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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VIKING / Margaret Moore
O VIKING / Margaret Moore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

       Uma invasão viking a uma aldeia saxã fez cruzar os caminhos de Meradyce e Einar. Ela foi confundida com outra mulher, cujos filhos defendeu, e acabou seqüestrada com as crianças, para render algo para os vikings na negociação. Longe de casa, em meio a um povo hostil, Meradyce se viu vítima da inveja alheia... e da atração do homem a quem devia considerar seu inimigo: o gigante viking de cabelos loiros. Só que havia muita luta pela frente para que eles superassem tudo que os separava. E esse tudo vai além da atração entre homem e mulher, mas incluía os interesses de um homem disposto a tudo para ter poder...

 

 

 

 

     O navio deslizava quase sem ruído e a serpente esculpida na proa erguia a cabeça ameaçadora acima da neblina. Os remos cortavam as águas pouco profundas do rio, aproximando-se da margem. Os homens, ofegantes, mantinham-se curvados e em absoluto silêncio.

     - Eu não gosto disso - protestou um dos remadores, sem disfarçar a tensão. - Não gosto nem um pouco...

     Siurt concordou com um gesto de cabeça. O comandante do ataque sempre permanecia imóvel como uma estátua na proa do navio, mas, desta vez, era Einar quem os liderava e ele não aparentava a costumeira tranqüilidade.

     Ull abaixou a cabeça quando Einar olhou para os remadores, procurando por quem ousara romper o silêncio, para depois voltar os olhos de novo para as margens do rio.

     - O que ele espera ver em plena escuridão - insistiu Ull.

     - Nós nunca navegamos tão para o interior - resmungou Siurt, remando com mais força. - Entretanto, Einar não é do tipo que se arrisca a toa.

     - Então, por que Svend não nos acompanhou?

     - Você sabe muito bem que nosso líder não poderia enfrentar essa viagem depois do tombo que levou de seu cavalo - sussurrou Siurt, com uma expressão preocupada. - A queda foi um mau presságio, um aviso.

     Einar veio da proa até o meio do longo e esguio navio, a fim de dar ordens para que os homens guardassem os remos.

     - Lembrem-se que a mulher usando uma cruz de ouro com três pedras preciosas não deve ser molestada - disse ele, em voz firme e baixa - e sim trazida até mim.

     - E por quê? - reclamou Ull, cofiando a barba de um vermelho vivo - Nós nunca molestamos mulheres. Como você ficou sabendo sobre essa em especial?

     Os lábios de Einar se curvaram num sorriso, mas os olhos permaneciam frios como o aço de sua espada.

     - Não desperdice seu tempo pensando nessa mulher, Ull. Há muito ouro na aldeia e todos nós sabemos que escravas dão muito trabalho.

     - Realmente... , por que perder tempo com mais uma mulher? Zombou Ull, examinando o colar de placas de ouro em tomo do pescoço de seu comandante. - Existem tantas se batendo para conseguir um lugar na cama do poderoso Einar, certo?

     A mão de Einar tocou a empunhadura da espada.

     - No momento, Ingemar me satisfaz plenamente.

     - Então por que quer essa mulher com a cruz de ouro?

     Mesmo sabendo que estava se arriscando a enfrentar a terrível cólera de Einar com suas perguntas, Ull insistia em compreender por que haviam se aventurado tão para o interior do território saxônio. Os ataques dos vikings sempre se limitavam às aldeias costeiras e eles estavam subindo o rio por mais de suas horas.

     - Porque quero e isso é tudo que você precisa saber.

     Lutando para controlar a raiva e pensar na batalha a sua espera, Einar retornou para seu lugar na proa do navio. Não lhe agradava arriscar a vida de seus guerreiros se adentrando na terra dos saxões. Era extremamente perigoso, mas o chefe de seu povo o encarregara dessa missão.

     Desobedecer a uma ordem expressa de Svend seria visto por todos como um sinal de que ele estava desafiando sua autoridade a fim de assumir a liderança da aldeia e Einar não tinha a menor intenção de se apoderar do controle de seu povo.

     Por outro lado, lhe desagradava ter de confiar em um traidor saxão para ensinar-lhes o caminho. O homem prometera uma fogueira, que seria visível do rio, para conduzi-los ao seu destino e afirmara que a aldeia estaria indefesa com todos os guerreiros ausentes.

     Segundo o traidor, eles poderiam saquear e pilhar à vontade, desde que cumprissem o combinado. Era justamente essa tarefa que desagradava Einar, pois não havia glória em matar uma mulher.

     Svend também hesitara ao ser informado sobre o que os vikings deveriam fazer a fim de se apoderar de todos os tesouros da aldeia. Finalmente concordara, decidindo levar essa missão a cabo por conta própria. Então, ele caíra do cavalo e, como só um tolo ignoraria um aviso tão claro dos deuses, a responsabilidade passara para as mãos de Einar.

     Ele franziu a testa, prevendo problemas sérios. Svend só pensara que havia uma fortuna em ouro e gado, além de escravos, à espera de seus homens, mas Einar suspeitava de uma armadilha. Quem poderia confiar em um homem que trai seu próprio povo?

     O chefe dos vikings sempre fora sábio e de inteligência incomum, mas, talvez pela primeira vez, tivesse permitido que a ganância toldasse seu julgamento e bom senso.

     Einar examinou o céu noturno, claro e sem nuvens, aliviado por terem escapado das tempestades que caem no mar do norte com a aproximação do inverno. Ele murmurou uma prece de agradecimento dirigida a Aegir, o deus do mar.

     Logo as tormentas chegariam, vindas do gélido norte. O traidor saxão determinara três dias para a realização dessa missão e eles a estavam realizando no tempo certo. Em menos de uma semana, uma viagem em mar aberto se tornaria perigosa demais. Apesar de tudo correr dentro do previsto, Einar desejava ardentemente já ter terminado aquele ataque e estar de volta à sua aldeia.

     Ele ouviu vozes baixas às suas costas e sentiu a excitação dos homens. Para aqueles guerreiros vikings, a tomada e o saque de urna aldeia saxônia seria tão fácil quanto depenar uma galinha... se a missão não fosse urna armadilha!

     Então. Einar avistou o brilho pálido de uma fogueira entre as árvores da colina junto à margem do rio. Com um gesto de cabeça ele indicou o sinal a Lars que dirigiu o navio na direção da praia. 

     Atendendo a um outro sinal de Einar, os homens começaram a saltar do navio para as águas rasas do rio e a subir a encosta da margem, sem qualquer ruído.

     Subitamente, um grito de alarme rompeu o silencio da noite. Einar avistou uma sombra correndo a distancia e, com um gesto rápido, deu ordens para que seus homens apressassem o ataque.

     A aldeia do povo saxão ficava no alto da colina onde se avistava a fogueira e era uma das maiores que Einar já vira. As casas, bem construídas, ficavam atrás de uma paliçada de madeira bastante sólida, além da qual se avistava um bosque.

     Ao se aproximar, Einar percebeu que o alarme dera tempo aos moradores para fecharem o pesado portão de madeira. Entretanto, não havia homens sobre a muralha, esperando-os com arcos preparados para atirar e repelir o ataque. Seria mesmo uma armadilha preparada por um falso traidor ou aquele grito de alerta não fora previsto?

     Não havia tempo a perder em considerações abstratas pois era preciso deitar abaixo o pesado portão, Seus homens tinham atacado dezenas de aldeias saxônias e, em questão de minutos, derrubaram uma árvore que foi usada como um aríete.

     A aldeia parecia deserta. Enquanto os guerreiros abriam as casas em busca de saque, Einar fez um sinal para Hamar, seu meio irmão, e para Lars, conduzindo-os para a maior construção do vilarejo.

     Apenas o fogo mortiço da lareira iluminava a sala e, enquanto Hamar e Lars abriam um barril de vinho com seus machados, Einar procurava pela mulher que era a causa daquela missão.

     O traidor afirmara que ela estaria na maior casa da aldeia, talvez na dispensa onde havia uma porta falsa, levando a um esconderijo cavado no chão de terra. Einar não precisou procurar pelo local secreto pois logo avistou um par de pés descalços atrás de uma cômoda.

     Sem perda de tempo, Einar puxou um garoto pela túnica e o trouxe até o centro da despensa .

     - Largue-me! - berrava o adolescente, tentando atingir Einar com os punhos cerrados. - Meu pai é um lorde, o chefe desta aldeia!

     O garoto tinha aproximadamente treze anos mas, embora já fosse muito alto, ainda era mais um menino do que um homem. Einar viu o desespero nos olhos do cativo e reconheceu a angustia do guerreiro sem armas que anseia por lutar.

     Sorrindo, ele preparou-se para questionar o garoto quando percebeu um vulto se movendo nas sombras do aposento e ouviu uma voz feminina às suas costas.

     - Solte-o!

     Einar virou-se em tempo de ver uma mulher saindo das sombras e a luz que vinha da sala principal iluminou a cruz de ouro com três faiscantes pedras preciosas. Ela avançava em sua direção, com uma garotinha agarrada às saias e carregando uma espada pesada demais para mãos femininas.

     Encontrara a mulher que devia matar. A esposa do traidor.

     Ele deu um passo à frente e, para sua surpresa, viu a mulher erguer a espada. Ela não escondia sua intenção de matá-lo, mas Einar apenas sorriu e avançou mais. Agora sabia de quem o garoto herdara a valentia.

     A mulher empurrou a garotinha para trás e, encarando Einar, preparou-se para o ataque.

     Realmente, ele nunca encontrara uma mulher tão corajosa. Não havia a menor dúvida que seria atacado sem piedade.

     Os cabelos negros, muito longos, escondiam o rosto da mulher que avançou na direção de Einar, tentando atingi-lo com a pesada espada.

     Ele desviou-se facilmente do golpe. A mulher quase perdeu o equilíbrio, mas logo se recuperou, preparando-se para desferir uma nova investida. Hamar e Lars permaneciam parados à porta da despensa, observando a cena com um sorriso divertido.

     - Acho que ela não simpatizou com você, Einar - brincou Lars.

     - Tem toda a razão - replicou Einar, indiferente à fúria da mulher.

     - Ainda bem! Ingemar ficaria furiosa se você arrumasse uma outra mulher para ocupar o lugar dela.

     A mulher avançou novamente e, desta vez, o golpe passou muito perto de mão de Einar.

     - Fujam! - gritou ela para as crianças.

     O garoto hesitou por uma fração de segundo até tomar uma atitude e, agarrando a mão da menina, correu para a porta. A tentativa de fuga foi frustrada por Hamar e Lars que os agarraram.

     Agora a mulher já não controlava o pânico, mas, num último e desesperado esforço, ergueu a espada ainda uma vez,

     - Solte as crianças ou eu o matarei!

     Subitamente, Einar decidiu que já perdera tempo demais com aquela brincadeira idiota. Saltando sobre a mulher, ele arrancou-lhe a espada das mãos enquanto ambos caíam ao chão.

     Com os rostos muito próximos, Einar pôde examinar os traços da mulher mais bela que ele já vira. Os olhos eram azuis como o céu na primavera, os cabelos negros como o ônix e os lábios... os lábios cheios pareciam pedir beijos.

     - Por favor, não faça nada de mal às crianças - implorou ela.

     - Elas não serão maltratadas. - Einar notou a surpresa da mulher ao ouvi-lo falar em inglês. - Nada lhes acontecerá.

     Ela acreditou nas palavras do guerreiro, mas logo ficou tensa ao sentir que as mãos másculas percorriam seu corpo, investigando suas curvas perfeitas.

     - Por favor - ela entreabriu os olhos, brilhantes de lágrimas - não permita que as crianças sejam testemunhas de minha degradação

     Einar a encarou, sem disfarçar a surpresa. Aquela mulher lutava como uma das companheiras de Odin para proteger suas crianças e após perder a batalha desigual, pedia apenas que elas não testemunhasses sua humilhação.

     Inexplicavelmente, sentiu-se arrependido por tê-la colocado em uma posição em que fosse necessário implorar. Ele ergueu-se do chão, forçando-a a ficar também de pé.

     A mulher já não tentava lutar, mantendo seu olhar fixo nas crianças. Subitamente Einar convenceu-se de que seria um verdadeiro desperdício matar uma criatura tão corajosa. Com toda a certeza Svend concordaria com ele.

     - Tragam as crianças - ordenou ele, arrastando a mulher em direção à porta de saída da casa.

     O traidor se preocupara demais com os filhos, exigindo que não fossem tocados e, sem dúvida, pagaria um bom resgate por eles. Quanto à esposa, bastaria saber que não seria mais sua responsabilidade.

     Do lado de fora da casa reinava o silencio. Era evidente que todos os moradores da aldeia haviam fugido para algum lugar seguro. Os vikings já tinham saqueado tudo e se afastaram após atear fogo nos montes de feno.

    

     O guerreiro de cabelos prateados arrastou Meradyce para o navio. Aterrorizada e sem forças depois do fútil combate contra aquele gigante loiro, ela mal conseguia mover as pernas. Na verdade teria se largado no chão, sem se importar com mais nada se não fosse pelas crianças.

     O mais jovem dos outros dois guerreiros carregava Betha que estava assustada demais até para chorar. A garotinha olhava, apavorada, a lamina curva do machado viking, presa ao peito de seu captor. O outro guerreiro, de cabelos escuros e barba espessa, segurava Adelar firmemente pelo braço,

     Se ao menos Adelar não tentasse escapar, com intenções de lutar contra os homens que tinham ousado atacar sua aldeia, talvez os três sobrevivessem. Entretanto, Meradyce percebera que o garoto não tirava os olhos da espada de seu captor, nitidamente à espera de uma oportunidade de se apoderar da arma.

     Ela rezava para que Adelar se desse conta da insensatez dessa ação. Não tinha a menor dúvida de que um selvagem viking mataria quem tocasse sua arma!

     O guerreiro de cabelos prateados segurou o pulso de Meradyce com mais força e ela mordeu os lábios para conter o grito de dor.

     Iluminado pela luz avermelhada das casas que ardiam, o guerreiro viking mais parecia um demônio vindo dos infernos. O capacete de metal que protegia o nariz, criava sombras escuras em redor dos olhos, deixando à mostra o queixo agressivo e a boca de contornos duros. Os cabelos longos, quase na altura dos ombros, se moviam como fios de prata enquanto ele caminhava com passadas longas.

     Embora com dificuldade de acompanhar a marcha de seu captor, Meradyce ainda lançou um último olhar para a aldeia. Felizmente, não havia nenhum corpo entre as casas que ardiam como piras. O grito de alerta dera tempo a todos de se refugiarem nas cavernas.

     Como os vikings tinham sabido que não havia nenhum guerreiro na aldeia? Fora apenas um acaso? E por que aquele gigante loiro, que a arrastava sem qualquer esforço, sabia falar o seu idioma?

     O grupo estava a poucos passos do navio viking quando Adelar conseguiu escapar.

     - Corra, Adelar! - gritou ela, também se soltando de uma das mãos do gigantesco guerreiro.

     Enquanto ela continuava a se debater, distraindo a atenção dos homens, Adelar desapareceu entre as árvores.

     - Graças a Deus - murmurou Meradyce, sentindo as esperanças renascerem.

     Surpresa, ela percebeu que o gigante loiro soltava seu outro braço.

     Estava livre para correr...

     - Adelar! - gemeu Betha, desesperada.

     Meradyce se imobilizou. Não poderia fugir, deixando a frágil e pequenina Betha à mercê daqueles selvagens.

     Naquele instante, gritando de ódio, Adelar reapareceu entre as arvores, atendendo ao apelo da irmã. Antes que Meradyce pudesse aconselhá-lo, o garoto jogou-se contra o guerreiro de cabelos prateados.

     - Solte-as! Covarde! Selvagem!

     O viking o segurou pelos braços, mantendo-o no ar.

     - Por favor! - Meradyce aproximou-se e colocou a mão no braço musculoso do guerreiro. - Não o mate!

     Os olhos do viking refletiam um brilho feroz, visível apesar da sombra formada pelo capacete de metal.

     - O chefe dos saxões deve se orgulhar de você e de suas duas crianças. - Ele soltou Adelar - Agora, entrem todos no navio.

     Antes que o guerreiro a tocasse novamente, Meradyce tomou a mão de Adelar e, caminhando junto do outro viking, tirou-lhe Betha dos braços a fim de carregar pessoalmente a garotinha apavorada.

     - Temos que obedecer - insistiu ela, subindo a prancha que dava acesso ao navio.

     Prudente ela se refugiou com as crianças em um recanto do navio com o saque. O guerreiro loiro lhe dissera que não seriam maltratados, mas Meradyce não ignorava que a sina dos prisioneiros era ser vendido como escravo.

     Um soluço de desespero escapou de seus lábios e Betha a fitou com olhos aterrorizados.

     - Está tudo bem, querida - murmurou ela, abraçando carinhosamente a garotinha. - Seu pai é um grande chefe dos saxões e você será bem tratada.

     - Acho melhor que eles a tratem muito bem - declarou Adelar com as feições distorcidas pela raiva. - Se eu puser as mãos numa espada ...

     - Não! - Betha recomeçou a chorar. - Não faça nada ou eles o matarão!

     - Betha tem razão, Adelar. - Meradyce puxou o garoto para junto dela. - Não há nada a ser feito contra tantos guerreiros.

     - Mas ...

     - Nada mesmo, Adelar.

     Betha soluçava baixinho nos braços de Meradyce que perdia suas últimas esperanças. Todos os vikings já estavam a bordo, aguardando as ordens de seu líder, o guerreiro de cabelos prateados.

   Ele foi o último a entrar no navio e, tomando o lugar na proa, deu ordens para que todos começassem a remar.

     Abraçando as crianças, Meradyce desviou os olhos do guerreiro que parecia fazer parte do navio e fitou a colina onde ficava sua aldeia. Logo, o clarão das chamas se tomou apenas um borrão indistinto na linha do horizonte.

    

     - Por Deus! Olhem!

     Kendric voltou os olhos para a direção apontada pelo homem.

     Na linha do horizonte, onde deveria estar sua aldeia, uma coluna de fumaça se erguia no céu rosado da madrugada .

     Com um brado de guerra, o chefe dos saxônios fez um sinal para que seus homens o seguissem e galopou em direção à aldeia, escondendo um sorriso de satisfação .

     Quando ele propusera uma expedição para roubar gado das aldeias vizinhas, seus homens não tinham recusado, porque acreditavam que os vikings jamais se arriscariam a atacar tão perto do inverno.

     E era verdade. Ele precisara oferecer muito mais ouro do que previra, mas pagaria ainda mais para se livrar de Ludella.

     Ninguém suspeitaria que ele estivesse envolvido na destruição da aldeia nem que houvesse planejado esse ataque durante meses... desde saber, com certeza absoluta, que sua esposa tinha um amante.

     Sua primeira reação ao descobrir que Ludella o traíra com Orwin, um de seus soldados, fora mandá-la de volta para a casa dos pais. Entretanto, o pai dela era um senhor poderoso, um lorde membro do conselho que ajudava o rei a tomar decisões e talvez a situação não se resolvesse a seu favor.

     Ludella fora muito cuidadosa em sua traição e, além disso, não era segredo na aldeia que ele não tirava os olhos de uma mulher bonita... nem conseguia manter as mãos longe de um corpo sensual.

     Sua esposa acabaria convencendo o pai de que era inocente e talvez o acusasse de ter rompido os votos de lealdade do casamento ao tentar seduzir todas as mulheres atraentes que surgiam na aldeia.

     Mais uma vez, Kendric se perguntou se Ludella o vira abraçando a bela Meradyce logo após o nascimento de Betha. Sua esposa teria notado o desejo e não a gratidão em seus olhos quando agarrara a fascinante parteira?

     Sem dúvida Ludella não procurara um amante apenas para se vingar, pois nem mesmo Meradyce percebera suas intenções ... ainda.

     Além disso, todos sabiam que a bela parteira defendia sua castidade com unhas e dentes! Não seria fácil levá-la para a cama sem prometer casamento!

     Kendric já não se preocupava mais com esse obstáculo. Logo poderia conquistar aquela beldade de pele alva como o leite. Transporia as barreiras que ela erguera para se defender dos homens ao lhe oferecer respeito e... casamento!

     Na verdade, ele pretendia apenas oferecer! Embora seu desejo pela inocência virginal de Meradyce estivesse se tornando uma obsessão incontrolável, Kendric queria apenas uma amante. A bela jovem não passava de uma parteira sem dote ou fortuna.

     Quando voltasse a se casar, escolheria uma rica herdeira de família poderosa. Afinal ele era jovem e atraente, rico e chefe de seu povo. Algum dia, muito em breve, seria convidado a participar do conselho real.

     Agora, só restava descobrir um pretexto para matar Orwin. Por sorte, Ludella escolhera um amante de classe inferior e seria bem fácil livrar-se dele.

     O grupo de guerreiros alcançou o topo da colina onde podia se avistar a aldeia destruída pelo fogo. Embora à distância, viam-se vultos se movendo entre as casas calcinadas.

     Kendric não pagara para que os vikings queimassem todas as casas, mas sentia-se profundamente satisfeito com esse desastre. Já há muito tempo queria refazer as construções da aldeia, erguendo para si mesmo um edifício condizente com sua importância. Os mercadores, sempre avarentos, protestavam contra esse desperdício de dinheiro. Agora, não lhes restava outra escolha.

     Aparentemente, não houvera nenhuma morte. O único receio de Kendric ao fazer o trato com Svend fora que o viking não seguisse os seus planos conforme o prometido. Quem não sabia que aqueles selvagens jamais cumpriam suas palavras?

     Os guerreiros vikings não foram informados de seu trato a parte com Selwyn, o mercador saxão encarregado de se comunicar com as duas partes interessadas. Além de acender a fogueira, conforme o planejado, o astucioso intermediário também deveria dar o alarme, avisando seu povo da chegada dos invasores, com tempo para que todos se refugiassem nas cavernas.

     Todos menos Ludella! Ela certamente iria se aproveitar da ausência do marido para se encontrar com o amante. Kendric sabia que os dois passariam a noite fora e só retomariam ao amanhecer, antes que os moradores da aldeia acordassem e os vissem chegar juntos.

     Pelos seus cálculos, Ludella seria surpreendida pelos invasores do lado de fora da paliçada ou, se já estivesse em casa, teria se escondido na despensa. Os vikings não demorariam a encontrá-la e, ao reconhecera cruz de ouro com três pedras preciosas, a matariam conforme o combinado.

     Kendric esporeou o cavalo e entrou na praça da aldeia. Saltando da sela, ele foi rodeado pelos moradores da aldeia que falavam sobre o terrível ataque quando ouviu uma voz às suas costas.

     - Kendric!

     Incapaz de acreditar em seus próprios ouvidos, Kendric virou-se para encarar a esposa. Com o rosto negro de fuligem e os olhos vermelhos de tanto chorar, Ludella o fitava com ódio.

     - Maldito! A culpa é toda sua.

     Praguejando contra os invasores vikings, ele enfrentou a esposa.

     - O que você quer dizer com isso? Quem poderia supor que eles fossem atacar tão perto do inverno?

     - Vá atrás deles!

     - Você ficou louca? Os vikings são excelentes marinheiros e já devem estar em mar alto agora.

     Ludella se aproximou do marido e só então Kendric viu o desespero nos olhos dela.

     - Tem que achá-los! Eles levaram as crianças!

     - Maldição!

     Embora seu maior desejo fosse se livrar da esposa a quem nunca amara, Kendric adorava o filho.

     - E também levaram Meradyce - prosseguiu Ludella, sem conter as lágrimas.

     - Por que você não estava junto com as crianças?

     Pela primeira vez na vida, Ludella sentiu pavor diante do marido. Kendric a mataria se soubesse que ela já estava nas cavernas, e nos braços do amante, quando o ataque tinha começado.

     - Ela me disse que levaria as crianças para a caverna...

     Cheio de suspeitas, Kendric olhou para a esposa, como se procurasse algo errado. Mais uma vez, Ludella pressentiu que o marido desconfiava de sua traição.

     - Onde está seu crucifixo mulher? Por que não o vejo em seu pescoço, como sempre?

     Ludella não pretendia revelar que o deixara com Meradyce por medo de perdê-lo nas cavernas.

     - Deve ter caído enquanto eu fugia.

     Entretanto, o importante agora não era a sua traição. Ludella odiava o marido, mas amava os filhos.

     - Por favor, Kendric. Você tem que ir atrás deles.

     - Infelizmente, não é possível. Nós não temos noção nem de onde começar a procura.

     Kendric não mentia, pois o único que sabia era Selwyn e ele já estava longe da aldeia. O astucioso mercador certamente fugira logo depois de dar o alarme.

     - Também não podemos enfrentar os riscos de segui-los nesta época do ano.

     Até os vikings, os navegadores mais ousados e capazes de todo o mundo, não se arriscavam a cruzar os mares quando o ano chegava ao fim.

     O seu plano estava se tornando um pesadelo desastroso. Sua odiada esposa continuava viva, a mulher que ele desejava fora raptada e seus filhos estavam com ela!

     - Os malditos selvagens vão matar meus filhos - gemeu Ludella, desesperada..

     Ele não tinha a mesma opinião da esposa. As crianças estavam com Meradyce que explicaria de quem os dois eram filhos. Os selvagens veriam um bom modo de ganhar a recompensa e não maltratariam Adelar e Betha.

     A pobre Meradyce não teria tanta sorte quanto seus filhos. Talvez, por sua excepcional beleza, conseguisse sobreviver por mais tempo do que as mulheres vendidas como, escravas, depois de terem sido usadas pelos vikings.

     - Acho que eles não maltratarão as crianças - declarou Kendric. - Irão pedir um resgate e logo saberemos quanto querem para nos devolver nossos filhos.

     - Como saberemos? - perguntou Ludella, desconfiada.

     Kendric calou-se, censurando sua falta de cuidado. Não podia contar a ninguém sobre Selwyn, mas tinha certeza de que os vikings o informariam quanto ao resgate através do astuto mercador.

     - Os malditos selvagens irão pedir uma verdadeira fortuna pelos meus filhos e, diante da possibilidade de por as mãos em tanto ouro, encontrarão um meio de entrar em contato conosco.

     Ele se afastou, incapaz de suportar a presença da esposa nem por mais um segundo. Sua mente se voltara totalmente para a elaboração de planos de vingança. Passaria o inverno treinando seus homens e pagaria o que lhe pedissem pelo melhor navio já construído pelos saxônios. Depois, exigiria que Selwyn lhe contasse onde ficava a aldeia dos vikings e então Svend pagaria por não ter cumprido a palavra dada!

    

     Se eles não estivessem a bordo de um dos mais perfeitos navios de Bjorn ou não contassem com a perícia de Lars ao leme, teria ido se reunir ao deus Aegir, em seu palácio no fundo do mar. As ondas eram altas como montanhas e o vento gélido e cortante como o hálito dos gigantes polares.

     Ninguém ficou mais feliz do que Einar quando o navio deslizou para dentro do leden, a área protegida entre as ilhas ainda afastadas da costa e a terra firme, onde as águas ficavam menos tempestuosas, defendidas do vento e das ondas. Ele sentiu-se finalmente livre do enorme peso da responsabilidade ao entrar no fiorde de sua aldeia.

     A noite começava a cair quando ele avistou as luzes ainda distantes e sorriu para Lars.

     - Pelo trovão de Thor! - exclamou Lars, também sorrindo, aliviado - Mal posso acreditar que iremos comer uma refeição quente e tomar muitas canecas de cerveja!

     A proximidade do lar levou Einar a se preocupar com o problema que fora deixado de lado durante as borrascas da viagem de volta. Disfarçadamente, olhou para a mulher saxônia, envolta em um saco de couro, usado para guardar as armas, que ela estava vestindo como agasalho contra o vento frio.

     Apesar dos olhos fechados, Einar não acreditava que ela estivesse dormindo. Na verdade, a mulher mal tivera tempo de cochilar durante a viagem porque as duas crianças haviam passado muito mal com o balanço do navio. Sem falar no terror que certamente a mantivera acordada!

     Se ela ouvira muitas histórias sobre os vikings, devia estar apavorada e certa de que seria violentada por ele. Na verdade, seus guerreiros não conseguiam entender por que isso não acontecera ainda.

     A maioria deles sentia prazer em forçar as prisioneiras a se submeterem aos seus desejos e se vangloriavam dos arranhões e mordidas provocadas por essas posses violentas. Eles também afirmavam que uma mulher dominada pela força sempre seria obediente ao seu senhor.

     Ao contrário dos homens de seu povo, Einar preferia que as mulheres se entregassem a ele por desejo embora, desta vez, tivesse sido tentado a forçar a mulher saxônia a se submeter. Chegara mesmo a imaginar como seria o brilho da volúpia nos olhos azuis como o céu de primavera. Então, assustado com essa reação inusitada, decidira dá-la de presente a Svend, em agradecimento por ter recebido o comando daquela missão.

     Einar se arriscara muito ao desobedecer às ordens do pai, poupando a vida da mulher saxônia. Qualquer chefe viking desconfiaria que uma ação desse tipo era uma clara tentativa de se apoderar do comando e talvez alguns de seus guerreiros imaginassem que fora essa a sua intenção .

     Ele perdera a conta do número de vezes em que Ull mencionara a idade avançada de Svend, insinuando que Einar devia assumir o lugar paterno.

     Ull jamais entenderia que Einar preferia tirar a própria vida a ser desleal ao pai!

     Certamente, o presente ajudaria a dissipar os temores de Svend, causados por sua desobediência. Também seria o único modo de impedir que os homens se matassem por causa da bela prisioneira.

     E aquela mulher merecia que se lutasse por ela! Nem o cansaço nem o terror diminuíam sua beleza surpreendente e Einar sabia que o corpo era ainda mais perfeito do que o rosto.

     Além disso, ele pressentia que aquela mulher fosse capaz de paixões intensas pois vira seu rosto transformado pela ânsia de defender as crianças.

     Para sua surpresa, ela conseguira controlar as emoções intensas após o combate inicial, provavelmente concluindo que estaria resistindo em vão.

     Se os seus guerreiros fossem capazes de se controlar com a mesma rapidez! Pelo contrário, continuavam brigando como crianças, sem motivo ou sensatez, por cada item do saque.

    

     Ele voltou a fitar a mulher e sentiu o sangue correr mais depressa em suas veias. Nada o impedia de possuí-la naquele momento, no convés do navio. Svend não se incomodaria com isso e até estranharia que Einar não a tivesse tomado para si, pelo menos uma vez, antes de da-la de presente.

     No entanto, ele queria ver o desejo e não o terror iluminando aqueles magníficos olhos azuis. Não queria forçar o corpo frágil e sim esperar que ela desabrochasse como uma flor sob o ardor do sol.

     Por que não ficava com ela em vez de dá-la para o pai?

     O movimento brusco de Hamar, que subia na amurada do navio, distraiu Einar de seus pensamentos.

     - Gunnhild! - gritou Hamar, acenando para uma jovem na praia

     - Desça daí! - ordenou Einar, irritado com aquela falta de disciplina na hora de atracar o navio.

     Hamar virou-se para o meio-irmão, nitidamente irritado, mas não disse nada. Ele orgulhava-se de sua bela e jovem esposa, prestes a lhe dar um filho. Quando julgou que Eivar não estivesse olhando, voltou a acenar para Gunnhild

     - Você pode ser meu irmão mais velho, mas eu sou o comandante deste navio - declarou Einar, colocando a mão no ombro de Hamar - Não se esqueça disso!

     - Então exijo que me respeite da mesma forma quando estivermos em terra.

     - É claro que sim, mano.

     Lars não disfarçou um sorriso que foi partilhado pela maioria dos homens. Todos estavam acostumados às pretensas brigas entre Einar e Hamar, mas também sabiam que nenhum deles falava em vão. Os dois filhos de Svend exigiam, e conseguiam, o respeito de toda a aldeia e também a reciprocidade do irmão.

     - Ali está Ingemar - indicou Lars.

     Eivar não reagiu ao aviso de Lars, pois já avistara a jovem loira, parada ao lado de Gunnhild. Ingemar estava ficando exigente demais, falando a todo instante em se tornar sua esposa.

     Ele não queria casar-se de novo. Uma vez fora mais do que suficiente!

     Ainda assim, Ingemar era uma amante sensual e certamente se mostraria grata pelos presentes que ele pudesse lhe dar, escolhidos entre o saque obtido nessa viagem.

     O navio foi atracado e os homens começaram a retirar a carga.

     Einar esperava pela hora de desembarcar, tentando não pensar na mulher saxônia e em seu crescente desejo de mantê-la ao seu lado.

     Livrando-se do agasalho, Meradyce segurou as mãos das duas crianças, certificando-se de que ficassem perto dela enquanto os vikings desembarcavam a carga do navio.

     Ela forçou-se a não encarar os homens, a fim de não revelar seu temor, e desviou seu olhar para os rudimentares portões onde se viam cinco outras embarcações ancoradas. Eram mais curtas, de aparência pesada e sólida. Talvez a viagem em mar aberto teria sido menos agitada naqueles navios?

     O balanço constante do navio deixara as crianças muito nauseadas e nenhum dos três tinha se alimentado desde que a viagem começara, há quatro dias. Ela passara todo o tempo cuidando dos dois e agora estavam todos famintos e fracos.

     Mas, pelo menos, estavam livres das tempestades! O casco do navio tinha rangido e estalado como se fosse partir ao meio, ventos gelados varriam o convés e as ondas eram mais altas do que a serpente esculpida na proa da embarcação viking. Ela e as crianças haviam passado quatro dias ensopadas de água salgada, tremendo convulsivamente de frio, de náuseas e de terror.

     Durante o auge da pior das tempestades, quando Meradyce acreditara que a morte não tardaria a vir, o viking a fitara. Surpresa, ela viu apenas cansaço e não temor ou sequer apreensão no rosto másculo do comandante do navio.

     Subitamente, Meradyce sentiu livre do medo embora não soubesse explicar o motivo dessa mudança com muita exatidão. Talvez porque os vikings fossem os navegantes mais peritos do mundo ou talvez porque aquele homem de aparência assustadora não a magoara, ela deixou de temer o mar e o seu captor.

     Quando a embarcação entrou em águas mais serenas, a tripulação começou a examinar Meradyce com inquietante insistência. Dois homens de barba vermelha, que pareciam ser irmãos, a fitavam com uma cupidez atemorizante. Ela estava certa de que eles não teriam ouvido suas súplicas se a encontrassem na casa de Kendric, como acontecera com o líder viking. Certamente a violentariam no chão da despensa, diante das crianças.

     O comandante do navio finalmente chegou até ela, que permanecia encolhida junto à amurada, com as duas crianças.

     - Levante-se. - Ele a examinou com atenção. - Acha que as crianças conseguirão andar?

     - Creio que sim - balbuciou Meradyce, tentando acreditar nas suas próprias palavras.

     Antes que eles se movessem, o comandante apanhou Betha, carregando-a no colo, mas, quando estendeu a mão para Adelar, o garoto se ergueu sozinho e deu um passo, demonstrando não precisar de ajuda.

     - Sigam-me - ordenou ele, disfarçando um sorriso.

     Meradyce e Adelar o seguiram ate a popa do navio, onde havia sido colocada uma prancha de madeira para o desembarque da carga. Ao sair da cobertura da vela, ela avistou as montanhas de pedra nua que cercavam a pequena enseada. Então lembrou-se de ter ouvido contar que a terra dos vikings era tão fria e estéril quanto seus corações.

     Quando seus pés tocaram a madeira do cais, ela sentiu o chão oscilar perigosamente e precisou se apoiar em um barril de água para não cair.

   Alguém deu uma risada francamente desdenhosa, ao erguer os alhos, Meradyce viu uma jovem alta, de cabelos de um loiro quase branco que a fitava com desprezo.

     O comandante viking continuava a caminhar e Adelar estava tendo dificuldades para segui-lo, assim como Meradyce, mas ele não os esperava.

     - Pare! - gritou ela, com a voz inesperadamente autoritária. O viking virou-se para ela e deu um sorriso tão insultante quanto o da mulher loira.

     Embora fosse apenas uma prisioneira, Meradyce não abria mão de seu orgulho e, erguendo o queixo, deu mais um passo. Então, ela percebeu que sua tontura fora ocasionada pelo constante balanço do navio, pois o chão estava firme sob seus pés.

     Ele a fitava atentamente, as crianças a olhavam, apreensivas, e a mulher loira não desviava o olhar dela. Meradyce deu mais um passo e se concentrou em continuar caminhando do modo mais natural possíve1.

     A mulher riu novamente e disse algo para o comandante viking, mas Meradyce já não prestava mais atenção nos dois. As crianças estavam pálidas demais e ela só esperava que descanso e comida quente lhes devolvessem a energia e a saúde.

     - Por favor - pediu ela assim que a mulher se afastou, ainda rindo. - Não há algum lugar onde as crianças possam descansar?

     O viking concordou, com um gesto de cabeça, e recomeçou a caminhar. Meradyce e Adelar o seguiam com dificuldade, subindo a encosta do cais até a aldeia, situada no alto de um pequeno planalto pouco distante da praia.

     Uma cerca baixa de pedras protegia as longas construções de toras de madeira e telhados de ardósia de onde saiam plumas de fumaça. Meradyce mal podia acreditar que aquele navio carregado de poderosos guerreiros tivesse saído de uma aldeia tão pequena.

     Talvez a lenda sobre os vikings fosse verdadeira? Dizia-se que o cruel e invencível guerreiro daquele povo de navegadores, se dedicava ao cultivo da terra durante o resto do ano e só se lançava ao mar nos meses de verão. Era inacreditável! Se agricultores sabiam lutar tão bem, compreendia-se que os saxônios procurassem apaziguá-los com presentes!

     Finalmente, o comandante viking se deteve diante da maior casa da aldeia. Ainda do lado de fora, escutavam-se vozes altas, risadas e sons que se assemelhavam ao uivo de lobos aos ouvidos de Meradyce.

    

     Eivar abriu a porta permaneceu imóvel por alguns segundos até acostumar a vista à penumbra enfumaçada da casa. Seus homens estavam a caminho de se embebedar e alguns começavam a cantar com o costumeiro entusiasmo e desafinação.

     Ao entrar, ele acomodou Betha em um banco junto à porta e fez um sinal para que Adelar se sentasse ao lado da irmã. Então, voltou-se para trás a fim de se certificar de que a mulher saxônia continuava a acompanhá-lo para o centro da sala.

     Agora ele já sabia que aquela mulher era perita em ocultar suas verdadeiras emoções, mas embora presumisse seu profundo temor, ela não demonstrava estar sequer assustada. Ao fitar os olhos azuis, notou algo que parecia ser confiança.

     Era melhor não tirar nenhuma conclusão sobre os sentimentos da prisioneira, porque ela logo pertenceria a Svend.

     Não. Ainda não.

     Parando ao lado de um caldeirão de água morna, Einar lavou o rosto e as mãos, repetindo a si mesmo que era preciso dar aquela mulher a Svend. Na verdade, não havia outro caminho.

     - Einar! - berrou Svend, erguendo sua caneca de cerveja, numa saudação efusiva.

     Puxando a mulher pelo braço, Einar avançou até o meio da sala.

     - Parabéns, filho! Foi um ataque bem sucedido, mas sem cativos, certo? - Os olhos de Svend se estreitaram ao avistar a mulher ao lado de Einar - Quem é ela?

     Eivar soltou o braço da mulher que deveria estar morta. Como todos na aldeia, sabia que Svend ainda venceria qualquer jovem tolo o suficiente para desafiá-lo, embora estivesse um tanto gordo e já não fosse um homem no auge de sua força.

     Ele aproximou-se bastante do pai para que suas palavras fossem ouvidas apenas pelo seleto grupo de amigos que o rodeava.

     - Esta é a mulher que o saxão nos encarregou de matar. Como pode ver, teria sido um lamentável desperdício.

     Puxando o vestido largo para revelar as formas perfeitas de Meradyce, Einar a empurrou para junto do pai.

     - Ela é meu presente para você. As crianças serão mantidas vivas porque poderemos pedir um bom resgate pelos dois.

     - Por Odin! Que mulher magnífica, Einar.

     Levantando-se da cadeira, Svend se aproximou do filho e da mulher cativa. Em silencio, Meradyce suportava os olhares ávidos que pareciam deixá-la nua.

     - Agradeço-lhe o presente, filho! - Svend deu um tapa amistoso nas costas de Eivar. - Só acho que minhas mulheres não vão aceitar de bom grado a presença dela em casa.

     Os homens caíram na gargalhada, mas Svend e Einar se fitavam, sem rir.

     - As crianças são dela?

     - Sim. O pai é um lorde saxão.

     - Por Odin! Ele deve estar enfurecido e certamente pagará o que pedirmos para tê-las de volta. Foi muito esperto em pensar na possibilidade de um resgate, Einar.

     Apesar do aparente entusiasmo, a expressão dos olhos de Svend indicava que ele não estava tão satisfeito quanto parecia.

     - Vamos inverter a situação. - Svend retomou para sua cadeira.

     - Eu a dou de presente para você, como prêmio por ter trazido meu navio e meus guerreiros de volta, sãos e salvos.

     Após um instante de hesitação, Einar aceitou a ordem do pai e, puxando a mulher pelo braço, levou-a de volta até o banco onde estavam as duas crianças, sem controlar uma desagradável sensação de dúvida e culpa.

     Talvez devesse ter matado a mulher como seu pai ordenara. Svend ficara contrariado e agora Einar notava uma expressão de inveja no rosto da maioria dos homens, especialmente o de Ull.

     A sua maior preocupação era relativa à reação do pai. Einar ignorara suas ordens e não cumprira o trato firmado com o traidor saxão. Svend não costumava tolerar nenhuma desobediência mesmo se a considerasse justificada!

     Entretanto, a raiva de Svend ainda o preocupavam menos do que uma inquietante suspeita. Começava a desconfiar que aquela mulher tinha algum poder estranho sobre ele. Tentou convencer-se de que apenas desejava o corpo sensual, como todos os homens presentes mas...

     - Einar! - chamou Ingemar, aproximando-se dele, com uma caneca de cerveja nas mãos. - Você quer algo para beber?

     Ele respondeu afirmativamente e Ingemar inclinou-se para lhe entregar a caneca de cerveja, permitindo que o vestido largo se afastasse de seu corpo, revelando os seios amplos.

     Após tantos dias no mar, Einar não lutou contra o desejo e, abrindo mais o decote do vestido, acariciou os seios de Ingemar que suspirou de prazer.

     Talvez ele tivesse continuado a despi-la se a garotinha ao seu lado não começasse a tossir.

     - Você poderia trazer pão e leite para estas crianças, Ingemar?

     Lançando um olhar de triunfo para a cativa de cabelos negros, a bela loira se afastou.

     Embora não compreendesse o idioma dos vikings, Meradyce percebera que fora oferecida ao homem mais velho, talvez o lorde daquela aldeia e que, a julgar pelas aparências, não a desejava. Ela não imaginava nem queria saber o motivo da recusa, pois se sentira profundamente aliviada.

     Se a sua posição de cativa determinava que ela pertencesse a um dos guerreiros, ela escolheria o comandante do navio. Durante a viagem, começara a perceber o quanto aquele homem era diferente de seus companheiros e dos vikings sobre os quais ouvira falar.

     Ele não a violentara nem lhe causara nenhum dano físico. Dera seu agasalho para as crianças quando mais precisava da pesada capa de pele e tratara Adelar com sabedoria, demonstrando que respeitava o orgulho infantil do garoto cativo.

     Agora, entre seu povo, ele não parecia ser diferente dos outros vikings que bebiam e agarravam as mulheres, mantendo uma expressão fria no rosto duro. Mas, apesar de seus modos selvagens, Meradyce não acreditava que ele fosse capaz de tratá-la com excessiva brutalidade.

     Então a jovem loira retomou com a comida das crianças e a fitou com um olhar de puro ódio. Meradyce já encontrara antes as reações de ciúmes das outras mulheres e estremeceu.

     - Eu quero ir para casa. - choramingou Betha, com os olhos cheios de lagrimas.

     - Eu também, mas teremos que ficar aqui por algum tempo, querida. Pelo menos ate seu pai vir nos buscar.

     Enquanto abraçava a menina que chorava baixinho, Meradyce notou as esplendidas tapeçarias cobrindo todas as paredes. Sem duvida alguma, tinham sido roubadas de algum castelo saxão e serviam apenas para esquentar o ambiente e não para serem admiradas por sua beleza.

     - Venha - ordenou o viking, ajudando-a a se levantar do banco.

     Ao interpretar a intenção do viking, todos os homens da sala começaram a gritar e, embora Meradyce não compreendesse as palavras, percebia que eram comentários obscenos. Apavorada, ela recuou um passo, com medo de acompanhá-lo e temendo abandonar as crianças por muito tempo. Betha agarrou-se ao seu vestido e Adelar, também se levantando do banco, cerrou os punhos.

     - Traga também as crianças - resmungou ele, impaciente.

     Agarrando as mãos de Betha e Adelar, Meradyce o seguiu, sentindo que suas pernas fraquejavam de medo.

     A noite caíra sobre a aldeia e soprava um vento gelado. Meradyce carregou Betha que tremia de frio e, por sorte, não tiveram que andar muito. O viking parou diante de uma casa próxima, afastou a pele de carneiro que servia de porta e fez sinal para que ela entrasse.

     Por uma fração de segundo, Meradyce pensou em tomar uma atitude insensata e fugir para o mar. Então, resignou-se a aceitar o inevitável. Ele ouvira seu apelo ainda na casa de Kendric e não a violentara diante das crianças, Talvez continuasse a demonstrar o mesmo respeito agora.

     Uma mulher de mais idade veio até a porta e sorriu ao avistar o viking.     

     - Einar! Entre, por favor...

     - Esta é minha mãe. É saxônia, como você.

     Finalmente, ela compreendeu por que aquele guerreiro viking, tão alto e tão loiro, falava seu idioma com perfeição.

     Uma jovem surgiu do fundo da sala, fitando-os com enormes olhos verdes. Ela não disse uma só palavra, mas Meradyce teve certeza de que a garota de cabelos de um loiro acobreado era muito inteligente.

     - E esta é minha filha.

     Ela nunca pensara nas mães ou nas filhas dos aterrorizantes vikings e essa realidade os tornava menos temíveis.

     - Quem são eles? - perguntou a mãe de Einar.

     - São prisioneiros pelos quais pediremos um bom resgate.

     Meradyce o fitou, sem esconder a perplexidade. Só depois de alguns segundos, lembrou-se que o guerreiro os capturara na casa do lorde da aldeia. Sem dúvida, Kendric pagaria um elevado resgate pelos filhos.

     A mulher mais velha aproximou-se de Adelar com uma expressão de seriedade no rosto comunicativo.

     - Você deve ter tido bastante trabalho para capturar este jovem, Einar. Ele parece ser um bom guerreiro.

     Adelar fitou a mãe de Einar com um olhar desconfiado e Meradyce conteve o impulso de avisá-la que o garoto odiava ser tratado como uma criança.

     - Você está muito cansada, querida - perguntou a amável senhora a Betha.

     - Sim, muito - murmurou a garotinha, agarrada a Meradyce.

     - As crianças ficarão em sua casa, mãe - declarou Einar, secamente.

     Assustada e sem saber qual seria seu destino, Meradyce fitou o viking enquanto Adelar se colocava diante dela numa atitude protetora.

     Naquele instante, a voz de Hamar soou à porta da casa.

     - Olva! Você está em casa?

     O meio-irmão de Einar entrou em casa, com uma expressão de pânico.

     - O que está acontecendo, mano?

     - E Gunnhild! Ela vai ter o bebe!

     Einar olhou para a mãe e o olhar de ambos refletia a mesma preocupação. Helsa, a parteira da aldeia, tinha sido uma mulher profundamente egoísta e morrera, havia cerca de três meses, sem passar a nenhuma outra mulher os seus segredos.

     - Você pode ir comigo, Olva? - implorava Hamar.

     - Não sei se poderei ajudar - a voz de Olva refletia sua incerteza. - Mas irei com você...

     - Estão falando sobre a jovem grávida? - interferiu Meradyce. - Ela já esta em trabalho de parto?

     Todos se voltaram para fita-la e Olva não escondia sua expectativa.

     - Sim... ela está prestes a ter o bebê.

     - Eu posso ajudar - declarou Meradyce com firmeza.

     - E o que uma mulher da nobreza entende de partos? - zombou Einar. - Alem de ter tido os próprios filhos, é claro.

     - Meradyce não é... - Adelar não terminou de falar ao perceber a expressão tempestuosa do viking.

     Subitamente, Einar se deu conta de que nenhuma das duas crianças se parecia com a mulher que tanto lutara por eles.

     - Ela não é o quê?

     O garoto olhou para Meradyce, nitidamente em pânico.

     - Nada ... nada ...

     Abraçando o garoto, Meradyce tentou acalmar seus temores.

     - Eu sinto muito, Meradyce.

     - Não tem a menor importância, Adelar.

     - Ela não é o quê? - insistiu Einar, com rispidez.

     - Eu não sou a mãe destas crianças. - Ela o encarou, sem medo. - Sou a parteira da aldeia.

     - Não minta! Você é a esposa do lorde saxão. Está usando a cruz de ouro!

     - A esposa de Kendric deixou a jóia comigo para não perdê-la. Ela não estava na aldeia na hora do ataque.

     - O que está acontecendo, Einar? - Hamar entrou na conversa, angustiado. - Olva vai comigo ou não?

     Einar não sabia se devia ou não acreditar nas palavras da mulher. Ela estava usando a cruz e sua postura era a de uma dama da alta aristocracia. Certamente, estava mentindo a fim de escapar de seu destino. E para onde aquela tola imaginava que fosse possível fugir?

     Entretanto, a doce Gunnhild, a mulher que seu meio irmão adorava, estava precisando de ajuda. Seria maldade privá-la do auxílio daquela mulher que talvez fosse mesmo uma parteira..

     - Fique com as crianças, mãe - declarou Einar, finalmente tomando sua decisão.

     Segurando a mão delicada da mulher, ele puxou-a para fora de casa e, junto com Hamar, os três atravessaram a aldeia.

     - Onde está a mulher que costuma cuidar dos partos nesta aldeia? - perguntou Meradyce, perplexa.

     - Ela morreu.

     - E onde estão os remédios que ela usava? Posso vê-los?

     - Sim. Todos a temiam e ninguém chegou perto da casa dela desde sua morte.

     - Ótimo! Então, não estragaram nada. - Meradyce apontou para Hamar. - Pergunte a ele se a esposa está com alguma espécie de hemorragia.

     Enquanto caminhavam, Einar traduzia para o irmão as perguntas de Meradyce a respeito do andamento do parto. Ele mal continha a admiração diante da calma da jovem que parecia realmente entender do assunto.

     Finalmente, os três chegaram a uma construção de toras de madeira, logo atrás da aldeia e junto às margens do rio.

     - Que lugar é esse? - perguntou Meradyce.

     - É a casa de banhos - respondeu Einar. - Todas as mulheres da aldeia vem dar a luz neste local.

     Ela seguiu Hamar que se dirigia para a porta mas, antes de entrar, parou ao ver que Einar se detivera do lado de fora da casa.

     - Venha. Precisarei de sua ajuda.

     - E para que?

     - Tenho de conversar com a parturiente, fazer-lhe algumas perguntas.

     - Está bem - resmungou ele, sem disfarçar a relutância. Hamar havia esquentado as pedras e o aposento único da casa de banhos estava quente como uma estufa. Ele ajoelhou-se ao lado da esposa que, apesar da dor, tentou sorrir. Então, ao avistar a mulher saxônia, ela franziu a testa, perplexa.

     Einar explicou a situação enquanto observava Meradyce que examinava a esposa de Hamar com a perícia e a serenidade de uma verdadeira parteira.

     - Diga a ela para não se preocupar com mais nada. Tudo está correndo normalmente. Sei o que digo porque já acompanhei o nascimento de mais de cinqüenta crianças. - Ao notar o sorriso cínico de Einar, ela se justificou. - Comecei a ajudar minha mãe quando eu tinha apenas nove anos de idade e viajei ao seu lado por inúmeras aldeias.

     Depois que Einar traduziu as palavras de Meradyce, a jovem esposa de Hamar ficou nitidamente mais tranqüila.

     - É o primeiro filho dela? - perguntou Meradyce.

     - Sim.

     - Foi o que pensei. Diga-lhe que a criança está na posição certa, mas ainda demorará um pouco para nascer.

     Usando Einar como interprete, Meradyce ensinou Gunnhild a respirar de forma a aliviar a dor e depois insistiu para que ela andasse.

     Depois de ajudar Hamar a levantar a esposa, Einar dirigiu-se apressadamente para a porta quando ouviu a voz da mulher saxônia, autoritária como a de um comandante viking.

     - Preciso de um galho roliço para massagear as costas dela, Ache um e me traga.

