.

            -           Foi na fase de recuperação daquele ataque que comecei a cuidar dele. Não estava zangado com algo em particular, apenas, isso sim, com raiva contra mim, uma raiva irracional. Começou a gritar comigo, exigiu coisas de mim, mas isso foi bom, mostrava que me tratava como se me compreendesse, e que eu estava, finalmente, a ser posto à prova. Pela minha parte, sabia que ele não estava bem, sabia que se conseguisse aguentar aquele seu comportamento irracional iria encontrar, quando ele acalmasse, o homem normal que eu estivera a seguir. E, á medida que o dia crescia, ele caiu no sono,

vi as suas pálpebras superiores cobrirem aquelas íris estranhas. Dormiu e fiquei ali a seu lado, nada mais podia fazer.

-           O homem baixo sacudiu a cabeça. - Sei que vai dizer que sou estúpido - prosseguiu -, mas pode levar isso em conta do meu carácter canino, foi assim que me fizeram.

            "Ele acordou só a meio da tarde, pois eu tivera o cuidado de fazer sombra sobre a sua cabeça. Quando despertou viu-me e esboçou um sorriso de reconhecimento. Sentou-se e

olhou para mim. Lembro-me de si", disse como se me tivesse visto há uma década. "Porque está ainda aqui?" Havia espanto na sua voz. Não consegui responder; a minha língua, colada ao céu da boca, não me deixava falar. Ele olhou-me. "Como me conseguiu suportar, a mim, um estranho? Nem sequer a minha família me atura depois de um ataque, mesmo sabendo que eu não tenho consciência total do que faço?"

            "Foi assim e a partir daí viajámos os dois. Ao princípio não falávamos, ele parecia satisfeito pelo simples facto de irmos juntos. Ao fim de algum tempo arrisquei um comentário, mas não sabia manter uma conversa, fosse de que tipo fosse, quanto mais iniciar uma. Não queria falar acerca do tempo, não queria trair as minhas origens empregando o calão da minha aldeia e não queria dissertar acerca da mulher com quem teria casado se houvesse continuado junto da minha família (vivia na porta quase a seguir a nós, e era a mais velha de cinco irmãs, todas elas já casadas, mas parecia-sedemasiado com a minha família para ser do meu agrado). Comecei então a falar, mas assim que abri a boca ele fitou-me com aqueles seus olhos concentrados e tornou-se-me tão difícil conversar como voar. Ele viu isto e sabia que estava de alguma forma em dívida comigo, embora eu nunca tivesse encarado as coisas desta maneira. Apesar disso, quando tentei falar, uma hora depois, pela segunda vez, ele continuou meramente a caminhar, mas acabei por conseguir dizer a frase. Não era nada do que eu queria, lembro-me disso nitidamente, o que tinha na ideia era uma coisa que nunca lhe diria a si porque é algo privado, mas o que saiu foi uma frase ridícula. "Magnífico tempo para Setembro", foi o que eu disse.

            -           E que tem de mal isso? - perguntou A. divertido e incrédulo.

            -           Nada, mas foi a maneira como o disse e o seu significado, tendo em conta tudo o que já acontecera. Tive medo de que ele se virasse e risse na minha cara, fiquei especado, envergonhado de mim mesmo. Despendera tanta energia na tentativa de falar com aquele homem, aquele pobre homem, e mesmo assim só conseguira fazer um estúpido comentário sobre o tempo, uma frase que ouvira há muito tempo, quando era ainda criança. Escutara uma senhora a dizê-la a uma amiga, nessa altura a frase tocou-me, e eu saboreei o comentário. Acho que cheguei até a usar essa frase em casa, com grande gozo da família, excepto do meu pai, que me disse que, se alguma vez a tornasse a dizer em público, me açoitaria. Talvez me rebelasse, como criança que era, e costumava olhar-me ao espelho e dizer esse comentário sobre o tempo, contrariando assim o meu pai, que se envergonharia se eu usasse a linguagem de outra classe ao falar na rua. Talvez fosse isso que tornava a frase tão saborosa e talvez por isso ela saísse assim tão de repente quando quis falar.

            "Ele virou-se inseguro da sua posição. Devia acenar gravemente em concordância ou rir? Qual era a sua classe social? Pensaria que eu estava a fazer pouco dele, que o considerava louco e irracional? Olhou para mim e, naquele momento, podia ter gritado ou sorrido. Desejei então falar-lhe do constrangimento que me impedia de usar a mesma linguagem que a minha família. Queria falar com ele nos seus próprios termos, não pretendia, com a minha voz inexistente, trazer a lume a história inútil da minha educação.

            -           De que forma era inútil a sua educação?

            -           A área que abrangia era inútil, assim como a religião e a gente que nela vivia. Havia decência, mas nascida da hipocrisia. Todos esperavam que me tornasse numa cópia do meu pai, até me tinham baptizado com o nome dele, que era também o do meu avô. Não suportava fazer o que de mim esperavam, o facto de ter de viver, trabalhar e gastar toda a minha vida até á morte naquela zona.

            -           E estas coisas faziam-no mudo?

            O homem baixo parou por um instante, deteve-se no caminho, pois, por qualquer razão, a questão de A. reduzira-o à imobilidade.

            - Sim - disse com voz lenta -, acho que é essa a razão.

- Teve um ligeiro sorriso. - Claro que no hospital disseram que a minha mudez era psicológica, foi o que afirmou o médico de serviço, mas como nada foi feito a este respeito eu não podia acreditar neles, tal como não acreditavam em mim. Na realidade eu não era completamente mudo, tinha uma espécie de repertório de frases feitas que podia usar, procurando, uma a uma, qual a que melhor se encaixava como resposta a qualquer pergunta que me fizessem, mas, claro, tal lista não era bem recebida lá em casa. Eram todas frases pescadas nas conversas triviais de gente de classes sociais mais elevadas, que eu escutava por acaso na rua e que, na verdade, traduziam mais a expressão idiomática de um maneirismo público. Nunca compreenderei por que razão estas coisas significavam tanto para mim quando era criança, mas talvez fossem apenas símbolos de um mundo que o meu pai me negaria.

            - Sente-se melhor aqui? - perguntou abruptamente A.

            - Sinto! - O homem mais pequeno quase gritou a resposta, embora a pergunta tivesse sido óbvia. - Pelo menos posso falar, quando tenho coragem para o fazer, e não se esqueça de que isso é algo de novo para mim.

            Nesta altura alcançaram o homem mais alto e caminharam ao seu lado. Este não falou, na verdade nem registou a presença deles por qualquer expressão, acção ou gesto, e mais uma vez A. recordou que ele dissera que todos os viajantes deviam ter a mesma expressão inamovível.

            O homem pequeno olhou para o seu camarada alto, que caminhava como se o outro nunca tivesse sequer existido; e depois sorriu para A., comentando:

            -           Já andámos tanto!

  1. olhou para trás e comprovou que a encosta da colina estava já longe e a boca do túnel era do tamanho da entrada de um ninho de vespas.

            Continuaram a caminhar e, a certa altura, o homem mais pequeno tirou a garrafa do bolso e ofereceu-a ao alto, que, sem desviar os olhos do caminho, parou. Os outros dois imitaram-no, enquanto ele, observando o chão com o olhar treinado de um viajante, virava uma pedra grande com o lado do sapato. Manteve as mãos nos bolsos e ignorou a garrafa que estava estendida na sua frente, o que levou o outro a sorrir ligeiramente, um sorriso indulgente.

            O homem alto falou.

            -           Certo. Vamos beber um trago e descansar aqui, não nos fará mal algum; não há pressa. - Encarou os outros dois e o seu rosto estava branco e sem cor. - Dá-me isso, por favor.

            Pegou na garrafa, bebeu duas goladas e, ao contemplar a linha do horizonte, viu algo que o tornou ansioso, pois puxou mais para si o casaco. Olhou para o homem baixo, que encolheu os ombros (o seu gesto favorito) e recebeu a garrafa. Fitou então A.

            -           As formas de prolongar a vida são poucas e pouco conhecidas - disse ele -, mas as maneiras de a encurtar são universais.

            Olhou com ar infeliz para o chão, como se fosse a única coisa sólida que lhe restava, chamou o homem baixo para junto de si, tocou-lhe no ombro e inclinou-se. A. escutou com toda a clareza as palavras, embora não fossem destinadas aos seus ouvidos.

            -           Desculpa. Não sou eu, bem o sabes. Acho que vou ter uma crise.

            Os dois olharam-no, e ele, por seu turno, encarou-os espantado e assustado. O homem baixo pegou-lhe no braço.

            -           Descobrirei um lugar sossegado - sussurrou ele -, desviado do caminho. - Virou-se para A. - Nunca vi nada assim na minha infância cheia de rancores - e levou o homem alto consigo.

  1. ficou sozinho, pois era nítido que os outros dois encaravam o ataque epiléptico iminente como uma coisa privada e embaraçadora, e, sem saber bem o que devia fazer, pousou o seu fardo e olhou o caminho vazio à sua frente; o Sol subira e o balastro aquecido da via fazia ondular o ar, tornando-a numa coisa ténue e incerta. Nesta planície as distâncias eram obviamente enganadoras - as colinas mais distantes pareciam tão longínquas como quando as tinham observado da entrada do túnel.
  2. sentou-se. Não tinha nada que fazer e, para fugir ao aborrecimento, abriu o saco e tirou de lá a cópia do seu manuscrito. Sentiu-lhe o peso na mão, colocou-o ao seu lado e pegou na primeira página, não para a ler mas apenas para ver a letra de máquina. O seu olhar captou uma linha e descobriu que lhe era quase impossível acreditar que fora ele mesmo quem escrevera isto: agora parecia ter tão pouca importância! Deitou-se de costas e sorriu para si mesmo, querendo afastar aquele assunto do seu espírito, mas sem o conseguir.

            Arriscara muito por aquele monte de papel, perdera a sua liberdade e, transítoriamente, qualquer paz de espírito. Perdera também a sua casa, pois sabia que nunca mais poderia regressar à cidade, desfizera todas as amizades que porventura tivesse, fora marcado com o registo de condenado e, apesar de tudo isto, sentia que o ideal, em si, tinha pouco significado. Tentou olhar para o passado - decerto que tivera um significado, sabia disso, e recordou as laboriosas horas que despendera trabalhando sobretudo de noite. Nessa altura fora gratificante o pensamento de que estava a produzir uma coisa que poderia ser rotulada de poderosa e sediciosa. Recordou o quarto iluminado pelo candeeiro na casa da viúva. Porque fora ela tão atenta e amável para ele? Porque o encarava como uma espécie de deus? A. recordou como se sentira infantílmente adulado pelo facto de ela ler o seu trabalho com o fervor de um discípulo. Várias vezes a interrogara sobre o sentido das coisas que escrevera e a mulher lhe respondera de uma forma lúcida e convincente. Agradara-lhe isto e ocorreu-lhe que ela apreciaria sempre tudo aquilo que ele fizesse, qualquer coisa a que metesse ombros. O amor dela era algo bastante obsessivo e desprovido de capacidade crítica.

  1. voltou a pensar nessa época de enfatuação, ciente da sua natureza insubstancial, e baixou os olhos para a cópia do seu manuscrito, certamente escrito num ambiente irreal de claustro. Como poderia ter qualquer significado fora do contexto, não apenas da cidade, mas da casa onde fora escrito? Como podia significar qualquer coisa na ausência do conhecimento de que o seu autor era jovem e a sua única ouvinte incapaz de criticar?

            Olhou para o monte de páginas, que ali nada significavam, e chegou a uma que explicava a vacuidade de uma supostamente secreta cerimónia oficial, um serviço religioso que se realizava todos os anos nas catacumbas da catedral, o qual era um dos muitos que ligavam a Igreja e o Governo da cidade, um pequeno item do ritual que era sempre assinalado nos

livros oficiais como "uma parte da herança cultural e religiosa". As vestes utilizadas nesta cerimónia particular eram, em princípio, secretas, e o serviço privado, pelo que o facto de A. se lhes ter referido constituiu uma parte substancial da acusação formulada contra ele.

            Esta fora, no início, moderada e ineficaz, tratando em pormenor a circunstância de ele ter pretendido publicar material com o propósito de revelar os segredos do sistema governamental da cidade. Os factos eram bastante claros, o tribunal não podia pôr em dúvida a sua culpa, e depois, só depois, a acusação trouxera a lume todo o seu poder, talvez com o obejctivo de vilependiar sem esforço A. e todos os conceitos que este defendia, levantando contra ele o ódio, para que, quando fosse dada uma sentença dura, não parecesse despropositada. Foram apresentadas as provas dos especialistas, psiquiatras e outros médicos e realçou-se muito a sua ligação com a jovem viúva, o facto de ela ser viúva de recente data e a circunstância de ele ter vivido com ela. A acusação prosseguiu nesta linha com irresistível ferocidade e só quando os mínimos fragmentos de dignidade haviam sido retirados ao sediciador é que a sentença foi lida - esquecendo a estupidez trivial do crime.

  1. recordou-se de que o jornal oficial classificara a sentença de "clemente", e de que como julgamento-espectáculo, como algo para dissuadir outros, a representação fora conduzida segundo linhas estabelecidas por precedentes já antigos.

            E agora? A. sabia bem que nada conseguira com as acções que empreendera contra a sua cidade-estado natal - a única coisa que lograra fora perder o direito à sua casa e ao seu bom nome - e o julgamento tirara-lhe qualquer sentimento de estima própria. Por isso a sedição, em si mesma, não tinha qualquer significado, o que o levara, na véspera, a atirar o pacote fora.

            Recordou a cidade com uma espécie de ódio mal aplicado, o qual abrangia os seus antigos amigos, patrões e colegas abrangia até a mulher que o ajudara a escrever. Pensou no que o teria tornado tão moderado na presença de dois estranhos, pois sempre pensara que, quando fosse solto, seria silencioso e inabordável. Mas isto não provara ser verdadeiro, e porquê? Era incapaz de analisar as causas, talvez visse algo de si próprio nas vidas dos dois homens com quem agora viajava, talvez fosse uma espécie de simpatia para com a loquacidade deslocada do homem baixo. E havia ainda a epilepsia e o facto de, até àquela altura, poucas questões terem sido postas.

 

            Já a tarde ia adiantada quando o homem baixo regressou, parando no cimo da via.

            -           Ainda está aqui? - perguntou, com uma ligeira surpresa na voz.

            -           Porque não havia de estar? - e A., que permanecera sentado sem nada fazer, virou-se para o homem.

            -           Convenci-me de que se tinha ido embora. Suspeitei de que pudesse não dispor de tempo para nós.

            -           Não, não penso que isso seja verdade. - A. levantou-se. - Se me mostrei desconfiado ou distante, foi apenas por causa das várias coisas que aconteceram.

            O homem baixo acenou com a cabeça e não fez mais perguntas, mas A. teve dificuldade em destrinçar se tal sucedeu porque não seriam bem recebidas ou se por o homem baixo não pôr nelas qualquer interesse particular.

            -           Como está o seu amigo?

            -           A dormir.

            -           Há alguma coisa que eu possa fazer?

            -           Não, acho que não - e o homem baixo olhou para os campos, para lá da via férrea. - Não temos muita comida.

            -           Onde a encontraremos?

            O homem baixo riu-se.

            -           Uma pergunta de viajante!

            Começou a olhar para a via, procurando um lugar para se sentar, e viu os papéis de A., mas nada comentou. Instalou-se a contemplar o pôr do Sol.

            O céu, a ocidente, estava estreado de nuvens laranja e a luz que tombava sobre a planície era do mesmo tom laranja carregado, o que tornava as coisas verdes estranhamente escuras, embora fizesse sobressair os campos de restolho e tornasse as torres cinzentas das igrejas suavemente proeminentes.

 

            O homem alto juntou-se-lhes antes de o Sol se pôr e sentou-se em silêncio, contemplando também o céu. Não fez qualquer comentário, sentou-se apenas em silêncio, e quando mexia os braços ou cruzava as pernas fazia-o com uma fadiga que teria indicado, noutras circunstâncias, que acabara de despender um enorme esforço físico.

            -           Como se sente?

  1. inclinara-se para a frente.

            -           Melhor, esta noite dormirei bem. - Olhou em volta.

Lamento que isto me tenha acontecido aqui, devíamos ter andado mais, só percorremos algumas milhas.

            -           No fim de contas tanto faz - disse o homem baixo. - Não se preocupe connosco, não quero que sinta qualquer culpa. Afinal eu só viajo por gostar de o fazer e o nosso amigo

-           indicou A. - provavelmente ainda não sabe para onde quer ir. Não há pressa.

            -           Não, é verdade - concordou o homem alto em tom arrastado.

            O homem baixo inspeccionou os campos em redor da via.

            -           Que tal estão as coisas? - perguntou o alto.

  1. reparou que o fato de belbutína verde, agora que ele recuperara, lhe assentava bem e irracionalmente pensou se não se daria o caso de a disposição do homem ser compartilhada pelas suas roupas.

            -           Bastante bem - disse o homem baixo. - Há ali uma quinta, junto daquele grupo de olmos, o grupo mais afastado. Vê?

            -           Sim - o homem alto seguira-lhe o olhar. - Se fores até lá, nós caminhamos mais um pouco e tu apanhas-nos mais á frente. Teremos um bom fogo à tua espera.

            -           óptimo.

            O homem baixo levantou-se e, com um breve aceno, primeiro para o seu companheiro e depois para A., começou a descer, quase em silêncio, o aterro da via férrea.

Assim que ele desapareceu o homem alto virou-se para A.

            -           Está muito calado.

            -           Para onde foi o seu amigo?

            -           Até àquela quinta.

            -           Para pedir?

            -           Não, claro que não. Eles nunca lhe dariam ouvidos, nunca escutam nenhum de nós. Julguei que já lhe tinha explicado como a falta de hospitalidade está entranhada nas gentes destas redondezas, quer nas aldeias quer nas cidades.

            -           Sim, lembro-me de que me disse isso.

            -           Ele foi ver se encontrava alguma coisa, e entretanto nós podemos avançar. - Levantou-se, mostrando uma certa instabilidade. - Teremos o fogo pronto quando ele regressar. Juntaram os seus pertences, caminharam cerca de milha e

meia pela via e pararam junto a umas cinzas recentes. Aí, sob a direcção do homem alto, A. começou a reunir lenha para uma fogueira, indo buscar os ramos de umas árvores mortas que descobrira na base do aterro. Quando regressou, descobriu que o homem alto andara à procura na via das cavilhas de madeira que outrora tinham prendido os carros desaparecidos aos dormentes retirados. A. voltou a descer o aterro e descobriu um poste de madeira de uma cerca, que foi capaz de desenterrar.

            O homem alto estava agora junto da pilha de lenha, obviamente satisfeito com a quantidade que haviam recolhido, e dispunha-se a preparar o fogo.

            Pouco depois ouviram, á distância, o ruído de um tiro e A. pôs-se em pé de um salto, continuando mudo, mas olhando para o homem alto, que, meio a dormir, descansava junto do fogo já aceso.

            -           Que foi aquilo?

            -           É óbvio que ele encontrou um galinheiro.

            -           Acha que devo descer para saber o que aconteceu?

            O homem alto levantou o olhar; estivera a contemplar as chamas.

            -           Não, está tudo bem. Já várias vezes tivemos companhia ao longo do caminho, mas em geral limitam-se a sorrir quando ouvem o disparo de uma arma ou, às vezes, piscam-me o olho. Você é diferente, mostrou que se preocupa com ele.

            Havia uma inflexão sardónica na sua voz.

            -           E porque não? Esta manhã contou-me umas coisas acerca de si próprio: a sua mudez, o seu encontro consigo. Contou-me como costumava viajar pela via e as suas vigílias nocturnas nos acampamentos de viajantes.

-           Oh, não ponho isso em dúvida, é um bom conversador. Ergueu-se apoiado no cotovelo e olhou para A. - Ao princípio pensei que você era brilhante, mas neste momento é-me difícil dizer onde reside o seu brilho. Há ocasiões em que me parece apenas meio inteligente, e é crédulo, demasiado disposto a acreditar.

            -           Bem, porque não? - A. sentou-se junto ao fogo, do lado oposto ao homem alto. - Ele contou-me a verdade sobre outras coisas, tenho a certeza disso, porque havia de me dizer mentiras?

            -           Oh, ele não conta mentiras, apenas meias mentiras, ou meias verdades, se preferir. Mas não interessa se ele pensa que são verdades ou se sabe que são mentiras, estou certo de que você acha o mesmo a seu respeito. Nunca se descobriu a esticar uma história, ou a contar as anedotas de outro como se fossem suas? Claro que sim, eu também já fiz o mesmo. E atrevo-me a dizer que, se voltar a ler essas suas linhas, descobrirá, à luz de uma maior experiência, que grande parte é meia verdade ou meia mentira. Escreveu de acordo com a falsidade das circunstâncias em que se encontrava, pois, no fim de contas, todos nós vivemos em circunstâncias falsas, e, assim como estas dão cor aos nossos juízos, também nós a damos às nossas interpretações dos factos.

            Grande parte disto se aplicava a A., que começou a pensar até que ponto se teria revelado ao falar com o outro homem.

            Mas o seu interlocutor voltara à carga.

            -           É fácil de ver, não é coisa que me dê grande mérito. Escreveu o seu chamado material sedicioso quando era ainda um jovem, percebe-se logo isso, um jovem insatisfeito. Torna-se fácil ver as coisas que lhe coloriam os pensamentos, pois é um escritor muito subjectivo.

            -           Leu-o a noite passada?

            -           Esta manhã bem cedo, não conseguia dormir.

            A., compreendendo que o seu manuscrito fora lido, lembrou-se de que tornara óbvia a sua intenção de deitar aquilo fora, e daí que lhe fosse de todo impossível protestar pelo facto de o homem alto o haver lido.

