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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VISITANTE MISTERIOSO / Ronda Thompson
O VISITANTE MISTERIOSO / Ronda Thompson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O VISITANTE MISTERIOSO

 

                   Blackthorn Manor, Inglaterra, 1821.

Lady Anne Baldwin tinha uma boa reputação. Diziam que ela era bondosa e gentil, educada e dócil como um carneiro. Esforçava-se o tempo todo para agradar à tia e ao tio, que haviam se deparado inesperadamente com uma sobrinha órfã quando haviam planejado não ter filho algum em seu casamento.

Porém, algumas vezes, Anne não se sentia satisfeita sendo uma pessoa boa, e aquela noite era uma delas. Deixara a casa em meio à escuridão para passear a cavalo pela charneca, uma ampla área deserta e de vegetação rala, lugar excelente para se cavalgar livremente. Uma coisa estritamente proibida desde sua infância.

O passeio à meia-noite não chegava a ser uma loucura, já que Blackthom Manor ficava em um local bem isolado, e ela duvidava que fosse encontrar algum bandido, mas talvez ela pudesse encontrar alguma coisa.

Havia rumores de que lobos andavam perambulando pelos bosques que rodeavam a propriedade. A noite em si trazia seus próprios perigos. E a perspectiva de encontrar algo desafiador fazia com que o sangue corresse mais rápido pelas veias de Anne e que seu coração batesse mais forte. Ultimamente, começara a se aborrecer consigo mesma e imaginava que os outros também deviam considerá-la uma pessoa desinteressante.

Ninguém viera visitá-la desde que tinha passado a morar na casa de campo. Estava prestes a completar vinte e um anos e não recebera proposta alguma de casamento. Aquilo só podia estar acontecendo por ela ser uma pessoa sem graça, concluíra. Mas tinha jurado que aquilo mudaria... Pelo menos por uma noite.

O estábulo estava escuro e deserto. Anne não se lembrara de levar consigo uma vela ou um lampião. Ser má era ainda uma novidade para ela, ou não teria perdido um bom tempo vestindo um discreto traje de montaria, meias e botas, além de prender os cabelos no alto. Ela teria deixado a casa com os cabelos soltos, usando apenas a sua camisola. Na verdade, agira como o fazia sempre.

Storm, sua égua, surpreendeu-se ao ver a dona surgir no estábulo no meio da noite e agitou-se.

— Calma, calma — Anne murmurou. — Não queremos acordar o cavalariço, não é? Vamos agora nos aventurar pela charneca, minha amiga.

Os arreios estavam pendurados em um gancho. Mesmo na escuridão, Anne não teve trabalho em encontrá-los e passá-los pela cabeça de Storm. Arranjar uma sela seria bem mais difícil. Ela acabaria acordando alguém. Será que teria coragem de cavalgar sem sela alguma, com as pernas abertas como um homem?

Uma vez, quando tinha doze anos, dissera a um antigo criado, Barton, que gostaria de montar como um homem. O idoso senhor quase tivera um colapso. Ele então respondera que uma jovem dama jamais deveria ficar em cima de um cavalo com as pernas abertas. Somente homens podiam cavalgar daquela forma.

Anne sorriu levemente. Não queria desafiar as convenções, ao menos por uma noite? Por que não realizar aquele pequeno sonho? Oh, sim. Nada de sela normal para mulheres. E mais. Cavalgaria com os cabelos soltos, usando apenas sua roupa de baixo.

Tirou as presilhas dos cabelos, permitindo que lhe caíssem pelos ombros. Com excitação crescente, observou os botões da frente de seu modesto traje de montaria. Ficou se perguntando se tirar a roupa seria levar a ousadia longe demais. Percebeu, então, que tal pensamento combinava com sua personalidade habitual. Naquela noite, tudo seria diferente.

 

Depois de se despir, tremeu com a friagem da noite. Tateando na escuridão, encontrou um banco, sentou-se e começou a tirar as botas. Em seguida começou a abaixar a meia.

Estava tirando a segunda meia quando foi tomada por uma estranha sensação. Alguém a observava. Arrepiou-se imediatamente e olhou à sua volta. A égua começou a se agitar, como se também ela tivesse percebido alguma coisa diferente no estábulo.

— Há alguém aí? — Anne perguntou em voz alta. Não houve resposta.

— Calma, menina. — Ela passou a mão sobre o dorso da égua para tranqüilizá-la. Olhou em volta mais uma vez, mas continuou não vendo nada de anormal... Foi então que notou que perto das cocheiras, a certa altura, um par de olhos brilhava, destacando-se na escuridão.

Seu coração pareceu parar de bater. O que era aquilo? Um animal selvagem? Não podia ser, uma vez que os olhos estavam muito acima do chão. Uma pequena chama se moveu, e Anne percebeu que era um cigarro aceso, conscientizando-se de que quem quer que estivesse no estábulo com ela ao menos era um ser humano.

Inesperadamente, veio a pergunta:

— Você é um ladrão de cavalo? Anne soltou um suspiro de alívio.

— Você me assustou. — Não reconheceu a voz masculina que fizera a pergunta. — Quem está aí?

O homem não respondeu. Anne sentiu como se ele enxergasse no escuro e pudesse ver cada detalhe de seu corpo meio despido. Sabia que era impossível. Ela não enxergava nada naquela escuridão, mas, por alguma razão inexplicável, ele parecia enxergar.

— Sou o novo responsável pelo estábulo.

Ela ouvira o tio mencionar que havia contratado um novo empregado para cuidar de seus cavalos. Alguém com muita experiência. Apesar de que os carneiros eram os animais que melhor se adaptavam àquele tipo de terreno pedregoso em que ficava a propriedade, tio Theodore tinha uma fraqueza por cavalos e se orgulhava de possuir os melhores. Deveria ela se apresentar ao novo senhor do estábulo? A etiqueta ditava que sim, mas e se o novo empregado revelasse aos patrões que ela estivera ali no meio da noite? Anne sabia que seus guardiões considerariam o comportamento da sobrinha indesculpável. Poderiam, inclusive, proibi-la de freqüentar o estábulo no futuro, assim como de cavalgar. Que diferença faria se ela mentisse? O desconhecido não podia vê-la muito bem.

— Sou a criada de lady Anne. Pensei em dar um passeio a cavalo à meia noite — ela mentiu.

— Usando apenas sedas sobre a pele?

Anne ruborizou. Como o homem podia saber que ela vestia tão pouca roupa? Será que a vira se mover e deduzira que estivera se despindo?

— Peguei emprestado o vestido de lady Anne, mas me arrependi e resolvi não usá-lo.

— Você não fala como uma criada.

Bem, era de se esperar que ela não soubesse fingir muito bem. Afinal, que experiência tinha em mentir ou enganar as pessoas?

— Minha patroa insiste que devo parecer uma dama, mesmo não tendo nascido uma.

— E para onde pretende ir? Encontrar-se com um amante? Despiu-se para economizar tempo?

— Mudei de idéia sobre o meu passeio à meia noite — ela murmurou. — Vou pegar minhas coisas e voltar ao meu quarto.

A chama do cigarro caiu no chão. Desapareceu um segundo depois, e Anne deduziu que o homem o apagara com a bota.

— Não precisa ir... sem.

O que o ele queria dizer com isso? Na escuridão, Anne tateou em busca de suas roupas. De repente, sentiu que o homem estava bem às suas costas. O calor do corpo dele a fez se arrepiar quando a tocou, afastando-lhe os cabelos dos ombros.

— Seu amante vai ficar muito desapontado.

A intimidade e o atrevimento do desconhecido a surpreenderam.

— Isso não me interessa — ela conseguiu dizer, sua voz soando fraca demais.

Sempre com suavidade, os lábios dele deslizaram pelo pescoço de Anne.

— Então, a decepção dele não deve me interessar também, moça.

Um novo arrepio percorreu a espinha de Anne. O rosto queimava.

— O que pensa que está fazendo? — ela perguntou. A voz soaria agora mais forte?

— Não penso estar fazendo alguma coisa. Sei o que estou fazendo. — Ele a puxou para mais junto de si. Chocada, Anne derrubou as roupas no chão. O corpo do desconhecido era firme... em toda parte. Era muito mais alto e forte que ela.

— Insisto que me largue neste instante. Não sou o tipo de mulher com que está... — Anne parou a sentença no meio. Ela lhe dissera ser uma criada, não o desmentira quando o homem sugerira que estava indo ao encontro, de seu amante. Tinha mentido para ele. O que deveria fazer agora?

— Sabe como seu cheiro é gostoso?

A rouquidão da voz dele fez que estremecesse. Anne nunca tinha ouvido uma voz como aquela. Profunda, suave, hipnótica.

— Estou me perguntando se você é como estou imaginando. Vagarosamente, as mãos dele percorreram seu corpo. E, mais uma vez, ela não lutou. Não tinha certeza se fora hipnotizada ou se a paralisia se devia ao medo. Ele agora tocava seus seios. Um segundo depois, os acariciava. Anne sentiu o ar lhe faltar. Nenhum homem ousara tocá-la intimamente. Virou a cabeça para protestar, mas ele capturou os seus lábios antes que ela dissesse uma única palavra. Enquanto clamava pela sua boca, o cheiro que emanava do corpo do desconhecido a envolveu, quase como um toque físico.

Era um aroma que parecia vir da terra, masculino, viril, cheio de magnetismo, que provocou na mente de Anne imagens de corpos nus enroscados debaixo de lençóis. Gemeu baixinho. Sem interromper o contato, ele a virou de frente, pressionando seus lábios até que ela os entreabrisse, permitindo que sua boca fosse invadida pela língua dele.

Anne nunca tinha sido beijada por homem algum, muito menos permitira uma invasão assim tão intensa à sua intimidade. Sempre pensara que o contato fosse repulsivo e, assim, se negara aos outros homens. Mas não era repulsivo.

A invasão lenta e perturbadora a deixava sem ar. Ele cheirava a menta e tabaco, o que a deixou confusa e incapaz de reagir, tomada por pensamentos totalmente novos. O que estava acontecendo? Por que não o empurrava? Por que não queria sair dos braços dele?

— Por favor — ela murmurou.

— Por favor, o quê? Quer que eu continue com o que estou fazendo? Quer mais? — Ele interrompeu o beijo, mas logo mordiscava a orelha dela. Os dedos pressionavam os mamilos, enviando sensações estranhas para a parte mais íntima de Anne. Seus joelhos tremeram, e ela sentiu dor em lugares que antes nunca tinham doído. Nada daquilo devia estar acontecendo.

Quisera fazer algo bastante ousado naquela noite, mas jamais imaginara algo assim. Meneou a cabeça, tentando clarear a mente. Era como se estivesse enfeitiçada.

 

— Você toma liberdades — ela conseguiu dizer, agradecendo a Deus por sua voz ter soado mais firme.

— Tomo o que posso conseguir — ele retrucou. — Tomo o que está disposta a me dar, e eu lhe darei o que deseja em retorno.

Foi preciso um enorme esforço para Anne dar um passo para trás e afastar-se do desconhecido. As mãos dele deixaram os seus seios, e ainda assim ela sentia o calor daquele toque.

— O que tem a me dar? — ela perguntou, sem entender o porquê da curiosidade.

O homem a puxou de volta para os seus braços.

— Tenho o suficiente para satisfazer uma pequena ladra que está em busca de uma aventura com seu amante. O suficiente para apostar que voltará aqui amanhã à noite para repetir a experiência.

Os quadris do desconhecido pressionavam os dela, e inocente ou não, Anne achou que compreendia o que ele lhe estava oferecendo. Entendia também que era algo que valia a pena desfrutar. Passara-se por criada por uma noite e já conseguira ser beijada pela primeira vez na vida e tocada em lugares que nenhum outro homem jamais ousara tocar.

— O que pensa que pode me oferecer? — ela perguntou, encarando-o.

Ele se chegou mais perto.

— Prazer além daquele que sua mente possa imaginar. Você queria um passeio à meia-noite. Eu lhe darei um do qual nunca se esquecerá.

Anne engoliu em seco, sentindo-se completamente sem jeito. Nenhum outro homem tinha ousado falar com ela daquela forma.

— Você é arrogante — ela o acusou.

— Apenas confiante. Há um colchão bem macio no andar de cima. — Os lábios do desconhecido roçaram o pescoço de Anne, e ela estremeceu. — Venha comigo.

Anne já tinha ido longe demais em seu desejo de agir errado. Mas não estava conseguindo pensar direito tendo aquele homem tão perto, com um cheiro embriagador, murmurando-lhe aquelas palavras no ouvido. Tomou consciência de que queria acompanhá-lo ao quartinho. O que quer que ele estivesse fazendo com ela, a realidade era uma só: Anne queria mais. Porém, não era uma criada, mas uma dama, e estava prestes a cometer um erro que arruinaria o resto de sua vida. O bom senso por fim venceu. Ela se livrou do abraço e deu um passo para trás.

— Preciso voltar para casa. Talvez outra criada apareça por aqui e você possa tentar sua sorte com ela.

Ele a puxou mais uma vez de volta para seus braços.

— Não quero outra mulher. Ela não seria tão linda quanto você. Nem seu perfume tão doce.

Anne já escutara elogios, mas nunca tão perturbadores.

Ele obviamente pretendia seduzi-la. E estava conseguindo. Sentia-se muito perto de se render. Sua vontade parecia se derreter quando estava nos braços do desconhecido. Era ridículo. Levara o jogo longe demais.

— Se não der um passo para trás e me deixar sair daqui, eu berrarei — ela disse.

O homem lhe obedeceu tão depressa que ela se sentiu frustrada com a inesperada ausência de seu calor. Os olhos de Anne se ajustaram o suficiente naquela escuridão para ver o branco da camisa que ele usava. Parecia agora estar apoiando-se em uma baia.

— Não precisa gritar moça. Nunca pretendi fazer nada contra a sua vontade. Pensei que estivesse procurando distração e simplesmente quis providenciá-la.

Rapidamente, ela começou a reunir suas roupas.

 

—Você se encarregue de Storm — ela o instruiu automaticamente. Percebeu, então, que seu tom de voz era o de uma pessoa acostumada a dar ordens e a ser obedecida. — Quero dizer, por favor — acrescentou. — Eu preparei a égua para o passeio.

Os dentes dele brilharam na escuridão.

— Cuidarei do animal — ele disse. — E outra noite eu cuidarei de você também.

Anne queria discutir o assunto, mas já tinha falado demais na presença dele. O homem podia não reconhecer o seu rosto à luz do dia, mas se continuassem a conversar, certamente reconheceria a sua voz.

Por mais que ela desejasse sair logo dali, a última afirmação do desconhecido a afetou. Caminhou bem devagar pelo estábulo escuro. Sentiu que os olhos dele a seguiam como se fossem uma carícia.

Deus, quem era aquele homem que podia virar a cabeça de uma mulher com o som de sua voz, o toque de seus lábios e seu estranho cheiro?

Sentiu pena das pobres criadas que certamente cruzariam o caminho dele nos próximos dias... Ou talvez pena não fosse a palavra exata...

Anne conseguiu chegar à porta sem cair e apressadamente deixou o estábulo. Precisava de ar fresco para clarear a cabeça. Mesmo sem se voltar, teve certeza de que o olhar dele permanecia preso ao seu corpo. A tentação de olhar para trás sob a luz do luar quase a dominou. Porém, se ela visse as feições do desconhecido, então ele também seria capaz de ver as dela.

No dia seguinte, Anne deveria fingir que nunca tinha encontrado o homem que quase a seduzira. Fingir que nunca tinha sentido os lábios dele se movendo sobre os seus, nem o toque dos dedos firmes em seus mamilos e que nunca ouvira a voz rouca... Naquela noite, ela dissera sua primeira mentira. Supôs que no dia seguinte teria que atuar.

 

Bem cedinho na manhã seguinte, Anne voltou a encontrá-lo. Os olhos dela doíam por causa da noite mal dormida. Tinha ficado acordada durante muito tempo pensando nele após chegar à segurança de sua cama. Os lábios estavam inchados e ela sabia muito bem a razão. Perdida em pensamentos, sentada à mesa do desjejum ao lado de seus tios, viu quando um estranho entrou na sala. Soube imediatamente quem ele era.

Sentiu o coração acelerar e os pêlos da nuca se eriçarem. O homem não lhe dirigiu sequer um olhar, passando por ela e se apresentando ao seu tio.

— Mandou me chamar, milorde?

O tio limpou a boca com o guardanapo.

— Mandei. Pensei que deveria conhecer minha sobrinha. Ela freqüenta o estábulo muito mais do que a marquesa e eu gostaríamos que o fizesse. Creio que é necessária uma apresentação. Você deve saber quem ela é e como deve ser tratada quando for cavalgar.

O novo responsável pelo estábulo inclinou a cabeça.

Os cabelos eram negros como uma noite sem luar. Caíam sobre os ombros, grossos e encaracolados. Os cílios eram igualmente negros e espessos, ocultando-lhe os olhos, até que ele se voltasse na direção dela.

Anne prendeu a respiração. Ele a fitou com aqueles olhos azuis, e ela parecia incapaz de pensar. Encarou-a, e ela simplesmente devolveu o olhar.

 

Lentamente, focalizou o restante de suas feições. Queixo modelado e uma boca suave, quando nada mais no homem lembrava delicadeza. Ele era alto, forte e extremamente bonito. Por um momento, imaginou que já o tinha visto em algum lugar antes, mas sabia que aquilo não podia ter acontecido.

— Minha sobrinha, lady Anne Baldwin. — A voz de seu tio interrompeu-a do devaneio em que se perdera. — Lady Anne, este é o nosso novo cavalariço, Merrick.

— Milady — ele disse suavemente.

Anne sabia que precisava responder, mas não podia dizer o nome dele. Seria intimidade demais.

— Senhor...?

Ele não desviou o olhar.

— Apenas Merrick. Não tenho um sobrenome já que nasci fora do casamento. Pode me chamar pelo meu primeiro nome.

Ela simplesmente assentiu.

O tio começou a dar as últimas instruções.

—Vou lhe dizer o que sempre digo a quem trabalha para mim. Deve tratar minha sobrinha com o maior respeito e manter a devida distância, naturalmente.

— Tio!

Lorde Theodore franziu a testa.

— Um homem deve saber se comportar e conhecer o seu lugar, Anne. Algumas vezes, precisa escutar qual é o seu lugar, para que não venha a se esquecer dele.

— Oh, querido — Lady Claire interrompeu o marido. — Precisa mesmo embaraçar a menina tão cedo pela manhã? Tenho certeza de que nosso novo empregado sabe bem qual é o seu lugar, não é verdade, Merrick?

Ele voltou-se para a patroa.

— Já fui colocado no meu lugar vezes suficientes para conhecê-lo bem, milady.

— Interessante... — Claire observou atentamente o novo empregado. — Interessante que tenha um nome inglês e um sotaque escocês.

— Minha mãe era escocesa, milady — ele explicou. — Cresci junto dela e, assim, naturalmente adquiri seu sotaque. Deu-me um nome inglês a pedido de meu pai, quem quer que ele fosse.

— Isso é tudo, Merrick. — Lorde Theodore dispensou o empregado com as últimas ordens. — Minha sobrinha costuma cavalgar todas as manhãs às dez horas. O animal é uma égua que fica na baia cinco. Providencie para que esteja pronta para lady Anne.

Anne não conseguiria cavalgar naquela manhã. Aquilo era algo que estava totalmente fora de questão. Precisava de tempo para se recuperar.

— Não vou cavalgar hoje — ela falou de repente. — Não... não me sinto bem — acrescentou, ao ver que os tios a olhavam com surpresa.

— Gostaria de falar com sua criada — Merrick disse inesperadamente.

— O quê? — perguntou Anne, voltando-se rapidamente para ele.

— Com Bertha? — Lady Claire franziu a testa. — Por que precisaria falar com ela? Não que a mulher fosse escutar a metade do que dissesse. Está ficando surda com a idade.

Anne percebeu que Merrick não parecia surpreso. Ele sabia. Suspeitou que ele soubesse desde o começo. Mas como? Não podia ter enxergado as feições dela naquela escuridão.

— Pensei que a dama costumasse cavalgar ao lado de sua criada e, portanto, queria perguntar-lhe qual o cavalo que prefere montar, mas se a mulher tem bastante idade...

 

—Você passará a cavalgar com minha sobrinha — Lorde Theodore o instruiu. — Pelo menos até que eu escolha outro criado pessoal, uma vez que o dela acaba de falecer. Cavalgue, então, com lady Anne, mas, como eu disse, mantenha a devida distância.

— Naturalmente — Merrick disse, e Anne pareceu captar uma pontada de sarcasmo em sua voz. Ele era um criado, mas não gostava daquilo. Nem um pouco.

— Isso é tudo, milorde? — ele perguntou a lorde Theodore.

