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Series & Trilogias Literarias
- Não creio que o mais alto tenha quaisquer hipóteses - murmurou o centurião Macro.
- E porquê, senhor?
- Olha para ele, Cato! O homem é só pele e ossos. Não aguenta muito contra o opositor. - Macro acenou para o outro lado da arena improvisada onde um prisioneiro atarracado estava a ser equipado com um escudo e uma espada curta. O homem pegou nas armas pouco familiares com relutância e avaliou o seu oponente. Cato olhou para o alto e magro bretão, nu excepto por uma pequena tanga em pele. Um dos legionários designados para os serviços da arena atirou-lhe um tridente comprido para as mãos. O bretão ergueu o tridente à experiência e ajustou a pressão para obter o melhor balanço. Parecia ser um homem que conhecia as suas armas e que se movia com uma certa segurança.
- Aposto no mais alto - decidiu Cato.
Macro deu meia volta. - Estás doido? Olha para ele.
- Já olhei, senhor. E apoio o meu julgamento com dinheiro.
- O teu julgamento? - As sobrancelhas do centurião ergueram-se. Cato só se alistara no último Inverno - carne fresca e jovem vinda do agregado imperial de Roma.
Legionário há apenas um ano e já fazia apreciações como um veterano.
- Que seja como tu queres, então.-Macro acenou em concordância e sentou-se à espera que a luta começasse. Era o último combate dos jogos organizados pelo legado, Vespasiano, num pequeno vale no meio do acampamento da Segunda Legião. No dia seguinte as quatro legiões e as suas forças de apoio estariam novamente em marcha, conduzidas pelo General Pláucio na sua determinação de cercar Camulodónia antes da aproximação do Outono. Se a capital inimiga caísse, a coligação de tribos britânicas, liderada por Carátaco de Catuvelánio, seria destruída. Os quarenta mil homens liderados por Pláucio eram tudo o que o Imperador podia dispensar para a invasão audaz das misteriosas ilhas junto à costa da Gália. Todos os homens do exército sabiam que eram superados em número pelos bretões.
Mas por enquanto o inimigo estava disperso. Se os romanos pudessem atacar rapidamente no coração da resistência britânica antes que o desequilíbrio do número pesasse
mais contra as legiões, a vitória estaria ao seu alcance. A vontade de avançar estava em todos os corações, apesar das legiões estafadas estarem gratas pelo descanso
de um dia e pelo entretenimento das lutas.
Vinte bretões foram emparelhados entre si e equipados com uma variedade de armas. Para tornar as coisas mais interessantes, os pares foram tirados à sorte de um
elmo de legionário, e uma mão-cheia de combates tornou-se divertidamente desequilibrada. Como este último combate.
O porta-estandarte da legião agia como mestre-de-cerimónias e aproximou-se a passos largos do centro da arena, agitando os braços a pedir silêncio. Os seus assistentes
apressaram-se a recolher as últimas apostas e Cato sentou-se junto ao seu centurião, tendo apostado cinco contra um. Nada de espantoso, mas apostara um mês de salário
e, se o homem ganhasse, Cato obteria uma boa quantia. Macro apostara no oponente musculoso da espada e escudo. Menos dinheiro, com probabilidades mais seguras, tendo
em conta a análise dos lutadores.
- Silêncio! Silêncio aí! - bramava o porta-estandarte. Apesar da atmosfera festiva, o controlo automático da disciplina estendeu-se sobre os legionários presentes.
Num instante cerca de dois mil soldados a gritar e a gesticular silenciaram as vozes e sentaram-se para que o combate começasse.
- Último combate, então! À minha direita apresento-vos um espadachim, bem constituído e exímio guerreiro, segundo ele afirma.
A multidão gritou trocista. Se o bretão era assim tão bom, porque lutava agora pela vida tendo sido feito prisioneiro? O espadachim riu com desprezo para a assistência
e levantou os braços subitamente, soltando um grito de guerra desafiador. Os legionários vaiaram em resposta. O porta-estandarte permitiu que o barulho continuasse
por mais um bocado antes de pedir silêncio novamente.-À minha esquerda temos o tridente. Afirma ser vassalo de um senhor qualquer. Transportador de armas de profissão,
mas não um utilizador. Portanto, isto vai ser rápido e agradável. Agora, seus bastardos preguiçosos, lembrem-se que os trabalhos recomeçam logo após o sinal do meio-dia.
A multidão grunhiu demasiado para ser convincente, e o porta-estandarte sorriu amigavelmente. - Pois então, lutadores... aos vossos lugares!
O porta-estandarte afastou-se do centro da arena, uma superfície relvada, manchada de brilhantes pedaços carmesim onde os lutadores anteriores tinham sucumbido.
Os concorrentes foram posicionados por detrás de dois montículos de erva, de frente um para o outro. O espadachim ergueu a sua curta espada e o escudo e encolheu-se
numa posição de combate. Por oposição, o tridente segurou a sua arma verticalmente e quase parecia apoiar-se nela, com uma expressão indecifrável no rosto. Um legionário
deu-lhe um pontapé e disse-lhe para se preparar. O tridente limitou-se a esfregar o sítio magoado.
- Espero que não tenhas apostado muito naquele ali - comentou Macro.
Cato não respondeu. O que é que o tridente estaria a armar? Onde estava a segurança de há momentos atrás? O homem parecia despreocupado, como se toda a manhã não
tivesse passado de um exercício aborrecido ao invés de uma série de combates até à morte. Era bom que estivesse a representar.
- Comecem! - gritou o porta-estandarte.
Ao som deste grito, o espadachim grunhiu e precipitou-se para cima do seu oponente a cinco metros de distância. O tridente baixou o cabo da sua arma e apontou as
serrilhas à garganta do homem mais baixo. O grito de guerra morreu à medida que este último baixava a cabeça, atirava o tridente para o lado e dava uma estocada
para um ataque rápido. Mas a resposta foi cuidadosamente trabalhada. Em vez de tentar recuperar a ponta do tridente, o bretão alto permitiu que o cabo desse a volta
e batesse contra o lado da cabeça do espadachim. O seu oponente caiu no chão, momentaneamente baralhado. Num ápice, o tridente inverteu a arma e avançou para matar.
Cato sorriu.
- Põe-te de pé, bastardo sonolento! - gritou Macro, com as mãos em concha.
O tridente lançou-se sobre a figura no chão, mas uma espada frenética subiu para o seu pescoço. O tridente agora sangrava mas apenas de um golpe no ombro. As pessoas
da assistência que tinham feito apostas elevadas gemiam em consternação enquanto o espadachim rebolava para o lado e se punha de pé. Ele arfava, de olhos muito abertos;
toda a sua arrogância desaparecera, agora que tinha sido habilmente humilhado. O seu alto oponente arrancou o tridente do chão e encolheu-se, com uma expressão feroz
a deformar-lhe o rosto. Não haveria mais fingimento a partir de agora, apenas uma prova de força e habilidade.
- Acaba com isso! - gritava Macro. - Espeta-o na barriga!
Cato permanecia sentado em silêncio, demasiado inibido para se
juntar à gritaria, mas incentivando com urgência o seu homem, apesar da sua habitual aversão a este tipo de lutas.
O espadachim moveu-se rapidamente para o lado, testando as reacções do outro para ver se o movimento anterior não teria sido um golpe de sorte. Mas um instante depois
as pontas do tridente estavam de novo em contacto com a sua garganta. A multidão aplaudiu em concordância. Afinâl seria um bom combate.
De repente o tridente investiu, igualado pelo salto equilibrado para trás do seu oponente, e a multidão voltou a aplaudir.
- Belo movimento! - Macro bateu com um punho na palma da outra mão. - Se tivéssemos enfrentado outros como este, éramos nós quem estaria a lutar ali agora. Estes
dois são bons, muito bons.
- Sim, senhor - replicou rigidamente Cato, de olhos fixos no par que rodava um à volta do outro, na relva ensanguentada. O Sol resplandecia sobre o espectáculo.
Os pássaros que cantavam nos carvalhos que rodeavam o vale pareciam deslocados. Por um momento, Cato sentiu-se perturbado pela comparação entre os soldados excitados
pela luta, animando os dois homens para a morte, e a plácida harmonia da natureza selvagem. Ele sempre desaprovara os espectáculos de gladiadores quando morava em
Roma, mas não podia manifestar essa aversão perante uma companhia de soldados que viviam pelo código do sangue, da batalha e da disciplina.
Ouviu-se um som metálico e uma troca frenética de golpes. Sem nenhuma vantagem ganha, os dois reassumiram a movimentação em círculo. Um crescente ambiente de frustração
tornou-se evidente nas exclamações dos legionários que assistiam, e o porta-estandarte pediu a aproximação dos ferros em brasa às costas dos lutadores, ferros negros
marcados de vermelho, com pontas incandescentes a agitarem-se no ar. Sobre o ombro do espadachim, o tridente apercebeu-se do perigo que se aproximava e desencadeou
um ataque de fúria, embatendo na espada do homem mais baixo, tentando retirar a lâmina do seu alcance. O espadachim bateu-se pela vida, utilizando a espada e o escudo
conforme ia sendo forçado a recuar em direcção à extremidade da arena, mesmo ao encontro dos ferros em brasa.
- Vamos lá! - gritou Cato, agitando o punho, envolvido na excitação. - Já o venceste!
Um guincho agudo cortou o ar quando os ferros em brasa entraram em contacto com as costas do espadachim e este se retraiu por instinto, directamente para as pontas
afiadas do tridente. Grunhiu quando uma ponta lhe atravessou a coxa quase até à anca, e voltou a sair com um esguicho espesso de sangue que escorreu pela perna e
pingou na relva. O espadachim afastou-se rapidamente dos ferros em brasa e tentou impor
alguma distância entre si e as pontas traiçoeiras do tridente. Aqueles que tinham apostado nele aumentaram o seu apoio, incentivando-o a encurtar a distância e
a atacar o tridente enquanto ainda podia.
Cato viu que o tridente sorria, ciente de que o tempo estava do seu lado. Só precisava de manter o seu oponente à distância o tempo suficiente para que a perda de
sangue o enfraquecesse. E depois aproximar-se para o golpe final. Mas a multidão não estava com disposição para esperar, e vaiou-o furiosamente quando o tridente
se afastou do inimigo ensanguentado. Vieram novamente os ferros em brasa. Desta vez o espadachim procurou a vantagem, sabendo que o seu tempo para uma acção eficaz
era curto. Correu para o tridente, lançando golpes com a ponta da espada, forçando o bretão alto a recuar. Mas o tridente não ia cair no mesmo erro. Deslizou a mão
pelo cabo e apontou-o para as pernas do espadachim, depois correu para o lado, para longe dos ferros. O homem baixo saltou de forma estranha e perdeu o equilíbrio.
Sucedeu-se uma série frenética de estocadas e golpes e depois Cato reparou que o espadachim estava a oscilar, os seus passos tornando-se cada vez mais incertos à
medida que o sangue se esvaía do seu corpo. Mais uma investida do tridente foi desviada, mas à justa. Depois disso a força do espadachim pareceu ceder, e ele afundou-se
lentamente de joelhos, com a espada a agitar-se na mão.
Macro levantou-se de um salto. - Põe-te de pé! Põe-te de pé antes que ele te trespasse!
Toda a multidão se levantou, sentindo que o fim do combate estava próximo, a maioria incentivando desenfreadamente o espadachim a levantar-se.
O tridente investiu novamente, prendendo a espada entre as pontas do tridente. Uma torção rápida e a lâmina saltou do punho do espadachim e aterrou a vários metros
dele. Sabendo que estava tudo perdido, o espadachim caiu de costas, à espera de um fim rápido. O tridente soltou o seu grito de vitória e moveu o punho para a frente,
aproximando-se do seu oponente para lhe dar o golpe final. Com uma perna de cada lado do ensanguentado espadachim, levantou bem alto otridente. De repente, o escudo
do espadachim ergueu-se num desespero selvagem e embateu na virilha do homem mais alto. Com um gemido profundo o tridente vergou-se. A multidão exultou. Uma segunda
pancada do escudo esmagou o rosto do homem e ele caiu sobre a relva, com a arma a desprender-se do punho conforme apertava o nariz e os olhos. Mais duas pancadas
na cabeça com o escudo e o tridente estava acabado.
- Uma força maravilhosa! - Macro movia-se para cima e para baixo. - Extraordinariamente maravilhosa!
Cato abanava a cabeça amargamente, e amaldiçoava a arrogância do tridente. Nunca se devia supor que o nosso inimigo estava derrotado simplesmente porque assim parecia.
Não tinha o tridente pregado essa mesma partida no início do combate?
O espadachim levantou-se, muito mais facilmente do que um homem seriamente ferido faria, e recuperou rapidamente a sua espada. O final foi misericordioso, o tridente
foi para junto dos deuses com um golpe certeiro no coração.
Então, enquanto Cato, Macro e a multidão observavam, algo muito estranho aconteceu. Antes que o porta-estandarte e o seu assistente pudessem desarmar o espadachim,
o bretão ergueu os braços e lançou um desafio. Num latim rudemente pronunciado, exclamou: - Romanos! Romanos! Vejam!
Levantou a espada, inverteu o punho, e, com ambas as mãos, espetou-a no seu peito. Balançou durante um momento, a cabeça a pender para trás, e depois caiu abruptamente
sobre a relva ao lado do corpo do tridente. A multidão silenciou-se.
- Por que raios fez ele aquilo? - murmurou Macro.
- Talvez soubesse que as suas feridas eram fatais.
- Podia ter sobrevivido - replicou Macro com ressentimento.
- Nunca se saberá.
- Sobreviveria apenas para se tornar um escravo. Talvez não quisesse isso, senhor.
- Então era tolo.
O porta-estandarte, preocupado com o espírito da assistência, avançou rapidamente, de braços no ar. - Certo, rapazes, é assim. O combate acabou. Declaro vencedor
o espadachim. Paguem as apostas vencedoras, e depois regressem às vossas obrigações.
- Espera! - exclamou uma voz. - Foi um empate! Estão os dois mortos.
- O espadachim venceu - respondeu o porta-estandarte.
- Ele estava acabado. O tridente tê-lo-ia sangrado até à morte.
- Teria, - concordou o porta-estandarte, - se não tivesse estragado tudo no final. A minha decisão é final. O espadachim ganhou e todos devem pagar as suas dívidas.
Ou terão de se haver comigo. Agora, de volta às vossas obrigações!
A assistência dispersou, caminhando enfileirada por entre os carvalhos em direcção às tendas, enquanto os assistentes do porta-estandarte colocavam os corpos nas
traseiras de uma carroça, junto aos derrotados dos combates anteriores. Enquanto Cato esperava, o seu centurião apressou-se para recolher os ganhos junto do porta-estandarte
da coorte, cercado por
uma pequena multidão de legionários agarrando firmemente as chapas numeradas. Macro regressou passado pouco tempo, pesando alegremente as moedas na sua bolsa.
- Não foi a aposta mais lucrativa que já fiz, mas, de qualquer maneira, é sempre bom ganhar.
- Suponho que sim, senhor.
- Porquê essa cara aborrecida? Oh, é claro. O teu dinheiro foi com aquele presunçoso do tridente. Quanto perdeste?
Cato disse-lhe, e Macro assobiou.
- Bem, jovem Cato, parece que ainda tens muito que aprender sobre lutadores.
- Sim, senhor.
- Não importa, rapaz. Virá com o tempo. - Macro bateu-lhe no ombro.-Vamos ver se alguém tem um vinho decente para vender. Depois disso temos trabalho para fazer.
Ao observar os seus homens a abandonar o vale, sob a sombra de um grande carvalho, o comandante da Segunda amaldiçoou secretamente o espadachim. Os homens precisavam
urgentemente de algo que lhes afastasse o pensamento da campanha que se aproximava, e o espectáculo dos prisioneiros bretões a baterem-se entre si deveria ter sido
divertido. De facto, tinha sido divertido, até ao final do último combate. Os homens tinham-se sentido animados. Depois aquele bretão desgraçado escolhera aquele
momento para um acto inútil de desafio. Ou não tão inútil, ponderou o legado sombriamente. Talvez o sacrifício do bretão tenha procurado propositadamente arruinar
as diversões para levantar a moral.
Com as mãos firmemente apertadas atrás das costas, Vespasiano afastou-se lentamente da sombra para a luz do Sol. Sem dúvida que a estes bretões não lhes faltava
inteligência. Como a maioria das culturas guerreiras, agarravam-se a um código de honra que permitia que abraçassem a guerra com uma arrogância imprudente e uma
ferocidade terrível. O mais preocupante era o facto de que esta coligação alargada de tribos britânicas era dirigida por um homem que sabia bem como usar as suas
forças. Vespasiano sentia um respeito ressentido pelo líder dos bretões, Carátaco, chefe dos catuvelánios. Aquele homem ainda tinha mais truques na manga, e o exército
romano do General Aulo Pláucio deveria tratar o inimigo com mais respeito do que fizera até ali. A morte do espadachim ilustrava demasiado bem a natureza impiedosa
desta campanha.
Pondo de lado os pensamentos acerca do futuro, Vespasiano encaminhou-se para a tenda hospital. Havia um assunto desagradável a tratar que não podia adiar por mais
tempo. O centurião-chefe da Segunda Legião tinha sido mortalmente ferido numa emboscada recente, e queria falar com
ele antes de morrer. Bestia tinha sido um soldado exemplar, ganhando o apreço, a admiração e o receio dos homens ao longo da sua carreira militar. Lutara em muitas
guerras por todo o Império, e tinha as cicatrizes para o provar. E agora sucumbira sob uma espada britânica numa escaramuça que não figuraria na História. Era assim
a vida militar, reflectiu com amargura Vespasiano. Quantos heróis desconhecidos andavam por aí à procura da morte enquanto políticos inúteis e funcionários imperiais
usurpavam os louros?
Vespasiano pensou no seu irmão, Sabino, que acorrera vindo de Roma para servir com o pessoal do General Pláucio enquanto ainda havia alguma glória a receber. Sabino,
como a maioria dos seus pares políticos, via o inimigo apenas em termos de mais um degrau na sua carreira. O cinismo da alta política enchia Vespasiano com uma fúria
fria. Era mais do que provável que o Imperador Cláudio estivesse a usar a invasão para fortalecer o seu lugar no trono. Caso as legiões conseguissem subjugar a Bretanha,
haveria despojos e escravos suficientes para olear as rodas do Império. Alguns homens fariam fortunas, enquanto outros obteriam cargos elevados, e o dinheiro fluiria
para os gananciosos cofres imperiais. A glória de Roma seria reafirmada e aos seus cidadãos seriam dadas provas de que os deuses tinham abençoado o destino de Roma,
muito embora houvesse homens para quem tão grandes realizações pouco significavam, pois eles só avaliavam os acontecimentos em termos de oportunidades apresentadas
para o seu crescimento pessoal.
Esta ilha selvagem, com as suas agitadas tribos feudais, poderia um dia obter os benefícios da ordem e da prosperidade conferidos pela lei romana. Tal extensão de
civilização era uma causa digna de luta, e era com este objectivo que Vespasiano servia Roma e tolerava aqueles romanos acima dele - pelo menos por enquanto. Antes
disso, era preciso ganhar a campanha actual. Dois importantes rios tinham de ser atravessados, face à resistência feroz dos nativos. Para além dos rios ficava a
capital dos Catuvelánios - a mais poderosa tribo britânica a enfrentar Roma. Graças à sua expansão desmedida nos últimos anos, os catuvelánios absorveram os trinovanios
e a sua próspera cidade comercial de Camulodónia. Agora muitas das outras tribos viam Carátaco com quase tanto receio como viam os romanos. Por isso, Camulodónia
tinha de ceder antes do Outono, para demonstrar a essas tribos rebeldes que era inútil resistir a Roma. Mesmo assim, haveria mais campanhas, mais anos de conquista,
antes que cada parte desta ilha fosse incorporada no Império. Se as legiões não conseguissem Camulodónia, então Carátaco certamente ganharia o apoio das tribos insubmissas
e reuniria homens suficientes para esmagar o exército romano.
Com um suspiro cansado Vespasiano curvou-se sob a portinhola da tenda hospital e acenou cumprimentando o cirurgião superior da legião.
II
- Bestia morreu.
Cato tirou o olhar da papelada quando o centurião Macro entrou na tenda. A chuva de Verão que caía sobre a pele de cabra abafara a voz de Macro.
- Senhor?
- Disse que Bestia morreu! - gritou Macro. - Morreu esta tarde.
Cato assentiu. A notícia era esperada. O rosto do velho centurião-chefe tinha sido aberto até ao osso. Os cirurgiões da legião fizeram tudo o que puderam para tornar
os seus últimos dias o mais confortáveis possível, mas a perda de sangue, o maxilar despedaçado e a subsequente infecção haviam tornado a morte inevitável. O primeiro
instinto de Cato foi o de alegrar-se com a notícia. Bestia tinha tornado a sua vida numa miséria durante os meses que passara na recruta. De facto, o centurião-chefe
parecia gostar de se meter com ele . Um ódio latente crescera dentro de Cato em resposta.
Macro desapertou o seu casaco molhado e atirou-o para um banco que estava em frente às brasas. O vapor de uma diversidade de vestimentas a secar noutros bancos elevava-se
num feixe alaranjado, e adicionava-se à húmida atmosfera da tenda. Se a chuva lá fora era o melhor tempo que o Verão bretão podia oferecer, Macro perguntava-se se
valia a pena conquistar aquela ilha. Os exilados bretões que acompanhavam as legiões diziam que a ilha possuía vastos recursos de metais preciosos e solos ricos
para a agricultura. Macro encolheu os ombros. Os exilados podiam estar a dizer a verdade, mas tinham as suas próprias razões para quererem que Roma triunfasse sobre
o seu próprio povo. A maioria tinha perdido terras e títulos às mãos dos catuvelánios e esperava recuperar ambos como recompensa pela ajuda a Roma.
- Imaginas quem substituirá Bestia? - ponderou Macro. - Vai ser interessante ver quem é que Vespasiano vai escolher.
- Alguma hipótese para si, senhor?
- Dificilmente, rapaz - desdenhou Macro. O seu jovem optio não era membro da Segunda Legião assim há tanto tempo e ainda desconhecia os procedimentos de promoção
do exército. - Estou fora da corrida para esse cargo. Vespasiano tem de escolher entre os centuriões sobreviventes da Primeira Coorte. São os melhores oficiais da
legião. Tens que ter muitos anos de serviço excelente para seres considerado para uma promoção para a Primeira Coorte. Estarei no comando da Sexta Centúria da Quarta
Coorte ainda durante uns tempos, penso. Aposto que esta noite há alguns homens muito ansiosos na messe da Primeira Coorte. Não é todos os dias que se escolhe um
centurião-chefe.
- Não estarão de luto, senhor? Quero dizer, Bestia era um deles.
- Penso que sim. - Macro encolheu os ombros. - Mas essa é a sorte da guerra. Qualquer um de nós podia ter atravessado o Estige(1). Aconteceu no turno de Bestia.
De qualquer forma, ele teve o seu tempo no mundo. Daqui a dois anos teria sido mandado para uma aborrecida colónia de veteranos. Antes ele do que outro com alguém
à espera, como a maioria dos pobres imbecis que duram tanto. E agora, neste mesmo instante, existem algumas vagas para serem preenchidas no centuriato.
- Macro sorriu com a perspectiva. Tinha poucas semanas a mais como centurião do que Cato como legionário e fora o centurião mais jovem da legião. Mas os bretões
tinham morto dois centuriões da Quarta Coorte, o que queria dizer que estava oficialmente em quarto lugar em termos de antiguidade, com a perspectiva agradável de
ver apontados dois novos centuriões para comandar. Olhou para cima e arreganhou os dentes para o seu optio.
- Se esta campanha durar mais alguns anos, talvez até tu chegues a centurião!
Cato sorriu para o cumprimento irónico. As probabilidades eram de que a ilha fosse conquistada bem antes de alguém lhe creditar experiência e maturidade suficientes
para o Centuriato. Na tenra idade de dezassete anos essa perspectiva estava muito distante. Suspirou e pegou na placa de cera na qual estivera a trabalhar.
- O relatório da força de efectivos, senhor.
Macro ignorou a placa. Mal conseguindo ler e escrever, achava que era melhor tentar evitar ambos, sempre que fosse possível; dependia muito do seu optio para assegurar
que os registos da Sexta Centúria se mantivessem em ordem. - Então?
- Temos seis no hospital de campanha, dois dos quais não deverão sobreviver. O cirurgião superior disse-me que três dos outros terão de ser desvinculados do exército.
Serão transferidos para a costa esta tarde.
(1) Rio , que na Roma Antiga, se acreditava que as almas atravessavam depois da morte. (nota da correctora)
Deverão estar de volta a Roma no fim do ano.
- E depois o quê? - Macro abanou a cabeça com tristeza. - Um retiro gratuito e o resto da vida passada a mendigar nas ruas. Grande miséria de vida.
Cato assentiu. Quando criança vira os veteranos inválidos a suplicarem por uma ração nas alcovas imundas do fórum. Se perdessem um membro ou sofressem um ferimento
incapacitante, era esse o estilo de vida que se proporcionava à grande maioria. A morte talvez tivesse sido mais misericordiosa para tais homens. Uma súbita imagem
dele próprio mutilado, condenado à pobreza e um objecto de pena e escárnio, fez com que Cato estremecesse. Não tinha família na qual procurar apoio. A única pessoa
que gostava dele fora do exército era Lavínia. E agora estava bem longe, a caminho de Roma, com os outros escravos ao serviço de Flávia, a esposa do comandante da
Segunda Legião. Cato não podia contar com isso: se o pior acontecesse, Lavínia conseguiria amar um aleijado? Ele sabia que não suportaria a pena dela, ou que ela
ficasse com ele por obrigação.
Macro sentiu uma mudança na atitude do jovem. Era estranho, considerou, quão ciente ficara dos humores do rapaz. Todos os optios que conhecera não passavam de legionários,
mas Cato era diferente. Muito diferente. Inteligente, literato, e um soldado com provas dadas, embora um crítico perverso de si mesmo. Se vivesse tempo suficiente,
Cato construiria certamente um nome respeitado. Macro não percebia porque é que o optio não estava ciente disso, e tendia a olhar Cato com um misto de diversão e
admiração.
- Não te preocupes, rapaz. Vais sobreviver a esta. Se tivesses que ficar pelo caminho, já terias ficado. Sobreviveste à pior vida que o exército te pôde atirar.
Vais andar cá por uns tempos, por isso, anima-te.
- Sim, senhor - respondeu Cato, calmamente. As palavras de Macro soavam a um falso conforto, como a morte de grandes soldados, como Bestia demonstrava.
- Onde é que íamos?
Cato olhou para a placa de cera. - O último homem no hospital está a recuperar bem. A espada rasgou-lhe a coxa. Estará de pé daqui a mais alguns dias. Há também
quatro feridos que não estão no hospital. Regressarão à nossa força de combate em breve. Deixa-nos com cinquenta e oito efectivos, senhor.
- Cinquenta e oito. - Macro franziu o cenho. A Sexta Centúria tinha sofrido bastante às mãos dos bretões. Tinham chegado à ilha com oitenta homens. Agora, apenas
alguns dias passados, haviam perdido dezoito para sempre.
- Há notícias dos reforços, senhor?
- Não receberemos nenhuns enquanto o pessoal não organizar um embarque da junta de reserva na Gália. Leva-lhes uma semana ou mais antes de conseguirem enviar um
barco através do Canal desde Gesoriaco. Só se juntarão a nós depois da próxima batalha.
- Próxima batalha? - Cato sentou-se, ansioso. - Que batalha, senhor?
- Calma, rapaz. - Macro sorriu. - O legado informou-nos na reunião. Vespasiano recebeu ordens do General. Parece que o exército chegou a um rio, um rio bonito, grande
e largo. E do outro lado Carátaco aguarda-nos com os seus homens, carros e tudo.
- É muito longe daqui, senhor?
- A Segunda deve chegar ao rio amanhã. Aulo Pláucio não pretende passear, aparentemente. Vai lançar o ataque na manhã seguinte, assim que estejamos em posição.
- Como é que chegamos até eles? - perguntou Cato. - Quero dizer, como atravessamos o rio? Há alguma ponte?
- Achas mesmo que os bretões iam deixar uma de pé? - Macro abanou a cabeça aborrecido. - Não, o General ainda tem que resolver isso.
- Acha que nos vai mandar em primeiro lugar?
- Duvido. Fomos muito maltratados pelos bretões. Os homens ainda estão muito abalados. Deves ter sentido isso.
Cato assentiu. A baixa moral da legião era palpável nos últimos dias. Pior ainda, ele ouvira os homens a criticar abertamente o legado, responsabilizando Vespasiano
pelas pesadas baixas sofridas desde que tinham acostado em solo bretão. Que Vespasiano tivesse combatido o inimigo na fileira da frente, junto aos seus homens, não
contava muito para a maior parte dos legionários que não testemunharam a sua bravura em pessoa. Da maneira como as coisas estavam, havia um ressentimento considerável
e uma falta de confiança nos oficiais superiores da legião, e isso não pressagiava nada de bom para a próxima batalha com os bretões.
- É melhor vencermos esta - disse Macro calmamente.
- Sim, senhor.
Permaneceram ambos em silêncio durante uns momentos enquanto olhavam as chamas flamejantes no braseiro. Depois um ronco alto do estômago do centurião mudou abruptamente
o seu pensamento para outros assuntos mais importantes.
- Estou esfomeado. Há alguma coisa para comer?
- Aí na mesa, senhor. - Cato apontou para um pedaço negro de pão e outro de porco salgado numa tigela da messe. Um pequeno jarro de vinho com água estava ao lado
de um copo prateado, uma lembrança de
uma das primeiras campanhas de Macro. O centurião franziu o sobrolho enquanto olhava para a carne.
- Ainda não há carne fresca?
- Não, senhor. Carátaco tem feito um trabalho meticuloso ao limpar a terra à frente da nossa linha de marcha. Os batedores dizem que quase todas as colheitas e quintas
foram queimadas até às margens do Tamesis, e os bretões têm levado os víveres com eles. Estamos dependentes de tudo o que vier do nosso depósito de aprovisionamento
em Rutúpia.
- Estou farto de porco salgado. Não podes arranjar mais nada? Piso ter-nos-ia arranjado melhor do que isto.
- Sim, senhor - respondeu Cato, Kssentido. Piso, o tabelião do centurião, era um veterano que conhecia todas as artimanhas e esquemas, e os homens da Centúria haviam
teneficiado muito com ele. Apenas alguns dias antes, Piso, a menos de um ano da desvinculação com honras, fora cortado de alto a baixo pelo primeiro bretão que
encontrara. Cato aprendera muito com o tabelião, mas os segredos mais arcanos da burocracia militar tinham morrido com ele, e Cato dependia agora de si próprio.
- Vou ver o que posso fazer acerca dasrações, senhor.
- Boa! - assentiu Macro enquanto, fazendo uma careta, dava uma dentada na carne de porco e começava o longo processo de mastigação para lhe dar uma consistência
suficientemente suave para engolir. Enquanto mastigava continuou a resmungar. - Se isto continuar assim deixo a legião e abraço a fé judaica. Qualquer coisa deve
ser melhor do que ter que aturar isto. Não sei que raio é que esses sacanas do comissariado fazem aos porcos. Pensava que era quase impossível estragar algo tão
simples como um porco salgado.
Cato já ouvira isto antes, e pegara de novo na papelada. A maior parte dos mortos tinha deixado testamentos deixando as suas propriedades rurais aos amigos. Mas
alguns dos nomeados como beneficiários também tinham morrido, e Cato tinha que localizar a ordem dos testamentos através dos documentos para assegurar que as possessões
acumuladas chegavam aos destinatários correctos. Os familiares daqueles que haviam morrido sem testamento tinham que requerer uma notificação para poderem reclamar
as economias do homem ao Tesouro da legião. Para Cato, a execução de testamentos era uma nova experiência, e uma vez que a responsabilidade era sua, não se atrevia
a correr riscos que pudessem conduzir a um processo judicial contra si. Por isso, lia atentamente a documentação e confirmava e reconfirmava as contas de cada homem
à vez, antes de mergulhar o seu estilete num pequeno tinteiro em cerâmica e escrever a declaração final de posse e o seu destino.
A dobra da tenda abriu-se e um tabelião do quartel-general entrou apressadamente, o seu capote encharcado a pingar por todos os lados.
- Afasta-te do meu trabalho! - gritou Cato, enquanto cobria os pergaminhos empilhados em cima da secretária.
- Desculpe. - O tabelião do quartel-general recuou até à aba da tenda.
- E que raio queres tu? - perguntou Macro dando uma dentada num naco de pão acastanhado.
- Mensagem do legado, senhor. Quer vê-lo a si e ao seu optio na tenda dele, tão cedo quanto vos seja possível.
Cato sorriu. O uso dessa expressão num oficial superior significava já, de preferência mais cedo ainda. Ordenando rapidamente os documentos na pilha, e assegurando-se
que nenhuma das fugas da tenda afectavam a sua secretária de campanha, Cato levantou-se e pegou no capote que estava mesmo em frente ao braseiro. Ainda estava pesado
com a humidade e sentiu-o pegajoso quando o colocou nos ombros e o afivelou. Mas o calor nas dobras de lã gordurosa era reconfortante.
Macro, ainda a mastigar, pegou no seu capote e acenou impacientemente para o tabelião do quartel-general. - Podes desandar. Sabemos o caminho, obrigado.
Com um olhar de inveja para o braseiro, o tabelião puxou as abas do seu capote para cima e saiu da tenda. Macro levou um último pedaço de carne à boca, curvou o
dedo para Cato e murmurou: - Vamos!
A chuva assobiava nas filas de tendas refulgentes da legião e formava poças de água incomodativas no solo desigual. Macro olhou para as nuvens negras no céu da noite.
Ao longe, para Sul, um lençol de luz anunciava a passagem da tempestade de Verão. A chuva caía-lhe pelo rosto e ele sacudiu a cabeça para tirar uma madeixa de cabelo
molhado da testa. - Que merda de tempo o desta ilha.
Cato riu-se. - Duvido que melhore, senhor. Se Estrabo for de confiar.
A alusão literária fez com que Macro fizesse uma careta ao rapaz.
- Não podias apenas concordar comigo, pois não? Tinhas que trazer um académico qualquer para a conversa.
- Perdão, senhor.
- Esquece. Vamos lá ver o que Vespasiano quer.
- À vontade - ordenou Vespasiano.
Macro e Cato, em sentido a um passo da secretária, adoptaram a postura informal requerida. Ficaram um tanto chocados por verem claros sinais de exaustão no seu comandante,
enquanto este se inclinava para os pergaminhos da secretária e a luz do candeeiro a óleo incidia no seu rosto enrugado.
Vespasiano fitou-os durante uns momentos, inseguro de como proceder.
Há alguns dias atrás, o centurião, o optio e um pequeno grupo de homens escolhidos por Macro tinham sido enviados numa missão secreta. Foram instruídos para recuperar
uma arca com o pagamento dos impostos que Júlio César fora forçado a abandonar num pântano perto da costa, há quase cem anos atrás. O tribuno superior da Segunda
Legião, um patrício de nome Vitélio, decidira ficar com a arca de impostos para si e, com um bando de cavaleiros arqueiros que havia subornado, caiu sobre os homens
de Macro no meio da névoa do pântano. Graças à perícia guerreira do centurião, Vitélio falhara e fugira de cena. Mas o destino parecia favorecer o tribuno: encontrara
uma coluna de bretões que tentavam flanquear a linha avançada romana e conseguiu avisar as legiões do perigo mesmo a tempo. Como resultado da vitória subsequente,
Vitélio tornara-se numa espécie de herói. Aqueles que sabiam a verdade sobre a traição de Vitélio sentiram-se desgostosos pelos louvores demonstrados a um verme
como ele.
- Temo que não possa apresentar queixa contra o tribuno Vitélio. Tenho apenas as vossas palavras para andar com o processo e isso não é suficiente.
Macro eriçou-se com uma raiva mal contida.
- Centurião, eu sei que tipo de homem ele é. Disse que tentou matá-lo a si e aos seus homens quando o mandei atrás da arca de
impostos. Essa missão era secreta, altamente secreta. Suspeito que só você, eu e o rapaz sabíamos do conteúdo da arca. E Vitélio, claro. Mesmo agora àinda está selada
e a caminho de Roma sob uma apertada segurança, e quantos menos souberem do ouro que contém, melhor. É dessa forma que o Imperador quer manter as coisas. Ninguém
nos agradecerá por expormos este caso em tribunal se apresentarmos queixa contra Vitélio. Mais, pode não estar ciente, mas o pai dele é amigo íntimo do Imperador.
Preciso de dizer mais alguma coisa?
Macro cerrou os lábios e abanou a cabeça.
Vespasiano deixou-os interiorizar as suas palavras; conhecia bem a expressão de resignação que tomava conta dos rostos do centurião e do optio. Era muito mau que
Vitélio emergisse da situação cheirando a rosas, mas isso era típico da sorte do tribuno. Esse homem estava destinado a um alto cargo, e o destino não deixaria que
nada se interpusesse no caminho. E havia muito mais por detrás da sua traição do que Vespasiano podia deixar que estes dois homens soubessem. Além dos seus deveres
como tribuno, Vitélio era também um espião imperial ao serviço de Narciso, o secretário do Imperador. Se Narciso alguma vez viesse a saber que fora enganado por
Vitélio, a vida do tribuno estaria em risco. Mas Narciso nunca o descobriria pela boca de Vespasiano. Vitélio encarregara-se disso. Enquanto recolhia informações
sobre a lealdade dos oficiais e dos homens da Segunda Legião, Vitélio descobrira a identidade de um conspirador envolvido numa trama para derrubar o novo Imperador.
Flávia Domitil, a esposa de Vespasiano.
Portanto, neste momento, existia uma reserva entre Vitélio e Vespasiano; ambos possuíam informações que podiam ferir mortalmente o outro se alguma vez chegassem
aos ouvidos de Narciso.
Ciente de que devia estar a olhar para o vazio há algum tempo, Vespasiano mudou rapidamente o seu pensamento para a outra razão pela qual tinha convocado Macro e
Cato.
- Centurião, tenho algo que deverá alegrá-lo. - Vespasiano pegou num volume embrulhado com seda. Depois de o desembrulhar cuidadosamente, revelou um colar de ouro
para o qual ficou a olhar momentaneamente antes de o colocar à altura da luz difusa do candeeiro a óleo. - Reconhece-o, centurião?
Macro fitou o objecto durante uns instantes e abanou a cabeça.
- Desculpe, senhor.
- Não estou surpreendido. Provavelmente tinha outras coisas na cabeça quando o viu pela primeira vez - disse Vespasiano com um sorriso irónico. - É o colar de um
chefe bretão. Era propriedade de um certo Togodumno, que felizmente já não está entre nós.
Macro riu-se, lembrando-se subitamente do pescoço onde pendia o colar, um guerreiro enorme que ele tinha morto em combate singular, alguns dias antes.
- Tome! - Vespasiano atirou o colar a Macro que foi apanhado de surpresa. - Uma pequena lembrança de gratidão da legião. Vem directamente do meu quinhão dos despojos.
Você merece, centurião. Ganhou-o, por isso, use-o com dignidade.
- Sim, senhor - respondeu Macro examinando o colar. Um entrançado de ouro cintilando na luz oscilante, cada uma das pontas torcida para trás em volta de um grande
rubi que brilhava como uma estrela de sangue. Torvelinhos estranhos haviam sido trabalhados no ouro que circundava as pedras. Macro tomou o peso do colar e calculou
por alto o valor. Os seus olhos alargaram-se quando percebeu a amplitude do significado do gesto do legado.
- Senhor, não sei como agradecer-lhe por isto.
Vespasiano ergueu a mão. - Então não agradeça. Como disse, merece-o. Quanto a ti, Optio, não tenho nada para te oferecer, excepto o meu obrigado.
Cato corou, os seus lábios encolheram-se numa expressão severa. O legado não conseguiu conter o riso.
- É verdade que não tenho nada de valor para te oferecer. Mas alguém tem, ou melhor, tinha.
- Senhor?
- Sabias que o centurião-chefe Bestia sucumbiu aos seus ferimentos?
- Sim, senhor.
- Ontem à noite, antes de perder a consciência, proferiu um testamento verbal na presença de uma testemunha. Pediu que eu executasse essa vontade.
- Um testamento verbal? - Cato franziu o sobrolho.
- Desde que haja testemunhas, qualquer soldado pode determinar verbalmente como quer que as suas propriedades sejam dispostas caso venha a morrer. É mais um costume
do que um regulamento escrito na lei. Parece que Bestia queria que ficasses com certas coisas da sua pertença.
- Eu! - exclamou Cato. - Ele queria que eu ficasse com algo, senhor?
- Aparentemente.
- Mas porquê? Ele nem me podia ver.
- Bestia disse que te viu combater como um veterano, sem armadura, só com elmo e escudo. Que foste a eles exactamente como ele
te ensinou. Disse-me que se enganara a teu respeito. Julgava-te um idiota e um cobarde. Quando viu que estava errado, quis que soubesses que se orgulhava daquilo
em que te tornaste.
- Ele disse isso, senhor?
- Precisamente, rapaz.
Cato abriu a boca, mas não saíram quaisquer palavras. Não conseguia acreditar; parecia impossível. Julgar tão mal uma pessoa. Assumir que era irremediavelmente má
e incapaz de sentimentos positivos.
- O que é que ele queria que ficasse para mim, senhor?
- Descobre por ti próprio, filho - respondeu Vespasiano. - O corpo de Bestia ainda está na tenda hospital, com os seus bens pessoais. O cirurgião assistente sabe
o que te dar. Cremaremos o corpo ao amanhecer. Podem ir.
IV
Já do lado de fora, Cato assobiou de estupefacção com a perspectiva da doação de Bestia. Mas o centurião prestava pouca atenção ao seu optio; apalpava o colar, apreciando
o seu peso considerável. Caminharam para a tenda-hospital em silêncio, até Macro olhar para a figura alta do optio.
- Muito bem. Que será que Bestia te deixou?
Cato tossiu, limpando a garganta apertada. - Não faço ideia, senhor.
- Nunca tinha presenciado nenhuma insinuação de que o velho fosse capaz de um gesto desses. Nunca ouvi dizer que ele tivesse feito algo do género desde que estou
ao serviço da Águia. Parece que afinal causaste boa impressão.
- Parece que sim, senhor. Mas mal consigo acreditar.
Macro pensou acerca disso por uns momentos e depois abanou a cabeça. - Nem eu. Sem ofensa nem nada mas, bem, tu não eras o género de soldado que ele idealizava.
Tenho que admitir, demorei algum tempo a perceber que eras mais do que um rato de biblioteca. Não tens em ti a aparência de um soldado.
- Pois não, senhor - veio a resposta súbita.-Vou tentar melhorar esse aspecto a partir de agora.
- Não te preocupes com isso, rapaz. Sei que és um assassino, mesmo que não te apercebas disso. Já te vi em açção, lembras-te?
Cato retraiu-se quando ouviu a palavra assassino. Era a última pela qual queria ser reconhecido. Um soldado, sim, essa palavra tinha uma certa medida de credibilidade
civilizada. Obviamente que ser um soldado implicava a possibilidade de matar, mas isso, pensou, era inerente à essência da profissão. Os assassinos, por outro lado,
eram apenas uns brutos com poucos, ou nenhuns, valores. Esses bárbaros que viviam nas sombras das grandes florestas germânicas eram assassinos. Esquartejavam só
pelo gozo do acto, como os seus infinitos
conflitos tribais ilustravam tão bem. Roma havia tido guerras civis no passado, lembrou-se Cato, mas sob a ordem imposta pelos imperadores - a ameaça de conflito
interno passara à História. O exército romano combatia com propósitos morais: a expansão dos valores civilizacionais aos selvagens ignorantes que viviam nas margens
do Império.
E estes bretões? Que tipo de homens eram? Assassinos ou soldados? O espadachim que morrera nos jogos do legado assombrava-lhe a mente. O homem fora um verdadeiro
guerreiro, e atacara com a ferocidade de um assassino nato. A sua autodestruição não passara de puro fanatismo, uma característica de certos homens que perturbava
Cato profundamente, enchendo-o com uma sensação de terror moral, e a convicção de que somente Roma oferecia o melhor caminho. Apesar dos seus políticos corruptos
e cínicos, Roma significava ordem e progresso; um farol para todas as massas confusas escondidas nas sombras das negras terras bárbaras.
-Ainda lamentas a tua aposta? - Macro tirou-o das suas meditações.
- Não, senhor. Estava apenas a pensar no bretão.
- Ah, esquece-o. É um acto estúpido e não há mais nada a dizer. Talvez tivesse mais respeito por ele se tivesse usado a espada contra nós e tentado escapar. Mas
matar-se a si próprio? Que desperdício.
- Se assim o diz, senhor.
Tinham chegado à tenda-hospital, e espantaram os insectos que se amontoavam nos candeeiros de óleo à entrada antes de se inclinarem para entrar. Um oficial de dia
estava por trás de uma secretária. Conduziu-os para as traseiras da tenda onde os oficiais estavam aquartelados. A cada centurião tinha sido atribuída uma pequena
área seccionada com uma cama de campanha, uma mesa e um penico. O oficial de dia abriu uma cortina e acenou-lhes para que entrassem. Macro e Cato apertaram-se de
cada lado da cama estreita, onde uma mortalha de linho cobria o corpo do centurião-chefe.
Permaneceram uns momentos em silêncio, antes que o oficial de dia falasse a Cato. - Os artigos com que ele queria que ficasse estão debaixo da cama. Vou deixá-los
por uns instantes.
- Obrigado - respondeu Cato calmamente.
A cortina caiu e o oficial de dia voltou à secretária. No silêncio que reinava, apenas se ouviam os sons distantes do campo ou um gemido ocasional proveniente de
outros pontos da tenda.
- Como é, vais ver tu ou vou eu? - perguntou Macro numa voz sussurrante.
- Perdão?
Macro apontou para o centurião-chefe com o polegar. - Um último olhar ao rosto do velho antes dele se esfumar. Devo-lhe isso.
Cato engoliu nervosamente. - Força.
Macro baixou-se e puxou suavemente a mortalha de linho, destapando Bestia até ao peito nu coberto de pelos grisalhos. Nenhum deles tinha alguma vez visto Bestia
sem uniforme e a massa de pelos encaracolados foi uma surpresa. Alguma alma caridosa já tinha colocado nos olhos do centurião-chefe as moedas para pagar a Caronte
a passagem do rio Estige para o submundo. O ferimento que o matara fora limpo mas, mesmo assim, os dentes, ossos e tendões mutilados eram visíveis onde a carne tinha
sido cortada de um dos lados do rosto de Bestia. Não era uma visão agradável.
Macro assobiou. - É um espanto que ele tenha conseguido dizer alguma coisa ao legado neste estado.
Cato assentiu.
-Ainda assim o velho conseguiu chegar ao topo, que é muito mais do que nós alguma vez conseguiremos. Vamos ver o que ele te deixou. Queres que eu veja?
- Se quiser, senhor.
- Muito bem. - Macro ajoelhou-se e vasculhou debaixo da cama.
- Ah! Aqui vamos nós.
Levantando-se, ergueu uma espada dentro da bainha e uma pequena ânfora. A espada deu-a a Cato. Depois tirou a rolha da ânfora e cheirou cuidadosamente. Um sorriso
tomou conta do seu rosto.
- Cécubo! - cantou Macro. - Meu rapaz, o que quer que tenhas feito para impressionar Bestia, teve que ser algo miraculoso. Importas-te se eu...?
- Esteja à vontade, senhor-respondeu Cato. Examinou a espada. A bainha era negra e marchetada com um notável padrão geométrico em prata. Aqui e ali estava amolgada
e majxada pela violência do uso. Era uma arma de soldado, não um objecto ornamental reservado a cerimónias.
O centurião Macro lambeu os lábios, ergueu a ânfora e brindou.
- Ao centurião-chefe Lúcio Batiaco Bestia, um cabrão lixado, mas justo. Um bom soldado que honrou os seus camaradas, a sua legião, a sua família, a sua tribo e
Roma. - Macro bebeu um grande gole do Cécubo, a sua maçã-de-adão a trabalhar com avidez, antes de pousar a ânfora.
- Absoluta maravilha. Prova.
Cato pegou na ânfora e ergueu-a sobre o corpo morto do centurião-chefe, sentindo-se consciente do seu gesto. - A Bestia.
Macro estava certo. O vinho era muito saboroso, um paladar
frutado com um toque a almíscar, e um travo seco no final. Delicioso. E embriagante.
- Deixa-me ver a tua espada.
- Sim, senhor. - Cato passou-lhe a espada. Depois de olhar rapidamente para a bainha, Macro agarrou o cabo em marfim com o seu ornamentado botão de punho em ouro,
e sacou a lâmina. Estava bem temperada e polida, e brilhava como um espelho. Macro ergueu as sobrancelhas com sincero agrado enquanto passava suavemente um dedo
pela extremidade cortante. Tinha sido extremamente bem afiada pelo que era essencialmente uma espada de rasgar. Sopesou-a e gabou o equilíbrio entre o cabo e a lâmina.
Era uma espada que um homem controlava com facilidade, nunca pressionando o pulso como as espadas normais costumavam fazer. Não fora feita por romanos. A lâmina
era certamente um produto das grandes forjas gaulesas que fabricavam as melhores espadas há gerações. Como terá chegado às mãos de Bestia?
Depois reparou numa inscrição, uma pequena frase junto ao resguardo, escrita num alfabeto que reconheceu como grego.
- O que diz aqui?
Cato pegou na espada e traduziu mentalmente: "De Germânico para L. Batiaco, o seu Patróculo." Um arrepio de espanto desceu pela espinha de Cato. Olhou novamente
para o desfigurado rosto do centurião-chefe. Teria este homem sido um jovem atraente? Atraente o suficiente para merecer a afeição do grande General Germânico? Era
difícil de acreditar. Cato conhecera Bestia apenas como um disciplinador rígido e cruel. Mas quem sabe que segredos um homem guarda quando morre? Alguns leva com
ele para o submundo, outros são revelados.
- Então? - disse Macro impacientemente. - O que diz?
Conhecendo a intolerância do seu centurião, Cato raciocinou
rapidamente. - É um presente de Germânico pelos serviços dele.
- Germânico? O Germânico?
- Suponho que sim, senhor. Não tem mais pormenores.
- Não fazia ideia que o velho tinha tão altos conhecimentos. Isso merece outro brinde.
Cato passou-lhe a ânfora relutantemente e retraiu-se quando Macro bebeu vorazmente do bom vinho. A ânfora estava muito mais leve quando a recebeu de volta. Em vez
de perder o resto para a barriga do centurião, Cato brindou a Bestia mais uma vez e bebeu tanto quanto pôde de um só trago.
Macro arrotou. - B... Bem, Bestia deve ter feito uma grande proeza para receber essa beleza. Uma espada de Germânico! Isso é realmente espantoso!
- Sim, senhor - concordou Cato calmamente. - Deve ter sido uma grande proeza.
- Cuida bem dessa lâmina, rapaz. Não tem preço.
- Cuidarei, senhor. - Cato começava a sentir os efeitos do vinho na tenda quente e confinada, e começou a ansiar por ar puro. - Penso que deveríamos deixá-lo, senhor.
Que descanse em paz.
- Ele está morto, Cato. Não está a dormir.
- Era uma força de expressão. De qualquer maneira, tenho que sair daqui, senhor. Preciso de ir lá para fora.
- Eu também. - Macro cobriu de novo Bestia com a mortalha de linho e seguiu o optio para a saída. A chuva tinha parado e, à medida que o vento limpava o firmamento,
as estrelas cintilavam foscas na atmosfera húmida. Cato encheu os pulmões de ar. Estava a sentir o vinho mais do que nunca e perguntava-se se iria sofrer a indignidade
de vomitar.
- Vamos voltar à nossa tenda e acabar com a ânfora - disse Macro alegremente. - Devemos isso ao velho.
- Devemos? - Respondeu Cato bruscamente.
- Claro que sim. Uma velha tradição do exército. É assim que velamos pelos mortos.
- Uma tradição?
- Bem, agora é. - Macro riu embriagado. - Anda, vamos.
Segurando firmemente a sua espada embainhada, Cato largou o
controlo da ânfora e os dois dirigiram-se com passos incertos para as tendas alinhadas da sua centúria.
Ao amanhecer do dia seguinte, quando a pira de Bestia foiacesa, o centurião e o optio da Sexta Centúria, da Quarta Coorte, miravam-na com olhos enevoados. Toda a
Segunda Legião estava formada para testemunhar o evento em três dos lados da pira, enquanto o legado, o prefeito do acampamento, os tribunos e outros oficiais superiores
permaneciam em sentido no quarto lado. Vespasiano escolhera bem a sua posição, a leve brisa que soprava através da paisagem bretã afastava de si o fumo proveniente
da pira. Do lado oposto, os primeiros arremessos de fumo espesso e oleoso carregado com o odor a gordura e carne queimada, vogavam pelos legionários em sentido.
Um coro de tosse irrompeu em redor de Macro e do seu optio e, uns instantes depois, o delicado estômago de Cato contraiu-se como um punho e vomitou o conteúdo que
incomodava as suas tripas na erva.
Macro suspirou. Mesmo para lá das sombras da morte, Bestia tinha a capacidade de fazer sofrer aquele rapaz.
V
- O problema, meus senhores, é aquele pequeno outeiro além.
- O general apontou para lá do rio com o seu bastão, e os olhos dos seus oficiais superiores seguiram-no. Para além dos comandantes das quatro legiões, entre o amontoado
de mantos escarlates, estavam também os oficiais assistentes de Pláucio. Vespasiano estava com alguma dificuldade em não se divertir com a quantidade ofuscante de
dourados que adornavam a lustrosa couraça do seu irmão Sabino, que gozava da categoria oficial de prefeito de cavalaria. Quase tão garrida era a quantidade de ouro
usado pelos bretões exilados que acompanhavam Pláucio. Admínio fora forçado pelo seu irmão, Carátaco, a fugir do seu reino e juntara-se ao exército romano como guia
e negociador. Se Roma triunfasse, o seu título e terras ser-lhe-iam restituídos, embora ele fosse governar como rei vassalo de Roma, com todas as obrigações que
isso acarretava: uma pobre recompensa pela traição ao seu povo. Vespasiano mudou o seu olhar de escárnio do bretão para o rio.
A margem do outro lado era escarpada, mas com um cume baixo que depois corria ao longo do rio. O cume fora grosseiramente fortificado e, neste preciso momento, as
figuras pequenas dos bretões atarefavam-se furiosamente para aperfeiçoar os seus esforços iniciais. Já tinha sido escavado um fosso substancial à volta do ponto
de passagem, com a terra a ser atirada para o outro lado do talude. Uma paliçada grosseira estava a ser levantada no topo da rampa, com um refúgio em cada extremidade,
para lá da qual o solo se tornava pantanoso.
- Devem ter reparado que esta parte do rio é impetuosa - continuou Pláucio. - E se olharem atentamente para a margem do outro lado poderão ver que Carátaco submergiu
obstáculos no leito do rio. A maré está a encher ou a vazar, tribuno Vitélio?
O último oficial assistente do general foi apanhado distraído, e Vespasiano não pôde conter um riso de satisfação, quando a habitual
expressão de presunção de Vitélio foi substituída pela de dúvida e depois embaraço. O tribuno fora transferido da Segunda Legião como prémio pelos seus feitos recentes.
Esta experiência como assistente do general era uma oportunidade para ganhar nome e facilitar o caminho para uma qualquer carreira militar. Por um momento parecia
que o tribuno ia tentar intrujar, mas depois a honestidade venceu, embora se mantivesse fiel ao seu carácter, não resistindo a uma tentativa para limitar os danos
através da evasão:
- Vou ver, senhor.
- Esse "Vou ver, senhor" significa "Não sei, senhor"? - perguntou Pláucio secamente.
- Sim, senhor.
- Então certifique-se imediatamente - ordenou Pláucio. - E a partir de agora lembre-se que é seu dever saber estas coisas. Não haverá desculpas no futuro. Entendido?
- Sim, senhor.-Vitélio estalou os dentes quando fez a continência e saiu de cena.
- Não conseguimos ter assistentes decentes hoje em dia - murmurou Pláucio.
Os outros oficiais trocaram olhares sabedores. Era injusto esperar que um oficial assistente estivesse a par da maré de um rio que acabara de conhecer. Mas, a não
ser que esses oficiais fossem capazes de prever qualquer factor influenciável para a execução da campanha, eram uns inúteis. Um posto de assistente podia ser almejado,
mas tinham toda a espécie de obstáculos para transpor.
Esforçando os olhos, Vespasiano vislumbrou uma série de ameaçadoras pontas negras a sobressair da superfície da água. Estacas de madeira afiada, cravadas no leito
do rio, e muito capazes de empalarem um soldado de infantaria ou estriparem um cavalo. Os atacantes seriam forçados a negociar cuidadosamente a travessia, sob rajadas
de funda e flechas do inimigo, mesmo antes de saírem do rio de encontro ao fosso e ao talude.
- Podíamos cobrir o assalto com artilharia, senhor - sugeriu Vespasiano. - Os dardos forçá-los-iam a manter as cabeças baixas, enquanto as catapultas derrubariam
a paliçada.
Pláucio abanou a cabeça. - Pensei nisso. O prefeito dos engenheiros diz que a distância é demasiado grande. Teríamos que usar o projéctil de menor calibre, não seria
suficiente para causar os danos requeridos. Penso que temos que descartar de todo a possibilidade de um ataque directo. Quando a infantaria pesada tivesse atravessado
o rio e formado, já teríamos perdido muitos homens. Além disso,
a frente é demasiado estreita para a força por si só ganhar o dia. Os nossos homens estariam expostos ao fogo por três lados assim que se aproximassem do fosso.
Não, temo que tenhamos que ser um pouco mais sofisticados.
- Temos que atravessar aqui, senhor? - perguntou Sabino.
- Não podemos simplesmente marchar rio acima até encontrarmos um local de mais fácil travessia?
- Não - respondeu pacientemente o general. - Se marcharmos pelo rio acima, Carátaco pode seguir de perto todo o nosso caminho e opor-se a cada tentativa de travessia
da nossa parte. Poderiam passar dias, mesmo semanas, até conseguirmos atravessar. Depois, ele simplesmente recuaria até ao Tamesis e teríamos que repetir tudo de
novo. E o tempo está do lado dele, não do nosso. Todos os dias se juntarão mais homens ao exército dele. Cada dia que lhe damos torna as nossas hipóteses de tomar
Camulodónia antes do Outono menos prováveis. E a não ser que Camulodónia caia, não conseguiremos manter a aliança com as tribos neutrais. Temos que combater Carátaco
aqui e agora.
- Sim, senhor - murmurou Sabino, esforçando-se por esconder o seu embaraço por ser ensinado como se não passasse de um tribuno inexperiente.
Pláucio virou-se para falar aos seus oficiais reunidos. - Portanto, senhores, estou aberto a sugestões.
O legado da Nona Legião olhava absorto para o rio. Hosídio Geta era um patrício que optara por continuar ao serviço do exército em vez de almejar uma carreira política,
e tinha uma experiência considerável em operações conduzidas na água com a sua legião no Danúbio. Virou-se para o seu general.
- Senhor, permite-me?
- Esteja à vontade, Geta.
- Isto pede um movimento de flancos, dois movimentos de flancos, de facto. - Geta virou-se para o rio. - Enquanto o exército principal fica aqui, podíamos enviar
uma força a jusante do rio, sob a cobertura de navios de guerra, contanto que as águas tenham profundidade suficiente nesse local.
- Podíamos usar os auxiliares batavianos para isso, senhor - sugeriu Vespasiano, e levou com o olhar irritado de Geta.
- Ia sugerir isso - respondeu Geta friamente. - Eles estão treinados para este tipo de operação. Podem nadar através dos rios completamente armados. Se conseguirmos
fazer com que eles atravessem sem grande oposição, podemos lançar um ataque flanqueado ali.
- Mencionou um segundo ataque pelos flancos - disse Pláucio.
- Mencionei, senhor. Enquanto os batavianos atravessam, uma segunda força pode subir o rio até encontrarem um vau e depois atacar o outro flanco do inimigo.
Pláucio assentiu. - E se acertarmos os tempos, podemos atacar em três direcções num ataque desconcertante. Deverá acabar rapidamente.
- Creio que sim, senhor - respondeu Geta. - A segunda força não necessita de muitos homens, o seu papel é ser a surpresa final com a qual Carátaco não consiga lidar.
Surpreenda-o e ganharemos o dia. Ele nunca conseguirá responder aos três ataques. Sabe como estes nativos irregulares são. Claro que se alguma das nossas forças
flanqueadoras for isolada, as perdas serão grandes.
Vespasiano sentiu um arrepio na nuca quando reconheceu a oportunidade pela qual esperava. A oportunidade de se redimir a si e à sua legião. Se a Segunda pudesse
ter o papel decisivo na batalha, restauraria os espíritos da unidade de uma forma nunca vista. Embora a recente emboscada de Togodumno à Segunda Legião tivesse falhado,
a unidade tinha sofrido graves perdas humanas, e a moral estava baixa. Um ataque bem sucedido, sem compaixão, talvez pudesse salvar a reputação da Segunda Legião
e do seu comandante. Mas estariam os homens prontos para isso?
Pláucio assentia enquanto analisava a proposta de Geta.-Há riscos num ataque dividido, como bem disse, mas vai ser arriscado de qualquer maneira. Muito bem, executaremos
esse plano. Tudo o que resta fazer é a colocação das tropas. O lado direito do ataque vai precisar, claramente, dos batavianos - disse ele, com um assentimento fosco
para Vespasiano.
- O ataque frontal será levado a cabo pela Nona.
Era agora, constatou Vespasiano. Era o momento de reclamar o privilégio da Segunda. Deu um passo em frente e limpou a garganta.
- Sim, Vespasiano? - Pláucio fitou-o. - Tem algo a acrescentar?
- Senhor, solicito o privilégio de comandar o ataque do flanco esquerdo.
Pláucio cruzou os braços e endireitou a cabeça enquanto considerava o pedido de Vespasiano. - Acha mesmo que a Segunda consegue dar conta do recado? Estão diminuídos,
e imagino que os seus homens não fiquem muito contentes por se verem num denso campo de batalha a tão pouco tempo da sua recente experiência.
Vespasiano corou. - Permita-me discordar, senhor. Acredito falar tanto em nome dos meus homens como no meu.
- Francamente, Vespasiano, não tinha sequer a intenção de convocar a Segunda para este trabalho. Ia mantê-los de reserva, e deixar
uma unidade fresca fazer o trabalho. E não vejo quaisquer razões para mudar de opinião. Você vê?
A menos que Vespasiano encontrasse razões para justificar a sua posição no flanco esquerdo, estaria condenado a viver o resto do seu cargo como legado sob um véu
de suspeição quanto à sua competência para comandar. E se os homens sentissem que lhes estavam a negar o seu lugar na campanha e, consequentemente, a sua parte dos
despojos, a moral e reputação da Segunda nunca recuperariam. A sua reputação tinha sido adquirida ao longo dos anos com o sangue de milhares de camaradas, sob uma
Águia que os conduzira para o combate durante décadas. Se isso ia acabar, só se fosse por cima do seu cadáver. Vespasiano tinha que ser firme com o seu general.
- Sim, vejo, senhor. O senhor parece ter sido mal informado acerca do espírito combativo da minha legião. - E Vespasiano suspeitava que Vitélio era a fonte dessa
má informação. - Os homens estão preparados, senhor. Estão mais do que preparados, estão sequiosos por isso. Queremos vingar os homens que perdemos.
- Chega! - interrompeu Pláucio. - Pensa que a retórica vence a razão? Esta é a linha da frente, não o fórum de Roma. Pedi-lhe que me desse uma boa razão para eu
ceder.
- Muito bem, senhor. Serei directo.
- Seja.
- A Segunda está diminuída. Mas não necessita de uma legião inteira para o ataque. Se cairmos durante o ataque, apenas terá perdido uma unidade que já estava bastante
mal comparando com uma legião fresca. - Vespasiano olhou para o seu general com astúcia. - Atrevo-me a dizer que pretende ter o maior número possível de legiões
frescas para o caso de combater Carátaco novamente. Não poderá dar-se ao luxo de o combater com forças diminuídas e cansadas. É melhor arriscar uma unidade dispensável
neste momento.
Pláucio abanava a cabeça enquanto ouvia aprovadoramente esta argumentação completamente cínica. Reflectia verdadeiramente as duras realidades do comando e, na mesma
dura forma, fazia sentido.
- Muito bem, Vespasiano. Convenceu-me.
Vespasiano inclinou a cabeça num agradecimento. O seu coração saltava de excitação por ter vencido a prova do seu comandante e com ansiedade pela operação perigosa
para a qual tinha voluntariado os seus homens. Tinha sido pouco honesto no seu pedido ao general. Não duvidava que muitos dos homens o amaldiçoariam por isso, mas
os soldados queixavam-se por tudo. Necessitavam combater. Necessitavam de uma vitória folgada para se poderem vangloriar. Deixar os homens
no presente estado de dúvida sobre eles mesmos, arruinaria a legião e arrasaria a sua carreira. Agora que os tinha comprometido ao combate sentia-se confiante de
que a maioria partilharia o seu desejo de lutar.
- As suas ordens - declarou Pláucio formalmente - são de subir o rio ao amanhecer. Localizar o vau mais próximo e atravessar para o outro lado. A partir daí marchará
pelo rio abaixo, evitando quaisquer contactos com bretões. Aguardarão escondidos até as trompetas do quartel-general soarem o sinal de reconhecimento da vossa legião,
a partir do qual se juntarão ao assalto àquela colina. Entendido?
- Sim, senhor. Perfeitamente.
- Dê-lhes duro, Vespasiano. O mais duro que conseguir.
- Sim, senhor.
- As ordens por escrito ser-lhe-ão enviadas ao final do dia de hoje. É melhor ir andando. Quero-vos em marcha ao raiar do dia.
Vespasiano saudou o general, acenou com a cabeça em despedida a Sabino, e abria caminho por entre os oficiais de regresso à linha de cavalaria quando Vitélio subiu
a correr a escarpa, ofegando pesadamente.
- Senhor! Senhor!
Pláucio virou-se para ele alarmado. - Que é, Tribuno?
Vitélio deteve-se, inspirou e fez o seu relatório. - A maré está a encher, senhor. Soube-o pelos nossos batedores ali ao fundo, perto do rio.
O General Aulio Pláucio fitou-o durante uns momentos. - Obrigado, Tribuno. Foi muito interessante. Mesmo muito interessante.
Depois virou-se de costas para ver novamente as forças do inimigo e para esconder de vista a sua expressão divertida.
VI
As sombras propagavam-se enquanto Cato se apoiava imóvel contra o tronco de uma árvore, o seu manto castanho almofadando a casca agreste. Na mão esquerda segurava
o arco de caça que tinha ido buscar ao armazém, uma flecha farpada pesada fixa na corda. Tinha descoberto um trilho sinuoso que se cruzava com um trilho acidentado
e seguira-o até esta clareira. O trilho serpenteava através dos fetos baixos até às árvores na extremidade da clareira. Do outro lado, o rio resplandecia através
das folhas e dos ramos, cintilando com o reflexo do Sol que se afundava. Como rapaz da cidade que era teve o bom senso de pedir conselhos a Pirax, um veterano há
muito habituado a tratar de provisões, antes de partir para o bosque. A área fora desimpedida de inimigos e estava rodeada pelo exército de Pláucio, fazendo com
que o jovem optio se sentisse seguro o suficiente para caçar. Com sorte, os homens da Sexta Centúria não jantariam porco salgado à noite, e iriam para a batalha
com uma boa refeição nas barrigas.
Quando notícias do ataque iminente, foram anunciadas à sexta Centúria, Macro amaldiçoou a sua sorte. Uma perigosa manobra de flanco era a última coisa de que precisavam
quando os seus efectivos estavam tão esgotados. De regresso à tenda, ele e Cato trataram dos preparativos para o ataque da manhã seguinte.
- Anota aí - instruiu Macro ao seu optio. - Todos os homens devem deixar os acessórios não essenciais aqui. Se tivermos que nadar não vamos querer levar mais do
que necessitamos. E vamos precisar de corda. Vai buscar trezentos pés de cabo leve ao armazém. Deve ser suficiente para atravessar o rio se encontrarmos um vau.
Cato tirou os olhos da sua placa de cera. - E se não houver um vau? Que fará o legado?
- Essa é a melhor parte - resmungou Macro. - Se não encontrarmos um vau até ao meio-dia, temos ordens para atravessar a nado.
Vamos ter que nos despir até ficarmos em túnica e passar o equipamento através de bolsas insufladas. Toma nota para requisitar um empola para cada homem.
Fez uma pausa quando Cato não respondeu.
- Desculpa, rapaz. Esqueci-me da tua aversão à água. Se tivermos que nadar, deixa-te estar perto de mim e eu certificar-me-ei de que farás a travessia em segurança.
- Obrigado, senhor.
- Assim que tenhas oportunidade vê se aprendes a nadar como deve ser.
Cato assentiu de cabeça baixa, envergonhado.
- Onde é que íamos?
- Empolas, senhor.
- Ah, sim. Esperemos que não façam falta. Se não encontrarmos um vau não me agrada defrontar os bretões apenas com uma túnica de lã entre eles e os meus tomates.
Cato concordou com todo o coração.
O Sol estava a baixar no horizonte a ocidente e Cato olhou novamente para o rio, que parecia mais largo do que nunca. Estremeceu ao pensar que teria mesmo que o
atravessar; a sua técnica de natação era muito má.
O Sol brilhava directamente sobre as árvores, lançando um emaranhado de sombras com orlas de luz laranja por entre a clareira. Um súbito movimento prendeu a atenção
de Cato. Mantendo o corpo quieto, virou a cabeça para seguir o movimento. Uma lebre tinha saltado cuidadosamente para uma mancha de urtigas a menos de vinte passos
de onde ele estava. Ergueu-se nas suas patas traseiras e cheirou o ar cautelosamente. Com a parte superior do seu corpo e a cabeça aureolada pelo brilho do Sol distante,
a lebre pareceu-lhe um alvo tentador, e Cato ergueu lentamente o arco de caça. Uma lebre certamente que não ia alimentar todos os homens da Sexta Centúria, mas bastaria
até algo maior aparecer.
Cato esticou o arco e estava prestes a libertar a corda quando reparou noutra presença na clareira. A lebre deu a volta e fugiu precipitadamente para o mato.
Um veado deambulava fora das sombras, dirigindo-se para o local onde o trilho penetrava nas árvores do outro lado da clareira. Um alvo muito maior, mesmo a vinte
passos e, sem hesitar, Cato ajustou a pontaria, compensando uma tendência para disparar para cima e para a direita. A corda zumbiu, o veado estacou, e um traço de
escuridão correu pelo ar e cravou-se na parte detrás do pescoço do veado com um baque.
O animal tombou, sacudindo o seu pescoço comprido enquanto o sangue manchava o mato. Cato fixou apressadamente outra flecha na corda do arco e correu pela clareira.
Sentindo o perigo, e enlouquecido pela seta farpada enterrada bem funda no pescoço, o veado debateu-se e saltou pelo trilho em direcção ao rio. Lançando-se descuidadamente
por entre a vegetação que se emaranhava no trilho, Cato perseguiu a sua presa pelo declive abaixo, perdendo distância, mas depois encurtando-a de cada vez que o
veado caía. O animal ferido irrompeu para a margem do rio e depois mergulhou. A superfície suave explodiu numa multidão de gotículas que cintilavam à medida que
apanhavam o sol de fim de tarde.
Cato estava perto e aproximou-se da margem do rio. Parecia mais largo e mais perigoso do que quando o vira mais acima da clareira. O veado chapinhava e Cato ergueu
o arco, furioso por o animal poder escapar e ser levado pela corrente.
O veado debatia-se, agora a uns trinta passos. A segunda flecha apanhou-o mesmo no meio das costas e as patas traseiras caíram sem forças. Largando o arco na margem,
Cato saltou. O leito do rio estava cheio de seixos e tinha menos de dois palmos de profundidade. A água espumava sobre ele à medida que se aproximava do veado com
o punhal em riste. A segunda flecha desfizera a espinha do animal e este retorcia-se em terror, tentando desesperadamente usar as patas da frente para se arrastar
e manchando a água com o próprio sangue.
Cato parou com medo dos coices e contornou-o. Quando a sua sombra caiu sobre o focinho do veado este gelou de terror e, agarrando a oportunidade, Cato golpeou a
garganta do animal com um só golpe. O fim foi misericordiosamente rápido e depois de uma breve luta o veado ficou inerte, os olhos fixos no vazio. Cato tremia, em
parte pela energia libertada na perseguição frenética, em parte por um estranho sentido de vergonha por ter morto o animal. Era diferente de matar um homem. Muito
diferente. No entanto, porque é que o fazia sentir-se pior? Depois Cato percebeu que nunca tinha morto um animal daqueles antes. Claro, tinha torcido o pescoço a
galinhas, mas isto fazia-o sentir-se inseguro e o turbilhão de sangue a vazar aos seus pés fazia-o sentir-se enjoado.
Olhou novamente para baixo. Depois para a margem do rio pela qual viera a correr. Depois para a outra margem.
- Será que?...
Cato afastou-se do veado e dirigiu-se para a outra margem, onde as árvores estavam completamente negras contra um céu cor-de-laranja. Tentou calcular a profundidade
da água à sua frente. Estava demasiado escuro, por isso continuou nervosamente o seu caminho através da corrente, testando cada passo à medida que avançava. A profundidade
do
rio aumentou gradualmente e a corrente acelerou, mas quando chegou a meio a água apenas lhe dava pelas ancas. Daí para a frente a profundidade Voltava a diminuir
e cedo se encontrou na margem oposta olhando para a outra onde se encontravam as legiões.
Aninhou-se nas sombras e esperou até que o sol se pusesse totalmente e as estrelas brilhassem no céu da noite, mas não havia sinais de ninguém. Nenhum homem a vigiar,
nenhuma patrulha, só os sons dos pica-paus e os estalos suaves das criaturas da floresta que se moviam na escuridão acima dele. Satisfeito por estar sozinho, Cato
regressou ao rio, passou o vau em direcção ao corpo do veado e arrastou-o até onde tinha deixado o arco de caça.
O optio sorriu alegremente. Os homens da Sexta Centúria iam comer bem esta noite, e amanhã o resto da legião também ia ter alguma coisa para lhe agradecer.
VII
- Tens a certeza que é este o local, Optio?
- Tenho, senhor.
Vespasiano olhou para o rio em direcção à outra margem. A alvorada ainda não tinha rompido e o perfil das árvores mal se distinguia do céu nocturno. A margem oposta
estava invisível, e o único som que se ouvia para além da água era o pio de um mocho. Atrás do legado o trilho estava cheio com uma massa silenciosa de legionários,
tensos e alerta ao primeiro sinal de perigo. As caminhadas nocturnas eram o fantasma dos exércitos: não faziam ideia das distâncias que percorriam, paravam frequentemente
à medida que as colunas se engarrafavam ou simplesmente colidiam umas com as outras, e temiam as emboscadas. Eram também difíceis de coordenar e, por isso, os comandantes
do exército raramente moviam as suas tropas entre o pôr-do-Sol e a alvorada. Mas o plano de ataque desenvolvido por Pláucio e pelos seus oficiais assistentes requeria
que a Segunda Legião atravessasse o rio e estivesse em posição o mais depressa possível, e de preferência protegida pela escuridão.
Vespasiano não acreditou na sua sorte quando lhe levaram notícias sobre a descoberta de um vau a menos de duas horas do acampamento da legião. Era quase demasiado
conveniente, até mesmo suspeito, por isso interrogou o optio exaustivamente. Cato, cujas habilidades ele conhecia das experiências anteriores, era inteligente e
cuidadoso, duas qualidades que o legado admirava particularmente, e podia confiar-se nas suas informações. Não obstante, se o optio descobrira a passagem tão facilmente,
certamente os bretões também a conheciam. Podia muito bem ser uma armadilha. Haveria pouco tempo para testar esta hipótese, apercebeu-se, quando olhou por cima do
ombro para onde a escuridão estava a rarefazer-se contra o horizonte. Uma pequena força tinha que ir bater o terreno imediatamente. Se os bretões estivessem a vigiar
o vau,
a legião seria forçada a subir ainda mais o rio à procura de outro. Mas quanto mais tempo levassem a atravessar, menos hipóteses teria o general de coordenar os
três ataques sobre as fortificações bretãs.
- Centurião!
- Sim, senhor! - Macro apresentou-se prontamente.
- Leve os seus homens para a outra margem e inspeccione meia milha em cada direcção, a contar da extremidade do vau. Se não encontrar o inimigo e considerar que
podemos fazer a travessia sem sermos observados, mande um mensageiro ter comigo. Talvez seja melhor usar aqui o Cato.
- Sim, senhor.
- Se tiver alguma dúvida quanto à situação, regresse, entendido?
- Sim, senhor.
- E seja rápido. Não vamos estar a coberto da escuridão por muito mais tempo.
À medida que a Sexta Centúria enchia o trilho e entrava no rio, Vespasiano passou a palavra pela coluna para que os homens se sentassem e descansassem. Necessitariam
de todas as forças para o dia que aí vinha. Voltando-se novamente para o rio, viu a massa negra a afastar-se atravessando o vau, parecendo formar um espectro inumano
enquanto chapinhava na corrente fraca. A tensão só amainou quando deixou de ouvir Macro e os seus homens. Tinham chegado à outra margem.
Quando os homens se reuniram na margem, Macro emitiu as ordens calmamente. Dividiu-os em secções e a cada uma foi destinado um eixo de avanço. Depois, secção por
secção, os homens iniciaram o seu caminho pelas árvores.
- Cato, ficas comigo - sussurrou Macro. - Vamos.
Com um último relance para a margem oposta, silenciosa e negra contra o horizonte acinzentado, Cato virou-se e entrou cuidadosamente no bosque. O avanço das outras
secções era claramente audível no início, o partir de ramos, o sussurro do mato e o ruído do equipamento. Mas os sons esmoreceram gradualmente à medida que os homens
se habituaram ao movimento não costumeiro e as secções se separaram umas das outras. Cato fez o seu melhor para acompanhar o centurião sem tropeçar ou fazer demasiado
barulho. Contou cada passo da meia milha que Vespasiano tinha ordenado. O bosque parecia continuar eternamente, inclinando-se ligeiramente numa subida. Subitamente
o mato traiçoeiro deu lugar a um solo muito mais sólido, e as árvores abriram-se numa clareira. Macro parou e aninhou-se, esforçando os olhos para discernir as imediações.
Pela luz fosca que trespassava os cumes das árvores, Cato conseguiu enxergar a mata onde estavam, circundada por rugosos carvalhos antigos,
nos quais estavam pregadas centenas de caveiras, órbitas dos olhos vazias e cabeças de mortos arreganhadas cercando-os por todos os lados. No centro da clareira
estava um altar grosseiro feito de lajes de pedra monumentais, das quais pendiam dos lados correntes negras. Uma atmosfera sinistra tomava conta da mata e ambos
os homens tremeram, não inteiramente de frio.
- Merda! - sussurrou Macro. - Que raio de lugar é este?
- Não sei... - respondeu Cato calmamente. A mata parecia quase sobrenaturalmente silenciosa, mesmo as primeiras notas da alvorada pareciam de alguma forma mudas.
Apesar da sua visão racional do mundo, Cato não podia deixar de estar assustado pela atmosfera opressiva da mata. Sentiu um impulso para sair daquela cena grotesca
o mais depressa possível. Isto não era para romanos, ou quaisquer homens civilizados. - Deve estar relacionado com os cultos deles. Druidas ou algo do género.
- Druidas! - O tom de Macro traía o seu alarme. - É melhor sair daqui depressa.
- Sim, senhor.
Mantendo-se nas franjas da clareira, Macro e Cato arrepiaram-se ao passar por três árvores com os seus troféus sinistros, e continuaram pelos bosques. Uma onda palpável
de alívio pairou sobre eles à medida que se afastavam. Desde que os romanos tinham pela primeira vez encontrado os druidas, lendas da sua magia negra e rituais de
sangue passavam de geração em geração. Macro e Cato sentiram ambos uma tensão gelada a eriçar-lhes os cabelos por trás do pescoço e a passar suavemente pelas sombras.
Durante algum tempo progrediram em silêncio até que, por fim, Cato teve a certeza que podia ver sombras à frente.
- Senhor! - sussurrou.
- Sim, eu vi. Temos que nos aproximar da linha das árvores.
Mais cautelosos do que nunca, seguiram o seu caminho até as
árvores se espaçarem e só restarem árvores novas. Estavam no topo da encosta que corria atrás do rio, e tinham uma vista desimpedida para longe na direcção das fortificações
bretãs que guardavam o vau. Fumo das fogueiras dos dois exércitos manchava o céu. A Leste o céu estava lavado a cor-de-rosa e uma luz enevoada era visível junto
ao rio. A terra a Oeste ainda estava encoberta pelas sombras. Não havia qualquer sinal de movimento e Macro acenou ao seu optio para regressar para junto das árvores.
- Volta ao legado e diz-lhe que é seguro e que a legião pode começar a travessia. Vou permanecer aqui mais um pouco para me assegurar.
- Sim, senhor.
- É melhor dizeres-lhe como são os contornos da terra vistos daqui de cima. Não nos poderemos aproximar ao longo do cume da encosta, topar-nos-iam a uma milha de
distância. Temos que seguir a margem do rio até estarmos perto dos bretões e depois sim, dirigimo-nos para a encosta. Percebeste tudo? Agora vai!
Cato fez o caminho encosta abaixo mais depressa do que tinham trepado, agora que a luz se fortalecia revelando todas as raízes traiçoeiras e silvas. Embora se mantivesse
bem afastado da mata, Cato chegou à margem do rio mais depressa do que antecipara. Durante uns instantes entrou em pânico quando não viu sinais do resto da legião
na margem oposta. Depois um ligeiro movimento rio acima prendeu-lhe a atenção e lá estava o legado a acenar com um braço por entre as árvores. Momentos depois, Cato
fazia o relatório.
- Marcha ao longo da margem do rio? - reflectiu duvidosamente Vespasiano, enquanto vigiava. - Isso vai atrasar-nos.
- Não podemos fazer nada, senhor. A encosta é demasiado exposta e o bosque demasiado denso.
- Muito bem. Volta ao teu centurião e diz-lhe que ele deve bater o caminho à frente da força principal. Que evite qualquer contacto e comunique tudo o que vir.
- Sim, senhor.
Enquanto a coluna começava a encher o vau, as secções batedoras da Sexta Centúria reagruparam-se na margem ao redor de Macro. Assim que Cato relatou as ordens do
legado, Macro mandou formar os seus homens e enviou o optio à frente com a primeira secção. Cato estava ciente da responsabilidade colocada em cima de si. Era agora
os olhos e os ouvidos da Segunda Legião. Dele dependia o sucesso do plano do general, e a segurança dos seus camaradas. Se o inimigo fosse avisado da aproximação
da Segunda Legião, teria tempo de sobra para preparar as boas vindas aos atacantes. Pior ainda, podia ter tempo para organizar um contra-ataque. Com este pensamento,
o jovem optio rastejou em frente ao longo da margem, esforçando ao máximo os seus sentidos. O rio deslizava tranquilamente, enquanto o Sol se erguia sobre as árvores
e enchia a manhã de Verão com luz e calor. Assim continuaram pela maior parte de uma hora, Cato seguindo à frente, até chegarem a um lugar onde a margem do rio cedera
e um antigo carvalho gigante tombara para a água. Estava deitado no caminho na orla do rio, ramos secos e mortos ondulando na corrente. Uma massa de raízes que rasgava
a terra formava uma estrutura para que nova vegetação se desenvolvesse.
Um súbito chapinhar na água fê-lo gelar, e os homens da secção
de batedores trocaram olhares ansiosos antes de Cato localizar o alcião empoleirado num ramo que sobressaía na superfície do rio. Quase soltou uma gargalhada perante
a súbita libertação de tensão quando reparou, a não mais de quinze passos de distância, num cavalo parado na orla do rio.
O animal baixou o pescoço gracioso e começou a beber. Um par de rédeas prendia o cavalo ao tronco de uma árvore. Do cavaleiro não havia sinal.
VIII
- Avise os navios para abrirem fogo.
- Sim, senhor. - Vitélio fez continência e saiu astutamente do caminho. Este cargo como assistente do general estava a revelar-se extremamente oneroso. Pláucio usava
qualquer desculpa para o considerar em falta, e não havia um momento em que ele não sentisse o olhar escrutinador do general sobre si. Bem, deixa o bastardo divertir-se
por agora, pensou Vitélio. O tempo estava do seu lado. Com o seu pai bem metido no círculo íntimo do Imperador, a sua carreira avançaria com a subtileza necessária.
Ele aguardaria o seu tempo e sofreria o desprezo de velhos tontos como Pláucio até ao dia oportuno para fazer a sua jogada. Vitélio já albergava uma ambição tão
audaciosa que só o facto de pensar nisso fazia com que tivesse de parar para recuperar o fôlego. Se Cláudio conseguira tornar-se Imperador, então qualquer homem
com paciência e força de vontade o podia fazer. Mas segurou-se, não podia agir até ter garantias de sucesso. Até lá, apenas podia atacar à distância a dinastia reinante
dos Cláudios, minando invisivelmente o Imperador e os seus herdeiros, de todas as formas possíveis.
Trotando pela encosta abaixo até ao quartel-general provisório, Vitélio acenou para o aglomerado de trombeteiros. Eles pegaram nos seus instrumentos e apressaram-se
para a linha. A sinalização das ordens fora inteiramente delineada na noite anterior e assim que o tribuno passou a palavra, soaram as primeiras notas, rasgando
o ar matinal acima das cabeças dos tabeliões que escrevinhavam em placas de campanha. Primeiro a identificação da unidade, depois a instrução para a acção previamente
combinada. Em baixo, quatro trirremes planavam na superfície suave do rio, ancoradas à popa e à proa para mostrar os lados às fortificações bretãs. E enquanto Vitélio
observava, uma bandeirola baixou rapidamente no barco mais próximo, confirmando a ordem. Pequenas figuras apressaram-se para as suas posições em volta das catapultas
fixas
nos conveses. O fumo dos fornos portáteis requisitados ao exército na noite anterior erguia-se no ar. No início o prefeito da frota recusara terminantemente a colocação
de qualquer aparato bélico nos seus navios; o risco era demasiado grande. O general insistira: as fortificações tinham de ser destruídas para ajudar o posterior
assalto da infantaria. E se o pior acontecesse, os marinheiros estariam ao alcance dos seus camaradas que os salvariam na margem.
- E a galera de escravos? - perguntou o prefeito da frota.
- O que tem?
- Estão acorrentados aos bancos - explicou o prefeito pacientemente. - Se houver um incêndio, não teremos grandes hipóteses de os tirar cá para fora.
- Espero bem que não - concordou o General Pláucio. - Mas veja o lado positivo: assim que derrotemos aquele bando, garanto-lhe que terá a primeira escolha sobre
os prisioneiros para substituir as suas perdas. Parece-lhe bem?
O prefeito considerou a proposta e acabou por assentir. Novos recrutas para os bancos dos escravos seriam bem aceites pelos seus capitães, aos que ainda lhes restassem
navios, claro.
- Agora, - concluiu Pláucio, - certifique-se de que teremos artilharia incendiária a postos pela manhã.
Relembrando a cena, Vitélio sorriu enquanto subia a encosta a caminho do posto de comando do general.
A medida que o Sol se erguia por trás deles, as catapultas dos navios abriram-se, os seus braços de arremesso chicoteando contra as suas barras de refreio. Linhas
finas de fumo gorduroso subiram em direcção às fortificações bretãs, e a seguir os projécteis esmagaram-se contra o chão, fragmentando-se em pequenas poças brilhantes
de óleo quente. Lançadores arremessaram pesadas flechas de ferro sobre a paliçada para desencorajar qualquer tentativa por parte dos bretões de apagarem o fogo.