            -           Que pensa dele?

            -           Uma pergunta difícil, pois há demasiadas coisas que dependem de um contexto. Nunca lá estive, tudo leva a crer que seja um lugar duro, mas sobre isto tenho apenas a sua palavra, e você escreve subjectivamente. Decerto que o sentido daquilo que pôs no papel depende também do que você era e de como vivia nessa época, isto é, se desejava um trabalho baseado em factos e não em ficção. Na verdade sou fraco juiz. às vezes penso que não pode existir o chamado trabalho factual, talvez que a passagem do pensamento pelo espírito e qualquer tentativa de comunicação torne ficcional qualquer ideia.

            Pela segunda vez soou um tiro, seguido por sons difusos.

  1. pôs-se em pé de um salto.

            -           Que estará a acontecer lá em baixo?

            Tentou ver na escuridão, mas nada mais conseguia distinguir que o horizonte daquela planície informe.

            - Tenha confiança, ele é um homem cauteloso. Se, por acaso, vier a morrer nesta região, decerto que não será por culpa de um lavrador qualquer. É um homem muito cuidadoso, quando se aproxima de um galinheiro conhece sempre o momento exacto em que as galinhas vão cacarejar ou o cão do pátio ladrar. E você bem sabe como ele é capaz de se deslocar sem ruido. Se aqui estivesse, atribuiria tal silêncio à sua anterior timidez, quando costumava viajar de noite, mas eu acho que isso se deve ao facto de ele ser um ladrão nato, um ladrão por amor ao acto de roubar. Ele é bom em galinheiros, se é! Já o vi lançar pedras para fazer mexer as folhas. O lavrador descarrega então os dois canos da espingarda e ele aproveita para se escapar com toda a ligeireza. Acho que este segundo tiro foi de exasperação, atirado sem qualquer alvo á vista. Nesta altura ele já está a apanhar umas batatas.

            Ficaram em silêncio, enquanto a noite caía em redor deles e o fogo brilhava, quente. A. construiu um pequeno muro de pedras para proteger o fogo do lado do vento. Olhou para o companheiro e disse:

            -           Isto faz-me recordar a infância.

            O homem alto encolheu os ombros, um gesto que fez lembrar o homem baixo, e A. tentou imaginar até que ponto teriam adquirido as idiossincrasias um do outro.

            -           Sim, acho que pode - concordou o homem alto, expulsando devagar o ar dos pulmões. - Esteve lá esta tarde?

            -           Onde?

            -           Durante a crise.

            -           Não. - A. olhou-o com curiosidade. - Porque pergunta?

            - É embaraçoso; começa sempre de forma ligeira, uma alteração mínima do meu humor. Acho que consigo saber que vou ter uma crise um dia antes de ela acontecer.

            -           Percebo.

            -          Chamam-lhe epilepsia do lobo temporal e principia por uma mudança depressiva do humor. - Colocou no lume um bocado do arame da vedação e ficou a vê-lo ficar rubro. - Antes do ataque tenho uma aura, uma palavra estranha, que nada significa.

            -           O seu amigo descreveu-me tudo.

            -           Oh, sem dúvida que exagerou. - O homem alto inclinou-se para a frente. - Ele tem uma tendência para exagerar as coisas, é um homem muito activo. Entusiasma-se imenso a realizar as coisas, mas depois larga-as sem mais nem menos. Nem sei como se afeiçoou a mim.

            -           Como é a sua aura?

            O homem alto lançou-lhe um olhar perscrutador, mas logo se acalmou; talvez estivesse à espera de uma rasteira na pergunta.

            - Não sei, não é coisa fácil de descrever, ou talvez sim. Seja como for, se lha relatar você decerto ficará com uma ideia muito diferente da verdadeira experiência.

            -           Faz sentido.

            Ao longe surgiu uma figura na via, o homem pequeno estava de regresso. A sua silhueta, visível contra o céu escuro, era inconfundível. A. levantou-se para o saudar.

            -           Que encontraste? - perguntou o homem alto, sentando-se para o ver melhor.

            O companheiro, que estava com demasiada falta de ar para responder, colocou as duas galinhas e o coelho no chão. Depois meteu as mãos nos bolsos, tirou de lá algumas batatas e sentou-se.

            -           Cada vez é mais difícil - comentou. - Esta noite comeremos o coelho. Vou já esfolá-lo e tirar-lhe as tripas.

            - Tenho arame para o espetar.

            -           óptimo.

            Havia algo de profissional no comportamento dos dois, quase não desperdiçavam uma só acção ou palavra, e A. sentou-se a observá-los. Era óbvio que já eram companheiros de longa data - era até possível que fossem aparentados - e A. ficou abismado com a eficiência com que executavam as suas tarefas. Era quase impossível imaginar que viajavam sem objectivo.

            Esteve prestes a fazer a pergunta - "para onde vão" -, mas achou que seria mal acolhida, e, pensando melhor, concluiu que ele próprio a aceitaria mal.

 

                        Prosseguiram a viagem na noite e, como que para os ajudar, a Lua estava cheia e a sua pálida luz prateada brilhava na via. As colinas distantes estavam obscurecidas pela névoa, a qual, aderindo ao solo, cobria os campos, e só os ramos mais altos das árvores e o aterro da via férrea eram visíveis - a névoa envolvia assim a planície na alvura de um cobertor. Não havia vento e avançavam a bom ritmo, falando pouco.

                        Em quatro horas de caminhada percorreram quinze milhas, ou talvez mesmo mais, mas nenhum dos companheiros de A. mostrava quaisquer sinais de cansaço. No entanto, este, pouco acostumado a tal exercício, sentia a fadiga nas pernas pesadas e, além disso, a via constituía para ele um terreno difícil, a que não estava habituado. Enquanto os seus companheiros aproveitavam a seu favor as irregularidades do caminho, pois haviam-se acostumado a transitar pela via, A., pelo contrário, tropeçava com frequência nos buracos deixados pelos dormentes desaparecidos.

                        Como se soubessem da sua falta de familiaridade com o percurso, ambos o tratavam com consideração. A certa altura o homem baixo olhou para ele.

                        - Deve estar estoirado - observou.

                        - Nem por isso - respondeu A., mas era evidente, pela forma forçada como o dissera, que não estava a ser sincero.

                        Continuaram a andar e, mais ou menos por volta das três da manhã, encontraram um pequeno bando de viajantes adormecidos em torno de uma fogueira, cujas brasas já ardiam em tons sombrios. A. só teria notado as figuras adormecidas quando nelas tropeçasse, mas o homem baixo decerto possuia qualquer sentido instintivo que o recém-chegado à vida de viajante não tinha. Assim, sentiu a presença do acampamento algum tempo antes de o alcançarem e tocou na manga da camisa de A., como para avisá-lo de que tivesse cuidado.

            Os três ficaram parados a observar o bando de viajantes adormecidos, que estavam deitados no que pareciam ser atitudes pouco confortáveis, de rostos virados para o fogo moribundo. Eram cinco: um velho, que aparentava cerca de setenta anos; uma velha mais ou menos da mesma idade; um homem novo, que dormia nos braços de uma mulher - talvez fossem um casal -, cuja mão estava pousada no seu ombro, com um anel brilhando à luz mortiça do fogo; e uma criança embrulhada em mantas.

            Os três recém-chegados contemplaram os adormecidos sem uma palavra. O homem baixo começou a sussurrar, mas tão baixo que, se não fosse o intenso silêncio que os envolvia, as suas palavras se teriam perdido.

            -           Agora pode ver como era - explicou ele, olhando para A. - Falava-lhe de gente como esta.

            -           Estou a ver.

            -           Mantenha a voz baixa - continuou. - Não sabe quem eles são. Eu nunca os vi, embora possa afirmar que estão acostumados a viajar. Olhe para o velho.

  1. obedeceu e verificou que o velho dormia, mas que o seu sono era muito leve, o mínimo som tê-lo-ia acordado. O seu rosto, assim em repouso, tinha um ar de dignidáde, com a boca fechada, a barba branca prateada pelo luar e os olhos semicerrados.

            Não tiveram a certeza de o velho ter acordado, mas se o fizera decerto não fora por qualquer ruído causado pelos viajantes que o observavam, talvez fosse por mera coincidência. Abriu os olhos e o seu rosto assumiu uma expressão pensadora. Não viu os homens de pé. Bocejou num bocejo interminável, fitou por entre as chamas os rostos da família adormecida e os seus olhos detiveram-se em cada um deles, mais tempo no rosto da mulher jovem. Embora fosse difícil afirmá-lo à luz da fogueira, parecia que a sua relação de sangue era com ela e não com o homem. Depois olhou o homem novo, sorriu ligeiramente e o seu olhar parou na criança. Em seguida estendeu uma mão hesitante, como se pretendesse acordar a esposa, a velha que dormia a seu lado - talvez quisesse mostrar-lhe a paz que havia no repouso dos outros -, mas não o fez, voltou a pousar a mão e fechou de novo os olhos.

            Os três homens, de pé, encararam-se durante breves segundos e depois, como que de comum acordo, desapareceram nas bordas da via: os arbustos engoliram-nos sem um suspiro.

            Retomaram a sua caminhada, o homem alto com as suas passadas compridas e A. seguindo-o de perto. O mais baixo caminhava com certa relutância, como se lhe fosse difícil deixar os adormecidos. Quando já estavam a um quarto de milha do acampamento, ele parou.

            -           Que foi? - perguntou A.

            O homem baixo retomou a marcha, e ao falar, fê-lo com relutância:

            -           Já compreende agora o que eu sentia a respeito da beleza dos adormecidos? Já tem agora um vislumbre do que eu sentia, quando era mudo, ao sentar-me junto dessa gente e olhar para eles, sem ter a mínima intenção de lhes falar?

            -           Acho que sim - respondeu A.

 

            Tinham avançado já mais de cinco milhas quando o homem alto parou de repente.

            -           Já me falaram deste lugar - observou -, há uma aldeia não muito longe daqui. O melhor que temos a fazer é descansar agora um pouco e recomeçarmos amanhã, não quero dormir perto dessa aldeia.

            -           Porquê?

            A., inquiridor como sempre, falou abruptamente, a palavra quase na cauda do comentário do homem alto.

            -           Porquê? Julguei que a resposta seria óbvia. Não lhe falei já da hostilidade destas aldeias e vilas?

            -           Já - concordou o homem mais baixo. - Uma vez cometi esse erro e não foi nada agradável. Já viu os cães de uma aldeia? E as crianças? A forma como tratam os vagabundos e viajantes?

            -           Não, nunca vi, mas decerto que - comentou A. -, se não lhes fizermos mal, não sentirão contra nós essa hostilidade, não é?

            O homem baixo sentou-se junto do seu companheiro mais alto.

            -           É uma questão de má reputação - explicou. - Já lho disse. Uma vez cometi o erro de dormir ao pé de uma aldeia e fui acordado de uma forma horrorosa. Nunca viu os aldeões apedrejarem um viajante? Nessa altura tive muita sorte. Se um bando de viajantes não me tivesse ajudado, sentindo por

mim uma espécie de camaradagem, ficaria em maus lençóis. E, claro, a minha mudez só piorava as coisas.

            -           Podemos dormir aqui - disse o homem alto.

            Deitou-se para trás, de costas, com as mãos sob a cabeça, e contemplou a Lua.

            -           Que fazem quando o tempo está mau? Quando chove?

            O homem alto estendeu-se ao comprido e cruzou as pernas.

            -           Que acha? Há celeiros relativamente perto da via e dispomos das cabanas que pertenciam à companhia, algumas das quais ainda têm fogões ou lareiras com grelhas de ferro. E, se se procurarmos bem, ainda se encontra carvão ao longo da via. Mesmo assim a vida não é fácil. Claro que também se pode dormir sob o arco de uma ponte, mas há lugares melhores que outros. Alguns dos arcos têm nichos onde se fica com todo o conforto e não é difícil arranjar feno.

            A., seguindo o exemplo do homem alto, deitou-se para dormir. Estava cansado, mas o desconforto do leito improvisado foi mitigado pela abundância de uma erva que, muito apropriadamente, descobriu, de manhã, tratar-se de feno. Deitou-se de lado, usando o saco como almofada, e olhou a via: nem o mínimo sinal de vida. As estrelas brilhavam.

            Dormiram até o Sol, que já ia alto, os acordar: há muito que passara a madrugada.

 

            Começaram preguiçosamente o dia. As névoas da noite tinham-se dissipado e a manhã já estava quente.

  1. reparou que o homem alto inspeccionava o horizonte. O outro não estava á vista.

            -           Onde foi ele?

            -           Acolá em baixo. Passa por ali um rio e deve estar a lavar-se.

            -           Acho que devia fazer o mesmo.

            -           Nesse caso apresse-se, temos de prosseguir o nosso caminho.

  1. foi até ao rio e, ao atingir a margem, viu o homem baixo a secar-se com um bocado de pano limpo, um acto desnecessário dado que o sol estava suficientemente quente para o enxugar em poucos minutos.

            Pareceu-lhe melhor ignorá-lo; despiu-se e mergulhou no rio.

            A água estava fria e o exercício era revigorante. Nadou até à outra margem e regressou também a nado.

            -           Tem sabão? - gritou o homem baixo.

            - Tenho, meteram-me um bocado no saco.

            -           Nesse caso não o perca, é uma preciosidade por estas bandas.

  1. deixou-se estar sobre os seixos da margem enquanto ensaboava o rosto e o corpo. Voltou ao rio e ficou de pé, com a água pelo peito. Segurou-se com os dedos dos pés ao fundo lamacento, pois a corrente era mais forte do que ele julgara. Olhou para o homem baixo.

            - A que distância fica a aldeia?

            - Duas milhas, é uma aldeia bastante grande, quase uma pequena cidade.

           Chegaram à aldeia por volta das dez horas. Ao aproximarem-se viram a torre quadrada da igreja e, já mais perto, os telhados das casas. A aldeia era linda, a pedra dourada das casas combinava bem com os telhados vermelhos.

            Caminhavam bastante depressa.

-           Que há ali que nos meta medo? - perguntou A.

            - Quem falou de medo? - O homem alto olhou em frente, seguindo a linha, e lançou um olhar amaldiçoador à aldeia. - O melhor é não nos aproximarmos mais. São pouco amigáveis, pelo que ouvi dizer, e têm uma forte aversão a viajantes. Além disso, o magistrado provincial instalou-se ali.

            O homem baixo apontou para uma casa grande a cerca de meia milha deles, virada para a via férrea. Era uma estrutura alta, de quatro pisos, mas bastante estreita, que dava a impressão de ter sido transplantada da cidade. Um parapeito escondia o telhado.

            - É ali que ele vive. É famoso.

            - Que mal fizeram vocês na aldeia?

            O homem baixo olhou para ele; aparentemente a questão era inconveniente.

            - Nada - acabou ele por dizer. - Nada de importância.

            Começou a tornar-se claro para A. que os viajantes tinham várias superstições estranhas sobre a via férrea que utilizavam como estrada e as terras por onde passavam. Fizera inúmeras perguntas sobre a suposta hostilidade dos aldeões e citadinos dos lugares por onde a via passava e todas as suas perguntas haviam encontrado respostas vagas e indefinidas, não lhe fora dada uma só razão concreta. Recordou as diversas superstições que aprendera durante aquela viagem e pensou ser possível que a suposta hostilidade dos aldeões fosse apenas mais uma. Assim, manteve-se silencioso enquanto se aproximavam.

            A via férrea abandonada cortava a meio a povoação, o aterro avançava, direito como um fuso, exactamente como se esta não existisse, e a rua principal da aldeia passava sob um imponente arco cortado no aterro. A., em cima da ponte, olhou para baixo e os outros dois homens, vendo-o parar, agarraram-no pelos braços.

            - Vamos! - gritou o homem baixo, mas num tom tão aflito e abafado pela ansiedade que A. teve dificuldade em o entender, enquanto o homem alto lhe puxava pela manga.

           - Não é um bom lugar para parar - disse este, e embora a sua voz, ao contrário da do companheiro, não traísse ansiedade, era evidente que estava também agitado.

            A., que não via qualquer razão para ansiedade ou agitação, voltou a olhar para a aldeia e viu a rua vazia. O relógio da igreja bateu um quarto, nada mais aconteceu, não se avistava uma só pessoa.

            - Porque lhe chamam aldeia? - perguntou A.

            Na verdade, a povoação mais parecia uma cidade-mercado, com a sua vasta praça rodeada por casas altas. Uma construção de tijolos vermelhos, incongruentemente colocada na parte mais estreita, ostentava um portentoso pórtico fazendo saliência para a rua, com as palavras "Câmara Municipal" inscritas no arco sobreposto.

            - Não passa de uma aldeia - insistiu o homem alto. Vamos, é preciso continuar. Até agora tivemos sorte, mais do que a que merecemos, ainda não nos viram. - Falava muito depressa. - É bem verdade que os aldeões nunca subirão á

via férrea, acreditam que, se se aventurarem a fazer isso, se tornarão em viajantes como nós.

            - Como conhece todos esses factos a que chama superstições? Como pode saber essas coisas? Já alguma vez esteve nesta cidade?

            - Claro que não - respondeu o homem alto. - Tem de confiar em mim, é só o que lhe digo. Uma vez pedi-lhe que se refreasse de me fazer perguntas sobre a vida de um viajante, mas isso agora já não tem importância. Tudo o que peço é que avancemos rapidamente para sairmos deste lugar. Como estava a dizer, eles não subirão até aqui, nem mesmo a polícia, mas mesmo assim podem atirar-nos pedras e também nada os impede de nos alvejarem a tiro. Aqui estamos muito vulneráveis; venha connosco, depois responderei a todas as perguntas que me quiser fazer - e começou a andar.

            - O lugar está bastante calmo - observou o homem baixo. Que dia da semana é hoje?

            - Terça-feira - respondeu A.

            - Lembra-se do dia, não se lembra?

            Nada havia de irónico na forma como o homem baixo falou, enquanto se inclinava sobre o parapeito de madeira da ponte. Era óbvio que esperava que A. avançasse e depois cruzou as mãos. Sorriu com indulgência, como se fosse fazer uma afirmação que seria clara até para A., um recém-chegado, uma razão para saírem o mais depressa possível da cidade. Inclinou-se mais para se instalar melhor.

            - Sabe o nome da cidade? - perguntou A.

            O homem pequeno levantou subitamente os braços no ar e, por um instante, A. pensou que o fazia por exasperação, mas depois, no mesmo segundo, percebeu que não era isso. O homem ficara subitamente assustado, muito assustado, e tentara endireitar-se.

            Viram a razão daquilo, mas nada podiam fazer.

            O parapeito de madeira podre cedera sem um ruído sequer e o corrimão caíra para trás, sobre o vazio criado pela ponte. O homem pequeno tentara salvar-se, atirando os braços para

a frente, mas tudo era já inútil, a madeira podre cedera sob o

seu peso. O seu rosto, branco, fixava o vazio, e tentou ainda

agarrar-se ao parapeito.

            Então, com um som cavo, a madeira cedeu completamente e o corpo do homem percorreu os quinze metros que o separavam da rua, lá em baixo.

            Ficaram a olhá-lo. Caíra de costas, com uma perna torcida debaixo do corpo, e em torno dele espalhava-se a madeira traiçoeira do parapeito decadente. Tinha a cabeça de lado e do pescoço torcido e deformado principiou a correr sangue.

  1. correu para a barreira inclinada e coberta de ervas e começou a descê-la, meio a escorregar meio a correr, ouvindo atrás de si a voz do homem alto:

            -           Pare, louco, volte para trás! Que pode fazer agora? Não vê que ele tem o pescoço partido?

  1. olhou de relance para a figura imóvel do homem alto, mas não respondeu. Alcançou o nível do chão, no fundo da ponte, e correu, protegido pela sombra do arco. Viu a madeira podre do parapeito em torno do corpo distorcido e ajoelhou-se. O homem ainda respirava, mas fazia-o com estranhos movimentos esterterosos e superficiais. Os olhos estavam abertos, as pupilas dilatadas, mirando em frente sem nada verem.

            A rua continuava vazia. A. olhou para os dois lados, para a Câmara Municipal e para o outro lado da ponte, onde se viam algumas casas, e depois tornou a fitar o homem. Onde poderia encontrar um médico? As portas das casas estavam resolutamente fechadas. Levantou-se, preparado para correr até à mais próxima em busca de auxílio, mas, nesse momento, tornou a encarar o corpo: os olhos do homem baixo estavam fixos e a respiração parara.

 

  1. sentara-se no coçado sofá de crina de cavalo colocado no vestíbulo da Câmara, onde lhe tinham dito que ficasse sentado.

            Há menos de meia hora achava-se ainda na via férrea, sobre o arco da ponte, olhando, pelas portas abertas, para a escuridão da sala onde estava sentado, e agora fitava a ponte da via férrea com o seu parapeito quebrado. Na sombra do arco juntara-se um grupo de homens, que contemplavam o corpo do viajante, naquele momento visível na sombra confinada. Enquanto olhava, viu-os afastarem-se, gesticulando, para darem passagem a um cavalo e um carro que vinham da rua do outro lado do arco. O corpo foi colocado no carro, os homens dispersaram e a rua ficou tão silenciosa como da primeira vez que A. a vira. O facto de o parapeito da ponte ter um espaço vazio era irrelevante.

            Tornou a mirar o vestíbulo, uma sala alta, apenas com uma escada para o piso superior, a caixa de um elevador e algumas portas pintadas de castanho. O local tinha aquele ar característico de instituição empobrecida - as paredes estavam pintadas de creme até ao nível dos puxadores das portas e, abaixo deles, uma estreita linha negra descia até ao rodapé castanho-chocolate. A tinta estalara e, junto do soalho, o estuque estava inchado pela humidade. O interior poderia ser o de qualquer dos seis asilos da cidade.

