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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VISITANTE DO LABIRINTO / Rafael Ábalos
O VISITANTE DO LABIRINTO / Rafael Ábalos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

O VISITANTE DO LABIRINTO

 

Um jovem príncipe, filho do Honorável Rei Winder Wilmut Winfred, está perdido na mata próximo do Lago Fergonol depois de ter saído para um passeio ao longo de suas margens.

O jovem chega a uma cabana onde descobre com surpresa que um homem estranho está a sua espera, é Gorgonan, duende do Lago Fergonol, que anunciou que ele tinha atravessado as portas do labirinto invisível, tal como anos atrás, tinha feito seu pai, o rei. A perplexidade do Príncipe aumenta com a visita de três outros duendes, Borbarón, Candelán e Sandelón, os três idênticos a Gorgonan. Ele informa que o herói deve se preparar para no dia seguinte fazer uma viagem que o levará a descoberta de si mesmo.

Um livro contendo todos os elementos das lendas e contos de aventura: um jovem que se perde na floresta e encontra uma cabana onde vivem os duendes, navios piratas, seres fantásticos como o dragão, cavaleiros andantes, castelos sob cerco, os barões gananciosos...

 

O vento cantou melodias que pareciam vir de flautas de bambu, o velho e desajeitado Gorgonan sentou na sua agradável cadeira de balanço de vime brincando com seu cachimbo de bolhas de sabão e anéis mágicos no ar de espuma azul. Sentou-se na porta de sua casa confortável, de frente para as águas geladas do lago em cuja superfície espelhava as neves eternas das montanhas que ficavam nas suas margens como um gigante sonolento e preguiçoso. No céu, uma lua minguante com brilho de águas em movimento, brilha uma louca corrida entre uma infinidade de estrelas cintilantes.

Gorgonan sabia que estava próxima a chegada do Visitante. Apareceria pelo atalho do oeste com a precisão de um relógio de sol, no justo momento em que a lua se desvanecesse no horizonte. Por isso não mostrava nenhuma impaciência. — O que tem que chegar, chegará, — disse para si mesmo, olhando as pontas reluzentes de suas botas como se falasse com elas. Ele nunca as tinha limpado com tanto esmero. Mas esta era uma ocasião única, embora o Visitante ignorasse ainda seu irremediável destino: só era um jovem príncipe um pouco atordoado, esguio e de olhos apagados, que, nessa mesma tarde decidiu aventurar-se a passear pelas margens do lago e que agora vagava perdido e assustado pelo bosque que o envolvia, fechado e denso como um enigma indecifrável.

— Logo estará aqui, — pensou Gorgonan, soprando seu cachimbo com deleite e elevando os olhos até a lua, que se recostava já sobre as cúpulas das montanhas.

Logo que a lua se desvaneceu entre as sombras, os passos do Visitante chegaram aos atentos ouvidos de Gorgonan. Eram uns passos lentos que pisavam temerosos sobre o leito de folhas secas do atalho do oeste e que o vento propagava como leves gemidos.

Gorgonan se dispôs a receber o Visitante com as honras que merecia, assim, se levantou de sua cadeira de balanço de vime e desceu os degraus que elevavam a cabana alguns metros sobre a ribeira do lago.

— Bem vindo ao meu humilde lar! — disse Gorgonan, soltando de seu cachimbo luminosas bolhas de espuma azul e desenhando em seus lábios um cordial sorriso.

O recém-chegado o olhou com olhos abismados, pois jamais tinha visto um homenzinho tão diminuto e risonho.

— Na verdade lhe agradeço sua gentil acolhida... — titubeou o Visitante. — Mas me diga, quem é você? — perguntou por fim, surpreso ao não encontrar gente comum naquela cabana, cuja luz cálida e esbranquiçada vislumbrou ao final do atalho e o fez conceber a esperança de poder sair do atoleiro em que se achava.

— Gorgonan Plaistelo de Luganderbo, alteza, duende do lago Fergonol e fiel servidor de seu amado pai o grande rei Winder Wilmut Winfred, conhecido por todos na comarca como o grande rei do Triplo W.

Gorgonan se aproximou e reclinou a cabeça para frente e logo para trás para poder olhá-lo aos olhos, pois seu tamanho apenas se alcançava além dos joelhos do jovem príncipe.

— Quer dizer que você conhece meu pai? — perguntou estupefato o jovem, pois jamais pensou que os duendes existissem realmente e muito menos que fossem amigos de seu pai.

— Desde que era um jovem arrumado e alegre como você, alteza — murmurou Gorgonan satisfeito.

— Então, esperava a minha chegada?

— Com toda paciência. O que tem que chegar, chegará — disse sorrindo Gorgonan.

— E conhece meu nome? — inquiriu o jovem, olhando para baixo como se olhasse os pés.

— Oh, sim, sim, sem dúvida! — exclamou Gorgonan. — Mas temo que aqui não poderei lhe chamar por seu nome, alteza. São as regras, sabe? — salientou.

O jovem acreditou estar sonhando.

— As regras? Que regras são essas que lhe impede de pronunciar meu nome? — perguntou um pouco ofuscado.

— As regras do Labirinto.

— Certamente consegue me confundir — replicou o jovem.

— Não se inquiete inutilmente, amanhã tampouco você recordará como lhe chamavam antes de chegar ao bosque. Aqui só será o Visitante e este será o seu Labirinto. Agora rogo-lhe que me acompanhe para dentro de minha humilde cabana. — Será sua morada por esta noite. — disse Gorgonan com amabilidade, deslizando seu braço ante o Visitante para lhe ceder o passo graciosamente.

Um murmúrio orquestral de grilos e rãs parecia pôr um fundo musical à cena. O Visitante e Gorgonan subiram as escadas da plataforma de madeira, que elevava a cabana sobre a ribeira do lago, cruzaram o alpendre deixando de lado a cômoda cadeira de vime e entraram na casa, não sem alguma dificuldade, pois o Visitante mal podia estar de pé sem que sua cabeça batesse no teto.

O Visitante tomou assento no chão, sobre um monte de tapetes quentes e pequenas almofadas que recobriam uma sala ampla de cujas paredes penduravam vistosas tapeçarias de cores prodigiosas e alegres. Em um canto, junto à janela, uma mesa pequena e quatro tamboretes de madeira esculpida conformavam uma pequena sala de jantar, de onde também se acessava a cozinha, em que se localizavam uma lareira, uma pilha de lenha e um sem-fim de cacarecos de lata cintilante.

Gorgonan ia e vinha da cozinha para a sala, transportando alguns pratos, panelas e talheres, sem cessar de falar com Visitante do muito que apreciava seu pai, o grande rei Winder Wilmut Winfred, a quem tinha tido a oportunidade de conhecer do mesmo modo que agora conhecia a ele, e que se mostrou extraordinariamente hábil em encontrar-se a si mesmo no Labirinto.

Após ouvir isto, o Visitante não pôde evitar se perguntar, que misterioso atalho o tinha levado até ali e com que propósito. Ele tinha saído a passear essa tarde pelas margens do lago Fergonol como fazia sempre, desde que era um menino e conhecia cada canto do bosque que o circundava, como a palma de sua própria mão, de modo que, não conseguia explicar como pôde haver-se perdido sem sequer dar-se conta de que extraviava seus passos por atalhos inexplorados. Além disso, nada da paisagem que tinha visto durante a tarde e ao anoitecer lhe era conhecida, apesar de tratar do mesmo lago Fergonol a cujas margens se elevava o nobre e majestoso castelo de seu pai.

— Atravessou as Portas do Labirinto — disse Gorgonan com solenidade.

— As Portas do Labirinto? Eu jamais vi porta alguma nas bordas do lago Fergonol e o conheço como a palma de minha própria mão desde que era um menino — replicou.

Gorgonan sorriu.

— As Portas do Labirinto são invisíveis.

— Então, como poderei sair daqui? — perguntou o jovem um pouco aturdido.

— Oh, isso só dependerá de você — respondeu Gorgonan com sua adoçada voz. — Deverá escolher os atalhos e os caminhos mais adequados. Mas tampouco se apresse, amanhã teremos tempo suficiente para preparar sua viagem.

O Visitante mudou o gesto.

— Viagem? Eu não desejo fazer nenhuma viagem — protestou. — Há apenas um momento passeava tranqüilamente pelas margens do lago e agora você me fala de empreender uma viagem misteriosa, quando só o que quero é retornar ao castelo junto a meu pai.

— Seu pai, o grande rei Winder Wilmut Winfred, sabe que está aqui agora. Não deve se preocupar com ele, porque tampouco, ele está preocupado com você — disse Gorgonan movendo-se pela casa como um camundongo inquieto.

— Tem certeza?

— Oh, sim, sem dúvida nenhuma. Como já lhe disse, ele também foi, em sua juventude, visitante deste Labirinto. É algo irremediável para os homens, como o amanhecer é para cada dia. Se empenhe em impedir que nasça o sol e comprovará como é inútil seu esforço.

Logo que terminou de falar, a porta da cabana se abriu de súbito e atrás dela apareceu um homenzinho igual a Gorgonan, que o Visitante jurava pela oxidada espada de Dalmor, o Desventurado, que se tratava de um efeito fantástico.

— Que os presentes tenham ditosas noites! — disse o recém-chegado. — Já vejo que o Visitante foi pontual.

— Oh, sim, chegou ainda a pouco — afirmou Gorgonan.

O jovem príncipe deslocou os olhos de um homenzinho a outro, alucinado. Por um momento pensou que tivesse perdido o julgamento, ou que ainda estivesse dormindo e tudo o que ocorria a seu redor não fosse mais que o efeito sedutor de um sonho estranho. Mas, antes que pudesse perguntar alguma coisa, Gorgonan os apresentou.

— Majestade, agrada-me lhe apresentar a meu bom amigo e parente longínquo Borbarón Candelte Pinsexpo. Ele também vive nesta cabana, desde que o tempo é tempo.

— Encantado — murmurou o Visitante algo desdenhoso, e mais uma vez a porta da cabana voltava a abrir-se e entravam dois homenzinhos que mais pareciam clones dos anteriores.

— Desculpe nosso atraso, alteza — disseram ambos ao uníssono como um dueto de tenores.

O Visitante não soube se deprimia-se ou correspondia à desculpa dos recém chegados com a cortesia devida. Finalmente, optou por isso último.

— Não me devem desculpas, Gorgonan me atendeu com muita amabilidade desde minha chegada. Mas, vejo que já todos me conhecem, me digam, quem são?

Os dois homenzinhos se aproximaram de Gorgonan e de Borbarón e se situaram todos em frente ao Visitante como quatro imagens repetidas de um mesmo personagem. Os quatro tinham o mesmo rosto sorridente, um pouco enrugado, com o nariz saliente, o queixo aguçado, os olhos brilhantes e alegres e uma voz adoçada.

— Somos os gêmeos Candelán e Sandelón Rústela Vartatraz — disseram ao mesmo tempo, ao tempo que inclinavam seus pequenos corpos e representavam uma sincronizada e pronunciada reverência.

O Visitante sorriu e sacudiu o braço.

— Será difícil saber quem é quem, são todos iguais — disse.

— Nem todo o igual é idêntico — exclamou Gorgonan.

— Me digam, pois, como os poderei reconhecer?

— Essa é uma questão que só você mesmo poderá resolver, alteza. Além disso, deve fazê-lo logo, pois terá que escolher com qual dos quatro deseja iniciar sua viagem amanhã mesmo — explicou Borbarón.

— Escolher só um? Se tivermos que partir para algum lugar, por que não podemos partir todos juntos? — perguntou o Visitante, deixando os olhos muito abertos em espera de uma resposta convincente.

— Porque nem sempre podemos escolher tudo o que desejamos. Cada um de nós é um e é todos, mas é você quem deve descobrir as diferenças — disse Candelán. — O eleito será quem o acompanhará, são as regras do Labirinto.

— Embora também deva ter em conta que nem todo o diferente é distinto — enfatizou Sandelón, encolhendo os ombros e pondo cara de ter cometido uma travessura.

O Visitante olhou para eles perplexo uma e outra vez, esgotando os olhos como se desse modo pudesse espionar alguma deixa que lhe servisse para distingui-los em sua extraordinária semelhança.

— De acordo — disse o jovem, — repitam um a um seus nomes.

Os quatro homenzinhos adotaram uma pose de estátua e em voz alta pronunciaram sucessivamente seus respectivos nomes:

— Gorgonan — disse o primeiro.

— Borbarón — acrescentou com rapidez o segundo.

— Candelán — continuou o terceiro.

— Sandelón — concluiu o quarto.

O Visitante se aproximou deles e foi olhando-os um a um de cima abaixo com a mesma parcimônia e etiqueta com que um general examina sua tropa. Os quatro homenzinhos se mantinham erguidos e risonhos ante ele. Para falar a verdade, o jovem não encontrava diferença alguma entre eles. Inclusive o tom de sua voz era idêntico, de maneira que quando falavam parecia que era um eco mágico o que mudava suas palavras de uma boca a outra.

— Tampouco têm que se precipitar em tomar uma decisão agora — aconselhou Gorgonan ao jovem.

— Sim, espere, pense — proclamou Borbarón.

— Será o melhor — acrescentou Candelán.

— Certamente — concluiu Sandelón.

O jovem foi deslocando seus olhos de um homenzinho a outro à medida que falavam e então caiu na conta de que cada um deles tinha um brilho diferente em seus grandes olhos iguais. Não sabia exatamente o que era, mas estava seguro de que algo os diferenciava: um fulgor, um brilho, um matiz.

— Façamos uma prova — rogou o Visitante, a quem a intriga criada parecia divertir muito. — Troquem sua posição enquanto eu fecho os olhos. Tentarei acertar quem é cada qual.

— Estupendo! — exclamou Gorgonan.

— Façamo-lo, pois — disse Borbarón entusiasmado.

— Feche os olhos — ordenou Candelán ao jovem, que obedeceu rapidamente.

— Nos troquemos de posição — concluiu Sandelón, empurrando precipitadamente a seus companheiros.

Os quatro homenzinhos trocaram suas posições originárias embaralhando-se e tropeçando uns com outros entre gargalhadas e barulho. Quando terminaram de situar-se de novo, disse Gorgonán:

— Pode começar.

Ao que Borbarón acrescentou:

— Pense bem.

— Não tenha pressa — recomendou Candelán.

— Quem é quem? — perguntou finalmente Sandelón.

O Visitante levou a mão direita ao queixo e adotou uma atitude meditativa. Vistos assim, teria jurado que Gorgonan era o primeiro da fila, o situado a sua esquerda. Assim que se aproximou dele novamente e lhe disse:

— Podem sorrir um momento?

O homenzinho desenhou com seu rosto enrugado um sorriso ingênuo e seus olhos chisparam como se um rojão de luzes se acendesse neles.

— Sim — disse o jovem, decidido. — Sem dúvida nenhuma você, é Gorgonan Plaistelo do Luganderbo.

— Equivoca-se alteza — respondeu o homenzinho. — Meu nome é Borbarón Candelte Pinxespo.

— Então, você é Sandelón — afirmou o Visitante, assinalando ao último da fila com o dedo indicador estendido.

— Se não lhe incomodar muito, alteza, preferiria que me chamasse Candelán Rústela Vartatraz, pois esse é meu nome.

— Não tive muita sorte, né? — lamentou o Visitante, um pouco decepcionado.

— Bom, admitamos que não foi fácil. Inclusive me custa saber quem sou. Asseguro que amanhã nos conhecerá a todos muito melhor e talvez também logo conheça melhor a você mesmo.

Gorgonan propôs que se sentassem à mesa para jantar e se dirigiu apressado à cozinha enquanto Sandelón e Candelán saíam da cabana para procurar lenha com a que avivar o fogo da lareira, que morria preguiçosamente ao fundo da casa. Então Borbarón se aproximou do Visitante, pediu-lhe que se agachasse como quem se dispõe a confessar um segredo e lhe sussurrou ao ouvido:

— Não confie neles, alteza.

O jovem se viu surpreso pelas palavras do Borbarón. Sobre quem se referia, em quais não devia confiar? Ele se perguntou intrigado e aturdido, pois não lhe parecia que aqueles simpáticos homenzinhos pudessem albergar a intenção de lhe causar algum mal.

— O que quer dizer? — inquiriu.

— Que aqui nada é o que parece — disse Borbarón.

— Refere-se a eles, a seus amigos?

— Se quer chamá-los desse modo... — disse Borbarón encolhendo os ombros.

— Na verdade não os consigo entender — protestou o Visitante. — Se eles não forem seus amigos, quem são e por que vivem com você nesta cabana?

Borbarón levou um dedo a seus lábios pedindo silêncio. Então olhou para a cozinha e, depois de comprovar que Gorgonan estava atarefado com suas panelas e fogão, murmurou:

— Ainda não se deu conta de que todos somos um, e um só somos todos?

— Quer dizer que eles sabem do que me fala agora?

— Oh sim, certamente! — exclamou Borbarón.

— Então, por que me fala tão baixinho? — perguntou o jovem.

— Porque é melhor ser prevenido, nunca se sabe.

— Está me confundindo.

— A confusão alerta os sentidos — disse Borbarón manifestando-se indiferente a seus próprios mistérios.

Nesse instante entraram Candelán e Sandelón na cabana, carregados com robustos troncos de lenha. O primeiro olhou o jovem, lhe piscou um olho e disse:

— Não faça muito caso de Borbarón, sempre está enredando com suas intrigas e suas suspeitas.

O rosto de Borbarón se avermelhou como uma fogueira.

— Será melhor que nos sentemos à mesa — disse este, silenciosamente.

— Será o melhor — confirmou Sandelón.

Candelán e Sandelón se aproximaram da lareira e deixaram cair na lenheira os troncos que levavam com um estrondo surdo. Depois arrojaram alguns paus ao fogo, que recuperou de súbito sua perdida vivacidade. Logo ajudaram a Gorgonan a levar a panela e os pratos até a mesa. A cabana se impregnou de um forte aroma de couves e espinafres cozidos, um aroma a pomar e chuva desconhecido para o Visitante, acostumado só a degustar peças de caça como o javali, o veado ou os faisões. Então era assim, não pôde dissimular sua repulsa nem conter sua língua:

— Eu não comerei essa beberagem de ervas fedorentas — protestou o jovem, olhando para Borbarón como se temesse ser envenenado. Não em vão, ele mesmo lhe tinha advertido que não confiasse naqueles homenzinhos com cara de ingênuos e educadas maneiras. Além disso, no castelo de seu pai tinha ouvido contar antigas histórias de ódios e confabulações que terminaram tragicamente com suculentas comidas envenenadas.

— Como queira, alteza, mas eu temo que se não comer couve e espinafre terá que ficar em jejum, pois este humilde cozinheiro não tem outra coisa para lhe oferecer — disse Gorgonan enquanto colocava uma côdea de pão branco sobre a mesa.

— Comerei pão, se não se importa — disse o jovem após ouvir a sentença de Gorgonan condenando-o a um jejum não desejado, pois sentia como pontadas de facas os protestos de seu estômago, condenado ao esquecimento desde que partiu do castelo de seu pai.

— Se esse for seu desejo, espero que faça bom proveito — disse Borbarón com indiferença. — E agora será melhor que sente no chão, não temos mesa nem tamboretes adequados ao seu tamanho.

— Rogo-lhe que nos desculpe pela dureza de seu assento, tão inadequado para sua nobre pessoa — se desculpou Sandelón sorrindo.

— Não se preocupe comigo, tenho boas nádegas — disse o jovem asperamente, uma vez que se deixava cair sobre o assoalhado da cabana, junto à mesa. Não estava muito seguro de que aqueles homenzinhos diminutos fossem na verdade complacentes com ele. Mas muito em breve comprovou que seus temores careciam de fundamento,

— Tome esta almofada, é de pluma de ganso e fofa como um tapete de grama. Estará muito mais cômodo sobre ela — disse Candelán atentamente.

— Você é muito amável, Candelán.

Depois de ouvir isto, os quatro homenzinhos se olharam atônitos.

— Você ouviu o mesmo que eu? — inquiriu Candelán.

Os outros assentiram com um movimento oscilante de suas cabeças, mudos de assombro.

— Como soube? — perguntou Gorgonan.

— A que se referem? — replicou o Visitante.

— Chamou Candelán por seu nome — advertiu Sandelón.

— Acho que por acaso — se limitou a responder o jovem, ao mesmo tempo que cortava o pão e levava uma parte a sua boca.

— Tem certeza? — insistiu Borbarón.

— O que lhe parece, Borbarón? — disse o Visitante muito seguro de si.

Borbarón deixou escapar uma exclamação de surpresa ao ver que os olhos do jovem se cravaram nos seus. Logo perguntou:

— Dirige-se a para mim?

— A você mesmo — confirmou.

— É evidente que nosso convidado começa a nos conhecer um pouco — disse Gorgonan Plaistelo do Luganderbo, com solenidade de profeta.

— Provavelmente — continuou: — amanhã esteja em condições de decidir quem de nós o acompanhará em sua viagem pelo Labirinto.

Borbarón olhou ao Visitante com muita dissimulação e murmurou:

— Não se esqueça do que vos disse antes, alteza.

— Vamos, Borbarón, deixa de mistérios, só conseguirá assustar ao moço..., digo, a sua alteza — falou Sandelón ruborizando-se.

— É certo — acrescentou Candelán com o mesmo tom de voz. — Além disso, como pretende que sua alteza deposite sua confiança em você, se precisamente você lhe aconselhar que não a tenha em nós. Mal merece credibilidade quem não a oferece — sentenciou sem alterar-se.

Borbarón, envergonhado, cravou os olhos no prato de verduras cozidas e não os voltou a levantar durante tudo o jantar. Também os outros três homenzinhos se aplicaram em jantar, embora de vez em quando interrompiam sua ocupação para responder às perguntas do Visitante, ávido de encontrar respostas no Labirinto.

— Me diga, Gorgonan, que importância tem que eu escolha só a um dos quatro se, como o ouvi dizer, todos são um e um só são todos? — inquiriu o Visitante enquanto lá fora o vento compunha melodias fantásticas movendo-se entre as sombras.

— Interessante questão — disse Candelán em atitude divertida.

Gorgonan elevou os olhos do prato, mastigou as couves e os espinafres, estalou a língua e logo respondeu:

— Se tiver que ser franco, direi que não tem nenhuma importância, alteza, pois efetivamente todos nós somos um e um só somos todos.

— Assim é — corroborou Sandelón.

— Então, poderiam me explicar por que Borbarón me aconselha que não confie em vocês?

— Muito certo — disse Candelán.

— Difícil questão — acrescentou Sandelón.

Gorgonan agarrou sua caneca de água e deu um comprido gole antes de responder:

— Porque a vida tem caras e vozes diferentes que, não obstante, parecem iguais aos olhos de quem as vê e as ouça.

O Visitante franziu o sobrecenho, confundido.

— Pode ser um pouco mais explícito? Não entendo o que diz.

— Nós não somos diferentes para você, alteza — respondeu Gorgonan, passando manga de sua camisa pelos lábios. — Alguma vez terá ouvido vozes em seu interior que parecem não estar de acordo no que dizem.

— Sim, é possível — aceitou o jovem. — Embora agora não possa recordar nenhuma.

— Pois a voz de Borbarón foi uma dessas vozes, e não fez mais que repetir em voz alta o que você mesmo pensara ao chegar a este Labirinto — explicou Gorgonan.

O jovem se moveu em seu incômodo assento.

— Está de acordo com isso, Borbarón? —perguntou.

— Oh, sim, sim, certamente! — assentiu ruborizado. — Foi você quem duvidou de nós. Não recorda?

— Pense, pense, alteza — disse Sandelón.

Depois de elevar os olhos ao teto de troncos robustos e secos da cabana, o Visitante recordou que tinha receado aqueles homenzinhos iguais como gotas de água, ao encontrá-los. Nunca tinha visto seres semelhantes a eles, apesar de ter ouvido contar em sua infância, antigas lendas sobre duendes, fadas, bruxas e dragões capazes de complicar a vida do mais sensato dos homens. Por que teria que confiar neles?

— Têm razão — admitiu o jovem. — Tive minhas dúvidas muito antes que Borbarón as semeasse em meu ânimo, vos rogo que desculpem minha desconfiança.