Vitélio assistira ao efeito de uma barragem de lançamento de dardos antes de saber quão eficientes podiam ser essas armas. Os bretões, no entanto, não o sabiam,
e um enxame de nativos corria sobre a fortificação em direcção à secção da paliçada que tinha sido atingida e ardia a toda a força. Chegando ao local, os bretões
atiraram terra freneticamente para o fogo, enquanto outros formavam uma corrente com baldes até ao rio. Mas antes da corrente sequer iniciar o trabalho, as equipas
de lançadores de dardos investiram sobre eles, e em pouco tempo o solo estava repleto de figuras atiradas por terra. Os sobreviventes fugiam, seguidos velozmente
pelos companheiros das pás.
- Não devemos voltar a vê-los esta manhã, senhor - disse Vitélio a sorrir quando se juntou ao General Pláucio.
- Não. Não se tiverem juízo. - Pláucio olhou para a direita, onde a superfície prateada do rio, curvando-se numa grande extensão, desaparecia atrás da terra que
se erguia no outro lado. Neste momento, quatro milhas abaixo, as coortes Batavianas deviam estar a fazer a travessia a nado; quatro mil homens em coortes misturadas
entre cavalaria e infantaria. Recrutados entre as tribos recentemente dominadas no baixo Reno, os batavianos, como todas as coortes auxiliares, tinham o papel de
atormentar o inimigo até que as legiões se pudessem aproximar para matar. Com sorte alcançariam a margem oposta e formariam antes que os batedores do inimigo reunissem
forças suficientes para debelar a ameaça. Pláucio não duvidava que Carátaco tinha homens posicionados ao longo da margem do rio por várias milhas nos dois sentidos.
Pláucio contava era que os bretões não conseguissem reagir com a rapidez necessária para reprimir cada ataque.
Assim que detectasse movimento inimigo rio abaixo, o ataque frontal começaria. Mesmo abaixo dele, no sopé da encosta junto ao vau, as grossas fileiras da Nona Legião
estavam calmas e silenciosas, aguardando a ordem de avançar sobre as fortificações inimigas. Pláucio conhecia bem o terror frio que escavava um fosso nos seus estômagos,
à medida que o ataque se aproximava. Estivera nas fileiras com eles algumas vezes na juventude, e agora agradecia aos deuses por ser um general. É verdade que agora
enfrentava outros receios e ansiedades, mas já não o terror físico das batalhas corpo a corpo.
Olhando para a esquerda, rio acima, contemplou as florestadas margens do rio que engoliam a superfície prateada da água, permitindo apenas um brilho aqui e um reluzir
ali. Algures naquela ondulação selvagem espalhava-se a Segunda Legião, descendo em direcção ao flanco inimigo. Pláucio franziu o sobrolho quando não vislumbrou quaisquer
sinais de movimento. Se Vespasiano conseguisse cumprir o plano e chegasse dentro do tempo predeterminado pelo general, a vitória sobre Carátaco estaria assegurada.
Mas se Vespasiano se atrasasse por qualquer razão, o assalto principal poderia ser contido e derrotado, e os batavianos, isolados no lado errado do rio, seriam cortados
em pedaços.
Tudo dependia de Vespasiano.
IX
Pequenas ondulações reflectiam-se na água onde o focinho do cavalo mergulhava no rio. Era um animal pequeno mas robusto e bem cuidado, como o brilho nos seus flancos
demonstrava. Um grosso fio trançado saía da sua teliz, e no lado oposto era visível o aro de um escudo.
Cato virou-se para os seus homens e acenou com a mão para que se mantivessem quietos. Depois ergueu-se lentamente, escondido atrás do tremendo tronco de um carvalho,
e espreitou o cavalo. Sustendo a respiração, como se estivesse a ser audível, perscrutou as redondezas em busca de outros sinais de vida. Mas não havia mais nada,
somente o cavalo. Cato praguejou silenciosamente; onde estava o cavaleiro? O cavalo estava preso. O cavaleiro tinha que estar por ali. Cato apertou com mais força
o seu dardo de arremesso.
A poucos passos de distância alguém tossiu, e antes que um Cato pasmado pudesse reagir, um homem ergueu-se do outro lado do tronco, virado para o lado oposto ao
seu e puxando para cima os seus calções grosseiros de lã.
- Merda! - Cato tentou erguer a lança.
O homem virou-se, olhos cintilantes, dentes à mostra sob um bigode ruivo, o seu cabelo viscoso eriçado em pontas matizadas debaixo do elmo de bronze. Por um momento,
ambos permaneceram imóveis, entorpecidos pela surpresa. O bretão reagiu primeiro. Pegou em Cato pelas alças dos ombros e com um puxão poderoso arrastou-o e atirou-o
para o meio de um monte de seixos perto da margem do rio. O impacto tirou o ar dos pulmões a Cato. Um punho foi de encontro à sua boca, e o mundo tornou-se cegamente
branco. Ouviram-se gritos, a visão regressou e viu o bretão em cima de si, a espada meia desembainhada, a olhar para o tronco da árvore. Depois o homem desapareceu,
dispersando seixos à sua passagem, enquanto mãos amistosas puxavam Cato.
- Estás bem?
- Não o deixem escapar! - arfou Cato. - Agarrem-no!
Pirax largou o seu optio abruptamente e correu no encalço do bretão, seguido pelo resto da secção que escalava o tronco da árvore.
Quando Cato recuperara o suficiente para se levantar, já tudo tinha acabado. O rosto do bretão estava virado para baixo na orla do rio a dez passos do cavalo, um
par de dardos sobressaindo das suas costas. O cavalo tinha sacudido as rédeas e liberto o nó. Mirava agora desconfiadamente os forasteiros, como se esperasse em
vão pelo regresso do seu dono.
- Alguém que agarre o cavalo! - ordenou Cato. A última coisa que lhe faltava era que o animal fugisse e fosse localizado por outros batedores bretões. Um dos homens
pousou o seu escudo e elmo e moveu-se rapidamente para o cavalo.
- Faz um ruído como se fosses uma cenoura - sugeriu Pirax sem que fosse grande ajuda, antes de pegar no braço de Cato. - Tudo bem, Cato?
- Já não morro desta.
- Quase que te afogou nelas! - Pirax acenou para as fezes junto ao tronco.
- Não tem graça. - Cato sentiu o queixo, latejando do golpe, e viu sangue de um lábio cortado na mão. - Filho da puta!
- Dá graças por não ter sido pior. Tinha-te feito em pedaços se pudesse.
- Não consegui vê-lo. - Cato começou a corar.
- Não é nenhuma vergonha, optio. Estou apenas grato por teres comandado a partir da dianteira.
- Obrigado - resmungou Cato. Mandou um homem vigiar a curva seguinte do rio enquanto estudava a situação. O corpo e o cavalo tinham que desaparecer. O corpo era
simples, e a patrulha colocou-o rapidamente sob o tronco e empilhou seixos e ramos para o esconder de vista. O cavalo era um desafio maior. Com a besta bem atada
a um cepo, Cato desembainhou a espada com cabo de marfim que Bestia lhedeixara. Não lhe agradava aquela tarefa e o trabalho não era facilitado pelos olhos brilhantes
que o fitavam.
- Vamos lá, cavalinho - disse suavemente. - Vamos acabar com isto rapidamente.
Elevando a arma, deu um passo para o lado e procurou um ponto para golpear.
- Optio!
Cato olhou em redor e viu Pirax a gesticular mais abaixo. O homem que vigiava estava aninhado e a acenar freneticamente para
chamar a atenção. Cato acenou em resposta e o homem atirou-se ao chão.
- Esperem aqui. Mantenham o cavalo quieto.
Cato correu em direcção ao homem, agachando-se nos últimos passos antes de se deitar ao lado do vigia. Do outro lado da curva do rio estava um pequeno açude, uma
parte obstáculo natural e a outra feita pelo homem para funcionar como ponto de passagem. O som da água a cair num rugido abafado chegava aos seus ouvidos. Mas o
que atraíra a atenção do vigia fora o grupo de cavaleiros bem para lá do açude. Viram um dos bretões destacar-se do grupo e vir na sua direcção, as mãos em concha
e a gritar algo inaudível acima do estrépito do açude.
- Estão à procura do homem - apercebeu-se Cato. - Querem certificar-se se ele viu alguma coisa.
- E se não o encontrarem?
- Vão suspeitar e começar à procura. Não podemos deixar que isso aconteça.
O vigia olhou para os bretões. - Não podemos com eles. São muitos.
- Claro que não podemos. Em qualquer dos casos, duvido que eles combatessem. Estão a fazer o mesmo trabalho que nós. Encontrar o inimigo e informar, mais nada. Mas
não os podemos deixar preocupados com um dos seus batedores. - Cato viu o bretão a aproximar-se com o cavalo, ainda a gritar algo. - Espera aqui e esconde-te bem.
Cato voltou para junto do resto da patrulha. Examinou o bretão morto e olhou para os seus homens. - Pirax! Sabes montar?
- Sei, Optio.
- Óptimo, põe o manto e o elmo deste homem, o mais depressa possível.
Pirax olhou espantado.
- Não penses, faz!
Tirando os dardos do corpo, a patrulha despiu rapidamente o manto e as polainas e deu-os a Pirax. Com uma aversão severa, o veterano vestiu os trajes grosseiros
do bretão e atou as alças do elmo de bronze. Depois montou o cavalo. O animal intimidou-se por uns instantes, mas uma mão firme nas rédeas e uma pressão firme nos
flancos conseguiram acalmá-lo.
- Agora vai para a curva do rio e espera lá.
- E depois?
- Depois fazes o que eu te mandar.
A patrulha seguiu Pirax e depois agacharam-se no mato ao longo da margem. Do seu local vantajoso Pirax conseguia ver o bretão a aproximar-se, a chamar o seu companheiro
a não mais de cento e
cinquenta passos de distância, quase ao nível do açude.
- Que faço? - perguntou calmamente.
- Acena com o braço como que a dizer que não viste nada.
- Como é que faço isso? - perguntou Pirax.
- Como é que queres que eu saiba? Não sou nenhum encenador de teatro! Improvisa.
- E se ele não ficar satisfeito?
- Então a legião vai entrar em combate mais cedo do que estava à espera.
- Ele já me viu! - Pirax contraiu-se nervosamente, antes de se lembrar de levantar um braço em saudação.
Cato arrastou-se para a frente até conseguir vislumbrar o bretão a aproximar-se por entre os fetos matizados pelo sol e urtigas. O homem chegara ao açude e controlava
o cavalo. Voltou a chamar, embora as palavras permanecessem indistintas sob o rugido da água que corria. Pirax acenou com a mão, e depois elaborou uma elaborada
e demorada vénia. O bretão virou-se e gritou para os seus companheiros que estavam pouco atrás. Depois de uma breve troca de palavras, o bretão bateu com os calcanhares
nos flancos do cavalo e continuou a aproximar-se da curva do rio.
- E agora? - perguntou Pirax subtilmente.
- Quando eu disser "agora" tu acenas-lhe e levas o cavalo mais para trás até ficares fora do alcance da vista dos outros. Nós depois tratamos-lhe da saúde.
- Está bem. E depois?
- Uma coisa de cada vez.
Enquanto Cato continuava escondido a observar, o cavaleiro acercava-se; o seu comportamento era casual e despreocupado, a saborear o Sol matinal de Verão. Cato contorceu-se
um pouco para desembainhar a espada lentamente. Seguindo a sua deixa, os outros homens prepararam-se para quando o bretão passasse por eles. Depois, quando o homem
não estava a mais de cem pés de distância, perto o suficiente para Cato vislumbrar apenas um jovem debaixo do elmo, o clamor agudo de uma trompa de guerra céltica
soou rio acima. O bretão parou o cavalo e virou-se para trás em direcção ao grupo de cavaleiros. Eles estavam a rodar as montadas, os braços a acenarem freneticamente,
gesticulando para que ele voltasse depressa. Com um grito final para Pirax, o jovem bretão rodou o cavalo e trotou até aos seus companheiros que já estavam a subir
a encosta em direcção à passagem fortificada do rio.
- Que faço agora? - perguntou Pirax.
- Nada. Deixa-te estar até eles saírem da vista.
Como Cato esperava, os bretões estavam com demasiada pressa para dispensarem atenção ao solitário batedor bretão e desapareceram no meio das árvores sem olhar para
trás. Quando o jovem desapareceu nas árvores, Pirax relaxou as rédeas e andou para a frente.
- Merda! Foi por pouco.
- Bom trabalho! - Cato sorriu enquanto se erguia e afagou o cavalo, perto do focinho.
- Que foi aquilo? O toque de uma trompa?
- Julgo que eles já deram com os batavianos. É melhor ires ter com Vespasiano e dizer-lhe o que se passou. Nós continuaremos rio abaixo, mas duvido que encontremos
mais batedores. Podes ir.
- Está bem. - Pirax puxou as rédeas e bateu com os calcanhares.
- Pirax! - chamou Cato. - É melhor livrares-te desse elmo e do manto antes de ires, isto se quiseres sobreviver o tempo suficiente para fazeres o relatório.
X
A massa distante da infantaria e da cavalaria estava a formar atrás das fortificações bretãs quando Vitélio olhou ansiosamente para nordeste. Era quase meio-dia,
o céu estava de um azul profundo e o Sol batia nos dois exércitos de frente um para o outro de cada lado do rio. Do local onde estava usufruía de uma vista gloriosa
sobre a paisagem, a maior parte da qual limpa para o cultivo de cereais, que ondulavam suavemente como lençóis de seda verde na brisa leve. Esta terra daria uma
excelente província ao Império, decidiu, assim que os seus habitantes se submetessem a Roma e adoptassem os modos civilizados. Mas essa submissão não estava próxima.
Na realidade esta gente estava a revelar-se um osso duro de roer, mais do que haviam levado o exército a crer. Faltavam-lhes os conhecimentos tecnológicos da guerra
moderna, mas combatiam com um ímpeto impressionante.
Assim que os navios de guerra romanos gastaram as suas munições incendiárias, os bretões precipitaram-se para fora das terraplanagens e atiraram uma camada de baldes
de vime cheios de seixos para se protegerem dos lançadores de dardos enquanto reparavam os estragos. Muitos homens haviam sido mortos no processo, mas os bretões
simplesmente puxavam os corpos para cima do aterro. Um guerreiro em particular estava a provar ser extremamente irritante para as equipas de artilharia romana .
Era um homem enorme, com um elmo com asas sobre o seu cabelo loiro, estava nu junto à água, a insultar os navios romanos enquanto acenava desafiadoramente um machado
de duas cabeças. Por vezes virava as costas e mostrava o rabo ao inimigo, desafiando-os a fazerem o seu pior. A marinha estava irritada por este desafio arrogante
e os lançadores de dardos na trirreme mais próxima mudaram-se para mais perto do guerreiro bretão. Ele demonstrava ser notavelmente ágil e até ao momento tinha conseguido
evitar os dardos disparados sobre si. Na realidade, quando mais insultuoso se tornava,
pior era a pontaria das unidades no desespero de o apanhar.
- Idiotas! - resmungou o General Pláucio. - Não conseguem ver o que ele está a fazer?
- Senhor?
- Veja, Vitélio - apontou o General. A embarcação que estava a concentrar o fogo no guerreiro estava a servir de escudo aos bretões em relação às outras trirremes,
e o trabalho de reconstrução deles continuava sem problemas. - Maldita marinha! Deixam o orgulho prevalecer sobre os miolos, como sempre.
- Devo mandar um mensageiro ao prefeito de frota, senhor?
- Não adianta. Quando chegasse ao capitão daquele barco já os sacanas dos bretões teriam terminado e iriam a caminho da sesta. Tudo porque um oficial mais sensível
da marinha não conseguiu rivalizar com um bárbaro que lhe está a mostrar o cu.
Vitélio captou a nota de cansaço na voz do General e apercebeu-se que os planos da noite anterior começavam a desmoronar. Não só a marinha tinha falhado na destruição
das defesas, como não tinha também feito estragos suficientes para limpar o caminho para o ataque de infantaria subsequente. E, longe de desmoralizar os bretões,
a marinha fizera os romanos parecerem uns idiotas por dirigirem a sua ira contra um guerreiro nu. Quando a Nona atravessasse o vau enfrentaria um inimigo encorajado
atrás das fortificações. O sucesso do ataque já não era uma certeza. Para agravar mais o problema, não houvera qualquer notícia do progresso da Segunda Legião desde
que tinham atravessado o rio à primeira luz da manhã. Se Vespasiano estivesse em conformidade com o plano, estaria quase em posição, pronto para atacar o flanco
direito dos bretões.
Do outro lado do campo de batalha tinham chegado notícias do prefeito no comando das coortes Batavianas de que a travessia fora bem sucedida. O inimigo fora apanhado
em contra-pé e todos os homens tinham tido tempo de formar na margem oposta antes que os bretões pudessem lançar um contra-ataque sério. Melhor ainda, os batavianos
tinham atacado uma unidade grande de carros. Assoberbados por essas armas impressionantes mas demasiado antigas, os batavianos lançaram-se sobre eles, atacando primeiro
os cavalos, como o General Pláucio ordenara. Sem os cavalos, os carros eram inúteis, e tudo o que restava era fazer caretas aos lanceiros e condutores sem cavalos.
Até ver, tudo bem.
Mas agora, Carátaco conhecia as fraquezas das forças romanas no flanco esquerdo e movia-se rapidamente para cercar os batavianos e empurrá-los para o rio. Se isso
fosse feito com rapidez suficiente ele
conseguiria redistribuir as suas forças e defender o próximo ataque que Pláucio preparava. Era este o momento da Nona Legião avançar, para retirar pressão aos batavianos
e sugar mais bretões para defesa das fortificações em redor do vau. E quando as últimas reservas de Carátaco estivessem comprometidas, a Segunda Legião emergiria
da floresta a sudeste e esmagaria o inimigo num torno de ferro.
- Oh, senhor! - Vitélio riu subitamente. - Olhe para ali!
O guerreiro nu pagara finalmente o preço da sua ousadia, estava sentado, pernas abertas esticadas e contorcia-se com um dardo que se tinha alojado na anca. Pela
quantidade de sangue que jorrava para a lama pisada à sua volta, uma artéria principal fora cortada pelo dardo. Enquanto olhavam, o guerreiro foi atingido no rosto
por outro dardo; o elmo e a cabeça rebentaram em fragmentos de sangue quando o torso foi impelido para trás com o impacto.
- Boa! - assentiu o general. - Isso deve agradar à marinha. Tribuno, está na hora do ataque principal. É melhor pedir um escudo a alguém.
- Senhor?
- Preciso de um bom par de olhos no terreno, Vitélio. Vá na primeira leva e tome nota de todas as defesas que encontrar, a natureza das imediações, e qualquer terreno
que possamos explorar se tivermos que repetir tudo novamente. Quero o relatório assim que regressar.
Se regressar, reflectiu Vitélio amargamente quando tomou consciência da tarefa que enfrentava a Nona Legião. Seria perigoso, muito perigoso. Mesmo se sobrevivesse,
havia sempre a hipótese de sofrer um ferimento tão desfigurante que faria com que as pessoas virassem a cara para o lado. Vitélio era vaidoso o suficiente para desejar
afecto e admiração, bem como poder. Perguntava-se se o general poderia ser persuadido a enviar um oficial mais dispensável no seu lugar e olhou para ele. Mas Pláucio
olhava para ele de perto.
- Não há razão para atrasos, Tribuno. Pode ir.
- Sim, senhor. - Vitélio fez a continência e requereu imediatamente um escudo a um dos guarda-costas do general, antes de se dirigir para as duas coortes da Nona
Legião designadas para o primeiro ataque.
As restantes oito coortes estavam sentadas na erva pisada no declive que levava ao rio. Estava-lhes garantida uma vista espectacular do ataque e aclamariam os seus
companheiros com toda a força dos pulmões quando chegasse a hora, a maioria imbuída de um sentido de auto-preservação, pois se a primeira leva falhasse, cedo chegaria
a vez deles defrontarem os bretões. Vitélio percorreu o caminho por entre a unidade e dirigiu-se às linhas da Primeira Coorte, a tropa de choque de cada legião,
uma unidade
dupla encarregue das missões mais perigosas em qualquer campo de batalha. Mais de novecentos homens em sentido, as lanças na vertical, vigiando silenciosamente os
perigos à sua frente.
O legado da Nona, Hosídio Geta, estava logo atrás da Primeira Centúria. Ao seu lado estava o centurião-chefe da legião e atrás deles o corpo de comando cercando
o estandarte da Águia.
- Boa tarde, Vitélio - cumprimentou Geta. - Vens juntar-te a
nós?
- Sim, senhor. O general quer que alguém analise o terreno na hora do ataque.
- Boa ideia. Faremos o melhor para que consigas fazer o teu relatório.
- Obrigado, senhor.
As cabeças viraram-se para a resposta carregada de ironia mas o legado foi cavalheiro o suficiente para deixar passar.
Entretanto, as trompetas do quartel-general emitiram o sinal da unidade, seguido de uma pausa e depois da ordem para avançar.
- É para nós. - O legado acenou para o centurião-chefe. Geta apertou a correia do seu elmo com grande aparato e inspirou fundo para dar as ordens.
- Primeira Coorte, preparar para avançar! - Três batidas, e depois: - Avançar!
Com o centurião-chefe a coordenar os passos, a coorte moveu-se numa massa ondulante de elmos de bronze, tinindo as ligações das cotas de malha e com as pontas de
dardos de arremesso a cintilarem, linha após linha de homens a marchar directamente para a orla do rio onde a água corria sobre um monte de seixos e ervas daninhas.
Vitélio posicionou-se mesmo atrás do legado, concentrado em manter o passo coordenado com o corpo de comando. Quando deu por si estava no rio, chapinhando na água
castanha que rodopiava agitada na esteira da Primeira Centúria. À sua direita a trirreme mais próxima parecia ser uma vasta fortaleza flutuante, erguendo-se a apenas
cinquenta passos de distância. Os rostos da tripulação eram claramente visíveis no convés à medida que apressavam o bombardeamento da outra margem, amolecendo os
defensores o mais possível antes dos seus companheiros do exército lá chegarem. A pancada forte das catapultas e os estrondos agudos dos lançamentos de dardos faziam-se
sentir claramente na água, e ouviam-se mesmo por cima do barulho da infantaria a atravessar o rio.
A água chegou rapidamente às suas ancas e Vitélio notou alarmado que tinha percorrido menos de um terço do caminho. O aumento da Profundidade abrandou o avanço e
as linhas dianteiras começavam
a chocar umas com as outras. Os centuriões das unidades seguintes abrandaram o passo e a coorte começou a andar com dificuldade, a água que subia firmemente já
estava quase a meio do peito. Vitélio apercebeu-se que se estavam a aproximar da margem oposta, a cinquenta passos de distância, e daquela massa erguida para servir
de fortificação às forças bretãs.
Subitamente ouviu-se um grito agudo à frente, depois mais alguns; a fila da frente encontrava a primeira série de obstáculos submarinos, várias fileiras de estacas
enterradas no leito do rio.
- Sair de formação! - gritou o centurião-chefe, o mais alto que podia. - Sair de formação e tenham cuidado com o raio desses espigões! Quando os encontrarem, puxem-nos
e continuem!
A linha avançada vacilou e depois parou, enquanto os homens da Primeira Coorte faziam a sua travessia, parando para tirar as estacas, dois ou três homens de cada
vez. O caminho foi ficando gradualmente limpo e a linha avançada começou a passar para trás uma mão cheia de feridos. A Primeira Centúria já tinha saído do rio e
formava na margem enlameada quando as unidades seguintes passaram pela brecha sem estacas.
Geta virou-se para Vitélio com um sorriso forçado. - Temo que isto vá começar a aquecer, portanto mantenha esse escudo bem para cima!
As trirremes pararam de bombardear e o ruído de dardos e rochas a voarem pelo ar cessou. A trajectória ficava agora demasiado próxima das cabeças da infantaria para
que pudessem continuar. Assim que a barragem de artilharia parou, ouviu-se um grande rugido e o zurro de trompas de guerra bretãs por trás das fortificações. Ao
longo de toda a paliçada o inimigo ergueu-se e preparou-se para defrontar os seus atacantes. Um estranho som vibrante encheu o ar e, antes dos romanos poderem reagir,
a primeira salva de tiros de funda embateu na fileira dianteira da coorte, atirando homens ao solo enquanto a mistura perversa de pedras e chumbo atingia os alvos.
Vitélio levantou o escudo mesmo quando um projéctil atingiu a bossa, e o impacto sacudiu cada osso e nervo até ao cotovelo tirando-os do seu entorpecimento. Olhando
em redor viu que a Primeira Coorte fora atirada ao chão, abrigando-se o melhor que podiam. Mas a linha curva da fortificação significava que o fogo provinha de três
lados e continuava a reduzir gradualmente os atacantes. Ao mesmo tempo, a Segunda Coorte estava a emergir do rio. A não ser que se fizesse algo imediatamente, o
ataque desmoronar-se-ia numa massa pesada que ofereceria aos atiradores bretões os melhores alvos possíveis.
Geta estava agachado ao lado de Vitélio no meio do corpo de
comando. Verificou a presilha do seu elmo, segurou o escudo perto e levantou-se. - Primeira Coorte! Formação tartaruga pelas centúrias!
A ordem foi retransmitida em voz alta pelo centurião-chefe e os legionários de cada centúria foram empurrados para trás pelos seus centuriões. Os homens aperceberam-se
que a tartaruga era a melhor hipótese de sobreviver ao ataque, e formaram rapidamente a parede e o tecto com os escudos protectores. O corpo de comando abrigou-se
por trás dos escudos dos guarda-costas de Geta e viram a tartaruga marchar em direcção às fortificações, sob um constante e eficaz bombardeamento.
Quando as centúrias seguintes alcançaram a margem receberam a mesma ordem e todas as formações foram enviadas para diferentes secções das defesas. O solo lamacento
entre o rio e as fortificações estava pejado de mortos e feridos. Aqueles que podiam abrigavam-se com os escudos contra os mísseis bretões que giravam pelo ar. Vitélio
estava tomado por uma sensação doentia de medo e excitação quando a Primeira Coorte alcançou o fosso exterior e, esforçando-se por manter a formação, oscilava lentamente
sobre a extremidade.
Quando a tartaruga atingiu o declive da paliçada foi dada uma ordem firme. A formação dissolveu-se e cada homem trepou as fortificações em direcção aos guerreiros
bretões lançando gritos de guerra por baixo dos seus estandartes ondulantes. Com a inclinação íngreme contra eles e atafulhados com equipamentos pesados, os legionários
pagaram um preço alto. Muitos foram varridos pelos golpes das longas espadas e machados dos bretões, e caíram no fosso, arremessados por cima dos seus companheiros
enquanto caíam. Aqui e ali uma mão cheia de homens forçava o caminho por entre ou sobre a paliçada, mas a força dos números estava contra eles e estes bravos foram
rapidamente submergidos e lançados encosta abaixo.
O combate espalhou-se ao longo do muro mas as outras coortes não fizeram melhor e o número de corpos romanos espalhados pelo declive aumentava cada vez mais.
- Senhor, devemos retirar? - perguntou Vitélio ao legado.
- Não. As ordens são claras. Continuamos até Vespasiano atacar a retaguarda deles.
Os oficiais assistentes do legado trocaram olhares apreensivos. A Nona estava a ser cruelmente punida por ter atacado à cabeça; estavam a sangrar até à morte enquanto
esperavam pelo ataque da Segunda Legião.
Olhando em redor, Geta pressentiu a dúvida nos seus homens.
- A Segunda vai atacar a qualquer momento. Só temos que aguentar até lá.
Mas Vitélio já podia detectar uma mudança no combate ao longo da
paliçada. Os legionários já não se esforçavam por subir o declive, estavam a ser obrigados a fazê-lo pelos seus centuriões, empurrados para o ataque pelos golpes
das varas. Em alguns locais os homens estavam mesmo a cair da paliçada por causa do esforço e, lentamente, a perder a vontade de continuar a luta. Os sinais eram
claros para todos no corpo de comando. O ataque estava a desmoronar-se à sua frente.
Se Vespasiano não lançasse a sua investida imediatamente os esforços dispendiosos da Nona teriam sido em vão.
XI
- Porque é que não atacamos?
- Porque não recebemos ordens-respondeu Macro severamente.
- E devemos ficar bem sentados e quietos até ordem em contrário.
- Mas, senhor, olhe para eles. A Nona Legião está a ser massacrada.
- Eu sei muito bem o que se está a passar, rapaz, mas está fora das nossas mãos.
Deitada de barriga para baixo na mata que crescia ao longo do cume da encosta, a linha da Sexta Centúria olhava sem nada poder fazer para os bretões a repelirem
o ataque da Nona. As coortes da Nona que restavam já estavam fartas da luta desesperada. Para o optio inexperiente aquilo era uma agonia insuportável. A pouco mais
de uma milha os seus companheiros estavam a ser chacinados enquanto tentavam tomar de assalto as fortificações. E a menos de cem jardas atrás dele os homens da Segunda
Legião sentavam-se em silêncio, ocultos pelas sombras das árvores. Com uma simples ordem eles podiam descer a encosta, apanhar os bretões entre as duas Legiões e
esmagá-los completamente. Mas a ordem não fora dada.
- Aí vem o legado. - Macro acenou com a cabeça para o declive junto às árvores. Vespasiano vinha a correr na direcção deles, o elmo enfiado debaixo do braço. A poucos
passos da linha o legado deixou-se cair e rastejou para a beira de Macro.
- Como está a correr com a Nona, centurião?
- Nada bem, senhor.
- Algum sinal de movimento nas reservas inimigas?
- Nenhum, senhor.
Atrás das linhas bretãs, milhares de homens estavam sentados, esperando calmamente a ordem para combater. Vespasiano sorriu com uma irónica admiração em relação
à calma do general inimigo. Carátaco
sabia o valor da manutenção de uma reserva fresca à mão e tinha um controlo firme sobre a sua coligação de soldados tribais. A caça egoísta da glória tribal conduzira
à destruição de mais do que um exército céltico no passado, Carátaco até tinha resistido ao isco bataviano que Pláucio oferecera. Apenas alguns homens tinham sido
enviados para repelir os auxiliares romanos e empurrá-los contra o rio. Ali, à distância, bem para lá das fortificações que defendiam o vau, um movimento confuso
de homens e cavalos mostrava a dificuldade dos batavianos.
Vespasiano afastou-se do espectáculo. A compaixão pelos seus companheiros impelia-o a ordenar à sua legião que carregasse em auxílio. Mas essa tentação fora prevista
por Áulio Pláucio, e o general realçara que as suas ordens tinham que ser seguidas à letra. A Segunda tinha que se manter escondida até que Carátaco convocasse as
reservas para defender as fortificações. A ordem para avançar seria dada pelo congregado de trombeteiros do quartel-general na margem romana. Só quando os bretões
estivessem totalmente envolvidos em combate é que Vespasiano seria autorizado a lançar o ataque. Só nessa altura.
Vespasiano reparou que o optio lhe estava a lançar um olhar amargo, e para enfatizar o rapaz fez um aceno imperceptível para a encosta abaixo. O gesto insubordinado
era deliberado, mas também compreensível, e Vespasiano esforçou-se para o ignorar.
- Desejoso por começar, jovem Cato?
- Sim, senhor. Assim que possamos, senhor.
- Boa, rapaz! - Vespasiano bateu-lhe no ombro antes de se virar para o centurião. - O corpo de comando está ali dentro do bosque. - Apontou para o local onde o corpo
de comando da legião estava a tentar não se fazer notar na orla das árvores.-Se houver algum desenvolvimento no rio, envie-me um mensageiro imediatamente.
Enquanto o legado rastejava às arrecuas pela encosta, sentiu os olhos da Sexta Centúria a segui-lo com o ressentimento que todos os soldados sentem pelos oficiais
superiores que parecem sacrificar os seus homens sem necessidade. Claro que era injusto, Vespasiano recebera ordens e não podia fazer nada para alterar a situação.
Ele partilhava o olhar zangado de Cato e gostaria de ter explicado detalhadamente o plano de batalha do general e demonstrar porque é que os homens da Segunda tinham
que ficar sentados a ver os seus companheiros morrer. Mas partilhar tais confidências com um optio era impensável.
O corpo de comando moveu-se ainda mais indiscretamente em direcção à orla das árvores à medida que o legado se aproximava.
- Que diabo estão vocês a fazer? - gritou zangado. - Dei-vos ordens para se manterem fora do campo de visão! - Quando já estavam
de novo no meio das árvores, o legado chamou os oficiais superiores para a sua beira.
- Quero a legião a vinte passos do cume da encosta. Devem ficar em formação prontos para entrar em combate, e avançar assim que eu dê a ordem. O corpo de comando
comigo.
Enquanto os tribunos e os centuriões superiores dispersavam para passar as ordens ao resto da legião, Vespasiano conduziu o corpo de comando para o lugar indicado
e uma linha de batalha foi rapidamente demarcada com pequenas estacas pintadas de vermelho próprias para o efeito. Deixando os oficiais assistentes entregues aos
seus serviços, o legado voltou a juntar-se à Sexta Centúria e ficou horrorizado por ver as novas pilhas de corpos romanos espalhadas no lado errado das defesas do
vau. Na margem oposta do rio outra Legião, a Décima Quarta, marchava em passo rápido em direcção aos bancos de areia para auxiliar a Nona. Enquanto a Primeira Coorte
mergulhava na corrente frouxa, passando a coluna de feridos de volta para as linhas romanas, Cato levantou-se na erva alta ao lado do legado, içando o pescoço para
ver melhor.
- Abaixa-te, idiota!
Cato obedeceu instantaneamente e depois virou-se para o legado.
- Senhor! Está a ver? O rio está a ficar mais fundo.
- Mais fundo? Tolice! A não ser que a maré...
O legado levantou rapidamente a cabeça e olhou atentamente para o rio. O optio tinha razão, estava mais fundo. Vespasiano podia ver que a maré ameaçava tornar o
vau intransponível. Quando a Décima Quarta tivesse atravessado, a água estaria demasiado profunda para permitir uma retirada. Com um temor frio apercebeu-se que
isto era algo que ninguém tinha considerado na noite anterior, quando o general revira o plano. Certamente vê-lo-ia agora. Certamente iria ordenar o sinal de avançar
antes que duas legiões romanas ficassem isoladas na zona de morte, no lado bretão do rio. Mas não houve quaisquer sinais de trompeta, nenhum ruído agudo das buzinas
para impedir os homens da Décima Quarta de partilharem o destino da Nona. Em vez disso, a legião passou o vau com dificuldade, de peito feito na corrente forte.
- Pobres sacanas! - murmurou Macro. - Vão ser crucificados.
As fileiras desordenadas da Décima Quarta debateram-se ao longo
do rio. A água dava quase pelo pescoço e os observadores no cume da colina podiam imaginar muito bem o medo dos homens lá em baixo. E continuava a não se ouvir qualquer
sinal.
Atrás das linhas inimigas foi passando a palavra da nova ameaça que se aproximava das suas fortificações e as tribos movimentaram-se para o topo da leiva de terra
para assistirem à chegada da outra legião.
Qualquer sentido de organização que os chefes se esforçassem por manter dissolveu-se rapidamente à medida que os bretões corriam por entre as passagens grosseiras
para ajudarem os seus companheiros na defesa da paliçada.
Vespasiano viu como densas colunas dos seus homens emergiram da floresta e se colocaram em posição. Mais alguns momentos e todos estariam prontos. Os seus ouvidos
distenderam-se na tentativa de ouvir o primeiro som das trompetas ordenando o avanço da Segunda. Mas o ar manteve-se carregado com os sons da batalha em baixo, sem
ser cortado por nenhuma trompeta. Quando a Segunda Legião completou a formação e ficou pronta para o ataque, os defensores da paliçada tinham sido engolidos por
outros milhares que gritavam pelo seu quinhão no banho de sangue. E continuava a não se ouvir as trompetas.
- Algo não está bem.
- Senhor? - Macro virou-se para ele.
- Já devíamos ter ouvido as trompetas do quartel-general.
Então um pensamento aterrador ocorreu a Vespasiano. Talvez não
tivesse ouvido o sinal. Talvez a ordem já tivesse sido dada e os homens lá em baixo no rio estivessem desesperadamente a olhar para a encosta em busca de um sinal
de alívio.
- Algum de vocês ouviu alguma coisa enquanto estive com o corpo de comando? Algum sinal?
- Não, senhor - respondeu Macro. - Nada.
XII
- Onde raios está a Segunda? - perguntou amargamente Vitélio, e já não era a primeira vez. O legado Geta trocou um olhar com o seu centurião-chefe e ergueu levemente
as sobrancelhas antes de se aproximar cuidadosamente do tribuno que se abrigava debaixo do seu escudo.
- Um pequeno aviso: os oficiais devem sempre ter em conta o efeito que a sua atitude tem nos homens que os rodeiam. Se quer construir uma carreira no exército deve
dar um bom exemplo. Por isso deixemo-nos desta parvoíce sobre a Segunda, está bem? Agora levante-se do chão e ponha-se direito.
Inicialmente, Vitélio ficou incrédulo. Ali estavam eles, no meio de um desastre militar de primeira grandeza, e Geta estava preocupado com a etiqueta. Mas os olhares
de desprezo que lhe eram dirigidos pelos veteranos da equipa de comando embaraçavam-no. Acenou com a cabeça, engoliu em seco, e levantou-se, assumindo o seu lugar
junto dos outros oficiais e porta-estandartes. O fogo que atraíram inicialmente dos atiradores britânicos tinha diminuído logo que as Coortes tinham atacado a paliçada
e agora só se ouvia um ou outro disparo ocasional naquela direcção.
Mesmo assim, dois dos tribunos da Nona tinham sido abatidos. Um jazia aos pés do estandarte da Águia, a cara desfeita pelo impacto de um tiro certeiro. O outro tinha
sido atingido no queixo. O osso ficara esmagado. O jovem oficial estava pálido pelo esforço que fazia para não gritar ao ver o osso a perfurar-lhe a carne. Vitélio
sentiu-se aliviado quando um legionário entroncado pôs o tribuno aos ombros e se dirigiu para o rio.
E descendo a encosta com o olhar viu que na água vinha a Décima Quarta Legião. Por um instante Vitélio recuperou o ânimo com a perspectiva dos reforços, um sentimento
compartilhado por todo o
regimento, até repararem que a maré subia lentamente. Vitélio voltou-se para o legado sem esconder o seu medo.
- O que é que o General está a fazer?
- Faz tudo parte do plano - respondeu calmamente Geta. - Como deve saber, pois esteve na reunião. A Décima Quarta vinha reforçar-nos se precisássemos deles. Pelos
vistos, precisamos.
- Mas o rio! Não vamos poder regressar se não retirarmos agora, senhor.-Vitélio olhou para o regimento com desespero. Certamente que alguém concordaria com ele,
mas o desprezo nos seus rostos aumentara.
- Não podemos ficar aqui sentados, senhor. Temos de fazer alguma coisa. Antes que seja tarde de mais.
Geta observou-o em silêncio por um bocado, depois estreitou os lábios e acenou em concordância. - Tem toda a razão, Vitélio. Temos de fazer alguma coisa. - Voltando-se
para o regimento, desembainhou a sua espada. - Ergue a Águia. Vamos atacar.
- O quê? - Vitélio olhava estarrecido de espanto para ele, e abanava a cabeça, tentando desenfreadamente pensar numa maneira de persuadir o legado a desistir dessa
ideia maluca. - Mas, senhor. A Águia, e se a perdemos?
- Isso não vai acontecer, uma vez que os homens vão vê-la bem lá à frente. Depois lutarão até à última gota de sangue para obter a vitória, ou morrer em sua defesa.
- Mas ela estaria mais segura onde está agora, senhor - argumentou Vitélio.
- Olhe para ali, Tribuno! - exclamou Geta com desagrado. - É uma Águia que está naquele estandarte, não uma maldita galinha. É suposto inspirar coragem nos homens,
e não salvar-lhes a pele. Já estou farto do seu choramingar. É suposto ser um herói. Pensei que fosse salvar a Segunda Legião! Agora lembro-me... Mas está connosco
agora, e eu preciso de todos os homens que encontrar. Por isso, cale o bico e pegue na maldita espada.
A frieza na voz do legado era arrepiante. Sem mais uma palavra, Vitélio desembainhou a espada e foi para trás do regimento. Geta comandou-os em corrida até junto
da Primeira Coorte que se batia por uma brecha na paliçada. Os mortos e os feridos cobriam a encosta. Consoante a companhia pressionava a paliçada, os guerreiros
britânicos embatiam sobre eles, soltando gritos de guerra ensurdecedores. Por fim, a Águia da Nona ergueu-se sobre a confusão e os legionários responderam aos gritos
britânicos com um forte rugido.
- Viva a Hispânia!
Os romanos caíram sobre o inimigo com energia e agressividade
renovadas, e as lâminas faiscantes das curtas espadas romanas rasgavam com uma eficácia mortífera à medida que o grito de guerra aumentava por toda a paliçada.
- Viva a Hispânia!
Vitélio mantinha-se em silêncio, de dentes cerrados, conforme avançava pela encosta com o regimento. Subitamente viu-se pressionado contra a paliçada, uma fila de
postes de madeira derrubados no chão. Por cima dele estava um enfurecido guerreiro bretão, escuro contra o brilhante céu azul, com o machado pronto a atacar. Instintivamente,
Vitélio empunhou a espada em direcção à cara do homem e aninhou-se debaixo do seu escudo. Ouviu-se um grito agudo de agonia momentos antes do machado embater contra
o rebordo revestido do escudo. As pernas de Vitélio falharam um pouco e depois levantou-se de novo. Um enorme centurião estava ao seu lado, os seus enormes braços
agarravam uma estaca de madeira que ele tentava arrancar do chão.
- Derrube a paliçada! - gritou o centurião, agarrando na próxima estaca. - Derrube-a!
Outros homens imitaram-no, e pouco depois já havia uma série de buracos na paliçada, e a Nona começou a forçar a sua entrada em direcção à rampa que se seguia. À
esquerda de Vitélio ergueu-se a Águia, e os bretões encaminharam-se para lá movidos pelo desejo selvagem de arrancar o estandarte inimigo e de lhe destruir o ânimo.
A luta pela Águia desenvolveu-se com uma intensidade tal que Vitélio não imaginara possível entre seres humanos. Voltou as costas a essa cena desgastante e incentivou
os legionários à sua volta a pressionar a paliçada, empunhando a sua espada na direcção dos bretões.
- Avancem, rapazes! Avancem! Matem-nos! Matem-nos a todos!
Nenhum homem lhe prestou atenção conforme avançavam. Só
quando viu que havia romanos suficientes na rampa para formar uma barreira entre ele e o inimigo é que Vitélio trepou pela paliçada destruída e saltou para a rampa.
Daquela altura podia avaliar rapidamente o campo de batalha. De ambos os lados a frente de batalha espalhava-se ao longo das fortificações curvas. Por detrás da
Nona, a Primeira Coorte da Décima Quarta emergia do rio e iria rapidamente engrossar a frente de assalto. Talvez já nem fosse precisa. A tentativa desesperada de
Geta de forçar as defesas estava a ser bem sucedida e, enquanto isso, cada vez mais romanos enchiam a rampa e obrigavam os bretões a recuar pelo outro lado em direcção
ao acampamento. Pressentindo que a vitória estava ao seu alcance e impulsionados por um forte desejo de vingança pelo tormento passado junto ao rio, os homens da
Nona forçavam barbaramente o seu avanço.
Vitélio ia com eles, incentivando os legionários a avançar pois queria juntar-se ao regimento. Encontrou-se num círculo de corpos -tanto romanos como bretões espalhados
aos pés da Águia. A maioria dos oficiais tinha feridas da luta desesperada na rampa e Vitélio constatou que pouco mais de metade dos elementos do regimento ainda
estavam de pé. Geta estava ocupado a dar ordens que seriam enviadas aos comandantes da coorte para impedir as unidades de se dispersarem em perseguição do inimigo.
As tropas frescas da Décima Quarta fariam essa perseguição enquanto as da Nona asseguravam as fortificações pelas quais muitos tinham dado a vida.
-Aí está, senhor!-exclamou Vitélio com alegria.-Conseguimos, senhor! Vencemos!
- "Vencemos"? - Geta arqueou uma sobrancelha, mas Vitélio continuou. Embainhando a espada ensanguentada, agarrou na mão do legado e apertou-a com emoção.
- Um desempenho brilhante, senhor. Deveras brilhante. Espere até Roma ouvir falar do que se passou!
- Julguei que o tínhamos perdido, Tribuno - afirmou Geta calmamente.
- Separei-me de vós na confusão, senhor. Ajudei os rapazes a chegar à rampa daquele lado.
- Estou a ver.
Os dois homens enfrentaram-se por uns instantes, o tribuno sorrindo efusivamente, a expressão do legado fria e distante. Vitélio quebrou o silêncio.
- E nem sinal da Segunda Legião! Esta é uma vitória exclusiva da Nona. A sua vitória, senhor.
- Ainda não acabou, Tribuno. Para nenhum de nós.
- Acabou para eles, senhor. - Vitélio moveu o braço na direcção do acampamento bretão, onde os soldados inimigos caminhavam para os portões.
- Talvez para eles. Com licença. - Geta voltou-se para os trombeteiros. - Toquem à chamada e a formatura.
Cada um dos trombeteiros inspirou fundo e aproximou a boca dos bocais. As notas pungentes explodiram numa breve melodia e depois continuaram a repetir-se. Lentamente
os homens da Nona dispersaram e procuraram pelo estandarte da sua coorte. Mas antes que pudesse dar a ordem de retirada, Geta apercebeu-se de um ruído novo, um rugido
arrepiante de gritos de guerra que vinha das traseiras do acampamento inimigo. Conforme os outros elementos do regimento tomavam consciência do ruído, voltavam-se
para a parte baixa do acampamento.
Ao longo da linha de combate os homens permaneciam em silêncio e procuravam oüvir tanto os romanos como os bretões. Então um arrepio gelado percorreu os exaustos
romanos, quando as reservas cuidadosamente guardadas de Carátaco irromperam pelo acampamento.
- Oh merda! - sussurrou Vitélio.
O legado Geta sorriu e desembainhou a sua espada novamente.
- Acho que o seu comentário anterior acerca do nosso triunfo foi bastante exagerado. Se chegarmos às colunas da Gazeta de Roma penso que será às do Obituário.
Vespasiano observou com grande angústia as reservas bretãs a embater como uma onda gigante ameaçando desfazer em pedaços a fina linha da Nona. A Décima Quarta Legião
não estaria numa posição de dar apoio até que a luta na rampa tivesse acabado, e depois seria a sua vez de ser esmagada, sem qualquer possibilidade de retirada.
Junto ao legado, Cato constatou que o destino de todo o exército seria determinado pelo que se passasse dentro de instantes. Os bretões estavam à beira de uma vitória
decisiva sobre os invasores romanos, e a simples consideração de uma tal calamidade enchia-o de um desespero impotente, como se o próprio mundo estivesse à beira
da extinção. Agora só a Segunda Legião poderia impedir o desastre total.
Cato pensou ouvir por entre o murmúrio abafado da batalha o som esmorecido de uma trombeta, e aguçou os ouvidos para tentar distinguir novamente aquele som. Qualquer
que tivesse sido o som que ouvira, já tinha desaparecido. Talvez tivesse sido algum truque de acústica, pensou, ou a nota perdida de uma corneta britânica. Voltou
a ouvir-se, mas mais distintamente agora. Cato voltou-se rapidamente para o seu legado.
- Senhor! Ouviu aquilo?
Vespasiano ergueu-se e ouviu atentamente antes de abanar a cabeça.
- Não consigo ouvir. Tens a certeza? É melhor ter a certeza.
Por um louco instante, Cato soube que tudo dependia dele. Sobre ele recaía o destino do exército.
- São trombetas, senhor! Ordenam que avancemos.
Vespasiano trocou um longo olhar com o optio e então concordou.
- Tens razão. Consigo ouvi-las. Manda avançar.
Vespasiano olhou por cima do ombro e, antes mesmo que as primeiras notas do sinal deixassem de soar, já a Segunda Legião
avançava pela encosta acima. Vespasiano voltou-se então para os seus mensageiros.
- Passem a palavra, quero que cheguemos em formação. Se alguém se sentir inclinado a obter a glória para si e romper as fileiras, eu certificar-me-ei pessoalmente
de que seja crucificado. Centurião Macro.
- Sim, senhor. - Macro permaneceu atento, agora que já não era preciso nenhum fingimento.
- Ponha a sua centúria em formação e junte-se à sua coorte.
- Sim, senhor.
- Boa sorte, Macro. - O legado acenou com seriedade. - Precisamos de toda a sorte que conseguirmos arranjar.
Voltou-se depois e entrou na formação com o regimento que atingia o topo da encosta, constatando o enorme desafio que tinham pela frente. Até os veteranos prenderam
a respiração e trocaram olhares surpreendidos. Já era tarde para voltar atrás na sua decisão, reflectiu Vespasiano. Já faltava pouco para a Segunda Legião ganhar
uma nota de rodapé nas páginas da História por mérito próprio, e se os deuses fossem bondosos neste dia, a referência não seria póstuma.
Os centuriões marcaram o ritmo com sons vigorosos de marcha, e a legião marchou pela encosta abaixo em duas linhas de cinco coortes. À frente da Sexta Centúria,
Cato fazia o melhor para se manter a par do seu centurião. À sua frente viu que as reservas britânicas tinham chegado à rampa e trepavam pela encosta oposta contra
a fina barreira de escudos dos homens da Nona. Lá em baixo junto ao rio as coortes da Décima Quarta apressavam-se em reagrupar-se conforme atingiam a margem. Mas
a maré que subia tornava o seu progresso através da margem terrivelmente lento e mesmo agora a maioria chegava demasiado tarde para ajudar.
A ameaça inesperada da Segunda Legião vinda da direita causou o pânico aos guerreiros britânicos mais próximos; muitos ficaram a olhar estarrecidos para o perigo
iminente. A distância diminuía progressivamente e Cato começou a visualizar o aspecto dos homens com quem iria lutar frente-a-frente dentro de pouco tempo. Conseguia
distinguir o cabelo de um loiro muito claro, as elegantemente ondeadas tatuagens que cobriam os fortes troncos bronzeados, as calças curtas tingidas de cores claras
e as longas e tortuosas lâminas das espadas e lanças.
- Cuidado aí! - alertou Macro quando a encosta íngreme levou a sua centúria a sair do alinhamento em relação ao resto da coorte.
- Mantenham o ritmo.
Os agrupamentos reorganizaram-se rapidamente e a Sexta Centúria
continuou a avançar, agora a menos de meia milha das fortificações. Um pequeno grupo de artilheiros aproximou-se da abertura mais próxima e colocou-se em posição.
Foi então que uma ligeira mas fatal salva das catapultas se abateu sobre os grandes escudos rectangulares dos legionários. Alguma coisa fez uma tangente à cabeça
de Cato e um homem no final da centúria gritou quando uma fisgada o atingiu no pescoço. Ele desmaiou e caiu sobre a relva alta, soltando a sua lança. Mas não havia
tempo a perder com esse homem, uma vez que uma nova saraivada se precipitava sobre eles.
Ainda faltava um quarto de milha, e a encosta começava a nivelar-se. A Segunda Legião já não podia ver a luta desesperada ao longo da paliçada. Uma larga entrada
surgia mesmo em frente à coorte de Cato, e o centurião superior apontou para lá com a sua arma, dando a ordem para que a coorte se apressasse naquela direcção. Com
o descuido típico do temperamento Celta, os portões estavam abertos de par em par e a Quarta Coorte já tinha afastado as catapultas. Estava a alguns passos das fortificações
quando a primeira das fortemente equipadas infantarias britânicas apareceu. Soltando um rugido de desafio, os bretões de elmos ornamentados, agitando os seus escudos
e as espadas longas, atacaram as linhas Romanas.
- Dardos! Disparar à vontade! - Macro mal tivera tempo de dar a ordem, e as centúrias adiantadas da coorte já corriam pela encosta desnivelada que arqueava numa
trajectória baixa, directamente para os espadachins britânicos. Como sempre, houve um momento de silêncio quando os dardos partiram e os seus alvos se preparavam
para o impacto. Depois ouvia-se o duro embate e o estalar seguido de gritos. Alguns dos dardos acertaram em cheio nos escudos britânicos. As suas fortes estruturas
metálicas vergavam-se com o impacto e tornava-se impossível sacudir os projécteis ou desprendê-los dos escudos, que então tinham de ser abandonados. Depois da saraivada
dos dardos, os legionários pegavam rapidamente nas espadas e aproximavam-se dos bretões que ainda se refaziam do impacto. Não havia coragem que conseguisse opor-se
à eficiência implacável do treino vigoroso e do equipamento especificamente desenhado para condições tão limitadas de luta, e as Coortes Romanas forçaram com determinação
a sua entrada nas fortificações. O número superior do inimigo, que poderia ter feito toda a diferença num campo de batalha, aqui era inútil. Os bretões foram agrupados
num círculo apertado e atingidos pelas espadas curtas por entre as brechas dos grandes escudos rectangulares.
A Sexta Centúria posicionou-se num flanco assim que a coorte abriu caminho através da entrada até uma vasta área de tendas de pano e outros
abrigos construídos pelo exército de Carátaco. Entre a Segunda Legião e as outras duas legiões que lutavam por toda a área, havia milhares de bretões massacrados.
Houve uma pausa momentânea quando o inimigo se apercebeu da amarga realidade da sua derrota, preso entre as duas forças Romanas sem nenhuma rota de fuga. Os chefes
constataram o perigo em que estavam e tentaram manter uma certa ordem entre os seus homens antes que a batalha se transformasse num massacre.
No meio da linha de batalha da Segunda Legião, Cato estava ombro com ombro com o seu centurião. No extremo direito da linha romana, Vespasiano dava ordem para avançar;
a ordem passou rapidamente de coorte para coorte e momentos depois, por detrás da parede de escudos, a legião avançou ao ritmo cadenciado da unidade. Os atiradores
e arqueiros bretões que ainda tinham munições continuavam a atirar sobre os agrupamentos romanos, mas a parede escudada permanecia impenetrável. Desesperados, os
guerreiros britânicos incentivavam-se a avançar, em direcção aos escudos, para tentar quebrar a linha.
- Cuidado! - gritou Macro quando viu um homem enorme inclinado sobre Cato, O optio virou o seu escudo para a esquerda e empurrou-o para a cara do homem. Sentiu um
impacto e automaticamente atacou com a sua espada o ventre do homem, torcendo e puxando a lâmina. O bretão grunhiu e desabou para o lado.
- Boa pontaria! - Macro sorria, no seu elemento, e atingia outro bretão no peito e depois retirava a espada. Dois ou três homens da Sexta Centúria, exaltados pelo
desejo de vencerem o inimigo, correram para a frente, rompendo a linha romana.
- Voltem para aqui! - gritou Macro. - Eu sei os vossos nomes!
Os homens, paralisados pela sua voz, encolheram os ombros e
voltaram para a formação, sem se atreverem a enfrentar o olhar gelado do centurião, mais preocupados com a inevitável repreensão disciplinar do que com a presente
luta.
A batalha na paliçada tinha terminado e os homens da Décima Quarta Legião empurravam os bretões pela encosta abaixo de volta ao acampamento. Apanhados entre as duas
forças, os bretões lutavam pelas vidas com um desespero feroz que Cato considerava aterrador. As caras selvagens, salpicadas com a saliva desprendida dos seus gritos
inumanos, pareciam-lhe espíritos demoníacos. O treino do exército romano sobrepôs-se, e a sequência de avançar-empurrar-desarmar-avançar foi completada automaticamente,
quase como se o seu corpo pertencesse a uma entidade distinta.
À medida que os fugitivos e feridos sucumbiam às lâminas dos romanos, a linha avançava lentamente sobre um campo de corpos, tendas
destruídas e equipamento despedaçado. De repente, a Sexta Centúria alcançou uma zona que os bretões tinham preparado para a cozinha; os fornos de turfa e as fogueiras
abertas ainda estalavam e ardiam com uma intensidade laranja à luz do entardecer, banhando os que estavam mais perto de um vermelho que só acentuava o horror da
batalha.
Antes que Cato pressentisse, um golpe violento sobre o seu escudo desequilibrou-o e atirou-o para cima de uma panela a fumegar suspensa sobre uma fogueira. As chamas
lamberam as suas pernas, e antes que a água se entornasse e caísse sobre o fogo, escaldou-o de um dos lados do corpo. Não pôde evitar gritar ao sentir a dor aguda
das queimaduras, e quase deixou cair o escudo e a espada. Outra pancada fez-se sentir sobre o seu escudo; olhando para cima, Cato viu um guerreiro magro com longas
tranças que volteavam sobre ele, um ódio feroz contorcendo-lhe o rosto. Quando o bretão ergueu o seu enorme machado para o golpe final, Cato ergueu a espada de Bestia
para amortecer o golpe.
Nunca chegou a vir. Macro enfiara a sua lâmina pelo sovaco do bretão quase até ao pescoço e o homem morrera instantaneamente. Mordendo os lábios por causa das dores
das queimaduras, Cato só foi capaz de acenar em agradecimento ao centurião.
Macro exibiu um sorriso rápido.
- De pé!
A frente do agrupamento já os tinha passado e por um momento Cato sentiu-se a salvo do inimigo.
- Estás bem, rapaz?
- Sobreviverei, senhor. - Cato respirou fundo por entre os dentes cerrados conforme uma onda de dor descia pelo lado do seu corpo. Mal conseguia focar a sua atenção
por causa da agonia. Macro não se deixou enganar pela demonstração de bravura, já presenciara cenas iguais nos catorze anos que servia no exército. Mas também aprendera
a respeitar o direito pessoal de cada um ultrapassar isso como bem entendia. Ajudou o optio a erguer-se e, sem pensar, deu-lhe uma pancada nas costas. O jovem ficou
rijo, mas depois de uma leve tremura recuperou-se o suficiente para segurar com firmeza na espada e no escudo, e forçar a passagem até à frente do agrupamento. Apertando
com força o punho da própria espada, Macro voltou para a luta.
Para Cato, o resto da batalha pelo acampamento dos bretões tornou-se numa névoa, pois precisara de se esforçar muito para suportar a dor das queimaduras. Podia ter
morto alguns homens mas não se conseguiu lembrar mais tarde de nenhum incidente; apunhalou com a espada e aparou golpes com o escudo sem se aperceber do perigo,
pois estava apenas consciente da necessidade de controlar a agonia.
A batalha fluiu implacável sobre os bretões, oprimidos pela incansável pressão das duas legiões. Procuraram desesperadamente o ponto de menor resistência e procuraram
fugir por entre as brechas das linhas cerradas dos legionários. Primeiro dúzias, depois centenas de bretões afastaram-se dos seus camaradas e fugiram, trepando pelo
lado contrário das rampas e perdendo-se na escuridão crescente. Muitos milhares escaparam antes que as duas linhas de legionários se encontrassem e rodeassem uns
guerreiros condenados, dispostos a lutar até à última.
Estes não eram soldados comuns, ponderou Macro, enquanto se batia com um guerreiro mais velho cujo suor fazia luzir a pele do seu corpo musculado. Um pesado colar
em ouro pendia do pescoço do bretão, semelhante ao troféu retirado do cadáver de Togodumno, e que Macro agora usava. O bretão viu-o, o reconhecimento iluminou a
sua expressão e precipitou-se sobre Macro com uma energia fortalecida pelo desejo de vingança. A ira foi a sua perdição no final; o romano de cabeça fria deixou
a fraca energia do homem extinguir-se sobre o seu escudo antes de resolver o assunto com uma estocada certeira. Um legionário, um dos que fora recrutado no Outono
passado, ajoelhou-se e pousou uma mão no colar do bretão morto.
- Toca nisso e és um homem morto - alertou Macro. - Conheces as regras da pilhagem.
O legionário acenou rapidamente em concordância e atirou-se bruscamente para o meio da confusão para se espetar numa enorme lança.
Macro praguejou. Depois avançou e encontrou Cato ao seu lado mais uma vez, os dentes firmemente apertados num esgar enquanto lutava com uma eficácia viciante. Com
o pôr-do-Sol a tingir o céu de vermelho e laranja, uma trombeta romana soou a retirada e abriu-se um pequeno espaço junto aos bretões sobreviventes. Cato foi o último
a parar; teve de ser fisicamente retirado da luta pelo seu centurião e depois abanado até recuperar um estado de espírito mais estável.
Ao entardecer, um pequeno círculo de pouco mais de cinquenta bretões observavam em silêncio os legionários. A sangrar de inúmeras feridas, corpos cobertos de sangue
e de respiração suspensa, pousaram as armas e esperaram pelo fim. Dos agrupamentos das legiões ouviu-se uma voz em língua celta. Um apelo à rendição, supôs Macro.
O apelo voltou a repetir-se e desta vez os bretões cercados juntaram-se num coro de exclamações e gestos de desafio. Macro abanou a cabeça, subitamente cansado de
tanta matança. O que é que estes homens queriam provar com as suas mortes? Quem se importaria com esta última atitude? Era sabido que a História era escrita pelos
que venciam a guerra. Ele aprendera isso
nos livros de História que Cato utilizava para o ensinar a ler. Estes homens valentes condenavam-se à morte por nada.
Gradualmente deixaram de se ouvir os gritos e ver os gestos de desafio e os bretões enfrentaram os seus inimigos com uma calma fatídica. Houve um momento de silêncio,
e depois, sem nenhuma palavra de comando, os Legionários avançaram e dizimaram-nos a todos.
À luz das tochas, os romanos constataram a sua retumbante vitória. Os portões foram guardados para prevenir um contra-ataque, e a procura de romanos feridos pelo
acampamento bretão começou com prontidão. Com as tochas erguidas bem alto, as patrulhas de legionários localizaram os seus camaradas feridos e transportaram-nos
para a estação de cuidados que fora rapidamente erguida nas margens do rio. Os bretões feridos eram despachados com um golpe de misericórdia e os seus corpos empilhados
para um posterior enterro.
Macro enviou uma patrulha à procura de mantimentos para a Sexta Centúria e dispensou Cato. Só uma coisa ocupava a mente do optio. A necessidade urgente de encontrar
um alívio para as suas queimaduras. Deixando o centurião junto à rampa, trepou pelo que restava da paliçada e deslizou pelo outro lado. Abriu caminho através do
fosso e até à margem do rio, levemente iluminado pela luz tremeluzente das tochas e dos braseiros da estação de cuidados de feridos. Filas de feridos, moribundos
e mortos tinham sido organizadas ao longo da margem do rio e Cato teve de abrir caminho através delas para chegar ao rio. À beira da água, pousou o escudo e desatou
cuidadosamente as tiras do elmo, corpete, e cinturão. Sentiu uma leveza crescente a deslizar pelo seu corpo exausto enquanto ia despindo lentamente o equipamento
e desvendando as suas feridas. Tinha alguns cortes, cobertos de sangue ressequido, e as queimaduras começavam a ganhar bolhas. Provocavam agonia ao mais simples
toque. Nu e a tremer mais de exaustão do que pelo ar fresco da noite, Cato entrou na suave corrente. Ao ter profundidade suficiente, sentou-se e arfou quando a água
o envolveu. Momentos depois estava a sorrir de pura felicidade pelo alívio dormente que a água trazia às suas queimaduras.
XIV
- Aposto que isso dói! - gozou Macro enquanto o cirurgião espalhava salva sobre a pele cheia de bolhas do lado direito de Cato, desde a anca até ao ombro. O olhar
cortante que o optio lhe mandou foi bastante explícito.
- Esteja quieto - reclamou o cirurgião. - Já é difícil trabalhar com esta luz sem que você esteja sempre a mexer-se. Aqui tem, centurião, segure bem nesta tocha.
- Peço desculpa. - Macro ergueu bem alto a tocha, e à luz do seu brilho laranja o cirurgião mergulhou a mão no pequeno frasco de salva que prendia entre os joelhos
e espalhou-a gentilmente sobre o ombro de Cato. Cato estremeceu, e teve de apertar bem os dentes enquanto o cirurgião continuava com a aplicação. O ar fresco da
hora que precede a aurora, fazia-o tremer, mas dava-lhe um certo alívio da terrivelmente dolorosa ferida que lhe enviava ondas de agonia por todo aquele lado.
- Ele estará apto a reunir-se à unidade? - perguntou Macro.
- Faça-me um favor, centurião! - O cirurgião abanou a cabeça.
- Quando é que os oficiais vão aprender que não podem esperar que homens feridos saltem e corram de volta para o combate? Se ele for, rebentar as bolhas e elas infectarem,
ficará bastante pior do que está agora.
- Quanto tempo então?
O cirurgião examinou a massa de bolhas enormes e coçou a cabeça.
- Dentro de uns dias as bolhas vão desaparecer. Ele terá que manter este lado arejado e descansar o mais que possa. Por isso está dispensado dos seus deveres.
- Dispensado dos deveres! - escarneceu Macro. - Pode não ter reparado mas estamos no meio de uma batalha sangrenta. Ele tem
de voltar para junto da sua unidade. Preciso de todos os homens que conseguir reunir.
O cirurgião ergueu-se em toda a sua considerável estatura e encarou o centurião. Pela primeira vez, Macro constatou o tamanho gigante que o cirurgião tinha, quase
três palmos mais alto do que ele, e com a constituição de um touro. Estava pelos seus vinte anos, tinha feições morenas e cabelo ligeiramente encaracolado que sugeria
raízes africanas. Grande como era, não parecia ter uma grama de gordura no corpo musculado.
- Centurião, se estima este homem deve permitir que ele recupere das suas queimaduras. Ele está dispensado dos deveres, e a minha decisão tem o apoio do cirurgião
sénior e do legado.
O seu tom de voz e a sua expressão tornaram evidente que ele não estava com disposição para ouvir mais argumentos sobre a sua decisão. Mas isso não alterava o facto
de que a Sexta Centúria estava muito maltratada e precisava da presença de todos que podiam carregar uma arma.
- E eu disse que o queria de volta à centúria.
A confrontação entre o cirurgião e o centurião à luz trémula da tocha estava a ficar feia. Cato cerrou os dentes e lutou para se pôr em pé e interferir.
- Peço desculpa, senhor. Ele tem razão. Mal posso mexer este braço. Não seria uma grande ajuda neste momento.
- Quem falou contigo? - Macro olhou furioso para o optio.
- De qualquer forma, porque é que estás do lado dele?
- Não estou do lado de ninguém, senhor. Quero voltar à acção o mais depressa possível, mas não estarei a fazer o meu melhor até poder usar este braço.
- Estou a ver. - Macro era condescendente, em princípio, com os feridos. Mas excepto no caso de um membro amputado ou de estar inconsciente, achava difícil compreender
porque é que um homem não podia entrar numabatalha. Osbretões podiam ter perdido o acampamento mas muitos deles ainda lutavam lá fora; e os feridos continuavam a
lutar pelas suas vidas. - Ora muito bem, rapaz - disse ele, suspirando levemente. - Mas voltas para a centúria logo que possas, compreendido? Nada de fingimentos.
- Senhor! - Cato estava indignado. Mas Macro já se tinha voltado e caminhava por entre as filas de romanos feridos postados junto ao rio. Cato seguiu com o olhar
a tocha do centurião por algum tempo, antes desta se perder no meio das outras tochas e dos clarões das fogueiras.
- Boa peça, o teu centurião - murmurou o cirurgião.
- Oh, ele não é má pessoa. Por vezes falta-lhe um pouco de compreensão e de tacto. Mas é um excelente soldado.
- E tu és um entendido em matéria de soldados, não? - O cirurgião mergulhou a mão num pouco mais de salva. - Pronto para mais um pouco disto?
Cato acenou que sim, preparando-se para mais um pouco de dor. - Já tive a minha quota de vida militar.
- A sério? E há quanto tempo serves a Segunda?
- Já vai para um ano.
O cirurgião parou de aplicar a salva. - Um ano? Só? E esta é a tua primeira legião?
Cato acenou em concordância.
- Não passas de um rapaz. - O cirurgião abanou a cabeça com admiração, e então reparou na túnica e na armadura de Cato que jaziam no chão. O brilho pálido da Faléra
na armadura peitoral de Cato captou o olhar do cirurgião. - É tua?
- Sim.
- Como é que a conseguiste?
- Salvei a vida do meu centurião, antes de partirmos da Alemanha, no ano passado.
- Quer dizer que és esse optio? Aquele de que todos falavam na base? - O cirurgião olhou para Cato com outros olhos. - O optio do palácio?
- Sim, sou eu - disse Cato, corando.
- E voluntariaste-te para o exército?
- Não. Nasci escravo. E prometeram-me a liberdade se me juntasse às águias. Uma recompensa pelo trabalho do meu pai no palácio.
- Ele também era escravo?
- Um homem livre. Foi-lhe concedida a liberdade depois de eu ter nascido para que eu fosse escravo.
- Isso é duro.
- É assim a vida.
O cirurgião riu-se, uma gargalhada rica e profunda que atraiu os olhares de todos os presentes.
- Bem, deixaste realmente a tua marca, não foi? De escravo a recruta caloiro e a veterano condecorado em menos de um ano. Por este andar talvez chegues a centurião;
não, o que estou a dizer? No próximo ano, por esta altura, já serás legado!
- Podemos continuar com a salva? - perguntou Cato, envergonhado pela súbita atenção que atraíam.
- Desculpa. Não era minha intenção ofender-te, Optio.
- Não me ofendeu. E continuemos assim, por favor.
O cirurgião continuou o seu trabalho, aplicando a salva perfumada sobre a carne viva por todo o lado do corpo magro do optio. Cato tentou ocupar a mente, para afastar
a dor o mais que pudesse. Olhou para as filas de homens feridos, alguns a gemer e a chorar enquanto se retorciam no chão. O pessoal médico das três legiões estava
ocupado a transportar os doentes pelo rio em pequenas embarcações que tinham sido trazidas do combóio de mercadorias dos engenheiros. Uma movimentação em dois sentidos,
de homens feridos e macas vazias, entrecruzava-se até ao rio.
- Quantas baixas tivemos? - perguntou Cato.
- Muitas. Centenas de mortos. Colocámo-los no centro do acampamento. Corre o rumor que o General vai limpar uma área quando o exército avançar. Deve ser suficiente
para uma pilha considerável de cinzas.
- E os feridos?
- Milhares. - O cirurgião olhou para cima. - Sobretudo da Nona, graças aos malditos fundibulários. Nunca tinha tratado tantos ossos partidos. Olha, deixa-me dar-te
uma lembrança.
O cirurgião revistou o solo durante um momento e dobrou-se sobre algo preso na turfa. Endireitou-se e largou-o na mão de Cato. Era pequeno e pesado e, à luz difusa,
Cato viu um pedaço oval de chumbo, que engrossava ao meio, do tamanho do seu polegar.
- Desagradável, não é? - O cirurgião indicou-o com a cabeça.
- Ficarias surpreendido com os danos que isso é capaz de fazer nas mãos de um bom fundibulário. O impacto partirá o osso, mesmo através de uma armadura ou de um
elmo. Tive de cortar a perna de um tribuno esta noite. Perfurou-a, desfazendo o osso da coxa em pedaços. O desgraçado esvaiu-se em sangue antes que eu pudesse acabar.
- Por causa de uma coisa destas? - Cato atirou ao ar o chumbo disparado e sentiu o impacto contundente quando o agarrou. Estremeceu ao pensar no prejuízo que este
podia causar a um ser humano quando disparado com muito mais força. Ao remexer no chumbo que tinha na mão, reparou numa irregularidade que tinha à superfície, e
aproximou-o dos olhos para ver melhor. Mesmo sob aquela luz fraca, constatou que alguma coisa tinha sido gravada num dos lados e que alguém tinha tentado apagar
as marcas, apressadamente. - Consegue distinguir aqui algumas letras? - perguntou, levantando o chumbo.
O cirurgião observou-o atentamente, e depois franziu as sobrancelhas.
- Bem, parece um "l", depois um "E", mas é tudo o que consigo perceber.
- É o que eu pensava - assentiu Cato. - Mas o que faz uma inscrição em latim num disparo bretão?
- Talvez seja um dos nossos que foi reutilizado.
Cato ponderou durante um momento.
- Mas os fundibulários ainda não foram destacados para as legiões. Por isso, donde é que isto veio?
- De algum sítio começado por LE - sugeriu o cirurgião.
- Talvez - concordou Cato calmamente. - Ou talvez o LE signifique LEGIO, e nesse caso é realmente um dos nossos. Tem visto muitos por aí?
- Vê por aí. - O cirurgião apontou com a mão. - Estão por toda a parte.
- Verdade? - Cato voltou a atirar o chumbo ao ar. - Isso é muito interessante...
- Certo! Já acabei. - O cirurgião levantou-se e limpou a mão num farrapo que tinha preso no cinto. - Vai até ao rio e apanha um barco para regressares ao acampamento
da tua unidade. Deves descansar e manter esse braço parado o mais que puderes. Se houver algum sinal de pus nas queimaduras, vai imediatamente ao cirurgião mais
próximo. Entendido?
Cato assentiu. Prendeu a túnica no cinto e pegou no seu equipamento com o braço bom. A salva e o ar fresco na pele despida combinavam para fazer desaparecer o ardor
das queimaduras e ele sorriu com gratidão.
- Se passar perto de nós nos próximos dias convido-o para uma bebida.
- Obrigado, Optio. És muito amável. Não costumo fazer visitas domiciliárias, mas dada a tua oferta, abrirei uma excepção. Por quem devo perguntar?
- Cato. Quinto Licínio Cato, Optio da Sexta Centúria, Quarta Coorte da Segunda Legião.
- Vemo-nos então, Cato. Aguardarei com prazer. - O cirurgião neteu o frasco de salva no seu saco de couro e voltou-se para partir.
- Posso saber o seu nome? - perguntou Cato.
- Niso. Pelo menos é assim que sou conhecido - replicou o cirurgião com amargura, e caminhou a passos largos por entre as filas de feridos.
V
XV
Com a aurora a estender-se pela ondulante paisagem britânica, os bretões lançaram um contra-ataque desesperado para recuperar o controlo do terreno. Era um esforço
inútil uma vez que os barcos que tinham sido usados para transportar os feridos até à margem oriental do rio tinham regressado com arqueiros da comitiva de artilharia
do exército. Muito antes do amanhecer, muitas destas armas tinham sido montadas nos taludes ocidentais das fortificações britânicas, e cobriam todos os acessos.
Quando os desafortunados bretões surgiram por entre a neblina, marchando por detrás do forte e soltando o seu grito de guerra, muitos foram abatidos antes de recuperarem
um segundo fôlego. Com uma coragem descuidada eles investiram, instigados pelo toque de guerra das suas trombetas e pelo exemplo dado pelos porta-estandartes que
abriam o caminho sob as correntes agitadas. Os romanos tinham selado as passagens e formado uma linha sólida por toda a extensão do talude. Disciplinados e determinados,
os legionários não levantaram um pé do chão, e a onda de bretões despedaçou-se contra as defesas.
Cato estava a ser ajudado a entrar para uma das embarcações rasas dos engenheiros quando o retinir das trombetas de guerra britânicas rompeu o ar da madrugada, um
pouco abafado e distante, como se pertencesse a outro mundo. Os sons da batalha vagueavam pela acinzentada superfície espelhada do rio, mas havia pouca excitação
entre os que estavam no barco. Por um momento, Cato levantou-se e forçou os ouvidos para escutar. Depois relanceou o olhar pela expressão cansada e dorida dos homens
que o rodeavam, demasiado cansados para ter em consideração a batalha desesperada que estava a ter lugar, e Cato compreendeu que já não lhe dizia respeito. Tinha
cumprido a sua obrigação, tinha sentido o fogo da batalha a percorrer-lhe as veias e partilhado a exultação da vitória. Agora, mais do que nunca, precisava de descanso.
As cabeças dos outros homens oscilavam à medida que os engenheiros remavam, movendo a embarcação sobre a água, mas Cato concentrava-se na actividade à sua volta
para distrair a mente da dor das queimaduras. O pequeno barco aproximava-se de um dos navios de guerra e Cato olhou para cima para ver um fuzileiro naval careca
debruçado de um dos lados, com um pequeno odre nas mãos. A cara e os braços do homem estavam negros devido à fuligem do fogo incendiário que os navios tinham derramado
sobre os britânicos no dia anterior. Ele baixou a cabeça ao ouvir os remos dos engenheiros a chapinhar na suave superfície do rio, e levou um dedo à testa numa saudação
informal.
Cato acenou de volta. - Um trabalho abrasador?
- Diz bem, Optio.
Cato fixou o olhar no odre, e instintivamente lambeu os lábios ao pensar no seu conteúdo. O fuzileiro riu-se.
- Tome! Parece precisar disto mais do que eu.
Desajeitadamente por causa do cansaço, Cato remexeu-se para
apanhar o odre que ele lhe atirou. O seu conteúdo agitou-se no interior.
- Obrigado!
- Típico fuzileiro maldito - resmungou um engenheiro.-Aqueles atiradores não têm mais nada para fazer excepto beber durante todo o dia.
- Enquanto outros como nós fazem todo o maldito trabalho
- queixou-se o seu companheiro no outro remo.
- Isso é problema teu, colega! - gritou o fuzileiro. - Olha para o que estás a fazer com esse remo, ou ainda te enrodilhas na corrente da âncora!
- Vai-te lixar! - respondeu amargamente um dos engenheiros, mas aumentou os seus esforços no remo para afastar a embarcação do bojo do navio de guerra.
O fuzileiro riu-se e levantou uma mão numa saudação de troça. Cato retirou a rolha do odre e engoliu um longo gole de vinho. Quase se engasgou quando um súbito estalido
e um estrondo quebraram o silêncio. Uma catapulta no convés do navio tinha acabado de lançar um caixote cheio de pederneira pelo ar na direcção de uma pequena força
de quadrigas a jusante das fortificações. Curioso quanto à exactidão da arma, Cato observou quando o caixote desenhou um arco no céu na direcção das formas espectrais
do inimigo distante. Todos os olhares deviam estar voltados para a luta pelas fortificações pois não houve nenhum sinal de reacção quanto à mancha negra a descer
na sua direcção. O caixote desapareceu entre as formas difusas de homens, cavalos e veículos. Momentos depois o som de um choque flutuou rio abaixo, seguido pelos
gritos de surpresa e dor. Cato podia bem imaginar o impacto devastador do projéctil e as feridas infligidas pelas pedreneiras que voaram em todas as direcções. Momentos
depois os britânicos tinham desaparecido e só restavam os mortos e os feridos onde tinham estado as quadrigas.
Conforme o navio de guerra entrava na luz láctea, Cato recostou-se contra a superfície dura do barco e fechou os olhos, apesar da agonia das suas queimaduras. Tudo
o que importava agora era obter um momento de descanso. Ajudado pelo vinho, o jovem optio caiu num sono profundo. Tão profundo que nem reclamou quando o levaram
do barco e transferiram para uma das carroças do hospital da Segunda Legião para a viagem aos solavancos até ao acampamento. Só se mexeu um pouco quando o cirurgião
da legião o despiu e inspeccionou as suas queimaduras para avaliar o dano. Foi ordenada uma nova aplicação de salva e então Cato, tendo sido registado nas listas
dos feridos com mobilidade, foi levado de volta para a linha das tendas da Sexta Centúria e gentilmente transferido para o seu grosseiro saco de dormir.
- Ei!... Ei! Acorda!
Cato foi abruptamente arrancado do seu sono quando umas mãos lhe puxaram uma perna.
- Vamos lá, soldado! Não é hora de te fazeres de doente. Há trabalho a fazer.
Cato abriu os olhos, olhando de soslaio para o esplendor do Sol do meio-dia. Agachado ao seu lado e sorrindo, Macro abanava a cabeça em desespero.
- Maldita geração jovem que passa metade do tempo deitada. Asseguro-te, Niso, é uma triste imagem para o Império.
Cato olhou sobre o ombro do centurião e viu a grande forma do cirurgião. Niso carregava o sobrolho.
- Acho que o rapaz precisa de algum descanso. Não está em forma para cumprir o dever agora.
- Não está em forma? Não me parece ser essa a opinião do cirurgião-chefe. O optio é um ferido que anda, e nós precisamos de todos os homens que conseguirmos para
a frente de batalha.
- Mas...
- Mas nada - disse Macro com firmeza. E içou o seu optio. - Eu conheço o regulamento. O rapaz está suficientemente apto para lutar.
Niso encolheu os ombros; o centurião estava certo quanto ao regulamento, e não havia nada que ele pudesse fazer sobre isso. Mesmo
assim, não seria bom para a sua reputação se um dos seus doentes morresse de alguma infecção porque não tivera tempo suficiente para se recuperar.
- O rapaz só precisa de uma bebida rápida e de ingerir uma refeição decente e estará pronto para enfrentar os bretões sozinho. Não é verdade, Cato?
Cato estava sentado, ainda não muito acordado, e muito irritado pelo modo como aqueles dois continuavam a discussão anterior. Na verdade, Cato não se sentia muito
apto a enfrentar o inimigo naquele momento. Agora que estava desperto de novo, a dor das suas queimaduras parecia pior do que nunca, e olhando para baixo podia ver
que o lado do seu corpo era uma massa de pele vermelha e bolhas sob a salva brilhante.
- Então, rapaz? - perguntou Macro. - Estás pronto?
Cato desejou estar ainda a dormir, e que o centurião e o resto do maldito exército estivessem bem longe do seu pensamento. Por detrás do centurião, Niso abanava
gentilmente a cabeça, e por um momento Cato pensou aceitar o conselho do cirurgião e fazer uma pausa dos seus deveres se possível. Mas era um optio, com as responsabilidades
de um optio para com o resto dos homens da sua centúria, e isso implicava que não podia entregar-se a fraquezas pessoais. Por mais dor que tivesse no momento, não
era pior do que aquilo que o seu centurião passara com qualquer das suas inúmeras feridas em campanhas passadas. Se queria merecer o respeito dos homens que comandava,
o mesmo respeito que Macro conseguia tão facilmente, então devia sofrer por isso.
Rangendo os dentes, Cato esforçou-se e pôs-se de pé. Niso suspirou perante a obstinação da juventude.
- Muito bem, rapaz! - exclamou Macro, dando-lhe uma palmada no ombro.
Um manto de dor atingiu todos os nervos do optio e ele fez uma careta, ficando imóvel por momentos. Niso deu um passo em frente.
- Estás bem, Optio?
- óptimo - conseguiu responder Cato por entre os dentes cerrados. - Óptimo, obrigado.
- Estou a ver. Bem, se precisarem de alguma coisa, venham até ao ospital de campo. E se houver sinal de uma infecção, venham ter comigo de imediato.
O último comentário era dirigido tanto ao centurião como ao optio, e Cato acenou em sinal de compreensão.
- Não se preocupe. Terei cuidado.
- Muito bem, então. Vou-me embora.
Enquanto Niso se afastava, Macro mostrou o seu desprezo.
- Qual é a dos cirurgiões? Ou não querem acreditar que estejas doente até resmungares com eles, ou então tratam o mais pequeno
arranhão como uma ferida mortal.
Cato sentiu-se tentado a responder que as suas queimaduras eram um pouco mais graves do que um simples arranhão, mas mordeu a língua a tempo. Havia coisas mais importantes.
A presença do seu centurião naquele lado do rio era preocupante e precisava de uma explicação.
- O que se passa, senhor? Porque é que a legião está de novo aqui? Retirámos através do rio?
- Relaxa, rapaz. As coisas estão bem. O rio está sob nosso poder e a Segunda está a socorrer a Vigésima. Os rapazes estão a ter um descanso antes do General Pláucio
mudar o exército para a margem mais afastada.
- Os bretões já se retiraram?
- Retiraram? - gozou Macro, - devias tê-los visto esta manhã. Digo-te, aquele general britânico deve ter um domínio impressionante sobre os seus homens. Atiraram-se
a nós como loucos, guinchando e gritando conforme se lançavam sobre a parede de escudos. Foi por pouco, nós quase perdemos tudo a dada altura. Um molho deles irrompeu
por um dos portões e teria aberto uma fenda considerável na nossa linha se não fosse Vespasiano. O maldito legado é um apostador, é verdade.
- Macro riu-se disfarçadamente. - Trouxe o regimento e os oficiais pelo colarinho e atirou-os para a luta. Um elemento espantoso. Até os trombeteiros se envolveram.
Vi um deles pegar na trombeta e atirá-la para cima dos bretões, volteando-a como se fosse um maldito machado de combate. Seja como for, assim que a linha se fechou
novamente, os bretões perderam a coragem e recuaram.
- E o general deixou-os escapar? - Cato estava surpreendido. Com que fim se haviam perdido tantas vidas, se deixavam o inimigo escapar e barricar o próximo rio?
- Ele pode ser um general mas não é estúpido. Mandou a cavalaria auxiliar atrás deles. Entretanto, a Vigésima já se levantou e pôs-se a trabalhar, e nós ficámos
aqui para um dia de descanso. Depois avançamos outra vez.
- Um dia inteiro de descanso?
- Não sejas sarcástico, rapaz. Conseguimos descontrolar os malditos, e se conseguirmos continuar a avançar então Carátaco não terá forma de reagrupar o seu exército.
É tudo uma questão de tempo. Quanto mais tempo ele tiver, mais forte será o seu exército. Ou avançamos com força agora, ou lutamos muito mais com eles depois. De
qualquer das formas, temos um tempo difícil pela frente.
- Mal posso esperar.
Ficaram em silêncio por um momento, enquanto relembravam as memórias bem vívidas do dia anterior. Cato sentiu um arrepio de horror pela espinha acima até ao pescoço.
Teve o efeito de ordenar as impressões confusas numa sequência, e dar um sentido ao que acontecera. A ferocidade da batalha conseguia alterar a percepção de uma
pessoa e parecia a Cato que uma intensidade impossível de vida, com todo o seu terror e êxtase, tinha sido experimentada no dia anterior. Preencheu-o uma sensação
profunda de que era demasiado jovem para as coisas que tinha testemunhado. De facto, demasiado jovem para as coisas que tinha feito. Uma onda de repugnância abateu-se
sobre si.
Macro, olhando para o seu optio, viu a expressão amargurada na cara do jovem. Já tinha visto muitos jovens soldados na sua vida para saber o que Cato estava a pensar.
- Ser soldado não é só glória, meu rapaz, nem perto disso. E quem não é soldado não compreende. És novo nesta partida, ainda te estás a adaptar aos nossos modos.
Mas vais conseguir.
- O que é que eu vou conseguir? - Cato olhou para o alto - No que é que eu me vou tornar?
- Hmmm. Pergunta difícil - disse Macro, fazendo caretas. - Tu vais ser um soldado. Ainda não sei bem o que isso significa. É apenas uma via. Uma via que temos de
seguir para sobrevivermos todos os dias. Calculo que me consideres a mim e aos outros um pouco duros, às vezes. Não, duros não é a palavra certa. Qual é a palavra
que eu usei no outro dia? Perguntei-te qual era, lembras-te?
- Insensível? - respondeu Cato calmamente.
- É isso! Insensível. Boa palavra.
- E é assim, senhor?
Macro suspirou, e sentou-se junto ao optio. Cato reparou no cansaço dos seus movimentos, e compreendeu que Macro não tinha tido um único momento de descanso nestes
dois dias. Ele admirou a maravilhosa elasticidade do centurião, e a forma como ele fazia do bem-estar dos homens que estavam sob o seu comando uma prioridade sobre
todas as coisas, como a situação presente demonstrava.
- Cato, tu tens olhos. Tu tens cérebro. Mas às vezes fazes as perguntas mais idiotas. Está certo, alguns soldados são insensíveis. Mas também não o são alguns cidadãos?
Não conheceste homens insensíveis quando vivias no palácio? O tipo de homem que mataria os próprios filhos pelo progresso político? Quando Sejano cedeu, não houve
alguém que mandou o carrasco violar a sua filha de dez anos porque a lei não permitia a execução de virgens? Isso não te parece insensibilidade? Olha
à tua volta. - Macro assinalou as filas de tendas que se espalhavam por todos os lados, as centenas de homens que descansavam calmamente naquele quente dia de Verão,
um grupo deles a jogar aos dados, um ou dois a ler, alguns a limpar o equipamento e as armas. - São só homens, Cato. Homens comuns com todos os seus vícios e virtudes.
Mas enquanto os outros homens vivem a vida com a morte como algo distante, nós vivemos a nossa com a morte por constante companheira. Temos de aceitar a morte.
Os seus olhos encontraram-se, e Macro assentiu com tristeza.