            O elevador desceu sem aviso, as portas abriram-se e dois homens emergiram. O funcionário da Câmara, o homem que dissera a A. que, uma vez ser ele a única testemunha da morte, devia ficar ali sentado naquele sofá de crina de cavalo, manteve as portas abertas para o outro - um homem gordo, de altura média - sair. A. pensou que devia ser o mayor, pois havia nele os modos lentos de uma dignidade provincial e o outro homem andava em volta dele, esfregando as mãos, curvando-se de quando em quando numa vénia. Era este último quem falava, o mayor estava imponentemente em silêncio, ciente talvez não tanto da sua importância como da sua própria presença.

  1. levantou-se como que por deferência.

            -           Ainda aqui está? - exclamou o funcionário, lançando um breve olhar a A. - Talvez, se esperar um instante...

            A sua voz era firme e alta e virou-se depois para o mayor.

            -           Desculpe, senhor, o carro tinha instruções para estar aqui às onze.

            -           Não tem importância - disse o mayor.

            Embora a sua voz fosse lenta e até mesmo sonolenta, soltava as palavras como se cada uma delas tivesse uma significação individual, havia uma espécie de queixume no seu discurso que não parecia provocado pelas cordas vocais.

            O mayor, de pé junto da porta, nada mais estava a fazer do que olhar para a rua, enquanto brincava com a corrente de ouro presa no colete. A casaca negra era comprida e as calças largas. Estava consciente de que A. o observava, pois virou-se para o funcionário.

            - Ele está à espera de mim? - e aguardou, de rosto inexpressivo, uma resposta.

            - Não, não - apressou-se a dizer o funcionário, incapaz de permanecer quieto, sempre a mudar o seu escasso peso de um pé para outro. - Mandei-o sentar-se ali porque testemunhou o acidente.

            - Ah!, o homem que caiu da ponte.

            O mayor afastou qualquer pensamento sobre A. e retomou a sua observação, os olhos fitos no vago.

            O carro chegou e o mayor desceu os degraus e entrou pesadamente no carro, revelando um quadrado de brilho no fundilho das calças. Instalou-se no assento de couro, o funcionário fechou a porta e o carro partiu.

 

            As sequências que haviam enchido a manhã não estavam aparentemente ligadas e A., que constituira a audiência de cada uma delas, sentia como se tivesse sido testemunha de uma moralidade sombria, repetitiva, mas desconjuntada. O viajante pequeno morrera, morrera no meio da sua loquacidade. Teria feito alguma coisa para merecer a morte? Teria ela sido precipitada pela quebra de algum código desconhecido?

  1. esperou mais uma hora no sofá de crina de cavalo e então, repentinamente, levantou-se, enfrentou as portas abertas e saiu para a luz do Sol, parando na praça a contemplar as casas e as lojas encerradas. Nada de anormal havia na cidade.

            Caminhou na direcção do arco da ponte, olhando sempre para a via férrea. Viu a linha abandonada sobre o aterro ingreme e os postes telegráficos inclinados numa perspectiva mais alta que as mais elevadas chaminés das casas. Estava já junto ao muro de pedra, levantando as mãos para começar a subir o aterro, quando a visão de uma figura de pé, junto ao arco da ponte, o fez parar.

            Era sem dúvida o mayor.

            O homem saiu das sombras, piscou os olhos com o sol e os dedos da mão direita tocaram a aba do chapéu de feltro, enquanto a luz do Sol captava cada partícula de pó no seu fato negro e puído. O rosto era o do mayor, mas ocorrera nele uma subtil alteração.

            - É também sacerdote?

            O outro homem sorriu com tolerância.

            - Não é invulgar - respondeu - encontrar na província um pastor que é também mayor. - Torceu os lábios, talvez pensando nalguma tarefa que não fizera, e encolheu os ombros. - Com efeito, diria mesmo que é quase uma verdade universal. - Começou a andar na direcção de A., que resistiu á tentação de recuar, e segurou-lhe no braço. - Donde é? - quis saber, não reconhecendo, decerto, o fato, revelador da origem do viajante.

            -           Da cidade, do terminal.

            -           Viajou bastante?

            -           Nem por isso. Dois dias.

            O rosto do pastor abriu-se.

            -           Claro, veio pela via férrea. É diferente. - Fez uma pausa. - Acabo de celebrar um serviço religioso em memória do homem que caiu da ponte - continuou em tom coloquial.

- Se tivesse sabido antes que você era seu companheiro de viagem, ter-lhe-ia dito quando estivemos na Câmara Municipal. É uma pena, uma profunda pena, encomendar o corpo de um estranho. Você poderia ter feito alguma luz sobre as suas origens. - Começou a caminhar pela rua. - Conhecia-o bem?

            -           Não, encontrámo-nos por acaso.

            -           Não sabe donde vinha?

            -           Não.

            - Ele não lhe contou nada sobre a sua família?

            - Contou, contou-me a sua história, mas nunca estive seguro do ponto até onde devia acreditar nela. Acho que romanceou uma boa parte, embora isso não tenha agora qualquer importância.

            -           Porque abandonou a cidade?

            Como mayor, o homem parecia ter as fraquezas de um magistrado provinciano, assim como, enquanto pastor, tinha as de um clérigo. Era difícil imaginar qualquer alteração fundamental no homem.

            - Fui expulso, padre.

            O pastor continuou a andar.

            - Não me chame padre.

            - Mas é o sacerdote desta cidade, não é?

            - Não. Sou apenas pastor, mayor e magistrado, nada há de sacerdotal nas minhas ocupações.

 

            O pastor segurou A. pelo braço, suave e frouxamente, e este não descobriu qualquer razão para sacudir de si a mão do homem: não tinha a certeza se ele fizera isso movido pelo desejo de o guiar até ao pórtico da Câmara ou se o pretendera ajudar, pensando talvez que estava exausto. Era possível que o próprio pastor tivesse alguma enfermidade e tocasse no braço de A. para se segurar.

            Como se a sombra pouco acolhedora do vestíbulo escuro o tivesse afectado, A. estremeceu ao perguntar:

            - Porque me trouxe de novo até aqui?

            O pastor sorriu com uma complacência fácil.

            - Posso afirmar que há algo de anormal no seu comportamento, está a tremer.

            As suas palavras eram estudadas e A. esperou que o pastor tivesse apontado o seu fato de prisão, mas ele não o fez.

            -           Descobri, pela experiência, que não se pode confiar no que dizem os viajantes. Gostaria de mais justificações que a sua palavra. Veio da cidade?

            -           Já lho disse. Que outra prova posso dar?

            O pastor cedeu neste ponto, acenando ligeiramente com a cabeça.

            -           Quais são os seus planos actuais? Para onde vai?

            A questão era inesperada, a voz do pastor tornara-se baixa e distinta e A. sentia-se sob apertado interrogatório, que o obrigava a tomar uma decisão sobre o que lhe contaria. Podia ter encolhido os ombros, mas, em vez disso, juntou as mãos numa atitude de prece, embora nada houvesse de suplicante na sua postura.

            -           Vou continuar viagem.

            -           Estou a ver - o pastor falou num tom que renovava a sua complacência, a clareza desaparecera da sua voz. - Para onde? Tem em mira qualquer destino?

            Mais uma vez uma questão inesperada, se bem que não o devesse ser, mais uma vez era dada a A. a possibilidade de se recusar a responder, de não revelar qualquer conhecimento acerca do destino da sua viagem. Afinal decidiu-se a dar um passo em frente e apontou uma cadeia de colinas distantes, que, para dizer a verdade, não pareciam mais próximas do que quando as vira pela primeira vez da entrada do túnel, muitas milhas atrás. - Pretendia ir até acolá, um amigo mora lá.

Sentia-se consciente da falsidade desta informação, estava apenas a fazer-se eco das palavras do viajante alto.

            O pastor não se incomodara sequer a seguir a direcção do seu olhar.

            - Muito bem, afinal há uma certeza naquilo que diz. Fico satisfeito por você saber para onde vai e aonde conduz a via férrea.

            A., ainda a olhar para as colinas, ouviu a porta do elevador abrir-se no vestíbulo, virou-se e viu o pastor já no elevador.

Deu um passo na sua direcção e o outro, vendo-o avançar, não fez qualquer gesto para fechar a porta.

            - Sim? Que é?

            Embora houvesse formulado a pergunta, a sua voz tinha o tom de quem punha ponto final na questão.

            - Espere um pouco.

            - Que se passa? Não é necessário continuar a nossa conversa. - O pastor começou a fechar a porta. - Se sabe para onde vai, siga o seu caminho - Parou no seu movimento. - Espero que tudo lhe corra bem. - Colocou de novo a mão no puxador. - Apenas o trouxe até aqui porque pensei que tivesse alguma incerteza interior. - Sorriu para A., que se sentiu incapaz de saber se a sua atitude era fingida ou genuína.

- No entanto, todos nós nos podemos enganar. Boa sorte para si.

  1. ficou, hesitante, no vestíbulo, a olhar para o pastor, que fechara o elevador e se preparava para premir qualquer botão oculto num painel na parede da cabina.

            - Espere - pediu A., com urgência na voz.

            O pastor, talvez reconhecendo-a, baixou a mão e abriu a porta.

            - Entre - disse ele, fazendo um gesto com a mão -, entre.

  1. obedeceu, o pastor fechou a porta e o elevador começou a subir.

            As paredes do edifício passavam pelas grades e A. agarrou-se ao metal negro e trabalhado.

            - Porque me pediu que esperasse? E, quando esperei, porque fez uma pausa?

  1. não respondeu.

            - Oh, bem vejo que é um viajante - continuou o pastor.

- Não há erro possível, não me enganou com aquela de apontar á distância; foi apenas uma espécie de temporização involuntária.

            A., talvez irritado com a complacência do outro, virou-se para o enfrentar.

            -           Qual é o seu negócio? Porque se interessou por mim? Sabe quem eu sou?

            -           A qual das perguntas gostaria que eu respondesse? E não levante a voz, já lhe concedi o benefício da dúvida ao dizer que você temporizara. Outros ter-lhe-iam chamado mentiroso.

  1. olhou-o mais indignado que envergonhado.

            -           Mandei-o entrar no elevador porque hesitou, isso é o mais importante. O facto de ter gritado "espere!" foi de menor importância. - O pastor falava muito depressa. - Quanto áquilo que você é... como o poderei saber? - Sorriu furtivamente. - Vejo constantemente uma torrente de viajantes. É uma pena. - Inclinou a cabeça de lado. - Já alguma vez os viu? Os pobres? É muito bonito falar-se de objectivos e ambições, mas quanto a esse dedo indicador! Especulação: não sabem para onde vão, nem se são empurrados pelas costas ou puxados pela frente, mas têm sempre respostas prontas. Inteligentes ou estúpidos, apontam sempre para aquele horizonte vazio.

            -           Não é vazio, é lindo, pelo menos com certas luzes.

            -           Não me venha impingir isso do luar sobre as montanhas ou do céu da alvorada. - A voz dele estivera elevada, mas agora falava calmamente. - Não, você está apenas a representar, ainda não se começou a enganar a si próprio.

            A., que estivera a escutar com toda a atenção as palavras do pastor, colocou uma mão sobre a alavanca do elevador.

            - Nada do que disser me mudará. Nada tenho para lhe dizer; preciso de sair desta vossa cidade.

            - Não toque na alavanca. - O pastor cruzou os braços.

- O elevador está programado para aceitar a primeira ordem.

  1. olhou com irritação para o homem.

            - Nesse caso terei mesmo de o acompanhar.

            - Quanto dinheiro tem?

            - Afinal qual é o seu negócio?

            - Todos. Você é um vagabundo?

            - Não! Deixe-me sair!

            O elevador parou e alguém, do lado de fora, abriu as portas. O pastor empurrou A. para fora da cabina.

            A., de mau humor, os braços cruzados e as pernas afastadas, olhou para o vestíbulo como se o lugar não lhe dissesse respeito e estivesse ao abrigo da sua jurisdição, mas quando viu os três funcionários moderou as suas ideias sobre independência e suficiência. Fitou-os um por um, ciente dos olhos fixos nele, e deu um passo atrás.

 

            Apesar de toda a estranheza em relação ao ambiente que o rodeava, A. descobriu ser incapaz de afastar a sua atenção do pastor. Vira-o como a imagem típica de um padre, como um mayor provinciano, e agora descobrira a natureza intelectual do homem. Viu-o falar com os seus subordinados e, pela primeira vez, lembrou-se de que estava na presença de um magistrado.

            - Que traz consigo? - perguntou o mayor.

            - Este saco?

  1. tentou assumir de novo o seu ar de independência despreocupada.

            - Sim, esse saco - confirmou o magistrado.

            - Tenho de ir - insistiu A. em tom sumido, porque o olhar dos funcionários lhe estava a ser intolerável.

            -           As escadas estão ali - replicou o magistrado, cuja voz indicava que a sua paciência estava a esgotar-se. - Será acompanhado até á rua. Entretanto vamos terminar com as formalidades.

            Avançou para uma porta de painéis de madeira, de largura desproporcionada em relação á altura e não teve necessidade de chamar A. porque este seguiu-o de perto, ansioso por escapar aos três funcionários e interpor a solidez da pesada porta entre o olhar deles e a sua pessoa.

            Quando A. seguiu o magistrado para a sala atrás da porta alta, esperava ser interrogado como o fora na altura do seu julgamento na cidade, antevira talvez um jogo emocional com factos meio certificados, uma série dirigida de perguntas, habilidosamente formuladas, que não lhe deixariam outra hipótese senão dar a resposta esperada. Esperava também ser colocado sob uma luz forte, e, facto de maior importância ainda, que se iria acusar a si mesmo com as respostas a perguntas pré-ordenadas e fixas. A maioria dos seus acusadores no julgamento da cidade tinham sido sacerdotes e este homem evidentemente que o era também, embora gostasse que lhe chamassem "pastor" e negasse qualquer função sacerdotal.

            A realidade dos factos naquela sala não era a mesma, fixa e inalterável, do seu julgamento na cidade, mas isto não foi óbvio desde o princípio. O facto de o pastor ou, como A. agora o encarava, o magistrado, ter puxado de uma cadeira confortável, feito sinal ao viajante para se sentar e lhe haver oferecido um copo de vinho não quebrou a desconfiança de A., que estava habituado a anteriores abordagens confortáveis antes de um ataque condenatório.

  1. sentou-se, desconfiado, recusou o vinho e manteve, tanto quanto pôde, o silêncio, proferindo apenas monossílabos indefinidos quando era necessária uma resposta.

            O magistrado era paciente e A., observando melhor o homem, compreendeu que a sua paciência não era fingida. Na realidade foi a sua veracidade que fez com que o homem ganhasse a confiança de A., começando a sentir simpatia por ele. Num momento de silêncio inclinou-se para a frente, colocando as mãos sobre a secretária do magistrado, os olhos postos nas mangas coçadas do seu próprio casaco. O outro, percebendo que o jovem viajante estava prestes a falar, recostou-se para trás.

            - Prestei-lhe um mau serviço - disse A., encolhendo os ombros. - Peço desculpa.

            - Tem sido desafiador e rude, é um facto - concordou o magistrado, apoiando as mãos nos braços da sua cadeira -, assim como evasivo. Já anteriormente foi interrogado?

            - Muitas vezes. - A. olhou para ele. - Como soube?

            - Vi, no momento em que fechou a porta na cara dos funcionários, que aguardava outro tipo de interrogatório, e reparei também no alívio transitório que sentiu quando se lhe deparou esta sala nua, apenas com uma secretária e duas cadeiras. - Ergueu os olhos. - Está na via férrea por causa de ter sido condenado?

            - Estou.

            - E ser vagabundo é preferível a regressar à sua cidade?

            - Acho que não posso regressar.

            O magistrado levantou-se.

            - Gostaria de ficar connosco em vez de voltar à via férrea como um vagabundo?

            - Que quer dizer? - A. olhou para ele. - Ficar aqui?

            - É uma possibilidade, é mais fácil encontrar trabalho que numa cidade grande.

  1. lembrou-se dos funcionários.

            - Nunca poderia ficar aqui.

            - Julga que o passado o poderá apanhar?

            - Não sei - respondeu, sorrindo para si mesmo. - Agora         que eu disse isto você julgará que estou a temporizar. Olhou para o tampo da secretária, completamente vazio e

revestido de couro impecável e intocado; nunca sobre ele fora colocada qualquer coisa pesada. Só então, ao ver a fina camada de pó, passou sub-repticiamente o dedo pela superfície, escondendo o gesto com o antebraço. O magistrado falava de novo.

            -           Sim - disse este de uma forma que levou A. a pensar se não teria dormitado e perdido o início de uma frase. - Há bastantes vagabundos na cidade, não tantos no Verão, talvez.

  1. olhou para cima, interrompendo o seu traço no pó da secretária.

            -           Julgava que eles evitavam cidades e aldeias.

            - Não, quando precisam de nós. - O magistrado esboçou o seu sorriso lento. - As suas reticências fazem-me crer que já ouviu demasiadas histórias contraditórias.

  1. voltou ao seu traçado no pó.

            -           Contudo, os outros viajantes não foram falsos para mim. É difícil de o dizer, mas, de certo modo, julgo que o foram mais com eles próprios.

            O magistrado fez uma pausa para pensar na última afirmação de A.

            Esta sua caracteristica, o facto de ser capaz de escutar, a consideração que mostrava pelos frugais comentários do jovem viajante, eram decerto responsáveis pela confiança que A. nele depositava. Quando o magistrado falou, fê-lo com deliberação, havia nele uma maturidade sabedora, tentando não influenciar nem desiludir A.

            - Posso enumerar algumas das superstições? - perguntou, olhando interrogativamente para A. - Não que tenha grande interesse, mas pode clarificar as coisas e ajudá-lo a manter-se precavido no futuro. Têm, por exemplo, a superstição de que, quanto mais longe se aventuram na via, maior é o perigo que correm - aceitam isto e, no entanto, aproveitam todas as oportunidades para roubar nas quintas e pedir nas cidades durante o Inverno. Guardam também a superstição de que a gente da cidade não anda ou não pode andar na via, o que é falso. Quem julgam eles que os enterra quando morrem? No Inverno passado, chamaram-me para o funeral de mais de uma dúzia, na sua maior parte vítimas do frio, por causa da superstição de que não podiam sair da via férrea sem se exporem a riscos.

            - Está a contradizer-se.

            - Porquê?

            Havia um ligeiro sobressalto na voz dele.

            -           Acabou de dizer que os viajantes estavam sempre prontos a descer à cidade quando tinham fome, e depois afirma que preferem morrer na via a descer até cá.

            O magistrado passou uma mão pela testa, parecendo, de repente, cansado.

            - Não se podem fazer generalizações - observou. - As pessoas diferem, a fome e a superstição arrastam diferentes indivíduos, de diferentes maneiras.

            -           Sim - disse, devagar, A. -, percebo.

            Levantou os olhos e viu o magistrado a sorrir para si mesmo. O seu sorriso não era o de um homem em posição de vantagem, era o sorriso apologético de um homem tolerante, que descobriu que um visitante ocasional encontrou pó e é suficientemente bem-educado para não comentar o facto.

            Pela primeira vez A. sentiu-se livre das suas suspeitas, pela primeira vez tomou consciência de que fora posto à prova como um igual e como um homem sem estereótipo.

            Com a ligeireza pesada de um velho, o magistrado caminhou até á mesa lateral e regressou com a garrafa poeirenta e dois copos.

 

            O magistrado não tinha mais nada para dizer e, na última hora contentaram-se em ficar sentados com o vinho, sem pressas, mal falando, não abordando as grandes questões; talvez soubessem que nada lucrariam em as discutir.

            O velho levantou-se então, indicando a porta.

            -           Siga o seu caminho.

            A sua voz, com uma tolerância irritante, lembrou a A. a do seu pai, até mesmo a implícita incerteza do sentimento era similar.

  1. atravessou a porta, regressou ao vestíbulo e, com a despedida do magistrado ainda nos ouvidos, inspeccionou o local com o olhar, procurando os funcionários, mas verificou que estava deserto. Chamou o elevador, e, ao escutar o som do motor, não sentiu vontade de ficar apanhado na caixa, o que o fez correr degraus a baixo, dois de cada vez, até chegar às cozinhas. Enquanto corria sentia vergonha de si próprio pela sua duplicidade. Comprovara a tolerância do magistrado e vira nela uma fraqueza. O mayor estava a ficar velho e a adquirir uma aspiração limitada por horizontes fáceis e estreitos. Havia uma certa ingenuidade naquilo, havia uma simplicidade no seu orgulho: o desejo de que outro beneficiasse e expandisse, adventiciamente, esses horizontes. Assim que vira essa fraqueza, A. aproveitara-se dela.

            O vinho do magistrado molhava-lhe ainda os lábios quando abriu a porta entreaberta da cozinha. O cheiro foi suficiente para lhe alterar o modo de pensar, e esqueceu o homem que lhe desejara bem.

            Enchera até mais não a barriga na cozinha e o seu saco estava pesado com comida; havia nele subsistência para alguns dias. Encontrava-se na via férrea, sobre a ponte, acima da cidade, e o céu sem nuvens ia ao seu lado, ou pelo menos assim parecia. Um quarto de hora de marcha fê-lo ultrapassar os limites dos subúrbios e a planície reassumiu a sua presença. Sozinho com aquele sentimento de independência, caminhou ao longo da via, encontrando as cinzas de muitos fogos mortos; alguns há pouco extinguidos, outros antigos. Um pouco adiante viu um grupo de pessoas deitadas à beira da via, dormindo a sesta, mas evitou-as rodeando um grupo de sabugueiros novos. Avançou mais uma milha e então soube que estava sozinho.

