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Estávamos mesmo a tempo. A Sunshine Tours informava os seus passageiros, no itinerário impresso, de que o autocarro estaria no Hotel Splendido, em Roma, aproximadamente às 18.00 horas. Dando uma vista de olhos ao relógio, vi que faltavam três minutos para a hora.
- Deve-me quinhentas liras - disse a Beppo. O motorista sorriu.
- Em Nápoles - respondeu ele. - Em Nápoles apresentar-lhe-ei uma conta de mais de duas mil liras.
As nossas apostas eram contínuas durante a viagem. Ambos mantínhamos um registo, comparávamos os quilómetros com o tempo de viagem e depois fazíamos as contas, quando a um de nós lhe apetecia pagar. Geralmente cabia-me a mim, independentemente de quem ganhava a aposta. Como guia, eu é que recebia as maiores gorjetas.
Voltei-me sorridente para a minha carga.
- Bem-vindos a Roma, senhoras e cavalheiros - cumprimentei -, a cidade dos papas, imperadores e cristãos atirados aos leões, isto para não falar nas estrelas de cinema.
......
Uma vaga de gargalhadas saudou-me. Alguém da última fila aplaudiu. Gostavam deste género de coisas. Qualquer observação espirituosa que o guia fizesse ajudava a estabelecer o relacionamento entre os passageiros e o piloto. Beppo, na sua qualidade de motorista, podia ser o responsável pela segurança na estrada, mas eu, como guia, empresário, mediador e pastor de almas, tinha as vidas deles nas mãos. Um guia pode fazer ou estragar uma viagem. Como o regente dum coro ele deve, pela força da sua personalidade, induzir a equipa a cantar em harmonia; suavizar o rouco, encorajar o tímido, conspirar com o novo, elogiar o velho.
Desci do meu lugar, abri a porta e vi os porteiros e bagageiros, vindos das portas de vaivém do hotel, a apressarem-se ao nosso encontro. Vigiei a saída da minha manada, como salsichas duma máquina, cinquenta ao todo (não era preciso contar as cabeças porque não tinha havido paragens entre Assis e Roma) e conduzi- os para o balcão da recepção.
- Sunshine Tours, da Associação Anglo-Americana de Amizade - declarei.
Apertei a mão do recepcionista. Éramos velhos conhecidos. Há já dois anos que fazia este percurso.
- Boa viagem? - perguntou.
- Bastante boa - respondi - excepto o tempo. Estava a chover.
- Ainda estamos em Março - comentou. - Que é que esperaVa? Vocês começam a vossa estação cedo demais.
- Diga isso aos fulanos da sede, em Génova - sugeri. Tudo se encontrava em ordem. Tínhamos reservas colectivas, é claro, e por ser ainda o princípio da época, a gerência tinha alojado todo o meu grupo no segundo andar. Aquilo ia- lhes agradar. Mais para diante teríamos sorte se conseguíssemos o quinto, e seríamos enfiados nas traseiras do edifício.
O recepcionista ficou a ver o meu grupo desfilar através de átrio.
- Que é que nos trouxe? - perguntou. - Toda a Santa Aliança?
- Nem queira saber - encolhi os ombros. - Juntaram forças terça- feira, em Génova. Uma espécie de clube. Bifes e américas". O tratamento habitual no restaurante, às sete e trinta.
- Está tudo preparado - garantiu. - E o autocarro do passeio encomendado para as nove. Desejo-lhe que se divirta.
Usamos determinadas palavras de código relativamente aos nossos clientes no negócio do turismo. Os Ingleses são para nós bifes, e os Americanos são américas". pode não ser muito delicado, mas dá jeito. Essas pessoas andavam a correr em liberdade nos pastos e pradarias, quando nós governáva mos o mundo a partir de Roma. Sem ofensa.
Voltei-me para dar atenção aos líderes do meu grupo anglo- americano.
- Tudo corre bem - afirmei. - Instalações para todos no segundo andar. Telefone em todos os quartos. Para quaisquer perguntas, liguem para a recepção que eles passam-me a chamada. Jantar às sete e trinta. Encontrar-me-ei convosco lá. O chefe da recepção conduzi-los-á agora aos vossos quartos.
Teoricamente, era nesse momento que eu poderia retirar-me durante uma hora e vinte minutos, procurar o meu próprio cubículo, tomar um duche e estender-me, mas raras vezes as coisas se passavam assim. Muito menos naquele dia. O meu telefone zumbiu logo que acabei de tirar o casaco.
- Mr. Fabbio?
- O próprio.
- Daqui Mrs. Taylor. Absoluto e completo desastre! Deixei todos os embrulhos das compras que fiz em Florença naquele hotel de Perúsia.
Já devia calcular. Ela tinha deixado um casaco em Génova e um par de sapatos em Siena. Insistira em que aquelas coisas, quase certamente desnecessárias a sul de Roma, deviam ser pedidas pelo telefone e remetidas para Nápoles.
- Lamento, Mrs. Taylor. Que tinham os embrulhos?
- Na maior parte coisas frágeis. Dois quadros... uma estatueta do David de Miguel Ângelo... umas caixas de cigarros...
- Não se preocupe, vou tratar disso. Telefonarei para Perúsia imediatamente e farei com que os seus embrulhos estejam no nosso escritório de Génova à sua espera, quando regressarmos.
Dependia do trabalho que tivessem na recepção deixá-los fazer a chamada e perguntar pelos embrulhos, ou tratar eu mesmo do assunto. Era melhor ser eu a fazê-lo. Pouparia tempo. Rotulara aquela mulher Taylor como uma perdedora de embrulhos logo que se juntara a nós. Deixava os seus pertences em todo o lado. Óculos, lenços de cabeça, postais, estavam sempre a cair-lhe da bolsa de tamanho exagerado. É um defeito britânico, uma falha da raça. Para além disso, os bifes, dão muito pouco trabalho, embora o seu desejo de procurarem sol
os faça esfolar mais rapidamente do que aos das outras nacionalidades. De braços nus, pernas nuas, enfiam camisas de algodão e calções logo no primeiro dia da viagem, pondo-se com isso vermelhos como tijolos. Depois, tenho de os levar à farmácia mais próxima para comprarem cremes e loções.
O telefone soou mais uma vez. Não era a minha chamada para Perúsia, mas uma ligação de um dos américas". Uma mulher, é claro. Os maridos nunca me incomodavam.
- Mr. Fabbio?
- O próprio.
- Adivinhe. É um rapaz!
Pensei duas vezes. Os américas" contam-nos a história inteira das suas vidas na primeira noite em Génova. Qual deles é que estava à espera do primeiro neto, lá em Denver, no Colorado? Mrs. Hiram Bloom.
- Os meus parabéns, Mrs. Bloom. Isso pede uma comemoração especial.
- Bem sei. Estou tão excitada que nem sei o que faço. O grito de satisfação quase me furou o tímpano. - Bom, gostava que o senhor e um ou dois dos outros, se encontrassem com Mr. Bloom e comigo no bar, antes de jantar, para tomar mos um copo à saúde do menino. Digamos às sete e quinze:
Isso reduziria o meu tempo livre a meia hora e aquela chamada de Perúsia ainda não viera. Nada a fazer. Primeiro a cortesia, que era mais importante.
- É muito simpático da sua parte, Mrs. Bloom. Lá estarei. Vai tudo bem com a sua nora?
- Ela está boa. Muito boa.
Desliguei antes que pudesse ler-me o telegrama recebido Em qualquer caso, estava na hora de fazer a barba e, com um pouco de sorte, tomar um duche.
Tem de se ter cuidado ao aceitar convites de clientes. Um aniversário natalício ou de casamento é legítimo, ou o nascimento dum neto. Nada mais, ou gera-se a tendência de se criar um mau ambiente e fica-se a meio caminho de se arruinar a viagem. Além disso, no que diz respeito à bebida, um guia tem de vigiar aquilo que toma. Aconteça o que acontecer ao seu grupo, ele tem de manter-se sóbrio. E o motorista também. Isso nem sempre é fácil.
Tratei da chamada para Perúsia ainda a pingar do chuveiro e, após ter-me enfiado numa camisa limpa, desci as escadas para inspeccionar os arranjos feitos para nós no restaurante. Duas longas mesas no meio da sala, cada uma com vinte e cinco lugares, com as bandeiras das duas nações, a Stars and Stripes e a Union Jack. Isso nunca deixava de agradar - os clientes achavam que dava tom ao ambiente.
Uma palavra ao chefe dos criados, prometendo-lhe ter o meu grupo à mesa às sete e trinta em ponto. Eles gostavam que tivéssemos o nosso prato principal já comido e a sobremesa servida, antes dos outros hóspedes procurarem as suas mesas. Era importante para nós, igualmente. Trabalhávamos com base num horário apertado, e devíamos sair para o nosso passeio Roma à Noite" às nove horas.
Uma verificação final do horário e depois uma curta celebração com uma bebida no bar. Havia apenas uma mão-cheia deles presentes para brindarem ao bebé Bloom, mas conseguia-se ouvi-los do átrio de entrada, onde os bifes" excluídos estavam instalados, aos dois e aos três, alheios, desdenhosos, com os rostos enfiados em jornais ingleses. Os extrovertidos américas" incomodavam os macambúzios anglo-saxões.
Mrs. Bloom deslizou na minha direcção, como uma fragata a todo o pano.
- Bem, Mr. Fabbio, não vai recusar uma taça de champanhe?
- Meia taça, Mrs. Bloom. Só para desejar uma longa vida ao seu neto.
Havia qualquer coisa de tocante naquela felicidade. A generosidade extravasava de cada pessoa. Enfiou o braço no meu e levou-me para o grupo. Que amáveis que eram, meu Deus, que amáveis... Sintetizando, no seu calor todo abraços, a fome dos américas" pelo amor. Recuei sufocado e, depois, envergonhado da minha atitude, deixei-me engolfar. De regresso a Génova, receberia muitas demonstrações de simpatia da parte dos compatriotas de Mrs. Bloom. Cartões de Boas-Festas aos montes, cartas, cumprimentos. Lembrar-me-ia eu da viagem de há dois anos? Quando é que os iria visitar aos Estados Unidos? Pensavam muitas vezes em mim. Tinham posto ao filho mais novo o nome de Armino. A sinceridade dessas mensa gens envergonhava-me. Nunca lhes respondi.
- Detesto desfazer o grupo, Mrs. Bloom. Mas são precisamente sete e trinta.
- O senhor manda, Mr. Fabbio. O senhor é o chefe.
As duas nacionalidades misturaram-se à entrada do átrio, detendo-se momentaneamente enquanto cumprimentavam conhecidos recentes, com as mulheres a elogiarem os vestidos umas das outras. Depois, as minhas cinquenta cabeças fluíram pelo restaurante, baixando a voz, murmurando, comigo no papel de guardador de rebanhos, na retaguarda. Houve gritinhos de prazer à vista das bandeiras. Durante um momento, receei que desatassem a cantar o hino nacional, o Star-spangled Banner e o God Save the Queen - já me tinha acontecido antes - mas apanhei uma olhadela do chefe dos criados e conseguimos sentá-los antes que o patriotismo provocasse o pior. Fui então para a minha pequena mesa de canto. Um dos américas" solitários, de meia-idade, olhos aquosos, colocara-se na esquina de uma das longas mesas, de onde me podia observar. Tinha-o fixado. Conhecia-lhe o género. Do guia não receberia ele qualquer encorajamento, mas poderíamos ter problemas em Nápoles.
Enquanto comia fiz as contas do dia. Era esse o meu costume. Fechei os ouvidos ao som das vozes e ao bater dos pratos. Se as contas não fossem mantidas em dia, uma pessoa nunca se entendia e passava o inferno para as acertar com a sede. A contabilidade não me incomodava. Achava-a relaxante. E, então, após ter adicionado os algarismos e ter posto a agenda de lado depois de ter afastado o prato, poderia recostar-me na cadeira, terminar o meu vinho e fumar um cigarro. Era esta a verdadeira altura de fazer as contas - não já às somas a serem todos os dias enviadas para Génova, mas às minhas próprias motivações. Durante quanto tempo seria capaz de me aguentar? Por que estava a fazer aquilo? Que instinto é que me conduzia, como um estupidificado carroceiro, na minha eterna e inútil viagem?
- Nós recebemos para fazer isto, não é? - dizia Beppo. Ganhamos bom dinheiro.
Tinha mulher e três filhos em Génova. Milão, Florença, Roma, Nápoles, era tudo a mesma coisa para ele. Trabalho era trabalho. Três dias de folga no fim da viagem, casa e cama. Sentia-se satisfeito. Nenhum demónio interior lhe perturbava o descanso ou lhe punha problemas.
O blá-blá das vozes, dominado pelos américas, transformou-se num rumor. O meu pequeno rebanho estava aos gritos. Repletos, descontraídos, as suas línguas soltavam-se com o quer que fosse que lhes enchia os copos, expectantes por aquilo que a noite lhes traria; e que mais lhes poderia trazer a não ser deitarem-se ao lado das esposas, depois de terem espreitado prédios antigos, remotos e estranhos para eles, fal samente iluminados para seu divertimento, entrevistos brevemente pelas janelas embaciadas com a sua respiração dum autocarro alugado? Libertavam-se por momentos das dúvidas e cuidados. Deixavam de ser indivíduos. Eram um só. Escapavam-se a todos os laços que os prendiam, mas para quê?
O criado inclinou-se para mim.
- O autocarro está à espera - comunicou-me. Eram dez para as nove. Estava na altura de irem buscar os casacos, chapéus, lenços, porem pó- de-arroz nas faces e aliviarem-se. Não fiquei sossegado até ter contado as cabeças, enquanto subiam para o autocarro, às nove e um minuto; apercebi-me então de que só lá estavam quarenta e oito. Faltavam dois. Consultei o motorista, não Beppo, que tinha a noite livre para a passar como lhe agradasse, mas um homem da cidade.
- Houve duas senhoras que saíram antes dos outros - disse-me. - Foram pela rua abaixo.
Olhei por cima do ombro na direcção da Via Veneto. O Hotel Splendido fica a uma rua de distância, em comparativa paz e sossego, mas avistam-se do passeio as luzes brilhantes e as alegres montras, e vê-se o trânsito dirigindo-se para a Porta Pinciana. Aqui, para a maioria das mulheres, reside uma mais forte tentação do que o Coliseu, ao qual nos destinávamos.
- Não - interveio o motorista -, elas foram por ali. Apontou para a esquerda.
Depois, do lado de lá da esquina para a Via Sicilia, vieram os dois vultos apressados. Eu já devia saber. Eram as duas professoras reformadas do Sul de Londres. Sempre a fazerem perguntas, sempre a criticarem, mostravam-se desejosas de mudanças. Tinha sido aquele par que me fizera parar o autocarro na estrada de Siena porque, segundo insistiam, um homem estava a maltratar as suas vacas. Tinha sido o mesmo par que, encontrando um gato perdido em Florença, me tinha feito gastar meia hora do nosso precioso tempo à procura da casa dele. Uma mãe, ralhando com o filho, em Perúsia, havia sido admoestada pelas duas professoras. Agora, empertigadas e ultrajadas, corriam na minha direcção.
- Mr. Fabbio... alguém tem de fazer alguma coisa. Há ali uma pobre velha, muito doente, acocorada à porta duma igreja, do lado de lá da esquina.
Contive-me com dificuldade. As igrejas de Roma albergam todos os pedintes, vadios e bêbedos que queiram espalhar-se-lhes pelos degraus até a Polícia os vir expulsar.
-Não se preocupem, minhas senhoras. Isso é normal. A Polícia cuidará dela. Agora apressem-se, por favor. O autocarro está à espera.
- Mas é absolutamente escandaloso... Na Inglaterra, nós... Tomei-as firmemente pelos braços e impeli-as para o autocarro.
- As senhoras não estão na Inglaterra, estão em Roma. Na cidade dos imperadores, dos bois, dos gatos, das crianças e as pessoas de idade recebem aquilo que merecem. A velha tem sorte por já não as atirarem aos leões.
As professoras ainda continuavam chocadas de indignação, quando o autocarro virou para a esquerda, passando pela igreja onde a mulher estava estendida.
-Ali, Mr. Fabbio, olhe... para ali!
Obediente, dei um toque de cotovelo ao motorista. Ele abrandou, cooperativo, para me proporcionar uma melhor visão. Os passageiros sentados à direita também espreitaram. O candeeiro de rua mostrava a figura em destaque. Eu tinha tido momentos da minha vida, como toda a gente, em que qualquer coisa na memória se me despoletava, em que tinha a sensação daquilo a que os Franceses chamam déjà vu. Algures, numa altura qualquer, e só Deus sabia quando, eu já vira aquela postura curva, as amplas saias espalhadas, os braços dobrados, a cabeça enterrada sob o peso do xaile. Mas não em Roma. A minha visão verificara-se noutro lado. Memórias de infância, obscurecidas pelo tempo decorrido. Enquanto deslizávamos para a iluminação pública e para a ilusão turística, um dos amantes do banco de trás tirou do bolso uma harmónica de boca e iniciou os acordes de uma canção já velha para o motorista e para mim, mas popular entre os américas" e os bifes": Arrivederci Roma.
Passava pouco da meia-noite quando nos detivemos de novo diante do Hotel Splendido. O meu rebanho de cinquenta cabeças, bocejando, espreguiçando-se de satisfação, deslizou para fora do carro, um por um, atravessando as portas de vaivém do hotel. Comportavam-se com tanto individualismo como máquinas duma linha de montagem.
Eu sentia-me morto, e sonhava acima de tudo com a cama. Instruções para de manhã, últimas recomendações, agradecimentos, boas-noites a todos e tudo estaria terminado. O esquecimento durante sete horas. O guia poderia descontrair-se. Quando, enquanto pensava, as portas de vaivém se cerraram sobre o último deles, suspirei, acendendo um cigarro. Era a melhor hora do dia. Nesse momento, de trás duma coluna onde devia ter-se escondido fora de vista, surgiu o solitário américa de meia- idade. Balançava as ancas, como todos eles fazem ao andar, numa inconsciente identificação com os irmãos da mesma confraria.
- Que tal vir tomar um copo ao meu quarto? - sugeriu.
- Desculpe - respondi brevemente -, é contra os regulamentos.
- Ah, deixe-se disso - insistiu -, já está fora das horas de serviço.
Adiantou-se, com um meio olhar por cima do ombro, enfiando-me uma nota na mão.
- Quarto duzentos e quarenta e quatro - murmurou ao afastar-se.
Voltei a sair para a rua pelas portas de vaivém. Já antes me tinha acontecido aquilo, e voltaria a suceder; o meu mau acolhimento e a sua consequente hostilidade seriam factores a levar em conta durante a viagem. Tinha de aguentar. A cortesia que devia aos meus patrões de Génova impedia-me de me queixar. Mas eu não era pago pela Sunshine 7ours para mitigar a luxúria ou a solidão dos clientes.
Caminhei até à esquina e parei por um momento, sorvendo o ar fresco. Passaram um ou dois carros, logo desaparecendo. O trânsito zumbia por trás de mim, na Via Veneto, fora de vista. Olhei para o outro lado, para a igreja, e o vulto ainda lá estava, imóvel nos degraus da entrada.
Lancei uma vista de olhos à nota que tinha na mão. Era de dez mil liras. Uma insinuação, supunha eu, de favores futuros. Atravessei a rua e inclinei-me sobre a mulher que dormia. O cheiro furtivo a vinho ordinário e roupas rasgadas ergueu-se- me até às narinas. Procurei a mão escondida sobre o xaile que a envolvia e meti-lhe dentro a nota. Subitamente, mexeu-se. Ergueu a cabeça. As suas feições eram aquilinas e orgulhosas, os olhos, em tempos grandes, estavam agora afundados nas órbitas, e o irregular cabelo grisalho caía- lhe sobre os ombros. Devia ter vindo de longe, porque tinha dois cestos a seu lado, contendo pão e vinho, e mais um xaile de lã. Mais uma vez me senti tomado por aquela sensação de reconhecimento, uma ligação com o passado que não podia ser explicada. Até a mão que, morna a despeito do ar fresco, se agarrou à minha de gratidão, me despertava uma reacção involuntária e relutante. Fitou-me. Os seus lábios moviam-se.
Voltei-me e penso que corri. De regresso ao Hotel Splendido. Se chamou por mim - e poderia jurar que o fez - não ouvi. Ela ficara com as dez mil liras, que lhe serviriam para arranjar comida e abrigo de manhã. Não tinha nada a ver comigo, nem eu com ela. O vulto envolto em farrapos, suplicante, como que enlutado, era uma ilusão do meu cérebro e não me sentia nada ligado a uma camponesa embriagada. Custasse o que custasse, precisava de dormir; de estar fresco de manhã, para a visita a S. Pedro no Vaticano, à Capela Sistina, a Santo Angelo...
Um guia, um carroceiro, não tem tempo livre. Nenhum.
Acordei com um pressentimento. Teria alguém chamado? Acendi a luz, bebi um copo de água e olhei para o relógio. Eram duas da madrugada. Voltei a deixar-me cair na cama, mas o sonho permanecia ainda comigo. O friu e impessoal quarto de hotel, as minhas roupas atiradas sobre uma cadeira, o livro das contas e do itinerário de viagem a meu lado, sobre a mesinha, faziam parte da existência de todos os dias num outro mundo, não aquele em que o meu sonho me fizera penetrar inadvertidamente. Beo"... o Beato, o abençoado. Nome de infância, dado pelos meus pais e por Marta porque, sem dúvida nenhuma, eu fora um inesperado, um acréscimo retardado ao círculo familiar, contando-se oito anos entre o meu irmão mais velho, Aldo, e a minha pessoa.
Beo... Beo... " O grito soava-me aos ouvidos como acontecera no meu sonho e não conseguia libertar-me da sensação de opressão e de medo. Enquanto dormia tinha viajado no tempo, não sendo já um guia, e, de mão dada com Aldo, encontrava-me na nave lateral da Igreja de San Cipriano de Ruffano, erguendo os olhos para o altar. O quadro da ressurreição de Lázaro, com a figura de um homem morto, saindo dum túmulo escancarado, ainda assustadoramente envolto na sua mortalha - excepto a face, da qual os tecidos tinham por qualquer razão caído, revelando olhos fixos, repentinamente despertos, que encaravam o seu Senhor com terror. Cristo, de perfil, intimava-o de dedo estendido. Diante do túmulo, em atitude de súplica e aflição, de braços dobrados, as flutuantes vestes espalhadas, jazia uma mulher, supostamente Maria de Betânia que, muitas vezes confundida com Maria Madalena, assim adorava o Senhor. Mas, no meu espírito infantil, ela parecia-se com Marta. Com Marta, a minha ama, que me alimentava e vestia todos os dias, que me embalava sobre os joelhos e nos seus braços, chamando-me Beo.
Aquele quadro do altar perseguia-me, à noite, e Aldo sabia-o. Aos domingos e feriados, quando acompanhávamos os nossos pais e Marta à igreja, em vez de irmos rezar para o altar-mor da paróquia de San Cipriano, acontecia-nos ficarmos ali de pé na nave da esquerda, mais próxima da capela. Inconscientes, como todos os pais, do pavor que o filho sentia, eles nunca olhavam para verem o meu irmão prender-me a mão na sua e arrastar-me cada vez para mais perto das cancelas abertas da capela lateral, até eu me ver obrigado a erguer a cabeça e olhar.
- Quando chegarmos a casa - sussurrava-me Aldo -, vou vestir-te como o Lázaro, eu farei de Cristo e mandar-te-ei levantar.
Aquilo era o pior de tudo. Ainda mais aterrorizante do que o próprio quadro do altar. Porque Aldo procurava no armário onde Marta guardava as roupas antes de as lavar e tirava de lá a camisa de dormir do meu pai, flácida e amarrotada, enfiando-ma pela cabeça abaixo. Para a minha mente insatisfeita, havia naquilo um toque de degradação; e ser envolvido em roupas usadas pertencentes a um adulto, dava-me voltas ao estômago. A náusea crescia em mim, mas não havia hipóteses de me revoltar. Era metido no armário ao cimo das escadas e fechado nele. Disto, por estranho que pareça, não me importava eu. O armário era espaçoso e, nas prateleiras de ripas, encon trava-se a roupa lavada, cheirando a lavanda. Aquele interior significava segurança. Mas não por muito tempo. Aldo gritava: Lázaro, levanta-te e caminha! "
Tão grande era o meu pânico, tão impositivas para o meu espírito as suas ordens, que não me atrevia a desobedecer. Avançava e o horrível era não saber se me iria encontrar com Cristo ou com o Diabo porque, de acordo com a engenhosa teoria de Aldo, os dois eram um só e, também, duma forma que ele nunca me explicava, intermutáveis.
Por conseguinte, o meu irmão recebia-me por vezes com um sorriso, a fazer de Cristo, apoiado numa bengala como se fosse um cajado, dava-me doces, punha-me os braços em volta do corpo, gentil e amoroso. Mas, noutras ocasiões, com a camisa negra da organização fascista a que pertencia e armado com um garfo de cozinha, representava Satanás e tratava de me picar com a sua arma. Eu não percebia por que razão Lázaro, o pobre homem ressurgido de entre os mortos, poderia ter merecido o ódio do Diabo, e porque é que o seu amigo Cristo o tinha tão vilmente abandonado; mas Aldo informava-me sempre que o conflito entre Deus e o Diabo era interminável, que eles competiam por almas tal como os homens, sobre a Terra e nos cafés de Ruffano, jogavam aos dados. Não era uma filosofia reconfortante.
De regresso à cama do Hotel Splendido, inalando o fumo de um cigarro, perguntei-me por que motivo fora tão subitamente transportado àquele mundo de pesadelo em que Aldo éra o meu rei. Devia ter sido por, ao beber à saúde do pequeno américa" recém-nascido, a memória do meu subconsciente o ter confundido comigo mesmo, o tímido Beato de um mundo anterior; e porque, quando vi a mulher jazendo nos degraus da igreja, a visão do painel do altar de San Cipriano, com Maria, que amava por igual Lázaro e Cristo, prostrando-se em súplica diante do túmulo aberto, voltou-se com vividez. Fosse qual fosse a explicação, aquilo não tinha sido bem-vindo.
Passado um bocado adormeci mais uma vez, somente para mergulhar em mais tormentos. O painel do altar surgiu associado a outra imagem, desta vez no Palácio Ducal de Ruffano, onde o nosso pai exercia as funções de superintendente, um posto muito respeitado. Essa imagem, em exibição no quarto do duque e considerada, por todos os amadores de arte, uma obra- prima, havia sido pintada no início do século xv por um discípulo de Piero della Francesca. Tinha como tema a Tentação, e mostrava Cristo de pé sobre o pináculo do Templo. O artista pintara o Templo parecido com uma das torres gémeas do Palácio Ducal, a mais notável característica de toda a fachada que se erguia em beleza acima da cidade de Ruffano. Para além disso, o rosto de Cristo, no quadro fitando as colinas longínquas, fora desenhado pelo atrevido artista à semelhança de Claudio, o duque louco, a quem chamavam o Falcão, que se lançara da torre num ataque de loucura, acreditando, conforme rezava a história, que era o Filho de Deus.
Durante séculos, aquele quadro jazera nas poeirentas caves do palácio, até ter sido descoberto num período, após o Risorgimento, em que se haviam levado a cabo reconstruções no edifício. Depois, e para sempre, passou a adornar - ou, como murmuravam alguns escandalizados habitantes de Ruffano, a desgraçar - o apartamento ducal. A pintura, tal como o painel do altar de San Cipriano, chocava-me e fascinava-me ao mesmo tempo, facto de que o meu irmão tinha plena consciência. Forçava-me a trepar com ele, sem o conhecimento do nosso pai, a perigosa e contorcida escadaria da torre, abrindo a porta para o antigo caminho que levava ao torreão, empurrando- me, com aquilo que me parecia força sobre-humana, para a balaustrada que o circundava.
- Era aqui que estava o Falcão - dizia Aldo. - Foi aqui que o Diabo o tentou. Se és o Filho de Deus, lança-te lá para baixo; porque está escrito: Ele enviará os Seus anjos para se ocuparem de ti; e nas suas mãos te suportarão, de forma que o teu pé nunca toque violentamente uma só pedra.
Uma centena e meia de metros abaixo estendia-se na cidade de Ruffano, a distante Piazza de Mercato. As pessoas, os veículos que se moviam, dirigiam-se aos seus destinos como formigas numa planície poeirenta. Eu agarrava-me tremendo à balaustrada. Não me recordo que idade tinha. Talvez seis ou sete anos.
- Queres que te conte o que fez o Falcão? - perguntava- me Aldo.
- Não - implorava eu -, não...
- Ele abriu os braços - dizia Aldo - e voou. Os seus braços eram asas, e tinha-se transformado em pássaro. Sobrevoou os telhados e a cidade que era sua, e as pessoas ergueram para ele os olhos, maravilhadas de espanto.
- Não é verdade! - gritava eu. - Ele não era capaz de voar. Não era nenhum pássaro, nem nenhum falcão. Era um homem, e caiu. Caiu e morreu. O pai contou-me.
- Era um falcão - insistia Aldo -, era um falcão e voou. No meu sonho, a cena de terror de que me recordava repetia-se mais uma vez. Agarrava-me à balaustrada com Aldo por trás de mim. Depois, com mais força do que aquela que tinha possuído em criança, atirava-me para trás, libertando-me, e corria, corria pelas estreitas escadas abaixo, para onde me aguardava Marta, chamando-me: Beo... Beo... " Os seus braços lá estavam, prontos para me receber, e ela envolvia-me, apertando-me muito, acalmando-me e confortando-me. Marta, querida Marta. Por que motivo, no entanto, cheirava no sonho a roupas velhas? Porquê o cheiro a vinho?
Desta vez, ao acordar, senti o coração a bater no peito, e estava a suar. O pesadelo tinha sido demasiado real para me arriscar a um terceiro encontro. Acendi a luz, sentei-me na cama pegando na minha agenda e voltei a conferir as contas até me sentir tonto de exaustão. Caí num meio torpor, e dormi sem sonhos até ouvir uma pancada na porta, às sete, anunciando o criado do andar, com os meus pãezinhos e café.
Principiou a rotina do dia. A noite, com todo o seu horror, era um mundo afastado. O telefone começou a zumbir, como sempre fazia e, dentro de dez minutos, estava mergulhado em todos os pequenos pormenores técnicos das horas que se seguiriam; os planos daqueles que desejavam passar a manhã a fazer compras, juntando-se aos restantes de nós à hora do almoço; as perguntas dos que pretendiam ver S. Pedro, mas que não queriam percorrer as longas galerias do Vaticano para cima e para baixo. Lá em baixo aguardavam o autocarro e Beppo, cuja noite, ao contrário da minha, havia sido passada na quentura e conforto da sua trattoria favorita.
- Sabe uma coisa? - disse ele. - Você e eu devíamos trocar de lugares. Você conduzia o autocarro e eu fazia amor com as clientes.
Aquilo era uma piada ao meu aspecto matinal, pálido de pouco dormir. Respondi-lhe que até Lhe agradeceria.
Depois de a nossa carga ter subido, refrescado e ansioso pelo passeio a Roma de Dia, que iria desfrutar, reparei que o américa, solitário, meu seguidor da noite anterior, me lançava agora olhares mortais.
O nosso autocarro arrancou, passando pela igreja que, de forma assustadora, se tinha confundido com a de San Cipriano e transformado um sonho em pesadelo. Os degraus não tinham ninguém, a camponesa partira. Estaria naquele momento, segundo eu esperava, a consolar-se, renovando o fogo íntimo com as dez mil liras que lhe tinha dado. As professoras reformadas haviam-se esquecido da sua existência. Estavam já a trabalhear um roteiro, lendo para as vizinhas o conteúdo da Vie Borghese - primeira paragem - que, de forma alguma, poderiam perder. Não me surpreendi por as encontrar, vinte minutos depois, a passar apressadamente pela estatuária mais convencional, para contemplarem com olhos ávidos o hermafrodita reclinado.
Em frente, em frente, deixando para trás a paz de Pincic e descendo à Piazza del Popolo, atravessando o Tibre em direcção a S. Ângelo e, depois, para S. Pedro e para o Vaticano. E Então, que Deus fosse louvado, viria o almoço.
Beppo, um tipo esperto, comia no carro, lia o jornal e dormia; mas o meu papel era sempre o de condutor e, no restaurante junto de S. Pedro, pouco lugar ou tempo haveria para lazeres. Mrs. Taylor já tinha perdido o guarda-chuva, deixado segundo pensava, no vestiário do Vaticano. Poderia eu procurá-lo, por favor, o mais depressa possível? Deveríamos partir para as Termas de Caracala às duas da tarde, depois regressar na direcção do Forum e passar uma longa tarde entre ruínas. Aí, era meu hábito deixar os meus clientes entregues a si próprios.
Naquela tarde acabou por ser de outra forma. Tinha recuperado o guarda-chuva perdido e atravessava a Via Conciliazione para me reunir ao meu grupo, quando reparei que uma mão-cheia deles me precedera e se encontrava posicionada em torno de Beppo, que lhes lia um jornal aberto. Ele
piscou-me o olho, desfrutando o papel de intérprete. Os seus ouvintes tinham um ar chocado. Observei, desconfiado, que as duas professoras estavam dentro do autocarro.
- Que se passa? - perguntei.
- Assassínio na Via Sicilia - respondeu Beppo -, num raio de cem jardas do Hotel Splendido. Estas senhoras afirmam terem visto a vítima.
A mais faladora das professoras virou-se para mim, encolerizada.
- É aquela pobre mulher - vociferou -, deve ser a mesma. O motorista diz que foi encontrada apunhalada nos degraus da igreja, às cinco da manhã. Nós poderíamos tê-la salvo. É demasiado horrível para se comentar.
Senti-me chocado com o silêncio que se fez. Faltou-me a presença de espírito. Arranquei o jornal das mãos de Beppo e li para mim mesmo. A notícia era breve.
Foi encontrado o corpo de uma mulher, às cinco horas desta manhã, nos degraus duma igreja da Via Sicilia. Tinha sido esfaqueada. Parecia ser uma camponesa migrante e tinha estado a beber. Somente se encontraram em seu poder algumas moedas e dá a impressão de não existir móbil para o crime. A Policia procura qualquer pessoa que a tivesse visto, ou reparado em alguma coisa invulgar nas vizinhanças durante as horas da noite, e que possa auxiliar o seu inquérito.
Devolvi o jornal a Beppo. O grupo aguardava a minha reacção.
- É muito lamentável - declarei -, mas, segundo receio, não muito invulgar. Crimes de violência ocorrem em todas as cidades. Só poderemos esperar que o criminoso seja apanhado em breve.
- Mas nós vimo-la - clamou a professora. - A Hilda e eu tentámos falar-lhe, precisamente às nove da noite. Nessa altura ainda não estava morta. Estava a dormir, respirando pesadamente. Vocês viram-na do autocarro quando passámos. Todos a viram. Quero que faça alguma coisa.
Beppo apercebeu-se do meu olhar e encolheu os ombros. Dirigiu-se discretamente para o autocarro, subindo para o seu lugar. Era problema meu resolver aquilo, não dele.
- Minha senhora - principiei -, não quero parecer impiedoso, mas, naquilo que nos diz respeito, o incidente está encerrado. Pouco havia que pudéssemos ter feito pela mulher nessa ocasião. Neste momento já não há nada. A Polícia tem o assunto entre mãos. Agora, já estamos atrasados em relação ao horário previsto...
Mas rebentara uma discussão entre o grupo. Os restantes juntaram-se a nós, perguntando o que acontecera. Pessoas que passavam detinham-se e ficavam a ver.
- Vamos para dentro do autocarro - ordenei com firmeza. - Para dentro, por favor, toda a gente. Estamos a prejudicar o trânsito.
Uma vez sentados, reinou a confusão. Os américas", com Mr. Hiram Bloom como seu porta-voz, eram de opinião que de nada servia metermo-nos nos assuntos dos outros. Só se acabava por ser desconsiderado. Os anglo-saxões retorquiam colericamente, especialmente as duas professoras do Sul de Londres. Morrera uma mulher nos degraus do átrio duma igreja, num raio de poucas centenas de metros da própria cidade papal do Vaticano, ao alcance dos ouvidos de viajantes britânicos que se encontravam a dormir no Hotel Splendido, e se a Polícia de Roma não sabia cumprir as suas obrigações, era tempo de um bobby londrino vir mostrar-lhes o que fazer.
- E então? - murmurava-me Beppo aos ouvidos. - Para a esquadra de Polícia, ou para as Termas de Caracala?
Ele tinha tido sorte. Não se vira envolvido. O caso era comigo. Não existia móbil, dizia o jornal, ignorando a verdade dos factos. A mulher tinha sido assassinada, não por causa das poucas moedas encontradas em seu poder, mas pelas dez mil liras que eu lhe tinha metido na mão. Era tão simples como isso. Algum vagabundo que passava, ele mesmo de barriga vazia, tropeçara nela nas horas da madrugada, embolsara a nota, talvez a tivesse acordado e, subitamente aterrorizado, silenciara-a para sempre. Os nossos marginais têm pouco respeito pela vida humana. Quem iria verter lágrimas por uma camponesa, uma bêbeda como aquela? Uma mão sobre a boca, uma facada rápida e já estava.
- Insisto - anunciou a professora, com um toque de histeria na voz - em que se dê parte à Polícia. É meu dever dizer-lhes aquilo que sei. Pode ajudá-los saberem que a vimos
no átrio da igreja, às nove horas. Se Mr. Fabbio se recusar a ir comigo, irei sozinha.
- Não sei - respondi. - Quem poderá dizer quando é
que a Polícia vai parar, se começar a fazer perguntas?
Disse a Beppo para arrancar. Vozes discordantes ergueram-se contra mim. Trânsito indiferente engolfou-nos de ambos
os lados. A decisão tinha de ser tomada por mim, para o bem
ou para o mal. Um movimento em falso e a harmonia do meu
rebanho dissolver-se-ia, gerando-se um estado de espírito de
mal-estar e ressentimento, tão fatal numa viagem em conjunto.
Meti a mão no bolso à procura da minha agenda, entregando um rolo de notas a Mr. Bloom.
- Se quiser ter a amabilidade - pedi - de se encarregar
do grupo, tanto nas Termas de Caracala como no Forum. Há
guias que falam inglês em ambos os sítios. O Beppo servirá de
intérprete, se alguma dificuldade surgir. Deverão estar na Eglish Tea Rooms, próximo da Piazza di Spagna, às quatro e
trinta. Encontrar-me-ei lá com vocês.
A professora inclinou-se para diante.
- Que vai fazer? - indagou.
- Levá-la a si e à sua amiga à Polícia - respondi.
E pronto. Não se podia voltar atrás. Pedi a Beppo para nos
deixar sair na primeira praça de táxis. As duas samaritanas e eu ficámos a ver o autocarro afastar-se para as Termas de Caracala. Raramente lamentara mais uma despedida.
Ao dirigirmo-nos para a esquadra de Polícia, as minhas
companheiras estavam estranhamente silenciosas. Não haviam
esperado aquiescência aos seus planos.
- Os agentes da Polícia falarão inglês? - perguntou a
mais nervosa das duas mulheres.
- Duvido, minha senhora - repliquei. - Esperaria que os seus agentes de Polícia falassem italiano?
Trocaram olhares. Conseguia sentir a hostilidade que as gelava nos seus lugares. Juntamente com uma profunda desconfiança pelas leis romanas. As esquadras de Polícia são ameaçadoras em qualquer cidade, mas a missão desagradava-me muito mais a mim do que a elas, para quem, sem dúvida nenhuma, poderia ser considerada como uma experiência de viagem. Avistar um uniforme, qualquer uniforme, dá-me vontade de fugir. O bater de calcanhares, a ríspida voz de comando, os frios olhares especulativos provocam-me desagradáveis associações de ideias; fazem-me lembrar a juventude.
Chegámos ao nosso destino e disse ao taxista para esperar. Avisei-o, falando claramente para as minhas companheiras poderem compreender, de que talvez demorássemos horas.
Os nossos passos soaram num tom cavo quando atravessámos o pátio, para penetrarmos nas instalações policiais. Levaram-nos da recepção para uma sala de espera, daí para um gabinete interior, onde o agente de serviço nos perguntou os nomes, endereços e natureza do assunto que nos levava ali. Quando o informei de que as senhoras inglesas queriam prestar informações acerca da mulher encontrada assassinada nos degraus da igreja da Via Sicilia, olhou-as espantado. Depois tocou uma campainha e bradou uma ordem ao homem que entrou. A atmosfera era arrepiante. Passado um bocado, entraram mais dois agentes da Polícia. Surgiram livros de notas. Puseram-se todos três a fitar as agora deprimidas professoras. Expliquei ao agente que se encontrava atrás da secretária que nenhuma delas falava italiano. Eram turistas inglesas, sendo eu um guia ao serviço da Sunshine Tours.
- Se estão de posse de alguma informação material sobre o homicídio de ontem à noite, forneçam-na, por favor - disse ele. - Não temos tempo a perder.
A mais idosa das duas inglesas começou a falar, pausadamente, para que eu actuasse como intérprete. Servi-me do meu próprio critério sobre aquilo que deveria ser omitido na sua narrativa algo incoerente. A observação de que lhe parecera a ela e à amiga vergonhoso que, nos actuais tempos modernos, não houvesse em Roma um hospital ou um asilo aos quais pudesse recorrer uma mulher com fome, não interessaria à Polícia.
- Chegou a tocar na mulher? - perguntou o agente.
- Sim - respondeu a professora. - Toquei-lhe no ombro e falei-lhe. Ela resmungou. Pensei que pudesse estar doente, e a minha amiga também. Apressámo-nos a voltar para junto do autocarro e a pedir a Mr. Fabbio para fazer alguma coisa. Ele disse que aquilo não era problema nosso e que estávamos a atrasar o autocarro.
O agente da Polícia interrogou-me com um olhar. Respondi que era verdade. E que a hora fora exactamente depois das nove da noite.
- E quando regressaram do passeio não repararam se a mulher ainda lá estava? - perguntou-lhes ele por meu intermédio.
- Receio que não. O carro não passou por esse caminho e estávamos todos cansados.
- Na verdade, não voltaram a falar no assunto?
- Não. De facto, a minha amiga e eu abordámo-lo quando nos estávamos a despir. Dissemos que tinha sido uma coisa vergonhosa o facto de Mr. Fabbio não ter chamado uma ambulância ou informado a Polícia.
Uma vez mais o agente olhou na minha direcção. Pensei detectar nele simpatia.
- Importa-se de agradecer a estas senhoras terem cá vindo? - pediu- me. - O testemunho delas auxiliou-nos. Para efeitos de registos, terei de lhes pedir o favor de identificarem as roupas usadas pela mulher assassinada, se o puderem fazer.
Não contara com isto. Nem as minhas clientes. Puseram-se um pouco pálidas.
-Será necessário? - gaguejou a mais nova das duas.
- Parece que sim - respondi eu.
Seguimos um dos agentes por um corredor abaixo e através duma pequena sala. Adiantou-se um empregado de casaco branco e após uma explicação momentânea, dirigiu-se a uma divisão interior de onde trouxe um monte de roupas e dois cestos. As mulheres a meu cargo ficaram ainda mais pálidas.
- Sim - afirmou apressadamente a mais velha, voltando a cara para o lado -, sim, tenho a certeza de que eram essas coisas. Que horrível é tudo isto...
O empregado de casaco branco, prestável nas suas vampirescas funções, quis saber se as senhoras pretendiam ver o corpo.
- Não - respondi-lhe. - Não lhes pediram para o fazerem. As roupas já chegam como identificação. No entanto, se de todo em todo isso ajudar no inquérito, eu farei isso em vez delas.
O agente que viera connosco encolheu os ombros. Era comigo. Nenhuma das duas professoras sabia o que estava em discussão. Entrei com o empregado para a câmara mortuária. Tomado por alguma dolorosa e perturbadora fascinação, aproximei-me da laje onde jazia o corpo. O empregado retirou a cobertura, revelando-lhe o rosto. Era nobre no seu repouso, e mais jovem do que tinha parecido na noite anterior.
Virei-me para o lado.
- Obrigado - disse para o empregado.
Ao regressar à sala de entrevistas informei o agente encarregado do caso, de que as senhoras reconheciam as roupas. Agradeceu-lhes mais uma vez.
- Presumo - indaguei - que estas senhoras não serão necessárias para posteriores interrogatórios? Partiremos para Nápoles amanhã à tarde.
Gravemente, o agente anotou o facto no seu relatório.
- Não prevejo - respondeu - que precisemos outra vez da presença delas. Temos os nomes e endereços. Desejo às senhoras e a si um agradável retomar do vosso passeio.
Teria jurado que, após ter- se curvado na direcção das professoras, a pálpebra de um dos seus olhos estremeceu por um instante numa piscadela; mas não para elas, para mim.
- Têm alguma pista sobre a identidade da vítima? - quis eu saber.
Encolheu os ombros.
- Existem centenas iguais a ela, como deve saber, que vagueiam pela cidade, vindas do exterior. São difíceis de controlar. Não possuía nada de valor. O assassino deve ter sido algum vagabundo com qualquer motivo de vingança, ou então um degenerado, que fez aquilo por prazer. Havemos de apanhá-lo.
Fomos mandados embora. Caminhámos de regresso à rua através do pátio, até ao táxi que aguardava. Meti as senhoras lá dentro.
- Para a English Tea Rooms - ordenei ao motorista. Olhei para o relógio. Avaliara correctamente o tempo. As minhas clientes poderiam sentar-se pacificamente diante duma chávena de chá, antes de chegar o resto do grupo. Ao chegar, paguei o táxi e acompanhei-as para dentro do estabelecimento. Instalei-as numa mesa de canto.
- Agora, minhas senhoras - disse-lhes -, poderão descontrair-se.
O meu sorriso automático não obteve reacção, salvo uma rígida inclinação de cabeça.
Saí e desci a Via del Condotti até um bar. Precisava de reflectir. Continuava a ver diante dos olhos as aquilinas feições, aguçadas pela morte, da mulher assassinada. Morta por eu lhe ter metido na mão dez mil liras.
Tinha a certeza de não estar enganado. Houvera reconhecimento nos seus olhos, na noite anterior, e ela chamara-me Beo quando eu atravessara a rua. Há vinte anos que a não via, mas era Marta.
Devia ter falado quando os agentes estavam a interrogar as professoras. A oportunidade tinha-me sido facultada. Eles haviam perguntado se, ao regressarmos do passeio, tínhamos reparado se a mulher ainda se encontrava nos degraus da igreja. Aquele fora o momento adequado. Sim", devia eu ter dito, sim, eu fui até ao fundo da rua e ela estava lá, atravessei a estrada e meti-lhe uma nota de dez mil liras na mão.
Imaginava o ar de surpresa nos olhos do polícia. - Uma nota de dez mil liras?
- Sim.
-A que horas foi isso?
- Pouco depois da meia-noite.
- Alguém do grupo o viu?
- Não.
- O dinheiro era seu, ou pertencia à Sunshine 7ours?
-Tinha acabado de me ser dado. Em paga dum favor.
- Refere-se a uma gorjeta?
- Sim.
- Por um dos seus clientes?
- Sim. Mas se lhe perguntar, ele negará.
Então o agente teria pedido às duas professoras para se retirarem. O interrogatório teria prosseguido, em tom mais duro. Não só eu não poderia apresentar uma única testemunha de que o américa" solitário me tinha dado o dinheiro e me pedira para ir ao seu quarto, como também não seria capaz de explicar o motivo de eu ter dado aquela importância, um motivo que fizesse sentido na opinião do agente da Polícia. Nada fazia sentido.
- Afirma que se recordou de um painel de um altar que o assustava em criança?
- Sim.
- E, por causa disso, decidiu entregar dez mil liras a uma mulher desconhecida?
- Aconteceu tudo tão rapidamente. Nem tive tempo de pensar.
- Sugiro que admite nunca ter tido uma nota de dez mil liras em seu poder, e que está agora a inventar esta história de ter metido tal nota na mão da mulher, por achar que Lhe dará um alibi.
- Alibi para quê?
- Para o próprio homicídio.
Paguei a minha bebida e voltei para a rua. Tinha principiado a chover. Guarda-chuvas abriam-se como cogumelos à direita e à esquerda. Raparigas de pernas à vela chocavam comigo. Turistas, apanhados de surpresa, acoitavam-se nos vãos de portas. As minhas professoras encontravam-se a salvo na English Tea Rooms e, com o tempo que toda a tarde ameaçara, Mr. Hiram Bloom deveria ter retirado o seu grupo do Forum, para os fazer regressar a Beppo e ao carro que por eles esperava.
Virei a gola do casaco para cima, enterrei mais o chapéu na cabeça e abri caminho através de ruas laterais, na direcção da Via del Tritone e do escritório em Roma da Sunshine 7ours. Eram quase quatro horas e, com alguma sorte, o meu colega Giovanni deveria estar de volta à sua secretária, embora gostasse de esticar o intervalo da tarde. Tive sorte. Estava no seu lugar habitual, num canto, a falar pelo inevitável telefone. Viu-me, ergueu a mão num cumprimento e apontou-me uma cadeira. O escritório estava relativamente vazio, a não ser uma mão-cheia de turistas, comprimindo-se pacientemente contra o balcão central, pedindo trocas de reservas, marcações de hotéis, a rotina habitual.
Giovanni desligou, apertou- me a mão e sorriu.
- Não devias estar em Nápoles? - quis saber. - Não... que estou eu a dizer, Nápoles é amanhã, felizmente para ti e para o teu pequeno bando. Roma está cada vez mais impossível. Boa viagem?
- Assim, assim. Não me posso queixar. Américas, e bifes", todos muito amistosos.
- Raparigas jeitosas?
- Nada que me aqueça o sangue. De qualquer forma, dispões de tempo? Experimenta um serviço de guia.
Ele riu-se e abanou a cabeça.
- Bom, que posso fazer por ti?
- Giovanni... preciso da tua ajuda. Estou metido num sarilho.
Mostrou compreensão.
- Preciso de encontrar um substituto que leve o meu grupo a Nápoles - disse-lhe.
Ele explodiu.
- Impossível! Absolutamente impossível no tempo de que dispomos. Não temos ninguém cá em Roma. Além disso, a sede...
- A sede não precisa de saber. Pelo menos, de momento. Giovanni, tens a certeza de que não consegues desencantar alguém? E se eu tivesse uma crise de apendicite?
- Tens apendicite?
- Mas posso inventar uma, se isso ajudar.
- Não ajudará. Digo-te, Armino, não há nada que eu possa fazer... nós não temos substitutos a vadearem aqui pelo escritório, só para o caso de te apetecer umas férias.
- Escuta-me, Giovanni. Não quero tirar férias. Quero que me coloques numa rota do Norte. Arranja-me uma troca. Só temporária, é claro. Tenho de ir ao Norte.
- Referes-te a Milão?
- Não... Qualquer viagem que vá na direcção do Adriático.
- É cedo demais para o Adriático, sabes bem. Ninguém vai para lá até Maio.
- Bem, então não necessariamente um autocarro, um grupo, pode ser um cliente privado, que esteja a pensar em Ravena, ou Veneza.
- Também é muito cedo para Veneza.
- Nunca é cedo para Veneza. Giovanni, por favor. Começou a mexericar em vários papéis que tinha na secretária, na sua frente.
- Não te posso prometer nada. Pode aparecer qualquer coisa amanhã, mas o tempo é curto. Partes para Nápoles às catorze horas de amanhã e, a não ser que eu consiga arranjar uma troca dupla, não será possível.
- Bem sei, bem sei. Mas tenta.
- É por causa de uma mulher, suponho?
- Claro que é por causa duma mulher.
- E ela não pode esperar?
- Digamos que sou eu quem não pode esperar. Suspirou e pegou no telefone.
- Se tiver notícias para ti, deixar-te-ei recado no Splendido, para tu me telefonares. As coisas que se fazem pelos amigos...
Deixei-o e dirigi-me à English Tea Rooms. A chuva tinha parado e o sol brilhava sobre todos nós, os pedestres, tão repentinamente aliviados. Se Giovanni não conseguisse a transferência, estava tudo terminado. Eu tomara uma atitude. Em relação a quê? Não sabia. Pacificação dos mortos, ou talvez da minha consciência. Ainda poderia estar enganado e a mulher morta não ser Marta. Se assim fosse, embora no meu íntimo me considerasse cúmplice da sua morte por lhe ter metido as dez mil liras na mão, sentir-me-ia absolvido de culpas mais graves. Se tivesse sido Marta, não. O grito de Beo" também me punha na pele de um assassino, em todos os sentidos tão culpado como o criminoso, como o ladrão que usara a faca.
Ao chegar à Piazza di Spagna, vi que o meu bando tinha terminado o chá e estava pronto a subir para o autocarro. Fui reunir-me a eles. Podia aperceber-me, pelo ar inchado das professoras, que tinham voltado a contar a sua história. Eram as heroínas da sua breve hora de glória.
Não havia recado de Giovanni, nessa noite no hotel e, depois de jantar, uma réplica da noite precedente mas desta vez com discursos, fomos de autocarro até Trastevere, para que o meu pequeno rebanho pudesse dar uma vista de olhos, durante mais ou menos uma hora, à vida dos cafés que lhes agradava pensar que era natural naquela área.
- Esta é que é a autêntica Roma - sussurrava Mrs. HIram Bloom, sentando-se a uma mesa de ferro num passeio, no exterior de uma taberna brilhantemente iluminada com falsas lanternas, para seu inocente divertimento. Seis músicos, usando calções, meias e barretes napolitanos, apareceram com guitarras, como que por magia, e o meu grupinho balançou-se ao ritmo da sua música. Havia algo de terno na sua inocência e prazer. Quase me entristecia pensar que talvez amanhã estivessem todos em Nápoles, já não se encontrando ao meu cuidado. Um pastor tem os seus momentos de afectividade...
Não havia recado de Giovanni na recepção do hotel quando regressámos. Não obstante, dormi essa noite, graças a Deus, sem um sonho.
Chegou uma chamada de Giovanni poucos minutos depois das nove.
- Armino - disse ele rapidamente -, olha, creio que resolvi tudo. Dois alemães que vão de Volksagen para norte. Querem um intérprete. Tu falas alemão, não falas?
- Falo.
- Então ao trabalho. Herr Turtmann e sua mulher. Feios como o pecado, ambos agarrados a mapas e roteiros. Não se importam para onde vão, desde que seja para norte. Fanáticos dos panoramas.
- E o meu substituto?
- Tudo combinado. Conheces o meu cunhado?
- Tu tens vários.
- Este costumava trabalhar na American Express. Conhece todas as respostas e está ansioso por ir a Nápoles. É bom tipo. Podemos confiar nele.
Tive uma dúvida momentânea. Não iria o cunhado de Giovanni estragar o passeio? Saberia como lidar com as pessoas? E, mesmo que aquilo desse resultado, quando a sede em Génova soubesse da troca não iria eu perder o emprego?
- Escuta, Giovanni, tens a certeza do que estás a fazer? Ele deu-me a impressão de ter ficado impaciente.
- Olha, é pegar ou largar. Estou a fazer-te um favor, não estou? Em qualquer caso, pouco me rala. O meu cunhado já tem tudo preparado e irá imediatamente ter contigo para Lhe dares instruções. Terei de dar conhecimento a Herr Turtmann. Ele quer partir pelas dez e trinta.
Dispunha exactamente de uma hora e meia para tratar da minha substituição, ir ao escritório e encontrar-me com os meus novos clientes. Seria à justa.
- Concordo - disse a Giovanni, desligando. Bebi uma segunda chávena de café frio e enfiei as minhas poucas coisas dentro de uma mala. Faltavam vinte minutos para as dez quando o cunhado de Giovanni bateu à porta. Recordava-me dele em tempos. Vivo, com muita conversa, eu tinha dúvidas de que trouxesse pastilhas para a indigestão de estômagos anglo-saxões, ou se interessasse pelo neto dos Bloom. Não importava. Um guia não pode atender a tudo. Sentámo-nos lado a lado na minha cama desfeita e mostrei-lhe os meus apontamentos e o itinerário da viagem, mais a lista de passageiros, à qual acrescentei uma curta descrição das idiossincra sias de cada cliente.
Saímos juntos do quarto e deixei o meu substituto dirigir-se à recepção, para explicar a sua posição. Apertei mãos, desejando- lhes uma boa viagem. Ao passar através das portas de vaivém do hotel, saindo para a rua, sentia-me como uma ama a abandonar as suas crianças. Aquela sensação era peculiar. Nunca antes havia largado um grupo.
Um táxi deixou-me no escritório da Via del Tritone e, logo que entrei, vi Giovanni, ostentando o seu rosto oficial, todo sorrisos e cortesia, a falar com aqueles que seriam claramente os meus futuros clientes. Não havia dúvidas sobre a sua nacionalidade. Eram ambos de meia-idade. Ambos traziam câmaras de filmar. Ele era um tipo grande, de ombros quadrados, com o cabelo espetado como os pêlos duma escova e óculos de aros de ouro. Ela era lívida, com o cabelo preso por baixo de um chapéu de tamanho demasiado pequeno para a sua cabeça. Calçava, por nenhum motivo em particular, longas meias brancas que contrastavam com o seu casaco escuro. Adiantei-me. Ele apertou-me a mão.
- A minha mulher e eu somos bons fotógrafos - anunciou Herr Turtmann, logo que Giovanni nos apresentou. Gostamos de fotografar em movimento, a partir do carro. Disseram-nos que sabe conduzir.
- Com certeza, se assim o desejarem - anuí.
- Excelente. Nesse caso, poderemos partir imediatamente. Giovanni fez uma vénia a ambos, todo sorridente. Depois piscou-me o olho.
- Desejo-lhes uma boa viagem - declarou.
Tomámos um táxi para o sítio onde eles haviam estacionado o Volkswagen. O tejadilho suportava um alto monte de bagagem, bem como metade do banco de trás. Os boches" nunca viajavam com pouca bagagem e acumulavam recordações enquanto se deslocavam.
- O senhor conduzirá - comandou Herr Turtmann. A minha mulher e eu queremos tirar fotografias à saída de Roma. Deixo ao seu critério a escolha da estrada, mas gostávamos de passar por Spoleto. No meu roteiro atribuem duas estrelas à praça da catedral.
Instalei-me ao volante, com Herr Turtmann a meu lado e a esposa lá atrás. Enquanto atravessávamos o Tibre, ambos levaram câmaras aos olhos, deslocando-as lentamente dum lado para o outro, como um atirador de metralhadora a varrer o seu campo de tiro.
Quando a sessão de filmagem era interrompida, o que acontecia de vez em quando, alimentavam-se copiosamente do conteúdo de sacos de papel e bebiam café de termos enormes. Falavam pouco e o seu silêncio convinha- me. Precisava de toda a minha atenção para ultrapassar os camiões na estrada, pois tínhamos uns duzentos e sessenta quilómetros a percorrer antes de atingirmos o destino que levava em mente.
- E esta noite - perguntou subitamente Herr Turtmann. - Onde dormiremos?
- Ficaremos em Ruffano - respondi.
Ele folheou as páginas do roteiro que tinha no colo.
- Há lá vários monumentos de três estrelas, Gerda - disse, por cima do ombro, para a mulher. - Poderemos filmá-los todos. Ruffano serve-nos muito bem.
Era ao mesmo tempo coincidência e ironia que, tendo deixado a cidade onde nascera e tendo vivido onze anos da minha infância com um alemão, tivesse de lá voltar, mais de vinte anos depois, com outro. Naquela época, em Março, a paisagem campestre tinha um aspecto cinzento-púrpura, duro e pouco convidativo, com o céu a ameaçar neve como em Florença; noutros tempos, no refulgente e quente Julho de 44, as estradas para norte de Ruffano haviam estado brancas de poeira. Os camiões do exército e os veículos que seguiam aquela via tinham aberto caminho ao Mercedes do comandante, com a sua flâmula a ondular. Na devida altura, os fatigados motoristas dos camiões, apercebendo-se da importância do carro, endireitavam-se nos assentos numa continência, ocasionalmente retribuída pelo comandante que seguia dentro dele. Quando se sentia demasiado indolente, retribuía-a eu por ele. Ajudava a suportar a viagem, evitando-me de enjoar, e poupava- me o espectáculo de observar a minha bela e desmazelada mãe a alimentar o seu conquistador com uvas. A sua frequente gargalhada, bastante tola, fundia-se com as dele, ferindo a minha convicção daquilo que devia ser a dignidade de um adulto.
- Estou a ver - sublinhou Herr Turtmann para a sua esposa - que possuem no Palácio Ducal de Ruffano o notável quadro d'A Tentação de Cristo, considerado até recentemente uma blasfémia. Sempre pensei que tivesse sido de lá tirado durante a guerra pela nossa gente, para localização mais segura.
Não lhe contei que vira o meu pai, o superintendente, encaixotando o quadro com os seus ajudantes, com grande cuidado, e guardando-o juntamente com outros nas caves do palácio, por recear tal eventualidade.
Os meus clientes ficaram satisfeitos com um curto lanche em Spoleto e uma rápida filmagem da fachada do Duomo que dava para a praça, e apressámo-nos através de Foligno e dos arredores, numa estrada permanentemente às curvas, contorcendo-se por entre as colinas arredondadas, enquanto em frente as montanhas, cobertas de neve, sinalizavam a minha terra, que ainda devia estar em pleno Inverno, a uns quinhentos metros de altitude. Caíram os primeiros flocos de neve, ou fomos antes nós que neles penetrámos ao vir do Sul; deviam ter estado a tombar todo o dia. O céu parecia uma mortalha. Os rios, aumentados pelos ribeiros que corriam das montanhas, rumorejavam através das ravinas a nosso lado.
Eram aproximadamente sete horas quando avistei a minha terra. Para o viajante que vem de Roma, a cidade emerge nos cumes de duas colinas, fazendo os vales lá em baixo parecerem anões. Não me recordava de alguma vez a ter visto sob a neve. Era magnificente. Também proibitiva, como que para avisar o intrépido viandante de que nela penetraria sob a sua própria responsabilidade. Como mudara pouco, meu Deus, como mudara pouco!
Herr Trutmann e a mulher, apesar da neve que tombava, levavam as janelas do carro abertas e, para seu próprio gozo, iam de câmaras empunhadas; eu, para satisfazer o meu orguLho, circundei o vale por entre muros, a fim de entrar pela porta ocidental, a Porta del Sangue.
- E com boas razões - costumava o meu pai dizer-me -, uma vez que foi por aqui que Claudio, o primeiro duque, trouxe para a morte os seus cativos.
A neve flanqueava a estrada, que curvava para cima, e jazia espessa nos topos dos telhados, fazendo as árvores parecerem fantasmas e coroando os minaretes das torres gémeas do palácio, o Duomo e o campanário para além dele, transformando a minha cidade em lenda, em sonho. Esquecera-me de que ainda pudesse existir tamanha beleza.
Subi a Via del Martiri, na direcção do centro da cidade, a Piazza della Vita, e depois travei. Nada se tinha modificado, a não ser a queda da neve que punha a cidade soturna, levando os habitantes a ficarem dentro de suas casas. Os prédios, uma mistura de ocre e cor-de-rosa velho, engolfavam a praça, com a sua simetria desfeita pelas cinco ruas convergentes nela. Janelas brancas sobre as colunatas vigiavam as ruas empedradas em baixo, de portinholas cerradas. As lojas estavam fechadas. Reconheci- lhes os nomes. A livraria, a farmácia, eram ainda as mesmas. Dominando tudo, o arruinado Hotel del Duchi onde, no meu tempo de criança, eu considerava um castigo ter de ir almoçar aos domingos. Mas, mais tarde, quando se havia transformado no quartel-general do comandante, a entrada era proibida. Nessa época, havia sentinelas atentas diante da porta, ou a baterem os calcanhares. Carros de serviço e mensageiros em motocicletas tinham estado estacionados onde, agora, eu parava o Volkswagen de Herr Turtmann. Recordações malditas de mais de vinte anos, a crescerem e a inundarem-me com uma onda de sentimento.
Empurrei a porta do hotel e olhei em volta, mal sabendo o que esperava ver - se o gabinete do comandante, o ruído das máquinas de escrever, ou o vestíbulo, com cadeiras de costas direitas, nas quais o meu pai e os amigos se sentavam a beber Cinzano após a missa. Creio que a última coisa. E foi isso que me saudou, embora modernizada ao ponto de se parecer com um bar para turistas, com expositores de postais, revistas sobre a mesa e um aparelho de televisão no canto mais afastado.
O silêncio era profundo. Toquei à campainha, que tilintou num tom alarmante. Nos velhos tempos, o proprietário, senhor Longhi, e a sua mulher Rosa estavam sempre presentes para cumprimentarem o meu pai. Ele tinha olhos brilhantes, amáveis e caminhava - se é que eu me lembrava bem - muito direito; fora ferido quando era novo, durante a Primeira Guerra Mundial. A sua mulher, Rosa, era viva, gorducha e ruiva. Ela e a minha mãe costumavam falar de trivialidades e, quando a minha mãe não estava presente, a senhora Longhi namoriscava discretamente o meu orgulhoso pai.
Agora em resposta à minha chamada, surgiu uma criada baixinha. Confusa, disse que tinha quartos, mas que teria que consultar primeiro a patroa. Uma voz aguda veio lá de cima. A patroa em pessoa desceu, lentamente por causa do seu peso excessivo, respirando com dificuldade. Os seus olhos empapuçados espreitavam-nos sobre as bochechas flácidas; o cabelo era dum pobre colorido provinciano, às manchas acastanhadas. Reconheci- a, com um choque, como sendo a senhora Longhi, agora de meia-idade.
- Querem quartos para hoje? - perguntou, olhando-me com indiferença.
Expliquei-Lhe as necessidades dos Turtmann e de mim próprio, virando as costas desencantado. Saí para a neve, para trazer os meus clientes e a bagagem. A atrapalhada criada, única bagageira à vista, seguiu-me. Estava-se fora da estação alta, é claro, e no entanto... De qualquer maneira, não tínhamos sido recebidos auspiciosamente. Os Turtmann, impassíveis, registaram-se e subiram as escadas, observados pela bocejante patroa. O rapazinho a quem ela em tempos dera guloseimas há muito havia sido esquecido.
Providenciei para que os Turtmann se instalassem num quarto do segundo andar e dirigi-me ao meu, um pequeno compartimento que dava para a praça. A despeito da neve que caía, abri as janelas e fiquei, por um momento, a sorver o ar mordente.
Senti-me como um fantasma que tivesse regressado após a morte. Os prédios dormiam. Repentinamente, o sino do Duomo deu as horas. As notas, de tom profundo, tiveram como eco, por um momento, as que vinham de igrejas diferentes.
San Cipriano, San Michele, San Marino, conhecia-as a todas, reconheci-as, com a nota final da de San Donato, lá em cima no Palácio Ducal, a soar em último lugar. Era àquela hora que dizia as minhas orações, sentado nos joelhos de Marta. Fechei a janela, cerrei as portadas e encaminhei-me para a sala de jantar, lá em baixo.
Herr Turtmann e a esposa já estavam a comer. Não me convidaram para me juntar a eles e, grato por isso, sentei-me a uma pequena mesa próxima da janelinha de serviço. Outra criada, menos atrapalhada do que a colega, servia às mesas, comandada de vez em quando pela própria patroa, que vinha espreitar-nos por trás da janelinha, dava uma ordem e depois desaparecia. Cada bocado que comia, cada gole do áspero vinho local cor de uva que enchia a minha garrafa, me induzia nostalgia. Ali estava a mesa central, posta para uma dúzia de talheres segundo antigo costume, onde Aldo celebrara o seu décimo quinto aniversário. Elegante como um deus adolescente, erguera o seu copo aos nossos pais, agradecendo-lhes a homenagem que lhe tinham prestado, enquanto os convidados que o rodeavam aplaudiam e eu o fitava, de olhos esgazeados. O meu pai, destinado a morrer de pneumonia num campo de concentração dos Aliados, brindou ao filho mais velho com um sorriso. A minha mãe, radiosa no seu vestido verde-lima, alisou as penas maternais, atirando beijinhos ao marido e filho. O comandante ainda não havia despontado no seu horizonte.
Servi-me do resto do vinho da minha garrafa e, enquanto o fazia, como um eco dos meus pensamentos, surgiu, a coxear, de trás da janelinha, um homenzinho grisalho, transportando uma revista ilustrada que levou para a mesa dos Turtmann. Apontou com orgulho para o artigo de fundo, uma peça sobre Ruffano, e para uma fotografia de si próprio, o proprietário, senhor Longhi. Deixou a publicação com os alemães e coxeou na minha direcção.
- Boa noite, senhor - saudou. - Espero que tudo esteja a seu contento.
Tinha um tremor nervoso na mão esquerda, que tentava esconder colocando-a atrás das costas. Era, segundo supus, reflexo da idade; o vivo senhor Longhi de olhos brilhantes já não existia. Agradeci-lhe o incómodo, ele fez uma vénia e desapareceu na cozinha, com os olhos a fitarem-me sem me reconhecerem. Não poderia esperar outra coisa. Por que haveria alguém de estabelecer uma ligação entre o insignificante guia de hoje e o filho mais novo do senhor Donati de outros tempos, o Beato, a quem os adultos davam palmadinhas na cabeça? Todos estávamos esquecidos, todos havíamos desaparecido...
Terminado o jantar e escoltados os Turtmann para o seu quarto, enfiei o casaco, abri a porta principal do hotel e saí para a praça. Silêncio, brancura e calma envolveram-me. Viam-se pegadas na neve, primeiro claramente impressas, traços de um indivíduo que depressa se perdiam. O ar mordente penetrava o meu ligeiro agasalho. A invasão da Primavera pelo Inverno apanhara-me, como a qualquer outro turista, desprevenido.
Olhei para a esquerda e para a direita, esquecido, após mais de vinte anos, de como a rua principal se dividia em duas de cada lado da praça, cada ramo a dirigir- se, aparentemente em posição quase perpendicular, ao seu destino. Virei para a esquerda, um pouco ao acaso, para além do grande volume de San Cipriano que se erguia na minha frente nascendo da neve, e imediatamente compreendi que me enganara, porque a rua era larga e inclinada, e iria eventualmente conduzir-me à colina de noroeste, em frente à estátua do duque Carlo. Carlo, o Bom, o irmão mais novo do louco Claudio que, no seu reinado de quarenta anos, amado e respeitado, reconstruiu o palácio e a cidade, tornando Ruffano famosa. Regressei à praça e dirigi-me para sul, subindo a rua estreita e tortuosa em direcção ao sítio em que ela se alargava subitamente na Piazza Maggiore e aí, em toda a sua majestade, encontrava-se o Palácio Ducal da minha infância, dos meus sonhos, com as paredes cor-de-rosa manchadas pela neve que caía.
Estúpidas lágrimas enchiam- me os olhos, a mim, o guia, comovido como qualquer turista com um postal ilustrado, e avancei, ainda em sonhos, para tocar nas paredes que conhecia. Ali estava a porta de entrada do pátio interior, usado pelo meu pai superintendente e por nós, Aldo e eu, mas nunca pelas multidões de visitantes. Ali estavam os degraus nos quais costumava saltar, e aqui, logo de seguida, a maciça fachada do Duomo, reconstruída no século xvIII. Haviam-se formado colunas de gelo na fonte da praça, pendendo como cristais dos lábios dos querubins de bronze. Eu costumava ir beber a esta fonte, inspirado por uma lenda, contada por Aldo, que garantia que nas suas águas residiam toda a pureza e muitos segredos; se lá havia segredos, nunca aprendi nenhum. Ergui a cabeça para o telhado do palácio e vi, destacando-se por cima da entrada, a grande figura de bronze do Falcão, emblema dos Malebranche, a família ducal, com a cabeça coberta de neve, as asas gigantes abertas. Depois, virei as costas ao palácio e caminhei para lá da Universidade, voltando à esquerda na Via del Sogni, a rua dos sonhos. Nada se movia, nem sequer um gato vadio. Agora eram somente as minhas pegadas que marcavam a neve caída e, quando atingi as altas paredes que rodeavam a casa do meu pai, com a árvore isolada a coroar-lhe o jardim, um vento cortante como uma faca percorreu a rua estreita, de maneira que a neve, ainda leve como uma pena, se levantou na minha frente.
Uma vez mais tive a estranha sensação de ser um fantasma, ou nem sequer isso, algum espírito desencorporado há muito, e que ali, na casa às escuras, Aldo e eu estávamos adormecidos. Costumávamos compartilhar um quarto, até ele ter direito a um só para si. Nem um raio de luz saía naquela noite através das persianas corridas. Perguntei-me quem viveria agora ali, se é que de facto a casa ainda era habitada. De alguma forma parecia-me vergonhosamente abandonada. E o muro do jardim que eu sempre considerara tão alto, tinha agora encolhido. Afastei-me como um furtivo gato vadio, descendo na direcção da Igreja de San Martino, e tomei o atalho para os seus degraus, mais uma vez para a Piazza della Vita. Que me desse conta, não tinha encontrado nem vivalma.
Entrei no hotel e subi para o meu quarto, despi-me e meti-me na cama. Uma centena de imagens me percorriam a mente, passando e voltando a passar, como estradas convergentes para uma auto-estrada. Umas dignas de recordação, outras sombrias. O presente entrelaçava-se com o passado, o rosto do meu pai confundia-se com o de Aldo, ambos precisamente nos uniformes que usavam quando os vira pela última vez. A farda de Aldo, aos dezanove anos de idade, com as asas de piloto, fundia-se com as dos amantes de minha mãe: o comandante alemão, o brigadeiro americano em Francoforte, com quem vivemos durante dois anos. Até o chefe dos criados do Splendido, um conhecimento de passagem visto uma dúzia de vezes, e em quem nunca pensara, se transformou no gerente bancário com quem a minha mãe acabou por se casar, o meu padrasto Enrico Fabbio, de Turim, que me dera uma educação e um nome. Demasiados rostos, estranhos de passagem, demasiados quartos de hotel, apartamentos alugados; nenhum deles meu, nada a que pudesse chamar um lar. A vida era uma jornada interminável, um voo sem objectivo...
Uma sineta agora a soar no corredor acordou-me e, quando acendi a luz, verifiquei que era de manhã, oito horas. Escancarei as portadas das janelas. A neve cessara e o sol brilhava. Por baixo de mim, na Piazza della Vita, as pessoas iam às suas vidas. As lojas tinham aberto, os empregados varriam a neve; o familiar padrão matinal de Ruffano, há muito esquecido, reassumira a sua forma habitual. Chegou-me às narinas o vivo aroma da praça, o cheiro de que me recordava. Uma mulher sacudia um cobertor numa janela. Um grupo de homens discutia na minha frente. Um cão, de cauda levantada, perseguia um gato às riscas, por pouco atingido por um carro que dava a curva. Mais trânsito do que antigamente, ou seria porque, durante a guerra, só os militares viajavam? Não tinha recordações de polícias de giro, mas agora ali estava um de braço estendido, orientando os carros através da praça para a Via Rossini e para o Palácio Ducal. Havia jovens por todo o lado, em vespas" ou a pé, dirigindo-se para sul, subindo a colina, e ocorreu-me, com surpresa, que a pequena Universidade da minha infância devia ter-se expandido e que o Palácio Ducal, em tempos o orgulho de Ruffano, talvez já não detivesse a posição suprema.
Voltei as costas à janela, vesti-me e desci para a sala de jantar para tomar café, pensando em poupar a criada trapalhona que fazia de paquete. O senhor Longhi trouxe-me em pessoa um tabuleiro, pousando-o na mesa com mãos trementes.
- As minhas desculpas, senhor - pronunciou o velhote. - Estamos com falta de pessoal e com obras na cozinha para a abertura da estação.
Desde que acordara que me apercebera de barulho e marteladas, das vozes dos operários a chamarem uns pelos outros, do cheiro a pinturas, a argamassa.
- Há muito tempo que tem este hotel? - perguntei-lhe.
- Ah, sim - respondeu com alguma vivacidade de que me recordava -, há mais de trinta anos, com uma interrupção durante a Ocupação. Durante uns tempos tivemos cá um quartel-general. A minha mulher e eu fomos para Ancona. O Hotel del Duchi era o preferido de muitas pessoas conhecidas nos velhos tempos, escritores, políticos. Posso mostrar-lhe...
Mancou em direcção a uma estante, no recanto mais afastado, tirando de lá um livro de visitantes, que transportou para a minha mesa tão ternamente como o faria a uma criança acabada de nascer. Abriu-o automaticamente em determinada página.
-O ministro inglês, Stanlev Baldwin, honrou-nos uma vez - disse, apontando a assinatura. - Ficou cá uma noite e partiu, com pena de não ficar mais tempo. O astro americano do cinema Gary Cooper, ali, na página seguinte. Estava para fazer aqui um filme, mas isso deu em nada.
Voltava orgulhosamente as páginas para eu ver, 36, 37, 38, 39, 40, anos da minha infância, e um impulso levava-me a dizer: E o senhor Donati, superintendente do palácio, lembra-se dele, e da senhora: Lembra-se do Aldo com quinze anos? Lembra-se do Beo, do pequeno Beo, tão pequeno para a sua idade que lhe davam só quatro anos e não sete? Bem, aqui está ele. Ainda pequeno, ainda insignificante.
Controlei esse impulso e continuei a beber o café. O senhor Longhi continuou a voltar as páginas do livro de visitante, omitindo, conforme reparei, os anos de vergonha, prosseguindo nos anos 50 e 60, já sem ministros, nem artistas de cinema, as páginas cheias de nomes de centenas de turistas, ingleses, americanos, alemães, suíços, clientela de passagem que ia e vinha, do género que eu trazia sob a minha asa na Sunshine Tours.
Uma voz ríspida chamou-o de trás da porta e ele coxeou para atender ao chamamento da esposa. Furtivamente, com um olho posto na porta, virei as páginas para 1944 e ali estava, clara, com um floreado, a assinatura do comandante, nos meses em que fizera do hotel o seu quartel-general. As páginas restantes encontravam-se em branco. Os Longhi haviam partido para Ancona... peguei no livro e levei-o para a estante. Recordações do passado. O comandante, com o seu caminhar arrogante, a sua voz autoritária, muito rígido, impermeável a sentimentos de fraqueza, ficaria melhor fechado à chave. Mas para ele e para a sua simbólica presença - um conquistador conquistado, uma pena no seu chapéu - havia a minha mãe e eu, o meu pai morto num campo de concentração e Aldo abatido em chamas, que bem poderiam ter ido com os Longhi para Ancona. Tinha-se falado nisso. E depois? Especulações infrutíferas. Ela teria arranjado outro amante na costa e teria fugido para longe, levando consigo o seu Beato.
- Está pronto?
Voltei a cabeça. Herr Turtmann e a mulher estavam de pé no limiar da porta, agasalhados, de botas, carregados com os seus utensílios de filmagem.
- Ao seu serviço, Herr Turtmann.
Era intenção deles verem o Palácio Ducal e depois sair de Ruffano em direcção ao norte. Ajudei-os a acomodar a bagagem e Herr Turtmann deu-me dinheiro para pagar a conta. A senhora Longhi contou as notas, devolveu o troco e bocejou. Se a minha mãe não tivesse morrido de cancro do útero em 56 ter-se-ia parecido com Rosa Longhi. A sua figura alargaria. Também usaria o cabelo pintado. Fosse por desilusão ou por causa da sua doença, ela costumava censurar o meu padrasto Enrico Fabbio, muito à ríspida maneira como a patroa ralhava com o lamentoso marido.
- Têm muita competição aqui em Ruffano? - perguntei, dobrando as notas de Herr Turtmann.
- O Hotel Panorama - respondeu encolhendo os ombros. - Foi construído há três anos. Tudo moderno. Na outra colina, próximo da Piazza del Duca Carlo. Como é que nós podemos esperar aguentar-nos nesta lixeira? O meu marido está velho. Eu sinto-me cansada. O lugar está pior que nós.
Após o seu epitáfio verbal, mergulhou por trás da secretária. Fui juntar-me no carro aos Turtmann, com outra fatia de infância apagada.
Deixámos a Piazza della Vita, subindo a apertada Via Rossini, para irmos estacionar no exterior do Palácio Ducal. A manhã trouxera realidade ao meu mundo de sonho da noite anterior. Havia outros carros parados entre o nosso destino e o Duomo, pedestres iam e vinham, vespas" roncavam ao passar por nós, na direcção da Universidade.