- É assim que as coisas são, Cato. Agora escuta. Tu és um bom rapaz, e tens a fibra de um bom soldado. Pensa nisso.
- Sim, senhor.
Macro levantou-se e prendeu a sua túnica sob a armadura. Com um sorriso fugidio de encorajamento voltou-se para partir, e depois estalou os dedos com irritação.
- Merda! Quase me esquecia da razão que me trouxe aqui - procurou debaixo da armadura e puxou um pergaminho pequeno, bem apertado e selado. - É para ti. Chegaram
algumas cartas com a coluna dos mantimentos. Toma. Lê e descansa um pouco. Preciso de ti de volta ao serviço esta noite.
Enquanto o centurião cansado caminhava empertigado para a sua tenda, Cato examinou o pergaminho. O endereço na película que selava o pergaminho tinha sido escrito
numa letra elegante e certinha; "Para Quinto Licínio Cato, Optio da Sexta Centúria, Quarta Coorte, Segunda Legião." A curiosidade transformou-se em deliciosa antecipação
quando leu o nome do remetente: Lavínia.
XVI
Para os homens que participavam na batalha, qualquer oportunidade de descanso era um luxo a ser saboreado, e os homens da Segunda Legião dormitavam alegremente sob
a luz do sol. O calor da tarde derramava-se sobre o mundo, e produzia uma calma e tépida neblina que flutuava através da paisagem e os enchia de uma sensação de
sossego e contentamento. O legado garantira que os seus homens fossem bem alimentados no regresso ao acampamento, e que uma generosa recompensa de vinho fosse enviada
para todas as cozinhas do campo. Como habitualmente, alguns legionários tinham apostado a sua ração de vinho em jogos de dados, numa tentativa de ganhar mais. Por
consequência, alguns estavam obstinadamente sóbrios enquanto apreciavam os seus colegas inconscientes a gozar os seus prémios num estupor de embriaguez.
Vagueando por entre as filas calmas de homens, o legado da Segunda Legião não podia deixar de reparar nas mudanças abruptas que a vida lavrava. Por esta altura no
dia anterior, estes mesmos homens tinham-se estado a preparar para assaltar as fortificações britânicas e matar ou serem mortos na tentativa. No entanto, ali estavam
eles a dormir como crianças. E aqueles que não dormiam estavam numa calma contemplação. Alguns estavam perdidos nos seus pensamentos que nem reparavam na sua presença,
mas Vespasiano não levantava nenhum problema por esta falta de disciplina. Tinham lutado com bravura; lutado com bravura e vencido, apesar das dificuldades, e era
bom que repousassem e recuperassem algum bem-estar interior. Amanhã estariam de volta à luta, quando o exército mudasse de posição através da Estrada do Prado e
continuasse a forçar os bretões a recuar.
Mas as questões militares eram um assunto paralelo neste momento. Enfiada na bolsa do seu cinto estava uma carta com despachos que ele encontrara no regresso à sua
tenda. A escrita era facilmente reconhecível,
e o legado apanhara-a ansiosamente. Uma mensagem da sua mulher era aquilo que ele mais precisava neste momento. Alguma coisa para ocupar os seus pensamentos por
um breve instante e lembrá-lo que era humano; alguma coisa que não estivesse relacionada com a pressão dos deveres que o cercavam. Ele tinha abreviadamente ordenado
aos seus oficiais de serviço que tratassem da papelada, retirado a armadura e deixado a tenda com uma túnica de linho leve, à procura de alguma privacidade. O decurião
encarregue da segurança pessoal do legado notara-o e preparara-se para ordenar aos homens que o seguissem, mas Vespasiano conseguira pará-lo a tempo. Ordenara ao
decurião que deixasse os homens descansar. Depois desandara, sozinho e desprotegido.
Para além das linhas de estacas erguia-se uma pequena colina, no cimo da qual ficava uma cúpula de vidoeiros. A trilha de um animal traçava uma linha mais ou menos
recta pela encosta através de uma massa densa de erva de pasto e urtigas. Nenhuma brisa perturbava o ar; borboletas, abelhas e outros insectos esvoaçavam por cima
da verdura impassível, esquecidos da grande força do homem, cavalos e bois espalhavam-se por todo o cume na parte superior do rio que fluía placidamente. Ali em
cima na colina era silencioso, e quase sossegado. Vespasiano deixou-se cair com as costas contra a casca grossa da árvore.
Mesmo à sombra o ar estava quente e abafadiço. O suor escorria por baixo dos braços e deslizava frio pelos lados por debaixo da túnica. Lá em baixo, junto à passagem
do rio, uns borrifos brilhantes entre figuras pequenas captaram-lhe o olhar. Alguns legionários nadavam no rio, certamente deliciados com a oportunidade de apreciar
a água fresca. Vespasiano não podia pensar noutra coisa que quisesse mais do que um mergulho, mas a caminhada até lá abaixo ao rio levaria demasiado tempo. Em qualquer
caso, a caminhada de volta ao acampamento só o deixaria desconfortavelmente quente de novo.
Uma sensação maravilhosa de antecipação desenvolvera-se dentro de si; a carta podia agora ser saboreada, em vez de ficar enfiada num intervalo conveniente entre
a papelada no quartel-general. Partiu o selo, imaginando, enquanto o fazia, as mãos de Flávia a segurar este mesmo pergaminho há pouco tempo atrás. O pergaminho
estava rígido, e ele sorriu ao reconhecê-lo como parte do material de escrita que tinha comprado para Flávia há quase um ano atrás. A escrita era elegante como sempre.
Resistindo ao impulso de esquadrinhar para a frente, como fazia com muitos documentos, Vespasiano instalou-se para ler a carta da sua mulher. Começava com a habitual
e ridícula formalidade.
"Escrita nos Idos de Junho, no quartel-general do Governador de Lutécia.
Para Flávio Vespasiano, Comandante da Segunda Legião, e a propósito o amado marido de Flávia Domitilia, epai ausente de Tito.
Querido marido, espero que estejas bem, e a fazer todos os possíveis para continuar bem. O jovem Tito implora que sejas cuidadoso e ameaça não falar mais contigo
caso pereças em batalha. Prefiro pensar que ele leva o eufemismo literalmente e que se questiona quanto à tacanhez dos tipos do exército. Não tenho coragem para
lhe explicar o que acontece realmente. Nem que pudesse; nem quero descobrir como é uma batalha. Podes explicar-lhe tudo um dia quando, e não se, regressares.
Penso que queiras saber como correu a nossa viagem até Roma. As estradas têm sido difíceis de passar pois há todo o tipo de tráfego militar em direcção à costa.
Parece que não são poupados esforços para assegurar o sucesso da tua campanha. Até passámos por um comboio de elefantes que se dirigiam para Gesoriaco. Elefantes!
O que é que o Imperador pensa que o General Pláucio fará com as pobres criaturas é o que todos tentam adivinhar. Duvido que um bando de selvagens ignorantes possa
fazer-vos frente..."
Vespasiano abanou gentilmente a cabeça; até agora os selvagens ignorantes estavam a sair-se muito melhor do que eles tinham pensado, e os reforços requisitados para
apoiar Pláucio eram desesperadamente necessários. A Segunda Legião precisava muito de reforços para recuperar a força para lutar.
"As esposas mais optimistas dos oficiais dizem que a Grã-Bretanha será parte do Império até ao final do ano - logo que Carátaco seja esmagado e a sua capital tribal
em Camulodónia seja tomada. Tentei explicar-lhes o que me disseste acerca do tamanho da ilha, mas é tal a sua convicção na invencibilidade das nossas tropas que
elas acreditam que cada uma das tribos nativas estremecerá à simples menção de Roma. Gostava que elas estivessem certas, mas tenho as minhas dúvidas dado o que tu
me contaste sobre a inclinação bretã para a luta de guerrilha. Eu só rezo para que os deuses te tragam de volta para mim em Roma, mais velho e sábio e de perfeita
saúde, para que possas pôr o exército para trás das costas e concentrares-te no teu futuro na política. Enviei uma mensagem dizendo que estávamos de volta a Roma,
e vou
começar a trabalhar no estabelecimento das nossas conexões sociais logo que possa."
Vespasiano franziu o sobrolho perante a menção da política, e a sua expressão carregou-se ao reflectir sobre a menção de Flávia às conexões. Se ela as julgasse mal
no presente clima político da capital, podia pôr em risco as suas oportunidades e, pior, podia na realidade colocá-los em perigo. Vespasiano só recentemente descobrira
que Flávia estivera envolvida numa tentativa de depor Cláudio. Grupos de conspiradores tinham sido reunidos e executados em Roma, mas Flávia não tinha sido directamente
implicada. Até agora. Vitélio descobrira o seu envolvimento, e era só a ameaça da própria desgraça devido à sua tentativa de roubar a fortuna em ouro e prata imperial,
da qual Vespasiano tinha provas, que o impedia de expor a traição de Flávia. Era uma situação desagradavelmente desconfortável, reflectiu Vespasiano antes de voltar
à leitura da carta.
"Querido marido, tenho de te contar que tive notícias de Roma de que o Imperador ainda persegue os sobreviventes da conspiração de Escriboniano. Parece que há um
rumor a circular sobre uma organização secreta que conspira para derrubar o Império e devolver Roma à sua glória republicana. Toda a gente aqui em Lutécia está a
falar, ou melhor, a murmurar, sobre isso. Parece que este bando se apresenta como "Os Liberais", uma nomenclatura bastante presunçosa
- mas astutamente evocativa de uma era mais igualitária, não achas? Acredito que os dias da República estão há muito afastados, e nós estamos numa era onde o vencedor
fica com tudo. Os homens de valor devem jogar com quaisquer regras que os ajudem a atingir com maior eficácia os seus fins. Prezado marido, neste assunto, como em
todas as outras coisas, serei sempre a tua serva ardente."
Apesar do calor moderado do dia, e do seu contentamento inicial, Vespasiano sentiu um arrepio surgir subitamente na parte de trás do pescoço e descer lentamente
pela espinha. Estaria Flávia a querer sondar os seus sentimentos em relação aos Liberais? Se, de facto, ela estivesse de alguma forma ligada a eles, como Vitélio
afirmava? Flávia ainda não sabia que o seu marido conhecia o papel que ela tivera na conspiração de Escriboniano. O que estava Flávia a tentar dizer-lhe nas entrelinhas
das palavras que escrevera naquela página?
De repente, sentiu um desejo intenso de ter Flávia bem junto a si naquele momento, ali sob as sombras calorosas dos vidoeiros que encobriam o Sol. Queria abraçá-la,
olhá-la nos olhos e exigir a verdade,
para se assegurar da sua inocência, para não ver nenhum traço de malícia naqueles grandes olhos castanhos. E depois fazer amor. Oh sim, fazer amor! Quase podia acreditar
que ela estava ali conforme evocava a sensação de a segurar nua nos seus braços.
Mas, e se ela tivesse feito parte da conspiração? Ela podia negar tudo à mesma, olhando para a sua cara com uma expressão de inocência ofendida, e ele nunca seria
capaz de o provar - ou refutar. Praguejou bem alto contra o abismo que Vitélio abrira entre eles. A descrença traiçoeira que o agente imperial plantara no seu coração
transformava-se agora num desespero violento pela situação que enfrentava. Flávia tinha de ser confrontada com a acusação e forçada a desistir de qualquer ligação
que pudesse ter com os Liberais. E se estivesse inocente, então Vitélio teria que sofrer pelo estrago que causara ao quebrar a confiança sagrada que existe entre
um homem e uma mulher. Vitélio pagaria caro, bem caro, prometeu Vespasiano a si próprio enquanto olhava amargamente encosta abaixo para onde os legionários ainda
chapinhavam no rio.
Continuou a olhar por um momento, com um brilho gelado de ódio nos olhos, o seu punho apertando com força o pergaminho. Uma dor vaga penetrou-lhe lentamente no cérebro,
ele olhou para baixo e viu que, de tanto apertar o pergaminho, as suas unhas se tinham enterrado profundamente na palma da mão. Levou algum tempo a focar de novo
o pensamento, a relaxar o punho e a soltar a carta de Flávia. Ainda havia mais para ler; mais algumas linhas sobre o seu filho Tito, mas as palavras perdiam o sentido
e por isso Vespasiano levantou-se de repente e caminhou pela encosta abaixo de regresso ao seu quartel-general.
XVII
- Estás de bom humor! - Macro deixou de amolar a lâmina da sua espada e sorriu para Cato. Normalmente daria a sua arma a um dos legionários para ser afiada, mas
agora estavam em guerra e Macro tinha de ter a certeza de que as suas armas estavam bem afiadas. Correu os dedos com cuidado de uma ponta à outra de ambos os lados.
- Aquela carta, aposto.
- Era da Lavínia. - Cato contemplou sonhadoramente o céu de um suave bronze a Ocidente. O Sol tinha-se posto, e vagos raios de luz embelezavam a parte baixa das
nuvens. Depois do abrasador calor do dia, o ar estava finalmente mais fresco. Até os pombos no arvoredo próximo soavam mais agradavelmente na monótona obscuridade
do crepúsculo que se aproximava. - É a primeira carta que recebo dela.
- Ainda sente uma chama por ti, não é?
- Sim, senhor. Assim parece.
O centurião observou o seu optio por um momento e abanou lentamente a cabeça em sinal de piedade.
- Ainda não és um homem e já torces a correia para seres apanhado por uma rapariga. Pelo menos, é o que parece. Não tens ainda aveia para semear?
- Se não lhe faz diferença, senhor, é um assunto meu.
Macro riu-se. - Tudo bem, rapaz, mas não digas que não te avisei quando um dia olhares para as oportunidades perdidas. Conheci alguns tipos estranhos no meu tempo,
mas tu deves ser o primeiro que conheço que está tão apaixonado que não sonha em meter a perna entre as da primeira nativa que apanharmos.
Cato voltou os olhos para o chão, envergonhado e amargo. Por mais que tentasse, não conseguia entrar na pele do legionário que era tão familiar para Macro. Estava
atormentado por uma dolorosa e perpétua inibição sempre que se aproximava de um novo desafio.
- Muito bem, então. Como estão essas queimaduras? Consegues aguentar-te?
- Tenho alguma alternativa, senhor?
- Não.
- Elas doem imenso, mas eu posso cumprir o meu dever.
- Esse é o espírito! Falaste como um verdadeiro soldado.
- Falei como um verdadeiro louco - murmurou Cato.
- Mas estás pronto para isso? Quero dizer, a sério?
- Sim, senhor.
O centurião deu uma espreitadela à massa brilhante de bolhas que cobria o braço de Cato e assentiu. - Muito bem, então. A legião vai movimentar-se ao raiar do dia.
Deixamos as nossas trouxas aqui, e o comboio de bagagens do exército vai transportar tudo quando atravessarmos o Tamesis. Quando estivermos do outro lado, as ordens
são para nos entrincheirarmos e esperarmos que o Imperador chegue com reforços.
- O Imperador vem para aqui?
- Em pessoa. Pelo menos foi isso que o legado disse na reunião. Parece que ele quer estar presente na vitória para que se possa apresentar como um general triunfante
perante o povo de Roma. Nós atravessamos o Tamesis, e então estaremos bem posicionados para atacar a Ocidente no coração da Grã-Bretanha, ou ir para Leste e tomar
a capital dos Catuvelánios. De qualquer forma, mantemos os nativos na incerteza e entretanto ficamos completamente descansados e preparados para a próxima fase da
invasão.
- Não seria melhor mantermos a guarda em cima de Carátaco, para o impedir de se reagrupar? Se ficarmos quietos e à espera ele só se irá fortalecer.
- Era isso que eu tinha pensado. Mesmo assim, ordens são ordens.
- Teremos alguns reforços, senhor?
- Algumas coortes da Oitava estão a ser enviadas de Gesoriaco. Devem alcançar-nos quando formos atravessar o Tamesis. Devido às nossas perdas, foi garantida à Segunda
a maior parte dos reforços. Tens os números actualizados das nossas forças?
- Acabei de os enviar para o quartel-general, senhor.
- Óptimo. Esperemos que aqueles malditos burocratas acertem ao enviar o nosso contingente. Não que aqueles mandriões irritantes da Oitava sejam capazes de muito.
Passaram demasiado tempo a cuidar da guarnição militar e a maioria deve estar tão mole como fruta podre. Podes contar com isso. Mesmo assim, um mandrião irritante
vivo é mais útil do que um morto.
Cato só podia assentir em concordância perante uma sabedoria tão perfeita. Particularmente visto que todos os homens que tinham morrido geravam agora uma quantidade
tão grande de papelada.
- Então como estamos?
- Senhor?
Macro ergueu os olhos. - Qual é a nossa força actual? v - Oh. Quarenta e oito efectivos, incluindo nós próprios e o porta-estandarte, senhor. Temos doze no hospital;
três dos quais perderam um membro.
Macro despendeu algum tempo a pensar nos últimos três, ciente do que o destino reservava para quem fosse dispensado das legiões.
- Esses três, algum deles é veterano?
- Dois, senhor. O terceiro, Caio Máximo, só ingressou na legião há dois anos. Recebeu um golpe de espada no joelho, que quase o cortou por inteiro. O cirurgião teve
de amputar.
- Isso é duro. Muito duro. - murmurou Macro, o rosto quase todo encoberto pelas sombras da noite que se aproximava. - Dois quintos do seu salário é tudo o que vai
receber. Não é muito para um homem sobreviver.
- Ele é de Roma, senhor. Será elegível para o subsídio de milho.
- O subsídio de milho! - desdenhou Macro insolentemente. - Isso é uma maldita humilhação para um ex-legionário. Não, não posso deixá-lo depender disso. Ele tem de
ter algum dinheiro para montar um negócio. Um sapateiro não sentiria falta de uma perna ou duas. Ele pode fazer isso, ou um negócio parecido. Faremos uma colecta
para o Máximo. Fazes a ronda antes de toda a gente se recolher esta noite. E dá-lhe um reembolso do clube funerário. Duvido que os rapazes protestem por isso. Trata
disso.
- Sim, senhor. Mais alguma coisa, senhor?
- Não. Podes passar a palavra sobre o progresso de amanhã enquanto recolhes as contribuições para o Máximo. Faz saber aos rapazes que estaremos de pé antes do amanhecer.
Com pequeno-almoço tomado, reunidos e prontos para partir. Agora vai tratar disso.
Enquanto observava a figura escura do optio a mover-se por entre a linha das tendas, os pensamentos de Macro regressaram a Caio Máximo. Era pouco mais velho do que
Cato, mas não tão esperto. Bastante estúpido de facto. Um volumoso e desajeitado jovem dos bairros miseráveis de Subura em Roma. Alto, pesado, de orelhas grandes
e entre elas um enlouquecido sorriso torto a dividir-lhe a cara. Desde que assumira o comando da centúria, Macro considerava Máximo um acidente à espera de acontecer,
e abanara a cabeça com pena perante as tentativas do
rapaz de se adaptar à legião. Macro não ficou satisfeito ao ver que estava certo acerca do rapaz, e era doloroso pensar no pobre inválido a tentar sobreviver numa
metrópole sobrepovoada de ladrões e vadios da pior espécie. Mas a espada que encurtara a carreira do rapaz, para não falar na perna, poderia ter vitimado outro homem
qualquer da centúria, concluiu Macro. Poderia facilmente ter sido ele ou o jovem Cato.
O centurião dobrou a túnica e prendeu-a entre o seu arreio e a sua armadura para que o orvalho não a molhasse. Satisfeito por as suas armas estarem preparadas para
ser usadas, Macro puxou a sua capa de lã sobre o corpo e recostou-se sobre a relva admirando o negro manto de estrelas. À sua volta, a noite era preenchida pelos
barulhos de um exército a adormecer. O bramido distante de uma corneta no quartel-general anunciou uma mudança de vigia, e então, no crescente silêncio das filas
de homens sonolentos, o centurião adormeceu.
XVIII
- Porquê?
- Senhor? - Vitélio sorriu inocentemente para o legado.
- Porque é que foi nomeado de volta para a Segunda Legião? Pensava que tinha sido promovido para a equipa do general para sempre. Uma recompensa pelos seus esforços
heróicos. Por isso, o que mudou?
- Vespasiano observou-o com suspeita. - Foi destacado de volta para aqui, ou solicitou-o?
- Foi um pedido meu, senhor - respondeu o tribuno facilmente.
- Disse ao general que queria voltar ao centro de tudo da próxima vez que a legião fosse para o combate. O general afirmou que admirava a minha coragem, desejou
que houvesse mais como eu, perguntou-me uma vez mais se tinha mudado de ideias, e depois mandou-me seguir o meu caminho.
- Posso imaginar. Ninguém no seu juízo perfeito quereria realmente um espião imperial acampado à sua porta.
- Ele não sabe, senhor.
- Não sabe? Como é que ele não sabe aquilo que você é?
- Porque ninguém lhe disse. O nosso general julga que a minha promoção se deve inteiramente aos meus contactos no palácio. Quando lhe pedi para voltar à Segunda
ele não ficou assim tão desolado por me ver partir. Posso ser sincero, senhor?
- Vá em frente.
- Não tenho a certeza de possuir o temperamento certo para pertencer à equipa do general. Ele exige-lhes muito e expõe-nos a demasiado risco, se me está a perceber.
- Perfeitamente - respondeu Vespasiano. - Ouvi dizer que tinha ido com a Nona no assalto ao rio.
Vitélio assentiu, o terror do ataque ainda fresco na sua memória; a certeza ardente de que podia não ter sobrevivido à chuva selvagem de
setas e fisgadas que caiu torrencialmente sobre os romanos vinda das defesas desesperadas.
- Ouvi dizer que se desembaraçou bastante bem.
- É verdade, senhor. Mesmo assim, preferia não ter estado lá.
- Possivelmente, mas talvez ainda haja alguma esperança para si. Comece a comportar-se como um tribuno, esqueça a espionagem, e talvez consigamos aguentar a companhia
um do outro.
- Isso seria bom, senhor. Mas eu sou um servo do Imperador, e assim permanecerei até morrer.
Vespasiano observou atentamente o seu tribuno sénior.
- Pensava que a única coisa que servia era a sua ambição.
- Há alguma coisa mais merecedora do serviço do homem? - Vitélio sorriu. - Mas a ambição tem de trabalhar dentro dos limites do possível e da vontade do destino.
Ninguém conhece a vontade dos deuses. Dada a perspectiva da sua divinização iminente, calculo que só Cláudio pode saber como as coisas vão acabar.
- Hmmm.
A predilecção imperial pela imortalidade era algo que perturbava Vespasiano há anos. Ele achava difícil acreditar que a moção votada no Senado pudesse determinar
o estatuto divino de um homem. Especialmente de uma criatura tão desagradável como o actual Imperador. Ter sido declarado um deus não protegera Calígula da ira daqueles
que o tinham assassinado. Parecia que aqueles imperadores malucos que os homens iriam destruir eram primeiro declarados deuses. Vespasiano levantou o olhar para
o seu tribuno sénior.
-Veja bem, Vitélio, estamos a meio de uma importante campanha. A última coisa com que me quero preocupar é que ande a espiar-me a mim e aos meus homens.
- Consegue imaginar algo melhor para se espiar, senhor? Quando o pensamento dos homens está ocupado com a batalha, tendem a não prender tanto a língua. Isso torna
o meu trabalho muito mais fácil.
Vespasiano olhou para ele com evidente desprezo.
- Há momentos em que me deixa indisposto, Tribuno.
- Sim, senhor.
- Se se intrometer entre a minha legião e as suas responsabilidades para com o resto do exército, juro que o mato.
- Sim, senhor. - Se havia algum sinal de presunção ou de rendição para com uma alta autoridade na expressão do tribuno, esta era ilegível para Vespasiano. Nenhum
dos dois falou, ou sequer se mexeu, enquanto se avaliavam mutuamente. Vespasiano reclinou-se na sua cadeira.
- Estou confiante de que nos fizemos entender, Vitélio.
- Oh, tenho a absoluta certeza disso, senhor. E presumo que o acordo a que chegámos dadas as actividades políticas extracurriculares da sua esposa e da minha caça
ao tesouro ainda se mantém?
Vespasiano cerrou os punhos com força e assentiu.
- Desde que mantenha a sua parte do acordo.
- Não se preocupe, senhor. A sua esposa está a salvo, por enquanto.
- Presumindo que haja um resquício de verdade naquilo que disse sobre ela.
- Resquício de verdade? - gozou Vitélio. - Penso que ficaria bastante surpreendido com a extensão que Flávia percorreria para atingir os seus fins. Muito mais do
que seria aconselhável para alguém cujo marido tem um futuro tão promissor... ao serviço do Imperador.
- Isso é o que você diz. - Vespasiano assentiu lentamente. - Mas ficou de me arranjar provas concretas das suas acusações. Nada do que me disse até agora seria aceite
num tribunal.
- Tribunal! - riu-se disfarçadamente Vitélio. - Que ideia tão estranha. O que o leva a crer, por um momento que seja, que quaisquer acusações contra Flávia, ou contra
si, seriam apresentadas perante um tribunal? Uma palavra disfarçada do Imperador e um pequeno esquadrão de Pretorianos fazia-lhe uma visita com ordens para não partir
até que estivessem os dois mortos. O melhor que podia esperar era um elegante e pequeno obituário na gazeta de Roma. É assim que o mundo funciona, senhor. É melhor
habituar-se.
- Vou habituar-me. Assim como é melhor você habituar-se ao facto de também eu poder implicá-lo numa pequena traição.
-Oh, não me esqueci, senhor. É por isso que estamos a ter esta pequena discussão. Presumo que procurou garantir a documentação da sua parte do acordo?
- É claro. - mentiu Vespasiano. - Enviei uma mensagem para Roma para ser depositada no meu advogado até eu a reclamar ou morrer. O que acontecer primeiro. Nessa
altura, a carta será aberta e lida perante o Senado e o Imperador. Calculo que a sua morte se sucederá à minha. Tão prontamente que talvez cheguemos a atravessar
o Estige na mesma barca.
- Gostaria de ter essa honra, senhor. - Vitélio permitiu-se um sorriso irónico. - Mas não há necessidade de as coisas irem tão longe, não concorda?
- Plenamente.
- Então não há mais nada a dizer, senhor.
- Nada mais.
- Posso retirar-me?
Vespasiano fez uma pequena pausa e depois abanou a cabeça.
- Ainda não, Tribuno. Preciso que me responda a uma pergunta antes de sair.
- Pois sim?
- O que sabe acerca dos Liberais?
Vitélio ergueu uma sobrancelha, aparentando alguma surpresa perante a pergunta. Apertou os lábios e franziu a testa antes de fornecer uma resposta.
- Ela tem mantido contacto consigo, não tem?
Vespasiano recusou-se a satisfazer o tribuno com uma resposta e procurou esconder a sua irritação perante a referência informal à sua mulher.
- Como eu pensava - assentiu Vitélio. - Os Liberais. Eis um nome que tem vindo à baila com muita frequência nos últimos meses. Muito bem. A nossa Flávia é um cavalo
mais selvagem do que eu pensava, senhor. Devia protegê-la melhor antes que ela faça alguma coisa que a sua descendência venha a amaldiçoar.
- Então conhece essa organização?
- Tenho ouvido falar deles, por assim dizer-respondeu o tribuno suavemente. - Correm rumores de que os Liberais são uma organização secreta com ambições de destronar
o Imperador e restaurar a República. Fala-se da sua existência desde o tempo de Augusto, e foram vaidosos o suficiente para se proclamarem os assassinos de Júlio
César.
- Um rumor? - ponderou Vespasiano. - É só isso?
- Ainda é o suficiente para causar a sua execução, senhor. Narciso tem homens a insinuar-se por toda a Roma, e pelas províncias, à procura de pessoas relacionadas
com a organização. Os que estiveram envolvidos na conspiração de Escriboniano têm presumíveis relações com os Liberais. Pergunto-me o que a sua mulher sabe acerca
deles. Imagino que Narciso gostaria de a interrogar, se tivesse a oportunidade.
Vespasiano recusou-se a responder a uma ameaça tão clara; nenhum deles ganharia alguma coisa em expor o outro. Ao invés, concentrou-se em Flávia, e na sua possível
relação com esta conspiração escondida nas sombras da História. Do pouco que conhecia de Narciso, o chefe de segurança imperial, era inexorável e quase impiedoso
na sua perseguição daqueles que traíssem o Imperador. Por mais tempo que tomasse, por mais suspeitos que fossem torturados para a obtenção de informação, a conspiração
seria desmantelada e os seus membros silenciosamente eliminados.
No entanto, Vitélio estava certo, os Liberais conspiravam há décadas, e isso revelava um extraordinário compromisso com o secretismo e a paciência. Vespasiano podia
adivinhar qual seria a motivação daqueles que tinham aderido aos Liberais. Roma era governada por imperadores há mais de sessenta anos, e muito embora Augusto tivesse
posto fim à terrível era da guerra civil que dividira em duas partes o Estado Romano durante gerações, era uma paz comprada à custa da negação dos poderes políticos
que as famílias aristocráticas possuíam há centenas de anos. Uma classe social imbuída de uma tal noção do seu próprio destino não aceita facilmente a subordinação
a uma dinastia que produziu um louco como Calígula e um tolo como Cláudio.
Mas, ponderava Vespasiano, que outra saída tinha Roma?
Devolver o controlo do Império ao Senado iria transformar mais uma vez o mundo civilizado num campo de batalha, sobre o qual vagueariam os vastos exércitos de facções
senatoriais enlouquecidas pelo poder. Deixariam a devastação no seu rasto, enquanto as hostes bárbaras observariam com alegria por detrás das fronteiras selvagens
do Império. Apesar dos seus defeitos, os imperadores representavam a ordem. Podiam diminuir as camadas da aristocracia de tempos a tempos, mas, para as agitadas
massas de Roma e todos aqueles que viviam no Império, os imperadores representavam em certa medida a ordem e a paz. Muito embora Vespasiano fosse um membro da classe
senatorial, cuja causa os Liberais declaravam representar, ele sabia que as consequências do regresso ao controlo senatorial oferecido pelos Liberais eram demasiado
terríveis para considerar.
- Senhor?
Vespasiano levantou o olhar, irritado pela interrupção da sua linha de pensamento.
- O que é?
- Há mais alguma coisa para discutir? Ou posso regressar às minhas obrigações com a Segunda?
- Já dissemos tudo o que era preciso dizer. É melhor avisar Plínio que foi substituído no posto de tribuno sénior. Peça-lhe para o colocar a par do avanço de amanhã.
E ainda há alguns mantimentos para distribuir. Trate disso antes de se recolher.
- Sim, senhor.
- Não se esqueça do que lhe disse, Vitélio. - Vespasiano olhou fixamente para o tribuno com uma expressão severa. - Independentemente dos seus deveres como agente
imperial, ainda é o meu tribuno superior e eu espero que aja como tal. Um passo ou palavra fora de linha e farei com que pague por isso.
XIX
Bem cedo, na manhã seguinte, o exército avançou através do Mead Way. Quando a espessa coluna de soldados atingiu o rio, o ritmo abrandou. A maioria servia há tempo
suficiente para saber o desconforto que era marchar com um escudo impregnado de água, e mantiveram o equipamento bem alto à medida que avançavam com dificuldade
pela água agitada no encalço dos milhares de homens que faziam a travessia para o outro lado. Apesar do descanso da tarde anterior, os homens ainda se sentiam cansados,
e aqueles cujas feridas eram leves o suficiente para os classificarem como doentes que podiam andar, exibiam as expressões esforçadas de quem lutava contra a dor.
Por toda a coluna viam-se homens com ligaduras na cabeça ou nos membros, alguns ainda ensopados com o próprio sangue, e com o sangue de outros. Mas apesar do ar
desgastado da legião, esta continuava a marchar em frente completamente preparada e ansiosa por combater os bretões novamente.
O sucesso do ataque do dia anterior tinha reacendido a confiança da Segunda Legião de uma maneira que animava o seu comandante. Ele observava, na margem mais distante,
a coluna sair do rio e gotejar sobre as partes lamacentas antes de trepar pelos aterros e desaparecer dentro das fortificações ao longe. Sob a luz vaga, Vespasiano
recordou-se de uma centopeia gigante que tinha visto quando criança na propriedade da família perto de Reate; uma massa brilhante com extremidades escuras debatendo-se
pela encosta acima.
Ao seu lado, Vitélio seguia em silêncio sobre a sua montada, observando o chão antes do aterro. A lembrança do ataque dilacerante sobre aquele mesmo terreno contrastava
gravemente com a serenidade matinal do rio. O sangue que manchara o rio de vermelho tinha sido levado pela água, e os corpos que se haviam acumulado sobre a margem
tinham sido levados para serem cremados. Já pouco restava da luta selvagem para além das memórias daqueles que tinham lutado e
sobrevivido. Com uma vaga sensação da realidade deprimente de tudo aquilo, Vitélio voltou a montada e afundou os calcanhares nos seus flancos, trotando pela inclinação
que os engenheiros tinham preparado. Passou junto dos homens da Quarta Coorte, desconhecedor dos olhares hostis que lhe eram dirigidos por dois homens que marchavam
à cabeça da Sexta Centúria.
- Pensei que já não voltávamos a ver aquele pulha - resmungou Macro. - Pergunto-me o que é que ele está a fazer de volta à legião.
Cato não estava perturbado pelo regresso do tribuno à Segunda Legião. O seu pensamento estava noutros assuntos. A dor das suas queimaduras parecia pior do que nunca
desde esta manhã, e ele ansiava por alguma da inactividade do dia anterior. Até agora a fricção do seu equipamento tinha rebentado algumas das bolhas e a pele esfolada
agonizava contra o material áspero da túnica. Ele cerrava os dentes e concentrava o pensamento em acompanhar a retaguarda da centúria à sua frente.
Ficou chocado com a cena que descortinou perante os seus olhos à medida que a Sexta Centúria passava pelo que sobrara das fortificações britânicas. A área cercada
estava escurecida pelo fogo, e muito embora os corpos dos romanos tivessem sido cremados, o mesmo tratamento não fora dado aos inimigos mortos que jaziam amontoados
em pilhas definhando ao sol. O ar parado estava saturado pelo cheiro levemente adocicado dos mortos, e os seus membros rígidos, os olhos em branco e as bocas abertas
enchiam de repugnância o jovem optio. Cato podia sentir a bílis a encher-lhe a garganta e apressou o passo, tal como todos os homens à sua frente que passavam pelas
fortificações. Grupos de prisioneiros estavam ocupados a cavar covas funerárias para os seus camaradas mortos, sob o olhar atento dos homens da Vigésima Legião destacados
para fazer a vigilância. Deviam estar gratos pela oportunidade de estarem excluídos da batalha que se aproximava, pensou Cato, momentaneamente invejoso da sorte
deles antes de uma lufada fresca da carne apodrecida lhe encher as narinas, forçando-o a querer vomitar.
- Calma aí, rapaz! - exclamou Macro. - É apenas o cheiro. Tenta não pensar naquilo que o está a provocar. Estamos quase a sair deste sítio.
Cato perguntou-se como é que Macro podia ficar impassível perante o terrível caos que o rodeava. Mas então viu o seu centurião engolir nervosamente e compreendeu
que mesmo o veterano endurecido tinha sido afectado pelas hediondas consequências da batalha. A coluna apressou-se através do acampamento arruinado, num silêncio
apenas interrompido pelo chocalhar do equipamento e pela tosse nervosa dos que estavam perturbados pelo cheiro ímpio. Uma vez junto da rampa
e de volta ao campo aberto, Cato respirou profundamente para expelir todo aquele ar fétido dos pulmões.
- Estás melhor? - perguntou Macro.
Cato assentiu.
- É sempre assim?
- Quase sempre. Excepto se lutarmos no Inverno.
O acampamento britânico ficara para trás e o ar era preenchido pelos aromas frescos do campo que apagavam a lembrança do odor dos mortos. Mesmo assim, indícios da
luta decorrente entre os bretões e os seus perseguidores desordenavam o percurso até onde os olhos alcançavam na direcção do Tamesis. Armas rombas, cavalos mortos,
carroças voltadas e pedaços de corpos jaziam dispersos pelo chão calcado. O ar zumbia com o som de moscas que rodopiavam em pequenas nuvens sobre os mortos. Uma
bruma sombria pairava no caminho, afastada pela passagem das legiões que marchavam para se juntar aos auxiliares e à cavalaria na sua perseguição do inimigo.
Cato sentiu o primeiro calor moderado do dia a fluir sobre si. Mais tarde, pensou ele, o calor crescente tornaria as condições intoleráveis sob a camada de equipamento
incómodo, desenhado para a eficácia na batalha mas com pouca consideração para com o conforto de quem o usava enquanto marchava. Até agora as suas queimaduras expostas
estavam a causar-lhe um tormento para lá da imaginação. A dor ainda ia durar alguns dias e, como não havia nada a fazer sobre isso, teria que a suportar, concluiu
Cato com uma careta.
Conforme o Sol abria caminho pelo céu azul-celeste as sombras dos pobres legionários diminuíam, como se eles próprios murchassem sob o crescente calor, e a conversa
animada da manhã era substituída por comentários murmurados. Com a aproximação do meio-dia, a legião chegou ao cume de uma cordilheira baixa e o legado mandou-os
parar. Escudos e lanças foram depositados na berma da estrada antes que cada legionário se instalasse no chão e bebesse com agrado dos cantis de couro cheios antes
do amanhecer.
A Sexta Centúria viu-se próxima de um pequeno círculo de corpos, alguns romanos, a maioria bretões, um testemunho silencioso de uma difícil escaramuça levada a cabo
no dia anterior. Hoje, nenhum som de luta perturbava a suave conversa dos homens da Segunda Legião, nem mesmo uma trombeta ou corneta longínqua. Era como se a batalha
dos dois dias anteriores se tivesse recolhido como uma maré passageira e deixado a terra inundada pelos seus despojos despedaçados e sangrentos. Cato sentiu uma
vontade súbita, tingida de pânico, de saber mais sobre as coisas que jaziam entre as legiões e o inimigo. Acalmou a vontade de perguntar a Macro o
que estava para vir, uma vez que o centurião sabia tão pouco quanto ele e o melhor que lhe podia oferecer era a visão de um veterano acerca da situação.
Até onde Cato conseguia perceber, a legião tinha marchado oito ou nove milhas para além do Mead Way, e isso significava que restava percorrer a mesma distância
até chegarem ao Tamesis. E depois? Outro sangrento ataque junto ao rio? Ou estariam os bretões a recuar demasiado depressa para formarem uma defesa organizada desta
vez?
As colinas verdejantes davam lugar a um espesso matagal de tojo que enchia completamente os dois lados do caminho e através do qual havia pequenos carreiros que
se perdiam de vista. Se este era o aspecto do terreno que teriam pela frente, pensou Cato, então a próxima batalha seria um assunto completamente diferente, uma
profusão de escaramuças enquanto ambos os lados negociavam a sua passagem por entre o emaranhado de vegetação. O tipo de batalha que um general não podia controlar.
- Não é o melhor campo de batalha para nós, romanos, verdade?
- Macro vira o seu optio olhar ansiosamente para o matagal de tojo.
- Não, senhor.
- Não te preocupes, Cato. Isto provavelmente vai atrapalhar tanto os bretões como a nós.
- Suponho que sim, senhor. Mas penso que eles conhecem a saída destes caminhos locais. Isso pode causar-nos problemas.
-Talvez - assentiu Macro, sem muita preocupação. - Mas duvido que lhes sirva de muito agora que não têm o rio e a muralha entre eles e nós.
Cato desejou possuir a serenidade do seu superior em relação à situação, mas a claustrofobia táctica de um soldado no final da cadeia de comando atacava a sua imaginação.
Uma explosão aguda de várias trombetas cortou abruptamente o ar, e Macro levantou-se num instante.
- De pé! De pé, seus filhos da mãe preguiçosos! Peguem nas armas e formem junto ao caminho!
As ordens ecoaram pela linha e momentos depois os homens da Segunda Legião formaram uma longa e espessa coluna com cada escudo e dardo de arremesso prontos a entrar
em acção.
Onde o caminho subia à frente da centúria, Cato podia ver o grupo de comando no cume da cordilheira. Um mensageiro a cavalo dirigiu-se ao legado e indicou com o
braço o terreno do outro lado da cordilheira. Com uma saudação rápida o mensageiro fez girar o cavalo e galopou para fora de vista, deixando o legado a voltar-se
para os seus homens e a dar as ordens necessárias.
- E agora? - resmungou Macro.
XX
O progresso em direcção ao Tamesis estava a fugir rapidamente de controlo, concluiu Vespasiano. A perseguição dos bretões tinha sido terrivelmente conduzida pelas
coortes Batavianas. Ao invés de se concentrarem em desimpedir a linha de marcha através do rio mais próximo, os auxiliares caíram vítimas da ambição de sangue típica
da sua raça. E por isso as coortes estavam dispersas por uma extensa frente, abatendo cada bretão que aparecesse, como se tudo não passasse de uma grande caçada
de veados.
Abaixo do cume da colina, a vegetação densa descia para se confundir com mais outro dos pântanos que pareciam encerrar a maior parte da paisagem. Salpicando o matagal
de tojo via-se o topo de elmos e o estranho estandarte dos batavianos, a sua sede de sangue ainda por saciar abria-lhes o caminho através do matagal, debatendo-se
por entre trilhos estreitos no encalço dos desgraçados bretões. O pântano estendia-se, silencioso e disforme, antes de dar lugar à vasta extensão cintilante do imponente
Tamesis, que se enroscava na direcção do coração da ilha. O percurso que a Segunda Legião fazia ia directamente pela encosta abaixo, e continuava por uma tosca estrada
a pique que terminava num pequeno molhe. Havia um molhe semelhante do outro lado do rio.
Vespasiano bateu na coxa em sinal de frustração para com a natureza da tarefa que teriam que enfrentar. O seu cavalo treinado para a batalha ignorou o som e tocou
com satisfação na relva que crescia ao longo da trilha. Aborrecido pela complacência ignorante da besta, Vespasiano deu um puxão nas rédeas e voltou o cavalo de
frente para a linha da legião. Os homens estavam quietos e silenciosos, aguardando ordens para avançar. Uma massa escura e retorcida a algumas milhas indicava os
progressos da Décima Quarta Legião que se aproximava do Tamesis a partir de um trilho quase paralelo rio acima.
De acordo com Admínio devia haver uma ponte pouco antes da
Décima Quarta mas Vespasiano não via nenhum sinal dela. Carátaco devia tê-la destruído. Se não houvesse mais pontes ou pontos de passagem, as legiões teriam que
marchar rio acima à procura de uma passagem alternativa, ao mesmo tempo estendendo as ténues linhas de apoio desde o armazém na costa. Alternativamente, Pláucio
podia arriscar um outro desembarque. Afastadas para leste, onde o Tamesis se alargava para o horizonte distante, as formas distintas de navios eram visíveis enquanto
a frota se esforçava por manter contacto com as legiões avançadas. Apesar de Admínio afirmar que os bretões não tinham uma frota que fizesse frente aos romanos,
o General Pláucio não corria riscos. As silhuetas lisas das trirremes conduziam os transportes que lutavam por manter a formação. O ataque ao rio só começaria quando
estes navios se juntassem ao exército.
Mas todas estas considerações eram académicas por agora. As ordens que tinham eram bastante simples: a Segunda devia espalhar-se e limpar essa faixa da margem sul
de quaisquer formações inimigas que restassem. Ordens simples. Simples o suficiente para terem sido escritas por um homem que nunca tinha visto o terreno. Vespasiano
sabia que a legião não seria capaz de manter uma linha de batalha enquanto tratava do matagal de tojo. O pior ainda era o pântano que iria sugar os homens excepto
se eles tivessem sorte suficiente para tropeçar nos trilhos usados pelos nativos. Ao cair da noite, Vespasiano esperava encontrar a sua legião completamente dispersa
e atolada, presa no pântano vil até o nascer do dia lhes dar uma oportunidade de reagrupar.
- Dá o sinal! - gritou para os trombeteiros da sede. Seguiu-se um coro de cuspidelas conforme os homens limpavam a boca e colavam os lábios aos seus instrumentos.
Um aceno praticamente imperceptível do trombeteiro superior foi seguido instantaneamente pelas rudes notas da instrução dada. Com uma precisão bem treinada, a primeira
Coorte marchou perante o seu legado. O centurião superior marcou o ponto de mudança, deu a ordem para mudar de formação e as filas da frente marcharam para a direita,
perpendiculares ao trilho. Encontrando imediatamente o primeiro pedaço de arbustos de tojo, a coorte dividiu a formação para ultrapassar o obstáculo, e o ritmo certo
da marcha abrandou para uma confusão de tropeções à medida que as sucessivas coortes tentavam não se amontoar sobre a traseira da coorte à frente. Vespasiano encontrou
os olhos de Sexto, o grisalho prefeito de acampamento da Segunda Legião, e fez uma careta. O soldado de carreira mais experiente na legião inclinou a cabeça em total
acordo quanto à imbecilidade das ordens vindas do quartel-general do exército.
Uma manobra que podia ser feita tão eficientemente no campo da
parada degenerou rapidamente numa confusão de homens a praguejar, que se debateram através do terreno selvagem por mais de uma hora antes que a Segunda Legião tivesse
mudado de direcção e estivesse pronta para avançar pela encosta abaixo em direcção ao distante Tamesis. Quando as coortes estavam em posição, Vespasiano deu ordem
para avançar e a linha moveu-se para a frente, inspeccionada pelos centuriões que erguiam os seus bastões e praguejavam para que os homens mantivessem uma linha
direita.
Mais uma vez, os pedaços espessos de tojo abriam fendas na linha e em pouco tempo a legião desintegrou-se em grupos de homens em dificuldades. Aqui e ali a linha
detinha-se conforme encontravam bretões, a maioria feridos, e os desarmavam antes de os encaminharem sob vigilância para a retaguarda. Aqueles que estavam demasiado
feridos para andar eram rapidamente despachados com um golpe de espada no coração, e os legionários continuavam a debater-se para avançar. Muitas vezes os bretões
tentavam fugir mas, com gritos excitados, os legionários corriam atrás deles para acrescentar ainda mais espólios ao cofre da campanha. No terreno mais claro antes
da vegetação densa de tojo, aumentava a multidão de prisioneiros, enquanto de um dos lados um pequeno grupo de homens feridos era testemunha do gotejar de baixas
que regressava dos embates que decorriam fora de vista. Estas eram as únicas indicações do modo como realmente a batalha estava a decorrer.
Pelo meio-dia, sob o olhar desesperado do legado e dos oficiais do seu grupo, a Segunda Legião tinha sido reduzida a pequenos grupos que cortavam caminho em direcção
ao rio com pouco ou quase nenhum sentido de onde estaria o resto dos seus camaradas. Misturados por entre eles surgiam ocasionalmente pequenos núcleos de bretões
que também tentavam chegar ao rio na esperança de escapar, e gritos sumidos de guerra e o ruído do embate das lâminas subiam pela encosta. Vespasiano e o seu grupo
tinham desmontado e estavam sentados à sombra de um pequeno arvoredo não muito afastado do trilho, observando a refrega confusa em silenciosa frustração.
Pelo final da tarde, a maioria dos homens da legião estava perdida de vista e só a centúria de guarda do legado permanecia em Formação, numa fina linha a uns cem
passos encosta abaixo. Para além deles sentava-se o patético amontoado de prisioneiros, rodeados pelos arbustos de tojo cortados e empilhados num círculo para formar
uma tosca paliçada. Mais além, uma linha disseminada de legionários nontava guarda. O tribuno Vitélio cavalgou pela encosta abaixo para inspeccionar os cativos.
Quando acabou de interrogar o seu líder, deu
uma última pancada na cabeça do homem e com uma pirueta montou novamente e afastou-se de volta para o cimo da encosta.
- Descobriu alguma coisa interessante? - perguntou Vespasiano.
- Apenas que alguns dos mais educados destes selvagens sabem um pouco de latim, senhor.
- Mas nada de passagens ou pontes por perto?
- Não, senhor.
- Suponho que tenha valido a pena tentar. - O olhar vacilante de Vespasiano regressou à centúria de guarda do legado a penar debaixo do Sol.
- Diz-lhes para se sentarem - murmurou Vespasiano para o prefeito do acampamento. - Duvido que os bretões façam cair mais surpresas sobre nós por agora. É desnecessário
manter os homens em pé com este calor.
- Sim, senhor.
Enquanto Sexto transmitia a ordem para a centúria de guarda, o tribuno Vitélio chamou a atenção do legado e acenou no sentido da trilha. Um mensageiro vinha a galopar.
Quando ele avistou o grupo de comando do legado esporeou o seu cavalo ao longo do rio, na sua direcção.
- O que foi agora? - questionava-se Vespasiano.
Ofegante, o mensageiro desceu do cavalo e correu até ele, com o despacho pronto a entregar.
- Do general, senhor. - Levantou o braço numa saudação.
Vespasiano agradeceu a saudação com um curto aceno, pegou no
pergaminho e quebrou o selo. Os seus oficiais esperavam impacientes que o legado lesse. A mensagem era bastante breve e Vespasiano entregou-a rapidamente a Vitélio.
Vitélio franziu a testa ao ler. - Segundo a mensagem, parece que já devíamos estar na margem do rio e preparados para um assalto esta noite. A marinha vai-nos transportar
até ao outro lado e dará apoio armado.
- Olhou para cima. - Mas, senhor... - Apontou encosta abaixo para o matagal e o pântano que engoliam a Segunda Legião.
- Muito bem, Tribuno. Agora leia a última parte.
Vitélio assim fez. - Salientam que as Coortes Batavianas encontraram problemas ao enfrentar o terreno pantanoso e somos aconselhados a limitar o nosso avanço ao
simples estabelecimento de trilhos e caminhos...
Um dos tribunos juniores vaiou com zombaria e os restantes riram-se com amargura. Vespasiano levantou a mão para os sossegar antes de se voltar para Vitélio.
- Parece que os rapazes lá no quartel-general do exército ainda não compreenderam as dificuldades práticas inerentes às ordens que
despacharam tão prontamente. Mas com a sua recente experiência administrativa certamente que sabe tudo sobre isso.
Os outros tribunos esforçaram-se por esconder os sorrisos e Vitélio corou.
- Mesmo assim, não podemos respeitar esta ordem. Quando a legião se reagrupar junto ao rio já será bem escuro. E a marinha ainda está a algumas milhas rio abaixo.
Não há possibilidade de um assalto excepto amanhã - concluiu Vespasiano. - É melhor informar o general. Tribuno, conhece os trâmites no quartel-general e sabe qual
é a nossa situação presente. Vá até Aulo Pláucio com o mensageiro e informe-o da nossa posição e diga-lhe que eu só vou conseguir levar a cabo o assalto amanhã.
Pode também descrever o terreno com algum detalhe para que ele perceba a nossa posição. Agora vá.
- Sim, senhor. - Vitélio saudou e encaminhou-se rapidamente para o seu cavalo, furioso com a perspectiva de uma longa e quente cavalgada, e amargurado pelo tratamento
sarcástico do legado à frente dos tribunos juniores.
Vespasiano observou com diversão como o tribuno arrebatava as rédeas das mãos do encarregado dos cavalos e se atirava para as costas do cavalo. Com um pontapé agressivo
nas costelas do animal, galopou em direcção ao quartel-general do exército. Tinha sido impossível resistir a provocar Vitélio, mas qualquer alegria que pudesse tirar
ao humilhar o tribuno presunçoso esfumou-se facilmente, e ele amaldiçoou-se por se entregar a um comportamento muito inferior à dignidade da sua patente. Felizmente,
o prefeito do acampamento não se apercebera da troça; conforme o velho veterano endurecido regressava pela encosta acima vindo da guarda do legado, ele franziu a
testa perante as expressões divertidas nas caras dos jovens tribunos.
- Novas ordens, senhor?
- Leia isto. - Vespasiano estendeu-lhe o pergaminho.
Sexto esquadrinhou rapidamente o documento.
- Algum jovem cavalheiro na equipa de Pláucio vai ouvir uma boa descompostura quando eu o apanhar, senhor.
- Folgo em ouvir. Entretanto temos de reunir a legião. Não há necessidade de tocar a chamada. Estão suficientemente embrenhados nos pântanos para que seja mais fácil
avançar do que recuar.
- É verdade - murmurou Sexto, esfregando o queixo.
- Eu conduzo o grupo de comando e a centúria de guarda através da passagem até àquelenolhe. - Vespasiano indicou a encosta. - guando chegarmos lá, começarei a tocar
a chamada. Entretanto, tu e os tribunos juniores sobem e descobrem quantos homens for possível e
dizem-lhes o que se está a passar. Precisamos do corpo principal da legião reunido naquela subida junto ao molhe antes da noite cair se queremos ter homens suficientes
para o assalto de amanhã.
- É bastante justo, senhor - afirmou Sexto. Voltou-se para os tribunos juniores que tinham ouvido as ordens do legado e não estavam nada ansiosos pelo desconforto
da sua tarefa. - Vocês ouviram o legado!
Levantem-se do chão e montem nos cavalos, cavalheiros. Rápido!
Com uma escassamente tolerável demonstração de relutância os jovens tribunos arrastaram-se para os seus cavalos, trotaram pela encosta abaixo e dividiram-se pela
miríade de caminhos e trilhas que se entrecruzavam pela espessa massa de tojo e pântano. Vespasiano viu-os desaparecer de vista. Depois voltou-se para a sua montada
e conduziu a guarda do legado e o resto do grupo de comando em direcção ao caminho que levava à estrada a pique.
Esta não era a forma de enfrentar uma batalha, reflectiu ele com raiva. Mal a Segunda Legião recuperara o seu amor-próprio, uma maldita ordem descuidada afundara
os homens numa confusão terrível, dispersos e sem orientação através do maldito desconhecido daquela desgraçadamente infeliz ilha. Quando conseguisse reagrupar a
legião os legionários estariam exaustos, nojentos, esfomeados, a sua carne e as suas roupas rasgadas em pedaços pelos arbustos de tojo. Seria espantoso se conseguisse
levá-los a enfrentar algo tão perigoso como a ordem do general para um ataque anfíbio ao lado oposto do rio.
XXI
- Isto é um autêntico pesadelo! - O Centurião Macro grunhiu ao dar uma palmada num enorme mosquito que se alimentava no seu braço. Mal surgia um pedaço de pele entre
os pelos pretos sob a bainha da sua manga, vários insectos da nuvem que flutuava sobre ele decidiam aproveitar a oportunidade, aterrando no pedaço mais próximo de
carne exposta. Macro dava-lhes palmadas com uma mão e espantava violentamente os seus camaradas voadores com a outra. - Se eu puser as mãos no homem responsável
por este maldito fracasso ele não volta a respirar.
- Suspeito que a ordem partiu do general, senhor - respondeu Cato tão suavemente quanto pôde.
- Muito bem, então tratarei do assunto no Inferno, onde estaremos em pé de igualdade.
- Por essa altura o general já estará noutra reencarnação, senhor.
O centurião fez uma pausa no seu ataque aos auxiliares nativos e
virou-se para o seu optio.
- Pois então talvez me satisfaça com outra pessoa neste momento. Alguém que esteja um pouco mais abaixo na ordem de bicadas. Excepto se esse for o último dos teus
comentários simpáticos.
- Desculpe, senhor - retrucou Cato com brandura. A situação estava intolerável, e a leviandade não fazia nada para aliviar a situação.
Na última hora, a Sexta Centúria tinha percorrido um caminho tortuoso através dos maciços de arbustos de tojo, agarrando-se aos pedaços mais sólidos de terreno do
pântano que se espalhava a toda a volta. O caminho era largo o suficiente para um homem e tinha, com toda a probabilidade, sido feito por animais selvagens. Tinham
perdido o contacto com o resto da coorte, e os únicos sinais de presença humana eram os gritos e sons distantes de uma pequena escaramuça algures no meio do pântano.
Os únicos bretões que tinham encontrado haviam sido um punhado de infantaria ligeira suja de lama, armada com escudos de
vime e lanças de caça. Ultrapassados em número e força pelos legionários, eles cederam sem muita luta, e foram escoltados até à retaguarda por oito homens que Macro
mal podia dispensar do seu receoso comando. Assim que a escolta partiu, a centúria continuou a avançar.
Quando o Sol se pôs no horizonte, o ar quente e parado envolveu a centúria como um cobertor asfixiante e o suor escorria por todos os poros. Macro anunciou uma paragem
para tentar obter algum sentido de onde estavam em relação ao rio e ao resto da legião. Se o Sol estava à sua esquerda então o rio devia estar mais ou menos à sua
frente, mas a trilha parecia levá-los para oeste. O rio já devia estar próximo. Seria mais fácil continuar e encontrá-lo do que a perspectiva de reverter os seus
passos durante várias horas pela noite que se aproximava.
Enquanto Vespasiano considerava as suas opções, os homens sentaram-se num silêncio taciturno e suado, atormentados pelos milhares de insectos que se reuniam sobre
si. Cato não conseguia mais suportar os mosquitos, e avançou um pouco pelo caminho para examinar o percurso adiante. Um olhar de aviso de Macro assegurou que se
mantivesse à vista à medida que avançava furtivamente pelo caminho. A uma curta distância havia uma curva para a direita. Cato agachou-se e espreitou pela esquina.
Esperava ver um pouco mais da trilha mas quase imediatamente a mesma voltava a virar à esquerda e desaparecia de vista. Consciente da expressão do centurião, Cato
permaneceu onde estava e esforçou-se por ouvir alguma aproximação. Uma escaramuça distante era perceptível por cima do maçador fundo de zumbidos daquilo que ele
pensava ser uma grande colónia de moscas e seus parentes. A vizinhança imediata parecia estar livre do inimigo, mas Cato não se sentia muito seguro. O desconforto
provocado pelo calor e pelos insectos era tal que qualquer distracção seria bem-vinda, incluindo o inimigo.
Aquele zumbido dos insectos era estranhamente alto, e a curiosidade natural de Cato foi estimulada pelo barulho.
- Pssst!
Ele voltou-se e olhou para onde estava o centurião, tentando chamar a sua atenção. Macro levantou as sobrancelhas numa expressão interrogativa. Cato encolheu os
ombros e apontou com o seu dardo. Momentos depois Macro agachava-se silenciosamente ao seu lado.
- O que foi, rapaz?
- Ouça, senhor.
Macro coçou a cabeça. Franziu a testa.
- Não consigo ouvir nada. Pelo menos aqui perto.
- Senhor, aquele zumbido... os insectos.
- Sim, estou a ouvir. E então?
- Então, é demasiado alto, não acha, senhor?
- Demasiado alto?
- São demasiados insectos. Demasiados, todos juntos, senhor.
Macro pôs-se à escuta outra vez, e teve de admitir que o rapaz tinha
razão.
- Fica aqui, Cato. Se eu te chamar, traz a centúria rapidamente.
- Sim, senhor.
O Sol baixara o suficiente para cobrir com sombras o caminho contra o halo lustroso que orlava o topo do matagal de tojo. Agachando-se, Macro caminhou silenciosamente
pelo trilho abaixo, virou a esquina e desapareceu de vista, enquanto Cato permanecia agachado, tenso e pronto para correr em auxílio do seu centurião mal este o
chamasse. Mas não se ouviu nenhum chamamento, nenhum barulho além do zumbido dos insectos. O suspense era terrível e, tentando manter-se o mais quieto possível,
o calor e o suor picavam-lhe o corpo tornando-se quase intoleravelmente incómodos, para além da dor das queimaduras.
De repente Macro aproximou-se, sem sinal da anterior precaução na sua postura, apenas uma repugnância resignada nas suas feições.
- O que foi, senhor?
- Encontrei alguns dos auxiliares batavianos.
Cato sorriu.
- Que bom. Talvez eles nos possam dizer onde estamos, senhor.
- Penso que não - respondeu Macro calmamente. - Já nada lhes interessa.
Numa voz monótona Macro mandou a Sexta Centúria levantar-se e levou-os pelo caminho abaixo, virando a esquina até uma área desimpedida com uma pequena elevação.
O caminho e a relva pisada estavam cobertos pelos restos dos soldados auxiliares de uma das Coortes Batavianas. A maioria tinha morrido enquanto lutava, mas muitos
tinham a garganta cortada e jaziam num monte de um dos lados do caminho. Os corpos estavam cobertos de moscas e o cheiro adocicado nauseabundo de sangue enchia o
ar parado. Uma mão cheia de tropas bretãs fora depositada em linha recta, os escudos sobre o corpo e as lanças pousadas ao seu lado. Estes homens usavam elmos e
corseletes de cota de malha.
Macro parou junto a um dos corpos dos batavianos que tinha a garganta cortada, e tocou-o com o pé. Depois falou numa voz alta o suficiente para ser ouvido por todos
os homens.
- Isto é o que nos espera se alguma vez caírmos na tentação de nos rendermos aos nativos. Olhem com muita atenção, e agradeçam aos deuses por não serem vocês. Depois
jurem que nunca morrerão desta maneira. Estes batavianos foram tolos, e se eu apanho algum de vocês a
fazer uma tolice, vingar-me-ei nesta vida ou na próxima. Podem contar com isso. - Correu os olhos pela centúria, determinado a que eles tivessem mais medo do seu
centurião do que do inimigo. - Certo, vamos limpar esta área! Cato, alinha os nossos rapazes junto aos bretões. Fiquem com aquilo que encontrarem neles.
Enquanto os legionários desempenhavam aquela tarefa desagradável, Macro colocou um vigia de cada lado do caminho e depois sentou-se na relva, evitando as áreas escurecidas
pelo sangue. Desapertou o elmo e tirou-o, feliz por se ver livre do peso. O seu cabelo, ensopado em suor, estava colado à cabeça e dobrou-se em vincos pesados quando
ele passou os dedos por ele. Olhou para cima e viu Cato em pé ali perto. O optio olhava para os corpos dos bretões.
- Um lote bastante impressionante, não é?
Cato assentiu. Era evidente que estes não pertenciam à classe e posição habitual do inimigo. Eram homens no seu melhor, musculados e duros. A fineza das suas roupas
e do seu equipamento indicava algum estatuto especial.
- A guarda pessoal de alguém?
- Essa seria a minha aposta - concordou Macro. - E a avaliar pelo número desequilibrado de corpos, eram um grupo bastante duro. Espero que não haja muitos deles
por aí.
Cato olhava para o mato impenetrável que rodeava a clareira.
- Acha que eles ainda estão por aí, senhor?
- Sou um centurião, rapaz, não um maldito vidente - respondeu Macro agressivamente. E arrependeu-se instantaneamente. O jovem optio estava apenas a dar voz aos receios
de todos, mas o calor e a exaustão da luta naquela paisagem confusa tinham aumentado a crescente ansiedade de Macro, provocada pelo facto de estarem separados do
resto da legião.
- Não te preocupes, Cato, temos muitos mais homens por aí do que eles.
Cato assentiu, mas não ficou convencido. Os números não interessavam numa situação como esta, só o conhecimento do local. A ideia de um grande grupo de elite de
guerreiros britânicos a perseguir unidades isoladas de romanos era aterradora, e ele sentiu-se envergonhado pelo medo que essa perspectiva despertara em si. O que
piorava as coisas era a aproximação iminente da noite. A ideia de passar mais tempo naquela vastidão assustadora durante as horas de escuridão horrorizava-o. O Sol
já atingira o espesso horizonte de folhagem e o céu resplandecia no seu crepúsculo fundido de bronze. Contra este esvoaçavam pelo ar as formas escuras das andorinhas
que se alimentavam dos insectos por cima do pântano. Por sua vez os insectos procuravam o calor decadente dos
mortos e o sangue dos vivos para se alimentarem, e o pântano abundava de sustento.
Cato deu uma palmada na sua bochecha e descobriu um inchaço.
- Merda!
- É bom saber que os pequenos desgraçados preferem uma vítima mais jovem uma vez por outra - comentou Macro e afastou um enxame de melgas da cara. - Não me importava
nada de me ver livre desta sorte e dar um mergulho no rio.
- Sim, senhor - retrucou Cato com sentimento. Não conseguia pensar noutra coisa de que gostasse mais do que tirar o pesado e incómodo equipamento que irritava tanto
as suas pobres queimaduras, e atirar-se para a corrente fresca do rio. A imagem idealizada era tão apetecível que, por um momento, Cato se viu afastado dos seus
problemas imediatos, e o regresso mental para eles foi consequentemente muito mais doloroso.
- E se tentássemos chegar ao rio esta noite, senhor?
Macro esfregou os olhos com as palmas das mãos enquanto revia os cursos de acção disponíveis. A perspectiva de se manterem na clareira durante a noite, com os espíritos
dos mortos recentes a assombrar o lugar, fazia a sua pele estremecer de revulsão e horror. O rio podia não estar assim tão longe, mas qualquer progresso através
dos caminhos estreitos do pântano seria bem mais perigoso no escuro. Um pensamento súbito atingiu-o.
- Não há Lua esta noite?
- Há sim, senhor.
- Certo. Então vamos descansar aqui até a Lua subir o suficiente para nos deixar ver por onde andamos. Vamos arriscar por este caminho. Parece que até agora vamos
na direcção certa. Destaca duas sentinelas de vigia e passa a palavra aos rapazes para que tentem dormir o mais que puderem.
- Sim, senhor.
Cato saudou-o e afastou-se para dar as ordens. Quando regressou encontrou o seu centurião deitado de costas, olhos fechados, a ressonar com o murmúrio roufenho de
um homem profundamente adormecido. Com um sorriso afectuoso, Cato deixou-se cair do outro lado do caminho, retirou o elmo e pousou-o junto do resto do equipamento.
Por um momento observou o pôr-do-Sol pintar o céu em tristes sombras de laranja, vermelho, violeta e finalmente azul. Então, depois de ter mudado o vigia, também
se deitou, e tentou ceder à própria exaustão. Mas a dor pelo seu flanco abaixo, o impiedoso queixume dos insectos, o zumbido das moscas, o ressonar turbulento do
centurião e a perspectiva de encontrar algum dos camaradas dos bretões mortos arruinaram qualquer
perspectiva de descanso. E por isso Cato permaneceu desconfortável, exausto e zangado consigo próprio por não adormecer. O ressonar que vinha dali perto já deixara
de ter qualquer efeito afectuoso sobre ele e o jovem optio podia ter asfixiado alegremente o seu centurião pela altura em que a Lua fez a sua primeira aparição por
entre as nuvens espalhadas pelo céu da noite.
XXII
-Optio! - sussurrava uma voz.
Os olhos de Cato pestanejaram ao abrir-se. Uma forma escura assomava contra o céu nocturno cheio de estrelas. Uma mão agarrava-lhe o braço cheio de bolhas, abanando-o,
e Cato quase gritou em agonia, mas conseguiu morder-se a tempo. Sentou-se direito, completamente desperto.
- O que foi? - murmurou Cato. - O que se passa?
- A sentinela relatou um movimento. - A forma apontou para o fundo da clareira perto do caminho por onde eles tinham vindo ao entardecer. - Vamos acordar o centurião?
Cato olhou para a origem do ressonar.
- Penso que é melhor. Só para o caso de eles nos ouvirem antes de nós os vermos.
Enquanto Cato amarrava rapidamente o elmo e pegava no seu equipamento, o legionário acordou Macro tão cuidadosamente quanto pôde. Não era uma tarefa fácil devido
à profundidade do sono do centurião, e mesmo quando Macro acordou parecia estar a despertar de um sonho bastante poderoso.
-Porque é a minha maldita tenda! - resmungava o centurião
- É por isso!
- Senhor! Shhh!
- O-o que foi? O que se passa? - Macro levantou-se de um salto e agarrou imediatamente na sua espada, pronto para entrar em acção.
- Fala!
- Temos companhia, senhor! - exclamou Cato suavemente enquanto rastejava até ao centurião. - A sentinela diz que ouviu um movimento.
Macro estava de pé num instante, a sua outra mão apertando automaticamente a correia do elmo. - Diz aos rapazes para formarem
do outro lado da clareira, mas mantém-nos silenciosos o mais que puderes. Talvez seja melhor evitar isto.
- Sim, senhor.
Cato afastou-se a rastejar em direcção aos legionários adormecidos enquanto Macro levantou cuidadosamente o seu escudo e abriu caminho pela linha de corpos, grato
pelo zumbido das moscas ter diminuído durante a noite. Quase não viu a sentinela na escuridão pois o homem estava de um dos lados do caminho, completamente parado,
esforçando-se por detectar os sons que vinham do carreiro estreito mais abaixo.
- Senhor! - A sentinela sussurrou tão baixinho que se Macro não estivesse a esforçar-se para ouvir, não se teria apercebido. O som causou-lhe um sobressalto de surpresa.
Recompôs-se num instante, e agachou-se silenciosamente junto da sentinela.
- O que se passa, rapaz?
- Por favor, senhor, agora não se ouve nada. Mas eu juro que ouvi alguma coisa há momentos.
- O que é que ouviste exactamente?
- Vozes, senhor. Sussurros, mas não muito longe. A falar muito calmamente.
- Nossas ou deles?
A sentinela hesitou um momento antes de responder.
- Desembucha! - sussurrou Macro com irritação. - Nossas ou
deles?
- Não tenho a certeza, senhor. Era alguma coisa que eu não consegui compreender completamente. Mas também havia alguma coisa que soava como latim.
O centurião fungou com desprezo. Agachou-se em silêncio, esforçando os ouvidos para detectar o mais pequeno som vindo do caminho que se dobrava até desaparecer de
vista a cerca de trinta passos da sua posição. Os sons vindos da clareira eram demasiado audíveis apesar dos homens se esforçarem por formar tão silenciosamente
quanto possível. Ao menos estavam calados, e Macro recuperou a sua concentração. Mas não havia nada de extraordinário, só o som ocasional do coaxar dos sapos. Uma
sombra escura aproximou-se vinda da direcção da clareira.
- Pssst! - assobiou Macro. - Estamos aqui, Cato.
- Algum sinal deles, senhor?
- Que se lixem. Parece que o nosso rapaz aqui se deixou levar pela imaginação.
Era uma falha bastante comum nas sentinelas, particularmente nas que estavam no activo. A escuridão aumentava a confiança nos sentidos,
e a imaginação começava a trabalhar ao mais pequeno ruído para o qual não encontrava uma justificação imediata.
- Mando a centúria descansar, senhor?
Macro estava prestes a responder quando um sussurro súbito, como o de um ramo a ser preso e solto imediatamente, lhe gelou o sangue. Não havia qualquer dúvida quanto
ao relato da sentinela agora, e eles agacharam-se cuidadosamente sob o ar quente da noite, os músculos tensos e preparados para a acção. Um suave brilho laranja
tremeluziu a partir da esquina do caminho, e alguma luz passava nos espaços entre a folhagem enquanto alguém a segurar uma tocha se aproximava pela trilha.
- É dos nossos? - perguntou Cato.
- Silêncio! - sussurrou Macro.
- Quem está aí? - gritou uma voz de repente, da direcção da tocha. Cato sentiu uma onda de alívio percorrê-lo, e quase se riu pela queda abrupta de tensão. Preparou-se
para se erguer mas Macro prendeu-o pelo pulso.
- Está quieto!
- Mas, senhor, ouviu-o. É um dos nossos.
- Cala-te e está quieto - soprou Macro.
- Quem está aí? - repetiu a voz. Houve uma pausa, seguida do que pareceu uma breve troca de palavras em sussurros baixos. Depois a voz continuou. - Sou bataviano.
Terceira Coorte a cavalo! Se és romano, dá-te a conhecer.
Não havia dúvida de que o sotaque latino era semelhante ao dos batavianos, e Macro sabia que a Terceira a cavalo estava na área. Mesmo assim havia alguma coisa no
tom de voz do homem que o impedia de arriscar uma resposta.
Houve outro silêncio momentâneo antes da voz voltar a falar, desta vez com uma aresta trémula.
- Pelo amor dos deuses! Se és romano, responde!
- Senhor! - protestou Cato.
- Cala-te!
Com um súbito estalar, o brilho da tocha aumentou e as chamas lamberam os arbustos de tojo. Um grito desumano cortou o ar quente e espesso por cima do pântano.
- O quê? - A sentinela cambaleou para trás com o choque.
Macro tentava agarrá-lo quando de repente uma figura em chamas
irrompeu da esquina do caminho e correu a guinchar pela clareira, iluminando o chão à sua volta com um lúgubre brilho vacilante. O ar fedia a piche e carne queimada,
e a figura tropeçou e rolou pelo chão, ainda aos gritos.
Macro agarrou na sentinela e no seu optio e empurrou-os na direcção do resto da centúria.
- Fujam!
Mesmo atrás dele a noite foi preenchida por gritos de guerra selvagens, seguidos pelo bramido arrepiante de uma corneta de guerra. Pelo caminho abaixo, no encalço
do bataviano cativo, surgiram os bretões, assustadores sob a luz intensa da tocha levantada bem alto por um homem à frente da investida. Cato apenas teve tempo para
um rápido olhar, o suficiente para ver o bataviano misericordiosamente estendido no chão, antes de fugir atrás do seu centurião. Romperam através da linha silenciosa
de legionários que esperavam para além do fugaz vermelho da tocha e voltaram-se para enfrentar os bretões, dispostos a lutar de imediato. Mas os seus perseguidores
tinham parado momentaneamente ao pé da linha de corpos alinhados junto à trilha, cortando e despedaçando os cadáveres.
- Mas que diabos? - admirou-se Macro.
- Eles pensam que somos nós, senhor! Pensam que nos apanharam a dormir!
Com um grito selvagem de descrédito os bretões perceberam o seu erro e voltaram-se para os legionários alinhados no meio da pequena clareira.
- Disparar dardos à vontade! - rugiu Macro.
As setas escuras fizeram um arco numa trajectória baixa directamente para os primeiros bretões. Encobertas pela noite, as setas rasgaram as suas vítimas antes que
estas se apercebessem do perigo; alguns dos atacantes caíram e foram pisados pelos seus camaradas desesperados por atingir os romanos. Mal houvera tempo para soltar
uma segunda rajada antes dos bretões estarem sobre eles, soltando os seus gritos de guerra selvagens. Um barulho agudo e o embate de armas e escudos retiniu, acompanhado
de exclamações, grunhidos e gritos dos homens que lutavam impiedosamente na escuridão.
- Mais perto! Mais perto! - gritava Macro por cima do barulho.
- Mantenham-se próximos!
Se os legionários não se mantivessem separados dos seus inimigos, havia a possibilidade de um romano atacar outro romano.
Foi então que a Lua começou a aparecer por detrás de um grupo de nuvens escuras e uma fina luz cinzenta foi derramada sobre a cena. Macro viu para seu grande alívio
que os homens estavam a conseguir manter-se unidos e a resistir à onda de bretões que cortavam e despedaçavam a parede de escudos. Mas no momento em que ele olhava
à volta, um enorme guerreiro lançou-se por entre os escudos dos homens, quase
os derrubando, e arremessou-se sobre o centurião. Macro só tinha um instante para reagir e começou a rolar para trás para absorver o impacto.
- Senhor! - gritou Cato do outro lado, e atirou o seu peso por detrás do escudo e empurrou a bossa contra o lado do bretão. Foi o suficiente, e o homem despenhou-se
no chão junto a Macro, mal respirando. Macro recolheu a sua espada e esmagou o punho contra o queixo do bretão. O homem caiu com um simples grunhido, já morto.
Cato ajudou prontamente o seu centurião a levantar-se e então, com o escudo à frente, investiu com a espada contra a massa de guerreiros que o enfrentavam. A ponta
da lâmina atingiu o alvo, um homem praguejou perante o ferimento, e Cato libertou a espada e voltou a investir.
A Lua estava agora descoberta e emitia a sua luz melancólica sobre a refrega, reflectindo-se monótona sobre as lâminas brilhantes, os elmos polidos e as armaduras.
Macro pôde ver que ele e os seus homens estavam em minoria e que ainda mais destes guerreiros destemidos emergiam do caminho no topo da clareira. Os legionários
não podiam esperar aguentar muito tempo tamanha inferioridade numérica, e pareciam condenados ao mesmo destino horrível que acontecera aos batavianos.
- Recuar! Recuar até ao final da clareira! - gritou Macro por cima do barulho da escaramuça. - Comigo!
Ele desviou-se de um golpe de um lado e recuou um passo. De ambos os lados os seus homens respondiam e cediam terreno, movendo-se lentamente para a entrada da clareira.
E ainda bem, uma vez que não poderiam ter mantido a total extensão da área por muito mais tempo. Recuaram lentamente, de ambos os lados do caminho, formando um nó
apertado, três, depois quatro filas mais grossas, contra as quais o peso superior dos bretões deixava de ter um impacto tão significativo. Agora tornara-se no tipo
de luta intensa corpo-a-corpo na qual o equipamento e o treino dos romanos sobressaíam, e as investidas das espadas curtas começavam a fazer mais vítimas do que
as pesadas lâminas preferidas pelos nativos. Mesmo assim, o simples volume dos números inimigos iria eventualmente assegurar que os legionários seriam sobrepujados.
Macro relanceou o olhar ansiosamente sobre as camadas reduzidas dos seus homens.
- Continuem a recuar! Recuar!
Quando chegaram à ponta da clareira a escaramuça estava a ter lugar numa frente estreita, e os sobreviventes romanos comprimiam
instintivamente três escudos através do caminho para fornecer um sólido obstáculo aos bretões que os perseguiam.
- Os cinco homens de trás ficam comigo! - gritou Macro
- Cato! Leva os outros através do caminho o mais longe que puderes! Dirige-te para o rio e vai a favor da corrente!
- Sim, senhor. Mas e o senhor? - gritou o optio com ansiedade.
- Senhor?
- Nós vamos a seguir, Optio. Agora vai!
Enquanto o resto da centúria corria pelo caminho abaixo, Macro olhou à sua volta para as caras pálidas dos seus companheiros e arreganhou os dentes. Investiu com
a espada sobre a massa do outro lado do seu escudo.
- Certo, rapazes! Vamos lutar a valer. Eles não vão esquecer a Segunda Legião facilmente.
Enquanto corria pelo caminho abaixo, Cato tentava não pisar os calcanhares do último homem. O seu instinto levava-o a fugir o mais depressa que podia dos sons da
batalha. No entanto ele também ardia de vergonha, e teria parado e regressado para junto do centurião se não fosse pela ordem expressa de Macro e pela responsabilidade
que tinha agora de levar estes sobreviventes da Sexta Centúria. Quando o som da luta enfraqueceu, Cato ordenou uma paragem, e avançou rapidamente para a frente da
centúria. Não confiava no homem que ia à frente para prestar atenção à localização da Lua em relação ao rio; ele podia enfiá-los no pântano.
Tendo estabelecido o seu rumo, e não sendo capaz de ouvir nenhum som do centurião na clareira, Cato ordenou à centúria que o seguisse a correr. Era perigoso correr
no escuro, havia demasiadas irregularidades e raízes no caminho. Era melhor avançar a um ritmo que pudessem manter durante algum tempo. Chocalhando e tilintando,
os legionários abriram a sua passagem pelo trilho à luz pálida do luar e Cato ficou aliviado por descobrir que o caminho se tornava gradualmente mais largo e seguia
uma linha recta - prova de que era obra do homem e por isso conduzia a algum sítio.
Um grito distante vindo de trás indicou que os bretões tinham iniciado a perseguição. Cato aumentou a passada, arfando conforme avançava. Olhava frequentemente para
trás para se assegurar de que os homens o seguiam. De repente pareceu-lhe ouvir aquilo que procurava: o som de água a correr pelas margens de um rio. Depois teve
a certeza do som.
- O rio, rapazes! - gritou ele, respirando com força para conseguir fôlego suficiente para se fazer ouvir. - Chegámos ao rio!
O caminho torcia um pouco para um lado mas depois ali estava, o grande Tamesis, a correr para o mar e brilhando com o reflexo do luar. O caminho deslizava abruptamente
pela macia extensão de lama e Cato sentiu-a ceder debaixo das suas botas.
- Alto! Alto! - gritou. - Mantenham-se no caminho!
Enquanto a centúria esperava, respirando com dificuldade no ar
quente, Cato espetou o chão à sua frente com a ponta da espada. A lâmina enterrou-se sem grande dificuldade. Os gritos no caminho aproximavam-se e Cato olhou para
cima com terror.
- O que raios é que vamos fazer, Optio? - perguntou alguém.
- Eles estão em cima de nós não tarda nada.
- Vamos mergulhar! - sugeriu alguém.
- Não! - respondeu Cato com firmeza. - Não é uma questão de nadar. Seria inútil. Eles apanhavam-nos facilmente.
Ficou tomado por um momento de indecisão paralisante, antes dos novos gritos dos bretões o estimularem. Desta vez a gritaria nãò. vinha do caminho mas de muito mais
perto, mesmo junto ao rio. Ele esquadrinhou a margem do rio até reparar num homem a gritar e a agitar a lança para eles. Dois outros homens esmagavam a lama para
se juntarem a ele. Para além deles, a menos de cinquenta passos, estava uma massa de grandes formas em concha içadas à beira rio.
- Ali! Barcos! Vamos! - gritou Cato. Desenterrou o pé da lama e plantou-o mais à frente, onde se afundou até ao tornozelo num aperto nojento, a feder a lama. O resto
da centúria seguiu atrás dele e, grunhindo com o esforço desesperado, avançaram em direcção às embarcações que Cato vira. O lodo chiava e agarrava-se às suas pernas
e os mais cansados tropeçavam e quase submergiam na porcaria. Os três bretões observavam a sua aproximação, gritando alto pelos seus camaradas com toda a força dos
pulmões. Olhando para trás, Cato viu o brilho vermelho da tocha balançando na sua direcção e atirou-se para a frente, esforçando as pernas a abrir caminho pela lama.
Ouviu-se então um grito de triunfo nas suas costas quando os seus perseguidores chegaram ao fim do caminho e avistaram a sua presa apanhada na lama do rio. Sem hesitarem
um instante os bretões foram atrás deles, com a tocha a indicar o caminho. O brilho vermelho iluminou a superfície espessa da lama e atirou as sombras tremeluzentes
de romanos e bretões para longe. Cada músculo do seu corpo contraiu-se enquanto Cato apressava os homens, dizendo-lhes para segurarem os escudos atrás das costas
para o caso dos perseguidores atirarem algumas lanças.
A lama tornou-se mais baixa e mais sólida debaixo dos pés
conforme eles se aproximavam dos três bretões que guardavam os barcos. Cato debateu-se para encontrar uma base firme na lama escorregadia e aproximou-se de um deles
- um homem velho de roupas grosseiras, e a segurar apenas uma lança de caça. Fez uma investida ao corpo de Cato e o optio desviou-se rapidamente, levando o impulso
da investida a desequilibrar o bretão, que ficou perfeitamente alinhado para um golpe certeiro pelas costas. Com um gemido profundo conforme o ar era expelido com
força dos seus pulmões, o homem caiu de cara na lama e Cato deslizou por cima dele para os dois guardas que restavam. Eram apenas rapazes, e um olhar para o romano
imundo a atirar-se a eles com os lábios repuxados para trás num esgar foi o suficiente. Agarrando as lanças com força voltaram-se e correram, passando pelas filas
de barcos que era suposto protegerem e desaparecendo na noite. Pela primeira vez Cato pôde ver as embarcações claramente; eram pequenas, de madeira e cobertas de
peles, e talvez pudessem com três ou quatro homens cada uma. Pareciam leves e frágeis, mas eram a única oportunidade que a Sexta Centúria tinha para escapar à aniquilação.
Cato deu meia-volta, respirando com dificuldade, e viu que os seus homens estavam a sair da lama funda mesmo atrás dele. A uma curta distância do outro lado, os
guerreiros britânicos avançavam, lutando quase até aos joelhos através do pântano remexido deixado pelo seu grupo. O portador da tocha estava a fazer o seu melhor
por mantê-la bem alta, e o brilho trémulo iluminava as caras dos bretões num aterrorizador brilho vermelho. Um dos romanos enfiara-se em lama um pouco mais funda
do que os seus colegas e seria rapidamente apanhado pelos seus perseguidores.
- Cortem os lados daqueles barcos! - gritou Cato para os seus homens. - Mas guardem dez para nós!
Os legionários ultrapassaram-no e trataram de cortar a pele dos lados dos barcos mais próximos, trabalhando rapidamente ao longo da margem do rio. Cato recuou até
junto do último romano que ainda se debatia na lama do rio, agora identificável à luz mista do luar e do brilho da tocha.
- Pirax! Despacha-te, homem! Eles estão mesmo atrás de ti.
O veterano olhou rapidamente por cima do ombro enquanto puxava a perna da lama, mas a sucção era muito forte e as suas últimas reservas de energia estavam quase
gastas. Ele tentou novamente, praguejando à medida que se esforçava, e com um forte ruído de sucção o pé libertou-se e ele pousou-o o mais para a frente que conseguiu,
mudando o seu peso e tentando extrair o outro pé de trás. Mas o esforço necessário para fazer mais um progresso era demasiado e ele parou por um momento, uma
expressão de medo e frustração distorcendo-lhe a cara. Os seus olhos encontraram os de Cato.
- Vamos lá, Pirax! Mexe-te! - Cato gritava-lhe em desespero.
- Isto é uma ordem, soldado!
Pirax olhou para ele durante um momento antes da sua cara relaxar num sorriso de escárnio.
- Desculpa, Optio. Parece que terás que me carregar.
- Pirax...
O legionário preparou-se o melhor que pôde na lama, e voltou-se para enfrentar os bretões que estavam a alguns passos dele e lutavam ferozmente para o alcançar.
Aterrado, Cato observou de uma curta distância, sem poder ajudar, como Pirax levou a cabo a sua última batalha, preso na horrível lama fedorenta, gritando em desafio
até ao fim. Sob a forma alaranjada da tocha, Cato viu o primeiro bretão dirigir a sua espada à cabeça de Pirax. Pirax bloqueou-a com o escudo, antes de investir
com a sua própria espada. Mas a diferença de alcance entre as armas significava que ele não podia atingir o seu oponente.
- Vamos lá, seus cabrões! - gritou Pirax. - Venham ver se me apanham!
Dois homens com lanças investiram com fúria e atiraram-se ao legionário aprisionado, apontando para os espaços entre o escudo e o seu corpo. À terceira tentativa
um deles teve êxito e Pirax gritou à medida que a ponta se enterrava profundamente na sua anca. A sua guarda descuidou-se, o escudo caiu para um dos lados e imediatamente
o segundo homem investiu contra o sovaco. Pirax permaneceu imóvel por algum tempo, depois a espada escorregou-lhe da mão e ele caiu sobre a lama. Olhou para Cato
pela última vez, a cabeça a descer, o sangue a jorrar da sua boca aberta.
- Foge, Cato... - Engasgou-se.
Então os bretões apertaram o cerco, cortando e despedaçando o corpo de Pirax enquanto Cato permanecia paralisado com o horror. Quando recuperou, voltou-se e correu
pela sua vida, deslizando sobre a lama traiçoeira em direcção ao punhado de barcos que o resto da centúria empurrara para o rio. Dirigiu-se ao mais próximo e chapinhou
nos baixios enquanto o primeiro bretão dos que o perseguiam emergia da lama funda, soltando um grito de guerra. Cato deixou cair o escudo e esticou-se para a lateral
do barco. Agarrou-a firmemente, levando a frágil embarcação a baloiçar perigosamente.
- Cuidado, Optio! Ou vai virar o barco!
Ele esforçou-se por subir pelo lado. Os três homens que já estavam no barco inclinaram-se para o outro lado para o manter equilibrado e só
entrou um pouco de água quando Cato rolou para o fundo, abanando violentamente a embarcação. De repente outro par de mãos agarrou o barco e este voltou a balançar,
revelando a cara contorcida de um guerreiro britânico, um brilho de triunfo nos seus grandes olhos selvagens. Houve uma agitação no ar e o brilho do luar na espada
de Cato, seguido pelo suave barulho da espada a cortar a mão do bretão mesmo abaixo do pulso. O homem estremeceu com a dor; a mão decepada desapareceu no rio e ele
caiu de novo nele.
- Tirem-nos daqui! - gritou Cato - Mexam-se!
Os legionários enfiaram os remos no rio, esforçando-se desajeitadamente para afastar a embarcação pouco familiar da margem do rio. Cato ajoelhou-se na popa, observando
como os bretões se atiravam ao rio atrás de si, mas a distância entre eles aumentou e, por fim, o inimigo desistiu, gritando de frustração enraivecida. Os de pensamento
mais rápido fizeram-se aos barcos que sobravam, antes de descobrirem os rasgões e os rombos que os tornavam inúteis. A distância entre a pequena flotilha de Cato
e a margem do rio cresceu gradualmente até os bretões serem pequenas figuras remexendo-se sob a luz da sua tocha, que lançava uma trilha brilhante de reflexos dançantes
em direcção aos romanos.
- E agora, Optio?
- Hã? - Cato voltou-se, momentaneamente aturdido pela terrível luta.
- Em que direcção nos devemos encaminhar, senhor?
Cato franziu a testa pelo tratamento formal, antes de se aperceber que estava agora no comando da centúria, e era para ele que os homens se voltariam à procura de
ordem e salvação.
- Pelo rio abaixo - murmurou ele, e então ergueu a cabeça na direcção da outra embarcação. - Dirige-te rio abaixo! Segue-nos!
Sob a luz da Lua o cordão de pequenas embarcações avançava com segurança, seguindo a corrente. Quando a tocha na margem do rio deixou de se ver após ultrapassarem
a primeira curva, Cato recostou-se contra o lado do barco e deitou a cabeça para trás, procurando a Lua com o olhar cansado. Agora que tinham escapádo ao perigo
imediato, o seu pensamento foi para Macro. O que lhe teria acontecido? O centurião ficara, sem hesitar um momento, e lutara para salvar os seus homens como se fosse
a coisa mais natural do mundo. Ele conseguira dar tempo suficiente a Cato e aos outros para fugir, mas teria sido à custa da própria vida? Cato olhou rio acima,
perguntando-se se havia alguma maneira de Macro também ter escapado. Mas como? A sua garganta apertou-se. Amaldiçoou-se e lutou para controlar as suas
emoções em frente dos outros homens presentes no barco.
- Ouviram aquilo? - disse alguém. - Parem de remar.
- O que se passa? - Cato libertou-se dos seus pensamentos.
- Pareceu-me ouvir trombetas, senhor.
- Trombetas?
- Sim, senhor... Ali. Ouviu aquilo?
Cato não ouviu nada para além do barulho da água e do chapinhar dos remos dos barcos atrás deles. Então, transportado rio acima pelo ar quente da noite, veio o suave
som de umas notas graves. A melodia era reconhecível para os ouvidos de qualquer legionário. Era o sinal de reunião do exército romano.
- São os nossos trombeteiros. - murmurou Cato.
- Ouviram aquilo? - o legionário gritou para os outros barcos.
- É o nosso pessoal, rapazes!
Os homens da centúria aclamaram o som e dobraram-se sobre os remos com força renovada. Cato sabia que deveria mandá-los silenciar, para o bem da disciplina assim
como para evitar chamar a atenção de qualquer outra embarcação que percorresse o rio nessa noite, mas um peso enorme esmagava-lhe o peito. Macro estava morto. Não
conseguiu controlar os seus sentimentos e lágrimas rolaram pela sua cara, pingando para a armadura imunda. Voltou as costas pari esconder o seu desgosto dos homens.
XXIII
A legião reagrupou-se lentamente durante a noite conforme os homens respondiam ao chamamento das trombetas. Chegavam em pequenos grupos, centúrias e até coortes
completas conduzidas pelos centuriões seniores que se tinham apercebido a tempo do perigo que o terreno colocava à coesão da unidade. A maioria dos legionários estava
exausta e coberta de lama. Tinham-se deixado cair e descansavam em áreas assinaladas para eles pelos grupos de comando. Vespasiano tinha chegado ao molhe grosseiramente
construído pouco depois do pôr-do-Sol, e o seu pequeno corpo de oficiais e guardas tinha esperado ansiosamente junto a um enorme sinal de fogo. A intervalos regulares
durante a noite os trombeteiros da legião tinham tocado o recolher e o esforço dos pulmões e dos lábios levou o sinal a uma crescente deterioração.
Separado do resto do exército e sem nenhum apoio auxiliar, Vespasiano sentia-se terrivelmente exposto. Qualquer força inimiga de monta que surgisse do pântano podia
facilmente abater o grupo de comando e a guarda da centúria. Todos os sons das escaramuças levadas a cabo algures na escuridão faziam-no recear o pior. Mesmo quando
os homens começaram a acorrer à legião o receio de que pudessem ser guerreiros britânicos aumentava a tensão até ao momento em que o desafio oficial obtinha como
resposta a senha correcta. Lentamente os enlameados legionários emergiam da noite e, tendo descoberto a área abrigada, deitavam-se onde estavam e adormeciam.
Não se punha a questão de exigir aos homens que levantassem um acampamento de marcha no presente estado de exaustão, e Vespasiano teve de se satisfazer com um tapume
de sentinelas retirados da guarda do legado. Os homens tinham de ser autorizados a descansar se a Segunda ia voltar à acção no dia seguinte. Além disso, tinham de
ter comida, e ser reequipados com dardos de arremesso e outros itens perdidos nas terríveis lutas no pântano. O comboio de mercadorias tinha sido
chamado, e um destacamento de cavalaria da legião estava a escoltá-lo ao longo do caminho. Caminhando no outro sentido ia uma coluna de prisioneiros guardada por
outro esquadrão de cavalaria. Vespasiano atribuíra esta tarefa a Vitélio com ordens para prosseguir directamente do acampamento do lado oposto de Mead Way para o
quartel-general de Aulo Pláucio. O general precisava de ser posto ao corrente da situação actual para que pudesse repensar o ataque planeado para a manhã seguinte.
Era um pesado dever para o tribuno e não desprovido de perigo, mas Vitélio tinha, surpreendentemente, parecido bastante satisfeito quando o legado lhe deu as suas
ordens, muito embora tivesse acabado de regressar da sua missão anterior. Passou pela cabeça de Vespasiano que o seu tribuno superior devia estar contente por se
manter o mais afastado possível da linha da frente, por maior desconforto que isso implicasse.
Quando a Lua emergiu de um grupo baixo de nuvens, a paisagem foi banhada pelo seu triste brilho, revelando ao legado a extensão da pobre condição da legião. Os soldados
exaustos, adormecidos por toda a parte, davam mais a ideia de uma vasta área de tratamento de feridos do que de uma legião. Vespasiano ficou momentaneamente chocado
ao recordar que esta era a mesma unidade que recentemente tinha efectuado uma parada cintilante com todo o seu equipamento, onde a ansiedade para se envolver com
o inimigo irradiara de cada homem. Embora ainda fossem uns milhares, era doloroso ver como as fileiras de cada centúria que repousava tinham sido reduzidas nas últimas
semanas de campanha.
A passagem trituradora das rodas das carruagens anunciou a chegada do comboio de mercadorias, e o pessoal do quartel-general pôs-se de imediato em acção. As tendas
do hospital de campo foram levantadas rapidamente, e a cozinha de campo montada para assegurar que a comida quente estivesse na barriga de cada homem o mais depressa
possível. À volta de Vespasiano os escreventes apressavam-se a montar uma tenda do quartel-general, a acender numerosas lâmpadas de óleo colocadas sobre grandes
suportes de bronze, e a montar as secretárias de campanha. Todas as centúrias que tinham chegado foram obrigadas a emitir relatórios de efectivos e pedidos de substituição
das armas gastas e do equipamento perdido, antes de serem conduzidas às suas áreas designadas de reunião. Da sua secretária de campanha o legado observava quando
as escuras filas de homens passavam lentamente por ele. Não houve saudações, ninguém levantou o olhar. A legião parecia acabada como formação ofensiva no futuro
mais próximo. O único factor compensatório era que o inimigo não estava em condições de contra-atacar, tendo sido afastado do último rio e forçado a lutar por posições
defensivas do outro lado do Tamesis.
Contudo, o tempo necessário aos legionários para recuperarem o ímpeto seria utilizado pelos bretões na preparação para a próxima fase sangrenta da campanha.
Eram estes os factores sobre os quais o legado não tinha qualquer influência, e o melhor que podia fazer dadas as presentes circunstâncias era deixar a Segunda descansar,
alimentar-se e reequipar-se o mais depressa possível. Os homens mereciam mais do seu general depois do desempenho espectacular de há dois dias. Dois dias? Vespasiano
franziu o sobrolho. Fora só isso? O próprio tempo parecia ter sido sugado por aquele pântano infernal que se abria à sua volta no escuro... Os olhos de Vespasiano
pestanejaram e abriram-se mesmo a tempo de evitar que caísse do banco, e ele recuperou o equilíbrio com um choque gelado de surpresa. Repreendeu-se automaticamente,
depois olhou à volta para ver se alguém se apercebera desta falha humana do seu comandante. Os escreventes estavam dobrados sobre o seu trabalho, sob o brilho das
lamparinas, e os seus seguranças continuavam de pé e em sentido. Mais um minuto de sonolência e ele teria caído do banco e acabado estatelado no chão. A imagem fê-lo
corar de vergonha, e forçou-se a levantar-se.
- Tragam-me alguma comida! - disparou ele para um oficial de dia. - E despachem-se com isso.
O oficial de dia saudou-o e saiu disparado para a cozinha de campo. Vespasiano voltou o seu pensamento para outro detalhe preocupante da campanha. Um dos centuriões
que emergiu do pântano apresentou-se com uma espada curta. Nada de notável, mas o centurião encontrara uma grande formação de bretões equipados com armas iguais.
- Olhe para isto, senhor. - O centurião levantou a lâmina para que fosse mais visível ao luar. Vespasiano observou atentamente e viu a marca do fabricante.
- Gneo Albino - murmurou. - É uma firma na Gália, creio eu. Esta espada está a uma longa distância de casa.
- Sim, senhor. Está certo - assentiu o centurião polidamente.
- Mas isso não é tudo, senhor. A forja de Albino é um dos principais fornecedores das legiões do Reno.
- E os contratos de armas são exclusivos. Por isso o que está isto aqui a fazer?
- E não é só esta espada. Vi montes delas ali no pântano, senhor. E como somos o primeiro exército romano por estas costas desde os dias de César, não podem ter
sido capturadas.
- Então, o que está a sugerir, Centurião? Que Albino estava a trabalhar num outro contrato de armas imperiais?
- Duvido, senhor.
As graves penas para um tal acto tornavam-no pouco provável. O centurião encolheu os braços, e depois continuou num tom de voz pensativo. - Mas se não são os fabricantes,
então foi alguém mais abaixo na hierarquia.
- Quer dizer alguém no exército, ou no serviço civil?
- Talvez. - Vespasiano olhou para ele. - Suponho que não queira avançar mais neste assunto.
- Sou um soldado, senhor. - respondeu o centurião com firmeza.
- Faço aquilo que me ordenam, e lutarei contra quem quer que seja. Mas isto não tem nada a ver com a vida militar. Tem a ver com política e conspirações, senhor.
- O que significa que acha que eu é que devo tratar disto.
- Deveres da posição, senhor.
A referência à posição implicava classe social assim como patente militar, e Vespasiano teve de conter a resposta amarga que se preparava para dar. O centurião estava
a falar a verdade. O homem servira grande parte da sua vida sob as Águias e sem dúvida possuía um desprezo saudável pelo carácter errante da classe política da qual
provinham os legados das legiões. Vespasiano, estranhamente motivado a ganhar a aceitação e admiração daqueles que comandava, sentia-se ferido pelo desprezo profissional
do soldado. Pensava ter merecido a sua confiança até agora, mas era evidente que alguns dos homens ainda tinham as suas desconfianças. O fiasco do dia no pântano
tinha sido o resultado de ordens dadas por um general, mas era ao legado que os soldados atribuíam as culpas em primeiro lugar.
Não havia nada a fazer contra isso. Seria uma excessiva demonstração de fraqueza pessoal explicar a algum dos subordinados os limites da sua autoridade, que ele
era obrigado a obedecer a ordens tal como eles. O alto comando colocava um homem no centro de um dilema insolúvel. Para o general ele era responsável pelas acções
dos seus homens. Para os homens ele era responsável pelas ordens que era obrigado a transmitir-lhes. Não eram aceites desculpas de nenhum dos lados, e qualquer tentativa
de auto-justificação só provocaria o desprezo e a repugnância humilhante dos seus superiores e subordinados.
- Tratarei disso então, Centurião. Está dispensado.
O centurião assentiu com satisfação, saudou-o e afastou-se de
volta para os seus homens. Vespasiano viu-o desaparecer no escuro, recriminando-se por ter deixado o homem testemunhar a sua distracção. Ele tinha de ser estóico
acima de tudo. Para além disso, havia um assunto mais importante a ser considerado. Muito mais importante do que a auto-piedade de um legado, censurou-se. A presença
destas
espadas e a descoberta anterior de fisgas produzidas pelo exército entre as munições dos bretões formavam um padrão perturbador. A estranha arma talvez se justificasse
pela pilhagem dos romanos mortos, mas aquilo que o centurião lhe dissera indicava algo mais. Alguém estava a fornecer ao inimigo armas que se destinavam às legiões.
Alguém com dinheiro, e uma rede de agentes para tratar da movimentação de uma carga tão substancial. Mas quem?
- Isto servirá perfeitamente - disse Vitélio ao decurião. - Vamos descansar aqui por um momento. Podes dar de beber aos cavalos.
A coluna de prisioneiros e a sua guarda montada tinham chegado a um caminho que descia para um pequeno arvoredo junto a um estreito ribeiro.
- Aqui, senhor? - o decurião relanceou o olhar pela vegetação sombria que se debruçava sobre eles. Continuou o mais delicadamente possível. - Pensa que é seguro,
senhor? - Geralmente, nenhum oficial no seu juízo perfeito consideraria parar uma coluna de prisioneiros numa região que fosse propícia à fuga.
- Acha que é sensato questionar a minha decisão? - respondeu Vitélio de forma concisa.
O decurião voltou-se rapidamente na sua sela e encheu os pulmões
de ar.
- Companhia, alto!
Ordenou aos prisioneiros que se sentassem e fez com que os guardas tratassem dos cavalos por turnos, enquanto Vitélio desmontava e encaminhava o seu animal para
um cepo de árvore no início de um carreiro que corria junto ao ribeiro.
- Decurião!
- Senhor? - O decurião trotou de volta ao ribeiro.
- Chame-me aquele comandante. Penso que já é tempo de ter outra conversa com ele.
- Senhor?!
- Já te avisei quanto ao questionares as minhas ordens, Decurião
- disse Vitélio friamente. - Mais uma vez, e não te voltes a esquecer disso. Agora traz-me aquele homem, e trata dos teus outros deveres.
O luxuosamente ataviado bretão foi posto de pé e empurrado na direcção do tribuno. Olhou para o oficial romano com um desprezo arrogante. Vitélio respondeu-lhe ao
olhar, e de repente deu com as costas da mão na cara do bretão. A cabeça do homem caiu para o lado, e quando
voltou a cara à posição inicial, um fio de sangue, escuro ao luar, escorria do seu lábio cortado.
- Romano, - murmurou com um forte sotaque - se me conseguir livrar destas correntes...
- Não vais conseguir - desdenhou Vitélio. - Considera-as uma extensão do teu corpo, durante o que resta da tua vida. - Voltou a agredir o prisioneiro, esmurrando
com o punho o seu diafragma, obrigando-o a dobrar-se e a respirar com dificuldade. - Julgo que não me vai levantar problemas agora, Decurião. Continua a tratar dos
cavalos até regressarmos.
- Regressar de... Sim, senhor.
Vitélio agarrou nas tiras de couro por entre o colarinho de ferro do bretão e arrastou-o rudemente pela pista, puxando-o com força quando este tropeçava. Quando
dobraram a esquina e estavam longe da vista e dos ouvidos da coluna de prisioneiros, Vitélio parou e endireitou o homem.
- Podes parar de fingir, não te bati assim com tanta força.
- Com a força suficiente, romano - grunhiu o bretão - E se nos voltarmos a encontrar, vais pagar por aquele golpe.
- Então tenho de me certificar que não nos voltamos a encontrar
- respondeu Vitélio, e sacou o seu punhal. Levantou a ponta até ficar a um dedo de distância da garganta do bretão. Este não revelou nenhum sinal de medo. Apenas
um frio desprezo por um inimigo que fazia algo tão desprezível como ameaçar um prisioneiro amarrado. Vitélio fungou perante a expressão do outro. Depois a lâmina
desceu e ele cortou rapidamente as tiras até as separar. Afastou-se do bretão libertado.
- De certeza que te lembras da mensagem?
- Sim.
- Óptimo. Enviar-te-ei um homem quando estiver pronto. Então vamos a isso. - Voltou o punhal e agarrou-o pela lâmina, entregando-o ao outro homem. - Faz um bom serviço.
O bretão pegou na faca e sorriu lentamente, e então agrediu subitamente o rosto do tribuno com a mão livre. Com um grunhido o tribuno caiu de joelhos, só para ser
levantado, rodado e sentir a ponta do punhal nas costas.
- Vamos com calma! - sussurrou ele.
- Isto tem de parecer convincente, lembras-te?
Com um braço à volta da garganta do tribuno e o outro mantendo o punhal contra as costas do fingido captor, o bretão levou-o pela trilha acima em direcção à coluna.
Assim que o decurião se apercebeu do estado crítico do seu superior, pôs-se de pé.
- Às armas!
- Esperem! - conseguiu gritar Vitélio - Ou ele mata-me!
O decurião abanou os braços para os homens da cavalaria que se apressavam com as suas lanças para entrar em acção.
- Parem! Ele tem o tribuno.
- Um cavalo! - gritou o comandante britânico. - Tragam-me o cavalo dele. Agora! Ou ele morre.
Vitélio gemeu quando a ponta se enterrou na sua carne. Ao ouvir isto o decurião apressou-se até ao cavalo e desamarrou-o, oferecendo as rédeas ao bretão.
Os outros bretões tinham-se levantado ao verem a confrontação e inclinavam-se para a frente para ver melhor, alguns gritando para encorajar.
- Deitem-nos no chão! - exclamou o decurião e após uma breve hesitação os homens da cavalaria agruparam os prisioneiros novamente.
O comandante bretão não perdeu a oportunidade. Com um pontapé e um safanão empurrou Vitélio para cima do decurião, agarrou as rédeas e saltou para o cavalo. Dobrou-se
sobre as costas do animal e com um forte pontapé esporeou-o pela colina abaixo. Quando o decurião se pôs de novo em pé, o bretão tinha desaparecido, só o som enfraquecido
dos cascos do cavalo se discernia à distância. Os outros bretões aplaudiam.
- Façam-nos calar - rugiu o decurião, antes de se voltar para ajudar Vitélio a pôr-se de pé. Ele parecia chocado e assustado, mas ileso para além disso. - Foi por
pouco, senhor.
- Para ele ou para mim? - respondeu Vitélio com amargura. O decurião foi esperto o suficiente para não responder.
- Quer que vá atrás dele, senhor?
- Não. Não vale a pena. Provavelmente ele conhece o caminho no escuro melhor do que nós. Para além disso, não podemos perder nenhum dos guardas numa caçada inútil.
Não, infelizmente ele conseguiu escapar.
- Talvez ele encontre alguns dos nossos homens - declarou esperançosamente o decurião.
- Duvido.
- Sinto muito pelo seu cavalo, senhor.
- Sim, uma das minhas melhores montadas. Mesmo assim, não precisas de te preocupar comigo, Decurião. Fico com o teu cavalo até chegarmos ao acampamento.
XXIV
Macro...
Cato tentava evitar qualquer pensamento acerca do destino do seu centurião. Provavelmente Macro estaria morto. Pirax morrera. Muitos dos seus camaradas da Sexta
Centúria estavam mortos. Mas a ideia de Macro jazendo frio e parado algures nesse pântano era impossível de aceitar. Apesar de uma parte fria e lógica da sua mente
reiterar que Macro não podia ter escapado da morte, Cato imaginava todo o tipo de maneiras como ele poderia ter sobrevivido. Podia estar por ali agora, ferido ou
inconsciente, desamparado, à espera que os seus camaradas viessem em seu auxílio. Até podia ter sido feito prisioneiro. Mas então, a imagem dos batavianos chacinados
explodiu na mente de Cato. Não haveria nenhum prisioneiro, nenhum ferido seria poupado.
O optio sentou-se e repousou os braços sobre os joelhos esfolados. Relanceou o olhar pelos restos da centúria que dormia à sua volta. Dos oitenta homens que tinham
desembarcado com a frota de invasão, só restavam trinta e seis. Outra dúzia estava ferida e talvez retornasse ao serviço dentro de algumas semanas. Isso significava
que a centúria tinha perdido trinta legionários que haviam sido mortos nos últimos dez dias.
Cato estava a agir como centurião de ocasião - até o pessoal do quartel-general incluir a centúria noutra, ou receber as substituições necessárias para recuperarem
a força. De qualquer maneira, Cato não estaria no comando mais do que alguns dias. Pelo que estava grato, apesar de se desprezar por se sentir aliviado pela perspectiva
de ceder a autoridade. Embora sentisse que tinha atingido a maioridade durante o passado ano, ainda havia um resíduo de ansiedade por pensar que não desenvolvera
as qualidades especiais que qualificavam um homem para o comando. Ele seria um pobre substituto de Macro, e sabia que os homens compartilhavam dessa opinião. Até
regressar ao estatuto de
optio ele daria tudo para os liderar o melhor que pudesse, seguindo as fortes pisadas de Macro.
No princípio dessa noite, quando Cato e a sua pequena flotilha emergiram do rio, tinham alarmado as sentinelas que não estavam à espera que chegassem romanos vindos
dessa direcção. Antecipando a sua reacção, Cato respondeu alto e prontamente à chamada da sentinela. Depois de os pobres soldados gatinharem da margem enlameada
até ao acampamento, por fim a salvo, Cato foi escoltado até à tenda do quartel-general para fazer o seu relatório.
Uma massa de lâmpadas e pequenas fogueiras indicava a localização do quartel-general da Segunda Legião, enquanto a toda a volta se estendiam as longas linhas escuras
dos soldados em repouso. Cato foi levado para uma tenda larga dentro da qual os escreventes se dobravam sobre a sua papelada em longas mesas de cavaletes. Um deles
dirigiu-se a ele e Cato avançou.
- Unidade? - O escrevente olhou para o seu pergaminho, a pena pousada sobre o tinteiro.
- Sexta Centúria, Quarta Coorte.
- Ah! O grupo de Macro. - O escrevente mergulhou a pena e começou a escrever. - Onde é que ele está?
- Não sei. Algures ainda no pântano.
- O que aconteceu?
Cato tentou explicar de uma forma que deixasse em aberto a questão do destino de Macro, mas o escrevente abanou a cabeça com tristeza enquanto olhava para o jovem
à sua frente. - É você o optio dele?
Cato assentiu.
- Bem, agora já não é. Fica como centurião até aviso em contrário. Qual é a sua força?
- Somos ainda cerca de trinta, julgo eu - respondeu Cato.
- Com exactidão, por favor - disse o escrevente. Depois olhou para cima e viu que o jovem soldado estava no fim das suas forças, os olhos vermelhos e a cabeça a
descair mesmo estando ele em pé. O escrevente continuou num tom mais simpático. - Senhor, preciso do número certo, por favor.
Esta simples lembrança da sua nova responsabilidade fez com que Cato se endireitasse e se concentrasse.
- Trinta e seis. Ainda tenho trinta e seis homens.
Enquanto o escrevente apontava alguns detalhes, entrou o legado. Entregou um pequeno pedaço de pergaminho a um membro do pessoal e voltava-se para sair quando avistou
Cato e parou.
- Optio! - exclamou ele ao avançar na sua direcção. - Como vai? Acabou de chegar?
- Sim, senhor.
- Foi cá uma noite, não é?
- Sim, senhor, uma grande noite.
Algo no tom de voz do rapaz ia para além do cansaço, e olhando mais atentamente Vespasiano pôde ver que Cato se esforçava por controlar as suas emoções. E por suportar
a dor, pensou Vespasiano, ao aperceber-se das terríveis bolhas que desciam pelo braço do rapaz.
- Foi um dia terrível para todos nós, Optio. Mas continuamos
aqui.
- O meu centurião não...
- Macro? Macro está morto?
- Eu não sei, senhor - respondeu Cato lentamente. - Julgo que
sim.
- Isso é mau. Muito mau. - Vespasiano vacilou perante as novidades, dividido entre expressar o desgosto genuíno e manter a imagem de impassibilidade que se esforçava
tanto por projectar. - Ele era um bom homem, um bom soldado. Teria sido um bom centurião superior quando chegasse a altura. Sinto muito. Admirava-o, não é verdade?
- Sim, senhor. - Cato sentiu a garganta a apertar-se.
- Verifique se os seus homens têm comida e descanso. Agora vá.
O jovem saudou-o e estava quase a virar-se para sair quando Vespasiano acrescentou rapidamente.
- Não deixe que o desgosto lhe tolde o julgamento, filho. Temos dias difíceis à nossa frente, e eu não o quero ver a desperdiçar a vida por uma questão de vingança.
Os seus homens vão estar a olhar para si agora.
XXV
- Tens a certeza quanto a isto?
Vitélio assentiu.
- E informaste-o totalmente da nossa condição?
- Sim, senhor. Disse-lhe tudo.
Vespasiano leu o despacho de Aulo Pláucio novamente, para o caso de ter perdido alguma nuance que lhe permitisse revogar a ordem dada. Mas não havia nada. Por uma
vez, os escreventes do quartel-general tinham anulado qualquer ambiguidade e produzido um conjunto de ordens com o tipo de elegância concisa que teria sido favoravelmente
comparada aos comentários de César. Num breve parágrafo ordenava-se que a Segunda Legião embarcasse nos transportes providenciados pela marinha e fizesse um desembarque
do lado oposto do Tamesis. Supunha-se que um navio de guerra tinha tudo o que era necessário para fornecer o fogo de apoio para esta operação. A Segunda Legião devia
tomar o controlo da margem do rio e estabelecer uma ponte de passagem. Se tivesse sucesso, Vespasiano obteria os reforços da Nona Legião.
- Loucura! - resmungou Vespasiano e atirou o despacho para a sua secretária de viagem. - Uma completa loucura. Não estamos em condições de levar isto avante. Alguns
dos homens ainda estão aí pelo pântano, e os que regressaram para a Águia... De que raios pensa Pláucio que somos feitos?
- Quer que volte a ir lá e tente mudar a defisão dele, senhor?
Vespasiano olhou-o com intensidade. Esteve quase a lançar um
ataque ao tribuno por aproveitar todas as oportunidades para o diminuir quando reparou no ar exausto de Vitélio. O tribuno estava acabado e parecia aquém da sua
habitual malícia. O homem precisava de descanso e em qualquer caso seria inútil mandá-lo de volta para discutir a situação com o general. As ordens tinham sido dadas
e Vespasiano tinha obrigação de as cumprir com todos os recursos que tinha disponíveis no momento.
Qualquer tentativa de prevaricar ou atrasar prejudicaria a sua reputação. Ele bem podia imaginar os senadores em Roma a mostrarem o seu desprezo se lhes chegasse
aos ouvidos que ele se mostrara relutante em enviar as suas tropas através do rio. Aqueles que tivessem experiência de campo trocariam olhares entendidos, e murmurariam
secretamente acerca da sua falta de decisão; talvez fossem tão longe como atribuir rapidamente tudo à sua cobardia. Vespasiano corou intensamente perante tal pensamento.
Haveria sentimentos amargos entre os homens quando lhes falassem acerca do assalto proposto. Depois da batalha no Mead Way, dos jogos mortíferos ao gato e ao rato
do dia anterior no pântano, e agora desta esperança abandonada contra ainda mais outra costa defendida, as memórias do recente motim em Gesoriaco certamente seriam
reacesas. Se não tivesse sido pela eliminação implacável dos líderes do motim por Narciso, a invasão da Britânia não teria sido lançada e, pior ainda, a autoridade
do Imperador teria sido fortemente minada. Como se já não fosse suficientemente mau ter os Liberais a trabalhar contra Cláudio, agora corria-se o risco de os comandantes
do exército aumentarem desnecessariamente a discórdia das classes inferiores. Se a Segunda Legião recusasse a ordem de atravessar o Tamesis, quanto tempo levaria
para as notícias dessa revolta chegarem às outras legiões? Pouco mais de dois dias.
E as ordens eram claras. Não havia margem para outra interpretação. Vespasiano teria que confiar no julgamento do seu superior apesar de recear as consequências
dessa acção. Com um amargo suspiro de resignação, voltou o olhar para o seu tribuno sénior, determinado a recuperar a sua reputação como o tipo de comandante que
não pára perante nada para a prossecução das suas ordens.
- Informa os oficiais primeiro. Vão estar muito ocupados durante as próximas horas. Falarei com os centuriões quando o plano estiver pronto. Quero que os homens
estejam bem alimentados; se o desembarque for bem sucedido, pode levar algum tempo até terem de novo uma refeição decente. Faz com que a cozinha do campo prepare
rações duplas; mais do que isso e eles afundariam os transportes.
Era uma piada fraca mas Vitélio conseguiu dar um breve sorriso antes de saudar e deixar a tenda do legado. Vespasiano deixou-se cair sobre o banco e amaldiçoou Pláucio
com toda a veemência que a sua frustração e desespero conseguiam conter. Estava bem ciente do quanto a sua disposição era determinada pelo seu estado de exaustão:
quando fora a última vez que dormira? Há dois dias, e então só um breve descanso entre o ataque às fortificações do rio e as ordens dadas para esta última
fase do avanço. O seu corpo doía, os olhos picavam, e era preciso um pouco de esforço para se concentrar. De algum recanto da sua mente surgiu o desejo de fechar
os olhos apenas por um momento, não mais. Só um momento para clarear a sensação irritante. Mal as suas pálpebras se fecharam o seu corpo rendeu-se a uma quente onda
de relaxamento. Só por um momento, não mais, lembrou-se ele vagamente.
- Senhor! - alguém lhe abanava o ombro gentilmente. Num instante, Vespasiano estava completamente desperto e alerta para o que quer que tivesse acontecido. Enfureceu-se
silenciosamente consigo próprio. O oficial de dia que o tinha acordado recuou respeitosamente perante a sua expressão tumultuada. Quanto tempo dormira? Não ousou
perguntar ao oficial, que iria suspeitar de tão grande fraqueza humana no legado. Olhando para além do homem, Vespasiano viu um vago brilho a contornar a beira da
tenda, filtrado por entre as fendas das dobras do tecido. Então não passava muito do nascer do dia. Perante isto a sua vergonha foi suavizada.
- Os meus oficiais estão reunidos?
- Sim, senhor. Estão à sua espera na tenda do pessoal. Ainda não voltaram todos do pântano, mas eu envio-os para si logo que se aproximem da legião, senhor.
- Muito bem. Agora podes sair.
O oficial de dia saudou-o e desapareceu silenciosamente. Vespasiano bateu imediatamente com o punho sobre a sua coxa e censurou-se. Adormecer num momento como este!
Ceder a tal fraqueza quando a sua reputação e toda a sua legião estavam a ser testadas ao máximo. Era imperdoável, e ele decidiu fervorosamente não deixar isso acontecer
novamente. Levantou-se, endireitou a túnica, e aproximou-se de um pequeno cântaro e de uma taça em bronze que estavam no canto. Esvaziou o conteúdo do cântaro sobre
a cabeça. A água tinha sido recolhida directamente do rio durante a noite e estava ainda fresca o suficiente para ajudar os seus sentidos a regressar a um estado
mais consciente. Endireitou-se e secou-se, repondo o cabelo molhado no sítio com as mãos. Um rápido relance no espelho de bronze polido revelou a sujidade de três
dias, que raspou com a mão ao esfregar a bochecha. A sujidade, os olhos encovados e a expressão desgastada combinavam para lhe dar a aparência de um pobre desgraçado
que mendigava pelas sarjetas no exterior do Circo Máximo em Roma. Mas não havia tempo a perder com retoques cosméticos, e ele consolou-se com o pensamento de que
os oficiais teriam a mesma aparência descuidada.
Levantando a dobra da tenda, Vespasiano viu que o amanhecer estava bem adiantado, o pálido disco laranja pendurado no horizonte
levemente encoberto pelo feixe de fumo das fogueiras apagadas. Alguns dos homens já conversavam e tossiam com o ar frio da manhã, enquanto os centuriões e os seus
optios começavam a levantar-se do descanso. Era palpável a relutância dos homens em se equiparem e começarem a rotina diária da vida de um legionário, e Vespasiano
obrigou-se a saudar os homens alegremente conforme passava por eles.
Os centuriões e tribunos da legião que estavam reunidos levantaram-se prontamente quando Vespasiano entrou na tenda do quartel-general. Indicou-lhes que se sentassem.
Foi então que reparou em Vitélio, recém-barbeado e vestido com uma túnica nova. Apesar do homem parecer cansado, o contraste com os outros oficiais e consigo próprio
era chocante, e o velho antagonismo para com Vitélio explodiu no seu coração.
- Não há tempo para cerimónias. Lamento muito, cavalheiros
- declarou Vespasiano enquanto se inclinava sobre o mapa em cima da mesa, equilibrando-se sobre os dedos abertos. - O general está decidido a prosseguir com a batalha,
e calha-nos o papel principal mais uma vez.
Apesar dos tribunos suspeitarem das más notícias não conseguiram deixar de resmungar com desagrado perante a perspectiva de mais acção.
- Antes que alguém pergunte, o general conhece a nossa situação, e a ordem para atacar mantém-se.
- Porquê nós, senhor? - perguntou o tribuno Plínio.
- Porque estamos aqui, Plínio. Tão simples quanto isso.
- Mas a Vigésima mal sofreu um arranhão - persistiu Plínio num tom amargo que evidentemente reflectia o humor dos outros oficiais, muitos dos quais assentiam e murmuravam
em concordância. Vespasiano partilhava do seu desgosto, especialmente depois do que a Segunda Legião tinha suportado ultimamente, e por tudo o que eles tinham alcançado.
Mas a sua patente impunha uma estóica aceitação das ordens. - A Vigésima está a ser preservada para reforços. Pláucio quer manter uma unidade intacta para enfrentar
quaisquer contra-ataques, e para garantir qualquer progresso que façamos. - Era quase verdade, reflectiu Vespasiano: ele não mencionou que a Segunda estava a ser
utilizada para desgastar o inimigo. O desgaste era uma táctica dura para o estômago quando os números riscados eram os dos próprios homens.
O tribuno Plínio ainda não estava amolecido.
- Se houver algum progresso - afirmou ele com fúria. - Por este andar estaremos todos mortos antes da Vigésima perder um homem.
- Talvez sim. Talvez não. Mas as ordens são para ser obedecidas, Tribuno - replicou Vespasiano com firmeza. - Se há aqui algum homem que não queira tomar parte nisto
poderei aceitar a sua demissão... depois do assalto.
Um riso vencido ecoou pela tenda, e o tribuno corou.
- Muito bem, cavalheiros. Vamos aos detalhes.
O ambiente ligeiro morreu rapidamente e os centuriões e tribunos focaram a sua atenção em Vespasiano.
- Vamos juntar-nos à marinha de manhã cedo. O general forneceu uma trirreme para dar fogo de cobertura para o desembarque, e dez transportes para levar a legião
através do Tamesis. Como os mais astutos de vocês já calcularam, precisaremos de três viagens para fazer atravessar tudo o que nos sobra da legião. E isso significa
que a primeira vaga deve assegurar a área do desembarque até que as outras vagas possam entrar na luta. Não haverá oportunidade para a retirada se as coisas ficarem
más: os transportes estarão a regressar para mais uma vaga.-Vespasiano fez uma pausa para realçar bem este ponto. - Como certamente compreenderão, a primeira vaga
pode vir a ser massacrada. Não quero designar ninguém para o primeiro transporte, por isso peço voluntários - olhou à volta e rapidamente relanceou toda a sala.
Alguns oficiais evitaram o seu olhar enquanto outros se mexiam com nervosismo. Os olhos de Vespasiano pousaram sobre um braço erguido bem alto na parte traseira
da tenda. A luz dentro da tenda ainda era muito vaga e os olhos cansados do legado não conseguiam distinguir a identidade do oficial.
- Levanta-te!
O oficial pôs-se de pé, por entre os murmúrios espantados dos demais.
- Estás a voluntariar-te para a primeira vaga? - perguntou Vespasiano, mal conseguindo disfarçar a surpresa na sua voz.
- Sim, senhor. Para a primeira embarcação da primeira vaga.
- E pensas que os teus homens estão à altura do desafio?
- Sim, senhor. Eles estão prontos e querem a vingança.
- Pois terão a sua vingança, Centurião. Mas achas que és o homem indicado para os comandar neste assalto?
Cato enrubesceu com a furia. - Sim, sou capaz, senhor.
Vespasiano sorriu sinistramente perante a determinação do jovem de vingar o seu centurião. Não estava em causa a sua coragem, mas os líderes precisavam de estar
acima de qualquer motivação pessoal no calor da batalha. Poderia este rapaz ser de confiança para colocar o dever antes da vingança? Ou precipitar-se-ia sobre o
inimigo e lutaria com fúria até ser morto, descuidando a responsabilidade para com os homens sob o seu comando? Vespasiano pesou bem a situação e chegou a uma rápida
conclusão. A primeira vaga teria pouco tempo para coordenar uma defesa do ponto de desembarque e ele devia fazer o melhor uso de qualquer frenesim da batalha que
viesse em seu proveito.
- Muito bem, Centurião provisório. E boa sorte. Mais alguém que esteja pronto a juntar-se a ele?
A resposta imediata de Cato envergonhara os veteranos, e quase em simultâneo todos levantaram o braço.
- Óptimo - declarou o legado. - As vossas ordens finais estarão com vocês depois da legião ter comido. Agora é melhor prepararem os vossos homens e informá-los do
que Roma quer pelo seu dinheiro hoje.
Conforme os oficiais esvaziavam a tenda, Vespasiano captou o olhar de Cato e chamou-o com o dedo.
- Senhor?
- Tens a certeza acerca disto?
Quando Cato assentiu, Vespasiano inclinou-se sobre ele para que as suas palavras não fossem ouvidas pelos homens que deixavam a tenda.
- Não é preciso que comandes o ataque. Tu e os teus homens devem estar exaustos, e tu estás ferido.
- Sobreviverei - murmurou Cato. - Estamos cansados, senhor. E não somos assim tantos na centúria. Mas isso não é diferente de qualquer outra centúria, senhor. A
diferença é que temos mais razão para lutar do que a maioria. Penso que posso falar em nome dos homens de Macro quanto a isso.
- São os teus homens agora, filho.
- Sim, senhor. - Cato endireitou-se e ergueu o queixo.
- Parabéns! - aprovou Vespasiano - E vê se tens cuidado, jovem Cato. Há uma promessa de coisas grandes em ti. Sobrevive a isto e poderás sobreviver a qualquer coisa.
- Sim, senhor.
- Agora vai. Vejo-te mais tarde, do outro lado do rio.
Cato saudou-o e seguiu os outros oficiais para fora da tenda.
Ao observar o jovem a afastar-se, Vespasiano sentiu um aperto de culpa. Era verdade que o rapaz prometia, e a retórica barata que usara tinha funcionado, como ele
já sabia. O optio - o centurião provisório, corrigiu-se Vespasiano - sentir-se-ia inflamado pela confiança do seu superior nele. Mas isso provavelmente causaria
ainda mais depressa a sua morte. Era pena. O rapaz era simpático e tinha agido bem durante o pouco tempo que tinha servido com as Águias. Mas esta era a natureza
do comando. Independentemente dos sentimentos de cada um, a batalha tinha de ser ganha, o inimigo derrotado, e ambos tinham o seu orgulho
- medido pelo sangue dos homens da sua legião.
XXVI
O Sol brilhava sobre os homens apinhados no grande transporte. As túnicas de lã por debaixo das pesadas armaduras faziam os homens suar e o material húmido agarrava-se
desconfortavelmente à pele. O odor resultante, combinado com os resíduos do pântano, tornavam o ar a bordo do transporte fétido até ao ponto da náusea. O calor,
o medo e a exaustão nervosa combinaram-se para fazer alguns dos homens vomitar, acrescentando o fedor do seu vómito a tudo o resto.
Junto à margem, o Tamesis corria como um espelho, apenas perturbado pelo chapinhar provocado pelos largos movimentos circulares do transporte, enquanto a tripulação
se esforçava por manter a embarcação alinhada com o navio de guerra que ia à sua frente. Em perfeita sintonia, os grandes remos da trirreme elevavam-se da superfície
do rio, espalhando brilhantes cascatas de água, antes de mergulharem de novo, erguendo a proa em direcção à margem distante.
Do convés dianteiro do transporte, Cato perscrutou a massa de inimigos em filas que esperavam para os receber. Durante toda a manhã os bretões tinham estado a reunir-se
em resposta ao ataque que estava a ser preparado bem à vista no lado romano do Tamesis. O agrupamento de transportes e navios de guerra, e a espessa massa de legionários
a prepararem-se para o desembarque, tornavam os planos do General Pláucio óbvios para quem quisesse ver. E por isso uma mão-cheia de batedores da cavalaria britânica
tinha-se apressado a espalhar a palavra do iminente ataque no rio. As fileiras dispersas do exército de Carátaco reuniram-se rapidamente e abriram caminho até ao
rio.
O ataque já tinha sido adiado pela necessidade de descarregar os mantimentos trazidos pelos transportes, e os legionários tinham fumegado enquanto descarregavam
a carga inesperada para o molhe grosseiro e a empilhavam fora do caminho. Enquanto trabalhavam,
chegavam cada vez mais bretões para reforçar a margem distante. Para os da primeira vaga, a perspectiva de enfrentar cada vez mais inimigos era aflitiva, e fê-los
praguejar contra os camaradas que descarregavam os transportes, incentivando-os a acabar o trabalho mais depressa.
O primeiro transporte ainda estava a alguma distância da margem quando os bretões soltaram o seu grito de guerra, uma nota que foi crescendo e depois afundando,
para depois aumentar novamente. Para os olhos inexperientes de Cato o inimigo parecia incluir vários milhares, mas qualquer estimativa exacta daquela massa a fervilhar
era impossível. O que era óbvio era que o inimigo ultrapassava em grande número os homens da primeira vaga da Segunda Legião e o crescente volume do seu desafio
era enervante. Voltando-lhes as costas, Cato forçou-se a abanar a cabeça e sorrir.
- Um grupo bastante afinado, não acham? - disse aos homens da centúria que estavam mais próximos, e sacudiu o polegar por cima do ombro. - Vão cantar uma melodia
diferente não tarda nada.
Um ou dois homens sorriram em resposta mas a maioria só olhou resignada, tentando esconder o medo que os levava a exibir todo o tipo de tiques nervosos. Algumas
horas mais cedo estes mesmos homens pareciam entusiasmados o suficiente para vingar o seu centurião, mas as aspirações produzidas pela raiva, compreendeu Cato, tendiam
a ser mais moderadas perante a perspectiva iminente de as colocar em prática. Cato podia ver que a maioria dos homens olhava para si, e a súbita sensação de estar
a ser julgado pesou-lhe fortemente. Ele sabia que mesmo depois deste tempo todo alguns deles ainda se ressentiam a sua nomeação como optio.
Este era o momento em que Macro lhes dedicava algumas palavras de encorajamento antes de entrarem em acção. Várias frases citadas, de todas as histórias que tinha
lido, acorreram-lhe ao pensamento, mas nenhuma parecia apropriada e, pior, nenhuma parecia ser o tipo de coisa que um jovem pudesse dizer sem parecer desesperadamente
pretensioso.
Por um momento os legionários e o seu centurião provisório enfrentaram-se num silêncio que se tornou cada vez mais incómodo. Cato olhou por cima do seu ombro e já
conseguiu distinguir com clareza as feições individuais de cada bretão. Qualquer coisa que ele dissesse, tinha de o dizer depressa. Clareou a voz.
- Eu sei que o centurião devia ter alguma coisa boa para vos dizer neste momento. A verdade é que desejava que ele estivesse aqui para o dizer. Mas Macro partiu,
e eu sei que não posso ocupar o seu lugar. Temos esta oportunidade para os fazer pagar pela sua ausência, e
eu espero que muitos deles lhe façam companhia no Inferno.
Um grupo de homens aplaudiu com sentimento, e Cato sentiu que uma espécie de ligação estava a estabelecer-se entre ele próprio e estes veteranos empedernidos.
- Dito isto, Caronte não dá descontos a grupos, por isso guardem o vosso dinheiro e mantenham-se vivos!
Uma piada fraca, mas para homens que corriam o risco de perder a vida até o mais pequeno alívio devia ser valorizado.
Alguma coisa chapinhou na água próximo do transporte e Cato voltou-se para o som quando uma saraivada de chumbos chocalhou sobre a proa e cortou a suave superfície
do rio.
- Ponham os elmos! - gritou Cato e apertou rapidamente a correia sob o queixo, acocorando-se por debaixo do baluarte do convés dianteiro. Mais à frente a trirreme
virou rio acima e deslizou por momentos antes de lançar a âncora. O primeiro transporte voltou-se sobre a sua popa e dirigiu-se para a margem do rio, cem passos
além. Os chumbos continuaram a cair sobre a embarcação, mas a tripulação do barco e os legionários agacharam-se o suficiente para tornar a descarga inofensiva.
- Cuidado com os remos! - alertou o capitão do transporte e os homens pousaram os remos nos descansos, à espera que os outros transportes se aproximassem e formassem
uma linha para que chegassem à margem todos ao mesmo tempo e não desembarcassem as tropas a pouco e pouco. Debaixo de fogo dos fundibulários e arqueiros, os desajeitados
transportes manobraram na posição e esperaram que a trirreme começasse a bombardear o inimigo agrupado na margem do rio.
Uma sucessão de estalidos altos cruzou o ar quando os braços de torção dos atiradores de flechas se soltaram, e as pesadas setas de ferro foram disparadas em direcção
aos bretões na margem. Rodopios nas suas fileiras indicavam a passagem das flechas, e aos gritos e guinchos dos feridos juntava-se o som dos seus gritos de guerra.
Momentos depois os arqueiros auxiliares da trirreme começaram a acrescentar as suas descargas ao bombardeamento, e os bretões sem armaduras começaram a cair como
folhas. Quando o fogo de apoio começou a abrir brechas na margem, o capitão do transporte que liderava deu o sinal para começar o ataque, e os homens da tripulação
dobraram-se sobre os remos. Os transportes avançaram e os legionários desembarcaram, levantando os escudos sobre a cabeça para se protegerem da descarga de chumbos
e flechas. A tripulação não tinha qualquer protecção, e conforme o transporte dianteiro se aproximou da margem e a ponte de passagem
caiu sobre o rio, dois membros da tripulação foram abatidos; um deles, atingido por duas setas, jazia a gemer sobre o convés, enquanto o seu camarada estava quieto,
morto por um disparo de chumbo que lhe atravessara o olho directamente ao cérebro. Imediatamente a draga no porto começou a puxar a proa do barco para dar a volta.
Apercebendo-se do perigo, Cato deixou cair o seu escudo e o seu dardo e agarrou na ponta solta, afastando o remo do rio. Desabituado com o remo pesado, esforçou-se
por manter a proa do transporte alinhada com a margem, enquanto os disparos de chumbo chocalhavam pela proa e setas se espetavam no convés.
Arriscou um olhar para o lado e viu que a margem estava bem perto; a qualquer momento o transporte chegaria a terra e o ataque começaria. Uma súbita sensação de
arrasto indicou que a quilha tinha entrado em contacto com o leito do rio. O transporte parou e o capitão mandou a tripulação abrigar-se. Cato deixou cair o remo
e recuperou o escudo e o dardo, consciente de que todos os olhares da centúria estavam dirigidos para si.
- Lembrem-se, rapazes - gritou ele. - Esta é por Macro... preparem os dardos!
Os homens levantaram-se e os primeiros avançaram até à dianteira do convés, preparados para disparar os seus dardos.
- Disparar à vontade!
O resto da centúria entregou os seus dardos aos que estavam na frente do convés e uma descarga certeira abateu mais alguns inimigos até se esgotarem as munições.
Cato olhou à volta e viu que a trirreme cessara o fogo.
Era este o momento.
Durante um instante a sua mente começou a avaliar os pesados riscos e o absurdo do que estava prestes a fazer, e soube que se se atrasasse mais um pouco perdia a
coragem. Encolheu-se e saltou pela borda do transporte, gritando aos outros para o seguirem. A água chegava-lhe ao peito e as suas botas escorregaram no lodo do
leito do rio. À sua volta o resto da centúria chapinhava e avançava em direcção à margem.
- Vamos lá! Vamos lá! - gritava Cato por cima da confusão.
Os bretões sabiam que esta luta tinha de ser ganha antes dos romanos conseguirem fincar um pé na margem, e atiraram-se ao rio para enfrentar o ataque. Os dois lados
chocaram de frente um para o outro, próximo dos transportes. Um homem enorme surgiu de dentro de água, investindo directamente contra Cato, de lança levantada por
cima da cabeça, pronto a atacar. Cato atirou o seu escudo para a frente quando veio o golpe, e empurrou a lança para o lado. O contra-ataque foi executado com uma
precisão que teria orgulhado o Centurião Bestia, e a espada de cabo de marfim do falecido centurião enterrou-se fundo no lado do corpo do bretão. Cato libertou-a
com força mesmo a tempo de a enfiar na cabeça do inimigo seguinte. Lutou todo o caminho até à costa passo a passo, os dentes fortemente cerrados enquanto um grunhido
desumano da sua garganta desafiava todos aqueles que se pusessem no seu caminho. A água revolta lançava clarões brancos e prateados sob a luz brilhante do Sol, e
manchas carmesim salpicavam tudo e brilhavam como rubis antes de se derramarem sobre os combatentes.
A água à volta das pernas de Cato transformou-se num vermelho lamacento enquanto mais romanos se esforçavam através dos baixios, tentando aproximar-se dos legionários
que tinham desembarcado momentos antes. Os transportes já estavam a ser puxados de volta para o rio e preparavam-se para a segunda vaga de assalto o mais depressa
que os remos conseguiam trabalhar. Cato e os outros estavam por sua conta até que a próxima vaga se juntasse à batalha, e a única coisa que interessava era viver
até ao último momento. Já estava com a água pelos tornozelos, e tinha de ter cuidado para não escorregar na lama. Bloqueava com o seu escudo e investia com a espada
num ritmo certo, rangendo os dentes contra a dor das queimaduras. O resto da centúria lutava ao seu lado, formando automaticamente uma parede de escudos, anos de
incansável treino a darem os seus frutos. A doida confusão inicial tinha acabado e a luta começou a assumir uma forma mais familiar para os romanos.
- Mover para a esquerda, comigo! - instruiu Cato bem alto quando viu próximos os homens de um outro transporte. Lentamente, a sua centúria avançou em frente, para
a erva pisada da margem e para junto dos seus camaradas. Enquanto isso, os bretões esmurravam os seus escudos com as espadas, machados e lanças. O homem junto a
Cato caiu com um grito agudo quando a maldita ponta de uma lança o atingiu na barriga da perna. Com um repelão perverso, o bretão na outra ponta da lança puxou-a
de volta e o legionário caiu de costas, a gritar. A centúria fechou a formação e continuou, os gritos do seu camarada silenciados pelos bretões que rapidamente o
chacinaram. A pouco e pouco as pequenas células de legionários foram-se aproximando até poderem formar uma linha sólida de quatro ou cinco centenas de homens. E
mesmo assim os bretões ainda se aglomeravam à volta deles aos milhares, tentando desesperadamente empurrá-los de volta para o rio.
- Firmes, rapazes! - gritou Cato uma vez e outra enquanto cortava e investia sobre as cabeças e os corpos que se aproximavam da sua espada. O escudo que ele interpunha
perante o inimigo estremecia
com o impacto dos seus golpes; um desperdício de força indicativo do fraco treino destes britânicos que lutavam com uma raiva desmedida e atacavam simplesmente qualquer
parte do invasor que aparecesse à frente das suas armas. Mas aquilo que faltava aos britânicos em qualidade era compensado pela quantidade; apesar do terreno estar
coberto com os seus mortos e moribundos, eles atacavam como se estivessem possuídos por demónios. E talvez estivessem. Um relance sobre as suas fileiras revelou
a Cato uma linha dispersa de homens com barbas rústicas, estranhamente vestidos, que incentivavam os bretões com os braços levantados para os céus a implorar e a
lançar terríveis maldições. Com um arrepio de horror Cato compreendeu que estes homens deviam ser Druidas, acerca dos quais eram contadas histórias para assustar
as crianças romanas.
Mas só havia tempo para um rápido relance antes de ter de enfrentar a crise seguinte. Um corpo de bretões, mais bem armados e determinados do que os seus camaradas,
confrontou de repente a Sexta Centúria e forçou-os de volta ao rio. Vários homens de Cato estavam caídos, abatidos, outros a perder o equilíbrio na lama escorregadia,
e subitamente a parede de escudos estava a desfazer-se. Antes que Cato pudesse reorganizar os seus homens, deu-se conta de uma presença ao seu lado. Só teve tempo
de olhar de esguelha e avistar a cara de um bretão de cabelo escuro antes do homem se atirar sobre ele e ambos tropeçarem pelos baixios do rio.
Um ofuscante raio de Sol. Depois um borrifo brilhante, e o mundo escureceu perante os olhos de Cato. Água enchia-lhe a boca e os pulmões quando instintivamente tentou
inspirar de novo. O bretão ainda estava em cima dele, as mãos à procura do seu pescoço. Cato deixara cair a espada e o escudo quando tombara, agarrando-se ao seu
atacante, tentando usá-lo para se levantar para fora da água, estranhamente alheio aos sons da batalha. Mas o bretão tinha um físico poderoso, e segurava-o firmemente
debaixo de água. O desejo angustiante de um pouco de ar e a iminência da sua morte deram a Cato uma desesperada reserva de forças. As suas mãos agarraram a cara
do homem e os seus dedos enterraram-se-lhe nos olhos. O homem aliviou abruptamente a pressão sobre o pescoço de Cato e este irrompeu à superfície, espalhando água
e respirando com dificuldade. Manteve os dedos agarrados à cara do bretão e este estremeceu de dor, agarrando os braços de Cato antes de um qualquer instinto o levar
a esmurrar o seu oponente. O golpe atingiu a bochecha de Cato e o mundo ficou branco por um instante antes dele estar outra vez debaixo de água, com o peso do inimigo
em cima de si.
Desta vez Cato achou que se ia afogar. A sua cabeça parecia que ia
rebentar, e o seu contorcer frenético não servia para nada. Olhou para a superfície espelhada da água. O ar cheio de vida, a tão curta distância, que bem podia
ser uma milha, e conforme o seu mundo começou a enfraquecer, o último pensamento de Cato foi para Macro: o arrependimento por ter falhado em vingar o centurião.
Depois a água ficou vermelha e a luz do Sol ficou esborratada pelo sangue espesso. As mãos do bretão ainda lhe apertavam a garganta, mas agora uma outra mão aproximou-se
através da água, agarrou o seu arreio e puxou-o para a luz brilhante do Sol. Cato irrompeu à superfície através de uma poça vermelha e encheu de ar os pulmões a
arder. Depois viu o corpo do bretão. A cabeça estava quase decepada, apenas cartilagem e tendão a seguravam ao torso.
- Está bem? - perguntou o legionário que lhe segurava o arreio, e Cato conseguiu assentir enquanto engolia mais golfadas de ar. Um pequeno grupo de homens da centúria
montavam guarda à sua volta e defendiam os golpes dos bretões mais próximos.
- A minha espada?
- Está aqui, senhor. - O legionário apanhou-a da água. - Bonita lâmina, esta. Devia olhar por ela.
Cato assentiu. - Obrigado.
- Não foi nada, senhor. A centúria não tem meios para perder mais do que um centurião por dia.
Com um abanão final para clarear as ideias, Cato recuperou o seu escudo e levantou a sua espada. O ritmo da luta tinha diminuído consideravelmente, uma vez que a
exaustão começava a fazer-se sentir. Nem romanos nem bretões pareciam tão entusiasmados como inicialmente, e em vários lugares pequenos grupos olhavam-se mutuamente,
cada um esperando que o outro fizesse um movimento. Relanceando o olhar pelo rio, Cato viu que a segunda vaga já quase acabara de embarcar nos transportes.
- Já não falta muito, rapazes! - gritou ele, tossindo com o esforço de gritar com a água presa nos pulmões. - A próxima vaga já está a caminho!
Uma série de estampidos da trirreme chamou-lhe a atenção, e quando os seus olhos seguiram o arco das flechas descobriu uma nova coluna de guerreiros britânicos que
se aproximava pela margem do rio. No meio da coluna vinha uma carroça, ornamentada com os estandartes nativos, entre os quais se destacava um chefe alto com cabelo
loiro longo e ondulante. Ele ergueu a sua lança e gritou, e os seus homens responderam com um rugido tremendo. Alguma coisa no vestuário e na maneira confiante como
eles ignoravam os disparos do navio eram-lhe tremendamente familiares.
- São aqueles os cabrões que nos atacaram a noite passada?
- Podem ser. - O legionário olhou de soslaio. - Não fiquei o tempo suficiente para memorizar os detalhes.
Os Druidas tinham atingido um estado de frenesim enquanto tentavam incentivar os seus relutantes seguidores contra a segunda vaga romana. Quando avistaram a nova
coluna, espernearam de prazer e voltaram a animar os seus homens com uma ferocidade reforçada.
- Cabeças para cima, rapazes! Novo inimigo na margem esquerda!
A palavra passou rapidamente por toda a linha e o centurião mais próximo da nova ameaça organizou prontamente os seus homens num flanco de guarda, apertando a formação
com o que restava da primeira vaga. E foi mesmo a tempo, pois os recém chegados nem sequer tentaram organizar os efectivos mas investiram simplesmente numa forte
carga e atiraram-se à linha romana. Com um grito selvagem e um agudo embate de armas, os bretões forçaram a sua passagem por entre os romanos e tornou-se evidente
para todos que a luta estava a ser favorável aos nativos.
Um olhar ansioso para o rio revelou a Cato que o primeiro dos transportes tinha partido, os remos a trabalhar furiosamente para atingir a margem oposta. O grito
de guerra das novas tropas e as exortações dos Druidas reacenderam o espírito de luta dos nativos, que voltaram a investir sobre os escudos romanos.
- Mantenham-nos à distância! - gritou Cato. - Só um pouco mais! Aguentem-nos!
Os restos da Sexta Centúria fecharam a formação com um punhado de outros legionários e agarraram-se com dificuldade ao pedaço de terreno que tinham conquistado na
margem do Tamesis. Um a um foram caindo, e a parede de escudos fechou-se num nó de homens ainda mais apertado até que pareceu que a^sua destruição era uma questão
de minutos. O flanco esquerdo, se éque os grupos maltratados de romanos podiam ser considerados uma linha, cedeu lentamente sob o ataque feroz da elite de guerreiros
britânicos. Uma vez que já não havia oportunidade de rendição ou de fuga, os romanos lutaram até morrerem onde estavam.
Dos mil e tal homens que tinham feito o primeiro assalto não mais de metade continuava de pé, e Cato estava horrorizado por ver que os transportes estavam a ser
levados rio abaixo pela corrente. Acostaram a cerca de duzentos passos da luta desesperada dos seus camaradas e a segunda vaga desembarcou sem ter oposição, tão
determinados que estavam os britânicos em destruir os sobreviventes da primeira vaga.
Cato vislumbrou o brasão escarlate do legado e junto dele o estandarte da Águia, enquanto os recém-chegados se apressavam em formar uma linha de batalha e marchavam
ligeiros pelo rio acima. Os bretões viram o perigo e voltaram-se para o enfrentar. Cato observou em desespero como o avanço de Vespasiano diminuía e depois parava
para tratar da forte resistência a cinquenta passos da massacrada primeira vaga.
À esquerda os romanos tinham sido forçados a formar um arco compacto com base no rio, e os bretões pressentiam a iminente vitória. Os seus gritos de guerra soavam
agora com uma pitada de frenesim conforme batiam e esmagavam os legionários. Num instante tudo estaria acabado e eles despedaçariam os últimos homens da primeira
vaga, enterrando-os na lama.
Mas o fim ainda estava longe. Uma corneta de guerra britânica tocou uma série de notas por cima da cacofonia da batalha, e para grande surpresa de Cato os bretões
começaram a retirar. Com uma última troca de golpes, o guerreiro com quem ele estava a lutar recuou cuidadosamente até estar fora do alcance da arma de Cato. Depois
voltou-se e trotou pela margem do rio acima, e por toda a parte as cores vivas dos bretões afastaram-se dos escudos romanos, de volta para os Druidas amontoados
junto ao chefe na sua carroça. Então, numa boa ordem defensiva, o inimigo marchou sobre uma pequena elevação na margem do rio e desapareceu de vista, debaixo de
nova descarga de fogo da trirreme.
Cato olhou para o campo de batalha, cheio dos corpos despedaçados dos mortos e dos gritos dos feridos, quase não sendo capaz de acreditar que continuava vivo. Junto
dele os sobreviventes da sua centúria entreolhavam-se com espanto.
- Que raio estão eles a tramar? - murmurou alguém.
Cato abanou a cabeça com cansaço e embainhou a sua espada.
Os recém-chegados de Vespasiano alteraram a direcção do seu avanço e formaram um escudo entre os bretões que se retiravam e o miserável número de sobreviventes da
primeira vaga.
- Será que os afastámos?
- Usa o cérebro! - exclamou Cato. - Deve ter sido outra coisa qualquer. Tem que ser.
- Olhem para ali! Para a esquerda!
Cato olhou e viu umas pequenas sombras surgirem da curva do rio: cavalaria.
- Nossa ou deles? Suponho que tenha de ser nossa.
Com toda a clareza surgiu um pendente de cavalaria romana perto da frente da coluna. As forças que Pláucio destacara rio acima, à procura de uma passagem, não tinham
ido em vão. Algumas das coortes
batavianas tinham chegado ao flanco britânico a tempo de salvar a vanguarda da Segunda Legião. Mas os recém-chegados não foram saudados com gritos de alegria. Os
homens estavam simplesmente aliviados por terem sobrevivido, e demasiado cansados para fazer algo mais do que cair sobre a margem e descansar os membros exaustos.
Mas Cato percebeu que ainda não podia fazer isso. O seu sentido de dever não lhe permitia. Primeiro tinha de fazer uma chamada à centúria, verificar o seu estado
para continuar a lutar e depois elaborar um relatório para o legado. Sabia que tinha de fazer isso, no entanto a sua mente estava entorpecida pela fadiga, agora
que o perigo imediato tinha passado. Mais do que nunca ele merecia um descanso. O simples pensamento parecia agravar a necessidade física de descanso. As suas pálpebras
fechavam-se lentamente; antes de se aperceber, começou a deslizar para a frente, e teria caído ao chão se não fosse um forte par de braços segurá-lo pelos ombros
e endireitá-lo.
- Cato!
- O quê? O quê? - conseguiu responder, os olhos lutando para ficarem abertos.
As mãos abanaram-no, tentando retirá-lo do estupor da exaustão.
- Cato! O que raios é que fizeste à minha centúria?
A pergunta podia parecer amargurada, mas por baixo dela havia um tom familiar de resmungo a que ele se acostumara nos últimos meses. Forçou-se a olhar para cima,
a abrir os olhos e a encarar o seu interlocutor.
- Macro?
XXVII
- Fico feliz por ver que ainda me reconheces debaixo de toda esta porcaria! - Macro sorriu e deu uma palmada no ombro do seu optio, evitando cuidadosamente o lado
ferido.
Cato contemplava em silêncio o espectáculo à sua frente. A cabeça e o peito do centurião estavam cobertos de sangue seco e sujos de lama; parecia um cadáver ambulante.
De facto, para Cato, cuja ferocidade recente tinha sido provocada pelo desgosto devido à morte do centurião, a visão de Macro vivo e a sorrir à sua frente era chocante
demais para aceitar. Entorpecido pela exaustão e descrença, limitava-se a olhar estarrecido, de boca aberta.
- Cato? - a cara de Macro enrugava-se de preocupação. O optio oscilou, a cabeça caída, o braço com a espada pendendo flacidamente ao seu lado. À sua volta estendiam-se
os corpos destroçados de romanos e bretões. O rio manchado de sangue ondulava gentilmente sobre a margem, a sua superfície quebrada pelos pequenos montículos cintilantes
dos cadáveres. O Sol derramava-se sobre a cena. Havia uma excessiva sensação de calma, que na verdade era uma lenta adaptação após o terrível barulho do conflito.
Até o cantar dos pássaros parecia estranho aos ouvidos dos homens que acabavam de sair da intensa batalha. Cato apercebeu-se de repente que estava coberto de porcaria
e do sangue de outros homens, e subiu-lhe uma onda de náusea desde a boca do estômago. Não conseguiu controlar-se e vomitou, derramando o vómito à frente de Macro
antes que o centurião pudesse recuar. Macro fez uma careta mas apressou-se a agarrar os ombros do rapaz quando as pernas de Cato cederam. Colocou lentamente o optio
de joelhos.
- Calma, rapaz. - disse com gentileza - Calma.
Cato voltou a vomitar, e outra vez, até não haver nada dentro dele, e depois tentou vomitar de novo, o estômago, o peito e a garganta em espasmos, a boca escancarada,
até que tudo passou e ele conseguiu respirar
de novo. Um fino rasto de baba pendia através do cheiro ácido por entre as suas mãos separadas. Todo o cansaço e tensão dos dias anteriores tinham encontrado o seu
escape e o seu corpo já não os conseguia aguentar. Macro deu-lhe palmadas nas costas e observou-o com uma estranha preocupação, querendo confortar o rapaz, mas demasiado
inibido para o fazer em frente dos outros soldados. Por fim Cato sentou-se e descansou a cabeça sobre as mãos, a porcaria na sua cara salpicada de sangue. O seu
corpo magro tremia da exaustão total, e no entanto alguma reserva de força mental mantinha-o acordado.
Macro assentiu com total compreensão. Todos os soldados chegavam a este ponto a certa altura das suas vidas. Ele sabia que o rapaz tinha ultrapassado finalmente
os limites da resistência quer física, quer emocional.
- Descansa, Cato. Eu tomo conta dos rapazes. Mas agora tens de descansar.
Por um breve instante pareceu que o optio ia protestar. No final ele assentiu, estendeu-se lentamente na margem relvada do rio e fechou os olhos, adormecendo de
imediato. Macro observou-o por um momento e depois desprendeu a capa do corpo de um bretão e estendeu-a gentilmente sobre Cato.
- Centurião Macro! - irrompeu a voz de Vespasiano. - Ouvi dizer que estava morto.
Macro levantou-se e saudou-o.
- Foi mal informado, senhor.
- Evidentemente. Explique-se.
- Não tenho nada a explicar, senhor. Fui derrubado, levei um deles comigo, e depois eles deixaram-nos como mortos. Logo que pude, regressei para a legião. Cheguei
mesmo a tempo de saltar para um dos barcos da segunda vaga. Achei que Cato e os rapazes podiam precisar de ajuda, senhor.
Vespasiano relanceou o olhar para a forma encolhida do optio.
- O rapaz está bem?
Macro assentiu.
- Está óptimo, senhor. Apenas exausto.
Por cima do ombro do legado, os tribunos de cara fresca e os outros oficiais da equipa misturavam-se com os legionários cansados que tinham sobrevivido ao assalto.
A presença do legado levou subitamente Macro a franzir o sobrolho de preocupação.
- O rapaz está acabado por agora, senhor. Não há mais nada que ele possa fazer até ter descansado.
- Tenha calma! - riu-se o legado. - Não estava a pensar usá-lo
noutra missão. Só me queria certificar de que ele estava bem. O rapaz já fez muito pelo Imperador esta manhã.
- Sim, senhor. Fez.
- Assegura-te de que ele tem o descanso que merece. E verifica a tua centúria. Portaram-se lindamente. Deixa-os descansar. A legião terá de se arranjar sem eles
durante o resto do dia. - Vespasiano trocou um sorriso com o seu centurião. - Continua assim, Macro. É bom ter-te de volta.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Vespasiano saudou-o e depois voltou-se e afastou-se, preparando-se para organizar a defesa da passagem arduamente conquistada. Os oficiais da equipa desviaram-se
para o deixar passar e depois agruparam-se para o seguir.
Com um último relance para verificar se o seu optio ainda estava a descansar, Macro afastou-se para assegurar o conforto dos seus homens. Abriu cuidadosamente a
sua passagem por entre os corpos espalhados e deu ordem para a Sexta Centúria se reunir.
Cato acordou de repente e sentou-se, coberto de suor frio. Tinha estado a sonhar que se afogava, preso por um guerreiro inimigo num rio de sangue. A imagem mental
dissipou-se lentamente e foi substituída por um céu nocturno de veludo que se dissolvia em laranja no horizonte. Os seus ouvidos enchiam-se com o crepitar e o estalar
dos cozinhados nas fogueiras do acampamento. Um odor pungente de guisado encheu-lhe as narinas.
- Estás melhor agora? - Macro inclinou-se sobre ele.
Macro estava vivo.
Cato ergueu-se numa posição reclinada. Era o anoitecer, o Sol tinha-se posto, e à luz difusa ele pôde ver a legião acampada sobre a margem do rio. Os corpos tinham
sido removidos e linhas arrumadas de tendas estendiam-se para todos os lados. As silhuetas de uma muralha e paliçada distantes indicavam as fortificações que tinham
sido erguidas à volta do acampamento.
- Queres comer?
Cato olhou à sua volta e viu que estava deitado próximo de uma pequena fogueira sobre a qual estava pendurada, num tripé, uma grande panela de bronze. Um suave borbulhar
acompanhava o vapor que flutuava gentilmente sobre a borda e o aroma fê-lo sentir-se instantaneamente esfomeado.
- O que é?
- Lebre - respondeu Macro. Serviu alguma para o prato de estanho de Cato.- Isto está cheio delas. Nunca vi tantas na minha vida. Os rapazes têm estado a apanhá-las
todo o dia. Aqui tens.
- Obrigado, senhor. - Cato pousou o prato sobre a erva ao seu lado. Agarrou na colher que Macro lhe entregava e começou a mexer a comida fumegante, impaciente por
começar a comer. Ao mesmo tempo, havia uma questão a precisar de resposta. - Senhor, como é que conseguiu?
Macro recostou-se e abraçou os joelhos com um sorriso. O sangue e a sujidade que o tinham tornado num espectáculo tão sinistro no início desse dia tinham sido lavados,
e o centurião sentava-se descalço e apenas com a sua túnica.
- Questionava-me quando é que me perguntarias isso. Sorte, julgo eu. A sorte deve ter brilhado sobre mim. Julguei mesmo que estava tudo acabado. Só queria matar
todos os cabrões que conseguisse antes de ser derrubado. Conseguimos segurá-los por um bocado. Então alguns deles meteram-se entre os escudos e apanharam um dos
rapazes. Quando ele caiu, de repente estavam todos em cima de nós. Um deles atirou-se a mim, derrubou a minha espada, e caímos para cima de um daqueles arbustos
junto ao caminho. Consegui puxar do meu punhal e espetei-o na garganta. O sangue do maldito quase me afogou! Enfim, fiquei quieto enquanto os outros se amontoavam
por ali. Devem ter pensado que eu tinha morrido, e estavam desesperados para ir atrás de ti e do resto dos rapazes. Quando tive a certeza que se tinham ido embora,
tirei o bretão de cima de mim e deslizei para o pântano. Mantive-me longe dos trilhos e dirigi-me para o rio, e depois caminhei rio abaixo. No entanto tinha de ser
cauteloso, ainda havia muitos deles por ali. Finalmente encontrei alguns rapazes da Sétima Coorte, e voltámos para a legião mesmo a tempo de vos ver atirarem-se
sobre os bretões deste lado do rio. Tu realmente não respeitas a centúria dos outros, pois não? Mal te promovem a centurião provisório, atiras os rapazes para a
confusão.
Cato parou de soprar sobre a colher de guisado e levantou o olhar.
- Os rapazes quiseram fazê-lo, senhor.
- Foi o que eles disseram. Mas acho que já chega de heroísmos por agora. Mais uma luta como esta e deixa de haver centúria.
- Perdemos muitos homens? - perguntou Cato, sentindo-se culpado.
- Alguns. Os fundos do clube de funeral vão ser fortemente atingidos - acrescentou o centurião. - Só espero que consigamos recuperar quando chegarem os reforços.
- Os reforços?
- Sim. Fui informado por um dos escreventes da equipa. Vem aí uma coluna da Gália. Se tivermos sorte vamos ter alguns homens da Oitava. Mas a maioria são recrutas
novos enviados dos campos de treino da legião - declarou, abanando a cabeça. - Um bando de malditos recrutas para criar no meio da campanha. Consegues acreditar?
Cato não disse nada. Olhou para o seu prato e continuou a comer. Quando ingressara na Segunda Legião a última coisa que esperava era que pouco mais de um ano depois
estaria nas Águias a lutar pela sua vida em terras bárbaras. Tecnicamente, ainda era um recruta; o seu treino básico tinha acabado mas ainda tinha de atingir o primeiro
aniversário da data em que tinha sido alistado na Segunda Legião. O seu silêncio envergonhado não passou despercebido.
- Oh, tu estás bem, Cato! Podes não ser muito bom no treino, e ainda tens de aprender a nadar, mas és uma boa ajuda numa luta. Vais conseguir.
- Obrigado - murmurou ele, não muito seguro quanto à melhor forma de aceitar ter sido alvo de um louvor tão fraco. Não que se importasse, tendo sido amaldiçoado
com um temperamento que o fazia sempre suspeitar de qualquer louvor dirigido a si. De qualquer forma, o guisado estava delicioso e já limpara o prato de estanho
e raspava o fundo com a colher.
- Ainda há mais, rapaz. - Macro mergulhou a concha de novo na panela e foi bem ao fundo para que Cato tivesse bastante carne. - Come tudo enquanto podes. No exército
a próxima refeição nunca está garantida. A propósito, como estão as queimaduras?
Cato afastou instintivamente a roupa daquele lado do corpo e descobriu que um pedaço limpo de linho tinha sido amarrado à volta do seu peito, apertado o suficiente
para não escorregar e no entanto não tanto que se tornassem desconfortáveis. Tinha sido feito um bom trabalho e Cato estava muito grato.
- Obrigado, senhor.
- Não me agradeças a mim. O tal cirurgião é que fez isso. Niso. Parece que a nossa centúria foi destacada para o seu cuidado, e temo-nos esforçado por o manter ocupado.
- Bem, hei-de agradecer-lhe algum dia.
- Podes fazer isso agora. - Macro apontou por cima do ombro de Cato. - Ele vem aí.
Cato voltou a cabeça e viu o grande volume do cirurgião aparecer por entre as vagas sombras das tendas. Ele ergueu um braço em sinal de cumprimento.
- Cato! Acordado finalmente. Estavas deitado à beira do Lethe(2) da última vez que te vi. Quase nem gemeste quando te mudei a ligadura.
- Obrigado.
Niso deixou-se cair junto à fogueira entre Cato e o seu centurião, e cheirou a panela.
- Lebre?
- O que mais? - retrucou Macro.
- Sobrou alguma?
- Sirva-se à vontade.
Niso desprendeu o prato de estanho e a colher do seu cinto e, ignorando a concha, mergulhou o prato e retirou-o quase cheio até às bordas. Com um olhar aguçado de
antecipação, lambeu os lábios.
- Por favor, faça como se estivesse em casa - murmurou Macro.
Niso tirou uma colher cheia, soprou-a por um instante e engoliu
cuidadosamente.
- Maravilhoso! Centurião, um dia será a maravilhosa esposa de alguém.
- Vá-se lixar.
- Então, Cato, como estão as tuas queimaduras agora?
O optio tocou na ligadura com cuidado e estremeceu imediatamente.
- Dolorosas.
- Não me surpreende. Não lhes deste um minuto de descanso. Algumas das feridas estão abertas e poderiam infectar, se eu não as tivesse limpo quando mudei a ligadura.
Vais ter de ter um pouco mais de cuidado contigo. A propósito, isto é uma ordem.
- Uma ordem? - protestou Macro. - Mas quem é que vocês, os médicos, pensam que são?
- Estamos qualificados para olhar pela saúde das tropas do Imperador, aí tem. Para além disso, é uma ordem vinda de cima. O legado mandou-me assegurar o descanso
de Cato. Está dispensado dos seus deveres e fora da linha da frente até eu dizer o contrário.
- Ele não pode fazer isso! - protestou Cato. Macro olhou para ele com firmeza e Cato calou-se, compreendendo a estupidez do seu protesto.
- Mais vale tirar partido disso, rapaz, uma vez que a ordem veio do legado - resmungou Macro.
Niso concordou com um acenar vigoroso de cabeça, e depois voltou para o seu guisado. Macro inclinou-se para um dos toros cortados e colocou-o cuidadosamente sobre
as chamas. Levantou-se uma pequena nuvem de faíscas e os olhos de Cato seguiram-nas no céu da noite até o seu brilho desaparecer e elas se perderem contra o brilho
deslumbrante das estrelas.
(2) na mitologia, um rio do Hades. Quem bebesse ou tocasse na sua água mergulhava num completo esquecimento. (Nota da correctora )
Apesar de ter dormido quase todo o dia, Cato ainda sentia o peso da exaustão sobre cada nervo do seu corpo, e teria estremecido de frio se não fosse pela fogueira.
Niso acabou o guisado, pousou o prato e deitou-se ao seu lado, olhando para Cato.
- Então, Optio, vens do palácio?
- Sim.
- É verdade que Cláudio é tão cruel e incompetente como todos os seus antecessores?
Macro balbuciou.
- Que raio de pergunta é essa para um romano fazer?
- Uma bastante razoável - respondeu Niso - E de qualquer forma, não sou romano de nascimento. Africano, ao que parece, apesar de também ter um pouco de sangue grego.
Daí a ocupação e a minha presença aqui. O único sítio onde as legiões conseguem uma experiência médica decente é na Grécia e nas províncias orientais.
- Malditos estrangeiros! - fungou Macro - Vencemo-los na guerra e eles lucram connosco na paz.
- Foi sempre assim, Centurião. As compensações de ser conquistado.
Apesar da leveza dos comentários, Cato pressentiu uma amargura por detrás das palavras e ficou curioso.
- Qual é a sua origem, então?
- Uma pequena cidade na costa africana. Cartanova. Suponho que nunca ouviram falar dela.
- Julgo que sim. Não é lá que fica a biblioteca de Arquelónio?
- Pois é. - A cara de Niso iluminou-se de prazer. - Conhece-la?
- Ouvi falar nela. A cidade foi construída sobre as fundações de uma cidade cartaginea, penso eu.
- Sim - assentiu Niso. - Estás certo. Sobre as fundações. Ainda se conseguem ver as linhas da velha muralha da cidade, e algumas das estruturas dos templos e dos
estaleiros. Mas é só. A cidade foi duramente arrasada no final da segunda guerra patriótica.
- O exército romano não deixa as coisas pela metade - comentou Macro com um certo orgulho.
- Não, suponho que não.
- E você aprendeu medicina lá? - perguntou Cato, tentando levar a discussão para um campo mais seguro.
- Sim. Durante alguns anos. Há um limite para o que podemos aprender numa pequena cidade comercial. Por isso fui para oriente, até Damasco, e tratei de uma grande
variedade de doenças de que os ricos
comerciantes e suas esposas imaginavam sofrer. Bastante lucrativo, mas monótono. Fiz amizade com um centurião da guarnição. Quando ele foi transferido para a Segunda
há alguns meses atrás, fui com ele. Não posso dizer que não esteja a ser excitante, mas sinto falta do estilo de vida de Damasco.
- É assim tão bom como se diz? - perguntou Macro com a ansiedade daqueles que acreditam que o paraíso deve existir nalgum lugar desta vida.- Quero dizer, as mulheres
têm bastante fama, não é?
- As mulheres? - Niso levantou as sobrancelhas. - É só nisso que pensam os soldados? Há mais a dizer de Damasco do que as suas mulheres.
- Claro que há. - Macro tentou gracejar por um momento.
- Mas é verdade o que se diz das mulheres?
O cirurgião suspirou.
- As legiões que guardavam a cidade certamente pensavam que sim. Até parecia que nunca tinham visto uma mulher antes. Um bando de bêbados babados arrastando-se de
um bordel para o outro. Não tão preocupados com a paz romana como com a procura de um pedaço de carne.
Niso olhou para a fogueira, e Cato viu a sua boca formar uma linha apertada e fina. Macro também olhava para a fogueira, mas chamas indolentes mostravam um sorriso
na sua cara conforme a sua mente divagava sobre os prazeres exóticos de um posto oriental.
A diferença entre estes dois tipos representativos das raças dominante e conquistada perturbava Cato. Qual era o valor de um mundo governado por mulherengos grosseiros
que senhoreavam sobre raças mais civilizadas? Macro e Niso não eram exemplos típicos, é claro, e a comparação talvez fosse injusta, mas seria sempre o caso da força
que triunfava sobre o intelecto? Certamente os romanos tinham triunfado sobre os gregos, apesar de toda a sua ciência, arte e filosofia. Cato lera o suficiente para
saber o quanto os romanos posteriormente se apropriaram da herança da civilização grega. Na verdade, o destino de Roma dependia da sua habilidade de oprimir implacavelmente
outras civilizações e subjugá-las. Uma ideia bastante perturbadora, e Cato voltou-se para observar o rio.
Não havia dúvida de que os bretões eram uns bárbaros. Pondo isso de lado, a falta de cidades cuidadosamente planeadas, estradas pavimentadas e colheitas regulares
das propriedades agrícolas falavam claramente de uma qualidade de vida inferior. Os bretões, concluiu Cato, careciam do refinamento necessário para serem chamados
de civilização. Se as histórias trazidas pelos mercadores e comerciantes sobre as ilhas místicas eram
verdade, os nativos levavam a vida sobre enormes depósitos de prata e ouro. Era típico da natureza caprichosa dos deuses que os povos mais primitivos tivessem a
posse dos recursos mais valiosos - recursos pelos quais eles não tinham grande apreço, e que seriam melhor empregues pelas raças mais avançadas, como os romanos.
E havia a questão sinistra dos Druidas. Não se sabia muito acerca deles, e tudo o que Cato lera descrevia o culto de uma forma sombria e horrorosa. Estremeceu com
a memória do bosque lúgubre que ele e Macro tinham descoberto há dias. O lugar era escuro e frio, e cheio de ameaças. Se não fosse por mais nada, a conquista das
sinistras ilhas levaria à destruição do culto tenebroso do Druidismo.
A aversão que Cato sentira subitamente para com os britânicos levou-o a interromper a sua linha de pensamento. Como argumentos justificativos da expansão do Império,
pareciam plausíveis e simples. Tanto assim, que Cato não podia deixar de suspeitar deles. Na sua experiência, as coisas na vida que eram consideradas verdades eternas
e simples só o eram por causa de uma deliberada limitação de pensamento. Ocorreu-lhe que tudo aquilo que tinha lido em Latim apresentara a cultura romana nos melhores
termos possíveis, e infinitamente superior a tudo que fosse produzido por outra raça, quer fosse "civilizada" como os Gregos, ou "bárbara" como estes bretões. Tinha
que haver um outro lado das coisas.
Olhou para Niso e observou a sua pele escura, feições morenas, o espesso cabelo encaracolado e os estranhos amuletos modelados nos seus largos pulsos. A cidadania
romana que ele adquirira ao ingressar na legião era apenas superficial. Era apenas uma etiqueta legal que lhe conferia um certo estatuto. Para além disso, que tipo
de homem era ele?
- Niso?
O cirurgião levantou os olhos das chamas e sorriu.
- Posso fazer-te uma pergunta pessoal?
O sorriso diminuiu ligeiramente e as sobrancelhas do cirurgião aproximaram-se. Ele assentiu.
- Como é não ser romano? - a pergunta era estranha e brusca, e Cato sentiu-se envergonhado por colocá-la, mas continuou numa tentativa de se explicar. - Quero dizer,
eu sei que és agora um cidadão romano. Mas como era antes? O que é que as outras pessoas pensam de Roma?
Niso e Macro olhavam directamente para ele. Niso, franzindo o sobrolho e desconfiado, Macro simplesmente atónito. Cato desejou ter ficado calado. Mas ele estava
consumido pelo desejo de saber mais, de sair da visão do mundo que lhe fora apresentada desde criança. Não tivesse
sido pelos seus tutores do palácio, era uma visão que ele teria aceite sem hesitar, sem a mínima noção de que era uma visão parcial.
- O que é que as pessoas pensam de Roma? - repetiu Niso. Considerou a pergunta por um bocado, coçando lentamente a barba espessa do seu queixo. - Pergunta interessante.
Não é fácil de responder. Depende sobretudo de quem tu és. Se fores um daqueles reis-vassalos que deve tudo a Roma, e receia e odeia os seus súbditos, então Roma
é o teu único amigo. Se fores um mercador ganancioso no Egipto que consegue fazer uma fortuna com o subsídio de milho em Roma, ou um fornecedor de gladiadores ou
feras, que dá aos cidadãos um meio de se evadirem das suas vidas, então Roma é a fonte da tua riqueza. Os fabricantes de géneros e as fábricas de armas na Gália,
os comerciantes de especiarias, sedas e antiguidades, todos eles são sustentados por Roma. Onde houver dinheiro a fazer para satisfazer o apetite voraz de Roma por
recursos, entretenimento e luxúria, há um parasita que alimenta a procura. Mas por todas as outras pessoas, - Niso encolheu os ombros
- não posso falar.
- Não podes falar, ou não queres dizer? - interrompeu Macro com fúria.
- Centurião, fui convidado para a sua fogueira, e só manifestei a minha opinião a pedido do seu optio.
- Muito bem. Pois então manifeste-se. Diga-nos o que raios pensam eles.
- Eles? - Niso arqueou as sobrancelhas. - Não posso falar por eles. Não sei muito acerca dos agricultores de grão ao longo do rio, forçados a dar a maior parte da
sua colheita todos os anos, independentemente do que produzirem. Não tenho ideia do que significa ser um escravo de guerra e ser vendido para as minas de chumbo,
não voltar a ver a minha mulher e filhos novamente. Ou ser um gaulês cujas terras pertenceram à família por gerações, só para as ver centuriadas e entregues a uma
turba de legionários dispensados.
- Retórica barata! - exclamou Macro. - Não sabe é nada.
- Não, mas posso imaginar como eles se sentem. E você também pode, se se esforçar.
- E porque é que deveria tentar? Nós vencemos, eles perderam, e isso só prova que somos melhores. Se eles se ressentem por isso estão a perder o seu tempo. Não se
pode ressentir o do inevitável.
- Bonito aforismo, Centurião. - Niso riu com apreço. - Mas não há nada inevitável acerca dos impostos do Império, ou do grão, ouro e escravos que ele espreme das
suas províncias. Tudo para apoiar as massas esquálidas que vivem em Roma. Compreende porque é que as pessoas
estão cheias de amargura e ressentimento quando olham para Roma?
Para um fatalista como Macro isto era uma conversa sobre luta, e ele rangeu os dentes. Se tivessem bebido ele ter-se-ia cansado da conversa e dado um murro na cara
do homem. Mas estava sóbrio, e em qualquer caso Niso era seu convidado, por isso tinha de suportar a conversa.
- Porquê tornar-se romano, então? - desafiou ele o cirurgião
- Porquê, se nos detesta assim tanto?
- Quem disse que vos detesto? Sou um de vós agora. Aprecio o facto de que sendo romano tenho um estatuto especial dentro do Império, mas não tenho sentimentos por
Roma para além disso.
- E nós? - perguntou Cato calmamente. - E os seus camaradas?
- Isso é diferente. Vivo lado a lado convosco e luto quando é preciso. Isso cria um laço especial entre nós. Mas pondo a cidadania romana e o meu nome romano de
lado, sou uma pessoa diferente. Alguém que carrega as memórias de Cartago no seu sangue.
- Tem outro nome? - isto era algo que Cato não tinha considerado.
- Está claro que tem - disse Macro. - Todos aqueles que se alistam com as Águias e assumem a cidadania têm de ter um nome romano.
- Então qual era o seu antes de se tornar Niso?
- O meu nome completo é Marco Cássio Niso. - Sorriu para Cato.
- É assim que sou conhecido no exército, e em todos os documentos legais e profissionais. Mas antes disso, antes de me tornar um romano, eu era Gisgo, da linha de
Barca.
As sobrancelhas de Cato levantaram-se, e uma sensação fria arrepiou-lhe os cabelos do pescoço. Ele olhou para o cirurgião por um momento antes de ousarfalar.
- Alguma relação?
- Descendente directo.
- Estou a ver - murmurou Cato, ainda a tentar absorver as implicações. Olhou fixamente para ocartaginês. - Interessante.
Macro atirou outro toro para o fogo e quebrou o feitiço.
- Importam-se de me explicar o que raio é assim tão interessante? É só porque ele tem um nome engraçado?
Antes de Cato poder explicar, foram interrompidos. Da escuridão surgiu um oficial, a lustrosa placa identificativa a brilhar com o reflexo do fogo.
- Cirurgião, é você aquele a quem chamam Niso?
Niso e Macro puseram-se em pé com um salto e permaneceram em
sentido perante o tribuno Vitélio. Cato foi mais lento, retraindo-se com o esforço doloroso de se pôr em pé.
- Sim, senhor.
- Então venha comigo. Tenho um ferido que precisa de ser examinado.
O tribuno virou-se e afastou-se, sem mais uma palavra, mal dando tempo ao cirurgião de despejar os restos do seu guisado, limpar a colher na relva, e voltar a prendê-la
ao seu cinto antes de correr atrás do tribuno. Cato recostou-se no chão enquanto Macro observava Niso a desaparecer por entre a linha de tendas.
- Tipo estranho, este. Não sei bem o que pensar, excepto que ainda não gosto dele. Vamos ver como nos damos depois de uns copos.
- Se ele beber - acrescentou Cato.
- Hã?
- Há algumas religiões orientais que o proíbem.
- Por que raios é que eles iam querer desistir do vinho?
Cato encolheu os ombros. Estava demasiado cansado para especulações teológicas.
- E o que foi todo aquele disparate acerca do nome dele?
Cato endireitou-se e olhou através do fogo para Macro.
- A família dele é descendente dos Barcas.
- Sim, eu ouvi - exclamou Macro com grande ênfase. - E então?
- O nome Aníbal Barca diz-lhe alguma coisa, senhor?
Macro ficou calado por um momento.
- O Aníbal?
- O próprio.
Macro agachou-se junto do fogo e assobiou.
- Bem, isso talvez explique a atitude dele para com Roma. Quem diria que temos um herdeiro de Aníbal a lutar com o exército romano?
- riu-se com ironia.
- Sim - concordou Cato calmamente. - Quem diria?
XXVIII
Os trabalhos na parte superior das fortificações recomeçaram logo pela manhã. Uma fina neblina erguera-se do Tamesis e enroscava-se pelo acampamento da Segunda Legião
com o seu frio pegajoso. Sob o brilho pálido do Sol nascente, a coluna de legionários afadigou-se pelo portão norte do acampamento de marcha que tinha sido rapidamente
edificado assim que o corpo principal da legião atravessara o rio. O resto do exército juntar-se-ia brevemente à Segunda para continuar a campanha, e as fortificações
tinham de ser aumentadas para acomodar as outras legiões e as coortes auxiliares. À volta da paliçada da Segunda Legião os engenheiros tinham demarcado um vasto
rectângulo com postos de vigilância. Uma parte substancial das fortificações tinha sido edificada no dia anterior, e os engenheiros foram trabalhar de imediato na
extensão das defesas.
Com as armas cuidadosamente guardadas ali perto, os legionários continuaram a escavar o fosso circundante e a empilhar os detritos para formar uma rampa. Logo que
os detritos ficaram bem empilhados, foi colocada sobre eles uma camada de toros para formar uma plataforma firme por detrás da paliçada de estacas afiadas que constituía
o corpo da rampa. Uma fileira de homens montava a guarda a uma centena de passos à frente dos seus camaradas trabalhadores e mais além circulavam as figuras distantes
dos batedores montados da legião. Os comentários de César sobre as tácticas de avanço-recuo dos rústicos britânicos estavam bem presentes no pensamento do comandante
da legião, e ele assegurara-se de que qualquer aproximação inimiga fosse avistada a tempo de avisar o grupo de engenheiros.
Com um esforço incansável as fortificações foram estendidas desde o rio em secções sucessivas de cem pés. Anos de disciplina asseguravam que cada homem sabia o seu
dever, e o trabalho foi executado com uma eficiência que agradava a Vespasiano, enquanto andava a inspeccionar
os seus progressos. Mas ele estava preocupado e perturbado. Os seus pensamentos voltáram-se mais uma vez para a reunião com os oficiais seniores a que tinha presidido
no dia anterior. Todos os comandantes da legião tinham estado presentes, assim como o seu irmão Sabino, agora representando o chefe de pessoal de Pláucio.
Aulo Pláucio tinha louvado as suas façanhas, e anunciado que os batedores do exército tinham relatado que não havia nenhum corpo significativo de soldados inimigos
por largas milhas à sua frente. Os bretões tinham levado um rude golpe e recuado muito além do Tamesis. Vespasiano tinha argumentado que o inimigo devia ser perseguido
e destruído, antes que Carátaco tivesse a oportunidade de reagrupar e reforçar o seu exército com as tribos que começavam a compreender o perigo que lhes era apresentado
pelas legiões na parte mais a sul da ilha. Qualquer atraso no avanço romano só representaria um benefício para os nativos. Muito embora os romanos tivessem conseguido
arrebatar as colheitas que tinham atravessado nas primeiras semanas da campanha, os bretões depressa se aperceberam da necessidade de negar os frutos da sua terra
ao invasor. A vanguarda do exército romano avançava sobre os restos ressequidos dos campos de trigo e armazenamentos de grão, e as legiões dependiam completamente
do depósito em Rutúpia, donde longos comboios de mantimentos em carroças de bois arrastavam as suas cargas até às legiões. Quando as condições o permitiam, os mantimentos
eram embarcados através da costa nos transportes de fundo chato escoltados pelos navios de guerra da Frota do Canal. Se os bretões decidissem fazer uso da sua capacidade
de manobra e concentrassem os seus ataques sobre estas linhas de mantimentos, o progresso dos romanos pelo interior do país seria fortemente comprometido. Fazia
todo o sentido atacar agora os bretões, enquanto eles ainda cambaleavam por causa das suas derrotas no Mead Way e no Tamesis.
O general assentira perante os argumentos de Vespasiano, mas nada o demoveu da sua firme adesão às instruções que recebera de Narciso, o secretário-geral do Imperador
Cláudio.
- Concordo com tudo aquilo que disse, Vespasiano. Tudo. Acredite em mim, se houvesse alguma ambiguidade nas ordens, eu exploraria as pontas soltas. Mas Narciso foi
bem preciso: quando assegurarmos uma fortificação na margem afastada do Tamesis, temos de parar e esperar que o Imperador venha e assuma pessoalmente o comando nafase
final desta campanha. Assim que tomarmos Camulodónia, Cláudio e a sua companhia voltarão para casa, nós consolidaremos o que temos e preparar-nos-emos para o próximo
ano de campanha. Ainda levará alguns anos até esta ilha estar completamente controlada. Mas temos de
nos assegurar de que estamos bem fortalecidos para enfrentar Carátaco. Já o vencemos uma vez, podemos vencê-lo outra vez.
- Se ao menos mantivéssemos a nossa vantagem - replicou Vespasiano. - Agora Carátaco não tem um exército completo, apenas os restos desgraçados das forças que derrotámos
até ao momento. Se continuarmos podemos dizimá-los facilmente, e esse seria o fim de qualquer resistência efectiva até atingirmos Camulodónia. - Vespasiano fez uma
pausa para escolher cuidadosamente as suas próximas palavras.
- Eu sei quais são as ordens, mas e se destruirmos o que resta do inimigo e depois recuarmos para a fortificação? Certamente que isso contentava as nossas necessidades
estratégicas e os objectivos políticos do Imperador!
Pláucio entrelaçou firmemente as suas mãos e inclinou-se para a frente sobre a secretária.
- O Imperador precisa de uma vitória militar. Ele precisa dela para si próprio, e nós vamos dar-lha. Se fizermos o que diz e esmagarmos completamente a oposição,
então com quem é que ele lutará quando aqui chegar?
- E se deixarmos Carátaco sozinho até Cláudio chegar, talvez não sejamos capazes de vencer os bretões de todo. Talvez o Imperador chegue mesmo a tempo de se juntar
aos destroços junto dos barcos. O que é que isso vai parecer nos seus registos políticos?
- Vespasiano! - interrompeu Sabino, olhando firmemente para o seu irmão mais novo. - Tenho a certeza que não vamos chegar a esse ponto. Mesmo se Carátaco conseguir
reunir um outro exército, nós seremos reforçados pelos homens que o Imperador traz consigo. A maior parte da Oitava, algumas das coortes da Guarda Pretoriana, e
até elefantes. Não é verdade? - Sabino olhou por cima da mesa para Pláucio.
- Está certíssimo. É mais do que suficiente para esmagar o que quer que os bretões coloquem à nossa frente. Quando esses selvagens avistarem os elefantes, fugirão.
- Elefantes! - Vespasiano riu-se amargamente ao relembrar o vívido relato de uma batalha em Zama que lera quando criança. - Julgo que eles constituem um perigo maior
para nós que para o inimigo. A Oitava é sobretudo um punhado de velhos inválidos e recrutas verdes, e os Pretorianos são utilizados na doce vida de Roma. Não precisamos
deles, de nenhum deles, se atacarmos agora.
- O que não podemos fazer dadas as circunstâncias - afirmou Pláucio com firmeza. - São estas as ordens e nós vamos obedecer. Não procuramos entendê-las, agimos de
acordo com elas. Este assunto termina aqui. - O general olhou fixamente para Vespasiano, e a tentativa final de protesto do legado morreu na sua garganta. Não valia
a pena insistir no
assunto, apesar de todos os presentes saberem que era pura lógica militar. A eficaz apresentação de estratégia militar tinha sido ultrapassada pela agenda política.
Sabino pressentiu a submissão do seu irmão e rapidamente voltou a discussão para o próximo ponto da agenda.
- Senhor, precisamos de considerar a colocação dos reforços. É muito urgente.
- Muito bem. - Pláucio estava ansioso por mudar de assunto.
- Dei uma vista de olhos pelos vossos relatórios de efectivos e já pensei nas colocações. A maior parte vai para a Segunda Legião. - Olhou para Vespasiano, aplacando-o.
- A sua unidade foi a que sofreu mais baixas desde que desembarcámos.
Pláucio completou a sua distribuição dos reforços, que só deixou o comandante da Décima insatisfeito com a sua parte. Não lhe foram concedidos mais homens e, pior,
a sua legião foi relegada para o papel de reserva estratégica - um movimento assumido para diminuir a sua parte de glória no triunfo iminente, presumindo que a campanha
terminaria satisfatoriamente para os invasores.
- Só mais um assunto, cavalheiros. - Pláucio recostou-se e certificou-se de que tinha a atenção total dos oficiais. - Tenho recebido relatórios de que o inimigo
está a utilizar equipamento do exército romano: espadas, chumbos e algumas armaduras. Se não passasse de um ou dois artigos, eu não teria isto em conta. É habitual
que um veterano dispensado venda a sua armadura a um comerciante qualquer. Mas a quantidade recuperada até agora é demasiado extensa para ignorar. Parece que alguém
tem traficado armas para os bretões. Vamos tratar deles quando a campanha acabar, mas até lá quero um relatório de cada item que recuperarem do campo de batalha.
Quando descobrirmos
o comerciante podemos encerrar a luta com uma simpática crucificação.
De imediato os receios de Vespasiano com as relações da sua mulher afluíram para o topo dos seus pensamentos, acompanhados pelo arrepio que lhe subiu pela espinha.
- Este comerciante tem andado bastante ocupado, senhor. - comentou calmamente Hosídio Geta.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que ele deve estar a coordenar uma organização razoável de exportação se tem estado a embarcar a quantidade de equipamento que temos encontrado. Não
é o tipo de operação que passe despercebida.
- Tem alguma objecção em falar livremente o que pensa?
- Não, senhor.
- Pois então fale.
- Penso que estamos a olhar para algo um pouco mais sinistro do que algum aproveitador que quer obter um lucro fácil. A quantidade de armas que a Nona encontrou
até agora é muito grande. Quem estiver a financiar esta operação tem acesso a dinheiro, a algumas pessoas mais antigas nas fábricas de armas, e a uma pequena frota
de embarcações de comércio.
- Sem dúvida, os Liberais a emergirem das sombras novamente.
- sugeriu Vitélio com um sorriso de troça.
Geta voltou-se no seu banco para olhar para ele.
- Tem uma explicação melhor, Tribuno?
- Não sou eu, senhor. Apenas repito um rumor que circula por entre os homens.
- Então restrinja amavelmente os comentários aos que possam ajudar os seus superiores nas suas deliberações. O resto pode preservar para impressionar os jovens tribunos.
Uma explosão de gargalhadas correu todos os oficiais seniores, e a cara de Vitélio enrubesceu com a amarga humilhação.
- Como desejar, senhor.
Geta assentiu com satisfação e voltou-se de novo para o general.
- Senhor, precisamos de informar imediatamente o Palácio. Quem for o responsável por abastecer os bretões com o nosso equipamento correrá a esconder-se assim que
souber o que nós descobrimos.
- Já vai um despacho a caminho de Narciso - respondeu Pláucio com presunção.
Ocorreu a Vespasiano que o general queria que todos os presentes acreditassem que ele já tinha pensado bem à frente do seu comandante mais experiente. Podia haver
uma mensagem que já fosse a caminho do secretário-geral, mas ele duvidava que esta referisse uma palavra das conclusões de Geta. Essa mensagem seguiria imediatamente
após a primeira, mal a reunião terminasse. A velocidade com que Pláucio avançou para o próximo assunto a discutir apenas fortaleceu a sua suspeita.
Por fim Pláucio empurrou para trás a cadeira e encerrou a reunião. Os legados e os oficiais seniores da equipa levantaram-se e dirigiram-se para fora onde as suas
escoltas montadas aguardavam para os levar de volta às suas legiões. Quando Vespasiano se foi despedir do irmão, Pláucio chamou por ele.
- Uma palavrinha rápida, se nos der licença, Sabino?
- É claro, Senhor.
Quando ficaram sozinhos, Pláucio sorriu.
- Tenho boas notícias para ti, Vespasiano. Deves ter ouvido que o Imperador traz uma grande companhia com elefantes.
- Para além dos elefantes?
O general riu-se educadamente.
- Não te preocupes com eles. São apenas para fazer vista e não serão permitidos a menos de uma milha da linha de combate, se eu tiver alguma coisa a dizer sobre
isso. Em público, todos os generais têm de dar um espectáculo de obediência às ordens; em privado, tentamos fazer aquilo que podemos para alcançar a vitória. Os
generais devem ser vistos como obedientes para com os imperadores, quaisquer que sejam os seus méritos militares. Não concordas?
Vespasiano sentiu o sangue esvair-se do rosto enquanto o receio e a raiva se derramavam sobre o seu auto-controlo.
- É algum teste de lealdade, senhor?
- Não nestas circunstâncias, mas tens razão em ser cauteloso. Não, estava apenas a tentar assegurar-te que o teu general em comando não é bem o tolo que tu julgas
que ele é.
- Senhor! - protestou Vespasiano. - Eu nunca pretendi...
- Calado, legado. - Pláucio levantou as mãos. - Eu sei o que tu e os outros devem estar a pensar. No teu lugar eu pensaria o mesmo. Mas eu sou um homem do Imperador,
encarregado de fazer o trabalho sujo. Caso não cumpra as suas ordens, serei condenado como um insubordinado, ou pior. Se eu falhar ao atacar o inimigo, também estou
condenado, mas pelo menos terei a defesa de que estava apenas a obedecer às ordens. - Pláucio fez uma pausa. - Deves achar que sou desprezivelmente fraco. Talvez.
Mas um dia, se a tua estrela continuar a brilhar, vais descobrir-te na minha posição, com um talentoso e impaciente legado ansioso por executar a estratégia militar
necessária sem sequer considerar a agenda política da qual esta provém. Espero que te lembres então das minhas palavras.
Vespasiano não respondeu, simplesmente olhou friamente para o general, envergonhado pela sua incapacidade de confrontar os comentários condescendentes do homem.
As homilias proferidas pelos oficiais seniores só podiam ser ouvidas num silêncio frustrado.
- E então, - continuou Pláucio - as boas notícias que te prometi. A tua mulher e o teu filho irão viajar com o Imperador.
- Flávia fará parte da sua companhia? Mas porquê?
- Não te sintas exageradamente deliciado pela honra. É um grupo grande, mais de cem de acordo com o despacho de Narciso. Imagino que Cláudio queira apenas estar
rodeado de tipos divertidos que o
mantenham entretido enquanto estiver afastado de Roma. Seja qual for a razão, terás oportunidade de a ver de novo. Bem bonita, pelo que me recordo.
O comentário barato enfureceu ainda mais Vespasiano. Ele assentiu, sem procurar demonstrar nenhum tipo de orgulho masculino sobre a posse de uma mulher de beleza
tão deslumbrante. O que havia entre eles era mais profundo do que uma atracção superficial. Mas isso era pessoal, e ele estaria a quebrar a confiança de uma tal
intimidade com aquele homem. A perspectiva entusiasmante de que Flávia depressa estaria a viajar até junto dele foi rapidamente submergida pela ansiedade quanto
à sua inclusão na companhia do Imperador. As pessoas eram convidadas a acompanhar o Imperador nas suas viagens por uma de duas razões. Ou eram bons convivas e lisonjeadores,
ou eram pessoas que representavam uma ameaça suficiente ao Imperador para que ele não ousasse deixá-los fora da sua vista.
Perante o seu recente envolvimento, Flávia podia estar no maior perigo possível - se estivesse sob suspeita. Entre a pompa da companhia de viagem da corte imperial,
ela seria secretamente observada. O mais pequeno vislumbre de traição resultaria na sua queda, sob as garras sinistras dos interrogadores de Narciso.
- É tudo, senhor?
- Sim, é tudo. Assegura-te de que tu e os teus homens aproveitam bem o tempo enquanto esperamos que Cláudio chegue.
XXIX
Quando as fortificações ficaram concluídas, a Nona e a Décima Quarta legiões foram levadas através do Tamesis e moveram-se para as duas áreas designadas. Os auxiliares
e a Décima Legião ficaram para trás a guardar os animais do exército que se estendiam por uma enorme região, sobre cada pedaço de pasto disponível. Uma linha de
pequenos fortes esticava-se ao longo das linhas de comunicação de todo o caminho de /olta a Rutúpia e ocasionais comboios de mercadorias deslocavam-se até
à frente, regressando vazios excepto pelos que transportavam os inválidos destinados a uma reforma antecipada e à subsequente dependência do subsídio de milho de
Roma. A maioria dos mantimentos estava agora a ser transportada ao longo da costa e rio acima pelos transportes da frota de invasão.
Tinha sido estabelecido um enorme depósito de mantimentos noacampamento das legiões, e todos os dias mais rações, armas e equipamento sobresselente eram descarregados,
cuidadosamente registados pelos mestres, e depositados no terreno meticulosamente deliniado pelos engenheiros. Quando o exército voltasse ao campo, istaria tão bem
aprovisionado e armado como tinha estado no início da campanha.
Os legionários descansavam enquanto esperavam que o Imperador e a sua corte chegassem, embora ainda houvesse muitas obrigações a cumprir. As paredes do forte tinham
de ser preparadas, as latrinas cavadas e limpas, grupos de pilhagem enviados para assegurar a munição e agarrar quaisquer carregamentos de grão ou animais de quinta
que pudessem descobrir, e montes de outros deveres de rotina que se reportavam à vida militar. Inicialmente as equipas de pilhagem tinham partido com toda a força
da coorte, mas conforme os batedores da cavalaria continuaram a relatar poucos sinais do inimigo, pequenos grupos de legionários foram autorizados a sair do campo
por algumas horas durante o dia.
Apesar de Cato ter sido dispensado dos seus deveres até ter recuperado completamente das queimaduras, descobriu que precisava de preencher os seus dias a fazer alguma
coisa de útil. Macro tinha zombado do seu pedido de o auxiliar com a administração. A maioria dos veteranos dava tudo por arrepanhar o máximo de tempo livre possível
e tinham aprendido todos os truques e esquemas para se livrarem das obrigações. Quando Cato se apresentou na tenda do centurião com uma oferta de auxílio, a primeira
inclinação de Macro foi questionar o que é que o optio estava a preparar.
- Só quero fazer alguma coisa útil, senhor.
- Estou a ver - respondeu Macro, coçando o queixo, pensativo.
- Alguma coisa útil?
- Sim, senhor.
- Porquê?
- Estou aborrecido, senhor.
- Aborrecido? - Macro respondeu com genuíno horror.
A possibilidade de rejeitar uma oportunidade de se entregar a uma panóplia de actividade fora dos deveres da vida de um legionário era algo que ele nunca tinha considerado.
Pensou no assunto por um momento. Qualquer optio normal poderia ter descoberto alguma forma de obter rações extra ou dinheiro da conta do centurião. Mas Cato tinha
demonstrado uma integridade quase deplorável na administração dos registos do centurião. Nos seus momentos mais caridosos, Macro assumia que Cato deveria estar a
dirigir a sua poderosa inteligência para alguma oportunidade de enriquecimento pessoal às custas do exército, até agora desprezada. Nos seus momentos menos caridosos,
ele relacionava a escrupulosidade do rapaz à ignorância da juventude sobre os procedimentos do exército, que a experiência eventualmente iria corrigir. Mas aqui
estava ele, abusando do seu estatuto "dispensado-de-todos-os-deveres", e pedindo realmente alguma coisa para fazer.
- Bem, deixa-me pensar - disse Macro. - A contagem dos homens mortos precisa de uma verificação. Que tal isso?
- Está óptimo, senhor. Vou começar imediatamente.
Enquanto o centurião continuava a olhar Espantado, Cato levantou
a tampa da caixa de registos do centurião e tirou cuidadosamente os registos financeiros e testamentos de todos os homens assinalados como "dispensados por morte"
no relatório mais recente da contagem dos efectivos. Antes dos testamentos serem validados, as contas de cada homem morto tinham de ser verificadas para serem actualizadas
com cada item de equipamento imputável sobre as poupanças acumuladas. O valor líquido da propriedade do legionário era dividido em porções de acordo
com os termos estabelecidos no testamento do homem. Se não houvesse um testamento, escrito ou oral, então a propriedade seria atribuída ao parente masculino mais
velho. Mas na prática a maioria dos centuriões declarava que o homem tinha feito um testamento oral entregando os seus bens terrenos ao clube de funeral da unidade.
Estas fontes adicionais de rendimentos eram necessárias para financiar o grande número de pedras tumulares necessárias. A procura crescente aumentara os preços,
e o desgosto que os pedreiros da legião sentiam pelas mortes dos seus camaradas era em alguma medida aliviado pelas pequenas quantias ganhas pela preparação das
suas lápides.
À sombra do toldo da frente da tenda do centurião, Cato sentava-se em silêncio, o dedo passando de item para item, somando mentalmente os débitos e subtraindo os
totais a partir dos números na coluna das poupanças. Muitos dos homens mortos tinham deixado para trás mais débitos do que poupanças, reflectindo o facto de serem
jovens recrutas, que tinham sempre menos probabilidade de sobreviver do que os experientes veteranos. A maioria dos nomes significava um título, mas alguns saltavam
da página e traziam uma onda de tristeza: Pirax, o veterano sociável que tinha orientado Cato quando ele chegara às tendas; Harmon, o camponês que entretinha os
seus camaradas com imitações dos animais da quinta e com traques ensurdecedores sempre que eram pedidos (talvez o último não representasse uma grande perda para
a civilização, reflectiu Cato). Eram todos homens como ele próprio, em tempos seres humanos vivos, a respirar, a rir com o seu complemento de virtudes e faltas.
Homens com quem ele tinha marchado durante os últimos meses, homens que se conheciam melhor do que muitos homens conheciam as próprias famílias. Agora estavam mortos,
as suas ricas experiências de vida reduzidas a uma fina linha de números num pergaminho de um relatório financeiro e aos poucos pertences pessoais que formavam as
suas doações.
O estilete de Cato oscilava sobre um bloco de cera, tremendo nos seus dedos incertos. Lembrou-se que lhe tinham dito que a morte seria uma companheira constante
durante toda a sua carreira no exército. Julgara ter percebido bem as implicações, mas agora sabia que havia um largo fosso entre os conceitos expressos em frases
correctas e a sórdida realidade da guerra.
Durante os dias em que recuperava, Cato descobrira que um sono normal não chegava com facilidade. Ele ficava deitado dentro da tenda da sua secção, olhos fechados
mas a mente a trabalhar fervorosamente, à medida que imagens terríveis de massacre saltavam espontaneamente perante a sua mente. Mesmo quando estava acordado as
imagens lançavam-se sobre ele impiedosamente, até começar a duvidar da sua sanidade. Quando a
exaustão nervosa se aprofundava ele começava a ouvir sons dos limites do seu mundo desperto: um abafado embate de armas, Pirax gemendo o seu nome ou Macro gritando-lhe
para correr pela sua vida.
Cato precisava de alguém com quem conversar, mas não podia sobrecarregar Macro. A vivacidade e abazófia que o tornavam tão admirável tanto no dia-a-dia como no
calor da batalha, eram precisamente o que tornava impossível que Cato lhe abrisse o coração. Ele simplesmente não podia confiar em que o centurião compreendesse
o tormento que estava a atravessar. Nem queria revelar o que considerava ser a sua fraqueza. A simples perspectiva de ter Macro a oferecer-lhe piedade ou, pior,
desprezo, enchia-o de auto-repugnância.
A imagem mais assustadora da terrível sequência de batalhas voltava sempre que ele adormecia. Sonhava que estava mais uma vez preso debaixo de água pelo guerreiro
britânico. Só que desta vez a água era sangue, e a espessa vermelhidão salgada enchia-lhe os pulmões e sufocava-o. E o guerreiro não morria, mas olhava através do
rio vermelho, a cara horrivelmente mutilada por uma ferida e fixa numa terrível careta, conforme as mãos dele seguravam Cato em baixo, bem longe da superfície.
Cato acordava com um grito e dava por si sentado muito direito, a pele banhada num suor frio e pegajoso, envergonhado pelas imprecações murmuradas dos homens perturbados
da sua tenda. Não era capaz de voltar a adormecer, e a longa noite seria passada a afastar as terríveis imagens, até a aurora cinzenta diluir a escuridão espessa
que envolvia a sua tenda.
Era por isto que ele se tinha apresentado na tenda do centurião, desesperado por alguma tarefa que exigisse fixar a atenção por longos períodos de tempo, o suficiente
para afastar os demónios que se ocultavam nos limites da sua consciência. Encerrar as contas dos homens mortos exigia um nivel de atenção que mantinha os piores
excessos da memória e imaginação ao largo, mas ele aplicou-se na tarefa com tanto empenho que o trabalho estava completo mais depressa do que ele queria. Por isso,
Cato reviu os cálculos mais uma vez, só para ter certeza de que estavam mesmo correctos.
Por fim não havia mais desculpas para duvidar da sua capacidade matemática, e enrolou cuidadosamente os pergaminhos e colocou-os com zelo de novo na caixa dos relatórios.
Estava mesmo a acabar quando uma sombra cobriu a secretária do acampamento.
- Olá, Optio - disse Niso. - Estou a ver que aquele teu centurião esclavagista te mantém ocupado.
- Não, fui eu que pedi.
Niso inclinou a cabeça para o lado, apoiando-a num longo e estreito tridente.
- Tu é que pediste? Julgo que deixei escapar alguma contusão quando te examinei. Isso ou alguma febre está a apanhar-te. De qualquer maneira, mereces um intervalo.
E acontece que eu também.
- Você?
- Não estejas tão surpreso. Alguns dos feridos sobreviveram ao meu tratamento por mais alguns dias. Não consigo fazer com que morram suficientemente depressa. Por
isso torna-se necessário um pouco de diversão. No meu caso, é a pesca. E uma vez que estamos acampados junto ao rio, não quero perder esta oportunidade. Queres vir
também?
- Pescar? Não sei como. Nunca experimentei.
- Nunca pescaste? - Niso recuou em fingido horror. - O que há de errado contigo, homem? A antiga prática de separar os nossos amigos escamados da água é um direito
de nascença de cada homem. Onde é que andaste até agora?
- Vivi em Roma toda a minha vida. Nunca me ocorreu ir pescar.
- Mesmo com o magnífico Tibre flutuando através do coração da cidade?
- A única coisa que alguém já apanhou do Tibre foi uma feia dose da Vingança de Remos.
- Ahhh! - Niso bateu palmas com as suas mãos enormes. - Não há hipótese disso acontecer aqui, por isso anda, vamo-nos pôr a caminho. Eles vão estar a comer ao amanhecer
e nós talvez consigamos pescar alguma coisa a sério.
Após uma breve hesitação Cato assentiu, fechou a tampa da caixa e puxou o ferrolho de volta ao lugar. Depois os dois homens abriram caminho até ao portão na parede
oriental.
Macro levantou a dobra da tenda para os observar e sorriu. Tinha estado profundamente preocupado com o mau humor do rapaz durante os últimos dias. Mais do que uma
vez observara Cato e vira os olhos vazios e a expressão ligeiramente franzida que falavam de uma aflição silenciosa que já vira em demasiados legionários depois
de uma batalha intensa. A maioria dos homens conseguia lidar com isso rapidamente, mas Cato ainda não era um homem, e Macro tinha sensibilidade suficiente para compreender
que Cato não tinha a alma de um soldado. Podia ser um optio da desgastada Segunda Legião, mas por debaixo da armadura e da túnica do exército vivia uma pessoa de
uma qualidade diferente. E essa pessoa estava a sofrer, e precisava de falar sobre isso com alguém exterior ao mundo fechado da Sexta Centúria.
Por mais que não lhe agradasse a interferência de Niso, Macro estava ciente de que o cirurgião e Cato partilhavam uma sensibilidade similar, e que o rapaz podia
encontrar algum conforto ao falar com ele. Macro esperava que sim.
XXX
- É bom! - murmurou Macro enquanto mastigava a posta de peixe. - Muito bom! - Sorriu alegremente para o cartaginês ao seu lado. Estavam sentados no exterior da tenda.
Uma fogueira mortiça trilhava no meio das brasas cinzentas que ainda espalhavam algum calor e atraíam insectos e mosquitos para a sua morte. Qualquer dúvida que
Cato pudesse ter tido acerca da receita de truta de Niso, tinha sido eliminada e servia-se agora de outra posta de peixe do cesto quente que Niso trouxera para a
tenda.
A ida à pesca fora uma nova experiência e Cato apreciou-a mais do que esperava. Era estranho sentar-se e observar a luz do Sol a tremeluzir ao longo do leito, render-se
à aprazível música da Natureza. O restolhar das folhas na brisa ligeira misturara-se com o marulhar da água e a tensão que suportava durante todos os momentos da
campanha começara
a desvanecer. A admiração de Cato por Niso aumentara quando o cartaginês combinara a arte de saber pescar com acessos ocasionais de boa conversa.
- Um pitéu africano - explicou Niso. - Aprendi com o nosso cozinheiro quando era criança. Faz-se com quase todos os peixes. O segredo está na escolha das ervas e
das especiarias.
- E onde é que as guardas? - perguntou Macro.
- Com as provisões de medicamentos. A maioria dos ingredientes podiam ser usados numa variedade de emplastros.
- Que conveniente.
- É, não é?
Cato observava o cartaginês enquanto comia da sua tigela da messe. Parecia ter um grande orgulho nos antepassados, no entanto servia nas fileiras do exército que
destruíra esses antepassados. Era interessante reflectir como as pessoas se adaptavam. Pousou a tigela da messe ao lado dele.
- Niso, - disse, - qual é a sensação de ser um cartaginês e servir o exército romano, dada a nossa história comum?
Niso parou de mastigar por uns instantes. - Alguém me fez a mesma pergunta há alguns dias. Qual é a sensação? A maioria das vezes estou demasiado ocupado para pensar
nisso. Além do mais, já foi há muito tempo. Não parece que tenha muito a ver comigo. De qualquer forma, agora fazemos parte do Império e é nesse mundo que eu vivo.
Olha para o exército romano. Não que existam exércitos romanos como antigamente. Vê bem quantas raças servem as Águias neste momento: gauleses, hispânicos, ilírios,
sírios e até alguns germânicos. Depois há os auxiliares. Quase todas as raças do Império estão representadas nas suas fileiras. Todos temos um interesse adquirido
por Roma. E às vezes pergunto-me... - a voz de Niso arrastou-se por uns instantes e ele olhou para as brasas ardentes. - Pergunto-me se não nos entregamos demasiado
a Roma.
- O que queres dizer com isso? - perguntou Cato entre mastigações.
- Não sei bem. Apenas que, para onde quer que viajes dentro do Império, e até fora dele, há arquitectura romana, soldados e administrativos romanos, peças romanas
em novos teatros romanos, histórias e poesia romanas nas bibliotecas, roupa romana nas ruas, palavras romanas na boca de pessoas que nunca verão Roma.
- E depois? -Macro encolheu os ombros. - Existe alguma coisa melhor do que Roma?
- Não sei - respondeu Niso honestamente. - Talvez não melhor, apenas diferente. E é a diferença que conta no fim.
- São as diferenças que conduzem à guerra - sugeriu Cato.
- Nem sempre. A maior parte das vezes é a semelhança entre os nossos governantes. Andam todos atrás das mesmas coisas: vantagem política em casa, engrandecimento
pessoal, em resumo: poder, riqueza e um lugar na História. É sempre a mesma coisa quer se fale de Júlio César, Aníbal, Alexandre, ou outro qualquer. São homens
desses que fazem as guerras e não nós. Estamos demasiado ocupados a tratar da próxima colheita, a garantir o abastecimento de água à cidade, que as nossas esposas
nos sejam fiéis, que os nossos filhos cheguem à idade adulta. É isso que preocupa o povo por todo o Império. A guerra não serve os nossos objectivos. Somos forçados
a entrar nela.
- Tretas! - cuspiu Macro. - A guerra serve os meus objectivos. Eu é que escolhi alistar-me no exército, ninguém me obrigou. Se não fosse o exército, ainda estava
a ajudar o meu pai na pesca. Algumas boas campanhas e terei amealhado o suficiente para me retirar com estilo. E
o mesmo vale para o Cato. - Olhou para Niso durante uns instantes;
depois, satisfeito por ter demonstrado o seu ponto de vista, regressou à posta de peixe.
Cato acenou com a cabeça, embaraçado, e tentou continuar com a conversa. - Mas as guerras de Roma são certamente justificadas pelo que acontece a seguir. Pensa só
em como a Gália ficou modificada por fazer parte do Império. Onde havia apenas confederações e tribos guerreiras agora temos ordem. Isso tem de servir os interesses
dos gauleses tanto como os nossos. É o destino de Roma estender os laços da civilização.
Niso abanou a cabeça com tristeza.-Isso talvez seja o que a maioria dos romanos gosta de pensar. Mas as outras nações podem ser ousadas o suficiente para acreditarem
que já eram civilizadas, mesmo que, com uma diferente perspectiva da civilização.
- Niso, meu velho. - Macro adoptou o tom de voz da sabedoria.
- Vi muitas das outras supostamente chamadas civilizações no meu tempo e, acredita em mim, não têm nada para nos ensinar. Não são melhores do que nós em nada. Roma
é a melhor, raiz e ramo, e quanto mais cedo o reconhecerem, como vocês o fizeram, melhor.
Niso sobressaltou-se e os seus olhos largos reflectiram o brilho das brasas antes de os fechar.-Centurião, eu alistei-me no exército para ter os direitos conferidos
pela cidadania romana. Fi-lo por razões pragmáticas, não por ideais. Não partilho o seu sonho do destino do Império. Com o tempo cairá, como todos os impérios passados,
e tudo o que restará serão estátuas arruinadas meio enterradas em desertos, que apenas despertarão a curiosidade dos viajantes.
- A queda de Roma? - zombou Macro. - Fala a sério! Roma é grande de todas as maneiras. Roma é, bem... diz-lhe, Cato. Tens mais jeito com as palavras do que eu.
Cato fitou o seu centurião, irritado com a situação incómoda em que o deixara. Por muito que acreditasse na maioria das coisas que Macro dissera sobre Roma, estava
ciente da dívida do Império para com as outras culturas e não tinha intenções de magoar o seu novo amigo cartaginês.
- Penso que o que está a tentar dizer, senhor, é que, de certa forma,
o Império Romano marca um fim da História, no qual representamos uma amálgama das melhores qualidades encontradas nos homens, juntamente com as bênçãos dos deuses
mais poderosos. Qualquer guerra que combatemos tem como objectivo proteger aqueles que beneficiam do Império dos perigos dos bárbaros exteriores a ele.
- É isso mesmo! - disse Macro triunfantemente. - Somos nós! Muito bem, rapaz! Não diria melhor. Que dizes a isso, Niso?
- Digo que o seu optio é jovem. - Niso debatia-se por manter
a amargura apartada da sua voz. - Com o tempo criará a sua própria
sabedoria, pensará por si e não por outros. Talvez aprenda algo com os poucos romanos que possuem realmente sabedoria.
- E quem são eles? - perguntou Macro. - Os malditos filósofos, sem dúvida.
- Podem ser. Ou podem estar entre os homens à nossa volta. Falei com alguns soldados romanos que partilham o meu ponto de vista.
- Ai sim? Quem?
- O vosso tribuno Vitélio, por exemplo.
Macro e Cato trocaram um olhar de espanto.
Niso inclinou-se. - Aí está um homem que medita profundamente sobre os assuntos. Sabe os limites do Império. Sabe o que a expansão do Império custou ao seu povo,
quer sejam romanos ou não. Sabe... - Niso parou, apercebera-se que havia dito mais do que devia. - O que quero dizer é que ele vê os dois lados da questão, mais
nada.
- Oh, vê muito bem os dois lados da questão! - respondeu Macro amargamente. - E espeta-te uma faca nas costas se atravessares o seu caminho. Filho de uma cabra!
- Senhor, - interrompeu Cato, ansioso por arrefecer a tensão entre eles, - o que quer que pensemos do tribuno, é melhor que o guardemos para nós, por enquanto.
Se Niso se tinha tornado amigo de Vitélio, então tinham que tomar muito cuidado para não dizerem nada que o tribuno pudesse usar contra eles, caso Niso lhe contasse
a conversa. A traição acerca da arca de pagamento de César ainda os exasperava, e o facto de Vitélio não ter sido chamado a prestar contas tornara-o num inimigo
perigoso.
Macro conteve os nervos e sentou-se em silêncio, mastigando uma côdea, franzindo a testa para a paisagem negra de filas de tendas intermináveis e fogueiras.
Niso aguardou um momento, depois levantou-se, limpando as migalhas da túnica. - Vemo-nos por aí, Cato.
- Claro. E obrigado pelas postas de peixe.
O cartaginês acenou com a cabeça, depois virou-se e afastou-se repentinamente.
- Se eu fosse a ti,-disse Macro calmaménte, - afastava-me dele. O tipo anda com más companhias. Não podemos confiar nele.
Cato olhou para o seu centurião, para a sombra de Niso que se afastava, e de novo para o centurião. Sentia-se mal pela forma como Macro tratara o cirurgião e envergonhado
por se ter sentido na necessidade de apoiar o centurião com a sua linha superficial de argumentação. Mas qual era a alternativa? E de qualquer forma, Niso estava
errado. Especialmente no elogio ao tribuno Vitélio.
XXXI
Assim que as rampas ficaram prontas, o General Pláucio ordenou aos homens que construíssem uma cadeia de fortes para vigiar as imediações do acampamento principal.
Ao mesmo tempo, os engenheiros começaram a ponte de barcas. Colocaram pilares no rio e os barcos em posição durante o dia, e o resto da via durante a noite. Trabalhando
em ambas as margens, os engenheiros estavam rapidamente a encurtar o espaço e, em breve, homens e provisões passariam livremente pelo Tamesis. Niso observava-os
encostado ao tronco de uma árvore sobre o rio. Tinha o rosto franzido enquanto olhava para o rio e estava tão profundamente imerso nos seus pensamentos que nem reparou
que a sua visita tinha chegado até o homem se sentar num cepo próximo.
- Meu amigo cartaginês, pareces deprimido! - Vitélio deu uma risada. - O que se passa?
Niso colocou os seus pensamentos sombrios de lado e fez um sorriso forçado. - Nada, senhor.
- Vá lá, consigo ler o corpo de um homem como um livro. O que se passa?
- Precisava apenas de um tempo sozinho.
- Estou a ver -respondeu Vitélio, e levantou-se do cepo. - Então desculpa. Pensei que podíamos conversar, mas já vi que não te apetece...
Niso abanou a cabeça. - Não precisa de se ir embora. Estava apenas a pensar, nada mais.
- Em quê? - Vitélio voltou a sentar-se calmamente. - O que quer que fosse, parece que te aborreceu.
- Sim - disse Niso sem acrescentar mais nada e limitou-se a contemplar o rio novamente, deixando o tribuno sentado ao seu lado.
Vitélio era suficientemente perspicaz para saber que o homem que pretendia manipular tinha primeiro que confiar nele. E mais, ele tinha que ser ponderado e empático
a um grau que demonstrasse compaixão
em vez de companheirismo. Por isso aguardou pacientemente que Niso falasse. Durante algum tempo o cirurgião continuou a contemplar o rio em silêncio. Depois mudou
de posição e virou a cabeça para o tribuno, incapaz de ocultar a sua expressão de amargura.
- É estranho, mas não importa há quantos anos sirvo Roma, continuo a sentir-me, e fazem com que me sinta, um estrangeiro. Posso tratar dos ferimentos dos homens,
falo com eles na sua língua e partilho o seu sofrimento nas longas campanhas. No entanto, quando menciono a minha raça de origem é como se um cheiro a ranço se intrometesse
entre nós. Até parece que eu sou o próprio Aníbal em pessoa, pelas reacções de alguns. No momento em que falo de Cartago parece que nada mudou nos últimos trezentos
anos. Mas o que fiz eu para que eles reajam dessa forma?
- Nada - respondeu Vitélio gentilmente. - Nada de nada. É apenas a forma como somos criados. Aníbal é um nome que passou para a nossa cultura. E agora tudo o que
é cartaginês está associado ao terrível monstro que em tempos esteve quase a conquistar Roma.
- Será sempre assim? - A amargura na voz de Niso era evidente.
- Não está na hora do seu povo ultrapassar isso?
- Claro que sim. Mas não enquanto houver vantagem política em usar medos antigos. As pessoas precisam de odiar alguém, de suspeitarem de alguém, de culpar alguém
da injustiça nas suas vidas. É aí que vocês entram. E por "vocês" quero dizer todos os não romanos que vivem, porta com porta, com os cidadãos. Vê Roma, por exemplo.
Primeiro foi ameaçada pelos etruscos, depois pelos celtas, depois pelos cartagineses. Foram todos verdadeiras ameaças à nossa sobrevivência que fizeram com que nos
uníssemos. Mas quando nos tornámos na nação mais poderosa do mundo e não havia mais inimigos que fizessem Roma tremer, descobrimos que ainda havia razões para ter
medo e ódio. Ser romano significa pensares que és o melhor. E ser o melhor só tem significado se houver alguém com menos valor para nos compararmos e de quem ter
pena.
- E vocês romanos consideram-se realmente a maior raça do mundo.
-A maioria considera-se, e a verdade disso está, como continuamos a ver, mais evidente a cada vitória sobre o inimigo, a cada pedaço de terra acrescentado ao Império.
Isso encoraja a populaça em Roma e dá-lhes algo para se sentirem orgulhosos enquanto vivem numa pobreza extrema.
- E você, Tribuno? - Niso fixou os seus olhos negros no tribuno.
- Em que é que acredita?
- Em mim. - Vitélio olhou para a forma negra das suas botas.
- Acredito que os romanos não são melhores nem piores que os outros.
Acredito que alguns dos nossos líderes são suficientemente perspicazes para perceberem que não podem tirar dividendos políticos de uma tal nação. De facto, eles
perceberam que, enquanto conseguirem afastar o descontentamento do povo das suas reais condições de existência, os plebeus continuarão a causar poucos problemas
aos seus governantes. Essa é uma das razões pela qual Roma tem tantos feriados e espectáculos. Pão, circo e preconceito: as três pernas sobre as quais Roma se segura.
Niso olhou-o em silêncio durante uns momentos. - Ainda não me disse no que acredita, Tribuno.
- Não?-Vitélio encolheu os ombros. - Talvez porque tenhamos de ter cuidado com as nossas crenças nos dias que correm. - Tirou um pequeno odre de vinho do cinto,
puxou a tampa e bebeu um pouco. - Ah! Isto é que é bom! Queres?
- Obrigado. - Niso pegou no odre de vinho e bebeu. Engoliu e lambeu os lábios. - O que é?
- Vinho de família. De um vinhedo que o meu pai tem na Campania. Bebo disso desde criança. É bom.
- Bom? É uma verdadeira maravilha!
- Talvez. De qualquer forma, acho que ajuda a clarificar os pequenos problemas da vida, se tomado em quantidade suficiente. É forte e pequenas doses fazem muito.
Mais?
- Sim, senhor.
Beberam à vez, e depressa o vinho aqueceu as entranhas e libertou o espírito, e Niso começou a ficar mais alegre e receptivo a outros pensamentos. O vinho parecia
ter afectado o tribuno de igual forma.
- Vivemos numa época estranha, Niso. - Vitélio escolheu cautelosamente as palavras. - Temos que ter cuidado com o que dizemos e a quem o dizemos. Perguntaste-me
sobre aquilo em que eu acreditava.
- Sim.
- Posso confiar em ti? - Vitélio virou-se e riu para ele. - Posso dar-me ao luxo de confiar em ti, meu amigo cartaginês? Posso assumir como certo aquilo que dás
a entender ser, e que não és um espião manhoso do Imperador?
Niso ficou magoado com a acusação, tal como Vitélio esperara.
- Senhor, não nos conhecemos há muito tempo, - o vinho fez com que tropeçasse nas palavras, - mas julgo, tenho a certeza, que podemos confiar um no outro. Pelo menos,
eu confio em si.
Vitélio sorriu e deu uma palmada no ombro do cartaginês.
- E eu confio em ti. A sério. E vou-te dizer aquilo em que acredito.
- Fez uma pausa e olhou em redor cautelosamente. Para além da labuta interminável dos engenheiros, apenas alguns homens caminhavam entre
a fila de tendas. Satisfeito por não ser ouvido por mais ninguém, Vitélio aproximou-se dele.
- Acredito nisto: o destino de Roma foi corrompido pelos Césares e os seus camaradas. A única preocupação do Imperador é manter a população contente. Nada mais lhe
interessa. Afastem Cláudio e verão que a população não precisa de ser mimada o tempo todo. E isso significa que se pode levantar o fardo do resto do Império. Então
poderemos olhar para o futuro, para um Império baseado na entreajuda entre as nações civilizadas e não num baseado no medo e na opressão. Quem sabe, talvez até Cartago
pudesse recuperar a sua posição de antigamente num Império desses...
Vitélio notou que o efeito das suas palavras tinham pesado sobre Niso. No seu rosto estava fixada uma expressão de fervor idealista. Vitélio teve que conter o riso.
Divertia-o muito que os homens fossem tão facilmente manipulados por causas. Bastava fornecer-lhes um conjunto de causas e ideais suficientemente atractivos e era
só comandá-los em prol dessa causa. Encontre-se um homem que almeje a grandeza e a admiração de outros e terão encontrado um fanático. Tais homens eram idiotas,
disse Vitélio para si mesmo. Pior do que idiotas. Eram perigosos para as outras pessoas mas, mais importante, eram perigosos para si próprios. Os ideais eram produtos
da imaginação. Vitélio acreditava ter visto o mundo romano como ele era na verdade, os meios através dos quais aqueles que tinham esperteza suficiente para dobrar
outros à sua vontade conseguiam atingir os seus fins. Pessoas demasiado estúpidas para verem isto eram apenas ferramentas a serem usadas por homens melhores.
Ou mulheres, reflectiu, enquanto se lembrava da perícia com que Flávia fizera a sua jogada contra o Imperador, nas costas do marido. Ela e os amigos podiam ter sido
bem sucedidos, se não fossem os métodos brutais de Narciso e dos seus agentes imperiais, como o próprio Vitélio. Vitélio lembrava-se do homem que tivera que ser
espancado quase até à morte antes de gritar o nome dela. Fora executado logo a seguir, e agora a única pessoa que sabia do envolvimento de Flávia era Vespasiano.
- O renascimento de Cartago - ponderou Niso subtilmente.
- Apenas me atrevia a sonhar com tal coisa.
- Mas primeiro temos que afastar Cláudio - disse Vitélio.
- Sim - sussurrou Niso. - Mas como?
Vitélio olhou fixamente para ele, como se estivesse a considerar até onde havia de ir. Bebeu mais um gole de vinho antes de continuar numa voz um pouco mais alta
do que a do cirurgião. - Há uma maneira. E podes ajudar-me. Preciso de fazer passar uma mensagem para Carátaco. Consegues?
Chegara o momento da decisão, e Niso baixou a cabeça e colocou-a entre as mãos para pensar. O vinho ajudou a simplificar o processo, nem que fosse por toldar o pensamento
lógico que controla as emoções e os sonhos. Com pouco esforço tornou-se claro para ele que Roma nunca o acolheria no seu seio. Que Cartago seria sempre tratada com
severo desdém. Que as iniquidades do Império durariam para sempre, a não ser que Cláudio fosse afastado. A verdade era clara e desconfortável. Bêbado como estava,
a perspectiva do que tinha de fazer encheu-lhe o coração de terror.
- Sim, Tribuno. Fá-lo-ei.
XXXII
- Onde está o teu amigo cartaginês? - perguntou Macro. Estava sentado com os pés em cima da secretária, admirando a vista da tenda para o rio. A refeição do entardecer
tinha acabado e insectos minúsculos rodopiavam na luz fraca. Macro deu uma pancada na coxa e sorriu quando ergueu a mão e viu uma mancha vermelha do mosquito que
matara. - Ah!
- Niso? - Cato tirou os olhos da carta que estava a escrever na sua secretária de campanha e pousou a pena em cima do tinteiro. - Não o vejo há dias, senhor.
- Fico aliviado. Confia em mim, rapaz. É melhor evitar os da laia
dele.
- Os da laia dele?
- Tu sabes, cartagineses, fenícios e todas as outras nações de comerciantes trapaceiros. Não são de confiança. Olham-nos sempre de lado.
- Niso pareceu-me honesto, senhor.
- Tretas. Ele anda atrás de alguma coisa. Todos andam. Quando viu que não tinhas nada que ele quisesse, nunca mais apareceu.
- Prefiro pensar que ele nunca mais apareceu, como diz, devido à natureza da conversa que tivemos quando ele nos cozinhou a refeição, senhor.
- Pensa como quiseres. - Macro encolheu os ombros e pousou os olhos em cima de outro insecto irritante que voava perigosamente perto do braço. Bateu-lhe, falhou
e o mosquito rodopiou com um zunido. - Sacana!
- Isso é um pouco forte, senhor.
- Estava a falar para um insecto, não acerca do nosso companheiro,
- respondeu Macro irritadamente.
- Se o diz, senhor.
- Digo e agora preciso de uma bebida! - Levantou-se e arqueou as costas, as mãos nas ancas. - Estamos combinados para esta noite?
Era noite do serviço de vigia da centúria na muralha leste; as recentes perdas nas batalhas faziam com que cada turno de vigia trabalhasse quase o dobro do tempo
normal. Era injusto mas, como Cato aprendera, a justiça não era uma prioridade na mente militar.
- Sim, senhor, enviei a escala de serviço para o quartel-general e vou fazer eu mesmo as rondas para ter a certeza.
- Muito bem, não quero que nenhum dos nossos rapazes tente fugir para uma soneca rápida. Já somos muito poucos, graças aos da terra. Não me posso dar ao luxo de
que alguns sejam apedrejados até à morte.
Cato anuiu. Dormir no turno de sentinela, como muitas outras ofensas no activo, significavam a pena de morte. A execução tinha que ser levada a cabo pelos companheiros
do homem culpado.
- Muito bem, se alguém precisar de mim estou na tenda da messe dos centuriões.
Cato viu-o desaparecer na escuridão com um passo ágil. Os centuriões tinham conseguido desviar através de métodos ilícitos alguns jarros de vinho de um dos vagões
de transporte dos seus superiores. A remessa era destinada a um tribuno da Décima Quarta, mas o homem afogara-se numa noite em que decidira dar um mergulho depois
de ter bebido demais e a nova provisão fora arrepanhada antes que o capitão pensasse em devolver a carga. Muito antes do mercador de vinhos gaulês receber a notícia
de que o cliente falecera e não podia pagar, o vinho seria bebido.
Sozinho, Cato apressou-se por entre a administração do dia sem qualquer interrupção e arrumou os pergaminhos. Era esta a sua oportunidade para usufruir de alguma
paz e sossego. Por muito que admirasse e gostasse do centurião, Macro era maçadoramente sociável e insistia em conversar nos momentos mais inconvenientes. Tanto
que Cato por vezes rangia os dentes de frustração enquanto Macro palrava à sua maneira de soldado.
Cato estava dolorosamente ciente de como era difícil para si conversar com os seus companheiros, mesmo depois de vários meses no exército. A fácil jocosidade masculina
dos legionários irritava-o terrivelmente. Grosseiros, óbvios e embaraçantes, Cato encontrava dificuldade em juntar-se-lhes porque temia que qualquer tentativa que
fizesse no calão apropriado fosse reconhecida nesse mesmo instante. Não havia nada pior do que ser apanhado numa tentativa condescendente de se relacionar com a
soldadesca comum.
Cato tentava ocasionalmente conduzir as conversas com Macro para assuntos mais estimulantes. Mas a expressão vazia e muitas vezes aborrecida que recompensava os
seus esforços travavam-lhe rapidamente a língua. O que faltava a Macro em sofisticação sobrava-lhe em generosidade de espírito, coragem, honestidade e integridade
moral, mas agora Cato precisava de alguém com quem falar, alguém como Niso. Tinha adorado a ida à pesca e esperava cultivar uma amizade verdadeira com o cartaginês.
A calma sensibilidade do cirurgião era um bálsamo nas emoções em,estado puro que brotavam dentro dele. Mas Niso afastara-se devido à brusca hostilidade de Macro.
Pior, parecia estar a cair sob o feitiço do tribuno Vitélio. Por isso, em quem podia ele descarregar os seus sentimentos agora?
Cato perguntou-se se a solução não estaria em escrever um diário e confiar as suas preocupações ao papel. Melhor, escreveria a Lavínia e empregaria o mais possível
do papel de poeta e filósofo que usara para a impressionar. Embora as batalhas tivessem sido experiências traumáticas para si, conseguia ser analítico e inteligente
o suficiente para olhar para elas como algo instrutivo. Conferir-lhe-iam um sentido enigmático de cansaço da vida que, estava certo, impressionaria Lavínia.
Desenrolando cuidadosamente um pergaminho, Cato mergulhou a pena no tinteiro, limpou o excesso de tinta e colocou a ponta na superfície plana do pergaminho. Havia
luz suficiente para escrever durante algum tempo antes que tivesse de se render à luz fraca do candeeiro a óleo e levou o seu tempo a ordenar os pensamentos. A pena
entrou em contacto com o pergaminho e escreveu perfeitamente a saudação formal:
De Quinto Licínio Cato para Flávia Lavínia. Saudações.
A pena parou durante algum tempo enquanto Cato enfrentava o desafio habitual da primeira frase. Franziu o sobrolho com o esforço de criar uma linha de abertura que
fosse impressionante sem ser floreada. Uma frase atirada ao ar colocaria Lavínia na expectativa errada do que se seguiria. Pelo contrário, um tom exageradamente
sério no início não era o melhor. Bateu na cabeça. - Anda lá! Pensa!
Olhou em redor para se certificar que não fora ouvido por ninguém e corou quando viu o olho a piscar de um legionário que ia a passar. Cato acenou com a cabeça a
devolver o cumprimento e riu conscientemente antes de colocar de novo a pena no tinteiro e escrever a primeira frase.
Minha querida, não passa um momento em que não pense em ti.
Nada mau, reflectiu, e era verdade. Nos poucos momentos em que a sua vida não estava ocupada com um dever ou outro, ele pensava de facto em Lavínia. Especialmente
naquela vez em que haviam feito amor em Gesoriaco, pouco antes da viagem dela para Roma com a sua ama, Flávia.
Inclinou a cabeça e continuou. Desta vez a inspiração veio facilmente, e a pena rabiscou apressadamente as palavras que assolavam o seu coração, voando para trás
e para a frente entre o tinteiro e o pergaminho. Contou a Lavínia da forma especial como a amava, da paixão que ardia na região lombar só de pensar nela, e como
cada dia que passava era menos um antes da próxima vez que se voltariam a encontrar nos braços um do outro.
Cato fez uma pausa para ler o texto, fazendo uma careta aqui e acolá quando os seus olhos apanhavam uma frase demasiado loquaz, um chavão ou uma expressão deselegante.
Mas no geral ficou satisfeito com o resultado final. Agora queria contar-lhe as notícias. O que fizera desde que partira. Queria livrar-se de todas as coisas terríveis
de que se sentia obrigado a lembrar, mas cujo sentido não conseguia perceber. A culpa ao lembrar-se de um golpe mortal, o fedor de um campo de batalha dois dias
depois, o fumo repugnante e oleoso das piras funerárias manchando o Sol e sufocando os pulmões daqueles que estavam contra o vento. A forma como o sangue e os intestinos
reluziam quando eram espalhados num brilhante dia de sol.
Acima de tudo, queria confessar o terror que sentira quando o vento transportara os gritos das fileiras de bretões do outro lado do Tamesis. Queria dizer a alguém
o quão perto esteve de encolher-se num buraco e gritar a sua recusa em continuar.
Mas, assim como receava que os seus companheiros reagissem com desgosto e pena à sua fraqueza, receava também que Lavínia reagisse da mesma forma e o considerasse
um homem inferior. E, consciente da sua juventude comparado com os outros homens da legião, temia que ela o desprezasse como um rapazinho assustado.
O crepúsculo passou a noite, iluminada apenas pelo quarto crescente da Lua pálida e, por fim, Cato decidiu que não podia contar a Lavínia mais do que um simples
esboço das batalhas em que combatera. Acendeu o candeeiro e sob o brilho hesitante descreveu simplesmente os progressos da campanha até ao momento. Tinha quase acabado
quando Macro regressou da messe dos centuriões, praguejando em voz alta quando embateu na estaca de uma tenda.
- Quem pôs isto aqui? - A sua raiva tornou o discurso mais calunioso. Tropeçou ao passar por Cato e caiu pesadamente na sua cama
de campanha, que por sua vez colapsou com um estalar de lascas. Cato ergueu os olhos e abanou a cabeça antes de limpar a pena e arrumar os acessórios de escrita.
Está bem, senhor?
- Estou longe de estar bem! A merda da cama desfez-se - resmungou amargamente o centurião. - Agora desanda e deixa-me sozinho.
- Com certeza, senhor. Já estou a desandar. - Cato riu-se e inclinou a cabeça debaixo da franja do abrigo. - Vejo-o amanhã de manhã, senhor.
- De manhã, porque não? - respondeu Macro, distraidamente, enquanto se debatia com a túnica e finalmente desistiu, aterrando nos restos da sua cama de campanha.
Depois ergueu-se num cotovelo.
- Rapaz!
- Senhor?
- Temos ordens para nos apresentarmos ao legado amanhã de manhã. Não te esqueças, rapaz!
- O legado?
- Sim, o raio do legado. Agora desaparece e deixa-me dormir.
XXXIII
A primeira hora de vigia ecoou no quartel-general, seguida pelos sinais das outras três legiões acampadas na margem norte do Tamesis e, uns instantes mais tarde,
pelo sinal da legião que permanecia na margem sul. Embora o General Pláucio estivesse com a força maior, coordenando os preparativos para a próxima fase da campanha,
as Águias das quatro legiões ainda estavam aquarteladas num quartel-general construído no outro lado do rio, por isso, oficialmente, o exército ainda não tinha atravessado
o Tamesis. Essa honra seria concedida a Cláudio. O Imperador e as Águias atravessariam o Tamesis lado a lado. Seria um espectáculo magnífico, Vespasiano não duvidava.
O maior dividendo político seria a tomada da capital inimiga de Camulodónia. O Imperador e o seu séquito, trajando deslumbrantes armaduras cerimoniais, encabeçariam
o cortejo, e algures no longo comboio de seguidores estaria Flávia.
E Flávia, como todos aqueles que estavam próximos do Imperador, seria cuidadosamente vigiada pelos agentes imperiais; todas as pessoas com quem ela falasse e todas
as conversas passíveis de serem ouvidas seriam registadas e entregues a Narciso. Vespasiano perguntava-se se o homem de confiança do Imperador, um liberto, acompanharia
o seu amo na campanha. Dependia da fé que Cláudio depositasse na esposa e no prefeito da Guarda Pretoriana no comando das coortes que haviam ficado em Roma. Vespasiano
vira Messalina apenas uma vez, num banquete no palácio. Mas uma vez fora suficiente para perceber a mente astuta que contemplava o mundo por trás da máscara deslumbrante
da sua beleza. Os olhos dela, maquilhados ao estilo egípcio, incendiaram-no e Vespasiano quase não fora capaz de os suportar. Messalina sorrira a sua aprovação à
coragem dele quando estendeu a mão para ser beijada. - Devias ter este debaixo de olho, Flávia - dissera ela. - Um homem que aguenta tão facilmente o olhar da esposa
do Imperador, é um homem capaz de tudo.
- Flávia forçara um sorriso e afastara rapidamente dali o marido.
Era irónico, pensou Vespasiano enquanto recordava o evento, que tenha sido ele, em vez de Flávia, a ser apontado como possível conspirador, embora de forma ligeira.
Flávia aparentava ser a esposa leal e uma cidadã modelo o em todos os aspectos, e nunca o fizera recear de que pudesse estar envolvida em algo mais perigoso do
que uma ida aos banhos públicos.
Olhando para trás, os pequenos lanches sociais que dera ou para os quais fora convidada, sem a presença dele, pareciam-lhe agora positivamente sinistros, especialmente
quando um número considerável daqueles com quem confraternizara tinha sido subsequentemente condenado após as investigações das redes de espiões de Narciso. Vespasiano
ainda não sabia quão profundo fora o envolvimento dela com aqueles que conspiravam contra Cláudio. Até a confrontar, não teria certeza. Mesmo aí, se ela fosse metade
da traidora de sangue frio que Vitélio dizia, como saberia se a sua versão dos acontecimentos era verdadeira? A probabilidade de que Flávia mentisse, e ele não conseguisse
reconhecer a mentira, enchia-o com uma sensação terrível de dúvida.
Um som de passos pesados nas tábuas do exterior da tenda chamou-lhe a atenção, e pegou rapidamente no pergaminho mais próximo e concentrou o seu olhar nele: uma
requisição para aumentar a capacidade do hospital do cirurgião sénior da legião.
Uma calma troca de palavras teve lugar antes que a sentinela berrasse: - Espere aqui!
Abriu-se a tenda e um raio de luz atravessou o tampo da secretária, fazendo com que Vespasiano piscasse os olhos quando olhou. - O que se passa?
- Desculpe, senhor, o centurião Macro e o optio estão lá fora. Dizem que lhes foi ordenado que estivessem aqui após o sinal da primeira hora.
- Então estão atrasados - resmungou Vespasiano. - Manda-os entrar.
A sentinela saiu e deu um passo ao lado para segurar a abertura da tenda. - Muito bem, senhor. O legado vai recebê-lo agora.
Duas formas entraram no raio de luz e ficaram em frente à secretária, em sentido.
- O centurião Macro e o Optio Cato apresentam-se como ordenado, senhor.
- Estão atrasados.
- Sim, senhor. - Macro pensou rapidamente em pedir desculpa, mas ficou em silêncio. Não se aceitavam desculpas no exército. Ou se cumpriam as ordens ou não, mas
não havia desculpas.
- Porquê?
- Senhor?
- Porque chegaram atrasados, Centurião? A primeira hora já soou há algum tempo.
- Sim, senhor.
Vespasiano sabia quando estavam a jogar à defesa consigo. À medida que a sua visão se reajustava à luz fraca do interior da tenda reparou que o centurião tinha os
olhos pesados e parecia cansado. Tendo em conta o currículo do homem, decidiu que um aviso oficioso seria o suficiente. - Muito bem, Centurião, mas se voltar a acontecer
haverá consequências.
- Sim, senhor.
- E se eu alguma vez descobrir que deixa a bebida interferir com os seus deveres, juro-lhe que volta para as fileiras. Compreendido?
- Sim, senhor - respondeu Macro com um aceno enfático.
-Pois então, cavalheiros, tenho um trabalho para vocês. Nada muito perigoso, mas importante de qualquer das formas, e não vai interferir na recuperação do optio.
- Vespasiano remexeu em alguns documentos a um lado da secretária e extraiu cuidadosamente uma pequena folha com um selo num canto. - Aqui está a vossa ordem. Vai
regressar com a sua centúria a Rutúpia. Lá, vão encontrar os reforços da Oitava. Quero que escolha os melhores para a Segunda. Aliste-os logo na nossa força e as
outras legiões podem ficar com o resto. Compreendido?
- Sim, senhor.
- E se for rápido, pode carregar os seus homens num daqueles vagões que transportam os feridos para a costa. Estão dispensados.
Novamente sozinho na tenda, a mente de Vespasiano mudou para outro assunto que lhe causava ansiedade. De manhã cedo, ele e os comandantes das outras legiões tinham
sido convocados pelo General Pláucio para serem informados das últimas tentativas de negociação com as tribos bretãs. As notícias de Admínio não eram boas. O falhanço
do exército romano em avançar mais na direcção da capital de Carátaco alarmara as tribos que se haviam comprometido com Roma. Tinham sido levados a crer que a confederação
liderada pelos catuvelánios seria derrubada em semanas. Em vez disso, os romanos escondiam-se atrás das suas fortificações enquanto Carátaco reconstruía rapidamente
o exército. Terríveis ameaças tinham sido enviadas pelos catuvelánios para as tribos que se atrasavam a juntar-se à resistência a Roma. Pláucio contra-atacou com
as suas próprias ameaças, através de Admínio, sobre as consequências de renegarem os acordos que haviam feito com Roma.
Admínio relatou que as tribos tinham chegado a um compromisso.
Se Camulodónia caísse às mãos das legiões antes do final da campanha em curso, honrariam o compromisso anterior de fazer paz com Roma. Mas se Carátaco se mantivesse
no controlo da capital sentir-se-iam obrigados a juntarem-se à confederação de tribos apostadas em destruir Pláucio e o exército. Consequentemente reforçado, o exército
de Carátaco ultrapassaria largamente o de Pláucio em número. A retirada, ou mesmo a derrota, seriam inevitáveis e as Águias seriam expulsas das costas bretãs.
Vespasiano amaldiçoou mais uma vez o atraso forçado enquanto o exército aguardava que Cláudio e a sua corte aparecessem. Já tinham passado quatro semanas e Pláucio
dissera que podia passar mais um mês até que avançassem para Camulodónia. Só em Setembro, no mínimo, é que as Águias chegariam à capital, assumindo que Carátaco
e o seu novo exército fossem ultrapassados rapidamente. Tudo porque o Imperador insistia em estar presente.
A vaidade de Cláudio podia matá-los a todos.
Ao fundo do rio, o que restava da Sexta Centúria aguardava pacientemente que o carregamento dos feridos terminasse. Os auxiliares médicos da legião carregavam cuidadosamente
os vários feridos pelas rampas de embarque dos navios transportadores e pousavam as macas nos abrigos colocados ao longo do convés. Era uma visão deprimente. Estes
eram os homens a quem seria dada a dispensa médica do exército e enviados para casa com membros em falta ou ossos despedaçados dos quais nunca recuperariam totalmente.
Estes homens eram companheiros e alguns eram bons amigos, mas os homens da centúria de Macro permaneceram em silêncio, desconfortáveis com o seu conhecimento do
futuro sombrio a que estavam sujeitos os inválidos. Muitos ainda tinham dores e gritavam a cada movimento mais descuidado.
Cato percorreu o cais temporário à procura de Niso, esperando ser possível renovar a amizade deles de alguma forma. O cartaginês era muito fácil de encontrar. Estava
em cima de uma pilha de sacos de grão, gritando instruções e praguejando para os seus auxiliares enquanto eles tratavam de carregar as macas para o interior dos
transportadores. Quando Cato se aproximou, Niso acenou com mesura.
Bom dia, Optio. O que posso fazer por si?
Cato estava para subir para os sacos e juntar-se a ele, mas o tom frio fê-lo hesitar.
- Então, Optio?
- Niso, só... só queria dizer olá.
- Bom, já disse. E agora, mais alguma coisa?
Cato olhou fixamente para ele, franziu o sobrolho e depois abanou a cabeça.
- Então se não se importa, tenho trabalho a fazer... Façam isso outra vez e dou um pontapé no raio dos vossos cus romanos e atiro-vos ao rio! - berrou a um par de
auxiliares cujos esforços com um ferido com excesso de peso faziam com que a sua perna em carne viva batesse contra o lado do barco. O homem gritava.
Cato aguardou mais um momento, esperando por uma mudança no humor do cartaginês, mas Niso tornara claro que nada mais tinha a dizer. Cato afastou-se tristemente
e regressou à sua centúria. Sentou-se a alguma distância de Macro e limitou-se a contemplar o rio.
Assim que o último ferido foi carregado, o capitão do transportador acenou para Macro.
- Hora de partir, rapazes! Podem entrar!
A centúria encheu a prancha de embarque e entrou pesadamente no convés onde foi conduzida ao seu lugar. Macro deu ordem para que os homens pousassem o equipamento
e tirassem a armadura. Os marinheiros afastaram o transportador da margem do rio, observada preguiçosamente por alguns legionários. A maior parte da centúria esticou-se
no convés e dormitou sob o Sol quente.
Enquanto Cato olhava para o espaço entre o barco e a costa, viu Niso a conduzir os auxiliares pela encosta acima de regresso às tendas hospital. Caminhando casualmente
a passos largos na direcção oposta vinha o tribuno Vitélio. Viu Niso e, com um sorriso largo, ergueu a mão em cumprimento.
XXXIV
Embora apenas tivessem passado dois meses desde que a Segunda Legião passara por Rutúpia, o forte apressadamente construído que guardava a praia de acostagem fora
transformado num vasto depósito de aprovisionamento. Um grande número de barcos estava ancorado no Canal aguardando a sua vez para descarregar no cais. Mais de uma
dúzia de navios estavam amarrados uns aos outros e centenas de tropas auxiliares carregavam sacos e ânforas dos porões e empilhavam-nos em carroças para serem transportados
para o interior do depósito.
Acima, na pequena elevação junto à costa, havia um portão reforçado, e para além dele uma rampa de terra e uma paliçada erguida ao longo da paisagem. Celeiros e
pequenos montes de tijolos espalhavam-se ao longo das fileiras a um lado do depósito. Junto a eles estavam ânforas rolhadas impecavelmente demarcadas, cheias de
óleo, vinho e cerveja. Havia outras áreas destinadas a armazém militar de dardos de arremesso, espadas, botas, túnicas e escudos.
Uma pequena cerca de estacas mantinha aprisionados um número considerável de bretões, que estavam agachados ao sol há dias. Na devida altura seriam reunidos num
barco de regresso à Gália e depois acabariam no grande mercado de escravos de Roma.
A pouca distância das muralhas do grande depósito ficava o matadouro do campo, onde talhantes profissionais matavam porcos e bois. A um lado das instalações amontoavam-se
intestinos e outros órgãos dispensáveis dos animais estripados. O monte brilhava à luz intensa do Sol e uma multidão de gaivotas e outras aves empanturravam-se no
meio do frenesim de asas e gritos estridentes. O som atravessava claramente o canal, levado por uma brisa ligeira que infelizmente transportava o cheiro do monte
com ela.
O odor fétido tornava-se mais intenso quando os navios transportadores se aproximavam do cais, e mais do que um dos homens de Macro
sentiram o estômago dar a volta. Mas a cem pés do cais o navio já não estava a favor do vento e o ar tornava-se mais respirável. Cato segurou-se ao parapeito de
madeira e encheu os pulmões de ar.
- Remos para dentro! - rugiu o capitão com as mãos em forma de concha, e a tripulação puxou-os e arrumou-os no convés. À proa e à ré estavam homens com cabos, e
à medida que o navio de transporte se aproximava lentamente do cais, lançaram-nos para os homens que aguardavam nos postes de ancoragem permanente.
Foi imediatamente colocado um passadiço e um tribuno inferior correu da encosta para o cais onde muitos dos homens estavam deitados em padiolas e macas. Alguns auxiliares
hispânicos ajoelhavam-se por perto. O tribuno olhou em redor do convés e quando viu Macro apressou-se a subir.
- Centurião! Que carga traz?
- A minha centúria e alguns dispensados por razões médicas, senhor. - Macro fez continência e tirou uma prancha de cera dobrada do saco de forragem que lhe pendia
do cinto. - Aqui estão as minhas ordens, senhor. Viemos buscar reforços para a Segunda Legião e levá-los para o Tamesis.
O tribuno olhou para a barra e anuiu quando viu o selo da Segunda Legião.
- Muito bem, desembarque os seus homens e dirija-se ao quartel-general. Eles distribuir-lhe-ão algumas tendas e rações para a noite. Podem ir. - Acenou impacientemente
e ficou ao lado do passadiço, tamborilando com os dedos na amurada, até o último da centúria de Macro ter pisado terra firme. Cato observou o tribuno a gritar uma
ordem e os auxiliares começaram a descarregar as macas do barco. Muitos tinham pensos nos cotos onde deviam estar pernas e braços; entretanto, um outro homem, a
cabeça embrulhada num pano manchado, gritava violentamente o mais alto que podia, palavras sem sentido que arremessava a todos os que estavam à sua volta. Cato olhou
para o homem e estremeceu.
- Haverá mais como aquele antes desta campanha terminar - disse Macro calmamente.
- Penso que preferia morrer.
Macro observava o homem quando este, subitamente, se debateu violentamente, ameaçando cair juntamente com os carregadores do passadiço para a água. - Eu também,
rapaz.
Pegando no seu fardo, Macro gritou a ordem para erguerem os equipamentos e marcharem encosta acima pelo portão principal do depósito. No quartel-general um tabelião
civil bajulador aceitou de má
vontade as requisições de equipamento de substituição que lhe haviam sido atribuídas pelo mestre de aquartelamento da Segunda. O tabelião contou rapidamente as cabeças
da centúria e atribuiu-lhes algumas tendas no canto mais afastado do depósito.
- E as nossas rações?
- Podem tirar alguma comida seca dos armazéns da Oitava.
- Comida seca! Não quero comida seca. Os meus homens e eu queremos carne fresca e pão. Trate disso.
O tabelião pousou a pena, reclinou-se para trás e cruzou os braços.
- Não há carne fresca e pão. São para os homens da frente. Agora, Centurião, se não se importa tenho trabalho sério a fazer.
- Isto é demais! - explodiu Macro, largando o fardo e agarrando na túnica do tabelião. Com um puxão poderoso sacudiu o tabelião sobre a mesa, espalhando a sua papelada
e derrubando o tinteiro.
- Agora ouve, meu merdas - assobiou Macro entredentes.
- Estás a ver estes homens? São tudo o que resta da minha centúria. O resto morreu na frente. Percebeste? E onde raio estavas tu quando eles morreram? - Respirando
pesadamente, tirou lentamente as mãos da túnica do tabelião. - Agora, só vou dizer isto uma vez. Quero carne fresca e pão para os meus homens. E quero que sejam
levados às nossas tendas. Se não estiverem lá por alturas do primeiro turno de vigia, ao entardecer, venho cá pessoalmente e estripo-te. Compreendido?
O tabelião acenou com a cabeça, os olhos cheios de terror.
- Não te estou a ouvir. Fala e fala bem alto.
- Sim, Centurião.
- Sim o quê?
- Sim, vou providenciar a comida dos seus homens... e deseja vinho?
Atrás de Macro, os homens gritavam a sua aprovação. Macro permitiu-se um sorriso e anuiu. - Isso é muito atencioso da sua parte. Afinal, penso que nos vamos dar
bem.
Virou-se para os seus homens e eles deram-lhe vivas antes de os conduzir às tendas. Cato riu-se do tabelião e depois juntou-se ao centurião.
Apesar de se congratular com os vivas dos seus homens, Macro sabia que tinha que ter cuidado com o mau feitio. Atacar um mero tabelião não aumentava em nada a sua
autoridade. O cansaço e os resquícios da ressaca eram os responsáveis e tomou uma nota mental para ter cuidado com o vinho que ia beber nessa noite. Depois lembrou-se
que o vinho era de graça; seria grosseiro e tolo deixar passar uma oportunidade daquelas. Decidiu que compensaria bebendo menos noutra noite.
Não demorou muito até que Macro estivesse a mastigar um pedaço tenro de bife, grelhado nas brasas de uma fogueira. À sua frente sentava-se cato. Limpou cuidadosamente
o molho à volta dos lábios e enfiou o pano de novo no cinto.
- Estes reforços que vamos ter amanhã, senhor.
- Que têm?
- Como é que vamos fazer?
- Um velho costume do exército. - Macro engoliu antes de continuar. - Somos os primeiros a escolher. Ficamos com os melhores. Assim que recuperarmos a nossa força,
os segundos melhores vão para as outras centúrias da coorte, depois para as outras coortes e o que sobrar fica para as outras legiões.
- Não é muito justo, senhor.
- Pois não - concordou Macro. - Nada justo, mas neste momento é maravilhoso. Já era tempo de a nossa centúria ter uma folga. Por isso vamos alegrar-nos e aproveitar
ao máximo.
- Sim, senhor.
O pensamento de recuperar as perdas da sua triste e desfalcada centúria era gratificante e Macro verteu as borras de vinho do seu copo, bebeu e verteu novamente.
Depois parou para deixar sair um arroto que fez virar as cabeças dos homens nas proximidades e deitou-se no chão com os braços atrás da cabeça. Sorriu, bocejou e
fechou os olhos.
Instantes depois, roncos profundos e familiares ressoaram das sombras para lá do brilho da fogueira, e Cato praguejou por não conseguir dormir. O resto da centúria
também tinha comido a sua parte e bebido mais vinho do que devia, mas não fariam serviço de sentinela, pelo menos nessa noite. Estavam quase todos a dormir, e durante
algum tempo Cato sentou-se abraçando os joelhos, junto à fogueira. No seu centro ondulante o brilho alaranjado fluiu e enrolou-se de um modo hipnótico e a sua mente
bêbada de vinho começou a vaguear por fantasias elísias. A visão de Lavínia interpôs-se sem esforço à frente das chamas e ele permitiu-se contemplar a imagem graciosa
antes de deitar a cabeça na capa dobrada e adormecer.
- Nome? - berrou Macro, para o legionário que estava em frente à secretária.
- Gaio Valério Máximo, senhor.
- Tribo?
- Velina.
- Há quanto tempo está ao serviço das Águias?
- Oito anos, senhor. Sete com a Vigésima Terceira, antes de ser dissolvida, e depois fui mandado para a Oitava.
- Estou a ver. - Macro acenou solenemente com a cabeça. A Vigésima Terceira fora pesadamente implicada na rebelião de Escriboniano e pagara um preço alto pela demora
em jurar lealdade ao novo imperador. Fosse como fosse, o homem que estava à sua frente era um veterano e parecia suficientemente duro. Mais, os seus acessórios estavam
em perfeitas condições; cintos e fivelas cintilavam à luz do Sol, e tinha investido na nova armadura segmentada que começava a ser muito popular no exército.
- Deixa-nos ver a tua espada, Máximo - grunhiu Macro.
O legionário desembainhou aespada, virou-a ao contrário e entregou o cabo ao centurião. Macro fechou respeitosamente a mão em volta do cabo e levantou a lâmina para
a inspeccionar de perto. Tornaram-se imediatamente evidentes as perfeitas condições em que tinha sido mantida, e um toque ao de leve na face cortante revelou uma
agudeza excelente.
- Bom! Muito bom! - Macro devolveu a arma. - Vais ser re-encaminhado para a tua nova unidade no final do dia. Podes ir!
O legionário fez a continência, virou-se e afastou-se, com demasiada formalidade para o gosto de Macro.
- Coloco-o na Segunda, senhor? - perguntou Cato, sentado ao lado de Macro, quatro pergaminhos desenrolados à sua frente. Mergulhou
a pena na tinta e passou-a em cima do pergaminho da Segunda.
Macro abanou a cabeça. - Não, não nos serve. Olha para a perna esquerda dele.
Cato viu uma linha branca vívida, que descia da coxa à barriga da perna, a constrição da cicatriz fazendo com que o homem arrastasse ligeiramente a perna.
- Seria um impedimento para ele próprio e, mais importante, para nós, numa marcha forçada. Coloca-o na Vigésima. Só serve para serviços de reserva.
Macro ergueu os olhos para a linha de legionários que aguardavam o alistamento. - Próximo!
À medida que o dia decorria, a longa fila dos reforços foi diminuindo e a lista de nomes nos pergaminhos de Cato crescendo. O processo só ficou concluído ao cair
da noite, quando Cato reviu a lista à luz de um candeeiro, comparando-a com o duplicado enviado do quartel-general da Oitava para se certificar de que nenhum nome
ficara de fora. Por sua sugestão, Macro equilibrara os números de forma a que cada legião tivesse reforços proporcionais às suas perdas. Mas os melhores homens tinham
sido colocados na Segunda.
Na manhã seguinte, Cato levantou-se com o raiar do dia e colocou quatro homens da sua centúria a tratar dos reforços das outras legiões e a aquartelá-los nas suas
novas unidades, para que se habituassem o mais depressa possível à sua nova identidade. Macro estava ocupado no quartel-general à procura de equipamentos para os
reforços da Segunda. Por alguma razão as requisições haviam sido extraviadas e o tabelião fora procurá-las, deixando o centurião sentado num dos bancos alinhados
no exterior da entrada do quartel-general. Ali sentado à espera, Macro começou a sentir-se como um humilde cliente a fazer um recado para o seu amo em Roma e começou
a agitar-se irritadamente no banco até que não teve estômago para aguentar mais. Entrou de rompante na tenda e encontrou o tabelião de novo na secretária com as
requisições pousadas a um lado.
- Então, encontrou-as? Ainda bem. Agora vou consigo buscar as coisas.
- Estou ocupado. Terá que esperar.
- Não vou esperar. Levante-se, rapazinho.
- A mim não me dá ordens - respondeu o tabelião a fungar. - Não sou do exército. Faço parte dos funcionários imperiais.
- Ai sim? Deve ser uma profissão confortável. Agora, vamos antes que atrase ainda mais o esforço de guerra.
- Como se atreve? Se estivéssemos em Roma apresentaria queixa de si ao prefeito da Guarda Pretoriana.
- Mas não estamos em Roma - grunhiu Macro, inclinando-se na secretária. - Pois não?
O tabelião pressentiu violência iminente na expressão ameaçadora do ccenturião.
- Muito bem, senhor- reconheceu. - Mas vamos fazer isto rapidamente.
- Como queira. Eu não sou pago à hora.
Com Macro a reboque, o tabelião correu pelo depósito e autorizou a provisão de todas as armas e equipamentos requeridos, assim como carroças para os transportar
no caminho de volta ao Tamesis.
- Não acredito que não tenham meios de transporte disponíveis
- protestou Macro.
- Receio que não, senhor. Todos os transportes de mercadorias disponíveis foram enviados para Gesoriaco para o Imperador e os reforços dele. Foi por isso que viemos
à frente. Para ajudar com a parte administrativa.
- Por acaso andava a magicar sobre o que é que vocês andavam a fazer no quartel-general.
- Quando algo precisa de uma organização em condições, - o tabelião encheu o peito - os peritos têm que ser chamados.
- A sério? - Macro fungou. - Que reconfortante.
Após a refeição do meio-dia, Macro mandou reunir os novos recrutas da sua centúria em frente da tenda. Eram todos bons homens: preparados, com experiência e um cadastro
impecável. Quando conduzisse novamente a Sexta Centúria contra os bretões, penetrariam directamente no coração do inimigo. Satisfeito com a sua selecção, virou-se
e sorriu para Cato.
- Muito bem, Optio. É melhor apresentares este bando à Segunda Legião.
- Eu, senhor?
- Sim, tu. É uma boa prática para o comando.
- Mas, senhor!
- E diz algo inspirador. - Macro deu-lhe uma cotovelada.-Anda lá com isso. - Regressou à tenda e sentou-se num banco, onde começou a afiar a lâmina do seu punhal.
Cato ficou sozinho em frente a duas linhas dos homens mais duros que alguma vez vira. Pigarreou nervosamente e endireitou a coluna para ficar o mais alto possível,
as mãos fechadas atrás das costas enquanto a sua mente procurava as palavras apropriadas.
- Pois bem, quero apenas dar-vos as boas-vindas à Segunda Legião. Tivemos, até agora, uma campanha bem sucedida e estou certo de que em
breve estarão tão orgulhosos da vossa nova legião como o estiveram da oitava. - Olhou de soslaio, ao longo das linhas de rostos inexpressivos, e a sua auto confiança
esmoreceu.
- Pen... Penso que os rapazes da Sexta Centúria vão acolhê-los bem. De uma certa forma, somos como uma grande família. - Cato rangeu os dentes, ciente de que estava
a chafurdar num pântano de frases feitas. - Se alguma vez tiverem problemas sobre os quais queiram falar, a minha tenda está sempre aberta.
Alguém bufou de uma forma zombeteira.
- O meu nome é Cato e com certeza decorarei todos os vossos nomes rapidamente... Hum.. . Alguém quer fazer alguma pergunta?
- Optio! - Um homem no fim da linha ergueu a mão. As suas feições eram extremamente enrugadas, e felizmente Cato lembrava-se do nome dele.
- Cícero, não é? O que posso fazer por si?
- Queria saber se o centurião nos está a gozar. É mesmo o nosso optio?
- Claro que sou! - Cato corou.
- Há quanto tempo está no exército, Optio?
Uma série de risos abafados percorreu a linha de homens.
- Há tempo suficiente. Mais alguma pergunta? Não? Óptimo, a chamada é ao raiar do dia. Dispersar!
Enquanto os reforços dispersavam vagarosamente, Cato cerrou os punhos, envergonhado com o seu desempenho. Atrás dele, na tenda conseguia ouvir o som áspero da lima
na lâmina de Macro. Não podia enfrentar o escárnio do seu centurião. Por fim, o ruído parou.
- Cato, meu velho.
- Senhor?
- É provável que sejas um dos mais brilhantes e corajosos rapazes com quem já servi.
Cato corou. - Obrigado, senhor.
- Mas este foi o discurso de boas-vindas mais deprimente da história de Roma. Já ouvi discursos mais inspiradores nas festas de despedida dos escrivães de contabilidade.
Pensei que sabias tudo sobre retórica inspiradora e todo esse género de coisas.
- Li sobre isso, senhor.
- Estou a ver. Então é melhor cultivares a teoria com um pouco mais de prática. - Isto soou muito bem a Macro e sorriu por ter dito algo tão profundo. Sentiu-se
mais do que um pouco gratificado pelo falhanço do seu subalterno, já que era ele quem usufruíra de educação palaciana. Como acontecia habitualmente, a fraqueza evidente
nos feitos de outro
homem produziam nele uma afeição calorosa e arreganhou os dentes para o optio.
- Esquece, rapaz. Já deste prova do teu valor muitas vezes.
Enquanto Cato pensava numa resposta, começou a ouvir uma onda de excitação a varrer o depósito. Na direcção do cais, os homens subiam a encosta oposta para a paliçada
onde se amontoavam ao longo do passeio das sentinelas.
- Olá! O que se está a passar? - Macro saiu da tenda e ficou ao lado do opticC
- Deve estar a acontecer algo no mar - sugeriu Cato.
Enquanto olhavam, mais homens se aglomeravam na paliçada e
ainda mais afluíram da fila de tendas para se reunirem a eles. Ouviam-se gritos, apenas audíveis acima do enorme ruído da tagarelice excitada.
- O Imperador! O Imperador!
- Vamos! - disse Macro, e dirigiram-se para a ponta do depósito. Logo se misturaram com os outros que se apressavam na direcção do canal. Depois de muitos encontrões
conseguiram chegar ao passeio das sentinelas e abriram caminho até à paliçada.
- Abram alas! - berrou Macro. - Abram alas! Centurião a aproximar-se.
Os homens cederam com má vontade à sua graduação, e instantes mais tarde Macro estava apoiado nas estacas de madeira, com Cato ao seu lado, ambos a olharem para
o canal e para o espectáculo que acontecia serenamente no mar. Algumas milhas ao largo, apanhado pelo reflexo do sol da tarde, o esquadrão imperial cortava as águas
na sua direcção. Flanqueado por quatro trirremes, que eram muito pequenas, estava o navio do Imperador. Era um navio gigantesco, de grande comprimento e largura,
com dois mastros montados entre as elaboradas ameias à proa e à ré. Duas enormes velas púrpuras pendiam dos seus mastros, esticadas para assegurarem que as águias
douradas brasonadas exibiam o melhor efeito. Cato vira o navio uma vez, em Ostia, e ficara maravilhado com as suas dimensões. Enormes remos erguiam-se da água, moviam-se
para a frente em cintilante unidade e voltavam a afundar-se suavemente no mar. Atrás da nau-capitã entrou no canal uma fila de barcos, seguida pelos transportadores
e depois pela escolta de retaguarda da marinha, altura em que o navio do Imperador estava a aproximar-se da costa com toda a graça institucional que a tripulação
muito bem treinada conseguia proporcionar. O calado do navio era tal que teria encalhado se tentasse acostar no cais. Em vez disso, o barco parou a um quarto de
milha da costa e as âncoras foram lançadas à ré e à proa. As trirremes passaram e dirigiram-se para o cais, os conveses cheios de uniformes brancos da Guarda Pretoriana.
Quando os navios de guerra fundearam, os Pretorianos encheram a costa e formaram ao longo da encosta no exterior do depósito.
- Consegues ver o Imperador? - perguntou Macro. - Os teus olhos são mais jovens do que os meus.
Cato mirou o convés do navio, percorrendo as fileiras confusas do séquito do Imperador. Mas não havia sinais de uma qualquer deferência óbvia e Cato abanou a cabeça.
Os legionários aguardaram excitados por um sinal de Cláudio. Alguém começou a entoar um cântico de "Queremos o Imperador! Queremos o Imperador! Queremos Cláudio!"
que pegou rapidamente. Repercutiu-se ao longo da paliçada e ecoou para além do navio no canal. Mas continuava a não haver qualquer sinal do Imperador, apesar do
grande número de falsos alarmes, e o humor mudou lentamente de excitação para frustração e depois para apatia quando a Guarda Pretoriana se encaminhou para um dos
lados do depósito mais longe do matadouro e começou a montar acampamento para a noite.
- Porque é que o Imperador não vem a terra? - perguntou Macro.
Da sua infância no palácio imperial Cato lembrava-se dos procedimentos protocolares que acompanhavam os movimentos oficiais do Imperador e adivinhava perfeitamente
a razão do atraso. - Creio que só o fará amanhã, quando a cerimónia de boas-vindas estiver totalmente preparada.
- Oh! - Macro estava desapontado. - Então esta noite não há nada que valha a pena ver?
- Duvido, senhor.
- Está bem, então espero que possamos fazer algum trabalho. E linda há aquele vinho que precisa de ser bebido. Vens?
Cato conhecia Macro o suficiente para reconhecer a diferença entre uma pergunta genuína e uma ordem pronunciada com simpatia.
- Não obrigado, senhor. Prefiro ficar e ver mais um pouco.
- Como queiras.
À medida que a noite caía, os outros homens na muralha vagueavam entamente. Cato inclinou-se pousando o cotovelo no entalhe entre luas estacas e, aconchegando o
queixo na palma da mão, olhou para a quantidade de embarcações que enchiam o canal em redor do navio do imperador. Alguns barcos transportavam soldados, outros os
serviçais da casa imperial e outros ainda os membros do séquito do Imperador. Mais ao largo estavam ancorados navios de transporte maiores que alardeavam curiosas
protuberâncias cinzentas nos conveses. Assim que as trirremes que haviam descarregado os Pretorianos se afastaram do cais, os navios
transportadores foram acostando ao longo do cais e Cato conseguiu ver claramente a sua carga.
- Elefantes! - exclamou.
O seu espanto foi partilhado pelos poucos homens que restavam ao longo da paliçada. Os elefantes não eram usados em batalha há mais de cem anos. Embora demonstrassem
ser assustadores para aqueles que os defrontavam num campo de batalha, soldados bem treinados podiam neutralizá-los rapidamente. E, quando mal conduzidos, os elefantes
podiam sertão perigosos para o seu próprio lado como para o inimigo. Os exércitos modernos não costumavam usá-los, e os únicos elefantes que Cato vira tinham sido
os que estavam no redil de bestas nas traseiras do Circo Máximo. O que eles estavam a fazer na Britânia era a pergunta de todos. Certamente o Imperador não tencionava
usá-los em batalha, pensou Cato. Deviam ter vindo para qualquer propósito imperial ou para colocar o receio dos deuses nos corações dos bretões.
Enquanto olhava para um dos navios que transportavam os elefantes, uma secção lateral do navio foi retirada e uma ampla prancha de desembarque foi colocada no cais.
Os marinheiros baixaram uma rampa pesada em cima de um suporte e espalharam uma mistura de palha e terra em cima da rampa e ao longo do passadiço. Estes aromas familiares
seriam um conforto necessário para os animais depois do movimento incerto no mar durante a viagem desde Gesoriaco. Quando o capitão verificou que tudo estava pronto,
deu a ordem para que descarregassem os animais. Uns instantes mais tarde, no meio de trombeteares ansiosos, um condutor incitou um elefante pela rampa e para o cais.
Apesar de Cato os ter visto antes, a súbita aparição do enorme corpanzil cinzento da besta com as suas presas enormes ainda o amedrontou e susteve a respiração antes
de se assegurar de que estava seguro naquele local. O condutor do elefante bateu com a vara na cabeça do animal e ele arrastou-se hesitantemente no passadiço, fazendo
com que o navio vergasse ligeiramente devido à mudança de peso. O elefante parou e ergueu a tromba, mas o condutor bateu-lhe com a vara e com uma visível expressão
de alívio da tripulação o animal caminhou para o cais.
O último elefante pisou terra quando a noite caiu e as bestas foram conduzidas para um recanto afastado dos outros animais, que tinham medo deles. Enquanto Cato
e os legionários que restavam observavam os elefantes a caminharem com o seu porte balouçante e curiosamente lento, os navios transportadores deram espaço a outras
embarcações; desta vez aos navios de guerra bem pintados que transportavam o séquito do Imperador e os criados. Ao longo dos passadiços apinhava-se a elite social
de Roma: patrícios com togas púrpuras, as suas esposas vestindo sedas
exóticas e de cabelo arranjado. Depois chegaram os da nobreza inferior, íomens com túnicas baratas, as suas esposas com estolas respeitáveis, finalmente chegou a
bagagem, carregada através das pranchas por uma jrande quantidade de escravos vigiados pelo superior de cada casa, para se assegurar que nada seria partido.
À medida que cada casa se reunia ao longo do cais, tabeliões do depósito do quartel-general andavam numa correria em redor, à procura dos nomes nas suas listas e
escoltando os seus convidados para a zona de tendas preparada para eles num recinto fortificado anexo ao depósito. Das ressoas que chegavam, poucas se dignavam a
olhar para os legionários que se inclinavam na paliçada. Por seu lado, os legionários olhavam em silêncio, maravilhando-se com a riqueza extravagante da aristocracia
de Roma cujo estilo de vida dependia do sangue e suor derramados pelos homens das legiões.
Enquanto os olhos de Cato vagueavam pela multidão colorida no cais, um rosto virou-se abruptamente para ele de uma forma que lhe chamou a atenção. Sentiu o coração
vibrar dentro do peito e a pulsação acelerar. A sua respiração parou assim que abarcou os cabelos longos, puxados para trás com ganchos, a linda sombra negra das
sobrancelhas e o rosto em forma de coração. Vestia uma estola amarela clara que enfatizava as curvas elegantes do seu corpo. Não havia como confundi-la e ficou a
olhá-la mudo de espanto, desejando gritar o nome dela, mas não se atrevendo a tal. Ela virou-se para a sua senhora e continuou a conversar.
Afastando-se da paliçada, Cato desceu a encosta em direcção ao portão principal do depósito, todo o cansaço das últimas semanas varrido do seu corpo com a ideia
de segurar novamente Lavínia nos braços.
XXXVI
- Lavínia! - chamou Cato, enquanto empurrava por entre o movimento confuso de corpos do séquito do Imperador, ignorando as expressões de espanto e os insultos de
que era alvo. À frente dele, a pouca distância, viu a estola amarela através de uma brecha na multidão e abriu caminho nessa direcção, chamando novamente: - Lavínia!
Ela ouviu o som do seu nome e virou a cabeça, à procura da fonte. O seu olhar caiu em Cato enquanto ele irrompia entre um senador e a sua esposa a vinte pés de distância.
- Cato?
Ao lado de Lavínia a sua senhora, Flávia, seguiu o olhar dela. O rosto de Flávia abriu-se num sorriso quando também viu o jovem que conhecera dez anos antes no palácio
imperial. Enquanto Flávia fora uma figura menor na corte, interessara-se pelo miúdo tímido, certificara-se que ele tinha acesso à biblioteca do palácio e protegera-o
o mais possível da perseguição endémica entre os escravos imperiais. Em troca, Cato fora sempre completamente leal.
- Ei! - protestou o senador. - Veja por onde anda, jovem!
Cato ignorou-o e correu os últimos passos, braços abertos assim que
a expressão de Lavínia se abriu num sorriso de alegria. Ela deu um grito de saudação e abriu os braços. Uns instantes depois, estavam a abraçar-se. Pouco depois
colocou as mãos nas bochechas dela, sentindo a sua pele macia e deliciando-se novamente com os olhos penetrantes, negros e belos. Ela sorriu e não conteve o riso
do puro prazer do momento, e ele riu com ela.
- Oh, Cato! Tinha tanta esperança em encontrar-te aqui.
- Bem, aqui estou! - Inclinou-se e beijou-a na boca, antes que a consciência se apoderasse de si e o fizesse pensar na multidão que os rodeava. Recuou e olhou em
redor. Algumas pessoas estavam a olhar para eles, umas com espanto divertido, outras franzindo o sobrolho para a
ndecência de tal comportamento em público. O senador ainda estava irritado. Cato lançou um sorriso apologético e virou-se para Lavínia.
- O que... o que estás aqui a fazer? Pensei que estavas a caminho de Roma!
- E estávamos - disse Flávia, dando um passo para o lado do casal. - Tínhamos apenas chegado a Lutécia quando recebi instruções de Narciso para regressar a Gesoriaco
e aguardar pelo Imperador.
- E aqui estamos! - concluiu Lavínia alegremente. Depois baixou
o olhar e reparou na cicatriz vívida do braço dele. - Oh não! O que te iconteceu? Estás bem?
- Claro que estou bem. Foi só uma queimadura.
- Meu pobre querido - disse Lavínia, e beijou-o na mão.
- Foi bem tratada? - perguntou Flávia enquanto examinava a cicatriz. - Sei como são estes charlatães do exército. Não confiava neles nem para tratarem de uma gripe.
A atenção fez Cato sentir-se embaraçado, e insistiu que estava bem, sim, parecia mal, mas estava a curar-se; não, não tinha mais nenhum ferimento; sim, teria mais
cuidado no futuro; não, não fora culpa de Macro.
- E tiveste mesmo saudades minhas? - concluiu Lavínia em voz baixa, olhando atentamente para a sua expressão.
- Os peixes vivem no mar? - respondeu Cato sorridente.
- Oh, tu! - Lavínia deu-lhe um murro no peito. - Podias apenas dizer que sim.
- Então, sim. Tive. Muitas. - Cato beijou-a novamente, descendo com uma mão até às nádegas dela. Lavínia riu entredentes.
- Por Júpiter! Não podes esperar, pois não?
Cato abanou a cabeça.
- Então, - Lavínia inclinou-se e murmurou-lhe ao ouvido, - temos que arranjar forma de resolver isso mais tarde...
- Vá - interrompeu Flávia. - Detesto intrometer-me neste indecente encontro amoroso, mas um local mais isolado seria mais apropriado, não acham?
As tendas fornecidas ao séquito imperial eram luxuosas e, para Cato, afastado de tal estilo de vida havia quase um ano, uma novidade bem-vinda comparada com as acomodações
grosseiras das legiões. Flávia, Lavínia e Cato estavam sentados em pesadas cadeiras de bronze colocadas ao redor de uma mesa baixa, na qual havia doces e pastéis
decorados
com engenho, dispostos em travessas de ouro. Cato sentava-se ao lado de Lavínia, enquanto a dona dela estava sentada do outro lado da mesa, onde a iluminação dos
candeeiros a óleo era fraca.
- Estão bons - disse Cato sobre os aperitivos, sem pensar na tigela da messe, tão usada, que o aguardava na sua tenda.
- Não são meus - disse Flávia. - O meu marido não aprova frivolidades. Faz parte do serviço que Narciso ofereceu aos acompanhantes do Imperador. Para o caso de ficarmos
doentes.
- Estão bonitos, não estão? - sorriu Lavínia, mostrando os seus dentes brancos perfeitos a Cato. Pegou numa pequena tarte recheada e comeu um pouco. Flocos e migalhas
caíram e Cato seguiu-os até aos seios. Depois regressou ao rosto dela e corou.
- São bonitos, minha querida - disse Flávia, que se aproximou e limpou com mestria as migalhas da estola da sua criada. - Mas não passam de aperitivos. Não devíamos
dar muito valor à aparência. É a essência da coisa que importa. Não é, Cato?
- Sim, minha senhora-anuiu Cato, perguntando-se porque é que Flávia o estava a tentar afastar de Lavínia. - Mas uma vez que a essência de uma coisa é apenas uma
conjectura, não será melhor simplesmente avaliá-las pela aparência, minha senhora?
- Podes pensar assim, se quiseres. - Flávia encolheu os ombros, nada impressionada pela loquacidade sofistica. - Mas a vida será um professor duro se persistires
nesse ponto de vista.
Cato assentiu. Não concordava com ela, mas não estava interessado em perturbar o ambiente saudável do convívio. - Posso beber mais vinho, minha senhora?
Flávia gesticulou para o copo dele e um escravo com um jarro apressou-se das sombras nas traseiras da tenda. Cato ergueu o copo e o escravo encheu-o novamente, recuando
depois discretamente, tão quieto e silencioso como antes. - Não beberia muito disso - disse Lavínia com um sorriso insolente e deu uma cotovelada nas costelas de
Cato.
- A si, minha senhora. - Cato ergueu o copo. - A si e ao seu marido.
Flávia acenou graciosamente e depois inclinou-se na cadeira, os olhos fixos no jovem optio. - E o legado está a fazer uma boa campanha?
Cato parou antes de responder. A campanha era indubitavelmente um sucesso, mas ainda estava demasiado próximo da experiência que fora vencer graças aos soldados
rasos das legiões para ter uma sensação de triunfo. Qualquer sucesso a que os futuros historiadores pudessem levemente aludir quando escrevessem acerca da invasão
da ilha nunca
daria a conhecer a dor, o sangue, a imundície e a exaustão que custara. Uma imagem vívida de Pirax a ser golpeado enquanto se debatia para se libertar da lama penetrou
na mente de Cato. Sabia que os historiadores olhariam para a morte de Pirax como um detalhe lamentavelmente insignificante, sem valor para figurar na história.
- Sim, minha senhora - disse Cato cautelosamente. - O legado ganhou a sua parte da glória. A Segunda saiu-se suficientemente bem.
- Talvez. Mas temo que os plebeus queiram heroísmo, não competência.
Cato sorriu amargamente. O seu novo estatuto de cidadão romano situava-o tecnicamente como um dos plebeus que Flávia mencionara com tanto desprezo. Ainda assim a
acusação era válida.
- A Segunda demonstrou o seu valor em todas as batalhas em que entrou. Pode orgulhar-se do seu marido. E não é como se os bretões não estivessem a ser ajudados.
- Não?
- Não, minha senhora. Não é a primeira vez que encontramos bretões a usar fundas e espadas romanas.
- Tiraram-nas dos nossos homens?
- Dificilmente. Vencemos todas as batalhas até ao momento, não tiveram como pegar nelas no campo de batalha. Alguém lhes deve estar a fornecer armas.
- Alguém? Quem?
- Não faço ideia, minha senhora. Só sei que o legado está a investigar o caso e disse que o relataria ao general.
- Estou a ver. - Flávia assentiu pensativamente e beliscou a bainha do roupão. Sem olhar para cima, continuou: - Bom, julgo que vocês os dois querem pôr a conversa
em dia. Está uma noite bonita para um passeio. Um longo passeio, penso.
Lavínia agarrou a mão dele e levantou-se de um salto, dando-lhe um puxão súbito. Cato levantou-se e fez uma vénia a Flávia. - É bom vê-la de novo, minha senhora.
- E a ti, Cato.
Lavínia conduziu-o para fora da tenda. Depois de saírem, Flávia gritou-lhes: - Aproveitem, enquanto podem.
XXXVII
Estava a amanhecer e uma névoa cinzenta elevara-se do canal. Pairou sob o portão do depósito como um invólucro pegajoso, iluminada pela luz mortiça dos archotes
no passeio das sentinelas. Os homens estavam calados, mexendo-se nas colunas das unidades para que tinham sido designados, as suas tímidas conversas realçadas por
tosses ocasionais devidas a pulmões não habituados ao ar húmido da üha. Um longo dia de marcha estava à sua frente. Tinham sido alimentados com uma papa de aveia
aquecida que lhes tinha caído no estômago como uma pedra.
Para quase todos uma vida nova esperava-os numa legião de que podiam apenas ter ouvido falar no passado, cujos homens olhariam para eles nos próximos meses com nada
mais do que uma aceitação rancorosa, até que se provassem melhores do que o estatuto de reserva da legião implicava. Para alguns, a transição para uma unidade de
combate seria suave, pois antes da Oitava tinham estado em legiões da fronteira. Nos preparativos para a invasão da Britânia, os assistentes do general imperial
haviam tirado as coortes de veteranos para fora dessas legiões que enfrentavam bárbaros inertes e encaminharam-nas para a Gália, incorporando-as temporariamente
na Oitava.
Os homens mais velhos, que tinham esperança num fim pacífico da sua carreira ao serviço da Águia, ficaram naturalmente ressentidos por se encontrarem no meio da
fase decisiva da campanha desse ano. Já não eram tão lestos de movimentos como haviam sido no passado e as probabilidades de sobreviverem às futuras batalhas não
eram encorajadoras.
Depois havia os jovens, recrutas novos, saídos do treino e com mais medo dos seus oficiais do que de qualquer inimigo. Envergando uma armadura segmentada brilhantemente
polida, o custo da qual seria subtraído ao seu magro ordenado ainda durante muitos anos, usavam túnicas cuja cor vermelha ainda não começara a desvanecer, os cabos
das suas espadas ainda não estavam gastos pelo uso, e sentiam-se desejosos
por serem integrados e desenvolverem o ar de superioridade dos veteranos.
- Todos presentes? - perguntou Macro a Cato, que apertava a correia do seu elmo.
- Sim, senhor.
- Então vamos andando. - Macro virou-se para a cabeça da coluna vagamente visível e berrou: - Formar!
As fileiras formaram rapidamente, quatro lado a lado.
- Coluna pronta!... Marchar!
Até o mais frágil dos recrutas tinha suportado treino suficiente para responder instantaneamente à palavra de comando, e a coluna moveu-se como um único ser no passo
de marcha normal. O ruído das botas a esmagarem o solo era suavizado pelo ar húmido. Com Cato a seu lado, Macro esperou que a guarda avançada passasse antes de tomar
o seu lugar na cabeça da coluna. Enquanto saíam pelo portão principal do depósito, Cato virou a cabeça e olhou para o passeio das sentinelas, percorrendo a longa
paliçada até encontrar Lavínia. Ergueu uma mão para que ela o pudesse ver, e o seu coração começou aos pulos quando a viu levantar o braço em resposta.
- Presumo que não tenhas dormido muito esta noite.
- Não, senhor - respondeu Cato. - Nada.
- Ainda bem para ti, rapaz! - Macro deu-lhe um encontrão, mas Cato ficara ofendido pela franqueza do seu centurião. - Sentes-te bem? Sinto que uma rápida relação
sexual me deixa fresco como uma margarida.
- Não foi assim tão rápido, senhor. - Cato bocejou, antes que o pudesse impedir.
- Estou a ver. Bom, o melhor é não caíres durante a marcha. Se o fizeres deixo-te à terna mercê dos bretões.
A marcha de regresso à legião fê-los passar ao longo da estrada pela qual o exército avançara apenas algumas semanas antes. Os engenheiros tinham estado muito ocupados
durante esse tempo. A terra de cada lado da via fora limpa das ervas e de qualquer possível refúgio para as forças inimigas, e os cumes de todas as encostas e vaus
estavam protegidos por pequenos fortes vigiados por auxiliares. A coluna de reforços ultrapassou vagões pesados de provisões rebocando alimentos e equipamentos para
as legiões. Na direcção oposta rodavam vagões vazios que regressavam da frente, dirigindo-se ao depósito para serem carregados de novo. Fazia parte da implacável
eficiência romana, que garantia que o avanço para Camulodónia seria feito com as legiões devidamente armadas e alimentadas.
Quando voltassem a pisar o campo, as legiões seriam comandadas pelo Imperador em pessoa, auxiliado pelas suas coortes Pretorianas de elite e pelas vastas passadas
dos elefantes que seriam conduzidos para espezinharem o interior das fileiras inimigas. Cato quase sentiu pena dos nativos. Mas não muita. Não depois do terror e
desespero das últimas batalhas. O que ele almejava era um rápido final de campanha. Um golpe único que quebrasse completamente aos bretões a vontade de resistirem
ao inevitável. Se Carátaco e o seu exército fossem completamente esmagados, certamente as outras tribos aperceber-se-iam que não valia a pena continuarem a resistir.
A ilha tornar-se-ia numa província um dia, não havia dúvidas sobre isso. Não agora que o Imperador estava aqui. Não importava quantas legiões ou elefantes empregasse,
os bretões cairiam de joelhos. Cato prometeu a si próprio que quando tudo acabasse, arranjaria uma forma de se encontrar com Lavínia novamente.
Ao cair de cada noite, quando a última luz do dia desaparecera, Macro parava a coluna nos acampamentos de marcha temporários, anexos aos fortes. Antes da primeira
luz levantava os homens e a coluna iniciava marcha bem antes do nascimento do Sol. O passo rápido era um teste para os seus novos homens, mas também o desejo de
regressar à legião. Era gratificante para ele que nenhum dos homens que escolhera para a sua centúria tivesse caído e juntado à esfarrapada coluna de vagabundos
destinados às outras legiões. Apenas alguns dos que escolhera para a Segunda falharam em manter o passo que ele impusera. Vespasiano ficaria satisfeito com os novos
reforços. Com homens destes na legião a Segunda gozaria de uma boa reputação durante o resto da campanha. E Vespasiano, sabia-o Macro, não era homem para esquecer
aqueles que serviam bem.
Era estranho percorrer um caminho que há tão pouco tempo custara inúmeras vidas. Aqui ficava o caminho da floresta onde a Segunda sofrera uma emboscada de Togodumno
e teria sido esmagada, não fora a intervenção atempada da Décima Quarta Legião. Macro conseguia ver o carvalho, numa colina distante, onde matara Togodumno num combate
corpo a corpo quando o líder bretão fugira na direcção dos pântanos com os seus homens.
No dia seguinte marcharam sobre uma ponte de barcas que atravessava o Mead Way onde, semanas antes, os seus companheiros tinham morrido sob uma chuva de flechas
e fundas tal que a corrente do rio ficara manchada de vermelho. A estrada então curvou para norte e subiu um pequeno declive que depois descia para o Tamesis, por
entre o pântano até à fortaleza na margem sul, onde os navios transportadores os aguardavam para os levarem até ao corpo principal do exército. A ponte estava quase
concluída e os engenheiros esforçavam-se ao máximo para que ficasse pronta a tempo do Imperador conduzir os estandartes da Águia e os seus reforços para território
inimigo.
A coluna de reforços aguardou cansada, enquanto os navios andavam para trás e para a frente pelo Tamesis. Por fim chegou a vez dos reforços da Segunda atravessarem.
Quando acostaram, Macro dispensou a sua centúria e conduziu o resto da coluna para o quartel-general da Segunda, para passar revista na grande avenida em frente
à entrada principal. No interior da tenda dos administrativos ele entregou a lista de nomes, depois de ter marcado os que escolhera para a sua centúria.
- Parece que só escolheste os melhores para nós, Centurião.
Macro virou-se e colocou-se em sentido assim que viu o legado.
- Sim, senhor. Os melhores.
- Muito bem. - Vespasiano tirou o elmo com as penas vermelhas da cabeça. - Agora vou apresentar-me a eles oficialmente.
Entretanto, Cato levou o seu equipamento para a tenda e depois foi à procura de Niso, determinado a chegar ao fundo da questão em relação à fria formalidade do cirurgião
para com ele. Cato ainda não chegara à idade em que a opinião dos outros deixasse de ser um assunto crítico. Mais do que tudo ele empenhava-se para ser digno de
respeito e, pelo menos, queria que Niso explicasse o súbito recuo da sua amizade.
Mas Niso não estava no hospital de campanha, nem na tenda dele, nem sentado no cais. Mais tarde, Cato regressou ao hospital de campanha e perguntou aos auxiliares
onde podia encontrar Niso.
- Niso? - As sobrancelhas do auxiliar franziram.
Cato anuiu, e uma expressão de reconhecimento apareceu no rosto do auxiliar.
- Você é o amigo dele, não é? Admira-me que ainda não saiba.
- Não saiba? - Cato sentiu o sangue a enregelar. - Estive ausente do acampamento. O que aconteceu?
- Niso desapareceu!
- Desapareceu?
- Desapareceu. Há dois dias. Foi pescar para fora do acampamento e nunca mais voltou.
- Quem foi o último a vê-lo?
- Não sei. - O auxiliar encolheu os ombros. - Era suposto encontrar-se com alguém no rio e nunca mais apareceu. Foi assim que ficou registado.
- Ia encontrar-se com quem?
- Com um tribuno. O arrogante residente.
Vitélio. Cato anuiu lentamente com a cabeça.
XXXVIII
Vespasiano chegou ao último dos postos avançados fortificados que cercavam o acampamento principal já depois do meio-dia. Não avisara acerca da inspecção, queria
apanhar cada guarnição no nível habitual de operacionalidade em vez de apresentarem uma exibição para a visita do oficial mais graduado. Vespasiano sentiu-se gratificado
ao ver que lhe pediam a identificação quando se dirigia a cada forte e que a sua admissão era recusada a não ser que pronunciasse a senha correcta. Para lá dos portões,
a maioria das torres de vigia estavam em ordem com armas de infantaria à mão e uma provisão adequada de munições nas plataformas de lançamento de dardos.
O último forte não era excepção, e Vespasiano e a sua escolta montada trotaram através do portão e foram imediatamente confrontados por uma fileira de legionários
que se alinhava à entrada. O optio deu a ordem para que se fechasse o portão assim que a última escolta do legado entrou.
- O que é isto, Cato? - Vespasiano acenou para o legionário quando desmontou. - A guarda de honra?
- Uma precaução, senhor. - Cato fez a saudação. - O portão é sempre o ponto mais fraco da defesa.
- Arquimedes?
- Sim, senhor. Do tratado dele sobre cercos de guerra.
- Bom, ele tem razão e fazes bem em seguir os seus conselhos. Quantos tens na tua força?
- Quarenta homens, senhor. E quarenta na outra meia centúria no outro posto avançado, com o centurião Macro.
- Portanto, estão novamente à força máxima, com o melhor da colheita. Não esperarei nada menos do que o melhor da Sexta Centúria da Quarta Coorte a partir de agora.
Certifica-te de que não me desaponte.
- Sim, senhor.
- Muito bem, vamos dar uma vista de olhos.
Vespasiano iniciou a inspecção, com o optio ansioso a seguir-lhe no encalço. As tendas foram escrutinadas em busca de qualquer sinal de cordas mal colocadas, costuras
com fugas e armazenagem desleixada de camas. A latrina foi examinada para se assegurarem de que ainda não atingira o nível ao qual necessitava de ser tapada e outro
buraco escavado. Em seguida, Vespasiano subiu para a rampa de turfa e vistoriou a paliçada. Na plataforma da artilharia examinou cuidadosamente as bobinas mecânicas
para se assegurar de que estavam adequadamente oleadas e acenou aprovadoramente para o cheiro a óleo de linhaça nas molas de torção. Estava a experimentar a plataforma
de elevação quando ouviu um grito da torre de vigia.
- Inimigo à vista!
O legado e o optio olharam rapidamente para a silhueta rígida da sentinela no cavalete da plataforma bem acima deles.
- Em que direcção e que força? - indagou Cato.
- A oeste, senhor! Talvez a duas milhas. - A sentinela apontou com o dardo. - Um pequeno grupo de cavaleiros, talvez quinze ou vinte. Vêm nesta direcção.
- Vamos! - Vespasiano liderou o caminho, para a escada de madeira que levava à torre. Emergiu através da abertura na plataforma e chegou-se para o lado da sentinela
enquanto Cato subia atrás dele.
- Ali, senhor. - A sentinela apontou novamente e além da ponta do dardo estava uma colina distante. Vespasiano conseguia distinguir as formas minúsculas dos cavalos
que galopavam à frente de uma densa mancha de pó castanho levantado pelos cascos. A terra à frente da torre de vigia era maioritariamente relvada, misturada com
pequenos bosques e carvalhos, mas os cavaleiros não faziam qualquer tentativa para se esconderem e avançavam directamente para a torre de vigia.
- Não creio que eles nos tentem atacar - murmurou Vespasiano.
- Mesmo assim, senhor, penso que devíamos colocar os homens a postos - disse Cato.
- Está bem.
Cato berrou a ordem e a meia centúria pegou nas armas e aproximou-se da muralha. O legado continuava a observar os cavaleiros que se aproximavam rapidamente. Conseguia
agora ver que eram dois grupos. Um grupo de três ia à frente e, pelos constantes olhares por cima dos ombros, era evidente que estavam a ser perseguidos pelos outros.
Os berros estridentes dos perseguidores eram já audíveis.
- Carreguem o lançador de dardos! - ordenou Cato. A equipa da artilharia distendeu o cabrestante e os estalidos da cremalheira competiam
com o burburinho excitado dos soldados que observavam a perseguição. O humor dos homens era compreensível, mas não tolerável, e Vespasiano ergueu uma sobrancelha
ao optio. Cato inclinou-se na muralha.
-Silêncio! O próximo homem que abrir a boca será castigado.
Com os cavaleiros a um escasso quarto de milha, Vespasiano conseguia ver os mantos púrpuras e o cabelo comprido chicoteando atrás dos três homens perseguidos. O
espaço entre os dois grupos estreitava para apenas algumas jardas e os homens que vinham atrás uivavam o seu triunfo enquanto perseguiam a presa, preparando-se para
a matança com as suas lanças afiadas. Os homens mais próximos do forte olharam para cima e acenaram aos romanos.
Vespasiano sobressaltou-se. - É Admínio! Abre o portão, Optio! Rápido, homem!
A secção no portão retirou a barra e puxou a porta para dentro. Cato ordenou aos lançadores de dardos que estivessem a postos para disparar.
-Apontem para o segundo grupo. Disparem assim que os primeiros estejam a salvo!
Enquanto os cavaleiros galopavam na direcção da torre de vigia, apenas cinquenta pés separavam os dois grupos. Admínio e os seus guarda-costas fizeram um arco e
aproximaram-se do portão por um dos lados, criando um espaço para a artilharia disparar. Um legionário soltou a alavanca e o lançador de dardos disparou um projéctil
com estrondo. Ouviu-se um golpe agudo quando o dardo atingiu um dos bretões mesmo abaixo da garganta, trespassando-o e enterrando-se na testa desgrenhada do cavalo
que vinha imediatamente atrás. Besta e cavaleiro caíram numa massa de coices, esparramando-se mesmo no caminho dos cavaleiros que vinham atrás. Apenas alguns conseguiram
controlar os animais e continuar atrás das suas presas. Quando viu a entrada do portão, o líder bretão apercebeu-se de que perdera a corrida, e arremessou a lança
para Admínio e os seus homens. A forma escura curvou no ar e atingiu o homem que ia em último, em cheio entre os ombros, e este caiu para o lado enquanto Admínio
esporeava o cavalo para o interior da torre de vigia.
A secção que estava ao portão acorreu para a abertura e mostrou os seus escudos e dardos de arremesso aos bretões que perseguiam Admínio. Assim que viram os legionários,
os cavaleiros desistiram, expressões de raiva e frustração apoderando-se das suas feições.
- Apanhem-nos! - gritou Cato da torre. - Usem os dardos de arremesso.
A secção respondeu prontamente e, instantes mais tarde, mais dois homens e cavalos estavam no chão, na via imunda defronte ao portão. Os outros viraram-se e fugiram
a galope, deitando-se sobre o pescoço
das suas montadas, para o caso de serem atirados mais dardos.
Cato seguiu o legado, desceram a escada e correram ambos para o portão onde Admínio tinha caído do cavalo e se deitava de costas, a recuperar o fôlego, os olhos
fechados a revelarem dor. Havia um rasgão largo num dos lados da túnica, que estava ensopada de sangue.
- Estás ferido. - Vespasiano virou-se para a sua escolta e berrou uma ordem para que trouxessem imediatamente um cirurgião do acampamento principal. Os olhos de
Admínio abriram-se ao som da voz do legado e ele debateu-se por se levantar.
- Calma! Descansa. Já mandei buscar um cirurgião.-Vespasiano ajoelhou-se ao lado de Admínio.-Vejo que as negociações com as tribos não correram bem, desta vez.
Admínio sorriu debilmente, o seu rosto estava pálido pela perda de sangue. Agarrou no manto do legado. Cato aproximou-se mas foi mandado recuar.
- Te... tenho algo para te contar! - sussurrou Admínio ansiosamente. - Um aviso.
- Um aviso?
- Há uma conspiração para assassinar o imperador.
- O quê?
- Não sei os pormenores todos... porque Carátaco estava lá a tentar convencer os outros a juntarem-se à luta contra Roma... Um dos conselheiros dele estava bêbado...
começou a gabar-se de que os invasores deixariam a ilha em breve... que a guerra entre os romanos começaria a partir do momento em que o Imperador fosse morto. O
homem disse-me que seria ajudado por um romano.
- Um romano? - Vespasiano não conseguia esconder o choque.
- Esse conselheiro de Carátaco disse algum nome?
Admínio abanou a cabeça. - Foi impedido de o fazer. Carátaco chamou-o.
- Carátaco sabe o que o homem revelou?
Admínio encolheu os ombros. - Não sei.
- Aqueles homens que te perseguiam, achas que foram enviados para te matar?
- Não. Cruzámo-nos com eles por acaso. Não nos estavam a seguir.
- Estou a ver. - Vespasiano pensou durante uns instantes, depois virou-se para Cato. - Ouviste tudo?
- Sim, senhor.
- Não revelarás uma única palavra do que Admínio acabou de dizer, a não ser que eu te dê uma autorização expressa. A ninguém. Compreendido?
Vespasiano e a sua escolta voltaram ao entardecer para o acampamento principal. O legado dispensou os seus homens e dirigiu-se directamente para o quartel-general
de Pláucio. A testa franzida demonstrava o seu mal-estar enquanto percorria a fila de tendas. O rumor sobre o qual Admínio falara podia nãa passar de uma bravata
de um seguidor de Carátaco ansioso por sefreconhecido como um homem que sabia das coisas, mas a ameaça não podia ser ignorada dada a quantidade de armas romanas
que tinham sido encontradas nas mãos dos nativos. Tudo cheirava a uma grande conspiração. Seria possível que a rede dos Liberais chegasse a terras tão longínquas
como as da Britânia? Se sim, então eram verdadeiramente uma força a ser considerada. Se a informação de Admínio estivesse fundamentada, então havia um traidor no
exército.
O primeiro pensamento de Vespasiano foi para Vitélio. Mas colocaria tão em risco a sua vida? Vespasiano desejava conhecê-lo melhor para poder avaliar. Seria Vitélio
tão arrogante e imprudente para fazer uma tentativa directa e levar mais além as suas grandiosas ambições políticas? Decerto seria mais cuidadoso do que isso.
Por outro lado, o contacto romano do assassino podia nem pertencer ao exército. Havia já um grande número de civis a seguir no encalço do exército; agentes de escravos
vindos de Roma à procura de negócios, comerciantes de vinho ansiosos por aprovisionarem as legiões, agentes de terrenos que delimitavam as melhores terras para que
o Imperador as comprasse, e todo o género de acompanhantes do acampamento e mercadores, agora que o exército se estabelecera até ao Tamesis. Talvez o traidor estivesse
entre o próprio séquito do Imperador. Tal pessoa estaria certamente bem colocada para dar assistência a um assassino. Esta possibilidade fez o coração de Vespasiano
afundar-se como uma rocha e subitamente sentiu-se cansado e completamente deprimido.
Flávia viajava com o séquito imperial.
Toda a aterrorizadora incerteza acerca da mulher que ele desejava amar sem reservas torturou-o novamente. Como poderia ela? Como poderia arriscar tanto? Não só a
ela, mas também a ele e ao filho, Tito. Como podia ela colocá-los num perigo tão grande? Mas, disse para consigo, Flávia podia estar inocente. Podia ser outra pessoa
qualquer o traidor. Decerto seria.
Fosse qual fosse a verdade, se houvesse de facto uma conspiração para matar o Imperador, então o General Pláucio devia ser informado de imediato. Independentemente
dos riscos que Flávia pudesse vir a correr.
XXXIX
O general estava mesmo a sair da sua tenda no posto de comando quando Vespasiano chegou. Áulio Pláucio envergava a sua armadura cerimonial completa e o sol da tarde
reflectia-se brilhantemente na excelente couraça e no elmo dourado. À sua volta os oficiais superiores aglomeravam-se com trajes igualmente pomposos. Um conjunto
de cavalos bem tratados subia a encosta em direcção ao local onde eles os aguardavam no exterior do quartel-general.
- Ah! Vespasiano. Presumo que o dia tenha corrido bem.
- Senhor, preciso de lhe dizer uma coisa. Em particular.
- Em particular? - Pláucio parecia irritado. - Então vai ter que esperar.
- Mas, senhor, é vital que eu lhe diga imediatamente o que sei.
- Não nos podemos atrasar mais. O Imperador e os reforços estão para além do declive, no outro lado do rio. Têm que ser recebidos com todas as formalidades assim
que entrem no campo sul. Agora vá e vista o traje cerimonial. Depois junte-se a mim o mais depressa possível no outro lado do rio.
- Senhor...
- Vespasiano, são estas as ordens. Cumpra-as sem perguntas.
Os cavalos haviam chegado à tenda do quartel-general e, sem mais palavras ou sequer um olhar para Vespasiano, Áulio Pláucio montou na negra égua lustrosa e puxou
as rédeas para virar o cavalo na direcção da nova ponte. Depois de um golpe agudo com os calcanhares, o animal andou para a frente num galope brando e o resto da
comitiva subiu para as suas montadas e apressou-se a apanhá-lo. Vespasiano ficou a vê-los partir, o braço erguido para se proteger do pó que se elevou no ar. Depois
bateu na sua coxa irritadamente e regressou à sua legião.
Cláudio e os seus reforços teriam chegado ao acampamento na margem sul antes do anoitecer, se não fosse por Narciso. A coluna foi parada no declive enquanto o liberto
foi à frente na sua liteira para fazer os arranjos necessários para uma entrada dramática. A liteira parou à frente dos oficiais graduados e estes aguardaram numa
antecipação silenciosa que o ocupante emergisse. Com exactidão, os carregadores baixaram a liteira e um par de homens apressou-se a abrir as cortinas. As plumas
nos elmos dos oficiais inclinaram-se quando esticaram os pescoços para verem melhor a liteira, aguardando que o Imperador saísse num estranho rompimento do protocolo.
Ouviu-se um audível suspiro de desapontamento quando Narciso saiu da liteira e cumprimentou o general.
- Áulio Pláucio? Bonito acampamento que tem por aqui. - Narciso fez uma pausa para fitar os mantos e as armaduras polidas dos oficiais que estavam diante dele. -
Olá, cavalheiros, estou sensibilizado com estas boas-vindas. Não era necessário.
Áulio Pláucio rangeu os dentes num esforço para não se descontrolar. Permaneceu em silêncio quando o liberto caminhou para ele sorridente e lhe estendeu a mão.
- Pois bem, não nos demoremos mais. Precisamos de preparar a chegada do Imperador. Deixe os seus oficiais assistentes ficarem para ajudarem na organização. Os restantes
podem ir embora e esperar onde quer que costumem ficar entre batalhas.
Enquanto os oficiais se aglomeravam impacientemente na cheia tenda da messe dos oficiais, Narciso transmitiu rapidamente as ordens que enviaram legionários a correr
à volta do acampamento na procura do material necessário para concretizarem o efeito teatral que o Secretário do Imperador desejava. Vespasiano tomou banho, perfumou-se
e vestiu um traje cerimonial vistoso, e conseguiu juntar-se aos oficiais reunidos no exterior do quartel-general na altura em que os procedimentos começavam.
Muito depois dos últimos raios de Sol terem sido roubados pela noite, um toque estridente de trompetas no portão principal anunciou a chegada de Cláudio. Na avenida
que ia do portão até ao pretório de madeira, alinhavam-se legionários segurando archotes ao alto. À luz laranja das chamas douradas, a coorte superior da Guarda
Pretoriana entrou no acampamento. O branco dos seus uniformes e escudos produzia uma certa dose de ressentimento silencioso nos homens que tinham combatido até ao
Tamesis. Mais coortes se seguiram e formaram em frente do pretório. Depois vinham alguns rapazes com túnicas
púrpura, carregando cestos de vime dourado, que espalhavam pétalas de flores pelo chão. Finalmente, outro toque das trompetas cortou o ar nocturno, desta vez acompanhado
de um outro género de música, que poucos homens no exército invasor haviam alguma vez ouvido.
Caminhando ao fundo da avenida dos archotes ondulantes vinham os elefantes, com o Imperador no dorso de um na fila da frente. Os legionários ao longo da avenida
começaram a gritar "Imperador! Imperador! Imperador! ", a tradicional aclamação a um amado e respeitado comandante. Cláudio estava sentado atrás do condutor do elefante
num trono elaborado especialmente para ser colocado num elefante. Sem inclinar ou virar a cabeça, o Imperador acenava com uma mão em reconhecimento. Vestia uma magnífica
couraça em prata com jóias que brilhavam como olhos vermelhos e verdes à luz das tochas. Flutuando à sua volta estava um manto de púrpura imperial. Na cabeça trazia
uma coroa de ouro cujo lustre se reflectia no brilho cintilante.
O condutor do elefante do Imperador parou-o e obrigou-o a abaixar-se com uma série de pontapés e ordens. Os joelhos dianteiros curvaram-se graciosamente e o Imperador,
ainda a acenar desinteressadamente para as tropas que o ovacionavam, foi quase atirado ao chão e só evitou essa indignidade porque se atirou para trás e se agarrou
aos braços do trono. Mas mesmo assim a coroa imperial deslocou-se. Rolou pela parte lateral do elefante e teria caído no chão se Narciso não se tivesse lançado,
apanhando-a com uma mão. A besta baixou a parte traseira e o Imperador puxou uma alavanca escondida para libertar a parte lateral do trono que se desdobrou numa
série de degraus.
- Oh! Espectacular! - maravilhou-se Vitélio, que estava no seu lugar ao lado de Vespasiano.
O Imperador desceu, voltou a colocar a coroa devolvida discretamente por Narciso, e coxeou para a frente para cumprimentar o general do seu exército.
- Meu querido Áulio Pláucio. F... F... Faz-me bem ao coração vê-lo novamente.
- O prazer e a honra são meus, César - pronunciou Pláucio e inclinou a cabeça.
- Sim, muito sim... simpático da sua parte, de... de... devo
dizer.
- Espero que tenha feito uma boa viagem, César!
- Não. Ne... nem por isso. Apanhámos uma tem... tempestade assim que saímos de Ostia e as estradas na Gália ne... necessitam de reparação. Mas os companheiros da
fro... fro... frota do canal eram muito solícitos. E sabe Pia... Plácio, em todos os fortes que passei desde
que acostei em Ru... Rutúpia aclamaram-me como Imperador. Que lhe parece? - Os olhos brilharam orgulhosamente, e o tique nervoso que nunca controlara enfatizou o
seu orgulho com uma súbita contracção de cabeça que quase fez novamente cair a coroa. Pendia agora num ângulo delicado acima do olho esquerdo e, atrás dele, Narciso
teve que conter a mão quando começava instintivamente a mover-se para endireitar o símbolo do cargo do seu amo. Cláudio virou-se abruptamente para o secretário.
- Narciso!
- César?
- Quantas vezes me chamaram Imperador?
- Dezoito vezes, incluindo esta noite, César.
- Aí es... está! Está a ver? Mais do que Augusto e Tibério alguma vez tiveram!
Narciso inclinou a cabeça e sorriu modestamente para a proeza.
- Não menos do que merece, César - disse Pláucio respeitosamente. Estava a um lado e apontou para os seus oficiais superiores com a mão. - Posso apresentar-lhe os
meus legados e tribunos, César?
- O que disse? - Cláudio virou um ouvido para ele. As tropas estavam demasiado entusiásticas na sua aclamação e estava a tornar-se difícil conversar à distância
protocolar entre o Imperador e os subordinados. Existia um acordo diferente entre o Imperador e o seu liberto uma vez que este último estava tão em baixo socialmente
que não havia qualquer protocolo. Cláudio acenou a Narciso e gritou-lhe a um ouvido.
- Olha, é mui... muito bom e tudo, mas po... po... podes dizer a alguém para os calar? Não con... con... consigo ouvir nada.
- É para já, César! - Narciso fez uma vénia, recuou e acenou para os centuriões chefes da Guarda Pretoriana e depois apontou para o chão a seus pés. Vespasiano olhou
pasmado para õs centuriões a responderem imediatamente ao gesto do liberto. Narciso estava, claramente, muito bem posicionado ao lado do Imperador, tanto que podia
obter obediência instantânea daqueles cidadãos livres de Roma que eram nominalmente seus superiores. As instruções foram transmitidas rapidamente, e os centuriões
apressaram-se a pedir silêncio aos homens alinhados ao longo da estrada e os berros começaram a esmorecer rapidamente.
- Ah! Muito me... melhor! Pláucio, estava a di... di... dizer?
- Os meus oficiais, César. Gostaria de os apresentar.
- Claro que gostaria. Muito b.. .b... boa ideia.
O Imperador percorreu a fila de legados e tribunos, agrupados por legiões, repetindo uma série de frases feitas enquanto passava.
- Estão a fa... fazer uma boa campanha? Gostaria de me ter jun... jun... juntado a vocês mais cedo. Talvez pa... pa... para a próxima.
- Tiveram umas bo... bo... boas batalhas, segundo ouvi. Espero que lhes tenham mos... mos... mostrado como são duros os romanos!
- Espero que me tenham dei... dei... deixado bárbaros suficientes para um combate decente.
Até que chegou a Vespasiano.
Coxeou desde o último tribuno da Nona Legião e deteve-se perante o legado da Segunda.
- Espero que... Oh! É Flávio Vespasiano. Como está, meu rapaz?
- Bem, César.
- Bom, isso é bom. Muito b... bom. Tenho ouvido coisas excelentes acerca do seu irmão. Deve estar orgulhoso dele.
- Sim, César - respondeu Vespasiano friamente.
- Bom, continue o b... b... bom trabalho e talvez um dia consiga ter o comando da sua própria legião.
- César - interrompeu Narciso subitamente. - Este é o irmão Flaviano que comanda a Segunda.
- Então quem é o outro?
- Flávio Sabino. Anexado aos assistentes.
A leve confusão não esmoreceu o semblante do Imperador. - Ah! Então este é o que é casado com a... a... aquela. Como é o nome dela?
- Flávia, César - respondeu Vespasiano.
- Claro! É esse o nome dela. Ela tem aquela es... escrava jeitosa, não tem? Não me importava de vê-la mais de perto um dia destes. A escrava, claro - acrescentou
apressadamente Cláudio enquanto Vespasiano tentava ocultar o seu ultraje. - Mas a sua Flávia tam... tam... também é uma rapariga muito bonita. Um po... pouco atrevida
também, não é, Narciso? - O Imperador piscou os olhos ao seu liberto mas o seu tique levou a melhor e o seu rosto sofreu uma convulsão. Narciso corou e virou-se
para Pláucio.
- Apresente o próximo oficial, por favor.
- Vitélio, tribuno superior da Segunda, César.
- Vitélio, meu rapaz, tudo bem?
- Como sempre, César - disse Vitélio com um sorriso afectado.
- O teu pai manda sau... saudações e espera... e espera... - o rosto de Cláudio enrugou-se com a concentração antes da memória regressar. - Ah! Já me lembro! Espera
que re... represente bem a família. Vai ao nosso fes... festim desta noite?
- Desculpe, César, mas devido à carga onerosa dos deveres que o legado coloca em cima de mim preciso de me deitar cedo.
Cláudio riu. - Quem perde é você, meu rapaz. To... tome conta de si, jovem Vitélio e irá lon... longe.
- É o que desejo, César.
Cláudio continuou pela fila de oficiais e Vitélio arriscou um rápido piscar de olhos ao seu legado possesso de raiva. Assim que o último oficial superior foi apresentado,
Cláudio saudou formalmente os estandartes e fez a libação tradicional no altar do exército. Então Narciso conduziu o Imperador para os elaborados aposentos que haviam
sido montados dentro das muralhas do Pretório. Assim que Cláudio saiu de vista, o General Pláucio dispensou os oficiais e deu sinal às unidades Pretorianas e aos
elefantes para se retirarem. Seriam aquartelados em tendas já montadas junto ao local da parada, o local mais próximo do Imperador, aquele que haviam jurado proteger
com as suas vidas.
Vespasiano apressou-se para junto do seu comandante e colocou-se à frente dele, determinado a transmitir o aviso sem mais atrasos. Pláucio deitou-lhe um olhar cauteloso
e premiu os lábios. - Não pode esperar até depois de se encontrar com a sua esposa?
- Não, senhor.
- Muito bem, só um momento.-As suas próximas tarefas teriam de aguardar.
- Em particular, senhor. - Por cima do ombro do General, Vespasiano conseguia ver Vitélio a tentar ouvir. - O que tenho a dizer é somente para os seus ouvidos.
- Raios! Não tenho tempo para isso.
- Tem sim, senhor. Acredite em mim.
Pláucio não deixara de notar a insubordinação a que o legado se arriscava. Assentiu rapidamente, conduziu-o até à recepção do quartel-general e virou para o seu
gabinete. Alguns escrivães olharam surpreendidos para eles.
- Saiam - ordenou Pláucio e os escrivães pousaram instantaneamente as suas penas e saíram da sala. Pláucio fechou a abertura e virou-se irritado.
- Agora, importa-se de me dizer o que raio é tão importante que tenho que o ouvir em pessoa e em particular?
Vespasiano disse-lhe.
XL
O acampamento do lado sul já há muito que havia acalmado para o descanso nocturno quando a tenda do quarto de Flávia se abriu. Uma sombra escura entrou sorrateiramente
e subiu cautelosamente para a cama de viagem. Vespasiano serviu-se do brilho fraco do único candeeiro a óleo, ainda a arder nas proximidades, e olhou para a sua
esposa que dormia, maravilhosa na sua perfeição sonolenta. O rosto de Flávia era macio na gentil luz alaranjada e com os lábios ligeiramente afastados respirava
profundamente num ritmo cadenciado que parecia as ondas do mar ao longe. Madeixas negras de cabelo espalhavam-se pela almofada de seda e ele inclinou-se para lhes
sentir o cheiro, sorrindo ao aroma familiar. Endireitando-se, Vespasiano deixou os seus olhos percorrerem-lhe o peito, erguendo-se ligeiramente e caindo a cada expiração,
e o seu olhar parou nas ondas de seda que se colavam às curvas do corpo dela.
Durante alguns momentos rendeu-se ao amor arrebatador que sentia por ela. Estava tão perto de si que era quase carne da sua carne, tão ingénua no seu sono que lhe
parecia tal como nos primeiros dias loucos da sua paixão. O fruto dessa paixão, sabia-o, descansava no quarto ao lado.
Ele fora ver o pequeno Tito antes da sua mulher. O rapaz estava deitado de costas, um braço atrás da cabeça, a boca aberta, o tufo do cabelo negro suave ao toque.
As feições da sua mãe estavam reproduzidas nele numa miniatura querubina e, ainda assim, Vespasiano sentia uma pontada de raiva por causa da sua esposa estar a estragar
o momento.
Ficou a fitar a mulher durante alguns momentos, depois deitou-se no colchão suave. Houve um pequeno restolhar de seda contra a lã vulgar da sua túnica militar e
uma deslocação da posição confortável que o corpo dela escolhera para dormir. Flávia virou-se, perturbando o ritmo da sua respiração, e um ruído seco no fundo da
sua garganta transformou-se em sopro. Abriu os olhos, fechou-os por uns instantes e
depois abriu-os novamente, durante mais tempo. Sorriu.
- Pensei que nunca mais vinhas.
- Já cheguei.
- Estou a ver. Onde estiveste?
- Tive trabalho.
Flávia susteve a cabeça com a mão. - Tão importante que não pudeste vir ver-me primeiro?
Vespasiano assentiu. - Sim, receio que tenha sido tão importante.
Ela olhou fixamente para ele e subitamente abraçou-o e inclinou a cabeça para ele. Os lábios deles encontraram-se. Suaves e indecisos de início e depois com a firmeza
reconfortante de uma longa relação amorosa. Vespasiano afastou-se e fitou os olhos fechados dela.
- Estava a precisar - murmurou ela. - Há mais de onde esse
veio?
- Mais tarde.
- Mais tarde?
- Precisamos de falar. Não pode esperar.
- Falar? - Flávia sorriu. - Com certeza que não.
Deslizando a mão para a bainha do lençol de seda ela puxou-o para
baixo revelando o corpo despido, como uma serpente sinuosa a mudar de pele, pensou Vespasiano. A similaridade perturbante conduzia novamente a sua mente para o que
tinha que fazer. Nesse momento. Sem protelar. Pegou gentilmente na mão dela e voltou a puxar os lençóis para lhe tapar os seios. Os seus movimentos deliberados espantaram
Flávia. Sentiu-se ofendida e franziu as sobrancelhas.
- Que se passa? Querido, diz-me.
Vespasiano olhou-a com uma expressão fria, não confiando em si próprio para iniciar a conversa enquanto não estivesse no controlo total das suas emoções.
Flávia estava alarmada e ergueu-se rapidamente para que ficasse sentada diante do marido. - Tu não me amas. É isso, não é? - Os seus olhos de amêndoa abriram-se
em pânico e os seus lábios tremeram. Cerrou o maxilar para os conter.
Vespasiano não antecipara este cenário; que tivesse que a convencer do seu amor antes de a acusar de traição. Abanou a cabeça.
- Então o que foi? Porque estás tão frio comigo, marido?
Havia medo no seu rosto e um olhar que ele estava relutante em interpretar como a suspeição de que as intrigas dela haviam sido descobertas. Felizmente não o tinham
sido.
- Seu cabrão! - Deu-lhe um tabefe forte. - Quem é ela? Como se chama a pequena pega?
- De que é que estás a falar? - Vespasiano agarrou o pulso dela quando a sua mão ganhava balanço para outro tabefe. - Não há mais nenhuma mulher! É tudo acerca de
ti!
- De mim? - Flávia parou. - Que é que eu tenho?
- Tenho que saber sobre ti... e a tua relação com os Liberais.
- Não sei do que estás a falar. - Deixou cair as mãos no peito e ficou a olhar para ele, devolvendo o seu olhar com o que parecia ser franqueza.
- Já ouviste falar nos Liberais, Flávia?
- Claro que sim. Há muitos rumores sobre eles. Mas o que é que eu tenho com isso?
Vespasiano olhou para o seu colo e quando continuou tinha na voz uma qualidade dura. - Flávia, eu sei do teu envolvimento na conspiração contra o Imperador. Eu sei
que conspiraste com aqueles que tentaram que o exército se amotinasse antes da invasão. Tentaste esconder-me, mas eu agora sei tudo. Conspirar com os chamados Liberais
já é mau o suficiente, mas como pudeste envolver Tito na traição? Como pudeste? O teu próprio filho? Também sei que tentaram matar Narciso. E o que estão a preparar
agora tu e os teus amigos Liberais? Estão a fornecer armas aos nossos inimigos? A conspirar para assassinar o Im...
- Isto é absurdo! - Flávia cuspiu-lhe. - De que loucura provém todo este veneno?
- De ti, minha esposa.
- Estás louco.
- Não, apenas cego - disse suavemente Vespasiano. - Até há pouco tempo.
Flávia sentou-se direita, pronta para reafirmar o protesto, mas Vespasiano apontou para ela.
- Não! Deixa-me acabar. Nunca suspeitei de ti, nunca. Pensei sempre que éramos uma mente só, com um propósito na vida. Confiei em ti em todos os aspectos. Depois,
quando as tuas maquinações me foram reveladas, pensei que as acusações eram ridículas. Mas no momento em que me forcei a juntar as peças, a tua culpa era total!
Oh Flávia! Se imaginasses a dor que senti.
- Quem te disse isso? Quem me acusou?
- Não importa.
- Claro que importa. És tão ingénuo que acreditas na palavra de uma pessoa? E acreditarias noutra pessoa mais do que na tua mulher?
- Acredito na minha própria consciência. Tive que descobrir a maior parte por mim próprio.
- Esposo, não te ocorreu questionares os motivos da pessoa que me
acusou? Porque quereriam eles plantar sementes de dúvida na tua mente? Se me disseres a fonte dessas falsas acusações, talvez consiga perceber o verdadeiro objectivo
delas.
A sinceridade da expressão da voz dela fez com que Vespasiano parasse. Seria este o sinal de inocência que ele buscava? Poderia ser verdadeiramente inocente? Podiam
as suas deliberações sobre a traição dela estar erradas?
- O nome? - insistiu ela.
Porque estaria ela tão determinada em saber o nome, perguntou-se Vespasiano. Decerto se ela era inocente o nome importava menos do que o conteúdo das acusações.
Então ocorreu-lhe que o verdadeiro interesse em saber o nome podia ser a vingança, ou para liquidar a fonte das acusações e proteger os acusados.
- Não há necessidade de saberes o nome.
- Há, esposo. Já te disse porquê.
- Pensei que estarias mais preocupada em convencer-me da tua inocência, em vez da culpa de outra pessoa. Seria mais natural.
- Estou a ver. - Flávia reclinou-se, afastada dele, olhando para o seu marido friamente enquanto pensava na próxima jogada. - Pensas que sou anormal, alguma espécie
de monstro? O mesmo monstro que deu vida ao teu filho!
- Basta, Flávia! - Vespasiano estava demasiado cansado para seguir tal argumento. Estava a afastar-se demasiado do assunto que pretendia. Tinha esperança que conhecesse
a mulher o suficiente para detectar alguma falsidade. Ele tinha feito as suas acusações e ela tinha-as refutado e, mesmo assim, não estava claro para ele se ela
estava ou não envolvida com os Liberais.
- Compreende, tenho que perguntar. Tenho que saber o que andas a fazer. Se estás a conspirar com os inimigos do Imperador, mesmo que a um nível indirecto, tens que
me dizer. Farei os possíveis por te proteger das consequências. Não sou nenhum doido, Flávia. Se houver alguma forma de ocultarmos este assunto dos agentes de Narciso
fá-lo-emos. É melhor um segredo de culpa do que uma exposição perigosa. Mas tens de me prometer que vais cortar todas as ligações com os traidores e não voltar a
ter negócios com eles, nunca mais. Conta-me tudo, jura contar-me toda a verdade e tudo permanecerá escondido no passado. - Olhou para ela fixamente para avaliar
o efeito das suas palavras e esperou pela resposta.
Flávia pegou na mão dele e levou-a ao peito dela. - Esposo, juro pela minha vida que não estou envolvida com os Liberais. Juro.
Vespasiano queria acreditar nela. Queria-o desesperadamente e, no
entanto, apesar do seu juramento, ainda restava uma reserva de dúvida no fundo da mente e não ficara satisfeito.
- Muito bem. Acredito na tua palavra. E fico grato. Mas, Flávia, se me estiveres a fazer de idiota e se alguma vez descobrir...
Não havia necessidade de ameaças. Ele apercebeu-se de que ela conhecia as consequências de uma tal descoberta. Flávia devolveu o seu olhar perscrutador durante um
instante antes de assentir solenemente.
- Estamos entendidos então. - Vespasiano apertou a mão dela de forma a assegurá-la dos seus sentimentos, o que quer que acontecesse.
- Bem, estou cansado, muito cansado. Há lugar para dois nesta cama?
- Claro, esposo.
- Ainda bem. Não te posso dizer o quanto tive saudades de dormir nos teus braços.
- Eu sei - sussurrou Flávia.
Vespasiano tirou a túnica pela cabeça e abaixou-se para desapertar os cordões das botas. Enquanto ele se despia, Flávia passou-lhe os dedos hesitantemente pelas
costas, e fê-lo da forma que sabia que ele gostava. Mas não haveria paixão esta noite. Tinha havido demasiada incerteza e dor entre eles. Vespasiano deitou-se debaixo
dos lençóis e beijou a esposa ternamente na testa. Ela aguardou para o caso de existirem mais, mas os olhos dele fecharam-se logo a seguir e a respiração tornou-se
profunda e cadenciada quase instantaneamente.
Ela fitou-o durante algum tempo, depois virou-se e arqueou carinhosamente o seu corpo nas curvas do seu esposo, sentiu os pêlos rudes dos genitais dele contra a
pele macia das suas nádegas. Mas houvera pouco prazer neste encontro com o seu esposo e, muito depois de ele ter adormecido, ela ainda permanecia acordada, profundamente
perturbada.
Magoava-a ter enganado o marido, mas ela tinha feito um juramento anterior, pela vida do filho, que tinha precedência. Os Liberais exigiam secretismo absoluto e
ameaçavam com a mais terrível das vinganças aqueles que não respeitassem e honrassem o segredo. Embora ela os tivesse servido lealmente durante quase dois anos,
o temor diário de que fosse descoberta tornara-se insuportável. Já não pertencia à organização dos Liberais, e até esse ponto tinha sido honesta com o marido. No
entanto, aprendera o suficiente para saber que o fornecimento de armas aos bretões tinha sido negociado pelos Liberais quando o Imperador anterior, o doido Calígula,
resolvera conquistar a Britânia. O plano consistira em minar sempre qualquer campanha que servisse para impulsionar o prestígio do Império. Com tantas derrotas militares
e campanhas de rumores lançadas nas ruas de Roma, a credibilidade da família imperial seria constantemente erodida. No fim, a multidão
imploraria aos aristocratas que tomassem o controlo do Império. Seria essa a coroa do objectivo dos Liberais.
Esse dia ainda estava distante, acabou por se aperceber Flávia. As poucas pessoas que ela sabia estarem ligadas à organização secreta estavam mortas e Flávia não
queria partilhar o destino delas. Enviara para Roma uma mensagem codificada pelas vias habituais: uma caixa numerada num gabinete de um agente de correspondência
em Aventino. Flávia havia escrito simplesmente para não contarem mais com os serviços dela para a causa. Sabia que seria improvável que os Liberais aceitassem a
sua desistência. Teria que estar atenta.
Flávia ficara profundamente chocada por saber que o seu envolvimento com os Liberais fora descoberto por Vespasiano. E se ele o descobrira, quem mais? Narciso? Mas
se o secretário tivesse conhecimento disso, certamente já estaria morta. A não ser que ele estivesse a fazer um jogo mais profundo, usando-a como isco para apanhar
os outros membros da conspiração.
XLI
Longe do cortejo de chegada do Imperador, Cato estava a fazer as rondas do forte designado à sua meia centúria. Quinhentos passos mais à frente no declive estava
o forte atribuído a Macro e aos outros quarenta homens. A linha de postos avançados formava um perímetro que protegia o acampamento principal a uma milha do rio,
e o declive proporcionava uma boa visão das terras a norte do Tamesis. Durante o dia nenhuma força bretã conseguiria aproximar-se sem ser detectada e as pequenas
guarnições teriam muito tempo para esperarem o reforço do exército principal, se necessário.
À noite, no entanto, a situação era bem diferente e os olhos e ouvidos das sentinelas esforçavam-se para identificar qualquer ruído suspeito ou mudança numa sombra
para além dos muros de turfa. Com a chegada do Imperador, as sentinelas estavam mais excitadas do que o habitual, e Cato ordenou que se revezassem de cada vez que
as trompetas do acampamento principal soassem a hora. Melhor assim do que ter os homens exaustos no dia seguinte, ou alegarem ver o inimigo com base na imaginação
inflamada.
Cato subiu os degraus de madeira da via das sentinelas e continuou o seu caminho ao longo dos lados estreitos do forte, assegurando-se de que todos os homens estavam
alerta e que não tinham esquecido a pergunta e a senha. Trocavam palavras calmamente enquanto cada homem fazia o seu relatório e, como sempre, não havia sinal de
actividade inimiga. Por fim, Cato subiu à torre de vigia com o lado de verga e guardas na parte da frente. Doze metros acima do solo, entrou e saudou o homem que
vigiava as vias a norte.
- Tudo calmo?
- Tudo calmo, Optio.
Cato acenou com a cabeça e inclinou-se contra o poste de madeira nas traseiras da torre, olhando para o acampamento principal delineado
por uma massa brilhante de labaredas laranja dos archotes e das fogueiras. Para lá deles espalhavam-se as linhas estreitas de archotes que demarcavam a ponte que
se esticava sobre a superfície acinzentada do Tamesis, a diminuir de intensidade devido ao seu tamanho. Na outra margem cintilava o contorno do acampamento onde
o Imperador, o seu séquito e reforços dormiam. E algures no meio das tendas dormia Lavínia. O seu coração pulou assim que pensou nela.
- Aposto que aqueles merdas se devem estar a divertir à grande.
- Talvez - respondeu Cato, partilhando todas as suspeitas inatas das sentinelas de que a diversão só começava quando eles estavam de vigia. O pensamento de Lavínia
a usufruir da vida boa da corte imperial a umas escassas duas milhas de distância encheu-o de excitação e ciúmes. Enquanto o dever o afastava dela neste pequeno
posto avançado tomado pela noite, outros podiam estar a galanteá-la. Uma imagem dos jovens aristocratas ostentosos da corte imperial encheu-o de terror e com um
murro impulsivo na verga afastou Lavínia da mente e forçou-se a pensar nas suas preocupações imediatas. Tinham passado algumas horas desde que ele tinha deixado
o forte para ver a linha de piquete. Isso mantê-lo-ia ocupado e afastaria Lavínia de alimentar os seus pensamentos.
- Continua - murmurou para a sentinela e desceu a escada para a escuridão do forte. Não tinham gasto tempo a construir abrigos permanentes e os homens que estavam
fora de serviço dormiam e ressonavam no solo, preferindo arriscar as picadas de insectos irritantes do que terem que respirar o ar abafado dentro das tendas de couro.
Cato caminhou no interior do muro de turfa até ao único portão do forte. Uma ordem rápida ao líder da secção responsável pelos oito homens na reserva fizera com
que o portão fosse destrancado imediatamente. Saiu para a noite, dirigindo-se para a silhueta escura do forte de Macro. Atrás dele o portão voltou a fechar-se.
Fora da segurança dos muros de turfa, a noite estava pejada com uma sensação de perigo iminente e Cato sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Ao olhar para trás
conseguia ver a luz fraca da paliçada a uma distância demasiado grande para ainda se sentir confortável e a mão deslizou para o cabo da espada enquanto caminhava
pela erva. Cem passos depois, Cato abrandou antecipando a primeira senha e realmente uma voz sussurrou na escuridão. Uma forma escura ergueu-se da relva.
- Pare e identifique-se!
- O triunfo dos azuis - disse Cato calmamente. Usar a sua equipa favorita de quadrigas como senha talvez não fosse muito original mas era de fácil memorização.
- Pode passar, amigo - respondeu a sentinela azedamente,
afundando-se de novo no esconderijo. Era claramente um adepto da equipa rival, percebeu Cato enquanto prosseguia o caminho. Mas pelo menos estava atento. Este posto
era o mais perigoso das escalas de serviço de sentinelas e qualquer homem que adormecesse estava a pedir que um batedor bretão lhe cortasse a garganta. E os batedores
andavam por ali de certeza. Carátaco podia ter recuado a sua força principal, mas o comandante bretão sabia o valor de boas informações e continuava a espiar as
linhas romanas a coberto da escuridão. Houvera mais do que uma escaramuça na calada da noite nas últimas semanas.
Cem passos depois, Cato começou a procurar pela sentinela seguinte. Agachando-se, abrandou o passo e seguiu pelo caminho onde o homem devia estar. Nenhuma pergunta
foi feita, e Cato olhou rapidamente para cima para ver se estava alinhado com as muralhas do seu forte e do de Macro. Estava perto o suficiente para reparar na erva
pisada onde o homem se escondera. Mas não havia nenhum sinal dele. Cato perguntou-se se haveria de chamar. Mesmo quando ele estava para o fazer, o terrível pensamento
de que alguma coisa tinha acontecido à sentinela assolou-lhe o pensamento. E se o homem tivesse sido descoberto e assassinado por um batedor bretão? E se esse batedor
ainda estivesse por ali? Cato pegou no cabo da espada e desembainhou-a lentamente, retraindo-se ao som áspero e desagradável do metal.
-Mantenha- se quieto, Optio-sussurrou uma voz tão suavemente que ele podia tê-la confundido com a brisa a restolhar nas folhas, se o ar não estivesse tão parado.
O sangue de Cato gelou e depois sentiu a raiva a apoderar-se de si. Isto não era a pergunta da senha. Que raio estava o homem a fazer?
- Estou aqui, Optio. Abaixe-se.
- Que se passa? - murmurou Cato.
- Temos companhia.
Cato deitou-se no chão e rastejou pela erva na direcção da voz da sentinela. A sentinela, Escauro, era um dos reforços, um homem com um bom currículo, recordou Cato.
Ali estava ele, uma figura escura, aninhada nos quadris, o dardo pousado. Sem escudo para se proteger se necessitasse correr para o forte. Cato agachou-se ao seu
lado.
- O que é?
Escauro não respondeu logo e permaneceu quieto, a cabeça fixa numa direcção, encosta abaixo para o território inimigo. Ergueu o braço e apontou para as sombras de
uns arbustos altos que cresciam a meio caminho da encosta. - Ali!
Cato seguiu a direcção mas não viu movimento. Abanou a cabeça.
- Não vejo nada.
- Não olhe, escute.
O optio virou uma orelha na direcção dos arbustos e tentou distinguir qualquer ruído que não fosse suposto pertencer ao cenário. Um pássaro cujo som não conseguia
reconhecer entoava um refrão melancólico vezes e vezes sem conta e um mocho adicionou por alguns instantes o seu pio melodioso antes de cessar abruptamente. Cato
desistiu. O que quer que ali estivesse ou tinha ido embora ou, o que era mais certo, não passava de um produto da imaginação de Escauro. Tomou uma nota mental para
não se esquecer de transferir Escauro para a torre daqui para a frente. Nesse momento algo soprou nos arbustos. Um cavalo.
- Ouviu? - perguntou Escauro.
- Ouvi.
- Quer que vá lá ver?
- Não. Vamos esperar aqui. Veremos quem é.
Podia ser um batedor romano, perdido da patrulha e que não se apercebera que estava a vaguear junto às suas próprias linhas. Por isso, aguardaram, os sentidos apurados
à procura de mais sinais do intruso. O mocho piou de novo, desta vez mais alto, e Cato estava prestes a praguejar quando houve outro movimento na encosta e uma forma
escura saiu dos arbustos: um homem conduzindo um cavalo subiu a encosta com o animal quase em linha com Cato e Escauro, o que faria com que passasse a dez passos
deles. O cavaleiro continuou, avançando cautelosamente para o caso de o chão ter obstáculos que o pudessem fazer tropeçar e chamar atenções indesejadas. As passadas
do cavalo eram mais óbvias e fortes enquanto seguia o seu dono, esquecido da necessidade de secretismo. Quando o cavaleiro não estava a mais de dez passos de distância,
Cato bateu em Escauro e sussurrou: - Agora!
A sentinela levantou-se, o dardo a postos quando disse a pergunta.
- Pare e identifique-se!
O cavaleiro saltou com um grito de susto, fazendo com que o cavalo recuasse para um lado com um relincho assustado. O momento do susto passou num instante e, antes
que Cato ou Escauro pudessem reagir, o cavaleiro montou o cavalo e afundou os calcanhares nos flancos.
- Não o deixes escapar! - gritou Cato.
Houve um movimento indistinto e um baque doentio. O cavaleiro gritou e durante uns instantes cambaleou na sela. Depois dobrou-se, a cabeça primeiro e caiu do cavalo.
A besta recuou, quase dando um coice no cavaleiro, antes de se virar para um lado e começar a galopar encosta a baixo, penetrando na escuridão. A erva restolhou
assim que Cato e Escauro correram para o cavaleiro. Estava deitado de costas, com dificuldade em respirar, a ponta do dardo enfiada no estômago. Gritou
algumas palavras num idioma estrangeiro antes de desmaiar.
- Quer que acabe com ele, Optio? - perguntou Escauro quando colocou o pé no peito do homem para arrancar o dardo com um barulho molhado de sucção.
- Não. - Cato estava intrigado com o idioma que o homem usara. Não parecia o céltico que estava habituado a ouvir. - Ajuda-me, vamos levá-lo para a luz.
Escauro agarrou nos ombros do homem e Cato nos pés. Avaliou as distâncias relativas entre o seu forte e o do centurião.
- Vamos. Macro vai querer ver isto!
O cavaleiro era um homem grande e os dois debatiam-se para carregarem o estranho fardo ao longo do declive em direcção ao forte. Quando se aproximaram do portão,
Cato teve tempo para se gratificar pela senha prematura; os homens de Macro estavam claramente alerta e vigiavam atentamente.
- O triunfo dos azuis! - disse Cato.
- Isso é que será um grande dia. - Ouviu alguém dizer.
- Abram o portão.
- Quem está aí?
- O optio! Agora abram o raio do portão.
Um instante mais tarde o portão abriu-se, Cato e Escauro carregaram o corpo para o interior e deixaram-no cair ao chão para recuperarem do esforço.
- Que se passa? - berrou Macro. - Qual dos estúpidos deu ordem para abrirem o portão? Querem que nos matem?
- Fui eu, senhor - arfou Cato. - Apanhei alguém a tentar passar a linha de piquete. Um cavaleiro.
- Tragam luz para aqui! - ordenou Macro, e uma sentinela correu para ir buscar um archote. - Estás ferido, rapaz?
- Não, senhor... Escauro atirou-lhe com um dardo... antes que ele escapasse.
A sentinela regressou com um archote a crepitar brilhantemente na mão.
- Vamos lá ver o que apanhaste. - Macro pegou no archote e colocou-o sobre o corpo no solo. Sob o brilho trémulo podiam ver botas de couro, uma ligadura à volta
do joelho e coxa esquerdos, uma túnica azul impecável. Cato olhou para o rosto do cavaleiro e ofegou.
- Niso!
Vitélio estava prestes a imitar outro pio de mocho quando ouviu o pedido de identificação da sentinela. Deitou-se instantaneamente na erva, o coração aos pulos enquanto
tentava ouvir o que se estava a passar.
- Não o deixes escapar!
Um gemido agudo de dor estilhaçou-se através da noite escura, depois vieram os sons de cascos a baterem velozmente na distância, até que se podia apenas ouvir vozes
em surdina e gemidos. Muito bateu o seu coração antes que arriscasse levantar a cabeça acima da erva para uma rápida vista de olhos. Espreitando rapidamente para
a esquerda e para a direita viu a sombra de dois homens inclinados sobre algo que carregavam para o forte mais próximo.
Não havia dúvida: Niso fora apanhado a tentar cruzar as linhas romanas. Vitélio engoliu o palavrão que quase lhe passou pelos lábios e atirou-se irritadamente para
o chão. Idiota! Praguejou contra si próprio. Estúpido idiota. Nunca devia ter usado o cartaginês; o homem era um cirurgião, não estava treinado nas artes da espionagem.
Mas não havia mais ninguém que tivesse podido usar, reflectiu. Tivera que se desenvencilhar com um amador, e o desfecho catastrófico desta noite fora o resultado.
Pareceu-lhe que Niso caíra nas mãos dos romanos ainda vivo. E se o homem fosse interrogado antes de morrer? E morreria, se não devido aos ferimentos, então pelo
apedrejamento a que seria sujeito por desertar da sua unidade em face do inimigo. Se Niso fosse obrigado a falar, ele, Vitélio, seria certamente implicado.
A situação era extremamente perigosa. Era melhor voltar para o acampamento antes que dessem pela sua falta. Necessitava desesperadamente de tempo para pensar, tempo
para encontrar uma estratégia para resolver esta difícil situação.
Agachado, Vitélio desceu a encosta em direcção às fogueiras trémulas do exército. Dissera ao lerdo optio da Nona que ia fazer uma inspecção
externa à muralha. Isso dar-lhe-ia tempo de sobra para ir ter com Niso ao lugar que tinham combinado alguns dias antes.
Agora não sabia como Carátaco respondera ao seu plano. Não tinha forma de o saber, a não ser que encontrasse Niso antes que este morresse. Era uma sorte miserável.
Não, corrigiu-se a si próprio, era um plano miserável. A culpa era toda sua. Não devia ter usado Niso e não devia ter escolhido aquele local para o encontro. A maioria
dos oficiais não colocava piquetes entre os fortes durante a noite. Tinha logo que ter escolhido uma secção da linha da frente vigiada por um oficial metódico.
Depois de dizer a senha, Vitélio foi autorizado a entrar pelo portão. Acenou em jeito de agradecimento ao optio e assegurou-lhe que o perímetro das defesas estava
em muito boas condições. Com passos largos por entre a fila de tendas, Vitélio encaminhou-se para os seus aposentos e caiu na sua cama de campanha completamente
vestido. Podia dormir mais tarde, mas agora tinha que dar lugar ao pensamento sinistro de como a captura de Niso o colocara numa situação delicada. Não havia dúvidas
de que o cirurgião tinha que ser silenciado. Se a sentinela não o tivesse feito, ele próprio o faria. Depois tinha que recuperar de Niso a resposta de Carátaco
antes que o corpo fosse inspeccionado com demasiada minúcia. Mesmo os melhores códigos podiam ser quebrados ao fim de apenas alguns dias e a simplicidade do código
que tinham acordado seria decifrada no momento em que reconhecessem estar a olhar para ele. Se isso acontecesse, só podia ter esperança que a mensagem não incluísse
nenhum detalhe que o pudesse implicar directamente. Se um sopro da sua cumplicidade chegasse aos ouvidos de Narciso, seria calma e dolorosamente executado.
Era um jogo perigoso o que ele jogava. A política romana sempre fora perigosa. Isso excitava Vitélio. Não até ao ponto em que se tornasse imprudente. Tinha demasiado
respeito pela inteligência dos outros jogadores para subestimá-los. Felizmente, muitos dos seus rivais não devolviam o cumprimento; eram o género de pessoas cuja
inteligência era fatalmente ofuscada pela arrogância. Como Cícero, requeriam um reconhecimento constante dos seus poderosos intelectos, e eram esses momentos incrementados
de fraqueza que asseguravam a sua queda. Vitélio quebrara esta regra apenas uma vez, e apenas para persuadir Vespasiano de que as consequências de o denunciar seriam
mais calamitosas para o legado do que para ele. Mesmo assim, sentia que falara demais e jurara nunca voltar a dizer mais do que o absolutamente necessário.
Vitélio tinha orgulho no facto de que aprendera rapidamente a nunca se render à causa de alguém. A própria noção de uma "organização secreta" era um oximoro; havia
sempre um aumento exponencial na
probabilidade de traição ou exposição de cada vez que a organização recrutava um novo membro. Não, era muito mais seguro trabalhar sozinho; com um propósito específico,
sem obrigações para com causas ou companheiros. Isolar-se de tais grupos era a sua força e a fraqueza deles, como o seu presente esquema provara.
Era uma assunção comum entre os oficiais superiores que as armas romanas que haviam sido descobertas nas mãos dos bretões tinham sido fornecidas pelos Liberais.
Esses traidores pensavam claramente que os bretões iam empurrar os invasores de regresso ao mar, e que uma catástrofe militar dessa envergadura conduziria à queda
de Cláudio. No caos subsequente, os Liberais viam-se como os campeões emergentes da nova república. Se a invasão falhasse, ninguém ficaria mais contente do que Vitélio.
Se o sistema político se mantivesse instável durante o tempo suficiente, ele teria oportunidade para desenvolver a sua posição política. Um dia, quando tivesse a
certeza de que era chegado o momento, tomaria o poder para si próprio.
A última traição atribuída aos Liberais significava que o nome deles ficaria queimado em Roma. Da barraca mais pobre de Subura às mais ricas mesas de jantar de Janicula,
os Liberais seriam amaldiçoados nos termos mais severos possíveis. Vitélio estava a tratar de acrescentar à condenação deles a conspiração para matar Cláudio. Seria
impossível fazê-lo sozinho, mas o cultivo prudente do ressentimento profundo de Niso para com Roma dera frutos. Carátaco provara ser um aliado entusiástico quando
a possibilidade fora abordada através de uma mensagem levada pelo prisioneiro que Vitélio ajudara a evadir-se. Qualquer desordem política em Roma que motivasse os
invasores a retirar da Britânia valia o estigma de estar envolvido num assassinato.
Vitélio simpatizava com Carátaco. Nunca conhecera o líder bretão pessoalmente, mas a qualidade da mente do homem era evidente nos seus preparativos para a conspiração.
Apesar da terrível desvantagem de provir de uma cultura guerreira que valorizava a honra de um homem acima de tudo o resto, Carátaco era admiravelmente pragmático.
Ele tomaria posição contra Cláudio antes de Camulodónia. Isso era certo. Permitir que a capital caísse sem levantar uma úniica espada em sua defesa desmoralizaria
qualquer vontade de resistência por parte das outras tribos da ilha. A postura desafiadora teria que ser mantida, mesmo à custa de mais uma derrota. Havia sempre
a possibilidade, embora remota, de que a batalha fosse ganha, ou que a vitória romana tivesse tantas perdas para as Águias, que lhes atrasasse a conquista da ilha.
Se a batalha eminente acabasse noutra derrota para os bretões, a tentativa de assassínio podia ser concretizada na subsequente rendição
das tribos, recebida pelo Imperador em pessoa. Carátaco conseguira persuadir um dos seus seguidores a aceitar o papel suicida de empunhar a lâmina. A Vitélio só
restava providenciar que um punhal fosse entregue ao homem depois da revista que precedia a apresentação ao Imperador. Mas sem a mensagem que Niso trazia, Vitélio
não conheceria a identidade do assassino. Sem esse conhecimento, não haveria qualquer atentado à vida do Imperador.
Quer o assassinato de Cláudio fosse bem sucedido ou não, a culpa seria vinculada aos Liberais. Podia muito bem ser um punhal bretão a afundar-se no coração do Imperador,
mas quem investigasse a conspiração encontraria uma forma de implicar os Liberais, particularmente se fosse encorajado a fazê-lo.
Vitélio sentou-se direito na sua cama de campanha, zangado consigo mesmo. Não havia razão para pensar nos prazeres que o futuro tinha para oferecer quando, a qualquer
momento, a sua cumplicidade na conspiração podia ser revelada por Niso. De igual forma, não podia fazer nada enquanto ele, ou notícias dele, não fossem trazidas
para o acampamento principal. Então justificaria a sua visita ao homem agindo como um amigo preocupado. Entretanto, repreendeu-se a si mesmo, tinha que manter a
calma. Não podia aparentar estar irritado, para evitar levantar suspeitas quando prestasse declarações a uma qualquer investigação, caso acontecesse o pior. Era
melhor pensar em algo mais alegre.
Foi então que se lembrou de ter visto Flávia no meio do séquito imperial. Atrás da mulher de Vespasiano estava aquela escrava extremamente atraente com a qual tivera
uma brincadeira uma vez, quando a Segunda estava estacionada na Germânia. Até o senil devasso do Cláudio tinha reparado nela. À medida que se lembrava das feições
dela, Vitélio sorria com a perspectiva de renovar o relacionamento.
XLIII
- Coloquem-no debaixo dos candeeiros! - berrou o cirurgião sénior enquanto dois legionários carregavam a maca para dentro da tenda de tratamentos. - Cuidado, seus
idiotas!
Cato estava ao lado deles, a pressionar um trapo ensopado de sangue no ferimento. O cirurgião sénior, de pele escura como Niso, ajudou-os a pousar a maca em cima
do tampo de madeira da mesa de exame e depois puxou o cordão que baixava as roldanas dos candeeiros. À fraca luz, tirou a compressa para inspeccionar o ponto de
entrada do dardo, mas toda a frente e lados do tronco estavam cobertos com um vermelho lustroso e pegajoso. O cirurgião pegou numa esponja de uma tigela polida e
limpou o sangue. Colocou a descoberto um buraco do tamanho de um dedo que se encheu rapidamente de sangue. Voltou a colocar a compressa.
- Onde é que o encontraram?
- Tentou passar pelas nossas linhas de piquete - respondeu Cato.
- Um dos meus homens impediu-o.
- Vê-se. - O cirurgião sénior levantou novamente a compressa para examinar o ferimento e fez uma careta para a corrente de sangue que não estancava.
Niso voltou a si e começou a gritar, depois deixou a cabeça cair para trás com um baque vibrante na mesa de exame, murmurando e gemendo.
- Temos que impedir a hemorragia. Parece que já perdeu demasiado sangue - observou o cirurgião sénior. - Há quanto tempo disseram que o encontraram?
Cato calculou pelos sinais de hora da vigia. - Meia hora.
- E tem sangrado sempre assim?
- Sim, senhor.
- Então acabou-se. Não posso fazer nada.
- Deve poder fazer alguma coisa, senhor - disse Cato desesperado.
- É seu amigo?
Cato fez uma pausa antes de assentir.
- Bem, Optio, tenho muita pena do seu amigo, mas não podemos mesmo fazer nada por ele. Este tipo de ferimento é sempre fatal.
Niso tremia e o seu gemido tinha uma nota de choro. Os olhos pestanejaram e abriram-se subitamente, percorrendo o local num pânico confuso antes de pararem em Cato.
- Cato... - Niso pegou na mão dele.
- Fica quieto, Niso, - ordenou Cato. - Tens de repousar. Deita-te para trás.
- Não. - Niso sorriu debilmente, e então os lábios moveram-se com um espasmo agonizante. - Estou a morrer. Estou a morrer, Cato.
- Não estás nada! Não vais morrer!
- Eu é que sou o cirurgião! Sei o que está a acontecer comigo - os seus olhos brilharam ferozmente, depois fecharam-se quando o espasmo seguinte o trespassou. -
Ahh! Dói!
- Está tudo bem, Niso. - O cirurgião sénior deu-lhe uma pancada no ombro. - Vai terminar em breve. Queres que te facilite a coisa?
- Não! Nada disso. - Arfava desesperadamente. A sua mão ainda segurava a de Cato e era doloroso vê-lo debater-se para se agarrar à vida ainda que a morte o estivesse
a levar gradualmente. Com um esforço supremo, e elevado por uma centelha de consciência que restava, pegou em Cato com a outra mão e puxou o optio para perto da
sua boca.
- Diz ao tribuno, diz-lhe... - A voz tornou-se num sussurro e Cato não estava certo se ouvia as palavras ou os últimos suspiros ofegantes de um moribundo. Lentamente,
a força com que o cartaginês o agarrava esmoreceu e a respiração desvaneceu-se. A cabeça de Niso pendeu para baixo e os seus olhos tornaram-se vítreos, a boca meio
aberta.
Durante uns instantes reinou o silêncio, depois o cirurgião sénior sentiu-lhe o pulso. Nada.
- Está morto.
Cato ainda segurava a mão de Niso, consciente de que era apenas um pedaço de carne, sem uma centelha de vida dentro. Sentiu raiva da sua impotência para salvar a
vida do homem. Havia tanto sangue; tentara estancar o fluxo de sangue, mas continuara a sair cada vez mais.
- Onde raio esteve ele nos últimos dias? - perguntou o cirurgião sénior.
- Não faço ideia.
- O que é que ele lhe disse no fim?
Cato abanou a cabeça. - Não percebi.
- Disse alguma coisa? - pressionou o cirurgião sénior. - Disse algo sobre os ritos de morte?
- Ritos de morte?
- Ele é cartaginês, como eu. O que é que ele disse, mesmo antes de morrer? Ele murmurou algo.
- Sim. Mas não consegui perceber... Algo parecido com sino, penso.
- Então vou ter que fazer os ritos de morte por ele.
O cirurgião sénior pegou na mão de Cato e gentilmente afastou-o do corpo. - Não leva muito tempo, mas tem que ser dito, senão vai ser obrigado a vaguear pelo limbo
da terra, como as vossas lémures romanas.
O pensamento do espírito inquieto de Niso a andar pelas sombras da terra encheu Cato de terror e fê-lo recuar da mesa de exame. O cirurgião sénior colocou a sua
mão direita em cima do coração do morto e começou calmamente a entoar um cântico de um antigo ritual Púnico. Acabou rapidamente, e virou-se para Cato. - Quer fazer-lhe
os ritos romanos também?
Cato abanou a cabeça.
- Quer ficar uns momentos com ele?
- Quero.
O cirurgião sénior mandou os legionários saírem, e Cato ficou sozinho com o corpo de Niso. Não estava seguro do que sentia. Estava magoado por ter perdido um amigo,
e sentia amargura por este ter morrido de uma forma tão fútil sob a ponta de um dardo romano. Também sentia raiva. Niso traíra a sua amizade, primeiro ao abandoná-lo
em favor do tribuno Vitélio e em segundo lugar por ter desertado, ou no que quer que estivesse envolvido quando desapareceu do acampamento. Quaisquer que fossem
as razões pelas quais Niso havia desaparecido, Cato suspeitava que tinham algo a ver com Vitélio. As emoções contrastantes viravam e reviravam dentro dele enquanto
olhava para o corpo.
- Já fez as pazes com ele, Optio. - disse o cirurgião sénior quando reentrou na tenda um pouco mais tarde. - Agora tenho que tratar das coisas. Neste calor temos
que nos desfazer dos cadáveres o mais depressa possível.
Cato assentiu e afastou-se para um lado da tenda enquanto o cirurgião sénior acenou para um par de auxiliares médicos. Com uma eficiência nascida de muita prática,
os aprendizes endireitaram o corpo e começaram a tirar as roupas e os adornos pessoais.
- Não tem que ficar a ver se não quiser - disse o cirurgião sénior.
- Estou bem, senhor. A sério.
- Como queira. Receio que tenha de me ausentar. Tenho outros serviços para ver. Peço desculpa por não ter conseguido salvar o seu amigo
- acrescentou ele gentilmente.
- Fez tudo o que pôde, senhor.
Os auxiliares estavam ocupados a retirar as roupas, separando aquelas que não estavam sujas de sangue e podiam ser reutilizadas. O resto era colocado de lado para
deitar fora. O ferimento já não sangrava, agora que o coração não batia. As manchas de sangue que cercavam a pele foram rapidamente lavadas com um balde de água.
Um dos auxiliares começou a desemaranhar a ligadura presa no joelho esquerdo de Niso. De repente parou, inclinando a cabeça para ver melhor.
- Que estranho - murmurou.
- O que é que é estranho? - perguntou o colega que tirava as
botas.
- Não tem nada debaixo desta ligadura. Nenhum ferimento, nem mesmo um arranhão.
- Claro que tem, as pessoas não usam ligaduras por prazer.
- Não, estou a dizer-te que não tem nada. Apenas estas marcas estranhas.
A curiosidade levou a melhor sobre o pesar e Cato aproximou-se para ver o que estava a causar o distúrbio.
- Qual é o problema?
- Aqui, Optio. Olhe para isto. - O auxiliar deu-lhe a ligadura.
- Não tem nenhum arranhão na perna. Apenas umas marcas nessa ligadura.
Cato afastou-se de novo para um canto da tenda onde havia um banco e sentou-se lentamente, mirando as linhas curiosas e as curvas de um dos lados do tecido. Não
conseguia que fizessem sentido. Enfiou a ligadura dentro da sua túnica, decidindo que necessitava de uma melhor inspecção à luz do dia.
Olhou para o cadáver na mesa. O rosto de Niso estava sereno e tranquilo agora que o fluxo da morte terminara. O que teria estado ele a preparar nestes últimos dias?
Cato apercebeu-se de uma nova presença na tenda. O tribuno Vitélio estava tão silencioso que ninguém tinha reparado nele. Permanecia nas sombras junto à abertura
da tenda e olhava fixamente para o corpo. Não tinha ainda dado pela presença do optio e Cato podia ver a ansiedade e frustração que tomavam conta do rosto do tribuno.
Ansiedade e frustração, mas não dor. Então Vitélio viu-o e franziu o sobrolho.
- O que estás aqui a fazer? Não devias estar de serviço?
- Fui eu quem trouxe Niso, senhor.
- O que se passou com ele?
- Uma das minhas sentinelas apanhou-o a tentar atravessar as nossas linhas. Não respondeu à pergunta de identificação, e quando quis escapar a sentinela atingiu-o
com um dardo.
- Má sorte - murmurou Vitélio. E depois mais alto: - Muito pouca sorte. Não tivemos a oportunidade de o interrogar para descobrir o que andou ele a fazer desde que
desapareceu do acampamento. Disse alguma coisa antes do fim?
- Nada que fizesse sentido, senhor.
- Estou a ver - disse calmamente o tribuno. Quase pareceu aliviado. - Bem, é melhor voltares de imediato para a tua unidade.
- Sim, senhor. - Cato levantou-se e trocou saudações com o tribuno. Fora do calor sufocante da tenda o ar estava frio e húmido; o amanhecer estava próximo. Cato
dirigiu-se para o portão, desejoso por se afastar de Vitélio o mais rapidamente possível.
No interior da tenda, Vitélio aproximou-se do corpo que estava a ser esfregado com óleos aromáticos pelos dois auxiliares, quase pronto para ser cremado.
- Está à procura de alguma coisa, senhor?
- Não, queria saber se encontraram alguma coisa... invulgar
nele.
- Não, senhor, nada invulgar.
- Estou a ver. - Vitélio coçou o queixo e observou a expressão do auxiliar. - Bom, se encontrarem algo invulgar, seja o que for, tragam-no a mim imediatamente.
Depois do tribuno ter saído, o outro auxiliar virou-se para o colega.
- Porque é que não lhe contaste da ligadura?
- Que ligadura?
- Aquela que encontrámos no corpo.
- Não estou a ver ligadura nenhuma agora. Além disso, - o auxiliar parou e cuspiu para um dos lados da tenda, - não gosto de ter nada a haver com os oficiais. Contava-lhe
da ligadura e estava imediatamente envolvido nalguma coisa. Percebes?
- Tens toda a razão.
XLIV
As sentinelas das torres mudavam ao alvorecer, e Cato conduziu a sua meia centúria encosta abaixo para o acampamento. O esforço da vigilância nocturna havia terminado
e os homens estavam ansiosos por descansarem durante o resto do dia, especialmente porque o exército iria iniciar em breve a marcha. Recomeçariam todos os rigores
da marcha, carregados com os pesados acessórios, construindo acampamentos de campanha e comendo refeições intermináveis de papas de milho.
Embora o céu limpo prometesse outro dia perfeito, Cato não partilhava a boa disposição nessa manhã. Niso estava morto. A guerra era um desperdício suficiente de
vidas humanas sem somar os que pereciam por acidente. O que tornara a morte de Niso mais difícil de suportar tinham sido as circunstâncias misteriosas do seu súbito
desaparecimento. Se ele fosse morto em combate isso seria triste, mas não inesperado. Mas havia algo de muito errado com a sua morte, e as suas recentes acções provocavam
suspeitas a Cato. Precisava de saber mais e nesse momento a única pista que tinha era a estranha ligadura manchada enfiada dentro da sua túnica. Acreditava firmemente
que a solução do mistério estava de algum modo relacionada com Vitélio. O tribuno tinha trabalhado com Niso, mudando-o e tornando-o cúmplice numa qualquer conspiração
que estivesse a planear.
Cato tinha que falar com alguém. Alguém em quem pudesse confiar, que levasse as suas suspeitas seriamente. Macro podia ridicularizar os seus receios ou simplesmente
apresentar uma queixa formal contra o tribuno. Tinha que ser outra pessoa... Lavínia. Claro. Encontrar-se-ia com ela, levá-la-ia para um local pacífico fora do acampamento
e abrir-lhe-ia o seu coração.
Pousou as armas, tirou a sua armadura, esfregou as manchas secas de sangue do rosto e mãos e vestiu a túnica limpa.
Quando atravessou a ponte, reparou na actividade frenética do
acampamento no lado sul; o exército preparava a ofensiva. Cato teve que passar por entre uma enorme bagagem do séquito imperial e da Guarda Pretoriana. Ao contrário
do acampamento do outro lado, este estava cheio de uma sensação de expectativa, como se o exército estivesse prestes a ver uma exibição militar espectacular em vez
de ir combater um inimigo determinado e perigoso. Os vagões da corte imperial estavam carregados com mobílias caras que não haviam sido construídas para deixar os
luxuosos salões de Roma e que tinham sofrido um duro castigo em resultado. Havia enormes arcas com roupas, instrumentos musicais, serviços de jantar ornamentais
e uma variedade de outros luxos ao cuidado de escravos domésticos que tinham viajado desconfortavelmente. Os vagões das coortes da Guarda Pretoriana estavam empilhados
até cima com uniformes de cerimónia e equipamento, tudo a postos para as espectaculares comemorações da vitória do Imperador, a terem lugar em Camulodónia.
Cato abriu caminho pelo parque de vagões e dirigiu-se para o recinto usado pelo séquito do Imperador. Um portão largo ligava-o ao acampamento principal, embora apenas
uma das enormes portas de madeira estivesse aberta. O portão estava guardado por uma dúzia de Pretorianos com roupas brancas e armadura completa. Quando Cato se
aproximou da porta aberta, os guardas de ambos os lados cruzaram as lanças.
- Propósito da visita?
- Venho ver uma amiga. Escrava da dona Flávia Domitilla.
- Tem uma licença assinada pelo Secretário?
- Não.
- Então não pode entrar.
- Porquê?
- Ordens.
Cato fitou os guardas que permaneciam em sentido, olhando com indiferença, despreocupados. Cato sabia que com conversa não conseguiria entrar. Os homens da Guarda
Pretoriana eram peritos em guardar entradas e obedeciam às ordens à letra. Gritar impropérios seria um desperdício de ar, resolveu Cato. Ao que se somava o facto
do físico do guarda que lhe falara ser como o de um gladiador; não era o género de homem que ele gostaria de enfrentar se por acaso se encontrassem fora das horas
de serviço.
Cato virou-se e regressou ao parque de vagões. No meio da confusão de soldados, tabeliões e escravos domésticos, percorreu o exterior do recinto imperial com o olhar.
Um número de vagões já tinha sido arrumado e puxado para um lado, perto da paliçada.
Um vagão em particular chamou-lhe a atenção: um pesado carro de quatro rodas cheio com um monte alto de tendas de couro brilhantemente decoradas, dobradas e atadas.
O monte era tão alto que chegava ao topo da paliçada. Cato contornou o parque de vagões para se aproximar dos que estavam fora da vista dos guardas. Depois de verificar
se alguém o estava a ver, enfiou-se entre os vagões arrumados e dirigiu-se para o que estava carregado de tendas. Escalou-o e deitou-se no topo, apenas erguendo
a cabeça para espreitar por cima da paliçada e para dentro do recinto dos acompanhantes de viagem do Imperador.
Fora da vista do exército, a elite social de Roma acampava com a menor das concessões às agruras das campanhas. Tendas enormes estavam dispersas pelo recinto e,
pelas aberturas daquelas que estavam viradas para ele, Cato conseguia vislumbrar os ladrilhos no chão e as mobílias caras lá dentro. Alguns membros da corte Imperial
haviam montado toldos fora das suas tendas e reclinavam-se em bancos estofados, servidos pelos escravos que haviam trazido da cidade. O centro do recinto fora deixado
aberto para servir como espaço social, mas a intensidade das festas das noites anteriores fazia com que estivesse quase vazio. Cato olhou prudentemente para as poucas
figuras visíveis, mas nenhuma delas era Lavínia. Por isso, deixou-se ficar deitado no cimo do vagão e esperou, quase dormitando algumas vezes sob o sol quente. De
cada vez que uma figura feminina emergia de uma tenda, Cato erguia a cabeça e esforçava os olhos para ver se era Lavínia.
Então, finalmente, não muito longe do local onde estava, surgiu de uma tenda uma mulher elegante trajando uma bata de um verde diáfano, caminhando de forma rígida
para a sombra do toldo. Esticou os braços e espreguiçou-se, antes de ir para a luz do Sol onde Cato conseguiu ver as tranças negras do cabelo dela. Ele encheu-se
com uma sensação inebriante de luz. Durante uns instantes observou Lavínia, sorvendo cada movimento, enquanto ela se inclinava contra o poste que suportava o toldo
e virava o rosto em direcção ao Sol.
Depois ela coçou as costas e virou-se para regressar à tenda. Cato começou a erguer-se, desesperado para que ela o visse e não desaparecesse depois de uma aparição
tão provocantemente breve. Se ela o conseguisse ver, podia chamá-la para se encontrarem fora do recinto. Cato levantou a mão e estava para acenar quando um movimento
na periferia da sua visão lhe chamou a atenção.
Através do portão do recinto irrompeu o tribuno Vitélio. O arrepio que Cato costumava sentir ao vê-lo trespassou-o instantaneamente quando, com uma inevitabilidade
repugnante, o tribuno passou exactamente na direcção de Lavínia, que estava de costas para ele e não
se apercebeu da sua chegada. Vitélio caminhou arrogantemente até ela e pousou as mãos nos seus ombros. Ela virou-se com um susto. Cato colocou-se de joelhos, preparado
para correr em seu auxílio sem pensar na impossibilidade de o fazer naquele recinto tão fortemente guardado. Ele ergueu as mãos para a chamar, mas antes que pudesse
pronunciar qualquer som foi puxado violentamente pelos pés do topo do vagão. Caiu de lado e aterrou pesadamente no solo, ficando sem respiração. Um par de botas
embateu no seu rosto e uns instantes mais tarde Cato foi puxado, arfando como um peixe encalhado.
- E que raio julgas tu que vais fazer, meu rapaz?
Cato reconheceu o rosto do Guarda Pretoriano que guardava o portão do recinto. Tentou responder, mas a falta de ar nos pulmões fez com que arquejasse em vez disso.
- Recusas-te a responder? Muito bem, vamos ver se o meu centurião te puxa pela língua e talvez por alguns dentes.
O guarda rodou os seus punhos no cabelo de Cato e meio puxou, meio arrastou Cato através do parque de vagões para a tenda do quartel-general. Os escravos e legionários
que arrumavam os outros vagões pararam para ver o indigno espectáculo. Alguns riram e Cato sentiu-se corar de vergonha por ser tratado como um aluno mal comportado.
XLV
- Tudo a postos? - O General Pláucio olhou em redor. Os últimos oficiais estavam a formar num lado da estrada que ia da ponte ao acampamento principal. - Muito bem,
dê o sinal.
Sabino acenou para o tribuno encarregado das comunicações, que gritou imediatamente uma ordem para os corneteiros aprontarem os seus instrumentos. Uma pequena pausa
enquanto inspiraram ar e os lábios se comprimiram, e então, ao contarem mentalmente até três, uma nota ecoou para além do rio. Apesar de estarem treinados para combater,
os cavalos dos assistentes recuaram intranquilos ao ruído e as fileiras bem alinhadas dos oficiais superiores ficaram momentaneamente quebradas. No outro lado da
ponte os instrumentos de cobre das coortes da Guarda Pretoriana reconheceram o sinal.
- Aqui vamos nós - murmurou Pláucio.
As figuras brancas nas fileiras da frente dos Pretorianos emergiram do outro acampamento e, com uma perfeita e precisa parada militar, marcharam para a ponte com
passo marcial. Elmos de bronze bem polidos cintilavam à luz do Sol matinal, num contraste vívido às nuvens negras que se aglomeravam a sul. O ar estava parado e
húmido antes da tempestade que se aproximava.
-Gostaria que eles não marchassem em passo militar-resmungou o prefeito dos engenheiros. - Não é bom para a minha ponte. Qualquer idiota sabe que as tropas devem
interromper a marcha quando atravessam uma ponte.
- Para destruírem o efeito estético? - replicou Vespasiano.
- Narciso não o toleraria. Reza para que ele não mande os elefantes marcharem também.
O engenheiro fitou-o alarmado perante a perspectiva, depois relaxou quando se apercebeu de que o legado estava a brincar com ele.
- A última coisa de que necessitamos é de uma campanha
truncada - escarneceu Vitélio e os oficiais superiores estremeceram.
A longa coluna branca estendeu-se ao longo da ponte como uma enorme lagarta branca, até que no seu auge a parte da frente chegou à margem norte e começou a subir
a encosta na direcção do portão principal.
- Olhos... à direita! - vociferou o centurião-chefe enquanto conduzia os homens perante o general e os seus assistentes. Com uma sincronização perfeita os Pretorianos
rodaram as suas cabeças enquanto os marcadores do lado direito continuavam a olhar em frente para assegurar que a linha se mantinha direita. O General Pláucio saudou
solenemente cada centúria que passava elegantemente.
No outro lado do portão principal o resto do exército estava formado e pronto para defrontar o inimigo. As coortes Pretorianas dariam início à entrada no território
inimigo. A posição privilegiada deles à frente da linha de marcha significava que o pó provocado pela passagem de milhares de botas não os sufocaria ou mancharia
as suas túnicas brancas e escudos. Na outra extremidade da ponte um pequeno espaço apareceu na coluna e depois uma barreira ondulante de escarlate e ouro apareceu
onde marchavam os estandartes. Atrás e numa posição superior vinha o primeiro dos elefantes, cheio de adornos elaborados e carregando o Imperador.
- Agora veremos quão bom engenheiro és na realidade, - disse Pláucio, observando avidamente a ponte a ver se apareciam os primeiros sinais de colapso. Ao seu lado
o prefeito dos engenheiros parecia desesperado com a possibilidade de um afogamento imperial fazer parte do seu curriculum vitae.
O andamento vacilante dos elefantes revelava-se peculiar depois da regularidade inflexível das coortes Pretorianas e, para alívio do prefeito, a linha dos enormes
animais estava totalmente desorganizada e a ponte manteve-se estável. Atrás do últimoelefante abriu-se um espaço. O séquito imperial e os vagões viajavam com o restante
comboio de bagagens na retaguarda do exército e não chegariam nas próximas horas, pelo menos.
O último dos estandartes passou, e então o Imperador surgiu da ponte e o condutor do seu elefante deu uma pancadinha no lado da cabeça do animal para o fazer parar
em frente a Pláucio e aos seus oficiais.
- Bom dia, César.
- General. - Acenou Cláudio. - Não há pro... problemas com o avanço, presumo.
- Nenhum, César. O seu exército está formado e preparado para segui-lo para uma gloriosa vitória. - Era uma frase trivial e Vespasiano
conteve-se para manter ao largo uma expressão de zombaria, mas o Imperador não se apercebeu.
- Maravilha! Maravilha! Mal con... consigo esperar por encravar esses bre... bre... bretões. Vamos dar-lhes uma dose forte de aço romano, Pláucio!
- Pois claro, César.
O último elefante parou e Narciso desmontou. Empoleirou-se na montada de um pequeno pónei que se desviou nervosamente quando um dos elefantes levantou o rabo e depositou
um pequeno monte no seu caminho. O secretário contornou rapidamente o repugnante obstáculo e trotou para o lado da besta do seu amo.
- Ah! Estás aqui, Narciso. Já não era sem tem... tempo! Penso que agora me vou mudar para a minha liteira.
- Tem a certeza, César? Pense na imagem heróica que irradia num animal tão magnífico. Um deus genuíno conduzindo os seus soldados para a guerra! É uma inspiração
para os homens!
- Não quando este animal estúpido me fizer vomitar. Condutor! Manda este animal baixar-se, imediatamente.
Depois da sua última experiência ao desmontar de um elefante, agarrou-se aos braços do trono com muita força e inclinou-se para trás o mais que pôde quando as patas
dianteiras do animal se dobraram. Novamente em terra firme, o Imperador lançou um olhar reprovador ao elefante.
- Como é que aquele canalha do Aní... Aníbal conseguia? Não sei. Vá, Narciso, manda vir a minha liteira rapidamente.
- Com certeza, César. Vou mandar buscá-la ao comboio da bagagem.
- O que é que está a fazer ali atrás?
- Assim o ordenou, César. Deve lembrar-se que pretendeu liderar a marcha em cima de um elefante.
- Hã?
- Quis "suplantar Aníbal" lembra-se, César?
- Hum. Sim, isso foi ontem. Além disso, - Cláudio apontou para sul com a mão, - não anseio por estar preso num elefante quando a tempestade chegar.
Narciso virou-se para ver as nuvens a moverem-se em direcção ao Tamesis. Uma luz branca cintilante iluminou-os e instantes mais tarde ecoou um trovão no acampamento
romano.
- A liteira, por favor, Narciso. O mais depressa que puderes.
- É para já, César.
Enquanto o secretário passou apressadamente a instrução, o
imperador deteve-se a observar a tempestade que se aproximava com o cenho franzido, como se o seu descontentamento pudesse afastá-la. Uma
> linha branca cortada apunhalou as terras pantanosas perto dali e o ar foi cortado por um som terrível como metal a rasgar.
Sabino manobrou o cavalo ao lado do seu irmão.
- É mesmo típico - disse calmamente. - Sentamos o cu durante quase dois meses à espera do Imperador nos mais gloriosos dias de céu limpo e, na altura em que regressamos
à ofensiva, levamos com uma tempestade.
Vespasiano deixou sair um riso abafado e assentiu. - E suponho que não há esperança de esperarmos sentados que a tempestade passe.
- Nenhuma, irmão. Há muito que cavalgar nesta campanha e Cláudio não se vai atrever a ficar ausente de Roma mais tempo do que o absolutamente necessário. Vamos continuar
seja qual for o estado do tempo.
- Oh merda. - Vespasiano sentiu uma gota cair na mão. Depois veio um leve tamborilar de gotas grossas em cima dos elmos e dos escudos.
Ao longo da superfície do Tamesis uma nuvem cinza estendia-se na direcção da margem norte. Subitamente o aguaceiro começou a sério, assobiando pelo ar e tamborilando
em todas as superfícies. Uma brisa ligeira empurrava a chuva, sacudindo os ramos das árvores próximas e agitando os pesados mantos militares dos oficiais que os
colocavam apressadamente à volta do corpo. Cláudio olhou para o céu mesmo quando um relâmpago irrompeu pelo mundo num lençol deslumbrante de luz branca e congelou
a expressão irritada no seu rosto por um brevíssimo momento.
- Achas que isto será um presságio? - perguntou Sabino meio a
sério.
- Que tipo de presságio?
- Um aviso dos deuses. Talvez um aviso sobre o resultado da campanha.
- Ou um aviso a Cláudio? - Vespasiano virou-se para trocar um olhar conhecedor com o irmão mais velho.
- Achas mesmo que é?
- Talvez. Ou pode ser apenas um sinal dos deuses de que vão mijar durante alguns dias.
A reprovação de Sabino ao seu gozo com as superstições tornou-se evidente na sua expressão. Vespasiano encolheu os ombros e virou-se para observar o Imperador que
gritava algo para os céus. Os elefantes estavam a empurrar-se uns contra os outros nervosamente apesar dos
constantes esforços dos seus condutores e a agitação destes enormes animais começava a afectar os cavalos.
- Tirem-nos daqui! - gritou Pláucio para os condutores - Afastem-nos da estrada! Depressa! Antes que lhes percam o controlo e seja o caos!
Os condutores dos elefantes viram o perigo, afundaram os calcanhares freneticamente e bateram nas cabeças cinzentas e enrugadas dos elefantes até as bestas saírem
para fora da via e se encaminharem para a margem do rio, amontoando-se e desimpedindo a ponte.
Cláudio desistiu de repreender os deuses e dirigiu-se para os oficiais aglomerados.
- Onde está o ra... raio da minha liteira?
- A caminho, César - respondeu Narciso, apontando para o fundo da ponte onde uma dúzia de escravos corriam com uma larga e dourada liteira de dois lugares. Quando
a liteira alcançou a margem, a via estava cheia de regatos e a superfície seca e dura de há instantes tornara-se escorregadia. Os carregadores da liteira debatiam-se
para não tropeçarem enquanto se dirigiam para o Imperador que esperava com uma impaciência furiosa. Uma vez em solo nivelado, aumentaram os passos e rapidamente
pousaram a liteira ao lado do Imperador.
- Já não era sem tempo! - Cláudio estava ensopado, o seu cabelo claro e curto estava pastoso e o seu manto outrora púrpura estava quase negro pendendo dos seus ombros
todo molhado. Com um último olhar zangado para os céus, mergulhou para o interior da liteira. Através das cortinas chamou o General Pláucio.
- Sim, César?
- Ponha as coisas a andar! Este exército vai par... partir para a ofensiva, faça sol ou faça chuva. Tra... trate disso!
- César!
Com um aceno rápido, Pláucio fez sinal para o aglomerado de oficiais, que rodaram os seus cavalos e, numa coluna desordenada, encaminharam-se para as suas unidades
para prepararem o ataque. Sabino continuou a cavalgar ao lado do seu irmão mais novo, a cabeça enfiada nas golas do manto. A pluma cerimonial do seu elmo estava
ensopada e tombava tristemente do seu suporte. À volta deles a chuva caía em força, acompanhada por relâmpagos brilhantes, seguidos de uma escuridão e um trovão
que cortava os ouvidos e fazia o próprio solo tremer. Era difícil não deixar de reparar que a tempestade tinha começado mesmo na altura em que o exército levantara
acampamento, como um sinal de desaprovação dos deuses pela tomada de Camulodónia. Contudo, os sacerdotes do exército tinham lido os presságios à primeira luz e o
solo
tinha cedido livremente os estandartes quando os grupos de comando das legiões os foram buscar ao santuário. Apesar destes sinais contraditórios da aprovação divina,
Cláudio tinha ordenado que o exército avançasse de acordo com a estratégia que ele delineara aos seus oficiais superiores. Sabino estava apreensivo.
- Quer dizer, até eu sei que devíamos ter alguém a bater o terreno à frente da linha da frente. É território inimigo e quem sabe que armadilhas Carátaco preparou
para nós. O Imperador não é nenhum soldado. Tudo o que ele sabe acerca da guerra é o que aprendeu nos livros, não por estar no campo. Se nos limitarmos a entrar
cegamente no território do inimigo estamos a pedir problemas.
- Sim.
- Alguém tem de tentar chamá-lo à razão, colocá-lo no caminho certo. Pláucio é demasiado fraco para objectar e o Imperador julga que Hosídio Geta é um idiota. Tem
de ser outra pessoa qualquer.
- Como eu, suponho.
- E porque não? Ele parece gostar de ti e Narciso respeita-te. Podias tentar convencê-lo a adoptar uma estratégia mais segura.
- Não - respondeu firmemente Vespasiano. - Não o farei.
- Porque não, irmão?
- Se o Imperador não dá ouvidos a Pláucio, com certeza não me ouvirá a mim. Pláucio comanda o exército. É ele quem deve falar com o Imperador. Não falaremos mais
nisto.
Sabino abriu a boca para tentar persuadir o irmão, mas a expressão no rosto de Vespasiano, familiar desde os tempos de infância, impediu--o. Quando Vespasiano decidia
sobre algo, o caso ficava encerrado, não mudaria de opinião; seria uma perda de tempo tentar. Ao longo dos anos Sabino crescera habituado a ser frustrado pelo seu
irmão mais novo; além disso, tinha-se dado conta de que o irmão era um homem mais capaz do que ele. Não que Sabino o viesse a admitir alguma vez e, por isso, continuava
a desempenhar o papel do irmão mais velho e mais sabedor, o melhor que podia. Aqueles que conheciam bem os irmãos não podiam deixar de formular uma reveladora comparação
entre a competência e determinação férrea do Flaviano mais novo e a superficialidade nervosa, tensa, a vontade muito forte em agradar de Sabino.
Vespasiano conduziu o cavalo atrás dos outros oficiais que subiam a encosta na direcção do portão principal. Estava grato que o seu irmão se mantivesse calado. Era
verdade que Pláucio e os seus legados estavam profundamente consternados pela estratégia temerária delineada pelo excitado imperador. Cláudio tinha falado para trás
e para a frente, a gaguez a piorar cada vez mais, enquanto transmitia a desconexa palestra
sobre história militar e o génio de uma ofensiva arrojada e directa. Ao fim de uns momentos, Vespasiano deixara de ouvir e, em vez disso, cismara com assuntos mais
pessoais. Como continuava a fazer agora.
Apesar dos protestos de Flávia, ainda não libertara a suspeita de que ela estava envolvida com os Liberais. Tinham sido demasiadas coincidências e oportunidades
de conspirar nos meses anteriores para que ele se libertasse das suspeitas acerca da mulher. E isso fazia-o sentir-se pior sobre todo o assunto. Tinham trocado um
voto secreto de fidelidade sobre todas as coisas quando casaram e a palavra dela devia ser suficiente. A confiança era a base de qualquer relação, e devia-se lutar
pelo crescimento e maturidade de um relacionamento. Mas as suas dúvidas corroiam-no até ao coração, minando insidiosamente o laço entre homem e mulher. Ele sabia
que em breve teria que confrontá-la sobre a ameaça que Admínio descobrira. Assim seria, uma e outra vez, entre ele e Flávia, até que expulsasse todos os vestígios
de dúvida e incerteza ou descobrisse uma prova da culpa dela.
- Tenho que voltar à minha legião - anunciou Vespasiano. - Fica bem.
- Que os deuses nos protejam, irmão.
- Preferia não ter que contar com eles - disse Vespasiano e sorriu.
- Estamos nas mãos dos mortais agora, Sabino. O Destino é apenas um observador.
Deu com os calcanhares na sua montada e começou a trotar, passando pelas desorganizadas linhas de legionários na direcção de Camulodónia. Algures à frente deles,
Carátaco estaria à espera com um exército fresco que tinha reunido em apenas um mês e meio que Cláudio lhe concedera. Desta vez o chefe guerreiro bretão estaria
a combater junto à capital da sua tribo e ambos os exércitos estariam a braços com a mais severa e terrível batalha da campanha.
XLVI
A tempestade continuou durante o resto do dia. As vias e trilhos pelos quais avançava o exército transformaram-se rapidamente em charcos de lama que se enfiava nas
botas dos legionários enquanto eles se debatiam para continuarem com uma carga de partir as costas. Um pouco mais atrás, o comboio da bagagem engonhava e foi deixado
ficar sob a protecção de uma coorte auxiliar. Ao entardecer, o exército tinha apenas percorrido pouco mais de dez milhas e paliçadas defensivas ainda estavam a ser
construídas quando a exausta retaguarda se arrastou para dentro das linhas de tendas.
Um pouco antes do pôr-do-Sol a tempestade desvaneceu-se e, através de um espaço nas nuvens, um brilho laranja iluminou o exército encharcado, reluzindo no equipamento
molhado e cintilando na lama e nas poças. A tensão quente no ar tempestuoso tinha desaparecido e agora estava frio e fresco. Os legionários montaram rapidamente
as tendas e despiram a roupa molhada. Mantos e túnicas foram colocados a secar em cada secção e os homens começaram a preparar as suas refeições da noite, resmungando
pela falta de madeira seca. Das suas provisões os soldados comeram a ração de biscoitos e tiras de carne seca, praguejando por estarem duras e mastigando-as infindavelmente
até conseguirem engolir.
O Sol mergulhou com um último brilho de luz ao longo do horizonte e depois as nuvens fecharam-se novamente, mais densas e carregadas, estendendo-se em redor enquanto
a brisa voltava e aumentava. Quando a noite caiu, o vento assobiava estridentemente pelas cordas que seguravam as lonas das tendas, a oscilar com as rajadas fortes.
No interior das tendas os legionários tremiam nos mantos molhados que tinham sobre si, tentando aquecer o suficiente para dormirem.
Debaixo do humor taciturno e do desânimo que pendiam sobre as tendas da Sexta Centúria, Cato sentia-se mais miserável do que os outros. As suas costelas ainda estavam
doridas dos pontapés que tinha levado
do centurião da Guarda Pretoriana, depois de ter sido apanhado a espiar o recinto do acampamento do séquito imperial. Os seus olhos estavam inchados e púrpura dos
ferimentos. Podia ter sido muito pior, mas havia um limite para o castigo que se podia dar antes de se começarem a fazer perguntas.
Agora, uma noite depois, o sono era-lhe negado. Sentou-se arqueando as costas, contemplando sem expressão através da racha na abertura da tenda. Os seus pensamentos
não estavam cheios de apreensão nervosa acerca da batalha que se aproximava. Nem sequer estava a considerar as perspectivas de uma vitória gloriosa, de uma derrota
ignóbil ou mesmo a morte. Estava consumido por pensamentos amargos de ciúme e medo de que Lavínia, em cujos braços ele tinha repousado alguns dias antes, estivesse
agora nos braços de Vitélio.
O veneno amargo do seu desespero acabou por se tornar demasiado para si. Apenas a queria apagar da memória, para deixar de alimentar aquela dor cruel. A sua mão
percorreu o punhal e os dedos fecharam-se no cabo polido de madeira, tenso enquanto se preparava para desembainhar a lâmina.
Depois relaxou os dedos e respirou fundo. Era um absurdo. Ele tinha que se esforçar por pensar noutra coisa, qualquer coisa que o pudesse distrair de pensar em Lavínia.
Ainda enfiada contra o peito estava a ligadura sem sangue que Niso usara à volta do joelho. Cato pressionou-a com a mão e obrigou-se a pensar nas estranhas marcas
do interior da ligadura. Deviam ter algum significado, pensou, pelo menos pelas circunstâncias suspeitas sob as quais a ligadura fora obtida. E se as marcas fossem
um qualquer género de mensagem codificada, de quem seria e a quem tentara Niso entregá-la?
Em resposta à última pergunta, Cato suspeitava do tribuno Vitélio. E uma vez que as únicas pessoas para lá das linhas romanas eram os nativos, então a mensagem era
deles. Tresandava a traição, mas Cato não se atrevia a mexer-se contra o tribuno sem ter uma prova incontestável. Até ao momento, tudo o que tinha era a sua má opinião
acerca de Vitélio e estranhas linhas pretas numa ligadura; insuficiente para criar um caso. Era demasiado vexante e enquanto Cato tentava descortinar uma forma de
contornar o problema, a sua mente cansada abraçou a subtil chegada do sono. As pálpebras pesadas desceram e fecharam-se lentamente e pouco depois Cato ressonava
com o resto dos veteranos da centúria.
Na manhã seguinte os legionários foram despertados por um rumor que correu o acampamento como um fogo que varre tudo: o exército inimigo fora avistado. A um dia
de marcha para leste a guarda
avançada da cavalaria auxiliar tinha encontrado uma série de fortificações , defensivas e fortalezas. Os auxiliares levaram com uma chuva de flechas e lanças leves
e recuaram o mais possível, deixando alguns dos seus feridos ou mortos defronte às linhas bretãs. Ao mesmo tempo que os auxiliares apresentaram o relatório ao Imperador,
o rumor do encontro deles com o inimigo espalhou-se por todo o exército. A perspectiva da batalha excitava os legionários e ficaram aliviados pelo inimigo ter optado
por uma batalha decisiva em vez de uma guerrilha prolongada que se podia arrastar durante anos.
O desconforto do dia anterior foi esquecido quando os homens se vestiram e se armaram rapidamente. A refeição da manhã foi comida debaixo do céu cinzento, cruzado
por nuvens negras sopradas pela brisa forte. Macro olhou para cima ansiosamente.
- Será que vai chover?
- Parece que sim, senhor. Mas se Cláudio andar depressa talvez cheguemos aos bretões antes do anoitecer e da chuva.
- E se não conseguirmos é mais um dia a marchar com a roupa molhada - resmungou Macro. - Roupa molhada, lama merdosa e comida fria. De qualquer forma, pode ser que
o raio dos nativos desatem a fugir.
Cato encolheu os ombros.
- É melhor mandar formar os rapazes, Optio. Vai ser um dia longo de uma maneira ou de outra.
O receio do centurião acerca do clima acabou por ser infundado. À medida que a manhã decorria, as nuvens dispersaram, o vento desvaneceu-se completamente e, ao meio-dia,
o Sol aquecia o exército. Uma pequena névoa de vapor flutuava das roupas dos legionários que secavam enquanto caminhavam a custo no encalço da vanguarda Pretoriana.
À tarde, a Segunda Legião contornou uma pequena encosta e as linhas inimigas entraram no seu campo de visão. Diante deles, a umas duas milhas, espalhava-se um pequeno
declive, cheio de defesas. À frente estava um sistema extenso de rampas e fossos construídos para desviar um ataque directo e expor os atacantes ao disparo de projécteis
durante o máximo de tempo possível antes de alcançarem os defensores. À direita da linha inimiga o declive descaía para uma vasta extensão pantanosa através da qual
um rio largo descrevia uma longa curva. À esquerda da linha inimiga o declive desaparecia numa densa floresta que cobria o solo ondeado até uma distância longínqua.
A posição fora bem escolhida; qualquer atacante seria forçado a fazer um ataque frontal, encosta acima, entre a floresta e o pântano.
A Décima Quarta Legião chegara à frente da Segunda e já estava bem avançada nos preparativos das fortificações para o exército passar a noite. Um grupo de auxiliares
estava junto ao sopé da encosta e, para além deles, pequenos grupos de batedores de cavalaria inspeccionavam de perto as defesas inimigas. Um oficial assistente
conduziu a centúria de Macro ao conjunto de estacas que demarcavam a sua linha de tendas e o centurião berrou a ordem para pousarem a carga. Não havia forma de suprimir
a excitação dos homens quando montavam apressadamente as suas tendas e depois se sentavam para mirarem para lá do vale raso as fortificações inimigas. O pôr-do-Sol
reflectia-se nos elmos e armas dos bretões que se aglomeravam por trás das suas defesas. A tensão no ar parado estava ao máximo por causa da humidade crescente,
enquanto as nuvens se compactavam ao longo do horizonte a sul mais uma vez. Mas agora não havia qualquer lufada de vento e a miríade de sons de um exército a preparar
a cama para a noite pendia estranhamente no ar parado.
Ao anoitecer, as fogueiras foram acesas e, na escuridão, confrontavam-se através do vale tapetes gémeos de brilho laranja, o fumo das chamas manchando o ar acima
de cada exército. Vespasiano dera ordens para que os seus homens tivessem uma ração extra de carne para encherem as barrigas para a iminente batalha, e os legionários
sentaram-se gratos a comer bife salgado e guisado de cevada quando a noite caiu. Cato estava a comer os restos do seu guisado com um biscoito quando ouviu um som
estranho a trespassar o ar. Era um cântico que terminava num rugido, acompanhado por uma batida abafada. Virou-se para Macro, que já tinha terminado a sua refeição
com uma velocidade eficiente, e estava deitado a tirar com um pau os pedaços de carne que lhe tinham ficado entre os dentes.
- Que se está a passar ali, senhor?
- Parece-me que estão a tentar desencadear um pouco de febre da batalha.
- Febre da batalha?
- Claro. Eles sabem que as probabilidades estão contra eles. Temos-lhes dado uma boa tareia em todas as batalhas, até agora. A moral não deve estar muito boa e Carátaco
deve estar a fazer tudo por tudo para eles darem luta.
Um rugido novo irrompeu do acampamento inimigo e outra pancada cadenciada.
- O que é aquele barulho, senhor?
- Aquilo? É o mesmo truque que nós usamos. Uma espada a bater num escudo. Fazes com que todos batam ao mesmo tempo e é este o efeito.
É suposto aterrorizar o inimigo. Pelo menos é essa a ideia. Pessoalmente, dá-me dor de cabeça.
Cato terminou o seu assado e colocou a tigela da messe ao seu lado. O contraste entre os dois acampamentos perturbava-o. Enquanto o inimigo parecia estar num género
de comemoração selvagem, as legiões estavam a preparar-se para uma noite de sono, como se amanhã fosse simplesmente mais um dia.
- Não devíamos fazer algo àqueles tipos?
- Como o quê, por exemplo?
- Não sei. Qualquer coisa para acabar com a festa deles. Qualquer coisa para os desassossegar.
- Para quê preocuparmo-nos? - bocejou Macro. - Deixa-os divertirem-se. Não fará qualquer diferença quando os nossos rapazes caírem em cima deles amanhã. Vão estar
mais cansados do que nós.
- Concordo. - Cato lambeu as últimas gotas de guisado dos dedos. Cortou alguma erva e limpou a sua tigela da messe. - Senhor?
- Que é? - respondeu Macro quase a dormir.
- Acha que o comboio da bagagem vai conseguir chegar hoje?
- Não vejo porque não. Hoje não choveu. Porque perguntas?
- Hum, estava a pensar se iríamos ter o apoio da artilharia amanhã.
- Se Cláudio for sensato, vamos ter todo o apoio da artilharia a que pudermos dar azo contra aquelas fortificações.
Cato ergueu-se.
- Vais a algum lado?
- À latrina. E talvez um rápido passeio antes de ir dormir, senhor.
- Um rápido passeio? - Macro virou a cabeça e olhou para Cato.
- Não te chegou de passeio nos últimos dois dias?
- Tenho que clarear as ideias, senhor!
- Está bem, então. Mas vais precisar de uma boa noite de sono para amanhã.
- Sim, senhor.
Cato passeou até ao centro do acampamento. Se o comboio da bagagem tivesse apanhado o exército, talvez conseguisse ver Lavínia. Desta vez não haveria recinto imperial
que o impedisse. Alguns guardas talvez, mas podiam ser facilmente evitados na escuridão. E então seguraria Lavínia nos braços novamente e sugaria o aroma dos seus
cabelos. A perspectiva encheu-o com uma reacção de antecipação e acelerou o passo quando entrou na via Pretória em direcção às tendas dos legados. O salto jovial
dos seus passos empurravam-no para a frente com um tal ímpeto
que quase deitou ao chão uma figura que emergiu subitamente de uma tenda e se atravessou directamente no seu caminho. Colidiram e o queixo de Cato bateu na cabeça
da outra pessoa.
- Ei! Seu palerma, estúpido... Lavínia?
Esfregando a cabeça, Lavínia ficou a olhar para ele com os olhos largos. - Cato!
- Mas... porque... - murmurou enquanto a surpresa superava a loquacidade. - O que estás aqui a fazer? Como é que chegaste aqui?
- acrescentou, lembrando-se das estradas enlameadas que atolaram os vagões do comboio da bagagem.
- Com o comboio da artilharia. Assim que desatolaram, Flávia deixou o seu vagão para seguir com eles e apanhámos uma boleia de uma equipa de catapultas. Que tens
na cara?
- Foi alguém que veio contra mim... algumas vezes. Mas isso não é importante. - Cato queria abraçá-la, mas havia uma expressão distante nos olhos dela que o desencorajava.
- Lavínia? O que se passa?
- Nada. Porquê?
- Pareces diferente.
- Diferente? - Ela riu nervosamente. - Tolice! Só estou ocupada. Tenho que fazer um recado à minha senhora.
- Quando é que te posso ver? - Cato arriscou e pegou-lhe na
mão.
- Não sei. Eu encontro-te. Onde são as tuas tendas?
- Ali - apontou Cato. - Basta perguntares pela Sexta Centúria da Quarta Coorte. - A súbita imagem de Lavínia a vaguear pelas tendas escuras cercadas por milhares
de homens fê-lo temer pela segurança dela.
- Será melhor se eu esperar por ti aqui.
- Não! Eu vou ter contigo, se tiver tempo. Mas agora tens de ir.
- Lavínia inclinou-se e beijou-o rapidamente na bochecha antes de pressionar a mão no peito dele. - Vai!
Confuso, Cato afastou-se lentamente. Lavínia sorriu nervosamente e acenou-lhe em jeito de despedida, como se estivesse a brincar, mas havia uma intensidade nos olhos
dela que o faziam sentir frio e medo. Ele acenou com a cabeça, virou-se e afastou-se, contornando a esquina de uma linha de tendas.
Assim que as tendas taparam a visão dele, Lavínia virou-se e andou em passo rápido pela via Pretória no correr da linha de archotes que levava às tendas dos legados.
Se aguardasse mais uns instantes ela teria visto Cato espreitar cautelosamente do outro lado da linha de tendas. Ele viu-a quase a correr na direcção oposta e quando
teve a certeza que permaneceria nas
sombras do seu lado da via Pretória, seguiu-a silenciosamente de tenda em tenda, sem a perder de vista. Ela não foi muito longe. Só até à primeira de seis grandes
tendas dos tribunos da Segunda Legião. A ansiedade que ele sentira uns momentos antes transformou-se em repugnância e terror gelado, quando viu Lavínia entrar despreocupadamente
na tenda de Vitélio.
XLVII
Com um grande floreado, Cláudio tirou o lençol de seda que cobria a mesa. Por baixo, iluminada pelo brilho de dúzias de candeeiros a óleo, assentava uma reprodução
da paisagem que os rodeava, tão pormenorizada quanto possível dado o pouco tempo disponibilizado aos oficiais assistentes, e baseada nos relatórios dos batedores.
Os oficiais das legiões reuniam-se à volta da mesa e examinavam a paisagem atentamente. Para aqueles que tinham chegado após o pôr-do-Sol era a primeira oportunidade
para ver o terreno que iria estar à frente deles no dia seguinte. O Imperador aguardou uns instantes para que os seus oficiais se familiarizassem com o modelo antes
de começar a dar as instruções.
- Meus senhores, amanhã de ma... manhã daremos início ao fim da conquista desta ilha. Assim que Carátaco seja derrotado e o seu exército erradicado, não haverá mais
nada entre nós e a capital dos catuvelánios. Com a to... tomada de Camulodónia as restantes tribos bretãs curvar-se-ão ao inevitável. Daqui a um ano, pen... penso
que podemos afirmar com toda a certeza, que esta ilha será uma província tão pacífica como qualquer outra do Império.
Vespasiano escutava com desdém silencioso e a julgar pela troca de subtis olhares travessos, os oficiais partilhavam as suas dúvidas. Como poderia haver uma conquista
total em apenas um ano? Ainda ninguém conhecia a extensão total da ilha; alguns exploradores afirmavam ser apenas a ponta de uma grande extensão de terra. Se assim
era, e se as lendas das tribos selvagens do norte eram verdadeiras, levariam ainda muitos anos a pacificar a ilha. Mas por essa altura Cláudio já teria comemorado
o seu triunfo em Roma e a população há muito haveria esquecido a distante Britânia, distraída pelas intermináveis orgias de combates entre gladiadores, caças a bestas
e corridas de quadrigas no Circo Máximo. A última página da história oficial da conquista da Britânia por Cláudio já
fora escrita e copiada para os pergaminhos que seriam distribuídos pelas maiores bibliotecas públicas do Império.
Entretanto, Pláucio e as suas legiões ainda estariam ocupados a destruir todas as pequenas fortalezas que insistissem em resistir ao invasor. E enquanto um qualquer
druida fosse vivo, haveria um fervor constante de resistência a Roma, que entraria em ebulição de tempos a tempos em rebeliões armadas. Desde que haviam sido perseguidos
por Júlio César, os druidas olhavam Roma e tudo o que era romano com um ódio insaciável e fervoroso.
- Daqui a dois dias - continuou Cláudio - estaremos a celebrar em Ca... Camulodónia. Pensem nisso, e nos anos vindouros poderão con... contar aos vossos netos da
ba... ba... batalha decisiva em que combateram e venceram ao la... la... lado do Imperador Clá... Cláudio! - Os olhos brilhavam e a boca sorria dissimétrica. Olhou
para os rostos dos seus oficiais. O General Pláucio bateu rapidamente as mãos e aplaudiu, um gesto mais automático do que entusiástico.
- Obrigado. Obrigado. - Cláudio ergueu as mãos e os aplausos desvaneceram-se obedientemente. - E agora deixo Narciso pô-los ao corrente do meu pla... plano de ataque.
Narciso?
- Obrigado, César.
O Imperador recuou e o seu homem de confiança substituiu-o, um longo e estreito bastão na sua mão. Cláudio coxeou para uma mesa ao lado e pegou em algumas das tartes
elaboradas que os seus chefes de cozinha tinham conseguido fazer aparecer. Não prestou atenção à apresentação de Narciso e, por isso, não reparou no ressentimento
taciturno que se apoderou dos oficiais superiores à medida que tomavam conhecimento das ordens pela boca de um burocrata civil, um mero liberto. Narciso saboreava
o momento e olhou pensativamente para o modelo antes de erguer o bastão e iniciar a palestra.
- O Imperador decidiu que são necessárias tácticas arrojadas para partir esta noz. - Deu uma pancada nos tocos que representavam a paliçada bretã.
- Não podemos usar o terreno a sul por causa do pântano e não podemos entrar pela floresta. Os batedores relataram que urzes brancas impedem o caminho mesmo até
à orla da linha das árvores.
- Conseguiram penetrar alguma coisa na floresta? - perguntou Vespasiano.
- Receio que não. Os bretões enviaram quadrigas no encalço dos batedores antes que eles conseguissem analisar bem o terreno. Mas relataram que, até onde conseguiram
ver, a floresta é impenetrável e não há quaisquer sinais de trilhos abertos.
Vespasiano não estava satisfeito. - Não parece suspeito que os bretões não queiram batedores perto da floresta?
Narciso sorriu. - Meu querido Vespasiano, não devia julgar os outros pelo seu próprio falhanço em verificar o terreno adequadamente.
Houve uma profunda inspiração de ar à volta da tenda e os outros oficiais superiores ficaram à espera da reacção de Vespasiano a esse ultrajante ataque ao seu profissionalismo.
O legado mordeu o lábio para conter a explosão que se deu na sua garganta. A acusação fora injusta; ele agira sob as ordens directas de Pláucio, mas parecia mal
dizê-lo agora.
- Então será oportuno agora fazer o reconhecimento adequado
- respondeu Vespasiano com uma voz firme.
-Já foi tratado.-Narciso acenou delicadamente com a mão. Atrás dele o Imperador saiu da tenda com um prato cheio de iguarias.-Agora, de volta aos pormenores. A artilharia
vai ficar posicionada ao alcance das defesas inimigas a coberto da noite. O exército vai formar atrás da Guarda Pretoriana, com os elefantes na ala direita. Os lançadores
de dardos vão disparar sobre a paliçada até os Pretorianos e os elefantes começarem a subir a encosta. Julgo que a mera visão dos elefantes vai enervar e afastar
os bretões durante o tempo suficiente para que os Pretorianos escalem as defesas. Vão tomar e segurar a paliçada. A Vigésima, a Décima Quarta e a Nona avançarão
pelo espaço aberto pelos Pretorianos e atacarão o lado oposto da encosta. A Segunda ficará de reserva, após deixar quatro coortes, juntamente com as tropas auxiliares,
a guardar o acampamento e o aprovisionamento. Assim que tratemos de Carátaco é sempre a direito até Camulodónia. É tudo, meus senhores. - Narciso largou o bastão,
que caiu no chão de madeira.
Áulio Pláucio levantou-se rapidamente e dirigiu-se para o topo da mesa. - Obrigado, foi uma enunciação sucinta.
- Tento não empregar mais palavras do que aquelas que são completa e inteiramente necessárias - respondeu Narciso.
- Exactamente. Bom, alguém tem dúvidas?
- Se houvesse dúvidas, - interrompeu Narciso, - indicariam simplesmente que não tinham ouvido atentamente. E estou certo que os seus homens são tão profissionais
como parecem. Há um último assunto na ordem de trabalhos. Chegou-me aos ouvidos um rumor de que poderá haver um atentado contra a vida do Imperador nos próximos
dias. Estou habituado a esses rumores há muito tempo e sei que este resultará noutro alarme falso. - Deu a Vespasiano um ligeiro aceno de cabeça e continuou:
- Mas nunca podemos dormir descansados. Portanto, ficaria grato se os senhores pudessem estar atentos a qualquer coisa, por mais remotamente suspeita. General Pláucio,
pode dispensá-los agora.
Por um instante, Vespasiano teve a certeza que o general iria explodir por causa da impudência do liberto, e desejou que Pláucio o fizesse. Mas no último momento
Pláucio viu Cláudio a espreitar pela abertura da tenda enquanto mastigava uma tarte, esquecendo as migalhas que manchavam os seus adornos imperiais. O general acenou
severamente para os seus oficiais e eles saíram apressadamente da tenda, ansiosos por evitar estar presentes na confrontação entre Pláucio e o Secretário.
Vespasiano aguardou junto à mesa, determinado a dizer o que tinha engasgado, e ignorou deliberadamente o olhar de aviso e o aceno de Sabino que tinha parado na soleira.
Por fim, só Vespasiano, Pláucio, o Imperador e o seu liberto restavam.
- Depreendo que de... desaprova o meu plano, legado.
- César, - começou Vespasiano cautelosamente, - o plano é excelente. Quer combater esta guerra como um raio de luz que atinge o inimigo e o cega antes de ele conseguir
reagir. Quem não desejaria combater numa guerra destas? Mas... - Olhou em redor para avaliar as expressões nos rostos dos outros homens.
- Continue, por favor-disse Narciso friamente.-O seu silêncio é ameaçador. Mas?
- O problema está no inimigo. Presumimos que vão apenas sentar-se na encosta e defendê-la. E se eles ocultarem tropas na floresta? E se...
- Já falamos sobre isso, Vespasiano - respondeu Narciso, como se estivesse a explicar novamente a um aluno lento. - Os batedores dizem que é impossível passar pela
floresta.
- Mas e se eles estiverem errados?
- E se eles estiverem errados? - imitou Narciso. - E se houver quadrigas escondidas em fossos à nossa espera? E se eles tiverem milhares de homens escondidos nos
pântanos? E se eles se aliarem secretamente a uma tribo de amazonas para distraírem os nossos homens dos pensamentos de invasão e conquista?
O seu tom de escárnio enraiveceu Vespasiano. Como se atrevia este idiota a demonstrar tanto desdém.
- A disposição do terreno foi completamente explorada - continuou Narciso.-Sabemos onde estão as posições inimigas, sabemos como usar as nossas forças e as fraquezas
deles, já vencemos Carátaco antes e vamos vencê-lo novamente. De qualquer forma, já demos as ordens e é tarde para mudá-las agora.
Pláucio olhou para Vespasiano e abanou a cabeça para evitar qualquer outra discussão. A palavra do Imperador era lei, mais para os soldados do que para os outros
e não se podia discutir. Se Cláudio desejava lançar a sua guerra relâmpago, então ninguém o podia impedir; excepto os bretões.
XLVIII
A humidade dos últimos dias e a proximidade do pântano e do rio cooperavam na produção de uma névoa particularmente carregada que se espalhava mais densamente no
vale raso entre os dois exércitos. Muito antes do Sol se levantar, os legionários vestiram-se, comeram e marcharam para as suas posições na batalha que se aproximava.
De cada lado das Coortes Pretorianas ouvia-se o som metálico dos lançadores de dardos, à medida que os artilheiros distendiam as manivelas de torção e as rodas dentadas
engrenavam. Pequenos braseiros cintilavam junto a cada míssil incendiário já pronto. Mais longe, à direita, os elefantes agrupavam-se bem perto uns dos outros, completamente
enervados pelas mechas pálidas de névoa que os circundavam.
De um monte relvado mesmo fora dos limites do acampamento romano, o Imperador e o seu séquito aguardavam por notícias dos preparativos da batalha. Abaixo deles,
a névoa cobria a maior parte do exército romano, e apenas vagos trechos de ordens gritadas, som de cascos e o estrépito do equipamento revelavam a presença de milhares
de homens. Uma contínua corrente de mensageiros andava de um lado para o outro, enquanto Pláucio se debatia para coordenar o seu exército invisível. Felizmente,
previra o aparecimento do nevoeiro durante a noite e ordenara aos engenheiros que colocassem espigões a marcar a posição inicial de cada unidade. Mesmo assim, o
amanhecer chegou e passou e o Sol estava bem acima do horizonte antes que se sentisse convencido de que o exército estava em posição e pronto para o ataque.
- César, as Águias aguardam as suas ordens - anunciou finalmente.
- Bom, vamos co... começar com isto, não é melhor? - respondeu Cláudio, irritado com o atraso; não fazia parte do seu plano.
- Sim, César. - Pláucio acenou para o tribuno lançar o ataque. O som do conglomerado de trombeteiros do quartel-general explodiu
através do vale, ligeiramente abafado no ar húmido. Quase ao mesmo tempo as trompas de guerra bretãs troaram a sua resposta desafiadora, e inchados pelo barulho
ouviram-se gritos de entusiasmo e de escárnio dos guerreiros bretões no cume. No meio da névoa um ruído agudo e ritmado chegou aos ouvidos dos oficiais assistentes
romanos. O ruído aumentou em intensidade e estendeu-se a todo o comprimento da frente romana.
- O que é esta algazarra? - disse Cláudio, rabugento.
- São apenas os nossos homens a anunciarem-se, César. Estão a bater nos escudos com os dardos. Fá-los sentir-se bem e assusta o inimigo.
- Não me pa... parecem muito assustadores. - acenou Cláudio.
- Bem, então pelo menos tem que fazer com que os nossos homens se sintam bem, César.
- É uma maldita chatice!
Uma série de estrépitos altos soaram de dentro da névoa e uma chuva de dardos incendiários zumbiu para além das defesas bretãs, em arcos flamejantes, atingindo a
paliçada. Faúlhas, fragmentos de madeira, pedaços de relva e de homens voaram em todas as direcções quando os pesados dardos chegaram ao destino. Houve um repentino
cessar dos gritos de guerra por parte dos bretões, mas alguém do outro lado sabia o perigo de se sentar e apanhar com o castigo em silêncio. Uma por uma, as trompas
de guerra recomeçaram a troar, e a elas se juntaram rapidamente os gritos dos guerreiros atrás das defesas.
Da sua posição, fora do fosso do acampamento romano, os homens da Segunda Legião estavam numa boa posição para verem o bombardeamento. A artilharia manteve o fogo
firme e o céu acima das defesas bretãs estava permanentemente marcado pelos dardos flamejantes e pelos rastos de fumo negro. Já uma série de pequenos incêndios tinham
irrompido e manchas densas de fumo ondeavam no cume mais longínquo.
- Pobres idiotas. - Macro abanou a cabeça. - Não gostava de estar ali naquele momento.
Cato olhou de soslaio para o seu centurião, surpreso com a evidente empatia com o inimigo.
- Nunca viste o que um dardo consegue fazer, pois não rapaz?
- Vi as consequências, senhor.
- Não é a mesma coisa. Tens de estar no lado que recebe aquelas coisas para perceberes totalmente o seu efeito.
Cato vislumbrou as chamas e o fumo negro denso na encosta oposta, esperando que os bretões tivessem o bom senso de fugir. Nas últimas semanas tinha dado por si a
valorizar as batalhas que provocavam
o menor número de mortos e feridos. Mas hoje não se importava. Depois da visão de Lavínia na noite anterior, o seu coração estava rendido a um desespero frio que
tornava a vida inútil.
Os bretões não passavam de um obstáculo e erguiam os seus estandartes em forma de serpente acima das suas defesas. A falta de brisa significava que os porta-estandartes
tinham que balançá-los de um lado para o outro para mostrarem totalmente as caudas e, à distância, pareciam vermes frenéticos retorcidos num prato quente.
- Ali vão os Pretorianos! - apontou Macro para a encosta. Emergindo do ponto onde a névoa começava a rarear marchavam numa linha desalinhada homens com elmos de
plumas brancas. Depois avistaram-se as suas túnicas brancas quando deixaram completamente a névoa. Quando a primeira linha passou, foram mandados parar pelos oficiais
que os alinharam, depois, com uma precisão militar perfeita, os Pretorianos subiram em direcção à primeira linha de defesa: uma série de fossos. A segunda linha
já emergia da névoa. Os disparos dos lançadores de dardos afrouxaram e cessaram totalmente quando as equipas de artilharia receberam o aviso de que os Pretorianos
estavam próximos do inimigo.
Assim que os bretões se aperceberam de que o perigo da artilharia romana tinha passado, reuniram-se de novo na paliçada e começaram a disparar flechas e fundas para
os romanos que se debatiam por subir o íngreme declive do primeiro fosso. Pequenas brechas abriram-se nas linhas das coortes dianteiras mas a disciplina implacável
do exército romano provou o seu valor quando a linha se reordenou e as brechas foram preenchidas. Mas as orlas dos fossos já estavam ponteadas com os uniformes brancos
dos que tinham tombado. A primeira linha escalou o último fosso, reordenou-se sob fogo intenso e começou a trepar a última encosta que dava para a paliçada. Subitamente,
a todo o comprimento da paliçada, fumo derramou-se pelo ar, e instantes mais tarde feixes incandescentes foram erguidos com a ajuda de forquilhas e lançados sobre
a paliçada. Ressaltaram pelo declive íngreme, espalhando faúlhas em todas as direcções antes de embaterem nas linhas romanas, dispersando os Pretorianos.
- Ui - murmurou Cato. - É uma habilidade repugnante.
- Mas eficaz. Para já. De qualquer maneira, não gostava de ser bretão quando os Pretorianos entrarem por ali dentro.
- Desde que poupem os suficientes para serem vendidos como escravos.
Macro riu-se e deu-lhe uma pancada no ombro. - Agora já estás a pensar como um soldado!
- Não, senhor. Só estou a pensar como alguém que precisa de dinheiro - replicou Cato sucintamente.
- Onde estão o raio dos elefantes? - Macro esforçou os olhos para tentar captar qualquer movimento à direita da linha romana. - Os teus olhos são melhores do que
os meus. Vês alguma coisa?
Cato olhou, mas nada perturbava o lençol branco do nevoeiro que assolava o pântano e abanou a cabeça.
- É mesmo uma estupidez usar elefantes. - Macro cuspiu para o chão. - Que imbecil terá tido essa ideia?
- Foi Narciso, senhor.
- Pois. Olha! Lá vão os guardas!
Os Pretorianos haviam alcançado a paliçada e tinham conseguido fazer colapsar algumas secções. Enquanto Cato e Macro observavam, as finas lâminas dos seus dardos
de arremesso choviam sobre os defensores antes de eles desembainharem as espadas e forçarem as brechas.
- Boa, Pretorianos, em cima deles! - gritou Macro, como se as suas palavras chegassem aos ouvidos deles. - Apanhem-nos!
A excitação do centurião era partilhada pelos que estavam no monte relvado. Os oficiais estenderam o pescoço para tentar ver melhor o ataque distante. O Imperador
dava saltos na sua sela com uma alegria desenfreada enquanto via as coortes Pretorianas a carregarem. Estava tão contente que esquecera a próxima fase do seu plano
de batalha.
- César? - interrompeu Pláucio.
- Oh, o que foi agora?
- Dou a ordem para as legiões avançarem?
- Como? - Cláudio franziu o sobrolho antes de se lembrar dos pormenores necessários. - Claro! Porque é que não f... f... foi já dada? Avança com isso, homem! Avança
com isso!
A ordem para avançar foi dada, mas a névoa encobria qualquer vestígio de que estivesse a ser cumprida até que, finalmente, as filas dianteiras da Nona Legião apareceram
como formas espectrais emergindo gradualmente na encosta oposta. Coorte após coorte ultrapassaram os fossos com uma lentidão dolorosa, ou assim parecia.
Alguns oficiais trocavam palavras nervosas enquanto observavam o avanço. Algo não estava bem. As últimas fileiras das coortes Pretorianas ainda conseguiam ser vistas
no topo da paliçada. Já deviam ter avançado mais por aquela altura, mas pareciam estar a ser impedidos de avançar por algo não visível daquele lado do declive. Os
legionários que lideravam a Nona já se encontravam entre as últimas fileiras dos Pretorianos, e as vagas de coortes continuavam a emergir do nevoeiro e a subir o
declive.
- Não acontecerá algo de com... complicado se isto continuar?
- perguntou o Imperador.
- Temo que sim, César.
- Porque é que ninguém está a tratar disso? - Cláudio olhou em redor para os seus oficiais assistentes. Estavam pálidos. - Então?
- Vou mandar alguém investigar a razão do atraso, César.
- Não vale a pena! - retrucou Cláudio ardentemente. - Quando queremos al... al... algo bem feito temos de ser nós próprios a fazê-lo.
- Apertando as rédeas, afundou os calcanhares nos flancos do cavalo e desceu o monte em direcção à névoa.
- César! - Chamou Narciso desesperadamente. - César! Pare!
Quando Cláudio trotou imprudentemente, Narciso praguejou
e virou-se rapidamente para os outros oficiais que estavam a assistir assarapantados aos acontecimentos. - De que estão à espera? O Imperador vai ali, e para onde
ele for o quartel-general segue-o. Vamos!
Quando o Imperador desapareceu no nevoeiro, os seus oficiais assistentes seguiram atrás dele, tentando desesperadamente não perder de vista o governante do Império
Romano, que galopava para o perigo.
- Que raio se está a passar? - perguntou Vespasiano. Estava em cima do seu cavalo, à frente das seis coortes que compunham a sua legião. Sem aviso prévio, o Imperador
e o seu séquito inteiro tinham descido o monte, e o que parecia a traseira de uma corrida de cavalos fundia-se agora na névoa. Virou-se para o seu tribuno superior
com as sobrancelhas erguidas.
- Quando tem que ser, tem que ser - insinuou Vitélio.
- Foi de muita ajuda, Tribuno.
- Pensa que devemos ir atrás deles?
- Não. As nossas ordens são para aguardar aqui.
- Muito bem, senhor. - Vitélio encolheu os ombros. - De qualquer forma a vista daqui é melhor.
Vespasiano deixou-se ficar e observou o declive onde as sucessivas ondas de atacantes se tinham misturado desesperadamente antes que os oficiais tivessem a oportunidade
de parar o avanço e reorganizar os homens. - Isto pode tornar-se numa tragédia se não tivermos cuidado.
- Não é um espectáculo edificante, pois não, senhor? - riu Vitélio.
- Vamos esperar que seja a única coisa a correr mal hoje - respondeu Vespasiano. Olhou para o céu limpo de onde o sol matinal brilhava e depois para a névoa. - Achas
que está a dissipar-se?
- O quê, senhor?
- O nevoeiro. Acho que está a levantar.
Vitélio olhou fixamente para a névoa durante uns momentos. Os farrapos brancos estavam a perder terreno nas extremidades e a orla > obscura da floresta à esquerda
já se estava a mostrar.
- Creio que tem razão, senhor.
Que o Imperador tivesse sobrevivido à carga frenética, através do seu próprio exército, Narciso só podia atribuir a algum tipo de intervenção divina. Na névoa densa
era quase impossível acompanhar Cláudio. Os homens atiravam-se para a esquerda ou para a direita quando ouviam os cascos e olhavam pasmados para Cláudio a passar
por eles a galope, seguido de perto pelo General Pláucio e pelos seus oficiais assistentes. À medida que as linhas romanas ficavam mais congestionadas, Cláudio viu-se
forçado a abrandar, o que fez com que, por fim, os outros o conseguissem alcançar e abrissem um corredor de passagem entre as fileiras comprimidas. Enquanto subiam
a encosta e saíam da névoa, tornou-se clara a verdadeira escala da desorganização. Ao longo de toda a frente, os homens esmagavam-se uns contra os outros. Era pior
junto aos fossos, onde os desafortunados que se encontrassem no fundo eram apertados e os que tropeçassem e caíssem eram espezinhados até à morte. Só usando a força
bruta das suas montadas é que Cláudio e os restantes conseguiram alcançar a paliçada e perceber o que correra mal.
Carátaco tinha previsto tudo. Os fossos e a paliçada eram apenas uma amostra das defesas reais espalhadas no outro lado da encosta. Quatrocentos pés para cada lado
corria um sistema de fossos escondidos com espigões no fundo, os "harpões" tão ao gosto de Júlio César, e, finalmente, uma trincheira profunda e ainda uma muralha
defendida por uma paliçada. Sem artilharia a auxiliá-los, as unidades Pretorianas haviam sido forçadas a avançar sozinhas para esta armadilha mortal, com os bretões
a darem luta a cada passo.
A todo o comprimento da encosta havia corpos de Pretorianos empalados em espigões e estropiados por abrolhos escondidos, cujas perversas pontas em ferro entravam
directamente através das solas das botas. Havia apenas alguns trilhos sem espigões e os Pretorianos afunilavam-se nesses espaços apertados, controlados pelos bretões
que os mantinham ao largo, enquanto os seus flancos estavam expostos a fogo sem piedade de pequenos redutos que se erguiam acima das armadilhas um pouco por todo
o lado. A chegada de ainda mais tropas piorara progressivamente a situação, pois empurravam ainda mais os Pretorianos para a armadilha.
Cláudio olhou horrorizado para a tragédia; Pláucio estava cheio de raiva. Sem esperar pela autorização imperial gritou as suas ordens.
- Enviem um mensageiro a todos os legados. Que retirem os seus homens imediatamente. Que se dirijam para as posições iniciais e aguardem novas ordens. Vão!
Quando os oficiais assistentes iniciaram a descida da encosta, Cláudio saiu do seu estado petrificado e respondeu às ordens que Pláucio havia dado. - Muito bem,
Pláucio, uma retirada táctica. Muito se... sensato. Mas pri... primeiro vamos usar o mais possível esta di... diversão. A Segunda pode con... contornar o declive
e apanhá-los no flanco. Dê a ordem ime... imediatamente!
Pláucio fitou o seu imperador, emudecido pela completa imbecilidade da ordem. - César, a Segunda é o último corpo organizado de legionários que nos resta.
- Exactamente. Agora dê a ordem.
Ao ver que Pláucio não se movia, o Imperador repetiu a ordem a Narciso. De imediato o secretário foi em busca de alguém para correr até Vespasiano.
- Sabino! Anda cá!
Enquanto Narciso dava a ordem, ouviu-se um rugido crescente do inimigo à medida que corria pelas suas linhas a notícia de que o Imperador Romano estava à distância
de tiro. Fundas e flechas começaram a cair à volta de Cláudio e dos seus assistentes, e os guarda-costas imperiais apressaram-se a rodear o seu amo, erguendo os
escudos para o proteger. Os restantes acompanhantes tiveram que desmontar e pegar nos escudos dos mortos, à medida que os projécteis aumentavam. Olhando por debaixo
do rebordo de um escudo bretão, Narciso vislumbrou um mar de mantos tingidos de carmesim na massa de bretões que os assolava, e o rugido nas gargantas do inimigo
atingiu uma intensidade fanática quando os guerreiros de elite de Carátaco avançaram na direcção do Imperador Romano.
- Agora estamos feitos! - murmurou Narciso antes de se virar novamente para Sabino.
-Vê se percebes. Se o teu irmão não avançar a tempo, o Imperador estará perdido e o exército será chacinado. Vai!
Sabino deu com os calcanhares na sua montada e a besta recuou antes de galopar por entre as fileiras de legionários apertadas umas contra as outras. Atrás de Sabino,
o rugido dos bretões a convergirem para a posição do Imperador afogava os restantes sons do combate.
Rostos desesperados e confusos irrompiam diante dele, à medida que persistia na sua cavalgada, abrindo caminho brutalmente por entre
a densa massa, desatento aos lamentos dos homens atirados ao chão e esmagados pela sua montada.
Por fim, a multidão de legionários diminuiu e esporeou o cavalo encosta acima em direcção ao acampamento romano. Através da névoa os seus olhos procuravam ansiosamente
por algum sinal da legião do seu irmão. Então, as sombras espectrais dos estandartes apareceram mesmo à sua frente. Subitamente, a névoa levantou e, com um grito,
Sabino encaminhou o seu cavalo mesmo para junto do seu irmão mais novo e, sem fôlego, transmitiu a ordem do Imperador.
- Estás a falar a sério?
- Muito a sério, irmão. Para a direita do declive e entrar pelo flanco deles a dentro.
- Mas há um pântano para aqueles lados. Para onde foram os elefantes. Afinal o que é feito deles?
- Não importa - disse Sabino sem fôlego. - Limita-te a cumprir a ordem. Ainda podemos vencer a batalha.
- Vencer a batalha? - Vespasiano olhou através da névoa que se dissipava no local onde as outras legiões enchiam a encosta. - Vamos ter sorte se não formos massacrados.
- Limita-te a cumprir a ordem, Legado! - disse Sabino severamente.
Vespasiano olhou de soslaio para o seu irmão e depois observou novamente o campo de batalha antes de tomar a decisão que todos os seus instintos e julgamento militar
apelavam que tomasse.
- Não.
- Não? - repetiu Sabino, os olhos abertos. - O que queres dizer com não?
- A Segunda vai permanecer aqui. Somos a reserva - explicou Vespasiano. - Se Cláudio nos manda para um ataque estúpido desses, então não sobra ninguém para enfrentar
qualquer surpresa que os bretões nos atirem. Não enquanto as outras legiões estiverem naquela balbúrdia.
- Acenou para o outro lado do vale. - Ficamos aqui.
- Irmão, imploro-te. Faz o que te mandam!
- Não!
- Os bretões já lançaram a sua surpresa - argumentou Sabino desesperadamente. - E agora nós. Tu podes surpreendê-los.
- Não.
- Vespasiano. - Sabino inclinou-se e falou com uma calma intensa. - Avança! Se ficares aqui vais ser acusado de cobardia. Pensa no nome da tua família. Queres que
os Flavianos sejam lembrados como cobardes para o resto do tempo? Queres?
Vespasiano devolveu o olhar do irmão com a mesma intensidade.
- Isto nada tem a ver com a posteridade. Isto tem a ver com fazer a coisa certa. Pelo manual. Quando o exército está desorganizado, temos que ter uma reserva a postos.
Só um idiota discordaria.
- Fala mais baixo, irmão. - Sabino olhou em redor nervosamente para o caso das palavras extremadas do irmão terem sido ouvidas por outros. Vitélio estava ao lado
e ergueu casualmente a mão numa saudação trocista.
- Vespasiano...
Mas o legado já não estava a prestar atenção. Estava a olhar fixamente para a floresta, mais visível no nevoeiro que se levantava. A não ser que os seus olhos o
estivessem a enganar, havia movimentos naquelas bandas. Por baixo dos ramos das árvores na orla da floresta, urzes brancas de mato emergiram lentamente em dúzias
de lugares. Que magia negra seria aquela? Podiam aqueles demónios dos druidas conjurar as forças da natureza para os ajudar na luta contra Roma?
Depois as urzes foram atiradas para o lado e o verdadeiro génio do plano de Carátaco tornou-se claro. Das profundezas da floresta apareceram colunas de quadrigas.
O troar dos cascos e o ruído das rodas tornou-se audível até em cima, no acampamento romano. As pesadas quadrigas bretãs irromperam para o céu aberto e dirigiram-se
para as posições de artilharia no lado esquerdo.
Os legionários que accionavam os lançadores de dardos não tiveram tempo de reagir à ameaça e foram mortos no local, esmagados pelas quadrigas ou trespassados pelas
lanças dos guerreiros que nelas vinham. Na esteira das quadrigas aglomeravam-se milhares de homens com armas leves e lanças. Moveram-se por entre a retaguarda das
forças atacantes como fantasmas cinzentos na névoa que se dissipava. Não prestaram qualquer atenção às poucas coortes da Segunda Legião, visíveis acima da névoa,
enquanto se apressavam para fecharem a armadilha sobre Cláudio e a maior parte do exército romano. Apareceram mais bretões ao longo da orla da floresta e atiraram-se
sobre o flanco emaranhado das legiões. A ferocidade do ataque combinou com o efeito surpresa e os bretões envolveram as linhas romanas desorganizadas. O pânico brotou
e foi levado como uma corrente à frente do ataque devastador dos bretões. Alguns legionários recuaram enquanto outros simplesmente correram para a direita da linha.
- Pelos deuses - disse Sabino. - Estão a tentar empurrar-nos para o pântano.
- E vão conseguir, - disse Vespasiano severamente, - a não ser que nos intrometamos.
- Nós? - Sabino parecia horrorizado. - Que podemos fazer? Devemos proteger o acampamento, para que os sobreviventes tenham para onde fugir.
- Sobreviventes? Não haverá sobreviventes. Vão correr todos para o pântano e morrer afogados, ou ficarão presos no lodaçal e serão cortados em pedaços. - Vespasiano
aproximou-se e agarrou o braço do irmão. - Sabino, cabe-nos a nós. Não há mais ninguém. Percebes?
Sabino recuperou o seu auto-controlo e assentiu.
- Ainda bem! - Vespasiano largou-lhe o braço. - Agora vai ao acampamento e manda vir as outras quatro coortes e mais as tropas auxiliares que conseguires encontrar.
Manda-as formar o mais rápido possível e atacar encosta abaixo. Faz o máximo de barulho que puderes. Agora vai!
- Etu?
- Vou arriscar com os que tenho aqui.
Sabino rodou o cavalo e esporeou-o em direcção ao portão principal do acampamento, inclinado sobre o pescoço da besta enquanto afundava os calcanhares nos flancos.
Com um último relance para o seu irmão, Vespasiano perguntou-se se se voltariam a ver neste mundo. Depois afastou o pensamento desagradável da mente e endureceu-se,
era o que tinha que fazer se o exército e o Imperador precisavam de ser salvos. Virou-se para os tribunos e chamou-os. Os jovens ouviram-no atentamente enquanto
ele transmitia as instruções o mais depressa que podia, e depois galoparam para comunicar as ordens aos centuriões chefes das seis coortes. Vespasiano desmontou,
entregou as rédeas a um moço de estrebaria e pediu que lhe trouxessem o seu escudo. Desprendeu a fivela do manto escarlate e deixou-o cair no solo.
- Certifica-te de que é levado para a minha tenda. Vou precisar dele esta noite se estiver frio.
- Sim, senhor. - O seu escravo pessoal assentiu com um sorriso.
- Vejo-o mais logo então, senhor.
Verificou a correia do seu elmo e se a pega do escudo estava seca. Vespasiano desembainhou a espada e prendeu-a junto à borda do escudo. Olhou para as coortes para
se certificar de que tudo estava pronto. Os homens estavam de pé, formados em silêncio e seguindo atentamente a acção no fundo do vale enquanto aguardavam pela ordem.
- A Segunda avançará em linha oblíqua! - gritou, e a ordem foi rapidamente retransmitida ao longo da linha. Contou até três antes de proferir a frase e depois encheu
os pulmões. - Avançar!
Com um ritmo certo as seis coortes moveram-se na diagonal
e começaram a descer a encosta na direcção dos berros e dos gritos da batalha desesperada que se disputava no vale. A névoa estava a rarear rapidamente e começava
a revelar a verdadeira dimensão da tragédia que Cláudio e as outras três legiões enfrentavam. Apanhados fora da formação e a cambalearem pela surpresa do ataque
da floresta, as fileiras da retaguarda tinham quebrado e tentavam escapar cegamente através do campo de batalha na direcção do pântano. Bolsas dispersas de resistência
apareciam nos locais onde um centurião conseguia mostrar determinação suficiente e presença de espírito para reunir homens e defrontar os soldados bretões armados
com piques. Colocados atrás dos escudos apertados uns contra os outros, pequenos grupos de legionários abriram caminho para se juntarem, mas não estavam a ser bem
sucedidos por causa do alcance das lanças do inimigo.
Os estandartes da Quarta Coorte eram sacudidos para cima e para baixo, ao passo cadenciado dos seus portadores, e os olhos de Cato ficaram automaticamente atraídos
por eles quando os seus adornos decorativos apanharam a luz do Sol e brilharam com uma palidez flamejante. As coortes marchavam em duas linhas de três centúrias,
com a Sexta Centúria posicionada na retaguarda da fila direita. Cato tinha uma visão clara da linha de avanço. Os altos carvalhos da floresta erguiam-se à frente
e à esquerda da Segunda Legião, trilhos largos conduziam às suas sombras claramente visíveis agora que as urzes brancas tinham sido deitadas fora. À frente e à direita,
a erva esmagada estava coberta de corpos, ainda molhada pelo orvalho que lhe ensopava as botas. A coorte passou sobre os vestígios da bateria de artilharia do flanco
esquerdo. A maioria das armas havia sido derrubada, e os corpos das suas equipas estavam espalhados por todo o lado. Cato teve que contornar o cadáver de um centurião
e, olhando para baixo, sentiu a bílis subir à garganta quando viu a cartilagem sangrenta e os tendões do pescoço cortados por um golpe de espada que quase lhe decepara
a cabeça.
Continuaram a progredir e deixaram a carnificina para trás. À medida que avançavam, Cato viu que finalmente uma parte do inimigo estava a responder ao avanço das
coortes. Os homens mais próximos armados com piques viraram-se para enfrentarem a ameaça e gritaram avisos para os seus camaradas. Cada vez mais inimigos se viravam
para atacar a Segunda Legião, berrando gritos de guerra enquanto nivelavam as suas lanças.
- Alto! - gritou Vespasiano.
As coortes deram mais um passo à frente, as mãos a apertarem os dardos de arremesso em antecipação à ordem seguinte.
- Preparar dardos de arremesso!
Os legionários das linhas da frente da centúria tomaram o peso aos dardos e esticaram os braços para trás. A carga bretã hesitou. Sem escudos a protegê-los, os homens
dos piques sabiam o quão vulnerável estavam à chuva de dardos.
- Lançar!
Os braços dos legionários voaram para a frente, lançando um arco irregular de linhas negras que curvavam no ar em direcção aos bretões. Quando atingiram o ponto
mais alto da sua trajectória os dardos pareceram parar durante uns instantes, e os gritos de guerra dos bretões morreram nas suas gargantas ao prepararem-se para
suportar o impacto. As pontas dos dardos desceram e a chuva mergulhou nas fileiras bretãs, rasgando por dentro e por fora os corpos desprotegidos dos homens das
lanças. A carga colapsou imediatamente e os bretões sobreviventes olharam assustados para as coortes quando Vespasiano chamou a segunda linha a postos. Mas não houve
necessidade de outra chuva de dardos. Quase em simultâneo os bretões recuaram, sem vontade de enfrentar outra chuva e de se juntarem aos seus companheiros atingidos,
mortos e feridos, pelas lâminas afiadas dos dardos cujas cabeças se enterravam na carne nua e no solo.
- Avançar! - gritou Vespasiano. E as coortes moveram-se para a frente mais uma vez, recuperando dardos intactos e liquidando os inimigos feridos enquanto passavam
pela destruição que tinham criado. O flanco esquerdo da legião estava agora perto da orla da floresta e Vespasiano ordenou um realinhamento. A legião parou e alterou
firmemente a sua posição até estarem em oposição ao flanco esquerdo dos homens de piques bretões, isolando-os da floresta, numa eficiente reversão de posições. Agora
seriam os bretões a ser empurrados para o pântano, durante o tempo em que as seis coortes conseguissem manter o ímpeto do seu contra-ataque.
A não ser que Sabino mandasse a força a que tivesse conseguido deitar as mãos o mais cedo possível, o resultado da batalha ainda estava em dúvida. Vespasiano dispensou
uma vista de olhos encosta acima, na direcção do acampamento romano, mas ainda não havia qualquer sinal de ajuda daquela parte. Ordenou à legião que continuasse
e, à medida que entravam na grande balbúrdia que se espalhava pelo vale, Vespasiano começou a bater na borda do seu escudo com a espada. O ritmo foi imitado pelos
homens à sua volta e espalhou-se rapidamente às outras coortes quando a linha dupla se aproximava dos homens dos piques.
Passavam agora pelos corpos dos seus companheiros das outras legiões e uma determinação sólida de executar uma vingança sangrenta encheu os seus corações, quando
ergueram os escudos e se prepararam
para combater os bretões. Os gritos triunfantes dos homens dos piques desvaneceram-se quando a Segunda Legião se espalhou em seu redor, e atrás dos bretões o emaranhado
de legionários em dificuldades organizou-se com um grito de esperança.
Vespasiano mandou parar os seus homens uma última vez para que estes lançassem os dardos que faltavam. Depois, a Segunda carregou com um grito de batalha insano
e selvagem nos lábios de todos os homens.
Cercado por todos os lados por legionários ameaçadores, Cato rendeu-se ao momento e libertou a tensão e a agressividade que tinham crescido nele durante o avanço.
Gritou álgo sem sentido quando foi apanhado pelo compressor humano que corria contra o inimigo. Com um estrondo de lança e escudo a Segunda embateu na linha bretã
e o momento da carga transportou-a através da massa desorganizada de bretões com lanças que, apenas há momentos, gritavam triunfantemente quando se aglomeravam à
volta das legiões desorganizadas.
Cato baixou a cabeça e carregou contra a densa multidão de homens que se retalhavam e apunhalavam uns aos outros. Estava consciente, mesmo à sua direita, de Macro
berrando encorajamentos para o resto da centúria e acenando com a espada curta no ar para reunir os homens à sua volta. Cato achou-se confrontado por um bretão que
parecia rosnar e que segurava o seu pique com ambas as mãos, balançando-o para cima e para baixo em direcção ao seu estômago. Cato cortou a cabeça da lança, atirando-a
para o lado e carregou sobre o bretão. O homem teve apenas um instante para se aperceber da surpresa antes da espada de Cato lhe penetrar o peito. Caiu para trás,
cuspindo grandes gotas de sangue enquanto Cato puxava violentamente a espada para fora do corpo do bretão, empurrando-o para o chão com o escudo e virando-se para
outro inimigo.
- Cato, à tua esquerda! - gritou Macro.
O optio baixou a cabeça instintivamente e a larga lâmina de uma lança ricocheteou no topo do elmo. O golpe cegou-o momentaneamente e a sua visão ficou branca. Ficou
melhor no instante seguinte, mas a cabeça ainda latejava quando foi deitado ao chão pelo homem da lança, que caiu juntamente com ele na erva ensanguentada. Cato
estava ciente da respiração violenta do bretão, do fedor do corpo dele e de uma tatuagem azul vívida no ombro do homem, que se debateu por momentos perante os seus
olhos. Então o homem gemeu, arquejou e rolou para o lado quando Macro tirou a espada e fitou Cato.
- Levanta-te, rapaz!
O centurião protegeu os seus corpos com o escudo e ficou atento
a qualquer ataque enquanto Cato se levantou, abanando a cabeça para tentar clarear a tontura.
- Tudo bem?
- Sim, senhor.
- Boa. Vamos.
O ímpeto da carga tinha atingido o seu fim, e agora os homens da Sexta Centúria fechavam as fileiras e avançavam, por trás de uma muralha de escudos, matando os
inimigos que atravessavam o caminho. As fileiras bretãs estavam apinhadas, tanto que já não conseguiam usar as lanças de uma forma eficaz e estavam a ser progressivamente
massacradas. Um pouco mais acima na encosta, as legiões que tinham quase sido derrotadas viravam-se agora para o inimigo, que enfrentava uma vingança selvagem. Os
gritos de triunfo dos guerreiros bretões desvaneceram-se e tornaram-se em medo e pânico quando tentavam escapar das lâminas vingativas das espadas curtas dos legionários.
Naquela aglomeração de corpos, a espada curta era a mais letal das armas e os bretões sucumbiram em grande número. Aqueles que estavam feridos e escorregavam na
erva ensanguentada eram pisados, os seus corpos esmagados pelos homens que combatiam em cima deles, e depois tombavam mais corpos que faziam com que alguns sufocassem
horrivelmente.
Cato avançava o seu escudo, dava um passo em frente e apunhalava com a espada numa cadência firme à medida que avançava com o resto da centúria. Alguns homens estavam
cheios de desejo de sangue e saíam para a frente da linha, lançando golpes ao inimigo, expondo-se a perigos por todos os lados. Muitos pagaram o preço por esta falta
de disciplina, e os seus corpos massacrados caíam sob os passos dos seus companheiros. Cato estava ciente do perigo das pisadas e colocava os pés cuidadosamente
enquanto avançava, com um medo enorme de tropeçar e não ser capaz de se levantar de novo.
- Eles estão a quebrar! - berrou Macro acima do ruído do choque de armas e dos gemidos e dos gritos dos combatentes. - A linha do inimigo está a romper!
Da direita, acima da zona quente de corpos e armas, Cato podia ver mais estandartes romanos a aproximarem-se vindos do acampamento romano.
- É a guarda do acampamento! - gritou.
A destruição dos lanceiros inimigos ficou selada quando as restantes coortes da legião e uma pequena força de coortes auxiliares carregaram a retaguarda. Rodeados
em três lados pela muralha impenetrável de escudos romanos, eram mortos onde estavam. No único lado livre eles
largaram as armas e fugiram para o pântano numa tentativa desesperada de se conseguirem salvar tomando aquela direcção. No início, os bretões apanhados no abraço
armado das legiões romanas tentaram resistir mesmo enquanto eram forçados a ceder terreno. Depois acabaram por se desintegrar como força de combate e tornaram-se
numa torrente de indivíduos a correrem para salvar a pele, perseguidos por um exército impiedoso.
Gritando de satisfação, os homens da Sexta Centúria carregaram sobre eles durante uma curta distância, pois a armadura pesada e as armas forçaram-nos a parar a perseguição.
Inclinaram-se sobre os escudos, arfando, muitos apercebendo-se apenas naquele momento dos ferimentos a que tinham sido sujeitos no meio do frenesim da batalha. Cato
sentiu-se tentado a deixar-se cair no chão e repousar os membros doridos, mas a necessidade de dar o exemplo aos homens fê-lo manter-se erecto e pronto a acatar
as novas ordens. Macro caminhou até ele por entre os legionários exaustos.
- Grande trabalho, Optio.
- Sim, senhor.
- Viste-os a fugir no fim? - Macro riu-se. - Pareciam um bando de virgens nas festas do Lupercal(3)! Não creio que vejamos Carátaco antes de tomarmos Camulodónia.
Um som agudo, diferente de tudo o que Cato tinha ouvido, espalhou-se pelo campo de batalha e todas as cabeças se viraram na direcção do pântano. Voltou a soar, um
grito estridente de terror e dor.
- Que raio é isto? - Macro olhou em redor, olhos bem abertos.
Por cima das cabeças dos outros legionários Cato conseguia ver
o monte baixo no qual a bateria direita de lançadores de dardos fora posicionada. Como os seus companheiros na ala esquerda, tinham sido rapidamente dominados pelas
quadrigas bretãs. Os bretões ainda estavam ali, e tinham virado uma mão cheia das armas para o pântano. E no pântano estavam os elefantes, enlameados até ao lombo,
conduzidos freneticamente pelos seus condutores enquanto os bretões os usavam como exercício de tiro ao alvo. Mesmo na altura em que Cato olhava, um projéctil arqueou
numa trajectória baixa directamente para a parte lateral de um dos elefantes.
Já tinha sido atingido na anca e uma mancha de sangue escorria pelas patas traseiras por causa do projéctil que sobressaía da sua pele rugosa. Quando o segundo projéctil
o atingiu, o elefante moveu a tromba no ar, gemendo e guinchando em agonia. A força do projéctil rompeu o couro grosso e enterrou-se bem dentro dos órgãos vitais
do animal. Com o novo gemido de agonia veio um jorro de sangue da extremidade
(3)Festividades realizadas na gruta do Lupercal, no Monte Palatino. (Nota da correctora)
da tromba, pairando no ar como uma neblina vermelha antes de se dispersar. Debatendo-se selvaticamente na lama, o animal virou-se de lado, arrastando consigo o condutor.
Mais projécteis atingiram os outros animais encalhados no pântano e, um por um, os condutores das quadrigas arrumaram com os elefantes antes que a infantaria mais
próxima alcançasse o monte. Os bretões foram para as suas quadrigas e, num coro alto de gritos e ruídos de rédeas, as quadrigas deslocaram-se na diagonal para cima
da encosta, passaram o acampamento romano e escaparam contornando a orla da floresta.
- Cabrões - Cato ouviu um legionário a resmungar.
Um silêncio assustador pendeu sobre o vale, tornado mais insuportável pelos sons emitidos pelas bestas na sua agonia mortal. Cato podia ver bretões com lanças a
circundarem o pântano aproveitando a pausa para escaparem. Cato queria apontar para eles e gritar uma ordem para perseguir o inimigo, mas os gritos dos elefantes
a morrerem hipnotizavam os romanos.
- Gostava que alguém calasse esses malditos animais - disse Macro calmamente.
Cato abanou a cabeça pasmado. Por todo o vale espalhavam-se homens a sangrar e mortos, centenas de romanos entre eles, e ainda assim estes veteranos duros estavam
ali, perversamente fascinados pelo destino de uma mão cheia de animais idiotas. Bateu com o punho na borda do escudo com uma frustração cortante.
Enquanto os lanceiros bretões fugiam, os seus companheiros acima do declive aperceberam-se de que a armadilha havia falhado. Incerteza e medo repercutiam-se entre
as suas fileiras e começaram a ceder terreno às legiões, lentamente de início e depois mais constantemente, até se misturarem ao longe em grande número. Apenas o
grupo de guerreiros de elite de Carátaco aguardou firmemente que o exército retirasse em segurança.
No cume da encosta, o Imperador bateu na sua coxa com muita alegria perante a retirada total do inimigo.
- Ha! Vejam-no a fu... fu... fugir com o rabo entre as pernas!
O General Pláucio tossiu. - Posso dar a ordem para se iniciar a perseguição, César?
- Per... Perseguição? - As sobrancelhas de Cláudio ergueram-se.
- Claro que não! Seria bom se vo... vocês do exército deixassem al... alguns selvagens vivos para eu governar.
- Mas César!
- Mas! Mas! Mas! Chega, Ge... Ge... General! Eu é que dou as ordens. Como tem que ser. A minha pri... primeira conquista no co-
mando e tenho uma vitória estrondosa. Isso não é prova suficiente do meu bri... brí... brilhantismo militar? Então?
Pláucio olhou para Narciso como que a implorar, mas o secretário encolheu os ombros com um pequeno aceno de cabeça. O general contraiu os lábios e acenou em direcção
aos bretões que retiravam. - Sim, César. É prova suficiente.
XLIX
Dois dias depois o exército romano chegou diante das muralhas de Camulodónia. Quando as notícias acerca da derrota de Carátaco chegaram à cidade, os anciãos dos
Trinovantes recusaram sabiamente a entrada do exército imundo do seu suserano na capital, vendo com alívio a taciturna coluna desaparecer por entre as ricas terras
de cultivo a norte. A maioria dos guerreiros Trinovantes que serviam Carátaco mantiveram-se fiéis a ele e viraram as costas com tristeza aos seus familiares e afastaram-se.
Poucas horas depois uma linha avançada de batedores da cavalaria romana aproximou-se cautelosamente, e quase desatou a fugir quando os portões se abriram abruptamente
e uma delegação se apressou a vir recebê-los. Os Trinovantes foram efusivos na sua mostra de boas vindas aos romanos e na condenação àqueles da sua tribo que se
haviam juntado a Carátaco na sua fútil tentativa de resistir ao poder do Imperador Cláudio.
Os batedores regressaram com os cumprimentos para o exército que marchava algumas milhas atrás, e ao fim da tarde as exaustas legiões romanas armaram o acampamento
mesmo às portas da capital dos Trinovantes. A prudência profissional do General Pláucio significava que o fosso e as muralhas de um acampamento mesmo de frente para
o inimigo tinham que ser construídos antes que o exército tivesse autorização para descansar.
No dia seguinte, bem cedo, o Imperador e o seu séquito foram conduzidos numa visita informal pela capital tribal, um local pobre pelos padrões imperiais, a maioria
dos edifícios com armações de madeira com canas e argamassa e uma mão cheia de estruturas de pedra no seu centro. A capital estava de frente para um rio profundo,
ao longo do qual corria um sólido cais com grandes armazéns onde os mercadores gauleses faziam o seu comércio, transportando bons vinhos e cerâmica do continente
e enchendo os navios para o regresso com peles, ouro, prata e joalharia bárbara exótica para os consumidores vorazes do Império.
- Um excelente local para fundar a nossa primeira colónia, César
- anunciou Narciso. - Laços comerciais fortes com o mundo civilizado e situado num local perfeito para explorar os mercados internos.
- Pois, sim. Bom - murmurou o Imperador, não prestando atenção ao seu secretário. - Mas prefiro pensar num b... b... bonito templo em minha honra como p.. .p.. .prioridade.
- Um templo, César?
- Nada muito espalhafatoso, apenas o suficiente para ins... ins... inspirar uma pequena reverência.
- Como queira, César. - Narciso fez uma vénia e depois mudou subtilmente o rumo da conversa para planos mais pertinentes de desenvolvimento da colónia. Ao ouvi-los,
Vespasiano não conseguiu evitar a admiração por ver a facilidade com que decidiram erigir tal monumento. Um mero impulso do Imperador e assim seria. Um vasto santuário
com colunatas, dedicado a um homem que governava a partir de uma grande cidade longínqua, emergiria dos casebres estéreis desta cidade bárbara com tanta certeza
como se o próprio Júpiter o tivesse ordenado. E no entanto, este homem, este imperador, que aspirava ser um deus, era tão vulnerável aos golpes do punhal de um assassino
como qualquer outro mortal. A ameaça sobre Cláudio ainda ocupava a mente de Vespasiano, como o medo de que Flávia estivesse envolvida na conspiração.
- Como estão a correr as coisas para a c... c... cerimónia de amanhã? - perguntou Cláudio.
- Muito bem, César - respondeu Narciso. - Um cortejo de Estado na capital ao meio-dia, a consagração de um altar à paz e depois um banquete no centro de Camulodónia
à noite. Recebi notícias dos nossos novos aliados. Parece que tiveram conhecimento da derrota de Carátaco e estão ansiosos por prestar juramento de obediência o
mais rapidamente possível. Deve ser um dramático centro de mesa no banquete. Sabe como é: os selvagens conduzidos à presença do grande Imperador, diante do qual
se sentem obrigados a ajoelhar e a jurar eterna obediência. Vai parecer perfeito e vai dar muito que ler na gazeta de Roma. Os plebeus vão adorar.
- Ainda bem. Então trata de todos os pormenores, por favor.
- Cláudio parou a meio do passo e o seu séquito teve que se deter abruptamente para não chocar com ele. - Ouviste a última frase? Não gaguejei nenhuma vez! Tão gracioso
que eu sou!
Subitamente Vespasiano sentiu-se fatigado com a presença do Imperador. A infindável e impassível arrogância da família imperial crescera da reverência bajuladora
daqueles que os rodeavam. Vespasiano
orgulhava-se dos feitos genuínos da sua família. Do seu avô, que tinha servido como centurião no exército d.e Pompeu, ao seu pai, que fizera uma fortuna considerável,
suficiente para ser elevado à classe de aristocrata, e daí à sua própria geração onde ele e Sabino podiam almejar ao brilho de carreiras senatoriais. Nada daquilo
fora um simples acidente de nascença. Tudo fora resultado de um grande esforço e de uma capacidade provada. Olhando de Cláudio para Narciso e de novo para Cláudio,
Vespasiano sentiu o primeiro desejo angustiante de ser respeitado como merecia. Num mundo justo seria ele e não o inepto Cláudio quem governaria os destinos de Roma.
Mais irritante ainda fora o cumprimento que Cláudio lhe fizera após a derrota estrondosa de Carátaco. Quando Vespasiano galopara para ver se o Imperador sobrevivera
ileso à batalha, ficara espantado por ver a sua expressão de pretensiosa satisfação.
- Ah! Aqui está o legado. Quero agradecer-lhe pela parte que o senhor e os s... s... seus homens desempenharam na minha armadilha.
- Armadilha? Que armadilha, César?
- Bom, para atrair o inimigo para uma p... posição onde a verdadeira força deles seria r... re... revelada e conduzida à destruição. Tiveram exactamente a presença
de espírito para preencher esse p... papel importante que vos destinei.
A boca de Vespasiano caiu quando ouviu esta versão extraordinária dos acontecimentos da manhã. Depois fechou o queixo com firmeza para se impedir de fazer um comentário
que pudesse colocar em perigo a sua carreira, para não dizer a sua vida. Fez uma vénia graciosa e murmurou um agradecimento, e tentou não pensar nas centenas de
corpos romanos enrijecidos espalhados pelo campo de batalha num tributo silencioso ao génio táctico do Imperador.
Vespasiano perguntava-se se seria assim tão terrível se Cláudio sucumbisse sob o punhal de um assassino.
A visita à capital dos Trinovantes findou e o Imperador e o seu séquito regressaram ao acampamento romano para descobrirem que os delegados das doze tribos haviam
chegado e esperavam no quartel-general por uma audiência com o Imperador.
- Uma audiência com César? - fungou Narciso. - Não me parece. Pelo menos hoje. Serão apresentados amanhã, no banquete.
- Isso é sensato, César? - perguntou Pláucio calmamente. - Precisaremos deles quando recomeçarmos a campanha. Seria melhor que eles se sentissem como aliados bem
vindos e não como suplicantes desprezados.
- Que é o que eles são - interpôs Narciso.
Cláudio virou o rosto para o céu como se buscasse conselho divino, e deu uma pancada gentil no queixo. Uns instantes mais tarde acenou com a cabeça e virou-se para
o séquito com um sorriso. - Os membros das tribos podem esperar. Foi um dia longo e estou cansado. Digam-lhes... Digam-lhes que César os recebe calorosamente, mas
que as ex... ex... exigências do seu cargo impedem que os saúde em p... p... pessoa. Que tal parece?
Narciso aplaudiu. - Um modelo de elegância e clareza, César!
- Sim, também me pareceu. - Cláudio deu um meneio com a cabeça e olhou para Pláucio. - Então, General?
- César, não passo de um mero soldado, e falta-me o refinamento necessário para julgar o mérito estético da loquacidade de outros.
Cláudio e Narciso olharam para ele silenciosamente, um com uma expressão de incompreensão benigna, o outro com um olhar pesquisador na procura de algum traço de
ironia nas feições do general.
- Pois! - assentiu Cláudio. - É bom estarmos cientes dos nossos próprios defeitos.
- Fala a verdade, como sempre, César. - Pláucio fez uma vénia e Cláudio afastou-se a coxear na direcção da sua tenda, com Narciso apressado ao seu lado. Então o
general virou-se para os seus oficiais. - Vespasiano!
- Sim, senhor.
- É melhor tratar dos nossos convidados tribais.
- Sim, senhor.
- Certifique-se de que estão confortáveis e que são bem tratados. Mas mantenha-os sob vigilância apertada. Nada demasiado intrusivo mas o suficiente para eles saberem
que estamos por perto. Não podemos permitir que eles cirandem por aí se há alguma verdade nesse rumor sobre o atentado à vida do Imperador.
- Sim, senhor. - Vespasiano saudou-o e saiu. Os convidados estavam na tenda do quartel-general. Quando entrou apercebeu-se imediatamente de uma divisão demarcada
nos delegados tribais, entre aqueles que se levantaram para o cumprimentar com uma aceitação deprimida do inevitável, e aqueles que permaneceram agachados no solo,
fitando-o com uma hostilidade amarga. A um lado, tentando ser honrado sem parecer pretensioso por se ter aliado aos vencedores, sentava-se Admínio. Um homem enorme
virou-se para o legado e olhou-o de cima a baixo da forma desagradavelmente óbvia de um homem examinando um inferior. Aproximou-se de Vespasiano, braço levantado
e saudou o legado formalmente. Quando começou a falar, Vespasiano solicitou rapidamente a Admínio que traduzisse.
- Venúcio pede que o informe que ele e os outros aqui presentes tiveram o privilégio de assistir à batalha como convidados de Carátaco. Diz que lhe é ainda um pouco
difícil perceber a lógica das suas tácticas na batalha, e ficaria grato se pudesse falar sobre elas com ele.
- Noutra hora. Estou um pouco ocupado de momento - respondeu Vespasiano friamente. - E diga-lhe que quaisquer que fossem as tácticas, o resultado seria inevitável.
É-o sempre que nativos indisciplinados tentam levar a melhor sobre soldados profissionais. O que importa é que vencemos e que esta ilha no fim tornar-se-á numa província
romana. Nada mais me importa por agora. Diga-lhe que anseio por vê-lo, e aos outros, curvarem-se perante César e prometerem-lhe lealdade no banquete de amanhã à
noite.
Enquanto Admínio traduzia, Vespasiano lançou um olhar sobre os delegados tribais, e foi apanhado pela expressão de escárnio no rosto do mais jovem deles. O ódio
ardia nos olhos do jovem, e o seu olhar resoluto fixava-se em Vespasiano. Por um momento Vespasiano considerou enfrentar o olhar, mas depois decidiu que seria uma
perda de tempo e virou-se para sair. Um pequeno riso de satisfação assolou os lábios do jovem. Vespasiano apontou um dedo a Admínio e atravessou a saída da tenda.
- Quem é o jovem?
- Belónio - respondeu Admínio. - Filho de um governante de uma pequena tribo do norte. O pai dele está a morrer e mandou o filho para o representar. Penso que não
foi a melhor escolha.
- Porquê?
- O senhor viu-o. Não escondia muito por trás daquela expressão.
- Perigoso?
Admínio tomou em consideração o jovem bretão antes de responder.
- Não passa de um adolescente exposto à propaganda de Carátaco.
- E Venúcio?
- Esse? - Admínio riu-se. - Foi outrora um grande guerreiro. Mas conformou-se. Passa o tempo a falar do passado. É um pouco tonto na realidade.
-Acha?-Vespasiano ergueu uma sobrancelha quando se lembrou da fúria nos olhos acinzentados do homem quando esteve diante dele e avaliou o seu carácter.
Vespasiano não conseguia deixar de pensar que Venúcio era muito mais do que aquilo que Admínio pensava.
As legiões que acampavam nos arredores de Camulodónia estavam de muito bom humor. Apesar de estarem incrustados de lama e exaustos por terem avançado tão rapidamente
depois de uma batalha tão intensa, havia uma sensação tangível de celebração no ar. Uma vitória decisiva havia sido alcançada e Carátaco e o que restava do exército
bretão retiravam em direcção às tribos ainda leais à confederação resistente a Roma. Os representantes tribais que aguardavam o resultado da última batalha apressaram-se
a partir para Camulodónia para jurarem lealdade a Roma. O perigo de enfrentarem a oposição de quase todas as tribos da ilha havia passado agora que as tribos mais
poderosas tinham sido completamente derrotadas pelas legiões. Até à campanha do próximo ano, o exército romano estaria livre para consolidar os seus ganhos sem oposição.
A capital de Carátaco abrira os seus portões ao Imperador e as festividades dos dias seguintes marcariam o encerramento da campanha sangrenta desse ano. Claro que
a conquista da ilha estava longe da sua conclusão mas com o humor predominante virado para a celebração poucos homens falavam sobre isso.
Os Trinovantes tinham conseguido evitar que a sua capital fosse pilhada, para desapontamento de alguns veteranos, mas já havia amplos despojos de guerra na forma
de milhares de bretões feitos prisioneiros, que seriam vendidos como escravos. Cada legionário ganharia uma soma substancial de dinheiro como quinhão do espólio
da venda de prisioneiros. Mas haveria muito mais para conquistar.
- Diz-se por aí que o Imperador nos vai fazer um donativo! - Macro sorriu abertamente quando se deitou no relvado fora da tenda, olhos a tremeluzir com a perspectiva
de uma grande doação em dinheiro do tesouro imperial.
- Porquê? - perguntou Cato.
- Porque é uma boa forma de nos agradar. Porque achas? Além
disso, merecemos. E persuadiu os Trinovantes a entregarem uma provisão de bebidas para que possamos comemorar em estilo nas cerimónias de depois de amanhã. Sei que
é apenas aquela mistela da cerveja céltica que eles insistem em fermentar, como aquela zurrapa que bebemos na Gália, mas seja o que for, faz mijar sem grande esforço.
Depois vamos ver as vistas! - O centurião olhou distraidamente quando se lembrou das patuscadas de que desfrutara com os seus colegas no passado.
Cato não conseguia deixar de se sentir nervoso acerca da perspectiva. O seu corpo não tolerava uma grande quantidade de álcool, e o mínimo excesso deixava-lhe a
cabeça à roda e fazia-o amaldiçoar o dia em que os homens se lembraram de fermentar a bebida. Vomitaria inevitavelmente, e continuaria a vomitar até o buraco do
estômago parecer em carne viva e os músculos se contraírem com o esforço. Então o sono viria desconfortavelmente e acordaria com a boca seca e um sabor horrível
na língua, a cabeça ainda a latejar. Se o que ele ouvira sobre a fermentação local estava correcto, os efeitos posteriores seriam piores do que o habitual. Mas,
a não ser que se voluntariasse para deveres militares, não poderia evitar a sessão de bebida.
- É inteligente beber com Carátaco por perto? - perguntou.
- Não te preocupes com ele. Ainda vai demorar muito até que possa causar-nos problemas de novo. Além disso, uma das legiões vai estar de serviço na altura. Tens
é que rezar para que não seja a nossa.
- Sim, senhor - disse Cato calmamente.
- Descontrai-te, rapaz! O pior já passou. O inimigo está em fuga, temos uma festa combinada e o tempo melhorou. - Macro reclinou-se na erva, meteu as mãos atrás
da cabeça e fechou os olhos. - A vida é boa, por isso, goza-a.
Cato gostaria de partilhar a boa disposição do centurião e dos outros legionários mas não conseguia sentir contentamento. Não enquanto estivesse atormentado pelo
espectro de Vitélio a seduzir Lavínia. O séquito do Imperador tinha-se juntado ao exército ao meio-dia, e estava ocupado a montar o acampamento na esquina das fortificações
distribuídas pelo General Pláucio. Saber que Lavínia estava perto apressou a pulsação de Cato, mas ao mesmo tempo enchia-o de temor com a possibilidade de encontrá-la
de novo. Desta vez ela assegurar-se-ia de lhe dizer aquilo que ele mais temia, que não queria mais vê-lo. O pensamento atormentava-o tanto que, por fim, Cato não
conseguiu suportar mais, e a necessidade de saber submergiu o medo de descobrir.
Deixando Macro adormecido à luz do Sol, Cato obrigou-se a caminhar pelo acampamento em direcção às tendas elaboradas do séquito do Imperador. Cada passo na direcção
de Lavínia era um esforço,
e em todos os lados a alegria dos legionários aumentava o peso da miséria que ele suportava. Não demorou muito a encontrar a tenda da esposa do legado e a da sua
criadagem, mas levou algum tempo a forçar-se a aproximar-se da entrada. Um escravo corpulento que ele nunca tinha visto antes estava de guarda e dentro ouvia-se
a tagarelice de vozes femininas. Cato distendeu os ouvidos para apanhar o som da voz de Lavínia.
- Qual é o assunto? - perguntou o escravo, entre a entrada da tenda e o jovem optio.
- Particular. Desejo falar com uma escrava da Dona Flávia.
- A dona conhece-o? - perguntou o escravo desdenhosamente.
- Conhece. Sou um velho amigo.
O escravo olhou carrancudo, inseguro sobre se havia de mandar embora este soldado imundo ou interromper o desfazer das malas da sua dona.
- Diga-lhe que está aqui o Cato. Diga-lhe que desejo falar com Lavínia.
O escravo estreitou os olhos antes de chegar relutantemente a uma decisão. - Muito bem. Espere aqui.
Entrou na tenda e deixou Cato sozinho à espera. Ele virou-se e contemplou o acampamento enquanto esperava pelo regresso do escravo. Um ruído por trás fez com que
se virasse rapidamente. Em vez do escravo deparou-se com Flávia a olhar para ele, um sorriso largo no seu rosto enquanto estendia a mão para cumprimentá-lo.
- Minha senhora. - Cato fez uma vénia.
- Estás bem? - perguntou ela.
- Muito bem, minha senhora. - Levantou os braços e deu uma volta rápida, esperando diverti-la. - Como pode ver.
- Ainda bem...
O silêncio era constrangedor e quando a boa disposição natural de Flávia não se materializou, uma sensação fria de terror penetrou dentro de Cato.
- Minha senhora, posso falar com Lavínia?
A expressão de Flávia tornou-se aflita. Abanou a cabeça.
- Qual é o problema? Lavínia está bem?
- Sim. Está bem.
A ansiedade de Cato abateu-se rapidamente. - Posso vê-la então?
- Não. Agora não. Ela não está aqui.
- Onde posso encontrá-la, minha senhora?
- Não sei, Cato.
- Então vou aguardar pelo regresso dela. Isto se não se importar.
Flávia permaneceu em silêncio e não respondeu. Em vez disso,
olhou-o nos olhos e a sua expressão tornou-se triste. - Cato, respeitas a minha opinião como o fizeste no passado?
- Claro, minha senhora.
- Esquece a Lavínia. Esquece-a, Cato. Não é mulher para ti. Não! Deixa-me acabar. - Levantou a mão para reprimir as objecções dele. - Cato, tu mereces melhor. Lavínia
não serve para ti. Ela mudou a opinião acerca de ti nas últimas semanas. Ela tem... ambições mais altas.
Cato recuou e ela ficou angustiada pela raiva fria que endurecia o rosto do jovem.
- Porque não me avisou acerca de Vitélio, minha senhora? - perguntou numa voz tensa. - Porquê?
- Para teu bem, Cato. Tens de acreditar em mim. Não tenho qualquer desejo de magoar-te sem necessidade.
- Onde está Lavínia?
- Não te posso dizer.
Cato podia adivinhar com facilidade onde estava Lavínia. Fitou Flávia, esforçando-se por controlar as suas emoções agitadas. Depois cerrou os punhos, virou-se e
afastou-se da tenda com passos largos.
- Cato! - Flávia deu alguns passos na direcção dele e depois parou, a mão meio levantada como se para refreá-lo. Olhou tristemente para o corpo magro e quase frágil
do jovem que se afastava teimosamente, a dor de que padecia evidente nos seus punhos cerrados. Uma vez que ela fora responsável por autorizar a jovem relação a florescer
e a tinha usado para os seus próprios fins políticos, Flávia sentiu o peso da culpa descer sobre si. Apesar das justificações pessoais para as suas acções, os custos
humanos que elas haviam provocado eram difíceis de suportar.
Flávia perguntava-se se uma simples declaração brutal sobre o local onde estava Lavínia não teria sido uma forma rápida e gentil de ajudar Cato a ultrapassar a sua
adoração juvenil por Lavínia.
LI
O pôr-do-Sol inundou a tenda do tribuno através da frincha da entrada, polindo um lado com um rico brilho cor-de-laranja e lançando longas sombras negras sobre o
outro. Lavínia aconchegou a cabeça em cima do ombro do tribuno e percorria os negros pêlos do peito com os dedos, cada um iluminado pelo brilho do Sol moribundo.
O cheiro a suor dele encheu as narinas dela com o cheiro aguçado da sua masculinidade, e ela respirava ao mesmo ritmo que o brando sobe e desce do peito dele. Embora
os olhos dele estivessem fechados, ela sabia que estava acordado pelo leve tocar de um dedo na fissura entre as suas nádegas, torneando gentilmente os contornos.
- Hum, sabe bem - disse ela suavemente ao seu ouvido. - Não fiques por aí.
- És insaciável - murmurou Vitélio. - Três vezes numa tarde é mais do que qualquer homem pode aguentar.
Percorrendo a mão pelo peito dele e pelo estômago abaixo, Lavínia tocou na suave carne maleável do pénis e começou a massajá-lo.
- Tens a certeza?
Vitélio levantou a outra mão e esticou o indicador, o gesto de um gladiador derrotado apelando ao povo. - Misericórdia.
- Não aceito a rendição de homem algum. - Lavínia deu um riso abafado enquanto continuava a tentar fazer sair uma resposta.
- Nem mesmo daquele jovem com quem te envolveste?
O tom do comentário estava do lado errado da frivolidade e Lavínia tirou a mão e mudou de posição, apoiando-se no cotovelo e olhando para ele.
- O que se passa? Ciúmes? - Lavínia esperou uma resposta, mas Vitélio olhava para ela em silêncio. - Estás mesmo com ciúmes de um rapaz?
- Não tão novo que não soubesse o caminho, aparentemente.
- Mas novo o suficiente para ter de parar e pedir indicações de tempos em tempos.
- Mesmo a uma jovem mulher?
- Ah! - Lavínia sorriu. - Eu tinha uma certa vantagem. Graças a ti, meu Tribuno. - Ela baixou a cabeça e beijou-o nos lábios, depois roçou lentamente os lábios através
da barba por fazer do queixo dele e beijou o olho e a testa, antes de se voltar a apoiar no cotovelo. - Estou tão feliz por estarmos juntos de novo. Não te consigo
dizer as saudades que tinha de estar assim contigo. Acho que nunca fui tão feliz.
- Nem com o rapaz? - Perguntou Vitélio calmamente. - Tens a certeza?
- Claro que tenho, tonto! Já te disse, só aconteceu depois de Plínio me expulsar quando nos apanhou juntos naquela vez. Lembras-te?
- Nunca esquecerei! - Sorriu Vitélio. - Aquele tonto empolado teve o que mereceu.
- Plínio era bom. Cuidou bem de mim. Tenho muito para lhe agradecer. Até tive pena dele depois, pelo menos durante um tempo. E depois Cato apaixonou-se por mim.
- Que raio viste tu nele?
Lavínia amuou enquanto pensava na sua atracção pelo jovem optio. - Penso que é bonito de uma maneira especial. É alto e magro, mas tem uns olhos lindos. Muito expressivos.
E também havia algo triste nele. Parecia sempre preocupado pela maneira como os outros o viam, nunca à vontade consigo próprio. Talvez tivesse sentido pena dele.
-Uma razão insuficiente para ires para a cama com ele-protestou Vitélio.
- Lá estás tu! - Lavínia deu uma pancada no peito dele. - Porque é que não deveria dormir com ele? Eu gostei. E não te podia ver facilmente enquanto vivesse com
a Dona Flávia. Que querias que eu fizesse?
- Que esperasses que eu arranjasse maneira de te tirar de lá.
- Então teria esperado para sempre. Estou aqui agora apenas porque consegui enganar a minha senhora. Se ela soubesse onde estou levava uma tareia que não esqueceria
tão cedo.
- Tens a certeza que ela não sabe que estás aqui?
- Claro. Quando voltar vou-lhe dizer que fui dar uma volta e me perdi. Ela vai suspeitar mas duvido que venha a saber a verdade.
- Mesmo quando nos viu juntos no outro dia?
Lavínia deu uma pontada no peito dele com um dedo. - Eu disse-lhe que te tinhas aproximado de mim e que eu te disse para me deixares em paz porque eu amava Cato.
- E ela acreditou em ti? - Vitélio parecia céptico.
- E porque não acreditaria? Agora podemos falar de outra coisa qualquer? Esta ansiedade que vocês homens têm sobre a lealdade física das mulheres é muito desgastante.
Até parece que não fazem o mesmo.
- Muito bem - respondeu Vitélio, puxando-a para si e beijando-a com uma intensidade apaixonada que surpreendeu Lavínia. Fechando os olhos, ela rendeu-se ao momento,
inspirando o aroma dele e ficando quase tonta de desejo. Quando recuou do rosto dele e abriu os olhos, sentiu o pénis rijo na sua coxa.
- Pensava que era demais para ti!
- Tens um jeito especial de provocar o desejo de um homem. - Vitélio sorriu e meteu a mão no meio das coxas dela. - Vamos ver o que podes fazer quanto a isso.
Mais tarde, depois do pôr-do-Sol, um escravo entrou na tenda e acendeu silenciosamente os candeeiros antes de desaparecer. À luz pálida dos candeeiros Lavínia levantou-se
da cama e bocejou, esticando os seus braços elegantes acima da cabeça. O movimento fez com que os seus seios se firmassem e Vitélio, com uma mão, abarcou o que estava
mais perto, admirando a sua suavidade cremosa. Lavínia permitiu que ele o fizesse durante uns instantes e depois afastou-o com uma palmada.
- Chega! Tenho que voltar para a tenda.
- Quando é que te volto a ver?
- Amanhã, depois do banquete de César. Venho ter contigo aqui.
- Vais estar no banquete? - Perguntou Vitélio.
- Vou, para servir os meus amos. Mas mal posso esperar pelas animações que o Imperador está a preparar. Devem ser um belo espectáculo. - Lavínia apanhou a túnica
do chão, para onde a tinha atirado no início, com a urgência de se despir. Vitélio olhava para ela, a cabeça apoiada num travesseiro de seda, os seus olhos negros
e frios.
- Lavínia, preciso que me faças um favor.
Passou a cabeça através da abertura de cima da túnica e puxou as suas longas tranças para fora do decote. - Que tipo de favor?
- É uma surpresa para o Imperador. Preciso que leves uma coisa para o banquete amanhã à noite.
- O quê?
- Está ali naquela mesa - disse calmamente, apontando para uma mesa baixa e negra, com o tampo em mármore, numa esquina. Lavínia foi até lá e pegou num objecto que
brilhava à luz fraca dos candeeiros. Era um punhal, com a bainha marchetada em prata com padrões célticos, dentro dos quais estavam colocados rubis vermelhos. O
cabo do punhal era preto e polido com um enorme rubi colocado no meio do arco no fim do punho.
- É lindo! - Lavínia maravilhou-se. - Nunca vi nada tão belo. Nunca. Onde o arranjaste?
-O meu pai enviou-mo. É um presente para o Imperador. Ordenou-me que lho oferecesse assim que conquistássemos Camulodónia. Trá-lo cá.
Lavínia voltou à cama, trazendo o punhal com reverência. - É tão bonito. O Imperador vai adorar.
- Assim espera o meu pai. E julgo que é o género de presente que deve ser apresentado com um grande sentido de oportunidade. Por isso pensei que podia dá-lo ao Imperador
no auge das celebrações de amanhã, à frente de todos os convidados, para que possam ver a reacção de Cláudio à manifestação de lealdade e afeição do meu pai.
- Vão morrer de ciúmes.
- Exactamente o que eu penso - disse Vitélio. - É por isso que preciso que me faças um favor.
- Que favor?
- Preciso que leves isto para o banquete por mim. Ninguém está autorizado a levar armas na presença do Imperador. Os guardas vão revistar todos os convidados, mas
tu podes introduzir isto no banquete pela cozinha. O que tens a fazer é escondê-lo desta maneira. - Meteu a faca por baixo da túnica dela e encostou a bainha contra
a sua coxa. Lavínia arquejou e riu-se. - Tens que prendê-lo no sítio. Ninguém vai dar por ele.
Lavínia pegou na bainha novamente e olhou-a com uma expressão preocupada.
- O que foi?
- O que acontecerá se eu for revistada e o encontrarem?
- Não te preocupes Lavínia. Vou estar por perto. Se algo do género acontecer antes de me dares o punhal, eu intervirei e explicarei tudo.
Lavínia olhou atentamente para o rosto dele. - E se não intervieres?
A expressão de Vitélio mudou para um misto de mágoa e zanga.
- Porque é que desejaria que te magoasses de alguma forma?
- Não sei.
- Exactamente. Achas-me com cara de quem quer colocar em perigo a mulher que ama? - Ele abraçou-a e puxou-a para si, aguardou que o corpo dela relaxasse antes de
continuar. - Assim que estejas lá dentro a servir Dona Flávia e Vespasiano, vou ter contigo e pego no punhal o mais depressa possível.
- Sem dares nas vistas, espero!
- Claro que não. Não seria próprio para um membro da minha classe ser visto a apalpar uma escrava em público.
-Obrigada pela preocupação com a minha reputação-respondeu Lavínia amargamente.
- Estou a brincar, minha querida. Só teremos que encontrar um local calmo para mo dares. - Apertou-a afectuosamente. - Fazes isso por mim? Significa muito para o
meu pai e vai ajudar-me ao longo da carreira.
- E o que ganho com isso?
- Assim que eu receba a minha parte do saque, prometo que te compro à Flávia. Depois podemos tratar de te alforriar.
- Boas intenções. Mas por que razão haveria Flávia de me vender?
- Não me parece inteligente da parte dela recusar - respondeu Vitélio.-Além do mais, posso apresentar-te ao Imperador no banquete e pedir-lhe que me sejas oferecida
como recompensa por ter salvo a Segunda Legião em Togodumno. Vespasiano não poderia recusar. Pareceria uma terrível ingratidão. Aguarda o meu sinal e vem ter comigo.
- Tens tudo planeado, não tens? - Replicou Lavínia franzindo a
testa.
- Oh, sim.
- E depois? - Perguntou Lavínia, os olhos a brilharem de esperança.
- E depois? - Vitélio levou a mão dela à sua boca e beijou a pele macia. - Depois podemos criar um grande escândalo casando.
- Casando... - sussurrou Lavínia. Ela agarrou-se ao seu pescoço e apertou-o contra si o mais possível. - Amo-te! Amo-te tanto que faria qualquer coisa por ti. Qualquer
coisa!
- Calma, não estou a conseguir respirar!-Vitélio riu entre dentes.
- Tudo o que te peço é este pequeno favor, e que sejas minha mulher assim que possível.
- Oh sim! - Lavínia deu-lhe um beijo no queixo e afastou-se apressada. - Agora tenho que ir. - Pegou no punhal.
- Embrulha-o nisto. - Vitélio alcançou o lado da cama e atirou-lhe o seu lenço. - É melhor mantê-lo contigo, bem escondido, até ao banquete. É o tipo de coisa pela
qual algumas pessoas são capazes de matar.
- Está seguro comigo. Prometo.
- Sei que sim, minha querida. Agora é melhor ires.
Depois de Lavínia ter saído da tenda, Vitélio estirou-se na cama com uma expressão convencida de satisfação. Afinal de contas, não fora difícil tratar das coisas.
Quando a escrava fosse apresentada ao Imperador, no
banquete, as expressões nos rostos de Vespasiano e da mulher não teriam preço.
Era uma pena que Lavínia não pudesse continuar a viver. Era uma boa amante, e demonstrava uma grande sofisticação nas mais exóticas artes do amor, muito para além
da sua idade. Podia ficar bem ao seu lado, de braço dado em Roma, um troféu a balançar à frente dos seus pares, e uma ferramenta para comprar favores. Mas ao usá-la
para introduzir o punhal dentro do banquete, Vitélio apercebeu-se de que ela saberia o suficiente para colocá-lo em perigo. Se o seu plano fosse bem sucedido, ela
aperceber-se-ia rapidamente de que fora usada. Até agora, graças àquele idiota do Niso, ainda desconhecia a identidade do assassino que Carátaco encontrara para
o trabalho. Carátaco ainda podia tentar passar outra mensagem, mas se não o fizesse Vitélio apenas podia esperar que o assassino se desse a conhecer para que ele
lhe desse o punhal. Se tudo isso falhasse, a faca acabaria por servir mesmo como presente. Mas uma coisa era certa, com assassinato ou não, Lavínia não podia saber
o que sabia, e viver para contar a história.
Devia morrer assim que o seu propósito fosse cumprido. Teria pena em perdê-la mas, confortou-se Vitélio a si mesmo, haveria outras mulheres.
LII
A zona da assembleia estava a crescer calmamente agora que a cauda da procissão marchava para fora do acampamento e descia a estrada a caminho de Camulodónia. Aclamações
distantes e o som de trompetas ainda navegavam pelos montes intermináveis de tendas. Pétalas de flores e grinaldas pisadas derramavam-se sobre a turfa mal tratada,
e levantavam-se em lufadas quando surgia uma rabanada de vento pelo acampamento. Acima, nuvens cinzentas dispersas abalavam o céu e ameaçavam chuva.
Numerosas pessoas ainda se encontravam a deambular em redor da assembleia em pequenos grupos, tanto romanos como habitantes da cidade. Os últimos tinham vindo testemunhar
o início das celebrações da vitória, onde Cláudio saudara formalmente os feitos das legiões enquanto estas marchavam, coorte atrás de coorte, equipamento e uniformes
brilhantes e limpos depois de muitas horas de lustro. Agora as legiões haviam sido liberadas. O Imperador e o séquito marchavam em procissão pelas ruas grosseiras
de Camulodónia, sob a protecção das unidades da Guarda Pretoriana. À medida que os seus novos senhores passavam, os bretões que ladeavam o caminho olhavam com o
ressentimento taciturno de um povo conquistado.
Cato aproximou-se da zona da assembleia ao longo da via Pretória, tendo deixado a sua armadura e armas na tenda. Pouco antes da Sexta Centúria iniciar a formação
na parada ele recebera uma mensagem de Lavínia. Ela pedira-lhe que a encontrasse fora da tenda do quartel-general assim que a procissão partisse para a cidade. A
mensagem era curta e concisa, sem qualquer pormenor sobre o assunto a falar, nem qualquer ternura pessoal.
Entrou na zona da assembleia e dirigiu-se para as imediações do quartel-general à procura dela. Encontrou-a rapidamente, sentada sozinha num dos bancos de madeira
que tinham sido colocados na turfa
entre a tenda e a zona da assembleia. Ela não estava à procura dele, parecia antes estar a examinar algo no seu colo nas dobras da túnica. À medida que Cato se aproximava,
vislumbrou um brilho vermelho e dourado antes que ela desse por ele e embrulhasse rapidamente o objecto num lenço vermelho.
- Cato! Sempre vieste! - disse, num tom de voz nervoso.-Anda, senta-te ao meu lado.
Sentou-se vagarosamente, mantendo uma distância entre eles. Ela não fez qualquer menção de se aproximar como faria há não muito tempo. Permaneceu em silêncio durante
uns momentos, sem vontade de encontrar o olhar dele. Mas Cato não conseguiu aguentar mais.
- Bem, o que me querias dizer?
Lavínia olhou para ele com uma expressão terna que estava perigosamente próxima da piedade. - Não sei bem como dizer tudo isto, portanto peço-te, por favor, que
não me interrompas.
Cato assentiu e engoliu nervosamente.
- Tenho pensado muito em nós nos últimos tempos, na distância que separa os nossos mundos. Tu és um soldado, e bom, segundo a minha senhora. Eu não passo de uma
escrava doméstica. Nenhum de nós pode olhar o futuro com boas perspectivas, e quero dizer com isso que nunca poderemos passar muito tempo juntos... Percebes o que
quero dizer?
- Oh, sim! Queres deixar-me. Estás a abordar o assunto de uma outra forma, mas o objectivo final é o mesmo.
- Cato! Não sejas assim.
- Queres que seja como? Racional? Pôr todos os meus sentimentos de lado e ver quão razoável estás a ser?
- Sim, algo parecido - respondeu Lavínia com gentileza. - É melhor do que ficares arreliado.
- Achas que estou arreliado? - respondeu Cato, o rosto escoado de sangue à medida que o amor, a pena e a raiva tomavam conta do seu coração. - Podia ter adivinhado
que isto ia acabar assim. Fui avisado acerca de ti. Devia ter dado ouvidos, afinal fui usado por ti.
- Usado por mim? Não me lembro de te teres queixado da maneira como te tratei naquela noite em Rutúpia. Tu agradavas-me, Cato. Nada mais. Tu é que julgaste mal a
situação. Agora que ambos gozámos o suficiente, está na hora de cada um seguir o seu caminho.
- Nada mais? Tens a certeza? Quero dizer, não devo ser informado de mais nada?
- Estás a falar de quê? - Lavínia olhou para ele com prudência.
- Na verdade, não sei - respondeu Cato friamente. - Pensei que ias mencionar algo sobre o novo homem da tua vida.
- Novo homem?
- Desculpa, devia ter dito o reatamento da relação com o homem da tua vida.
- Não sei do que estás a falar.
- A sério? Pensei que as pequenas sessões com o tribuno Vitélio fossem mais memoráveis que isso. Estou certo que ele ficaria muito magoado se soubesse que te esquecias
dele com tanta facilidade. - Cato apertou o punho e, para evitar o impulso de bater em Lavínia, enfiou-o na sua túnica, encontrando a ligadura de Niso e vagando
um dedo nas dobras. Tirou-a e ficou a olhar para ela estupidamente. Lavínia olhou nervosamente para a ligadura, e recuou ligeiramente, mudando a posição no banco
de forma a deixar mais espaço entre eles.
- Muito bem, Cato. Já que insistes em ser magoado vou contar-te
tudo.
- Será bom, para variar.
Ela ignorou o sarcasmo e encarou o seu olhar de ódio ardente com uma expressão fria. - Conheci Vitélio antes de te conhecer. Não diria que fomos amantes. Tinha sentimentos
por ele, mas duvidava que fossem recíprocos. Mas com o tempo o amor dele floresceu e depois aquele idiota do Plínio descobriu-nos e estragou tudo. Depois conheci-te.
- E pensaste, aqui está alguém que posso usar.
- Pensa o que quiseres, Cato - disse Lavínia, e encolheu os ombros.
- Na altura, qualquer que fosse a segurança que tinha no mundo, havia sido destruída. Estava com medo e sozinha, e só queria ajuda. Quando vi que gostavas de mim,
lancei-me a ti.
- Se quiseres ser exacta, a preposição não é necessária.
Lavínia lançou-lhe um olhar e abanou a cabeça devagar. - Isso é tão típico teu. Tens sempre que usar o argumento do engraçadinho. E achas mesmo que isso é carinhoso?
- Não é suposto ser. Não agora.
- Nem nunca. Não te consigo descrever quão doentio foi ter de fazer o papel de escrava jovem, ingénua e iletrada.
- Estava-me mesmo a perguntar donde vinha essa súbita expansão do teu dicionário. Devo ter sido bem gozado pelo tribuno.
- Cato! Vais parar de ser tão horrível?
Olharam um para o outro durante um instante antes de Cato olhar para baixo e ver a ligadura que tinha à volta do braço. Gelou quando olhou para ela.
- Eu gostava de ti - continuou Lavínia, o mais gentilmente possível. - Gostava mesmo, à minha maneira, mas os sentimentos que tinha por Vitélio eram mais profundos
e quando ele... Cato?
Cato revirava freneticamente a ligadura à volta do braço e não a estava a ouvir.
- Cato? O que se passa?
- B... e... 1... - leu quando as marcas da ligadura se começaram a alinhar. - .. .ó... n... i... o. Belónio.
Belónio. Cato franziu o sobrolho antes de se lembrar dos representantes tribais que tinham sido formalmente apresentados a Cláudio nas cerimónias da manhã. Levantou-se
de um salto, olhando em redor, e inclinou-se sobre a barra que rodeava a linha de bancos. Lavínia olhava para ele com espanto. Tirando rapidamente a ligadura do
braço, Cato começou a enrolá-la cautelosamente ao longo da barra, ajustando o alinhamento à medida que progredia, fazendo o caminho às arrecuas desde o final da
mensagem.
- Cato, o que estás a fazer?
- A salvar a vida do Imperador! - Respondeu excitado enquanto continuava a ler a ligadura. - Ajuda-me aqui.
Lavínia olhou para Cato com um misto de frustração e admiração. Depois, abanando a cabeça, aninhou-se junto à barra e desenrolou cuidadosamente o resto da ligadura.
Acocorando-se, Lavínia leu lentamente a mensagem, ajustando a ligadura para alinhar melhor as letras. Franziu a testa ao tentar perceber o que tinha excitado tanto
Cato. Enquanto olhava para o início os seus olhos pararam num nome romano.
- Oh, não.
- O que foi?
- Nada - respondeu Lavínia, incapaz de conter a tremura na
voz.
Cato afastou-a e inclinou-se sobre a barra. Atrás dele Lavínia reclinou-se. Antes de encontrar a frase que tanto a tinha alarmado, sentiu um movimento súbito e virou-se
mesmo a tempo de ver Lavínia balançar o braço em direcção à sua cabeça. Na mão dela estava uma pedra grande.
Não teve tempo para se abaixar ou levantar um braço. A pedra bateu contra a sua cabeça, o mundo explodiu num branco brilhante antes de cair na escuridão da inconsciência.
- Então, rapaz!
Cato estava vagamente consciente de que alguém o abanava, grosseiramente. A escuridão estava a transformar-se lentamente numa mancha
leitosa e sentia a cabeça turva, como um toro de madeira. Lentamente, a razão voltou-lhe. Gemeu.
- É isso mesmo! Acorda, Cato!
Os seus olhos abriram-se, levaram um momento a focar, até ver as feições familiares do centurião acima dele. Macro agarrou-o pelos braços e ergueu-o para a posição
de sentado.
- Au! - Cato levou a mão a um dos lados da cabeça e retraiu-se quando os dedos tocaram num alto do tamanho de um ovo pequeno.
- Que raio te aconteceu?
- Não tenho a certeza - balbuciou Cato, ainda dorido. Depois a confusão de acontecimentos reorganizou-se rapidamente na sua cabeça.
- Lavínia! Ela tem a ligadura!
- Ligadura? Estás a falar de quê?
- Aquela ligadura que encontrei em Niso. Ela é que a tem!
- Ela bateu-te porque queria a ligadura? - Macro olhou para o optio com uma expressão preocupada. - Deve ter sido mesmo uma grande pancada a que levaste. Anda, rapaz,
vamos levar-te ao hospital.
- Não! - Cato tentou levantar-se, mas ficou tonto e teve que se deitar de novo. - Há uma mensagem na ligadura. É uma cifra.
- Uma quê?
- Cifra, senhor. Um sistema grego de encriptação. Retorce-se um rolo de linho ao longo de um suporte de madeira e escreve-se a mensagem. Uma vez que é desenrolado
as marcas parecem insignificantes.
- Estou a ver - acenou Macro. - É típico dos sacanas dos gregos. Demasiado espertos. Então o que tinha essa mensagem?
- Pormenores de uma conspiração para matar o Imperador.
- Estou a ver, e a Lavínia deu-te uma pancada para te roubar essa ligadura.
- Sim, senhor.
- Que inconveniente.
Cato olhou para o seu centurião. - Senhor! Juro, por tudo o que sou e por tudo em que acredito, que havia uma mensagem nessa ligadura. Deve ter vindo da parte de
Carátaco. Dizia que o Imperador seria assassinado por Belónio durante as celebrações da vitória, e que alguém lhe arranjaria um punhal depois dele ser revistado
pelos guarda-costas de Cláudio.
- Quem?
- Quem quer que fosse o destinatário da mensagem.
- Não sabes quem era?
- Não consegui ler tudo - disse Cato desesperadamente. - Lavínia não me deu hipótese.
Macro franziu o cenho como se estivesse a discernir entre a verdade e uma brincadeira.
- Imploro que acredite em mim, senhor. É a verdade. Alguma vez lhe menti? Alguma vez, senhor?
- Bem, já sim. Aquela vez em que disseste que sabias nadar.
- Senhor, isso é diferente!
- Olha, Cato, - acalmou Macro, - vou acreditar em ti. Vou aceitar que o que dizes é verdade. Mas se descobrir que não é, vou partir-te todos os ossos do corpo, compreendido?
Cato assentiu.
- Muito bem. Agora para onde é que imaginas que essa rapariga foi, uma vez na posse da ligadura?
- Ter com Vitélio. Só pode ser ele. Só pode ser ele quem está a conspirar com os bretões.
- De volta aos velhos truques - suspirou Macro. - Esse tipo bem podia levar com uma espada entre as omoplatas numa noite escura. É melhor procurarmos a Lavínia.
Vamos.
Correram para a zona do vasto acampamento atribuída à Segunda Legião e dirigiram-se para a linha de tendas dos oficiais. A tenda do tribuno superior ficava no extremo
da linha, perto do quartel-general das legiões, e as duas sentinelas estavam na franja do toldo, as mãos na extremidade dos escudos e as lanças no chão. Quando Cato
e o seu centurião se aproximaram, Macro sorriu naturalmente e levantou a mão em saudação.
- Tudo bem, rapazes?
Acenaram com a cabeça cautelosamente.
- O tribuno está em casa?
- Sim, senhor.
- Avisem-no que tem visitas.
- Desculpe, senhor, não o podemos fazer. Ordens rigorosas. Ele está entretido e não pode ser incomodado.
- Estou a ver. Entretido. - Macro piscou os olhos para eles. - Não estará entretido com uma jovem de cabelos negros, por acaso?
Os guardas trocaram olhares.
- Bem me parecia.
Cato sentiu-se enojado. Lavínia estava ali, na tenda dele, a ser entretida. Subitamente, dirigiu-se em passos largos para a entrada, inclinado a cometer um crime.
- Lavínia! Anda cá fora!
Um dos guardas, treinado para reagir instantaneamente, baixou a lança e colocou-a entre as pernas de Cato. O optio tropeçou e caiu.
Antes que pudesse reagir, o guarda estava em cima dele, a ponta da lança perigosamente sobre a sua garganta.
- Devagar! - Macro acalmou o guarda. - Devagar. O rapaz não é nenhuma ameaça.
A dobra abriu-se e o tribuno Vitélio apareceu, num roupão de seda, bramindo zangado: - O que se está a passar aqui ? - Viu Cato estendido no chão e Macro ao lado
do guarda que ameaçava empalar o jovem.
- Ora! Se não é o meu Némesis e o seu pequeno acólito! O que posso fazer por vós, cavalheiros? Sejam breves. Tenho uma senhora encantadora à espera.
A provocação teve o efeito desejado, e Cato pegou na ponta da lança e arrancou-a das mãos do guarda. Deu um golpe com o cabo no rosto do homem, abrindo-lhe um lenho
na cabeça e atordoando-o. Antes que o outro guarda pudesse reagir, Cato tinha-se posto em pé e sopesado a lança, pronto para estripar o tribuno. Mas não chegou a
fazê-lo. Um forte pontapé na parte detrás dos joelhos voltou a fazê-lo cair. Mas desta vez o seu corpo foi amparado e seguro por outro.
- Deixa-te estar! - sussurrou-lhe Macro ao ouvido. - Estás a ouvir o que raio te estou a dizer?
Cato tentou debater-se e levou uma joelhada na virilha. Dobrou-se em agonia e teve a certeza que ia vomitar. Macro levantou-se rapidamente.
- Desculpe, senhor. O rapaz tem estado sob muita pressão ultimamente.
- Não faz mal, Centurião. - Cato ouviu a resposta de Vitélio. - Ele tem um golpe feio na cabeça. Eu emprestava-lhe uma ligadura, mas queimei a última que tinha...
Houve um momento de silêncio; até Cato deixou de se debater. Depois Macro fê-lo levantar-se e empurrou-o para longe do tribuno.
- Desculpe o incómodo, senhor. Farei com que o rapaz não o volte a incomodar.
- Deixe lá isso - respondeu Vitélio, desinteressado.
- Vamos andando - disse rispidamente Macro, e empurrou Cato para longe da tenda. - Isso ensinar-te-á a não desrespeitar os nossos oficiais!
Quando se encontravam longe de ouvidos estranhos, Macro inclinou-se para Cato e sussurrou: - Tiveste muita sorte em sair vivo dali. A partir de agora ouves-me e
obedeces-me.
- Mas o Imperador...
- Cala-te, idiota! Não estás a ver que ele estava a tentar que lhe
batesses? Sabes qual é a pena por agredir um oficial? Queres ser crucificado? Não? Então acalma-te.
Assim que desapareceram da vista de Vitélio, Macro agarrou Cato pelos colarinhos da túnica e puxou-o para si.
- Cato! Acalma-te! Temos algo para fazer. O banquete começa daqui a pouco e temos de encontrar uma forma de impedir Vitélio de matar o Imperador.
- O Vitélio que se foda - resmungou Cato.
- Mais tarde. Neste momento temos que salvar o Imperador.
LIII
- Nada mal - comentou Vespasiano, a boca cheia com um pastel salgado. - Nada mal mesmo.
- Cuidado, essas migalhas sujam-te todo. - Flávia sacudiu as dobras da túnica do marido. - Sinceramente, era de pensar que um homem feito pensasse um pouco nas consequências
daquilo que escolhe para comer.
- Não me culpes, culpa-o a ele. - Vespasiano apontou para Narciso, que estava a um dos lados da mesa do Imperador enquanto o seu amo pegava num prato de cogumelos
com alho. - Ele é que escolheu o menu, e fez um grande trabalho. O que é isto que estou a comer, afinal?
- É carne de veado, deixada a secar um pouco mais do que o necessário, devo acrescentar, e marinada em molho de escabeche antes de ter sido retalhada, misturada
com ervas e farinha, e assada no forno.
Vespasiano olhou para ela com grande admiração e olhou de novo para os restos do pastel. - Como é que sabes isso tudo? Só pelo aroma?
- Ao contrário de ti, dei-me ao trabalho de ler a ementa.
Vespasiano sorriu graciosamente.
- Que mais está na ementa, já que és a perita?
- Não faço ideia, só li até ao primeiro prato, mas imagino que seja uma repetição de todos os banquetes dados por Cláudio.
- Uma criatura de hábitos, o nosso Imperador.
- Os hábitos de Narciso, infelizmente. A ementa tem a marca dele por todo o lado, minuciosa, pretensiosa e com a certeza de nos deixar com uma estranha sensação
no estômago.
Vespasiano riu-se e beijou espontaneamente a esposa na bochecha. Ela aceitou o beijo com uma expressão de surpresa.
- Desculpa. Não te queria chocar - disse Vespasiano. - Foi só
que, por momentos, senti-me como nos velhos tempos.
- Não precisavas de te sentir de outra maneira, marido. Se não me tratasses tão friamente.
- Friamente - repetiu Vespasiano, encontrando-se com o olhar dela. - Não sinto frieza em relação a ti. Nunca te amei mais do que agora.
- Ele inclinou-se para se aproximar e continuou subtilmente: - Mas sinto que não te conheço verdadeiramente. Não desde que fui informado do teu envolvimento com
os Liberais.
Flávia pegou na mão dele e agarrou-a com firmeza. - Disse-te tudo o que precisavas de saber. Disse-te que não tenho qualquer ligação com essa gente. Nenhuma.
- Agora talvez. Mas antes?
Flávia riu tristemente antes de responder numa voz clara e calma:
- Não tenho qualquer ligação com eles agora. É tudo o que te posso revelar. Dizer mais alguma coisa podia colocar-te em perigo, e talvez a Tito... e à outra criança.
- Outra criança? - Vespasiano franziu o sobrolho quando compreendeu. Parou de mastigar o pastel, inspirou para replicar, e começou a sufocar com os pedaços de pastel
que ainda tinha na boca. O seu rosto ficou vermelho enquanto tossia compulsivamente a tentar limpar a garganta. Cabeças começaram a virar-se e, na mesa de honra,
Cláudio procurou e olhou o espectáculo, virando-se aterrado para o seu prato. Narciso apressou-se a confortá-lo e debicou rapidamente um cogumelo do prato de Cláudio.
Flávia batia nas costas do marido, tentando expulsar o que o sufocava, até que, finalmente, Vespasiano recomeçou a respirar, os olhos marejados, e agarrou nas mãos
de Flávia para parar com as pancadas.
- Estou bem. Estou bem.
- Pensei que estavas a morrer! - Flávia estava à beira das lágrimas, e subitamente riu-se, descansando os outros comensais. - Que raio te deu?
- O bebé - disse Vespasiano antes de tossir. - Estás à espera de outra criança?
- Estou - respondeu Flávia com um sorriso, antes de mandar Lavínia ir buscar um copo de água para o marido.
Vespasiano, ainda corado, inclinou-se e abraçou a mulher, enterrando a cabeça no ombro dela e no pescoço. - Quando é que o fizemos?
- Na Gália, antes de chegarmos a Gesoriaco. Há cerca de quatro meses. O bebé deve nascer no princípio do próximo ano.
- Vespasiano! - Cláudio chamou acima do burburinho de
conversas, que se desvaneceu imediatamente. - Eu disse, V... V... Vespasiano.
Vespasiano largou a esposa e virou-se rapidamente.
- César?
- Estás bem?
- Muito bem, César. - Virou-se para sorrir para a sua esposa.
- Maravilhoso, de facto.
- Bem, não p...p...p... parece. Parecias estar à beira de sufocar há bocado. Pensei que tinha escapado por um triz, que alguém te envenenara por engano.
- Não foi veneno, César. Acabei de saber que vou ter outro filho.
Flávia corou e olhou para as mãos com uma modéstia conveniente.
César pegou na sua caneca dourada de vinho e ergueu-a na direcção deles.
- Um brinde! Que o próximo Flaviano a nascer viva para servir o seu Imperador com tanta distinção como o seu pai, e tio, claro.
- Cláudio acenou para Sabino, que sorriu debilmente. Os restantes convidados no brilhante salão grandioso dos catuvelánios entoaram o brinde e Vespasiano fez uma
vénia em agradecimento. Mas a leve menção do Imperador sobre assassinato trouxe novamente os receios de Vespasiano acerca do que Admínio lhe dissera, e olhou em
redor do salão, observando o contingente britânico com desconfiança. Venúcio, os anciãos dos Trinovantes, e outros tantos nativos sentavam-se com evidente desconforto
não muito longe da mão direita do Imperador.
- O que está a atrasar aquela miserável Lavínia? - murmurou Flávia enquanto olhava em redor do salão. - Era suposto só te ter ido buscar um copo de água...
Um aroma pungente a especiarias e ao fluxo rico dos molhos e carnes cozinhadas encheu as narinas de Cato quando ele e Macro entraram na zona da cozinha, nas traseiras
do grande salão. Caldeirões enormes ferviam lentamente sobre fogueiras mantidas por escravos suados, enquanto os cozinheiros trabalhavam sobre longas mesas de cavaletes,
preparando a variedade de pratos requeridos para um banquete imperial.
- E agora?
- Limita-te a seguir-me.
O centurião avançou para a porta de madeira que levava ao grande salão. Um entroncado escravo do palácio numa túnica púrpura levantou uma mão quando eles chegaram.
- Sai da minha frente! - disse Macro bruscamente.
- Alto! - respondeu firmemente o escravo. - Não se pode entrar sem autorização.
- Autorização? - Macro lançou um olhar furioso. - Quem diz que eu preciso de autorização, escravo?
- Somente escravos da cozinha podem passar por aqui. Tente a entrada principal para o salão.
- Quem é que diz isso?
- As minhas ordens, senhor. Directamente do próprio Narciso.
- Então são ordens do Narciso, não é? - Macro deu um passo à frente e baixou a voz. - Temos que falar com o legado da Segunda imediatamente.
- Não sem autorização, senhor.
- Muito bem, queres ver a minha autorização? - Macro pegou na sua bolsa com a mão esquerda, e no momento em que os olhos do escravo lhe seguiram o gesto o centurião
deu-lhe um murro poderoso com a direita. O maxilar do escravo estalou e ele caiu como um saco de pedras. - Que tal te parece isto como autorização, meu estúpido?
Os escravos da cozinha olhavam nervosos para o centurião.
- Voltem ao trabalho! - gritou Macro. - Agora! Antes que levem o mesmo tratamento que ele.
Durante um instante não houve reacção e Macro deu alguns passos à frente em direcção ao grupo de cozinheiros mais próximo, desembainhando lentamente a espada. Voltaram
imediatamente ao trabalho. Macro olhou ameaçadoramente em redor, desafiando-os até todos os cozinheiros terem regressado aos seus afazeres.
- Vamos, Cato - disse Macro calmamente, e entrou pela porta para o grande salão. Cato seguiu-o para dentro das sombras atrás de um pilar de pedra. Um cheiro a bolor
rodeou-os.
- Deixa-te estar aí-ordenou Macro.-Preciso de ver a disposição no terreno.
Cato espreitou por detrás do pilar. O vasto espaço estava cheio de inúmeros candeeiros a óleo e velas de sebo, colocadas em vastos suportes de madeira, suspensos
por roldanas presas nas escuras vigas lá no alto. O brilho ambarino iluminava os convidados alinhados ao longo de divãs em três lados do salão. Diante deles estavam
mesas empilhadas com a melhor arte de cozinha que os cozinheiros imperiais podiam confeccionar. Conversas ruidosas e gargalhadas submergiam os tocadores gregos que
lutavam por se fazerem ouvir de um estrado por trás da mesa principal, onde o Imperador repousava sozinho. No espaço entre as mesas estava um urso preso a uma cavilha
de ferro no chão. Rosnava e tentava atingir
uma matilha de cães de caça que dardejavam em seu redor e o mordiam sempre que o urso apresentava um quadrante sem guarda. Com um latido agudo um dos cães mais lentos
foi apanhado por uma pata, e voou pelo ar contra uma mesa. Comida, pratos, copos e vinho dispararam para o ar enquanto uma convidada gritava de horror perante o
sangue esparramado na sua estola azul pálida.
À medida que os coros de apoio ao urso se desvaneciam, Macro virou a sua atenção para o contingente bretão sentado de um dos lados do Imperador. A maioria dos bretões
tinha sucumbido à fraqueza céltica pela bebida e estavam a ser ruidosos e loucos no apoio à luta da besta. Alguns, no entanto, permaneciam calmamente sentados, comendo
e olhando para o espectáculo com um mal disfarçado desprezo. No divã mais próximo do Imperador sentava-se um bretão jovem, mastigando um pequeno pedaço de pão, olhando
fixamente para o chão à sua frente, completamente alheio ao humor predominante do banquete.
- Ali está o nosso homem. Belónio, diria eu. - Macro acenou a Cato e apontou. - Estás a vê-lo?
Sim, senhor.
- Achas que devemos apertá-lo?
- Não, senhor. Já não temos provas. Temos que tentar falar com o legado ou com Narciso.
- O liberto está nas sombras do seu amo, mas ainda não consigo ver o legado.
- Está ali. - Cato acenou directamente para o lado oposto do salão. Vespasiano estava de costas para eles enquanto beijava a esposa. Atrás deles estava Lavínia,
a rir alegremente ao ver o urso atormentado. Uma mistura fervilhante de ciúmes repugnantes e afeição ao passado borbulhavam no estômago de Cato. Lavínia olhou para
um lado e sorriu. Seguindo o seu olhar, Cato viu Vitélio sentado com um grupo de oficiais assistentes, do lado oposto aos bretões. O tribuno olhava por cima do ombro
e retribuía o sorriso a Lavínia, fazendo com que Cato cerrasse os punhos e pressionasse os lábios de maneira a formar uma linha fina.
- Ali está Vitélio, perto do Imperador - murmurou Macro.
- Já o vi.
- E agora? - Macro apoiou-se no pilar e olhou para o optio. - Narciso ou Vespasiano?
- Vespasiano - decidiu Cato imediatamente. - Há muitos guarda-costas germânicos à volta de Narciso. Não temos qualquer hipótese de fazer passar uma mensagem por
aquele bando. Vamos esperar pelo próximo prato para usar os criados e nos escondermos até chegarmos ao legado.
- Esperar? Não podemos. Não vai demorar muito para os criados lá de fora ganharem tomates e fazerem queixa de nós.
- Senhor, o que pensa que nos acontecerá se nos descobrirem aqui sem convite ou ordem, e com armas?
- Ganhaste. Esperamos um pouco mais.
Enquanto se aninhavam atrás do pilar, os grunhidos selvagens do combate de feras atingiram um crescendo. Os convidados aclamaram e uivaram como se também fossem
bestas enquanto o urso e os cães se rasgavam mutuamente num ritmo frenético. Com um último grito agudo que foi abruptamente abafado por um rugido triunfante do urso,
o combate chegou ao fim e a ovação da audiência reduziu-se a conversas ruidosas. Cato arriscou uma espreitadela para além do pilar de pedra toscamente talhado, e
viu o urso a ser levado pelas correntes por uma dúzia de bretões encorpados, com sangue a pingar dos maxilares e das inúmeras feridas. As suas vítimas mutiladas
eram arrastadas com ganchos.
Ouviu-se um sonoro bater de palmas de fora do salão e as portas abriram-se para deixarem entrar dúzias de escravos imperiais que afluíram para os lados do salão.
- Vamos! - sussurrou Cato, puxando o braço de Macro. Os dois levantaram-se e juntaram-se aos escravos, misturando-se com eles por entre a massa de animadores e escravos.
O coração de Cato martelava e sentiu frio e medo pelo risco que estava a correr. Se os descobrissem, era quase certo que seriam mortos instantaneamente, antes que
tivessem a oportunidade de explicar a sua presença. Cato conseguia ver Lavínia de pé atrás dos seus amos. Não muito longe, Vitélio levantara-se do divã e acenara
a Lavínia. Com um relance rápido para se certificar que a sua senhora não estava a vê-la, ela dirigiu-se subtilmente em direcção ao tribuno. O coração de Cato endureceu
com a visão e teve que a tirar da sua mente.
Com Macro a seu lado, Cato misturou-se na confusão até conseguir alcançar uma posição atrás de Vespasiano. Só aí é que Flávia olhou em redor e franziu o sobrolho
quando viu os soldados no meio dos escravos. Depois sorriu quando reconheceu Cato. Ela puxou a manga do seu marido.
No lado oposto do grande salão o assistente principal bateu com as mãos, e os escravos aproximaram-se das mesas apinhadas dos convidados.
- Senhor - disse Cato calmamente. - Senhor, sou eu, Cato.
Vespasiano olhou para cima e reproduziu exactamente a reacção
da esposa.
- Que raio se está a passar, Optio? E você, Macro? Que estão aqui a fazer?
- Senhor, não há tempo para explicar - sussurrou Cato com urgência. Viu Vitélio levar Lavínia pela mão em direcção à mesa do Imperador. - O assassino de que Admínio
nos avisou está aqui.
- Aqui? -Vespasiano levantou-se. - Quem?
- Belónio.
Os olhos do legado viraram-se para o grupo de bretões do outro lado, todos bêbados e aos gritos, excepto Belónio. Ele também estava de pé, uma mão oculta nas dobras
da túnica.
- Como é que sabes que é ele? - Virou-se para encarar Cato. - Depressa.
Na mesa do Imperador, Cláudio lambeu os lábios quando percorreu os olhos pelas formas da escrava. Longe de estar nervosa pela perspectiva de ser apresentada ao Imperador,
a rapariga estava a sorrir, modestamente.
- Ela é qualquer coisa - disse Cláudio apreciativamente.
- De facto, César - concordou Vitélio. - E muito solícita.
- Estou certo. - Cláudio sorriu para Lavínia. - E estás pronta para te e... entregares ao teu Imperador?
Lavínia franziu a testa e virou-se para Vitélio ansiosamente, mas o tribuno estava a olhar em frente, totalmente impassível aos avanços do Imperador.
- Então, j... jovem?
Vitélio passou os olhos pelos convidados tribais e depois virou-se para o Imperador. - Talvez queira ver a mercadoria mais de perto, César.
Sem aviso, pegou na túnica de Lavínia pelos ombros e rasgou-a violentamente expondo os seios. Lavínia gritou e debateu-se, mas Vitélio agarrava-a com força. Todas
as atenções estavam viradas para eles.
Houve um movimento súbito à direita do Imperador quando Belónio saltou para a frente, correndo na direcção do Imperador, um punhal a brilhar na sua mão direita.
Cato foi o primeiro a reagir, saltando por cima da mesa diante do legado e correndo pelo salão em direcção a Belónio.
- Apanhem-no! - gritou Cato.
Belónio lançou um olhar para o lado, os dentes arreganhados como se estivesse a rosnar, os olhos flamejantes e largos de um fanático, e continuou a correr para o
Imperador. Cato atirou-se de cabeça para
o assassino, fazendo pontaria a uma perna. Apanhou-a, agarrou-a com força e conseguiu puxar Belónio e fazê-lo tropeçar. Ambos caíram para a frente, mas Cato agarrou-se
rapidamente ao seu homem, afundando
os dedos por uns instantes antes de Belónio lhe dar com o pé livre em cheio na cara. Cato perdeu instintivamente o apoio e Belónio libertou-se, levantou-se e atirou-se
novamente ao Imperador.
Os guarda-costas germânicos, distraídos momentaneamente pela exposição de Lavínia, corriam para proteger o seu senhor de Belónio. Cláudio erguera as mãos para tapar
a cara e dera um grito de pânico. O bretão não desistiu, o punhal pronto na mão, a apontar para o Imperador. Quando alcançou o primeiro guarda-costas, o germânico
inclinou-se e deu com o escudo na cabeça do bretão. Belónio caiu no chão de pedra.
- Guardas! - gritou Narciso. - Guardas!
Levou apenas um instante para Vitélio se aperceber que o assassino falhara. Arrancando um punhal do cinto de um dos guarda-costas, precipitou-se para o bretão que
se retorcia. Os guardas estavam a posicionar-se, mas quando chegaram ao local já tudo tinha acabado. Vitélio levantou-se, bochechas e túnica manchadas de sangue.
Belónio estava deitado aos seus pés, morto, o cabo da lâmina do guarda-costas sobressaía debaixo do seu queixo. A lâmina fora introduzida da garganta até ao cérebro
e os olhos estavam inchados de espanto. Uma baba de sangue escuro formou-se ao lado da sua boca aberta e escorreu pelo rosto abaixo.
Na mão do bretão estava o punhal céltico adornado de jóias que Lavínia tinha introduzido subrrepticiamente dentro do salão. Ela olhou para a arma e depois para Vitélio
com uma expressão de terror, recuando
lentamente quando ele a agarrou pela túnica rasgada.
Os guarda-costas amontoaram-se à frente, armas desembainhadas. Das outras direcções, os convidados e os escravos aproximavam-se para verem melhor. Cato levantou-se
e encontrou-se rodeado por uma densa
massa de corpos que se encostavam. Olhou em redor e viu que Cláudio
estava a salvo. Narciso tinha deslizado o seu braço à volta do Imperador e
gritava ordens para que desimpedissem o salão. Cato virou-se e procurou
Lavínia ansiosamente. Depois encontrou-a, a contorcer-se nos braços de
Vitélio que tentava arrastá-la para um lado.
Os guarda-costas do Imperador empurravam a multidão para
longe de Cláudio com a ponta da espada. À visão das armas ouviam-se gritos de pânico e a multidão recuava, levando Cato consigo, e ele deixou de ver o tribuno e
Lavínia. O seu braço estava a ser agarrado por alguém com força, e quando se virou viu Macro.
- Vamos sair daqui! - gritou Macro. - Antes que os Guardas Pretorianos cheguem e algum doido inicie um massacre.
- Não! Tenho que encontrar a Lavínia!
- Lavínia? Para quê? Essa puta está do lado do Vitélio!
- Não a vou deixar, senhor.
- Encontra-la depois. Agora vamos.
- Não! - Cato deu um impulso para se libertar e começou a empurrar na tentativa de chegar ao local onde a tinha visto a debater-se com Vitélio. Sem pensar nas pessoas
à sua volta, Cato forçou o seu caminho. Atrás dele ouviu Macro chamar o seu nome, gritando furioso para que saíssem do salão. Depois uma mulher mesmo à sua frente
gritou e, através da multidão, viu Vitélio encharcado em sangue e segurando um punhal que pingava carmesim. Ele viu Cato e franziu o sobrolho. Depois, olhando em
redor para os rostos aterrorizados especados à sua volta, Vitélio sorriu para Cato e recuou em direcção aos guarda-costas do Imperador, onde deixou cair a lâmina
e levantou as mãos. Cláudio viu-o, e correu imediatamente para o abraçar, o rosto brilhando de gratidão.
Cato continuou a empurrar contra a onda de multidão, lutando para tentar encontrar Lavínia. O seu pé tocou em algo que quase o fez cair. Olhando para baixo viu que
tinha ficado preso na dobra de uma túnica. A túnica embrulhava a forma imóvel de uma mulher deitada no chão. Uma imensa poça de sangue matizava as longas tranças
de cabelo negro. Cato sentiu uma onda de terror percorrer o seu corpo.
- Lavínia?
Uma massa compacta de gente pressionava e carregava Cato quando este se aninhou ao lado do corpo e lhe tirou o cabelo do rosto com uma mão trémula. Os olhos inertes
de Lavínia estavam abertos, as pupilas largas e negras, a boca ligeiramente aberta a mostrar os dentes brancos. Abaixo do queixo, a sua garganta tinha sido cortada
tão profundamente que o osso estava visível por baixo dos tendões e das artérias.
- Oh não... Não!
- Cato! - Macro falou-lhe ao ouvido quando finalmente conseguiu alcançar o optio. - Anda... Oh merda.
Durante uns breves instantes nenhum deles se moveu, depois Macro roltou a si e obrigou Cato a levantar-se.
- Ela está morta, compreendes?
Cato assentiu.
- Temos que ir. Anda!
Cato deixou-se ser arrastado por entre o salão em pânico por um Macro que pontapeava e empurrava as pessoas para o lado no seu desespero por ver os dois fora dali
antes que a Guarda Pretoriana viesse aumentar o caos.
- Rápido! - Macro agarrou o braço de Cato e virou-se para a saída mais próxima. - Por aqui!
Nada ciente do que se estava a passar, Cato sentiu que saía para
fora do salão, e a última imagem a gravar-se-lhe na memória foi a do Imperador a abraçar Vitélio como seu salvador.
Lavínia estava morta e Vitélio era um herói.
Lavínia estava morta, assassinada por Vitélio.
Cato pegou na sua adaga. Os dedos encontraram o cabo e apertaram-
no.
- Não! - grunhiu rigidamente Macro ao seu ouvido. - Não, Cato! Não vale a pena!
Macro arrastou-o para longe da gritaria e empurrou-o por um corredor estreito.
Fora do edifício, Macro puxou Cato para as sombras mesmo quando os primeiros Pretorianos entravam no salão e começavam a rodear os escravos. Gritos e choros ergueram-se
no ar.
Cato bateu a cabeça contra a parede de pedra. Muito acima, imperturbado e despreocupado com os miseráveis pormenores da existência humana, espalhava-se o céu numa
dispersão plácida de estrelas cintilantes. Mas pareciam tão frias, mais frias do que o desespero que lhe apertava o coração e suprimia a vontade de viver.
- Vamos, rapaz.
Cato abriu os olhos, afastando as lágrimas. Acima dele, negro contra as estrelas, erguia-se Macro, a mão esticada para ele. Durante um momento Cato não se queria
mexer, desejoso de ser apanhado com a sua arma pelos Pretorianos, para que eles acabassem rapidamente com o seu sofrimento.
- Ela está morta, Cato. Tu ainda estás vivo. A vida é assim. Agora
anda!
Cato permitiu-se ser ajudado a levantar-se. Com um empurrão gentil Macro levou-o para a segurança do acampamento da Segunda Legião.
LIV
Alguns dias depois o Imperador deixou a ilha de regresso a Roma. Narciso tinha recebido notícias de que, na ausência de Cláudio, alguns senadores tinham começado
a murmurar sobre a competência do Imperador para o cargo. Se permanecesse fora por mais tempo, tais murmúrios podiam tornar-se audíveis. O tempo era oportuno para
o regresso à capital. Sem quaisquer atrasos a frota foi chamada para subir o rio até Camulodónia e a bagagem imperial foi acondicionada rapidamente nos porões. Uma
longa fila de navios de guerra estava ancorada ao longo los cais grosseiros, e escravos suados apressavam-se de um lado para o outro pelas pranchas de embarque,
comandados pelos mordomos do mperador que empunhavam os chicotes com a sua habitual falta de noderação.
Nem todo o séquito imperial deixava a Bretanha. Flávia e outras esposas dos oficiais tinham recebido permissão para passar o Outono e nverno com os seus maridos
antes de regressarem a Roma no início da próxima campanha. A Flávia não lhe agradava a ideia de passar mais um nverno na franja austera do Império. A Bretanha não
era lugar para dar à luz criança que carregava dentro de si. Havia esperado que Vespasiano udesse declinar a sua oferta e a mandasse de volta para Roma comT'ito.
Mas ele tinha insistido para que ela ficasse com ele, argumentando que ela não devia viajar naquele estado. Secretamente, queria mantê-la afastada das perigosas
intrigas políticas de Roma, e longe da influência dos Liberais.
A manhã da partida oficial surgiu com o céu limpo e uma brisa ligeira. No ar fresco e luz pálida, os homens da Segunda Legião levantaram-se cedo das suas tendas
encharcadas de orvalho para comerem um rápido pequeno-almoço e se prepararem para as cerimónias do dia. Tinha sido dada a honra à Segunda de escoltar o Imperador
do acampamento, através
de Camulodónia, até ao cais onde ele embarcaria no seu navio almirante.
Tinham que trajar as vestes completas de cerimónia e cristas vermelhas , de crina de cavalo para os elmos tinham sido distribuídas por todos os homens. Todas as
peças de vestuário tinham que estar imaculadas e os centuriões fizeram uma inspecção minuciosa aos homens da sua centúria antes de os fazerem marchar na parada onde
a Legião estava a formar.
Os estandartes ondulavam na brisa e os mantos escarlates dos oficiais agitavam-se atrás deles enquanto a legião permanecia à vontade, aguardando calmamente o início
da procissão. Plínio era mais uma vez o tribuno superior, agora que o Imperador tinha reduzido a comissão de Vitélio como tribuno para que este pudesse regressar
a Roma e ser apresentado à capital como o homem que salvara o Imperador da faca de um assassino. Mais atrás nas fileiras da Legião, Cato estava um passo ao lado
e outro atrás do seu centurião. Alguns dias depois do banquete ainda estava espantado com os acontecimentos dessa noite, assombrado pela imagem de Lavínia morta
no seu próprio sangue. Embora o tivesse abandonado por Vitélio e pago um preço terrível por se ter aproximado tanto do tribuno, Cato não conseguia deixar de se sentir
ligado à causa da morte dela. Macro estava um tanto menos circunspecto, e embora não tivesse ido tão longe como dizer que ela tinha colhido o que semeara, a sua
falta de compaixão pela escrava era evidente. Consequentemente, uma formalidade glacial crescera entre eles, para desgosto dos dois homens, e permaneciam em silêncio
enquanto os outros homens da Sexta Centúria conversavam alegremente.
O à vontade desvaneceu-se rapidamente quando a crina alta de um oficial superior se aproximou. Abriu-se um espaço nas fileiras e Vespasiano passou por entre os seus
homens em direcção a Macro.
- Centurião! Queria ter uma palavrinha consigo e com o seu optio.
- Com certeza, senhor.
O legado indicou o caminho para fora da densa massa de legionários e parou quando se viu livre de ouvidos traiçoeiros. Virou-se para encarar os seus subordinados.
- Mudaram de ideias acerca do assunto de que falámos? Esta é a vossa última hipótese.
- Não, senhor. - Respondeu Macro com firmeza.
- Centurião, o facto de vocês terem tido um papel importante no salvamento da vida do Imperador pode muito bem ajudar as vossas carreiras. Se aqui o Cato não tivesse
agarrado o assassino, duvido que alguém tivesse chegado a tempo de salvar Cláudio. Ainda agora, as pessoas estão a tentar descobrir a identidade do homem que primeiro
lidou com o bretão. Consigo encontrar uma forma discreta de recompensar os vossos esforços, se o desejarem. Cato?
- Não, obrigado, senhor. - Cato abanou a cabeça fatigado. - É demasiado tarde, senhor. O senhor viu a forma como o Imperador abraçou Vitélio assim que a tentativa
de assassinato passou. Ele encontrou o seu herói. Seria perigoso para nós reivindicar uma parte na salvação do Imperador. Estaríamos mortos muito antes de podermos
colher qualquer benefício da proeza. Sabe que isto é verdade, senhor.
Vespasiano olhou fixamente para o optio, e depois assentiu. - Tens razão, claro. Só queria ver a justiça a ser feita.
Cato fungou com desdém ao pensamento de existir justiça no mundo, e o seu centurião estava tenso de apreensão com aquela afronta ao comandante da legião.
- Muito bem. - O tom de Vespasiano era frio. - É melhor voltarem para os vossos homens.
Com as primeiras cinco coortes a conduzirem o caminho, o Imperador e o seu séquito marcharam por Camulodónia até ao cais. Ao seu lado cavalgava Vitélio, reconhecendo
graciosamente os aplausos dos legionários da guarnição de cada vez que o Imperador apontava para o seu novo favorito. Atrás deles cavalgava Narciso, olhos frios
fixos em Vitélio enquanto considerava as suas opções em silêncio.
No cais as coortes espalharam-se para os dois lados e as cristas vermelhas da Segunda Legião esticaram-se numa linha ao longo da dimensão total dos armazéns. O Imperador
desmontou e embarcou no navio almirante, e depois dirigiu-se para uma plataforma na popa do barco, inclinando a cabeça quando Vespasiano ordenou aos seus homens
que aclamassem o Imperador e a glória de Roma. Enquanto a distância entre as traves douradas do navio e a pedra grosseira do cais se alargava, os gritos dos legionários
continuavam a ecoar no rio. O General Pláucio parou o cavalo ao lado de Vespasiano.
- Parece que afinal de contas o nosso Imperador terá o seu triunfo.
- Sim, senhor.
- Embora estejamos cheios de pena, claro, por ver o nosso Imperador regressar a Roma, penso que este exército pode estar contente por ser poupado ao benefício do
seu génio táctico.
Vespasiano sorriu. - Sim, senhor.
Viram os grandes remos do navio almirante estenderem-se do casco e depois, como um, afundarem-se na água. O navio almirante iniciou a viagem e começou a agitar-se
rio abaixo em direcção ao mar, seguido de perto pela sua escolta de trirremes.
- Bem, é o fim da campanha, pelo menos por este ano - anunciou Pláucio. - Quanto a si não sei, mas preciso de um bom descanso antes de voltarmos a lidar com os bretões.
- Sei exactamente como se sente, senhor.
- É melhor repousar o mais possível, Vespasiano. A Segunda vai ter que estar a postos para tempos muito severos, assim que entre a Primavera.
Vespasiano virou a cabeça para olhar intensamente para o general.
- Pensei que isto o pudesse interessar. No próximo ano, enquanto as outras três legiões entram pelo interior desta ilha mergulhada na ignorância, destinei para a
Segunda a tarefa mais difícil. Andarão ao longo da costa sul para coagir as tribos que ainda não se renderam à lei romana. Temos já um aliado em quem podemos confiar
nessas regiões. Cogidubno. Ele tratará de prover uma base de operações e trabalhará com a frota do Canal para assegurar as terras a oeste. Não tenho dúvidas que
ficará encantado pela perspectiva de um comando independente.
Vespasiano tentou esconder um sorriso, e assentiu seriamente.
- Ainda bem. Estou certo de que fará um bom trabalho. Seja cuidadoso, Vespasiano, porque este é o tipo de serviço que lança homens para grandes carreiras.
Assim que o navio almirante contornou a curva do rio, a Segunda Legião dispersou. As coortes saíram do cais, de novo por Camulodónia, em direcção ao acampamento.
Macro apercebera-se do ódio nos olhos de Cato quando este vira Vitélio aquecer-se no brilho do Imperador no convés do navio almirante. Macro vira que chegasse do
mundo para saber que aquele género de raiva ruminava no coração dos homens e conduzia-os a um caminho gradual de auto-destruição. Cato necessitava urgentemente de
uma diversão qualquer, e Macro pensava ser o homem certo para isso.
- Apetece-te uma bebida na cidade hoje à noite?
- Senhor?
- Disse que vamos beber hoje à noite.
- Vamos?
- Sim. Vamos.
Cato assentiu vagamente, e o seu centurião viu que tinha que oferecer mais do que um incentivo. Bem, havia algo que ele podia tentar. Não que lhe agradasse apresentar
ao optio o seu mais recente interesse romântico.
- Há uma moça que quero que conheças. Conheci-a no mercado no outro dia. Ela também vai connosco esta noite. É boa para umas gargalhadas, e penso que te vais dar
bem com ela.
- É simpático da sua parte, senhor. Mas não quero meter-me no caminho.
- Disparate! Anda e apanha uma bebedeira. Acredita, estás a precisar.
Cato ponderou recusar. Ainda não sentia poder gozar a vida de novo, estava demasiado magoado para isso. Depois olhou para os olhos do centurião. Viu neles a preocupação
genuína pelo seu bem-estar, e decidiu colocar de lado a sua auto-comiseração. Muito bem. Por Macro, embriagar-se-ia o mais possível esta noite. Bêbado o suficiente
para esquecer tudo.
- Obrigado, senhor. Estou a precisar de uma bebida.
- Boa, rapaz! - Macro deu-lhe uma pancada nas costas.
- Mas diga-me, senhor, quem é essa mulher?
- É de uma tribo da costa oeste. Está a viver com uns parentes distantes. É fogosa, e tem um olhar capaz de deixar qualquer homem morto.
- Óptimo. E como se chama?
- Boudica.
Simon Scarrow
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