            O sentimento de solidão só se aproximou dele quando exauriu a primeira impaciência da antecipação do recomeço da sua jornada. Olhou em frente, para o grupo de colinas que, na luz da tarde, haviam tomado o aspecto de uma obscura distância. Interrompeu a marcha: um momento antes avançava com a impaciência de um homem em busca de um destino, agora, contemplando a planície plana e as colinas distantes, parou, sentando-se quase involuntariamente, cansado do esforço, sobre uma caixa de madeira baixa, meio apodrecida, que outrora devia ter feito parte do sistema de sinalização do defunto caminho de ferro, e donde saiam ainda bocados de fio e as pontas cortadas de varas metálicas. Olhou em sua volta e nada mais viu senão as ricas terras da planície, a via férrea e as colinas. Abriu o saco, tirou a comida que conseguira abarbatar na cozinha e logo se recordou do rosto cansado da cozinheira, uma mulher baixa, de meia-idade, que se sentira feliz por encher de comida cada compartimento do seu saco e cada um dos seus bolsos. Lembrou-se do seu rosto, dos seus olhos amigáveis procurando algo, pois na altura ele só pensara em comida, apenas agora via o rosto dela. A mulher trouxera enormes travessas de carnes frias e cortara grandes fatias, que embrulhara em papel vegetal, sem fazer perguntas, mas com cada uma das coisas que metia no saco murmurava algo terno, embora trivial.

  1. tentou imaginar como a mulher o vira. Alto? Hesitante? Desafiador? Estranho?

            A cozinheira trabalhava quando ele abrira a porta, linpando as grandes mesas, abrindo armários, puxando gavetas. Lembrava-se de cada uma das palavras que a mulher dissera, mas via no seu espírito os olhos perscrutadores dela emoldurados pelo cabelo pintado. Relembrou também o toque das suas mãos ao encher-lhe os bolsos com comida.

            Tirou do bolso um bocado de toucinho cozido e começou a trincá-lo. Não tinha fome, o seu gesto fora instintivo - sentia mais sede que fome, e o sabor do toucinho salgado exarcebou-a. Então, sequioso, meteu o toucinho no bolso e procurou água.

            Andou mais meia milha, descobriu uma corrente de água que corria sob a via, desceu o aterro e ficou a contemplar a corrente. O ribeiro serpenteava entre margens altas de juncos e pântanos, desaparecendo na passagem subterrânea, que, tipicamente, fora construída com uma altura desproporcionada para o seu objectivo.

            Tendo apaziguado a sede, pós-se de pé sobre um muro de tijolo azulado e olhou para a boca da passagem subterrânea, observando como o trabalho fora bem feito. Os fetos frondosos do outro lado da via reflectiam o seu verde naquele fio de água.

            Depois de ter bebido descansou no muro de tijolo, junto da entrada da passagem subterrânea. Em seguida, ajustou o saco - agora pesado com comida - e subiu até ao cimo do aterro, ficando a contemplar as colinas. Estava ciente de uma mudança no tempo: por um instante não percebeu o que causara aquilo, mas depois reparou que a linha das colinas se alterara.

            Lembrava-se de que esta fora clara e distinta, porém agora ondulava, opalescente, no calor da tarde; se não fosse estar certo de que existia podia confundi-la com um banco de nuvens baixas. O Sol estava em declínio e as sombras cresciam.

            Dificilmente se poderia considerar boa altura para prosseguir viagem, mas A. avançou, os olhos fixos no chão à sua frente, como se evitasse qualquer outra indicação: as pedras da via férrea em ruínas e o caminho pré-ordenado do aterro eram o bastante, não precisava de levantar o olhar.

            Então, continuando de cabeça baixa, avistou um companheiro de viagem, mas tão atentamente estivera a observar o chão que só se apercebeu do outro quando estavam quase lado a lado.

  1. fitou o viajante e reconheceu o homem alto, embora fosse evidente que ele ainda não o vira; o homem alto olhava em frente, para aquela área mutante da via, cerca de quatro metros á sua frente, e A. agarrou-o pelo braço.

            O homem alto virou-se de repente, com uma expressão assustada, não reconhecendo A. imediatamente.

            - Lembra-se de mim? - perguntou A., correndo para a frente dele e tentando interceptar-lhe o olhar. - Que está a ver?

            O homem alto sorriu.

            - Afinal encontrei-o. Já havia pensado se alguma vez o voltaria a ver. - Os braços penderam-lhe, inertes, ao longo do corpo. - Tenho estado a meditar naquilo, sabe?

            -           A sério? - A. começou a abrir o saco. - Tem fome?

            -           Na morte dele - explicou o homem alto. - Aquele acidente tirou a maior parte do significado á minha viagem. Olhou para o saco de A. - Que traz aí? Como arranjou tudo isso?

  1. permitiu que o homem alto visse todas as coisas que lhe tinham dado na cozinha, as mãos dele meteram-se em cada uma das bolsas do saco. A sua presença estava muito próxima e A. afastou-se um passo, sacudindo as mãos inquisitivas.

            -           Que se passa? Não confia em mim?

  1. sorriu e encolheu os ombros.

            -           Para onde vamos?

            O homem alto, subitamente interrompido no seu exame dos ganhos de A., apontou abstractamente para a via férrea.

            -           Ainda nos restam algumas horas de luz. Podemos fazer doze milhas.

            Caminharam lado a lado, pouco dizendo um ao outro.

            A certa altura, A. deteve-se.

            -           Que foi?

            O homem alto parou e voltou-se para trás.

            -           Estou a pensar no seu companheiro.

            -           Ah! Sim. Não o conhecia há muito tempo.

            -           Mas ele pensava muito bem de si.

            -           Estava sempre disposto a exagerar as coisas.

  1. abanou a cabeça.

            -           Que significa para si aquela morte? Deviam estar juntos há muito tempo, ele até adoptara muitos dos seus manekismos.

            -           Sim, é verdade, já tinha reparado nisso. - O homem alto falou, mas era evidente que estava impaciente para continuar a jornada. - Podemos percorrer ainda mais umas milhas.

            -           Ficaria mais satisfeito se soubesse para onde vamos observou A.

            -           Que lhe disseram eles na cidade? São muito persuasivos, estas pequenas paróquias não ligam a mais nada senão aos seus assuntos paroquiais. Nada mais lhes interessa. Suponho que lhe afirmaram que o objecto da nossa viagem é ilusório.

            - Sim - respondeu candidamente A. -, disseram-me isso.

            - Típico deles - comentou o homem alto. - Não são capazes de conceber coisas para lá dos limites das suas próprias paróquias.

            - Porque diz isso?

            - Sei que é verdade.

            - Então para onde vai?

            - Olhe, só lhe posso dizer uma coisa: vou subir aquelas colinas. Talvez agora você as não possa distinguir bem, mas decerto já as viu. É a memória delas que conta e todas as coisas que já ouviu. É isto que interessa e vou até lá. Olhou para o terreno á sua volta. - Podemos muito bem ficar aqui esta noite, se viajarmos juntos. Caso contrário, devemos seguir separadamente os nossos caminhos.

            - Não, gostaria de viajar consigo. No fim de contas a via é estreita e sou mais ou menos obrigado a acompanhá-lo.

            - óptimo - e a voz do homem alto era sincera -, fico contente com isso. Nesse caso passaremos aqui a noite e amanhã continuaremos viagem. Levantamo-nos ao amanhecer, já não estamos longe. - Observou a via nos dois sentidos. - Não acha que vale a pena fazer uma fogueira?

            - Sim, está frio.

            - Dizem que fica cada vez mais frio á medida que nos aproximamos das colinas.

            O homem alto esboçou um sorriso ligeiro, como se reconhecesse a superstição que estava por detrás desta afirmação. Colocou no chão o próprio saco e começou a procurar material para fazer uma fogueira.

            Estava escuro.

            Os dois homens tinham comido e haviam-se agora sentado, a olharem um para o outro, junto aos restos brilhantes do fogo que os separava. A noite estava silenciosa e nada se movia; no horizonte uma Lua pálida era demasiado fraca e achava-se demasiado envolvida pelas nuvens para iluminar o que quer que fosse.

            O homem alto esticou os braços, flectiu e estendeu os dedos, arqueou o corpo e colocou as mãos atrás das costas, como quem acaba de comer uma boa refeição.

            -           Está a dar-se bem por aqui - comentou. - Nunca o teria pensado. Que lhes contou para lhe darem toda esta comida de livre vontade? E que disse ao magistrado em pessoa? - Abanou a cabeça. - É um homem notável, pelo menos assim o dizem.

            -           É um homem bastante astuto e simpático - concordou A., consciente de que, ao compartilhar a sua comida com o homem alto, contraira uma espécie de obrigação. - Descobri que não tinha qualquer necessidade de lhe mentir que, por outro lado, ele seria capaz de detectar qualquer albradice que eu lhe dissesse, ou melhor dizendo, qualquer exagero, porque as suas maneiras são tais que eu nunca lhe poderia mentir. É um homem muito inteligente.

            O homem alto espevitou o fogo com um pau.

            -           Bem, se calhar queria convertê-lo para o seu lado - opinou ele.

            - Não compreendo o que quer dizer. Fala da gente que vive na planície e da gente que viaja pela via férrea, insinuando que são duas espécies diferentes de pessoas, mas não é assim.

O magistrado disse-o, contou-me algumas das superstições dos viajantes e fui forçado a admitir que eram falsas e irrazoáveis.

            - Sim, claro que tinha de lhe dizer isso. Que outra coisa poderia fazer? Não lhe resta outra opção e você afirmou que ele é um homem esperto e convincente.

            - Já alguma vez o encontrou?

            - Não. Como poderia isso acontecer?

            - Pensei que era possível, o magistrado disse-me que já estivera em pessoa na via para ajudar os viajantes. Contou-me como as coisas se passavam no Inverno quando eles desciam á cidade para pedir, contou-me tudo. - O homem alto fez uma careta que nada queria dizer. - E, a propósito, suspeito de que usou, ou melhor, estou certo disso, a palavra "vagabundo)> onde eu teria empregado "viajante".

            O homem alto inclinou-se para a frente, e havia uma certa tolerância na sua atitude, uma tolerância que lembrava o próprio magistrado. A. sabia que qualquer explicação dada por ele soaria razoável e correcta, pelo menos à superfície, e preparou-se para o escutar.

            - O facto de dizer isso - começou o homem alto - mostra que esteve a ouvir o tipo de conversa com que são confrontados os viajantes que se afastam da via férrea. Muito bem, resta-me apresentar o meu ponto de vista, isto é, se isso lhe interessar.

            - Interessa, com certeza.

            - O facto de nos tratar por "vagabundos" mostra que ele, no meu entender, não compreende a necessidade da nossa jornada. Você estará em posição de perceber isto quando tiver viajado tanto como eu, e acostumar-se-á então a estes termos abusadores, habituar-se-á a que o rotulem de vagabundo. Quem se preocupa com uma palavra? Talvez sejamos vagabundos, não nos faz qualquer diferença. Mesmo assim, prosseguiremos a nossa viagem, tenho esperanças de continuar a minha ao longo desta via. E quem me impedirá de o fazer? Algum magistrado provincial que me chama vagabundo? Sei que me viu no meu pior, admito-o sem reservas, mas não percebe que foi a minha doença que me forçou a começar a viagem? O facto de ela existir, de eu não poder permanecer em casa? Eu era imprevisível, uma desgraça, uma mancha, não se podem ter as crises nas alturas mais convenientes para os outros. E, depois, há um período em que não sei o que faço, e que o neurologista chamava o "automatismo posictus", mas o nome não simplificava as coisas. Acho que a minha família se convencera de que os estava a desgraçar deliberadamente, e a última vez que me deu uma função pública foi no dia do funeral de um tio rico; disse-lhes que ia ter uma crise, mas eles tornaram bem claro que a única opção que me restava era vestir o fato negro. Um dos criados ajudou-me a vesti-lo...

            - Tinha criados?

            - Sim - confirmou com irritação o homem alto. - Claro que tínhamos, embora isso não se revista agora de qualquer importância. Mas não podia continuar nem me podia ausentar, chegara a minha prova final. Falharia o meu dever, fosse qual fosse o caminho que seguisse, e podia até imaginar os meus sobrinhos a coçarem com os dedos, em círculos, nas testas.

            - A sua família é muito unida? - interrompeu A.

            - Nem por isso, desconfiam demasiado uns dos outros para serem unidos, embora tratem dos negócios em comum. Mas eu estava a vestir-me e lá fora ouvia uma voz, da minha irmã, a que é casada. Falava em voz rouca: "É uma enxaqueca?", perguntou ela, a parva; demasiado preocupada com a sua própria conduta para pensar correctamente.

            - Porque me está a contar isto? - perguntou A., dado que a história parecia já ter sido relatada muitas vezes.

            - Pelo prazer de o contar, acho. Primeiro escute-me e verá que as minhas razões para viajar nada têm a ver com as suas. Tire as conclusões depois de eu acabar. O facto é que...

- encolheu os ombros, aparentemente sem disposição para continuar.

            -           Continue - pediu A., inclinando-se sobre o fogo.

            O homem alto levantou-se devagar e olhou para baixo, para A.

            - Só lhe queria explicar como vim aqui parar, a esta jornada pela via férrea.

            - Coma mais qualquer coisa - convidou A. - Sente-se.

- Olhou com ansiedade para o outro e viu as lágrimas que se tinham formado nos seus olhos. - Continue a sua história.

            - Só sei o que me contaram depois, não me recordo de nada, excepto de que alguém me ajudou a percorrer o cemitério até ao gradeamento que isolava o jazigo da minha família. A história foi-me contada mais tarde: alguns consideraram-na engraçada, outros ficaram demasiado envergonhados para falarem sequer comigo.

            Calou-se.

-           Continue - insistiu A.

            Não há grande coisa, a história varia conforme quem me contou e nunca a consegui conhecer devidamente, pois existem demasiadas versões. É fácil pensar numa doença como algo que é curável ou que piora inexoravelmente, mas quando ataca ao acaso é diferente. Na semana seguinte, já era capaz de dirigir os meus negócios, assinar o meu nome e pegar numa faca e num garfo sem um só tremor - mas julga que eles me consideraram de novo normal? Não, aquela ocasião ensinara-lhes.

            Pegou num bocado de carne fria e começou a comê-lo, recuperando muito da sua compostura. A. estava de novo ciente de que aquela história era para contar aos outros; a escolha das frases, a repetição estudada, eram factores que apontavam para isso.

            - Pense nisso - disse o homem alto -, pense nisso, possivelmente não será assim muito diferente da sua própria história.

            - Isso pode ou não ser verdade - objectou A.

            -          Claro, e merece que pensemos mais um pouco no assunto. O facto de ter estado prisioneiro, e por algo que agora nada significa para si, também o impede, tal como a mim, de regressar a casa. Não passa, como eu, de um viajante, não lhe resta outra opção se não continuar este caminho. No entanto, como há algo de notável na vida de um viajante, suponho que não tenha ouvido do magistrado daquela cidadezinha mais do que calúnias sobre aqueles a quem ele chama "vagabundos".

            - Por acaso não, mostrou-se compreensivo, preocupado com o bem-estar dos viajantes.

            -           Bem, ficou com essa ideia, mas provavelmente não passou de um artifício do magistrado, pois, tendo em conta o que você disse, tudo leva a crer que ele seja muito astuto. Não, a coisa mais notável na vida do viajante é o facto de cada um não ser conhecido pelos outros: pode apresentar-se como sendo quem é ou como a ficção que pensa ser. Nenhum outro viajante conhece a verdade a seu respeito, pode ter cometido todos os crimes possíveis e, no entanto, mostrar-se perante os outros com uma reputação imaculada. O seu passado é exclusivamente seu e os companheiros de viagem não passam de amigos de um momento, que também não se preocupam muito com ele, pois aqui ninguém contrai verdadeiras amizades. Permita que lhe faça uma pergunta: quantos amigos o apoiaram quando foi considerado culpado e, depois, condenado?

            -           Tinha dois amigos.

            - Muito bem. E eles visitaram-no na prisão?

            - Sim, mas recusei-me a vê-los e acabaram por desistir de lá irem.

            O homem alto sorriu.

            - Era de esperar. Tudo na devida ordem, e como deve ser. E porquê, porque pretendiam ver um homem na prisão? Porque se sentiam a isso obrigados, claro. Já alguma vez reparou num homem rico, com uma família rica e muitos amigos? Chame a isto deveres sociais, se quiser, mas ele visita com frequência os amigos e recebe, por vezes, muitos visitantes. Agora imagine que o chefe da familia é atingido por alguma doença crónica, ou perigosa, imagine-o deitado no seu leito rodeado de enfermeiras, que o ajudam a ir á casa de banho e a voltar para a cama, em suma, uma casa onde a sua doença é o ponto central. Note como, neste caso, as visitas fogem, como a natureza crónica ou perigosa da doença desse homem impede a amizade.

            -           Nunca tive conhecimento de casos desses - replicou A.

            -           Bem, pode acreditar que é assim mesmo, e continua a ser verdade mesmo que a doença seja periódica, como a minha. Mas o ponto crucial do que eu pretendia focar é outro.

            Falava agora devagar, dando tempo a A. para digerir o que ele tinha para dizer.

            A noite negra ficou subitamente fria e a reserva de lenha era pequena. O homem alto aconchegou mais o casaco ao cotpo e, durante um fugaz instante, A. pensou que o companheiro ia murmurar a velha frase de que a temperatura descia na proximidade das colinas, mas o homem alto não a disse. Escolheu com todo o cuidado as palavras e A., já sonolento, devido também à comida que ingerira, sentia dificuldade em manter os olhos abertos.

            - Você tem de continuar a ser viajante - afirmou o homem alto -, pois de outra forma parará numa cidade qualquer e lá ficará; sem dúvida que, de início, o receberão de braços abertos, por causa das suas aptidões, mas, cedo ou tarde, a sua experiência passada voltará e tomará conta de si; descobrirá então que, na sua ausência, foi julgado e que o julgamento não lhe foi favorável.

  1. levantou o olhar. A Lua conseguira finalmente libertar-se das nuvens e erguera-se no céu, mostrando, numa beleza prateada, os cumes arredondados das colinas e os seus vales profundos. A cadeia montanhosa estendia-se por todo o horizonte e o seu esplendor distante parecia, ao mesmo tempo, efémero e intemporal.

            Os dois viajantes adormeceram a contemplar aquele belo espectáculo.

            A noite arrefeceu mais ainda, mas o Inverno ainda vinha longe e não havia no ar nenhum toque de gelo.

 

            A cadeia de colinas estava perceptivelmente mais perto e a temperatura do ar arrefecera. O aterro da via férrea subia ao encontro dos vales mais baixos com uma inclinação lenta e constante, mas a linha continuava, recta e sem desvios, como se fosse parte integrante da paisagem e o vale tivesse sido criado para o caminho de ferro nele passar.

            Protegido por uma cabana de pedra sem tecto, igual às outrora usadas pelas brigadas de manutenção dos Caminhos de Ferro Provinciais do Oriente, um velho estava sentado à beira de uma fogueira. Era óbvio que viajava sozinho, pois havia nele um certo ar de independência autocontida, e tinha junto de si o seu saco. Os seus olhos cinzentos e profundos, meio escondidos pelas grossas sobrancelhas cinzentas, contemplavam algo à distância, mas a direcção em que o faziam não tinha qualquer correlação com aquilo que estava a dizer, como se olhasse com metade do cérebro e visse com a outra metade, misturando depois todos os registos dos seus decadentes cinco sentidos com a segurança dada pela experiência. Era também óbvio que viajava há muitos anos. A. estava sentado do outro lado do fogo, olhando para ele, e as suas observações sobre o velho eram em grande parte as já citadas, embora fosse provável que tivesse reparado em muito mais; deve ter visto coisas que, quando escritas, seriam laboriosas na leitura e sem importância na comunicação. Contudo, torna-se necessário dizer, após esta afirmação, que A. estava em muito melhor posição para avaliar a veracidade ou não do que o velho

contava. Este não era de modo algum louco, apesar de tantos anos de viagem, mas talvez isto não fosse estritamente verdade: um certo grau de loucura, de senil futilidade, podia estar latente no facto de se ter mostrado mais disposto a falar do que a escutar o que A., eventualmente, poderia ter para dizer ou comentar.

            - Há mais de dez anos que sigo o meu caminho por esta via

- disse o homem velho numa voz forte e viril, que parecia em desacordo com a sua idade aparente. - Comecei a minha viagem antes de o caminho de ferro ter encerrado, creio que há dez anos, embora possa ter sido há mais.

            - Dez anos! - exclamou A.

            - Dez anos - repetiu o velho, tornando a simples afirmação em algo mais profundo. - Desde então, falei com muita gente e escutei outra tanta, e a única coisa que posso dizer é que nenhum lugar é bom para ficar. Instale-se num e pode muito bem estar a andar para trás. - Com um gesto da cabeça apontou na direcção da cidade. - Uma vez fiquei um ano, ou mais, numa cabana de pedra para aquelas bandas, igual a esta mas com telhado - e indicou a estrutura atrás dele -, mas não foi muito bom, pois depressa descobri que quanto mais tempo lá permanecesse, mais me virava, pelo menos em pensamento, para a minha antiga casa.

            - Porque começou a viajar?

            Pela primeira vez o velho simulou um olhar vago e fingiu ser surdo, colocando uma mão em concha junto da orelha, embora fosse claro, pela sua expressão, que ouvira a pergunta de A.

            - Sim - prosseguiu após um longo intervalo e furtando-se á resposta -, fui um louco em ficar tanto tempo no mesmo lugar. Ganha-se uma sensação de segurança que nunca poderá ser real, é como acumular coisas, juntá-las, reunir bens materiais. A pessoa sabe que se pode considerar próspero, como tantos o são na planície, mas sabe também, com igual certeza, que chegará o dia em que lerão o seu testamento, já morto, e que a prosperidade foi em vão. Claro que há mais do que esta justificação para um homem escolher a via, provavelmente há tantas razões quanto o número de homens que são viajantes, mas eu só preciso de voltar a trás, ao tempo em que o caminho de ferro funcionava. Lembra-se disso?