     Einar obedeceu sem protestar.

    

   A madrugava começava a raiar e Einar continuava sentado em frente à casa de banhos, tentando não ouvir os gritos de Gunnhild.

     Ao seu lado, Hamar bebia em silêncio, sem notar o frio e a umidade do vento matinal.

     Einar não tocara a bebida porque sabia que nada o ajudaria a esquecer a última vez em que se sentara do lado de fora da casa de banhos em uma situação semelhante. Da outra vez, os gritos tinham sido o nascimento de sua filha. Quando tudo terminara, sua esposa estava morta.

     As suas recordações foram interrompidas pela aparição de Meradyce à porta, chamando-o para ajudá-la. Ele a obedeceu embora preferisse enfrentar um exército inimigo a participar de um parto!

     Na verdade, a jovem saxônia queria apenas que ele avisasse Gunnhild que a criança estava nascendo. Tão logo transmitiu as orientações de Meradyce, Einar correu de novo para fora da casa de banhos e sua saída intempestiva assustou Hamar.

     - O que aconteceu? Como está Gunnhild?

     Naquele instante o choro de uma criança se ergueu na madrugada silenciosa. Einar e Hamar se entreolharam, surpresos, ao ouvir também o riso alegre das duas mulheres.

     Os dois entraram na casa de banhos e logo após olhar para o recém nascido, Einar puxou Meradyce pelo braço, conduzindo-a para fora.

     - Agora o pai examinará a criança e, se ela for perfeita, a erguerá do chão.

     - E se não for? - perguntou ela, perplexa.

     - Então, ele a jogará ao mar.

     - Mas... é uma barbaridade...

     Meradyce foi interrompida pela aparição de Hamar à porta da casa, com o filho nos braços.

     - Eu tenho um filho homem, Einar! Essa mulher saxônia é um presente de Freyja para nós! Gunnhild não para de elogiá-la dizendo que ela é muito melhor do que a velha Helsa! Minha esposa sabe o que fala porque sempre esteve presente ao nascimento de seus irmãos e irmãs.

     Einar sorriu, encantado com a felicidade do meio irmão.

     - Einar? - insistiu Hamar. - O que você pretende fazer com ela?

     - Não é da sua conta.

     Os dois irmão se fitava, irritados, quando Meradyce se aproximou deles e mandou que Hamar voltasse para junto da esposa. Ela estava exausta e, subitamente, sentiu que sua visão se escurecia e suas pernas já não a sustentavam.

     Einar a segurou nos braços antes que Meradyce caísse ao chão.

     Carregando-a, atravessou a aldeia adormecida e ela não resistiu ao prazer de ser envolvida pela força daquele homem a quem devia temer como um inimigo.

     Ela sabia que não teria mais forças para lutar.

    

     Ao entreabrir os olhos, Meradyce percebeu, aliviada, que o viking estava sentado do outro lado do aposento, bem longe da cama onde ela dormira.

     - Você está com fome?

     Ela encarou o homem que agora sabia chamar-se Einar. À luz tremulante da lamparina de óleo, Meradyce notou que ele trocara de túnica e o tecido macio de lã moldava seu peito musculoso. Calças de camurça macia acentuavam as penas longas e fortes.

     Sem palavras, Einar indicou que ela se sentasse em um banco junto à rústica lareira. Meradyce levantou-se da cama, agradecendo aos céus por estar vestida.

     De um armário de madeira antiga e brilhante, ele retirou uma garrafa de vinho, pão e queijo. Dando-se conta da intensidade de sua fome, Meradyce agarrou a comida que Einar lhe oferecia, sentindo as forças retomarem a cada bocado.

     Olhando à sua volta, ela examinou a cabana do viking, a típica moradia de um guerreiro. Havia armas por toda a parte, penduradas nas toras do teto, jogadas ao chão de pedra que não era varrido há muito tempo e em cima dos poucos móveis. Tapeçarias ricas cobriam as paredes, mas estavam quase cobertas de poeira e só a cama parecia ter sido usada.

     Dois enormes cachorros permaneciam imóveis junto da porta, os cães mais feios e assustadores que Meradyce já vira, fitando seu dono com um olhar de intensa devoção canina.

     Por um instante, ela pensou em se apoderar de uma das armas que jaziam aos seus pés. Embora cansada, talvez tivesse forças para usar um punhal que sabia manejar bem, pois não seria a primeira vez que se defenderia de um homem lascivo.

     Entretanto o que faria se conseguisse escapar daquele viking? Teria a sorte de resgatar as crianças sem ser aprisionada? E depois? Para onde iriam os três se nem sequer sabiam onde estavam exatamente?

     Não, de nada adiantaria se precipitar. Teria de esperar, submetendo-se às humilhações que já previa, até descobrir um modo de retomar ao lar.

     Eivar a observava, sem entender o que estava acontecendo com ele. Não agira como um guerreiro ao servi-la de comida e bebida. Pensando bem, também não se comportara com nenhum sinal de coragem ao fugir da casa de banhos enquanto Gunnhild estava dando a luz. Afinal, era um moleque ou um homem maduro?

     Ele esvaziou mais uma caneca de vinho. Aquela era a mulher mais linda que encontrara em toda a sua vida, com um corpo ainda mais ardente e sensual do que o de Ingemar. Por que ainda não a despira, levando-a para a cama a fim de satisfazer a ânsia de tocar as curvas que apenas tocara. Por que não a possuíra como qualquer outro guerreiro viking já o teria feito há muito tempo?

     Aquela mulher lhe pertencia, era sua propriedade e podia usá-la da forma que lhe aprouvesse! Devia estar ficando fraco e covarde, pois os sentimentos de uma cativa não deveriam incomodá-lo.

     Jogando longe a caneca de estanho, Einar se levantou da banqueta junto à lareira. Os cães também ergueram as cabeças, à espera de uma ordem do dono e a mulher hesitou, parando de beber o vinho.

   - Largue a caneca - ordenou ele, sem tirar os olhos dos lábios cheios ainda mais rubros por causa do vinho.

     Ela não fez o menor movimento.

     - Eu disse para largar a caneca.

     Einar falou com o tom de comando que usava a bordo dos navios, levando guerreiros empedernidos a estremecerem de medo e obedecerem num piscar de olhos. A mulher continuou imóvel, sem largar a caneca de vinho.

     Com um gesto rápido, ele arrancou a caneca das mãos de Meradyce, jogando o frágil objeto com violência de encontro à parede.

     - Quando eu lhe der uma ordem, quero que obedeça imediatamente!

     Erguendo-a da cadeira, Einar a tomou nos braços e a beijou com avidez.

     Meradyce não reagiu nem lutou, permanecendo imóvel nos braços dele. Afastando-se um pouco, Einar notou que os olhos dela estavam fechados e úmidos. Aquelas lágrimas o enfureceram.

     Os guerreiros vikings pouco se importavam com os sentimentos de escravas que deviam se dobrar aos seus caprichos sexuais. Uma única vez na vida, Einar entregara seu coração a uma bela mulher, tratando-a como se fosse uma princesa e o resultado fora desastroso!

     Não, ele não cometeria o mesmo erro e trataria sua bela cativa como se fosse unicamente um corpo feito para lhe dar prazer. Dominado pelo desejo, rasgou o vestido de Meradyce com um gesto violento e então se afastou para admirar as curvas que apenas tateara.

     Ela continuou imóvel, sem tentar cobrira corpo nu, e de seus olhos fechados escorreu um lágrima.

     Eivar ignorou a lágrima, fascinado com o que via. A pele daquela mulher era alva como o leite e chegava a ter o brilho perfeito da madrepérola. Meradyce lhe pertencia e a beleza sensual dos seios amplos, dos quadris docemente arredondados e das pernas longas estava além da imaginação de qualquer homem. Ele teria o privilégio de despertar a paixão de uma deusa nascida para a volúpia.

     O desejo que se apoderara dele ao encontrá-la na aldeia saxônia se transformou em uma chama voraz e, incapaz ele resistir, carregou-a para a cama. Forçando-se a ignorar o terror nos olhos da mulher, tentou convencer-se de que estava apenas agindo como um verdadeiro guerreiro.

     E, no entanto, não queria tomá-la por força. Meradyce era uma beldade única e, acima de tudo altiva e orgulhosa. Não podia violentá-la porque ansiava por ouvi-la gemer de prazer em seus braços, mas ...

     Com gestos bruscos, ele começou a se despir.

     - Einar!

     Praguejando, ele jogou a túnica ao chão e se encaminhou para a porta da cabana.

     - Einar! - repetiu Svend, entrando sem esperar que o filho atendesse à porta.

     Os dois viram que a cativa se cobria com uma das peles jogada sobre a cama.

     - Terei chegado tarde demais, filho?

    Einar não respondeu ao pai.

     - Hamar e Gunnhild acham que esta mulher deve ser recompensada, Einar. Disseram-me que é uma parteira de grande habilidade e me pediram para devolver-lhe a liberdade. Afinal, desde a morte da velha Helsa, não temos ninguém que entenda de remédios ou de partos, portanto concordei com eles.

     Einar deu um passo em direção ao pai, com intenções de argumentar. Aquela mulher lhe pertencia! Ele a encontrara e, contrariando as ordens recebidas, a trouxera para a aldeia.

    - Ainda bem que você concorda, filho - prosseguiu Svend, ignorando as intenções do filho e sem dar-lhe tempo para protestar. - Sei que lngemar vai me agradecer por essa atitude.

     Svend caminhou de volta para a porta e então se deteve, voltando-se ainda uma vez para o filho.

     - Vou torná-lo responsável por ela, Einar. Uma beldade tão fascinante precisa da proteção de um homem, concorda? Se eu não o conhecesse tão bem, exigiria que se casasse com ela, mas sei que você preferiria cortar o seu próprio pescoço a ter novamente uma esposa, certo? - Svend deu um sorriso em que se mesclavam malícia e melancolia. - Ninguém pode viver sozinho e ser feliz, filho. Se mudar de idéia a respeito do casamento, me avise. Caso isso não aconteça, proteja-a para que não seja molestada, pois precisamos das habilidades dessa mulher.

     Entreabrindo a porta, Svend virou-se para o filho e o fitou uma indisfarçável autoridade.

     - E nunca mais desobedeça minhas ordens, entendeu?

     Einar franziu a testa, contrariado. Devia ter previsto que o pai encontraria um modo de puni-lo pela desobediência!

     Talvez fosse melhor assim. Ele tinha Ingemar para inf1amar seus desejos e esquentar sua cama sem ameaçar sequer tocar seu coração.

     Meradyce acompanhava a cena, sem entender o que os dois homens discutiam. O mais velho teria vindo também para possuí-la? Ou se arrependera da decisão de dá-la a Eivar e pretendia voltar atrás?

     Puxando a pele que cobria sua nudez até quase o queixo, Meradyce reconheceu seu engano em acreditar que o gigante viking de cabelos prateados fosse diferente dos outros. E, no entanto, ela a olhara com respeito, não a forçara a nada antes de trazê-la para sua cabana!

     O homem mais velho foi finalmente embora e Einar se aproximou da cama com uma expressão estranha no rosto tenso.

     - Você está livre.

     Ela o fitou, sem acreditar no que ouvira.

     - Você está livre - repetiu Einar.

     Sem esperar pela reação dela, Einar começou a apanhar a caneca e as roupas jogadas ao chão.

     - Svend concedeu-lhe a liberdade por sua habilidade em ajudar Gunnhild durante o parto.

     - É mesmo verdade?

     - Eu nunca minto - replicou ele, encarando-a com um olhar gelado.

     - Então... posso partir? Ir embora?

     - Pode ir embora da minha casa, é claro.

     - E desta aldeia?

     - Para onde está pensando em ir? - perguntou ele, perplexo.

     - Quero voltar para a minha aldeia.

     Einar deu uma gargalhada ríspida e impertinente.

     - Como pretende pagar pela viagem, mulher? Ainda que tivesse meios, nem um único viking poria seu navio em perigo, arriscando-se nos mares nesta época do ano.

     - Talvez eu consiga reunir o preço da passagem, tenho muitos talentos.

     - Não me resta a menor dúvida - zombou ele.

     Meradyce desviou o rosto para ocultar seu rubor de embaraço diante do tom ofensivo das palavras de Einar.

     - Reunirei o dinheiro de nossa passagem. Quanto costumam cobrar?

     - Nossa passagem?

     - Lógico, a minha e a das crianças.

     - As crianças ficam.

     - Como? - Ela o fitou, horrorizada.

     - Vamos pedir um resgate pelos dois.

     - Pois eu não vou à parte alguma sem elas! - declarou Meradyce, erguendo o queixo num gesto de desafio.

     - Mas elas não são suas.

     - Não importa. Betha e Adelar estavam sob minha proteção e, enquanto não forem devolvidas aos país, continuam a ser minha responsabilidade.

     Einar calou-se enquanto vestia a túnica e só então se manifestou, sem olhar para Meradyce.

     - Admiro a sua lealdade, mulher.

     Ela já fora lisonjeada vezes sem conta, por inúmeros homens, mas nunca se sentira tão orgulhosa de um elogio como naquele momento. De alguma forma, tinha certeza de que Einar jamais desperdiçava palavras e também que a lealdade era uma das qualidades mais admirada por aquele guerreiro viking.

     Imediatamente, Meradyce censurou-se por se afetar com a opinião daquele homem. Só era importante descobrir um modo de ir embora daquele lugar, levando consigo as crianças!

     - Você pode ficar na casa de minha mãe, onde já estão as crianças. - Ele a fitou com um sorriso malicioso. - Vai continuar ocupando a minha cama, mulher? Eu não me recusarei a lhe fazer companhia.

     Enrubescendo, Meradyce saltou da cama, sempre agarrada à coberta de pele. O que iria usar para cobrir sua nudez se o vestido estava rasgado de cima a baixo?

     Einar se dirigiu a uma das várias cômodas encostadas à parede e retirou da gaveta um dos vestidos mais lindos que Meradyce já vira, de veludo cor de vinho e com bordados em ouro junto ao decote e nos punhos.

     Meradyce sentiu-se como se estivesse delirando. Num momento, quase morria de medo daquele selvagem de cabelos brilhantes e prateados prestes a violentá-la, no outro, recebia um presente magnífico além da liberdade!

     Einar não escondera que a desejava muito e, no entanto, a deixava sair daquela casa sem tocá-la. Rasgara seu vestido e agora lhe dava uma roupa digna de uma rainha.

     Depois de remexer em uma outra gaveta, ele retirou um corpete de linho bordado e um cinto de argolas de ouro.

     - Quando você estiver pronta, eu a levarei para a casa de minha mãe.

     Ao constatar que ele pretendia permanecer sentado junto à lareira para vê-la se vestir, Meradyce esforçou-se para consegui-lo sem largar a coberta de pele.

     - Você é mesmo uma mulher de muitos talentos - brincou ele, sem desviar os olhos do corpo que apenas entrevia entre as dobras da coberta.

     Com o máximo de rapidez possível, ela terminou de se vestir.

     Cada momento que passasse a sós com Einar naquela cabana, significava um perigo maior.

     - Nenhum homem pode tocá-la sem que você lhe dê sua permissão. Se isso acontecer, deve me comunicar imediatamente. Svend a colocou sob minha proteção e costumo levar minhas responsabilidades muito a sério.

     Surpresa, Meradyce fitou o guerreiro de olhar frio que a esperava junto à porta. Até que ponto poderia confiar na palavra dele?

     Completamente! Ela sabia, com a mais profunda certeza, que aquele homem a defenderia com a própria vida. Apesar de ser um selvagem, Einar a respeitava muito.

     Aproximando-se dele, ela hesitou em passar junto dos cães que guardavam a porta e rosnavam baixinho.

     - Não tenha medo. Eles não atacarão ninguém a não ser que eu dê uma ordem a esse respeito.

     Incapaz de resistir à vontade de provocar aquele homem perturbador, Meradyce aproximou a mão lentamente na direção do focinho de um dos cachorros enquanto murmurava palavras carinhosas. Os dois animais se acalmaram e, depois de uma ligeira hesitação, lamberam a mão dela.

     Disfarçando a surpresa, Einar saiu da cabana sem olhar para trás.

     Meradyce o seguiu, rindo e agradecendo a seu pai que a ensinara a lidar com qualquer animal.

     Quando os dois se aproximaram da casa da mãe de Einar, as duas crianças saíram correndo ao encontro de Meradyce.

     - Ela vai ficar com você e Endredi, mãe - explicou Einar. - Svend lhe concedeu a liberdade por ter ajudado o parto de Gunnhild.

     - É verdade, filho? - Olva não escondia a alegria.

     - E a colocou sob minha proteção - resmungou ele, nitidamente aborrecido.

     Então, Einar se afastou, mas antes de chegar à rua de terra, virou para trás e encarou Meradyce.

     Por um instante, ela sentiu que o ar faltava em seus pulmões. Os olhos de um cinza prateado refletiam uma ânsia indefinida, uma tristeza inexplicável e tanto desejo! Ela só vira algo semelhante no dia em que Paul se despedira dela para sempre.

     Impossível! Tinha de ser apenas sua imaginação!

     Amara Paul e este homem era um inimigo que a roubara de casa, trazendo-a para uma aldeia gelada e hostil nos confins do mundo. Como podia comparar os dois homens?

     Mas Einar poupara as crianças e não a violentara como teria acontecido se caísse nas mãos de qualquer outro guerreiro.

   Não! Acima de tudo aquele homem era um viking, um selvagem!

     Precisava ignorar suas emoções indisciplinadas e vê-lo como realmente era, um inimigo perigoso!

    

     Meradyce abriu os olhos, mas custou para se localizar. Aos poucos, lembrou-se que estava na casa de Olva e recordou os terríveis acontecimentos dos últimos cinco dias. Tanto acontecera em tão pouco tempo! O ataque à sua aldeia, a apavorante viagem marítima, os homens assustadores, o guerreiro viking.

     É evidente que ela imaginara aquele olhar do selvagem viking.

     Chegava a ser um sacrilégio encontrar qualquer semelhança entre um bárbaro sem alma e o doce e adorável Paul!

     Doce, jamais fraco. Na verdade, Paul fora forte demais, imbuído de um poder interior que lhe dava coragem de negar o amor que ambos sentiam porque fizera um voto de castidade, a fim de ser o mais parecido possível com São Paulo. De nada adiantara mencionar uma longa lista de padres que haviam se casado.

     - Fiz um voto e o manterei - havia dito Paul pouco antes de deixá-la, fitando-a com um olhar especial onde se mesclavam desejo incontido, determinação férrea e a tristeza da renúncia por ter de seguir o caminho necessário para cumprir o destino no qual acreditava.

     Paul nunca quebrou seu voto até a morte.

     Não. É claro que o viking não tinha nada a ver com Paul. Um era de ferro. O outro de ouro. Um era pagão, primitivo e lascivo em seus apetites carnais, o outro era um santo, espiritual em sua abstinência e privação.

     Apesar da clareza de seu raciocínio, Meradyce sentiu o sangue correr mais rápido nas veias ao relembrar o guerreiro seminu que a fitava com um desejo incontido e envergonhou-se de sua fraqueza.

     Tentou relembrar os doces olhos azuis de Paul e só conseguia ver olhos de um cinza prateado, perigosos e desafiantes.

     Inquieta e sem sono, ela virou-se de lado na cama e percebeu que Betha não estava mais ao seu lado. Então, ao sentar-se, viu Endredi, a filha do viking, preparando a comida em um enorme caldeirão suspenso em um ferro sobre a lareira.

     - Onde estão as crianças? - perguntou Meradyce, levantando-se apressadamente da cama.

     A jovem Endredi devia ter a mesma idade de Adelar, mas sua postura ereta e gestos calmos a faziam parecer mais velha.

     - Olva os levou para verem as cabras que ela ia ordenhar.

     - E que horas são?

     - Quase meio dia.

     Surpresa, Meradyce deu-se conta de que dormira por muitas horas e, pela primeira vez desde o dia do ataque à aldeia, sentia-se plenamente repousada. Também percebeu o quanto estava com fome quando aspirou ao apetitoso aroma de comida que se espalhava pela casa.

     - Quer comer? Temos um ensopado.

     - Sim, eu adoraria. O cheiro está maravilhoso!

     Endredi não sorriu para agradecer o elogio de Meradyce e, com gestos precisos e cuidadosos, encheu uma tigela de ensopado e a colocou na mesa rústica em frente à lareira.

     Meradyce não perdeu tempo e logo reconheceu que poucas vezes comera um ensopado tão bom. O julgamento positivo não era provocado pela fome, pois a carne estava macia, o caldo espesso e o tempero era picante e suave ao mesmo tempo.

     Depois de tapar o caldeirão, Endredi sentou-se diante de Meradyce, observando-a com o mesmo olhar firme e alerta do pai.

     Meradyce disfarçou o embaraço e continuou a comer como se nada estivesse acontecendo. Ocasionalmente, também olhava para a jovem, procurando alguma semelhança entre pai e filha, sem muito sucesso. Os olhos de Endredi eram verdes e não cinzentos, seus cabelos tinham uma tonalidade mais ruiva do que prateada e o rosto redondo não apresentava qualquer semelhança com o de Einar, mais longo e fino.

     Não era uma adolescente bonita, mas os traços fortes seriam muito atraentes quando Endredi se tornasse uma mulher.

     Ao terminar de comer, Meradyce entregou a tigela a Endredi, com um sorriso de agradecimento.

     - Muito obrigada. Estava maravilhoso.

     Endredi devolveu o sorriso e Meradyce teve certeza de que recebera um presente especial, pois aquela garota raramente devia rir.

     Enquanto Endredi lavava a tigela, Meradyce aproveitou para examinar a cabana e seu olhar se deteve em um tear armado junto da porta. O tecido era de um rubro vibrante e um azul intenso e, mesmo de longe, podia-se perceber que o trabalho era de alta qualidade.

     - Minha avó e eu estamos trabalhando juntas - explicou Endredi, notando à direção do olhar de Meradyce. - Ela sabe tecer muito bem.

     - Foi ela que fez o ensopado?

     - Não. Fui eu.

     - Meus parabéns. Você é uma excelente cozinheira e seu pai deve se sentir orgulhoso disso.

     A garota virou rapidamente a cabeça, mas Meradyce teve tempo de notar a mágoa refletida naquele rosto muito jovem.

     Era evidente que existiam problemas sérios entre pai e filha. Meradyce forçou-se a não pensar no assunto que não era da sua conta e só poderia lhe causar aborrecimentos se, como sempre acontecia, acabasse se envolvendo.

     Finalmente Endredi terminou suas tarefas e sentou-se ao lado dela.

     - Gunnhild já veio até aqui duas vezes, procurando por você. Ela quer lhe dar um presente.

     Meradyce sorriu, animada. Talvez o presente pudesse ser trocado por dinheiro, o que a ajudaria a pagar pela passagem de volta!

     - O parto foi muito fácil.

     - Gunnhild não pensa assim.

     - É porque se trata do primeiro filho. Logo ela se esquecerá da dor e desejará ter outro filho.

     - Verdade?

     - Pelo menos, foi o que me disseram.

     Endredi remexia entre as brasas da lareira, sem olhar para Meradyce.

     - Muitas mulheres morrem ao dar a luz?

     Tensa, Meradyce procurou encontrar a resposta certa. Não vira a esposa de Einar em parte alguma e talvez ela tivesse morrido no parto, o que explicaria a pergunta da garota.

     - Às vezes isso acontece, mas não é a regra.

     Ainda sem fitar Meradyce, a garota se ergueu e foi na direção da porta.

     - Fiquei encarregada de levá-la até a casa de Helsa. Meu pai disse que você queria ver os remédios dela.

     - É verdade. Não houve tempo de olhar com mais atenção no dia do parto de Gunnhild, mas tenho a impressão de que ela possuía muitas ervas diferentes. Não existe nenhuma outra parteira aqui por perto?

     - Não.

     - E como Helsa recebia seus pagamentos? Em bens ou em dinheiro?

     Endredi a encarou com uma expressão de perplexidade.

     - Eu pretendo juntar dinheiro e pagar a passagem de volta à minha terra natal - explicou Meradyce.

     - Basta pedir que lhe paguem em dinheiro, mas as mulheres vão se ressentir muito de perder alguém que as ajude.

     - Eu posso ensinar uma delas para que ocupe o meu lugar.

     Embora o maior desejo de Meradyce fosse retomar para sua aldeia, ficaria mais tempo ensinando uma substituta a fim de não deixar as mulheres tão desamparadas, sem a ajuda de uma parteira.

     Ela foi obrigada a interromper sua concentração para seguir Endredi que já saía de casa. As duas cruzaram a aldeia rapidamente e o vento gelado que anunciava o inverno, lembrou Meradyce de quanto lhe fazia falta uma capa.

   Na verdade, o frio a incomodava menos do que a falta de uma proteção sobre o vestido que moldava todas as suas curvas. Os homens a fitavam como se ela estivesse nua. Um deles, o ruivo do navio de quem se lembrava bem, parecia ainda mais insultante com seus olhares lascivos e Meradyce forçou-se a ignorá-lo, andando de cabeça erguida.

     Felizmente, logo alcançaram a cabana de Helsa e, aliviada por estar protegida dos olhares masculinos, Meradyce começou a examinar os potes e as ervas reunidas pela velha curandeira. Para sua surpresa, havia uma quantidade enorme de remédios caseiros vindos dos cantos mais, remotos da terra.

     A julgar pelo que encontrava nas prateleiras, os vikings viajavam até lugares muito distantes porque a maioria das ervas vinha de locais exóticos. Ela não as teria reconhecido se Paul não possuísse os livros mais conceituados a respeito de medicinas caseiras.

     Encostada à porta, Endredi via a jovem mulher examinar cada um dos potes e aproveitou o momento de abstração completa para examiná-la. Ainda não conseguira entender por que seu pai a trouxera para a aldeia.

     Einar nunca se afetara muito com as belas cativas que os outros guerreiros traziam das viagens com o intuito de vendê-las para os mercadores do norte. Ele sempre dizia que escravas dão trabalho demais e menos lucro do que objetos preciosos e portáteis!

     Endredi acreditava que o pai não lidasse com escravas porque Olva sempre lhe contara o quanto sofrera nas mãos de um senhor rico numa mansão de uma aldeia saxônia.

     Por que Einar trouxera aquela mulher para casa?

     Meradyce era esperta, vivaz e seus olhos brilhavam de inteligência e compreensão.

     Também era uma mulher leal e corajosa, que lutara com unhas e dentes para defender as crianças dos captores vikings. Adelar e Betha simplesmente a adoravam!

     Aquela mulher também era bondosa e sem egoísmo. Ela se dispusera a ajudar Gunnhild sem tomar conhecimento da própria fadiga, depois de dias que só podiam ter sido aterrorizantes e exaustivos.

     Gunnhild ficara tão impressionada que a julgava ser uma deusa disfarçada! Só alguém de origem divina conseguiria ser tão forte após tantas atribulações.

     Muito tímida, Endredi aprendera a ouvir e a observar em silêncio.

     Tinha certeza de que seu pai não possuíra aquela mulher. Sempre ouvira os outros guerreiros comentarem que Einar era orgulhoso demais para forçar uma mulher relutante a partilhar sua cama, pois as preferia igualmente ardorosas e participantes.

     Talvez Einar a tivesse trazido porque aquela mulher não o temia?

     Para Endredi, que estremecia diante de um olhar do pai, a coragem de Meradyce era quase sobrenatural!

     Uma exclamação de surpresa trouxe a garota de volta ao momento presente.

     - É maravilhoso! - disse Meradyce, abrindo uma caixa de madeira. - Esta erva é muito rara e preciosa. Só a vi uma vez, no dispensário de um mosteiro!

     Endredi sentiu um calafrio de medo. Sabia o que era um mosteiro, onde os padres saxônios viviam rodeados de luxo. O povo lhes dava grandes somas para que eles fizessem sortilégios potentes, condenando as vítimas às chamas perenes do inferno.

     Assustada, ela tocou o amuleto, preso junto ao seu pescoço por uma tira fina de couro. Era o martelo de Thor e a defenderia de qualquer magia maligna. Não gostaria sequer de se aproximar de alguém que aprendera a usar ervas em um mosteiro, mas procuraria absorver os conhecimentos de Meradyce. Nunca seria uma mulher bonita como a bela saxônia e talvez, se desenvolvesse a arte de curar as pessoas, seu pai deixasse de odiá-la tanto!

     Endredi suspirou, desconsolada. Se os saxões a roubassem, seu pai nem notaria sua ausência. E certamente, não se preocuparia em pagar um resgate!

    

     Durante algum tempo, Adelar conseguiu se interessar pela conversa de Olva que lhes ensinava os nomes de cada uma das cabras. Betha sentia-se plenamente feliz porque adorava qualquer animal e logo encontrara um gatinho que se aconchegara entre seus braços rechonchudos.

     Vendo o sorriso meigo da irmã, ele sentiu ainda mais vontade de estar de volta ao lar. Pelo menos, tentava acreditar que seria bom retomar. Na verdade, as lembranças dos últimos meses não eram nada agradáveis. Brigas constantes, discussões acaloradas no meio da noite, vozes cheias de ódio, acusações, suspeitas e crises de choro da mãe.

     Adelar também não esquecia o desespero de Betha, que tapava os ouvidos ou, quando era possível, corria ao encontro de Meradyce. Como ele também acabava por fazer.

     Meradyce era sua amiga e enfermeira, seu conforto de todas as horas e desejava tê-la salvado dos vikings mais do que amava sua própria vida. Não conseguira e, embora ela agora estivesse livre, Adelar não confiava na palavra daqueles selvagens. Teria de continuar alerta para protegê-la de todos os perigos.

     Esperava que sua mãe não estivesse muito desesperada. Ela devia saber que aqueles bárbaros eram gananciosos e jamais os matariam enquanto houvesse esperanças de abocanharem um belo resgate!

     Certamente seu pai pagaria qualquer quantia para tê-los de volta ao lar. Para salvar os três.

     Outras mulheres vieram se juntar a Olva e todas sorriam para Betha. Adelar tentou entender o que diziam, mas o dialeto daqueles selvagens era quase gutural e sua atenção se dispersou.

     Ele caminhou até o muro de pedras que limitava o pasto. Logo adiante, ficava um bosque de pinheiros, não muito fechado, onde se via o início de um atalho de relva pisada.

     Dois homens, carregando arcos e flecha, seguiram pela trilha e desapareceram entre os pinheiros. Adelar se surpreendeu com o uso daquela arma, pois seu pai sempre lhe dissera que os vikings só combatiam com machados e longas espadas.

     Será que iriam praticar tiro ao alvo? Ele olhou pelo canto dos olhos para Olva, que continuava ordenhando as cabras e conversando com as outras mulheres. Betha dava leite ao gatinho, completamente absorta com o encantador animal, portanto ninguém notaria sua ausência.

     Sem perda de tempo, Adelar pulou o muro de pedras e seguiu os dois homens para dentro do bosque. Depois de percorrer a trilha por alguns metros, escondeu-se atrás do tronco de um pinheiro bem na fímbria de uma ampla clareira.

     Vários homens estavam reunidos, segurando os arcos sem qualquer desenvoltura. Um deles atirou e Adelar avistou a árvore que lhes servia de alvo. Ele escondeu um sorriso ao notar que a maioria das flechas caíra junto às raízes do pinheiro.

     Subitamente, ele foi agarrado pela túnica e erguido do chão.

     - Ora, ora! O que temos aqui?

     Era Einar e ele não parecia estar bravo e sim se divertindo com a situação. O problema era que Adelar odiava que rissem dele!

     - Seus amigos são péssimos arqueiros.

     - Eles não estão acostumados a atirar com arco e flechas.

     - Esse tipo de arma só serve mesmo para caçar - prosseguiu o garoto, com uma expressão de desprezo.

     - É mesmo?

     Adelar nunca pensara em arcos e flechas como arma, pois os nobres de sua terra só os usavam para o esporte da caça. Agora se dava conta de que aquele selvagem devia ter outras idéias a esse respeito.

     E talvez o viking estivesse certo! Numa batalha, não importava ser nobre ou plebeu e sim vencer!

     - Quer se juntar a nós? - convidou Einar.

     Ele aceitou o convite, feliz por estar se reunindo aos homens da aldeia em vez de ficar entre as mulheres e também por ter visto que o viking não o considerava apenas um garoto.

     Ao alcançar o grupo reunido na clareira, Adelar forçou-se a ignorar os olhares hostis dos guerreiros. Tinha certeza de que apenas suportavam sua presença porque havia sido trazido por Einar.

     - Se quiser... - Einar lhe entregou um arco que tirou das mãos de um de seus homens - pode tentar...

     Os outros vikings começaram a rir quando viram Adelar examinar o arco e se preparar para atirar. O garoto mirou cuidadosamente o alvo, determinado a acertar. O sucesso naquele momento era importante demais para ele.

     A flecha acertou o centro do tronco e Adelar sorriu, sem conter a alegria. Sabia que fora abençoado com uma pontaria perfeita e um braço forte, mas nunca se sentira tão feliz por ter essas qualidades como nesse momento.

     - Meus parabéns, jovem saxão - cumprimentou Einar, com respeito e não zombaria na voz grave.

     Adelar estendeu o arco, muito bem feito apesar dos vikings não usarem tradicionalmente essa arma, com o intuito de devolvê-lo, mas Einar não o aceitou.

     - Fique com o arco, meu jovem. Há apenas uma condição. - Einar sorriu ao ver a expressão perplexa do garoto. - Prometa-me que nunca o usará contra mim.

     Por alguns segundos, Adelar pensou na condição imposta. Aquele homem era um viking, um inimigo de seu povo, que os roubara da aldeia. Entretanto, não ferira Meradyce nem Betha.

     - Eu prometo - declarou ele, com um olhar firme.

     Naquele momento, se formou um vínculo entre os dois, pois Adelar, embora ainda um adolescente, não costumava quebrar suas promessas.

     Subitamente, Betha surgiu entre as árvores e correu para junto do irmão, chorando.

     - O que você está fazendo aqui? Pensei que tivesse se perdido.

     - Cansei de ficar olhando as cabras - disse ele, afastando a mão da irmã de seu braço.

     Olva também chegou à clareira e encarou o filho, com uma expressão interrogativa.

     - Ele juntou-se a nós para praticar arco e flecha. Eu o convidei.

     Se Olva se surpreendeu com a atitude de Einar, sua expressão não revelou nenhuma emoção enquanto ela puxava a pequenina Betha de volta para a trilha.

     - Vamos cuidar de nossos afazeres, querida. Adelar ficará com Einar, entre os homens.

     Betha permitiu que Olva a reconduzisse de volta. Tinha certeza que Adelar estaria a salvo junto de Einar. Embora ele fosse um viking, era um bom homem. Desde muito cedo, ela descobrira que possuía o dom intuitivo de saber se as pessoas eram boas ou más e nunca se enganava.

     Também percebera que aquele homem de olhar aparentemente frio tinha algumas semelhanças com Meradyce, como se ambos se sentissem tristes ou solitários.

     Quando ela intuía que Meradyce se sentia assim, logo encontrava uma desculpa para abraçá-la carinhosamente.

     Betha não acreditava que alguém abraçasse Einar.

     - O que você acha disso? - perguntou Ull, olhando para o jovem saxão ao lado de Einar.

     - O garoto sabe atirar bem e tem boa pontaria - respondeu Siurt.

     - É porque estamos usando uma arma feita para crianças - resmungou Ull. - Nenhum viking de verdade as usaria! Você luta de longe, sem ver os olhos do adversário.

     - É, você tem razão.

     - Isso é o de menos - insistiu Ull. - Reparou como Einar gosta desse garoto?

     - Talvez seja porque ele não tem nenhum filho homem.

    - O que é muito bom. - Ull aproximou-se mais de seu irmão mais novo. - Um de nossos problemas é que Svend teve filhos homens demais.

     - Einar ainda não decidiu a se tornar nosso chefe?

     - Não. Os homens o seguiriam cegamente, pois sabem que Hamar é muito fraco e Svend já passou da idade de comandar. Os outros herdeiros são ainda meninos. Todos confiam na liderança de Einar e até eu o aceitaria.

     - Mas ele não quer assumir o lugar do pai.

     - Então... - Ull lançou um olhar significativo a Siurt - um outro deve tomar essa posição.

    

     Depois de encher uma cesta com medicamentos, Meradyce e Endredi saíram da cabana de Helsa. Ao entrarem na casa de Olva, uma surpresa as esperava.

     Aparentemente, todas as mulheres da aldeia tinham vindo para a casa de Olva! A primeira preocupação de Meradyce foi procurar pelas crianças e logo avistou Betha brincando com um gatinho junto à lareira. Não havia sinal de Adelar.

     Olva surgiu por detrás da cortina de pele que separava seu quarto do resto da casa e abriu caminho entre as mulheres para chegar até Meradyce.

     - Como pode ver, todas as mulheres já ouviram falar de você, Meradyce.

     - Onde está Adelar?

     - Ele ficou com Einar.

     Atônita, Meradyce tentou imaginar por que motivo Einar aceitaria a companhia de um garoto. Embora se julgasse um homem feito, Adelar não passava de um adolescente imberbe!

     Então, lembrou-se de uma conversa entre Kendric e outros saxões, que ouvira por acaso. Eles comentavam as longas viagens dos vikings e, maliciosamente, imaginavam como os guerreiros se divertiam nos longos dias em pleno mar, sem a companhia de mulheres.

     O temor transpareceu em sua expressão e Olva aproximou-se mais dela.

     - Adelar está em perfeita segurança ao lado de Einar, querida.

     Meradyce concordou com um gesto de cabeça, mas preferiu certificar-se, conversando com Betha. Há muito, aprendera a confiar na intuição quase sobrenatural da garotinha em julgar as pessoas.

     - Adelar gosta de Einar - disse a menina, sorrindo. - Ele quis ficar com o viking.

     Finalmente, Meradyce se acalmou e pôde voltar sua atenção para as mulheres. Logo viu Gunnhild que acalentava o filho, com um sorriso de suprema felicidade.

     - Ela veio para lhe agradecer - traduziu Olva - e lhe trouxe um presente.

     Gunnhild trouxera uma linda túnica pregueada, com um decote redondo e mangas longas.

     - Por favor, agradeça a ela por mim, Olva. É um lindo presente.

     Depois de atender ao pedido, Olva voltou-se novamente para Meradyce.

     - As mulheres se sentem muito aliviadas por você estar entre nós. Depois da morte de Helsa, todas ficam muito nervosas quando engravidam.

     - Eu me sentirei feliz se puder ajudá-las.

     Ela se dirigiu para junto de uma mulher muito jovem, quase da mesma idade de Endredi, que torcia as mãos nervosamente.

     A jovem permaneceu imóvel enquanto Meradyce a examinava, tocando o ventre já muito distendido.

     - Asa quer saber se terá um filho homem - perguntou Olva, traduzindo as palavras da jovem.

     - Eu não posso ter certeza, mas a criança está alta e é muito forte. Talvez seja mesmo um menino. - Meradyce, estava mais preocupada com o tamanho da barriga da jovem. - Pergunte-lhe de quantos meses ela está.

     - Asa diz que está com sete meses.

     Agora Meradyce confirmou suas suspeitas. A garota ia ter gêmeos.

     - Diga-lhe que tudo está muito bem, mas ela deve me procurar se sentir algo diferente.

     Meradyce não pretendia assustar a garota antes da hora. Ela parecia estar muito saudável e, freqüentemente, os gêmeos sobrevivem a um parto prematuro.

     - Eu disse a Asa que o irmãozinho de Einar será idêntico a ele. Einar nasceu um mês antes da data prevista e já era muito forte.

     Meradyce disfarçou a surpresa. Como o filho daquela garota, quase uma menina, podia ser irmão de Einar? Então, lembrou-se que os vikings aceitavam o divórcio e tinham várias mulheres ao mesmo tempo.

     Decidida a não perder seu tempo tentando compreender os costumes daquele povo, nem se interessar pelo relacionamento familiar de Einar, Meradyce concentrou-se em examinar as outras mulheres à sua espera.

     Já estava quase anoitecendo quando Meradyce aproximou-se da última delas, que Olva disse chamar-se Reinhild. Ela tivera um bebê depois da morte da parteira e queria saber se estava tudo bem com o garoto e se poderia ter mais filhos.

     Depois de tranqüilizar Reinhild, Meradyce a acompanhou até a porta e viu que Einar se aproximava, carregando um enorme baú, e seguido por Adelar.

     - Ele me deu o arco - gritou o garoto, eufórico. - Disse que eu tenho a melhor pontaria de todos!

     Fingindo se interessar pelo arco, Meradyce fugiu do olhar penetrante de Einar, que a olhava da cabeça aos pés. Ela percebeu que Reinhild desistira de ir embora e acompanhava o encontro dos dois com excessiva curiosidade.

     - Esse vestido é pouco modesto - resmungou ele, colocando o baú dentro da casa. - Você precisa de outras roupas.

     - Eu não me considero responsável pela falta de modéstia desta roupa! Você não me deu tempo de arrumar as malas antes de ser raptada!

     Ela notou a surpresa de Olva, mas não pretendia se distrair do assunto em questão. A culpa toda era de Einar!

     Após ter passado a tarde com as mulheres vikings, chegara à conclusão de que as mulheres eram iguais em toda a parte. Em poucas horas, Reinhild espalharia a notícia de que Einar lhe trouxera um baú com roupas de presente. Mais uma vez, se tornaria o foco de comentários e especulações. Sabia, por experiências anteriores, que não seria poupada.

     - Admito que seja minha culpa. - Einar sorria bem humorado. - E por isso tentarei consertar o meu erro.

     Felizmente, Einar não continuou se explicando e foi embora. Olva recomeçou a tear, mas Reinhild não escondia o choque e Endredi a fitava como se visse algo sobrenatural.

     - Meradyce! - Adelar a puxava pela manga, ansioso. - Eu atiro até melhor do que ele! Não acha incrível?

     - Sim, Adelar que bom para você.

     Embora ela estivesse olhando para o arco em suas mãos, Adelar sabia que os pensamentos de Meradyce estavam longe dali.

     O garoto percebia nitidamente que ela pensava no viking e pouco se importava com a sua perícia em acertar as flechas no alvo!

     O viking não a merecia. Ela era uma mulher saxônia e, embora não tivesse nascido na aristocracia, estava muito acima de qualquer selvagem pagão, ainda que fosse o melhor de todos os guerreiros.

     Além disso, Meradyce era linda, meiga e o amor do adolescente Adelar.

    

     Naquela noite, Einar, Svend e Hamar se reuniram na casa principal, logo após o jantar.

     - Cem peças de prata não são suficientes - declarou Svend, tomando um gole de cerveja.

     - Nós levamos tudo que havia de valor na aldeia, pai - declarou Hamar, em voz baixa. - Vai ser difícil encontrar cem peças de prata.

     - Aquele homem pagou quinhentas peças para se ver livre da esposa - argumentou Svend. - Certamente, pagará mais para ter o filho de volta.

     - Talvez possamos pedir duzentas peças pelo menino e cinqüenta pela garotinha - sugeriu Hamar, sem muita convicção.

     - Ele deve ter parentes ricos. O resgate do garoto deve ser de quinhentas peças e cem pela menina.

     - É muito, pai. Antes um resgate modesto do que nenhum - insistiu Hamar. - Se pedirmos demais, ele pode não se importar em ter os filhos de volta. Afinal, queria que matássemos a sua esposa.

     Pela primeira vez desde o início da conversa, Einar se manifestou.

     - Ele não se conformará em perder o herdeiro. Esse garoto é tudo que um homem pode querer em um filho.

     Svend encarou o guerreiro de cabelos prateados sorriu. Einar era tudo que um homem podia querer de um filho! Ousado e inteligente, ele completava as qualidades de Hamar, prudente e sábio. Após sua morte, os dois tomariam conta de seu povo com perfeição.

     - Quando acha que devemos pedir, filho?

     - Mil peças de prata.

     Svend e Hamar não esconderam o espanto.

     - E se o pai não puder ou não quiser pagar - perguntou Svend - nós matamos o garoto?

     - Não.

     A surpresa de Svend foi apenas fingida, pois, no fundo, a reação do filho o agradava. Por muitos anos, acreditara que Einar não se importasse por não ter um filho. Depois da morte da mulher, que lhe dera a filha, todos esperaram por um novo casamento. Não era segredo que todas as jovens da aldeia sonhavam em ocupar o lugar de Nissa e qualquer uma delas seria uma esposa melhor e mais fiel.

     Nissa fora uma bela mulher, com cabelos dourados e fascinantes olhos verdes. Todos os guerreiros sentiram inveja de Einar quando ele se casou com a mais linda jovem da região. Até ficar claro que ela não pretendia dormir sozinha durante as ausências do marido.

     Talvez por sorte, Nissa morrera ao dar a luz. Um homem orgulhoso como Einar acabaria matando a esposa capaz de traí-lo com o primeiro homem que aparecesse.

     Infelizmente, os olhos de Endredi eram idênticos aos da mãe.

     E agora, Einar mostrava admiração pelo filho de um inimigo! E não era só! Svend tinha certeza absoluta de que o filho desejava ardentemente a bela Meradyce ou não ousaria desobedecer a uma ordem sua.

     Na verdade, Svend teria se decepcionado muito se o filho ignorasse a beleza excepcional daquela mulher e a matasse, seguindo suas ordens. Além de linda, ela era inteligente, talentosa e a mãe perfeita para dar-lhe muitos filhos. A esposa ideal para Einar.

     - E quanto devemos pedir pela menina?

     - Cinqüenta peças.

     - Se o saxão se recusar a pagar, podemos vendê-la para os mercadores. É uma menina bonita.

     - Olva gosta dela, pai.

     Desta vez, Svend realmente se surpreendeu. Einar mal notava a existência da própria filha e se preocupava com a garotinha, querendo poupá-la, embora fingisse ser do interesse de Olva?

     - Está bem - declarou Svend. - Pediremos mil peças de prata pelo garoto e cinqüenta pela menina. Se o saxão não quiser pagar, diremos que as crianças serão vendidas para os mercadores como escravas. - Embora fingindo indiferença, Svend encarou o filho com atenção, antes de fazer a pergunta final. - E a mulher?

     - Ela quer voltar para sua aldeia quando chegar à primavera. Acha que ganhará o suficiente para pagar a própria passagem e assim poderá acompanhar as crianças caso o pai delas pague o resgate.

     - Então precisamos pedir que ela ensine seus segredos sobre o parto a alguma outra mulher, antes de partir. Acho que Endredi seria uma boa escolha.

     - Endredi não passa de uma criança.

     - Ela já é quase uma mulher, Einar - interferiu Hamar.

     - É você quem decide se quer ou não que Endredi aprenda os segredos sobre o parto, filho - prosseguiu Svend, calmamente. - Ou talvez esteja planejando um casamento para ela?

     Svend mal conseguiu controlar o riso diante da expressão chocada do filho. Einar pensava que o tempo não corria?

     - Por acaso, está pensando em dar a mão dela a Ull?

     - Ull? - beirou Einar, levantando-se da mesa num salto.

     Os outros homens, na extremidade da sala, ergueram as cabeças, esquecendo-se de suas canecas de cerveja a fim de ouvir a conversa.

     - Sente-se, meu filho - ordenou Svend, voltando a falar baixo. - Foi apenas uma sugestão e nitidamente mal recebida.

     - Está bem - resmungou Einar. - Concordo que Endredi aprenda as artes da mulher saxônia.

     - Ótimo. - Svend tomou um gole de cerveja para disfarçar o riso solto.

     Ela sabia que Einar só concordaria se a outra alternativa fosse pior e, de acordo com Olva, Endredi era uma jovem inteligente, cheia de compaixão e seria uma excelente parteira.

     - Voltando ao assunto inicial - recomeçou Hamar - quem levará a mensagem do resgate aos saxônios?

     - Einar é o único que fala o idioma deles, portanto deverá ir a Hedeby para negociar. Ainda resta tempo para uma viagem curta antes da chegada do inverno. Procure pelo homem que nos trouxe a primeira mensagem. Ele saberá como levar nossa proposta ao pai das crianças.

     - E se o pai quiser pagar apenas por uma das crianças, mano?

     - Impossível. Ou ele paga pelos dois ou não terá o filho de volta - declarou Einar. - O garoto não partirá sem a irmã.

     - Como pode ter tanta certeza? - perguntou Svend.

     - É o que eu faria se fosse o garoto.

     Einar desviou o olhar do pai e do irmão, cônscio de que ambos estavam surpresos por seu interesse por aquelas duas crianças. Na verdade, ele também não entendia sua própria reação.

     Era verdade que Adelar era um filho que qualquer homem sonharia em ter. Einar admirara a coragem do garoto, ainda na aldeia saxônia, ao defender a mulher e a irmã, vira seus esforços para disfarçar o enjôo a bordo do navio e depois a extrema habilidade em manejar um arco. Naquela tarde, durante o exercício de tiro ao alvo, sentira inveja do senhor saxão e se pilhara ansiando por um herdeiro.

     Durante muitos anos, ele sequer pensara em um filho. Seu casamento fora uma experiência de amargura e dor, portanto, não pretendia se casar de novo. Tivera mulheres sem conta e nenhum dos bebês sobrevivera ao primeiro ano de vida, a não ser Endredi. Com o tempo, endurecera seu coração contra a mágoa e se convencera de que não precisava de um filho.

     Agora sabia que se enganara. Talvez os deuses tivessem lhe enviado esse menino para ocupar o lugar de um filho verdadeiro.

     Mas, no fundo de seu coração, Einar sabia que a verdade era outra.

     Os deuses lhe haviam enviado a mulher digna de ser mãe de seus filhos.

     A chegada do skald encerrou a conversa particular entre pai e filhos. O bardo, cantador de poemas sobre deuses e heróis, tomou seu lugar no centro da sala e os homens se reuniram em volta dele.

     Einar tentava prestar atenção nas histórias do velho e não pensar em nenhum dos três cativos, quando viu que Ull se sentara ao seu lado.

     - Reinhild me contou que você deu um baú de roupas para a mulher, hoje a tarde.

     - Dei mesmo. E ainda tenho dezenas de baús de roupas e jóias para dar à mulher que me aprouver. - Einar voltou-se para Ull, fitando-o com desdém. - Você agora se ocupa com fofocas, o passatempo predileto das mulheres? Não tem nada de melhor para gastar seu tempo?

     - Você pretende tomá-la para si? - insistiu Ull.

     - Talvez...

     Sem saber até que ponto seria prudente provocar Einar, Ull decidiu não ir muito longe ou estaria correndo grandes riscos. Voltou a se concentrar em sua cerveja e na história do velho que contava a aventura do roubo do martelo de Thor.

     Einar também lembrou-se de matar a sede com a forte cerveja caseira. Não era da conta de ninguém se ele dava presentes à mulher saxônia, mas gostaria muito que sua generosidade tivesse ocorrido sem testemunhas!

     Ele era responsável por Meradyce e, portanto, precisava dar-lhe roupas. Não queria que ela percorresse a cidade, como acontecera naquela tarde, com um vestido justo demais. Todos os homens tinham interrompido seus afazeres para admirar as curvas perfeitas do corpo moldado pelo tecido fino.

     Se não queria passara a maior parte de seu tempo protegendo-a de atenções indesejáveis, conforme Svend ordenara, tinha de fornecer-lhe roupas mais adequadas e sóbrias.

     Não previra que todas as mulheres da aldeia fossem estar na casa de sua mãe, embora imaginasse que as grávidas logo procurassem por Meradyce.

     Infelizmente, a lucidez habitual de seu raciocínio desaparecera ao pousar os olhos naquela mulher fascinante.

     Einar olhou à sua volta, desatento à história do bardo. Todos os guerreiros de Svend estavam reunidos sob o teto do líder e algumas mulheres também tinham vindo.

     Ingemar acabara de entrar e aproximou-se dele, para servir-lhe mais cerveja, com os olhos brilhantes de desejo. Então, afastou-se e foi encher a caneca de Lars.

     Ela era uma mulher bonita, de corpo sensual e muito ardente.

     Sem dúvida, a mulher saxônia a superava, pois era a essência da beleza, mas gélida! Meradyce sequer se dignava a encará-la a não ser quando o enfrentava numa briga, como naquela tarde.

     Seus lábios se curvaram num sorriso ao recordar a cena. Os olhos azuis brilhavam de ousadia e ela o enfrentara de igual para igual, desafiando-o como mulher alguma o fizera antes. Só agora Einar percebia o quanto lhe agradava esse tipo de confronto estimulante.

     Então, lembrou a si mesmo que as mulheres servem apenas para satisfazer desejos físicos e era preciso apagar a imagem de Meradyce de sua mente, o mais depressa possível. Tinha de esquecer-se da existência dela!

     Quando Ingemar voltou a se aproximar, provocante e ansiosa por despertar-lhe desejo, Einar a puxou para mais perto e a beijou com ardor.