À entrada, encontrava-se um empregado uniformizado num cubículo.
- Pretendem um guia? - quis saber.
Abanei a cabeça, recusando.
- Eu sei onde estou - redargui.
Os nossos passos ecoaram no chão de pedra. Abri caminho até ao pátio, mais uma vez como um fantasma, um viajante no tempo. Era aqui que eu costumava gritar, fazendo reverberar a voz na colunata em arco. Aldo? Aldo? Espera por mim. Ao que o eco me respondia: Estou aqui. Segue- me...
Seguia agora pela grande escadaria acima para a galeria superior, vendo em cada nicho e abóbada o falcão de Malebranche com as letras C. M. dos dois duques, Claudio e Carlo. Os Turtmann marchavam atrás de mim. Fizemos uma pausa na galeria para eles recuperarem o fôlego e ali estava o banco no qual Marta costumava sentar-se a tricotar, enquanto eu corria para a frente e para trás na sua frente ou, por vezes, com grande receio - se Aldo não estivesse ali para me agarrar percorria todo o circuito, parando aqui e ali para espreitar pelas grandes janelas que davam para o pátio lá em baixo.
- Então? - interveio Herr Turtmann, fitando-me. Tirei os olhos da galeria, com o seu banco vazio, e virei à direita, para a Sala do Trono. Oh, meu Deus... aquele cheiro a humidade cediça, fragrância a tempos idos, a antigos feudos, duques e duquesas mortos há muito, cortesãos, pajens... O cheiro a tectos abobadados, muros ocres, o pesado e poeirento aroma a tapeçarias.
Os mortos acompanhavam-me enquanto percorria o compartimento familiar. Não somente os espectros da história que aprendera, o louco duque Claudio, o amado Carlo, a graciosa duquesa e o seu séquito de damas; os meus próprios mortos também estavam a meu lado. O meu pai, ele próprio gracioso como um duque, a mostrar o palácio a historiadores de visita, vindos de Roma ou Florença; Marta, mandando-me calar se erguia a voz, levando-me para longe dos ouvidos de distintos hóspedes; Aldo, acima de tudo, Aldo. Caminhando em pontas de pés, de dedo nos lábios.
- Ele está à espera!
- Quem é que está à espera?
- O Falcão... Para te apanhar com as garras e levar-te. Veio de trás de mim uma confusão de sons. Um grupo de jovens, sem dúvida estudantes, escoltados por uma professora, aproximava-se ruidosamente da Sala do Trono, enchendo todo o lugar com a sua presença. Até os Turtmann se perturbaram. Conduzi-os para a Sala de Recepções, a seguir. Um guia uniformizado, encobrindo um bocejo, aproximou-se dos meus clientes, pressentindo hipóteses de gorjeta. Tinha umas noções de inglês e tomara os meus boches" por américas.
- Reparem no tecto - recomendou -, tecto muito bom. Restaurante por Tolmeo.
Deixei-o naquilo e afastei-me à socapa. Ignorando as câmaras da duquesa, dirigi-me para a Sala dos Querubins e para o quarto de dormir ducal. Estavam vazios. Um empregado, sentado num banco de janela, dormitava, num canto afastado.
Pouco se modificara. Os palácios, ao contrário das pessoas, suportam o decorrer dos anos. Só os quadros tinham sido mudados, trazidos da sua estada de tempo de guerra nas caves, para serem agora exibidos de forma mais vantajosa do que no tempo do meu pai, conforme tive de admitir a contragosto. Estavam mais correctamente colocados, em sítios em que a luz os beneficiava. A Madona e o Menino, o favorito da minha mãe, em vez de pendurado na parede em relativa obscuridade, encontrava-se num cavalete, isolado em tranquila grandeza. Os sombrios bustos de mármore de épocas anteriores, que estavam em tempos agrupados em volta da sala, tinham sido retirados. Nada havia agora para ofuscar a Madona. O empregado abriu um olho. Dirigi-me a ele.
- Quem é o superintendente? - perguntei.
- Não existe nenhum superintendente - respondeu. O palácio está sob a tutela do Conselho de Artes de Ruffano, quer dizer, os aposentos ducais, os quadros, as tapeçarias e as salas lá de cima. A biblioteca do rés-do- chão é usada pelos membros da Universidade.
- Obrigado - agradeci.
Continuei, antes de ele ter podido chamar a minha atenção para os querubins dançantes do fogão de sala. Houve uma altura em que eu tinha posto nomes a todos eles. Entrei no quarto de dormir do duque, procurando instintivamente o quadro na parede, A Tentação de Cristo, do qual Herr Turtmann falara a sua mulher. Ainda lá estava. Nenhum Conselho de Artes iria colocar esta pintura num cavalete.
Pobre Cristo ou, como o artista com engenhosa candura o pintara, pobre Claudio... Ali estava no seu gibão cor de açafrão, de mão na anca, a olhar para coisa nenhuma, a não ser que estivesse a contemplar os topos dos telhados do seu mundo de visionário, o mundo que seria o seu, se a tentação o dominasse. O Diabo, à guisa de amigo e conselheiro, sussurrava-lhe a sua mensagem. Por trás dele, o céu róseo anunciava uma aurora triunfante. A cidade de Ruffano dormia, pronta a movimentar-se e despertar, a fim de cumprir os seus deveres.
- Dar-te-ei tudo isto, se te ajoelhares e me adorares.
Tinha-me esquecido dos seus olhos, claros como o cabelo dourado, e de que o próprio cabelo, enquadrando a face pálida, se assemelhava a espinhos.
Uma onda de vozes ressoou no ar. Os Turtmann com o seu persuasivo guia, os estudantes e a professora vinham ao meu encontro. Deslizei através da Câmara de Audiências, sa bendo que os faladores que me perseguiam não só se demorariam diante do quadro que deixara, como também dariam a volta para visitarem o gabinete ducal, a capela ducal. Metendo umas liras na mão do guia, os Turtmann podiam até ser autorizados a dar uma vista de olhos à escadaria em espiral, que levava até lá acima, à torre.
Aqui, na Câmara de Audiências, existia a entrada oculta para a segunda torre. As escadas desta, em espiral, embora fossem uma réplica da outra, nunca em vida de meu pai haviam sido consideradas seguras. Aqueles turistas suficientemente intrépidos para esforçarem os músculos e suportarem as vertigens, eram conduzidos à torre da direita, através do quarto de vestir do duque.
Dirigi-me à parede e levantei a tapeçaria. O limiar da porta ainda lá se encontrava, com a chave na fechadura. Dei-lhe a volta, a porta abriu-se. Diante de mim estavam as escadas, curvando-se para a torre lá em cima; para baixo, a descida de trezentos degraus ou mais, para o abismo. Perguntei-me que comprimento teria, uma vez que nunca ninguém havia percorrido estas escadas. Teias de aranha forravam a pequena vigia. O velho medo, a velha fascinação tomaram-me. Pousei a mão no frio degrau de pedra, preparando- me para trepar.
- Quem está aí? É proibido subir a escadaria! Olhei por cima do ombro. O guia que deixara a dormir na Sala dos Querubins seguira-me e estava a vigiar-me, com os olhos pequeninos estreitando-se de suspeita.
- Que é que está a fazer? Como é que chegou até aí? - perguntou.
Senti uma culpa velha de anos. Por tal acto o meu pai ter-me-ia mandado para a cama sem ceia, a menos que Marta ma levasse às escondidas.
- Desculpe - disse. - Calhou de espreitar por trás da tapeçaria e dei com a porta.
Ele aguardou que eu passasse. Depois fechou a porta, deu a volta à chave e recolocou a tapeçaria. Dei-Lhe quinhentas liras. Acalmado, apontou-me a sala em frente.
- Sala dos Papas - anunciou. - Em volta das paredes há bustos de vinte papas. Todos muito interessantes.
Agradeci-lhe e continuei. A Sala dos Papas sempre carecera de fascínio.
Contornei as restantes salas, com as cerâmicas e os relevos em pedra. Nos velhos tempos tinham servido para me esconder, porque o eco me chegava com mais nitidez. Desci a grande escadaria mais uma vez, atravessei o pátio e o arco da entrada, saindo para a rua. Acendi um cigarro e encostei-me às
colunas do Duomo, à espera dos meus clientes. Um vendedor de postais aproximou-se de mim com a sua mercadoria. Acenei-lhe recusando.
- Quando é que começa a invasão? - perguntei.
Ele encolheu os ombros.
- A qualquer altura a partir de agora - respondeu -, se o tempo se aguentar. O município faz o que pode para pôr Ruffano no mapa, mas estamos muito mal localizados. Aqueles que se dirigem para a costa preferem seguir viagem directamente. Dependemos sobretudo dos estudantes para vendermos a nossa mercadoria.
Apontou os postais e as pequenas flâmulas para bicicletas com a insígnia do Falcão de Malebranche.
- Têm muitos?
- Estudantes? Dizem que mais de quinhentos. Vêm muitos todos os dias, a cidade não os pode alojar a todos. Aconteceu tudo nos últimos três anos. Muita oposição por parte dos
mais velhos, por causa da sujeira e dos tumultos provocados pelos estudantes. Bem, eles são novos, não são? E é bom para o comércio.
As admissões na Universidade deviam ter duplicado, possivelmente triplicado. Não tinha a certeza. Os estudantes antigamente poucos problemas causavam, tanto quanto me lembrava. Tinha nesse tempo a impressão de que todos eles estudavam para professores.
O meu informante afastou-se e, enquanto estava ali a aguardar os Turtmann fumando o meu cigarro, dei-me conta, pela primeira vez desde há meses, desde há anos, de que o tempo já não me pressionava. Estava a trabalhar sem horário. Não havia nenhum autocarro da Sunshine Tours estacionado na praça, na minha frente.
A neve estava a derreter-se rapidamente sob o calor do Sol. Crianças corriam umas atrás das outras, em volta da fonte. Uma velha veio à porta da padaria, do outro lado, com o tricô nas mãos. Entraram mais grupos de estudantes, rapazes e raparigas, no Palácio Ducal.
Levantei os olhos para o Falcão, por cima da porta, com as asas de bronze preparadas para o voo. Na noite anterior, coberto de neve, oblíquo contra o céu, tivera um aspecto ameaçador, ominoso para todos os que passassem. Esta manhã, embora ainda guardião dos muros do palácio, as asas abertas causavam uma sensação de liberdade.
O som profundo do sino do campanário do Duomo deu as onze. Mal as últimas notas haviam morrido à distância, os Turtmann, a gesticularem, bateram com a porta do Volkswagen. Deviam ter saído sem eu os ver, e estavam agora impacientes por partir.
- Já vimos tudo o que queríamos - rosnou o meu cliente. - Sugerimos que saia da cidade pela outra colina, depois de filmarmos a estátua do duque Carlo. Assim disporemos de mais tempo em Ravena.
- Os senhores é que sabem - concordei eu. Subimos para o carro, eu ao volante, como no dia anterior. Deixámos a Piazza Maggiore e descemos a ladeira até à Piazza della Vita, atravessando o centro da cidade e subindo à colina norte, na direcção da Piazza del Duca Carlo. Compreendia agora por que motivo os Longhi tinham perdido freguesia. O novo Hotel Panorama, com a sua vista da cidade e região circundante, as suas varandas alegremente pintadas, os seus canteiros de relva e pequenas laranjeiras, tinha mais atractivos para os turistas do que o pobre Hotel del Duchi.
-Ah! - exclamou Herr Turtmann. - Olhe, ali é que nós devíamos ter ficado. - Increpava-me irritado.
- Demasiado tarde, amigo, demasiado tarde - murmurei na minha língua.
- O quê? O que está a dizer?
- Que o Hotel Panorama só abre na Páscoa - respondi suavemente.
Parei o carro e eles saíram para filmar a estátua do duque Carlo e o panorama em redor. O passeio habitual dos domingos costumava ser até ali. Os dignitários locais, as suas esposas, fiLhos e cães, passeavam em parada pela esplanada, belamente ladeada de árvores, arbustos e plantas de estufa no Verão. Aqui houvera algumas mudanças, ao contrário dos outros sítios. Casas novas tinham sido construídas abaixo do cume e o orfanato, que em tempos se encontrava isolado em rígida fealdade, estava agora enquadrado por cercanias mais elegantes. Este, achei eu, era o bairro rico de Ruffano, o moderno desafio à mais famosa colina sul. Saí do Volkswagen com a minha parca bagagem, no momento em que os meus clientes, tendo terminado as filmagens da manhã, se aproximavam do carro.
- Aqui, Herr Turtmann - disse-lhe de mão estendida -, é onde eu me despeço do senhor. A estrada à direita da praça levá-lo-á pela colina abaixo até à Porta Malebranche, seguindo para norte. Tome a estrada da costa para Ravena, que é mais rápida.
Ele e a esposa ficaram a olhar para mim, o homem a piscar os olhos por trás dos óculos de aros dourados.
-Você foi contratado como nosso guia e motorista - disse. - Foi tratado tudo com o agente de Roma.
- Um mal-entendido - redargui com uma vénia. - Eu assumi o compromisso de os trazer até Ruffano, não mais longe que isso. Lamento o incómodo causado.
Tenho algum respeito pelos boches". Sabem reconhecer a derrota. Se o meu cliente fosse um compatriota meu ou um francês, teria explodido em imprecações. Mas Herr Turtmann não o fez. Fitou-me por um momento, de boca firmemente cerrada, depois ordenou rispidamente à mulher que entrasse no carro.
- Como queira - disse. - Já paguei antecipadamente os seus serviços. O escritório de Roma terá de me reembolsar.
Entrou no veículo, bateu com a porta e pôs o motor em funcionamento. Um momento depois, o Volkswagen seguia o seu caminho, atravessando a Piazza del Duca Carlo e desaparecendo da vista. Da minha vida também. Deixara de ser guia. Deixara de ser carroceiro. Virei as costas ao bom duque Carlo, lá em cima no seu pedestal, e dirigi-me para sul, para a colina oposta. O Palácio Ducal dos Malebranche, com as suas torres gémeas voltadas a ocidente, adornava-Lhe o cimo como uma coroa. Principiei a descer a colina, na direcção da cidade.
É ao meio-dia que a Piazza della Vita merece o nome que tem. As mulheres, depois de feitas as compras, partiram já todas para as suas casas a fim de preparar a refeição. Os homens tomam conta dela. Montes deles estavam lá reunidos quando cheguei ao centro. Lojistas, escriturários, padeiros, jovens, homens de negócios, todos a falar, a tagarelar, alguns simplesmente ali de pé, a olharem. Era costume, sempre assim tinha sido. Um estrangeiro de passagem poderia tê-los considerado membros de qualquer organização que se dispunha a tomar a cidade. Estaria enganado. Aqueles homens eram a própria cidade. Aquilo era Ruffano.
Comprei um jornal e encostei-me a um dos pilares da colunata. Procurei as páginas com o noticiário de Roma, e depararam-se-me meia dúzia de linhas sobre o assassínio da Via Sicilia:
Ainda não se descobriu a identidade da mulher assassinada há dois dias na Via Sicilia. Acredita-se que é oriunda da província. Um motorista de camião declarou ter dado boleia a uma mulher correspondendo à sua descrição, à saída de Terni. A Polícia prossegue o seu inquérito.
Tínhamos passado por Terni no dia anterior, antes de virarmos à direita para Spoleto. Viajando para sul de Ruffano, para Roma, uma camponesa migrante teria ficado contente por dispor da oportunidade de uma boleia de camião para o resto da distância. Sem dúvida que o motorista se tinha apresentado e identificado o corpo mas, em qualquer dos casos, a descrição da mulher morta já teria, por aquela altura, circulado por todas as cidades do país, a fim de permitir à Polícia verificar a sua lista de pessoas desaparecidas. E se, no momento, a mu lher morta não estivesse incluída nessa lista? Se, tomada por um súbito desejo de viajar, ela simplesmente tivesse saído de casa? Não me recordava se Marta tinha parentes. Com certeza que não. Seguramente se dedicara por inteiro aos meus pais, depois de Aldo ter nascido, ficando connosco desde então. Ela nunca falava de irmãos, de irmãs... A sua devoção, toda a sua vida, tinha-nos sido dedicada.
Pousei o jornal e dei uma olhadela em volta. Não vi rostos conhecidos, nem mesmo entre os velhos. Não me surpreendi, já que deixara Ruffano com onze anos de idade. No dia em que nos fomos embora, a minha mãe e eu, no carro de serviço do comandante, Marta estava na missa. Ia sempre à missa todas as manhãs. Conhecendo os seus hábitos, a minha mãe programara deliberadamente a nossa partida.
- Deixarei uma mensagem para a Marta - declarara - e ela poderá seguir-nos mais tarde, com todas as nossas coisas. Não temos tempo agora para nos ocuparmos delas. O comandante tem de se ir embora imediatamente.
Eu não tinha percebido a razão de tudo aquilo. Havia sempre militares a chegarem e a partirem. A guerra tinha aparentemente terminado e, contudo, parecia haver mais soldados do que antes. Alemães, não dos nossos. Aquilo ultrapassava a minha compreensão.
- Onde é que nós vamos com o comandante? - perguntei à minha mãe.
Mostrou-se evasiva.
- Que é que isso importa? - respondeu impaciente. A qualquer sítio, desde que seja para fora de Ruffano. Ele cuidará de nós.
Tinha a certeza de que Marta ficaria desanimada quando voltasse da missa. Poderia não querer ir. Ela detestava o comandante.
- De certeza que a Marta vai ter connosco?
- Sim, sim, pois claro. E lá fui eu, a debruçar-me do carro de serviço, fazendo continências, vendo os sítios por onde passávamos, pensando cada dia menos em Marta, sendo iludido nos meses que se seguiram com mais mentiras, mais evasivas. E depois esquecendo-me, duma vez por todas. Até há dois dias atrás...
Atravessei a praça na direcção da Igreja de San Cipriano. Estava fechada. Claro que estava fechada. Todas as igrejas fechavam ao meio- dia. Na minha qualidade de guia, fazia parte das minhas funções pôr os turistas ao corrente de tal facto. Tinha de ocupar o meu tempo como eles faziam, até à tarde.
Depois, subitamente, vi um homem que reconheci. Estava na praça a discutir com um grupo de amigos, um tipo vesgo de longo rosto magro, pouco diferente na velhice daquilo que tinha sido aos quarenta e cinco anos. Era sapateiro na Via Rossini e costumava remendar os nossos sapatos. A sua irmã, Maria, tinha sido nossa cozinheira em determinado período, e era amiga de Marta. Esse indivíduo e a irmã, se é que estava viva, seguramente se teriam mantido em contacto com ela. A questão era como o poderia abordar sem me denunciar. Acendi outro cigarro, mantendo- me de olho nele.
Finalmente, terminada a discussão, afastou-se. Não pela Via Rossini acima, mas para a esquerda da praça, cortando pela Via del Martiri e atravessando-a para uma viela. Sentindo-me como um detective de um romance policial, segui-o. O avanço era lento, porque ele detinha-se aqui e ali para trocar umas palavras com conhecidos e eu, mais furtivamente que nunca, via-me obrigado a curvar-me para atar um atacador do sapato, ou a olhar em volta como se fosse um turista perdido. As câmaras dos Turtmann ter-me-iam sido úteis para disfarçar o rosto.
Prosseguiu em frente e, no fundo da viela, virou de novo à esquerda. Quando o alcancei, encontrava-se muito próximo, de pé no alto dos íngremes degraus ao lado do pequeno Oratório de Todos-os-Santos. As escadas descem abruptamente, quase verticalmente, para a Via del Martiri, lá em baixo. Afastou-se para o lado, para eu passar.
- Desculpe-me - disse.
- Eu é que peço desculpa - contrapus -, ia distraído, sou forasteiro aqui em Ruffano.
O seu olhar vesgo sempre me tinha desconcertado. Naquele momento não sabia se me estava a fitar ou não.
- São as escadas de Todos-os-Santos - esclareceu apontando-as -, o Oratório de Todos-os-Santos.
- Sim, estou a ver.
- Quer visitar o oratório? - perguntou. - A minha vizinha é quem tem a chave.
- Noutra altura - disse. - Por favor, não se incomode.
- Não é incómodo nenhum - garantiu. - Ela deve estar em casa. Mais para diante, durante a estação, abre-o a horas regulares. De momento ainda não vale a pena.
Antes que o pudesse evitar, ele chamou à janela da pequena casa pegada à capela. A janela abriu-se e meteu por ela a cabeça uma mulher de idade.
- Que quer, senhor Ghigi? - perguntou.
Ghigi, era isso. Era esse o nome do sapateiro. A nossa cozinheira chamava-se Maria Ghigi.
- Um visitante que quer ver o oratório - respondeu, esperando depois que ela descesse. A janela bateu. Sentia-me pouco à vontade.
- Lamento estar a causar incómodos - afirmei.
- Às suas ordens, caro senhor - contestou o homem. Os olhos estavam seguramente fixos em mim. Virei a cabeça. Num momento, a porta da casa abriu-se e a mulher saiu, fazendo tilintar as chaves. Descerrou o oratório e pôs-se de lado para eu entrar. Olhei em volta, fingindo interesse. Os atractivos do oratório consistiam num grupo de Santos Mártires, modelados em cera. Lembrei-me de ter sido ali levado em criança e de me terem ralhado por tentar tocar-lhes com a mão.
- Muito bonito - observei para o par que me vigiava.
- É único - garantiu-me o sapateiro e, depois como que reflectindo: - O senhor disse que era forasteiro em Ruffano?
- Sim - respondi. - Vim de Turim. - O instinto levou-me a dizer o nome da terra do meu padrasto, onde a minha mãe tinha morrido.
- Ah, Turim - exclamou ele, como que desapontado e acrescentou: - Lá não há nada como isto.
- Temos o Sudário - retorqui -, o Sudário que envolveu o Salvador. As marcas do corpo sagrado ainda lá estão.
- Não sabia disso - replicou.
Ficámos todos silenciosos. A mulher balançava as chaves. Eu sentia o olhar enviesado do sapateiro sobre mim, fazendo-me ficar inquieto.
- Muito obrigado - agradeci a ambos. - Já vi tudo. Dei à mulher duzentas liras, que ela fez desaparecer na volumosa saia, apertei a mão ao sapateiro e agradeci-lhe a sua atenção. Depois desci os degraus de Todos-os-Santos, convicto de que eles me tinham ficado a observar. Era possível que lhes tivesse feito lembrar qualquer coisa, qualquer pessoa, mesmo não havendo nada a ligar-me a mim, homem de Turim, com um miúdo de dez anos.
Refiz o caminho para a Piazza della Vita, descobrindo um pequeno restaurante na Via San Cipriano, a poucos metros da
igreja. Almocei e fumei um cigarro, ainda sem nenhum plano em mente. O restaurante devia ser popular - era novo em relação ao meu tempo - porque se encheu rapidamente e os clientes se viam obrigados a partilhar as mesas. Uma cautela instintiva fez-me erguer o jornal e encostá-lo à garrafa do vinho, na minha frente.
Alguém perguntou:
- Desculpe, este lugar está livre?
Ergui os olhos.
- Faça o favor, menina - respondi, dando lugar, aborrecido com a interrupção dos meus pensamentos.
- Creio que o vi no Palácio Ducal esta manhã - declarou ela.
Fitei-a, depois pedi-lhe repentinamente desculpa. Reconhecera nela a encarregada do grupo de estudantes. -Você tentou escapar-nos - comentou. - Não posso
dizer que o censure por isso.
Sorriu e o seu sorriso era agradável, embora tivesse uma boca demasiado grande. Tinha o cabelo com risca ao meio e puxado suavemente para trás; a sua idade andaria pelos trinta e dois. Possuía um grande sinal junto do olho esquerdo. Há homens que acham tais marcas atractivas, realçando o encanto sexual. Cada um tem os seus gostos...
- Não tentei escapar-lhe a si - afirmei -, só ao seu público.
Depois de ter lidado com tantas nacionalidades diferentes da minha, especialmente americanos e anglo-saxões, encontrando-me sempre em posição de subserviência, perdera o jeito para as mulheres do meu país, que exigiam serem namoriscadas, como acto vulgar de cortesia.
- Se queria saber coisas sobre os quadros do palácio - redarguiu ela -, podia ter-se juntado a nós.
- Não sou estudante - expliquei - e detesto ser um entre muitos.
- Um guia privativo estaria mais a seu gosto, talvez - murmurou. A galanteria seria, conforme percebi, a palavra de ordem durante o resto da refeição. Se me cansasse disso, poderia sempre olhar para o relógio e desculpar-me com a falta de tempo.
- Ao gosto de muita gente - anuí. - Não lhe parece? Ela sorriu, um sorriso conspiratório, e encomendou a refeição ao criado de mesa.
- Provavelmente tem razão - concedeu -, mas, na minha qualidade de assistente na Universidade, tenho um trabalho a fazer. Tenho de ser agradável tanto a rapazes como a raparigas, e esforçar-me por lhes incutir os factos nas relutantes cabeças.
- É um trabalho difícil?
- Com a maioria deles, sim - respondeu.
As suas mãos eram pequenas. Gosto de mulheres com mãos pequenas. Não usava aliança.
- Quais são as suas funções? - indaguei.
- Sou assistente na Faculdade de Artes - esclareceu. Dou aulas duas a três vezes por semana a estudantes do segundo e terceiro anos e acompanho as visitas ao palácio dos do primeiro ano, como fiz esta manhã, bem como a outros lugares importantes. É bastante interessante. Já há dois anos que cá estou. - O criado serviu-a e, após ter comido em silêncio durante alguns momentos, olhou-me e sorriu. - E você? - indagou. - Está de visita a esta terra? Não tem ar de turista.
- Sou guia - respondi. - Acompanho turistas, como você acompanha estudantes.
Fez uma careta.
- Tem clientes consigo em Ruffano?
- Não. Desejei boa viagem ao último esta manhã.
- E agora?
- Pode dizer-se que estou receptivo a propostas.
Ela nada disse por um momento. Encontrava-se ocupada a comer. Depois pôs o prato de lado e dedicou-se à salada.
- Que género de propostas?
- Faça-as. Eu dir-lhe-ei - respondi.
Olhou-me especulativamente.
- Que línguas fala?
- Inglês, alemão e francês. Mas nunca dei uma aula na minha vida - esclareci.
- Não supunha que tivesse dado. Tem alguma formatura?
- Em Línguas Modernas, em Turim.
- Então para quê ser guia?
- Vê-se o país. As gorjetas são boas.
Encomendei café para mim. A conversa não me comprometia.
- Então, está de férias? - comentou ela.
- Auto-impostas. Não fui despedido. Pura e simplesmente queria afastar- me por umas semanas do meu trabalho habitual. Tal como lhe disse, estou receptivo a propostas.
Tinha terminado a salada. Ofereci-lhe um cigarro, que ela aceitou.
- Talvez o possa ajudar - disse. - Estão temporariamente com falta de pessoal na biblioteca da Universidade.
Metade dos funcionários está ainda instalada numa sala do palácio. Mais tarde, serão transferidos para novas instalações entre a Universidade e a Residência dos Estudantes, mas o nosso belo edifício novo não será inaugurado antes da Páscoa. De momento, reina o caos. O bibliotecário, um bom amigo meu, gostaria de auxílio extra. E com uma formatura em Línguas Modernas... - Deixou a frase por terminar, mas a sua atitude
insinuava que o resto seria fácil.
- Parece-me interessante - afirmei.
- Não sei nada quanto a salário - explicou rapidamente. - Não será muito. E as funções são só temporárias, como lhe disse, mas talvez lhe possam convir.
- Realmente, talvez.
Chamou o criado para encomendar o seu café, tirou um cartão da mala e entregou-mo. Olhei-o de relance e li as palavras: Carla Raspa, 5, Via San Michel, Ruffano. "
Ofereci-lhe o meu, em retribuição. Armino Fabbio, Sunshine Tours, Turim. "
Ergueu as sobrancelhas com ironia e meteu-o na mala.
- Sunshine Tours - murmurou. - Bastante jeito me dava fazer uma viagem. Ruffano é bastante morta após as horas de trabalho. - Bebeu o café, observando-me enquanto o fazia. - Pense no assunto. Tenho de o deixar, tenho uma aula às três. Encontrar- me-á na biblioteca depois das quatro e, se quiser aceitar, apresentá-lo- ei ao bibliotecário, Giuseppe Fossi. Ele fará tudo por mim. Vem-me comer à mão.
O ar dela sugeria que ele fazia mais que isso. Galante, retribuí-Lhe o olhar. Por cortesia, éramos conspiradores.
- Tem consigo as suas credenciais, não tem? - perguntou-me ao levantar-se da mesa.
Bati com a mão no bolso interior do casaco.
- Levo-as para todo o lado - respondi.
- Óptimo. E, por agora, adeus.
- Adeus. E obrigado.
Desapareceu através da porta do restaurante para a rua. Voltei a olhar para o cartão. Carla Raspa. O nome condizia com ela. Dura como unhas, com um centro macio, como um gelado napolitano. Tive pena do bibliotecário Giuseppe Fossi. Poderia, no entanto, ser a resposta às minhas necessidades, durante as próximas duas ou três semanas. Não ela, o emprego. Possivelmente um vinha com a outra, mas disso teria de me ocupar quando chegasse a ocasião.
Paguei a conta e saí, transportando o meu saco de viagem, sentindo-me como um caracol com a casa às costas. Atravessei a rua e experimentei a porta de San Cipriano outra vez. Agora estava aberta. Abri-a, entrei e dirigi-me ao coro.
O cheiro trouxe-me de volta o passado, como acontecera no Palácio Ducal. Aqui, as recordações, embora menos intensas, eram mais sombrias, mudas, relacionadas com os domingos, os dias feriados, a necessidade de silêncio e uma íntima inquietação que se espelhava na minha vontade de me encontrar lá fora. Não ligava a Igreja de San Cipriano a sentimentos de devoção ou oração, somente ao profundo aborrecimento de ser pequeno e estar acompanhado por adultos, à impessoal entoação sacerdotal, ao aroma do incenso, ao toque da mão de Aldo, à vontade de urinar.
A igreja estava vazia, salvo um sacristão que parecia ocupado com as velas do altar-mor. Subi a nave lateral esquerda, instintivamente em pontas dos pés, até ao único degrau que dava para a capela. Sons cavos vieram do altar-mor, enquanto o sacristão continuava com as suas tarefas. Procurei um interruptor na capela e liguei-o. A luz reflectiu- se sobre o painel do altar. Era uma maravilha, como eu me sentira assustado em criança por aquela figura na sua mortalha, o tecido do rosto pendente em tiras, os olhos aterrorizados a erguerem-se para o seu Senhor. Apercebia-me agora de que a pintura não era nenhuma obra-prima. Executada nos tempos em que uma expressão torturada e formas exageradas tinham estado em moda, o Lázaro que se erguia parecia agora, aos meus olhos mais maduros, grotesco. No entanto, a figura da suplicante Maria em primeiro plano ainda era Marta, ainda era a mulher dobrada dos de graus da igreja de Roma.
Apaguei a luz e saí da capela. Há duas noites atrás, a sonhar, tinha sido ainda criança, de imaginação viva. Agora sentia-me desencantado; Lázaro perdera o seu poder.
Ao voltar-me para a nave, o sacristão veio ao meu encontro. Ocorreu- me um súbito pensamento.
- Desculpe - disse -, os registos baptismais são guardados aqui na igreja?
- Sim, senhor - respondeu o homem -, estão na sacristia.
Remontam a muitos anos, aproximadamente ao princípio do século. Anteriores a isso, são conservados no presbitério.
- Seria possível eu consultar um registo de mil novecentos e trinta e três?
Hesitou por um momento, murmurando algo acerca de o padre encarregado dos registos não estar disponível. Meti-lhe na mão uma nota, dizendo-lhe que estava de passagem por Ruffano, não sendo provável lá voltar e que desejava consultar o registo de baptismo de um parente. Deixou de protestar e conduziu-me à sacristia.
Aguardei que procurasse o livro. O ardor de santidade rodeava-me. Estolas e sobrepelizes pendiam de cabides. O vago cheiro a incenso misturava-se com cera para soalhos, invadindo tudo. O sacristão aproximou-se de mim com um livro.
- Temos os registos de mil novecentos e trinta e um a mil novecentos e trinta e cinco - disse. - Se o seu parente foi baptizado em San Cipriano, o nome dele deve estar aqui.
Peguei no livro e abri-o. Era como voltar as páginas do passado. Quantos dos meus contemporâneos ali deviam estar, crianças nascidas e baptizadas em Ruffano, agora adultos dispersos ou talvez vivendo ainda na cidade, comerciantes, empregados de escritório e, contudo, naquele livro somente com poucos dias de idade...
Virei as páginas até 13 de Julho, dia do meu nascimento. Ali estava o meu baptismo, num domingo, duas semanas depois. Armino. Filho de Aldo Donati e Francesca Rossi. Pa drinhos: Aldo Donati, irmão, Federico Ponenti, Edda Ponenti. " Esquecera- me de que Aldo, com não mais de nove anos de idade, tinha sido meu padrinho. Escrevera o nome numa caligrafia arredondada, infantil, que contudo tinha já mais carácter do que os rabiscos uniformes dos segundos primos, que com ele haviam partilhado essa responsabilidade. Viviam, se bem me lembrava, em Ancona. Agora tudo me ocorria. A primeira comunhão. Aldo de olhos postos em mim, insinuando que eu sofreria as penas eternas se, por receio ou falta de cuidado, deixasse cair a hóstia da boca aberta.
- Encontrou o registo? - perguntou o sacristão.
- Sim - respondi -, está aqui.
Fechei o livro e entreguei-lho. Pegou nele e voltou a colocá-lo no armário, no meio duma fila de volumes semelhantes.
-Espere - pedi eu. - Tem registos dos anos vinte?
- Dos anos vinte, senhor? De que ano?
- Deixe-me ver. Deverá ser mil novecentos e vinte e cinco, segundo suponho.
Tirou outro volume.
- Aqui tem, vinte e um a vinte e cinco.
Peguei nele e folheei as páginas até Novembro. 17 de Novembro. A data sempre fora significativa para mim, por ser o aniversário de Aldo. Mesmo em Génova, nas manhãs de Outono, quando olhava para o calendário do escritório, o número 17 sob o mês de Novembro fazia-me, de alguma forma, pensar.
Curioso... Aldo devia ter sido uma criança doentia, porque ali estava, baptizado um dia após o nascimento. Aldo. Filho de Aldo Donati e Francesca Rossi. " Não se fazia menção de padrinhos.
Virei a página e, para minha surpresa, o registo estava repetido poucos dias depois: Aldo. Filho de Aldo Donati e Francesca Rossi. Padrinhos: Aldo Donati, pai, Luigi Speca, Francesca Rossi.
Quem seria Luigi Speca? Nunca ouvira falar dele. Nem Aldo ouvira falar, tinha a certeza. E por que razão o duplo registo?
- Diga-me uma coisa - interpelei o sacristão -, alguma vez ouviu falar de uma criança baptizada duas vezes?
Abanou a cabeça.
- Não, senhor. Embora, se a criança estivesse doente e os pais receassem a sua morte, pudesse ser concebível ser baptizada no dia do nascimento, repetindo-se depois a cerimónia, quando estivesse mais forte. O senhor já não precisa do livro?
- Não - respondi. - Ei-lo.
Vi-o recolocar o volume entre os outros que estavam no armário, e dar a volta à chave. Depois, saí para a luz do Sol, atravessei a Piazza della Vita e subi a Via Rossini. Era estranho que Aldo tivesse sido baptizado duas vezes. Era o género de história que, se dela tivéssemos conhecimento, ele consideraria uma grande vantagem sua. Fui duplamente abençoado", imaginava-o eu a dizer-me.
Marta teria sabido desse baptismo... Por pensar nisso, recordei-me do sapateiro vesgo e de que a sua loja ficava, tanto quanto me lembrava, a meio caminho da subida, do lado esquerdo. Lá estava ela... mas maior, mais elegante, e com filas de sapatos à venda. Já não se via sapatos com etiquetas, e solas viradas, nem anúncios de consertos. Um nome diferente, também, por cima da porta. O Ghigi de olhos vesgos daquela manhã devia ter-se reformado, para ir viver ao lado do oratório. Era o único elo provável com Marta, ou com a sua irmã, se é que estava viva, e, sem poder declarar-lhe a minha identidade, não estava a ver como o poderia abordar.
O mesmo se aplicava aos Longhi do Hotel del Duchi. Seria tão fácil voltar lá e dizer-lhes: Eu quis contar-lhes ontem à noite que sou o filho mais novo de Aldo Donati. Lembram-se do meu pai, o superintendente do Palácio Ducal? " Até mesmo a flácida face da senhora se abriria num sorriso, passado o primeiro momento de choque. E depois: Lembram-se de Marta?
Que lhe aconteceu "
Não podia ser. Não daria resultado. Qualquer pessoa que regressasse do passado, como eu estava a fazer, precisaria de se manter anónima. De outra forma, verificar-se-ia um envolvimento desnecessário. Sozinho, em segredo, poderia desemaranhar os fios do passado, mas não se a minha identidade fosse conhecida.
Passei mais uma vez pelo Palácio Ducal e virei à esquerda, chegando pouco depois à Via del Sogni. Queria ver o meu antigo lar à luz do dia. A neve derretera, como em toda a parte através de Ruffano, e o sol devia ter estado a encher a casa durante toda a manhã porque, por detrás da árvore, avistava as janelas do primeiro andar abertas. Aquele tinha sido o quarto de dormir dos meus pais, nos tempos antigos - uma espécie de santo dos santos a meus olhos, mas que mais tarde eu evitava.
Alguém estava a tocar piano. No nosso tempo nunca lá tinha havido um piano. A música revelava o toque dum profissional. Uma torrente de som brotava das teclas. Era qualquer peça que eu conhecia, provavelmente ouvida no rádio, ou ainda mais possivelmente nas salas de música da Universidade de Turim, para onde eu costumava correr após as aulas. Os meus lábios esboçaram um eco silencioso daquela melodia que se erguia e baixava, meio alegre, intemporal. Debussy. Sim, era Debussy. O muito executado Arabesco, mas tocado por mão de mestre.
Fiquei a escutar sob o muro. A música fluía e refluía, mudava de modo e abordava frases mais solenes, depois regressava àquele murmúrio inicial, mais alto, cada vez mais alto, confiante e alegre, mas finalmente numa escala descendente, dissolvente, desvanecendo-se. Parecia dizer: Tudo terminado, nunca mais. " A inocência da juventude, a jovialidade da infância, o saltar da cama para saudar um novo dia... tudo acabado, o fervor tinha-se desgastado. A repetição da frase não era mais que uma recordação, um eco daquilo que tinha sido. Tão rápido a partir, impossível de reter.
A música cessou antes dos acordes finais. Ouvi um telefone. Quem quer que estivesse a tocar devia ter ido atender. Ajanela foi fechada, depois tudo ficou calmo.
O telefone costumava estar no vestíbulo e, se a minha mãe se encontrasse no andar de cima, tinha de correr para o atender, chegando junto dele sem fôlego. Perguntei-me se o mesmo teria sucedido ao músico. Ergui os olhos para a árvore que protegia o diminuto jardim, como um dossel. Algures, no meio dos seus ramos, devia estar uma bola de borracha de que eu muito gostara, pontapeada um dia para o ar com maus modos e nunca recuperada. Gostaria de saber se ainda lá estaria e, a esse pensamento, fui tomado por um ressentimento, um estranho antagonismo para com o actual proprietário do meu lar. Ele detinha o direito de vaguear pelos compartimentos, abrir e fechar janelas, atender o telefone. Eu não era mais que um estranho, a contemplar os muros.
A música foi retomada. Desta vez, um Prelúdio de Chopin, funéreo, apaixonado. A disposição do pianista fora alterada pelo telefonema, os seus nervos haviam sido fustigados por sombria melancolia. E eu não tinha nada com isso.
Continuei a subir a Via del Sogni, indo dar à Via dell Settembre, em frente da Universidade. Era como penetrar em outra era. Viam-se jovens por todo o lado, saindo das salas de aulas, rindo, conversando, montando em vespas. Os velhos edifícios que sempre tinham sido conhecidos como a Casa dos Estudos" haviam adquirido novas alas, as janelas rebrilhavam não só de pintura fresca, como também de vitalidade. Havia prédios novos do outro lado da rua e ainda outro em construção - possivelmente a nova biblioteca - no cimo da colina. Esta Universidade não era a sede de saber arruinada e bastante decadente de que me recordava dos dias de infância. A austeridade fora banida. Os jovens, com todo o seu refinado desdém pelas coisas poeirentas, tinham assumido o comando, Troavam rádios portáteis.
Fiquei ali, agarrado ao meu saco, como um viajante entre dois mundos. Um deles, a Via del Sogni, com todas as suas memórias, mas que já não me pertencia; e este outro, activo, barulhento, igualmente indiferente. Os mortos não deviam regressar. Lázaro tinha razões para ter maus pressentimentos. Apanhado, como deve ter sido, a meio caminho entre o passado e o presente, evadira-se de ambos com horror, em busca do anonimato do túmulo, mas em vão.
- Olá - disse-me uma voz ao ouvido -, já decidiu? Voltei-me e vi Carla Raspa. Tinha um ar de frescura, confiança e autodomínio. Era uma pessoa sem dúvidas.
Sim. Agradeço-lhe a maçada que teve. Mas decidi sair de
Ruffano. Era essa a minha intenção, mas as palavras ficaram por dizer. Um jovem, montado numa vespa", deu a curva junto de nós a rir- se. Tinha uma pequena flâmula presa ao veículo, flutuando com a brisa, tal como, anos atrás, o carro de serviço do comandante da minha mãe tivera o seu odiado emblema. A flâmula do estudante era tralha de turistas, talvez comprada por umas centenas de liras na Piazza Maggiore, mas tinha o Falcão de Malebranche desenhado, aos meus olhos nostálgicos, um símbolo.
Afivelando a minha habitual máscara de guia, de cortesão, fiz uma vénia diante da rapariga, varrendo-a da cabeça aos pés com um olhar que ela sabia, e eu também sabia, significar exactamente nada.
- Ia a caminho do Palácio Ducal - disse-lhe. - Se estiver livre, talvez possamos ir juntos.
Atingira um ponto de não retorno.
A biblioteca da Universidade estava alojada no rés-do-chão do Palácio Ducal, naquilo que tinha sido o Salão de Banquetes há muito tempo atrás. Havia sido usado para manuscritos e documentos quando o meu pai fora o superintendente, acumulados em prateleiras diferentes das temporariamente cedidas à Universidade. A minha recente conhecida conduziu-me, com toda a segurança de alguém que pisava terreno familiar, enquanto eu a seguia, simulando a ignorância de um estranho.
A sala era vasta, maior mesmo do que eu me recordava, com um cheiro bafiento a livros, muitos dos quais empilhados no chão. Prevalecia uma certa confusão. Um funcionário estava ajoelhado, pondo rótulos impressos em alguns dos volumes. Um outro encontrava-se a meio de um escadote, ocupado nas prateleiras mais altas. Finalmente, uma mulher envelhecida
tomava notas, ditadas pelo indivíduo que deduzi, correctamente, ser o bibliotecário, Giuseppe Fossi. Era baixo, robusto, com uma pele verde- azeitona e olhos errantes, salientes, que eu associei com entrevistas clandestinas. Aproximou-se ao ver a minha companheira, deixando a sua assistente a meio de um ditado.
- Arranjei-Lhe um ajudante, Giuseppe - anunciou Carla Raspa. - O senhor Fabbio tem uma formatura em Línguas Modernas e ficaria grato por um emprego temporário.
Os olhos protuberantes de Giuseppe Fossi avaliaram-me com alguma hostilidade (seria eu talvez um rival? ) e depois, ganhando tempo, virou-se para o objecto da sua admiração.
- O senhor Fabbio é um amigo seu?
- Amigo de um amigo - respondeu ela prontamente. Tem estado a trabalhar em Génova para uma agência de turismo. Eu conheço o gerente.
A mentira tinha sido inesperada, mas servia. O bibliotecário voltou a dirigir-se a mim.
- Com certeza que necessito de ajuda - admitiu - e qualquer pessoa que saiba línguas, que seja capaz de catalogar livros estrangeiros, será inestimável. Você está a ver por si mesmo a confusão em que estamos metidos. - Fez um gesto apologético mostrando a sala e prosseguiu: - Aviso-o de que a remuneração é pequena e terei de pressionar a contabilidade, no caso de o admitir.
Acenei, mostrando a minha disposição de aceitar o que quer que me fosse oferecido, e ele transferiu o seu olhar de mim para Carla Raspa. A resposta visual que ela lhe deu foi semelhante àquela que anteriormente me dera no restaurante da Via San Cipriano, mas mais coerciva. Ficou cheio de entusiasmo.
- Bem, então... verei o que posso fazer junto da contabilidade. Ficaria naturalmente mais livre, se dispusesse da sua ajuda. Tal como as coisas estão, à noite...
O mesmo olhar de conspiradores foi trocado entre eles. Voltou-se para o telefone. Eu tinha entendido o que ela queria dizer quando afirmara que Ruffano era uma cidade morta à noite; não obstante, ela devia ser fácil de contentar.
Fingimos de surdos enquanto Giuseppe Fossi tinha uma rápida conversa ao telefone. Bateu com o aparelho no descanso.
- Tudo arranjado - disse. - Neste momento é a mesma coisa por toda a Universidade. Ninguém tem tempo a perder com os problemas dos outros, todos temos de tomar as nossas próprias decisões.
Exprimi-lhe os meus agradecimentos, com certa admiração de que até mesmo um aumento temporário do quadro de pessoal fosse tratado de forma tão fácil.
- O reitor está de baixa - explicou Giuseppe Fossi. Sem ele, ninguém dispõe de autoridade. Ele é a Universidade.
- O nosso amado reitor - murmurou a rapariga e pareceu-me detectar-lhe ironia na voz -, sofreu infelizmente uma trombose após ter comparecido a um congresso em Roma e, desde então, tem estado no hospital. Sentimo-nos todos perdidos sem ele. Há semanas que está doente.
- E ninguém o substitui? - quis eu saber.
- O professor Rizzio, vice- reitor - respondeu, encolhendo os ombros -, que acontece ser o chefe do Departamento de Educação e passa o tempo a discutir com o professor Elia, chefe do Departamento de Economia e Comércio.
O bibliotecário exprimiu reprovação.
- Vá lá, Carla - disse -, a tagarelice é tão proibida na biblioteca como fumar. Você já devia saber. - Deu-lhe uma palmadinha indulgente no braço e olhou para mim, abanando a cabeça. O aceno sugeria discordância dos pontos de vista dela, a palmadinha sugeria posse. Eu sorri, permanecendo em silêncio.
- Vejo-me forçada a deixá-lo - retorquiu ela, deixando pairar a dúvida sobre a qual de nós se dirigia. - Tenho outra aula às cinco.
Ergueu a mão para mim, proferindo:
-Até à vista - e encontrava-se já a caminho da porta quando o senhor Fossi foi atrás dela, chamando: - Um momento, Carla...
Aguardei instruções, enquanto um dos funcionários me olhava de esguelha, piscando-me o olho. Após rápida conversa em murmúrios com a rapariga, Giuseppe Fossi regressou, dizendo-me rispidamente:
- Se quiser começar imediatamente a trabalhar, dar-nos-á jeito.
Passei as duas horas seguintes a aprender as minhas funções, sob as suas directivas. Tinha de se ter especial cuidado porque determinados volumes, que faziam parte da Biblioteca Universitária, se encontravam misturados com outros que, pertencendo ao espólio do Palácio Ducal, estavam sob a tutela do Conselho de Artes de Ruffano.
- Grande ineficiência - comentou o senhor Fossi. - Isso foi decidido antes do meu tempo. Mas terminarão esses problemas quando tivermos todo o nosso material na nova Biblioteca Universitária. Já viu o edifício? Está quase acabado. Deve-se tudo ao reitor, professor Butali. Conseguiu maravilhas para a Universidade - baixou o tom de voz, com um olho posto no funcionário que estava ao alcance das suas palavras - contra muita oposição. O habitual, num centro pequeno como o nosso. Existe rivalidade entre os departamentos e ciúmes entre a Universidade e o Conselho, também. Uns querem uma coisa, outros querem outra. O reitor tem a tarefa não remunerada de manter a paz entre todos.
- Teria sido essa a razão para o ataque cardíaco que sofreu? - perguntei.
- Eu diria que sim - respondeu e, depois, com um ar de conhecedor rebrilhando-lhe nos olhos salientes -, por outro lado, ele tem uma esposa encantadora. A senhora Butali é vários anos mais nova do que o marido.
Continuei a classificar livros até um pouco depois das seis. Giuseppe Fossi soltou uma exclamação, olhando para o relógio.
- Tenho um encontro às sete - exclamou. - Importa-se de cá ficar mais uma hora? E, quando sair, quer ir à secretaria assinar o contrato, se fizer o favor? Eles dão-lhe, se desejar, uma lista de endereços onde poderá arranjar alojamento; a Universidade tem prioridade em certo número de quartos e pequenas pensões da cidade. A senhora Gatti ajudá-lo-á, se precisar de saber mais alguma coisa.
A funcionária, com uns cinquenta anos, espreitou-me severamente através dos óculos quando Giuseppe Fossi saiu desejando-nos a todos boa noite. Depois continuou a tomar apontamentos, sem alterar a sua expressão acre, e o mais novo dos dois funcionários, a quem já tinha ouvido chamar Toni, atravessou a sala para me ajudar.
- Esta noite ele vai perder peso - murmurou.
- Com a senhora que se foi embora antes?
- Dizem que ela nunca se cansa. Cá por mim nunca experimentei.
A senhora Gatti chamou-o rispidamente para tirar uns livros da secretária em frente dela. Escondi o rosto num enorme livro de registo. A hora passou lentamente. Às sete em ponto aproximei-me da secretária da mulher e, após ter obtido a sua anuência resmungada de que não havia mais nada para fazer, dirigi-me à secretaria. O funcionário mais novo, Toni, seguiu-me e atravessámos juntos o pátio quadrado, na direcção da entrada.
Detive-me junto da grande escadaria que dava para os aposentos ducais do primeiro andar. As luzes estavam acesas e conseguia ouvir o som de vozes.
- Que se passa lá em cima? A hora de encerramento na estação baixa não é às quatro?
- Para o público, sim - respondeu Toni -, mas o director do Conselho de Artes vai e vem quando lhe apetece. Além disso, está neste momento particularmente envolvido nos arranjos para o festival.
- O festival? - inquiri.
- Com certeza; não ouviu falar dele? É o nosso grande dia. Foi iniciado pelo reitor, professor Butali, na verdade para colocar a Universidade no mapa, mas agora toda Ruffano se orgulha e as pessoas vêm de quilómetros em redor. Os estudantes fazem uma bela exibição. A representação do ano passado teve lugar aqui no Palácio Ducal. - Encaminhou-se para uma vespa, encostada à parede, enrolando um lenço em volta do pescoço. - Tem algum encontro? - perguntou. - Se não tem, a minha Didi trata de si. Ela trabalha em cerâmica, mas conhece uma data de moças da C. e E. " que formam um grupo animado.
- C. e E. "?
- Comércio e Economia. Começou só há três anos, mas em breve excederá em número todas as outras faculdades. A maior parte dos estudantes da C. e E. " vive na cidade, ou vem cá todos os dias para se divertir! Não estão enfiados nas residências para estudantes como os restantes.
Sorriu e subiu para a viatura. Gritei-lhe por cima do ruído que tinha de ir à secretaria assinar o contrato e arranjar onde dormir. Ele acenou-me e partiu. Vi-o afastar-se, sentindo-me centenário. Qualquer pessoa com mais de trinta anos parece um velho gagá aos olhos dos jovens.
Encaminhei-me para o edifício da Universidade. Havia uma porta à esquerda com os dizeres: Secretaria. Particular, é, ao lado, um postigo com um funcionário de serviço por trás.
- Chamo-me Fabbio - anunciei, apresentando-lhe as minhas credenciais. - O bibliotecário, senhor Fossi, disse-me para vir cá.
- Sim, sim...
Parecia informado a meu respeito e escreveu qualquer coisa num livro. Entregou-me um passe e um impresso para assinar. E também uma lista de endereços.
- Deve conseguir encontrar um quarto num destes - disse-me. - Fazem preços especiais para nós.
Agradeci-lhe e voltei-me para me ir embora, mas fiz uma pausa momentânea.
- A propósito - perguntei -, saberá dizer-me quem vive no número oito da Via del Sogni?
- No número oito? - repetiu.
- Sim - insisti -, a casa de muro alto com uma só árvore no jardim.
- É a casa do reitor - explicou, fitando-me. - Do professor Butali. Mas ele está doente. Encontra-se em Roma, no hospital.
- Disseram-me isso - declarei -, mas não me tinha apercebido de que vivia na Via del Sogni.
- Oh, sim - respondeu. - O reitor e a senhora Butali já lá vivem há anos.
- Quem é que toca piano lá em casa?
- A senhora. Ensina música. Mas duvido que esteja em casa, Tem estado em Roma, com o reitor, nas últimas semanas.
- Pareceu-me ouvir lá música - esclareci - ao passar pela casa esta tarde.
- Então deve ter regressado - concluiu. - Não é coisa de que eu necessariamente fosse informado.
Desejei-lhe boa noite e parti. Então... a minha casa tinha sido honrada ao transformar-se na residência do reitor. Nos velhos tempos, o chefe da Universidade vivera na casa pegada à Residência dos Estudantes. Tinham-se obviamente operado muitas mudanças, como o tipo que vendia postais e flâmulas me tinha afirmado e, com os rapazes e raparigas estudantes de Comércio e Economia, muitos deles a virem ali todos os dias, a minha calma cidade de Ruffano em breve rivalizaria com Perúsia ou Turim.
Desci a colina do Palácio Ducal e parei por um momento sob um candeeiro de rua para estudar a minha lista de endereços. Via Rossini, Via del 8 Setembro, Via Lambetta... não, demasiado próximas dos estudantes. Via San Cipriano... talvez. Via San Michele... sorri. Não era aí que a menina Carla Raspa tinha o seu nicho? Tirei do bolso o cartão dela. O endereço era no n. o 5; o que me tinham fornecido na secretaria era no 24. Valia a pena ir lá dar uma olhadela. Peguei mais uma vez no meu saco e encaminhei-me para a Piazza della Vita.
Devia ter sido a neve da noite anterior que levara toda a gente para suas casas. Esta noite estava fria, mas as estrelas brilhavam, a praça encontrava-se cheia e, ao contrário de ao meio-dia, quando, de acordo com um velho costume, as pessoas de meia-idade a ocupavam, predominava agora a juventude. Raparigas, tagarelando de braços entrelaçados, faziam parada diante da colunata, enquanto os rapazes, de mãos enfiadas nos bolsos, rindo, assobiando, alguns deles cavalgando vespas", andavam por ali em grupos. O cinema, sob as colunas, devia estar a começar. O lúgubre cartaz prometia paixões sob os céus das Caraíbas. Do outro lado, o Hotel del Duchi parecia abandonado e antiquado.
Atravessei a praça, ignorando os olhares de uma pequena beleza ruiva - Comércio de Economia, seria? - e, virando à direita, encontrei-me na Via San Michele, à procura do n. o 5. Bastante discreto, com um carro estacionado à porta. Seria de Giuseppe Fossi? Viam-se fios de luz vindos das persianas do primeiro andar. Ah, bem... que tivesse boa sorte. Continuei a descer a rua, à procura do n. o 24. Ficava do lado oposto, mas das suas janelas ter-se-ia uma bela visão do n. o 5. Tomado por súbito divertimento, misturado com certa malícia académica, decidi inspeccionar a casa. A porta estava aberta. Luz inundava o átrio de entrada. Procurei o nome na lista de inquilinos... Sr. Silvani. Entrei e olhei em volta. Era limpa, redecorada de novo e um aliciante aroma de fégato alla salvia vinha de uma cozinha oculta. Alguém desceu as escadas a correr, falando por cima do ombro para o andar de cima. Era uma rapariga com cerca de vinte anos, feições miúdas de elfo e olhos enormes.
- Procura a senhora Silvani? - perguntou. - Está na cozinha, vou chamá-la.
- Não, espere um momento. - Agradava-me a atmosfera, agradava-me a rapariga. Podia ser que me dissesse aquilo que eu queria saber. - Deram-me esta morada na Universidade - expliquei. - Sou assistente temporário na biblioteca e precisava de um quarto para uma ou duas semanas. Haverá alguma coisa?
- Há uma vaga no andar de cima - respondeu -, mas pode ser que esteja reservado. Terá de perguntar à senhora Silvani. Eu sou só estudante.
- Comércio e Economia? - quis saber.
- Sim, como é que sabe?
- Disseram-me que eles admitem as raparigas mais bonitas. Riu-se e desceu para o átrio, para junto de mim. Sentia-me sempre satisfeito quando via uma rapariga mais pequena do que eu. Esta parecia uma criancinha.
- Disso não sei - exclamou ela. - Pelo menos, estamos vivas e queremos que as outras pessoas o saibam. Não é verdade, Paolo? - Um rapaz, igualmente bonito, seguira-a pelas escadas abaixo. - Este é o meu irmão - apresentou. - Somos ambos da C. e E. ". Viemos de São Marino.
Apertei a mão a ambos.
- Armino Fabbio - apresentei-me -, de Turim, embora habitualmente trabalhe em Génova.
Responderam em uníssono:
- Caterina e Paolo Pasquale.
- Olhem - pedi -, aconselham-me a alugar um quarto aqui?
- Certamente - respondeu o rapaz. - É limpo, confortável, ela alimenta-nos bem. - Fez um aceno de cabeça na direcção da cozinha. - E não nos incomoda com as horas de chegada. Entramos e saímos quando nos apetece.
- Somos um grupo descontraído - afirmou a rapariga. Quem quiser trabalhar, trabalha. Quem quiser divertir-se, diverte-se. O Paolo e eu fazemos um pouco de ambas as coisas.
Sim, experimente o tal quarto.
- O seu sorriso era de camaradagem, convidativo. E o dele também. Sem esperar a minha resposta, ela desceu o corredor chamando a senhora. A porta da cozinha abriu-se e a senhora Silvani saiu por ela. Era uma mulher robusta, de meia-idade, com peito elevado e enormes ancas, bom aspecto e uns modos simpáticos.
- O senhor quer um quarto? - perguntou. - Venha ver.
Passou entre Paolo e eu, começando a subir as escadas.
- Está a ver? - riu-se Caterina. - É tudo tão simples.
Bem, espero que fique com ele. Paolo e eu vamos ao cinema.
Até logo.
Saíram juntos de casa, tagarelando e rindo, e eu segui a senhora Silvani pelas escadas acima.
Alcançámos o andar superior e ela escancarou a porta de um quarto, cujas janelas davam para a rua lá em baixo. Acendeu a luz e eu atravessei o compartimento para abrir as persianas. Gosto de saber onde estou, aquilo que posso ver. Olhei para o cimo da rua e o pequeno carro ainda estava estacionado diante do n. o 5. Depois passei os olhos pelo quarto. Não era
grande, mas possuía as coisas essenciais.
- Fico com ele - declarei.
- Óptimo. Ponha-se à vontade. A alimentação é opcional.
Avise-me de manhã se tencionar comer fora, mas não me ralo muito se se esquecer de o fazer. Estamos neste momento a servir o jantar, se hoje quiser comer.
A saudação casual, a atmosfera informal, sem perguntas desnecessárias, era exactamente aquilo que me convinha. Tirei as minhas coisas do saco, lavei-me, barbeei-me e desci as escadas.
Vozes mostraram-me o caminho para a sala de jantar. A senhora Silvani já se havia instalado à cabeceira da mesa, e estava a servir a sopa. Havia mais quatro pessoas presentes, um homem de meia-idade, que imediatamente me apresentou como sendo o marido, tão amplo e bem alimentado como ela própria, e três estudantes, todos do sexo masculino, na aparência inofensivos, nenhum deles tão impressionante como o jovem Paolo.
- O nosso novo hóspede, o senhor Fabbio - apresentou a minha anfitriã -, e estes são o Gino, o Mario e o Gerardo. Sente-se agora e ponha-se à vontade.
- Nada de formalismos, por favor - pedi eu. - Chamo-me Armino. Não foi assim há tanto tempo como isso que também estive a estudar para obter a minha formatura em Turim.
- Artes?
- Línguas Estrangeiras. Tenho ar de ser das Artes? Houve um imediato coro de sins" em resposta e uma gargalhada geral, enquanto Gino, o que estava a meu lado, expli cava que era uma piada da casa, qualquer novato era imediatamente acusado de pertencer às Artes.
- Bom, habitualmente trabalho como guia de turistas - contei-lhes -, mas, estando temporariamente contratado pela biblioteca da Universidade, suponho que se pode dizer que estou nas Artes.
Houve um grito universal de desaprovação, todo feito de boa disposição.
- Não lhes ligue - disse sorrindo a minha anfitriã. - Só porque estes moços estudam Comércio e Economia, pensam que são os donos de Ruffano.
E somos, sim senhor - protestou um deles, Gerardo, segundo me pareceu. - Somos o sangue que deu vida nova à Universidade. Nenhum dos outros conta.
- É o que vocês dizem - comentou a senhora Silvani servindo-me a sopa -, mas eu tenho ouvido dizer outra coisa. Os estudantes de Artes e também a maioria dos outros, a propósito, encaram o vosso grupo como um bando de rufias.
Piscou-me o olho maliciosamente quando outro coro de brados acolheu as suas palavras, e toda a mesa mergulhou na discussão da política da Universidade, por cima da minha cabeça. Comi e diverti-me. Esta era uma Ruffano que nunca conhecera.
Gino, o meu vizinho, explicou-me que a Nova Faculdade de Comércio e Economia era já uma organização florescente. Por causa das propinas adicionais que os estudantes haviam trazido à Universidade, ela dispunha de mais dinheiro para gastar do que nunca antes na sua longa história - daí os acrescentamentos aos vários edifícios e a nova biblioteca.
- Sem nós, não poderiam ter-se dado ao luxo de nada disso - afirmou apaixonadamente - e depois as faculdades rivais, os peneirentos da Educação e das Artes, olham-nos de cima e tratam-nos como se fôssemos lixo, ou pelo menos tentam fazê-lo. Mas nós quase que já os excedemos em número e, dentro de outro ano, provocaremos uma inundação que os atirará daqui para fora.
- Garanto-lhe - corroborou Mario - que um destes dias ainda há uma guerra e eu sei quem vai ganhar.
O meu amigo Toni da biblioteca tinha chamado aos estudantes da C. e E. " um grupo de vivaços. Tinha de facto razão.
- Sabe o que é? - comentou o senhor Silvani, quando os estudantes começaram a discutir entre eles -, estes moços nunca souberam o que foi a guerra. Têm de deixar escapar o vapor. A rivalidade entre faculdades é uma forma de o fazerem.
- Talvez - admiti eu -, mas isso não lhe sugere uma falta de tacto por parte dos professores?
Ele abanou a cabeça.
- O reitor é bom homem - afirmou. - Não há ninguém mais respeitado em Ruffano do que o professor Butali. Mas bem sabe que ele está doente.
- Sim, assim me disseram na biblioteca.
- Dizem que quase morreu, mas está a recompor-se. A senhora Butali também é uma senhora muito graciosa. Altamente respeitados, tanto um como o outro. Esta estúpida rivalidade desenvolveu-se mais durante o período em que ele tem estado afastado; logo que regresse será desfeita, isso posso garantir-lhe. Concordo consigo, no entanto. Culpo muito os professores mais antigos, segundo as notícias que nos chegam lá ao meu trabalho, na Prefeitura. O chefe do Departamento de Educação, o professor Rizzio, e a sua irmã, que é a encarregada da residência para raparigas, são ambos de vistas curtas, muito senhores dos seus narizes, e talvez tenham naturalmente ciúmes do professor Elia, chefe da C. e E. ", que é aquilo a que se pode chamar uma pessoa confiante, demasiado seguro de si mesmo, e que veio de Milão.
Pensei, enquanto fazia justiça à excelente cozinha da senhora Silvani, que estar encarregado de um autocarro cheio de turistas, todos estrangeiros, devia ser coisa mais fácil do que manter a paz no meio de um grupo de estudantes como estes. Não me recordava de tamanha intensidade de sentimentos em Turim.
Terminado o jantar, o nosso pequeno grupo dispersou-se, os estudantes foram para a Piazza della Vita, enquanto eu me desculpava por não me juntar aos Silvani na sala de estar, para tomar café e fumar um cigarro. Eram pessoas afáveis e gentis, mas já me chegava de conversa para aquela noite.
Fui buscar o casaco ao quarto e depois saí de casa. O carro não saíra da frente do n. o 5.
Os jovens de Ruffano continuavam a desfilar pela Piazza della Vita, mas em menor número. Muitos deviam ter ido ao cinema ver o filme sobre as Caraíbas e os restantes teriam abalado na direcção das suas casas, ou de cantos escuros adequados. Passei pelo Hotel del Duchi e segui em frente para a Piazza del Mercato. Por cima de mim, à esquerda, avultava a fachada oci dental do Palácio Ducal, com as suas torres gémeas a estenderem-se para o céu. Em criança, estava sempre na cama a estas horas. Nunca vira as torres tão tarde na noite, nem compreendera a sua beleza e graça. Davam a impressão de um fantástico pano de fundo de teatro, subitamente revelado a uma estupefacta audiência, ao subir das cortinas. Frágeis, etéreas à primeira vista, o autêntico impacte que produziam vinha mais tarde. Aqueles muros eram reais, impeditivos, com toda a ingenuidade de uma fortaleza, encerrando força dentro deles.
Os torreões gémeos, por cima das balaustradas que os rodeavam, perfuravam a escuridão como lâminas afiadas. A sua beleza predominava, a ameaça escondia-se no interior.
A Via delle Mura, que circundava toda a cidade de Ruffano, estendia- se diante de mim, encurvando-se suavemente enquanto, imediatamente à minha esquerda, se encontravam os degraus que davam para o palácio e para a zona superior da cidade. Decidi subi-los. Tinha o pé no primeiro degrau quando ouvi um som de corrida. Alguém descia a escadaria na minha direcção, mas num voo imprudente. A descida era íngreme e percorrê-la velozmente era procurar um desastre.
- Tenha cuidado - gritei -, pode cair.
O vulto que corria emergiu das sombras, tropeçou e eu estendi o braço para lhe deter a queda. Era um rapaz, possivelmente um estudante, que se debateu nos meus braços, tentando libertar-se, com os olhos arregalados a fitarem-me horrorizados.
- Não... - bradava ele. - Não... Deixe-me ir embora. Surpreendido, abrandei o aperto. Afastou-se correndo, soluçando, pelo último lanço de escadas. O som cavo dos seus pés a baterem no chão chegava-me aos ouvidos.
Atento, a escutar, continuei a subida. Os degraus encontravam-se todos na sombra, iluminados somente por um solitário candeeiro lá em cima. Distingui um vulto a mover-se na escuridão.
- Está alguém aí? - bradei.
Não houve resposta. Prossegui cautelosamente e, quando cheguei ao topo, fiz uma pausa e olhei em volta. O recinto do Palácio Ducal ficava- me à direita, com a mais próxima das duas torres sombriamente ameaçadora. Reparei então que a pequena porta, junto do pórtico sempre encerrado entre as duas torres, se encontrava aberta. Alguém estava lá de pé. Quando me aproximei o vulto desapareceu, a porta fechou-se suavemente.
Continuei a subir, passando pelo silencioso palácio, até ir dar à viela que conduzia ao Duomo e à Piazza Maggiore. A visão do rapaz assustado havia-me perturbado. Podia ter partido o pescoço. A porta aberta, o vulto imóvel eram, de alguma forma, sinistros. Atravessei a praça. Tudo estava tranquilo. Tomei a rua lateral que dava para a Via del Sogni, tal como fizera na noite anterior, preso do mesmo desejo de olhar para a minha casa.
Não se via ninguém por ali. Detive-me por um momento ao abrigo do muro, contemplando a casa. Vinha luz por entre as frinchas das persianas da sala do primeiro andar, mas podia ouvir-se música. Depois escutei passos a descerem a rua, seguindo na direcção do Palácio Ducal. Um reflexo instintivo obrigou-me a esconder-me por trás de um recanto do muro e aguardar. Os passos aproximaram-se, decididos e nítidos. Nada havia de furtivo naquela perseguição, se é que de perseguição se tratava.
Por trás de mim, o sombrio sino do campanário deu as dez, correspondido um momento depois por outras igrejas mais distantes. As passadas cessaram. Tinham parado junto da porta que levava ao jardim e à casa no meio dele. Inclinei-me para a frente e apercebi-me do vulto de um homem. Olhava para a casa, como eu fizera, e depois avançou e deu a volta à maçaneta da porta. Talvez a mulher do reitor, como a sua predecessora na minha casa de há vinte anos atrás, procurasse consolação.
Quando o homem parou por um momento para abrir a porta, o candeeiro ao lado do muro iluminou-lhe por completo o rosto. Entrou, fechando a porta atrás de si. Fiquei imóvel, sem energias, com os nervos à flor da pele. O homem seguramente não era outro senão o meu irmão Aldo.
Passei rente ao grupo de estudantes reunidos a conversar diante do n. o 24 da Via San Michele (os irmãos Pasquale encontravam-se entre eles) e subi as escadas directamente para o meu quarto. Sentei-me na cama, olhando em frente. Era uma ilusão, é claro, uma partida pregada pela iluminação. Inconsciente associação de ideias com a nossa casa. O avião de Aldo fora abatido e despenhara-se em chamas, em 1943. A minha mãe tinha recebido o telegrama. Lembrava-me de ter chegado e de ela ter ficado sentada a olhar para o envelope - porque devia conter más notícias de qualquer tipo - e depois de ter ido à cozinha chamar Marta e de lá ficarem as duas de porta fechada.
As crianças possuem um instinto para as más notícias. Eu sentara-me à espera, nas escadas. Finalmente, a minha mãe acabou por sair de lá. Não chorava; tinha o ar confundido e aturdido dos adultos, quando profundamente chocados e comovidos. Disse-me: O Aldo morreu. Foi morto em serviço de voo. Os Aliados abateram-no, e subiu as escadas para o seu quarto. Corri para a cozinha e encontrei lá Marta, sentada, de mãos tombadas no regaço. Ao contrário da minha mãe, a sua dor não era muda; as lágrimas corriam-lhe livremente pelas faces e estendeu-me os braços. Rebentei em lágrimas e corri para ela; embalámo-nos os dois a chorar, lamentando o nosso falecido.
- Meu pequeno Beato - exclamava ela -, meu cordeiro, meu Beato. Tu também o amavas, querias muito ao teu irmão.
- Não é verdade - continuava eu a proferir entre soluços -, não é verdade. Eles não podem ter morto o Aldo. Ninguém é capaz de matar o Aldo.
- Sim, é verdade - garantiu-me Marta, apertando-me muito -, foi-se como desejaria ter ido. Tinha de voar, tinha de cair. Aldo, o teu Aldo.
As recordações são piedosas. Foi corrida uma cortina no tempo após esse primeiro dia, e nada mais senti. As semanas devem ter-se escoado e devo ter ido diariamente à escola com os meus colegas, usando uma braçadeira em sinal de luto, e ter-lhes-ei dito com orgulho: Sim, é pela morte do meu irmão. Foi abatido em chamas", como que para me colar à sua glória. Brinquei. Corri pelas escadas acima e abaixo. Foi por essa altura que dei um pontapé na bola para cima da árvore. Incidentes, isolados no tempo, fundidos com outros de mais simples consequências: a Rendição, o Armistício que eu não compreendera, a chegada a Ruffano dos alemães e o comandante. A vida, tal como a conhecera, tinha chegado ao fim.
Agora, sentado na cama da Pensão Silvani, revivia aqueles primeiros momentos, dizendo a mim mesmo que quem acabara de ver era de facto uma pessoa viva, mas mal identificada com um homem há muito morto. Aquilo era uma alucinação. Era o que tinha acontecido aos discípulos quando viram, ao pensarem no seu Senhor, Cristo ressuscitado...
Ouviu-se uma súbita pancada na porta. Espantado, gritei:
- Quem está aí?
Não sei quem seria. Talvez o estranho fantasma. O meu brado foi tomado como autorização para entrar no quarto. A porta abriu-se e os Pasquale ali estavam, irmão e irmã, de rostos preocupados.
- Desculpe-nos - disse a rapariga, Caterina -, mas o senhor tinha cara de doente quando entrou. Ficámos a pensar se não estaria a sentir-se mal.
Sentei-me na cama. Fiz um supremo esforço para parecer à vontade.
- Não foi nada - afirmei -, absolutamente nada. Caminhei demasiado depressa, foi tudo.
A minha pobre resposta recebeu o silêncio em troca. Podia ver curiosidade a debater-se com boa educação nas suas expressões.
- Por que é que se pôs a andar tão depressa? - perguntou Paolo.
Achei estranha aquela pergunta. Era como se ele estivesse a adivinhar... mas como? Eu era um estranho. Todos éramos estranhos.
- Aconteceu-me fazê-lo - declarei. - Dei a volta ao Palácio Ducal e às ruas vizinhas e voltei para aqui. Sucede que foi demais para mim.
Trocaram olhares. Mais uma vez, era como se tivessem adivinhado, como se soubessem.
- Não pense que nós queremos ser intrometidos - interveio Paolo -, mas teria sido por acaso seguido?
- Seguido? - repeti, como um eco. - Ora... não. Quem é que me teria seguido?
Senti-me na defensiva. Que poderiam estas crianças saber sobre o passado, sobre a minha casa? Que poderiam saber do meu falecido irmão Aldo?
- É o seguinte - esclareceu Caterina falando baixinho e fechando a porta. - De vez em quando há pessoas que são seguidas, se vagueiam junto do palácio à noite. Ouvem-se todas as espécies de rumores. Nunca acontece se se está num grupo. Só a pessoas isoladas.
Lembrei-me então do rapaz que corria. Do vulto no cimo da escadaria. Da porta a fechar-se devagarinho.
- Pode ter sido isso - anuí, meio para mim meio para eles -, posso ter sido seguido.
- Então que se passou? - quis saber Caterina. Falei-lhe do rapaz e da sua temerária corrida de fazer perder o fôlego. Falei-Lhes do vulto nas sombras e da sua retirada para o interior do palácio. Não lhes contei o meu regresso pela Via del Sogni abaixo e de como parara no exterior da minha casa. Uma vez mais olharam um para o outro, abanando as cabeças.
- É isso - afirmou Paolo, decidido -, voltaram a aparecer.
- Quem? - indaguei.
- O senhor é novo em Ruffano, não poderia saber - interveio Caterina. - Trata-se de uma sociedade secreta dentro da Universidade. Nenhum de nós sabe quem são os membros. Podem ser das Artes, da Educação, da C. e E. de Direito, ou uma mistura de todos, mas faz parte do juramento que prestam nunca se abrirem sobre os outros.
Ofereci-lhes cigarros. Começava a sentir-me mais à vontade. O passado recuava e encontrava-me de volta ao mundo das praxes universitárias.
- Não se ria - pediu Paolo. - Isto não tem piada. A princípio pensámos, como o senhor, que era só uma brincadeira. Não é assim. Têm sido feridos estudantes e não somente estudantes universitários, como também miúdos da cidade. São apanhados e vendados... e, segundo consta, até torturados, Mas ninguém sabe, aí é que está. As vítimas não contam. Alguma coisa se escapa dias depois, um estudante que diz estar doente, que não aparece nas aulas, e então o boato espalha-se; eles apanharam-no.
Irmão e irmã sentaram-se sobre a cama, um de cada lado de mim, com os rostos sérios, embora ansiosos por saber. Achei um elogio confiarem em mim.
-As autoridades não poderão fazer qualquer coisa? perguntei. - Com certeza que a Universidade está interessada em acabar com isso.
- Não podem - garantiu a rapariga. - O senhor não compreende o poder dessas pessoas. Não é como uma vulgar sociedade dentro da Universidade, com membros conhecidos de todos. Isto é secreto. E diabólico, também.
- Tanto quanto sabemos - interrompeu-a Paolo -, pode até incluir professores ao lado de estudantes. E embora todos nós, na C. e E. sintamos que se dirige contra nós, não podemos ter a certeza; ouvimos dizer que há membros da nossa própria faculdade a actuarem como espiões no meio de nós.
- Como pode ver - corroborou Caterina -, foi por isso que ficámos preocupados quando entrou. Eu disse para o Paolo... são eles.
Dei a ambos umas palmadinhas nos ombros e ergui-me da cama.
- Não - afirmei -, se entraram em acção, não foi por minha causa. - Dirigi-me à janela e abri as persianas. O carro desaparecera junto do n. o 5. - Às vezes - continuei a dizer, falando tanto ao irmão como à irmã -, uma pessoa pode sofrer de alucinações. Isso já me aconteceu. Pensa-se que se viu uma coisa que não é nitidamente deste mundo e depois, mais tarde, encontra-se uma explicação comum. A vossa sociedade pode existir, é óbvio que existe, mas a respectiva importância pode ter-vos sido incutida nos espíritos, de forma a parecer-vos mais ameaçadora do que é.
- Exactamente - concordou Paolo, pondo-se também em pé. - É o que todos os descrentes dizem. Mas não é assim. Anda daí, Caterina.
A irmã encolheu os ombros e seguiu-o na direcção da porta.
- Parece uma maluqueira - comentou -, uma coisa para assustar crianças. Mas duma coisa tenho a certeza: nunca passearei pela cidade de Ruffano à noite, sem pelo menos meia dúzia de companheiros. Por aqui próximo está tudo bem e na Piazza della Vita também. Lá em cima, não; próximo do palácio, não.
- Obrigado - agradeci -, e aceito o vosso aviso. Terminei o cigarro, despi-me e meti-me na cama. A história da sociedade secreta" revelara-se um antídoto para o meu choque. O senso comum dizia-me que o encontro que tivera nas escadas, a retirada da figura para dentro da porta aberta do Palácio Ducal, tinha estimulado a minha imaginação já tensa por causa do passado e, quando cheguei junto da minha antiga casa, a natural consequência disso fora a invocação, das trevas para a luz, de um Aldo ainda vivo. A experiência tinha sido, acreditava eu agora, a segunda de um conjunto de duas. A primeira fora confundir a mulher assassinada na Via Sicilia, em Roma, com Marta. Sem sombra de dúvida uma alucinação. A segunda experiência, a visão do meu irmão. Acalmado e estranhamente auto-absolvido, caí no sono.
Quando acordei de manhã, de cabeça fresca, esfomeado, cheio de energia para o dia que tinha na frente, disse para mim mesmo que estava na altura de matar os meus fantasmas e pôr ponto final às sombras que me haviam atormentado. Procuraria o sapateiro de olhos vesgos e perguntar-lhe-ia se Marta ainda era viva. Até iria calmamente tocar à campainha da minha antiga casa na Via del Sogni e perguntar à mulher do reitor, à senhora Butali, qual a identidade do seu visitante tardio da noite anterior. Este último acto, com todas as probabilidades, teria um bem merecido mau acolhimento, uma queixa à secretaria da Universidade e poria fim ao meu emprego temporário. Não fazia mal que isso sucedesse. Os meus fantasmas seriam então verdadeiramente derrubados e libertados.
Os meus jovens amigos, os Pasquale, e outros estudantes, tinham dispersado para as suas aulas antes de eu deixar a casa, às nove menos um quarto, para subir a Via Rossini até ao Palácio Ducal. Ruffano afivelara a sua brilhante máscara matinal e os ruídos e agitação do dia rodeavam-me por completo. Nada de vultos sombrios escondidos nos portais para assustarem as pessoas que passavam. Perguntava-me quanto de verdade haveria na história dos estudantes, se metade dela seria um mito nascido da histeria de massas. Os boatos, como a infecção, espalham-se rapidamente.
Entrei na biblioteca do palácio quando soava a hora certa no Duomo, batendo assim o meu chefe por cerca de três minutos. Giuseppe Fossi apresentava um ar, ao que me parecia, de subjugado, e poderia ter sucedido que as suas actividades da noite anterior, de mais que uma forma, o tivessem esgotado. Deu-nos, a mim e aos outros, uns curtos bons-dias, e fui imediatamente destacado para a escolha e separação dos volumes escritos em alemão e que, sendo pertença da Universidade, tivessem, por lapso, sido misturados com os de propriedade do palácio. A tarefa, por ser tão diferente de verificar itinerários e pessoas, absorveu-me, particularmente porque uma obra em quatro volumes chamada A História dos Duques de Ruffano, escrita na primeira parte do século xIx por um académico alemão, era, de acordo com Giuseppe Fossi, extremamente rara.