            -           Disseram-me que uma vez, ainda criança, viajei de comboio, nada mais. Só me lembro de mo terem contado.

            O velho inclinou-se para cuidar da pequena fogueira. A. nunca tinha visto um fogo tão pequeno brilhar com tanto calor e, no entanto, gastar tão pouco do escasso combustível que se podia encontrar nas vizinhanças da via. O velho estava prestes a falar, havia nos seus lábios um tremor premonitório, uma busca interior de palavras.

            -           Lembro-me bem dos velhos dias do caminho de ferro

- continuou -, lembro-me bem. As caixas de sinais com as suas enormes janelas de vidro e os remates pintados de branco; os próprios sinaleiros que se avistavam vagamente pelos vidros dessas janelas. Recordo-me ainda de que, no fim do grande viaduto, acima da cidade, havia uma dessas caixas de sinais, recordo-me perfeitamente. Se calhar ainda existe a sua base de pedra? - perguntou interrogativamente para A.

            -           Não reparei - respondeu o jovem viajante.

            -           Não, talvez não, o tempo pode ter mudado as coisas. Lembro-me dessa caixa porque estava bem alta, sobranceira ao viaduto, por sua vez sobranceiro à cidade, e conheci bem o sinaleiro dela. Quando eu tinha a sua idade era já ele um homem no princípio da velhice. Lembro-me de ele falar da aposentação, do seu jardim lá em baixo na cidade, da igreja que costumava frequentar e do seu quinhão de terra. Nunca consegui compreender tudo isto, afinal ele estava na mais elevada das posições, abaixo dele ficava o aterro, o viaduto, a cidade. Esta estendia-se a seus pés como um mapa ou como se a visse de um aeroplano, mas isto não tinha, para ele, importância.

Talvez os anos ali passados, metido naquela caixa, lhe houvessem eliminado aquela sensação de maravilhoso que inevitavelmente atingia um estranho como eu. Ficava sentado a olhar-me, com ar divertido, quando eu me debruçava da janela da caixa de sinais, mas a altura metia-me medo. Os degraus subiam num longo ziguezague até lá, vindos dos postes pintados de branco. - O velho abanou a cabeça. - Não existia homem mais consciencioso. Alguma vez viu o interior de uma caixa de sinais?

            - Nunca.

            - Bem, não sei como explicar, não percebo muito dessas coisas. Havia o sistema do telégrafo e acho que existiam duas campainhas que tocavam em código, e dois mostradores montados num mesmo painel de madeira escura, além das alavancas dos sinais. - O velho deixava a cabeça rodar num curioso maneirismo senil, que emprestava á sua voz um ar de canção como se, em vez de dizer as palavras, as entoasse. A vida deles, dos sinaleiros, era muito solitária e por vezes tornavam-se pessoas estranhas. A limpeza que mantinham nas caixas! Em nada se tocava com as mãos: sempre com panos. Não havia um só bocadinho de latão que não estivesse impecavelmente polido e o mesmo se passava com as madeiras. E o brilho das janelas! Lembro-me de que uma vez encontrei o homem de que falamos a limpar os vidros com um líquido branco. Não ligava á altura que estava, parecia apenas preocupado com a limpeza da sua caixa. E quem o podia criticar? Era a sua casa, não era viajante, achava-se já perto da reforma e ansiava pela altura em que se retiraria para a sua casita na cidade, metida no meio de uma fila de outras casas. Disse-me a sua morada, mas já não me lembro, e agora até do nome dele me não recordo. Contudo, não esqueci aquele orgulho possessivo, aquele ar de satisfação pela limpeza da caixa de sinais de que era dono e senhor. A vigilância que mantinha sobre os comboios! Não permitia sequer que certos viajantes subissem até lá a cima...

            -           Já havia viajantes quando o caminho de ferro ainda funcionava?

            O velho pareceu surpreendido com a pergunta.

            - Claro - respondeu. - Não sabia? Os viajantes costumavam andar sobre as travessas. Nessa altura era proibido, é claro. Tínhamos de descer quando nos aproximávamos de algumas caixas de sinais ocupadas por certos bastardos. Claro que nem todos os sinaleiros eram assim, alguns gostavam da nossa companhia e eram receptivos: subia-se até à caixa, levava-se um pequeno presente, uns ovos que se tinham encontrado, ou coisa semelhante, e eles deixavam-nos cozinhar nos seus fogões ou aquecer-nos nas lareiras. Alguns até permitiam que dormíssemos no piso inferior das caixas, onde ficavam os mecanismos. Era melhor que debaixo de uma ponte ou metido numa passagem subterrânea. - Sorriu ligeiramente ao recordar essas coisas agradáveis. - Era bom, ouviam-se os passos do homem nas tábuas do soalho, sobre as nossas cabeças, e o aranhar das alavancas dos sinais. à luz do luar, quando se estava meio adormecido, viam-se os movimentos das bielas e ouvia-se também o toque simples de uma campainha dando sinal, a resposta dobrada, o ruído distante dos braços dos semáforos, o trovão do comboio a aproximar-se... Claro que, na minha juventude, o caminho de ferro tinha grande importância, parecia algo de permanente. Nessa altura os viajantes eram menos e para lá da sua cidade...

  1. inclinou-se para a frente.

            - Sempre julguei que o caminho de ferro terminava na minha cidade, que a estação da cidade era o seu término.

            O velho riu-se.

            - Nem por sombras, nunca o foi! Talvez na sua vida, mas eu venho de muito antes...

            O velho continuou a falar. Falou sobre o isolamento dos sinaleiros, que até eram considerados pelos outros empregados da via como indivíduos solitários e idiossincráticos; de rumores sobre acidentes; de homens que conhecera, descrevendo-os com todo o pormenor mas pedindo desculpa por já não se recordar dos seus nomes...

            Contudo, o pensamento de A. estava noutro sítio qualquer. Durante um dia ou dois sentira a noção perturbadora de que talvez a sua cidade não fosse o terminal ou o ponto de partida e agora sabia que isso era verdade.

            Não sabia porque o enchia tal facto de um medo súbito, mas ele ali estava. Olhou para o velho, tentando ver até que ponto se denunciara, mas este continuava a falar, com os olhos frouxamente pousados na face do jovem viajante.

            Porquê um medo súbito?

  1. sabia, desde que iniciara a viagem, que o fim da via férrea era algo desconhecido e nenhuma das suas perguntas a tal respeito recebera uma resposta adequada. Agora, e só agora, soubera que não começara num ponto de partida definido, o caminho de ferro tanto ia para trás como para a frente.
  2. olhou de repente para o velho, fitou aquele rosto idoso, cuja boca continuava a murmurar.

            -           Diga-me - interrompeu ele -, onde fica o terminal?

            O velho aceitou a interrupção e parou. Os sons da tarde envolveram os dois homens na sua grave tranquilidade, e ambos, um velho e um novo, se revelaram como realmente eram: afastados no tempo e na idade, nada mais que isso. O velho, interrompido no seu discurso, levantou-se, e agora, de pé, revelava uma idade bastante superior àquela que previamente lhe teria dado um observador. Baixou-se então para apanhar os seus poucos pertences.

            -           Onde fica a origem do caminho de ferro?

  1. fez a pergunta sem esperar qualquer resposta.

            -           Fique com o fogo, se quiser. Há ainda alguma lenha atrás da cabana.

            A voz do velho não mostrava qualquer antipatia, possivelmente já ouvira tantas vezes a pergunta de A. que considerava inútil tentar responder-lhe. Olhou para o homem novo, e a sua atitude podia ser a de um velho sábio tolerante perante um jovem que tinha ainda muito que aprender, mas, com aquela luz cada vez mais fraca, era difícil ter uma certeza.

            Depois, com uma lentidão acentuada pela escuridão, retomou o seu caminho via fora, em direcção ás colinas distantes.

 

           O homem alto com o fato de belbutina verde voltou ao lugar onde deixara o jovem viajante, mas A. não estava ali. Então, depois de dar uma olhadela aos dois lados do aterro, cada vez mais alto, retomou o caminho - aparentemente era incapaz de se esquecer tão depressa de A. como do anterior companheiro de viagem. Caminhava a passos largos, com facilidade, o saco estava leve, e, tal como dantes, não olhava para o seu eventual objectivo, mas sim para um ponto uns três metros á sua frente. Na sombra do crepúsculo não passava de uma figura caminhante. O seu destino podia ou não ser conhecido, mas tal certeza só existia dentro da sua cabeça para um observador só seria aparente a realidade cinética dos seus passos largos.

                        Chegou a uma cabana abandonada à beira da via, mas, com a pouca luz ainda existente, era difícil distinguir a sua configuração. A Lua voltara a surgir, brilhava agora nas traves descarnadas, e a visão fê-lo parar. Foi a massa negra das pedras da cabana que o impediu de ver imediatamente A.

                        Este, encostado á parede, vira aproximar-se a figura alta, mas, por qualquer razão interior, limitou-se ao silêncio, permitindo que ela continuasse o seu caminho. Verdade seja dita, a realidade é que A. não sabia o que fazer, embora as alternativas fossem claras: podia chamar o homem alto e retomarem a marcha em conjunto, ou aguardar que o companheiro passasse e tomar mais tarde uma decisão. Contemplou os próprios pés: a pequena fogueira do velho há muito se extinguira e as próprias cinzas estavam frias.

            O homem alto parou, olhando em volta, e A. distinguia, com toda a nitidez, o seu perfil angular, ouvia até a sua respiração lenta. Depois viu o vulto parar, olhar de novo em volta, como se considerasse estar num lugar satisfatório para passar a noite, sentar-se e soltar um suspiro. As mãos do homem estenderam-se, de dedos esticados - talvez ele estivesse a cumprir um ritual exclusivamente seu -, mas, pálidas ao luar, limitaram-se a prender-se uma à outra e a agarrarem depois um joelho invisível para A. O homem, meio escondido, deixou pender a testa.

            Havia algo de tão desesperado na presente pose do viajante que A. soube que lhe seria impossível continuar com ele por mais tempo que o necessário. Ocorreu-lhe então que talvez o homem alto obtivesse a sua energia dos companheiros, que ele seria capaz, com a loquacidade própria e a companhia, de ultrapassar esta depressão e ansiedade. A., sentindo-se um intruso por contemplar a figura sombria, olhou para a via férrea: o luar diminuía de intensidade, pois a face da Lua estava a ser obscurecida por grossas nuvens.

            Quase que involuntariamente, A. avançou, mas, ao primeiro passo que deu, ao primeiro som das pedras do balastro da via, o homem alto virou-se, reconhecendo logo a silhueta marcada contra o céu. De imediato, a emoção que se construíra como melancolia ou depressão abandonou-o, pois pôs-se logo de pé com os braços abertos, inclinando a cabeça para um lado.

            - Afinal está aí! Por onde andou?

            -           Estive sempre aqui.

            O homem alto olhou para a cabana, aquela concha destelhada e vazia à luz do luar.

            - Julguei que já tivesse avançado mais.

            - Para que o faria? Não havia qualquer razão para isso.

            -           Consigo não se pode contar com a razão! Retorquiu o homem alto, com um modo mais amigável que acusatório.

- Gostaria de saber qual o ponto forte da sua teimosia... mas isso é outra questão. - Fez um gesto para o chão.

Conte-me o que tem andado a fazer.

            -           Quer viajar comigo? - perguntou A. meio humorística e meio tristemente, sentando-se ao lado do homem alto.

            -           Porque não? - replicou este num bocejo; os seus dentes eram muito brancos ao luar. - Que andou a fazer? Não terá estado a falar com um dos filósofos da via?

            -           Quem são esses?

            O homem alto riu-se.

            -           Oh, é uma simples expressão, mas podem constituir uma forma interessante de passar o tempo. Todos eles têm as suas ideias, as suas racionalizações, os seus mecanismos para tornar obscuro o evidente. São como as beatas. Uma vez encontrei um deles, que me afastou por dois dias da minha viagem, sempre a falar comigo. No fim de contas nada disse de útil, apenas as coisas do costume, fez uma analogia entre a extensão da via e a passagem do tempo, uma história já velha. Contudo, tinha-lhe arranjado uma nova capa, falava da existência de gerações concordantes sobre a mesma estrada, cada uma avançando ao mesmo passo. Já me esqueci do ponto fulcral da sua exposição, só me recordo de que, na altura, me perturbou; mas isto passou-se há dois anos, agora estou mais velho, acredito apenas naquilo que quero e só penso no que me agrada. Sempre é melhor que andar a fazer especulações abstractas. - Olhou mais atentamente para A. - Que se passa? Está a tremer. Que andou a fazer?

            - Não, estou bem.

            O homem alto voltou a rir.

            - Diria que sim, diria isso mesmo. No fim de contas, quem sou eu para falar a um viajante consumado como você? Afinal você é que tem a comida, arranjou-a na própria casa de um magistrado, e, além disso, em quantidade suficiente para alimentar uma família.

            -           Encontrei um velho, que partiu há poucas horas.

            -           Oh! Um velho sozinho?

            -           Sim, muito velho. Vi-o de longe e vim até aqui. Acendera uma pequena fogueira e estava agachado à sombra desta cabana; parecia subsistir com muito pouco, quase não trazia nada no saco. Ofereci-lhe da minha comida, mas aceitou apenas um bocadinho, dizendo-me que tinha os seus próprios métodos de fazer as coisas.

            -           Conheço-o, já nos cruzámos bastantes vezes. Não passou o tempo todo a falar, interrogando-o mas sem dar respostas?

            -           É verdade, foi mesmo assim.

            -           Fala muito no caminho de ferro dos velhos tempos, quando ainda funcionava?

            -           Sim.

            -           É mesmo o homem; não faz mal a ninguém e é bem conhecido. Caminha pela via tão devagar que, a menos que o levem, nunca chegará ao fim. E é bastante frágil, lembro-me de que, no Inverno passado, um grupo de viajantes de bom coração lhe deu abrigo. Sem eles já estaria num cemitério paroquial, ou noutro qualquer, com uma cruz de ferro fundido sobre a campa. Já alguma vez viu o talhão dos viajantes num cemitério paroquial? - Não esperava qualquer resposta, pois continuou de imediato: - Nunca lá chegará, a menos que acelere o passo.

            Ficaram sentados ao luar, falando de coisas vulgares, pois nenhum deles se sentia cansado.

-           É estranho ter avistado o velho.

            -           Porquê? Só dificilmente o teria evitado. A fogueira estava junto desta cabana.

            -           Ah, tudo bem, mas diga-me uma coisa: onde se encontrava ele quando você chegou junto da fogueira? Perto dela?

            -           Não, pensando bem, já não. Parei junto do fogo para me aquecer, pensando onde se teria metido o proprietário do lume, e só depois de eu estar ali um bom bocado é que ele saiu de trás da cabana, pois existe ali um aglomerado de silvas e sabugueiros.

            O homem alto deitou-se, usando o saco como almofada.

            -           Bem, é uma questão de carácter. Apesar da sua provecta idade é um homem muito tímido, se bem que não pareça porque fala imenso. Abona a seu favor o facto de lhe ter conseguido ganhar a confiança.

            -           Porquê? Só me viu à beira do fogo.

            O homem alto virou o rosto para A.

            -           Talvez ele já seja suficientemente amadurecido e experimentado para o avaliar apenas por isso.

            -           Como o poderia fazer? Nunca mais me barbeei, desde que sai da cidade, e devo estar vestido de farrapos.

            -           De facto assim é, mas ele gostou, com certeza, do seu ar. Como já disse, é um homem tímido.

            Sentou-se de novo, como se, de repente, se tivesse lembrado de alguma coisa; pegou no saco, abriu uma das bolsas e tirou de lá uma garrafa, passando-a a A.

            -           Aguardente de ameixas - explicou. - Bom material.

            -           Como a conseguiu?

  1. abriu a garrafa e bebeu. A aguardente era límpida e quente.

            -           Para que se há-de preocupar com a sua origem? É coisa que não lhe afecta a qualidade. Além do mais, estou em dívida para consigo, compartilhou comigo a sua comida.

            -           Isso não tem qualquer importância.

            O homem alto recebeu a garrafa e bebeu, mas não limpou o gargalo, talvez isso fosse contra aquilo que ele considerava o espírito de amizade.

            -           Importa muito, como mais tarde descobrirá - e fez uma pausa antes de voltar a falar; o sabor da aguardente tornara mais tranquilo o som da sua voz, estava á vontade. - Não sei por que razão esse velho é tão renitente. Claro que correm rumores, rumores de que tem dinheiro cosido no forro do casaco, mas ninguém pode saber se estes boatos são verdadeiros. O certo é que parece ter qualquer coisa a esconder.

            -           Não importa - observou A.-, tudo vai dar á mesma questão. Acabou de afirmar que, à velocidade a que se desloca, este velho nunca chegará lá. - Estava deitado de lado a contemplar a Lua. - Que quer insinuar quando diz isso? Que significa a palavra "lá"?

            - Oh! Não passa de uma figura de estilo - respondeu o homem alto -, de uma maneira de falar na via. Diz-se muitas vezes, ao citar um viajante preguiçoso, que nunca "lá" chegará. Trata-se de uma simples forma de expressão.

            - Suponho que tenha origem nalguma espécie de superstição? Este lugar está repleto delas.

            - Sim, é verdade, e você, claro, como viajante de fresca data, não pode ter a ambição de conhecer completamente todas as superstições, nem de saber todas as expressões utilizadas pelos viajantes, especialmente as que são usadas no contacto com gente das aldeias ou das cidades. Acho que lhes podemos dar o nome de gíria, e é difícil aprendê-las. A origem das frases é muito antiga e tem as suas raizes na gíria ferroviária da antiga companhia que explorava a linha, e isto porque muitos dos primeiros viajantes eram antigos empregados seus. Já desapareceram quase todos, tornou-se agora raro encontrar um homem que tenha sido funcionário da companhia, mas emprega-se ainda uma espécie de gíria, embora actualmente o seu uso não seja tão frequente. Relacionava-se com uma espécie de prova de identidade nos primeiros tempos, quando o caminho de ferro ainda funcionava - este modo de falar que eu uso tinha na origem, segundo penso, a função de identificar o viajante de bona fide.

            "Claro que isto tem hoje pouco interesse, actualmente encara-se cada novo viajante conforme ele é e ambos os lados tem de tomar cuidado. Na realidade, a velha gíria encontra-se mais ou menos morta e, quando se nos depara alguém que a fala com fluência, tende-se a suspeitar dele, pois deve estar, e está, a imitar uma língua já desaparecida.

            "Voltemos á questão: disse-me que eu fiz um dado comentário e repetiu a minha afirmação de que o velho nunca ciegaria lá, a menos que aumentasse a velocidade da sua marcha. Perguntou-me depois qual o significado oculto da frase e é natural que o tenha feito, pois de outra forma como é que, sem lho haverem dito, poderia saber o significado real da expressão? E quando eu lhe digo que estou apenas a falar uma linguagem que ouvi, que absorvi, sem saber o seu verdadeiro significado, tem de me acreditar. Claro que não sei o destino do velho, só ele o sabe, e, como viu pessoalmente, ele é muito reticente em transmitir as informações que possui. Certo, concordo neste ponto. Ouviu-o falar das suas experiências passadas, lá isso é verdade, tem essa tendência, acaba sempre nisso, e da época em que viajava e o caminho de ferro estava ainda operacional. Decerto que ele se referiu também aos braços dos semáforos e ás caixas de sinais, assim como aos sinaleiros, que não cheguei a conhecer, e que se mostravam muito reticentes em relação aos viajantes. Decerto que o velho, por fim, deu igualmente grande ênfase, se, na verdade é o mesmo que eu penso, ao cuidado que os citados sinaleiros revelavam com os seus latões polidos, madeiras polidas, caixas pintadas de branco e janelas brilhantes, dissertando com nostalgia acerca dos mostradores e das compridas varas que movimentavam agulhas e semáforos. Não foi assim?

            - Sim, referiu-se a tudo isso.

            - Certo, conheço-o, estamos a falar do mesmo homem. Mas ele não disse uma só palavra sobre as suas origens nem sobre o seu destino, pois não?

            - Não.

            - Sendo assim tem de admitir que ele vive, pelo menos em grande parte, no passado, isto é, na sua passada experiência como viajante, e não mostra qualquer prazer na contemplação do futuro ou do passado distante. Devido à sua avançada idade, conhece tanto sobre o fim da via como eu, e já não sabe também a sua origem. O facto é que é bem conhecido em toda a parte, milha após milha, desde muito antes da estação que você outrora considerava como o foco, como o seu ponto de partida. Deste modo, quando eu lhe disse que "ele tem de andar mais depressa para chegar lá" estava apenas a usar alegoricamente as palavras. Uma figura de estilo, uma expressão fora de moda derivada das coisas que ouvi nesta via.

            E, proferidas estas palavras, o homem alto ficou silencioso.

            A., escutando na escuridão, pensou que ele adormecera, mas, ao ouvi-lo espreguiçar-se e sentar-se, evitou o seu olhar e mirou as estrelas.

            -           Uma vez disse-me - e procurou falar em voz bem alta, pois estava ele próprio à beira do sono -, uma vez disse-me que há gente de que desconfia, homens a quem chamou "filósofos da via".

            - Sim?

A voz do homem alto mostrou que se mantinha alerta.

            - Não se pode argumentar que há em si uma ponta disso?