— Sim. Está dispensado. Ah, não se esqueça de minhas instruções quanto à potra cinzenta.

Merrick voltou-se para sair. Anne ficou curiosa sobre o que aconteceria no estábulo. Aquele era um dos seus animais favoritos.

— O que vai acontecer com a potra cinzenta? — ela perguntou a Merrick.

O tio a interrompeu antes que Merrick respondesse.

— Isto não é assunto que se discuta com uma dama. Agora, vá cuidar de seu negócio, rapaz, ou melhor dizendo, do meu negócio — ele acrescentou com uma risadinha.

Merrick deixou a sala, e Anne ficou olhando para a porta por um bom tempo até perceber que a tia a observava. Enrubesceu e rapidamente voltou a atenção para o seu prato.

— É muito charmoso esse novo cavalariço, querido — Lady Claire comentou com o marido. — Não tenho certeza de que tenha sido sábia a sua escolha. Esqueceu-se de que temos uma jovem bonita sob nosso teto? É como se estivéssemos colocando uma raposa para tomar conta do galinheiro.

Anne se irritou ao ouvir a tia se referir a Blackthom Manor como propriedade deles. A casa tinha pertencido à mãe de Anne e fazia parte da grande herança de que tomaria posse quando completasse vinte e um anos. Ainda assim, não disse nada. Podia ter sido apenas um lapso da tia.

Lorde Theodore herdara o título do pai de Anne, que não possuía propriedade alguma ao se casar. Tinha sido sua mãe que se casara com alguém de patrimônio inferior ao dela. Uma união de amor. Como Anne não tinha irmãos ou parentes homens ainda vivos em seu lado de família, seu filho, caso ela tivesse um, se tornaria, algum dia, um marquês.

Lorde Theodore estava dando uma resposta à sua mulher.

— Enquanto as galinhas agirem como devem, assim agirá a raposa. — Ele dirigiu à esposa um olhar que Anne não conseguiu decifrar.

Ficou curiosa. Seria uma espécie de alerta já que àquela observação se seguira um silêncio desconfortável à mesa? Voltou-se então ao tio.

— Quais os seus planos para a potra cinzenta?

— Já deixei claro que este não é um assunto a se discutir com uma jovem dama. Não é de sua conta, sobrinha.

— Sim, meu tio — Anne respondeu obediente, apesar de a recusa do tio em discutir o assunto deixá-la ainda mais curiosa. Talvez tivesse se precipitado ao declarar que não cavalgaria naquela manhã. O cavalariço sabia dos planos quanto à potra cinzenta. Se ela perguntasse a ele, Merrick com certeza lhe contaria.

— Podem me dar licença? — ela pediu. — Talvez eu me sinta melhor depois de um pequeno descanso pela manhã.

— Claro, deite-se um pouco — Lady Claire disse sem grande interesse.

Anne tentou não se ressentir da falta de carinho da tia. Ela e o tio eram seus guardiões desde que seus pais haviam contraído uma febre quando estavam no exterior e haviam morrido, deixando-a órfã com a idade de dez anos. Mas ela nunca se sentira verdadeiramente amada novamente, não da mesma forma como os pais a amavam. Seus tios estavam com ela em Blackthom Manor quando chegara a notícia da morte de seus pais. Eles simplesmente não haviam saído mais da propriedade.

O pai e o tio eram irmãos, e não havia mais ninguém que pudesse ficar com ela. Talvez, se tivesse havido, Anne pudesse acreditar que os tios tinham decidido mantê-la por escolha própria, e não por obrigação.

Pedindo novamente licença, levantou-se e deixou a sala, subindo para o quarto.

Bertha estava dormindo profundamente, sentada em uma cadeira. Chegava mesmo a roncar um pouco. O traje de montaria de Anne estava estendido na cama. Ela não poderia evitar o cavalariço pelo resto da vida. Além do mais, queria perguntar a ele quais os planos que o tio tinha para a potra cinzenta.

 

Merrick sentiu o perfume de lady Anne antes de vê-la. Tinha um dom especial para cheiros e visão. Sempre tivera, mas obviamente não podia ler a mente de uma dama, porque seu súbito aparecimento o surpreendeu. Estivera parado diante da baia onde estava a potra, pensando em como seu novo patrão era um homem ignorante que não merecia os belos cavalos que possuía. Virou-se e viu-a junto à entrada. Ela se vestia com traje de montaria.

— Mudou de idéia?

Era uma pergunta que poderia ter dois significados, e Anne ruborizou levemente.

— Sim, eu decidi que cavalgaria esta manhã — ela disse entrando no estábulo. — Por favor, sele o meu cavalo.

— É para isto que estou aqui. — Ele deixou a baia onde estivera. — Para satisfazer as suas necessidades.

O rubor de Anne aumentou. Mais uma observação com duplo sentido.

— Não há motivo para que este nosso relacionamento se torne estranho. Você cometeu um erro, e nós dois devemos nos esquecer disso e seguir em frente.

Merrick parou imediatamente e franziu a testa.

— Cometi um erro? Nada teria acontecido se não tivesse mentido para mim.

Mas ele, no fundo, tinha consciência de que sua afirmação não era verdadeira. Mesmo que tivesse sabido na noite anterior que ela era a sobrinha de seu patrão, aquilo não o teria detido. Anne era a mulher mais bonita que ele já vira. Nunca antes havia sentido tanta atração por uma mulher como sentia por lady Anne Baldwin. Ela era irresistível.

Seus cabelos eram de um tom dourado e, quando soltos, como os usara na noite anterior, caíam ondulados até a cintura fina. Os olhos eram castanhos, as pestanas escuras e espessas, e sua pele de um tom de creme. Alguns poderiam considerar sua boca generosa demais, mas Merrick gostava de lábios grossos. Ela era a mulher dos sonhos de qualquer homem. Sendo uma dama, não era a mulher certa para ele. O que não impedia que ele a desejasse.

— Errei quando menti para você ontem — ela admitiu, mordendo o lábio inferior. — Temi que contasse aos meus tios o que eu estava fazendo e sabia que eles se zangariam se ficassem sabendo. Pensei que me proibiriam de vir ao estábulo e cavalgar.

Baseando-se no que sabia de seus patrões, Merrick concluiu que, de fato, eles não ficariam nada satisfeitos se descobrissem as ações da sobrinha na noite anterior. Com certeza não aprovariam as dele.                          

— Então, isso será nosso pequeno segredo. — Ele abriu a baia e deixou a égua sair.

Seus olhares se cruzaram, e Anne mordeu levemente os lábios. Ele era perigoso. Esperou que Merrick levasse Storm até a sala dos arreios e selas. Seguiu-o, tentando pensar em alguma coisa para dizer enquanto o via tirar um garanhão negro de uma baia. Nunca tinha visto aquele cavalo antes, e em um instante esqueceu-se de seus problemas com o novo cavalariço.

— Ele é lindo — murmurou. Adorava cavalos e sabia avaliá-los bem. O garanhão devia ser um excelente corredor. A cabeça era pequena, o pescoço grosso, e seu corpo e rabo bem feitos.

— Ele é um bom cavalo — Merrick concordou, parando diante de Anne para que ela pudesse agradar ao animal. — Mas não é de raça pura. Peguei-o ainda selvagem e o domei. Ele tampouco sabe o seu lugar, exatamente como não sei o meu. Ambos somos bastardos, suponho.

Anne franziu a testa.

— E ele se ressente disso tanto quanto você?

Os olhos azuis brilharam, surpresos por um momento, como se ele não esperasse que ela fosse tão intuitiva. Depois deu de ombros.

— Não — ele respondeu. — Mas ele é bobo demais para saber a diferença. Acho que é mais feliz assim.

Compreendendo que a origem de Merrick era um assunto doloroso para ele, Anne não prolongou o assunto. Em vez disso, observou-o selar Storm e o cavalo negro. Ele se movia com a graça que poucos homens, mesmo dentre os nobres, possuíam.

As calças pretas modelavam os quadris estreitos e as pernas musculosas, chegando a um ponto próximo da vulgaridade. A camisa branca, simples, porém muito limpa, estava aberta no pescoço deixando à mostra uma parte de seu peito bronzeado coberto por pêlos negros.

A falta de brilho nas botas dele a fez lembrar que ele fazia parte da classe trabalhadora e não tinha um criado para cuidar disso. Os cabelos que haviam estado soltos quando se apresentara ao tio dela agora estavam presos com uma fita preta. Isso apenas fazia que as linhas perfeitas de seu rosto se destacassem mais, assim como seus olhos azuis. Ela tinha de admitir naquele momento que nunca vira um homem tão bonito.

Só de olhar para ele já sentia o sangue correr mais depressa em suas veias, e a respiração se tornava difícil. Oh sim, ele era perigoso. Anne teria de vigiar seu próprio comportamento, algo que nunca tinha acontecido antes.

— Eu a ajudarei a montar — Merrick disse, e ela percebeu que ainda o estava encarando. — Os cavalos estavam selados e prontos para o passeio.

Lutando contra um novo rubor, ela caminhou até Storm e esperou. Ele colocara no animal a sela própria para damas. Bem, ela não poderia querer realizar o sonho de montar como os homens como desejara na noite anterior.

Merrick a suspendeu nos braços com extrema facilidade.

Seus olhares voltaram a se encontrar, e foi preciso um esforço enorme para Anne desviar o rosto.

Fora do estábulo, sentiu-se grata de que o ar estivesse frio e a despertasse de seu torpor. Desejou que ele não tivesse recebido a ordem de acompanhá-la nos passeios. Temia que algo pudesse acontecer entre eles se passassem muito tempo juntos.

 

Procurando se concentrar no passeio e se esquecer de seu acompanhante, Anne tomou a trilha familiar pelos bosques ao longo do lado norte da casa grande. O cheiro da mata e o ar limpo sempre a faziam se sentir melhor. Na verdade, era uma garota do campo, apesar de tentar se sair bem na cidade.

— Quais são os planos de meu tio quanto à potra cinzenta? — ela perguntou a Merrick, surpreendendo-se ao vê-lo ao seu lado em vez de alguns metros atrás como o tio lhe ordenara. Anne suspeitava que ele raramente seguia as ordens de alguém.

— Eu me lembro bem de que seu tio disse que esse não era um assunto de seu interesse.

— Como meu tio também disse, tenho muito interesse pelos cavalos e pelo estábulo. A potra cinzenta é de excelente linhagem. Meu tio não pretende vendê-la, não é?

Merrick sorriu levemente.

— Não. Ela está no cio e seu tio quer cruzá-la.

Anne entendeu a razão de o tio ter se recusado a discutir o assunto com ela. Não se falava sobre tais coisas na presença de mulheres. Sempre a haviam mandado se afastar do estábulo quando os cruzamentos aconteciam. O novo cavalariço parecia se divertir dizendo algo desse tipo, chocante para uma dama. Mas ela não lhe daria a satisfação de enrubescer novamente.

— Meu tio pretende cruzar a potra com que garanhão? — ela perguntou. — Espero que não seja com o Ascot, aquele animal enorme. Ele é forte demais. O potrinho gerado por ele seria largo demais para a égua parir. Pessoalmente, eu escolheria Shadow, o marrom. Ele é menor, e creio que a cor combina.

Quando Merrick não respondeu, Anne voltou-se para ele. Seus lábios ainda ostentavam algum sinal de sarcasmo, mas nos olhos havia respeito.

— É exatamente como penso. Porém, seu tio não é o tipo de homem que aprecie o meu conselho e, sendo assim, não estou lhe dando nenhum.

— Mas você tem direito de opinar, não é? Quero dizer, sendo o responsável pelo estábulo. Não é sua função aconselhar seu patrão nesses assuntos? Pensei que fosse esta a razão de meu tio tê-lo contratado para o cargo.

Merrick riu, e Anne viu mais uma vez aqueles dentes brancos e perfeitos.

— Seu tio me contratou para deixar claro aos outros que tem o melhor cavalariço porque tem os melhores animais do mundo. Ele gosta do melhor. Sua tia também. É o que penso.

Agora Merrick havia ultrapassado os limites. Anne irritou-se. Os tios sempre exigiam o melhor de tudo, mas o empregado não tinha nada a ver com isso.

— Este não é um assunto com o qual você esteja familiarizado e, portanto, não deveria opinar — ela observou.

— E você não devia estar cavalgando a uma distância apropriada de mim?

O sorriso sumiu dos lábios de Merrick.

— Quando eu me familiarizar com a trilha, cavalgarei discretamente atrás. Se este for o seu desejo, naturalmente — ele acrescentou, como se o assunto pudesse estar em discussão.

— E por que não seria este o meu desejo? — Anne perguntou na defensiva.

— Nunca disse que seria — Merrick retrucou sem se perturbar.

— Você faz suposições o tempo todo. Não deve supor que me conhece ou sabe de minhas preferências simplesmente porque cometeu um erro na noite passada.

Merrick arqueou uma das sobrancelhas.

— Está me dizendo que não cometeu um erro, também? Talvez não tenha se importado em me passar uma impressão errada de sua identidade.

A facilidade com que ele argumentava irritou-a ainda mais, o que não lhe era habitual. Mas, em vez de discutir com ele, voltou a atenção para o caminho, esporeando Storm e partindo em disparada. Logo havia colocado uma boa distância entre os dois. Porém, Merrick a alcançou momentos mais tarde.

 

Storm era rápida, mas Anne duvidava que a égua pudesse competir com o garanhão, enorme e forte. Anne, no entanto, era mais leve sobre a sela. Sentiu-se tomada por um desejo de desafiar Merrick e exigiu que Storm fosse ainda mais depressa. A frente, o caminho se estreitou, invadindo uma parte da floresta.

Sabia que não estava agindo com sensatez, forçando um homem a segui-la por uma trilha com a qual não estava familiarizado, mas suspeitava que pudesse deixá-lo bem para trás facilmente. Ele seria posto em seu lugar... apesar de que nunca antes ela pensara nessas coisas ou agira levando em consideração as diferenças sociais.

Talvez ela apenas quisesse se exibir. Raramente tinha uma oportunidade de mostrar suas habilidades de amazona. Os caminhos em Londres, como Rotten Row e outros do tipo, não representavam qualquer desafio aos seus talentos. Um tronco havia caído, e Anne e a égua o saltaram com facilidade, conscientes de que o cavalariço e seu garanhão estavam por perto.

Quando o caminho se alargou, Merrick subitamente surgiu ao lado dela. À frente, o caminho se estreitou novamente, e Anne não conseguiu evitar que ele a ultrapassasse. Mas não era ele quem deveria seguir atrás? Esporeou Storm mais uma vez.

Merrick praguejou, depois afrouxou as rédeas, dando mais liberdade ao garanhão. O animal passou a égua, e Anne sentiu-se derrotada. Storm não era páreo para ele em questão de velocidade. E aconteceu exatamente o que Anne tentara evitar. Merrick passou à frente quando o caminho se estreitou, e ela foi forçada a segui-lo.

A trilha se alargou novamente, e eles se viram em um prado. Merrick diminuiu a velocidade de seu cavalo e, quando ela emparelhou Storm ao garanhão, ele a tirou da sela. Um braço forte a segurou pela cintura ao mesmo tempo em que parava o animal.

Depois, deixou que Anne deslizasse até o chão e desmontou em seguida.

— O que pensa que está fazendo? — ela perguntou, irritada.

Merrick largou as rédeas e puxou-a para longe do animal excitado.

— Estou fazendo o meu trabalho. Garantindo que não quebre o seu lindo pescoço tentando se exibir.

— Sei cavalgar muito bem — Anne defendeu-se. — Pensei que tivesse notado isso.

Ele fitou-a e, por um momento, seus olhos azuis perderam o tom frio.

— Notei, sim. Mas não quero que se machuque no meu primeiro dia de trabalho simplesmente porque quer me impressionar.

Como tinha sido essa mesma sua intenção, Anne nem tentou negar.

— E eu o impressionei?

Um sorriso surgiu nos cantos da boca sensual de Merrick.

— Cavalga com perfeição — ele admitiu. — Seria melhor ainda se não precisasse se sentar em uma sela de lado, o que lhe impede de ter o total domínio sobre o animal. Se pudesse se sentar em uma sela como a dos homens, aumentaria a velocidade de sua égua.

Anne olhou para Storm.

— Odeio esse tipo de sela — ela disse, e então o encarou com ousadia. — Gostaria de cavalgar como os homens, com as pernas abertas.

Ela esperava que a declaração o escandalizasse. Merrick, porém, simplesmente deu de ombros.

— E por que não faz isso?

Claro que ele não entenderia. Tentaria esclarecer algumas regras da sociedade.

— Não é considerado decente uma dama... cavalgar desse jeito. Minha tia e meu tio jamais permitiriam que eu fizesse isso.

Merrick olhou para a campina.

 

— Não estou vendo nem o seu tio nem a sua tia.

Anne arriscou um sorriso. Como a vida desse homem era tão mais simples que a dela. Invejou-o naquele momento. Tinha passado boa parte da vida seguindo as regras sociais para assim agradar à tia e ao tio. Para ganhar o carinho e o amor dos dois.

— Meu antigo criado, Barton, quase morreu de susto quando eu tinha doze anos e sugeri isso. — A lembrança de Barton trouxe lágrimas aos seus olhos. — Ele morreu o mês passado e sinto sua falta.

Merrick colocou o dedo sob o queixo de Anne e a forçou a encará-lo. Em seus olhos havia uma expressão tão suave que ela sentiu seu coração derreter. Lembrou-se imediatamente de como fraquejara na noite anterior. Procurou então se dominar e acabar com as lágrimas.

— Deve me achar uma tola — ela disse, caminhando em direção a Storm para pegar as rédeas do animal que haviam caído no chão.

— Não sei o que penso — ele murmurou. — E, em geral, eu sei de imediato.

Anne resolveu que precisava abafar seus sentimentos indisciplinados por um homem que mal conhecia. Quem sabe eles pudessem ser simplesmente amigos. Respirou fundo e voltou-se para Merrick.

— Não podemos começar tudo de novo? Creio que começamos com o pé esquerdo.

Por alguma razão, a sugestão dela o fez dar um sorriso. Não um sorriso genuíno, porém.

— Pensa que pode me dominar oferecendo-me amizade? Pensa que eu me esquecerei de como você é, como é seu aroma e seu sabor?

Anne sentiu um calor invadir o seu rosto e percorrer todo o seu corpo. Nunca encontrara um homem que não pudesse controlar demonstrando educação ou oferecendo amizade. Porém, sentia que aquele homem era diferente de todos os que havia conhecido.

— Acho que tem a impressão errada de mim.

— Aí é que se engana, moça. Acho que posso conhecê-la melhor do que conhece a si mesma.

Quando Anne o encarou, tentou aparentar uma calma que não sentia.

— O que quer dizer com isso?

Havia suavidade no olhar dele, e Anne pensou que a expressão por si só poderia ser mais perigosa do que tudo o que a atraíra nele no estábulo.

— Você quer ser algo que não é. Entendo isso muito bem. Quer coisas que não pode ter. Entendo isso, também. Quer cavalgar como um homem, à meia-noite, usando apenas a sua roupa de baixo. Do que está fugindo, lady Anne?

Ele não tinha o direito de lhe fazer perguntas pessoais, Anne pensou. Não tinha o direito de descobrir tanto sobre ela. E não tinha o direito de conhecê-la mais do que ela se conhecia, como ele clamava agora. Aquela intimidade entre os dois precisava parar imediatamente.

— Quero voltar agora — ela murmurou, dirigindo-se para a égua. Merrick estava às suas costas em um instante, e segurou sua cintura.

— Ainda não. Não antes que pelo menos um de nós consiga alguma coisa que deseja.

 

Anne voltou-se para Merrick e quase colidiu com ele. Não conseguia deixar de se deslumbrar com a masculinidade daqueles ombros largos, com a frieza de seu olhar. Mas, não. O calor voltara ao olhar do cavalariço. E, naquele exato momento, fitava os lábios dela, que estavam entreabertos. Será que a beijaria? Anne não conseguiu deixar de se perguntar. Era algo que ele desejava fazer, repetir o que acontecera na noite anterior? E faria diferença reconhecer que ela também gostaria de ser beijada por Merrick?

Ele ergueu a mão, quase tocando os cabelos dela, mas então rapidamente se afastou.

— Você queria cavalgar como um homem, e hoje fará isso.

Merrick virou as costas e caminhou até seu garanhão. Tirou a sela do cavalo enquanto Anne tentava lutar contra o desejo que sentia por aquele homem, decepcionada com o fato de o beijo não ter acontecido. Seus lábios ainda doíam pela expectativa frustrada.

— Vai cavalgar como sempre quis, não vai? — ele perguntou enquanto carregava a sela em direção a Storm e a colocava no chão. —Vou detestar ter todo este trabalho para ver você recuar e fugir como fez na noite passada.