     - Ah! Ainda bem que você voltou ao normal - murmurou ela,

         Quando seus lábios se afastaram.

     - Voltou tão distante dessa última viagem que parecia dominado por algum duende marinho!

     - Ficarei feliz em lhe demonstrar que continuo sendo o mesmo homem de sempre.

     - Então me convença sem perda de tempo.

     Desesperado por provar a si mesmo que podia esquecer a mulher saxônia e desejar uma outra, Einar segurou Ingemar pela cintura e a levou para fora do salão.

     O skald não gostou de mais uma interrupção em sua história, mas, ao ver que o distúrbio momentâneo fora provocado por Einar, não disse nada. Apenas esperou que o guerreiro levasse sua mulher para fora do salão .

     Suprimindo um suspiro, Lars tomou mais um gole de cerveja enquanto via os dois saindo pela porta lateral. Amava Ingemar e sabia que jamais teria uma oportunidade enquanto ela continuasse obcecada por Einar. Sua paixão continuaria a ser um segredo bem guardado.

     Sentado do outro lado da sala, Ull notou a reação disfarçada de Lars diante da saída de Ingemar nos braços de Einar. Então, ele cutucou o braço de Siurt.

     - Einar devia ao menos aprender a ser mais discreto ou acabará perdendo os amigos.

    

     Meradyce não conseguia conciliar o sono. Acostumada a morar sozinha, ouvia todos os ruídos da casa e até os menores sons a perturbavam, impedindo-a de adormecer.

     Já era muito tarde, mas ela ainda ouvia as vozes e as risadas dos homens na casa principal da aldeia. Ainda não se acostumara com os sons rascantes daquele idioma e o som desafinado das canções lhe parecia o uivo de cães famintos.

     Além dos barulhos das outras pessoas adormecidas, a casa de Olva era muito aquecida. Se fosse bem cuidadosa e não fizesse nenhum ruído, podia se arriscar a sair um pouco para sentir o ar fresco da noite.

     Colocando uma capa sobre a fina camisola de cambraia que encontrara no baú trazido por Einar, ela foi, na ponta dos pés, até a porta e se esgueirou para fora de casa.

     Aparentemente, parte da aldeia estava dormindo e o restante na casa de Svend. A lua, alta no céu, coloria de prateado as casas, criando sombras misteriosas. Descendo por um atalho, Meradyce encontrou uma pedra plana e sentou-se para apreciar a beleza da noite.

     Uma sensação de profunda paz desceu sobre ela. Um pouco além do muro baixo e de pedras, avistava-se um pequeno bosque e, entre as árvores, o brilho do rio que corria para o fiorde.

     Às vezes, até um lugar rústico e gelado tem uma certa beleza. Às vezes, até um homem duro e frio pode ser gentil.

     Ela suspirou, sem saber como decifrar o mistério que era Einar.

     Num momento, parecia odiá-la, no outro trazia-lhe presentes. Admitia que o melhor seria ignorar a existência dele mas, ao mesmo tempo, sentia-se grata por ter um protetor.

     Na verdade, Meradyce conhecia bem a condição de ser dependente da proteção de um homem. Em sua aldeia, tinha sido Kendric.

     Sabia que Kendric a desejava porque ele deixara isso bem claro em inúmeras situações. Como logo após o nascimento de Betha, quando a abraçara a poucos passos do leito onde Ludella repousava do parto.

     A sua reação teria sido bem mais violenta e enfática se ele não fosse o senhor da aldeia. Por força das circunstâncias, apenas se desembaraçara dos braços dele, fingindo que tudo não passara de uma demonstração de felicidade e gratidão pelo nascimento da filha.

     Kendric era o senhor da aldeia e ela não era tola. Os outros homens e até visitantes vindos de locais distantes percebiam o interesse dele e a deixavam em paz.

     Na verdade, sentia-se muito mais segura ao lado de Einar. Kendric não escondia que pretendia cobrar todas as suas gentilezas e concessões, tão logo surgisse uma oportunidade.

     O que teria acontecido se Kendric estivesse na posição de Einar?

   Se ele a tivesse raptado, mantendo-a à sua mercê?

     Meradyce sentiu um calafrio percorrer seu corpo e não por causa do frio. Se a situação fosse o inverso, Kendric não teria demonstrado a menor piedade.

     A grande diferença entre os dois era que Einar, embora um viking bárbaro, a respeitava e Kendric, um senhor saxão e seu compatriota, apenas desejava seu corpo.

     Talvez por isso o tivesse provocado, na frente de Olva e das outras mulheres. Ao vê-lo chegar, decidira ignorar a presença dele, mas fora impossível. Então decidira correr o risco e despertar alguma emoção forte naquele homem distante.

     A surpresa sorridente de Einar durante a discussão tinha valido a pena!

     Mas por que continuava pensando nesse homem? Já se convencera que era mais prudente esquecer a existência dele.

     Embora começasse a sentir frio, Meradyce ainda não estava pronta para retomar e dormir. Olhando mais uma vez ao seu redor para ver se não havia ninguém por perto, caminhou até a mureta de pedras e, saltando-a, aproximou-se da beira do rio.

     A água batia suavemente de encontro às pedras da margem e Meradyce aspirou ao aroma familiar de folhas de pinheiro. Se fechasse os olhos, poderia se imaginar em casa. Naquela tarde, entre as mulheres, também se sentira assim.

     As mulheres eram iguais quando se trata de terem filhos. Querem bebês saudáveis, tentam adivinhar se será menino ou menina, principalmente se é o primeiro parto.

     Felizmente, nenhuma das grávidas apresentava motivos para preocupação, a não ser Asa, a esposa-menina que teria gêmeos. Ela estaria por perto e atrasaria o parto o mais possível, pois encontrara ervas poderosas na cabana da velha Helsa. Tudo daria certo.

     A lua desapareceu atrás de uma nuvem e, diante do frio crescente, Meradyce resolveu voltar para casa. Agora seria reconfortante deitar-se entre as peles ao lado da pequenina Betha e esperar pelo sono que não tardaria.

     Ela refez o caminho de volta e estava se aproximando da casa de Olva quando ouviu sons ofegantes. Seria um cachorro ou...

     Meradyce parou de caminhar, escondendo-se à sombra da casa.

     Os sons ficaram mais nítidos e eram vozes sussurrantes, vozes de um homem e de uma mulher, a voz de Einar.

     Incapaz de resistir à curiosidade, ela esgueirou-se bem junto à parede e chegou à coluna traseira da casa. Então, engoliu uma exclamação de surpresa diante da cena.

     Era impossível não reconhecer Einar. E a mulher, a loira de formas opulentas que o aguardara no cais, estava com as costas apoiadas na parede, o corpete do vestido aberto até a cintura e as saias erguidas, expondo suas pernas longas e roliças.

     Ele mergulhara o rosto entre os seios amplos e a luz do luar iluminava a mão máscula e morena, acariciando as coxas muito brancas.

     Meradyce recuou, com o rosto ardendo de vergonha. Precisava entrar em casa, voltar para a cama!

     A curiosidade, porém, a impedia de tomar a decisão que sabia ser a única correta e decente. Passara a maior parte de sua vida adulta, ajudando crianças a nascer e sabia como eram feitas, mas nunca vira um homem e uma mulher em pleno ato sexual.

     Por uma fração de segundo, imaginou como seria estar nos braços de Einar naquele momento. Ela arrependeu-se imediatamente desse pensamento impuro, mas, ainda assim, inclinou-se de novo para ver os dois.

     As pernas da mulher agora rodeavam a cintura de Einar que se movia ao encontro dela num ritmo primitivo e potente. Os suspiros se transformavam em gemidos de intensa paixão até que a mulher soltou um grito repleto de prazer.

     Com o rosto queimando de vergonha, Meradyce deu um passo atrás e virou-se para retomar a frente da casa de Olva e bateu ao encontro de um homem.

    

     Após satisfazer o desejo, Einar afastou-se de Ingemar que começou a fechar o corpete, com um sorriso igualmente saciado no rosto corado.

     - Você me queria tanto que não pôde sequer esperar até chegarmos à sua casa, Einar?

     - Minha casa era longe demais - brincou ele, com um sorriso malicioso.

     - E não iremos para lá agora?

     - Se você quiser.

     Na verdade, ele não sentia a menor vontade de encontrar Ingemar ao seu lado quando acordasse na manhã seguinte. Entretanto, precisava de alguém que o ajudasse a não pensar na mulher de cabelos negros como a noite.

     Ingemar o fitou com uma expressão quase hostil.

     - Se não quiser que eu vá, diga logo!

     Einar detestava aquele tipo de jogo feminino.

     - É claro que eu quero.

     - Porque precisa de uma mulher.

     Ela também já estava perdendo a paciência com as evasivas de Einar. O tempo passava e chegara a hora de escolher um marido antes que seus encantos começassem a fenecer. Preferia casar-se com Lars, mas ele não era o filho do líder dos vikings.

     Einar era o melhor partido, um amante excepcional e um guerreiro sem par que sempre trazia o melhor saque para casa. Seria um bom marido se alguma mulher conseguisse afastar de sua mente a lembrança das traições de Nissa.

     Sem duvida, ele era arrogante, frio e freqüentemente distante, mas a culpa só podia ser de Nissa!

     Talvez tivesse chegado o momento de avaliar as suas chances de agarrá-lo. Estivera muito perto de convencê-lo a se casar quando ele viajara e voltara com aquela maldita mulher de olhos azuis!

    - Você me quer em sua cama não como esposa, certo?

     A expressão de Einar era fria e indiferente.

     - Eu nunca lhe prometi casamento, Ingemar.

     - Então, só quer se divertir comigo.

     - Como você também quer se divertir comigo, querida. O que acha de aproveitarmos o resto da noite antes de minha partida para Hedeby?

     - As outras mulheres me disseram que você acha a saxônia muito mais bonita do que eu. - Ingemar fez uma careta de amuo, sabendo que assim seus lábios ficavam ainda mais sedutores. - E que deu a ela um baú cheio de roupas lindas.

     Rindo, Einar colocou o braço sobre os ombros de Ingemar.

     - Então, também a devem ter informado que Svend a colocou sob minha proteção. Ela não pode andar nua por ai ou serei obrigado a lutar com todos os homens da aldeia. É uma perda de tempo - ele beijou o pescoço de Ingemar - e prefiro usar meus momentos de lazer de forma mais agradável.

     Convencida de que ainda tinha chances de agarrar o filho do homem mais importante da aldeia por marido, Ingemar se entregou às carícias de Einar.

     - Por que você tem de ir a Hedeby, querido?

     - Para cuidar do resgate.

     - Dos saxões?

     - Sim.

     Aliviada, Ingemar o beijou com paixão. Quando aquela mulher fosse embora, ela voltaria a ser a mais bela da aldeia e a mais ardente na cama, conforme lhe afirmava o próprio Einar.

     Perdida em seus sonhos de casamento, Ingemar não ouviu a tosse baixa às suas costas e só percebeu que havia alguém por perto quando Einar interrompeu o beijo. Os dois se voltaram para Lars que surgira ao lado da casa, com a mulher saxônia.

     Para surpresa sua, Einar sentiu-se enrubescer e afastando Ingemar, aproximou-se da mulher.

     - O que você está fazendo aqui?

     Quando ela não respondeu, Einar repetiu a pergunta a Lars.

     - Eu a encontrei do lado da casa.

     - Ainda bem que foi você e não Ull ou um dos outros - resmungou ele para Lars antes de se virar para Meradyce, com uma expressão de raiva. - Você não percebe a loucura que cometeu ao passear sozinha pela aldeia em plena noite?

     Ele estava realmente enfurecido, mas Meradyce vira sua expressão de culpa ao reconhecê-la e notara o modo como afastara a mulher à sua aproximação. Saber que Einar se sentia embaraçado lhe dava uma estranha sensação de poder.

     - Eu não conseguia dormir como você também não, certo?

     Einar avançou e a segurou pelo braço, puxando-a para bem perto de seu peito musculoso. Como aquela mulher se sentia segura de sua força!

     - Então? - sussurrou ele. - Gostou do que viu?

     Meradyce tentou se soltar das mãos dele, em vão. Então, quando a lua bateu sobre o rosto delicado, Einar viu que ela enrubescera.

     - Eu não vi nada!

     - Mentirosa.

     Quando ele finalmente a soltou, Meradyce quase perdeu o equilíbrio.

     - Nunca mais repita essa aventura insensata. Por sorte, foi Lars quem a encontrou e não algum outro. - Einar voltou-se para Lars. - Leve-a para a casa de Olva, por favor.

     Só depois de se certificar que Lars realmente a havia colocado dentro de casa, Einar puxou Ingemar pelo braço a caminhou para a sua cabana.

     Ele passou a noite tentando se convencer de que não se importava por ter sido apanhado em flagrante, fazendo amor com Ingemar. Apesar das negativas, estava certo que Meradyce os vira.

     E qual era o problema? Ele tinha o direito de fazer amor com todas as mulheres da aldeia se sentisse vontade!

     Talvez ela estivesse imaginando como seria estar em seus braços, gemendo de prazer. Teria pensado, por algum instante, em ocupar o lugar de Ingemar?

     Quando ele se virou para possuir a bela mulher loira que arfava de paixão, manteve os olhos abertos a fim de não esquecer de quem era o corpo que iria satisfazer seu desejo. Ingemar não merecia ser usada de forma tão vergonhosa.

    

     Quase sem perceber, Meradyce começou a sentir-se parte integrante do quotidiano da casa de Olva, embora ainda à margem da vida na aldeia. Atendia as mulheres que precisavam ou queriam sua ajuda, mas passava o resto do dia ajudando a mãe de Einar.

         Betha estava quase sempre ao lado dela, exceto quando saía com Endredi. A garotinha adorava      a jovem nos afazeres da casa e sempre se envolvia por completo em tudo o que fazia.

     Era Adelar quem passava menos tempo junto de Meradyce, procurando cada vez mais a companhia de Einar. No início, ela ficara preocupada, embora não temesse pela segurança do garoto que valia muito mais vivo e saudável. Inquietava-se por não saber por que o viking aceitava a presença de um menino ao seu lado.

     Einar era simpático, generoso e até respeitava Adelar, apesar do garoto ser filho de um inimigo.

     Erguendo a cabeça e deixando de lado a meada de lã que desembaraçava para Olva, Meradyce olhou, para Endredi, ocupada em preparar a refeição da noite. Talvez Einar aceitasse a companhia do garoto apenas porque Adelar era homem. Seria triste se ele preferisse conviver com o filho de qualquer outro homem há passar algum tempo com a própria filha, mas não era um comportamento tão fora do normal.

     O que lhe parecia bastante anormal, era o fato de Einar não ter mais filhos. Sabia que o irresistível guerreiro não sentia a menor falto de atenções femininas e ainda enrubescia ao lembrar-se da noite em que o vira com Ingemar. Por que um homem tão viril só tinha uma filha?

     Talvez ele tivesse outras mulheres e outros filhos em alguma aldeia próxima.

     Subitamente, ela lembrou-se que Adelar fora até o fiorde com Einar, observar os homens que carregavam um dos navios. Quem estaria prestes a partir?

     Naquele instante, Adelar entrou em casa, com uma expressão de nítida curiosidade.

     - Para onde vai Einar? - perguntou ele.

     Meradyce não levantou os olhos do trabalho em suas mãos.

     - Vai para Hedeby - respondeu Olva, parando de fiar.

     Pelo canto dos olhos, Meradyce notou a surpresa de Endredi ao saber da viagem do pai que não partilhava nada de sua vida com a filha. A garota dominou com esforço a mágoa de se sentir rejeitada.

     - E onde fica Hedeby? - continuou Adelar, sentando-se ao lado de Meradyce.

     - A cinco dias de viagem para o sul.

     - É uma cidade?

     - Sim. É uma cidade enorme.

     - Por que Einar vai para lá?

     - Para fazer negócios.

     - E quando volta?

     - Quando voltar. - Olva encolheu os ombros. - É difícil saber, acho que depende dos negócios, do tempo...

     Meradyce tentou manter uma aparência de calma e indiferença.

     - Pensei que estivéssemos perto demais do inverno para iniciar qualquer viagem.

     - Não para Hedeby. Não se trata de uma viagem em mar aberto e sim costeira.

     A grande preocupação de Meradyce não era com os rigores do inverno durante uma viagem. Se Einar ficasse longe por muito tempo, quem a protegeria? Talvez ele deixasse Lars, o amigo em quem visivelmente confiava, na aldeia.

     - Todos os guerreiros irão com ele?

     - Não - Olva fitou Meradyce com um olhar alerta. - Não há razão de ter medo, querida. Ninguém se arriscaria a provocar Einar para uma briga Todos sabem que meu filho leva muito a sério suas responsabilidades.

     Embora Olva fosse a mãe de Einar, Meradyce acreditava em sua capacidade de julgar o filho e os demais homens da aldeia. Certamente, só um louco desafiaria um guerreiro como ele!

     Mas... havia um homem que talvez ousasse...

   - Aquele homem de cabelos vermelhos também vai com ele?

     - Ela está se referindo a Ull - explicou Endredi, enquanto afastava o pão recém saído do forno das mãos de Adelar que tentava arrancar um pedaço.

     - Ah! - Olva franziu a testa, desdenhosa. - Ull nunca vai nesse tipo de viagem, ele afirma que o comercio é pouco digno para um guerreiro de sua importância, mas o motivo é outro. Todos sabem que ele sempre sai perdendo nas barganhas.

     - Seu filho é um bom comerciante ou concorda com a opinião de Ull?

     - Einar gosta de vencer, seja numa batalha, ou em um negócio e teve os melhores professores nessas duas atividades. Se ele fosse menos perfeito em tudo que faz, talvez Ull não o odiasse tanto.

     Finalmente Meradyce afastou o trabalho e encarou Olva.

     - Ull odeia Einar?

     - Talvez eu tenha usado uma palavra forte demais para exprimir a rivalidade entre eles. - Olva recomeçou a tecer. - Os dois sempre competem para obter os mesmos prêmios.

     Olva fitou Meradyce com um olhar de significado inconfundível e a jovem desviou os olhos enrubescendo. Ela não queria ser considerada um premio a ser disputado por dois homens, em especial para dois vikings selvagens. Em momentos como esse, desejava ser insignificante e sem qualquer atrativo.

     - Einar pode vencer qualquer guerreiro - declarou Adelar, confiante. - E eu também posso ir para Hedeby com ele?

     - É claro que não - apressou-se a dizer Meradyce.

     - Por que não?

     - Porque eu preciso de você ao meu lado.

     Aparentemente satisfeito com a resposta de Meradyce, Adelar aproximou-se do fogão.

     - Quando vamos comer?

     Rindo Olva parou de tecer e guardou a lã na cesta.

     - Os garotos são todos iguais. Quando vamos comer? Estou morrendo de fome! - Ela passou a mão nos cabelos de Adelar. - Vamos pedir a Endredi que nos faça um delicioso ensopado de peixe?

     - Oh, não! - Betha os encarou com uma expressão de desalento e murmurou para Meradyce. - Eu detesto peixe.

     - Acho que o ensopado de Endredi deve ser especial. Por que você não experimenta um pouco? Assim não fere os sentimentos dela.

     Betha hesitou, mas Meradyce sabia que ela faria sacrifícios para, não magoar ninguém.

     - Não se preocupe, querida - disse Endredi que ouvira o diálogo sussurrado das duas. - Vou separar um prato sem nenhum pedaço de peixe para você.

     Meradyce sorriu para Endredi em agradecimento, mas a jovem voltara ao trabalho com uma expressão séria.

     Pobre menina! Meradyce soubera, por Olva, que a mãe de Endredi morrera no parto e nada mais. A expressão perturbada da mãe de Einar a impedira de fazer outras perguntas que elucidassem a situação, mas a resposta não era difícil de encontrar.

     Certamente, Einar ignorava a filha porque a culpava pela morte da mãe a quem devia ter amado desesperadamente.

     Meradyce suspirou e Betha correu para junto dela.

     - Você está doente, Meradyce? - perguntou a garotinha, preocupada.

     - Não, querida. Só um pouco cansada.

     Amorosa, Betha envolveu Meradyce num abraço carinhoso.

    

     Einar entrou na taverna de Hedeby e percorreu a sala enfumaçada com um olhar atento. Logo avistou Selwyn, o mercador saxão, em uma mesa de canto. Como sempre, estava com uma transbordante caneca de cerveja na mão e tentando abraçar a mulher que servia as bebidas.

     Os outros freqüentadores, homens vindos de todas as partes do mundo, pararam de beber, jogar dados ou conversar com os amigos, para examinar o gigante viking parado à porta da taverna.

     Ele carregava o machado preso ao braço direito e a enorme espada pendia de sua cintura. A expressão belicosa, acentuada pela pintura negra em torno dos olhos, o tomava francamente assustador.

     Rapidamente, voltaram suas atenções às atividades que tinham interrompido, para não ofender o guerreiro de cabelos prateados com sua curiosidade.

     Einar caminhou até a mesa de Selwyn e sentou-se, colocando o machado bem à sua frente. A garota que servia as bebidas hesitou, sem saber se sentia medo ou atração pelo homem fascinante, mas ameaçador que a encarava.

     - Ah, Einar! - saudou Selwyn, com um sorriso que expunha os poucos dentes que lhe restavam, e empurrou a garota para longe. - Mais tarde, mulher. Agora, tenho que tratar de negócios mais importantes.

     A garota sorriu para os dois, de modo provocante, e se afastou balançando os quadris.

     Selwyn a viu se afastar com um sorriso satisfeito e só então voltou-se para Einar. Ele gostava daquele viking alto e belo como um deus da guerra, tanto quanto um saxão pode gostar de um viking!

     Por um lado, sua fortuna pessoal crescera muito através de negócios com os guerreiros de Svend. Por outro, Einar era um em que ele podia confiar.

     - Então, meu amigo? O que posso fazer por você?

     - Quero que leve uma mensagem ao saxão Kendric.

     - O senhor da aldeia que almeja ser lorde? O senhor da aldeia que um bando de vikings selvagens e bárbaros saqueou e além de raptar seus filhos?

     Einar sorriu diante do comentário. Selwyn tinha seus informantes e soubera que as crianças estavam entre os vikings.

     - Exatamente.

     - Imagino que a mensagem seja a respeito do resgate, certo?

     - Sim.

     - Mas agora? É muito arriscado, estamos no inverno.

     O viking esperou que Selwyn terminasse a ladainha de protestos sem interromper. Quando o saxão fosse informado sobre a quantia do resgate, seria capaz de ir nadando até a aldeia de Kendric: se fosse necessário, a fim de receber sua polpuda comissão por agir como intermediário.

     Finalmente, quando Selwyn julgou que Einar ouvira o suficiente para avaliar a magnitude de sua tarefa, entrou no assunto que o interessava.

     - Quanto estão pedindo de resgate?

     - Mil peças de prata pelo garoto, cinqüenta pela menina.

     Selwyn arregalou os olhos e engoliu em seco.

     - E pela mulher?

     - Nada.

     - Como? - Selwyn não escondia a surpresa. - Acho que está cometendo um grande erro, amigo. Kendric pagaria uma fortuna por ela e...

     Ele se calou ao ver que Einar colocava a mão no machado sobre a mesa.

     - A mulher ainda está viva?

     - Sim.

     - Isso é ótimo. Kendric pagará uma saca de peças de prata por ela.

     - E por quê?

     - Bem, eu ouvi dizer que é a mulher mais linda daquela região.

     - E o que mais?

     - Também é uma parteira de qualidades excepcionais.

     Einar se mexeu na cadeira, inquieto. Era evidente que aquele homem ganancioso estava lhe escondendo informações.

     - Há algo mais, não é? Desembuche logo, Selwyn!

     - É que, são apenas rumores.

     - Que rumores?

     - Dizem que Kendric...

     - O que tem Kendric a ver com a parteira?

     - Dizem que Kendric se interessava por ela.

     - Até que ponto ia esse interesse?

     - Nada de mais, apenas interesse.

     Subitamente, Einar agarrou Selwyn pela túnica e quase o levantou da cadeira.

     - Um homem pode se interessar por seus cachorros ou por seu cavalo. Quero saber até onde ia esse interesse pela mulher.

     Selwyn ficou tão apavorado que Einar não teve dúvidas a respeito da informação que receberia. O mercador saxão era medroso demais para se arriscar a mentir.

     - Ouvi dizer que Kendric a queria como amante e ela o recusou, pelo menos enquanto fosse um homem casado.

     Soltando a túnica de Selwyn, Einar chamou a garota que servia bebida.

     - Mais cerveja.

     - Talvez ela estivesse jogando uma cartada esperta. Kendric é mulherengo e corre atrás de todas as moças bonitas da aldeia e de toda a região, mas dizem que ele logo conseguirá ser um lorde e participar do conselho do rei. Talvez a mulher quisesse inflamar seu desejo antes de ceder.

     - A mulher não vai ser resgatada.

     - Quem sabe você tem razão. - Selwyn ainda estava muito nervoso. - Ela já não deve valer muito, depois do que passou...

     - Chega de falar sobre a mulher - interrompeu Einar. Selwyn encolheu os ombros e terminou de esvaziar a caneca de cerveja.

     - Quando poderá levar a mensagem de resgate a Kendric?

     - É difícil de dizer. Tudo depende do tempo. Alguns navios ainda estão indo para o sul, mas por pouco tempo.

     Einar sabia que Selwyn tentava aumentar o valor de sua comissão.

     - Diga-lhe que iremos na primavera, com as crianças.

     - E eu, Einar? Quanto me oferece pelos riscos que correrei?

     - A centésima porção do resgate.

     - É justo. - Selwyn sorria, satisfeito. - É muito justo.

     - Também diga a Kendric que se arrependerá se houver traição.

     - Tem certeza sobre a mulher, Einar? - perguntou Selwyn, num sussurro de conspirador. - Ouvi dizer que Kendric ficou furioso quando voltou e soube que ela havia sido levada. Acho que vale a pena pedir um resgate, talvez tenha algum valor como boa parteira.

     - Acha que Kendric pagará para ter os filhos de volta?

     - Sem dúvida! É claro que pagará o que lhe pedirem.

     - Como é esse homem?

     Selwyn olhou para a caneca vazia e só recomeçou a falar depois que Einar pediu mais cerveja.

     - Um homem bem rico e ainda mais ambicioso.

     - Que idade ele tem?

     - Mais ou menos a sua. É atraente e um guerreiro hábil.

     - O povo o segue de boa vontade?

     - Bem, Kendric é um homem muito esperto.

     - E o que você ouviu dizer sobre ela?

     - Comentam que é uma mulher muito, muito orgulhosa. Não se mistura com ninguém, talvez por se achar bonita demais, e todos têm um pouco de medo dela. - Selwyn inclinou-se na direção de Einar, com um sorriso lascivo. - Ela continuou altiva quando você a arrastou para o navio pelos cabelos?

     Einar já ouvira o suficiente e levantou-se da mesa.

     - Diga ao saxão Kendric o quanto eu quero pelas crianças. Quanto à mulher, ele a devia ter agarrado enquanto podia. Não vou mandá-la de volta.

     Afastando-se da mesa, Einar caminhou em direção à porta. Tinha certeza de que Selwyn repetiria seu recado, palavra por palavra. Era bom que o saxão acreditasse ter perdido a mulher a quem desejava. Aquele homem traíra o próprio povo e rompera o trato com os vikings, colocando uma sentinela que dera o alarme. Seu castigo seria imaginar a bela Meradyce vibrando de prazer nos braços de outro.

     Seria um pagamento adequado a receber pela traição de Kendric e pelas noites em que ele permanecia acordado, sonhando com a bela mulher. Tão perto e tão fora de seu alcance.

     Einar misturou-se à multidão nas ruas. Hedeby era uma cidade enorme, bem fortificada, cercada por uma muralha que se estendia até Hollingsted, no mar do norte, defendendo-a dos ataques vindos do sul.

     Era uma cidade barulhenta, mal cheirosa e movimentada demais, na opinião de Einar. Detestava lugares assim, cheios de estranhos, ladrões e forasteiros. Preferia a calma bucólica de sua aldeia, onde todos se conheciam.

     Andando rapidamente, chegou à hospedaria onde deixara seus companheiros de viagem. Fora tratar de negócios sozinho, pois era o único confidente de Svend além de saber o idioma saxão. Também preferia evitar confusões em tavernas e os vikings jamais resistem a uma boa briga.

     - Einar!

     Ele virou-se ao ouvir seu nome e avistou um homem de meia idade e corpulento, correndo em sua direção.

     - Meu rapaz! Que bom encontrá-lo! Como vai?

     - Thorston! O que está fazendo ainda em Hedeby? Pensei que já tivesse voltado para casa.

     - Eu também pensei! - Thorston colocou a mão no ombro de Einar, num gesto afetuoso. - Apareceu a oportunidade de comprar uma partida de vinho a um preço excepcional, mas, para isso, eu teria de ficar mais alguns dias nesta cidade infernal. Diga-me como está sua mãe?

     Einar sorriu para o segundo marido de sua Olva. Como a mãe de Hamar antes dela, Olva se divorciara de Svend quando ele trouxera uma nova mulher para casa.

     Ele tinha apenas quatorze anos quando Olva se casara com Thorston, após vários meses de árdua conquista. Sabia que sua mãe realmente amava aquele homem bonachão e de rosto rechonchudo que ficava meses fora de casa em viagens de negócios.

     No fundo, Einar acreditava que ela o aceitara por marido porque continuava a ter sua independência, durante as viagens de Thorston. Quando se reencontravam, era sempre uma ocasião feliz.

     - Ela está bem, mas prepare-se para ser repreendido. Sabe o quanto Olva se preocupa quando uma de suas viagens se prolonga além da conta.

     - Você está ficando na hospedaria de Nils ou no navio?

     - Desta vez, preferi ficar no navio.

     - É uma pena - declarou Thorston, com um sorriso malicioso.

     - Qualquer das filhas de Nils ofereceria, de muito bom grado, um lugar na cama para você.

     - Agradeço sua preocupação por mim, mas elas são magras demais para o meu gosto.

     - Não a mais nova. Ela é redondinha como uma maçã madura!

     - Vou contar a Olva que você sabe bem demais sobre as curvas das filhas de Nils - brincou Einar, mantendo a expressão séria.

     - Por Odin! Eu só estava brincando, Einar! Agora, falando seriamente, tem lugar para algumas caixas de vinho em seu navio? Assim eu posso voltar mais depressa para casa.

     - Quanto você quer dizer com algumas?

     - Vinte ou trinta, talvez quarenta se eu apertar o dono da adega.

     Einar deu uma gargalhada. Se era possível transformar dez peças de prata em vinte, Thorston o faria. Por esse motivo, seu padrasto se transformara em um homem muito rico.

     - Acho que posso dar um jeito. Algo mais?

     - Bem, tenho algumas caixas de especiarias. Não muitas, mas peças de tecido e...

     - Ainda bem que o navio está completamente vazio porque não viemos a fim de comprar nada.

     - Não? Então por que veio a Hedeby?

     - Para uma mensagem de resgate.

     - Verdade? Precisa me contar tudo, mas antes, me diga se Olva está mesmo muito brava comigo porque eu demorei para voltar. Em todo o caso, comprei-lhe um broche bem bonito, o maior que encontrei.

     Enquanto os dois se dirigiam para o porto, Einar falou sobre o ataque à aldeia saxônia e sobre os três hóspedes na casa de Olva.

     Ele evitou mencionar a beleza da mulher saxônio ou confessar o quanto sentira ciúme ao saber que o saxão que a desejava era jovem, atraente e muito rico.

     Enquanto ouvia o relato, Thorston tentava disfarçar sua surpresa.

     Einar trouxera uma mulher para casa! Talvez o viril guerreiro estivesse ficando mais parecido com o pai com a idade, mas ele não acreditava que fosse esse o motivo. A mulher devia ser excepcional!

     Einar continuava a falar, de Olva e da vida na aldeia. Não mencionou Endredi e Thorston o conhecia bem demais para fazer-lhe qualquer pergunta a respeito da jovem.

     Thorston pensara em prender Einar em Hedeby por mais alguns dias a fim de aproveitar o espaço no navio e levar mais mercadorias que precisariam ser ainda compradas. Agora, talvez pela primeira vez na vida, decidiu não pensar nos lucros e voltar o mais depressa possível.

     Tinha de conhecer a mulher de Einar!

    

     Finalmente Meradyce terminou de examinar Asa e sorriu.

     - Está tudo bem.

     - Tem certeza? - lamentou-se a jovem. - Eu estou tão grande. Svend vai imaginar que eu nunca mais emagrecerei.

     - Todas as mulheres pensam assim. Logo depois do parto, você ficará esbelta de novo.

     Apesar de não parecer convencida pelas palavras de Meradyce, a jovem não argumentou mais e se dirigiu para a porta da casa de Olva.

     - Tome cuidado ao andar, o chão está cheio de lama e escorregadio.

     As chuvas finalmente tinham passado, após vários dias de tormentas fortes e ventos frios.

     Meradyce voltou a se ocupar com as ervas que trouxera da cabana de Helsa. Ela estava sozinha em casa, pois todos tinham ido ao porto após terem sido avisadas que um navio se aproximava. Einar ainda não retomara de Hedeby, provavelmente devido ao mau tempo e Olva esperava que fosse a embarcação do filho a se esgueirar entre as ilhas na entrada do fiorde.

     Ela ficara em casa de propósito, para demonstrar a si mesma que pouco se importava com a chegada de Einar. As idas e vindas dos vikings não a interessavam, mas as crianças eram curiosas e não havia mal nenhum em deixá-las ir com Olva e Endredi.

     Alguém entrou na casa e Meradyce virou-se para trás, certa de que encontraria Olva ou Endredi.

     Era o homem de cabelos e barba ruiva que chamavam de Ull. A cabeleira mal cuidada batia-lhe nos ombros e ele parecia grande e gordo demais para a cabana de Olva.

     - O que... o que quer aqui?

         Ele respondeu no próprio idioma com voz baixa e gutural.

     Meradyce forçou-se a encará-lo e observou que ele lhe apontava a barriga e fingia arrotar.

     Ficava difícil não rir. Problemas digestivos. O que aqueles homens imaginavam que fosse lhes acontecer depois de tomarem barris de cerveja?

     De qualquer forma, iria lhe preparar um remédio, uma poção de gosto amargo que a vingaria do desconforto de tê-lo por perto, encarando-a com um olhar lascivo.

     De costas para Ull, Meradyce misturou as ervas em uma gamela e fez sinal para que ele bebesse.

     Ull pegou a gamela, mas se aproximou, falando e encarando-a fixamente.

     Assustada, Meradyce sentiu que o coração disparava de medo. Onde estava Olva? E Endredi?

     Por que Einar viajara e deixara sem proteção?

     Num gesto rápido, Ull agarrou a mão dela. Meradyce ia gritar quando percebeu que ele colocava algo metálico em sua mão. Era um pequeno broche de prata.

     Ela o fitou, sem compreender e Ull continuou a falar.

     Subitamente uma sombra surgiu entre eles.

     - Em nome de Odin! - berrou Einar - O que está acontecendo aqui?

     Ull virou-se rapidamente e deu um sorriso vitorioso.

     - Ela fez um remédio para mim. Quer que me sinta melhor.

         Einar cruzou a sala, tentando não encarar a bela mulher de olhos brilhantes e cabelos negros como a noite. Meradyce o fitava e os seus lábios entreabertos pareciam pedir beijos.

     - Por que está sozinha em casa?

     - Eu não estava sozinha?

     - Foi o que percebi. Eu a avisei para não andar pela aldeia desacompanhada.

     - E eu não estou andando pela aldeia. Ull veio até aqui. O que queria que eu fizesse, o empurrasse porta afora?

     Então ela sabia o nome de Ull? E de quantos mais saberia?

     - Que má sorte esse tempo, Einar. - Ull continuava a sorrir. - Manteve você longe de casa.

     - Agora estou em casa - replicou Einar, controlando a vontade de agredir Ull. Depois, voltou-se novamente para Meradyce. - O que ele queria com você?

     - Eu preparei um remédio para ele.

     Só então Einar notou a gamela nas mãos de Ull.

     - Se já tem seu remédio, pode ir embora, Ull.

     Entretanto, Ull não parecia ter a menor pressa em sair.

     - Como foi a viagem em Hedeby? Proveitosa?

     - A viagem não é da sua conta. Assim como esta mulher também não o é!

     Ull cruzou os braços, disposto a argumentar.

     - Eu estava me sentindo doente e vim à procura dela. Não há mal nenhum nisso, a não ser que você pretenda torná-la sua mulher.

     Einar cerrou os punhos, mas conseguiu manter a voz calma.

     - Você sabe que Svend deu ordens para que esta mulher não seja molestada.

     - E por acaso acha que eu queria molestá-la? Svend não disse que ela não podia casar. Ela daria uma boa esposa.

     - Você já tem duas boas esposas.

     - E quem me impede de ter três? - perguntou Ull, encaminhando-se para a porta.

     - Acho que ela não concordaria. Os cristãos têm só uma esposa.

     - Se ela concordasse em ser minha esposa - Ull deu um sorriso provocador - Eu me divorciaria de Lisa e Reinhild o mais depressa possível. Agora adeus. Vou cuidar dos meus cavalos. Tenham um bom dia.

     Einar permaneceu parado à porta, com os punhos cerrados, esperando que Ull desaparecesse à distância. Então, sentiu o leve toque da mão dela em seu braço.

     Ao virar-se rapidamente, viu que Meradyce recuava, com um olhar assustado. Por que sempre se sentia um bruto perto daquela mulher frágil?

     - O que ele disse?

     - Ull disse que quer se casar com você.

     A expressão de horror no rosto de Meradyce provocou uma alegria intensa em Einar.

     - E eu disse a ele que você não está interessada.

     - Não estou mesmo.

     Ele decidiu desviar o assunto de casamento.

     - Por que ele precisava de um remédio?

     Para sua surpresa e um inesperado prazer, Meradyce sorriu.

     - Ele está com gases.

     Rindo, Einar viu a mulher à sua frente como uma companheira com quem é um prazer partilhar as brincadeiras do dia a dia.

     - Ull vai detestar o remédio - murmurou ela, maliciosamente. - Tem um gosto horrível.

     - Ele merece.

     - E também... - ela calou-se, enrubescendo.

     - O que mais?

     - Terá de ficar do lado da privada.

     Desta vez, Einar não conteve uma gargalhada sonora. Então, notou que ela também ria, sem reprimir uma alegria contagiante.

     Era o som mais lindo que Einar já ouvira e ele parou de rir para ouvir melhor.

     Meradyce também parou de rir e o viu se aproximar. De um minuto para o outro, O clima entre eles mudara. Os olhos de um cinza prateado se escureceram, tomados pelo desejo e ela sentiu-se corresponder à ânsia incontida daquele homem. A paixão dos sentidos, intensa e primitiva, envolveu seu corpo como jamais acontecera antes e com uma violência que a assustou.

     A porta se abriu e Endredi entrou em casa, rompendo a magia que os aprisionara. A jovem percebeu que sua chegada fora inoportuna e parou à porta, embaraçada.

     - Onde você estava? - perguntou ele à filha, com uma rispidez grosseira.

     - Eu... fui até o navio... você não me viu...

     A pobre jovem estava apavorada e Meradyce correu para junto dela, fazendo uma careta de censura para Einar. Não havia motivos para tanta severidade.

     Einar compreendeu que Meradyce o censurava e sentiu raiva dela.

     Já teria se esquecido o medo que sentira com a visita de Ull? Se Endredi estivesse em casa, Ull não ousaria ficar por tanto tempo.

     Ou talvez Meradyce não tivesse sentido medo de Ull, apenas receasse ser descoberta! Como Nissa.

     Naquele momento, Thorston entrou em casa, carregando uma caixa. Ele cumprimentou Einar, que não respondeu, saindo da casa com uma expressão tempestuosa.

     O homem gorducho riu, sem se ofender, e aproximou-se de Endredi e Meradyce. Logo atrás dele, entraram Olva, Adejar e Betha.

     Ele colocou a caixa no chão e abraçou Endredi, carinhosamente, então, encarou Meradyce, examinando-a da cabeça aos pés.

     - Este é meu marido, Meradyce - explicou Olva, com um sorriso terno. - Ele voltou de Hedeby com Einar e já não era sem tempo!

     O gorducho piscou para Meradyce e falou algo que ela não compreendeu.

     - Ele diz que encontrou muitas pechinchas e por isso demorou. - Olva deu uma risada alegre. - Desde que não tenham sido mulheres!

     Aparentemente, Thorston entendera as palavras de Olva, pois voltou-se para Endredi com uma expressão de fingida mágoa e recomeçou a falar sem parar.

     Meradyce afastou-se, sentando-se ao lado de Betha que brincava com seu gatinho no canto da sala.

     Então, esse era o segundo marido de Olva! Ela não imaginara que a mãe de Einar fosse casada de novo. O homem parecia ser agradável, mas a casa ficaria ainda mais cheia.

     Subitamente, Meradyce achou que o inverno ia ser muito longo.

    

     - Você não disse que ela não podia se casar com um de nós! - repetiu Ull, pela décima vez, encarando Svend com o rosto rubro de raiva.

     Svend suspirou, desanimado. Devia ter previsto que uma mulher tão bonita acabaria criando problemas entre os homens. Especialmente entre os descontentes como Ull!

     Ele duvidava que Ull estivesse seriamente interessado em mais uma esposa. Como todos os homens reunidos em sua casa, queria levar a bela saxônia para a cama, mas Svend sabia que o intuito principal era causar uma divisão na aldeia,

     Infelizmente, Ull tinha muitos amigos entre os guerreiros e eles o apoiariam enquanto o problema não fosse mais sério do que a disputa por uma mulher. Pelo menos, faltava-lhe apoio para ajudá-lo a tomar o poder.

     - Svend disse que ela era livre - declarou Einar, ainda muito calmo e sentado ao lado do pai.

     Só agora Svend percebeu que devia ter tomado a saxônia como esposa. Suas duas mulheres mais velhas nem teriam se importado, mas a pequena Asa se desesperaria.

     Ele olhou de soslaio para o filho. A quem Einar pensava estar enganando? Tentava arduamente, e sem nenhum sucesso, discutir a mulher como se fosse um problema legal!

     - Eu não pretendia tomá-la a força - insistiu Ull, irritado porque Svend permitia que Einar respondesse em seu lugar.

     - Não tinha nenhum motivo para ir atrás dela.

     - Sou um homem livre e ela é uma mulher livre. Por que não posso me aproximar dela?

     Svend ergueu a mão pronto a dar o veredicto.

     - A mulher é livre, como afirma Ull. A minha decisão é que, ela pode ser cortejada

     - E eu ainda sou o responsável por ela? - perguntou Einar tenso.

     - Não. Agora, eu sou o responsável.

     Ull não escondeu a surpresa e se calou. A sentença de Svend lhe dava livre acesso à mulher, mas ele o fizera principalmente a fim de provocar Einar.

     Agora, Einar não tinha motivos para se irritar porque não estava mais envolvido e, se Ull a ofendesse, criaria problemas com o senhor da aldeia e não com o filho do senhor!

     Einar esvaziou sua caneca de cerveja, aparentando despreocupação. Não se importava a mínima com os homens que quisessem cortejar a mulher saxônia!

     Então, viu Ull atravessar a sala e não conteve a raiva. Aquele maldito não merecia vencer tão facilmente.

     Parada junto à porta, Ingemar deu um sorriso de satisfação. Agora Einar não tinha mais que tomar conta daquela maldita mulher! Ela estaria por perto e não o deixaria nem vê-la de longe.

     - Chega de discutir mulheres! - berrou Svend. - Onde está o contador de histórias?

     Enquanto o bardo se acomodava, Einar avistou Lars à distância e fez um sinal para que o amigo se sentasse junto dele.

     - Preciso lhe pedir um favor, meu amigo. - sussurrou ele quando Lars se acomodou ao seu lado.

     - Pode pedir.

     - Quero que você corteje a mulher saxônia.

     - Você ficou louco? - perguntou Lars, nitidamente atônito .

     - Não diga que é o único a não achá-la maravilhosa! - brincou Einar, satisfeito por ter encontrado a solução para seu problema.

     - Ela pode até ser a mulher mais bonita do mundo, mas eu não estou interessado em me colocar entre você e Ull.

     - O que quer dizer com isso?

     - Pensa que eu sou idiota, Einar? Você deseja essa mulher.

     - De modo algum!

     - Fique a vontade amigo. Minta para si mesmo, se é o que quer.

     - Não estou mentindo para ninguém. Eu não a quero. Nem ela nem a nenhuma mulher em particular.

     - Por que não me pede para corteja alguma outra de suas mulheres? Ingemar, por exemplo.

     Einar deu uma gargalhada.

     - Não preciso que ninguém me ajude com Ingemar.

     - Então, desista de minha ajuda.

     - Quero que Ull tenha alguém com quem competir. Ele faz um conceito alto demais de si mesmo.

     - Ele não é o Único.

     Chocado com a amargura no tom de voz do amigo, Einar o encarou.

     - Está dizendo que sou tão convencido quanto Ull, Lars?

     - Talvez nem tanto, mas não posso considerar você uma pessoa modesta. - Lars voltou a sorrir, como se tudo estivesse bem. - Só lhe darei um conselho, Einar. Se quer mesmo que Ull tenha com quem competir, corteje a mulher você mesmo.

    

     - Venha até aqui fora - chamou Einar, junto à porta da casa de Olva. - Preciso falar com você.

     Meradyce puxou as cobertas até o queixo ao ver que Einar avançara até a beirada de sua cama.

     - Por que lá fora? - interferiu Olva, que acordara com a voz do filho. - Por acaso está bêbado, Einar?

     - Não, não estou - resmungou ele, irritado - Só quero falar com ela em particular.

     - Mas está muito frio lá fora. - Sentando-se na cama, Thorston entrou na conversa.

     Betha mexeu-se ao lado de Meradyce. Ela viu que Adelar ainda dormia e, se não quisesse que os dois fossem acordados por uma discussão, era melhor concordar com o pedido de Einar.

     - Francamente, Einar! - Olva voltou a se manifestar, vendo que Meradyce se levantava da cama. - Essa conversa não pode esperar até amanhã?

     - Não.

     Olva desistiu de convencer o filho e voltou a deitar-se. Thorston a imitou, pois conhecia bem demais a teimosia do enteado.

     Meradyce vestiu-se rapidamente e seguiu Einar para fora de casa. O vento estava frio demais e a luz da lua iluminava o orvalho congelado nos galhos dos pinheiros. As grandes nevascas não tardariam a chegar.

     - Por favor, diga logo o que quer - declarou Meradyce, que não pretendia afastar-se muito de casa a sós com Einar em plena noite.

     - Svend decidiu que você pode ser cortejada.

     O rosto de Einar estava na sombra e Meradyce não podia ver a expressão dele.

     - Como assim?

     - Você nunca foi cortejada antes? - perguntou ele, irritado.

     - É claro que sim! Entretanto, não tenho a menor vontade de ser...

     - Especialmente por um viking, não é? - interrompeu ele.

     - Por homem nenhum!

     - Não gosta de homens? - A irritação de Einar se transformou em curiosidade.

     - Gosto de maneira geral.

     - Ainda bem.

     - Mas não quero me casar - apressou-se a dizer ela, preocupada com o tom de voz de Einar.

     - Toda mulher quer um marido.

     - Pois eu não quero.

     Einar se aproximou mais e Meradyce encolheu-se, fingindo estar ainda com mais frio do que sentia.

     - Por que não?

     - Porque, porque não quero!- Os dentes dela começaram a bater de frio. - Está gelado e, se não se incomodar, eu gostaria de voltar para casa.

     Ele tirou a capa de peles e a colocou sobre os ombros de Meradyce.

     - Vista! Eu quero saber por que uma mulher não deseja ter um marido. Se você tem intenções de criar problemas na minha aldeia, preciso saber de antemão.

     - Que tipo de problema?

     - Despertar rivalidades entre meus homens.

     - Sendo meu protetor, você está preocupado, certo?

   Einar não respondeu.

     - Garanto-lhe que não existem motivos para preocupações. Não tenho a menor intenção de me casar, portanto não haverá competição alguma.

     - Talvez os homens pensem que eu a quero só para mim.

     Ouvindo a voz suave de Einar, Meradyce tentou imaginar como seria ser cortejada por ele e afastou a idéia rapidamente de sua mente.

     - Não pretendo me casar.

     Ouvindo a determinação na voz de Meradyce, Einar sentiu sua própria teimosia crescer. Convenceu-se que a resposta dela não o interessava pessoalmente, mas tinha de aplacar sua curiosidade.

     - Por que não?

     Ele aproximou-se, querendo descobrir a verdade refletida pelos olhos da mulher que se recusava a dar-lhe uma resposta clara.

     - Porque não seria justo. Não posso dar meu coração a homem algum.

     - Talvez os homens não estejam interessados em se apossar do seu coração.

     Meradyce recuou um passo, mas Einar a segurou pelo braço, impedindo-a de afastar-se.

     - Você poderia escolher o homem que quisesse e ter toda a fortuna dele em suas mãos. Não é o suficiente?

     - Para você, talvez seja suficiente ter um corpo em sua cama. Eu quero mais do que isso de um marido. Entretanto, não seria justo pedir pelo que não tenho mais para dar.

     - O que quer dizer com isso? - Subitamente, ele precisava saber o que os outros homens tinham sido para Meradyce. - Você não é mais virgem?

     Ela não recuou nem tentou se afastar, mas seus olhos brilhavam de desprezo e desafio.

     - Você: só entende de sexo. Eu fui amada de uma maneira muito mais pura.

     Tomado pela raiva e pelo ciúme, Einar a puxou de encontro a seu peito e a beijou avidamente. Ele a faria esquecer todos os outros homens, do passado e do presente.

     Por uma fração de segundo, achou que ela iria corresponder ao seu beijo, mas Meradyce permanecia imóvel em seus braços, sem qualquer reação ou sentimento. Ainda mais irritado, soltou-a e ergueu a mão.

     - Agora vai me bater? - A voz dela era fria como as águas do fiorde. - É assim que pretende despertar em mim algum desejo por você?    .

     Com um esforço sobre-humano, ele abaixou a mão e controlou a raiva.

     - Eu não a desejo, saxônia. Tenho todas as mulheres que quero. Além disso, não acho que você valha o meu esforço.

     Dando um sorriso de profundo desprezo, Einar se afastou dela e desapareceu na escuridão da noite.

    

     Suspirando, Einar fechou os olhos e encostou-se à parede da casa de banhos. As pedras estavam bem aquecidas e ele acabara de jogar água sobre elas, levantando uma nuvem de vapor.

     Hamar também suspirou, satisfeito e relaxado.

     - A sauna sempre me deixa em paz com o mundo. A vida é mesmo boa, Einar. Uma boa esposa, um filho saudável o que mais um homem pode querer?

     - Um cavalo mais rápido, um navio veloz, pilhas de peças de prata, duas mulheres em sua cama.

     Hamar olhou para o irmão e só teve certeza de que ele brincava viu o sorriso malicioso no rosto que as mulheres consideravam perfeito.

     - Talvez um navio veloz fosse bom, eu o daria para você.

     - Não se esqueça das mulheres, mano. Quantas mais, melhor.

     - Não posso acreditar nisso. - Hamar sentou-se, encarando seriamente o irmão. - Se fosse assim, por que você discute com Ull por causa da mulher saxã?

     - Eu gosto de discutir com Ull. É bom para colocá-lo no lugar dele.

     - Tolice - resmungou Hamar.

     - Acha que não vale a pena discutir por ela?

     - Não sei. Se eu não fosse casado, talvez tivesse uma opinião mais definida a esse respeito mas...

     - Como vai seu filho?- interrompeu Einar, a fim de desviar o assunto.

     - Muito bem. - Hamar não pretendia desistir da conversa. - Se você decidir cotejar essa mulher será para se casar com ela ou apenas para irritar Ull.

     - Só para irritar aquele arrogante intrometido!

     - É muito bom ter um filho, Einar.

     - Por Odin! Você parece nosso pai falando! - Einar se levantou.

     - Está pronto para correr até o rio?

     - Quando você quiser.

     Os dois saíram correndo da casa de banhos e percorreram o pequeno trecho até o rio, onde mergulharam, dando gritos por causa do frio. Eles não agüentaram por muito tempo a água gelada e logo voltaram para a margem.

     Só então, notaram as mulheres que lavavam roupa a poucos metros deles. Na aldeia viking, todos estavam acostumados à cena de homens adultos saindo nus da sauna e se jogando no rio, mas Einar notou que Meradyce, com uma trouxa nas mãos, se imobilizara ainda mais perto dos dois.

     É evidente que ela já terminara de lavar a roupa e estava de volta para a casa de Olva quando a visão de dois homens nus saindo do rio bem a sua frente, a impedira de prosseguir.

     Einar viu que ela enrubescia e se ergueu desafiante. Meradyce abaixou a cabeça, evitando fitá-lo.

     - Você a está ofendendo - sussurrou Hamar. - Não vê que ela ficou embaraçada?

     - Se ela se constrange diante de um homem nu, não devia se aproximar da casa de banhos.

     A voz zombeteira de Einar fez com que Meradyce erguesse a cabeça e visse seu sorriso insultante. Não precisava entender o que ele dissera ao irmão para saber que estava ridicularizando-a.

     Talvez ele imaginasse que seu rubor se devia a nunca ter visto a nudez masculina. Entretanto, já fora chamada para cuidar de guerreiros feridos e os tratara sem que tivessem uma única peça de roupa sobre o corpo.

     Meradyce enrubescera porque julgava ter se intrometido na privacidade deles e por estar no lugar errado naquele momento. Então, viu que as outras mulheres continuavam com suas tarefas como se aquela cena fosse normal.

     Só Ingemar a fitava, com um sorriso malicioso em seu belo rosto. Sentindo-se desafiada, Meradyce reagiu com ousadia idêntica à de Einar e o examinou da cabeça aos pés, como ele a fitara na outra noite.

     Começou pelas pernas longas e musculosas, passou pelo sexo, pelo peito amplo e terminou no rosto, fitando-o bem nos olhos. Então, voltou à porção entre a cintura e os joelhos e sorriu.

     - O dia está muito frio - disse ela, maliciosamente - Cuidado para não pegar um resfriado.

     A expressão zombeteira desapareceu do rosto de Einar e ele passou ao lado de Meradyce, caminhando na direção da casa de banhos.

     - O que ela disse? - perguntou Hamar, tomado pela curiosidade. - Então?

     - Nada de importante - resmungou Einar, apanhando suas roupas e começando a se vestir.

     Depois que os homens entraram na casa de banhos, Ingemar recomeçou a lavar a roupa, batendo as peças de encontro às pedras, como se estivesse agredindo Meradyce. Ao lado dela, Ilsa também não escondia a raiva provocada pelo confronto entre Einar e a mulher saxônia.

     - É revoltante! - explodiu Ingemar. - Vem para a nossa aldeia e tenta conquistar os nossos homens! Vagabunda!

     - Vive com o nariz para o ar, como se fosse a rainha dos saxões - o acrescentou Ilsa, com a voz ainda mais estridente do que de costume - quando devia estar limpando o chão da minha casa!

     Reinhild começou a torcer a roupa, ansiosa por mudar o rumo da conversa. Gostava de Meradyce mas, acima de tudo, sabia o quanto todas as mulheres da aldeia precisavam dela.

     - Logo estará frio demais para lavar a roupa no rio. O inverno chegou cedo demais ...

     As duas outras mulheres a ignoraram.

     - Você tem toda a razão, Ilsa! Acho que Svend está finalmente ficando senil. Por que tratar essa mulher de forma diferente de todas as outras cativas que já vieram para a nossa aldeia? Ela não é nobre, nem mesmo esposa ou filha de um senhor. Era uma criada em sua terra.

     - Não fale mais - sussurrou Ilsa, ao ver que Asa se aproximava.

     - É muito bom que tenhamos uma parteira na aldeia - declarou Reinhild, ansiosa por arrefecer as raiva das outras duas.

     - Pois você se virou muito bem sem nenhuma - replicou Ilsa, desafiante.

     Ingemar percebeu que Reinhild ainda não se dera conta da ameaça representada por Meradyce e resolveu ser mais convincente.

     - Imaginem Einar e Ull brigando, como dois adolescentes obcecados, por causa dessa mulher! Einar não a deseja, eu sei muito bem disso, mas adora provocar Ull e percebeu o quanto ele está fascinado pela saxônia.

     Satisfeita, Ilsa viu que Reinhild franzia a testa, preocupada. Reinhild era a esposa mais nova de Ull e as mulheres sabiam o quanto ela se ressentia por não ter grandes atrativos físicos. Entretanto, todos na aldeia a julgavam a mais simpática das esposas dele.

     Ilsa era muito mais bonita, mas tinha a temperamento de uma queixosa de nascença. Ull e todos os demais perceberam essa faceta desagradável dias depois que ele a trouxera de uma outra aldeia da região.

     Nada agradava a eternamente descontente Ilsa. Algumas pessoas da aldeia não entendiam por que ela não se divorciara de Ull quando ele trouxera uma nova esposa para casa. Outros diziam que não o fizera porque nenhum outro homem a aceitaria.

     Depois que Asa passou, Ingemar voltou ao ataque.

     - Tudo isso acontece só porque ela é muito bonita, sabiam? Basta deixá-la feia e nenhum homem desta aldeia perderá um minuto com essa mulher.

     - É uma pena não podermos lançar um sortilégio que a tome feia como uma bruxa lamentou-se Ilsa.

     - Se ao menos ela deixasse nossos homens em paz - suspirou Reinhild.

     - Eu tenho uma idéia que pode dar certo - murmurou Ingemar. As outras duas mulheres se aproximaram para ouvir melhor.

     Meradyce olhou para as mulheres que acabavam de entrar na casa de Olva. Os olhos de Ingemar estavam cheios de lagrimas e ela torcia as mãos nervosamente enquanto falava.

     - É uma das crianças - traduziu Endredi - Ela caiu e machucou a perna. Está sangrando muito.

     O ideal seria levar Endredi para servir de tradutora, mas Meradyce não queria expor a jovem a uma cena penosa.

     - Espere aqui até Olva chegar com as Crianças - ordenou ela a Endredi - Depois peça-lhe que vá me ajudar.

     A jovem concordou, ajudando Meradyce a arrumar sua cesta com remédios. Como não sabiam exatamente o que acontecera com a criança, colocaram várias ervas para tirar a dor e outras para melhor cicatrização, além de antídotos para alguns venenos.

     Só então Meradyce seguiu Ingemar, que andava rapidamente em direção à uma das casas mais afastadas da aldeia.

     Quando ela entrou na casa, olhou ao seu redor à procura da criança e só encontrou outras duas mulheres.

     - Onde está a criança que se machucou?

    

     Einar estava no estaleiro quando ouviu o grito. Era um grito de mulher e ele saiu correndo na direção do som. Ao <alcançar a aldeia, viu uma pequena multidão parada diante da casa de Ull.

     Pressentindo uma tragédia pois não se ouvia mais nenhum grito, ele correu para dentro da casa. Ull não estava presente. Ilsa e Ingemar ergueram-se lentamente à sua entrada, afastando-se do que as entretivera no chão, bem no centro do aposento. Reinhild chorava, com as mãos cobrindo o rosto.

     Antes mesmo de poder perguntar, Einar viu que havia alguém no chão. Era uma mulher Meradyce.

     Ela se ergueu sem ajuda e Einar não conteve uma exclamação de choque ao dar-se conta do que acontecera.

     Os cabelos de Meradyce. A magnífica cabeleira negra como a noite e brilhante como a seda jazia no chão em montes desordenados. O rosto dela estava sujo, o vestido rasgado. Era evidente que lutara com as outras enquanto a tosquiavam como se fosse um carneiro, deixando-a com mechas de poucos centímetros na cabeça toda.

     Einar olhou para Ingemar que ainda tinha a faca nas mãos. Ilsa sorria vitoriosamente.

     - Comunique a elas - disse Meradyce, encarando as duas mulheres - que eu as matarei se tocaram novamente em mim.

   Não restava nenhuma dúvida na mente de Einar sobre a determinação de Meradyce. Ela ergueu a cabeça e saiu da cabana com a postura majestosa de uma rainha.

     Ele ouviu os murmúrios horrorizados do grupo que esperava do lado de fora da casa e sorriu. Um sorriso frio e letal.

     - Ela disse que matará vocês se a tocarem novamente. Meradyce é uma mulher que cumpre a palavra, mas se ela não o fizer, eu o farei.

     Ingemar deu um passo na direção dele, com um olhar implorante.

     - Ela estava causando problemas demais.

     Einar ergueu a mão para silenciá-la.

     - Eu a proíbo de me servir vinho e comida. E nunca mais me dirija a palavra.

     Finalmente, ele saiu da cabana e avistou Meradyce no fim da rua de terra. Para sua surpresa, a saxônia dirigia-se para a sua casa e não para a de Olva. Ignorando a multidão curiosa, correu para alcançá-la.

     Meradyce já estava dentro de casa quando ele entrou, parada no centro do aposento e com a cabeça curvada.

     - Elas a feriram? - perguntou Einar, com suavidade.

     Ela virou-se de frente para encará-la e Einar levou um choque.

     O olhar de Meradyce o lembrava dos guerreiros vikings momentos antes da batalha. Uma expressão de força contida prestes a explodir no frenesi da luta.

     - Quero Endredi. Aqui. Agora.

     - Como? - balbuciou ele, atônito com a dureza da voz de Meradyce que lhe dava ordens como um comandante viking.

     - Disse que quero Endredi. Imediatamente!

     - Talvez minha mãe.

     - Não desejo a simpatia de ninguém. Quero Endredi porque ela sabe o valor do silêncio.

     Agora Einar percebia que Selwyn dissera a verdade sobre Meradyce. Ela era uma mulher orgulhosa e, naquele momento, seu código de honra e seu senso de justiça haviam sido mortalmente ofendidos.

     Ela não fizera nada para merecer aquele ataque das mulheres.

     Não viera para a aldeia por vontade própria e não tentara seduzir nenhum homem. Pelo contrário, ajudara-as com seus conhecimentos de parteira e sobre medicina em geral.

     Sua boa vontade fora recompensada por uma vingança mesquinha.

     Tinham-lhe cortado a magnífica cabeleira e, se desejavam mesmo um motivo para odiá-la, ela lhes daria o melhor de todos!

     - Pedirei que elas sejam punidas - apressou-se a dizer Einar, assustado com a expressão de Meradyce.

     - Não! Eu cuidarei disto sozinha.

     - Você é apenas uma mulher.

     - E elas também são apenas mulheres. - Meradyce se calou por um segundo, perplexa. - Eu compreendo os motivos de Ingemar mas as outras? Por que a ajudaram?

     - As outras são as esposas de Ull.

     - Entendo. Agora vá buscar Endredi.

     - Tem certeza.

     - É claro que tenho - bradou ela, impaciente. - Vá logo!

     Sem mais argumentos, Einar foi à procura da filha.

    

     - Einar?

     Ele olhou para trás e viu que Ull se aproximava para sentar-se ao seu lado, no salão da casa de Svend.

     - Sinto muito pelo que minhas esposas fizeram.

     - É melhor sentir mesmo.

     - Eu as castigarei quando voltar para casa hoje à noite.

     - Faça o que bem entender, mas as mantenha longe de Meradyce.

     - Ela ficou muito...

     Ull parou de falar ao ver que uma mulher entrava no salão. Einar endireitou as costas, boquiaberto. Todos os homens tinham se imobilizado, com os olhares fixos na direção da porta.

     Era Meradyce. Ela lavara os cabelos muito curtos que haviam se transformado num halo de pequenos caracóis, formando uma coroa sedosa e brilhante em tomo de seu rosto.

     As mulheres não podiam prever que os cabelos de Meradyce, privados do peso de serem tão longos, fossem se transformar em cachos encaracolados. Também não imaginavam que o rosto iria ficar em maior evidência, acentuando-se sua beleza excepcional.

     Ela estava usando um vestido de veludo azul que intensificava a cor de seus olhos, brilhantes e intensos como o céu de verão. No decote discreto, mas perturbador ela colocara um pequeno broche de prata.

     Einar sabia que aquele vestido não estava no baú que lhe dera.

     Meradyce devia ter remexido todas as cômodas de sua casa para encontrar uma vestimenta tão especial. Era tão perfeito para realçar a beleza daquele mulher que ele não a repreenderia por pegá-lo sem sua permissão. Também não reconhecia o broche, mas era impossível se lembrar de todas as jóias que trazia como saque.

     Com o movimento dos passos, o veludo colava-se às curvas de Meradyce que avançava para o centro do salão com uma ânfora de prata nas mãos. Com um sorriso provocante, ela se aproximou de Einar e Ull.

     Meradyce curvou-se para encher a caneca de Einar com vinho, oferecendo-lhe uma rápida visão dos seios perfeitos, livres sob o fino veludo. Ele sentiu-se como um mero mortal sendo servido por uma deusa.

     Então, para seu intenso desprazer, viu que Meradyce fazia o mesmo para Ull.

     Quando ela endireitou o corpo, sorriu para os dois,

     - Svend declarou que eu posso ser cortejada. Eu concordo com a decisão dele e estou disposta a aceitar.

         Com um gesto suave, ela roçou a ponta dos dedos longos e delicados sobre o broche de prata.

     - Muito obrigada pelo broche, Ull.

     Einar conteve-se para não matar Ull naquele mesmo instante.

     - E obrigada pelo vestido, Einar.

     Ereta Meradyce deslizou a mão pelo próprio corpo, atraindo os olhares de todos os homens. Como se já não a estivessem devorando com os olhos!

     Sorrindo novamente para os dois, ela saiu lentamente do salão.

    

     Durante o resto da noite, Einar não trocou uma só palavra com Ull que bebia caneca após caneca de cerveja. Também não permitiu que sua expressão revelasse seus sentimentos quando o bardo decidiu contar a historia dos cabelos cortados de Sif.

     Sif a esposa de Thor, estava adormecida quando Loki, o deus da discórdia, cortou suas longas tranças douradas. Enfurecido, Thor avisou a Loki que quebraria todos os ossos de seu corpo caso os cabelos de Sif não fossem substituídos imediatamente.

     Assustado, Loki pediu ajuda aos anões que lhe fizeram uma peruca de fios de ouro. Mas o deus da discórdia os enganou e continuou a criar problemas até que um dos anões lhe costurou a boca. Sem admitir que fora ele o culpado por tudo, Loki passou a conspirar contra os outros deuses dessa época em diante.

     Svend e os outros homens olhavam disfarçadamente para Einar e Ull enquanto o bardo recitava a conhecida história. Todos tentavam prever o resultado daquela vingança mesquinha das mulheres. O corte dos cabelos da bela saxônia iria provocar uma divisão na aldeia como acontecera entre os deuses na lenda?

     Indiferente aos olhares, os dois homens permaneciam em silencio, sentados lado a lado. Einar mantinha o olhar fixo em algum ponto à sua frente e Ull se concentrava em beber, como se não pudesse saciar sua sede inextinguível.

     Einar tentava decidir como forma enfrentar o desafio de Meradyce porque fora decididamente um desafio! Há muito tempo, concluíra que mulher alguma merecia que se lutasse por ela. Entretanto, a ação da bela saxônia conseguira enfurecê-lo, depois de passada a surpresa inicial.

     Fora uma tolice insensata desafiá-lo e uma loucura sem tamanho provocar Ull. Aquela idiota não percebia o que estava fazendo?

     Finalmente Ull adormeceu, derrubado pela bebida. Einar levantou-se, despediu-se de Svend e saiu do salão, consciente de que todos os homens o olhavam sem disfarçar a curiosidade e a tensão.

     A noite estava fria e um vento forte vinha do mar. Einar sentiu o gosto de sal trazido pelo ar e desejou partir para uma viagem. Uma longa viagem para qualquer lugar.

     Então, ele entrou em sua casa e parou logo após cruzar a porta. Meradyce virou-se, mostrando-lhe o vestido de veludo.

     - Vim até aqui para lhe devolver esta roupa - explicou ela, sem permitir que seus olhares se encontrassem.

     - Por que você fez isso?

     - Pensa que é a primeira vez que me punem por ser bonita? - Meradyce ergueu a cabeça, desafiante e sem demonstrar qualquer arrependimento.

     Ele não havia pensado nessa probabilidade.

     - Estou cansada de injustiças. Cansada de murmúrios maldosos, de olhares enciumados, de mexericos, cansada de ser tratada como um objeto pelos homens, como se eu fosse uma peça de tecido ou uma jóia.

     - E é esse seu modo de se vingar?

     Einar soube a resposta tão logo formulou a pergunta. Ele presenciara os olhares de ciúme de todos os homens. Deixara de ser visto como o melhor guerreiro da aldeia para ser considerado o protegido do pai. Ull sempre pensara assim e agora a semente da dúvida fora plantada na mente dos demais.

     - Em parte.

     - E qual é a outra parte?

     - Como um guerreiro viking quer morrer?

     - Lutando.

     - E por quê?          

     - Para ganhar acesso ao Valhalla e festejar com os deuses.

     - Ou seja, para alcançar a vitória mesmo no momento da derrota.

     Einar jamais havia pensado sobre a morte dessa maneira. Então, ao encarar Meradyce, viu a derrota nos olhos dela pela primeira vez desde que a raptara.

     - Eu não posso mais lutar. Não posso vencer. Tinha esperanças...

     Meradyce suspirou profundamente e então o encarou com firmeza.

     - Existe uma parte de mim que nenhum homem pode tocar, mas se não é possível evitar o casamento, eu quero o direito de escolher. Será uma pequena vitória no momento da derrota e é minha última esperança.

     - Eu não acho que você esteja derrotada. - Einar aproximou-se mais dela. - A sua atitude desta noite não foi a de uma vítima e sim a de um guerreiro disposto a vencer a batalha.

     Com uma mescla de prazer e alívio, Meradyce constatou que o olhar de admiração de Einar era sincero e genuíno. Ao sair do salão, culpara-se por ter agido com tanta audácia perdendo a batalha contra a raiva. Jamais se comportara dessa forma em toda a sua vida!

     Para combater a sensação de culpa, tentara convencer-se que só quisera mostrar às mulheres que não admitia ser humilhada. Tinha sido punida e não fizera nada de que devesse se arrepender.

     Agora, ao encontrar os olhos de Einar presos aos seus, descobrira o verdadeiro motivo de sua ação impulsiva e sem explicações. Ela o desejava como jamais quisera homem algum.

     Não mentira ao dizer que nenhum homem tocaria a parte mais íntima de sua alma. Nem mesmo a Einar poderia dar seu coração porque já não o tinha para ofertar. O que havia de melhor em si mesma pertencia a Paul e às lembranças daquele amor proibido.

     Entretanto, não teria forças para resistir à paixão física que a impelia para os braços de Einar. Não queria resistir.

     Quando seus lábios se tocaram, ela sentiu uma pequena chama de desejo se transformar em uma paixão incontrolada, uma ânsia física que permanecera adormecida em seu íntimo por muito tempo.

     Einar vibrou de prazer ao sentir a intensidade com que Meradyce correspondia ao seu beijo. lnebriado pela vitória, sorriu, interrompendo o contato sensual de seus lábios.

     - Vamos contar a Ull que ele já perdeu a batalha?

     Meradyce recuou, sentindo-se fisicamente agredida. Lutara para não ser um objeto de desejo e Einar a tratava como se ela fosse um peão num jogo, disputado por dois oponentes?

     - Por que acha que ele perdeu?

     - Ora, você me deseja e sabe muito bem o quanto.

     - Você me beijou porque eu permiti. Ainda não concedi o mesmo privilégio a Ull. Ainda não...

     A expressão de Einar revelava um ódio tão intenso que Meradyce começou a sentir medo de sua ousadia.

     - Está jogando um jogo perigoso demais, mulher.

     - Não fui eu que estabeleci as regras.

     Subitamente, ele mudou de tática e começou a rir.

     - Vá em frente, mulher. Divirta-se com seu jogo só que eu não farei parte dele. Procure Ull e se quiser voltar para mim sabe onde me encontrar.

     Meradyce já estava junto da porta quando Einar lançou seu último comentário ferino.

     - Não se esqueça de bater à porta, mulher. Talvez eu não esteja sozinho.

     Ela saiu em silêncio e Einar deixou-se cair sobre a cadeira mais próxima. Fizera um esforço sobre-humano para fingir que pouco se importava com as atitudes de Meradyce.

     Na verdade, ele se importava muito. Ele se importava demais!

    

     A casa já silenciara há algumas horas. Ainda acordada, ao lado do marido, Olva sussurrava para não acordar os outros.

     - Eu quase não acreditei quando Endredi veio me contar o que aconteceu. Os cabelos dela eram tão lindos! E depois soube que foi até o salão de Svend.

     Ele ouviu o marido rir baixinho.

     - Como eu gostaria de ter estado lá só para ver as expressões dos homens. - A voz de Thorston era maliciosa.- Aposto que o idiota do Ull quase caiu da cadeira!

     - E eu estou muito preocupada.

     - Por quê? Tem medo que ela não consiga resolver a situação que criou?

     - Não é isso. Tenho medo que Einar a perca.

     - Ele sempre consegue o que quer.

     Olva virou-se de lado para encarar o marido.

     - O meu medo é que Einar nem sequer tente.

     - Se fosse qualquer outro homem que não Ull, eu concordaria com você, Olva. Entretanto, ele é o único homem nesta aldeia com condições de levar Einar a lutar por essa mulher. Os dois são capazes de brigar, como cães, por causa de um osso.

     - É um caso diferente. Desde Nissa, Einar deixou de se envolver afetivamente com mulheres. Ele diz que nenhuma merece que se brigue por ela.

     - Você acha que é verdade o que dizem sobre Ull e Nissa?

     - Quem sabe? Acredito que Nissa tenha dormido com mais da metade dos homens desta aldeia, mesmo quando Einar não estava viajando. Maldito o dia em que meu filho se casou com aquela mulher! Só escaparam das garras dela os muito meninos e os muito velhos!

     - Ela era muito bonita.

     - Meradyce também é, e não creio que isso tenha alterado a opinião de Einar.

     - Ele não a trata como às outras mulheres. Percebi isso imediatamente, ainda em Hedeby, quando mencionou que trouxera uma cativa. Ou melhor, quando evitou falar a esse respeito. Einar parecia guardar um segredo e, além disso, ignorou as filhas de Nils, em vez de brincar com as moças, como de costume. Sempre alimenta as esperanças das três antes de decidir qual delas levará para a cama.

     - O quê?

     - Não seja tola, Olva! Ele é homem e as moças são bonitas, saudáveis.

     - Ele nunca me contou!

     - Por Odin Você é a mãe dele. Quantos homens você conhece que falam sobre suas mulheres com as mães?

     - Você também não me contou nada sobre Einar e as filhas de Nils.

     - Porque não era da minha conta.

     - É claro! Os homens sempre se unem como cúmplices! E você? Por acaso, levou alguma das filhas de Nils para a cama?

     Recomeçando a rir, Thorston beijou o rosto da esposa,

     - Sinto-me lisonjeado com seu alto conceito sobre mim. Elas mal olham para mim quando Einar vai à hospedaria de Nils, mas, se me notassem.

     - Você e um velho assanhado, Thorston!

     - Então, não vai se divorciar de mim?

     - Ainda não. Mas, se eu souber que está se envolvendo com outra mulher, visto suas calças e atravesso a aldeia sem perder um só minuto.

     - Sou fiel como um cãozinho, Olva querida - brincou ele.

     - Eu sei, querido.

     Thorston ficou em silêncio por alguns segundos.

     - Você quer muito que Einar se case com essa mulher, não é?

     - Ah! Você nem imagina quanto. Percebo que ele se encantou com ela. Há muito tempo não o vejo prestes a se apaixonar.

     - E quais são os sentimentos dela? Afinal, Einar a raptou, trazendo-a para muito longe do lar.

     - Eu gostaria de saber que ela sente. Meradyce é muito fechada, fala pouco. É por isso que mal posso acreditar na atitude desta noite. Só posso concluir que o fez porque gosta de Einar e quer forçá-la a agir. Meu filho é um homem com muitas qualidades.

     - Deixe de ser uma mãe coruja, Olva.

     - Mas é verdade! Ele jamais magoou ou ergueu a mão para uma mulher. Não posso dizer o mesmo de muitos outros.

     Thorston sabia que Olva se referia ao período em que fora escrava dos saxões.

     - Eles devem estar mortos agora, querida.

     - E espero que apodreçam no inferno pelo que fizeram com minha família. E comigo.

     - E ainda assim quer que seu filho se case com uma mulher desse mesmo povo?

     - Quero que Einar se case com Meradyce. Ela é forte, leal e tem um coração de ouro. Não precisava defender Adelar e Betha com tanto empenho, pois não é a mãe dessas crianças. Entretanto, sei que morreria pelos dois. Meu filho preza a lealdade acima de todas as outras virtudes. Se ao menos conseguisse ver as qualidades dela!

     Olva enxugou furtivamente uma lágrima.

     - Sei que Einar sente algo mais por Meradyce ou não a olharia da forma que olha. Também não lhe daria presentes, certo? Ingemar deve ter percebido algo ou não agiria de forma tão vingativa.

     - Então, nós dois concordamos que Einar sente algo diferente por essa mulher. Não sabemos quais os sentimentos de Meradyce em relação a ele, mas talvez exista uma atração. A situação que criou a coloca na posição de prêmio a ser disputado por dois homens, se o seu filho se dignar a entrar nessa briga!

     - Você coloca o problema de uma forma que parece não haver solução. Acho que só nos resta confiar nos deuses.

     - Qual deles? - Thorston segurou carinhosamente a mão da esposa. - O cristão ou os deuses vikings?

     - Todos! Tratando-se de Einar, precisaremos da ajuda de todos os deuses que possamos reunir!

    

     Adelar não tirava os olhos de Meradyce, adormecida ao lado de Betha. Se tivesse sido um homem a cortar os cabelos dela, ele o mataria com uma flechada certeira. Mas tratando-se de mulheres.

     Que atitude Einar iria tomar a esse respeito?

     Ele queria muito que esse crime fosse vingado, mas, ao fitar a forma esguia de Meradyce, preferia que Einar não o fizesse.

     Endredi lhe contara que vários vikings desejavam se casar com Meradyce. A garota parecia achar que era uma grande honra ser escolhida por aqueles selvagens, mas ele sabia que sua amiga e companheira não teria a mesma opinião e não aceitaria nenhum pretendente.

     Adelar sentia um profundo desprezo por seus inimigos. Nenhum viking estava a altura de Meradyce, nem mesmo Einar.

     Ele a ouvira suspirar, dormindo. Se Einar não fosse um viking, Meradyce seria capaz de aceitá-lo por marido?

     Einar era um grande guerreiro e, certamente, o único com algumas qualidades para almejar uma mulher tão especial como Meradyce.

     Mais uma vez, ele se determinou a protegê-la. Seu dever era defendê-la de pretendentes indesejáveis e para isso empenharia sua própria vida!

    

     Algumas horas mais tarde, era Endredi a única a permanecer acordada e sem sono.

     Ingemar e Ilsa tinham cometido um grande crime contra Meradyce. Ela não podia ser culpada pela lascívia de Ull nem pela decisão de Einar de trazê-la para aquela aldeia.

     Ingemar era odiosa e se tornava ainda pior quando ficava com ciúmes. Endredi já a vira agir, maltratando as mulheres que se arriscavam simplesmente a mencionar o nome de Einar na presença dela.

     Esse era um dos motivos que levava Endredi a rezar para Freyja, pedindo que o pai não se casasse com Ingemar.

     Quanto a Ilsa e Reinhild, era fácil adivinhar quem liderara e quem seguira!

     Ilsa era um poço de maldade, sempre se queixando, nunca satisfeita. As mulheres comentavam que ela ficara assim por não ter um filho para distrair seus pensamentos e fazê-la esquecer o descontentamento constante. Endredi duvidava que uma criança modificasse aquele temperamento venenoso.

     Reinhild sempre fora amável com as garotas da aldeia e tinha apenas dois anos a mais do que Endredi. Ull a desejara por meses, sem poder tomá-la por esposa porque o pai dela não concordava com a união.

     A própria Reinhild confidenciara a Endredi que só se casaria com Ull se ele se divorciasse de Ilsa. Entretanto, ela acreditara quando o futuro marido afirmara que queria o divórcio, mas não podia pedi-la porque Svend o proibira de tomar essa atitude.

     O pai de Ilsa era o líder de uma aldeia próxima e bastante poderosa.

     Se ela voltasse para casa, rejeitada pejo marido, poderia achar que a família fora insultada e iniciar um período de confrontos violentos.

     Então Reinhild ficara grávida. Svend ordenara ao pai da jovem que desse permissão para o casamento e ela fora morar com Ull e Ilsa!

     Se ao menos aquele idiota se contentasse com duas mulheres!

     Endredi tinha motivos para ter medo que ele pedisse sua mão a Einar. Ull sempre sorria para ela e a procurava com os olhos nas reuniões da aldeia.

   Ela ignorava que resposta seu pai daria a tal pedido. Sabia que Einar não suportava Ull, mas talvez concordasse apenas para se ver livre da filha.

     Não tinha dúvidas que Svend concordaria com essa união. Ull era considerado um dos melhores guerreiros da aldeia, depois de Einar. O velho líder veria uma chance de acabar com uma antiga rivalidade, promovendo laços de parentesco entre os dois homens.

     Endredi suspirou, desanimada. Ela queria sentir paixão pelo homem com quem fosse se casar. Ouvira falar dessa intensa emoção através das histórias contadas pelo bardo, uma emoção que levava os homens a realizarem feitos heróicos pelas mulheres amadas. Sonhava com um jovem capaz de remover montanhas pelo seu amor.

     Ull não tinha qualquer semelhança com o herói de seus sonhos! Ela também gostaria de saber o que Meradyce sentia por seu pai e por Ull. Seria maravilhoso se Einar se casasse com uma mulher tão afetiva e meiga como a saxônia.

     Nunca o vira tão preocupado com outra pessoa em toda a sua vida. Quando viera buscá-la em casa, a voz de Einar era dura e fria, mas seus olhos revelavam o quanto sofria pela humilhação de Meradyce.

     Por outro lado, sentia pena de Meradyce se ela se casasse com Ull além de temer que a situação entre os dois homens ficasse ainda mais explosiva.

     Por uma fração de segundo, Endredi pensou que Meradyce talvez estivesse criando a discórdia entre os vikings propositalmente. Afinal, ela era uma saxã, uma inimiga e, se provocasse ódios e ciúmes, dividiria os guerreiros, diminuindo a força da aldeia.

     Não! Endredi não acreditava que Meradyce fosse capaz de provocar problemas deliberadamente. Se fosse assim, ela não estaria ajudando as mulheres ou ensinando-a a preparar remédios e a acompanhar um parto.

     Um som na casa silenciosa distraiu a atenção de Endredi que virou-se na cama a fim de olhar para Meradyce. Ela estaria também acordada?

     Por um momento, sentiu-se tentada a falar com Meradyce, mas desistiu da idéia. Não saberia o que dizer e talvez a presença da filha de Einar não lhe trouxesse nenhum conforto.

    

     Kendric encarou o homem feio e desdentado à sua frente, com uma expressão irada.

     - Como assim? O que quer dizer com nada por Meradyce?

     Selwyn já negociara com comerciantes espertos demais para se enganar quando alguém tenta disfarçar o interesse. Embora mantivesse a voz calma e indiferente, Kendric estava desesperado por saber por que os vikings não haviam pedido um resgate por Meradyce. Sem dúvida, tinha de fingir por causa da esposa, sentada de frente para os dois e acompanhando a conversa com atenção obsessiva.

     - Estou apenas transmitindo a mensagem que recebi, senhor. Mil peças pelo menino, cinqüenta pela menina e nada pela mulher.

     Kendric afundou-se mais na cadeira e Ludella suspirou, mas não havia sinceridade em sua expressão compungida.

     - É uma pena. Pobre moça! Ela era tão bonita.

     Ludella falava como se Meradyce estivesse morta.

     Enquanto esperava, Selwyn tentava adivinhar o que acontecera naquela casa. Meradyce ainda era virgem quando Einar a tomou para si ou Kendric já a teria deflorado antes? E a esposa, magra e sem atrativos, acabara descobrindo a traição? Talvez isso explicasse o desejo dela em ver-se livre da bela parteira.

     Ele não se surpreenderia se fosse essa a verdade. Kendric era um homem poderoso, rico e atraente. Provavelmente, as mulheres competiam por um lugar em sua cama e, se fossem espertas, não se vangloriariam do fato de serem amantes do senhor da aldeia.

     Havia uma nuance de extrema crueldade no rosto bonito de Kendric e Selwyn não tinha duvidas de que ele não seria nada com quem criasse problemas com sua esposa feia mas rica.

     Selwyn gostaria muito de ter visto a parteira em uma de suas viagens anteriores ao ataque. Era evidente que Kendric se interessava demais por ela e até Einar, que jamais tomara uma escrava, a quisera para si. Os olhos do viking brilharam de raiva e ciúme à menção do senhor saxão, embora tivesse tentado disfarçar qualquer envolvimento mais íntimo com a bela Meradyce.

     O hábil guerreiro teria conseguido enganar alguém menos perceptivo do que Selwyn.

     Esperando que Kendric se manifestasse, ele viu que a mulher pousava a mão no braço do marido, com os traços pouco atraentes ainda mais feios por causa do desespero.

     - Vamos pagar o que eles pedem pelas crianças, não é?

     - Claro que sim.

     O olhar lançado por Kendric à esposa informou a Selwyn que o relacionamento entre o casal beirava o ódio.

     - Ótimo - disse ele, sabendo que Kendric lhe pediria para ficar depois da saída da esposa.

     - Eles trarão as crianças de volta na primavera visto que vocês pagarão o resgate.

     - Estarei preparado para lidar com esses selvagens traiçoeiros.

     - Isso não acontecerá porque estamos tratando com Einar. - Selwyn lançou um olhar significativo a Kendric. - Ele não tolera deslealdades. Agora quanto ao meu pagamento.

     - Quanto você quer?

     - Quinhentas peças de prata.

     - O quê? Você enlouqueceu?

     - Não é uma tarefa fácil negociar com esses selvagens - lamentou-se Selwyn. - Eles preferem cortar o pescoço de um saxão a conversar com ele.

     - Eu lhe ofereço cem peças e é só!

     - Trezentas e cinqüenta, milorde. Passei por muitas atribulações para vir até aqui. O tempo estava terrível, o barco começou a fazer água, o frio...

     - Cento e cinqüenta.

     - Chegue a duzentas e fecharemos o acordo.

     Selwyn viu que a mulher cutucava o marido e teve certeza de que conseguira sua comissão.

     - Está bem. Pago cinqüenta agora e o restante quando as crianças chegarem.

     Ao abrir a boca para protestar, Selwyn encontrou o olhar de Kendric e achou mais prudente se calar.

     - Sim, milorde.

     - Agora - Kendric virou-se para a esposa - deixe-nos a sós para discutir outros assuntos de nosso interesse, Ludella.

     Ela se ressentiu com a ordem, mas não lhe restava outra opção a não ser deixar os dois homens sozinhos.

     - Está bem. Vou cuidar do jantar.

     Kendric esperou que ela saísse antes de abordar o assunto que o interessava.

     - Por que eles não pediram um resgate por Meradyce?

     - O viking se recusou. Mandou lhe dizer que devia tê-la levado para a cama enquanto podia porque ela é muito satisfatória.

     Kendric enrubesceu de cólera e, por uma fração de segundo, Selwyn achou que devia ter guardado para si as palavras do viking. Já existia ódio demais entre os dois povos, mas para o bem de seus negócios, a discórdia é a situação ideal.

     - Talvez o viking ainda esteja disposto a barganhar.

     - Pois eu não estou!

     Antes que o desagradável, mas necessário mercador começasse a se lamentar de novo, Kendric fez um sinal para que ele o deixasse a sós. Só depois da saída de Selwyn ele pôde pensar em Meradyce.

     Ele sentia pena da jovem, tão linda e sedutora, mas não se considerava culpado por seu destino. Desejara Meradyce não apenas por sua excepcional beleza e também por sua pureza virginal. Era óbvio que o viking tivera o privilégio de ser o primeiro. E a vida de uma mulher nas mãos desses selvagens era terrível, portanto a formosura impar devia estar desaparecendo a cada dia.

     Ao imaginar Meradyce nua e à mercê de um gigante viking, Kendric sentiu a excitação crescer. Não tinha motivo para se lamentar pela perda daquela jovem altiva, pois havia uma nova criada que atraíra sua atenção e se submeteria de bom grado aos seus caprichos.

     Ele saiu rapidamente do escritório. Enquanto Ludella estivesse ocupada com o jantar, haveria tempo de descobrir os encantos da nova criadinha.

    

     O silêncio da cabana de Helsa provocava uma sensação de paz em Meradyce. Ela viera com Endredi e Betha, mas as duas tinham saído para procurar o gatinho da menina que se recusara a ficar naquela sala sombria.

     Ela suspirou, dando-se conta que não ficava a sós há muito tempo.

     Sentia falta da solidão porque, desde muito jovem, morava sozinha e gostava muito de não estar sempre rodeada por pessoas ainda que amigáveis e afetuosas.

     Na aldeia dos vikings, sentia-se sempre sob observação, como se fosse um ornamento raro. Alguns outros guerreiros tinham revelado certo interesse nela, mas Meradyce suspeitava que nenhum deles se sentia muito esperançoso ao competir com Ull.

     Até Adelar notara a mudança e procurava não se afastar muito dela, preocupado com sua segurança. Essa atitude a comovera e o adolescente só se tranqüilizara quando ela demonstrara não ter intenções de aceitar nenhum pretendente.

     A partir de então, por prudência e para não recomeçar a constante vigília de Adejar, passara a não sair de casa sozinha, a fim de evitar que um dos vikings a abordasse.

     Einar a ignorava como se ela realmente não existisse. Há dois dias, Olva lhe contara que ele não era mais responsável por sua segurança. Essa obrigação passara para as mãos de Svend.

     Determinada a afastar os problemas de sua mente a fim de aproveitar os raros momentos de solidão, Meradyce decidiu arrumar um dos cantos da cabana que apenas examinara superficialmente. Talvez descobrisse outras ervas que pudessem ser úteis.

     Helsa fora uma pessoa decididamente descuidada e desordeira.

     Os ratos tinham comido grande parte das cestas e até algumas ervas venenosas a julgar pelos corpos ressequidos que encontrara pela casa. Tapando o nariz, Meradyce puxou uma arca onde deviam estar guardadas as roupas da velha curandeira.

     Para sua surpresa, encontrou dois vasos de barro, lacrados. Quando abriu o primeiro deles, viu que o liquido claro não se deteriorara e tinha o cheiro doce de maçãs.

     Depois de experimentar cuidadosamente, Meradyce chegou à conclusão de que era suco de maçãs, uma bebida geralmente feita no início do outono com o resto das frutas não consumidas.

     Ela encheu uma caneca com o líquido dourado e de aroma pungente que a lembrava da época da colheita, com seus dias alegres entre as árvores dos pomares.

     Acomodando-se em uma rústica, mas confortável cadeira, Meradyce tomou um gole da deliciosa bebida e teve a sensação de que sentia o gosto do lar.

     Na verdade, ela perdera o lar muito cedo, com a morte de seus pais. Ficara sozinha no mundo, apesar de muitos homens terem tentado cortejá-la. Recusara todos porque sabia que a procuravam por sua beleza física e nenhum deles se interessara por seus sentimentos, idéias ou desejos.

     Com exceção de Paul. Infelizmente, ele não podia e não queria se casar com mulher alguma.

     Esvaziando a caneca, Meradyce tocou os cabelos muito curtos.

     Se ao menos seus cachos diminutos diminuíssem o interesse dos homens. Infelizmente, acontecera o contrário e por culpa sua.

     Ela enrubescia ao lembrar o olhar de desejo no rosto de Einar quando lhe servira vinho. Teria sido esse o motivo de sua reação inusitada? Desejara forçá-lo a admitir que a queria? Precisara provar a si mesma que ainda lhe restava algum poder de escolha? Algum vestígio de controle diante de uma atração que a assustava por sua intensidade?     

     Talvez.

     Meradyce tornou a encher a caneca com a bebida de maçãs. Por que se preocupar tanto com o que fizera? Afinal, não cometera nenhum crime e podia recusar os pretendentes vikings como o fizera com os saxões. Podia recusar Einar, ela era livre.

     Teria ouvido um ruído à porta? Meradyce virou rapidamente a cabeça e teve uma forte tontura. Estreitando os olhos, tentou distinguir alguma sombra na sala e viu Einar.

     Ela levantou-se da cadeira, mas a sombra não se movia, embora parecesse tremular diante de seus olhos.

    Depois de fechar os olhos, balançar a cabeça e voltar a olhar na mesma direção, viu que o vulto continuava parado, absolutamente imóvel.

     - Ora! Você não é Einar! - Ela não percebeu que sua voz estava arrastada. - É um produto da minha imaginação. Talvez uma visão ou uma alucinação?

     Subitamente, ela se deu conta do que acontecera. A caneca estava novamente vazia!

     - Oh! Agora sei o que se passou. Eu estou bêbada. - Ela começou a rir. - Sempre ouvi falar que os homens viam coisas inexistentes quando bebiam demais, mas só acredito agora!

     Meradyce virou a caneca de cabeça para baixo, rindo ainda mais.

     - Eu bebi demais esse suco de maçãs! É evidente que estou bêbada, mas a sensação não é nada desagradável. Agora entendo por que os homens gostam tanto.

     Cambaleante, ela chegou até a mesa onde deixara a jarra e tomou a encher a caneca.

     - Já que estou mesmo embriagada, posso tomar mais um pouco.

     É ótimo ter a companhia de um Einar muito mais simpático do que o verdadeiro. Ou será que ele não ficou comigo?

     Rindo, ela procurou pela sombra e a encontrou no mesmo lugar.

     - Sou uma tola inebriada. Se ele não é de verdade, tem que continuar onde eu o inventei!

     Entre um passo e outro, ela quase perdeu o equilíbrio e firmou-se com dificuldade.

     - Céus! Que falta de dignidade a minha! Precisamos sempre manter a compostura. Não concorda, Einar da minha imaginação? Claro que concorda!

     Ela colocou as mãos na cintura e encarou a sombra.

     - Afinal, você entende tudo sobre dignidade. Acha que é indigno lutar por mim, certo? Nem mesmo se digna a me olhar, agora que outros homens querem me cortejar!

     Com uma rapidez espantosa, a caneca ficava vazia de novo.

     - Esta bebida é maravilhosa porque me faz lembrar dos dias de minha adolescência quando eu participava da colheita. Alguns rapazes queriam me agarrar para roubar um beijo, mas eu corria mais do que eles e me escondia nas cavernas. As cavernas onde os habitantes da aldeia se escondem para escapar dos vikings, sabe?

     A caminhada até a mesa com a jarra de bebida era uma aventura, mas valia a pena.

     - Mesmo nessa época, eu detestava esses rapazes idiotas que corriam atrás de mim. Queria que me deixassem em paz, como agora. Não quero me casar. Não quero.

     Meradyce tomou mais um gole, sem notar de a bebida escorria entre seus dedos.

     - Só uma vez eu quis me casar. Ele me desejava e eu também o queria. Mas Paul tinha feito um voto que não podia quebrar. Beijou-me uma vez, só uma, disse que eu não podia compreender as obrigações que já assumira antes de me conhecer. Eu estava com quatorze anos e sabia o que havia dentro do meu coração.

     Uma lágrima escorreu pejo rosto dela, despercebida.

     - Acho que sabia, agora já não tenho tanta certeza.

     Dando o último gole, ela se aproximou da sombra.

     - Eu queria que Paul me beijasse, mas quando Einar olha para mim, quando me toca, desejo muito mais do que um simples beijo.

     A visão teria se movido ou ela perdera o equilíbrio?

     - Eu gostada de ter poder de mandar você embora, ouviu? Mesmo tendo saído da minha imaginação, a sua presença me incomoda. Parece real demais!

     Depois de alguns minutos de silêncio pensativo, ela voltou a conversar com as imagens de sua imaginação.

     - Não sei como teria sido viver com ele, Paul quase nunca ria! Einar também ri pouco pelo menos, fica sempre sério quando está perto de mim. Mas ouvi sua risada e achei bonita. Gosta de Betha e de Adelar. É uma pena que não consiga se comunicar com Endredi mas...

     Ela sentou-se no chão e colocou a cabeça no assento da cadeira.

     - Ah, eu queria tanto que ele não tivesse feito aquele voto.

     A voz foi ficando mais baixa, quase um murmúrio.

     - Gostaria tanto que os vikings nunca tivessem ido até a aldeia.

     A sombra parecia maior e mais próxima.

     - Gostaria de nunca ter visto Einar. Gostaria que não me desse presentes. Nunca pensei, nunca imaginei que fosse possível, quando ele me beija sou uma idiota! Não posso gostar de um viking! É absurdo!

     Fechando os olhos, Meradyce procurou apagar a existência daquela sombra que teimava em não desaparecer.

     - Vou fingir que estou no jardim do mosteiro, com Paul. - Ela voltou a abrir os olhos e sua voz refletia angústia. - O que há de errado comigo? Por que só consigo ver Einar? Ele não se importa comigo.

     Finalmente o sono foi mais forte do que Meradyce e ela adormeceu segundos antes de Einar sair da cabana com uma expressão pensativa em seu rosto muito real.

    

     Einar tentou convencer-se de que o melhor era não se envolver com Meradyce. Nunca mais permitiria que mulher alguma tivesse sobre sua vida. Os sentimentos e o passado dela não eram importantes e não devia sentir nem piedade, nem ternura.

     Ao ouvir seus segredos na cabana de Helsa, quase não controlara a necessidade de protegê-la e curar suas mágoas, até Meradyce mencionar um outro homem. Então, sentira uma onda de ciúmes tão torturante quanto as que costumavam acontecer durante o breve casamento com Nissa.

     Quando via Ull ou algum outro guerreiro se dirigindo para a casa de sua mãe com uma caça ou uma garrafa de vinho caseiro, com o evidente intuito de agradar a mulher saxã, ele repetia a si mesmo que pouco se importava. Não pretendia presenteá-la mais ou sequer dirigir-lhe a palavra. Simplesmente continuaria a levar a vida como se Meradyce não existisse.

     Quase todos os dias, ele chamava Adelar para acompanhá-lo quando ia caçar, pescar ou se exercitar com os outros guerreiros. Gostava do menino que também parecia estar sempre disposto a participar das atividades masculinas para não ficar junto das mulheres da casa.

     Logicamente, se Adelar falava sobre Meradyce não era nem um pouco importante!

     Adelar adorava a companhia do viking, principalmente depois de se convencer que Einar não sentia o menor interesse por Meradyce e não estava competindo com os outros pretendentes dispostos a conquistá-la por esposa. Além disso, ele era um grande guerreiro e um bom professor.

     Enquanto Einar lhe ensinava a caçar, pescar ou a lutar como um viking, Adelar lhe falava sobre o pai, o mais importante dos senhores saxões. Com uma expressão desafiante, insinuava que, no futuro, os guerreiros de Svend deveriam pensar duas vezes antes de invadir suas terras.

     Einar concordava, parecendo impressionado, e Adelar continuava seus monólogos. O garoto falava sobre sua aldeia, sobre as atividades dos camponeses, mas bastante maduro para sua idade, não mencionava as cavernas onde o povo se escondia durante os ataques de inimigos ou revelava quem eram os aliados de seu pai.

     Numa tarde fria, mas ainda ensolarada, Einar o levou para ver como se construía um navio viking.

     Como sempre acompanhados pelos dois enormes cachorros de Einar, os dois se dirigiram ao estaleiro, um grande barracão à beira do fiorde, perto do cais.

     Adelar espantou-se com o tamanho da estrutura do casco, a maior que já vira. Na proa, estava sendo esculpida a serpente marinha que se erguia na frente dos navios vikings e tanto atemorizava os povos saxônios que viviam perto da costa.

     Ao entrar no navio, Adelar lutou para vencer o receio, uma pálida lembrança do pavor que sentira na primeira vez em que vira uma embarcação viking de perto. Então, conseguiu ser racional e compreender que os navios eram a mais poderosa arma dos vikings, tornada mais letal por seu profundo conhecimento das artes náuticas.

     Determinado, o garoto decidiu estudar atentamente esses navios e aprender o mais possível sobre sua construção, preparando-se para o dia em que seria ele o defensor de sua aldeia e do litoral saxão.

     Essa embarcação, ainda inacabada, seria maior do que o navio de guerra ancorado no porto. Tinha o casco raso e alongado, típico dos vikings, e a graça quase sinuosa de um animal marinho que nascera para cortar as ondas com a velocidade do vento.

     - Adelar, este é Bjorn, o melhor construtor de navios em todo o mundo - disse Einar, chamando o garoto para perto dele.

     O velho de pele crestada pela constante vida ao ar livre aproximou-se dos dois. Ele os cumprimentou, com a voz baixa e de tom moderado de quem pensa muito e fala pouco.

     - Bjorn me garantiu que esta embarcação ficará pronta na primavera - comentou Einar, com um sorriso. - E ele raramente se engana em suas previsões porque está construindo navios desde que era mais novo do que você, Adelar.

     - Ele ensina outras pessoas? - perguntou Adelar, inocentemente.

     - Só em parte, porque um bom construtor de navios está sempre experimentando novos métodos. - Einar bateu no peito. - A criação nasce do coração e isso é impossível de ensinar. Bjorn costuma dizer que sente quando há algo de errado com um navio.

   Havia muitos homens no enorme barracão, todos trabalhando no navio. Alguns cortavam enormes troncos em tábuas que seria superpostas para cobrir o casco. Ao se aproximar, Adelar percebeu, surpreso, que as mais inferiores não eram presas à estrutura com pregos c sim amarradas por algo semelhante a raízes de árvores.

     - É para que o casco acompanhe os movimentos do mar - explicou Einar, vendo o espanto do garoto.

     - Mas a água não entra para dentro do navio? - perguntou Adelar, incrédulo.

     - Entra um pouco, mas é melhor assim. - Einar fitou a embarcação com um olhar contemplativo. - O navio deve se mover como uma mulher sob o corpo de um homem, respondendo a cada movimento e vibração.

     - Eu não compreendo - interrompeu Adelar. - O navio não é uma coisa viva.

     Einar voltou-se para Adelar, rindo maliciosamente.

     - Não é? Talvez seja por acreditar nisso que vocês, os saxões, constroem navios que só servem para se arrastar em rios bem rasos.

     Adelar franziu a testa, irritado. Não tolerava que criticassem seu povo, mas ao observar as linhas esguias daquela embarcação viking, sentia-se obrigado a admitir a verdade. Os saxões tinham muito que aprender a respeito de navios com aquele povo voltado para o mar.

     - Esse navio pode levar quantos homens?

     - O suficiente.

     Os homens trabalhavam em silêncio, como se soubessem o que precisava ser feito sem necessidade de explicações. Ocasionalmente, Bjorn acenava com a cabeça ou, com uma única palavra, dava-lhes a confirmação desejada.

     - Vamos - ordenou Einar, abruptamente. - E hora de pescar.

     Adelar olhou para seu companheiro pelo canto dos olhos. Talvez tivesse traído seu interesse excessivo na construção do navio, porque Einar estava decididamente irritado.

     Entretanto, o viking parecia ter perdido o bom humor há vários dias e Adelar não se considerava responsável por essa súbita crise de irritação.

     Os dois caminharam até um braço do fiorde, onde uma suave colina descia em direção a uma lagoa cristalina de águas mansas. Einar retirou as linhas e os anzóis de osso de sua mochila e deu uma a Adelar.

     - Pesque - ordenou ele, lacônico.

     Mais uma vez, o garoto olhou de soslaio para Einar. O viking estava de olhos fechados e talvez só precisasse de um bom sono para recuperar o bom humor.

     - Adelar?

     Surpreso com o tom de voz do companheiro, o garoto voltou-se para ele. Os olhos cinzentos de Einar eram penetrantes e ligeiramente assustadores.

     - Por que Meradyce não tem um marido?

     - Eu não sei. - declarou Adelar que, não esperando aquela pergunta, sentiu uma inexplicável irritação.

     - Nenhum homem a pediu em casamento?

     - Também não sei.

     Lutando para controlar uma estranha sensação, Adelar olhava fixamente para a água. Se fosse mais velho, poderia saber que tivera um súbito ataque de ciúmes, mas naquele momento, dava-se conta apenas de que não gostava das perguntas de Einar.

     - Quero voltar para casa - disse ele, retirando a linha da água.

     - Qual é o problema? - resmungou Einar, sem se mover.

     - Nenhum.

     O garoto não queria que ninguém soubesse de seus sentimentos por Meradyce, principalmente aquele guerreiro viking.

     - Acho que estou com fome.

     - Beba um pouco de água para se distrair. Ainda vamos ficar por aqui um bom tempo.

     Jogando a linha de novo na água, Adelar resignou-se a continuar na companhia de Einar.

     - Ela é muito bonita - prosseguiu Einar, como se o assunto despertasse apenas uma curiosidade sem envolvimento.

     - Endredi me disse que aquele homem chamado Ull sempre traz presentes porque gosta de Meradyce.

     Einar não confirmou a suspeita de Endredi.

     - Não vai adiantar - declarou Adelar, enfaticamente. - Meradyce jamais se casaria com um viking!

     - É mesmo?

     - Você quer se casar com ela?

     A pergunta parecia inócua, mas Adelar prendeu a respiração enquanto aguardava a resposta de Einar.

     - Não. Eu não quero me casar com ela.

     Adejar soltou um suspiro de alivio.

     - Por que Meradyce encoraja Ull e os outros? - insistiu Einar.

     Finalmente sabendo que Einar não tinha nenhum interesse pessoal em Meradyce, Adelar sentia-se mais livre para responder às perguntas do viking.

     - Ela não está encorajando ninguém. É o jeito dela, mas eles não desistem.

     - Como assim? Que jeito é esse?

     - Ora, você sabe! Meradyce é gentil e atenciosa com todas as pessoas. Acho que não vai se casar nunca. - O garoto olhou para Einar. - Você também não é casado.

     - Não.

     - E por que não?

     - Porque não quero me casar.

     - Pois talvez Meradyce também não queira.

     Adelar ficou por alguns minutos em silêncio, fingindo prestar atenção na linha de pescar.

     - Betha acha que Meradyce quis se casar uma vez- voltou ele ao assunto.

     - E quem era o homem?

     - Eu não sei ao certo. Tenho a impressão que era um padre que trabalhava no mosteiro. Minha irmã acha que esse homem morreu, mas ela é criança e pode estar enganada.

     - O que seu pai acha de Meradyce?

     - Kendric gosta dela. Aliás, todos gostam de Meradyce, menos algumas mulheres que tem ciúmes

     - E ela gosta de seu pai?

     - Acho que sim. Ela o respeita, é claro, como todos na aldeia. - Subitamente, Adelar caiu em si. - Por que está me fazendo essas perguntas?

     Einar deu de ombros, querendo disfarçar a importância das perguntas, mas Adelar se ergueu, furioso.

     - Meu pai já tem uma esposa!

     - Sente-se, garoto.

     Uma repentina sensação de medo envolvera Adelar, pois as palavras do viking haviam trazido de volta lembranças das brigas amargas e palavras cheias de ódio entre seus pais.

     - Meu pai ama a minha mãe. Ama muito!

     - Sente-se.

     Sem disfarçar a relutância, o garoto obedeceu.

     - Como Meradyce não se casou, seria natural suspeitar que ela ama alguém a quem não pode ter, alguém importante como seu pai.

     Einar estava falando a verdade e o garoto reconheceu a sinceridade do companheiro.

    - Não creio. Ela já era assim quando veio para a nossa aldeia. O que Meradyce sente não pode ter nada a ver com meu pai.

     - Pensei que ela sempre tivesse morado em sua aldeia.

     - Oh, não! Ela costumava visitar a aldeia junto com seus pais. Então, depois que eles morreram, mudou-se definitivamente. Se ela gostou de um homem a ponto de querer se casar, foi antes de vir para junto de nós.

     - Está ficando tarde - declarou Einar, olhando para o céu - Logo teremos de voltar para casa,

     - Você gosta de Meradyce? - perguntou Adelar, inesperadamente.

     - Eu a respeito.

     - Então, diga para aqueles homens a deixarem em paz.

     - Não posso, Adelar. Não tenho esse direito.

     - Mas você é o responsável pela proteção dela, não é?

     - Já não sou mais. Ela agora é responsabilidade de Svend. - Einar hesitou, antes de prosseguir - Por acaso, Meradyce sente medo desses homens?

     - É claro que não! Meradyce nunca tem medo. Eu só achei que tomaria a situação mais fácil para ela.

     - Eu não posso interferir. Os homens pensariam que eu a estou querendo só para mim.

     - Oh. - Subitamente, um peixe puxou a linha de Adelar. - Pesquei um!

     Eufórico, o garoto se ergueu e, escorregando na grama molhada, caiu dentro da água.

   Reagindo com rapidez, Einar o agarrou pela túnica antes que ele afundasse na água gelada.

     - Peguei um! - berrava Adelar, enquanto Einar o puxava para fora da lagoa, trazendo um peixe surpreendentemente grande para águas tão mansas.

     - Vamos voltar logo, pois você precisa trocar essas roupas molhadas e depois limparemos o peixe para o jantar.

     - Eu estou ótimo! Olhe só o tamanho do meu peixe!

     Durante todo o caminho de volta, Adelar não parou de falar sobre sua grande aventura.

     Einar não o ouvia. Estava tentando compreender por que se alegrava tanto com o fato de Meradyce não estar apaixonada pelo traiçoeiro saxão. Também não entendia a sensação de esperança crescente por saber que o homem a quem ela amara tinha sido um padre preso à sua igreja e, melhor ainda, morto.

    

     - Em nome de Njord! O que aconteceu com você? - perguntou Olva quando Adelar, completamente ensopado, lhe estendendo o peixe.

     - Olhe só o que eu pesquei!

     Adelar não continha a satisfação nem os espirros que trouxeram Meradyce para junto dele com uma manta de lã. Aflita, ela o puxou para perto da lareira, lançando um olhar de reprovação para Einar.

     - Ele caiu na lagoa - explicou Einar, sem dar grande importância ao fato. - Não é nada que deva causar grandes preocupações a ninguém.

     - Olhe o meu peixe! - insistiu Adelar, soltando-se do abraço maternal de Meradyce.

     - É mesmo muito grande - disse ela - mas você precisa colocar roupas secas.

     - O peixe está morto? - perguntou Betha, sentada junto à lareira com um cachorrinho no colo, e revelando seu horror diante da morte de qualquer animal.

     - Claro que sim! - replicou Adelar, revelando seu desprezo diante da ignorância da irmã - Se vamos comê-lo, tem que estar morto, não é?

     Olva aproximou-se da Adelar.

     - Vamos logo, jovem guerreiro. Coloque as roupas secas antes que fique doente. - Ela completou antes que Adelar protestasse. - Se adoecer, terá de ficar em casa sem pescarias por um longo tempo.

     Deixando o garoto aos cuidados da maternal senhora, Meradyce voltou para seu lugar junto à lareira e recomeçou a costurar. Mantinha os olhos baixos, mas estava consciente da presença de Einar bem ao seu lado.

     - Gosta do meu cachorrinho? - perguntou Betha, estendendo seu mais novo bichinho de estimação para o alto guerreiro.

     Meradyce ergueu os olhos e notou o sorriso confiante da pequena Betha e o desconforto do cãozinho. Então, para sua surpresa, Einar sorriu afetuosamente.

     Ele ficava irresistível quando sorria!

     Segurando o cãozinho e a mão de Betha, Einar os conduziu para junto da lareira e sentando-se ao chão, colocou a garotinha no colo.

     - É um belo cão, já tem um nome?

     - Eu o chamo de Alfred, como o nosso rei. Meu pai vai fazer parte do Witan, sabia? Eles ajudam o rei a decidir como agir.

     Embora continuasse a costurar, Meradyce lutava para disfarçar o choque. Nunca imaginara que Kendric almejasse um lugar no Witan! Ele não era tão importante assim, pelo menos não ainda. Devia ter previsto que a ambição daquele homem o levaria a almejar um dos mais altos postos do país!

     - Sente falta de seus pais, Betha? - perguntou Einar, suavemente.

     - Um pouco, mas pelo menos Meradyce está aqui.

     - Sim. Pelo menos, Meradyce está aqui.

     Ela sentiu uma onda de prazer ao ouvir as palavras de Einar, ditas em uma voz quase terna. Era como se ele também se alegrasse com sua presença na aldeia.

     Olva retomou a sala, trazendo roupas secas para Adelar e, ao ver Einar e Betha distraídos com o cãozinho, sorriu maternalmente.

     - Vocês dois são idênticos em sua mania de trazer bichos de estimação para casa. Cavalos, cachorros, passarinhos ou qualquer animal ferido. Lembra-se do peixe, Einar? Como você o chamava?

     Einar olhou para Meradyce e virou os olhos numa expressão de fingida exasperação.

     - Chamava-se Pintado, mãe.

     Olva sentou-se ao lado de Meradyce, rindo.

     - Ele encontrou o peixe preso em alguns galhos na beira do rio e usou minha panela mais nova a fim de carregá-lo para casa. No dia seguinte, Svend voltou de uma viagem, eu ainda era casada com ele, entende? Einar foi ver os homens descarregarem o navio e eu fui buscar lenha. Quando voltamos, o peixe estava limpo e preparado para o jantar. Nenhum de nós dois pensou em prevenir Svend a não tocar naquele animal de estimação!

     Meradyce tentava não rir, diante da expressão lamentosa de Einar, mas não teve sucesso.

     - Einar passou uma semana sem falar com o pai.

     Naquele momento, Endredi entrou em casa. Seu sorriso alegre desapareceu ao ver Betha no colo do pai.

     - Oh, Endredi! - exclamou Olva, com um entusiasmo excessivo.

     - Conseguiu um bom arenque salgado?

     Einar levantou-se, afastando Betha. Enquanto o cachorrinho, finalmente livre dos braços da garotinha, corria pela sala, ele dirigiu-se para a porta e saiu de casa sem emitir uma única palavra.

     Não dissera nada à filha, nem sequer a cumprimentara, mais uma vez.

     Vendo a mágoa no rosto da jovem, Meradyce levantou-se. Era impossível continuar calada e, seguindo um impulso, ela saiu atrás de Einar.

     A noite caíra e sons altos chegavam do salão na casa de Svend, indicando que a maioria dos guerreiros já estava reunida para tomar cerveja e ouvir o contador de histórias.

     Olhando à sua volta, Meradyce não avistou ninguém e se apressou a seguir Einar que já entrara em sua casa.

     Com o queixo erguido num gesto determinado, ela entrou sem bater. Einar já acendera uma lamparina e estava tirando a túnica quando a viu parada à porta.

     - Em nome de... - ele hesitou por um segundo e depois terminou de despir a túnica. - O que quer aqui?

     - Por que você ignora Endredi?

     A luz tremulante da lamparina dava um tom dourado ao peito musculoso de Einar e seus cabelos prateados brilhavam com prata polida, mas a sombra cobria parte do rosto, impedindo-a de ver a expressão dos olhos.

     - O meu comportamento não é da sua conta.

     - Você a magoa muito. Endredi o ama demais.

     Nitidamente irritado, Einar apanhou uma garrafa de vinho e encheu a caneca, sem nada dizer.

     - Entendo que você a culpe pela morte da mãe, mas não é justo. Está castigando-a por um incidente pelo qual ela não foi responsável.

     Einar tomou um gole antes de responder.

     - Você se julga tão certa de que sabe tudo.

     Ela deu um passo à frente. Sua preocupação com a felicidade de Endredi a impedia de pensar em mais nada.

     - Eu já encontrei esse tipo de situação antes, quando uma mãe morre de parto.

     - E você também sabe o quanto amei a mãe de Endredi?

     Meradyce controlou uma inesperada pontada de ciúme.

     - Sei que deve ser difícil para você, mas não pode nem cumprimentá-la?

     - É uma tortura até mesmo estar perto dela.

     - Estou lhe pedindo isso pelo bem de Endredi.

     Agora, Einar estava muito perto e ela podia fitá-lo nos olhos.

     - Você não entende nada.

     A amargura na voz de Einar assustou Meradyce.

     - Quando Endredi nasceu, eu já odiava a mãe dela.

     - Por quê? - perguntou Meradyce, suavemente.

     - Endredi não é minha filha.

    - Mas você a reconheceu como tal.

     Meradyce não compreendeu mais nada. Certamente, um guerreiro viking rejeitaria uma criança que julgasse não ser sua!

     - Pouco antes de morrer, minha esposa me confessou que a filha não era minha. - Ele deu uma gargalhada amarga. - Entretanto, Nissa mentia como as outras pessoas respiram e eu não podia ter certeza de nada. Essas últimas palavras foram uma atitude querendo me...

     Einar virou-se de costas· para Meradyce, sem terminar de falar.

     - Ela queria magoá-lo?

     - Exatamente.

     - E por quê?

     - Ora!- Ele encolheu os ombros, num gesto de perplexidade. - Por que uma mulher tenta magoar o marido?

     - Talvez porque ele a tenha magoado antes.

     Ele virou abruptamente para encarar Meradyce.

     - Você tem mesmo certeza de que é a dona de verdade, não? Pois desta vez, engana-se redondamente! Nunca a magoei porque a amava muito, até a loucura. Tarde demais, descobri como era realmente a mulher a quem escolhi para viver pelo resto de minha vida. Nissa era uma vagabunda! Dormia com qualquer homem que a olhasse duas vezes e só se casou comigo porque eu era o filho do chefe desta aldeia. Também porque queria ser olhada com pelas outras mulheres a assim atrair o maior número possível de amantes.

     Meradyce ouvia a dor escondida atrás de amargura de voz de Einar e se compadeceu.

     - Eu sinto muito, Einar.

     - Agora sabe por que não rejeitei Endredi. Pode ir embora,

     - Foi essa a única razão para erguê-la do solo após o nascimento?

     - Claro que sim.

     Mas Meradyce o vira com Betha e com Adelar.

     - Você está mentindo.

     Enfurecido, Einar a segurou com brutalidade pelos braços.

     - Ninguém me acusa de mentir!

     De nada adiantava tanta rispidez porque Meradyce já não mais o temia. Na verdade, ela sabia que nunca mais sentiria medo daquele homem.

     - Você sentiu pena da menina, não foi? Tão pequenina, no chão, e à espera que você determinasse sua honra ou sua vergonha.

     Ele a soltou, virando-se novamente de costas.

     - Sim, foi isso.

     Meradyce aproximou-se dele e tocou suavemente seu braço.

     - Eu não tinha compreendido, Einar.

     - E agora acha que compreende? - Ele virou-se para fitá-la. - Sabe o quanto me custa olhar para Endredi, procurando parte de mim ou de algum outro homem, em seus traços?

     A última resistência contra Einar dissolveu-se no coração de Meradyce. Sem que percebesse ainda, sua adoração por um homem já morto também se desvaneceu.

     Ela colocou os braços em torno de Einar, ansiosa por confortá-lo, querendo compreender melhor sua mágoa.

     - Agora também sabe porque jamais me casarei outra vez - suspirou Einar, ignorando a ternura do gesto dela.

     Ao ouvir o tom de finalidade na voz dele, Meradyce sentiu lágrimas brotarem em seus olhos.

     - Nunca?

     Diante da inesperada tristeza refletida pelo rosto mais lindo que Einar já vira em toda a sua vida, ele a beijou. Um beijo terno, pleno de meiguice, uma carícia mágica.

     Ela o desejava. Assim como o sol nascia todos os dias, Meradyce sabia que o queria em sua vida, para partilhar alegrias e tristezas, para ser sua esposa.

     - Fique comigo - murmurou ele, roçando os lábios no pescoço esguio de Meradyce.

     Se ao menos ela pudesse ter certeza de que era amada, de que não se tratava apenas de desejo físico ...

     - Você me quer para sua esposa, Einar?

     Quando Meradyce recuou para ver a expressão de Einar no momento dessa resposta tão importante, seus olhos refletiam triunfo e felicidade.

     Antes mesmo de responder, Einar viu apenas o triunfo e a certeza do poder naqueles olhos azuis.

     - Não. Não quero.

     Os ombros de Meradyce se curvaram antes que ela o empurrasse para longe.

     - Eu não direi nada a Endredi sobre a mãe dela - disse Meradyce, enquanto se encaminhava para a porta. - Entretanto, ela já não é mais uma criança e você deve revelar-lhe a verdade.

     - Meradyce!

     - Não pretendo mais falar com você, Einar.

     - Então vai se casar com Ull?

     - Não é da sua conta.

     Com uma postura altiva, Meradyce saiu da cabana de Einar, sem olhar para trás.

    

     Einar encarou Lars, sentado à sua frente na casa de banhos.

     - O que quer exatamente dizer com isso? Vai embora da aldeia?

     - Ingemar quer ir para Hedeby. - A voz de Lars era baixa mas determinada. - E eu vou com ela.

     - Mas voltarão antes do início do inverno, é claro.

     - Não. Nós não pretendemos mais voltar.

     - Não pode ser verdade. - Einar fitou o amigo, com incredulidade.

     - É verdade sim. Ingemar diz que não permanecerá na aldeia para ser humilhada. Ofereci-me para acompanhá-la e ela aceitou.

     - A mulher saxônia não fez nada para humilhá-la.

     - Você não entende nada mesmo, Einar. Não se trata da mulher, é você o problema.

     - Eu? Como posso ter humilhado Ingemar?

     - Você não a pediu em casamento.

     - Por Thor! Nunca lhe prometi que me casaria com ela! Até agora, isso não fez a menor diferença no nosso relacionamento.

     - Francamente, Einar! Para um homem inteligente, você pode às vezes ser muito obtuso! Ingemar ouviu suas palavras, mas manteve sempre a esperança de fazê-lo mudar de idéia. Acreditava na possibilidade de ser sua esposa até mesmo depois que o viu trazer a mulher saxônia para casa. Agora, convenceu-se de que você vai se casar com Meradyce e não quer estar na aldeia quando isso acontecer.

     - Então, leve Ingemar para Hedeby, se é tão importante assim. Mas volte para casa! Você é o melhor navegador de toda a região e é meu grande amigo.

     Diante do silêncio obstinado de Lars, Einar finalmente pressentiu algo mais naquela partida.

     - Você gosta muito de Ingemar. É por isso que está indo embora. Eu não tinha percebido.

     - Eu sempre a desejei, Einar. Também sabia que não teria chances enquanto ela acreditasse na possibilidade de um casamento com você.

     - Por que não se casa com ela e assim os dois ficam em nossa aldeia?

     Levantando-se, Lars jogou mais água nas pedras aquecidas da sauna.

     - Ingemar é tão orgulhosa quanto você, Einar. Ela não quer estar perto da mulher saxônia.

     - Vou sentir muito a sua partida, Lars - declarou Einar, percebendo que nada mudaria a decisão do amigo.

     - Eu gostaria que tudo pudesse ser diferente, Einar. Entretanto, quero Ingemar há tempo demais e, se for preciso abandonar meu lar e meus amigos para tê-la, eu o farei.

     - Svend vai ficar furioso.

     - Sei disso e ainda estou criando coragem para contar-lhe minha decisão.

     - Prepare-se para ouvir uma explosão. - resmungou Einar, reclinando-se de encontro às paredes aquecidas.

    Lars também se reclinou, mais calmo por ter revelado sua partida ao amigo.

     - Como partirei muito em breve, gostaria que você satisfizesse a minha curiosidade, Einar. Vai se casar com a mulher saxônia?

     - Não.

     - Lars se recusou a ficar? - perguntou Hamar, atônito.

     Ele não acreditara nos comentários sobre a partida definitiva de Lars, mas bastou um olhar para a fisionomia encolerizada de Svend para saber que era verdade.

     - Eu também não pude acreditar, filho. Só porque uma mulher quer ir!

     - Ele deseja Ingemar.

     - Ótimo! Pois que se case com ela e fique aqui! Por Odin! Ele é o homem! A mulher deve seguir o marido e não o contrário. Francamente, não sei o que está acontecendo com meus guerreiros. Estão ficando todos sem força ou masculinidade?

     Hamar era prudente demais para relembrar o pai, em especial naquele momento, de quantos esforços ele sempre fizera para agradar as mulheres. Vivia presenteando-as, até mesmo àquelas que já não eram mais suas esposas.

     - Como se não bastasse, temos essa situação ridícula entre Ull e Einar.

     - Einar não me parece especialmente interessado na mulher saxônia.

     - Por acaso, você é cego, Hamar? Não viu como seu irmão olha para essa mulher? Com todos os trovões de Thor! Ele parece um cão, babando diante de um pedaço de carne! E Ull está agindo como um adolescente apaixonado e imbecil!

     - Talvez ela escolha Ull e acabe logo com essa situação tensa.

     - Mulher alguma escolherá Ull se pode ter meu filho!

     Hamar disfarçou um sorriso.

     - É claro que não, pai. Entretanto, você sabe como Einar se sente a respeito do casamento. O que Olva acha?

     - Olva. - Svend virou-se abruptamente. - O que está acontecendo?

     O alarido de uma multidão se aproximava da casa de Svend. Pai e filho correram para a porta e pararam, surpresos.

     Usando as calças de Ull, Ilsa atravessava a rua principal da aldeia.

     Ela segurava a cintura larga demais com uma das mãos e seus passos eram determinados.

     Toda a aldeia acompanhava os movimentos da mulher que seguia o procedimento do divórcio. Alguns riam e gesticulavam enquanto outros franziam a testa, preocupados, sabendo que essa decisão de Ilsa poderia iniciar um feudo sangrento.

     - Onde está Ull? - perguntou Svend, autoritário.

     - Ainda não o vi hoje - respondeu Hamar. - Deve estar caçando.

     - Impeça Ilsa de continuar com essa loucura e trate de encontrar Ull o mais depressa possível. - Com o rosto contorcido pela raiva, Svend fitou o filho. - Também traga Einar e aquela mulher.

    

     Pouco tempo depois, Ilsa, Einar, Ull e Meradyce estavam em pé diante de Svend que assumira seu papel de senhor de toda a aldeia.

     Pelo canto dos olhos, Einar viu que sua mãe sorria, como se já soubesse qual seria a atitude de Svend.

     - Esta situação absurda tem de findar. - Svend encarou Meradyce, com raiva, e depois olhou para o filho. - Einar se casará com ela!

     - Não é justo! - bradou Ull, inconformado. - Você disse que ela podia escolher!

     - Está me desafiando, Ull?

     Svend levantou-se e sua figura emanava poder e autoridade.

     - Não. Eu só queria lembrá-lo de suas próprias ordens.

     - Tem toda a razão, Ull. - Svend voltou a sentar-se. - Entretanto, acabo de mudar as minhas ordens. Essa mulher será a esposa de Einar.

     - Exijo que a sua decisão seja colocada diante do Althing!

     Só os assuntos de extrema importância precisavam ser julgados por esse conselho que se reunia apenas uma vez por ano.

     - Tenho certeza que ninguém considera um simples casamento importante a ponto de merecer uma reunião do Althing - declarou Svend, calmamente. - A decisão foi tomada e não quero mais saber de discussões a esse respeito.

     Einar ouvira as palavras do pai, sem olhar para a mulher ao seu lado e que agora era sua esposa.

     Sabia que deveria ter erguido a voz e contestado a decisão paterna, afirmando que não queria se casar. Entretanto, se não estivesse disposto a lutar com Svend pelo comando da aldeia, não podia desobedecer mais nenhuma ordem.

     Ele convenceu-se de que esse era o único motivo para não protestar contra o casamento. Preferia ignorar as batidas rápidas de seu coração ou a sensação de que o sangue se transformara em fogo correndo nas velas.

     - O que está acontecendo? - perguntou Meradyce, nitidamente tensa e preocupada.

     - Você agora é minha esposa.

     - O quê? Não pode ser!

     - Svend acaba de me tornar seu marido.

     - Mas ele disse que eu era livre.

     - Não mais. Agora, você pertence a mim.

     - Isso quer dizer que a palavra de um viking só é boa até ele mudar de idéia? - perguntou ela, sem disfarçar a raiva e o desprezo.

     - Apenas quer dizer que o senhor da aldeia dá uma ordem e nós simplesmente obedecemos.

     Svend bateu com o punho cerrado no braço da cadeira, irritado com a conversa entre o filho e a mulher saxônia.

     - O que ela está dizendo?

     - Está lhe agradecendo por ter feito uma escolha sábia - respondeu Einar.

     - Ótimo. - Svend apanhou sua caneca de cerveja. - Então, o assunto está resolvido.

     Ull retirou-se da frente de Svend, enfurecido, enquanto Olva avançava.

     - Não há tempo de preparar a festa. Eu...

     - Chega! - explodiu Svend, - Eles estão casados e não quero mais ouvir nenhuma palavra sobre esse assunto!

     Segurando a mão de Meradyce, Einar a puxou para fora do salão.

     Só a soltou depois de entrarem na casa dele, agora o lar dos dois, e esperou pela raiva passional de que a sabia ser capaz.

     Os olhos de Meradyce não refletiam nenhuma outra emoção a não ser desprezo.

     - Os saxões e os vikings tem idéias muito diferentes a respeito de honra e dignidade.

     - Eu também não tive escolha, mulher.

     - Então, deixe-me ir.

     - Para que você possa se casar com Ull?

     - Não. Para que eu possa ser livre.

     - Eu não permitirei que vá. Você agora é minha esposa.

     Ele se aproximou da mesa e abriu uma garrafa de vinho. Precisava se ocupar ou não mais controlaria suas emoções. Como Meradyce podia estar tão calma? Não percebia que acabaria por provocar uma explosão de raiva?

     O rosto de Meradyce não traía seus sentimentos. No intimo, suas emoções se enfrentavam num conflito ainda sem vencedor. Por um lado, mal controlava o ódio pelos vikings que lhe davam a liberdade apenas para retomá-la com tanta facilidade. Algo acontecera para que o senhor daquele povo mudasse de idéia, mas ela ignorava o motivo.

     Por outro lado, sentia o impulso, que tentava arduamente dominar, de jogar-se nos braços de Einar e pedir-lhe que a tomasse sua mulher. Queria ser amada por ele, mesmo percebendo que se aborrecera com a decisão do pai pois não desejava esposa alguma.

     - Por que Ilsa estava usando calças de homem?

     A pergunta fora de contexto surpreendeu Einar. Então, lembrou-se que Meradyce não conhecia os costumes vikings.

     - Ora, ela queria divorciar-se de Ull.

     - E por quê?

     - Por sua causa, é claro.

     Apesar dessa informação, Meradyce mantinha a calma, parada junto à cama. A visão da mulher que incendiava seu desejo e agora lhe pertencia o deixava quase fora de si, mas era preciso manter o controle e agir como se suas emoções não estivessem envolvidas naquela situação criada por Svend.

     - Esse divórcio significaria problemas para a aldeia.

     - Então, meu casamento com você garante a paz?

     - Sim.

     Ele a viu se aproximar mais da cama, lutando contra uma volúpia crescente. Ele a queria com um ardor inextinguível! Na verdade, também precisava daquela mulher sedutora, como jamais precisara de ninguém em antes. Não desejava apenas um corpo sensual e vibrante em sua cama e sim alguém para partilhar sua vida, dividir alegrias e tristezas. A mulher que seria mãe de seus filhos.

     Esta mulher e nenhuma outra.

     E no entanto, não ousava confessar-lhe a verdade. Se o fizesse, admitiria uma fraqueza fatal. Mostraria que perdera o controle enquanto ela se mantinha fria e com todo o poder nas mãos.

     Perdido em seus pensamentos, Einar custou a perceber que ela soltava os laços da túnica, começando a se despir.

     - O que está fazendo?

     - Sou sua esposa. Você pode fazer agora o que planejou desde o início. Não lutarei mais.

     A voz era tão baixa e cheia de desprezo que, pela primeira vez, Einar sentiu-se derrotado por completo.

     - Pare.

     Meradyce já havia retirado a túnica e começava a soltar as fitas do corpete de algodão.

     - Por que devo parar? Não é a minha nudez que você quer? O meu corpo em sua cama para lhe dar prazer?

     Einar cerrou os punhos, desesperado. Nunca tivera de explicar seus sentimentos a mulher alguma. Até mesmo Nissa se deixara seduzir sem que fosse preciso uma única palavra de encorajamento ou a mais singela declaração de amor.

     - Não.

     Apenas uma palavra e nunca lhe custara tanto esforço emitir um som.

     Ela parou de soltar o laço do corpete e, lendo a incerteza nos olhos dela, Einar se aproximou.

     - O que aconteceu com o homem com quem você queria se casar?

     Os olhos de Meradyce brilharam de raiva e Einar sentiu-se menos desesperado. Pelo menos, ela ainda era capaz de sentir alguma emoção.

     - Como sabe disso?

     - Não importa. Era um padre? - A expressão chocada de Meradyce avisou-o que acertara em sua pergunta. - Sagrado demais para tocar seu corpo, não é?

     - Não se atreva a falar sobre esse homem! Você é apenas um bárbaro, um selvagem.

     Meradyce erguera a mão para agredir Einar quando viu a expressão que ele lutava para não revelar.

     - Mas você está com ciúmes!

     - Agora você é minha esposa. Farei com que esqueça todos os homens que conheceu.

     Incapaz de controlar a fúria desencadeada pelo ciúme, Einar a tomou nos braços, acariciando com ardor, enquanto rasgava o corpete fino.      '

     Meradyce podia continuar sonhando com o homem que não a possuíra enquanto ele a faria vibrar de prazer. Se aquela mulher não pretendia dar-lhe nada além de um corpo sensual, tomaria o que lhe pertencia por direito.

     - Pare! - gritou ela, conseguindo escapar dos braços de Einar. Ele se imobilizou como se o grito angustiado de Meradyce o tivesse transformado em uma estátua de gelo. Imóveis, os dois se fitavam, adversários empenhados em um combate mortal.

     Sem tentar cobrir os seios que escapavam do corpete rasgado, Meradyce o fitou, procurando a resposta desejada nos olhos de um cinza prateado. Einar desviou o olhar, incapaz de continuar lutando contra o desejo.

     - Você realmente me deseja, Einar?

     - Como? - ele a fitou, desorientado.

     - Svend ordenou que eu fosse sua esposa. Você me comunicou esse fato. Eu preciso saber a verdade, Einar. Realmente me quer ao seu lado para partilhar sua vida? Por favor, responda.

     - Sim.

   Já não era importante saber se a necessidade que sentia por Meradyce era força ou fraqueza. Com um movimento rápido, tomou-a novamente nos braços.

     - Eu quero que você seja minha esposa, preciso de você como do ar que respiro. Por favor, Meradyce. Seja a mulher com quem partilharei meus dias.

     Finalmente ele a beijou e a ânsia com que seus lábios buscavam uma resposta foi mais eloqüente que as palavras.

     Meradyce se entregou ao beijo, permitindo que todas as suas emoções viessem à tona naquela carícia singela. Vira os sentimentos se sobreporem ao desejo nos olhos de Einar e já não tinha mais dúvidas.

     As barreiras erguidas em tomo deles ruíam e ela sentiu-se envolvida por uma paixão da qual jamais se julgara capaz.

     - Por favor Einar, eu quero ser sua agora.

     Apesar do desejo intenso, Einar não queria se apressar. Desde que vira Meradyce, na casa de um saxão, sonhara com o momento de possuí-la. Passara noites sem dormir, imaginando-a em seus braços a vibrar de prazer e faria aquela noite se transformar em uma experiência inesquecível para ambos.

     Ele a conduziu até a cama e admirou o corpo perfeito, banhado pela luz dourada da lamparina, antes de tocá-lo com as mãos trêmulas.

     Ao ver o sorriso de prazer aumentar a beleza do rosto de Meradyce, ele mal conteve a escalada do desejo. Não a forçara a se submeter e a sua recompensa era senti-la vibrar com suas carícias, apagando para sempre as mágoas, a frustração e a raiva.

     - Não espere mais, amor - implorou ela, erguendo os quadris num convite sensual.

     Einar precisava controlar a ânsia, pois seu maior desejo era mergulhar naquele corpo de mulher e sentir que ela o envolvia com sua feminilidade. Entretanto, amara dezenas mulheres e muitas eram ainda virgens. Sabia que precisava levar Meradyce ao máximo da excitação antes do breve momento de dor.

     Ele voltou a acariciar o corpo que vibrava de desejo, desta vez com os lábios. Buscou os seios rijos e sugou os mamilos eretos até ouvi-la gemer de paixão. Acariciou as coxas esguias que se abriam ao seu toque, tentando esperar pelo momento da posse.

     Mas era impossível. Ele já controlava há tanto tempo um desejo que exigia satisfação.

     Einar a penetrou num movimento rápido e esperou que o gemido de dor se perdesse no silêncio da cabana. Então, inesperadamente, Meradyce ergueu mais os quadris e colocou as pernas em tomo da cintura dele.

     Era mais do que Einar podia suportar. Dominado pela volúpia, só existia agora a ânsia de seu próprio corpo, buscando o êxtase. Seus movimentos se tomaram mais primitivos e Meradyce o seguia, ávida pela descoberta do prazer total.

     Ela ouvia sua própria voz se erguer em uma melodia que cantava a paixão e o prazer físico, enquanto se afastava da realidade para mergulhar num mundo de sensações inebriantes. E quase não se reconheceu na mulher de paixões explosivas no momento em que ambos uniram suas vozes para celebrar o clímax.

     Por alguns instantes, os dois permaneceram em silêncio, maravilhados diante da perfeição com que seus corpos haviam se transformado em um só. Então, Einar acariciou o rosto de Meradyce, incapaz de acreditar que tanta beleza lhe pertencia.

     - Eu não a machuquei?

     - Não muito, meu marido - ela sorriu, antes de sua expressão ficar novamente séria. - Você teria se casado comigo se Svend não o ordenasse, Einar?

     - E você? Teria se casado com Ull?

     - Responda a minha pergunta primeiro.

   Ele virou-se de lado e começou a beijar o rosto que retratava a paixão saciada.

     - Por acaso vai ser uma dessas esposas que atormentam os maridos com perguntas constantes?

     - Eu preciso saber, Einar - murmurou ela, docemente.

     - E não posso desfazer sua dúvida porque realmente não sei, querida- respondeu ele, com toda a honestidade. - O meu casamento foi uma experiência amarga e eu não queria sofrer novamente. E você? Teria se casado com Ull se eu me recusasse a obedecer à ordem de meu pai?

     - Não seria justo, até mesmo para um homem como Ull, casar-me com alguém se meu coração pertence a outro.

     Einar a tomou nos braços para sentir as curvas suaves do corpo feminino se amoldarem ao seu.

     - E eu tenho seu coração, Meradyce?

     O olhar dela deu-lhe a resposta essencial para sentir que encontrara uma felicidade única.

     Então, Einar pressentiu que não estavam mais sozinhos na cabana.

    

     Com a rapidez de reação que o mantivera vivo em tantos combates, Einar desvencilhou-se de Meradyce e saltou da cama.

     - Quem está ai?

     Um movimento furtivo atraiu sua atenção.

     - Adelar?

     O garoto deu um passo à frente.

     - O que você quer?

     O brilho de uma lâmina cintilou nas mãos de Adelar, enquanto ele corria para Einar. O homem mais velho o desarmou com facilidade e os dois caíram ao chão onde o garoto ainda continuava a lutar, embora já sem esperanças de vencer.

     Enrolando-se em uma coberta de peles, Meradyce aproximou-se dos dois.

     - Solte-o, Einar.

     O viking largou o garoto que se ergueu, cambaleante, fitando Einar e Meradyce, alternadamente.

     - Por que agiu assim, Adelar? - perguntou Meradyce, em voz baixa.

     Com os ombros curvados, ele fixou os olhos no chão.

     - Responda, Adelar - insistiu ela.

     - Se ele a machucou, eu o matarei!

     - Einar jamais me faria mal algum como você não o faria, Adelar.

     - Mas... - o garoto a fitava sem esconder a ansiedade. - Você não o quer por marido, não é?

     - Sim, eu quero.

     - Ele é um viking! - protestou Adelar, quase gritando.

     - E eu sei disso.

     Observando a conversa dos dois, Einar viu-se diante de uma realidade insuspeitada. O garoto amava Meradyce, não como a uma mãe e sim como um amante!

     Mais uma vez, reconheceu a sabedoria daquela mulher de beleza incomum que tratava o menino como um homem enciumado e não como uma criança ciumenta. Embora a momentos atrás julgasse impossível, sentiu que seu amor por Meradyce aumentava ainda mais.

     - Venha comigo - ordenou Einar, que se vestira rapidamente. O garoto ia protestar quando reconheceu a autoridade de uma ordem categórica e o obedeceu.

     Einar o conduziu para fora de casa, até a clareira além da aldeia onde os guerreiros praticavam suas lutas corporais. O ar estava frio, mas suportável e, sentando-se sobre uma rocha, indicou que o garoto fizesse o mesmo.

     - Seus sentimentos e a sua escolha de mulher só lhe dão crédito, Adelar. Entretanto, Meradyce é velha demais para você.

     Adelar o encarou com raiva e uma ligeira nuance de ceticismo.

     - Você ainda é muito jovem é os melhores anos de sua vida se abrem à sua frente. Irá ter muitas mulheres antes de encontrar a companheira certa para casar.

     - Talvez esse seja o seu método. Não tem de ser o meu.

     Einar suspirou, antevendo que a conversa ia ser difícil.

     - Por que você quer Meradyce?

     - Não é da sua conta.

     - Então, eu mesmo darei a resposta. Você a quer porque ela é meiga, gentil, bonita e inteligente.

     - Por que me perguntou se já sabia os motivos?

     - Porque eu gosto dela por esses mesmos motivos.

     A expressão de Adelar permanecia dura e sem disposição de perdoar.

     - Se gosta dela, por que a violentou?

     - Não houve qualquer violência ou imposição no que aconteceu, Adelar. Eu a amei e Meradyce respondeu com amor. Ela me escolheu de vontade própria e não a forcei a se submeter.

   Adelar levantou-se, num salto, e seu rosto se transformou numa máscara de fúria.

     - É mentira! Eu ouvi os gritos dela! Não acredito em você!

     - Então, eu mesmo terei que lhe dizer a verdade.

     Einar virou-se e viu Meradyce caminhando na direção deles.

     - Sente-se, Adelar.

     O garoto hesitou, incapaz de esconder a rebeldia, até que se resignou a obedecer. Meradyce sentou-se ao lado dele e o fitou bem nos olhos.

     - Eu gosto demais de Einar, Adelar. Você o conhece bem e sabe que tipo de homem ele é.

     - Ele é um viking selvagem, um bárbaro!

     - Não! Está deixando o orgulho ferido falar, querido. Einar é um grande guerreiro, como você será algum dia, no futuro. É um homem leal, bom e incapaz de magoar uma mulher. Ele não me tomou a força. Eu me entreguei porque quis.

     - Talvez você seja capaz de esquecer quem é apenas porque deseja um homem. - A expressão de Adelar era de profundo desdém. - Eu nunca me esquecerei.

     Einar notou que Meradyce enrubescia. Por vergonha?

     - Os saxões não são melhores ou piores do que outros povos - interferiu Einar, já sem paciência com a obstinação do garoto.

     - Quer saber como encontramos sua aldeia, Adelar? O seu... _ ele hesitou antes de mudar de idéia e prosseguir - há um traidor no meio de seu glorioso povo saxão.

     - Você está mentindo.

     - Eu nunca minto.

     - Então, me diga quem é esse traidor!

     - Pergunte a seu pai.

     - Não acredito em você. - Novamente se levantando, Adelar cerrou os punhos. - Eu odeio você! Odeio vocês dois!

     Antes que pudessem detê-lo, Adelar correu de volta para a aldeia.

     Meradyce deu um passo para segui-lo, mas lembrou-se que o garoto precisava ficar sozinho e se reconciliar com os fatos. Então, voltou-se para Einar.

     - Havia mesmo um traidor entre nosso povo?

     Ele a tomou nos braços, reconfortando-a com o calor de seu corpo.

     - Sim.

     - Quem?

     - Kendric.

     Meradyce soltou uma exclamação de horror.

     - Kendric? E por quê? Por que ele trairia seu próprio povo?

     - Ele queria que matássemos uma pessoa. Pagou bem e ofereceu o saque de sua aldeia, uma recompensa rica e irrecusável.

     - Quem ele queria... - intuindo a verdade, ela cobriu a boca com as mãos, horrorizada. - Ludella! Kendric queria que os vikings matassem a esposa! Foi por isso que, ao olhar para o crucifixo em meu pescoço, você julgou que eu fosse à mãe das crianças. Oh! É difícil de acreditar mesmo se tratando de Kendric.

     - Você acredita em mim?

     - Claro que sim. Só acho que Adelar não precisaria saber.

     - Eu decidi que lhe contaria sobre o traidor antes de devolvê-lo aos pais. Adelar irá liderar seu povo, algum dia, e precisa saber que existem inimigos em toda a parte.

     Meradyce reconhecia que Adelar precisaria de ajuda, pois um dia seria o senhor de toda uma aldeia e também via qualidades de liderança semelhantes às de Einar naquele garoto ainda imberbe.

     - Mas precisa saber tudo e tão cedo?

     - Adelar tem força suficiente para encarar a verdade sem se desesperar. - Ele a beijou na testa. - Por favor, esta noite não quero falar de traidores.

     Ela sorriu, encantada com a ternura na voz de Einar.

     - Você não está envergonhada, não é?

     - Envergonhada?

     - De ser esposa de um viking?

     Meradyce hesitou e o coração de Einar parou de bater, temeroso de ouvir a resposta.

     - Adelar é muito veemente e por um momento senti que traía meu povo. - Ela o fitou, com amor. - Quanto à emoção que sinto por ser sua esposa, será sempre orgulho.

     - Eu também sinto um orgulho imenso em ser seu marido. - Einar a apertou nos braços, com paixão. - Vamos voltar para casa. Está muito frio.

     Os dois caminharam de mãos dadas em direção à cabana de Einar.

   - Pobre Adelar - comentou Meradyce, penalizada. - Ele estava tão furioso.

     - O ciúme é um sentimento arrasador, mas ele não passa de um garoto e logo esquecerá.

     - Espero que você esteja certo - declarou Meradyce, sem esconder a duvida.

     - Vamos para casa, mulher Está escurecendo e quero ir para a cama.

     - Para a cama? Por acaso, está cansado?

     - Nem um pouco. Aliás, a situação é bem outra.

    

     - Eu não vou sair daqui nua - afirmou Meradyce, enquanto Einar jogava água sobre as pedras aquecidas. - E também me recuso a pular dentro do rio depois de ter me aquecido aqui dentro!

     Uma nuvem de vapor se erguia na casa de banhos.

     - Mas é a melhor parte da sauna, querida. O choque da água fria faz com que nos sintamos ainda mais vivos.

     - Eu tenho outros modos de me sentir viva, muito obrigada!

     Ela encostou-se na parede aquecida, sentindo-se completamente relaxada pelo calor úmido da sauna. Se estivesse sozinha, seria capaz de dormir.

     Entretanto, Einar estava ao seu lado e ela ainda não se habituara à nudez gloriosa daquele guerreiro viking que era seu marido há tão poucas horas. Além disso, ele começara a acariciá-la, despertando um desejo intenso.

     Meradyce entreabriu os olhos e constatou, envaidecida, que ele também não resistia à sua nudez.

     - Sempre pensei que a sauna fosse um lugar próprio para relaxar - murmurou ela, deslizando os dedos pelos músculos da perna de Einar.

     - Eu não a convidei para vir à sauna com o intuito de relaxar, mulher. Se você não quer mesmo despertar seu corpo mergulhando no rio gelado tenho uma outra idéia sobre o que fazer.

     Suspirando de prazer, ela sentiu que as mãos de Einar refaziam os contornos de seu corpo, descobrindo as curvas e invadindo os recantos mais secretos.

     - E se alguém entrar aqui? - balbuciou ela, entre gemidos de prazer.

     - Terá de esperar até que nossa paixão seja saciada.

     - Einar? - Ela procurou resistir ao delírio que a afastava da realidade.

     - Sim?

     - Quantas mulheres você amou?

     - O quê?

     Ela se soltou dos braços de Einar, com um sorriso malicioso.

     - Sei que já possuiu muitas mulheres e...

     - Não foram tantas assim - interrompeu ele.

     - ...e eu gostaria de não ser tão inexperiente - prosseguiu Meradyce, recebendo com ceticismo a interrupção de Einar. - Queria saber dar-lhe mais prazer.

     - Eu me sentirei feliz em ensiná-la.

     Com movimentos lentos e sensuais, Meradyce se levantou, caminhando até uma parede iluminada pela claridade da única janela da casa de banhos. Então, virou-se de frente para Einar, permitindo que ele se deliciasse com a beleza de seu corpo nu.

     - Venha cá, Einar.

    - Você quer ir embora?

     Ele se aproximou rapidamente, disposto a convencê-la a ficar.

     Meradyce passou os braços em torno do pescoço dele e ergueu o rosto para ser beijada.

     - Quero que você me ame assim em pé.

     Com gestos ainda tímidos, ela começou a acariciá-lo, sorrindo.

     - Eu fiquei pensando nisso desde aquela noite.

     - Ah! Então você estava mesmo nos espiando! Eu sabia! Não foi uma atitude muito decente de sua parte, querida esposa.

     Meradyce enrubesceu.

     - Se você faz amor em público, deve esperar uma platéia - replicou ela, com um tom de censura. - Além disso, não percebi o que estava acontecendo no início.

     - E depois que descobriu, continuou olhando, certo?

     - Foi muito educativo - murmurou ela, colando seu corpo ao de Einar.

     - Eu usaria outras palavras para descrever o que acontecerá entre nós agora.

     Com um gemido de prazer, ele a encostou de encontro à parede.

    

     Muito mais tarde, Einar e Meradyce voltaram para casa e se surpreenderam ao encontrar a lareira acesa, um caldeirão de ensopado com um aroma apetitoso e o baú com as roupas dela que havia ficado na casa de Olva.

     - Minha mãe esteve aqui - disse ele, com o sorriso malicioso de um garotinho.

     - Ela não precisava ter tido tanto trabalho. - Meradyce abaixou-se para apanhar a capa que Einar jogara no chão. - Eu pretendia arrumar a casa, tão logo meu marido me deixasse algum tempo livre.

     - Então, a culpa é minha? - brincou ele, bem humorado. Agora sei que as mulheres se casam só para ter em quem por a culpa quando não fazem seu trabalho.

     - E que o trabalho da mulher se multiplica por dez quando ela tem um marido.

     - Mas aposto que a vida de casada tem suas compensações.

     Ela deu uma risada alegre e mudou de assunto.

     - Preciso agradecer Olva. Esta casa estava imunda!

     - É que eu não tenho escravos para fazer a limpeza e até agora, também não existia uma dona de casa por aqui.

     - Pensei que todos os vikings com posses mantivessem escravos. - Ela sentou-se ao lado do marido junto à lareira. - Por que você não os tem, Einar?

     - A minha mãe foi escrava em uma casa de saxões - explicou ele, subitamente sério. - Foi assim que conheceu meu pai. Quando Svend atacou a aldeia, Olva não fugiu dos bárbaros como os outros. Foi ao encontro do viking que julgou mais confiável e pediu-lhe que a levasse embora dali.

     - Eu não imaginava - murmurou Meradyce, surpresa.

     - É claro que não. A idéia de que alguém possa preferir a vida entre os vikings à dos saxões deve ser muito chocante para você.

     - Nem tanto. Obviamente, eu e sua mãe temos algo em comum.

     - Sem dúvida. Tem a mim e não posso imaginar algo melhor do que eu para duas mulheres partilharem.

     - Você é o mais convencido de todos os homens...

     - ...que a desejaram - completou ele, rindo. - Só que eu a conquistei e agradecerei aos deuses por isso pelo resto de minha vida.

     - Pois ainda o acho o mais arrogante e convencido - ela tentava parecer severa - de todos os homens!

     - Pensa assim só porque eu não a persegui como Ull e os outros. Na verdade, você é também arrogante e convencida.

     - Então, combinamos muito bem, marido.

     Einar já se levantara para experimentar o ensopado.

     - Está maravilhoso!

     - Isso quer dizer que Endredi esteve aqui.

     - Está insinuando que minha mãe não sabe cozinhar?

     - Não. Só estou dizendo que Endredi é uma cozinheira excelente.

     - Conheço tão pouco a minha filha - murmurou ele, pensativo.

     - Não é tarde demais para aprender, amor.

    

     - Era uma taverna. É só isso que eu sei - resmungou Lars. Acompanhado por Ingemar, ele abria caminho entre a multidão nas ruas estreitas de Hedeby.

     - E ele não ficou preocupado de ir sozinho a um lugar de saxões?

     - Não. - Lars avistou a hospedaria de Nils. - É ali que sempre ficamos. Vamos deixar nossas mochilas lá e depois sairemos para comer.

     - Era longe?

     - O quê? - perguntou ele, sem saber do que Ingemar falava.

     - A taverna dos saxões?

     - Não sei. Não perguntei a ele.

     Ingemar decidiu não fazer mais nenhuma pergunta sobre Einar e seu amigo saxão. Os dois estavam cansados, com fome e ela desconfiava que Lars começara a se arrepender de tê-la acompanhado.

     Na aldeia mais próxima à deles, tinham vendido os cavalos e comprado passagens em um barco que ia para Hedeby. Fora uma viagem muito longa e Lars ficara estranhamente calado a maior parte do percurso.

     Talvez estivesse arrependido de deixar os companheiros com quem crescera. Talvez temesse não encontrar um trabalho de tanta importância quanto ser o timoneiro dos navios de Svend. Talvez não acreditasse que ela fosse cumprir a promessa.

     Ingemar disfarçou um sorriso. Naquela noite, finalmente permitiria que Lars a possuísse e o induziria a satisfazer todos os caprichos e desejos mais secretos. Na manhã seguinte, ele teria esquecido qualquer possibilidade de se arrepender!

     Entretanto, Lars não podia esquecer que ela também renunciara a uma parte importante de sua vida. Iria perder muito de sua importância onde não soubessem que seu pai era Bjorn, o mais célebre construtor de navios vikings.

     Ela franziu a testa ao relembrar o momento em que se despedira do pai. Bjorn estava, como sempre, abstraído em uma nova idéia sobre a forma de um mastro para o navio de Svend.

     O pai não prestara a menor atenção às palavras dela e Ingemar também não se interessara muito pelo que Bjorn tinha a lhe dizer. O relacionamento deles sempre fora assim.

     Ingemar estava feliz por ter deixado a aldeia. Não toleraria ficar, sabendo que todos a examinavam, comparando cada detalhe de seu rosto e de seu corpo com a mulher saxônia.

     - Lars! - gritou uma jovem de cabelos ruivos quando ele entrou na taverna, acompanhado por Ingemar. - Você veio sozinho? Onde está Einar?

     Ingemar cerrou os lábios ao notar que a jovem era muito atraente.

     - Bom dia, Sigrid. Eu vim sozinho. - ele se interrompeu ao sentir que Ingemar lhe apertava o braço. - Vim com minha esposa.

     Sigrid sorriu para Ingemar que não devolveu a cortesia, mantendo-se com um sorriso altivo e distante no rosto de beleza fria.

     - Temos um ótimo quarto. Acompanhem-me, por favor.

     Os três cruzaram o salão da taverna e, para satisfação de Ingemar, todos os homens pararam de beber ou conversar para examiná-la com olhares lascivos.

     - É uma pena que Einar não tenha vindo - prosseguiu Sigrid quando chegaram à outra ala do edifício, onde ficavam os quartos.

     - Einar se casou - disse Lars.

     - Verdade? - exclamou Sigrid, sem disfarçar a surpresa.

     - E quando ele vier na primavera - prosseguiu Sigrid, olhando maliciosamente para Lars - trará a esposa?

     - Sem dúvida - replicou Ingemar, antes que Lars pudesse responder.

     Ela não conteve a satisfação ao constatar o olhar desapontado da jovem ruiva. Seu aparte a ajudara a diminuir a fúria do ciúme que a invadira ao pousar os olhos em Sigrid. Tinha certeza de que aquela mulher dormira com Einar!

     O ódio que sentia dele cresceu ainda mais, assim como sua determinação em se vingar.

     Induziria Lars a lhe revelar onde ficava a taverna que o mercador saxão freqüentava. Então, iria até esse lugar e contaria ao interessado a localização exata das crianças raptadas e da mulher.

     Ingemar mal esperou que Sigrid fechasse a porta do quarto para se despir com gestos lânguidos, sorrindo para Lars num convite irresistível.

    

     Ull puxou Siurt para fora da cama.

     As pragas de Siurt, acompanhadas pelos resmungos da esposa, não demoveram Ull.

     - Vamos depressa. Vista-se.  

     Siurt estava prestes a protestar quando notou a expressão do irmão. Ull estivera bebendo e não era possível dialogar quando ele se embriagava. A não ser que se quisesse brigar.

     - Está bem.

     Depois de se vestir rapidamente, Siurt seguiu o irmão até a beira do cais. Era uma noite sem lua, escura e fria.

     - Svend não devia ter dado aquela mulher para Einar - começou Ull, com raiva petulante.

     Suspirando, Siurt preparou-se para um monólogo entediante. Certamente, seu irmão iria desfiar um longo rosário de lamentações e a noite estava fria demais.

     - Svend não podia dá-la a você, mano. Ilsa levaria adiante o divórcio.       

     - Pois eu queria mesmo me ver livre daquela megera!

     - O pai dela ficaria furioso.

     - Nós daríamos cabo dele e de seus homens.

     Siurt sabia que era inútil argumentar.

     - De qualquer forma, já não adianta mais. O assunto foi resolvido.

     - Svend não pode mais continuar sendo o nosso comandante.

     - Einar não quer assumir a liderança.

     - Eu não estava pensando em Einar.

     - Por acaso - Siurt não disfarçava a surpresa - está sugerindo que você seria nosso líder?

     - Exatamente

     - Mas Einar...

     - Eu quero que Einar, Svend e todo o resto dessa linhagem maldita vá para o inferno!

     - Você não tem seguidores suficientes, mano. - Siurt tentava dissuadir Ull. - Seria tolice e loucura. É muito melhor iniciar uma outra aldeia a uma certa distância daqui. Eu o acompanharia...

     - Pois eu tenho um plano melhor que não depende dos idiotas desta aldeia fedorenta! Algo que nos dará mais poder do que você poderia imaginar.

     - Sobre o que está falando? - Siurt deu um passo atrás, assustado.

     - Se devolvermos as crianças raptadas ao pai ele ficará muito grato, certo?

     - Você quer o dinheiro do resgate?

     - Não. Eu quero apenas homens.

     - Eu não posso acreditar! Usaria saxões contra seu próprio povo?

     - Usaria quaisquer soldados contra Svend e seus filhos. Depois que eu assumisse o comando, não precisaria mais dos saxões.

     - E se eles não quisessem ir embora?

     - Nós os mataríamos.

     Ull estava convencido de que seu plano teria sucesso. O lorde saxão lhe daria armas e homens para se vingar do viking que raptara suas crianças. Depois que Svend e os filhos fossem executados, o povo da aldeia não ousaria reagir contra o novo chefe.

     Quanto aos soldados saxões, podiam voltar para sua terra ou morrer.

     - E a mulher?

     - Se o saxão quiser os filhos de volta - Ull deu um sorriso cruel - terá de entregá-la a mim. .

     - Mas Ilsa...

     - Ilsa pode ir para o inferno! Ela que volte para o lugar de onde veio! - Ull calou-se por um instante, cofiando a barba, pensativo. - Farei melhor! Usarei os saxões para atacar a aldeia do pai dela. É muito melhor ser o chefe de duas aldeias em vez de só uma, concorda?

     Na verdade, Siurt não concordava com o uso de saxões contra seu próprio povo, mas Ull sempre fora mais esperto do que ele. Se seu irmão acreditava naquele plano é porque tudo daria certo.

     - Quando pretende agir?

     Ull estremeceu de frio. O ideal seria esperar pela passagem do inverno, mas ele sentia-se impaciente demais para esperar pela primavera.

     - Partiremos algumas semanas antes do início da primavera, tão logo os gelos se romperem. Einar é sempre muito prudente e só fará sua viagem quando tiver certeza de tempo bom. Tomaremos à dianteira enquanto o idiota fica esperando!

     - Não temos um navio, mano.

     - Roubaremos um!

     Não havia mais como duvidar da determinação de Ull. A punição para o roubo de um navio era a morte e ele estava disposto a se arriscar. Siurt resignou-se a ajudar porque não lhe restava nenhuma outra opção.

     Siurt tinha certeza que, caso recusasse seguir o irmão, ele o mataria, livrando-se da única testemunha de seu plano insensato.

    

     Aconchegando-se mais nos braços do marido, Meradyce suspirou de felicidade. Quem poderia imaginar que todos os seus sonhos se realizariam ao lado de um marido viking?

     Fora de casa, o vento uivava como um lobo faminto. Einar lhe dissera que a maior nevasca até então estava prestes a cair.

     Ela esperava que o marido entendesse da alma humana tão bem quanto do clima e estivesse certo ao afirmar que não devia se preocupar com Adelar.

     O garoto continuava a ignorá-la, sem lhe falar ou sequer lhe dirigir um olhar. Tratava-a como uma traidora e, aos olhos de Adelar, talvez realmente o fosse. Einar tinha certeza que ele logo constataria sua felicidade ao lado de marido e se confirmaria com o casamento. Meradyce continuava incerta, sabendo que as emoções ignoram a razão.

     Einar moveu-se ao lado dela, prestes a acordar, e puxou-a para mais perto. Meradyce tinha certeza de que aquele dia começaria com momentos de delirante paixão, como todos os outros desde seu casamento.

     Então, ela ouviu um ruído à porta e sentou-se na cama. Einar acordou com o som e com sem movimento inesperado e ambos fitaram Svend que já entrara na cabana.

     - Sinto muito acordá-lo antes de o sol raiar, filho. Asa precisa da ajuda da sua esposa.

     O sorriso de Meradyce desapareceu quando Einar lhe traduziu as palavras do pai e ele notou a preocupação dela.

     - Há algum problema com Asa?

     Vestindo-se rapidamente, Meradyce evitou responder.

     - Vá chamar Endredi, Einar. Preciso dela.

     - Endredi?

     - Ela quer aprender a ser parteira e eu vou precisar muito dela.

     Einar levantou-se da cama, sem preocupar com sua nudez.

     - O que está acontecendo, Meradyce?

     - Asa vai ter gêmeos. É sempre um parto mais difícil.

     - Asa já sabe disso?

     - Não. - Meradyce preparava sua cesta de remédios. - Ela não abortou nem teve um parto prematuro demais e isso já é um bom sinal. Farei o melhor que puder.

     Ele acompanhou-a até a casa de banhos e depois seguiu com o pai para a casa de Olva a fim de chamar Endredi. Tinha certeza de que Meradyce saberia como ajudar Asa.

     Olva sorriu ao ver os dois homens entrarem em sua casa pouco antes do sol raiar.

     - Einar! Eu o tenho visto tão pouco ultimamente. E Svend! A que devemos essa honra?

    Ambos riram diante do tom zombeteiro de Olva.

     - Meradyce precisa de Endredi - explicou Einar.

     - Asa vai ter o bebê?

     - Ela vai ter os bebês agora? - perguntou Betha que se aproximara de Einar, com o cachorrinho no colo.

     Os três a fitaram, surpresos diante da fluência da garota em seu idioma.

     - Bebês? - exclamou Svend, perplexo. - O que a menina quis dizer com isso?

     Olva ignorou a pergunta de Svend, voltando-se para Adelar.

     - Endredi foi ordenhar as cabras. Por favor, encontre-a e avise que Meradyce precisa dela, Adelar.

     Quando o garoto passou perto da lamparina, Einar se assustou com o ódio ainda ardente nos olhos dele.

     Agora percebia que devia ter dedicado algum tempo para o garoto, acostumado à sua companhia para caçar, pescar e se exercitar nas lutas vikings. Entretanto, era justo que um homem não quisesse se afastar do lado da esposa nos primeiros dias do casamento. Ouvira Olva comentar que Adelar estava passando muito tempo com Thorston e não pensara mais no assunto.

     - O que a menina quis dizer com "bebês"? - insistiu Svend.

     - Meradyce acha que Asa vai ter gêmeos - explicou Einar ao pai.

     - Por Odin! Eu nunca tive filhos gêmeos!

     - Nem está tendo agora - interferiu Olva, ferina. - É Asa quem vai passar pela dor do parto. Por que não corre até a casa de banhos para ver se precisam de algo como mais cobertores ou comida, Svend?

     - Ela não me disse nada que ia ter gêmeos - murmurou Svend, maravilhado.

     - Asa não sabe ainda.

     - Em nome de Freyja! Por que não?

     - Meradyce não quis preocupá-la.

     Só então, Svend se deu conta que Asa estaria correndo perigo de vida e aproximou-se do filho, com um sorriso preocupado.

     - Agora, admito de coração que você fez bem em não matá-la, Einar.

     - Irei até a casa de banhos, perguntar se elas precisam de algo mais - disse Einar, saindo rapidamente da cabana.

     - Sobre o que ele estava falando, Svend? - perguntou Olva, exigindo uma resposta. - Por que mataria Meradyce?

     - O seu filho não obedeceu minhas ordens. Ele é parecido demais com você, Olva.

     Svend sentou-se junto da lareira e Olva, embora pronta para protestar, calou-se a fim de satisfazer sua curiosidade.

     - Einar também é seu filho. Por que lhe deu ordem para matar Meradyce?

     Ele suspirou, sabendo que não seria deixado em paz enquanto não explicasse tudo a Olva.

     - Um lorde saxão queria que matássemos sua esposa e, como estava oferecendo uma boa fortuna, aceitei o negócio.

     - Desde quando você começou a matar mulheres, Svend? - perguntou Olva, com um olhar sombrio.

     - Desde nunca, visto que Meradyce está viva.

     - Graças a Einar.

     - Exatamente e, como você disse, ele é meu filho e sabe reconhecer uma mulher excepcional ao primeiro olhar. Ainda bem que não a matou porque seria a pessoa errada.

     - Oh! Agora entendo! Era a mãe das crianças que vocês deveriam matar, não?

   - Sim.

     Os dois permaneceram em silêncio, por alguns minutos, perdidos em seus pensamentos. Então, Olva o acompanhou até a porta pois Svend finalmente se decidira a ir até a casa de banhos ver a jovem esposa. Como todos os homens, relutava em se aproximar das mulheres nos momentos difíceis.

     Olva permaneceu à porta, admirando a luz rosada da madrugada que surgia e pensando no dia em que seu filho estivesse aguardando o filho por nascer.

     Nenhum dos dois prestara atenção em Betha, sentada na cama com o cachorrinho no colo, e uma expressão de profundo horror em seu rosto infantil diante da certeza de que seu pai desejara matar sua mãe.

    

     Meradyce sorriu diante da felicidade de Svend que erguia as duas crianças recém nascidas do chão.

     Os bebês eram bastante grandes, apesar de terem nascido quase um mês antes, e o parto fora muito difícil, mas Asa estava bem e ela e os filhos sobreviveriam.

     Embora já esperasse um bom desempenho de Endredi, a garota a surpreendera com sua sensibilidade, ajudando-a sem que fosse preciso pedir ou explicar os procedimentos. Cheia de energia, dera banho nas crianças e agora preparava seu berço.

     Depois de receber os agradecimentos entusiásticos de Svend, Meradyce finalmente foi ao encontro de Einar. A neve começara a cair e o céu quase negro de nuvens pesadas tornava impossível saber se era noite ou se a madrugada já chegara ao fim.

     - Está tudo bem com Asa? - perguntou ele, sem poder ver a expressão da esposa.

     - Sim. Mãe e filhos são saudáveis e Svend nem tenta esconder o orgulho de ser pai de gêmeos. Mais dois meninos. - Ela se aconchegou no abraço carinhoso do marido. - Exatamente quantos filhos ele tem?

     - Hamar é o mais velho, filho da primeira esposa de Svend. Depois, casou-se com Olva e vem o melhor de todos.

     - Você, é claro!

     - Sem dúvida. Então, nasceram três meninas e mais dois meninos com sua terceira esposa. A quarta, Vedis, de quem nunca se divorciou, teve quatro filhas e três filhos. Ela morreu de parto com a criança. A quinta, com quem ainda é casado, é Brynhild.

     - Aquela bem pesada?

     - Sim. Ela tem três filhos homens.

     - E está grávida outra vez.

     - Verdade? Com Brynhild é difícil saber. Ela sempre parece grávida de nove meses!

     - E a sexta esposa?

     - Oh, ela se divorciou no instante em que descobriu as outras esposas de meu pai, com quem teria que partilhar a casa e o marido.

     - Asa não se importa com as outras esposas dele?

     - Não. - Einar franziu a testa, perplexo. - Acho que Svend realmente gosta de Asa. Nunca o vi tão encantado com uma outra mulher antes.

     - Olva me disse algo parecido, outro dia. Sobre você.

     - Deve ser o ar do inverno - disfarçou ele, embaraçado demais para confessar seu amor longe da intimidade da cama.

     Ela o beliscou com força.

     - Ei! Por que essa agressão sem motivo?

     - Deve ser o ar do inverno, querido.

     Meradyce sentia-se delirantemente feliz. Nunca fora tão livre para brincar e rir, como se ao se tornar adulta e mulher, tivesse recuperado a alegria da infância.

     - Ainda bem que você está aqui, Meradyce.

     Os dois estavam caminhando para casa e Einar interrompeu a marcha para beijar a esposa.

     - Não digo isso apenas por pensar na minha felicidade. Se algo acontecesse com Asa, meu pai ficaria desesperado.

     - Meradyce!

     Os dois se viraram ao ouvir a voz de Olva. Ela fora até a casa de banhos e prometera voltar com uma sopa, mas corria na direção deles, sem nada nas mãos.

     - O que aconteceu? - perguntou Meradyce, soltando-se dos braços de Einar.

     - As crianças! Adelar e Betha desapareceram!

     - De... desapareceram? - balbuciou· Meradyce, chocada. - Como?

     - Eu os deixei dormindo quando fui ver Asa. Thorston estava no salão com os outros homens e eu sabia que não demoraria a voltar da casa de banhos. Quando retomei, os dois não estavam mais na cabana.

     Antes que Meradyce recuperasse a fala, Einar afastou-se com passadas longas.

     - Os dois não podem ter se afastado limito da aldeia - avisou ele, olhando por sobre o ombro para a mãe e a esposa que não continham a preocupação.- Nós os encontraremos.

    

    Betha agarrou-se à capa de Adelar, embora já mal sentisse os dedos enregelados.

     - Estou cansada - lamentou-se ela, batendo os dentes de frio. Adelar virou-se para. a irmã, tropeçando na capa longa demais para sua altura.

     - Ainda não nos afastamos o bastante, querida. - Ele se assustou com o cansaço excessivo da irmã.- Não se preocupe. Thorston disse que existem inúmeras cabanas usadas pelos pastores, espalhadas pelas redondezas da aldeia. Logo encontraremos uma e você poderá descansar.

     Betha concordou com um gesto de cabeça e recomeçou a andar.

     Parecia-lhe que haviam se passado tantas horas desde que Adelar a acordara e dissera que iriam voltar para casa!

     Ela o fitara com surpresa e receio, ao ouvir os planos do irmão. Na verdade, não sentia a menor vontade de voltar para casa. As saudades da mãe eram menos intensas do que a lembranças das brigas terríveis dos pais. Ela sempre soubera que os dois não se gostavam como os outros casais, mas ficara chocada e horrorizada ao descobrir que o pai pagara uma enorme soma para os vikings o livrarem da esposa.

     Não podia contar a Adejar o que ouvira. Tinha de poupá-lo da dor que sentira ao saber a verdade. Então, vira a expressão determinada no rosto do irmão e admitira que era inútil protestar, pois ele iria, com ou sem a companhia dela!

     Concordara em partir, embora Adelar não tivesse mencionado os detalhes da viagem de volta ao lar. Agora, seus pés estavam gelados e mal conseguia mover as pernas. A neve, que caia como uma leve nuvem de algodão ao saírem da aldeia, se transformara em uma nevasca forte e era quase impossível distinguir Adelar ao seu lado.

     Quando ela achou que não poderia mais prosseguir, Adelar parou de andar. Ouviu o irmão mexer em algo feito de madeira e, segundos depois, viu-se dentro de um casebre mal cheiroso.

     - Sente-se - ordenou ele.

     Betha obedeceu, aceitando a capa do irmão, mesmo sabendo que ele precisava muito daquele agasalho. Sentia frio demais para recusar a oportunidade de se esquentar um pouco.

     Aos poucos, seus olhos se acostumaram com a escuridão e viu que Adelar se ajoelhara junto ao circulo de pedras no centro do casebre, tentando acender um fogo.

     Finalmente, após muitos esforços, ele conseguiu uma débil chama e Betha, aliviada, aproximou-se para se aquecer mais.

     - Não chegue muito perto - avisou ele. - Você está molhada e as gotas de sua roupa acabarão por apagar o fogo. Vou arrumar mais lenha e então você pode se aproximar bastante.

     Sentada a alguns passos do fogo mortiço, Betha olhou ao seu redor. Havia um banco quebrado e Adelar o despedaçou a fim de colocar junto à palha e os gravetos junto às pedras.

     - Vamos precisar de mais - resmungou ele, incapaz de disfarçar o cansaço da voz. - Mas deixarei para mais tarde.

     Depois de retirar um pedaço de pão da mochila, Adelar sentou-se ao lado da irmã.

     - Coma.

     Ela estava cansada demais até para comer e só o fez porque algo na voz de Adelar a impelia a obedecer. Surpresa, percebeu que sentia-se menos cansada depois de ter devorado todo o pão.

     - Para onde estamos indo?

     - Eu já lhe disse. Para casa.

     - Mas como?

     - Ouvi as conversas de Thorston e fiz uma porção de perguntas. Sei que há uma aldeia bem próxima onde alguém nos ajudará.

     - E por que nos ajudariam?

     - Porque temos muito dinheiro.

     Adelar mostrou a saco, presa em seu cinto e fez as moedas tilintarem para a irmã.

     - Onde conseguiu esse dinheiro?

     - Não importa.

   - Você roubou, Adelar!

     - E dai? - Adelar fez uma careta para a irmã. - Eles também nos roubaram.

     - Thorston não estava com eles - corrigiu a menina, suavemente.

     - Nós precisamos de dinheiro para conseguir voltar para casa.

     - Quanto tempo vamos ficar aqui? - perguntou Betha, com medo dos animais que deviam ser os donos daquele casebre abandonado.

     - Até a nevasca passar.

     - Pode demorar muito, muito tempo!

     Ele também temia essa possibilidade, mas não revelou seu medo a Betha. Na verdade, a emoção mais intensa e que aumentava a cada instante era a culpa.

     Teria errado ao trazer Betha? Ela era tão pequena e, no entanto, não podia deixá-la entre os vikings.

     Mas Betha se sentia tão feliz, junto de Meradyce. E o viking Einar lhes prometera levar de volta na primavera.

     Só que Einar não devolveria Meradyce! Ele roubara Meradyce da aldeia e depois de Adelar e Betha.

     Iria odiar Einar pelo resto de sua vida!

     Betha bocejou e, ao voltar sua atenção para a irmã. Adelar notou que ela continuava a tremer apesar do fogo, que já o aquecera bastante.

     - Deite-se e durma, Betha. Você precisa descansar.

    

     Acompanhado pelos dois cães de caça, Einar foi até as cocheiras e verificou que as crianças não tinham roubado nenhum cavalo. Isso indicava que estavam ainda mais perto, mas também significava maior perigo para elas, pois estavam a pé, tentando abrir caminho na neve.

     Ele voltou rapidamente para o salão na casa de Svend. A cortina branca de neve o impedia de ver as próprias mãos e a solução foi orientar-se pelos gritos e risadas que indicavam a direção com a infalibilidade de um farol.

     Praticamente todos os homens da aldeia tinham se reunido para ouvir o contador de histórias, esperando e já bebendo para comemorar o nascimento de mais um filho de Svend.

     - É um menino? - perguntou Thorston, assim que Einar entrou na sala.

     O sorriso desapareceu do rosto dos homens diante da expressão de Einar.

     - As crianças saxônias desapareceram - disse ele.

     - O quê? - Ull ergueu-se num salto, derrubando toda a cerveja.

     - Eu disse que as crianças saxônias desapareceram e temos de encontrá-las.

     - Está nevando muito- resmungou Siurt, embriagado. - Não conseguiremos enxergar nem os nossos próprios narizes.

     - Eu irei com você - ofereceu-se Hamar.

     - Eu também - declarou Ull.

     Einar nem tentou disfarçar a surpresa. Preferia manter distância de Ull, o último homem a quem pediria ajuda, mas precisava de muitos pares de olhos para descobrir aquelas crianças num mundo coberto de neve e sombras.

     Quando ele reuniu um bom número de voluntários, apressou-se a sair da casa de Svend e encontrou-se com Meradyce que vinha em sua direção.

     - Eu também vou.

     - De modo algum. A nevasca está forte demais.

     De volta à cocheira, Einar selava seu cavalo quando sentiu que o puxavam pela manga. Era Meradyce, com os cabelos negros cobertos de neve e uma expressão de intensa angustia.

     - Preciso ajudar, Einar. A culpa é toda minha.

     Ele suspirou, também se sentindo torturado pelo remorso e por um incontrolável temor. Embora não houvesse qualquer nuance de censura nos olhos de Meradyce, ele se sentia o maior culpado. Se tivesse deixado as crianças em paz, conforme as ordens de Svend, Adelar e Betha estariam em segurança ... ao lado de um pai que pagava friamente pela morte da esposa e traía seu próprio povo ..

     Uma onda de raiva o envolveu ao pensar na injustiça divina. Um homem do tipo de Kendric não merecia um filho como Adelar.

     - Sinto muito, Meradyce. Você não vai.

     Ela olhou para o homem que amava e reconheceu que era inútil insistir.

     - Então, os encontre depressa e traga-os para mim.

     - Sim.

     Einar saltou sobre o cavalo e, seguido por seus cães fiéis, desapareceu na escuridão da noite.

    

     - A culpa é toda minha - lamentou-se Meradyce, ainda mais uma vez.

     Indiferente ao vento gelado e à neve em seu rosto, ela permanecia parada à porta da casa de Olva, tentando avistar algum movimento na escuridão.

     - Eu sabia que Adelar estava atormentado, mas pensei que fosse passar com o tempo.

     Olva se aproximou, abraçando-a carinhosamente.

     - Nós todos achamos que ele iria superar a raiva. Quem poderia imaginar que o garoto fosse tomar essa atitude insensata?

     - Eu devia ter previsto. Se estivesse pensando nele e menos em mim.

     Por quantas vezes, naquela longa noite, Meradyce se acusara de ter se esquivado da responsabilidade? Esquecera-se de seu dever para com as crianças, permitindo que a descoberta do prazer se sobrepusesse a tudo mais.

     - E eu não podia tê-los deixado sozinhos em casa - declarou Olva.- Todos nós temos nossa parcela de culpa, Thorston se recrimina por haver mencionado a existência de uma aldeia próxima e por se esquecer de trancar o cofre.

     - Adelar devia estar desesperado demais ou não roubaria.

     - Então, não creio que você conseguisse impedir a fuga dos dois, Meradyce.

     A neve se erguia como uma cortina açoitada pelo vento e uma visão terrível surgiu na mente de Meradyce. Ela via Adelar e Betha enregelados, com os lábios azulados de frio.

     - Será que essa nevasca não vai terminar nunca? - gritou ela, desesperada.

     - Os homens foram a cavalo e, por serem mais rápidos, logo encontrarão as crianças.

     - Se eu pudesse ajudar...

     - Reze para o seu deus, querida. Eu pedirei a ajuda de Freyja.

     A nevasca amainara durante o breve momento de claridade quase imperceptível que anunciava a aurora. Entretanto, o vento continuava a soprar com violência e Ull parou seu cavalo no pasto de verão, tentando avistar algum vulto em meio à paisagem de colorido uniforme.

     Ele amaldiçoara aquelas desagradáveis crianças que o haviam forçado a sair de casa em plena tempestade de neve: idiotas!

     Esperava que fossem encontrados, e o mais depressa possível. Se morressem, arruinariam seu plano. Precisava da ajuda do lorde saxão para derrotar Svend e os filhos.

     Completamente ensopado e com fome, Ull decidiu não continuar mais procurando as malditas crianças. Voltaria para casa a fim de trocar de roupa, comer e descansar. Se fosse preciso, recomeçaria a busca mais tarde.

     Durante o percurso de volta, ele avistou as silhuetas dos outros homens se movendo a distância. A busca continuava sem necessidade de sua ajuda, portanto, podia descansar um pouco. Então, divisou entre os montes de neve os contornos do casebre usado pelos pastores durante o verão e que estava quase todo encoberto pela neve.

     Ull saltou do cavalo e entrou, sabendo que encontraria o casebre vazio. Então, para sua surpresa, sentiu que as pedras no centro do aposento ainda guardavam muito calor.

     Seus lábios se curvaram num sorriso. Se encontrasse as crianças, Svend o recompensaria. Além disso, como os dois pirralhos deviam estar com frio e fome, agradeceriam sua ajuda e até começariam a confiar nele o que tomaria mais fácil levá-los de volta ao lar na primavera.

     Ele saiu do casebre, procurando rastros na neve, sem qualquer sucesso. Ou o garoto saíra com a irmã antes de a neve parar de cair ou era bastante esperto a ponto de cobrir as pegadas dos dois. Ull não acreditava que um adolescente saxão tivesse a malícia de um viking adulto!

     Voltando para junto do cavalo, Ull tentou se decidir por onde deveria recomeçar a busca. As crianças não podiam estar longe.

     Já que estavam por perto por que ele não podia descansar um pouco no casebre ainda aquecido? Por que não tomar um pouco do vinho que trouxera para afastar o frio?

     Afinal, alguns minutos não fariam a menor diferença.

     Escondido entre os galhos mais baixos de um grupo de pinheiros, Adelar acompanhava os movimentos de Ull. Ele e Betha haviam se esgueirado bem junto ao chão para se esconder do viking. Embora a terra estivesse úmida e gelada, julgara mais prudente se esconder do que tentar fugir.

     Vira Ull entrar no casebre e hesitara, sem saber se deviam ou não continuar a fuga. Então, decidira que era melhor esperar até o viking montar em seu cavalo e retomar para a aldeia.

     Adelar olhou para a irmã, enrodilhada ao seu lado como um dos gatinhos que ela tanto amava.

     Betha demorara muito tempo para se aquecer, na noite anterior.

     Quando ela finalmente adormecera, Adelar mal fechou os olhos e viu, com a chegada da madrugada, que a neve estava prestes a amainar. Imediatamente, concluiu que deviam sair do casebre enquanto ainda nevava, pois assim seus rastros seriam encobertos.

     O difícil fora acordar Betha, mas ele sabia que a pobre garota estava muito cansada da caminhada. Finalmente, a pobrezinha sentou-se na cama com o rosto ainda corado de tanto dormir.

     Os dois acabavam de sair do casebre quando ouviram o tropel de um cavalo. Adelar avistou os galhos baixos dos pinheiros e apressou Betha. Precisavam chegar rapidamente ao novo esconderijo. Ele cobriu-a de novo com sua capa e esperou que o viking de barba e cabelos vermelhos partisse.

     Depois de um longo tempo, Ull saiu do casebre e Adelar suspirou, aliviado. O garoto teve ainda um momento de puro pânico quando viu o viking dirigir o olhar para os pinheiros e examinar os galhos baixos como se os pudesse ver.

     Finalmente, Ull montou em seu cavalo e se afastou na direção oposta. Adelar ainda esperou alguns minutos e só então pousou à mão no braço da irmã.

     - Vamos, Betha. O caminho está livre e podemos continuar.

     Betha moveu-se preguiçosamente, mas não abriu os olhos.

     - Acorde! Precisamos ir embora daqui! - sussurrou Adelar, aflito.

     Ela custava a acordar.

     Ao puxá-la para que se sentasse, Adelar notou o rosto muito vermelho em tocando a testa da irmã, sentiu que ela ardia de febre.

     - Betha! - Desesperado, ele apoiou a cabeça da irmã em seu ombro. - Pelo amor de Deus! Acorde!

    

     Einar estava com muito frio, molhado, exausto e faminto, mas continuou a busca. Não suportava a idéia de voltar para casa sem as crianças e enfrentar o olhar desesperado de Meradyce.

     Ele examinou o céu e sentiu a alteração do vento que se tomava perceptivelmente mais frio. Voltaria a nevar dentro em pouco e a noite também não tardaria a chegar. Já passava de meio dia e, dentro de duas horas, a tarde invernal cairia, pondo fim ao breves dias daquela estação de sombras. Se não achasse as crianças enquanto ainda restava um pouco de luz.

     Enquanto percorria um bosque de pinheiros cujos galhos quase se dobravam com o peso da neve, Einar tentou não pensar nas duas crianças desamparadas em meio a uma natureza tão hostil. Onde aquele garoto tolo imaginava que conseguiria chegar durante o auge do inverno?

     Subitamente, os cães se detiveram, alertas. Einar avistou outro cavalheiro se aproximando e o chamou. Era Ull.

     No início daquela longa noite, de busca, Einar tentara imaginar por que motivo Ull se oferecera como voluntário para procurar as crianças. Agora, já não fazia a menor diferença.

     Ull cavalgou até junto de Einar

     - Eles passaram a noite em um casebre perto daqui.

     - Tem certeza?

     - As pedras ainda guardam o calor de um fogo apagado há poucas horas. Não creio que o casebre tenha sido usado por mais ninguém.

     - Mostre-me o caminho.

     Uma centelha de esperança surgiu em seu peito, afastando a sensação de desastre que começara a envolvê-lo após horas de busca infrutífera. Pelo menos, as crianças tinham passado parte da noite em um lugar aquecido.

     Os dois levaram alguns minutos até alcançar o casebre e Einar não perdeu um só segundo para entrar e tocar as pedras ainda quentes. Precisava calcular a quantas horas o fogo, que as aquecera, fora apagado.

     Certo de que as crianças haviam deixado o casebre há pouco tempo, Einar saiu, indo ao encontro de Ull.

     - Não viu nenhum rastro saindo do casebre?

     - Não havia nada. Ainda dei uma volta pelos arredores e...

     - Einar? - chamou uma voz, nitidamente desesperada.

     Os dois homens se viraram e avistaram Adelar que vinha na direção deles, carregando algo nos braços. O garoto já estava sem forças, prestes a cair e Einar correu para ajudá-lo.

     - É Betha. Ela não consegue acordar, acho que está muito doente.

   Einar retirou a garotinha dos braços do irmão e sentiu que o coração quase parava de bater em seu peito. Betha estava ardendo em febre, com a respiração ofegante e as roupas molhadas começavam a congelar em tomo do corpo inerte.

     - Oh, Freyja! - murmurou ele, mesclando um gemido de desespero a um pedido de ajuda.

     Rapidamente, seu lado racional superou a fraqueza do medo e ele assumiu o comando da situação.

     - Depressa! Temos de voltar para a aldeia! - Einar virou-se para Ull. - Carregue Adelar em sua garupa assim eu ficarei mais leve para conduzir Betha.

     Sem esperar pela concordância de Ull, Einar disparou a galope em direção à aldeia.

    

     Meradyce não conseguira descansar nem comer. Tomada pelo nervosismo, andava pela cabana, voltando à porta a cada minuto, devassando a escuridão da noite. Sabiamente, Olva não a admoestava ou insistia que se acalmasse, mostrando com o silêncio que partilhava a agonia da espera.

     Endredi já havia retornado da casa de Svend onde ficara até acomodar Asa e se unira à vigília desesperada das duas mulheres mais velhas. A jovem também era muito apegada a Betha e Adelar e não escondia sua angústia.

     Thorston se unira ao grupo de busca. Ele descobrira que faltavam algumas moedas de prata em seu cofre, mas Meradyce e Olva sabiam que ele não se importava com o dinheiro e sim com a vida das crianças.

     Como o fazia a cada minuto, Meradyce parou à porta, tentando divisar algum movimento na escuridão. Desta vez, ela soltou um grito de alegria e saiu correndo da cabana de Olva.

     Einar cavalgava em direção à aldeia com Betha nos braços. Sem se importar com a neve que recomeçara a cair pesadamente, correu ao encontro dele e avistou Ull, mais atrás, com Adelar na garupa do cavalo .

     - Oh! Einar! Você os encontrou!

     Então, ela viu a expressão do marido e, em pânico, olhou para Betha. O coração quase parou em seu peito.

     - Oh, meu Deus, deixe que eu carrego Betha.

     Einar atendeu ao pedido da esposa e acompanhou Meradyce que, agarrando o corpo inerte da garotinha, correu de volta para a cabana de Olva.

     - Ajude-me a tirar as roupas molhadas de Betha - pediu ela a Olva. - A pobrezinha está ardendo em febre e vou precisar de muita água.

     Parado à porta, Einar esperava pelo veredicto de Meradyce sobre o estado de saúde da menina.

     - Adelar também está doente?

     - Não.

   - Graças a Deus!

     Ela e Olva já haviam despido a garotinha e a cobriram com várias mantas de pele.

     - Preciso de minha cesta de remédios, Einar. Olva? Por favor, nos deixe sozinhas e não permita que ninguém mais entre na cabana.

     - Mas ... - protestou Olva, sem compreender.

     - A doença de Betha pode ser contagiosa.

     Einar empalideceu. Tinha se preocupado muito com a menina e agora começava a temer por Meradyce.

     - Contagiosa?

     - Sim. Por favor, vá depressa buscar a cesta de remédios que está em nossa cabana, Einar. E você Olva, tente impedir Adelar e Endredi de entrarem aqui. Eles vão insistir muito.

     Sem perder um segundo, Einar correu para buscar a cesta pedida por Meradyce. Durante o percurso de ida e volta, tentava convencer-se de que a doença não era contagiosa e que sua esposa logo devolveria a saúde da pequena Betha. Tudo voltaria ao normal.

     Enquanto corria de volta com os remédios, viu Adelar, ainda montado no cavalo. Ull já desaparecera, certamente em busca de calor e comida.

     - Desmonte e espere por minha volta, Adelar - ordenou ele, mal contendo a fúria.

     Em primeiro lugar, levaria os remédios pedidos por Meradyce. Então teria uma boa conversa com aquele moleque sem juízo.

    

     - Em nome de Odin! Onde achou que iria chegar?

     Einar tentou controlar a raiva, a fim de saber o que motivara aquele ato de perigosa insensatez por parte de Adelar.

     - Eu estava indo para a minha casa.

    Adelar já trocara as roupas molhadas e estava encolhido junto à lareira, na cabana de Einar.

     - Por terra? - zombou o viking.

     - É claro que não. Eu ia comprar passagens em um navio.

     - Durante o inverno? Você não pode ser tão idiota assim!

     - Não sou um idiota! - explodiu o garoto. - Sou um cidadão saxão, mantido prisioneiro contra minha vontade.

     - E quais eram seus planos para voltar à sua aldeia?

     - Thorston falou-se sobre Kaupang, no outro lado da costa. Ele disse que era uma cidade grande. Achei que encontraria alguém disposto a cruzar o mar, se eu lhe oferecesse muito dinheiro.

     Mais calmo diante da explicação do garoto, Einar se preocupou em vestir roupas secas. Ao saber da fuga das crianças, suspeitara que Ull tivesse participado desse plano absurdo, talvez desejando devolver Betha e Adelar ao pai a fim de receber o dinheiro do resgate.

     Aparentemente, ele se enganara.

     - Está me contando a verdade?

     - Sim - declarou Adelar, sem desviar os olhos.

   Einar acreditava na palavra do garoto. Depois de avivar o fogo da lareira, serviu dois copos de aguardente.

     - E onde pretendia arrumar o dinheiro para pagar pelas passagens?

     - Eu tinha algumas moedas.

     - Como as conseguiu? Ou melhor, onde as conseguiu?

     O garoto não respondeu.

     - Você roubou o dinheiro, Adelar?

     - Sim - respondeu o garoto, encarando Einar com coragem.

     Com firmeza, Einar obrigou Adelar a aceitar a bebida forte que lhe devolveria o calor do corpo.

     - Tome tudo ou acabará ficando doente como Betha.

     Ao ouvir o nome da irmã, toda a coragem de Adelar desapareceu e ele voltou a ser apenas um garoto desamparado.

     - O que aconteceu com Betha? Ela está mesmo doente ou é só um efeito do frio?

     - Não sei, rapaz - respondeu Einar com toda a honestidade. - Por que a levou consigo, Adelar?

     - Ela é minha irmã.

     - Mas, em pleno inverno?

     - Calculei que as nevascas dificultariam a nossa perseguição. - Adelar deu um suspiro angustiado. - Não pensei que os rigores do inverno tornariam a fuga muito mais difícil para Betha.

     - Meradyce vai curá-la, rapaz.

     Os olhos do garoto se encheram de lágrimas e Einar virou a cabeça, ocupando-se com a lenha na lareira. Como qualquer guerreiro, Adelar não gostaria que outro homem o visse chorar.

    

    

     Meradyce rezava compulsivamente, agarrada à mão de Betha. Já haviam se passado dois dias desde que Einar chegara à aldeia com a menina nos braços e a febre ainda se mantinha alta, recusando-se a ceder.

     Era o fim da noite, ainda antes da chegada promissora de um novo dia, a hora em que as almas partem para sua derradeira jornada, conforme Meradyce tantas vezes vira acontecer.

     Olva cochilava junto ao fogo. Meradyce tentara, em vão, mantê-la fora da cabana, mas a combativa mulher se recusara a abandonar a menina, demonstrando de quem Einar herdara a teimosa perseverança.

     Endredi continuava a dormir na casa de Svend a fim de ajudar Asa, mas vinha diversas vezes por dia até a porta, aflita por receber notícias das melhoras de Betha.

     Thorston viajara até uma aldeia não muito distante, onde morava uma mulher que fazia capas de pele famosas por sua maciez e também outra que fazia bonecas. Ele estava determinado a trazer as duas coisas para a doentinha.

     Betha se moveu na cama e Meradyce aproveitou para enxugar o suor da testa da menina com um pano úmido.

     - Meradyce - murmurou a menina, tentando sorrir.

     - Não se canse falando, querida. - Meradyce apanhou o copo com o remédio. - Tente tomar isto.

     Com muito esforço, Betha conseguiu tomar um gole. Ela estava fraca demais e seu estomago já não aceitava nada, nem mesmo o líquido onde fora misturado o remédio que ajudaria a baixar sua febre.

     - Minha mãe está morta. - disse a menina, como se tivesse certeza absoluta do fato.

     - É claro que não está - protestou Meradyce, inquieta.

     - Não foi meu pai que a matou, não é? - perguntou a menina, ansiosa. - Ele não podia querer que minha mãe morresse!

     Meradyce não conseguiu disfarçar a surpresa. Betha realmente saberia a verdade? E como teria descoberto?

     Uma nova crise de tosse se apoderou da garota e Meradyce não conteve algumas lágrimas ao ver sangue no lenço. A respiração de Betha ficava a cada instante mais penosa e, embora ela se recusasse a aceitar, a morte estava muito próxima. Já não havia mais nada a fazer.

     - Oh, Deus - murmurou ela, beijando as mãos da garotinha. - Por favor, nos ajude.

     Betha abriu os olhos.

     - Tome conta de Adelar, Meradyce. Ele ainda gosta muito de você.

     - Não fale, querida. Guarde suas forças.

     - Fique feliz por mim, Meradyce. Estou indo encontrar minha mãe.

     Apenas um suspiro muito leve avisou que a pequena Betha já não vivia. Após um momento de silêncio chocado, o grito de Meradyce ecoou na cabana.

     Olva acordou e, vendo a fisionomia agora tranqüila de Betha, cobriu o rosto com as mãos e chorou.

   Como sempre, Einar estava do lado de fora, andando de um lado a outro do pequeno jardim. Ele ouviu o grito e correu para junto da esposa.

     Abraçada ao corpo da menina, Meradyce soluçava convulsivamente.

     - Betha! - gritou Adelar, correndo para junto da irmã. Meradyce ergueu o rosto molhado de lágrimas e fitou Einar sem disfarçar o terror.

     - Tire-o daqui! A febre pode ser contagiosa.

     - Não! - berrou o garoto quando Einar se aproximou dele. - Eu não vou sair!

     Mas Einar não se movera para reprimir o garoto. Ele estava preocupado com Meradyce e a tocou com suavidade.

     - Venha comigo, querida. O lugar de Adelar é ao lado da irmã.

     Ela deixou-se levar pelo marido mas, ao soltar Betha, encarou Adelar.

     - Eu fiz tudo que era possível. - soluçou ela, aproximando-se para abraçar Adelar.

     - Não me toque! - A voz dele era sibilante e cheia de ódio. - Nunca mais me toque!

     Meradyce recuou, sem disfarçar a dor causada pela rejeição do garoto.

     - Eu tentei, Adelar! Fiz tudo o que podia, usei todos os remédios que conhecia.

     - Eu sei - replicou ele, sem fitá-la. - Agora, vá embora e nos deixe sozinhos.

     Olva foi a primeira a sair da cabana, em prantos. Então, Einar passou o braço sobre os ombros da esposa e a conduziu para fora e em direção ao seu lar.

     Ele a colocou na cama e se manteve sentado ao lado enquanto não cessaram os soluços convulsivos daquela mulher corajosa que perdera a luta contra a morte.

     Quando Meradyce finalmente se acalmou, Einar saiu do lado da cama dela, preocupado com seu estado de saúde. Ela não comia ou dormia há dois dias e, se não se cuidasse, acabaria doente como Betha.

     - Vou lhe preparar algo para comer.

     - Eu tentei, dei tudo de mim e...

     - Eu sei, querida.

     - O que vou dizer à mãe dela?

     - Você não terá de dizer nada. Eu o farei.

     - Não! Eu...

     - Falaremos sobre esse assunto mais tarde.

     Com gestos precisos e rápidos, Einar cortou o pão e abriu uma garrafa de vinho.

     - Eu não estou com fome, Einar.

     - Tem que comer ou ficará doente, querida.

     - Adelar?

     - Olva ficará com ele. O meu lugar é ao seu lado - murmurou ele, sentando-se na cama.

     - E o meu lugar era junto de Betha!

     - Tinha chegado a hora dela - insistiu Einar, procurando um modo de confortar a esposa.

     - A culpa foi toda minha, Einar! - Meradyce sentou-se abruptamente na cama, descontrolada. - Se eu tivesse prestado mais atenção neles, saberia o que Adelar estava planejando. Se os mantivesse sempre ao meu lado em vez... Se não me esquecesse ...

     - Se eu não a tivesse arrancado de sua aldeia, Betha ainda estaria viva.

     Meradyce recomeçou a chorar, incapaz de conter a imensa tristeza.

     Betha estava morta e a culpar era dela e de Einar.

     - Acha que eu não pensei nisso? - prosseguiu Einar, agoniado.

     - Julga que não me culpei centenas de vezes por tê-los tirado do lar? O saxão insistiu que as crianças não deveriam ser molestadas e eu o desafiei além de desobedecer as ordens de Svend, porque imaginei que você fosse a mãe deles e que os desejaria ao seu lado.

     - E eu deveria ter lhe dito que não era a mãe deles, mas quis protegê-los até o fim. Agora, ficou provado que falhei miseravelmente!- Ela suspirou, angustiada. - Por favor, vá embora, Einar. Não posso ficar ao seu lado agora, preciso de solidão.

     - Não! - Ele a puxou para junto de seu peito, fitando os olhos azuis que refletiam uma dor imensa. - Não me expulse de sua vida! Eu não desejava uma esposa porque não queria me envolver e sofrer. Mas casei-me com você e seu sofrimento me atinge!

     Beijando-a ternamente, Einar tentou encontrar as palavras certas.

     - A morte de Betha também me causa muito sofrimento, mas eu não posso trazê-la de volta. Não existe nada que nós, seres humanos, tenhamos condições de fazer contra a morte. Eu também perdi criaturas muito próximas.

     Meradyce o encarou, tomando consciência de que a angustia de Einar era sincera.

     - Endredi foi minha primeira filha e a única a quem reconheci como tal, mas tive outras mulheres e outros filhos. Nenhum deles sobreviveu mais do que seis meses.

     Penalizada, ela segurou a mão do marido.

     - E as mães.

     - Não eram desta aldeia. Para minha eterna vergonha, jamais as quis para nada além de meu prazer momentâneo. - Ele suspirou, desorientado. - Quem pode explicar os caprichos do destino? Eu daria tudo para nunca ter posto os olhos em Betha e Adelar!

     Com um gesto carinhoso, ele afastou os cachos caídos sobre a testa de Meradyce.

     - Mas, se nunca os tivesse encontrado, também não saberia de sua existência.

     - Oh, Einar! - Ela finalmente se entregou ao abraço do marido. - Será que Adelar nos perdoará algum dia?

     - Com o tempo.

    

     Adelar realmente os perdoou, mas levou muito mais tempo do que qualquer um deles poderia supor. Ao longo daquele inverno penoso, ele não mais dirigiu a palavra a Einar. Com o passar das semanas, começou a tolerar a presença de Meradyce. A única pessoa com quem se comunicava era Endredi e, mesmo com ela, mantinha-se distante e sem demonstrar nenhuma emoção.

     Uma parte do menino morrera com a irmã, deixando apenas um jovem adulto e amargo, que odiava a si mesmo por ter arrastado uma criança frágil na noite sombria e gelada.

    

     Tanto Einar quanto Svend queriam dar a Betha um funeral viking em que o navio, ardendo como uma tocha, parte para o mar aberto, levando consigo o morto. Ambos se apoiavam no fato de que a menina se transformara na favorita de todas as mulheres da aldeia por seu encanto e meiguice e merecia essa honra.

     Olva e Meradyce discordaram. Betha era cristã e deveria se enterrada de acordo com o ritual de sua religião. Os dois homens cederam. Adelar não disse uma única palavra a ninguém.

     Caía uma chuva fina, mas gélida no dia do enterro. Einar pediu a Meradyce para não ir pois ela estava muito pálida e com aparência de doente. Diante da teimosia da esposa, acabou desistindo da idéia embora soubesse que as conseqüências poderiam ser graves.

     Todas as mulheres da aldeia, e alguns homens, compareceram e não contiveram o pranto. Até os olhos de Ilsa, considerada insensível, estavam brilhantes de lágrimas.

     Meradyce rezou em latim e saxão, sendo seguida por Olva que repetiu suas orações às mulheres vikings. Adelar compareceu, silencioso como um espírito e voltou a se afastar de todo convívio humano tão logo a singela cerimônia chegou ao fim.

     Durante os dias que se seguiram ao funeral, Meradyce mergulhou no trabalho, buscando mais e mais tarefas para se ocupar. À noite, procurava Einar com uma paixão sem freios, como se tentasse esquecer o que acontecera e precisasse se esgotar fisicamente para conseguir um sono sem sonhos.

     Então, numa das manhãs mais frias daquele inverno excepcionalmente rigoroso, Einar acordou, ouvindo-a tossir. Assustado, percebeu que Meradyce tremia apesar do calor gerado pelas pesadas mantas de pele.

     - Meradyce?

     Ao ver o rosto da esposa, Einar não conteve uma exclamação de temor. Os olhos azuis estavam rodeados por fundas olheiras, ainda mais escuras devido à excessiva palidez da pele. Como se a aparência doentia não fosse suficiente, Meradyce tossia convulsivamente.

     O primeiro e terrível pensamento de Einar foi que a mulher a quem amava ia morrer. Em seguida, reagiu com o costumeiro espírito combativo e decidiu que não a perderia sem luta.

     - Vou buscar Endredi - explicou ele, saltando da cama.

     - Não. Não chame ninguém - murmurou ela, num fio de voz. - Apenas traga minha cesta de remédios e me deixe sozinha.

     - Não.

     - Você pode adoecer também.

     - Eu não tenho intenções de ficar doente.

     Ela tentou sorrir da arrogante certeza do marido, mas seu peito doía demais. Só esperava que Einar estivesse certo, pois não teria condições de recusar ajuda diante da fraqueza crescente.

     - Diga-me o que fazer.

     Percebendo que muito em breve não teria forças sequer para falar, Meradyce tentou transmitir ao marido alguns dos métodos de preparar os remédios necessários. Ela mal conseguiu terminar a primeira receita antes que a tosse a impedisse de continuar.

     Einar a ouvira com toda a atenção e agora, diante do desespero de Meradyce por não poder continuar, sorriu para ela, segurando-lhe as mãos.

     - Você vai viver por mim e para mim, Meradyce.

    

     A cada hora que passava, Meradyce ficava mais fraca. Einar tentou fazê-la comer e beber água mas, no início da tarde, ela já não reagia a seus apelos.

     Pouco antes de noite cair, Endredi foi até a cabana do pai. Parado à porta, Einar a impediu de entrar.

     - Meradyce está doente. É melhor não...

     Endredi o afastou da sua frente e entrou.

     - Eu lhe disse para ficar lá fora. - Irritado, ele puxou-a pelo braço. - Meradyce está muito doente.

     - E por isso que ela precisa ainda mais de mim. - A expressão de Endredi era de teimosa determinação. - Posso tomar conta de Meradyce melhor do que você. Sei o que fazer.

     - Mas você pode ficar doente...

     - Então, eu fico doente e pronto! Agora, deixe-me passar.

     Endredi não estava pedindo e sim dando uma ordem. Einar hesitou, sem saber como agir. As ordens de Meradyce tinham sido breves e pouco claras.

     Será que Endredi realmente saberia como cuidar daquela doença?

     Ela era tão jovem! Teria conhecimentos suficientes ou acabaria ponde em risco a vida de Meradyce, como ele o fizera com as crianças que roubara da tranqüilidade do lar em uma aldeia saxônia?

     Einar olhou para a filha que parecia calma e confiante. Teria que confiar no julgamento dela.

     Finalmente, ele saiu da frente da filha e Endredi apressou-se a ir para junto de Meradyce. Tocou-lhe a testa, auscultou-lhe o peito e depois cheirou o remédio que Einar fizera, seguindo as instruções da esposa.

     - Ela comeu hoje?

     - Só conseguiu tomar um pouco de água.

     - Peça a Olva que traga um caldo de carne, bem forte e quente. - Endredi retirou as pesadas mantas de pele que cobriam Meradyce. - Antes de ir, ajude-me a tirar a camisola dela.

     - Mas se ela está doente ...

   - Meradyce está ardendo em febre. Tenho que banhar o corpo dela com água fria até baixar a temperatura. Ajude-me.

     Einar se aproximou da cama, sabendo reconhecer uma ordem que deve ser obedecida.

     - Ela está grávida?

     - Não.

     - Ainda bem. Um bebê tiraria parte da energia dela. Traga-me o balde de água e depois vá procurar Olva. Não deixe mais ninguém entrar aqui. Quanto a você, mantenha-se do lado de fora também.

     - Mas ...

     - Se você morrer, quem manterá Ull em seu devido lugar? - perguntou Endredi, com um sorriso sem alegria.

     Einar a fitou e seu coração encheu-se de orgulho. Pela primeira vez desde o nascimento dela, não se importava em saber se Endredi seria ou não sua filha legítima. Aquela jovem era sua de uma forma que ia além dos laços de sangue.

     - Eu farei como você quiser, Endredi - concordou ele, com uma expressão inesperadamente serena.

     Endredi não escondeu a súbita reação de orgulho diante da atitude do pai, até ouvir que Meradyce recomeçara a tossir.

     - Faça com que ela fique boa ...

     - Eu tentarei.

     Esquecendo-se de tudo o mais, Endredi se concentrou na doente.

    

     Ingemar se esgueirou furtiva, mas apressadamente pelas ruas cobertas de neve. Perdera tempo demais, pois levara dias até conseguir que Lars lhe revelasse onde ficava a taverna dos saxões e mais tempo ainda para arrancar dele o nome do mercador com quem Einar fazia negócios.

     Felizmente, sabia o suficiente do idioma saxão para se fazer compreender. Convencera Olva a ensiná-la, com o intuito secreto de ajudar Einar, quando ainda acreditava na possibilidade de ser esposa dele. Agora, usaria esse conhecimento para traí-lo.

     Ela puxou mais o capuz, escondendo o rosto. Estava escuro, muito frio e não havia quase ninguém nas ruas desertas, mas uma mulher sozinha sempre corria riscos, principalmente uma mulher jovem e bonita.

     Gargalhadas e vozes altas vinham de uma viela. De acordo com as explicações relutantes de Lars, devia ser a taverna que Einar costumava freqüentar.

     Ingemar hesitou. Estava se arriscando demais em ir falar com um saxão, ainda mais porque não o conhecia, mas não podia desistir agora. Por uma fração de segundo, sentiu uma pontada de remorso. Sem a menor dúvida, Einar e os outros homens lutariam e alguns morreriam.

     Então, ela endireitou os ombros, determinada. Jamais esqueceria o quanto fora insultada por Einar e pela vagabunda que ele trouxera para ser sua amante!

     Avançando pela viela, Ingemar empurrou a pesada porta de carvalho e entrou na taverna enfumaçada. Permaneceu imóvel por alguns segundos, esperando que sua vista se acostumasse à penumbra da sala.

     Subitamente, sentiu-se puxada para frente.

     - Ora, o que temos aqui? Uma mulher solitária e à procura de companhia?

     - Onde está Selwyn?

     O medo de Ingemar foi menos forte de que a raiva por ter sido tacada por um saxão desprezível. Ela encarou friamente o homem barbado e mal cheiroso à espera de uma resposta.

     - Eu devia ter adivinhado que ele sempre fica com as mais bonitas - brincou o homem, fazendo uma careta de desaponto. - Selwyn está naquela mesa do canto.

     Ela começou a se dirigir para o lugar indicado, quando o homem se colocou à sua frente.

     - Caso Selwyn esteja com a cama cheia demais a minha tem sempre lugar.

     Ingemar ignorou os comentários obscenos enquanto cruzava a taverna e parou diante do homem na mesa do canto. Estava escuro demais para distinguir-lhe as feições.

     - Você é Selwyn?

     - Quem quer saber? - respondeu o homem, batendo com a caneca de cerveja na mesa. Então, ele a viu e sorriu, deliciado. - Não importa, sente-se bem do meu lado, beleza.

     - Você conhece o viking Einar? - perguntou ela, sentando-se o mais afastada possível, no banco estreito.

     - Pode ser que sim, pode ser que não. Dê-me um beijo e eu lhe direi.

     Ela sorriu com todo encanto que se sabia capaz, embora sentisse asco daquele homem desdentado e sujo.

     - Responda-me primeiro e talvez eu o beije.

     - É justo. - Selwyn deu uma gargalhada. - Eu conheço Einar. E o meu beijo?

     Ela preferia beijar um porco, mas roçou os lábios no rosto de Selwyn porque precisava de sua cooperação. Entusiasmado, o mercador saxão agarrou-a pela cintura e, com a outra mão, procurou pela abertura da capa de Ingemar.

     - Quero ir até a aldeia saxônia que Einar atacou a última antes da chegada do inverno.

     - Não sei sobre o que está falando, beleza. Quer uma caneca de cerveja?

     Selwyn conseguira abrir a capa de Ingemar e estava com a mão sobre o seio rijo quando ela o afastou bruscamente.

     - Não quero essa droga de cerveja! Quero ir para aquela aldeia. Tenho informações que agradarão à pessoa mais importante de lá.

     - Que informações? - Selwyn voltou a se aproximar, deslizando os dedos sobre os braços de Ingemar. - Exatamente que tipo de informações?

     - Posso ajudar o senhor saxão a recuperar as crianças e a mulher.

     - Ele os terá de volta de qualquer forma. Basta pagar o resgate que já foi combinado.

     - Se eu lhe disser onde deve ir, ele não terá de pagar resgate algum.

     - E por que você faria isso? - perguntou ele, desconfiado.

     - Porque quero. É tudo que precisa saber, saxão.

     Selwyn a fitou por alguns segundos, pensativo. Kendric ficaria muito satisfeito em recuperar os filhos sem pagar um centavo do alto resgate e recompensaria a mulher pela informação.

     Entretanto, isso significaria que ele não receberia sua comissão. A mulher, de corpo sensual e rosto sedutor, moveu-se ao seu lado, como se quisesse ser admirada.

     Ela alcançaria um bom preço se a vendesse a Kendric ou a qualquer outro lorde saxão, depois que ter experimentado todos os encantos da bela loira, é claro!

     - Quando pretende fazer essa viagem, caso eu concorde em levá-la?

     - Imediatamente.

     - A primavera ainda não chegou.

     - Mas já está bem próxima. Temos de chegar à aldeia antes dos vikings se dirigirem para lá com as crianças.

     - É verdade. E como pretende me pagar por minha ajuda?

     Ingemar apenas sorriu, mas permitiu que ele voltasse a acariciá-la.

    - Não precisamos partir hoje mesmo. Tenho um quarto nesta taverna e amanhã iremos ao porto.

     - Se dá valor à sua vida, acho melhor irmos para o porto agora mesmo. Não vim sozinha para Hedeby. Quando ele descobrir a minha ausência não perderá um segundo para me procurar.

    

     Seria tão fácil desistir de tudo e se deixar levar...

     Parar de tossir, não mais lutar para encher os pulmões de ar.

     Dormir sem ser atormentada por pesadelos, encontrar Betha.

     Meradyce sentia-se esgotada pela febre e pela sede que não conseguia saciar. Estava cansada demais e muito fraca. Já não tinha forças para abrir os olhos.

     Percebia, vagamente, que mãos a tocavam e que líquidos escorriam em sua garganta e não matavam sua sede inextinguível. Excetuando-se esses breves e fugidios contatos, Meradyce perdera a noção de tempo e realidade.

     Já não havia mais esperança. E por que se preocupar em viver, se era mais fácil morrer? Não salvara Betha e Adelar não precisava nem queria sua ajuda.

     Sim, seria tão bom dormir para sempre.

     - Amor!

     Ela reconheceu a voz, era Einar. Entretanto, nunca o ouvira murmurar com tanta doçura e desespero, nem mesmo nos momentos de paixão desvairada.

     - Amor! Por favor, não me abandone.

     Certamente, a voz fazia parte de seu sonho. Einar nunca a chamara de amor.

     - Eu preciso tanto de você, Meradyce. Não me deixe sozinho.

     Com muito esforço, ela conseguiu abrir os olhos. Realmente Einar estava bem perto, ajoelhado no chão ao lado da cama, com os lábios quase colados em seu rosto.

     - Meradyce meu amor.

     Ela sentiu que precisava reagir porque Einar a amava. Teria de lutar contra a fraqueza e voltar para junto do marido.

     Sabia que o essencial era descansar, mas, antes de dormir o sono sereno de alguém que tem certeza de ser intensamente amada, precisava demonstrar que o ouvira.

     - Amor - murmurou ela antes de mergulhar na escuridão.

     Einar a fitou, com medo de se iludir. Ela teria mesmo falado ou o cansaço estava provocando alucinações?

     Os últimos dias tinham sido angustiantes, pois ele se sentira em Niflheim, a terra dos mortos, um local de trevas eternas e desespero. A sua vida seria assim se Meradyce morresse! Ela era sua luz e sua alegria.

     - Endredi! - chamou ele, mal contendo a esperança. - Ela falou! Meradyce murmurou.

     A jovem se aproximou e, ajoelhando-se junto da cama, tocou a testa de Meradyce.

     - O pior já passou - Ela ergueu o rosto para o pai, chorando de felicidade. - A febre cedeu.

     - Ela não está mais em perigo de morrer?

     - Não. Meradyce vai viver.

     Percebendo que o pai estava prestes a chorar, Endredi voltou para junto do fogão. Einar não gostaria que ninguém visse suas lágrimas e, além disso, ela precisava preparar algo que despertasse o apetite de Meradyce.

     - Endredi?

     Ao se virar, ela viu que Einar vinha em sua direção, com uma expressão amorosa e confiante e seu coração se encheu de alegria.

     - Muito obrigado, filha - murmurou ele, estendendo as mãos para Endredi.

     Sufocando um soluço de felicidade, Endredi jogou-se nos braços do pai.

    

     - Ingemar? - chamou Lars ao entrar no quarto.

     Ele passara o dia todo fora e a noite já caíra há algum tempo.

     Ingemar o encarregar de vender algumas de suas jóias e gastara muito tempo procurando o mercador e depois discutindo o preço.

     - Ingemar?

     Talvez ela não estivesse respondendo porque se aborrecera de ficar sozinha e queria castigá-lo, fingindo que não havia ninguém no quarto.

     - Ingemar!

     Sigrid o ouviu chamar e entrou atrás dele no quarto. Ela gostava desse homem de cabelos escuros e olhos afetuosos que era muito amigo de Einar. A mulher, pelo contrário, era rude, mal educada e sempre exigindo que a servissem como se fosse uma princesa!

     - Ela não está aqui - informou Sigrid.

     - Sabe aonde foi?

     - Não tenho a menor idéia. Talvez não tenha reparado, mas ela não fala comigo ou com ninguém mais por aqui.

     - A que horas ela saiu? - Lars estava começando a se preocupar e não percebeu a crítica de Sigrid.

     - Logo depois de você.

     Sigrid sentiu pena daquele homem alto e musculoso, que parecia um garoto perdido no quarto vazio.

     - Para onde Ingemar pode ter ido? Não conhece ninguém nesta cidade!

     Ela ia saindo do quarto quando se lembrou de algo. Achara estranho, mas não pensara mais sobre o assunto, até agora.

     - Ela carregava uma trouxa ao sair.

     Lars sentiu-se envolvido por um sopro gélido. Começou a procurar pelos objetos pessoais de Ingemar por todos os cantos do quarto e Sigrid, embaraçada com a violenta emoção no rosto dele, deixou-o sozinho.

     Não havia nada. Não sobrara uma única peça de roupa. Ingemar levara tudo que lhe pertencia e desaparecera.

     Por um longo tempo, Lars permaneceu imóvel no meio do quarto, incapaz de reagir. Ela o traíra.

     Então, um pensamento mais alarmante começou a martelar sua mente. Ingemar era filha de um renomado construtor de navios e seus conhecimentos poderiam ser altamente valiosos para algum povo inimigo.

     Ele tentou refazer cada um dos tópicos de conversa dos dias que partilhara com Ingemar e julgara terem sido idílicos. Como se enganara!

     Subitamente, lembrou-se da insistência dela em saber onde ficava a taverna dos saxões e o nome do contato de Einar. Já não havia dúvidas. Ingemar era uma traidora!

     Lars apanhou seu machado e a espada. Ingemar estava um dia a sua frente, mas ele a encontraria. Mesmo se tivesse que viajar sozinho até o coração das terras dos saxões, ele a encontraria!

    

     Então ela não sonhara? Agora, através dos olhos semicerrados Meradyce via pai e filha conversando em voz baixa e era impossível interpretar de outra forma o olhar de Einar para Endredi. Ele a fitava com uma devoção afetuosa e deixava evidente que o abismo separando os dois deixara de existir em algum momento durante sua doença.

     Meradyce não tinha qualquer lembrança de outras pessoas ao seu lado durante a doença, a não ser de Einar, que quase não se afastara de sua cama.

     Ela ganhava forças diariamente e já se sentia bastante bem há algum tempo. Não sabia com detalhes qual fora a gravidade de sua doença, mas recuperara a energia suficiente para dizer o que precisava ser dito e fazer o que tanto desejava. Tinha apenas de ficar a sós com o marido.

     Assim que terminou de preparar o jantar, Endredi despediu-se do pai e saiu da cabana.

     - Einar. - chamou Meradyce, sentando-se na cama.

     Ele a encarou com um sorriso de tanta alegria que Meradyce sentiu dificuldade em respirar e, desta vez, não era por causa da doença.

     - Sim? - Ele sentou-se na beira da cama.

     - Por que eu estou dormindo sozinha?

     - Você ficou muito doente e - ele desviou o olhar, embaraçado - achei que não gostaria de ser perturbada.

     - Como estou?

     Einar a fitou, sem entender a pergunta.

     - Dê-me o espelho.

     Quando ela se fitou na superfície da prata polida, soltou um suspiro de desanimo. Estava pálida, magra demais e ainda com olheiras escuras.

     - Oh! Eu estou muito feia!

     Pela primeira vez na vida, Meradyce percebeu que se orgulhava de sua beleza embora sempre afirmasse o quanto gostaria de passar despercebida e não atrair os homens. Agora, justamente quando precisava da formosura para encantar o marido, sentia-se sem atrativos.

     Einar segurou o rosto dela entre as mãos e a fitou com um olhar penetrante.

     - Estes são os olhos da mulher que eu amo. Estes são os lábios. - Ele a beijou com ternura. - Nada mudou, Meradyce, a não ser que eu a amo ainda mais.

     - Agora, estou me sentindo tão bem - ela sorriu, enrubescendo - como se não tivesse nem ficado doente.

     - Eu sei, querida. A sua recuperação está sendo milagrosa e muito rápida.

     Meradyce teve medo de tanta felicidade. Sentia-se abençoada pelo destino como nenhum mortal jamais o fora.

     - Como estão todos? Endredi? Adelar?

     - Foi Endredi quem cuidou de você. Ela acredita que sua doença foi causada mais pela exaustão do que pelo contágio.

     - Tenho a impressão de que você se sente orgulhoso da filha que tem. Aceitei?

     - E sinto mesmo! - A expressão dele ficou mais séria. - Contei a ela tudo sobre meu casamento com Nissa.

     - Fez muito bem, querido. E Adelar?

     - Ele ainda não fala comigo, mas já perguntou a Endredi sobre você. - Einar suspirou, derrotado. - Tenho certeza que Adelar me culpa pela morte de Betha.

     - E você, querido? - Ela segurou a mão do marido entre as suas. - Como está?

     - Agora que você se recuperou, sinto-me bem disposto e o homem mais feliz do mundo.

     - Einar não quero tirar o valor de sua filha, mas não foi ela quem me curou. - Meradyce tocou o rosto de Einar com a ponta dos dedos. - Foi você, sabia? Eu me senti perto da morte, com os elos que me prendiam à terra a cada momento mais fracos e parte de mim queria ir embora. Assim, não existiriam mais lutas, problemas ou escolhas. Então, sua voz me trouxe de volta.

     Inclinando-se para frente, Meradyce repousou o rosto no peito do marido.

     - Ouvi-o me chamando de amor e eu soube, com toda a certeza, que não podia morrer porque queria, desesperadamente, estar com você.

     Ela o beijou, colocando toda a paixão naquela carícia e deixando que seus lábios exprimissem uma emoção além de meras palavras.

     Dominada por um desejo crescente, Meradyce reclinou-se sobre as almofadas sem interromper o beijo. Queria sentir o peso do corpo de Einar sobre o seu, precisava tocar a pele nua dos braços que a envolviam, ansiava por ser possuída com paixão.

     Einar recuou e sua expressão revelava o quanto era difícil renunciar ao próprio desejo.

     - Ainda é muito cedo, querida. Você esteve muito doente, quase morreu.

     - Já me sinto melhor. Estou completamente curada.

     - Eu não sei.

     - Pois eu sei.

     Meradyce fora mais forte do que a doença porque queria viver ao lado daquele homem que a fitava com um desejo incontido. Não suportaria esperar mais para se entregar ao delírio da paixão.

     Sem perda de tempo, ela despiu a camisola e exibiu sua nudez gloriosa a Einar. Pela primeira vez, tomava a iniciativa e seu desejo cresceu ao sentir que estava seduzindo o marido.

     Como ela previa, Einar não resistiu à mulher amada que se oferecia, vibrando de desejo. Levantando-se da cama, ele se despiu rapidamente. Por um instante, a luz das chamas na lareira tingiu de dourado o corpo perfeito de um deus viking e Meradyce suspirou de prazer.

     Celebrando a vida através do renascer do desejo, ambos se sentiam movidos por uma ânsia que excluía carícias lentas e se entregaram à paixão sem barreiras.

     Einar não podia esperar e seu desejo alcançou limites insuspeitados quando Meradyce ergueu os quadris, exigindo sempre mais e vibrando de volúpia.

     Depois que as vozes de ambos se mesclaram no êxtase, Einar a manteve em seus braços, sorrindo com ternura para a mulher passional a quem amava mais do que a própria vida.

     - Amor - murmurou ela, prestes a adormecer nos braços do marido. - Amor.

    

     - Por favor, milorde.

     Soltando uma exclamação de raiva, Kendric empurrou para longe a jovem ao seu lado e sentou-se na cama.

     - Com mil diabos! O que querem?

     Kendric não admitia que interrompessem seu prazer e castigaria o imprudente que viera até seu quarto. Vestindo um roupão por causa do vento que ainda continuava frio apesar de estarem perto da primavera, ele rodeou o biombo em frente de sua cama, indo para a saleta. Havia duas pessoas junto à porta.

     - Por que vieram me procurar aqui? O assunto não podia esperar pelo meu prazer? Acho melhor que seja muito importante, senão...

     O homem deu um passo à frente, saindo das sombras para que Kendric visse seu rosto.

     - Selwyn!

     Voltando para trás do biombo, Kendric deu ordens para que a jovem em sua cama saísse imediatamente do quarto. Então, retomou a saleta e sentou-se em uma ampla poltrona.

     - O que o trouxe até mim? - Ele fez um gesto para que Selwyn se aproximasse. - E quem está com você?

     Uma jovem mulher saiu das sombras e parou a poucos passos da poltrona. Ela era extremamente bela, de cabelos dourados e traços que revelavam sensualidade e paixão.

     - A sua visita só me dá prazer, Selwyn. - Kendric sorriu, satisfeito. - Quem é sua linda companheira?

     - O nome dela é Ingemar e...

     - Ingemar! - Ele deu um sorriso sedutor para a mulher. - Chegue mais perto. Tire essa capa pesada e sente-se ao meu lado.

     Selwyn ajudou Ingemar a se livrar da capa enquanto Kendric examinava cada detalhe das curvas exuberantes, moldadas pelo vestido de lã fina. Se o astucioso mercador tivesse trazido aquela mulher magnífica para lhe oferecer, ele pagaria qualquer preço!

     - O que o trouxe à minha aldeia, Selwyn? - perguntou Kendric, forçando-se a parecer desinteressado.

     - Negócios, milorde.

     - Naturalmente. - Kendric não tirava os olhos da mulher. - Mas que tipo de negócios?

     - Em primeiro lugar, eu queria oferecer-lhe minhas condolências pela morte de sua esposa.

     - Muito obrigado. Foi um trágico e infeliz acidente.

     Selwyn suspeitava que a morte da esposa de Kendric fosse tudo menos acidental. Ouvira contar que a infeliz Ludella fora atirada ao chão pela montaria assustada enquanto cavalgava com o marido e batera com a cabeça em uma rocha.

     Um dos muitos moradores da aldeia, que lhe repetira a história do acidente, não acreditava no relato oficial da morte de Ludella. Se o que Kendric e seus agregados contavam fosse verdade, a pobre mulher tinha caído em uma pilha de pedras, todas da mesma forma e tamanho.

     Mas Selwyn aprendera a sobreviver e disfarçava sua curiosidade excessiva em assuntos que não eram da sua conta.

     Subitamente, a mulher decidiu desviar o rumo da conversa para o assunto que a interessava.

     - As suas crianças. - Ela se exprimia devagar e com os intervalos típicos de uma pessoa que fala um idioma estrangeiro. - Posso levá-lo até elas.

     - É verdade? - perguntou Kendric, virando-se para Selwyn.

     - Sim, milorde. Ingemar veio da mesma aldeia onde moram os vikings que levaram as crianças. Ela está disposta a indicar-lhe o caminho.

     Kendric nunca duvidara que Selwyn soubesse com precisão onde ficava a aldeia desses vikings, tinha planejado chamá-lo quando tempo ficasse mais quente, a fim de extrair o máximo possível de informações do astuto mercador.

     Como se antecipasse suas intenções, Selwyn surgira, trazendo uma fascinante companheira.

     - E por que razão ela nos levaria a essa aldeia?

     - Não sei, milorde. Ingemar se recusou a me contar seus motivos.

     - Não podemos iniciar uma viagem desse tipo antes da chegada da primavera.

     - Ela sabe disso, milorde.

     Quando Kendric voltou a fitá-la, Ingemar deu um sorriso em que se mesclavam timidez e ousadia. A primavera ainda demoraria a chegar. Esse homem era atraente, muito rico e, aparentemente estava sem esposa. Ela não tinha dúvidas que o lorde saxão seria um companheiro excitante e divertido. Pelo menos, a agradaria muito mais do que aquele mercador grosseiro e repulsivo. Como amante, Selwyn era um animal sem qualquer requinte.

     O atraente senhor saxão também não teria um desempenho tímido e hesitante como Lars. Ingemar sentiu a excitação crescer ao se imaginar na cama com aquele homem másculo e viril que devia ser um amante possessivo e passional, como Einar.

     Kendric levantou-se e foi até a mesa servir-se de bebida. Ingemar examinou o corpo musculoso, de ombros largos e pernas longas, e não escondeu um sorriso apreciativo.

     - Como estão minhas crianças? - perguntou ele, fitando-a com lascívia.

     - Muito bem.

     - E a mulher? Meradyce?

     - Suponho que ela tenha sido bonita - Ingemar fez uma careta de desdém . - mas agora que todos os homens a usaram...

     - É uma pena. - disse Kendric, fingindo indiferença.

     Ingemar sentiu-se profundamente aliviada e satisfeita ao concluir que o senhor saxão não tinha qualquer interesse por Meradyce.

     - Pode ir embora, Selwyn - ordenou Kendric, sem desviar os olhos de Ingemar. - Sua visita foi muito proveitosa.

     - Mas, milorde...

     - Qual é o problema agora?

     - Eu tive muitas despesas e...

     - Nós discutiremos a sua comissão amanhã cedo.

     - Mas...

     Selwyn percebera muito bem o que estava acontecendo. Kendric e Ingemar não podiam esperar pelo momento de irem para a cama juntos. Entretanto, ela lhe pertencia e não tinha a menor intenção de cedê-la a ninguém!

     Então, ele viu a expressão de Kendric. Afinal, Ingemar era apenas uma mulher. Sem contestar mais nada, Selwyn partiu.

    

     Várias semanas haviam se passado e Meradyce se recuperara completamente da doença. Na verdade, nunca se sentira tão bem em toda a sua vida.

     Olva trabalhava em seu tear junto à porta e Endredi, sentada à janela, limpava o peixe para o ensopado do jantar. Era um dia excepcionalmente quente e Einar aproveitara para ir caçar. O sol brilhava sobre o que restara da neve, alegrando a natureza com a promessa da primavera.

     A vida de Meradyce jamais fora tão alegre ou feliz e seria perfeita a não ser por um detalhe. Adelar continuava fechado em si mesmo, raramente falando ou rindo.

     Naquele dia, porém, os pensamentos de Meradyce não estavam na iminente viagem a fim de levar o garoto de volta ao lar nem em seu silêncio agressivo.

     - Olva - disse ela, com uma expressão de pretensa indiferença. - Acho que Endredi talvez não possa ajudar você no próximo inverno.

     Olva e Endredi pararam de trabalhar.

     - E por quê? Einar não está pensando em casá-la, não é? Ele nem sequer me consultou!

     - Nem a mim - acrescentou Endredi.

     - Oh! Não é nada disso! É que eu talvez precise da ajuda de Endredi.

     Olva aproximou-se de Meradyce, preocupada.

     - Está doente outra vez, querida?

     - Não. Acho que... - Meradyce riu, sem conter a felicidade. - Acho que estou grávida.

     Endredi também correu para junto de Meradyce e as três mulheres se abraçaram, rindo e chorando de alegria.

     - Quando? - perguntou Olva, ansiosa.

     - Não tenho certeza absoluta, pois ainda é um pouco cedo. Por favor, não digam nada a Einar. Eu também não falei porque não quero que se desaponte caso seja um alarme falso.

     - Bem, se você não sabe quando está grávida. - brincou Olva, voltando ao tear.

     Na verdade, Meradyce tinha quase certeza porque reconhecera vários sinais, mas também sabia que era muito cedo para não ter mais dúvida alguma. Conseguira se conter e não dissera nada a Einar. Ele ficaria muito decepcionado se estivesse errada. Incapaz de guardar o segredo por mais tempo, decidira contar a Olva e a Endredi.

     - Vou ser avó de novo - Olva disfarçou a euforia, tentando parecer consternada. - Lógico que eu não tenho idade para isso.

     As mulheres riam, como adolescentes cúmplices.

     - O que é tão engraçado?

    Era Einar e as três tentaram agir como se nada tivesse acontecido, mas foi absolutamente impossível. Olva não controlava o riso e logo Endredi se contagiou, caindo na gargalhada. Então, Meradyce não resistiu mais.

     - Vocês três enlouqueceram? - Einar colocou sobre a mesa os coelhos que caçara e limpara. - Ou se excederam no vinho?

     - Uma de nós se excedeu em outra coisa, mas não foi no vinho - declarou Olva, piscando maliciosamente para Meradyce.

     - Podem me explicar sobre o que estão falando? - perguntou Einar, confuso e começando a ficar irritado.

     - É uma coisa muito pequena.

     - O quê?

     - Você logo vai descobrir, filho.

     - Não vão mesmo me contar, não é?

     - Não, filho. - Olva recomeçou a rir.

     - Ótimo! - declarou ele enfurecido. - Vou embora e as deixo com seu riso excessivo.

     Enquanto ele saía, pisando forte, Meradyce também riu.

     - Às vezes eu acho que já tenho um filho!

     As três se entreolharam e caíram na gargalhada diante da infantilidade dos homens.

    

     Sentado ao lado do pai, Einar tentava entender a atitude das mulheres naquela tarde. Meradyce voltara para casa logo depois dele, mas se recusara a contar porque as três riam tanto e o ignorou quando viu seu mau humor aumentar.

     - O que há de errado, filho? - perguntou Svend, servindo-o de mais cerveja. - Está com uma expressão carregada. Tem algum problema muito grave a resolver?

     - Mulheres! Às vezes eu não as entendo.

     - E quem as compreende? Quem quer entender essas criaturas misteriosas?

     - Eu levei dois coelhos para Olva e não recebi nem uma palavra de agradecimento. Elas só se entreolhavam e riam.

     - Riam?

     - Exatamente. Olva, Meradyce e Endredi não paravam de rir.

     - E riam do que?

     - Ah! É esse o mistério, pai. Não me contaram o motivo e agiam como se tivessem um grande segredo.

     - Mulheres... rindo... um segredo...

     - Sim.

     Svend caiu na risada e Einar franziu a testa, irritado com a atitude inesperada do pai.

     - É óbvio que você conhece pouco as mulheres, filho. Pensei que as conhecesse melhor. Quando se reúnem, começam a rir e não contam seu segredo, só podem ser duas coisas. Ou uma delas deseja um homem que ainda não sabe que caíra em sua armadilha ou uma delas está grávida. Talvez Endredi tenha se decidido por alguns dos guerreiros mais jovens ou sua linda esposa vai ter um bebê.

     Einar perdeu a voz.

     - Aliás, estava mais do que na hora. É claro que não devemos descartar a possibilidade de Olva ter engravidado mas...

     Einar já estava alcançando a porta e correndo para a rua. É claro que Meradyce estava grávida! Só podia ser isso!

     A alegria de saber que ela lhe daria um filho era estonteante!

     Einar entrou em casa como um pé de vento e parou diante da esposa que costurava, sentada diante da lareira. Então, puxando-a da cadeira, a beijou com ardor.

     - É verdade?

     - Quem lhe contou? - Ela tentava, em vão, mostrar-se ofendida. - Foi Olva?

     - Então, é mesmo verdade?

     - Ainda preciso esperar alguns dias para ter certeza, mas estou quase convencida.

     - Eu nunca me senti tão feliz em toda a minha vida - murmurou ele, abraçando-a com ternura. - Era por isso que vocês três estavam rindo sem parar, na casa de Olva?

     - Eu precisava contar a alguém, Einar. Não queria que você se decepcionasse caso não fosse verdade. Procurei sua mãe e sua filha, as minhas únicas amigas nesta aldeia.

     - Na próxima vez, quero ser o primeiro a saber, querida.

     - Prometo que lhe direi antes de contar para qualquer pessoa. Só espero que, na próxima vez, não demore tanto.

     - Na próxima vez - ele riu, incapaz de conter a alegria - nós nos esforçaremos muito mais!

    

     Kendric sentia-se plenamente satisfeito com seu navio, pronto e ancorado à beira do rio. Era uma bela embarcação, com as linhas esguias e elegantes das naves vikings só que e ainda mais aperfeiçoado, como tudo que lhe pertencia.

     Ele contratara os melhores construtores de barcos de Londres, comprara a madeira mais valiosa e gastara enormes somas de dinheiro a fim de construir o navio em tempo recorde. E atingira seu objetivo!

     A mulher viking, Ingemar, tivera uma utilidade inestimável, ensinando-lhes os métodos usados por seus compatriotas e o resultado fora o mais belo navio que já singrara aqueles mares.

     Como também a sua cidade era a melhor em toda a costa! Ninguém protestou quando ele decidiu gastar mais dinheiro dos impostos e exigir mais trabalho de todos para erguer uma muralha de pedra e um fosso de proteção. Na verdade, tinha ficado bem mais fácil obter a cooperação de seus dependentes depois do ataque dos vikings.

     Kendric olhou para o céu coberto de nuvens. Ingemar lhe afirmara que ainda era muito cedo para arriscar uma viagem em mar aberto, mas ela não entendia de estratégia. A surpresa era o elemento mais importante de uma batalha e, por vezes, decidia o resultado da guerra. Ele estava disposto a correr os riscos e não esperar mais.

     Pelo canto dos olhos, Kendric avistou um cavaleiro solitário, aproximando-se da aldeia pelo sul. Era um homem alto e desconhecido. Talvez fosse mais alguém que ouvira falar sobre os altos salários oferecidos por ele e vinha em busca de trabalho.

     Mas não era hora de se preocupar com os costumeiros problemas que atormentam o senhor de uma aldeia prestes a embarcar em uma aventura única. Afinal, tudo poderia ser decidido mais tarde e Ingemar o esperava. Na cama.

    

     Uma fúria sem limites se apossou de Lars quando ele avistou a embarcação flutuando no rio. Alguém ensinara os saxões a construir um navio idêntico ao dos vikings.

     Alguém como Ingemar, filha de um inigualável construtor de navios!

     Lars nunca vira tantos trabalhadores juntos em um só lugar. Essa multidão laboriosa explicava a rapidez com que os saxões haviam construído o navio que flutuava suavemente no cais de madeira.

     Ele deu um sorriso desdenhoso. Havia algo errado nas proporções daquela embarcação! Como a maioria dos construtores de navios vikings, Bjorn trabalhava por intuição, sem seguir um plano formal. Ninguém conseguiria duplicar esse método embora fosse claro que alguém tinha tentado.

     Se Ingemar estivesse naquela aldeia, era ela a responsável e não seria possível negar que traíra seu povo. Lars a encontraria da mesma forma que encontrara o povoado à beira do rio.

     Ao iniciar sua busca por Ingemar, Lars descobrira que ela fora vista em companhia de Selwyn, o mercador saxão, e logo soubera para onde ambos se dirigiam.

     Seguir os dois para a terra dos saxões fora uma viagem extremamente perigosa para um viking solitário. Muitas vezes, Lars tivera de se esconder para evitar um encontro com inimigos, o que provocava dias e dias de atraso em sua perseguição. O mau tempo, o desconhecimento da região e a incerteza quanto ao destino final dos dois também haviam dificultado seu progresso.

     Agora, olhando ao seu redor, Lars não tinha mais dúvidas de que fora essa a aldeia atacada por Einar pouco antes do início do inverno. Os saxões haviam reconstruído tudo com fortificações muito mais sólidas.

     Durante a viagem, Lars tivera tempo para pensar e concluíra que Ingemar planejava encontrar o pai das crianças raptadas. Também se convencera de que ela queria apenas se apossar do dinheiro do resgate.

     Entretanto, ao avistar o navio, não era mais possível ignorar toda a extensão da verdade.

     Ingemar traíra seu povo. Só podia ter ajudado os saxões a construírem esse navio, que tinha uma semelhança excessiva com as embarcações de Bjorn. Agora, lembrando-se do ódio daquela mulher por Einar, Lars até acreditava que ela conduziria os inimigos para a aldeia viking, em pessoa!

     - Ei! O que você quer por aqui?

     Lars virou-se rapidamente, erguendo o machado. O trabalhador arregalou os olhos, sem acreditar que estava diante de um guerreiro viking, mas seu choque não durou muito. Em menos de um segundo, ele já não mais vivia.

     Impelido pela raiva, Lars correu para o povoado, entrando pelo portão que permanecia aberto. Ele conhecia a mansão do senhor da aldeia. Certamente, Ingemar só poderia ter vendido seu povo a um homem muito rico!

     No local onde Lars se lembrava de ter entrado em uma casa de madeira, havia agora uma suntuosa construção de pedra. Alguns soldados permaneciam à porta, conversando, e se viraram para o homem que avançava em sua direção com um machado em riste.

     Os camponeses que passavam pela rua fugiram, apavorados, diante da facilidade do selvagem viking em trucidar dois soldados.

     - Ingemar! - berrou Lars, ao entrar no vestíbulo da mansão. Uma mulher gritou e, seguindo na direção do som, Lars entrou em uma saleta. Um biombo caiu enquanto um homem saltava da cama, buscando sua espada. Ingemar estava encolhida e tentando cobrir sua nudez.

     Lars avançou para os dois, mas seu progresso foi impedido por alguns soldados que haviam entrado pela porta dos fundos. Ele virou-se para enfrentá-los.

     Os saxões jamais haviam visto algo tão aterrador quanto aquele viking de olhos alucinados e sorriso cruel como o de um lobo feroz.

     Os soldados recuaram.

     - Matem-no! - berrou o senhor da aldeia, ainda às voltas com a espada.

     Dois homens tentaram segurar os braços de Lars que voltara a se dirigir para a cama onde estavam a mulher e o homem que tentava alcançar a espada presa entre as roupas jogadas ao chão. Ele se desvencilhou dos soldados como se não passassem de crianças.

     Um outro tentou atingi-lo com a espada e se viu contemplando o lugar onde sua mão existira até um segundo atrás.

     Ingemar recomeçou a gritar, desesperada e em pânico.

     De posse da espada, Kendric entrou na luta e atingiu Lars no flanco; mas o viking não parou de girar seu apavorante machado. Um outro soldado também o feriu no braço.

     Indiferente aos ferimentos, Lars continuava lutando.

     Ele caminhava diretamente para Ingemar com uma expressão de puro ódio.

     - Maldita! Filha dos infernos! Eu amaldiçôo o dia em que você nasceu. Amaldiçôo o dia em que a conheci! Amaldiçôo o dia em que deixei meu lar por sua causa!

     Embora coberto de sangue dos vários ferimentos, Lars continuava a avançar e Ingemar continuava gritando.

   Os soldados, nitidamente apavorados, tentavam atingi-lo sem se colocar diretamente em seu caminho. Lars fez um esforço sobre-humano e ergueu seu machado pela última vez.

     Ingemar, a traidora de seu povo, estava morta. Ela não mais poderia conduzir os inimigos saxões até sua aldeia.

     Lars largou o machado preso ao corpo de Ingemar e, apanhando sua espada, preparou-se para entrar no Valhalla.

    

     Kendric olhou com uma expressão de asco para o corpo do viking morto. Ao seu redor, os soldados arfavam, ofegantes da luta e os feridos gemiam.

     - Tire esse porco imundo daqui! - ordenou ele, berrando para o soldado mais próximo. - Quer que arranquem a pele desse maldito selvagem e a preguem na porta da igreja para servir de aviso aos outros bárbaros que ousem se aproximar com intenções de atacar minha aldeia!

     Ele olhou de relance para o corpo de Ingemar, enquanto se abaixava para apanhar a espada do viking.

     - E não se esqueçam de levar embora essa maldita! Tirem também a minha cama. Queimem as duas!

     Examinado a espada de alta qualidade, Kendric sorriu.

     - Depois disso encontrem Selwyn e o tragam até minha presença.

    

     Selwyn assustou-se ao ver as poças de sangue no chão da saleta e do quarto de Kendric que não se preocupara em trocar as roupas ensangüentadas.

     - Sim, milorde? - perguntou ele, controlando as náuseas.

     - Você nos conduzirá à aldeia viking.

     Kendric acomodou-se na poltrona, com a espada do viking ainda em suas mãos.

     - Eu? Mas...

     - Exatamente. Você será nosso guia.

     - Mas eu não sei onde fica.

     - Sabe sim, Selwyn.

     - Juro que não sei, milorde.

     Com um movimento rápido e inesperado, Kendric saltou da cadeira e colocou a lâmina da espada no pescoço de Selwyn.

     - Tem certeza de que não sabe mesmo, amigo?

     - Tenha piedade de mim, milorde! Eu estou um tanto confuso, mas talvez tenho uma vaga idéia          .

     - Eu sabia que você acabaria por se lembrar. - Kendric baixou a espada. - Nós partiremos amanhã.

     Selwyn respirou fundo, angustiado. Se os vikings o avistassem a bordo do navio dos saxões, ele não chegaria a viver por mais um ano.

     Por outro lado, se não conduzisse Kendric e seus homens à aldeia viking, morreria naquele mesmo dia. Que opção lhe restava?

     - Está bem, milorde. Amanhã.

    

     - Você tem mesmo que ir? - perguntou Meradyce, aconchegando-se mais para junto do marido.

     - Não sou obrigado a ir, mas Thorston está convencido de que não encontrará mais vinho para comprar e revender durante o resto da primavera se não partir agora. Só Svend dá cabo à maior parte das bebidas.

     - Eu não entendo por que você tem de ir com ele!

     - Eu não preciso que ninguém me ajude a tomar decisões, mulher - brincou ele, beijando a esposa na testa.

     Na verdade, Einar nem mesmo queria ir com Thorston, mas ele mencionara um fabricante de berços em uma aldeia ao norte, onde também ficavam os vinhedos. Então, decidira ir, sem mencionar o presente que traria. Seria uma surpresa para Meradyce.

     - Eu sei disso mas... - ela começou a espalhar beijos pelo rosto e pelo peito de Einar - vou sentir muita falta disso e de...

     - Vejo que me casei com uma mulher que se entrega a paixões descontroladas.

     Meradyce não se deteve e continuou a acariciar o marido com sensualidade crescente. Logo, a brincadeira se transformou em desejo e ambos suspiraram de prazer.

     - Acho que talvez eu possa não ir. - murmurou ele, com os olhos carregados de desejo.

     - Não me disse que já decidiu, querido? - Vitoriosa, Meradyce, afastou-se dele.

     - Oh, não! Agora você não pode fugir. - Einar a puxou de volta aos seus braços.

     - Mas você vai ficar longe de mim.

     - É diferente .

     Ela ia continuar discutindo, mas sentiu a força do desejo de Einar e também se deixou levar pela paixão.

     Mais tarde, Meradyce permaneceu deitada, observando Einar que se vestia.

     - Vai ficar fora por quantos dias, querido?

     - Eu não sei exatamente. Temos bons cavalos, mas talvez ainda encontremos muita neve nos vales. Não devo demorar mais do que uma semana.

     - Einar?

     - Sim?

     - Quando tempo ainda falta para Adelar ser devolvido ao pai?

     Ele se virou para fitar a esposa, preocupado com a tristeza evidente em sua voz.

     - Poderemos navegar dentro de muito pouco tempo, querida.

     - Espero não ficar tão enjoada como da outra vez.

     - Você não vai.

     Sentando-se abruptamente na cama, Meradyce o fitou, com determinação.

     - É claro que vou! Tenho que ir!

     - A viagem pode ser perigosa e você está grávida.

     - Mas sou eu quem tem de dar a notícia a Ludella. É o meu dever.

     - O seu dever é obedecer às ordens do marido e tomar todos os cuidados para que nosso filho nasça saudável

     As últimas palavras de Einar dissiparam a raiva de Meradyce.

     Ela sabia o quanto o marido temia aquela situação, natural para a maioria das mulheres.

     Einar já estava preocupado com o parto e lhe pedira que ensinasse todos os truques de uma parteira a Endredi. Como se não bastasse, insinuara que ela deveria passar seus conhecimentos também a Olva pois duas mulheres a ajudariam melhor do que uma.

     Enrolando-se na manta de pele, Meradyce levantou-se da cama e tocou o braço do marido.

     - Por favor, querido. Eu preciso ir e, além disso, quero muito fazer essa viagem com vocês. Não apenas por mim, mas também por Adelar. Estou me sentindo ótima e, se não encontrarmos muitas tempestades, sei que suportarei tudo muito bem.

     Olhando para a esposa, Einar reconheceu a determinação que aprendera a conhecer tão bem.

     - Está bem. É evidente que você me maneja com perfeição, não? - Ele a tocou carinhosamente no rosto. - Eu a levarei, mas só partiremos quando o tempo estiver mesmo excelente.

     Meradyce jogou-se nos braços dele, deixando cair a manta de peles.

     - Não me tente, mulher. Eu tenho de sair para me certificar de que tudo está pronto para a viagem.

     - Tem que ir neste minuto, amor?

     Einar suspirou, desistindo de sair.

     - Eu soube que você só me traria problemas no instante em que a vi, amor.

    

     - Tem de ser agora! - berrou Ull, irritado com a expressão de dúvida do irmão. - O tempo já está bom para navegar, metade da aldeia foi até as colinas colher flores para a carroça cerimonial e Einar viajou. Nossos amigos não hesitarão em nos ajudar e é a hora perfeita para agir!

     - Mas Einar deve voltar a qualquer momento. E se chegar hoje? Ele nos perseguirá e pode ficar certo de que nos matará.

     - O tempo tem estado muito ruim nos últimos três dias. Mesmo se estivessem dispostos a viajar debaixo de chuva, as estradas enlameadas os impediriam de prosseguir com rapidez. Einar não chegará hoje, de maneira alguma!

     Ull percebeu que o irmão continuava relutante e insistiu em seu argumento.

     - Ainda que chegassem amanhã, nós já teríamos um dia de viagem na frente deles. Lembre-se que levaremos o melhor navio e os outros parecem tartarugas lentas se comparados com o de Einar. Ele não nos alcançaria antes de chegarmos à aldeia dos saxões. Vamos, Siurt! Os outros estão prontos e esperando por nós!

     - Não estou muito certo, Ull. Talvez os saxões nos culpem pela morte da menina. Quem sabe seja melhor desistir dessa idéia.

     - Não seja idiota! O pai receberá de volta o filho que certamente é o mais importante para ele. Pagará o resgate e é isso que nos interessa.

     Com a mão cerrada no punho da espada, Ull encarou Siurt. Se ele se recusasse a acompanhá-lo, teria de matar o irmão.

     - Vem comigo ou não, Siurt?

     - Eu só estou pensando nos problemas que podem aparecer, Ull. Por exemplo, não acha arriscado que os saxões saibam onde fica nossa aldeia?

     - Você é o único que me atormenta com essas dúvidas absurdas, sabia? Já lhe disse dezenas de vezes que mataremos os saxões depois que controlarmos a aldeia. Assim que Svend e os filhos estiverem mortos, todos aceitarão nossa liderança.

     - E se os saxões não vierem para nos ajudar?

     - Então, o garoto morre. Não acredito que o pai vá nos recusar nada.

     - Mas e se ele recusar? Nós não poderíamos retomar para nossas casas, nunca mais. Nossa vida não valeria um centavo.

     - E daí? Teríamos dinheiro suficiente para começar nossa própria aldeia. Talvez nas terras da Dinamarca.

     - E nossas esposas?

     - Pelo martelo de Thor! Você é mesmo idiota, não? Nós podemos encontrar outras mulheres!

     - Acho que podemos - murmurou Siurt, finalmente começando a se animar. - Mais jovens, certo?

     - Até que enfim você começa a entender, mano - resmungou Ull, impaciente. - Vamos logo pegar o garoto. Não há tempo a perder.

    

     Meradyce tentava, sem muito sucesso, imitar os movimentos de Endredi e prender as hastes das flores a fim de formar uma guirlanda.

     O dia estava cálido, com a promessa da primavera nos suaves raios de sol. Uma brisa mansa espalhava no ar o perfume do capim recém cortado e as vozes das mulheres e crianças que tinham vindo à colina para colher flores.

     - Eu não consigo! - reclamou ela, erguendo no ar a guirlanda que terminara e parecia prestes a se desfazer com o menor movimento.

     - Já conseguiu fazer uma e logo terá mais prática - respondeu Endredi, sorrindo.

     - Então, continuarei a tentar.

     Ela e Endredi tinham se tomado verdadeiras amigas e, por saber que tudo se explicara entre pai e filha, aumentava a felicidade de ambas.

     - Quantas guirlandas precisam ser feitas?

     Endredi apontou para a rudimentar carroça que fora trazida até a colina pelas mulheres, ajudadas pelas crianças da aldeia. No centro do veículo, havia uma estátua do deus Freyr.

     - Temos que cobrir toda a carroça com as guirlandas. A nossa aldeia recebeu a honra de preparar a festa deste ano e queremos caprichar ao máximo.

     - Para que a festa fique mais bonita.

     - Não. Para que o deus Freyr se sinta muito honrado e as outras aldeias fiquem impressionadas.

     - Então o carro cerimonial não permanece aqui?

     - Oh, não! O carro vai para todas as aldeias da região. Hamar o conduzirá e eu lhe asseguro que é uma grande honra.

     Franzindo a testa, Meradyce examinou a nova guirlanda que acabara de fazer. Decididamente, não estava nada melhor do que a primeira! Aliás, não sabia se deveria ajudar na preparação de um ritual viking.

     Sem dúvida, os saxões também realizavam seus ritos de primavera a fim de garantir uma boa colheita, mas o Senhor era sempre invocado e não um dos muitos deuses vikings.

     Entretanto, Einar ficaria feliz de saber que ela participara de um acontecimento tão importante para a aldeia. Meradyce queria agradar o marido e também ansiava por se adequar sua nova vida.

     - Espero que o tempo continue bom - declarou Endredi, olhando para o céu sem nuvens. - Svend está ansioso para arar o primeiro campo. Se meu pai e Thorston não chegarem logo, ele o fará sem os dois.

     - E seria muito ruim se Svend não os esperasse?

     - Eles ficariam aborrecidos se perdessem a festa. - Endredi olhou de soslaio para Meradyce. - Adelar não fala comigo há três dias e mal o vi ontem.

     - Ah! Como eu gostaria de saber como agir! - Suspirando, Meradyce largou a guirlanda. - Adelar sempre teve esse tipo de comportamento quando algo o magoava ou preocupava. Não deixa que ninguém chegue perto dele.

     - Adelar é uma pessoa forte.

     Meradyce examinou a jovem de cabelos de um loiro dourado que trabalhava com rapidez e perfeição. Endredi tinha um temperamento semelhante ao de Adelar e preferia cuidar dos ferimentos no silêncio de sua privacidade.

     - Um navio!

     As mulheres e as crianças interromperam o trabalho para olhar na direção do fiorde. Hamar, Einar e Thorston tinham viajado a cavalo e não se esperava a chegada de nenhuma embarcação.

     Todos olhavam para o imenso navio que se aproximava e, por falta do vento, estava sendo impulsionado pelos remos.

     - Não é um navio viking! - exclamou Endredi quase imediatamente.

     - Não - murmurou Meradyce, lutando contra um pressentimento funesto.

     O navio era estranhamente parecido com as embarcações vikings, mas havia algo errado. Talvez o casco fosse estreito demais.

     Então, uma figura se moveu na proa do navio.

     - Oh, Endredi - balbuciou Meradyce, num fio de voz.

     - O que foi? - perguntou a jovem, ansiosamente.

     Meradyce hesitou, incapaz de acreditar nos seus próprios olhos. Devia estar enganada. Tinha de estar!

     Não podia ser Kendric na proa daquele navio!

     Quando o homem voltou a se mover, o sol iluminou seu rosto e Meradyce começou a correr de volta à aldeia.

    

     Adelar estava sentado em uma pedra à beira do rio quando avistou o navio. Recusara-se a acompanhar as mulheres e as crianças até a colina para colher flores. Jamais se envolveria em um ritual pagão ou na religião dos vikings.

     Ele não odiava a todos, apenas sentia uma profunda indiferença.

     Tinha a sensação de que o frio do inverno se instalara em seu coração, transformando-o em um bloco de gelo.

     No passado, amara Meradyce com toda a paixão sem limites de um adolescente que descobre esse sentimento, mas essa emoção também morrera aos poucos. Decepcionara-se quando ela se submetera a se casar com um selvagem viking e depois com a morte de Betha, perdera a capacidade de se interessar pelas outras pessoas.

     Agora, Meradyce não passava de mais uma mulher entre muitas. Mas Einar! Como odiava Einar! Se não fosse por ele, Adelar jamais teria sido arrancado de seu lar, não se arriscaria a fugir em plena tempestade de neve e Betha ainda estaria viva.

     Observando a aproximação do navio, Adelar o comparava com o de Einar, que estava ancorada no cais do fiorde. A embarcação que chegava não tinha a mesma harmonia de linhas e, aos olhos de um garoto inexperiente, parecia mais pesada e com algo muito errado na popa,

     Subitamente, ouviu-se um grito e Adelar virou-se para ver Meradyce que descia a colina, correndo, acompanhada de perto por Endredi. Ele levantou-se a fim de descobrir o que estava acontecendo.

     - Saxões!

     Adejar ouviu os gritos de alerta dos moradores da aldeia e virou-se para examinar o navio, agora bem próximo.

     Seu coração encheu-se da mais pura alegria.

     - É meu pai, ele veio me buscar!

    

     Svend e os homens que não tinham viajado com Einar saíram da casa principal da aldeia, com as armas nas mãos.

     Entretanto, Kendric trouxera todos os homens que podia acomodar na enorme embarcação. Antes mesmo das cordas do navio serem amarradas nos pontões, já se via uma fila de soldados se colocando em posição ao longo do cais.

     Mas o inimigo não se movia e Svend parou logo após ter cruzado o portão da aldeia.

     - Esperem - ordenou ele aos seus homens, que continuavam a correr para o cais. - Esperem!

     Meradyce, Olva e Endredi já haviam alcançado o portão e se detiveram para observar Svend que caminhava sozinho ao encontro de Kendric. O senhor saxão se aproximava do chefe viking, sem disfarçar a arrogância de quem sabe estar em superioridade numérica.

     Onde estaria Adelar? Meradyce rezou para que ele aparecesse logo, evitando uma batalha desnecessária. Era evidente que Kendric viera buscar o filho e não podia estar sabendo da ausência de Einar.

     Ela deu um passo à frente. Iria se reunir a Svend a fim de facilitar a comunicação entre ele e Kendric. Além disso, tinha outro penoso dever a cumprir.

     - Onde vai? - murmurou Olva, agarrando-a pelo braço.

     - Posso ajudá-los a se entenderem, Olva. Também quero ser a pessoa que contará a Kendric sobre a morte de Betha.

     - Então esse é o pai das crianças?

     - Sim.

     Meradyce abriu caminho entre os guerreiros vikings, que permaneciam parados, aguardando ordens. Kendric não disfarçou a surpresa ao reconhecê-la e então, ao notar seu ventre distendido, deu um sorriso frio.

     - É bom ver você, Meradyce. Percebo que encontrou um modo de satisfazer e apaziguar seus captores.

     Diante dos olhos dela, a expressão de Kendric se transformou em uma máscara de raiva.

     - Diga a esse porco imundo que quero meus filhos.

     Ela lutou contra a vontade irreprimível de denunciar Kendric na frente de seu exército a fim de vingar-se da grosseria com que estava sendo tratada. Entretanto, temia que Adelar estivesse por perto e pudesse ouvir.

     - Este homem é Kendric, pai de Adelar - explicou ela, virando-se para Svend. - Veio buscar seus filhos.

     - Ah! É esse o traidor?

     - Sim - murmurou Meradyce, percebendo que sua tarefa não seria fácil. Ela voltou-se novamente para Kendric. - Sinto muito ter que lhe dar uma péssima notícia, mas Betha morreu.

     Os olhos de Kendric não revelavam tristeza alguma.

     - E onde se encontra Adelar?

     - Adejar está bem. Betha adoeceu e fiz tudo o que sabia para salvá-la mas...

     - Tenho certeza que fez - zombou ele, sem disfarçar o desdém. - Quando conseguia algum minuto livre das atenções dos homens.

     - Papai!

     Adelar abria caminho entre os guerreiros vikings.

     - Eu sabia que você viria me buscar! - O garoto jogou-se nos braços do pai. - Eu sabia! Leve-me para casa!

     Kendric encarou os vikings com uma expressão triunfante.

     - Eu recuperei meu filho e não graças a vocês, malditos selvagens! - Ele voltou-se para Adelar. - Vá para o navio.

     O garoto lançou um último olhar para Meradyce e para Endredi, antes de obedecer ao pai.

     - Agora você vai embora, não é? - perguntou ela, aflita.

     - Sem dúvida! - exclamou Kendric, arrancando a espada da bainha.

     Os homens se enfrentaram e, em torno de Meradyce, as armas se entrecruzavam com clamor metálico. As mulheres começaram a gritar, apavoradas.

     Adelar reapareceu no convés do navio e Meradyce correu na direção dele.

     - Não saia do navio! Fique ai mesmo!

     Gritos de dor, apelos a Odin e pragas se erguiam no ar da manhã que fora tão calma na aldeia. Os soldados saxões haviam cercado os vikings, numa superioridade numérica de três para um.

     Mas os vikings lutavam desesperadamente, como homens possuídos. Os soldados saxões caíam, vitimados pela fúria dos homens que defendiam seus lares e suas famílias.

     Meradyce estava paralisada pelo terror. Nunca presenciara uma batalha, nunca vira tanto sangue ou o horror da morte violenta.

     Então, avistou Svend, agachado como um animal acuado, diante de Kendric. O saxão o rodeava com uma expressão de bestialidade em seu rosto atraente. Era difícil acreditar que aquele monstro feroz fosse o pai de Adelar.

     Ela voltou a fitar Svend e percebeu por que o pai de Einar, tão corajoso quanto o filho, estava apavorado.

     Svend perdera a espada e, se Kendric o capturasse vivo, ele seria enforcado ou lhe caberia um destino igualmente vergonhoso, o que lhe impediria de entrar no Valhalla.

     Naquele momento, Meradyce agiu sem pensar e tomou a decisão ordenada pelo seu coração e não por sua mente. Agora pertencia a Einar e ao seu povo.

     Havia um soldado caído aos pés dela. Meradyce arrancou a espada das mão ensangüentadas do morto.

     Mas, antes que pudesse alcançar Svend, Olva surgiu repentinamente, jogando-se de encontro a Kendric. O saxão ergueu a espada e a atingiu num golpe certeiro.

     Olva caiu perto de Svend, segurando o ventre onde uma mancha rubra se espalhava rapidamente.

     - Svend! - berrou Meradyce, atirando a espada na direção dele.

     Com um brilho de triunfo nos olhos, o chefe viking agarrou a arma no ar e se lançou contra Kendric. O saxão, muito mais jovem, escapou do golpe e, antes que Svend se reafirmasse, atingiu-o mortalmente.

     Svend caiu ao chão, deixando escapar a espada.

     Então, Ull surgiu do ponto mais tenso da batalha e avançou para Kendric, com o machado girando furiosamente à sua frente. O viking conseguiu atrair o saxão para o centro dos homens que se enfrentavam com ferocidade.

     Meradyce correu para junto de Olva. A corajosa mulher já havia se arrastado para junto de Svend e, com um esforço sobre-humano, colocou a espada caída novamente entre os dedos do viking que precisa de sua arma para entrar no Valhalla.

     Meradyce ajoelhou-se junto dos pais de Einar, para ajudá-los em seus últimos momentos. Olva morreu nos braços dela, mas Svend ainda resistia, embora seu sangue se esvaísse.

     - Asa... Vedis ... meus filhos ...

     - Eu cuidarei deles, Svend.

     Agarrando com mais força a espada, ele sorriu.

     - As valquirias estão chegando para me buscar.

     Lutando para enxergar através das lágrimas, Meradyce se ergueu e viu que tudo terminara. A batalha chegara ao fim e todos os guerreiros vikings estavam mortos ou seriamente feridos.

     Ninguém prestava atenção nela. Era preciso fugir o mais depressa possível dali. Adelar fora salvo pelo pai e ela não tinha mais nenhuma responsabilidade. Iria se esconder e esperar por Einar.

     Meradyce começou a correr, ocasionalmente olhando para trás a fim de verificar se alguém a perseguia.

     Então, ela parou abruptamente. Kendric encontrara Endredi e a puxava com violência na direção do navio. Meradyce também viu as outras mulheres sendo conduzidas, como um rebanho de gado, na direção do cais, enquanto os soldados saxões matavam os vikings sobreviventes da batalha.

     Revoltada, ela agarrou a espada das mãos já frias de Svend. O guerreiro morto já não mais precisa de uma arma e Meradyce preparava-se para iniciar a sua luta.

     Ela tocou a arma coberta de sangue e caiu em si. De que adiantaria uma única espada, manejada por uma mulher, contra dezenas de inimigos, que haviam derrotado vikings corajosos e excelentes guerreiros?

     Resignada, voltou a colocar a espada junto ao corpo de Svend.

     Kendric avistou Meradyce vindo em sua direção e sorriu friamente. Ela estava magra e abatida, a magnífica cabeleira não mais emoldurava o rosto e carregava em seu ventre o filho de um selvagem.

     Ainda assim, continuava sendo a mulher mais bela que ele já vira.

     Ao constatar que Meradyce tentara ajudar o chefe viking, Kendric sentira ódio. Era evidente que aquela mulher orgulhosa se entregara por vontade própria ao líder viking ou a algum de seus guerreiros.

     Ele sabia que homem algum a tomaria sem seu consentimento, pois Meradyce se mataria antes de ser tão humilhada. E, no entanto, aquela mulher o recusara!

     - Leve-me com você, Kendric.

     - O prazer é todo meu.

     Algum dia, ele a possuiria. Algum dia.

     Então, Kendric notou a preocupação de Meradyce pela garota que ele conduzia ao navio.

     Quem seria aquela jovem viking e por que Meradyce se sentia ligada a ela?

     - Você continua bonita como sempre - disse ele, com um olhar de fingida compaixão, enquanto empurrava a jovem para junto da mulheres que se encaminhavam para dentro do navio.

     Meradyce não respondeu, mas notou o desprezo no olhar de Kendric. Pouco lhe importava a opinião dele se a sua presença pudesse ajudar Endredi e as outras mulheres da aldeia.

     - Pena que eu não pude chegar antes. - Ele olhou fixamente para o ventre de Meradyce - para evitar os seus problemas.

     - Você está aqui agora. Tem o seu filho de volta e a sua vingança foi definitiva. Certamente não precisa levar todas as mulheres e as crianças da aldeia.

     A expressão de Kendric se tomou mais dura.

     - Elas dificultarão a viagem - apressou-se a completar Meradyce.

     - Talvez isso aconteça, mas não é da sua conta. Serão vendidas como escravas e a quantia que receberei por elas me reembolsara pelas despesas desse navio e pela reconstrução da aldeia.

     - Como nos encontrou?

     - Não importa. - Ele a olhou da cabeça aos pés. - O selvagem que a engravidou está entre os mortos?

     - Sim - mentiu Meradyce.

     - Ótimo. - Kendric a puxou pela mão. - Venha.

     Meradyce entrou no navio pela mão de Kendric.

    

     Einar tentou acomodar-se melhor na sela. Geralmente, eles paravam para dormir uma noite em uma das aldeias menores no caminho de volta ao lar. Desta vez, a sua ansiedade em retomar era tanta que convencera os companheiros de viagem a prosseguir apesar do cansaço.

     A chuva constante atrasara sua partida e o mar de lama era mais um obstáculo à rapidez do retomo, embora estivessem usando trenós e não carroças para transportar as mercadorias.

     Thorston insistira que eles esperassem ainda um ou dois dias, esperando a lama secar, mas bastou um olhar e a expressão de Einar o induziu a ser prudente e não abrir mais a boca.

     Einar virou-se para trás e viu que Thorston estava quase dormindo em cima do cavalo.

     - Agora falta pouco - gritou ele para o padrasto.

     - O quê? O que disse? - Sobressaltado, Thorston olhou ao seu redor. - Ah! Estamos quase chegando em casa, não? Ainda bem, porque minhas costas estão arrebentadas. Não costumo cavalgar tanto tempo sem uma parada para repousar. Entendo sua impaciência de jovem, mas tenha piedade de um velho, Einar.

     - Então, admite que está ficando velho demais para essas viagens de negócios?

     - Nunca! Apenas acho que é demais para um homem de minha idade cavalgar o dia todo sem parar!

     - Minha mãe já deve estar ficando furiosa com nosso atraso - insinuou Einar, maliciosamente.

     - E por acaso poderá me considerar responsável até pelo clima? Não pedi a Odin que chovesse! Você só está apressado porque não quer perder a festa.

     - Por falar em festas - interferiu Hamar que cavalgava logo atrás dos dois - Svend vai ficar furioso quando souber que você já vendeu todo o vinho.

     - Pois a culpa é só dele! - Thorston virou-se para trás. - Eu teria guardado alguns barris para ele se acreditasse que receberia um preço justo de seu pai. Todos sabem que ele dá todo o dinheiro para suas mulheres.

     Os outros homens da caravana caíram na risada. Como Einar, estavam ansiosos por terminar logo a viagem e antecipando o prazer da refeição quente que teriam e a alegria do reencontro com suas famílias.

     A viagem não fora longa, mas a necessidade de adiar a partida por causa da chuva acabara por irritar a todos. A maioria lucrara nos negócios e agora só queria voltar para casa.

     - Svend não ficará nada satisfeito por ter de esperar - comentou Hamar.

     - Nunca entendi por que seu pai gosta tanto de arar - resmungou Thorston.

     - Ele só conduz o arado no primeiro campo, é um gesto simbólico apenas - salientou Einar. - Acho que gosta de demonstrar a todos que sabe fazer algo mais do que lutar.

     - Talvez você esteja certo, porque Svend passa dias se vangloriando do feito. - Thorston mudou radicalmente de assunto. - Você comprou um lindo berço, Einar. Pena que tenha pago demais.

     - Você sempre acha que eu pago demais pelas minhas compras, Thorston.

     - Pois é a verdade.

     - Acha que o teria conseguido por menos, não é?

     - Talvez. Entretanto, admito que você não faz negócios tão maus. A sua altura ou quem sabe o tamanho da sua espada despertam o lado mais honesto dos comerciantes.

     A tarde chegava ao fim quando eles alcançaram a colina de onde se avistava o fiorde. Einar deteve seu cavalo a fim de avistar a aldeia na luz fraca da chegada da noite. Seus cães também se imobilizaram por um instante e então começaram a ganir.

     Algo acontecera. Algo estava muito errado!

     - O que foi? - perguntou Thorston, também parando o cavalo.

     - Não vejo nenhuma fumaça e não há ninguém andando pela aldeia.

     Hamar se aproximou, seguido pelos homens que se aglomeravam a fim de ter uma visão do pequeno povoado.

     - Thorston! Reúna cinco homens para ficarem com você aqui. Os outros devem me seguir.

     Einar esporeou o cavalo e· desembainhou a espada.

    

     Tarde demais.

     Com a espada na mão, Einar aproximou-se do cais onde seus companheiros de tantas batalhas jaziam mortos. Seu pai e sua mãe tinham morrido. Também Bjorn e muitos outros. Eles haviam voltado para casa tarde demais.

     Hamar passou ao seu lado correndo em direção à casa onde morava, apenas para retornar com igual rapidez.

     - Não há ninguém! Desapareceram!

     Einar sentiu o coração falsear em seu peito.

     - Meradyce! Endredi!

     Os gritos de Einar ecoaram na aldeia abandonada e deixada pala os mortos. Ele percorreu a vila, examinando os corpos que jaziam do lado de dentro dos portões. A maioria dos guerreiros mortos estava do lado de fora, mas algumas mulheres tinham sido mortas junto às casas.

     Não havia sinal de Meradyce ou Endredi ou Adelar. O resto das mulheres e crianças da aldeia também tinha desaparecido.

     Einar segurava o punho da espada com uma força excessiva enquanto se encaminhava para os portões do povoado. Ele jurava a si mesmo que se vingaria dos malditos invasores de sua aldeia. Quem cometera aquele massacre acabaria sendo encontrado e preferiria nunca ter nascido!

     Os homens estavam reunidos e o fitavam, cheios de desespero.

     - Nós os encontraremos onde tiverem sido levados por quem os arrancou de nós - declarou Einar, com um olhar duro.

     - Quem pode ter sido? - Hamar estava muito pálido e parecia incapaz de aceitar a realidade.

     - Os saxões.

     Olhando para trás, de onde vinha a voz, Einar custou a reconhecer Ull, que cambaleava junto ao barracão de Bjorn. O rosto estava inchado e machucado, e a mão direita segurava o ombro esquerdo ensangüentado.

     - Ouvi o garoto chamar o líder de pai. Então vi a sua esposa com eles, Einar.

     - O que quer dizer com eles, Ull?

     Ele fez a pergunta num tom de voz bastante calmo, mas os companheiros de viagem se afastaram sem a menor vontade de estar por perto quando Einar se enfurecia.

     Mas Ull se aproximou, sem medo.

     - Eu vi com meus próprios olhos. Sua esposa caminhou até o homem que liderava os saxões, seguiu-o sem ser forçada e chamou-o pelo nome.

     - Que nome?

     - Kendric.

     - E Endredi?

     - O saxão estava levando Endredi para o navio. - Ull cambaleou e, para não cair, agarrou-se ao braço de Einar. - Traga-a de volta ela é minha filha.

     Einar evitou que Ull caísse ao chão, sem forças. Então, chamou dois homens próximos.

     - Eu sinto muito - murmurou Ull, quase desmaiando de dor.

     - Levem-no para a casa principal e cuidem de seus ferimentos.

     Em uma outra situação, Einar sabia que teria matado Ull ao ouvir aquelas palavras. Agora, só podia pensar em Meradyce e em Endredi nas mãos dos saxões, à mercê de um traidor.

     - Você sabe quem é esse Kendric? - perguntou Hamar que notara a expressão tensa de Einar quando Ull pronunciara o nome.

     - É o pai das crianças que raptamos.

     - Então, sabemos onde fica a aldeia dele.

     - Sim - murmurou Einar, com um sorriso cruel.

     Só então Hamar olhou para o fiorde e não conteve uma exclamação de horror. Todos os navios tinham sido danificados. Mastros quebrados, furos no casco, velas rasgadas. Alguns estavam quase afundando nas águas mansas da beira do cais.

     - Em primeiro lugar, enterraremos nossos mortos - declarou Einar que acompanhara o olhar do irmão. - Depois, consertamos um dos navios e então atacaremos os saxões.

     - A sua esposa, não acha que ela...

     - Que ela me traiu? - Einar manteve o olhar fixo no céu por algum tempo antes de responder com firmeza. - Ela acompanhou os saxões por causa de Endredi e das outras mulheres, da mesma forma que se recusou a abandonar Adelar e Betha. Não me resta à menor dúvida sobre isso, é como se eu tivesse estado presente durante o ataque, Hamar.

     A expressão de Einar se transformou em uma máscara de feroz determinação.

     - Eu matarei o saxão pelo que fez com minha família e minha aldeia. Se ele tiver feito algum mal a Meradyce, a Endredi ou às outras mulheres, prometo que será uma morte muito lenta e cruel. Prometo pelo sangue de nosso pai.

    

     As mulheres foram colocadas na popa do navio saxão. Muito próximas, elas procuravam no contato físico um modo de apagar a desgraça que se abatera sobre suas cabeças.

     Mais uma vez, Meradyce via uma aldeia desaparecer na distância, enquanto ela se afastava para o mar aberto. Desta vez, fora durante o dia e não à noite, não haviam chamas de destruição, apenas um silêncio trágico. Desta vez, sentia-se realmente afastada de um lar, pois deixava sua casa e perdia Einar.

     Diante da dor das mulheres e das crianças, ela fez um juramento a si mesma. De alguma forma, todas retornariam. Encontraria um meio de levá-las de volta ao lar, sãs e salvas!

     Ao longo da viagem, Meradyce agradeceu aos céus por ter Endredi ao seu lado. A jovem mantinha-se calma e conseguia tranqüilizar as crianças pequenas que estavam apavoradas.

     Felizmente, o tempo se manteve muito bom, porque o navio estava com mais vazamentos do que um jarro quebrado. Também não tinha a rapidez da embarcação de Einar, parecendo se arrastar entre as ondas como se estivesse mergulhado na lama.

     Meradyce sabia que o navio de Einar teria condições de alcançá-las em muito pouco tempo, mas vira Kendric dar ordens para a destruição de todas as embarcações no fiorde.

     Então, ela avistou Adelar junto ao pai, na popa do navio, e seu coração disparou. O garoto aprendera muito com o viking e até absorvera sua postura sem o perceber. De pé, com as pernas ligeiramente separadas e os ombros eretos, ele parecia um guerreiro nórdico, à vontade no mar e acostumado ao balanço das ondas.

     Pela primeira vez, notou que havia sangue nas roupas do garoto e a espada presa à sua cintura. Adelar também teria lutado contra os vikings?

     Ela esperava que Adelar pedisse ao pai clemência para as prisioneiras. Ele conhecia todas aquelas mulheres e crianças. Talvez o garoto encontrasse um meio de convencer Kendric a não vendê-las como escravas.

     Um homem a fitava com insistência e tinha os olhos de um rato e o olhar calculista de um mercador de escravos. Ela virou a cabeça para não vê-la mais e avistou Adelar que, subitamente, apresentava uma postura de desânimo e derrota.

     O que teria acontecido? O que Kendric contara ao filho para deixar os ombros do garoto tão curvados? E por que Adelar estaria vindo em sua direção com a expressão de uma criança perdida?

     Meradyce ficou em pé e, ignorando a mão de Endredi que tentava impedi-la de ir, avançou na direção de Adelar.

     - Minha mãe morreu - disse ele, com uma voz sem emoção. - Teve um acidente fatal muitas semanas atrás.

     Lembrando-se do que Einar lhe contara, Meradyce olhou para Kendric, tentando adivinhar se ele mesmo matara a esposa. Não pôde ver sua expressão porque ele conversava com o homem de olhos de rato.

     - Eu sinto muito por sua mãe, Adelar.

     - E por que sentiria?

     Ela não respondeu. Como contar-lhe o que sabia sobre Kendric e Ludella? O pobre garoto já carregava uma carga pesada demais para seus ombros ainda jovens e talvez o acidente que matara sua mãe não tivesse sido proposital.

     - Adelar... - murmurou ela, após um longo silêncio - você precisa nos ajudar.

     O garoto apenas a fitou com um olhar sem expressão.

     - Estas mulheres e estas crianças nunca lhe fizeram mal algum. Peça a seu pai que tenha piedade delas. Não deixe que Kendric as venda como escravas.

     - Meu pai me contou o que os vikings disseram em sua mensagem. Eles iam me vender se o resgate não fosse pago.

     - Acredita mesmo nisso? - insistiu ela, com ardor. - Acredita que Einar permitiria? Ele deixaria alguém vender você, Adelar?

     Ainda um adolescente, Adelar sentia-se confuso e Meradyce sentiu pena dele. Entretanto, precisava lutar de todas as formas para salvar as outras vidas em suas mãos e não poderia poupá-lo.

     - Einar o amava como se você fosse o filho dele. Sabia que seu pai podia e iria pagar.

     - Como Einar podia ter essa certeza?

     Meradyce não podia mentir porque Adelar perceberia imediatamente.

     - Porque seu pai já havia pago a Einar uma enorme quantia em dinheiro.

     - E por quê? Meu pai não faz negócios com vikings selvagens.

     Nesse instante, Kendric avançou até o meio do navio.

     - Volte para junto das outras mulheres. Vá ficar entre os bárbaros, como você merece.

     Ela mal continha a vontade de desobedecer e de revelar que sabia da traição de Kendric. E se dissesse em voz alta que haviam lhe contado tudo sobre o ataque contratado dos vikings que resultaria na morte de Ludella? E se afirmasse que o acidente fatal da pobre mulher fora um ato deliberado do marido que não mais a suportava e queria estar livre?

     Infelizmente, aquela não era a hora certa, não enquanto estivesse presa num navio!

     Talvez nunca chegasse o momento de enfrentá-lo com a verdade, a não ser que encontrasse logo um meio de escapar do cativeiro.

    

     Quando o navio começou a percorrer o rio que os levaria à aldeia de Kendric, Meradyce percebeu um crescente interesse dos homens pelas prisioneiras. Vendo-os conversar baixinho, teve certeza de que estavam escolhendo seus prêmios.

     Endredi parecia ficar mais tensa à medida que se aproximavam de seu destino. Preocupada, Meradyce abraçou-a, a fim de reconfortá-la.

     - Tente não se entregar ao medo, querida. Seu pai...

     A jovem não disfarçou a surpresa diante do comentário de Meradyce.

     - Eu não estou com medo! Como sei que não podemos contar com meu pai, pois ele dificilmente conseguirá vir ao nosso auxílio antes de sermos vendidas, preciso pensar em um modo de solucionar esse problema. Cheguei à conclusão de que teremos de resolver tudo sozinhas. - Ela olhou para a paisagem a distância, com um olhar atento. - É importante me lembrar desse braço do rio que acabamos de passar para nos localizarmos quando fugirmos.

     A voz de Endredi era tão calma e confiante que Meradyce sentiu uma enorme confiança. Se todas as mulheres se unissem, talvez fosse possível escapar de um destino terrível.

     - Precisamos ficar todas juntas, Endredi.

     - Essa parte é mais fácil. O difícil será conseguir um navio.

     - E também navegar de volta para casa - completou Meradyce, tentando não se apavorar com essa possibilidade.

     - Somos todas mulheres vikings. - Endredi sorriu, ao perceber o medo da outra. - O mar está em nosso sangue e certamente Thor ficará a nosso favor. Como eu disse antes, a parte mais perigosa do plano será roubar um navio.

     Um dos bebês de Asa começou a chorar e Meradyce apressou-se em ajudar a jovem mãe. Sentia-se cheia de esperança e confiante, pois, embora sabendo o quanto seria difícil escapar, tinha certeza de que elas o conseguiriam e sem deixar ninguém à mercê dos saxões.

    

     Einar e os sobreviventes do ataque saxão retiraram dois dos navios quase submersos no fiorde a fim de trazê-lo para a praia. Um deles tinha apenas um rombo no casco e, depois de consertado, serviria para levá-los até a aldeia dos saxões. A outra embarcação levaria os mortos para o Valhalla.

     Tomado por uma dor profunda, Thorston abriu uma cova para Olva enquanto Einar ajudava os homens a reparar o navio. Colocou o corpo da esposa no túmulo e a rodeou com as peças que mais amava, como o tear e as jóias. Só então foi chamar o enteado.

     Juntos, os dois permaneceram em silêncio, perdidos em lembranças dos momentos vividos ao lado daquela mulher corajosa. Thorston chorava sem se preocupar em conter os soluços.

     - Ela foi uma esposa perfeita e uma mulher maravilhosa. Oh, Einar! Vou sentir tanta falta de Olva!

     Einar balançou a cabeça, lutando contra uma estranha sensação de estar fora da realidade. Seria tudo um pesadelo? Sua mãe estava morta, sua esposa e sua filha tinham sido raptadas. Mas a dor das perdas era muito real e ele lutou para sufocar a angústia a fim de agir racionalmente.

     - Os saxões pagarão pelo que fizeram a nós, Thorston! - disse ele em voz baixa, aceitando o Ódio que o impelia a exigir uma vingança.

     - Eu sei disso. - Thorston refletia uma inesperada determinação. - Quero a minha vingança.

     - Você não é um guerreiro, Thorston. Alguns de nós terão de ficar na aldeia e começar a reconstrução.

     - Eu não ficarei! - Enfurecido, Thorston encarou o enteado. - Às vezes, um homem reconhece uma causa e precisa lutar por ela. Mesmo que eu empunhe uma espada apenas uma vez na vida, quero fazê-lo quando encontrar os saxões que mataram minha esposa e raptaram as mulheres de nossa aldeia. Tenho certeza de que os outros homens pensam como eu e nenhum aceitará ser deixado para trás.

     Reconhecendo a firmeza obstinada do padrasto, Einar concordou e dirigiu-se para a praia a fim de cuidar do enterro do pai.

     Os guerreiros já haviam cuidado dos mortos e os corpos estavam no convés do navio, com suas armas ao lado. Bjorn e seus operários haviam recebido a honra de um funeral destinado a heróis e tinham suas ferramentas nas mãos.

     Finalmente, Einar colocou a espada em uma das mãos do pai enquanto Hamar punha o machado na outra. Do lado de fora do navio, as toras de madeira já haviam sido colocadas em forma de pira.

     Após um momento de silêncio, Hamar parou junto à proa do navio e se dirigiu ao pequeno grupo de homens que sobrevivera ao massacre.

     - Meus amigos, companheiros de tantas lutas, sabemos que nossos irmãos estão festejando no Valhalla, rodeados pela afeição de Odin. Eles se foram deste mundo como os vikings querem morrer, lutando com uma arma na mão. E receberam uma honra maior, pois defendiam seus lares.

     Hamar lutou contra a emoção que embargava sua voz.

     - Cabe a nós reconstruir a aldeia e salvar nossas famílias. Juro por todos os deuses que não descansarei enquanto não trouxer de volta os seres que amo. Sei que Todos vocês se unem a mim neste juramento. Vamos trabalhar para reparar nosso navio, vamos suplicar a Odin que nos ajude na batalha final. Vamos implorar a Njord que nos dê bom tempo, com ventos fortes e mares calmos em nossa viagem, vamos pedir a Thor por força e a Balder por sabedoria. - A voz de Hamar ficou mais baixa e triste - E vamos implorar a Freyja que proteja nossas esposas e nossos filhos enquanto não os salvamos do cativeiro para um reencontro feliz.

     Apanhando uma tocha, Hamar colocou-a sobre as toras que cercavam o navio.

     - Enfim, vamos enviar nossos companheiros para a derradeira jornada, para o glorioso Valhalla, onde os reencontramos um dia.

     Logo as toras ardiam, erguendo labaredas no ar. O navio estremeceu, estalou e finalmente pegou fogo.

     Lentamente, os homens se afastaram do túmulo dos guerreiros vikings e voltaram ao trabalho.

    

     Às mulheres e as crianças foram conduzidas para fora do navio, sendo apalpadas e empurradas pelos homens que riam e insultavam as prisioneiras. A maioria deles agia com brutalidade, apreciando a possibilidade de atormentar algum dos representantes dos guerreiros vikings que tanto os apavoravam.

     Meradyce procurou por Kendric e Adelar, mas não conseguiu encontrá-los. Talvez os dois já tivessem deixado o navio e ela não podia se afastar do grupo que estava sendo conduzido para um celeiro vazio, do lado de fora das muralhas da aldeia.

     Um pouco antes da pesada porta de madeira ser fechada, Kendric entrou no celeiro, acompanhado por dois soldados muito fortes e apontou para Endredi.

     O coração de Meradyce disparou e sua boca estava muito seca quando ela se adiantou, aproximando-se dos homens.

     - Kendric!

     - O que você quer?

     - Preciso lhe falar.

     - Pois eu estou muito ocupado - declarou ele, friamente, dando um sinal para os guardas que agarraram Endredi.

     Meradyce correu para junto da jovem e foi rudemente empurrada por um dos guardas, caindo ao chão. Enquanto limpava o sangue da boca, viu Endredi ser levada na direção do portão da aldeia.

     A porta foi fechada e as mulheres ficaram em plena escuridão.

     As crianças começaram a chorar de medo.

     Forçando-se a reagir, Meradyce levantou-se do chão. Não havia tempo a perder! Precisava ajudar Endredi o mais depressa possível. Mas como?

     - Gunnhild? Asa? Reinhild? Chamou ela em voz baixa.

     As três mulheres responderam ao chamado.

     - Eu também estou aqui, mulher saxônia! - disse Ilsa.

     - Ótimo.

     Pela primeira vez, Meradyce sentia-se reconfortada com a presença de Ilsa. Precisavam da cooperação de todas se quisessem ter sucesso e, como as mulheres não estavam chorando nem se lamentando, talvez fosse possível uni-las em um grupo coeso.

     - Alguma de vocês tem idéia do que fazer para escapar deste celeiro? - Diante do silêncio geral, Meradyce prosseguiu. - Passem as mãos nas paredes, procurando por alguma brecha entre as tábuas ou um lugar apodrecido ou invadido por cupim.

     Durante longos minutos, o único som que se ouvia era o das mulheres tateando as paredes de madeira do celeiro. Também ocupada no mesmo trabalho, Meradyce tentava não pensar em Endredi à mercê da lascívia brutal de Kendric. Então ouviu a voz de Ilsa, triunfante.

     - Achei! É aqui, bem rente ao chão.

     Meradyce correu para junto da outra mulher e alegrou-se ao constatar que a madeira estava completamente podre naquele ponto. Se todas unissem suas forças, conseguiriam deslocar algumas tábuas. Mas como abrir um rombo na parede sem fazer um barulho enorme?

     - Temos que tirar um pedaço de madeira de cada vez - orientou ela - e abrir um buraco apenas para nos dar passagem, pois do contrário poderá ser visto do lado de fora. Eu sairei em primeiro lugar e irei procurar Endredi.

     No escuro do celeiro, ouviu-se a risada sarcástica de Ilsa.

     - Acha que nós todas somos idiotas? Você irá para a mansão do senhor da aldeia e nos deixará.

     Ilsa não terminou de expor sua opinião pois Meradyce a agarrou pelo pescoço.

     - Em uma outra ocasião, jurei que a mataria, Ilsa. Não me tente mais uma vez. Vou tirar vocês daqui e eu sairei em primeiro lugar!

     - Você está muito gorda!- resmungou Ilsa, tão logo Meradyce tirou as mãos de seu pescoço. - Não conseguirá sair com essa barriga enorme!

     Nem mesmo uma ameaça de morte silenciava Ilsa!

     - Nós teremos de abrir um buraco na parede que seja suficientemente grande para todas saírem. Além disso, não estou tão enorme assim!

     - Você contínua orgulhosa demais para o meu gosto, mulher! - A voz de Ilsa, apesar de irônica, revelava um respeito que não existira antes e Meradyce se sentiu mais confiante.

     - Gunnhild, venha ajudar a mim e a Ilsa.

     - Eu também ajudarei - declarou Reinhild. - Posso afastar a terra bem junto ao chão, tenho uma colher.

     - Uma colher?

     - Eu estava preparando o ensopado quando os saxões atacaram e não larguei a colher. Depois, a escondi na barra do meu vestido. Tenho também uma faca.

     - Graças a Deus! - exclamou Meradyce, aproximando-se de Reinhild.

     - Não é uma faca muito grande mas...

     - Mas é melhor do que não ter nenhuma arma.

     As mulheres trabalharam por cerca de meia hora quando finalmente julgaram que a abertura atingira o tamanho necessário para Meradyce sair.

     - Dê-me a faca, Reinhild.

     Ela quase perdeu o ânimo ao tocar a pequena e frágil faca de cozinha.

     - Gunnhild! Você vem logo atrás de mim e orienta as outras para que todas saiam em ordem. Há um bosque de pinheiros à direita do portão e que se estende até a margem do rio. Vão para lá e fiquem o mais perto da água que puderem. Pegarei Endredi e nós duas nos reuniremos a vocês.

     - E depois o que faremos? - perguntou Reinhild, apavorada.

     - Vamos roubar um navio e velejar de volta para casa.

     - O quê?! - exclamou Ilsa, atônita.

     - Os soldados não estarão esperando que um grupo de mulheres e crianças tente fugir ou roubar um navio. Acredito que não tenham deixado nenhuma sentinela a bordo.

     - É muito perigoso ir à procura de Endredi, Meradyce - murmurou Gunnhild, aflita. - E se alguém avistar você? Então nenhuma de nós escapará.

     - Eu conheço esta aldeia como a palma de minha mão e sei que ninguém me verá. Se isso acontecer, correrei para o lado das colinas e não revelarei a presença de vocês à margem do rio. Aproveitem a confusão e roubem o navio. Não pensem mais em nós.

     - Não sabemos lidar com as velas.

     - Eu sei!- declarou Ilsa, com firmeza.

     - Por favor, não há tempo a perder com conversas! - comandou Meradyce. - Eu não partirei sem Endredi e, se nós duas não chegarmos logo, fujam sem esperar mais.

     Segurando com força a pequena faca, Meradyce esgueirou-se pelo rombo aberto na parede. Quando se viu do lado de fora, parou por alguns instantes, a fim de se orientar. Conforme previra, Kendric só colocara sentinelas diante da porta do celeiro.

     Era evidente que os guardas não esperavam reação alguma de um grupo de mulheres e crianças apavoradas, pois os dois homens conversavam, de costas para o celeiro.

     Mantendo-se nas sombras, Meradyce apressou-se a cruzar o portão e a percorrer a rua principal da aldeia.

   Seu maior receio, além da possibilidade de ser descoberta, era não encontrar Endredi. Antes de Einar e seus guerreiros terem queimado a aldeia, ela realmente conhecia cada casa e cada rua.

     Agora, tudo mudara. Era evidente que Kendric aproveitara a oportunidade e reconstruíra a maioria das casas, alterando o traçado das ruas e aumentando as fortificações. Então, Meradyce avistou uma enorme mansão, toda em pedra, e teve certeza· de que só podia ser a casa daquele homem com mania de grandeza!

     Ela examinou o pórtico de entrada e não avistou nenhum guarda.

     Se corresse, conseguiria entrar na casa antes das sentinelas voltarem e logo encontraria Endredi. Tinha certeza de que Kendric a levara para seu quarto.

     No instante em que Meradyce começou a correr para a casa, a porta se entreabriu e um feixe de luz a iluminou. Ela parou apavorada, mas a escuridão voltara a reinar.

     A luz se apagara quando a porta fora fechada e uma voz soou ao lado de Meradyce.

     - Sou eu, Meradyce.

     Sufocando uma exclamação de alegria e alívio, Meradyce abraçou Endredi, puxando-a de volta para a sombra das casas. Embora quisesse muito saber o que acontecera com a jovem e como ela conseguira fugir, não havia tempo a perder. Aquele não era o lugar para longas explicações e tinham que reunir-se às outras mulheres o mais depressa possível.

     Esgueirando-se pelas ruas escuras, as duas cruzaram o portão. As duas sentinelas na frente do celeiro continuavam a conversar, distraídas. Segurando a mão de Endredi, Meradyce conduziu·-a para o bosque à beira do rio.

     Perto da margem, Meradyce sentiu que a seguravam pelo braço.

     - Sou eu, Gunnhild. Conseguiu encontrar Endredi, Meradyce?

     - Sim, ela está comigo. E vocês? Descobriram se ficou alguma sentinela no navio?

     - São dois homens - explicou Reinhild. - Um na proa e outro na popa.

     - E nós temos apenas uma arma - murmurou Meradyce, tentando encontrar um meio de liquidar dois homens fortes com uma ridícula faca de cozinha.

     - Eu cuidarei de um - declarou Endredi com voz firme. Você se encarrega do outro, Meradyce.

     - Como você poderá...

     - Com isto! - interrompeu Endredi, mostrando-lhe um cajado. - É forte o suficiente porque já arrebentei a cabeça de um saxão com ele.

     Meradyce riu baixinho,

     - Só podemos subir a bordo se as sentinelas estiverem de costas ou eles darão o alarme.

     - Eu atrairei a atenção deles - disse Ilsa, apontando o cais. - Irei até lá e os distrairei.

     Ilsa notou a expressão de dúvida no rosto de Meradyce e apressou-se a demonstrar suas intenções honestas.

     - Tenha confiança em mim. Quero ir embora desta maldita aldeia ainda mais do que você deseja, Meradyce. Só peço que não partam enquanto eu não estiver a bordo.

     Meradyce concordou. Acreditava que Ilsa conseguiria levar adiante seu plano.

     As mulheres começaram a se movimentar. Meradyce e Endredi se dirigiram ao navio enquanto Ilsa descia o rio para junto do cais.

     Quando as duas estavam bem próximas da embarcação, ouviram um ruído entre os arbustos. Os guardas correram para a amurada, a fim de verificar se alguém se aproximava. Meradyce e Endredi subiram rapidamente pela prancha de embarque, do lado oposto do navio, enquanto Ilsa descia o rio para junto do cais.

     Quando as duas estavam bem próximas da embarcação, ouviram um ruído entre os arbustos. Os guardas correram para a amurada a fim de verificar se alguém se aproximava. Meradyce e Endredi subiram rapidamente pela prancha de embarque, do lado oposto do navio, enquanto Ilsa continuava a mexer nos galhos das pequenas arvores.

     - O que será? - perguntou um dos saxões.

     - Não sei e não me agrada nem um pouco - resmungou o outro.

     Nesse instante, as duas avançaram, Endredi girou o cajado como se fosse um machado viking e atingiu um deles na cabeça. Meradyce enfiou a faca nas costas do outro.

     O soldado esfaqueado virou-se e agarrou Meradyce pelo pescoço.

     Antes que ele pudesse gritar, dando o alarme, uma flecha atravessou sua garganta e ele caiu, instantaneamente morto.

     Meradyce virou-se enquanto Endredi olhava à sua frente, imóvel e calada.

     Adelar estava na margem do rio, abaixando o arco que acabara de desferir a flechada mortal.

    

     Adelar abaixou lentamente o arco e então, virando-se de costas para o navio, caminhou de volta para a aldeia, sem pronunciar uma única palavra.

     Meradyce sentiu lágrimas nos olhos ao vê-lo se afastar e despediu-se, silenciosamente, do adolescente que estava prestes a se tornar um homem. Então, chamou as mulheres e as crianças, que subiram a bordo, rapidamente e sem fazer nenhum ruído.

     Ilsa foi a última a entrar e imediatamente dirigiu-se para os dois sentinelas mortos.

     - Temos que tirar estes saxões de nosso navio.

     Antes que Meradyce pudesse se mover, ela e Reinhild agarraram um dos homens e o atiraram por cima da amurada. Depois, ajudada por Endredi, jogou o outro corpo ao rio.

     Meradyce continuava imóvel, lutando para disfarçar uma súbita dor no ventre.

     - Sente-se e descanse - ordenou Endredi, que notara a expressão de dor no rosto de Meradyce.

     - Não. Eu estou bem e preciso ajudar.

     - Sente-se.

     A voz calma, mas autoritária de Endredi levou Meradyce a desistir de continuar a discussão. Aquela jovem de tão pouca idade soava exatamente como Einar quando ele dava ordens.

     - Soltem as cordas do leme - orientou Ilsa, sem perder tempo.

     - O navio tem de estar com a proa virada para a direção do mar. Então, precisaremos remar porque não há vento suficiente para içarmos as velas.

     Endredi e Reinhild se encarregaram de soltar as cordas enquanto Ilsa indicava às mulheres onde deveriam se sentar para remar. Então ela sentou-se ao leme.

     - Venha me ajudar a segurar o leme. Gunnhild.

     O navio virou-se na direção prevista por Ilsa e começou a se mover, lentamente, levado pelas correntes do rio. Ao fazer a curva, o leme bateu com violência no cais e as crianças, apavoradas, recomeçaram a chorar.

     Um grito ecoou na colina. Tensas, as mulheres olharam para a aldeia, antecipando o tumulto causado pela descoberta de sua fuga.

     Um grupo de soldados corria em direção ao rio.

     - Usem os remos - berrou Endredi, já sem preocupar-se com a necessidade de falar em voz baixa.

     As mulheres levantaram os pesados remos, colocando-os para fora do navio, através das aberturas forradas de couro.

     - Agora! - gritou Endredi que, junto com Reinhild, soltara as últimas cordas que prendiam a quilha.

     Ilsa e Gunnhild manejavam o pesado leme, enquanto as outras usavam toda a sua força para remar.

     Subitamente, Ilsa deu um grito e caiu no convés.

     - Abaixem-se todas! - gritou Meradyce, arrastando-se para junto de Ilsa a fim de verificar a extensão do ferimento.

     Apenas algumas flechas tinham alcançado o navio e agora só se ouvia o som delas batendo na água.

     Meradyce viu que o ferimento de Ilsa era superficial, pois a flecha apenas arranhara seu braço, mas a impossibilitava de continuar ao leme. Ignorando a dor no ventre, ela ocupou o lugar vazio ao lado de Reinhild.

     As mulheres encontraram forças que não imaginavam ter e remavam como verdadeiros marujos. Subitamente, o navio alcançou uma corrente mais forte e afastou-se da aldeia, com maior velocidade.

     Entre os pinheiros do bosque, Adelar acompanhou a partida do navio que se afastava rapidamente. Acima de todos os outros ruídos, ele ouvia a voz do pai, praguejando e dando ordens que já não podiam ser cumpridas.

     - Adeus - murmurou ele, sabendo que nunca mais veria a mulher que fora seu primeiro amor.

    

     O navio viking parou silenciosamente ao pé da colina onde ficava a aldeia dos saxões.

     Einar conduziu seus homens através do bosque que chegava até a margem do rio. Desta vez, esperava que o traidor saxão tivesse postado sentinelas para guardar a aldeia. Queria ouvir o grito de alerta que levaria os aldeões a correrem para seu santuário. Desta vez, os vikings sabiam da existência das cavernas e os caçariam como coelhos em suas tocas.

     Já bem perto do povoado, um grito de terror soou o alarme. Einar virou-se para Hamar e deu um sorriso tão cruel que ele chegou a sentir pena dos saxões.

     Então, Einar começou a correr para o portão da aldeia liderando seus homens no ataque.

     Foi fácil, fácil demais, tomar de assalto um bando de soldados distraídos enquanto também capturavam os que fugiam na direção das cavernas.

     Logo Einar percebeu que Meradyce e Endredi não estavam entre as pessoas que corriam pela rua procurando um abrigo inexistente. Aliás, ele não via nenhuma das mulheres vikings. Só esperava não ter, mais uma vez, chegado tarde demais.

     Deixando alguns homens para guardar as mulheres, as crianças e os velhos, Einar se aproximou do portão.

     Um grupo de soldados liderado por Kendric permanecia à frente da aldeia, guardando a entrada. Então, eles viram Einar avançar, girando o machado sobre a cabeça e com a espada na outra mão.

     Kendric olhou para seu inimigo. Embora a expressão fosse de calma contida, o olhar do viking indicava que só um massacre o satisfaria e nada além da própria morte o deteria. Ele concluiu que seria possível lutar e morrer ou se entregar e permanecer vivo.

     - Nós nos rendemos - berrou Kendric, jogando suas armas ao chão.

     Os soldados saxões se apressaram a imitar seu líder:

     Einar parou, sentindo-se incapaz de acalmar a fúria que o incitara a buscar vingança. Queria matar aquele maldito traidor, mas desarmado, seria um assassinato sem glória. Então, ele viu a espada de Lars, jogada ao chão, junto dos pés de Kendric.

     - Onde estão minha esposa e minha filha? - perguntou ele a Kendric, rezando para que o saxão tentasse agarrar a arma, pois assim poderia matá-lo. - E onde está o homem a quem pertencia esta espada?

     - O homem está morto - replicou Kendric, sem conseguir disfarçar o tremor da voz. - E elas se foram, há dois dias.

     - Foram vendidas como escravas?

     - Não! Elas escaparam. Estavam todas bem quando fugiram.

     - Você está mentindo.

     Nesse instante, Adelar adiantou-se, saindo de um grupo que ficava mais atrás de Kendric.

     - Ele diz a verdade, Einar - afirmou o garoto. - Olhe para o rio. O navio de meu pai já não está no cais. Elas o levaram há dois dias.

     Einar encarou Adelar e não teve dúvida de que podia confiar nas palavras do jovem. As mulheres e as crianças tinham realmente escapado do cativeiro.

     - Meradyce e Endredi estavam com elas? Não foram feridas?

     - Não.

     O alívio de Einar durou muito pouco. Por que seus navios não haviam se cruzado no rio? Talvez o barco das mulheres tivessem chegado ao mar antes dele alcançarem a costa mas...

     - Elas não tiveram ajuda de ninguém?

     Adelar negou que as mulheres tivessem sido ajudadas, mas Einar notou a sombra de um sorriso nos lábios de Adelar e também sorriu. Esperava que o garoto reconhecesse aquele sinal muito tênue de gratidão.

     - E Lars?

     - Não sei de quem está falando.

     - Por que está se dirigindo ao meu filho em vez de perguntar a mim? - interferiu Kendric, irritado.

     - Porque sei que ele me dirá a verdade. - Sem esconder o desprezo que sentia por Kendric, Einar voltou a falar com Adelar. - Seu pai está usando uma espada viking.

   - O homem que era dono dessa espada morreu. Atacou meu pai e seus soldados o mataram.

     - Ele tinha uma companheira? Uma mulher loira?

     - Não diga nada, Adelar - esbravejou Kendric, sentindo-se impotente diante do poder do viking sobre seu próprio filho. - Fique de boca fechada.

     - Selwyn trouxe essa mulher para a aldeia - prosseguiu Adelar, ignorando as observações do pai. - O viking veio depois e a matou, pouco antes de morrer também.

     Fechando os olhos por uma fração de segundo, Einar se entregou ao alívio de saber que Lars não os traíra.

     - Por respeito ao seu filho, eu não o matarei, Kendric. Meus homens partirão, deixando sua aldeia intocada desta vez.

     Einar se aproximou do senhor saxão e Kendric viu um ódio primitivo nos olhos cinza prata do viking.

     - Só que você não merece ter um filho como Adelar, traidor! Conte a ele como nós soubemos onde ficava a sua aldeia e por quem fomos informados que não haveria nenhum guerreiro para defendê-la. Diga-lhe quanto pagou para que matássemos a mãe dele!

     O silêncio foi rompido por exclamações abafadas de todos os soldados e Einar viu que Adelar empalidecia, como se fosse perder os sentidos.

     O garoto tinha de saber que espécie de homem era seu pai!

     - Algum dia, você será o líder de seu povo, Adelar. Os soldados o seguirão porque sabem reconhecer um líder nato. Tente ser um homem melhor do que seu pai.

     Convicto de que cumprira sua missão ao revelar a verdade a Adelar, Einar virou-se e se encaminhou para o rio. Sabia que seus homens se sentiriam frustrados por terem sido privados da vingança.

     Agora, o mais importante era encontrar o navio saxão conduzido por um grupo de mulheres inexperientes.

    

     Einar e seus homens vasculharam a costa saxônia durante dias.

     Convencidos de que as mulheres jamais ousariam se aventurar em mar aberto, entraram em todos os rios que podiam comportar a navegação de barcos maiores e seguiram o curso das águas até bem dentro do território dos saxões.

     Parecia que Odin retirara as mulheres da face da terra!

     Depois de dez dias, alguns homens achavam que as mulheres tinham sido recapturadas por outros saxões. Outros acreditavam que o navio afundara, levando-as para o fundo do mar. Todos haviam perdido as esperanças e julgavam inútil continuar a busca.

     Hamar se aproximou do irmão, preocupado com sua palidez excessiva.

     - A nossa comida está acabando, Einar. Ou voltamos para casa ou atacamos alguma dessas aldeias saxônias para conseguir suprimentos.

     - Eu sei.

     - E o que pretende fazer?

     - Eu quero matar até o último dos malditos saxões que habitam esta maldita terra. Entretanto, diante da impossibilidade de realizar meu maior desejo, acho melhor retornarmos.

     - Então - Hamar não escondia a incredulidade - pretende abandonar a busca?

     - Talvez elas tenham voltado para casa.

     - Mulheres? Crianças? Em mar aberto?

     - Você conhece as mulheres, mano. Sabe que são teimosas e, quando encasquetam com uma idéia, ninguém as remove. Acha que não tentariam voltar para casa?

   - Mas... não é possível...

     - Talvez seja. - Os lábios de Einar se curvaram num sorriso sem alegria. - O tempo tem se mantido bom e os ventos estão fortes. Afinal, as mulheres são esposas e filhas de vikings. Se chegarem até as ilhas, acabarão descobrindo o nosso fiorde. Quem pode afirmar que não conseguiriam?

     Pela primeira vez em muitos dias, Hamar sentiu-se esperançoso.

     - Gunnhild me acompanhou em várias viagens.

     - Então, iremos antes para a nossa aldeia. Se elas não estiverem lá, procuraremos nos outros povoados ao longo da costa.

     Depois de tomada a decisão, Einar a comunicou aos homens que, como Hamar, receberam a sugestão com ceticismo. Logo, a esperança se reacendeu em seus peitos.

     Afinal, quem acreditaria que mulheres e crianças podiam roubar um navio?

     Mas Njord se cansara de dias suaves e mares calmos. Tão logo o navio de Einar afastou-se da costa, o deus nórdico lhes enviou uma sucessão de tormentas.

    

     Meradyce sentia que as esperanças morriam lentamente. Desde sua vinda para a aldeia dos vikings, nunca vira tempestades tão fortes e que já duravam há muitos dias. O vento curvava as árvores que quase tocavam o chão e os raios constantes iluminavam a aldeia deserta.

     Endredi também já não conseguia disfarçar a preocupação.

     - Eles estão bem, tenho certeza - murmurou Meradyce, sem acreditar nas próprias palavras.

     - Nós tivemos sorte de escapar dessas tormentas. A viagem já foi bastante difícil com tempo bom.

     Lembrando-se da incerteza que todas sentiam enquanto se aventuravam para o mar aberto, Meradyce concordou. Algumas mulheres choravam constantemente, certas de que o navio naufragaria ou se perderia nos mares. Não havia comida, a não ser os peixes que fossem pescados por elas e a água era muito pouca.

     Endredi não perdia a confiança, especialmente depois de ter achado um instrumento estranho a bordo do navio. Ela contou a Meradyce que já havia ouvido os homens conversarem sobre esse aparelho através do qual planejavam a rota de acordo com o sol.

     Ela sabia onde estavam e tinha certeza de que conseguiria usar o instrumento e descobrir o caminho de casa, se o tempo continuasse bom.

     Meradyce acreditou em Endredi e, para surpresa das duas, Ilsa também demonstrou confiança, censurando a todas que revelavam seus temores em voz alta.

     Todas gritaram de alegria quando, a despeito das dúvidas, avistaram as ilhas costeiras que guardavam a entrada do fiorde.

     Entretanto, ao desembarcarem, encontraram a aldeia deserta, entregue aos cães que os homens não tinham levado consigo, pois era preciso defender suas casas. As mulheres viram os restos calcinados de um navio e choraram pelos maridos e filhos que haviam perdido para os saxões.

     Não havia sinal do outro navio e todas concluíram que os homens tinham consertado a embarcação e partido à procura delas.

     Apesar dos temores pelos homens no mar, as mulheres se voltaram para as pesadas tarefas que as esperavam. Era preciso consertar as casas, procurar comida para os filhos e trazer de volta o gado que se espalhara pelos campos. Todas interrompiam constantemente o trabalho e olhavam para o fiorde, procurando pela vela de um navio viking à distância.

     Então, a violenta e interminável tempestade se iniciara e os temores se intensificaram. Agora, havia a possibilidade angustiante de que os homens nunca mais voltassem, pois o mau tempo acabaria por naufragar o navio e levá-los para os braços de Aegir, o deus das profundezas do mar.

     Num canto de sua casa, Meradyce encontrou o pacote que Einar trouxera da viagem com Thorston. Ao ver o berço que ele fora comprar para o filho ainda por vir, as lagrimas deslizaram em seu rosto abatido.

     - Oh, meu Deus! Traga Einar de volta para mim!

    

     Três dias depois, Meradyce ouviu um grito muito alto e, reconhecendo a voz de Endredi, correu para fora de casa.

     Um navio entrava lentamente no fiorde. Era uma embarcação viking ou o que restara dela.

     O mastro quebrara ao meio, a serpente da proa fora arrancada e faltavam muitas tábuas do casco. Alguns homens ainda remavam, mas logo todos correram para a amurada e começaram a gritar para as mulheres no cais.

     Então Meradyce avistou Einar e correu para a beira da água, rindo e chorando ao mesmo tempo.

     Antes mesmo das cordas serem lançadas ao cais, Einar pulou do navio e correu ao encontro da esposa.

     - Meradyce, amor.

     Ele a beijou com o desespero do homem que reencontra um tesouro considerado perdido para sempre. Meradyce se agarrou ao marido, deixando que todas as emoções penosas dos últimos dias se esvaíssem junto com suas lágrimas de alegria.

     O pesadelo terminara. Einar estava em casa voltara para ela. Os homens procuraram suas mulheres e filhos, mas as que haviam perdido tudo também sorriam com a felicidade das outras, secando furtivamente as lágrimas.

    

     Muito mais tarde, Meradyce repousava nos braços do marido, sob as cobertas de pele.

     - Fiquei tão feliz ao saber que Hamar será o novo líder da aldeia. Ele é um homem prudente e conseguirá conduzir seu povo com sabedoria.

     Pensei que você preferisse ver o seu marido nessa posição exaltada - murmurou Einar, beijando-a docemente.

     - Oh, não! Eu prefiro não dividir você com ninguém, em especial, com toda uma aldeia!

     - Isso quer dizer que eu não devo tomar uma segunda esposa?

     - Nem pense nessa possibilidade!

     - Mas eu terei de partilhar você com nossos filhos. Não é justo.

     - Justo ou não, é melhor se acostumar com a idéia, marido. Terá de me partilhar muito em breve.

     Einar tocou o ventre da mulher, preocupado.

     - A viagem, acha que o bebê não se ressentiu com tantas aventuras exaustivas?

     - O bebê continua a pular como um cabrito e sei que ele será forte e saudável, Einar. Endredi obrigou-me a repousar e eu não ousei desobedecê-la. Aliás, se não fosse por ela, nenhuma de nós estaria aqui agora. Sua filha é parecida demais com você, amor.

     - Antes de morrer, Ull me disse que era o pai de Endredi.

     - E você acreditou nele?

     - Sim, mas não importa. Endredi é minha filha e sempre será.

     Meradyce mal conteve a alegria diante das palavras de Einar. Seu maior sonho era ter uma família grande e feliz.

     - Você se referiu ao bebê como "ele" sabe que é um menino? Ninguém pode saber ao certo. Talvez seja uma menina. Isso seria tão terrível assim?

     - Se ela for parecida com a mãe, será mais uma grande alegria em minha vida.

     - Que nome você gostaria de dar ao bebê, se for um menino?

     - Svend.

     Ela sorriu, pressentindo que a linha de guerreiros valentes perduraria através das gerações.

     - E se for menina?

     - Eu gostaria de chamá-la de Betha.

     Einar secou as lágrimas da esposa, provocadas por sua sugestão, abraçando-a ainda mais fortemente.

     - Você tem algum arrependimento, Meradyce?

     - Nenhum - murmurou ela, aconchegando-se nos braços do guerreiro viking que a despertara para a paixão.

    O paraíso era ali, na rústica cabana escondida em um fiorde de beleza primitiva, nos braços de um homem que a amava com paixão e a levara a descobrir a verdadeira felicidade e no filho ainda por nascer.

 

 

                                                                  Margaret Moore

 

 

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