            - Não. - A inflexão baixa da sua negação indicou que tal questão já lhe fora posta antes, pois a sua resposta negativa seguira na cauda da pergunta de A. - Não, de forma alguma, eu tenho tentado dizer a verdade. São os outros que necessitam de uma atenção mais escrupulosa, tem de ter cuidado com eles. Estou a falar de todos os tipos de homens: ledores de sinas, cartomantes, malandros de vários géneros. Podem aparentar um ar inocente, inspirador de confiança, e fazer um palpite sobre o seu destino, mas fique certo de uma coisa: falarão com aparente certeza. Aprendi isto nas minhas viagens: é sempre de desconfiar de um tipo que fala com convicção destes assuntos. Se alguma vez - inclinou-se para o homem novo -, um deles olhar para si, estender um dedo para reforçar um ponto e o fitar bem nos olhos, fazendo uma afirmação sobre um facto que deve ser apenas objecto de uma opinião circunspecta, estará decerto na presença de um louco ou de um indivíduo que não merece confiança e que, neste último caso, já avaliou a extensão da sua credulidade.

-           Fez uma pausa. - Não posso ser mais claro - concluiu.

 

                        A velocidade com que os viajantes percorriam a via variava de acordo com a natureza de cada um. Os velhos e os mais enfraquecidos caminhavam devagar e faziam paragens frequentes, por vezes ajudados pelos viajantes mais robustos; mas outras vezes, porque não pediam ajuda ou resistiam a qualquer oferta de auxílio, ficavam-se pela beira da via. Quanto aos mais activos e jovens, avançavam com rapidez, como se ansiassem por descobrir o que ficava mais à frente. Acontecia também muitas vezes que os viajantes parassem e montassem acampamento e que outros, pelos quais tinham passado semanas ou meses antes, os apanhavam. Então, nessas raras ocasiões, renovavam-se velhas amizades, surgiam bebidas alcoólicas e compartilhava-se a comida. Talvez, aos olhos dos aldeões que viviam à sombra do aterro do caminho de ferro, esses pequenos festins domésticos parecessem crus e bárbaros

-           eles olhariam para o aterro, veriam as chamas de uma fogueira e ouviriam os gritos dos viajantes, que dançavam como demónios embriagados na breve festa, e na manhã seguinte, quando se aventurassem até junto da vedação de arame da via, as cinzas estariam já mortas e o local deserto.

                        Eram tempos de alegria, é certo, mas também de rixas de morte e de discussões sobre os direitos territoriais de um viajante ou grupo de viajantes. E, no meio da alegria e da tristeZa dos vitupérios, floresciam os que deitavam cartas, liam a sina e faziam prognósticos.

            A vida era um bem fácil entre os viajantes, embora seja difícil, para o nosso ponto de vista, ver a simplicidade das suas vidas. Tinham nascido, vivido e feito amizades transitórias e igualmente transitórias inimizades, mas todas estas coisas eram superficiais, todas, até mesmo as relações entre homens e mulheres. Uma curta ausência do círculo reunido em volta da fogueira, um breve encolher dos ombros - talvez um gesto, uma piada rude, ou um olhar por sobre as chamas brilhantes. Acasalar era ocasional, instintivo quando o tempo era considerado apropriado, uma rápida solidão a dois, uma rápida penetração e impregnação.

            E a morte era também vulgar. Uma figura resignada que se sentava encostada a um poste indicador de quarto de milha, emaciada como um cadáver, mas ainda a contemplar o destino no fim da via. Uma breve e meio inconsciente olhadela de um bando de viajantes: aquele homem moribundo precisa de ajuda ou a sua morte é algo privado que só a ele pertence? Quererá morrer e, depois, ser puxado para a base do aterro ou ser enterrado ás custas da paróquia onde morreu, num canto de algum cemitério, com uma cruz sem qualquer nome inscrito?

            E os nomes dos viajantes! Como se alteravam! A facilidade com que cada um podia mudar de nome conforme a companhia com que andava; como podia ser conhecido pelo seu silêncio agradável ou pela sua loquacidade irritante; como podia avançar, actuando como líder de um bando formado á pressa, mantendo juntos os companheiros, e depois, quando a depressão o apanhava, como se sentia feliz por ser conduzido, obrigado a avançar pelas palavras de encorajamento de outros. E, no dia seguinte, o mesmo homem poderia repudiar a sua identificação com um tal grupo e viajar sozinho, de noite, passando pelas fogueiras e acampamentos, pelos ricos e pelos pobres, pelos indigentes e pelos trabalhadores, pelos honestos e pelos desleais.

O Outono chegou e com ele o primeiro bafo de frio.

            Durante a viagem, A. só intermitentemente foi vendo o seu companheiro alto. Não tinham repudiado a sua recíproca amizade, pelo contrário, ficavam contentes por se verem quando os seus caminhos se cruzavam. Ambos caminhavam ao longo da via com o mesmo passo, embora separadamente, de forma que se encontravam dia sim dia não. O facto de terem viajado juntos já não era a mera reflexão dos seus caracteres diferentes, ambos haviam feito novas amizades e, além disso, o homem alto encontrara um grupo que incluia uma rapariga, a qual (pelo menos assim o disse a A.) atraira a sua atenção. Mas, por tudo isto, A. e o homem alto ficavam sempre contentes por se encontrarem, e quando esses encontros se tornaram menos frequentes ambos tinham mais a contar um ao outro. Falavam, no dialecto mundano da via férrea, acerca das reservas de comida, da natureza do solo que atravessavam, das superstições que tinham ouvido pelo caminho, das terras distantes, dos lugares com água, dos grupos de viajantes cuja companhia haviam procurado ou evitado.

            O Outono já chegara na altura em que A. deixou a via, não por vontade própria, mas, de forma bastante estranha, por causa do homem velho com quem uma vez falara ao lado de uma cabana abandonada.

            A., que viajara todo o dia sozinho, considerava-se agora, e com toda a razão, um viajante; envergava um fato que lhe fora dado por uma viúva, um fato citadino constituído por um casaco preto e umas calças ás riscas, cor de antracite, que lhe assentava toleravelmente bem. Era possível que o físico de A. tivesse recordado à viúva o marido e a levasse à oferta, e, além do fato, A. herdara outras peças de roupa do falecido. O facto de ter agora um fato de bom tecido dava-lhe um certo sentimento de vaidade e uma das primeiras coisas que fez foi lavar-se usando o sabão que cuidadosamente poupara. Depois barbeou-se, para o que aqueceu água numa caçarola.

            A circunstância de andar bem vestido, segundo os padrões dos viajantes, alterou a sua identidade aos olhos destes, e permitiu-lhe insinuar-se em qualquer grupo; por diversas vezes, ao entardecer, encontrou bandos de gente desconhecida que o olhavam primeiro, apreciando a sua aparência, e lhe pediam depois conselho sobre uma multitude de coisas, a maioria delas tendo por origem as superstições que abundavam entre Os viajantes. Certo dia foi abordado por um homem mais novo que ele, quase um garoto, um rapaz pálido, de cabelo louro que se aproximou com tal timidez que A. chegou a pensar que havia no seu espírito alguma proposta execrável. Mas não era nada disto, o rapaz perguntou-lhe apenas qual a distância até um dado lugar.

            -           Que lugar é esse?

            -           Disseram-me que fica ao longo da linha férrea.

            -           Para que lado?

  1. estava de pé no meio da via, apontando nas duas direcções e olhando para o rapaz.

            -           Em frente - e o jovem acenou na direcção das colinas que, naquela altura, já pareciam próximas.

            -           Ainda não estive lá - A. foi franco na sua resposta, pois já ouvira demasiadas fanfarronices e gabarolices para as dizer também - e não sei o que existe ali á frente, mas é claro que se ouvem todos os tipos de coisas ao longo da via.

            Controlou-se, compreendia que estava a falar como o faria o homem alto, fazendo circunlóquios incertos com as palavras. Por fim concluiu:

            -           Não, não sei.

            -           Disseram-me que o terminal fica ali - insistiu o rapaz.

  1. olhou-o de perto e pareceu-lhe que não havia qualquer astúcia no jovem; a sua face era honesta e aberta, e falara com uma certa urgência.

            -           Há quanto tempo viaja? - perguntou A.

            -           Nasci na via - respondeu o outro.

            -           Devia ter adivinhado isso.

  1. fez uma pausa, em parte para respirar, pois estivera a caminhar com excepcional rapidez, e recomeçou a andar. O rapaz trotou a seu lado, nervosamente activo, sem denotar qualquer falta de ar. A., que já se apercebera da rapidez e vivacidade que possuíam os nascidos na via, apontou para as colinas.

            -           Quem lhe disse que o terminal do caminho de ferro era ali?

            O rapaz fitou-o com um sorriso, achava agradável aquele passo rápido e parecia agora muito mais à vontade que quando estavam parados.

            A., para seu desconforto, iniciou também um passo de corrida, sem fazer a mínima ideia da razão por que acelerara o andamento. A única coisa que sabia é que, quanto mais depressa corria, mais à vontade estava o rapaz, e o facto de a pergunta do outro não ter resposta não o incomodava, pelo menos de momento, pois, para se manter ao lado do rapaz, precisava de toda a sua energia.

            Daí a uma milha, sentindo-se incapaz de correr mais, parou para recuperar fôlego. A via estava exactamente na mesma, parecia-lhe até que não percorrera qualquer distância. O rapaz, parando um pouco mais à frente, fitou-o com pena, surpreendido de o ver sem fôlego, e, depois de nova e breve olhadela para trás, recomeçou a correr num passo firme.

            A., sentando-se ao lado da via, sobre um poste telegráfico caído, viu a figura juvenil ficar cada vez mais pequena com a distância. Embora fosse evidente que o rapaz estava a avançar rapidamente - muito mais depressa que quando acompanhara A. a um passo de meia corrida -, foram precisos vários minutos, ou talvez um quarto de hora, para ele desaparecer da vista, encoberto pelas pequenas árvores que cresciam no leito da via.

  1. descansou pouco tempo, pois a urgência de seguir o seu caminho depressa o invadiu. Assim, continuou a sua caminhada de olhos postos no chão, que se movia mesmo à frente dos seus pés.

            Encontrou o velho - era inevitável que isso sucedesse - sentado numa cabana destelhada idêntica a tantas outras colocadas com regularidade ao longo da via. Esta em nada se distinguia das demais, excepto por ter um andar superior em ruínas, feito de madeira. As lajes, assim como a maior parte do telhado, tinham já desaparecido e uma única empena, com um remate de ferro corroido, apontava para o céu. Uma

plataforma de madeira podre assinalava o local onde outrora se situara um apeadeiro.

  1. observou a construção e, ao procurar poiso para passar a noite, avistou o pequeno fogo do velho antes mesmo de o ver em pessoa. Não esperava tal encontro, julgava ter deixado o velho para trás, pois andara depressa e o outro, frágil e incapacitado, dificilmente o poderia ultrapassar. No entanto, apesar destas razões, a realidade é que ele estava ali sentado, com as costas contra a parede e o olhar fixo no fogo. A. aproximou-se.

            -           Lembra-se de mim?

            O velho levantou os olhos, mas neles não surgiu qualquer sinal de reconhecimento. Contemplou A. durante um bocado, mas depois voltou a fitar a fogueira, o que deixou A. um tanto ou quanto perplexo, pois na vez anterior em que o encontrara o olhar dele era penetrante e universal. Quando falou, as palavras do velho não faziam sentido:

            -           É outro deles?

Outro deles? Que quer dizer?

            O velho não levantou os olhos, agiu como se não tivesse escutado as palavras de A., mas, aparentemente, dava conta de outros sons - por exemplo, virou a cabeça quando um tiro ecoou nas colinas - e esse facto assustou subitamente A.

            -           Que quer dizer? - repetiu este.

            O velho estendeu os braços, curvando mais os ombros para captar o calor do fogo e A. reparou nas suas mãos emaciadas e nos pulsos finos, agora quase esqueléticos.

            -           Quer alguma coisa para comer? - A. começou a tirar um pacote do bolso. - Qualquer coisa para beber?

            O velho, continuando sem mostrar qualquer sinal de que ouvia a voz de A., agachou-se mais junto do fogo e o fumo passou-lhe entre os dedos das mãos. Quando levantou a cabeça - os olhos lacrimejavam-lhe em profusão - fitou A. e abriu a boca para falar, mas não proferiu palavra alguma.

            -           Que se passa? - A. ajoelhou em frente do velho.

            -           Há bocado esteve aqui um rapaz, talvez há uma meia hora, talvez mais. Quem sabe? Nasceu aqui, na via. Você sabe, conhece estas coisas. - As palavras saíam com lentidão.

- Estou a divagar - disse o velho, olhando para as roupas de A. e mostrando pela primeira vez um certo interesse. Estendeu depois a mão e tocou o casaco negro e a bainha das calças cinzentas, observando de perto o tecido. - Você também é advogado? - perguntou. - Eu fui advogado, há muito tempo. Já o vi antes, não vi? Nessa altura não vestia roupas de advogado, pois não?

            A., desconhecendo que há dois dias envergava dessas roupas, negou com a cabeça.

            -           Não, deram-mas há dias - explicou.

            Mais uma vez o velho deu a impressão de não ter ouvido. Afastou o corpo do fogo, retirando também as mãos, e colocou-as sobre o peito, quedando-se na contemplação do lume, que perdia rapidamente calor. Enquanto o fazia mantinha uma mão na aba do casaco de A., como se tal toque lhe emprestasse uma distante e meio esquecida segurança.

            -           Esteve aqui um rapaz - tornou ele a dizer. - Falou qualquer coisa sobre um terminal.

            -           Sim, também me mencionou isso. - A. estendeu um braço e viu o brilho dos botões da manga reflectindo a luminosidade da fogueira moribunda. - Acho que deve descansar. Beba um gole disto.

            O         velho olhou para o frasco de brande, sorriu e o seu rosto ficou ainda mais enrugado. Aquele seu sorriso súbito era a primeira expressão que A. via naquela face velha e enrugada, mas, sabendo-se observado, o outro deixou o sorriso apagar-se.

            -           Uma vez - prosseguiu o velho - estive numa festa de acampamento, muito longe, do outro lado da sua cidade. Nessa altura era uma criança, do ponto de vista dos viajantes, se bem que fosse um advogado qualificado, é essa a diferença, mas aqui, na via, não contam para nada as habilitações de cada um. Doutra vez encontrei uma seita revivalista que bloqueava a passagem aos viajantes. Um dos seus membros estava em cima de uma plataforma de madeira falando sobre os maleficios do álcool, lembro-me bem dele, era um homem enorme, de sobrecasaca e cabelo comprido; de súbito levantou no ar uma garrafa de aguardente de ameixa, ou talvez fosse de brande, vazou um pouco numa colher e largou-lhe fogo, dizendo-nos que aquelas chamas azuis eram como as chamas do inferno. Pegou em seguida num copo, deitou-lhe lá dentro uma dose generosa da bebida e um dos seus auxiliares - uma jovem com uma pele acinzentada e lisa de peito entregou-lhe uma caixa de cartão e um pires. Abriu de imediato a caixa, mostrou-nos o conteúdo e todos ficámos satisfeitos por descobrir o que estava lá dentro, na realidade apenas uma pequena rã, uma coisinha saltadora do tamanho de uma moeda. Pegou nela com um sorriso, deixou-a cair no copo e todos a vimos espernear e morrer; devolveu então a caixa á mulher, meteu o indicador e o polegar no copo e puxou a rã para fora, segurando-a por uma pata de trás, e ela ali ficou a balouçar. Em seguida gritou-nos durante uma boa hora, prendendo a rã na mão, até que a atirou para a via. Nos cantos da sua boca a saliva acumulara-se, tornando-se em espuma.

            "Era de tal ordem a retórica dele, o poder do seu discurso, o seu hipnotismo, o tom da sua voz, que quando os papéis com a petição começaram a correr entre nós todos assinámos, incluindo eu próprio, apesar de ser também advogado. É para isto que servem as qualificações quando se está sozinho, na via, sem mais nada para fazer senão ouvir um fanático hipnótico. - Enquanto dizia isto, num tom lento, seco e monótono, olhava para as profundezas da garrafa, até que a ergueu de repente, brindando a A. - Aqui vai - disse.

            Depois devolveu-a a A., que a rolhou e tornou a guardar no bolso.

            A., que decidira passar a noite com o velho, levantou-se e inspeccionou a via nos dois sentidos, verificando que a noite estava espantosamente quente para aquela época do ano. Depois, cheio de cuidados com o casaco novo, pendurou-o num isolador de porcelana, ainda seguro a um braço de ferro fixo na parede daquele esqueleto da cabana. Vestiu então o sobretudo, também herdado - um sobretudo bonito, comprido como se usava na cidade, com largas golas de pele, reforçado no peito e com um cinto largo - e deitou-se junto ao fogo, no lado oposto ao velho, ajustando o saco sob a cabeça.

            Estava prestes a mergulhar no sono quando ouviu o velho murmurar qualquer coisa, mas não conseguiu compreender as palavras e, sonolento, pediu-lhe que as repetisse sem obter resposta, porque o outro adormecera.

            A., olhando-o, viu que ele escolhera uma postura estranha para dormir, encostado à parede, e que nem sequer abotoara o casaco. Gatinhou então até ele e abotoou-o - o velho nem se mexeu, respirava lenta e calmamente.

            A noite passou sem sonhos, e os dois não foram incomodados, embora muitos viajantes decerto por ali tivessem passado, pois a via, naquela época, estava cheia deles.

 

  1. foi acordado de manhã bem cedo pelo cantar de um galo, mas deixou-se ficar meio a dormir, ouvindo sons confusos e distantes. Não muito longe o relógio de uma torre bateu seis.

            Levantou-se, inteiriçado pelo frio e meio tonto de sono, olhou para o fundo do aterro e viu que, obscurecida por um nevoeiro leve mas persistente, havia lá em baixo uma cidade. Era evidente que tinham acampado perto da ponte que cruzava a artéria principal.

  1. endireitou-se completamente enquanto avaliava a extensão da cidade - tanto quanto podia observar era pequena, mas o nevoeiro impedia uma visão mais completa. Ao fundo de um relvado erguia-se uma igreja paroquial ladeada por duas estalagens com as suas placas de identificação sobressaindo sobre a rua: uma delas representava um sino, a outra um cisne. Mais longe, duas filas de casas avançavam até à via férrea.
  2. olhou para o velho e, vendo que ele continuava a dormir, não o acordou. Foi buscar o casaco de advogado da cidade, ainda pendurado no isolador, despiu o sobretudo e vestiu-o, só então se lembrando de que o velho' não estava a dormir, pois, como viajante já maduro, A. sabia reconhecer a morte quando a via. Debruçou-se sobre o velho para lhe tocar o rosto, sabendo, mesmo antes de o fazer, que o acharia já frio. Um delicado orvalho, nascido do nevoeiro, instalara-se sobre a calva e as bochechas brancas do velho.
  3. olhou em redor e, durante um momento, sentiu-se tentado a prosseguir o seu caminho, deixando o funeral ao cuidado dos paroquianos, mas descobriu que isto lhe era impossível. Assim, juntou os pertences do velho, colocou-os num dos bolsos, pegou nele como se fosse uma criança - o corpo pouco pesava -, e depois de se ter baixado para agarrar no seu saco, desceu o lanço de escadas que conduzia do apeadeiro em ruínas até à cidade.

 

            Na povoação, a surpresa não foi alguém trazer um cadáver da via férrea, pois isto era um facto vulgar, a surpresa consistiu em o corpo ser trazido por um jovem que era obviamente, pelo seu modo de vestir, um advogado da cidade. A. tomara cuidado com as roupas herdadas, e agora, enquanto transportava o corpo do velho, estava longe de parecer um vagabundo - na verdade até tinha um certo ar de prosperidade. A gente da cidade não sabia que a seriedade do seu rosto se devia ao julgamento, à prisão e à longa viagem, talvez a tomassem antes pela expressão inteligente de um bom advogado ou mesmo de um austero juiz.

            Foi assim que, pelo equívoco da sua identidade, A. se viu aliviado do cadáver sem quaisquer problemas. O corpo do velho foi levado pela porta ocidental da igreja paroquial, onde o esperava um ataúde de pobre, e A. conduzido à maior das duas estalagens, onde o apresentaram ao senhor da terra, um homem pequeno, magro e activo, ainda relativamente novo. Este, que o vira ou fora informado da sua chegada á cidade, levou A. para uma sala reservada e ofereceu-lhe um cálice de brande, grátis, talvez por pensar que um advogado se devia sentir em baixo depois de transportar um cadáver, ou, em alternativa, para se assegurar da boa vontade do visitante durante a sua permanência na cidade.

  1. colocou a sua mala e os poucos pertences do velho numa cadeira a seu lado, endireitou os bolsos e alisou o casaco, só então se lembrando de que colocara nos bolsos alguns dos pertences do velho. Sentou-se e começou a examiná-los, descobrindo uma carteira que continha notas que lhe eram desconhecidas, com a gravura de uma torre impressa nas costas e o retrato de um rei ou prelado, na frente. Estudou-as durante um minuto ou mais e pareceu-lhe que o indivíduo nelas representado devia ter tido qualquer função sacerdotal, porque, além da coroa, usava estola e via-se um brasão episcopal sobre a sua coroa. Talvez A. estivesse a contemplar o retrato de algum príncipe-bispo de uma cidade muito distante, muito para lá da sua própria terra natal. Mirou bem as notas dos dois lados e reparou que estavam mal gravadas, como se fossem muito velhas, e que não tinham números de série. Concluído o exame, dobrou-as e voltou a guardá-las na carteira. A única outra coisa que encontrou na carteira foi uma pequena fotografia a sépia, de um grupo, talvez a família do velho, da qual este nunca falara. Um homem novo e alto estava, de pé, ao lado de uma mulher sentada e a postura estudada e a descoloração mostravam que o retrato era bem antigo. O velho não devia ter mais idade que A. na altura em que fora fotografado, e talvez a mulher sentada fosse a mulher dele e a casa que servia de fundo a sua casa.
  2. começou a beber o brande.