— Não, não, não, não, não — disse Borbarón precipitadamente. — Não têm que se desculpar por isso. Fez o adequado, alteza. Recear ao desconhecido o ajudará a conhecê-lo e se fazer conhecer, é o princípio de todas as coisas no Labirinto.

— Certamente — admitiu Candelán.

— Sem dúvida nenhuma — insistiu Sandelón.

— E como saberei quando posso me mostrar crédulo?

— Quando sentir assim em seu interior — concluiu Gorgonan.

 

O cacarejo prolongado de um galo anunciou que o sol, brilhante como um dobrão de ouro, elevava-se sobre as adormecidas águas do lago Fergonol.

O Visitante despertou para ouvi-lo.

— Dormiu como um urso hibernado — disse Gorgonan ao vê-lo despertar-se sobre o tapete que lhe tinha servido de leito durante a noite.

— Os ursos têm aposentos mais brandos e confortáveis que o meu, protestou, — levando uma mão aos rins, ao tempo que se levantava e lançava ao ar um bocejo ostentoso.

— Muito em breve se acostumará com a dureza que eu estou acostumado — murmurou Gorgonan com ironia.

Imediatamente apareceu Borbarón, sorrindo como um bufão feliz.

— A barcaça do Visitante está preparada no embarcadouro — disse.

O jovem o olhou aturdido.

— Uma barcaça? Eu não sei dirigir esse artefato! — exclamou.

— Só terá que remar — aconselhou Gorgonan. — E lhe asseguro que é bem fácil.

— A propósito, quem é você? — perguntou inesperadamente.

O Visitante olhou para Gorgonan e logo para Borbarón, enquanto seu rosto se transformava até desenhar uma careta de desconcerto. — Vamos, diga-me, quem é você? — insistiu Gorgonan.

— Estão de graça? — perguntou o Visitante. — Você sabe tão bem quanto eu.

Borbarón contemplava a cena alheio ao diálogo, porém, com supremo interesse.

— Diga-me então — insistiu Gorgonan uma vez mais.

— Suponho... suponho que eu sou eu — disse o jovem depois de meditar um momento e de olhar a si mesmo de cima abaixo. Não lhe ocorreu o que outra coisa podia dizer. Nem sequer se deu conta de que sua vestimenta era a de um príncipe.

— Sim, sim, já sei que você é você, mas não me referia a isso. Perguntava-lhe por seu nome — acrescentou Gorgonan olhando-o com a fixidez de uma águia real.

O jovem tentou pronunciar seu nome, porém, foi incapaz de articular palavra alguma. Parecia que lhe travava a língua ou que não soubesse exatamente o que queria dizer.

— Emudeceu? — inquiriu Gorgonan.

— Não, não, não é isso — disse o Visitante. — É que... é que não sei. Não sei qual é meu nome — aceitou pesaroso, elevando as palmas de suas mãos como amostra de franqueza.

Sem poder explicar como, o certo era que tinha esquecido tudo que se referia a seu passado. Agora ignorava quem ele era, de onde vinha e por que estranhos caminhos tinha chegado até a cabana daqueles insólitos e simpáticos homenzinhos.

— Você deve ter um nome; todos os seres e todas as coisas do Universo têm um nome, não lhe parece? O que não tem nome não existe, e inclusive isso que não existe tem seu próprio nome. Sabem a que me refiro? — disse Borbarón, que ao fim interveio para ajudar ao Visitante, embora de um modo pouco ortodoxo.

Os olhos do jovem dançavam de um lado a outro, confuso.

— Por que me submetem a esta adivinhação? — perguntou.

— As adivinhações ajudam a encontrar o que se busca — destacou Gorgonan.

Nesse momento entraram na cabana Candelán e Sandelón Rústela Vartatraz, entoando o estribilho de uma confusa canção:

 

Vau nas trevas, ausência de alma, frágil como um zero, menos que pó, ninguém quer ser ninguém, melhor um que nenhum...

 

Logo representaram com seus corpos uma ágil e pronunciada reverência, e esperaram espectadores os aplausos de Gorgonan e Borbarón. Mas a voz firme do jovem interrompeu a ovação logo que iniciada.

— Um nada! — exclamou entusiasmado. — Se referiam a um nada, esse é o nome do que não existe.

— Com efeito! — afirmou Gorgonan agradado.

— Fantástico! — celebrou Borbarón.

— Acertou! — exclamou Candelán.

— Felicidades! — concluiu Sandelón.

O Visitante sorriu ufano. Entretanto, depois de ter mostrado seu alvoroço, a satisfação do Visitante se desvaneceu de um modo repentino e seu rosto se mudou em um ricto trágico.

— Mas não consigo recordar meu nome, não sei quem sou — lamentou.

Gorgonán se aproximou e deu-lhe um afetuoso tapinha nas costas.

— Não se preocupe com isso agora. Talvez o tenha perdido.

— Oh, sim, não se preocupe, nós o ajudaremos a procurar seu nome e provavelmente encontre também às respostas para suas dúvidas — disse Borbarón amavelmente.

— Preparamos a barcaça para que possa partir esta manhã — manifestou Candelán movendo seus braços.

— Mas já sabe que só pode escolher a um de nós — acrescentou Sandelón com expressão cândida e bondosa.

Durante um instante um súbito silêncio voou pela casa como a sombra de um fantasma aflito. Os quatro homenzinhos olharam-se entre si e logo voltaram seus rostos iguais para o jovem.

— Só a um? — perguntou o Visitante.

— Assim é — confirmou Gorgonan. — Mas tampouco esqueça que cada um de nós é um e é todos — acrescentou com um misterioso brilho de luz avermelhada em seus olhos.

“Cada um de nós é um e é todos”, repetiu para si mesmo o jovem, e imediatamente caiu na conta de que o dilema que enfrentava não era tão difícil de resolver como em princípio tinha suposto. Se cada um desses homenzinhos era um e também era todos, estava claro que qualquer um que fosse o eleito iria acompanhado dos outros, raciocinou em silêncio.

Mas a quem escolher? Perguntava-se. Gorgonan era fantástico e inteligente e, além disso, tinha sido o primeiro a recebê-lo em sua cabana. Também pensou que provavelmente fosse Gorgonan o mais sábio de todos eles, pois sempre tinha a resposta adequada a cada pergunta. Borbarón, entretanto, parecia-lhe bastante crítico e sarcástico, embora muito sincero, certamente, enquanto que Candelán e Sandelón gozavam de sua avaliação pela amabilidade e simpatia que desde o começo lhe manifestaram. Assim, logo depois de meditar durante um bom momento, por fim disse:

— Confio em que a eleição de um não cause ofensa ou irritação aos outros, pois não é meu desejo excluir de minha companhia a nenhum dos quatro, a não ser a exigência deste seu Labirinto.

— É evidente — murmurou Borbarón. — Tome a sua decisão sem nenhum temor nem recato.

Então o jovem se aproximou de Borbarón Candelte Pinxespo e disse pesaroso:

— Sinto muito ter que me despedir de você deste modo tão precipitado, embora lhe assegure que guardarei fielmente sua lembrança no mais profundo de meu coração.

Ao ouvir isto, pela bochecha de Borbarón escorregou uma diminuta lágrima, que cintilou como um cristal esculpido, e no ato se esfumou no ar.

Depois de sair do atordoamento que lhe causou o insuspeitado desaparecimento de Borbarón, o Visitante se aproximou entristecido dos gêmeos Candelán e Sandelón Rústela Vartatraz, que lhe olharam como se soubessem de antemão o que ele iria dizer-lhes.

— Também devo me despedir de você, Candelán, e de você, Sandelón, mas tenham a certeza de que a simpatia que lhes guardo é sincera e seguirá viva em minha lembrança.

— Não esperávamos menos de um jovem tão gentil. Mas não tema por nós — disseram ambos ao mesmo tempo, desaparecendo imediatamente como dois espectros levados pelo vento.

Logo se dirigiu a Gorgonan e disse:

— Posto que você esperava minha chegada, decidi que seja você quem me acompanhará em minha partida.

— Ficarei encantado! — exclamou Gorgonan sem dissimular sua alegria. — E posto que nós temos que partir para um lugar longínquo, melhor será que o façamos o quanto antes. A barcaça está preparada no embarcadouro com algumas provisões que espero sejam de seu agrado.

— Quanto você goste — disse o Visitante com uma ameaça reverencial.

— Me siga, pois — correspondeu Gorgonan, tornando a andar.

Sob um céu de seda se encaminharam para o embarcadouro, mas perto de iniciar a marcha o jovem deteve de súbito seus passos junto a uma fileira de choupos dourados e perguntou intrigado a Gorgonán:

— Você pode me dizer como desapareceram Borbarón, Candelán e Sandelón?

— Não se inquiete por eles. Provavelmente não andem muito longe daqui. Recorde o que vos disseram: cada um de nós é um e é todos — respondeu Gorgonan com um brilho mágico dançando em seus olhos.

O Visitante soube então que, de algum modo oculto, embora fascinante, Borbarón, Candelán e Sandelón também os acompanhariam em sua viagem.

 

O lago Fergonol estava rodeado por um circulo de montanhas bicudas como lanças, que se elevavam sobre a cratera de um velho vulcão extinto. Suas águas serviam de espelho aos belos topos de neves perpétuas e em suas ribeiras se refletia uma acumulação de penhascos de lava agasalhados por multidão de choupos, vidoeiros e cinzas, duplicando uma paisagem majestosa e fantástica. A calma era total quando o Visitante e Gorgonan subiram na frágil barcaça que os aguardava no embarcadouro, sob o olhar atento de um bando de patos de vistosas plumagens que desenhavam ondas infinitas sobre a quieta superfície da água.

— Escolha o rumo que mais lhes agrade — disse Gorgonan enquanto se esforçava por manter o equilíbrio e se acomodava em um extremo da débil barcaça, dando as costas à proa.

— Acredita que este imprestável traste nos conduzirá muito longe daqui? — replicou o Visitante, receoso da segurança e consistência de sua imprevista embarcação.

Gorgonan bocejou, ajeitando-se como se fosse dormir uma sesta e disse com desdém:

— Tudo dependerá da força de seus braços. Avise-me quando tivermos chegado, eu devo dormir agora, navegar me produz enjôo. Peço-lhe que me desculpe e lhe desejo boa travessia.

A voz do jovem tremeu quando quis fazer patente seu chateio.

— P... mas... co... como que vais dormir agora? E aonde temos que chegar?

Gorgonan abriu um olho com a parcimônia de uma velha coruja sonolenta.

— Procura seu nome, certo?

— Sim... bom... acredito nisso — titubeou o jovem, aturdido.

— Pois então parta para buscá-lo antes que outro o encontre e fique para sempre. Se imagina vivendo sem nome por toda a eternidade?

O jovem não soube o que responder. Nem sequer estava claro que carecer de nome fosse algo que importasse realmente. Inclusive, pensou, poderia inventar um. Não era difícil inventar nomes. Qualquer um poderia fazê-lo com um pouco de imaginação. Mas quando se dispunha a encontrar um que resultasse de seu agrado, sua mente ficava tão branca como a neve que cintilava distante. Assim optou por empurrar a barcaça com um dos remos e, uma vez separado do embarcadouro, começou a remar lago adentro na mesma direção em que soprava o vento.

— Ah!, me esqueci de lhe dizer para ter cuidado com dragão Narbolius, é bastante impertinente e travesso, e não duvidará em lhe chatear com suas pesadas brincadeiras se lhe cruzar o caminho — disse Gorgonan, voltando a abrir um de seus olhos como se piscasse os olhos às estrelas.

Os olhos do jovem quase se desprenderam de suas órbitas, prisioneiros de um choque extremado.

— Um... um dragão?

— Sim, é uma dessas criaturas aladas, de pescoço alongado e cauda bicuda, que lançam fogo por umas fossas nasais escuras como guaridas de lobos. Mas tampouco se inquiete muito por sua presença. É bastante inofensivo e bobo.

Remou com lentidão, acompanhado só pelo estalo dos remos ao romper a água e atento a qualquer movimento estranho da superfície do lago. Supunha que a proximidade de um dragão que surgisse de suas enigmáticas profundidades teria que perceber-se inclusive à distância, elevando-se como uma onda gigantesca antes de fazer-se visível a seus olhos.

Assim navegou até o anoitecer. Enquanto isso, Gorgonan parecia dormir um sonho eterno. Mas não foi a presença inopinada do dragão Narbolius o que turvou os cansados sentidos do jovem até avivá-los como se aviva uma fogueira.

— Olhe ali, Gorgonan, no horizonte! — gritou, excitado pela presença de uma sombra fantasmal que se recortava algumas milhas para o oeste.

Gorgonan despertou e levantou a cabeça timidamente pela amurada da barcaça. A luz do crepúsculo se desvanecia tingindo as águas do lago da cor de cobre fundido e no horizonte ondeavam as velas de um navio sinistro, negras como as trevas da noite.

— Esse é o navio pirata do desumano capitão Uklin, o Viking. É melhor que reme com todas as suas forças para o leste, e mesmo assim duvido que possa escapar a sua captura — disse Gorgonan com um tom lastimoso.

O Visitante murmurou algo inaudível, soprou assustado e fez girar os remos da barcaça como os sinais de multiplicação de um moinho. Por uns momentos, a proa pareceu levantar-se sobre a água, mas logo o esgotamento do jovem acabou por lhe impedir a fuga. A sombra fantasmal do navio viking crescia às suas costas com uma aparência tenebrosa e não demorou para lhe dar alcance. Sobre o mastro maior ondeava ao vento uma bandeira negra em cujo centro brilhava, iluminada pelo mágico resplendor de uma lua enfeitiçada, a monstruosa figura de uma serpente de duas cabeças que se agitava entre vivazes línguas de fogo. De súbito, no silêncio da noite se ouviu uma voz rouca e temível proveniente do navio pirata.

— Como ousam navegar por meus domínios com tão insolente descaramento?

A voz do desumano capitão Uklin se expandiu sobre a água, arrastada por um eco misterioso e assustador que sacudiu a barcaça com a força de um tufão. O jovem se aferrou aos remos para que sua frágil embarcação não o derrubasse e olhou apavorado para velho duende.

— Responda-lhe, vamos, responda antes que se enfureça! —aconselhou-lhe Gorgonan, fazendo gestos no ar com suas ossudas e enrugadas mãos.

Uma leve desculpa brotou timidamente da boca do moço, que não acertava a entender por que Gorgonan não lhe tinha advertido antes de partir dos perigos que lhe espreitariam em sua viagem.

— Me desculpe, senhor, mas não suspeitava que esta humilde barcaça pudesse perturbar sua tranqüilidade, e muito menos que estas águas fossem seu reino, pois de houvesse sabido lhe juro, por minha honra, que jamais me teria atrevido a entrar nelas — disse humildemente, ao tempo que olhava para Gorgonan com olhos de recriminação.

Logo ergueu seu olhar ao castelo de proa do navio corsário e vislumbrou a gigantesca figura de um homem perfilada contra a luz refletida do céu nebuloso. Estava vestido com uma ampla capa de pele de urso e usando um capacete viking, sob o que se adivinhava um rosto difuso e temível. Um silêncio fúnebre voou sobre o lago, antes que a voz do desumano capitão Uklin voltasse a sacudir suas águas.

— Sua sinceridade é elogiável, mas isso não evitará que lhe faça meu prisioneiro! Suba a bordo e se dê por cativo — disse o temido viking de barbas vermelhas. Logo se dirigiu a seus homens e gritou:

— Soltem a escada!

Imediatamente, um grupo de fornidos corsários lançou por bombordo uma escada de corda. Mantiveram-na fortemente segura enquanto o Visitante subia com dificuldade por ela, seguido de Gorgonan, a quem nada parecia perturbar.

Quando alcançou o último lance, os poderosos braços do capitão Uklin o içaram até o interior do navio como se fosse um pescado recém saído da água, entre o júbilo e a gritaria da malvada tripulação.

— Bom jantar para esta noite, capitão! — uivou um marinheiro com o rosto coberto de infinitas cicatrizes.

— Penduremo-lo no mastro maior até que esteja seco como uma enguia! — bramou outro viking ao que lhe faltava uma orelha.

— Melhor guardemo-lo como ceva de ursos! — sugeriu um terceiro, pescoçudo como uma girafa, e ao que lhe faltavam todos os dentes.

— Que caminhe pela prancha com os olhos vendados! — fizeram coro outros com aspecto não menos horripilante.

Mas o barulho cessou logo. Bastou que o desumano capitão Uklin levantasse seu braço direito em sinal de silêncio para que todos lhe obedecessem como uma matilha de cães adestrados. Logo se dirigiu ao jovem, que permanecia estendido no chão junto de Gorgonan, girou ao redor dele observando-o minuciosamente e lhe perguntou com fingida ternura:

— A julgar por suas roupas não parece privado de fortuna. Diga-me, como se chama?

A pergunta estalou nos ouvidos do Visitante como o estalo de um trovão. Olhou o rosto do homem que lhe falava e, entretanto, nada viu que não fossem uns olhos avermelhados, ardilosos e sinistros, ocultos embaixo de espessas sobrancelhas douradas. Logo se dispôs a dizer seu nome, mas algo inexplicável o impedia. Tinha esquecido que não recordava seu nome. Quem era, nem o que fazia nesse lago sofrível, acompanhado por um velho duende, não se lembrava de nada.

— Cortou-lhes a língua algum verdugo? — disse o capitão, ao tempo que lançava no ar uma escandalosa gargalhada.

Os outros piratas ecoaram as gargalhadas de seu chefe e riram loucamente até que o poderoso braço do capitão Uklin os fez calar de novo, não sem brutalidade.

— Não sei quem sou, nem qual é meu nome — respondeu penosamente o Visitante ao cabo de uns segundos de fundo silêncio.

— Ouvistes isso? — exclamou o capitão Uklin deslizando seu escuro olhar sobre os temíveis rostos de seus homens. Logo, dirigindo-se outra vez ao moço, disse-lhe:

— Hum... De modo que não têm nome nem sabe quem é. É por acaso uma foca? Talvez um leão marinho? — O tom de sua voz se ia elevando à medida que falava. — Um cachalote, um tubarão, um peixe lua? Uma sardinha, talvez? — concluiu com sarcasmo, voltando a provocar as risadas de seus marinheiros.

O atordoamento do jovem se fez ainda mais evidente.

— Será melhor que o explique você — disse em um suave sussurro, dirigindo-se a Gorgonan, que permanecia silencioso ao seu lado.

Os vikings o olharam descrentes e atônitos. Logo todos olharam ao redor como se procurassem um objeto valioso que se extraviou entre suas pernas. A espera cresceu em torno do jovem, pois junto a ele não havia mais que uns cabos de corda e alguns baldes.

— A quem se refere? — perguntou intrigado o capitão com melosa voz.

O Visitante estendeu a mão e assinalou ao duende.

— Ao Gorgonan Plaistelo do Luganderbo, ele é quem me acompanha.

Os gritos irados de alguns marinheiros romperam outra vez a calma reinante.

— À água com ele, está mentindo!

— Sim, pretende nos enganar fingindo-se louco!

— É um farsante, à forca!

— Que o comam as moscas!

Mas nesta ocasião foi suficiente o olhar furioso do capitão Uklin para que todos calassem e contemplassem o diálogo entrecortado que o jovem mantinha com um ser invisível.

— Deveria me haver advertido — disse o Visitante um pouco irritado.

— Sim, sim, já sei que são as regras do Labirinto, mas nunca imaginei que só eu poderia lhe ver e lhe ouvir — acrescentou com os olhos cravados na débil figura de Gorgonan, que, entretanto, permanecia invisível aos olhos do resto dos presentes.

O capitão Uklin se aproximou dele com gesto destemperado, elevou-o no ar como a um boneco e lhe espetou:

— Terminaste sua cômica representação?

E como não teve resposta do jovem, cujo semblante empalideceu até adquirir a brancura e frieza da cera, continuou com ironia:

— Pois se for assim, pode ocupar a nobre pocilga em meu modesto barco.

Deixou-o outra vez sobre coberta e gritou a seus homens:

— O encerrem na adega!

Vários marinheiros o agarraram, e entre a gritaria da tripulação o baixaram ao calabouço mais escuro do navio com o mesmo estrépito como se tivesse produzido um motim a bordo.

O jovem esperneava no ar e gritava desesperado:

— Equivoca-se, capitão Uklin, equivoca-se!

A sombra sinistra do capitão ficou contemplando a cena impassível, embora com uma dúvida cravada em sua mente: “Como podia saber aquele atrevido moço o seu nome?”.

 

O calabouço, situado na adega do navio, era diminuto e escuro como a toca de uma toupeira. Um colchão de palha atirado no chão, uma mesinha, um tamborete desmantelado e um redondo prato de latão oxidado constituíam todo o mobiliário.

Ao entrar naquela caixa de madeira de três corpos de comprimento por dois de largura, e apenas um pouco mais alto que ele mesmo, o jovem se sentiu entristecido e abandonado por sua sorte.

— Que os ratos lhes comam os pés! — soltou o viking que fechou a porta atrás dele, produzindo com a enorme chave do calabouço um som metálico e estridente.

O Visitante olhou a seu redor, deixou-se cair sobre o colchão de palha e contemplou Gorgonan com olhos aflitos.

— Acredito que devo estar sonhando — disse.

Gorgonan se sentou junto a ele, encolheu suas diminutas pernas, cruzou-as pelos pés e exclamou:

— Ah, os sonhos! Nem sempre é fácil os distinguir da realidade. Mas o que importa isso agora? Só deve pensar em como sair daqui e em como se liberar do desumano capitão Uklin.

— Você ajudará nisso? — perguntou ofegante o jovem.

O rosto de Gorgonan se escureceu, como se a pergunta que fazia o Visitante caísse sobre seu ânimo com o peso do chumbo.

— Temo que não poderei fazê-lo. Eu não posso trocar o curso de sua existência nem impedir que se cumpram os desejos do destino. Isso é algo que só você pode remediar.

— E como poderei fazê-lo?

— Talvez deva usar sua razão. É o melhor meio para encontrar respostas para suas próprias perguntas — disse Gorgonan.

A confusão se apropriou do Visitante e uma multidão de perguntas se deslocou em sua mente. O que era a razão? De que modo podia lhe servir para encontrar respostas a suas dúvidas? Como podia usar sua razão para se livrar do desumano capitão Uklin?

— Vai por bom caminho, esse é o princípio de toda sabedoria. Não existe resposta sem pergunta, embora talvez sejam muitas as perguntas que ainda não têm resposta. A razão é o meio para determinar o um e o outro, e se quer sair daqui o melhor é que pense em como possa fazê-lo.

O Visitante ficou sumido em seus próprios pensamentos, refletindo sobre sua difícil situação e o modo de remediá-la. Mas também o capitão Uklin estava com a cabeça cheia de perguntas em camarote do castelo de bombordo. Sentado diante de sua mesa de mapas marinhos e iluminado por um ferrugento candelabro, resmungava o modo de obter algum benefício de seu imprevisto prisioneiro, que por seu aspecto se diria que era um príncipe extraviado. Com certeza alguém pagaria um bom resgate por ele, disse para si. Mas também lhe inquietava que o jovem lhe tivesse chamado por seu nome. Nenhum de seus homens o tinha pronunciado em sua presença e não podia explicar-se como pôde então conhecê-lo. Por isso sentia um arrepio estranho lhe percorrer as veias, como se pressentisse que algo mágico protegia ao moço. Talvez não lhe tivesse mentido ao lhe dizer que um ser invisível o acompanhava, pensou. De modo que se levantou de sua mesa, agarrou seu capacete viking , abriu a porta de seu camarote, saiu para coberta, olhou o céu pintado de estrelas que se elevava sobre as negras velas de seu navio pirata e gritou a dois de seus homens:

— Me tragam o moço!

Não demoraram para retornar a coberta acompanhados do Visitante e do resto dos marinheiros, que imediatamente formaram em torno dele um coro de rostos perversos e mudos.

— De maneira que você conhece meu nome — insinuou o capitão Uklin com voz aduladora e olhos escondidos, esperando ver o efeito que suas palavras causavam no moço.

— Oh, sim, sem dúvida! — exclamou o Visitante com grande impudência. — Você é... você é o desumano capitão Uklin.

As palavras do moço confirmaram ao temível pirata as suas suspeitas. Era evidente que conhecia seu nome, e inclusive lhe orgulhou que o chamasse “desumano capitão Uklin”, mas a questão era: como podia sabê-lo?

— Entretanto, afirma não conhecer o seu — acrescentou, deixando o jovem responder a sua pergunta.

— É verdade, esqueci — aceitou o Visitante.

Para ouvir isto, os homens do capitão Uklin irromperam de novo em um clamor de gargalhadas.

— Nós lhe poremos um — manifestou o capitão, bastando sua voz para que voltasse a reinar o silêncio.

Mas quando o desumano viking tentou dizer um nome com o que chamar o moço, emudeceu como se a língua lhe tivesse presa. Voltou a tentá-lo ante o estupor de seus homens, mas só um bufo incompreensível saiu de seus lábios. Alguns piratas arregalaram os olhos ao ver os infrutíferos esforços de seu chefe, em um vão intento de ajudá-lo, pois também eles emudeceram ao pretender sugerir algum nome, inadequado, grosseiro ou impertinente.

— Está bem! — grunhiu o capitão. — Como explica que meu nome lhe seja conhecido e o seu, entretanto, é ignorado?

— Já lhe disse que o perdi em minha viagem; tampouco sei quem sou, nem aonde vou, nem o que procurava neste misterioso lago; quanto a seu nome, foi Gorgonan quem me falou de você na barcaça, ao ver este navio recortado no horizonte ao anoitecer.

Ainda não tinha terminado de expor seus argumentos quando comprovou que Gorgonan não estava ao seu lado, nem tampouco nos arredores. Um calafrio lhe percorreu a pele, como se do céu caíssem sobre ele diminutas gotas de água gelada.

— E onde está esse tal Gorgonan agora? — inquiriu o capitão arranhando sua vermelha barba.

O Visitante voltou a olhar ansioso em torno dele, mas nada viu que não fossem os macabros rostos de seus captores.

— Também ele desapareceu, não consigo vê-lo agora — murmurou cabisbaixo. — Talvez tenha ficado no calabouço.

Um par de mordazes marinheiros se precipitaram para a adega pela escotilha mais próxima, antes inclusive de que o capitão Uklin ordenasse, mas logo retornaram tão sós e desconcertados como tinham partido. Entretanto, antes que o temido capitão voltasse a lhe dirigir seu sinistro olhar, um assobio agudo vibrou nos ouvidos do jovem, proveniente do mastro do navio.

— Ali está! — gritou com grande regozijo, assinalando a ponta do mastro maior, junto à bandeira com duas cabeças de serpente que dançavam entre vivazes línguas de fogo.

Sabia que o velho Gorgonan não o abandonaria e não se equivocou. Pendurado como um morcego no mastro maior, Gorgonan lhe dedicou seu mais amável sorriso, ao tempo que soprava seu cachimbo e lançava ao vento uma chuva multicolorida de bolhas de sabão que ficaram suspensas magicamente sobre o navio.

Todos giraram suas cabeças para o lugar que o moço apontava com seu braço estendido e deixaram escapar uma exclamação de surpresa ao vislumbrar junto a sua bandeira um estranho resplendor, uma formosa luz que parecia flutuar no ar junto a infinitas bolhas de sabão que cintilavam como se o sol gostasse muito delas.

— Acabemos com ele, é um bruxo disfarçado de moço! — uivou um marinheiro que tinha os olhos saltados como um sapo.

— Trará a desgraça a este navio!

— À forca! — proclamou outro, que babava igual a um cão.

O resto fez coro ao grito deste último e adotou uma atitude agressiva, brandindo suas espadas ao ar como a se dispor a entrar em combate com um inimigo enfeitiçado.

— Vamos submetê-lo ao julgamento da Verdade! — sentenciou o capitão por fim, elevando também sua espada ao céu como se intimidasse com ela as estrelas.

 

Depois que o capitão Uklin decidiu submeter o jovem ao Julgamento da Verdade, uma frenética e incomum atividade se estendeu como a pólvora acesa pela coberta do navio viking. Alguns marinheiros recolheram as velas, outros tiraram da coberta os baldes vazios e os cabos de corda enegrecida, acenderam as tochas, e logo aproximaram uns barris pançudos que serviram para formar o estrado no que se situou o tribunal.

O moço tremeu ao ver a tez marrom e os olhos de animália dos três vikings que formaram o júri, e não lhe coube nenhuma dúvida de que se algo não o socorresse, aqueles malvados o condenariam à forca com a mesma frieza de suas almas geladas como um iceberg. Só o amável sorriso de Gorgonan, que agora se sentou no posto de vigia, sobre a vela maior, procurava-lhe alguma quietude.

— Que comece o julgamento! — gritou o pirata mais velho do tribunal.

Imediatamente, o capitão Uklin tomou a palavra fazendo às vezes de um honorável promotor. Mas logo que tinha iniciado seu discurso sobre os enganos do jovem e as mentiras de que lhe acusava, um pirata magro, comprido e risonho se aproximou dele e lhe sussurrou algo ao ouvido que ninguém mais ouviu. O capitão meditou um instante e disse por fim:

— Está bem, sejamos justos... Que o defenda o cozinheiro!

Os marinheiros se olharam entre si atônitos e murmuraram silenciosamente seu desacordo sem se atreverem a se manifestar de forma expressa. De sobra sabiam que seu capitão nunca discutia suas decisões, assim é que esperaram a que o cozinheiro, que nunca intervinha em assuntos de pirataria e maldades, fizesse ato de presença na coberta. Quando assim o fez, todos os marinheiros se separaram de seu caminho, abrindo em torno dele um largo corredor pelo qual seus cento e cinqüenta quilos de peso pudessem transitar até o estrado do insólito tribunal.

— Mas que diabos fazem com este moço? — exclamou ao ver o jovem sentado sobre uma caixa invertida que fazia às vezes de um improvisado banquinho.

— É um impostor e deve ser julgado por isso. Você o defenderá — lhe explicou o capitão Uklin de forma extremamente resumida.

O cozinheiro fez ondular sua enorme papada e perguntou:

— E pode saber-se do que lhe acusa?

Os olhos do capitão dançaram em suas escuras órbitas.

— É... É... acusado de não dizer a verdade — titubeou. — Essa é uma razão suficiente... E já basta de bate-papo!

Os cento e cinqüenta quilos do cozinheiro se moveram sobre a coberta do navio com a lentidão e o peso de um hipopótamo.

— A verdade? Acaso sabe algum de vós o que é a verdade, rebanho de farsantes? — inquiriu deslocando seus faiscantes olhos de um pirata a outro, desafiante.

Mas ninguém lhe respondeu. Só o capitão pareceu estar disposto a entrar totalmente nesse debate.

— Só é verdade o que podem ver os olhos! — disse o capitão com petulância — e este jovem pretende nos fazer acreditar em bruxaria, que um ser invisível o acompanha.

Algo, do posto de vigia, chamou a atenção do cozinheiro. Elevou até ali seus olhos e logo perguntou ao Visitante:

— É esse seu amigo?

O Visitante assentiu com uma leve inclinação de sua cabeça, admirado porque alguém por fim acreditasse nele. Desde que tinha sido convertido em prisioneiro acreditava estar vivendo um pesadelo de loucos e por isso lhe reconfortou que aquele corpulento viking, gordo como uma baleia e valente como um golfinho, converteu-se em seu espontâneo defensor.

— Não há engano algum nas palavras do moço, também eu vejo o velho sentado lá em cima — disse o cozinheiro com grande convicção.

— Isso não é certo! — bramou o capitão Uklin.

— Ah, não? — soltou provocador o corpulento cozinheiro. — Olhou bem, capitão? Talvez sua vista não alcance além de seu nariz sujo.

Um grupo de piratas rompeu a gargalhadas, mas o olhar enfurecido do capitão os fez calar imediatamente. O cozinheiro era o único da tripulação a quem o capitão Uklin consentia alguma outra impertinência, pois era rebelde e teimoso como um touro, mas o melhor cozinheiro que se conhecesse. Logo olhou para frente do mastro maior e viu sentado sobre ele a um homem diminuto que lhe sorria enquanto agitava as pernas no vazio. Inclusive se esfregou os olhos, acreditando-se presa de uma alucinação. Mas foi tal o medo que sentiu ao vê-lo que não se atreveu a olhar de novo. A magia lhe produzia verdadeiro espanto.

— De acordo, você ganha, Dongo! — aceitou o capitão dirigindo-se ao cozinheiro, pois esse era seu nome, e imediatamente ordenou a seus homens:

— Soltem o moço! Talvez diga a verdade.

Apesar dos protestos dos marinheiros, e muito especialmente dos componentes do tribunal, que ardiam com o desejo de presenciar uma execução sumaríssima, o capitão Uklin se manteve firme em sua decisão. Dongo, o cozinheiro, lançou uma piscada fugaz ao Visitante, aproximou-se dele, jogou-lhe seu volumoso braço sobre o ombro e lhe disse sem protocolos nem tratamentos:

— Vêm comigo à cozinha, moço. Essas negras olheiras me dizem que não comeste muito nestes dias.

E ambos se foram em busca de um jantar suculento enquanto Dongo falava ao jovem das formosas trutas que guardava em sua despensa para grandes ocasiões como esta. Logo, já na cozinha, perguntou-lhe:

— Me diga, moço, como se chama?

O jovem pensou um instante e enfim respondeu aflito:

— Não consigo recordar meu nome. Gorgonan disse que talvez o tenha perdido.

— Pois então terá que buscá-lo. Os nomes não vão muito longe quando se extraviam — disse o cozinheiro sorrindo, ao tempo que colocava ante o moço um fumegante prato de latão com um par de trutas assadas e regadas com azeite e salsinha picada.

Dongo deixou que o moço devorasse como um urso faminto o pescado e simulou logo estar procurando algo indefinido entre as muitas tigelas de sua desordenada cozinha.

— Já o tenho! — exclamou alegre, fingindo ter apanhado algo com suas gordinhas e grandes mãos.

O jovem deixou de comer e observou os movimentos de Dongo com atenção. Este se aproximou dele, levou suas mãos fechadas à altura de seus lábios e disse satisfeito:

— Aqui está seu nome!

— Sério? — perguntou o moço, inquieto.

— Sopra em minhas mãos, talvez consigamos fazê-lo sair.

Bastou que o jovem dirigisse um ligeiro sopro sobre as mãos de Dongo para que este as abrisse lentamente e delas saísse, desenhando-se ante seus olhos, com caracteres de fumaça, a palavra JUNCO.

— Junco! — exclamou assombrado o jovem, ao tempo que as letras se elevavam e se desvaneciam no ar como um espectro.

Dongo o contemplava com semblante intrigado.

— Como conseguiu? — perguntou o moço.

— Oh, não foi nada difícil! A magia sempre se faz visível aos olhos da inocência — respondeu o cozinheiro dando às suas palavras um tom solene.

E desde esse instante, Junco se sentiu o jovem mais afortunado da Terra e não pôde conter sua alegria. Enfim tinha encontrado seu nome.

 

Ainda se passaram alguns dias antes de que Junco voltasse a encontrar-se de novo com o Gorgonan. Não via seu velho e enigmático amigo até que Dongo o levasse a cozinha do navio, e embora sentisse sua falta de e seu coração ardesse em desejos de lhe comunicar que enfim, tinha encontrado seu nome, o certo é que esteve tão ocupado aprendendo os trabalhos de marinheiro que, ao chegar à noite, quando se apertava na caminha do pequeno e confortável camarote de popa que Dongo tinha preparado para ele, caía tão cansado que seus sonhos se perdiam entre mil aventuras de piratas, antes que chegasse a fechar os olhos. Até pensou que Gorgonan se feito invisível também para ele, como tinha sido para todos os vikings do navio à exceção de Dongo e, durante um instante, do próprio capitão Uklin. Entretanto, agora tudo era distinto, e os mesmos marinheiros que antes clamassem para que seu corpo servisse de alimento aos ursos, ou para que caminhasse pela tabela com os olhos vendados, ou para que o pendurassem no mastro até que secasse como uma enguia, agora o chamavam com agrado para que lhes ajudasse nas tarefas do navio: “Junco, ata esse cabo!”, “Junco, baldeia a coberta!”, “Junco, agüenta o leme!” E cada vez que ouvia seu nome, Junco levantava a cabeça como um cãozinho doméstico e acudia iludido e disposto.

Também o desumano capitão Uklin se sentia reconfortado em companhia de Junco, e não duvidava em chamá-lo para lhe mostrar o horizonte acobreado dos poentes ou o modo em que o vento quente do sul inflava as velas e fazia navegar seu navio com a velocidade de um peixe voador. Por isso Junco se surpreendeu ao contemplar seu rosto sem que a sinistra sombra do casco viking o ocultasse, pois seus olhos, antes enviesados e frios, agora lhe pareciam muito menos temíveis e mais risonhos.

— É verdade que é tão desumano o capitão Uklin, como dizem? — perguntou Junco a Dongo, depois de ter passado uma divertida e encantadora tarde atendendo os ensinos do capitão sobre o manejo do leme e o modo de aproveitar os ventos de flanco.

Dongo avivou o fogão de sua cozinha, colocou sobre ela uma enorme panela repleta de um guisado que desprendia aromas deliciosos e disse:

— Nunca faça caso dos falatórios, moço.

— Então, não é verdade que ele é um pirata malvado? — insistiu Junco, satisfeito pela confirmação de seus pressentimentos.

— Bom, digamos que só relativamente. Levamos muitos anos navegando por este lago em busca de tesouros e batalhas, fazendo ondear ao vento nossa aterradora bandeira. Mas ainda não encontramos nenhum cofre de comestíveis de ouro nem ninguém com quem combater. Você foi seu primeiro inimigo — disse o cozinheiro sem deixar de remover o guisado com uma gigantesca concha de madeira.

— Oh, pobre capitão! — exclamou Junco.

O cozinheiro fez ziguezaguear seu enorme corpo redondo e agarrou algumas especiarias de um pote de latão, pulverizou-as sobre o guisado com a solenidade de quem prepara uma beberagem magistral e disse:

— Tampouco se preocupe muito por ele, é muito feliz à sua maneira. Talvez o que menos lhe importe seja encontrar um tesouro ou combater em uma batalha, mas adora sonhar com isso. Além disso, nunca saberia o que fazer com o ouro; e estou seguro de que seria incapaz de matar um sapo orelhudo, embora goste de parecer um malvado.

— Mas os piratas foram sempre gente perversa e embusteira, não é? — perguntou Junco um pouco confuso.

— Isso ao menos contam as lendas. Mas também houve na história piratas que defenderam causas nobres. Até os piratas são livres para escolher entre o bem e o mal, entre a bondade e a maldade, entre a justiça e a injustiça...

A voz do cozinheiro se viu interrompida de súbito pela do capitão Uklin, que nesse preciso instante entrou na cozinha.

— Já vejo que Dongo lhes cuida e alimenta devidamente — disse o capitão, sempre respeitoso com o tratamento aos desconhecidos, pois só tutelava os seus homens.

Junco assentiu.

— Oh, sim, nunca degustei manjares mais deliciosos, asseguro-lhes isso!

Dongo se sentiu adulado e não ocultou sua satisfação.

— Este pequeno frango — disse se referindo ao moço — comerá todo o trigo deste celeiro.

Pela primeira vez viu Junco sorrir ao capitão Uklin, e sentiu por isso um extraordinário regozijo. Talvez Dongo tivesse razão, pensou.

— Pois cuide de guardar algo para meus marinheiros se não querer que os brancos toucinhos de sua pele acabem na adaga, feitos rodelas conservadas em sal — brincou o capitão com voz grave.

Um estampido surdo bramou então sobre o navio.

— Esse trovão anuncia tormenta — pressagiou Dongo olhando ao teto de sua cozinha um pouco alarmado pelo estrondo.

— Ao fim! — exclamou o capitão, e saiu correndo da cozinha como se tivessem anunciado um fogo a bordo.

Junco olhou o cozinheiro como se lhe solicitasse permissão para ir com seu chefe, e vendo que Dongo o outorgava com um leve bamboleio de sua cabeça, correu também para a coberta do navio com a ilusão da aventura dançando em seus olhos.

— Arriem as velas, rebanho de folgados! — gritava o capitão a seus homens quando Junco chegou a seu lado no castelo de popa — Mantenham o leme a bombordo!

O vento assobiava melodias de espanto entre as velas do navio enquanto os marinheiros corriam de um lado a outro, contentes de que a tormenta se desatasse ao fim, e com o fervente desejo em suas almas de que ainda fora mais terrível que a última de fazia uns meses. De algum modo, essas eram suas únicas diversões a bordo.

Pouco a pouco as águas do lago foram encrespando-se até formar enormes ondas que lançavam cristas de espuma branca contra a coberta do navio, convulso como uma casca de noz em meio da tormenta, ao tempo que o céu se acendia sobre as velas, pintando da cor do fogo com os brilhos dos relâmpagos.

— Volte para a cozinha com Dongo, este não é lugar para um moço como você! — gritou-lhe o capitão ante a perigosa aparência do vendaval. Provavelmente não tivesse conhecido outro como aquele.

Junco estava encharcado, embora divertido. As ondas e a chuva caíam sobre a coberta do navio alagando-a e arrastando quanto encontravam a seu passo. Nem sequer teve tempo de responder ao capitão: uma onda gigantesca o elevou no ar e o lançou fora do navio.

— Homem à água! Homem à água! — gritou o capitão Uklin desesperado.

Para ouvi-lo, todos os marinheiros acudiram precipitadamente ao castelo de popa e de ali procuraram o corpo de Junco com os olhos abismados entre as ondas. Mas uma sombra de pesar lhes cobriu o rosto ao não encontrar outra coisa que a agitada espuma branca esboçando silhuetas fantasmais sobre a água.

— Tivesse sido um bom pirata viking! — lamentou o capitão, e uma diminuta lágrima escorregou por sua bochecha.

Junco não sabia nadar e as ondas brincaram com ele como se fora uma bola de penugem em braços de um vento impetuoso. “Onde estará Gorgonan?”, perguntou-se enquanto esperneava apavorado e se esforçava por manter seu corpo na superfície da água. Mas ao logo sentiu que algo sob seus pés o empurrava e o elevava do mesmo modo que se houvesse, subido à garupa de um amalucado cavalinho de mar.

Foi então quando a dourada silhueta do dragão Narbolius se recortou no negrume da noite levando entre suas asas a um moço alucinado, que via como seus pés se afastavam do lago e como, lá abaixo, o navio pirata do audaz capitão Uklin, o Viking, batia-se contra a tormenta. E a Junco ainda pareceu ouvir, antes de atravessar o espesso manto de nuvens acinzentadas que dividiam em dois o firmamento, entristecida. A voz do capitão Uklin que dizia a Dongo:

— Pobre moço, as ondas o engoliram.

 

Quando Junco despertou, o dragão Narbolius seguia convexo junto a uma rocha próxima à borda do lago, olhando-o com seus olhos de açafrão perdidos no infinito. Dos orifícios de seu largo nariz se desprendiam filamentos de fumaça e de vez em quando bocejava com ar aborrecido e abobalhado. Mas o que mais chamou a atenção de Junco ao vê-lo foi seu tamanho, pois enquanto que ele o recordava esbelto e alto como um cavalo alado, o dragão que agora tinha ante si alcançava o tamanho de uma iguana ou um lagarto. Tampouco demorou para precaver-se da presença do Gorgonan, que sentado sob um choupo de folhas exuberantes entretinha o tempo compilando raminhos pulverizados pelo chão, com a quietude e a indiferença nele acostumados.

— O que houve? — perguntou Junco a Gorgonan, ainda um pouco desconcertado.

— Caíram-lhes à água e Narbolius lhes salvou — respondeu Gorgonan com gesto ausente.

Junco deslizou seu olhar até o dragão.

— Referem-lhes a ele? — inquiriu com uma leve oscilação de seus olhos.

— A quem mais?

O pequeno dragão intuiu a seguinte pergunta de Junco, e antes de que a formulasse começou a crescer e a inchar-se como um globo até alcançar o tamanho de um dinossauro. Seu aspecto agora era, na verdade, pavoroso, embora em seus olhos seguiam cintilando brilhos de mansidão.

Junco engatinhou assustado até o tronco do choupo que lançava sua sombra sobre Gorgonan, ao tempo que o dragão adquiria o mesmo tamanho que teve quando a noite anterior o tirasse da água, voando como Pegásus.

— Já vos disse que Narbolius não duvidaria em lhes chatear com suas pesadas brincadeiras se lhes cruzavam em seu caminho. Esta de crescer e diminuir a seu desejo só é uma delas, embora a mais espetacular, sem dúvida. Mas lhe devem a vida e bem fariam em agradecer-lhe.

— Pode falar? —perguntou Junco admirado enquanto o dragão voltava a fazer-se pequeno como um camaleão e ele representava uma leve reverencia em sinal de gratidão.

— Oh, não! —exclamou Gorgonan sorrindo — Mas asseguro que lhes compreenderá — acrescentou, de uma vez que se reclinava e agarrava ao dragão entre suas mãos.

Logo o depositou com suavidade junto ao montão de galhos seca que tinha juntado enquanto o jovem dormia e lhe pediu:

— Acenda-o, por favor.

O dragão soprou obediente e por sua pequena boca de crocodilo achatado lançou uma língua de fogo azul que prendeu imediatamente na folhagem.

— É fantástico! — exclamou Junco.

A modéstia do Gorgonan subtraiu importância ao assunto.

— Tão fantástico como o modo em que ao fim encontraram seu nome — disse corajoso.

Narbolius se deslizou sigiloso pela terra úmida, acomodou-se sobre o regaço de Junco adquirindo o tamanho de um cão mulherengo e em um piscar de olhos adormeceu.

— Então, já sabem que me chamo Junco? — perguntou sem deixar de acariciar a crista do dragão.

— Certamente, e me alegro por você. Agora têm um nome e isso é o que importa.

— Têm razão, Gorgonan, mas me digam, por que caí à água e perdi a meus amigos?

— Talvez porque se não lhes tivesse miserável a tormenta Narbolius não tivesse podido lhes salvar dela.

— Querem dizer que o que tem que me ocorrer está escrito e que vocês sabiam que cairia à água? — insistiu o moço.

— Quero dizer — explicou Gorgonan com tom cerimonioso — que não há perda sem achado, nem encontro que não suponha também um certo menoscabo, pois do um e do outro se faz a vida dos homens. Perdestes uns amigos mas outros sairão logo a seu encontro.

— Acredito que já encontrei a um — disse Junco olhando com ternura ao dragão que dormia placidamente em seu regaço.

— Não lhes caiba dúvida disso.

Logo Junco relatou a Gorgonan como transcorreram seus dias no navio viking do capitão Uklin, junto a Dongo e o resto dos marinheiros, que já  não lhe pareciam tão desumanos e temíveis; e lhe falou das muitas coisas que aprendeu deles no manejo das velas, a âncora ou o leme do navio. Inclusive lhe contou que o capitão Uklin, longe de ser um pirata desumano como ele mesmo lhe disse e sua fama proclamava, resultou ser um ingênuo sonhador que só ansiava encontrar inimigos aguerridos com os que combater, ou velhos tesouros escondidos em ilhas misteriosas, sem que nunca conseguisse achar nem o um nem o outro, segundo o mesmo Dongo lhe explicou.

Nessas estavam quando a seus ouvidos chegou o estrépito metálico de uma cavalgadura que se aproximava do norte ao galope e que não demorou para fazer-se presente na borda do lago. Era um nobre cavaleiro montado em um magnífico e deslumbrante corcel branco, que levava um vistoso estandarte com um dragãozinho de ouro bordado sobre fundo de veludo vermelho. Ao vê-lo, o dragão Narbolius se fez diminuto como um camundongo de campo e se escondeu veloz entre as roupas de Junco. Gorgonan, entretanto, olhou-o com displicência e só Junco pareceu assombrar-se da presença do cavaleiro.

— Alegra-me encontrar alguém por estas paragens solitárias! —disse o cavaleiro com uma voz oca e enlatada, embora jocosa. Seu rosto ficava oculto depois de um elmo coroado por um ramalhete de plumas encarnadas.

Junco ficou em pé com cuidado de que Narbolius não ficasse espremido entre sua vestimenta, pigarreou e respondeu:

— Me digam no que posso lhes ajudar e terão em mim a seu mais humilde servidor.

A armadura do cavaleiro brilhou como o sol que se refletiu de súbito nela.

— Na verdade me agradam sua amabilidade e seu sincero oferecimento, jovem... — interrompeu-se o cavaleiro couraçado.

— Junco, meu nome é Junco — disse disposto o moço, contente de não ter que dar em tal ocasião explicações sobre o extravio de seu nome.

— Junco! — repetiu o cavaleiro — formoso nome sem dúvida.

— Para onde vão? — apressou-se a perguntar Junco.

O cavaleiro desmontou de seus arreios produzindo um som de caçarolas desvencilhadas.

— Meu intuito não está em nenhum lugar conhecido dos homens, embora agora cavalgo perto de onde o sol haverá logo de ocultar-se. Tenho lido em um antigo manuscrito que ali habitam ferozes dragões e é meu desejo capturar um para nomeá-lo guardador de meu castelo.

Os olhos de Junco procuraram com precipitação os do Gorgonan, mas este tinha desaparecido de novo como desaparece uma ilusão. O moço não pôde entender por que Gorgonan desaparecia de seu lado quando mais o necessitava.

— Dragões, dizem? — perguntou Junco estupefato.

— Certo, talvez tenham visto algum pelos arredores.

Junco sentiu os batimentos do coração do coração do Narbolius em seu flanco. Sem dúvida parecia entender o que falavam e estava sobressaltado.

— Oh, não, jamais vi um dragão verdadeiro! Embora haja ouvido contar histórias fantásticas sobre eles — mentiu.

— Eu também, por isso os busco há anos. Me acreditem se lhes disser que estou cansado de defender meu castelo a golpes de lança e espada frente a tanto barão ambicioso e mesquinho — disse o cavaleiro um pouco decepcionado.

E durante um bom momento contou a Junco a antiga história que tinha lido no manuscrito que achasse em seu castelo e que, em efeito, falava de um lugar perdido lá no ocaso, onde os dragões habitavam desde fazia milhares de anos revoando baixo céus dourados.

— E agora vos rogo que me desculpem, tenho que continuar meu caminho sem mais demora nem entretenimento antes de que o sol se oculte e volte a perder de vista o lugar em que o faz — acrescentou voltando garupas e subindo com agilidade a seu magnífico cavalo branco, que pastava tranqüilamente à beira do lago.

Mas antes que o cavaleiro esporeasse seu cavalo e se lançasse ao galope em busca dos dragões que habitavam onde o sol teria que ocultar-se, Junco lhe disse:

— Ainda não me hão dito seu nome.

O cavaleiro o olhou pela magra abertura de seu elmo.

— Oh, desculpem minha descortesia, própria de meu esquecimento que de minha intenção. Meu nome é Grenfo Valdo, senhor do Castelo do Dragão.

E ato seguido picou esporas e se perdeu no horizonte com o ardor de um torvelinho, antes inclusive que Junco pudesse elevar seu braço para despedi-lo.

— Estranho personagem! — disse Gorgonan, ao tempo que se fazia visível de novo sob a sombra de um choupo próximo.

Junco sentiu o pequeno dragão remover-se inquieto entre suas roupas e lhe ajudou a sair pela boca de uma de suas mangas, depositando-o com leveza sobre um montão de pedras amorfas e chatas.

— Onde o colocastes? Sempre que necessito sua ajuda desaparecem como por encantamento — murmurou o moço sem dissimular seu aborrecimento.

— Tinha coisas que fazer — disse Gorgonan sem muita convicção.

— Pois foi uma lástima que não ouvissem a história do cavaleiro que acaba de partir; embora devesse saber que cavalga para onde o sol se põe, em busca de um feroz dragão que defenda seu castelo dos malvados barões que o espreitam — advertiu Junco de deslocado.

Enquanto falavam, Narbolius tinha crescido até alcançar a altura das copas dos choupos da ribeira do lago e se entretinha comendo suas saborosas e verdes folhas com soma pachorra. Ao vê-lo assim ninguém diria que em efeito se tratava de um imponente dragão.

— Machuca que já não fiquem dragões naquelas férteis e longínquas terras — lamentou Gorgonan.

Junco franziu o sobrecenho, descrente.

— Não ficam dragões? — perguntou.

Gorgonán se levantou e se aproximou do moço.

— Houve um tempo em que os nobres cavaleiros encontraram divertido acabar com eles, e a fé minha que o conseguiram.

— E Narbolius? —perguntou então Junco.

O duende olhou com ternura o dragão, que seguia desfolhando as taças dos choupos com atitude indiferente. Logo, disse com voz causar pena:

— Narbolius é o último dragão do mundo, por isso vive aqui, neste Labirinto de irrealidade. Um dia, já muito longínquo, encontrei-o ferido gravemente e tremente entre um matagal de sarças. Quando me viu, seus olhos expressaram seu terror aos homens e se fez pequeno como um esquilo assustado. Curei suas feridas e lhe prometi que jamais homem algum voltaria a lhe fazer dano...

Junco interrompeu a narração do Gorgonan.

— Mas pode acaso um cavaleiro armado com uma espada ou uma lança vencer a criaturas tão prodigiosas?

Narbolius os olhou como se soubesse que falavam dele.

— Os dragões são ingênuos e bondosos e pouco podem fazer frente à astúcia e a maldade de alguns homens. Aqueles não escolhem seu destino, estes sim — disse Gorgonan.

— O que querem dizer? —perguntou intrigado Junco, pois não acabava de entender o que seu enigmático interlocutor lhe sugeria.

Antes de responder, Gorgonán adotou uma atitude solene. Logo disse com sobriedade:

— Quero dizer que aos dragões, como ao resto dos animais que povoam a Terra, não fica outro remédio que ser o que seus instintos lhes exigem e ordenam, de tal modo que há em todos eles comportamentos iguais no essencial; entretanto, os seres humanos são o que são por sua própria decisão ou eleição, e tanto podem elevar-se aos fins mais nobres como entregar-se aos mais odiosos desmandos.

As palavras de Gorgonan prenderam na mente de Junco uma mecha de inquietação.

— Entretanto, não me pareceu advertir ao senhor Grenfo Valdo a intenção de fazer mal algum aos dragões que busca.

— Oh, não, não era a ele a quem me referia. Grenfo Valdo é sem dúvida um nobre cavaleiro, e houve uma época, agora remota, em que sua família adquiriu grande renome por sua abnegada defesa de tão inofensivas e extraordinárias criaturas. Por isso leva em seu estandarte o símbolo de um fastuoso dragão bordado em fios de ouro.

— Sobre isso devia tratar o velho manuscrito do que o senhor Grenfo me falou antes de partir — refletiu Junco em voz alta.

— Talvez — concluiu Gorgonan.

 

Partiram antes que se ocultasse o sol e não muito depois que Gorgonan preparasse uma suculenta comida que a Junco trouxe aromas e lembranças esquecidas de sua infância. Pouco a pouco entraram em um denso e sombrio bosque de abetos e pinheiros muito altos, acompanhados pelo incessante cantarolo dos pássaros e o rugido bronco de algumas animálias. Gorgonan caminhava o primeiro, seguido a curta distância por Junco, que levava sobre seu ombro direito ao Narbolius como se de um louro adestrado se tratasse. O pequeno dragão permanecia atento a quanto se movia ao redor e de vez em quando saltava do ombro de Junco e se adiantava voando sobre a espessa trama de coníferas, para retornar ao cabo de uns minutos contente de que nada nem ninguém entorpecesse seu caminho.

— Ainda não me disse pra onde nos dirigimos — comentou Junco, logo depois de ter andado um bom trecho sorteando arbustos em silêncio.

— Se não souberem vocês, mal posso sabê-lo eu — respondeu Gorgonan sem olhar atrás.

— Mas são vocês quem caminham na frente! — replicou Junco.

— Sem dúvida, mas são seus passos os que importam nesta caminhada. Eu me limito a lhes seguir.

A confusão de Junco se fez evidente.

— Como pode ir detrás o que se supõe que vai em primeiro Jogar? — perguntou.

Gorgonan não pôde dissimular seu sorriso. Sem dúvida Junco estava certo, mas tampouco ele se equivocava.

— Tudo depende do Tempo — disse — e o que para você é presente, para mim é passado. De tal modo que quando vocês crêem dar um passo em atrás de mim, eu já o dei antes detrás de você, e embora eu seja quem caminha primeiro, é inegável que são vocês quem conduzem meus passos.

“O Tempo?”, disse Junco para si. Ele jamais se formulou essa pergunta e por um instante tentou imaginá-lo como algo tangível, mas não pôde. E tanto se concentrou em seu propósito que nem sequer se precaveu de que ante ele cruzava um ancião com barbas brancas, vestido com uma larga túnica de peregrino, que levava dois alforjes pendurados no ombro e apoiava seu andar em um comprido bastão de ramo de boi.

— E o que é o Tempo? — perguntou Junco em voz alta, confiando em que Gorgonán esclarecesse suas dúvidas, mas uma vez mais se encontrou com que Gorgonan tinha desaparecido inesperadamente de seu lado.

Para ouvir a pergunta, o ancião girou seu rosto para o moço, pois tampouco ele, imerso como estava em suas próprias as caiba, deu-se conta da presença de Junco.

— O presente já o perdestes e o futuro acaba de passar ante você convertendo-se em passado. Isso é o Tempo, invisível e veloz como o vento, hoje que manhã será ontem, frágil filamento impalpável que nos conduz à morte — recitou o ancião como se respondesse a um ente imaterial, e continuou meditabundo seu caminho.

— Esperem! — gritou Junco.

O ancião se deteve, girou sobre seus passos e olhou ao jovem com espera.

— O que desejam? —perguntou.

— Talvez vocês possam ajudar  —disse Junco com voz trêmula, pois tinha cansado na conta de que devia tentar sair do Labirinto e encontrar-se de novo a si mesmo, tal como era além desse mundo de irrealidade.

— Se assim acreditam, tenham, por certo que o tentarei — disse o ancião amavelmente. Logo reparou no dragão que Junco levava sobre seu ombro e acrescentou: — Formosa criatura!

Então o dragão saltou do ombro de Junco e se elevou no ar até perder-se entre as nuvens.

— Voltará — afirmou Junco.

O ancião assentiu com um leve gesto de seu enrugado semblante.

— São muito afortunado em possuir um dragão. Esses fabulosos seres são capazes de entender a linguagem e transmitir aos mortais os mistérios do mundo.

— Disso precisamente desejava lhes falar —destacou o moço.

— Duvido que eu possa lhes oferecer alguma luz sobre tão espinhosos assuntos, mas me digam: o que desejam saber? — disse o ancião.

— Não sei quem sou — soltou o moço algo desanimado.

O ancião apoiou seu bastão no tronco de um abeto gigantesco, aparou-se suas largas barbas brancas e se acomodou sobre uma pedra que ao logo cobrou a forma de um trono real de pobre aspecto.

— Eu diria que é um jovem muito despachado — sugeriu.

— Não, não, não referia a isso — matizou Junco acompanhando suas palavras com rápidos movimentos de suas mãos.

— Então talvez devamos começar pelo princípio, é o melhor modo de proceder ante questões de tanta transcendência. Sentem-se aí se lhes agrada — disse, assinalando frente a ele outra pedra de menor tamanho com forma de amêndoa.

Junco se sentou seguindo as indicações do ancião e observou pela primeira vez a dignidade de seu rosto, seus enormes olhos tintos de azul e seu benévolo sorriso baixo a temperada luz crepuscular.

— De modo que não sabem quem são, apesar de saber que são um jovem despachado? — perguntou o ancião.

— Assim é — confirmou Junco.

O ancião elevou os olhos ao céu avermelhado do entardecer, voltou a arranhar o queixo, meditou um instante e ato seguido expôs seu argumento com eloqüência de pregador:

— Depois de lhes observar atentamente, eu diria que são um ser excepcional, dotado de uma razão prodigiosa, livre para escolher seu destino e com uma extraordinária capacidade de amar; e essa conjunção de virtudes é a que lhes faz diferente do resto de criaturas selvagens que povoam a Terra, incluídos os dragões. Mas já vejo que não são essas as questões que lhes inquietam, embora tampouco esteja de mais que eu lhes diga isso, pois pela confusa expressão de seus olhos intuo que o que desejam saber-se transluz sem dificuldade alguma de sua aparência, não sendo necessário que eu lhes confirme o que você mesmo já sabem.

A mente de Junco galopou como um cavalo desbocado para seguir a enxurrada do ancião, ao ponto que, de todo seu discurso, só pôde entender com certeza o primeiro parágrafo.

Quanto ao segundo, pareceu-lhe prudente deduzir que lhe bastaria olhar-se a si mesmo para vislumbrar o que ignorava. Então o ancião ficou em pé, agarrou seu bastão de ramo de boi e golpeou levemente o chão com a ponta. A terra se abriu ante eles e um bebedouro cristalino emanou de seu interior até criar um âmbito cintilava como um espelho de prata.

— Olhem vocês mesmos e me digam o que veem refletido na água — disse o ancião.

Antes que Junco atendesse a recomendação do ancião, o ar propagou a revoada do dragão Narbolius, que retornava de suas pesquisas e voltava a posar-se em seu ombro. Junco o recebeu com uma carícia e logo olhou indeciso para dentro daquela lua fascinante com a mesma vertigem com que se olha a um abismo.

Nela viu com nitidez um formoso castelo situado em uma colina atapetada de grama, sobre cujas muito altas torres ondeavam um sem-fim de bandeiras e estandartes com uma triplo W amarela estampada sobre fundo azul marinho. E viu um jovem embelezado com capa escarlate e uma deslumbrante armadura, que, acompanhado de um pequeno dragão, cruzava a ponte levadiça e transpassava com honras de príncipe as enormes leva cravejadas do castelo, entre o clamor e a alegria da multidão que o aclamava. E de súbito se viu si mesmo abraçando ao seu pai, o grande rei Winder Wilmut Winfred, que não podia dissimular a emoção por sua volta.

— Esse sou eu? — perguntou Junco ao ancião como se despertasse de um sonho, depois de apartar seus olhos do âmbito lhe cintilem da água.

— São essas suas lembranças?

— Acredito que sim.

— Então já sabem quem são — disse o ancião — Mas não aprecio em seus olhos a alegria que esperava.

— Oh sim, claro que estou contente de ter encontrado meu passado, mas não posso evitar me sentir triste por estar longe de tudo o que me é conhecido.

O ancião forçou uma pausa, e logo continuou:

— Talvez devam enfrentar também o desconhecido. Esses são os mistérios do mundo que cada homem deve descobrir. E agora devem me desculpar, tenho que continuar meu caminho.

E dito isto, o ancião se ergueu e o trono de pobre aspecto no que estava sentado recuperou sua originária forma de pedra. Agarrou seu bastão de ramo de boi e os alforjes e pôs-se a andar.

Junco ainda correu atrás dele, mas logo que andou alguns passos a frágil figura do ancião se desfez no ar como um suspiro. Então olhou desolado ao redor, mas nada encontrou que não fora a escuridão da noite fechada sobre ele. Temeroso do silêncio que o envolvia, tomou o dragão entre suas mãos, e o medo, que pugnava por apropriar-se de seu ânimo, fugiu de seu lado soltando uivos que se afogaram nas trevas.

Narbolius se agitou e saltou ao ar, voou em espiral durante escassos segundos e foi crescendo no vazio até adquirir o tamanho de um cavalo alado. Logo posou ao lado de Junco, olhou-o com seus bondosos olhos de açafrão e dobrou suas patas lhe convidando a subir sobre sua garupa. Junco não o duvidou. De um salto subiu a lombos do dragão, que imediatamente desdobrou suas asas e se elevou veloz para um céu pigmentado com minúsculas estrelas. 

Apesar da altitude e da escuridão, Junco pôde ver as paisagens na penumbra que se deslizava sob seus pés. Durante sua longa viagem sobrevoaram imensas planícies, terras ermas e solitárias semeadas de geada, cordilheiras agasalhadas com frios mantos de neve, tenebrosos bosques e profundos vales encantados, até que ao fim Narbolius divisou um amontoado de nuvens esponjosas e posou sobre elas. Mais acima, a lua os observava com curiosidade e agrado.

Ao logo, Junco ouviu uma voz doce como nunca tinha ouvido nenhuma outra e pensou que a Lua lhe falava.

— Há alguém aí? — perguntou Junco, olhando admirado em torno dele.

— Acaso pode um nada do Universo ser alguém? — replicou a voz, impregnada de uma candura prodigiosa.

Junco acariciou com delicadeza a crista do Narbolius para evitar que se inquietasse.

— Não sei — admitiu humildemente.

— Olhe a seu redor — recomendou a voz de um nada do Universo.

O olhar de Junco, viva como uma chama, perambulou de um lado a outro, passeando-se pela luminosa Lua e detendo-se o final nas estrelas que lhe piscavam os olhos na lonjura.

— Vejo a Lua e as estrelas — afirmou Junco com firmeza.

— E mais à frente? — insistiu a voz calmamente.

Depois de fixar seus olhos no negrume do infinito, Junco disse:

— Não consigo ver nada.

— Então me vê  — concluiu um nada do Universo.

Junco se sentiu confundido e recordou que na cabana do lago de Fergonol, quando não sabia qual era seu nome, Gorgonán lhe havia dito que todos os seres e todas as coisas do Universo têm um nome, que o que não tem nome não existe, e que inclusive o que não existe tem seu próprio nome. E recordou também que depois de que Candelán e Sandelón Rústela Vartatraz entrassem na cabana entoando o estribilho de uma confusa canção que dizia: “Vazio nas trevas, ausência de alma, frágil como um zero, menos que pó, ninguém quer ser ninguém, melhor um que nenhum...”, ele tinha respondido à adivinhação afirmando que o nome do que não existe era “um nada”. E agora, nesse preciso instante, um nada do Universo não só lhe falava mas também se fazia visível a seus olhos na negra infinitude do céu. sentiu-se naufragando em um oceano de confusão.

— Um nada não existe — se atreveu a assegurar Junco.

— Então, como pode me ouvir? Como pode me ver? — inquiriu a voz com gentileza.

— Eu não vejo nada — insistiu Junco.

— Volta a se contradizer, mas não deve sentir pudor por isso, pois não pode decifrá-lo infinito do exíguo conhecimento do finito, como tampouco pode um esquilo entender a natureza da árvore em cujo tronco cobre seu ninho — sentenciou um nada do Universo, e sua voz soou nos ouvidos de Junco com a suavidade de um arrulho.

— O que querem dizer? Não lhes compreendo.

Um silêncio recôndito alagou a cúpula do firmamento. Junco seguia montado sobre o Narbolius, enquanto este, amassado entre as nuvens, dormia placidamente. Junco acreditou que um nada do Universo se esqueceu dele. sentia-se tão insignificante lá encima... Mas a voz de um nada do Universo voltou a ressonar na escuridão:

— O Sol, os planetas, os astros, as estrelas, e também você, Junco, diminuto como uma partícula de pó extraviada em meio da imensidão, não são a não ser conseqüência de um nada. E embora não possa compreender o que não pode explicar-se, tudo forma parte de Tudo e nada pertence a um nada.

Então, um prazenteiro torpor, que, entretanto, não era sonho, apoderou-se do ânimo de Junco. Desceu de lombos do Narbolius sem que este alterasse seu tamanho e caminhou alguns passos sobre as nuvens como se o fizesse sobre tapetes de algodão esponjoso. Logo elevou seus olhos ao vazio que o envolvia e perguntou:

— É Deus?

— O que importa isso? Eu só sou o que vê: um mistério além da capacidade de compreensão dos homens — disse um nada do Universo.

Depois destas palavras, um brilho indescritível, mais intenso que o mais forte dos raios, iluminou o céu. Narbolius se sobressaltou e correu ao lado de Junco. Enquanto isso, as nuvens desprenderam a seu redor um sem-fim de luminescências mágicas que ao pouco se extinguiram.

Em vão esperou Junco que a invisível e misteriosa Nada do Universo voltasse a lhe falar. Chamou-a aos gritos uma e outra vez mas só um eco oculto lhe respondia, lhe devolvendo intactas suas palavras. Pouco a pouco o derrotou o cansaço, até que ao fim caiu nos braços de uma sonolência sossegada. Narbolius adquiriu o tamanho de um cão pastor, se achegou a seu lado e ambos entraram imediatamente no mais plácido dos sonhos.

 

O sol apareceu seu ardente rosto entre as nuvens, lhe dedicando a Junco um esplêndido sorriso. Narbolius fazia momento que perambulava de um lado a outro procurando algo que levar-se a boca. Agora tinha de novo o tamanho de um cavalo alado e quando viu junco acordado não demorou para aproximar-se dele.

— Tem fome, né? — disse Junco lhe acariciando a cabeça.

Narbolius não respondeu, mas seus olhos de açafrão falaram por ele. A abóbada do céu era agora de um azul intenso e Junco pensou que um nada do Universo devia seguir ali, em algum lugar insuspeitado, talvez próximo, talvez perdido nos limites do cosmos. E embora não estava seguro de que tudo o que lhe ocorria não fora mais que uma ilusão, olhou a seu redor como se algo de si mesmo ficasse enredado para sempre entre aquele amontoado de nuvens esponjadas. Logo subiu a lombos do Narbolius e lhe sussurrou ao ouvido:

— Vamos.

O dragão bateu suas asas ao ar e elevou o vôo com a agilidade de um pássaro majestoso. Ao princípio voou ao mesmo nível as nuvens, jogando com elas, as deixando que acariciassem suas patas, mergulhando-se em sua espessa névoa e saindo dela como um golfinho entra e sai da água, até que de repente se precipitou em picado ao vazio e o mundo apareceu lá abaixo como uma formosa tapeçaria multicolorida. Do alto, Junco contemplou uma imensa cidade sem muralhas, muito distinta aos castelos de pedra que ele conhecia. Pareceu-lhe uma cidade encantada, repleta de pirâmides, palácios e templos revestidos da cor do ouro.

Narbolius aterrissou em um bosque que havia perto, deixou a Junco sobre o chão de terra avermelhada e imediatamente se dispôs a comer nos arbustos que se dispersavam nas imediações. Também Junco sentiu a fome lhe cravando no estômago. Pensava que coisa poderia comer naquela paragem despovoada quando por um estreito atalho arrodeado com flores de grandes folhas aveludadas apareceu Gorgonan assobiando uma deliciosa melodia. Junco riu de contente e Narbolius correu a receber ao recém-chegado dando saltos como um potro amalucado.

— Seus desaparecimentos são imprevistos, certamente, mas não poderiam ser mais oportuno ao lhes fazer visível de novo. Levam algo que possa comer-se? — soltou Junco a ponto de sofrer um desmaio.

Gorgonan acariciou o pescoço do Narbolius evitando as contínuas lambidas que o dragão lhe prodigalizava como mostra de seu afeto. Depois se sentou sobre um fofo montículo de musgo e abriu uma pequena bolsa de couro que pendurava de seu ombro.

— Eles gostam dos cogumelos? — perguntou.

— Não são de meu gosto, mas tampouco as desprezarei em ocasião tão precisa — disse Junco sentando-se a seu lado.

E ambos desfrutaram de um delicioso almoço enquanto Junco contava ao Gorgonán a maravilhosa experiência de voar e seu confuso encontro com um nada do Universo, lá encima, muito perto das estrelas.

Quando teve terminado seu almoço, Junco perguntou:

— Conhecem a cidade que vi do céu?

— Oh, sim, certamente. E lhes recomendo que a visitem sem demora, provavelmente lhes assombre o que encontrem nela.

— Virão vocês comigo?

— Oh, sim, certamente — repetiu Gorgonan.

— Poderá nos acompanhar Narbolius? — continuou perguntando Junco, temeroso de que a resposta do Gorgonan fora esta vez negativa.

— Não lhes preocupem com o Narbolius, nada pode lhe ocorrer neste Labirinto de irrealidade. Além disso, devem saber que pode defender-se muito bem por si só.

— Mas virá conosco? — insistiu Junco.

— Se você desejarem isso, virá — aceitou Gorgonan.

Narbolius elevou a cabeça e seus olhos de açafrão brilharam contentes.

Ao pouco tempo ficaram em marcha e entraram no estreito atalho arrodeado de grandes flores aveludadas pelo que tinha aparecido Gorgonan umas horas antes. O atalho se levantava e ziguezagueava ao longo de uma colina achatada, para descender logo até um pequeno vale salpicado de pequenas lacunas e abundantes pastos que fizeram as delícias do Narbolius: chapinhava aqui e lá, mordiscava a fresca erva e pulava nela com alvoroço.

E detrás das lacunas e os prados, detrás dos espelhos de água e dos tapetes de verde esmeralda, elevava-se uma cidade sublime cruzada do norte ao sul por uma grandiosa avenida repleta de construções palacianas, pirâmides, torre, templos e catedrais que representavam o centro cósmico do mundo. Os bairros colados constituíam verdadeiros conjuntos artísticos, pintados de vivas cores e adornadas com murais de extraordinária riqueza e encanto. Não havia muralhas, nem defesas, nem portas que fechassem o passo aos viajantes.

Uma adorável melodia de ventos os recebeu ao chegar aos pés da larga avenida, presidida a cada lado por duas gigantescas esculturas de pedra calcária que representavam a um homem e a uma mulher situados de pé e cujos olhos olhavam ao infinito. Ambas pareciam possuídas por uma insólita formosura, e ambas tinham, também, as mãos cruzadas sobre o peito em atitude reflexiva e equilibrada.

Ao contemplar as esculturas da base do pedestal, Junco, boquiaberto ante sua divindade, perguntou:

— O que significam?

Gorgonan observou a imobilidade da pedra e seu rosto refletiu a fascinação que as estátuas suscitavam em sua alma.

— Representam a beleza — murmurou.

A breve resposta do Gorgonan convenceu a Junco. Essa era, sem dúvida, a melhor definição de quanto via seu redor, pois essa palavra expressava como nenhuma outra o conjunto de sentimentos de deleite e admiração que palpitavam em seu peito e o inflamavam até estalar em um êxtase indescritível.

— São fantásticas! — exclamou depois de sair de sua perplexidade.

— Toda obra de arte o é — assegurou Gorgonan.

— Esta cidade a criaram os homens? — quis saber Junco.

Gorgonan se esclareceu voz.

— Quem se não? Na criação é no único em que os seres humanos se assemelham aos deuses, se é que estes existem. Nenhuma das muitas maravilhas que têm ante seus olhos poderia explicar-se se um artista não a tivesse imaginado e criado com suas mãos. E cada uma de suas obras é única e distinta a todas as demais porque é seu próprio espírito quem as vislumbra e as conforma. Entretanto — continuou — , assim como os deuses podem criar a matéria de um nada, os homens só podem transformar a matéria para convertê-la em beleza. Essa aproximação à divindade é a que dá sentido a muitas vidas.

À medida que avançavam pela ampla avenida, o bulício da cidade crescia. Por toda parte se viam gente embelezadas com exóticos e elegantes vestidos que conversavam sobre grupos animadamente, ou contemplavam absortos as frenéticas piruetas de um saltimbanco ou os mais delicados gestos de um mímico; outros emprestavam atenção ao discurso cometido de um narrador ou escutavam embevecidos as odes de um poeta que gesticulava ante eles com grande elevação e arrebatamento. Nos lugares os trovadores tangiam seus alaúdes e sopravam suas flautas entoando antigas canções de amor, e os bufões dançavam junto às fontes fazendo sorrir aos meninos. Nos largos pórticos se prodigalizavam os pintores com seus cavaletes, tecidos, pincéis e paletas de cores; os escultores cinzelavam o mármore com rítmicos golpes de martelo e os ceramistas modelavam o barro em seus tornos criando incontáveis objetos de primorosas formas.

Junco olhava de um lado a outro alucinado. Narbolius caminhava pego a sua perna esquerda, pois agora tinha o tamanho de uma raposa e se desembrulhava com soma naturalidade entre a multidão. Gorgonan, entretanto, havia tornado a desaparecer como nele era costume. Mas quando Junco reparou nisso já era muito tarde, e apesar de que o buscou desassossego por todos os rincões, tampouco se sentiu particularmente comovido ao não encontrá-lo; de algum modo, já se tinha habituado a que Gorgonan o abandonasse a sua sorte cada vez que chegavam a algum lugar desconhecido.

— Há algo que perdestes e não encontram? — perguntou-lhe um bufão que lhe saiu ao passo fazendo tilintar as cascavéis que lhe penduravam do gorro.

— Sim..., digo, não — retificou Junco enquanto Narbolius observava as pitorescas roupas do recém-chegado.

— Sim..., não..., sim..., não... Assim se desfolham as margaridas — resmungou o bufão sem deixar de sorrir e de saltar.

— Vivem nesta cidade? — inquiriu Junco para evitar que o bufão levasse a iniciativa de seu diálogo e voltasse a interrogá-lo.

— Não há outro lugar onde pudesse fazê-lo com maior agrado. Esta é a Cidade da Beleza, e nela tudo é formoso. Os forasteiros como você assombram isso ao contemplá-la. Eu mesmo lhes mostrarei isso se lhes agrada — disse o bufão ao tempo que avançava pela avenida realizando arriscadas cambalhotas sobre o pavimento.

— Como sabem que sou estrangeiro? — perguntou Junco, tentando imitar com escassa destreza os estrambóticos saltos e movimentos de seu novo acompanhante.

O bufão se deteve em seco mantendo um equilíbrio perfeito sobre uma só  perna e inclinando o corpo lateralmente até tocar o chão com a ponta de seus dedos. Curvou-se como um arco e via junco do reverso.

— Só um estrangeiro pode ir acompanhado de um dragão como esse — respondeu assinalando ao Narbolius, e ato seguido recuperou sua posição vertical.

— Aonde me levam? — perguntou Junco receoso, pois por um instante lhe cruzou pela mente a terrível idéia de que pudessem lhe armar alguma armadilha para apropriar-se de seu dragão.

— Levarei vocês a Museu; ali poderão encontrar o que procuram ou escolher as obras de arte que mais lhes agradem. Todos os viajantes visitam o Museu quando chegam a esta cidade. Talvez seu amigo esteja ali — disse o desconhecido com tom tranqüilizador.

— Eu não possuo nenhuma moeda de ouro — replicou Junco ruborizado, pois não imaginava de que modo poderia comprar algo do que no Museu pudessem lhe oferecer.

O bufão riu com descaramento e deu uma cambalhota lateral.

— Ouro? Pensam que a criação pode comprar com ouro? Criem que há na Terra oro bastante para pagar a inspiração dos grandes gênios da arte? — disse franzindo suas povoadas sobrancelhas e fazendo dramalhões com seus braços — Esse precioso metal só serve nesta cidade para criar adornos, coroas, diademas, pendentes, penachos, aros, colares, selos, gargantilhas, pendentes, broches, anéis, braceletes, braceletes...

— Está bem, está bem — o interrompeu Junco, incapaz de seguir o rosário de objetos decorativos que podiam criar-se com o precioso metal — Mas no lugar do que eu venho — acrescentou — os homens se traem uns aos outros por conseguir ouro.

O pequeno corpo do bufão se contorceu para trás até que sua cabeça roçou o chão e de novo viu o mundo do reverso.

— Algo sobre isso contam alguns histriões, embora eu não possa entendê-lo — disse desde essa incômoda posição.

Assim chegaram até uma praça circular flanqueada por luxuosos, palácios, em cujo centro se elevava um monólito de base quadrada coroado por uma pirâmide recoberta com um metal dourado e brilhante, no que os raios do sol do entardecer estalavam em infinitas faíscas de luz que se esparramavam ao redor como uma espetacular chuva de estrelas fugazes. A animação na praça era indescritível, pois a gente fluía sem cessar de um edifício a outro carregada de primorosos objetos que adquiriam neles com apenas pedi-los. Mas também havia obras que não podiam pertencer a homem algum, e que se conservavam ali para assombro e admiração de todos os forasteiros. Junco e Narbolius, acompanhados sempre pelo simpático e inquieto bufão, entraram na soleira de um palácio de beleza incomensurável, a cuja fachada de muros maciços se encostava uma sucessão de ciclópeas esculturas que representavam todas as artes. No interior se estendia uma grande sala de mármore gentil repleta de colunas, e entre elas se distribuíam em coleções inesgotáveis as estátuas, as pinturas, as cerâmicas e um sem-fim de adornos de bronze, prata e ouro, iluminados pela luz que se filtrava desde umas vidraças muito altos.

— O que lhes parece? — perguntou o bufão com orgulho, de uma vez que deslizava seus braços em redor como se queria abranger com eles a imensidão da sala.

— Jamais pude imaginar que existisse coisa igual. Os personagens desses fabulosos quadros parecem gozar de uma vida própria, apesar de sua aparente quietude — disse Junco enquanto admirava um óleo colossal que representava a criação do Universo.

— Têm sua própria vida, sem dúvida — confirmou o bufão — Observem as expressões de suas caras, a graça de seus movimentos, a cálida textura das roupagens ou o modo em que a paisagem se dilui na distância.

Narbolius parecia tão assombrado como Junco e seus grandes olhos de açafrão seguiam com inusitado entusiasmo as soube explicações do bufão.

De súbito, algo atraiu a atenção de Junco.

— E esse rosto? — inquiriu, posando suas pupilas no retrato de uma moça que o olhava com um enigmático sorriso nos lábios.

— É de uma jovem desconhecida, embora muito bela como podem ver. Trouxe-o um pintor de um país remoto que chegou aqui fugindo da realidade. Observem como sua formosa face se esfuma magicamente em um prodigioso jogo de luzes e sombras — explicou o bufão.

Junco ficou pensativo e ao cabo perguntou:

— Por que esse pintor fugia da realidade, se a realidade que pintou era tão formosa?

— Todos os artistas fogem da realidade porque a realidade é opressiva e cruel. Por isso em suas obras criam seus próprios mundos, mundos irreais, fantásticos, que só existem em sua imaginação e que cobram mil vistas diferentes ao ser contempladas por outros. Cada obra de arte encerra em si mesmo tantas maravilhas e mistérios como olhos entram nela. Isso é o que as faz imortais ou eternas.

O enigmático sorriso daquela jovem ficou presa na alma de Junco para sempre, e embora a cada passo de seu percurso pela grande sala se detinha para contemplar a cena de um campo de trigo com ciprestes, figuras de animais pintadas em cores de terra sobre lascas de pedra, personagens delicados e cheios de graça sobre recursos etéreos, formas humanas sensualmente sugestivas e de proporções perfeitas, não deixou de pensar nela nem um segundo solo de quão muitos seguiram.

Outros quadros atraíam sua atenção por sua raridade e abstração, embora todos possuíam uma surpreendente harmonia que fazia grata sua particular concepção estética.

— E essas estranhas pinturas? — perguntou Junco com curiosidade, pois não tinha sabor de ciência certa qual podia ser seu significado.

— Oh, essas são obras do futuro, simples mancha de cor entre geometrias, que, entretanto, gozarão um dia de grande avaliação por serem misteriosas, melancólicas ou evocações poéticas.

Logo, perambularam pelos gabinetes nos que se encontravam as coleções de pequenos objetos e curiosidades esculpidas em todo tipo de materiais, do marfim ou a madeira até os metais ou o cristal. De súbito, um brilho proveniente de umas das vitrines próximas deslumbrou Junco, e quando este se aproximou do lugar no que nascia a estranha luz, o brilho se fez ainda mais intenso e cerúleo.

— Parece que algo os chama — advertiu o bufão.

Junco viu então, depositado entre uma apreciada coleção de objetos artesanais, um original medalhão de ouro que cintilava como um astro. E tanta era a força de sua atração que não pôde resistir a seu feitiço e tomou em suas mãos.

Logo que tocou o metal, os olhos de todos os pressente se voltaram para ele para observar o prodígio: seu espigado corpo cresceu mais de um palmo e seus apagados olhos adquiriram o brilho das estrelas; seus músculos se aumentaram e seu rosto adquiriu facções mais severas e formosas; as meias ajustadas e o espartilho que vestia sobre a camisa se cobriram com uma cota de malha que se prolongava até as botas de couro, e sobre a cota apareceu um blusão de seda amarela com um dragão bordado em vermelho à altura do peito; seu cabelo, agora mais largo, cobriu-se com um elmo de prata, e de seus ombros pendia uma fina capa de veludo da cor do vinho, larga até os talões.

Entre as vitórias e aplausos de quem o rodeava, Junco olhou o medalhão que resplandecia em suas mãos. Ficou pasmado ao ver o relevo do dragão que tinha sido esculpido em sua superfície com um realismo fantástico, pois tivesse jurado pela oxidada espada do Dalmor o Desventurado que esse dragão era tão igual ao Narbolius como o são duas gotas de água.

— O que me ocorreu? — perguntou Junco, um pouco aturdido ainda e com voz mais grave da que até nesse instante mágico tinha.

— Têm descoberto mistérios que fazem sábios e judiciosos aos homens. Mas esperem um momento, ainda não terminastes sua transformação — disse o bufão, e ato seguido se perdeu entre as esculturas próximas como se o fizesse em um bosque de formosas figuras humanas esculpidas em alabastro.

Ao pouco apareceu de novo, levando em suas mãos uma brilhante espada e um sólido escudo de fundo amarelo com um dragão pintado em vermelho. aproximou-se de Junco, entregou-lhe o escudo com o ritual de rigor e disse com solenidade:

— Com esta nobre espada eu os armo cavaleiros, mas saibam que assim como a arte engrandece ao homem aproximando-o da divindade, a guerra o rebaixa ao selvagem e o aproxima dos infernos. As armas que lhes entrego o são como símbolo de paz; as conservem, pois, devidamente e jamais as empreguem a menos que vá a vida nisso.

E ao dizer isto, começou a dar saltos e cambalhotas de puro contente. Logo, sua frágil figura se desvaneceu no ar como se desvanece um sonho. 

 

Junco perambulou ainda algumas horas pela Cidade da Beleza admirando um sem-fim de maravilhas criadas pelo homem. Narbolius caminhava a seu lado orgulhoso, com a arrogância de quem sabe estar acompanhado por um personagem intrépido e nobre.

Quando chegaram ao final da larga avenida, despediu-os a mesma melodia de ventos que lhes tinha saudado em sua chegada. Um imenso bosque de pinheiros com copas redondas e altas se estendia ante eles. Narbolius voltou a recuperar o tamanho de um cavalo e, reclinando-se sobre suas patas, convidou a Junco a subir em sua garupa. Diante de seus olhos não havia nenhum caminho a seguir, nenhum atalho ou fuga, nenhum sinal que conduzisse a alguma parte. Só a esvaída luz do ocaso os envolvia, e em vão Junco esperou que Gorgonan aparecesse para lhe indicar a rota que deviam seguir.

A noite acabou fechando-se sobre eles no meio do mato, enquanto Narbolius caminhava com passo calmo em direção à lua cheia que, brincalhona e risonha, aparecia e desaparecia entre as copas dos pinheiros. Mais à frente o terreno se ondulava em pequenas colinas e logo se abria em uma clareira circular como uma calva, em cujo centro fumegava a chaminé de uma pequena torre de pedra. O lugar era particularmente formoso, pois do centro da torre, que tinha uma curiosa forma octogonal, abriam-se oito caminhos alinhados por sebes que conformavam o desenho da roda de um carro, delimitando jardins cuidados, com abundância de flores. Cada caminho era um raio da roda e todos confluíam do eixo central sobre o que se elevava a torre, com a particularidade de que esta tinha tantas portas quantos eram os caminhos que chegavam a sua base. Fora, no exterior do caminho circular, tudo era bosque.

Junco se perguntou que mistério o aguardaria naquela nova encruzilhada de travessias insólitas. Observou os olhos de Narbolius mas não apreciou neles inquietação alguma. Por isso deixou que o dragão caminhasse pelo círculo exterior, deixando a sua esquerda os caminhos que conduziam até a torre. Quando ambos completaram o percurso do círculo exterior, não tinha diferença alguma entre os oito caminhos; tampouco nos cuidados e vistosos jardins que os flanqueavam, cujo encanto Junco apreciou apesar da escuridão que os rodeava. Diria, inclusive, que todos tinham as mesmas flores e plantas, iguais em distribuição, forma, tamanho e número, como se cada um fosse a cópia exata do seguinte. De tal maneira que Junco ainda deixou que Narbolius iniciasse uma volta mais ao caminho do círculo exterior. Mas ao chegar à terceira das encruzilhadas que desembocavam na torre, sentiu uma palpitação estranha em seu peito e ordenou a Narbolius que entrasse devagar nela. Quando chegaram à porta escolhida da torre octogonal, desmontou e o dragão voltou a adquirir o tamanho de um cão pastor; postou-se à perna direita de Junco e aguardou que este abrisse a porta. Entretanto, uma inscrição esculpida sobre uma laje de pedra situada ao pé da entrada da torre chamou a atenção de Junco. Era uma inscrição breve, que rezava assim:

 

Oito caminhos conduzem ao mesmo lugar, e nele oito portas podes abrir.

Estas, sendo o lugar o mesmo, umas lhe alegrarão e outras lhe farão sofrer.

 

Junco hesitou antes de agarrar a maçaneta da porta que tinha escolhido por impulsos de seu coração. Não sabia o que poderia encontrar detrás dela, embora estivesse claro, a julgar pelo texto que acabava de ler, que o quer que ele encontrasse no interior da torre podia lhe provocar alegria ou sofrimento, segundo qual tivesse sido sua eleição. Assim é que não duvidou mais, tirou o elmo e abriu.

A porta emitiu um chiado lastimoso e oxidado, como se tivesse permanecido fechada durante séculos e séculos. O interior da torre, fracamente iluminado por umas tochas penduradas do teto, estava limpo e ordenado. As paredes eram recobertas de prateleiras de livros antigos e ao fundo crepitava o fogo alegre de uma lareira. Situado frente a ele, uma poltrona esculpida em madeira dava as costas à entrada da torre, de modo que Junco supôs que dali provinha a voz que ouviu ao abrir a porta:

— Passe, não fique aí parecendo um imbecil! — disse a voz.

— Ah! E feche a porta, meus ossos já não estão para suportar correntes de ar — acrescentou em tom resmungão.

Junco se reconfortou ao saber que havia alguém naquele lugar.

— Você pode me dizer onde estou? — perguntou, sem poder ver ainda a seu interlocutor.

— Está na torre da Roda da Existência, e por sorte você escolheu a Porta da Sabedoria. Mas passe, passe e sente-se aqui, ao meu lado; o calor do fogo lhes fará bem. E não se preocupe com o Narbolius, dormirá em qualquer lugar — disse a voz.

— Como você sabe que Narbolius me acompanha? — quis saber Junco antes de aceitar o convite de sentar-se junto ao fogo. O certo é que bem poucas surpresas conseguiriam assombrá-lo, depois do quanto tinha visto e ouvido em sua comprida viajem pelo Labirinto. Inclusive, pensou que a voz que lhe falava era de Gorgonán e por isso prestou especial atenção a resposta que saía de trás da poltrona esculpida em madeira, acreditando em poder descobrir algum detalhe, na modulação daquela voz, que lhe permitisse confirmar suas suspeitas.

— Neste lugar não há segredos para mim — respondeu a voz.

Junco não pôde resistir a curiosidade e perguntou timidamente:

— Você é Gorgonan?

— Gorgonan? Confunde-me com esse velho grosseiro do lago Fergonol? — resmungou o homem sentado na poltrona.

— Então você o conhece — disse Junco.

O ancião antecipou sua resposta com a expressão de seus olhos.

— Oh, sim, quem não conhece o velho Gorgonan? Mas faz tempo que não o vejo. Não tenho noticias dele.

Quando Junco se aproximou do fogo comprovou que, com efeito, não era Gorgonan quem se sentava na poltrona esculpida em madeira junto à lareira, mas o rosto daquele ancião lhe era conhecido, disso tampouco tinha dúvida alguma.

— Eu o conheço — afirmou Junco.

— Já lhe disse em certa ocasião que é um jovem muito despachado — confirmou o ancião.

Então Junco recordou a dignidade de seu rosto, seus enormes olhos da cor de água-marinha e seu benévolo sorriso sob a luz crepuscular do dia em que cruzou em seu caminho, justo quando desapareceu Gorgonan de seu lado. E recordou quando o ancião lhe falou sobre o tempo passado, presente e futuro, assim como as imagens que lhe mostrou sobre si mesmo e sua volta ao castelo de seu pai, o grande rei Winder Wilmut Winfred.

— Sabia que nos encontraríamos novamente aqui? — inquiriu Junco, enquanto se sentava em uma banqueta junto ao fogo. Seus movimentos eram elegantes e decididos, como se desde que o bufão o investiu como cavaleiro armado se sentisse mais seguro de si.

— Talvez sim e talvez não — disse o ancião. — Tudo dependia de que, antes você encontrasse a si mesmo. Mas agora vejo que sim, que mudou seu aspecto, sua vestimenta e sua mentalidade. Inclusive me atreveria a dizer que amadureceu — explicou.

— Um bufão que conheci na Cidade da Beleza me disse que tinha desvendado mistérios que fazem sábios e judiciosos os homens — disse Junco.

O ancião afagou suas longas barbas e assinalou.

— Todos os livros que vê ao seu redor encerram o saber do homem, suas certezas e suas dúvidas. Agora que cresceste, lhe será mais fácil compreender coisas que se ocultam ao inocente olhar de um menino.

— O que você quer dizer? Não lhe entendo — perguntou Junco.

— Há momentos em que a vida parece nos desafiar a entendê-la, e você agora sente a mesma aguda curiosidade que todo jovenzinho perturbado, confuso ou inquieto por tudo que lhe rodeia. Não cessa seu empenho em formular perguntas que, às vezes, não têm resposta. Mas outras muitas são explicáveis, e nestes livros podem achar mil soluções a tão razoáveis duvidas. Por isso seu coração se agitou ao passar ante a Porta da Sabedoria, pois essa era a porta que, sem uma consciência clara disso, procurava. Se tivesse sido de outro modo, se seus desejos tivessem sido outros, teria optado por qualquer porta da torre da Roda da Existência menos por esta, provavelmente eu não conversaria com você neste preciso instante.

Narbolius dormia como um cachorrinho em um canto da sala, rodeado por montões de manuscritos que se empilhavam desordenados em qualquer parte. Junco também sentiu que as pálpebras lhe pesavam, mas ainda pôde controlar seu sono e perguntou com inusitado interesse;

— E o que teria ocorrido se tivesse escolhido qualquer outra porta?

As feições do ancião se adoçaram antes de responder:

— Você leu a inscrição esculpida na pedra: “Umas lhe alegrarão e outras lhe farão sofrer”. O prazer e a dor estão tão unidas a vida como estão as duas caras de uma mesma moeda, e nem sempre é possível escolher entre um e o outro. Mas é verdade que ambas nos ensinam a viver, desenhando ou rabiscando nossa existência.

— Você é um filósofo, um sábio possivelmente? — perguntou Junco acentuando com o olhar seu interesse por conhecer a resposta do ancião.

— Houve um tempo em que eu também fui um jovem inquieto, apesar de ter crescido agasalhado pela riqueza e o luxo, pois meu pai, como o seu, foi soberano de um pequeno reino situado nos limites do mundo. Mas um dia me perguntei o porquê da vida e não soube o que me responder. Tampouco ninguém no reino soube dar resposta a minhas dúvidas. Assim decidi abandonar tudo e partir em busca do sentido da vida. Depois de muitos anos de vagar pelos mais insólitos lugares, cheguei a esta clareira do bosque e impulsionado por minha fantasia pensei em criar esta torre e os caminhos e jardins que a envolvem. Após recolhi e li todos os livros que vê ao redor e através deles conheci as mentes mais fascinantes do planeta.

— E encontrou o sentido da vida? — perguntou Junco.

— O da minha sim, certamente — respondeu o ancião com um sorriso.

— Pode me dizer qual é?

— Seguir buscando — respondeu simplesmente.

Junco pensou durante um instante, confuso com as palavras do ancião.

— Mas isso é absurdo! — afirmou Junco com uma exagerada careta de estupefação em seus lábios.

— Oh, não. Esse é o verdadeiro sentido da vida para um filósofo. Você perguntou isso, e acredito ter respondido a sua pergunta. O sentido de sua vida só você poderá encontrá-lo.

Durante dias, Junco não se ocupou em outra coisa que não fosse a leitura dos livros que o ancião lhe recomendava. Neles aprendeu coisas que jamais teria sonhado conhecer e pouco a pouco foi forjando em seu espírito uma inusitada afeição pelo pensamento filosófico, que lutava com sua condição de cavaleiro armado. Sempre pensou que ao crescer acabaria treinando para combater nos torneios e nas guerras, mostrando a todos seu valor e destreza no uso da lança e a espada, como faziam outros jovens de sua idade. Agora podia recordar com todos os detalhes, a urgência e a crescente tensão das justas, que aconteciam para festejar a chegada da primavera no castelo de seu pai, os vistosos brasões dos cavaleiros opositores pendurados nas árvores, os estandartes ondeando ao vento, polidas armaduras da cor de prata, as tendas e os pavilhões ao redor da areia, repletos de nobres e damas vindas dos castelos mais longínquos da comarca para aclamar ao vencedor. Por isso, também sentia intenso desejo de partir para reencontrar com os seus; desejo que um dia de chuva pertinaz e fria já não pôde conter.

— Esse mundo a que se dirige é doce e aprazível como o canto de uma formosa donzela, mas é de também feroz e truculento como uma alcatéia de lobos famintos. Tomara que, o que aprendas aqui o ajude a ser um cavaleiro sensato e justo — disse o ancião no momento da despedida.

— Tenha a segurança de que assim será — disse Junco com firmeza.

Subiu no garupa de Narbolius e ambos, sem saberem, partiram em busca do mundo escuro dos homens.

 

À medida que Junco e Narbolius avançavam por um bosque denso e escuro, uma névoa mais espessa que os negros véus das trevas os envolveu. Algo tinha mudado no entorno e Junco o percebeu imediatamente. Agora lhe parecia reconhecer a terra que pisavam, embora não pudesse vê-la e pressentiu, de algum modo, que retornava ao mundo dos homens. A fantasia e a irrealidade não eram mais que uma lembrança grata em sua memória. Inclusive a imagem de Gorgonan se diluía em sua mente fazendo-se mais irreconhecível, como se a névoa a falseasse ou como se fosse a imagem desfocada de um sonho esquecido. Também a cândida expressão do dragão se transformou, adquirindo traços mais severos, como se Narbolius intuísse os acontecimentos que o murmúrio do vento dançando entre os ramos das árvores apregoava.

Não se passou muito tempo quando das sombras do bosque surgiu uma estranha voz:

— Pare, insensato! Acaso imagina o que além deste bosque sombrio lhe aguarda?

Os olhos de Junco buscaram na inquietante escuridão da noite até que ao pé de uma árvore gigantesca descobriram o que parecia a figura esfumada de um cavaleiro ferido gravemente recostado junto ao tronco, muito perto das remansadas águas de um riacho. Vestia armadura e um elmo fechado lhe cobria a cabeça. A seu lado, jaziam cobertos por uma grossa capa de pó uma velha espada e um escudo com majestosos símbolos heráldicos.

De um salto, Junco desceu de Narbolius e correu em ajuda do presumido ferido, mas ficou pasmo ao levantar a viseira do elmo e comprovar que sob a armadura não havia ninguém: nenhum olho, nenhum rosto, nenhum corpo. Pensou que se tratava de uma emboscada e rapidamente se preparou, olhando desconfiado ao redor e levando a mão ao punho de sua espada.

— Guardai a espada. Não espere que eu seja quem o desafie em duelo. Se contenha e reserve seus ímpetos para uma ocasião mais precisa, não têm nada que temer de mim.

Junco olhou para Narbolius e a calma que apreciou em seus olhos cor de açafrão lhe confirmou que nenhum perigo lhe espreitava.

— Então, por que não sai de seu esconderijo e deixa que eu possa lhe ver assim como você me vê? — disse sem saber a quem dirigir suas palavras.

— Parece pouco visível o brilho de meu traje? — respondeu com tom jocoso a voz da armadura. — Aproxime-se sem medo — acrescentou.

— Você é um fantasma? — atreveu-se a perguntar Junco ao ver a armadura incorporar-se até apoiar as costas no grosso tronco da árvore. Logo, a mão enluvada da couraça se elevou até a viseira do elmo e a elevou produzindo um som metálico.

— Assim se respira melhor — disse o fantasma como se brincasse.

Junco se aproximou até a armadura e voltou a olhar dentro.

— Como chegastes até aqui? — perguntou incrédulo, pois nada que não fosse metal encontrou no interior da couraça.

— Estou a séculos neste lugar — respondeu a armadura um pouco sufocada.

— Deve ser aborrecido estar sempre no mesmo lugar — murmurou Junco, pois não lhe ocorreu outro modo de dissimular seu estupor ante tão insólito encontro.

A armadura se moveu de novo e soou como um tinido desajeitado de sinos.

— Não creio — disse — passei o tempo pensando sobre o que fiz em minha vida e os enganos que então cometi. Talvez o maior de todos foi ter vindo um dia até aqui, faz agora muito tempo.

— O que ocorreu? — perguntou Junco interessado.

— Sente-se a meu lado, contarei, se isso lhe agrada.

Junco obedeceu e se sentou junto à armadura, embora não pôde evitar sentir certo rubor ao conversar com um ser imaterial que, entretanto, falava com inusitada sensatez. Quando era menino, tinha ouvido as cozinheiras do castelo de seu pai contar antigas lendas sobre fantasmas que vagavam perdidos entre nas trevas e aterrorizavam nobres e camponeses da comarca com seus extravagantes ruídos e seus misteriosos movimentos de móveis e objetos, mas nunca imaginou que chegaria um dia em que ele mesmo conversaria com um deles, muito menos, um tão cortês e tão cordato. Sem dúvida não terá que confiar nas lendas, pensou, e recordou as palavras de Dongo, o cozinheiro do navio viking do capitão Uklin, quando lhe disse que também houve na história piratas que defenderam causas nobres e que nem sempre as lendas são certas, pois as forja a invenção e esta é propensa ao engano.

— Quando você quiser — disse Junco, acomodando suas nádegas sobre umas matas de tomilho que lhe serviram de almofada.

A armadura pigarreou antes de iniciar seu relato e sua voz se escureceu.

— Há muitíssimos anos atrás, houve uma guerra das mais terríveis que se conhecessem. Todo o bosque que agora oculta esta espessa névoa fervia no fragor da batalha e a água clara do riacho que transcorre a poucos passos de nós se tingiu logo da cor vermelho escuro do sangue. Eu mesmo, montado em um formoso cavalo branco, brandia minha espada cego de ira enquanto lançava cutiladas a direita e a esquerda com a fúria de uma animália encurralada. Meus rivais caíam ante mim como frágeis marionetes de um teatro de fantoches malfadado: destroçados, mutilados, mortos. E de seus cadáveres se alimentava minha raiva, alheia aos gritos, ao horror, ao espanto estampado nos olhos de meus inimigos, que não faziam a não ser aumentar a força de meu braço e a impiedade de minha alma. Nada podia me conter, nenhum sentimento de compaixão ou clemência. Um único pensamento governava minha razão perdida: matar ou morrer. Com tal afã, lancei meu braço com todo o vigor de que era capaz até o pescoço de um guerreiro disposto a me cravar sua lança no coração e minha espada cortou sua cabeça como a foice corta o trigo. Então vi apavorado que meu inimigo não era mais que um moço e que seus olhos, ainda abertos apesar do golpe mortal, estavam me implorando uma razão que justificasse nossa violência. Não minto se lhe confesso que fiquei petrificado, incapaz do menor gesto, do mais leve movimento. Tampouco me importou ficar a mercê de meus inimigos, pois minha mente se mostrava incapaz de acolher outra preocupação ou ansiedade que nunca respondeu a pergunta daquele moço moribundo. E por um instante me vi convertido em um lobo de enormes presas afiadas como flechas que, como o resto da feroz alcatéia, estripava os corpos ensangüentados de outros lobos famintos de morte. Foi então que desci de meu cavalo, indiferente ao clamor da batalha que retumbava em meus ouvidos com o zumbido surdo de um trovão. Abatido e desolado pela morte do moço, sentei-me debaixo desta árvore, e permaneci aqui, tentando responder a aquela pergunta e esperando que alguém como você passasse da fantasia à realidade para lhe advertir — disse a armadura.

— Me advertir? Me advertir de que? — inquiriu Junco. Um súbito silêncio sobrevoou o bosque e os olhos de Narbolius se elevaram até o céu invisível da noite como se procurasse nele a resposta à pergunta de Junco.

— Da crueldade dos homens — respondeu, finalmente, a armadura, com sua voz pesada de dor. — Se continuar seu caminho, irá encontrar com a triste realidade da guerra, uma guerra cruel e injustificável em que não importa que morram anciões, mulheres ou meninos — acrescentou deixando escapar um suspiro.

— Não tenho outro remédio que seguir adiante. Tenho que retornar ao castelo de meu pai — disse Junco com reverência.

— De qualquer modo, fica advertido.

— Você é muito amável. Como lhe chamam? — perguntou Junco.

— Agora meu nome não tem importância, mas me chamo Dalmor, embora todos me conheçam como Dalmor, o Desventurado e essa que vê aí é minha oxidada espada — disse assinalando a seu lado.

— Ouvi falar de você, embora nunca suspeitei que chegaria a lhe conhecer.

— Pois agora também conhece minha história, e confio em que lhe sirva de algo a minha experiência.

— Assim o procurarei — assentiu Junco.

Logo, a voz da armadura falou pausadamente:

— Correm maus tempos por estas tristes terras. O ódio segue aceso nas almas de muitos cavaleiros infames como o breu em uma tocha.

— E quais são agora os motivos de suas disputas? — quis saber Junco.

— Oh, são os de sempre! A ambição, o poder, a cobiça, a maldade, o egoísmo, o desprezo aos outros, pois há na natureza humana um instinto animal que resiste em abandoná-los — respondeu a armadura com inapetência. — Melhor faria em voltar sobre seus passos e retornar ao lugar de que vêm.

— Vou para o lugar de que um dia parti — disse Junco. — Mas não se inquiete por mim, não tenho o menor propósito de guerrear.

— Não posso lhe reter aqui contra sua vontade. É livre para escolher os atalhos de seu destino, mas não esqueça nunca, que onde começa a liberdade de outro homem acaba a sua; só assim evitará se envolver nos conflitos que açoitam a história da humanidade desde o inicio do mundo.

— Agradeço-lhe a advertência e o conselho, mas agora devo partir. Meu pai me aguarda — disse Junco desculpando sua pressa.

— Que a sorte lhe acompanhe!

Foi dizer isto, e a armadura se desmoronou como se tivesse se abatido sobre ela um sopro enfeitiçado, formando junto a gigantesca árvore um montículo de sucatas enferrujadas.

 

Mais à frente no bosque se abria uma imensa charneca (vegetação rasteira). O céu se tingia da cor cinza e no horizonte largas colunas de fumaça se confundiam com ele. Junco cavalgava sobre Narbolius, cujo aspecto era agora majestoso sobre a imensa planície. Pensava na história que a armadura lhe tinha contado e na pergunta sem resposta que os olhos do moço lhe tinham formulado em silencio antes de morrer. Tampouco ele encontrou uma razão que justificasse a violência. Talvez, disse a si mesmo, porque a violência fora, simplesmente, injustificável. E pensando nisto, seus próprios olhos se cobriram de terror ao descobrir a negra sombra que se aproximava deles pelo sul. Narbolius se agitou como um potro que tivesse visto o diabo diante do nariz: a úmida erva estava semeada de cadáveres ensangüentados, corpos sem braços, rostos desencaixados pela dor, cabeças destroçadas e olhares sem vida extraviados no abismo do caos. Só a negra sombra que se movia na lonjura parecia ter sobrevivido a massacre.

Quando chegaram até ela, Junco pôde ver uma mulher embelezada com compridos véus negros que lhe cobriam o rosto e dançavam balançados pelo vento. Tudo ao seu redor permanecia na penumbra, como se a luz fugisse de sua proximidade.

Junco estremeceu ao contemplá-la

— Você se extraviou? — perguntou.

A mulher emitiu uma gargalhada que se propagou o ar. Logo, respondeu com voz lúgubre:

— É você o forasteiro e não eu, jovenzinho.

— Vive perto daqui? — insistiu Junco, esforçando-se para manter Narbolius tranqüilo. Ele não parava de mover-se de um lado para outro, para evitar o olhar desgraçado que se ocultava depois dos negros véus da sombra.

A mulher voltou a rir estrepitosamente.

— Eu habito onde me chamam. Tudo o que vê seus olhos me pertence. Foram dias muito proveitosos para mim. Não lhe parece?

— Foi obra sua este desastre? — perguntou Junco com uma careta de horror esboçada em seus lábios.

— Não, jovenzinho, mataram-se uns aos outros, antecipando-se a minha chegada. Tanto é o poder dos homens que podem matar a outros homens. Esse soldado que vê meu lado — disse assinalando com um dedo tenebroso — não devia ter morrido até cumpridos os oitenta anos. Era um rude pastor que teria se casado logo e teria tido muitos filhos para cuidar. Entretanto, nada disso ocorrerá.

Então compreendeu Junco que a mulher sem rosto que lhe falava era a Morte, e um frio gélido correu por suas veias como um rio de gelo. Nunca antes tinha pensado nela. Sempre acreditou desde menino que ele mesmo era imortal, e que algo tão terrível como a morte só afetava aos animais que tinha visto agonizar sob uma afiada faca nas cozinhas do castelo de seu pai. Mas agora teve a certeza de que também ele morreria um dia, tão nebuloso e incerto como o do pobre soldado que jazia inerte ao seu lado. Então ele contemplou o cadáver do homem, a palidez de seu rosto, os finos fios de sangue que se derramavam por seus lábios, a cor cerúlea de sua pele intumescida e pensou se acaso era possível seguir vivendo de algum modo depois de morto. Olhou para a mulher e deixou que seus pensamentos escapassem livres por seus lábios.

— O que é você? — perguntou.

A mulher demorou a responder. Depois disse:

— Sou a razão da vida. Se eu não existisse, sua presença na Terra não teria nenhum sentido. Também você me chamará um dia e eu acudirei pontual e irremediavelmente à entrevista.

— Será logo? — prosseguiu Junco.

— Saberá quando chegar a hora — sentenciou a mulher.

— E aonde me levará?

— Quem sabe?

O coração de Junco palpitava loucamente.

— Isso não é uma resposta — protestou.

— Acaso recorda o espaço que ocupava antes de nascer?

— Não — disse Junco.

— Esse é justamente o lugar que iremos. Quando morre, morre como morre um mosquito. Tampouco ele se lembra.

Narbolius lançou um bocejo ao ar.

— Insinuas que também os mosquitos temem a morte? — inquiriu Junco.

A mulher se moveu entre suas próprias sombras.

— Eu não disse tal coisa. É a consciência da morte o que te diferencia do mosquito, embora se iguale a ele depois de morto.

A comparação pareceu para Junco muito desproporcionada.

— Deve ser terrível morrer, inclusive para um mosquito — argumentou.

— Não o creia — disse a mulher suavizando sua lúgubre voz. — O terrível seria morrer e saber que está morto. São o afeto, as coisas e aos seres queridos que os fazem temer minha chegada, mas, me acredite, eu apaziguo todos os sofrimentos. Embora possa acreditar no contrário, não sou tão temível como falam de mim, a menos que, como vê seu redor, sejam outros os que me obriguem a vir sem eu desejá-lo. A guerra é o capricho mais atroz que possa imaginar. Mas tampouco te esforce muito em me compreender, será muito mais fácil para você entender a Vida. E agora deve partir daqui, ainda tenho alguns assuntos para atender e prefiro estar sozinha para ultimá-los.

Junco obedeceu e nem sequer se despediu, nem olhou para trás; tinha por diante toda uma vida que, em algum lugar não muito longínquo, aguardava-lhe.

 

O encontro com a armadura espectral e com a Morte colocou Junco em fundas reflexões. Nem sequer se precaveu de que começava a amanhecer e ainda não tinha dormido. Tampouco Narbolius demonstrava estar cansado. Ambos desejavam afastar-se quanto antes daquele lugar sinistro e esperavam contemplar a clara luz do novo dia como se despertassem de um mau sonho. Mas a cor avermelhada do horizonte não augurava uma manhã em calma que lhes permitisse descansar um bom momento. Muito perto do castelo que divisaram sobre uma colina rochosa ardiam incontáveis fogueiras, e um zumbido surdo se propagava no ar como o rumor de uma tormenta. Junco apertou os olhos e ao redor das largas línguas de fogo avistou guerreiros que, por causa da rigidez de suas pesadas armaduras, moviam-se com estupidez entre as tendas do acampamento. Intuiu que essa seria a guerra que o fantasma do cavaleiro lhe advertiu que encontraria se continuasse o seu caminho, mas não sentiu nenhum temor. Agora também conhecia a Morte, e tinha visto com seus próprios olhos os cadáveres que jaziam na charneca, vítimas de alguma batalha recente e desumana. Acariciou o pescoço de Narbolius e seguiu adiante.

Os primeiros soldados que se precaveram de sua chegada correram precipitadamente em busca de suas lanças sem atrever-se a afrontá-los. A figura de Junco na garupa de Narbolius, erguido e arrogante, impressionou-lhes tanto que acreditaram estar tendo visões por efeito de algum malefício inexplicável. Outros acreditaram que os vapores do vinho ingerido durante a noite lhes estava dando visões ou que fosse uma brincadeira desprovida de qualquer graça, ao tempo que aferravam seus arcos sem acertar em colocar as flechas em seu ponto de mira. Era a primeira vez que contemplavam a um cavaleiro montado sobre um dragão tão magnífico e todos saiam de seu caminho, criando em torno deles um comprido corredor como se lhe rendessem honras cativadas por sua presença.

O silêncio se apropriou do ar, anunciando que algo insólito ocorria, e só a voz do ambicioso barão Trulso Toleronso, também chamado o Mesquinho, que saiu alarmado de sua tenda sem tempo sequer de cobrir cabeça com seu terrível elmo de ave, rompeu-o.

Junco o reconheceu imediatamente, pois mais de uma vez viu a cabeça grafite daquela ave bicuda nos estandartes do barão quando visitava o castelo de seu pai o grande rei Winder Wilmut Winfred, nunca lhe agradou seu escuro semblante nem seus olhos de abutre. Vestia cota de malha e uma túnica de seda negra com a cabeça de uma águia sinistra bordada em vermelho que lhe cobria o peito. De seus ombros pendia uma capa negra e protegia suas mãos com luvas. Ao cinto lhe pendurava uma espada em sua bainha que tinha o punho de ouro e brilhantes, e diante de sua tenda ondeava ao vento o estandarte de suas tropas com a mesma cabeça de águia grafite no centro.

— De onde saístes? — disse o barão sem poder explicar sua própria estupefação, que, não obstante, procurou dissimular para não acovardar aos seus homens nem menosprezar sua autoridade.

— Venho do lugar em nascem os Sonhos — respondeu Junco.

Trulso Toleronso franziu o cenho, mal-humorado, e caminhou com passo parcimonioso ao redor dos recém chegados.

— Ali encontraste a essa besta? — insinuou desdenhoso o barão, apontando com sua mão enluvada para Narbolius.

Os olhos do dragão o olharam orgulhosos e vigilantes, pois logo intuíram a maldade daquele homem e os ocultos propósitos que ferviam em sua retorcida mente.

— A besta a que se refere, nunca causou dano algum, embora possa ter a certeza de que é mais sábia que muitos sábios e mais audaz que o mais intrépido de seus guerreiros — replicou Junco.

Ao ouvir isto, o barão pensou que nada como um dragão para facilitar mais seus planos de conquista e dominação de quantas aldeias, terras e castelos pudesse abranger sua cobiça. Por isso concebeu a mesquinha idéia de se apropriar do prodigioso animal a qualquer preço.

— Vos desafio a combater em um torneio de lança e espada. Se você for derrotado me pagará sua vida me entregando o dragão —disse sem o menor recato.

Narbolius se estremeceu.

— E se for você quem sofra a derrota? — disse Junco.

— Essa é uma eventualidade que nem sequer posso considerar como hipótese — respondeu o mesquinho barão com insolência e desmedida presunção.

— É esse o único modo que conhece para obter seus desejos? —requereu Junco, sabedor já da cobiça que invadia a alma do barão.

— Acaso você conhece outro meio mais rápido e eficaz que a força? — retrucou Trulso Toleronso com ironia.

— Já vejo que nunca ouviste falar da razão — disse Junco.

— A razão não ajuda a ganhar batalhas — lhe espetou o barão.

— Mas ajuda as evitar — replicou Junco. — Não aceitarei sua provocação. Jurei a quem me entregou isso que não usaria nunca esta espada — acrescentou, satisfeito de cumprir sua palavra.

— Fazes bem se queres salvar a vida — soltou o barão desafiante.

— Já comprovei que para você a vida não tem nenhum valor. Semeaste a charneca de cadáveres.

Os lábios do barão se abriram em um sorriso macabro.

— Se não aceitar minhas condições me verei obrigado a tomar por minha mão o que se nega a me entregar de bom grau — murmurou Trulso Toleronso deslizando seu braço em torno dele como sutil insinuação de seu poder, ante o olhar espectador de seus guerreiros.

O semblante de Junco, oculto depois do elmo, cintilava valor e prudência ao mesmo tempo. O bufão lhe disse que não usasse nunca sua espada a menos que fosse para salvar a sua vida. Não devia precipitar-se.

— É isso o que também lhe propõe fazer com esse castelo? —perguntou Junco esforçando-se por reconduzir o diálogo para assuntos mais propícios para ele.

— Oh, sim! Farei muito em breve — disse o barão com óbvia petulância. — Grenfo Valdo é tão teimoso como você e se nega a render-se diante da minha vontade. O velho louco pensa que pode resistir muito tempo nesse ninho de baratas, mas logo cederá ao nosso assédio: seus melhores e mais fiéis cavaleiros estão mortos e dispersados pela charneca, e os habitantes do castelo, famintos e se desesperados. Faz mais de um mês que ninguém pôde sair dali.

A Junco aquele nome resultou familiar. Grenfo Valdo, repetiu para si. Estava seguro de havê-lo ouvido em alguma parte mas não recordou quando nem onde, e seus cansados olhos vagaram então em redor, contemplando sem pressa o numeroso exército de homens providos com arcos, molas de suspensão, lanças e espadas que se dispunha a assaltar sem contemplações a fortaleza murada que se erguia imponente sobre a colina rochosa. Todo um exército bem uniformizado e adestrado. Os estandartes dançavam ao vento, e os elmos, os escudos e as couraças cintilavam ao receber os raios de sol que penetravam entre as nuvens que sulcavam dispersos o céu, atemorizados por infinitas lanças dispostas em vertical como uma insólita horda de aguilhões assassinos. As torres de assalto e as catapultas, os aríetes e as cercadas conformavam uma paisagem de gigantes mecânicos à espreita de sua presa. Bastaria a ordem de ataque do barão para que todos entrassem em funcionamento como uma desumana e terrível máquina de matar.

Junco se propôs evitá-lo, embora não soubesse ainda como impedir que a cobiça do barão Trulso Toleronso terminasse em um novo e cruel açougue.

— No que lhe ofendeu o senhor Grenfo Valdo, se pode saber-se? — perguntou Junco, crédulo em ganhar um tempo valioso para definir sua estratégia.

O barão meditou antes de responder. Não tinha por que fazer confidência de seus abjetos propósitos ao enigmático cavaleiro que agora o inquiria, do que nem sequer conhecia o nome e ao que ainda não tinha visto o rosto, e que a julgar pelo maravilhoso dragão que cavalgava parecia saído de um conto de fadas. Também ele tinha ouvido os histriões cantar antigas canções de dragões aos que se atribuíam poderes tão prodigiosos que os faziam invencíveis e imortais, pois sua pele era tão dura que as flechas e as lanças ricocheteavam nela, quebrando-se como palitos. Mas essas só eram velhas lendas.

Ao fim, miserável por sua vaidade, não pôde conter a língua e disse:

— Esta não é uma disputa de honra, mas sim de poder. Grenfo Valdo se opõe a meu propósito de derrubar do trono o rei Winder Wilmut Winfred, chamado o do Triplo W.

Os olhos de Junco estiveram a ponto de delatar sua surpresa. O coração lhe deu um salto e um calafrio lhe percorreu o corpo sob a armadura, que só o dragão percebeu. Narbolius, entretanto, manteve seu porte impávido e o olhar altivo. Talvez tivesse que ajudar a seu jovem amigo a sair desse atoleiro, pensou em incêndio, ao tempo que lançou um espirro fumegante que fez retroceder de um salto ao barão e a todos os seus homens.

— Contenha a essa maldita besta se não queres que meus arqueiros a acertem antes que possa mover uma só de suas pálpebras! — uivou o barão dissimulando o leve tremor de suas palavras e de suas mãos. De boa vontade teria acabado com o animal de um só golpe de sua afiada espada, mas sua avessa intenção de apoderar-se de tão magnífica criatura lhe aconselhou que refreasse seu instinto e engolisse a sua raiva.

— Já lhe disse que Narbolius não lhe fará nenhum dano — insistiu Junco, indiferente à ameaça.

— Narbolius? — exclamou alegre Trulso Toleronso.

Seus guerreiros observavam receosos e assustados o dragão, com o mesmo olhar torcido de quem olha para um prodígio.

— Esse é seu nome — disse Junco.

O barão lançou uma estrondosa gargalhada ao ar frio, e o bafo que saiu de sua boca se elevou sobre ele como uma nuvem diminuta e frágil.

— Narbolius é um nome ridículo. Nem sequer o mais inofensivo de meus cães tem um nome tão burlesco.

— Me parece um ótimo nome — concluiu Junco.

O tom distendido da conversação foi aproveitado pelo barão para lançar uma sutil proposta.

— Por que não se une ao meu exército? Parece valente. Ambos seríamos invencíveis.

Junco sentiu uma náusea ardente lhe subir pela garganta. Aquele mesquinho barão lhe propunha unir-se a ele para destronar seu próprio pai e lhe arrebatar a coroa ou, acaso, a mesma cabeça que com tanta dignidade a levava.

Então, algo o imprevisto ocorreu. Uma voz que provinha das cercanias gritou:

— Não faça caso a esse enganador!

Todas as cabeças se giraram como se obedecessem a uma ordem. Junco olhou também ao lugar de que tinha surgido o grito e viu um homem encerrado em uma improvisada masmorra feita com barrotes de paus cruzados entre si que pendurava de uma árvore como a jaula de um pássaro enorme.

— Quem é esse prisioneiro? — perguntou Junco.

— Um viking néscio e arrogante que ousou negar-se a me obedecer. Lutava do lado dos cavaleiros de Grenfo Valdo, e me acredite que o fazia com a ferocidade de um bárbaro. Quando o fiz prisioneiro lhe propus que combatesse junto a meus invencíveis guerreiros e cuspiu aos meus pés. A honra faz tolos aos heróis, não lhes parece? — discursou o barão.

Junco não pareceu estar de acordo com o barão e transformou o sentido de suas palavras.

— Mas os dignifica — apostilou.

— É evidente que tampouco você deseja me agradar — murmurou o barão, e ato contínuo ordenou a seus homens: — Apanhem!

Antes que os guerreiros de Trulso Toleronso pudessem mover-se em suas pesadas armaduras, Narbolius lançou um espirro de fogo que os deixou paralisados de horror e envoltos em uma nuvem de fumaça branca que os cegou como a névoa mais espessa. Junco saltou aproveitando a confusão criada e correu até a jaula que pendurava da árvore. Tirou a sua espada e lançou um golpe com tanto vigor que os paus de madeira saltaram ao ar convertidos em incontáveis estilhaços, ao ponto que o prisioneiro acreditou que um raio divino tinha caído sobre ele.

— Me deixe sua espada e eu sozinho me bastarei para acabar com o barão e todas suas hostes! — disse com arrojo, depois de lançar uma piscada ao céu em sinal inequívoco de gratidão por sua liberação.

— Esqueça de suas presunções e suba na garupa do dragão, capitão Uklin. Logo me contará o que fazia metido neste enredo.

O capitão Uklin obedeceu submisso, mas não deixou de perguntar-se como podia saber seu nome o ousado cavaleiro que o tinha liberado de sua incômoda jaula. E recordou que em certa ocasião lhe ocorreu o mesmo com um atrevido jovenzinho que capturou no lago Fergonol e que sulcava suas ameaçadoras águas em busca de seu nome.

Embora não menos abobalhado ficou o barão Trulso Toleronso, pois quando a nuvem de fumaça branca se dissipou, nem o prisioneiro viking, nem o misterioso cavaleiro, nem o fantástico dragão, estavam ali. Desvaneceram-se no ar como se desvanece um sonho.

 

Junco voltava a voar sob as nuvens cinza que agasalhavam o céu. Mas nessa ocasião não estava sozinho com Narbolius. O capitão Uklin os acompanhava e olhava alucinado a paisagem que lá abaixo deslizava veloz ante seus abertos olhos. Muito longe, ao sul, divisavam-se sombrios bosques de abetos com taças bicudas; ao norte, brancos mantos de neve cobriam as montanhas que rodeavam o lago Fergonol; ao leste e ao oeste se estendia um vale vazio e verde como um ondulado carpete de musgo furado pelos chapeados brilhos de infinitos pântanos.

Abaixo, no abismo, as torres do castelo do senhor Grenfo Valdo se erguiam orgulhosas entre as muralhas como se quisessem chegar até o dragão.

— Pelas orelhas avermelhadas e brandas de um viking envergonhado! Quer me descer deste milagre voador? Eu não sou homem do ar e sim da água, que eu saiba o vôo é para os pássaros, não para os homens — disse o capitão Uklin olhando de soslaio o vazio que engolia seus pés.

Junco sorriu.

— Aguarde um pouco, logo procuraremos um lugar tranqüilo para podermos posar sem temer que nos furem a pele os arqueiros do barão Trulso Toleronso — o tranqüilizou.

— Me desculpe, ainda não lhes expressei minha gratidão por me devolver a liberdade — disse o assustado viking, esquecendo-se de seu próprio medo.

— Não é necessário que o manifeste, fiz com supremo agrado e o teria feito igualmente se não lhe tivesse reconhecido. Ao lhe ver nessa jaula senti uma imensa alegria. Não podia lhe deixar ali.

— É talvez um cavaleiro do castelo do senhor Grenfo Valdo?

— Não me reconhece? — disse Junco, divertido,

— Como poderia fazê-lo quando têm o rosto oculto por um elmo? Sua voz não me recorda nenhuma que tenha ouvido antes, embora não me cabe dúvida de que devemos nos conhecer de algum lugar, pois de outro modo você não poderia saber meu nome — aceitou o capitão Uklin, logo prosseguiu: — Em uma ocasião, faz já tempo, ocorreu-me algo um pouco parecido com um jovem que navegava em uma barcaça pelo lago Fergonol. Pode acreditá-lo? Tampouco ele conhecia seu nome, embora o encontrou Dongo, o cozinheiro de meu navio. O pobre caiu à água durante a tormenta e o tragaram as ondas... Junco, sim, assim acredito que se chamava — disse depois de refletir um instante.

Junco dissimulou sua vontade de rir e conteve seu inicial impulso de desvelar o mistério sobre sua pessoa que tanto perturbava a seu novo companheiro de viagem. Mas antes de revelar sua identidade ainda queria que o capitão Uklin lhe explicasse como tinha chegado até ali e onde estava seu gordo e bom amigo Dongo, o cozinheiro que tinha encontrado seu nome entre as panelas da cozinha do navio pouco antes de que caísse nas águas do lago e Narbolius o resgatasse dos tenebrosos braços das ondas. Ardia com o desejo de voltar a vê-lo e estava seguro de que tanto o capitão Uklin como Dongo também se alegrariam de ver a ele.

— Me diga, como é que acabou encerrado nessa jaula de pássaro como uma isca para atrair raposas?

O capitão pigarreou.

— Oh, meu amigo! O destino nos guarda surpresas que raras vezes se desvelam ao nosso conhecimento. Navegava com meus homens pelo lago Fergonol, cujas águas me pertencem por direito, pois nele viram meus olhos a primeira luz e nele penso acabar meus dias, quando quis o azar que na borda encontrássemos a um nobre cavaleiro que nos fazia sinais desesperados agitando ao ar seu estandarte. A curiosidade e minha ânsia de aventura me levaram até ele, pois eu nunca antes tinha visto adorno nem traje como o que vestia, ao ponto que pelos brilhos de sua armadura acreditei que era um ser caído das estrelas. Ao nos ver a seu lado pareceu que o nobre cavaleiro tivesse encontrado a salvação de sua alma, e logo nos explicou que levava anos procurando o lugar em que se oculta o sol sem encontrá-lo, pois tinha lido em um velho, manuscrito achado em seu castelo que ali, em algum ponto do ocaso, habitavam poderosos e ferozes dragões capazes de aterrorizar ao mais intrépido guerreiro.

— Dragões, dizes? — interrompeu-o Junco.

— Sim, isso disse o cavaleiro — confirmou o capitão Uklin.

Os olhos de Junco dançaram em suas órbitas.

— Levava um estandarte com um dragãozinho de ouro bordado sobre fundo de veludo vermelho?

— Assim é — confirmou o capitão. — O dragão, muito parecido ao seu, é a figura do brasão do senhor Grenfo Valdo, senhor do Castelo do Dragão.

A Junco lhe arrepiou o pêlo como se uma mão invisível o tivesse acariciado. Esse era o cavaleiro que também ele tinha encontrado à beira do lago Fergonol. Agora o recordava como se o visse, mas não disse nada ao capitão Uklin.

— E o que ocorreu depois? — disse Junco.

— A princípio pensei que era um cavaleiro andante transtornado pela sede e a fome de tantos dias errando pelas bordas do lago montado em seu formoso corcel branco. Mas ao despojar-se de seu elmo vi em seus olhos que não mentia, e que a brancura de seu cabelo e sua tez queimada e emoldurada por uma afiada barba branca confirmava sua sinceridade e impunha respeito a nobreza de sua linhagem. “Necessito sua ajuda sem demora», disse-nos. «Se não puder achar dragões que dissuadam a meus inimigos de atacar meu castelo, talvez possa vencer sua cobiça com um grupo de valentes mercenários.” Eu não podia acreditar o que ouvia, pois sempre sonhei lutar a favor de alguma causa justa como a que aquele cavaleiro nos propunha e aceitei imediatamente. “Não poderia ter eleito melhor ocasião nem homens mais adequados a seu propósito. Somos piratas vikings, bem adestrados no uso da tocha e a espada, e não tememos ninguém, nem mesmo o Diabo que surgisse de seus infernos”, disse-lhe sem pestanejar. E assim foi que atracamos o navio à beira do lago e partimos com o senhor Grenfo Valdo para seu longínquo castelo, atravessando bosques lúgubres, terras inóspitas, pântanos infectos e montanhas inacessíveis.

Narbolius planou com suas asas perto de um terreno pantanoso adornado por uma infinidade de florzinhas amarelas e brancas, tão frescas como se um pincel mágico as acabasse de pintar, e posou com suavidade sobre elas. Algumas árvores nativas se dispersavam pelos arredores e a sua sombra cresciam ervas altas e amaciadas sobre as quais Junco e o capitão Uklin se sentaram para comer alguns frutos.

— Quando começou o assédio ao castelo do senhor Grenfo Valdo? — perguntou Junco voltando para relato inacabado do capitão Uklin.

— Ao pouco de chegar ao castelo, onde fomos recebidos com alegres sons de trompas gigantes e com todas as honras que um viking possa sonhar, tocaram a alerta os sinos. Um veloz cavaleiro acabava de cruzar a ponte levadiça trazendo malotes novos para o senhor Grenfo. Chegou suarento e esgotado assim como seu cavalo e logo depois de beber um pouco de água do poço mais próximo à porta pediu audiência urgente com seu senhor, pois, conforme explicou com voz entrecortada, não muito longe dalí um poderoso e disciplinado exército, fortemente armado com as mais sofisticadas máquinas de guerra que possam imaginar-se, queimava plantações e povoados sob os atrozes estandartes e pendões do barão Trulso Toleronso.

Imediatamente, dispôs o senhor Grenfo Valdo a colocar sentinelas nas torres e alertar a população mais próxima e indefesa; ordenou que todos os soldados disponíveis se preparassem a defender o castelo e conveio que um reduzido grupo de acostumados cavaleiros, entre eles, eu e algum de meus homens, partissem imediatamente como grupo avançado para conter e distrair os atacantes. Enquanto isso, não paravam de chegar ao castelo aldeões e camponeses com suas assustadas mulheres e seus maltratados filhos no lombo de mulos, burros e débeis cavalarias, e com seu gado e seus carros de bois carregados de equipamento e provisões para suportar o assédio. Todos arrastavam sua desgraça com dignidade e não menos coragem, e contavam com lágrimas nos olhos avermelhados pelo pranto que os guerreiros do mesquinho barão tinham queimado suas casas e colheitas, arrasando seus povoados como um furacão enfurecido.

Junco seguia o relato do capitão Uklin encantado, mas não pôde evitar interrompê-lo.

— Esse mesquinho barão é um assassino.

— Não lhe caiba dúvida, sua ambição não tem limites e não cessará em seu empenho de arrebatar a coroa do rei Winder Wilmut Winfred, tão logo se apodere do castelo do senhor Grenfo Valdo.

— Sei — disse Junco pesaroso. — E tenho que evitar que assim seja. O rei é meu pai — concluiu olhando o campo semeado de erva e florzinhas.

— O que me dizes? — exclamou sobressaltado o capitão Uklin.

— Ouviste muito bem, mas vos rogo que guarde o segredo que lhe confessei como se nunca tivéssemos falado disso.

O capitão emudeceu.

— Jure, rogo-lhe isso! — pediu Junco.

— Juro-lhe que serei mais calado e prudente que um asno! —assegurou o capitão beijando a unha de seu polegar direito.

— Agora será melhor irmos auxiliar ao senhor Grenfo; pelo caminho me contará como caiu prisioneiro sendo tão hábil com a espada como com sua língua.

Ambos se levantaram dispostos a empreender sua marcha.

— Alteza... — titubeou o capitão Uklin. — Se importa em tirar o elmo para que possa ver seu rosto?

— Claro, capitão, mas não me chame de alteza. Me chame Junco, como estava acostumado a fazê-lo em seu navio viking — falou ao tempo que descobria sua cabeça, iluminada por débeis raios de sol.

— Pelas barbas molhadas de um ogro peludo! Mas é o pobre moço que caiu na água e o tragaram as ondas do lago! Me deixe que lhe abrace! — exclamou o capitão apertando a Junco contra seu peito. — Lhe buscamos durante dias sem encontrar o menor rastro de você, pode me acreditar. Como cresceste tanto?

— Passou o tempo, capitão, já não sou o jovem que se buscava a si mesmo no Labirinto, e você ajudou. Estou-lhe muito agradecido.

— Vamos, vamos, não diga isso — disse o capitão Uklin fazendo dramalhões com suas fornidas mãos. — Lhe fiz meu prisioneiro, não o recorda?

— Então, eu só era prisioneiro de minha ignorância.

Logo que disse isto, Junco ouviu mover-se Narbolius entre as altas ervas do pântano. E quando olhou para o dragão, viu como em um sonho que Gorgonán lhe dava de comer umas florzinhas diminutas e saborosas, a julgar pelo deleite com que Narbolius as degustava.

— Gorgonan? — perguntou Junco indeciso.

Mas a imagem do velho duende desapareceu dê súbito como se ao nomeá-lo tivesse conjurado o feitiço que o fizesse desaparecer de novo.

— Ainda segue falando a sós com o vento? — disse o capitão, e ambos riram como não recordavam havê-lo feito desde fazia muito tempo.

 

Durante a viagem de volta ao castelo do senhor Grenfo Valdo, o capitão Uklin contou a Junco como caiu prisioneiro do mesquinho barão Trulso Toleronso. Disse-lhe que, uma vez disposta a defesa da fortaleza, saiu dela o grupo de hábeis cavaleiros e cavaleiros integrados na tropa, que devia distrair às hostes do barão. Aproveitaram a escassa luz do amanhecer para filtrar-se como sigilosas sombras entre suas linhas e lutaram bravamente durante horas. Ele mesmo, com sua túnicah de manga curta, brigou como só podiam fazer os escolhidos, até que a má fortuna o traiu, e foi derrubado de seu cavalo por uma lança que quase lhe tirou a vida. Ao cair, escapou como pode das patas de seu cavalo. Logo se equilibrou, e um numeroso grupo de guerreiros que, providos de uma grossa rede para caçar javalis, capturaram-no. Então pode ver como os mais valentes cavaleiros do senhor Grenfo Valdo eram aniquilados sem contemplação alguma, e só uns poucos conseguiam fugir e salvar a vida.

— Me alegro de que também vocês possam contá-lo — disse Junco.

— Acredito que me deixaram vivo com a intenção de que traísse meus homens e me unisse a eles, ou com a esperança de exigir ao senhor Grenfo um substancioso resgate por minha vida.

— Confio em que esta inútil guerra acabe logo — desejou Junco.

A fortaleza do senhor Grenfo Valdo se elevava sobre o topo de uma colina de difícil acesso, pela lisura de suas paredes de rocha. Na base da colina rodeava o castelo um largo fosso de água, que se estendia ao longo da muralha da cidade baixa. À frente, duas torres gêmeas e redondas abrigavam a ponte levadiça, protegida por uma porta gigantesca e pelo portão. No interior da fortificação podiam distinguir-se diferentes recintos, amparados por altas torres e muralhas, que percorriam a colina rochosa seguindo o traçado de uma linha oval. A torre da comemoração, em que balançava um estandarte de veludo vermelho com o dragão bordado com fios de ouro, que representava o brasão do senhor Grenfo Valdo, localizava-se no centro do castelo e superava em muito a altura do resto.

Sobre ela aterrissou Narbolius, deixando atônitos aos sentinelas que de ali divisavam a total extensão do páramo e os movimentos do exército do mesquinho barão Trulso Toleronso. Mas logo reconheceram ao capitão Uklin, e depois de lhe manifestar sua alegria por sua volta são e salvo, o castelo ficaram imediatamente as suas ordens.

— Que o chefe do guarda nos leve com presteza ante o senhor Grenfo! — exigiu com voz grave.

Narbolius voltou a encolher-se até reduzir seu tamanho ao de um cão pastor e se encostou à perna de Junco como nele era já costume cada vez que chegavam a algum lugar povoado. Desse modo chamava menos a atenção dos curiosos e não inspirava o medo que um dragão causava.

— Não esqueçam seu juramento — disse Junco, crédulo em que o intrépido capitão não desvelasse sua identidade sob nenhum pretexto.

Baixaram as encaracoladas e estreitas escadas da torre da comemoração precedidas pelo chefe do guarda, que levando uma tocha acesa os conduziu logo por uma sucessão de escuros corredores e dependências até chegar aos iluminados e quentes aposentos do senhor Grenfo. Luxuosas tapeçarias com cenas de caça ornamentavam as paredes, e as janelas com arcos do meio ponto estavam fechadas por preciosas vidraças de cores alegres.

— Sede bem-vindo de novo a sua casa, capitão Uklin. Meu cansado coração se transborda pelo regozijo que me causa voltar a lhes ter a meu lado — disse o senhor Grenfo, que não reparou na presença do cavaleiro que acompanhava ao capitão nem no dragão que ficou oculto depois das pernas dos recém chegados.

— Obrigado, senhor — correspondeu o capitão com uma pronunciada reverência — Me permitam que vos presente ao cavaleiro Junco, que teve o valor de me liberar das garras do barão. Veio disposto a lhes ajudar na defesa de sua honra e de seu castelo.

Mas quando o senhor Grenfo Valdo tendia seu braço para saudar junco, seus olhos se detiveram na figura do dragão que o olhava alegre.

— Não me trai a vista, capitão? É possível que o que vêem meus olhos seja um dragão?

— Podem confiar em seus sentidos, senhor; este prodigioso dragão se chama Narbolius e pertence ao cavaleiro Junco —respondeu com um sorriso.

— Ao fim premia o céu meus sonhos! — exclamou — Passei anos procurando o lugar em que se oculta o sol para poder encontrar uma criatura tão formosa como esta, e agora você trazem isso até meus aposentos como se fora coisa de um sortilégio. Não poderia ter maior alegria.

Narbolius se aproximou do senhor do castelo e se deixou acariciar por ele como um cachorrinho.

— Você e eu já nos conhecemos, senhor Grenfo — explicou Junco, desprendendo-se de seu deslumbrante elmo de prata.

— Me desculpem, não recordo lhes haver visto antes — disse.

Uma vez mais o capitão se via surpreso pelas palavras de Junco, embora logo raciocinou que era lógico que seu amigo conhecesse todos os nobres da comarca, se como dizia era filho do rei Winder Wilmut Winfred, por todos conhecido como o grande rei da Triplo W. Ignorava o capitão que o senhor Grenfo, apesar de ser seu súdito, encontrava-se muito longe do castelo do rei, e que Junco não o tinha visto nunca por aquelas lareiras.

— Foi nas bordas do lago do Fergonol; vocês procuravam o lugar onde se oculta o sol e me perguntaram se eu tinha visto algum dragão pelos arredores. Então lhes menti, pois já Narbolius estava comigo, mas não conhecia quais eram suas intenções e optei por ser precavido e não lhes dizer nada sobre ele. Peço-lhes mil desculpas.

O senhor Grenfo franziu o cenho tentando forçar sua memória e, por fim, encontrou o que procurava nela.

— Ah, sim, claro que lembro de vocês agora! Mas você era apenas um moço. Cresceu muito, Junco, e acredite se disser que me honra sua companhia. Não podem imaginar o que significa para mim poder acariciar esta incrível criatura, embora deva confessar que sempre acreditei que eram seres de tamanho descomunal e de terrível aspecto. Ao menos isso contava a história de meus antepassados, que encontrei oculta nos passadiços secretos do castelo. Logo lhe mostrarei o antigo manuscrito. Está repleto de preciosas e magistrais ilustrações.

— Será para mim um prazer poder vê-lo, senhor. Quando o conheci, me falaram dele com tanto entusiasmo, que despertou minha curiosidade e meu interesse por vê-lo. Tampouco eu pensei que voltaríamos a nos encontrar. E quanto ao tamanho dos dragões, deve saber que o dia em que nos vimos, Narbolius se fez pequeno como um camundongo e se escondeu entre minhas roupas. Pode trocar de tamanho a seu desejo e gosta de surpreender com isso.

— É possível?

Não demorou para que Junco ordenasse a Narbolius que mudasse de tamanho. Logo que o dragão ouviu a pergunta do senhor Grenfo Valdo, começou a crescer, até alcançar com sua cabeça o alto teto do salão.

— É fantástico! — exclamou o senhor Grenfo, aplaudindo como um menino surpreso por um espetáculo insólito.

Junco sorriu. Trocou de repente o agradável rumo da conversação, dirigindo-a por de mares mais turbulentos.

— Diga-me, senhor Grenfo, qual é agora a situação do assédio a seu castelo?

O senhor Grenfo não parava de arranhar as costas de Narbolius, que tinha adquirido o tamanho de um camaleão e repousava em suas mãos.

— Falaremos disso durante o almoço, devem estar com fome, e o capitão Uklin não deve ter provado uma refeição há semanas. O barão não é pessoa que se prodigalize no cuidado de suas hóspedes — disse.

Então recordou Junco do bom Dongo, o cozinheiro do navio viking do capitão, e lhe perguntou:

— A propósito do almoço que sugerem, onde está Dongo?

O capitão Uklin se antecipou à resposta do senhor Grenfo Valdo.

— Dongo não conhece outro lugar onde possa ser mais feliz que a cozinha. Eu mesmo irei buscá-lo, alegrar-se-á ao vê-los de novo.

— Também conhecem o Dongo? — perguntou admirado o senhor do castelo.

— É uma longa história, que prometo contar em outra ocasião.

O capitão Uklin saiu da ampla sala, enquanto o senhor Grenfo explicava a Junco a situação do assédio a seu castelo. E contou que ainda não acontecera nenhum ataque direto da artilharia às muralhas, salvo alguns combates isolados e sem importância, pois não causaram dano algum às torres, nem aos soldados que as defendiam. A seu julgamento, o ambicioso barão Trulso Toleronso, seu vizinho e amigo até então, aguardaria que o forte assédio debilitasse os moradores da fortaleza, com a fome e a sede, mas ainda tinham bem abastecidas as despensas e as reservas de água, e seus homens providenciaram abundante munição e armamento suficiente para suportar o assédio um mês mais. Além disso, explicou-lhe, baixando a voz em tom confidencial, fazia um par de dias que tinha enviado ao rei Winder Wilmut Winfred um mensageiro, que cruzara as linhas inimigas com grande sacrifício e proteção.

Ao ouvir o nome de seu pai, Junco não pôde evitar que a alegria faiscasse em seus olhos.

— Crêem que o rei atenderá suas súplicas, estando tão longe seus domínios? — perguntou dissimulando seu interesse.

— Sem dúvida nenhuma. Além de ser homem de honra irrepreensível, o que já bastaria para que viesse em meu auxílio, adverti-o do mesquinho propósito do barão de despojá-lo da Coroa.

Sobre estes assuntos conversavam, quando Dongo entrou na sala bamboleando sua enorme barriga ao compasso de seus passos.

— Onde está o pobre moço que as ondas tragaram? — gritou.

 

A comida que Dongo preparou para seus amigos foi deliciosa, ao ponto de que, se o barão Trulso Toleronso tivesse conhecido os manjares que se serviram na mesa, e que ainda enchiam as nutridas despensas do castelo,com certeza teria ordenado o assalto final à fortaleza. Houve no menu truta defumada com purê de amêndoas, magret de pato, molho de mirtilos, lombos de javali assado e, de sobremesa, maçãs fervidas, nozes e bolo de fígado de faisão, que Dongo adornou com todas as plumas da ave, como se estivesse viva. Serviram saborosas bebidas vindas das adegas, especialmente para a ocasião, e um simpático trovador com voz aguda acompanhou a comida, tangendo com especial deleite as cordas de seu bandolim. O senhor Grenfo Valdo presidia o estrado, com Junco sentado a sua direita, o capitão Uklin a sua esquerda, Dongo ao lado de Junco e o alcaide do castelo ao lado do capitão. Conversaram sobre o assédio ao castelo e as maldades do barão Trulso Toleronso. Logo, o administrador do castelo informou sobre o bom ânimo dos soldados, a disposição das defesas e o inventário de mantimentos e armamento. Narbolius dormitava junto à chaminé, e tinha saudades da companhia do Gorgonán, que não via fazia tempo.

Ao terminar o almoço, o senhor Grenfo Valdo rogou ao capitão, ao cozinheiro e ao administrador que o deixassem a sós com Junco, pois devia mostrar a seu convidado o velho manuscrito que tinha achado no castelo, e que falava de seus antepassados e dos dragões. Ao ouvir isto , Narbolius elevou a cabeça com a curiosidade em seus olhos de açafrão. Correu ao lado de Junco e não se separou dele.

Quando ficaram sozinhos, o senhor Grenfo Valdo foi até um baú de madeira, situado debaixo de uma das janelas ogivais, e o abriu. O chiado das dobradiças acompanhou a cena, povoando a sala de inquietante espera. Do interior do baú saía uma estranha luz, leve como um brilho, mas perceptível pelos presentes. As mãos do senhor do castelo agarraram o volumoso manuscrito com a delicadeza com que se manipula um frágil tesouro, e o colocaram sobre um sólido suporte de livro, localizado junto à janela. O sol da tarde filtrava pelas vidraças e transmitia luminescências áureas sobre o título, escrito com letras góticas, que dizia:

Dragões

Junco observou admirado o texto dourado na quietude do suporte de livro.

— É extraordinário! — exclamou.

A capa tinha sido pintada por não se sabe que prodigioso artista. Um vale como Junco nunca tinha visto igual, acolhia toda a beleza que a imaginação é capaz de representar, e junto ao largo leito de um rio de águas onduladas e mansas, uma manada de majestosos dragões dourados pastava com placidez nas pradarias, ante o olhar complacente de um sol em seu ocaso.

— Esse é o lugar onde se oculta o sol! — disse Junco entusiasmado.

— Assim é, meu amigo. É o lugar mais maravilhoso que já viram os olhos de um cavaleiro andante, embora eu nunca pudesse encontrá-lo — confirmou o senhor Grenfo.

Também Narbolius se admirou ante a imagem do livro e sentiu, ao contemplá-la, uma profunda melancolia, como se o que seus olhos de açafrão viam naquele maravilhoso vale fosse conhecido e sentisse saudades.

— Permite-me a honra de abri-lo? — rogou Junco.

— Faça-o sem temor, é tão seu como meu.

Junco apalpou com delicadeza o broche de ouro que fechava o livro e o abriu, com a cerimônia que requerem os grandes achados. Abriu a capa, e seu assombro não conheceu limites ao contemplar, pintado com igual mestria que a capa, o mesmo medalhão do dragão que encontrou no museu da Cidade da Beleza, e que tinha pendurado em seu pescoço e oculto debaixo da cota de malha.

— Ocorre-lhe algo? Parece desconcertado, olha o livro como se a imagem desse medalhão fosse familiar — disse o senhor Grenfo, que percebeu imediatamente a estupefação de Junco.

— Veja você mesmo — disse, e levando a mão ao pescoço, tirou o medalhão pela cabeça, e o colocou junto ao que estava pintado na primeira página do antigo manuscrito.

— É incrível a semelhança! — exclamou o senhor Grenfo Valdo. E em seguida, perguntou: — Onde você o conseguiu?

Junco explicou a seu anfitrião sua chegada naquela cidade mágica, transbordante de beleza, seu encontro com o bufão, que o levou ao Museu, e o mágico brilho de luz proveniente do medalhão, que o deslumbrou e chamou sua atenção, dentro da vitrine em que estava depositado. E disse que, ao segurá-lo, tinha produzido em seu corpo e em sua mente uma inexplicável transformação, adquirindo o traje e o aspecto de cavaleiro que agora podia ver-se. Também lhe mostrou a espada e o escudo que o bufão tinha entregue, e falou da promessa que ele mesmo fizera, de nunca usar essas armas.

— Mas um cavaleiro que não pode usar suas armas não é nada, não é ninguém, qualquer competidor o derrotaria no primeiro lance de uma disputa — lamentou o senhor Grenfo.

— Também conheci os horrores da guerra e não desejo me bater com ninguém. Em meu caminho encontrei o fantasma do Dalmor o Desventurado e a sua oxidada espada...

O senhor Grenfo Valdo não saía de seu estupor e não pôde evitar de interromper o discurso de Junco.

— Dalmor, o Desventurado? Segundo conta a lenda, desapareceu faz muitíssimos anos durante uma violenta batalha, e nunca se encontrou seu corpo.

— Mas sua armadura e sua oxidada espada continuavam no mesmo lugar. Se conhecesse sua história, tampouco você esgrimiria uma espada contra outro homem. Ele mesmo me desaconselhou que viesse até aqui , e me advertiu do que encontraria no fosso.

Depois de Junco relatar seu encontro com o fantasma da armadura, o senhor Grenfo Valdo andou alguns passos refletindo ao redor do suporte de livro e, por fim, disse:

— Pode ser que tenha razão, mas se não for lutando; não sei como poderemos libertar o castelo do assédio do mesquinho barão Trulso Toleronso. E tampouco isso é justiça.

Deixe-me pensar, talvez haja uma solução que não seja outra sanguinária batalha.

— Oxalá seja assim! Está em sua casa, pode fazer o que o agrade — concedeu o senhor do castelo amavelmente, depois de passar com ternura sua mão sobre a cabeça do Narbolius — Possivelmente queira estudar a sós o manuscrito. Acenderei uns abajures de azeite e darei ordens para que ninguém o incomode. Ver-nos-emos mais tarde, no jantar, talvez.

O senhor Grenfo fez gesto de partir, mas ainda disse:

— Ah! Amanhã, quando tiver descansado o suficiente, será agradável apresentar-lhe a minha família e a Corte, se você não se incomoda. Ouviram falar muito de você e de seu fantástico dragão, e desejam conhecê-lo o quanto antes.

— Será para mim uma grata honra. E também para o Narbolius; embora não possa falar, compreende nossa linguagem como qualquer criatura inteligente — acrescentou Junco sorrindo.

A porta se fechou depois do senhor Grenfo, e um quente silêncio sobrevoou pelo salão.

 

Na penumbra da sala, o manuscrito adquiriu cores mágicas. As letras góticas de seu texto, emolduradas por originais orlas com filigranas geométricas coloridas, pareciam flutuar sobre as páginas do pergaminho. Junco se entreteve na leitura da primeira linha do texto e leu em voz alta:

— No lugar onde se oculta o sol...

E pensou que, certamente, o sol se ocultava cada dia pelo oeste mas, à medida que alguém se aproximava dele, afastava-se de novo, para evitar que soubessem o lugar onde se esconde. Logo releu para si a mesma linha e prosseguiu:

— No lugar onde se oculta o sol desde tempos perdidos nos abismos do cosmos, entre vales encantados e montanhas misteriosas, junto ao rio de águas de prata que rega as pradarias, habitam formosas criaturas com hálito de Fogo, tamanho inacreditável e amplas asas que, pela cor dourada de sua pele e a ferocidade de seu aspecto, diria que são fruto da fantasia dos deuses.

 

Junco fez uma pausa na leitura, elevou o olhar até a janela com vidraças de cristal, e viu como a noite engolia os últimos resquícios do ocaso. As diminutas chamas dos abajures de azeite bailaram, balançadas por uma brisa furtiva e um torpor mais forte que o sonho se apoderou de seus olhos. Na imprecisão da sala, junto à chaminé, pareceu-lhe ver esfumada a pequena figura do velho duende.

— Está aqui, Gorgonan. Não sabe o quanto me alegro de ver você — disse Junco com voz abatida.

— Também eu estou contente de vê-lo, Junco. Sei que aconteceram dias difíceis e trágicos, mas como disse-lhe o sábio do torreão da Roda da Existência: de prazer e dor é a vida dos homens.

— Sei — aceitou Junco — Agora só me preocupa evitar um novo massacre. Mas não consigo averiguar como fazê-lo, antes que o barão Trulso Toleronso arrase este castelo.

— A resposta encontrará nesse manuscrito, não foi em vão que chegou a suas mãos — disse Gorgonán em um leve sussurro, e desapareceu de novo.

Junco não soube se nessa ocasião a imagem do Gorgonán foi real ou foi só fruto de sua imaginação, mas a visão do velho duende o avivou e o animou a seguir lendo.

O manuscrito tratava sobre a história dos dragões naquele vale enfeitiçado, e assim dizia um de seus parágrafos:

 

Nada inquira a placidez

de seus sonhos,

sob o sol ou a neve,

a chuva ou o vento,

o vale os cobre,

a pradaria os alimenta,

o rio sacia sua sede e os mimam as montanhas.

Com eles não existe o egoísmo nem a malícia,

não lhes atrai o poder

nem lhes cegam as riquezas,

e menos ainda lhes importa o tempo,

pois são eternos.

Seu caráter é nobre e generoso,

sua força, de gigantes,

seu valor, imenso,

invejável sua inteligência

e sua agilidade, espantosa.

Podem habitam o céu

e as escuras cavernas,

o mar e a mesma terra.

 

Cada página estava ilustrada por primorosas gravuras de cores, que representavam cenas cotidianas da vida dos dragões coexistindo em perfeita harmonia. Junco passou as pontas de seus dedos por cima de uma lâmina que representava a um dragão majestoso olhando o pôr-do-sol, e pareceu sentir o calor do astro, como se tivesse passado seus dedos sobre a brasa incandescente de uma pequena fogueira. Ao pé da gravura, leu:

 

Assim, tem que ocultar-se de olhos ambiciosos

o vale que os guarda,

pois a crueldade de outros seres

de malvada natureza e torpe ambição

seria fatal para sua existência;

a ingenuidade os faz confiantes

e nada podem contra os homens

embora sua aparência os aterre,

pois estes ainda ignoram que o poder

que aos dragões tem foi dado

para amainar as tempestades,

aplacar os ventos e sossegar os mares,

apagar vulcões ardentes

ou represar as tempestuosas águas,

é tudo inútil ante sua presença.

 

Mas nenhuma lâmina chamou tanto a atenção de Junco como a que representava a cena de um dragão enfurecido que batia suas asas no ar, sobre o escudo de um guerreiro que sacudia uma larga lança. Das fauces abertas do dragão saíam línguas de fogo, o céu tinha uma cor vermelha cinzenta, como se o sol se despedaçasse, e os olhos do guerreiro pareciam enormes pelo horror. Mas o gemido que a porta da sala emitiu ao abrir distraiu de seus pensamentos.

Envolto em um amplo manto de peles, o senhor Grenfo Valdo tinha uma aparência solene e distinta. Apesar de seus anos, pois contava já setenta e tantos, conservava nas marcadas feições de seu rosto essa aura de grandeza, que sempre acompanha aos homens de bem. Ao vê-lo entrar, Junco pensou que seu pai, o rei, devia sentir-se orgulhoso de tê-lo entre seus mais fiéis vassalos.

— Você desfrutou do silêncio? —perguntou o senhor Grenfo.

— Sim, e ainda muito mais contemplando as formosas lâminas do manuscrito. Tinha reparado antes nesta ilustração? — disse Junco assinalando o livro aberto.

O senhor do castelo se aproximou até o suporte de livro, pegou um abajur de azeite e iluminou com ela a lâmina que Junco lhe mostrava.

— Desculpe-me, meus olhos já não vêem de perto o que antes viam com a precisão de uma coruja em estado de vigília — se desculpou e, em seguida, aguçou o olhar, encolhendo as pálpebras. Logo prosseguiu: — Ah! Referia-se à luta do guerreiro e o dragão?

— Sim — disse Junco.

— Por que se inquieta? — quis saber o senhor Grenfo.

— Não sei, não saberia explicá-lo. Produz-me uma sensação estranha.

— Talvez seja pela estranheza dessa representação. Também eu senti isto ao vê-la pela primeira vez. Se você observar bem, o guerreiro está apavorado, enquanto o dragão se eleva enfurecido e vitorioso sobre seu atacante.

— Mas o manuscrito diz que todos os poderes dos dragões são inúteis frente aos homens.

O senhor Grenfo segurou Narbolius em suas mãos como a um gato doméstico.

— Assim é, mas esse guerreiro não sabia — disse.

— Como descobriram os homens que os dragões não eram invencíveis? — perguntou Junco.

— Não sei com certeza, mas ao final do manuscrito há um texto que se refere a essa circunstância. Ao que parece, houve um tempo em que existia a crença de que, se um guerreiro lubrificava seu corpo com o sangue quente de um dragão, alcançava a imortalidade. A notícia chegou a todos os rincões da Terra, e de todos os lugares partiu gente em busca de tão prodigiosas criaturas, cujo sangue podia elevar, a quem os degolasse, ao cobiçado Olimpo dos deuses. Ninguém sabe como encontraram o lugar onde se oculta o sol, mas quando o descobriram não demoraram para descobrir também que a ferocidade dos dragões só era uma máscara para ocultar sua própria debilidade ante os homens, e acabaram com eles sem piedade nem vergonha. Certa vez ouvi contar meu pai que seus antepassados tentaram impedir que seres tão fabulosos se extinguissem, sem conseguir alcançar nunca seu honroso propósito. Por isso, quando encontrei este manuscrito, decidi partir em busca do misterioso lugar onde se oculta o sol. Sempre acreditei que, se outros o tinham feito, também eu poderia encontrá-lo, e pensei que, se a sorte me fosse propícia, encontraria algum dragão vivo que acompanhasse meus dias e minhas noites. Agora o azar quis que você tenha trazido Narbolius até meu castelo.

— Talvez não seja o azar, e sim o destino quem o dispôs assim —disse Junco, olhando a imagem de seu medalhão.

— Talvez — aceitou o senhor Grenfo — Não deve ser casualidade que você leve ao pescoço o mesmo medalhão que ilustra a primeira página do manuscrito.

A agitação dos dias de viagem e o fausto festim que Dongo tinha preparado para o jantar deixaram Junco em uma estado de letargia, próxima da inconsciência. Fazia muito tempo que não dormia em uma cama macia e suave, como a que encontrou em seu aposento, uma cama com dossel de madeira e delicados cortinados, similar a que acolhia seus sonhos no castelo de seu pai. Antes de deitar-se, despojou-se de sua armadura, e teve tempo de tomar um banho quente em uma barrica de carvalho. Seu escudeiro, um jovem despachado de cabelo arrepiado e com ares rosados nas bochechas, que nessa mesma noite fora posto a seu serviço pelo senhor Grenfo, trouxe-lhe roupas limpas e perfumou a água com essências de rosas e lavanda.

— Deseja alguma outra coisa, senhor? — perguntou o filho mais velho do administrador do castelo, olhando receoso o fascinante dragão que dormitava junto à porta, pois embora estivesse encantado de haver-se convertido no escudeiro de um nobre tão admirado como Junco, não conseguia acostumar-se a perambular ao redor da estranha criatura que o acompanhava.

Junco, distraído, negou com a cabeça e o observou através do vapor de água que se elevava da borda de sua improvisada banheira. E nos infantis olhos do menino, viu a si mesmo tal como era, quando entrou no Labirinto, sem saber o que ali lhe aguardava. Seu aspecto tinha mudado tanto, que agora não podia reconhecer-se naquele moço grande e de olhos apagados, que um dia extraviou seus passos pelos atalhos inexplorados das bordas do lago do Fergonol. Entretanto, não lamentou sua profunda transformação. Era ele mesmo, o único filho do grande rei Triplo W, só que tinha crescido na experiência da vida e seus mistérios, e já não era um menino como seu escudeiro.

— Deseja ser algum dia um cavaleiro ao serviço de seu rei? —perguntou Junco.

— Nada eu gostaria mais, senhor —disse iludido o pajem — Cada dia treino para quando chegar a hora em que o senhor Grenfo Valdo me arme cavaleiro com sua nobre espada. Além disso, o capitão Uklin me ensinou o manejo do machado, e já consegui partir uma cabaça em duas de uma distância de vinte pés.

Junco ficou pensativo.

— Se eu chegar algum dia a ser rei, as armas de meus cavaleiros só serão um símbolo para a paz — proclamou sem saber por que o fazia.

— Como disse? — perguntou o escudeiro.

— Esqueça, só estava pensando em voz alta.

 

No dia seguinte, Junco despertou duas horas depois que os galos do castelo entoaram suas boas vindas ao amanhecer. O céu fechado predizia escuros acontecimentos e, fora das muralhas, os assediadores da fortaleza desdobravam-se numa frenética atividade belicosa. As máquinas de guerra se aproximavam do fosso, arrastadas por bois e mulas, que as puxavam com indolência e desalento. Os guerreiros e mercenários a pé, presididos pelo sinistro estandarte do barão Trulso Toleronso, avançavam em blocos numerosos e alinhados: as espadas, presas ao cinto; os escudos e as lanças, nas mãos. Seus polidos elmos cintilavam como luminárias sobre as cabeças, enquanto os cavaleiros permaneciam em suas montarias, embelezadas com os ornamentos da batalha, a resguardo das fogueiras acesas.

Os sentinelas deram a voz de alerta, fizeram soar os chifres e todos os cavaleiros do castelo, à exceção do capitão Uklin, que organizava as defesas do pátio de armas, subiram à torre da comemoração para observar as manobras do inimigo. Um rumor lúgubre, como um coro de vozes malignas, chegava até eles, propagado pelo vento. Os arqueiros corriam às ameias com as aljavas repletas de flechas e os arcos dispostos para as lançar. A hora do assalto tinha chegado. Narbolius farejava o ar, o senhor Grenfo Valdo, taciturno, temia o pior, e Junco, que vestia de novo sua deslumbrante armadura, pensava o que podia fazer para evitar o desastre. Nunca, até esse momento, questionou a presença do Gorgonan; ele saberia o que tinha que fazer. Então recordou o que o velho duende lhe disse quando apareceu junto à chaminé, enquanto lia o velho manuscrito. No livro dos dragões estava a resposta, e Junco estava decidido a levar até o final o ardil que Gorgonan lhe tinha sugerido.

— Que nenhum arqueiro faça uso de suas flechas! Esta batalha terminará sem sangue! — gritou Junco.

— O que lhes propõem fazer? — inquiriu com voz trêmula o senhor Grenfo Valdo, desconcertado pelas palavras do jovem cavaleiro.

— Recordam o parágrafo do manuscrito, que fala em seu texto que os homens daquelas remotas épocas ignoravam que os fabulosos dragões são inofensivos?

— Claro que o recordo, tenho lido esse livro até o esgotamento.

— Narbolius evitará que o barão assalte esta fortaleza. Trulso Toleronso crê com convicção que os dragões são invencíveis. Pensou que, com tão fabuloso animal a seu lado, ninguém se atreveria a combater contra seu exército. Por isso propôs me unir a ele, para lutar contra você e contra meu pai.

O senhor Grenfo Valdo deu um salto, como se um dardo invisível lhe tivesse aguilhoado o pensamento.

— Terá dito seu pai?

— Explicarei isso logo, agora procuremos o capitão Uklin.

Desceram com rapidez pelas estreitas escadas da torre. No pátio de armas, o gordo viking gesticulava qual um estrategista atarefado, dando ordens sobre a localização dos soldados em torno da muralha.

— Abram as portas e baixem a ponte, capitão! — ordenou Junco.

— Transtornou-lhe o crânio um sonho malvado, alteza? —respondeu o interpelado com outra pergunta — Se abrirmos essas portas, os guerreiros do barão entrarão no castelo como raposas em um curral. Quintuplicam-nos em número.

— Não é para que eles entrem, mas sim para que possamos sair, Narbolius e eu. Agora não dispomos de tempo para discuti-lo, entenderão mais tarde — disse Junco decidido — Onde está Dongo?

— Está preparando as caldeiras de azeite fervente, para evitar que esses mal nascidos possam escalar a muralha. Mas me permitam que lhes aconselhe esperar que chegue seu pai, seu exército é poderoso e imbatível.

O senhor Grenfo Valdo não dava crédito ao que ouvia:

“Junco é o filho do rei Winder Wilmut Winfred!”, disse a si mesmo, e a ponto esteve de sofrer um desmaio.

— Também Narbolius é invencível. Disse-me isso Gorgonan, e ele quase nunca se equivoca — concluiu Junco.

— Alguma vez deixará de falar com esse velho enfeitiçado?

— Não enquanto ele o queira. E agora não me façam perder mais tempo, capitão. Abram as portas.

— Está bem, corno vocês queiram.

A voz grave do capitão Uklin ressoou no pátio e, ainda com gesto azedo, ordenou que abrissem as portas do castelo.

E as comportas se abriram, elevou-se o portão, e a ponte levadiça desceu sobre o fosso de água, entre o chiado das cadeias que o sujeitavam. Junco acariciou Narbolius, e lhe sussurrou algo inaudível ao ouvido. Imediatamente o dragão elevou o vôo, girou em espiral sobre os atônitos olhos dos assediados, e pousou de novo sobre a terra avermelhada do pátio. Junco subiu em seu lombo, e ambos avançaram para o túnel escuro que separava a fortaleza do exterior. Logo se deteve ante o exército do barão e acariciou o medalhão que lhe pendurava do pescoço, o mesmo medalhão que aparecia pintado na primeira página do manuscrito do senhor Grenfo Valdo. Então o sol se acendeu no céu, dissipando as nuvens como se um sopro enfeitiçado as espantasse, e a figura formada pelo cavaleiro e o dragão apareceu majestosa e fascinante sobre a ponte levadiça, transformada em um ser luminoso de um só corpo que parecia vindo das estrelas. Narbolius cresceu até alcançar dimensões de uma criatura descomunal, e sua pele se tingiu da cor do ouro, cegando os guerreiros que, enfrentados por ele, ousaram olhá-lo. E foi assim que as ordenadas hostes do mesquinho barão Trulso Toleronso deixaram cair suas armas ao chão, como se um ser invisível as arrebatasse das mãos e correram espavoridas, dispersando-se pelo terreno, sem que nunca mais, nos muitos anos que se seguiram, voltasse a ver-se nas terras da comarca cavaleiro algum que elevasse sua espada contra seus semelhantes. E ainda relatam os trovadores em suas doces canções, que houve na história um príncipe sensato e justo chamado Junco: o Cavaleiro do Dragão, que casou em suntuosa cerimônia com a filha do nobre senhor Grenfo Valdo, cujo formoso retrato foi pintado por um artista que tinha fugido da realidade, e que seus próprios olhos viram, num dia longínquo, no museu de uma cidade encantada.

 

                                                                                Rafael Ábalos  

 

                      

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