- Houve uma disputa entre o Conselho de Artes e nós quanto à sua propriedade - contou-me ele. - Por enquanto, será melhor pôr esses livros de lado e não os embalar juntamente com os outros. Terei de falar no assunto ao reitor.
Decidi colocar os volumes isolados numa prateleira. As folhas estavam coladas quando os abri. Duvidei que alguma vez
tivessem chegado a ser lidos. O arcebispo de Ruffano, que devia ter sido o seu proprietário antes do Risorgimento, ou não falava alemão, ou tinha-se sentido demasiado chocado com o seu conteúdo para os folhear.
Claudio Malebranche, primeiro duque de Ruffano, foi conhecido por o Falcão, li eu. A sua curta vida está envolta em
mistério, porque as autoridades suas contemporâneas não nos
permitem pronunciarmo-nos com segurança sobre os enormes
vícios com que a tradição e as insinuações lhe ensombraram a
memória. Uma juventude relevantemente prometedora, tornou-se um intoxicado pela boa sorte e, libertando-se da anterior disciplina de vida, rodeou-se de um pequeno bando de discípulos dissolutos, submetendo os bons cidadãos de Ruffano a licenciosos ultrajes e revoltantes crueldades. Ninguém
podia sair à rua à noite com medo da repentina descida do
Falcão à cidade, alturas em que, ajudado pelos seus seguidores, pilhava e destruía... "
- Senhor Fabbio, dê-me uma ajuda nestes registos, se faz
o favor. - A voz do meu chefe, um tanto fatigada, um pouco
rabujenta, arrancou-me à fascinante revelação prometida pelo
académico alemão. - Se quer ler os livros da biblioteca disse ele -, deverá fazê-lo nas suas horas, não nas nossas.
i Pedi desculpa. Pôs o caso de parte e concentrámo-nos nos
registos. Fossem os cozinhados, fossem as exigências da rapariga, algo se tinha revelado exagerado. Ignorei as facécias de Toni que pelas costas do chefe, enfiava a cabeça nas mãos de fingida exaustão, mas não me surpreendi quando Giuseppe Fossi, pouco antes do meio-dia, afirmou que não se sentia bem.
- Devo ter comido qualquer coisa ontem à noite - declarou -, que me assentou mal. Terei de ir para casa deitar-me.
Voltarei de tarde, se me sentir melhor. Entretanto, ficar-lhe-ia extremamente agradecido se se encarregasse disto.
Partiu apressadamente, de lenço na boca. A senhora Catttor fez notar que era bem sabido que o senhor Fossi sofria do estômago. Também andava sobrecarregado de trabalho. Nunca se poupava a nada. Mais uma vez, o impagável Toni gesticulou, e mais uma vez lhe ignorei as pantomimas, agora mais óbvias, de um atleta em acção. Tocou o telefone e, sendo eu quem estava mais próximo dele, atendi. Uma voz de mulher, suave e agradável, perguntou pelo senhor Fossi.
- Lamento - respondi -, mas o senhor Fossi não está, Posso ser-lhe útil?
Perguntou-me quanto tempo ele estaria ausente e disse-lhe que não tinha a certeza. Sentira-se indisposto e tinha ido para casa. Quem perguntava não era Carla Raspa... o tom de voz era demasiado grave.
- Com quem estou a falar? - foi a pergunta seguinte.
- Com Armino Fabbio, assistente temporário do senhor Fossi - repliquei. - Posso saber quem pergunta por ele?
- A senhora Butali - respondeu a mulher. - Tenho um recado do reitor para ele, acerca de uns livros.
O meu interesse intensificou-se. A mulher do reitor em pessoa, a falar da minha casa. A minha bem treinada cortesia de guia dominou a conversa.
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer, minha senhora, é só dizer - sugeri gentilmente. - O senhor Fossi saiu da biblioteca e deixou-me a mim e à senhora Catti encarregados do serviço. Talvez queira deixar-me alguma mensagem para ele.
Verificou-se um momento de hesitação antes de ela responder:
- O reitor encontra-se no hospital, em Roma, como sabe - disse - e, durante uma conversa telefónica com ele esta manhã, mandou-me pedir emprestados ao senhor Fossi alguns livros bastante valiosos, sobre os quais existe uma discórdia entre a Universidade e o Conselho de Artes. Gostaria de os examinar pessoalmente, com a aprovação do senhor Fossi, e eu poderia levar-lhos a Roma durante a minha próxima visita.
- Naturalmente, minha senhora - anuí. - Estou absolu tamente certo de que o senhor Fossi não levantará quaisquer objecções. De que livros se trata?
- A História dos Duques de Ruffano, em alemão - respondeu ela.
A secretária estava a fazer-me sinais. Expliquei-lhe, com a
mão sobre o bocal, que estava a falar com a mulher do reitor.
e A sua amarga desaprovação desapareceu. Avançou apressadamente e tirou-me o aparelho da mão.
- Bom dia, minha senhora - exclamou, com uma voz toda melosa. - Não fazia ideia que tinha regressado de Roma.
e Como vai o reitor? - Sorriu e acenou, pedindo-me silêncio.
- Naturalmente que qualquer coisa que ele peça será feita continuou. - Tratarei de lhe mandar os livros a casa ainda hoje. Ou eu ou um dos nossos assistentes lhos entregará pessoalmente.
Seguiram-se mais amabilidades, com uma explicação adicional de que o senhor Fossi se encontrava, como de costume,
sobrecarregado de trabalho. Mais sorrisos. Mais acenos de cabeça. Depois, aparentemente agradecida e despedida, pousou o receptor.
Imediatamente me ofereci:
- Levarei eu os livros à senhora Butali esta tarde.
A senhora Catti fitou-me, novamente amarga.
- Não há necessidade de que vá pessoalmente - declaarou. - Se mos embrulhar, levá-los-ei eu. Não me fica fora de
caminho e ela conhece-me.
- O senhor Fossi deu-me instruções para não perder estes
livros de vista. Por outro lado, eu faço menos falta na biblioteca do que a senhora.
h Furiosa, mas acusando a derrota, ela regressou à sua secretária. Uma tosse em falsete vinda do alto do escadote avisou-me de que Toni estivera à escuta. Sorri e fui ao meu trabalho.
Assegurara a entrada na minha casa, na Via del Sogni. De momento era tudo o que me interessava.
Não voltei à pensão para almoçar. Descobri um pequeno
restaurante na Via Rossini que, embora cheio de estudantes,
serviu para a minha apressada refeição. Regressei à biblioteca
enquanto os outros assistentes ainda estavam a almoçar e embrulhei os volumes para a mulher do reitor. Intrigava-me que os mesmos livros que me haviam chamado a atenção fossem os que o reitor exigia do seu leito de doente. Não teria tempo para dar uma vista de olhos à história da vida do Falcão. Lamentava-o. Recordava-me da sua loucura e da sua morte. Os pormenores tinham-me sido contados pelo meu pai. Seguramente que não vinham mencionados nos roteiros de Ruffano, nem nos panfletos publicados pelo Palácio Ducal para os turistas.
Os seus excessos eram de natureza tão singular que somente o Diabo os poderia ter inspirado. Quando foram apresentadas acusações contra ele pelos ultrajados cidadãos de Ruffano, o duque Claudio retaliou, declarando que tinha sido nomeado por Deus para dar aos seus súbditos o castigo que mereciam, Os orgulhosos seriam despidos, os altivos violados, os caluniadores silenciados, a víbora morreria do seu próprio veneno. As balanças da justiça celestial ficariam assim equilibradas.
E assim sucessivamente durante várias páginas. O quadro d'A Tentação, no quarto do duque por cima da biblioteca, assumiu para mim novo significado.
O duque Claudio encontrava-se indubitavelmente enlouquecido. Foram, no entanto, inventadas desculpas para os seus actos após a sua morte aterradora, pelo seu bom e gentil irmão, o grande duque Carlo que lhe sucedeu. Não se poderá dispensar idêntica consideração aos seguidores do Falcão. Esse pequeno bando de debochados não se acreditavam aureolados por Deus. A sua missão era manchar e destruir. Tão grande era o ódio e o pavor que inspiravam entre a populaça de Ruffano que, quando o massacre final teve lugar e o Falcão e o seu bando foram chacinados, diz-se que os corredores e aposentos do Palácio Ducal ficaram inundados de sangue e que atrocidades impossíveis de nomear foram cometidas contra as vítimas caídas.
Aquelas páginas seguramente perturbariam as horas de descanso do reitor, na sua cama de hospital.
Embrulhei os livros e saí da biblioteca logo que o segundo
assistente regressou do almoço. Depois, dirigi-me à Via Del Sogni. A minha excitação aumentava ao acercar-me do muro do jardim. Hoje não havia deambulações nas sombras. Sentia-me regressar ao lar. À medida que me aproximava, podia ouvir, tal como na véspera, o som de um piano a tocar. Era um Impromptu de Chopin. As notas soavam, subindo e descendo a escala, quase com intensidade selvagem. Era como uma discussão, apaixonada e feroz, que não se submeteria a qualquer interferência, mas arrasaria tudo na sua frente, reduzindo-se depois subitamente a protestos vagos. Não era música para um homem doente. Mas é claro que o reitor se encontrava a umas cento e cinquenta milhas, em Roma.
Pus a mão na porta do jardim e entrei. Nada se alterara. A única árvore dominava o pequeno pedaço de terreno como sempre fizera, embora o relvado estivesse mais aparado do que nos nossos dias. Percorri o curto caminho lajeado até à porta e toquei à campainha. A música cessou. Assolou-me uma sensação de pânico própria de um rapazinho de escola. Apetecia-me deixar os livros diante da porta e desatar a fugir. Ouvi, como anteriormente ouvira, uma centena, um milhar de vezes, passos a descerem as escadas. A porta abriu-se.
- Senhora Butali?
- Sim.
- Desculpe incomodá-la, minha senhora. Trouxe-lhe os livros que pediu à biblioteca do palácio.
Existe na Sala de Audiências do Palácio Ducal um quadro conhecido como Retrato de Dama, embora o meu pai lhe chamasse A Silenciosa. O rosto é grave, controlado, os olhos escuros encaram com indiferença o homem que a pinta, ou com alguma desaprovação. Aldo pensava de outra forma. Lembro-me de o ouvir discutir com o meu pai que A Silenciosa possuía um fogo interior e que a sua boca, supostamente tão contraída, decepcionava o observador. A senhora Butali poderia ter posado para esse mesmo retrato. A sua beleza pertencia ao século xvI, não ao nosso.
- Foi consigo que falei ao telefone? - perguntou e, partindo do princípio de que a resposta seria afirmativa, acrescentou: - Foi amável da sua parte ter vindo tão depressa.
Estendeu a mão para os livros, mas eu estava a olhar para além dela, para a parede. As quatro paredes estavam na mesma, mas isso era tudo. As formas estranhas de cadeiras que não as nossas, e de um alto espelho, pareciam alterar-lhes as perspectivas. O meu pai, amigo de ter reproduções dos seus quadros favoritos do palácio, costumava exibi-los com abundância, sem dúvida uma moda na época, mas, por causa disso, acabávamos por conhecê-los bem. Actualmente, havia um só quadro pendurado na parede e mesmo esse contemporâneofrutas lustrosas, demasiado grandes, reluzindo junto de uma pauta de música. A parede da escadaria que dava para o andar superior, branca no nosso tempo, estava agora pintada de um cinzento-pomba. Apercebi-me de tudo isto num só relance, o que me provocou um ressentimento irracional para com alguém que se atrevia a percorrer a nossa casa, despojando-a para a adaptar ao seu gosto, perturbando, como fizera, os hábitos subjacentes. As paredes e tectos que nos haviam conhecido não teriam uma palavra a dizer no assunto? Seriam obrigadas a ficar mudas?
- Desculpe-me, minha senhora - disse -, não vim cá somente a seu pedido, mas por me sentir atraído pela sua casa. Passei ontem aqui e ouvi o piano. Como gosto de música, parei a escutar. Nessa altura nem sequer pensava que se tratava da casa do reitor, disseram-mo mais tarde na biblioteca. Quando pediu os livros esta manhã...
Tal como a dama do quadro, a sua boca continuou sem sorrir, mas os olhos suavizaram-se-lhe.
- Achou que era esta a sua oportunidade - interrompeu:
- Francamente, sim - admiti.
Pus-lhe os livros nas mãos. Uma vez mais os meus olhos passearam-se pelas escadas acima. Na última ocasião em que as descera, fora a correr. A minha mãe chamava-me do jardim, segurando na mão a sua mala de viagem, que entregou à ordenança do comandante. O carro de serviço estava à espera na Via dei Sogni.
- O senhor também toca? - perguntou a senhora.
-Não. Não. Nunca tive esse dom. Mas ontem... ontem
estava a senhora a tocar, segundo suponho, o Arabesco de
Debussy, que só Deus sabe quantas vezes se pode ouvir num
aparelho de rádio, mas de alguma forma soando diferente.
Trouxe-me à memória recordações de infância e velhas coisas
esquecidas, embora não possa dizer que alguém tocasse piano
na nossa família.
Fitou-me gravemente, como que a considerar a perspectiva
de um aluno e depois disse:
- Se pode dispor de algum tempo, venha lá acima comigo
à sala de música e eu toco-lhe o Arabesco.
- Dispor de tempo? - repeti eu. - Não me preocupa se
posso ou não dispor dele. A senhora pode?
Mais uma vez o seu olhar se suavizou. Até a boca se Lhe
relaxou.
- Não o teria convidado se não pudesse - replicou. Em qualquer caso, ainda é cedo. Não espero o meu próximo
aluno antes das três.
Fechou a porta e, deixando os livros sobre uma cadeira no
vestíbulo, subiu as escadas à minha frente, encaminhando-se
directamente para o quarto de dormir de minha mãe. Os aposentos estavam transformados. Eu não reconhecia nada. Além
do mais porque, ao entrar, esperava ver a baixa cama dupla
com os lençóis todos desarranjados, como estavam no dia em
que partíramos, o guarda-fatos com as portas abertas e as prateleiras tortas, roupas abandonadas que a minha mãe não queria, deixadas por pendurar, papel de embrulhos pelo chão, o
tabuleiro do pequeno-almoço com restos frios do café.
- Adoro esta sala - declarou a senhora. - Acho-a tranquila. Logo que cá chegámos disse ao meu marido: É aqui
que vou pôr o piano. "
As paredes eram verdes. As cadeiras, de costas direitas, estavam almofadadas por qualquer coisa às tiras. O soalho muito polido. Outro quadro contemporâneo pendia da parede, desta vez de uns girassóis monstruosos. A senhora dirigiu-se para o piano, que se encontrava no sítio exacto da cama dupla de minha mãe.
- Pode fumar, se quiser - concedeu. - Não me incomoda. Agora, o Arabesco.
Fui sentar-me junto da janela, olhando para baixo através dos ramos da árvore do jardim. Tinham-se expandido. Abriam-se como asas, quase tocando as paredes. A bola, se é que ainda lá se encontrava, estaria profundamente escondida.
O murmúrio da música iniciou-se, o enlevo, a paixão e a dor. O sol quente de Julho assava as lajes do caminho e os pés da ordenança ecoavam, enquanto marchava para trás e para a frente, tratando da bagagem. Marta encontrava-se na missa, em San Donato. Depressa... depressa... gritava a minha mãe, o comandante não espera. " Tive de procurar a fotografia de Aldo. O meu irmão antes de ser morto. Aldo, no seu uniforme, com as asas de piloto.
- Deixa-o ficar. A Marta pode mandar-to depois.
- Não. Já o tenho. Levo-o no bolso.
E corri pelas escadas abaixo. A senhora continuava a tocar, mais alto, mais alto, pela escala acima, e baixava de tom, repetindo a frase, uma vez mais, de novo, descuidadamente, alegremente. O Arabesco nada tinha de emocional. A não ser que, como o presente ouvinte, se fosse um guia de turistas, um carroceiro, uma e outra vez a voar do presente para o passado.
- Estava a tocar Chopin quando bateu à porta - disse ela. - Pode ser que cada um tenha a morte que mereça. Que a minha mãe, com o seu útero canceroso, tenha pago pelo duvi doso prazer daquela cama de casal e que o comandante, sim, e também o meu pai, saciados com tudo aquilo que em tempos tinham comido, tivessem sucumbido à mais extrema fome, um na Rússia, o outro num campo de concentração dos Aliados; Mas por que morrera Marta pela faca?
Sentei-me numa cadeira e fiquei a contemplar a senhora Butali. Tocar piano trouxera-a de novo à vida, as cores acudiram-lhe às faces desmaiadas. Naquilo é que ela encontrava alívio, pensei, conseguindo esquecer o marido doente. Estudei-a desapaixonadamente. Da minha idade, ou poucos anos mais velha. Trinta e cinco a trinta e seis. A idade do arrependimento,
do súbito amor, do drama. A idade de abrir as portas a visitantes depois das dez da noite.
A música foi interrompida, tal como na véspera, por um agudo toque do telefone. Levantou-se do piano e foi atender, desculpando-se com um olhar. Reparei que estava agora neste compartimento e que ela não teve de correr pelas escadas abaixo, como fazia a minha mãe.
- Sim - disse para o bocal do aparelho -, sim, já os tenho.
Algo me advertiu de que se estava a referir aos livros. O reitor devia encontrar-se ansioso por eles. Também devia ter perguntado à mulher se estava sozinha, conforme deduzi, porque ela respondeu, no tom de voz que uma pessoa usa quando há outras presentes:
- Não, não, neste momento, não. Telefona-me mais tarde. - Pousou rapidamente o aparelho.
Seguindo a minha linha de pensamento, perguntei-lhe estupidamente se o reitor estava melhor. Pareceu confundida, depois recuperou instantaneamente.
- Ah, sim - respondeu -, muito melhor. Eu tinha muitas coisas a tratar aqui em casa, de outra forma nunca o deixaria em Roma.
Estaria ela a pensar que a acusava de negligência? Talvez. Em qualquer caso, suspeitava de que o breve telefonema acabado de receber, não viera de Roma.
O encanto foi quebrado e ela não fez mais nenhum movimento na direcção do piano. Tinha-me levantado quando o telefone tocou. Olhei para o relógio.
- A senhora foi muito amável - disse. - Proporcionou-me muito prazer. Agora não devo ocupar-Lhe mais o seu valioso tempo.
- Nem eu o seu - retribuiu ela. - Tem de voltar a visitar-me. Como disse que se chamava?
- Fabbio - respondi -, Armino Fabbio. Estou a trabalhar temporariamente na biblioteca.
- Tenho a certeza de que se sentem muito satisfeitos por o terem contratado - asseverou. - Espero que o senhor Fossi se recomponha depressa. Por favor, dê-lhe os meus cumprimentos e à senhora Catti.
E já se encaminhava para a porta. O toque do telefone destruíra toda a magia. Segui-a pelo patamar. Devia usar como quarto de dormir o nosso quarto de hóspedes. Dava para sudeste, sobre a Via del Sogni e via-se até aos antigos edifícios monásticos, actualmente servindo de hospital da cidade. O meu quarto tinha sido o que ficava a seguir.
- Mais uma vez obrigado, minha senhora - agradeci. O sorriso que me dispensou era gracioso, mas mecânico.
- De nada - respondeu. - Gosto de tocar para pessoas que apreciam música.
Segui-a pelas escadas abaixo. Ao atingir o vestíbulo, pegou nos livros, sugerindo esse acto que iria levá-los para cima consigo quando eu me fosse embora.
- Vai achá-los interessantes - comentei. - Isto é, se sabe alemão.
- Não sei - esclareceu ela, ficando por aí.
Não havia mais nenhuma desculpa para me demorar. Eu era um estranho e já a ocupara demasiado. A casa, a minha casa, era igualmente indiferente. Sorri, inclinei-me sobre a sua mão estendida, e parti.
A porta cerrou-se. Percorri o caminho lajeado até ao portão do jardim e saí para a rua. Uma mulher velha e curvada ca minhava à distância, a batina de um padre esvoaçava, um cão farejava o muro, até o dia brilhante, tudo isso pertencia a tempo presente, à Ruffano que não era a minha.
Diz-se, em inglês, que se podem matar dois pássaros com uma só pedra. Eu também poderia atirar o meu primeiro fantasma contra o segundo. Em vez de regressar imediatamente ao Palácio Ducal e à biblioteca, desci a colina na direcção do Oratório de Todos-os-Santos. O sapateiro vesgo devia estar instalado nos seus domínios. Antes de chegar à esquina reparei que uma pequena multidão se tinha reunido ali. As pessoas inclinavam-se para fora das janelas, entre elas a severa guardiã do oratório. Um carro encontrava-se muito próximo dos degraus. Um carro da Polícia. Um homem e uma mulher estavam a ser metidos nele. Recuei e aguardei que invertesse a marcha e passasse. A minha visão da viatura e do par dentro dela foi bloqueada pela multidão que tagarelava na minha frente. Desfez-se, ainda a conversar, a gesticular. Virei-me para um dos que passavam, uma mulher de olhos redondos que transportava uma criança a chorar.
- Estavam a prender alguém? - perguntei-lhe. Voltou-se vivamente para mim, ansiosa, como todas as mulheres numa multidão, por compartilhar informações com alguém que por elas passe.
- Foi o senhor Ghigi e a irmã - esclareceu. - Não, não estavam a ser levados presos, ainda bem para eles, mas a Polícia veio na mesma buscá- los, para identificarem um cadáver. Dizem que é o corpo daquela mulher que assassinaram em Roma, vinha nos jornais, e pode ser que seja a hóspede de Ghigi, é o que dizem, uma mulher que vivia com eles há alguns meses. Costumava beber e desapareceu há dias, sem dizer nada a ninguém, e agora pergunta-se, a Polícia quer saber, toda a gente no bairro quer saber, se não poderá ser a mesma, a pobre Marta Zampini.
Ainda estava a falar, a criança ainda estava a chorar, quando lhe virei as costas e voltei a percorrer a rua de coração a palpitar.
Comprei um jornal na Piazza della Vita e detive-me por um momento sob a colunata, procurando entre as páginas. Não falava do crime. A Polícia andara obviamente a investigar sobre pessoas desaparecidas na província e levava agora os Ghigi a Roma para identificarem o corpo. Ou talvez nem sequer fosse isso. Talvez a Polícia de Roma tivesse enviado artigos de vestuário para serem reconhecidos, o xaile, os cestos. Podia ser que isso bastasse.
E depois? Não se encontravam mais próximos da solução do crime. Não havia qualquer motivo para roubo. Nunca descobririam que alguém, precisamente após a meia-noite, metera uma nota de dez mil liras na mão da vítima. Neste momento já estaria gasta, já teria passado da mão do gatuno e assassino para uma dúzia de outras mãos. O criminoso não seria apanhado. Nem o fornecedor da nota. Ambos eram culpados. Ambos deveriam suportar o peso da sua culpa.
Quando entrei na biblioteca, a secretária e os funcionários já há muito haviam regressado do almoço. Passava do meio da tarde. Todos ficaram a olhar-me. Era como se soubessem que eu tinha vindo do Oratório de Todos- os-Santos e qual o motivo por que lá fora.
Fingindo que não reparava, dirigi-me às prateleiras de livros e ocupei-me a tirar de lá os restantes em alemão, mas desta vez desinteressadamente. O rosto da falecida Marta, que deixara desvanecer- se na escuridão durante os últimos três dias, mostrava-se uma vez mais. Já não podia negar a sua existência. A Marta do passado nunca me atormentaria, só a confusa figura da bêbeda em que ela se transformara. Porquê o ácre cheiro a coisas velhas? Ela fora limpa, fastidiosa, sempre a lavar, passar a ferro, dobrar roupas e guardá-las em armários. Somente duas pessoas poderiam agora fornecer-me a resposta: o sapateiro e a irmã, a nossa ex-cozinheira. Eles haviam de saber. Poderiam contar-me, interminavelmente, com todos os pormenores sórdidos, a desintegração que ela sofrera com o passar dos anos.
A culpa era nossa, evidentemente. Primeiro da minha mãe, depois minha. Vivendo em Turim, poderíamos ter-lhe escrito. Eu poderia ter-lhe escrito. Tínhamos tido possibilidades de a procurar. Ou, mais tarde, por intermédio da agência em Génova, eu poderia ter contactado Ruffano por telefone, pedindo informações. Não o fizera. Haviam-se passado vinte anos. Marta tivera de se desintegrar no decurso desses vinte anos.
Posteriormente, durante essa tarde, o telefone tocou. A senhora Catti respondeu. Falou durante alguns momentos com voz melosa, depois pousou o aparelho.
- O senhor Fossi continua a não se sentir bem - anunciou abruptamente para o resto dos presentes. - Hoje já não volta. Pediu para ficarmos até às sete horas.
A reclamação veio de Toni:
- Hoje é sábado - protestou. - O senhor Fossi deixa-nos sempre sair às seis aos sábados.
- Talvez - replicou a secretária -, mas isso é quando ele está cá em pessoa. Hoje é diferente. O senhor Fossi encontra-se neste momento de cama.
Voltou-se de novo para o seu registo e Toni enclavinhou as mãos na barriga num ar de divertida angústia.
- Quando um homem já passou dos quarenta - murmurou ele -, devia restringir o seu apetite pelos prazeres do corpo.
- E quando um homem ainda não tem vinte e três - redarguiu a secretária -, deveria demonstrar algum respeito pelos seus superiores.
Os seus ouvidos eram mais afinados do que eu pensava. talvez a sua inteligência também o fosse. Voltámos ao trabalho, mas creio que todos quatro nos sentimos surpreendidos quando, antes das sete, a causa dos males de Giuseppe entrou pela porta da biblioteca dentro. Usava um vestido vermelho que lhe ficava bem. Pequenas argolas de ouro pendiam-lhe das orelhas. Trazia sobre os ombros um casaco escuro.
Acenando casualmente à secretária e ignorando os dois funcionários, Carla Raspa atravessou a sala, dirigindo-se na minha direcção.
- Olá - cumprimentou.
- Olá - retribuí.
- Que tal se está a portar?
- Bem.
- Gosta do trabalho?
- É diferente do turismo.
- Foi o que pensei. Não se pode ter tudo. - Ergueu os olhos para as prateleiras de livros, sussurrando baixinho. A secretária, inclinada sobre a escrivaninha, parecia feita de alabastro. - Que tenciona fazer esta noite? - perguntou Carla Raspa.
- Que tenciono fazer?
- Foi o que perguntei.
Os olhos, como amêndoas amargas, avaliavam a minha pessoa. Procurei recordar-me qual era o animal, ave ou réptil, cujo acto de amor terminava sempre com a fêmea a devorar o macho. Era um insecto: o louva- a-deus.
- Tenho um encontro com um casal de estudantes da pensão onde estou - inventei prontamente. - Vamos todos jantar juntos e depois vamos ao cinema.
- Qual é a pensão?
Hesitei.
- A da senhora Silvani - respondi.
- No número vinte e quatro da Via San Michele? - exclamou ela. - Então somos vizinhos!
- Creio que sim.
Ela sorriu. Isso sugeria que ambos estávamos comprometidos numa espécie de conspiração.
-Sente-se lá confortavelmente instalado? - quis saber.
- Muito bem. Os estudantes constituem um grupo simpático. Todos da C. e E.
- C. e E. "! Então tenho pena de si. Não vai poder dormir à noite com o barulho. São um grupo de desordeiros.
- Ontem estavam muito sossegados - repliquei. Continuava a avaliar-me. Eu conseguia ver Toni a escutar a conversa debaixo do escadote.
- Onde é que vão jantar? - indagou.
- Em casa - respondi. - A comida é muito boa. E, para tornar o meu álibi mais convincente, acrescentei: - Os meus jovens amigos chamam-se Pasquale, Paolo e Caterina Pasquale.
Ela encolheu os ombros.
- Nunca estabeleço contactos com os estudantes da C. e E. . Foi Toni quem me deixou ficar mal.
- Falou nos Pasquale? - perguntou, zeloso por mostrar camaradagem.
- Sim.
- Então deve ter feito confusão de datas. Eles vão sempre a casa, em São Marino, aos sábados. Na verdade, vi-os partir esta tarde quando vinha de almoçar. Pouca sorte! - Sorriu e atravessou a biblioteca para ir buscar o casaco, acreditando ter-me prestado um serviço.
- Bom - proferiu a minha perseguidora -, quer isso dizer que está livre.
Tive uma visão momentânea de Giuseppe Fossi, no seu leito de doente; depois lembrei-me, com alívio, que ele tinha vários anos mais do que eu. E podia ter andado a chocar a doença. Afivelei o meu sorriso de guia.
- Sim, estou livre - murmurei. - Vamos comer ao Hotel del Duchi.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- Para quê desperdiçar dinheiro? - disse. - De qualquer forma, eles estarão encerrados à noite, na altura em que estivermos dispostos a comer.
A observação era ominosa. Sugeria uma exaustiva sessão, sem ao menos um aperitivo para ajudar. Não tinha a certeza de estar à altura da situação. Mas se a frase constituía um galanteio... bem, eu gosto de escolher as ocasiões para tais coisas, e esta não era uma delas.
- Então? - inquiri.
Ela permitiu que os seus olhos deambulassem na direcção dos funcionários que saíam e na senhora Catti, que ainda pairava junto da porta.
- Tenho planos - disse, em voz resguardada. Encaminhámo-nos os dois para a entrada. A senhora Catti, afastando o olhar, fechou a porta da biblioteca atrás de nós, com um frio boa-noite". Desapareceu no pátio, com os tacões a baterem no chão de pedra. A minha companheira aguardou até que o último som morresse à distância. Depois virou-se para mim a sorrir, e eu fiquei consciente duma certa excitação tensa que transparecia não só dos seus olhos e da sua boca, como de toda a sua pessoa.
- Estamos com sorte - disse. - Tenho dois passes de admissão nos aposentos do duque. Pedi-os ao próprio director do Conselho de Artes. É uma honra. Muito especial.
Fitei-a. Era uma estranha reviravolta. Ou talvez eu tivesse tomado demasiado como certa a sua noção de um divertimento nocturno.
- Os aposentos ducais? - repeti. - Mas pode vê-los às horas que lhe apetecer. Você até leva lá grupos de estudantes todos os dias.
Riu-se e pediu-me um cigarro. Dei-lho e acendi-lho.
- As noites são diferentes - afirmou. - Não está presente o público em geral, nada de estudantes externos, ninguém da cidade ou da Universidade que o director não tenha convidado pessoalmente. Garanto-lhe que é uma honra.
Sorri. Aquilo convinha-me. O que lhe parecia uma grande ocasião era algo que o meu pai fazia no passado semana após semana. Senti-me gratificado por ao menos um dos velhos costumes ter sido conservado. Em criança, eu tinha acompanhado de vez em quando Aldo ou a minha mãe, e observado o meu pai a mostrar aos amigos as notáveis características duma sala ou de um quadro.
- Que se passará? - perguntei. - Nós vamos juntar-nos em grupo enquanto o director expõe alguma teoria?
- Isso não lhe sei dizer - respondeu. - É o que me sinto intrigada em descobrir. Imagino que esta noite ele nos dará uma antevisão do festival.
Baixou os olhos para os dois passes que tinha na mão.
- Diz aqui às sete e trinta - leu -, mas penso que já podemos subir. Podemos sempre aguardar na galeria, se as portas não estiverem abertas.
Divertia-me que um convite do director do Conselho de Artes de Ruffano pudesse provocar tal impressão numa professora da Universidade, e logo em alguém tão sofisticado como a menina Carla Raspa. Devia estar situada mais abaixo nos níveis da hierarquia do que aquilo que eu pensava. Fazia-me lembrar aquelas turistas que conseguiam obter bilhetes para uma audiência papal no Vaticano. Só lhe faltava o véu. Subimos as escadas até à galeria.
- Que é exactamente o festival? - perguntei.
- O reitor iniciou-o há alguns anos - respondeu-me. O Departamento de Artes da Universidade de cá é pequeno e não dispõe de director titular, pelo que ele o mantém sob a sua própria jurisdição. Organiza o festival conjuntamente com o director do Conselho de Artes. Tem tido um tremendo sucesso. Todos os anos escolhem um tema histórico e os estudantes desempenham-no nos aposentos ducais, no pátio, ou no antigo teatro sob o palácio. Este ano, por causa da doença do reitor, o festival é inteiramente da responsabilidade do director do Conselho de Artes.
Chegámos ao cimo das escadas. Já lá estava um pequeno grupo de pessoas, esperando no exterior da porta fechada que dava para a Sala do Trono. Eram todos jovens: estudantes sem dúvida, a maioria do sexo masculino. Conversavam entre eles tranquilamente, mesmo sobriamente, sem nada da hilariante - bastante forçada jocosidade que se associa a um corpo de estudantes. Carla Raspa avançou e apertou as mãos de dois ou três. Apresentou-me e explicou-me os respectivos estatutos.
- São todos estudantes do terceiro ou quarto anos - disse. - Ninguém consegue um convite antes do terceiro ano.
Quantos de vós estarão a actuar no festlval?
- Apresentámo-nos todos como voluntários - respondeu um deles, um rapaz cabeludo, com as patilhas que os meus amigos Pasquale associariam sem dúvida às Artes -, mas o director é que faz a escolha final. Se não se satisfizer os requisitos, fica-se de fora.
- Quais são os requisitos-padrão? - inquiri. O cabeludo olhou para os companheiros. Todos sorriram.
- Difícil de atingir - esclareceu. - Tem de se estar em boas condições físicas, pronto para tudo e apto para esgrimir. Porquê? Sei lá! É um novo regulamento.
Carla Raspa interveio:
- O último festival, quando o reitor se encarregou dele, foi de facto belo. Encenaram a visita do papa Clemente a Ruffano, e o próprio professor Butali desempenhou o papel de papa. Tinham aberto a porta que dá para o pátio e os estudantes, vestidos como a Guarda Papal, tiveram de conduzir o reitor lá para dentro, onde foi recebido pelo duque e pela duquesa, desempenhados pela senhora Butali e pelo professor Rizzio, director do Departamento de Educação. Depois dirigiram-se em procissão para os aposentos. Os fatos eram magníficos.
Encaminhámo-nos todos para a porta da Sala do Trono, ao som da chave a girar na fechadura. As portas duplas foram escancaradas. Um estudante - pelo menos suponho que o era - postou-se à entrada para verificar os passes. Devia ter passado no teste de aptidão física. Era magro, de olhar duro e fez-me lembrar um dos nossos jogadores profissionais de futebol de Turim. Talvez, se não nos portássemos bem, o director das Artes se servisse dele para nos expulsar.
Passámos para a Sala do Trono e atravessávamos a dos Querubins, quando nos chegou aos ouvidos um murmúrio de vozes. Outros tinham-se-nos adiantado. A atmosfera tornou-se, mais que nunca, a de uma audiência papal e, à entrada da Sala dos Querubins, lá estava um segundo verificador que, desta vez, nos ficou com os passes. Senti-me despojado, porque eles eram como distintivos na lapela que nos conferiam uma posição social. Depois, um pouco surpreendido, vi que a iluminação eléctrica da Sala dos Querubins tinha sido apagada. O compartimento encontrava-se iluminado por lanternas e tochas que, projectando sombras monstruosas para o tecto apainelado e para as paredes cor de açafrão, conferiam ao ambiente um arrepiante tom sombrio, medieval e ao mesmo tempo estranho, excitante. Um enorme toro ardia na lareira aberta, no meio dos inapreciáveis pilares da chaminé, sacrossantos no tempo do meu pai. As chamas erguiam-se do fogo, captando os olhares como magnetos.
A luz dos archotes e o fogo, reflectindo sombras sobre o tecto, pouca luz lançavam sobre os nossos vizinhos, sendo impossível dizer quais deles eram convidados e quais eram os anfitriões. Todos tinham um aspecto jovem e quase todos do sexo masculino. O diminuto número de raparigas presentes, parecia ser ali simplesmente tolerado.
Lentamente, a grande sala encheu-se embora sem que, por um só momento, tivesse ficado apinhada, e quando os meus olhos se acostumaram à luz dos archotes, nós e mais alguns dos outros, que davam a impressão de recentemente admitidos, juntámo-nos em grupos, um pouco incertos quanto ao que fazer, enquanto outros, deslocando-se mais livremente e com ar de maior autoridade, atravessavam e voltavam a atravessar a vasta sala, voltando-se repetidas vezes para olharem o resto de nós com um indiferente e levemente divertido desdém de acostumados ao ambiente.
Subitamente, o verificador da entrada cerrou a porta. Encostou-se a ela, de braços cruzados, face inexpressiva. Fez-se instantaneamente silêncio. Uma das mulheres, com os nervos em franja, soltou uma gargalhadinha, que foi imediatamente mandada silenciar pelos seus companheiros masculinos. Olhei de relance para Carla Raspa. Estendeu-me a mão e segurou a minha, com os dedos tensos. A atmosfera de silêncio transmitiu-se de um para outro e senti- me encurralado. A fuga, para alguém com tendência a sofrer de claustrofobia, seria impossível.
A porta que dava para o quarto de dormir do duque, até então fechada, foi aberta para trás. Entrou um homem, seguido por seis companheiros, que se enfileiraram junto dele como guarda-costas. Avançou para o interior da sala e, estendendo a mão, começou de imediato a cumprimentar os seus convidados, os quais, quebrada a tensão, se comprimiam avidamente em frente, para se encontrarem entre os primeiros. Carla Raspa, de olhos brilhantes, esquecendo-se de mim, meteu-se na fila.
- Quem é ele? - indaguei.
Não me ouviu. Estava transfigurada. Mas um rapaz próximo de mim, lançando-me um olhar de espanto, disse:
- Ora, é o professor Donati, é claro, o director do Conselho de Artes.
Saí da zona iluminada pelos archotes, colocando-me nas sombras. O personagem, com o seu corpo de guardas, aproximou-se. Uma palavra a um, um riso a outro, uma palmadinha no ombro a um terceiro e já não havia forma de me escapar da fila, de fugir dali, com a deslocação dos que se encontravam atrás de mim a empurrar-me em frente. De alguma forma, conseguira reunir-me com a minha companheira e ouvi o que ela dizia: Este é o senhor Fabbio. Está a colaborar com o senhor Fossi na biblioteca. Estendi a mão e apertei a dele, enquanto pronunciava: Óptimo, óptimo. Tenho muito prazer em conhecê-lo. " Depois, mal olhando para mim, passou adiante. Carla Raspa principiou a falar muito excitada com um vizinho à sua esquerda e não, graças a Deus, comigo. Abrira-se a minha sepultura. Os céus trovejavam. Cristo regressara em toda a Sua majestade. O estranho da Via del Sogni na noite anterior não tinha sido afinal nenhum fantasma e, se ainda me atrevesse a duvidar disso, o nome só por si era agora conclusivo.
O director do Conselho de Artes. O professor Donati. O professor Aldo Donati. Vinte e dois anos tinham conferido maturidade à sua grande figura, ao seu andar seguro, ao arrogante ângulo da sua cabeça, mas a alta fronte, os olhos muito escuros, a boca com o seu imperceptível descair ao canto direito e a voz, mais profunda agora mas casual, sempre casual - esses pormenores pertenciam ao meu irmão.
Aldo revivera. Aldo erguera-se de entre os mortos e o meu mundo oscilava.
Virei a cara para a parede e pus-me a fixar uma tapeçaria. Nada via, nada ouvia. As pessoas moviam- se pela sala e conversavam, um milhar de aviões poderia ter zumbido no ar à minha volta que nada significaria para mim. Um outro avião não se tinha esmagado há vinte e dois anos atrás, isso era tudo o que importava.
Se se tinha despenhado, não ardera; ou se tinha ardido, o piloto saíra dele intacto. O meu irmão estava vivo. O meu irmão não tinha morrido.
Alguém me tocou no braço. Era Carla Raspa. Disse- me:
- Que pensa dele?
- Acho-o um deus - respondi.
Sorriu e, estendendo a mão, murmurou:
- É o que todos acham.
Encostei-me à parede. Não queria que ela visse que eu estava a tremer. O meu receio era desmaiar, cair, chamar para mim as atenções e deixar que Aldo me descobrisse ali, diante de todas aquelas pessoas. Mais tarde, naturalmente, mais tarde... Mas não agora. Era impossível pensar, planear. Não devia entregar-me. Tinha de parar de tremer.
- Inspecção terminada - murmurou Carla Raspa. - Ele vai falar.
Havia uma única cadeira na sala, o cadeirão do século xv, com as costas estreitas, que costumava estar diante da lareira. Um dos guarda-costas avançou e colocou-o no centro da sala, Aldo sorriu e fez um gesto de mão. Todos se sentaram no chão, alguns de costas para a parede, outros encostados aos vizinhos, mais próximos do orador. A luz dos archotes continuava a projectar sombras no tecto, agora mais grotescas do que nunca, por causa das cabeças aglomeradas. Não conseguia dizer quantos ali estávamos - oitenta, talvez cem, talvez mais. Aldo instalou-se na cadeira, a luz da lareira cintilou e, com um supremo esforço, tentei acalmar as minhas mãos trementes.
- Cumprir-se-ão quinhentos e vinte e cinco anos nesta Primavera que o povo de Ruffano matou o seu duque - disse ele. - Não encontrarão descrita nos manuais a forma como o levaram à morte, nem na história oficial; os censores, como sabem, mesmo nessa época, trataram de esconder a verdade. Estou a referir-me, é claro, a Claudio, o primeiro duque de Ruffano, conhecido como o Falcão, desprezado e rejeitado pelos homens, por o recearem. E por que tinham medo dele? Por possuir a capacidade de Lhes ler nas almas. As suas pequenas mentiras, as suas pequenas fraudes, a sua competição uns com os outros no comércio do dia-a-dia - porque tudo aquilo em que qualquer natural de Ruffano pensava era enriquecer à custa dos camponeses esfomeados - foram condenados pelo Falcão, e com toda a justiça. Eles nada sabiam de arte, não tinham cultura, e isto numa época em que uma nova era se avizinhava, a era da Renascença. O bispo e os seus padres aliavam-se aos nobres e aos mercadores para manter o povo na ignorância, pouco melhores que animais, obstruindo por todos os meios ao seu alcance o duque.
Pretendia reunir à sua volta, na corte, jovens distintos.o seu nascimento não lhe interessava, se possuíssem inteligência e argúcia - que, pela sua coragem pessoal, força das armas e devoção exclusiva à arte em todas as suas ramificações, conseguissem transformar-se numa élite - chamem-lhes fanáticos, se preferirem - que actuasse como um archote através do seu exemplo, um fogo a incendiar todos os ducados do país. A Arte reinaria suprema, com galerias cheias de coisas belas a valerem mais que casas bancárias, uma estatueta de bronze a custar mais cara do que um fardo de roupas. Lançou impostos para esse efeito, que os comerciantes recusaram pagar. Organizou torneios e jogos de cavaleiros no seu pátio, para treinar por meio deles os seus jovens cortesãos e o povo vilipendiou-o como debochado.
Quinhentos e vinte e cinco anos decorreram e eu acredito que chegou a hora de reevocar o duque. Ou melhor, de lhe honrar a memória. É por isso que, desde que recaiu sobre mim, na ausência do reitor da Universidade, professor Butali, que todos reverenciamos e honramos, organizar o festival deste ano, decidi encenar o levantamento da cidade de Ruffano contra o seu muito incompreendido senhor e dono, Claudio, primeiro duque, por todos chamado... o Falcão. "
Fez uma pausa. Eu conhecia essa pausa. Tinha-a usado no passado, quando estávamos estendidos ao lado um do outro no quarto de dormir que partilhávamos e me estava a contar uma história.
- Alguns de vós - continuou -, já sabem disto. Já fizemos os nossos ensaios. Devem recordar que o voo do Falcão, que será o nome das comemorações deste ano - por ter sido dessa maneira que Claudio se finou - nunca antes foi levado à cena e, provavelmente, nunca mais o será. Quero que fique tão vivo nos vossos espíritos e nas memórias de quem o presenciar, que perdure para sempre. Tudo o que já foi antes encenado nos nossos festivais nada será comparado com este, Quero levar à cena a maior produção que esta cidade alguma vez viu. Por isso, vou pedir ainda mais voluntários do que em anos anteriores.
Ergueu-se um murmúrio, vindo das fileiras de pessoas sentadas à minha frente no soalho. Todas as mãos dispararam para o ar. Os rostos, pálidos à luz titubeante, estavam voltados para o dele.
- Esperem - exclamou. - Nem todos serão escolhidos. Mais tarde, optarei por aqueles que me parecerem os indicados. O que importa é o seguinte... - Mais uma vez fez uma pausa. Inclinou-se para a frente na sua cadeira, observando--lhes as faces. - Vocês conhecem os meus métodos - prosseguiu. - Servimo-nos deles no ano passado e no ano antes desse; E essencial que cada voluntário acredite no papel que desempenha e se meta na pele da sua criação. Este ano sereis cortesãos no palácio do Falcão. Constituireis esse pequeno corpo de homens dedicados. Vós, estudantes de Artes da Universidad tornar-vos-eis, pela vossa própria natureza, a élite. Já o sois. Por isso é que aqui estais em Ruffano, nisso reside a vossa razão de viver. Contudo, sois uma minoria na Universidade, as vossas fileiras são reduzidas, as imensas multidões que inundam as outras faculdades são compostos por bárbaros, Godos e Vândalos que, como os mercadores de há quinhentos anos atrás, nada compreendem de Arte, nada sabem sobre beleza. Se detivessem o poder, eles destruiriam todos os tesouros que possuímos aqui nestes aposentos, talvez até arrasassem o próprio palácio, para porem em seu lugar... o quê? Fábricas, escri tórios, bancos, casas comerciais, com a finalidade de enriquecerem, de melhorarem os seus padrões de vida, de possuírem mais carros, mais aparelhos de televisão, mais vivendas do tamanho de caixas de biscoitos no Adriático, gerando assim cada vez mais descontentes, pobres e miseráveis.
Subitamente ergueu-se. Levantou a mão para silenciar os aplausos que ecoaram no tecto apainelado.
- Chega - disse -, nada mais por hoje. O que vamos agora fazer é proporcionar-vos uma curta apresentação do género de treinamento que já iniciámos com voluntários. Afastem-se do centro, senão podem ficar feridos!
Os aplausos diminuíram, transformando-se em instantâneo silêncio. A multidão inclinou-se para a frente, atenta ao que se iria seguir. Avançaram dois membros do corpo de guardas e levaram a cadeira. Usavam camisas brancas, com as mangas enroladas até aos cotovelos, e calças pretas. Os seus rostos estavam mascarados, não como protecção, mas para ocultarem as feições. Cada um empunhava uma espada nua. Lutaram como duelistas nos tempos antigos, a sério, não a brincar. Não havia fingimento nas suas paradas e botes, nem representação na posição contraída dos combatentes. As lâminas de aço rangiam ao chocarem, baterem e mergulharem em frente e, quando um dos duelistas mostrou bem cedo possuir um alcance mais longo do que o do seu adversário e, com a continuação da luta, o forçou a ajoelhar apontando-lhe a lâmina à garganta, ergueu-se um sussurro das fileiras quando o homem meio derrubado, arquejante, ficou a espreitar através das estreitas fendas da máscara e a ponta afiada fez correr sangue. Um arranhão, nada mais talvez do que aquilo que o deslizar duma lâmina de barbear poderia ter provocado, mas a espada é que o fizera, as gotas de sangue corriam-lhe pelo pescoço abaixo, manchando-lhe a camisa branca.
- Basta! - gritou Aldo. - Vocês mostraram o que são capazes de fazer. Foi uma boa luta, agradeço- vos.
Atirou o seu lenço ao homem caído que, pondo-se em pé, estancou a ferida. Ambos os homens saíram do quadrado iluminado, desaparecendo através da porta, na direcção do quarto de dormir do duque.
Os espectadores, estupefactos com o realismo da exibição, encontravam-se demasiado abalados para aplaudirem. Aguardaram, sem fôlego, que Aldo voltasse a falar. Uma vez mais recordei-me dos dias da minha infância e do efeito que ele então provocava em mim. Era o mesmo poder, mais maldoso, mais perigoso.
- Vocês já viram - disse Aldo - que as batalhas a fingir não são connosco. Agora, quererão as poucas mulheres que se encontram entre nós deixar a sala, bem como quaisquer outros que não pretendam oferecer-se como voluntários? Não se pensará mal deles. Aqueles que quiserem oferecer-se como voluntários que fiquem.
Uma rapariga adiantou-se, protestando, mas ele abanou a cabeça.
- Desculpe - proferiu -, nada de mulheres. Pelo menos para isto. Vão para casa, aprendam a aplicar ligaduras, mas a luta é connosco.
A porta que dava para fora da Sala do Trono foi escancarada. Lentamente, relutantemente, as poucas mulheres passaram por ela, seguidas por uma dúzia de homens, não mais. Encontrava-me entre eles. O verificador da entrada da Sala fez-nos sinal para andarmos em frente. Encaminhámo-nos silenciosamente para a galeria exterior e a porta foi fechada nas nossas costas. Éramos, suponho, cerca de dezoito a vinte, ao todo. As raparigas, descontentes, nem sequer esperaram pelos seus acompanhantes. Aquelas que se conheciam deram o braço umas às outras e apressaram-se a descer as escadas. Os homens, de ar envergonhado, na defensiva, ofereceram cigarros uns aos outros.
- Aquilo é uma coisa que não sou capaz de engolir - comentou um deles. - É o fascismo a regressar outra vez, é aí que ele pretende chegar.
- Estás doido - contrariou outro. - Não te apercebeste de que ele estava a beliscar os industrialistas? É um comunista, obviamente. Diz-se que está inscrito no Partido Comunista.
- Não me parece, que ligue um chavo à política - declarou um terceiro. - É um tremendo burlão, é tudo, e dessa forma é que consegue pôr a trabalhar a sua companhia para o festival. Fez o mesmo no ano passado, quando os vestiu de Guarda Papal. Estava disposto a oferecer-me como voluntário, até ver aquela luta. Nenhum director de Artes me vai cortar em pedaços.
Ninguém erguia a voz. Discutiam, mas em receosos sussurros. Todos descemos as escadas na peugada das raparigas.
- Uma coisa é certa - observou alguém. - Se isto constar na C. e E. será um massacre.
- Massacre de quem?
- Depois do espectáculo que acabámos de ver? Ora, deles. Da C. e E.
- Nesse caso serei voluntário. Faço tudo para eliminar essa malta.
- Cá por mim também. Ergam-se as barricadas! O brio pessoal fora recuperado. Ficaram na praça, ainda a discutir, e tornara-se óbvio que existia um perigoso antagonismo entre os estudantes da C. e E. " e os das outras faculdades. Depois abalaram pela colina acima na direcção da Universidade e da Residência dos Estudantes. Aguardei até o vulto que vira de pé nos degraus do Duomo se ter juntado a mim.
- Então? - perguntou Carla Raspa.
-Então? - repeti eu.
- Nunca até hoje tinha querido ser homem - declarou ela. É como na canção americana, pensei:
Tudo o que eles podem fazer, eu serei capaz de fazer melhor. Excepto, ao que parecia... lutar.
- Talvez haja também papéis para mulheres - observei. Ele poderá recrutá-la mais tarde. Há sempre mulheres numa multidão, para gritarem e atirarem pedras.
- Eu não quero gritar - afirmou. - Quero lutar. - Depois, olhando-me com não menos desdém do que as raparigas continuou: - Por que é que não se ofereceu como voluntário?
- Porque - respondi - sou um pássaro de arribação.
- Isso não é motivo - retorquiu. - Eu também, já que diz. Posso ir-me embora em qualquer altura, dar aulas para outro lado. Obter uma transferência. No entanto, neste mo mento não. Pelo menos depois do que ouvi esta noite. Pode ser... - fez uma pausa e enquanto eu Lhe acendia o cigarro - pode ser que isto seja aquilo de que ando à procura. Um objectivo. Uma causa.
Começámos a descer a Via Rossini.
- Actuar num festival conferir-lhe-ia um objectivo? - indaguei.
- Ele não estava a falar de nenhuma actuação - redarguiu. Ainda era cedo e, por ser sábado à noite, as pessoas passeavam nas ruas para cima e para baixo, aos pares, ou em grupos familiares. Não se viam muitos estudantes, ou pelo menos assim me pareceu. Tinham ido para suas casas até domingo à noite. Os jovens que percorriam as ruas vinham das lojas, dos bancos, dos escritórios. Estes eram naturais de Ruffano.
- Há quanto tempo é que ele cá está? - quis saber.
- O professor Donati? Oh, há alguns anos. Nasceu e combateu na guerra como piloto de caça, foi dado como mor to, depois regressou e tirou um curso de pós-graduação. Ficou cá como professor e acabou por ser adoptado pelo Conselho de Artes de Ruffano, como filho brilhante da terra, até ser citado para director há poucos anos. É o querido de algumas das forças vivas locais e amargamente detestado por outras, Não pelo reitor. O professor Butali acredita nele.
- E a mulher do reitor?
- Livia Butali? Isso não sei. Ela é uma pretensiosa. Mete-se em si mesma e não pensa em mais nada senão em música.
Vem duma velha família florentina e não deixa que as pessoas se esqueçam disso. Custa-me a crer que o professor Donati despendesse muito tempo com ela.
Tínhamos chegado à Piazza della Vita. Esquecera-me, até àquele momento, da minha promessa de levar a minha companheira a jantar. Perguntei-me se ela também se teria esquecido. Atravessámos a praça na direcção da Via San Michele e parámos à porta do n. o 5. Estendeu-me então abruptamente a mão.
- Não pense que estou a ser antipática - disse. - A verdade é que quero estar só. Quero reflectir naquilo que hoje vimos. Vou aquecer uma sopa e meter-me na cama. Fica aborrecido?
- Não - garanti -, sinto-me exactamente como você.
- Então noutra altura... De qualquer das formas, você é meu vizinho, mora ali em baixo, nesta mesma rua. Sempre nos poderemos encontrar.
- Naturalmente - concordei. - Boa noite. E obrigado. Entrou pela porta do n. o 5 e eu prossegui até ao n. o 24. Entrei cautelosamente. Não estava ninguém por perto. Ouvia o som da televisão vindo da sala de estar dos Silvani.
Peguei na lista telefónica que estava sobre uma mesa do átrio, ao lado do telefone, e folheei as páginas. Donati. Professor Aldo Donati. O endereço era na Via del Sogni, n. o 2.
Voltei a sair para a rua.
O meu passeio levou-me para além da nossa antiga casa, próximo do fundo da Via del Sogni, antes de virar à direita, penetrando na Via dell Settembre, por cima da Universidade. O n. o 2 era uma casa alta, estreita e isolada, elevando-se por cima da Igreja de San Donato e da longa Via delle Mura que rodeava a cidade. Em tempos idos tinha sido a casa do bom doutor Mauri, que me vinha ver quando eu tossia e espirrava - dizia-me que eu sofria de fraqueza do peito - e recordava-me que ele nunca se servia dum estetoscópio para me auscultar, encostando-me sempre a orelha no peito nu, agarrando-me os ombros magros enquanto o fazia, numa súbita proximidade que me desagradava. Era nessa época um homem de meia-idade e devia agora ter já morrido, ou deixado há muito de praticar medicina.
Aproximei-me o suficiente da casa para ver a chapa com o nome - Donati - na metade direita da porta dupla. Esta dava acesso tanto à Via del Sogni como, através de uma passagem, à encosta relvada para além dela e aos degraus de pedra que subiam para a Igreja de San Donato. Para a esquerda ficava a casa do porteiro, usada nos velhos dias pela cozinheira do doutor Mauri.
Fiquei a olhar a chapa com o nome. Tínhamos uma semelhante no n. o 8. Marta orgulhava-se por a manter polida e com um pouco de imaginação, podia até ser a mesma. Havia uma campainha a seu lado. Pus o dedo no botão e toquei. Ouvi retinir lá dentro. Ninguém atendeu. Aldo devia viver sozinho ou, se assim não era, quem quer que vivia com ele estaria agora na Sala dos Querubins do Palácio Ducal, na sua companhia.
Toquei mais uma vez para ter a certeza, mas sem resultado. Virei-me e olhei para o outro lado, para a casa do porteiro. Hesitei por um momento e depois toquei lá. Passado um pedaço a porta abriu-se e um homem perguntou-me o que queria. As sobrancelhas espessas, o cabelo em escova, embora grisalho, eram-me familiares. Depois recordei-me. Tinha sido camarada de armas do meu irmão, membro da equipa de terra da base aérea. Ligara-se a Aldo e o meu irmão levara-o uma vez lá a casa durante uma folga. Salvo por se ter posto grisaLho, não se modificara. Eu, sim. Ninguém, olhando para um homem de trinta e dois anos, se lembraria do rapaz de dez que ele fora.
- O professor Donati - disse-me ele - não está em casa. Encontrá-lo-á no Palácio Ducal.
- Isso sei eu - respondi. - Já lá o vi, mas não em particular. O assunto que me traz aqui é pessoal.
- Lamento - reiterou -, mas não Lhe sei dizer quando é que o professor regressará. Não encomendou jantar. Se quiser deixar o seu nome, poderá depois telefonar-lhe a marcar encontro.
- Chamo-me Fabbio - informei -, mas ele não me reconheceria. - Não me sentia seguro de amaldiçoar ou bendizer o anonimato da herança do meu padrasto.
- Senhor Fabbio - retorquiu o homem. - Recordar-me-ei. Se não vir o professor Donati, dir-Lhe-ei de manhã.
- Obrigado - agradeci. - Obrigado. Boa noite.
- Boa noite, senhor.
Fechou a porta. Fiquei junto da porta dupla a olhar para a Via del Sogni. Lembrara-me do nome dele. Jacopo. Estava com baixa por doença quando o meu irmão o tinha trazido a casa durante uma licença, e sentira-se deslocado. Marta analisara a situação de relance e levara-o para a cozinha consigo e com Maria Ghigi.
Perguntei-me se valeria a pena ir de novo ao Palácio Ducal procurar o meu irmão. Tão depressa o pensei, como desisti da ideia. Ele havia de estar rodeado pelo seu corpo de guarda, tal vez por todo o grupo de estudantes aduladores.
Estava decidido a sair de baixo do pórtico quando ouvi passos a aproximarem-se. Olhei e vi que era uma mulher, Car la Raspa. Retirei-me para dentro da porta dupla e coloquei-me no corredor do lado leste. Ela não me poderia ver, mas eu via-a a ela. Ao chegar à porta de Aldo, fez como eu e tocou à campainha. Esperou um momento, olhando por cima do ombro para a porta de Jacopo, mas sem fazer qualquer tentativa para tocar à sua campainha. Depois, remexeu no interior da sua malinha, tirando de lá um envelope que enfiou na caixa do correio. Conseguia detectar-lhe o desapontamento nos ombros descaídos. Saiu para a Via del Sogni e eu ouvi-lhe o bater dos saltos desaparecer à distância. Livrar-se de mim tinha sido uma desculpa. Nada de tigela de sopa e cama para Carla Raspa. Devia ter aquilo na ideia desde que saíramos do Palácio Ducal. Agora, frustrada, acharia mais agradável comer a sopa, mas teria de a comer.
Aguardei até a considerar bem longe e fora de vista e depois regressei então à Via San Michele. Desta vez penetrei até ao santuário dos Silvani e expliquei à senhora que ainda não tinha comido. Qualquer coisa me serviria. Desligando a televisão, ela levantou-se, protestando hospitalidade, e empurrou-me para a sala de jantar, seguida pelo marido, que veio fazer-me companhia. Disse-lhes que tinha estado como convidado no Palácio Ducal. Pareceram impressionados.
- Vai tomar parte no festival? - inquiriu a senhora Silvani.
- Não - respondi -, não me parece.
- Devia entrar - insistiu ela. - Esse festival é uma grande ocasião em Ruffano. As pessoas vêm de quilómetros de distância para o verem. No ano passado muitos tiveram que ficar de fora. Temos sorte. O meu marido conseguiu arranjar lugares na Piazza Maggiore e assistimos à procissão da Guarda Papal. Era tão realista que eu disse-lhe depois que me parecia termos estado a viver aqueles tempos. Quando o reitor me abençoou, no seu papel de papa Clemente, eu tive a impressão de estar a ser abençoada pelo próprio Santo Padre.
Atarefava-se a servir-me de comer e de beber.
- Sim - concordou o marido -, foi magnificente. Dizem que este ano ainda vai ser melhor, apesar da doença do reitor. O professor Donati é um grande artista. Há quem diga que ele errou a vocação. Devia ser realizador de cinema, em vez de gastar o seu tempo com o Conselho de Artes de cá. Ao fim e ao cabo, Ruffano não é mais que uma pequena cidade.
Comi, mais por desfastio do que por fome. A excitação e a emoção ainda me mantinham febril.
- Que espécie de pessoa é esse professor Donati? - perguntei.
- Viu-o hoje, não viu? - redarguiu. - Bem, pode julgar por si mesmo o que é que uma mulher sente por ele. Se tivesse metade da idade que tenho, não o deixava escapar-me.
O marido riu-se.
- É dos olhos pretos dele - afirmou. - Tem uma forma de olhar, não só em relação às mulheres, como também para a municipalidade. O que quer que peça, consegue. Falando a sério, no entanto, ele e o reitor, entre os dois, têm feito grandes coisas por Ruffano. É claro que é natural de cá. O pai, o senhor Donati, foi superintendente do palácio durante muitos anos, por isso ele sabe o que é necessário fazer. Regressou depois da libertação, para verificar que o pai tinha morrido num campo de prisioneiros e que a mãe fugira com um general alemão, levando consigo o irmão mais novo, toda a sua família, poder-se-ia dizer, desaparecida. Teve coragem ao aceitar isso. Ficou, Deu-se todo a Ruffano, nunca olhou para outro lado. Agora não se pode deixar de admirar o homem por essa atitude.
A senhora Silvani empurrou fruta na minha direcção. Abanei a cabeça recusando.
- Mais, não - disse. - Só café. - Aceitei um dos cigarros dela. - Então nunca se casou?
- Não. Sabe como é - explicou a mulher. - Quando
jovem regressara a casa em estado de choque - ele era piloto e foi abatido, tendo-se juntado à Resistência - e espera voltar a encontrar a família, não o faz amar o sexo oposto saber que a mãe desertou com um alemão. A minha opinião é que ele ficou enjoado de mulheres para sempre.
- Ah, não - contrariou o marido -, ele recuperou.
Afinal, não passava de um rapaz nessa época. O professor Donati deve ter agora uns quarenta. Dêem-lhe tempo. Há-de arranjar mulher quando se sentir disposto ao casamento.
Bebi o meu café e levantei-me.
- Está com ar de cansado - disse simpaticamente a senhora Silvani. - Fazem-nos trabalhar de mais na biblioteca. Deixe lá, amanhã é domingo. Pode ficar na cama todo o dia, se lhe apetecer.
Agradeci-lhe e subi as escadas. Tirei as roupas, com a cabeça ainda a queimar e estendi-me sobre a cama. Mas não para dormir. Só para recordar o rosto de Aldo à luz bruxuleante da lareira, na Sala dos Querubins, essa pálida e inesquecível face, e ouvir-lhe mais uma vez a amada, receada e bem recordada voz.
Passadas duas horas saí da cama, abri a janela e fiquei para ali a fumar um cigarro. O último passeante regressara a casa, e tudo estava tranquilo. Olhei pela rua acima e notei que as persianas do primeiro andar do n. o 5 estavam abertas, tal como as minhas. Uma mulher inclinava- se para fora, também acordada, também a fumar um cigarro. Se eu não conseguia dormir, também Carla Raspa não era capaz. Estávamos acordados pelo mesmo motivo.
Os sinos da igreja despertaram-me na manhã seguinte do sono profundo em que eventualmente caíra. Primeiro às sete, depois às oito. O Duomo, San Cipriano e as outras. Não eram as badaladas a marcar as horas, mas a chamada para a missa. Permaneci deitado na cama, a pensar como costumávamos ir, nós os quatro, o meu pai, a minha mãe, Aldo e eu, à missa em San Cipriano. Era nos dias anteriores à guerra. Levantávamo-nos cedo, vestíamos a roupa dos domingos, com Aldo resplandecente no seu uniforme da Juventude Fascista. As raparigas ficavam de olho nele, mesmo nessa época. Descíamos a colina até San Cipriano e começava o meu martírio junto do painel de Lázaro.
Ergui-me e escancarei as persianas que fechara na noite anterior. Estava a chover. Riachos de água corriam pelas beiras dos passeios. Algumas pessoas apressadas curvavam-se sob os guarda- chuvas. No extremo da rua, as persianas do primeiro andar do n. o 5 estavam firmemente cerradas. Não ia à missa desde os meus tempos de escola, em Turim. Pelo menos, não intencionalmente. Por vezes, escoltava um rebanho de turistas de visita à cidade e, detendo-me junto do altar- mor de uma igreja qualquer que estivéssemos a visitar, era obrigado a lá ficar a assistir. Hoje iria de minha livre vontade.
Estava meio vestido, quando uma pancada na porta me anunciou a chegada da senhora Silvani com pãezinhos e café.
- Não se mexa - recomendou. - Olhe para o tempo, Não há razão para se levantar.
Dissera a mesma coisa a mim próprio durante anos, quando o acaso me proporcionava um domingo livre, com bom ou mau tempo. Não havia motivo para me levantar em Turim, ou em Génova. Agora o mundo alterara-se.
- Vou à missa a San Cipriano - declarei.
Ela quase deixou cair o tabuleiro. Depois pousou-o cautelosamente sobre a cama.
- Espantoso - exclamou. - Pensava que já ninguém iaà missa, a não ser os velhos e os muito novos. Fico contente por ouvir isso. Costuma ir sempre?
- Não - respondi -, mas hoje é uma ocasião especial.
- Estamos na Quaresma - opinou. - Suponho que todos deveríamos ir.
- A minha Quaresma já terminou - retorqui. - Eu voú é celebrar a Ressurreição.
- Seria melhor ficar na cama e esperar pela Páscoa
aconselhou.
Bebi o café e acabei de me vestir. A cabeça já não me doía. Até tinha as mãos calmas. A chuva não importava, a morte da pobre Marta não interessava, a despeito da forma com ocorrera. Iria mais tarde visitar Aldo. Pela primeira vez na minha vida eu é que dava as cartas; estava preparado para isso e ele
não. Saí de casa para a chuva, com a gola do sobretudo leve,
que teria de fazer as vezes de gabardina, levantada até às orelhas.
As persianas ainda continuavam fechadas no n. o 5. Atravessavam a praça umas quantas pessoas, desgarradas, com o mesmo destino que eu. Outros acotovelavam-se sob as colunas, aguardando o autocarro com os jornais de domingo, ou à espera de outro que os levasse para fora de Ruffano. Alguns jovens, desafiando o mau tempo, montavam vespas".
- Não vai durar muito - gritou alguém por cima do rugido da sua máquina. - Dizem que o sol brilha na costa.
A chamada vinda de San Cipriano continuava a soar. Não tão profundamente como a do Duomo, mas para mim mais solene, mais coerciva, com uma súbita urgência, como que a instar os retardatários a irem ajoelhar-se antes que soasse a hora.
Uma vez lá dentro, comovido com o familiar aroma sombrio, senti-me chocado com a escassez de pessoas. Nos dias da minha infância, tínhamos de chegar cedo, porque o meu pai gostava de ocupar o lugar do costume. A igreja estava cheia, com pessoas de pé nas alas laterais. Actualmente não. O número de pessoas era de metade. Na sua maioria grupos familiares, mulheres e criancinhas. Fui colocar-me próximo da capela lateral, sentindo que estava a cumprir um rito muito antigo. As portas da capela encontravam-se abertas, mas não havia luz no painel de Lázaro. O quadro estava velado pela sombra. Bem como os outros painéis da igreja, as imagens e os crucifixos. Depois recordei-me de que devia ser Domingo da Paixão.
Ouvi cantar a missa, permitindo que as vozes finas dos meninos do coro me penetrassem profundamente e sem dor. O meu espírito encontrava-se vazio. Ou talvez estivesse a sonhar. Um padre de meia-idade, que não reconheci, pronunciou um sermão de vinte minutos, avisando-nos dos perigos do passado, dos que estavam para vir, dizendo-nos que o Senhor, Cristo, ainda sofria com os nossos pecados. Uma criança próxima de mim bocejava, a sua carinha cheia de fadiga, e uma mulher, que poderia ter sido a minha mãe, acotovelou-a para que prestasse atenção. Mais tarde, os poucos comungantes arrastaram-se para a balaustrada. Eram sobretudo mulheres. Uma delas, bem vestida, de cabeça coberta por um véu de renda preta, estivera ajoelhada durante toda a missa. Não se dirigiu à balaustrada. Manteve-se de cabeça inclinada e escondida nas mãos. Quando tudo terminou, quando os padres e os meninos se foram embora, as pessoas dispersaram com rostos solenes, embora de certa forma descontraídas por terem cumprido o seu dever. Então ela ergueu-se e voltou-se, permitindo-me ver que era a senhora Butali. Saí à frente e esperei-a no exterior da igreja. O rapaz da vespa, tinha tido razão. A chuva parara. O sol que brilhava na costa abrira caminho até Ruffano.
- Minha senhora? - chamei.
Ela olhou-me com olhos vazios de alguém que tivesse involuntariamente sido trazido de volta a um mundo menos agradável.
- Sim? - correspondeu.
Concluí que para ela nada significava. Não deixara traços na sua memória.
- Armino Fabbio - disse -, fui ontem a sua casa com uns livros.
Surgiu o reconhecimento. Conseguia ler-lhe o pensamento
a atravessar-lhe a mente. Ah, sim, o assistente de biblioteca.
- Desculpe, sim? - pronunciou. - Desculpe. O Bom
senhor Fabbio.
- Esteve na minha frente durante a missa - disse- lhe.
Pelo menos pensei que fosse a senhora. Não tinha a certeza.e Desceu os degraus a meu lado. Olhou para o céu, reparando que o guarda-chuva que transportava já não era necessário.
- Gosto de vir a San Cipriano - declarou. - Tem
mais ambiente que o Duomo. Irá estar bom tempo?
Olhava em volta de espírito ausente e eu senti-me momentaneamente ferido por ela demonstrar tão pouco interesse pelo homem que se encontrava a seu lado. Uma mulher bonita pressente normalmente a admiração de que é alvo, venha de onde vier. Existe uma implícita compreensão da homenagem que lhe está a ser prestada. A senhora Butali parecia não se dar conta dessas coisas.
- Tem carro? - perguntei.
- Não - informou. - Estão a repará-lo na garagem este fim-de-semana. Tive problemas com ele ao vir de Roma.
- Importar-se-ia, nesse caso, se a acompanhasse pela colina acima? Isto é, se vai para casa?
- De maneira nenhuma. Faça o favor.
Atravessámos a Piazza della Vita e principiámos a subir a Via Rossini até à Prefeitura, quando virou à esquerda, para subir as escadas na direcção da Via del Sogni. Aí, parámos para recuperar o fôlego e, pela primeira vez, olhou-me e sorriu.
-As colinas de Ruffano - disse. - Leva tempo uma pessoa acostumar-se a elas. Especialmente se, como eu, se vem de Florença.
Foi diferente quando ela sorriu. A boca que parecia rígida, desaprovadora, como a da gentil senhora no retrato que o meu pai adorava, relaxou-se até à feminilidade. Via-se-lhe humor nos olhos.
- Está com saudades da sua terra? - indaguei.
- Às vezes - replicou -, mas de que serve isso? Sabia para onde vinha quando me fixei aqui. O meu marido tinha-me avisado.
Virou-se abruptamente e começámos a trepar os degraus.
- Então não é uma vida fácil, ser esposa do reitor de uma universidade.
- Longe disso - respondeu. - Há tanta inveja, tantas facções às quais tenho de fechar os olhos. Sou menos paciente do que o meu marido. Ele dedicou literalmente a vida ao seu trabalho aqui. Se assim não tivesse sido, não se encontraria agora no hospital.
Fez uma vénia, dando os bons-dias a um casal que descia as escadas e, pela graciosa inclinação da sua cabeça, sem um sorriso, percebi por que é que Carla Raspa falara em despeito feminino. A senhora Butali, conscientemente ou não, exsudava polidez. Perguntei-me que efeito exerceria ela sobre as esposas dos professores.
- Na noite passada - disse eu - tive a sorte de obter um convite para o Palácio Ducal, para uma sessão pelo director do Conselho de Artes.
- Ah, sim? - exclamou com súbita animação. - Fale-me disso. Ficou bem impressionado?
- Fiquei muito impressionado - anuí, consciente de que se tinha agora voltado, para olhar directamente para mim. Não só com o local, iluminado por lanternas e archotes para a ocasião, mas também com a exibição de duelo que se lhe seguiu e, acima de tudo, com a forma como o professor Donati se dirigiu aos estudantes.
Uma mancha colorida acorreu-lhe às faces, devida, pressenti, não tanto ao esforço de trepar os degraus, como à reviravolta que a conversa sofrera.
- Tenho de ir a uma dessas sessões - decidiu -, tenho mesmo. Parece haver sempre qualquer coisa que me impede de estar presente.
- No ano passado - disse eu - disseram-me, a senhora representou no festival. Irá fazer o mesmo este ano?
- Não, é impossível - respondeu -, com o meu marido no hospital, em Roma. Em qualquer caso, duvido que houvesse um papel para mim.
- Conhece o tema?
- O pobre duque Claudio, não é? Receio que só o conheça vagamente. Sei que houve uma insurreição e que foi assassinado.
Tínhamos chegado à Via del Sogni e podia-se ver à distân cia o muro do jardim. Imperceptivelmente, retardei os meus passos.
- O professor Donati parece ser um homem notável - declarei. - Disseram-me na pensão onde estou instalado que ele é natural de Ruffano.
- Assim é - confirmou ela. - O pai foi superintendentt do Palácio Ducal e, de facto, ele nasceu e passou toda a sua infância na casa onde agora vivemos. Tem actualmente a ambição de a recuperar. Isso não será muito provável, a não ser que a saúde de meu marido nos force a retirarmo-nos. O professor
Donati adora cada compartimento daquela casa, como poderá
calcular. Presumo que tinha muito orgulho no seu pai e o seu
pai nele. A história da família é uma grande tragédia.
- Sim - concordei -, foi o que me disseram.
- Ele costumava falar-nos disso - esclareceu -, mas já
não o faz. Tenho esperanças de que comece a esquecer-se. Afinal, vinte anos é um longo lapso de tempo.
- Que foi feito da mãe dele? - perguntei.
- Nunca o conseguiu descobrir. Desapareceu com as forças alemãs que ocuparam Ruffano em mil novecentos e quarenta e quatro e, uma vez que houve combates no Norte pouco
depois, é quase certo que deve ter morrido em algum bombardeamento, ela e o irmãozinho mais novo.
- Havia um irmão?
- Sim, um rapazinho de dez ou onze anos de idade. Eram
muito amigos. Por vezes, penso que por causa dele é que o
professor Donati se dedica tanto aos estudantes.
Tínhamos atingido o muro do jardim. Olhei furtivamente
para o relógio. Passavam vinte minutos das onze.
- Obrigado, minha senhora - disse -, foi muito amável
da sua parte permitir que a trouxesse a casa.
- Não - replicou ela -, eu é que tenho de lhe agradecer. - Fez uma pausa, com a mão no portão do jardim. Quer conhecer pessoalmente o professor Donati? - perguntou. - Se quiser, terei muito prazer em apresentar-lho.
Senti-me tomado pelo pânico.
- Obrigado, minha senhora - agradeci -, mas eu não
queria de maneira nenhuma...
Regressou o sorriso.
- Não me incomoda nada. - Interrompeu-me. - É hábito o reitor convidar alguns colegas para sua casa todos os
domingos de manhã e, na sua ausência, eu faço o mesmo. Devem aparecer esta manhã duas ou três pessoas e seguramente o
professor Donati será uma delas.
Não tinha planeado assim as coisas. Pensara ir sozinho à casa dele na Via del Sogni. A senhora Butali tomou o meu pânico por embaraço, um assistente de biblioteca a sentir-se deslocado.
- Não seja tímido - aconselhou sorridente. - Será algo para contar amanhã aos outros assistentes!
Segui-a para dentro do jardim e para a porta da casa, ainda a pensar na desculpa a dar-lhe para me ausentar.
- A Anna deve estar ocupada a preparar o almoço - informou. - Você poderá ajudar-me nas bebidas.
Abriu a porta. Entrámos no vestíbulo, passando para a sala de jantar à esquerda. Já deixara de o ser. Estava forrada de livros do chão ao tecto e via-se lá uma grande secretária, próxima da janela.
- É a biblioteca do meu marido - esclareceu ela. Quando se encontra em casa, gosta de receber aqui as pessoas e, quando somos muitos, abrimos as portas duplas que dão para a sala de jantar, que fica ao lado.
A tal sala de jantar fora o meu quarto de brinquedos. Abriu as portas duplas e eu vi, estupefacto, como a mesa lá estava instalada no centro, pomposa e formal, posta para uma pessoa. Pensei na confusão em que costumava deixar o compartimento, com a minha frota de carrinhos espalhada pelo chão e duas latas viradas ao contrário, a servirem de garagens.
- O vermute está no aparador - informou a senhora Butali - e o Campari também. Os copos estão no carrinho. Leve-o para a biblioteca, sim?
Tinha composto as coisas à sua maneira e pegara em cigarros, quando a campainha tocou.
- Provavelmente são os Rizzio - disse. - Fico contente por o ter aqui, ela é tão formal. O professor Rizzio é chefe do departamento de Educação e a irmã está encarregada do Lar das Raparigas Estudantes.
Parecia subitamente vulnerável e mais nova do que a idade que tinha. Talvez quando o marido estivesse em casa suportasse ele o fardo das responsabilidades sociais.
Meti-me no meu papel de guia e aguardei junto do carrinho das bebidas, pronto a servir vermute a comando dela. Dirigiu-se à porta, para cumprimentar as visitas, e ouvi o murmúrio das saudações habituais. Depois introduziu os convidados na sala. Eram de meia-idade, grisalhos e angulares. Ele possuía a desgastada e fatigada aparência de uma pessoa perpetuamente mergulhada em trabalho até aos olhos, que se acumula em tabuleiros sobre uma secretária que nunca é limpa. Imaginava- o a gritar ordens ineficazes a torrentes de subordinados. A irmã tinha mais autoridade, comportando-se como uma matrona da Roma antiga. Tive pena das infelizes estudantes que viviam sob a sua orientação. Fui apresentado como o senhor Fabbio, assistente temporário na biblioteca. A senhora fez uma vénia, voltando-se de imediato para a sua anfitriã, a perguntar pela saúde do reitor.
O professor Rizzio olhou-me com ar intrigado.
- Desculpe - interpelou-me. - Mas não me recordo do seu nome. Há quanto tempo é que trabalha na biblioteca?
- Desde sexta-feira - esclareci. - Fui contratado pelo senhor Fossi.
- Com que então a sua nomeação passou pelas mãos dele? - perguntou.
- Sim, professor - respondi. - Candidatei-me junto do senhor Fossi, que falou com a secretaria.
- De verdade! - exclamou. - Fico surpreendido por ele não me ter consultado.
-Suponho que não tenha querido sobrecarregá-lo com assunto tão insignificante - murmurei.
- Qualquer nomeação, mesmo que de pouca importância, é do interesse do substituto do reitor - declarou. - De onde é o senhor?
- Tenho trabalhado em Génova, professor - expliquei -, mas a minha terra é Turim. Formei-me lá na Universidade. Tenho uma licenciatura em Línguas Modernas.
- Isso, pelo menos, já é bom - afirmou. - É mais do que têm os outros assistentes temporários.
Perguntei-lhe o que queria tomar e ele pediu um copinho de vermute. Servi-lho e afastou-se. A irmã disse que não tomaria nada mas, quando a senhora Butali protestou, a senhora Rizzio acedeu a aceitar um copo de água mineral.
- Então trabalha na biblioteca? - indagou ela, intimidando-me com a sua presença.
As mulheres altas provocam em mim os piores sentimentos, como acontece à maioria dos homens de altura inferior à média.
- Passo lá o tempo, minha senhora - respondi. - Estou de férias e acontece que essas funções me convêm.
- É uma pessoa com sorte - retorquiu, fitando-me. Muitos estudantes do terceiro ou quarto ano teriam muito gosto em aproveitar tal oportunidade.
- Possivelmente, minha senhora - concordei, em tom suavemente cortês -, mas eu não sou estudante. Sou um guia de turismo, que fala várias línguas, e estou habituado a conduzir grupos de reputação internacional através das mais importantes cidades do nosso país: Florença, Roma, Nápoles...
O aborrecimento pela minha impertinência desenhou-se-lhe nas feições. Bebeu um gole de água mineral e a garganta tremeu-lhe enquanto o líquido passava. Outro toque na porta da frente poupou-a de mais incómodos. A minha anfitriã, com ouvidos só para a campainha, virou- se para mim de faces coradas.
- Importa-se de atender por mim? - pediu. - É provavelmente o professor Donati.
Continuou a sua rápida conversa com o professor Rizzio, uma animação forçada a disfarçar a tensão interior. Um guia raras vezes bebe. Não se atreve a isso. Agora, no entanto, engoli rapidamente um copo de vermute sob o olhar desaprovador da senhora Rizzio e, pedindo desculpa, dirigi-me à porta da frente. Aldo já a tinha aberto, na sua qualidade, sem dúvi da, de persona grata na casa e franzia as sobrancelhas à vista da gabardina do professor Rizzio, atirada para cima de uma cadeira. Depois, os seus olhos caíram sobre mim. Sem me conhecer. Sem ao menos um lampejo de interesse.
- A senhora Butali está à sua espera - balbuciei.
- Assim creio - disse. - Quem é o senhor?
- Chamo-me Fabbio - respondi. - Tive a honra de o conhecer ontem à noite no Palácio Ducal. Estava com a menina Raspa.
- Oh, sim - declarou -, sim, já me recordo. Espero que tenha gostado.
Não se recordava. Não tinha importância aquilo que eu pensara da noite. Encaminhou-se para a sala de jantar, ou melhor, para a biblioteca, e a sala tornou-se imediatamente viva. A senhora Butali, sem lhe perguntar o que queria, encheu até meio um copo de Campari e entregou-lho.
- Obrigado - agradeceu, aceitando sem a olhar. A campainha da porta da frente tocou mais uma vez e, interrogando a minha anfitriã com um olhar, fui abri-la. Tais deveres domésticos mantiveram-me ocupado e serviram para acalmar a ameaçadora tremura das minhas mãos. O senhor Fossi estava diante de mim no limiar da porta, acompanhado por uma senhora. Pareceu surpreendido ao ver-me e apresentou-me imediatamente a senhora como sendo a sua esposa. De alguma forma, não pensara que fosse casado.
- O senhor Fabbio está a ajudar-nos temporariamente na biblioteca - explicou à mulher e, perguntando-lhe eu como se sentia, respondeu-me rapidamente que tinha recuperado.
Voltei a ocupar o meu lugar junto do carrinho das bebidas e servi-os. A conversa girava em torno da saúde, com a nossa anfitriã a mostrar-se aflita com o motivo para a ausência do senhor Fossi na biblioteca, no dia anterior.
- Felizmente - afirmou -, o senhor Fabbio teve a amabilidade de vir trazer os livros que eu pedi.
O bibliotecário, ansioso por desviar a conversa da sua anterior indisposição, não insistiu no empréstimo dos livros, perguntando imediatamente pelo reitor. Generalizou-se a conversa sobre o professor Butali, cada a um a demonstrar a sua esperança de que pudesse sair do hospital a tempo do festival.
Por trás de mim, ouvia a senhora Rizzio a queixar-se a Aldo do grosseiro comportamento dos estudantes da C. e E., que circulavam de noite pela cidade, nas suas vespas.
- Eles até têm a insolência de fazer estrondear as máquinas junto da residência das alunas - referiu -, por vezes às dez da noite. Pedi ao meu irmão para falar com o professor Elia, e ele assegura-me que o fez, mas que o professor não reagiu. Se isto continuar levarei o caso até ao Conselho da Universidade.
- Talvez - sugeriu Aldo - as suas meninas encoragem os entusiastas das vespas, das suas janelas.
- Garanto-lhe que não o fazem - retorquiu a senhora Rizzio. - As minhas meninas, como lhes chama, ou estão ocupadas a ler os seus apontamentos para a próxima aula, ou seguramente metidas na cama, com as persianas fechadas.
Servi-me de outro copo de vermute. Então, erguendo os olhos, apercebi-me de Aldo a observar-me, intrigado. Afastei
-me do carrinho colocando-me junto da janela, a olhar para o jardim lá em baixo. As vozes zumbiam. A campainha tocou, Outra pessoa foi abrir. Desta vez não me dei ao trabalho de avançar para ser apresentado e creio que a minha anfitriã se esquecera de mim.
Finalmente, enquanto ainda estava a contemplar o jardim, senti uma mão no ombro.
- Você é um tipo estranho - comentou Aldo. - Continuo a perguntar a mim mesmo o que estará aqui a fazer. Já alguma vez nos teremos encontrado antes?
- É possível - anuí -, se eu me disfarçar com uma fronha de almofada e me esconder lá em cima no armário da roupa de cama, talvez possas reconhecer-me. O meu nome é Lázaro.
Virei-me e encarei-o. O sorriso desvaneceu-se-lhe. As feições dissolveram-se-lhe. Só tive consciência de dois enormes olhos como brasas, numa face pálida. Foi o meu momento supremo. Pela única vez na sua vida, o discípulo tinha assombrado o mestre.
- Beo... - balbuciou. - Oh, meu Deus, Beo... Não se mexeu. O aperto no meu ombro afrouxou. Deu-me a impressão de que os seus olhos haviam engolfado toda a sua pessoa. Depois, com um tremendo esforço, controlou-se. A mão caiu-Lhe.
- Dá uma desculpa qualquer e vai-te embora - comandou. - Espera por mim lá fora. Eu seguir-te-ei. Há lá um carro, um Alfa-Romeo, mete-te nele.
Como um sonâmbulo, atravessei a sala e, murmurando uma desculpa qualquer à minha anfitriã, agradeci-lhe pela amabilidade e despedi-me. Fiz uma vénia ao resto do grupo, que poderia ter reparado em mim. Saí da casa, atravessando o jardim na direcção da rua. Havia três carros estacionados junto do muro do jardim. Meti-me no Alfa-Romeo, como ele me ordenara. Fiquei lá sentado a fumar um cigarro e, mais tarde, observei a partida dos Rizzio, depois dos Fossi e outros que não tinha conhecido. Aldo veio por fim. Entrou no carro sem dizer uma palavra e bateu com a porta. Afastámo-nos. Não na direcção da sua casa, mas pela colina abaixo e para fora da cidade, através da Porta Malebranche. Continuava a não proferir palavra e só depois de Ruffano nos ficar para trás e de ter levado o carro para os montes é que travou repentinamente, desligou o motor e se virou para me encarar.
Os seus olhos nunca abandonaram o meu rosto. Era a veLha inspecção de que eu me recordava. Costumava fazê-lo quando me levava à rua, para ver se eu tinha o cabelo penteado, se os meus sapatos estavam limpos. Por vezes mandava-me para trás, a fim de mudar de camisa.
- Sempre disse que nunca havias de crescer - concluiu.
- Tenho um metro e sessenta e cinco - redargui.
-Tanto? Não acredito.
Deu-me um cigarro e acendeu-mo. Tinha as mãos firmes, as minhas é que não estavam.
- Perdeste os caracóis. De outra forma, tinha-te reconhecido - afirmou ele.
Puxou-me o cabelo, num gesto brutal que invariavelmente me magoava nos velhos tempos. Ainda me fez doer. Sacudi a mão.
- Foi o barbeiro em Francoforte - esclareci. - Rapou-me o cabelo e, depois disso, passou a crescer-me liso. Eu queria parecer-me com o brigadeiro e, durante algum tempo, consegui.
- O brigadeiro?
-Um ianque. Vivemos com ele dois anos.
- Pensei que tivesse sido com um alemão.
- O alemão foi antes disso. Só durou seis meses depois de partirmos de Ruffano.
Abri a janela do carro e olhei para fora, para o volume azul da montanha que se estendia à nossa frente. Era o monte Cappello. Víamo-lo das janelas da nossa casa.
- Ela ainda é viva?
-Não. Morreu há três anos, de cancro.
- Ainda bem.
Uma ave, um falcão de uma espécie qualquer, entrou no meu campo de visão, pairando, a flutuar contra o fundo do céu. Pensei que fosse mergulhar, mas ele elevou-se ainda mais alto, num círculo que se alargava, e voltou outra vez a flutuar.
- Como é que o apanhou? - perguntou Aldo. O que ele parecia querer dizer era como é que a doença a atacara mas, conhecendo o meu irmão como eu conhecia, compreendi que se estava a referir a 1944.
- Isso perguntei eu muitas vezes a mim mesmo - respondi. - Não creio que fosse por causa da morte do pai ou das notícias a teu respeito. Ela aceitou as duas coisas como fatalidades passíveis de suceder a qualquer pessoa. Talvez se sentisse só. Pode ser que, pura e simplesmente, tivesse falta de homens.
- Não - contrariou Aldo. - Isso eu teria percebido. Era sempre capaz de a entender. - Não fumava. Tinha o braço estendido sobre as costas do meu assento. - Os despojos da vitória - disse, passado um bocado -, foi o que ela pensou de si própria. Para uma mulher com o feitio dela, basicamente convencional e submissa ao seu marido, isso deve ter actuado como um afrodisíaco. Primeiro o comandante alemão, na sua própria terra natal, a seguir o ianque, depois do mito alemão ter ido pelos ares. Sim... sim... estou a ver o padrão. Muito interessante.
Também achei que era, para ele. Tal como ler sobre história. Não, se uma pessoa tivesse estado metida naquilo tudo, como eu.
- Porquê o nome Fabbio? - inquiriu.
- Já te ia contar. Isso foi mais tarde, em Turim, quando o brigadeiro ianque partiu de Francoforte para os Estados Unidos. Conhecemos Enrico Fabbio no comboio. Mostrou-se bem-educado e ajudou-nos com a nossa bagagem. Dentro de três meses - era empregado num banco - tinha casado com ela. Não poderia ter sido mais amigo dela. E fez parte do rom pimento com o passado eu ter recebido o nome dele. Afinal pagou para isso.
- Pois foi. Ele pagou.
Olhei de relance para o meu irmão. Estaria ele a ressentir-se da existência de um padrasto? O tom da sua voz era estranho.
- Ainda lhe estou agradecido - declarei. - Continuo a ir vê-lo quando vou a Turim.
- E foi só isso?
- Sim. Que mais poderia ser? Ele nunca substituiu o pai ou a ti. Limitava-se a ser um homenzinho simpático, com um certo sentido familiar.
Aldo riu-se. Perguntei-me por que é que a minha descrição o fizera achar piada.
- Em qualquer caso - disse eu -, nós nada tínhamos em comum para além de partilharmos um telhado e comermos a mesma comida e, depois de me ter formado em Turim, parti em liberdade. Não me agradaria um emprego no banco, como ele sugeriu, por isso as minhas línguas serviram-me para entrar no turismo.
- Em que posição?
- Estagiário no escritório, funcionário administrativo, guia e, finalmente, acompanhante de excursões.
- Corretor - interveio.
- Bom, sim... de certa maneira. Um corretor de categoria. Um grau acima do tipo que vende postais na Piazza Maggiore.
- Qual é a tua firma? - quis saber.
- Sunshine Tours, de Génova - informei.
- Óptimo! Óptimo! - exclamou.
Tirou o braço das costas do assento e ligou o motor. Era como se o meu interrogatório de admissão estivesse terminado. Não eram necessárias mais perguntas. Assunto encerrado.
- Pagam bem - protestei em autodefesa - e conheço todo o género de pessoas. É uma grande experiência, estou sempre a viajar...
- Para onde? - perguntou.
Não Lhe respondi. Realmente, para onde... Meteu uma mudança e o automóvel roncou avançando, trepando os declives que nos rodeavam, a estrada que se contorcia sobre si mesma como os anéis de uma serpente. A região espalhava-se a nossos pés, o solo era uma mancha parda e cor de azeitona e, ao longe, a oeste, a cidade de Ruffano rebrilhava, implantada nas suas duas colinas, num estreito círculo sob o sol.
- E tu? - inquiri.
Sorriu. Acostumado como estava à forma de Beppo conduzir o autocarro através da Toscana e das ondulações de terreno
da Úmbria, onde a velocidade, por necessidade, era uma alternativa à segurança, o desrespeito do meu irmão pela sua região
natal parecia-me profundo. Cortejava a morte em cada curva.
- Viste ontem à noite - respondeu ele. - Sou bonecreiro. Puxo os cordéis, os bonecos dançam. É preciso grande habilidade.
- Acredito. Mas não vejo porquê. Todo esse treino e propaganda para um único dia do ano, para um festival de estudantes?
- É o dia deles - afirmou -, esse festival. É um mundo
em miniatura.
Não respondera à minha pergunta, mas deixei passar isso
em claro. Depois, abruptamente, fez-me a pergunta para a
qual eu não possuía resposta:
- Por que é que não regressaste antes a casa?
O ataque é o melhor método de defesa. Não me recorda
quem primeiro disse essa frase. O comandante alemão costumava citá-la.
- De que serviria regressar se pensava que tu estavas
morto?
- Obrigado, Beo - replicou. Pareceu-me surpreendido. - De qualquer forma - acrescentou -, voltaste agora
e poderei servir-me de ti.
Poderia ter dito aquilo de outra forma, após vinte e dois
anos. Perguntei-me se seria aquele o momento oportuno para Lhe falar de Marta. Decidi que não.
- Tens fome? - perguntou-me.
- Sim.
- Então vamos regressar. À minha casa, no número dois
da Via del Sogni.
- Eu sei. Fui visitar-te ontem à noite, mas ainda não
tinhas chegado.
- É provável. - Não se mostrava interessado nisso.
Pensava em qualquer outra coisa.
- Aldo - indaguei -, que iremos dizer? Contaremos a verdade a toda a gente?
- Qual verdade?
- Ora, que somos irmãos.
- Ainda não decidi - replicou. - Talvez seja melhor não o fazermos. Quanto tempo vais cá estar? A Sunshine Tours pôs-te na rua?
- Não - esclareci -, não me despediram. Eu é que tirei umas férias.
- Então, é fácil. Pensaremos em qualquer coisa. O automóvel virou das colinas para o vale, lá em baixo, aumentando de velocidade como uma seta na direcção de Ruffano. Entrámos na cidade vindos do sul, subindo a escarpada Via dell Settembre, passando pela Residência dos Estudantes e depois a direito. Travou antes da porta dupla de sua casa.
- Sai - mandou.
Olhei em volta, meio esperançado de que tivéssemos sido vistos, mas a rua estava deserta. Todos se encontravam dentro de suas casas, a almoçar.
- Vi o Jacopo ontem à noite - disse eu ao entrarmos juntos pelo alpendre -, mas ele não me reconheceu.
- Por que haveria de te reconhecer?
Deu a volta à chave e empurrou-me para o vestíbulo. Voltei vinte anos atrás. O mobiliário, a decoração, até os quadros nas paredes, eram aqueles que tínhamos tido em casa. Fora isso que eu procurara, sem encontrar, no n. o 8. Ergui os olhos sorridentes para Aldo.
- Sim - confirmou ele -, está tudo aqui. O que restou. Baixou-se, para apanhar um envelope que estava caído no chão. Aquele que Carla Raspa devia ter enfiado por baixo da porta, na noite anterior. Deu uma vista de olhos à caligrafia e atirou-o para cima de uma mesa sem o abrir.
- Entra - disse. - Eu vou chamar o Jacopo. Passei para aquilo que devia ser a sua sala de estar. As cadeiras, a secretária, o divã de costas rígidas no qual a minha mãe se costumava sentar, reconheci-os a todos. O retrato do nosso pai, pendurado na parede, próximo da estante de livros. Dava-me a impressão de ele ter rejuvenescido, de ter aumentado de estatura, mas o seu ar de benigna autoridade ainda se mantinha, para minha humilhação. Sentei-me e olhei em volta, com as mãos enclavinhadas nos joelhos. As únicas concessões a uma época posterior eram gravuras de aviões noutra parede. Aviões em combate. A subirem, a mergulharem, com fumo a sair-lhes das caudas.
- O Jacopo trará o almoço directamente para aqui - disse Aldo, regressando à sala. - Demorará alguns minutos. Toma uma bebida.
Dirigiu-se a uma mesa ao canto - também a reconhecie - serviu dois Campari em copos que também tinham sido nossos.
- Nunca me tinha apercebido, Aldo - comentei, fazendo um gesto que abrangeu a sala -, de que tudo isto significasse tanto para ti.
Bebeu o Campari de um só gole.
- Mais, é claro - respondeu -, do que as coisas do senhor Fabbio significaram para ti.
Críptico, mas que importava? Isso não me preocupava. Nada me preocuparia. Sentia-me vogar numa maré de Páscoa, No nosso próprio ambiente.
- Disse ao Jacopo quem tu és - informou Aldo. - Creio que foi melhor assim.
- Como queiras - anuí.
- Onde estás instalado?
- Na Via San Michel, número vinte e quatro, com a senhora Silvani. Tem a casa cheia de estudantes, mas receio, não ser do teu credo. Tudo de Comércio e Economia, muito into lerante.
Ele sorriu.
- Isso é bom - declarou -, mesmo muito bom. Encolhi os ombros. A rivalidade existente entre as duas facções ainda me ultrapassava.
- Poderás ser um elo de ligação - acrescentou ele.
Pensei naquilo, olhando para dentro do meu copo de Campari. Pareceu-me recordar situações semelhantes do passado, nem sempre bem sucedidas, quando eu andava no liceu de Ruffano. Mensagens enfiadas nos bolsos de colegas de estudos, que por vezes se extraviavam. O papel trazia desvantagens.
- Isso é que não sei - disse.
- Mas sei eu - garantiu Aldo.
Jacopo entrou para trazer o almoço. Eu cumprimentei-o com um Olá", mas ele pousou o tabuleiro e pôs-se em sentido, como uma ordenança.
- Peço desculpa por não o ter reconhecido ontem à noite, senhor Armino - proferiu. - Tenho muito prazer em revê-lo.
- Não sejas pomposo - admoestou o meu irmão. - Beo tem somente um metro e meio de altura. Ainda é suficientemente pequeno para o sentarmos nos joelhos.
O que ele fazia em 1943. Ser amimado por Aldo. Esquecera-me disso. Marta tinha protestado e fechara a porta da cozinha. Marta.
Jacopo serviu o almoço e uma grande garrafa de vinho, feito de uvas da região. Mais tarde perguntei a meu irmão se era ele que fazia tudo sozinho.
- Lá se arranja - responde Aldo. - Vem uma mulher fazer as limpezas. Eu dei trabalho à Marta, até ela começar a beber. Depois não servia para nada. Tive de a mandar embora.
Chegara a altura. Eu já acabara de comer. Aldo ainda continuava.
- Tenho uma coisa para te contar - disse-Lhe. - Será melhor falar-te já nisso, porque me envolvi no caso. Creio que a Marta morreu. Assassinada.
Ele pousou o garfo e pôs-se a olhar-me por cima da mesa.
- Que raio queres dizer com isso? - perguntou rispidamente.
Os seus olhos, acusadores, nunca abandonaram o meu rosto. Limpei a boca, empurrei a cadeira para trás e comecei a caminhar de um lado para o outro pela sala.
- Posso estar enganado - declarei. - Mas penso que não. Receio não estar enganado. E, se for verdade, a culpa é minha. Foi por causa de uma coisa que eu fiz.
Contei-lhe toda a história. Do princípio ao fim. Os turistas ingleses, o américa" solitário e a sua gorjeta de dez mil liras, o meu pesadelo a altas horas da noite e a sua relação com o painel de San Cipriano. O artigo de jornal no dia seguinte, a visita à Polícia, o reconhecimento do cadáver, e o impulso que me tinha trazido a Ruffano. Finalmente, a visão do sapateiro Ghigi e de sua irmã Maria a desaparecerem, na véspera, sob a custódia da Polícia local.
Aldo escutou-me até ao fim, sem uma única interrupção. - Não o olhava enquanto Lhe contava a minha história. Limitava-me a percorrer a sala para um lado e para o outro, falando muito depressa. Conseguia ouvir-me a gaguejar, como o faria na frente dum juiz, e estava sempre a corrigir-me quanto a pequenos pormenores que não interessavam.
Quando terminei, sentei-me outra vez na cadeira. Pensava que os seus olhos acusadores ainda estavam fixos em mim. Mas ele descascava uma laranja, imperturbável.
- Estás a ver? - inquiri, exausto. - Estás a compreender? Meteu um grande gomo de laranja na boca e engoliu-o.
- Sim, estou a ver - afirmou. - É bastante fácil de verificar. Estou de boas relações com a Polícia de Ruffano. Só preciso de levantar o telefone e perguntar-lhes se é verdade que a morta é a Marta.
- E se for?
- Bem, é mau - disse, pegando noutro gomo. - De qualquer forma ela tinha de morrer, no estado em que se emcontrava. Os Ghigi não a conseguiam controlar. Ninguém conseguia. Pergunta ao Jacopo. Era uma alcoólica.
Não tinha entendido. Não percebera que, se era a que tinha sido assassinada, então fora-o porque eu Lhe metera dez mil liras na mão. Expliquei-lhe isso pela segunda vez. Terminou a laranja. Mergulhou os dedos na tigela de água que tinha ao lado do prato.
- E depois? - perguntou.
- Não achas que é uma coisa que eu deveria ter contado à Polícia, em Roma? Isso não iria explicar o motivo para o homicídio? - repeti.
Aldo pôs-se em pé. Dirigiu-se à porta e gritou por Jacopo, a pedir café. Depois de ter sido servido e de ter fechado a porta, encheu as chávenas para ambos e começou a mexer o seu, pensativamente.
- Um motivo para o homicídio - disse. - É uma coisa que todos nós temos, num ou noutro momento. Tu, tal como outro qualquer. Vai a correr à Polícia, se quiseres, e conta-lhes o que acabaste de me contar a mim. Que viste uma velhota estendida nos degraus de uma igreja e ela te fez lembrar um painel de um altar que te metia muito medo em criança. Belo. depois, que havias de fazer? Inclinaste-te sobre ela, que ergueu a cabeça. Reconheceu-te como sendo a criança que fugiu com o exército alemão, há vinte anos atrás. Tu reconheceste-a e algo explodiu no teu cérebro. Mataste-a, num impulso cego, para apagar uma recordação de um pesadelo que te persegue e depois, para acalmar a tua consciência, meteste-lhe uma nota de dez mil liras na mão.
Engoliu o café e atravessou a sala. Pegou no telefone.
- Vou ligar ao comissário - declarou. - Como é domingo deve estar muito provavelmente em casa. Pelo menos poderá dar-me as últimas notícias.
- Não, espera, Aldo... - explodi, em pânico súbito.
- Esperar porquê? Tu queres saber, não queres? Eu também. - Pediu um número. Estava tudo fora do meu controlo. Deixara de ser o meu segredo, o meu torvelinho íntimo. Aldo partilhava agora aquilo mas, por o fazer, tornava pior a minha confusão. Eu podia ter cometido o assassínio, tal como ele o descrevia. Não dispunha de testemunhas para comprovarem um alibi. O próprio motivo que ele sugeria fazia tremendo sentido. Protestos de inocência seriam em vão. A Polícia não me acreditaria; por que haveria de acreditar? Nunca seria capaz de provar que estava isento de culpas.
- Não me vais denunciar, pois não? - perguntei. Ergueu os olhos ao céu e fingindo desespero falou para o aparelho.
- É o senhor comissário? - disse. - Espero não ter interrompido o seu almoço. Fala Donati, Aldo Donati. Muito bem, obrigado. Comissário, fiquei muito perturbado por um boato que corre em Ruffano, e que me foi trazido pelo meu empregado Jacopo. Diz que a minha antiga ama de família, Marta Zampini, que tinha aparentemente desaparecido há dias, pode ser aquela mulher que foi assassinada em Roma... Sim. sim... Não, estou muito ocupado, como sabe. Raramente leio um jornal e, em qualquer caso, não vi nada acerca disso... Os Ghigi, sim. Há alguns meses que estava a morar com eles... estou a ver... Sim... - Os seus olhos viraram-se para mim, acenando com a cabeça. O meu coração parou. Era verdade e eu estava ainda mais confundido. - Então não há dúvida nenhuma a esse respeito, hem? Desculpe. Ela andava completamentt desfeita, sabe. Costumava dar-lhe trabalho, até se ter tornado completamente impossível. Os Ghigi não lhe poderão dizer nada, suponho eu. Porquê Roma? Sim, algum impulso, tal vez... E espera fazer uma prisão dentro em breve. Óptimo, Óptimo. Obrigado, comissário. Sim, ficar-lhe-ia muito agradecido se me contactasse logo que tivesse mais notícias. Entretanto guardarei isto em confidência, naturalmente. Obrigado, obrigado.
Voltou a pousar o auscultador. Pegou num maço de cigarros por encetar, que tirara de uma caixa, e atirou-mos.
- Acalma-te - aconselhou -, em breve estarás livre disso. Eles esperam fazer uma prisão dentro de vinte e quatro horas.
A sua presunção de que o receio pela minha própria
liberdade estava na base da minha desorientação, era um remanescente da atitude que assumia para comigo nos velhos tempos e não valia a pena contrariar. Culpado, sim. Culpado por lhe ter metido dinheiro na mão e não ter regressado. Culpado por ter atravessado para o outro lado da rua.
A consciência torturada fez-me atacar.
- Por que é que bebia? - perguntei. - Não olhaste por ela?
A apaixonada resposta espantou-me.
- Alimentei-a, vesti-a, acarinhei-a, mas ela foi-se abaixo - disse. - Porquê? Não me perguntes. Uma regressão a um protótipo, aos seus antepassados camponeses bêbedos. Quando uma pessoa tem inclinação para o suicídio não é possível detê- la. - Gritou mais uma vez por Jacopo. O homem entrou e levou o tabuleiro do café. - Eu não estou para ninguém - afirmou Aldo. - Beo e eu temos vinte e dois anos de atraso. Levará mais que umas horas a recuperá-los.
Olhou-me, e depois sorriu. A sala, agora familiar e pessoal por causa do seu conteúdo, fechou-se sobre mim. A responsabilidade pelo mundo e todos os seus males já não era minha. Aldo encarregar-se-ia dela.
Sentámo-nos a conversar, deixando passar o dia. De vez em quando, Jacopo entrava com café feito de novo e voltava a sair sem uma palavra. A sala enchia-se com o fumo dos meus cigarros, meus, não de Aldo. Ele deixara de fumar, segundo disse, e há muito perdera o vício. Saquei-lhe, indirectamente, com perguntas lançadas ao acaso, a história dos seus anos de vida a seguir à guerra. Como, após o Armistício, se juntara à Resistência. Mesmo então, nada sabia do fatal telegrama que nos avisara da sua morte, e presumira que nós acreditássemos que era prisioneiro de guerra. Só quando regressou a Ruffano, alguns meses depois de termos fugido dali com o comandante, soube a verdade da boca de Marta. Eles, por seu turno, tinham ouvido o boato de que, enquanto se deslocava para a fronteira norte da Áustria, o nosso comboio tinha sido bombardeado e a nossa mãe e eu mortos. Assim, separadamente, os nossos mundos haviam-se desintegrado.
Ele, um jovem de vinte anos; eu, uma criança de doze, cada um tivera de enfrentar uma nova existência. A minha fora olhar, semana após semana, para uma mulher sem raízes que cada dia, cada noite, se tornava mais superficial, mais falha de discernimento, mais murcha, mais caduca; a dele fora recordá-la no momento em que lhe dissera adeus, durante a sua última viagem a casa de licença, calorosa, amorosa, cheia de planos para o futuro... e depois ver a sua imagem ruir quando, não só Marta como todos aqueles que a haviam conhecido em Ruffano, lhe contaram o fim que tivera. A bisbilhotice que houvera, a vergonha, o escândalo. Um ou outro tinha-a mesmo visto fugir de carro, a rir-se, ao lado do seu comandante, enquanto eu agitava uma bandeira com a cruz suástica através da janela do automóvel.
- Esse foi o golpe final - disse Aldo. - Tu, com a tua bandeira.
Recomecei imediatamente a reviver a cena e, através dos seus olhos, a vergonha de minha mãe transformou-se na minha vergonha e sofri por ela. Não apresentei desculpas. Ele não aceitaria nenhuma.
- Não vale a pena, Beo - garantiu. - Eu não quero ouvir. O que quer que tenha feito em Francoforte ou Turim, seja qual for a vida que tenha levado com esse homem, Fabbio, a quem chamas teu padrasto, quer tenha estado doente, infeliz ou com dores, isso não conta. Ela morreu para mim no dia em que saiu de Ruffano.
Perguntei-lhe se visitara a campa do nosso pai. Tinha-o feito. Tinha ido ao campo de prisioneiros onde fora enterrado. Uma só vez. Nunca mais voltara. Também não queria falar nisso.
- Está ali pendurado na parede - exclamou, gesticulando na direcção do retrato -, é tudo o que preciso para me lembrar dele. Isso e os seus pertences, aqui nesta sala. Para além do legado de tudo o que fez no Palácio Ducal. Tornei minha missão continuar a partir do ponto em que ele parou mas, como vês, com mais autoridade do que ele nunca teve. É esse o meu objectivo.
Falava com uma estranha amargura, como se, a despeito da sua posição em Ruffano e da ascensão que conseguira, os anos tivessem sido desperdiçados. Algo ainda lhe escapava. Não a satisfação de uma ambição pessoal, não o dinheiro, não a fama. Falava continuamente de si próprio, no passado. Eu quis isto, eu quis aquilo. Decidi dedicar-me a esta ou àquela tarefa. Nem uma vez no presente, ou no futuro. Mais tarde, numa das pausas na nossa conversa, eu disse-lhe: Não tencionas casar-te um dia? Criar família? E que é que deixarás atrás de ti quando morreres? Riu-se. Estava nessa altura de pé junto da janela, a olhar para fora, para as colinas distantes. Dali podia avistar-se o monte Cappello, até junto do qual fôramos de manhã. Agora, com a aproximação do crepúsculo, distinguia-se alto e claro contra o céu, azul como a cabana de um mandarim.
- Lembras-te? - perguntou. - Quando eras muito pequeno? Eu às vezes tinha muito trabalho a construir um castelo de cartas na mesa da sala de jantar, a mesma onde hoje estivemos a comer. Cobria-lhe todo o tampo... usava uma meia
dúzia de baralhos. Depois vinha o momento do triunfo, quando, com um só sopro, fazia ruir todo o edifício.
Lembrava-me muito bem disso. As frágeis cartas a tremerem, balançando como um pagode gigante, o efeito, pousada a
última delas, estranhamente perturbante, inspirador e belo aos
olhos de uma criança.
- Sim - respondi. - Que tem isso a ver com a minha
pergunta?
- Tudo - asseverou.
Atravessou a sala, pegou numa das gravuras de aviões que
estavam penduradas nas paredes e trouxe-ma. Era de um avião
de caça, a tombar no chão, em chamas.
- Este não era o meu, mas poderia ter sido - declarou. É como eu via os outros irem-se. Camaradas, ao lado de quem
tinha voado. O meu parecia um archote, saltei antes de ter explodido, depois desabou sobre o terreno, como um papagaio
faiscante. O que interessa é que, no momento do impacte,
quando fui atingido, estava nessa mesma altura a ganhar altitude e apercebi-me do que se passara, a explosão e eu, liberto no
céu, sucederam quase simultaneamente, e o momento de triunfo, de êxtase, foi indescritível. Foi morte e foi poder. Criação e
destruição ao mesmo tempo. Vivi e morri.
Voltou a pendurar a gravura na parede. Eu continuava a
não perceber o que aquilo tinha a ver com casamento ou com
a fundação de uma família, a não ser que a experiência por que
ele passara, que eu procurava visualizar e na qual o seguia em
vão ainda a contemplar a gravura na parede, tivesse destituído
todas as coisas de valor. Ter conhecido e desfrutado da morte
apoucara a vida.
Aldo consultou o relógio. Era um quarto para as sete.
- Tenho de te deixar - informou. - Tenho uma reunião
no Palácio Ducal. Pode não demorar mais de uma hora. Mais
discussões sobre o festival.
Em todo o dia, não tínhamos abordado o festival. Nem nenhuma das suas actuais actividades. O passado estivera todo o tempo connosco.
- Tens algum encontro depois? - perguntou ele. Sorri e abanei negativamente a cabeça. Que me importava ter um encontro, agora que estávamos juntos?
- Óptimo - comentou. - Nesse caso, levar-te-ei a jantar com Livia Butali.
Pegou no telefone e pediu um número. Instantaneamente, vi-me no exterior da nossa velha casa, mais para baixo na Via del Sogni. Ouvi o som do piano. Outra vez Chopin; a música parou subitamente e visualizei a executante atravessar a sala para atender o telefone, cujo retinir aguardara todo o dia.
Aldo falou para o aparelho.
- Duas pessoas - disse. - Digamos às oito e um quarto. Cortou cerce as perguntas dela e desligou. Podia imaginá-la ali de pé, frustrada, interrogando-se, depois regressando ao piano, para explodir num apaixonado Estudo.
- Disseste que sabias alemão - perguntou-me subitamente -, entre os teus outros conhecimentos?
- Sim - respondi -, é uma herança do comandante. Ignorou o remoque e, dirigindo-se a uma cadeira que se encontrava por trás do divã, pegou nos volumes que eu levara da biblioteca à senhora Butali, no dia anterior.
- Dá então uma vista de olhos a isto, enquanto eu estiver ausente - ordenou. - Ia entregá-los a um dos meus rapazes, um estudante de alemão, mas tu ainda serves melhor. Traduz-me tudo o que considerares especialmente apropriado e põe-no por escrito. - Atirou os livros para a mesa, ao lado da minha cadeira.
- Creio que devo avisar-te - disse-Lhe - que aquilo
que já li neles, só uma rápida vista de olhos, admito, sugere que o Falcão não era o génio incompreendido que descreveste à élite na noite passada, mas algo muito diferente. Se a senhora Butali vai de facto levá-los para Roma, para o marido os ler, ele terá outro ataque de coração.
- Não te preocupes - aconselhou Aldo -, não os lerá.
Ela pediu-os para mim, porque eu lhe mandei.
Encolhi os ombros. Na sua qualidade de director do Conselho de Artes de Ruffano, era evidente que ele tinha esse direito.
- Esse escritor alemão enfermava de preconceitos, é claro - continuou Aldo. - Os académicos do século dezanove deixavam- se sempre dominar por eles. Os primeiros manuscritos italianos que li em Roma na semana passada apresentam um ângulo algo diferente, em certos aspectos, da vida dele. Jacopo! - Abriu a porta e gritou para o vestíbulo. Jacopo apareceu. - Estarei fora durante uma hora - disse-lhe. - Não deixes ninguém entrar. Beo e eu jantaremos mais tarde no número oito.
- Sim, senhor - respondeu o empregado, e depois acrescentou: - Uma senhora ligou duas vezes durante a tarde. Deu o nome de menina Raspa.
- Que queria ela?
O rosto impassível de Jacopo abriu-se num sorriso.
- É óbvio que o queria a si - replicou.
Apontei o envelope que ainda estava caído por abrir na mesa do vestíbulo.
- Isso veio ontem à noite - disse-lhe. - Eu vi-a metê-lo por baixo da porta. Estava junto da porta dupla.
Aldo pegou no envelope e atirou-mo.
- Lê-o - mandou. - Ela é mais tua amiga do que minha. Saiu de casa, batendo com a porta atrás de si. Ouvi-o pôr o Alfa-Romeo em marcha. Não levaria mais de uns quatro minutos a pé até ao Palácio Ducal, mas serviu-se do carro.
-Continua a ser um piloto? - perguntei a Jacopo.
- Nunca deixou de o ser - respondeu ele enfaticamente. - Conselho de Artes? - Fez estalar os dedos no ar, num soberbo gesto de desdém, depois, enchendo um copo de vermute, pôs-mo na frente com um floreado. - Desejo-lhe um bom jantar - proferiu, deixando-me.
Abri a carta de Carla Raspa sem remorsos. Principiava formalmente, agradecendo ao professor Donati a sua grande amabilidade em ter-lhe permitido, e ao seu companheiro, disporem de passes para a sessão nocturna no Palácio Ducal. A experiência afectara-a profundamente. Gostaria de discutir as muitas implicações do discurso aos estudantes com o próprio orador. Estaria em casa toda a noite, se ele regressasse antes da meia-noite, e estaria livre no domingo, a qualquer momento do dia, se dispusesse de uma hora para gastar com ela. Teria muito prazer em o visitar, ou o contrário; se não tivesse nada de melhor para fazer, sentir-se-ia muito satisfeita por lhe oferecer uma bebida ou uma refeição no seu apartamento, no n. o 5 da Via San Michele. Terminava com o mesmo formalismo e cumprimentos. A assinatura, Carla Raspa, subia pela página acima, as letras interligadas como membros no acto do amor. Recoloquei a carta no envelope, perguntando-me se quem a escrevera ainda se encontraria à espera e voltei, não sem alívio, às andanças do Falcão.
A precoce galanteria do duque Claudio", li eu, constituiu um escândalo para os sóbrios cidadãos de Ruffano e revelou-se ruinosa para a sua própria constituição. As suas loucuras e vícios atingiram um nível perigoso, tão alarmante que os membros mais idosos da corte recearam que maiores excessos pudessem ameaçar a vida do seu governante. O feitio diabólico do duque levou-o a acompanhar jogadores e vagabundos e, deliciando-se com as suas maneiras desregradas, metia-se sem reservas no meio deles, nomeando os mais novos para altas posições na sua corte.
Bom, o Aldo estava mesmo a pedir aquilo. Procurei um pedaço de papel e um lápis e, bebendo o meu vermute, escrevi a tradução das passagens mais significativas.
O casual relacionamento do Falcão com comediantes transformou-se em intimidade, monopolizando gradualmente o tempo e pensamentos. Essas pessoas, pertencentes às classes mais baixas, tornaram-se companheiros do duque em público e em privado. Assemelhando a sua moral à delas, ele desafiava a decência, indo de uma extravagância para outra, e dando exibições de tão vergonhosa natureza perante os seus súbditos que...
O escritor alemão voltara-se estremecendo para o grego.
Aminha formatura em Turim não incluíra línguas clássicas. Talvez do ponto de vista do festival isso nada importasse, mas eu sentia-me frustrado. Folheei as páginas anteriores, até àquelas que lera na véspera na biblioteca. Alguém, sem dúvida o jovem estudante de Aldo, se tinha antecipado a mim. O meu irmão devia ter ido buscar os livros logo a seguir a eu os ter entregue à senhora Butali e trouxera-os para o seu tradutor lhe passar os olhos por cima. Tinha sido posta uma folha a marcar a passagem de que me recordava.
Quando foram apresentadas acusações contra ele por parte dos mais ultrajados cidadãos de Ruffano, o duque Claudio retaliou, declarando que tinha sido nomeado pela Divindade para aplicar aos seus súbditos o castigo que mereciam. Os orgulhosos seriam despidos, os altivos seriam violados, os caluniadores seriam silenciados, a víbora morreria do seu próprio veneno. As balanças da Justiça Divina ficariam assim equilibradas. Em determinada ocasião, um pajem mostrou-se negligente em acender as luzes para a refeição nocturna do duque. Foi agarrado pelo corpo de guardas do Falcão, que embrulharam o desditoso rapaz em panos encharcados em combustíveis e, após terem lançado fogo à sua cabeça, fizeram-no percorrer os compartimentos do Palácio Ducal, para morrer em agonia.
Uma bela história. Um tanto dura, como Justiça Divina. Continuei a ler:
Os cidadãos, indignados com a desonra que todas as noites violava os seus círculos domésticos, ergueram-se finalmente, por instigação de um deles, cuja bela esposa tinha sido profanada pelo próprio Falcão. Foi durante o tumulto que se seguiu que o infeliz duque encontrou o seu fim. As artes de comédia que aprendera no palco com os seus baixos seguidores, levaram-no a executar o feito, até então nunca tentado, de conduzir dezoito cavalos, do forte na colina norte de Ruffano, atravessando o centro da cidade e subindo a outra colina, até ao Palácio Ducal. Foi acossado e perseguido por quase toda a população, após ter atropelado muitos deles até à morte, sob os cascos dos cavalos. Esta derradeira cavalgada, conhecida nos anos posteriores pelos naturais de Ruffano como o Voo do Falcão, terminou com o massacre do duque.
Servi-me de outro vermute. Pensava que o duque se atirara do mais alto pináculo da torre, afirmando ser a ave cujo nome lhe davam. O académico alemão não dizia nada disso. Talvez os manuscritos italianos fossem mais explícitos. Laboriosamente, copiei os pormenores para o meu irmão. Outra pessoa teria de decifrar o grego.
Quando ele regressou, poucos minutos antes das oito, de muito boa disposição, tendo posto de parte os modos mais sombrios do princípio da tarde, altura em que ambos revivêramos o passado, entreguei-lhe os meus apontamentos e deixei-o a lê-los, enquanto ia lavar as mãos. Voltei passados poucos minutos, para o encontrar a sorrir.
- Isto é bom - afirmou -, na verdade é muito bom, Condiz com aquilo que eu já tinha lido antes.
Disse-lhe, à maneira dos Americanos, que ainda bem. Enfiou os apontamentos no bolso. Depois despediu-se de Jacopo e saímos de casa. Desta vez, reparei que não se serviria do automóvel. Descemos a Via del Sogni até à nossa antiga casa.
- Como é que vais explicar a minha pessoa à senhora Butali? - quis eu saber.
- Eu contei-lhe, antes de ter saído esta manhã - disse-me. - É tão segura como o Jacopo.
Abriu caminho para o jardim, subindo o acesso à casa. A porta aguardava-nos aberta. Poderíamos estar os dois a regressar de alguma incursão ao passado, com os nossos pais a esperarem-nos para jantar, ele para apresentar desculpas, eu para ser imediatamente mandado para a cama.
A nossa anfitriã tinha mudado de roupa para a ocasião. Parecia mais bela à luz nocturna, com o vestido azul-escuro a cair-lhe muito bem. Aproximou-se primeiro de mim, a sorrir e estendendo-me a mão.
- Eu devia ter adivinhado - disse. - Não foram Choque nem Debussy que o atraíram aqui. O que queria era ver a antiga casa.
- Foi tudo isso - respondi, beijando-lhe a mão. - Se na altura me comportei de forma rude e abrupta, apresento-lhe agora as minhas desculpas.
Deixara de ser o assistente de biblioteca que a acompanhara da igreja até casa. Pertencia ao meio, por causa de Aldo.
- É fantástico - exclamou - e muito maravilhoso. Ainda não posso crer que seja verdade. Isto vai modificar de tal forma as vidas de vocês os dois! Sinto-me tão contente por sua causa. - Olhou de um para o outro e lágrimas, que possivelmente tinham permanecido todo o dia próximas da superfície, correram-lhe dos olhos.
- A emoção - afirmou o meu irmão - é um desperdício. Onde está o meu Campari? O Beo prefere vermute.
Ela abanou a cabeça, protestando pela sua falta de sentimentos e entregou-nos os copos que nos aguardavam, enchendo um, para si mesma.
- À saúde de ambos - proferiu. - Longa vida e muita felicidade - e, depois, voltando-se para mim. - Sempre adorei o seu nome, o Beato. Acho que lhe fica bem.
Aldo desatou às gargalhadas.
- Sabes o que ele é? - perguntou. - Nada mais, nada menos do que um angariador de turistas. Rasteja pelo país, num autocarro apinhado, a mostrar Roma à noite aos anglo-saxões.
- E por que não haveria de o fazer? - retorquiu ela. Tenho a certeza de que os turistas o adoram.
- Fá-lo a troco de gorjetas - contestou Aldo. - Mergulha na Fonte de Trevi depois de tirar as calças.
- Disparate - ela sorriu-me. - Não lhe ligue, Beo. Tem ciúmes, porque você vê o mundo e ele está enfiado na Universidade de uma cidade pequena.
Beo soava bem, vindo dela. Gostei. E a divertida troca de palavras entre os dois pôs-me à vontade. Mesmo assim... olhei de lado para o meu irmão. Andava pela sala a mexer em livros, a pegar em objectos e a voltar a pô-los no sítio, à sua inquieta maneira, de que me recordava do passado, sugerindo excitação reprimida. Tramava alguma.
As portas duplas abriram-se para aquilo que era actualmente a sala de jantar, revelando a mesa posta para três, iluminada por velas. A rapariga que colocara a comida no aparador retirou-se, para que nos servíssemos a nós mesmos. O meu velho quarto de brinquedos, subtilmente transformado com cortinas e com a luz das velas a brincar na mesa polida e nas caras de nós três, perdera a sua estranheza daquela manhã. Era de novo meu, mas mais caloroso, íntimo, provocando-me a impressão de se tratar da minha própria infância, retirada da sua época, para fazer parte de um dos jogos de adulto de Aldo.
Tinha sido sina minha ocupar muitas vezes no passado o terceiro lugar, o de ajudante e apoiante nas fantasias do meu irmão, fosse para nutrir qualquer amizade do liceu onde ele passava os dias, ou para pôr outra de parte. Preparava frases para eu dizer e, a um dado sinal, tinha de as pronunciar, para provocar confusão, talvez uma furiosa discussão, até mesmo uma luta. Os seus métodos não se tinham alterado. Só que o peixe que agora queria para se divertir era uma mulher e, para a fazer ir aos arames, permitia-se a dupla satisfação de me ter como testemunha. Perguntava-me até que ponto ele iria; se a ironia entre os dois - comigo a servir frequentemente como alvo da defesa dela - seria um voo ritual antes do acto final ou se, já amantes, o seu segredo crescia em intensidade e excitação, por ser ostentado perante um supostamente inocente terceiro.
Não se falou no marido da senhora Butali. O homem doente na sua cama de hospital em Roma não constituiu óbice ao festim; parecia que nem existia. Perguntava-me se, estando ele presente, não se teria alterado o comportamento de nós os três; retirando-se a nossa anfitriã para a sua concha e transformando-se simplesmente na dona da casa sentada à mesa, enquanto Aldo, lisonjeando-a de uma forma que só eu possivelmente entenderia (já o tinha feito em rapaz, com o nosso pai) o levaria a revelar-se, fosse interessante ou entediante, contanto que a corrente da intriga permanecesse fora de vista.
Terminado o jantar, a senhora Butali subiu as escadas à nossa frente, para a sala de música e, enquanto bebíamos café e licores, a conversa abordou o festival.
- Quantos ensaios haverá? - perguntou ela ao meu irmão. - Ou tudo será tão secreto como no ano passado, para aqueles que não entram?
- Mais ou menos isso - respondeu -, mas quanto à primeira parte da tua pergunta, os ensaios estão a correr bem. Al guns de nós já andam ocupados com isso desde há meses.
Ela virou-se para mim.
- Sabe, Beo - disse -, no ano passado eu fiz de duquesa Emilia, que recebia o papa Clemente. O professor Rizzio, que conheceu esta manhã, fazia de duque. Os ensaios foram tão reais, com os métodos de encenação do seu irmão, que eu acredito de verdade que o professor Rizzio se imaginou desde então duque de Ruffano.
- As maneiras que esta manhã usou comigo eram seguramente reais - concordei. - Mas não liguei isso ao festival de há um ano atrás. Pensei que talvez na sua qualidade de substituto do reitor da Universidade e chefe do Departamento de Educação, ele estivesse pura e simplesmente a impor alguma diferença entre nós.
- O problema também é esse - anuiu e, dirigindo-se a Aldo -, mas na irmã dele não se nota ainda mais? Eu tenho muitas vezes pena das raparigas que residem no lar. Era melhor estarem num convento, do que estarem lá fechadas com a senhora Rizzio.
O meu irmão riu-se, servindo-se de conhaque.
-Os conventos dos velhos tempos eram de mais fácil acesso - garantiu. - Uma passagem subterrânea entre as zonas dos homens e das mulheres é o que está a fazer falta construir. Talvez devamos levar isso em consideração.
Puxou dos apontamentos que eu traduzira e, atirando-se para cima de uma cadeira, pôs-se a estudá-los.
- Existem muitos problemas - disse à minha anfitriã - que terão de ser ultrapassados antes do lançamento do festival deste ano.
- Tais como? - quis ela saber.
- Se o duque Claudio era um moralista ou um monstro - respondi. - Segundo os historiadores era um monstro e, já agora, louco. Aldo pensa de outra forma.
- Pois pensa - concordou ela. - Gosta de ser diferente de todos os outros.
O seu tom de voz era divertido, mas o olhar que lançou na direcção dele revelava-se estimulante. Estava prestes a efectuar outro passo do voo ritual. Pensei na expressão mortal da sua face quando eu vinha da igreja com ela e a comparação não foi elogiosa para mim, o terceiro do grupo.
- Em qualquer caso - disse eu -, as pessoas de Ruffano consideravam-no um monstro e sublevaram-se numa insurreição sangrenta contra ele e a sua corte.
- E teremos isso no festival? - inquiriu.
- Não me pergunte. Pergunte ao Aldo - repliquei. Ela voltou-se na cadeira, de cálice de licor na mão, sussurrando baixinho e, da maneira que se moveu, da forma que se inclinou para ele, demonstrou-me o seu evidente desejo. Só a minha presença a impedia de lhe tocar.
- Bem - perguntou -, teremos alguma insurreição e, se assim for, quem a irá comandar?
- É fácil - respondeu ele, sem erguer os olhos. - Os estudantes da C. e E. ". Eles pelam-se por rebeliões.
Ela franziu as sobrancelhas para mim, pousando o cálice de licor sobre o piano.
- Uma inovação - comentou, abrindo a tampa do instrumento. - Pensei que a representação se limitava aos estudantes de Artes.
- Não este ano - informou o meu irmão. - Não há estudantes que cheguem.
Ela bebeu mais um gole do seu licor, o néctar da rainha antes do voo, sentando-se no banquinho do piano.
- Que querem que lhes toque? - perguntou. A pergunta era-me destinada, o sorriso também. O tom da sua voz, toda pose da sua pessoa, as mãos prontas por cima do teclado, eram para o meu irmão.
- O Arabesco - pedi. - É assexuado.
Tinha-o sido no dia anterior comigo, um estranho, um estrangeiro na minha própria casa, com todos os fantasmas à sua volta. Depois, a ascensão e queda, a abruptidão da descida, tinham evocado nostalgia, a retraída memória de um efémero momento. Agora era noite e Aldo encontrava-se presente. A pianista, que na véspera tocara por cortesia, procurava incentivar o meu irmão da forma instintiva que conhecia. O Arabesco, tocado através do país por um milhar de estudantes, transforma-se numa dança de amor, sugestiva, isenta de pudor. Admirava-me que se entregasse daquela forma e mantive-me sentado, muito direito, na minha cadeira, a contemplar o tecto. Do lugar onde ela estava, por trás da tampa erguida do piano, não conseguia ver o homem que esperava encantar. Eu podia. Tinha pegado num lápis e estava a acrescentar qualquer coisa às minhas notas traduzidas, alheio à música. Debussy, Ravel, Chopin não o conseguiram despertar. A música nunca tinha constituído obsessão para Aldo. A sua anfitriã a tocar era para ele um ruído de fundo, pouco mais pessoal que o do trânsito.
A custo, eu suportava que os esforços dela se revelassem ão infrutíferos e, acendendo um cigarro, comecei a fantasiar que eu era ele e, quando a música terminasse me levantaria da cadeira, atravessaria a sala e poria as mãos nos olhos que ela ergueria para mim. A fantasia intensificou-se à medida que o ritmo crescia. Tornou-se-me insuportável estar ali sentado, em silêncio, a receber aquela mensagem que, infelizmente, não me era destinada. Aquele Aldo, embora indiferente à música, estava consciente da mensagem que ela continha, disso eu não duvidei por um só momento, e desejava alegria para ele e plena realização para ela; mas partilhar a sua intimidade daquela maneira constituía, na melhor das hipóteses, um duvidoso prazer.
Talvez ela tivesse pressentido o meu desconforto porque, repentinamente, bateu com a tampa e ergueu-se.
- Bem - perguntou -, a insurreição já terminou? Poderemos agora descontrair-nos todos?
A ironia, se é que o era, foi tão desperdiçada com o meu irmão como a música. Olhou-a de lado, reparou que tinha deixado de tocar e se estava a dirigir a ele, e pôs de parte as suas notas.
- Que horas são? Será já tarde? - indagou.
- Dez horas - respondeu a mulher.
- Tinha a impressão de que tínhamos acabado de jantar - Bocejou, espreguiçou-se e meteu as notas no bolso.
- Espero - disse ela - que já tenhas completado a tua cena de abertura, se de facto foi nisso que estiveste a trabalhar toda a noite.
Ofereceu-me mais licor. Abanei a cabeça recusando e murmurei qualquer coisa acerca de regressar à Via San Michele, Aldo sorriu, não percebi se por causa da minha discrição ou da zombaria da senhora Butali.
- A minha cena de abertura - declarou -, que na verdade já foi esboçada há semanas atrás, passa-se fora do palco, ou deveria passar-se, se quiséssemos ser discretos.
- O troar dos cascos dos cavalos? - quis eu saber.
- Não, não - ele sorriu -, isso só se ouvirá no fim. Temos primeiro de divertir as pessoas.
- Que queres dizer com isso? - inquiriu a senhora.
- A sedução da dama - esclareceu ele -, aquilo que o meu tradutor de alemão chama a profanação da esposa do cidadão importante.
O silêncio prolongou-se. A consideração dispensada por Aldo às minhas notas apressadamente manuscritas tinha sido embaraçosamente baixa. Pus-me em pé de um salto, com o sorriso de guia afivelado, e disse à senhora Butali que tinha de estar na manhã seguinte na biblioteca, às nove em ponto. E pensei, a única forma de interromper aquela pausa que ameaçava tornar-se deprimente mas, depois de ter falado, apercebi-me de que a minha súbita partida era, em si própria, um comentário àquilo que tinha sido dito.
- Não permita que o senhor Fossi o faça trabalhar, como ele mesmo, demasiado - aconselhou a minha anfitriã, oferecendo-me a mão. - E apareça, sempre que lhe apetecer ouvir música. Não é preciso lembrar-lhe que esta casa era a sua. Gostava que a passasse a considerar como o seu irmão a considera.
Agradeci-lhe a amabilidade, garantindo-lhe que, se houvesse alguns livros que quisesse da biblioteca, em qualquer altura,
ou para ela ou para o marido, só tinha de pegar no telefone.
- É muita bondade sua - retribuiu. - Lá para o fim da
semana irei a Roma. Avisá-lo-ei.
- Eu acompanho-te até lá abaixo - disse Aldo.
Acompanhar-me até lá abaixo. Não sairia, como eu estava
a fazer. Enquanto descíamos as escadas, com a porta da sala de
música ainda aberta, tagarelei alegre e inconsequentemente sobre as muitas vezes que ele me perseguira até ao andar de cima.
Não pretendia que a senhora Butali pensasse... exactamente
aquilo que deveria estar a pensar. Que eu, o irmão mais novo,
tinha apanhado a minha deixa. A festa estava terminada.
Aldo atravessou comigo o jardim e abriu-me o portão.
O candeeiro lá em cima projectava sombras directamente sobre a rua. As estrelas brilhavam.
- Que bonita ela é - comentei -, tão simpática, tão comedida e calma. Não me admiraria que tu...
- Olha - interrompeu, tocando-me no braço -, ali vêm
eles. Distingues-lhes as luzes?
Apontava para o outro lado do vale, lá ao longe, onde as
estradas principais que vinham de leste e norte para Ruffano
estavam salpicadas de luzes. O estrondoso ruído das vespas"
enchia o ar.
- Quem são? - perguntei.
-Os estudantes da C. e E. " a regressarem do fim-de-semana - informou. - Dentro de momentos ouvi-los-ás a
roncar pela Via delle Mura acima, como uma manada de bois.
Ainda andarão naquilo pelo menos mais uma hora.
A paz da cidade desaparecera. O tranquilo domingo que,
nos velhos tempos, tombava como uma mortalha sobre Ruffano fora interrompido.
- Tu dispões de autoridade aqui - disse eu. - Poderás, se isso te incomoda tanto, pôr cobro à situação.
Aldo sorriu e bateu-me no ombro.
- Aquilo não me aborrece - garantiu. - Pelo que me diz respeito até podem correr toda a noite. Vais direito para casa, não vais?
- Sim - respondi.
- Não andes por aí - aconselhou. - Vai directamente. Até depois, Beo, e obrigado pelo dia de hoje.
Voltou a entrar no jardim, fechando o portão. Um momento mais tarde ouvi-o fechar a porta da casa. Desci a colina na direcção da minha pensão, a imaginar que género de recepção ele teria, quando subisse as escadas outra vez para a sala de música. Perguntava-me também se a rapariga que tinha trazido o jantar dormiria lá em casa.
Ao chegar ao fundo da colina, já os estudantes estavam a convergir para a Piazza della Vita. Carros pequenos e vespas zumbiam e roncavam. Dois autocarros pararam junto da colunata. Vi de relance os meus amigos, os Pasquale, a rirem e a tagarelarem com um grupo de outros jovens. Amanhã, possivelmente, mas não esta noite. Hoje queria digerir o dia que passara. Caminhei rapidamente, para não me tornar notado deslizando pela porta aberta do n. o 24, corri pelas escadas acima, entrando no meu quarto. Enquanto me despia, continuava a ver Aldo no velho quarto da nossa mãe, com a senhora Butali. Gostaria de saber se, estando tão acostumado às mudanças nele operadas, o piano, as outras peças de mobiliário, ele o deixara de ver como o tínhamos em tempos conhecido e como eu ainda o via.
Os estudantes riam e cantavam lá fora na rua e, ao longe, próximo do centro da cidade, o arfar e estrondear das vespas, que regressavam avisava os naturais de Ruffano de que os filisteus haviam descido à cidade.
Quando desci para o pequeno-almoço, na manhã seguinte, recebi uma animada recepção da parte dos estudantes. Estavam de pé em volta da mesa, a beber café e a tagarelar acerca do dia anterior. Ao verem-me, houve um clamor generalizado e Mario, de quem me recordava da primeira noite como sendo o mais barulhento, acenou-me com o pãozinho que tinha na mão e perguntou como é que o licenciado em Artes passara o fim-de-semana.
- Em primeiro lugar - respondi eu -, nós, os bibliotecários, não temos o meio dia de sábado. Obrigaram-me a separar livros até às sete.
Um grunhido, meio irónico, meio compreensivo, respondeu à minha afirmação.
- Escravos, são todos uns escravos - exclamou Gino -, amarrados a um sistema fora de moda. É típico da forma como eles orientam as coisas lá no alto da colina. Agora o nosso chefe Elia tem algum bom senso. Ele sabe que nós damos tudo por tudo durante a semana de cinco dias, e liberta-nos por quarenta e oito horas, para fazermos o que nos apetecer. A maioria vai a casa. Ele faz o mesmo. Tem uma vivenda na costa e sacode a poeira da morte de Ruffano dos pés.
A senhora Silvani, que tratava da cafeteira, entregou-me uma chávena com um sorriso matinal.
- Foi à missa? - perguntou. - Quando não apareceu para almoçar, o meu marido e eu ficámos a pensar o que lhe teria acontecido.
- Encontrei um amigo - expliquei - e fui convidado para ir almoçar e passar o dia lá a casa.
- Isso faz-me lembrar - acrescentou ela - que telefonou durante a tarde uma senhora. Uma tal menina Raspa. Disse que, quando voltasse, a fosse procurar ao número cinco. Pobre Carla Raspa! Tendo falhado duas vezes com Aldo, virara-se, na sua exasperação, para mim.
- Alguém falou em missa? - interveio Gino. - Será que ouvi bem, ou são as minhas orelhas a funcionar mal?
- Eu fui à missa - esclareci. - Os sinos de San Cipriano chamaram-me e obedeci.
- É tudo superstição, sabe - afirmou Gino. - Os padres engordam com ela, mas mais ninguém.
- Nos velhos tempos - disse Caterina Pasquale vindo juntar-se ao grupo - não havia mais nada para fazer senão ir à missa. Era o entretenimento da manhã. Encontrava-se os amigos. Agora já há mais coisas. Adivinhe o que fizemos, o Paolo e eu? - Sorriu-me com os seus olhos enormes, dando uma mordidela no seu pãozinho enquanto o fazia.
- Diga lá - pedi, devolvendo o sorriso.
- Pedimos o carro emprestado ao nosso irmão e fomos a Benine - informou. - Andámos na brasa e fizemos quatro horas e um quarto. Isso é que é viver, não lhe parece?
- Também podia ser morrer - contestei.
- Ah, bem, faz parte do divertimento, assumir os riscos - declarou.
Mario mimava as acções de Caterina ao volante, a travar, a derrapar, a fazer roncar o motor antes de um súbito choque.
- Devia fazer como eu - aconselhou-me. - Arranjar uma vespa" com um motor envenenado.
- Sim - retorquiu a senhora Silvani -, e acordar-nos a todos com o barulho. Ninguém consegue dormir aos domingos à noite.
- Ouviu-nos? - perguntou rindo o estudante. - Viemos em grupo de RuFano. Zzzz... zzz... zzz... Tínhamos esperança: de vos chamar a todos à vida com as nossas orquestrações. Francamente, é o que vocês, gente de Ruffano, precisam, música de tubos de escape para vos derreter a cera dos ouvidos.
- Devia ter-nos visto - interveio o Gerardo -, a circular pela cidade, para cima e para baixo na Via delle Mura, a piscar os faróis para a Residência das Raparigas, para as fazer abrir as persianas.
- E abriram? - perguntou Caterina.
- Elas, não. Às nove da noite estavam todas amarradas aos colchões.
Rindo, discutindo, saíram a correr, mas não antes que a jovem Caterina, olhando por cima do ombro, me gritasse:
-Até logo à noite. Podemos ir os três dar uma volta. A senhora Silvani sorriu, abanando a cabeça, indulgente.
- Que crianças! - comentou. - Não têm mais sentido de responsabilidade do que bebés de colo. E são espertos, todos eles. O senhor verá, dentro de um ano todos estarão formados e acabarão em algum banco provincial longe do mundo.
Saí de casa a caminho do Palácio Ducal e reparei que alguém me esperava mais acima na rua, à entrada do n. o 5.
-Bom dia, estrangeiro - cumprimentou Carla Raspa.
- Bom dia, menina - retribuí.
- Pensava - disse ela, acompanhando-me na direcção da Piazza della Vita - que tivéssemos falado na possibilidade de nos encontrarmos no domingo?
- E falámos - anuí. - Que se passou?
- Estive em casa todo o dia - informou encolhendo os ombros. - Só precisava de lá aparecer.
- Estive fora - esclareci. - Um súbito impulso levou-me à missa em San Cipriano, onde tropecei com nada mais nada menos que a mulher do reitor, a quem tinha levado uns livros no dia anterior. Acompanhei-a a casa e convidou-me para tomar uma bebida.
Carla Raspa parou e ficou a olhar-me.
- Que você, é claro, aceitou - concluiu -, e não o culpo por isso. Um aceno gracioso de Livia Butali e lá foi você. Não admira que não se incomodasse a visitar-me, depois de ter tido entrada na casa dela. Quem estava lá?
- Uma quantidade de professores - contei - e entre eles o meu superior, o senhor Fossi, com a esposa.
Sublinhei a palavra esposa". Ela riu-se e retomou a marcha.
- Pobre Giuseppe - exclamou. - Imagino-o em toda a sua dignidade, inchado como um pombo por causa desse convite. Que ficou a pensar de Livia?
- Achei-a bela. E encantadora. Muito mais do que a senhora Rizzio.
- Deus do céu! Ela também lá estava?
- Sim, com o irmão. Ambos um pouco formais para o meu gosto.
- Demasiado formais para todos nós! Tem-se portado bem para um recém-chegado, Armino Fabbio. Nunca mais há-de parar. Os meus parabéns. Eu não consegui tanto num par de anos.
Virámos para a Via Rossini. Os passeios estavam apinhados com pessoas a fazerem as compras da manhã e estudantes retardatários a correrem para as aulas.
- Suponho - disse ela - que o director do Conselho de Artes também estaria lá, por acaso?
Eu assumira umas belas proporções a seus olhos, sem au mentar a minha estatura física. Além disso, era melhor ser discreto.
- Apareceu de facto por uns momentos - respondi. Saí antes dele. Trocámos umas palavras, enquanto bebia Campari. Pareceu-me simpático e menos imponente do que o seu corpo de guarda.
Fez mais uma pausa para me encarar.
- Incrível! - exclamou. - Só há três dias em Ruffano e a ter toda essa sorte. Deve estar encantado. Ele falou em mim!
- Não - informei -, mal houve tempo para isso. Não creio que se tenha apercebido de quem eu era.
- Que oportunidade perdida - disse ela. - Se ao menos tivesse sabido. Você poderia ter- lhe entregado um recado.
- Não se esqueça - recordei-lhe - que tudo o que me aconteceu de manhã foi por acaso. Se não tivesse ido à missa...
- É da sua cara de bebé - concluiu. - Não me venha di zer que, se eu tivesse ido à missa e tivesse encontrado a senhora Butali ela se teria dado ao trabalho de me convidar para um aperitivo. Acho que gosta de armar em boa anfitriã com o pessoal da Universidade, estando o marido seguro no hospital, em Roma. O Aldo Donati estava a fazer-lhe a corte?
- Não que eu reparasse - respondi. - Ela parecia ter mais que dizer ao professor Rizzio.
Separámo-nos, eu para entrar no Palácio Ducal, ela para continuar a subir a colina até à Universidade. Não fora referido um futuro encontro entre nós. Senti, no entanto, que isso haveria de acontecer.
O meu domingo bem passado tinha-me feito chegar atrasado. Quando entrei na biblioteca, descobri que os outros tinham chegado antes de mim, incluindo o meu chefe, Giuseppe Fossi. Estavam reunidos num grupo, a falar excitadamente. Por qualquer razão a senhora Catti era o alvo das atenções.
- Não há a mínima dúvida acerca disso - garantia ela. Ouvi-o de uma das estudantes, Maria Cavallini... foi fechada num quarto juntamente com quatro companheiras. Só quando o empregado foi esta manhã tratar da central calorífera é que elas, ou quaisquer das outras, foram libertadas.
- É ultrajante, fantástico. Vai haver um barulho tremendo - comentou Giuseppe Fossi. - Informaram a Polícia?
- Ninguém foi capaz de me dizer isso. Eu não podia ficar na conversa. Para não chegar cá atrasada.
Toni, com ar de dúvida, apressou-se a vir ter comigo.
-Já soube das novidades? - perguntou-me.
- Não - repliquei. - Que novidades?
- A Residência das Raparigas foi assaltada ontem à noite - informou - e as estudantes foram fechadas à chave nos seus quartos. Ninguém sabe o que se passou ou quem foi. Os homens estavam mascarados. Quantos eram, senhora Catti? - Voltava- se excitado para a pálida secretária, que se encontrava tão inesperadamente na crista da onda.
- Uma dúzia ou mais, ao que dizem - respondeu ela. Como entraram é que ninguém sabe. Aconteceu tudo de repente, precisamente quando todos os estudantes da C. e E. " estavam a regressar a suas casas. Sabem o barulho tremendo que eles fazem com as motorizadas? Serviu de cobertura, naturalmente, para deixarem os amigalhaços entrar lá dentro. Bem, poderão chamar-lhe uma brincadeira. Eu cá chamo-lhe uma afronta.
- Vá lá - interveio Giuseppe Fossi, com os olhos ainda arregalados de excitação -, tanto quanto se saiba, nenhuma
das raparigas foi molestada. Fecharem-nas nos quartos não foi uma coisa assim tão má... disseram-me que isso está sempre a acontecer. Mas se foi cometido algum roubo... então é outro caso. Terão de chamar a Polícia. Seja como for, o professor
Elia terá de responder por isso. Agora, vamos ao trabalho? Meneou-se na direcção da escrivaninha, com um aceno de
cabeça para a sua secretária. Ela seguiu-o, de lápis e bloco, com o queixo erguido.
- Porquê culparem o professor Elia? - murmurou toni. Ele não tem culpa de que os seus estudantes da C. e E. " se tenham querido divertir. Hei-de saber a verdade pela minha namorada, hoje à tarde. Deve ter conhecimento do que de facto aconteceu com as parceiras dela.
Lançámo-nos ao trabalho da manhã com certa falta de concentração. Quando o telefone tocou, erguemos as cabeças e escutámos, mas o senhor Fossi só dizia sim" ou não, sem revelar nenhum segredo. A invasão da Residência das Raparigas não era assunto que dissesse respeito à biblioteca.
A meio da manhã, mandou-nos, ao Toni e a mim, lá acimá à biblioteca nova, com vários caixotes de livros. Levámo-los na pequena carrinha que servia para esse fim. Foi a minha primeira visita à nova biblioteca por trás da Universidade, que ficava no topo da colina, próxima dos outros edifícios recentes: a Escola de Comércio e o Laboratório de Física. Não possuía a graça da velha Casa dos Estudos", mas as suas linhas não eram desagradáveis, e as grandes janelas davam luz e ar aos estudantes que iriam trabalhar dentro das suas paredes.
- Tudo graças ao professor Butali - disse Toni - e aos membros mais novos do Conselho da Universidade. O velho Rizzio lutou contra isto com unhas e dentes.
- Por que motivo? - inquiri.
- Porque degradava a atmosfera académica - respondeu o rapaz a sorrir -, porque iria transformar os alunos em empregados de fábrica. De acordo com ele, a Universidade de Ruffano seria pura e simplesmente destinada a lugar de ensino, onde sérios rapazes e raparigas seriam lançados para o mundo após a formatura, para repartirem o seu saber clássico com os rapazes e raparigas das escolas.
- Ainda o podem fazer.
-Pois podem, mas que sensaboria! Ora, um tipo com uma licenciatura em Economia pode arranjar emprego numa grande companhia de um dia para o outro, e ganhar em três meses aquilo que um professor recebe num ano. Não há futuro no ensino.
Descarregámos os caixotes da carrinha e transportámo-los para a nova biblioteca. Os decoradores, disse-me Toni, só de lá tinham saído há uma semana. Alto, iluminado, com uma galeria em cima forrada por prateleiras a toda a volta e uma sala de leitura por baixo, o prédio ofereceria mais comodidade do que o velho salão dos banquetes do Palácio Ducal.
- Onde é que arranjaram dinheiro para isto? - perguntei.
- Veio das receitas da C. e E. De que outro sítio poderia vir? - replicou Toni.
Pousámos os caixotes, que deveriam ser desembalados por pessoal auxiliar sob a orientação de um dos colegas de Giuseppe Fossi, mas não sem que o irreprimível Toni me tivesse dado mais novidades sobre o assalto à Residência das Raparigas.
- Diz-me que o Rizzio vai pedir a demissão, a menos que o professor Elia apresente desculpas públicas em nome dos estudantes da C. e E. " - contou-me interessadamente, seguindo-me à saída do edifício. - Vai ser uma luta de morte, garanto- lhe. Não me parece que o Elia concorde com isso nem por um momento.
- E disseram-me a mim que vinha para uma cidade morta - comentei eu. - Isto é assim animado todos os dias?
- Não temos tanta sorte - lamentou -, mas eu digo-lhe o que isto é. Com o reitor afastado, Rizzio e Elia aproveitarão a oportunidade para cortarem a garganta um ao outro. Detestam-se mutuamente e dispõem agora de uma hipótese.
Quando estacionávamos a carrinha no exterior do Palácio Ducal, cerca de um quarto para a uma, vi Carla Raspa sair da entrada lateral com um grupo de estudantes de Arte. Ela viu-me e acenou-me com a mão. Retribuí. Mandou os estudantes seguirem à frente e esperou que me juntasse a si.
- Vai fazer alguma coisa à hora do almoço? - perguntou.
- Nada - respondi.
- Vá lá abaixo ao restaurante onde nos conhecemos - sugeriu rapidamente. - Reserve uma mesa para dois. Eu agora não posso parar aqui, tenho de levar o meu grupo de volta. Nada de facilitar, depois do que se passou ontem à noite. Soube das novidades?
- Do assalto? Sim, soube - anuí.
- Contar-lhe-ei mais pormenores - prometeu. - É inacreditável!
Apressou-se a seguir o seu rebanho e eu principiei a descer a Via Rossini. O restaurante, como anteriormente, estava cheio de gente, mas consegui arranjar uma mesa. Não se viam estudantes. O lugar parecia ser o ponto de encontro favorito dos homens de negócios de Ruffano que não iam a casa almoçar. Carla Raspa chegou logo a seguir. Estalou os dedos para o empregado de mesa e encomendou o almoço, depois fitou-me e sorriu.
- Desembuche - mandei eu. - Sou bom a guardar segredos.
- Isto não é segredo - respondeu, olhando em volta, apesar das suas palavras. - A estas horas, já deve correr pela Universidade. A senhora Rizzio foi violentada.
Arregalei os olhos de espanto.
- É verdade - insistiu ela, inclinando-se para a frente. Soube-o por alguém do pessoal de lá. Esses rapazes, quem quer que fossem, não tocaram nas raparigas. Fecharam-nas a todas nos quartos e lançaram-se ao trabalho com a Altíssima e Toda-Poderosa em pessoa. Não é uma coisa gloriosa?
Estremecia de riso. Eu não me sentia assim tão divertido.
O prato de massa, colocado na minha frente pelo empregado, fez-me perder o apetite. Pareciam-me entranhas.
- Isso é um delito comum - afirmei abruptamente. Um caso de polícia. Quem quer que o tenha cometido apanhará dez anos.
- Não - contrariou ela -, aí é que está. Diz-se que ela se encontra em estado de histeria e quer que tudo seja abafado.
- Não pode ser - insisti -, a lei não o permitirá. Ela atacou com vontade, o seu próprio prato de massa, cobrindo-o com queijo ralado.
- A lei não poderá actuar, se ninguém apresentar queixa - asseverou. - Os rapazes devem ter corrido esse risco adivinhando-lhe a reacção. Claro que se fará muito barulho sobre o assalto, um tremendo barulho. Mas aquilo que aconteceu à senhora Rizzio é algo que só a ela diz respeito. Se se recusar a apresentar queixa e com o irmão a apoiar, não há nada que se possa fazer. Encomendou vinho?
tinha-o feito. Servi-lho. Engoliu-o como se tivesse a garganta em fogo.
- Não foi tão mau como se lhe tivessem batido - continuou. - Soube que não foi esse o caso. Nada de pancadas. Só aquilo que você sabe, gentil e persuasivamente.
- Como é que sabe? - indaguei.
- Bem, é o que se diz. Aquilo que as raparigas da residência garantem. Agora que se recompuseram do susto que os mascarados Lhes meteram, e sabendo-se intactas, pelo menos aquelas que ainda o estavam, mal são capazes de se conter. Acontecer aquilo logo à senhora Rizzio! Devem ter sido esses rapazes da C. e E. Que descaramento!
- Continuo a não acreditar nisso - declarei.
- Pois eu acredito - contestou ela - e se a Polícia não for chamada e nos disserem que ela se encontra indisposta, pode apostar a sua vida em como é verdade. Acha que ela gostou?
tinha os olhos brilhantes. Senti-me ligeiramente enojado. A brutalidade, sob qualquer forma, revolta-me, e cometerem-se violências sobre pessoas velhas ou muito novas é algo que nunca fui capaz de compreender. Não lhe respondi.
- Ela andava mesmo a pedir aquilo, sabe - continuava Carla Raspa. - A tratar as raparigas como se fossem noviças à espera de proferirem votos. Nada de visitas de rapazes à Residência das Raparigas, mesmo na sala de convívio; portas fechadas às dez. Eu sei, porque muitas das moças frequentam as minhas aulas. Tinham atingido o ponto de ruptura da exasperação. É óbvio que deve ter sido uma das raparigas a deixar entrar os rapazes. Depois escutou à fechadura e espalhou a história!
Pensei na imponente e formidável figura que tinha encontrado na véspera, a beber com moderado desdém a sua água mineral. A minha imaginação vacilava.
Carla Raspa, que estava de frente para a porta do restaurante, inclinou-se para diante, tocando-me na mão.
- Não se volte agora - disse ela. - O professor Elia acaba de entrar. O chefe da C. e E. " em pessoa. Com um grupo de colegas. O que pergunto a mim mesma é se ele será obrigado a pedir a demissão.
- Pedir a demissão? Por que haveria de fazê- lo? - estranhei. - Como é que alguém pode culpar os seus rapazes pelo assalto?
- Porque isso é óbvio - afirmou ela. - A senhora Rizzio tem-se queixado repetidas vezes do comportamento dos estudantes da C. e E. ". Veio no jornal da Universidade. Aquilo de ontem à noite foi a resposta deles.
Aguardei um momento que o grupo se instalasse numa mesa à minha esquerda, depois voltei-me um pouco no lugar, para os ver.
- O homem grande - murmurou a minha companheira - é muito cabeludo. Mais satisfeito consigo mesmo do que qualquer outra pessoa em Ruffano, e mais opinativo também, mas o facto é que consegue fazer as coisas. É milanês. Tinha de ser.
O professor Elia, de olhos enquadrados pelos aros grosssos
dos óculos, cabelo cortado em escova, tinha a compleição avultada de alguém que sabe nunca caber em qualquer género de fato. Os vincos abundavam na sua roupa. Falava rapidamente, inclinado sobre a mesa, não permitindo que ninguém o interrompesse. De repente, atirou para trás a sua indubitavelmente distinta cabeça e rebentou em gargalhadas estrondosas.
- Foram cinco - exclamou -, um após outro. Foi o que me disseram. E nem um guincho de protesto. Nem um gemido.
A mesa balançava. O seu riso enchia o restaurante. Outras pessoas que estavam a comer voltavam-se para ver o que era. Um dos companheiros do professor Elia fez-lhe sinal para se calar. O grande homem olhou em torno de si com desdém, apanhando-me a fixá-lo.
- Ninguém que aqui esteja - garantiu - sabe do que estou a falar. Mas digo-vos isto. Se alguma reprovação oficial for proferida contra a nossa malta, eu não só transformarei a senhora no motivo de riso de toda Ruffano, como... - baixou a voz, e deixámos de o conseguir ouvir.
- Está a ver - murmurou Carla Raspa -, os pobres dos Rizzio não conseguirão nada dele. Farão bem se deixarem passar tudo, ou melhor ainda, se se forem embora. Em qualquer caso, depois deste choque, a senhora Rizzio nunca mais será capaz de mostrar a cara em público. Se o fizer, só conseguirá ser saudada pela espécie de galhofa que ouvimos aqui na mesa ao lado. - Aceitou um cigarro, terminou o vinho e chamou o criado. - É a minha vez - disse. - Ambos trabalhamos para viver. E você ainda me está a dever um jantar. Quando?
- Hoje não - respondi lembrando-me dos Pasquale. Talvez amanhã.
- Então será amanhã.
Erguemo-nos da mesa e saímos do restaurante retomando a subida pela colina acima.
- Ouviu as últimas? - sussurrou toni do seu escadote, quando entrei na biblioteca.
- Quais? - perguntei cautelosamente.
- Fala-se em encerrar a Residência das Raparigas e mandá-las para casa - disse. - Terão de fazer os exames por correspondência. Consta que houve outro assalto há três meses e que todas elas estão grávidas.
Giuseppe Fossi, que ditava cartas à sua secretária, ergueu os olhos para o maldizente.
- Importa-se de observar as regras? - proferiu em tom gelado, apontando para as tabuletas que diziam "SILÊNCIO, penduradas nas paredes.
Dirigimo-nos por duas vezes, durante aquela tarde, ao novo edifício, com caixotes. De cada vez ouvimos rumores diferentes. Estudantes tagarelavam em grupos e Toni conhecia uma dúzia deles. O assalto era o assunto do dia, o ataque à senhora Rizzio tornara-se do conhecimento geral. Uns diziam que nada tinha a ver com a "C. e E. que existia, desconhecida de toda a gente a não ser de uns quantos privilegiados, uma passagem entre as residências dos rapazes e das raparigas, que há anos não era usada. A senhora teria passado noites com todos os professores da Universidade, com preferência pelos mais musculados. Outros, defendendo a honra da senhora, declaravam que o professor Elia em pessoa tinha conduzido o bando mascarado para os aposentos dela, e que tinha em seu poder uma camisa de noite pertencente à senhora para servir de testemunho da sua façanha.
Predominava o riso, mas a disposição mudou lá para o fim do dia. Constou que as autoridades - fossem lá quem fossem - culpavam em definitivo pelo assalto os estudantes da "C. e E. ", os quais, ao que se dizia, teriam regressado do fim-de-semana em estado de rebelião e, circulando por baixo das janelas da Residência das Raparigas a cantar e a gritar, haviam criado entre eles o atrevimento para a invasão.
Toni, olhando por cima do ombro, apontava para a primeira fornada de irados rapazes e raparigas da "C. e E. que emergiam das salas de aulas, juntando-se do outro lado da Via dell Settembre, não longe do sítio onde nos encontrávamos.
- Observe - dizia -, vai haver sarilho. Alguém atirou uma pedra. Atingiu o pára-brisas de nossa carrinha e o vidro ficou rachado. Outra pedra apanhou Toni de lado, na cabeça. Ergueu-se um grito no meio do pequeno grupo de estudantes de Artes e os outros, que subiam a colina, idos do recinto da Universidade. Alguns principiaram a correr
na direcção dos seus supostos antagonistas. Dentro de momentos havia gritaria, berros, mais pedras, mais corridas e outros dois rapazes, montados em vespas", lançaram-se para o
meio de todos os outros, atirando estudantes para a esquerda
e para a direita.
- Vamos - disse eu para toni -, saiamos daqui. Essa
batalha não é nossa.
Meti-o dentro da carrinha e pus o motor em funcionamento. Ele não dizia nada. Agarrava a face, com o sangue a correr.
Corremos pela rua e, evitando os estudantes em escaramuça
que vinham de todas as direcções, dirigimo-nos pela colina
abaixo para além da Universidade, na direcção do Palácio
Ducal.
Estacionei no nosso lugar habitual e desliguei o motor.
- Quero lá saber da política universitária.
toni estava muito pálido. Examinei-lhe o ferimento. Não
era profundo, mas bastava para incomodar.
- Tens algum médico conhecido? - perguntei. Ele acenou que sim. - Então vai consultá-lo. Eu explico a situação.
Saímos ambos da carrinha. Ele encaminhou-se lentamente
para a sua vespa" e montou-a, com uma das mãos ainda agarrada à ferida.
- Viu o tipo que atirou a pedra? - perguntou. - Não
foi à sorte, ele fê-lo de propósito, para começar uma luta. Hei-de apanhá-lo depois. Ou então apanham-no os meus amigos.
Deslizou lentamente pela colina abaixo. Fui para a biblioteca e relatei o incidente em poucas palavras a Giuseppe Fossi.
Foi pelos ares, como um foguete.
- Vocês não tinham nada, nenhum dos dois, que se deixarem ficar, junto dos edifícios da Universidade quando os estudantes estavam a sair das aulas - explodiu. - Num dia como
este, com boatos a correrem, é pedir sarilhos. Agora ver-me-ei
obrigado a apresentar queixa por causa da carrinha, o assunto
será comunicado à secretaria, o professor Rizzio poderá tomar
conhecimento dessa comunicação...
- De um pára-brisas partido? - interrompi. - Olhe, senhor Fossi, eu mando-o arranjar em qualquer garagem lá em baixo.
- Falar-se-á disso - excitou-se. - Toda a gente conhece a carrinha, alguém poderá ter visto o incidente. Conte com o Toni para divulgar a história em toda Ruffano.
Deixei-o cansar-se e depois, quando se acalmou, retomei o trabalho. O problema era dele, não meu. Tinha mais em que pensar. A sensação de inquietação que me assolara todo o dia aumentava. Se os estudantes tinham querido entrar na Residência das Raparigas era com eles e o que tinham ali feito também. Ou seriam expulsos, ou castigados, ou permitir-lhe-iam continuar em liberdade. Não tinha que me ralar com isso. Mas o momento da ocorrência é que me preocupava. E a minha própria tradução dos volumes alemães:
Os cidadãos. ergueram-se finalmente, instigados por um homem importante cuja... esposa tinha sido profanada.
Eu não era o único a manusear os livros e a saber alemão. Aldo tinha-os mostrado aos seus estudantes de Artes, a um que estudava aquela língua. As páginas haviam sido marcadas. Ouvi uma vez mais o meu irmão a dizer: Temos de provocar primeiro excitação. A profanação da esposa do cidadão importante.
Em retrospectiva, saí de novo da casa dos Butali, olhei da rua para as estradas do vale, lá em baixo, ouvindo o trovejar das vespas" que regressavam. Teria sido coincidência? Teria o ataque sido planeado?
Era-me difícil concentrar o espírito nos entediantes textos dos filósofos alemães e ingleses e, quando chegou a hora de fecharmos, fui o primeiro a sair. No exterior, encontrei a Piaza Maggiore cheia de estudantes. Marchavam de um lado para o outro em grupos, alguns deles de braço dado e com ar beligerante. Que faculdades representavam não sabia nem me importava saber, mas apercebi-me de que paravam, desafiando os
casuais passantes. Esperava escapar-me a ser notado e estava a alcançar os degraus do Duomo quando um tipo grandalhão aconteceu virar a cabeça na minha direcção e agarrar-me.
- Aguenta aí, camarão - bradou, torcendo-me o braço atrás das costas. - Para onde é que te estás a escapar?
- Para a Via San Michele - respondi. - Vivo lá.
-Ah, vives? E em que é que trabalhas?
- Estou empregado na biblioteca.
- Um empregado da biblioteca! - Imitava-me o tom. Bem, é uma porcaria de um trabalho, não é? Com as mãos e a cara todo o dia mergulhadas na poeira. - Berrou para os outros que se encontravam nos degraus. - Aqui o rapazinho das Artes precisa dum banho. Acham que lhe dêmos o tratamento da água? E se o mergulhássemos na fonte?
Uma vaga de gargalhadas acolheu a sugestão, umas bem-humoradas, mas nem todas.
-Trá-lo cá! Vamos limpá-lo!
A fonte no centro da praça estava rodeada por eles. Alguns dos estudantes haviam trepado para a bacia e balançavam- se, rindo e cantando, no rebordo. Eram muitos, cinquenta, cem. Senti-me muito pequeno e muito só. Subitamente, surgiu um carro roncando muito alto, vindo da direcção da Universidade. Os estudantes saltaram para ambos os lados da praça, para o deixarem passar. Um tipo, perdendo o equilíbrio, tombou na bacia da fonte. Houve uma risada na multidão e, quando o meu captor se juntou à explosão de alegria, soltou-me e eu escapei-lhe das mãos. O carro prosseguiu lentamente. Era o Alfa-Romeo, com Aldo ao volante. Sentado a seu lado, a acenar com a mão e a sorrir para os estudantes espalhados, que gritavam e aplaudiam ao vê-lo, encontrava-se o chefe do Departamento de Comércio e Economia, o professor Elia.
Atalhei através da multidão de estudantes para a passagem que ia da Via Rossini à Via del Sogni. Ali estava tudo tranquilo. Parecia outro mundo. Ninguém vagueava na rua, a não ser um gato solitário, que saltou para o muro do jardim ao ver-me. Abri o portão, percorri o caminho de acesso à casa e toquei à campainha. A porta foi aberta, passado um bocado, pela rapariga que tinha trazido o jantar na noite anterior.
- A senhora Butali? - perguntei.
- Desculpe, senhor - disse ela -, mas a senhora não está
em casa. Partiu para Roma, hoje de manhã cedo.
Fiquei a olhá-la com ar ausente.
- Partiu para Roma? Pensei que não fosse antes do fim
desta semana.
- Pois não, senhor, nem eu, descobri que tinha partido
quando cheguei esta manhã. Deixou-me um recado escrito, dizendo que tinha decidido subitamente. Deve ter partido cerca
das sete.
- Então o professor Butali estará pior?
- Não sei nada sobre isso, senhor. Ela não disse.
Olhei por cima dela, para a casa vazia. Já lhe faltava calor e
encanto, só pela ausência da dona.
- Obrigado - agradeci. - Não é preciso dar-lhe nenhum recado.
Percorri o longo caminho até à pensão, evitando a Piazza
della Vita. Daquele lado, as ruas estavam livres de estudantes e as pessoas que encontrei eram cidadãos comuns que iam às
suas vidas. Ao chegar à Via San Michele, reparei que a entrada
para o n. o 24 se encontrava bloqueada por Gino, Mario e um
dos outros dois, e com eles Paolo Pasquale e a irmã. Ao ver-me, ela correu para mim e agarrou-me a mão.
-Já sabe das novidades? - perguntou.
Suspirei. Tinha de as ouvir outra vez. Não havia escapatória.
- Não ouvi outra coisa em todo o dia - respondi -, até
os livros nas prateleiras da biblioteca estavam cheios delas.
Houve um assalto à residência. E todas as raparigas estão grávidas.
- Oh, isso - exclamou ela impaciente. - Quem é que
se rala com isso? Oxalá a senhora Rizzio tenha gémeos... Não, o director do Conselho de Artes convidou todos os estudantes
da C. e E. que o quiserem fazer a colaborar no festival, numa
atitude de confiança em todos nós, considerando que não somos responsáveis pelo sucedido ontem à noite. O professor Elia aceitou em nosso nome, e vai haver uma reunião esta noite, no velho teatro por cima da Piazza del Mercato. Daqui todos vão e você tem de vir connosco.
Olhou-me sorrindo. O irmão juntou-se a ela.
- Venha daí - corroborou. - Ninguém sabe quem você é. Trata-se de uma experiência que ninguém deve perder. Estamos todos loucos por saber o que é que o professor Donati irá dizer.
Eu tive uma intuição de já saber.
As portas do teatro deveriam ser abertas às nove em ponto. Jantámos primeiro com os Silvani e saímos de casa um quarto de hora antes. A Piazza della Vita estava já apinhada de estudantes, que para lá convergiam idos dos seus diversos locais de alojamento na zona alta e baixa da cidade e desciam agora como um só corpo a estreita Via del Teatro. Bem depressa perdi de vista Gino e os seus companheiros, mas os Pasquale agarraram-se firmemente a mim, um de cada lado, fazendo-me sentir como um fantoche, quase a ser balançado sobre os meus pés. O teatro, nos tempos do meu pai, nunca fora muito usado. Eram apresentados em determinadas ocasiões concertos e oratórias e havia uma récita ocasional por uma celebridade literária de visita; de outra forma, permanecia como um edifício de certo esplendor arquitectónico, pouco conhecido dos turistas de passagem ou dos próprios cidadãos de Ruffano. Na actualidade, conforme me disseram os Pasquale, tudo se modificara. Graças ao reitor da Universidade e ao director do Conselho de Artes, o teatro funcionava todo o ano. Conferências, peças, concertos, filmes, exposições, até bailes, tudo tinha lugar dentro das suas augustas paredes.
Deparou-se-nos à porta um sólido bloco de estudantes, aguardando a entrada. Paolo, de rosto decidido, empurrou e apertou, abrindo caminho por entre eles, com Caterina e eu a segui-lo. Eram um grupo bem-humorado, rindo e tagarelando, devolvendo-nos os empurrões e levando-me a interrogar por que motivo os maus modos anteriores se tinham modificado, até me recordar de que aqui não existiam antagonistas: os estudantes que constituíam esta mole apinhada eram todos da C. e E. ".
Ergueu-se um grande clamor quando as portas foram abertas e Paolo, apertando o meu braço com mais força, arrastou-me com a pequena Caterina através da entrada.
- Os primeiros a chegar, são os mais bem servidos - bradava um tipo qualquer à porta. - Os que entrarem primeiro que ocupem um lugar e se agarrem a ele.
O auditório estava já a encher-se rapidamente, o clamor prosseguia, ricocheteando até ao tecto, mas era por seu turno abafado por um grupo de estudantes que se encontrava no palco. Equipados com guitarras, tambores e todas as formas concebíveis de instrumentos de percussão, cantavam êxitos do momento, suscitando tremendos aplausos da surpreendida e deliciada assistência.
- Que se passa? - perguntou Paolo a um estudante que se balançava na coxia, a nosso lado. - Alguém vai falar?
- Não me perguntes - replicou o jovem, agitando-se contente. - Fomos convidados e é tudo o que sei.
- Que importância tem isso? Vamos mas é aproveitar o mais possível - interveio Caterina com uma gargalhada e, colocando-se na minha frente, começou a sapatear e a contorcer-se com inesperada graciosidade.
Eu faria trinta e dois anos no meu próximo aniversário e sentia o peso da idade. No meu tempo de estudante, em Turim, dançara o samba na perfeição, mas isso tinha sido há mais de onze anos. Um guia não ganha experiência nas artes mais subtis. Balancei-me de um lado para o outro para não ficar mal perante a minha presente companhia, mas sabia que estava a fazer má figura. O ruído era tremendo. Ninguém parecia ralar-se com isso. Pensei divertido que Carla Raspa também teria gostado daquilo, apesar de todo o seu desdém pelos estudantes da C. e E. ", mas não divisava ninguém na assistência que me parecesse, ainda que remotamente, membro do corpo docente. Todos eram estudantes, todos eram impressivamente jovens.
- Olhe - bradou subitamente Paolo -, aquele é de certeza o próprio Donati. Ali, a pegar nas baquetas.
Eu encontrava-me de costas voltadas para o palco, numa tentativa de acompanhar o ondular da sua irmã, mas voltei-me à exclamação de Paolo. Era como dizia. Aldo, aparentemente sem se tornar notado, subira ao palco e tomara o lugar do estudante que tocava bateria, estando agora a executar um belo solo. Os guitarristas e os percussionistas viraram-se para ele, o canto e os gritos elevaram-se ainda mais, o som era ensurdecedor e a assistência, apercebendo-se da sua identidade, bateu palmas deliciada, comprimindo-se junto do palco.
- Sabe - disse Caterina -, nós todos o julgámos mal. Considerava-o altivo e poderoso, como o resto dos professores. Mas olhe para ele, olhe só! Confundir-se-ia com um de nós.
- Eu sabia que ele ainda não chegou aos quarenta. Só que nunca tínhamos tido qualquer contacto com ele por não pertencer ao nosso grupo.
- Pertence agora - afirmou Caterina. - Não me importa o que possam dizer.
O ritmo cresceu. Toda a assistência se balançava e agitava com o som estrondoso das guitarras e da batida da bateria. Depois, subitamente, quando alcançaram o auge da exaustão, ouviu-se o floreado final. O som morreu. Aldo veio à ribalta e um estudante, um dos guitarristas, empurrou para diante uma cadeira surgida de parte nenhuma.
- Calma, todos vocês - bradou Aldo. - Estou esgotado. Vamos conversar.
Deixou-se cair sobre a cadeira, limpando a fronte. Houve uma revoada de risos e simpatia vinda da assistência. Ele sorriu e ergueu a cabeça, depois convidou os que estavam de pé ou sentados nas filas da frente a aproximarem-se e a reunirem-se em torno dele. Reparei que as luzes do auditório tinham baixado e que um holofote invisível, do lado do palco, punha em relevo a cara dele e o grupo que o rodeava. Aldo não dispunha de microfone. Falava clara e distintamente, mas de nenhuma forma declamava. Era como se estivesse a conversar casualmente com os estudantes mais próximos.
- Temos de fazer isto mais vezes - declarou, ainda enxugando a testa. - O problema é eu não ter tempo livre. Está tudo muito bem para vocês, podem libertar a pressão em qualquer noite que lhes apeteça, ou aos fins-de-semana, não me estou a referir à noite passada, disso falarei mais tarde, mas uma pessoa que tem uma úlcera, como eu, que passa metade dos seus dias a discutir com professores vinte anos mais velhos
que prontamente recusam tomar qualquer iniciativa que actualize Ruffano e a Universidade, pura e simplesmente não consegue arranjar disposição. Alguém tem de lutar nesta academia empoeirada e eu continuarei a fazê-lo até cair para o lado.
Uma revoada de gargalhadas saudou o seu comentário, após o que olhou em volta, supostamente estupefacto.
- Não, não. Estou a falar a sério - afirmou. - Se se pudessem ver livres de mim, fá-lo-iam. Tal como se livrariam de vocês, de todos os mil e quinhentos do vosso grupo, se é esse o vosso número - eu não disponho de estatísticas na minha frente, mas deve andar perto disso. Por que razão quererão
ver-se livres de vós? Porque estão assustados. Os velhos têm sempre medo dos jovens, pois vocês representam uma ameaça a toda a sua forma de vida. Qualquer um que saia desta Universidade com uma formatura em Comércio e Economia é um milionário em potencial e, mais do que isso, disporá de uma oportunidade de contribuir para o desenvolvimento da economia, não só deste país como também da Europa, possivelmente do mundo inteiro. Vocês são os mestres, meus jovens amigos, toda a gente o sabe. Por isso é que sois odiados. O ódio alimenta o medo e os vossos contemporâneos, que não possuem cérebros como os vossos e não têm os vossos conhecimentos técnicos e o vosso entusiasmo pela vida, como será e deverá ser vivida no amanhã, têm medo de vocês. Estão azuis de medo! Nenhum professor, nenhum advogado palavroso, nenhum pretenso poeta ou pintor de fígados de galinha, e é nisso que se estão a transformar os estudantes das outras faculdades, terá quaisquer hipóteses perante vós. O futuro é vosso e não permitam que qualquer fornada meio cozida de professores decadentes e dos seus degenerados seguidores se metam no vosso caminho. Ruffano é para os que estão vivos. Não para os mortos.
Um tumultuoso aplauso seguiu-se ao gesto de desdém o qual abarcou todos, aparentemente, menos a sua actual audiência. Aguardou que ele terminasse, depois inclinou-se para a frente na sua cadeira.
- Não tenho mais nada que vos dizer. Na minha qualidade de director do Conselho de Artes, não me misturo com a polí tica da Universidade. A minha tarefa é olhar pelas coisas que pertencem ao Palácio Ducal, que vos pertencem a todos vós, e não a uma minoria, como determinadas pessoas preferem pensar. A razão por que vos reuni aqui é por um grupo de pressão, não mencionarei nomes, vos querer destruir. Pretendem tornar a vossa faculdade e tudo aquilo por que vocês se batem em algo tão malcheiroso para as autoridades que vocês serão expulsos; vocês e o chefe do vosso departamento, professor Elia, servindo-se de todos os truques possíveis. Então, conforme pensam, as normas patriarcais serão retomadas e Ruffano cairá mais uma vez no sono. Os improdutivos mestres-escolas, advogados, poetas, farão tudo à sua maneira.
Pisquei o olho a Paolo, que se encontrava à minha direita. Observava Aldo atentamente, de queixo enterrado nos pu nhos. Caterina, à minha esquerda, estava igualmente impressionada. A massa dos estudantes, de rostos voltados para cima, escutava-o com tanta intensidade como a pequena élite do Palácio Ducal o fizera há duas noites atrás. Mas tratava-se de um discurso muito diferente.
- O assalto da noite passada e a afronta que se lhe seguiu - proferiu Aldo em voz baixa -, se é que se tratou de uma afronta e não meramente de uma história mal contada, constituiu uma tentativa deliberada para vos desacreditar. É este género de jogos que guerrilheiros sem escrúpulos executam em tempo de guerra. Cometem atrocidades sobre o seu próprio povo e depois atribuem-nas ao inimigo. Bonito. Até mesmo admirávél. Faz as balas começarem a voar. A Universidade de Ruffano não está neste momento aparelhada para a guerra mas sim, como sabem, sucede que estou a organizar uma coisa chamada festival a qual, se assim quiserem, pode ser usada como a vossa oportunidade para exercerem uma vingança e mostrarem ao inimigo que sois tão poderosos e decididos como ele. O tema deste ano será a insurreição dos jovens cidadãos progressistas de Ruffano contra o decadente duque Claudio e o seu bando de sicofantas, há quinhentos anos atrás. Os comerciantes e as classes trabalhadoras da cidade excediam em milhares os cortesãos, mas o duque tinha a Lei por trás de si, e as armas. Destruía durante a noite, roubando disfarçado nas ruas e maltratando indivíduos inofensivos, tal como, ao que me dizem, faz hoje em dia certa organização anónima.
Caterina, agarrando-me o braço, sussurrou baixinho:
- A sociedade secreta!
- Agora - prosseguia Aldo, pondo-se em pé -, quero que vocês, o sangue vivo da Universidade, desempenhem os papéis dos cidadãos de Ruffano no festival que se aproxima. Não necessitarão de elaborados ensaios, mas aviso-vos que pode ser perigoso. Os rapazes que fazem de cortesãos estarão armados, para tornar a acção autêntica. Pretendo que vocês saiam para as ruas com paus e pedras e qualquer arma de fabrico doméstico que consigam arranjar. Haverá luta nas ruas, na subida da colina e no Palácio Ducal. Qualquer um que tenha medo pode ficar em casa que eu de maneira nenhuma o culparei por isso. Mas quem quer que anseie por uma oportu nidade de vincar os seus pontos de vista perante os altos e poderosos, o presumido círculo íntimo que pensa dirigir a Universidade e também toda a cidade de Ruffano, disporá aqui da sua hipótese. Aproximem-se e ofereçam-se como voluntários. Eu garantirei a vossa vitória.
Chamou-os por acenos, rindo, e alguém atrás dele no palco principiou a rufar num tambor. A combinação desse som com os aplausos da assistência e o bater dos assentos, à medida que os estudantes se empurravam na direcção do palco onde Aldo, ainda a rir-se, os aguardava, soava aos meus ouvidos como a discórdia do inferno.
Deixei Caterina e Paolo a aplaudirem e a gritarem entre os outros e virei-me, empurrando a multidão, para atingir a saída mais próxima. Era o único, no meio dos estudantes que gritavam em massa, a tentar sair. Os guardas que estavam à porta, pareceu-me reconhecer um dos verificadores dos passes na reunião de sábado à noite no Palácio Ducal, estenderam as mãos para me deter, mas consegui escapar-Lhes. Subi a rua até à Piazza della Vita, que se encontrava agora praticamente deserta, à excepção de umas quantas pessoas que ainda passeavam, e regressei ao meu quarto.
De nada servia tentar fazer alguma coisa naquela noite. A sessão no teatro poderia prosseguir até à meia-noite, tanto quanto sabia, ou mesmo até mais tarde. Haveria mais música pop, mais dança, mais conversa, entremeadas com outra actuação na bateria. Aldo reuniria os seus voluntários. Na manhã seguinte iria a sua casa e arrancar-lhe-ia a verdade. O meu irmão não se modificara em vinte e dois anos. A sua técnica era a mesma de então. A única diferença residia em que, em tempos brincara com a imaginação de um fraternal e devotado aliado, agora influenciava as febris emoções em bruto de mil e quinhentos estudantes. Treinar actores para o festival não significava necessariamente lançá-los numa rivalidade de facções, com todos os riscos de precipitar uma catástrofe. Ou significaria? Teria Aldo a intenção de levar as equipas oponentes à conflagração, de forma a que o ambiente ficasse finalmente desanuviado? Esta tinha sido a teoria dos senhores da guerra do passado. Não resultaria. O sangue derramado, tal como os adubos, fertiliza o solo, gerando novos confrontos. Gostaria que a senhora Butali não tivesse ido para Roma. Poderia ter trocado impressões com ela. Poderia tê-la avisado acerca de Aldo e dos seus multifacetados esquemas, do seu poder magnético sobre os desprevenidos e vulneráveis jovens. Talvez argumentasse com ele, ou talvez se risse de mim.
Quando os estudantes regressaram à pensão, pouco depois da meia-noite, apaguei a luz. Ouvi os passos leves de Caterina a subir as escadas e ela abriu a minha porta, chamando baixinho. Passado um bocado foi-se embora. Não me encontrava com disposição para escutar aquela convertida, ou dar-lhe explicações sobre o meu próprio comportamento.
Na manhã seguinte, esperei propositadamente até ouvir todo o grupo sair da casa, antes de descer para a sala de jantar. A senhora Silvani estava sentada à mesa, a ler o jornal.
- Cá está o senhor - disse ela. - Estava a perguntar a mim mesma se não teria saído mais cedo, mas os miúdos pensavam que não. Aqui tem o seu café. Ficou tão impressionado com o director do Conselho de Artes como eles ficaram?
- Tem talento - declarei. - É muito persuasivo.
- Acredito - respondeu a mulher. - Com certeza que persuadiu a nossa gente e imagino que a maior parte dos outros. Vão todos fazer de cidadãos de Ruffano no festival. - Empurrou para mim o jornal, enquanto eu bebia o café. - Veja o jornal local - sugeriu. - Há um pequeno artigo sobre o assalto à Residência das Raparigas, mas dizem que nada foi roubado e que se tratou de uma simples partida de estudantes. A senhora Rizzio teve uma crise de asma - não teve nada a ver com o assalto - e foi para fora durante uma quinzena, apanhar ar de montanha.
Mastiguei em silêncio o meu pãozinho. Carla Raspa tinha tido razão. A pobre senhora Rizzio fora incapaz de enfrentar o mundo desdenhoso que a rodeava. Verdade ou mentira, o estigma de velha solteirona desflorada implicava o desprezo.
- Ruffano ocupa os cabeçalhos - continuou a senhora Silvani. - Vê ali em cima a notícia sobre a mulher assassinada em Roma? É de Ruffano e o corpo dela vai ser trazido para o funeral. Apanharam o rapaz que fez aquilo. Um marginal,
Passei rapidamente os olhos pelas letras em caixa alta.
A Polícia de Roma prendeu na noite passada Stampi, trabalhador assalariado presentemente sem emprego, que já anteriormente cumprira pena de nove meses por roubo. Confessou ter roubado uma nota de dez mil liras à morta, mas nega o crime.
Terminei o café e pus de lado o jornal.
- Ele diz que está inocente.
- E você não diria? - redarguiu a senhora Silvani. Saí de casa e subi a Via Rossini em direcção ao meu emprego. Fazia nesse dia uma semana que tinha entrado em Roma com o meu autocarro e vira na mesma noite a mulher, que agora se provara ser Marta, a dormir à entrada da igreja. Só uma semana. Um impulso momentâneo da minha parte provocara-lhe a morte, o meu próprio regresso à minha terra e o encontro com o meu irmão, que ainda vivia. Acaso ou predestinação? Nem cientistas o poderiam dizer. Nem psicólogos, ou padres. Mas, se não fosse aquele passeio pela rua, eu estaria agora de regresso a casa, no percurso de Nápoles para Génova, como pastor do meu rebanho. Da maneira que as coisas estavam, tinha provavelmente perdido para sempre o meu estatuto de guia, a troco de quê? De um emprego temporário como assistente de biblioteca que eu não poderia, não me atreveria a deixar, por causa de Aldo. Ele, regressado de entre os mortos, era a minha razão de viver. Nós, a minha mãe e eu, tínhamo-lo abandonado uma vez, contribuindo, sem sombra de dúvida, para o seu actual comportamento ambivalente. Nunca mais. O que quer que o meu irmão decidisse fazer, tinha de me conservar a seu lado. O assassínio da pobre Marta deixara de ser preocupação minha, agora que o criminoso tinha sido apanhado; Aldo é que era o meu problema.
Tal como no dia anterior, encontrei os meus colegas assistentes de biblioteca ocupados com boatos. A secretária, senhora Catti, procurava negar a história espalhada por Toni de que a infortunada senhora Rizzio tinha, após um exame radiológico no hospital local, deixado Ruffano para ser operada noutro lado.
- Essa história é maliciosa e inteiramente infundada - afirmava ela. - A senhora Rizzio estava com uma grande constipação e é asmática. Foi para fora com uns amigos.
Giuseppe Fossi desacreditou a história como tratando-se
de tagarelice de estudantes.
- Seja como for - garantiu -, todo esse infeliz acontecimento morrerá de morte natural, graças ao professor Donati, que conseguiu uma reconciliação entre o professor Rizzio e o professor Elia. Vai dar hoje um grande jantar no Hotel Panorama, em honra de ambos. A minha mulher e eu fomos convidados, bem como todos os professores. Será um importante acontecimento, como calcularão. Agora vamos acabar com todos esses disparates e lançarmo-nos ao trabalho?
Enquanto me apressava a obedecer às suas ordens, senti-me mentalmente mais à vontade. Uma reconciliação entre os chefes dos departamentos opositores só podia fazer bem. Se era essa a jogada de Aldo, então eu tinha-o avaliado mal. Talvez o seu discurso dirigido aos estudantes da C. e E. " no teatro tivesse sido simplesmente aquilo que parecia: uma astuciosa procura de voluntários para o festival e nada mais. Encontrava-me seguramente sensibilizado e intuitivo relativamente a cada palavra e gesto seu, mas ignorava os seus preparativos para o festival. Tanto a senhora Silvani como Carla Raspa se tinham mostrado entusiasmadas com o realismo de ocasiões anteriores. Os Butali tinham tomado parte na produção do último ano, juntamente com o professor Rizzio. Ao fim e ao cabo, a encenação deste ano seria assim tão diferente?
Voltei à pensão, para almoçar, e imediatamente fui acossado pelos meus companheiros da noite anterior.
-Desertor... cobarde... traidor! - gritavam Gino e os seus amigos, até que o senhor Silvani, erguendo a mão a pedir silêncio, garantiu que ele e a sua esposa poriam todo o grupo fora de casa.
- Gritem se quiserem até enrouquecerem no festival - disse -, mas não debaixo do meu telhado. Aqui quem manda sou eu. Sentem-se, e não lhes ligue - acrescentou em meu benefício e, para a esposa: - Serve primeiro o senhor Fabbio.
- Se querem saber a verdade - proferi, dirigindo-me a toda a mesa -, vim-me embora mais cedo ontem à noite porque me doía o estômago. - Esta declaração foi recebida com grunhidos de descrença. - E também não sou capaz de dançar o twist - continuei -, ou se calhar foi por o tentar fazer que me senti mal.
- Está desculpado - gritou Caterina - e vocês calem-se. Afinal, estamos a esquecer-nos de que ele não é estudante. Por que motivo haveria de se comprometer?
- Porque quem não é por nós, é contra nós - interveio Gerardo.
- Não - decidiu Paolo -, isso não se aplica a estranhos.
E Armino é um estranho em Ruffano.
Virou-se para mim, com o seu jovem rosto muito sério.
- Não deixaremos que o incomodem - afirmou -, mas, mesmo assim, compreende que bela coisa o professor Donati
está a fazer, ao incluir-nos a todos no festival?
- O que ele quer são actores - contestei -, só isso.
- Não - insistiu Paolo -, isso não é tudo. Ele pretende demonstrar em público que se encontra do nosso lado. Trata-se de um voto de confiança em cada estudante universitário da C. e E. e, vindo ele de um observador desinteressado como é o director do Conselho de Artes de Ruffano, coloca-nos na mó de cima.
Um coro de aprovação elevou-se de toda a mesa. O senhor
Silvani limpou a boca e empurrou a cadeira para trás.
- Sabem o que se diz na prefeitura? - perguntou. - Que a Universidade está a ficar demasiado inchada. Há uma praga em todas as nossas faculdades e faríamos bem em abater-vos todos a tiro e transformar a cidade num agradável centro turístico,
com estâncias termais e piscinas em cada colina.
Aquilo pôs fim à discussão. Permitiram-me terminar de almoçar sem me alvejarem mais. Antes de regressar à biblioteca, descobri que me tinha sido deixada uma mensagem na porta do n. o 24, e reconheci a caligrafia irregular de Carla Raspa.
Não esqueci o nosso encontro desta noite, li eu, e sugiro-lhe que, em vez de me levar ao Hotel del Duchi, juntemos os nossos recursos e experimentemos a magnificência do Hotel Panorama. Vai ser lá dado um grande jantar pelo director do Conselho de Artes e nós poderemos enfiar-nos num canto a
observar o esplendor. Venha buscar-me às sete.
A sua persistência era infatigável, mas eu duvidava de que lhe valesse a admissão no n. o 2 da Via del Sogni. O mais perto que conseguia aproximar-se de Aldo era no restaurante público de um hotel. Garatujei uma nota em resposta, aceitando o desafio e deixei-lha no limiar da porta.
A tarde na biblioteca passou-se sem incidentes e, bastante estranhamente, sem tagarelice. O tumulto da C. e E. ", que quase me mergulhara na fonte no dia anterior, não perturbara a poeira da biblioteca. As prateleiras de que Toni e eu estávamos agora encarregados encontravam-se cobertas dela e os livros que removemos não deviam de lá ter sido tirados durante anos. Uma colecção, mesmo no alto, tinha um nome inscrito que fez ressoar uma corda na minha memória: Luigi Speca, Onde é que eu ultimamente tinha ouvido ou lido o nome de Luigi Speca?... Fiz uma pausa e acabei por encolher os ombros. Não me conseguia lembrar. De qualquer forma, a colecção revelou-se pouco interessante. Edições uniformes da Divina Comédia de Dante, Poemas de Leopardi, Sonetos de Petrarca, todos empilhados juntamente com obras variadas. Doado à Universidade de Ruffano por Luigi Speca. " Isso constituía prova de propriedade e eles deveriam ir para a nova biblioteca da Universidade. Embalei-os num dos caixotes e deixei a caixa de documentos para outra ocasião. Giuseppe Fossi estava já a mostrar-se inquieto, de olho no relógio.
- Não posso permitir atrasar-me - declarou pouco depois das seis. - O jantar no Panorama é das oito e um quarto às nove menos um quarto. O uso de smoking é opcional, mas eu vesti-lo-ei, é claro.
Tinha dúvidas de que, se lhe propusesse trocar o seu encontro pelo meu, ele o tivesse feito. Desandou da biblioteca com toda a pompa de um clérigo menor que tivesse sido con vidado para tomar parte numa cerimónia papal. Segui-o cerca de vinte minutos mais tarde. Uma vez que não dispunha de smoking para impressionar Carla Raspa, o meu único fato es curo teria de servir.
- Vai ver a festa ao Panorama? - perguntou Toni. - Toda Ruffano há-de aparecer, é o que os rapazes dizem lá em baixo na cidade.
- Talvez o faça - respondi. - Procure, a ver se me vê.
Lavado, de roupa mudada e todo luzidio, cheguei ao n. o 5
quando soavam as sete no campanário. Subi as escadas para o
primeiro andar e, ao ver o cartão com o nome Carla Raspa"
inserido num pequeno caixilho ao lado da porta, bati nela. Foi
imediatamente aberta e ali estava a minha companheira para
essa noite, imaculada num vestido preto e branco - uma blusinha branca, curta, contrastando com a saia preta a direito -, de cabelo refulgente, repuxado suavemente para trás sobre as
orelhas, os lábios exangues. Um vampiro antes de saltar sobre
a vítima não teria tido um aspecto mais perigoso.
- Estou preocupado - declarei, fazendo uma vénia. O problema é que, se pusermos o pé na rua, seremos chacinados. Nunca conseguiremos chegar ao Hotel Panorama.
- Não se rale - respondeu, puxando-me para dentro do
apartamento. - Tratei disso. Viu o carro que está lá fora?
Ao entrar no prédio eu tinha reparado num Fiat 600, estacionado junto do passeio.
- Sim - confirmei. - É seu?
- Meu para esta noite - sorriu -, emprestado por um
vizinho do andar de cima, que me deve favores. Tome uma bebida. Cinzano da sua cidade natal de Turim.
Entregou-me um copo e pegou noutro para si mesma.
Lancei uma olhadela em volta. O mobiliário, que eu esperara
que fosse comum, já que o apartamento era alugado mobilado,
tinha sido embelezado com objectos ao gosto da inquilina.
Brilhantes e enormes almofadões estavam espalhados sobre o
divã-cama. Um candeeiro de ferro forjado - feito em Ruffano? - ficava-Lhe ao lado, com a luz abafada por um grande
abat jour de pergaminho. A diminuta cozinha, ao fundo, tinha
chão escarlate e um canto da sala era destinado às refeições,
com uma mesa e duas cadeiras, todas negras. Era aí que Giuseppe Fossi devia repousar, antes de procurar saciar-se sobre o divã-cama.
- Parece-me bem instalada - declarei. - Os meus parabéns, menina.
- Gosto de dispor de conforto - replicou ela -, e os poucos amigos que me visitam, também. Se quer incluir-se no número deles, passe a chamar-me Carla.
Ergui o meu copo e bebi a essa distinção. Ela acendeu um cigarro e caminhou pela sala, o aromático perfume que exudava da sua pessoa a revelar-se demasiado pungente para o meu gosto. Sem dúvida que se destinava a exacerbar apetites e aquecer o sangue. As minhas funções vitais permaneceram imperturbadas. Mirou-se no espelho da parede, mostrando-se enfadada. Era uma acção reflexa, significando prazer com o que via.
- Qual é o gozo de ver um jantar formal de professores com as suas esposas? - perguntei.
- Você não percebe - retorquiu. - É uma oportunidade num milhão. Dizem que o professor Rizzio e o professor Elia já não se falam há mais de um ano. Eu quero observar o impacte. Além disso, qualquer festa dada por Aldo Donati é digna de se ver. Só espreitar por uma frincha já seria estimulante.
As suas narinas estremeciam de antecipação, como uma égua no cio antes de ser coberta. Fiquei à espera de que, a qualquer momento, começasse a escarvar o soalho.
- Você tem conhecimento de que Giuseppe Fossi e a mulher foram convidados - contrapus. - E se ele nos vir? Irá isso estragar a sua deliciosa amizade?
Riu-se, encolhendo os ombros.
- Terá de aceitar aquilo que lhe é oferecido - respondeu. - Para além disso, há-de estar tão cheio de orgulho que não terá olhos para nós. Vamos?
Mal passava das sete e um quarto. Giuseppe Fossi dissera algo na biblioteca acerca de a festa começar às oito e um quar to. Foi o que informei a Carla Raspa.
- Bem sei - disse -, mas a minha ideia é esta. Comer mos cedo e depois, quando o grupo do Donati se reunir no átrio para os aperitivos, esgueirarmo-nos para a sala do restaurante e juntarmo-nos a eles. Ninguém perceberá que não estámos entre o número dos convidados até já ser tarde demais, já termos entrado para jantar.
Tinha feito parte das minhas funções até à altura combinar pequenos estratagemas como aquele para prazer dos meus clientes turistas. Fazia a noite deles valer a pena, se pudessem estar nas proximidades de actores de cinema, diplomatas, e darem-se ao luxo, ainda que por cinco minutos, de fantasiarem que pertenciam a outro estrato social.
- Tudo o que quiser - anuí. - Só lhe exijo que não sigamos os convidados para dentro da sala de jantar, para não acabarmos por sofrer a humilhação de sermos excluídos da mesa.
- Prometo portar-me bem - garantiu. - Mas nunca se sabe. Os números podem estar errados e, se houver lugares vagos, ocuparei um, sem escrúpulos.
Eu duvidava que a festa de Aldo fosse assim tão desorganizada, mas deixei-a acalentar as suas esperanças. Descemos à rua e, a sugestão de Carla, sentei-me ao volante do automóvel emprestado. Disparámos pela rua abaixo, passando pela Igreja de San Cipriano e subindo a colina norte na direcção da Piazza del Duca Carlo, detendo-nos a uns duzentos metros dela, diante do imponente Hotel Panorama.
Estávamos muito adiantados em relação aos mirones da cidade anunciados por Toni, mas a nossa chegada não passou desapercebida. Um porteiro de uniforme apressou-se a ajudar-nos a sair do carro. Outro, igualmente resplandecente, segurou as portas de vaivém. Pensei com compaixão no meu velho
amigo senhor Longhi, do Hotel del Duchi.
O vestíbulo era grande, com chão de pedra e pilares, implantados em torno de laranjeiras em vasos e fontes com repuxos. As janelas da retaguarda davam para um terraço onde durante o tempo quente, segundo me contou a minha companheira, a clientela fazia sala e jantava. O hotel, agora na sua segunda época, era explorado por um sindicato. O professor Elia, director da Faculdade de Comércio e Economia, era considerado membro da organização. Não fiquei surpreendido.
- Não se preocupe com a conta - murmurou Carla Raspa. - Eu estou bem abonada, se você ficar com pouco dinheiro. A despesa é caríssima. Destina-se naturalmente a turistas
americanos e alemães. Ninguém mais se pode permitir suportá-la excepto os milaneses.
Atravessámos o restaurante, vazio no momento a não ser pelas nossas pessoas. A enorme mesa do centro, pronta para o grupo que viria mais tarde jantar, fazia-me lembrar o cenário tantas vezes mandado preparar por mim para a Sunshine Tours. Só Lhe faltavam as bandeiras. O chefe dos criados, com os seus ajudantes à ilharga, inclinou-se diante de nós, junto da mesa que Carla Raspa reservara antecipadamente, e entregou-nos as ementas com o tamanho de editais. Estudei o meu em silêncio, pensando nas minhas algibeiras. Carla Raspa, numa demonstração de bravata, encomendou para os dois; o prato, um casamento post-mortem de enguias e polvo, pressagiava insónias. Talvez fosse essa a sua intenção.
- Gostaria - declarou - de viver assim para sempre. Mas nunca acontecerá isso, enquanto continuar a ser professora no corpo docente de cá.
Perguntei-lhe qual seria então a alternativa. Encolheu os ombros.
- Um homem rico algures - respondeu -, preferivelmente com mulher em casa. Os homens solteiros cansam-se depressa. Têm tanto por onde escolher.
- Em Ruffano não encontra nenhum - garanti- lhe.
- Não sei - insistiu -, vivo nessa esperança. O professor Elia tem mulher, que nunca sai de Ancona. Hoje não há-de cá estar.
- Pensei - interpus fazendo um aceno de cabeça para o conjunto que vestia - que tudo isso se destinava a atrair Donati.
- E que há de mal em apanhar os dois? - redarguiu.
Donati é mais ilusório. Mas garantem-me que Elia tem mais apetite.
A sua franqueza era desarmante e eu sentia- me seguro com
ela. A mesa para dois na kitchenette e o seu divã-cama não me estavam destinados.
- É claro - continuou - que se me aparecesse um camarãozito oferecendo-se para casar comigo, aceitá-lo-ia. Mas só se o seu saldo bancário fosse considerável. - Entendi o recado e permiti-me soltar um profundo suspiro. Acariciou-me gentilmente a mão. - Como acompanhante você não poderia ser melhor - afirmou. - Se eu apanhar o meu peixe e você permanecer em Ruffano, poderá compartilhar do banquete.
Manifestei-me muito agradecido. Sentíamo-nos um tanto animados por uma garrafa de Verdicchio, destinada a suavizar a deglutição da enguia com polvo. Dei conta de que sorria sem qualquer motivo. As paredes do Hotel Panorama retrocediam. O chefe dos criados tornou-se menos atencioso e estava sempre a espreitar pela porta que dava para o vestíbulo com pilares.
-Já terminou? - perguntou Carla Raspa. - Em caso afirmativo, parece-me que será melhor mexermo-nos. Estão a principiar a chegar... posso dizê-lo pelo barulho lá fora. Peça a conta.
A conta estava preparada, dobrada sobre uma salva. Só tínhamos comido um prato mas, a julgar pelos algarismos, poder- se-ia afirmar que necessitaríamos do apoio do tal saldo bancário de que faláramos antes. Tirei a carteira, enquanto a minha companheira me depositava reforços sobre o joelho, a coberto da toalha da mesa.
Solenemente, como um deus que já comera a sua parte antes da chegada dos mortais, paguei, e acompanhei a minha companheira para fora do restaurante. Penetrámos no vestíbulo para o encontrarmos já cheio com os convidados. Os homens, como Giuseppe me avisara, estavam de smoking, as mulheres, usavam os mais variados vestidos de noite. Os cabeleireiros de Ruffano tinham-se visto obrigados a fazer horas extraordinárias.
Carla Raspa pegou descaradamente num copo que se encontrava sobre um tabuleiro, que o criado mais próximo lhe apresentou. Eu fiz o mesmo.
- Lá está ele - disse a minha companheira. - Fica com um ar ainda mais sedutor de smoking. Sinto vontade de o comer.
Aldo encontrava-se de pé, de costas para nós mas, a despeito do ruído das vozes, o tom bastante claro de Carla Raspa, soou numa escala mais adequada a uma sala de aulas a que estava habituada, do que aquela reunião formal, atingindo-lhe os ouvidos. Virou-se e viu-nos a ambos. Durante um momento fitou-nos confundido, uma coisa rara no meu irmão. Imaginei o pensamento que lhe estaria a ocorrer: ter-se-ão extraviado dois convites? O meu ar de embaraço deve tê-lo tranquilizado, tal como a minha tentativa de recuar. Lançou-me um olhar de morte, mas acenou bastante civilizadamente para a minha companheira. Depois voltou-se para a frente, para cumprimentar outro convidado que chegava, o professor Rizzio, sozinho, sem trazer a irmã. O reitor substituto da Universidade tinha aspecto de fadiga e constrangimento. Apertou a mão de Aldo e murmurou qualquer coisa que não consegui escutar, em resposta à solícita pergunta do meu irmão sobre a saúde de sua irmã. A sua aparência macilenta perturbava-me e só a custo o podia fitar. Discretamente, afastei-me e pus-me a observar os outros que chegavam, nenhum dos quais eu conhecia. Só Giuseppe Fossi, quase a fazer rebentar o seu smoking apertado, se me tornou reconhecível por entre uma mole de estranhos, com a esposa, mais parecida com uma ávida galinha do que com qualquer outra coisa, a debicar e a cacarejar a seu lado.
Olhei de soslaio através da entrada, para a fila de carros no exterior e, para além deles, para a multidão que tagarelava embasbacada. Certamente que lá não estava toda Ruffano, mas uma razoável quantidade de pessoas debatia-se para arranjar espaço, tanto habitantes da cidade como estudantes. Voltei-me para o átrio. Giuseppe Fossi tinha reparado em Carla Raspa e tratava de conduzir a mulher noutra direcção. Aldo, ainda ocupado com o professor Rizzio, consultava o relógio. A minha companheira dirigia-se na minha direcção.
- O outro convidado de honra está atrasado - informou. - São quase dez para as nove. Naturalmente fez de pro pósito. Para ter uma entrada mais em evidência do que Rizzio.
Esquecera-me do professor Elia. O objectivo da festa, é claro, era operar uma reconciliação pública. O triunfo de Aldo seria juntar os dois homens.
As vozes erguiam-se a um nível ensurdecedor. Copos tilintavam. Abanei negativamente a cabeça quando me ofereceram um terceiro Martini.
-Não poderíamos ir embora? - sussurrei para Carla Raspa.
- E perder o encontro dos gigantes? Nem morta - respondeu ela.
Os minutos arrastaram-se como horas. Os ponteiros do relógio do hotel atingiram os três minutos para as nove. Aldo parara de conversar com o professor Rizzio e batia impacientemente com o pé.
- Ele tem de vir de muito longe? - perguntei à minha companheira.
- São três minutos de automóvel - respondeu. - Conhece aquela casa grande à esquina da Piazza del Duca Carlo? Oh, não, é óbvio que não. Isto é a maneira de ele fazer os restantes parecerem pequenos.
Tocou o telefone na recepção. Aconteceu-me ouvi-lo por me encontrar entre ele e os convidados. Vi o funcionário da recepção atendê-lo, escutar, e depois pegar num bloco de mensagens e escrever qualquer coisa. Parecia desorientado. Acenando para o mandarete que se encontrava a seu lado, este apressou-se a atravessar a multidão na direcção do meu irmão, entregando-lhe a mensagem. Observei o rosto de Aldo. Leu o recado, depois virou-se rapidamente para o recepcionista e interrogou-o. O homem, perturbado, repetiu obviamente aquilo que acabara de ouvir pelo telefone. Aldo ergueu ambas as mãos e pediu silêncio. Ouviram-se imediatas exclamações a recomendar que se calassem. As caras viraram-se para ele.
- Receio ter de vos comunicar que aconteceu algo ao professor Elia - informou. - Chegou-me uma mensagem telefónica de um interlocutor anónimo, sugerindo que fosse imediatamente a casa do professor. Pode ser uma partida, mas muito possivelmente não é. Se me desculparem, vou lá de carro neste mesmo instante. Se tudo estiver bem, comunicar-vos-ei logo que possa.
Um sussurro de consternação veio do grupo dos convidados. O professor Rizzio, com um ar mais abatido do que nunca, agarrou Aldo pela manga. Estava evidentemente a pedir para ir com ele. Aldo abanou a cabeça, já a percorrer apressadamente a sala apinhada. O professor seguiu-o. Outros homens afastaram-se igualmente das esposas, dirigindo-se para a entrada. Carla Raspa, pegando-me na mão, puxou-me atrás deles.
- Vamos - disse. - Pode ser um caso sério, ou pode não ser nada. Mas, seja o que for, não vamos perdê-lo.
Segui-a através das portas de vaivém do hotel. Já conseguia ouvir o rugido do Alfa-Romeo de Aldo, que descrevia uma curva pela colina acima, na direcção da Piazza del Duca Carlo.
Capitulo décimo quarto
Acompanhámo-lo de perto no nosso automóvel emprestado, mas outros tinham tido a mesma ideia. Aqueles convidados cujos carros, como o nosso e o de Aldo, tinham estado estacionados no espaço reservado do hotel foram os que partiram mais depressa. A multidão de estudantes e cidadãos que estavam a ver, apercebendo-se pela confusão de que algo corria mal, desatou a correr por seu turno pela colina acima. Buzinas soavam brutalmente e ouvia-se um ranger de mudanças a serem metidas e vozes excitadas.
- É aquela a casa de Elia, ali à esquina - apontou Carla. - As luzes estão acesas.
O Alfa-Romeo já tinha travado ao lado da casa, que ficava no meio do seu próprio jardim, à direita da Piazza del Duca Carlo. Vi Aldo saltar do carro e precipitar-se para o interior, seguido mais lentamente pelo professor Rizzio. Abrandei, perguntando-me o que fazer. Não poderíamos parar atrás do carro de Aldo. Havia automóveis a buzinar impacientemente à minha retaguarda.
- Vou circundar a praça - declarei - e voltaremos aqui. Avancei velozmente, mas Carla Raspa, esticando-se para espreitar para fora da janela, disse:
- Estão a sair outra vez. Ele não deve lá estar. O caos estabelecia-se atrás de mim, próximo da casa. Podia distinguir as luzes dos carros a faiscarem no meu retrovisor. Pessoas gritavam.
- O Donati está a entrar outra vez no carro dele - informou Carla. - Não, não está. Espere, Armino, espere. Estacione ali à direita, junto do jardim público.
A Piazza del Duca Carlo terminava nos jardins municipais, cortados por veredas de gravilha e ornamentados por árvores e sebes de arbustos, com a estátua do duque Carlo a dominar a cena. Estacionei o carro próximo de umas árvores e saímos.
- Qual o motivo dos holofotes? - perguntei.
- Estão sempre ligados durante a semana do festival - informou a minha companheira. - Não reparou neles ontem à noite? Meu Deus...
Agarrou-se ao meu braço, apontando para a estátua do duque Carlo que, serena e magnificente no seu pedestal de mármore, vigiava benignamente o caminho de gravilha lá em baixo. Iluminada, constituía uma figura imponente, mas menos imponente era o homem sentado imediatamente por baixo dela, nos degraus de pedra da sua base. Sentado, ou melhor, escarranchado, porque as suas mãos e pernas largamente abertas pendiam como pesos mortos, evitando que se deslocasse. Estava nu em pêlo. Mesmo à distância a que me encontrava, cerca de vinte e cinco metros, não tive dificuldade em reconhecer a poderosa estatura, a mancha de cabelo negro do pro fessor Elia.
Enquanto o olhávamos, com a minha companheira a sufocar um grito meio histérico meio apavorado, reparámos em Aldo, seguido por meia dúzia de homens, a correr através da praça na direcção da estátua. Num momento, a infortunada vítima encontrava-se rodeada, oculta à vista por aqueles que sobre ela se inclinavam para a libertarem. Vi Aldo separar-se do grupo e agitar a mão gritando por um carro. Outro vulto corria, atravessando a praça. Entretanto, mais automóveis se tinham aproximado, travando e estacionando. O primeiro dos estudantes que tinham vindo a correr alcançava o cimo da colina. Toda a gente gritava: Que foi? Quem é? Que aconteceu "
Aproximámo-nos mais, arrastados pelo tremendo instinto que penetra todos os seres humanos quando em presença de um desastre. O instinto de estar presente. O desejo de saber. Por sermos os primeiros a chegar à cena, dispúnhamos de vantagem sobre os nossos igualmente curiosos vizinhos, embora Aldo e os convidados do hotel que o tinham seguido de perto nos ocultassem parcialmente o infortunado professor.
Alguém lhe cortou as correias e os braços e pernas balançaram para diante. Todo o corpo descaiu, como que prestes a tombar. A vítima ergueu a cabeça. Não estava amordaçado. Poderia, se assim o desejasse, ter gritado por socorro antes daquilo e ter sido libertado mais cedo. Por que não o teria feito? Os seus olhos, sem óculos, rebuscavam os rostos dos que, por simpatia e consternação procuravam ocultá-lo aos olhares do público, dando a resposta à minha pergunta. O professor Elia não gritara por socorro por vergonha. Vergonha da lamentável, chocante e ridícula figura que apresentaria perante os inevitáveis estranhos que lhe pusessem os olhos em cima em primeiro lugar. Naquelas circunstâncias, o homem na sua frente, que baixava o olhar com piedade, até com angústia, e que tinha sido o primeiro a estender o tapete do carro que um prestável indivíduo trouxera para Lhe envolver o corpo nu, era o seu rival, o reitor substituto da Universidade, o professor Rizzio, cuja irmã tinha sido maltratada somente umas quarenta e oito horas antes.
- Ajude-o a ir para o carro - mandou Aldo. - Tapem-no por completo. E tirem toda essa gentalha do caminho. Ele e o professor Rizzio auxiliaram a vítima a pôr-se de pé. Por um momento tivemos uma visão dele em toda a sua desarranjada nudez, os horríveis membros brancos a contrastarem com o cabelo escuro; depois o misericordioso tapete ocultou-o, braços protectores envolveram-no. Os amigos levaram-no para o abrigo proporcionado pelo automóvel, com desorientados observadores a afastarem-se para os lados. Deixei Carla Raspa a olhar para o grupo de salvamento. Fui atrás de uma das árvores municipais e vomitei. Depois regressei, encontrando a minha companheira de pé junto do carro.
- Venha - chamava impacientemente. - Vamos atrás deles.
Olhei para o outro lado da praça. O carro referido, abrindo caminho à força pelo meio da multidão que se reunira, pa rara mais uma vez diante da casa do professor Elia.
- Não podemos ir àquela casa - disse eu. - Não temos nada que fazer lá.
- Não é irmos atrás dele - esclareceu a rapariga, entrando de rompante no automóvel -, vamos mas é atrás da quadrilha. Dos estafermos que fizeram aquilo. Não podem andar longe. Depressa... depressa.
Uma vez mais, aqueles que dispunham de carros adoptaram a ideia. A vítima poderia ficar em segurança aos cuidados dos seus amigos e de um médico chamado à pressa; mas tinha sido lançada a caçada aos perpetradores da afronta.
Quatro estradas partiam da Piazza del Duca Carlo, pelo que a escolha era variada. Os que foram pela esquerda, viraram para oeste, saindo da cidade. Voltar à direita levar-nos-ia pela colina abaixo até à Porta Malebranche e à Via delle Mura, Outra rua, a sul do portão, conduzia ao cimo da colina, à Piazza della Vita, no centro da cidade. Escolhi o caminho da direita e ouvi outro carro atrás de mim. Descemos a colina na direcção do portão e deixei então o outro carro ultrapassar-nos. Virei para leste ao longo da Via delle Mura. Dois estudantes, montados numa vespa seguiram-no. Não tinha a mínima dúvida de que outros perseguidores tinham ido para oeste a partir da Piazza del Duca Carlo e que todos se encontrariam eventualmente na colina sul, para lá das residências dos estudantes.
Detive o automóvel nas muralhas da Via delle Mura, que davam para o vale lá em baixo, e virei-me para a minha com panheira:
- É uma perseguição inútil - declarei. - Quem quer que tenha feito aquilo sumiu-se. Só precisaria de perguntar numa das ruas laterais e desaparecer, depois vaguear pela Piazza dela Vita como qualquer outro.
- Como teriam eles levado o Elia de casa para a estátua, se não tinham carro? - perguntou ela.
- Cobriram-no com os tapetes e transportaram-no - aventei. - Toda a gente estava tão ocupada a ver os convidados chegarem ao Hotel Panorama que a Piazza del Duca Carlo, ao cimo da colina, se encontrava deserta. Depois telefonaram para o hotel da casa do professor Elia e abalaram. - Peguei no maço de cigarros e acendi um para mim e outro para ela.
Em qualquer dos casos - continuei a dizer -, hão-de acabar
por os encontrar. Donati terá de mandar chamar a Polícia.
- Não tenha tanta certeza - contrariou ela.
- Por que não?
- Terão primeiro de ter autorização do professor Elia - replicou -, e ele não vai querer ver a sua nudez comentada
jocosamente na imprensa, mais do que Rizzio quis que o
mundo soubesse do assalto sofrido pela irmã. Apostava mil liras que se vão calar sobre o segundo ataque, como fizeram com o primeiro.
- Impossível! Houve demasiadas pessoas que viram.
- Uma quantidade delas não viu absolutamente nada. Só
um grupo de homens concentrados em volta de uma figura coberta por tapetes. Se quem manda pretender fazer calar o que
sucedeu, há-de consegui-lo. Dá-se conta de que na sexta-feira
é o dia do festival, altura em que os pais dos estudantes e visitantes acorrem a Ruffano? Que belo momento para anunciar
um escândalo!
Fiquei calado. O incidente tinha sido bem cronometrado.
Para além de expulsarem os estudantes em massa, pouco mais
havia que as autoridades pudessem fazer.
- Pode ter sido uma de duas coisas - continuava Carla
Raspa. - Ou uma vingança dos rapazes das Artes e Educação
pelo insulto feito aos Rizzio, ou um duplo bluff dos moços da
C. e E. ", para atirarem com as culpas para cima dos seus
oponentes. Não sei se é muito importante que tenha sido de
uma ou doutra forma. Como golpe foi muito bem executado.
- Acha que sim? - comentei.
- Acho - declarou ela -, e você não?
Eu não tinha a certeza daquilo que mais me impressionara:
se o rosto contraído do professor Rizzio, a esconder o seu
orgulho ao apertar a mão do meu irmão no Hotel Panorama
ou os torturados olhos de pânico do professor Elia quando a
sua nudez havia sido revelada. Ambos eram figuras patéticas,
amesquinhadas.
- Não - respondi. - Eu sou um estranho em Ruffano.
Ambos os incidentes me revoltam.
Abriu a janela do carro, a rir-se, e atirou fora o cigarro. Tirou-me o meu dos lábios e lançou-o também fora. Depois
virou-se e, pegando-me na cara entre as mãos, beijou-me na boca.
- O seu problema é precisar de uma mão firme para o orientar - afirmou.
Aquela súbita manifestação de paixão apanhou-me desprevenido. Os lábios que comprimiam os meus, as pernas que se entrelaçavam nas minhas, as mãos que me apalpavam, foram inesperados. A iniciativa que teria sem dúvida deliciado Giuseppe Fossi, a mim revoltou-me. Se era aquele o momento escolhido por ela, não era o que eu elegera. Empurrei-a para trás contra o manípulo da porta e esbofeteei-a. Ficou estupefacta.
- Para quê tanta violência? - inquiriu, nem minimamente aborrecida.
- Fazer amor dentro de um automóvel ofende o meu bom gosto - expliquei-lhe.
- Então, muito bem. Vamos para casa - retorquiu.
Pus imediatamente o carro em marcha e percorremos a Via della Mura para o interior da cidade, dirigindo-nos por uma rua lateral para a Via San Michele. Em qualquer outra altura, eu poderia ter-me divertido, até ter querido aproveitar a abertura que me proporcionara. Mas não naquela noite. Os seus avanços provinham, não do nosso casual conhecimento e da intimidade de uma noite passada na companhia um do outro, mas de outra origem: da cena que acabáramos de presenciar. Travei com uma sacudidela em frente do n. o 5. Ela saiu e entrou em casa, deixando-me a porta aberta. Mas não a segui, Em vez disso, saí do automóvel e percorri o caminho que me levaria à Via del Sogni.
Perguntava-me quanto tempo ela esperaria por mim. Se iria à janela espreitar o carro estacionado e, então, possivelmente, ainda não querendo acreditar, desceria as escadas uma vez para verificar se eu lá estaria. Talvez até atravessasse a rua até o n. o 24 e perguntasse aos Silvani se por algum acaso o senhor Fabbio tinha entrado e ido para o seu quarto.
Depois varri-a do espírito. Passei pela minha antiga casa,
escura e silenciosa, na direcção da do meu irmão. Toquei à
campainha da entrada do porteiro, à esquerda e, passado um
bocado, surgiu Jacopo. Afivelou um sorriso ao ver-me.
- Importa-se de me deixar entrar, para esperar por Aldo? - pedi. - Eu sei que ele saiu, mas quero falar-lhe quando regressar.
- Com certeza, senhor Beo - acedeu e depois, possivelmente adivinhando qualquer coisa pelo meu aspecto acalorado
e por me ver caminhar apressado, acrescentou: - Há algum
problema?
- Houve um aborrecimento - esclareci -, lá em cima
na Piazza del Duca Carlo. Estragou a festa do hotel. O Aldo
está a tratar de resolver o que se passou.
Pareceu-me preocupado e, avançando à minha frente pela
passagem, abriu a porta de Aldo. Acendeu as luzes.
- Os estudantes, suponho - aventou. - Nesta semana
têm andado sempre excitados por causa do festival. E depois
com o assalto da noite de domingo. Teria sido algo semelhante?
- Foi - respondi. - O Aldo explicar-Lhe-á.
Abriu a porta da sala de estar, perguntando-me se queria
alguma coisa para beber. Mas eu poderia servir-me de uma bebida se me apetecesse. Aguardou um momento, incerto sobre
se eu iria abrir-me com ele ou não e, depois, com o tacto induzido por longos anos ao serviço do meu irmão, decidiu que
eu pretendia ficar sozinho. Retirou-se e ouvi-o fechar a porta
da frente, regressando aos seus domínios.
Vagueei pelo compartimento. Espreitei pela janela. Contemplei o retrato do meu pai. Mergulhei numa cadeira. A paz
e a familiaridade dos pertences da nossa casa encontrava-se por todo o lado em torno de mim, mas sentia-me inquieto, doente.
Voltei a pôr-me de pé e dirigi-me a uma mesa, pegando no volume alemão de As Vidas dos Duques de Ruffano. Abri-o na
passagem marcada e passei os olhos sobre ela, até dar com
umas linhas de que me recordava:
Quando foram proferidas acusações contra ele pelos ultrajados cidadãos de Ruffano, o duque Claudio retaliou, declarando ter sido nomeado pela Divindade para submeter os seus súbditos aos castigos que mereciam. Os orgulhosos seriam despidos, os altivos seriam violados, os caluniadores seriam silenciados, a víbora morreria do seu próprio veneno. As balanças da Justiça Divina ficariam assim equilibradas.
Fechei o livro e voltei a sentar-me noutra cadeira. Dois rostos se erguiam diante de mim. O da senhora Rizzio, altiva, inflexível, mal se dignando falar-me por cima da sua água mineral; e o professor Elia, a almoçar com os amigos no pequeno restaurante da Via San Cipriano, regozijando-se com os boatos do assalto, deliciado, muito opinativo, orgulhoso. Não vira a senhora Rizzio desde domingo de manhã. Quer se encontrasse com amigos em Cortina ou noutro lugar qualquer, pouco importava. Levara a sua vergonha consigo. O professor Elia tinha-o eu visto há menos de uma hora atrás. A sua vergonha também o afligia.
O telefone começou a tocar. Olhei para o aparelho, sem fazer nada. O persistente som continuou e levantei-me, pegando no auscultador. A telefonista disse: Quer aceitar uma chamada de Roma? Eu respondi: Sim", mecanicamente. Passado um momento, ouvi uma mulher dizer: Aldo, és tu?
Era a senhora Butali. Reconheci-lhe a voz. Estava prestes a comunicar-lhe que o meu irmão tinha saído, mas ela continuou a falar, tomando o meu silêncio por assentimento, ou talvez indiferença. Parecia desesperada.
Tenho estado toda a noite a tentar entrar em contacto contigo" disse. O Gaspare está obstinado. Insiste em regressar a casa. Desde que o professor Rizzio Lhe telefonou ontem contando-lhe o que aconteceu, que ele não tem descanso. Os médicos dizem que seria melhor regressar do que estar para ali deitado no hospital, todo febril. Meu querido... pelo amor de Deus, diz-me o que hei-de fazer. Aldo, ainda aí estás?
Pousei o aparelho. Dentro de cinco minutos voltou a tocar. Não respondi. Limitei-me a ir sentar-me na cadeira de Aldo.
Passava da meia-noite quando ouvi a chave a dar a volta na
fechadura e a porta da frente a bater. Jacopo devia ter ouvido
o carro a chegar e fora avisar o meu irmão de que eu esperava
por ele nos seus aposentos, porque não se ouviram vozes. Em
breve Aldo penetrava no compartimento. Olhou para mim,
nada dizendo, depois atravessou a sala na direcção do tabuleiro de copos e serviu-se de uma bebida.
- Estiveste na Piazza del Duca Carlo? - indagou.
- Estive - respondi.
- O que é que viste?
- O mesmo que tu. O professor Elia nu.
Levou o copo para uma cadeira e instalou-se nela, com
uma das pernas por cima do respectivo braço.
- Nem sequer estava ferido - declarou. - Chamei um
médico para o examinar. Felizmente a noite estava boa. Não
apanhará nenhuma pneumonia. Ao fim e ao cabo, é forte como um touro.
Não fiz comentários. Aldo bebeu, depois pousou o copo e
pôs-se em pé de um salto.
- Tenho fome - disse. - Não cheguei a jantar. Gostava
de saber se o Jacopo ainda tem sanduíches. Volto dentro de
um minuto.
Demorou quase cinco minutos e regressou com um tabuleiro de prosciutto, salada e fruta, que colocou sobre a mesa ao
lado da cadeira.
- Não sei o que fizeram no Panorama - disse, atacando
a comida. - Telefonei ao gerente a comunicar que o professor
Elia não se encontrava bem de saúde e que o professor Rizzio
e eu ficaríamos com ele, e pedindo que os outros continuassem
mesmo na nossa ausência. Sem dúvida que o fizeram, ou pelo
menos alguns deles. A maior parte dos professores não perde
úma oportunidade de comer coisas acima das suas posses, nem
as suas esposas. Que diabo estavas tu lá a fazer?
- A ver os convidados chegar - respondi.
- Imagino que não tenha sido ideia tua.
- Não.
- Ah, bem, então ela encheu a barriga... isso vai mantê-la satisfeita durante um par de noites. Incomodou-te? Ignorei a pergunta. Ele sorriu e continuou a comer.
- Meu pequeno Beo - prosseguiu -, o teu regresso ao lar não tem sido fácil. Quem diria que Ruffano se transformaria numa cidade tão animada? Passarias melhor num dos teus autocarros de turistas. Aqui, far-me-ás companhia. - Pegou numa laranja que estava no tabuleiro e atirou-ma.
- Estive no teatro ontem à noite - disse eu, descascando-a lentamente. - Tu deste um grande espectáculo de bateria.
Não esperara isto. Tive a certeza, pela quase imperceptível pausa entre cortar uma fatia de presunto e levá-la à boca.
- Andas muito movimentado - comentou. - Quem te levou lá?
- Os estudantes da C. e E. que estão na minha pensão - esclareci -, os quais, tal como o grosso da tua audiência, pareceram ter ficado tão impressionados com aquilo que disseste como a tua élite de sábado à noite no Palácio Ducal.
Aguardou um momento antes de responder. Depois, pondo de parte o prato e pegando na salada, observou:
- Os jovens são maleáveis.
Acabei de descascar a laranja e ofereci-lhe metade. Comemos em silêncio. Vi que o seu olhar caíra sobre o volume d'As Vidas dos Duques de Ruffano que estava na mesa, onde eu o deixara. Depois fixou-me.
- Os orgulhosos serão despidos, os altivos serão violados" - citei eu. - Exactamente o que é que tu estás a tentar fazer? Aplicar a Justiça Divina como o duque Claudio?
De apetite satisfeito, levantou-se, levou o tabuleiro para uma mesa de canto, serviu-se de meio copo de vinho e colocou-se na frente do retrato do nosso pai.
- A minha tarefa imediata é treinar actores - declarou. Se eles preferirem identificar-se com os papéis que Lhes estão destinados, tanto melhor. Obteremos uma interpretação ainda mais perfeita no dia do festival.
O sorriso, que desarmava toda a gente, não me decepcionou.
Conhecia-o de há longa data. Empregara-o demasiadas vezes no passado para obter o que queria.
- Houve dois incidentes - disse-lhe -, ambos altamente organizados. Não me venhas afirmar que um bando de estudantes poderia, ou pôde, planeá-los aos dois.
- Estás a subestimar esta geração - replicou. - Possuem grande capacidade de organização, se se derem ao trabalho de a desenvolver. Além disso têm fome de ideias. Dá-lhes uma sugestão e lá vão eles.
Nem admitia nem negava a sua associação com o que se passara na noite de domingo e naquela mesma noite. Eu não tinha dúvidas de que fora ele quem instigara ambos os eventos.
- Não te incomoda - perguntei - humilhares duas pessoas... três, se contares com o professor Rizzio... de tal forma que serão capazes de perder a sua autoridade para sempre?
- A autoridade é espúria - afirmou -, a não ser que venha do íntimo. E, nesse caso, passa a ser inspiração e provém de Deus.
Arregalei os olhos. Aldo nunca fora religioso. As nossas idas à missa na infância, aos domingos e dias festivos, haviam constituído uma rotina por ordem dos nossos pais, embora frequentemente usada pelo meu irmão para me meter medo; o painel do altar de San Cipriano era exemplo do seu poder de distorcer a imaginação até um ponto de ruptura.
- Guarda essas frases para os teus estudantes - repliquei. - É o género de coisas que o Falcão contava à sua élite.
- E eles acreditavam-no - garantiu o meu irmão. O sorriso, de bochechas franzidas, desapareceu subitamente. Os seus olhos, chamejantes na face pálida, eram perturbadores. Mexi-me inquieto na minha cadeira, procurando um cigarro. Quando o olhei de relance, a tensão desvanecera-se-lhe. Estava a terminar o seu copo de vinho.
- Sabes qual é a única coisa que as pessoas da nossa terra não são capazes de suportar? - perguntou em tom desprendido, erguendo o copo contra a luz. - Não só no nosso país, como em todo o mundo, e através de todo o curso da História?
A perda de prestígio. Criamos uma imagem de nós mesmos e
alguém destrói essa imagem. Somos postos a ridículo. Tu acabas de falar em humilhação, que é a mesma coisa. O homem,
ou a nação que perde prestígio, ou nunca mais o recupera, ou
se desintegra, ou aprende a ser humilde, o que é uma coisa totalmente diferente de ser humilhado. O tempo dirá como é
que os Rizzio se portarão e também Elia, com o resto da fritada que compõe este mundo miniatural de Ruffano.
Pensei em alguém que perdera prestígio durante as últimas
três horas, que era Carla Raspa, a minha companheira dessa
noite. Talvez tivesse a pele demasiado dura para o admitir.
A falha em atingir os seus objectivos ser-me-ia atribuída a
mim, não a ela. Não me importava. Deixava ao gosto dela
a inferência que decidisse tirar da minha falta de galanteria.
- A propósito - disse -, tiveste uma chamada telefónica
de Roma, cerca das dez e trinta.
- Sim? - exclamou Aldo.
- A senhora Butali estava ansiosa. O reitor insiste em vir
para casa, em relação, segundo percebi, com o incidente de
domingo à noite.
- Quando? - quis ele saber.
- Não mo disse. Para falar verdade, fui eu que desliguei
quando ainda estava a falar. Pensou que eras tu e deixei-a pensar assim.
- O que foi estúpido da tua parte - censurou Aldo. Pensei que tivesses mais inteligência.
- Desculpa.
A informação perturbara-o. Vi-o olhar de relance o telefone. Percebi a insinuação e levantei-me.
- Em qualquer dos casos - insinuei -, quando o professor Butali souber do que se passou hoje...
- Não saberá - interrompeu Aldo. - Que é que pensas
que o Rizzio, o Elia e eu estivemos a discutir até à meia-noite.
- Pode não o saber oficialmente - insisti -, mas não
me queiras convencer de que não haverá alguém que Lhe passe
palavra.
O meu irmão encolheu os ombros.
- É um risco que teremos de correr - declarou. Dirigi-me para a porta. Não conseguira exactamente nada em vir à Via del Sogni e esperar por Aldo, excepto a confirmação das suspeitas que me atormentavam. E revelar-lhe o que sabia.
- Se o reitor voltar - perguntei -, que fará ele?
- Não fará nada - afirmou Aldo -, não terá tempo para
isso.
Aldo sorriu.
- Os reitores também são vulneráveis - disse -, também podem perder prestígio perante os mortais. Beo...
- Sim?
Pegou num jornal que se encontrava sobre a cadeira junto
da porta.
- Viste isto?
Mostrou-me a passagem que eu já lera ao pequeno-almoço.
Os acontecimentos do dia haviam-se-me varrido por completo
do espírito.
- Apanharam o assassino - comentei. - Graças a Deus
por isso.
- O que eles apanharam foi o gatuno - interpôs ele -, o
que, aparentemente, não é a mesma coisa. Recebi uma chamada do comissário da Polícia esta manhã. O tipo que roubou as
dez mil liras agarra-se à sua história. Insiste que Marta já estava morta quando Lhe tirou a nota e a Polícia tem um palpite de que está a dizer a verdade.
estava morta? - exclamei. - Mas então...
- Continuam à procura do assassino - continuou -, o que
não será nada saudável para alguém que tenha andado a passear pela Via Sicilia, entre a meia-noite e a madrugada da última
quarta-feira à noite; pelo menos, será inconveniente. - Pôs-me a mão na cabeça, despenteando-me o cabelo. - Não te
preocupes, Beato - aconselhou -, eles não te hão-de apanhar. E, se o fizerem, rapidamente te libertarão. A inocência
brilha-te nos olhos.
Aquilo que acabara de me dizer desmanchou-me a compostura. Todo o doentio horror do homicídio ainda se encontrava dentro de mim. Pensara que o tinha enterrado.
- Que hei-de fazer? - perguntei desesperado. - Achas
que vá apresentar-me à Polícia?
- Não - determinou ele -, esquece-te de tudo. Vem à
reunião de amanhã à noite e inclui-te na minha élite. Pega lá
o teu passe. - Procurou no bolso, tirando dele um pequeno
disco, com uma cabeça de falcão na face. - Com isto os rapazes deixar-te-ão entrar - garantiu. - Entrada na Sala do Trono às nove em ponto. E vai sozinho. Não é minha intenção
entreter a menina Raspa ou os teus amigalhaços da Via San
Michele, número vinte e quatro. Dorme bem.
Empurrou-me pela porta fora e pôs-me na rua. Passava da
uma e havia escuridão e silêncio por todo o lado. Não encontrei
ninguém entre a casa de Aldo e o n. o 24da Via San Michele
que estava tão silencioso como as outras casas da rua. A porta
não se encontrava fechada à chave e dirigi-me ao meu quarto
sem incomodar ninguém, mas, a julgar pelo ruído de vozes que
vinha do quarto de Paolo Pasquale, todo o grupo de estudantes
se havia reunido lá, travando furiosa discussão. No dia seguinte
saberia se tinham estado próximo da Piazza del Duca Carlo.
Acordei cerca das cinco da manhã, não por causa de qualquer sonho ou pesadelo, nem por causa do vívido quadro do
chefe do Departamento de Comércio e Economia sentado em
ignominiosa nudez sobre o pedestal de mármore que suportava a
estátua de bronze do duque Carlo, mas com a súbita percepção
do sítio onde lera o nome de Luigi Speca - o problema que me
intrigara na biblioteca durante a tarde. Luigi Speca assinara o seu
nome ao lado do do meu pai, no baptismo de Aldo. Vira-o escrito nos livros de registo da sacristia de San Cipriano.
Capitulo décimo quinto
Às oito da manhã houve uma pancada na minha porta e, antes de eu poder responder, Paolo entrou, seguido de perto por Caterina.
- Desculpe - disse ele, ao ver que estava a barbear-me -, mas precisamos de saber se vem connosco. Toda a C. e E. vai faltar às aulas, para comparecer a uma manifestação junto da casa do professor Elia.
- Por que motivo? - perguntei eu.
- Você sabe. Nós vimo-lo lá - interveio Caterina. - Estava num carro, com aquela mulher Raspa. Vimo-lo sair do hotel e dirigir-se à Piazza del Duca Carlo. Esteve no meio de tudo.
- É verdade - concordou Gino, cuja cabeça apareceu por cima da de Caterina -, e vimos mais tarde o mesmo carro, estacionado junto dos jardins municipais. Você deve ter visto o que aconteceu. Estava muito mais perto do que qualquer de nós.
Pousei a máquina de barbear e peguei numa toalha.
- Não vi nada - contestei - a não ser um grupo de professores à volta da estátua. Havia muito movimento e conversas entusiasmadas, e depois levaram dali alguém, ou alguma coisa. Talvez tivesse sido uma bomba.
-Uma bomba! - gritaram todos.
- Essa é das melhores! - exclamou Caterina. - E sabem uma coisa? Ele pode ter razão. Podem ter amarrado o Elia a uma bomba, preparada para explodir dentro de determinado número de minutos.
- Bom, e que lhe aconteceu então?
- Que espécie de bomba?
- A questão é se ele foi ferido. Ninguém nos quer dizer. A apaixonada discussão, que devia ter durado metade da noite, prometia recomeçar no meu quarto de dormir.
- Olhem lá - intervim -, ponham-se todos a mexer.
Vão manifestar-se, se quiserem. Mas eu é que não sou estudante. Tenho o meu emprego.
- É espião? - sugeriu Gino. - Ainda cá não está há uma
semana e veja o que já se passou!
As gargalhadas dos outros não foram espontâneas. Caterina interveio impaciente, empurrando-os para fora do quarto.
- Ah, deixem-no em paz - disse. - De que serve isso?
Ele não se importa. - Depois, para me dar uma oportunidad
final, dirigiu-se-me, falando por cima do ombro: - A nossa
ideia é manifestarmo-nos como um todo em frente à casa oe
professor Elia e obrigá-lo a mostrar-se. Se ficarmos convencidos de que se encontra bem e não sofreu ferimentos, já nos bastará, iremos às aulas da manhã.
Poucos minutos depois, ouvi-os a saírem de casa. Seguiu-se
o inevitável estrondo de vespas", pertencentes segundo supunha a Gino e a Gerardo. Postei-me junto da janela, a vê-los
desaparecer pela rua abaixo. Depois olhei para o outro lado,
para o primeiro andar do n. º 5. As persianas estavam abertas,
as janelas também. Carla Raspa principiava o seu dia.
O senhor Silvani estava a terminar o pequeno-almoço quando eu desci para tomar o café, e perguntou-me imediatamente
se sabia alguma coisa dos acontecimentos da noite anterior.
Respondi-lhe que estivera próximo da Piazza del Duca Carlo e
que tinha visto o ajuntamento.
- Só sabemos aquilo que os nossos rapazes nos contaram - declarou ele -, mas não me agrada o que dizem. Já tivemos sarilhos anteriormente, você teve-os na Universidade,
mas isto parece-me muito maldoso. Será verdade que pintaram
o professor Elia com alcatrão e o rolaram em penas?
- Isso não sei - repliquei. - Não vi nada.
- Saberei a verdade na prefeitura - disse. - Se foi cometido algum delito sério na noite passada, significará a necessidade de trazerem polícias suplementares para Ruffano, para
os próximos dias. No dia do festival, em qualquer caso, já seria um grande caos, mesmo sem demonstrações especiais a juntarem-se aos nossos problemas.
- Olhei em volta à procura do jornal da manhã, mas não vi
nenhum. Talvez estivesse na cozinha, ou não tivesse ainda chegado. Terminei o café e saí para a Piazza della Vita, para comprar um. A inquietação pairava no ar. A praça estava cheia de pessoas que faziam as suas compras da manhã e do inevitável
grupo de desempregados que, desocupados, não por escolha
mas por necessidade, vinham para o centro da cidade passar o
tempo a ver o movimento. Os estudantes viam-se por todo
o lado, a discutir, loquazes, a maioria saindo da praça para subir a colina na direcção da Piazza del Duca Carlo. Os boatos
flutuavam de uma colina para a outra e depois convergiam para as esquinas da Piazza della Vita, emergindo no reduzido espaço como fumaça a brotar de um caldeirão.
Havia uma conspiração comunista para estourar com a Universidade... Havia uma conspiração fascista para tomar conta do
município... Os convidados do jantar do Hotel Panorama tinham sido envenenados... As residências privadas dos chefes
de departamento tinham sido roubadas... Um maníaco vindo
de Roma, tendo assassinado uma natural de Ruffano, andava
agora à solta na própria cidade e cometera um atentado contra
a vida do professor Elia...
Comprei um jornal. Não trazia nada sobre o sucedido na
noite anterior e somente uma breve referência ao homicídio.
A Polícia ainda mantinha o ladrão sob prisão em Roma, pendente de posteriores investigações noutro local. Noutro local.
Quereria isso dizer Ruffano?
Verificou-se um súbito movimento de pessoas vindas da
Via del Martiri. Houve quem recuasse para ambos os lados, a
fim de permitir a passagem de um padre e seus acólitos e, atrás
deles, quatro homens que transportavam um caixão coberto
por um véu. A seguir vinham os enlutados, um homem de
olhos tortos e uma mulher, pesadamente velada, pelo braço
dele. Atravessaram a praça na direcção da Igreja de San Cipriano. A multidão fechava-se atrás deles. Segui-os, como em
sonhos, colocando-me no interior do recinto da igreja, no
meio de pessoas que observavam, apenas presentes por curiosidade. Escutei as palavras iniciais: Requiem aeternam dona eis Domine: et lux perpetua luceat eis. Depois virei-me e saí dotemplo.
Ao passar pela porta, vi um homem de pé próximo da mesa de venda de velas. Vigiava o ajuntamento de pessoas e os
seus olhos tombaram sobre mim. Pensei tê-lo reconhecido e,
pelo ar interrogativo do seu olhar, percebi que também ele me
conhecia a mim. Era um dos agentes da Polícia que haviam estado presentes na sala a tomar notas, quando as turistas inglesas prestaram declarações na esquadra de Polícia, em Roma.
Hoje estava à paisana.
Corri pelos degraus abaixo e mergulhei na Piazza della
Vita. Depois disparei pela Via del Teatro, subindo a longa
encosta sob os muros do Palácio Ducal. O instinto obrigara-me a correr. A mesma premonição levara-me a tomar aquele caminho ínvio. Se o agente me tivesse reconhecido como
sendo o guia turístico de Roma que prestara declarações
voluntárias sobre a mulher assassinada, iria recordar-se de
que esse mesmo guia se encontrava em viagem para Nápoles
com o seu grupo e perguntaria a si mesmo o que estaria ele a fazer
em Ruffano. Uma palavra ao telefone para a Sunshine Tours,
uma rápida verificação junto do escritório de Roma ou de
Génova, informaria o agente de que Armino Fabbio pedira
para ser dispensado da viagem a Nápoles e se dirigira para
norte com Herr Turtmann e a sua esposa. Havia poucas dúvidas de que posteriores indicações surgiriam de que abandonara os Turtmann em Ruffano, não tendo havido mais notícias dele.
Olhei em volta. O agente não poderia ter-me seguido. Ou
se o fizera, eu deixara-o para trás. Passeantes, pessoas que andavam às compras, estudantes, percorriam a Piazza Maggiore
ocupados nos seus legítimos assuntos. Entrei no Duomo pela
entrada lateral, atravessei a zona do altar-mor e fui dar ao lado
oposto, imediatamente em frente ao Palácio Ducal. Em pouco
tempo encontrava-me dentro dos seus muros, atravessando o
pátio quadrangular na direcção da biblioteca. Só aí, enquanto
fazia uma pausa para recuperar o fôlego, é que me dei conta de ter actuado sob o domínio de um estúpido pânico. Podia não ter sido o agente da Polícia. Em caso afirmativo, não havia motivo para supor que me havia reconhecido. O meu acto, na
verdade, tinha sido um clássico exemplo do comportamento de um homem culpado. Detive-me a enxugar a fronte e, nesse preciso momento, as portas da biblioteca abriram-se e Toni saiu de lá com os outros assistentes, transportando um caixote de livros.
- Olá! Quem é que o andou a perseguir? - indagou o rapaz.
A pergunta era apropriada. Assustado por ela, enfiei o lenço no bolso.
- Ninguém - declarei. - Eu é que fui retido na cidade.
- Que se está a passar então? Eles entraram em greve? Organizaram alguma manifestação? - perguntaram simultaneamente.
Eu estivera tão ocupado com as minhas próprias tentativas para escapar ao possível agente da Polícia que fui lento a perceber o que queriam dizer.
- Greve? Quem? - estranhei.
Toni ergueu os olhos ao céu em fingido desespero.
- Você vive neste mundo? - inquiriu. - Não sabe que toda Ruffano está a ferver com aquilo que se passou ontem à noite na Piazza del Duca Carlo?
- Diz-se que os comunistas apanharam o professor Eli - aafirmou o seu companheiro - e que tentaram envergonhá-lo. O Fossi deu-nos ordem para transferirmos tudo o que pudermos daqui para o novo edifício, para o caso de ser feita alguma tentativa de porem fogo ao Palácio Ducal.
Afastaram-se cambaleando ao longo do pátio, sob o peso do caixote. Penetrei na biblioteca, deparando-se-me o caos. Havia altas pilhas de livros no chão e Giuseppe Fossi, juntamente com a senhora Catti, estavam a enfiar volume após volume, à sorte, dentro de outro caixote. Ergueu o rosto transpirado ao ver-me e proferiu uma torrente de recriminações. Depois,
mandando a secretária para a outra extremidade do salão com um
monte de livros, sussurrou-me ao ouvido:
- Ouviu falar no que fizeram ao professor Elia?
- Não - repliquei.
- Agredido! - soprou. - Soube-o de fonte limpa
através de um dos convidados do jantar de ontem à noite. Dizem que os médicos estiveram junto dele toda a noite, para lhe
salvarem a vida. Pode haver outras vítimas.
- Senhor Fossi - principiei eu -, tenho a certeza de que
nada disso...
Ele silenciou-me com um grunhido, apontando com a cabeça na direcção da secretária.
- Nada os deterá, nada - afirmou. - Qualquer um que
se encontre numa posição de autoridade pode ser ameaçado.
Murmurei algo acerca de protecção policial.
- Polícia? - quase gritou. - Inútil! Eles irão à procura
dos membros responsáveis do pessoal. A espinha dorsal da
Universidade, os homens que fazem andar as coisas, ver-se-ão
obrigados a defender-se.
As tentativas para o acalmar revelaram-se um desperdício.
Verde de fadiga, após uma noite sem dormir, sentou-se sobre
um dos caixotes vazios, a ver-me embalar livros noutro. Perguntava-me qual de nós seria o maior cobarde: ele, que se fizera em papas ao ouvir um falso boato; ou eu, por causa do
meu encontro em San Cipriano.
Não interrompemos o trabalho para o almoço. Toni trouxe-nos sanduíches e café da cantina universitária. As novidades
eram tranquilizantes. Os estudantes da C. e E. " haviam desmobilizado a greve, comparecendo às últimas aulas da manhã,
O professor Elia admitira em sua casa uma representação
deles, recebendo-a de roupão. Assegurara-lhes que tudo estava bem. Não fora ferido. Recusara fazer quaisquer outros
comentários, mas implorara aos estudantes que, no seu próprio interesse, comparecessem às aulas como habitualmente.
Não deveriam pensar em vingar-se dos outros alunos
da Universidade.
- Os rapazes concordaram - murmurou-me Toni ao ouvido -, só para o tranquilizarem. Mas ainda não está tudo acabado. Estão a ferver, todos eles.
Giuseppe Fossi saiu durante a tarde para estar presente numa reunião do Conselho da Universidade, convocada para as três horas e eu fui com Toni ao edifício novo, para auxiliar a supervisão do desencaixotamento dos livros.
Foi bom para a reputação de Giuseppe Fossi que eu o tivesse feito. Os livros tinham sido enfiados nos caixotes com total desrespeito pela ordem, o que queria dizer trabalho a dobrar não só para nós próprios, como também para os funcionários da nova biblioteca. Encarreguei Toni da carrinha (novamente operacional e com um pára-brisas novo) ficando eu mesmo a dirigir as operações na nova biblioteca. Um dos funcionários, mais expedito do que os outros, em breve tinha cada volume empoeirado seleccionado e colocado no lugar que lhe estava destinado nas prateleiras, enquanto eu me ocupava com a catalogação.
O soprar e sacudir do pó pelo enérgico funcionário trouxe à luz vários artigos que, após ter-me consultado, lançou para o cesto dos papéis. Flores murchas, cartões-de-visita sortidos, cartas esquecidas, contas. Estava-se quase na hora do encerramento e nem sinais de Giuseppe Fossi, quando o homem me trouxe mais uma carta para deitar fora.
- Encontrei esta num livro de poemas - informou -, mas, como está assinada pelo director das Artes, o professor Donati, talvez não deva ser deitada fora, não acha?
Entregou-me a carta. Passei os olhos pela assinatura. Aldo Donati. Não era a caligrafia do meu irmão, mas do meu pai.
- Muito bem - disse. - Eu tratarei disso.
Quando o funcionário voltou à sua tarefa, chamei-o:
- Onde é que disse que encontrou a carta?
- Numa colectânea de Leopardi - respondeu -, pertencente a alguém chamado Luigi Speca. Ou, pelo menos, era esse o nome que tinha inscrito.
A carta era breve. O endereço no cimo da página dizia:
Via del Sogni, n. e - Ruffano. " Estava datada de 30 de Novembro de 1925. A tinta preta desmaiada, o papel de carta acinzentado e a caligrafia do meu pai comoveram- me estranhamente. A carta devia ter estado entre as páginas dos poemas de Leopardi durante aproximadamente quarenta anos.
Caro Speca:
Tudo vai bem. Sentimo-nos notavelmente orgulhosos com o
nosso rapazinho. Está a ganhar peso rapidamente e tem um tremendo apetite. Promete ser um belo moço! A minha mulher e eu
nunca lhe poderemos agradecer o suficiente pela sua bondade
simpatia e amizade no momento de perturbação que atravessámos e que agora, felizmente, já deixámos para trás. Ambos encaramos o futuro com confiança. Por favor, venha visitar-nos e ver
o rapaz, quando puder dispor de tempo para isso.
Seu amigo sincero,
ALDO DOnATI
P. S. - Marta revelou-se não só uma ama dedicada como também uma excelente cozinheira. Envia-Lhe os seus respeitosos
cumprimentos
Li a carta três vezes e depois meti-a no bolso. A caligrafia podia estar a desaparecer, mas a mensagem era tão fresca como se tivesse sido escrita na véspera. Quase conseguia ouvir a voz do meu pai, forte e clara, cheia de orgulho pelo seu filho recente, agora com a saúde aparentemente recuperada após grave doença. O registo baptismal era compreensível. Luigi Speca devia ter sido o médico que tratara dele, um antecessor do doutor Mauri. Até o post- scriptum acerca de Marta era pungente. Entrara ao serviço dos nossos pais por essa época e continuara a ser-nos fiel até ao fim. O fim... vira-o naquela manhã na Igreja de San Cipriano. Requiem aeternam dona eis Domine.
As portas da nova biblioteca abriram-se e Giuseppe Fossi
entrou, seguido por Toni, de ar taciturno. O meu superior perdera o seu aspecto assustadiço, sentia-se novamente seguro e esfregava as mãos com força.
- Tudo em ordem? Tudo separado? - perguntou. - Que estão aqueles caixotes ali a fazer? Ah, percebo, estão vazios. Optimo. - Limpou a garganta, endireitou-se e dirigiu-se para a secretária que eu acabara de deixar. - Esta noite não haverá mais problemas - anunciou. - O Conselho da Universidade determinou o recolher obrigatório de todos os estudantes às nove horas. Qualquer deles que seja visto pelas ruas depois dessa hora será automaticamente expulso. Isso aplica-se igualmente aos funcionários da Universidade que possam viver em pensões. Em vez de expulsão, perderão os seus empregos. - Olhou intencionalmente para Toni, para os outros assistentes e para mim próprio.
- Haverá passes especiais para aqueles que tenham assuntos essenciais a tratar, emitidos a seu pedido pela secretaria - acrescentou -, e será bastante mais fácil as autoridades verificarem se houver abusos. Em qualquer circunstância, não fará mal a ninguém passar uma noite portas adentro. Naturalmente, os regulamentos serão abrandados amanhã, véspera do festival.
Compreendi a razão do descontentamento de Toni. Não se encontraria com a namorada na Piazza della Vita, nem poderia ir passear de vespa" pela Via delle Mura.
- E uma ida ao cinema? - perguntou ele em tom soturno.
- Com certeza - respondeu Giuseppe Fossi -, desde que regressem a casa pelas nove horas.
Toni encolheu os ombros e resmungou baixinho, arrastando um dos caixotes vazios, para o levar de volta para a carrinha. Deveria contar ao meu superior o convite de Aldo para o Palácio Ducal? Esperei que os outros assistentes estivessem fora do alcance da voz e depois aproximei-me dele.
- O professor Donati teve a bondade de me dar um passe para a reunião desta noite no Palácio Ducal - declarei. Discutir-se-á o festival.
Pareceu surpreendido.
- Nesse caso a responsabilidade é do professor Donati - retorquiu. - Na sua qualidade de director do Conselho de Artes de Ruffano, ele está ao corrente das normas para hoje. Se decidiu enviar convites a pessoas relativamente estranhas à comunidade o problema é dele.
Voltou-me as costas, reprovando obviamente a suposta honra que me havia sido conferida. Procurei o disco que o meu irmão me entregara. Encontrava-se seguro no meu bolso, juntamente com a carta, com quarenta anos de idade, dirigida por meu pai a Luigi Speca. Ansiava por a mostrar a Aldo. Entretanto, achava que também precisaria de obter um passe de dispensa do recolher na secretaria, se é que queria ir à reunião no Palácio Ducal. Ao meu irmão tanto se lhe dava que eu aparecesse como não, mas a minha curiosidade pessoal era forte.
Encerrámos o edifício novo às sete horas e dirigi-me à secretaria, que já estava a ser assediada por estudantes, para conseguirem dispensas de recolher. A maioria, acompanhada por pais ansiosos, tinha feito planos para o jantar, agora ameaçados de cancelamento. As celebrações antecipadas do festival iriam pela borda fora se não lhes fossem concedidos passes, e os seus parentes seriam abandonados a aborrecerem-se nas pensões e hotéis.
- É uma completa infantilidade - era o comentário de um pai irado. - O meu filho está no quarto ano e as autoridades meteram na cabeça que o haviam de tratar como se fosse uma criança.
O paciente funcionário repetia pela segunda vez que essas
eram as ordens do Conselho da Universidade. Os estudantes é
que tinham provocado aquilo com o seu comportamento desordeiro.
O contrariado pai rosnava de irritação:
-Comportamento desordeiro? - exclamava. - Uma
brincadeirazita saudável! Não fizemos todos a mesma coisa
nos nossos tempos?
Olhou em volta à procura de aprovação, que encontrou.
Os pais e parentes que faziam bicha para obterem passes foram unânimes em culpar as autoridades por se encontrarem
vinte e cinco anos atrasadas.
- Leve o seu filho a jantar - sugeriu o embaraçado funcionário -, mas traga-o de volta à Residência dos Estudantes
às nove horas. Ou ao seu alojamento, se é que está hospedado
na cidade. Terá todas as oportunidades que pretender para comemorações, amanhã e no dia seguinte.
Um por um afastaram-se com recusas, seguidos pelos seus filhos que resmungavam e protestavam. Meti a cabeça no postigo com poucas esperanças de sucesso.
- Chamo-me Fabbio - declarei -, Armino Fabbio. Sou assistente na biblioteca e tenho um convite do professor Donati para uma reunião no Palácio Ducal, esta noite às nove horas.
Para minha surpresa, em vez de uma recusa instantânea, o funcionário consultou uma lista que tinha a seu lado.
- Armino Fabbio - disse. - Está em ordem. Temos o seu nome na lista. - Entregou-me uma tira de papel. - Assinado pelo próprio director do Conselho de Artes. - Até teve a cortesia de sorrir.
Aceitei o papel e saí da bicha, antes de o pai que se encontrava atrás de mim ter tempo de protestar. O problema que tinha de resolver a seguir era onde comer. Não tinha quaisquer intenções de arranjar lugar nos já apinhados restaurantes da cidade - e eram poucos - ou de me sentar à mesa de jantar dos Silvani. Decidi experimentar a minha sorte na cantina da Universidade. Ali só havia lugares de pé, mas não me importava. Uma tigela de sopa e um prato de salame, um agradável contraste com o polvo da noite anterior, depressa me satisfizeram o apetite. A massa de estudantes estava tão ocupada a comer e, ao mesmo tempo, a bradar contra o detestado recolher obrigatório, que passei despercebido, ou fui tomado por um membro subalterno do corpo docente da Universidade.
A intenção geral, segundo compreendi apurando os ouvidos, era vingarem-se do tratamento recebido, pintando de vermelho a cidade nas noites de quinta e sexta-feira. Ia andar o diabo à solta.
- Eles não nos podem impedir!
- Não podemos ser expulsos.
- Eu, de qualquer forma, já tenho a minha formatura feita, por isso eles que vão todos à merda.
Um dos estudantes mais palavrosos encontrava-se instalado
na extremidade mais afastada do balcão, de costas para mim.
Ainda bem, porque se tratava do tipo que me tinha querido
dar um banho na fonte, na tarde de segunda-feira.
- Eu já não os aguento - afirmava. - O meu pai pode
puxar uns cordéis e, se houver algum problema, ele ainda faz
despedir alguns desses professores do Conselho da Universidade. Tenho vinte e um anos de idade e eles não me podem
tratar como a uma criança de dez. Vou ignorar o recolher obrigatório e ficar na rua até à meia-noite, se me apetecer. Afinal, o
recolher não se destina aos estudantes da C. e E. ". É para todos esses professorzecos que estudam Latim e Grego e fazem
fila na Residência dos Estudantes.
Olhou em torno de si, à procura de sarilhos. Eu tinha-lhe
chamado a atenção na segunda-feira e não tinha vontade nenhuma de a voltar a despertar. Esgueirei-me para fora da cantina e desci a colina para o Palácio Ducal. A Piazza Maggiore
já tinha um ar de festival. Embora o crepúsculo mal tivesse
caído, o palácio encontrava-se inundado de luz e também o
Duomo. Os altos muros do primeiro possuíam uma qualidade
incandescente e as grandes janelas da fachada leste, luminosas dum branco marmóreo, tornaram-se subitamente vivas. O palácio deixara de ser um museu, uma galeria cheia de tapeçarias e
quadros, em volta dos quais os turistas percorreriam indiferentemente o seu caminho, mas uma entidade viva. Assim o tinham visto há quinhentos anos os revoltosos, sob a luz do
luar e iluminado por lanternas e tochas. Cascos de cavalos retiniam nas pedras da calçada, misturando-se com o tilintar de
esporas. Ferrarias tilintavam à medida que selas e arreios eram
retirados, pajens e lacaios afadigavam-se e, através do grande
pórtico esculpido caminhava ou cavalgava o regressado rebento dos Malebranche, com a mão esquerda enluvada pousada
nos copos da espada.
Hoje, os estudantes, com uns vinte minutos ainda disponíveis antes do recolher, andavam para cima e para baixo, de
braço dado com os parentes de visita. Um grupo, junto da
fonte, começou a assobiar e a gritar para duas raparigas que por eles passaram e fingindo um inevitável desdém. Algures roncou uma vespa, noutro lado ouviu-se uma gargalhada rouca. Dirigi-me à entrada lateral e toquei à campainha, sentindo- me como que um viandante entre dois mundos. Atrás de mim o presente, lisonjeiro, eficiente, uniforme, a juventude a mesma por todo o planeta, produzida em massa como ovos e, diante de mim, o passado, esse sinistro e desconhecido mundo de veneno e rapina, de poder e beleza, luxúria e imundície, em que uma pintura podia ser transportada pelas ruas para ser adorada pelos ricos e igualmente pela gentalha; em que Deus era temido; em que homens e mulheres adoeciam com a peste e morriam como cães.
A porta foi-me aberta, não pelo guarda da noite, mas por um rapaz vestido de pajem. Pediu-me o passe. Entreguei-lhe o disco que Aldo me dera e ele guardou-o sem dizer nada e, balançando a lanterna pelo caminho, precedeu-me na travessia do pátio. Não havia luzes. Nunca me ocorrera como o palácio seria escuro sem electricidade. Vira no sábado os aposentos do andar superior iluminados por tochas, mas em baixo e nas escadas a iluminação normal estava ligada. Hoje não era assim. À medida que subíamos a larga escadaria, a luz do facho transformava as nossas sombras em gigantes. O pajem que subia à minha frente, com a sua túnica cintada e os seus calções, não dava a impressão de estar fantasiado. Eu é que era o intrometido. A galeria que circundava o pátio estava escura como breu. Uma única lanterna, pendurada num suporte, lançava um débil raio de luz para a porta da Sala do Trono. O pajem bateu duas vezes. Fomos admitidos.
A Sala do Trono encontrava-se deserta, iluminada de forma semelhante à galeria lá fora, com duas lanternas em suportes, e atravessámos a Sala dos Querubins para a extremidade oposta, onde ocorrera a sessão de sábado. Esta também estava vazia e iluminada por tochas. As portas que davam para o quarto de dormir do duque e para a Sala de Audiências estavam fechadas. O pajem bateu duas pancadas na primeira. Foi aberta por um
jovem cuja cara reconheci como sendo um dos guitarristas que
tanto tinham animado o palco do teatro na segunda-feira. Não
reconheci mais ninguém. Ele usava uma jaqueta verde-garrafa
com listas púrpura nas mangas e os calções eram negros. Sobre
o coração, tinha um brasão com a cabeça de falcão.
- Chama-se Armino Donati? - perguntou.
O meu segundo nome, que não usara nos últimos dezassete anos, surpreendeu-me.
- Sim - respondi cautelosamente -, por vezes sou conhecido como Armino Fabbio.
- Aqui preferimos Donati - replicou.
Fez-me um aceno de cabeça para que entrasse. Assim fiz e
a porta foi fechada, ficando o pajem que me atendera na Sala
dos Querubins. Olhei em volta. O quarto de dormir do duque
tinha metade do tamanho da sala antecedente e estava iluminado, tal como os outros, por lanternas em suportes, colocadas de ambos os lados do grande quadro da parede, para o pôr em
relevo, de forma a que dominasse o compartimento. Tratava-se
da pintura d'A Tentação de Cristo, cujo principal personagem
central se assemelhava ao duque Claudio.
Havia lá dentro doze homens, incluindo o guitarrista que me
mandara entrar. Estavam todos vestidos como cortesãos do princípio do século xvi e usavam a insígnia do Falcão. Os verificadores que haviam examinado os nossos passes no sábado anterior encontravam-se entre eles, bem como os dois duelistas e outros que eu vira no palco na segunda-feira à noite. Sentia-me
e, sem dúvida parecia, um idiota, com o meu vestuário moderno
e, para me dar ares de segurança encaminhei-me para o quadro,
pondo-me a observá-lo. Todos estavam conscientes da minha
presença, mas, talvez por delicadeza, preferiam ignorá-la.
O Cristo-duque Claudio, iluminado por lanternas, olhava
da sua moldura, mais poderoso do que parecia durante o dia,
Não se notava a rusticidade do seu desenho, nem a postura
bastante estranha com a mão na cintura; os pés deselegantes
encontravam-se agora obscurecidos. Os olhos, profundamente
implantados, distantes, fixavam um conturbado futuro que devia ter parecido iminente no entender do pintor, ameaçando o seu mundo, ou então latente, para irromper séculos mais tarde. O tentador, Satanás, era o mesmo Cristo de perfil, sugerindo não uma falta de modelos, mas uma temerária tentativa de revelar a verdade. O quadro poderia ter perdido a sua capacidade de aterrorizar mas não a de provocar desconforto. Afirmava a mim mesmo que ele sobrevivera cinco séculos para confundir os vândalos e troçar da Igreja. Hoje em dia, os turistas, de olhos postos no relógio, perdiam a sua mensagem, passando por ele sem se interrogarem.
Senti uma mão no ombro. O meu irmão postara-se atrás de mim. Devia ter entrado no compartimento, vindo do pequeno quarto de vestir e da capela que Lhe ficava para além.
- Que pensas dele? - perguntou.
- Em tempo tu sabias - respondi. - Costumava representá-lo, tal como fazia de Lázaro. Mas nunca de boa vontade.
- Podes fazê-lo outra vez - afirmou ele.
Obrigou-me a dar uma volta, apresentando-me aos seus doze companheiros. Tal como eles, usava roupas do mesmo período, mas de cores diferentes. Da mesma forma que o tentador, estava todo vestido de preto.
- Aqui têm o nosso Falcão - declarou. - Ele poderá fazer de duque Claudio no nosso festival.
Os doze homens olharam-me e sorriram. Um deles pegou num roupão cor de açafrão que estava estendido numa banqueta junto da entrada para a capela e cingiu-mo ao corpo. Outro surgiu com uma peruca, encaracolada e loira, e pôs-ma na cabeça. Um terceiro trouxe-me um espelho. O tempo já não era o meu. Nem o actual, nem o dos séculos passados. Regressaria à infância, ao meu quarto da Via del Sogni, para continuar a obedecer às ordens do meu irmão. Os homens que me rodeavam eram os seus colegas de liceu de tempos idos. Tal como então, protestando que não queria representar aquele papel, eu vacilava, pronunciando agora o que esperavam fossem palavras adultas.
- Aldo, é melhor não o fazer. Vim cá para vos ver a vocês. Não para tomar parte.
- É a mesma coisa - contrapôs ele. - Estamos todos
metidos nisto por igual. Estou a oferecer-te uma hipótese.
O papel de Falcão, uma curta hora de glória e aventura na tua
vida, que nunca se repetirá; ou, em alternativa, seres lançado
hoje para as ruas de Ruffano sem um passe, para seres apanhado, a tua identidade reconhecida e seres interrogado pela polícia local que, segundo fui informado, tem estado continuamente em contacto com a polícia de Roma.
Nenhum dos rostos jovens que se postavam em torno de
mim se mostrava hostil. Eram amistosos e impiedosos também. Mantinham-se ali à espera da minha proposta.
- Aqui estás a salvo - garantiu Aldo -, seja comigo ou
com eles. Todos estes doze rapazes juraram defender-te, aconteça o que acontecer. Se saíres do palácio sozinho, quem sabe
o que te pode suceder?
Algures, ou no centro da cidade, ou passeando à paisana
pela Via Rossini, ou à espreita junto da Porta del Sangue ou da
Porta Malebranche, poderia estar o meu agente de polícia romano, à espera de me interrogar. De nada servia afirmar a mim
próprio que nada poderiam provar a meu respeito. A questão
era: seria eu capaz de garantir a minha inocência? Ambas as alternativas apresentadas por Aldo me atemorizavam, mas a segunda assustava-me mais. A voz que vinha de dentro de mim
não era a minha voz de adulto, soando-me aos ouvidos como
o eco fantasmagórico de uma criança de sete anos de idade
que, com as roupas de Lázaro feitas de lençóis, era metida
num túmulo em vida.
- Que queres que eu faça? - perguntei ao meu irmão.
Atravessámos a Sala de Audiências. Era aí que a tapeçaria da parede oeste escondia a porta que dava para a segunda torre gémea, de onde o guarda me expulsara na minha primeira visita de há uma semana atrás. Hoje não havia guarda nenhum, somente o Aldo e os seus acólitos, e a tapeçaria estava lá pendurada como habitualmente, sem dar a menor sugestão de que, por trás dela, se abria a porta com as suas estreitas escadas adiante.
A Sala de Audiências estava também iluminada por lanternas e, à esquerda, no seu cavalete de pintor, encontrava-se o retrato da dama que o meu pai tanto amara, e que me fazia vir à ideia a senhora Butali. Alguém tinha colocado no centro da sala uma longa mesa de madeira e, sobre ela, copos e uma garrafa de vinho. Aldo avançou e encheu um copo de vinho para cada um de nós.
- Não precisas de fazer nada - garantiu, respondendo finalmente à pergunta que eu Lhe fizera na outra sala -, excepto o que eu te disser, quando chegar a altura. Não terás de representar. Como guia de turistas que és, desempenharás o teu papel na perfeição, porque tudo te surgirá naturalmente. - Riu-se e, erguendo o seu copo, mandou: - Bebam à saúde do meu irmão!
Todos ergueram os copos, bradando Armino! " e voltando-se para mim. Depois, Aldo apresentou-mos um por um, deslocando-se a todo o comprimento da mesa, dando a cada um uma palmada no ombro, enquanto lhes mencionava os nomes.
- Giorgio, nascido perto de monte Cassino, pais mortos no bombardeamento, criado por parentes... Domenico, nascido em Nápoles, pais mortos de tuberculose, também criado por parentes... Romano, encontrado abandonado nos montes depois da retirada alemã, criado pela Resistência... Antonio, a mesma coisa, Roberto, igualmente... Guido, siciliano, pai morto pela Mafia, fugiu de casa, criado pelas Irmãzinhas dos Pobres... Pietro, pais afogados nas inundações do vale do Pó,
criado por vizinhos... Sergio, nascido num campo de concentração, mãe ainda viva... Federico, também nascido num campo de concentração, mas sem pais vivos, criado por pais adoptivos... Lorenzo, nascido em Milão. Pai falecido, mãe casada
segunda vez com um padrasto pervertido, fugiu de casa, trabalhou numa fábrica, poupando o suficiente para se matricular
na Universidade... Cesare, nascido em Pesaro, o pai morreu
afogado no mar, a mãe morreu ao dá-lo à luz, criado num orfanato.
Aldo chegou ao extremo da mesa e pôs-me a mão no ombro.
- Armino, conhecido em família por Beo, ou o Beato, por
causa dos caracóis e do bom feitio. Nascido em Ruffano, o pai
morreu num campo de prisioneiros aliado, a mãe fugiu para a
Alemanha com um oficial alemão em retirada, levando o rapaz
com ela, tendo casado depois em Turim. E agora já se conhecem todos uns aos outros - ou deverei dizer que se reconhecem? - por aquilo que são. Perdidos e abandonados. Desprezados e rejeitados. Percorrendo este mundo até à presente
data, a receberem pontapés de parentes e outros, que fizeram
o que eram obrigados a fazer, mas pouco mais que isso. Bebo
à vossa saúde. - Ergueu o copo e, acenando para os doze e
depois para mim, bebeu o vinho. - E agora ao trabalho comandou, pousando o copo.
O rapaz próximo de mim, Giorgio, apresentou um mapa
que Aldo abriu sobre a mesa na minha frente. Era uma carta
em grande escala da cidade de Ruffano. Aproximei-me juntamente com os outros. As apresentações, totalmente inesperadas e fantasiosas, tinham provocado o efeito, talvez temporário, de me fazer perder a identidade. Deixara de ser Armino,
um guia de turistas solitário, sem rei nem roque possivelmente perseguido pela Polícia, mas outro Giorgio, outro Lorenzo.
- O cortejo irá, como sabem, desde a Piazza del Duca
Carlo até à Piazza Maggiore - principiou Aldo. - Por outras
palavras, descendo da colina norte para o centro da cidade, na
Piazza della Vita, e subindo a Via Rossini até ao Palácio Ducal. Terminará na Piazza della Vita e começarão então as
representações. Os cidadãos, levados à cena pelos estudantes da KC. e E. ", convergirão para a praça vindos de cinco ruas, com excepção da Via Rossini, que será ocupada pela corte, quer dizer, pelos estudantes de Artes e Educação. A luta inicia-se imediatamente após o cortejo do Falcão ter passado pela Piazza della Vita e ter principiado a subir a colina. Vocês e os cortesãos aqui de guarda ao palácio manterão os cidadãos à distância, até o Falcão ter atravessado em segurança as vossas fileiras, ter passado pelo pátio e subido a escadaria para os
aposentos ducais. Entendido?
- Perfeitamente - anuiu Giorgio, que parecia falar em
nome dos outros.
- Óptimo - disse Aldo. - Então tudo o que nos falta fazer é designar um determinado lugar na Via Rossini a cada cortesão, o que vocês poderão combinar com os voluntários, e entregar o plano das ruas laterais aos chefes da C. e E. ". Seremos excedidos em número de três para um, mas isso é que
nos trará glória.
Dobrou o mapa. Hesitei antes de me pronunciar. A pergunta a fazer era tão óbvia que até me parecia absurda.
- E o público em geral? Quem manterá a ordem nas ruas?
- A Polícia - respondeu Aldo. - Fazem-no todos os anos. Mas este ano receberão instruções mais explícitas. Ninguém a não ser os actores será autorizado a permanecer na
área após uma determinada hora.
- E de onde é que poderão assistir? - persisti.
- De qualquer janela disponível - esclareceu o meu irmão, a sorrir -, a principiar na Piazza del Duca Carlo e por aí fora até à Piazza della Vita, e subindo a Via Rossini até ao palácio.
Mordi a unha do polegar, um hábito de infância há muito
posto de parte. Aldo inclinou-se para a frente e a minha mão tombou-me instintivamente ao lado do corpo.
- No ano passado, segundo me contaram - disse eu -, o corpo docente da Universidade tomou parte e houve muita
gente a assistir do interior do palácio.
- Pois este ano - replicou o meu irmão -, só umas quantas pessoas privilegiadas terão lugares no palácio. A maior parte do pessoal da Universidade encontrar-se-á na Piazza del Mercato.
- Mas isso fica abaixo do palácio - protestei. - Como é que podem ver alguma coisa de um sítio desses?
- Ouvirão bastante - replicou Aldo - e estarão à mão de semear para a cena final, que será a mais espectacular.
Alguém bateu à porta que dava da Sala de Audiências para a galeria, lá fora.
- Vejam quem é - mandou Aldo.
Um dos estudantes, Sergio, ao que me pareceu, dirigiu-se à porta, trocando poucas palavras com o pajem que me tinha admitido no interior do palácio. Regressou passado um momento.
- As sentinelas trouxeram para cá um fulano que andava a passear junto do pórtico oeste - informou. - Não tinha passe de recolher e, quando interrogado, mostrou-se incorrecto. Querem saber se o hão-de deixar ir embora.
- Gente da cidade ou estudante? - quis Aldo saber.
- Estudante. De C. e E. Um parvalhão que queria entrar.
- Se quer tomar parte, far-lhe-emos a vontade - concedeu o meu irmão. Mandou Sergio trazer o intruso para dentro.
- Pode ser que seja o meu mauzão - disse eu -, um tipo que me quis mergulhar na fonte depois do barulho de segunda-feira. Vi-o na cantina hoje à noite, a gabar-se de que não tinha passe nem se iria ralar com isso.
Aldo riu-se.
- Tanto melhor - comentou. - Poderemos divertir-nos com ele. Ponham todos as máscaras. E dêem uma ao Armino.
Giorgio aproximou-se de mim, entregando-me uma máscara negra com fendas para os olhos, semelhante à que haviam usado os dois duelistas no sábado anterior. Pu-la desdenhosamente, como Aldo e os doze rapazes. Depois de estarmos todos mascarados, olhei em volta e, ao ver como éramos somente
iluminados pelas lanternas, com o resto da sala à sombra,
dei-me conta de que, para um estranho, o efeito nada teria de
tranquilizador, seria mesmo de apavorar.
As sentinelas, mascaradas como nós, entraram com o prisioneiro entre elas. Tinham-lhe vendado os olhos, mas eu reconheci instantaneamente o bruto da cantina. Aldo olhou-me
de lado e fiz-lhe um aceno afirmativo.
- Soltem-no - mandou o meu irmão.
Os rapazes tiraram-lhe a venda. O estudante piscou os olhos
e relanceou-os em torno de si, enquanto esfregava os braços.
Tudo o que podia ver era uma sala iluminada por tochas e catorze homens disfarçados e mascarados.
- Não tens passe de dispensa do recolher? - inquiriu
gentilmente Aldo.
O brutamontes arregalou os olhos. Era possível, pensei,
que ele nunca na vida tivesse entrado no Palácio Ducal. A ser
assim, o ambiente parecer-lhe-ia aterrorizador.
- Que é que tem com isso? - blasonou. - Se é alguma
partida dos tipos das Artes, aviso-vos de que se hão-de arrepender.
- Não é partida nenhuma - asseverou Aldo. - Eu é que
mando aqui.
Ninguém se moveu. O estudante mudava o peso do corpo
de um pé para o outro. Compôs o colarinho e a gravata, que se
tinham desarranjado durante a luta para não ser aprisionado.
- Manda o quê? - perguntou agressivamente. - Acha
que me pode assustar só por ter vestido um fato de máscaras?
Chamo-me Marelli, Stefano Marelli, e o meu pai é dono de
uma cadeia de restaurantes e hotéis na costa.
- Não estamos interessados no teu pai - declarou o meu
irmão. - Fala-nos antes de ti.
O convite, proferido em voz suave, fez o brutamontes sentir-se mais confiante. Olhou para o resto de nós com condescendência.
- Comércio e Economia, terceiro ano - disse -, e não
me ralaria se fosse expulso. Não preciso de nenhuma formatura para arranjar emprego... basta-me tomar conta de um dos restaurantes do meu pai. Ele por acaso também é membro da sociedade proprietária do Panorama, e quem quer que me mande embora com um motivo fútil cairá nas más graças de muitas pessoas influentes.
- Que pena - murmurou Aldo. Virou-se para Giorgio. Ele está na lista dos voluntários? - indagou.
O rapaz, que estivera a consultar uma lista enquanto tinha lugar o interrogatório, abanou negativamente a cabeça.
O estudante Marelli riu-se.
- Se se está a referir ao comício dos comunistas da segunda à noite no teatro, eu não estive lá - declarou. - Tive coisas melhores para fazer. Tenho uma miúda em Rimini e um carro rápido. Tire as suas próprias conclusões.
Apesar de me desagradar bastante, desde a sua aparência pessoal até à tentativa que tinha feito para me mergulhar na fonte, senti compaixão por ele. Cada palavra que proferia lhe tornava o destino mais certo.
- Nesse caso, não vais tomar parte no festival? - inquiriu
Aldo.
- No festival? - ecoou o estudante. - Nessa charada? Nem pouco mais ou menos. No fim-de-semana vou mas é para casa. O meu pai vai dar uma grande festa em minha honra.
- É uma pena - afirmou o meu irmão. - Podíamos arranjar-te forma de te divertires por cá. No entanto, não há motivo para não te proporcionarmos hoje um cheirinho de excitação. Federico?
Aproximou-se um dos guarda-costas. Pareciam- me todos iguais nas suas máscaras, mas a robusta compleição deste e o cabelo claro por cima da máscara, sugeriam-me que se tratava de um dos duelistas de sábado.
- Temos alguma coisa no livro que se aplique ao Stefano?
- É melhor consultar o Armino, ele é que é o perito - respondeu Federico, fitando-me.
- O Federico é o meu tradutor - explicou Aldo. - Marcou as várias passagens na história em alemão. Nasceu num campo de concentração, tem grande facilidade para línguas.
O desconforto que me assolara desde a chegada do estudante capturado tornou-se maior. Abanei a cabeça.
- Não me lembro de nada - respondi.
Aldo virou-se mais uma vez para Federico que, tirando da vestimenta um molho de papéis, os consultou. Leu-os em silêncio enquanto aguardávamos.
- O pajem - disse por fim -, o incidente com o pajem deve servir muito bem para o Stefano.
- Ah, sim, o pajem - murmurou Aldo -, o castigo ao pajem que se esqueceu das luzes. Pôr brasas de carvão ardente na cabeça de alguém, que se propôs mergulhar numa fonte uma pessoa mais pequena do que ele, seria o auge adequado à carreira dum fanfarrão. Tratem disso, está bem?
O estudante Marelli recuou à aproximação das duas sentinelas e de Federico.
- Olhem lá - exclamou -, se tentarem fazer-me alguma coisa, aviso-vos que...
Mas viu-se interrompido. As sentinelas agarraram-no pelos braços. Federico, coçando o queixo, dava a impressão de alguém mergulhado em pensamentos.
- O velho braseiro - disse - que está guardado juntamente com as ferragens num dos compartimentos do andar de cima vai- te servir como uma coroa. Leio-lhe primeiro a passagem do livro? - Tirou os papéis do bolso mais uma vez. Eram cópias das notas que eu tinha dado a Aldo no domingo.
- Em certa ocasião - leu ele -, um pajem, que se tinha esquecido de providenciar luzes para a refeição nocturna do duque, foi apanhado pelos guarda-costas do Falcão. Enrolaram o desditoso rapaz em panos molhados com combustíveis e, depois de lhe terem lançado fogo à cabeça, passearam-no pelos compartimentos do palácio, a morrer em grande agonia. Voltou a meter os papéis dentro do vestuário e fez sinal às sentinelas. - Vamos a isto - mandou.
O estudante Marelli, que menos de dois minutos antes tinha apregoado riqueza e influência, encolhia-se diante dos seus guardas. O rosto pôs-se-Lhe subitamente pálido e começou a
gritar. Os seus gritos prosseguiram enquanto era arrastado para fora, ecoando na longa galeria e pelas escadas acima. Ninguém falava.
- Aldo... - intervim -, Aldo...
O meu irmão encarou-me. Os gritos morreram e fez-se silêncio.
- O homem da Renascença não tem compaixão, por que haveríamos nós de ter?
Um súbito horror tomou-me. Fiquei com a boca seca. Não era capaz de engolir a saliva. Aldo tirou a máscara e o mesmo fizeram os outros. As suas faces jovens denotavam uma temível gravidade.
- O homem da Renascença torturava e matava sem dó nem piedade - continuou Aldo -, mas tinha habitualmente um motivo para isso. Alguém que Lhe fizera mal e agia por vingança. Uma motivação talvez incorrecta, mas isso encontra-se aberto a discussão. Nos nossos tempos, os homens mataram e torturaram para seu divertimento pessoal e a título experimental. Esses gritos que acabaste de ouvir, provocados unicamente pela cobardia e não pela dor, foram soltados com justa causa dia após dia, mês após mês, em Auschwitz e outros campos de prisioneiros. Por exemplo, no campo de concentração onde nasceram o Federico e o Sergio. O Romano escutou-os nos montes, quando o inimigo capturava e torturava os seus amigos resistentes; o Antonio e o Roberto também. Se tu fosses abandonado, Beo, também os poderias ter ouvido. Mas tiveste sorte. Foste poupado pelo conquistador, e levaste uma vida em segurança.
Arranquei a minha máscara. Observei cada um dos seus rostos graves, soturnos, escutando ao mesmo tempo qualquer som que viesse do andar superior, mas não houve nenhum.
- As coisas não se resolvem assim - declarei. - Tu não podes torturar esse estudante lá em cima por causa do que aconteceu no passado.
- Não será torturado - garantiu Aldo. - O mais que o Federico lhe fará será pôr-lhe em cima da cabeça uma bicha-de-rabiar e mandá-lo embora. Desagradável, mas salutar. Marelli beneficiará com essa experiência e pensará no futuro duas vezes, antes de atirar para dentro de fontes homens mais pequenos que ele. - Chamou Giorgio para seu lado. - Conta ao Beo a verdadeira história do ataque à senhora Rizzio - mandou-Lhe.
Giorgio era um dos guarda-costas que eu reconhecera do sábado anterior. Ele é que era o natural de monte Cassino, cujos pais haviam sido mortos durante o bombardeamento. Era um rapaz enorme, de ombros largos, com uma madeixa de cabelo indomável e, mascarado como agora estivera, tinha um aspecto estranhamente formidável.
- Entrar lá foi fácil - narrou - e as raparigas que fechámos nos seus quartos ficaram desapontadas, ao que nos pareceu, por não lhes termos feito nada. Cinco de nós dirigiram-se ao quarto da senhora Rizzio e bateram à porta. Ela abriu, vestida em camisa de noite, pensando que era uma das raparigas. Depois viu-nos, todos mascarados e sem dúvida com ar perigoso, e imediatamente nos informou de que não possuía valores, que não tinha nada na residência que valesse a pena roubar. Então eu disse-lhe: Senhora Rizzio, a coisa mais valiosa que há aqui é a senhora. Viemos à sua procura. " Ela deve ter percebido, pelas minhas palavras, que tencionava raptá-la, mas a sua mente saltou logo para o que era óbvio. Disse-nos imediatamente que, se era disso que íamos à procura, devíamos virar-nos para as raparigas. Elas fá-lo-iam de boa vontade. Poderíamos fazer-Lhes o que quiséssemos, se a deixássemos em paz. Repeti-lhe o meu aviso: Senhora Rizzio, nós viemos cá por sua causa. " Depois, felizmente... pelo menos do nosso ponto de vista, ela desmaiou. Levámo-la para a cama e esperámos que viesse a si. Quando o fez, cerca de dez minutos mais tarde, estávamos os cinco junto da porta. Agradecemos-lhe a sua generosidade e viemos embora. Isso, Armino, foi a violação da senhora Rizzio. Tudo o mais foi inventado por ela.
A cara de Giorgio perdera a sua gravidade e ria-se às gargalhadas. Os outros também. Eu compreendia as gargalhadas, percebia o humor do logro e, contudo...
- O professor Elia - perguntei. - Também foi uma pantomima?
Giorgio olhou para Aldo. Este acedeu com um gesto de cabeça.
- Não foi da minha lavra - respondeu o rapaz. - O Lorenzo é que esteve encarregado disso.
Lorenzo, um milanês, tal como o chefe do Departamento de Comércio e Economia, tinha metade do tamanho do homem que ajudara a despir. Os seus modos eram evasivos, desconfiados, e possuía o olhar velado de uma criança inocente.
- Alguns dos meus amigos entre os estudantes da C. e E. " - murmurou - sofreram as atenções do professor, uma vez por outra. Tanto rapazes, como raparigas. Por conseguinte, depois de termos consultado o Aldo, esboçámos o nosso plano de campanha. A entrada na casa foi fácil. A princípio o professor Elia pensou que os estudantes de máscaras constituíam o prelúdio de um intrigante jogo antes do jantar no Panorama. Depressa aprendeu que se tratava doutra coisa.
Então eu tinha tido razão. O meu irmão estivera por trás de ambos os incidentes. A seus olhos, e aos dos rapazes, tinha sido feita justiça. As balanças encontravam-se em equilíbrio, conforme as estranhas leis do duque Claudio, o Falcão, há mais de quinhentos anos.
- Aldo - intervim. - Perguntei-te na noite passada e tu não me respondeste. Que é que estás a querer fazer?
O meu irmão fitou os seus onze companheiros e depois voltou-se para mim:
- Pergunta-lhes - sugeriu - o que esperam conseguir na vida. Cada um deles te dará uma resposta diferente, conforme o seu temperamento. Nenhum deles é totalitarista, sabes, ou ideólogo. E possuem ambições pessoais.
Olhei para Giorgio, que se encontrava mais perto de mim.
- Quero libertar o mundo de hipócritas - declarou -, a começar pelos velhotes de Ruffano, e também pelas velhotas.
Eles vieram ao mundo nus como todos nós.
- A espuma suja vem ao cimo nos lagos - afirmou
Domenico. - Se a raparmos, encontraremos por baixo água limpa, e todos os seres viventes. Quero limpar a porcaria.
- Quero viver perigosamente - disse Romano. - Não
me importa onde nem como, mas que seja na companhia dos
meus amigos.
- Quero encontrar um tesouro escondido - asseverou
Antonio. - Pode até estar no fundo de um tubo de ensaio, no
laboratório. Eu sou estudante de Física, é esse o meu condicionalismo.
- Concordo com o Antonio - disse Roberto -, mas para mim nada de tubos de ensaio. Existe algures no Universo
uma resposta, quando o explorarmos mais a fundo. E não me
estou a referir ao céu.
- Alimentar os que têm fome - interveio Guido. - Não
com pão somente, mas também com ideias.
- Quero construir algo duradouro, que não seja varrido
da face da Terra - afirmou Pietro -, como os homens da Renascença fizeram, aqueles que construíram este palácio.
- Eu quero derrubar as barreiras que existem por todo
o lado - acrescentou Sergio -, as paredes entre um homem e
outro. Chefes, sim, para nos mostrar o caminho. Mas nada de
donos de escravos. Esta é também a opinião do Federico, discutimo-la muitas vezes.
- Ensinar os jovens a nunca chegarem a velhos - pronunciou-se Giovanni -, mesmo quando os seus ossos estalarem.
- Ensinar os velhos o que é sentir-se jovem - disse Lorenzo - e por jovem quero dizer o muito pequeno, indefeso e inarticulado.
As respostas chegavam-me aos ouvidos rápidas e acutilantes, vindas de cada rapaz como sucessivos tiros de espingarda.
O último, Cesare, foi o único a hesitar. Finalmente, olhando de lado para Aldo, proferiu:
- Eu acho que aquilo que temos de fazer é levar os homens e as mulheres da nossa geração a importarem-se com o
que os rodeia. Não interessa aquilo que lhes agrada, seja futebol, seja pintura, pessoas ou grandes causas, mas terão de ser
inquietados, de se preocuparem apaixonadamente e, se necessário, esquecerem-se das suas preciosas peles e morrerem.
Aldo fitou-me e encolheu os ombros.
- Que foi que te disse? - comentou. - Todos te deram respostas diferentes. Entretanto, no andar de cima, Stefano Marelli só tem uma coisa em mente, que é salvar-se.
Os gritos haviam recomeçado e com eles veio o ruído de pés a correr. Giorgio abriu a porta. As passadas, que corriam estrondosas pelas escadas abaixo e percorriam a galeria, procuravam a saída. Atravessámos a Sala dos Querubins e detivemo-nos à entrada, espreitando para a escuridão. Um vulto dirigiu-se a nós, de mãos atadas atrás das costas, com um balde enfiado na cabeça cujo fundo tinha alguns buracos furados. Haviam-lhe espetado bichinhas-de-rabiar nos buracos, que estalavam cintilando enquanto ele corria. A soluçar, tropeçou e tombou aos pés de Aldo de cara no chão. O balde rolou-Lhe da cabeça. As bichas-de-rabiar, com uma explosão final, apagaram-se. Aldo inclinou-se e, com um rápido golpe de faca, cortou a corda que amarrava as mãos do estudante. Depois obrigou-o a pôr-se de pé.
- Ali estão as tuas brasas de carvão - disse, dando um pontapé no balde e no extinto fogo-de-artifício. - Até uma criança seria capaz de brincar com elas.
O rapaz, ainda a soluçar, arregalou os olhos. O balde rolou pela galeria até parar. O cheiro acre do fumo enchia o ar.
- Já vi homens saírem dos seus aviões incendiados como tochas vivas - continuou Aldo. - Dá graças a Deus, Stefano, por não seres um deles. Agora, põe-te a mexer.
O estudante voltou-se e cambaleou pela galeria na direcção das escadas. A sombra da sua alta figura, projectada pelas lanternas sobre as paredes, curvava-se informe e distorcida como a dum morcego gigantesco. As sentinelas seguiram-no, fazendo-o atravessar o pátio lá em baixo (porque parecia ter perdido todo o sentido de direcção) para o deixarem sair pelos grandes portões entre as torres. Deixámos de ouvir o som dos seus pés que se arrastavam de pavor. A noite engolira-o.
- Ele não se esquece, nem se esquecerá - comentei. Vai juntar outros cem como ele. Aumentará a história até se tornar irreconhecível. Estás mesmo interessado em pôr toda a cidade contra ti?
Olhei para Aldo. Era o único entre nós que não tinha respondido à minha anterior pergunta.
- Isso é inevitável - concedeu. - Quer o Stefano conte aos amigos, quer não conte. Não penses que estou aqui para trazer a paz a esta cidade ou a esta Universidade. Estou pronto a provocar sarilhos e discórdia, a atirar um homem contra o outro, pôr a descoberto toda a violência, hipocrisia, inveja e lascívia, fazendo-as vir à superfície, como a espuma no lago de que falou o Domenico. Só então, quando elas borbulharem, fermentarem e federem, é que nós as poderemos varrer.
Foi nesse momento que me acudiu a convicção, que anteriormente por lealdade e amor calara, de que Aldo estava louco. A semente da loucura estivera adormecida nele através da sua infância e adolescência e agora, amadurecida sem dúvida por
tudo aquilo que vira e sofrera na guerra e depois dela, pelo choque da morte do nosso pai, pelo desaparecimento e suposta morte da nossa mãe e de mim próprio, estava a estrangular-lhe as capacidades intelectuais, como um cancro em crescimento. A espuma que vinha à superfície era a sua própria insanidade. O símbolo que adoptara como sendo o dos males do mundo era a sua própria doença. E nada havia que eu pudesse fazer, nenhuma forma de evitar que ele acendesse uma conflagração no dia do festival, que poderia, falando em sentido figurativo, queimar toda a cidade. O seu bando de devotados estudantes, eles mesmos distorcidos pelo legado que haviam recebido na infância, apoiá-lo-iam sem nada porem em causa. Uma única pessoa dispunha de influência sobre ele, a senhora Butali, e esta, tanto
quanto eu sabia, encontrava-se em Roma.
Aldo conduziu-nos de volta à Sala de Audiências. Discutiu durante mais algum tempo posteriores planos para o festival, os pormenores do percurso, as horas e outros assuntos de carácter técnico. Eu mal o ouvia. Uma coisa me parecia imperativa:
cancelar os festejos. Só o reitor poderia consegui-lo, ninguém mais.
Em determinada altura, cerca das dez e meia, o meu irmão ergueu-se. A meia hora tinha acabado de retinir no campanário.
- Agora, Beo, se já quiseres ir, deixar-te-ei na Via San Michele. Adeus, meus bravos. Até amanhã.
Atravessou o quarto do duque, na direcção do quarto de vestir. Aí, tirou o gibão e os calções, envergando outra vez as suas roupas habituais.
- Acabe-se a mascarada - disse. - Faz o mesmo. Aqui, na mala. O Giorgio tratará dela.
Esquecera-me, durante mais de uma hora, que tinha vestida a túnica cor de açafrão e a peruca posta. Ele apercebeu-se da minha surpresa e riu-se.
- É fácil, não é, voltar atrás quinhentos anos? - indagou. - Por vezes, perco todo o sentido temporal. Só isso já constitui metade do divertimento.
Agora, com o seu próprio fato, tirado o disfarce, parecia tão normal como qualquer homem.
Passámos pela Sala dos Querubins e pela do Trono, penetrando na galeria. O pajem estava à nossa espera, para nos iluminar as escadas com a lanterna e o caminho através do pátio, para a entrada. Ele é que parecia agora deslocado, uma múmia vestida de lacaio, e os muros do Palácio Ducal, o silencioso pátio quadrangular, já não constituíam maior ameaça do que um museu sombrio e morto. Saímos para o caminho pavimentado e para a Piazza Maggiore inundada de luz. O Alfa-Romeo encontrava-se estacionado junto da porta central e, a seu lado, como que a vigiar por causa dos vagabundos, postavam-se dois carabineiros. Hesitei, mas Aldo foi direito a eles. Os homens reconheceram-no e fizeram-lhe a continência. Um deles abriu a porta do carro. Só então é que segui o meu irmão.
- Tudo tranquilo? - perguntou ele.
- Tudo em paz, professor Donati - garantiu o homem que lhe tinha aberto a porta. - Apareceu uma mão-cheia de estudantes sem passes de recolher, mas tratámos deles. A grande maioria revelou-se sensata. O que querem é divertir-se durante os próximos dias.
- E divertir-se-ão - garantiu Aldo, rindo-se. - Boa noite e boa caça.
- Boa noite, professor.
Coloquei-me a seu lado dentro do carro e descemos a Via Rossini. Estava agora tão silenciosa como na noite da minha chegada, há uma semana. Só que hoje não caía neve, não havia qualquer vestígio do último Inverno. A atmosfera estava morna, com uma branda humidade proveniente do Adriático, para além das cadeias montanhosas.
- Que pensas dos meus rapazes? - perguntou Aldo.
- Fazem crédito ao teu trabalho - respondi. - Bem gostava de ter tido as mesmas oportunidades. Ninguém se ocupava de mim, quando andava a estudar em Turim, e ninguém me alistou para servir como guarda-costas de um fanático.
Deteve-se junto da entrada da Piazza della Vita.
- Um fanático - repetiu. - É mesmo isso que pensas de mim?
- E não és?
A cidade estava completamente morta. O cinema tinha fechado. Os passeantes haviam ido todos para suas casas.
- Fui-o - anuiu - quando ao princípio procurei estes rapazes e os escolhi, com base no seu nascimento e passado. Em cada um deles, via-te a ti. Uma criança abandonada em qualquer maldito monte, dilacerada pelas balas ou por uma bomba. Agora é diferente. Uma pessoa endurece, mesmo que nunca se ajuste. Além disso, as minhas emoções foram desperdiçadas, como acabei por verificar. Tu sobreviveste. - Deu a curva para a Via San Michele, parando diante do n. o 24. - Criado por teutões, americanos e turineses - continuou a dizer -, para acabares como guia da Sunshine Tours. Os favoritos dos deuses têm longas vidas.
A dúvida acossava-me de novo. A dúvida e o desânimo. Não tinha a certeza de que alguém que ironizava com tanta capacidade de raciocínio fosse louco. E sentia-me desanimado por tudo o que ele tinha feito por aqueles órfãos tê-lo sido por minha causa.
- E agora, que se vai passar? - inquiri.
- Agora? - ecoou ele. - No imediato ou posteriormente? Hoje tu vais dormir e sonhar, se estiveres interessado nisso, com a menina Raspa, ali do outro lado da rua. Amanhã, poderás vaguear à tua vontade por toda a cidade de Ruffano, a observar os preparativos para o festival. Jantas comigo. Depois disso, veremos.
Empurrou-me para fora do carro. Ao sair, recordei-me subitamente da carta que tinha no bolso. Tirei-a para fora.
- Tens de ler isto - disse-lhe. - Encontrei-a, completamente por acaso, esta tarde. Metida entre as páginas de um livro, entre os volumes que estávamos a separar na biblioteca. Fala de ti.
- De mim? - estranhou. - Que diz de mim?
- As tuas façanhas em criança - esclareci. - Escuta, vou ler-ta, e depois poderás guardá-la como recordação do teu passado.
Dobrei-me através da janela do carro e li em voz alta. Quando terminei, ergui os olhos para ele e sorri, atirando-lhe a carta para cima dos joelhos.
- É tocante, não é? - comentei. - Que orgulho eles não tinh am em ti!
Não me respondeu. Ficou sentado imóvel, de mãos no volante, olhando em frente, de rosto inexpressivo e muito pálido.
- Boa noite - proferiu abruptamente e, antes que lhe pudesse retribuir o cumprimento, disparou pela Via San Michele abaixo e contornou a esquina, desaparecendo. Fiquei ali, de olhos fixos nele.
Capitulo décimo sétimo
Por que teria a carta produzido tal efeito sobre Aldo? Não me ocorreu nenhuma resposta, fosse quando me deitei, ou quando acordei de manhã. Não me recordava dela linha por linha, mas referia-se ao progresso do nosso jovem rapazinho" e a como era prometedor, agradecendo a Luigi Speca pela sua grande bondade durante um período de perturbação que, felizmente, tinha terminado. Como ele também assinara o registo em San Cipriano, julgava-o ao mesmo tempo padrinho de Aldo e o médico que assistira ao seu nascimento, o qual, como se verificava pelo duplo registo, devia ter sido difícil, com o meu irmão quase a perder a vida e talvez também quase fazendo perder a da nossa mãe. Devia ter sido esse o período de perturbação referido na carta. Mas por que razão haveria o Aldo de se importar? A carta tinha-me comovido, mas não tão profundamente como isso. Havia suposto que ele se riria e até que diria alguma piada acerca de ter passado por morto. Em vez disso, deparara-se-me a sua dura face imóvel, a rápida partida.
Não me apressei na manhã seguinte para chegar a horas à biblioteca. Todos teríamos de lá ficar até tarde porque, na segunda metade do dia, os estudantes e as suas famílias teriam autorização para visitar as novas instalações, que deveriam ser oficialmente inauguradas após as curtas férias da Páscoa. Tomei o pequeno-almoço sozinho, tendo já saído os meus companheiros de pensão.
tinha precisamente terminado a refeição quando o telefone soou. A senhora Silvani atendeu e veio dizer-me que era para mim.
- Alguém que se chama Jacopo - informou. - Não quis deixar recado. Disse que o senhor saberia quem é.
Fui ao vestíbulo, de coração a palpitar. Qualquer coisa acontecera a Aldo. Por causa da carta da noite anterior. Peguei no auscultador.
- Sim? - disse.
- Senhor Beo?
A voz de Jacopo era firme, sem ansiedade.
- Tenho um recado do capitão para si - disse ele. - Os planos para esta noite foram alterados. O reitor, o professor Butali e a senhora Butali regressaram de Roma.
- Compreendo - interpus.
- O capitão gostaria que viesse cá ainda esta noite - prosseguiu o homem.
- Obrigado - respondi e, antes que desligasse, disse-lhe: - Jacopo...
- Senhor?
- O Aldo está bem? Há alguma coisa que o esteja a perturbar?
Houve uma pausa de um segundo. Depois Jacopo respondeu:
- Creio que o capitão não esperava que o professor Butali regressasse tão cedo. Chegaram na noite passada. A bagagem estava a ser levada para dentro quando ele passou por lá, ao voltar para casa, precisamente às onze horas.
- Obrigado, Jacopo.
Desliguei. Uma carta escrita há quarenta anos atrás era agora o menor dos problemas de meu irmão. O homem doente livrara-se dos médicos e voltara, se não para retomar a actividade, ao menos para estar disponível para ser consultado.
Ouvi a senhora Silvani a movimentar-se na sala de jantar e saí rapidamente de casa, antes que ela pudesse iniciar uma conversa. Precisava, de alguma forma de ver a senhora Butali antes de Aldo. Tinha de insistir para que usasse a sua influência para impedir a realização do festival, só Deus sabia como e com que pretexto.
Eram nove e meia. Depois da longa viagem dos Butali na véspera, a senhora estaria provavelmente em casa naquela manhã - dez horas devia ser uma boa altura para a visitar. Virei para a Via San Martino e principiei a subir a colina na direcção da Via del Sogni. O sol estava já quente, o céu sem nuvens.
O dia prometia ser um daqueles de que me recordava da minha infância, em que as distantes cumeadas e vales rebrilhavam numa névoa azul de calor e a cidade de Ruffano, orgulhosamente implantada sobre as suas colinas, dominava o mundo lá em baixo.
Cheguei junto do portão inserido no muro do nosso antigo jardim, passei por ele na direcção da porta da frente da casa e toquei à campainha. A porta foi-me aberta pela rapariga que eu já conhecia e que também me reconheceu.
- Será possível eu ver a senhora? - perguntei. A moça olhou-me em ar de dúvida e falou em qualquer compromisso que a patroa teria, que ela e o professor Butali só tinham regressado de Roma na noite anterior.
- Bem sei - disse eu -, mas é urgente.
Desapareceu pelas escadas acima e, enquanto me encontrava ali à espera, reparei que a atmosfera da casa tinha mudado mais uma vez. Deixara de existir o enfadonho vácuo de segunda-feira de manhã. Ela estava em casa. Não só se viam as suas luvas pousadas na mesa, um casaco pendurado nas costas de uma cadeira, como também um indefinível aroma penetrara o vestíbulo, recordando a sua presença. Mas agora não se encontrava só. A casa, em lugar de a conter somente a ela, tornando-se assim mais misteriosa, mais tentadora, de tal forma que uma pessoa que a visitasse pela primeira vez como eu fizera e, depois, no domingo repetisse a visita, se sentiria intimamente perturbada e furtivamente atraída - a casa continha agora também o seu marido. Pertencia-lhe e ele é que mandava. Aquela bengala colocada no bengaleiro era como um poste totémico a anunciar a sua presença no mundo. O sobretudo, o chapéu, uma mala de mão ainda por abrir, pacotes de livros - havia na casa um cheiro a macho que anteriormente não existira.
A rapariga desceu as escadas a correr e ouvi atrás dela o som de vozes, de portas a fecharem-se.
- A senhora descerá dentro de um momento - anunciou -, se quiser ter a bondade de vir para aqui.
Conduziu-me ao compartimento da esquerda, o escritório que tinha sido a nossa sala de jantar. Também ali havia provas da presença do marido. Uma pasta sobre a secretária, mais livros, cartas. E um fraco, mas distinto, aroma a charuto, fumado na noite anterior à chegada, e que ainda não se desvanecera no ar.
Devo ter aguardado ali dez minutos ou mais, a morder os nós dos dedos, antes de Lhe ouvir os passos na escada. Depois o pânico dominou-me. Não sabia o que lhe havia de dizer. Entrou na sala. Ao ver o seu rosto, devastado, fatigado porque ela parecia, de algum modo, ter envelhecido nos últimos quatro dias -, mas igualmente expectante e vivo, tomou-me o desapontamento e a surpresa.
- Beo! - exclamou. - Eu pensava que a Anna tinha dito Aldo... - Depois recompôs-se rapidamente, atravessou a sala e estendeu-me a mão. - Tem de me desculpar - disse -, nem sei o que estou a fazer. A palerma da rapariga disse que era o senhor que cá tinha estado no domingo à noite e, na minha estupidez e pressa... - Não se deu ao trabalho de terminar a frase. Eu entendi-a. Na sua estupidez e pressa, o senhor que tinha vindo jantar no domingo só poderia significar uma pessoa. E não era eu.
- Não tem nada que pedir desculpa - contrapus. - Eu é que lha devo pedir. Soube pelo Jacopo que a senhora e o seu marido se encontravam em casa, que tinham chegado na noite passada e nem me passaria pela cabeça incomodá-la tão cedo e na sua primeira manhã no lar, se não pensasse que o assunto é urgente.
- Urgente? - repetiu ela.
O telefone tocou, na sala de música lá em cima, Ela soltou uma exclamação de contrariedade e preparava-se para sair da sala num pedido de desculpas murmurado, quando ouvimos passos lentos no andar superior. Depois, o som do aparelho parou e uma voz masculína murmurou indistintamente.
- É aquilo exactamente que eu não queria que acontecesse - disse-me ela. - Se o meu marido começar a responder a telefonemas e a conversar primeiro com este, depois com
aquele - Interrompeu-se, esforçando-se por ouvir, mas o
murmúrio era demasiado fraco. - Não vale de nada - exclamou, encolhendo os ombros. - Ele já atendeu, e não posso
evitá-lo.
Estava incomodamente consciente da perturbação que tinha vindo causar. Não poderia ter aparecido para a visitar em pior altura. Ela tinha olheiras na cara, que revelavam fadiga e tensão. Não as tivera no domingo. Nessa ocasião o mundo
bem poderia ter morrido à sua volta.
- Como vai o reitor? - perguntei.
Suspirou.
- Tão bem como seria de esperar, dadas as circunstâncias informou. - Aquilo que se passou no princípio da semana
constituiu um grande choque para ele. Mas você já sabe...
Enrubesceu, com a cor a surgir-lhe na face naturalmente pálida como uma repentina mancha. - Creio que foi consigo que
falei na quarta-feira à noite - disse. - O Aldo contou-me.
Telefonou-me mais tarde.
- Também tenho de lhe pedir desculpa por isso - declarei. - Quer dizer, por ter desligado. Não era minha intenção
ser imcorrecto para consigo.
Ela afastou, de costas voltadas para mim, as cartas que se encontravam sobre a secretária. A sua atitude era de contenção, como que um aviso de que eu não era ali bem-vindo. A minha missão tornou-se mais difícil que nunca.
- Estava a dizer - interveio - que tinha qualquer coisa urgente para me dizer?
Enquanto falava, a voz lá em cima elevou-se. Não conseguíamos perceber nada, mas tinha obviamente começado uma prolongada discussão.
- Talvez devesse ir lá - concluiu ela ansiosamente. - Tanta coisa tem parecido correr mal nestes últimos dias. O professor Elia.
- Ouviu falar? - perguntei.
Fez um gesto abrindo os braços e começou a percorrer rapidamente a sala, para um e outro lado.
- O primeiro telefonema que recebemos esta manhã serviu para fornecer ao meu marido um relato exagerado de algo que sucedeu na terça-feira à noite - respondeu. - Não veio do professor Elia em pessoa, ou do professor Rizzio, mas de um dos intrometidos em que esta terra abunda. Em qualquer caso, o mal já está feito. O meu marido sente-se tremendamente enervado. O seu irmão deverá vir cá mais tarde explicar-lhe o sucedido e acalmá-lo.
- Minha senhora - interrompi -, é por causa do Aldo que a vim ver.
Endireitou-se e a sua face transformou-se numa máscara. Só os olhos revelavam atenção.
- Que há com ele? - perguntou.
- O festival - principiei. - Ouvi-o falar aos estudantes sobre o festival. Tornou-se uma coisa tão real para eles, como para o meu irmão e, por conseguinte, perigosa. Penso que deveria ser cancelado.
A ansiedade por trás dos meus olhos desapareceu. Entreabriu os lábios num sorriso.
- Mas esse é que é o objectivo - declarou. - É sempre a mesma coisa. O seu irmão torna a história, seja lá qual for, tão vívida e real que todas as pessoas que tomam parte na representação se sentem personagens fora do tempo. Eu sei o que todos fizemos no ano passado. E o resultado foi magnífico. Qualquer pessoa lho dirá.
- No ano passado não estive cá - intervim. - Tudo o que sei é que este ano vai ser diferente. Não decorrerá no Palácio Ducal, para principiar, mas nas ruas. Os estudantes lutarão nas ruas.
Ela fitou-me, ainda a sorrir. O seu alívio por eu não ter tocado no seu relacionamento com Aldo era manifesto.
- Nós também percorremos as ruas em cortejo no ano passado - contou-me -, ou melhor, o meu marido é que o fez, no papel de papa Clemente, com o seu séquito muito à época. Eu encontrava-me com as damas e cavalheiros da corte, a aguardar a sua chegada no pátio do palácio. Garanto-lhe
que não haverá nada a recear, os polícias já estão acostumados, tudo decorrerá em ordem.
- Como pode uma insurreição decorrer em ordem? perguntei-lhe. - Como podem estudantes, a quem mandaram
armar-se com qualquer espécie de instrumento contundente,
dominarem-se a si mesmos?
Gesticulou.
- No ano passado também estavam armados - replicou -,
e com certeza que, se algum dos estudantes se excedesse, teria sido fácil dominá-lo. Não pense que não o compreendo, Beo,
mas já organizamos festivais destes em Ruffano há três anos.
Ou antes, o meu marido é que o tem feito, com o auxílio do
seu irmão. Eles sabem como tratar desses pormenores.
Era inútil. A minha missão fora em vão. Nada que lhe
pudesse dizer a convenceria, a menos que eu atraiçoasse as directivas de Aldo, que lhe contasse aquilo que ouvira dos seus
próprios lábios na noite anterior. E a lealdade impedia-me de
o fazer.
- Achei o Aldo mudado - declarei, experimentando uma
abordagem diferente -, mais taciturno, mais cínico. Vai do riso e da brincadeira a súbitos períodos de silêncio.
- Há vinte e dois anos que o não via - lembrou-me ela. Tem de lhe dar o desconto.
- Por exemplo, ontem à noite - prossegui - ontem à
noite, em especial. Mostrei-lhe uma velha carta do nosso
pai, que encontrei por acaso dentro de um dos livros da biblioteca.
Uma carta dirigida ao padrinho de Aldo, um médico, segundo
creio, comentando o belo filho que tinha. Pensei que o Aldo
se sentisse divertido com aquilo. Li-lha. Não disse palavra,
mas arrancou imediatamente com o carro.
O seu paciente e bastante piedoso sorriso era de enlouquecer.
- Talvez se sentisse demasiado comovido - aventou - e
não lho quisesse dar a perceber. Era muito amigo do pai, não
era? E o vosso pai tinha muito orgulho nele. Ou pelo menos
foi o que sempre me deu a entender. Sim, creio que posso
compreender por que motivo ele se esqueceu de lhe dar as boas- 261
-noites. Pode parecer-lhe que é cínico, Beo, mas é só à superfície. Na realidade...
Interrompeu-se, com as emoções a virem-lhe inesperadamente à superfície tomando o lugar da frieza, da reserva. Era assim que devia ter parecido, pensei, no domingo à noite, na sala de música lá de cima, quando Aldo voltara para ela depois de se ter despedido de mim, e enquanto as vespas" estrondeavam e roncavam, dando a volta à cidade, e os estudantes mascarados irrompiam na residência feminina, para o ataque fingido à senhora Rizzio. A esposa do cidadão importante tinha sido profanada. " A questão era: de qual cidadão? Eu não possuía dúvidas acerca da resposta.
- Desculpe - disse-lhe -, já tomei muito do seu tempo. Por favor, não fale ao Aldo na minha visita, quando o vir. Mas recomende-lhe que tenha cautela.
- Com certeza que o farei - garantiu - e, de qualquer forma, o meu marido quererá saber todos os pormenores do programa do festival, embora não se sinta suficientemente bem para estar presente. Escute...
A conversa lá em cima terminara. Os passos atravessavam o soalho na direcção da porta e soavam no patamar. Começaram a descer as escadas.
- Ele vem a descer - disse apressadamente a dona da casa. - Não deveria subir e descer as escadas. - Dirigiu-se prontamente para a porta e depois virou-se. - Não sabe
quem você é - esclareceu, com o colorido da mentira nas faces -, quero dizer, as suas relações de parentesco com Aldo. Disse-lhe que alguém aparecera a tratar de uns assuntos, e que não tinha a certeza de quem seria.
A sua culpa transmitiu-se-me. Segui-a até à porta.
- Vou-me embora - decidi.
Dirigimo-nos ao vestíbulo. O reitor já se encontrava a meio das escadas. Era um homem que poderia ter qualquer idade entre os cinquenta e cinco e os sessenta e cinco, de ombros largos, estatura média, cabelos grisalhos, olhos finos e feições
de homem que fora belo na sua juventude e que ainda o era,
embora a textura acinzentada da sua pele constituíssem indício da sua recente doença. Possuía o ar de autoridade e distinção de alguém que imediatamente impunha aquiescência e respeito, até afeição. O meu sentimento de culpa cresceu.
- Este é o senhor Fabbio - explicou a esposa, quando ele se deteve ao ver-me. - Veio trazer um recado sobre a biblio teca, onde trabalha como assistente. Estava precisamente a sair.
Percebi que se sentia ansiosa por que me fosse embora. Inclinei-me numa vénia. O reitor também inclinou a cabeça, desejando-me um bom-dia.
- Por favor, não se apresse, senhor Fabbio - pediu. Eu gostava de ouvir falar da nova biblioteca, se puder dispensar- me também uns minutos.
Voltei a fazer uma vénia, à maneira de um guia de turistas. A senhora Butali abanou a cabeça.
- Os médicos disseram-te para não desceres as escadas, Gaspar - recordou-lhe. - Ouvi-te atender o telefone. Devias ter-me chamado.
Ele terminou de descer as escadas, colocando-se entre nós no vestíbulo. Apertou-me a mão, com os seus finos olhos a perscrutarem-me, depois voltou-se de novo para a esposa.
- Eu teria, de qualquer das formas, de atender aquela chamada - declarou. - Receio que sejam más notícias.
Procurei passar despercebido, mas estendeu a mão na minha direcção.
- Não se vá embora - insistiu. - Não é nada de pessoal. Foi um infeliz e desafortunado acidente sofrido por um dos estudantes, que foi encontrado morto esta manhã, ao fundo dos degraus do teatro.
A senhora Butali soltou uma exclamação de horror.
- Era o comissário da Polícia que estava ao telefone - continuou. - Acabara de ouvir falar no meu regresso e, muito correctamente, informou-me do que se passou. Parece que houve - proferiu voltando-se para mim - um recolher obrigatório na noite passada, por causa de determinados incidentes ocorridos no princípio desta semana, e todos os estudantes,
excepto aqueles que dispunham de passes, foram avisados para se manterem nas suas pensões ou alojamentos a partir das nove horas. Esse rapaz, e possivelmente outros, desafiaram as ordens recebidas. Deve ter-se assustado ao ouvir uma patrulha e correu, tomando o caminho mais curto, que aconteceu serem aqueles infernais degraus. Tropeçou e caiu por ali abaixo, quebrando o pescoço. O seu corpo foi encontrado de manhã cedo. - O reitor estendeu a mão para a bengala, que a senhora Butali Lhe entregou. Encaminhou-se lentamente para a sala que acabáramos de deixar. Seguimo-lo.
- É terrível - disse a mulher -, e logo nesta altura, exactamente antes do festival. A novidade já foi divulgada?
- Sê-lo-á para o meio da manhã - respondeu o marido. Não se devem apressar essas coisas. O comissário virá aqui em pessoa discutir o assunto.
A senhora Butali empurrou para a frente a cadeira da secretária. Ele sentou-se. A grande palidez do seu rosto parecia ter aumentado.
- Terei de convocar uma reunião do Conselho da Universidade - declarou. - Desculpa, Livia. Terás de me fazer uma quantidade de telefonemas. - Acariciou a face da esposa, que estava encostada ao seu ombro.
- Com certeza - anuiu ela, gesticulando desanimadamente
para mim.
- Não creio que o recolher obrigatório tivesse sido necessário - afirmou o reitor. - Receio que o Conselho tenha agido dominado pelo pânico, com o inevitável resultado de levar alguns estudantes a rebelarem-se, o que provocou esta fatalidade. Houve muitos distúrbios?
Olhava para mim. Eu não sabia qual a melhor maneira de lhe responder.
- Os vários grupos estavam encarniçados - disse. - Parecia existir grande rivalidade entre eles, especialmente entre os estudantes da C. e E. e das Artes e Educação. O inesperado recolher obrigatório causou muita insatisfação. Não se falava noutra coisa ontem à noite na cantina.
- Precisamente - corroborou o reitor -, e os de ânimo mais exaltado estavam decididos a mandar a autoridade à fava. Eu próprio devo ter procedido da mesma forma quando era estudante. - Virou-se para a esposa. - Foi o rapaz dos Marelli que morreu - informou. - Tu lembras-te do Marelli, estivemos num dos seus hotéis há um ou dois anos. Não sei muito sobre o rapaz, estudante do terceiro ano, mas o Elia esclarecer-me-á. Que tragédia para os pais! Era filho único.
Eu tinha a garganta seca. O que quer que a senhora Butali estivesse a dizer por solidariedade, repeti eu em voz rouca. Ela já não estava tão ansiosa por que me fosse embora. Talvez que a minha presença constituísse uma espécie de distracção para o marido.
- A que horas vem o doutor? - perguntou este.
- Disse que vinha às dez e meia - respondeu ela. - Deve estar a chegar a todo o momento.
- Se o comissário da Polícia chegar primeiro, o médico terá de esperar - determinou o marido. - Vê se consegues comunicar com ele em casa, querida. Se lá não estiver, encontrar-se-á provavelmente no hospital e poderá vir de lá. Fica só a dois minutos de caminho.
Ela fez uma pausa antes de sair da sala, lançando-me um olhar de aviso. Devia significar que não me era permitido fatigá-lo. Também poderia querer dizer que não lhe devia falar de Aldo. O que eu queria era sair daquela casa antes de o comissário chegar. Mas primeiro tinha uma coisa a dizer.
- Esse acidente, professor - perguntei - implicará o cancelamento do festival?
O reitor pegara num pequeno charuto e estava ocupado a acendê-lo. Passou-se um momento antes que respondesse.
- Será pouco provável - afirmou. - Existem cerca de cinco mil estudantes na Universidade de Ruffano e anular um dos seus maiores dias do ano por causa de um lamentável e infeliz acidente acontecido a um deles, levá-los-ia à histeria. Não seria bom fazê-lo. - Chupou o charuto e franziu as sobrancelhas. - Não - repetiu -, pode ficar descansado que não cancelaremos o festival. Então você vai tomar parte nele?
A pergunta apanhou-me de surpresa. Os seus olhos inquisitivos perfuravam-me.
- Ainda não é certo - respondi. - O professor Donati pode querer que eu desempenhe algum pequeno papel secundário.
- Óptimo - redarguiu -, quantos mais entrarem, melhor. Ele já devia cá ter chegado neste momento. Vai contar-me tudo. A sua escolha do tema para este ano surpreendeu-me, mas garante-me que o vai tratar de forma soberba. Fá-lo sempre. De onde é o senhor?
- De onde sou? - repeti.
- A sua terra natal, a sua Universidade. Suponho que se encontra temporariamente entre nós?
- Sim - respondi, com a garganta novamente a contrair-se. - Sou de Turim. Precisava de um emprego para ocupar o tempo. Tenho uma formatura em Línguas Modernas.
- Óptimo. E que pensa da nossa nova biblioteca?
- Estou muito bem impressionado.
- Há quanto tempo está cá a trabalhar?
- Uma semana.
- Só uma semana? - Tirou o charuto da boca e fixou-o. Parecia-me surpreendido. - Desculpe-me - proferiu. - Sucede que ouvi a criada dizer à minha mulher que o cavalheiro que tinha estado a jantar cá em casa no domingo queria falar com ela. Não tinha conhecimento de ela ter dado uma grande festa ao pessoal da Universidade.
Engoli em seco.
- Foi uma pequena reunião - esclareci. - Tive a boa sorte de trazer da biblioteca alguns livros para a senhora Butali, e ela teve a amabilidade de tocar piano para eu ouvir. O convite
para jantar veio na sequência disso.
- Estou a compreender - disse ele.
Fitou-me novamente. O seu olhar era, de algum modo, diferente. Avaliador. O olhar de um marido que se pergunta subitamente por que razão a sua mulher teria metido na cabeça tocar piano para um estranho ouvir e convidá-lo para jantar. Não era, evidentemente, coisa que ela costumasse fazer.
- O senhor gosta de música? - indagou.
- Apaixonadamente - anuí, esperando satisfazer-lhe a curiosidade.
- Óptimo. - Voltou a exclamar. Depois, abruptamente, disparou outra pergunta. - Quantas pessoas estavam nessa reunião?
Senti-me encurralado. Se lhe dissesse que tinham estado presentes meia dúzia de pessoas, seria mentira, facilmente detectável mais tarde, quando calhasse interrogá-la e encurralá-la também.
- Não me entendeu bem, professor - cortei rapidamente. - A reunião foi no domingo de manhã.
- Então não veio cá jantar?
- Também vim jantar - anuí. - Fui trazido pelo professor Donati.
- Ah - exclamou ele.
Principiei a transpirar. Não havia mais nada que lhe pudesse dizer. Ele teria sempre oportunidade de fazer perguntas à criada, se não mesmo à mulher.
- Foi uma noite de música - expliquei. - A ideia ao virmos cá foi ouvir tocar a senhora Butali. Foi o que fizemos até irmos embora. Uma noite memorável.
- Tenho a certeza que sim - concordou.
Eu devia ter cometido algum lapso. A senhora Butali, ao chegar ao hospital de Roma, no dia seguinte, podia ter-lhe contado uma história muito diferente. Podia ter dito que tinha jantado sozinha no domingo à noite e então, tomada por ansiedade para com o marido, tinha partido na manhã seguinte para Roma, para estar a seu lado. Ignorava tudo.
- Em Roma - disse, seguindo uma determinada linha de raciocínio -, eu sentia-me muito fora de contacto com a vida em Ruffano.
- Sim, isso é compreensível.
- No entanto - continuou o reitor -, amigos bem-intencionados faziam os possíveis por me manterem informado sobre tudo o que se passava. Alguns deles, talvez não tão bem-intencionados como isso.
Sorri. Forcei um sorriso. Os seus olhos directos pesquisavam-me de novo.
- Você diz que só cá está há uma semana? - reiterou.
- Faz hoje uma semana - reafirmei. - É correcto. Cheguei na quarta-feira.
- De Turim?
- Não, de Roma. - Sentia o suor principiar a brotar-me da testa.
- Trabalhou em alguma das bibliotecas de Roma?
- Não, professor. Estava de passagem. Simplesmente aconteceu que se me meteu na cabeça conhecer Ruffano. Precisava de férias.
A minha história, mesmo aos meus ouvidos, soava a falso. A ele devia ter-lhe parecido duplamente inverosímil. O meu nervosismo também era demasiado óbvio. Durante um momento, nada disse; tinha os ouvidos atentos ao som da voz da senhora Butali ao telefone, lá em cima, tal como os nossos tinham estado à dele, alguns minutos antes.
- Peço-lhe desculpa, senhor Fabbio - disse, após uma pausa -, por lhe estar a fazer este chorrilho de perguntas. O que se passa é que, enquanto me encontrava em Roma, fui incomodado por telefonemas anónimos, com determinadas alusões ao professor Donati. Tentei localizar essas chamadas, mas só consegui descobrir que eram feitas localmente. O que havia de estranho era que quem ligava, uma mulher, por que a ouvi sussurrar instruções, não falava directamente comigo, mas por intermédio de terceira pessoa, um homem. Ocorreu-me, e desculpe-me se estou enganado, que poderia ter sido o senhor esse homem, e que me pudesse contar alguma coisa acerca de tais chamadas.
Desta vez, o meu ar de profundo espanto deve tê-lo tranquilizado.
- Não sei nada sobre isso, professor - garanti. - Parece-me que será melhor dizer-lhe imediatamente que sou agente de viagens. Trabalho para uma firma de Génova e encontrava-me em funções junto de um autocarro de turistas, em viagem de Génova para Nápoles, via Roma. Seguramente que não fui eu quem ligou para o senhor. Nunca tinha ouvido o seu nome até chegar a Ruffano.
Estendeu-me a mão.
- Já me chega - declarou. - Por favor, não pense mais no assunto. Varra-o do espírito. E não fale nisso a ninguém, acima de tudo à minha mulher. Essas chamadas, tal como cartas anónimas, foram muito desagradáveis, mas há já mais de uma semana que não recebo nenhuma.
A campainha da porta da frente lançou o seu alarmante apelo.
- Deve ser o comissário da Polícia - disse ele - ou o médico. Peço-lhe mais uma vez desculpa, senhor Fabbio.
- Não tem de quê, professor - murmurei.
Fiz uma vénia e voltei-me para a porta. Podia ouvir a rapariga a ir responder à campainha e a senhora Butali a descer as escadas ao mesmo tempo. Saí para o vestíbulo e procurei passar despercebido, ao ver a porta abrir-se. A visão do comissário no seu uniforme, fez-me recuar ainda mais na direcção da zona da cozinha. O vulto da senhora Butali escondeu-me, quando ela o conduziu ao escritório. Depois voltou-se para se despedir de mim. A rapariga que abrira a porta ainda se encontrava por ali próximo; não podia avisar a senhora sobre a conversa que tivera lugar entre mim e o marido.
- Espero que o vejamos de novo - foram os seus votos, de regresso às formais maneiras de anfitriã que apressa a partida de uma visita.
- Também assim o espero, minha senhora - retribuí, e depois o marido chamou-a de dentro da sala e ela disse-me adeus com um gesto de mão, desaparecendo da minha vista.
Desci o caminho pavimentado de acesso à rua, onde o carro do comissário o aguardava, com um polícia uniformizado ao volante. Virei para a esquerda, para não passar por ele, e desci rapidamente a colina. Não interessava para onde ia, desde que pusesse alguma distância entre mim e o carro da Polícia. Decidi regressar ao meu quarto, ficar lá um bocado e depois ir a casa do meu irmão. A notícia da morte de Stefano Marelli tinha-me chocado profundamente, mas estava igualmente incomodado com aquilo que o reitor tinha dito sobre as chamadas telefónicas anónimas.
Ao atingir a Via San Michele e começar a encaminhar-me para a Pensão Silvani, vi um homem de pé diante da porta, a falar com a dona da casa. Aquela figura, de cabeça descoberta e face de perfil, tornou-se-me instantaneamente reconhecível. Tratava-se do agente vindo de Roma, o polícia à paisana que vira na terça-feira na igreja.
Encontrava-me em frente ao n. o 5 e, instintivamente, enfiei-me pela porta dentro, subindo ao primeiro andar. Bati à porta de Carla Raspa. Não houve resposta. Rodei a maçaneta da porta descobrindo que se encontrava aberta. Entrei, fechando-a atrás de mim.
Capítulo décimo oitavo
Pensei que o compartimento estava vazio, mas o som da porta a fechar-se perturbou alguém na casa de banho. Surgiu uma mulher de avental, com um pano do chão nas mãos. Encarou-me desconfiada.
- Que é que quer? - perguntou.
- Tinha um encontro marcado com a menina Raspa - menti. - Ela disse-me que talvez se atrasasse e pediu-me que esperasse.
- Muito bem - acedeu a mulher. - O quarto já está arrumado, mas ainda não terminei a casa de banho e a cozinha. Ponha-se à vontade.
Voltou para a casa de banho e ouvi o som de água a correr. Fui para a janela e olhei pela rua abaixo, para o n. o 24. O homem ainda lá estava. A senhora Silvani fazia-se expansiva, ocupando-se da maior parte da conversa, com muitos gestos. Devia estar a falar de mim. Estaria a contar ao agente que eu trabaLhava todos os dias na biblioteca, que provavelmente estaria lá naquela altura e que estava hospedado sob o seu telhado exactamente desde há uma semana, por ser um estranho em Ruffano. Se ele lhe tivesse explicado quem era e provado a sua identidade, iria pedir para ver o meu quarto? Subiria as escadas para abrir os armários, rebuscar a cómoda e a minha pasta? Nada encontraria que lhe fosse útil. Eu trazia comigo os meus documentos. Mas, até ao momento, a senhora Silvani não fizera qualquer tentativa para o convidar a entrar. Ainda estavam a conversar. Depois a mulher-a-dias regressou ao quarto e afastei-me da janela.
- Quer tomar café? - convidou.
- Por favor, não se incomode - respondi.
- Não é incómodo nenhum - replicou -, a menina gostaria que o fizesse.
Havia algo de familiar no rosto da mulher. Era nova e de aspecto saudável, mas usava o cabelo despenteado, sugerindo uma tentativa falhada para copiar alguma estrela de cinema que teria visto num cartaz.
- Não o vi já? - indagou.
- Eu estava a pensar a mesma coisa - respondi -, mas Ruffano não é uma grande cidade. Talvez tivesse sido na rua.
- Talvez - anuiu com um sorriso e um encolher de ombros.
Foi para a cozinha e eu voltei para a janela. Entretanto, o homem havia desaparecido mas, se tinha entrado na casa ou descido a rua, não havia forma de saber. Deixei-me ficar à janela e, pegando numa revista, folheei-lhe as páginas ociosamente, mantendo a casa debaixo de olho. Passado um bocado, a mulher voltou com o café.
- Aqui tem, senhor - disse. - E já me lembrei de onde é que o vi. O senhor estava a observar a multidão, próximo de Todos-os- Santos. Perguntou-me o que se passava e porque estaria lá o carro da Polícia. Eu tinha o meu bebé ao colo, estava a chorar. Lembra-se?
Recordava-me. Ruffano era de facto pequena. Não havia escapatória.
- Tem razão - concordei. - Agora já me lembro. Estavam duas pessoas a ser metidas no carro.
- Eram os Ghigi - explicou - e foi precisamente como lhe contei, eles tiveram de ir identificar a pobre Marta Zampini.
A Polícia levou-os a Roma - imagine, viajarem toda essa distância num carro da Polícia! Se não fosse por motivo tão infeliz, teriam gostado. Nenhum deles tinha anteriormente na vida ido a Roma. E depois o corpo foi trazido para cá e enterrado ontem.
Que crime! Tudo por causa de dez mil liras. O malvado que o
fez ainda recusa confessar. Com o roubo sim, concorda, conforme o meu marido leu no jornal, mas não confessa o assassínio. Suponho que espera salvar a pele com essa mentira. - Provavelmente - concedi. Bebi o café, com um olho
ainda na pensão ao cimo da rua.
- Hão-de forçá-lo a confessar - acrescentou ela. - A Polícia lá tem os seus métodos; todos sabemos disso.
Ficou a ver-me beber o café, a conversa a constituir um interlúdio no trabalho daquela manhã.
- Conhecia a mulher assassinada? - inquiri.
- Conhecer a Marta Zampini? - repetiu. - Toda a gente que vive em Todos-os-Santos a conhecia. Ela e Maria Ghigi costumavam trabalhar para o pai do professor Donati, nos velhos tempos. Conhece o professor Donati do Conselho de Artes?
- Sim, conheço.
- Dizia-se ontem que tinha sido ele quem conseguiu que a Polícia trouxesse o cadáver para cá, e que pagou o funeral. É um homem maravilhoso, tem feito tanto por Ruffano, como já o pai tinha feito. Se a velha Marta tivesse continuado a trabalhar para ele, ainda hoje estaria viva.
- Por que é que ela o deixou? A mulher encolheu os ombros.
- Abusava disto. - Fez um gesto de quem bebe. - Desfez-se em pedaços nos últimos meses, segundo garantem os Ghigi. Sempre a reclamar. Ninguém percebe que motivos tinha ela para isso, eles tomavam muito bem conta dela. A Maria Ghigi diz que ela nunca mais foi a mesma depois da guerra, quando deixou de viver com a família Donati. Sentia falta do miudi nho. Estava sempre a falar no rapazinho, no irmão do professor, que desapareceu com as tropas alemãs. Bom, é a vida, não acha? Há sempre qualquer coisa que corre mal.
Terminei o café e empurrei o tabuleiro.
- Muito obrigado - agradeci.
- Esperemos que a menina Raspa não se demore - disse ela, e depois, com um longo olhar de esguelha na minha direcção: - E muito jeitosa, não é?
- Muito - concordei.
- Tem muitos admiradores - informou. - Eu sei, por causa de ter muitas vezes de arrumar a casa depois de cá terem vindo jantar.
Sorri, mas não fiz comentários.
- Bom - exclamou. - Preciso de ir andando. Tenho ainda de fazer as compras antes de o meu marido chegar a casa para a refeição do meio-dia. Felizmente a minha mãe olha-me pela bebé enquanto estou a trabalhar para a menina.
Ainda não havia sinais de vida no n. 24. O agente já teria tido tempo para revistar o meu quarto e voltar a descer as escadas. Talvez também estivesse a tomar café com a senhora Silvani. Fingi estar interessado na revista. Uns cinco minutos depois a mulher veio da cozinha. Tinha vestido um casaco curto por cima do vestido e trazia um saco de pano.
- Bem, vou-me embora - declarou. - Espero que passe um bom dia com a menina.
- Obrigado - respondi.
Deu-me os bons-dias e saiu do apartamento. Ouvi-a descer as escadas e vi-a percorrer a Via San Michele. Fiquei de olhos fixos no n. o 24, mas ninguém entrou nem saiu. O agente já devia ter-se ido embora há algum tempo, na altura em que a mulher-a-dias tinha vindo oferecer-me café. Agora poderia encontrar-se em qualquer lado, talvez lá em cima na Universidade, a fazer perguntas na secretaria, ou na biblioteca. Por isso esta estava-me agora interdita. A Pensão Silvani também. Não tinha outro refúgio a não ser o apartamento em que me encontrava, e a casa de meu irmão, na Via del Sogni. E, se saísse do apartamento e subisse a colina para a casa de Aldo, podia encontrar o agente no caminho. Ele até poderia estar à espreita do meu regresso à Pensão Silvani.
Saquei de um maço de cigarros e comecei a fumar. Pensei no estudante Marelli a quebrar o pescoço no fundo da escadaria do teatro. Fora naqueles mesmos degraus que eu tinha encontrado o rapaz apavorado, na sexta-feira da semana anterior. Era óbvio que também se tratara de um estudante. Para ele não houvera recolher obrigatório, mas os vigias de Aldo deviam tê-lo interrogado, como parte do seu fantástico jogo medieval. Desta vez, a brincadeira terminara com a morte de um estudante. Estariam as balanças da Justiça Divina finalmente equilibradas? Poderia o jogo acabar?
Aldo, na sua qualidade de director do Conselho das Artes de Ruffano, fazia parte do corpo directivo da Universidade.
Estaria portanto presente na reunião convocada pelo reitor para mais tarde naquele dia. Como todos os outros, aceitaria os motivos apresentados para a morte de Marelli - que o estudante, assustado, fugira de uma patrulha - mas, no seu íntimo, de certeza que se aperceberia da verdadeira causa.
Consultei o relógio. Passavam vinte e cinco minutos das onze. Principiei a percorrer o compartimento de um lado para o outro. Espreitei pela janela. Tudo continuava tranquilo no n. o 24. Quando Carla Raspa regressasse, qual seria a minha desculpa para me encontrar ali? Não a via desde terça-feira à noite, quando eu, de forma tão pouco galante e deliberada, a tinha abandonado. Seria um estranho momento para apresentar desculpas.
Entrei na casa de banho. Havia jarros e frascos nas prateleiras e um roupão pendurado num cabide. Uma camisa de noite, apressadamente enxaguada, estava estendida num varão por cima da banheira. O bidé estava cheio de água com sabão, na qual um monte de meias fora deixado de molho. Aquela visão enjoou-me. Regressei, aos vómitos, para a cozinha. A desordem, a intimidade, faziam-me lembrar quartos de hotel de há muito tempo, em Francoforte e outras cidades onde, lado a lado com a roupa interior da minha mãe, lavados e enxaguados da mesma forma, havia meias de homem e lenços de assoar, escovas de dentes e loção capilar. Pêlos na banheira. Como rapaz de onze ou doze anos, o estômago revoltava-se-me. O cheiro a luxúria perseguiu-me da Alemanha até Turim. Continuava a perseguir-me.
Fui mais uma vez sentar-me junto da janela aberta e acendi outro cigarro. Perguntava-me qual seria a mulher que, levada pelos ciúmes, tinha feito as chamadas telefónicas anónimas para a cama de hospital do reitor, em Roma. Talvez uma amante abandonada pelo meu irmão, ou alguém que tivera aspirações a tal posição e falhara. A mulher, quem quer que fosse, devia ter adivinhado as relações entre Aldo e a esposa do reitor. As
chamadas poderiam ter cessado, mas o meu irmão teria que ser avisado antes de falar com o reitor. Eu podia telefonar a Jacopo, dizendo-lhe para pedir a Aldo que me telefonasse para o apartamento de Carla Raspa, logo que voltasse a casa.
Folheei a lista telefónica e encontrei o número dele. Pedi-o à operadora e aguardei. Não houve resposta. Ou Jacopo tinha saído, ou estava nos seus domínios. Pousei o aparelho e regressei para junto da janela. Um grupo de estudantes vinha a subir a rua, gritando e assobiando, vestidos com fatos de máscaras e usando chapéus apropriados à ocasião, um deles transportando um saco pendurado num pau, que estendia às pessoas com quem se cruzavam.
- Ajude o fundo dos estudantes pobres - bradava. Agradecem-se quaisquer contribuições, ainda que sejam pequenas. Cada centavo que derem ajudará um estudante pobre a completar os seus estudos. Obrigado, senhor; muito obrigado, menina.
Um homem, encolhendo os ombros, meteu qualquer coisa no saco. Uma rapariga, perseguida por urros e assobios, fez o mesmo e escapou-se às gargalhadas. Os rapazes espalharam-se pela rua. Um carro que descia a colina foi forçado a parar e meteram-lhe o saco pela janela. O estudante fez uma vénia, executando um floreado com o chapéu medieval.
- Muito obrigado, senhor, desejo-Lhe uma longa vida, senhor.
Continuaram a subir a rua, ainda a cantar, a gritar, e viraram na direcção da Piazza della Vita. O campanário ao lado do Duomo deu as doze, imitado, antes de soarem as últimas badaladas, pelos sinos de San Cipriano. A tarde foi anunciada a todos os bairros de Ruffano e eu reflecti como, em séculos passados, um fugitivo como eu procurava refúgio dentro de uma igreja, aos pés do altar-mor. Perguntava- me se, no caso de hoje fazer o mesmo, encontraria protecção, ou se o sacristão de San Cipriano me olharia agastado e iria direitinho contar à Polícia.
Ouvi então passos a subirem as escadas. A porta abriu-se. Era Carla Raspa. Encarou-me estupefacta.
- Estava precisamente a pensar - disse falando verdade - se havia de permanecer aqui no seu apartamento, ou procurar refúgio numa igreja.
- Isso depende do crime que cometeu - retorquiu, fechando a porta por trás de si. - Talvez deva confessá-lo primeiro.
Pousou a malinha e um embrulho com livros sobre a mesa. Depois olhou-me de cima a baixo.
- Você está umas trinta e seis horas atrasado para um encontro - comentou. - Não me importo de esperar uma hora, ou possivelmente duas, por alguém mas, depois disso, prefiro arranjar substituto.
Procurou cigarros na malinha e acendeu um. Depois foi à cozinha, voltando com uma garrafa de Cinzano e dois copos, num tabuleiro.
- Suponho - disse - que a razão de não ter aparecido foi ter tido medo de uma nega. Já tem acontecido a outros mais fortes do que você. Sempre consegui ultrapassar esse problema. Há meios e processos para isso. - Verteu o Cinzano nos copos. - Coragem! - exclamou. - Nunca se pode saber como uma coisa é boa até ter experimentado.
Entregou-me o copo, sorrindo. Nunca tinha encontrado ninguém tão magnânimo. Peguei no outro copo. Enquanto bebia o Cinzano tomei uma decisão.
- Não vim cá pedir desculpa por causa de terça-feira à noite - disse-lhe -, ou recuperar a reputação perdida. Estou aqui porque me parece que a Polícia anda atrás de mim.
- A Polícia? - repetiu, pousando o copo. - Nesse caso cometeu um crime... ou está a brincar?
- Não cometi crime nenhum - afirmei. - Mas aconteceu-me estar no local de um homicídio há uns dez dias, e suspeito que a Polícia me quer interrogar.
Ela viu pelo meu rosto que eu não estava a brincar. Deu-me um dos seus cigarros.
- Estará a referir-se à morte daquela velhota em Roma? perguntou.
- Estou - anuí. - Dei-lhe dez mil liras na noite em que foi morta. Os meus motivos para o fazer não interessam. Na manhã seguinte, soube que tinha sido assassinada. Nem é preciso dizer-lhe que não fui eu quem o fez, mas dei-lhe o dinheiro possivelmente poucos minutos antes do crime. É óbvio, por conseguinte, que sou alguém por quem a Polícia se interessa.
- Porquê? - indagou. - Eles já apanharam o homem, não apanharam? Veio nos jornais.
- Apanharam-no, sim - disse eu. - Ele admite o roubo das dez mil liras, mas nega o crime.
Encolheu os ombros.
- Também eu negava - comentou. - Isso é com a Polícia. Por que se há-de preocupar?
Vi que tinha de lhe fornecer mais explicações. Falei-Lhe nas turistas inglesas e de como as levara à Polícia, sem dizer nada sobre o dinheiro dado, e em como partira para Ruffano no dia seguinte.
- Por que é que fez isso? - quis ela saber.
- Porque reconheci a mulher - respondi - e, para confirmar, vim investigar cá em Ruffano.
Terminou a bebida e, vendo que também acabara a minha, serviu-me outra. Os meus modos continuavam a ser casuais, mas mais precavidos do que anteriormente.
- Li no jornal que a mulher era aqui de Ruffano - disse. - Como é que a conhecia?
- Porque nasci cá - expliquei. - Vivi em Ruffano até aos onze anos de idade.
Fuzilou-me com o olhar do outro lado da mesa e depois, voltando a encher o copo, mudou-se para o divã, acomodando as almofadas por trás da cabeça.
- Tem estado a viver uma mentira durante a última semana, não tem? - quis saber.
- Bem lhe pode chamar isso.
- E agora é essa mentira que o está a encurralar?
- Não tanto a mentira, mas a omissão cometida ao não contar a verdade à Polícia, em Roma - respondi -, e o facto de acreditar que um dos agentes à paisana deles me reconheceu no funeral de Marta, na terça-feira. Seria muito difícil ele ter considerado a minha presença uma coincidência. Há uma hora atrás, esse mesmo agente estava a fazer perguntas no número vinte e quatro. Vi-o do outro lado da rua e vim para aqui.
Ela recostara-se nas almofadas, a soprar anéis de fumo para o ar.
- Coincidência ou não - disse -, de certeza que ele iria achar tal facto suspeito. Mas, se já apanharam o seu homem em Roma, por que se hão-de estar a incomodar por sua causa?
- Já lhe expliquei - retorqui. - O homem nega o crime. Podem tê-lo acreditado e as investigações continuarem quanto ao assassínio.
Reflectiu por um momento, depois voltou a fitar-me.
- E pode ser que também eu o acredite - declarou. Encolhi os ombros e dirigi-me para a porta.
- Nesse caso - disse-lhe -, será melhor ir-me embora. Você poderá denunciar-me à Polícia através do telefone.
Nesse momento o aparelho tocou. Achei que era o meu destino: o jogo estava terminado. Fez-me sinal com uma das mãos
para não me ir embora, depois ergueu o auscultador.
- Sim - respondeu -, sim, Giuseppe... Almoço? - deteve-se a fitar-me e a abanar a cabeça. - Não, é impossível. Vem cá gente. Uma estudante e a mãe, devem estar a chegar a todo o momento. Ontem à noite não sabia... só telefonaram esta manhã. Não sei, Giuseppe, não me é possível fazer planos... Talvez te telefone esta tarde para a biblioteca. Adeus. - Desligou a sorrir. - Isso acalma-o durante umas horas - declarou. - Você
está com sorte por ele ter telefonado e não ter entrado por aí dentro. Tínhamos combinado um possível almoço que, tal como viu e espero que tenha apreciado, eu acabei de recusar por sua causa. Oh, não se preocupe. Não teremos de sair. Faço-lhe
uma omeleta. - Balançou as pernas para fora do divã e alisou o cabelo.
- Nesse caso não acha que eu seja um assassino? - perguntei-lhe.
- Não - concedeu. - Francamente, duvido que tivesse coragem para matar uma mosca, muito menos uma mulher.
Foi para a cozinha e eu segui-a. Começou a mexer em frigideiras no fogão e a tirar pratos do armário. Sentei-me numa das cadeiras a vê-la. A minha confissão tinha tido o efeito duma purga. O nosso relacionamento pareceu subitamente melhorar.
- Parto do princípio que quer que eu o ajude a sair de Ruffano. - Concluiu ela. - Não seria difícil. Posso pedir outra vez o carro emprestado.
- Sair de Ruffano, não - contestei -, só subir a colina até uma casa da Via del Sogni.
- Então sempre tem um amigo que sabe tudo a seu respeito?
- Tenho - concedi.
Cantarolava baixinho enquanto partia ovos para uma malga, batendo-os depois com força.
- Importa-se de me dizer quem é? - pediu. Hesitei; já tinha depositado o meu destino nas mãos dela, e não via razão para comprometer o meu irmão.
- Não é preciso dizer-me... eu já adivinhei - declarou. Está a esquecer-se de que Ruffano é uma cidade pequena. A mulher-a-dias que vem cá diariamente vive perto de Todos-os-Santos e contou-me tudo sobre a mulher assassinada, já há alguns dias. A velha Marta viveu durante anos com a família Donati e cuidou de Aldo em menino. Você terá visitado aquela casa em criança e por isso é que se lembra dela?
O seu palpite era engenhoso. Também não era totalmente acertado, mas servia os meus propósitos.
- Na verdade, visitei - respondi-lhe.
Principiara a subir fumo da frigideira e ela despejou-lhe os ovos dentro.
- Nesse caso você foi contar a sua história ao Donati? perguntou. - E, em vez de o aconselhar a fugir, ele sugeriu-lhe que se mantivesse calado?
- Foi mais ou menos isso.
- Teria sido no domingo passado?
- Sim - admiti.
- Então foi você quem passou toda a tarde de domingo com o Donati?
- Fui - anuí de novo.
A omeleta estava pronta. Fê-la escorregar para um prato e trouxe-ma para a mesa.
- Coma enquanto está quente - mandou, puxando uma cadeira para si mesma.
Fiz o que me mandara, perguntando-me o que iria querer saber a seguir. Não disse nada enquanto eu comia, erguendo-se da mesa somente para trazer uma saladeira e uma garrafa de vinho. O seu sorriso era enigmático. Fiquei com curiosidade.
- Por que é que está a sorrir? - indaguei.
- A verdade iluminou-me - respondeu. - Já o devia ter adivinhado antes, quando o seu nobre amigo não se deu ao trabalho de responder à minha carta. Ele não se interessa por mulheres. Um amiguinho de brincadeiras regressado do passado era mais a seu gosto. Especialmente uma carinha de bebé como você.
Tratava-se de uma curiosa conjectura que ninguém apreciaria mais do que Aldo. Interroguei-me sobre se deveria negá-lo ou deixar passar.
- Ah, bem - prosseguiu ela -, a vida está cheia de surpresas. No entanto, dele é que eu nunca pensaria uma coisa dessas. Só serve para demonstrar como uma pessoa se pode enganar. Mesmo assim, é um desafio. Essas escapadas podem perder o sabor. - Espetou pensativamente o garfo na salada, fixando os olhos num ponto para além de mim. - Correu um boato engraçado entre os estudantes - proferiu divertida. - Esses ensaios no Palácio Ducal, à porta fechada... podiam ser um disfarce de qualquer outra coisa. Se eram, o Donati enganou-me bem, no sábado. Seria capaz de o seguir até à sepultura.
Continuei mudo. Fazer quaisquer comentários àquilo poderia ser desastroso.
- Soube que um estudante partiu o pescoço na noite passada? - perguntou.
- Ouvi uns rumores.
- Ainda não é uma notícia oficial, mas sê-lo-á em breve. Desafiou o recolher obrigatório e fugiu de uma patrulha. Pelo menos, é essa a história. Um rapaz da C. e E. " que andava no terceiro ano. É caso para perguntar qual será a reacção do grupo dele. Pode revelar-se a gota que faz transbordar o copo.
Levantou-se da mesa uma vez mais, regressando com fruta. Escolheu uma pêra e começou a mastigá-la, sem a descascar e com o suco a escorrer-lhe pelo queixo.
- Que quer dizer com isso da última gota? - inquiri.
- O ponto de ruptura entre o grupo deles e o nosso - afirmou. - A ser assim, que Deus nos ajude amanhã, quando o Donati mandar os seus actores para as ruas. Essa concessão que ele fez de convidar os estudantes da C. e E. para tomarem parte no festival não reconciliará as facções rivais, como ele pensa, mas terá, sim, o efeito contrário. - Riu-se e, chupando o pé da pêra até ficar seco, atirou os restos para o balde do lixo que se encontrava por baixo da pia. - O seu director das Artes não queria amar as mulheres - continuou a dizer -, mas uma coisa lhe posso garantir. A maioria das raparigas a quem tenho dado aulas nos últimos dias está decidida a não perder a batalha e, se a malta da C. e E. " lhes atacar os namorados, andará o Diabo à solta. Até tenho pena da Polícia.
Ergueu-se e aproximou-se do fogão, para aquecer café.
- Em qualquer caso - prosseguiu -, estarão muito ocupados para repararem em si. Ficará em segurança escondido na casa do Aldo Donati. Que tal são as instalações dele? Austeras ou não? Carpetas macias ou chão nu?
- Se quiser pedir emprestado o tal automóvel e me levar lá, pode ser que tenha uma oportunidade de ver por si própria - insinuei eu.
Tão depressa o disse como me arrependi. O Aldo já tinha bastante com que se preocupar sem Carla Raspa. Ainda assim, não via forma de chegar à Via del Sogni sem ajuda.
- É verdade - concordou ela com um sorriso. - Se eu lhe levar pessoalmente o seu amiguinho, o menos que o professor poderá fazer será convidar-me para entrar.
O telefone tocou de novo. Atravessou a sala de estar para o atender. Pus-me à escuta. Como todos os fugitivos, esperava que qualquer chamada telefónica se referisse a mim.
- Não, não, ainda estou à espera delas - proferiu em tom de impaciência, abanando a cabeça. - Algo deve tê-las retido, tu sabes bem como são os ajuntamentos nas ruas.
Pôs a mão por cima do bocal do aparelho e sussurrou-me para o outro lado da sala:
- Outra vez o Giuseppe. Pensa que estou à espera de visitas. - Destapou o bocal. - Tens uma reunião. Às duas menos um quarto. Compreendo. Na casa do reitor. Ele já voltou? Olhou para mim, excitada. - A propósito do acidente, naturalmente. Gostava de saber o que terá ele a dizer. Diz-me uma coisa, o professor Donati vai estar presente? Estou a ver... Bom, será melhor telefonares-me para cá quando terminar. Até logo. - Voltou para a cozinha a sorrir. - O Butali regressou - declarou. - Convocou uma reunião do Conselho da Universidade para as duas menos um quarto. Quando souber do que se passou na semana passada, vai ter outra trombose.
Foi ao fogão, voltando com o café. Consultei o relógio. Marcava uma hora. Atravessei a sala, para espreitar pela janela. O carro que tínhamos levado emprestado na terça-feira à noite estava estacionado lá em baixo.
- O Giuseppe não sabia se o Donati estaria ou não presente na reunião - disse Carla Raspa. - Não vejo interesse em levá-lo para casa dele, se não o pudermos fazer com todo o estilo, com o dono da casa presente.
- Deixe lá o estilo - contrariei. - O que é importante é levar-me para lá. Depois a sua responsabilidade estará terminada.
-Ah, mas eu não quero que ela termine - declarou. Houve um ruído de movimento no apartamento do andar de cima. Pessoas pesadas fizeram estremecer o tecto.
- O meu vizinho do carro - esclareceu Carla Raspa. Foi à porta, saindo para o patamar. A meio das escadas, gritou: - Walter? - O vizinho respondeu ao chamamento.
-Pode emprestar-me o seu carro por meia hora? - pediu.
- Tenho de ir a um sítio muito importante e não dá para ir a pé.
O vizinho de cima gritou qualquer coisa em resposta que eu não consegui entender.
- Oh, sim - afirmou ela -, devolvo-lho pelas duas e meia. Regressou à sala sorridente.
- Ele é muito obsequioso - disse-me -, mas, naturalmente, eu obrigo-o a sê-lo. Vai ver como compensa. Bebamos o café e vamos pôr-nos a mexer. Talvez apanhemos o seu ilustre namorado a almoçar.
- Acha que lhe telefone primeiro? - perguntei. Hesitou, depois abanou negativamente a cabeça.
- Não - decidiu firmemente -, ele pode recusar recebê-lo. Não quero perder a minha única oportunidade de pôr o pé lá em casa.
Não havia nada a fazer senão aceder. A minha esperança era que o meu irmão não estivesse e Jacopo me mandasse entrar. Bebemos o café e ela foi à casa de banho. Quando voltou, o cheiro a perfume era mais forte, a maquilhagem das sobrancelhas mais espessa.
- Pinturas de guerra - explicou de passagem. - Não que eu tenha muitas esperanças, mas nunca se sabe.
Espreitei pela janela, vigiando a rua. Não se via ninguém.
- Venha, estou pronto - disse-lhe.
Segui-a pelas escadas abaixo e saímos da casa. Abri a porta do carro para ela entrar, deixando-a instalar-se ao volante.
- Farei de motorista - declarou - e você pode sentar-se lá atrás. Se as ruas estiverem cheias de agentes da Polícia, uniformizados ou à paisana, não olharão para si, comigo ao volante.
O seu bom humor era contagioso. Pela primeira vez nesse dia tive vontade de rir. Pôs o carro em andamento e dirigimo-nos para a Via del Sogni. O nosso percurso foi errático, o seu estilo de condução não era de profissional mas era veloz. Por duas vezes quase atropelámos peões que tentavam atravessar as ruas em esquinas.
- Tenha cuidado - pedi -, senão a Polícia ainda vai também atrás de si.
Tomou o caminho mais longo, passando em torno da Via delle Mura, de forma a evitar ir dar à Via del Sogni, próximo
da casa do reitor. Não se via nenhum Alfa-Romeo à entrada do n. o 2 e eu soltei um suspiro de alívio. A minha companheira saiu do veículo e olhou em volta. Passei os olhos de relance pelo relógio. Era aproximadamente uma e meia.
- Vá à frente - disse ela -, e não pense que me pode deixar de fora. Eu vim para ficar.
Passámos juntos pela entrada. Toquei à campainha da porta da frente de Aldo, rezando para que Jacopo em pessoa respondesse. Foi o que aconteceu. Mas pareceu embaraçado ao ver-me e ainda mais, quando se apercebeu de que eu não estava sozinho.
- O professor não se encontra em casa - anunciou prontamente.
- Não tem importância - redargui. - Vou entrar e esperar por ele. Esta senhora é a menina Raspa. Prometi que Lhe mostraria o retrato que está na sala de estar... ela interessa-se por pintura.
Jacopo deu a impressão de ter ficado menos à vontade do que nunca.
- O professor Donati já tem um visitante à espera - começou a dizer, mas Carla Raspa, decidida a não ser posta de parte, roçou por ele e entrou a sorrir alegremente. - Então vamos ser três - disse.
Segui-a até à porta da sala de estar, tentando evitar que entrasse. Foi demasiado tarde. Já a tinha aberto. Havia uma mulher sentada no sofá que, quando nos viu, se semiergueu em
protesto; depois, reparando que nos dirigíamos para ela, deteve-se sem nada dizer.
Tratava-se da senhora Butali.
Não sei qual das duas mulheres ficou com um ar de maior espanto ou desconfiança. O ónus da situação recaiu sobre mim.
- Peço-lhe desculpa, minha senhora - intervim. - O professor Donati disse-me para vir cá e receio ter chegado antes de tempo. Permite que lhe apresente a menina Carla Raspa, que teve a bondade de me trazer?
O frígido sorriso pairou-lhe na face por um momento e depois desvaneceu-se. Os seus olhos estavam distantes, fitando Jacopo, para além de nós, numa muda censura.
- Boa tarde, menina - cumprimentou.
Carla Raspa, sendo a menos embaraçada, recuperou mais depressa. Adiantou-se com alguma impetuosa segurança, estendendo a mão.
- Nunca nos tínhamos encontrado - disse -, mas também não havia razão para isso, pois não? Embora partilhemos a vida da Universidade, vivemos em mundos diferentes. Eu sou um humilde membro da Faculdade de Artes, passando a maior parte do meu tempo a conduzir grupos de estudantes pelo Palácio Ducal. Espero que o reitor se sinta melhor.
- Muito obrigada - retorquiu a senhora Butali -, encontra-se melhor, mas ainda muito cansado. Só chegámos na noite passada, já tarde.
- Para encontrarem toda Ruffano em redemoinho, do qual a súbita morte de um estudante foi o auge - comentou Carla Raspa. - Que recepção! Lamento que a tenham tido.
O seu mergulho no tópico candente do momento foi inoportuno. A senhora Butali pôs-se rígida.
- O acidente foi de facto trágico - admitiu. - Mas não sei nada sobre quaisquer redemoinhos, nem o meu marido sabe.
A rapariga virou-se para mim com um sorriso.
- O professor e a senhora Butali estão com sorte - observou. - Você e eu fomos testemunhas de um acontecimento tumultuoso pelo menos. Mas talvez o venham a discutir na reunião. - Voltou a dirigir-se à mulher do reitor. - O bibliotecário, o senhor Fossi, é um bom amigo meu - explicou. Contou-me que iria haver uma reunião em sua casa às duas menos um quarto.
A senhora inclinou a cabeça. Comentar aquela afirmação devia ter-lhe parecido desnecessário. Seguiu-se um silêncio desconfortável. Jacopo, que se deixara ficar junto da porta, tinha agora desaparecido, deixando-me a mim a iniciativa. Olhei para o relógio.
- Não se esqueça de que o seu vizinho precisa do automóvel - recordei a Carla Raspa.
- Ainda é cedo - contestou ela. - Prometi devolver- lho pelas duas e meia. Que sala encantadora! - Avançou mais, olhando em volta, observando a decoração e o mobiliário com olhos ávidos. Aproximou-se do retrato do meu pai que estava pendurado na parede. - Suponho que este é o Donati mais velho, não é? - comentou. - Não é tão distinto como o filho e falta-lhe o encanto devastador do professor. Estes objectos devem ter vindo todos da antiga casa dele. Não é onde mora agora, senhora?
Lançou um olhar à senhora Butali que, mais que nunca assemelhando-se à dama do retrato do Palácio Ducal, fez novamente uma vénia, com uma altivez de florentina.
- É verdade - anuiu. - Tivemos muita sorte com as vizinhanças.
- Pergunto a mim mesma se o professor Donati não lamenta tal facto? - foi o comentário sorridente de Carla.
- Nunca o disse - ouviu como resposta.
A atmosfera gelada ameaçava tornar-se glacial. A senhora, que entrara primeiro na sala e era a mais velha das duas, continuava de pé. Mas a minha companheira, ignorou o protocolo e encavalitou-se no braço do sofá.
- E se o disse, limitou-se a insinuar - declarou, acendendo um cigarro e oferecendo outro à senhora Butali, que recusou com um aceno de cabeça. - Mas, no fim, há-de acabar por lhe tirar a casa por meio de magia. Ele tem olhos hipnóticos. Não concorda, Armino?
O sorriso que me dirigiu foi deliberado, o sopro de fumo provocador. A recordar-me aquilo que imaginava ser o relacionamento entre Aldo e eu e achando sem dúvida até divertida esta presente situação intrigante.
- Tem os olhos escuros - foi o meu comentário -, e ignoro que sejam hipnóticos.
- Os seus actores assim os acham, tanto os homens como as mulheres - continuou a rapariga, com um olho posto na senhora Butali. - Todos eles lhe são dedicados. Suponho que, como o resto de nós, humildes membros do pessoal da universidade, eles têm esperanças de que repare em cada um individualmente.
Houve outra pausa, depois, voltando a dirigir-se à esposa do reitor, ela proferiu:
- Não vai entrar este ano, minha senhora?... que pena! Fez uma bela duquesa de Ruffano no último festival, sob a so berba direcção do professor Donati.
A senhora mostrou reconhecer o cumprimento, mas nada mais. Senti a expressão de concordante atenção já apresentada pelo meu rosto tornar-se fixa.
- Os ensaios deste ano foram tão secretos - prosseguiu Carla Raspa, dominando agora a cena. - Conferências por trás de portas fechadas a todas as horas da noite. Nada de mulheres no elenco. Entrada nas reuniões abertas somente através de passe, dos quais eu tive a sorte de obter um do próprio director, levando comigo o Armino. Foi uma revelação, posso garantir-lhe. Mas com certeza que a senhora também terá assistido a um ou dois ensaios, não?
A senhora Butali, confiante na sua própria casa quando fazia o papel de anfitriã, parecia vulnerável sob aquele telhado que não era o dela. Até a sua atitude, de mãos crispadas na frente do corpo, sem luvas nem malinha - devia ter- se apressado a vir num impulso, para apanhar o meu irmão antes de ele se encontrar com o marido - tinha o seu quê de evasiva, de autodefesa.
- Receio não ter assistido - declarou -, não foi possível. Ultimamente tenho passado muito tempo em Roma.
Vi-a consultar furtivamente o relógio, num olhar de relance para baixo, e facilitado pela posição das mãos e, depois, com olhos pesarosos, fitar-me implorante. Não havia nada que eu pudesse fazer. A única esperança era que Aldo aparecesse e ele mesmo se encarregasse da situação. Eu não dispunha de autoridade para expulsar Carla Raspa da casa dele, nem a Butali. A nossa interlocutora, consciente do seu poder e não se ralando nada com a intrusão cometida em relação àquilo que constituía obviamente uma visita privada, interceptou o olhar da mulher e interpretou-o mal como sendo-me hostil.
- O professor Donati deve ter-se demorado - disse. Para o Armino isso, na verdade, não faz diferença, poderá esperar o resto da tarde se assim o desejar. Não pode, Armino?
- Estou ao dispor dele - afirmei.
- Isto aqui é um recanto tão agradável de Ruffano - prosseguiu Carla Raspa, acendendo mais um cigarro na ponta do primeiro. - Não há trânsito, intermináveis filas de estudantes a passar, nem vizinhos a espreitar quem entra ou sai. A sua casa é mesmo aqui a seguir, não é, minha senhora?
- Sim.
- Dá jeito ao professor Donati quando pretender consultar o reitor acerca de qualquer coisa. Mas claro que, como disse, a senhora tem estado em Roma.
A inflexão da voz dela era agora irónica. Mais uma simples alusão à proximidade de Aldo como vizinho do n. o 8 e recairia no insulto directo. Se o fizesse, perguntava a mim mesmo se a senhora Butali lhe retribuiria com mão pesada, ou se lhe ofereceria a outra face.
- Ainda bem para os seus alunos de música que pôde regressar a Ruffano aos fins-de-semana - continuou a voz da rapariga. - Um ou dois frequentam as minhas aulas e referem-se a si com muita gratidão. Não creio que muitos deles tivessem que faltar a uma só aula durante a sua ausência.
- A senhora Butali coloca o interesse de todas as outras pessoas acima do seu próprio interesse - comentei eu. - Até conseguiu dispor de um momento para tocar para mim na semana passada.
A intervenção não foi boa. Na verdade, aguçou o apetite de Carla Raspa.
- Os psicólogos dizem que tocar piano é uma terapia - observou -, permitindo livre curso às emoções. Concorda, minha senhora?
Os músculos faciais da sua vítima contraíram-se.
- Ajuda as pessoas a relaxarem-se - admitiu.
- Comigo não daria resultado - suspirou Carla -, embora consiga compreender um dueto. Aí, sim, existe estímulo. Já experimentou tocar duetos?
Desta vez a entoação foi indisfarçável. Feito no último domingo à noite, com nós os três, Aldo, a senhora Butali e eu próprio sentados à mesa, à luz das velas, tal comentário teria sido interpretado como um desafio ao jogo sexual em que todos estivéramos empenhados. Ela teria sorrido, aparando o golpe de ânimo leve. Hoje não. Isto era uma investida, tentando experimentar as suas fracas defesas.
- Não, menina - replicou. - Deixo esse género de coisas para as crianças. Os meus alunos estudam para obterem diplomas, para se habilitarem como professores.
Carla sorriu. Estava, percebi, a reunir forças para a estocada mortal. Era tempo de eu intervir. Mas, antes de o poder fazer, a porta da frente a bater assinalou uma chegada. Verificou-se um murmúrio apressado no vestíbulo da parte de Jacopo, uma exclamação - do meu irmão - depois um silêncio ominoso. A senhora Butali fez-se pálida. Carla Raspa apagou intuitivamente o cigarro. A porta abriu-se e Aldo penetrou no compartimento.
- Sinto-me extremamente honrado - declarou, com um tom de voz que advertia os seus visitantes de que não aguardava nenhum deles. - Espero que o Jacopo tenha tratado bem de vocês, ou já todos almoçaram? - Não esperou por uma resposta, mas atravessou a sala e beijou a mão da senhora.
Estava precisamente a caminho de sua casa e, ao deparar-se-me lá fora um carro que não reconheci, entrei para ver quem era.
- O carro é meu - anunciou Carla Raspa -, ou melhor, pedi-o emprestado para a ocasião. O Armino almoçou comigo e trouxe-o cá.
- Que amável da sua parte, menina - replicou Aldo. As colinas de Ruffano devem ser difíceis para as pernas de um guia de turistas. - Virou-se para a esposa do reitor, com uma atitude de idêntica indiferença. - Que poderei fazer por si, senhora? - perguntou. - A reunião convocada pelo reitor foi cancelada?
A longa espera e a conversa que se lhe sucedera, pareciam ter esgotado as energias da senhora Butali. Ocorreu-me que ela tinha sido incapaz de falar com Aldo pelo telefone desde a sua chegada de Roma, a não ser na presença do marido e que, dessa forma, era de facto o primeiro encontro deles desde sábado à noite. Os seus olhos procuravam os do meu irmão para lhe transmitirem um recado. A sua angústia era bastante evidente.
- Não - disse ela -, não foi cancelada. - Esforçava-se bravamente por encontrar palavras que não pudessem ser transformadas por Carla Raspa em alimento de má-língua por toda a Universidade. - Pretendia simplesmente consultá-lo, professor, sobre um assunto de pouca importância. Não a tem, de facto. Noutra ocasião, talvez.
A mentira era digna de dó. Se o tal assunto fosse tão pouco importante não teria esperado tanto tempo por ele. Aldo encarou-me. Devia estar a pensar por que razão eu não me tinha ido discretamente embora, levando a minha companheira comigo, no momento em que soube que a senhora Butali se encontrava sob o meu tecto.
- Desculpar-nos-á, menina, tenho a certeza - disse ele, olhando embaraçado para além de mim. - Licores, Beo, cigarros, tratas disso, está bem? Minha senhora, peço-lhe desculpa... Importa-se de vir por aqui?
Fez um gesto na direcção do vestíbulo e da sala de jantar.
A senhora Butali avançou e Aldo fechou a porta atrás deles. Dirigi-me ao tabuleiro das bebidas e servi a Carla Raspa um licor que ela não merecia.
- Comportou-se muito mal - censurei. - Agora nunca mais receberá nenhum convite para casa dos Butali.
Bebeu o seu licor de um só trago e estendeu o copo para ser servida de mais.
- Que foi que o Donati lhe chamou? - perguntou, com a curiosidade a revelar-se-lhe nos olhos.
- Beo - respondi -, o diminutivo de Beato, o abençoado.
Os seus olhos arregalaram-se ainda mais.
- Que comovente - murmurou. Depois, encaminhando-se na direcção da sala de jantar, para onde eles supostamente tinham ido, acrescentou: - A pobre senhora sabe disso?
- Sabe de quê? - perguntei.
- Acerca de si e do Donati?
Foi o diabo. As coisas tinham atingido um tal ponto que já tanto se me dava.
- Oh, sim - respondi -, nós somos muito abertos a esse respeito. Mas somente em relação a ela.
- Você espanta-me - disse Carla Raspa. Estava tão excitada que se ergueu, entornando a bebida. Enxuguei-a com o meu lenço. - Mas ela está louca por ele - exclamou a rapariga -, até uma criança era capaz de ver isso. Brada aos céus. Ela não se importa?
- Não - repliquei. - Por que havia de se importar?
- Uma mulher daquelas? Ansiosa por ser a única? Meu querido Armino! A não ser que... - Um mundo de possibilidades encheu-lhe o espírito. Imagens flutuavam diante dela. Livia Butali, Donati e você. Não é possível...
A cabeça andava-lhe à roda. Tirei-lhe o copo da mão e pousei-o no tabuleiro.
- Quererá agora ir-se embora? - implorei.
- Não - teimou ela -, pelo menos não antes de confirmar essa informação. O Donati terá de me expulsar a pontapé. Para onde foram eles, para o quarto de dormir?
Olhei para o relógio.
- Duvido - respondi. - São agora duas menos dez. Ele está cinco minutos atrasado para a reunião com o reitor.
- Não me vai dizer que o reitor também está metido nisso! Encolhi os ombros.
- Pode ser que esteja, tanto quanto eu saiba - redargui. Vozes vieram do vestíbulo, passando lá fora pela entrada. Depois, passado um bocado, Aldo regressou à sala.
- Quem está a seguir? - perguntou. - Gosto de entrevistar os meus clientes um por um.
Intervim, antes que ela pudesse falar primeiro.
- A Polícia esteve no número vinte e quatro da Via San Michele - informei. - Achei melhor refugiar-me no apartamento de Carla. Contei-lhe por que motivo.
- Também foram à biblioteca - replicou Aldo. - O Fossi telefonou-me. Foi isso que me atrasou. - Depois, voltando-se para Carla, acrescentou: - Obrigado por aquilo que fez. Este amigo podia estar em perigo. De momento, consegui despistá- los e ficará aqui a salvo comigo.
Carla, tendo atingido os seus objectivos e havendo enfrentado cara a cara o dono da casa, estava pronta para desistir de tudo o mais.
- Tive muito prazer em ser útil - admitiu francamente - especialmente por me ter proporcionado uma oportunidade de entrar finalmente na sua casa. Já o tinha tentado muitas vezes. Telefonei-lhe umas três vezes.
- Que azar! - murmurou Aldo. - Devia ter algum compromisso.
- Pois tinha - disse ela, olhando para mim -, com ele. Pegou na malinha e, pretendendo mostrar-se ao corrente
da situação que imaginava existir entre nós, comentou enfaticamente:
- Não fazia ideia nenhuma, professor, que o senhor e o Armino fossem amigos tão íntimos. O tiro falhou por muito o alvo.
- E temos obrigação de ser - esclareceu brevemente Aldo. - Ele é meu irmão. Ambos supúnhamos que o outro estava morto e há vinte e dois anos que não nos encontrávamos, até domingo passado.
O efeito foi surpreendente. Carla Raspa, que aceitara sem pestanejar a minha possível qualidade de assassino, corou que nem um tomate. Aldo tinha-Lhe acertado em cheio.
- Não sabia - disse. - Não tinha percebido... O Armino não me disse nada. - Olhava de um para o outro, subjugada e, de repente, para minha consternação, rebentou em lágrimas.
- Eu perdi os meus dois irmãos na guerra - contou. - Muito mais velhos do que eu, mas amava-os muito... Desculpem. Por favor, desculpem-me.
Cambaleou na direcção da porta, mas Aldo adiantou-se-lhe e, agarrando-a por um braço, fê-la virar-se e fitou-a no rosto.
- Até que ponto é que você se sente só? - inquiriu.
- Só? - repetiu, com as lágrimas a mancharem-lhe a maquilhagem, a sua pele, agora que o tom rosado desaparecera, suja de pinturas. - Eu não disse que me sentia só.
- Nem era preciso - retorquiu ele brutalmente. - De cada vez que se envolve com um homem diferente, proclama-o com o seu corpo.
Fiquei estupefacto com aquela súbita observação da parte do meu irmão. Carla Raspa, ao perder a compostura, revelara- se tão vulnerável à sua maneira, como a senhora Butali à dela. Por que é que Aldo não a poderia deixar ir em paz? Virou os olhos para ele e, miraculosamente, tudo se desfez. Todo o fingimento, toda a bravata.
- É tudo o que tenho - disse -, nada mais tenho para dar.
- E a sua vida? - interrogou ele. - Não a poderá também perder?
Largou-lhe o braço. Ela continuava a encará-lo. A maquilhagem que escorria tinha agora manchado ambos os olhos.
- Por si era capaz de a perder - declarou -, se mo pedisse. - Aldo sorriu e, baixando-se, pegou na malinha que lhe escapara das mãos trementes.
- Então é quanto interessa - concluiu.
Entregou-lhe a malinha, dando-lhe uma palmadinha no ombro. Passou-lhe um dedo pela face, mostrou-lho sujo de negro e soltou uma gargalhada. Ela sorriu em resposta e limpou-lho com o lencinho.
- Poderei exigir-lhe a sua vida amanhã no festival - asseverou o meu irmão -, por isso lembre-se do que me prometeu. Posso precisar que esteja no Palácio Ducal. Receberá instruções pelo telefone, em qualquer altura durante esta noite.
- Farei o que quiser, agora e sempre - afirmou a rapariga. Empurrou-a para a porta.
- Uma coisa é muito certa - disse -, se quiser morrer, não morrerá sozinha.
Ao sair para o vestíbulo, ela olhou-me por cima do ombro.
-Vê-lo-ei de novo, Armino? - quis saber.
- Não sei - respondi -, mas obrigado por me ter dado asilo.
- Voltou inquisitivamente os olhos para Aldo. Ele não lhe forneceu qualquer indicação sobre o que me esperava, e a rapariga passou pela porta para a rua. Através da janela aberta da sala em que nos encontrávamos, veio o débil som de San Donato a bater as duas horas.
- Tenho de me ir embora - disse Aldo -, já estou quinze minutos atrasado. Acabei de telefonar ao Cesare, a dizer-lhe que estás aqui. Ele e o Giorgio andaram a procurar-te toda a manhã.
Os seus modos eram abruptos, evasivos. Quer fosse pelos incómodos que eu lhe provocara, ou por quaisquer outros motivos, isso, eu não sabia. Era como se não lhe interessasse estar a sós comigo.
- Quando o Cesare vier, quero que faças como ele te disser - recomendou. - Estás a compreender?
- Não - repliquei -, não de imediato. Mas talvez compreenda quando ele aparecer. - Depois, hesitante, acrescentei: - Não sei se a senhora Butali te contou que fui a casa dela esta manhã.
- Não - respondeu ele -, não me contou.
- Conheci o marido - prossegui -, e tivemos uma conversa de alguns minutos enquanto a senhora se encontrava fora da sala. Durante essa conversa, referiu, e não te maçarei agora com pormenores, que tinha estado a receber chamadas telefónicas anónimas, no período em que esteve no hospital, em Roma. Quem ligava era uma mulher, fazendo alusões a ti.
- Obrigado - agradeceu Aldo. A sua voz permanecia inalterada. A sua expressão não mudara.
- Pensei - disse-Lhe pouco à vontade - que seria melhor avisar-te.
- Obrigado - agradeceu mais uma vez, virando-se para a porta.
- Aldo - continuei -, peço-te desculpa por tudo o que acaba de acontecer... a infeliz confrontação entre a senhora Butali e Carla Raspa.
- Infeliz porquê? - perguntou, detendo-se de mão na porta.
- Elas são tão diferentes. Não têm nada em comum.
Fixou o olhar em mim. Críptico, duro.
- Aí é que tu te enganas - afirmou. - Ambas pretendiam uma só coisa. Sucedeu que a Carla Raspa foi mais honesta nas suas afirmações.
Saiu da sala. Ouvi bater a porta da frente. A incerteza daquilo que ainda estava para vir abateu-se sobre mim, agora que já não me encontrava na sua presença.
Não queria estar sozinho. Procurei Jacopo, que estava prestes a sair para as suas próprias instalações do outro lado do átrio de entrada.
- Posso ir consigo? - perguntei a medo.
Pareceu surpreendido, depois agradado e acenou-me afirmativamente.
- Faça o favor, senhor Beo - acedeu. - Estou a limpar as pratas. Venha fazer-me companhia.
Atravessámos os seus domínios. Conduziu-me à sua cozinha privativa - um só compartimento a servir de cozinha e sala de estar, com janela para a Via dei Sogni. Era alegre, confortável, com um canário na sua gaiola, a cantar em acompanhamento a um rádio-transístor que Jacopo, por deferência para comigo, desligou. As paredes estavam cobertas por gravuras de aviões, cortadas de páginas de revistas e encaixilhadas. No centro da mesa encontravam-se peças de prata, facas, garfos e colheres, pratas e tigelas, em diversos estágios do seu processo de limpeza, algumas cobertas com uma pasta cor-de-rosa, outras já polidas.
Reconheci a maior parte. Peguei numa tigelinha e sorri.
- Esta é minha - declarei -, foi um presente de baptizado. A Marta nunca deixou que me servisse dela. Afirmava que era boa de mais.
- O capitão usa-a para o açúcar - esclareceu Jacopo -, serve-se dela sempre que toma o café da manhã. A que tem é demasiado grande.
Mostrou-me uma tigela maior que ainda não tinha limpo.
- Também me lembro dessa - disse-lhe eu. - Costumava estar na sala de jantar e a minha mão punha-Lhe flores.
Ambas as tigelas, a de Aldo e a minha, tinham as nossas iniciais gravadas: A. D.
- O capitão tem muito cuidado com todas as coisas da família - garantiu-me Jacopo. - Se qualquer peça de louça se parte, ou qualquer coisa se perde, o que não acontece muitas vezes, fica zangado. Nunca se desfez de nada que venha dos tempos antigos e do seu pai.
Pousei a tigelinha, Jacopo pegou nela e começou a limpá-la.
- É estranho - comentei - que ele seja assim respeitador das tradições.
- Estranho? - repetiu Jacopo surpreendido. - Garanto-lhe que não, senhor Beo. Sempre o conheci assim.
- Talvez - retorqui -, mas em rapaz era rebelde.
- Ah, os rapazes - exclamou o homem, encolhendo os ombros -, todos somos diferentes quando rapazes. O capitão vai fazer quarenta anos em Novembro.
- Sim - corroborei eu.
O canário começou outra vez a cantar. O som era natural, feliz.
- Estou preocupado com o meu irmão, Jacopo.
- Não precisa de se preocupar - redarguiu ele. - O capitão sabe sempre o que há-de fazer.
- Peguei numa camurça e principiei a polir a minha tigelinha.
- Mas não se modificou nada durante todos estes anos? perguntei.
Jacopo reflectiu, franzindo um pouco as sobrancelhas, enquanto se concentrava na sua tarefa.
- Está mais metido em si, talvez - declarou passado um momento. - Tem a sua maneira de ser, tal como eu tenho a minha. Não gosta nada que o incomodem quando se põe a pensar, solitário.
- E em que pensa ele?
- Se eu soubesse - replicou Jacopo - não estaria aqui na minha cozinha a limpar pratas. Seria como ele, membro do Conselho de Artes, a dizer às outras pessoas o que hão-de fazer.
Ri-me e deixei passar. O homem possuía uma certa sabedoria em bruto.
- Damo-nos muito bem os dois, o capitão e eu - declarou.
- Compreendemo-nos um ao outro. Nunca me meti nos assuntos dele, como a Marta fazia.
- Marta? - perguntei surpreendido.
- Não era só a bebida, senhor Beo. Ela, com o passar dos anos tornou-se possessiva. Era sem dúvida da idade que tinha. Queria saber tudo. O que o capitão estava a fazer, onde tinha ido, quem eram os seus amigos, quais eram as suas intenções. Oh, sim, isso e mais uma data de coisas. Eu disse ao seu irmão: Se algum dia eu ficar assim, dê-me logo um tiro. Eu hei-de perceber porquê. " Ele prometeu que assim faria. Mas não terá de se preocupar. Não acontecerá isso.
A minha tigelinha estava limpa. As minhas iniciais cintilavam. Jacopo entregou-me a de Aldo e comecei também a poli-la.
- Que foi que acabou por acontecer? - indaguei. - Ele expulsou-a de casa?
- Foi no passado mês de Novembro - respondeu o homem -, logo a seguir ao aniversário dele. Deu uma pequena festa para alguns estudantes da Universidade, fazendo de anfitriã uma senhora, a senhora Butali. - Fez uma pausa e depois acrescentou, supondo talvez estar a explicar-me algo que me poderia parecer surpreendente, até chocante: - O professor
Butali encontrava-se nessa altura numa conferência, em Pádua. E sem dúvida que a senhora se convenceu de que, sendo todos os convidados estudantes da Universidade do marido, nada haveria de mal em estar presente para os receber. Marta cozinhou o jantar e eu servia à mesa. A noite constituiu um grande sucesso. Os estudantes trouxeram as suas guitarras e cantaram; mais tarde o capitão foi levar a senhora a casa. Marta tinha estado a beber e não se deitou, insistiu em ficar a pé até ele regressar. O que se passou é coisa que ignoro, mas houve uma violenta discussão entre eles e, na manhã seguinte, emalou as suas coisas e partiu indo viver com os Ghigi.
- E Aldo? - quis eu saber.
- Aquilo aborreceu-o muito - admitiu Jacopo. Pegou no carro e foi sozinho para fora durante cinco dias. Disse que foi para a beira-mar. Quando voltou, comunicou-me em poucas palavras que não queria falar na Marta ou naquilo que se tinha passado, e mais nada. No entanto, continuou a sustentá-la e pagava-lhe a alimentação e o alojamento, segundo me contaram os Ghigi. A Marta também nunca lhes confidenciou o que tinha acontecido. Mesmo quando estava embriagada, o que acontecia quase sempre depois de ter saído de cá, nada lhes contava. Nem sequer mencionava o nome do capitão. Mas, sabe uma coisa, senhor Beo. Aquilo era ciumeira, nada mais nem menos do que puro e simples ciúme. As mulheres são assim. - Assobiou ao canário que, balançando-se no seu poleiro, de penas eriçadas, quase rebentava o pequeno coraçãozinho a cantar. São todas o mesmo - continuou -, quer sejam senhoras de posição como a senhora Butali, ou camponesas como a Marta. Procuram espremer um homem até ele ficar seco. Metem-se entre um homem e o seu trabalho.
Ergui a tigela de Aldo à luz. O meu rosto foi reflectido por cima das iniciais espiraladas. Perguntei-me o que estariam eles a discutir no n. o 8 da Via del Sogni e se, quando os chefes dos departamentos se fossem embora, o reitor conversaria a sós com o meu irmão, referindo, deliberada ou casualmente, as chamadas telefónicas anónimas.
Depois, subitamente, percebi. A mulher que tinha feito as ligações fora Marta. Por isso é que tinha ido para Roma. Marta, despedida por Aldo depois do jantar de aniversário em Novembro, ponderara e cismara durante as semanas e meses que seguiram, adivinhando talvez que, quando o professor Butali caiu doente em Roma depois do Natal, Aldo ficara mais íntimo da senhora, passando a encontrar-se mais vezes com ela, e tornando-se possivelmente seu amante. Marta, sentindo o seu amor e lealdade repelidos, com a mente a desintegrar-se pela bebida e o desespero, procurara vingar-se de Aldo, atraiçoando-o junto do reitor.
Pousei a tigelinha de prata e fui postar-me junto da janela, por baixo da gaiola do canário. As chamadas haviam agora cessado há mais de uma semana, segundo me afirmara o reitor. Agora, pela primeira vez em dez dias, desde que tudo principiara, sentia-me contente por Marta estar morta. A mulher que tinha morrido não era a mesma de que me lembrava. O álcool, como um veneno, tornara amargo o seu feitio caloroso. O seu último acto, como o de um animal doente, fora morder a mão do dono e, ao dar esse derradeiro passo, encontrara a morte à sua espera no fim.
Em certo sentido, era a paga pelo que fizera. A caluniadora fora silenciada, a serpente tinha morrido do seu próprio veneno... Por que motivo me havia eu de lembrar de repente das loucas máximas do Falcão, citadas pelo académico alemão na sua narrativa das vidas dos duques de Rufano? Os orgulhosos serão despidos... os altivos serão violados... os caluniadores serão silenciados, a serpente morrerá do seu próprio veneno. "
O canto do canário cessou, num derradeiro trinado apaixonado. Ergui os olhos para ele. A diminuta garganta ainda estremecia...
- Jacopo - proferi lentamente - quando foi a última vez que o meu irmão se deslocou a Roma?
Ele estava a dispor a prataria que tinha limpo e polido sobre um tabuleiro, para levar para os aposentos de Aldo.
- A Roma, senhor Beo? - repetiu. - Deixe-me ver, foi no domingo anterior ao último... farão duas semanas no domingo que vem, Domingo de Ramos. Foi a Roma na sexta-feira anterior, consultar uns manuscritos à Biblioteca Nacional e veio de carro para Ruffano na terça-feira à noite. Na quarta de manhã estava cá ao pequeno-almoço.
Jacopo dirigiu-se aos aposentos de Aldo transportando o tabuleiro e deixou as portas abertas. Sentei-me numa das suas cadeiras de cozinha, a olhar em frente. Aldo poderia ter morto Marta. Poderia ter passado de carro pela igreja, mesmo na altura em que o autocarro também passara e ter reconhecido a figura abrigada no pórtico. Poderia ter saído do carro, indo falar com ela. Talvez a mulher lhe tivesse então dito, bêbada e desesperada, aquilo que tinha andado a fazer. Ele poderia tê-la morto. Recordava-me da faca que tão rapidamente lhe surgira da manga na noite anterior, no Palácio Ducal, para cortar as cordas que prendiam as mãos de Marelli. Aldo podia também tê-la levado consigo para Roma. Podia ter assassinado Marta.
Ouvi passos junto da janela, no exterior da cozinha. Detiveram-se junto da porta dupla, regressando depois à entrada da casa de Jacopo. Uma voz chamou:
- Armino?
Era o estudante Cesare. Trazia vestido o meu sobretudo leve, tinha posto o meu chapéu e carregava a minha mala.
- trouxe-lhe as suas coisas da Via San Michele - anunciou. - O Giorgio e o Domenico entretiveram a senhora Silvani na sala de estar, insistindo com ela para dar uma contribuição para os fundos da Universidade. Não se apercebeu quando eu subi as escadas e fiz a sua mala. Estive lá menos de cinco minutos. Vim buscá-lo para o tirar de Ruffano.
Olhei-o sem compreender. As suas palavras eram destituídas de sentido. Por que motivo teria eu de sair de Ruffano naquele momento? Os pensamentos dos últimos minutos tinham-me deixado tonto.
- Desculpe - insistiu ele -, mas são essas as ordens de Aldo. Tratou de tudo esta manhã. Se o tivéssemos conseguido encontrar, mais cedo o teríamos levado para longe.
- Pensei que contavam comigo para entrar no festival, no papel do Falcão? - Já não respondeu.
- Eu tenho de o conduzir de carro a Fano e pô-lo a bordo dum barco de pesca. Está tudo arranjado. O Aldo não me explicou por que motivo.
O meu irmão trabalhara rapidamente. Se tinha tomado aquela decisão na noite anterior, quando nos tínhamos separado tão abruptamente, ou mais tarde, era coisa que eu não sabia nem, aparentemente, Cesare. Talvez nem fizesse diferença. A não ser pelo facto de Aldo se querer ver livre de mim.
- Muito bem - anuí -, estou pronto.
Pus-me em pé e ele entregou-me o sobretudo e o chapéu. Segui-o para fora da cozinha. Jacopo apareceu na porta dupla, trazendo o tabuleiro vazio. Cumprimentou Cesare com um aceno de cabeça.
- Tenho de me ir embora, Jacopo - disse-lhe eu. - Recebi ordens para o fazer.
O seu rosto permaneceu inescrutável.
- Vamos sentir a sua falta, senhor Beo.
Apertei-lhe a mão e ele regressou aos seus domínios. O Alfa-Romeo encontrava-se estacionado no exterior. Cesare abriu a porta e atirou a minha mala para dentro. Subi para o lugar do passageiro e saímos da cidade, na direcção da estrada de Fano.
Estava a partir, pela segunda vez em vinte anos, do meu lugar de nascença e do meu lar. Não, como então, a agitar uma bandeira inimiga mas, mesmo assim, como um fugitivo, evadindo-me por causa de um crime que não tinha cometido, actuando talvez - só Deus o sabia - em substituição do meu irmão. Daí o meu banimento, daí a minha fuga para Fano. Estava a deixar uma pista falsa, para longe de Ruffano, para longe de Aldo.
Observei a estrada em frente, deixando para sempre Ruffano, escondida pelo círculo de colinas, e a terra castanha à esquerda, coberta pelos pés de milho de crescimento rápido, assumia uma cor de açafrão como a túnica do Falcão. A estrada contorcia-se, surgindo depois o rio a seu lado para nos fazer companhia, esvaziando-se em breve, azul-esverdeado e límpido, nas margens do Adriático, já quentes com o sol de Abril. Quanto mais nos aproximávamos de Fano mais desesperado eu ficava, mais irado, mais perdido.
- Cesare - perguntei -, por que é que segue o Aldo? Que é que o faz acreditar nele?
- Não há mais ninguém que possamos seguir - respondeu o rapaz -, Giorgio, Romano, Domenico e o resto de nós. Ele fala uma linguagem que nós compreendemos. Ninguém antes o tinha feito. Nós somos órfãos e ele encontrou-nos.
- Como é que o encontrou a si?
- Através de inquéritos junto dos seus velhos camaradas da Resistência. Depois conseguiu-nos a permissão de admissão do Conselho da Universidade. Houve outros que se formaram e já partiram, devem tudo a ele.
O meu irmão fizera aquilo por mim. Fizera-o por me considerar morto. Agora, sabendo que eu estava vivo, mandava-me para longe.
- Mas se ele tem trabalhado todos estes anos para a Universidade e para os estudantes como vocês, que não podem pagar as propinas - insisti -, por que razão quer agora destruir tudo, lançando um grupo de estudantes contra outro, encenando estes elaborados logros, o último dos quais terminou com a morte de Marelli?
- Chama-lhes logros? - perguntou Cesare. - Nós não. Nem o Rizzio, nem o Elia. Eles aprenderam a ser humildes. Quanto ao Marelli, morreu por ter corrido. Os padres não lhe ensinaram isso na infância? Aqueles que procuram salvar a vida, morrerão?
- Sim - anuí -, mas isto é diferente.
- Será? - duvidou ele. - Não pensamos assim. Nem Aldo.
Estávamos a aproximar-nos das redondezas de Fano, das suas casas desabrigadas e impessoais como latas de biscoitos, espalhadas pela paisagem. Senti-me tomado por um tremendo desespero.
- Onde me vai levar? - perguntei.
- Ao porto - respondeu -, a um pescador, ex-resistente, chamado Marco. Irá para bordo do seu barco e ele desembarcá-lo-á, dentro de um ou dois dias, mais acima na costa, talvez em Veneza. Não precisa de se preocupar com nada. Aguardará posteriores instruções de Aldo.
Dependentes, ao que pensei, daquilo que transpirasse da Polícia e de a pista ter sido ou não perdida. Se um guia de turistas tinha ou não desaparecido eficazmente.
A baía arredondada estendia-se azul e a grande praia, branca como uma concha de ostra invertida, estava já pontilhada pelos vultos negros de turistas precoces. Fila após fila de barracas de praia estavam a ser pintadas para a estação. Faltava só mais uma semana para a Páscoa. A atmosfera suave cheirava a maresia. Para a direita ficava o canal.
- Cá estamos nós - anunciou Cesare.
Tinha travado diante de um café na Via Squero, na margem do canal, perto do sítio onde os barcos de pesca se encontra vam atracados. Um homem, de calças de ganga desbotada, com a pele enegrecida pelo mar e pelo sol, estava sentado a uma mesa fumando um cigarro, com um copo na sua frente. Ao avistar o Alfa-Romeo, pôs-se em pé de um salto e aproximou-se de nós. Cesare e eu saímos e ele entregou-me a minha mala, o chapéu e o sobretudo.
- Este é o Armino - apresentou. - O capitão manda os seus cumprimentos.
O pescador Marco estendeu uma mão enorme e apertou a minha.
- Seja bem-vindo - disse. - Terei muito prazer em o ter a bordo do meu barco. Deixe-me levar-lhe a sua mala e o sobretudo. Embarcaremos já a seguir. Estava só à espera de si e do meu maquinista. Entretanto, tome um copo.
Nunca, nem mesmo em criança, eu me tinha sentido tão completamente nas mãos do destino, que não podia comandar. Era como um embrulho, depositado na borda do cais antes de ser erguido por uma grua e mergulhado no porão de um barco. Penso que Cesare sentia pena de mim.
- Vai ficar bem logo que esteja no mar - afirmou. - Tem algum recado para Aldo?
Que recado poderia eu enviar, que viesse acrescentar algo àquilo que ele já devia saber: que o que eu neste momento estava a fazer era por causa dele?
- Diga-lhe - comuniquei - que antes dos orgulhosos serem despidos e dos altivos serem violados, a caluniadora foi silenciada e a víbora morreu do seu próprio veneno.
As palavras nada significavam para Cesare. O seu camarada Federico é que tinha traduzido a história alemã. Os manuscritos que o meu irmão consultara em Roma também deviam incluir as máximas do duque Claudio.
- Adeus - saudou ele - e boa sorte.
Subiu para o carro e, num momento, já tinha partido. O pescador Marco estava a observar-me com curiosidade. Perguntou-me o que queria beber e respondi-lhe que tomaria uma cerveja.
- Então é você o irmão mais novo do capitão? - perguntou-me. - Não é nada parecido com ele.
- Infelizmente - redargui.
- É bom tipo - prosseguiu o homem. - Lutámos juntos nos montes, lado a lado, escapámos ao mesmo inimigo. Agora, quando precisa de uma variação a todas as suas actividades, entra em contacto comigo e vem para o mar. - Sorriu e estendeu-me um cigarro. - Sacode a poeira - declarou - e todos os cuidados e problemas da vida na cidade. Verá que lhe sucederá o mesmo. O seu irmão tinha um ar doentio quando para aqui veio em Novembro passado. Cinco dias no mar, era no Inverno, recorde-se, e já se sentia recuperado.
O empregado trouxe a minha cerveja. Ergui o copo, desejando boa sorte ao meu companheiro.
- Isso foi depois do aniversário dele? - inquiri.
- Aniversário? Ele não falou em nenhum aniversário. Foi mais ou menos na terceira semana do mês. Eu tive um desgosto, Marco", foi o que me contou à chegada. Não me faças perguntas. Quero esquecer tudo. " Em qualquer caso, não tinha nada de mal fisicamente. Estava tão forte como nos velhos tempos e trabalhou como qualquer outro membro da tripulação. Sem dúvida que era outra coisa que o preocupava. Talvez uma mulher. - Ergueu o corpo em retribuição do meu brinde. - Boa saúde para si - desejou - e que também se veja livre dos seus problemas no mar.
Bebi a minha cerveja, pensando naquilo que Marco tinha dito. Era evidente que Aldo o procurara a seguir ao jantar de aniversário e à discussão com Marta. Ela devia tê-lo injuriado, bêbeda, como Jacopo afirmara, e ultrajada, como todos os camponeses que são profundamente religiosos e amarrados a códigos morais. Devia tê-lo acusado de ter principiado uma ligação com uma mulher casada, a esposa do reitor. A discussão teria irritado o meu irmão, razão pela qual expulsara Marta de casa. Mas por que motivo falara num desgosto?
Aproximaram-se passos e outro homem surgiu junto da mesa. Baixo e grisalho, estava ainda mais queimado do sol do que Marco.
- Este é o Franco - apresentou Marco -, o meu companheiro e maquinista.
Franco estendeu-me uma mão cabeluda como a pata de um macaco e coberta de gordura.
- Ainda faltam umas duas horas de trabalho - disse ao mestre. - Pensei que seria melhor avisá-lo, porque teremos de atrasar a partida.
Marco praguejou e cuspiu para o chão, depois virou-se para mim com um encolher de ombros.
- Prometi ao seu irmão que você estaria no mar alto de madrugada - disse. - Isso foi quando ele me telefonou esta manhã. A seguir, ao que parece, houve dificuldades em encontrá-lo. E agora o nosso motor tinha de nos dar problemas. Teremos muita sorte se desatracarmos pelas cinco. - Pôs-se em pé e apontou ao longo do canal, para onde os barcos estavam ancorados. - Vê aquele barco azul ali, com o mastro amarelo e a casa do leme ao centro? - perguntou. - É a nossa embarcação, o Garibaldi. O Franco e eu levaremos a sua mala para bordo e poderá ir ter connosco mais tarde, dentro de uma hora. Está bem assim, ou prefere vir já connosco?
- Não - respondi -, não. Ficarei aqui a terminar a minha bebida.
Afastaram-se ao longo da margem do canal e eu sentei-me no exterior do café, a vê-los subir para bordo. As instalações que me estavam destinadas para os próximos dias não me tentavam. Marco tinha razão em dizer-me que não me parecia nada com o meu irmão. Eu era um experimentado viajante terrestre, mas não aquático. Tinha-me desgraçado como guia de turistas, ao enjoar na baía de Nápoles diante dos meus clientes. A extensão chã e oleosa do Adriático também me parecia repelente.
Fiquei ali sentado a terminar a minha cerveja. Estava-se nas horas mortas do dia. Interrogava-me sobre se a reunião na Via del Sogni já teria acabado. Finalmente, levantei-me e vagueei sem destino ao longo da margem do canal mas, em vez de ir directamente para o barco, virei à esquerda na direcção da praia. Já se viam adoradores do Sol, despidos e estendidos de troncos nus ao ar livre. Crianças gritavam e chapinhavam na beira da água. As barracas, pegajosas com a pintura recente, alinhavam-se em filas, uma atrás da outra e, em frente delas, os chapéus-de-sol cor de laranja e vermelhos, brilhantes, alongavam as suas sombras por cima da areia refulgente. O desânimo abateu-se sobre mim. Não fui capaz de o afastar.
Um grupo de crianças de uniformes cinzentos e cabelo rapado à escovinha, escoltadas por uma freira, caminhavam a custo pela praia na direcção do mar. Apontavam para a água, com os rostinhos iluminados por estupenda surpresa e corriam para a freira, pedindo licença para tirarem os sapatos. Ela acedeu, de bondosos olhos a destacarem-se por trás de óculos de aros dourados.
- Devagar, meninos, devagar - aconselhou e, enquanto se baixava para reunir os sapatos deles, as saias enfunaram-se-lhe como um balão. Os miúdos, subitamente libertos, corriam de braços no ar para o mar.
- Sentem-se felizes - comentei eu.
- É a primeira vez que vêm à praia - respondeu a freira. Pertencem a orfanatos do interior e, na Páscoa, temos um campo de férias para eles aqui em Fano. Há outro em Ancona.
As crianças já tinham água pelos joelhos, gritavam e molhavam-se umas às outras.
- Eu não os devia deixar fazer aquilo - disse a freira -, mas pergunto a mim mesma que tem isso de mal? Eles têm tão poucas ocasiões para estarem alegres.
Um miudinho, tendo magoado o dedo do pé, rebentou em lágrimas e subiu a correr a praia na direcção dela. Pegou-lhe ao colo e confortou-o, tirou um penso rápido do interior do amplo hábito e aplicou-lho no dedo, mandando-o de volta para junto dos outros.
- É desta parte do meu trabalho que eu gosto mais - confidenciou-me a mulher -, de trazer as crianças para junto do mar. As irmãs das várias organizações fazem-no por turnos. Eu não preciso de me deslocar muito. Sou de Ruffano.
O mundo era pequeno. Pensei no sombrio edifício próximo do resplandecente Hotel Panorama.
- Do asilo - disse eu -, conheço-o. também sou de Ruffano, mas saí de lá há muito tempo. Nunca entrei lá.
- A casa precisa de reparações - informou ela - e podemos ter de nos mudar. Fala-se em nos instalarem em Ancona, onde morreu o antigo director da nossa casa.
Ficámos ali os dois a ver as crianças chapinharem no mar.
- São todos órfãos? - perguntei, pensando em Cesare.
- Sim, são todos órfãos ou abandonados nos degraus do asilo, poucas horas após o nascimento. Por vezes, a mãe está demasiado fraca para se deslocar para longe e nós encontramo-la, tratamos dela e da criança. Depois ela vai trabalhar, deixando o bebé connosco. Outras vezes, mas muito raramente, é-nos possível encontrar um lar onde ambos sejam recebidos. - Ergueu a mão e acenou às crianças para não se aventurarem demasiado longe. - Essa é a solução mais feliz - declarou -, tanto para a mãe como para o miúdo. Mas não existem muitas pessoas que ofereçam a sua casa a um abandonado, nos tempos que vão correndo. Ocasionalmente, um jovem casal que tenha perdido o seu primeiro filho à nascença e que nos venha procurar para lhe encontrar rapidamente um substituto, tratando a criança como se fosse sua. - Voltou-se para mim a sorrir mais uma vez por trás dos óculos. - Mas isso - prosseguiu - requer grande confidencialidade entre os pais adoptivos e o director do Asilo dos Abandonados. Os registos são conservados secretos para sempre. É melhor para todas as pessoas envolvidas.
- Sim - concordei -, suponho que sim.
Tirou um apito de um qualquer bolso de grande capacidade no interior das saias e soprou-o duas vezes. As crianças viraram as cabecitas e olharam-na, depois apressaram-se a sair da água e a correr para ela, saltitando como cachorrinhos.
- Está a ver? - disse ela a rir-se. - tenho-os muito bem treinados.
Consultei o relógio. Também eu estava bem treinado. Em breve seriam quatro horas. Talvez devesse procurar o meu caminho para bordo do Garibaldi e instalar-me lá.
- Se também é de Ruffano - interveio a freira - devia aparecer por lá um dia destes para ver os miúdos. Não são estes, naturalmente, mas aqueles de quem cuido no asilo.
- Muito obrigado - menti polidamente -, talvez o faça - e, depois, mais por cortesia do que por curiosidade, perguntei:
- Irá mudar-se para o novo Asilo de Ancona se decidirem construir no sítio onde estão?
- Oh, sim - respondeu -, a minha vida é junto das crianças. Há cerca de cinquenta anos também eu fui uma abandonada.
Acudiu-me um assomo de piedade. Aquele rosto simples e satisfeito nunca conhecera outra existência, outro mundo. Ela, e centenas como ela, tinham sido deixadas na soleira de uma porta para ficarem sujeitas à caridade.
- Em Ruffano? - perguntei.
- Sim - anuiu -, mas nesse tempo a vida era difícil para nós. As normas eram estritas, a vida espartana. Nada de férias na praia para os órfãos de então, a despeito da bondade do nosso director, Luigi Speca.
As crianças tinham chegado e ela reunia-as em torno de si, num semicírculo, tirando laranjas e maçãs de um saco.
- Luigi Speca? - repeti.
- Sim - concordou -, mas ele morreu há muitos anos, em mil novecentos e vinte e nove. Foi enterrado em Ancona, tal como já lhe disse.
Despedi-me dela e agradeci-lhe. Nem sei porquê. talvez Deus me tivesse iluminado. Talvez o raio de luz que me caía sobre o rosto enquanto me voltava para oeste e percorria a praia, para além das barracas dos banhistas, fosse aquele que cegou Saulo na estrada de Damasco. Repentinamente, compreendi. De súbito já sabia. A carta de meu pai e o duplo registo de baptismo tornaram-se-me claros. Aldo também tinha sido um abandonado. O filho deles morrera, Luigi Speca tinha-Lhes dado Aldo. O segredo, guardado durante quase quarenta anos, fora denunciado por Marta em Novembro. Aldo, orgulhoso da sua linhagem, orgulhoso da herança recebida, de tudo o que lhe era mais querido, soubera a verdade e guardara-a para si mesmo naqueles últimos cinco meses. Aldo é que tinha sido despido e violado, Aldo é que fora atingido no seu brio, não face aos amigos que não sabiam de nada, mas aos seus pró prios olhos. O mistificador tinha sido logrado. Ele, que tinha pretendido desmascarar a hipocrisia, tinha sido desmascarado.
Caminhei ao longo do canal, na direcção oposta ao barco, prosseguindo para a cidade. Os meus pertences encontravam-se a bordo do Garibaldi, mas nada significavam. Só tinha um pensamento em mente, que era chegar junto de Aldo. Algures em Fano deveria haver um comboio, um autocarro, que me levasse de volta a Ruffano. Amanhã era o festival e eu precisava de estar junto de Aldo quando o Falcão caísse.
Ao chegar à estação de autocarros, dei-me conta de que só tinha no porta-moedas duas mil liras. Devia ter ido naquela manhã à secretaria da Universidade receber o meu salário mas, devido à visita que fizera à senhora Butali e por causa de me ter escondido no apartamento de Carla Raspa, acabara por lá não ir. Lembrei-me também de que devia à senhora Silvani a minha pensão. Talvez Aldo tivesse pensado nisso.
Um carro para me levar a Ruffano custaria mais do que duas mil liras. Perguntei na bilheteira e fui informado de que o último autocarro para Ruffano partira às três e meia. Havia um prestes a partir para Pesaro, ao longo da costa, e uma vez que essa cidade ficava cerca de dez quilómetros mais próxima do meu destino do que Fano, tomei-o imediatamente. Como a estrada atravessava o canal, olhei para a direita, na direcção do porto, e pareceu-me ter visto o resistente Marco e o seu companheiro Franco a trabalharem no motor, à espera que eu me juntasse a eles. Quando vissem que não aparecia, iriam procurar-me na cidade, investigando nos bares e cafés. Depois Marco telefonaria a Aldo, contando-lhe que havia desaparecido.
Espreitei pela janela, tentando estabelecer planos de acção. Se Aldo matara Marta, tê-lo-ia feito não por ela ter ameaçado trair a sua possível ligação com a senhora Butali, mas por tencionar tornar público o segredo do seu nascimento. O director do Conselho de Artes de Ruffano não era filho dos Donati, mas sim um enjeitado, o menor dos cidadãos de Ruffano, e isso significava para Aldo uma insuportável humilhação e vergonha. O que eu pretendia fazer era garantir a Aldo que o compreendia. Que isso não me afectava. Ele era tão meu irmão agora como sempre tinha sido, tudo o que eu tinha era seu. Quando rapazinho, tinha-me amimado e atormentado, como homem feito tudo continuava na mesma. Mas sabia agora aquilo que nunca me fora dado a conhecer antes, que ele era vulnerável. Por causa disso, enfrentar-nos- íamos finalmente em termos de igualdade.
Os doze quilómetros até Pesaro foram rapidamente percorridos. Desci do autocarro e estudei o horário das partidas para Ruffano. Havia uma camioneta às cinco e meia. Só teria de esperar uma hora. Principiei a vaguear pelas ruas, cheias de peões, muitos dos quais turistas tão desocupados como eu, a verem as montras das lojas ou atraídos pelos encantos da praia que ficava para além da cidade. Soou-me aos ouvidos um guincho prolongado de buzinas, duas vespas, deram a curva próximo do passeio a meu lado e uma voz de rapariga chamou: Armino! " Houve assobios e gritos. Virei-me e ali estava Caterina e Paolo Pasquale sobre uma vespa, com ela sentada de lado, e a seu lado os dois estudantes da pensão, Gino e Mario.
- Apanhámo-lo - gritou Caterina. - Não nos pode escapar. Sabemos tudo a seu respeito: como se esgueirou pelas escadas acima, emalou as suas coisas e partiu sem pagar o que devia à senhora Silvani.
Desmontaram todos quatro e rodearam-me. As pessoas que passavam voltavam-se para ver.
- Escutem - disse-lhes eu -, posso explicar-vos...
- Será melhor que o faça - interrompeu Paolo. - Não pode tratar os Silvani dessa forma; nós não o permitiremos. Entregue-nos já o dinheiro, ou denunciá-lo-emos à Polícia.
- Não tenho dinheiro - respondi. - Tenho menos de duas mil liras.
Estávamos a bloquear a rua. Alguém que passava de automóvel gritou aos estudantes. Paolo fez um aceno de cabeça para Caterina.
- Segue-nos até ao Café Rossini. O Armino vai comigo na vespa". Lá dar-nos-á uma explicação. Gino e Mario, venham atrás de nós; vigiem-no para ele não tentar algum truque.
Não havia outra opção senão fazer como ele dizia. Discutir teria dado origem a mais sarilhos. Encolhendo os ombros, trepei para trás dele na vespa" e disparámos, no meio do trânsito, para a Piazza del Popolo, acabando por parar diante da colunata, sob o Palácio Ducal de Pesaro. Ambas as vespas
ficaram aí estacionadas e, com Paolo à frente e Gino e Mario de cada lado de mim, fui conduzido a um pequeno café-bar que ficava a poucos metros de distância. Entrámos e Paolo apontou para uma mesa próximo da montra.
- Ali estaremos bem - disse. - A Caterina ver-nos-á imediatamente.
Encomendou cerveja para todos, incluindo eu e, quando o empregado desapareceu, virou-se para mim, de braços cruzados sobre a mesa.
- Agora diga lá o que tem a dizer - mandou.
- Sou procurado pela Polícia - declarei. - Tive de fugir. Os três estudantes trocaram olhares entre si.
- Foi o que a senhora Silvani pensou - explodiu Gino. Alguém esteve lá a perguntar por si esta manhã, mas não explicou porquê. Dava a impressão de ser um polícia à paisana.
- Eu sei - corroborei -, localizei-o. Foi por isso que fugi. Foi também por esse motivo que não fui receber o que me é devido à secretaria e não pude pagar à senhora Silvani. Se vocês estivessem na minha pele teriam feito o mesmo.
Fitaram-me os três. O empregado chegou com as bebidas, pousou-as sobre a mesa e foi-se embora.
- Que é que fez? - quis saber Paolo.
- Nada - repliquei -, mas as provas contra mim são fortes. Na verdade, creio que estou a pagar as culpas por outra pessoa. Se for esse o caso, não mudarei de atitude. Acontece que o outro tipo é meu irmão.
Caterina chegou, despenteada e sem fôlego. Arrastou uma cadeira e sentou-se entre Paolo e eu.
- Que se passou? - perguntou.
Paolo explicou-lhe em poucas palavras. Ela fitou-me, por seu turno.
- Acredito nele - decidiu, passado um bocado. - Há uma semana que o conhecemos. Não é do género de fugir sem uma boa razão. Foi alguma coisa relacionada com a agência de viagens onde trabalhava antes de vir para Ruffano?
- Sim - respondi. O que, de forma distorcida, até era verdade.
Mario, que permanecera em silêncio até àquele momento, inclinou-se para a frente.
- E porquê vir para Pesaro? - interrogou. - Só com duas mil liras? Como é que planeava sair daqui?
Já não se mostravam truculentos e desconfiados. Gino ofereceu-me um cigarro. Olhei-os, reflectindo que eram da mesma geração que Cesare, Giorgio e Domenico. Todos jovens. Todos inexperientes. Por mais que diferissem no aspecto exterior, nos seus íntimos eram todos basicamente ávidos de aventura e de vida.
- Tive tempo para pensar nas últimas horas - disse-lhes. - Percebo agora que fiz mal em ter saído de Ruffano. Quero lá voltar. Ia tomar o autocarro das cinco e meia.
Observaram-me em silêncio, bebendo as suas cervejas. Penso que se sentiam intrigados.
- Porquê regressar? - indagou Paolo. - A Polícia não o irá apanhar?
- Talvez - concordei. - Mas já deixei de ter medo disso. Não me perguntem por que razão.
Não se riram nem zombaram de mim. Consideraram seriamente o meu caso, tal como Cesare e Domenico fariam.
- Não é coisa que possa discutir em pormenor convosco - garanti-lhes -, mas o meu irmão encontra-se em Ruffano, sob outro nome. O que aconteceu entre nós, se é que foi ele, e eu penso que sim, foi por causa do orgulho familiar. terei de o espremer. Terei de falar com ele.
Isto percebiam eles. Não fizeram mais perguntas. Um vivo interesse revelava-se-lhes nos rostos. Caterina, impulsiva, tocou-me no braço.
- Faz sentido - declarou -, pelo menos a meu ver. Se suspeitassem de mim por qualquer coisa que o Paolo tivesse feito, mesmo que tivesse de assumir a culpa em lugar dele, gostaria de conhecer os seus motivos. tem de existir honestidade entre pessoas ligadas pelo mesmo sangue. O Paolo e eu somos gémeos. talvez isso nos una ainda mais.
- Não são só laços de família - interpôs Gino -, laços de amizade, também. Eu era capaz de assumir as culpas por algo feito pelo Mario, mas primeiro teria de saber porquê.
- É isso que sente pelo seu irmão? - indagou Caterina.
- Sim, é isso.
Beberam a cerveja e depois Paolo disse:
- trataremos de que a senhora Silvani receba o dinheiro dela. Isso agora pouco interessa. O que é mais importante de imediato é fazê-lo chegar a Ruffano e, ao mesmo tempo, despistar a Polícia. Ajudá-lo-emos. Mas teremos de combinar um plano de acção.
A generosidade deles comoveu-me. Por que motivo teriam fé em mim? Não havia razão para isso. Não mais do que tinha havido para Carla Raspa me deixar esconder no seu apartamento. Eu bem podia ser um assassino, mas acreditaram em mim. Poderia ser um vulgar caloteiro, mas os estudantes confiavam em mim.
- Naturalmente - interveio subitamente Caterina. - O festival. Disfarçaremos o Armino como um de nós, os da insurreição, e desafio qualquer agente da Polícia a distingui-lo no meio de outros dois mil.
- Disfarçá-lo, como? - perguntou Gino. - Bem sabes que o Donati disse ao nosso grupo para se apresentar com as suas próprias roupas.
- É isso mesmo - insistiu ela -, em camisa, calças de ganga, camisolas, qualquer coisa. Olhem para o Armino. Esse fato de passeio, essa camisa, esses sapatos. Até se veste como um guia! Cortemos-lhe o cabelo de maneira diferente, vistamos-lhe uma camisa de cor e umas calças de ganga que ele nem se reconhecerá a si mesmo.
- A Caterina tem razão - afirmou Paolo. - Vamos levá-lo ao barbeiro mais próximo e mandar cortar-lhe o cabelo como se usa. Depois arranjamos-lhe numa loja qualquer coisa para vestir. Pagaremos a despesa a meias. Muito bem, Armino, guarde as suas duas mil liras, pode precisar delas.
tornei-me um boneco nas mãos deles. Saímos do café, Paolo pagou as bebidas e fui levado a um barbeiro que, daquilo que acreditara até então ser um elegante representante da Sunshine Tours de Génova me transformou num indistinguível frequentador das vielas. Tal transformação foi ainda mais acentuada quando mais tarde me escoltaram a uma loja de pronto- a-vestir barato e aí, por trás dum monte de artigos de saldo, me desfiz do meu fato bom - o outro encontrava-se na mala, a bordo do Garibaldi - e enverguei um par de calças de ganga pretas com um cinto de couro, uma camisa verde-jade, um blusão em imitação de couro e um par de ténis. As minhas roupas pessoais foram metidas num embrulho e entregues a Caterina, que me disse que eram horrorosas e que faria o que pudesse para as perder. Colocaram-me na frente de um espelho da loja e, suponho que principalmente por causa do corte de cabelo, tive dúvidas se mesmo Aldo seria capaz de me reconhecer. Parecia um emigrante acabado de chegar das praias americanas, já semibárbaro, só me faltando a faca de mato.
- Está tremendo - comentou Caterina, apertando- me a mão -, muito melhor do que antes.
- Agora até tem estilo - asseverou Gino. - Antes não tinha nada.
A sua atitude admirativa lisonjeou-me e desencorajou-me ao mesmo tempo. Se agora eu agradava ao seu gosto estético, que características em comum tínhamos nós? Ou estariam meramente a ser simpáticos?
-Demorar-nos-emos ainda mais um bocado - disse Paolo. - Não vale a pena chegarmos a Ruffano antes do anoitecer. A Caterina irá depois, de autocarro, e o Armino virá comigo. Acompanharemos a camioneta com as vespas". Vamos ver se o Palácio dos Desportos está aberto. Caterina, encontra- te lá connosco.
Uma vez mais montei atrás de Paolo e, durante as horas seguintes, desfrutei do duvidoso prazer de um feriado de estudantes. Corremos pela praia acima e abaixo, passámos pelos hotéis, subimos e descemos a Viale Trieste, umas vezes em competição com Gino e Mario, outras à procura de carros de turistas. Demos preferência aos cafés que tinham os rádios mais altos e os balcões mais apinhados, terminando num restaurante onde consumimos tigeladas de brodetto, a sopa de peixe temperada com açafrão, alho e tomate que a Marta costumava fazer-me quando era miúdo. Finalmente, quando já eram quase nove horas, levámos a Caterina, ainda carregada com as minhas roupas, a apanhar o autocarro, e escoltámo-lo, uma vespa" de cada lado, com muita irritação e fúria tanto do motorista como do revisor, de volta a Ruffano. Já não importava qual seria o destino que me esperava. Tinha deixado de me preocupar quando me encontrava na praia de Fano, umas cinco horas antes. Agarrava-me ao cinto de Paolo e, como penduras de autocarro, acelerámos e curvámos pelas colinas.
Ruffano, uma cidade celestial, erguia-se na nossa frente, com mil luzes a cintilarem, o Duomo e o campanário inundados de iluminação parecendo soltar uma radiação branca entre os dois cumes. Daqui, de leste, o Palácio Ducal estava oculto por outros edifícios, mas o pálido brilho contra o céu revelava a sua presença e a da Universidade junto dele, enquanto, briLhando do outro lado, nos cumes directamente na nossa frente ao dirigirmo-nos na direcção dos muros que rodeavam lá em baixo a cidade, se viam as luzes da minha antiga casa na Via del Sogni, onde os Butali deveriam encontrar-se a jantar.
De uma dessas janelas, impossível de distinguir entre as suas vizinhas, Aldo e eu havíamos contemplado em rapazes o vale, sentindo-nos superiores àqueles que viviam nas quintas, lá em baixo e, ao lembrar-me disso, firmemente agarrado ao cinto de Paolo enquanto nos aproximávamos da Porta Malebranche, ergui instintivamente os olhos para a fileira de luzes, uniformes e direitas, que se avistavam no asilo, no cimo da colina norte. Aí, nesse frio edifício desamparado, sem que ninguém o reclamasse, teria Aldo passado a sua infância, se não fossem o meu pai e Luigi Speca. Aí, metido numa bata cinzenta, de cabelo rapado à escovinha teria usado outro nome. Eu, filho único dos últimos anos prolíficos dos meus pais, teria sido baptizado Aldo, em vez dele.
tal pensamento era calmante, até purificante também teria sido uma pessoa diferente. Em vez de crescer à sombra de Aldo, receoso, intimidado, dócil às suas ordens, todo o curso da minha vida teria sido diferente. Passámos sob a Porta Malebranche e concluí que não teria sido nada outra coisa. Ele poderia não ser meu irmão, filho dos meus pais, mas desde o princípio que me possuía, corpo, coração e alma, e continuava a possuir-me. Era o meu Deus, e o meu Diabo também. Através de todos os anos em que o acreditara morto, o meu mundo tinha estado vazio, sem significado.
O autocarro deteve-se chiando no interior das portas da cidade. Paolo e eu, com a vespa, que nos acompanhava, disparámos na direcção do cume norte e da Piazza del Duca Carlo. Aí, na cena do episódio de terça-feira anterior, o duque Carlo, inundado de luz como então estivera, observava benignamente a multidão a seus pés. Estudantes e cidadãos de Ruffano percorriam a praça para a frente e para trás, e davam voltas ao jardim que rodeava a estátua. Os recém-formados com honras académicas exibiam-se, com medalhões pendurados em cadeias ao pescoço, como era da praxe, segundo Paolo me informou, aplaudidos e seguidos por colegas admiradores. Música enchia o ar: harmónicas de boca, apitos e guitarras. Pais orgulhosos observavam e vagueavam por ali com olhos indulgentes. As inevitáveis caixas de peditório tilintavam. Rebentavam bombinhas e cães fugiam a ganir. Dois carros percorriam lentamente a praça, enquanto as vespas, com a nossa entre elas, roncavam e estrondeavam em largos círculos.
- Que foi que eu lhe disse? - comentou Paolo quando dois carabineiros se cruzaram sonolentamente connosco, em uniformes imaculados. - Nem aqueles fulanos, nem uma dúzia de outros à paisana olharão para si. Hoje você é um de nós.
A maior parte dos estudantes reunira-se num ajuntamento de algumas centenas em frente à casa do professor Elia, gritando e chamando por ele:
- Elia... Elia... - cantavam e, então, por um breve momento, ele apareceu na porta da frente para Lhes acenar, provocando uma explosão de aplausos dos estudantes reunidos.
Agrupados atrás dele, encontravam-se os seus assistentes e membros do departamento, dando-me a impressão, enquanto ali se manteve a sorrir e a acenar, que alguma autoconfiança e coragem recuperara, ainda que não por completo. Uma momentânea hesitação quando, nos limites da multidão um invisível estudante gritou: Onde estão os seus sais de banho? " imediatamente seguido pelo rebentamento de uma bombinha e por uma revoada e involuntárias gargalhadas, sugeriu, enquanto o professor acenava um gesto final de adeus e se retirava, que a recordação de terça-feira à noite ainda o acompanhava.
- Quem foi que disse isso? - gritou Gino colérico, virando-se, com muitos outros, para a retaguarda da multidão de onde tinha partido o ultraje e de imediato se ergueu de todos um murmúrio: Foi um tipo das Artes, da outra colina. Apanhem-no, matem-no... Num instante, gerou-se a confusão, cabeças voltaram-se, o ajuntamento desfez-se, pessoas começaram a correr.
- Um cheirinho do que está para vir - comentou Paolo aos meus ouvidos. - Para que nos havemos agora de preocupar com isso? Amanhã apanhá-los-emos a todos.
Pôs mais uma vez a vespa, em movimento e Caterina surgiu-nos repentinamente do meio da multidão, atirou-se para a frente e subiu para o estreito espaço entre os manípulos do guiador.
- Venham daí - disse sem fôlego -, aguentará com todos três. Vamos ver o que se está a passar na outra colina.
Descrevemos a curva para sair da Piazza del Duca Carlo, seguidos por Gino e Mario, dirigindo-nos para a estrada circular no lado sudoeste de Ruffano, para além dos muros da cidade. Agora, a fachada do Palácio Ducal brilhava esplendorosa, as torres gémeas encimando-a, como se todo o edifício se encontrasse suspenso ali entre o céu e a terra, destacando-se a silhueta contra um dossel de estrelas. Descemos ao vale e subimos a colina sul mas ao atingirmos o cume para além da Residência dos Estudantes e dos novos edifícios da Universidade, vimos imediatamente que as estradas intermédias estavam bloqueadas. Um grupo de estudantes encontrava-se ali, não só em força, como também armados.
- Que se passa? Os tipos das Artes estarão a ensaiar? gritou Gino quando vimos o brilho de aço. Mas eles principiaram a descer a colina na nossa direcção, silenciosamente, sem gritarem e, quando Gino travou e apoiou um pé no chão para virar o veículo, uma lança assobiou voando pelo ar, vindo espetar-se no solo à nossa frente.
- Avancem por vossa conta e risco! - bradou uma voz.
- Meu Deus - gritou Paolo -, não é ensaio nenhum! E, travando como Gino fizera, deu a volta, um segundo antes de outra lança ter seguido a primeira.
Mergulhámos de regresso no caminho por onde tínhamos vindo, descemos ao vale, atravessámos os muros da cidade, detendo-nos no lado oposto, onde desmontámos, ficando a olhar uns para os outros, enquanto o distante Palácio Ducal, inundado de luz brilhava imperturbável e sereno. todos quatro tínhamos as faces brancas. Caterina estremecia, mas de excitação, não de medo.
- Agora já sabemos - concluiu Gino, respirando rapidamente. - É aquilo que têm de reserva para amanhã.
- Fomos avisados - interveio calmamente Paolo. - O Donati advertiu-nos no teatro, na segunda-feira à noite. É tudo uma questão de quem bate primeiro, nada mais. Se nós lhes atingirmos a vanguarda com pedradas e a rompermos, poderemos encurralá-los e lutar corpo a corpo antes de eles terem tempo de atirar as lanças e ou servir-se das espadas.
- Tanto faz - disse Mario -, precisamos de avisar os nossos chefes daquilo que vimos. Não têm hoje uma reunião na Via del Martiri? - têm - confirmou Gino.
Paolo dirigiu-se a mim:
- Esta luta pode não ser sua, mas agora faz parte do nosso grupo. Que há quanto ao seu irmão? Está ligado à Universidade?
- Indirectamente - respondi.
- Nesse caso será melhor avisá-lo daquilo que o esperará se sair à rua amanhã.
- Creio que ele já sabe - redargui. Caterina batia os pés de impaciência.
- Para que estamos a perder tempo a conversar? - perguntava. - Não acham que deveríamos passar palavra entre os do nosso grupo? - A sua cara pequena, apaixonada e branca, parecia estranhamente distorcida sob o tufo de cabelo. - Nenhum de nós devia deitar-se esta noite - afirmou. - Precisávamos de trazer os outros para o campo, para arranjarmos pedras. Dentro da cidade nunca se encontram. Terão de ser de formato irregular e deste tamanho - prosseguiu, formando um círculo com as mãos - e amarradas a cordas, para as podermos balançar com mais força.
- Catte tem razão - apoiou Gino. - Ponham-se a mexer. Primeiro vamos à Via del Martiri contar aos chefes... eles podem querer dar instruções novas. Vens, Mario?
Saltou para o veículo, com Mario atrás, e tomou a estrada para a Porta del Martiri.
Paolo olhou para mim.
- Bem - perguntou -, e agora? Quer que o levemos ao seu irmão?
- Não - respondi.
Tinha tomado uma decisão. Regressar à pensão de nada me serviria. Aldo até podia entregar-me aos seus estudantes, com ordens para me voltarem a conduzir a Fano. Enquanto amanhã... Amanhã o cortejo do Falcão sairia da Piazza del Duca Carlo às dez em ponto. Ignorava em que consistiria. Ninguém parecia saber. Mas Aldo integrar-se-ia nele, disso tinha eu a certeza.
A noite estava quente. O blusão de couro comprado em Pesaro bastava-me como protecção. Passaria a noite ao ar livre, num dos bancos do jardim público, por trás da Piazza del Duca Carlo.
Quando comuniquei isso a Paolo ele encolheu os ombros.
- Se é assim que quer não o impediremos - declarou -, mas lembre-se que terá de se juntar a nós pela manhã. Estaremos nos degraus de San Cipriano. Se não se encontrar no seu lugar pelas nove, poderá ser detido. Pegue nisto - entregou-me uma faca. - O Gino arranja-me outra. Depois do que vimos esta noite, vai ser-lhe precisa.
Caterina e eu subimos mais uma vez para a vespa, e voltámos a percorrer o caminho para a colina norte. Os grupos tinham-se reduzido. Pessoas da cidade e estudantes, parentes e turistas de visita, estavam a encaminhar-se para o centro da cidade. Disporia do jardim público só para mim.
- Não se esqueça - advertiu Caterina - de encher os bolsos com pedras. Aí encontrará muitas debaixo das árvores. E tome lá o seu embrulho. Servir-lhe-á de travesseiro. Amanhã procurá-lo-emos, e boa sorte.
Vi-os dar a curva para descerem a colina e desaparecerem de vista e, enquanto se afastavam, as luzes foram apagadas por todo o lado sem aviso. A estátua do duque Carlo transformou-se numa sombra. O campanário do Duomo deu as onze. Seguiram-se-lhe as igrejas da cidade, uma a uma. Ao soar da última nota estendi-me sobre um banco do jardim, servindo-me do embrulho como travesseiro e, de braços cruzados, fiquei a contemplar o céu que escurecia.
Não me recordo de ter dormido. Houve só lapsos de tempo entre períodos de frio. Numa determinada altura, pus-me a andar de um lado para outro a soprar nas mãos, tão rígidas e entorpecidas que quase fui procurar abrigo no comparativo calor do pórtico da casa do professor Elia, mas não o fiz porque a minha vigília ao ar livre era, de uma estranha forma uma espécie de teste. Aldo tinha-o feito no passado, noite após noite, entre os seus resistentes. Romano, Antonio, Roberto... os rapazes criados nos montes durante os anos da Resistência, assim tinham vivido em crianças, mas não eu. A mobília ordinária de hotéis de segunda classe, não as montanhas, é que faziam parte do meu passado. O meu tecto era o de um quarto apertado e confinante, num apartamento, não o céu. Os adultos que me tinham estragado com mimos para ganharem os favores da minha mãe falavam uma língua estrangeira. Os seus uniformes cheiravam mal, não a suor e a terra lavada como as roupas amarrotadas dos resistentes, mas a vinho entornado na véspera, a transpiração que brotara na luxúria em vez de escorrer na guerra. Aldo e os seus camaradas, os órfãos e os outros, tinham o solo duro por leito ou, na melhor das hipóteses, um saco de dormir, enquanto eu me deitava coberto por edredões e cobertores, num pequeno quarto junto do da minha mãe, atrás das paredes finas; e os ruídos que ouvia na noite nunca eram os dos montes, nem o ressoar das tempestades, só suspiros de prazer.
Por conseguinte, pelo menos hoje, partilharia em fantasia a beleza e a dureza de uma realidade que não tinha conhecido. Contudo, embora entontecido, essas sensações faziam de mim parceiro de eventos que tinham passado. A rigidez dos meus membros transformou-se numa oferenda, o frio sentido pelo meu corpo num sacrifício.
Como referi, verificaram-se lapsos no tempo entre o sono
e o despertar e, então, quando a temperatura se tornou mais
baixa, acordei e fui postar-me junto do portão do asilo, vendo o dia a nascer sobre Ruffano. Os primeiros alvores foram acinzentados e frios, um fantasma de alvorada, um temporário abrandar das sombras da noite e depois o céu robusteceu-se, tornou-se branco e a cidade amortalhada pôs-se cor-de-rosa. O sol ergueu-se por cima das colinas adormecidas. Flechas douradas romperam os vales uniformes, depois atacaram as janelas fechadas da cidade. As árvores do jardim municipal sussurraram e os hesitantes pássaros, despertando para um novo dia, mexeram-se e murmuraram, cantando quando a luz se tornou mais forte e o sol os tocou.
Dia após dia, na minha infância, eu acordava com a voz de Aldo, ou com Marta a chamar da cozinha, nunca desta maneira. Nesses tempos tinha uma sensação de segurança e certeza, a manhã prometia-me a eternidade. Agora, enquanto o sol transformava em espadas as espirais da cidade e o arredondado Duomo numa bola de fogo, apercebi-me de que não existia promessa de eternidade, mesmo que esta não fosse mais que a repetição de um milhão de eras passadas, sem cuidados e sem morte. Era o seu epitáfio. tinham criado beleza e isso bastava. Haviam vivido por um breve instante, antes de arderem e morrerem.
Perguntei então a mim mesmo por que motivo haveríamos de desejar mais, porque teríamos de ansiar por nos perpetuarmos em qualquer paraíso para sempre duradoiro. O Homem era Prometeu, amarrado à sua rocha simbólica, a terra, com todas as outras estrelas por descobrir a envergonharem a escuridão. O desafio era ousar. ter a coragem de arriscar a extinção.
Permaneci ali de pé, observando o sol a trazer calor e vida à minha cidade de Ruffano. Pensava não só em Aldo, como também em todos aqueles estudantes, agora adormecidos, que dentro de poucas horas andariam a lutar nas ruas. Este festival não era uma encenação nem uma manifestação de pompa, nem mesmo uma representação fingida de esplendor medieval, mas sim um incitamento à destruição. Já não o podia impedir,
da mesma forma que um homem solitário não poderia impedir uma guerra. Ainda que surgisse no último momento uma ordem para cancelar o festival, os estudantes não a respeitariam. Queriam lutar. Queriam matar. Tal como os seus antepassados haviam feito através dos séculos nas mesmas amaldiçoadas e sangrentas ruas. Desta vez eu não deveria procurar escapar, seria um deles.
Eram aproximadamente sete horas quando comecei a ouvir cavalos. O firme bater das ferraduras vinha da praça atrás de mim e, voltando-me, encaminhei-me para junto da estátua, para ver a fila da frente a atingir o cume da colina. Vinham aos pares, cada cavaleiro conduzindo um segundo cavalo e aproximavam-se, vindos da longa estrada que ligava Ruffano ao vale lá em baixo.
Recordei-me então de como, na noite anterior, quando andávamos a circular nas vespas", avistara luzes no estádio à nossa direita, que, com a excitação das nossas correrias, em breve esquecera. Os cavalos e os seus acompanhantes deviam ter acampado lá antes do pôr do Sol e estavam agora a chegar à praça, para tomarem parte na exibição. Era este o cortejo referido por Aldo no Palácio Ducal, na noite de quarta-feira.
Os cavaleiros desmontaram, conduzindo os seus cavalos para o abrigo das árvores. O sol evaporava a humidade do solo, fazendo-a erguer-se como fumo do relvado ensopado em volta da estátua do duque Carlo e enchendo o ar da manhã com um perfume a feno.
Aproximei-me e contei os animais. Eram dezoito, elegantes e belos, com as suas cabeças orgulhosas a levantarem-se curiosas para olhar em volta. Nenhum deles se encontrava selado. As garupas brilhavam como se tivessem sido polidas e as caudas, sacudindo as primeiras moscas do dia, pareciam altivas plumas de conquistadores. Dirigi-me a um dos homens.
- De onde é que os trouxeram? - indaguei.
- De Senigallia - informou.
Olhei-o, descrente.
- Quer dizer que são cavalos de corrida? - perguntei.
- São - respondeu o homem a sorrir -, todos eles. Alugados para o festival, cada cavalo especialmente treinado para esta exibição. Têm andado todo o Inverno a treinar nos montes.
- A treinar para quê? - inquiri.
Desta vez foi ele quem me fitou surpreso.
- Ora, para a corrida desta manhã, para que mais podia ser? - disse. - Então não sabe o que se vai passar na sua própria cidade?
- Não - respondi -, não sabia. Tudo o que nos disseram foi que o cortejo parte daqui às dez horas, na direcção do Palácio Ducal.
- Um cortejo? - ecoou ele. - Bem, poderá chamar-Lhe assim, mas é uma pobre descrição daquilo que vocês vão ver. Soltou uma gargalhada, chamando um dos companheiros. - Está aqui um estudante de Ruffano - disse o homem - que quer saber o que vai haver. Conta-lhe com cuidado.
- Saia da frente - avisou o segundo homem -, é tudo o que tenho para lhe dizer. Os cavalos estão no seguro, só isso é que interessa aos proprietários. - E depois acrescentou: - Já foi tentado, segundo nos disseram, há uns quinhentos anos atrás, e nunca mais foi repetido desde então. Na sua cidade devem andar a criar doidos. Mas se algum partir o pescoço o problema é dele, não nosso. Olhe para isto.
Uma carrinha tinha parado na parte lateral da praça e o homem que vinha ao lado do condutor saltou dela, abrindo as portas da retaguarda. Estenderam uma rampa e depois, com grandes cuidados, dois homens a segurarem a lança e outros dois nas rodas, baixaram um pequeno veículo pintado de vermelho e dourado. Era uma réplica perfeita de um carro romano e tinha, na frente e por cima de cada roda, a insígnia de Malebranche, o Falcão de asas abertas.
Então sempre era verdade. O louco, fantástico feito tentado pelo duque Claudio há mais de cinco séculos iria agora ser repetido. As páginas da história alemã que eu citara zombeteiramente a Aldo no sábado anterior, sem pensar por um só momento que qualquer representação do evento viesse a ser mais que uma encenação teatral, com talvez uns dois cavalos - e que ele próprio referira na quarta-feira como um simples cortejo - seriam transpostas para a realidade. O duque Claudio havia conduzido dezoito cavalos da colina norte para a colina sul. Neste momento encontravam-se dezoito cavalos na minha frente. Não era possível. Não poderia ser. Procurei recordar- me o que dizia a história: Ele foi odiado e perseguido por quase toda a populaça, depois de ter esmagado muitos deles até à morte, sob os cascos dos seus cavalos. "
Agora uma segunda carrinha chegava à praça, mais pequena do que a primeira, dela sendo tirados arreios, tirantes, cabeçadas ornamentadas com pregos de cabeça larga com a efígie do Falcão, sendo transportados para debaixo das árvores, para o local onde se encontravam os cavalos; o cheiro a couro polido, acre como o de especiarias, misturou-se com a morna carne dos animais e o aroma das árvores.
Os tratadores dos animais principiaram a separar os arreios e outros objectos, calmamente, metodicamente, tagarelando entre si. A própria ordem daquilo que via, a ausência de confusão, como se o que estavam a fazer fizesse parte de uma habitual rotina matinal, tornava tudo mais fantástico e, à medida que o sol se erguia mais alto e o horror do que iria passar-se se tornava mais iminente, experimentei uma espécie de terror que invadia todo o meu ser. Começava-me na garganta e apertava-me o coração, paralisando-me ao mesmo tempo o pensamento. A audição tornou-se-me mais aguda. Cada som era amplificado. Os sinos da igreja tocaram para a primeira missa às seis, depois de novo às sete e às oito. Pareciam, à minha imaginação agora em torvelinho, a chamada para o holocausto da cidade, até eu me recordar que estávamos na semana da Paixão e que a sexta-feira era dedicada à Mãe de Deus. Quando éramos miúdos, Marta levava-nos a San Cipriano, para depositarmos montes de flores silvestres aos pés da imagem que, na sua beleza velada, simbolizava as sete dores que lhe tinham apunhalado o coração. Tinha nesse tempo a impressão, enquanto me ajoelhava desnorteado, que a Mãe desempenhava um triste papel na história do seu Filho, primeiro convencendo-o a transformar a água em vinho, mais tarde mantendo-se junto da família, na retaguarda da multidão, a chamar por Ele em vão, sem receber resposta. talvez fosse essa a sétima dor que a derrubara e que os padres das igrejas de Ruffano estavam agora a comemorar. A ser assim, teriam feito melhor se esquecessem as dores de uma mulher e saíssem para as ruas, para evitar um assassínio em massa.
Agora estava a formar-se em torno da praça um cordão de polícias uniformizados, para afastar o trânsito e os passeantes matutinos. Sorriam e brincavam, de bom humor para aquele dia de festival e, de vez em quando, gritavam em voz alta risonhas instruções aos tratadores, ocupados a ajaezar os cavalos.
A cena de pesadelo tornou-se mais vívida, mais aterradora. Nenhum deles sabia, nenhum deles entendia. Dirigi-me a um dos polícias, tocando-lhe no ombro.
- Não será possível pararem com isto? - perguntei. Não se poderá evitar? Ainda não é demasiado tarde, mesmo agora.
Baixou os olhos para mim, um tipo grande e bem-disposto, limpando o suor das sobrancelhas.
- Se dispõe de um lugar numa janela ao longo do percurso, vá para lá - aconselhou. - Depois das nove não haverá ninguém nas ruas, a não ser os actores.
Não tinha ouvido nada do que eu lhe dissera. Não estava interessado. A sua função era garantir que a praça ficasse livre para os cavalos e o carro. Afastou-se. O pânico envolveu-me. Não sabia onde ir, o que fazer. Deve ser este medo que assola os homens antes da batalha, quando somente a disciplina e o treino os poderão salvar. Eu não possuía tal disciplina, nem tal treino. O desejo de uma criança de fugir, de se esconder, de se furtar à visão e à audição predominava no meu espírito. Comecei a correr na direcção das árvores do jardim municipal, pensando que, se me atirasse de cabeça para o meio dos arbustos e da relva, o mundo não se apagaria. Então, enquanto corria desatinadamente para a mancha de cor constituída pelos cavalos e seus tilintantes arreios, pelo carro alegremente pintado e pelos descuidados tratadores, vi o Alfa-Romeo chegar à praça. O condutor também me devia ter visto, porque o automóvel travou subitamente e deteve-se, levando-me a modificar o curso da minha inútil corrida em pânico, para me dirigir a ele. A porta abriu-se e Aldo saltou para fora, segurando-me quando eu ia a cair.
Pôs-me em pé e agarrei-me a ele, balbuciando, incoerentemente:
- Não deixes que isso aconteça - ouvi a minha própria voz pronunciar. - Não permitas que isso continue, por favor. Meu Deus, não...
Ele bateu-me e o esquecimento pelo qual eu ansiara chegou. A dor trouxe consigo a escuridão e o alívio. Quando abri os olhos, tonto e enjoado, senti vertigens. Dei por mim encostado a uma árvore. Aldo encontrava-se agachado junto de mim, a dar-me café a beber pela tampa de um termo.
- Bebe isto - mandou - e depois come alguma coisa. Deu-me a chávena e eu bebi. Depois partiu um pãozinho em duas metades e forçou-me a metê-lo na boca. Mecanicamente, fiz o que me mandavam.
- Desobedeceste às ordens recebidas - disse ele. - Se um resistente fizesse isso, abatíamo-lo imediatamente a tiro. Se o encontrássemos, é claro. De outra forma, deixávamos que apodrecesse sozinho nos montes.
O café aquecera-me. O pão seco estava estaladiço e sabia bem. Devorei um segundo pãozinho, depois um terceiro.
- O facto de teres desobedecido a essas ordens colocou em perigo outros homens - prosseguia ele. - Perdeu-se tempo. Houve planos que foram estragados. Vá, bebe mais.
Os preparativos continuavam em torno de nós, os cavalos escarvavam o chão, os arreios tilintavam.
- O Cesare transmitiu-me o teu recado - disse o meu irmão. - Quando o recebi, telefonei para o café de Fano e pedi- Lhes que dissessem ao Marco para ligar para mim. Logo que me informou de que tu não tinhas comparecido no barco, adivinhei que algo deste género poderia suceder. Mas nem me passou pela cabeça que pudesses vir para aqui.
O pânico desaparecera, quer tivesse sido por causa da pancada que me dera, ou por causa da comida e bebida me terem enchido a barriga vazia, não sabia.
- Para onde mais é que eu poderia ter ido? - perguntei-lhe.
- À Polícia, possivelmente - encolheu os ombros -, pensando que te ilibarias ao acusar-me. Não daria resultado, sabes. Nunca te acreditariam. - Levantou-se e, dirigindo- se a um dos tratadores, recebeu dele um esfregão de couro, molhou-o num balde de água e voltou para junto de mim. Limpa a cara com isto - mandou. - Tens sangue na boca.
Limpei-me, depois comi mais um pãozinho e bebi um segundo gole de café.
- Eu sei por que é que mataste a Marta - declarei. Regressei sem nenhuma ideia de ir falar à Polícia, eles podem prender-me, querem fazê-lo, mas sim de te dizer que te compreendo.
Pus-me em pé, atirando-lhe o esfregão encharcado e sacudindo a terra que tinha nas roupas. Esquecera até esse momento o meu aspecto insignificante, sujo e por barbear, nas minhas calças de ganga negras e a camisa verde-jade, o meu cabelo cortado à presidiário. Aldo, vestido como o tinha visto no Palácio Ducal na quarta-feira à noite, resplandecente, elegante, parecia fazer parte do local, tal como os cavalos, agora passeando em torno da estátua do duque Carlo.
- Existem dois registos baptismais em San Cipriano - disse-lhe. - Um de um filho que morreu, o segundo de ti mesmo. Os duplos registos não faziam para mim sentido quando os encontrei na semana passada; nem o nome do teu padrinho, Luigi Speca, nem mesmo a carta que te dei na quarta- feira. Só ontem, na praia de Fano, é que adivinhei a verdade. Estava lá uma freira, com um pequeno grupo de órfãos. Contou-me que o director do Asilo de órfãos de Ruffano, há cerca de quarenta anos, se chamava Luigi Speca.
Aldo fitava-me, sem sorrir. Depois, abruptamente, rodou sobre os calcanhares e afastou-se de mim. Dirigiu-se para junto dos cavalos e principiou a dar ordens aos tratadores. Observei-o e aguardei. Começaram os longos preliminares da atrelagem. Cada cavalo era ajaezado com a sua própria cabeçada ornamentada, escarlate com rebordos dourados, e os bridões que tinham sido usados até ao momento eram mudados para outros, decorados da mesma forma que as cabeçadas, apertados por largas faixas escarlates à volta dos peitos dos animais. O carro foi então trazido e a lança foi-lhes presa às selas por cadeias douradas. Aqueles cavalos ao jugo eram a parelha central, que transportava o carro entre os dois, mas depois vi mais dois a serem emparelhados de cada lado à parelha central, perfazendo seis ao todo, com os tirantes amarrados à parte da frente do carro. Os restantes doze foram, por seu turno, atrelados em grupos de quatro, alguma distância à frente dos que puxavam o veículo e dos seus parceiros, com as rédeas presas ao topo em arco do carro. A própria viatura, um peso-pluma montado sobre rodas de borracha, possuía uma guarda semicircular à volta da frente e lados, e um estrado para o condutor estar de pé. Havia espaço para duas pessoas, não mais, e a parte de trás era aberta, sem varão ou degraus. Cadeias atadas à frente e aos lados, prenderiam os passageiros ao carro como cintos de segurança. Uma vez seguros e em movimento, não poderiam cair, a menos que o veículo se voltasse, situação em que os cavalos a galope arrastariam o carro e os passageiros no seu rasto, provocando-lhes morte certa.
Agora que os cavalos estavam atrelados e o carro no seu lugar, cessou todo o movimento. Os tratadores, postados ao lado dos animais, estavam em silêncio, tal como os polícias que formavam o cordão em torno da praça. Então, Aldo aproximou-se de mim. Tinha o rosto pálido, inescrutável, como na quarta-feira à noite.
- Mandei-te para Fano, acreditando que seria melhor para ambos - declarou -, mas uma vez que aqui estás, poderás muito bem tomar parte. O papel de Falcão ainda é teu. Isto é, se tiveres coragem para aceitares desempenhá-lo.
A sua voz fez-me voltar aos dias da minha infância. Era o velho desafio, proferido com a mesma graciosidade desdenhosa, a mesma sugestão tácita da minha própria inferioridade. No entanto, estranhamente, já não se lhe notava o tom de zombaria.
- Quem teria feito de Falcão se eu me tivesse ido embora de barco com o Marco? - perguntei.
- Tencionava ir sozinho - respondeu. - Há quinhentos anos não havia condutores de carros. O Falcão era quem guiava os seus próprios cavalos.
- Muito bem - retorqui -, nesse caso poderás tu guiá-los para me transportares.
A minha resposta, tão surpreendente para mim mesmo como o foi para ele, apanhou-o momentaneamente desprevenido. Devia ter esperado da minha parte uma argumentação infantil no sentido de ser poupado a participar nas suas aventuras. Depois sorriu.
- Encontrarás no carro a roupa do duque Claudio - disse -, e a peruca. O Jacopo está lá. Dar-tas-á.
Deixara de ter consciência de sentimentos ou de medo. Encontrava-me mentalizado para aquilo que se ia seguir. A decisão fora tomada. Encaminhei-me para o automóvel, deparando-se-me aí Jacopo. Não tinha reparado nele quando o carro chegara, mas devia ter estado todo o tempo ao lado de Aldo.
- Vou com ele - anunciei.
- Sim, senhor Beo - replicou.
Notava-se-lhe certa expressão no olhar. Anteriormente nunca lha conhecera. Surpresa, sim, mas também respeito, até mesmo admiração.
- Vou fazer de duque Claudio - declarei -, e Aldo será o condutor do carro.
Ele não fez comentário, mas abriu-me a porta, entregando-me a túnica. Ajudou-me a envergá-la, amarrando-me a faixa em volta da cintura. Depois deu-me a peruca, eu coloquei-a sobre o cabelo revolto e contemplei-me no espelho.
Via-se um golpe na minha boca, no sítio onde Aldo me acertara e o sangue secara na face. A peruca loira enquadrava-me o rosto branco por barbear e os meus olhos defrontavam-se, baços e fixos, como os do duque Claudio no quadro do Palácio Ducal. Eram também os olhos do Lázaro da Igreja de San Cipriano.
Virei-me para Jacopo.
- Que tal o meu aspecto? - perguntei.
Ele ponderou gravemente, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- Parece-se muito com a sua mãe, a senhora Donati - respondeu.
A sua intenção era ser delicado, mas aquilo soou-me como um insulto final. A humilhação de anos regressava. A estúpida figura que voltou descalça para o carro subindo para junto de Aldo, não era a do duque Claudio, nem a do Falcão que era suposto representar, mas um espantalho com a efígie da mulher que eu rejeitara e desprezara durante vinte anos.
Mantive-me imóvel, deixando que Aldo me prendesse ao carro com as cadeias de segurança. Depois atou-se a si próprio. As rédeas dos cavalos do centro e as dos guias foram-lhe passadas pelos tratadores por sobre a frente do carro. Soltaram os bridões, enquanto o meu irmão segurava nas mãos as inúmeras rédeas. Os cavalos, sentindo o puxão, avançaram em frente. O distante campanário junto do Duomo bateu as dez horas, ecoando por todas as igrejas de Ruffano. O voo do Falcão havia principiado.
Circundámos primeiro a praça, calmamente, progredindo em triunfo, como o imperador Trajano a entrar em Roma. Os doze animais dianteiros viraram para a direita, obedientes às rédeas e depois os seis que se encontravam atrás, em linha, voltaram igualmente, produzindo um movimento de viragem como o desdobrar de um fole fantástico, arrastando consigo o nosso carro pintado.
As ruas encontravam-se vazias, como os polícias tinham garantido, mas cada janela estava escancarada, pejada de espectadores e, enquanto avançávamos lentamente diante deles, o sussurro de espanto, de admiração, chegou-nos ampliado como um único grito. O brado ergueu-se no ar vindo de múltiplas gargantas, transformando-se de surpresa em aclamação e depois principiaram os aplausos, mãos levantadas a baterem palmas, assemelhando-se ao esvoaçar de inúmeras asas. Os dezoito cavalos, indiferentes ao estrondo, completaram a volta e prosseguiram, com o metal brunido dos seus jaezes a rebrilhar ao sol da manhã, o tilintar dos ferros a tocar a sua própria música desafiadora, em contraste com o tumulto da multidão. Não se ouvia o bater dos cascos dos animais, porque todos estavam especialmente calçados e, ao caminharem, o som era abafado, monótono, num tom estranhamente emudecido, silencioso como o das rodas.
Circundámos duas vezes a praça, por duas vezes os dezoito cavalos e o seu condutor circularam e avançaram em preito à multidão que aplaudia e então os tratadores aproximaram-se mais uma vez das cabeças dos animais, conduzindo-os e a nós para a extremidade mais afastada da praça, no sítio onde ela era mais larga. Virámos de novo e ficámos então de frente para a Via del Duca Carlo, que dava para o fundo da colina. Foram efectuados ajustamentos nas rédeas e nas correias, bem como nos cilhões dos cavalos centrais. Os tratadores examinaram os cavalos um a um, informando Aldo. Tudo isso levou cerca de quatro minutos e deu-me a impressão de que, nesses curtos momentos derradeiros, em que o meu irmão reuniu as rédeas e os tratadores recuaram de cada lado, eu tinha atingido o ponto mais alto do pânico; nada, nem o holocausto final nem o último embate, poderia exceder aquele segundo no tempo.
Olhei para Aldo. Estava pálido como sempre, mas agora com uma tensa excitação que nunca antes lhe tinha visto, e o sorriso ao canto da sua boca parecia mais uma careta.
- Deverei rezar? - perguntei-lhe.
- Se isso te acalma os receios, fá-lo - respondeu. A única oração admissível é aquela que pede a concessão de coragem.
Nenhuma das orações da minha infância se revelava apropriada, nem o padre-nosso, nem a ave-maria. Pensei em todos os milhões de milhões de pessoas que tinham apelado para Deus e haviam morrido... até o próprio Cristo na Cruz.
- É tarde de mais - retorqui. - Seja como for, eu nunca tive coragem.
Ele riu-se e gritou aos cavalos. Largaram a trote, passando depois para galope, ganhando velocidade, com os cascos protegidos a batucarem no solo duro.
- O teu comandante alemão devia ter-te citado Nietzsche - disse o meu irmão. - Aquele que já não consegue divisar o que é grande em Deus, não o encontrará em parte nenhuma; terá de o negar, ou de o criar. "
Chegámos à frente da praça, à última zona de chão nivelado e a multidão, vendo os cavalos a galope, explodiu mais uma vez numa tempestade de aplausos. Os gritos no recinto agora atrás de nós foram ecoados pelas massas que aguardavam em cada janela e, por um só momento, ali no cume da colina norte, divisei o conjunto completo da cidade espalhada lá em baixo, os topos dos telhados, as igrejas, as espirais dos prédios e, acolá ao longe, coroando a encosta sul, o Duomo e o Palácio Ducal. Depois a Via del Duca Carlo abriu-se por baixo de nós como a descida para o inferno e, à medida que a rua estreitava e se encurvava, os cavalos da frente viravam sob a pressão das rédeas, nunca se detendo no seu voo temerário, com os cascos abafados a martelarem as pedras da calçada, no seu tom poderoso mas emudecido; as casas pareciam fechar-se sobre nós, inclinando-se precariamente na colina, como formas de cartão de janelas escancaradas, cada uma a projectar um rosto cá para fora, a soltar um grito, um terrível rugido tumultuoso.
Nesta zona não havia cordões de polícias, nem se viam guardas uniformizados, a rua era toda nossa e, quando estrei tou antes de descer para a Piazza della Vita, no coração da cidade, os seis cavalos que estavam amarrados em linha ao carro, por trás dos guias, tocavam de ambos os lados nos limites da Via del Duca Carlo. Um momento de resistência ao freio, um esboço de sobressalto de qualquer dos doze animais da frente, faria tombar os demais; poderiam cair uns sobre os outros numa massa confusa e afocinharem, connosco e o carro voltados e enterrados no meio.
A rua encurvava e estreitava-se ainda mais, com os cavalos dos flancos seguramente a rasarem os lintéis das portas e, à medida que mergulhávamos mais profundamente no coração da cidade, eu perdia a consciência da velocidade; nem a voz de Aldo a incitar e a gritar aos animais, nem o enganoso e balançante abrigo em que me encontrava; só via as massificadas e aterrorizadas faces em todas as janelas, os gritos que se erguiam enquanto aumentava o nosso ritmo temerário e chegava- me às narinas o odor a carne de cavalo, enquanto apertava com mãos enclavinhadas o quente varão do carro. A Igreja de San Cipriano surgiu à esquerda do meu campo de visão, com os respectivos degraus apinhados de estudantes, a gritarem, a vociferarem, aglomerando-se também nas ruas convergentes; ao entrarmos como um trovão na Piazza della Vita, cada janela de cada prédio estava acesa em chamas com mãos a gesticularem, bocas a berrarem, a gritarem. Os cavalos, sentindo outra vez terreno nivelado, rasgaram o galope, os guias a dirigirem-se para a Via Rossini, no extremo mais afastado da praça, subindo assim a colina na direcção do Palácio Ducal, aguilhoados pelo seu próprio ímpeto, enlouquecidos e excitados pelo crescendo de terror e aplausos.
Olhando para trás, vi os estudantes lançarem-se das ruas laterais para a praça, brotarem de janelas, portas, espalhando-se pelo recinto e enchendo-o duma súbita movimentação, como a de uma enorme vaga. Mas, em vez do rugido e cólera que esperara, dos arremessos de pedras, do chocalhar de aço, do libertar de ódios reprimidos quando as facções oponentes se encontrassem e misturassem, eles começaram a enxamear pela colina acima atrás de nós, a gritarem, a aplaudirem, acenando-nos e bradando, enquanto corriam: Donati... Donati... viva Donati... "
Agora, enquanto escalávamos a colina sul, subindo a Via Rossini, com o nosso carro pintado a balançar, a tremer atrás dos cavalos a galope, os estudantes saíam dos prédios de cada lado, para se juntarem aos seus colegas. A gritaria parou e o terror também se extinguiu; a violência que se via em todos eles era a da excitação, das aclamações. Toda a cidade gritava. o único som que se distinguia era o rugido: Donati... Donati... " Aldo berrou-me aos ouvidos:
- Ainda não estão a lutar?
E eu retorqui no mesmo tom:
- Nem vão lutar; estão a seguir-nos. Não os ouves a gri tarem por ti?
Concentrado nos cavalos, limitou-se a sorrir e, à medida que a rua se tornava mais estreita e mais íngreme, os guias, apercebendo-se do aumento de inclinação, esforçavam-se por trepar a colina antes de perderem embalagem, antes que a escarpada rua a subir, curvando para a direita, vencesse a sua tentativa de dominarem a gravidade.
- Arre! Arre! - vociferava Aldo e o seu brado, incitando os guias a esforçarem-se ainda mais, com o estrondo de uma fila de seis cavalos por trás deles, levou-os à vista da Piaza Maggiore antes de atingirem o Palácio Ducal e, valentemente soberbamente, enfrentaram o último declive. Enquanto vacilavam e cambaleavam, os estudantes que aguardavam para alén da fonte correram na direcção deles, segurando-lhes os bridões. A nossa fila de seis cavalos, arrastando-nos consigo, arrostou com a derradeira subida e, ofegantes, com os flancos a estremecer, os animais sentiram finalmente a pressão das rédeas nos freios e detiveram-se no sítio em que a praça se alargava, diante das portas do palácio.
Ainda soavam inúmeros gritos e, ao olhar em torno de mim, tonto, com uma das mãos ainda enclavinhada no varão do carro, reparei que as janelas do Palácio Ducal estavam pejadas por rostos, tal como as casas do outro lado da praça. Havia pessoas de pé nos degraus do Duomo, agarradas à fonte, e agora uma massa de estudantes que nos tinham seguido pela colina acima vindos da Piazza della Vita enxameava na praça. Num momento estaríamos cercados, engolidos, mas os estudantes armados que nos esperavam junto das portas do palácio, formaram imediatamente um círculo em torno de nós, enquanto cada um dos dezoito cavalos tinha um rapaz de ambos os lados a segurar-lhe o bridão. A cavalgada, com nós próprios no meio, era agora protegida por um simples cordão de espadas, todos os estudantes vestidos como Aldo, de gibão e calções; reconheci os seus amigos Cesare, Giorgio, Federico, Domenico, Sergio e os outros guarda-costas. O cenário que criavam, a mancha de cor junto do carro pintado e dos dezoito cavalos, ainda ofegantes, palpitantes da sua vitoriosa corrida, deparava-se ao corpo de estudantes que emergia, berrando e bradando na praça. Uma vez mais ergueu-se o grito: Donati... viva Donati... ecoando nas janelas do palácio, brotando das casas em frente, das escadas do Duomo. Olhei para Aldo. Conservava as rédeas nas mãos e contemplava os dezoito cavalos, sem dar conta dos aplausos. Depois virou-se para mim.
- Conseguimos - exclamou. - Conseguimos... - e principiou a rir, atirando a cabeça para trás e soltando gargalhadas que foram seguidas pelas da multidão de estudantes e cidadãos de Ruffano. Desprendeu-me então das cadeias que me atavam ao carro, desprendeu-se também ele e bradou para os estudantes que formavam o cordão:
- Aqui está o Falcão! Aqui está o vosso duque! Eu não conseguia ver mais nada senão braços agitando-se e cabeças balançando-se; a gritaria tornou-se mais forte, em vez de cessar. Os rapazes que guardavam o carro também berravam, fazendo-me sentir desorientado, indefeso, uma figura imbecil na minha peruca dourada e na minha túnica cor de açafrão, agradecendo as aclamações que não me eram destinadas.
Algo me atingiu na cara, caindo no chão do carro. Não era a pedra que eu aguardara, mas sim uma flor e quem a tinha atirado fora Caterina.
- Armino! - gritou -, Armino!
Tinha os olhos enormes, alargados pelo riso, e eu reparei então que a túnica cor de açafrão se tinha entreaberto, revelando a camisa verde-jade e as calças de ganga pretas que se encontravam por baixo; onda após onda de gargalhadas, felizes, amigáveis, encapelavam-se acima dos aplausos.
- Não é a mim que eles querem, é a ti - disse para Aldo. Mas ele não respondeu e, olhando para trás, reparei que tinha saltado do carro e, mergulhando sob o cordão que nos rodeava, corria para a porta lateral do Palácio Ducal. Gritei a Giorgio: - Fá-lo parar... detenham-no... - mas ele, a rir-se, abanou a cabeça, recusando.
- Faz tudo parte do plano - retorquiu -, vem tudo no livro. Ele vai mostrar-se à multidão que está na Piazza del Mercato.
Arranquei a túnica e a peruca, arremessando-as para o chão e saltei do carro, correndo atrás de Aldo. As gargalhadas e os aplausos perseguiram-me - ouvia-os enquanto corria. Sacudi a mão de Domenico que procurava deter-me e penetrei velozmente pela porta lateral, percorri a passagem e atravessei o pátio quadrangular em perseguição de Aldo. Ouvi-o correr pelas escadas acima para a galeria e fui atrás dele. Entrou de sopetão pela grande porta, dirigindo-se para a Sala do Trono, rindo-se enquanto corria. Eu estava nos seus calcanhares mas ele bateu com a porta e, quando a abri, tinha voado através do compartimento, na direcção da Sala dos Querubins, que ultrapassou.
- Aldo - gritava -, Aldo!
Não se via ali ninguém. A Sala dos Querubins estava vazia. Bem como o quarto de dormir do duque e o quarto de vestir, assim como a pequena capela por baixo da torre da direita. Ouvindo vozes, fui à varanda entre as torres, encontrando ali a senhora Butali com o reitor, ambos a observarem a Piazza del Mercato lá em baixo. Voltaram-se atónitos quando corri para eles, fitando-me inexpressivamente, a senhora revelando um súbito pânico.
- Que foi, que se passou? - indagou ela. - Ouvimo-los a aplaudirem na cidade. Está tudo terminado?
- Como pode estar terminado? - interpôs o reitor. O Donati falou-nos do final que se seguiria ao voo do carro. Ainda não o vimos.
Parecia perplexo, desapontado, sentindo-se defraudado da magnificência que não presenciara. Fui da varanda para a Sala de Audiências. Estava vazia, como as outras. Então, quando chamava mais uma vez por Aldo, Carla Raspa surgiu da galeria. Estendeu-me as mãos, rindo-se e gritando.
- Vi-o da janela - exclamou. - Foi maravilhoso, soberbo. Vi-os a ambos atrás dos cavalos, a entrarem na Piazza Maggiore. Onde foi ele?
Hoje não havia ali guardas, não havia guias. O retrato da dama permanecia no seu cavalete, sem ninguém reparar nele, a tapeçaria encontrava-se no seu lugar na parede. Atravessei a sala correndo e puxei-a para trás, revelando a porta fechada. Abri-a e, colocando uma mão a seguir à outra nos estreitos e contorcidos degraus, comecei a escalá-los. Enquanto o fazia, gritava: Aldo! " Os enjoos e vertigens de que sofrera em criança tomaram-me. Não conseguia ver, só podia sentir a retorcida espiral de degraus até lá acima. Subindo, subindo, sempre a subir, com o coração a rebentar e o ventre a revolver-me, com as mãos tacteantes enferrujadas por anos de inactividade. Ouvia-me a mim mesmo a soluçar enquanto me arrastava e a torre parecia-me permanentemente fora do alcance, como o poço lá em baixo. O tempo estava suspenso, a razão também. Nada mais restava dentro de mim a não ser a premência de trepar, escorregar, vacilar, balançando-me entre céu e inferno. Então, erguendo a mão, senti o ar e verifiquei que a porta que dava para a balaustrada se encontrava aberta. Uma vez mais chamei: Aldo! ", abrindo pela primeira vez os olhos desde que principiara a arrastar-me pela escadaria contorcida. A mancha de luz do céu, brilhante com o sol, provocava-me uma visão imprecisa. Pareceu-me distinguir o abrir das asas de uma ave, o seu corpo a escurecer a porta aberta, e rastejei às cegas em frente, tonto de náusea, agarrei-me ao degrau de cima e espreitei, não reconhecendo o que via.
A porta tinha metade do tamanho de que me lembrava dos dias da minha infância, e o estreito patamar para além dela, sem protecção, não era a balaustrada a que costumávamos trepar. Tinha uma forma octogonal, não redonda. Subitamente, compreendi. Eu tinha trepado do lado de fora do corrimão. Encontrava-me no pequeno parapeito que ficava além do minarete. O pináculo erguia-se para o céu acima de mim.
Senti as mãos dele no meu corpo. Arrastou-me das escadas para o patamar.
- Fica quieto - mandou Aldo. - O rebordo dá-te pela coxa, não mais. Se olhares para baixo, cais.
Parecia-me que o torreão balançava. Talvez fosse o céu. As minhas mãos agarraram as dele. Estavam escorregadias do suor, mas ele tinha-as frias.
- Como é que descobriste o caminho? - perguntou-me.
- A porta - respondi -, a porta escondida por detrás da tapeçaria. Lembrei-me dela.
Os seus olhos mostraram espanto, perscrutaram-me e abriram-se em riso.
- Ganhaste - admitiu. - Eu não contava com isso. Pobre Beato.
Depois, franzindo as sobrancelhas, firmando-me com o seu braço, disse:
-tinhas feito melhor se tivesses ido para o barco do Marco. Por isto é que te mandei para lá. Esta batalha não é tua. Apercebi-me disso na quarta-feira à noite.
Ainda estavam a aplaudir e a gritar na Piazza Maggiore, junto da entrada do Palácio Ducal, e agora erguiam-se também gritos da Piazza del Mercato, por baixo das torres. Encostado a Aldo, eu só conseguia ver o céu. O barulho que vinha de baixo de nós, erguia-se de ambos os lados. Os estudantes deviam estar a descer da Piazza Maggiore para a do Mercato, que ficava umas dezenas de metros mais abaixo, para além da Porta del Sangue e dos muros da cidade.
- Não há nenhuma batalha - afirmei eu. - Os teus cálculos estavam errados. Os teus discursos inflamados não foram mais que esforços desperdiçados. Escuta esses aplausos.
- Era isso que eu queria dizer - comentou. - Podia ter corrido de outra forma. Se nós e os cavalos nos esmagássemos, se tivéssemos falhado, estariam agora a matar-se uns aos outros, cada facção a gritar sabotagem. Era um jogo.
Encarei-o sem compreender.
- tu não fizeste tudo deliberadamente? - perguntei. Levaste-os àquele frenesim, jogando com centenas de vidas, incluindo a tua, com a incrivelmente improvável hipótese de a proeza de Claudio os poder unir temporariamente?
Olhou para mim e sorriu.
- Não tão temporariamente como isso - respondeu. Verás. tiveram a possibilidade de cheirar sangue, era isso que pretendiam. E a cidade também. todos os que nos viram hoje cavalgar, participaram. É a primeira e mais importante lição que um director de espectáculos tem de aprender: pôr o público todo de acordo.
Ainda agarrado a mim, levou-me para mais perto da balaustrada e, segurando-me ao seu braço, olhei para baixo, para a Piazza del Mercato, para além dos muros da cidade. O grande recinto do mercado estava enegrecido de gente, tal como as ruas que para ele convergiam e, imediatamente por baixo de nós, na área alcantilada do palácio, maciços grupos de estudantes permaneciam de cabeças voltadas para cima.
- Se, por qualquer remota hipótese, a minha segunda iniciativa falhar - disse o meu irmão -, deixo-te tudo a ti. É teu por direito. Fiz o testamento na noite de quarta-feira, depois de me teres entregue aquela carta, pedindo à Livia
Butali e ao marido que me servissem de testemunhas. Relata que somos irmãos - a minha vaidade pessoal impede-me de admitir outra coisa!
Da Piazza del Mercato chegou-nos o grito Donati! " quando os estudantes vindos da parte superior do palácio foram aumentar o número dos que já se encontravam lá em baixo. Devem ter-nos visto a mexer no estreito rebordo para além do minarete, porque os brados cresceram de intensidade e todas as cabeças estavam voltadas para o céu.
- tu tiveste razão em suspeitar da minha determinação em não me colocar mal - disse Aldo -, mas não a tiveste ao acusar-me de silenciar a caluniadora. O comissário telefonou para falar comigo, já tarde na noite. A Polícia não andava atrás de ti, queriam simplesmente descobrir se tu sabias mais do que aquilo que lhes tinhas contado.
- Não mataste a Marta? - balbuciei, estupefacto e envergonhado.
- Sim, matei-a - confirmou -, mas não com uma faca; ela só serviu para o golpe de misericórdia. Matei-a por a ter desprezado, por ter tido demasiado orgulho para aceitar o facto de ser filho dela. Considerarias isso um assassínio?
Aldo era filho de Marta. Nesse momento tudo se me tornou nítido. As peças do puzzle encaixaram. O rapaz abandonado, com a sua mãe para tratar dele na qualidade de ama, tinham ambos vindo viver sob o tecto dos meus pais. O enjeitado tomou o lugar do filho que haviam perdido. A mãe dedicou-se a Aldo, depois a mim. Guardou o seu segredo até àquela noite de aniversário em Novembro quando, num súbito impulso de ébria, revelou a verdade.
- Bem - repetiu ele -, foi assassínio ou não foi? Eu deixara de pensar no seu parentesco com Marta, para me ocorrer a recordação da minha própria mãe, que morrera de cancro em Turim. Quando me escrevera umas linhas do hospital, eu não Lhe tinha respondido.
- Sim - afirmei -, foi assassínio. Mas ambos somos culpados e pelo mesmo motivo.
Olhámos os dois para baixo, para a multidão que aplaudia. O grito Donati... viva Donati! " não era destinado a nenhum de nós; era para uma figura lendária que os estudantes da Universidade e os cidadãos de Ruffano tinham criado nos seus espíritos, nascida do desejo que todos os homens experimentam de adorar algo maior do que eles.
- O voo terminou - declarei. - Diz-lhes que já acabou.
- Mas não terminou - contrariou o meu irmão. - O autêntico voo ainda está para vir. Foi testado nos montes, tal como a corrida de carro.
Encostou-me ao rebordo e, tacteando o caminho em volta da balaustrada, alcançou o parapeito, para trazer de lá um objecto longo e esguio, de cor prateada, feito de um milhão de penas, as quais, quando as tocou, estremeceram ao vento. Estavam cosidas sobre seda, o pano dum pára-quedas e, por baixo do material, havia varetas de fibra entrelaçadas. Cordas pendiam-lhe do centro, formando um arnês. Aldo levantou-as, pondo todo o aparelho de pé sobre a plataforma, depois desdobrou-as e vi então que se tratava de asas.
- Não te sintas decepcionado - disse o meu irmão. - temos estado a trabalhar nisto durante todo o Inverno. E quando digo temos", incluo os meus ex-camaradas da Resistência que hoje em dia se dedicam ao voo em planadores. Estas asas foram desenhadas de acordo com uma fórmula específica, idêntica à estrutura das de um autêntico falcão. Experimentámo-las nos montes, tal como fizemos com os cavalos e posso garantir-te que me assustam pouco.
Pôs-se a rir para mim.
- Durante o meu último voo aguentei-me no ar dez minutos - declarou -, nas encostas ocidentais do monte Cappello. Digo- te que não há nada que se Lhes possa apontar. O mecanismo não poderá falhar. A única hipótese de falhanço reside no elemento humano. E, depois do que já consegui fazer, não será provável.
Já não estava branco e tenso como anteriormente durante a corrida. O sorriso na sua face era alegre, não uma careta. Ergueu uma das mãos em saudação à multidão lá em baixo.
- A aterragem é que é dura, não o voo - continuou a dizer. - Eu vou procurar passar sobre a praça e aterrar no terreno mais macio das encostas do vale. O pára- quedas que está por trás das asas abrir-se-á quando lhe soltar as cordas, servindo-me de travão. Disseram-me, quando o fiz nos montes, que a queda me fez parecer um papagaio amarrotado. Mas nunca se sabe. Posso ser mais bem sucedido desta vez.
A sua confiança era arrogante, suprema. Olhou para os montes distantes e sorriu.
- Aldo, não vás - pedi. - É uma loucura. Um suicídio. Não me escutava. Não me dava atenção. A sua fé era a de um fanático, que mostrara, durante os séculos, conduzir os crentes à destruição. Como acontecera com Claudio antes dele, podia acabar por morrer.
De pé na plataforma, principiou a prender o arnês em volta da cintura, afivelou as correias aos ombros, meteu-se nas fendas que lhe comportariam os pés. Enfiou ambos os braços na rede de fibra por entre as asas, fazendo-as levantar. Como águia de asas abertas tinha, no entanto, a meus olhos, um ar indefeso, até grotesco. Nunca seria capaz de se libertar das amarras que o prendiam. As varetas, negras por trás do prateado, pareciam unhas.
A multidão, noventa metros ou mais abaixo de nós, na Piazza del Mercato, ficou repentinamente silenciosa. As cabeças unidas viraram-se para cima, agora sem gritarem Donati! Observavam e esperavam, enquanto o vulto auto-aprisionado se mantinha imóvel no rebordo da plataforma, destacando-se contra o céu.
Arrastei-me para mais perto e pus-lhe os braços em redor do corpo, prendendo-lhe as pernas.
- Não - bradei -, não...
Devo ter gritado, porque a minha voz regressou até mim como um eco zombeteiro e, viajando para baixo, foi ouvida pela multidão; gerando o pânico. Ergueu-se um suspiro que se transformou em protestos de alarme.
- Ouve-os - gritei. - Eles não querem que o faças. têm fazê-lo de novo?
Baixou os olhos para mim e sorriu.
- Porque é assim - respondeu. - Uma vez nunca é bastante. É isso que eles precisam de aprender. Tu, Cesare, todos os estudantes que ali estão à espera, toda Ruffano: uma vez não basta. Tem-se sempre de arriscar uma segunda vez, uma terceira, uma quarta, independentemente daquilo que se pretende realizar. Sai da minha frente!
Sacudiu o pé para trás, atirando-me de rastos contra a porta. Tombei de lado, batendo no degrau com o peito e, momentaneamente abalado, ajoelhei ali por um instante, esforçando-me por respirar, de olhos fechados. Quando os abri de novo, ele estava com as asas abertas, preparando-se para voar. Já não me parecia grotesco, mas sim belo. Quando se lançou no ar, a corrente de vento encheu o tecido das asas, que se inflaram, depois retesaram-se, como no súbtio balanço de um brinquedo de criança. O seu corpo encontrava-se na horizontal entre as asas, os braços e pernas metidos nas fendas faziam parte da estrutura. Flutuando sem esforço, sobrevoou a multidão, derivando ao sabor do vento, como me tinha dito. As penas prateadas transformaram-se em ouro à luz do Sol. Deslizando para sul, iria tocar no solo do vale para lá do recinto do mercado.
Aguardei que puxasse a corda do pára-quedas de travagem, como descrevera. Não o fez. Em vez disso, deve ter libertado o corpo, deixando o aparelho que ajudara a construir derivar sem ele. Atirou-se de braços abertos como as asas de que se libertara; depois, tendo-as ao lado, mergulhou para terra e caiu, com o seu corpo pequeno e frágil traçando um risco negro contra o céu.
Extracto de THE AJEEKLY COURIER de Ruffano: O professor Aldo Donati, director do Conselho de Artes e
importante cidadão da nossa amada cidade, que perdeu a vida num trágico acidente no dia do festival, será chorado não só pelo irmão que Lhe sobreviveu e pelos seus amigos, como também por todos os estudantes da Universidade, pelos seus colegas e associados e por todos os habitantes de Ruffano, que ele tanto amava. O filho mais velho de Aldo Donati, que durante muitos anos foi superintendente do Palácio Ducal, nasceu e foi educado nesta cidade. Durante a guerra cumpriu serviço militar na Força Aérea, merecendo as suas asas de piloto. Abatido em 1943, conseguiu escapar e, durante a ocupação alemã, formou um grupo de resistentes nas montanhas, lutando entre os seus camaradas até à Libertação.
Regressado a Ruffano, soube da morte do pai, algum tempo antes, num campo de prisioneiros aliado e da presumível morte de sua mãe e irmão mais novo num bombardeamento inimigo. Corajoso, embora desolado, Aldo Donati estudou na Universidade de Ruffano e obteve classificação honrosa no seu curso de Artes. Entrou para o Conselho de Artes, devotando o resto da vida ao seu trabalho e, por fim mas não menos importante, à caridade para com estudantes órfãos. Tive o privilégio, na minha qualidade de reitor da Universidade, de trabalhar com ele em realizações do festival, e só posso afirmar que, sem quaisquer qualificações para tal, a sua capacidade nesse campo ultrapassava tudo o que até então eu tinha visto. Era brilhante e o seu entusiasmo inspirava tanto os actores, bem como todos os que tomavam parte no festival, que chegavam a acreditar - e falo por experiência própria, contando-se minha mulher e eu entre os participantes até este ano - que aquilo que representavam não era ficção mas sim realidade.
Não será necessário discutir-se aqui se a sua opção para o festival deste ano foi ou não sensata. O infeliz duque Claudio não é alguém cuja memória queiramos recordar; os cidadãos de Ruffano de ontem e de hoje preferem esquecê-lo. Era um homem demoníaco com diabólicas intenções, disposto a causar o mal a todo o seu povo, somente admirado por um estreito circulo de amigos, tão ignóbeis como ele próprio. Deixou atrás de si um legado de ódio. Seja como for, Aldo Donati decidiu que ele tinha direito à fama, ao menos por causa da sua proeza de conduzir dezoito cavalos através da cidade de Ruffano, da colina norte para a colina sul. Se de facto conseguiu realizar tal proeza é ainda incerto. Aldo Donati conseguiu-o. As pessoas que o viram na sexta feira de manhã nunca esquecerão essa experiência.
Se tivesse ficado por aí já seria o suficiente. O que conseguira era fantástico, até sublime. Mas ele tinha objectivos mais altos ainda e perdeu a vida ao procurar atingi-los. O mecanismo não falhou. Peritos examinaram o aparelho. Aldo Donati parece ter ignorado as regras mais elementares que todos os aprendizes de pára-quedismo são ensinados a respeitar: puxar a corda a tempo. Por que as ignorou, é coisa que nunca saberemos. O irmão, Armino Donati, que regressou a Ruffano na semana passada, após uma ausência de mais de vinte anos e que permanecerá, assim o desejamos, entre nós para continuar o trabalho com os estudantes órfãos, disse-me acreditar que o irmão, no meio do voo, teve uma súbita visão, qualquer espécie de êxtase que o cegou para o perigo.
Pode ser verdade. Como Ícaro, ele voou demasiado perto do Sol. Como Lúcifer, caiu. Nós, os cidadãos de Ruffano que cá ficámos, saudamos a coragem de um homem ousado.
GASPARE BUTALI
Reitor da Universidade de Ruffano
Ruffano, Semana da Páscoa
Daphne Du Maurier
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