            Pousara o cálice para inspeccionar as outras coisas que haviam pertencido ao velho quando a porta se abriu e quatro homens entraram. A. começou a levantar-se e pensou reconhecer três deles, pois havia uma espécie de unidade na sua expressão e na direcção do seu olhar. Lembrou-se imediatamente dos três homens do vestíbulo de um edifício de uma outra cidade, muitas milhas para trás. A quarta figura, o homem que entrara primeiro, podia ser o magistrado, mas A. não teve hipótese de o ver devidamente, pois ele deu a volta a um pilar e sentou-se numa cadeira, num sítio onde o seu rosto ficou invisível. A. foi forçado a levantar-se e avançar, a fim de ver a cara do recém-chegado, mas, ao fazê-lo, encontrou o olhar do homem fixo em si. Não houve qualquer sinal de reconhecimento, aquele indivíduo ali sentado não era o magistrado da outra cidade distante, embora houvesse uma certa semelhança superficial. O estranho fitava A., talvez espantado pela forma como era observado, e passados alguns instantes, aceitando obviamente o facto de A. ter roupas de advogado, levantou-se e avançou para ele.

            -           Peço desculpa se me intrometo - disse numa voz amigável, considerando que nunca antes vira A. -, mas julguei que o conhecia. E você, segundo me pareceu, também julgou reconhecer-me.

            -           Não, estava enganado - replicou A. - Ao princípio pareceu-me o magistrado de uma cidade distante, mais nada.

            -           Oh! - o recém-chegado sentia-se obviamente adulado, ou, pelo menos, foi essa a reacção que mostrou, embora se pudesse tratar apenas de surpresa. - Como se chama essa cidade?

            -           Não me lembro - respondeu A. com toda a honestidade.

            Desde que iniciara a sua viagem, passara por tantas povoações que se tornava difícil lembrar-se com clareza de cada uma delas. E, além disso, as placas toponímicas permaneciam ainda legíveis em cada estação e apeadeiro, e existiam apeadeiros a distâncias regulares, talvez aí de milha a milha, pelo que havia uma profusão de nomes para recordar.

            -           Não, viajei por tantas cidades que já não me lembro.

            O recém-chegado observou o traje de A., que devia ser pouco habitual numa terra pequena como esta.

            -           Anda num circuito de tribunais? - perguntou.

  1. olhou-o e respondeu:

            -           Não, ando apenas a viajar.

            Por um instante perpassou nele o desejo de dizer àquele homem que não era advogado, que as roupas que vestia eram apenas herdadas, mas pôs de parte tal pensamento. Durante a viagem ouvira tantas histórias que chegara á conclusão de que todas elas encerravam os mesmos elementos, reais e de ficção, que a sua própria, pelo que não sentia desejo de as repetir.

            O outro homem fez-lhe uma nova pergunta.

            - Para onde vai?

            Puxou uma cadeira até junto de A., enquanto os outros três homens permaneciam no outro lado da sala donde olhavam para o recém-chegado, para A. ou talvez para um ponto fixo. O olhar deles fazia A. sentir-se pouco á vontade e lembrou-se, de súbito, do homem alto e da sua superstição acerca dos perseguidores da cidade. Talvez as suas palavras, naquele momento recordadas por A., lhe actuassem na mente e o fizessem sentir-se desfalecer. Bebeu um gole do cálice.

            - Agora fiquei certo de que me estou a intrometer! - observou o recém-chegado, já à vontade, pois talvez as reticências de A. tivessem sido suficientes para o revelar como um viajante da via. Fosse como fosse, o homem recostou-se na cadeira e olhou de través para A. - Conhece bem esta região? - perguntou ainda embora escassos segundos atrás tivesse admitido ser intrometido.

            -           De forma alguma, mal a conheço - e A. olhou-o de frente. - Tenho andado a viajar pela via férrea.

            -           Oh, claro, claro, já percebera isso - observou o outro -, não tinha dúvidas nesse ponto. - Havia na sua voz uns restos de irritação, como se estivessem a pôr em dúvida a sua perspicácia. - Só que a sua acção, as suas maneiras e até as suas roupas são, bem, digamos que francamente estranhas para um viajante. Eu - e levantou as mãos - evito o termo "vagabundo", porque ocasionalmente se encontram pessoas como você que, pelo menos superficialmente, parecem ter um objectivo marcado naquilo que fazem, ou assim parece. Foi por isso que vim, avisaram-me da sua chegada e quis vê-lo aqui, em vez de o fazer na Magistratura, que é um lugar menos informal e, podemos mesmo dizê-lo, menos agradável. Gosto de falar com os viajantes que abandonam a via e entram na cidade.

            -           Afinal é o magistrado daqui, não é?

            -           Sim, ou, para ser mais preciso, sou o magistrado substituto. Por acaso - chamou o dono da casa e pediu qualquer coisa para beber, mandando também encher de novo o copo de A.-, acho que esta paróquia tem uma certa reputação entre os viajantes.

            -           Porquê?

            -           Tentamos manter um censo mais ou menos correcto dos que passam pela cidade, ao longo da via, mas nada de formal. Deve ter visto alguns homens em cima da ponte, a olhar para baixo, procurando fazer um registo de todos os que entram na paróquia, juntamente com uma breve descrição de cada um. Contamos também os que seguem pela via sem parar e desta forma conseguimos ter números razoavelmente precisos, não só das pessoas que passaram, mas também das que virão a passar. Na verdade, o número de pessoas que transitam pela via tem crescido quase exponencialmente nestes últimos anos, e as nossas previsões mostram (embora tenhamos a esperança de que a tendência desapareça) que dentro de dez anos haverá tantos viajantes que não sobrará um espaço superior a uma jarda entre cada um deles, facto que consideramos extremamente preocupante.

            "Quando tomei conta do meu cargo julguei que este serviço de registo era um exercício inútil, uma simples perda de tempo, tal como vejo que está a pensar neste momento (pelo menos assim me parece pela sua expressão), mas não é, o número crescente de pessoas que circula pela via é para nós causa de grande preocupação, pois, como já disse, excedeu todas as previsões feitas nestes últimos anos. Nós, os que vivemos nesta paróquia, sentimo-nos algo responsáveis pelos que viajam, é-nos difícil não sentir qualquer emoção relativa a eles. Algum tempo atrás, há uns anos, o conselho da paróquia propôs o desmantelamento da ponte, bloqueando assim a via, e sabemos que noutros sítios pensaram o mesmo. Contudo, esta ideia não se concretizou, quer aqui quer nos outros lados, porque fazer isso seria originar que uma enorme massa humana ficasse parada na via. E, como são pessoas cheias de recursos, podiam refazer o arco desaparecido ou descer à cidade, por isso mais vale manter a ponte intacta; evitamos assim muitos aborrecimentos.

            "Foi então que, quando me disseram que você, um advogado, estava a viajar pela via, pensei imediatamente em vê-lo para procurar saber o que se passa noutras paróquias, como lidam com o problema e tentam resolvê-lo. E para, se possível, descobrir por que razão as pessoas viajam pela via, a qual, no fim de contas, é ainda propriedade privada. Desde a bancarrota da Companhia de Caminhos de Ferro Provinciais do Oriente, a terra reverteu para a posse das paróquias por onde a linha passava. Queria igualmente perguntar outras coisas, por isso tinha esperança de que você descesse da via, embora nunca me ocorresse que o faria por causa do acto humanitário e desprendido de trazer um homem morto. Não era seu parente?

            -           Não.

            O magistrado, afastando do pensamento o falecido velho, fez sinal para os seus funcionários se sentarem à mesa, e logo um dos três abriu uma pequena pasta, donde tirou vários documentos, que colocou à frente do seu superior.

            O magistrado pegou logo num desses papéis, um enorme mapa que mostrava o número de pessoas que tinham atravessado a paróquia, dados relacionados com o mês do ano e com Os anos anteriores. Havia previsões para o futuro e estava também registado o número de mortes na paróquia, a relação entre os dois sexos e a idade estimada dos viajantes. A superfície da mesa depressa se tornou uma massa de papéis, cada um deles mostrando várias coisas: factos verídicos, especulações e hipóteses ficcionais, representadas por mapas, histogramas, gráficos e outros elementos mais difíceis de perceber. Um dos funcionários murmurou qualquer coisa em calão estatístico, e A. apanhou as frases "análise da variância" e "efeitos de fila e coluna", enquanto outro puxou de uma calculadora de bolso com um mostrador de luz verde e números que tremeluziam.

            O resultado de todo este esforço nada significava para A., que nunca percebera muito de matemática e a quem mostravam coisas que nada diziam, mas ele sabia que, dentro em pouco, lhe iriam pedir uma opinião. O magistrado tinha caído num breve e árido debate com o funcionário demográfico a respeito de um qualquer pormenor trivial, e o seu longo dedo estava colocado sobre um bocado de papel onde se podia estudar a velocidade média de marcha através das três milhas da paróquia, obtida pelo registo de milhares de viajantes. Talvez estivesse a apontar alguma imprecisão, pois o funcionário demográfico observava a calculadora.

            -           Podemos fazer isso, mas custa-me a crer que tal fizesse parte da nossa função - e olhou para o magistrado como um homem que mostra ao seu superior todo o desprezo possível.

-           Não, não era função nossa.

            -           Nesse caso devia ter tomado a iniciativa - replicou secamente o magistrado, apontando para uma parte marcada com uma cruz no histograma. Contudo, o funcionário não parecia convencido.

            - Está bem, se assim o quer.

            Carregou então em várias teclas da calculadora e leu um número que nada significava para A., embora parecesse que mortificava o magistrado.

            Este virou-se para A.:

            - Está a compreender o nosso problema?

            - Sim, vejo que têm um problema - concordou A. - e talvez devessem descobrir qual é exactamente a sua natureza antes de tentarem resolvê-lo.

            O magistrado olhou com irritação para A., mas depois, talvez por se lembrar de que não era um funcionário seu, recostou-se na cadeira.

            -           Pode ser que tenha razão, é possível que estejamos a ver as coisas de forma errada. - Virou-se para o funcionário, que lhe estava a sussurrar qualquer coisa ao ouvido, acenou vigorosamente com a cabeça e pegou num pedaço de papel.

- Temos tantas coisas documentadas que se torna difícil avaliar a precisão do resultado final - comentou. - Talvez devêssemos analisar de maneira diferente os dados, embora haja que salientar que levamos em conta os erros de observação.

  1. lembrou-se de repente de que vira alguns vigilantes, de noite, numa ponte perto de um apeadeiro. Os homens, em volta de uma fogueira, aqueciam-se e passavam uma garrafa de mão em mão, e nem sequer o viram passar. Contemplou o mar de papéis espalhados na sua frente e sorriu. Se os dados tinham sido recolhidos por vigilantes tão descuidados e pouco observadores, que poderiam significar aquelas previsões tão cuidadosamente calculadas? Virou-se depois para o magistrado.

            - O vosso problema reside num erro de observação - comentou ele.

            - Disparate! - O magistrado mostrava sinais de ira. - Que quer dizer?

            -           Se viajasse em pessoa pela via, á noite, veria o tipo de vigilância que eles mantêm.

            -           Eu? Está a sugerir que eu caminhe pela via? De noite? - Empalideceu, como se o pensamento fosse desagradável ou repugnante, e olhou para os três funcionários, mas estes nada disseram, limitando-se a mirar estupidamente o visitante.

  1. pôs-se de pé, não temendo já o olhar dos funcionários nem a proximidade do magistrado, pois compreendera a inanidade do que eles queriam fazer e do modo que o tinham feito. Além disso, havia algo de afronta pessoal no facto de haver sido rotulado como uma cifra entre outras inumeráveis cifras das suas imprecisas estatísticas. Começou então a caminhar na direcção da porta.

            -           Aonde vai?

            O magistrado levantara-se.

            -           Volto para a via.

            -           Não nos vai ajudar?

            -           Como posso ajudar-vos? Ofereci o que estava ao meu alcance, como viajante, e zangou-se mal ouviu as minhas primeiras palavras. Visto isso como posso continuar?

            O magistrado, que chamara o dono da casa, virou-se para A.

            -           Pelo menos vai almoçar connosco.

            -           Tenho de continuar o meu caminho.

            O magistrado atravessou a sala e segurou A. pelo cotovelo.

            -           Quem o pressiona? Para onde vai? De que quer escapar?

  1. sorriu.

            -           São perguntas dramáticas e antigas. Não posso responder-lhe.

            -           Mas deve fazê-lo, se não para seu bem pelo menos para o dos outros viajantes da via. Não se esqueça de que a partir destas estatísticas poderemos apreciar o tipo de auxílio que teremos de lhes prestar. Distribuímos-lhes comida, no Inverno, na plataforma da antiga estação, e tentamos avaliar das suas necessidades: sopa, batatas, pão e as roupas que podemos oferecer, mas para isso precisamos destes elementos, para calcular as quantidades a pôr em armazém; assim como o número de coveiros para acudir aos funerais provocados pelo rigor do Inverno.

            Ao dizer isto, o homem fez nascer uma dúvida no espírito de A., que se lembrou do outro magistrado; a diferença entre os dois era tão grande que parecia estranho que desempenhassem idênticas funções. Pensou nas peculiares conclusões locais que aquele homem tirara das observações ocasionais e erráticas de outros homens, e ocorreu-lhe até que ponto seriam correctas as ilações que extraira, na juventude, de premissas igualmente ocasionais. Agitou a mão livre.

            -           Vou-lhe dar um palpite - disse ele. - Precisarão de toda a comida que puderem obter e de todo o espaço para campas de que conseguirem dispor, nada mais poderão fazer. Como esperam que eu diga outra coisa? Porque não aceitam cada acontecimento conforme ele chega? Só podem influenciar uma vida quando ela entra na jurisdição da vossa paróquia.

            Disse isto como se esperasse que as palavras fizessem efeito e podia ter dito mais se não fosse distraído pelos odores da cozinha, cuja porta o dono da estalagem deixara aberta.

  1. mirou o magistrado e, atrás dele, os três funcionários, que recolocavam os documentos na pasta. O mais alto dos três estava a fazer um cálculo qualquer na máquina e A. olhou com mais atenção. O homem afastou-a de si, de forma que A. teve ocasião de ver o mostrador, e, por qualquer razão, o número arbitrário fixou-se-lhe na memória, porque o verde fluorescente contrastava totalmente com qualquer outra cor dentro da sala. O número era novecentos e noventa e nove, mas, como mais tarde A. reflectiu, o funcionário podia estar a segurar a calculadora de pernas para o ar.

            Deixou de olhar para a máquina quando o homem a desligou.

            -           Está bem, almoçarei convosco - concordou por fim.

 

  1. estava de pé, um homem numa fila tortuosa, debaixo da estrutura metálica de uma estação dos velhos caminhos de ferro. Não fazia a mínima ideia das milhas que percorrera, mas a via podia até ser infinda, de tão recta que era. E agora ali estava, numa pequena estação, esperando receber uma sopa, um bocado de pão e, com alguma sorte, cerveja. Era o décimo da fila e á frente dele encontrava-se um velho que podia ter sido irmão do idoso advogado vagabundo. Atrás dele, estava uma família jovem, chefiada por um homem bastante novo, um jovem agressivo que A. inicialmente evitara por causa da sua reputação. Contudo acabara por compreender o homem, pois este agia assim para defesa dos seus. Três noites antes, A. sentara-se com eles, com esta família, e haviam compartilhado o lume e a comida. A. distribuira então pelas crianças os alimentos que tinha e por este facto fora aceite por eles como um tio adoptivo. Aquela cena ali era habitual

-           a fila de gente indiferente e silenciosa - e o dia podia ser qualquer outro. O painel com o nome da estação continuava preso aos seus dois postes, mas o nome não significava nada, pois, dadas as circunstâncias, era mais importante o facto de a estrutura da estação ser apenas um símbolo, já que todos os vidros haviam desaparecido e ela não fornecia qualquer protecção contra os elementos.

                        E quanto aos viajantes? Também eles se tinham alterado com a chegada do Inverno e agora até o mais garboso deles era uma suja e sombria figura que avançava hesitante pela neve, procurando evitar crateras e buracos de postes. A terra, de ambos os lados, estava coberta por um lençol de água gelada e o céu cinzento despejava sempre mais neve. Os viajantes haviam-se alterado vísualmente com o tempo, mas por dentro continuavam os mesmos, embora os faladores estivessem agora silenciosos e os loquazes evitassem conversas vazias. Contudo, os recém-chegados à via ainda faziam as habituais perguntas e as velhas superstições continuavam a ser contadas num tom sussurrado, de boca gelada para ouvido enregelado; as coisas passavam dos mortos para os vivos e os mais rápidos é que ficavam com elas.

            Com a sopa e a cerveja de caridade a aquecê-lo por dentro, A. vagueou pela via com um bocado de pão na mão. Ainda possuía uma reserva de comida e esteve tentado a usar o pão para assegurar a confiança da família de que se aproximara. Dizia-se, tinham-lhe dito, que, na via, a verdadeira solidão chegava no Inverno.

            Olhou para trás, e valia a pena contemplar a cena, que poderia ser usada como modelo por algum pintor romântico, embora não existisse ali qualquer romantismo. A estranha estação estava em silêncio, com os remates contrastando, pela brancura, com o cinzento do céu. A estrutura sem vidros permitia que a neve tombasse sobre as cabeças das matronas da cidade que distribuíam a comida e a luminosidade dos fogões de campo avermelhava a neve acumulada na plataforma. Terminada a hora da caridade, as mulheres da cidade preparavam-se para partir. Ao mesmo tempo, um grupo de citadinos, envergando compridas túnicas de lã cinzenta, aparentemente uma veste tradicional de Inverno na área, ria-se e passava de mão em mão uma garrafa de aguardente como preparativo para se aventurar na via em busca dos corpos dos caídos. Abriu caminho entre a multidão de viajantes, que esperava e que o deixava passar com um silêncio sombrio, mas a

situação era tensa: um só punho que se erguesse e a hostilidade da cidade ultrapassaria a sua já gasta generosidade.

 

            A noite chegara cedo e a família acampou sob um arco da via férrea, apertando-se em torno do pequeno fogo. Havia permitido que A. se lhe reunisse, mas ele conserva-se um pouco afastado, já que o homem novo descera à planície em busca de alimentos. Antes de partir, falara com A. durante algum tempo, uma coisa rara, pois era habitualmente um homem silencioso. A mulher e as crianças já dormiam.

            -           Donde vem?

            Fora esta a primeira pergunta directa feita pelo jovem. Os seus olhos eram desconfiados, concentrados, de tal forma que A. se lembrou do homem alto que outrora fora seu companheiro de viagem.

            -           Vim da cidade.

            O homem agressivo acenou com a cabeça, pois a resposta era suficiente.

            -           Já ouvi falar dela, mas passei por tantas cidades que me esqueci do seu nome. Apenas nasci lá, os meus pais entraram na via uma semana depois. Era Inverno, foi o que me contaram. - Sorriu inesperadamente, A. nunca havia visto nele qualquer emoção. - Podia ser o dia do meu aniversário - disse, puxando de um frasco que A. nunca soubera que ele possuia: - Tome.

            -           Obrigado. - A. bebeu um gole.

            O álcool era estranho, forte, talvez destilado localmente, e havia um travo de amêndoas sob a sua aspereza.

            -           Diga-me - continuou o jovem -, porque tem sido tão bom para nós? - Tornou a sorrir quando recebeu de volta o frasco e bebeu. - Já reparei nisso muitas vezes, tem andado a poupar comida, que depois dá à minha mulher para ela distribuir pelas crianças. Porquê? - Encolheu os ombros. - Talvez não se deva fazer estas perguntas, mas é estranho. De início desconfiei de si. Sabia?

            -           Você desconfia de todos os homens que encontra - respondeu A. - É um homem com uma cabeça clara, um lutador, e coloca a sua família acima de tudo o resto. Talvez eu também não devesse dizer estas coisas. Os viajantes evitam-no, como naturalmente já sabe, dizem que uma vez, na cidade, matou um homem numa luta. Já não me lembro de quem me contou isto.

            -           Sim, é verdade, foi no ano passado. Tínhamos descido à planície e eles apanharam-nos nos campos. Foram estúpidos, não deram ouvidos ao que tínhamos para dizer. Rapazolas grandes e fortes, que queriam mostrar a sua força, mas caíram como tordos durante a luta. Tem toda a razão. Um morreu e posso ter sido eu a matá-lo.

            Contemplou as mãos enluvadas e, como se só então sentisse o frio, descalçou as luvas e aqueceu-as no fogo. Eram largas e quadradas e as unhas eram mais compridas do que as dos vulgares viajantes.

  1. começou a imaginar qual seria a sua ancestralidade.

            -           Perguntou-me porque poupava eu comida para as crianças - disse A.

            -           Foi isso mesmo, ainda não me passou de todo a desconfiança.

            -           A resposta honesta é que receei continuar sozinho. Diz-se que a via se aguenta melhor no Inverno com companhia.

            O homem novo olhou-o com descrença.

            -           Não é verdade, ouvi o oposto, que, no Inverno, é cada homem por si. Mas quem sabe onde reside a verdade? Tudo depende do que somos e de para onde vamos.

            Inclinou-se para a frente, talvez envergonhado de estar a ser tão falador, e continuou:

            -           Já reparou como as coisas se alteraram? Não me refiro á paisagem, ao tempo ou à estação do ano, mas à forma como a via muda à medida que se avança? Não quero despertar as antigas superstições, mas já deve ter reparado nisto.

            -           Não, não estou bem certo daquilo a que se está a referir

- replicou A.

            O jovem lançou-lhe um fraco olhar de suspeita antes de lhe passar de novo o frasco.