Havia certa provocação nos olhos de Merrick, mas Anne não achou a observação nada divertida. Permanecer com ele na noite anterior teria sido uma tremenda tolice. Sem mencionar o que poderia ter acontecido quando ela recuperasse o bom senso e voltasse para a segurança de sua casa. E sem dizer, também, o quanto ela se preocuparia, temendo que sua escapada transpirasse entre os empregados. Seria terrível.

— Vou cavalgar como um homem — ela disse, empinando o nariz.

Ele não fez qualquer comentário. Apenas tirou a sela de Storm e colocou no lugar a sua, mais leve e que usava no garanhão. Ajustou os arreios, e depois se voltou para ela.

— Pronta para subir? Anne olhou para a sua saia.

— Gostaria de possuir calças masculinas. E botas altas, como as que está usando.

Merrick colocou a mão sobre o coração.

— Eu poderia não sobreviver a essa visão. Você tem pernas lindas, moça.

Ela lutou contra um novo rubor que ameaçava tingir suas faces. Merrick havia visto as suas pernas? Como? Na noite anterior, tudo o que ela conseguira visualizar tinha sido a silhueta de um homem no escuro. Ele não podia ter visto suas pernas, Anne procurou se convencer.

—Não tenho muita certeza do que devo fazer — Percebeu que a saia atrapalharia muito na nova posição.

— Vamos, eu a ajudarei, e então você tenta ajeitar o resto.

— E não vai comentar nada disso com meu tio e minha tia? — Ela precisava ter certeza de que Merrick não deixaria que aquilo viesse a se tornar do conhecimento de todos.

— Tem minha palavra.

Por alguma razão, Anne acreditou nele. Era estranho, mas sentia que podia confiar na palavra daquele homem. Não tinha idéia do por que. Talvez ele a tivesse enfeitiçado de fato. Permitiu que ele a ajudasse a montar. Para se sentar na nova sela, precisava puxar as saias à altura dos joelhos, o que deixava parte de suas pernas à mostra. Tudo o que queria era que ele não olhasse.

Merrick olhou.

 

— Muito bonitas. Exatamente como eu me lembrava delas. Ignorando a observação, Anne procurou se ajeitar na sela e assumir o controle do animal. Bastaram poucos passos para ela se tornar mais corajosa e incentivar a égua a trotar. A sensação era estranha, para dizer o mínimo. Decidiu que um galope poderia se mostrar menos perturbador e logo estava se sentindo livre e lamentando a crueldade que impunham às mulheres, obrigando-as a se sentarem em selas laterais.

Riu alto ao cavalgar com tanta liberdade, olhou para trás e viu Merrick a uma curta distância. Ele parecia um bárbaro, e Anne sentiu o coração disparar.

— O que está achando? — ele perguntou, emparelhando seu garanhão a Storm.

— É maravilhoso — ela respondeu. — É o modo como um cavalo deve ser montado. Nunca mais usarei a minha sela.

— E quando vai cavalgar assim na charneca à meia-noite, usando apenas suas roupas íntimas?

Anne voltou-se para Merrick. Estaria caçoando dela?

— Não faria isso sem um acompanhante — ela assegurou. Ele sorriu ao ouvir a resposta. No café da manhã, Anne ficara imaginando como seria vê-lo sorrir. Decidiu que teria sido melhor não ter tido a chance de descobrir como era. O sorriso de Merrick era daqueles capazes de derreter gelo.

— Gostaria de fazer isso usando calças de homem e botas? Anne franziu a testa.

— E onde eu poderia arranjar essa roupa? Ele deu de ombros.

— Posso arranjá-la. O rapaz que varre os estábulos, Brennan, não é muito mais alto que você.

O que Merrick dissera era verdade. O garoto do estábulo tinha apenas dez anos. No entanto, era alto para sua idade. E Anne supunha que seus pés ainda eram pequenos. Será que ela teria coragem? Havia desejado fazer algo ousado na noite anterior, o que se provara um erro, e sentia uma atração muito grande por Merrick para se permitir ficar ao seu lado em uma cavalgada no meio da noite.

— Posso cavalgar sozinha? Ele meneou a cabeça.

— Não posso permitir isso. Pode cavalgar se me deixar acompanhá-la, para garantir que nada aconteça com você.

A sugestão de que ela não conseguiria tomar conta de si mesma a aborreceu. Se a tia e o tio não eram pessoas afetuosas, pelo menos procuravam se assegurar de que a sobrinha estivesse sempre bem acompanhada. Apesar desses cuidados, o que Anne mais queria era a liberdade de cavalgar sozinha.

— Não preciso que tomem conta de mim — ela protestou. — Já sou bem crescida e, como você mesmo afirmou há pouco, sei cavalgar muito bem.

Merrick coçou a cabeça, pensativo.

— Já cavalgou antes com sela masculina?

— Bem, não, mas...

— Quando souber o que está fazendo, eu a deixarei cavalgar sozinha e guardarei os seus segredos.

Anne não era uma pessoa desconfiada por natureza. Mas tampouco tão inocente como tinha sido até a noite anterior.

— Por que faria isso?

— Para vê-la usando calças de homem, naturalmente.

Ela não tinha idéia se Merrick caçoava dela ou não. Considerando o que tinha acontecido entre os dois, precisava ter certeza.

—Você não tentaria fazer nada como ontem à noite, não é?

Ele deu de ombros, sorrindo levemente.

 

— Provavelmente. É de minha natureza seduzir todas as jovens que cruzam o meu caminho na calada da noite. — A expressão dele era bastante séria.                

— Então, devo recusar sua proposta.

A expressão de seriedade deixou o rosto de Merrick, e ele riu gostosamente. Anne ficou em silêncio, não achando graça nenhuma.

— Do que está achando graça?

Ele parou o seu cavalo, e Anne fez o mesmo.

— A noite passada não sabia quem você era. Hoje sei. Isso muda tudo, moça.

Anne procurou ignorar a leve decepção que sentia.

— Mas você disse que não se esqueceria do que aconteceu entre nós dois — ela o lembrou.

Agora, havia calor no olhar de Merrick.

— Oh, com certeza não me esquecerei de nada. Mas uma criada procurando se distrair com seu amante, e uma dama que quer apenas cavalgar à meia-noite são duas coisas muito diferentes. Creio que estará em segurança comigo.

Ele acreditava que ela estaria em segurança, mas não tinha certeza, e isso a deixava nervosa. Porém, não podia deixar escapar a chance de cavalgar como sempre quisera. Era uma oportunidade que talvez não se repetisse nunca mais.

— Está bem -— ela concordou, por fim. — Encontre-se comigo no estábulo. E não se esqueça das roupas.

 

Merrick precisava avaliar se não tinha perdido o juízo. Fazer ofertas, manter segredos, ficar tão próximo de uma mulher que não tinha direito de ter ao seu lado. Lady Anne era uma dama. Ele era um bastardo, um chefe de estábulo que ganhava o suficiente para viver bem, contudo sem qualquer chance de sustentar uma dama nobre como a sobrinha de seu patrão. Não que Merrick estivesse pensando em se casar com Anne, mas não conseguia parar de pensar em seduzi-la.

Ele arranjara as roupas. Na verdade, dera uma moeda para o garoto, que não fizera perguntas. No momento, estava com os cavalos selados e prontos para o passeio. Tinha tudo, menos um cérebro em sua cabeça. Chegava mesmo a desejar que ela não viesse. Seria melhor para ambos se Anne tivesse recuperado a razão e concluído que ele não era um homem a quem pudesse confiar os seus segredos e a sua virtude. Provavelmente estaria certa se pensasse exatamente daquela forma, apesar de ele sempre ter tentado ser fiel à palavra dada.

Não tinha muita coisa na vida, além de sua palavra e da habilidade com os cavalos. Lembrou-se de ter dado a palavra para outra mulher. Sua mãe, no leito de morte.

Ela lhe pedira que deixasse o passado para trás, que se contentasse com o que tinha na vida e que não sonhasse com coisas que estavam além de suas possibilidades. E Merrick prometera.

E agora estava ali, rodeando uma mulher de quem devia manter distância. Anne e ele eram diferentes como a noite e o dia. Na verdade, Merrick era diferente de todos os outros homens. Sempre tivera estranhas habilidades que sua mãe nem mesmo imaginara. Ele não compreendia os seus "dons" ou por que os possuía. Não tinha nem certeza de que fossem dons. Talvez fossem uma maldição.

Apesar de o bom senso lhe dizer que seria muito melhor que Anne não aparecesse no estábulo, não tirava os olhos da porta. Era como se ele a estivesse atraindo com a força do pensamento. Ao fazer isso, lembrara-se da promessa feita à mãe. Desejava algo fora de seu alcance, quebrando assim a promessa. No fundo, não conseguia deixar de se ressentir de ser filho de um nobre, um de quem nem herdara um sobrenome.                                                              

 

A mãe, que sua alma repousasse em paz, tinha levado para o túmulo o nome do pai dele. Quem quer que fosse, Merrick o odiava. Como um homem podia considerar um filho como um segredo sujo? Como um erro, facilmente ignorado e então esquecido? Enquanto o homem estava vivo, ele se certificara que Merrick e sua mãe tivessem tudo do que precisavam, mas depois de sua morte, era como se houvesse desejado levar seus segredos para o túmulo. Merrick, então apenas um jovem, e sua mãe tinham sido subitamente forçados a trabalhar em quaisquer empregos que pudessem encontrar para se sustentar. Outros faziam o mesmo, mas Merrick pensava que, enquanto eles quase passavam fome, em algum lugar os filhos legítimos de seu pai estavam vivendo com todo o luxo.

Sempre tivera jeito com cavalos. Sabia identificar os de raça quando os via. Era especialista em escolher qual égua deveria cruzar com qual garanhão para gerar um cavalo ainda melhor. Sabia como cuidar dos animais, como limpá-los e cavalgá-los. Mesmo que não fosse a melhor das profissões, ainda assim ele fizera o seu nome. E se contentara com isso... até a noite anterior.

Sentiu o perfume de Anne antes mesmo que ela surgisse à porta do estábulo. Por que ela precisava ter um aroma tão tentador? Por que sua pele era tão delicada e sedosa? Por que tinha o sabor do melhor dos vinhos, aqueles mais embriagadores? Por que tivera de confiar na palavra de um quase desconhecido?

— Merrick? — ela chamou baixinho.

O som do nome dele pronunciado por aqueles lábios macios o fez estremecer.

— Aqui — ele respondeu, tossindo para limpar a garganta.

— Trouxe as roupas?

— Estão no quartinho das selas e arreios. Eu as coloquei dentro de sua antiga sela. As botas estão no chão, logo abaixo.

— E ficará afastado enquanto eu me visto?

Ela ainda não confiava plenamente nele, Merrick pensou. O que provava que era não apenas bonita, mas inteligente.

— A não ser que precise de minha ajuda.

— Não vou precisar.

A audição privilegiada de Merrick torturou-o com os sons das roupas sendo tiradas, que logo chegaram até ele. O roçar do tecido na pele imagens surgiram em sua mente. Queria vê-la ao luar. Ver seu lindo rosto se iluminar com a risada como acontecera quando ela cavalgara na nova sela naquela mesma tarde. Por que ela ainda não tinha se casado? Seus possíveis pretendentes eram uns imbecis? Anne era realmente tudo aquilo que ele queria em uma mulher, tudo o que nunca poderia ter.

— Estou pronta.

Perdido em seus pensamentos, ele não tomara consciência da aproximação de Anne. Viu sua silhueta na escuridão. Se quisesse, poderia vê-la com toda a nitidez, mas precisavam sair logo do estábulo.

— Vou ajudá-la a montar. Tiraremos a sela da égua assim que tivermos nos afastado da casa, e então eu lhe ensinarei a cavalgar como sempre desejou fazer.

Ela trouxe o aroma doce e suas curvas suaves para junto dele. Quando Merrick a segurou pela cintura, desejou poder lhe ensinar mais do que cavalgar como um homem. Os lábios de Anne eram inexperientes, lembrou-se. Tinha certeza de que nunca haviam sido beijados antes. Pelo menos, não da forma como deveriam.

Levantou-a com facilidade e a colocou sobre a sela que ela habitualmente usava. Deu a volta e subiu em seu garanhão. Como ladrões, saíram silenciosamente do estábulo, somente ousando aumentar o passo quando já se encontravam a uma boa distância da casa.

 

Encontraram mais uma vez a pradaria, onde Merrick deteve o seu animal, desmontou e foi ajudar Anne. Ela veio para os seus braços, talvez sem a cautela necessária, e então ficou diante dele, fitando-o. O luar banhava suas lindas feições e lhe davam um suave tom luminoso. Os olhos dela brilhavam e os cabelos estavam soltos, chegando quase aos quadris. Merrick sentiu uma dor invadir todo o seu corpo. Uma dor que ele nunca conhecera antes. Desejava-a como nunca desejara outra mulher antes.

— Você é tão linda — ele murmurou. — Derrete a mente de qualquer homem e faz com que ele se esqueça de quaisquer promessas que tenha feito.

O sorriso que havia nos lábios de Anne desapareceu imediatamente. Em seus olhos, Merrick pensou vislumbrar a mesma fome que ele sentia. Mas então ela balançou a cabeça.

— Você me deu a sua palavra. Fui uma tola por confiar em você?

Então tudo deveria transcorrer como o combinado, apesar de ele nunca ter reprimido antes o seu desejo.

— Quero beijá-la de novo.

Mesmo na escuridão, ele viu que Anne ruborizava.

— Então devo lhe pedir que me leve de volta ao estábulo e que terminemos este tolo passeio.

Ele concordava, mas o desejo de conhecê-la mais intimamente o impediu de fazer o que sabia ser o melhor.

— Por que acha que fazer algo com que sempre sonhou seja uma tolice, Anne? — Segurou-a pelos ombros. — Nunca fez nada que fosse apenas para satisfazer a si mesma? Simplesmente porque vai lhe dar prazer?

— Tudo seria diferente se eu fosse um homem — ela explicou. — Sendo uma mulher, devo ser diferente do que realmente sou. Devo ser gentil com os outros, querer tudo o que as outras mulheres de minha classe social querem. O sonho de fazer algo diferente ou de ser uma pessoa diferente seria considerado simplesmente uma tolice de minha parte.

Ele a puxou para mais perto.

— Não é uma tolice ter seus próprios sonhos. Para alguns de nós, é tudo o que resta. E por que parece se ressentir de sua vida quando me parece que tem tudo?

— Não tenho tudo — ela argumentou, então percebeu que estava revelando coisas pessoais para aquele homem. Que patético seria se ela lhe confessasse que, na verdade, não tinha o que mais desejava na vida. Ser amada. Apenas por si mesma. — Posso parecer ingrata — acrescentou, abaixando o olhar. — Deve entender que tudo o que realmente se espera de mim é que arranje o marido certo. Preciso ser agradável para que um homem queira se casar comigo. O papel de uma mulher é satisfazer o seu marido, gerar filhos e cuidar da casa. Pelo menos, é isso o que se espera em minha classe social.             Estranhamente, os guardiões dela não lhe haviam imposto qualquer pretendente e não pareciam preocupados com a falta de rapazes interessados, mesmo que Anne já estivesse agora com quase vinte e um anos.

Merrick subitamente se afastou e virou-se de costas para ela.

— Entendo o que diz. Suponho que as mulheres da minha classe possam somente aspirar a gerar bastardos de homens da sua classe social. E depois esperarem que os nobres não morram e as deixem e aos seus filhos morrendo de fome.

Anne compreendeu que estava sendo insensível. Devia ter se mostrado a Merrick como uma tola, não valorizando sua vida privilegiada.

— Desculpe-me — murmurou. — Foi isso o que aconteceu com sua mãe?

Merrick se voltou para ela.

 

— Não viemos aqui para conversar sobre a minha vida. Pensei que quisesse mesmo realizar os seus sonhos. Se não tem coragem para tanto, melhor voltarmos. Nem todos podem dormir durante o dia depois de ficarem acordados até tarde da noite.

Ela o magoara. Havia ressentimento nele. Anne não pretendia que aquilo acontecesse. Mas Merrick estava certo. Ela tinha agora a chance de fazer algo com que sempre sonhara. Ele estava lhe dando aquela oportunidade e, apesar de que talvez não fosse a coisa certa, ela estava agradecida a ele.

— Está bem. Chega de conversa. Diga-me o que eu devo fazer.

Ele a olhou longamente, e Anne temeu que tivesse mudado de idéia. Então, ele suspirou e se aproximou de Storm para tirar a sela antiga. Assim que colocou a sela no chão, montou a égua.

— Observe-me primeiro. Você tem de usar as duas pernas. Pressione-as bem forte contra os lados do cavalo. Assim como estou fazendo.

Anne observou quando ele deu uma volta com Storm. Primeiro a passo lento, depois fazendo o animal trotar e finalmente galopar. Ao fitá-lo, sentiu-se mais uma vez estranha. Acalorada e inquieta, como se estivesse prestes a adoecer. E, mais uma vez, teve a sensação de já ter visto Merrick em outro lugar. Talvez em seus sonhos?

Storm era conhecida por ser teimosa às vezes, mas Merrick a comandou melhor do que Anne fazia, e a égua pareceu sentir que ele era um homem que não aceitaria disparates da parte dela. Anne ficou pensando se ele lidava com as mulheres do mesmo modo.

— Está pronta para tentar agora?

— Estou. Mas acredito que você faz parecer que tudo seja mais simples do que é de fato.

Ele levou a égua para o lado de Anne e desmontou com incrível facilidade.

— Você vai se sair bem porque é algo que quer fazer. Talvez algo que tenha de fazer.

Suprimir desejos era uma realidade para as mulheres. Anne estava acostumada a sufocar suas vontades, seus sonhos e até seus pensamentos. Nunca encontrara antes um homem que incentivasse uma mulher a ousar quebrar as regras. Era bom ter conhecido Merrick.

— Eu a ajudarei a montar — ele declarou calmamente. Anne colocou a mão no ombro dele, sentindo os músculos por debaixo da camisa. Pisou naquelas mãos enormes ganhando impulso para chegar às costas do animal.

— Lembre-se de pressionar as pernas — ele a instruiu, e Anne tentou não ruborizar.

Era considerado vulgar um homem se referir às pernas na presença de uma mulher. Lembrando-se de que usava roupas de homem, Anne decidiu que naquela noite ela não era uma dama e nem Merrick um cavalheiro. Segurou as rédeas com firmeza.

Começou fazendo a égua caminhar lentamente, procurando se acostumar a sentir o cavalo sem sua habitual sela.

Levou Storm a dar voltinhas até que a incentivou a trotar. Finalmente, pressionou as pernas como fora ensinada, e o animal disparou.

— Você aprende fácil — Merrick gritou. — Está se saindo muito bem.

— Podemos ir até a charneca? — ela perguntou, procurando se concentrar para não deslizar e cair da sela masculina.                                                                

Ele sacudiu a cabeça veementemente.

— Não esta noite. Vai precisar de mais prática antes de se atrever a fazer isso.

 

Quem poderia saber se ela teria coragem suficiente para sair de casa novamente às escondidas e passear com o novo cavalariço? O bom senso talvez retornasse a qualquer momento. E com ele, voltaria a ser boazinha, casta e totalmente desinteressante. A tia podia subitamente decidir que o campo era um lugar onde nada acontecia e mandar que ela fizesse as malas para voltarem a Londres. Aquela noite podia ser a única chance que teria para realizar o seu sonho.

— Estou indo para a charneca — ela decidiu. — Fique aqui, se quiser. Na verdade, seria melhor que voltasse para o estábulo. Assim, se eu for descoberta ou alguma coisa acontecer comigo, você não será o responsável.

Sem esperar por uma resposta, Anne conduziu Storm para o caminho que levaria à charneca.

— Volte aqui, Anne — Merrick gritou. — Eu disse que ainda não está pronta.

Acostumada a obedecer, Anne quase cedeu. A necessidade de se rebelar, contudo, havia adquirido raízes agora, e ela não tinha certeza se queria obedecer. Quem era ele para lhe dar ordens? Merrick não tinha esse direito, era apenas um parceiro na escapada.

Já o conhecendo bem melhor do que deveria, Anne não lhe daria a chance de alcançá-la e levá-la à força de volta para casa. Assim esporeou o animal e o fez galopar. Atrás dela, ouviu Merrick praguejar bem alto.

O luar clareava a vereda. Anne ouviu o som de cascos atrás de si. Sabia que ele a seguira e que facilmente a alcançaria se ela se mantivesse na trilha. Em um segundo, tomou uma decisão e desviou-se do caminho.

Como sempre tivera um excelente senso de direção, pensou que chegaria facilmente à charneca. O que não antecipara era a dificuldade que estava tendo em conduzir o animal em meio àquele tipo de vegetação. Não percebeu o tronco no caminho, até que já fosse tarde demais. Perdeu o equilíbrio e caiu.

A queda a jogou longe, mas logo que conseguiu respirar normalmente, sentou-se, tentando avaliar se estava machucada. Moveu as pernas e os braços. Nada estava quebrado. Como Storm tinha sido treinada, parará por conta própria. Anne levantou-se bem devagar, com o corpo doendo, e se dirigiu à égua.

Subitamente Storm levantou a cabeça, resfolegou, revirou os olhos e saiu em disparada, como se estivesse sendo perseguida por cães. Anne pensou em gritar, Merrick a escutaria. Ele tivera razão ao declarar que ainda não era hora de ir à charneca. Agora ela estava a pé, perdida na floresta e sozinha. Ou não estava?

Sentiu um arrepio percorrer seu corpo e percebeu que estava sendo observada. O que teria assustado Storm? A égua não era medrosa. Olhando em volta, notou que estava em um lugar escuro onde não havia luar. Tinha dificuldade para distinguir formas e também para determinar direções. Onde estava a trilha? Se ela se movesse naquela direção, certamente encontraria Merrick.

Deu um passo à frente, mas pelo canto dos olhos viu que algo se movera também. Tentou enxergar naquela escuridão. Logo visualizou uma forma. Depois outra. Lobos. Sentiu-se gelar. Assim, a lenda era verdadeira. Ainda havia lobos rondando em partes da Inglaterra.

Anne não ousou se mover, imaginando quanto tempo mais eles ficariam parados. Precisava de uma arma. Olhando em volta, tentou encontrar um galho, uma pedra, algo que pudesse usar em sua defesa. Uma sombra se moveu para mais perto, e ela engoliu em seco.

— Não se mova.

 

A instrução chegou aos ouvidos dela como um mero sussurro, e então sentiu o calor de Merrick em suas costas. Seus joelhos quase cederam de alívio. Uma sombra se aproximou e olhos brilharam na escuridão. Merrick colocou-se à frente dela, bloqueando o perigo, protegendo-a de sua própria tolice, talvez com a vida dele.

As sombras continuaram a se mover até que eles se encontrassem cercados pelos lobos. Apavorada, Anne colocou os braços em torno da cintura de Merrick e pressionou o rosto contra suas costas. O coração dele estava batendo com força e firmeza, mas não em disparada. Escutou um grunhido suave e baixo. Ressoou não vindo das bestas que os rodeavam, mas do homem que a estava protegendo.

Arrepios tomaram conta do corpo dela. Não sabia se largava a cintura de Merrick e corria ou se agarrava ainda mais firmemente a esse estranho homem. Fechou os olhos e rezou. Por quanto tempo ficou naquela posição, não saberia determinar. Pareceu-lhe uma eternidade.

— Está tudo bem agora. Eles foram embora.

Anne abriu os olhos. Não viu nada nas sombras, mas não tinha certeza de que os lobos haviam partido.

— Tem certeza? Como sabe?

— Porque eu sei — ele respondeu, voltando-se para olhá-la. — Eles foram embora e levaram o seu cheiro com eles. Estavam apenas curiosos para saber que tipo de tolo anda sozinho nos bosques à noite.

Anne sentiu embaraço mesclado ao medo. Merrick tinha razão ao considerá-la uma tola.

— Sinto muito. Você estava certo — ela admitiu. — Eu não deveria ter desprezado os seus conselhos e resolvido seguir por minha conta. Foi um ato tolo e perigoso.

Ele não respondeu, e quando Anne ergueu o olhar, surpreendeu-se. Estava escuro, mas os olhos dele brilhavam exatamente como o das bestas da floresta.

— Seus olhos — ela murmurou. — Eles brilham no escuro como os olhos de um animal.

Ele desviou o olhar. Anne lembrou-se do grunhido que partira dele. E o cheiro que emanava da pele de Merrick era estranho, lembrava o de um animal. Era um cheiro que fazia com que a atração vencesse o medo. Havia algo de muito estranho nele. Mas talvez fosse apenas a histeria que a levava a pensar assim.

— Merrick? — ela murmurou. — Quem é você? Quero dizer, quem realmente é você?

 

Era uma pergunta que Merrick vinha fazendo a si mesmo havia muito tempo. Quem era ele? Ou, talvez, o que ele era? Sabia que era diferente dos outros homens e não entendia a razão. Tinha sido capaz de ler os pensamentos dos lobos que rodeavam Anne ou, melhor dizendo, captara o que as feras sentiam. Enviara, então, uma mensagem bem clara de que não deviam atacar, e eles haviam ido embora, sem dúvida assustados com a estranheza daquele homem.

— Sou apenas um homem como os outros — ele mentiu. — Simplesmente tenho algumas habilidades curiosas.

Uma dessas habilidades permitia que ele visse a expressão no rosto de Anne, apesar da escuridão. Se antes ela parecera assustada, agora a curiosidade prevalecia.

— Que tipo de habilidades?

Merrick percebeu que caminhava em solo perigoso. Não deveria revelar a Anne muito de si mesmo. Mas, mesmo sem saber o motivo, queria contar a ela. Já era suficientemente ruim que houvesse uma diferença social entre os dois. Por que agora ele queria aumentar a barreira? Talvez para distanciá-los ainda mais um do outro? Talvez simplesmente para ver a reação dela?

— Posso enxergar no escuro — ele respondeu. — Posso ver o seu rosto. A noite passada, no estábulo, eu a vi claramente, como se fosse dia, ali de pé, usando apenas a roupa de baixo, tirando as meias de suas pernas perfeitas. A sua combinação tinha uma rosa vermelha bordada na frente.

Anne arregalou os olhos e deu um passo para trás. Merrick tentou ignorar como a reação o afetava.

— Como pôde saber desse detalhe? — Anne meneou a cabeça. — Como conseguiu ver tão claramente naquela escuridão? Não é possível.

Ele desejou que fosse impossível. Sentiu que ela se afastava. Mesmo que a mente de Anne não quisesse acreditar que fosse possível, ela começava a temê-lo. Não era exatamente o que ele pretendia, colocar distância entre os dois? Porém, não se sentiu satisfeito com essa pequena vitória. Precisava admitir a si mesmo que a queria de volta aos seus braços. Queria beijá-la. Fazer mais do que beijar.

Talvez fosse um ato inconsciente, mas ele exalou seu estranho cheiro, que atraía as mulheres. Não era correto usar esse recurso com Anne. Apesar de saber disso, o instinto predominou, e ele cedeu à forte necessidade de seduzi-la. O que ele mais queria naquele momento era que ela correspondesse ao seu desejo. Queria se esquecer de suas estranhas habilidades e da barreira que os separava. E queria que ela também esquecesse.

Bem devagar, ele se inclinou e capturou seus lábios entreabertos. Eram tão doces quanto se lembrava, mas retribuíam o beijo com mais intensidade. Não era mais um estranho para ela, o que parecia funcionar a favor dele. Anne gemeu suavemente quando ele traçou com a língua o contorno de seu lábio inferior, antes de inseri-la em sua boca, explorando-a, saboreando-a...

Ela pressionou-se contra Merrick, e ele a puxou para bem perto, sentindo as curvas macias encostadas ao seu corpo excitado. Com uma das mãos envolveu-lhe o seio, e foi assolado por uma nova onda de desejo quando ela não opôs resistência alguma. Tocou o mamilo com o polegar por cima do tecido da blusa, fazendo-a ofegar. Ele a queria nua, precisava sentir sua pele.

Encostou-a contra o tronco de uma árvore e beijou-a no pescoço, desatando os laços de sua roupa com impaciência até abri-la o suficiente para inserir a mão na blusa. Sua consciência sussurrava que aquilo era diferente do que acontecera no estábulo. Agora ele sabia quem ela era e como era inocente. Mesmo assim, não conseguiu se deter.

Anne sabia que devia impedir Merrick de prosseguir com suas ousadias. A mente, porém, estava enevoada pela paixão. Uma experiência que nunca tivera antes. O que havia naquele homem que a tornava incapaz de resistir? Talvez uma combinação de muitas coisas.

A boca de Merrick se movendo sobre a dela, a enorme mão tomando seu seio, tudo isso a fazia deixar o bom senso de lado. Podia até ignorar as asperezas do tronco machucando as suas costas se ele continuasse beijando-a... tocando-a.

Ele deslizou os lábios sobre seu pescoço, mordiscando-o de leve, antes de descer um pouco mais, afastando sua camisa. A sensação da boca úmida em seu mamilo, mesmo por cima da roupa íntima, fez com que estremecesse, respirando com dificuldade.

 

— Tem noção do quanto é bonita? — ele murmurou. — Como é perfeita em tudo?

Anne nunca se sentira bonita antes. Certamente houvera homens que tinham feito galanteios, mas nenhum deles conseguira fazê-la sentir-se realmente bela.

Resistir se tornou mais difícil quando Merrick sugou mais uma vez seu mamilo. Anne gemeu e enterrou as unhas nas costas dele. Os joelhos fraquejaram. Sentiu-se úmida entre as pernas, e esse ponto doía como se o corpo precisasse de alguma coisa que a mente não compreendia.       ;

Deixou-se envolver totalmente pelo desejo. Os lábios ardentes de Merrick deslizaram por seu pescoço, e então a beijaram. Quando ele inseriu a língua em sua boca, retribuiu a carícia ousada, mas logo percebeu que os dentes dele eram afiados... quase como presas.

Abriu os olhos e notou que ele estava diferente. O rosto parecia alterado. Tentou escapar de seus braços, mas ele a pressionou ainda mais contra a árvore. Anne podia sentir a rigidez do membro masculino. Ouviu um grunhido.

— Merrick — ela murmurou. — Está me assustando. Os lábios dele estavam mais uma vez em seu pescoço.

Anne sentiu uma leve mordida antes que ele subitamente se detivesse, afastando-se e desaparecendo dentro da floresta. Ela olhou ao redor, com o coração acelerado.

Um lobo uivou não muito longe dali, e ela prendeu a respiração. Arrumou a blusa e procurou atar os laços. Onde estava Merrick? Por que ele a tinha deixado sozinha naquela escuridão?

Assustou-se ao ouvir um barulho. Uma silhueta enorme surgiu das sombras. Era Merrick, parado diante dela, olhando para baixo.

— Venha, Anne — ele sussurrou. — Vou levá-la para casa.

Por um breve instante, ela pensou que não poderia confiar em Merrick. Seus olhos tinham se ajustado o suficiente à escuridão para ver que ele lhe estendia a mão. O que acontecera um momento atrás? Teria ela imaginado que as feições dele haviam se modificado? Estivera assustada. Talvez o medo a tivesse feito ver coisas inexistentes.

— Anne, pegue a minha mão — Merrick insistiu.

Ela atendeu ao pedido dele. As mãos de Merrick eram ásperas, mas tinham parecido macias quando ele a acariciara havia pouco. Engoliu em seco. Estava confusa.

— O que está acontecendo comigo? — ela perguntou. — Por que reajo desse modo a você. O que quer de mim, Merrick?

Por alguns minutos, ele nada disse. Talvez não soubesse a resposta, Anne pensou.

— Por ora, quero apenas levá-la para casa. Quero que fique a salvo.

A salvo dos lobos ou a salvo dele? Anne se perguntou. Ela devia ir para casa e voltar à vida monótona que levava antes de Merrick tê-la beijado no estábulo na noite anterior. Um estranho. Um homem que trabalhava para o tio dela. Mas um homem que a fazia se sentir como nunca se sentira antes, que não tinha medo de demonstrar afeição e que havia dito que ela era bonita.

Ele a conduziu pelos bosques. O trajeto não foi longo e, ao chegarem, o garanhão parecia estar inquieto, à espera do retorno de seu dono. Merrick falou suavemente com o animal, acalmando-o. Em seguida, ele a levantou e colocou-a sobre o cavalo, montando logo depois.

— E quanto a Storm? — Anne perguntou, lembrando-se que sua égua fugira apavorada ao sentir a presença dos lobos. — E a sela e a manta que deixamos para trás?

— Acredito que Storm tenha seguido direto para o estábulo. Se não estiver lá quando voltarmos, eu a procurarei. E pegarei também a sela e a manta.

Ele não deixaria sinais do que Anne fizera naquela noite. Apagaria todos os erros que ela cometera. Possivelmente salvara-lhe a vida também. Merrick, com suas estranhas habilidades e aquele cheiro que a afetava tanto...

Ele podia ter se aproveitado dela na floresta, Anne reconheceu. Tinha certeza de que teria permitido a sedução. Por que ele parará? E ela teria apenas imaginado que o rosto dele se modificara e que seus dentes haviam se transformado em presas, como as de uma fera?

Claro que fora imaginação, ela procurou se convencer. Os lobos a haviam assustado, e ela reagira ao medo que tinha sentido. A sensação de recostar-se àquele peito forte também a afetava. As coxas dele pareciam se moldar ao seu corpo. Precisava de uma distração, pois não queria pensar no assunto. Merrick levava o animal a passo lento pela trilha, talvez em consideração a ela, mas o vagar apenas prolongava a tortura de sentir o corpo dele tão próximo. Afetada pelo calor que emanava dele, começou a imaginar qual seria a sensação provocada por um contato mais direto entre seus corpos.

— Seu cavalo parece ligeiro — falou, tentando desviar os pensamentos para qualquer outra coisa que não fosse o desejo.

— Sim, ele é. O mais rápido que já vi.

—Você participa com ele de corridas? É o que eu faria, se ele fosse meu e, é claro, eu fosse um homem.

— Participamos de pequenas competições que acontecem em feiras, mas somente quando o prêmio é alto. O cavalo adora correr. Gosta de competir.

O animal não parecia nada ansioso para correr até o estábulo naquele momento, ela pensou. Nem sequer tinha certeza de que ele estava sendo conduzido na direção correta, reparou de repente.

— Merrick, sabe para onde estamos indo? Acho que este não é o caminho para casa.

— Sei para onde estou indo — ele assegurou. Momentos depois, ele deixaram as árvores para trás.

Merrick parou o garanhão, e Anne se admirou com o que tinha à frente. Estava na região da charneca. O luar brilhava, e o local era estranhamente lindo.

— Está pronta, Anne? — ele sussurrou em seu ouvido.

Sabia agora o motivo de Merrick tê-la levado àquele lugar. Ele compreendera o quanto era importante que ela vivesse o seu sonho.

— Estou pronta.

— Segure-se bem.

Ele esporeou o animal, que disparou num galope.

Não era exatamente como no sonho de Anne, em que ela estaria sozinha, vestida apenas com a roupa de baixo, montada na sela masculina. Porém, era até melhor, pois ela compartilhava o momento com Merrick.

Ele unia o seu riso ao dela, participando da alegria que experimentava. Ele a entendia melhor que qualquer outro homem que já conhecera. E estava certo. Todos deviam ter um sonho, mesmo que fosse um como aquele que ela realizava no momento.

 

Anne soltou uma gargalhada de pura alegria por estar cavalgando livremente pela charneca sob a luz do luar, com o vento agitando seus cabelos. Merrick a segurava com firmeza, proporcionando-lhe uma sensação de completa segurança. Ele tinha razão. Nunca montara um animal tão rápido quanto aquele garanhão. Os cascos ressoavam no solo pedregoso, levantando poeira conforme avançava.

 

— Quer ir mais depressa? — Quando Merrick se inclinou para fazer a pergunta, seus corpos se uniram ainda mais.

— Oh, sim. — Ela inspirou profundamente na expectativa da corrida. Logo, o cavalo parecia estar voando.

O sangue corria mais rápido em suas veias. Anne fechou os olhos e simplesmente viveu o momento. Sentia o garanhão poderoso que a levava em um passeio único, sentia o vento dançar em seu rosto e as batidas fortes do coração daquele homem que a segurava para que não caísse. Queria que a cavalgada jamais terminasse, o que naturalmente aconteceria a qualquer momento.

Merrick foi puxando aos poucos as rédeas do animal, diminuindo seu ritmo. A respiração do garanhão soou forte quando ele protestou. Merrick conhecia bem o seu cavalo. Adorava correr.

— Vai haver uma feira não muito longe de Blackthom Manor na próxima semana — ela contou-lhe. — Você e seu garanhão deviam participar da corrida que acontecerá lá.

— E você iria nos ver correr?

Anne adorava as festas populares do campo, mas seus tios as achavam uma chatice.

— Se meus tios me levarem, claro que irei. Eles não gostam muito dessas festas. Minha tia prefere os bailes de Londres.

— E quanto a você, Anne? O que prefere?

Ele parara o garanhão. O luar banhava a terra que os rodeava, fazendo com que Anne suspirasse diante da maravilhosa paisagem.

— Prefiro as feiras — ela respondeu honestamente. — Apesar de minha tia considerar um tempo gasto de forma tola. Não há nenhum cavalheiro na feira que possa vir a me atrair. Não há chance de acontecer qualquer contrato de casamento.

Anne arrepiou-se com o toque dos dedos de Merrick quando ele ajeitou-lhe os cabelos, despenteados pelo vento.

— Por que ainda não se casou Anne? Os cavalheiros de Londres são cegos ou tolos?

Ela foi honesta.

— Sou uma pessoa desinteressante.

Quando ele riu, sua respiração quente acariciou-lhe a nuca, e ela suspirou.

— Você, desinteressante? Uma mulher que escapa de casa durante a noite e tira a roupa para poder cavalgar na charneca com mais liberdade? Uma mulher que se aventura pelos bosques sozinha e confronta lobos? Uma mulher...

— Não costumo fazer essas coisas — ela confessou, interrompendo o que ele dizia. Virou o corpo para trás a fim de poder vê-lo. — Senti necessidade de me rebelar. Mas tenho certeza de que isso vai passar.

— Será?

Seus lábios estavam subitamente muito próximos. Será que ele a havia levado à charneca para terminar o que começara antes? Alguma coisa dentro de si dizia que não seria nada mau que aquilo acontecesse. O passeio e o contato constante com Merrick a haviam estimulado. Aquela noite talvez fosse tudo o que tivessem juntos. Sabia que sua rebelião não duraria muito tempo mais. Em algum momento, recuperaria os sentidos e voltaria à sua vida previsível e desinteressante... porém, ainda não.

A dama queria que ele a beijasse, e Merrick sentiu-se tentado a satisfazer-lhe o desejo. Fortemente tentado, quase para além do controle. Porém, algo muito estranho acontecera com ele naquela noite.

 

Nos bosques, enquanto estivera beijando Anne, tocando-a, desejando-a como nunca desejara outra mulher na vida, sentira algo se agitar sob sua pele e crescer dentro de si. Aquilo quase o consumira... o que diabos aquilo fosse.

O desejo que sentira por Anne havia se transformado em algo animalesco. Seus pensamentos tinham se tornado incoerentes e desarticulados, como se estivessem escapando, como se ele estivesse se transformando em outra coisa. Por um momento, temera que pudesse machucá-la, e aquele medo havia penetrado a névoa da luxúria, detendo-o e levando-o a se afastar. Voltara apenas quando se sentiu sob controle outra vez. No entanto, precisava compreender o que estava acontecendo.

E agora Anne o tentava mais uma vez. No passado, mulheres da mesma classe social dela haviam se interessado por ele e se esgueirado até os estábulos em que trabalhava na calada da noite. Elas queriam apenas diversão, e Merrick as usava como uma espécie de vingança contra a classe que não o aceitara como um de seus membros. Mas Anne não era como aquelas mulheres. Ela o fazia experimentar sentimentos desconhecidos.

Alegrara-se ao vê-la desfrutar do passeio pela charneca. Aquela inocência era como um bálsamo para sua alma atormentada. O que queria dela não eram apenas alguns momentos roubados à noite. E temia o que desejava, pois era algo que prometera à mãe renunciar.

— Se eu fosse um cavalheiro, eu a levaria à feira. — Acariciou de leve os cabelos de Anne. — Eu a levaria em uma carruagem elegante, e amarraria seu lenço em meu braço ao participar da corrida. — O sorriso dela era tão suave sob a luz do luar que Merrick sentiu o coração bater mais forte. — Mas não sou um cavalheiro, Anne. Você não pode se esquecer disso.

O sorriso doce sumiu, e ele viu que Anne ruborizava.

— Você é mais cavalheiro do que qualquer um que eu conheça — ela disse baixinho. — Ou não teria me alertado para não perder a cabeça. Não estaria me lembrando de que somos de classes sociais diferentes.

Merrick não costumava recusar o que era oferecido, ressentindo-se em segredo de muitas vezes ser tratado como um excelente garanhão em vez de como um homem. Pensara que Anne fosse diferente, mas seria mesmo? Talvez ele fosse apenas uma distração em sua vida entediante, parte de sua rebelião. Se fosse assim, deveria se sentir culpado por seduzi-la?

Os olhos grandes, inocentes e suaves o fitaram, e Merrick soube que, definitivamente não estava enganado a respeito dela, mesmo que, por um momento, tivesse desejado estar.

— Você quer mais do que posso oferecer, Anne. Mais do que um homem como eu seria capaz de lhe dar. Eu a levarei para casa agora.

Por um instante, os olhos de Anne brilharam como se estivessem cheio de lágrimas.

— É querer demais? — ela sussurrou. — Ser amada? Era isso o que Anne queria dele? Merrick não conseguia acreditar. Provavelmente, ela estava apenas confusa a respeito do que era o amor. Não que ele mesmo soubesse, pois nunca se apaixonara antes. Porém, com certeza sabia o que era ser rejeitado e não se arriscaria a passar por isso com ela.

— Tenho certeza de que é amada, Anne. A sua tia e o seu tio...

— Ambos têm dificuldade em demonstrar qualquer afeição por mim — ela interrompeu. Os olhos estavam cheios de lágrimas. — Fiz de tudo para conquistar o amor deles, mas sinto que falhei. Talvez a culpa seja minha. Há algo em mim que me torne indigna do amor?

 

Era aquilo o que ela pensava? Como alguém poderia não amá-la? Ela era boa, doce e bonita, e ele percebera isso instintivamente. Anne era o oposto dele. Talvez fosse esse o motivo de achá-la irresistível. Ela era tudo que ele não era, tinha tudo o que ele não tinha. Mas então, talvez, eles fossem mais parecidos do que ele imaginava. Ambos queriam o que definitivamente lhes era negado.

— Você não é indigna, Anne. Talvez eles não a mereçam. — Assim como ele.

Merrick virou o garanhão em direção a Blackthom Manor. Cavalgaram em silêncio. Ele estava perturbado por ter o corpo dela tão junto ao seu. Sentia a sua maciez, o seu aroma. Um momento em que nada os separava, mesmo que no dia seguinte tudo voltasse ao normal. Anne na grande casa, ele no estábulo. Ela, uma dama esperando por tudo que merecia na vida, e que sentia que ela conseguiria com o tempo. E ele... Bem, Merrick nem tinha certeza de quem era na verdade. Porém, sabia que era um homem que lady Anne Baldwin deveria evitar.

 

A feira em Devonshire estava animada. Havia mercadores vendendo de tudo e artistas itinerantes, exibindo seus talentos. Anne acenava para os conhecidos, passeando bem devagar para não apressar Bertha, a fiel criada.

Os tios seguiam à frente, vestidos como se estivessem indo a um grande baile em vez de a uma feira no campo. Anne escolhera uma roupa simples, um chapéu sem muitos enfeites e um de seus mais velhos xales. Não queria se destacar na multidão.

Não tinha energia para desempenhar o papel de grande dama naquele dia. Desde que Merrick e ela haviam feito aquele estranho passeio, não aparecera mais no estábulo. Tinha medo, admitiu a si mesma. Medo de seus sentimentos por ele. Nada de bom viria de um relacionamento entre os dois, mas saber daquilo não a impedia de desejar a companhia dele.

Merrick estava na feira. Ele havia saído da propriedade bem cedinho, depois de aconselhar seu tio a apostar nele e no garanhão, na corrida. Se não fosse a perspectiva de ganhar um bom dinheiro nas apostas, ela duvidava que a tia e o tio tivessem concordado em comparecer à festa.

Uma cigana chamou Anne, interrompendo-lhe o passeio.

— Deixe-me ler a sua sorte, minha boa dama.

Curiosa, Anne entrou em uma tenda colorida. Os olhos da mulher estavam muito maquiados. Ela usava um lenço amarrado na cabeça e um anel em cada dedo. Anne tirou uma moeda da bolsa.

— Isto é tudo o que eu tenho — ela disse, o que não era verdade. Porém, não queria gastar todo o seu dinheiro com as tolices que a mulher lhe diria.

A cigana agarrou a moeda e a mão de Anne. Ficou analisando por algum tempo o que parecia ver.

— Você terá uma longa vida. Mas vejo problemas em seu futuro.

Anne supunha que a maioria das pessoas esperava mesmo problemas de algum tipo no futuro. Sorriu.

— Há um homem — a cigana disse, fitando-a intensamente. Os olhos se arregalaram, e a mulher empalideceu.

— Tome cuidado com o lobo que existe em seu estábulo — ela murmurou. — Fique longe dele ou a maldição cairá sobre vocês dois.

Anne olhou surpresa para a cigana.

— O que quer dizer com isso?

— Vá agora — a mulher ordenou. — Não posso fazer nada a não ser alertá-la do perigo que corre.

 

Anne se sentiu enganada, mas se levantou para sair da tenda. Não havia lobo algum no estábulo, e ela esperara que a cigana lhe dissesse apenas que encontraria um homem especial e que teria um futuro brilhante. Era esse tipo de coisa que uma mulher queria ouvir. Subitamente uma idéia passou por sua cabeça. E se o lobo a que a cigana se referia fosse apenas um homem a quem ela devia evitar.

— Esse lobo em meu estábulo é um homem ou uma besta? — ela perguntou.

A cigana deu de ombros.

— Ele é ambas as coisas. — A cigana deixou a tenda como se estivesse com pressa e sumiu na multidão.

Anne sentiu um arrepio percorrer o seu corpo e envolveu-se em seu xale.

— Oh, aí está, lady Anne. — Bertha surgiu ao lado dela.

— Eu a perdi de vista e por um momento fiquei preocupada.

Ainda irritada, Anne pegou o braço da criada.

— Estou bem. Parei para que uma cigana lesse minha sorte.

Bertha caiu na risada.

— Isso foi perda de dinheiro. Aposto que ela disse que logo vai conhecer um homem bom, e os dois se casarão e terão um futuro maravilhoso juntos. As ciganas dizem o que as mulheres querem ouvir.

As palavras de Bertha a inquietaram ainda mais. Ela também achava aquilo. Porém, uma agitação na feira interrompeu seus pensamentos. A corrida estava prestes a começar.

— Vamos, lady Anne. Seus tios devem estar preocupados, querendo saber onde estamos. Vamos nos reunir a eles para assistir à corrida e almoçar.

A criada de Anne jamais perdia uma refeição, o que ficava patente em suas formas rechonchudas. Bertha apressou-a para se dirigir ao lugar onde começaria a corrida.

Anne, porém, não conseguia se esquecer do que a cigana dissera. Olhou ao redor e localizou a mulher. Ela estava parada a certa distância e a observava com ar apreensivo. Rapidamente, Anne olhou para o outro lado.

Localizou a tia e o tio sentados sobre uma manta estendida no chão. Millicent, a criada pessoal da tia, tinha preparado uma cesta com um lanche e agora estava colocando tudo sobre a manta.

— Oh, aí está você! — Lady Claire exclamou ao ver a sobrinha. — Venha e sente-se, Anne. Estamos famintos.

Anne se apressou a obedecer.

— Não sei como lhes agradecer por terem me trazido aqui hoje. Sei que não gostam desse tipo de festa, mas estou me divertindo muito.

Distraída, a tia acariciou de leve a mão de Anne.

— Gostaria que um evento social colocasse tanto brilho em seus olhos e rubor em seu rosto quanto esta feira vulgar. Talvez nunca consiga assumir a vida de casada. Não é de surpreender que nenhum pretendente tenha lhe pedido a mão em casamento, Anne. Você tem gostos que não combinam com uma moça bem nascida. Deve ter puxado o lado de sua mãe.

Anne desanimou-se.

— Lamento desapontá-la, querida tia. Tentarei dar mais atenção a algum rapaz que se aproxime de mim quando estivermos novamente em Londres.

—Deixe a garota em paz—repreendeu o tio. — Queremos que ela seja feliz em seu casamento, não queremos, esposa? A tia sorriu levemente para Anne.

— Claro que sim. Não precisa se apressar, Anne.

 

A atitude da tia era estranha. A maioria das mães se desesperava para encontrar um noivo para suas filhas quando elas estavam na idade certa para se casar. Mas como os tios não demonstravam grande afeição por ela, suspeitava que eles ficassem felizes em se livrar da responsabilidade de guardiões.

— Eu me esforçarei mais — ela prometeu. — Logo completarei vinte e um anos. Se não me casar, serei uma solteirona.

— Pensamos em ficar no campo depois do seu aniversário — informou o tio. — Achamos que apreciaria mais cavalgar e passear pela propriedade, como adora fazer. Anne se surpreendeu. Seu aniversário aconteceria em três meses. Não conseguia acreditar que a tia decidira passar mais tempo ali em vez de voltar a Londres, onde aconteciam as festas e estavam suas amigas. Na verdade, pensara que seus guardiões pretendiam lhe oferecer um baile de aniversário. Seria uma oportunidade para atrair pretendentes à sua mão.

— Que bondade da parte dos senhores — disse com sinceridade. — Realmente prefiro a vida no campo à de Londres, mas sei que preferem a cidade grande.

— Será seu aniversário — a tia observou. — Queremos que o passe no lugar que mais lhe agrada.

O arroubo de ternura vindo dos parentes a surpreendeu. Certamente ela os julgara mal. Apesar de não demonstrarem afeição, preocupavam-se de fato com ela.

— Eu ficaria muito feliz em passar o meu aniversário no campo.

— Então está combinado — a tia disse, olhando para a comida que a criada havia preparado para eles. — Vamos comer agora antes que os cavalos comecem a corrida e levantem pó, arruinando nossa refeição.

Quando se sentaram para almoçar, Anne descobriu que não tinha fome. Estava nervosa. Talvez por causa de Merrick e de seu garanhão negro. Talvez pelo que lhe dissera a cigana. Ninguém pareceu notar que comeu muito pouco. Os tios estavam ocupados comentando os últimos mexericos de Londres.

— Dois deles já se casaram — tia Claire dizia. — Há quem diga que são aceitos pela sociedade por causa de sua ligação com a viúva. Pois eu digo que é uma vergonha. Estou feliz que Anne não tenha se interessado por Jackson Wulf como todas as outras mulheres para quem ele revela aquelas covinhas.

Anne começou a prestar atenção ao que tia Claire contava para o marido. Falava dos irmãos Wulf. Os selvagens Wulf de Londres, como eram chamados. Ficou subitamente alerta.

— Wulf — ela murmurou.

— O que foi querida? — a tia perguntou.

Anne não respondeu, perdida em pensamentos. Agora sabia por que algumas vezes sentia que conhecia Merrick de algum lugar. Ele era a imagem de Jackson Wulf, apenas com os cabelos e olhos mais escuros.

Como não reparara antes? As feições e a altura dos dois eram as mesmas. O olhar de Anne se dirigiu automaticamente para o local onde aconteceria a corrida. Levantou-se e tentou enxergar adiante, apesar de o sol impedir que tivesse uma boa visão.

Um homem alto se colocou entre ela e a pista.

— Não consigo ver nada daqui — ela disse aos tios. — Vou um pouco mais à frente.

— Bertha, vá com ela — a tia instruiu. — E cuidado para que ninguém lhe tome a bolsa.

A criada, ainda envolvida com seu almoço, colocou o prato de lado e se levantou.

— Estou ficando muito velha para perseguir essa menina — reclamou.

 

Anne não esperou por Bertha. Apressou-se a entrar no meio da multidão, ansiosa para ver Merrick. Não se importou com as queixas das pessoas quando forçava a passagem. Finalmente, posicionou-se onde achou ser o melhor lugar. Percorreu com os olhos os corredores que estavam preparando seus cavalos. Merrick já estava sentado sobre o seu enorme garanhão negro. Os dois formavam uma imagem formidável. Ambos escuros e magníficos.

Prendeu a respiração quando ele circulou com seu animal entre os outros corredores, obviamente com a intenção de intimidá-los. Seus cabelos estavam presos para trás, ressaltando a bela aparência. Usava uma camisa branca, aberta no pescoço. As calças eram pretas, assim como as botas, agora polidas e brilhantes. Ela nunca tinha visto um homem tão bonito. A não ser o restante dos irmãos Wulf.

Todos muito charmosos. Jackson era amigo dela. Haviam se conhecido fora do país no ano anterior. Ele já era casado.

Diziam que a mulher era uma bruxa, mas Anne gostara de lady Lucinda no momento em que haviam se conhecido.

Por Deus, Merrick se parecia muito com Jackson. A ponto de serem irmãos.

Precisava contar-lhe a respeito de tamanha semelhança. Aquilo poderia esclarecer as dúvidas dele quanto às suas origens. Assim como poderia provocar problemas para os irmãos Wulf, e Deus sabia que eles já tinham preocupações suficientes.

Anne viu-se em um impasse. Valorizava a amizade com Jackson. Sempre o achara encantador e divertido, muito diferente dos rumores que circulavam a respeito dele. Porém, Merrick talvez encontrasse conforto ao saber de onde vinha, caso suas suspeitas estivessem corretas. E como não estariam? Merrick tinha de ser um Wulf.

Lembrou-se do que a cigana lhe dissera. O lobo no estábulo. Merrick? Ele era filho ilegítimo, mas, de qualquer forma, pertencia à família Wulf. Estava ansiosa para lhe dizer que solucionara o mistério a respeito de seu pai.

Os corredores se alinharam; os cavalos batiam os cascos, prontos para a corrida. Atrás de si, Anne ouviu homens fazendo apostas. Merrick era o favorito.

Ouviu também os comentários das mulheres presentes. Falavam da boa aparência de Merrick.

— Imagino que lady Baldwin passe mais tempo do que deveria em volta dos cavalos do marido — uma delas comentou maldosamente. — Ouvi dizer que ela adora homens mais novos e viris.

— Ela não vai se desapontar com esse aí, então. — Outra mulher riu. — Suponho que o homem esteja acostumado a servir às mulheres de seus patrões, como bom garanhão que é.

Anne afastou-se imediatamente dali, sentindo o estômago doer. Lembrou-se de como a tia observara Merrick quando ele se apresentara na sala de refeições naquela primeira manhã. Era como se estivesse analisando o que tinha diante de si. Na ocasião, não reparara naquilo. Mas a tia certamente não podia tê-lo procurado no estábulo e sugerido que tivessem uma aventura.

Subitamente, foi dominada pelo ciúme. Repreendeu-se, pensando que não tinha direito de se sentir daquela forma. E nem tinha direito de suspeitar que a tia fosse aquele tipo de mulher. Lembrou-se, então, do diálogo entre os guardiões naquele mesmo dia. O tio dissera que, se as galinhas se comportassem bem, a raposa também o faria. Teria aquele comentário sido dirigido à tia Claire?

— Tolice — ela murmurou. Nunca tinha sentido ciúmes de homem algum, e nem sequer gostava da emoção, que tornava as pessoas irracionais.

Querendo se livrar das preocupações, procurou os parentes e vislumbrou-os pouco adiante, junto aos outros espectadores. A tia observava Merrick enquanto o tio fazia apostas.

Merrick, como se percebesse o olhar de lady Claire, virou-se e encarou-a por alguns instantes. Logo em seguida, localizou Anne, que tentou, sem sucesso, desviar o olhar. O curioso é que Anne nunca se sentira tão agitada e trêmula quando Jackson Wulf a fitara. Eles eram dois homens tão parecidos e, ao mesmo tempo, tão diferentes.

Um trompete soou, e Merrick desviou a atenção, voltando-se para a corrida. Anne corou, surpresa por ele tê-la mantida cativa daqueles olhos, e virou-se, inquieta, deparando-se com a expressão reprovadora da tia.

Recusou-se a se envergonhar, especialmente depois de ter ouvido os comentários a respeito das preferências dela por homens mais jovens. Então, tia Claire não via problemas em apreciar Merrick, mas achava que Anne não podia fazer o mesmo. Ergueu o queixo em um gesto de desafio, sentindo-se recompensada com o olhar surpreso que recebeu da tia.

Quando um tiro foi disparado, Anne voltou-se para a corrida. Oh, como desejava participar pessoalmente de uma competição como aquela. Estar sobre um cavalo, controlando-o, os cabelos soltos esvoaçando ao seu redor... Envolvida na disputa, gritou junto com a multidão quando Merrick se colocou à frente dos demais competidores;

Tudo acabou muito depressa. Ele vencera com facilidade, e muitas pessoas se aproximaram para congratulá-lo. Anne não podia fazer aquilo, pois não seria apropriado, mas, por um momento desejou estar entre os que se reuniam ao seu redor. Na verdade, queria se atirar em seus braços e beijá-lo.

Sentindo-se culpada por tais pensamentos, olhou na direção dos tios, esperando que eles não tivessem presenciado o entusiasmo que demonstrara pela corrida. Eles não estavam prestando atenção a ela, e pareciam envolvidos em uma pesada discussão. Apostava que tinha a ver com Merrick. Olhando mais uma vez para ele, notou que parecia bastante concentrado nos patrões.

Parecia absurdo, mas a impressão que se tinha era que Merrick estava ouvindo a conversa. Aquilo seria impossível, dada a distância e o ruído produzido pelas vozes altas dos que se encontravam próximos dele. Porém, quando ele a fitou, Anne percebeu preocupação e alarme na expressão normalmente arrogante.

Um momento depois, ele se distraiu recebendo o prêmio pela vitória. Subitamente, os tios surgiram ao lado de Anne.

— Vamos para casa — a tia ordenou. —Acho que já teve excitação demais por um dia.

A desaprovação estava patente na forma como ela torcia os lábios. Normalmente, Anne teria ficado arrasada por tê-la decepcionado. No momento, porém, aquilo não parecia mais tão importante. No entanto, acostumada a obedecer, seguiu os guardiões em direção à carruagem,

Merrick também retornaria para casa, mas duvidava que ele viajasse ao lado deles. Parecia apreciar a independência. Um lobo solitário pensou. Lembrando-se dos Wulf, imaginou se deveria falar com ele a respeito de suas suspeitas. Conhecer sua origem resolveria algo ou apenas criaria mais problemas?

 

Não era da conta dele, Merrick tentou se convencer pela centésima vez desde que voltara para a propriedade. Ele era apenas um empregado, nada mais do que isso. Não era responsabilidade sua interferir na vida de Anne. Ainda assim, a conversa que tinha ouvido entre lorde e lady Baldwin o aborrecia. Deveria contar a Anne o que escutara? Ela acreditaria nele se assim o fizesse?

Começou a andar de um lado para o outro no estábulo, praguejando contra a sua indecisão. Nunca havia se intrometido nesse tipo de assunto antes. Mas agora já estava envolvido, quisesse ou não. Maldita fosse a sua audição anormal e tudo de estranho que havia nele.

Porém, Anne precisava ser alertada. Gostava muito dela para permitir que ignorasse fatos tão relevantes quanto ao seu futuro. Ela não aparecia no estábulo havia uma semana. Aquilo era bom, pois ele estivera cuidando do cruzamento da potra cinzenta, algo que lorde Baldwin não queria que ela presenciasse. Por outro lado, sentira muita falta de Anne, e percebera o quanto estava enamorado, o que não era nada bom.

Mesmo sendo tarde da noite, decidiu que seria melhor falar imediatamente com Anne. Sabia qual era o seu quarto. Ele a tinha visto parada junto à janela, olhando para fora, uma vez ou outra na semana anterior. Jogaria uma pedra no vidro para chamar sua atenção. Quase se chocou contra ela quando estava saindo do estábulo.

— Deus meu — ela murmurou. — Quase me matou de susto. Por que estava andando sorrateiramente a esta hora da noite?

— Por que você estava andando sorrateiramente a esta hora da noite? — ele devolveu a pergunta.

— Precisava falar com você. Em particular. Assim, achei melhor esperar todos irem para a cama.

Apesar de curioso a respeito do que a levara a procurá-lo, Merrick estava bastante preocupado com a conversa que tinha ouvido.

— Também tenho de falar com você. Escutei algo hoje que acho que precisa saber.

— Escutou algo? — Anne franziu a testa. — E tem a ver comigo?

Estavam parados à porta do estábulo, sujeitos a serem vistos por alguém que decidisse dar uma voltinha noturna. Pegou Anne pelo braço e a puxou para dentro.

— Escutei seu tio e sua tia discutindo na feira. Anne o olhou surpresa.

— Como pôde ouvi-los? Pelo que vi, você nem se aproximou deles.

Ele não entraria em detalhes sobre sua audição especial. Já lhe falara sobre as habilidades estranhas que possuía, o que tinha de bastar no momento.

— Eu os ouvi — ele insistiu. — E eles estavam discutindo sobre você.

Apesar de ela continuar estranhando que ele pudesse tê-los ouvido, ficou curiosa.

— Estavam discutindo a meu respeito?

— Sim. Sua tia estava preocupada conosco. Com o modo como nos olhamos. Ela disse que teria sido melhor terem certeza de que você não encontrará nenhum homem que a interesse e com quem queira se casar. Insistiu que não permitirá que você se case.

— O quê? — Anne meneou a cabeça. — Isso não faz sentido. Não é que eles não queiram que eu me case, simplesmente ninguém apareceu para me pedir em casamento.

— Anne. — Merrick segurou-a pelos ombros. — Já lhe disse mais de uma vez que você é uma jovem adorável. Seus tios não querem que você se case porque, se estiver casada quando completar vinte e um anos, sua herança sairá do controle deles. Eles querem a sua fortuna, Anne.

Ela deu um passo para trás, recusando-se a acreditar no que ouvia.

— Isso não é verdade. Vou tomar posse de minha herança quando completar vinte e um anos. Foi esse o combinado há muito tempo.

Merrick precisava fazê-la entender.

— Apenas se estiver casada, Anne. Ouvi isso também. Se ainda for solteira, eles assumirão o controle de sua herança até que complete vinte e cinco anos, quando tomará posse de tudo, esteja ou não casada. Aposto como essa herança terá sido gasta ou manipulada de forma que você não consiga colocar as mãos nela.

 

Anne olhou-o com espanto.

— Mas é a minha herança — ela insistiu. — Nunca soube que havia uma cláusula no testamento estipulando um matrimônio.

Merrick percebeu que ela não queria acreditar nele. Ainda se apegava à esperança de que os parentes se importavam com ela mais do que suas ações demonstravam.

— Eles não queriam que você soubesse dessa exigência. Estão seriamente endividados. Escutei sua tia dizer isso durante a discussão, apesar de ela manter a voz muito baixa. Eles perderiam tudo se você se casasse Anne.

A dúvida ainda anuviava os olhos dela. Era difícil acreditar na palavra de um estranho quando queria tanto acreditar nos tios.

— Não desejo magoá-la. Se não acredita em mim, tudo bem. Pelo menos eu lhe disse o que ouvi e estou em paz com a minha consciência.

Dever cumprido, ele pensou. Então, voltou as costas para Anne, pronto para retornar ao quarto onde dormia antes que a tentação o fizesse perder o controle e tomá-la em seus braços. Merrick se lembrou de que ela tinha algo para lhe contar.

— O que queria me dizer? — perguntou, virando-se de novo para ela.

Ainda com a expressão carregada, ela mordeu os lábios, indecisa.

— Eu... não é nada. Nada que seja da minha conta, como o que me contou não é da sua. Deixe para lá.

Ele sentiu-se magoado, apesar de não querer ser tão vulnerável às emoções. Ainda assim, talvez ela precisasse pensar melhor sobre o que ele dissera. Quem sabe acabaria acreditando. Voltou-lhe ás costas mais uma vez para sair definitivamente do estábulo quando ouviu ruídos. Parou, atento.

— Alguém está vindo para cá. É melhor se esconder até que eu veja quem é e o que deseja.

Anne parecia estar tentando raciocinar. Olhou em volta.

— Não escutei nada.

— Silêncio! — ele ordenou. Pegou-a pelo braço e a levou até a sala dos arreios. — Fique aí e não apareça até que a pessoa saia.

Uma silhueta surgiu na entrada do estábulo um momento depois. Merrick não se surpreendeu ao constatar quem era a visita. Era a tia de Anne. A mulher o observava com interesse desde que o vira pela primeira vez. Ele estava acostumado com as visitas das esposas de seus patrões e normalmente achava divertido esse tipo de interesse. Porém, não naquele momento, e nem por parte daquela mulher.

— Posso ajudá-la, lady Claire? — ele perguntou. Ela dirigiu a Merrick um olhar provocante.

— Espero que sim. Notei algo que me aborreceu hoje e pensei em esclarecer o assunto. Preferi não envolver o meu marido.

— Creio que entendo suas razões — Merrick disse secamente.

— O assunto diz respeito a lady Anne. Temo que minha sobrinha esteja interessada em você. E que, neste caso, você tire vantagem de sua inocência.

— Verdade?

Lady Claire se aproximou. Ela não era uma mulher sem atrativos, mas tinha idade para ser mãe de Merrick, e as rugas em sua testa e em volta da boca denunciavam isso.

— Eu notei o modo como você olha para ela... e o modo como lady Anne olha para você. Anne é uma jovem muito bonita e não duvido que a ache atraente, mas não permitirei que abuse dela.

Merrick encostou o corpo ao batente da porta do quarto onde Anne se escondera.

— É muito louvável de sua parte querer proteger sua sobrinha.

Lady Claire deu de ombros.

 

— Suponho que até uma jovem sensível como Anne possa perder a cabeça por um rosto bonito. Tenho certeza de que você está bastante acostumado com as mulheres se jogando em seus braços, Merrick. Não vejo necessidade, porém, de ficar em volta das saias dela quando há outra opção disponível.

Apesar de saber bem qual seria a resposta, Merrick fez a pergunta:

— E que opção é essa?

Lady Claire estendeu a mão e acariciou-lhe o peito.

— Eu, naturalmente. Seduzir uma jovem inocente é uma coisa. Viver uma aventura com uma mulher experiente é outra. Meu marido me aborrece e preciso de distrações.

Merrick não queria ser tocado por aquela mulher, mas Anne precisava ser convencida de que a tia e o tio não tinham boas intenções em relação a ela, não importava no que preferisse acreditar.

— Está preocupada que eu arruíne a reputação de lady Anne antes que ela se case?

— Não seja tolo. Para ser honesta, não quero que ela se intrometa em meu território. Considero tudo aqui como propriedade minha, e isso inclui você. — Lady Claire balançou a cabeça. — Mas agora que você sugeriu, creio que não é má idéia. Veja, eu prefiro que Anne não se case. Não seria financeiramente bom para mim se isso acontecesse.

Merrick sabia que cada palavra proferida magoava Anne, mas ela precisava saber.

— Então agora está me pedindo que arruíne a reputação de lady Anne para que assim nenhum cavalheiro a queira como esposa?

— Essa é uma possibilidade — ela respondeu. — Mas primeiro, quero você para mim. Estamos entendidos?

Merrick deteve a mão de Claire, que ainda tocava seu peito.

— Não. Não sou sua propriedade para receber ordens suas. Não me possui como se eu fosse um cavalo do estábulo de seu marido. Não tenho o menor interesse em distraí-la, lady Claire.

A mulher não acreditava no que ouvia.

— Está me rejeitando?

— Não tenho muitos direitos, mas imagino que decidir com quem eu desfruto de prazeres e com quem não quero desfrutá-los é um deles. Agora volte para casa e vá satisfazer os seus desejos com seu marido.          

Lady Claire ficou boquiaberta.

— É Anne, não é? Você deseja somente ela. Merrick pensou qual seria a melhor resposta.

— Eu me importo com Anne. Não faria nada para prejudicá-la, e certamente nada faria que viesse a ser de seu benefício, lady Claire.

— Oh, Deus, você está apaixonado por ela.

Será que ele estava? Merrick nunca se apaixonara antes. Apenas sabia que desejava proteger Anne. Queria que ela fosse feliz.

— Vá embora — ele disse. Anne já escutara o suficiente.

— Pobre tolo. — A mulher riu. — Até mesmo Anne sabe qual é o lugar dela na sociedade, assim como sabe qual é o seu. Não pense que será o primeiro pretendente. Temos tido um trabalho enorme afastando os homens interessados em Anne sem que ela descubra nada. Prefiro que ela não saiba, que pense que não é atraente o bastante para atrair um homem. Pelo menos por enquanto.

— Posso contar a ela o que me disse — Merrick observou. Lady Claire voltou a rir.

— Não ousaria fazer isso. E, mesmo que o fizesse, ela não acreditaria. Ela pensa o melhor de nós e sempre foi assim. Pobrezinha, tão carente de amor.

Ele sentiu vontade de surrar a mulher.

— Como não ama a sua sobrinha? Como consegue não amá-la? — Ele não pretendera dizer aquilo em voz alta, mas não conseguira se controlar.

Lady Baldwin endireitou o corpo.

— Cumpri o meu dever com Anne. Não queria filhos. Nem mesmo gosto de crianças, mas meu marido me convenceu de que haveria recompensas se a criássemos. Não vou permitir que essas vantagens me sejam subtraídas. Você não quis cooperar comigo, portanto está despedido. Simplesmente direi ao meu marido que você não apenas estava tentando arrastar Anne para o seu quarto, mas que também me fez a mesma proposta. Faça as suas malas. Deverá deixar a propriedade logo pela manhã.

Com esse aviso, lady Baldwin virou-se e saiu tempestuosamente do estábulo. Merrick esperou um momento para ter certeza de que ela se fora. Abriu, então, a porta do pequeno quarto e entrou. Encontrou Anne com as mãos sobre o rosto, o corpo sacudido por soluços. Inclinou-se e tocou-a com gentileza.

Ela ergueu o rosto banhado de lágrimas.

— Não queria acreditar em você. Estava tão cega pelas minhas próprias esperanças. Sinto-me uma tola. Isso o deixa feliz?

Houve um momento em que Merrick pensara que lhe traria prazer revelar os planos diabólicos da tia dela, para poder assim expor as maldades de que os nobres eram capazes de cometer. Mas não sentia prazer algum vendo as lágrimas de Anne. Elas doíam em seu coração.

— Sinto muito — foi tudo o que conseguiu dizer.

— E agora, o que vou fazer? Merrick a forçou a se sentar.

— Olhe para mim, Anne. Você precisa se casar. E quanto antes melhor.

Ela arregalou os olhos.

— Casar-me? Com quem?

— Não sei. Sua tia não disse que há não sei quantos pretendentes à sua mão? Você escolhe um deles, e os dois podem ir até Gretna Green, onde o casamento é realizado sem formalidades. Pode se casar antes que seus tios a impeçam de fazê-lo.

Anne passou as mãos nervosamente sobre os cabelos.

— Mas isso é impossível. Primeiro, eu teria de ir a Londres encontrar alguém, e então convencê-lo a se casar comigo. Meus tios jamais me deixariam viajar sem eles. Não posso ir sozinha. Não sem algum tipo de proteção. Há ladrões nas estradas. Não seria seguro.

Merrick estaria sem emprego na manhã seguinte.

— Posso levá-la até Londres, Anne. Agora, esta noite. Posso proteger você.

Os enormes e doces olhos de Anne o fitaram.

— Por que faria isso? Por que se importa comigo, Merrick?

Por que ele se importava com ela? Nunca havia se metido em assuntos que não lhe diziam respeito. Mas com Anne tudo parecia diferente.

— Sei como é se sentir insignificante para alguém. Mas você é uma pessoa que merece ser amada e respeitada. Não permitirei que seus tios abusem de você e a façam se sentir dessa forma.

Mesmo com o coração partido, Anne sentiu-se reviver naquele momento. Ninguém jamais se importara com ela como Merrick parecia se importar. Ele a encorajava a ter sonhos e esperanças. Ele a havia protegido quando ela precisara, e expusera o plano diabólico dos familiares, já que, inocente demais, ela não queria acreditar no que estava diante de seus olhos.

Não conseguia pensar em qualquer cavalheiro em Londres com quem quisesse se casar. Mas conhecia um homem que a fazia se sentir como ninguém o fizera antes e como nenhum outro jamais o faria.

 

— Case-se comigo, Merrick — ela murmurou. Ele arregalou os olhos por um instante.

— Não, Anne — ele disse suavemente. — Você não pode se casar comigo. Sabe bem disso.

— Podemos fugir esta noite, como você sugeriu. Vamos até Gretna Green.

Merrick sacudiu a cabeça, negando.

— Não sabe o que está dizendo, Anne. Está aborrecida e não consegue pensar com clareza.

Anne sabia exatamente o que queria, talvez pela primeira vez na vida. Amava Merrick. Tinha de convencê-lo a se casar com ela.

— Você se sente amargurado por não ter tido a vida que lhe foi negada — ela argumentou. — Que melhor vingança a sua do que se casar para ter essa vida? Tudo o que tenho será seu. Não terá de dormir em um estábulo nunca mais, Merrick.

Ele sacudiu a cabeça novamente, mas Anne percebeu que estava pensando sobre o que ela dizia. Considerando a oferta.

— Se vai ter de passar toda a sua fortuna para um homem, por que não deixá-la então para o seu tio? — ele perguntou.

Anne não mentiria para ele.

— Estou furiosa com o que fizeram comigo. Magoada. Passei minha vida inteira tentando ganhar a aprovação e o amor deles. Terei algumas exigências, caso aceite se casar comigo.

Merrick arqueou a sobrancelha.

— Tais como?

— Minha independência. Espero ser plenamente livre e fazer o que me agradar.

— E o que espera de mim?

Ela desejaria poder dizer que queria ser amada por ele, mas tinha aprendido sua lição sobre amor. Sabia que não era um sentimento que se podia exigir. Era algo que precisava ser dado livremente.

— Espero que você faça o que quiser também — ela respondeu. — Conquanto não interfira no que me agrada.

— Você me quer sob seu controle.

Não era o que Anne realmente queria, mas não diria a verdade. Confessar aquilo apenas deixaria claro que não havia aprendido nada.

— Não sou mais cega como fui até agora. Entendo que minha visão do mundo não era verdadeira. As pessoas não são bondosas simplesmente por serem assim. Sempre desejam alguma coisa.

A resposta dela partiu seu coração. Merrick destruíra a visão que Anne tinha do mundo. Roubara-lhe a inocência. Mas ela estava certa. Que melhor vingança contra os nobres do que entrar na sociedade deles por meio do casamento? E ter tudo o que lhe fora negado? Tudo... menos Anne. Ainda assim, não era um tolo. E ela precisava de sua ajuda.

— Está bem. Eu me casarei com você, Anne.

— Mas neste momento não tenho nenhum dinheiro. Isso não seria um problema no futuro próximo.

— Tenho o prêmio em dinheiro que recebi pela corrida. Será suficiente para nos levar aonde precisamos ir e nos trazer de volta.

Eles se olharam por um instante. Ao perceber que ela hesitava, ficou contente. Apesar de ser um tolo se recusasse a oferta dela, se sentiria aliviado caso ela voltasse a pensar com clareza.

Porém, ela tomara sua decisão.

— Sele os cavalos, Merrick — pediu.

 

Merrick e Anne estavam acampados a uma distância de menos de um dia de Gretna Green. Anne vestira as calças e as botas do garoto do estábulo antes de saírem às escondidas da propriedade. Merrick tinha se mostrado utilíssimo na viagem. Sabia quando deviam escolher a trilha dentro dos bosques e quando usar a estrada. Não tinha problemas para encontrar caça. Sabia coisas demais para um mero mortal. Naquela noite ele havia dito que acenderiam uma fogueira.

Estavam sentados comendo um coelho assado que ele caçara e preparara. Ele estava bem à frente de Anne, e seus olhos brilhavam no escuro. Anne tentou dizer a si mesma que era reflexo das chamas da fogueira, mas já vira aquele brilho antes, quando não havia fogo algum.

Ela ainda não lhe contara sobre suas suspeitas a respeito de quem poderia ser o pai dele. A fuga de Blackthom Manor não lhe dera tempo para pensar em nada a não ser escapar. Mas o momento chegara. Merrick tinha o direito de saber.

— Preciso lhe contar uma coisa — ela disse.

— O que é?

Por um momento, ela se distraiu, observando fascinada Merrick lamber os dedos engordurados. Dedos longos e finos.

— Anne? Não vai me contar o que é? Ela tentou recuperar os pensamentos.

— Creio que sei quem foi seu pai.

Os olhos dele brilharam na escuridão.

— Como isso é possível? Nem mesmo eu sei.

— Quando o vi pela primeira vez, passou-me pela cabeça o estranho pensamento de que eu já o conhecia. No dia da corrida, percebi que isso acontecera porque você é parecido demais com lorde Jackson Wulf. A razão de não ter feito a associação imediatamente é que você tem olhos claros e cabelos escuros, e com Jackson ocorre o contrário.

Merrick franziu a testa.

— Wulf? Ouvi falar dessa família. Qualquer homem que saiba alguma coisa sobre cavalos já escutou a respeito dessa família. Porém, nunca vi nenhum deles. Não passam muito tempo em Londres, pelo que sei.

— Não passam — ela concordou. — Eles preferem ficar em sua propriedade no campo a maior parte do tempo. Eles... bem... há boatos sobre eles.

Seus olhares se encontraram.

— Amaldiçoados — ele disse suavemente. — Dizem que os Wulf são amaldiçoados com a insanidade.

Anne fez um gesto como se aquilo fosse uma tolice.

— Não acredito que sejam amaldiçoados. Lorde Jackson é uma pessoa excelente, e eu o conheço bem para afirmar que é perfeitamente normal. Não estou familiarizada com os irmãos, mas presumo que sejam como ele. Lorde Jackson e eu somos amigos.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Amigos?

Anne poderia estar se enganando mais uma vez, mas pensou ter captado na voz dele uma ligeira irritação. Era como se ela lhe pertencesse e nenhum outro homem pudesse ousar querer ser seu amigo.                                      

— Ele é casado — ela esclareceu depressa. — Quero dizer, ele não era quando o conheci no exterior, mas agora é.

 

Merrick continuou a observá-la, como se tentando se decidir se a amizade entre ela e lorde Jackson poderia ser algo não muito inocente.

— E eu me pareço com ele? Ela concordou.

— Muito. Mais do que poderia indicar uma mera coincidência.

Merrick bebeu um gole de água antes de falar.

— O pai deles morreu, se me lembro bem.

— Sim. Mais ou menos há uns dez anos. Ele... ele se matou. Dizem que estava louco quando cometeu esse ato bárbaro contra si mesmo. Foi um escândalo. A esposa também enlouqueceu e morreu logo após o suicídio de lorde Wulf.

Ele ficou um longo tempo em silêncio, como se estivesse pensando naquilo que acabara de ouvir.

— O que disse pode ser verdade, Anne, mas suponho que não faça diferença alguma agora.

A resposta a surpreendeu. Anne se levantou do tronco onde estivera sentada.

— Não faz diferença? Você saber que é um Wulf? Descobrir que tem meio-irmãos? Tudo isso não faz diferença para você?

Merrick deu de ombros.

— Isso não muda nada para mim, Anne. — Ele se levantou também. — Continuo sendo um bastardo. Um segredo que meu pai queria manter escondido do resto do mundo. E conseguiu. Duvido que meus irmãos me recebam na família de braços abertos, querendo compartilhar suas vidas e fortuna comigo. Continuo sem nada. Sem nome, e agora sem emprego.

Anne contornou a fogueira e foi ao encontro dele.

—Amanhã, isso tudo mudará—ela observou. —Amanhã, você terá tudo o que eu tenho. E o mais importante, terá a sua vingança.

Um brilho estranho tomou conta dos olhos de Merrick.

— E você terá a sua vingança. Certo, Anne?

Ela desviou o olhar. Para ela, o casamento não era simplesmente um ato de vingança. Mas Merrick não precisava saber disso.

— Sim — ela respondeu. — Eu terei a minha vingança. Ele tocou-a de leve no queixo de Anne, forçando-a a encontrar seu olhar.

— Você deveria querer muito mais do que isso, Anne. Eu preciso da vingança. Mas você não é como eu. É diferente.

Lágrimas arderam nos olhos de Anne. Ela tentou contê-las. Merrick estava errado.

— Perdi minha vida tentando ser a pessoa que pensei que minha tia e meu tio quisessem que eu fosse. Desperdicei anos tentando fazê-los me amar. Isso era tudo o que eu queria, ser amada de novo.

Merrick secou uma lágrima que escorria por seu rosto. Ele a fitava com ternura.

— E você merece ser... amada. Acho que não posso prosseguir com isso, Anne. Quero dizer, com os planos de casamento. Nem mesmo para conseguir minha vingança.

Ele a rejeitaria também? Não tinha pensado naquela possibilidade quando optara pela fuga.

— Você também não me quer — ela murmurou.

Ele fechou os olhos por um momento, como se a acusação o magoasse.

— Quero você desde o primeiro momento em que a vi. Há coisas em mim que nem eu mesmo compreendo Anne. Você é boa e inocente, e merece muito mais do que isso. Um arranjo.

Ela tinha acreditado que, se endurecesse o coração para o mundo, estaria se poupando de futuras decepções. Mas agora entendia que tinha se tornado tudo aquilo que aspirara ser enquanto crescia. Seu coração era generoso, e se derretia por aquele homem. Tocou o queixo dele com carinho.

— Você é um homem muito melhor do que imagina. Nenhum homem conseguiu me fazer sentir as coisas que você consegue.

Merrick subitamente se afastou e deu-lhe as costas.

— Faço as mulheres sentirem atração por mim — ele disse, em tom seco. — Esse é um de meus "dons".

Anne não tinha certeza do que ele queria dizer. Supôs que poderia considerar a aparência dele um dom. Ou sua voz, baixa e ritmada. Porém, sabia que a forte atração ia muito além da beleza exterior. E o aroma, apesar de encantá-la, não poderia fazê-la sentir algo que não sentisse honestamente dentro de si.

Quisesse ele ou não, Merrick tinha princípios. Suspeitava que não tomaria sua inocência naquela noite sem se dispor a casar com ela no dia seguinte. Portanto, teria que seduzi-lo. Não voltaria atrás.

Anne cobriu a distância que havia entre eles e o tocou no ombro. Ele se voltou imediatamente. Levantando-se na ponta dos pés, ela pressionou sua boca contra a dele. Apesar de inexperiente na arte de sedução, percebeu que deveria perder todas as suas inibições, deixando-se levar pelas emoções, permitindo que a conduzissem. Dessa forma, conseguiria derrubar as barreiras dele.

Os lábios de Merrick eram quentes e firmes, mas infelizmente não estavam correspondendo ao beijo. Ela fitou-o.

— Diga que me deseja, Anne.

Certamente ele sabia daquilo muito bem. Tinha a experiência para saber.

— Você sabe que sim. Merrick meneou a cabeça.

— Não, não sei. É o cheiro que vem de mim que faz com que me deseje? O motivo tem algo a ver comigo? Diga que quer a mim, Anne. Somente a mim.

Ele a puxou para os seus braços. O aroma estava no ar, e Anne tinha de admitir que era um forte afrodisíaco. Mas ela desejava o homem que ele era. O homem que a ensinara a montar um cavalo como sempre quisera, que a levara para cavalgar livremente na charneca à meia-noite. O homem que a tinha salvado dos lobos, que se importava com ela o suficiente para alertá-la contra a ganância dos tios. O homem que virava as costas para a fortuna porque acreditava que ela merecia mais da vida, mais do que uma mera vingança, mais do que alguém sem sobrenome.

Durante toda a vida, Anne quisera ser amada novamente. Naquele instante, percebeu que Merrick a amava. Talvez ele nem soubesse disso, mas ela sabia, e era o bastante no momento.

— É o homem que eu quero, Merrick — ela respondeu. — E o homem que eu amo.

Os olhos de Merrick brilharam na escuridão.

— Você me ama? Um bastardo? Um homem com estranhos dons que nem ele consegue entender? Alguém com um coração repleto de amargura por causa de um mundo que não tem um lugar para ele?

Os braços de Anne rodearam-lhe o pescoço.

— O seu lugar agora é ao meu lado. O destino nos uniu. Preciso de sua força, e você da minha ternura.

Vagarosamente, ele abaixou a cabeça. Os lábios roçaram os dela com suavidade.

— Você tem força suficiente consigo, Anne — ele disse.

— Faça amor comigo — ela murmurou. — Compartilhe o que você é comigo. E eu farei o mesmo com você.

Merrick soltou um ruído que veio do fundo de sua garganta, algo que lembrava um grunhido. Seus olhos azuis brilhavam como naquela noite em que ela quase tinha sido atacada pelos lobos.

— Não me tente, Anne. Sabe que a desejo. Ela ergueu o queixo.

 

— Então me possua, Merrick. Ele sorriu ante o desafio.

— Você estaria me fazendo cair em uma armadilha ao tirar sua inocência de forma a ser obrigado a desposá-la amanhã. Muito astuto.

Ela queria se casar com Merrick. Quem melhor do que ele para ser seu marido? Ele entendia o amor dela pelos cavalos, permitiria que mantivesse sua independência, não se importaria quando ela não quisesse seguir todas as regras sociais. Não havia nada de errado em usar de um artifício para que mantivessem os planos. Ela o amava. Merrick podia não pronunciar as palavras, mas também a amava. Ou, pelo menos, era nisso que ela acreditava. Estaria se enganando mais uma vez?

— Você me ama, Merrick?

Ele acariciou levemente seus cabelos.

— E muito difícil não amar você.

Aquela não era uma resposta. Não realmente.

— Quero saber se me ama — repetiu.

Merrick desviou o olhar. Anne pensou que ele não responderia, mas ele a fitou novamente.

— Você sabe que sim.

Ela sentiu o coração inflar de alegria. Sabia que Merrick não estava mentindo. Jamais a enganaria. Finalmente ela conseguia o que sempre quisera. Com ousadia, abriu a blusa e tirou a combinação. Ficou diante dele nua da cintura para cima.

— Mostre que me ama — ela pediu.

Havia fogo nos olhos dele, que percorriam seu corpo, aquecendo-a.

— Meu Deus, Anne — ele sussurrou. — Como você é linda. Sua pele parece a mais fina porcelana, tão,clara e macia que imagino se você vai quebrar se eu tocá-la.

— Eu não vou quebrar — ela lhe assegurou, a voz trêmula. — Toque-me e verá.

Seus olhares se encontraram. Ele estendeu a mão e afagou-a com gentileza no rosto. Depois, tocou um dos seios.

Anne gemeu suavemente quando sentiu a carícia na pele sensível. Ele se inclinou e beijou-a no pescoço antes de tomar um dos mamilos entre os lábios. Anne agarrou-lhe os cabelos e seus joelhos fraquejaram ao ter um seio sugado, depois o outro. A sensação era indescritível.

Merrick ergueu-a nos braços como se ela não pesasse nada, colocou-a gentilmente sobre os cobertores que já estavam estendidos no chão e se ajoelhou ao seu lado.

— O que sabe a respeito do que acontece entre um homem e uma mulher, Anne?

— Não muito — ela respondeu honestamente. — Minha tia não falava comigo sobre essas coisas. Minha criada me disse que doeria bastante a primeira vez que eu estivesse com um homem.

Merrick deslizou um dedo pelo braço dela.

— Não sei muito a respeito de estar com uma mulher virgem. Mas sei que pode haver prazer entre nós, Anne. Está disposta a passar primeiro pela dor?

Ele estava oferecendo uma última oportunidade para que recuperasse o bom senso, Anne pensou. Mas ela não queria recuperá-lo. Confiava em Merrick. Não havia amor sem confiança.

— Sim, estou disposta a enfrentar a dor. Confio em você.

Lentamente, ele tirou a camisa. Anne nunca vira o peito nu, e rapidamente concluiu que iria querer que Merrick tirasse a camisa muitas e muitas vezes no futuro. Pêlos negros cobriam-lhe o peito e continuavam pelo abdômen, desaparecendo no cós das calças. Ela queria muito tocá-lo. Estendeu os dedos e se satisfez acariciando-o. A pele era quente, exatamente como imaginara.

— Você é lindo — murmurou.

—Venha para os meus braços. Sinta a minha pele contra a sua. Sinta as diferenças que há entre nós dois.

Ela obedeceu com prazer, e Merrick entrelaçou os dedos em seus cabelos, inclinou-lhe a cabeça e beijou-a.

Mergulharam em um encontro ávido, as línguas se experimentando com frenesi. Os pêlos do peito forte roçavam seus mamilos, fazendo-a sentir um calor entre as pernas. Ele deitou-a no cobertor sem se afastar, as bocas unidas, pele contra pele. Depois, afastou-se e fitou-a intensamente, hipnotizando-a com aqueles olhos incomuns, antes de se inclinar e beijá-la no pescoço.

Prosseguiu a exploração de seu corpo e, ao alcançar os mamilos, sugou-os, um a um. Ela enterrou as unhas nos ombros musculosos, e seus quadris se arquearam, como se impulsionados por uma força incontrolável. Lentamente, Merrick deslizou a mão por todo seu corpo, até se deter nas calças, que abriu e retirou.

Anne era recatada por natureza. Não era fácil deixar o passado para trás em apenas uma noite. Mas quando Merrick beijou-a novamente, começou a relaxar. Enquanto ele a distraía com a boca habilidosa que provocava seus lábios, alcançou com os dedos sua parte mais íntima.

O primeiro toque a fez pular. Ter a mão dele ali, onde nenhum homem estivera antes. Mas ele continuou beijando-a, movendo os dedos levemente sobre os pêlos sedosos. Ainda concentrada nas delícias proporcionadas pela boca quente e suave, ela parou de se preocupar com os propósitos das mãos dele.

Ao perceber que ela não mais resistia, Merrick tornou-se mais ousado. Deslizou o dedo e esfregou com gentileza um ponto em que seguramente todas as suas sensações se concentravam. Ela ofegou e tentou fechar as pernas.

— Não — ele disse baixinho. — Não se feche para mim. Deixe-me dar-lhe prazer antes de fazê-la sentir dor.

Ela ruborizou, constrangida.

— Eu... eu estou úmida por alguma razão que desconheço. Merrick sorriu e a beijou carinhosamente.

— Se não estivesse, eu não estaria fazendo direito a minha parte. Está úmida para que nossos corpos possam se unir. É para que possa me receber dentro de si. Por isso, não se feche para mim.

Anne forçou seu corpo a relaxar. Nunca tinha imaginado poder haver tanta intimidade entre uma mulher e um homem. Sempre pensara que seria algo bastante rápido, ambos expondo apenas as partes necessárias para completar o ato, depois se cobrindo e indo dormir.

— E eu posso tocá-lo, também? — ela perguntou. — Quero dizer, onde eu desejar?

Merrick ergueu uma sobrancelha.

— Curiosa?

— Sim.

Ele se inclinou e a beijou novamente.

— Meu corpo é seu esta noite.

Subitamente ele se levantou, tirou as botas e começou a se despir. Anne se acomodou na manta, colocou as mãos sob a cabeça e o observou. Achou que ele estava demorando demais para tirar as calças e chegou a pensar que ele fosse mais recatado do que fingia ser. Porém, logo percebeu que ela estava prendendo a respiração, os olhos fixos nos dedos que o revelariam por completo, e soube que ele fazia aquilo para dar-lhe prazer.

Por fim, as calças deslizaram pelas pernas de Merrick, que endireitou o corpo e ficou ali, nu diante dela. Anne arregalou os olhos, surpresa com o tamanho de seu órgão sexual. Lembrou-se dos comentários das mulheres na feira, a palavra "garanhão" vindo à mente.

— Gosta do que vê, Anne?

Seus olhares se encontraram. As sombras da noite escondiam em parte as feições dele, mas os olhos azuis brilhavam. Lentamente, ela o percorreu de novo com o olhar. Passou pelos ombros largos, pelos músculos do peito, pelo abdômen liso... Os quadris eram estreitos, a pele macia, as pernas longas e musculosas cobertas por pêlos escuros.

— Sim, eu gosto do que vejo — ela murmurou. — É um homem belíssimo.

Merrick voltou para o seu lado. Mesmo que os olhos revelassem a paixão que o consumia, ele a tocava com gentileza. Beijou-a com carinho, provocando-lhe os lábios. Deitou-se e abraçou-a. O contato de pele contra pele e a sensação do corpo masculino contra o seu aqueceram-na. Sentiu-se derreter, sem defesas.

Lentamente, ele acariciou-lhe o corpo até alcançar novamente sua intimidade.

— Quero tocá-la, experimentá-la, fazê-la minha... para sempre.

Ela também queria aquilo. Desejava ser possuída por ele, e desejava tomá-lo. Começou a tocá-lo, deslizando os dedos pelo peito largo, pelo abdômen rijo, envolvendo seu membro túrgido. Afastou depressa a mão ao senti-lo estremecer.

— Machuquei você? — ela perguntou.

— Não, apenas me pegou de surpresa. Mais uma vez, ela o tocou.

— É sempre tão... tão...

— Não — ele respondeu. — Mas quando estou perto de você, sim, a maior parte das vezes.

Anne queria fazer mais perguntas, mas ele a beijou outra vez. Era inocente, mas não tão inocente a ponto de não entender que ele não queria mais conversar. Merrick moveu-se mais para baixo, sugando os mamilos e mordiscando-os enquanto buscava com as mãos o triângulo de pêlos entre suas pernas. Dessa vez, ela não se retraiu. Ele acariciou-a como tinha feito antes até que ela mordesse o lábio e começasse a se mover de encontro àqueles dedos. Uma força cresceu dentro de si, um desejo imperioso e desesperado, uma fome que nunca sentira antes.

A respiração ficou difícil, e ela enterrou as unhas nas costas de Merrick, que aumentou a pressão e inseriu um dos dedos nela. Anne arqueou-se e gemeu, sentindo que não tinha mais controle sobre o próprio corpo.

— Calma — ele murmurou, e Anne pensou que era o mesmo tom que ele usava para tranqüilizar os cavalos.

Merrick interrompeu o carinho, fazendo-a querer implorar... ainda sem saber muito bem o quê. Com gentileza, ele entreabriu suas pernas com os joelhos, colocando-se entre elas. Instintivamente, ficou tensa, mas ele logo a beijou, distraindo-a. Ao perceber que ele não fazia nenhum outro movimento, começou a relaxar, a saborear a sensação de ter a boca de Merrick movendo-se sobre a sua, a língua explorando-a em um ritmo que seus quadris sentiam o impulso de acompanhar, por alguma estranha razão.

Ele, então, deslizou a mão entre seus corpos e retomou a tortura. Anne ficou feliz ao saber que era normal estar tão úmida, ou teria ficado muito embaraçada. Ele se aproveitou daquela umidade para esfregar a sensível protuberância até fazê-la sentir que algo dentro de si explodiria. Naquele momento, Merrick se posicionou sobre seu corpo.

Anne sentiu o membro dele entre as pernas, pressionando a abertura feminina. Ele moveu-se um pouco, e a pressão a fez ofegar. Ele também ofegou, mas por outro motivo.

— Droga — sussurrou. — A sensação de estar com você não devia ser tão boa. Estou tentando ir devagar. Não sabe como é difícil me controlar, Anne.

Ele, então, penetrou-a. A dor foi aguda e a pegou de surpresa. Ela não gritou, mas lágrimas surgiram em seus olhos. Por um momento, imaginou como se permitira ser seduzida a ponto de desejar que aquilo acontecesse. Ele a penetrou mais profundamente, e ela esperou pela dor, que não veio. Havia apenas a sensação de Merrick dentro de si.

— Agora que a dor terminou, posso dar-lhe prazer — ele disse. — Você está bem?

Ela assentiu, e Merrick a beijou carinhosamente, enquanto começava a mover o corpo bem devagar, estimulando-a, como fizera antes com os dedos.

Anne arqueou os quadris, e Merrick aprofundou-se em seu corpo. Ela ofegou, entregando-se aos instintos e à paixão por aquele homem. O cheiro dele dominou seus sentidos, e algo primitivo a dominou. Enterrou as unhas nas costas fortes e mordeu-o no pescoço enquanto ele prosseguia com as intensas e rápidas investidas, gemendo de prazer. Ela começou a mexer-se de maneira selvagem.

Merrick afastou-se um pouco, tomou-lhe os cabelos entre os dedos e fitou-a com paixão. Naquele instante, Anne soube que tinha chegado a um ponto em que seria impossível resistir à pressão dentro de si. Foi tomada por uma onda de calor e sentiu o corpo tremer. Merrick não interrompeu os movimentos, prolongando seu prazer até ela imaginar que morreria com as intensas sensações. Então, ele investiu uma vez mais, gemeu seu nome e estremeceu. Agarrou-se a ele, os corações acelerados, os corpos suados, a respiração descontrolada.

Anne achou que tudo tinha acabado, que a tempestade que acontecera entre eles estava se afastando e que, finalmente, se deitariam juntos, exaustos, mas então Merrick grunhiu e afastou-se dela. Dobrou-se, apertando o estômago.

— O que foi Merrick?

Ele não respondeu. Anne não estava familiarizada com o ato sexual, mas suspeitava que o que acontecia agora não fazia parte de um ato normal.

— Merrick — ela tentou novamente. — Olhe para mim. Diga-me o que há de errado!

Ele virou a cabeça. Seus olhos estavam de um tom de azul que ela nunca vira antes, e ele gritou de dor. Os dentes tinham se alongado e pareciam presas. Tocou-lhe o rosto, e Merrick segurou-a pelo pulso. Anne quase gritou. Os dedos dele estavam curvados, as unhas haviam crescido.

Ele acompanhou seu olhar e, ao ver as próprias mãos, rapidamente a libertou.

— O que sou eu? — ele murmurou. — O que sou eu? — ele gritou, a voz tomada pela agonia enquanto o corpo começava a convulsionar.

Anne afastou-se, levantou-se e cobriu o corpo com a manta, observando-o. Ambos estavam indefesos e aterrorizados. O que ela via não podia ser real. Aquele tipo de coisa só acontecia em pesadelos.

Merrick ainda estava no chão, nu, se contorcendo, mas ela via pêlos começarem a cobrir o corpo dele. As feições também mudavam, e onde houvera antes um homem agora havia uma besta que se levantou e olhou para ela na escuridão.

— Merrick? — ela murmurou.

A besta não respondeu. Em vez disso, olhou para a lua cheia. O lobo uivou, e aquele som que Anne escutava traduzia a dor atroz e o ódio de um homem que se sentia traído.

O animal abaixou a cabeça e olhou para ela. Entreabriu os lábios, mostrando enormes caninos. Amada por ele como homem, morta por ele como besta. Aquele pensamento cruzou sua mente antes que ela fosse envolvida pela escuridão.

 

O sol que se infiltrava por entre os galhos das árvores despertou Anne. Ela estava encolhida no chão, com a manta em torno do corpo. Por um momento, não conseguiu se lembrar de onde se encontrava ou do motivo de estar ali. Tentou se mover, e seus músculos protestaram. A dor entre as pernas lhe trouxe à memória a noite anterior. Sentou-se abruptamente, e olhou em torno do acampamento.

Merrick estava sentado em um tronco olhando para ela. Vestira as calças e tinha a manta em volta dos ombros. Estava tremendo. Parecia novamente humano... Quase humano. Os olhos ainda estavam atormentados.

— O que aconteceu comigo, Anne?

Ela não queria pensar naquilo. Queria desesperadamente fingir que a noite anterior não acontecera... pelo menos a partir de um certo momento.

— Você se transformou em um lobo. Ele arregalou os olhos.

— O que quer dizer com isso? Agi como um animal? Anne não compreendia o que acontecera, e era difícil explicar, especialmente para a pessoa que sofrera aquilo. Porém, era necessário que fosse direto ao ponto.

— Não, Merrick. Um lobo. Um animal. Você se transformou em um diante dos meus olhos.

Ele passou a mão nervosamente pelos cabelos. Então, ergueu uma das mãos diante de si e se pôs a observá-la atentamente.

— O que está me dizendo é impossível.

— É possível — ela retrucou, enrolando-se mais na manta para se proteger da friagem. — Eu nunca imaginaria que uma coisa dessas poderia acontecer... até a noite passada.

Ele se levantou e largou a manta.

— Deve ter sido um sonho — ele disse, e implorou com o olhar para que ela concordasse com a afirmação.

Anne seria capaz de fingir? Sua vida inteira tinha sido uma farsa. Precisava ser honesta com Merrick e consigo mesma.

— Os seus dons — ela disse. — Quem sabe este é outro deles.

— Dons? — ele resmungou. — Se aconteceu comigo o que você está me dizendo, não é um dom, Anne. É uma maldição.

— O que você se lembra de ontem à noite? — ela perguntou.

As feições tensas de Merrick se suavizaram por um momento, e ele se aproximou de Anne, sentando-se ao seu lado.

— Lembro-me de nós dois. Juntos. Transformados em um só. Então a dor. A dor horrível. Depois disso, não me recordo de nada até que acordei nu e tremendo de frio nos bosques esta manhã.

Anne observou suas próprias mãos agarradas à manta.

— Pensei que ia morrer — ela confessou, encarando Merrick. — Quando você ficou parado diante de mim como um lobo, pensei que me mataria.

Os olhos dele revelavam toda a sua agonia.

— Eu nunca machucaria você, Anne. Eu acabaria com a minha vida antes de, sob qualquer forma, tirar a sua. — Ficou pensativo por alguns momentos. — Preciso ir embora daqui.

Naquele dia se casariam. Não seria uma grande cerimônia na igreja, com flores e com toda a sociedade festejando, mas seria o casamento dela e o importante era que acontecesse. Na noite anterior, Anne tinha encontrado tudo o que desejara na vida naquele homem. Não deixaria que seu sonho acabasse.

— Talvez nunca mais aconteça. — Anne não sabia se estava certa. Mas, quem sabe, eles haviam estado excitados demais, drogados um com a presença do outro quando ela pensou que ele tivesse se transformado em um lobo.

— Mas e se voltar a acontecer, Anne?

— E se não acontecer mais? — ela retrucou.

 

Merrick a fitou por um longo tempo, tentando tomar uma decisão.

— Tudo bem. Vamos passar mais uma noite juntos. Espero que não seja um erro, Anne.

Merrick passou a tarde caçando. Seus sentidos, sempre mais fortes do que os de um homem normal, estavam agora mais aguçados do que antes. Escutava o que nunca escutara antes. Via movimentos na floresta a uma distância que nenhum mortal poderia ver.

Será que o que Anne contara tinha acontecido de verdade? Lembranças surgiram em sua mente o dia inteiro. Lembranças dos dois juntos, fazendo amor, depois a dor, a visão de sua mão coberta de pêlos, as garras no lugar das unhas, os dentes enormes. As memórias o perturbavam, faziam com que se sentisse doente... E ainda assim, ao observar Anne se movimentar pelo acampamento, ele foi tomado por outra sensação. Algo primitivo. O instinto de se unir a ela de novo.

Merrick sacudiu a cabeça, tentando afastar o pensamento. Derramara sua semente em Anne na noite anterior, com a certeza de que se casariam no dia seguinte. Porém, se realmente fosse aquela besta agora, homem durante o dia e animal à noite, não poderia desposá-la. E, no entanto, talvez tivesse gerado um bastardo. Ele, mais do que qualquer um, sabia o que significava impingir um sofrimento como aquele a uma criança.

— Anne, venha aqui — ele chamou.

Ela parou de lançar galhos na fogueira, onde estava sendo preparado o jantar. Merrick desejou que ela hesitasse e demonstrasse cautela, mas ela logo se uniu a ele.

— O que foi Merrick?

Anne estava ali diante dele, tão linda, os olhos cheios de preocupação... preocupação por ele, Merrick percebeu.

— Sente-se — ele pediu, indicando um lugar ao seu lado.

— Mas nosso jantar... — ela começou a dizer.

— Pode esperar — ele terminou a frase. Anne sentou-se, e Merrick segurou-lhe a mão.

— Hoje à noite, assim que a lua aparecer, se eu me transformar novamente, quero que me faça uma promessa.

— Aquela árvore — Anne disse, apontando na direção onde estavam seus cobertores. — Posso subir rapidamente se...

— Não — ele a interrompeu, fitando-a. — Não quero que fuja de mim, Anne. — Tirou uma pistola do cinto e a estendeu para ela. — Quero que me mate.

Anne arregalou os olhos e recusou-se a aceitar a arma que ele colocara em sua mão.

— Não, Merrick. Não me peça isso. Eu amo você.

Merrick sentiu uma profunda dor no peito. Pegou a mão de Anne e a forçou a segurar a pistola.

— Se você me ama, tem de fazer isso por mim. Não posso ter uma vida assim. Homem durante o dia, um lobo à noite. É melhor morrer.                                                

Lágrimas brotaram dos olhos dela. Sacudiu a cabeça, protestando.

— Você pode ter uma vida, Merrick. Uma ao meu lado. Como planejamos. Estive pensando. Podemos ir procurar seus irmãos e...

— Não — ele a interrompeu mais uma vez. — Não vou rastejar implorando nada a eles. Tenho o meu orgulho, Anne. Se eles são meus irmãos, nosso pai queria que eles não se envolvessem comigo ou teria me criado junto à sua família. Ele teria revelado aos outros filhos a minha existência antes de morrer.

— Mas talvez eles saibam o que está acontecendo com você — Anne persistiu. — Dizem que eles foram amaldiçoados. Talvez a maldição não seja a loucura. Talvez eles sofram do que você sofre agora. Talvez eles conheçam um modo...

— Anne — ele disse com mais gentileza. — Você não entende? E porque meu pai devia saber que havia alguma coisa errada comigo que manteve a minha existência em segredo, escondendo-a de todos, envergonhado de mim. Não, não procurarei meus irmãos.

Ela largou a pistola e se levantou, encarando-o.

— Então prefere morrer? É isso, Merrick? O seu orgulho vale mais do que sua vida, do que nossa vida juntos?

Ele também se ergueu e fitou-a.

— Não temos uma vida juntos — explicou lentamente, como se ela fosse uma criança. — Não se o que aconteceu ontem se repetir. Agora, prometa que fará o que lhe pedi.

Anne sacudiu a cabeça.

— Não farei promessa alguma. Não acredito que você possa me machucar, Merrick. Podia ter feito isso a noite passada. Eu estava inconsciente. E mesmo que não se lembre do que aconteceu, acredito que de algum modo continua sendo você mesmo, apesar de sua forma física se transformar.

— Você achava que seus tios a amavam mais do que ao dinheiro — ele a lembrou sem delicadeza. Quando ela deu um passo para trás, como se tivesse sido golpeada, ele sentiu-se, de fato, um animal. — Desculpe-me — disse suavemente. — Foi algo cruel de dizer.

Anne endireitou o corpo e ergueu o queixo.

— A verdade é freqüentemente cruel. Assim, enquanto estamos sendo honestos, talvez você devesse examinar os seus próprios motivos para recusar qualquer tipo de ajuda de qualquer pessoa. Acho que gosta disso, Merrick. Gosta de ser um bastardo porque lhe dá o direito de ser amargo e de querer vingança. Se tiver tudo isso, então não precisará de mais nada, ou de mais ninguém. Não terá que ser responsável nem compartilhar o seu coração. Não precisará se doar. Não terá de ter êxito onde o seu pai fracassou. Não precisará olhar no espelho um dia desses e perceber que é igualzinho a ele.

—Não sou como ele! — Merrick não pretendia gritar nem assustá-la, mas diabos, ele não era igual àquele homem que o gerara. Nunca abandonaria um filho seu... ou será que o faria? Pelo que sabia, era algo que já estava fazendo. Perdeu a fome. Precisava de tempo para pensar. Queria ficar sozinho. Assim, afastou-se do acampamento.

Esperava que Anne o detivesse, mas ela não o fez. E era melhor que fosse assim. Sua fome física tinha desaparecido, mas sua fome por aquela mulher era outro assunto. Ele continuava desejando-a, queria possuí-la. Porém, se não a tivesse com amor, não deveria tomá-la pela luxúria. O homem sabia daquilo... a besta dentro de si, não.

 

Anne estava dormindo quando Merrick retornou e entrou nu sob as cobertas. Ela começara a temer que ele não voltasse.

Durante a ausência dele, tinha verificado os cavalos, havia comido, limpara o acampamento e se ocupara de algumas outras coisas na tentativa de fazer o tempo passar. Por fim, sem nada mais para distraí-la, acabara adormecendo.

— Anne — ele murmurou, puxando-a para os seus braços. Ela deixou-se envolver, aconchegando-se ao corpo que emanava calor. Os cabelos dele estavam úmidos. Obviamente encontrara um riacho onde se banhara, e ela queria muito fazer o mesmo. Tinha tentado se limpar com a pouca água que ainda havia no acampamento.

— Sabia que o seu perfume viaja pela floresta e vai ao meu encontro mesmo quando tento me afastar ao máximo de você? — ele perguntou, beijando-a com carinho. — O seu aroma sempre me atrai de volta. Eu não consigo resistir.

Anne o acariciou, e era como se suas mãos tivessem vida própria. Poderiam os dois ter vivido o mesmo sonho na noite anterior? Seria possível que duas pessoas, unidas em corpo, alma e coração, compartilhassem um mesmo pesadelo?

Mais do que qualquer outra coisa, Anne queria acreditar que aquilo pudesse acontecer e que, de fato, tinha acontecido. Suas mãos, movendo-se sobre o corpo musculoso, mostravam-lhe que ele era apenas um homem. Ao perceber que ele estava excitado, seu pulso acelerou. Fechou os olhos e se recusou a pensar no que acontecera.                

— Beije-me — ela murmurou.

Ele o fez com tanta delicadeza que quase partiu seu coração. O corpo de Merrick tremia de desejo por ela, mas o beijo era terno. Naquele momento, soube que nunca deveria temê-lo. Não importava se tivessem compartilhado um pesadelo, ou se tudo fora real. Ele jamais a machucaria. E ela o amava, independentemente do que ele fosse.

Passou os dedos pelos cabelos úmidos e entreabriu os lábios, convidando-o a invadir sua boca. A paixão substituiu a ternura, e ele a despiu. As respirações se aceleraram em meio aos beijos. As mãos de Merrick estavam em todo o seu corpo, nos seios, no ventre, entre as pernas.

Sentindo que ela estava pronta para recebê-lo, Merrick gemeu e se posicionou sobre ela. Penetrou-a profundamente, fazendo-a ofegar.

— Envolva-me com as pernas, Anne — ele pediu.

Sem hesitação, ela obedeceu. Merrick segurou-a pelos quadris e começou a investir em movimentos ritmados, enlouquecendo-a de prazer, aproximando-a do limite. Tornou-se primitivo, mordeu seu pescoço, mas nunca com força suficiente para feri-la. Anne enterrou as unhas nas costas musculosas, entregando-se também a instintos selvagens. A tensão cresceu até explodir, fazendo-a arquear-se e gritar o nome dele. Pouco depois, sentiu-o pulsar dentro de si e estremecer.

Agarrou-se a ele, ambos respirando com dificuldade, os corações acelerados... então, o primeiro espasmo de dor o atingiu, e Merrick se afastou imediatamente.

— O revólver, Anne — ele grunhiu. — Pegue-o!

Anne sentou-se, enrolando-se no cobertor, e o encarou. Seus olhos se encontraram. Lentamente, ela meneou a cabeça.

— Não, Merrick. Não vou pegar.

Tomado pela dor, ele gemeu e se curvou, os joelhos pressionando o peito. Os olhos se tornaram mais azuis e, mesmo na escuridão, Anne viu que eles se enchiam de lágrimas.

— Por favor, Anne — pediu. — Morreria se algum dia a machucasse. Amo você.

Estendendo a mão, ela tocou seus cabelos.

— Eu confio em você, Merrick. Agora, você precisa encontrar forças para confiar em si mesmo.

— Maldição! — ele gritou. — Vai acabar morrendo por causa desse seu coração generoso e confiante.

Outro espasmo, mais forte, fez com que o corpo de Merrick tremesse por inteiro. Anne se afastou um pouco. Encostou-se a um tronco de árvore, sabendo que poderia subir caso se sentisse ameaçada. O revólver estava dentro da sacola que se encontrava exatamente aos seus pés, ao lado da árvore. Tremendo, ela pegou a sacola e retirou a arma.

Diante de si, ele terminava de se transformar. Apesar do que ela tinha dito antes, seu primeiro instinto havia sido pegar a arma. Quando a apontou para o animal, ele a olhou profundamente. Eram os olhos de Merrick que a observavam através da face de um lobo. Abaixou o revólver.

— Se quiser me matar, vá em frente — ela disse com suavidade. — Mas o homem com quem compartilha sua pele ficará muito zangado.

O lobo balançou a cabeça e, um momento depois, trotou noite adentro. Anne soltou a respiração que estivera segurando. Deitou-se, cobriu-se e manteve o revólver perto de si. Esperaria até de manhã para ver se Merrick tinha dito a verdade. Se o seu perfume sempre o traria de volta.

Anne ficou a noite inteira esperando, escutando, desejando que Merrick voltasse para ela na forma do homem que amava. Um ruído chamou sua atenção. Virou-se e encontrou-o nu no meio dos arbustos, tremendo com o ar da manhã.

Ergueu-se, enrolada na manta, e dirigiu-se até ele. Simplesmente ficaram olhando um para o outro por um momento, antes que Anne desse um passo à frente, abrisse o cobertor e o envolvesse junto a ela. A pele de Merrick estava gelada.

— Por que não fez o que lhe pedi, Anne? — ele sussurrou tocando os cabelos dela. —Ambos sabemos agora que não foi um sonho que compartilhamos.

— E sabemos também que você não me atacou — ela disse.

— Até agora.

Anne suspirou profundamente e tocou-o no rosto.

— Por que sempre acredita no pior a respeito de si mesmo, Merrick?

Ele fechou os olhos por um instante e, quando os abriu, fitou-a com carinho.

— E por que você está ao meu lado, compartilhando seu calor, quando sabe quem eu sou?

Anne sorriu levemente e puxou a manta para cobri-los melhor.

— Porque amo você, Merrick. Um amor incondicional. O seu amor por mim também não é assim?

Ele se desvencilhou do abraço, foi até onde estavam suas roupas e começou a se vestir.

— É por causa do amor que sinto que devo fazer o que for melhor para você, Anne. Vou levá-la a Londres.

Anne sentiu uma pontada no coração.

— Londres?

— Certamente você tem por lá amigos que a acolherão. Encontrará um homem bom que a ame, exatamente como sempre desejou que acontecesse.

Anne balançou a cabeça.

— Não vou para Londres. Mais um dia de viagem e chegaremos a Gretna Green, onde eu pretendo casar com você, exatamente como combinamos.

Merrick colocou a camisa.

— Não vou me casar com você, Anne. Não agora. Haviam voltado ao mesmo ponto de discordância. Anne sentiu-se frustrada.

— Então me leve de volta para minha casa. Não para Londres.

Ele parou de se vestir.

— Você não pode voltar para junto de seus tios. Ambos sabemos disso. Não até que...

— Não vou me casar com outro homem — ela o interrompeu. — Irei para casa e tentarei viver o melhor que puder, agora mais consciente de como meus tios se comportam. Talvez com o tempo você volte a me procurar. Talvez com o tempo venha a me amar como eu amo você.

Merrick praguejou e foi até onde ela estava.

— Não é que não a ame, Anne. É justamente o contrário. Mas...

— Mas o seu orgulho o impedirá de ter tudo aquilo que deveria ser seu — ela o interrompeu novamente.

Merrick estava confuso. O que havia de errado com aquela mulher? Não conseguia ver que era impossível que os dois ficassem juntos? Que uma maldição o perseguia, e sempre o acompanharia, não importando o quanto lutasse contra ela? Que tinha sido uma tolice ter feito a proposta de casamento? O que ele estivera pensando? Que ela poderia torná-lo um homem melhor?

Anne já tinha lhe dado mais do que ele sonhara alcançar um dia. Ser amado por alguém como ela... Os pensamentos de vingança contra essa classe social perdiam força quando comparados à dádiva daquele amor. Julgara tudo pela ação de apenas um homem, o seu pai. Anne lhe mostrara que havia bondade no mundo, bondade que podia ser encontrada nos outros, não importava se vivessem no solar ou no estábulo.

Por meio dela, sentira esperança. Esperança de que pudesse modificar-se e se tornar um homem melhor. Agora sabia que ser um homem melhor não tinha relação com ser um nobre. Porém, aprendera essas lições tarde demais. Agora nem mesmo era mais um homem. Era alguma coisa diferente.

Observou Anne, envolvida na manta, o queixo erguido. Mesmo sem as finas roupas, ela era uma dama. A mãe dele teria gostado de Anne. Havia muito de verdade no que ela lhe dissera. Era seu orgulho que o fazia se sentir inferiorizado diante dos outros. Fora o orgulho o responsável pela mágoa que sempre sentira.

— O que deseja que eu faça Anne?

A expressão do rosto adorável suavizou.

— Quero que se case comigo. Quero que procure os seus irmãos e fale com eles a respeito do que aconteceu com você. E, se eles o convidarem para fazer parte de suas vidas, quero que os aceite como seus parentes, assim como eu farei.

Merrick suspirou profundamente. Seu orgulho era algo muito difícil de ser deixado de lado, mas ele o faria por Anne.

— Se é isso o que deseja Anne... Por você, renunciarei ao meu orgulho. Por você, eu farei qualquer coisa.

O rosto de Anne se iluminou, e seu sorriso enorme o contagiou. Ela começava a se aproximar quando Merrick sentiu-se novamente tomado pela dor. Dobrou-se, apoiando as mãos nos joelhos, tentando respirar. O próximo espasmo o lançou ao chão.

— Merrick!

Escutou a voz de Anne vinda de muito longe. O suor cobria seu rosto assim como o corpo inteiro. Aquilo não podia estar acontecendo. Não à luz do dia, sem uma lua cheia brilhando no céu. Será que a maldição era algo que se tornava mais forte a cada dia? Será que ele deixaria de ser um homem e se tornaria definitivamente uma fera?

— Merrick!

Gritou ao sentir a mão de Anne em seu ombro.

— Não faça isso, Anne — ele avisou. — Afaste-se de mim. Está acontecendo de novo. — Freneticamente, seus olhos procuraram algo pelo acampamento. — O revólver, Anne! Onde está?

— Não vou atirar. Não preciso de arma alguma — ela disse, inclinando-se sobre o corpo dele. — Confio em você, Merrick. Você ainda não aprendeu a confiar em si mesmo. Precisa confiar.

Ela estava vulnerável. Não contava nem mesmo com as roupas para protegê-la de seus dentes e de suas garras, caso ele a atacasse. Confiar era fácil quando ele tinha controle sobre si mesmo, mas quando o animal o dominava...

 

— Onde está o revólver? — ele repetiu, sentindo nova dor dilacerar o seu corpo.

Ela não respondeu, mas seus olhos se dirigiram para a sacola no chão perto da árvore, onde estendera as cobertas para dormir. Merrick percebeu e caminhou para pegar a sacola. Anne fez o mesmo e ambos lutaram, cada um tentando ficar com ela.

— Não, Merrick! — Anne soluçou.

Ele a afastou e retirou o revólver da sacola. Se Anne não tinha forças para atirar nele, era responsabilidade sua tirar a própria vida. Não viveria como um animal. Preparou a arma, e seus olhares se encontraram. Aqueles lindos olhos estavam cheios de lágrimas, implorando, amorosos. Ela estendeu a mão.

— Não faça isso comigo — ela sussurrou. — Se acabar com a sua vida, acabará também com a minha.

Merrick hesitou.

— Confie em si mesmo — ela implorou. — Confie em mim.

Será que ele conseguiria? Nunca confiara em ninguém a não ser em sua mãe. E ela tinha confiado em um homem antes. Um homem que a seduzira e a abandonara com um filho. Era da natureza do homem, Merrick tinha aprendido a escolher o caminho mais fácil. Tinha sido a dele... até o momento. Lentamente, abaixou a arma.

— Por você, prometo que faria qualquer coisa. Confiarei como você confia, Anne.

Subitamente, Merrick foi lançado contra uma árvore. O choque tirou-lhe o ar, e ele abriu a boca, tentando desesperadamente respirar. Sua vista escureceu, a garganta ardeu, lágrimas brotaram de seus olhos e escorreram por seu rosto. Não conseguia fechar a boca, não conseguia respirar. Uma luz tomou a forma de um lobo. Quando a forma se completou, e permaneceu entre Anne e ele, Merrick finalmente conseguiu inspirar. O animal o encarou enquanto ele lutava para recuperar a respiração. Merrick enfrentou o olhar da fera.

— Desapareça da minha vida, lobo — ele grunhiu.

A forma foi vagarosamente se afastando e sumiu na floresta.

— Merrick! — Anne tocou o corpo dele, as mãos frias afastando-lhe os cabelos do rosto. — O que aconteceu?

Ele não tinha certeza... mas se sentia diferente, como nunca se sentira antes. Era quase como se tivesse perdido a visão e a audição... Porém, logo percebeu que suas habilidades tinham apenas enfraquecido, e agora ele enxergava e ouvia como um homem normal. Fitou o rosto pálido de Anne.

— Creio que a fera que havia dentro de mim deixou-me — ele murmurou. — Os dons, a maldição, o que quer que fosse. Foi embora.

— Embora? — ela sussurrou. — Tem certeza, Merrick? Ele tinha, e não sabia ainda como se sentia. Os dons sempre haviam feito parte de seu ser; a maldição apenas se apresentara recentemente. Era apenas um homem agora. Mas não, ele era um homem apaixonado por uma mulher. Uma mulher que ficaria ao lado dele, amaldiçoado ou não.

— Tenho certeza — ele respondeu.

Anne sentou-se sobre os calcanhares, surpresa com o que tinha acontecido.

— O que vamos fazer? — perguntou.

Havia apenas uma coisa a fazer. Dar prosseguimento ao resto de suas vidas. Merrick pegou a mão de Anne e beijou seus dedos.

— Acho que devemos seguir nosso caminho para Gretna Green. Planejo me casar hoje com você, lady Anne.

Os lábios dela tremeram quando sorriu. De repente, franziu a testa.

— Acabou de me ocorrer que você não tem um sobrenome para me dar, Merrick.

Ele pensou por um momento.

— Meu nome é Merrick Wulf, e estou pensando que depois que nos casarmos é hora de visitar meus meio-irmãos.

— Você faria isso por mim? — perguntou Anne, com lágrimas nos olhos.

— Eu já disse, farei qualquer coisa por você, Anne.

— Qualquer coisa? — ela perguntou, esboçando um sorriso malicioso.

Ela estava nua sob a manta, e Merrick achou que não levaria muito tempo para se recuperar do que acabara de acontecer. Achou que sabia o que sua amada desejava.

— Temos o dia inteiro para chegar a Gretna Green — ele disse, inclinando-se para beijá-la. — O que quer me pedir Anne?

Ela colocou um dedo sobre os lábios dele.

— Quero cavalgar seu cavalo, sem sela e sem roupas. Merrick piscou. Não era o começo que imaginara para a nova vida que teriam juntos, mas, como tinha prometido, não lhe negaria nada.

— Então, é o que fará — disse, inclinando-se e beijando-a novamente. — Mais tarde...

 

                                                                                Ronda Thompson  

 

                      

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