            -           Quanto mais se viaja e quanto mais longe se vai maior é a dominância da via. Talvez seja por isso que eu, que quase lá nasci, e você temos pontos de vista diferentes.

            -           Como conheceu a sua mulher?

            -           Na via, pertencia a uma família ainda maior que a minha e penso que os deixámos ficar muito para trás, se é que ainda estão vivos. Opunham-se a que nos juntássemos, mas era inevitável. Um pregador itinerante com o sentido das conveniências casou-nos quando ela estava grávida, era um velho estranho que viajou connosco durante algum tempo. Nunca tive a certeza de qual a seita a que pertencia, se calhar até ele mesmo estava confuso sobre este ponto. Lembro-me da cerimónia como se tivesse sido ontem. Era Inverno, como agora, e metade do casamento foi feito numa língua estrangeira, mas ele parecia dar o devido tom ás coisas, embora agora isso não importe muito. - Contemplou a família. - Há já algum tempo que tencionava dizer-lhe isto.

  1. ouviu, sabia o que o homem diria a seguir, pedir-lhe-ia que tomasse conta dos sobreviventes da invernia se alguma coisa lhe acontecesse ou à mulher.

            Contudo, o jovem não apresentou as coisas desta maneira. Estava desconfiado, tinha um forte sentido de independência e foi directo no seu discurso, como é hábito de um homem silencioso quando pretende transmitir qualquer coisa. Encostou-se à pedra da ponte.

            -           Odeio as superstições deles - dizia -, mas tenho a sensação de que já vi esta terra e, quer se queira quer não, isto é considerado um mau sinal. Como estava a dizer, quanto a superstições e tudo o mais, é melhor você esquecê-las, embora também eu já me preocupasse com isso uma vez ou duas. Recordo-me de estar debaixo da estrutura daquela estação. Não sei o que me fez pensar nisso, mas tive a sensação que já vira antes aquele lugar. Talvez fosse engano meu; decerto que era, pois caminhei sempre na mesma direcção, como todos fazem. E noutra ocasião... - Parou. - Que interessa? Que interessam estas coisas? Só peço aquilo que você espera. Admito que estava errado ao afirmar que é melhor ser lobo solitário no Inverno. Tem razão. - Esboçou um sorriso. - Que o levou a dizer isso? Ouviu dizer que é melhor viajar com companhia no Inverno ou é ideia sua?

  1. abanou a cabeça:

            -           Não estou certo. Muitas vezes é difícil, ou parece difícil, diferenciar entre facto e fábula ou entre aquilo que se sabe e o que nos foi dito; não me lembro onde ouvi essa.

            -           É verdade, estas coisas não têm origem. - Tornou a passar-lhe o frasco. - Beba mais um gole, pelo meu aniversário. - Contemplou A. como se tivesse encontrado finalmente um amigo, uma coisa rara para um homem com família.

            -           Dizem - murmurou A. - que você tem uma série de hábitos que não se coadunam com o ter nascido na via.

            -           Quais são?

            O homem novo falou sombriamente.

            -           Dizem que se encontra com mulheres das cidades, que é bem conhecido por isso, mas, pelos cuidados que tem com a família, não posso crer que...

            -           Nunca fui infiel à minha mulher - negou o jovem. - Quanto às outras mulheres... - Encolheu os ombros e sorriu. - Elas sabem quem e o que recebem, sabem que continuarei o meu caminho, que nunca paro. As mulheres fazem o mesmo com todos os viajantes, estão ali sempre, querem algo que sabem que não durará.

            "Claro que o querem, é a atracção que sentem pelos viajantes. Já as deve ter visto, à beira da via, a menos que não repare nestas coisas ou que não esteja interessado. O Verão e a Primavera são, como é óbvio, as estações tradicionais. Atraem-no com as blusas justas, é tudo uma questão de luxúria e de amor efémeros. Mas, mesmo assim, são fiéis àquilo que conhecem e às coisas que compreendem.

            -           Mas está a contradizer-se - replicou A. - Nunca permitiria que outro homem tocasse na sua mulher, sabe-o bem. Há pouco pediu-me que tomasse conta da sua família, se algo lhe acontecesse, e conhece a minha resposta. Contudo, eu seria apenas um guardião, temeria o seu fantasma caso tivesse pensamentos reservados em relação à sua mulher. Você ganhou uma certa reputação.

            Proferido num tom meio sério e meio a brincar, este discurso fez o homem novo rir-se.

            -           Não tema o meu fantasma - retorquiu. - Certifique-se apenas de que estou morto antes de lhe tocar.

 

            O tempo piorou e tornou-se difícil caminhar. O homem novo, a mulher e A. transportavam cada um uma criança e este último sabia que fora aceite pela família para o resto do Inverno. à medida que cada vez se fazia sentir mais o frio, cada vez o passo deles era mais lento e, com a lentidão do passo, aumentou o número de viajantes. O combustível, enterrado sob a neve, era escasso, os meios de fazer fogo estavam a prémio e um homem com um isqueiro de gasolina era um amigo a ser alimentado uma noite.

            Uma certa tarde avançavam com cuidado, as pegadas dos outros tinham sido apagadas por uma queda recente de mais neve. As árvores à beira da linha estavam negras e quebradiças e a via continuava entre colinas, recta como se fosse traçada à régua sobre o viaduto e uma profunda depressão. Avançaram bastante durante a tarde, a menos que, como já antes acontecera, as variações do terreno que atravessavam fizessem as milhas parecer mais curtas.

            A via passava agora entre colinas cada vez mais pequenas, por detrás das quais decerto havia um grande vale.

            A., ao reparar em qualquer coisa de estranho nas formações rochosas do corte feito na colina para a via passar, olhou para cima, e até a criança, sobre os seus ombros, sentiu a sua inquietação. Continuou a andar, estivera-lhe a contar uma história, mas a configuração daquela alta formação rochosa não lhe saía da memória; olhou para trás, olhou de novo, e viu a linha do céu serrilhada. O coração bateu-lhe mais apressadamente e teve consciência do frio. A criança que transportava começou a chorar.

            O marido e a mulher viraram-se ao escutar o choro.

            Para A. havia algo de espanto na intensidade do olhar deles, parecia fixo nas suas faces geladas. Permaneciam ali os dois, enquadrados pelo arco da ponte.

            - Mexander, que se passa?

            A mulher do homem novo começou a correr para ele com o pânico estampado no rosto e A. pensou no aspecto que teria para provocar nela uma tal reacção. Sacudiu a cabeça.

            - Pareces desorientado, que se passa?

            A mulher colocou a mão desluvada sobre o rosto dele e o homem novo olhou de longe, tentando avaliar a situação.

  1. olhou em volta.

            -           Conheço este lugar! - exclamou.

            Na realidade, aquele lugar não lhe era estranho, reconhecia a alta formação rochosa que escalara em rapaz e donde olhara para a via férrea.

            Sabia onde estava e esse pensamento era-lhe insuportável. Olhou para as colinas, viu o corte, sabia que, meia milha mais à frente, o desfiladeiro alto e rochoso daria lugar a um vale onde existia uma cidade cheia de torres, e que a via ultrapassava esse vale com um gigantesco viaduto.

            Colocou no chão a criança, que chorava, e correu, correu até ao homem novo, detendo-se junto dele.

            -           Estás branco como um lençol - observou o jovem.

            -           Conheço este local, conheço-o bem.

            O outro agarrou-lhe o braço.

            -           Pára, é só uma superstição. Lembro-me de que naquela noite, quando estávamos a falar acerca disso, te disse que também sentia uma certa familiaridade com este lugar. Não é motivo para te preocupares, não pode ser verdade.

            -           Eu conheço este lugar!

            As suas palavras eram exclamatórias e, com uma sacudidela, livrou-se da garra do outro homem. Sabia, por conhecer as superstições da via e dos viajantes, que agora o deixariam só. O tom que usara mostrara que não queria mais nada que isso e, afinal, tais coisas não eram invulgares.

            Meia milha depois olhou para baixo e viu, a seus pés, a cidade coberta de neve. O viaduto estava à sua frente e os sinos da catedral tocavam, assim como os de outras igrejas. O viaduto dominava tudo e ele nem sequer tentou atravessá-lo, apesar de ver claramente, mais além, o começo da profunda depressão. Deu um passo a trás, até à estrada serpenteante que descia para a cidade; era-lhe impossível reunir a energia que precisava para atravessar o viaduto, estava exausto.

            Sentou-se no parapeito sem sequer se incomodar a afastar

a neve. Ao longe, sobre a via, ainda podia ver o homem novo

e a família, pontos negros apenas visíveis pelo contraste entre as suas roupas escuras e a neve ancestral.

            O som dos sinos sacudia a neve dos campanários e os cata-ventos rodopiavam no ar.

            Três homens com o uniforme da cidade avançavam a pé, pelo viaduto, na sua direcção. De quando em quando, um deles olhava lá para baixo, inseguro de si mesmo naquela altura estonteante, mas tais actos eram meras diversões: tinham avistado A. e o olhar deles, quando se aproximaram, tornou-se fixo de reconhecimento.

 

  1. deixou que o conduzissem pelas ruas da cidade. Ele, nascido ali, conhecia o caminho mais directo entre a base da estrada que subia para o viaduto, o tribunal e a prisão, pelo que ficou surpreendido pelo facto de o oficial da guarda não tomar essa rota, pois ajornada seria mais curta. A. tinha tantas coisas com que lidar no seu espírito que mal reparou na direcção que haviam tomado. O súbito facto de ter reconhecido a cidade, a forçada descida desde a altura do viaduto, a rápida caminhada, possivelmente para a prisão, tudo se combinava para o tornar medroso e indeciso. No entanto, se havia algo que lhe restaurava a confiança em si mesmo era o comportamento dos três guardas, que, se bem que raramente falassem uns com os outros e nunca com A., pareciam inseguros do percurso a seguir. Isto podia atribuir-se ao facto de ser difícil descobrir qual deles era o oficial: não tinha quaisquer divisas indicativas da sua patente e os seus modos eram os mesmos dos dois outros homens. Na realidade os três eram de tal forma semelhantes que A. duvidava até de que existisse um oficial, pois num dado momento um dos homens dava uma ordem e os outros obedeciam e, no momento seguinte, era outro a dar a ordem. Isto era algo difícil de provar devido à sua simílaridade. Os três eram homens nos finais da meia-idade, ou mais velhos ainda, e A. achou isso surpreendente, porque se recordava dos seus perseguidores como jovens, com afectados e retorcidos bigodes. Atravessavam agora a praça da cidade, onde o sino deixara no ar as reverberações dos toques da oração da noite, e A. descobriu que estava a pensar no destino que aqueles homens queriam atingir. Até ali a viagem fora sem rumo, ou, pelo menos, assim o parecia.
  2. acabou por falar a um deles, uma coisa que achou desagradável porque muitas vezes pensara, durante a sua jornada, no que aconteceria se algum dia regressasse à cidade. Imaginara o novo julgamento, mas, como aprendera com o primeiro, esperava ser conduzido para a prisão ou, pelo menos, colocado sob vigilância domiciliária em casa da mãe, embora não tivesse acalentado muito este último pensamento.

            Agora encontrava-se na companhia de três homens que já tinham passado a idade da reforma e, irado, virou-se para o que parecia ser o oficial:

            - Para onde querem ir? Para o tribunal?

            O homem olhou para um dos colegas antes de fitar acusadoramente A., como se este tivesse falado com a pessoa errada.

-           É muito provável que o nosso destino seja o tribunal - disse o segundo homem.

  1. estremeceu, estava a ficar gelado, pois haviam parado já há algum tempo.

            - Sabem como lá chegar?

            -           Sim - respondeu o oficial -, mas, se conhece um caminho mais rápido, diga-nos.

  1. conduziu-os, mas esta cena de indecisão tornara-o exuberante e foi apontando o nome das ruas, para as quais o oficial olhava admirado. Sob a orientação de A. tomaram o caminho mais directo.

            A certa altura encontraram um cortejo - uma longa fila de homens de túnica que saía de um dos portais da igreja da cidade -, e o grupo de A. acabou por interceptá-lo, pois os velhos, com as suas roupagens vermelhas e azuis, avançavam a custo, pela praça nevada, para os edifícios colegiais. As

suas pernas finas, protegidas por meias, pareciam paus cravando-se na neve lamacenta da cidade e a sua decrepitude (quer como indivíduos quer como formação) parecia demonstrar a do sistema sob o qual viviam e sob o qual a cidade laborava. O facto de aquela extensa fila de anciãos ser interceptada e quebrada pela progressão automatizada do grupo de detenção causou pena a A.

            Sabia quais os métodos de trabalho do tribunal, e se, aquando do último julgamento era jovem, inexperiente, susceptível, inarticulado, agora, depois das suas viagens, não só aprendera a forma correcta de lidar com a hierarquia estéril da cidade como planeara argumentos convincentes para as perguntas que lhe seriam feitas. Estava até a ficar entusiasmado; a sua experiência podia condensar-se num raciocínio fácil de apresentar mesmo sem o recurso a um advogado.

            Sob sua direcção entraram pelo portão de um edifício onde, de uma janela alta, um trompeteiro de uniforme se preparava para soltar um toque sem sentido.

 

            Caminharam ao longo do comprido corredor que ia ter à prisão, e que dava para as traseiras do tribunal. A., que subitamente achava tudo familiar, parou em frente duma porta, a qual se abriu, permitindo que o grupo, com ele à frente, entrasse no que parecia ser a sala de julgamentos, onde se encontrava já o acusador. Este, de costas para a porta, não deu sequer pela chegada do grupo, e, como que cansado, tirou a beca e pendurou-a num cabide de latão. Possivelmente foi qualquer ruído involuntário feito por A. que levou o homem a virar-se.

            O rosto do acusador estava vermelho, havia gotas de suor na sua testa, o que o levou a tirar um lenço do bolso da casaca e a enxugar o rosto. Tremia como se tivesse ele próprio enfrentado um julgamento. Fitou então acusadoramente os três guardas, e o seu olhar fixou-se depois por um breve instante em A., mas logo, através da porta meio aberta, contemplou o corredor. Contudo, o rosto de A. despertara certas recordações no homem, que se voltou de novo para o encarar. O prisioneiro estava consciente de que o acusador envelhecera, viu a sua fadiga, e viu-o também erguer um dedo trémulo. Aliás, todo ele tremia, como se se recompusesse de qualquer choque interior.

-           Tu! Reconheço-te!

Por sua vez, A. fitou também o rosto encalorado do perseguidor, mas, sem proferir palavra, afastou o olhar.

            -           Tragam-no!

            Os guardas obrigaram A. a enfrentar o acusador, que avançou para o homem acusado; por um momento foi como se um grande peso saísse dos ombros do acusador, porque, limpando as mãos ao lenço, parecia quase desejoso de apertar a mão de A.; estendeu ligeiramente a sua, meio aberta, mas, em vez de apertar a de A. segurou-lhe a manga do casaco.

  1. cheirou o odor suado do acusador; não havia dúvida de que o homem passara por uma qualquer provação física intensa.

-           Quando regressou à cidade?

            -           Há uma hora.

            O acusador esboçou um sorriso de alívio, abanando a cabeça, privado por um segundo da capacidade de falar, mas quando o fez foi numa voz subtil e rouca, bastante fora do seu carácter, tanto quanto pareceu a A., que só o vira arengar e ameaçar homens acusados e as suas testemunhas. A voz suave do acusador estava cheia de tristeza e de pena, e era inteiramente genuína.

            -           Admiro-o pela honestidade de que deu provas ao regressar - disse, soltando a manga de A.

            -           Que honestidade?

            -           Sim, vingou a honra da cidade ao aparecer para escutar a sentença final do seu julgamento.

-           Qual julgamento? Como posso ser julgado outra vez?

            -           A sua ausência constituiu uma dificuldade, mas, como decerto sabe das anteriores experiências na cidade, verá que os estatutos estão conformes por causa de um certo precedente.

  1. olhou para o acusador e viu que, sem engano possível, os olhos dele estavam cheios de lágrimas.

-           Um excelente exemplo - continuou o acusador. - Acredite que isto será reconhecido. - Olhou para o corredor e, sentindo que aquele não era lugar para se conversar, pegou mais uma vez no braço de A., como se tencionasse levá-lo para um local mais privado, mas, ao olhar para o relógio, desistiu. - Tem alguma coisa a dizer.

            -           Não.

-           Mais um ponto a seu favor.

  1. inclinou-se para a frente, embora os seus dois braços estivessem agarrados pelos guardas, mas não tentou sequer afastá-los.

            -           Com que então fui julgado na minha ausência?

            -           Claro. - O acusador fez uma pausa. - Sem dúvida que sabia da inevitabilidade de um julgamento.

  1. viu que a boca do acusador tinha espuma nos cantos como se o homem, momentos antes, houvesse sido declamatoriamente violento na sala de audiências.

            -           Deu-nos a todos um exemplo - repetiu em voz baixa.

            -           Porquê?

            -           Porque regressou voluntariamente no fim do seu julgamento. - O acusador falou como se dissesse uma coisa demasiado óbvia, mas um momento depois esta sua certeza desvaneceu-se e olhou para o homem na sua frente. - Que esperava encontrar no seu regresso? Que o seu crime estivesse esquecido, ou quê? E se, pelo menos em parte do seu espírito, está consciente dos preceitos desta cidade, porque regressou?

            -           O meu regresso parece ter sido inevitável.

            O acusador continuaria a fazer perguntas se não tivesse aparecido uma figura ao fundo do corredor, que se dirigia para eles num passo rápido.

 

            A figura, que de início não passava de uma silhueta em contraluz, tornou-se um homem ainda novo, talvez no fim da segunda década de vida, e ligeiramente mais alto que a média, mais do que o acusador, embora fosse a sua magreza que salientava a estatura. Vestia como um advogado de cidade; a sua camisa branca, de bom corte, estava limpa, o cabelo era um pouco mais comprido que o habitual, áspero e negro, já com alguns fios cinzentos, e o rosto, estreito, tinha as maçãs proeminentes. Lançou uma rápida olhadela a A., mas ficou ao lado do acusado e de frente para o acusador. A., junto daquele desconhecido, sentiu a sua indesejada proximidade e a inconfundível animalidade masculina do homem.

            Quando o recém-chegado falou, fê-lo com uma voz mais grave do que seria de esperar num homem tão magro.

            -           Desculpe-me.

            Curvou-se ligeiramente perante o acusador, e nesse momento foi fácil de ver, como se estivessem atrás dele a mulher e os filhos, as suas obrigações e limitações.

            -           Que é?

            A voz do acusador fora suave, o jovem era, obviamente, o seu protegido favorito.

            -           Talvez devêssemos ter a certeza de que não existe erro na identificação.

            O tom da sua voz, se bem que não deferente, mostrava a sua posição na hierarquia de que era membro.

            -           Uma boa ideia.

As palavras do acusador eram estudadas.

Como se elas fossem um sinal, dois dos guardas começaram a despir A. Um deles rasgou-lhe a camisa, para expor a leve marca de nascença que existia na sua clavícula esquerda, e o outro levantou-lhe o braço, para examinar a cicatriz que existia na face anterior do seu antebraço. O acusador observou isto com certo interesse e depois virou-se para o jovem:

-           Já chegam as provas?

-           Sim, são suficientes.

  1. cravou, por um segundo, o olhar no rosto do jovem e onde esperara ver neutralidade oficial ou hospitalidade impessoal, viu apenas piedade indiscriminada.

 

            A porta foi aberta por um dos guardas.

            A cela de morte era uma pequena câmara de tecto alto, sem janelas, mas brilhantemente iluminada. Durante um segundo, A., espantado, nada mais viu que o cadáver pendurado com a cabeça coberta por um capuz, mas depois distinguiu a corda, o executor, o médico, o governador e outras faces desconhecidas.

            Era claro que a porta fora prematuramente aberta e os vários funcionários, ao darem por isso, deixaram de contemplar o cadáver e olharam para A.

A porta foi de novo fechada. O jovem com o cabelo acinzentado olhou para o relógio e ainda abriu a boca para falar com A., mas não o quis fazer ou nada tinha para dizer.

 

  1. estava de pé na cela, em cima da plataforma, olhando os rostos que o contemplavam. Não encontrou neles qualquer razão, apenas piedade.

            O acusador entrou na sala.

            -           Tinha de vir - disse em voz alta sem se dirigir especialmente a alguém.

  1. decerto que não possuía qualquer sentido de honra, no entanto, apesar disto, não conhecera sempre o desenlace final? Não soubera que a sua viagem acabaria no lugar das suas origens? De outra forma como se teria arriscado a uma morte violenta nas suas viagens para afinal morrer aqui?

            O executor aproximou-se trazendo o capuz negro e levantou as mãos para o colocar na cabeça de A.

  1. olhou para os rostos piedosos.

-           Esperem - pediu.

O jovem de cabelo cinzento olhou para o relógio. Possivelmente a sua posição na hierarquia impedia-o de falar, mas mesmo assim fê-lo, e a sua voz foi como que o eco do apelo de A.

            -           Talvez... - Virou-se para os outros homens. - Ele confessou-se?

            O tom de voz sugeria o seu desejo de prolongar a vida de A.

            O acusador olhou para o jovem como se este tivesse feito uma pergunta tola.

            -           Foi absolvido in absentia - respondeu.

 

            A execução foi realizada segundo os princípios habituais. Estavam presentes cinco homens para testemunhar o acontecimento: o acusador, o ajudante do acusador, o governador, o médico e o executor.

Terminada a execução, assinada a certidão de óbito, e oficialmente registado o acto, a família do morto poderia recolher o corpo e proceder ao funeral segundo os cânones da Igreja. Se, como parecia suceder neste caso, o condenado não tivesse família, o cadáver seria enterrado às custas da cidade num cemitério batido pelos ventos e bastante inclinado, perto da via férrea.

 

                                                                                David Whelton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor